Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAIXÃO OBSCURA / Nora Roberts
PAIXÃO OBSCURA / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAIXÃO OBSCURA

 

Ela não era de confiança...

Embora Jonah Blackhawk houvesse concordado em proteger Allison Fletcher, ela não se sentia nem um pouco atraída pelo caráter sombrio de Jonah...Mas, curiosamente, seu pulso acelerava quando ele a tocava.

Até então, Jonah nunca se interessara por uma policial. Mas ao conviver com Allison não pôde evitar a atração que sentia...Se ao menos ela não tivesse olhos cor de uísque e um sorriso que derretesse seu coração...Se ao menos parasse de deseja-la...

 

Não gostava de policiais.

O sentimento tinha raízes profundas, originário do fato de ter passado os primeiros anos da vida driblando-os, fugindo deles... ou lutando com eles, quando seus pés não eram rápidos o bastante. Ao doze anos, já batera muitas carteiras e conhecia melhores e mais lucrativos meios de transformar relógio quente em dinheiro frio.

Na época, já aprendera que saber as horas talvez não comprasse felicidade, mas os vinte dólares que o relógio rendia pagavam uma bela fatia da torta da felicidade. Aprendera também que vinte dólares podiam se transformar em sessenta numa bem-sucedida aposta de três para um.

No mesmo ano em que completou doze anos, investiu as economias bem guardadas em um pequeno negócio de jogo que centralizava a renda de outros pontos e favorecia seu interesse por esportes.

Era um empresário nato.

Não se associara a gangues. Para começar, nunca sentira vontade de integrar grupos e, mais importante, não gostava da "lei do mais forte" que imperava nessas organizações.  Se alguém precisava assumir o comando, preferia que fosse ele mesmo.

Diriam alguns que Jonah Blackhawk tinha problema com a questão da autoridade.

Tiro certeiro.

Supunha que a virada ocorrera ao completar treze anos. Seu interesse por jogo aumentara bastante... Demais na opinião de certos grupos estabelecidos.

Fora alertado da maneira clássica: com uma bela surra. Mas encarou os rins doloridos, o lábio cortado e o olho roxo como risco do negócio.Mas, antes que pensasse em conquistar território, teve os planos frustrados. Bem frustrados.

Policiais incomodavam muito mais do que concorrentes.

Mas o policial que se intrometera em sua vida era diferente. Jamais entendeu claramente o que o separava dos colegas no que se referia a disfarces e manuais. Em vez de mandá-lo para o reformatório, onde Jonah Blackhawk já era conhecido, encaminhou-o a programas, centros de juventude e aconselhamento.

 

Naturalmente, Jonah gritara e esperneara, mas o policial tinha mão de aço e, quando pegava, não soltava mais. Tanta tenacidade o espantara. Ninguém jamais se importara com sua pessoa antes.

 

Viu-se reabilitado quase contra a vontade, ao menos o suficiente para ver que talvez não desse para trabalhar no sistema, mas que havia vantagens em trabalhar o sistema.

 

Agora, aos trinta anos, ainda não se considerava pilar da comunidade de Denver, mas era um empresário legítimo, cujas empresas rendiam bom lucro e lhe permitiam um estilo de vida com o qual o garoto de rua jamais sonhara. Devia àquele policial, e sempre pagava suas dívidas.

 

Caso contrário, teria se atirado nu e acorrentado num formigueiro antes de se fazer anunciar ao chefe da polícia de Denver.

 

Mesmo tratando-se de Boyd Fletcher.

Jonah não andava de um lado para o outro. Era desperdício de energia e denunciava demais. A secretária do chefe de polícia era jovem, bonita, a sacudir uma reluzente cabeleira ruiva, mas não flertou com ela. Não era a aliança de casamento em seu dedo que o detinha, mas sua proximidade da sala do chefe e, por extensão, da fina linha que o separava da marginalidade.

Permanecia sentado em uma das cadeiras verdes da sala de espera, um homem alto de pernas longas, robusto em jaqueta de três mil dólares sobre camiseta de vinte dólares. Os cabelos eram negros, lisos e grossos. Estes, mais o tom dourado da pele e os malares largos eram herança do bisavô, um apache.

Já os límpidos olhos verdes, frios, deviam ser legado da bisavó irlandesa, que fora raptada pelo bravo indígena e acabara lhe dando três filhos homens. Jonah sabia pouco da história da família. Seus pais sempre se preocuparam mais em brigar pela última lata de cerveja do que em ler histórias para o filho antes de dormir. Às vezes, o pai se gabava da linhagem, mas nunca se sabia o que era fato e o que era invenção.

-O que pouco importava.

-Cada um se fazia por si só.

-Essa lição, Boyd Fletcher lhe ensinara. Só por isso, teria andado sobre brasas pelo chefe da polícia.

- Sr. Blackhawk? O delegado irá recebê-lo agora.

Sorrindo polida, a secretária se levantou para abrir a porta, dando uma boa olhada no visitante agendado para as dez horas, até porque mulher casada não e cega. Algo nele a fazia suspirar e, ao mesmo tempo sentir o impulso de fugir.

O olhar dele alertava quanto a ser perigoso, bem como o modo de andar: gracioso e ágil como um gato. Uma mulher podia criar fantasias interessantes com base em um homem assim... Sem contar que, provavelmente, as fantasias eram a maneira mais segura de se envolver com ele.

Ele deu um sorriso, tão cheio de poder e charme que ela suspirou feito adolescente.

—Obrigado.

Boyd já se levantava e saía de trás da escrivaninha!

— Jonah! — Apertou-lhe a mão e o abraçou com força. — Obrigado por vir.

— E difícil recusar um pedido do chefe da polícia.

Quando se conheceram, Boyd era um tenente de cabelos castanho-escuros com mechas douradas que trabalhava numa divisória de vidro pequena e atravancada.

Agora, totalmente grisalho, Boyd dispunha de um amplo escritório com ampla janela da qual se tinha bela vista de Denver e das montanhas ao redor.

Algumas coisas mudavam, pensou Jonah, e fitou Boyd nos olhos verde-garrafa. Outras, não.

— Café puro?

— Como sempre.

—Sente-se. — Boyd indicou a cadeira e se encaminhou à cafeteira elétrica. Insistira em ter uma na sala para não ter de chamar funcionários toda vez que quisesse cafeína.

 

 —Desculpe-me por fazê-lo esperar. Políticos — murmurou, enchendo duas canecas com forte café preto. — São insuportáveis.

Jonah não disse nada, mas sorriu.

— E não venha me dizer, a esta altura do campeonato, que sou um deles.

— Nem me passou pela cabeça. — Jonah pegou a caneca. — Dizer.

— Sempre foi um garoto esperto. — Boyd tomou uma cadeira ao lado de Jonah, em vez de ocupar a mesa. Soltou um longo suspiro. — Nunca pensei que fosse me enfurnar dentro de um escritório.

— Saudade da rua?

— Pode apostar. Mas essa é a vida. Como vai o novo estabelecimento?

 — Bem. Temos tido boa frequência.

— Verdade? Estava pensando em levar Cilla lá qualquer noite dessas.

 —Drinques e jantar por conta da casa... Algum problema em aceitar?

Boyd hesitou, tamborilando com os dedos na caneca.

  — Vou ver. Jonah estou com um pequeno problema e acho que você pode me ajudar.

— Diga.

—Tem havido uma série de furtos nos últimos dois meses. Os ladrões levam dinheiro e produtos fáceis de repassar, como jóias e eletrônicos.

— Na mesma área?

—Não, em toda parte. Casas simples na periferia, apartamentos no centro e condomínios. Foram seis furtos em menos de oito semanas. Agem rápido e somem.

— Bem, o que posso fazer? — Jonah pousou a caneca no joelho. — Não é bem a minha especialidade.

 

—Os alvos variam tanto quanto os locais — completou Boyd, sério. — Casais jovens, casais de meia-idade, solteiros. Mas todos têm uma coisa em comum: saíram para se divertir na noite do furto.

Jonah estreitou o olhar.

— Em um dos meus estabelecimentos?

— Em cinco dos casos.

Jonah bebeu o café contemplando o céu azul através Ia janela.

— Está me perguntando se estou envolvido?

—Não, Jonah, já superamos essa fase. — Boyd fez pausa. O garoto sempre fora sensível. — Eu, pelo menos.

Jonah levantou-se e levou a caneca para junto da cafeteira. Não havia muitas pessoas no mundo cuja opinião a seu respeito lhe importasse. Mas Boyd estava entre elas.

— Alguém está selecionando alvos em um de meus estabelecimentos — concluiu, de costas para Boyd. — não gosto nada disso. Qual deles?

—O novo, o Blackhawk's.

 Jonah assentiu.

— Clientela de alto poder aquisitivo, com mais dinheiro para gastar do que os esportistas que freqüentam o Fast Break. — Voltou-se. — O que quer de mim, Fletch?

    Que integre a equipe de investigação.

Jonah praguejou e, em uma rara demonstração de nervosismo, passou os dedos nos cabelos.

—Quer que eu encha meu estabelecimento de tiras?

 

Boyd não disfarçou o riso.

— Jonah, eles já estão lá.

— Não no meu horário. — Quando garoto de rua, sentia cheiro de polícia a um quilometro de distância, correndo na direção oposta, no escuro.

-Talvez tenha perdido o faro. — Antes que o ex-protegido replicasse, ficou sério e insitiu: — Por favor, Jonah.

 

Para alguém que fugira de ser preso a vida toda, Jonah estava bem servido com Boyd, encarcerado entre paredes de lealdade, confiança e afeto.

—Está bem.

—E muito importante para mim. — O chefe da polícia levantou-se e estendeu a mão. O telefone tocou.

—Bem na hora. Sirva-se de mais café. Quero que conheça a pessoa encarregada do caso. Contornou a mesa e atendeu:

 

—Sim, Paula. Ótimo. Estamos esperando. — Desta sentou-se à escrivaninha. — Boto muita fé nesse agente. Entende de jogo.

- Um investigador trapaceiro, era só o que me falava. — Resignado, Jonah despejava mais café na caneca. Não chegou a derramar o conteúdo do bule, mas seu coração se descompassou. Era bom saber que ainda podia se impressionar com alguma coisa.

Pernas longas, cabelos loiros e olhos cor de uísque. Os cabelos, ela usava amarrados em rabo-de-cavalo cuja ponta lhe alcançava o meio das costas, sobre jaqueta de bom corte e cor de aço.

Olhou-o sem alterar a bela boca séria.

Jonah deu-se conta de que teria identificado a policial de imediato se tivesse olhado primeiro para o rosto. O corpo espetacular o teria distraído, mas não ludibriado.

— Delegado — cumprimentou ela, a voz tão fria quanto o olhar.

— Investigadora. Jonah, está é...

— Não precisa apresentar. — Jonah bebericou o café revitalizante. — Ela tem os olhos da sua mulher e o seu queixo. Prazer em conhece-la, investigadora Fletcher.

— Sr. Blackhawk.

Já o vira antes, em um jogo de beisebol do qual ele participara no ensino médio ao qual o pai a levara. Lembrava-se da garra com que ele corria pelas bases, quase violento.

Também conhecia a história dele, mas não confiava tanto quanto o pai em ex-delinqüentes. Para completar, embora detestasse admitir, tinha ciúme do relacionamento entre os dois.

— Aceita um café, Ally?

— Não, obrigada, senhor. — Era seu pai, mas ela só se sentou quando o delegado lhe indicou uma cadeira.

Boyd espalmou as mãos sobre a escrivaninha.

— Achei que ficaríamos mais à vontade reunidos aqui. Ally, Jonah concordou em colaborar com a investigação. Já o inteirei dos fatos. Fica a seu cargo transmitir os detalhes.

— Seis furtos no período de oito semanas. Prejuízo acumulado estimado em oitocentos mil dólares. Preferência por itens de fácil repasse, principalmente jóias. Num evento, levaram também o carro esportivo da vítíma que estava na garagem. Três das casas tinham sistema de segurança. Foram desativados. Nenhum sinal de arrombamento. Em todos os casos, a residência estava vazia na hora do furto.

Jonah atravessou a sala e se sentou.

— Já sabia de tudo isso... menos que haviam levado um carro esportivo. Resumindo, trata-se de alguém capaz de fazer ligação direta em automóveis, abrir fechaduras e com canal para repassar todo tipo de mercadoria.

- Nenhum item em questão apareceu nos canais conhecidos em Denver. É uma quadrilha bem organizada e eficiente. São no mínimo duas, provavelmente ou quatro pessoas envolvidas. Os alvos foram selecionados principalmente em sua casa noturna.

— Fora isso, mais alguma suspeita?

—Dois de seus empregados no Blackhawk têm antecedentes  criminais:  William  Sloan  e Francês

Jonah estreitou o olhar, mas não piscou.

—Will deu maus passos, sim, mas está livre e limpo há cinco anos. Frannie já levou vida fácil, mas agora trabalha no bar. Não acredita em reabilitação, investigadora Fletcher?

— Acredito que seu estabelecimento sirva como lago seleção de peixes e pretendo verificar tudo o que parecer interessante. A lógica indica que alguém de dentro está dando as dicas.

—Conheço as pessoas que trabalham para mim — rosnou Jonah, e voltou-se furioso para o chefe da polícia. — Raios, Fletch!

_Jonah, ouça até o fim.

—Não quero que prensem que meus funcionários só porque deu um mau passo em alguma época da vida.

— Ninguém vai prensar ninguém — assegurou Ally. “Nem você, que também já aprontou muito", pensou.

— Se suspeitássemos deles, já os teríamos interrogado, pois para isso não precisaríamos da sua permissão ou colaboração.

— Quer dizer que não suspeitam?

—Se acredita que são inocentes, por que se preocupa?

—Muito bem, vamos acalmar os ânimos — interveio Boyd, sinalizando sutilmente à filha com o sobrolho.

— Sabemos que se encontra em uma posição difícil, Jonah. Nosso objetivo é identificar quem está no comando dessa organização e desbaratá-la. Você está sendo; usado.

— Não quero que Will e Frannie sejam interrogados.

— Isso não vai acontecer — assegurou Ally, admirando a defesa. A que se deveria? Lealdade? Amizade? Ou teria um caso com a ex-prostituta? Logo descobriria.— Não queremos alertar ninguém da organização antes da hora. Precisamos descobrir quem escolhe os alvos, e como. Queremos que infiltre um agente em sua casa noturna.

— Eu já estou lá dentro — replicou Jonah.

— Sendo assim, que tal abrir vaga para mais uma garçonete? Posso começar hoje mesmo. Jonah riu e olhou para Boyd.

— Quer que sua filha sirva mesas no meu estabelecimento?

Ally levantou-se.

— O delegado determinou que um agente se infiltre disfarçado em sua casa noturna. Aconteceu que eu estou no comando da operação.

Jonah também se pôs de pé.

— Pouco me importa que esteja no comando. Seu pai me pediu para cooperar e concordei. — Voltou-se para o velho amigo. — E isso o que quer?

— Por enquanto.

— Está bem. Ela começa hoje. Esteja às cinco horas em meu escritório no Blackhawk's. Vou lhe explicar seu serviço.

— Fico devendo, Jonah.

— Você nunca vai me dever nada - Jonah encaminhou-se à porta, mas olhou por sobre o ombro. —Investigadora? As garçonetes lá no Blackhawk's usam blusa ou suéter preta e saia preta. Saia preta bem curta — observou, e saiu.

Ally contraiu os lábios e, pela primeira vez desde que adentrara a sala, relaxou e enfiou as mãos nos bolsos.

-Não gosto desse seu amigo, pai.

-Ele ainda vai subir no seu conceito.

-Não, ele é frio demais. Posso até sair dessa história com uma fina camada de gelo. Confia mesmo nele?

 -Tanto quanto em você.

Ally conformou-se.

   - O cabeça dessa quadrilha tem cérebro, contatos e sangue-frio. Assim como esse seu amigo Jonah. — Endireitou os ombros. — Mas, se não confiar no seu julgamento, vou confiar no de quem?

Boyd sorriu.

— Sua mãe também gosta dele.

       — Voto vencido, já estou meio apaixonada. — Satisfeita, Ally viu o pai apagar o sorriso.    

— Vou infiltrar mais dois agentes, como clientes.

- Você decide.

-O último furto tem cinco dias. Devem estar prestes a atacar novamente.

Ela foi até a cafeteira, mudou de idéia e voltou.

— Talvez não usem a casa noturna dele da próxima vez. Não é certeza. Mas também não podemos vigiar todos os estabelecimentos da cidade.

— Concentre-se no Blackhawk's, é o que manda a lógica. Um passo de cada vez, Allison.

— Eu sei. Aprendi com o melhor. Acho que meu primeiro passo agora é arranjar uma saia preta.

Boyd estremeceu ao ver a filha seguir para a porta,

— Não muito curta.

Ally trabalhava na delegacia das oito às quatro. Mesmo que saísse às quatro em ponto e vencesse correndo os quatro quarteirões até o prédio em que morava, não chegaria em casa antes das quatro e dez.

Sabia disso porque já cronometrara.

E largar o serviço às quatro em ponto era tão raro quanto encontrar diamantes na lama. Mas não chegaria atrasada ao compromisso marcado com Blackhawk.

Era uma questão de orgulho e princípio.

 

Chegou ao apartamento às quatro e onze, culpa do tenente que começara atrasado uma reunião de última hora, despiu a jaqueta e correu para o quarto.

O Blackhawk's ficava a vinte minutos de distância em passo apertado, ou a dez minutos, se pegasse o carro e tentasse dirigir no pesado trânsito de fim de tarde.

Aquela era sua segunda missão secreta disfarçada de investigadora e não falharia.

Desafïvelou o coldre de ombro e o atirou na cama. Seu apartamento era simples e desatravancado, principalmente porque não passava muito tempo ali. Lar ainda era a casa em que se criara, a delegacia vinha em segundo lugar na lista de lugares preferidos e aquele apartamento, onde dormia, às vezes fazia refeições e, mais raramente ainda, descansava, ocupava um modesto terceiro lugar.

Sempre quisera ser policial. Nunca vira nada de mais nisso. Era só seu sonho.

Escancarou a porta do closet e deu uma olhada nas roupas, vestidos de grife, conjuntos tipo executiva e esportivos, à procura de uma saia preta adequada para a ocasião.

Se trocasse de roupa bem rápido, talvez conseguisse um sanduíche ou colocar um punhado de biscoitos na boca antes de sair correndo de novo.

Achou uma saia, desolou-se ao ver o comprimento e a atirou na cama, já revirando as gavetas da cômoda em busca de uma meia-calça preta.

Se a saia mal lhe cobria as nádegas, trataria de cobrir muito bem o resto com uma meia bem grossa e opaca.

Aquela podia ser uma noite decisiva, lembrou-se, despindo a calça. Tinha que permanecer calma, fria e controlada.

Usaria Jonah Blackhawk, mas não se deixaria distrair por ele.

Sabia muito a respeito dele, por conta do pai, e se empenharia em descobrir mais. Quando garoto, tinha dedos leves, pés ligeiros e mente ágil. Era quase de admirar um menino de doze anos capaz de organizar uma banca de apostas. Quase.

Sim, era quase admirável alguém com aquele começo transformar-se, ao menos superficialmente, e se tornar um empresário de sucesso.

Já estivera no bar Fast Break de Jonah e apreciara o clima, o serviço e as margaritas de primeira. O estabelecimento oferecia uma incrível variedade de máquinas de fliperama. A menos que alguém houvesse quebrado seu recorde nos últimos seis meses, suas iniciais continuavam na fenda número um do Double Play.

 

Tinha de arranjar tempo para voltar lá e defender sua posição de campeã.  Mas estava divagando, percebeu. Seu problema agora era chegar na hora ao encontro com Jonah Blackhawk Ele ficara mesmo possesso por ver dois de seus funcionários na lista de suspeitos. Tanto pior. Seu pai queria que confiasse nele, então Ally faria um esforço para confiar.

Desde que o suportasse. Às quatro e vinte, já estava toda de preto: suéter de gola olímpica, saia e meia-calça. Revirou os sapatos no chão do closet e encontrou um par preto de salto não muito alto.

Aprovando o reflexo no espelho, soltou os cabelos, escovou-os e prendeu-os de novo. Então, fechou os olhos e tentou pensar como uma garçonete em casa noturna de alto nível.

Batom, perfume, brincos. Garçonetes atraentes ganhavam mais gorjetas, e gorjetas complementavam o salário baixo. Acrescentou os itens e analisou o resultado no espelho. É, estava sexy, feminina e, de certa forma, prática. Mas sem como esconder uma arma.

Maldição. Enfiou a pistola nove milímetros numa bolsa, vestiu jaqueta de couro preto pensando na fria noite primaveril e correu para a porta.

Chegaria na hora marcada se pegasse o carro já na garagem e encontrasse todos os semáforos verdes. Ao abrir a porta, porém, teve uma surpresa.

— Dennis, o que faz aqui?

Dennis Overton ergueu uma garrafa de vinho californiano e sorriu.

— Estava passando e pensei que poderíamos tomar um drinque juntos.

— Estou de saída.

— Ah, é? — Ele baixou a garrafa e tentou lhe pegar a mão. — Vou com você.

Dennis... — Ally não queria magoá-lo. Não outra vez ficara destroçado quando ela rompera, dois meses antes. Desde então, ele tentara reatar várias vezes. – Já conversamos sobre isso.

-Vamos, Ally, é só um vinho. Estou com saudade.

Ele adotou aquele olhar de cão basset abandonado, o sorriso suplicante. A tática funcionara, mais de uma vez. Mas aqueles mesmos olhos doces se inflamavam entre arroubos de ciúme, faiscavam de fúria sem controle.

Ja gostara muito dele, o bastante para perdoar suas acusações, tentar suportar suas mudanças bruscas de humor e se sentir culpada ao terminar tudo.

E ainda gostava o bastante para não explodir de raiva ante aquela última invasão de seu tempo e espaço.

- Não vai dar, Dennis. Estou atrasada.

Ele bloqueou seu caminho.

- Cinco minutos. Uma taça, pelos velhos tempos, que tal, Ally?

— Não tenho cinco minutos.

O sorriso se apagou e aquele brilho temível ressurgiu nos olhos dele.

— Nunca tinha tempo para mim quando eu precisava. Era sempre o que você queria e quando você queria.

— Isso mesmo. Agora, está livre de mim.

  - Vai se encontrar com outro homem, não é? Por isso não aceita meu convite.

Para Ally, bastava.

— E se for? Não lhe interessa aonde vou, o que faço, com quem me encontro. Quando vai entender isso? Estou farta, Dennis. Não quero que me procure mais.

 Ele lhe agarrou o braço.

— Quero falar com você.  

Ally não se desvencilhou, apenas olhou para a mão dele em seu braço e então o encarou, gélida como o ar de fevereiro.

— Não insista. E saia da minha frente.

— E se eu não obedecer? Vai atirar em mim? Vai me prender? Ou vai pedir ao poderoso papai que me ponha no xadrez?

— Vou lhe pedir, mais uma vez, que saia da minha frente.

O humor dele mudou outra vez, rápido como uma porta giratória.

— Desculpe-me. Ally desculpe-me. — Tinha os olhos  úmidos e a boca, trêmula. — É que não me conformo. Dê-me só mais uma chance. Preciso de mais uma chance. Vai dar certo desta vez.

Ela o fez soltar os dedos de seu braço.

— Nunca deu certo nem vai dar. Vá embora, Dennis. Não temos mais nada para conversar.

Em seguida, fechou a porta e saiu sem olhar para trás.

 

Ally alcançou as portas do Blackhawk's, às cinco horas e cinco minutos. Um ponto contra ela, pensou, gastando mais um minuto para ajeitar os cabelos, recuperar o fôlego. No fim, desistira de ir de carro e vencera correndo os dez quarteirões. Não era tão longe, mas os mocassins que usava em nada se assemelhavam a tênis.

Entrou e deu uma olhada.

O bar tinha um comprido e reluzente balcão que se curvava em aconchegante semicírculo junto ao qual uma  tropa poderia se acomodar, em banquetas cromadas com assento estofado de couro preto.

 Painéis espelhados em preto e prata cobriam a parede do fundo, retornando reflexos e formas.

Conforto e estilo, resumiu Ally. Convidava a pessoa a se sentar, relaxar e gastar bastante dinheiro.

Muitos já haviam aceito. No auge da happy hour, todas as banquetas estavam ocupadas, bem como os lugares às mesinhas cromadas, bebidas e petiscos desaparecendo ao som de uma música baixo o bastante para encorajar conversas.

A maioria dos clientes usava terno e gravata e tinha maleta executiva junto aos pés. A massa trabalhadora, concluiu Ally, que dera um jeito de sair do escritório um pouquinho mais cedo ou elegera o bar com local de reunião para tratar de negócios ou fechá-los.

 

Duas garçonetes atendiam às mesas. Ambas vestidas das de preto, mas calça em vez de saia na metade inferior. Ally praguejou por entre os dentes.

Um homem atendia no bar, jovem, bonito, flertando abertamente com o trio de mulheres nas banqueta do extremo. Frances Cummings devia pegar no batente só mais tarde. Precisava pedir as escalas de trabalho com Blackhawk.

— Você parece meio perdida.     

Ally olhou para o homem que se aproximava. Cabelos e olhos castanhos, barba aparada, cinquenta, cinqüenta e um anos. O terno escuro apresentava bom corte e a gravata cinza, belo nó.         

William Sloan estava bem mais apresentável nessa noite do que em seu último assalto.

Lembrando-se de que um pouco de nervosismo tornaria a representação mais convincente, Ally ajeitou a alça da bolsa no ombro e sorriu constrangida.

— Eu sou Allison e tinha um encontro com o sr. Blackhawk às cinco horas. Acho que estou atrasada.

— Alguns minutos, mas não se preocupe. Will Sloan. — Ele estendeu a mão e apertou a dela rapidamente, fraternal. — Ele me pediu para ficar atento a você. Vamos subir?

— Obrigada. Bonito lugar.

— Concordo. O chefe faz questão do melhor. Vou  lhe mostrar o resto. — Com a mão nas costas dela, Will a conduziu através da área do bar e viram-se numa ampla sala com mais mesas, palco de dois níveis e pista de dança.

Teto prateado, deslumbrou-se Ally, ofuscada com as luzinhas brilhantes. As mesas eram quadrados negros sobre pedestais que se erguiam de um chão prateado enevoado com as mesmas luzinhas cintilando sob a superfície como estrelas além das nuvens.

A decoração moderna incluía toldos multicoloridos e instigantes esculturas de parede, em metal ou tecido.

Sobre as mesas, somente uma luminária de metal cilíndrica com recortes vazados na forma de lua crescente.

Um ambiente do terceiro milênio, concluiu Ally. Jonah Blackhawk criara uma casa noturna de muita classe.

-Já trabalhou em um bar?

Ela já planejara o que dizer e volveu os olhos ao teto.

- Já, mas nada parecido com este. E sofisticado demais.

- O chefe queria classe e conseguiu. — Will entrou num corredor  e teclou um código no painel de controle.

- Espere só para ver.

Quando um lambri na parede se abriu, ele ergueu as sombrancelhas. Não é o máximo?

  -  Bárbaro. — Ally entrou com ele no elevador e o observou entrar de novo com o código.

  - Para chegar ao segundo andar, só digitando um código. Mas não precisa se preocupar com isso ainda. É nova em Denver?

- Não. Na verdade, sou daqui mesmo.

            - Sério? Eu também. Conheço o chefe há muito tempo, quando nossas vidas eram bem diferentes...

As portas do elevador se abriram direto para o escritório de Jonah. Era um espaço amplo, metade trabalho, metade lazer, esta com sofá de couro em cor vibrante, duas poltronas superconfortáveis e uma enorme me televisão a exibir um jogo de beisebol noturno sem som.

Ally não se surpreendeu com a preferência por esportes, mas olhou pasma para as estantes de livro que iam do chão ao teto.

Atentou então à área de trabalho, tão formal quanto a outra metade era descontraída. Junto à escrivaninha, microcomputador e telefone. Observou um monitor de vídeo com imagens do bar lá embaixo. A única janela permanecia cerrada por persianas bem fechadas. O carpete era grosso e aconchegante, cinza-pedra.

De pé e de costas para a parede, Jonah cumprimentou com a mão enquanto encerrava um telefonema.

— Eu lhe dou uma resposta. Não, até amanhã, não. — Ergueu o sobrolho, divertido, ao ouvir a réplica. Espere e verá.

Com isso, desligou e se sentou na cadeira.

— Oi, Allison. Obrigado, Will.

— De nada. Até mais, Allison.

— Muito obrigado.

Jonah aguardou até as portas do elevador se fecharem.

— Está atrasada.

— Eu sei, mas não pude evitar. — Ela se voltou; para o monitor de vídeo, dando-lhe a oportunidade de correr o olhar por suas costas e pernas longas.

Perfeita, concluiu Jonah. Perfeita.

— Tem câmeras em todas as áreas públicas?

— Gosto de saber o que se passa em meu estabelecimento.

Disso, Ally não duvidava.

 — Guarda as fitas?

- São trocadas  a cada três dias.

 - Gostaria de ver as imagens gravadas.

 - Para requerê-las, precisará de um mandado.

 Ela olhou  por sobre o ombro. Jonah trocara de roupa, envergando  agora um terno preto de bom corte italiano, podia apostar.

- Pensei que havia concordado em cooperar.

-Até certo ponto. Está aqui, não está? — O telefone começou a tocar, mas Jonah não tendeu. — Por que não se senta? Vamos elaborar um plano.

Ally não se sentou.

- O plano é este: disfarçada de garçonete, converso com clientes e funcionários. Enquanto trabalho, fico de olhos bem abertos e você se mantém fora do meu caminho.

-Acontece que não preciso ficar fora do caminho de ninguém no meu estabelecimento. Já trabalhou em um bar?

- Não.

- Já serviu mesas?

- Não. — Ally irritou-se com a expressão aborrecida - Qual é o segredo? Anota-se o pedido, entrega-se o pedido , serve-se o pedido. Não sou retardada.

Jonah deu aquele seu sorriso rápido e poderoso. Parece fácil para quem passou toda a vida do outro lado do balcão. Acontece que vai precisar de treinamento, investigadora. A chefe no seu turno é Beth.

Até pegar o jeito, você vai só ajudar. Isso significa...

— Já entendi.

- Otimo. Escalei-a para o turno das seis às duas. Terá quinze minutos de descanso a cada duas horas. Não pode beber em serviço. Se algum cliente se engraçar demais ou passar do limite, fale comigo ou com Will.

— Sei me cuidar.

— Aqui você não é policial. Se alguém tocar em você de maneira imprópria, fale comigo ou com Will.

— Isso acontece muito?

— Mais comigo. As mulheres não conseguem tirar as mãos de cima de mim.

— Ha-ha...

Sério, Jonah esclareceu:

— Não, não acontece muito, mas alguns sujeitos ficam meio confusos quando bebem. Só que aqui eles ficam confusos apenas uma vez. A casa começa a encher por volta das oito horas. O entretenimento começa às nove. Terá muito o que fazer.

Levantando-se, rodeou-a. 

— Disfarçou-se bem, nem parece policial. Só alguém muito perspicaz para desconfiar. Gostei da saia. Ally esperou até ficarem frente a frente.

— Preciso das escalas de trabalho de todos os funcionários. Ou vai exigir mandado?

— Não, estão na mão. — Jonah apreciou a escolha do perfume dela: fresco e feminino. — Terá cópias na hora de ir embora. Não contrato ninguém sem rigorosa pesquisa de antecedentes. Nenhum funcionário aqui veio de família certinha e bonitinha nem teve uma vida certinha e bonitinha.

Acionando o controle remoto, Jonah captou a imagem da câmera sobre a área do bar.

— O rapaz que acaba de encerrar seu turno foi criado pelos avós quando a mãe se escafedeu. Envolveu-se em encrencas aos quinze anos.

— Que tipo de encrencas?

- Foi pego  com um papelote no bolso. Tomou jeito, lacraram seus registros, mas foi franco comigo ao pedir o emprego. Agora, estuda à noite.

Ally encarou Jonah.

-Todo mundo é sempre franco com você?

- Os espertos, sim. — Ele indicou a tela. — Aquela é Beth

Ally viu uma morena baixa de uns trinta anos assumindo o atendimento ao balcão.

- O filho da mãe com quem se casou costumava espanca-la. Ela teve os três filhos em casa, hoje com dezesseis, doze e dez anos. Trabalha comigo há cinco anos, não ininterruptamente, mas a cada duas semanas aparecia de olho roxo ou lábio rasgado. Pegou os filhos e abandonou o marido há dois anos.

- Ele se conformou?

Jonah a fitou.

- Convenceram-no a mudar de cidade.

- Sei.  — Com raciocínio policial, Ally entendeu que fora Jonah Blackhawk quem mandara o recado ao ex-marido de Beth. — Ele se mudou inteiro?

- Apresentava bom estado. Vou acompanhá-la até lá em baixo. Pode deixar sua bolsa aqui, se quiser.

- Não, obrigada,

Ele apertou o botão do elevador,

- Presumo que carregue sua arma aí. Deixe aí mesmo. Os funcionários dispõem de armários numa área reservada atrás do bar. Terá um e poderá guardar a bolsa. Neste turno, Beth e Frannie têm as chaves. Will temos chaves e códigos para todas as áreas o tempo todo.

- Que braço de ferro, Blackhawk.

— É preciso. — Entraram no elevador. — Qual vai ser nossa história? Como nos conhecemos?

— Eu precisava trabalhar e você me arranjou um emprego. — Ally deu de ombros. — Digamos que o abordei naquele seu outro bar.

Jonah assentiu.

— Gosta de esportes? Ela sorriu.

— Qualquer coisa que tenha lugar fora de um campo, quadra ou ringue é perda de tempo.

— Por onde você andou minha vida toda? — Jonah a tocou no braço enquanto saíam ao piso térreo. - Jays ou Yankees?

— Os Yankees estão batendo forte nesta temporada, mas estão com a luva furada. Os Jays apresentam  tacadas confiáveis e nas bases dão show de garra eficiência. Garra e eficiência sempre superam a força bruta, na minha opinião.

— Está falando de beisebol ou é sua filosofia de vida?

— Blackhawk, beisebol é vida.

— Você me convenceu. Temos de nos casar.

— Oh, meu coração flutua — replicou Ally, secamente, já esquadrinhando a área do bar. O nível de ruído subira vários decibéis. Junto ao balcão, ainda pessoal que escapulira do trabalho mais cedo, não os que costumava jantar.

Alguns pareciam só matar o tempo, outros procuravam parceiros transitórios, mas um ou outro parecia caçar.

 As pessoas eram tão descuidadas, observou Ally, divertida. Distraídos sobre a bebida, muitos homens ofereciam a carteira recheada no bolso traseiro ao primeiro mão-leve que passasse. Bolsas pendiam vulneráveis nos encostos das cadeiras e banquetas. Paletós e jaquetas, provavelmente com molhos de chaves de casa e do carro, jaziam esquecidos por toda parte.

   - Todo mundo acha que só acontece com os outros _ murmurou Ally, indicando discretamente um cliente no balcão do bar. — Veja aquele tipo apresentador de noticiário, por exemplo.

Jonah logo reparou na carteira do indivíduo no bolso traseiro da calça, estourando de cédulas e cartões de créditos.

-  ELE ESTÁ de olho naquela ruiva, ou na amiga loira, não importa — informou Jonah, experiente. — É provável que  consiga a loira.

- Por quê?

- Pode chamar de intuição. Quer apostar?

- Não tem permissão para promover o jogo nestas dependências. — Impressionada, Ally viu a loira se inclinar para o homem de carteira recheada, batendo os cílios. — Palpite certeiro.

- Foi fácil. Assim como a loira. — Jonah conduziu Ally ao encontro de Beth e Will, que estudavam o livro de reservas aberto sobre um suporte preto.

 - Olá patrão. — Beth puxou o lápis encaixado na orelha e fez uma anotação no livro. — Parece que vamos lotar a maioria das mesas mais de duas vezes esta noite. Muitas reservas para jantar no meio da semana.

-Acho que adivinhei, tanto que já trouxe ajuda. Beth Dickerman, Allison Fletcher. Ela precisa de treinamento.

-Oh, outra vítima. — Beth estendeu a mão. — Prazer em conhecê-la, Allison.

-Ally. Obrigada.

— Ensine-lhe tudo, Beth. Ela vai só ajudar até você achar que está em condições de atender sozinha.

— Ela aprende em dois tempos. Venha comigo, Ally. — As duas se misturaram à multidão. — Já trabalhou na área de alimentos?

— Bem, eu como. Beth riu.

— Bem-vinda ao meu mundo. Frannie, esta é Ally nova garçonete em treinamento. Frannie é a chefe bar.

— Prazer em conhecer — declarou Frannie, sorridente, enquanto jogava gelo num copo para bater e enchia um copo com soda.

— E aquele espécime de arrasar ali na outra ponta é Pete.

O negro de ombros largos deu-lhes uma piscade enquanto preparava um drinque colorido.

— Já vou avisando: nada de se engraçar com Pete porque ele é meu e só meu. Certo, Pete?

- Só tenho olhos para você, minha flor.

Risonha, Beth destrancou uma porta restrita a funcionários.

— Pete é casado e está para ganhar o primeiro filho. E tudo brincadeira. Agora, se precisar entrar aqui por qualquer motivo... Oi, Jan.

— Oi, Beth. — A morena curvilínea prendia com pentes os cabelos que lhe alcançavam a cintura, destacando o belo rosto em forma de coração. Vinte e poucos anos, estilo moderno. Usava saia pouco maior do que um guardanapo e camisa justa com botões prateados. Prata reluzia em seus pulsos, orelhas e pescoço enquanto renovava o batom diante do espelho.

— Está é Ally, novata.

- Oi. – Jan sorriu amigável, mas medindo com o olhar. Uma mulher analisando a concorrência.

- Jan trabalha na área do bar — explicou Beth. – Mas atende às mesas, se precisarmos. — Ouviram-se risos do lado de fora. — Está ficando animado.

- É melhor eu ir logo. — Jan amarrou à cintura um avental preto com muitos bolsos. — Boa sorte, Ally,  e bem-vinda à bordo.

- Obrigada. Todos são tão simpáticos — comentou com Beth, quando ficaram sozinhas.

- Todos que trabalham para Jonah acabam formando uma família. Ele é ótimo patrão. — Ela

tirou um avental de uma estante. — A gente trabalha muito, mas Jonah dá a entender que percebe e valoriza. Isso faz a diferença. Pegue, vai precisar disto.

- Trabalha para ele há muito tempo?

- Uns seis anos, parando e voltando. Eu servia às mesas no Fast Break, o outro bar dele. Quando inaugurou este aqui, ele me perguntou se eu queria mudar, É mais chique e mais perto da minha casa. Pode guardar sua bolsa aqui. — Beth abriu um armário estreito. – Pode  mudar o código girando até o zero duas vezes.

- Ótimo. — Ally guardou a bolsa, não sem antes tirar o aparelho de bip e prendê-lo no cós do avental. Fechou o armário e mudou o código da fechadura. — Acho que é só isso.

- Quer ir ao banheiro ou algo assim?

- Não. Só estou um pouco nervesa.

—        Não se preocupe. Daqui a algumas horas, seus pés vão doer tanto que os nervos estarão em segundo lugar.

Beth estava certa. Quanto aos pés. Por volta das dez horas, Ally tinha a impressão de que andara trinta quilômetros em sapatos desconfortáveis e carregara umas três toneladas de bandejas com louça suja.

O caminho entre as mesas e a cozinha já podia fazer até de olhos fechados.

O som da banda ao vivo era consideravelmente mais alto do que o da música gravada que tocavam até por volta das nove horas. A multidão tinha que gritar para se fazer ouvir na pista de dança repleta e em torno das mesas lotadas.

Ally empilhava pratos na bandeja, atenta aos freqüentadores. Pululavam roupas de grife, relógios caros, telefones celulares e maletas de couro. Uma mulher exibia um enorme anel de diamante para três amigos.

Clientela de alto poder aquisitivo, pensou Ally. Alvos potenciais para furtos.

Erguendo a pesada bandeja, tomou o rumo da cozinha, mas parou para atender ao chamado de cliente com uma moça.

—        Querida, poderia trazer mais drinques para mim e minha acompanhante?

Ally inclinou-se, estampou seu sorriso mais doce sussurrou a resposta.

—        Ei, só tiras têm boca suja assim — replicou homem, baixinho, divertido.

- Da próxima vez, eu vou ficar sentada só olhando, Hickman, enquanto você faz todo o trabalho. — Ally disfarçou e olhou para o salão. — Já viu algo que eu deva saber?

—        Nada. — Ele pegou a mão da moça ao lado. Mas Carson e eu estamos apaixonados.

Sorridente, Lynda  Carson apertou violentamente a mão do colega.

—        Só na sua cabeça.

—        Fiquem atentos. — Ally olhou severa para o copo na mão de Hickman. — Espero que seja só soda.  – Que rigidez — resmungou ele, vendo-a se afastar.

A caminho da cozinha, Ally informou a Beth:

—        O casal da mesa dezesseis está pedindo novos drinques.

—        Já vou atender. Você está indo muito bem, Ally. Depois de levar essa bandeja, pode descansar,

—        Não precisa dizer duas vezes!

A cozinha estava um caos, quente, com os pedidos lançados aos gritos. Aliviada, Ally pousou a bandeja e então viu Frannie saindo de fininho pela porta dos fundos.

Esperou dez segundos e foi atrás dela.

Recostada  na parede externa, Frannie dava a primeira tragada no cigarro. Expirou a fumaça lentamente,

—        Está na folga, também?

—        Estou – confirmou Ally. — Vim tomar ar.

—        Está  demais hoje. O Blackhawk’s está mesmo fazendo o maior sucesso. — Frannie tirou o maço de cigarros do bolso e ofereceu.

—        Não obrigada. Eu não fumo.

—        Que ótimo. Não consigo largar. Não é permitido fumar lá dentro. Jonah me deixa subir ao escritório dele quando está chovendo. E então, como está sua primeira noite?

—        Meus pés estão me matando,

—        Ossos do ofício. Assim que receber o primeiro, compre sais para escalda-pés. Se acrescentar eucalipto, então, estará no céu.

—        Vou me lembrar disso.

Frannie era bonita, reparou Ally, embora os pés-de-galinha no canto dos olhos a fizessem aparentar mais do que seus vinte e oito anos. Tinha cabelos ruivos curtos e se maquiava com discrição. Não passava esmalte nas unhas curtas nem usava anéis. A exemplo das demais funcionárias, vestia-se de preto, camisa, calças e  sapatos resistentes mas confortáveis.

O único brilho vinha dos brincos prateados.

—        Como foi que começou a trabalhar em bar? Indagou Ally.

Frannie hesitou, dando mais uma tragada no cigarro.

- Eu frequentava muito e, quando decidi trabalhar de verdade, Jonah me ofereceu emprego. Aprendi serviço no Fast Break. É um bom trabalho. Exige um pouco de memória e jeito para lidar com pessoas. Interessada?

- Primeiro vou ver se consigo chegar ao fim do turno carregando bandejas. Depois, vejo se tenho jeito para a coisa.

—        Você tem jeito de quem encara o que for preciso

Ally sorriu, atentando aos olhos argutos de Frannie.

—        Acha mesmo?

- Capacidade de observação é um dos requisitos nesta área. E, pelo que vejo, você não é do tipo espera passar o resto da vida servindo mesas.

—A gente tem de começar de algum jeito. E pagar o aluguel é prioridade.          

- Vem dizer isso a mim? — Mas Frannie já notara que os mocassins de Ally equivaliam a meio mês de aluguel de seu apartamento. — Bem, se quiser subir aqui dentro, terá de convencer Jonah. Já deve ter per percebido isso.

Frannie deixou  cair o cigarro e esmagou a ponta em brasa.

- Preciso  voltar. Pete emburra se prolongo a folga,

A ex-protituta se referia a Jonah em tom possessivo, constatou  Ally. Deviam ser amantes, considerando também o empenho com que ele a defendia,

Como amante do patrão e funcionária de confiança, Frannie encontrava-se em posição privilegiada para alvos e passar adiante a informação. O bar ficava de frente para a entrada. Quem quer que entrasse e saísse passava por seu posto de trabalho,

Os clientes pagavam com cartões de crédito, através dos quais era possível conseguir o endereço,

Valia a pena vigiá-la mais detidamente.

Jonah empreendia sua própria investigação, tanto do escritório quanto da área pública do estabelecimento. Sabia bastante sobre vigarice para selecionar alvos como se os quisesse. Três clientes encabeçariam sua lista se estivesse colaborando com a quadrilha de ladrões. Também identificou o casal de policiais disfarçados na mesa dezesseis e foi cumprimentar.

-Tudo em ordem por aqui?

- A moça sorriu e afastou com a mão a mecha de cabelos loiros curtos.

-Tudo perfeito. Fazia semanas que não saíamos, Bob e eu, de tão ocupados com o trabalho,

- Que bom que escolheram o Blackhawk’s. — Jonah apertou a mão no ombro de Bob e sussurrou: — Da próxima vez, troque as botinas. Elas entregaram você. Divirtam-se

    Ouviu a moça abafando o riso enquanto se afastava.

 

Aproximou-se da mesa que Ally limpava vigorosamente.

—        Como está indo?

—        Ainda não quebrei nenhum prato.

—        E já quer aumento?

- Acho que vou ficar com meu outro emprego obrigada. Acho que prefiro varrer as ruas a limpar as mesas. — Com uma careta de dor, massageou a base da coluna.

—        Voltamos a servir no balcão às onze horas, e aí não terá tantas bandejas para carregar.

—        Aleluia.

Jonah pousou a mão no braço dela antes que erguesse a bandeja.

—        Deu uma prensa em Frannie lá fora?

—        Como?

—        Ela saiu, você saiu, ela entrou, você entrou.

- Estou fazendo meu trabalho. Não obstante, resisti à tentação de deixar umas marcas na carinha bonita dela. Agora, deixe-me passar.

—        Allison?

Ela parou e grunhiu:

—        O quê?

—        A força bruta venceu sua garra e eficiência, oito a dois.

—        Um jogo não faz temporada.

Nariz empinado, Ally se foi. Atravessava a pista de dança quando um cliente lhe de um tapinha nas nádegas, esperançoso. Estacou, voltou-se devagar e Iançou-lhe um olhar glacial. O homem recuou, ergueu as mãos desculpando-se e misturou-se aos dançarinos.

—        Ela sabe se cuidar — comentou Beth com o patrão.

—        Parece que sim.

—        Trabalha de verdade e sem reclamar. Gostei da sua namorada, Jonah.

Surpreso com o comentário, ele apenas observou a funcionária de afastar.

Riu baixo e meneou a cabeça. Céus, tinha que dar resposta!

Ally quase chorou de alívio ao atender ao último pedido. De pé desde as oito horas da manhã, só pensava em ir para casa, desabar na cama e dormir durante todas as preciosas cinco horas que tinha antes de começar tudo de novo.

_ Vá  para casa — ordenou Beth. — Explico como é o encerramento amanhã. Você foi muito bem.

—        Está falando sério? Obrigada,

—        Will, pode abrir o vestiário para Ally?

_ Claro . Tivemos boa frequência hoje. Nada me agrada mais  o que a casa cheia. Que tal um drinque antes de sair?

—        Não, a menos que possa refrescar meus pés nele.

Ele riu deu um tapinha encorajador nas costas,

—        Frannie pode me servir um?

—        Está na mão.

Sempre tomo um conhaque no fim do batente.Um cálice, do melhor. — Will destrancou a porta do vestiário. – Se mudar de idéia, é só puxar uma banqueta. O patrão não cobra dos empregados o último drinque da noite.

 Afastou-se assobiando.

Ally abriu  seu armário, guardou o avental e pegou a bolsa. Vestia a jaqueta quando Jan entrou.

—        Já vai? Parece cansada. Estou só começando, a esta hora da noite.

—        Estou para morrer há uma hora já. — Ally parou à porta. — Seus pés não doem?

- Não, acho que são de aço. Ganha gorjetas maiores de salto alto, sabia? — Jan inclinou-se para a frente e passou a mão pela perna. — Vou fundo no funciona.

—        Faz bem. Boa noite.

Ally saiu do vestiário, fechou a porta e trombou com Jonah.

—        Onde estacionou?

—        Vim a pé. — Correndo, recordou Ally, mas na mesma.

—        Eu a levo, então.

—        Prefiro ir a pé. Não é longe.

—        Às duas horas da madrugada, até um quarteirão é longe.

—        Blackhawk, sou policial.

—        Isso quer dizer que é à prova de balas? Antes que ela respondesse, ele a segurou pelo queijo.

—        No momento, não é policial. É funcionária do meu bar e filha de um amigo. Eu a levo para casa.

-   Está bem. Mas porque meus pés estão me matando.

Ela tentou se desvencilhar da mão dele, mas Jonah a segurou pelo braço.

— Boa noite, patrão! — despediu-se Beth, sorridente. — Arrebate a garota pelos pés.

— É o que pretendo. Até mais, Will. Boa noite, Beth.

Ally continuava desconfiada de Will, ora brindando com o cálice de conhaque, e de Frannie, que a observava atenta e séria.

— Posso saber o que foi aquilo? — indagou a Jonah assim que saíram ao ar frio.

- O dono do bar se despedindo de amigos e funcionários. Estacionei no outro lado da rua.

- Perdão, mas só meus pés estão entorpecidos, não meu cérebro. Você deliberadamente deu a entender que estamos envolvidos.

- Isso mesmo. Não tinha pensado nisso, até que Beth comentou, há pouco. Simplifica as coisas.

Ally parou junto a um esportivo preto.

- Pode me explicar por que as pessoas pensarem que estamos envolvidos simplifica as coisas?

– E se diz investigadora. — Jonah destrancou a porta do passageiro e a abriu. — De repente, apareço com uma funcionária nova, sem experiência, uma loira de pernas maravilhosas. A primeira coisa que devem ter pensado é que estou interessado em você. A segunda é que você está interessada em mim. Juntando tudo isso chega-se a um romance. Ou, no mínimo, sexo. Vai entrar?

- Ainda não explicou como tudo isso simplifica as coisas?

- Se acreditarem que estamos envolvidos, as pessoas não estranharão se você for ao meu escritório, Vão entender.

Ally raciocinou e acabou concordando.

- Está bem. Há vantagem na encenação.

Impulsivo, Jonah a prensou entre seu corpo e a porta do carro.  Soprava uma brisa leve, suficiente para espalhar o perfume que ela usava. O brilho da lua se refletia nos olhos cor de uísque. O momento lhe parecia perfeito para dar veracidade ao plano,

- Pode haver mais de uma vantagem,

Ally irritou-se com o arrepio na espinha,

- Para trás, Blackhawk.

 

— Beth está olhando pela janela e é romântica a despeito de tudo o que lhe aconteceu. Está louca para assistir a um beijo, daqueles bem demorados, com suspiros, com o sangue a ferver...

Ele lhe afagara os quadris enquanto falava, deslizando as mãos para cima, até logo abaixo dos seios. Ela sentiu a boca seca e uma ansiedade nas entranhas.

 - Infelizmente, Beth vai se decepcionar.

Jonah concentrou-se em sua boca.

— Não só ela. — Afastou-se. — Não se preocupe investigadora. Nunca forço policiais nem filhas de amigos.

— Nesse caso, tenho proteção dupla contra seu charme irresistível.

— Ótimos para ambos, porque eu estou mesmo interessado em você. Vai entrar?

— Vou. — Ally se acomodou no assento e esperou a porta se fechar antes de expirar longamente.

Não sabia a procedência daquele ataque de luxúria mas teria que passar. Com o coração disparado, ordenou ao corpo que esfriasse. Deveria se concentrar apenas  no trabalho.

Jonah sentou-se atrás do volante, perturbado com a pulsação acelerada.

— Para onde? — Ao ser informado do endereço, girou a chave na ignição e olhou-a inconformado. — São quase dois quilômetros. Por que veio a pé?

— Porque era horário de congestionamento e achei melhor não pegar o carro. São só dez quarteirões.

— Que absurdo.

Raivosa, Ally nem reconheceu a vibração do aparelho de bip, achando que tremia. Finalmente, verificou número no visor.

- Oh, não! – Tirou o telefone celular da bolsa e digitou rapidamente. – Investigadora Fletcher. Entendido, estou a caminho.

Mais calma, guardou o telefone.

- Já que se ofereceu como chofer, vamos logo. Houve outro furto.

- Onde?

- Leve-me para casa, para eu pegar o meu carro.

- Vamos direto, Allison. Para que perdermos tempo?

 

  Jonah estacionou diante de uma bela casa num condomínio de alto nível próximo à rodovia. Em dias de trânsito normal, a viagem até o centro da cidade não devia durar mais do que vinte minutos.

Os Chambers eram um casal bonito, ambos advogados de trinta e poucos anos, sem filhos, que empregava  a polpuda renda nas boas coisas da vida.

Vinhos, roupas de grife, jóias, arte e música.

— Levaram meus brincos de diamante e meu relógio de ouro. — Maggie Chambers esfregava os olhos, sentada no sofá da ampla sala de estar. — Ainda nem inspecionamos tudo, mas havia litografias de Dali e  Picasso naquela parede ali. E naquele nicho havia uma escultura Erté que arrematamos em um leilão há dois anos. Joe colecionava abotoaduras. Não sabemos quantos pares ele tinha exatamente, mas havia um de diamante, um de rubi, referente ao signo dele, e vários antigos.

— Estão no seguro. — O marido lhe tomou a mão e apertou.

— Pouco importa. Não é a mesma coisa. Bandidos entraram em nossa casa... Em nossa casa, Joe, e levaram nossas coisas. Levaram até meu carro... Novinho em folha, que não tinha nem oito mil quilômetros rodados ainda. Eu adorava aquele carro.

- Senhora Chambers, sei que é difícil.

   Maggie Chambers voltou o rosto para Ally.

- Já lhe furtaram algo alguma vez, investigadora?

- Não. - Ally pousou o bloco de anotações no joelho, - Mas já  investiguei muitos casos de arrombamentos, assaltos ...

- Não é a mesma  coisa.

- Maggie, ela está só fazendo o trabalho dela.

- Eu sei. Desculpe-me, eu sei. — A mulher cobriu o rosto com as mãos, respirou fundo e expirou bem — Tive um ataque, só isso. Não quero dormir aqui esta noite.

- Podemos ir para um hotel. Falta alguma coisa, investigadora Fletcher?

- Só mais algumas perguntas. Disseram que passaram boa parte da noite fora.

-Sim, Maggie ganhou uma causa e resolvemos comemorar. Ela trabalhou como louca durante mais de um mês.  Fomos ao Starfire com amigos. — Enquanto falava, Joe Chambers afagava as costas da esposa. — Jantamos, bebemos e dançamos. Como dissemos aos primeiros policiais que chegaram, chegamos por volta das duas da madrugada.

-  Alguém além de vocês dois têm as chaves da casa?

    - A faxineira diarista.

   - Ela sabe os códigos de segurança?

  - Sabe. — O advogado assustou-se. — Ei, escute, Carol trabalha para nós há quase dez anos... É  praticamente da família!

— É só procedimento, sr. Chambers. Pode me fornecer o nome completo e endereço dela?

Ally os fez recordar e descrever toda a noite de diversão, em busca de uma conexão, um contato, qualquer coisa que fizesse sentido. Mas, para o casal, fora apenas mais uma noite de entretenimento, até chegarem à porta de casa.

Ally retirou-se com uma lista parcial de itens furtados, que os Chambers ficaram de completar, além de providenciar um relatório da companhia seguradora. Os peritos continuavam na cena do crime, que ela mesma já examinara sem esperança de que encontrassem impressões digitais ou qualquer pista deixada pelos ladrões.

A lua desaparecera, mas as estrelas continuavam firmes e cintilantes. Mais forte, o vento varria a rua com pequenos redemoinhos e rajadas. A vizinhança dormia em silêncio dentro das residências as escura havia várias horas.

Era pouco provável que se apresentassem testemunhas.

Recostado no carro, Jonah bebia café e conversava com um dos policiais.

Ao vê-la, ele ofereceu a metade que restava no copo.

— Obrigada.

— Pode acabar. Tem um loja de conveniência a poucos quarteirões daqui.

— Que ótimo. — Ally pegou o copo e voltou-se para o homem uniformizado. — Você e seu parceiro foram os primeiros a chegar à cena?

— Sim, senhora.

— Vou precisar de seu relatório em minha mesa até as onze horas. — Ally observou o policial se encaminhar à viatura e devolveu o copo vazio a Jonah.

- Não precisava ter esperado. Posso voltar em uma das viaturas.

- Tenho interesse. — Ele abriu a porta do carro, - Eles estavam no Blackhawk's?

- Por que pergunta, se já arrancou todas as informações daquele policial?

Jonah começou a contornar o carro,

- Quer dizer que o casal de hoje foi visado no Starfire.

Alguma das outras vítimas também tinha estado lá?

- Não. Estabelecimentos repetidos, só os seus. Deverão voltar. — Ally fechou os olhos, sentindo a vista cansada— É só questão de tempo.

- Ora, isso me tranqüiliza muito. O que foi que levaram?

- O carro de luxo que estava na garagem, obras de arte, eletrônicos e muitas, muitas jóias.

- O casal não tinha cofre?

- Tinha no closet da suíte master, mas é claro que deixaram o segredo rabiscado num papel na escrivaninha.

- O primeiro lugar em que os ladrões costumam procurar.

 - A casa tem sistema de segurança, que ele juram que acionaram ao sair... Embora a mulher não tenha tanta certeza. O fato é que se sentiam seguros. Boa casa, bela vizinhança... As pessoas se tornam descuidadas. - De olhos fechados, Ally exercitou o pescoço tentando aplacar a tensão. — Ambos são advogados.

  - E daí?

  Ally riu, apesar do cansaço.

- Minha tia é promotora de justiça em Urbana.

Jonah avistou a placa de néon da loja de conveniência.

- Vai querer tomar um café ou não?

— O quê? Oh, não, se tomar mais café, não vou conseguir dormir.

Ele duvidava de que mesmo um balde de café fosse, impedir Ally de dormir. Ela já falava meio arrastado. O que tornava ainda mais atraente sua voz. Vencida, pela fadiga, deixava a cabeça pender sobre o ombro dele, em busca de um ponto de apoio confortável. Mantinha os olhos fechados e os lábios entreabertos.

Jonah adivinhou-lhes o sabor, o calor, a maciez.

Parado diante de um semáforo no vermelho, engatou o ponto morto, puxou o freio de mão e acionou o mecanismo que baixava o encosto da poltrona de Ally.;

Ela se sobressaltou e bateu a cabeça contra a dele

— Para trás! — rosnou Ally, empurrando-o pelo peito.

— Calma, Fletcher, não estava tentando agarra-la. Só faço amor com mulher acordada. Só achei que fïcaria mais confortável com o encosto mais reclinado. ,

— Não precisava — murmurou Ally, vexada. — Eu não estava dormindo.

O semáforo deu luz verde e Jonah pôs o carro em movimento.

— Pois devia. Há quantas horas está acordada?

— Trabalho na chefatura das oito às quatro.       

— Como são quase quatro horas da madrugada, você está de pé há vinte horas. Por que não se transfere para o plantão noturno até esta investigação acabar?

—Não estou acompanhando só este caso.—Ally já decidira falar com o tenente, explicar que não tinha como trabalhar direito dormindo só duas horas por noite. Mas nada disso era da conta de Jonah.     

— Denver entra em caos se a investigadora Fletcher sumir por alguns dias?

 

Ela podia estar cansada, mas ainda não perdera a sensibilidade ao sarcasmo.

 - Isso mesmo, Blackhawk. Sem minha vigilância, a cidade entra em caos. É um fardo e tanto, mas alguém tem de carregá-lo. Pode me deixar na esquina, Moro à meio quarteirão daqui.

Fingindo não ouvir, Jonah dobrou a esquina e estacionou junto ao meio-fio bem em frente ao edifício em que ela morava.

  - Obrigada.

  Enquanto ela se abaixava para pegar a bolsa no assoalho, ele saltou e contornou o veículo. Talvez fosse a fadiga a lhe retardar os movimentos, como se estivesse em meio aquoso e não aéreo, mas o fato era que, ao tocar na maçaneta, Jonah fez o mesmo por fora.

 Durante cinco segundos, lutaram pela primazia de abrir a porta. Então, com um rosnado, Ally desistiu, mas desabafou:

- Qual é o seu problema? Nasceu no século dezenove ou  acha que não sou capaz de abrir uma porta de carro.

- É que você parece cansada...

- Eu estou, portanto, boa noite.

- Eu a acompanho até lá em cima.

- Não precisa.

Mas Jonah a alcançou e, para irritação dela, adiantou-se para lhe abrir a porta. Sem dizer nada, fitando-a com aqueles incríveis olhos verdes, deu-lhe passagem,

- Daqui a pouco, terei de fazer uma reverência — Murmurou Ally.

Jonah sorriu e a acompanhou pelo saguão até os elevadores, mantendo as mãos nos bolsos, - Daqui  consigo ir sozinha.

— Vou acompanhá-la até sua porta.

— Isto não é um encontro.

— Céus, como você fica irritada quando está com sono! — Jonah entrou no elevador com ela. — Ou melhor, está sempre irritada. Agora, já sei.

Ally apertou o botão correspondente ao quarto andar.

— Não gosto de você.

— Que bom que esclareceu. Eu temia que estivesse se apaixonando.

A tração do elevador ameaçava o equilíbrio já precario de Ally. Jonah a segurou pelo braço.

— Tire a mão.

— Não.

Ela tentou se desvencilhar. Ele segurou com mais força.

- Pare com isso, Fletcher. Está dormindo em pé.

-  Qual é o seu apartamento?

Jonah tinha razão, era burrice fingir o contrário e idiotice desabafar a frustração em cima dele.

— Quatrocentos e nove. Pode me soltar. Estarei bem após uma hora de sono.

— Tenho certeza disso. — Ele a acompanhou para fora do elevador.

— Você não vai entrar.

- Que pena, eu planejava carregá-la no ombro, atirá-la na cama e fazer o que bem entendesse com você.

- Fica para a próxima.

- A chave.

— O quê?

Ao fitá-la nos olhos cor de mel enevoados de sono e notar as olheiras marcando a pele fina sob eles, Jonah sentiu uma onda de ternura que o pegou de surpresa e o deixou muito constrangido.

- Querida, dê-me a chave,

Derrotada, ela enfiou a mão no bolso da jaqueta.

- Ai, estou mal... Mas não me chame de querida.

- Investigadora querida, então. — Jonah sorriu ao ouvi-la rosnar e destrancou a porta. Tirou a chave da fechadura, pegou-lhe a mão e a jogou sobre a palma,

- Boa noite.

- Boa noite. Obrigada pela carona. — Parecendo-lhe correto, Ally fechou a porta na cara dele.

Uma cara bonita, pensou, rastejando até o quarto, um rosto perigoso assim deveria ser registrado como arma, Qualquer mulher que confiasse num rosto assim devia ter o que merecia.  E, provavelmente, adorar cada minuto da experiência,

Despiu a jaqueta e gemeu aos descalçar os sapatos,

Ligou o despertador e atirou-se vestida na cama, o rosto contra o travesseiro. Num segundo, dormia profundamente.

 

Quatro horas e meia depois, na sala de reuniões da chefatura, Ally finalizava seu relato e sua quarta caneca de café.

- Vamos interrogar os vizinhos — informou ao tenente, seu superior. — Em um condomínio como aquele às pessoas tendem a colaborar umas com as outras,

- Os elementos precisaram de um veículo para chegar a casa dos Chambers e transportar parte do produto do roubo. Já temos descrição completa do carro furtado da garagem e a patrulha já foi alertada,

  - O tenente Kiniki assentiu. Era um policial robusto de quarenta e poucos anos que gostava de comandar.

 - O Starfire é novo na história. Quero dois agentes lá dando uma boa olhada. Roupas comuns — observou, reiterando que não aprovava terno e gravata nesse tipo de reconhecimento. — Nada de chamar a atenção

— Hickman e Carson estão percorrendo as casas de penhores, pressionando velhos conhecidos.   Ally olhou para os colegas.

- Até agora, nada. — Hickman ergueu as mãos

 - Lydia e eu procuramos nossas fontes e fomos persuasivos, mas ninguém sabe de nada mesmo. Meu palpite é de que o cabeça dessa quadrilha dispõe de algum canal externo.

— Prossigam — instruiu Kiniki. — E do lado das companhias seguradoras?

— Nada que dê uma luz — informou Ally. — Foram nove furtos e cinco seguradoras diferentes.      Estamos tentando encontrar alguma ligação, mas até agora demos em becos sem saída. Tampouco há relação entre as vítimas. Os nove casos envolvem quatro banqueiros, três corretores de valores, nove médicos, nove tipo diferentes de emprego.

Após massagear a nuca, retomou a lista:         

— Duas das mulheres frequentam o mesmo cabelereiro, mas requisitam profissionais diferentes, em horários não relacionados. Os serviços de limpeza não têm nada a ver, nem os mecânicos. Agora, dois dos alvos usaram o mesmo bufe nos últimos seis meses e estamos verificando o detalhe, embora não  pareça promissor. A única característica totalmente em comum até agora é a noitada na cidade.

— O que apurou no Blackhawk's? — indagou o tenente.

— O lugar está sempre lotado — reportou Ally. — A frequência varia, mas pende mais para a alta classe média. Casais, solteiros em busca de aventura, grupos.

- A segurança é boa.

Distraída, Ally esfregou os olhos, mas logo retomou a compustura.

- Há câmeras por toda parte e já requisitei as fitas gravadas. Sloan é quem toma conta das áreas públicas, tem acesso a tudo. São seis mesas na área do bar e trinta e duas no salão, que os clientes podem juntar, se estiverem  em grupo. Há roupeiro, mas nem todos o utilizam. Perdi a conta das bolsas largadas nas mesas quando começaram a dançar.

- As pessoas querem movimento. — observou Lydia.

 - Principalmente os mais jovens. O Blackhawk's é ponto de encontro para várias turmas e a paquera corre solta.  — Encarou o colega Hickman, que desdenhava. — É um lugar com vibrações sexuais. As pessoas se tornam descuidadas quando a adrenalina aumenta. O alvoroço é total quando Blackhawk entra.

- Alvoroço? — ralhou Hickman. — Isso é termo técnico?

- As mulheres ficam ofuscadas pelo dono do bar e se esquecem da bolsa,

- É verdade. — Ally foi até o quadro no qual se afixava a relação de vitimas e itens furtados. – Em todos os casos, havia entre os alvos uma mulher. Nenhum homem solteiro na lista. A mulher é o alvo principal o que uma mulher carrega na bolsa? Esse é um dos maiores mistérios da vida – brincou Hickman.

 - As chaves – começou Ally, séria. – A carteira, com a cédula de identidade e os cartões de créditos. Fotos dos filhos, se os tiver. Nenhuma das vítimas tinha filhos em casa. Se reduzirmos a análise ao elemento básico, teremos um batedor de carteiras, alguém com dedos leves, capaz de tirar de uma bolsa o que quer e em seguida devolver tudo, antes que a vitima perceba. Pode prensar uma chave numa massa e mandar fazer uma cópia.

— Se já conseguiu bater a bolsa, por que devolver tudo? — questionou Hickman.

— Para que a vítima não se acautele, o que dará tempo à quadrilha. A mulher vai ao toalete e leva bolsa. Ao pegar o batom, nota a falta da carteira e da o alarme. Já no outro quadro, a quadrilha invade residência, furta o que lhe interessa e sai antes que as vítimas cheguem.

Ally consultou de novo a relação afixada.

— Meia-noite e meia, uma e quinze, meia-noite e dez, e assim por diante. Alguém da casa noturna alerta os que estão furtando quando as vítimas pedem a conta. Um funcionário, ou cliente constante. No Blackhawk's, os clientes levam em média vinte minutos para sair depois que pedem a conta.

— Temos duas outras casas noturnas envolvidas agora, além do Blackhawk's — observou Kiniki, precupado. — Vamos precisar de agentes em todos eles.

— Sim, senhor. Mas é ao Blackhawk's que vão voltar, porque lá está a árvore que dá dinheiro.

— Descubra uma maneira de derrubar a árvore Fletcher. — O tenente levantou-se. — E pode tirar o dia de folga hoje. Recupere o sono perdido.

Imensamente grata, Ally encolheu-se no sofanete da sala de descanso, pedindo para que a avisassem quando chegassem os relatórios que aguardava,

Dormiu por uma hora e meia e já quase se sentia se sentia humana quando Hickman a sacudiu pelo ombro.

- Gosta de sanduíche de queijo? Eu tinha um e sumiu. Estou investigando.

Espantando o sono, Ally pegou a presilha e prendeu os cabelos.

- Nao vi seu nome nele.

- Mas era meu.

Ally exercitou os músculos dos ombros,

- Seu nome é Padaria Panorama? Além disso, só comi metade. — Olhou as horas. — Chegaram meus relatórios?

- Chegaram, assim como sua autorização.

- Ótimo. — Ally levantou-se e ajustou o coldre. — Vou trabalhar.

- Quero meu sanduíche de queijo naquela caixa até o final do expediente.

- Eu comi só metade — repetiu Ally.

- Antes de sair, parou em sua escrivaninha para pegar os papéis. Ignorando o barulho na delegacia, porreu os olhos pelo texto, ajustou melhor o coldre e vestiu a jaqueta.

  Levantou o rosto quando o barulho se reduziu a murmúrios e viu o pai entrando. Assim como Blackhawk, O delegado Fletcher causava alvoroço, entre o mulherio.

  Sabia que alguns colegas ressentiam-se do fato de a filha do chefe de polícia ter ascendido tão rapidamente ao posto de investigadora. As queixas abordavam desde o favoritismo até a bajulação.

Mas sabia que merecia o distintivo. Orgulhava-se demais do pai e da própria capacidade para se deixar abater por fofocas.

— Delegado.

— Investigadora. Tem um minuto?

— Até dois. — Ally tirou a bolsa da última gaveta da escrivaninha. — Podemos conversar no caminho? Estou de saída. Consegui uma autorização para requisitar uma coisa de Blackhawk.

— Ah... — Fletcher recuou para lhe dar passagem, atento aos demais funcionários quietos na sala. Os mexericos começariam só quando os dois estivesse bem longe.

— Vamos pela escada? — sugeriu Ally. — Não tive tempo para meus exercícios esta manhã.

— Acho que consigo acompanhá-la. Para que a autorização?

— Para confiscar e assistir a todas as fitas gravadas do circuito interno da casa noturna. Ele ficou uma fera por conta disso ontem. Tenho a impressão de que o deixo meio nervoso.

Boyd abriu a porta da escada e atentou as costa da filha enquanto ela passava.

— Vejo pelos eriçados em você também.

— Está bem, acertou. Irritamos um ao outro.

— Imaginei. Ambos gostam das coisas a seu modo.

— Por que eu aceitaria fazer minhas coisas do jeit de outra pessoa?

— Por quê? — concordou o pai, afagando o rabo-de-cavalo da filha. Sua garotinha sempre fora voluntariosa e cabeça-dura. — Por falar em pelos eriçados, tenho um encontro com o prefeito em uma hora.

-Antes você do que eu — retrucou Ally, descendo em passo lépido.

- É sobre o furto desta madrugada?

- Mesmo modus operandi. Encontraram um verdadeiro esconderijo do tesouro na casa dos Chambers. Hoje cedo, a sra. Chambers passou a lista completa dos itens desaparecidos. É eficiente a advogada. Estava tudo no seguro e os itens somados alcançam a cifra de duzentos e vinte e cinco mil dólares.

- O maior prejuízo individual até agora.

- Isso mesmo. Espero que isso torne o bando mais ousado. Levaram obras de arte desta vez. Não sei se foi pura sorte ou se algum deles sabia o que tinha na frente ao ver as preciosidades. Tem de haver um esconderijo, onde guardam os produtos antes de repassa-los. Grande o bastante para guardar carros.

- Um desmanche clandestino dá cabo de um automóvel em duas horas — lembrou o delegado, policial veterano.

- Eu sei, mas... — Ally encostou a mão na porta externa, mas o pai se adiantou e a empurrou.  - Mas?

 - Algo me diz que não é o que acontece. Trata-se de alguém que gosta de produtos de boa qualidade, que tem bom gosto. Na segunda invasão, furtaram uma coleção de livros raros, mas ignoraram um relógio antigo que valia uns cinco mil, mas era feio de doer. Havia carros dando sopa nos outros cenários, mas levaram só dois. Os mais bonitos.

 - Ladrões exigentes?

- Acho que sim. — Ao ar livre, Ally piscou contra o sol ofuscante e colocou os óculos escuros. — E arrogantes. A arrogância leva a cometer erros. É  o que vai virar o jogo a meu favor.

— Espero que sim. A pressão aumenta, Ally. — O pai a acompanhou até o carro e lhe abriu a porta, fazendo-a lembrar-se do cavalheirismo que Jonah lhe impunha. — Até o prefeito já está incomodado.

— Acho que não vão esperar mais de uma semana para atacar de novo. Estão a todo o vapor. Vão volte ao Blackhawk's.

— Sabem que é lá que estão os peixes grandes.

— Mais algumas noites lá e começarei a reconhecer rostos. Eu pego o olheiro, pai.

— Acredito. — Boyd inclinou-se e a beijou no rosto — Agora, vou amansar o prefeito.

— Acredito. — Ally ajeitou-se atrás do volante. - Só uma dúvida.

— Diga.

— Conhece Jonah Blackhawk há... Quinze anos?

— Dezessete.

— Por que nunca o levou lá em casa? Nem para jantar, nem para assistir a um jogo de futebol no sábado à tarde, nem para saborear as comidas que você faz?

— Ele nunca quis ir. Sempre recusa o recebimento do convite, declina e alega estar ocupado.

— Dezessete anos ocupado. — Pensativa, Ally ttamborilava com os dedos no volante. — Como trabalha não? Bem, há quem prefira não se misturar com policiais.

— De fato — concordou Boyd. — Mas há quem se imponha limites e nunca se convença de que pode ultrapassá-los. Ele atendeu a meu pedido para conversarmos na delegacia. Não gostou, mas aceitou. Já tomamos café ou cerveja no clube. Mas lá em casa ele não vai. Seria ultrapassar o limite. Nunca consegui convencê-lo de que isso é bobagem.

- Engraçado, ele parece um homem que se considera à altura de qualquer coisa ou de qualquer um.

- Jonah é cheio de detalhes. Não há nada simples nele.

 

Ally telefonou para o Blackhawk's e se surpreendeu ao ouvir a voz de Jonah.

— É Fletcher. Não pensei que fosse fã do dia.

— Não sou. Mas às vezes tenho de abrir exceção. Em que posso ajudá-la, investigadora?

— Pode descer e me deixar entrar. Estarei aí em dez minutos.

— Não pretendo sair. — Ele fez breve pausa. Mas... o que está usando?

Ally teve vontade de rir, mas conseguiu abafar.

— Meu distintivo — declarou, e desligou.

Jonah pôs o fone no gancho, recostou-se e se distraiu imaginando Allison Fletcher usando o distintivo e mais nada. Ante a imagem nítida, sedutora demais, saltou de detrás da escrivaninha.

Não tinha nada que imaginar a filha de Boyd nua. Ou melhor, não tinha nada que fantasiar sobre a filha de seu grande amigo de maneira alguma. Nem cogitar qual seria o sabor de seus lábios. Ou o perfume que sentiria sob o contorno daquele belo queixo obstinado

Céus, daria tudo para enterrar os dentes naquela carninha macia. Só uma vez.

Fruto proibido, resignou-se, andando para lá e para cá, já que ninguém o observava. Ally era fruto proibido e, por isso mesmo, mais tentadora. Embora nem fosse seu tipo. Talvez gostasse de loiras de pernas longas. Talvez gostasse de loiras de pernas longas inteligentes e determinadas. Mas preferia mulheres mais amigáveis.

      Mais amigáveis e desarmadas, completou, divertido.

      Não conseguira tirá-la da cabeça, principalmente sua temporária condição de fragilidade enquanto cochilava na poltrona ao lado no carro.

Bem, sempre tivera um fraco por carentes, lembrou mesmo, ao abrir as persianas da janela do escritório. O que deveria resolver seu problema quanto a Allison. A despeito da breve mostra de vulnerabilidade naquela madrugada, carente era adjetivo que não se aplicava à estonteante investigadora.

Ela apenas o usava temporariamente. Concluída a tarefa, voltariam cada um para seu canto em seus mundos distintos. E seria o fim da história.

Viu quando ela estacionou diante do bar. Ao menos, tivera o bom senso de pegar o carro, em vez de atravessar pé metade de Denver.

Foi  sem pressa abrir-lhe a porta.

- Bom dia, investigadora. — Admirou o automóvel de luxo vermelho e branco. — Belo carro. É da polícia? Oh, perdão, seu pai não teria como explicar...

- Se pensa que consegue fazer piada acerca de um carro, vai se decepcionar. Pelo jeito, nunca esteve numa sala cheia de tiras.

- Vou me aprimorar — prometeu Jonah, tocando na lapela do blazer marrom em padrão discreto que ela  usava. — Bonito.

 

— Então, ambos gostamos de grifes italianas. Podemos comparar nossos guarda-roupas depois.

Só para irritá-la, porque apreciava o brilho dourado nos olhos dela quando se irritava, ele bloqueou a passagem.

— Posso ver o distintivo?

— Deixe disso, Blackhawk.

— Não. Quero ver.

Bufando, Ally sacou o distintivo do bolso e o encostoou no  nariz dele.

— Já viu?

— Estou vendo. Número 31628. Vou comprar um bilhete de loteria com esse número.

— Tenho outra coisa que vai gostar de ver. — Ela desdobrou a autorização judicial e a estendeu.

— Jogo rápido. — Jonah não esperara menos. - Vamos subir. Estive revendo as fitas. — Seguiram para o elevador. — Você parece descansada.

— Estou.

— Algum progresso?

— A investigação prossegue.

— É, a polícia. — Jonah a convidou a entrar no elevador. — Parece que estamos perdendo muito tempo nisso, não?

— Faria um favor a seu coração subindo pela escada

- Meu coração nunca me deu problemas. E o seu?

- Inteiro e saudável, obrigada. — Ally saiu quandoas portas se abriram. — Oh, você deixou o sol entrar! Estou chocada. Por favor, as fitas. Passarei um recibo

   Ela não usava perfume, reparou Jonah. Só sabonete e pele. Estranho como tal simplicidade podia ser erótica.

— Está com pressa?

— O tempo voa.

 Ele entrou numa sala adjacente. Após breve batalha interior, Ally foi dar uma espiada. Era um quarto pequeno, com uma cama redonda negra sem cabeceira sobre uma plataforma elevada.

Ergueu o olhar e sentiu branda decepção por não ver um espelho no teto.

 - Seria óbvio demais — explicou Jonah, em resposta a seus pensamentos.

 - A cama já diz tudo.

 - Não prefere a franqueza?

 Sem responder, Ally atentou a detalhes no cômodo. Fotografias em preto-e-branco emolduradas ornavam as paredes. Artísticas, interessantes, incluindo cenas noturnas sem retoques, ou obscuras.

  Reconheceu dois artistas e apertou os lábios. O homem tinha olho para arte e um gosto satisfatório.

- Tenho uma igual a esta. — Indicou o estudo de um ancião com chapéu de palha dormindo sob uma marquise de concreto rachada, um saco de papel apertado na mão. — Shade Colby. Gosto do trabalho dele.

 - Eu também, assim como o da mulher dele, Bryan Mitchell. Aquela do lado é dela. O casal de velhos de dadas no banco do ponto de ônibus.

- Belo contraste, desespero e esperança.

- A vida é feita dos dois.

- Aparentemente.

Ally perambulava pelo quarto. Havia um closet fechado, uma porta de saída, bem trancada, e aquilo que presumia ser um banheiro ou lavabo. Pensou nas vibrasões sexuais a que Lydia Carson se referira. Sim, aquele cômodo as tinha, quase fumegava com elas.

- O que tem aqui? — indagou, apontando para porta.

 

Em vez de responder, Jonah a incentivou a entrar e ver por si só.

Ela abriu aporta e soltou um suspiro de prazer.

— Ah, agora gostei! — A sala de ginástica totalmente equipada a atraía bem mais do que a cama enorme

Jonah a observou passar os dedos nos aparelhos, erguer os pesos e se exercitar um pouco enquanto inspecionava. Dava o que pensar o fato de ela ter rosnado à cama e agora babar diante do aparelhos de ginástica.

— Tem até sauna? — Cheia de inveja, Ally encostou o nariz na janelinha de uma porta de madeira.

— Quer fazer?

Ela se voltou novamente carrancuda.

— Para que tudo isto, se há tantas academias de ginásticas nas proximidades?

— Academias de ginástica são frequentadas por outras pessoas, para começar. Funcionam por muitas horas, mas em algum momento fecham. E, para completar, não gosto de usar equipamentos alheios.

— É muito individualista, Blackhawk.

— Acertou em cheio. — Ele tirou uma garrafinha de água de um geladeira pequena. — Quer uma?

— Não. — Ally pousou o peso e voltou à porta. - Obrigada por mostrar a casa. Agora, as fitas, Blackhawk.

— Sim, o tempo voa. — Ele desenroscou a tampa da garrafa e tomou um gole de água. — Sabe o que mais me fascina em trabalhar à noite, investigadora Fletcher?

Ela olhou para a cama redonda e o encarou.

— Imagino.

— Isso também, mas o que mais me agrada em trabalhar à noite é o fato de sempre ser a hora que você quer que seja. O horário que mais gosto é o das três da madrugada. Muita gente o considera o mais difícil de todos. Mas, se a gente não dorme, essa é a hora em que a mente desperta e pensa no que fez ou deixou de  fazer naquele dia, ou no que vão fazer ou deixar de fazer no dia seguinte, e no posterior, e assim por diante, até o fim da vida.

- E você não se preocupa com o ontem ou com o amanhã.

- Perde-se muito do agora fazendo isso. Há tanta coisa para se fazer agora.

- Não tenho muito do agora para continuar filosofando com você.

- Só um minuto, — Jonah recostou-se num lado do batente da porta e Ally, no outro. — Boa parte de meus clientes são gente da noite... Ou gente que quer se lembrar de que já foi da noite. A maioria tem emprego agora, exerce uma função que paga bem e que a torna cidadã responsável.

Ela tirou a garrafa da mão dele e bebeu água.

- Seu trabalho paga bem.

 Ele sorriu. A boa indireta era uma das características de Allison que o atraíam.

- Está insinuando que não sou um cidadão respeitável? Meus advogados e contadores não concordariam com você. O que quero dizer é que as pessoas vêm aqui para esquecer suas responsabilidades por algum tempo. Para se esquecerem do despertador e que têm de bater cartão às nove em ponto. Ofereço um lugar sem relógio... Ao menos até a hora de fecharmos.

Ally devolveu a garrafa.

- Concluindo?

- Esqueça um pouco os fatos. Olhe para as sombras. Está caçando gente da noite.

Gente como Blackhawk, pensou Ally. Sem dúvida ele integrava o grupo, com aquela cabeleira negra e frios olhos felinos.

— Eu sei.

— Mas está raciocinando como eles? Miram a presa agem rápido, muito rápido. Seria menos arriscado reconhecer o terreno e executar os furtos durante dia. Escolhido o alvo, aprenderiam seus hábitos: a horas sai para o trabalho, a que horas volta. Não levariam mais de dois dias para fechar o plano.

Jonah tomou mais água.

— Seria muito mais eficiente. Por que não fazem isso?

— Porque são arrogantes.

— São, mas não é esse o motivo principal. Pense

— Gostam da adrenalina, da excitação.

— Exatamente. Gostam da excitação de trabalhar à noite.

Intrigava Ally o fato de Jonah ter chegado quase a mesma conclusão que ela.

— Acha que eu já não tinha pensado nisso?

— Pode ter pensado, mas será que levou em conta que gente que vive à noite é mais perigosa do que gente que vive de dia?

— Incluindo você?

— Incluindo a mim.

— Mensagem recebida. — Ela se voltou para sair e então olhou para a mão dele fechada em seu braço.

— O que há, Blackhawk?

— Só agora me ocorreu. Por que não mandou um policial aqui pegar as fitas?

— Porque estou cuidando do caso.

— Não.

- Como não?

- Queria me ver. — Jonah achegou-se para provar. – Por que não me esmurrou ainda?

- Não costumo bater em civis. — Ally ergueu o queixo quando ele a prensou contra o batente. — Mas posso abrir exceção.

- Sua artéria está palpitando.

- Sempre palpita quando me irrito. — Na verdade, estava excitada e a sensação se espalhava por seu corpo. Ágil, moveu-se de modo a fincar o cotovelo no abdome dele e assim, se desvencilhar. Mas ele estava preparado e soltou-lhe o braço só para lhe agarrar o pulso. Instintivamente, ela girou o corpo e posicionou o pé atrás do dele, tencionando derrubá-lo.

JONAH  deslocou o peso do corpo e a empurrou contra a porta. Ela disse a si mesma que era a ira que a tornava ofegante, não a maneira sensual como os contornos másculos se adaptavam aos seus.

Ally chegou a cerrar o punho para esmurrá-lo, mas concluiu que o sarcasmo era a melhor arma contra ele.

- Na próxima vez, pergunte se eu quero dançar. Não estou com humor para... — Calou-se ao vislumbrar algo perigoso nos olhos dele, uma resolução ousada que lhe descompassou a pulsação.

Esqueceu a autodefesa, esqueceu o punho cerrado pronto para atacar.

- Raios, Blackhawk, largue-me! O que quer de mim?

- Quero tudo. — Ele punha de lado as regras e as conseqüencias de violá-las. Tudo o que via era Ally.

- E você?

Caída no chão, a garrafa derramava sobre o tapete o que restava de seu conteúdo. Ávido por pousar as duas mãos sobre Ally, Jonah as usou para prender os braços dela acima da cabeça e aproximar os lábios dos dela.

Ally contorcia o corpo, se em protesto ou convite, a ele não importava. De qualquer forma, iria se danar por aquela afronta. Sendo assim, aproveitaria ao máximo.

Mordiscou-a, do jeito que imaginara, no lábio inferior liberando o calor e a maciez, dos quais absorvia. Ally deixou escapar um gemido, tão primitivo quanto a necessidade que o devassava.

O Cheiro dela, de sabonete e pele, contrastando com o sabor, quente e suculento, o levavam à loucura, atiçando uma voracidade que jamais experimentara.

Baixou as mãos, deslizando-as pelo corpo cheio de curvas, detendo-se nos quadris. Tinha que satisfazer a ânsia, tomar o que desejava sem pensar duas vezes.

Foi quando roçou na arma dela.

Recuou como se fosse alvejado.

O que estava fazendo? Céus, o que estava fazendo?

Ally não disse nada, fitando-o com olhos enevoados. Mantinha os braços acima da cabeça, como se ele ainda os prendesse ali. Seu corpo todo tremia.

- Não devia ter feito isso — murmurou ela, ofegante.

- Eu sei.

- Não devia mesmo.

De olhos bem abertos, Ally o agarrou pela nuca e colou suas bocas.

Desta vez, foi Jonah quem estremeceu, mas o choque repercutiu no corpo dela, até a medula dos ossos. Ele a explorara com aquele primeiro beijo selvagem e ela queria viver de novo a sensação. Oh, faria com que ele repetisse, vezes sem conta, até que seu corpo parasse de exigir.

Não conseguia respirar nada além dele e, a cada inspiração, era como se inalasse uma droga poderosa.

Os efeitos dessa droga se intensificavam em seu corpo, enquanto suas línguas travavam uma batalha mortal.

Violento, Jonah arrancou-lhe a blusa do cós da calça e lintroduziu a mão por baixo, até alcançar um seio.

Ambos gemeram febrilmente.

— No instante em que a vi... — Jonah abandonou abandonou os  lábios de mel para degustar a pele lisa do pescoço.

 - No instante em que a vi...

- Eu sei... — Ally ansiava pela boca dele outra vez, precisava recuperá-la. — Eu sei... Ele já lhe puxava o blazer pelos braços quando a sanidade começou a sobrepujar a loucura, que o incitava a possuir Ally, rápido e sem maiores considerações. Por que não? Era só arrancar o que queria, do jeito que quisesse, e se satisfazer.

- Ally... — Ao pronunciar o nome, deleitar-se com som antiquado, a realidade caiu como uma pedra, embora Jonah não se movesse, ela o viu se afastar, colocar uma distância entre ambos, pela mudança em olhos. Aqueles lindos e fascinantes olhos verdes.

- Tudo bem. — Inspirou profundamente. — Está tudo bem. — Pousou a mão no ombro dele, até que se afastasse. — Foi só... — Passou ao escritório. — Bem, foi só...

- Nada de mais.

Só preciso de um minuto para clarear a mente, Ally jamais se entregara a uma paixão de modo a perder a noção de tudo, como havia pouco, mas ponderaria a respeito mais tarde. Agora, era essencial recuperar erar o equilíbrio.

-           Acho que... Ambos sabíamos o que estava latente e...Foi bom termos posto para fora.

Afim de ganhar tempo, Jonah se abaixou, pegou a garrafa de água vazia e a pôs de lado. Com as mãos, nos bolsos, para esconder seu tremor, passou ao escritório também.

- Concordo com a primeira parte da análise, mas vejo com ressalvas a segunda. O que vamos fazer agora?

-Agora... Vamos esquecer o que aconteceu.

Esquecer? Jonah não se conformava. A mulher o pusera de joelhos e agora o dispensava com o rabo entre as pernas?

- Como queira — replicou, orgulhoso. Foi até escrivaninha e tirou três videocassetes da gaveta. – creio que isto atende à exigência de sua autorização judicial.

Ally sentia a palma das mãos suadas mais não se rebaixaria enxugando-as. Pegou os videocassetes e os guardou na bolsa.

- Vou fazer um recibo.

- Não precisa.

 

Ela já abria um bloco de papel.

- É procedimento.

- Claro, devemos observar os procedimento. – Jonah pegou a folha de papel. – Não se prenda por mim Fletcher. O tempo voa.

- Ele se encaminhou a saída, mas mandou para os ares a dignidade e se voltou.

- Não precisamos fingir. Você começou, eu continuei. Foi empate e já acabou.

- Querida... Ou melhor, investigadora Fletcher, se estivesse acabado, estaríamos nos sentindo bem melhor agora.

- Sobreviveremos — retrucou Ally, sentindo-se recompensada ao bater a porta da escada.

Ally não nascera para ser garçonete. Teve certeza disso ao despejar um drinque na cabeça de um cliente sem-vergonha que lhe apalpara as nádegas e a convidara para o ato sexual ilícito que era proibido em vários Estados.

O cliente protestara. Sem saber o que fazer, ela aguardara o resgate, que logo se apresentou na forma de Will, acostumado a lidar com situações semelhantes.

Passara a noite toda fumegando de raiva. Mas, se na segunda noite de trabalho teve certeza sua falta de talento para servir mesas, na terceira já estava desesperada para mandar aos ares aquele disfarce.

Queria ação. Mas não do tipo que se via num bar, na forma de drinques escorregando pelo balcão e pedidos voando para cozinha, de onde saíam na forma pratos.

Aos vinte minutos de serviço em sua terceira noite no Blackhawk's, sentiu profundo respeito por aquelas que, além de limpar mesas, toleravam falta de educação, gorjetas ofensivas e propostas indecentes.

— Odeio gente — desabafou Ally com Pete, enquanto aguardava a feitura de um drinque.

— Não odeia, não.

— Odeio, odeio, sim! As pessoas são rudes, desagradáveis. E todas frequentam o Blackhawk's.

— E ainda são só seis e meia.

- Seis e trinta e cinco, por favor. Cada minuto conta. – Ela invejosa para Jan, deslocando-se desenvolta entre as mesas, limpando, servindo, exibindo os dotes - Como ela consegue?

- Algumas pessoas nascem para isso, loirinha. Desculpe-me a franqueza, mas não é o seu caso. Não que seja incaz de fazer o serviço, mas lhe falta paixão.

Ally volveu os olhos ao teto.

- Os pés também — completou. Já erguia a bandeja, esquadrinhando o salão, como sempre, quando avistou um homem entrando pela porta da frente. — Oh, Pete, peça a Jan que leve este pedido à mesa oito. Lembrei-ma coisa...

- Ally, o que faz aqui?

Isso foi tudo o que Dennis conseguiu dizer antes que Ally o arrastasse pelo bar até a cozinha e através da porta dos fundos.

- Dennis o que está fazendo aqui?

O ex-namorado expressou aborrecimento.      

- Não é da sua conta. Por que me arrastou aqui para fora?

- Estou trabalhando. Se ficar aqui, vai me entregar, entende? Já lhe disse o que aconteceria se começasse a me seguir de novo!

- Não sei do que está falando. — Com aquele ar ofendido, Dennis a convencera mais de uma vez.

- Escute aqui. — Ally espetou o dedo no peito dele. – Está tudo acabado entre nós e não adianta você insistir. Se continuar me seguindo, farei com que leve uma advertência e prometo transformar sua vida em um inferno.

Ele afinou os lábios e baixou o olhar, encurralado,

- Isto aqui é um lugar público. Não pode me proibir de procurar um bar e tomar um drinque quando tiver vontade.

 — Mas não pode me seguir nem ameaçar meu disfarce, em uma investigação policial. Se me prejudicar, apresentarei queixa à promotoria pública pela manhã.

— Não precisa se preocupar. Vamos, Ally. Como eu podia adivinhar que estava trabalhando aqui? Eu só estava passando e...

— Não minta. — Ela chegou a cerrar o punho e erguê-lo, mas se conteve e o encostou na testa.

— É que sinto tanto a sua falta. Penso em você o tempo todo. Não consigo evitar. Sei que não devia ter seguido você... mas tinha esperança de conversar, só isso. Vamos, meu amor... — Dennis a segurou pelos ombros e enterrou o rosto em seus cabelos. — Vamos conversar...

— Não toque em mim. — Empertigada, Ally tentou desvencilhar, mas o ex-namorado a segurou com mais força.

— Não, não se afaste! Sabe que fico louco quando me trata com essa frieza...

Com dois movimentos, Ally o teria lançado de costas chão e posto o pé em seu pescoço, mas não queria chegar a esse ponto.

— Dennis, não quero magoar você, mas tem que me deixar em paz. Solte-me agora ou será muito pior para roce.

— Não. Vai ser diferente, juro que vai ser diferente. Se voltarmos, eu provo.

— Não. — Rija, Ally esforçou-se para escapar do abraço. — Solte-me.

A porta da cozinha se abriu, despejando luz para fora.

 

 — A moça pediu que a soltasse — advertiu Jonah. - É bom atender.

Ally fechou os olhos, raivosa e constrangida, além de frustrada.

— Pode deixar que eu resolvo isto.

 -  Não duvido, mas estamos no meu estabelecimento e aqui mando eu. Tire as mãos de cima dela.

-   Dennis voltou-se, mas puxou Ally.

— Estamos tendo uma conversa particular.

— Que já acabou. Entre, Ally.

— Isto não é da sua conta — desafiou Dennis, E cacarejante. — Caia fora.

— Não gostei do seu linguajar.

Ally se soltou e pulou entre os dois homens quando Jonah avançou, com um brilho assustador nos olhos lembrando um raio sobre gelo fino.

— Não. Por favor.

A  força bruta não o teria detido agora, nem uma ordem, mas o apelo exausto nos olhos de Ally conseguiu.

— Entre — repetiu, brando desta vez, apertando-lhe os ombros.

—Então, é isso! — Dennis ergueu os dois punhos cerrados. — Disse que não havia mais ninguém nesta história, mas era mentira. Há quanto tempo dorme com esse sujeito, sua desclassificada?

Jonah deu o bote tal qual uma serpente. Ally já presenciara brigas de rua, até se envolvera em algumas quando trabalhava de uniforme, mas daquela vez pode apenas pular para trás e ver Jonah prensar Dennis contra a parede.

— Pare! — pediu, puxando-o pelo braço. Foi como se tentasse deslocar uma montanha.

  Jonah lançou-lhe um olhar glacial.

 

— Não. — E deu um murro na barriga de Dennis.

— Não suporto sujeitos que forçam e xingam mulheres.  — Baixou a voz ao desferir o segundo golpe. — Não admito esse tipo de coisa em meu estabelecimento. Você ouviu?

Solto, Dennis escorregou para o chão.

— Acho que entendeu.

Desolada com os gemidos do ex-namorado, Ally levou a mão à testa.

— Maravilha. Acaba de espancar um assistente da promotoria pública.

— E daí?

— Ajude-me a levantá-lo.

— Não. — Jonah a segurou pelo braço. — Ele chegou aqui sozinho e vai sair sozinho.

— Não podemos deixá-lo caído na rua deste jeito!

— Daqui a pouco ele se levanta. Certo, Dennis? — Impecável em suas roupas negras, Jonah agachou-se junto à figura delirante. — Daqui a pouco, você vai se levantar e ir embora. E nunca mais vai voltar aqui. Vai se manter bem longe de Allison, também. Aliás, se por acaso sentir que está respirando o mesmo ar que ela, vai reter o fôlego e correr na direção oposta.

Com dificuldade, Dennis se pôs de quatro. Os olhos encharcados de lágrimas não ocultavam o brilho do ódio.

— Você a merece... — Cheio de dores, levantou-se.

— Ela vai usar você e depois jogar fora. Como fez comigo. Você a merece... — Repetindo a ladainha, tomou um rumo qualquer.

  - Parece que é toda minha agora. — Jonah endireitou-se e correu os dedos pela camisa, como se removesse fiapos. — Mas, se vai começar a me usar, prefiro que seja lá dentro.

     -    Muito engraçado.

Atando-a detidamente, Jonah notou a piedade em seu olhar.

— Lamento tudo isto. Vamos entrar. Descanse em meu escritório até se sentir mais calma.

— Estou bem. — Apesar da declaração, Ally lhe deu as costas e soltou os cabelos, como se a presilha a tolhesse. — Não quero conversar sobre isso agora.

— Como queira. — Ele pousou as mãos em seus ombros e fez pressão com os polegares, aliviando a tensão. — Apenas respire fundo, então.

 — Odiei quando ele me tocou e me sinto mal por ter odiado. Será que alguém percebeu?

 — Não. Segundo Pete, entrou algum conhecido seu, você ficou colérica e o arrastou para fora.

— Bom, se alguém perguntar, vou dizer a verdade. É um ex-namorado que não me deixa em paz.

— Perfeito. — Jonah a fez se voltar. — Agora, pare de se preocupar e de se sentir culpada. Não é responsável pelos sentimentos dos outros.

 — Sou, sim, se ajudei a criá-los. De qualquer forma ... — Ally retirou a mão que ele mantinha em seu ombro. — Obrigada. Eu teria me arranjado sozinha, mas obrigada.

— De nada.

Sem poder evitar, ele se aproximou. Observou-a baixar os cílios e erguer os lábios ao encontro dos seus. Estavam quase se beijando quando a porta se abriu derramando luz outra vez.

— Oh, desculpem-me. — Em meio ao barulho de louça da cozinha, Frannie estacou com isqueiro e cigarro posicionados nas mãos.

Ally afastou-se, furiosa consigo mesma por esquecer as prioridades.

— Eu já ia entrar. Já estou atrasada. — Lançou breve olhar a Jonah antes de correr para dentro. Frannie esperou a porta se fechar e foi se recostar na parede. Acendeu o isqueiro.

— Ela é bonita — comentou, com uma baforada.

— É.

— E inteligente. A gente vê.

—É.

— Bem o seu tipo.

Desta vez, Jonah encarou a funcionária.

— Acha mesmo?

— Tenho certeza. — A brasa do cigarro brilhou quando ela deu um tragada. — Ela tem classe. É adequada a você.

Era mais difícil do que ele imaginara analisar a verdade com uma velha amiga.

— Veremos.

Frannie já vira tudo. Encaixavam-se como chave e fechadura.

— Qual foi a pendenga com o sujeito de terno? Jonah olhou na direção que Dennis tomara.

— Nada de mais. Um "ex" que não gosta da situação.

— Foi o que pensei. Bem, se quer saber, gosto dela.

— Queria saber, sim, Frannie. — Jonah achegou-se e a tocou no rosto. — Sua opinião sempre será muito importante para mim.

 

Seis dias após o furto na casa dos Chambers, Ally apresentava-se na sala do tenente Kiniki. A fím de ganhar tempo, já vestira a roupal de garçonete para o trabalho à noite, guardando o distintivo policial no bolso traseiro da calça e colando a bainha de uma lâmina chata pouco acima do tornozelo.

- Até agora não rasreamos uma única peça furtada — Sabia que aquilo não era o que o superior esperava ouvir. — Nenhuma novidade nas ruas. Até as fontes inesgotáveis de Hickman secaram. Quem quer que seja o cabeça dessa quadrilha é esperto, discreto e paciente.

- Está no Blackhawk's há uma semana.

-  Sim, senhor. Mas não sei mais do que no primeiro dia. Entre as imagens dos videocassetes e minhas próprias observações em campo, marquei vários clientes freqüentes, mas nenhum continuou suspeito. Para consolidar, meu disfarce segue sem levantar suspeitas.

- Felizmente. Feche a porta, investigadora.

- Ally sentiu um peso no estômago, porém obedeceu, barulho da delegacia diminuiu no pequeno cubículo de vidro do tenente.

- É sobre Dennis Overton.

 

Ela já previra. Uma vez apresentada a queixa no gabinete da promotoria pública, era inevitável que parte da artilharia caísse em seu próprio telhado.

— Lamento o incidente, tenente. Entretanto, no fim das contas, meu disfarce saiu fortalecido, em vez de levantar suspeitas.

— Não se trata disso. Por que não apresentou queixa no gabinete da promotoria antes? Ou a mim?

Ou a seu pai, completaram ambos, em pensamento.

— Era um assunto pessoal e, até esse lamentável incidente, restrito a meus horários pessoais. Acreditei que podia lidar com a situação sem envolver meus superiores ou os de Dennis.

Kiniki compreendia a postura defensiva porque compreendia Allison.

— Falei com o promotor público. Em sua queixa formal, declara que Overton, a partir da primeira semana de abril, passou a incomodá-la com telefonemas tanto aqui quanto em casa, a dar plantão na porta de seu apartamento, a segui-la dentro e fora de seus horários de trabalho.

— Mas nunca havia interferido com meu trabalho — observou Ally, e calou-se ao ver o tenente contrariado.

Kiniki baixou a cópia do documento e pousou sobre ele as mãos cruzadas.

— Estabelecer contato contra a sua vontade dentro ou fora de seu horário de trabalho interfere, sim. Não está a par da legislação com referência a perseguições, investigadora?

— Na verdade, não. Quando se tornou evidente que o indivíduo não desistiria do comportamento, não se deixaria desencorajar e poderia interferir numa importante investigação, expus o caso ao superior dele.

- Mas não registrou queixa na delegacia. Não, senhor.

- Nem requisitou um mandado de prisão. Achei que uma reprimenda do superior seria iente.

- Mais uma "advertência" de Jonah Blackhawk?

Ally abriu a boca e a fechou novamente. Não relatara parte do incidente ao promotor público.

- Overton afirma que Blackhawk o atacou, sem que o provocasse, num ataque de raiva.

- Oh, não... — Ally não pôde evitar a expressão desgostosa, mas logo recobrou a compostura profïssional-— Não é verdade, senhor. Não mencionei o incidente porque não achei necessário. Mas, se Dennis insiste nessa versão incorreta dos fatos, posso apresentar um relatório completo.

- Faça isso. Quero uma cópia na minha mesa até amanhã à tarde.

- Ele  pode perder o emprego.

- É  problema seu?

- Não. — Ally expirou, odiando ter de prestar contas sobre sua vida pessoal. — Tenente, Dennis e eu namoramos por três meses... fomos íntimos, mas então ele começou a ter ataques de ciúme, a se mostrar possessivo  e irracional. — Estranhamente, agora que começara a desabafar, não conseguia mais se conter: — Quando eu me atrasava para um encontro ou telefonava cancelando, ele me acusava de estar com outro homem. Eu não aguentava, brigávamos, mas logo ele me pocurava e telefonava, cheio de desculpas, prometendo que seria diferente. Quando eu relutava, ele se tornava desagradável, ou caía em depressão.Tenente, dormi com ele e, reconheço, parte do que acontece  é culpa minha.

Kiniki demorou um pouco a responder, mordiscando o lábio inferior enquanto a observava.

— Poucas vezes disse uma bobagem feito essa. Se aparecesse aqui agora uma vítima se queixando de agressão, diria que a culpa é dela? — Como Ally não respondia, prosseguiu: — Acho que não. Você cumpriria o procedimento. Pois cumpra-o agora.

— Sim, senhor.

— Ally? — Embora a conhecesse desde os cinco anos, Kiniki tentava manter à parte o relacionamento pessoal tanto quanto ela, mas em certos momentos... — Seu pai está sabendo?

— Não. Com todo o respeito, senhor, prefiro que ele continue sem saber.

— Se quer assim. Não concordo, mas respeito. Prometo não contar a seu pai se me prometer que vai me comunicar imediatamente se Overton sequer respirar a menos de dez metros de você. — Inclinou a cabeça para o lado ao ver os lábios dela trémulos. — Disse algo engraçado?

— Não, senhor. Sim, quero dizer... — Ally desistiu da formalidade. — É que Jonah disse praticamente a mesma coisa, tio Lou. Acho essa atitude... Doce, de um jeito masculino, é claro.

— Sempre dúbia. Agora, dê o fora daqui e descubra algo sobre esses furtos!

Considerando que nem toda aprendiz de garçonete ia ao trabalho dirigindo carro novo, Ally acostumara-se a estacionar a dois quarteirões de distância do Black-hawk's e vencer o resto da distância a pé.

 

No trajeto, aproveitava para relaxar, apreciar Denver em plena primavera. Adorava a cidade grande, com seus edifícios e torres prateadas arranhando o céu. Também apreciava as montanhas, brancas de neve no inverno, cobrindo-se de verde no verão.

Mesmo adorando as montanhas e tendo passado férias memoráveis na cabana dos pais, preferia vê-las ali, nas ruas de Denver. Sua cidade.

Em Denver, caubóis de botas surradas caminhavam ao lado de executivos em impecáveis ternos italianos. A cidade negociava gado, tinha comércio e vida noturna comparava-se a um garanhão selvagem, escovado e lustroso, porém não totalmente domado.

O leste do país jamais a fascinaria tanto.

E, quando a primavera atingia o auge, derramando sol quente sobre os picos que guardavam a cidade, seu ar, não havia lugar melhor no mundo.

Separou-se de Denver ao entrar no Blackhawk's.

Jonah estava no bar, apoiado no extremo do balcão, bebericando sua costumeira água e ouvindo as queixas de um cliente habitual.

Ele cravou os olhos verdes em Ally assim que ela entrou mais sem denunciar nenhum sentimento.

Desde aquele encontro afogueado no escritório, ele não a tocara mais e pouco lhe dirigira a palavra. Melhor assim. Trabalho e luxúria não combinavam e sempre acabavam prejudicando um ao outro.

Com tudo, era frustrante vê-lo noite após noite, próximo o bastante para alimentar ilusões, mas sem poder avançar nem recuar.

E desejando-o, como jamais desejara um homem na vida.

Despiu a jaqueta e pegou no batente.

Jonah sentia-se como se o matassem bem lentamente. Sabia o que era desejar uma mulher, sentir o sangue ferver, a virilha inchar, a cabeça rodar com imagens sensuais. Assemelhava-se à fome queimando o estômago, corroendo-o até ser satisfeita.

Assim era seu desejo por Ally. Mas não tinha como saciar aquela fome. E assim prosseguia a tortura, aguda, constante, dolorosa.

Nenhuma mulher jamais o fizera sofrer.

Ainda guardava na boca o sabor de Ally. Não conseguia se livrar dele. O simples fato o enfurecia, porque concedia a ela uma vantagem que nunca ninguém tivera sobre ele. O fato de ela não o perceber não negava a fraqueza.

E qualquer ponto fraco representava vulnerabilidade.

Queria que aquela investigação se encerrasse logo. Queria que Ally retomasse a vida em seu mundo, para que ele pudesse reequilibrar o dele.

Lembrou-se então da paixão com que ela o agarrara, devorando-o com beijos ardentes, enterrando as mãos em seus cabelos. Chegara a temer nunca mais conseguir firmar os pés no chão.

— Ainda bem que não há tiras por aqui. Imerso na fantasia, Jonah não ouvia e olhou para Frannie.

— Como?

Ela abriu uma cerveja e a despejou num copo.

— Um homem pode ser preso por olhar para uma mulher desse jeito. Trata-se de assédio, ou algo assim. Sua intenção é evidente, ao menos quando ela não está olhando.

Jonah assustou-se.

— É mesmo? Vou tomar mais cuidado.

 

- Ela também está olhando bastante — murmurou Frannie, afastando-se.

- O homem está preocupado — comentou Will com Frannie na outra ponta do balcão.

- Está com mulher na cabeça. E não consegue tirar.

Com uma piscadela, ela lhe serviu um corpo do refrigerante que ele consumia aos galões durante o expediente.

- Ele nunca ligou tanto para nenhuma mulher.

- Mas para essa está ligando.

Will sorveu o drinque esquadrinhando a multidão na área do  bar.

- Bom, ela é bonita.

- Não é por isso. A beleza superficial não significa muita coisa. Essa moça o atinge mais fundo.

- Acha mesmo? — Will puxou a barba curta. Não entendia as mulheres e não fingia entender. Considerava-as criaturas intrigantes de poder esmagador e formas maravilhosas.

- Vá por mim. — Frannie deu um tapinha na mão do colega, fazendo seu coração disparar.

- Duas margaritas, congeladas com sal, duas cervejas e um club soda com lima. — Jan pousou a bandeja e simulou com os dedos uma escalada pelo braço de Will , provocando-o.

— O que há, querido?

Ele enrubesceu, como sempre.

- Oi Jan. Com licença, preciso dar um giro.

Frannie meneou a cabeça ao vê-lo fugir.

- Não devia fazer isso com ele.

- Não posso evitar, ele é tão doce. — Frannie lançou os cabelos para trás. — Tenho uma festa hoje. Vou depois que fecharmos aqui. Quer vir junto?

— Depois que fecharmos aqui, vou para casa dormir na minha caminha e sonhar com astros de cinema.

— Sonhar não adianta nada.

— E eu não sei? — murmurou Frannie, ligando o liquidificador.

Ally carregava mais uma bandeja de copos usados, o bloco de anotações já cheio de pedidos em meia hora de trabalho. Aquela seria uma longa noite. Desanimou-se ao ver o patrão se aproximando.

— Allison, gostaria de lhe falar. — Sobre qualquer coisa, sobre nada. Cinco minutos sozinho com ela deveriam bastar. Raios. — Poderia subir ao escritório no seu intervalo de descanso?

— Algum problema?

— Não — mentiu Jonah. — Problema nenhum.

— Está bem, mas é melhor avisar Will. Ele guarda seus domínios como um lobo.

— Tire o intervalo agora. Vamos subir.

— Não posso, clientes sedentos me aguardam. Mas subo assim que for possível, se é tão importante. — Ally afastou-se rápido, porque sentira o calor dele avisando que a tal conversa não tinha nada a ver com trabalho.

Aproveitando a pausa enquanto Pete preparava os drinques, procurou se acalmar apoiada no balcão. Observando distraidamente a multidão, reparou num casal de vinte e poucos anos em franca discussão. Três homens de terno falavam de beisebol. Um flerte se iniciava entre uma mulher sozinha e o mais atraente de dois homens junto ao bar. Abundavam contatos visuais e sorrisos.

Numa das mesas, outro casal ria de alguma piada particular. De mãos dadas, namoravam, embora usassem alianças no dedo anular da mão esquerda. Bem casados, felizes, situação financeira estável, a julgar a bolsa de grife pendurada na cadeira da mulher, comabinando com os sapatos.

Na mesa além, um casal conversava baixo sobre algo agradável. Pairava um ar de intimidade ali também, notou Ally. Linguagem corporal, gestos, olhares apaixonados por sobre os cálices de vinho.

Era invejável aquele... Conforto, diria, de ter alguém no outro lado da mesa concentrado no parceiro, a despeito da multidão, atento a suas palavras, ou ao que ele não precisava dizer.

Seus pais usufruíam isso, um respeito que acrescia real  dimensão ao amor e atração.

Se já era maravilhoso assistir, como não se sentiria se experimentasse?

Ainda meditava a respeito quando ouviu risos das clientes ao lado, pois Pete acabara de contar mais uma de suas piadas. Como seu pedido ainda não estava pronto, voltou a esquadrinhar a imensa clientela do Blackhawk's.

O casal de mãos dadas chamou Jan. A mulher apontou para a garçonete um item no menu do bar. Jan fez um comentário qualquer, divertindo a cliente.

— Quanto mais quente, melhor! — disse a mulher.

- Reservamos mesa no salão só para as oito horas e enquanto isso vamos aproveitar aqui.

Jan rascunhou o pedido no bloco e se afastou. Ally sorriu ao ver o marido aproximar a mão da esposa DOS lábios e mordiscar-lhe o nó dos dedos.

Não fosse a pontada de inveja fazendo-a demorar o olhar um pouco mais sobre o casal, talvez não tivesse reparado na mínima mudança de cenário.

A bolsa da mulher continuava pendurada no espaldar da cadeira, mas em ângulo diferente e com o zíper meio aberto.

Teria sido Jan? Então, viu. A mulher na outra mesa, sentada de costas para a primeira, sempre sorrindo ao acompanhante, deixou cair dentro da bolsa em seu colo um molho de chaves.

Bingo!

— Está no mundo da lua, Ally? — Pete lhe cutucou o ombro. — Seus clientes já devem ter morrido de sede.

Ally ergueu a bandeja, de olho na mulher suspeita, que já se levantava com a bolsa debaixo do braço.

Um metro e sessenta de altura. Cinquenta e quatro quilos. Cabelos e olhos castanhos. Trinta e tantos anos, tez morena, feições marcantes. Encaminhando ao toalete feminino.

Como não podia abandonar o disfarce, correu para a área do salão, avistou Will e lhe empurrou a bandeja.

— A mesa oito está esperando isto. Diga a Jonah que preciso falar com ele. Preciso fazer uma coisa.

— Ei, mas...

Ally já atravessava o salão, rumo aos toaletes. No banheiro feminino, verificou sob a porta de todas as divisórias e localizou o par de sapatos que procurava na última. Ela devia estar tirando moldes das chaves em cera, concluiu, voltando-se para a pia. Deixou correr água, atenta à mulher suspeita. A tarefa requeria poucos minutos, porém exigia privacidade. Satisfeita, Ally voltou à área do bar. A garçonete Beth a abordou.

— Ally, os pedidos estão se acumulando. Onde está sua bandeja?

— Desculpe-me, houve uma pequena emergência — retrucou Ally, sorrindo sem graça. — Já estou reassumindo.

Sem perder tempo, captou o olhar de um dos policiais   disfarçados de clientes e parou junto a sua mesa.

— Branca, quase quarenta anos, olhos e cabelos castanhos. Sai do banheiro em minutos. Conjunto de calça azul-marinho. Ocupa uma mesa na área do bar com um branco de quarenta e poucos anos, grisalho, azuis, suéter verde. Fiquem de olhos neles, mas não façam nada. Vamos agir conforme o combinado.

De volta ao balcão, pegou outra bandeja. O homem de suéter verde já pagava a conta. Em dinheiro. Parecia a vontade, mas consultou o relógio de pulso e olhou na direção dos toaletes.

A mulher voltou para junto da mesa, mas, em vez de se sentar, abaixou-se para pegar a capa curta preta que pendurara no encosto da cadeira. Durante alguns segundos, seu corpo bloqueou a visão da bolsa da outra mulher. Então, ela se endireitou, sorriu para o acompanhante e lhe entregou a capa.

Dedos leves, constatou Ally. Dedos muito leves.

Ao ver Jonah entrar na área do bar, indicou-lhe discretamente o casal que se preparava para sair. Disfarçando, foi ao encontro dele e passou a mão em seu braço, afetuosa.

— Mandei dois homens atrás deles. Vamos deixá-los executar todo o esquema. Quero esperar um tempo antes de alertar os alvos. Nessa hora, vou precisar do seu escritório.

— Certo.

— Aqui embaixo, tudo deve continuar normalmente. Se puder ficar por aqui, darei um sinal quando chegar a hora e você pede a Beth para que sirva as minhas mesas pois precisa de mim para outra coisa. Não quero alarme de jeito nenhum.

— Entendido. Pode deixar comigo.

— Dê-me o código do seu elevador, para o caso de precisar subir sem você. Jonah lhe sussurrou ao ouvido:

— Dois, sete, cinco, oito, cinco. Pegou?

— Peguei. Não olhe muito para mim até eu conseguir tirar os alvos da área do bar.

Ally agia com toda a energia, porém mantinha a mente tranquila. Esperou quinze minutos. Quando a mulher-alvo se levantou para ir ao toalete, seguiu-a.

Dentro do banheiro, após rápida checagem nas divisórias, Ally sacou o distintivo policial.

— Com licença, sou a investigadora Fletcher, polícia de Denver.

A mulher recuou um passo instintivamente.

— Qual é o problema?

— Preciso de sua ajuda numa investigação. Gostaria de lhe falar, e com seu marido. Se puderem me acompanhar.

— Mas não fizemos nada...

— Eu sei, senhora. Já explicarei tudo. O escritório lá em cima está à disposição. Poderia se encaminhar para lá o mais discretamente possível? Sua ajuda seria muito bem-vinda.

— Não vou a lugar nenhum sem Don.

— Avisarei seu marido. Ao sair daqui, vá par esquerda e espere no corredor.

— Espero que tenha um bom motivo.

 

— Logo estarão a par de tudo. — Ally pegou a mulher pelo braço, apressando-a. — Por favor. Tomarei poucos minutos de seu tempo.

As duas saíram do banheiro.

— Não queremos encrenca — avisou a mulher.

— Por favor, espere aqui. Vou chamar seu marido.  — Sabendo que a mulher não teria muita paciência,  Ally foi rápido até a mesa do casal e recolheu os copos vazios. — Senhor? Sua esposa está ali no corredor dos toaletes e lhe pede que vá encontrá-la.

— Claro. Será que está com algum problema?

— Não, ela está bem.

 Ally levou os copos ao balcão e voltou depressa ao porredor.

— Investigadora Fletcher — apresentou-se ao marido, ao se juntar ao casal. — Preciso falar com o senhor e sua esposa em particular. — Digitou o código no painel do elevador.

— Ela não diz do que se trata, Don. Não será perigoso...

 — Por favor, é muito importante — insistiu Ally, praticamente empurrando-os para dentro do elevador.

— Não gosto nada de me envolver com a polícia — Declarou a mulher, nervosa.

— Lynn, acalme-se. Está tudo bem.

— Desculpem o atropelo. — Ally passou ao escritório de Jonah e indicou as poltronas. — Sentem-se, já os porei a par de tudo.  Lynn cruzou os braços, toda rígida.  — Não quero me sentar.

Que seja, pensou Ally.

— Estou investigando uma série de furtos praticados em Denver e adjacências nas últimas semanas.

A mulher deu uma fungadela.

— E parecemos ladrões?

— Não, senhora. Parecem um casal de alta classe média, bem-estabelecido e que tem sido, até hoje, o alvo mais frequente dessa quadrilha de ladrões. A menos de vinte minutos, uma mulher que, suspeitamos, integra a quadrilha tirou chaves da sua bolsa.

— Isso é impossível. Minha bolsa ficou comigo a noite toda. — Para provar, a mulher abriu o zíper do acessório.

Ally segurou-lhe o pulso.

— Por favor, não toque nas chaves.

— Como poderei tocar nelas se afirma que não estão aqui?

O marido massageou o ombro da esposa.

— Lynn, acalme-se. — Voltou-se para Ally. — Qual é a tese?

—Acreditamos que a mulher tira moldes das chaves, que são devolvidas, de modo que a vítima permanece alheia. Em seguida, a quadrilha invade a casa e rouba tudo o que lhe interessa. Vamos tentar evitar que isso aconteça com vocês. Agora, sentem-se.

Visivelmente abalada, a mulher cedeu à voz autoritária e ocupou uma poltrona.

— Seus nomes, por favor — pediu Ally.

— Don e Lynn... Sr. e Sra. Barnes.

— Sr. Barnes, pode me dar seu endereço?

Ele engoliu em seco e se sentou no braço da mesma poltrona da mulher. Ditou o endereço residencial.

— Quer dizer que estão em nossa casa agora, roubando nossas coisas?

—        Não creio que sejam assim tão rápidos. — Mentalmentemte, Ally calculava o tempo de viagem. — Há, alguém nesse endereço neste instante?

—        Não. Moramos sozinhos. — Barnes passou a mãos por entre  os cabelos. — Céus, não consigo acreditar...

Vou informar seu endereço à minha equipe para pormos em ação nosso esquema. Só um minuto.

Ally pegou o telefone no instante em que as portas do elevador  se abriam.

Já estão a par — informou a Jonah.

Ele foi ao encontro do casal.

- Sr. e Sra...?

- Barnes — respondeu o homem. — Don e Lynn Barnes.                                                                              

- Don, você e sua esposa gostariam de tomar alguma coisa? Imagino o quanto estão assustados.

- Acho que uma bebida vai me fazer bem. Uma boa dose de uísque puro, creio.

- Não os culpo. E Lynn?

- Eu... — Ela ergueu a mão e então a deixou cair. – Eu não entendo...

- Talvez um conhaque. — Jonah foi até a parede e abriu um painel que ocultava um bar bem abastecido.

Podem confiar na investigadora Fletcher — afirmou, enquanto  selecionava copos e garrafas. — Enquanto a equipe age, tentaremos mante-los o mais à vontade

- Obrigada.  — Lynn aceitou o cálice de conhaque.  - Muito obrigada.

Um tanto invejosa de Jonah por conseguir acalmar o casal em tão pouco tempo,  Ally voltou a se manifestar:

-           Sr. Barnes, as viaturas já estão a caminho de sua residência. Pode descrevê-la para mim, o estilo, as portas, as janelas...

— Claro. — Ele riu, nervoso. — Bolas, sou arquiteto.

Descreveu a casa de modo conciso e objetivo, informações que Ally transmitiu à equipe antes de estabelecer as coordenadas para a ação.

— Reservaram mesa para jantar aqui esta noite, não é mesmo? — confirmou ela.

—        Sim, para as oito horas. — Barnes expressou desconsolo. — Planejamos uma noitada.

Ally olhou as horas.

— A quadrilha pensa que dispõe de muito tempo.  — Queria que o casal descesse, terminasse os drinques no bar e fosse jantar com uma aparência de normalidade, mas não sabia se poderia contar com a mulher, tensa e nervosa.

Contornou a mesa e se recostou na beirada.

— Sra. Barnes... Lynn, vamos deter esses delinquentes. Eles não vão levar nada, nem danificar sua casa. Mas preciso que me ajudem aqui. Você e seu marido devem descer e fazer tudo o que haviam planejado para esta noite, como se não houvesse nada errado. Se aguentarem por pelo menos uma hora, creio que conseguiremos pegá-los.

— Quero ir para casa.

— Vamos acompanhá-los até lá. Mas em uma hora. E possível que um integrante da quadrilha permaneça aqui com a missão de ficar de olho em vocês. Já estão ausentes de sua mesa há quase vinte minutos. Podemos disfarçar esse período, mas não mais uma hora. Não queremos que eles se evadam.

— Se eles se evadirem, não vão invadir minha casa.

—        Não, mas vão invadir a casa de outro casal, da próxima vez.

- Deixe-me falar com ela. – Barnes levantou-se e pegou as mãos da mulher. - Lynn, encare como uma aventura. Vamos nos gabar dela durante anos. Temos só que descer e encher a cara.

- Jonah, vá com eles – pediu Ally. – Ah, espalhe que você sugeriu um drinque especial que não caiu muito bem no estômago deles. Já melhoraram, mas ainda estão um pouco enjoados. Por isso, a despesa do bar fica por conta da casa, certo?

- Claro. – Jonah estendeu a mão para a Sra. Barnes. – E a despesa do jantar, também. Eu os acompanho. Assim que se sentirem mal, ofereci meu escritório para que descansassem. – Olhou para Ally enquanto apertava o botão do elevador. – Está bom assim?

- Perfeito. Vou dar mais alguns telefonemas e desço em seguida. Aliás, vou largar o serviço antes do fim do expediente. Emergência na família.

- Boa sorte. – desejou Jonah, retirando-se com os Barnes.

 

Ally pegou a chave do vestiário com Jonah e foi logo buscar a bolsa. Saiu em seguida, despedindo-se de Frannie com um aceno quando esta a chamou de trás do balcão do bar.

Confiava em Jonah para responder a todas as perguntas. Quem melhor do que ele para a tarefa, imaginou, correndo dois quarteirões até o carro. Da parte do patrão, ninguém questionaria um monossílabo, um dar de ombros. Ninguém discutia com Jonah Blackhawk.

Tinha que chegar ao condomínio Federal Heights antes que a ação começasse.

A princípio, pensou que estivesse vendo coisas. Mas a noite estava clara e fresca e sua visão, excelente. Não havia equívoco: todos os quatro pneus de seu carro estavam cortados!

Praguejando, chutou violentamente a borracha em frangalhos. Que hora para Dennis Overton se vingar! Pegou o telefone celular e chamou uma viatura.

Que desperdício de tempo, era só no que pensava enquanto andava em círculos pela calçada. Já estava de distintivo na mão e dentes cerrados quando um carro da patrulha estacionou no meio-fio.

— Algum problema, investigadora?

 

— Sim, ligue a sirene e siga para o norte pela 25. Direi quando for hora de silêncio.

— Entendido. Qual é a ocorrência?

Ally se acomodou no banco traseiro da viatura, quando tinha vontade de assumir o volante e pisar fundo no acelerador.

— Já os ponho a par. — Tirou a arma da bolsa e sentiu-se mais Ally Fletcher ao afivelar o coldre ao ombro.

— Podem chamar um guincho, por favor? Não quero meu carro na rua desse jeito.

— Que vergonha fazerem isso com um carro desses...

— É. — Ally já se esquecera de seu automóvel quando  tomaram a interestadual com a sirene no volume máximo.

A um quarteirão da casa dos Barnes, Ally saltou da viatura e correu ao encontro de Hickman.     — E então?

— Vieram para cá sem pressa. Segundo Balou e Dietz, que os pegaram a partir do bar, conduziram o veículo como cidadãos respeitáveis, sem ultrapassar o limite de velocidade e sinalizando as conversões, A mulher ao volante usou o celular. Carson e eu assumimos quando entraram na 36. Pararam para reabastecer. A mulher passou para a traseira da minivan e iniciou alguma tarefa que não pudemos determir qual seria.

— Estava reproduzindo as chaves. Aposto duas semanas de pagamento como ela faz isso dentro da minivan.

— Tenho cara de quem faz apostas? — Hickman esquadrinhou a rua silenciosa. — Bem, temos uma unidade à espera. Os suspeitos estacionaram a van a um quarteirão do endereço-alvo. Foram a pé até a porta da frente, destrancaram-na e entraram como se fossem donos da casa.

— Barnes informou que há sistema de segurança.

— Mas o alarme não soou. Já estão lá dentro há dez minutos. O tenente está a sua espera. O quarteirão tá isolado e a casa, cercada.

Então, vamos agir e acabar com a festa. O colega riu e lhe passou o rádio.

— É todo seu.

— Obrigada.

Deslocando-se rápido e sem fazer barulho, os integrantes da equipe se posicionaram na rua, atrás de árvores, em sombras, junto a veículos.

— Que bom que chegou, investigadora. — Kiniki indicou a residência em questão. — Eles não são nada discretos, concorda?

Luzes brilhavam nas janelas dos dois pavimentos da ampla casa. Por um segundo, um vulto marcou presença atrás de uma cortina no térreo.

—        Dietz e Balou tomam conta dos fundos. A casa stá cercada. O que sugere?

—        Ally tirou um molho de chaves do bolso.

— Vamos avançar por todos os lados, incluindo a frente. No momento da ação, uma viatura estaciona de atravessado na rua, bloqueando a passagem.

— Pode dar as instruções.

Pelo rádio portátil, Ally determinou posições e distribuiu ordens. Num segundo, foi como se o inferno descesse à terra.

Três disparos cortaram o ar e tiros de revide ecoaram na noite. Antes que Ally conseguisse sacar sua arma, vozes alarmadas se manifestaram pelo rádio:

—        Dietz alvejado! Policial alvejado! O atirador é homem e fugiu no rumo leste a pé! Policial baleado!

Os integrantes da equipe rodearam a residência. Ally chutou a porta da frente e, com o sangue latejando nos ouvidos, esquadrinhou a sala de estar fazendo mira com a pistola. Logo atrás, Hickman tomou a escada a seu sinal, enquanto ela dobrava à direita. Alguém gritava, o som zumbindo em sua mente. Luzes piscavam.

A casa se abria como um leque. Ally recordou crição da planta que Barnes lhe passara, enquanto os demais integrantes da equipe se espalhavam. Ultrapassava as portas com os olhos na mira da arma, conforme fora treinada, a respiração rasa e curta.

O som de novos estampidos chegava abafado lá de fora. De repente, viu entreaberta a porta deslizante daquilo que devia ser um pequeno solário.

Ao captar um aroma muito feminino, seguiu o instinto e pulou para junto da porta.

Viu a mulher, ou melhor, sua silhueta, fugindo na direção de uma sequência de árvores ornamentais.

- Polícia! Pare onde está!

Repetiu a ordem doze vezes. A mulher continuou correndo. No encalço dela, Ally informou sua posiçâo e situação através do rádio portátil.

Dali a pouco, ouvia passos juntando-se aos seus, vozes familiares apresentando-se.

Encurralariam a suspeita quando ela chegasse à cerca de um metro e oitenta que delimitava a propriedade!

Beco sem saída.

Ganhando terreno, captava o perfume e o pânico que a mulher deixava para trás em sua fuga. O luar a destacava das sombras, realçando os cabelos castanhos escuros, o fluir da capa preta curta.

Sem diminuir o passo, a mulher olhou por sobre o ombro e o luar se refletiu no revestimento cromado de seu revólver.

Ally a viu erguer a arma e levou um choque ao sentir o calor da bala zunindo ao lado de sua cabeça.

— Largue a arma! Agora!

No mesmo instante em que a mulher girava o corpo e apertava de novo o gatilho, Ally disparou sua pistola.

A mulher estacou, a imagem congelada por vários segundos, e deixou o revólver cair. Ally pensou ouvir um suspiro rouco. Mas o que parecia se gravar em sua memória como ácido em vidro era a mancha escura crescendo entre os seios da mulher.

Condicionada pelo treinamento, avançou até alcançar o revólver caído, sobre o qual pisou.

— Suspeita alvejada — informou pelo rádio, agachando-se para sentir a pulsação da mulher.

Hickman foi o primeiro a chegar. A voz dele assemelhava-se ao de ondas revoltas distantes. Era como se sua cabeça se enchesse de líquidos e sons.

— Foi atingida? Ally, foi atingida?

Ele já a apalpava tentando detectar ferimentos.

Apesar dos lábios duros, Ally conseguiu instruir:

— Chame uma ambulância. — Então, inclinou-se para frente e posicionou as mãos sobrepostas no peito da mulher, tentando bloquear a hemorragia.

— Já está a caminho. Venha, levante-se.

— Ela precisa de pressão no ferimento. Ela precisa de uma ambulância...

Hickman guardou a arma no coldre.

 

  — Ally, não pode fazer mais nada por ela. Está morta.

Segurando-se como podia, Ally observou o policial ferido ser colocado numa ambulância e o cadáver da assaltante, encerrado numa capa preta com zíper.

—        Investigadora Fletcher?  Ela se voltou para o tenente

—        Sim, senhor. Como está Dietz?

—        Estou indo para o hospital. Logo saberemos.

 Ally cobriu a boca com as costas da mão.  — E o suspeito?

— Os paramédicos disseram que vai viver. Em duas horas, poderemos interrogá-lo.

—        Eu... Poderei participar?

- O caso continua seu. — Kiniki a puxou pelo braço.

- Ally, sei como se sente. Mas pergunte a si mesma, agora, se poderia ter agido de outra forma.

 — Não sei...

— Hickman estava logo atrás de você e Carson vinhal da esquerda. Ainda não falei com ela, mas Hickman disse que você se identificou e ordenou que ela parasse, ela se voltou e atirou. Você a mandou largar a arma e ela se preparou para disparar de novo. Você não teve escolha. Quero que repita essa sequência de fatos durante o inquérito padrão amanhã de manhã. Quer que eu chame seu pai?

— Não. Por favor. Falo com ele amanhã, depois do inquérito.

— Então, vá para casa e descanse. Telefono quando tiver notícias de Dietz.

— Senhor, a menos que me dispense, prefiro ir ao hospital aguardar novidades sobre Dietz, permanecendo à disposição para interrogar o suspeito quando isso for possível.

O tenente Kiniki concluiu que seria melhor para Ally executar todo o procedimento.

— Vamos na minha viatura.

O pânico era como as garras de um animal selvagem no pescoço. Jonah nunca o experimentara antes, a não ser em hospitais. Por isso, detestava hospitais. O cheiro anti-séptico lhe trazia à lembrança os últimos meses de vida do pai, bem como a consciência de que se salvara por um triz de ter o mesmo destino que ele, aos cinquenta anos.

Haviam lhe assegurado que Ally não se ferira na ação. Mas sabia que algo dera errado, ou ela não estaria num hospital. A informação vaga bastara para arrancá-lo do Blackhawk's e seguir como louco ao encontro dela, só para se certificar de que ela estava bem.

Ao vê-la abandonada numa cadeira no corredor do Centro de Terapia Intensiva, a sensação de pânico diminuiu.

Ela soltara os cabelos, como costumava fazer quando estava tensa ou cansada. A cortina de cabelos dourados lhe encobria parcialmente o rosto, mas os ombros caídos e as mãos cruzados em torno dos joelhos eram indicação de seu estado de espírito.

Agachou-se na frente dela e conferiu sua palidez e olheiras.

— Oi. — Pousou a mão sobre as dela. — Mau dia?

— Péssimo. — Ally imaginava ter linhas cruzadas dentro do cérebro. Não conseguia adivinhar o motivo de Jonah estar ali. — Um dos integrantes da equipe encontra-se em estado crítico. Não sabem se ele resistira até o amanhecer.

— Lamento.

— Eu também. Os médicos não nos deixam falar com o desqualificado que o alvejou. O suspeito se identificou como Richard Fricks e dorme tranqüilamente sob efeito de remédios, enquanto Dietz luta pela vida.  A mulher dele está na capela, rezando.

Ally queria fechar os olhos e usufruir a escuridão, porém continuava fitando os de Jonah.

— Como se isso não bastasse, matei uma mulhei. Um tiro certeiro no coração. Como se ela fosse o alvo e eu estivesse praticando.

Ele sentiu as mãos dela tremulas, e então ela cerrou os punhos.

— É, foi um mau dia. Venha.

— Aonde?

— Para casa. Eu a levo. — Como ela não se mexia Jonah a puxou pelas mãos. Ela se levantou sentindo-s leve, frágil como cristal. — Não há nada que possa fazer aqui agora, Ally.

Ela fechou os olhos e respirou fundo.

— Foi o que Hickman disse lá na cena. Não nada que possa fazer. Acho que os dois têm razão.

Deixou-se conduzir ao elevador. Não adiantava nada permanecer ali no hospital, nem argumentar, nem fingir que queria ficar sozinha.

— Posso destacar uma viatura.

—        Eu a levo, já disse.

—        Não adiantava discutir, conformou-se, nem resistir ao braço forte dele em torno de sua cintura.

— Como descobriu que eu estava aqui?

— O policial que foi ao bar acompanhar os Barnes até em casa contou rapidamente o ocorrido e onde eu poderia encontrá-la. Por que seu pai não está com você?

— Porque não sabe de nada. Falarei com ele amanhã.

— O que há com você?

Ally piscou, como se saísse de um quarto escuro para a luz, ofuscada.

— O quê?

Jonah a tirou do elevador e seguiram pelo saguão.

— Quer que ele saiba por outra pessoa? Sem ouvir sua  voz, para ter certeza de que não se feriu na ação? Será  que não pensa?

Ally passou a mãos nos cabelos.

— Tem razão. Acho que não estava raciocinando. Revirou a bolsa à procura do celular. — Só mais um minuto...

Já no carro dele, ela procurou se acalmar, controlando a respiração.

— Agora, sim — sussurrou, enquanto Jonah ligava o motor. Digitou o número, aguardou o primeiro toque e então atenderam.

— Mãe? — Apertou o pequeno aparelho na mão, num esforço para normalizar a voz. — Tudo bem. E vocês? É... estou indo para casa, mas gostaria de falar com papai. Sim, assunto de polícia. Obrigada.

De olhos fechados, Ally ouviu a mãe chamar o pai, os dois riram ao longe e então a voz sonora do chefe da polícia de Denver se manifestou:

— Ally, o que foi?

— Pai... acho melhor não contar a mamãe.

Pausa.

— Entendido.

— Estou bem, não me feri e já estou indo para casa. A ação ocorreu hoje, mas foi mal-sucedida. Um dos nossos foi baleado e está no hospital,  bem como um dos suspeitos. Amanhã teremos notícias dos dois.

- Que mais, Allison?

- Pai... Tive que atirar. Estavam armados. Os dois suspeitos estavam armados e abriram fogo. Ela não parou... eu a matei.

- Estarei aí em dez minutos.

- Não, pai, não precisa. Fique com mamãe. Terá de contar a ela e vai ficar abalada. Já estou indo para casa. Conversamos amanhã, está bem? Estou tão cansada...

- Se tem certeza de que está bem...

- Estou, eu juro.

- Quem foi alvejado?

- Dietz. Len Dietz. — Ally fez pausa e levou a mão livre aos lábios. Já não estavam tão duros. — O estao dele é crítico. O tenente continua no hospital.

- Entrarei em contato com ele. Tente dormir um pouco. Mas pode ligar a qualquer hora, se mudar de idéia. Estarei com você num minuto. Sua mãe tambem.

- Eu sei. Telefono de manhã. Acho que estarei me sentindo melhor quando o sol nascer. Amo vocês.

Desfeita a ligação, Ally deixou o celular cair dentro da bolsa. Viu que já estavam diante de seu prédio.

- Obrigada por... — Confusa, viu-o saltar, contornar o carro, abrir-lhe a porta e estender a mão. — Não consigo ordenar os pensamentos. Que horas são?

- Não importa. Dê-me a chave.

             - Ah, claro, o tradicionalista. — Ally saiu do carro agarrando-se à mão dele como se fosse uma corda salva-vidas. — Será que vou ganhar flores na próxima vez?

Atravessaram o saguão e chamaram o elevador.

 

— Sabe, tenho a impressão de que preciso fazer alguma coisa... mas não sei o quê. Nós a identificamos. Foi fácil, pois portava carteira de identidade: Madeline Ellen Fricks. — Ally saiu do elevador meio flutuando.  - Trinta e sete anos, endereço em... Englewood.  Alguém foi checar. Eu devia estar checando. Jonah destrancou a porta do apartamento e a fez entrar.

— Sente-se, Ally.

Ela olhou ao redor para a sala de estar. Estava exatamente como a deixara pela manhã. Nada mudara. Por que aquela sensação de que tudo mudara?

Como ela continuava de pé, Jonah a arrebatou nos braços e carregou para o quarto.

— Aonde estamos indo?

— Vai se deitar agora. Tem alguma bebida aqui?

— Alguma.

— Eu acho. — Ele a acomodou na cama.

Na cozinha, descobriu dentro de um armário estreito uma garrafa de conhaque. Rompeu o lacre e despejou três dedos num cálice. De volta ao quarto, viu Ally sentada, abraçada aos joelhos erguidos.

— Acho que estou tendo um chilique. — Mantinha o rosto enterrado contra os joelhos. — Se tivesse algo para fazer, não estaria tendo um chilique.

— Eis do que precisa. — Jonah sentou-se no colchão, fez com que erguesse o rosto e aproximou o cálice. — Beba isto.

Obediente, ela tomou um gole, tossiu e rejeitou o resto.

— Detesto conhaque. Alguém me deu essa garrafa no último Natal, sei lá por quê.

 

Só mais um pouquinho — insistiu Jonah. — Fletcher , tome seu remédio!

Contrariada, Ally tomou mais um bom gole. Seus olhos se umedeceram e sentiu as faces afogueadas.

— Isolamos três quarteirões, cercamos a casa... não tinham como fugir. Estavam encurralados. Jonah pôs de lado o cálice, todo ouvidos ao desabafo.

— Mas fugiram.

— Estávamos para invadir quando ele... Fricks... Saiu pelos fundos, já atirando. Acertou duas balas em Dietz. Alguns integrantes haviam se posicionado nas laterais para o cerco. Eu e Hickman entramos pela frente... eu primeiro. Fomos um para cada lado, iniciando a varredura.

Ally revia toda a cena na mente, o deslocamento ágil e seguro, as luzes ofuscantes.

-Ouvíamos tiros e gritos lá de fora. Quase voltei, acreditando que os dois já haviam fugido... que estavam juntos. Então, vi a porta deslizante do solário meio aberta. Avistei-a assim que saí, correndo na direção oposta à do parceiro. Para obrigar a polícia a se dividir também, pensei. Identifiquei-me, ordenei que parasse. Ela se voltou e atirou. Errou. Ordenei novamente que parasse e largasse a arma. Ela não tinha escolha... Para onde iria? Mas ela se voltou de novo... - Ela se voltou de novo... — Revivendo o momento dramático, Ally parecia inconformada. — A lua brilhava muito... Iluminava o rosto dela, os olhos, o revólver. Foi quando atirei. - E tinha outra escolha?

Ally respirou fundo.

- Não. Tenho certeza de que não. Jonah, treinei tanto para agir e saber enfrentar as consequências, mas não estava preparada para isso... Nunca imaginei que fosse me sentir assim.

Uma lágrima rolou e ela a enxugou, impaciente.

— Nem sei por que estou chorando. Ou por quem.

Jonah a puxou pelos ombros e fez com que encostasse o rosto em seu peito, aconchegando-a.

Enquanto ela chorava, recordou toda a narrativa emocionada.

"Errou", dissera Ally, a respeito do primeiro tiro da assaltante, como se desconsiderasse o fato de terem tentado matá-la. No entanto, agora chorava por não ter tido escolha na hora de tirar uma vida.

Policiais. Pousou o rosto nos cabelos dela. Jamais entenderia os policiais.

Ally dormiu por duas horas, mergulhada no sono como pedra em um lago, solidamente presa ao fundo. Quando acordou, viu que se abraçava a Jonah no escuro.

Permaneceu imóvel por alguns segundos, orientando-se, sentindo o coração dele pulsando forte sob a palma da mão. De olhos abertos e mente mais lúcida, avaliou o próprio estado geral. Sentia uma leve dor de cabeça, nada grave, apenas ressaca do ataque de choro. Perdurava uma sensação de constrangimento, mas acreditava que sobreviveria a ela, também.

Exercitou os dedos dos pés e descobriu que estava descalça. A bainha com a lâmina chata não estava mais colada a seu tornozelo.

O coldre de ombro com a pistola também sumira.

Jonah a desarmara, concluiu, e de várias maneiras. Despejara em cima dele toda a história, chorara no ombro dele e agora dormia com ele no escuro. O pior era perceber que queria continuar assim.

 

Crente em que ele dormia, tentou se desvencilhar.

— Está melhor?

Ally não chegou a se sobressaltar, mas quase. :— Estou. Bem melhor. Acho que lhe devo uma.

- Deve.

No escuro, ele se apossou de sua boca e iniciou um beijo íntimo.

 Macio, inesperadamente macio. Quente, deliciosamente quente. Sim, queria continuar ali e se abriu para Jonah. Tomou-lhe o rosto nas mãos e aceitou quando ele a fez se deitar de costas e a apertou contra o colchão.

O peso sólido dele, os contornos duros do corpo, o calor inebriante da boca eram exatamente o que ela eria. Abraçou-o com força, prendendo-o, assim como a prendera enquanto chorava e enquanto dormia.: Jonah parecia entregue à delícia de seus lábios, aos suspiros que ela deixava escapar, às curvas femininas e desejosas sob seu corpo. Enquanto ela dormia, permanecera quieto a seu lado, mas a mente era um tormento só. O desejo por Ally era como uma febre em seu sangue.

Ao sentir que ela despertara, mal coubera em si de ternura.

No entanto, agora que ela se entregava, via-se contrariado, incapaz de toma-la,  recuou, limitando-se a acariciá-la no rosto.

— Não é hora — concluiu, e deixou a cama.

Ally não podia acreditar. Seu corpo latejava de desejo, sua mente começava a flutuar. Agora, sentia-se livre.

-  Escute, se desistiu por achar que estava se aproveitando...

 

— E não estava?

— Ainda sei dizer sim e não. Sou grata por ter me trazido para casa, por ouvir meu desabafo e por não me deixar sozinha, mas jamais retribuiria suas boas ações com sexo. Tenho muita consideração por mim. Bolas, tenho muita consideração pelo sexo!

Jonah riu e sentou-se na beirada da cama.

— Vejo que melhorou mesmo.

— Então... —Ally achegou-se, lançou os cabelos para trás e encostou os lábios no pescoço dele.

Ele sentiu o pulso se acelerar e uma bola de fogo explodir nas entranhas.

— Você está me tentando... — Grato por conseguir respirar, afastou a mão dele e se levantou. — Mas não, obrigado.

Ofendida, Ally quase disse um palavrão. Mas então recordou o mau exemplo do ex-namorado Dennis e se conteve.

— Está bem. Posso saber por quê? — Dadas as circunstâncias, parecia uma pergunta razoável.

— Por dois motivos.

Jonah acendeu o abajur e encarou o rosto sério. Estar tão próximo sem tocá-la era como levar um soco entre os olhos.

— Como você é linda...

Ela sentiu renascer a esperança.

— Por que não faz amor comigo, então?

— Eu a desejo. Tanto que me dói. É isso que me impede.

Distraidamente, enrolou uma mecha dos cabelos de Ally no dedo e então a soltou.

— Penso em você, Ally, demais para meu conforto. Como gosto de me sentir confortável, ainda não decidi se quero me envolver com você. Se eu realizar com você metade das minhas fantasias, ficarei envolvido. Esse é o motivo número um.

Ally sentou-se nos calcanhares.

- É, você sabe como cortar uma linha quando quer.

- Nunca tive dificuldade antes. Mas, com relação a você, é difícil.

Ela já não se sentia ofendida nem chateada.

Estou pasma. Pensei estar diante de um sujeito que toma tudo o que quer sem pensar nas consequências.

- Enganou-se. Eu calculo e assim elimino as consequencias. Só então tomo o que quero.

- Em outras palavras, eu deixo você nervoso.

- Pode se gabar — confirmou Jonah. — Não a culpo.

Ally ergueu o sobrolho.

- Disse que eram dois motivos. E o segundo?

- Esse é mais fácil de entender. — Ele voltou para junto da cama e lhe tomou o queixo. — Não gosto de tiras. Roçou os lábios nos dela.

Quando ele estava para cessar o beijo, Ally deslizou contra o dele e sentiu seu tremor. Nada a teria deixado mais satisfeita.

- Seu nome é encrenca — murmurou ele. — Já vou.

- Covarde.

- É humilhante, mas vou sobreviver. — Calmo, vestiu a jaqueta que deixara na cadeira e calçou os sapatos.

Ally sentia-se fabulosa, invencível.

- Por que não volta aqui e luta como homem?

Jonah contemplou-a ajoelhada na cama, a desafiá-lo com o olhar, a cabeleira dourada fazia uma moldura para seu rosto e ombros.

O sabor dela ainda lhe queimava a língua.

Mas meneou a cabeça e foi para a porta. Teve que se torturar olhando-a mais uma vez.

— Vou odiar a nós dois pela manhã — previu. Retirou-se perseguido pelo riso de Ally.

 

Ally acordou às seis horas e às sete já estava pronta para sair, mas quase atropelou os pais na porta do apartamento.

- Mãe? — Olhou para o pai enquanto a mãe a agarrava num abraço. — Mãe, estou bem.

- Está nada. — Cilla continuava abraçada à filha, coração contra coração, bochecha contra bochecha, a própria Cilla questionava como pudera permanecer controlada a noite toda só para desmoronar ao ter a filha nos braços.

Respirou fundo e juntou forças.

Pronto. — Deu um beijo demorado na têmpora e então a afastou para examinar bem o rosto.

- Eu tinha que ver pessoalmente. Tem sorte por seu pai conseguir me segurar por tanto tempo.

- Eu não queria que se preocupassem.

- É minha função me preocupar e a exerço com a máxima eficiência.

Ally fitou com ternura o rosto materno, percebeu esforço para não chorar.

- Você faz tudo com a máxima eficiência.

Cilla O’Roarke Fletcher tinha olhos castanho dourados também e cabelos negros curtos que combinavam com suas feições angulosas e voz rouca.

—        Fiz da preocupação uma ciência — reconheceu.

Como eram quase da mesma altura, Ally teve apenas que se achegar para beijar a mãe no rosto.

— Bom, pode descansar um pouco agora. Estou bem. Juro.

— Agora, acredito.

— Entrem. Vou fazer mais café.

— Não, está de saída. Eu só precisava ver você. — E tocá-la, completou Cilla, em pensamento. Minha filhinha. — Também vou trabalhar. Vou entrevistar um novo gerente de vendas na KHIP. Seu pai vai me deixar lá. Pode ficar com meu carro hoje.

— Como souberam que eu ia precisar de um carro?

— Tenho minhas fontes — replicou Boyd. — Vão devolver o seu em ordem por volta do meio-dia.

Contrariada, Ally trancou a porta.

— Eu teria me arranjado.

— Sim, teria tratado do carro, de Overton e de toda a burocracia — afirmou Cilla. — Espero não ter criado uma filha ingrata, que espera ver o pai de mãos nos bolsos ao vê-la atribulada. — Fingiu severidade. — Seria uma decepção.

Boyd sorriu, abraçou os ombros da esposa e a beijou nos cabelos.

— Tem razão — reconheceu Ally. — Obrigada, pai.

— De nada, Allison.

— Agora, quem vai arrancar o couro de Overton? — Cilla esfregou as mãos, ansiosa. — Os três juntos? De qualquer forma, quero pegá-lo primeiro.

— Ela tende à violência — advertiu Ally ao pai.

— E eu não sei? — Boyd encarou a mulher. — Cilla, isso é atribuição do sistema. Agora, investigadora... — Abraçou os ombros da filha enquanto seguiam pára o elevador. — Apresente-se primeiro no hospital. Vai interrogar um suspeito lá.

— E o inquérito sobre o tiroteio?

— Será processado nesta manhã. Precisa dar seu depoimento e entregar um relatório. Lá pelas dez horas. O investigador Hickman já entregou o dele e dá uma boa descrição. Não precisa se preocupar com nada.

— Não estou preocupada. Fiz o que tinha de fazer, dormi mal esta noite... — Ally expirou cansada. — Muito mal. Mas agora estou bem. Na medida do possível.

— Não devia ter ficado sozinha — opinou Cilla.

— Na verdade... Uma pessoa me fez companhia.

Boyd abriu a boca e a fechou. Após o telefonema da filha na noite anterior, contatara Kiniki e soubera que Jonah a pegara no hospital e levara para casa. Só podia ser ele a lhe ter feito companhia.

Só não sabia se gostava da ideia.

Ally parou o carro da mãe no estacionamento para visitantes e avistou Hickman enquanto acionava os segredos e o alarme.

O colega assobiou ao se aproximar com as mãos nos bolsos, os olhos estreitos sob o brilhante sol matinal.

—        Nem todo tira tem de reserva na garagem um carro de luxo feito esse!

—        É da minha mãe.

— Mãe rica. — Hickman conhecia Cilla e estava só brincando. — E então, como está?

—        Melhor. — Tomaram juntos o rumo do hospital.

—        Soube que já entregou seu relatório sobre a ação de ontem. Gostaria de agradecer por se apressar em me dar respaldo.

— Descrevi exatamente o que aconteceu. Se ainda tem dúvida, saiba que atirou um milésimo de segundo antes de mim, Se estivesse encabeçando a perseguição, eu é que teria abatido aquela mulher.

Ally sorriu.

— Obrigada. E Dietz?

— Continua crítico. — Hickman tornou-se sombrio. — Conseguiu atravessar a noite, o que dá alguma esperança. Ainda pego o sujeito que fez isso com ele.

— Fique a postos.

— Já sabe como agir?

— Andei pensando. — Atravessaram o saguão e rumaram ao conjunto de elevadores. — A mulher usou o celular, de modo que há no mínimo mais um comparsa. Eu diria que são dois: o olheiro no bar e o cabeça, aquele que organiza tudo. Esse que vamos interrogar agora atirou num policial e sabe que vai se dar mal. A mulher está morta, o esquema acabou e ele pode ser condenado à morte.

— Ele não tem muito incentivo para falar. Vai negociar prisão perpétua?

— É o caminho. Vamos ver se ele se anima.

Ally mostrou o distintivo policial ao guarda na porta do quarto de Fricks e entraram.

Fricks estava deitado na cama, extremamente pálido, meio cinzento até. Tinha os olhos embaçados, mas abertos. Olhou para Ally e Hickman e voltou a fitar o teto.

— Não tenho nada a declarar. Quero um advogado.

— Bem, isso facilita o nosso trabalho. — Hickman aproximou-se da cama, a boca contraída. — Nem parece assassino de policial, não é mesmo, Fletcher?

— Não. Talvez não se torne. Dietz pode escapar. Claro, mesmo assim, este cara pode ser imobilizado numa mesa e levar uma injeção letal feito cão vira-lata. Furto, posse de arma sem registro, assalto, tentativa de assinato de um policial. — Ally deu de ombros.

- Quem sabe mais o quê?

- Não tenho nada a declarar.

 - Claro, para que tentar se ajudar? — questionou Ally. — Que um advogado se encarregue de tudo.  Acontece que  não estou com vontade de fazer acordo com advogado, e  você, Hickman?

- Também não.

- Não estamos com vontade — repetiu Ally. — Não com nosso colega entre a vida e a morte na UTI. Não gostamos de advogados que tentam salvar da força assinos de policiais. Certo, Hickman?

- É, não gostamos nem um pouco. Não vejo por que fazermos concessão a esse sujeito. Que se dane.

- Mas também não devemos ser desumanos. Temos compaixão. Ele perdeu a esposa esta noite. — Ally viu a dor no rosto de Fricks antes de ele fechar os olhos.

Essa era a chave para se chegar a ele.

- Deve ser duro. A mulher morreu e ele está aqui. Ferido, na expectativa de uma condenação à morte. — Ally deixou os ombros caírem. — E os comparsas, que ajudaram a colocá-lo nessa situação, estão livres. Livres e ricos, enquanto ele balança na ponta de uma corda curta e a mulher é enterrada.

Inclinou-se sobre o ferido.

- Deve estar pensando nos comparsas, sim. Ou talvez nem amasse a esposa...

- Não se atreva a dizer isso — protestou Fricks.

- Ela era a minha vida.

- Entendo. Estou comovida. Talvez Hickman aqui não se impressione, mas eu tenho um fraco por amor verdadeiro. Por isso, vou lhe sugerir como se ajudar neste momento, porque, se ela era sua vida, ela não ia querer que você assumisse a culpa por tudo isso sozinho.

Trémulo, Fricks fechou os olhos.

— Se cooperar e nos contar tudo o que sabe, pediremos à promotoria que acrescente um fator atenuante um fator atenuante em seu processo. Demonstre algum remorso agora,  Richard, e estenda a mão. Assim, passará bem longe da sala de execução daqui a alguns anos.

— Eu falo, pois já estou morto.

Ally trocou um olhar com Hickman.

— Terá proteção.

Fricks continuava de olhos fechados, mas vertia lágrimas.

— Eu a amava...

— Sei que sim. — Ally baixou a grade de proteção e se sentou perto dele.

Era hora de se tornar íntima. Demonstrar solidariedade. Adotou um tom de voz bem macio.

— Vi  vocês lá no Blackhawk's. O modo como se olhavam revelava que havia algo especial entre os dois.

— Ela... ela está morta.

— Mas você tentou salvá-la, não é mesmo, Richard? Saiu correndo da casa primeiro, para lhe dar cobertura. Por isso, encontra-se nesta situação. Mas ela o amava e agora deseja que você se ajude. Ela quer que você viva e faça tudo aquilo que ambos haviam planejado. Richard, você tentou salvá-la ontem à noite, atraindo os policiais para cima de você enquanto ela fugia. Fez o que pode. Agora, tem de se salvar.

— Não era para ninguém se machucar... As armas eram só precaução, para intimidar, se alguém aparecesse.

— Entendo. Não planejaram nada disso. Acredito isso vai fazer diferença no seu processo, também.  As coisas escaparam ao controle.

— Sempre tinha dado certo antes. Mas ela entrou em pânico. Foi isso. Ela entrou em pânico e não tive outra idéia.

— Não queriam machucar ninguém. — Ally controlava-se, fingindo compaixão, embora a imagem do colega Dietz sangrando no chão não lhe saísse da mente.

- Você só queria dar a ela tempo para fugir. — Aguardou enquanto o homem sofria nova crise de choro.

— Como passaram pelo sistema de segurança da casa? — indagou, quando ele se acalmou.

— Entendo de eletrônica — informou Fricks, aceitando os lenços de papel que Ally ofereceu. — Já tralhalhei com segurança. De qualquer forma, as pessoas nem sempre se lembram de acionar o mecanismo ao sair. Estando acionado, eu dava um jeito de desarmar. Se [disparava, fazíamos um trabalho rápido e saíamos logo . Para onde levaram Madeline? Onde ela está?

- Já falaremos sobre isso. Ajude-me a esclarecer os pontos que faltam e arranjarei para que você a veja. Quem lhe telefonou do bar para dizer que ocorria algo estranho com os Barnes? Foi a mesma pessoal que Madeline contatou pelo celular?

Fricks soluçou e meneou a cabeça.

— Quero isenção de pena.

Hickman praguejou e tentou afastar Ally da cama.

—        Ele quer isenção! Você está prometendo o que não pode para ajudá-lo e ele quer passear. Que se dane. Que vá para a forca!

— Calma, Hickman. Não vê que ele está desesperado? Ferido nessa cama ele não pode nem providenciar o funeral da esposa. Fricks voltou-se para eles, aflito.

— Ela queria ser cremada. Era importante para ela.

— Podemos ajudar você a conseguir isso. Talvez consiga dar a ela o que queria. Tem apenas de colaborar conosco.

— Quero isenção de pena.

— Richard, não pode pedir a lua e as estrelas ao mesmo tempo. Eu poderia até lhe prometer, mas estaria mentindo e enganando você. Garanto o fator atenuante.

— Não precisamos dele, Ally. — Hickman pegou a ficha de Fricks ao pé da cama e a examinou. — Em poucos dias, teremos o resto da quadrilha na cadeia.

Ally suspirou, resignada.

— É verdade — disse a Fricks. — Em pouco tempo, teremos o caso encerrado. Mas, se nos poupar tempo e trabalho, se demonstrar remorso por ter baleado um policial, prometo brigar por você. Sabemos que há outros envolvidos. É só questão de tempo para pegarmos essas pessoas. Ajude-me e o ajudarei. Ajudarei você a realizar o último desejo de Madeline. Tem minha palavra.

— Era o irmão dela. — Com dentes cerrados, Fricks abriu os olhos, não mais enevoados nem lacrimejantes, mas flamejantes de ódio. — Ele a convenceu a fazer tudo isso. Disse que seria excitante, uma aventura. Era o cabeça e foi ele que a mandou para a morte.

—        Onde está ele?

 - Mora em Littleton, numa casa grande diante do lago. Chama-se Matthew Lyle e vai querer me pegar depois do que aconteceu com Madeline. Ele é louco. Era obsecado pela irmã e agora vai querer me matar.

- Não se preocupe, ele não vai chegar nem perto de você.  — Ally abriu o bloco de anotações. — Fale-me mais de Matthew Lyle. Às quatro horas daquela tarde, Jonah tentava se concentrar no trabalho sobre a escrivaninha, porém não conseguia, furioso como estava por não conseguir localizar Ally. Nem em casa, nem na delegacia.

Já se convencera de que cometera um grande erro ao se recusar a passar a noite com ela e tomar o que tanto desejava. Fora um erro com o qual teria de conviver, bem mais confortavelmente, acreditava, do que teria sido conviver com as opções.

Tudo o que desejava de Ally agora era a cortesia de uma notícia. Maldição, ela lhe devia isso. Afinal, deixara-a entrar em sua vida, em sua empresa, trabalhando ao lado de seus funcionários amigos sabendo que os enganava. Que ambos os enganavam.

Agora, raios, queria notícias!

Já pegava o telefone de novo quando as portas do elevador se abriram e Ally entrou.

— Tenho o código, esqueceu?

Sem responder, Jonah pôs o fone no gancho. Estava vestida para o trabalho, notou. Trabalho de policial.

— Providenciarei a alteração.

Ela pareceu surpresa, mas atravessou a sala e se sentou confortavelmente na cadeira defronte à mesa.

— Imaginei que gostaria de saber dos progressos.

— Acertou em cheio.

Ele estava esquisito, reparou Ally. Depois descobriria qual era o problema.

— Fricks entregou o cunhado. Matthew Lyle, ou Lyle Matthews, ou Lyle Delaney. Crimes por computador, na maioria, alguns assaltos. Tem uma longa ficha criminal, mas a maioria das acusações foi arquivada por insuficiência de provas. Está foragido. Batemos a casa dele há algumas horas, mas ele não estava.

Ela fez pausa e esfregou os olhos.

— Ainda não fechei o relatório sobre ele. A casa estava cheia de artigos furtados. Aparentemente, converteram pouca coisa em dinheiro, talvez nenhuma. Precisava ver o lugar, parecia um leilão. Ah, e você vai ficar sem uma garçonete esta noite.

— Não imaginei que fosse aparecer.

— Não falo de mim, mas de Jan. Segundo Fricks, ela e Lyle eram... — Ally esfregou os dedos indicadores esticados. — Muito íntimos. Ela era a olheira. Localizava os alvos, passava o número do cartão de crédito para Lyle via bip. Os Fricks entravam, ela dava cobertura enquanto roubavam as chaves. Depois, ela os avisava com outro código quando as vítimas pediam a conta. Os Fricks tinham tempo para terminar a limpeza e sumir. Tudo muito bem esquematizado.

— Já a prenderam?

— Não, parece que ela não voltou para casa esta madrugada. Meu palpite é de que foi ao encontro de Lyle e, com o fracasso da ação, fugiram juntos. Mas íamos pegá-la. Vamos pegar os dois.

— Não duvido. Suponho que isso marque o fim de sua carreira aqui no Blackhawk's.

—        Infelizmente. — Ally levantou-se, foi até a janela abriu uma fresta nas persianas, hoje cerradas. — Precisarei entrevistar o pessoal. Acho que se sentirão mais à vontade aqui. Pode me ceder seu escritório?

—        Não.

—        Ótimo. Vou começar por você. — Ally voltou a e sacou o bloco de anotações. — Diga o que sabe sobre Jan.

- Trabalha aqui há cerca de um ano. Era boa garçonete, a preferida de muitos clientes regulares.

- Tinha facilidade para memorizar nomes. Era confïável e eficiente.

- Tinha relacionamento pessoal com ela?

- Não .

- Sabia que ela morava no mesmo prédio de Frannie?

- Isso é contra a lei?

 Como veio a contratá-la?

- Ela se candidatou a uma vaga. Não foi Frannie quem a apresentou.

- Eu  não disse que foi. — Ally tirou uma fotografia da bolsa. — Já viu este homem aqui no Blackhawk's?

Jonah  olhou para a foto de ficha policial de um moreno de uns trinta anos.

- Não.

- Já o viu em algum outro lugar?

- Não. É Lyle?

- É. Por que está zangado comigo?

- Irritado — corrigiu Jonah, gélido. — Não gosto de ser interrogado pela polícia.

- Sou investigadora, Jonah. Que fazer? — Ela guardou a foto na bolsa. — Esse é meu trabalho. Sei que estou tomando seu tempo, mas não há alternativa. Gostaria de entrevistar os outros agora.

Ele se levantou ao mesmo tempo que ela.

- Agradeceria se mandasse Will aqui para cima. E ficasse lá embaixo. Talvez precise falar com vc novamente.

Jonah contornou a escrivaninha, o olhar estreito emitindo uma advertência ao se aproximar dela. Agarrou-a pelas lapelas da jaqueta e puxou de encontro a si.

Mil desejos, todos impossíveis, o avassalaram.

— Você me irrita demais — rosnou. Soltou-a e foi para o elevador.

— Igualmente — murmurou Ally, mas só quando ele não podia mais ouvir.

Frannie acendeu um cigarro e fitou Ally em meio a baforada.

— Então, você é tira. Eu teria desconfiado, não fosse Jonah cercando-a. Ele não gosta de tiras mais do que eu.

— Já havia percebido — retrucou Ally. — Ouça, vamos facilitar as coisas para todo mundo, está bem? Já sabe que pegamos a quadrilha de ladrões, que o bar era usado, que Jan era integrante. Pode me dizer a quanto tempo a conhece?

— Há um ano e meio, mais ou menos. Nos conheçemos na lavanderia do prédio. Ela era garçonete, eu trabalhava num bar... — Frannie endireitou os ombros.

— Saímos juntas algumas vezes. Eu gostava dela. Quando  Jonah abriu uma vaga, ajudei-a a conseguir o emprego. Isso me torna cúmplice?

— Não. Jan tinha namorado?

— Ela gostava de homens e os homens gostavam ela. 

Ally mudou de posição, contendo a impaciência.

— Frannie, sei que não gosta de tiras, mas há um na UTI de um hospital neste momento que, por acaso, é meu amigo. Ainda não sabem se ele vai viver. É casado e tem dois filhos. Uma mulher morreu. Era amada, também. Se quiser me atacar a nível pessoal depois, vamos lá. Mas seria bom terminarmos isso antes.

Frannie deu de ombros.

— Ela me falou de um cara algumas vezes. Nunca disse o nome dele, gostava de fazer mistério. Insinuava que em breve não teria mais que carregar bandejas e viver de gorjetas.

Levantou-se e abriu o painel que ocultava o bar informando Ally de que conhecia bem o escritório do patrão. Escolheu um refrigerante e o abriu.

— Eu achava que era só papo-furado. Jan gosta de se gabar a respeito de seus homens. Conquista entende?

— Já viu este homem? — Ally empurrou a foto sobr e a escrivaninha.

Bebericando o refrigerante, Frannie analisou as feições.

— Pode ser. — Coçou o queixo. — Sim, eu os vi entrarem no prédio umas duas vezes. Não era o tipo dela, foi o que me passou pela cabeça. É meio baixo meio gordo. Classe média. Jan dava preferência a cara bem de vida, com cartões platinum, sabe? Abandonando a pose, jogou-se numa cadeira e meneou a cabeça.

— E duro acreditar. Eu gostava dela. É jovem, meio deslumbrada, mas não má.

— Não se esqueça de que ela usou você, Jonah e o bar. Agora, ela alguma vez mencionou algum lugar que os dois costumavam frequentar? Ou planos?

- Espere um pouco... Uma vez falou numa casa junto a um lago. Ai, eu não prestava muita atenção quando ela começava a se gabar. Parecia tudo invenção.

Ally interrogou por mais quinze minutos, mas não onseguiu nenhuma informação substancial.

— Está bem, Frannie. Se recordar algum detalhe, por favor, telefone. — Levantando-se,  entregou-lhe um  cartão de visita.

—Claro. —A garçonete correu o olhar pelas letras impressas.  — Investigadora Fletcher.       

— Pode pedir a Beth que suba, por favor?

— Ah, por que não a deixa em paz? Ela não sabe de nada.

— Só estou fazendo o meu trabalho. — Paciência esgotada, Ally contornou a escrivaninha e sentou-se na beirada. — Muito bem, Frannie, desabafe.

— Não gosto da maneira como se infiltrou aqui, usando e espionando a gente. Sei como funciona verificou os antecedentes de todos, xeretou nossas vidas. Imagino o quanto se decepcionou por ser Jan a olheira e não a ex-prostituta!

— Engano seu. Eu gostava de você.

Frannie expressou desdém e sentou-se novamente.

— Por que não gostar? — questionou Ally. — Conseguiu escapar de uma espiral que só empurra para baixo. Hoje, tem um trabalho honesto e é eficiente. Minha única ressalva em relação a você é Jonah.

Frannie estreitou o olhar.

— Jonah?

— Você tem alguma coisa com ele. Eu também gosto dele. Isso torna você um problema pessoal meu.

Estupefata, Frannie acendeu outro cigarro.

— Não estou entendendo nada. Está apaixonada por Jonah?

— Aparentemente, mas isso é problema meu. Como já disse, gosto de você, admiro o modo como deu uma virada em sua vida. Nunca passei por nada parecido em minha vida, nunca tive que fazer esse tipo de escolha, mas gosto de pensar que teria agido como você. Frannie levantou-se e começou a andar em circulos.

- Para começar, não tenho nada com Jonah. Nada como o que está pensando. Nunca tive. Ele nunca me comprou quando eu estava à venda, nem me tocou quando me libertei. Não que eu não tenha me oferecido.

Ally disfarçou o alívio e seguiu objetiva:

- Será que é burro ou cego?

Frannie estacou e olhou-a com severidade.

-Não quero gostar de você, mas é difícil. Eu o amo. Há muito tempo. Crescemos juntos, por assim dizer. Conhecemo-nos desde a juventude, eu, Jonah e Will.

- Entendo.

- Quando eu trabalhava nas esquinas, Jonah às vezes aparecia e me pagava um café ou um sanduíche. Só isso. — Frannie parecia nostálgica. — Sempre foi assim.

- Estamos falando do mesmo homem?

- Com as pessoas de quem gosta, quero dizer. Ele levanta você, não importa quantas vezes caia. Morda-lhe a mão, mesmo assim ele vai erguer você. Não adianta resistir. Não se pode resistir por muito tempo. Eu com certeza não facilitei para ele.

Com um suspiro, Frannie sentou-se de novo e terminou o refrigerante.

- Há alguns anos, cheguei ao fundo do poço. Estava nas ruas desde os quinze anos. Aos vinte, vi-me um trapo sem esperança, resolvi acabar com tudo e começei a cortar os pulsos. Parecia um fim dramático o bastante.

Estendeu o braço, exibindo a cicatriz no pulso esquerdo.

- Consegui cortar só um e foi um serviço bem porco.

— Quem a salvou?

— Primeiro? O sangue, quando o vi, mudei de ideia.— Frannie riu. — Então, sangrando naquele banheiro imundo, senti medo, muito medo. E chamei Jonah. Não sei o que teria acontecido se não tivesse conseguido falar com ele, ou se ele não tivesse ido. Ele me levou para o hospital e, depois, para uma clínica de tratamento para dependentes de drogas.

Recostada, Frannie passava o dedo na cicatriz como se isso lhe reavivasse as lembranças.

— Aí, pela centésima vez, Jonah me perguntou se eu queria mudar de vida. Eu disse sim e ele me ajudou.

— No processo, achei que lhe devia algo e ofereci aquilo que estava acostumada a dar aos homens em toca de dinheiro. Foi a única vez em que o vi realmente zangado. — Frannie sorriu. — Ele me considerava mais do que eu mesma. Nunca ninguém tinha considerado. Se eu soubesse mais alguma coisa sobre Jan ou o envolvimento dela com a quadrilha, já teria lhe contado, porque Jonah apreciaria e não há nada que eu não faça por ele.

— Pelo que vejo, já se acertaram.

— Nunca um homem olhou para mim do jeito que ele olha para você.

— Você é que não presta atenção — replicou Ally, simpática. — Repare em Will quando ele pedir o conhaque de encerramento dele.

— Will? Ora...

— Repare — aconselhou Ally.

Frannie levantou-se.

 

É tudo?

- Sim. Peça a Beth que suba, mas me dê cinco minutos para colocar o socador de metal.

Rindo, Frannie seguiu para o elevador. Enquanto aguardava, lembrou:

- Will sabe o que eu era.

- Sabe o que é, também.

Ally encerrou as entrevistas por volta das sete horas,  exercitou os ombros e imaginou se conseguiria comer algo num futuro próximo.

Pelo horário, já não devia estar trabalhando e decidiu deixar o relatório para o dia seguinte, já que as entrevistas não haviam rendido nenhuma informação que levasse à captura dos elementos foragidos.

Jonah a encontrou sentada à escrivaninha dele quando chegou.

- Dietz, o colega baleado ontem, passou do estado crítico para grave — informou Ally, conforme acabara de apurar pelo telefone. Apertou a mãos sobre as pálpebras fechadas. — Parece que ele vai conseguir.

- Folgo em saber,.

Ela soltou os cabelos e correu os dedos entre os fios.

- Isso diminui muito a minha angústia. Obrigada por me emprestar sua sala. Por ora, nenhum dos demais funcionários da casa é suspeito.

- Por ora.

- É o que posso lhe dizer, Blackhawk. As evidências são que Jan agia sozinha aqui dentro. Não posso afirmar mais nada.

Ally atirou a presilha na mesa.

- Só mais uma coisa.

- O quê?

— Estou de folga. Não me oferece um drinque?

— Tenho um bar completo lá embaixo.

— Pensava num drinque particular. Do seu bar particular. — Ally indicou o painel na parede. — Adoraria um cálice de vinho branco. Sei que tem uma garrafa de boa safra.

Jonah abriu o painel e pegou a bebida em questão.

— Vai me acompanhar, não?

— Estou trabalhando. Nunca bebo em serviço.

— Já tinha reparado. Não bebe, não fuma, não bate nos clientes... quando está em serviço — provocou Ally.

Ele se voltou com o cálice de vinho levemente dourado na mão.  Ally despia a jaqueta.

— Espero que não se importe — comentou ela, desafivelando o coldre de ombro. — É desajeitado seduzir com a arma presa ao corpo.

Deixou o revólver na mesa e foi ao encontro de Jonah.

 

Ally podia ter tirado o revólver, pensou Jonah, porém continuava armada. Uma mulher com olhos cor de uísque e voz levemente rouca jamis estaria desarmada.

Pior, ela sabia disso. Tinha a boca com os cantos curvados para cima, lembrando um gato diante de uma gaiolade canário aberta. O canarinho, neste caso, era ele.

- Seu vinho. — Ele estendeu o cálice, tentativa deliberada de mantê-la a um braço de distância. - Embora me sinta lisonjeado, infelizmente agora não tenho tempo para me deixar seduzir.

- Oh, não vou tomar muito do seu tempo.

Ally imaginava quantas mulheres ele não teria se

ido com aquele ar indiferente, como se a dispensasse. Diante do desafio, sentia-se ainda mais confiante quanto à vitória.

Pegou o vinho e, com a mão livre, agarrou Jonah pela camisa, segurando-o no lugar.

- Gosto do seu jeito, Blackhawk, dessa boca, desse olhos. — Tomou um gole da bebida fitando-o por sobre a borda do cálice. — Gostaria de ver mais.

Jonah aguçava os sentidos, sentindo as entranhas rijas em meio a nós cegos.

— Você é bem direta, não?

— Você disse que estava com pressa. — Colocando-se na ponta dos pés, Ally mordiscou o lábio inferior dele, insuflando o desejo. — Estou queimando etapas.

— Não gosto de mulheres sexualmente agressivas.

Ela riu em tom grave, zombeteira.

— Nem de mulheres policiais.

— Isso mesmo.

— Nesse caso, a sessão vai ser desagradável para você. Que pena... —Achegando-se mais, ela lhe lambeu pescoço. — Quero que me toque. Ponha as mãos em cima de mim.

Jonah não se mexeu, mas mentalmente já lhe arrancava a blusa e se apossava de tudo.

— Como eu já disse, estou lisonjeado, mas...

— Sinto seu coração disparado. — Ally agitou a cabeleira, exalando um perfume que entrou direto no sistema nervoso dele. — Sinto que me quer tanto quanto eu o quero.

— Algumas pessoas aprendem a disfarçar certos desejos.

Ela reparou na mudança de tom nos olhos dele, denúncia total.

— Outras, não. — Tomou mais vinho e avançou, obrigando-o a recuar. — Parece que vou ter que endurecer com você.

Para não ser tachado de covarde, Jonah estacou e quase grunhiu de desespero quando ela chocou o corpo contra o dele.

— É uma situação constrangedora. Termine seu vinho, investigadora Fletcher, e vá embora.

A voz rouca e contida dizia exatamente o contrário daquelas palavras, constatou Ally, entusiasmada. O coração dele só faltava saltar do peito para sua mão.

— Engraçado, por que seu "não" soa mais como “sim”? — Bebeu o resto do vinho, sentindo-se forte e poderosa. — Não — sussurrou, pondo o cálice de lado. Tocou no cós da calça dele.

Excitado e furioso, Jonah recuou novamente.

— Já chega.

— Vamos lá. — Tomando impulso, Ally pulou  para cima dele, agarrando-se ao pescoço e enrijecendo as pernas em torno dos quadris dele. — Vamos, Jonah, faça o que tem vontade.

Roubando um beijo, ela sentiu um sabor selvagem, misto de desejo e raiva.

— Deite-se comigo — instigava, passando a mão pelos cabelos dele. — Acabe comigo. Acabe comigo...

O sangue dele fervia nas veias. Tinha na língua o sabor de Ally, quente, feminino, temperado com vinho.

— Está pedindo encrenca — avisou.

Ela roçou os lábios nos dele, como se gravasse seu gosto nele.

— Se sou eu quem está pedindo...

O controle se foi. Jonah ouviu sua explosão dentro da cabeça, como uma martelada violenta contra pedra bruta. Apossou-se da cabeleira dourada, enrolando-a nos dedos, e puxou Ally para trás.

— Você ultrapassou o limite. — Os olhos verdes flamejavam agora, como se um raio os tivesse incendiado. — Vai me dar tudo o que eu quiser. Se não der, eu tomo. De acordo?

Ally ofegava, maravilhada.

— De acordo.

 

Jonah lhe apreciou o pescoço esguio e vulnerável por um segundo. Então, enterrou os dentes naquela carne macia.

Ela estremeceu de choque à ameaça de dor, mas foi atingida por uma estocada de prazer. Entregue a Jonah, mergulhou nas sombras, nas trevas.

Perdeu o fôlego quando ele a jogou na cama, perdeu forças quando ele se atirou em cima dela. Então, quando ele lhe abriu a blusa arrancando os botões, perdeu a cabeça.

Meio desequilibrada, ergueu os braços e enterrou as unhas nas colchas.

— Espere.

— Não.

Ele ja lhe devorava o seio, degustando a carne tenra com os lábios, a língua, os dentes. Sem fôlego, Ally lutava para recuperar a primazia que fora sua até pouco antes. Mas cada vez mais perdia o controle e a sanidade.

Jonah a tocava e apalpava, conforme ela exigira. Com mãos duras e ávidas, ele explorava fraquezas, secretos que nem ela imaginava possuir.

Ele quis sua boca então, e tomou posse ardente e ganancioso. Ela deixou escapar gemidos, de terror e triunfo. Sem escrúpulos, aproximava-se mais e mais do fogo, exigindo tanto quanto Jonah.

Enlouquecia sob o corpo dele. Contorcia-se, debatia-se, agarrava-se. Ele não queria menos. Se era para pecar, que pecasse por completo e colhesse todo o prazer antes do castigo.

A pele dela parecia queimar sob suas mãos, sua boca. Ansiava. Pelos contornos lisos e macios. Pela força impetuosa e pronta. Pelas curvas delicadas.

 

 Ally puxou-lhe a camisa, mandando os botões pelos ares, deixando escapar um gemido selvagem quando seus corpos se encontraram. Quando ele a colocou de joelhos, ela estremeceu, mas não de medo, do qual não restava nada.

Podia ver os olhos dele, com o brilho predador, à luz que invadia do escritório. Arquejante, passou a as mãos avidamente pelo peito másculo, pelos cabelos.

— Mais — murmurou, e colou a boca à dele.

E houve mais.

Relâmpagos de êxtase insuportável. Ataques de desespero estarrecedor. E uma inundação de necessidades a engolfá-los.

Jonah lhe puxou as calças pelos quadris, reconhecendo a pele exposta com a boca até senti-la convulsiva, murmurando seu nome em delírio com aquela voz rouca e erótica que ele não conseguia tirar da cabeça. Ele a mordiscou na parte interna da coxa, provocando espasmos nos músculos bem-torneados. Quando ela arqueou o corpo, abrindo-se, ele se banqueteou.

Ally gritou quando o orgasmo a trespassou, agarrada aos lençóis, entregue a cada gloriosa rebatida pós-choque, até que seu organismo se misturasse ao prazer. O calor lhe subia o corpo, atravessava-a, e ela o acolhia, maravilhada com o poder do que haviam feito juntos.

— Agora, Jonah...

— Não.         

Ele não conseguia se fartar dela.Toda vez que pensava que o desespero o sobrepujaria, descobria algo novo a provocá-lo.Os quadris na largura perfeita, a cintura tão fina.Queria sentir as unhas dela enterradas em sua carne outra vez, ouvir o grito abafado de liberação quando a arrastasse por sobre a próxima crista.

Ally respirava entrecortado, enquanto ele sentia os pulmões bloqueados a ponto de explodir. Foi novamente para cima dela, entregue às mãos ávidas que o apalpavam todo, sentindo o corpo febril pinotear.

Via os olhos dela e nada mais. Só aquele brilho na escuridão, assistindo a sua galgada sobre o corpo ardente. Trémulo, hesitou por mais um instante e então penetrou.

Aquilo era tudo. Foi o único pensamento a lhe estilhaçar a mente quando Ally se fechou quente e em torno dele.

Subiam e desciam juntos, os corpos unidos deslizandoum contra o outro. Suspiravam juntos à medida que o prazer se intensificava. Os corações batiam no mesmo compasso doido, batida a batida. As respirações misturavam-se, atraíam-se, de modo que logo se viu beijando-a outra vez, em ligação extra, enquanto seguiam juntos na cavalgada.

O ritmo se acelerou e seus corpos já não escorregavam um contra o outro, atuando mais como um açoite, e os suspiros se transformaram em delírios e gemidos. Ally projetava os quadris enquanto ele investia sem parar. Torturada pelas sensações, ela enterrava as unhas nas costas dele, instigando-o a continuar, embora já vivesse o novo clímax.

Jonah sentiu-se liberar, uma gloriosa sensação de derrota, e relaxou com o rosto enterrado na massa de cabelos dourados.

Estava perdido. Jonah soube disso assim que seu organismo se estabilizou e a mente voltou a funcionar.

Jamais se fartaria de Ally. Nunca abriria mão dela. Com um único golpe, ela destruíra toda uma existência de controle e cautela.

Agora, estava estúpida, desamparada e irrevogávelmente apaixonado por ela.

Nada podia ser mais impossível nem mais perigoso.

Ally era capaz de fazê-lo em pedacinhos. Jamais permitira a ninguém exercer tamanho controle ou poder sobre sua pessoa. Nem queria permitir.

Precisava de algum tipo de defesa. Para começar, rolou para longe de Ally. Ela simplesmente rolou para junto dele, esticando as longas pernas sobre seu corpo.

— Hummmmm...

Em outra ocasião, Jonah teria rido ou experimentado aquele arroubo de satisfação masculina. Mas o que sentia agora era pânico.

- Bem, conseguiu o que queria, Fletcher.

Longe de se ofender, o que teria dado a ele tempo para se recompor, Ally o focinhou no pescoço.

— Se consegui...

Só por capricho, ela enganchou uma perna em torno dele e depois a outra, deitando sobre ele, e alisou os cabelos para trás.

— Gosto do seu corpo, Blackhawk. É forte, musculoso, rígido. — Passou o dedo no peito dele, admirando o contraste de sua pele contra a dele. — Você tem um pouco de sangue índio, não tem?

— Apache. Bastante diluído.

— Caiu bem em você.

Jonah enrolou no dedo uma mecha dos cabelos dela.

— Sua pele é muito branca — desdenhou. — Mas caiu bem em você.

Ally inclinou-se para a frente até encostarem o nariz.

— Bem, agora que trocamos elogios, que tal me fazer um favor?

— O que seria?

— Arranjar comida. Estou morrendo de fome.

— Quer o menu?

— Não. — Ela roçou a boca na dele, provocante. — Hummmm... Algo parecido com isto. Talvez possa pedir ao restaurante. — Abriu trilha até o queixo áspero, mas então voltou à boca. — E podíamos... você sabe, atiçar de novo. Mas posso tomar um banho antes?

— Pode. — Ele a empurrou de costas no colchão. — Mas só depois que eu acabar com você.

Ally sorriu.

— Fazer o quê? Trato é trato.

Ally mais se arrastou do que caminhou até o banheiro, depois que Jonah acabou com ela. Fechou a porta, recostou-se e soltou um longo suspiro.

Nunca tivera que se esforçar muito para cultivar uma imagem descontraída, sofisticada. Mas tampouco jamais conhecera um homem capaz de virá-la do avesso e fazê-la tremer feito geléia.

Não se tratava de reclamação, disse a si mesma, esfregando o punho no peito, sobre o coração. Entretanto, caía por terra sua crença em que sexo não passava de uma ocupação agradável entre dois adultos consencientes que podiam até se gostar.

"Agradável" não começava nem a descrever fazer amor com Jonah Blackhawk.

Enquanto aguardava a restabilização dos nervos, contemplou o banheiro. Jonah caprichara ali, incluindo uma enorme e convidativa banheira de hidromassagem na sua cor favorita: preto. Apesar da tentação, optou pelo chuveiro no boxe de vidro canelado.

A pia consistia numa grande cuba em balcão negro, sem nenhum objeto ou produto de uso pessoal para atiçar a curiosidade de uma visitante. Rememorando agora, não se viam enfeites, lembranças ou fotografias pessoais no escritório ou no quarto contíguo.

Ficou tentada a abrir o armário, vasculhar as gavetas. Que tipo de creme de barbear ele usava? Que marca de creme dental? Que bobagem.

Em vez disso, atravessou o piso de cerâmica branca e analisou o próprio rosto no espelho. Tinha os olhos serenos, a boca ainda inchada daquele maravilhoso assalto sensual. Leves hematomas marcavam-lhe a pele.

No todo, aparentava exatamente como se sentia. Uma mulher satisfeita e feliz.

Mas o que Jonah veria nela? Quando a olhava daquele jeito frio e distante? Ele a desejava, disso não tinha mais dúvida. Mas não sentiria nada além?

Reparara no recuo dele após o abandono da paixão, nas duas vezes em que se entregaram um ao outro. Como se em Jonah a necessidade de separação fosse tão premente quanto à de união.

E por que se magoar com o fato? Tratava-se de uma reação feminina.

— Mas eu sou mulher, bolas — murmurou, abrindo o chuveiro.

Se Jonah pensava que se safaria distanciando-se sempre que quisesse, estava redondamente enganado. Fletcher não era mulher de deixar um homem sacudi-la até os ossos e então ir embora, enquanto ela ainda delirava.

Colocou-se debaixo do jato de água.

Num relacionamento, esperava muito mais reciprocidade. Se Jonah não se dispusesse a lhe dar um pouco de afeto junto com a paixão, que fosse para o...

Franziu o cenho.

Estava raciocinando como seu "ex", Dennis, ou bem próxima disso.

Bem, havia a opção de romper antes que se enfiasse num buraco fundo demais, do qual depois não conseguiria sair.

O único relacionamento que tinha com Jonah Blackhawk era físico e porque ela mesma insistira nisso. Ambos conheciam as regras básicas daquele jogo e, inteligentes, nem precisavam relembrá-las.

Se ela precisava de emoção além do desejo, o parceiro provavelmente não teria nada contra, porém se tratava de um problema só dela.

Satisfeita com a resolução tomada mentalmente, Ally fechou as torneiras e procurou uma toalha.

Deu um gritinho ao ver Jonah estendendo-lhe uma.

— A maioria das pessoas canta no chuveiro — comentou ele, divertido. — Você é a primeira que conheço que fala durante o banho.

Ela agarrou a toalha.

— Eu não estava falando coisa nenhuma.

— De acordo, eram mais uns resmungos ininteligíveis.

— A maioria das pessoas bate na porta antes de entrar num banheiro ocupado.

— Eu bati, mas acho que você não ouviu, porque estava falando sozinha. Achei que precisaria de algo assim... — Jonah estendeu-lhe um robe de seda negra.

Ally enrolou-se na toalha, prendendo bem a ponta entre os seios.

— Ah... Obrigada.

— Logo trarão o jantar. — Distraidamente, ele passou o dedo pelo braço dela, escorregando sobre a pele molhada.

— Otimo. Preciso tirar minha arma de cima da sua escrivaninha.

— Já fiz isso. — Cenho franzido, Jonah a acariciou na curva do ombro. — Levei para o quarto e fechei a porta. Vão deixar a bandeja sobre a mesa no escritório.

— Perfeito. — Ao sentir a carícia na pele fina sobre a clavícula, Ally deixou cair a toalha. — É isso o que está querendo?

— Eu não devia estar desejando você de novo tão já. — Olhos nos olhos, ele a encostou na parede. - Não devia estar precisando de você outra vez.

— Então, por que não vai embora? — Ela baixou o zíper da calça que ele vestira. — O que o detém?

Jonah fechou a mão em torno do pescoço dela. Apesar da pulsação acelerada, que ele sentia na artéria ela ergueu o queixo desafiadora.

— Diga que me quer — exigiu ele. — Diga meu nome e que me quer.

—        Jonah... — Ally deu o primeiro passo na ponte que podia lhe queimar os pés. — Nunca quis nenhum homem como quero você. — Respirava meio arquejante, porém o olhar permanecia firme. — Diga o que sente.

 — Allison... — Jonah baixou o olhar, tão derrotado e doce que ela o tocou no rosto, para confortar. — Não consigo nem pensar, de tanto que a quero. E só você- completou. E tomou-lhe a boca, bem como o corpo, Em desespero.

— Hum, a cozinha do seu restaurante é ótima! - elogiou Ally, mais tarde, devorando a comida. — Na maioria dos bares, servem pratos medíocres, na melhor das hipóteses. Mas este aqui... — Lambeu o molho de churrasco no polegar. — Está nota dez!

Recusou quando Jonah pegou o vinho para encher de novo seu cálice.

— Não, não... Vou dirigir.

— Fique. — Mais uma regra transgredida, percebeu Jonah. Jamais pedira a nenhuma mulher que ficasse.

— Se eu pudesse... — Sorrindo, Ally puxou a lapela do robe emprestado. — Acontece que não tenho muda de roupa para amanhã, quando retomo a rotina das oito às quatro. Já vou ter que voltar para casa com uma camisa sua. Você estraçalhou minha blusa.

Ele não fez mais do que erguer o cálice de vinho, mas ela sentiu que ele se distanciava.

— Peça para eu voltar amanhã e ficar.

Jonah fitou-a.

— Volte amanhã e fique.

— Está bem. — Ally atentou a uma jogada de beisebol na tela da televisão. — Olhe só, olhe só! Ele conseguiu!

— Fora — corrigiu Jonah. — Por meio passo. — Adorou vê-la pular do sofá, entusiasmada com o lance.

— Não, você viu o replay instantâneo. Eles chegaram juntos. Está vendo?

Recordando o ponto em que interrompera a conversa com o amante, Ally voltou a lhe dedicar toda a atenção. Esfregou o pé descalço no quadril dele.

— Foi ótimo, na minha opinião. Bom sexo, boa comida e até uma partidinha de beisebol...

Jonah pegou-lhe o pé e passou o dedo pela sola.

— Foi o paraíso.

— Já que estamos no paraíso, posso fazer uma pergunta muito importante?

— Faça.

— Vai comer todas essas batatas fritas?

Ele riu, passou-lhe o prato e inclinou-se para atender ao telefone.

— Blackhawk. Sim. — Estendeu o fone. — Para você, investigadora.

— Informei que poderiam me encontrar nesse número — explicou Ally, e atendeu. — Fletcher. — Enrijeceu-se no sofá, séria de repente. — Onde? Estou indo.

Já de pé, pôs o fone no gancho.

— Encontraram Jan.

— Onde?

— Está a caminho do necrotério. Preciso ir lá.

— Também vou.

— Por quê?

— Era minha funcionária —justificou Jonah, apressando-se ao quarto.

Jonah já vira e fizera muita coisa. Acreditava ter visto e feito de tudo na primeira metade da vida. Vira a morte, mas nunca em frio ambiente anti-séptico.

Contemplando a moça através da lâmina de vidro, só sentiu pena.

— Podemos verificar a identidade — informou Ally, seu lado. — Mas o procedimento é muito mais rápido se alguém reconhecer o corpo. É de Janet Norton?

— É.

Ally meneou a cabeça positivamente ao técnico e ele cerrou as persianas.

— Não sei quanto vou demorar.

— Eu espero.

— Tem uma máquina de café, à esquerda no fim do corredor, mas costuma ser forte. — Ela hesitou à porta. — Se mudar de idéia e preferir ir embora, é só ir.

— Eu espero — repetiu Jonah.

Ally não demorou muito. De volta, encontrou Jonah sentado numa das cadeiras de plástico no fim do corredor. Seus passos ecoavam no piso de linóleo.

— Nada a fazer enquanto não sair o laudo da autópsia.

— Como foi que ela morreu? — Jonah irritou-se com a recusa dela em falar. Levantou-se. — Não pode ser uma transgressão muito grande às normas me contar.

— Esfaqueada. Várias vezes, por lâmina comprida com serrilha. O corpo foi jogado no acostamento da rodovia 85 sul, a poucos quilômetros de Denver. Estava com a bolsa e os documentos dentro, como se o assassino quisesse que a identificássemos logo.

— E daí? Só identificar e juntar mais essa peça ao quebra-cabeça?

Ally não respondeu. Sabia que Jonah estava nervoso e ela mesma podia explodir a qualquer minuto.

— Vamos sair daqui. — Ela seguiu na frente para fora do necrotério e encheu os pulmões com ar fresco. Mais calma, comentou:

— Pelo número de perfurações, pode-se dizer que Jan foi assassinada com muita fúria.

—        E onde está a sua? — questionou Jonah, irado. — Ou tem sangue de barata?

—        Ally o encarou.

— Não fale assim comigo! — E lhe deu as costas.

 

Jonah a segurou pelo braço e obrigou a se voltar. Ela investiu com o punho direito cerrado e por pouco não o acertou no queixo.

— Não queria fúria. Pois aí está. — Ally desvencilhou o braço e se afastou, colérica. — Ao que tudo indica, Jan era feita em pedaços enquanto eu rolava na cama com você. Como acha que estou me sentindo?

Jonah a alcançou antes que abrisse a porta do carrol

— Desculpe-rne.

Ela tentou se libertar empurrando-o, mas, quando se voltou, ele simplesmente a aprisionou entre os braços.

— Desculpe-me — Jonah repetiu, baixinho, os lábios roçando seus cabelos. — Não sei o que me deu. De qualquer forma, sabemos que não teria feito diferença onde estávamos ou o que fazíamos. Teria acontecido.

— Não, não teria feito diferença. Mas duas pessoas estão mortas. — Ally desvencilhou-se. — Não posso perder a cabeça. Consegue entender isso?

— Claro. — Jonah soltou-lhe os cabelos e massageou sua  nuca. — Gostaria de ir para a sua casa e ficar com você esta noite.

— Otimo, porque é o que quero também.

Ela entrou no carro e aguardou enquanto ele se acomodava no assento do passageiro. Ambos precisavam aplacar a raiva e o sentimento de culpa.

- Tenho de levantar cedo amanhã.

Jonah sorriu.

- Eu, não.

- Que bom. — Ally dirigiu o veículo para fora da vaga no estacionamento. — Se não tem pressa, pode limpar a cama e lavar a louça. É pegar ou largar.

- Isso quer dizer que vai fazer o café?

— Exatamente.

— Fechado.

Logo chegaram ao prédio em que Ally morava e ela entrou direto na garagem no subsolo.

— Amanhã será um longo dia — avisou. — Tem importância a hora em que vou chegar ao Blackhawk's?

— Não. — Jonah saltou, correu a lhe abrir a porta e estendeu a mão pedindo a chave do apartamento. Ally suspirou.

— Você fez curso de boas maneiras ou algo assim?

— Primeiro da classe. Ganhei até placa. — Ele apertou o botão chamando o elevador. — Claro, algumas mulheres inseguras incomodam-se quando um homem lhes abre a porta ou puxam a cadeira, mas não é o seu caso, uma moça consciente de seu poder e feminilidade.

— Sem dúvida —- concordou Ally, porém volveu os olhos ao teto quando ele lhe ofereceu a dianteira para entrar no elevador.

Lá dentro, ele lhe pegou a mão.

— Gosto do seu estilo, Blackhawk — confessou ela, sorrindo. — Ainda não consegui defini-lo, mas gosto. — Inclinou a cabeça, analisando-o. — Você jogava beisebol, não é mesmo?

— O beisebol e seu pai é que me seguraram na escola.

— Eu preferia basquete. Já tentou fazer cestas?

— Algumas vezes.

— Que tal no domingo?

— Talvez. — Saíram do elevador.— A que horas?

— Ah, lá pelas duas. Posso passar na sua casa e então... — Alarmada, Ally se colocou na frente dele já sacando a pistola. — Fique onde está e não toque em nada.

Jonah também já vira. A porta do apartamento de Ally estava toda arranhada e com marcas de pé-de-cabra na borda. Usando só dois dedos, ela girou a maçaneta e então escancarou a porta com um chute. Cautelosamente, entrou acendendo luzes. Na sala, Jonah a ultrapassou.

— Atrás de mim! — advertiu ela. — Está louco?

— Uma das coisas que aprendi no curso de etiqueta é não usar uma mulher como escudo.

— Acontece que esta mulher aqui é policial e está armada.

— Já reparei. — Jonah atentou aos sinais de destruição no cômodo. — Além disso, o invasor já se escafedeu há muito.

Ally já percebera isso, também, mas tinha que observar regras e procedimentos.

— Preciso me certificar. Não toque em nada — repetiu, passando por cima de um abajur quebrado. Verificou o resto do apartamento.

Praguejando baixinho, pegou o telefone.

- O velho Dennis? — sugeriu Jonah.

— Talvez, mas não creio. Lyle tomou a rodovia no rumo sul. — Digitou um número no telefone. — Acho que já sei por quê. Alo? Aqui é a investigadora Fletcher.  Meu apartamento foi arrombado.

Antes de a equipe de peritos chegar, Ally calçou as luvas e começou a elaborar um inventário. Seu aparelho de som não fora levado, só destruído, assim como o microcomputador portátil e a televisão pequena.

Todos os abajures e a antiga luminária de contador que comprara para a escrivaninha estavam quebrados.

 

O sofá exibia um rasgo de ponta a ponta, com o enchimento todo para fora.

No quarto, o invasor despejara no meio da cama seu meio galão de tinta nunca usada, aproveitando-a também para escrever uma mensagem na parede junto à cabeceira:

Tente Dormir à Noite.

— Ele me culpa pela morte da irmã. Sabe que fui eu. Como descobriu?

— Jan — opinou Jonah. — Ela deve tê-los alertado naquela noite de que havia algo errado. Você acompanhou os Barnes de volta à mesa deles, mas isso não eliminou o fato de terem passado muito tempo ausentes. O casal estava nervoso, tenso. Ela deve ter notado.

Ally concordou e recuou para fora do quarto.

— Ela não me viu sair, pois estava ocupada, mas Frannie viu e pode ter comentado com ela de passagem. Atravessou a sala de estar e entrou na cozinha.

— Deve ter dado o alarme, mas um pouco tarde demais. Tarde demais para salvar a irmã do amante. Bem, parece que não quebrou nada aqui... — Apreensiva, aproximou-se da bancada. — Oh, não!

Voltou-se horrorizada.

— Minha faca de pão. — Tocou no suporte de cutelos com uma das ranhuras vazia. — Lâmina comprida serrilhada. Jonah, ele matou Jan com uma faca minha!

 

Não se deixaria abalar. Não podia. Era uma policial, lembrou a si mesma, e não podia ceder às pressões. A invasão a seu apartamento fora um ataque direto e pessoal. Devia reagir com  racionalidade e objetividade, concentrando-se em seu trabalho.

Quando a equipe de peritos se retirou, após acrescentar um pouco mais de destruição à de Lyle, Jonah mandou-a encher uma bolsa com roupas. Não discutiu, ficaria com ele até aquela história se encerrar. Não comentaram a respeito do passo gigantesco que  davam no relacionamento, dizendo a si mesmos que se tratava tão-somente de um arranjo lógico e conveniente.

Na cama de Jonah, entrelaçados, venceram o que restava da madrugada.

- Dobramos a guarda de Fricks — informou-a Kiniki, na reunião matinal. — Lyle não conseguirá pegá-lo.

- É esperto demais para tentar. — De pé no cubículo do tenente, Ally mantinha as mãos nos bolsos. Já superara o terror e o medo. — Vai esperar. Não tem pressa de se vingar de Fricks pelo erro que levou à morte de sua irmã.

Além da parede de vidro do escritório de Kiniki, os telefones tocavam, pondo os investigadores para trabalhar. Ally tentava se colocar no lugar da mulher morta com quem convivera por alguns dias.

— Jan Norton era cuca-fresca. Encarava tudo como uma aventura, romântica, entusiasmada. Acreditava estar segura com Lyle. A investigação apurou que dois vizinhos viram um casal que se encaixa da descrição de Lyle e Jan entrar no prédio por volta das oito horas. De mãos dadas — acrescentou. — Ela o ajudou a destruir meu apartamento e, então, na rodovia, ele a matou. Ela não tinha mais serventia.

Ally tivera tempo para reconstituir aquela sequência de acontecimentos, insone na cama de Jonah por toda a madrugada.

— Lyle não faz nada sem propósito. Parece nutrir ressentimento contra a classe privilegiada. Nota-se um padrão em seus antecedentes, que o levaram à prisão anteriormente. Sempre foram crimes contra ricos: a pirataria por computador, os furtos. Quando programador de uma empresa, planejou assaltos contra seus superiores bem de vida.

Ally tirou as mãos dos bolsos e as retorceu.

— Dinheiro, autoridade... Autoridade, dinheiro. Para Lyle, são sinônimos e pretexto para seu modo de agir. Se for mais esperto do que todo mundo, por que os outros levam vida boa e ele, não?

Mentalmente, virava as páginas do dossiê de Lyle Matthews.

— Filho de família da baixa classe média, ele nunca passou fome, mas também não usufruiu conforto. O pai passou a vida intercalando períodos de inatividade com empregos sem qualificação. O lar se desfez, a mãe se casou de novo e o padrasto era arrogante e dominador, padrão que Lyle seguiu. Os ex-supervisores e ex-colegas dele com quem falei ressaltaram a mesma impressão: Lyle era técnico brilhante, porém inepto socialmente, arrogante e agressivo demais permanecendo um solitário. Com a morte dos pais, a única pessoa íntima passou a ser a irmã.

Ally voltou-se para a parede de vidro e apreciou a movimentação além.

- A irmã alimentava as fraquezas dele, o ego monumental. Agora que ela morreu, vê-se completamente só.

- Aonde ele iria?

- Não longe — apostava Ally. — Ainda não acabou, Falta dar uma lição em mim, nos Barnes e em Blackhawk.

- Acho que está no caminho certo — opinou Kiniki. - Como o Sr. e a Sra. Barnes estão em outra casa, protegidos, os alvos são você e Blackhawk.

Ally voltou-se.

- Não quero correr riscos desnecessários, mas seria bom permanecer visível, cumprir a rotina, para que ele não adie a desforra. Antes de me pegar, ele quer me meter medo, me fazer suar.

- Vamos colocar guardas na frente do seu prédio.

-  Não creio que ele irá atrás de mim primeiro.

-  Blackhawk?

- Sendo eu o alvo mais importante, ele deverá me deixar por último, de modo que a próxima vítima na mira dele, pela lógica, é Blackhawk. O problema é que ele quer cooperar.

Ainda a intrigava o fato de Jonah ter recusado sua oferta de proteção.

— Podemos destacar dois policiais para segui-lo a distância.

— Ele perceberia nem que se mantivessem a quilômetros de distância e sumiria. Tenente, nós... estamos íntimos. Ele confia em mim. Eu dou conta do recado.

— Está no comando de uma investigação, Fletcher, e tem seu próprio traseiro para proteger.

— Dei conta de três tarefas disfarçada de garçonete lá no bar. Acredito que posso atrair Lyle, fazê-lo agir, mostrando-me com Blackhawk boa parte do tempo.

— Não é possível que ele saiba que foi você que abateu a irmã dele. O incidente não foi divulgado de forma alguma.

— Ele sabe que faço parte da equipe, que descobri o esquema de dentro do bar. Com a ajuda de Blackhawk, planejamos a ação que resultou na morte da irmã dele.

— De acordo, então. Vou colocar dois policiais na proteção a Blackhawk por setenta e duas horas. Depois, reavaliamos.

— Sim, senhor.

— Mudando de assunto, foram encontradas impressões digitais de Overton nas calotas das rodas de seu carro. Uma vistoria no automóvel dele revelou uma faca de caça comprada recentemente, com vestígios de borracha de pneu. O laudo da perícia deve confirmar o detalhe. O gabinete da promotoria pública o demitiu e pede a você que registre queixa.

— Mas, senhor...

— Sem mas, Fletcher. Se não registrar queixa, ele continuará livre para agir. Já se registrar, a promotoria pública poderá recomendar que ele seja avaliado psicologicamente. É preciso. Ou vai esperar que ele transfira a obsessão para outra pessoa?

Ally resignou-se.

— Tem razão. Vou registrar a queixa.

— Agora mesmo. Basta um lunático por aí perseguindo um de meus investigadores.

O fato de não haver alternativa não facilitava a obrigação. Devia ter prestado mais atenção no comportamento doentio do ex-namorado, percebido os sinais. Nada disso  justificava as atitudes dele, porém lhe imputava uma parcela de culpa em seu desencadeamento.

- O que foi Fletcher? Levou uma dura?

Ally encarou Hickman, à vontade recostado em sua escrivaninha.

- Não. É que estou para formalizar queixa contra uma pessoa.

O colega deu uma mordida em sua rosca matinal.

 Isso costuma me deixar feliz da vida.

- Porque é um bruto sem coração.

- Adoro quando me elogia.

Se eu o chamar de retardado acéfalo, me faz um favor?

Hickman deu outra mordida no quitute, espalhando migalhas sobre a mesa dela.

Por você dou a vida, beleza.

- Depois que eu registrar a queixa e for expedida a intimação, pode ir buscar Dennis Overton? Ele conhece você e não ficará tão assustado.

Posso ir, Ally, mas ele não merece seu pesar e consideração.

- Eu sei. — Ela se levantou e tirou a jaqueta do encosto da cadeira. Sorrindo, quebrou um pedaçinho da rosca do colega e o comeu. — Além de tudo, você muito feio.

— Garota dos meus sonhos! Vamos casar?

Grata por ter Hickman para reanimá-la, Ally deixou seu cubículo.

Duas horas depois, adentrava o gabinete de seu pai, o chefe da polícia de Denver. Recebendo-a à porta, ele lhe esfregou os braços antes de analisar as feições.

— Que bom ver você — murmurou ele, afetuoso. Ela se atirou nos braços dele, absorvendo a força, a estabilidade.

— Sempre posso contar com você e mamãe. Estão sempre ali. Queria dizer isso, primeiro.

— Ela está muito preocupada com você.

— Eu sei, e lamento. — Ally deu mais um aperto e se desvencilhou. — Sei que está a par de tudo, mas queria que visse que estou bem. Lyle não deve demorar para agir, pois agora está sozinho. Tudo indica que ele precisa de alguém, de uma mulher, que o admire, que lhe alimente o ego, jogue seu jogo. Sozinho, deverá se desintegrar.

— Concordo. E, na mente doentia dele, é a mulher que deve ser punida por tudo. Você é a eleita.

— Isso mesmo. Já cometeu o primeiro grande erro ao invadir meu apartamento. Expô-se. Deixou impressões digitais por toda parte. Com aquela demonstração de raiva e sofrimento, revelou o que é e o que quer. Usou minha faca para matar Jan só para eu saber que podia ter sido eu.

— Análise perfeita, mas posso saber por que está sozinha?

— Ele não atacaria de dia. Trabalha à noite. Não pretendo correr riscos desnecessários, pai. Só queria avisar também que formalizei queixa contra Dennis.

- Ótimo. Não pode se distrair por causa dele, a esta altura. Passei no seu apartamento hoje de manhã.

- Terei de redecorar.

- Não pode ficar lá. Fique lá em casa conosco até encerrarmos este caso.

- Ah, eu já... arranjei um lugar para ficar. — Sem jeito, Ally enfiou as mãos nos bolsos e balançou nos calcanhares. Aquela era a parte mais difícil. — Lá no Blackhawk’s

- O quê? Mas não pode acampar num bar... — De repente, Boyd entendeu. Abalado, passou a mãos nos cabelos e foi até a escrivaninha. De lá, meio cambaleante, encaminhou-se à cafeteira. — É, vocês dois estão...

- Dormindo juntos.

DE costas para a filha, Boyd fez um gesto indefeso.

Ally aguardou calada.

- Você é adulta — murmurou ele, por fim, baixando o bulie. — Raios...

- Refere-se à minha idade ou a meu relacionamento com Blackhawk?

- Ambos. — Boyd voltou-se. Era tão linda aquela mulher que gerara.

- Tem algo contra ele?

- Você é minha filha. Ele é um homem. Não se atreva a rir enquanto tenho uma crise de paternidade.

Ally se conteve.

- Desculpe-me.

- Se não se importa, prefiro imaginar você e Jonah discutindo clássicos da literatura.

 

— Como queira, pai. Posso levá-lo no churrasco de domingo?

— Ele não vai.

— Vai, sim. — Álly sorriu marota. — Ah, se vai.

Ally passou o resto do experiente acompanhando os progressos do caso Lyle e tratando de outros dois. Encerrou um caso de assédio sexual e iniciou as investigações acerca de um assalto a mão armada.

Livre do trabalho, estacionou o carro num lugar seguro e caminhou um quarteirão e meio até o Blackhawk's.

A primeira coisa que viu ao entrar no bar foi Hickman, curvado sobre o balcão. Teria notado seu olho roxo a um quarteirão de distância. Aproximou-se preocupada e ergueu-lhe o queixo.

— O que houve?

— Seu ex-namorado doido reagiu mal à intimação.

— Oh, ele resistiu?

— Fugiu feito uma lebre. — O investigador captou o olhar de Frannie e pediu mais bebida em seu copo. — Tive de correr atrás dele. Na hora das algemas, ele me acertou. — Tomou o resto da cerveja. — Além da cara de palhaço, ainda tive de ouvir bronca do chefe.

— Lamento, Hickman. — Para provar, Ally roçou os lábios no hematoma. Ao endireitar o corpo, viu Jonah dobrando a esquina do balcão. Ele ergueu o sobrolho ao vê-la com o braço nos ombros do colega e então chamou Will.

— Nunca pensei que fosse tão arisco — resmungava Hickman, mostrando o buraco no joelho da calça. — Isto ele me fez depois que o atirei no chão. Pulava feito truta fora da água, chorando e uivando.

Ally meneava a cabeça, inconformada.

 

— Parece que ele está piorando.

— Mais uma demonstração de solidariedade por aque sujeito, Fletcher, e lhe dou um murro. — Hickman degustou salgadinhos. — Só gostaria de saber o que viu nele...

— Sei lá. Frannie, coloque a despesa de Hickman na minha conta, está bem?

— Acho que vou querer uísque importado, então.

Risonha, Ally olhou por sobre o ombro quando Wil a chamou.

— Não me acostumo com tiras freqüentando meu bar — brincou ele. — Que tal um pouco de gelo nesse olho roxo, policial Hickman?

O outro recusou.

— Não precisa. — Com o olho bom, deu uma boa olhada em Will. — Algum problema com tiras?

— Há cerca de cinco anos, não. Diga-me, o sargento Maloney ainda está na sessenta e três? Ele me pôs no xadrez duas vezes.

Divertido, Hickman girou na banqueta.

— Continua lá, apurando tráficos de entorpecentes.

— Quando o vir, mande lembrança — pediu Will. - Ele sempre agiu direito comigo.

— Pode deixar.        .

— Bom, o chefe mandou levar comida para seus colegas no carro estacionando no outro lado da rua. Devem estar com fome, após tantas horas girando os polegares.

— Eles vão adorar — afirmou Ally, irónica.

— E o mínimo que podemos fazer. — Com um tapa amigável nas costas de Hickman, Will foi para a cozinha.

— Preciso tomar umas providências. — Ela examinou mais uma vez o olho roxo do colega. — É bom pôr gelo nisso — aconselhou, e se encaminhou ao salão à procura de Beth. Encontrou-a digitando códigos na máquina registradora. — Beth, tem um minuto?

— Hoje é sexta-feira, estamos com muitas reservas e duas garçonetes avisaram que não vêm.

Ally não se intimidou ante o tom frio da mulher.

— Posso esperar seu intervalo.

— Não sei quando poderei tirar um. Estamos muito ocupados.

— Eu espero. Não vou tomar muito do seu tempo.

— Como queira. — Sem se dignar olhá-la, Beth se afastou.

— Ela está sentida — explicou Will. Ally voltou-se.

— Está em toda parte?

— A maior parte do tempo. — Ele endireitou os ombros. — É meu trabalho. Beth treinou Jan, assim como treinou você. Acho que ficamos todos abalados com o que aconteceu.

— E culpando a mim?

— Eu, não. Apenas cumpriu seu dever. Beth também vai superar. Ela preza demais o patrão. Quer uma mesa? A banda começa a tocar em uma hora e é das boas, de modo que não vai sobrar nem um espacinho aqui.

— Não, obrigada, Will.

— Se mudar de ideia, grite.

Ally lhe apertou o braço e sorriu.

— Obrigada.

— De nada. Sabe, não tenho nada além de respeito pêlos tiras... Há pelo menos cinco anos.

Beth a fez esperar uma hora. Ally já tinha a cabeça latejante ao som da segunda música da banda quando a garçonete se apresentou.

— Consegui dez minutos e vou lhe ceder cinco. É o máximo que posso fazer.   

— Ótimo. — Aumentando o volume da voz, Ally questionou: — Podemos ir para a sala de descanso ou prefere ficar gritando aqui?

Sem responder, Beth deu meia-volta e rumou para fora do salão. Destrancou a porta do reservado aos funcionários, sentou-se no sofá e descalçou os sapatos.

— Mais perguntas, investigadora Fletcher?

Ally fechou a porta, livrando-se da maior parte do barulho.

 — Serei breve e objetiva. Está a par do que aconteceu com Jan?

— Sim, bem a par.

— Os pais dela já foram avisados — informou Ally, no mesmo tom impessoal. — Chegarão a Denver amanhã e vão querer as coisas dela. Gostaria de encaixotar o que ela guardava no armário.

Com os lábios trêmulos, Beth desviou o olhar.

— Não sei a combinação da fechadura.

— Eu sei. Ela tinha escrito na agenda de endereços.

— Para que precisa de mim, então?

— Preciso de uma testemunha. Gostaria que conferisse a relação de todos os objetos que encontrarmos no armário dela e confirmasse que não acrescentei nada nem me apropriei de nenhum item.

Beth olhou-a indignada.

— É só isso o que vê na morte dela? Mais uma tarefa a cumprir?

— Quanto antes realizarmos todos os procedimentos, mais cedo pegaremos quem fez isso com ela.

— Ela não era nada para você. Nenhum de nós era. Mentiu para nós.

— Sim, menti. Sob as mesmas circunstâncias, mentiria de novo. Não posso pedir desculpas por isso.

Ally foi até o conjunto de armários e digitou o segredo na fechadura do de Jan.

— Sabe se alguém mais podia abrir este armário além de Janet Norton?

— Não.

Ally removeu a fechadura e abriu a portinhola. Sem tocar no conteúdo, tirou da bolsa um saco plástico destinado à colheita de provas.

— Tem o perfume dela — comentou Beth, emocionada. — O que quer que tenha feito, não merecia morrer daquele jeito, ter o corpo atirado num acostamento feito carniça.

— Não, não merecia. Quero pegar quem fez isso tanto quanto você. Mais do que você.

Beth chorava.

— Por quê?

— Porque tem de haver justiça, ou não há nada. Porque os pais dela a amavam e estão desolados. Também sinto o aroma do perfume dela. Bolsa de cosméticos... — Ally abriu o zíper do acessório cor-de-rosa. — Dois batons, pó compacto, três lápis delineadores para olhos...

Parou quando Beth tocou em seu braço.

— Quer que eu escreva enquanto verifica?

Tirando um lenço de papel do bolso, enxugou os olhos e o guardou de novo antes de pegar o bloco de anotações.

— Eu gostava de você, entende? — desabafou. — Gostava de quem pensava que você era. Fiquei ofendida ao descobrir que era outra pessoa.

— Agora que sabe, podemos começar daqui.

— Talvez. — Beth posicionou o lápis e começou a escrever.

Ally pediu uma refeição leve no bar, de olho em Jonah. À medida que o estabelecimento se enchia com  os  frequentadores de sexta à noite, ela constatava a dificuldade crescente em protegê-lo.

Seria ainda mais difícil convencê-lo a mudar o comportamento até que prendessem Matthew Lyle.

Considerando-se em serviço, Ally bebia só café. Quando a cafeína começou a afetar seu organismo, passou a tomar água.

Quando não aguentava mais ficar parada, informou a Frannie que ia ajudar e pegou uma bandeja.

— Eu não tinha demitido você? — ironizou Jonah, ao vê-la carregar uma bandeja de louça suja para a cozinha.

— Não. Eu pedi a conta. — Parando no bar, Ally transmitiu ao barman vários pedidos: — Pete, um chope, um campari e soda, um Merlot com gelo e a gengibirra de cortesia para o companheiro ali.

— Entendido, louraça.

— Suba e descanse os pés — ordenou Jonah. — Está cansada.

Ally estreitou o olhar.

— Pete, este sujeito disse que estou com má aparência e passou a mão no meu traseiro.

— Quebro a cara dele para você, doçura, assim que liberar as mãos.

— Meu namorado novo tem físico de lutador de boxe — advertiu Ally a Jonah, ajeitando a cabeleira de um jeito convencido. — Eu tomaria cuidado, se fosse você.

Ele a segurou pelo queixo e beijou-a até que ficasse sem fôlego.

— Não vou pagar a você — declarou, afastando-se.

— Eu trabalharia por esse tipo de gorjeta — comentou a frequentadora na banqueta próxima. — A qualquer hora, em qualquer lugar.

Ally expirou longamente.

— Quem não?

Trabalhou até fecharem. Então, apossou-se de uma mesa no salão e elevou os pés, enquanto a banda cessava e os funcionários se preparavam para ir embora.

Sentada mesmo, adormeceu.

Jonah sentou-se diante dela, quando o estabelecimento mergulhou em silêncio.

Will era sempre um dos últimos.

— Precisa de mais alguma coisa? Jonah olhou-o.

— Não. Obrigado.

— Ela parece esgotada.

— Logo se reanima.

Will agitou as moedas nos bolsos.

— Bom, vou tomar meu drinque com Frannie, então saímos e tranco tudo. Até amanhã.

O homem estava apaixonado, concluiu Will, a caminho do balcão. Quem podia imaginar? Jonah Blackhawk de quatro por uma policial!

Frannie lhe serviu o conhaque com que encerrava cada expediente.

— O patrão gamou na tira.

— Só agora percebeu?

Will coçou o queixo.

— Acha que vai dar certo?

— Não entendo muito de romances, mas eles formam um belo casal e não podem brigar muito, pois ambos são cabeça-dura.

— Ela desmaiou lá na mesa. — Will olhou na direção do salão e bebericou o conhaque. — Ele gosta de ficar olhando enquanto ela dorme. Acho que dá para saber o que um homem sente pelo modo como olha uma mulher.

Reparando que apreciava Frannie do mesmo jeito enquanto ela limpava o balcão, Will enrubesceu e se concentrou na bebida, como se esta de repente apresentasse a solução para um problema muito difícil.

Só que, desta vez, Frannie percebeu. Percebeu por que queria perceber. Mas continuou limpando o balcão impecável enquanto analisava a própria reação. Um pouco de atração, constatou, acompanhada de um ligeiro calor.

Não sentia, ou não se permitia sentir, algo assim por um homem havia muito tempo.

 — Vai direto para casa? — indagou a ele, casual.

 — Acho que sim. E você?

— Pensei em encomendar pizza e mergulhar na maratona de filmes de terror daquele canal a cabo.

Will sorriu.

— Sempre gostou de monstros.

— É, nada como tarântulas gigantes ou vampiros para espantar os problemas da gente. Só que... Sozinha não tem muita graça? Está a fim?

— A fim?! — Agitado, Will derramou conhaque no balcão que Frannie acabara de limpar. — Oh, desculpe-me... Sou um desastrado.

— Não foi nada. — Ela abriu o pano sobre o líquido derramado e o fitou nos olhos. — Quer rachar uma pizza, Will, e assistir aos meus filmes de monstro em preto-e-branco juntinho de mim no meu sofá?

— Eu... Você... Quero dizer... — Ele teria se levantando, se sentisse os pés. — Está falando comigo?

Frannie sorriu e estendeu o pano molhado na pia.

— Vou pegar minha jaqueta.

— Deixe que eu pego. — Ele se pôs de pé, aliviado por não cair. — Frannie?

— Sim, Will?

— Acho você linda. Resolvi dizer agora, para o caso de ficar nervoso demais depois e me esquecer.

— Eu o lembrarei de repetir, mais tarde.

— Bem... Vou buscar sua jaqueta. — Agitado, retirou-se ligeiro.

Jonah respondeu às despedidas de Will e Frannie e se levantou para verificar pessoalmente todas as fechaduras e alarmes, deixando Ally ainda adormecida à mesa. Com os saltos batendo no chão prateado, foi para o fundo do palco e selecionou a iluminação e a música mais condizentes com seu estado de espírito.

Satisfeito, refez o caminho, inclinou-se sobre Ally e a acordou com um beijo.

Ela emergiu do mundo dos sonhos sentindo o sabor do amado amante. No contato rude e quente, ele dava a entender que estava pronto. Ao abrir os olhos, foi como se milhares de estrelas iluminassem o céu noturno.

— Jonah?

— Vamos dançar. — Sempre mordiscando-lhe os lábios, ele a fez se levantar.

Antes que sua mente se livrasse do torpor, Ally se deixou conduzir por Jonah, seus corpos moldando-se em meio aos acordes melodiosos.

— Que música... — Ela roçou o rosto no dele.

— Não gosta? Posso colocar outra.

— Não, adoro. — Ally deixou a cabeça pender para trás, liberando o acesso a seu pescoço. — É a canção favorita de meus pais. Sabia que minha mãe foi discjóquei lá na KHIP antes de ser promovida a gerente da rádio? Ela tocou essa música para todos ouvirem na. noite em que aceitou o pedido de casamento de meu pai. Não é uma linda história?

— Acho que Boyd já tinha me contado umas partes.

— Precisa ver como se olham quando dançam ao som desta música. É lindo de morrer.

Ela enterrou os dedos nos cabelos dele enquanto deslizavam sobre as estrelas no chão.

— Você dança bem, Blackhawk. Nunca imaginei. — Por sobre o ombro dele, contemplou as luzes cintilantes. — Todos já foram?

— Já. — Ficou só você, completou Jonah, roçando lábios na cabeleira loira. — Só você.

 

Pela primeira vez em semanas, Ally não teve que pular da cama e correr para o trabalho.

Glorioso domingo.

Como a noite de sábado no Blackhawk's fora ainda mais movimentada do que a de sexta-feira, passara a maior parte do dia de pé ajudando no salão, mentalmente em serviço policial: protegendo Jonah.

Ele fazia vista grossa aos guardas no carro diante do bar, mas não engoliria tão facilmente o fato de ela estar ali para lhe servir de escudo.

Certos assuntos, era melhor não discutirem.

Além disso, estavam trocando favores. Ela não podia voltar a seu apartamento enquanto ele não estivesse limpo e remobiliado. Ele lhe cedia um lugar confortável no qual ficar e, para compensar, ela lhe servia de guarda-costas. Nada mais justo e racional, em sua opinião.

E aquele trato apresentava um benefício colateral soberbo. Disposta a usufruir, passou a mão no peito de Jonah e começou a mordiscar o corpo que protegia com o máximo prazer.

Ele despertou, totalmente excitado, com a boca tomada por beijos ardentes e gulosos.

 

- Vamos, vamos... — entoava Ally, já se sentando nele, cavalgando. Não sabia que seu sangue podia ferver tão rápido, que suas necessidades podiam passar de adormecidas a desesperadas entre duas batidas de coração.

Apossou-se de Jonah, cercando-o, e sentiu o corpo se sacudir e arquear para trás sob as garras afiadas prazer.

No quarto totalmente em breu, Jonah soergueu-se para toma-la nos braços. Posse. Era o que movia ambos. Ele se apossava de sua boca, seu pescoço, seus seios, alimentando a fome que ela provocava tão facilmente em seu ser, antes que conseguisse fazer qualquer coisa além de sentir.

.A liberação de Ally deu-se na forma de uma açoitada, cortando a carne. Sentindo-a derreter-se em torno dele, fez com que se deitasse e começou a amá-la.

Um beijo, suave como as sombras. Um toque, terno como a noite. Quando ela tentou alcançá-lo, tomou-lhe as mãos e as beijou, num gesto rico e suntuoso cuja sensação se misturou à das necessidades ainda insatisfeitas.

- Agora, a minha vez...

Foi totalmente diferente. Cheio de paciência, doçura e vagar. Como um fogo abafado do qual restavam brasas brilhantes.

Ally se entregava, numa derrota tão poderosa quanto a sedução. Jonah lhe murmurava palavras bonitas, que tocavam a alma tanto quanto o corpo. Com a resa, Ally flutuava entre as finas e delicadas camadas das sensações.

O roçar dos dedos dele, dos cabelos, o calor dos lábios, o deslizar da língua elevavam-na mais e mais. Concomitante ao desejo cada vez mais intenso, um anseio profundo evoluía para uma necessidade latejante, fazendo-a murmurar o nome do amante entre gemidos.

Ele a conduziu sobre a primeira fronteira acetinada.

Precisava tocá-la assim, tomá-la dessa maneira. Precisava, ao menos nas sombras, exercer tal direito. Ali, ele podia ter Ally.

Ela o abraçou com força quando a beijou profundamente, até se perder nela. E foi assim perdido que a penetrou, prolongando a união, desesperada e irremediavelmente apaixonado.

Quando finalmente relaxaram quietos, Ally encaixou o rosto no pescoço dele, ávida por sentir seu gosto só mais um pouquinho.

— Não, não se mexa — sussurrou. — Ainda não... Ally sentia o corpo ouro, puro ouro. Podia jurar que até o escuro tinha molduras douradas.

— Ainda é noite. — Ela o afagava nas costas, sem parar. — Enquanto estivermos assim, ainda será noite.

— Pode ser noite pelo tempo que quiser.

Ela pressionou os lábios contra a pele dele.

— Só mais um pouquinho... — Suspirava, contente por abraçar e ser abraçada. — Eu ia me levantar e usar seus aparelhos de ginástica, mas... Bem, você estava à mão e achei que me satisfaria mais usando você.

— Ótima ideia. — Jonah fechou os olhos, colado a seu amor.

Deixaram a manhã passar lânguida. Então, exercitaram-se na academia particular de Jonah, assistindo a programas esportivos na televisão portátil.

Saborearam um desjejum de pãezinhos e café, lendo o jornai de domingo, na cama. Nada mais natural, quase doméstico, pensou Ally, enquanto se vestiam para sair.

Não que um homem como Blackhawk pudesse ou devesse ser domesticado. Mas aquela manhã de domingo tranquila e sem complicação talvez marcasse uma boa mudança de ritmo.

Sentada na beirada da cama, Ally amarrava os cadarços dos tênis velhos. De camiseta, Jonah lhe admirou as pernas longas, intermináveis.

— Vestiu esse shortinho indecente só para me distrair na quadra e vencer?

Ela ergueu o sobrolho.

— Por favor, não me ofenda. Com minha habilidade, não preciso recorrer a golpes baixos.

— Otimo, porque, quando entro em um jogo, nada me distrai até que esmague o oponente.

Ally levantou-se e enfiou os ombros forte na apertada camiseta sem manga.

— Vamos ver quem sairá esmagado, Blackhawk. Agora, vai ficar aí parado falando da boca para fora ou está pronto para me enfrentar?

— Mais do que pronto, investigadora Doçura.

Não se provocaram mais até se acomodarem no carro dele. Ally achava ótimo que Jonah ainda não tivesse desconfiado do lugar aonde iriam jogar. Quando mais adiassem a discussão, melhor.

Esticando-se sob o painel, preparou-se para a viagem. Sorriu maldosa quando ele lhe admirou novamente as longas pernas.

- E então, quando é que vai me deixar dirigir esta máquina?

Jonah ligou o motor.

— Nunca.

— Por que não?

— Compre um carro esporte, se quiser. Onde é a quadra que será o palco de sua derrota?

— Fala da quadra em que pretendo cobri-lo de humilhação? Eu ensino o caminho. Claro, se me passasse o volante, chegaríamos em dois tempos.

Jonah lançou-lhe um olhar compadecido e pôs os óculos de sol.

— Onde é a quadra, Fletcher?

— Perto do lago Cherry.

— Por que diabos quer trocar raquetadas lá no fim do mundo? Há vários clubes por aqui.

— O dia está bonito para jogarmos ao ar livre. Claro, se tem medo de um ventinho...

De marcha à ré, Jonah tirou o carro da vaga no estacionamento.

— Mas o que é que você costuma fazer nos dias de folga, além de usar aquele maravilhoso equipamento em cima do seu bar? — indagou Ally.

— Assisto a um bom jogo, visito galerias... — Olhou-a de soslaio e sorriu maldoso. — Pego mulheres.

Ally o observava por sobre o aro dos óculos de sol.

— Assiste a que esporte?

— Depende da estação. Havendo bola em jogo, estou lá.

— Eu também. E que tipo de galeria?

— A que parece melhor no momento.

— Você tem uns trabalhos bonitos, no bar e no apartamento.

— É, eu gosto.

— E que tipo de mulher?

— Dócil.

Ally riu e olhou para a frente.

— Está me chamando de dócil?

— Não, você é selvagem. Gosto de variar, de vez em quando.

— Sorte a minha. — Ally voltou a estudar o perfil dele, encantada com as linhas másculas, com os óculos escuros escondendo os fascinantes olhos verdes. — Você tem muitos livros. Não consigo imaginar você mergulhado numa boa leitura.

— Atento — corrigiu Jonah. — Mulheres mergulham em leitura, homens atentam.

— Oh, desculpe-me. — Ally prestou atenção no caminho que seguiam. — Pegue a próxima saída para entrar na dois-dois-cinco. E tire o pé do acelerador. A polícia rodoviária adora multar playboys com máquinas quentes como esta.

— Conheço gente da polícia, sabe.

— Acha que vou salvar a sua pele, sendo que nem me deixou dirigir seu carro esporte?

— Acontece que conheço o chefe da polícia de Denver. — Jonah leu a placa no acostamento. — Disse lago Cherry?

— Isso mesmo.

Ele saiu da estrada e estacionou ao lado de uma loja de conveniência.

Ally estava confusa.

— O que foi?

 — Sua família mora no lago Cherry.

— Exatamente. Lá em casa, tem uma linda quadra de basquete... Ou melhor, meia-quadra, pois foi o máximo que meus irmãos e eu conseguimos, após ferrenha campanha. Tem também churrasqueira, que meu pai aproveita muito. Tentamos nos reunir domingo sim, domingo não.

— Por que não me disse que íamos à casa dos seus pais?

Ela percebeu a raiva na voz dele.

— Combinamos jogar e lá é um lugar tão bom quanto qualquer outro. .

— Não quero me intrometer numa reunião de família. — Jonah saiu de ré com o carro. — Deixo você lá. Arranje uma carona para voltar depois.

— Espere aí. — Ally girou a chave na ignição, desligando o motor. Se ele estava zangado, podiam brigar, mas não deixaria que ele a colocasse na geladeira. — Quem disse que estará se intrometendo? Vamos marcar umas cestas, comer carne. Não precisa de convite impresso para isso.

— Não vou passar o domingo com a sua família.

— Porque é uma família de tiras?

Ele tirou os óculos escuros, jogando-os longe.

— Não tem nada a ver uma coisa com outra,

— Então, sou boa o bastante para que durma comigo, mas não para que me faça companhia diante da minha família?

— Não diga bobagem. — Jonah saltou do veículo e foi contemplar uma estreita faixa de relva. Ally foi atrás.

— Então, explique.

— Você me enganou, Allison. Para começar.

— Foi só uma artimanha inocente. Jonah, conhece meu pai há séculos, mas nunca aceitou nenhum convite dele para ir lá em casa. Por quê?

- Porque é a sua casa e não tem lugar para mim lá. Porque devo muito a Boyd. E agora estou dormindo a filha dele, pelo amor de Deus!

- Eu sei. Ele também sabe. Acha que ele vai lhe um tiro entre os olhos quando entrar pela porta?

Ele bufou, desconsolado.

- Pare de fingir que não entende!

Ally não respondeu, atenta ao desabafo que enfim chegava.

- Sempre viveu num mundo perfeito — começou jonah. — Um mundo sólido, equilibrado, estável. Não tem idéia de como era o meu antes de Boyd entrar na minha vida nem de como seria agora, se não tivesse essa sorte. E é assim que retribuo...

- Está retribuindo com insultos — replicou Ally. Não assume seu relacionamento comigo, como se fosse algovergonhoso. Acha que não sei como era sua vida? Não fui criada numa redoma, Blackhawk. Sou filha de policial. Não há nada que tenha vivido que eu ainda não tenha visto, pelos olhos dele. E, agora, pêlos meus.

Ela espetou o dedo no peito dele.

- Portanto, supere de vez esse complexo de inferioridade. Não importa de onde cada um partiu, hoje estamos no mesmo nível. Ponha isso na sua cabeça!

Jonah segurou-lhe o dedo.

- Pare de me apoquentar!

- Eu estava só elogiando você.

- Igualmente.

Ele se afastou mais, permanecendo longe até recuperar algum controle. Ao acusá-lo de se envergonhar dela. Ally o atingira fundo. Podia estar zangado por se apaixonar pela filha de Boyd, mas jamais se envergaria disso.

— Tenho uma proposta. — Jonah indicou o carro com dois policiais que estacionara perto do deles. — Você se livra dos guardas e passamos umas duas horas com sua família.

— Só um minuto.

Ally aproximou-se do sedã de cor escura e conversou com o motorista. Voltou para junto de Jonah com as mãos nos bolsos.

— Vão nos deixar em paz pelo resto da tarde. Foi o máximo que consegui. — Ela exercitou os ombros. Pedir desculpas sempre a deixava tensa. — Olhe, perdoe-me por ter agido assim. Eu devia ter falado, para discutirmos antes de sair de casa.

— Não falou porque sabia que eu não teria concordado.

— Isso mesmo. — Ally mostrou-se derrotada. — Desculpe-me. Minha família é importante para mim. Estamos envolvidos e quero que se sinta à vontade com eles.

— À vontade é pedir demais, mas não me envergonho de estar envolvido com você e não quero que pense isso.

— Não penso. Mas, Jonah, significaria muito para mim que tentasse se descontrair lá em casa esta tarde.

— É mais fácil discutir com você quando está cabeça-dura.

Ally riu.

— É o que meu irmão Bryant sempre diz! Vão se dar bem. — Sedutora, enganchou o braço no dele e seguiram para o carro esportivo. — Só mais uma coisinha...

— O quê?

— É que... Não vamos encontrar só minha família lá em casa. Está havendo um encontro, entende, com mais gente. Tios, tias e primos do Leste, uma velha parceira de papai com toda a família... Vai ser melhor a você! — afirmou, quando Jonah cerrou o punho fingiu esmurrá-la no queixo. — É mais uma horda do que um grupo e ninguém vai nem reparar em você. Ei, posso dirigir o resto do caminho?

- Minha vontade é fazer você desmaiar e enfiá-la no porta-malas.

- Deixe para lá, eu sabia que não ia concordar. — chegou a tocar na maçaneta da porta do passageiro, mas Jonah conseguiu passar à frente e abri-la antes dela.

- Você não existe, Blackhawk! — exclamou ela, risonha. Após lhe dar um beijo sonoro, sentou-se na poltrona. Assim que ele se acomodou ao volante, afagou-o no rosto. — São apenas pessoas. Gente muito boa.

- Não duvido.

- Jonah, se não se sentir à vontade após uma hora, quero que me diga. Invento uma desculpa e saímos.Está bem?

- Se não me sentir à vontade em uma hora, eu saio e você fica. É assim que tem de ser. De acordo?

- De acordo. — Ally recostou-se e travou o cinto de segurança. — Vou adiantar alguns nomes, para você ir memorizando. Vai conhecer tia Natália e o marido, Ryan Piasecki. Ela tem parte nas Indústrias Fletcher, mas sua menina dos olhos é a Lady's Choice.

- Roupa de baixo?

- Lingerie. Não seja caipira.

- Os catálogos são o máximo.

- Faz questão de cueca da moda, é?

- Não. Gosto de ver as fotos de mulheres seminuas.

Ally riu, aliviada por terem superado a crise.

— Vá reto agora. Tio Ry integra o Corpo de Bombeiros de Urbana e tem três filhos, de catorze, doze e oito anos, se não me engano. Tia Débora, irmã de mamãe, é promotora pública em Urbana e casada com Gage Guthrie.

— Aquele que tem mais dinheiro do que o tesouro nacional?

— É o que dizem. Quatro filhos, de dezesseis, catorze, doze e dez anos. Escadinha. — Ally forçava a memória. — A capitão Althea Grayson, ex-parceira de papai, é casada com Colt Nightshade, detetive particular. Dá cabo de qualquer problema, é uma espécie de canhão solto. Vai gostar dele. Eles têm dois filhos, um de cada, de uniões anteriores, de quinze e doze anos, ou melhor, treze.

— Basicamente, vamos passar a tarde com um time de beisebol adolescente.

— São divertidos — adiantou Ally. — Não gosta de crianças?

— Sei lá. Até hoje tive pouco contato com a espécie.

— É a próxima saída — instruiu ela. — Bem, vai tirar o atraso hoje. Deve ter conhecido meus irmãos, em alguma época. Bryant trabalha nas Indústrias Fletcher, é um tipo que resolve todos os problemas, também. Viaja muito e encosta gente na parede. Adora isso. E Keenan é bombeiro. Fomos visitar tia Natália logo depois que ela fisgou tio Rye e Keen se apaixonou pelo enorme carro vermelho. Decidiu na hora. Dobre à esquerda no próximo semáforo. Acho que já falei de todo mundo.

— Estou com dor de cabeça.

— À direita na esquina e desça dois quarteirões.

 

Jonah já reparara na vizinhança: estável, abastada e exclusiva, com belas e amplas residências construídas em ótimos terrenos. Por algum motivo inexplicável, o cenário lhe dava comichões.

Sentia-se bem na cidade, cujas ruas o lembravam de que se esquivara a um destino terrível, cheias de rostos anônimos. Já ali, entre árvores majestosas e gramados impecáveis, luxuriantes à proximidade do verão, entre flores mil e casas chiques, não se sentia só um estranho.

Sentia-se um intruso.

- É aquela à esquerda, com o cedro na frente e os degraus de pedra. Parece que todo mundo já chegou. Parece um estacionamento.

De fato, a rua estava cheia de carros. A casa em si era um singular estudo de telhados em vários níveis, com amplas janelas de vidro, embelezada por árvores e arbustos floridos, a qual se chegava por uma trilha tortuosa de ardósia subindo a colina suave.

 

- Quero reformar o acordo — declarou Jonah. — Acrescentem-se favores sexuais exóticos. Mereço, depois do que vou passar aqui.

- Fechado.

Ally tentou abrir a porta, mas ele a prensou de costas contra o banco. Não abria mão do cavalheirismo. Saltou. Mas, antes que contornasse o veículo, ouviu-se um grito de guerra e uma bonita menina de cabelos castanho-escuros desceu correndo a colina. EIa agarrou Ally num abraço apertado assim que esta  saiu do carro.

- Até que enfim! Todo mundo já chegou. Sam já empurrou Mick na piscina e Bing fez o gato do vizinho subir numa árvore. Keenan conseguiu tirá-lo de lá, mas levou uns arranhões e minha mãe está passando remédio neles.

Abriu um sorriso para Jonah.

— Oi. Sou Addy Guthrie. Você deve ser Jonah. Tia Cilla disse que viria com Ally. E verdade que tem um bar? Que músicas tocam lá?

— Ela se cala duas vezes por ano, por cinco minutos — brincou Ally, apertando os ombros da prima num abraço. — Já marcamos. Sam é do ramo Piasecki e Mick é irmão de Addy. Já Bing é nosso cachorro que, por não ter modos, se adaptou muito bem à família. Não tente memorizar tudo de uma vez, ou vai piorar a dor de cabeça.

Foi pegar a mão dele, mas a priminha espevitada se antecipou.

— Posso ir ao seu bar? Só vamos voltar na quarta-feira. Talvez na quinta, se eu insistir. Um dia a mais. Céus, você é mesmo alto! — Cochichou à prima: — E bonitão. Bom trabalho, Allison.

— Addy...

— Por que vivem me chamando a atenção?

Lisonjeado, apesar de tudo, Jonah sorriu.

— E adianta?

— Claro que não.

O barulho aumentou, com muitos gritos. Um casal de adolescentes de sexo indeterminado correu para a rua armado de assustadoras pistolas de água. Na varanda, uma loira conversava seriamente com uma ruiva. Um grupo de homens, alguns sem camisa, jogava basquete brutalmente numa quadra revestida de preto. Outro grupo de jovens, ensopados, atacava uma mesa lotada de comida.

— A piscina fica no outro lado da casa — explico Ally. — E coberta e cercada, para que possamos usá-la o ano todo.

Um dos jogadores de basquete deu um giro e enterrou a bola. Ao avistar Ally, deixou a quadra.

Encontraram-se no meio do caminho, rindo muito quando ele a arrebatou pêlos pés.

— Ponha-me no chão, seu retardado! Está todo suado!

— Também estaria, no comando de um time prestes a conquistar a segunda vitória consecutiva. — Ele a colocou no chão, enxugou a mão na camiseta e a estendeu. — Sou Bryant, irmão muito superior de Ally. Que bom que veio. Uma cerveja para começar?

— Seria ótimo.

O rapaz mediu tamanho e compleição com o olhar.

— Joga alguma bola?

— Às vezes.

— Ótimo, precisamos de carne fresca. Ally, pegue uma cerveja para ele enquanto acabo de esmagar esses bobocas.

— Vamos lá? — Solidária, ela esfregou o braço de Jonah. — Não esquente. É difícil conhecer muita gente de uma vez.

Subiram num deque, onde havia outra mesa farta de comida, mais uma enorme cuba metálica cheia de gelo e latas. Ally pegou duas cervejas e seguiu para as portas corrediças.

A cozinha espaçosa dividia-se em áreas familiares, de acordo com os balcões e a mesa de bufe. Num canto, um homem moreno tentava se livrar de uma mulher morena.

— Vou viver, tia Deb! Mãe, ajude aqui!

— Não seja criança. — Com a cabeça enfiada na geladeira, Cilla praguejou. — Vamos ficar sem gelo! Eu sabia. Não disse que íamos ficar sem gelo?

— Fique quieto, Keenan. — Débora acabou de lhe cobrir os arranhões de gato com curativos adesivos — Pronto, não mereço um pagamento?

— Estou cercado de aproveitadores. Por falar nisso aqui está Ally!

— Tia Deb! — Ally correu a abraçar a parenta, depois beliscou a bochecha do irmão. — Oi, meu herói. Este é Jonah Blackhawk. Jonah, minha tia Débora e meu irmão, Keenan. Já conhece minha mãe.

— Claro. É um prazer revê-la, Sra. Fletcher.

Um pequeno exército escolheu aquele momento prá invadir o recinto, aos gritos, perseguido por um cachorrão incrivelmente feio.

Ally viu-se envolvida em alegria pura. E Jonah tambem, antes que conseguisse fugir.

Jonah pretendia se retirar em uma hora. Trato era trato. Concordara em conversar polidamente, manter-se fora do caminho tanto quanto humanamente possível e então sair de fininho, pegar seu carro e voltar à cidade, cujas regras conhecia.

De algum modo, porém, viu-se sem camisa e partindo para uma disputa de basquete com os tios, primos e irmãos de Ally. No calor da competição esqueceu-se das resoluções.

Mas sabia perfeitamente que a própria Ally lhe cortara o caminho e impedira de marcar mais pontos.

Ela era rápida e ardilosa, constatava, ao tomar a bola de um oponente e lhe lançar um olhar mortal. Pudera, não fora criada nas ruas, tendo que decidir entre uma bola para brincar e um hambúrguer para matar a fome, na hora de gastar um dólar.

A. lembrança o tornou mais rápido. E mais ardiloso.

— Gosto dele. — Ignorando o grito de vingança do filho, Natália enganchou o braço no de Althea.

— É teimoso, mas Boyd sempre gostou dele. Oh, mais ele joga sujo!

— E há outra maneira? Ha-ha, Ryan estará mancando amanhã. Que aprenda a lição. Enfrentar um camarada com metade da idade dele. Belo traseiro...

— O de Ry? Sempre achei.

— Tire os olhos de cima do meu marido, capitão. Eu me referia ao namorado de Ally.

—        Ah, e Ryan sabe que você cobiça homens mais novos?

 

- Claro, não estou morta.

- Bem, tenho que concordar. O namorado de Ally tem um belo traseiro. Ai, essa doeu!

— É, ele tem chance... — Natália riu da expressão espantada de Althea. — No basquete. Que mente poluída a sua! — Envolveu os ombros da amiga com o braço. — Vamos tomar vinho e arrancar todas as informações possíveis de Cilla.

—— Leu meus pensamentos.

— Não sei de nada — assegurou Cilla, despejando mais gelo na cuba. — Deixem-me em paz.

— E o primeiro namorado que Ally traz para uma reunião de família — observou Natália.

Empertigada, Cilla fingiu fechar o zíper dos lábios,

— Desistam — aconselhou Débora. — Estou tentando há meia hora e não consegui arrancar nada.

— Também, com essa fala mansa de advogada. — Althea agarrou Cilla pelas lapelas. — Tiras sabem como extrair a verdade. Desembuche, O'Roarke!

— Truculência não vai adiantar. Além disso, não sei de nada mesmo. — Pela janela, Cilla avistou Ally puxando Jonah pelo deque. — Mas vou descobrir. Sumam daqui dêem-me cinco minutos.

O casal entrou na cozinha.

— Não é nada... — insistia Jonah.

— É sangue. Normas da casa. Se há sangue, tem de ser desinfetado.

— Ah, mais uma vítima! — Cilla esfregou as mãos enquanto as amigas e parentas se dispersavam. — Traga-o aqui.

— Ele bateu o rosto em alguma coisa.

— Em seu punho — esclareceu Jonah, com certa amargura. — Que eu saiba, defender não inclui cruzados de esquerda.

— Aqui pode.

— Vamos ver isto. — Séria, Cilla examinou o lábio cortado dele. — Nada grave. Ally vá ajudar seu pai.

— Mas...

— Vá ajudar seu pai — repetiu a mãe. Vendo a filha se retirar, olhou em torno. — Vejamos, onde coloquei meus instrumentos de tortura?

— Sra. Fletcher...

— Cilla. Fique quieto e bico calado. Gemidos são severamente punidos aqui. — Ela pegou um pano úmido, gelo e anti-séptico. — Ally o acertou mesmo, hein?

— Se acertou.

— Puxou ao pai. Gostaria de lhe agradecer por não revidar.

— Não bato em mulher. — Jonah franziu o cenho ao ter o ferimento limpo.

— Bom saber. Ela é difícil. Acha que vai aguentar?

— C-como?

 — É só sexo ou vai levar o pacote todo?

Jonah não sabia o que o chocava mais, se a pergunta descarada ou a ardência do anti-séptico. Praguejou e então cerrou os dentes.

— Desculpe-me...

— Essa é sua resposta?

— Sra. Fletcher...

— Cilla. — Aproximando o rosto, ela o fitou bem nos olhos. Belos olhos, firmes, límpidos. — Ficou sem graça. Eu devia ter imaginado. Já estou quase acabando. Segure o gelo em cima um minuto.

Sentando-se no banco de frente para ele, Cilla cruzou os braços sobre a mesa. Pelos seus cálculos, tinha dois minutos antes que alguém invadisse o recinto.

— Boyd achou que você não viria. Eu tinha certeza de que viria. Allison é incansável quando põe uma coisa na cabeça.

— Eu que o diga.

—        Não sei o que pensa, Jonah, mas sei um pouco a seu respeito e sei o que vejo. Gostaria de lhe dizer algo

—        Na verdade, eu não pretendia me demorar...

— Calado — impôs-se à mulher, branda. — Há séculos, conheci um policial. Um policial irritante, fascinante e cabeça-dura. Eu não queria me interessar por ele, muito menos me envolver com ele. Minha mãe era policial e morreu numa ação. Nunca superei o trauma. Nunca mesmo.

Cilla respirou fundo antes de prosseguir.

- A última coisa que eu queria na minha vida era gostar de um policial. Sei como pensam, como são, como se arriscam. Céus, eu não queria esse tormento na minha vida! Mas aqui estou eu, séculos depois, casada com um tira e mãe de outra.

Olhou pela janela para o marido e a filha juntos.

— Não é estranho o destino? Não foi fácil, mas não abriria mão de nenhum segundo que vivi. De nenhum.

Dando tapinhas na mão de Jonah sobre a mesa Cilla levantou-se.

— Estou feliz que tenha vindo.

— Por quê?

— Porque assim pude ver você ao lado de minha filha. Pude ver você bem de perto. Só havia me dado essa oportunidade umas duas vezes em... dezessete anos? Bem, Jonah, gosto do que vejo.

Ele ficou sem resposta e Cilla ergueu do balcão uma travessa de pastéis.

— Poderia levar isto para Boyd? Sem reposição de comida a cada duas horas, o clima fica tenso por aqui.

— Claro. — Jonah pegou a travessa e retribuiu sorriso da mulher de quem Ally herdara os olhos. -Vocês duas se parecem muito.

— Ally herdou tudo de mim e as piores características de Boyd. Não é engraçado? — Pondo-se na ponta dos pés, Cilla o beijou no canto do lábio machucado.

— Faz parte do tratamento.

Jonah nunca se sentiu tão constrangido. Jamais alguém o beijara onde doía.

— Eu já estou de saída. Obrigado por tudo.

— De nada. É sempre bem-vindo aqui, Jonah.

Cilla sorriu malévola às costas dele.

— Sua vez agora, Boyd — murmurou a si mesma. -Aproveite.

 

É questão  de  pulso —  afirmava Boyd, virando um hambúrguer na grelha.

— Pensei que tinha dito que era questão de tempo.

De pé, com os polegares enganchados nos bolsos, Ally sustentava o cotovelo de Bryant ao ombro.

— Evidentemente, o tempo é fundamental. A arte do churrasco envolve muitos aspectos sutis.

— Mas quando é que vamos comer? — reclamou Bryant.

— Em dois minutos, se quiser hambúrguer, em dez, se quiser carne. — Através da fumaça, Boyd viu Jonah se aproximando com uma travessa. — Ah, está chegando mais comida!

— Acho que vou querer um hambúrguer e depois carne — declarou Bryant, esperto.

— É o décimo da fila, filho, se não me engano. Pegue a senha. — Boyd virou outro hambúrguer, que chiou deliciosamente, e então franziu o cenho ao ver a esposa no deque lateral.

Dançando no lugar, Cilla ondulou os braços, apontou para Jonah e então para ele, movendo os dedos em círculo. Ah, era a vez dele de encostar o rapaz na parede! Discretamente, sinalizou que entendera.

— Pode deixar a ração fresca aí mesmo, Jonah. — Boyd indicou a mesa ao lado da churrasqueira. — Fez o curativo?

— Vou sobreviver. — Jonah olhou carrancudo para Ally. — Apesar do seu comportamento antiesportivo na defesa, fiz a cesta e ganhamos.

— Pura sorte. Vamos para a revanche depois do almoço.

— Quando perde, ela exige revanche — informou Bryant. — Quando ganha, ela esfrega a vitória na sua cara uma semana.

Ally bateu os cílios.

— E daí?

— Mamãe não me deixava bater nela, porque era menina. — Ele apertou os ombros da irmã com extrema força. — Sempre achei isso a maior injustiça.

— Para compensar, descontava em Keenan.

— É verdade. — Bryant divertiu-se com a lembrança. — Dias felizes. Acho que vou socá-lo daqui a pouco, em nome dos velhos tempos.

— Posso assistir, como antigamente?

— Claro.

Boyd reprovou.

— Por favor, sua mãe e eu cultivamos a ilusão de que criamos três adultos sérios e equilibrados. Não destruam nossos sonhos. Jonah, ainda não conhece minha oficina, conhece? — Reparando no desdém da filha, meramente ergueu o sobrolho. — Bryant, chegou o momento.

— Que momento?

— De lhe passar os pegadores e a espátula sagrados.

— Espere aí, espere aí! — Ally empurrou o irmão para o lado com uma cotovelada. — Por que não eu?

Boyd levou a mão ao coração.

— Quantas vezes ainda terei de ouvir esse questionamento até o fim de meus dias? — Fitou a filha. — Allison, meu tesouro, certas coisas um homem lega ao filho. — Apertou o ombro de Bryant. — Filho, confio-lhe a reputação dos Fletcher. Não me decepcione.

Bryant fingiu enxugar uma lágrima.

— Pai, sinto-me honrado. Juro proteger o nome da família, não importa o que custe.

Boyd estendeu os acessórios de churrasco.

— Pegue. Agora, você é um homem.

Ally pendurou o braço nos ombros de Jonah.

— Que palhaçada.

Bryant esfregou um pegador na espátula.

— Você não passa de uma mulher. Conforme-se.

- Ela vai se vingar disso — advertiu Boyd. Atentou a Jonah. — E então, aproveitando o dia?

— Sem dúvida. — Como sair de fininho, se não paravam de arrastá-lo para um canto qualquer e encostá-lo na parede?

— Agradeço a hospitalidade, mas agora tenho de voltar ao bar.

— É o tipo de negócio que não dá muita folga ao dono, principalmente nos primeiros anos. — Boyd já o conduzia rumo a uma construção de madeira no canto do quintal.

 — Entende de ferramentas elétricas?

— Sei que fazem um barulho infernal.

Rindo, Boyd lhe deu um tapa forte nas costas e abriu a porta de sua oficina.

— E então, o que acha?

A sala do tamanho de uma garagem dispunha de várias bancadas de trabalho, máquinas, estantes, ferramentas, pilhas de madeira. Aparentemente, Boyd tinha vários projetos em andamento, mas Jonah não saberia defini-los.

— Interessante — opinou, educado. — O que faz aqui?

— Ah, faço muito barulho. Pouco mais do que isso. Há uns dez anos, ajudei Keenan a construir uma gaiola de passarinho. Ficou boa. Foi Cilla quem começou a me comprar ferramentas. Brinquedos de homem, segundo ela.

Passou a mão na capa de uma serra.

— Aí, precisava de um lugar para guardá-las. Quando vi, tinha uma oficina completa. Acho que foi tudo planejado, para me tirar do caminho dela.

— Muito esperta.

— Demais. — Em silêncio por um minuto, contemplaram o maquinário. — Bem, vamos acabar logo com isto, para podermos relaxar e comer. -O que há entre você e minha filha?

Jonah não poderia afirmar que fora pego desprevenido, mas mesmo assim sentiu um peso no estômago.

— Bom, estamos namorando.

Compenetrado, Boyd abriu uma geladeira pequena e retirou duas garrafas de cerveja. Abriu-as e ofereceo uma a Jonah.

— E?

Jonah tomou um gole da bebida e fitou o velho ami go nos olhos.

— O que quer que eu diga?

— A verdade. Mesmo sabendo que preferiria dizer que isso não é da minha conta.

— Claro que é da sua conta. Ally é sua filha.

Mais à vontade, Boyd sentou-se numa bancada.

— Trata-se de intenções, Jonah. Pergunto quais são suas intenções com relação a minha filha.

— Não tenho nenhuma intenção. Não devia ter tocado nela. Sei disso.

Intrigado, Boyd inclinou a cabeça para o lado.

— É mesmo? Pode explicar?

Jonah cedeu à tensão e passou a mãos nos cabelos.

— Que diabo você quer de mim, hein?

— Na primeira vez em que me deu essa resposta, nesse tom, tinha treze anos. Seu lábio sangrava também, naquele momento.

Jonah procurou se acalmar.

— Eu me lembro.

— Então, deve se lembrar também do que eu lhe disse na ocasião, mas vou repetir: o que você quer de si mesmo, Jonah?

— Já consegui o que queria. Uma vida decente, respeitável, agradável. Também sei a quem devo essa vida. Tudo o que consegui, tudo o que sou devo a você, Fletch. Abriu-me a porta, ajudou-me mesmo sem motivo.

Boyd ergueu a mão.

— Calma, também não precisa exagerar.

— Você mudou minha vida. Você me deu uma vida. Sei onde estaria, se não fosse você. Eu não tinha o direito de me aproveitar disso.

— Está atribuindo demais a mim, Jonah. Apenas vi um menino de rua com potencial. E briguei para endireitá-lo.

Jonah tinha os olhos marejados de emoção.

— Você me fez.

— Não, Jonah, pare com isso. Você se fez. Claro, eu me orgulho de ter ajudado.

 

Boyd desceu da bancada e perambulou pela oficina. Não pretendera, com aquela conversa franca, atiçar emoções. Tampouco imaginara sentir-se como um pai recebendo um presente valioso de um filho.

— Se acha que me deve algo, pague agora sendo honesto comigo. — Voltou-se. — Envolveu-se com Ally só porque ela é minha filha?

— Apesar disso — corrigiu Jonah. — Parei de pensar nela como sua filha. Caso contrário, não teria me envolvido com ela.

Satisfeito com a resposta, Boyd assentiu. Procurou amenizar o sofrimento do rapaz.

— Defina envolvimento.

— Tenha dó, Fletch! — Jonah tomou vários goles da cerveja gelada.

— Não me refiro a detalhes — observou Boyd, bebendo também. — Esses devem permanecer entre quatro paredes, para não trocarmos socos aqui.

— Certo.

— Quero saber o que sente por ela.

— Gosto dela.

Boyd deglutiu a informação.

— Sei.

Jonah praguejou. Boyd lhe pedira para ser honesto e ficava andando em círculos.

— Estou apaixonado por Ally. Inferno. — Fechando os olhos, imaginou-se atirando a garrafa contra a parede. Não adiantou. — Lamento, mas é só o que posso dizer.

— É suficiente — opinou Boyd.

— Sabe de onde vim. E óbvio que não me considera bom o bastante para ela.

— De fato, não é — concordou Boyd, sem notar mudança nos olhos verdes que conhecia tão bem. — Trata-se de minha filhinha, Jonah, e nenhum homem nunca me parecerá bom o bastante para ela. Justamente por saber de onde você veio, creio que se aproxima bastante do ideal. Por que a surpresa? Jamais revelou problemas com sua auto-estima.

— Acho que vou ficar louco. Fazia muito tempo que não me sentia assim.

— Uma mulher faz isso com a gente. Quando é a mulher certa, você nunca mais se recupera. Mas ela é bonita, não é mesmo?

— Tanto que me ofusca.

—        É também inteligente, forte e decidida.

—        Jonah tocou no lábio ferido.

—        Se é.

—        Se quer um conselho, seja honesto com ela também. Ela não admitiria menos, não por muito tempo.

—        Eu sei.

— Pois tenha isso em mente, filho. — Com um sorriso paternal, Boyd apertou-lhe o ombro. — Só mais uma coisa: se a magoar, vai se ver comigo. E nunca encontrarão seu cadáver.

—        Puxa, sinto-me bem melhor agora!

—        Que bom. Mas, diga-me, prefere o churrasco bem ou mal passado?

Ally os viu saindo da oficina e relaxou. O pai abraçava Jonah aos ombros e ambos sorriam. Não deviam ter feito nada além de degustar uma cerveja e resmungar acerca de ferramentas elétricas.

Se Boyd bisbilhotara quanto ao relacionamento entre Jonah e ela, ao menos não perfurara nenhum buraco indevido.

Gostava de vê-los juntos, testemunhar aquele vínculo de afeto com respeito mútuo. A família era muito importante em sua vida. Teria atendido ao desejo do coração e ficado com Jonah, porém seria uma felicidade incompleta, se os pais e irmãos não aceitassem seu amor.

Teria deixado cair à travessa com salada de batatas se a mãe não fosse rápida.

— Mão furada — ralhou Cilla, pousando o acessório na mesa.

— Mãe.

— Hum? O gelo está acabando de novo?

— Estou apaixonada por Jonah.

— Eu sei, querida. Quem está disponível para ir buscar mais gelo?

Ally segurou a mãe pelo pulso antes que ela fosse à grade do deque gritar por mais gelo.

— Como soube?

— Porque conheço você e vejo seu jeito quando está com ele. — Gentil, Cilla afagou-lhe os cabelos. — Assustada ou feliz?

— Ambos.

— Ótimo. — Com um suspiro, a mãe a beijou no rosto. — É assim mesmo. — Enlaçando-a pela cintura, achegou-se à grade. — Gosto dele.

— Eu também, mãe.

Cilla encostou a testa na da filha.

— Não é maravilhoso reunirmos a família assim?

— É. Jonah e eu brigamos por causa disso hoje.

— Parece que você venceu.

— Vamos brigar de novo quando eu disser que vamos nos casar.

—        Mas você é filha de seu pai. Aposto em você.

—        Pode apostar.

Ally desceu os degraus e atravessou o gramado. Já calculara tudo. Não se importava em ser calculista quando precisava marcar pontos.

Alcançou os homens e foi direto beijar Jonah na boca. Ele gemeu, lembrando-a do lábio machucado, mas  ela só riu.

— Aguente firme, valentão! — E o beijou de novo.

Jonah a pegou pela cintura e apertou contra o corpo.

— Pai? Mamãe disse que precisa de mais gelo.

Boyd esquadrinhou o gramado e localizou o alvo.

—        Keenan! Vá buscar mais gelo para sua mãe! — Ignorado, partiu para o corpo-a-corpo. — Keenan!

Ally cruzou as mãos à nuca de Jonah.

—        Agora, vai me contar o que conversaram.

—        Assunto de homens. — Ele roçou os lábios nos dela. — Ideia sua, foi?

—        Não sei do que está falando.

—        Estou em desvantagem, aqui, Allison. Quer que eu seja massacrado por sua família?

—        Não seja bobo. Minha família é beijoqueira.

—        Já reparei.  Mesmo assim... — Ele se desvencilhou,  cauteloso.

—        Está se comportando muito bem — assegurou eIa. — Uma gracinha mesmo. Está se divertindo?

—        À parte pequenos acidentes... — Jonah indicou o canto do lábio rasgado. — Sua família é muito hospitaleira.

— Não é? Cada reunião destas fortalece nossa união, nos deixa mais à vontade uns com os outros. Meus primos e eu nos vemos desde crianças, aqui ou no incrível castelo gótico de tio Gage, ou subindo as montanhas, ou...

— O quê?

— Só um minuto. — Fechando os olhos, Ally se concentrou. — Estou regredindo no tempo, voltando aos lugares em que fui feliz com as pessoas que mais amo. É por isso que as pessoas sempre voltam à cidade natal, ou visitam os pais depois que crescem... — Abriu os olhos ante um novo pensamento. — Onde ele cresceu?

Espetou um dedo no peito de Jonah.

— Onde ele e a irmã cresceram? Em que casa moraram? Ele era feliz? Deve ter um lugar de refúgio, no qual se esconde, planeja. Já sei onde ele está.

Dando meia-volta, Ally correu para a casa.

Jonah foi atrás e encontrou-a digitando um número no telefone.

— O que está fazendo?

— Ligando para a chefatura. Burra, burra, como não pensei nisso antes? Carmichael? É Fletcher. Preciso que descubra um endereço, o endereço antigo de Matthew Lyle, pode haver vários. Verifique inclusive onde morou na infância. Se não me engano...

Ally fez um esforço para recordar o dossiê do assassino.

— Ele nasceu no lowa e a família se mudava muito. Não sei quando chegaram a Denver. Os pais já morreram. Sim, pode ligar para cá ou para meu celular. Obrigada.

— Acha que ele voltou para casa?

— Ele precisa resgatar a memória da irmã para se sentir seguro, poderoso. — Andando em círculos na cozinha, Ally pinçava detalhes da vida do homem. — O perfil indica que ele dependia dela, embora se visse como protetor. Ela era a única consistência, a única constância na vida dele. Pais divorciados, filhos para lá e para cá. A mãe se casou de novo, mais turbulência.

O padrasto era... Raios!

Esfregando a têmpora, forçava a memória.

— Ex-fuzileiro naval. Truculento, impaciente com o geniozinho gorducho e sua irmã dedicada. Em parte, a repulsa à autoridade decorre dessa vida familiar instável: pai fraco, mãe passiva, padrasto severo. Essa base se solidificou.

— Lyle era brilhante, de alto QI, porém emocional e socialmente inepto. Menos com a irmã. Bateu derepente com a lei pela primeira vez logo depois que ela se casou. Tornou-se desatento, descuidado. Era o início da fúria.

Aflita, olhava o relógio toda hora, rezando para Carmichael telefonar logo.

— Como ela permaneceu a seu lado, aparentemente a mágoa entre os dois se curou. 

Correu a atender quando o telefone tocou.

— Fletcher. O que conseguiu? — Pegou um lápis e tomeçou a rascunhar dados no bloco ao lado do aparelho. — Não, fora do Estado, não. Ele deve estar próximo. Um minuto. — Tapando o fone, pediu a Jonah: — Pode me fazer um favor? Diga a meu pai que preciso falar com ele.

Enquanto aguardava, Ally entrou no escritório do pai e ligou seu microcomputador. Com Carmichael ao telefone, reviraram arquivos destrinchando a história de Matthew Lyle.

— Veja, há dez anos, ele dava uma caixa postal como endereço de correspondência. Continuou usando-a por seis anos, embora já tivesse a casa no lago. Comprou a casa há nove anos, na mesma época em que a irmã se casou com Fricks. Mas continuava com a caixa postal.

— No mesmo período, a irmã fornecia a mesma caixa postal como endereço de correspondência dela.

— Mas onde moravam? Vou ver os antecedentes de Fricks. — Ally mordiscou o lábio. — Carmichael, veja o que descobre nas áreas cortadas pelo metrô de Denver em nome de Madeline Lyle, ou Madeline Matthew. Verifique também Matthew Madeline e Lyle Madeline.

— Boa tacada — aprovou Boyd. — Ótima idéia.

— Ele gosta de possuir coisas — lembrou Ally. -Ter é muito importante para ele. Se permaneceu no mesmo lugar por seis anos, mais ou menos, devia ser o dono da moradia, ou a irmã.

Endireitou-se na cadeira.

— Achou?! Carmichael, eu te amo! Sim, sim, anotei. Informo. Muito obrigado. Ao desligar, já se levantava.

— Existe uma casa em nome de Lyle Madeline num condomínio no centro da cidade.

— Bom trabalho, investigadora. Contate seu tenente e organize o grupo. E Ally? — Boyd esperou que ela o encarasse. — Estou nessa.

— Delegado, tenho certeza de que posso arranjar um lugar para o senhor.

No tempo recorde de duas horas, elaboraram o plano e iniciaram sua execução. A residência foi cercada e todas as saídas, bloqueadas. Protegidos por roupas especiais, doze policiais avançavam pelo corredor lateral externo da casa de dois andares em que se escondia Matthew Lyle.

Com a planta da construção já gravada na memória, Ally deu o sinal e dois homens arrombaram a porta da frente.

Foi a primeira a entrar, de arma em punho.

Uma fila de policiais se dividiu, subindo a escada e espalhando-se pelo térreo. Em menos de dez minutos, constatou-se que a casa estava vazia.

— Mas ele esteve aqui. — Ally indicou a louça suja na pia e enfiou o dedo na terra de um vaso com limoeiro ornamental à janela da cozinha. — Molhada. Ele está cuidando da casa. Vai voltar.

Num quarto no andar superior, encontraram três armas de fogo pequenas, um fuzil e uma caixa de munição.

— Estejam preparados — avisou Ally ao grupo. —Encontramos carregadores para pistolas nove milímetros, mas nenhuma pistola desse tipo. Isso significa que ele está armado.

— Investigadora Fletcher? — O policial saiu do closet  com uma faca comprida nas mãos enluvadas. — Parece a arma do crime.

— Coloque num saco plástico. — Ally pegou uma agenda de sobre a cômoda. — É de Blackhawk. — olhou para o pai. — Ele é o próximo alvo de Lyle. Só não sabemos quando vai atacar.

Já era noite quando Ally encontrou Jonah, no escritório dele. Além de teimoso feito mula, o homem tinha que discutir.

— Você tem que fechar o bar por vinte e quatro horas. Quarenta e oito no máximo.

— Não.

— Posso fechar, sabia?

— Não, não pode. Levaria mais de quarenta e oito horas para conseguir isso, o que não adiantaria nada.

Ally jogou-se numa poltrona. Tinha que manter a calma. Era vital se controlar. Expirou lentamente e então emitiu uma sequência de impropérios.

— Tantos elogios para mim?

— Jonah, escute...

— Não, escute você. Que adiantaria eu fechar o bar e impedir Lyle de atacar? Ficaríamos nesse impasse a vida toda. Não, tudo vai continuar normal por aqui e, se ele aparecer, vamos pegá-lo.

Ally suspirou.

— Vamos pegá-lo em dois dias, eu prometo. Mas com o bar fechado e você, descansado em algum lugar bem longe daqui. Meus pais têm um chalé nas montanhas, sabia?

— Você vai comigo?

— Claro que não. Estou quase encerrando este caso!

— Se você não vai, também não vou.

— Você é civil.

— Exatamente. A menos que imponham estado de sítio, tenho o direito de dirigir meu negócio e ir e vir como me aprouver.

Ally queria arrancar os cabelos.

— É minha função manter você vivo para que dirija seu negócio.

Jonah levantou-se.

- Considera-se meu escudo, Ally? Por isso mantém sua arma ao alcance da mão mesmo quando nos trancamos entre quatro paredes? — Contornou a escrivaninha e se aproximou olhando-a de cima. — Saiba que não gosto nada disso!

Ela se pôs na ponta dos pés, para ficarem no mesmo nível.

— Você é um alvo.

— Você também,

— Estamos perdendo tempo.

Ally seguiu para o elevador, mas ele a puxou pelo braço.

— Não vou me esconder atrás de você. Tenha certeza disso.

— Não queira me ensinar meu trabalho.

— Não queira dirigir a minha vida.

Ela se desvencilhou, o olhar faiscante.

— Vai ter de aguentar as consequências, então. Guardas na porta do bar vinte e quatro horas. Tiras à paisana espalhados por todo o estabelecimento e agentes disfarçados na cozinha e no serviço.

— Não.

— É pegar ou largar. Acho melhor pegar, pois posso mexer meus pauzinhos e colocá-lo sob custódia preventiva, a pretexto tão bom que nem você, que é freguês, vai conseguir sair. Sabe que posso conseguir, Blackhawk.Meu pai me ajudaria, porque gosta de você. Por favor. — Agarrou-o pelas lapelas. — Por mim.

— Quarenta e oito horas — determinou Jonah. — E, nesse ínterim, espalho a notícia de que estou atrás dele.

— Não!

— É pegar ou largar.

Ally suspirou, esgotada.

— Fechado.

— Agora, quanto quer apostar que descubro num minuto todos os tiras que plantou lá embaixo?

 Ela sorriu.

— Será que consigo convencer você a ficar aqui em cima esta noite?

Jonah deixou o dedo escorregar até o centro do corpo dela.

— Só se ficar comigo.

— Foi o que pensei. — Às vezes, o compromisso era a única saída, por mais que incomodasse. — Aguente até pegarmos Lyle.

Jonah chamou o elevador.

— Acho que aguento. Vai ser esta noite ou amanhã à noite, não é?

— É. Provavelmente, vamos pegá-lo na casa dele. Mas, se ele pressentir o perigo e furar o cerco, será aqui. E logo.

— Will está sempre atento e não deixa passar nada.

— Não quero que você ou seus funcionários se arrisquem. Se virem Lyle, avisem-me. — Ally captou o olhar dele. — O que foi?

— Nada. — Jonah a acariciou no rosto. — Quando isto estiver acabado, pode tirar uma folga?

— Alguns dias.

— Podíamos viajar...

— Para onde?

— Você escolhe.

Ally entrou no elevador.

— Já estou pensando.

— Ally?

— Hum?

Havia tanto a dizer. Demais a sentir. Mas não era hora nem lugar.

— Depois. Depois eu falo.

 

Tradicionalmente, o movimento no Blackhawk's era tranquilo nas noites de domingo. Sem música ao vivo para atrair, o primeiro dia da semana de trabalho costumava ser desanimado.

Aproveitando o clima agradável, muitos moradores de Denver saíam para passear a noite e passavam uma hora ou mais saboreando drinques e aperitivos.

De olho na entrada, após verificar as saídas, Ally observava rostos e contava cabeças. A intervalos recuares, escapava para a área do salão e se informava sobre a situação do cerco à casa de Lyle.

O estabelecimento se esvaziava conforme avançavam as horas e sobraria um punhado de clientes na ora do fechamento.

Onde estaria Lyle?

— Investigadora. — Jonah a tocou no ombro. — Achei que gostaria de saber que um homem cuja descrição corresponde à de Lyle anda perguntando a meu espeito, segundo uma de minhas fontes.

Sobressaltada, ela o puxou para um canto escuro.

— Quando? Onde?

—        Agora há pouco, em meu outro estabelecimento.

—        No Fast Break? — Ally agarrou o telefone. —Não colocamos ninguém lá. Nunca pinçaram alvo lá Não é do estilo dele.

— O barman informou que o indivíduo que podia ser Lyle, embora usasse óculos e barba, sentou-se nuama banqueta e começou a especular se eu costumava aparecer por lá.

— Espere um pouco — pediu Ally, ao ser atendida — Balow? Destaque dois do cerco e mande-os ao Fas Break. — Informou o endereço. — Alguém que pode ser Lyle esteve lá hoje. De óculos e barba. — Desligou

Jonah retomou o relato

— Bem, meu funcionário não desconfiou de nada princípio, mas então reparou que o homem parecia nervoso e, depois de meia hora, despediu-se pedindo para me avisar que nos veríamos.

— O centro dele está desmoronando. Fora de si, o impulso para agir deve estar muito forte. — Ally pensou numa maneira de tirar Jonah do caminho. — Escute, por que não sobe e avisa seu barman de que dois policiais estão a caminho de lá?

— Por acaso me acha com cara de bobo?

Longe de acatar a sugestão, ele foi abordar um mesa de clientes que se preparavam para ir embora.

De repente, gritos na cozinha, seguidos de um barulhão de pratos se quebrando. De arma em punho Ally correu para a porta do anexo, que se abria.

Lyle estava mesmo de óculos e a barba por fazer se assemelhava a uma camada de sujeira em seu queixo. Ally acertara. Ele já estava fora de si, de olhos arregalados e selvagens.

Segurava a pistola nove milímetros com o cano encostado no pescoço de Beth.

— Ninguém se mexe, ninguém se mexe! — gritava ele em meio aos gritos e atropelos dos clientes apavorados.

— Calma — pedia Ally. — Fiquem todos calmos. Mantinha a arma apontada para o criminoso, tentando não se impressionar com a expressão aterrorizada da refém. — Lyle, solte-a.

— Eu a mato! Estouro os miolos dela!

— Se fizer isso, estará morto. Pense, raciocine. Aonde isso o levará?

— Baixe a arma! Deixe-a cair, chute-a para cá, ou ela morre!

— Não vou fazer isso. Nem os outros policiais que estão aqui. Sabe quantas armas você tem apontadas para sua testa neste instante? Acabou, Lyle. Entregue-se.

— Eu a mato! — Trémulo e colérico, ele olhava ao redor, tentando contar as armas. — Depois, mato você! , ficarei satisfeito!

Alguém soluçava. De soslaio, Ally viu na área do bar dos civis sendo retirados do estabelecimento.

—        Isso significa que não quer viver? — questionou ao psicopata. — Madeline ia querer que você vivesse.

—        Não diga o nome dela! Não se atreva a pronunciar  o nome de minha irmã! — Apertou a pistola com força no pescoço de Beth, extraindo-lhe um grito.

Sem saída, relembrou Ally. Madeline também se vira sem saída e, mesmo assim, voltara-se e atirara.

—        Ela amava você. — Aproximando-se devagar, obrigava Lyle a se concentrar nela. Se conseguisse fazê-lo desviar a arma apenas alguns milímetros do pescoço de Beth... — Ela morreu por você.

—        Ela era tudo o que eu tinha! Não tenho nada a perder agora. Quero o tira que a matou, e também Blackhawk. Agora! Já, ou ela morre!

Com o rabo do olho, Ally viu Jonah avançar.

— Olhe para mim! — gritou ao psicopata. — Fui eu quem matou sua irmã.

Lyle emitiu algo semelhante a um uivo de dorlancinante e afastou a pistola do pescoço de Beth, apontando-a para Ally. Ouviu-se um disparo entre movimentos indistintos e lamentos de terror.

Apavorada, Ally correu ao ponto em que Jonah e Lyle se engalfinhavam.  Ambos apresentavam mancha de sangue.

— Jonah, seu idiota! Ficou louco? — Em desespero começou a apalpá-lo, tentando localizar ferimentos. Ele se atirara na frente da arma. Na frente da arma.

Ainda respirava. Era uma esperança. Ele ainda respirava e ela faria com que continuasse respirando.

— Jonah... Oh, Jonah...

— Estou bem. Pare de me cutucar.

— Bem?! Você pulou na frente da arma no instante em que ele a disparou. Podia ter morrido!

— Você também. — Ele olhou para o ponto no chão estrelado atingido pela bala, a menos de três centímetros de onde Ally estivera.

— Estou de colete.

— E ele protege sua cabeça dura também? Ainda sentados no chão, observaram um policial virar o corpo de Lyle para cima.

— Está morto.

Jonah fitou o rosto do psicopata pela última vez e então fitou Ally.

— Vou acalmar meus clientes. Levantaram-se.

 

— Não vai acalmar ninguém assim, todo sujo de sangue. É todo dele?

—        A maior parte.

—        Como... a maior parte?

— Vou acalmar meus clientes e funcionários. — Jonah a manteve a um braço de distância antes que o agarrasse de novo. — Faça seu trabalho e me deixe fazer o meu.

Com cuidado, tirou Beth dos braços da policial que a amparava.

— Vamos, querida, reaja. Está tudo bem agora.

Ally massageou a têmpora e contemplou o que restara de Matthew Lyle.

— Sim, está tudo bem agora.

— Entrou pelos fundos — relatou Hickman a Ally,  no bar quase vazio. Os clientes já tinham ido embora, o cadáver já fora removido e a equipe de peritos já recolhia seu material.

Ela imaginou que horas seriam e quando poderia enterrar o rosto no travesseiro e desligar o mundo.

— Acabou-se. Ele não pensa mais — comentou, filosófïca, mais para si mesma.

— Não mesmo. Vestindo um daqueles uniformes brancos e de bandeja na mão, conseguiu enganar o policial de guarda na cozinha, até que o inferno estourou.

- Ele não esperava ver tantos tiras aqui — opinou Ally. — Levou um choque.  Acho que ele planejou entrar  de mansinho e tomar a mim ou Jonah como refém, exigindo a entrega do policial que matou sua irmã. Acreditava que conseguiria se vingar e ainda escapar ileso.

 

— Que arrogante. Por falar nisso, onde estava com a cabeça quando se apresentou como a pessoa que  ele procurava?

— Ora, não entendo por que ele não veio logo  atrás de mim primeiro.

Hickman olhou-a de alto a baixo.

— Você está diferente... Não parece a Fletcher.

— Pode me deixar em paz, Hickman? Quer saber, Lyle veio aqui atrás de Jonah. Quando me apresentei como a assassina da irmã, ele viu uma tira, só mais uma tira... Sem rosto, sem forma. Não conseguiu me relacionar à moça que trabalhou aqui.

— Talvez. — Hickman levantou-se. — Acho que nunca saberemos.

Examinou o chão de estrelas trincado.

— Que estrago... Aposto como vai custar uma fortuna consertar.

— Talvez Jonah deixe assim mesmo. É  uma atração.

— Isso é. — Hickman continuava analisando a ação — Sabe, podíamos ter acertado em Lyle, mas ele teria disparado, de qualquer forma. Daquela distância o colete teria segurado a bala, porém, se Jonah não tivesse desviado o tiro, você podia ter se machucado bastante.

Distraidamente, Ally levou a mão à região entre seios e imaginou a dor.

— Já levou um tiro com colete?

— Não, mas Deloy me contou como é. O impacto o arremessou para trás como uma boneca de pano e deixou um hematoma do tamanho de uma bola de beisebol. Bateu a cabeça na calçada e teve concussão. Isso é que doeu mais.

— Mesmo assim, é preferível a levar o tiro.

— Se é. Bom, vou para casa. Até amanhã.

— Até. Está de parabéns.

— Você também. Ah, seu namorado está na cozinha, Recebendo curativo.

Ally empalideceu.

— Curativo?

—        Parece que a bala passou raspando nele.

—        Raspando? Por que ninguém me disse nada?

Hickman não se incomodou em responder. Ally já voava pelo salão rumo à cozinha.

Escancarando a porta, ela invadiu o recinto com os olhos flamejantes e avistou Jonah junto a uma das mesas, sem camisa, calmamente tomando conhaque, Enquanto Will lhe enfaixava o braço.

—        Espere, espere, deixe-me ver isso! — Empurrou Will, desenrolou a gaze e cutucou o ferimento comprido e raso até ter o rosto afastado por mãos aflitas.

—        Ally, pare com isso! — protestou Jonah.

—        Vamos já para o hospital.

Encarando-a convencido, ele bebericou o conhaque.

— Não.

—        Que insensatez é essa agora? Você levou um tiro!

—        De raspão. Agora, se não se importa, Will tem dedos mais leves do que você. Deixe-o terminar o serviço para poder ir embora.

—        Mas pode infeccionar!

—        Também posso ser atropelado por um caminhão, mas nenhuma das duas coisas vai acontecer,

Apaziguador, Will se colocou entre os dois.

— Não se preocupe, Ally. — Pegou a ponta da gaze e começou a enrolar. — Limpei bem o ferimento. Já passamos por piores nos velhos tempos, não é mesmo, Jonah?

—        Com certeza. Já tenho mais cicatrizes do que você e vou ganhar, mais uma.

Ally pegou o conhaque.

— Como são engraçadinhos.

— Pensei que detestasse conhaque.

— Odeio.

— Por que não pega uma taça de vinho? — sugeriu Will. — Já estou terminando aqui.

Ally expirou longamente, tentando se acalmar.

— Não, estou bem. — Sentiu as mãos começarem a tremer. — Blackhawk, acho que foi a minha bala que passou raspando em você!

— Também acho. Mas, considerando as circunstâncias, não a culpo.

— Quanta consideração. Só que...

— Frannie levou Beth para casa — comentou para distraí-la. — Já estava melhor. Ainda assustada, mas melhor. Ela queria lhe agradecer, mas eu disse que você estava ocupada e que podia deixar para depois.

Will levantou-se.

— Prontinho. Seu braço está melhor do que a camisa. Essa eu acho que já era. — Ergueu a peça toda manchada de sangue. — Quer que eu pegue outra lá em cima antes de sair?

— Não, obrigado. — Jonah ergueu o braço e o examinou. — Bom trabalho. Não perdeu a mão.

—        A gente faz o que é preciso. — Will pegou a jaqueta. — Gostei de ver, Ally. Podia ter acontecido uma desgraça aqui hoje, mas você deu conta dorecado.

—        A gente faz o que é preciso.

—        Eu tranco tudo. Boa noite.

Ally permaneceu quieta à mesa até todos os sons cessarem. Então, voltou à carga com Jonah:

Muito bem, espertinho, que história foi aquela? Você interferiu em uma operação policial!

— Ah, na hora, achei que aquele lunático ia matar você e... Ai. — Ele ergueu o cálice de conhaque. — Pode trazer mais uma dose? Você tomou tudo.

- Claro. Pode se embebedar, que eu não me importo. - Ally chegou a se levantar e pegar o cálice, mas mudou de idéia e o abraçou pelas costas. — Nunca mais me assuste desse jeito de novo, ouviu bem?

— Não assusto se não me assustar. — Jonah voltou o rosto para os cabelos dela e respirou fundo. — Vou ver  você avançando ao encontro daquela arma por um longo tempo. Isso é o mais difícil.

— Eu sei.

— Mas me conformo, Ally, porque é assim mesmo.

Voltando-se, ele a fitou nos olhos. — Certas coisas, a gente tem de analisar e ver se aguenta. Se quer agüentar.

— Por exemplo?

Jonah se levantou, despejou mais conhaque no cálice e Pôs a garrafa na mesa.

— Restou algum policial no bar?

— Além de mim?

- É..

— Não. Estamos sozinhos.

—        Então, sente-se.

Ally puxou a cadeira.

— Parece sério.

— Minha mãe sumiu quando eu tinha dezesseis anos. - Jonah não sabia por que começara a narrar daquele ponto. Simplesmente, ocorreu-lhe. — Não a culpei na época e ainda não culpo. Meu pai era difícil e ela se cansou.

— Deixando você com ele?

— Eu já era auto-suficiente.

— Aos dezesseis anos?

— Ally, meus dezesseis anos nem se comparam a seus. E eu já tinha seu pai nessa época.

Ela se enterneceu.

— Que coisa linda você disse.

— É só um fato. Ele me fez ir para a escola. Estava sempre por perto quando eu precisava, ou seja, a maior parte do tempo. Foi a primeira pessoa que me disse que eu valia a pena. A enxergar o que eu poderia me tornar. Boyd é... Não conheço ninguém que se compare a ele.

Ally pegou-lhe a mão sobre a mesa.

— Também o amo demais.

— Só me deixe terminar. — Ele lhe apertou a mão e a soltou. — Não quis ir para a universidade, nem  Fletch conseguiu me obrigar. Fiz uns cursos na área de administração, que achei suficientes. Quando tinha vinte anos, meu pai morreu. Ele fumava três maços de cigarros ao dia e foi se acabando em lenta agonia. No fim, senti só alívio.

— Por que está me contando isso agora?

— Nota o contraste tanto quanto eu.

— Sim, você teve uma criação difícil, enquanto eu era uma princesa de conto de fadas. Mas, por capricho do destino, ambos tivemos sorte e ganhamos Boyd Fletcher como pai. Não faça essa cara. Ele é seu pai.

— Gostaria de deixar algo claro, antes de proseguirmos. Eu não era uma vítima, Allison. Era um sobrevivente e fazia o que era preciso. Roubei, trapaceei, enganei e não me arrependo. Podia ter acabado de um jeito bem pior se seu pai não tivesse aparecido, mas apareceu e deu tudo certo.

— Concordo.

— Não me interrompa. Sou empresário. Se não roubo nem trapaceio hoje em dia, é porque não preciso. Isso não quer dizer que não lance mão de meus truques quando jogo.

— Pensa que me engana, Blackhawk? Por trás dessa fachada durona e gelada, tem um coração enorme e muito mole. Mole, ouviu bem?

Divertindo-se com a reação chocada dele, Ally levantou-se, saltitou até a geladeira e pegou uma garrafa de vinho branco. O cansaço sumira. Sentia-se elétrica.

— Acha que não levantei sua ficha, companheiro? Que não procurei seus amigos, ouvi todas as histórias? Você é quase uma galinha de tão meloso e derretido.

Implacável, Ally abriu um armário e encontrou os cálices.

— Frannie, você tirou das ruas, curou do vício, deu-lhe emprego. Will, você endireitou, liquidou suas dívidas antes que ele fosse mutilado, deu-lhe um terno e alguma dignidade.

Jonah bufava, raivoso.

— E daí?

— Ainda não terminei. — Sacando a rolha, ela despejou a bebida. — O suposto homem de gelo encontrou Beth num abrigo para mulheres espancadas, comprou presentes de Natal para seus filhos, porque ela estava sem dinheiro e energia, e a apoiou até estar em condições de trabalhar, num emprego arranjado por ele. Imagine só: Jonah Blackhawk comprando bonecas e carrinhos!

 

— Não fui que comprei! — rosnou Jonah, furioso — Foi Frannie. E isso não vem ao caso.

— Claro que não, mas há a história de Maury, hoje um de seus chefs de cozinha. — Ally sentou-se e apoiou os pés na mesa. — Você emprestou a ele uma bolada e digo emprestou por delicadeza, para ajudar a mãe dele a superar uma fase difícil, não é mesmo?

— Basta.

Ela apenas sorriu, mergulhou o dedo no vinho lambeu.

— Sherry, a moça que carrega bandejas, trabalhava para pagar a faculdade, mas no último semestre enfrentou dificuldades e você quitou para ela, não foi? Ah, e Pete também se viu em apuros no ano passado quando um bêbado avançou o sinal e acabou com o carro dele, mas o patrão de coração derretido ajudou!

— Investir em pessoas é um bom negócio.

— Quem sou eu para discutir?

Jonah não sabia se sentia mais irritado ou constrangido

— Está passando dos limites, Allison.

— Mesmo? — Ela se inclinou para a frente  e ofereceu o queixo. — Faça-me calar a boca, homem de gelo, acerte bem aqui. Atreva-se.

— Cuidado. — Jonah se levantou. — Não sei aonde quer chegar com essa ladainha.

Ally cruzou os tornozelos e riu,

— Está pedindo... — rosnou ele.

— Ai, que medo!

Jonah perdeu a cabeça e a fez se levantar.

— Mais uma palavra, estou avisando, e vai se repender de ter nascido!

Ela o mordiscou no lábio ainda sensível.

— Coração de manteiga.

 

Ele a empurrou para o lado e seguiu para a porta.

— Aonde vai?

— Vestir uma camisa. Não dá para conversar com você.

Ally o alcançou no meio do salão.

— Vou rasgá-la todinha. Sabe, tenho um fraco por brutamontes feridos feitos de gelatina por dentro. — Risonha, Ally atirou-se nos braços dele. — Sou louca por você, Blackhawk.

— Fora daqui! Vá prender bandidos! Para mim, chega de tiras por hoje!

— Nunca se fartará de mim. — Ela o lambeu no lóbulo, no ombro. — Venha me dar uma lição, venha...

Ele teria conseguido. Disse a si mesmo teria conseguido. Mas, por azar, seu olhar caiu naquele ponto do chão que a bala estilhaçara e desmoronou. Ally podia ter morrido!

Abraçou-a, com tanta força que sentiu suas costelas estalarem. Apoderou-se daquela boca tentadora, da língua ferina, com um ardor nascido do desespero.

— Assim está melhor, Jonah, muito melhor... Tem de ser aqui. Agora. Precisamos nos unir outra vez. Quero que me ame... Como se nossas vidas dependessem disso.

Num segundo, deitavam-se no chão. Jonah só pensava em provar a si mesmo que Ally estava inteira, sã e salva sob seu corpo.

A superfície fria e lisa do piso podia ser um colchão de penas, um monte de nuvens, a camada de neve na encosta de uma montanha. Nada importava senão Ally agarrada a ele, a respiração quente e ofegante contra sua pele, o coração pulando febril contra o seu.

Ally sentiu que purgava toda a tensão e pavor sob as carícias de Jonah. Ávida e ansiosa, esforçava-se para livrar todas as barreiras entre ambos. Precisar libertar para a louca corrida ao êxtase.

Quando ele a penetrou, tomado de raiva, paixão e  desespero, foi como alcançar o lar.

Arquejante, esgotado, Jonah continuava investindo contra ela.

— Só mais um minuto... — Ally enterrou o rosto no ombro dele. — Abrace-me forte... — Então, sentiu uma umidade quente e viscosa nos dedos e se desvencilhou. — Você está sangrando! Venha, vou refazer o curativo.

— Não precisa, estou bem.

— É só um minuto.

— Ally, deixe para depois.

Ela estreitou o olhar.

— Nem pense em se distanciar agora. Desta vez não vou deixar você fugir.

— Vista-se. — Jonah puxou os cabelos para trás e começou a cumprir a própria ordem.

Ally também recolheu suas roupas.

— Você quer assim, será assim. Seu estúpido!

 Ao notar o tremor na voz dela, ele praguejou. Amaldiçoou a si mesmo.

— Não chore. É golpe baixo.

— Não estou chorando. Acha que eu choraria por você?

Jonah sentiu o coração se desintegrando ao enxugar uma lágrima no rosto dela com o polegar.

— Pare.

Com uma fungadela, Ally passou as mãos nas bochechas para secá-las e rosnou.

— Odeio você!

 

Calcinada pela fúria nos olhos dele, ela se encheu de prazer. Levantou-se e ele a imitou.

— Está apaixonado por mim. — Ally o golpeou no peito. — Mas não admite. Porque é burro e cabeça-dura!

— Será que não ouviu uma palavra do que eu disse?

— Assim como você não ouviu uma palavra do que eu disse! Estamos empatados.

Jonah lhe segurou o rosto entre as mãos.

— Escute, você tem ligações...

Ally ficou vermelha de raiva.

— Como se atreve a citar a influência de minha família num momento destes?

Ele a sacudiu para que se calasse.

— Não estou falando de influência! Não quero saber de seu álbum de filhinha de papai. Minha história é mais interessante. Falo de ligações emocionais, fundações, raízes, sei lá!

— Você também tem: Frannie, Will, Beth, meu pai... — Cansada de repente, Ally sentou-se. — Mas entendi. Está dizendo, em resumo, que uma moça criada como uma princesa feita eu deve se casar com um homem de família... Estável e proeminente, digamos. Da alta classe média. Um profissional de nível superior com trabalho fixo, como um médico ou um advogado. Tudo bem até aqui?

— Mais ou menos.

Ela aquiesceu, resignada.

— Entendo. Sabe quem se encaixa nesse perfil? Dennis Overton, lembra-se dele? Funcionário do gabinete da promotoria pública que andava me seguindo, que cortou os pneus do meu carro, um total desequilibrado!

 

Ally deu meia-volta e o encurralou no canto, satisfeita em vê-lo fumegar.

— Pare de arranjar desculpas, Blackhawk. Seja homem e diga o que sente por mim e o que quer para nós.

Lançou os cabelos para trás e enfiou a camisa na calça.

— Missão cumprida por aqui. A gente se vê, companheiro.

Jonah alcançou a porta antes dela. Era bom nisso. Desta vez, porém, segurou-a bem fechada, para fúria da amante.

— Não se atreva a me dar às costas antes de acabar de falar.

— Acontece que eu já acabei.

— Cale-se e ouça.

— Se me mandar calar a boca mais uma vez...

Jonah a calou com um beijo duro e impetuoso.

— Nunca amei outra mulher. Nunca cheguei perto disso. Portanto, segure-se e ouça.

Ally sentiu o coração se acelerar, mas permaneceu fria e recuou um passo.

— Está bem. Despeje.

— Você me acertou entre os olhos no instante que adentrou meu escritório. Ainda estou atordoado.

 Ela se sentou numa banqueta.

— Bom começo. Prossiga.

— Está vendo esse seu jeito? — acusou Jonah, apontando o indicador. — Dá vontade de bater em você.

— Você bateria, se não gostasse tanto.

Mal contendo a ira, ele apoiou as duas ma balcão, prendendo-a entre os braços.

—        Eu te amo. E isso.

— Só? Mas o que propõe?

— Que você desalugue seu apartamento e se mude para cá.

— Com direito a sala de ginástica e sauna?

Jonah não conseguiu abafar o riso.

— Pode ser.

— Interessante. Que mais você oferece?

— Ninguém nunca vai amar você mais do que eu. Garanto. Ninguém suportaria você. Mas eu vou suportar.

— Melhorou. Mas ainda não é o bastante.

Jonah estreitou os olhos verdes faiscantes.

— O que você quer?

Ela se recostou no balcão.

— Casamento.

Ele estremeceu de ódio.

— Sério?

 — Você não ouviu? Sendo uma mulher moderna, eu até poderia propor, mas em se tratando de um homem que abre a porta para damas e compra presentes de Natal para crianças carentes...

— Pode pular essa parte.

Ally se inclinou para frente e o beliscou nas bochechas.

— Bem, concluí que você, tão tradicional, gostaria e propor. Sendo assim, fique à vontade. — Cruzou as mãos à nuca dele. — Sou toda ouvidos.

— Olhe, já é muito tarde, estamos num bar e meu braço está sangrando...

— Seu lábio também.

— Pois é. — Ele enxugou o sangue com as costas mão. — Cenário perfeito para nós dois.

— Concordo.

Jonah abriu a presilha e soltou os cabelos dela.

— Primeiro, diga que me ama. E diga meu nome.

—        Eu te amo, Jonah.

—        Então, vamos nos casar e ver no que vai dar.

—        Fechado.

 

Com um  uivo inconformado, Ally pulou do sofá.

— Saiu pela lateral! Saiu pela lateral! Esses caras estão cegos? — Em vez de chutar a televisão, o que lhe ocorreu, contentou-se em esmurrar o braço de Jonah.

— Está nervosa porque seu time está perdendo e vai ter de me pagar à aposta.

— Não sei do que está falando. — Ela puxou a cabeleira para trás. — Meu time não vai perder, a despeito dos árbitros corruptos e míopes. — Pôs as mãos na cintura. — Além disso, não vai ganhar aposta nenhuma, porque não tem licença para promover o jogo neste estabelecimento.

Ele a admirou no longo robe de seda negra.

— Cadê o distintivo?

Ally inclinou-se para beijá-lo.

— Metaforicamente, Blackhawk, estou sempre de distintivo. — Estreitou o olhar, desconfiada. — Jura que não sabe quem ganhou esse jogo?

— Juro.

Mas ela não gostou do sorriso felino dele. Não tinham podido assistir à partida ao vivo na segunda-feira à noite e agora se contentavam com o videoteipe.

— Não sei, não... Você não é de confiança.

— Temos um acordo. — Jonah passou a mão na manga do robe. — Nunca traio um acordo. — Usando o controle remoto, congelou a imagem na tela. Já que está de pé, que tal pegar mais bebida? — Mostrou o copo vazio.

— Eu é que peguei na última vez.

— Porque estava de pé naquela hora também. Se ficasse sentada quietinha, não trabalharia tanto. Conformada, Ally pegou o copo.

— Não descongele o jogo enquanto eu não voltar.

Na cozinha, Ally percebeu que, às vezes, sentia saudades do apartamento do marido, em cima do bar. Mas até um casal urbano precisava de um pouco de privacidade e aquela casa combinava com eles. Assim como o casamento, completou, suspirando contente, despejando água mineral sobre cubos de gelo para Jonah.

Tinha havido muitas mudanças naqueles dezoito meses, desde que... fecharam o acordo, por assim dizer. Boas mudanças. Do tipo que alicerçavam uma vida. Construíam sobre uma base sólida e forte

De volta à sala de estar, Ally estranhou o sofá vazio. Pousou o copo de água na mesa baixa e foi procurar o marido.

Atravessou toda a casa em silêncio e parou à porta de um dos quartos.

O luar de inverno entrava pela janela e derramava sobre ele e o bebê em seus braços. Ally encheu-se de amor, explodiu de felicidade, mas então se abrandou nutrindo um calor estável.

— Você a acordou?

— Ela já estava acordada.

— Não, você a acordou. — Ally foi ao encontro deles. — Não consegue se separar dela.

— Por que deveria? — Jonah beijou a cabecinha da filha. — É toda minha.

— Não estou questionando isso. — Ally afagou os cabelos castanho-escuros da pequenina. — Ela vai ficar com os seus olhos.

Jonah não cabia em si de orgulho. Fitou o rostinho perfeito, os olhos obscuros e misteriosos dos recém-nascidos. Podia rever sua vida toda naqueles olhos. Os olhos de Sarah.

— Ela tem só duas semanas. No manual está escrito que a cor dos olhos só se define bem depois disso.

— Ela vai ficar com os seus olhos — reafirmou Ally. Abraçou o marido pela cintura e, juntos, admiraram o milagre que haviam produzido. — Será que ela está com fome?

— Não, é uma criatura noturna. — Que lhe pertencia, bem como a mulher a seu lado. Dois anos antes, nenhuma das duas existia para ele. Agora, eram seu mundo.

Inclinou o rosto enquanto Ally erguia o dela. O beijo doce só se interrompeu quando o bebé se agitou entre os dois. Jonah encostou a cabeça da filha no ombro, com uma graça natural que sempre fazia Ally sorrir.

Jonah assumira a paternidade como se tivesse esperado o momento a vida toda. E, mais uma vez, pudera contar com Boyd Fletcher para lhe transmitir mais aqueles ensinamentos.

— Vamos os três assistir ao fim do jogo, então.

Ele roçou o queixo nos cabelos da filha.

— Ela disse que queria.

— Vai dormir num instante.

— Junto com você.

Ally pegou o cobertor no berço e estendeu  os braços.

— Passe-a para cá.

— Não.

Ally volveu os olhos ao teto.

— Está bem, você fica com ela até o intervalo do  jogo e então é a minha vez.

— Fechado.

Com o bebê no ombro e a mão livre segurando a da mulher amada, Jonah foi aproveitar a noite.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades