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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAULO E ESTEVÃO - P.2 / Chico Xavier
PAULO E ESTEVÃO - P.2 / Chico Xavier

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAULO E ESTEVÃO

Segunda Parte

 

Rumo ao deserto

—        Aonde iremos, senhor? — atreveu-se Jacob a perguntar, timidamente, logo que entraram nas ruas tortuoSas.

O         moço tarsense pareceu refletir um minuto e acen­tuou:

—        É verdade que trago comigo algum dinheiro; en­tretanto, estou em situação muito difícil: sinto precisar mais de assistência moral que de repouso físico. Tenho necessidade de alguém que me ajude a compreender o que se passou. Sabes onde reside Sadoc?

—        Sei — respondeu o servo compungido.

—        Leva-me até lá... Depois de me avistar com algum amigo, pensarei numa estalagem.

Não se passou muito tempo e ei-los à porta de um edifício de singular e soberba aparência. Muralhas bem delineadas cercavam extenso átrio adornado de flores e arbustos.

Descansando junto ao portão de entrada, Saulo recomendou ao companheiro:

— Não convém que me aproxime assim, sem aviso. Jamais visitei Sadoc nestas condições. Entra no átrio, chama-o e conta-lhe o que se passou comigo. Esperarei aqui, mesmo porque não posso dar um passo.

       O  servo obedeceu prontamente. O banco de repouso distava alguns passos do largo portão de acesso, mas ficando só, ansioso de ouvir um amigo que o compreen­desse, Saulo identificou o muro, tateando-o. Vacilante e trêmulo, arrastou-se dificilmente e atingiu a entrada, ali permanecendo.

Acudindo ao chamado, Sadoc procurou saber o mo­tivo da visita inesperada. Jacob explicou, com humil­dade, que vinha de Jerusalém, acompanhando o doutor da Lei e desfiou os mínimos incidentes da viagem e os fins colimados; mas, quando se referiu ao episódio prin­cipal, Sadoc arregalou os olhos estupidificado. Custava-lhe acreditar no que ouvia, mas não podia duvidar da since­ridade do narrador, que, por sua vez, mal encobria o próprio assombro. O homem falou, então, do mísero estado do chefe: da sua cegueira, das lágrimas copiosas que vertia. Saulo a chorar? O amigo de Damasco re­cebia as estranhas notícias com imensa surpresa, sinteti­zando as primeiras impressões numa resposta desconcer­tante para Jacob:

—        O que me conta é quase inverossímil; entretanto, em tais circunstâncias, torna-se impossível acolhê-los aqui. Desde anteontem tenho a casa cheia de amigos importantes, recém-chegados de Citium (1) para uma boa reunião na sinagoga, sábado próximo. Cá por mim, suponho que Saulo se perturbou, inesperadamente, e não quero expô-lo a juízos e comentários menos dignos.

—        Mas, senhor, que lhe direi? — interpôs Jacob hesitante.

—        Diga que não estou em casa.

—        Entretanto... encontro-me só com ele, assim perturbado e enfermo e, como vedes, a noite é tempes­tuosa...

Sadoc refletiu um momento e acrescentou:

—        Não será difícil remediar. Na próxima esquina vocês encontrarão a chamada “rua Direita” e, depois de caminhar alguns passos, encontrarão a estalagem de Judas, que tem sempre muitos cômodos disponíveis. Mais tarde, procurarei lá chegar para saber do ocor­rido.

 

(1) Nota da Editora — Cicio, cidade da ilha de Chipre.

 

Ouvindo palavras tais, que pareciam mais uma ordem que resposta a um apelo amigo, Jacob despediu-se sur­preso e desanimado.

— Senhor — disse ao rabino, regressando ao portão de entrada —, infelizmente vosso amigo Sadoc não se encontra em casa.

— Não está? — exclamou Saulo admirado — daqui lhe ouvi a voz, embora não distinguisse o que dizia. Será possível que meus ouvidos estejam igualmente pertur­bados?

Diante daquela observação tão expressiva e sincera, Jacob não conseguiu dissimular a verdade e contou ao rabino o acolhimento que tivera, a atitude reservada e fria de Sadoc.

Seguindo as pisadas do guia, Saulo tudo ouviu, mudo, enxugando uma lágrima. Não contava com seme­lhante recepção da parte de um colega que sempre con­siderara digno e leal, em todas as circunstâncias da vida. A surpresa chocava-o. Era natural que Sadoc temesse pela renovação de suas idéias, mas não era justo aban­donasse um amigo doente, às intempéries da noite. No entanto, no rebojar de mágoas que começavam a intu­mescer-lhe o coração, recordou repentinamente a visão de Jesus e refletiu que, efetivamente, possuía agora experiências que o outro não pudera conhecer, chegando à conclusão de que talvez fizesse o mesmo se os papéis estivessem invertidos.

Concluído o relato do companheiro, comentou re­signado:

— Sadoc tem razão. Não ficava bem perturbá-lo com a descrição do fato, quando tem à mesa amigos de responsabilidade na vida pública. Além disso, estou cego... Seria um estafermo e não um hóspede.

       Essas considerações comoveram o companheiro, que, aliás, deixara perceber ao jovem rabino os próprios re­ceios. Nas palavras de Jacob, Saulo entrevira uma vaga expressão de temores injustificáveis. O procedimento de Sadoc talvez lhe houvesse aumentado as desconfianças. Suas advertências eram reticenciosas, hesitantes. Parecia intimidado, como se antevisse ameaças à sua tranqüili­dade pessoal. Nos conceitos mais simples evidenciava o medo de ser acusado como portador de alguma expressão do “Caminho”. Na sua amplitude de senso psicológico, o moço tarsense tudo compreendia. Fora verdade que ele, Saulo, representava o chefe supremo da campanha demolidora, mas, de ora em diante, consagraria a vida a Jesus, assim comprometendo a quantos dele se aproximassem direta e ostensivamente.

       Sua transformação provocaria muitos protestos no ambiente farisaico. Pressentiu nas indecisões do guia o receio de ser acusado de algum sor­tilégio ou bruxedo.

Com efeito, depois de convenientemente instalados na modesta estalagem de Judas, o companheiro falou-lhe preocupado:

—        Senhor, pesa-me alegar minhas conveniências, mas, consoante os projetos feitos, preciso regressar a Jerusalém, onde me esperam dois filhos, a fim de nos fixarmos em Cesaréia.

—       Perfeitamente — respondeu Saulo, respeitando-lhe os escrúpulos —, poderás partir ao amanhecer.

Aquela voz, antes agressiva e autoritária, tornara-se agora compassiva e meiga, tocando o coração do servo nas suas fibras mais sensíveis.

—        Entretanto, senhor, estou hesitando — disse o velho já picado de remorso —, estais cego, necessitais de auxílio para recobrar a vista e sinto sinceramente deixar-vos ao abandono.

—        Não te preocupes por minha causa — exclamou o doutor da Lei resignado —; quem te disse que ficarei abandonado? Estou convicto de que meus olhos estarão curados muito em breve.

Aliás — continuou Saulo como a confortar-se a si mesmo —, Jesus mandou-me entrar na cidade, a fim de saber o que me convinha. Certo, não me deixará igno­rando o que devo fazer.

Assim falando, não pôde ver a expressão de piedade com que Jacob o contemplava, desconcertado e oprimido.

Entretanto, mau grado à mágoa que lhe causava o chefe em semelhante estado, e recordando os castigos infligidos aos seguidores do Cristo, em Jerusalém, não conseguiu subtrair-se aos íntimos temores e partiu aos primeiros albores da manhã.

Saulo, agora, estava só. No véu espesso das som­bras, podia entregar-se às suas meditações profundas e tristes.

A bolsa farta e franca assegurou-lhe a solicitude do estalajadeiro, que, de quando em quando, vinha saber suas necessidades, mas, em vão, o hóspede foi convidado a repastos e diversões, porque nada o demovia do seu taciturno insulamento.

Aqueles três dias de Damasco foram de rigorosa disciplina espiritual. Sua personalidade dinâmica havia estabelecido uma trégua às atividades mundanas, para examinar os erros do passado, as dificuldades do pre­sente e as realizações do futuro. Precisava ajustar-se à inelutável reforma do seu eu. Na angústia do espírito, sentia-se, de fato, desamparado de todos os amigos. A atitude de Sadoc era típica e valeria pela de todos os correligionárioS, que jamais se conformariam com a sua adesão aos novos ideais. Ninguém acreditaria no ascendente da conversão inesperada; entretanto, havia que lutar contra todos os cépticos, de vez que Jesus, para falar-lhe ao coração, escolhera a hora mais clara e ruti­lante do dia, em local amplo e descampado e na só companhia de três homens muito menos cultos que ele, e, por isso mesmo, incapazes de algo compreenderem na sua pobreza mental. No apreciar os valores humanos, experimentava a insuportável angústia dos que se encon­tram em completo abandono, mas, no torvelinho das lem­branças, destacava os vultos de Estevão e Abigail, que lhe proporcionavam consoladoras emoções. Agora com­preendia aquele Cristo que viera ao mundo principal­mente para os desventurados e tristes de coração. Antes, revoltava-se contra o Messias Nazareno, em cuja ação presumia tal ou qual incompreensível volúpia de sofrimento; todavia, chegava a. examinar-se melhor, agora, haurindo na própria experiência as mais proveitosas ilações. Não obstante os títulos do Sinédrio, as respon­sabilidades públicas, o renome que o faziam admirado em toda parte, que era ele senão um necessitado da proteção divina? As convenções mundanas e os preconceitos reli­giosos proporcionavam-lhe uma tranqüilidade aparente; mas, bastou a intervenção da dor imprevista para que ajuizasse de suas necessidades imensas. Abismalmente concentrado na cegueira que o envolvia, orou com fervor, recorreu a Deus para que o não deixasse sem socorro, pediu a Jesus lhe clareasse a mente atormentada pelas idéias de angústia e desamparo.

No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hote­leiro anuncia alguém que o procura. Seria Sadoc? Saulo tem sede de uma voz carinhosa e amiga. Manda entrar. Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali está, sem que o convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e o sorriso generoso.

O         mutismo do visitante indiciava o desconhecido.

—        Quem sois? — pergunta o cego admirado.

—        Irmão Saulo — replica o interpelado com doçu­ra —, o Senhor, que te apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes a ver e recebas a iluminação do Espírito Santo.

Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras. Quem seria aquele homem que sabia os feitos lá da estrada! Algum conhecido de Jacob? Mas... aquela inflexão de voz enternecida e carinhosa?

—        Vosso nome? — perguntou quase aterrado.

—        Ananias.

A resposta era uma revelação. A ovelha perseguida vinha buscar o lobo voraz. Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe ministrava. A presença de Ananias revoca-lhe à memória os apelos mais sagrados. Fora ele o iniciador de Abigail na doutrina e o motivo da viagem a Damasco, onde encontrara Jesus e a verdade renovadora. Tomado de profunda veneração, quis avan­çar, ajoelhar-se ante o discípulo do Senhor, que lhe cha­mava ternamente “irmão”, oscular-lhe enternecido as mãos benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem conseguir a execução do gratíssimo desejo.

—        Quisera beijar vossa túnica — falou com hu­mildade e reconhecimento —, mas, como vedes, estou cego!...

—        Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o dom da vista.

Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o perseguidor cruel dos apóstolos do “Caminho” estava totalmente transformado. Ouvindo-lhe a palavra plena de fé, Saulo de Tarso deixava transparecer, no semblante, sinais de profunda alegria interior. Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas cristalinas. O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser humano e humilde.

—        Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos!... — disse entre compungido e esperançoso. Penitencio-me do meu caminho!...

Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber manifestar o reconhecimento daquela hora, em vir­tude das trevas que lhe dificultavam os passos, ajoelhou-se com humildade.

O         velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de renúncia suprema, considerando a sua própria condição de homem falível e imperfeito; mas, desejando estimular todos os recursos daquela alma ardente, em favor da sua completa conversão ao Cristo, aproximou-se comovido e, colocando a mão calosa naquela fronte ator­mentada, exclamou:

—        Irmão Saulo, em nome de Deus Todo-Poderoso eu te batizo para a nova fé em Cristo Jesus!...

Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço tarsenSe acentuou, contrito:

—        Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e ilumi­nar meus propósitos para uma vida nova.

—        Agora — disse Ananias, impondo-lhe as mãos nos olhos apagados e num gesto amoroso —, em nome do Salvador, peço a Deus para que vejas novamente.

—        Se é do agrado de Jesus que isso aconteça — advertiu Saulo compungido —‘ ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para todo o sempre.

E como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis, sentiu que das pálpebras doridas caíam subs­tâncias pesadas como escamas, à proporção que a vista lhe voltava, embebendo-se de luz. Através da janela aberta, viu o céu claro de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano de claridades deslum­brantes. A aragem da manhã, como perfume do Sol, vinha banhar-lhe a fronte, traduzindo para o seu coração uma bênção de Deus.

—        Vejo!... Agora vejo!... Glória ao redentor de minha alma!... — exclamava estendendo os braços num transporte de gratidão e de amor.

Ananias também não se conteve mais; em face da­quela prova inaudita da misericórdia de Jesus, o velho discípulo do Evangelho abraçou-se ao jovem de Tarso, a chorar de reconhecimento a Deus pelos favores rece­bidos. Trêmulo de alegria, levantou-o em seus braços generosos, amparando-lhe a alma surpreendida e per­turbada de júbilo.

—        Irmão Saulo — disse pressuroso —, este é o nosso grande dia; abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou em seu grande amor!...

O         convertido de Damasco não disse palavra. As lágrimas de gratidão sufocavam-no.

Abraçando-se ao antigo pregador, num gesto expressivo e mudo, fê-lo como se houvesse encontrado o pai dedicado e amoroso da sua nova existência. Por momentos, ficaram mudos, maravilhados com a intervenção divina, como dois irmãos muito queridos que se houvessem reconciliado sob as vistas de Deus.

Saulo sentia-se agora fortalecido e ágil. Num mi­nuto, pareceu reaver todas as energias de sua vida. Voltando a si do contentamento divino que o felicitava, tomou a mão do velho discípulo e beijou-a com venera­ção. Ananias tinha os olhos rasos de pranto. Ele próprio não podia prever as alegrias infinitas que o esperavam na pensão singela da “rua Direita”.

—        Ressuscitastes-me para Jesus — exclamou jubi­loso —; serei dele eternamente. Sua misericórdia suprirá minhas fraquezas, compadecer-se-á de minhas feridas, enviará auxílios à miséria de minhalma pecadora, para que a lama do meu espírito se converta em ouro do seu amor.

—        Sim, somos do Cristo — ajuntou o generoso ve­lhinho com a alegria a transbordar dos olhos.

       E, como se fosse de súbito transformado num me­nino ávido de ensinamentos, Saulo de Tarso, sentando-se junto do benfeitor amigo, rogou-lhe todos os informes a respeito do Cristo, dos seus postulados e atos imor­redouros. Ananias contou-lhe tudo quanto sabia de Jesus, por intermédio dos Apóstolos, depois da crucificação a que ele também assistira, em Jerusalém, na tarde trágica do Calvário. Esclareceu que era sapateiro em Emaús e tinha ido à cidade santa para as comemorações do Tem­plo, tendo acompanhado o drama pungente nas ruas re­gurgitantes de povo. Falou da compaixão que lhe causara o Messias coroado de espinhos e apupado pela turba furiosa e inconsciente. Profunda a emoção, ao descrever a marcha penosa com a cruz, protegido por soldados impiedosos, da fúria popular, que vociferava o crime hediondo. Curioso pelo desenrolar dos acontecimentos, seguira o condenado até ao monte. Da cruz do martírio, Jesus lançára-lhe um olhar inesquecível. Para o seu espírito, aquele olhar traduzia um chamamento sagrado, que era indispensável compreender. Profundamente im­pressionado, a tudo assistiu até ao fim. Daí a três dias, ainda sob o peso daquelas angustiosas impressões, eis que lhe chega a nova alvissareira de que o Cristo havia ressuscitado dos mortos para a glória eterna do Todo-Poderoso. Seus discípulos estavam ébrios de ventura. Então, procurou Simão Pedro para conhecer melhor a personalidade do Salvador. Tão sublime a narrativa, tão elevados os ensinamentos, tão profunda a revelação que lhe aclarava o espírito, que aceitou o Evangelho sem mais hesitação. Desejoso de compartilhar o trabalho que Jesus legara aos que lhe pertenciam, regressou a Emaús, dispôs dos bens materiais que possuía e esperou os Apóstolos galileus em Jerusalém, onde se associou a Pedro nas primeiras atividades da igreja do “Caminho”. A essência dos ensinamentos do Cristo vitalizara-lhe o espírito, Os achaques da velhice haviam desaparecido. Logo que João e Filipe chegaram a Jerusalém para cooperar com o antigo pescador de Cafarnaum na edificação evangélica, combinaram sua transferência para Jope, a fim de aten­der a inúmeros pedidos de irmãos desejosos de conhecer a doutrina. Ali estivera até que as perseguições intensificadas com a morte de Estevão obrigaram-no a re­tirar-se.

Saulo bebia-lhe as palavras com singular enlevo como quem franqueava um mundo novo. A referência às perseguições avivava os remorsos acerbos - Em com­pensação, a alma estava repleta de votos sinceros, pro­missores de uma vida nova.

— É verdade — dizia, enquanto o narrador fazia longa pausa —, vim a Damasco com outorga do Templo para vos levar preso a Jerusalém, mas fostes vós que chegastes com outorga de Jesus e a Ele me jungistes para sempre. Se vos algemasse, na minha ignorância, levar-vos-ia ao tormento e à morte; vós, salvando-me do pecado, me transformastes em escravo voluntário e feliz!

Ananias sorriu, sumamente satisfeito.

Saulo pediu-lhe, então, falasse de Estevão, no que foi atendido, com solicitude. Em seguida, pediu informes da sua viagem de Jope a Jerusalém. Com muita pru­dência, desejava do benfeitor qualquer alusão a Abigail. Formulando o pedido, fê-lo com tal inflexão carinhosa, que o velho discípulo, adivinhando-lhe o intuito, falou com brandura:

— Não precisarás confessar teus anseios de moço. Leio em teus olhos o que principalmente desejas. Entre Jope e Jerusalém, descansei muito tempo na vizinhança de um compatrício que, apesar de fariseu, nunca privou os empregados de receberem as sagradas alegrias da Boa Nova. Esse homem, Zacarias, tinha sob seu teto um verdadeiro anjo do céu.

Era a jovem Abigail, que, depois de receber o batismo de minhas mãos, confessou que te amava muito. Falava do teu amor com ternura ardente e muitas vezes me convidou a orar pela tua conversão a Jesus-Cristo! ...

Saulo ouvia emocionado e, após ligeiro intervalo em que o amoroso velhinho parecia meditar, voltou a dizer como se falasse consigo:

       — Sim, se ela ainda vivesse!...

       Ananias recebeu a observação sem surpresa e acen­tuou:

—        Desde que se aproximou de mim, notei que Abigail não ficaria muito tempo na Terra.

Suas cores esmaecidas, o brilho intenso dos olhos, falavam-me da sua condição de anjo exilado. Mas, devemos crer que ela viva no plano imortal. E quem sabe? Talvez suas rogativas aos pés de Jesus hajam contribuído para que o Mestre te convocasse à luz do Evangelho, às portas de Damasco!...

O         velho discípulo do “Caminho” estava comovido. Recebendo aquelas carinhosas evocações, Saulo chorava. Compreendia, sim, que Abigail não poderia estar morta. A visão de Jesus redivivo bastava para dissipar-lhe todas as dúvidas. Certamente, a escolhida de sua alma apie­dara-se de suas misérias, rogara ao Salvador, com insis­tência, lhe socorresse o espírito mesquinho e, por venturosa coincidência, o mesmo Ananias que lhe havia preparado o coração para as bênçãos do Céu, estende­ra-lhe igualmente as mãos amigas, cheias de caridade e perdão. Agora, pertenceria para sempre àquele Cristo amoroso e justo, que era o Messias prometido. Nas emoções extremas que lhe caracterizavam os sentimen­tos, passou a considerar o poder do Evangelho, exami­nando seus ilimitados recursos transformadores.

Queria mergulhar o espírito nas suas lições iluminadas e subli­mes, banhar-se naquele rio de vida, cujas águas do amor de Jesus fecundavam os corações mais áridos e desertos. Aquela meditação profunda empolgava-lhe, agora, a alma toda.

—        Ananias, meu mestre — disse o ex-rabino, com entusiasmo —, onde poderei obter o Evangelho sagrado?

O         antigo discípulo sorriu com bondade, e observou:

— Antes de tudo, não me chames mestre. Este é e será sempre o Cristo. Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos discípulos, irmãos na ne­cessidade e no trabalho redentor. Quanto à aquisição do Evangelho, somente na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral das anota­ções de Levi.

E revolvendo o interior de surrada patrona, reti­rava alguns pergaminhos amarelentos, nos quais con­seguira reunir alguns elementos da tradição apostólica. Apresentando essas notas dispersas, Ananias acrescen­tava:

— Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensi­namentos; mas, no que se refere à parte escrita, aqui tens tudo que possuo.

O moço convertido recebeu as anotações, assaz admi­rado - Debruçou-se imediatamente sobre os velhos rabis­cos e devorava-os com indisfarçável interesse.

Depois de refletir alguns minutos, acentuava:

— Se possível, pedir-vos-ia deixar-me estes precio­sos ensinamentos, até amanhã. Empregarei o dia em copiá-los para meu uso particular. O estalajadeiro me comprará os pergaminhos necessários.

E como que já iluminado daquele espírito missioná­rio que lhe assinalou as menores ações, para o resto da vida, ponderava atento:

— Precisamos estudar um meio de difundir a nova revelação com a maior amplitude possível. Jesus é um socorro do Céu. Tardar na sua mensagem é delongar o desespero dos homens. Aliás, a palavra “evangelho” significa “boas notícias”. É indispensável espalhar essas notícias do plano mais elevado da vida.

Enquanto o velho pregador do “Caminho” obser­vava-o interessado, o convertido de Damasco chamou o hoteleiro para comprar os pergaminhos. Judas surpreen­deu-se ao verificar a cura insólita. Satisfazendo-lhe a curiosidade, o jovem de Tarso falou sem rebuços:

— Jesus enviou-me um médico. Ananias veio curar-me em seu nome.

E antes que o homem se recobrasse do espanto, cumulava-o de recomendações a respeito dos pergami­nhos que desejava, entregando-lhe a quantia necessária.

Dando largas ao entusiasmo que lhe ia nalma, diri­giu-se novamente a Ananias, expondo-lhe seus planos:

—        Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exegese da Lei de Moisés; agora, porém, encherei as horas com o espírito do Cristo. Trabalharei nesse mister até ao fim dos meus dias. Buscarei iniciar meu trabalho aqui mesmo em Damasco.

E, fazendo uma pausa, perguntava ao benfeitor que o ouvia em silêncio:

—        Conheceis na cidade um rapaz fariseu de nome Sadoc?

—        Sim, é quem tem chefiado as perseguições nesta cidade.

—        Pois bem — continuava o jovem tarsense aten­cioso —, amanhã é sábado e haverá preleção na sinagoga. Pretendo procurar os amigos e falar-lhes publicamente do apelo que o Cristo me endereçou. Quero estudar vos­sas anotações ainda hoje, porque me darão assunto para a primeira prédica do Evangelho.

—        Para ser sincero — disse Ananias com a sua experiência dos homens —, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase religiosa. É possível que teus amigos da sinagoga não estejam preparados para rece­ber a luz da verdade toda. A má-fé tem sempre caminhos para tentar a confusão do que é puro.

—        Mas se eu vi Jesus, não tenho o direito de ocultar uma revelação incontestável — exclamou o neófito, como a salientar, antes de tudo, a boa intenção que o animava.

—        Sim, não digo que fujas do testemunho — expli­cou, calmo, o velho discípulo —‘ mas devo encarecer a maior prudência nas atitudes, não pela doutrina do Cristo, superior e invulnerável a quaisquer ataques dos homens, mas, por ti mesmo.

—        Por mim nada posso temer. Se Jesus me res­tituiu a luz dos olhos, não deixará de iluminar meus caminhos. Quero comunicar a Sadoc a ocorrência que deu novos rumos ao meu destino. E o ensejo não poderia ser mais oportuno, porque sei que hospeda em sua casa, ainda agora, alguns levitas de renome, recém-chegados de Chipre.

—        Que o Mestre te abençoe os bons propósitos — disse o velho sorridente.

Saulo sentia-se feliz. A presença de Ananias con­fortava-o sobremodo. Como velhos e fiéis amigos, almo­çaram juntos. Em seguida e sempre satisfeito, o gene­roso enviado do Cristo retirou-se, deixando o ex-rabino todo entregue à meticulosa cópia dos textos.

No dia seguinte, Saulo de Tarso levantou-se lépido e bem disposto. Sentia-se revigorado para uma vida nova. As recordações amargas lhe desertaram da me­mória. A influência de Jesus enchia-o de alegrias subs­tanciosas e duradouras. Tinha a impressão de haver aberto uma porta nova em sua alma, por onde sopravam céleres as inspirações de um mundo maior.

Depois da primeira refeição, não obstante o dissa­bor que a atitude de Sadoc lhe causara, procurou avis­tar-se com o amigo, levado pela sinceridade que lhe pautava os mínimos atos da vida. Não o encontrou, con­tudo, na residência particular. Um servo informou que o amo saíra com alguns hóspedes em direção à sinagoga.

Saulo foi até lá. Os trabalhos do dia estavam ini­ciados. Fora feita a leitura dos textos de Moisés. Um dos levitas de Citium havia tomado a palavra para os respectivos comentários.

A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral. A maioria dos presentes tinha conhecimento da sua im­portância pessoal, bem como do seu verbo ardoroso e seguro. Sadoc, porém, ao vê-lo, fez-se pálido, e mais ainda quando e jovem de Tarso lhe pediu uma palavra em particular. Embora contrafeito, foi-lhe ao encontro. Cumprimentaram-se sem dissimular a nova impressão que, já agora, mantinham entre si.

Em face das primeiras observações do novel evan­gelista, formuladas em tom amável, o amigo de Damasco explicou, evidenciando o seu orgulho ofendido:

— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a procurar-te na pensão de Judas; tais foram, porém, as informações do hoteleiro, que me abstive de ir ao teu aposento. E cheguei até a pedir-lhe segredo da minha visita. Com efeito, parece incrível que te ren­desses, também tu, passivamente, aos sortilégios do “Caminho”! Não posso compreender semelhante transmuta­ção em tua robusta mentalidade.

—        Mas, Sadoc — replicou o jovem tarsense muito calmo —, eu vi Jesus ressuscitado...

O         outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.

—        Será possível — objetou com zombaria — que tua índole sentimental, tão contrária a manifestações de misticismo, tenha capitulado nesse terreno? Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar-te vítima de algum desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes de agora nos causarão profunda vergonha. Que dirão os homens irresponsáveis, que nada conhecem da Lei de Moisés? E a nossa posição no partido dominante, da raça? Os colegas do farisaísmo hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua clamorosa defecção.

Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do operá­rio de Nazaré, reprimindo-lhes as atividades perigosas, fi-lo pela amizade que te consagrava; e não te doerá a traição dos votos anteriores? Considera como se difi­cultará nosso escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste perante esses homens sem cultura e sem consciência.

Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar ansioso. Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o aguardava no cenáculo dos velhos companheiros de lutas e edificações religiosas.

—        Não — disse ele sentindo fundamente cada pa­lavra —, não posso aceitar as tuas argüições. Repito que vi Jesus de Nazaré e devo proclamar que nele reco­nheço o Messias prometido pelos nossos profetas mais eminentes.

Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar aquela inflexão de certeza e sinceridade. Saulo continuava convicto:

— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e podemos reparar os erros do passado. E é com esse ardor de fé que me proponho regenerar mi­nhas próprias estradas.

Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus. Não é justo que me perca em ponderações sentimentalistas, olvidando a ver­dade; e assim procederei em benefício dos meus pró­prios amigos. Os amantes das realidades da vida sempre foram os mais detestados, ao tempo em que viveram. Que fazer? Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos dos antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se baseiam não somente nos reposi­tórios da tradição, senão também na prova testemunhal.

Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.

—        Mas... a tua posição? E os teus parentes? E

o          nome? E tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com fervorosos compromissos? — pergun­tou Sadoc revocando-o ao passado.

Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe per­tencemos. Sua palavra divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos. Aos que me compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais sagrada; entretanto, para os que não possam entender guardarei a melhor atitude de serenidade, considerando que o próprio Mes­sias foi levado à cruz.

—        Também tu com a mania do martírio?

O         interpelado guardou uma bela expressão de digni­dade pessoal e concluiu:

—        Não posso perder-me em opiniões levianas. Espe­rarei que o teu amigo de Chipre termine a preleção, para relatar minha experiência diante de todos.

—        Falar nisso aqui?

—        Por que não?

—        Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade, meditando melhor no assunto, mesmo por­que tenho esperança nas tuas reconsiderações, relativa­mente ao acontecido.

—        Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre-me esclarecer a verdade, em qualquer circunstância.

—        E se te apuparem? E se fores considerado traidor?

—        A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos olhos.

— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra — ponderou Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas convicções.

— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a negar-me o que é de justiça.

— Então, seja. Responderás pelas conseqüências — concluiu Sadoc constrangido.

Naquele momento, ambos compreenderam a imen­sidão da linha divisória que os extremava. Saulo per­cebeu que a amizade que Sadoc sempre lhe testemunhara baseava-se nos interesses puramente humanos. Abando­nando a falsa carreira que lhe dava prestígio e brilho, via esfumar-se a cordialidade do outro. Mas, de tal cogi­tação, logo lhe veio à mente que, também ele, assim procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no coração.

Sereno e desassombrado, evitou aproximar-Se do local onde se acomodavam os visitantes ilustres, bus­cando aproximar-se do largo estrado em que se impro­visara uma nova tribuna. Terminada a dissertação do levita de Citium, Saulo surgiu à vista de todos os presentes, que o saudaram com olhares ansiosos. Cumpri­mentou, afável, os diretores da reunião e pediu vênia para expor suas idéias.

Sadoc não tivera coragem de criar um ambiente antipático, para deixar que tudo corresse à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes aperta­ram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo com imensa alegria o seu alvitre.

Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobre­mente, como costumava fazer nos seus dias triunfais.

— Varões de Israel! começou em tom solene — em nome do Todo-Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as verdades da nova revelação. Temos ignorado, até agora, o fato culminante da vida da Hu­manidade, O Messias prometido já veio, consoante o afirmaram os profetas que se glorificaram na virtude e no sofrimento. Jesus de Nazaré é o Salvador dos pecadores.

       Uma bomba que estourasse no recinto, não causa­ria maior espanto. Todos fixavam o orador, atônitos. A assembléia estava obstúpida. Saulo, contudo, prosse­guia intrépido, depois de uma pausa:

—        Não vos assombreis com o que vos digo. Conhe­ceis minha consciência pela retidão de minha vida, pela minha fidelidade às leis divinas. Pois bem: é com este patrimônio do passado que vos falo hoje, reparando as faltas involuntárias que cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e injusta. Em Jerusalém fui o primeiro a condenar os apóstolos do “Caminho”; pro­voquei a união de romanos e israelitas para a repressão, sem tréguas, a todas as atividades que se prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados, encarcerei mulhe­res e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei um vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam pacificamente na cidade para seu progresso; criei para todos os espíritos mais sinceros um regime de sombras e terrores. Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus, como se o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores!... Mas, de viagem para esta cidade, auto­rizado pelo Sinédrio e pela Corte Provincial, para invadir os lares alheios e perseguir criaturas inofensivas e ino­centes, eis que Jesus me aparece às vossas portas e me pergunta, em pleno meio-dia, na paisagem desolada e deserta: — Saulo, Saulo, por que me persegues?

A essa evocação, a voz eloqüente se enternecia e as lágrimas lhe corriam copiosas.

Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu destino. Os ouvin­tes contemplavam-no assombrados.

—        Que é isso? — diziam alguns.

—        O doutor de Tarso graceja!... — afirmavam outros sorrindo, convictos de que o jovem tribuno esti­vesse buscando maior efeito oratório.

—        Não, amigos — exclamou com veemência —, ja­mais gracejei convosco nas tribunas sagradas. O Deus justo não permitiu que minha violência criminosa fosse até ao fim, em detrimento da verdade, e consentiu, por misericórdia de acréscimo, que o mísero servo não encon­trasse a morte sem vos trazer a luz da crença nova!...

       Não obstante o ardor da pregação, que deixava em todos os ouvidos ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho vozerio. Alguns fariseus mais exalta­dos interpelaram Sadoc, em voz baixa, quanto ao ines­perado daquela surpresa, obtendo a confirmação de que Saulo, de fato, parecia extremamente perturbado, ale­gando ter visto o carpinteiro de Nazaré nas vizinhanças de Damasco. Imediatamente estabeleceu-se enorme con­fusão em toda a sala, porque havia quem visse no caso perigosa defecção do rabino, e quem opinasse por enfer­midade súbita, que o houvesse dementado.

—        Varões de minha antiga fé — trovejou a voz do moço tarsense, mais incisiva —, é inútil tentardes empa­nar a verdade. Não sou traidor nem estou doente. Esta­mos defrontando uma era nova, em face da qual todos os nossos caprichos religiosos são insignificantes.

Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentina-mente a palavra.

— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”!... Fora o traidor de Moisés!...

Os apodos partiam de todos os lados. Os mais afei­çoados ao ex-rabino, que se inclinavam a supô-lo vítima de graves perturbações mentais, entraram em conflito com os fariseus mais rudes e rigorosos. Algumas ben­galas foram atiradas à tribuna com extrema violencia. Os grupos, que se haviam atracado em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga, percebendo o orador que se encontravam na iminência de irreparáveis desastres.

Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande estrado, levantando a voz com toda a energia de que era capaz e rogando aos presentes acompanhá-lo na recitação de um dos Salmos de David. O convite foi aceito por todos. Os mais exaltados repetiram a prece, tomados de vergonha.

Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.

Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:

       — Lamentemos este episódio, mas evitemos a con­fusão que em nada aproveita. Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas fileiras como paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para nós um galho de espinhos. Com um passado respeitável, esta atitude de agora só nos merece condenação. Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza. Outro fora o tribuno e apedrejá-lo-íamos sem pestanejar; mas, com um antigo colega os processos devem ser outros. Se está doente, só merece compaixão; se traidor, só poderá merecer absoluto desprezo. Que Jerusalém o julgue como seu embaixador. Quanto a nós, encerremos as pregações da sinagoga e recolhamo-nos à paz dos fiéis cumpridores da Lei.

       O ex-rabino suportou a increpação com grande sere­nidade a lhe transparecer dos olhos.

       Intimamente, sen­tia-se ferido no seu amor-próprio. Os remanescentes do “homem velho” exigiam revide e reparação imediata, ali mesmo, à vista de todos. Quis falar novamente, exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi-lo, mas sen­tia-se presa de emoções incoercíveis, que lhe infirmavam os ímpetos explosivos. Imóvel, notou que velhos afeiçoa­dos de Damasco abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer uma ligeira saudação.

       Observou, tam­bém, que os levitas de Citium pareciam entendê-lo, atra­vés de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo que Sadoc fixava-o com ironia e risinhos de triunfo. Era o repúdio que chegava. Acostumado aos aplausos onde quer que aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que, para falar com êxito, sobre Jesus, bastavam os louros efêmeros já conquistados ao mundo. Enganara-se. Seus cômparas punham-no à margem, como inútil.

       Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe ardia nalma a devoção sacerdotal. Preferia que o esbofeteassem, que o prendessem, que o flagelassem, mas não lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos vencendo e convencendo com a lógica de suas definições. Aquele abandono feria-o fundo, porque, antes de qual­quer consideração, reconhecia não laborar em benefício pessoal, por vaidade ou egoísmo, mas pelos próprios correligionários atidos às concepções rígidas e inflexíveis da Lei. Aos poucos a sinagoga ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da tarde. Saulo sentou-se num banco tosco e chorou. Era a luta entre a vaidade de outros tempos e a renúncia de si mesmo, que começava. Para conforto da alma opressa, recordou a narrativa de Ananias, no capítulo em que Jesus dissera ao velho dis­cípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor ao seu nome.

Acabrunhado, retirou-se do Templo, em busca do benfeitor, a fim de reconfortar-se com a sua palavra.

Ananias não se mostrou surpreendido com a expo­sição das ocorrências.

—        Vejo-me cercado de enormes dificuldades — dizia Saulo um tanto perturbado.

Sinto-me no dever de es­palhar a nova doutrina, felicitando os nossos semelhan­tes; Jesus encheu-me o coração de energias inesperadas, mas a secura dos homens é de amedrontar os mais fortes.

—        Sim — explicava o ancião paciente —, o Senhor conferiu-te a tarefa do semeador; tens muito boa-von­tade, mas, que faz um homem recebendo encargos dessa natureza? Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo.

O         neófito percebeu o alcance da comparação e per­guntou:

—        Mas, que desejais dizer com isso?

—        Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros da própria boa-intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar. Os que não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho, jamais são bem compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a palavra. Contra os seus ensinos estão suas próprias vidas. Além do mais, tudo que é de Deus reclama gran­de paz e profunda compreensão. No teu caso, deves pensar na lição de Jesus permanecendo trinta anos entre nós, preparando-se para suportar nossa presença durante apenas três. Para receber uma tarefa do Céu, David con­viveu com a Natureza apascentando rebanhos; para desbravar as estradas do Salvador, João Batista meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judéia.

As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa como bálsamo vitalizante.

— Quando hajas sofrido mais — continuava o ben­feitor e amigo sincero —, terás apurado a compreensão dos homens e das coisas, Só a dor nos ensina a ser humanos. Quando a criatura entra no período mais perigoso da existência, depois da matinal infância e antes da noite da velhice; quando a vida exubera ener­gias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os tra­balhos, se lhe enterneça o coração. Pelo que me hás confessado, é possível não venhas a ser pai, mas terás os filhos do Calvário em toda parte. Não viste Simão Pedro, em Jerusalém, rodeado de infelizes? Natural­mente, encontrarás um lar maior na Terra, onde serás chamado a exercer a fraternidade, o amor, o perdão... É preciso morrer para o mundo, para que o Cristo viva em nós...

Aquelas observações tão sadias e tão mansas pene­traram o espírito do ex-rabino como bálsamo de con­solação de horizontes mais vastos. Suas palavras cari­nhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do dia, Saulo esfor­çava-se por fixar melhor as idéias. Ah!... agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era Gamaliel. Veio-lhe de súbito o desejo de se avistar com o velho mestre. compreendia a razão daquela lembrança. É que, tam­bém ele, pela última vez, lhe falara da necessidade que sentia dos lugares ermos, para meditar as sublimes ver­dades novas. Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão. Como não se recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um pai? Certamente, Gamaliel rece­bê-lo-ia de braços abertos, regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quan­to aos rumos a seguir.

Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar significativo, acrescentando sen­sibilizado:

— Tendes razão... Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos meus confrades. Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de meditar as lições recebidas.

Ananias aprovou a idéia com um sorriso. Ainda ficaram conversando longo tempo, até que a noite mer­gulhou a alma das coisas no seu velário de sombras espessas.

O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião que se realizava nesse sábado de grandes desilusões para o ex-rabino.

Damasco não tinha propriamente uma igreja; en­tretanto, contava numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”. O núcleo de orações era em casa de uma lavadeira humilde, companheira de fé, que alugava a sala para poder acudir a um filho paralítico. Profundamente admirado, o moço tarsense enxergou ali a miniatura do quadro observado pela primeira vez, quando tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres pregações de Estevão em Jerusalém. Em torno da mesa rústica, juntavam-se míseras criaturas da plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera social. Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pe­dreiros rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades dolorosas. A cerimônia parecia ainda mais simples que as de Simão Pedro e seus com­panheiros galileus. Ananias chefiava e presidia o ato. Sentando-se à mesa, qual patriarca no seio da família, rogou as bênçãos de Jesus para a boa-vontade de todos. Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respi­gando algumas sentenças do Mestre Divino nos per­gaminhos esparsos. Depois de comentar a página lida, ilustrando-a com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho deixava o lugar, percorria as filas de bancos e impunha as mãos sobre os doentes e necessitados. Comumente, segundo o hábito das pri­meiras células cristãs do primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos dis­cípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura, em nome do Senhor. Saulo serviu-se do bolo simples, enternecidamente. Para sua alma, o cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal. A água clara e fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluído de amor que partia de Jesus, comunicando-se a todos os seres. Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários singelos daquela noite, pedia ao Salvador prote­gesse o novo servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na imensidão de suas mise­ricórdias. Ouvindo-lhe a rogativa que o calor da amizade revestia de amavio singular, Saulo chorou de reconheci­mento e gratidão, comparando as emoções do rabino que fora, com as do servo de Jesus que agora queria ser. Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira um companheiro exorar ao Céu com aquela sinceridade su­perior. Entre os mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a se transformarem em calúnias torpes, quando lhes não podia conceder favores materiais. Em toda parte, admiração superficial, filha do jogo dos interesses inferiores. Ali, a situação era outra. Nenhuma daquelas criaturas desfavorecidas da sorte viera pedir-lhe fácilidades; todos pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim os congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos. E, por fim, ainda rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para o seu empreendimento.

Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágri­mas nos olhos. Na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o trataram com especial deferência, atentos à sua posição social e política, senhor das rega­lias que as convenções do mundo lhe conferiam; mas os cristãos de Damasco impressionaram-no mais vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a para uma afei­ção imorredoura, com aquele gesto de confiança e cari­nho, tratando-o como irmão.

Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem. Alguns velhos mais humildes beijaram-lhe as mãos. Tais provas de afeto davam-lhe novas forças. Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra, acintosos e hostis, começava agora a encontrar no seu caminho os filhos do Calvário. Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias da mocidade. Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sor­riso das criancinhas. Como se desejasse retribuir as demonstrações de carinho recebidas, tomou nos braços um menino doente. Diante da pobre mãe sorridente e agradecida, fez-lhe festas, acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente. Entre os acúleos agressivos de sua alma apaixonada, começavam a desabrochar as flores de ter­nura e gratidão.

Ananias estava satisfeito. Junto dos irmãos de mais confiança, acompanhou o neófito até à pensão de Judas. Aquele modesto grupo desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar, estreitamente unido e reconfortando-se em comentários cristãos. Saulo admirava-se de haver encontrado tão depressa aquela chave de harmonia que lhe proporcionava segura confiança em todos. Teve a impressão de que nas genuínas comunidades do Cristo a amizade era diferente de tudo que lhe dava expressão nos agrupamentos mundanos. Na diversidade das lutas sociais o traço dominante das relações cifrava-se agora, a seus olhos, nas vantagens do interesse individual; ao passo que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre, havia um cunho divino de confiança, como se os com­promissos tivessem o ascendente divino, original.

Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma idéia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam franca e confortadora alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés, lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra, sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém deveria enganar.

Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido. Ele próprio surpreendia-se com o sabor de Intimidade com que as expressões lhe afloravam aos lábios. Agora compreendia que a palavra “irmão”, lar­gamente usada entre os adeptos do “Caminho”, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias conquistaram-lhe o coração.

Nunca mais esqueceria os irmãos de Da­masco.

No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo estalajadeiro, Saulo de Tarso, ao amanhecer, em­bora surpreendesse o dono da casa com o seu ânimo resoluto, pôs-se a caminho da cidade famosa, situada num oásis em pleno deserto.

Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois homens modestamente trajados, à fren­te de pequeno camelo carregado das necessárias pro­visões.

Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar a vida com rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais tarde. Não viajaria mais na qualidade de doutor da Lei, rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus, adstrito aos seus programas. Por esse motivo, considerou preferível viajar como beduíno, para apren­der a contar, sempre, com as próprias forças. Sob o calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras do crepúsculo, seu pensamento estava fixo naquele que o chamara do mundo para uma vida nova. As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação da paisagem morta, são tocadas de misteriosa beleza. Sob as frondes de alguma tamareira solitária, o conver­tido de Damasco aproveitava o silêncio para profundas meditações. O firmamento estrelado tinha, agora, para seu espírito, confortadoras e permanentes mensagens. Estava convicto de que sua alma havia sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas as coisas da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo que lhe falava carinhosamente ao coração.

 

O tecelão

Apesar de acostumados ao espetáculo permanente da chegada de estrangeiros à cidade, dada a sua privi­legiada situação no deserto, os transeuntes de Palmira notaram, com profundo interesse, a passagem daquele beduíno seguido de humilde serviçal a puxar um mísero camelo arquejante de cansaço. Sem dúvida, reconhece­ram-lhe o perfil de judeu -nos traços característicos do rosto, na energia serena que lhe transparecia do olhar.

Saulo, por sua vez, transitava com ar indiferente, como se convivesse naquele cenário, de há muito tempo.

Ciente de que o irmão do antigo mestre era ali negociante dos mais conhecidos e abastados, não teve dificuldade em obter informações de um compatrício, que lhe indicou a residência.

Acomodando-se numa estalagem comum para ref a­zer-se das fadigas da viagem, consultou a bolsa para regular o seu programa. O dinheiro esgotava-se, mal chegaria para remunerar o companheiro dedicado que lhe fôra amigo fiel em toda a penosa viagem. Depois de informado do “quantum” a pagar, verificando a insu­ficiência dos recursos, falou-lhe com humildade:

— Judá, de momento não tenho o bastante para compensar melhor o serviço que me prestaste. Entre­tanto, dou-te metade da importância e mais o camelo em pagamento do restante.

O próprio servo comoveu-se com o tom humilde da proposta.

— Não precisa tanto, senhor — respondeu confu­so —, o valor do animal basta e sobra. Desse modo, não ficará desprevenido. Contento-me com algumas moedas, apenas o necessário para custear a volta.

Saulo teve para ele um olhar de reconhecimento e, alegando a impossibilidade de o reter por mais tempo, despediu-o com expressões de conforto e votos de feliz regresso a Damasco.

Depois, recolhendo-se ao quarto pobre que tomara, entrou a meditar, acuradamente, nos últimos aconteci­mentos da sua vida.

       Estava só, sem parentes, sem amigos, sem dinheiro. Pouco antes daquela resolução de partir no encalço de Ananias, não vacilaria em decretar a morte de quem profetizasse o futuro que o esperava. Sua existência, seus planos, estavam transformados nos detalhes mais íntimos. Que fazer agora? E se não encontrasse em Palmira o socorro de Gamaliel, conforme aguardava em suas esperanças secretas? Considerou a extensão das dificuldades que se desdobravam a seus olhos. Tudo di­fícil. Estava como o homem que houvesse perdido a família, a pátria e o lar. Profunda amargura ameaçava invadir-lhe o coração. Repentinamente, porém, recor­dou-se do Cristo e a lembrança da visão gloriosa encheu-lhe de conforto o espírito desolado. Confiando muito mais naquele que lhe estendera as mãos, do que em suas próprias forças, procurou acalmar os sobressaltos íntimos, dando repouso ao corpo fatigado.

No dia seguinte, manhã alta, saiu à rua preocupado e ansioso. Obedecendo aos informes recolhidos, parou à porta de confortável edifício, à frente do qual funciona­vam grandes lojas comerciais.

Procurando Ezequias, foi logo atendido por um ho­mem idoso, de semblante risonho e respeitável, que o saudou com muita simpatia. Tratava-se do irmão de Gamaliel, que, logo se familiarizando com o patrício recém-chegado de longe, proporcionou-lhe confortadora palestra. Buscando informar-se, delicadamente, a res­peito do venerável rabino de Jerusalém. Saulo obtinha de Ezequias os esclarecimentos necessários, tomado de profundo interesse:

—        Meu irmão — dizia ele preocupado — desde que chegou a Palmira pareceu-me muito diferente. É pos­sível que a mudança de Jerusalém tenha influído para essa profunda transformação. A diferença de ambiente social, a alteração de hábitos, o clima, a ausência dos trabalhos usuais, tudo isso pode ter-lhe prejudicado a saúde.

—        Como assim? — perguntou o moço sem dissi­mular a estranheza.

—        Passa dias e dias numa cabana abandonada que possuo, à sombra de algumas tamareiras, num dos mui­tos oásis que nos rodeiam; e isso, veja, tão-só para ler e meditar um manuscrito sem importância, que não consegui compreender. Além disso, parece-me completa­mente desinteressado de nossas práticas religiosas, vive como que alheio ao mundo.

Fala em visões do céu, re­fere-se constantemente a um carpinteiro que se trans­formou em Messias do povo e alimentava-se de coisas imaginárias, de sonhos irreais. As vezes, é com pro­fundo pesar que lhe observo a decadência mental. Minha mulher, porém, tudo atribui à idade avançada e eu quero crer seja antes, ou pelo menos em grande parte, devido à intensidade do estudo, das meditações prolongadas.

Ezequias fez uma pausa, enquanto Saulo fixava nele o olhar percuciente e significativo, compreendendo a con­dição do velho mestre.

A uma nova observação do moço tarsense, conti­nuava o outro, loquaz:

— No seio de minha família, Gamaliel é tratado como se fora o nosso pai. Aliás, devo meu início de vida às suas imensas dedicações fraternais. Por isso mesmo, eu e minha mulher combinamos com os filhinhos, relativamente à atmosfera de paz que deverá cercar aqui o prezado e nobre enfermo. Quando ele discorre sobre as ilusões religiosas que o empolgam no seu desequilíbrio mental, ninguém nesta casa o contradiz. Já sabemos que não fala mais por si. A mentalidade poderosa esmaeceu, a estrela se apagou. Considerando essas penosas circunstâncias, ainda rendo graças a Deus que mo trouxe aqui, para terminar seus dias aquecido pelo nosso afeto fami­liar, e indene do escárnio de- que talvez pudesse ser objeto em Jerusalém, onde nem todos estão à altura de lhe compreender e honrar o passado ilustre.

—        Mas a cidade sempre venerou nele um mestre inesquecível — ajuntou o rapaz como se quisesse defender seus próprios sentimentos de amizade e admiração.

—        Sim — esclareceu o negociante, convicto —, um homem do seu nível intelectual estaria preparado a en­tender tudo, mas os outros? O senhor não ignora, natu­ralmente, a perseguição implacável, movida pelas autori­dades do Sinédrio e do Templo, contra os simpatizantes do famoso carpinteiro nazareno. Palmira teve notícias dos fatos, por intermédio de inúmeros patrícios pobres, que deixaram Jerusalém à pressa, ameaçados de prisão e morte.

Ora, foi justamente com a personalidade desse homem que Gamaliel deu as primeiras demonstrações de fraqueza mental. Se estivesse por lá, que seria da sua velhice desamparada?

Naturalmente muitos amigos, como o senhor, estariam a postos para a defesa; mas, o caso podia tomar aspectos mais graves, surgirem inimigos políticos reclamando medidas ingratas. E de nossa parte nada poderíamos tentar para restabelecer a situação, por­que, na verdade, a sua loucura é pacífica, quase imper­ceptível e de maneira alguma conseguiríamos suportar sua apologia ao celerado que o Sinédrio mandou à cruz dos ladrões.

Saulo sentia extremo mal-estar ouvindo aquelas ob­servações, agora tão injustas e superficiais ao seu ver. Compreendia a delicadeza do momento e a natureza dos recursos psicológicos a empregar, para não se compro­meter, agravando, ainda mais, a posição do mestre ilustre.

Desejando imprimir novo rumo à conversa, pergun­tou com serenidade:

—        E os médicos? qual a opinião dos entendidos?

       — No último exame a que se submeteu, por insis­tência nossa, descobriram que o estimado doente, além de perturbado, padece de singular astenia orgânica, que lhe vai consumindo as últimas forças vitais.

Saulo fez ainda algumas observações, contristado, e, depois de reconsiderar as primeiras impressões rela­tivamente à amável hospitalidade de Ezequias, auxiliado por um pequeno servo da casa, demandou o local, onde o antigo mentor o recebeu com surpresa e alegria.

O         ex-discípulo notou que Gamaliel, com efeito, apre­sentava sintomas de profundo abatimento. Foi com infinito júbilo que o apertou afetuosamente nos braços, osculando-lhe, amoroso, as mãos encarquilhadas e trê­mulas. Seus cabelos pareciam mais brancos; a epiderme sulcada de rugas veneráveis dava impressão do alabastro uma palidez indefinível.

Falaram longamente das saudades, dos sucessos de Jerusalém, dos amigos distantes.

Depois dos preâmbulos afetuosos, o moço tarsense relatou ao mestre venerando as graças recolhidas às portas de Damasco - A voz de Saulo tinha a inflexão vibrante da paixão e da sinceri­dade que costumava imprimir às emoções próprias. O velhinho ouviu-lhe a narrativa com indizível espanto; nos olhos vivos e serenos, rorejavam lágrimas de emo­ção, que não chegavam a cair. Aquela prova enchia-o de profundo consolo. Não havia aceitado, em vão, aquele Cristo sábio e amoroso, incompreendido dos colegas. Ao término da exposição, Saulo de Tarso tinha o olhar ve­lado em pranto. O bondoso ancião abraçou-o comovida­mente, atraindo-o ao coração.

—        Saulo, meu filho — disse exultante —, bem sabia que me não enganava a respeito do Salvador, que tão profundamente me falou à velhice exausta, através da luz espiritual do seu Evangelho de redenção. Jesus dignou-se estender as mãos amorosas ao teu Espírito dedicado.

A visão de Damasco bastará para a consagra­ção de tua existência inteira ao amor do Messias. É verdade que muito trabalhaste pela Lei de Moisés, sem hesitar na adoção de medidas extremas, na sua defesa. Entretanto, é chegado o momento de trabalhares por quem é maior que Moisés.

—        Sinto-me, porém, grandemente desorientado e con­fundido — murmurou o jovem de Tarso, cheio de con­fiança. Desde a ocorrência noto que estou sendo objeto de singulares e radicais transformações. Obediente ao meu feitio absolutamente sincero, quis começar meu es­forço pelo Cristo, em Damasco, e, no entanto, recebi dos nossos amigos, dali, as maiores manifestações de des­prezo e ridículo, que muito me fizeram sofrer. Repen­tinamente, vi-me sem companheiros, sem ninguém. Al­guns componentes da reunião do “Caminho” consolaram minhalma abatida com as suas expressões de fraterni­dade, mas não foram bastantes para ressarcir as amar­gas desilusões experimentadas. O próprio Sadoc, que, na infância, foi pupilo de meu pai, cobriu-me de recriminações e zombarias. Desejei voltar a Jerusalém, mas, através do quadro da Sinagoga de Damasco, compreendi o que me esperava em grande escala junto às autoridades do Sinédrio e do Templo. Naturalmente, a profissão de rabino não me poderá interessar o espírito sincero, por­que, de outro modo, seria mentir a mim mesmo. Sem trabalho, sem dinheiro, acho-me num labirinto de ques­tões insolúveis, sem o auxílio de um coração mais expe­riente que o meu. Resolvi, então, demandar o deserto e procurar-vos para o socorro necessário.

E concluindo a rogativa, com os olhos súplices, revelando as ansiedades tormentosas que lhe povoavam a alma, exclamou:

—        Mestre amado, sempre enxergastes as soluções do bem, onde minha imperfeição não devassava senão sombras amargurosas!... Amparai meu coração mer­gulhado em dolorosos pesadelos. Preciso servir Àquele que se dignou arrancar-me das trevas do mal, não posso dispensar vosso auxílio neste transe difícil da minha vida!...

Essas palavras eram ditas com inflexão profunda­mente comovedora. Olhos firmes, embora iluminados de intensa ternura, o generoso velhinho acariciou-lhe as mãos e começou a falar comovidamente:

— Examinemos tuas dúvidas, de maneira particular, a fim de estudarmos uma solução adequada a todos os problemas, à luz dos ensinamentos que hoje nos iluminam.

E, após uma pausa em que parecia catalogar os assuntos, continuava:

—        Falas do desprezo experimentado na Sinagoga de Damasco; mas, os exemplos são claros e convincentes. Também eu, atualmente, sou considerado como louco pacífico, no ambiente dos meus. Em Jerusalém, viste Simão Pedro vilipendiado por amar os pobres de Deus e dar-lhes acolhida; viste Estevão morrer sob pedradas e que mais? O próprio Cristo, redentor dos homens, não se furtou aos martírios de uma cruz infamante, entre malfeitores condenados pela justiça do mundo. A lição do Mestre é grande demais para que seus discípulos estejam a espera de dominações políticas ou de altas expressões financeiras, em seu nome. Se ele que era puro, e inimitável, por excelência, andou entre sofri­mentos e incompreensões neste mundo, não é justo aguar­demos repouso e vida fácil em nossa miserável condição de pecadores.

O         moço tarsense ouvia aquelas palavras mansas e enérgicas, com a alma dolorida, mormente no que se referia às perseguições infligidas a Pedro e no capítulo das lembranças de Estevão, às quais o velho amigo tinha a delicadeza de não aludir nominalmente ao verdugo.

—        A respeito das dificuldades que dizes experimen­tar depois dos sucessos de Damasco — prosseguia Ga­maliel serenamente —, nada mais justo e natural a meus olhos experimentados nos problemas do mundo. Nossos avós, antes de receber o maná do céu, atravessaram tempos sombrios de miséria, escravidão e sofrimento. Sem as angústias do deserto, Moisés jamais encontraria na rocha estéril a fonte de água viva. E talvez ainda não tenhas meditado melhor nas revelações da Terra Prometida. Que região seria essa, se, guardando a com­preensão mais vasta de Deus, descobrimos em todos os pontos do mundo mananciais de sua proteção? Há tama­reiras, frondosas e amigas, medrando nos areais ardentes. Essas árvores generosas não transformam o próprio deserto em caminhos abençoados, cheios do pão divino para matar nossa fome? Nas minhas reflexões solitárias, cheguei à conclusão de que a Terra Prometida pelas divinas revelações é o Evangelho do Cristo Jesus. E a meditação nos sugere comparações mais profundas. Quando nossos ascendentes mais corajosos trabalhavam por conquistar a região privilegiada, numerosas pessoas tentavam desanimar os mais pertinazes, asseverando que o terreno era inóspito, que os ares eram insalubres e portadores de febres mortais; que os habitantes eram intratáveis, devoradores de carne humana; mas Josué e Caleb, num esforço heróico, penetraram a terra desconhecida, venceram os primeiros obstáculos e voltaram dizendo que dentro da região manavam leite e mel. Não temos aí um símbolo perfeito? A revelação divina deve referir-se a uma região bendita, cujo clima espi­ritual seja feito de paz e luz. Adaptarmo-nos ao Evangelho é descobrir outro país, cuja grandeza se perde no Infinito da alma. A nosso lado permanecem aqueles que tudo fazem por nos desanimar na empresa conquistada. Acusam a lição do Cristo de criminosa e revolucionária, enxergam no seu exemplo intuitos de desorganização e de morte; qualificam um apóstolo, como Simão Pedro, de pescador presunçoso e ignorante; mas pensando na­quela estupenda serenidade com que Estevão entregou a alma a Deus, vi nele a figura do companheiro corajoso e digno, que voltava das lições do “Caminho” para nos afirmar que na Terra do Evangelho há fontes do leite da sabedoria e do mel do amor divino. É preciso, pois, marchar sem repouso e sem contar os obstáculos da via­gem. Procuremos a mansão infinita que nos seduz o coração.

Gamaliel fizera uma pausa em suas expressões ami­gas e altamente consoladoras. Saulo estava admirado. Aquelas comparações tão simples, aquelas deduções pre­ciosas do estudo da Antiga Lei, com relação a Jesus, deixavam-no perplexo. A sabedoria do ancião renovava-lhe as forças.

— Alegas tua estranheza — continuou o venerando amigo, enquanto o jovem o fixava com interesse crescente — com a mudança de profissão e a falta de dinheiro para as necessidades mais imediatas... Entretanto, Saulo, basta meditar um pouco na realidade dos fatos, para que vejas claramente. Um velho, como eu, está na situação de Moisés contemplando a Terra Pro­metida, sem poder alcançá-la. Mas, quanto a ti, é pre­ciso convir que estás ainda muito moço. Podes mul­tiplicar as energias com o adestramento de tuas forças e penetrar o terreno das aspirações do Salvador, a nosso respeito. Para isso, é indispensável simplificar a vida, recomeçar a luta. Josué não poderia ter vencido os óbices do caminho tão-só com a leitura dos textos sa­grados, ou com os favores de quantos o estimavam. Certamente, manipulou instrumentos rudes, aplainou es­tradas onde havia abismos, à custa de esforços sobre-humanos.

—        E que me aconselhais neste sentido? — interro­gou o rapaz com profunda atenção, enquanto o velho mestre fazia longa pausa.

—        Quero dizer que conheço teu pai, bem como sua situação de abastança. Naturalmente, nas suas expres­sões de afeto, não se negaria a te prestar todo o auxílio, nesta emergência.

Mas teu pai é humano e pode ser chamado amanhã à vida espiritual. Seu amparo, portanto, seria valioso, mas não deixaria de ser precário, se não cooperasses com teu esforço próprio na solução dos teus problemas. E vives uma fase em que todo trabalho enérgico se faz indispensável. Examinada a questão de família, vejamos tua condição profissional. Até agora foste rabino da Lei, preocupado com os erros alheios, com as discussões da casuística, com a situação de evidência entre os doutores; ganhavas dinheiro na vigilância dos outros, mas Deus te chamou à verificação dos teus próprios desvios, como chamou a mim mesmo. A Terra Prometida desenha-se aos nossos olhos. Ë pre­ciso vencer os obstáculos e marchar.

Como doutor da Lei, isso não mais te seria possível. Então é necessário recomeçar a tarefa como o homem que procurava inutil­mente o ouro no lugar onde ele não existia. O problema é de trabalho, de esforço pessoal.

O         moço de Tarso demorou o olhar úmido de emoção no velho generoso e exclamou:

—        Sim, agora compreendo...

—        Que aprendeste na infância, antes da posição conquistada? — perguntou o ancião previdente.

—        Consoante os costumes da nossa raça, meu pai mandou-me aprender o ofício de tecelão, como sabeis.

—        Não podias receber das mãos paternas dádiva mais generosa — acrescentou Gamaliel com um sorriso sereno —; teu pai foi previdente, como todos os chefes de família do povo de Deus, procurando afeiçoar tuas mãos ao trabalho, antes que o cérebro se povoasse de muitas idéias. Está escrito que devemos comer o pão com o suor do rosto, O trabalho é o movimento sagrado da vida.

Fazendo um intervalo, como que procurando refletir mais profundamente, o velho mentor da mocidade fa­nanica voltou a dizer:

— Foste humilde tecelão antes de conquistares os títulos honoríficos de Jerusalém...

Agora que te can­didatas a servir ao Messias na Jerusalém da Humanidade, é bom que voltes a ser modesto tecelão. As tarefas apagadas são grandes mestras do espírito de submissão. Não te sintas humilhado regressando ao tear que nos surge, presentemente, qual amigo generoso. Estás sem dinheiro, sem recursos materiais... À primeira vista, considerando tua situação de realce no mundo, seria justo recorrer a parentes ou amigos. Mas não estás doente, nem envelhecido. Tens a saúde e a força. Não será mais nobre convertê-las em elemento de socorro a ti mesmo? Todo trabalho honesto está selado com a bênção de Deus.

Ser tecelão, depois de ter sido rabino, é para mim mais honroso que descansar sobre os títulos ilusórios, conquistados num mundo onde a maioria dos homens ignora o bem e a verdade.

Saulo compreendeu a grandeza dos conceitos e, to­mando-lhe a mão, beijou-a com profundo respeito, mur­murando:

— Não esperava de vós senão esta franqueza e esta sinceridade que iluminam meu espírito. Aprenderei, de novo, o caminho da vida, encontrarei no ruído do tear os estímulos brandos e amigos do trabalho santificante. Conviverei com os mais desfavorecidos da sorte, pene­trarei mais intimamente nas suas amarguras de cada dia; em contacto com as dores alheias hei de saber dominar meus próprios impulsos inferiores, tornando-me mais paciente e mais humano!...

Tomado de grande alegria, o sábio velhinho acari­ciou-lhe os cabelos, exclamando emocionado:

—        Deus abençoará tuas esperanças!...

Longo tempo ficaram em silêncio, como desejosos de prolongar, indefinidamente, aquele instante glorioso de compreensão e harmonia.

Foi Saulo quem, denotando no olhar as muitas preo­cupações íntimas, quebrou o silêncio, dizendo receoso:

—        Pretendo retomar o ofício da primeira idade, mas estou sem dinheiro para a viagem. Se fosse possível, exerceria a profissão aqui mesmo, em Palmira...

Falava hesitante, deixando perceber ao venerável amigo a vergonha que experimentava com o fazer-lhe essa confissão.

—        Como não? — obtemperou Gamaliel solícito - considero que as dificuldades da volta não seriam pe­quenas. Entretanto, não incluo nos obstáculos os pro­blemas do dinheiro, porque, de qualquer forma, podería­mos obtê-lo para as despesas mais urgentes. Refiro-me simplesmente aos perigos da situação que passou. Acho justo que regresses a Jerusalém ou a Tarso, plenamente integrado nos teus novos deveres. Toda planta é frágil quando começa a crescer. As tricas do farisaísmo, a falsa ciência dos doutores, as vaidades familiares pode­riam abafar a semente gloriosa que Jesus te lançou no coração ardente, O rebento mais promissor não se desen­volverá se o cobrirmos de detritos e lama. Ë bom que voltes ao berço, aos nossos companheiros e à família, como árvore frondejante, honrando a dedicação do Divino Cultivador.

—        Mas que fazer? — tornou Saulo preocupado.

O         antigo mestre refletiu um instante e esclareceu:

—        Sabes que as zonas do deserto são grandes mer­cados dos artigos de couro, O serviço de transporte. depende inteiramente dos tecelões mais hábeis e dedica­dos. Assim o compreendendo, meu irmão estabeleceu diversas tendas de trabalho nos oásis mais distantes, para atender às necessidades do seu comércio. Conver­sarei com Ezequias a teu respeito. Não direi que se trata de um grande chefe de Jerusalém, que pretende exilar-se por algum tempo, não pelo receio de envergo­nhar teu nome ou tua origem, mas por julgar útil que proves a humildade e a solidão no teu novo caminho. As considerações convencionais poderiam perturbar-te, agora que necessitas exterminar o “homem velho” a golpes de sacrifício e disciplina.

            — Compreendo e obedeço em meu próprio benefício murmurou Saulo com atenção.

—        Aliás, Jesus exemplificou tudo isso, permane­cendo em nosso meio, sem que o percebêssemos.

O         moço tarsense pôs-se a meditar na elevação dos alvitres recebidos. Iniciaria uma existência nova. To­maria o tear com humildade. Alegrava-se, ao recordar que o Mestre não desdenhara, por sua vez, o banco de carpinteiro. O deserto lhe proporcionaria consolação, trabalho, silêncio. Ganharia não mais o dinheiro fácil da admiração indevida, mas os recursos necessários à existência, com o subido valor dos obstáculos vencidos. Gamaliel tinha razão. Não era lícito rogar o favor dos homens quando Deus lhe havia feito o maior de todos os favores, iluminando-lhe a consciência para sempre. É verdade que em Jerusalém havia sido cruel verdugo, mas contava apenas trinta anos. Buscaria reconciliar-se com todos a quem havia ofendido no seu rigorismo sectário. Sentia-se jovem, trabalharia para Jesus enquanto lhe restassem energias.

A palavra carinhosa do ancião veio arrancá-lo das profundas cismas.

—        Tens o Evangelho? — perguntou o velhinho com bondoso interesse.

Saulo mostrou-lhe a parte fragmentária que trazia, explicando-lhe o trabalho que teve, em Damasco, para copiá-la dos manuscritos do generoso pregador que lhe curara a cegueira repentina. Gamaliel examinou-a com atenção e, depois de concentrar-se longo tempo, acrescentou:

—        Tenho uma cópia integral das anotações de Levi, cobrador de impostos em Cafarnaum, que se fez Após­tolo do Messias — lembrança generosa de Simão Pedro à minha pobre amizade: presentemente não necessito mais desses pergaminhos, que considero sagrados. Para gravar na memória as lições do Mestre, procurei copiar todos os ensinos, fixando-os na retentiva, para sempre. Já possuo três exemplares completos do Evangelho, sem a cooperação de escriba algum. Desse modo, por con­siderar a dádiva de Pedro como santificada relíquia de nobre afeição, quero depô-la em tuas mãos. Levarás con­tigo as páginas escritas na igreja do “Caminho”, como fiéis companheiras do teu novo trabalho.

O         ex-rabino escutava-lhe as declarações afetuosaS, tomado de profunda emoção.

—        Mas, por que desfazer-vos de uma lembrança cari­nhosa, por minha causa? — perguntou sensibilizado. —Ficaria muito contente com uma das cópias feitas por vossas mãos!...

O         velho mestre fixou o olhar tranqüilo na paisagem e murmurou com voz profética:

—        Cheguei ao fim da carreira, devo esperar a morte do corpo. Se hei de abandonar a dádiva de Pedro a pes­soas que lhe não podem reconhecer o valor que lhe atribuímos, é justo entregá-la a um amigo fiel, que pode ajuizar do seu caráter sagrado. Além disso, tenho a convicção de que não mais poderei voltar a Jerusalém; neste mundo, não me será possível qualquer entendi­mento direto com os Apóstolos galileus, a respeito das luzes que o Salvador derramou em meu espírito. E temo que os adeptos de Jesus te não possam compreender de pronto, quando regressares à cidade santa. Terás, então, esta lembrança para te apresentares a Pedro em meu nome.

Aquele tom profético impressionava o moço tarsense, que baixou a cabeça, de olhos úmidos.

Depois de longo intervalo, como que procurando recompor as idéias com perfeita sabedoria, Gamaliel con­tinuava solícito:

— Vejo-te, no futuro, dedicado a Jesus, com o mes­mo zelo ardente com que te conheci consagrado a Moisés! Se o Mestre te chamou ao serviço é porque confia na tua compreensão de servo fiel. Quando o esforço das mãos te haja granjeado a liberdade para escolheres o novo caminho a seguir, Deus há de abençoar-te o coração, para difundires a luz do Evangelho entre os homens, até ao último dia de vida aqui na Terra. Nesse labor, meu filho, se topares incompreensão e luta em Jerusalém, não deses­peres nem esmoreças. Semeaste por lá certa confusão nos espíritos, é justo recolhas os resultados. Em toda tarefa, porém, lembra-te do Cristo e passa adiante com o teu esforço sincero. Não te perturbem as desconfianças, a calúnia e a má-fé, atento a que Jesus venceu ga­lhardamente tudo isso!...

Saulo sentia profundo descanso naquela exortação amorosa, terna, leal. Ouvindo-a, deixou-se ficar, longo tempo, entre lágrimas ardentes que testemunhavam o arrependimento do passado e as esperanças do futuro.

Naquela tarde, Gamaliel deixou a rústica choupana, dirigindo-se com o ex-discípulo à casa do irmão, que acolheu, desde então, o jovem tarsense sob o seu teto, com indisfarçável contentamento.

A inteligência fulgurante e a juventude comunica­tiva do ex-doutor da Lei conquistaram Ezequias e os seus, numa bela expressão de amizade espontânea.

Nessa mesma noite, concluídas as cerimônias do­mésticas da última colação habitual, o velho rabino de Jerusalém expôs ao negociante a situação do seu pro­tegido. Explicou-lhe que Saulo fora seu discípulo, desde menino, exaltando-lhe o valor pessoal e concluindo com a exposição de suas necessidades econômicas, verdadei­ramente críticas. E diante do próprio interessado, que acentuava sua admiração por aquele velhinho sábio e generoso, esclareceu que ele tencionava trabalhar como tecelão nas tendas do deserto, rogando a Ezequias auxiliasse, com sua bondade, tão nobres aspirações de traba­lho e esforço próprios.

O         comerciante de Palmira admirou-se.

—        Mas o rapaz, de modo algum — advertiu aten­cioso — necessitará insular-se para ganhar a vida. Tenho meios de localizá-lo aqui mesmo, na cidade, onde ficará em contacto permanente conosco.

—       Entretanto, preferiria vosso amparo generoso lá no deserto — acentuou Saulo em tom significativo.

—        Por quê? — indagou Ezequias interessado — não compreendo mocidades como a tua exiladas nos esten­dais de areia intermináveis. Os imigrantes do êxodo de Jerusalém, na condição de solteiros, não toleraram os elementos que lhes ofereci nos oásis distantes.

Apenas alguns casais aceitaram as propostas e partiram. Quanto a ti, com os teus dotes intelectuais, não compreendo como preferes ser tecelão humilde, segregado de todos...

Gamaliel compreendeu que a estranheza do irmão poderia levá-lo a suposições errôneas, acerca do jovem amigo, e, antes que alguma suspeita injusta se lhe esbo­çasse ao espírito indagador, ponderou com prudência:

—        Tua pergunta, Ezequias, é natural, pois as re­soluções de Saulo inspiram estranheza a qualquer homem prático. Trata-se de um moço cheio de talento, credor de belas promessas e, ao demais, muito instruído. Os menos avisados poderão chegar ao extremo de presumi­rem na sua atitude o desejo de fugir a conseqüências de algum crime. Mas não há tal. Para ser mais franco, devo dizer que meu antigo discípulo quer consagrar-se, mais tarde, à difusão da palavra de Deus. Achas, então, que Saulo se elegesse a carreira da mocidade triunfante, da nossa época, preferiria Palmira a Jerusalém? A situa­ção, portanto, não é apenas de necessidade pecuniária, é também de carência de meditação nos problemas mais graves da vida. Bem sabemos que os profetas e homens de Deus foram aos lugares ermos, a fim de sentirem as reais inspirações do Altíssimo, antes de ministrarem, com êxito, a santidade da palavra.

—        Se é assim... replicou o outro, vencido.

E após meditar alguns momentos, o negociante vol­tou a dizer:

—        Na região que conhecemos por “oásis de Dan”, daqui distante mais de cinqüenta milhas, precisamente, instalei há cerca de um mês um jovem casal de tecelões que chegou na última leva de refugiados. Trata-se de Áquila, cuja mulher, de nome Prisca, foi serva de minha esposa, quando menina, é órfã desamparada. Esses bons operários são, atualmente, os únicos habitantes do oásis. Saulo poderá fazer-lhes companhia. Ali há tendas pró­prias, casa confortável e teares indispensáveis ao serviço.

—        E qual o sistema do trabalho? — interrogou o jovem tarsense interessado pela nova tarefa.

—        A especialidade desse posto avançado — esclare­ceu Ezequias com certo orgulho — é a preparação de tapetes de lã e dos tecidos resistentes de pelo caprino, destinados a barracas de viagem. Esses artigos são for­necidos por nossa casa comercial, em grande escala, mas, situando a manufatura desse trabalho tão distante, tive em vista as necessidades urgentes dos grupos de camelos de minha propriedade, empregados no meu tráfico comer­cial com toda a Síria e pontos outros mais florescentes, do comércio em geral.

—        Tudo farei por corresponder à vossa confiança —confirmou o ex-rabino confortado.

A palestra prosseguiu ainda, longo tempo, no comen­tário das perspectivas, das condições e vantagens do negócio.

Daí a três dias, Saulo despedia-se do mestre, debaixo de profunda comoção. Figurava-se-lhe que aquele abraço afetuoso era o último e, até que os camelos da caravana largassem em direção da imensa planície, o jovem envol­veu o venerando ancião nas vibrações caridosas do an­gustioso adeus.

No dia imediato, os serviçais de Ezequias, ladeando a extensa fila de camelos resignados, deixavam-no com vultosa carga de couros, na companhia de Áquila e sua mulher, no grande oásis que florescia em pleno deserto.

Os dois operários da pequena oficina receberam-no com as melhores mostras de fraternidade e simpatia. Saulo reconheceu neles, de relance, as mais nobres qua­lidades espirituais. A mocidade do generoso casal ex­pandia-se em formosas expressões de trabalho e bom ânimo. Prisca desdobrava-se em atividades para assi­nalar em tudo as preciosidades do seu carinho. Suas velhas canções hebraicas ressoavam no grande silêncio como notas de soberana e harmoniosa beleza. Termina­dos os serviços domésticos, ei-la junto do companheiro, nas lides do tear, até às horas mais avançadas do crepúsculo. O marido, por sua vez, parecia um tempera­mento privilegiado, desses que se movimentam sem a pre­sença do aguilhão. Plenamente integrado nas responsabilidades que lhe competiam, Áquila trabalhava sem des­canso à sombra das árvores acolhedoras e amigas.

Saulo compreendeu a bênção que havia recebido. Tinha a impressão de encontrar naquelas duas almas fraternas, que nunca mais se haviam de separar espi­ritualmente da grandeza de sua missão, dois habitantes de um mundo diferente que, até então, não lhe fora dado conhecer na vida.

Áquila e Prisca, antes que esposos, pareciam ver­dadeiros irmãos. No primeiro dia de esforço conjunto, o ex-doutor da Lei observou-lhes o respeito mútuo, a perfeita conformidade de idéias a elevada noção de deveres que lhes caracterizava as menores atitudes e, sobretudo, a alegria sã que irradiava dos seus menores gestos. Seus costumes puros e generosos encantavam-lhe a alma desiludida das hipocrisias humanas. As re­feições eram simples; cada objeto tinha o seu aproveitamento e lugar adequado, e as palavras, quando saíam do círculo da alegria comum, jamais incidiam em male­dicência ou frivolidade.

O primeiro dia correu com agradabilíssimas surpre­sas para o ex-rabino, sequioso de paz e solidão para os seus novos estudos e meditações. O companheiro de trabalho desfazia-se em gentilezas para atender-lhe às pequeninas dificuldades no mister que há longo tempo deixara de praticar. Áquila estranhou, naturalmente, as mãos delicadas, as maneiras diferentes, em nada seme­lhantes às de um tecelão comum; mas, com a nobreza que o caracterizava, nada perguntou relativamente aos motivos do seu insulamento.

Naquela mesma tarde, cessada a tarefa, o casal acomodou-se ao pé de frondosa palmeira, não sem lançar ao novo companheiro olhares indagadores, que tradu­ziam indisfarçável inquietude. Silenciosos, desenrolaram uns velhos pergaminhos e começaram a ler com muita atenção.

Saulo percebeu aquela atitude receosa e aproxi­mou-se.

— De fato — disse carinhoso — a tarde no deserto convida à meditação... o lençol infinito de areia parece um oceano parado... a aragem branda representa a mensagem das cidades distantes. Tenho a impressão de estarmos num templo de paz imperturbável, fora do mundo...

Áquila admirou-se daquelas imagens evocativas e experimentou maior simpatia por aquele rapaz anônimo, segregado talvez dos afetos mais caros, a contemplar a planície sem-fim, com imensa tristeza.

— É verdade — respondeu atencioso —, sempre acreditei que a Natureza conservou o deserto como altar de silêncio divino, para que os filhos de Deus tenham na Terra um local de perfeito repouso. Aproveitemos, pois, nosso estágio na solidão, para pensar no Pai justo e santo, considerando sua magnanimidade e grandeza.

A esse tempo, Prisca debruçava-se sobre a primeira parte do rolo de pergaminhos, absorvida na leitura.

Lendo casualmente, de longe, o nome de Jesus, Saulo aproximou-se ainda mais e, sem conseguir ocultar seu grande interesse, perguntou:

- Áquila, tenho tanto amor ao profeta nazareno que me permito indagar se tua leitura sobre a grandeza do Pai Celestial é feita pelos ensinamentos do Evangelho.

O jovem casal experimentou profunda surpresa em face do inesperado de semelhante pergunta.

—        Sim... — esclareceu o interpelado hesitante —, mas, se vens da cidade, não ignoras as perseguições movidas a quantos se encontram em ligação com o “Caminho” do Cristo Jesus...

Saulo não dissimulou sua alegria, verificando que os companheiros, amantes da leitura, estavam em con­dições de permutar mais elevadas idéias do novo apren­dizado.

Animado pela confissão do outro, sentou-se nas pedras rústicas e, tomando os pergaminhos com inte­resse, perguntava:

—        Anotações de Levi?

—        Sim — esclareceu Áquila mais senhor de si e certo de se encontrar em face de um irmão de ideal —, copiei-as na igreja de Jerusalém, antes de partir.

Num instante, Saulo buscou a cópia do Evangelho que constituía para seu coração uma das mais preciosas lembranças da vida. Conferiram, satisfeitos, os textos e os ensinos.

Tomado de sincero interesse fraternal, o ex-rabino interrogou com solicitude:

—        Quando saíram de Jerusalém? Folgo imenso quan­do encontro irmãos que conhecem de perto nossa cidade santa. Quando saí de Damasco, não previa que Jesus me reservasse tão gratas surpresas.

—        Faz meses que de lá saímos — explicou Áquila, agora cheio de confiança na espontaneidade das palavras ouvidas. — Fomos compelidos a isso pelo movimento das perseguições.

Aquela referência brusca e indireta ao seu passa­do, perturbava o jovem tarsense no mais recôndito do coração.

—        Chegaste a conhecer Saulo de Tarso? — per­guntou o tecelão com uma grande ingenuidade a trans­parecer-lhe dos olhos. Aliás — continuava, enquanto o interpelado buscava o que responder —, o célebre ini­migo de Jesus tem nome igual ao teu.

O         ex-rabino considerou que seria melhor seguir à risca o conselho de Gamaliel. Era preferível ocultar-se, experimentar a reprovação justa do seu passado condenável, humilhar-se ante o juízo dos outros, por mais implacáveis que fossem, até que os irmãos do “Caminho” lhe comprovassem plenamente a fidelidade do testemunho.

—        Conheci-o — replicou vagamente.

—        Pois bem — prosseguia Áquila, iniciando a nar­ração das suas vicissitudes —, é bem possível que, pela tua passagem em Damasco e Palmira, não tivesses conhe­cimento perfeito dos martírios que o famoso doutor da Lei nos impôs, muitas vezes, arbitrariamente. Talvez o próprio Saulo, segundo creio, não pudesse saber as atrocidades cometidas pelos homens inescrupulosos que tinha às suas ordens, porque as perseguições foram de tal natureza que, como irmão do “Caminho”, não posso admitir que um rabino educado pudesse assumir a res­ponsabilidade pessoal de tantos feitos iníquos.

Enquanto o ex-doutor procurava, em vão, uma res­posta adequada, Prisca entrava na conversa, exclamando com simplicidade:

—        É claro que o rabino de Tarso não podia conhe­cer todos os crimes cometidos em seu nome. O próprio Simão Pedro. na véspera de partirmos, ocultamente, à noite, nos afirmou que ninguém devia odiá-lo, porque, não obstante o papel que representou na morte de Estevão, era impossível fosse o mandante de tantas medi­das odiosas e perversas.

Saulo compreendia, agora que ouvia os mais hu­mildes, a extensão da campanha criminosa que desenca­deara, dando ensanchas a tantos abusos de subalternos e apaniguados.

—        Mas — perguntou admirado — sofreste tanto assim? Foste condenado a alguma pena?

—        Não foram poucos os que sofreram vexames Iguais aos que experimentei murmurou Áquila expli­cando-se —, dado o condenável procedimento de uns tan­tos energúmenos fanáticos, escolhidos como auxiliares prestimosos do movimento.

—        Como assim? inquiriu Saulo sumamente inte­ressado.

       — Dar-te-ei um exemplo. Imagina que um patrício de nome Jochal, várias vezes interpelou meu pai relativamente à possibilidade da compra de uma padaria em Jerusalém. Eu cuidava de minha tenda; meu velho ge­nitor, de seus serviços. Vivíamos felizes e, considerando nossa paz, apesar das investidas do ambicioso, meu pai jamais pensou em alienar a fonte dos seus recursos. Jochaí. entretanto, logo no início das perseguições, logrou posição de realce. Em tais feitos, os caracteres mesqui­nhos sempre levam a palma. Bastou lhe dessem um pouco de autoridade e o invejoso logo expandiu seus criminosos desejos. É verdade que eu e Prisca fomos dos primeiros a freqüentar a igreja do “Caminho”, não só por afinidade de sentimento, como por dever a Simão Pedro a cura de antigos males que me vinham da infância. Meu pai, no entanto, apesar da simpatia pelo Salvador, sempre ale­gava estar bastante idoso para mudar de idéias religiosas. Aferrado à Lei de Moisés, não podia compreender uma renovação geral de princípios em matéria de fé. Isso, todavia, não invalidou os instintos perversos do ambi­cioso. Certo dia, Jochaí nos bateu à porta acompanhado de escolta armada, com ordem de prisão para os três. Era inútil resistir. O doutor de Tarso lançara um edito em que toda resistência significava morte. Lá nos fomos à prisão. Em vão meu pai jurou fidelidade à Lei. Depois do interrogatório, eu e Prisca recebemos ordem de re­gressar a casa, mas o velho foi encarcerado sem com­paixão. Os bens modestos foram-lhe imediatamente con­fiscados. Depois de muitas providências de nossa parte, conseguimos voltasse ele à nossa companhia e o valorosu velhinho, cujo único arrimo era a minha dedicação filial, na sua senectude e viuvez, expirou em nossos braços no dia imediato ao livramento por nós ansiosamente espe­rado. Quando nos reveio parecia um fantasma. Guar­das caridosos trouxeram-no quase agonizante. Ainda lhe pude ver os ossos quebrados, as feridas abertas, a epi­derme lanhada de açoites. Em palavras titubeantes, descreveu as cenas lamentáveis do cárcere. O próprio Jochaí, rodeado de sequazes, foi o autor dos últimos suplícios. Não podendo resistir aos sofrimentos, entre­gou a alma a Deus!

Áquila estava profundamente comovido. Furtiva lá­grima viera associar-se às penosas recordações.

—        E a autoridade do movimento? — perguntou Saulo emocionado ao extremo — estaria alheia a esse crime?

—        Creio que sim. A crueldade foi demasiada para que se lhe atribuísse tão-só a punição por motivos re­ligiosos.

—        Mas não te valeste de alguma petição de justiça?

—        Quem se atreveria a fazê-lo? — perguntou o em­pregado de Ezequias com admiração.

— Tenho amigos que chegaram a recorrer, mas pagaram com castigos mais violentos o desejo de justiça.

O         ex-rabino compreendeu a justeza dos conceitos. Somente agora tinha bastante largueza de vistas espi­rituais para avaliar a velha cegueira que lhe negrejara a alma. Áquila tinha razão. Muitas vezes fora surdo às rogativas mais comovedoras. Invariavelmente, man­tinha as decisões mais absurdas dos seus prepostos in­conscientes. Recordava-se do próprio Jochaí, que lhe parecia tão prestimoso nos dias de ignorância.

—        E que pensas de Saulo? — perguntou brusca­mente.

Longe de saber com quem permutava as idéias mais íntimas, Áquila respondeu sem titubear:

—        O Evangelho manda considerá-lo irmão extre­mamente necessitado da luz de Jesus-Cristo. Nunca o vi, mas, temendo as iniqüidades praticadas em Jerusalém, aqui vim parar em fuga precipitada, e tenho orado a Deus por ele, esperando que um raio do céu o esclareça, não tanto por mim, que nada valho, mas por causa de Pedro, que considero um segundo pai muito querido. Acredito que se operariam maravilhas se a igreja do “Caminho” pudesse trabalhar livremente. Julgo que os Apóstolos galileus são dignos de um campo sem espinhos para a sementeira de Jesus.

Dirigindo-se à esposa, enquanto o moço de Tarso silenciava, o tecelão exclamava com interesse:

— Lembras-te, Prisca, como se exorava pelo per­seguidor nas preces íntimas da igreja?

Muitas vezes, para esclarecer nosso espírito fraco no perdão, Pedro nos ensinava a considerar o implacável rabino como a um irmão que as violências obscureciam. Para que nos­sos ressentimentos mais vivos se desfizessem, historiava o seu passado, dizendo que, também ele, por ignorância, chegara a negar o Mestre, mais de uma vez. Salientava nossas fraquezas humanas, induzia-nos a melhor compreensão. Certo dia chegou a declarar que toda a per­seguição de Saulo era útil, porque nos levava a pensar em nossas próprias misérias, a fim de estarmos vigi­lantes nas responsabilidades com Jesus.

O         ex-discípulo de Gamaliel tinha os olhos úmidos.

—        Sem dúvida, o famoso pescador de Cafarnaum é um dos grandes irmãos dos infelizes — murmurou con­victamente.

A palestra desviou-se para outros comentários, de­pois da intervenção de Prisca nas derradeiras notas do assunto, revelando conhecer muitas mulheres de Jeru­salém, que, tendo marido e filhos encarcerados, pediam sinceramente a Jesus pela iluminação do célebre perse­guidor do “Caminho”. Em seguida, falaram do Evan­gelho. O manto de estrelas cobriu suas grandiosas esperanças, enquanto Saulo bebia a longos haustos a água pura da amizade sincera, naquele novo mundo tão re­duzido.

Nessas palestras carinhosas e fraternais, os dias se foram passando rápidos. De quando em quando, chega­vam de Palmira reforços de abastecimentos e outros re­cursos. Os três habitantes do oásis silencioso entrelaça­vam aspirações e pensamentos em torno do Evangelho de Jesus, o único livro de suas meditações naquelas para­gens tão remotas.

O ex-rabino modificara o próprio aspecto, ao con­tacto direto das forças agressivas da Natureza. A epi­derme queimada pelo sol dava a impressão de um homem acostumado à inclemência do deserto. A barba crescida transformara-lhe o semblante. As mãos afeitas ao trato dos livros tornaram-se calosas e rudes. Entretanto, a solidão, as disciplinas austeras, o tear laborioso, lhe haviam enriquecido a alma de luz e serenidade. Os olhos calmos e profundos atestavam os novos valores do espí­rito. Entendera, finalmente, aquela paz desconhecida que Jesus desejara aos discípulos; sabia, agora, interpretar a dedicação de Pedro, a tranqüilidade de Estevão no Instante da morte ignominiosa, o fervor de Abigail, as virtudes morais dos freqüentadores do “Caminho”, que perseguira em Jerusalém. A auto-educação, na ausência dos recursos da época, ensinara-lhe à alma ansiosa o segredo sublime de se entregar ao Cristo, para repousar em seus braços misericordiosos e invisíveis. Desde que se consagrara ao Mestre, de alma e coração, os remorsos, as dores, as dificuldades como que se afastaram do seu espírito. Recebia todo trabalho como um bem, toda ne­cessidade como elemento de ensino. Sem esforço, afei­çoou-se a Áquila e sua mulher, como se houvessem nascido juntos. Certa vez, o companheiro adoeceu e es­teve à morte, prostrado por violenta febre. A situação dolorosa, a multiplicação das tempestades de areia, aba­teram igualmente o ânimo de Prisca, que se recolheu ao leito com poucas esperanças de vida. Saulo, porém, mos­trou-se de uma coragem e desvelo inauditos. Tomado de sincera confiança em Deus, esperou a restauração da calma e da alegria. Jubiloso, viu o regresso de Áquila ao tear e a volta da companheira aos labores domésticos, cheios de novas expressões de paz e confiança.

Quando mais de um ano havia corrido sobre aquela soledade, uma caravana vinda de Palmira trazia-lhe um bilhete lacônico. O negociante comunicava-lhe a morte súbita do irmão, aliás de há muito esperada.

A partida de Gamaliel para os reinos da morte não deixou de ser uma dolorosa surpresa.

O velho mestre, depois do pai, foi o maior amigo que encontrou na vida. Meditou seus últimos conselhos, ponderou-lhe a profunda sabedoria. Ao seu influxo, conseguira a paz desejada para ajustar-se à situação espiritual necessária, de ma­neira a reorganizar a existência. Nesse dia, pensamentos de profunda saudade martirizaram-lhe a alma sensível.

Á tarde, após a refeição e na hora das meditações costumeiras, o ex-rabino contemplou o casal com ternura maior a transparecer dos olhos francos.

Cada qual se engolfava na meditação do Evangelho Divino, quando o moço tarsense falou com certa timidez, em desacordo com seus gestos resolutos:

—        Áquila, muita vez, na solidão do nosso trabalho, tenho pensado na enormidade do mal que te causou o doutor de Tarso. Que farias se um dia te visses repen­tinamente em face do verdugo?

—        Procuraria estimar nele um irmão.

—        E tu, Prisca? — perguntou à mulher que o fixa­va curiosa.

—        Seria ótima ocasião para testemunhar o amor que Jesus exemplificou em suas lições divinas.

O         ex-doutor da Lei recobrou a serenidade e, alteando a voz, exclamou convictamente:

       - Sempre considerei que um homem, chamado a administrar, responde por todos os erros de seus pre­postos, no que toca ao plano geral dos serviços. Por­tanto, no meu modo de pensar, não culparei tanto, a Jochaí que se arvorou em criminoso vulgar, abusando de uma prerrogativa que lhe foi conferida para execução de tantas vinganças torpes.

—        A quem imputarias, então, o assassínio de meu pai? — perguntou Áquila impressionado, enquanto o amigo fazia ligeira pausa.

—        Julgo que Saulo de Tarso deveria responder pelo processo. Ë verdade que ele não autorizou o feito cruel, mas, tornou-se culpado pela indiferença pessoal, quanto aos detalhes da tarefa que competia ao seu tirocínio.

Os cônjuges entraram a meditar no motivo de tais perguntas, enquanto o moço se calava, retraído.

Por fim, com voz humilde e comovedora, recomeçou a falar:

—        Meus amigos, sob a inspiração do Senhor, é justo confessarmo-nos uns aos outros.

Minhas mãos calejadas no trabalho, meu esforço por bem aprender as virtudes da fé, que ambos têm exemplificado a meus olhos, devem ser um atestado da minha renovação espiritual. Sou Saulo de Tarso, o sanhoso perseguidor, transformado em servo penitente. Se muito errei, hoje muito neces­sito. Na sua misericórdia, Jesus rasgou a túnica miserável das minhas ilusões. Os sofrimentos regeneradores chegaram-me ao coração, lavando-o com lágrimas dolo­rosas. Perdi tudo que significava honrarias e valores do mundo, por tomar a cruz salvadora e seguir o Mestre na trilha da redenção espiritual. Ë verdade que ainda não pude abraçar-me ao madeiro das lutas construtivas e santificantes, mas persevero no esforço de negar-me a mim mesmo, desprezando o passado de iniqüidades para merecer a cruz da minha ascese para Deus.

       Áquila e a mulher contemplavam-no com assombro. Não duvideis da minha palavra — continuou de olhos úmidos. — Assumo a responsabilidade dos meus tristes feitos. Perdoem-me, porém, levando em conta a minha ignorância criminosa!...

       O tecelão e a esposa compreenderam que as lágri­mas lhe sufocavam a voz. Como que tolhido por singular emoção, Saulo começou a chorar convulsivamente. Áquila aproximou-se e abraçou-o. Aquela atitude carinhosa pa­recia agravar a contrição penosa, porque o pranto jorrou mais abundante. Recordou o momento em que encon­trara a afetividade sincera de Ananias, e, sentindo-se ali, nos braços de um irmão, deixou que as lágrimas lhe lavas­sem plenamente o coração. Sentia necessidade de expan­dir sentimentos afetuosos; A velha vida de Jerusalém era convencionalismo e secura. Como doutor destacado, tivera muitos admiradores, mas em nenhum chegara a sentir afinidades fraternas. Naquele recanto do deserto, porém, o quadro era outro. Tinha à frente um homem digno e honesto, companheiro dedicado e trabalhador, antiga vítima das suas perseguições inflexíveis e cruéis. Quantos, como Áquila e sua mulher, não estariam dis­persos no mundo, comendo o pão amargo do exílio por sua causa? Os grandes sentimentos nunca povoam a alma de uma só vez, em sua beleza integral. A criatura envenenada no mal é qual recipiente de vinagre, que necessita ser esvaziado pouco a pouco. A visão de Jesus constituía um acontecimento vivo, imorredouro; mas, para que pudesse compreender toda a extensão dos seus novos deveres, impunha-se-lhe o caminho estreito das provas ríspidas e amargosas. Vira o Cristo; mas, para ir ter com Ele, era indispensável voltar atrás e transpor abismos. As desilusões da Sinagoga de Damasco, o re­conforto junto dos irmãos humildes sob a direção de Ananias, a falta de recursos financeiros, os conselhos austeros de Gamaliel, o anonimato, a solidão, o abandono dos entes mais caros, o tear pesado sob o sol ardente, a penúria de todo e qualquer conforto material, a meditação diária nas ilusões da vida — tudo isso representara auxílio precioso para sua decisão vitoriosa. O Evangelho funcionara como lâmpada na jornada difícil, para o descobrimento de si mesmo, a fim de ajuizar as necessidades mais prementes.

Abraçando-se estreitamente ao amigo, que buscava enxugar-lhe as lágrimas, recordava-se de que em Da­masco, após a grande visão do Messias, talvez ainda guardasse no íntimo o orgulho de saber ensinar, o amor à cátedra de mestre em Israel, a tendência despótica de obrigar o semelhante a pensar com ele; ao passo que agora podia examinar o passado culposo e sentir o júbilo da reconciliação, dirigindo-se com humildade à sua vítima. Naquele instante, teve a impressão de que Áquila representava a comunidade de todos os ofendidos por seus desmandos cruéis. Serenidade branda enchia-lhe o coração. Sentia-se mais distanciado do orgulho, do amor­-próprio, das idéias amargas, dos remorsos terríveis. Cada gota de pranto era um pouco de fel que expungia da alma, renovando-lhe as sensações de tranqüilidade e de alívio.

—        Irmão Saulo — disse o tecelão sem ocultar seu júbilo —, regozijemo-nos no Senhor, porque, como irmãos, estávamos separados e agora nos encontramos juntoS novamente. Não falemos do passado, comentemos o poder de Jesus, que nos transforma por seu amor.

Prisca, que também chorava, interveio com ternura:

—        Se Jerusalém conhecesse esta vitória do Mestre, renderia graças a Deus!...

Sentados os três sobre a relva rala do oásis, ao sopro do vento que abrandava os rigores da tarde quente, irmanados na sublimidade da fé comum, o moço tarsense narrou-lhes o sucesso inolvidável da jornada de Damasco, revelando as profundas transformações da sua vida.

O         casal chorou de emoção e alegria ouvindo o feito da misericórdia de Jesus, que, a seus olhos piedosos, não representava apenas um gesto de carinho ao servo desviado, mas uma bênção de amor para a Humanidade inteira.

Daí por diante, a tarefa lhes parecia mais leve, as dificuldades menos penosas. Nunca mais passou um crepúsculo sem que comentassem a dádiva gloriosa do Cristo às portas de Damasco.

—        Agora que o Mestre nos reuniu — exclamava Áquila satisfeito —, saiamos do deserto, proclamemos os favores de Jesus pelo mundo inteiro. Eu e Prisca não temos muitas obrigações de família. Com a morte de meu pai, estamos sós no tocante aos deveres mais pesa­dos e é razoável não perdermos o ensejo de auxiliar a difusão da Boa Nova. Além das lições de Levi, temos agora a visão de Jesus ressuscitado, para ilustrar nossa palavra.

Depois de muito tempo, às vésperas de retornarem à luta nos grandes centros populosos, em lhes ouvindo os apelos entusiásticos, Saulo indagou dos projetos que acalentavam.

—        Desde a tua revelação — exclamou o tecelão con­fiante e esperançoso — alimento um grande ideal. Parece incrível à primeira vista; mas, antes de morrer, sonho ir a Roma e anunciar o Cristo aos irmãos da velha Lei. Tua visão no caminho de Damasco enche-me de coragem! Narrarei o fato aos mais indiferentes e darei um pouco de luz aos mais insensatos.

Como servidor humilde dos homens, saberei dedicar-me aos interesses do Salvador.

—        Mas, quando pretendes partir?

—        Quando o Mestre rasgar o caminho com o pri­meiro ensejo. Isto posto, abandonaremos Palmira.

Depois de uma pausa em que Saulo se conservava pensativo, o outro murmurou:

—        Por que não vais conosco a Roma?

       — Ah! se eu pudesse!... — disse o ex-rabino dan­do a entender o seu desejo. — Julgo que Jesus desejará ver-me, antes de tudo, inteiramente reconciliado com quantos ofendi em Jerusalém. Além disso preciso rever meus pais, matando as saudades do coração.

Com efeito, depois da passagem da grande caravana que lhes trazia os substitutos, servidos de um camelo, os três irmãos do “Caminho” deixaram o oásis em dire­ção a Palmira, onde a família de Gamaliel os acolheu com desvelado carinho.

Áquila e a mulher ali ficariam algum tempo ao serviço de Ezequias, até que pudessem realizar o formoso ideal de trabalho na poderosa Roma dos césares, mas Saulo de Tarso, agora resistente como um beduíno, depois de agradecer a generosidade do benfeitor e despedir-se dos amigos com lágrimas nos olhos, tomou novamente o rumo de Damasco, radicalmente transformado pelas meditações de três anos consecutivos, passados no de­serto.

 

Lutas e humilhações

A jornada se fez sem incidentes. Entretanto, em sua nova soledade, o moço tarsense reconhecia que for­ças invisíveis proviam-lhe a mente de grandiosas e con­soladoras inspirações. Dentro da noite cheia de estrelas, tinha a impressão de ouvir uma voz carinhosa e sábia, a traduzir-se por apelos de infinito amor e de infinita esperança. Desde o instante em que se desligara da com­panhia amorável de Áquila e sua mulher, quando se sen­tiu absolutamente só para os grandes empreendimentos do seu novo destino, encontrou energias interiores até então imprevistas, por desconhecidas.

Não podia definir aquele estado espiritual, mas o caso é que dali por diante, sob a direção de Jesus, Estevão conservava-se a seu lado como companheiro fiel.

Aquelas exortações, aquelas vozes brandas e amigas que o assistiram em todo o curso apostolar e atribuidas diretamente ao Salvador, provinham do generoso mártir do “Caminho”, que o seguiu espiritualmente durante trinta anos, renovando-lhe constantemente as forças para execução das tarefas redentoras do Evangelho.

Jesus quis, dessarte, que a primeira vítima das per­seguições de Jerusalém ficasse para sempre irmanada ao primeiro algoz dos prosélitos de sua doutrina de vida e redenção.

Ao invés dos sentimentos de remorso e perplexidade em face do passado culposo; da saudade e desalento que, às vezes, lhe ameaçavam o coração, sentia agora radiosas promessas no espírito renovado, sem poder explicar a sagrada origem de tão profundas esperanças. Não obs­tante as singulares alterações fisionômicas que a vida, o regime e o clima do deserto lhe produziram, entrou em Damasco com alegria sincera na alma agora devo­tada, absolutamente, ao serviço de Jesus.

Com júbilo indefinível abraçou o velho Ananias, pondo-o ao corrente de suas edificações espirituais. O respeitável ancião retribuiu-lhe o carinho com imensa bondade. Dessa vez, o ex-rabino não precisou insular-se numa pensão entre desconhecidos, porque os irmãos do “Caminho” lhe ofereceram franca e amorosa hospitali­dade. Diariamente, repetia a emoção confortadora da primeira reunião a que comparecera, antes de recolher-se ao deserto. A pequena assembléia fraternal congrega­va-se todas as noites, trocando idéias novas sobre os ensinamentos do Cristo, comentando os acontecimentos mundanos à luz do Evangelho, permutando objetivos e conclusões. Saulo foi informado de todas as novidades atinentes à doutrina, experimentando os primeiros efeitos do choque entre os judeus e os amigos do Cristo, a propósito da circuncisão. Seu temperamento apaixo­nado percebeu a extensão da tarefa que lhe estava re­servada. Os fariseus formalistas, da sinagoga, não mais se insurgiam contra as atividades do “Caminho”, desde que o seguidor de Jesus fosse, antes de tudo, fiel obser­vador dos princípios de Moisés. Somente Ananias e alguns poucos perceberam a sutileza dos casuístas que provocavam deliberadamente a confusão em todos os setores, atrasando a marcha vitoriosa da Boa Nova re­dentora. O ex-doutor da Lei teconheceu que, na sua ausência, o processo de perseguição tomara-se mais pe­rigoso e mais imperceptível, porqüanto, às caracterís­ticas cruéis, mas francas, do movimento inicial, sucediam as manifestações de hipocrisia farisaica, que, a pretexto de contemporização e benignidade, mergulhariam a per­sonalidade de Jesus e a grandeza de suas lições divinas em criminoso e deliberado olvido. Coerente com as novas disposições do foro íntimo, não pretendia voltar à sinagoga de Damasco, para não parecer um mestre pretensioso­ a pugnar pela salvação de outrem, antes de cuidar do aperfeiçoamento próprio; mas, diante do que via e coligia com alto senso psicológico, compreendeu que era útil arrostar todas as conseqüências e demonstrar as disparidades do formalismo farisaico com o Evangelho: o que era a circuncisão e o que era a nova fé. Expondo a Ananias o projeto de fomentar a discussão em torno do assunto, o velhinho generoso estimulou-lhe os propó­sitos de restabelecer a verdade em seus legítimos funda­mentos.

Para esse fim, no segundo sábado de sua perma­nencia na cidade, o vigoroso pregador compareceu à sinagoga. Ninguém reconheceu o rabino de Tarso na sua túnica rafada, na epiderme tostada de sol, no rosto des­carnado, no brilho mais vivo dos olhos profundos.

Terminada a leitura e a exposição regulamentares, franqueada a palavra aos sinceros estudiosos da religião, eis que o desconhecido galga a tribuna dos mestres de Israel e, buscando interessar a numerosa assistência, falou primeiramente do caráter sagrado da Lei de Moisés, detendo-se, apaixonado, nas promessas maravilhosas e sábias de Isaías, até que penetrou o estudo dos profetas. Os presentes escutavam-no com profunda atenção. Alguns se esforçavam por identificar aquela voz que lhes não parecia estranha. A pregação vibrante suscitava ilações de grande alcance e beleza. Imensa luz espiritual trans­bordava dos raptos altiloqüentes.

Foi aí que o ex-rabino, conhecendo o poder magné­tico já exercido sobre o vultoso auditório, começou a falar do Messias Nazareno comparando sua vida, feitos e ensinamentos, com os textos que o anunciavam nas sagradas escrituras.

Quando abordava o problema da circuncisão, eis que a assembléia rompe em furiosa gritaria.

— É ele!... É o traidor!... clamavaM os mais audaciosos, depois de identificar o ex-doutor de Jerusa­lém. — Pedra ao blasfemo!... É o bandido da seita do “Caminho”!...

Os chefes do serviço religioso, por sua vez, reconhe­ceram o antigo companheiro, agora considerado trânsfuga da Lei, a quem se deviam impor castigos rudes e cruéis.

Saulo assistia à repetição da mesma cena de quando se fazia ouvir na seleta reunião, com a presença dos levi­tas de Chipre. Enfrentou impassível a situação, até que as autoridades religiosas conseguissem acalmar os ânimos turbulentos.

Após as fases mais agudas do tumulto, o arqui-si­nagogo, tomando posição, determinou que o orador des­cesse da tribuna para responder ao seu interrogatório.

O         convertido de Damasco compreendeu de relance toda a calma de que necessitava para sair-se com êxito daquela difícil aventura, e obedeceu de pronto, sem pro­testar.

—        Sois Saulo de Tarso, antigo rabino em Jerusa­lém? — perguntou a autoridade com ênfase.

—        Sim, pela graça do Cristo Jesus! — respondeu em tom firme e resoluto.

—        Não vem ao caso referências quaisquer ao car­pinteiro de Nazaré! Interessa-nos, tão-só, a vossa prisão imediata, de acordo com as instruções recebidas do Templo — explicou o judeu em atitude solene.

—        Minha prisão? — interrogou Saulo admirado.

— Sim.

— Não vos reconheço o direito de efetuá-la — es­clareceu o pregador.

Diante daquela atitude enérgica, houve um movi­mento de admiração geral.

— Por que relutais? O que só vos cumpre é obe­decer.

Saulo de Tarso fixou-o com decisão, explicando:

—        Nego-me porque, não obstante haver modificado minha concepção religiosa, sou doutor da Lei e, além disso, quanto à situação política, sou cidadão romano e não posso atender a ordens verbais de prisão.

—        Mas estais preso em nome do Sinédrio.

— Onde o mandado?

A pergunta imprevista desnorteou a autoridade. Ha­via mais de dois anos, chegara de Jerusalém o documento oficial, mas ninguém podia prever aquela eventualidade. A ordem fora arquivada cuidadosamente, mas não podia ser exibida de pronto, como exigiam as circunstâncias.

—        O pergaminho será apresentado dentro de pou­cas horas — acrescentou o chefe da sinagoga um tanto indeciso.

E como a justificar-se, acrescentava:

—        Desde o escândalo da vossa última pregação em Damasco, temos ordem de Jerusalém para vos prender.

Saulo fixou-o com energia, e, voltando-se para a assembléia, que lhe observava a coragem moral, tomada de pasmo e admiração, disse alto e bom som:

—        Varões de Israel, trouxe ao vosso coração o que possuía de melhor, mas rejeitais a verdade trocando-a pelas formalidades exteriores. Não vos condeno. Las­timo-vos, porque também fui assim como vós outros. Entretanto, chegada a minha hora, não recusei o auxílio generoso que o céu me oferecia. Lançais-me acusações, vituperais minhas atuais convicções religiosas; mas, qual de vós estaria disposto a discutir comigo? Onde o sin­cero lutador do campo espiritual que deseje sondar, em minha companhia, as santas escrituras?

Profundo silêncio seguiu-se ao repto.

       — Ninguém? — perguntou o ardoroso artífice da nova fé, com um sorriso de triunfo.

       Conheço-vos, porque também palmilhei esses caminhos. Entretanto, convenhamos em que o farisaísmo nos perdeu, atirando nossas esperanças mais sagradas num oceano de hipocrisias. Venerais Moisés na sinagoga; tendes excessivo cuidado com as fórmulas exteriores, mas qual a feição da vossa vida doméstica? Quantas dores ocultais sob a túnica brilhante! Quantas feridas dissimulais com pa­lavras falaciosas! Como eu, devíeis sentir imenso tédio de tantas máscaras ignóbeis! Se fôssemos apontar os feitos criminosos que se praticam à sombra da Lei, não teríamos açoites para castigar os culpados; nem o número exato das maldições indispensáveis à pintura de seme­lhantes abominações! Padeci de vossas úlceras, enve­nenei-me também nas vossas trevas e vinha trazer-vos o remédio imprescindível. Recusais-me a cooperação fra­terna; entretanto, em vão recalcitrais perante os pro­cessos regeneradores, porque somente Jesus poderá sal­var-nos! Trouxe-vos o Evangelho, ofereço-vos a porta de redenção para nossas velhas mazelas e inda quereis compensar meus esforços com o cárcere e a maldição? Recuso-me a receber semelhantes valores em troca de minha iniciativa espontânea!... Não podereis prender-me, porque a palavra de Deus não está algemada. Se a rejeitais, outros me compreenderão. Não é justo abandonar-me aos vossos caprichos, quando o serviço, a fazer, me pede dedicação e boa-vontade.

Os próprios diretores da reunião pareciam domina­dos por forças magnéticas, poderosas e indefiníveis.

O moço tarsense passeou o olhar dominador sobre todos os presentes, revelando a rigidez do seu ânimo poderoso.

— Vosso silêncio fala mais que as palavras — con­cluiu quase com audácia. — Jesus não vos permite a prisão do servo humilde e fiel. Que a sua bênção vos ilumine o espírito na verdadeira compreensão das reali­dades da vida.

Assim dizendo, caminhou resoluto para a porta de saída, enquanto o olhar assombrado da assembléia lhe acompanhava o vulto, até que, a passo firme, desapare­ceu em uma das ruas estreitas que desembocavam na grande praça.

Como se despertasse, após o audacioso desafio, a reunião degenerou em acaloradas discussões. O arqui­-sinagogo, que parecia sumamente impressionado com as declarações do ex-rabino, não ocultava a indecisão, relu­tando entre as verdades amargas de Saulo e a ordem de prisão imediata. Os companheiros mais enérgicos procuraram levantar-lhe o espírito de autoridade. Era preciso prender o atrevido orador a qualquer preço. Os mais decididos puseram-se à procura imediata do pergaminho de Jerusalém e, logo que o encontraram, resolveram pedir auxílio às autoridades civis, promo­vendo diligências. Daí a três horas, todas as medidas para a prisão do audacioso pregador estavam assentadas. Os primeiros contingentes foram movimentados às portas da cidade. Em cada uma postou-se pequeno grupo de fariseus, secundados por dois soldados, a fim de burla­rem qualquer tentativa de evasão.

Em seguida, iniciaram a devassa em bloco, na re­sidência de todas as pessoas suspeitas de simpatia e relações com os discípulos do Nazareno.

Saulo, por sua vez, afastando-se da sinagoga, pro­curou avistar-se com Ananias, ansioso da sua palavra amorosa e conselheira.

O         sábio velhinho ouviu a narração do acontecido, aprovando-lhe as atitudes.

—        Sei que o Mestre — dizia o moço por fim —condenou as contendas e jamais andou entre os discuti­dores; mas, também, jamais contemporizou com o mal. Estou pronto a reparar meu passado de culpas. Afron­tarei as incompreensões de Jerusalém, a fim de paten­tear minha transformação radical. Pedirei perdão aos ofendidos pela insensatez da minha ignorância, mas, de modo algum poderei fugir ao ensejo de afirmar-me sin­cero e verdadeiro. Acaso serviria ao Mestre, humilhan­do-me diante das explorações inferiores? Jesus lutou quanto possível e seus discípulos não poderão proceder de outro modo.

O         bondoso ancião acompanhava-lhe as palavras com sinais afirmativos. Depois de confortá-lo com a sua aprovação, recomendou-lhe a maior prudência. Seria ra­zoável afastar-se quanto antes dali, do seu tugúrio. Os judeus de Damasco conheciam a parte que tivera na sua cura. Por causa disso, muita vez lhes suportara as injú­rias e remoques. Certo, procurá-lo-iam, ali, para pren­dê-lo. Assim, era de opinião que se recolhesse à casa da consóror lavadeira, onde costumavam orar e estudar o Evangelho. Ela saberia acolhê-lo com bondade.

Saulo atendeu ao conselho sem hesitar.

Daí a três horas, o velho Ananias era procurado e interpelado. Atenta a sua conduta discreta, foi recolhido ao cárcere para ulteriores averiguações.

O         fato é que, inquirido pela autoridade religiosa, apenas respondia:

—        Saulo deve estar com Jesus.

Nos seus escrúpulos de consciência, o generoso ve­lhinho entendia que, desse modo, não mentia aos homens nem comprometia um amigo fiel. Depois de preso e incomunicável 24 horas, deram-lhe liberdade após receber castigos dolorosos. A aplicação de vinte bastonadas dei­xara-lhe o rosto e as mãos gravemente feridos. Contudo, logo que se viu livre, esperou a noite e, cautamente, enca­minhou-se à choupana humilde onde se realizavam as prédicas do “Caminho”. Reencontrando-se com o amigo, expôs-lhe o plano que vinha remediar a situação.

—        Quando criança — exclamou Ananias prazeroso — assisti à fuga de um homem sobre os muros de Jeru­salém.

E como se recapitulasse os pormenores do fato, na memória cansada, perguntou:

—        Saulo, terias medo de fugir num cesto de vime?

—        Por quê? — disse o moço sorridente. — Moisés não começou a vida num cesto sobre as águas?

O         velho achou graça na alusão e esclareceu o pro­jeto. Não muito longe dali, havia grandes árvores junto dos muros da cidade. Alçariam o fugitivo num grande cesto, e depois, com insignificantes movimentos, ele po­deria descer do outro lado, em condições de encetar a viagem para Jerusalém, conforme pretendia. O ex-rabino experimentou imensa alegria. Na mesma hora, a dona da casa foi buscar o concurso dos três irmãos de mais confiança. E quando o céu se fez mais sombrio, depois das primeiras horas da meia-noite, um pequeno grupo se reunia junto a muralha, em ponto mais distante do centro da cidade. Saulo beijou as mãos de Ananias, quase com lágrimas. Despediu-se em voz baixa dos amigos, enquanto um lhe entregava volumoso pacote de bolos de cevada. Na copa da árvore frondosa e escura, o mais jovem esperava o sinal, O moço tarsense entrou na sua embarcação improvisada e a evasão se deu no âmbito silencioso da noite.

Do outro lado, saiu lesto do cesto, deixando-se em­polgar por estranhos pensamentos.

Seria justo fugir assim? Não havia cometido crime algum. Não seria covarde deixar de comparecer perante a autoridade civil para os esclarecimentos necessários? Ao mesmo tempo, considerava que sua conduta não provinha de sentimen­tos pueris e inferiores, pois ia a Jerusalém desassom­brado, buscaria avistar-se com os antigos companheiros, falar-lhes-ia abertamente, concluindo que também não seria razoável entregar-se inerme ao fanatismo tirânico da Sinagoga de Damasco.

Aos primeiros raios de sol, o fugitivo ia longe. Levava consigo os bolos de cevada como única provisão, e o Evangelho presenteado por Gamaliel como lembrança de tanto tempo de solidão e de luta.

A jornada foi assaz difícil e penosa. O cansaço obrigava-o a paradas constantes. Mais de uma vez re­correu à caridade alheia, no trajeto penoso. Com auxílio de camelos, cavalos ou dromedários, a viagem de Da­masco a Jerusalém não exigia menos de uma semana de marchas exaustivas. Saulo, porém, ia a pé. Poderia talvez valer-se do concurso definitivo de alguma caravana, onde conseguisse os recursos imprescindíveis, mas preferiu familiarizar a vontade poderosa com os obstá­culos mais duros. Quando a fadiga lhe sugeria o desejo de aguardar a cooperação eventual de outrem, buscava vencer o desânimo, punha-se novamente de pé, apoiava-se em cajados improvisados.

Depois de suaves recordações no local em que tivera a visão gloriosa do Messias ressuscitado, voltou a expe­rimentar carinhosas emoções ao penetrar na Palestina, atravessando vagarosamente extensas regiões da Galiléia. Fazia questão de conhecer o teatro das primeiras lutas do Mestre, identificar-se com as paisagens mais queridas, visitar Cafarnaum e Nazaré, ouvir a palavra dos filhos da região. Naquele tempo, já o ardoroso Apóstolo dos gentios desejava inteirar-se de todos os fatos referentes à vida de Jesus, ansiava por coordená-los com segurança, de maneira a legar aos irmãos em Humanidade o melhor repositório de informações sobre o Emissário Divino.

Quando chegou a Cafarnaum, um crepúsculo de ouro entornava maravilhas de luz na bucólica paisagem. O ex-rabino desceu religiosamente às margens do lago. Embebeu-se na contemplação das águas marulhosas. Pen­sando em Jesus, no poder do seu amor, chorou, dominado por singular emoção. Queria ter sido pescador humilde para captar os ensinamentos sublimes na fonte de suas palavras generosas e imortais.

Por dois dias ali permaneceu em suave embeveci­mento. Sem revelar-se, procurou Levi, que o recebeu de boa-vontade. Mostrou-lhe sua dedicação e conheci­mento do Evangelho, falou da oportunidade de suas anotações. O filho de Alfeu alegrou-se ao contágio da­quela palavra inteligente e confortadora. Saulo viveu em Cafarnaum horas deliciosas para o seu espírito emo­tivo. Fora o local das pregações do Mestre; mais adiante, a casinha de Simão Pedro; além, a coletoria onde o Mes­tre fora chamar Levi para o desempenho de importante papel entre os apóstolos. Abraçou homens fortes, da localidade, que tinham sido cegos e leprosos, curados pelas mãos misericordiosas do Messias; foi a Dalmanuta, onde conheceu Madalena. Enriqueceu o mundo impres­alvo de suas observações colhendo informes inéditos.

Daí a dias, depois de repousar em Nazaré, ei-lo às portas da cidade santa dos israelitas, extenuado de fadiga, das caminhadas penosas, das noites de vigília cujos sofrimentos muita vez lhe pareceram sem-fim.

Em Jerusalém, todavia, aguardavam-no outras sur­presas não menos dolorosas.

Estava empolgado por ansiosas interrogações. Não mais tivera notícia dos pais, dos amigos, da irmã cari­nhosa, dos familiares sempre vivos na sua retentiva. Como o receberiam os companheiros mais sinceros? Não poderia esperar amáveis recepções do Sinédrio. O episó­dio de Damasco dava-lhe a perceber o estado de ânimo dos membros do Tribunal.

Certo, fora sumariamente expulso do cenáculo mais conspícuo da raça. Em com­pensação, fora admitido pelo Cristo no cenáculo infinito das verdades eternas.

Dominado por essas reflexões, atravessou a porta da cidade, recordando o tempo em que, numa biga veloz, saía, noutro local, buscando a casa de Zacarias, na dire­ção de Jope. As reminiscências das horas mais venturosas da mocidade encheram-lhe os olhos de pranto. Os transeuntes de Jerusalém estavam longe de imaginar quem era aquele homem magro e pálido, barba grande e olhos encovados, que passava arrastando-se de fadiga.

Após grande esforço, atingiu um prédio residencial do seu conhecimento, O coração palpitou-lhe apressado. Como simples mendigo, bateu à porta, em ansiosa ex­pectativa.

Um homem de semblante severo atendeu secamente.

—        Podeis informar, por favor — disse com humil­dade —, se ainda aqui reside uma senhora chamada Dalila?

—        Não —, respondeu o outro, ríspido.

Aquele olhar duro não ensejava novas perguntas, mas, ainda assim, aventurou:

—        Poderíeis dizer, por obséquio, para onde se mudou?

—        Ora esta! — replicou o dono da casa irrita­diço — dar-se-á que tenha de prestar contas a um mendigo? Daqui a pouco o senhor me perguntará se comprei esta casa; depois me pedirá o preço, exigirá datas, reclamará novas informações sobre os antigos moradores, tomará meu tempo com mil interrogações ociosas.

E, fixando em Saulo os olhos impassíveis, rematou de chofre:

—        Nada sei, está ouvindo? Ponha-se na rua!...

O         fugitivo de Damasco voltou serenamente para a via pública, enquanto o homenzinho dava expansão aos nervos doentes, batendo a porta com estrondo.

O         ex-discípulo de Gamaliel refletiu na realidade amarga daquela primeira recepção simbólica. Jerusalém, certamente, nunca mais poderia conhecê-lo. Não obstante a impressão dolorosa, não se deixaria empolgar pelo desânimo. Resolveu procurar Alexandre, parente de Cai­fás e seu companheiro de atividades no Sinédrio e no Templo. Cansadíssimo, bateu-lhe à porta, com minguadas esperanças. Um servo da casa, depois da primeira per­gunta, vinha trazer-lhe a alvissareira notícia de que o amo não se demoraria a atender.

Com efeito, daí a pouco, Alexandre recebia o des­conhecido com indisfarçável surpresa.

Satisfeito por conseguir a atenção de um velho amigo, Saulo adiantou-se, cumprimentando-o com efusão.

O         israelita ilustre não conseguiu ocultar o desa­pontamento e sentenciou com alguma generosidade nas palavras:

—        Amigo, a que vindes a esta casa?

—        Será possível que me não reconheças? — inter­rogou bem-humorado, apesar da imensa fadiga.

—        Vossa fisionomia não me é de todo estranha, en­tretanto...

—        Alexandre! — exclamou por fim, prazenteiro —não te recordas mais de Saulo?

Um grande abraço foi a resposta do amigo, que per­guntava solícito, modificando o tratamento:

—        Muito bem! Até que enfim! Graças a Deus vejo que estás curado! Não me enganei esperando que vol­tasses! Grande é o poder do Deus de Moisés!

Saulo compreendeu de pronto a ambigüidade da­quelas expressões. Sentindo dificuldade em fazer-se en­tendido, procurava o melhor meio de explicar-se com êxito, enquanto o amigo prosseguia:

—        Mas que aspecto é este? Olha que mais pareces um beduíno do deserto... Dize-me: quanto tempo durou a enfermidade pertinaz?

Saulo encheu-se de coragem e acentuou:

—        Mas, há engano com certeza, ou estarás mal informado, porque nunca estive doente.

—        Impossível! — disse Alexandre visivelmente de­sapontado depois de tantas demonstrações afetuosas. — Jerusalém anda repleta de lendas a teu respeito. Sadoc veio até aqui, há três anos, pedir providências enérgicas do Sinédrio para que se esclarecesse tua situação e, depois de longos debates, levou uma ordem de prisão contra ti. Desde essa época, lutei desesperadamente para que se modificassem as disposições da peça con­denatória. Provei que, se havias adotado uma atitude simpática para com a gente do “Caminho”, certo, essa decisão obedecia a fins que não estávamos habilitados a compreender de pronto, como, por exemplo, o de sondar melhor a extensão de suas atividades revolucionárias.

Saulo não pôde conter-se e revidou, antes que o amigo continuasse:

—        Mas, nesse caso, seria um hipócrita refalsado e indigno do cargo e de mim mesmo.

O         outro, contrafeito, carregou o sobrolho.

—        Aliás, ponderei todas as hipóteses e como não podia tomar-te por hipócrita — acentuou Alexandre procurando emendar a mão — consegui provar que tua atitude em Damasco provinha de transitória demência. Não era justo pensar de outro modo, mesmo porque, do contrário, serias também insincero, conosco, na esfera do farisaísmo.

O         ex-rabino sentiu a delicadeza do impasse. Havia renovado as concepções religiosas, mas estava diante de um amigo. Quando muitos o abandonavam, aquele o recebia fraternalmente. Era necessário não magoá-lo. Todavia, era impossível mascarar a verdade.

Sentiu os olhos úmidos. Impunha-se-lhe testemunhar o Cristo, a qualquer preço, embora tivesse de perder as maiores afeições do mundo.

—        Alexandre — disse humildemente —, é verdade que iniciei o grande movimento de perseguição ao “Ca­minho”; mas, agora, é indispensável confessar que me enganei. Os Apóstolos galileus têm razão. Estamos no limiar de grandes transformações. Às portas de Damasco, Jesus me apareceu na sua gloriosa ressurreição e exortou-me ao serviço do seu Evangelho de amor.

A palavra saía-lhe tímida, lavada no desejo de não ferir as crenças do amigo, que, não obstante, deixava transparecer profunda decepção no rosto lívido.

—        Não digas tais absurdos! — exclamou irônico e sorridente — desgraçadamente, vejo que o mal con­tinua minando-te as forças físicas e mentais. A Sinagoga de Damasco tinha razão. Se não te conhecesse da infân­cia, dar-te-ia agora o título de blasfemo e desertor.

O         moço tarsense, não obstante a energia viril, estava desapontado.

—        Aliás — prosseguiu o outro, assumindo ares de protetor —, desde o início de tua viagem não concordei com o mísero cortejo que levavas. Jonas e Demétrio são quase boçais, e Jacob vive de caduquices. Com seme­lhante companhia, qualquer perturbação da tua parte ha­veria de acarretar grandes desastres morais para a nossa posição.

—        No entanto, Alexandre — dizia o ex-rabino um tanto humilhado —, devo insistir na verdade. vi com estes olhos o Messias de Nazaré; ouvi-lhe a palavra de viva voz.

Compreendendo os erros em que vivia, na minha defeituosa concepção da fé, demandei o deserto. Lá estive três anos em serviço rude e longas meditações. Minha convicção não é superficial. Creio, hoje, que Jesus é o Salvador, o Filho do Deus Vivo.

—        Pois tua enfermidade — repetia Alexandre alta­neiro, modificando o diapasão da intimidade — trans­tornou a vida de toda a tua família. Envergonhados com as notícias chegadas da Síria, Jaques e Dalila mu­daram-se de Jerusalém para a Cilícia. Quando soube da ordem de prisão lavrada pelo Sinédrio contra a tua pes­soa, tua mãe faleceu em Tarso. Teu pai, que te educou com esmero, esperando da tua inteligência os maiores galardões de nossa raça, vive acabrunhado e infeliz. Teus amigos, cansados de suportar as ironias do povo, em Jerusalém, vivem esquivos e humilhados depois de te procurarem em vão. Não te doerá a visão deste qua­dro? Uma dor como esta não bastará para refazer-te o equilíbrio mental?

O         ex-doutor da Lei tinha o coração ralado de angús­tia. Tantos dias ansiosos, tantas amarguras vividas no intuito de lograr alguma compreensão e repouso junto dos seus, via, agora, era tudo ilusão e rumaria. A família desorganizada, a mãe morta, o pai infeliz; os amigos execravam-no; Jerusalém lançava-lhe ironias.

Vendo-o em tal atitude, o amigo regozijava-se íntimamente, esperando ansioso o efeito de suas palavras.

Depois de concentrar-se um minuto, Saulo acentuou:

—        Lamento ocorrências tão tristes e tomo a Deus por testemunha de que não cooperei intencionalmente para Isso. No entanto, mesmo aqueles que ainda não aceitaram o Evangelho deveriam compreender, segundo a antiga Lei, que não devemos ser orgulhosos. Moisés, nada obstante a energia das recomendações, ensinou a bondade. Os profetas, que lhe sucederam, foram emis­sários de mensagens profundas para o nosso coração, que se perdia na iniqüidade. Amós nos concitou a buscar Jeová para conseguirmos viver. Lastimo que os meus afeiçoados se julguem ofendidos; mas é preciso consi­derar que, antes de ouvir qualquer julgamento ocioso do mundo, devemos buscar os juízos de Deus.

—        Quer dizer que persistes nos teus erros? — per­guntou Alexandre quase hostil.

—        Não me sinto enganado. Dada a incompreensão geral — comentou o ex-rabino dignamente —, também me encontro em penosa situação; mas o Mestre não me faltará com o seu auxílio. Lembro-me dele e experimento grande conforto. Os afetos da família e a consideração dos amigos eram no mundo minha única riqueza. Con­tudo, encontrei nas anotações de Levi o caso de um moço rico, que me ensina a proceder nesta hora (1). Desde a infância procurei cumprir rigorosamente meus deveres; mas, se é preciso lançar mão da riqueza que me resta, para alcançar a iluminação de Jesus, renunciarei à pró­pria estima deste mundo!...

Alexandre pareceu comover-se com o tom melancó­lico das últimas palavras. Saulo dava a impressão de alguém que estivesse prestes a chorar.

—        Estás fundamente transtornado — objetou Ale­xandre —, só um demente poderia proceder assim.

—        Gamaliel não era um louco e aceitou Jesus como o Messias prometido — acrescentou o ex-doutor invo­cando a venerável memória do grande rabino.

—        Não creio! — disse o outro com ar superior.

Saulo baixou a fronte silencioso. Grande a humi­lhação daquela hora. Depois de havido como demente, era tido por mentiroso. Apesar disso, no auge da per­plexidade, considerou que o amigo não estava em con­dições

 

(1) Mateus, capítulo 19º, versículos 16 a 23.

 

de compreendê-lo integralmente. Refletia na situa­ção embaraçosa, quando Alexandre voltou a dizer:

— Infelizmente, preciso convencer-me do estado pre­cário do teu cérebro. Por enquanto, poderás ficar em Jerusalém à vontade, mas será justo não multiplicar o escândalo da tua enfermidade, com falsos panegíricos do carpinteiro de Nazaré. A decisão do Sinédrio, que consegui com tantos sacrifícios, poderia modificar-se. Quanto ao mais — terminava como a despedi-lo —, sabes que continuo às tuas ordens para uma retificação defi­nitiva de atitudes, a qualquer tempo.

Saulo compreendeu a advertência; não era preciso dilatar a entrevista. O amigo expulsava-o com boas maneiras.

Em dois minutos achou-se novamente na via pública. Era quase meio-dia, um dia quente.

Sentiu sede e fome. Consultou a bolsa, estava quase vazia. Um resto do que recebera das mãos generosas do irmão de Gamaliel, ao deixar Palmira definitivamente. Procurou a pensão mais modesta de uma das zonas mais pobres da cidade. Em seguida a frugal refeição e antes que caíssem as sombras cariciosas da tarde, encaminhou-se esperançado para o velho casarão reformado, onde Simão Pedro e companhei­ros desenvolviam toda a atividade em prol da causa de Jesus.

No trajeto, recordou-se de quando fora ouvir Estevão em companhia de Sadoc. Como tudo, agora, se passava inversamente! O crítico, de oútrora, voltava para ser criticado. O juiz, transformado em réu, mergulhava o coração em singulares ansiedades. Como o receberiam na igreja do “Caminho”?

Parou à frente da habitação humilde. Pensava em Estevão. mergulhado no passado, de alma opressa. Ante os colegas do Sinédrio, entestando as autoridades, do judaísmo, outra era a sua atitude. Conhecia-lhes as fraquezas peculiares. passara também pelas máscaras farisaicas e podia aquilatar de seus erros clamorosos. No entanto, defrontando os Apóstolos galileus, sagrada veneração se lhe impunha à consciência. Aqueles homens poderiam ser rudes e simples, podiam viver distanciados dos valores intelectuais da época, mas tinham sido os primeiros colaboradores de Jesus. Além disso, não pode­ria aproximar-se deles sem experimentar profundo re­morso. Todos haviam sofrido vexames e humiliações por sua causa.

Não fosse Gamaliel, talvez o próprio Pedro teria sido lapidado... Precisava consolidar as noções de humildade para manifestar seus desejos arden­tes de cooperação sagrada com o Cristo. Em Damasco, lutara na sinagoga contra a hipocrisia de antigos com­panheiros; em Jerusalém, enfrentara Alexandre com todo o desassombro; entretanto, parecia-lhe que outra deveria ser sua atitude ali, onde tinha necessidade de renúncia para alcançar a reconciliação com aqueles a quem havia ferido.

Assomado de profundas reflexões, bateu à porta quase trêmulo.

Um dos auxiliares do serviço interno, de nome Prócoro, veio atender solicitamente.

—        Irmão — disse o moço tarsense em tom humil­de —, podeis informar se Pedro está?

—        Vou saber — respondeu o interpelado, amistoso.

—        Caso esteja — acrescentou Saulo algo indeciso —, dizei-lhe que Saulo de Tarso deseja falar-lhe em nome de Jesus.

Prócoro gaguejou um “sim”, com extrema palidez, fixou no visitante os olhos assombrados e afastou-se com dificuldade, sem dissimular a enorme surpresa. Era o perseguidor que voltava, depois de três anos. Lembra­va-se, agora, daquela primeira discussão com Estevão, em que o grande pregador do Evangelho sofrera tantos insultos. Em poucos momentos alcançava a câmara onde Pedro e João confabulavam sobre os problemas internos.

A notícia caiu entre ambos como uma bomba. Ninguém poderia prever tal coisa. Não acreditavam na lenda que Jerusalém enfeitava com detalhes desconhecidos, em cada comentário. Impossível que o algoz implacável dos discípulos do Senhor estivesse convertido à causa do seu Evangelho de amor e redenção.

O         ex-pescador do “Caminho”, antes de recambiar o portador ao inesperado visitante, mandou chamar Tiago para resolverem os três a decisão a tomar.

O         filho de Alfeu, transformado em rígido asceta, arregalou os olhos.

Depois das primeiras opiniões que traduziam re­ceios justos e emitidas precipitadamente, Simão excla­mou com grande prudência:

—        Em verdade, ele nos fez o mal que pôde; entre­tanto, não é por nós que devemos temer e sim pela obra do Cristo que nos está confiada.

—        Aposto em que toda essa história da conversão se resume numa farsa, a fim de que venhamos a cair em novas ciladas — replicou Tiago um tanto displicente.

—        Por mim — disse João —, peço a Jesus nos esclareça, embora me recorde dos açoites que Saulo man­dou aplicar-me no cárcere. Antes de tudo, é indispen­sável saber se o Cristo, de fato, lhe apareceu às portas de Damasco.

—        Mas saber como? — dizia Pedro com profunda compreensão. — Nosso material de reconhecimento é o próprio Saulo. Ele é o campo que revelará ou não a planta sagrada do Mestre. A meu ver, tendo a zelar um patrimônio que nos não pertence, somos obrigados a proceder como aconselha a prudência humana. Não é justo abrirmos as portas, quando não lhe conhecemos o intuito. Da primeira vez que aqui esteve, Saulo de Tarso foi tratado com o respeito que o mundo lhe con­sagrava. Busquei-lhe o melhor lugar para que ouvissse a palavra de Estevão. Infelizmente, sua atitude desres­peitosa e irônica provocou escândalo, que culminou na prisão e morte do companheiro. Veio espontaneamente e voltou para prender-nos. Ao carinho fraternal, que lhe oferecemos, retribuiu com algemas e cordas. Assim me externando, também não devo esquecer a lição do Mestre, relativamente ao perdão, e por isso reafirmo que não penso por nós, mas pelas responsabilidades que nos foram conferidas.

Ante considerações tão justas, os outros calaram, enquanto o ex-pescador acrescentava:

—        Por conseguinte, não me é permitido recebê-lo nesta casa, sem maior exame, ainda que me não falte sincera boa-vontade para isso. Resolvendo o assunto por essa forma, convocarei uma reunião para hoje à noite. O assunto é muito grave. Saulo de Tarso foi o primeiro perseguidor do Evangelho. Quero que todos cooperem comigo nas decisões a tomar, pois, de mim mesmo, não quero parecer nem injusto, nem imprevidente.

E depois de longa pausa, dizia para o emissário:

—        Vai, Prócoro. Dize-lhe que volte depois, que não posso deixar os quefazeres mais urgentes.

—        E se ele insistir? — perguntou o diâcono preo­cupado.

—        Se ele de fato aqui vem em nome de Jesus, saberá compreender e esperar.

Saulo aguardava ansiosamente o mensageiro. Era-lhe preciso encontrar alguém que o entendesse e lhe sentisse a transformação. Estava exausto. A igreja do “Caminho” era a derradeira esperança.

Prócoro transmitiu-lhe o recado com grande inde­cisão. Não era preciso mais para que tudo compreen­desse. Os Apóstolos galileus não acreditavam na sua palavra. Agora examinava a situação com mais clareza. Percebia a indefinível e grandiosa misericórdia do Cristo visitando-o, inesperadamente, no auge do seu abismo es­piritual às portas de Damasco.

Pelas dificuldades para ir ter com Jesus, avaliava quanta bondade e compaixão seriam necessárias para que o Mestre o acolhesse, ende­reçando-lhe sagradas exortações, no encontro inesque­cível.

O         diácono fixou-o com simpatia. Saulo recebera a resposta altamente desapontado.

Ficou pálido e trêmulo, como que envergonhado de si mesmo. Além disso, tinha aspecto doentio, olhos encovados, era pele e osso.

—        Compreendo, irmão — disse de olhos molha­dos — Pedro tem motivos justos..

Aquelas palavras comoveram a Prócoro no mais íntimo da alma e, evidenciando seu bom desejo de am­pará-lo, exclamou a demonstrar perfeito conhecimento dos fatos:

—        Não trazeis de Damasco alguma apresentação de Ananias?

—        Já tenho comigo as do Mestre.

—        Como assim? — perguntou o diácono admirado.

—        Jesus disse em Damasco — falou o visitante com serenidade — que mostraria quanto me compete sofrer por amor ao seu nome.

Intimamente, o ex-doutor da Lei sentia imensa sau­dade dos irmãos de Damasco, que o haviam tratado com a maior simplicidade. Entretanto, considerou, si­multaneamente, que semelhante proceder era justo, porqüanto dera provas na sinagoga e junto de Ananias, de que sua atitude não comportava simulação. Ao refletir que Jerusalém o recebia, em toda parte, como vulgar mentiroso, sentiu lágrimas quentes lhe afluirem aos olhos. Mas, para que o outro não lhe visse a sensibili­dade ferida, exclamou justificando-se:

—        Tenho os olhos cansados pelo sol do deserto! Podereis fornecer-me um pouco de água fresca?

O         diácono atendeu prontamente.

Daí a instantes, Saulo mergulhava as mãos num grande jarro, lavando os olhos em água pura.

—        Voltarei depois — disse em seguida, estendendo a mão ao auxiliar dos apóstolos, que se afastou impres­sionado.

Amargando a fraqueza orgânica, o cansaço, o aban­dono dos amigos, as desilusões mais acerbas, o moço de Tarso retirou-se cambaleante.

À noite, consoante deliberara, Simão Pedro, eviden­ciando admirável bom-senso, reuniu os companheiros de mais responsabilidade para considerar o assunto. Além dos Apóstolos galileus, estavam presentes os irmãos Ni­canor, Prócoro, Pármenas, Timon, Nicolau e Barnabé, este último incorporado ao grupo de auxiliares mais dire­tos da igreja, por suas elevadas qualidades de coração.

Com permissão de Pedro, Tiago iniciou as conversa­ções, manifestando-se contrário a qualquer espécie de auxílio imediato ao convertido da última hora. João ponderou que Jesus tinha poder para transformar os espíritos mais perversos, como para levantar os mais infortunados da sorte. Prócoro relatou suas impressões a respeito do pertinaz perseguidor do Evangelho, ressal­tando a compaixão que seu estado de saúde despertava nos corações mais insensíveis. Chegada a sua vez, Bar­nabé esclareceu que, ainda em Chipre, antes de trans­ferir-se definitivamente para Jerusalém, ouvira alguns levitas descreverem a coragem com que o convertido falara na Sinagoga de Damasco, logo após a visão de Jesus.

O         ex-pescador de Cafarnaum solicitou pormenores do companheiro, impressionado com a sua opinião. Bar­nabé explicou quanto sabia, manifestando o desejo de que resolvessem a questão com a maior benevolência.

Nicolau, percebendo a atmosfera de boa-vontade que se formava em torno da figura do ex-rabino, objetava com a sua rigidez de princípios:

—        Convenhamos que não é justo esquecer os alei­jados que se encontram nesta casa, vítimas da odiosa truculência dos asseclas de Saulo. Ë das escrituras que se exija cuidado com os lobos que penetram no redil sob a pele das ovelhas. O doutor da Lei, que nos fez tanto mal, sempre deu preferência às grandes expressões espe­taculares contra o Evangelho, no Sinédrio. Quem sabe nos prepara atualmente nova armadilha de grande efeito?

A tal pergunta, o bondoso Barnabé curvou a fronte, em silêncio. Pedro notou que a reunião se dividia em dois grupos. De um lado estavam ele e João chefiando os pareceres favoráveis; do outro, Tiago e Filipe enca­beçavam o movimento contrário. Acolhendo a admoesta­ção de Nicolau, exprimiu-se com brandura:

—        Amigos, antes da enunciação de qualquer ponto de vista pessoal, conviria refletirmos na bondade infi­nita do Mestre. Nos trabalhos de minha vida, anteriores ao Pentecostes, confesso que as faltas de toda sorte aparecem no meu caminho de homem frágil e pecador.

Não hesitava em apedrejar os mais infelizes e cheguei, mesmo, a advertir o Cristo para fazê-lo! Como sabeis, fui dos que negaram o Senhor na hora extrema. Entre­tanto, depois que nos chegou o conhecimento pela ins­piração celeste, não será justo olvidarmos o Cristo em qualquer iniciativa. Precisamos pensar que, se Saulo de Tarso procura valer-se de semelhantes expedientes para desferir novos golpes nos servidores do Evangelho, então ele é ainda mais desgraçado que antes, quando nos ator­mentava abertamente. Sendo, pois, um necessitado, de qualquer modo não vejo razões para lhe recusarmos mãos fraternas.

Percebendo que Tiago preparava-se para defender o parecer de Nicolau, Simão Pedro continuou, depois de ligeira pausa:

— Nosso irmão acaba de referir-se ao símbolo do lobo que surge no redil com a pele das ovelhas genero­sas e humildes. Concordo com essa expressão de zelo. Também eu não pude acolher Saulo, quando hoje nos bateu à porta, atento à responsabilidade que me foi confiada.

Nada quis decidir sem o vosso concurso, O Mestre nos ensinou que nenhuma obra útil se poderá fazer na Terra sem a cooperação fraternal. Mas, apro­veitando o parecer enunciado, examinemos, com since­ridade, o problema imprevisto. Em verdade, Jesus reco­mendou nos acautelássemos contra o fermento dos fari­seus, esclarecendo que o discípulo deverá possuir con­sigo a doçura das pombas e a prudência das serpentes. Convenhamos em que, de fato, Saulo de Tarso possa ser o lobo simbólico. Ainda aí, após esse conhecimento hipotético, teríamos profunda questão a resolver. Se es­tamos numa tarefa de paz e de amor, que fazer com o lobo, depois da necessária identificação? Matar? Sabe­mos que isso não entra em nossa linha de conta. Não seria mais razoável refletir nas possibilidades da domesticação?

Conhecemos homens rudes que conseguem domi­nar cães ferozes. Onde estaria, pois, o espírito que Jesus nos legou como sagrado patrimônio, se por temores mesquinhos deixássemos de praticar o bem?

A palavra concisa do Apóstolo tivera efeito singular. O próprio Tiago parecia desapontado pelas anteriores re­flexões. Em vão Nicolau procurou argumentos novos para formular outras objeções. Observando o pesado si­lêncio que se fizera, Pedro sentenciou serenamente:

—        Desse modo, amigos, proponho convidarmos Barnabé para visitar pessoalmente o doutor de Tarso, em nome desta casa. Ele e Saulo não se conhecem, valori­zando-se melhor semelhante oportunidade, porque, ao vê-lo, o moço tarsense nada terá que recordar do seu passado em Jerusalém. Se fosse visitado, pela primeira vez, por um de nós, talvez se perturbasse, julgando nossas palavras como de alguém que lhe fosse pedir contas.

João aplaudiu a idéia calorosamente. Em face do bom-senso que as expressões de Pedro revelavam, Tiago e Filipe mostravam-se satisfeitos e tranqüilos. Combi­nou-se a diligência de Barnabé para o dia seguinte. Aguardariam Saulo de Tarso com interesse. Se, de fato, sua conversão fosse real, tanto melhor.

O         diácono de Chipre destacava-se por sua grande bondade. Sua expressão carinhosa e humilde, seu espí­rito conciliador, contribuíam, na igreja, para a solução pacífica de todos os assuntos.

Com um sorriso generoso, Barnabé abraçou o ex-ra­bino, pela manhã, na pensão em que ele se hospedara. Nenhum traço da sua nova personalidade indiciava aquele perseguidor famoso, que fizera Simão Pedro decidir a convocação dos amigos para resolver o seu acolhimento. O ex-doutor da Lei era todo humildade e estava doente. Indisfarçável fadiga transparecia-lhe nos mínimos gestos. A fisionomia não iludia um grande sofrimento. Corres­pondia às palavras afetuosas do visitante com um sor­riso triste e acanhado. Via-se-lhe, entretanto, a satis­fação que a visita lhe causava, O gesto espontâneo de Barnabé sensibilizava-o. A seu pedido, Saulo contou-lhe a viagem a Damasco e a gloriosa visão do Mestre, que constituía o marco inolvidável da sua vida, O ouvinte não dissimulou simpatias.

Em poucas horas sentia-se tão identificado com o novo amigo, quais se fossem conhecidos de longos anos. Após a conversação, Barnabé pretextou qualquer coisa para dirigir-se ao dono da hos­pedaria, a quem pagou as despesas da hospedagem. Em seguida, convidou-o a acompanhá-lo à igreja do “Cami­nho”. Saulo não deixou de hesitar, enquanto o outro insistia.

— Receio — disse o moço tarsense um tanto in­deciso —, pois já ofendi muito a Simão Pedro e demais companheiros. Só por acréscimo de misericórdia do Cristo consegui uma réstia de luz, para não perder totalmente meus dias.

— Ora essa! — exclamou Barnabé, batendo-lhe no ombro com bonomia — quem não terá errado na vida? Se Jesus nos tem valido a todos, não é porque o mere­çamos, mas pela necessidade de nossa condição de pe­cadores.

Em poucos minutos, encontravam-se a caminho, no­tando o emissário de Pedro o penoso estado de saúde do antigo rabino. Muito pálido e abatido, parecia ca­minhar com esforço; tremiam-lhe as mãos, sentia-se fe­bril. Deixava-se levar como alguém que conhecesse a necessidade de amparo. Sua humildade comovia o outro, que, a seu respeito, ouvira tantas referências desairosas.

Chegados a casa, Prócoro lhes abriu a porta, mas, desta vez, Saulo não ficaria a esperar indefinidamente. Barnabé tomou-lhe a mão, afetuoso, e dirigiram-se para o vasto salão, onde Pedro e Timon os esperavam. Sau­daram-se em nome de Jesus. O antigo perseguidor empalidecera mais. Por sua vez, ao vê-lo, Simão não ocultou um movimento de espanto ao notar-lhe a diferença física.

Aqueles olhos encovados, a extrema fraqueza orgâ­nica, falavam aos Apóstolos galileus de profundos sofri­mentos.

— Irmão Saulo — disse Pedro comovido —, Jesus quer que sejas bem-vindo a esta casa.

— Assim seja — respondeu o recém-chegado, de olhos úmidos.

Timon abraçou-o com palavras afetuosas, em lugar de João que se ausentara ao amanhecer, a serviço da confraria de Jope.

Em breves momentos, vencendo o constrangimento do primeiro contacto com os amigos pessoais do Mestre, depois de tão longa ausência, o moço tarsense, atenden­do-lhes ao pedido, relatava a jornada de Damasco com todos os pormenores do grande acontecimento, evidenciando singular emotividade nas lágrimas que lhe banhavam o rosto. Sensibilizara-se, sobremaneira, ao relem­brar tamanhas graças. Pedro e Timon já não tinham dúvidas. A visão do ex-rabino tinha sido real. Ambos, em companhia de Barnabé, seguiram a descrição até ao fim, com olhos cheios de pranto. Efetivamente, o Mestre voltara, a fim de converter o grande perseguidor da sua doutrina. Requisitando Saulo de Tarso para o redil do seu amor, revelara, mais uma vez, a lição imortal do perdão e da misericórdia.

Terminada a narrativa, o ex-doutor da Lei estava cansado e abatido. Instado a explanar suas novas espe­ranças, seus projetos de trabalho espiritual, bem como o que pretendia fazer em Jerusalém, confessou-se desde logo profundamente reconhecido por tanto interesse afetuoso e falou com certa timidez:

—        Necessito entrar numa fase ativa de trabalho com que possa desfazer meu passado culposo. É ver­dade que fiz todo o mal à igreja de Jesus, em Jerusalém; mas, se a misericórdia de Jesus dilatar minha perma­nência no mundo, empregarei o tempo em estender esta casa de amor e paz a outros lugares da Terra.

—        Sim — replicou Simão ponderadamente —, certo que o Messias renovará tuas forças, de modo a poderes atender a tão nobre cometimento, na época oportuna.

Saulo parecia confortar-se com a palavra de enco­rajamento; deixando perceber que desejava consolidar a confiança dos ouvintes, arrancou das dobras da túnica rafada um rolo de pergaminhos e, apresentando-o ao ex-pescador de Cafarnaum, disse sensibilizado:

—        Aqui está uma relíquia da amizade de Gamaliel, que trago invariavelmente comigo.

Pouco antes de mor­rer, ele deu-me a cópia das anotações de Levi, concer­nentes à vida e feitos do Salvador. Tinha em grande conta estas notas, porque as recebeu desta casa, na primeira visita que lhe fez.

Simão Pedro, evocando gratas recordações, tomou os pergaminhos com vivo interesse. Saulo verificava que o presente de Gamaliel tivera a finalidade prevista pelo generoso doador.

       Desde esse instante, os olhos do antigo pescador fixaram-se nele com mais confiança. Pedro falou da bondade do generoso rabino, informan­do-se da sua vida em Palmira; dos seus últimos dias, do seu traspasse. O discípulo atendia satisfeito.

Voltando ao assunto das suas novas perspectivas, explicou-se mais amplamente, sempre humilde:

—        Tenho muitos planos de trabalho para o futuro, mas, sinto-me combalido e doente. O esforço da última viagem, sem recursos de qualquer natureza, agravou-me a saúde. Sinto-me febril, o corpo dolorido, a alma exausta.

—        Tens falta de dinheiro? — interrogou Simão bondosamente.

—        Sim... — respondeu hesitante.

—        Essas necessidades — esclareceu Pedro — já foram providas em parte. Não te preocupes em dema­sia. Recomendei a Barnabé que pagasse as primeiras despesas da hospedaria e, quanto ao mais, convidamos-te a repousar conosco o tempo que quiseres. Esta casa é também tua. Usa de nossas possibilidades como te aprouver.

O         hóspede sensibilizou-se. Recordando o passado, sentia-se ferido no seu amor-próprio; mas, ao mesmo tempo, rogava a Jesus o auxiliasse para não desprezar as oportunidades de aprendizado.

—        Aceito... — respondeu em voz reticenciosa, re­velando acanhamento —, ficarei convosco enquanto mi­nha saúde necessitar de tratamento...

E como se tivesse extrema dificuldade em acrescen­tar um pedido ao favor que aceitava, depois de longa pausa em que se lhe notava o esforço para falar, solicitou comovedoramente:

—        Caso fosse possível, desejaria ocupar o mesmo leito em que Estevão foi recolhido, generosamente, nesta casa.

Barnabé e Pedro ficaram altamente emocionados. Todos haviam combinado não fazer alusão ao pregador massacrado sob apupos e pedradas. Não queriam re­lembrar o passado perante o convertido de Damasco, ainda mesmo que sua atitude não fosse essencialmente sincera.

Ouvindo-o, o antigo pescador de Cafarnaum chegou quase a chorar. Com extrema dedicação, satisfez-lhe o pedido e, assim, foi ele conduzido ao interior, onde se acomodou entre lençóis muito alvos. Pedro fez mais: compreendendo a profunda significação daquele desejo, trouxe ao convertido de Damasco os singelos pergami­nhos que o mártir utilizava diariamente no estudo e meditação da Lei, dos Profetas e do Evangelho. Ape­sar da febre, Saulo regozijou-se. Tomado de profunda comoção, nas passagens prediletas dos pergaminhos sa­grados, leu o nome de “Abigail”, grafado diversas vezes. Ali estavam frases peculiares à dialética da noiva amada, datas que coincidiam, perfeitamente, com as suas reve­lações íntimas, quando ambos se entretinham a falar do passado, no pomar de Zacarias. A palavra “Corinto” era repetida muitas vezes. Aqueles documentos pareciam ter uma voz. Falavam-lhe ao coração, de um grande e santo amor fraternal. Ouvia-a em silêncio e guardou as conclusões avaramente. Não revelaria a ninguém suas íntimas dores. Bastavam aos outros os grandes erros da sua vida pública, os remorsos, as retificações que, apesar de verificadas em campo aberto, raros ami­gos conseguiam compreender. Observando-lhe a atitude de constante meditação, Pedro desdobrou-se na tarefa de assistência fraternal. Eram as palavras amigas, os co­mentários acerca do poder de Jesus, os caldos suculen­tos, as frutas substanciosas, a palavra de bom ânimo. Por tudo isso, sensibilizava-se o doente, sem saber como traduzir sua gratidão imperecível.

Entretanto, notou que Tiago, filho de Alfeu, re­ceoso, talvez, dos seus antecedentes, não se dignava dirigir-lhe uma palavra. Arvorado em rígido cumpridor da Lei de Moisés, dentro da igreja do “Caminho”, era percebido, de vez em quando, pelo moço tarsense, qual sombra impassível a deslizar, balbuciando preces silen­ciosas, entre os enfermos. A princípio, sentiu quanto lhe doía aquele desinteresse; mas logo considerou a necessidade de humilhar-se diante de todos. Nada fizera, ainda, que pudesse positivar suas novas convicções.

Quando dominava no Sinédrio, também não perdoava as adesões de última hora.

Logo que entrou a convalescer, já plenamente identificado com a afeição de Pedro, pediu-lhe conselhos sobre os planos que tinha em mente, encarecendo a máxima franqueza, para que pudesse enfrentar a situa­ção, por mais duras que lhe fossem as circunstâncias.

—        De minha parte — disse o Apóstolo ponderadamente — não me parece razoável permaneceres em Je­rusalém, por enquanto, neste período de renovação. Para falar com sinceridade, há que considerar teu novo estado dalma como a planta preciosa que começa a germinar. É necessário dar liberdade ao germe divino da fé. Na hipótese da tua permanência aqui, encontrarias, dia­riamente, de um lado os sacerdotes intransigentes em guerra contra o teu coração; e de outro, as pessoas incompreensíveis, que falam nas extremas dificuldades do perdão, embora conheçam, de sobra, as lições do Mes­tre nesse sentido. Não deves ignorar que a perseguição aos simpatizantes do “Caminho” deixou traços muito profundos na alma popular. Não raro, aqui chegam pessoas mutiladas, que amaldiçoam o movimento. Isso para nós, Saulo, está num passado que jamais voltará; contudo, essas criaturas não o poderão compreender assim, de pronto. Em Jerusalém estarias mal colocado. O germe de tuas novas convicções encontraria mil ele­mentos hostis e talvez ficasses à mercê da exasperação.

O         rapaz ouviu as advertências ralado de angústia, sem protestar. O Apóstolo tinha razão.

Em toda a cidade encontraria críticas soezes e destruidoras.

—        Voltarei a Tarso... — disse com humildade —, é possível que meu velho pai compreenda a situação e ajude meus passos. Sei que Jesus abençoará meus es­forços. Se é preciso recomeçar a existência, recome­çá-la-ei no lar de onde provim...

Simão contemplou-o com ternura, admirado daquela transformação espiritual.

Diariamente, ambos reatavam as palestras amisto­sas. O convertido de Damasco, inteligência fulgurante, revelava curiosidade insaciável a respeito da personalidade do Cristo, dos seus mínimos feitos e mais sutis ensinamentos. Outras vezes, solicitava ao ex-pescador todos os informes possíveis sobre Estevão, regozijan­do-se com as lembranças de Abigail, embora guardasse avaramente os pormenores do seu romance da mocidade. Inteirou-se, então, dos pesados trabalhos do pregador do Evangelho quando no cativeiro; da sua dedicação a um patrício de nome Sérgio Paulo; da fuga em miserável estado de saúde, no porto palestinense; do ingresso na igreja do “Caminho” como indigente, das primeiras noções do Evangelho e conseqüente iluminação em Cristo Jesus. Encantava-se, ouvindo as narrativas simples e amorosas de Pedro, que revelava sua veneração ao mártir evitando melindrá-lo na sua condição de verdugo repeso.

       Logo que pôde levantar-se da cama, foi ouvir as pregações naquele mesmo recinto onde insultara o irmão de Abigail, pela primeira vez. Os expositores do Evan­gelho eram, mais freqüentemente, Pedro e Tiago. O primeiro falava com profunda prudência, embora se valesse de maravilhosas expressões simbólicas. O segundo, entretanto, parecia torturado pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de reingresso na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos. Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade e de amor em Jesus­-Cristo. Revelava-se encarcerado nas concepções estrei­tas do judaísmo dominante. Longos períodos de seus discursos referiam-se às carnes impuras, às obrigações para com a Lei, aos imperativos da circuncisão. A assembléia também parecia completamente modificada. A igreja assemelhava-se muito mais a uma sinagoga comum. Israelitas, em atitude solene, consultavam per­gaminhos e papiros que continham as prescrições de Moi­sés. Saulo procurou, em vão, a figura impressionante dos sofredores e aleijados que vira no recinto, quando ali esteve pela primeira vez. Curiosíssimo, notou que Simão Pedro atendia-os numa sala contígua, com grande bon­dade. Aproximou-se mais e pôde observar que, enquanto a pregação reproduzia a cena exata das sinagogas, os aflitos se sucediam ininterruptamente na sala humilde do ex-pescador de Cafarnaum. Alguns saíam conduzindo bilhas de remédio, outros levavam azeite e pão.

Saulo impressionou-se. A igreja do “Caminho” pare­cia muito mudada. Faltava-lhe alguma coisa. O ambiente geral era de asfixia de todas as idéias do Nazareno. Não mais encontrou ali a grande vibração de fraterni­dade e de unificação de princípios pela independência espiritual. Depois de aturadas reflexões, tudo atribuía à falta de Estevão. Morto este, extinguira-se o esforço do Evangelho livre; pois fora ele o fermento divino da renovação. Somente agora se capacitava da grandeza da sua elevada tarefa.

Quis pedir a palavra, falar como em Damasco, zurzir os erros de interpretação, sacudir a poeira que se adensava sobre o imenso e sagrado idealismo do Cristo, mas lembrou as ponderações de Pedro e calou-se. Não era justo, por enquanto, verberar o procedimento de outrem, quando não dera obras de si mesmo, por teste­munhar a própria renovação. Se tentasse falar, podia ouvir, talvez, reprimendas justas. Além disso, notava que os conhecidos de outros tempos, freqüentadores agora da igreja do “Caminho”, sem abandonar, de modo algum, seus princípios errôneos, olhavam-no de soslaio, sem dissimular desprezo, considerando-o em perturbação mental. No entanto, era com esforço supremo que sopi­tava o desejo de terçar armas, mesmo ali, para restau­ração da verdade pura.

Após a primeira reunião, procurou oportunidade de estar a sós com o ex-pescador de Cafarnaum, a fim de se inteirar das inovações observadas.

— A tempestade que desabou sobre nós — explicou Pedro generosamente, sem qualquer alusão ao seu pro­cedimento de outrora — levou-me a sérias meditações. Desde a primeira diligência do Sinédrio nesta casa, notei que Tiago sofrera profundas transformações. Entregou-se a uma vida de grande ascetismo e rigoroso cum­primento da Lei de Moisés.

Pensei muito na mudança das suas atitudes, mas, por outro lado, considerei que ele não é mau. É companheiro zeloso, dedicado e leal. Calei-me para mais tarde concluir que tudo tem uma razão de ser. Quando as perseguições apertaram o cerco a atitude de Tiago, embora pouco louvável, quanto à liberdade do Evangelho, teve seu lado benéfico. Os dele­gados mais truculentos respeitaram-lhe o devocionismo moisaico e suas amizades sinceras no judaísmo nos per­mitiram a manutenção do patrimônio do Cristo. Eu e João tivemos horas angustiosas, na consideração desses problemas. Estaríamos sendo insinceros, falsearíamos a verdade?

Ansiosamente rogamos a inspiração do Mestre. Com o auxílio de sua divina luz, chegamos a criteriosas conclusões. Seria justo lutar a videira ainda tenra com a figueira brava? Se fôssemos atender ao impulso pessoal de combater os inimigos da independência do Evangelho, esqueceríamos fatalmente, a obra coletiva. Não é lícito que o timoneiro, por testemunhar a excelência de conhe­cimentos náuticos, atire o barco contra os rochedos, com prejuízo de vida para quantos confiaram no seu esforço. Consideramos, assim, que as dificuldades eram muitas e precisávamos, enquanto mínima fosse a nossa possibili­dade de ação, conservar a árvore do Evangelho ainda tenra, para aqueles que viessem depois de nós.

Além do mais, Jesus ensinou que só conseguimos elevados objetivos neste mundo, cedendo alguma coisa de nós mesmos. Por intermédio de Tiago, o farisaísmo acede em caminhar conosco. Pois bem: consoante os ensina­mentos do Mestre, caminharemos as milhas possíveis. E julgo mesmo que, se Jesus assim nos ensinou, é porque na marcha temos a oportunidade de ensinar alguma coisa e revelar quem somos -

Enquanto Saulo o contemplava com redobrada admi­ração pelos judiciosos conceitos emitidos, o Apóstolo re­matava:

— Isso passa! A obra é do Cristo. Se fosse nossa, falharia por certo, mas nós não passamos de simples e imperfeitos cooperadores.

Saulo guardou a lição e recolheu-se pensativo. Pedro parecia-lhe muito maior agora, no seu foro íntimo. Aquela serenidade, aquele poder de compreensão dos fatos mínimos, davam-lhe idéia da sua profunda ilumi­nação espiritual.

 De saúde refeita, antes de qualquer deliberação sobre o novo caminho a tomar, o moço tarsense desejou rever Jerusalém num impulso natural de afeição aos lugares que lhe sugeriam tantas lembranças cariciosas. Visitou o Templo, experimentando o contraste das emoções. Não se animou a penetrar no Sinédrio, mas procurou, ansioso, a Sinagoga dos cilicianos, onde presumia reencontrar as amizades nobres e afáveis de outros tempos.

Entretanto, mesmo ali onde se reuniam os conterrâneos residentes em Jerusalém, foi recebido friamente. Ninguém o con­vidou ao labor da palavra. Apenas alguns conhecidos de sua família apertaram-lhe a mão secamente, evitando-lhe a companhia, de modo ostensivo.

Os mais irônicos, termi­nados os serviços religiosos, dirigiram-lhe perguntas, com sorrisos escarninhos. Sua conversão às portas de Damasco era glosada com ditérios acerados e deprimentes.

—        Não seria algum sortilégio dos feiticeiros do “Caminho”? — diziam uns. — Não seria Demétrio que se vestira de Cristo e lhe deslumbrara os olhos doentes e fatigados? — interrogavam outros.

Percebeu as ironias de que estava sendo objeto. Tratavam-no como demente. Foi aí que, sem sopitar a impulsividade do coração honesto, subiu ousadamente num estrado e falou com orgulho:

—        Irmãos da Cilícia, estais enganados. Não estou louco. Não buscais argüir-me porque eu vos conheço e sei medir a hipocrisia farisaica.

Estabeleceu-se luta imediata. Velhos amigos voci­feravam impropérios. Os mais ponderados cercaram-no como se o fizessem a um doente e pediram-lhe que se calasse. Saulo precisou fazer um esfoço heróico para conter a indignação. A custo, conseguiu dominar-se e retirou-se. Em plena via pública, sentia-se assaltado por idéias escaldantes. Não seria melhor combater aberta­mente, pregar a verdade sem consideração pelas más­caras religiosas que enchiam a cidade? A seus olhos, era justo refletir na guerra declarada aos erros farisai­cos. E se, ao contrário das ponderações de Pedro, assu­misse em Jerusalém a chefia de um movimento mais vasto, a favor do Nazareno? Não tivera a coragem de perseguir-lhe os discípulos, quando os doutores do Si­nédrio eram todos complacentes? Por que não assumir, agora, a atitude da reparação, encabeçando um movi­mento em contrário? Havia de encontrar alguns amigos que se lhe associassem ao esforço ardente. Com esse gesto, auxiliaria o próprio irmão na sua tarefa dignifi­cante em prol dos necessitados.

Fascinado com tais perspectivas, penetrou no Templo famoso. Recordou os dias mais recuados da infância e da primeira juventude. O movimento popular no recinto já lhe não despertava o interesse de outrora. Instintiva­mente, aproximou-se do local onde Estevão sucumbira. Lembrou a cena dolorosa, detalhe por detalhe. Penosa angústia assomava-lhe ao coração. Orou com fervor ao Cristo. Entrou na sala onde estivera a sós com Abigail, a ouvir as últimas palavras do mártir do Evangelho. Compreendia, enfim, a grandeza daquela alma que o perdoara in extremis. Cada palavra do moribundo res­soava-lhe agora, estranhamente, nos ouvidos. A eleva­ção de Estevão fascinava-o. O pregador do “Caminho” havia-se imolado por Jesus! Por que não fazê-lo tam­bém?. Era justo ficar em Jerusalém, seguir-lhe os passos heróicos, para que a lição do Mestre fosse com­preendida. Na recordação do passado, o moço tarsense mergulhava-se em preces fervorosas. Suplicava a inspi­ração do Cristo para seus novos caminhos. Foi aí que o convertido de Damasco, exteriorizando as faculdades espirituais, fruto das penosas disciplinas, observou que um vulto luminoso surgia inopinadamente a seu lado, falando-lhe com inefável ternura:

—        Retira-te de Jerusalém, porque os antigos com­panheiros não aceitarão, por enquanto, o testemunho!

Sob o pálio de Jesus, Estevão seguia-lhe os passos na senda do discipulado, embora a posição transcendental de sua assistência invisível. Saulo, naturalmente, cuidou que era o próprio Cristo o autor da carinhosa advertên­cia e, fundamente impressionado, demandou a igreja do “Caminho”, informando a Simão Pedro o que ocorrera.

—        Entretanto — acabou dizendo ao generoso Após­tolo que o ouvia admirado —, não devo ocultar que tencionava  agitar a opinião religiosa da cidade, defender a causa do Mestre, restabelecer a verdade em sua feição Integral.

Enquanto o ex-pescador escutava em silêncio, como a reforçar a resposta, o novo discípulo continuava:

—        Estevão não se entregou ao sacrifício? Sinto que nos falta aqui uma coragem igual à do mártir, su­cumbido às pedradas da minha ignorância.

—        Não, Saulo — replicou Pedro com firmeza —, não seria razoável pensar assim. Tenho maior experiência da vida, embora não tenha cabedais de inteligência seme­lhantes aos teus.

Está escrito que o discípulo não poderá ser maior que o mestre. Aqui mesmo, em Jerusalém, vimos Judas cair numa cilada igual a esta. Nos dias angustiosoS do Calvário, em que o Senhor provou a excelência e a divindade do seu amor e, nós, o amargo testemunho da exígua fé, condenamos o infortunado com­panheiro. Alguns irmãos nossos mantêm, até o presente, a opinião dos primeiros dias; mas, em contacto com a realidade do mundo, cheguei à conclusão de que Judas foi mais infeliz que perverso. Ele não acreditava na validade das obras sem dinheiro, não aceitava outro poder que não fosse o dos príncipes do mundo. Estava sempre inquieto pelo triunfo imediato das idéias do Cristo. Muitas vezes, vimo-lo altercar, impaciente, pela construção do Reino de Jesus, adstrito aos princípios políticos do mundo. O Mestre sorria e fingia não enten­der as insinuações, como quem estava senhor do seu divino programa. Judas, antes do apostolado, era nego­ciante. Estava habituado a vender a mercadoria e receber o pagamento imediato. Julgo, nas meditações de agora, que ele não pôde compreender o Evangelho de outra forma, ignorando que Deus é um credor cheio de mise­ricórdia, que espera generosamente a todos nós, que não passamos de míseros devedores.

Talvez amasse profun­damente o Messias, contudo, a inquietação Fê-lo perder na oportunidade sagrada. Tão-só pelo desejo de apressar a vitória, engendrou a tragédia da cruz, com a sua falta de vigilância.

Saulo ouvia assombrado aquelas considerações jus­tas e o bondoso Apóstolo continuava:

—        Deus é a Providência de todos. Ninguém está esquecido. Para que ajuizes melhor da situação, admi­tamos que fosses mais feliz que Judas. Figuremos tua vitória pessoal no feito.

Concedamos que pudesses atrair para o Mestre toda a cidade. E depois? Deverias e poderias responder por todos os que aderissem ao teu es­forço? A verdade é que poderias atrair, nunca, porém, converter. Como não te fosse possível atender a todos, em particular, acabarias execrado pela mesma forma. Se Jesus, que tudo pode neste mundo sob a égide do Pai, espera com paciência a conversão do mundo, por que não poderemos esperar, de nossa parte? A melhor posição da vida é a do equilíbrio. Não é justo desejar fazer nem menos, nem mais do que nos compete, mesmo porque o Mestre sentenciou que a cada dia bastam os seus tra­balhos.

O         convertido de Damasco estava surpreso a mais não poder. Simão apresentava argumentos irretorquí­veis. Sua inspiração assombrava-o.

—        À vista do que ocorreu — prosseguiu o ex-pes­cador serenamente —, importa que te vás logo que caia a noite. A luta iniciada na Sinagoga dos cilícios é muito mais importante que os atritos de Damasco. É possível que amanhã procurem encarcerar-te - Além disso, a adver­tência recebida no Templo não é de molde a procrastinar­mos providências indispensáveis.

Saulo concordou de boamente com o alvitre. Poucas vezes na vida escutara observações tão sensatas.

—        Pretendes voltar à Cilícia? — disse Pedro com inflexão paternal.

—        Já não tenho mais aonde ir — respondeu com resignado sorriso.

       - Pois bem, partirás para Cesaréia. Temos ali ami­gos sinceros que te poderão auxiliar.

       O programa de Simão Pedro foi rigorosamente cum­prido. À noite, quando Jerusalém se envolvia em grande silêncio, um cavaleiro humilde transpunha as portas da cidade, na direção dos caminhos que conduziam ao grande porto palestinense.

Torturado pelas apreensões constantes da sua nova vida, chegou a Cesaréia decidido a não se deter ali muito tempo. Entregou as cartas de Pedro que o recomen­davam aos amigos fiéis. Recebido com simpatia por todos, não teve dificuldades em retomar o caminho da cidade natal.

Dirigindo-se agora para o cenário da infância, sen­tia-se extremamente comovido com as mínimas recorda­ções. Aqui, um acidente do caminho a sugerir cariciosas lembranças; ali, um grupo de árvores envelhecidas a des­pertarem especial atenção. Várias vezes, passou por cara­vanas de camelos que lhe faziam relembrar as iniciativas paternas. Tão intensa lhe fora a vida espiritual nos últi­mos anos, tão grandes as transformações, que a vida do lar se lhe figurava um sonho bom, de há muito desva­necido. Através de Alexandre, recebera as primeiras notícias de casa. Lamentava a partida de sua mãe, justa­mente quando tinha maior necessidade da sua compreen­são afetuosa; mas entregava a Jesus os seus cuidados, nesse particular. Do velho pai não era razoável esperar um entendimento mais justo. Espírito formalista, radi­cado ao farisaísmo de maneira integral, certo não apro­varia a sua conduta.

Atingiu as primeiras ruas de Tarso, de alma opressa. As recordações sucediam-se ininterruptas.

Batendo à porta do lar paterno, pela fisionomia indiferente dos servos compreendeu como voltava trans­formado. Os dois criados mais antigos não o reconhece­ram. Guardou silêncio e esperou. Ao fim de longa espera, o genitor foi recebê-lo. O velho Isaac amparando-se ao cajado, nas adiantadas expressões de um reumatismo per­tinaz, não dissimulou um gesto largo de espanto. É que reconhecera de pronto o filho.

—        Meu filho!... — disse com voz enérgica, pro­curando dominar a emoção — será possível que os olhos me enganem?

Saulo abraçou-o afetuosamente, dirigindo-se ambos para o interior.

Isaac sentou-se e, buscando penetrar o íntimo do filho, com o olhar percuciente interrogou em tom de censura:

—        Será que estás mesmo curado?

Para o rapaz, tal pergunta era mais um golpe des­ferido na sua sensibilidade afetiva.

Sentia-se cansado, derrotado, desiludido; necessitava de alento para reco­meçar a existência num idealismo maior e até o pai o reprovava com perguntas absurdas! Ansioso de com­preensão, retrucou de maneira comovedora:

—        Meu pai, por piedade, acolhei-me!... Não estive doente, mas sou agora necessitado pelo espírito! Sinto que não poderei reiniciar minha carreira na vida sem algum repouso!... Estendei-me vossas mãos!...

Conhecendo a austeridade paterna e a extensão das próprias necessidades naquela hora difícil do seu cami­nho, o ex-doutor de Jerusalém huinilhou-se inteiramente, pondo na voz toda a fadiga que se lhe represava no coração.

O         ancião israelita contemplou-o firme, solene, e sen­tenciou sem compaixão:

— Não estiveste doente? Que significa então a tris­te comédia de Damasco? Os filhos podem ser ingratos e conseguem esquecer, mas os pais, se nunca os retiram do pensamento, sabem sentir melhor a crueldade do seu proceder... Não te doeria ver-nos vencidos e huinilhados com a vergonha que lançaste sobre nossa casa? Ralada de desgostos, tua mãe encontrou lenitivo na morte; mas, eu? Acreditas-me insensível à tua deser­ção? Se resisti, foi porque guardava a esperança de buscar Jeová, supondo que tudo não passasse de mal-entendido, que uma perturbação mental houvesse atirado contigo na incompreensão e nas críticas injustificáveis do mundo!... Criei-te com todo o desvelo que um pai, da nossa raça, costuma dedicar ao único filho varão... Sintetizavas gloriosas promessas para nossa estirpe.

Sa­crifiquei-me por ti, cumulei-te de afagos, não poupei esforços para que pudesses contar com os mestres mais sábios, cuidei da tua mocidade, enchi-te com a ternura do coração e é desse modo que retribuis as dedicações e os carinhos do lar?

Saulo podia enfrentar muitos homens armados, sem abdicar a coragem desassombrada que lhe assinalava as atitudes. Podia verberar o procedimento condenável dos outros, ocupar a mais perigosa tribuna para o exame das hipocrisias humanas, mas, diante daquele velhinho que não mais podia renovar a fé, e considerando a am­plitude dos seus sagrados sentimentos paternais, não reagiu e começou a chorar.

—        Choras? — continuou o ancião com grande se­cura. — Mas eu nunca te dei exemplos de covardia! Lutei com heroismo nos dias mais difíceis, para que nada te faltasse. Tua fraqueza moral é filha do perjúrio, da traição. Tuas lágrimas vêm do remorso inelutável!

Como enveredaste, assim, pelo caminho da mentira exe­crável? Com que fim engendraste a cena de Damasco para repudiar os princípios que te alimentaram do berço? Como abandonar a situação brilhante do rabino de quem tanto esperávamos, para arvorar-se em companheiro de homens desclassificados, que nunca tiveram a tradição amorosa de um lar?

Ante as acusações injustas, o moço tarsense solu­çava, talvez pela primeira vez na vida.

—        Quando soube que ias desposar uma jovem sem pais conhecidos — prosseguia o velho implacável —, sur­preendi-me e esperei que te pronunciasses diretamente. Mas tarde, Dalila e o marido eram compelidos a deixar Jerusalém precipitadamente, ralados de vergonha com a ordem de prisão que a Sinagoga de Damasco requisitava contra ti. Várias vezes conjeturei se não seria essa cria­tura inferior, que elegeste, a causa de tamanhos desastres morais. Há mais de três anos levanto-me diariamente para refletir no teu criminoso proceder em detrimento dos mais sagrados deveres!

Ao ouvir aqueles conceitos injustos à pessoa de Abigail, o rapaz cobrou ânimo e murmurou com hu­mildade:

— Meu pai, essa criatura era uma santa! Deus não a quis neste mundo! Talvez, se ela ainda vivesse, teria eu o cérebro mais equilibrado para harmonizar a minha nova vida.

O         pai não gostou da resposta, embora a objeção fosse feita em tom de obediência e carinho.

—        Nova vida? — glosou irritado — que queres com isso dizer?

Saulo enxugou as lágrimas e respondeu resignado:

—        Quero dizer que o episódio de Damasco não foi ilusão e que Jesus reformou minha vida.

—        Não poderias ver em tudo isso rematada lou­cura? — continuou o pai com espanto.

Impossível! como abandonar o amor da família, as tradições venerá­veis do teu nome, as esperanças sagradas dos teus, para seguir um carpinteiro desconhecido?

Saulo compreendeu o sofrimento moral do genitor quando assim se exprimia. Teve ímpetos de atirar-se-lhe nos braços amorosos; falar-lhe do Cristo, proporcionar-lhe entendimento real da situação. Mas, prevendo si­multaneamente a dificuldade de se fazer compreendido, observava-o resignado, enquanto ele prosseguia de olhos úmidos, revelando a mágoa e a cólera que o dominavam.

—        Como pode ser isso? Se a doutrina malfadada do carpinteiro de Nazaré impõe criminosa indiferença pelos laços mais santos da vida, como negar-lhe nocividade e bastardia? Será justo preferir um aventureiro, que mor­reu entre malfeitores, ao pai digno e trabalhador que envelheceu no serviço honesto de Deus?

—        Mas, pai — dizia o moço em voz súplice —, o Cristo é o Salvador prometido!...

Isaac pareceu agravar a própria fúria.

—        Blasfemas? — gritou. — Não temes insultar a Providência Divina? As esperanças de Israel não pode­riam repousar numa fronte que se esvaiu no sangue do castigo, entre ladrões!... Estás louco! Exijo a reconsi­deração de tuas atitudes.

Enquanto fazia uma pausa, o convertido objetou:

— É certo que meu passado está cheio de culpas quando não hesitei em perseguir as expressões da ver­dade; mas, de três anos a esta parte, não me recordo de ato algum que necessite reconsideração.

O         ancião pareceu atingir o auge da cólera e excla­mou áspero:

—        Sinto que as palavras generosas não quadram à tua razão perturbada. Vejo que tenho esperado em vão, para não morrer odiando alguém. Infelizmente, sou obrigado a reconhecer nas tuas atuais decisões um louco, ou um criminoso vulgar. Portanto, para que nossas atitudes se definam, peço-te que escolhas em definitivo, entre mim e o desprezível carpinteiro!.

A voz paternal, ao enunciar semelhante intimativa, era abafada, vacilante, evidenciando profundo sofrimento. Saulo compreendeu e, em vão, procurava um argumento conciliador. A incompreensão do pai angustiava-o. Nunca refletiu tanto e tão intensamente no ensino de Jesus sobre os laços de família. Sentia-se estreitamente ligado ao generoso velhinho, queria ampará-lo na sua rigidez in­telectual, abrandar-lhe a feição tirânica, mas compreen­dia as barreiras que se antepunham aos seus desejos sinceros. Sabia com que severidade fora formado o seu próprio caráter. Prejulgando a inutilidade dos apelos afe­tivos, murmurou entre humilde e ansioso:

—        Meu pai, ambos precisamos de Jesus!...

O         velho, inflexível, endereçou-lhe um olhar austero e retrucou com aspereza:

—        Tua escolha está feita! Nada tens a fazer nesta casa!...

O         velhinho estava trêmulo. Via-se-lhe o esforço espiritual para tomar aquela decisão.

Criado nas con­cepções intransigentes da Lei de Moisés, Isaac sofria como pai; entretanto, expulsava o filho depositário de tantas esperanças, como se cumprisse um dever. O cora­ção amoroso sugeria-lhe piedade, mas o raciocínio do homem, encarcerado nos dogmas implacáveis da raça, abafava-lhe o impulso natural.

Saulo contemplou-o em atitude silenciosa e supli­cante. O lar era a derradeira esperança que ainda lhe restava. Não queria crer na última perda. Cravou no ancião os olhos quase lacrimosos e, depois de longo mi­nuto de expectação, implorou num gesto comovedor que lhe não era habitual:

—        Falta-me tudo, meu pai. Estou cansado e doente! Não tenho dinheiro algum, necessito da piedade alheia.

E acentuando a queixa dolorosa:

—        Também vós me expulsais?...

Isaac sentiu que a rogativa lhe vibrava no mais íntimo do coração. Mas, julgando talvez que a energia era mais eficiente que a ternura, no caso, respondeu secamente:

—        Corrige as tuas impressões, porque ninguém te expulsou. Foste tu que votaste os amigos e os afetos mais puros ao supremo abandono!... Tens necessidades? Ë justo que peças ao carpinteiro as providências acertadas... Ele que fez tamanhos absurdos, terá poder bas­tante para valer-te.

Imensa dor represou-se no espírito do ex-rabino. As alusões ao Cristo doíam-lhe muito mais que as repri­mendas diretas que recebera. Sem conseguir refrear a própria angústia, sentiu que lágrimas ardentes rola­vam-lhe nas faces queimadas pelo sol’ do deserto. Nunca experimentara pranto assim amargo. Nem mesmo na cegueira angustiosa, conseqüente à visão de Jesus, cho­rara tão penosamente. Não obstante esquecido numa pensão sem-nome, cego e acabrunhado, sentia a prote­ção do Mestre que o convocara ao seu divino serviço.

Guardava a impressão de estar mais perto do Cristo. Regozijava-se nas dores mais acerbas, pelo fato de haver recebido, às portas de Damasco, o seu apelo glo­rioso e direto.

Mas, depois de tudo, procurava, em vão, apoio nos homens para iniciar a sagrada tarefa.

Os mais amigos recomendavam-lhe a distância. Por último, ali estava o pai, velho e abastado, a recusar-lhe a mão no instante mais doloroso da vida. Expulsava-o. Manifes­tava aversão por suas idéias regeneradoras. Não lhe tolerava a condição de amigo do Cristo. No pranto que lhe borbulhava dos olhos, recordou-se, porém, de Ananias. Quando todos o abandonavam em Damasco, surgira o mensageiro do Mestre, restituindo-lhe o bom ânimo.

Seu pai falara-lhe, ironicamente, dos poderes do Senhor. Sim, Jesus não lhe faltaria com os recursos indispensáveis. Lançando ao genitor um olhar inolvidável, disse humil­demente:

— Então, adeus, meu pai!... Dizeis bem, porque estou certo de que o Messias não me abandonará!...

A passos indecisos, aproximou-se da porta de saída. Vagou o olhar nevoado de pranto pelos antigos adornos da sala. A poltrona de sua mãe estava na posição ha­bitual. Recordou o tempo em que os olhos maternos liam para ele as primeiras noções da Lei. Julgou divi­sar-lhe a sombra a lhe acenar com amoroso sorriso. Jamais experimentara tamanho vácuo no coração. Estava só. Teve receio de si mesmo, porqüanto, jamais se vira em tais conjunturas.

Depois da meditação dolorosa, retirou-se em silêncio. Olhou, indiferente, o movimento da rua, como alguém que houvesse perdido todo o interesse de viver.

Não dera ainda muitos passos, no seu incerto des­tino, quando ouviu chamarem-no com insistência.

Deteve-se à espera e verificou tratar-se de velho servidor do pai, que corria ao seu encalço.

Em poucos instantes, o criado entregava-lhe uma bolsa pesada, exclamando em tom amistoso:

— Vosso pai manda este dinheiro como lembrança.

Saulo experimentou no íntimo a revolta do “homem velho”. Imaginou invocar a própria dignidade para de­volver a dádiva humilhante. Assim procedendo ensinaria ao pai que era filho e não mendigo. Dar-lhe-ia uma lição, mostraria o valor próprio, mas considerou, ao mesmo tempo, que as provações rigorosas talvez se veri­ficassem com assentimento de Jesus, para que seu coração ainda voluntarioso aprendesse a verdadeira humildade. Sentiu que havia vencido muitos tropeços; que se havia mostrado superior em Damasco e em Jerusalém; que dominara as hostilidades do deserto; que suportara a ingratidão dos climas e as canseiras dolorosas; mas, que o Mestre agora lhe sugeria a luta consigo mesmo, para que o “homem do mundo” deixasse de existir, ensejando o renascimento do coração enérgico, mas amoroso e terno, do discípulo. Seria, talvez, a maior de todas as batalhas. Assim compreendeu, num relance, e buscando vencer-se a si mesmo, tomou a bolsa com resignado sorriso, guar­dou-a humildemente entre as dobras da túnica, saudou o servo com expressões de agradecimento e disse, esfor­çando-se por evidenciar alegria:

— Sinésio, conte a meu pai o contentamento que me causou com a sua carinhosa oferta e diga-lhe que rogo a Deus que o ajude.

Seguindo o curso incerto de sua nova situação, viu na atitude paterna o reflexo dos antigos hábitos do judaísmo. Como pai, Isaac não queria parecer ingrato e inflexível, procurando ampará-lo; mas como fariseu nunca lhe suportaria a renovação das idéias.

Com ar indiferente, tomou leve refeição em modesta locanda. Entretanto, não conseguia tolerar o movimento das ruas. Tinha sede de meditação e silêncio. Precisava ouvir a consciência e o coração, antes de assentar os novos planos de vida. Procurou afastar-se da cidade. Como eremita anônimo, buscou o campo agreste. Depois de muito caminhar sem destino, atingiu os arredores do Tauro. Começava o cortejo das sombras tristes da tarde.

Exausto de fadiga, descansou junto de uma das inume­ráveis cavernas abandonadas.

Muito ao longe, Tarso re­pousava entre arvoredos. As auras vespertinas vibravam no ambiente, sem perturbar a placidez das coisas. Mer­gulhado na quietude da Natureza, Saulo recuou mental­mente ao dia da sua radical transformação. Lembrou o abandono na pensão de Judas, a indiferença de Sadoc à sua amizade. Rememorou a primeira reunião de Da­masco, na qual suportara tantos apupos, ironias e sar­casmos. Demandara Palmira, ansioso pela assistência de Gamaliel, a fim de penetrar a causa do Cristo, mas o nobre mestre lhe aconselhara o insulamento no deserto. Recordou as duras dificuldades do tear e a carência de recursos de toda a espécie, no oásis solitário. Naqueles dias silenciosos e longos, jamais pudera esquecer a noiva morta, lutando por erguer-se, espiritualmente, acima dos sonhos desmoronados. Por mais que estudasse o Evan­gelho, intimamente experimentava singular remorso pelo sacrifício de Estevão, que, a seu ver, fora a pedra tumular do seu noivado futuroso. Suas noites estavam cheias de infinitas angústias. Às vezes, em pesadelos dolorosos, sentia-se de novo em Jerusalém, assinando sentenças iníquas. As vítimas da grande perseguição acusavam-no, olhando-o assustadas, como se a sua fisionomia fosse a de um monstro. A esperança no Cristo reanimava-lhe o espírito resoluto. Depois de provas ásperas, deixara a solidão para regressar à vida social. Novamente em Damasco, a sinagoga o recebeu com ameaças. Os amigos de outros tempos, com profunda ironia, lançavam-lhe epítetos cruéis. Foi-lhe necessário fugir como criminoso comum, saltando muros pela calada da noite. Depois, bus­cara Jerusalém, na esperança de fazer-se compreendido. Contudo, Alexandre, em cujo espírito culto pretendia en­contrar melhor entendimento, recebera-o como visionário e mentiroso. Extremamente fatigado, batera à porta da igreja do “Caminho”, mas fora obrigado a recolher-se a uma reles hospedaria, por força das suspeitas justas dos Apóstolos da Galiléia. Doente e abatido, fora levado à presença de Simão Pedro, que lhe ministrara lições de alta prudência e excessiva bondade, mas, a exemplo de Gamaliel, aconselhara-lhe prévio recolhimento, discrição, aprendizado em suma. Embalde procurava um meio de harmonizar as circunstâncias, de maneira a cooperar na obra do Evangelho e todas as portas pareciam fechadas ao seu esforço. Afinal, dirigira-se a Tarso, ansioso do amparo familiar para reiniciar a vida. A atitude paterna só lhe agravara as desilusões.

Repelindo-o, o genitor lan­çava-o num abismo. Agora começava a compreender que, reencetar a existência, não era volver à atividade do ninho antigo, mas principiar, do fundo dalma, o esforço interior, alijar o passado nos mínimos resquícios, ser outro homem enfim.

Compreendia a nova situação, mas não pôde impedir as lágrimas que lhe afloravam copiosas.

Quando deu acordo de si, a noite havia fechado de todo. O céu oriental resplandecia de estrelas. Ventos suaves sopravam de longe, refrescando-lhe a fronte ia­candescida. Acomodou-se como pôde, entre as pedras agrestes, sem coragem de eximir-se ao silêncio da Natu­reza amiga. Não obstante prosseguir no curso de suas amargas reflexões, sentia-se mais calmo. Confiou ao Mestre as preocupações acerbas, pediu o remédio da sua misericórdia e procurou manter-se em repouso. Após a prece ardente, cessou de chorar, figurando-se-lhe que uma força superior e invisível lhe balsamizava as chagas da alma opressa.

Breve, em doce quietude do cérebro dolorido, sentiu que o sono começava a empolgá-lo.

Suavíssima sensação de repouso proporcionava-lhe grande alívio. Estaria dor­mindo?

Tinha a impressão de haver penetrado uma região de sonhos deliciosos. Sentia-se ágil e feliz. Tinha a impressão de que fora arrebatado a uma campina to­cada de luz primaveril, isenta e longe deste mundo. Flores brilhantes, como feitas de névoa colorida, desa­brochavam ao longo de estradas maravilhosas, rasgadas na região banhada de claridades indefiníveis.

Tudo lhe falava de um mundo diferente. Aos seus ouvidos toavam harmonias suaves, dando idéia de cavatinas executadas ao longe, em harpas e alaúdes divinos. Desejava identificar a paisagem, definir-lhe os contornos, enriquecer observações, mas um sentimento profundo de paz deslum­brava-o inteiramente. Devia ter penetrado um reino ma­ravilhoso, porqüanto os portentos espirituais que se pa­tenteavam a seus olhos excediam todo entendimento. (1)

Mal não havia despertado desse deslumbramento, quando se sentiu presa de novas surpresas com a apro­ximação de alguém que pisava de leve, acercando-se de mansinho. Mais alguns instantes, viu Estevão e Abigail à sua frente, jovens e formosos, envergando vestes tão brilhantes e tão alvas que mais se assemelhavam a peplos de neve translúcida.

 

(1) Mais tarde na 2ª Epístola aos Coríntios (capítulo 12º, versículos de 2 a 4), Saulo afirmava: — “Conheço um homem em Cristo que há 14 anos (se no corpo não sei, se fora do corpo não sei; Deus o sabe) foi arrebatado até ao terceiro céu. E sei que o tal homem foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, de que ao homem não é lícito falar”. Dessa gloriosa expe­riência o Apóstolo dos gentios extraiu novas conclusões sobre suas idéias notáveis, referentemente ao corpo espiritual. — (Nota de Emmanuel)

 

Incapaz de traduzir as sagradas comoções de sua alma, Saulo de Tarso ajoelhou-se e começou a chorar.

Os dois irmãos, que voltavam a encorajá-lo, apro­ximaram-Se com generoso sorriso.

—        Levanta-te, Saulo! — disse Estevão com pro­funda bondade.

—        Que é isso? Choras? — perguntou Abigail em tom blandicioso. — Estarias desalentado quando a tarefa apenas começa?

O         moço tarsense, agora de pé, desatou em pranto convulsivo. Aquelas lágrimas não eram somente um desa­bafo do coração abandonado no mundo. Traduziam um júbilo infinito, uma gratidão imensa a Jesus, sempre pró­digo de proteção e benefícios. Quis aproximar-se, oscular as mãos de Estevão, rogar perdão para o nefando passado, mas foi o mártir do “Caminho” que, na luz de sua res­surreição gloriosa, aproximou-se do ex-rabino e o abra­çou efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado. Depois, beijando-lhe a fronte, murmurou com ternura:

—        Saulo, não te detenhas no passado! Quem haverá, no mundo, isento de erros? Só Jesus foi puro!...

O         ex-discípulo de Gamaliel sentia-se mergulhado em verdadeiro oceano de venturas.

Queria falar das suas alegrias infindas, agradecer tamanhas dádivas, mas indô­mita emoção lhe selava os lábios e confundia o coração. Amparado por Estevão, que lhe sorria em silêncio, viu Abigail mais formosa que nunca, recordando-lhe as flores da primavera na casa humilde do caminho de Jope. Não pôde furtar-se às reflexões do homem, esquecer os sonhos desfeitos, lembrando-os, acima de tudo, naquele glorioso minuto da sua vida. Pensou no lar que poderia ter cons­tituído; no carinho com que a jovem de Corinto lhe cuidaria dos filhos afetuosos; no amor insubstituível que sua dedicação lhe poderia dar. Mas, compreendendo-lhe os mais íntimos pensamentos, a noiva espiritual aproxi­mou-se, tomou-lhe a destra calejada nos labores rudes do deserto e falou comovidamente:

— Nunca nos faltará um lar... Tê-lo-emos no cora­ção de quantos vierem à nossa estrada.

Quanto aos filhos, temos a família imensa que Jesus nos legou em sua mise­ricórdia... Os filhos do Calvário são nossos também... Eles estão em toda parte, esperando a herança do Sal­vador.

O         moço tarsense entendeu a carinhosa advertência, arquivando-a no imo do coração.

—        Não te entregues ao desalento — continuou Abi­gail, generosa e solícita —; nossos antepassados conhe­ceram o Deus dos Exércitos, que era o dono dos triunfos sangrentos, do ouro e da prata do mundo; nós, porém, conhecemos o Pai, que é o Senhor de nosso coração.

A Lei nos destacava a fé, pela riqueza das dádivas ma­teriais nos sacrifícios; mas o Evangelho nos conhece pela confiança inesgotável e pela fé ativa ao serviço do Todo-Poderoso. É preciso ser fiel a Deus, Saulo! Ainda que o mundo inteiro se voltasse contra ti, possuirias o tesouro inesgotável do coração fiel. A paz triunfante do Cristo é a da alma laboriosa, que obedece e confia... Não tornes a recalcitrar contra os aguilhões. Esvazia-te dos pensamentos do mundo. Quando hajas esgotado a der­radeira gota da posca dos enganos terrenos, Jesus enche­rá teu espírito de claridades imortais!...

Experimentando infindo consolo, Saulo chegava a perturbar-se pela incapacidade de articular uma frase. As exortações de Abigail calar-lhe-iam para sempre. Nunca mais permitiria que o desânimo se apossasse dele. Enorme esperança represava-se, agora, em seu íntimo. Trabalharia para o Cristo em todos os lugares e circunstâncias. O Mestre sacrificara-se por todos os ho­mens. Dedicar-lhe a existência representava um nobre dever. Enquanto formulava estes pensamentos, recordou a dificuldade de harmonizar-se com as criaturas.

Encon­traria lutas. Lembrou a promessa de Jesus, de que estaria presente onde houvesse irmãos reunidos em seu nome. Mas tudo lhe pareceu subitamente difícil naquela rápida operação intelectual. As sinagogas combatiam-se entre si. A própria igreja de Jerusalém tendia, nova­mente, às influências judaizantes. Foi aí que Abigail res­pondeu, de novo, aos seus apelos íntimos, exclamando com infinito carinho:

—        Reclamas companheiros concordes contigo nas edificações evangélicas. Mas é preciso lembrar que Jesus não os teve. Os apóstolos não puderam concordar com o Mestre senão com o auxílio do Céu, depois da Res­surreição e do Pentecostes. Os mais amados dormiam, enquanto Ele, agoniado, orava no horto. Uns negaram-no, outros fugiram na hora decisiva.

Concorda com Jesus e trabalha. O caminho para Deus está subdividido em ver­dadeira infinidade de planos. O espírito passará sozinho de uma esfera para outra. Toda elevação é difícil, mas somente aí encontramos a vitória real. Recorda a “porta estreita” das lições evangélicas e caminha. Quando seja oportuno, Jesus chamará ao teu labor os que possam concordar contigo, em seu nome. Dedica-te ao Mestre em todos os instantes de tua vida. Serve-o com energia e ternura, como quem sabe que a realização espiritual reclama o concurso de todos os sentimentos que enobre­çam a alma.

Saulo estava enlevado. Não poderia traduzir as sen­sações cariciosas que lhe represavam no coração tomado de inefável contentamento. Esperanças novas bafeja­vam-lhe a alma. Em sua retina espiritual desdobrava-se radioso futuro. Quis mover-se, agradecer a dádiva sublime, mas a emoção privava-o de qualquer manifestação afetiva. Entretanto, pairava-lhe no espírito uma grande interrogação. Que fazer, doravante, para triunfar? Como completar as noções sagradas que lhe competia exempli­ficar praticamente, sem anotação de sacrifícios?

Deixan­do perceber que lhe ouvia as mais secretas interpelações, Abigail adiantou-se, sempre carinhosa:

—        Saulo, para certeza da vitória no escabroso cami­nho, lembra-te de que é preciso dar: Jesus deu ao mundo quanto possuía e, acima de tudo, deu-nos a compreensão intuitiva das nossas fraquezas, para tolerarmos as misé­rias humanas...

O         moço tarsense notou que Estevão, nesse ínterim, se despedia, endereçando-lhe um olhar fraterno.

Abigail, por sua vez, apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino desejaria prolongar a deli­ciosa visão para o resto da vida, manter-se junto dela para sempre; contudo, a entidade querida esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se, então, por catalo­gar apressadamente suas necessidades espirituais, dese­joso de ouvi-la relativamente aos problemas que o de­frontavam. Ansioso de aproveitar as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo alinhava mental­mente grande número de perguntas. Que fazer para adquirir a compreensão perfeita dos desígnios do Cristo?

—        Ama! — respondeu Abigail espontaneamente.

Mas, como proceder de modo a enriquecermos na virtude divina? Jesus aconselha o amor aos próprios inimigos. Entretanto, considerava quão difícil devia ser semelhante realização. Penoso testemunhar dedicação, sem o real entendimento dos outros. Como fazer para que a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com Jesus-Cristo?

—        Trabalha! — esclareceu a noiva amada, sorrindo bondosamente.

Abigail tinha razão. Era necessário realizar a obra de aperfeiçoamento interior. Desejava ardentemente fa­zê-lo. Para isso insulara-se no deserto, por mais de mil dias consecutivos.

Todavia, voltando ao ambiente do esforço coletivo, em cooperação com antigos companhei­ros, acalentava sadias esperanças que se converteram em dolorosas perplexidades.

Que providências adotar contra o desânimo destruidor?

—        Espera! — disse ela ainda, num gesto de terna solicitude, como quem desejava esclarecer que a alma deve estar pronta a atender ao programa divino, em qualquer circunstância, extreme de caprichos pessoais.

Ouvindo-a, Saulo considerou que a esperança fora sempre a companheira dos seus dias mais ásperos. Sa­beria aguardar o porvir com as bênçãos do Altíssimo. Confiaria na sua misericórdia. Não desdenharia as opor­tunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em toda parte medrava a confusão nos espíritos. Reconhecia que, de fato, a concordância geral em torno dos ensina­mentos do Mestre Divino representava uma das realiza­ções mais difíceis, no desdobramento do Evangelho; mas, além disso, as criaturas pareciam igualmente desinteressadas da verdade e da luz. Os israelitas agarravam-se àLei de Moisés, intensificando o regime das hipocrisias farisaicas; os seguidores do “Caminho” aproximavam-se novamente das sinagogas, fugiam dos gentios, subme­tiam-se, rigorosamente, aos processos da circuncisão. Onde a liberdade do Cristo? Onde as vastas esperanças que o seu amor trouxera à Humanidade inteira, sem exclusão dos filhos de outras raças? Concordavam em que se fazia indispensável amar, trabalhar, esperar; entre­tanto, como agir no âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas lições do Evangelho com a indiferença dos homens?

Abigail apertou-lhe as mãos com mais ternura, a indicar as despedidas, e acentuou docemente:

— Perdoa!...

Em seguida, seu vulto luminoso pareceu diluir-se como se fosse feito de fragmentos de aurora.

Empolgado pela maravilhosa revelação, Saulo viu-se só, sem saber como coordenar as expressões do próprio deslumbramento. Na região, que se coroava de claridades infinitas, sentiam-se vibrações de misteriosa beleza. Aos seus ouvidos continuavam chegando ecos longínquos de sublimes harmonias siderais, que pareciam traduzir men­sagens de amor, oriundas de sóis distantes... Ajoe­lhou-se e orou! Agradeceu ao Senhor a maravilha das suas bênçãos. Daí a instantes, como se energias impon­deráveis o reconduzissem ao ambiente da Terra, sentiu-se no leito rústico, improvisado entre as pedras. Incapaz de esclarecer o prodigioso fenômeno, Saulo de Tarso contemplou os céus, embevecido.

O infinito azul do firmamento não era um abismo em cujo fundo brilhavam estrelas... A seus olhos, o espaço adquiria nova significação; devia estar cheio de expressões de vida, que ao homem comum não era dado compreender. Haveria corpos celestes, como os havia terrestres. A criatura não estava abandonada, em par­ticular, pelos poderes supremos da Criação. A bondade de Deus excedia a toda a inteligência humana. Os que se haviam libertado da carne voltavam do plano espiritual por confortar os que permaneciam a distância.

Para Estevão, ele fora verdugo cruel; para Abigail, noivo ingrato. Entretanto, permitia o Senhor que ambos regressassem à paisagem caliginosa do mundo, reani­mando-lhe o coração.

A existência planetária alcançava novo sentido nas suas elucubrações profundas.

Ninguém estaria abandonado, Os homens mais miseráveis teriam no céu quem os acompanhasse com desvelada dedicação. Por mais duras que fossem as experiências humanas, a vida, agora, assumia nova feição de harmonia e beleza eternas.

A Natureza estava calma. O luar esplendia no alto em vibrações de encanto indefinível.

De quando em quan­do, o vento sussurrava de leve, espalhando mensagens misteriosas.

Lufadas cariciosas acalmavam a fronte do pensador, que se embevecia na recordação imediata de suas maravilhosas visões do mundo invisível.

Experimentando uma paz até então desconhecida, acreditou que renascia naquele momento para uma exis­tência muito diversa. Singular serenidade tocava-lhe o espírito. Uma compreensão diferente felicitava-o para o reinício da jornada no mundo. Guardaria o lema de Abigail, para sempre. O amor, o trabalho, a esperança e o perdão seriam seus companheiros inseparáveis. Cheio de dedicação por todos os seres, aguardaria as oportu­nidades que Jesus lhe concedesse, abstendo-se de pro­vocar situações, e, nesse passo, saberia tolerar a ignorân­cia ou a fraqueza alheias, ciente de que também ele carregava um passado condenável, que, nada obstante, merecera a compaixão do Cristo.

Somente muito depois, quando as brisas leves da madrugada anunciavam o dia, o ex-doutor da Lei con­seguiu conciliar o sono. Quando despertou, era manhã alta. Muito ao longe, Tarso havia retomado o seu movi­mento habitual.

Ergueu-se encorajado como nunca. O colóquio espi­ritual com Estevão e Abigail renovara-lhe as energias. Lembrou, instintivamente, a bolsa que o pai lhe havia mandado.

Retirou-a para calcular as possibilidades finan­ceiras de que podia dispor para novos cometimentos. A dádiva paterna fora abundante e generosa. Contudo, não conseguia atinar, de pronto, com a decisão preferível.

Depois de muito refletir, decidiu adquirir um tear. Seria o recomeço da luta. A fim de consolidar as novas disposições interiores, julgou útil exercer em Tarso o mister de tecelão, visto que ali, na terra do seu berço, se ostentara como intelectual de valor e aplaudido atleta.

Dentro em pouco, era reconhecido pelos conterrâneos como humilde tapeceiro.

A notícia teve desagradável repercussão no lar an­tigo, motivando a mudança do velho Isaac, que, após de­serdá-lo ostensivamente, transferiu-se para uma de suas propriedades à margem do Eufrates, onde esperou a morte junto de uma filha, incapaz de compreender o pri­mogênito muito amado.

Assim, durante três anos, o solitário tecelão das vizinhanças do Tauro exemplificou a humildade e o tra­balho, esperando devotadamente que Jesus o convocasse ao testemunho.

 

Primeiros labores apostólicos

Transformado em rude operário, Saulo de Tarso apresentava notável diferença fisionômica. Acentuara--se-lhe a feição de asceta. Os olhos, contudo, denunciando o homem ponderado e resoluto, revelavam igualmente uma paz profunda e indefinível.

Compreendendo que a situação não lhe permitia idealizar grandes projetos de trabalho, contentava-se em fazer o que fosse possível. Sentia prazer em testemunhar a mudança de conduta aos antigos camaradas de triunfo, por ocasião das festividades tarsenses. Orgulhava-se, quase, de viver do modesto rendimento do seu árduo labor. Vezes várias, ele próprio atravessava as praças mais freqüentadas, carregando pesados fardos de pelo caprino. Os conterrâneos admiravam a atitude humilde, que era agora o seu traço dominante. As famílias ilustres contemplavam-no com piedade. Todos os que o conhe­ceram na fase áurea da juventude, não se cansavam de lamentar aquela transformação. A maioria tratava-o como alienado pacífico. Por isso, nunca faltavam encomendas ao tecelão das proximidades do Tauro. A sim­patia dos seus concidadãos, que jamais lhe compreende­riam integralmente as idéias novas, tinha a virtude de amplificar seu esforço, aumentando-lhe os parcos re­cursos.

Ele, por sua vez, vivia tranqüilo e satisfeito. O programa de Abigail constituía permanente mensagem ao seu coração. Levantava-se, todos os dias, procurando amar a tudo e a todos; para prosseguir nos caminhos retos, trabalhava ativamente. Se lhe chegavam desejos ansiosos, inquietações para intensificar suas atividades fora do tempo apropriado, bastava esperar; se alguém dele se compadecia, se outros o apelidavam de louco, desertor ou fantasista, procurava esquecer a incompre­ensão alheia com o perdão sincero, refletindo nas vezes muitas que, também ele, ofendera os outros, por igno­rância. Estava sem amigos, sem afetos, suportando os desencantos da soledade que, se não tinha companheiros carinhosos, também não necessitava temer os sofrimentos oriundos das amizades infiéis. Procurava encontrar no dia o colaborador valioso que não lhe subtraia as opor­tunidades. Com ele tecia tapetes complicados, barracas e tendas, exercitando-se na paciência indispensável aos trabalhos outros que ainda o esperavam nas encruzilha­das da vida. A noite era a bênção do espírito. A exis­tência corria sem outros pormenores de maior impor­tância, quando, um dia, foi surpreendido com a visita inesperada de Barnabé.

O         ex-levita de Chipre encontrava-se em Antioquia. a braços com sérias responsabilidades. A igreja ali fun­dada reclamava a cooperação de servos inteligentes.

Inúmeras dificuldades espirituais a serem resolvidas, in­tensos serviços a fazer. A instituição fora iniciada por discípulos de Jerusalém, sob os alvitres generosos de Simão Pedro. O ex-pescador de Cafarnaum ponderou que deveriam aproveitar o período de calma, no capítulo das perseguições, para que os laços do Cristo fossem dilatados. Antioquia era dos maiores centros operários. Não faltavam contribuintes para o custeio das obras, porque o empreendimento grandioso tivera repercussão nos ambientes de trabalho mais humildes; entretanto, escasseavam os legítimos trabalhadores do pensamento. Ainda, aí, entrou a compreensão de Pedro para que não faltasse ao tecelão de Tarso o ensejo devido. Observando as dificuldades, depois de indicar Barnabé para a direção do núcleo do “Caminho”, aconselhou-o a procurar o convertido de Damasco, a fim de que sua capacidade alcançasse um campo novo de exercício espiritual.

Saulo recebeu o amigo com imensa alegria.

Vendo-se lembrado pelos irmãos distantes, tinha a impressão de receber um novo alento.

O companheiro expôs o elevado plano da igreja que lhe reclamava o concurso fraterno, o desdobramento dos serviços, a colaboração constante de que poderiam dispor para a construção das obras de Jesus-Cristo. Bar­nabé exaltou a dedicação dos homens humildes que cooperavam com ele. A instituição, todavia, reclamava irmãos dedicados, que conhecessem profundamente a Lei de Moisés e o Evangelho do Mestre, a fim de não ser prejudicada a tarefa da iluminação intelectual.

O ex-rabino edificou-se com a narração do outro e não teve dúvidas em atender ao apelo. Apenas apre­sentava uma condição, qual a de prosseguir no seu ofício, de maneira a não ser pesado aos seus confrades de Antio­quia. Inútil qualquer objeção de Barnabé, nesse sentido.

Pressuroso e prestativo, Saulo de Tarso em breve se instalava em Antioquia, onde passou a cooperar ativa­mente com os amigos do Evangelho. Durante largas horas do dia, consertava tapetes ou se entretinha no trabalho de tecelagem. Destarte, ganhava o necessário para viver, tornando-se um modelo no seio da nova igreja. Utilizando o grande cabedal de experiências já adquirido nas refregas e padecimentos do mundo, jamais o viam ocupar os primeiros lugares. Nos Atos dos Apóstolos, vemos-lhe o nome citado sempre por último, quando se referem aos colaboradores de Barnabé. Saulo havia aprendido a esperar Na comunidade, preferia os labores mais simples. Sentia-se bem, atendendo aos doentes nu­merosos. Recordava Simão Pedro e procurava cumprir os novos deveres na pauta da bondade despretensiosa, embora imprimindo em tudo o traço da sua sinceridade e franqueza, quase ásperas.

A igreja não era rica, mas a boa-vontade dos com­ponentes parecia provê-la de graças abundantes.

Antioquia, cidade cosmopolita, tornara-se um foco de grandes devassidões. Na sua paisagem enfeitada de mármores preciosos, que deixavam entrever a opulência dos habitantes, proliferava toda a espécie de abusos. Os fortunosos entregavam-se aos prazeres licenciosos, desenfreadamente. Os bosques artificiais reuniam assem­bléias galantes, onde criminosa tolerância caracterizava todos os propósitos. A riqueza pública ensejava grandes possibilidades às extravagâncias. A cidade estava cheia de mercadores que se guerreavam sem tréguas, de am­bições inferiores, de dramas passionais. Mas, diaria­mente, à noite, se reuniam, na casa singela onde funcio­nava a célula do “Caminho”, grandes grupos de pedrei­ros, de soldados paupérrimos, de lavradores pobres, ansiosos todos pela mensagem de um mundo melhor. As mulheres de condição humilde compareciam, igualmente, em grande número. A maioria dos freqüentadores in­teressavam-se por conselhos e consolações, remédios para as chagas do corpo e do espírito.

Geralmente, eram Barnabé e Manahen os pregado­res mais destacados, ministrando o Evangelho às assem­bléias heterogêneas. Saulo de Tarso limitava-se a co­operar. Ele mesmo notara que Jesus, por certo, reco­mendara absoluto recomeço em suas experiências. Certa feita, fez o possível por conduzir as pregações gerais, mas nada conseguiu. A palavra, tão fácil noutros tempos, parecia retrair-se-lhe na garganta. Compreendeu que era justo padecer as torturas do reinício, em virtude da oportunidade que não soubera valorizar. Não obstante as barreiras que se antepunham às suas atividades, ja­mais se deixou avassalar pelo desânimo. Se ocupava a tribuna, tinha extrema dificuldade na interpretação das idéias mais simples. Por vezes, chegava a corar de vergonha ante o público que lhe aguardava as conclu­sões com ardente interesse, dada a fama de pregador de Moisés, no Templo de Jerusalém. Além disso, o sublime acontecimento de Damasco cercava-o de nobre e justa curiosidade. O próprio Barnabé, várias vezes, surpreendera-se com a sua dialética confusa na inter­pretação dos Evangelhos e refletia na tradição do seu passado como rabino, que não chegara a conhecer pessoal­mente, e na timidez que o assomava, justo no momento de conquistar o público. Por esse motivo, foi afastado discretamente da pregação e aproveitado noutros mis­teres. Saulo, porém, compreendia e não desanimava. Se não era possível regressar, de pronto. ao labor da pre­gação, preparar-se-ia, de novo, para isso. Nesse intuito, retinha irmãos humildes na sua tenda de trabalho e, enquanto as mãos teciam com segurança, entabulava conversas sobre a missão do Cristo. À noite, promovia palestras na igreja com a cooperação de todos os presentes. Enquanto não se organizava a direção superior para o trabalho das assembléias, sentava-se com os ope­rários e soldados que compareciam em grande número. Interessava a atenção das lavadeiras, das jovens doentes, das mães humildes. Lia, às vezes, trechos da Lei e do Evangelho, estabelecia comparações, provocava pareceres novos. Dentro daquelas atividades constantes, a lição do Mestre parecia sempre tocada de luzes progressivas. Em breve, o ex-discípulo de Gamaliel tornava-se um amigo amado de todos. Saulo sentia-se imensamente feliz. Tinha enorme satisfação sempre que via a tenda pobre repleta de irmãos que o procuravam, tomados de sim­patia. As encomendas não faltavam. Havia sempre trabalho suficiente para não se tornar pesado a ninguém. Ali conheceu Trófimo, que lhe seria companheiro fiel em muitos transes difíceis; ali abraçou Tito, pela primeira vez, quando esse abnegado colaborador mal saía da infância.

A existência, para o ex-rabino, não podia ser mais tranqüila nem mais bela. Era-lhe o dia cheio das notas harmoniosas do trabalho digno e construtivo; à noite, recolhia-se à igreja em companhia dos irmãos, entre­gando-se prazenteiro às lides sublimes do Evangelho.

A instituição de Antioquia era, então, muito mais sedutora que a própria igreja de Jerusalém. Vivia-se ali num ambiente de simplicidade pura, sem qualquer preocupação com as disposições rigoristas do judaísmo. Havia riqueza, porque não faltava trabalho. Todos ama­vam as obrigações diuturnas, aguardando o repouso da noite nas reuniões da igreja, qual uma bênção de Deus. Os israelitas, distantes do foco das exigências farisaicas, cooperavam com os gentios, sentindo-se todos unidos por soberanos laços fraternais. Raríssimos os que falavam na circuncisão e que, por constituírem fraca minoria, eram contidos pelo convite amoroso à fraternidade e àunião. As assembléias eram dominadas por ascendentes profundos de amor espiritual. A solidariedade estabele­cera-se com fundamentos divinos. As dores e os júbilos de um pertenciam a todos. A união de pensamentos em torno de um só objetivo dava ensejo a formosas manifestações de espiritualidade. Em noites determina­das, havia fenômenos de “vozes diretas”. A instituição de Antioquia foi um dos raros centros apostólicos onde semelhantes manifestações chegaram a atingir culminân­cia indefinível. A fraternidade reinante justificava essa concessão do Céu. Nos dias de repouso, a pequena comu­nidade organizava estudos evangélicos no campo. A in­terpretação dos ensinos de Jesus era levada a efeito em algum recanto ameno e solitário da Natureza, quase sem­pre às margens do Orontes.

Saulo encontrara em tudo isso um mundo diferente. A permanência em Antioquia era interpretada como um auxílio de Deus. A confiança recíproca, os amigos dedi­cados, a boa compreensão, constituem alimento sagrado da alma. Procurava valer-se da oportunidade, a fim de enriquecer o celeiro íntimo.

A cidade estava repleta de paisagens morais menos dignas, mas o grupo humilde dos discípulos anônimoS aumentava sempre em legítimos valores espirituais.

A igreja tornou-se venerável por suas obras de cari­dade e pelos fenômenos de que se constituíra organismo central –

Viajantes ilustres visitavam-na cheios de interesse. Os mais generosos faziam questão de lhe amparar os encargos de benemerência social. Foi aí que surgiu, certa vez, um médico muito jovem, de nome Lucas. De pas­sagem pela cidade, aproximou-se da igreja animado por sincero desejo de aprender algo de novo. Sua atenção fixou-se, de modo especial, naquele homem de aparência quase rude, que fermentava as opiniões, antes que Bar­nabé empreendesse a abertura dos trabalhos. Aquelas atitudes de Saulo. evidenciando a preocupação generosa de ensinar e aprender simultaneamente, impressionaran-no a ponto de apresentar-se ao ex-rabino, desejoso de ouvi-lo com mais freqüência.

— Pois não — disse o Apóstolo satisfeito —, minha tenda está às suas ordens.

E enquanto permaneceu na cidade, ambos se em­penhavam diariamente em proveitosas palestras, con­cernentes ao ensino de Jesus. Retomando aos poucos seu poder de argumentação, Saulo de Tarso não tardou a incutir no espírito de Lucas as mais sadias convicções. Desde a primeira entrevista, o hóspede de Antioquia não mais perdeu uma só daquelas assembléias simples e construtivas. Na véspera de partir, fez uma observa­ção que modificaria para sempre a denominação dos discípulos do Evangelho.

Barnabé havia terminado os comentários da noite, quando o médico tomou a palavra para despedir-se. Fa­lava emocionado e, por fim, considerou acertadamente:

—        Irmãos, afastando-me de vós, levo o propósito de trabalhar pelo Mestre, empregando nisso todo o cabedal de minhas fracas forças. Não tenho dúvida alguma quanto à extensão deste movimento espiritual. Para mim, ele transformará o mundo inteiro. Entretanto, pondero a necessidade de imprimirmos a melhor expressão de unidade às suas manifestações. Quero referir-me aos títulos que nos identificam a comunidade. Não vejo na palavra “caminho” uma designação perfeita, que traduza o nosso esforço, Os discípulos do Cristo são chamados viajores”, “peregrinos”, “caminheiros”. Mas há vian­dantes e estiadas de todos os matizes, O mal tem, igualmente, os seus caminhos, Não seria mais justo chamar­mo-nos — cristãos — uns aos outros? Este título nos recordará a presença do Mestre, nos dará energia em seu nome e caracterizará, de modo perfeito, as nossas atividades em concordância com os seus ensinos.

A sugestão de Lucas foi aprovada com geral alegria. O próprio Barnabé abraçou-o, enternecidamente, agrade­cendo o acertado alvitre, que vinha satisfazer a certas aspirações da comunidade inteira. Saulo consolidou suas impressões excelentes, a respeito daquela vocação supe­rior que começava a exteriorizar-se.

No dia seguinte, o novo convertido despediu-se do ex-rabino com lágrimas de reconhecimento. Partiria para a Grécia, mas fazia questão de lembrá-lo em todos os pormenores da nova tarefa. Da porta de sua tenda rús­tica, o ex-doutor da Lei contemplou o vulto de Lucas até que desaparecesse ao longe, voltando ao tear, de olhos úmidos.

Gratamente emocionado reconhecia que, no trato do Evangelho, aprendera a ser amigo fiel e dedicado. Cotejava os sentimentos de agora com as concepções mais antigas e verificava profundas diferen­ças. Outrora, suas relações se prendiam a conveniências sociais, os afeiçoados vinham e seguiam sem deixar gran­des sinais em sua alma vibrátil; agora, o coração reno­vara-se em Jesus-Cristo, tornara-se mais sensível em contacto com o divino, as dedicações sinceras insculpiam­-se nele para sempre.

O alvitre de Lucas estendeu-se rapidamente a todos os núcleos evangélicos, inclusive Jerusalém, que o recebeu com especial simpatia. Dentro de breve tempo, em toda parte, a palavra “cristianismo” substituia a palavra caminho”.

A igreja de Antioquia continuava oferecendo as mais belas expressões evolutivas. De todas as grandes cidades afluiam colaboradores sinceros. As assembléias estavam sempre cheias de revelações. Numerosos irmãos profetizavam, animados do Espírito Santo (1). Foi aí que Agabo, grande inspirado pelas forças do plano su­perior, recebeu a mensagem referente às tristes prova­ções de que Jerusalém seria vítima. Os orientadores da instituição ficaram sobremaneira impressionados. Por insistência de Saulo, Barnabé expediu um mensageiro a Simão Pedro, enviando notícias e exortando-o à vigi­lância. O emissário regressou, trazendo a impressão de surpresa do ex-pescador, que agradecia os apelos ge­nerosos.

 

(1) Ninguém deverá ignorar que Espírito Santo designa a legião dos Espíritos santificados na luz e no amor, que cooperam com o Cristo desde os primeiros tempos da Huma­nidade. — (Nota de Emmanuel.)

 

Com efeito, daí a meses, um portador da igreja de Jerusalém chegava apressadamente a Antioquia, tra­zendo notícias alarmantes e dolorosas. Em longa mis­siva, Pedro relatava a Barnabé os últimos fatos que o acabrunhavam. Escrevia na data em que Tiago, filho de Zebedeu, sofrera a pena de morte, em grande espe­táculo público. Herodes Agripa não lhe tolerara as pre­gações cheias de sinceridade e apelos justos, O irmão de João vinha da Galiléia com a primitiva franqueza dos anúncios do novo Reino. Inadaptado ao convencio­nalismo farisaico, levara muito longe o sentido de suas exortações profundas. Verificou-se perfeita repetição dos acontecimentos que assinalaram a morte de Estevão. Os judeus exasperaram-se contra as noções de liberdade religiosa. Sua atitude, sincera e simples, foi levada à conta de rebeldia. Tremendas perseguições irromperam sem tréguas. A mensagem de Pedro relatava também as penosas dificuldades da igreja. A cidade sofria fome e epidemias. Enquanto a perseguição cruel apertava o cerco, inumeráveis filas de famintos e doentes batiam-lhe às portas. O ex-pescador solicitava de Antioquia os so­corros possíveis.

Barnabé apresentou as notícias, de alma confran­gida. A laboriosa comunidade solidarizou-se, de bom grado, para atender a Jerusalém.

Recolhidas as cotas de auxílio, o ex-levita de Chipre prontificou-se a ser o portador da resposta da igreja; Barnabé, porém, não poderia partir só. Surgiram difi­culdades na escolha do companheiro necessário. Sem hesitar, Saulo de Tarso ofereceu-se para lhe fazer companhia. Trabalhava por conta própria — explicou aos amigos — e desse modo poderia tomar a iniciativa de acompanhar Barnabé, sem esquecer as obrigações que ficavam à sua espera.

O discípulo de Simão Pedro alegrou-se. Aceitou, jubiloso, o oferecimento.

Daí a dois dias, ambos demandavam Jerusalém cora­josamente. A jornada era assaz difícil, mas os dois ven­ceram os caminhos no menor prazo de tempo.

Imensas surpresas aguardavam os emissários de Antioquia, que já não encontraram Simão Pedro em Jerusalém. As autoridades haviam efetuado a prisão do ex-pescador de Cafarnaum, logo após a dolorosa execução do filho de Zebedeu. Amargas provações ha­viam caído sobre a igreja e seus discípulos. Saulo e Barnabé foram recebidos especialmente por Prócoro, que os informou de todos os sucessos. Por haver solicitado pessoalmente o cadáver de Tiago para dar-lhe sepultura, Simão Pedro fora preso, sem compaixão e com todo o desrespeito, pelos criminosos sequazes de Herodes. Mas, dias depois, um anjo visitara o cárcere do Apóstolo, res­tituindo-o à liberdade. O narrador referiu-se ao feito, com os olhos fulgurantes de fé. Contou o júbilo dos irmãos quando Pedro surgiu à noite com o relato da sua libertação. Os companheiros mais ponderados induzi­ram-no, então, a sair de Jerusalém e esperar na igreja incipiente de Jope a normalidade da situação. Prócoro contou como o Apóstolo relutara em aquiescer a esse alvitre dos mais prudentes. João e Filipe haviam partido. As autoridades apenas toleravam a igreja em con­sideração à personalidade de Tiago, que, pelas suas ati­tudes de profundo ascetismo impressionava a mentalidade popular, criando em torno dele uma atmosfera de respeito intangível. Na mesma noite da libertação, por atender-lhe a insistência, Pedro fora conduzido à igreja pelos amigos. Desejava ficar, despreocupado das conseqüên­cias; mas, quando viu a casa cheia de enfermos, de famin­tos, de mendigos andrajosos, houve de ceder a Tiago a direção da comunidade e partir para Jope, a fim de que os pobrezinhos não tivessem a situação agravada por sua causa.

Saulo mostrava-se grandemente impressionado com tudo aquilo. Junto de Barnabé, tratou logo de ouvir a palavra de Tiago, o filho de Alfeu. O Apóstolo recebeu-os de bom grado, mas, podiam-se-lhe notar desde logo os receios e inquietações. Repetiu as informações de Prócoro, em voz baixa, como se temesse a presença de delatores; alegou a necessidade de transigência com as autoridades; invocou o precedente da morte do filho de Zebedeu; referiu-se às modificações essenciais que intro­duzira na igreja. Na ausência de Pedro, criara novas disciplinas. Ninguém poderia falar do Evangelho sem referir-se à Lei de Moisés. As pregações só poderiam ser ouvidas pelos circuncisos. A igreja estava equiparada às sinagogas. Saulo e o companheiro ouviram-no com grande surpresa. Entregaram-lhe em silêncio o auxílio financeiro de Antioquia.

A ausência eventual de Simão transformara a es­trutura da obra evangélica. Aos dois recém-chegados tudo parecia inferior e diferente. Barnabé, sobretudo, notara algo, em particular. Ë que o filho de Alfeu, elevado à chefia provisória, não os convidou para se hospedarem na igreja. À vista disso, o discípulo de Pedro foi procurar a casa de sua irmã Maria Marcos, mãe do futuro evangelista, que os recebeu com grande júbilo. Saulo sentiu-se bem no ambiente de fraternidade pura e simples. Barnabé, por sua vez, reconheceu que a casa da irmã se tornara o ponto predileto dos irmãos mais dedicados ao Evangelho. Ali se reuniam, à noite, às ocultas, como se a verdadeira igreja de Jerusalém houvesse transferido sua sede para um reduzido círculo familiar. Observando as assembléias íntimas do santuá­rio doméstico, o ex-rabino recordou a primeira reunião de Damasco. Tudo era afabilidade, carinho, acolhimento. A mãe de João Marcos era uma das discípulas mais de­sassombradas e generosas. Reconhecendo as dificuldades dos irmãos de Jerusalém, não vacilara em colocar seus bens à disposição de todos os necessitados, nem hesitou em abrir as portas para que as reuniões evangélicas, em sua feição mais pura, não sofressem solução de conti­nuidade.

A palestra de Saulo impressionou-a vivamente. Se­duziam-na, sobretudo, as descrições do ambiente fraternal da igreja antioquiana, cujas virtudes Barnabé não cessava de glosar instantemente.

Maria expôs ao irmão o seu grande sonho. Queria dar o filho, ainda muito jovem, a Jesus. De há muito vinha preparando o menino para o apostolado. Todavia, Jerusalém afogava-se em lutas religiosas, sem tréguas. As perseguições surgiam e ressurgiam. A organização cristã da cidade experimentava profundas alternativas. Só a paciência de Pedro conseguia manter a continuidade do ideal divino. Não seria melhor que João Marcos se transferisse para Antioquia, junto do tio? Barnabé não se opôs ao plano da irmã entusiasmada. O jovem, a seu turno, seguia as conversações, mostrando-se satisfeito. Chamado a opinar, Saulo percebeu que os irmãos delibe­ravam sem consultar o interessado. O rapaz acompa­nhava os projetos, sempre jovial e sorridente. Foi aí que o ex-doutor da Lei, profundo conhecedor da alma humana, desviou a palavra, procurando interessá-lo mais diretamente.

—        João — disse bondosamente —, sentes, de fato, verdadeira vocação para o ministério?

—        Sem dúvida! — confirmou o adolescente algo perturbado.

      — Mas, como defines teus propósitos? — tornou a perguntar o ex-rabino.

—        Penso que o ministério de Jesus é uma glória —respondeu um tanto acanhado sob o exame daquele olhar ardente e inquiridor.

Saulo refletiu um instante e sentenciou:

—        Teus intuitos são louváveis, mas é preciso não esqueceres que a mínima expressão de glória mundana apenas chega após o serviço. Se assim acontece no mun­do, que não será com o trabalho para o reino do Cristo? Mesmo porque, na Terra, todas as glórias passam e a de Jesus é eterna!...

O         jovem anotou a observação e, embora desconcer­tado pela profundez dos conceitos, acrescentou:

—        Sinto-me preparado para os labores do Evange­lho e, além disso, mamãe faz muito gosto que eu aprenda os melhores ensinamentos nesse sentido, a fim de tornar-me um pregador das verdades de Deus.

Maria Marcos olhou o filho cheia de maternal orgu­lho. Saulo percebeu a situação, teve um dito alegre e depois acentuou:

— Sim, as mães sempre nos desejam todas as gló­rias deste e do outro mundo. Por elas, nunca haveria homens perversos. Mas, no que nos diz respeito, convém lembrar as tradições evangélicas. Ainda ontem, lembrei a generosa inquietação da esposa de Zebedeu, ansiosa pela glorificação dos filhinhos!... Jesus lhe recebeu os anseios maternais, mas, não deixou de lhe perguntar se os candidatos ao Reino estavam devidamente preparados para beber do seu cálice... E, ainda agora, vimos que o cálice reservado a Tiago continha vinagre tão amargo quanto o da cruz do Messias!...

Todos silenciaram, mas Saulo continuou em tom prazenteiro, modificando a impressão geral:

— Isto não quer dizer que devamos desanimar ante as dificuldades, para aliciar as glórias legítimas do Reino de Jesus, Os obstáculos renovam as forças. A finalidade divina deve representar nosso objetivo supremo. Se assim pensares, João, não duvido de teus futuros triunfos.

Mãe e filho sorriram tranqüilos.

Ali mesmo, combinaram a partida do jovem, em companhia de Barnabé. O tio discorreu ainda sobre as disciplinas indispensáveis, o espírito de sacrifício recla­mado pela nobre missão. Naturalmente, se Antioquia representava um ambiente de profunda paz, era também um núcleo de trabalhos ativos e constantes. João pre­cisaria esquecer qualquer expressão de esmorecimento, para entregar-se, de alma e corpo, ao serviço do Mestre, com absoluta compreensão dos deveres mais justos.

O rapaz não hesitou nos compromissos, sob o olhar amorável de sua mãe, que lhe buscava amparar as de­cisões com a coragem sincera do coração devotado a Jesus.

Dentro de poucos dias os três demandavam a for­mosa cidade do Orontes.

Enquanto João Marcos extasiava-se na contempla­ção das paisagens, Saulo e Barnabé entretinham-se em longas palestras, relativamente aos interesses gerais do Evangelho. O ex-rabino voltava sumamente impressio­nado com a situação da igreja de Jerusalém. Desejaria sinceramente ir até Jope, para avistar-se com Simão Pedro. No entanto, os irmãos dissuadiram-no de o fazer. As autoridades mantinham-se vigilantes. A morte do Apóstolo chegara a ser reclamada por vários membros do Sinédrio e do Templo. Qualquer movimento mais importante, no caminho de Jope, poderia dar azo à tirania dos prepostos herodianos.

Francamente — dizia Saulo a Barnabé, mostran­do-se apreensivo —, regresso de ânimo quase abatido aos nossos serviços de Antioquia. Jerusalém dá impres­são de profundo desmantelo e acentuada indiferença pelas lições do Cristo. As altas qualidades de Simão Pedro, na chefia do movimento, não me deixam dúvidas; mas pre­cisamos cerrar fileiras em torno dele. Mais que nunca me convenço da sublime realidade de que Jesus veio ao que era seu, mas não foi compreendido.

—        Sim — obtemperava o ex-levita de Chipre, desejo­so de dissipar as apreensões do companheiro —, confio, antes de tudo, no Cristo; depois, espero muito de Pedro...

—        Entretanto — insinuava o outro sem vacilar —, precisamos considerar que em tudo deve existir uma pauta de equilíbrio perfeito. Nada poderemos fazer sem o Mestre, mas não é lícito esquecer que Jesus instituiu no mundo uma obra eterna e, para iniciá-la, escolheu doze companheiros. Certo, estes nem sempre correspon­deram à expectativa do Senhor; contudo, não deixaram de ser os escolhidos. Assim, também precisamos exami­nar a situação de Pedro.

Ele é, sem contestação, o chefe legítimo do colégio apostólico, por seu espírito superior afinado com o pensamento do Cristo, em todas as cir­cunstâncias; mas, de modo algum poderá operar sozinho. Como sabemos, dos doze amigos de Jesus, quatro ficaram em Jerusalém, com residência fixa. João foi obrigado a retirar-se; Filipe compelido a abandonar a cidade, com a família; Tiago volta aos poucos para as comunidades farisaicas. Que será de Pedro se lhe faltar a cooperação devida?

Barnabé pareceu meditar seriamente.

—        Tenho uma idéia que parece vir de mais alto —disse o ex-doutor da Lei sinceramente comovido.

E continuou:

      — Suponho que o Cristianismo não atingirá seus fins, se esperarmos tão-só dos israelitas anquilosados no orgulho da Lei. Jesus afirmou que seus discípulos viriam do Oriente e do Ocidente. Nós, que pressentimos a tempestade, e eu, principalmente, que a conheço nos seus paroxismos, por haver desempenhado o papel de verdugo, precisamos atrair esses discípulos.

        Quero dizer, Barnabé, que temos necessidade de buscar os gentios onde quer que se encontrem. Só assim reintegrar-se-áo movimento em função de universalidade.

O         discípulo de Simão Pedro fez um movimento de espanto.

O         ex-rabino percebeu o gesto de estranheza e pon­derou de modo conciso:

—        É natural prever com isso muitos protestos e lutas enormes; no entanto, não consigo vislumbrar outros recursos. Não é justo esquecer os grandes serviços da igreja de Jerusalém aos pobres e necessitados, e creio mesmo que a assistência piedosa dos seus trabalhos tem sido, muitas vezes, sua tábua de salvação. Existem, po­rém, outros setores de atividade, outros horizontes essen­ciais. Poderemos atender a muitos doentes, ofertar um leito de repouso aos mais infelizes; mas sempre houve e haverá corpos enfermos e cansados, na Terra. Na tarefa cristã, semelhante esforço não poderá ser esque­cido, mas a iluminação do espírito deve estar em primeiro lugar. Se o homem trouxesse o Cristo no íntimo, o quadro das necessidades seria completamente modificado. A compreensão do Evangelho e da exemplificação do Mes­tre renovaria as noções de dor e sofrimento. O necessi­tado encontraria recursos no próprio esforço, o doente sentiria, na enfermidade mais longa, um escoadouro das imperfeições; ninguém seria mendigo, porque todos te­riam luz cristã para o auxílio mútuo, e, por fim, os obstáculos da vida seriam amados como corrigendas benditas de Pai amoroso a filhos inquietos.

Barnabé pareceu entusiasmar-se com a idéia. Mas, depois de pensar um minuto, acrescentou:

—        Entretanto, esse empreendimento não deveria partir de Jerusalém?

—        Penso que não — sentenciou Saulo, de pronto. —Seria absurdo agravar as preocupações de Pedro. Excede a tudo esse movimento de pessoas necessitadas e aba­tidas, convergentes de todas as províncias, a lhe baterem às portas. Simão está impossibilitado para o desdobra­mento dessa tarefa.

—        Mas, e os outros companheiros? — inquiriu Bar­nabé revelando espírito de solidariedade.

       - Os outros, certo, hão de protestar. Principal­mente agora, que o judaísmo vai absorvendo os esforços apostólicos, é justo prever muitos clamores. Contudo, a própria Natureza dá lições neste sentido. Não clama­mos tanto contra a dor? E quem nos traz maiores bene­fícios? Às vezes, nossa redenção está naquilo mesmo que antes nos parecia verdadeira calamidade. É indispensá­vel sacudir o marasmo da instituição de Jerusalém, cha­mando os incircuncisos, os pecadores, os que estejam fora da Lei. De outro modo, dentro de alguns poucos anos, Jesus será apresentado como aventureiro vulgar. Naturalmente, depois da morte de Simão, os adversários dos princípios ensinados pelo Mestre acharão grande facilidade em deturpar as anotações de Levi. A Boa Nova será aviltada e, se alguém perguntar pelo Cristo, daqui a cinqüenta anos, terá como resposta que o Mestre foi um criminoso comum, a expiar na cruz os desvios da vida. Restringir o Evangelho a Jerusalém será conde­ná-lo à extinção, no foco de tantos dissídios religiosos, sob a política mesquinha dos homens. Necessitamos levar a notícia de Jesus a outras gentes, ligar as zonas de entendimento cristão, abrir estradas novas...

       Será mes­mo justo que também façamos anotações do que sabemos de Jesus e de sua divina exemplificação. Outros discípu­los, por exemplo, poderiam escrever o que viram e ouvi­ram, pois, com a prática, vou reconhecendo que Levi não anotou mais amplamente o que se sabe do Mestre. Há situações e fatos que não foram por ele registrados. Não conviria também que Pedro e João anotassem suas obser­vações mais íntimas? Não hesito em afirmar que os pósteros hão de rebuscar muitas vezes a tarefa que nos foi confiada.

Barnabé rejubilava-se com perspectivas tão seduto­ras. As advertências de Saulo eram mais que justas. Haveria que prestar informações amplas ao mundo.

—        Tens razão — disse admirado —, precisamos pen­sar nesses serviços, mas como?

—        Ora — esclareceu Saulo tentando aplainar as dificuldades —, se quiseres chefiar qualquer esforço neste sentido, podes contar com a minha cooperação incon­dicional. Nosso plano seria desenvolvido na organização de missões abnegadas, sem outro fito que servir, de forma absoluta, à difusão da Boa Nova do Cristo. Come­çaríamos, por exemplo, em regiões não de todo desconhecidas, formaríamos o hábito de ensinar as verdades evangélicas aos mais vários agrupamentos; em seguida, terminada essa experiência, demandaríamos outras zonas, levaríamos a lição do Mestre a outras gentes.

O         companheiro ouvia-o, afagando sinceras esperan­ças. Tomado de novo ânimo, disse ao convertido de Da­masco, esboçando o primeiro número do programa:

—        De há muito, Saulo, tenho necessidade de voltar à minha terra, a fim de resolver certos problemas de família. Quem sabe poderíamos iniciar o serviço apos­tólico através das aldeias e cidades de Chipre? Conforme o resultado, prosseguiríamos por outras zonas. Estou informado de que a região em que demora Antioquia da Pisídia é habitada por gente simples e generosa, e suponho que colheríamos belos resultados no empreen­dimento.

—        Poderás contar comigo — respondeu Saulo de Tarso, resoluto. — A situação requer o concurso de ir­mãos corajosos e a igreja do Cristo não poderá vencer com o comodismo.

Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu a cultivar. Alguns traba­lhadores devem ficar ao pé dos mananciais, velando-lhes a pureza, outros revolvem a terra em zonas determinadas; mas não há dispensar a cooperação dos que precisam empunhar instrumentos rudes, desfazer cipoais intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.

Barnabé reconheceu a excelência do projeto, mas considerou:

—        Todavia, temos ainda a examinar a questão do dinheiro. Tenho alguns recursos, mas insuficientes para atender a todas as despesas. Por outro lado, não seria possível sobrecarregar as igrejas...

—        Absolutamente! — adiantou o ex-rabino — onde estacionarmos, poderei exercer o meu ofício. Por que não? Qualquer aldeia paupérrima tem sempre teares de alu­guel. Montarei, então, uma tenda móvel!

Barnabé achou graça no expediente e ponderou:

— Teus sacrifícios não serão pequenos. Não receias as dificuldades imprevisíveis?

— Por quê? — interrogou Saulo com firmeza.

Certo, se Deus não me permitiu a vida em família foi para que me dedicasse exclusivamente ao seu serviço. Por onde passarmos, montaremos a tenda singela - E onde não houver tapetes, a consertar e a tecer, haverá sandálias.

O         discípulo de Simão Pedro entusiasmou-se. O resto da viagem foi dedicado aos projetos da futura excursão. Havia, entretanto, uma coisa a considerar. Além da necessidade de submeter o plano à aprovação da igreja de Antioquia, era indispensável pensar no jovem João Marcos. Barnabé procurou interessar o sobrinho nas conversações. Em breve, o rapaz convenceu-se de que deveria incorporar-se à missão, caso a assembléia antio­quiana não a desaprovasse. Interessou-se por todas as minúcias do programa tracejado. Seguiria o trabalho de Jesus, fosse onde fosse.

—        E se houver muitos obstáculos? — perguntou Saulo avisadamente.

—        Saberei vencê-los — respondeu João, convicto.

—        Mas é possível venhamos a experimentar dificul­dades sem conta — continuava o ex-rabino preparando-lhe o espírito - Se o Cristo, que era sem pecado, encontrou uma cruz entre apodos e flagelos, quando ensinava as verdades de Deus, que não devemos esperar em nossa condição de almas frágeis e indigentes?

—        Hei de encontrar as forças necessárias.

Saulo contemplou-o, admirado da firme resolução que suas palavras deixaram transparecer, e observou:

— Se deres um testemunho tão grande como a co­ragem que revelas, não tenho dúvidas quanto à grandeza de tua missão.

Entre confortadoras esperanças, o projeto terminou com formosas perspectivas de trabalho para os três.

Na primeira reunião, depois de relatar as observa­ções pessoais concernentes à igreja de Jerusalém, Bar­nabé expôs o plano à assembléia, que o ouviu atenta­mente. Alguns anciães falaram da lacuna que se abriria na igreja, expuseram o desejo de que se não quebrasse o conjunto harmonioso e fraternal. No entanto, o orador voltou a explicar as necessidades novas do Evangelho. Pintou os quadros de Jerusalém com a fidelidade possí­vel, fez a súmula de suas conversações com Saulo de Tarso e salientou a conveniência de chamar novos trabalhadores ao serviço do Mestre.

Quando tratou o problema com toda a gravidade que lhe era devida, os chefes da comunidade mudaram de atitude. Estabeleceu-se o acordo geral. De fato, a situa­ção explanada por Barnabé era muito séria. Seus parece­res veementes eram mais que justos. Se perseverasse o marasmo nas igrejas, o Cristianismo estava destinado a perecer. Ali mesmo, o discípulo de Simão recebeu a aquiescência irrestrita e, no instante das preces, a voz do Espírito Santo se fez ouvir no ambiente de simplici­dade pura, inculcando fossem Barnabé e Saulo desta­cados para a evangelização dos gentios.

Aquela recomendação superior, aquela voz que pro­vinha dos arcanos celestes, ecoou no coração do ex-rabino como um cântico de vitória espiritual. Sentia que acabava de atravessar imenso deserto para encontrar de novo a mensagem doce e eterna do Cristo. Por conquistar a dignidade espiritual, só experimentara padecimentos, des­de a cegueira dolorosa de Damasco.

Ansiara por Jesus. Tivera sede abrasadora e terrível. Pedira em vão a compreensão dos amigos, debalde buscara o terno acon­chego da família. Mas, agora, que a palavra mais alta o chamava ao serviço, deixava-se empolgar por júbilos infinitos. Era o sinal de que havia sido considerado digno dos esforços confiados aos discípulos. Refletindo como as dores passadas lhe pareciam pequeninas e infantis, comparadas à alegria imensa que lhe inundava a alma, Saulo de Tarso chorou copiosamente, - experimentando maravilhosas sensações. Nenhum dos irmãos presentes, nem mesmo Barnabé, poderia avaliar a grandiosidade dos sentimentos que aquelas lágrimas revelavam. To­mado de profunda emoção, o ex-doutor da Lei reconhecia que Jesus se dignava de aceitar suas oblatas de boa-vontade, suas lutas e sacrifícios. O Mestre chamava-o e, para responder ao apelo, iria aos confins do mundo.

Numerosos companheiros colaboraram nas providên­cias iniciais, em favor do empreendimento.

Dentro em pouco, cheios de confiança em Deus, Saulo e Barnabé, seguidos por João Marcos, despediam-se dos irmãos, a caminho de Selêucia. A viagem para o litoral decorreu em ambiente de muita alegria. De quan­do a quando, repousavam à margem do Oronte, para a merenda salutar. À sombra dos carvalhos, na paz dos bosques enfeitados de flores, os missionários comenta­ram as primeiras esperanças.

Em Selêucia não foi demorada a espera de embar­cação. A cidade estava sempre cheia de peregrinos que demandavam o Ocidente, sendo freqüentada por elevado número de navios de toda ordem. Entusiasmados com o acolhimento dos irmãos de fé, Barnabé e Saulo em­barcaram para Chipre, sob a impressão de comovente e carinhosa despedida.

Chegaram à ilha, com o jovem João Marcos, sem incidentes dignos de menção. Estacionados em Cítium por muitos dias, aí solucionou Barnabé vários assuntos de seu interesse familiar.

Antes de se retirarem, visitaram a sinagoga, num sábado, com o propósito de iniciar o movimento. Como chefe da missão, Barnabé tomou a palavra, procurou conjugar o texto da Lei, examinado naquele dia, às lições do Evangelho, para destacar a superioridade da missão do Cristo. Saulo notou que o companheiro ex­planava o assunto com respeito algo excessivo às tra­dições judaicas. Via-se claramente que desejava, antes de tudo, conquistar as simpatias do auditório; em alguns pontos, demonstrava o temor de encetar o trabalho, abrindo as lutas tão em desacordo com o seu tempera­mento. Os israelitas mostraram-se surpreendidos, mas satisfeitos. Observando o quadro, Saulo não se sentiu plenamente confortado. Fazer reparos a Barnabé seria ingratidão e indisciplina; concordar com o sorriso dos compatrícios perseverantes nos erros do fingimento fari­saico seria negar fidelidade ao Evangelho.

Procurou resignar-se e esperou.

A missão percorreu numerosas localidades, entre vibrações de largas simpatias. Em Amatonte, os men­sageiros da Boa Nova demoraram mais de uma semana. A palavra de Barnabé era profundamente contempori­zadora. Caracterizava-se, em tudo, pelo grande cuidado, de não ofender os melindres judaicos.

Depois de grandes esforços, chegaram a Nea-Pafos, onde residia o Procônsul. A sede do Governo provincial era uma formosa cidade cheia de encantos naturais e que se assinalava por sólidas expressões de cultura. O discípulo de Pedro, porém, estava exausto. Nunca tivera labores apostólicos tão intensos. Conhecendo a deficiên­cia do verbo de Saulo nos serviços da igreja de Antioquia, temia confiar ao ex-rabino as responsabilidades diretas do ensinamento.

Não obstante sentir-se cansadíssimo, fez a pregação na sinagoga, no sábado imediato à che­gada. Nesse dia, entretanto, ele estava divinamente ins­pirado. A apresentação do Evangelho foi feita com raro brilhantismo. O próprio Saulo comoveu-se profunda­mente. O êxito foi inexcedível. A segunda assembléia reuniu os elementos mais finos; judeus e romanos aglo­meravam-se ansiosos. O ex-levita fez nova apologia do Cristo, bordando conceitos de maravilhosa beleza espi­ritual. O ex-doutor da Lei, com os trabalhos informativos da missão, atendia prazerosamente a todas as consultas, pedidos, informações.

Nenhuma cidade manifestara ta­manho interesse, quanto aquela; os romanos, em grande número, iam solicitar esclarecimentos quanto aos obje­tivos dos mensageiros, recebiam notícias do Cristo, reve­lando júbilos e esperanças; desfaziam-se em gestos de espontânea bondade. Entusiasmados com o êxito, Saulo e Barnabé organizaram reuniões em casas particulares, especialmente cedidas para esse fim pelos simpatizantes da doutrina de Jesus, onde encetaram formoso movimento de curas. Com alegria infinita, o tecelão de Tarso viu chegar a extensa fileira dos “filhos do Calvário”. Eram mães atormentadas, doentes desiludidos, anciães sem ne­nhuma esperança, órfãos sofredores, que agora procura­vam a missão. A notícia das curas julgadas impossíveis encheu Nea-Pafos de grande assombro. Os missionários impunham as mãos, fazendo preces fervorosas ao Mes­sias Nazareno; de outras vezes, distribuiam água pura, em seu nome. Extremamente cansado e achando que o novo auditório não requeria maior erudição, Barnabé encarregou o companheiro das pregações da Boa Nova; mas, com grande surpresa, verificou que Saulo se modi­ficara radicalmente. Seu verbo parecia inflamado de nova luz; tirava do Evangelho ilações tão profundas que o ex-levita o escutava agora sem dissimular o próprio espanto. Notava, particularmente, o carinho do ex-doutor no apresentar os ensinamentos do Cristo aos mendigos e sofredores. Falava como alguém que houvesse convi­vido com o Senhor, por largos anos. Referia-se a certos lances das lições do Mestre com um manancial de lágri­mas nos olhos. Prodigiosas consolações derramavam-se no espírito das turbas. Dia e noite, havia operários e estudiosos copiando as anotações de Levi.

Os acontecimentos abalaram a opinião da cidade em peso. Os resultados eram os mais confortadores. Foi quando enorme surpresa chegou ao Espírito dos missio­nários.

A manhã ia alta. Saulo atendia a numerosos neces­sitados quando um legionário romano se fez anunciar.

Barnabé e o companheiro deixaram os serviços en­tregues a João Marcos e foram atender.

— O Procônsul Sérgio Paulo — disse o mensageiro, solene — manda convidar-vos a visitá-lo em palácio.

A mensagem era muito mais uma ordem que sim­ples convite. O discípulo de Simão compreendeu de pronto e respondeu:

—        Agradecemos de coração e iremos ainda hoje.

O ex-rabino estava confuso. Não só o conteúdo político do fato surpreendia-o, sobremaneira. Em vão, procurava recordar-se de alguma coisa. Sérgio Paulo? Não conheceria alguém com esse nome? Buscou relem­brar os jovens de origem romana, do seu conhecimento. Afinal, veio-lhe à memória a palestra de Pedro sobre a personalidade de Estevão e concluiu que o Procônsul não podia ser outro senão o salvador do irmão de Abigail.

Sem comunicar as íntimas impressões a Barnabé, examinou a situação em sua companhia. Quais os obje­tivos da delicada íntimação? Segundo a voz pública, o chefe político vinha sofrendo pertinaz enfermidade. De­sejaria curar-se ou, quem sabe, provocar um meio de expulsá-los da ilha, induzido pelos judeus? A situação, entretanto, não se resolveria por conjeturas.

Incumbindo João Marcos de atender a quantos se interessassem pela doutrina, no referente a informes necessários, os dois amigos puseram-se a caminho, re­solutamente.

Conduzidos através de galerias extensas, foram dar com um homem relativamente moço, deitado em largo divã e deixando perceber extremo abatimento. Magro, pálido, revelando singular desencanto da vida, o Procônsul entremostrava, todavia, uma bondade imensa na suave irradiação do olhar humilde e melancólico.

Recebeu os missionários com muita simpatia, apre­sentando-lhes um mago judeu de nome Barjesus, que de longa data o vinha tratando. Sérgio Paulo, prudente­mente, mandou que os guardas e servos se retirassem. Apenas os quatro se viram a sós, em círculo muito íntimo, falou o enfermo com amarga serenidade:

— Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos nesta cidade de Nea-Pafos. Tendes curado moléstias perigosas, devolvido a fé a inúmeros descrentes, consolado míseros sofredores... Há mais de um ano venho cuidando de minha saúde arruinada. Nestas con­dições, estou quase inutilizado para a vida pública.

Apontando Barjesus que, por sua vez, fixava o olhar malicioso nos visitantes, o chefe romano pros­seguiu:

—        Há muito contratei os serviços deste vosso con­terrâneo, ansioso e confiante na ciência de nossa época, mas os resultados têm sido insignificantes. Mandei cha­mar-vos, desejoso de experimentar os vossos conhecimen­tos. Não estranheis minha atitude. Se pudesse, teria ido procurar-vos em pessoa, pois conheço o limite de minhas prerrogativas; como vedes, porém, sou antes de tudo um necessitado.

Saulo ouviu aquelas declarações, profundamente co­movido pela bondade natural do ilustre enfermo. Bar­nabé estava atônito, sem saber o que dizer. O ex-doutor da Lei, entretanto, senhor da situação e quase certo de que a personagem era a mesma que figurava na exis­tência do mártir vitorioso, tomou a palavra e disse convictamente:

—        Nobre Procônsul, temos conosco, de fato, o poder de um grande médico. Podemos curar, quando os enfer­mos estejam dispostos a compreendê-lo e segui-lo.

—        Mas quem é ele? — perguntou o enfermo.

—        Chama-se Cristo Jesus. Sua fórmula é sagrada — continuava o tecelão, com ênfase — e destina-se a medicar, antes de tudo, a causa de todos os males. Como sabemos, todos os corpos da Terra terão de morrer. Assim, por força de leis naturais inelutàveis, jamais teremos, neste mundo, absoluta saúde física. Nosso orga­nismo sofre a ação de todos os processos ambientes. O calor incomoda, o frio nos faz tremer, a alimentação nos modifica, os atos da vida determinam a mudança dos hábitos. Mas o Salvador nos ensina a procurar uma saúde mais real e preciosa, que é a do espírito. Possuin­do-a, teremos transformado as causas de preocupação de nossa vida, e habilitamo-nos a gozar a relativa saúde física que o mundo pode oferecer nas suas expressões transitórias.

Enquanto Barjesus, irônico e sorridente, escutava o Intróito, Sérgio Paulo acompanhava a palavra do ex-ra­bino, atento e comovido:

—        Contudo, como encontrar esse médico? — per­guntou o Procônsul, mais preocupado com a cura do que com o elevado sentido metafísico das observações ouvidas.

—        Ele é a bondade perfeita — esclareceu Saulo de Tarso — e sua ação consoladora está em toda parte. Antes mesmo que o compreendamos, cerca-nos com a expressão do seu amor infinito!...

Observando o entusiasmo com que o missionário tarsense falava, o chefe político de Nea-Pafos buscou a aprovação de Barjesus com olhar indagador.

O         mago judeu, evidenciando profundo desprezo, ex­clamou:

—        Julgávamos que estivésseis aparelhados de algu­ma ciência nova... Não quero acreditar no que ouço. Acaso me supondes um ignorante, relativamente ao falso profeta de Nazaré? Ousais franquear o palácio de um governador, em nome de um miserável carpinteiro?

Saulo mediu toda a extensão daquelas ironias, res­pondendo sem se intimidar:

— Amigo, quando eu afivelava a máscara farisaica, também assim pensava; mas, agora, conheço a gloriosa luz do Mestre, o Filho do Deus Vivo!...

Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador com visível inte­resse. Depois de angustiosa expectativa, Sérgio Paulo voltou a dizer:

—        Não tenho o direito de duvidar de ninguém, en­quanto as provas concludentes não me levem a fazê-lo.

E procurando fixar a fisionomia de Saulo, que lhe enfrentava o olhar perquiridor, serenamente continuou:

—        Falais desse Cristo Jesus, enchendo-me de assom­bro. Alegais que sua bondade nos assiste antes mesmo de o conhecermos. Como obter uma prova concreta de vossa afirmativa?

Se não entendo o Messias de que sois mensageiros, como saber se sua assistência me influen­ciou algum dia?

       Saulo lembrou repentinamente as palestras de Simão Pedro, ao lhe narrar os antecedentes do mártir do Cris­tianismo. Num instante alinhou os mínimos episódios. E valendo-se de todas as oportunidades para destacar o amor infinito de Jesus, como aconteceu nos menores fatos da sua carreira apostólica, sentenciou com singular entono:

—        Procônsul, ouvi-me! Para revelar-vos, ou melhor,

a fim de lembrar-vos a misericórdia de Jesus de Nazaré,

o nosso Salvador, chamarei vossa atenção para um acon­tecimento importante.

Enquanto Barnabé manifestava profunda surpresa, em face da desassombrada atitude do companheiro, o político aguçava a curiosidade.

—        Não é a primeira vez que experimentais uma grave enfermidade. Há quase dez anos, ao tentardes os primeiros passos na vida pública, embarcastes no porto de Cefalônia em demanda desta ilha. Viajáveis para Citium, mas, antes que o navio aportasse em Corinto, fostes acometido de febre terrível, o corpo aberto em feridas venenosas...

Brancura de cera estampava-se no semblante do chefe de Nea-Pafos. Colocando a mão no peito, como a conter as pulsações aceleradas do coração, ergueu-Se extremamente perturbado.

—        Como sabeis tudo isso? — murmurou aterrado.

—        Não é só — disse o missionário, sereno —, espe­rai o resto. Vários dias permanecestes entre a vida e a morte. Debalde os médicos de bordo comentaram vossa enfermidade. Vossos amigos fugiram. Quando fi­castes de todo abandonado, não obstante o prestígio político do vosso cargo, o Messias Nazareno vos mandou alguém, no silêncio de sua misericórdia divina.

O         Procônsul, com o despertar das velhas reminis­cências, sentia-se profundamente comovido.

—        Quem teria sido o mensageiro do Salvador? —prosseguia Saulo, enquanto Barnabé o contemplava com inaudito assombro. — Um de vossos íntimos? Um amigo eminente? Um dos colegas ilustres que presenciavam vossas dores? Não! Apenas um escravo humilde, um serviçal anônimo dos remos homicidas. Jeziel velou por vós, dia e noite! E o que a Ciência do mundo não con­seguiu fazer, fê-lo o coração empossado pelo amor do Cristo! Compreendeis agora? Vosso amigo Barjesus fala de um carpinteiro sem-nomes de um Messias que preferiu a condição da humildade suprema para nos trazer as torrentes preciosas de suas graças!...

Sim, Jesus tam­bém, como aquele escravo que vos restabeleceu a saúde perdida, fez-se servo do homem para conduzi-lo a uma vida melhor!... Quando todos nos abandonam, Ele está conosco; quando os amigos fogem, sua bondade mais se aproxima. Para forrarmo-nos das míseras contingén­cias desta vida mortal, é preciso crer nele e segui-lo sem descanso!...

Ante as lágrimas convulsivas do Procônsul, Barnabé, aturdido, considerava: Onde fora o companheiro colher tão profundas revelações? A seu ver, naquele instante, Saulo de Tarso estaria iluminado pelo dom maravilhoso das profecias.

—        Senhores, tudo isso é a verdade pura! Trouxes­tes-me a santa notícia de um Salvador!... — exclamou Sérgio Paulo.

Reconhecendo a capitulação do generoso patrício que lhe recheava a bolsa de fartos recursos, o mago israelita, apesar de muito surpreso, exclamou com energia:

—        Mentira!... São mentirosos! Tudo isso é obra de Satanás! Estes homens são portadores de sortilégios infames do “Caminho”! Abaixo a exploração vil!...

A boca lhe espumava, os olhos rebrilhavam de có­lera. Saulo mantinha-se calmo, impassível, quase sorri­dente. Depois, timbrando forte:

—        Acalmai-vos, amigo! A fúria não é amiga da verdade e quase sempre esconde inconfessáveis interes­ses. Acusai-nos de mentirosos, mas nossas palavras não se desviaram uma linha da realidade dos acontecimen­tos. Alegais que nosso esforço procede de Satanás, no entanto, onde já se viu maior incoerência? Onde en­contraríamos um adversário trabalhando contra si mesmo? Afirmais que somos portadores de sortilégios; se o amor constitui esse talismã, nós o trazemos no coração, ansiosos por comunicar a todos os seres sua benéfica influência. Finalmente, lançais a nós outros a pecha de exploradores sagazes, quando aqui viemos chamados por alguém que nos honrou com sinceridade e confiança e, de modo algum, poderíamos oferecer as graças do Sal­vador a título mercatório.

Seguiu-se acalorada discussão: Barjesus fazia em­penho em demonstrar a inferioridade dos intuitos de Saulo, enquanto este se esforçava em timbrar nobreza e e cordialidade.

Embalde o Procônsul tentava dissuadir o judeu de continuar na requesta e naquele diapasão. Barnabé, por sua vez, confiando muito mais nos poderes espirituais do amigo, acompanhava o discrime sem ocultar admira­ção pelos infinitos recursos que o missionário tarsense estava revelando.

A polêmica já durava mais de hora, quando o mago fez uma alusão mais ferina à personalidade e feitos de Jesus-Cristo.

Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenciou:

— Tudo fiz por convencer-vos sem demonstrações mais diretas, de maneira a não ferir a parte respeitável de vossas convicções; todavia, estais cego e é nessa con­dição que podereis enxergar a luz. Como vós, também já vivi em trevas e, no instante do meu encontro pessoal com o Messias, foi necessário que as trevas se aden­sassem em meu espírito, a fim de que a luz ressurgisse mais brilhante. Tereis igualmente esse benefício. A visão do corpo fechar-se-vos-á, para que possais divisar a ver­dade em espírito!.

Nesse comenos, Barjesus deu um grito.

— Estou cego!

Estabeleceu-se alguma confusão no recinto. Barnabé adiantou-se, amparando o israelita que tateava aflito. O tecelão e o governador aproximaram-se surpreendidos. Foram chamados alguns servos que atenderam as neces­sidades do momento, carinhosos e solícitos. Por quatro longas horas, Barjesus chorou, mergulhado na sombra espessa que lhe invadira os olhos cansados. Ao fim desse tempo, os missionários oraram de joelhos... Branda se­renidade estabeleceu-se no vasto aposento. Em seguida, Saulo impôs-lhe as mãos na fronte e, com um suspiro de alívio, o velho israelita recobrou a vista, retirando-se confuso e sucumbido.

O         Procônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos daquele dia, chamou os missionários em par­ticular e falou sensibilizado:

—        Amigos, creio nas verdades divinas que anun­ciais e desejo sinceramente compartilhar do Reino espe­rado. Nada obstante, conviria inteirar-me dos vossos objetivos de trabalho, dos vossos planos enfim. Estou ciente de que não mercadejais os dons espirituais de que sois portadores, e proponho-me auxiliar-vos com os meus préstimos em tudo que me for possível.

Poderia saber os projetos que vos animam?

Os dois missionários entreolharam-se, surpresos. Bar­nabé ainda não havia saído do espanto que o companhei­ro lhe causara. Saulo, por sua vez, mal dissimulava o próprio assombro pelo auxílio espiritual que obtivera no afã de confundir os maliciosos intuitos de Barjesus.

Reconhecendo, contudo, o elevado e sincero inte­resse do chefe político da província, esclareceu com jubi­losos conceitos:

—        O Salvador fundou a religião do amor e da ver­dade, instituição invisível e universal, onde se acolham todos os homens de boa-vontade. Nosso fim é dar feição visível à obra divina, estabelecendo templos que se irma­nem nos mesmos princípios, em seu nome.

Avaliamos a delicadeza de semelhante tentame e estamos crentes de que as maiores dificuldades vão surgir em nosso caminho. Ë quase impossível encontrar o cabedal humano indis­pensável ao cometimento; mas é forçoso movimentar o plano. Quando falhem os elementos da instituição visível, esperaremos na igreja infinita, onde, nas luzes da univer­salidade, Jesus será o chefe supremo de todas as forças que se consagrem ao bem.

—        Trata-se de sublime iniciativa — aparteou o Procônsul evidenciando nobre interesse.

— Onde encetas­tes a construção dos santuários?

— Nossa missão está começando precisamente agora. Os discípulos do Messias fundaram as igrejas de Jeru­salém e Antioquia. Por enquanto, não temos outros núcleos educativos, além desses. Há muitos cristãos em toda parte, mas suas reuniões se fazem em domicílios particulares. Não possuem templos, propriamente, que os habilitem a mais eficiente esforço de assistência e propaganda.

—        Nea-Pafos terá, então, a primeira igreja, filha do vosso trabalho direto.

Saulo não sabia como traduzir sua gratidão por aquele gesto de generosidade espontânea. Profundamente comovido, adiantou-se, então, e, com o cidadão cíprio, agradeceu a dádiva que vinha prestigiar e facilitar a obra apostolar.

Os três falaram ainda largo tempo sobre os em­preendimentos em perspectiva. Sérgio Paulo pediu-lhes indicassem as pessoas capazes de construir o novo tem­plo, enquanto Barnabé e o companheiro expunham suas eSperançaS.

Somente à noite os missionários puderam voltar àtenda humilde das pregações.

—        Estou impressionado! — dizia Barnabé, recor­dando o ocorrido. — Que fizeste? Tenho para mim que hoje é o dia maior da tua existência. Tua palavra tinha um timbre sagrado e diferente; anima-te, agora, o dom das profecias... Além disso, o Mestre agraciou-te com o poder de dominar as idéias malignas. Viste como o charlatão sentiu a influência de energias poderosas quan­do fizeste o teu apelo?

Saulo ouviu atento e com a maior simplicidade acentuou:

—        Também não sei como traduzir meu espanto pelas graças obtidas. Foi pelo Cristo que nos tornamos instru­mentos da conversão do Procônsul, pois a verdade é que de nós mesmos nada valemos.

—        Nunca esquecerei os acontecimentos de hoje —tornou o ex-levita, admirado.

E depois de uma pausa:

—        Saulo, quando Ananias te batizou não chegou a sugerir a mudança do teu nome?

—        Não me lembrei disso.

—        Pois suponho que, doravante, deves considerar tua vida como nova. Foste iluminado pela graça do Mestre, tiveste o teu Pentecostes, foste sagrado Após­tolo para os labores divinos da redenção.

O         ex-doutor da Lei não dissimulou a própria admi­ração e concluiu:

—       É muito significativo para mim que um chefe político seja atraído para Jesus, por nosso intermédio, mesmo porque, nossa tarefa conclama os gentios ao Sol divino do Evangelho de salvação.

Intimamente, recordou os laços sublimes que o liga­vam à memória de Estevão, a generosa influência do patrício romano que o libertara dos trabalhos duros da escravidão e, invocando a memória do mártir, num apelo silencioso, falou comovido:

—        Sei, Barnabé, que muitos dos nossos companhei­ros trocaram de nome quando se converteram ao amor de Jesus; quiseram assinalar desse modo sua separação dos enganos fatais do mundo. Não quis valer-me do recurso, de qualquer modo. Mas a transformação do governador, a luz da graça que nos acompanhou no curso dos acontecimentos de hoje, levam-me, igualmente, a procurar um motivo de perenes lembranças.

Depois de longa pausa, dando a entender quanto refletira para tomar aquela resolução, falou:

—        Razões íntimas, absolutamente respeitáveis, obri­gam-me a reconhecer, doravante, um benfeitor no chefe político desta ilha. Sem trocar formalmente meu nome passarei a assinar-me à romana.

—        Muito bem — respondeu o companheiro —, entre Saulo e Paulo nenhuma diferença existe, a não ser a do hábito de grafia ou de pronúncia. A decisão será uma formosa homenagem ao nosso primeiro triunfo mis­sionário junto dos gentios, ao mesmo tempo que consti­tuirá agradável lembrança de um espírito tão generoso.

       Nesse fato baseou-se a mudança de uma letra no nome do ex-discípulo de Gamaliel.

       Caráter íntegro e enérgico, o rabino de Jerusalém, nem mesmo transfor­mado em modesto tecelão, quis modificar, portas a den­tro do Cristianismo, a sua fidelidade inata. Se servira a Moisés como Saulo, com o mesmo nome haveria de servir igualmente a Jesus-Cristo. Se errara e fora perverso, na primeira condição, aproveitaria a oportunidade dos Céus, corrigiria a existência e seria um homem bom e justo na segunda. Nesse particular, não chegou a considerar qualquer sugestão dos amigos. Fora o primeiro perseguidor da instituição cristã, verdugo inflexível do proselitismo alvorecente, mas fazia questão de continuar como Saulo, para lembrar-se de todo o mal e envidar esforços para fazer todo o bem ao seu alcance. Mas, naquele instante, a lembrança de Estevão falava-lhe brandamente ao coração. Ele fora o seu maior exemplo para a marcha espiritual. Era o Jeziel bem-amado de Abigail. Para procurá-lo, ambos se haviam prometido ir, sem vacilações, fosse aonde fosse. Os dois irmãos de Corinto estavam vivos, de tal modo, em sua alma sen­sível, que não era possível apagar na memória os míni­mos fatos de sua vida. A mão de Jesus o encaminhara ao Procônsul, o libertador de Jeziel dos grilhões do cativeiro; o ex-escravo demandara Jerusalém para tor­nar-se discípulo do Cristo! O ex-rabino sentia-se ditoso, por ter sido auxiliado pelas forças divinas, tornando-se por sua vez libertador de Sérgio Paulo, escravizado ao sofrimento e às ilusões perigosas do mundo. Era justo gravar na memória uma lembrança indelével daquele que, vítima dele em Jerusalém, era agora irmão abençoado, o qual não conseguia esquecer nos mais fugazes instantes da vida e do seu ministério.

Daí por diante o convertido de Damasco, em me­mória do inolvidável pregador do Evangelho, que su­cumbira a pedradas, passou a assinar-se Paulo, até ao fim de seus dias.

A notícia da cura e da conversão do Procônsul encheu Nea-Pafos de grande assombro.

Os missionários não mais tiveram descanso. Embora o protesto quase apagado dos israelitas, a comunidade cresceu extraordi­nariamente. Integrado nos bens da saude, o chefe pro­vincial forneceu o necessário à construção da igreja. O movimento era extraordinário. E os dois mensageiros do Evangelho não cessavam de render graças a Deus.

O triunfo cercava-os de profunda consideração, quan­do Paulo foi procurado por Barjesus que lhe solicitava uma palavra confidencial. O ex-rabino não hesitou. Era uma boa ocasião para provar ao velho israelita os seus propósitos generosos e sinceros. Recebeu-o, pois, com toda a afabilidade.

Barjesus parecia tomado de grande acanhamento. Após cumprimentar o missionário, atencioso, exprimiu-se com certo embaraço:

—        Afinal, precisava desfazer o mal-entendido, no caso do Procônsul. Ninguém, mais do que eu, desejava tanto a saúde do enfermo, e, por conseguinte, ninguém mais agradecido à vossa intervenção, libertando-o de en­fermidade tão dolorosa.

—        Sou muito grato ao vosso parecer e regozijo-me com a vossa compreensão — disse Paulo, com gentileza.

—        Entretanto...

O         visitante vacilava se devia ou não expor seus objetivos mais íntimos. Atento às reticências sem pre­sumir-lhes a causa, o ex-rabino adiantou-se benévolo.

—        Que desejais dizer? Com franqueza. Nada de ce­rimônias!

—        Acontece — retrucou mais animado — que venho afagando a idéia de consultar-vos a respeito dos vossos dons espirituais. Penso que não haverá maior tesouro para triunfar na vida...

Paulo estava confundido, sem saber que rumo toma­ria a conversação. Mas, focando o ponto mais delicado da pretensão, Barjesus continuou:

—        Quanto ganhais no vosso ministério?

—        Ganho a misericórdia de Deus — disse o missio­nário, compreendendo, então, todo o alcance daquela vi­sita inesperada —, vivo do meu trabalho de tecelagem e não seria lícito mercadejar com o que pertence ao Pai que está nos céus.

       - É quase incrível! murmurou o mago arrega­lando os olhos. — Eu estava convicto de - que trazíeis convosco certos talismãs, que me dispunha a comprar por qualquer preço.

E enquanto o ex-rabino o contemplava cheio de co­miseração pela sua ignorância, o visitante prosseguiu:

- Mas, será crível que façais semelhantes obras sem contribuição de sortilégios?

O         missionário fixou-o mais atento e murmurou:

—        Só conheço um sortilégio eficiente.

—        Qual é? — interrogou o mago de olhar faiscante e cobiçoso.

—        É o da fé em Deus com sacrifício de nós mesmos.

O         velho israelita demonstrou não entender toda a significação daquelas palavras, objetando:

—        Sim, mas a vida tem suas necessidades urgentes. É indispensável prever e amealhar recursos.

Paulo pensou um minuto e disse:

—        De mim mesmo, nada tenho com que vos escla­recer. Mas Deus tem sempre uma resposta para nossas preocupações mais simples. Consultemos suas eternas verdades.

Vejamos qual a mensagem destinada ao vosso coração.

Ia abrir o Evangelho, conforme seu costume, quan­do o visitante observou:

—        Nada conheço desse livro. Para mim, portanto, não poderá trazer advertência alguma.

O         missionário compreendeu a relutância e acentuou:

—        Que conheceis então?

—        Moisés e os Profetas.

Tomou do rolo de pergaminhos onde se podia ler a Lei Mitiga e o deu ao velho malicioso, para que o abrisse em alguma sentença, ao acaso, segundo os hábitos da época. No entanto Barjesus, com evidente má-vontade, acrescentou:

—        Só leio os Profetas, de joelhos.

—        Podeis ler como quiserdes, porque o ato de com­preender é o que nos interessa, antes de tudo.

Assinalando suas presunções farisaicas, o charlatão ajoelhou-se e abriu solenemente o texto, sob o olhar se­reno e perquiridor do ex-rabino. O velho israelita fez-se pálido. Esboçou um gesto para se abstrair da leitura; mas Paulo percebeu o movimento sutil e, aproximando-se, falou com alguma veemência:

—        Leiamos a mensagem permanente dos emissários de Deus.

Tratava-se de um fragmento dos Provérbios, que Barjesus pronunciou em voz alta, com enorme desapon­tamento:

 

“Duas coisas te pedi; não mas negues, antes que eu morra. Afasta de mim as vaidades e as mentiras. Não me dês a pobreza, nem a riqueza. Concede-me apenas o alimento de que necessito, para não acontecer que, estando farto, eu te negue e pergunte: - Quem é Jeová? — ou que, estando pobre, me ponha a furtar e profane o nome de meu Deus.” (1)

 

O mago levantou-se atarantado, O próprio missio­nário estava surpreso.

— Vistes, amigo? — interrogou Paulo — a palavra da verdade é muito eloqüente. Será grande talismã, na existência, o sabermos viver com os nossos próprios recursos, sem exorbitar do necessário ao nosso enrique­cimento espiritual.

— Efetivamente — respondeu o charlatão — este processo de consultas é muito interessante. Vou meditar seriamente na experiência de hoje.

Logo em seguida se despedia, depois de mastigar alguns monossílabos que mal disfarçavam a perturbação que todo o empolgara.

Impressionado, o tecelão consagrado ao Cristo ano­tou as profundas exortações, para consolidar o seu pro­grama de atividades espirituais, isento de interesses in­feriores.

A missão permaneceu em Nea-Pafos ainda alguns dias, sobrecarregada de muito trabalho. João Marcos colaborava com os recursos ao seu alcance; todavia, de vez em quando, Barnabé surpreendia-o entristecido e queixoso. Não esperava encontrar tão vultosa cota de trabalho.

 

(1) Provérbios, capítulo 30º, versículos de 7 a 9

 

      - Mas, assim é melhor — acentuava Paulo —‘ o serviço do bem é a muralha defensiva das tentações.

O rapaz conformava-se; contudo, sua contrariedade era evidente.

Além disso, fiel observador do judaísmo, não obstan­te a paixão pelo Evangelho, o filho de Maria Marcos sentia grandes escrúpulos, com a largueza de vistas do tio e do missionário, relativamente aos gentios. Desejava servir a Jesus, sim, de todo o coração, mas não podia distanciar o Mestre das tradições do berço.

Enquanto as sementes lançadas em Chipre começa­vam a germinar na terra dos corações, os trabalhadores do Messias abandonavam Nea-Pafos, absorvidos em vas­tas esperanças.

Depois de muito confabularem, Paulo e Barnabé re­solveram estender a missão aos povos da Panfília, com grande escândalo para João Marcos, que se admirava de semelhante alvitre.

— Mas que fazermos com essa gente tão estranha?

      — Perguntou o rapaz contrariado. — Sabemos, em Jeru­salém, que esse país é povoado por criaturas supina­mente ignorantes. E, ao demais, que ali existem ladrões por toda parte.

— No entanto — obtemperou Paulo, convicto —, penso que devemos procurar a região, justamente por isso. Para outros, uma viagem a Alexandria pode ofere­cer maior interesse; mas todos esses grandes centros estão cheios de mestres da palavra. Possuem sinagogas importantes, conhecimentos elevados, grandes expoentes de ciência e riqueza. Se não servem a Deus é por má-vontade ou endurecimento de coração. A Panfília, ao contrário, é muito pobre, rudimentar e carecente de luz espiritual. Antes de ensinar em Jerusalém, o Mestre preferiu manifestar-se em Cafarnaum e noutras aldeias quase anônimas, da Galiléia.

Ante o argumento irretorquível, João absteve-se de insistir.

Dentro de poucos dias, singela embarcação deixa­va-os em Atália, onde Paulo e Barnabé encontraram sin­gular encanto nas paisagens que circundavam o Cestro.

Nessa localidade muito pobre, pregaram a Boa Nova ao ar livre, com êxito imenso.

Observando no compa­nheiro um traço superior, Barnabé como que entregara a chefia do movimento ao ex-rabino, cuja palavra, então, sabia despertar encantadores arrebatamentos, O povo simples acolheu a pregação de Paulo, com profundo inte­resse. Ele falava de Jesus, como de um príncipe celestial, que visitara o mundo e fora esperar os súditos amados na esfera da glorificação espiritual. Via-se a atenção que os habitantes de Atália dispensaram ao assunto. Alguns pediram cópias das lições do Evangelho, outros procuravam obsequiar os mensageiros do Mestre com o que possuíam de melhor. Muito comovidos, recebiam as carinhosas dádivas dos novos amigos, que, quase sem­pre, se constituíam em pratos de pão, laranjas ou peixe.

A permanência na localidade trouxera novos pro­blemas. Era indispensável alguma atividade culinária. Barnabé, delicadamente, designou o sobrinho para o mis­ter, mas o rapaz não conseguia disfarçar a contrariedade. Notando-lhe o constrangimento, Paulo adiantou-se, pres­suroso:

— Não nos impressionemos com os problemas na­turais. Procuremos restringir, doravante, as necessida­des e gostos alimentares. Comeremos apenas pão, frutas, mel e peixe.

Destarte, o trabalho de cozinha ficará sim­plificado e reduzido à preparação dos peixes assados, no que tenho grande prática, desde o meu retiro lá no Tauro. Que João não se amofine com o problema, pois é justo que essa parte fique a meu cargo.

Não obstante a atitude generosa de Paulo, o rapaz continuou acabrunhado.

Em breve a missão alugava um barco, largando-se para Perge. Nesta cidade, de regular importância para a região em que se localizava, anunciaram o Evangelho com imensa dedicação. Na pequena sinagoga, encheram o sábado de grande movimento. Alguns judeus e nume­rosos gentios na maioria gente pobre e simples, acolhe­ram os missionários, cheios de júbilo. As notícias do Cristo despertaram singular curiosidade e encantamento. O modesto pardieiro, alugado por Barnabé, ficava reple­to de criaturas ansiosas por obter cópia das anotações de Levi. Paulo regozijava-se. Experimentava alegria in­definível ao contacto daqueles corações humildes e sim­ples, que lhe davam ao espírito cansado de casuística a doce impressão de virgindade espiritual. Alguns inda­gavam da posição de Jesus na hierarquia dos deuses do paganismo; outros desejavam saber a razão por que haviam crucificado o Messias, sem consideração aos seus elevados títulos, como Mensageiro do Eterno. A região estava cheia de superstições e crendices. A cultura ju­daica restringia-se ao ambiente fechado das sinagogas. A missão, não obstante consagrar seu maior esforço aos israelitas, pregando no círculo dos que seguiam a Lei de Moisés, interessara as camadas mais obscuras do povo, em razão das curas e do convite amoroso ao Evangelho, movimento esse no qual os trabalhadores de Jesus pu­nham todo o seu empenho.

Plenamente satisfeitos, Paulo e Barnabé resolveram seguir dali mesmo para Antioquia de Pisídia. Informado a esse respeito, João Marcos não conseguiu sopitar os íntimos receios, por mais tempo, e perguntou:

—        Supunha que não iríamos além da Panfília. Como, pois, chegar até Antioquia? Não temos recursos para atravessar tamanhos precipícios. As florestas estão in­festadas de bandidos, o rio encachoeirado não faculta o trânsito de barcas. E as noites? Como dormir?

Essa viagem não se pode tentar sem animais e servos, coisa que não temos.

Paulo refletiu um minuto e exclamou:

— Ora, João, quando trabalhamos para alguém, de­vemos fazê-lo com amor. Julgo que anunciar o Cristo àqueles que não o conhecem, em vista de suas numerosas dificuldades naturais, representa uma glória para nós. O espírito de serviço nunca atira a parte mais difícil para os outros. O Mestre não transferiu sua cruz aos companheiros. Em nosso caso, se tivéssemos muitos escravos e cavalos, não seriam eles os carregadores das responsabilidades mais pesadas, no que se refere às ques­tões propriamente materiais? O trabalho de Jesus, entretanto, é tão grande aos nossos olhos que devemos disputar aos outros qualquer parte de sua execução, em benefício próprio.

O         rapaz pareceu mais angustiado. A energia de Paulo era desconcertante.

—        Mas não seria mais prudente — continuou muito pálido — demandarmos Alexandria e organizar pelo menos alguns recursos mais fáceis?

Enquanto Barnabé acompanhava o diálogo com a serenidade que lhe era peculiar, o ex-rabino continuou:

—        Dás demasiada importância aos obstáculos. Já pensaste nas dificuldades que o Senhor certamente ven­ceu para vir ter conosco? Ainda que pudesse atravessar livremente os abismos espirituais para chegar ao nosso círculo de perversidade e ignorância, temos de considerar a muralha de lodo de nossas viscerais misérias... E tu te espantas apenas com os palmos de caminho que nos separam da Pisídia?

O         jovem calou-se, evidentemente contrariado. A argumentação era forte demais, a seus olhos, e não lhe ensejava qualquer nova objeção.

Á noite, Barnabé, visivelmente preocupado, aproxi­mou-se do companheiro, expondo-lhe as intenções do so­brinho. O rapaz resolvera regressar a Jerusalém, de qualquer modo. Paulo ouviu calmamente as explicações, como quem não podia opor qualquer embargo à decisão.

—        Não poderíamos acompanhá-lo, pelo menos, até algum ponto mais próximo do destino? — perguntou o ex-levita de Chipre, como tio solícito.

—        Destino? — perguntou Paulo admirado. — Mas já temos o nosso. Desde o primeiro entendimento, pla­nejamos a excursão a Antioquia. Não posso impedir que faças companhia ao rapaz; por mim, contudo, não devo modificar o roteiro traçado. Caso resolvas re­gressar, seguirei sozinho. Julgo que as empresas de Jesus têm seu momento justo de atuação. Ë preciso aproveitá-lo. Se deixarmos a visita à Pisídia para o mês próximo, talvez seja tarde.

Barnabé refletiu alguns minutos, retrucando con­victamente:

— Tua observação é incontestável. Não posso que­brar os compromissos. Além do mais, João está homem e poderá voltar só. Tem o dinheiro indispensável a esse fim, em virtude dos cuidados maternos.

—        O dinheiro quando não bem aproveitado — re­matou Paulo tranqüilamente — sempre dissolve os laços e as responsabilidades mais santas.

A conversação terminou, enquanto Barnabé voltava a aconselhar o sobrinho, altamente impressionado.

Daí a dois dias, antes de tomar a barca que o levaria à foz do Cestro, o filho de Maria Marcos despedia-se do ex-doutor de Jerusalém com um sorriso contrafeito.

Paulo abraçou-o sem alegria e falou em tom de se­rena advertência:

—        Deus te abençoe e te proteja. Não te esqueças de que a marcha para o Cristo é feita igualmente por fileiras. Todos devemos chegar bem; entretanto, os que se desgarram têm de chegar bem por conta própria.

—       Sim — disse o jovem envergonhado —, pro­curarei trabalhar e servir a Deus, de toda a minha alma.

—        Fazes bem e cumprirás teu dever assim proce­dendo — exclamou o ex-rabino convicto.

— Lembra sem­pre que David, enquanto esteve ocupado, foi fiel ao Todo-Poderoso, mas, quando descansou, entregou-se ao adul­tério; Salomão, durante os serviços pesados da construção do Templo, foi puro na fé, mas, quando chegou ao repouso, foi vencido pela devassidão; Judas começou bem e foi discípulo direto do Senhor, mas bastou a im­pressão da triunfal entrada do Mestre em Jerusalém para que cedesse à traição e à morte. Com tantos exem­plos expostos aos nossos olhos, será útil não venhamos nunca a descansar.

O         sobrinho de Barnabé partiu, sinceramente tocado por essas palavras, que o seguiriam, de futuro, como apelo constante.

Logo após o incidente, os dois missionários deman­daram as estradas impérvias. Pela primeira vez, foram obrigados a pernoitar ao relento, no seio da Natureza. Vencendo precipícios, encontraram uma gruta rochosa na qual se ocultaram, para repousar o corpo mortificado e dorido. O segundo dia da marcha escoou-se-lhes com a coragem indômita de sempre. A alimentação constituía-se de alguns pães trazidos de Perge e frutas silvestres, colhidas ali e acolá. Resolutos e bem-humorados, enfren­tavam e venciam todos os óbices. De quando em vez, era indispensável ganhar a outra margem do rio, ao toparem barreiras intransponíveis. Ei-los então apalpando o álveo das torrentes, cautelosos, com longas varas verdes, ou desbravando os caminhos perigosos e ignorados.

A solidão lhes sugeria belos pensamentos. Sagrado otimismo extravasava dos menores conceitos. Ambos afagavam carinhosas lembranças do passado afetivo e esperançoso. Como homens experimentavam todas as necessidades humanas, mas era profundamente comovedora a fidelidade com que se entregavam ao Cristo, con­fiando ao seu amor a realização dos santificados desejos de uma vida mais alta.

Na segunda noite acomodaram-se em pequena ca­verna, algo distante do trilho estreito, logo após os derradeiros tons do crepúsculo. Depois de frugalíssima refeição, passaram a comentar animadamente os feitos da igreja de Jerusalém. Noite fechada e ainda suas vozes quebravam o grande silêncio. Desdobrando os assuntos, passaram a falar das excelências do Evangelho, exaltando a grandeza da missão de Jesus-Cristo.

—        Se os homens soubessem... — dizia Barnabé fa­zendo comparações.

—        Todos se reuniriam em torno do Senhor e descan­sariam — rematava Paulo cheio de convicção.

—        Ele é o Príncipe que reinará sobre todos.

—        Ninguém trouxe a este mundo riqueza maior.

—        Ah! comentava o discípulo de Simão Pedro — o tesouro de que foi mensageiro engrandecerá a Terra para sempre.

E assim prosseguiam, valendo-se de preciosas ima­gens da vida comum para simbolizar os bens eternos, quando singular movimento lhes despertou atenção. Dois homens armados precipitaram-se sobre ambos, à fraca luz de uma tocha acesa em resinas.

—        A bolsa! — gritou um dos malfeitores.

       Barnabé empalideceu ligeiramente, mas Paulo estava sereno e impassível.

—        Entreguem o que têm ou morrem — exclamou o outro bandido, alçando o punhal.

Olhando fixamente o companheiro, o ex-rabino or­denou:

—        Dá-lhes o dinheiro que resta, Deus suprirá nos­sas necessidades de outro modo.

Barnabé esvaziou a bolsa que trazia entre as dobras da túnica, enquanto os malfeitores recolhiam, ávidos, a pequena quantia.

Reparando nos pergaminhos do Evangelho que os missionários consultavam à luz da tocha improvisada, um dos ladrões interrogou desconfiado e irônico:

—        Que documentos são esses? Faláveis de um prín­cipe opulento... Ouvimos referências a um tesouro... Que significa tudo isso?

Com admirável presença de espírito, Paulo explicou:

—        Sim, de fato estes pergaminhos são o roteiro do imenso tesouro que nos trouxe o Cristo Jesus, que há de reinar sobre os príncipes da Terra.

Um dos bandidos, grandemente interessado, exami­nou o rolo das anotações de Levi.

—        Quem encontrar esse tesouro — prosseguia Paulo, resoluto —, nunca mais sentirá necessidades.

Os ladrões guardaram o Evangelho cuidadosamente.

—        Agradecei a Deus não vos tirarmos a vida — disse um deles.

E apagando a tocha bruxuleante, desapareceram na escuridão da noite. Quando se viram a sós, Barnabé não conseguiu dissimular o assombro.

—        E agora? — perguntou com voz trêmula.

—        A missão continua bem — glosou Paulo cheio de bom ânimo —, não contávamos com a excelente opor­tunidade de transmitir a Boa Nova aos ladrões.

O         discípulo de Pedro, admirando-se de tamanha se­renidade, voltou a dizer:

—        Mas, levaram-nos, também, os derradeiros pães de cevada, bem como as capas...

—        Haverá sempre alguma fruta na estrada — es­clarecia Paulo, decidido — e, quanto às coberturas, não tenhamos maior cuidado, pois não nos faltará o musgo das árvores.

E, desejoso de tranqüilizar o companheiro, acres­centava:

—        De fato, não temos mais dinheiro, mas julgo não será difícil conseguir trabalho com os tapeceiros de Antioquia de Pisídia. Além disso, a região está muito distante dos grandes centros e posso levar certas novi­dades aos colegas do ofício. Esta circunstância será van­tajosa para nós.

Depois de tecerem esperanças novas, dormiram ao relento, sonhando com as alegrias do Reino de Deus.

No dia seguinte, Barnabé continuava preocupado. Interpelado pelo companheiro, confessou compungido:

—        Estou resignado com a carência absoluta de re­cursos materiais, mas não posso esquecer que nos sub­trairam também as anotações evangélicas que possuía­mos. Como recomeçar nossa tarefa? Se temos de cor grande parte dos ensinamentos, não poderemos conferir todas as expressões...

Paulo, todavia, fez um gesto significativo e, desa­botoando a túnica, retirou alguma coisa que guardava junto do coração.

—        Enganas-te, Barnabé — disse com um sorriso otimista —, tenho aqui o Evangelho que me recorda a bondade de Gamaliel. Foi um presente de Simão Pedro ao meu velho mentor, que, por sua vez, mo deu pouco antes de morrer.

O         missionário de Chipre apertou nas mãos o tesouro do Cristo. O júbilo voltou a iluminar-lhe o coração. Poderiam dispensar todo o conforto do mundo, mas a palavra de Jesus era imprescindível. Vencendo obstá­culos de toda sorte, chegaram a Antioquia fundamente abatidos. Paulo, principalmente, a determinados momen­tos da noite, sentia-se cansado e febril. Barnabé tinha freqüentes acessos de tosse. O primeiro contacto com a natureza hostil acarretara aos dois mensageiros do Evangelho fortes desequilíbrios orgânicos.

Não obstante a precária saúde, o tecelão de Tarso procurou informar-se, logo na manhã da chegada, sobre as tendas de artefatos de couro existentes na cidade.

Antioquia de Pisídia contava grande número de is­raelitas. Seu movimento comercial era mais que regular, As vias públicas ostentavam lojas bem sortidas e peque­nas indústrias variadas.

Confiando na Providência Divina, alugaram um quar­to muito simples, e, enquanto Barnabé repousava da fa­diga extrema, Paulo procurou uma das tendas indicadas por um negociante de frutas.

Um judeu de bom aspecto, cercado de três auxilia­res, entre numerosas prateleiras com sandálias, tapetes e outras utilidades numerosas, atinentes à sua profissão, dirigia extensa banca de serviço. Ciente do seu nome, dado o interesse de sua indagação junto ao comerciante referido, o ex-doutor de Jerusalém chamou pelo senhor Ibraim, sendo atendido com enorme curiosidade.

—        Amigo — explicou Paulo, sem rodeios —, sou vosso colega de ofício e, premido por necessidades urgen­tes, venho solicitar-vos o imenso obséquio de admitir-me nas atividades da vossa tenda. Tenho de fazer longa viagem e, não possuindo recurso algum, apelo para vossa generosidade, esperando favorável acolhimento.

O         tapeceiro contemplava-o com simpatia, mas, um tanto desconfiado. Espantava-se e agradava-se, simul­taneamente, da sua franqueza e desembaraço. Depois de refletir algum tempo, respondeu algo vagamente:

—        Nosso trabalho é muito escasso e, para usar de sinceridade, não disponho de capital para remunerar a muitos empregados. Nem todos compram sandálias; os arreamentos de tropa ficam à espera das caravanas que somente passam de tempos a tempos; poucos tapetes ven­demos, e se não fossem os tecidos de couro para tendas improvisadas, suponho que não teríamos o necessário para manter o negócio. Como vedes, não seria fácil arranjar-vos trabalho.

— Entretanto — tornou o ex-rabino, comovido com a sinceridade do interlocutor —, ouso insistir no pedido. Será tão-só por alguns dias... Além do mais, ficaria satisfeito em trabalhar a troco de pão e teto, para mim e um companheiro enfermo.

O bondoso Ibraim sensibilizou-se com aquela con­fissão. Depois de uma pausa longa, em que o tapeceiro de Antioquia ainda hesitava entre o “sim” e o “não”, Paulo rematou:

— Tão grande é a minha necessidade que insisto convosco, em nome de Deus.

— Entrai — disse o negociante, vencido pela argu­mentação.

Embora doente, o emissário do Cristo atirou-se ao trabalho com afã. Um velho tear foi instalado apressa­damente, junto à banca cheia de facas, martelos e peças de couro.

Paulo entrou a trabalhar, tendo um olhar amigo e uma boa palavra para cada companheiro. Longe de se impor pelos conhecimentos superiores que possuía, obser­vava o sistema de trabalho dos auxiliares de Ibraim e sugeria novas providências favoráveis ao serviço, com bondade, sem afetação.

Comovido pelas suas declarações sinceras, o dono da casa mandou a refeição a Barnabé, enquanto o ex-rabino vencia galhardamente as primeiras dificuldades, experimentando o júbilo de um grande triunfo.

Naquela noite, junto do companheiro de lutas, ele­vou a Jesus a prece do mais entranhado agradecimento. Ambos comentaram a nova situação. Tudo ia bem, mas era necessário pensar no dinheiro indispensável, com que atender ao aluguel do quarto.

Edificado na exemplificação do amigo, agora era Barnabé que procurava confortá-lo:

— Não importa, Jesus levará em conta a nossa boa-vontade, não nos deixará ao desamparo.

No dia seguinte, quando Paulo regressou da oficina, teve de esperar o companheiro, com alguma ansiedade. O mensageiro de Ibraím, que levara a refeição de Bar­nabé, não o havia encontrado. Após alguma inquietação, o ex-rabino abriu-lhe a porta com inexcedível surpresa. O discípulo de Pedro parecia extremamente abatido, mas profunda alegria lhe transbordava do olhar. Explicou que também ele conseguira trabalho remunerador. Em­pregara-se com um oleiro necessitado de operários para aproveitar o bom tempo. Abraçaram-se comovidos. Se houvessem alcançado o domínio do mundo, com a for­tuna fácil, não experimentariam tanto júbilo. Pequena fração de serviço honesto lhes bastava ao coração ilu­minado por Jesus-Cristo.

No primeiro sábado de permanência em Antioquia, os arautos do Evangelho dirigiram-se à sinagoga local. Ibraim, satisfeitíssimo com a cooperação do novo em­pregado, dera-lhe duas túnicas usadas, que Paulo e Bar­nabé envergaram com alegria.

Toda a população “temente a Deus” comprimia-se no recinto. Sentaram-se os dois no local reservado aos visi­tantes ou desconhecidos. Terminado o estudo e comentá­rios da Lei e dos Profetas, o diretor dos serviços religiosos perguntou-lhes, em voz alta, se desejariam dizer algumas palavras aos presentes.

De pronto, Paulo levantou-se e aceitou o convite. Dirigiu-se à modesta tribuna em atitude nobre e começou a discorrer sobre a Lei, tomado de eloqüência sublime. O auditório, não afeito a raciocínios tão altos, seguia-lhe a palavra fluente como se houvera encontrado um profeta autêntico, a espalhar maravilhas. Os israelitas não cabiam em si de contentes. Quem era aquele homem de quem se poderia orgulhar o próprio Templo de Jeru­salém? Em dado momento, contudo, as palavras do orador passaram a ser quase incompreensíveis para todos.

Seu verbo sublime anunciava um Messias que já viera ao mundo. Alguns judeus aguçaram os ouvidos. Tratava-se do Cristo Jesus, por intermédio de quem as criaturas deveriam esperar a graça e a verdade da salvação. O ex-doutor observou que numerosas fisionomias mostra­vam-se contrariadas, mas a maioria escutava-o com inde­finível vibração de simpatia. A relação dos feitos de Jesus, sua exemplificação divina, a morte na cruz, arran­cavam lágrimas do auditório. O próprio chefe da sinagoga estava profundamente surpreendido...

Terminada a longa oração, o novo missionário foi abraçado por grande número de assistentes. Ibraim, que acabava de conhecê-lo sob novo aspecto, cumprimentou-o radiante.

Eustáquio, o oleiro que dera trabalho a Bar­nabé, aproximou-se para as saudações, altamente sensi­bilizado. Os descontentes, no entanto, não faltaram. O êxito de Paulo contrariou o espírito fariseu da assembléia.

No dia imediato, Antioquia de Pisídia estava em­polgada pelo assunto. A tenda de Ibraim e a olaria de Eustáquio foram locais de grandes discussões e enten­dimentos. Paulo falou, então, das curas que se poderiam fazer em nome do Mestre. Uma velha tia do seu patrão foi curada de enfermidade pertinaz, com a simples impo­sição das mãos e as preces ao Cristo. Dois filhinhos do oleiro restabeleceram-se com a intervenção de Barnabé. Os dois emissários do Evangelho ganharam logo muito conceito. A gente simples vinha solicitar-lhes orações, cópias dos ensinos de Jesus, enquanto muitos enfermos se restabeleciam. Se o bem estava crescendo, a animosi­dade contra eles também crescia, da parte dos mais altamente colocados na cidade. Iniciou-se o movimento contrário ao Cristo. Não obstante a continuidade das pregações de Paulo, aumentava, entre os israelitas pode­rosos, a perseguição, o apodo e a ironia. Os mensageiros da Boa Nova, entretanto, não desanimaram. Conforta­dos pelos mais sinceros, fundaram a igreja na casa de Ibraim. Quando tudo ia bem, eis que o ex-rabino, ainda em conseqüência das vicissitudes experimentadas na tra­vessia dos pântanos da Panfília, cai gravemente enfermo, preocupando a todos os irmãos. Durante um mês, esteve sob a influência maligna de uma febre devoradora. Barnabé e os novos amigos foram inexcedíveis em cuidados.

Explorando o incidente, os inimigos do Evangelho puseram-se em campo, ironizando a situação. Havia mais de três meses que os dois anunciavam o novo Reino, reformavam as noções religiosas do povo, curavam as moléstias mais pertinazes e, por que motivo o poderoso pregador não se curava a si mesmo? Fervilhavam, assim, os ditos mordazes e os conceitos deprimentes.

Os confrades, entretanto, foram de uma dedicação sem limites. Paulo foi tratado com extremos de ternura, no lar de Ibraim, como se houvesse encontrado um novo lar.

Após a convalescença, o desassombrado tecelão vol­tou mais alvissareiro à pregação das verdades novas.

Observando-lhe a coragem, os elementos judaicos, ralados de despeito, tramaram sua expulsão sem qual­quer condescendência. Por vários meses o ex-doutor de Jerusalém lutou contra os golpes do farisaísmo domi­nante na cidade, mantendo-se superior a calúnias e insul­tos. Mas, quando revelava seu poder de resolução e fir­meza de ânimo, eis que os israelitas descontentes ameaçam Ibraim e Eustáquio com a supressão de regalias e bani­mento. Os dois antigos habitantes de Antioquia de Pisídia eram acusados como partidários da revolução e da desor­dem. Altamente comovidos, receberam a notificação de que somente a retirada de Paulo e Barnabé poderia sal­vá-los do cárcere e da flagelação.

Os missionários de Jesus consideram a penosa situa­ção dos amigos e resolvem partir. Ibraim tem os olhos rasos de lágrimas. Eustáquio não consegue esconder o abatimento. Ante as interrogações de Barnabé, o ex-ra­bino expõe o plano das atividades futuras. Demandariam Icônio. Pregariam ali as verdades de Deus. O discípulo de Simão Pedro aprova sem hesitar. Reunindo os irmãos em noite memorável para quantos lhe viveram as pro­fundas emoções, os mensageiros da Boa Nova se despe­dem. Por mais de oito meses haviam ensinado o Evangelho. Afrontaram zombarias e apodos, haviam conhecido provações bem amargas.

Seus labores estavam sendo premiados pelo mundo com o banimento, como se eles fossem criminosos comuns, mas a igreja do Cristo estava fundada. Paulo falou nisso, quase com orgulho, não obstante as lágrimas que lhe rolavam dos olhos. Os novos discípulos do Mestre não deveriam estranhar as incompreensões do mundo, mesmo porque, o próprio Salvador não escapara à cruz da ignomínia, acrescentando que a palavra “cristão” significava seguidor do Cristo. Para descobrir e conhecer as sublimidades do Reino de Deus era preciso trabalhar e sofrer sem descanso.

A assembléia afetuosa, por sua vez, acolheu as exor­tações, lavada em lágrimas.

Na manhã imediata, munidos de uma carta de reco­mendação de Eustáquio e carregando vasta provisão de pequeninas lembranças dos companheiros de fé, puseram-se a caminho, intrépidos e felizes.

O percurso excedente a cem quilômetros foi difícil e doloroso, mas os pioneiros não se detiveram na con­sideração de qualquer obstáculo.

Chegados à cidade, apresentaram-se ao amigo de Eustáquio, de nome Onesíforo.

Recebidos com generosa hospitalidade, no sábado imediato, antes mesmo de fi­xar-se no trabalho profissional, Paulo foi expor os objeti­vos de sua passagem pela região. A estréia na sinagoga provocou animadas discussões, O elemento político da cidade constituía-se de judeus ricos e instruídos na Lei de Moisés; contudo, os gentios representavam, em grande número, a classe média. Estes últimos receberam a pala­vra de Paulo com profundo interesse, mas os primeiros desfecharam grande reação logo de início. Houve tumul­tos. Os orgulhosos filhos de Israel não podiam tolerar um Salvador que se entregara, sem resistência, à cruz dos ladrões. A palavra do Apóstolo, entretanto, alcançara tão grande favor público que os gentios de Icônio ofere­ceram-lhe um vasto salão para que lhes fosse ministrado o ensinamento evangélico, todas as tardes. Queriam no­tícias do novo Messias, interessavam-se pelos seus meno­res feitos e por suas máximas mais simples. O ex-rabino aceitou o encargo, cheio de gratidão e simpatia. Diaria­mente, terminada a tarefa comum, compacta multidão de iconienses aglomerava-se ansiosa por lhe ouvir o verbo vibrante. Dominando a administração, os judeus não tardaram em reagir, mas foi inútil a tentativa de inti­midar o pregador com as mais fortes ameaças. Ele con­tinuou pregando intrépida, desassombradamente. Onesí­foro, a seu turno, dava-lhe mão forte e, dentro em pouco, fundava-se a igreja em sua própria casa.

Os israelitas mantinham viva a idéia da expulsão dos missionários, quando um incidente ocorreu em auxílio deles.

É que uma jovem noiva, ouvindo ocasionalmente as pregações do Apóstolo dos gentios, diariamente penetrava no salão em busca de novos ensinamentos. Enlevada com as promessas do Cristo e sentindo extrema paixão pela figura empolgante do orador, fanatizara-se lamentavel­mente, esquecendo os deveres que a prendiam ao noivo e à ternura maternal.

Tecla, que assim se chamava, não mais atendia aos laços sacrossantos que deveria honrar no ambiente doméstico. Abandonou o trabalho diuturno para esperar o crepúsculo, com ansiedade. Teóclia, sua mãe, e Tamíris, o noivo, acompanham o caso com desa­gradável surpresa. Atribuíam a Paulo semelhante dese­quilíbrio. O ex-doutor, por sua vez, estranhava a atitude da jovem, que, diariamente, insinuava-se com perguntas, olhares e momices singulares.

Certa vez, quando se dispunha a voltar para casa de Onesíforo, em companhia de Barnabé, a moça lhe pediu uma palavra em particular.

Ante suas perguntas atenciosas, Tecla corava, ga­guejando:

—        Eu... eu...

—        Dize, filha — murmurou o Apóstolo um tanto preocupado —, deves considerar-te em presença de um pai.

—        Senhor — conseguiu dizer ofegante —, não sei por quê, tenho recebido grande impressão com a vossa palavra.

—        O que tenho ensinado — esclareceu Paulo — não é meu; vem de Jesus, que nos deseja todo o bem.

—        De qualquer modo, porém — disse ela com mais timidez —, amo-vos muito!...

—        Paulo assustou-se. Não contava com essa decla­ração. A expressão “amo-vos muito” não era articulada em tom de fraternidade pura, mas com laivos de par­ticularismo que o Apóstolo percebeu sobremaneira im­pressionado. Depois de meditar muito na situação impre­vista, respondeu convicto:

—        Filha, os que se amam em espírito, unem-se em Cristo para a eternidade das emoções mais santas; mas, quem sabe está amando a carne que vai morrer?

—        Tenho necessidade da vossa afeição — exclamou a jovem, de olhar lacrimoso.

—        Sim — esclareceu o ex-rabino —, mas os dois temos necessidade da afeição do Cristo. Somente ampa­rados nele poderemos experimentar algum ânimo em nossas fraquezas.

—        Não poderei esquecer-vos — soluçou a moça, des­pertando-lhe compaixão.

Paulo ficou pensativo. Recordou a mocidade. Lem­brou os sonhos que tecera ao lado de Abigail. Num minuto, seu espírito devassou um mundo de suaves e angustiosas reminiscências; e como se voltasse de um misterioso país de sombras, exclamou como se falasse consigo mesmo:

—        Sim, o amor é santo, mas a paixão é venenosa. Moisés recomendou que amássemos a Deus acima de tudo; e o Mestre acrescentou que nos amássemos uns aos outros, em todas as circunstâncias da vida...

E fixando os olhos, agora muito brilhantes, na jovem que chorava, exclamou quase acrimonioso:

—        Não te apaixones por um homem feito de lodo e de pecado, e que se destina a morrer!...

Tecla ainda não voltara a si da própria surpresa, quando o noivo desolado penetrou no recinto deserto. Tamíris faz as primeiras objeções em grandes brados, ao passo que o mensageiro da Boa Nova lhe ouve as reprimendas com grande serenidade. A noiva replica mal-humorada. Reafirma sua simpatia por Paulo, expõe francamente as intenções mais íntimas, O rapaz escan­daliza-se, O Apóstolo espera pacientemente que o noivo o interrogue. E, quando convocado a justificar-se, explica em tom fraternal:

— Amigo, não te acabrunhes nem te exaltes, em face dos sucessos que se originam de profundas incom­preensões. Tua noiva está simplesmente enferma. Esta­mos anunciando o Cristo, mas o Salvador tem os seus inimigos ocultos em toda parte, como a luz tem por inimiga a treva permanente. Mas a luz vence a treva de qualquer natureza. Iniciamos o labor missionário nesta cidade, sem grandes obstáculos. Os judeus nos ridicularizam e, todavia, nada encontraram em nossos atos que justifique a perseguição declarada. Os gentios nos abraçam com amor. Nosso esforço desenvolve-se pacificamente e nada nos induz ao desânimo. Os adversários invisíveis, da verdade e do bem, certo se lembraram de influenciar esta pobre criança, para fazê-la instrumento perturbador de nossa tarefa. Ë possível que não me compreendas de pronto; no entanto, a realidade não éoutra.

Tamíris, contudo, deixando entrever que padecia da mesma influência perniciosa, bradou enraivecido:

— Sois um feiticeiro imundo! Esta é que é a ver­dade. Mistificador do povo simplório e rude, não passais de reles sedutor de moças impressionáveis. Insultais uma viúva e um homem honesto, qual sou, insinuando-vos no espírito frágil de uma órfã de pai.

Espumava de cólera. Paulo ouviu-lhe as diatribes, com grande presença de espírito.

Quando o moço cansou de esbravejar, o Apóstolo tomou o manto, fez um gesto de despedida e acentuou:

— Quando somos sinceros, estamos em repouso invulnerável; mas cada um aceita a verdade como pode. Pensa, pois, e entende como puderes.

E abandonou o recinto para ir ter com Barnabé.

Os parentes de Tecla, porém, não descansaram em face do que consideravam um ultraje.

Na mesma noite, valendo-se do pretexto, as autoridades judaicas de Icômo ordenaram a prisão do emissário da Boa Nova. A fileira dos descontentes afluiu à porta de Onesíforo, vociferando impropérios. Apesar da interferência dos amigos, Paulo foi arrastado ao cárcere, onde sofreu o suplício dos trinta e nove açoites. Acusado como sedutor e inimigo das tradições da família, ao demais blasfemo e revolu­cionário, foi indispensável muita dedicação dos confrades recém-convertidos para restituir-lhe a liberdade.

       Depois de cinco dias de prisão com severos castigos, Barnabé o recebeu exultante de alegria.

       O caso de Tecla revestira proporções de grande escândalo, mas o Apóstolo, na primeira noite de liberdade,­ reuniu a igreja doméstica, fundada com Onesíforo, e esclareceu a situação, para conhecimento de todos.

Barnabé considerou impossível ali ficarem por mais tempo. Novo atrito com as autoridades poderia prejudi­car-lhes a tarefa. Paulo, entretanto, mostrava-se bas­tante resoluto.

Se preciso, voltaria a pregar o Evan­gelho na via pública, revelando a verdade aos gentios, já que os filhos de Israel se compraziam nos desvios clamorosos.

Chamado a opinar, Onesíforo ponderou a situação da pobre moça, transformada em objeto da ironia po­pular. Tecla era noiva e órfã de pai. Tamíris havia criado a lenda de que Paulo não passava de poderoso feiticeiro. Se, na qualidade de noiva, ela fosse encontrada novamente junto do Apóstolo, mandava a tradição que fosse condenada à fogueira.

Ciente das superstições regionais, o ex-rabino não hesitou um minuto. Deixaria Icônio, no dia imediato. Não que capitulasse diante do inimigo invisível, mas porque a igreja estava fundada e não era justo cooperar no martírio moral de uma criança.

A decisão do Apóstolo mereceu aprovação geral. Assentaram-se as bases para a continuação do apren­dizado evangélico. Onesiforo e os demais irmãos assumi­ram o compromisso de velar pelas sementes recebidas como dádiva celestial.

No curso das conversações, Barnabé estava pensativo. Para onde iriam? Não seria justo pensar na volta? As dificuldades avultavam dia a dia e a saúde de ambos, desde a internação nas margens do Cestro, era muito inconstante, O discípulo de Pedro, contudo, conhecendo o ânimo e o espírito de resolução do companheiro, espe­rou pacientemente que o assunto aflorasse espontânea e naturalmente.

Em socorro dos seus cuidados, um dos amigos pre­sentes interrogou Paulo com vivacidade.

— Quando pretendem partir?

— Amanhã — respondeu o Apóstolo.

— Mas, não será melhor repousar alguns dias? Tendes as mãos inchadas e o rosto ferido pelos açoites.

O ex-doutor sorriu e falou prazenteiro:

O         serviço é de Jesus e não nosso. Se cuidarmos muito de nós mesmos, nesse capítulo de sofrimentos, não daremos conta do recado; e se paralisarmos a mar­cha nos lances difíceis, ficaremos com os tropeços e não com o Cristo.

Seus argumentos pitorescos e concludentes espalha­vam uma atmosfera de bom-humor.

—        Voltareis a Antioquia? — perguntou Onesíforo com atenção.

Barnabé aguçou os ouvidos para conhecer detalha­damente a resposta, enquanto o companheiro retrucava:

—        Certo que não: Antioquia já recebeu a Boa Nova da redenção. E a Licaônia?

Olhando agora para o ex-levita de Chipre, como a solicitar a sua aprovação, acentuava:

—        Marcharemos para a frente. Não estás de acor­do, Barnabé? Os povos da região precisam do Evangelho. Se estamos tão satisfeitos com as notícias do Cristo, por que negá-las aos que necessitam do batismo da ver­dade e da nova fé?...

O         companheiro fez um sinal afirmativo e concordou, resignado:

—        Sem dúvida. Iremos para a frente; Jesus nos auxiliará.

E os presentes passaram a comentar a posição de Listra, bem como os costumes interessantes da sua gente simples. Onesíforo tinha lá uma irmã viúva, por nome Lóide. Daria uma carta de recomendação aos missionários. Seriam hóspedes de sua irmã, durante o tempo que precisassem.

Os dois pregoeiros do Evangelho rejubilaram-se. Principalmente Barnabé não cabia em si de contenta­mento, afastando a idéia triste de ficarem completamente isolados.

No dia seguinte, sob comovidos adeuses, os missio­nários tomavam a estrada que os conduziria ao novo campo de lutas.

Após viagem penosíssima, chegaram à pequena cida­de, num crepúsculo pardacento. Estavam exaustos.

A irmã de Onesíforo, no entanto, foi pródiga em gentilezas. Velha viúva de um grego abastado, Lóide morava em companhia de sua filha Eunice, igualmente viúva, e de seu neto Timóteo, cuja inteligência e genero­sos sentimentos de menino constituíam o maior encanto das duas senhoras. Os mensageiros da Boa Nova foram recebidos nesse lar com inequívocas provas de sim­patia. O inexcedível carinho dessa família foi um bál­samo confortador para ambos. Conforme seu hábito, Paulo referiu-se na primeira oportunidade ao desejo imenso de trabalhar, durante o tempo de sua permanên­cia em Listra, de modo a não se tornar passível de male­dicência ou crítica, mas a dona da casa opôs-se termi­nantemente. Seriam seus hóspedes.

Bastava a recomen­dação de Onesíforo para que ficassem tranqüilos. Além disso, explicava: Listra era uma cidade muito pobre, possuia apenas duas tendas humildes, onde nunca se faziam tapetes.

Paulo estava muito sensibilizado com o acolhimento carinhoso. Na mesma noite da chegada, observou a ternura com que Timóteo, tendo pouco mais de treze anos, tomava os pergaminhos da Lei de Moisés e os Escritos Sagrados dos Profetas. Deixou o Apóstolo que as duas senhoras comentassem as revelações em com­panhia do mesmo, até que fosse chamado a intervir. Quando tal se deu, aproveitou o ensejo para fazer a primeira apresentação do Cristo ao coração enlevado dos ouvintes. Tão logo começou a falar, observou a pro­funda impressão das duas mulheres, cujos olhos brilha­vam enternecidos; mas o pequeno Timóteo ouvia-o com tais demonstrações de interesse que, muitas vezes, lhe acariciou a fronte pensativa.

Os parentes de Onesíforo receberam a Boa Nova com júbilos infinitos. No dia imediato não se falou de outra coisa. O rapaz fazia interrogações de toda es­pécie. O Apóstolo, porém, atendia-o com alegria e inte­resse fraternais.

Durante três dias os missionários entregaram-se a caridoso descanso das energias físicas.

Paulo aproveitou a ocasião para conversar largamente com Timóteo, junto do grande curral onde as cabras se recolhiam.

Somente no sábado, procuraram tomar contacto mais íntimo com a população. Listra estava cheia das mais estranhas lendas e crendices. As famílias judaicas eram muito raras e o povo simplório aceitava como verdades todos os símbolos mitológicos. A cidade não possuia sina­goga, mas um pequeno templo consagrado a Júpiter, que os camponeses aceitavam como o pai absoluto dos deuses do Olimpo. Havia um culto organizado. As reuniões efe­tuavam-se periodicamente, os sacrifícios eram numerosos.

Numa praça nua movimentava-se. O mercado parco, pela manhã.

Paulo compreendeu que não encontraria melhor local para o primeiro contacto direto com o povo.

De cima de uma tribuna improvisada de pedras su­perpostaS, começou a pregação em voz forte e comove­dora. Os populares aglomeraram-se de súbito. Alguns surgiam das casas pacíficas, para verificar o motivo do compacto ajuntamento. Ninguém se lembrou das aquisições de carne, de frutas, de verduras. Todos queriam ouvir o desconhecido forasteiro.

O Apóstolo falou, primeiramente, das profecias que haviam anunciado a vinda do Nazareno e, em seguida. passou a relatar os feitos de Jesus entre os homens. Pintou a paisagem da Galiléia com as cores mais brilhan­tes do seu génio descritivo, falou da humildade e da abne­gação do Messias. Quando se referia às curas prodigiosas que o Cristo realizara, notou que um pequeno grupo de assistentes lhe dirigiam chufas. Inflamado de fervor na sua parenética, Paulo recordou o dia em que vira Estevão curar uma jovem muda, em nome do Senhor.

Crente de que o Mestre não o desampararia, passeou o olhar pela turba numerosa. A distância de alguns metros enxergou um mendigo miserável, que se arras­tava penosamente. Impressionado com o discurso evan­gélico, o aleijado de Listra aproximou-se. bracejando no solo e, sentando-se com dificuldade, fixou os olhos no pre­gador que o observava sumamente comovido.

Renovando os valores da sua fé, Paulo contemplou-o com energia e falou com autoridade:

—        Amigo, em nome de Jesus, levanta-te!

O         mísero, olhos fixos no Apóstolo, levantou-se com fácilidade, enquanto a multidão dava gritos, surpreen­dida. Alguns recuaram aterrados. Outros procuraram o vulto de Paulo e o de Barnabé, contemplando-os, deslumbrados e satisfeitos. O aleijado começou a saltar de alegria. Conhecido na cidade, de longa data, a cura prodigiosa não deixava a menor dúvida.

Muitas pessoas se ajoelharam. Outras correram aos quatro cantos de Listra para anunciar que o povo havia recebido a visita dos deuses. A praça encheu-se em poucos minutos. Todos queriam ver o mendigo reinte­grado nos seus movimentos livres. Espalhou-se o su­cesso, rapidamente. Barnabé e Paulo eram Júpiter e Mercúrio descidos do Olimpo. Os Apóstolos, jubilosos com a dádiva de Jesus, mas, profundamente surpreendidos com a atitude dos licaônios, perceberam logo o mal-entendido. Em meio do respeito geral, Paulo subiu de novo à tribuna improvisada, explicando que ele e o com­panheiro eram simples criaturas mortais, realçando a misericórdia do Cristo, que se dignara ratificar a pro­messa do Evangelho, naquele minuto inesquecível. Debal­de, porém, multiplicava os seus esclarecimentos. Todos lhe ouviam a palavra genuflexos, em atitude estática. Foi aí que um velho sacerdote, paramentado segundo os hábitos da época, surgiu inesperadamente conduzindo dois bois engrinaldados de flores, com ademanes e mesu­ras solenes. Em voz alta, o ministro de Júpiter convida o povo ao cerimonial do sacrifício aos deuses vivos.

Paulo percebe o movimento popular e, descendo ao centro da praça, grita com toda força dos pulmões, abrindo a túnica na altura do peito:

— Não cometais sacrilégios!... não somos deu­ses... Vede!... somos simples criaturas de carne!.

       Seguido de perto por Barnabé, arrebata das mãos do velho sacerdote a delicada trança de couro que prendia os animais, soltando os dois touros pacíficos, que se puseram a devorar as verdes coroas.

O ministro de Júpiter quis protestar, calando-se em seguida, muito desapontado. E entre os mais extrava­gantes comentários, os missionários bateram em retira­da, ansiosos por um local de oração, onde pudessem elevar a Jesus seus votos de alegria e reconhecimento.

— Grande triunfo! — disse Barnabé quase orgu­lhoso. — As dádivas do Cristo foram numerosas, o Senhor lembra-se de nós!...

Paulo ficou pensativo e redargüiu:

— Quando recebemos muitos favores, precisamos pensar nos muitos testemunhos. Penso que experimen­taremos grandes provações. Aliás, não devemos esque­cer que a vitória da entrada do Mestre em Jerusalém precedeu os suplícios da cruz.

O companheiro, considerando o elevado sentido da­quelas afirmações, entrou a meditar em profundo silêncio.

Lóide e a filha estavam radiantes. A cura do alei­jado conferia aos mensageiros da Boa Nova singular situação de evidência. Paulo valeu-se da oportunidade para fundar o primeiro núcleo do Cristianismo na pe­quena cidade. As providências iniciais foram tomadas na residência da generosa viúva, que pôs à disposição dos missionários todos os recursos ao seu alcance.

Tal como em Nea-Pafos, estabeleceram num case­bre muito humilde a sede das atividades de informações e de auxílio. Em lugar de João Marcos, era o pequeno Timóteo quem auxiliava em todos os misteres. Numero­sas pessoas copiavam o Evangelho, durante o dia, en­quanto os enfermos acorriam de toda parte, carecidos de imediata assistência.

Não obstante tal êxito, crescia igualmente a animo­sidade de uns tantos, contra a nova doutrina.

Os poucos judeus de Listra deliberaram consultar as autoridades de Icônio, relativamente aos dois desco­nhecidos. E foi isso o bastante para que se turvassem os horizontes. Os comissionários regressaram com um acervo de notícias ingratas. O caso de Tecla era pintado a cores negras. Paulo e Barnabé eram acusados de blasfemos, feiticeiros, ladrões e sedutores de mulheres honestas. Paulo, principalmente, era apresentado como revolucionário temível, O assunto, em Listra, foi dis­cutido “intra muros”, Os administradores da cidade convidaram o sacerdote de Júpiter a entrar na campa­nha contra os embusteiros e, com a mesma facilidade com que haviam acreditado na sua condição de deuses, passaram todos a atribuir aos pregadores as maiores perversões. Combinaram-se providências criminosas. Des­de a chegada dos dois desconhecidos, que falavam em nome de um novo profeta, Listra vivia sobressaltada por idéias diferentes. Era preciso coibir os abusos. A palavra de Paulo era audaciosa e requeria corretivo eficaz. Finalmente, deliberaram que o fogoso pregador fosse apedrejado na primeira ocasião que falasse em público.

Ignorando o que se tramava, o Apóstolo dos gentios, deixando Barnabé acamado por excesso de trabalho, fez-se acompanhar do pequeno Timóteo, no sábado ime­diato, ao entardecer, foi até à praça pública onde, mais uma vez, anunciou as verdades e promessas do Evangelho do Reino.

O logradouro apresentava movimento invulgar. O pregador notou a presença de muitas fisionomias sus­peitas e absolutamente desconhecidas. Todos lhe acom­panhavam os mínimos gestos com evidente curiosidade.

Com a máxima serenidade, subiu à tribuna e come­çou a falar das glórias eternas que o Senhor Jesus havia trazido à Humanidade sofredora. No entanto, mal havia iniciado o sermão evangélico, quando, aos gritos furiosos dos mais exaltados, começaram a chover pedras em barda.

Paulo recordou subitamente a figura inesquecível de Estevão. Certo, o Mestre lhe reservara o mesmo gênero de morte, para que se redimisse do mal infligido ao mártir da igreja de Jerusalém. Os pequenos e duros granizos caíam-lhe nos pés, no peito, na fronte.

Sentiu o sangue a escorrer-lhe da cabeça ferida e ajoelhou-se, sem uma queixa, rogando a Jesus que o fortalecesse no angustioso transe.

Nos primeiros momentos, Timóteo, aterrado, pôs-se a gritar, suplicando socorro; mas um homem de braços atléticos aproxima-se cauto e murmura-lhe no ouvido:

—        Cala-te se queres ser útil!...

—        És tu, Gaio? — exclamou o pequeno de olhos lacrimosos, experimentando certo conforto em reconhecer um rosto amigo no pandemônio em que se via.

—        Sim — disse o outro baixinho —, aqui estou para socorrer o Apóstolo. Não posso esquecer que ele curou minha mãe.

E olhando o movimento da turba criminosa, acres­centou:

—        Não temos tempo a perder. Não tardará que o levem ao monturo. Se tal se der, procura seguir-nos com um pouco de água. Se o missionário não sucumbir, prestarás os primeiros socorros, até que eu consiga pre­venir tua mãe!...

Separaram-se imediatamente. Ralado de aflição, o rapaz viu o pregador de joelhos, olhos fitos no céu, num transporte inesquecível. Filetes de sangue desciam-lhe da fronte fraturada.

Em dado momento, a cabeça pendeu e o corpo tombou desamparado. A multidão pa­recia tomada de assombro. Prevalecendo-se da situação em que não se observavam diretrizes prévias, Gaio insinuou-se. Aproximou-se do Apóstolo inerme, fez um gesto significativo para o povo e bradou:

—        O feiticeiro está morto!...

Sua figura gigantesca despertara as simpatias da turba inconsciente. Estrugiram aplausos.

Os que haviam promovido o nefando atentado desapareceram. Gaio com­preendeu que ninguém ousava assumir a responsabilidade individual. Em estranhas vibrações, bradavam os mais perversos:

—        Fora das portas.. fora das portas!... Feiticei­ro ao monturo!... Feiticeiro ao montu...u...ro!...

O         amigo de Paulo, disfarçando a comiseração com gestos de ironia, falou à multidão satisfeita:

—        Levarei os despojos do bruxo!

A turba fez um alarido ensurdecedor e Gaio pro­curou arrastar o missionário com a cautela possível. Atravessaram vielas extensas, em gritos, até que, atin­gindo um local deserto, um tanto distante dos muros de Listra, deixaram Paulo semimorto, na montureira do lixo.

O         latagão inclinou-se, como a verificar a morte do apedrejado, e observando, cuidadosamente, que ainda vivia, gritou:

—        Deixemo-lo aos cães, que se incumbirão do resto! Ë preciso celebrar o feito com algum vinho!...

E seguindo o líder daquela tarde, a multidão bateu em retirada, enquanto Timóteo se aproximava do local, valendo-se das sombras da noite que começava a fechar-se. Correndo a um poço, não muito distante, e que se destinava à serventia pública, o pequeno encheu o gorro impermeável, de água pura, prestando os primeiros socor­ros ao ferido. Banhado em lágrimas, notou que Paulo respirava com dificuldade, como se houvesse mergulhado em profundo desmaio, O jovem listrense assentou-se ao seu lado, banhou-lhe a testa ferida com extremos de carinho. Mais alguns minutos e o Apóstolo voltava a si para examinar a situação.

Timóteo o informou de tudo. Muito compungido, Paulo agradeceu a Deus, pois reconhecia que somente a misericórdia do Altíssimo poderia ter operado o milagre, por seqüestrá-lo aos propósitos criminosos da turba inconsciente.

Decorridas duas horas, três vultos silenciosos apro­ximavam-se. Muito aflito, Barnabé deixara o leito, não obstante o estado febril, para acompanhar Lóide e Euni­ce, que, avisadas por Gaio, acorriam com os primeiros socorros.

Todos renderam graças a Jesus, enquanto Paulo tomava pequena dose de vinho reconfortador. Organi­zação espiritual poderosa, apesar das sevícias físicas, o tecelão de Tarso levantou-se e regressou a casa com os amigos, levemente amparado por Barnabé, que lhe oferecera o braço amigo.

       O resto da noite passou-se em conversações carinho­sas. Os dois emissários da Boa Nova temiam agressão do povo às generosas senhoras que os haviam hospedado e socorrido. Era preciso partir, para evitar maiores incômodos e complicações.

Em vão a palavra de Lóide se fez ouvir, procurando dissuadir os pregoeiros do Cristo; debalde Timóteo beijou as mãos de Paulo e lhe pediu que não partisse. Receosos de mais tristes conseqüências, depois de coordenarem as instruções necessárias à igreja nascente, transpuse­ram as portas da cidade ao amanhecer, em direção a Derbe, que ficava algo distante.

Depois de penosa caminhada, atingiram o novo setor de trabalho, onde haveriam de estagiar mais de um ano. Embora entregues ao trabalho manual, com que ganha­vam o pão da vida, os dois companheiros precisaram de seis meses para restabelecer a saúde comprometida. Como tecelão e oleiro anônimos, Paulo e Barnabé deixaram-se ficar em Derbe longo tempo, sem despertar a curiosidade pública. Só depois de refeitos dos abalos sofridos, reco­meçaram a Boa Nova do Reino de Jesus. Visitando os arredores, provocaram grande interesse da gente sim­ples, pelo Evangelho da redenção. Pequenas comunidades cristãs foram fundadas em ambiente de muitas alegrias.

Após muito tempo de labor, resolveram regressar ao núcleo original do seu esforço.

Vencendo etapas difíceis, visitaram e encorajaram todos os irmãos escalonados nas diversas regiões da Licaônia, Pisídia e Panfília.

De Perge desceram a Atália, de onde embarcaram com destino a Selêucia e dali ganharam Antioquia.

Ambos haviam experimentado a dificuldade dos ser­viços mais rudes. Muita vez se viram perplexos com os problemas intrincados da empresa: em troca da de­dicação fraternal, haviam recebido remoques, açoites e acusações pérfidas; contudo, através do abatimento físico e dos gilvazes, irradiavam ondas invisíveis de intenso júbilo espiritual. Ë que, entre os espinhos da estrada escabrosa, os dois companheiros desassombrados manti­nham ereta a cruz divina e consoladora, espalhando a mancheias as sementes benditas do Evangelho de Re­denção.

 

Lutas pelo Evangelho

O regresso de Paulo e Barnabé foi assinalado em Antíoquia com imenso regozijo. A comunidade fraternal admirou, profundamente comovida, o feito dos irmãos que haviam levado a regiões tão pobres, e distantes, as sementes divinas da verdade e do amor.

Por muitas noites consecutivas, os recém-chegados apresentaram o relatório verbal de suas atividades, sem omitir um detalhe. A igreja antioquense vibrou de ale­gria e rendeu graças ao Céu.

Os dois dedicados missionários haviam voltado em uma fase de grandes dificuldades para a instituição. Ambos perceberam-nas, contristados. As contendas de Jerusalém estendiam-se a toda a comunidade de Andio­quia; as lutas da circuncisão estavam acesas. Os pró­prios chefes mais eminentes estavam divididos pelas afirmativas dogmáticas. Tão alto grau atingiram os dis­crimes, que as vozes do Espírito Santo não mais se manifestavam. Manahen, cujos esforços na igreja eram indispensáveis, mantinha-se a distância, em vista das discussões estéreis e venenosas. Os irmãos achavam-se extremamente confusos. Uns eram partidários da cir­cuncisão obrigatória, outros se batiam pela independên­cia irrestrita do Evangelho. Eminentemente preocupado, o pregador tarsense observou as polêmicas furiosas, a respeito de alimentos puros e impuros.

Tentando estabelecer a harmonia geral em torno dos ensinamentos do Divino Mestre, Paulo tomava inutilmente a palavra, explicando que o Evangelho era livre e que a circuncisão era, tão-somente, uma característica convencional da intolerância judaica. Não obstante sua autoridade inconteste, que se aureolava de prestígio pe­rante a comunidade inteira, em vista dos grandes valores espirituais conquistados na missão, os desentendimentoS persistiam.

Alguns elementos chegados de Jerusalém complica­ram ainda mais a situação. Os menos rigorosos falavam da autoridade absoluta dos Apóstolos galileus. Comen­tava-se, à sorrelfa, que a palavra de Paulo e Barnabé, por muito inspirada que fosse nas lições do Evangelho, não era bastantemente autorizada para falar em nome de Jesus.

A igreja de Antioquia oscilava numa posição de imensa perplexidade. Perdera o sentido de unidade que a caracterizava, dos primórdios. Cada qual doutrinava do ponto de vista pessoal. Os gentios eram tratados com zombarias; organizavam-se movimentos a favor da circuncisão.

Fortemente impressionados com a situação, Paulo e Barnabé combinam um recurso extremo. Deliberam convidar Simão Pedro para uma visita pessoal à insti­tuição de Antioquia.

Conhecendo-lhe o espírito liberto de preconceitos religiosos, os dois companheiros endereçam-lhe longa missiva, explicando que os trabalhos do Evangelho precisavam dos seus bons ofícios, insis­tindo pela sua atuação prestigiosa.

O portador entregou a carta, cuidadosamente, e, com grande surpresa para os cristãos antioquenos, o ex-pes­cador de Cafarnaum chegou à cidade, evidenciando gran­de alegria, em razão do período de repouso físico que se lhe deparava naquela excursão.

Paulo e Barnabé não cabiam em si de contentes. Acompanhando Simão, viera João Marcos que não aban­donara, de todo, as atividades evangélicas. O grupo viveu lindas horas de confidências íntimas, a propósito das viagens missionárias, relatadas inteligentemente pelo ex-rabino, e relativamente aos fatos que se desenrolavam em Jerusalém, desde a morte do filho de Zebedeu, con­tados por Simão Pedro, com singular colorido.

Depois de bem informado da situação religiosa em Antioquia, o ex-pescador acrescentava:

— Em Jerusalém, nossas lutas são as mesmas. De um lado a igreja cheia de necessitados, todos os dias; de outro as perseguições sem tréguas. No centro de todas as atividades, permanece Tiago com as mais rís­pidas exigências. Às vezes, sou tentado a lutar para restabelecer a liberdade dos princípios do Mestre; mas, como proceder? Quando a tempestade religiosa ameaça destruir o patrimônio que conseguimos oferecer aos aflitos do mundo, o farisaísmo esbarra na observância rigorosa do companheiro e é obrigado a paralisar a ação criminosa, encetada desde muito tempo. Se tra­balhar por suprimir-lhe a influência, estarei precipi­tando a instituição de Jerusalém no abismo da destruição pelas tormentas políticas da grande cidade. E o pro­grama do Cristo? e os necessitados? seria justo preju­dicarmos os mais desfavorecidos por causa de um ponto de vista pessoal?

E ante a atenção profunda de Paulo e Barnabé, o bondoso companheiro continuava:

— Sabemos que Jesus não deixou uma solução di­reta ao problema dos incircuncisos, mas ensinou que não será pela carne que atingiremos o Reino, e sim pelo raciocínio e pelo coração. Conhecendo, porém, a atuação do Evangelho na alma popular, o farisaísmo autoritário não nos perde de vista e tudo envida por exterminar a árvore do Evangelho, que vem desabrochando entre os simples e os pacíficos. É indispensável, pois, todo o cuidado de nossa parte, a fim de não causarmos pre­juízos, de qualquer natureza, à planta divina.

Os companheiros faziam largos gestos de aprovação. Revelando sua imensa capacidade para nortear uma idéia e congraçar os numerosos prosélitos em divergência, Simão Pedro tinha uma palavra adequada para cada situação, um esclarecimento justo para o problema mais singelo.

A comunidade antioquiana regozijava-se. Os gen­tios não ocultavam o júbilo que lhes ia nalma. O gene­roso Apóstolo a todos visitava pessoalmente, sem distin­ção ou preferência.

Antepunha sempre um bom sorriso às apreensões dos amigos que receavam a alimentação “impura” e costumava perguntar onde estavam as subs­tâncias que não fossem abençoadas por Deus. Paulo acompanhava-lhe os passos sem dissimular íntima satis­fação.

Num louvável esforço de congraçamento, o Após­tolo dos gentios fazia questão de levá-lo a todos os lugares onde houvesse irmãos perturbados pelas idéias da circuncisão obrigatória. Estabeleceu-se, rapidamente, notável movimento de confiança e uniformidade de opi­nião. Todos os confrades exultavam de contentamento.

Eis, porém, que chegam de Jerusalém três emissá­rios de Tiago. Trazem cartas para Simão, que os recebe com muitas demonstrações de estima. Daí por diante, modifica-se o ambiente. O ex-pescador de Cafarnaum, tão dado à simplicidade e à independência em Cristo Jesus, retrai-se imediatamente. Não mais atende aos convites dos incircuncisos. As festividades íntimas e carinhosas, organizadas em sua honra, já não contam com a sua presença alegre e amiga. Na igreja, modificou as mínimas atitudes. Sempre em companhia dos mensa­geiros de Jerusalém, que nunca o deixavam, parecia austero e triste, jamais se referindo à liberdade que o Evangelho outorgara à consciência humana.

Paulo observou a transformação, tomado de pro­fundo desgosto. Para o seu espírito habituado, de modo irrestrito, à liberdade de opinião, o fato era chocante e doloroso.

Agravara-o a circunstância de partir justa­mente de um crente como Simão, altamente categorizado e respeitável em todos os sentidos. Como interpretar aquele procedimento em completo desacordo com o que se esperava? Ponderando a grandeza da sua tarefa junto dos gentios, a menor pergunta dos amigos, nesse par­ticular, deixava-o confuso. Na sua paixão pelas atitudes francas, não era dos trabalhadores que conseguem espe­rar. E após duas semanas de expectação ansiosa, dese­joso de proporcionar uma satisfação aos numerosos elementos incircuncisos de Antioquia, convidado a falar na tribuna para os companheiros, começou por exaltar a emancipação religiosa do mundo, desde a vinda de Jesus­-Cristo.

Passou em revista as generosas demonstrações que o Mestre dera aos publicanos e aos pecadores. Pedro ouvia-o, assombrado com tanta erudição e recurso de hermenêutica para ensinar aos ouvintes os princípios mais difíceis, Os mensageiros de Tiago estavam igualmente surpreendidos, a assembléia ouvia o orador aten­tamente.

Em dado instante, o tecelão de Tarso olhou fixa-mente para o Apóstolo galileu e exclamou:

—        Irmãos, defendendo o nosso sentimento de uni­ficação em Jesus, não posso disfarçar nosso desgosto em face dos últimos acontecimentos. Quero referir-me à atitude do nosso hóspede muito amado, Simão Pedro, a quem deveríamos chamar “mestre”, se esse título não coubesse de fato e de direito ao nosso Salvador. (1)

A surpresa foi grande e o espanto geral. O Após­tolo de Jerusalém tambêm estava surpreso, mas parecia muito calmo. Os emissários de Tiago revelavam profun­do mal-estar. Barnabé estava lívido. E Paulo prosseguia sobranceiro:

—        Simão tem personificado para nós um exemplo vivo. O Mestre no-lo deixou como rocha de fé imortal. No seu coração generoso temos depositado as mais vastas esperanças.

Como interpretar seu procedimento, afastan­do-se dos irmãos incircuncisos, desde a chegada dos mensageiros de Jerusalém? Antes disso, comparecia aos nos­sos serões íntimos, comia do pão de nossas mesas. Se assim procuro esclarecer a questão, abertamente, não é pelo desejo de escandalizar a quem quer que seja, mas porque só acredito num Evangelho livre de todos os preconceitos errôneos do mundo, considerando que a palavra do Cristo não está algemada aos interesses inferiores do sacerdócio, de qualquer natureza.

 

(1) As observações de Paulo na Epístola aos Gálatas (capítulo 2º, versículos 11 e 14) referem-se a um fato anterior à reunião dos dis­cípulos. — (Nota de Emmanuel)

 

O ambiente carregara-se de nervosismo. Os gentios de Antioquia fitavam o orador, enternecidos e gratos. Os simpatizantes do farisaísmo, ao contrário, não es­condiam seu rancor, em face daquela coragem quase audaciosa. Nesse instante, de olhos inflamados por sen­timentos indefiníveis, Barnabé tomou a palavra, enquanto o orador fazia uma pausa, e considerou:

— Paulo, sou dos que lamentam tua atitude neste passo. Com que direito poderás atacar a vida pura do continuador de Cristo Jesus?

Isso, inquiria-o ele em tom altamente comovedor, com a voz embargada de lágrimas. Paulo e Pedro eram os seus melhores e mais caros amigos.

Longe de se impressionar com a pergunta, o orador respondeu com a mesma franqueza:

— Temos, sim, um direito: — o de viver com a verdade, o de abominar a hipocrisia, e, o que é mais sagrado — o de salvar o nome de Simão das arremetidas farisaicas, cujas sinuosidades conheço, por constituírem o báratro escuro de onde pude sair para as claridades do Evangelho da redenção.

A palestra do ex-rabino continuou rude e franca. De quando em quando, Barnabé surgia com um aparte, tornando a contenda mais remida.

Entretanto, em todo o curso da discussão, a figura de Pedro era a mais impressionante pela augusta sere­nidade do semblante tranqüilo.

Naqueles rápidos instantes, o Apóstolo galileu con­siderou a sublimidade da sua tarefa no campo de batalha espiritual, pelas vitórias do Evangelho. De um lado es­tava Tiago, cumprindo elevada missão junto do judaísmo; de suas atitudes conservadoras surgiam incidentes felizes para a manutenção da igreja de Jerusalém, erguida como um ponto inicial para a cristianização do mundo; de outro lado estava a figura poderosa de Paulo, o amigo desassombrado dos gentios, na execução de uma ta­refa sublime; de seus atos heróicos, derivava toda uma torrente de iluminação para os povos idólatras. Qual o maior a seus olhos de companheiro que convivera com o Mestre e dele recebera as mais altas lições? Naquela hora, o ex-pescador rogou a Jesus lhe concedesse a inspiração necessária para a fiel observância dos seus deveres. Sentiu o espinho da missão cravado em pleno peito, impossibilitado de se justificar com a só inten­cionalidade de seus atos, a menos que provocasse maior escândalo para a instituição cristã, que mal alvorecia no mundo. De olhos úmidos, enquanto Paulo e Bar­nabé se debatiam, teve a impressão de ver novamente o Senhor, no dia do Calvário. Ninguém o compreendera. Nem mesmo os discípulos amados. Em seguida, pareceu vê-lo expirante na cruz do martírio. Uma força oculta conduzia-o a ponderar o madeiro com atenção. A cruz do Cristo parecia-lhe, agora, um símbolo de perfeito equilíbrio. Uma linha horizontal e uma linha vertical, justa­postas, formavam figuras absolutamente retas. Sim, o instrumento do suplício enviava-lhe uma silenciosa men­sagem.

Era preciso ser justo, sem parcialidade ou falsa inclinação, O Mestre amara a todos, indistintamente. Repartira os bens eternos com todas as criaturas. Ao seu olhar compassivo e magnânimo, gentios e judeus eram irmãos. Experimentava, agora, singular acuidade para examinar conscienciosamente as circunstâncias. Devia amar a Tiago pelo seu cuidado generoso com os israeli­tas, bem como a Paulo de Tarso pela sua dedicação extraordinária a todos quantos não conheciam a idéia do Deus justo.

O ex-pescador de Cafarnaum notou que a maioria da assembléia lhe dirigia curiosos olhares. Os compa­nheiros de Jerusalém deixavam perceber cólera íntima, na extrema palidez do rosto. Todos pareciam convocá-lo à discussão. Barnabé tinha os olhos vermelhos de chorar e Paulo parecia cada vez mais franco, verberando a hipocrisia com a sua lógica fulminante. O Apóstolo preferiria o silêncio, de modo a não perturbar a fé ardente de quantos se arrebanhavam na igreja sob as luzes do Evangelho; mediu a extensão da sua respon­sabilidade naquele minuto inesquecível. Encolerizar-se seria negar os valores do Cristo e perder suas obras; inclinar-se para Tiago seria a parcialidade; dar abso­luta razão aos argumentos de Paulo, não seria justo. Procurou arregimentar na mente os ensinamentos do Mestre e lembrou a inolvidável sentença: — o que dese­jasse ser o maior, fosse o servo de todos. Esse pre­ceito proporcionou-lhe imenso consolo e grande força espiritual.

A polêmica ia cada vez mais ardida. Extremavam­-se os partidos. A assembléia estava repleta de cochichos abafados. Era natural prever uma franca explosão.

Simão Pedro levantou-se. A fisionomia estava se­rena, mas os olhos estavam orvalhados de lágrimas que não chegavam a correr.

Valendo-se de uma pausa mais longa, ergueu a VOZ que logo apaziguou o tumulto:

— Irmãos! — disse nobremente — muito tenho errado neste mundo. Não é segredo para ninguém que cheguei a negar o Mestre no instante mais doloroso do Evangelho. Tenho medido a misericórdia do Senhor pela profundidade do abismo de minhas fraquezas. Se errei entre os irmãos muito amados de Antioquia, peço perdão de minhas faltas. Submeto-me ao vosso julga­mento e rogo a todos que se submetam ao julgamento do Altíssimo.

A estupefação foi geral. Compreendendo o efeito, o ex-pescador concluiu a justificativa, dizendo:

— Reconhecida a extensão das minhas necessida­des espirituais e recomendando-me às vossas preces, passemos, irmãos, aos comentários do Evangelho de hoje.

A assistência estava assombrada com o desfecho imprevisto. Esperava-se que Simão Pedro fizesse um longo discurso em represália. Ninguém conseguia reco­brar-se da surpresa.

O Evangelho deveria ser comentado pelo Apóstolo galileu, mediante combinação prévia, mas o ex-pescador, antes de sentar-se de novo, exclamou mui­to sereno:

— Peço ao nosso irmão Paulo de Tarso o obséquio de consultar e comentar as anotações de Levi.

       Não obstante o constrangimento natural, o ex-rabino considerou o elevado alcance daquele pedido, renovou num ápice todos os sentimentos extremistas do coração ardente e, num formoso improviso, falou da leitura dos pergaminhos da Boa Nova.

A atitude ponderada de Simão Pedro salvara a igreja nascente. Considerando os esforços de Paulo e de Tiago, no seu justo valor, evitara o escândalo e o tu­multo no recinto do santuário. À custa de sua abnegação fraternal, o incidente passou quase inapercebido na história da cristandade primitiva, e nem mesmo a referên­cia leve de Paulo na epístola aos Gálatas, a despeito da forma rígida, expressional do tempo, pode dar idéia do perigo iminente de escândalo que pairou sobre a institui­ção cristã, naquele dia memorável.

A reunião terminou sem novos atritos. Simão apro­ximou-se de Paulo e felicitou-o pela beleza e eloqüência do discurso. Fez questão de voltar ao incidente para versá-lo com referências amistosas. O problema do gen­tilismo, dizia ele, merecia, de fato, muito interesse.

Como deserdar das luzes do Cristo o que havia nascido dis­tante das comunidades judaicas, se o próprio Mestre afir­mara que os discípulos chegariam do Ocidente e do Oriente?

A palestra suave e generosa reaproximou Paulo e Barnabé, enquanto o ex-pescador discorria intencionalmente, acalmando os ânimos.

O ex-doutor da Lei continuou a defender sua tese com argumentação sólida. Constrangido a princípio, em face da benevolência do galileu expandiu-se naturalmen­te, readquirindo a serenidade íntima. O problema era complexo. Transportar o Evangelho para o judaísmo não seria asfixiar-lhe as possibilidades divinas? — per­guntava Paulo, firmando seu ponto de vista. Mas, e o esforço milenário dos judeus? — interrogava Pedro, advertindo que, a seu ver, se Jesus afirmara sua missão como o exato cumprimento da Lei, não era possível afas­tar-se a nova da antiga revelação. Proceder de outro modo seria arrancar do tronco vigoroso o galho verde­jante, destinado a frutescer.

Examinando aqueles argumentos ponderosos, Paulo de Tarso lembrou, então, que seria razoável promover em Jerusalém uma assembléia dos correligionários mais dedicados, para ventilar o assunto com maior ampli­tude. Os resultados, a seu ver, seriam benéficos, por apresentarem uma norma justa de ação, sem margem a sofismas tão de gosto e hábito farisaicos.

Como alguém que se sentisse muito alegre por en­contrar a chave de um problema difícil, Simão Pedro anuiu de bom grado à proposta, assegurando interes­sar-se para que a reunião se fizesse quanto antes. Íntimamente, considerou que seria ótima oportunidade para os discípulos de Antioquia observarem as dificuldades crescentes em Jerusalém.

À noite, todos os irmãos compareceram à igreja para as despedidas de Simão e para as preces habituais. Pedro orou com santificado fervor e a comunidade sen­tiu-se envolvida em benéficas vibrações de paz.

O incidente a todos deixara tal ou qual perplexi­dade, mas, as atitudes prudentes e afáveis do pescador conseguiram manter a coesão geral em torno do Evan­gelho, para continuação das tarefas santificantes.

Depois de observar a plena reconciliação de Paulo e Barnabé, Simão Pedro regressou a Jerusalém com os mensageiros de Tiago.

Em Antioquia, a situação continuou instável. As dis­cussões estéreis prosseguiam acesas.

A influência judai­zante combatia a gentilidade e os cristãos livres opunham resistência formal ao convencionalismo preconceituoso. O ex-rabino, entretanto, não descansava. Convocou reu­niões, nas quais esclareceu as finalidades da assembléia que Simão lhes prometera em Jerusalém, na primeira oportunidade. Combatente ativo, multiplicou as energias próprias na sustentação da independência do Cristianis­mo e prometeu publicamente que traria cartas da igreja dos Apóstolos galileus, que garantissem a posição dos gentios na doutrina consoladora de Jesus, alijando-se as imposições absurdas, no caso da circuncisão.

Suas providências e promessas acendiam novas lutas. Os observadores rigorosos dos preceitos antigos duvida­vam de semelhantes concessões por parte de Jerusalém.

Paulo não desanimou. Íntimamente, idealizava sua chegada à igreja dos Apóstolos, passava em revista, na imaginação superexcitada, toda a argumentação poderosa a empregar, e via-se vencedor na questão que se deli­neava a seus olhos como de essencial importância para o futuro do Evangelho. Procuraria mostrar a elevada capacidade dos gentios para o serviço de Jesus. Contaria os êxitos obtidos na longa excursão de mais de quatro anos, através das regiões pobres e quase desconhecidas, onde a gentilidade havia recebido as notícias do Mestre com intenso júbilo e compreensão muito mais elevada que a dos seus irmãos de raça. Alargando os projetos generosos, deliberou levar em sua companhia o jovem Tito, que, embora oriundo das fileiras pagãs e não obs­tante contar vinte anos incompletos, representava na igreja de Antioquia uma das mais lúcidas inteligências a serviço do Senhor. Desde a vinda de Tarso, Tito afei­çoara-se-lhe como um irmão generoso. Notando-lhe a índole laboriosa, Paulo ensinara-lhe o ofício de tapeceiro e fora ele o seu substituto na tenda humilde, por todo o tempo que durou a primeira missão. O rapaz seria um expoente do poder renovador do Evangelho. Certamente, quando falasse na reunião, surpreenderia os mais doutos com os seus argumentos de alto teor exegético.

Acariciando esperanças, Paulo de Tarso tomou todas as providências para que o êxito de seus planos não falhasse.

Ao fim de quatro meses, um emissário de Jerusalém trazia a esperada notificação de Pedro, referente à assem­bléia. Coadjuvado pela operosidade de Barnabé, o ex-rabino acelerou as providências indispensáveis. Na vés­pera de partir, subiu à tribuna e renovou a promessa das concessões esperadas pelo gentilismo, insensível ao sorriso irônico que alguns israelitas disfarçavam caute­losamente.

Na manhã imediata, a pequena caravana partiu. Compunham-na Paulo e Barnabé, Tito e mais dois irmãos, que os acompanhavam em caráter de auxiliares.

Fizeram uma viagem vagarosa, escalando em todas as aldeias, para as pregações da Boa Nova, disseminando curas e consolações.

Depois de muitos dias, chegaram a Jerusalém, onde foram recebidos por Simão, com inexcedível contentamento. Em companhia de João, o generoso Apóstolo ofereceu-lhes fraternal acolhida. Ficaram todos no de­partamento em que se localizavam numerosos necessita­dos e doentes. Paulo e Barnabé examinaram as modifica­ções introduzidas na casa.

Outros pavilhões, embora humildes, estendiam-se além, cobrindo não pequena área.

— Os serviços aumentaram — explicava Simão, bon­dosamente —; os enfermos, que nos batem às portas, multiplicam-se todos os dias. Foi preciso construir novas dependências.

A fileira de catres parecia não ter fim. Aleijados e velhinhos distraíam-se ao sol, entre as árvores amigas do quintal.

Paulo estava admirado com a amplitude das obras. Daí a pouco, Tiago e outros companheiros vinham sau­dar os irmãos da instituição antioquense. O ex-rabino fixou o Apóstolo que chefiava as pretensões do judaísmo. O filho de Alfeu aparecia-lhe, agora, radicalmente trans­formado. Suas feições eram de um “mestre de Israel”, com todas as características indefiníveis dos hábitos farisaicos. Não sorria. Os olhos deixavam perceber uma presunção de superioridade que raiava pela indiferença. Seus gestos eram medidos como os de um sacerdote do Templo, nos atos cerimoniais. O tecelão de Tarso tirou suas ilações íntimas e esperou a noite em que se inicia­riam as discussões preparatórias. À claridade de algumas tochas, sentavam-se em torno de extensa mesa diversas personagens que Paulo não conhecia. Eram novos coope­radores da igreja de Jerusalém, explicava Pedro, com bondade. O ex-rabino e Barnabé não tiveram boa im­pressão, à primeira vista. Os desconhecidos assemelha­vam-se a figuras do Sinédrio, na sua posição hierárquica e convencional.

Chegados ao recinto, o convertido de Damasco expe­rimentou sua primeira decepção.

Observando que os representantes de Antioquia se faziam acompanhar por um jovem, Tiago adiantou-se e perguntou:

— Irmãos, é justo saibamos quem é o rapaz que trazeis a este cenáculo discreto. Nossa preocupação é fundamentada nos preceitos da tradição que manda exa­minar a procedência da juventude, a fim de que os ser­viços de Deus não sejam perturbados.

—        Este é o nosso valoroso colaborador de Antioquia — explicou Paulo, entre orgulhoso e satisfeito —, cha­ma-se Tito e representa uma de nossas grandes esperan­ças na seara de Jesus-Cristo.

O         Apóstolo fixou-o sem surpresa e tornou a per­guntar:

—        É filho do povo eleito?

—        É descendente de gentios — afirmou o ex-rabino, quase com altivez.

—        Circuncidado? — interrogou o filho de Alfeu cio­samente.

—        Não.

Este não, de Paulo, foi dito com tal ou qual enfado. As exigências de Tiago enervavam-no. Ouvindo a nega­tiva, o Apóstolo galileu esclareceu em tom firme:

—        Penso, então, que não será justo admiti-lo na assembléia, visto não ter ainda cumprido todos os pre­ceitos.

—        Apelamos para Simão Pedro — disse Paulo, con­victo. — Tito é representante de nossa comunidade.

O         ex-pescador de Cafarnaum estava lívido. Colocado entre os dois grandes representantes, do judaísmo e da gentilidade, tinha que decidir crestamento o impasse inesperado.

Como sua intervenção direta demorasse alguns mi­nutos, o tecelão tarsense continuou:

—        Aliás, a reunião deverá resolver estas questões palpitantes, a fim de que se estabeleçam os direitos legí­timos dos gentios.

Simão, porém, conhecendo ambos os contendores, deu-se pressa em opinar, exclamando em tom conciliador:

— Sim, o assunto será objeto de nosso atencioso exame na assembléia. — E dirigindo intencionalmente o olhar ao ex-rabino, prosseguia explicando: — Apelas para mim e aceito o recurso; no entanto, devemos estu­dar a objeção de Tiago mais detidamente. Trata-se de um chefe dedicado desta casa e não seria justo despre­zar-lhe os préstimos. De fato, o conselho discutirá esses casos, mas isso significa que o assunto ainda não está resolvido. Proponho, então, que o irmão Tito seja cir­cuncidado amanhã, para que participe dos debates com a inspiração superior que lhe conheço. E tão-só com essa providência os horizontes ficarão necessariamente aclarados, para tranqüilidade de todos os discípulos do Evangelho.

A sutileza do argumento removeu os empecilhos. Se não agradou a Paulo, satisfez a maioria e, regres­sando o jovem de Antioquia para o interior da casa, a assembléia começou pelas discussões preliminares. O ex-rabino estava taciturno e abatido. A atitude de Tiago, os novos elementos estranhos ao Evangelho, que teriam de votar na reunião, o gesto conciliador de Simão Pedro, desgostavam-no profundamente. Aquela imposição no caso de Tito figurava-se-lhe um crime. Tinha ímpetos de regressar a Antioquia, acusar de hipócritas e “sepul­cros caiados” os irmãos judaizantes. Mas, as cartas de emancipação que havia prometido aos companheiros da gentilidade? Não seria mais conveniente recalcar seus melindres feridos por amor aos irmãos de ideal? Não seria mais justo aguardar deliberações definitivas e hu­milhar-se? A lembrança de que os amigos contavam com as suas promessas acalmou-o. Fundamente desapontado, o convertido de Damasco acompanhou atento os primei­ros debates. As questões iniciais davam idéia das gran­des modificações que procuravam introduzir no Evangelho do Mestre.

Um dos irmãos presentes chegava a ponderar que os gentios deviam ser considerados como o “gado” do povo de Deus: bárbaros que importava submeter àforça, a fim de serem empregados nos trabalhos mais pesados dos escolhidos. Outro indagava se os pagãos eram semelhantes aos outros homens convertidos a Moi­sés ou a Jesus. Um velho de feições rígidas chegava ao despautério de afiançar que o homem só vingava completar-se depois de circunciso. À margem da gen­tilidade, outros temas fúteis vinham à balha. Houve quem lembrasse que a assembléia devia regular os de­veres concernentes aos alimentos impuros, bem como sobre o processo mais adequado à ablução das mãos. Tiago argumentava e discorria como profundo conhece­dor de todos os preceitos. Pedro ouvia, com grande serenidade. Nunca respondia quando a tese assumia o caráter de conversação, e aguardava momento oportuno para manifestar-se. Somente tomou atitude mais enér­gica, quando um dos componentes do conselho pediu para que o Evangelho de Jesus fosse incorporado ao livro dos profetas, ficando subordinado à Lei de Moisés para todos os efeitos. Foi a primeira vez que Paulo de Tarso notou o ex-pescador intransigente e quase rude, explicando o absurdo de semelhante sugestão.

Os trabalhos foram paralisados alta noite, em fase de pura preparação. Tiago recolheu os pergaminhos com anotações, orou de joelhos e a assembléia disper­sou-se para nova reunião no dia imediato.

Simão procurou a companhia de Paulo e Barnabé, para dirigir-se aos aposentos de repouso.

O         tecelão de Tarso estava consternado. A circunci­são de Tito surgia-lhe como derrota dos seus princípios intransigentes. Não se conformava, fazendo sentir ao ex-pescador a extensão de suas contrariedades.

—        Mas que vem a ser tão pequena concessão — interrogava o Apóstolo de Cafarnaum, sempre afável — em face do que pretendemos realizar? Precisamos de ambien­te pacífico para esclarecer o problema da obrigatorie­dade da circuncisão. Não firmaste compromisso com o gentilismo de Antioquia?

Paulo recordou a promessa que fizera aos irmãos e concordou:

—        Sim, é verdade.

—        Reconheçamos, pois, a necessidade de muita cal­ma para chegar às soluções precisas.

As dificuldades, neste sentido, não prevalecem tão-só para a igreja antio­quiana. As comunidades de Cesaréia, de Jope, bem como de outras regiões, encontram-se atormentadas por esses casos transcendentes. Bem sabemos que todas as ceri­mônias externas são de evidente inutilidade para a alma; mas, tendo em vista os princípios respeitáveis do judaís­mo, não podemos declarar guerra de morte às suas tra­dições, de um momento para outro. Será justo lutar com muita prudência sem ofender rudemente a ninguém.

O         ex-rabino escutou as admoestações do Apóstolo e, recordando as lutas a que ele próprio assistira no am­biente farisaico, pôs-se a meditar silenciosamente.

Mais alguns passos e atingiram a sala transformada em dormitório de Pedro e João. Entraram. Enquanto Barnabé e o filho de Zebedeu se entregavam a animada palestra, Paulo sentou-se ao lado do ex-pescador, mer­gulhando-se em profundos pensamentos.

Depois de alguns instantes, o ex-doutor da Lei, sain­do da sua abstração, chamou Pedro, murmurando:

—        Custa-me concordar com a circuncisão de Tito, mas não vejo outro recurso.

Atraídos por aquela confissão, Barnabé e João pu­seram-se também a ouvi-lo atentamente.

—        Mas, curvando-me à providência — continuou com inexcedível franqueza —, não posso deixar de reco­nhecer no fato uma das mais altas demonstrações de fingimento. Concordarei naquilo que não aceito de modo algum. Quase me arrependo de ter assumido compro­missos com os nossos amigos de Antioquia; não supunha que a política abominável das sinagogas houvesse invadido totalmente a igreja de Jerusalém.

O         filho de Zebedeu fixou no convertido de Damasco os olhos muito lúcidos, ao passo que Simão respondia serenamente:

—        A situação é, de fato, muito delicada. Principal­mente depois do sacrifício de alguns companheiros mais amados e prestimosos, as dificuldades religiosas em Je­rusalém multiplicam-se todos os dias.

E vagueando o olhar pelo aposento, como se qui­sesse traduzir fielmente o seu pensamento. continuou:

— Quando se agravou a situação, cogitei da possi­bilidade de me transferir para outra comunidade; em seguida, pensei em aceitar a luta e reagir; mas, uma noite, tão bela como esta, orava eu neste quarto, quando percebi a presença de alguém que se aproximava devagarinho. Eu estava de joelhos quando a porta se abriu com imensa surpresa para mim.

Era o Mestre! Seu rosto era o mesmo dos formosos dias de Tiberíades. Fitou-me grave e terno, e falou: — “Pedro, atende aos “filhos do Calvário”, antes de pensar nos teus caprichos!” A maravilhosa visão durou um minuto, mas, logo após, pus-me a recordar os velhinhos, os necessitados, os igno­rantes e doentes que nos batem à porta. O Senhor reco­mendava-me atenção para os portadores da cruz. Desde então, não desejei mais que servi-los.

O         Apóstolo tinha os olhos úmidos e Paulo sentia-se bastante impressionado, pois lembrava que ouvira a ex­pressão “filhos do Calvário” dos lábios espirituais de Abigail, quando da sua gloriosa visão, no silêncio da noite, ao aproximar-se de Tarso.

—        Com efeito, grande é a luta — concordou o con­vertido de Damasco, parecendo mais tranqüilo.

E mostrando-se convicto da necessidade de exami­nar o realismo da vida comum, não obstante a beleza das prodigiosas manifestações do plano invisível, voltou a dizer:

—        Entretanto, precisamos encontrar um meio de libertar as verdades evangélicas do convencionalismo hu­mano. Qual a razão principal da preponderância farisaica na igreja de Jerusalém?

Simão Pedro esclareceu sem rebuços:

—        As maiores dificuldades giram em torno da ques­tão monetária. Esta casa alimenta mais de cem pessoas, diariamente, além dos serviços de assistência aos enfer­mos, aos órfãos e aos desamparados. Para a manuten­ção dos trabalhos são indispensáveis muita coragem e muita fé, porque as dívidas contraídas com os socorredo­res da cidade são inevitáveis.

—        Mas os doentes — interrogou Paulo, atencioso — não trabalham depois de melhorados?

       — Sim — explicou o Apóstolo —, organizei serviços de plantação para os restabelecidos e impossibilitados de se ausentarem logo de Jerusalém. Com isso, a casa não tem necessidade de comprar hortaliças e frutas. Quanto aos melhorados, vão tomando o encargo de enfermeiros dos mais desfavorecidos da saúde. Essa providência permitiu a dispensa de dois homens remunerados, que nos auxiliavam na assistência aos loucos incuráveis ou de cura mais difícil. Como vês, estes detalhes não foram esquecidos e mesmo assim a igreja está onerada de despesa e dívidas que só a cooperação do judaísmo pode atenuar ou desfazer.

Paulo compreendeu que Pedro tinha razão. No en­tanto, ansioso de proporcionar independência aos esfor­ços dos irmãos de ideal, considerou:

—        Advirto, então, que precisamos instalar aqui ele­mentos de serviço que habilitem a casa a viver de re­cursos próprios. Os órfãos, os velhos e os homens apro­veitáveis poderão encontrar atividades além dos trabalhos agrícolas e produzir alguma coisa para a renda indispen­sável. Cada qual trabalharia de conformidade com as próprias forças, sob a direção dos irmãos mais experimentados. A produção do serviço garantiria a manuten­ção geral.

Como sabemos, onde há trabalho há riqueza, e onde há cooperação há paz. É o único recurso para emancipar a igreja de Jerusalém das imposições do fari­saísmo, cujas artimanhas conheço desde o princípio de minha vida.

Pedro e João estavam maravilhados. A idéia de Paulo era excelente. Vinha ao encontro de suas preocupa­ções ansiosas, pelas dificuldades que pareciam não ter fim.

—        O projeto é extraordinário — disse Pedro — e viria resolver grandes problemas de nossa vida.

O         filho de Zebedeu, que tinha os olhos radiantes de júbilo, atacou, por sua vez, o assunto, objetando:

—        Mas, o dinheiro? Onde encontrar os fundos in­dispensáveis ao grandioso empreendimento?...

O         ex-rabino entrou em profunda meditação e escla­receu:

— O Mestre auxiliará nossos bons propósitos. Bar­nabé e eu empreendemos longa excursão a serviço do Evangelho e vivemos, em todo o seu transcurso, a expen­sas do nosso trabalho. Eu tecelão, ele oleiro, em atividade provisória nos lugares onde passamos.

Realizada a primeira experiência, poderíamos voltar agora às mesmas regiões e visitar outras, pedindo recursos para a igreja de Jerusalém. Provaríamos nosso desinteresse pessoal, vivendo à custa de nosso esforço e recolheríamos as dá­divas por toda parte, conscientes de que, se temos traba­lhado pelo Cristo, será justo também pedirmos por amor ao Cristo. A coleta viria estabelecer a liberdade do Evangelho em Jerusalém, porque representaria o material indispensável a edificações definitivas no plano do trabalho remunerador.

Estava esboçado, assim, o programa a que o gene­roso Apóstolo da gentilidade haveria de submeter-se pelo resto de seus dias. No seu desempenho teria de sofrer as mais cruéis acusações; mas, no santuário do seu coração devotado e sincero, Paulo, de par com os grandiosos ser­viços apostólicos, levaria a coleta em favor de Jerusa­lém, até ao fim da sua existência terrestre.

Ouvindo-lhe os planos, Simão levantou-se e abra­çou-o, dizendo comovido:

— Sim, meu amigo, não foi em vão que Jesus te buscou pessoalmente às portas de Damasco.

Fato pouco vulgar na sua vida, Paulo tinha os olhos rasos de pranto. Fitou o ex-pescador de modo signifi­cativo, considerando íntimamente suas dívidas de gra­tidão ao Salvador, e murmurou:

— Não farei mais que o meu dever. Nunca poderei olvidar que Estevão saiu dos catres desta casa, os quais já serviram igualmente a mim próprio.

Todos estavam extremamente sensibilizados. Bar­nabé comentou a idéia com entusiasmo e enriqueceu o plano de numerosos pormenores.

Nessa noite, os dedicados discípulos do Cristo so­nharam com a independência do Evangelho em Jerusa­lém; com a emancipação da igreja, isenta das absurdas imposições da sinagoga.

No dia imediato procedeu-se solenemente à circun­cisão de Tito, sob a direção cuidadosa de Tiago e com a profunda repugnância de Paulo de Tarso.

As assembléias noturnas continuaram por mais de uma semana. Nas primeiras noites, preparando terreno para advogar abertamente a causa da gentilidade, o ex-pescador de Cafarnaum solicitou aos representantes de Antioquia expusessem a impressão das visitas aos pagãos de Chipre, Panfília, Pisídia e Licaônia. Paulo, fundamente contrariado com as exigências aplicadas a Tito, pediu a Barnabé falasse em seu nome.

O         ex-levita de Chipre fez extenso relato de todos os acontecimentos, provocando imensa surpresa a quan­tos lhe ouviam as referências ao extraordinário poder do Evangelho, entre aqueles que ainda não haviam esposado uma crença pura. Em seguida, atendendo ainda a observações de Paulo, Tito falou, profundamente como­vido com a interpretação dos ensinamentos do Cristo e mostrando possuir formosos dons de profecia, fazendo-se admirar pelo próprio Tiago, que o abraçou mais de uma vez.

Ao termo dos trabalhos, discutia-se ainda a obriga­toriedade da circuncisão para os gentios. O ex-rabino seguia os debates, silencioso, admirando o poder de re­sistência e tolerância de Simão Pedro.

Quando o ex-pescador reconheceu que as divergên­cias prosseguiriam indefinidamente, levantou-se e pediu a palavra, fazendo a generosa e sábia exortação de que os Atos dos Apóstolos (capítulo 15º, versículos 7 e 11) fornecem notícia:

—        Irmãos — começou Pedro, enérgico e sereno —, bem sabeis que, de há muito, Deus nos elegeu para que os gentios ouvissem as verdades do Evangelho e cressem no seu Reino.

O Pai, que conhece os corações, deu aos circuncisos e aos incircuncisos a palavra do Espírito Santo. No dia glorioso do Pentecostes as vozes falaram na praça pública de Jerusalém, para os filhos de Israel e dos pagãos. O Todo-Poderoso determinou que as verdades fossem anunciadas indistintamente. Jesus afirmou que os cooperadores do Reino chegariam do Oriente e do Ocidente. Não compreendo tantas contro­vérsias, quando a situação é tão clara aos nossos olhos.

O Mestre exemplificou a necessidade de harmonização constante: palestrava com os doutores do Templo; fre­qüentava a casa dos publicanos; tinha expressão de bom ânimo para todos os que se baldavam de esperança; aceitou o derradeiro suplício entre os ladrões. Por que motivo devemos guardar uma pretensão de isolamento daqueles que experimentam a necessidade maior? Outro argumento que não deveremos esquecer é o da chegada do Evangelho ao mundo, quando já possuíamos a Lei. Se o Mestre no-lo trouxe, amorosamente, com os mais pesados sacrifícios, seria justo enclausurarmo-nos nas tradições convencionais, esquecendo o campo de trabalho? Não mandou o Cristo que pregássemos a Boa Nova a todas as nações? Claro que não poderemos desprezar o patrimônio dos israelitas. Temos de amar nos filhos da Lei, que somos nós, a expressão de profundos sofrimentos e de elevadas experiências que nos chegam ao coração através de quantos precederam o Cristo, na tarefa mi­lenária de preservar a fé no Deus único; mas esse reco­nhecimento deve inclinar nossa alma para o esforço na redenção de todas as criaturas. Abandonar o gentio à própria sorte seria criar duro cativeiro, ao invés de pra­ticar aquele amor que apaga todos os pecados. É pelo fato de muito compreendermos os judeus e de muito esti­marmos os preceitos divinos, que precisamos estabelecer a melhor fraternidade com o gentio, convertendo-o em elemento de frutificação divina. Cremos que Deus nos purifica o coração pela fé e não pelas ordenanças do mundo. Se hoje rendemos graças pelo triunfo glorioso do Evangelho, que instituiu a nossa liberdade, como impor aos novos discípulos um jugo que, intimamente, não podemos suportar? Suponho, então, que a circuncisão não deva constituir ato obrigatório para quantos se con­vertam ao amor de Jesus-Cristo, e creio que só nos sal­varemos pelo favor divino do Mestre, estendido genero­samente a nós e a eles também.

A palavra do Apóstolo caíra na fervura das opiniões como forte jato de água fria. Paulo estava radiante, ao passo que Tiago não conseguia ocultar o desaponta­mento.

A exortação do ex-pescador dava margem a nume­rosas interpretações; se falava no respeito amoroso aos judeus, referia-se também a um jugo que não podia suportar. Ninguém, todavia, ousou negar-lhe a prudên­cia e bom-senso indubitáveis.

Terminada a oração, Pedro rogou a Paulo falasse de suas impressões pessoais, a respeito do gentio. Mais esperançado, o ex-rabino tomou a palavra pela primeira vez, no conselho, e convidando Barnabé ao comentário geral, ambos apelaram para que a assembléia concedesse a necessária independência aos pagãos, no que se referia à circuncisão.

Havia em tudo, agora, uma nota de satisfação geral. As observações de Pedro calaram fundo em todos os companheiros. Foi então que Tiago tomou a pala­vra, e, vendo-se quase só no seu ponto de vista, esclareceu que Simão fora muito bem inspirado no seu apelo; mas pediu três emendas para que a situação ficasse bem esclare­cida. Os pagãos ficavam isentos da circuncisão, mas de­viam assumir o compromisso de fugir da idolatria, evitar a luxúria e abster-se das carnes de animais sufocados.

O Apóstolo dos gentios estava satisfeito. Fora remo­vido o maior obstáculo.

No dia seguinte os trabalhos foram encerrados, la­vrando-se as resoluções em pergaminho. Pedro provi­denciou para que cada irmão levasse consigo uma carta, como prova das deliberações, em virtude da solicitação de Paulo, que desejava exibir o documento como men­sagem de emancipação da gentilidade.

Interpelado pelo ex-pescador, quando se achavam a sós, sobre as impressões pessoais dos trabalhos, o ex-doutor de Jerusalém esclareceu com um sorriso:

— Em suma, estou satisfeito. Ficou resolvido o mais difícil dos problemas. A obrigatoriedade da cir­cuncisão para os gentios representava um crime aos meus olhos.

Quanto às emendas de Tiago, não me impressio­nam, porqüanto a idolatria e a luxúria são atos detes­táveis para a vida particular de cada um; e, quanto às refeições, suponho que todo cristão poderá comer como melhor lhe pareça, desde que os excessos sejam evitados.

Pedro sorriu e explicou ao ex-rabino seus novos planos. Comentou, esperançoso, a idéia da coleta geral em favor da igreja de Jerusalém, e, evidenciando a peculiar prudência, falou preocupado:

— Teu projeto de excursão e propaganda da Boa Nova, procurando angariar alguns recursos para solução de nossos mais sérios encargos, causa-me justa satisfação; entretanto, venho refletindo na situação da igreja antioquena. Pelo que observei de viso, concluo que a instituição necessita de servidores dedicados que se subs­tituam nos trabalhos constantes de cada dia. Tua ausên­cia, ao demais com Barnabé, trará dificuldades, caso não tomemos as providências precisas. Eis por que te ofereço a cooperação de dois companheiros devotados, que me têm substituído aqui nos encargos mais pesados. Trata-se de Silas e Barsabás, dois discípulos amigos da gentilidade e dos princípios liberais. De vez em quando, entram em desacordo com Tiago, como é natural, e, segundo creio, serão ótimos auxiliares do teu programa.

Paulo viu no alvitre a providência que desejava. Junto de Barnabé, que participava da conversação, agra­deceu ao ex-pescador, profundamente sensibilizado. A igreja da Antioquia teria os recursos necessários que os trabalhos evangélicos requeriam. A medida proposta era-lhe muito grata, mesmo porque, desde logo tivera por Silas grande simpatia, presumindo nele um companheiro leal, expedito e dedicado.

Os missionários de Antioquia ainda se demoraram três dias na cidade, após o encerramento do conselho, tempo esse que Barnabé aproveitou para repousar em casa da irmã. Paulo, contudo, declinou do convite de Maria Marcos e permaneceu na igreja, estudando a si­tuação futura, em companhia de Simão Pedro e dos dois novos colaboradores.

Em atmosfera de grande harmonia, os trabalhadores do Evangelho versaram todos os requisitos do projeto.

Fato digno de nota a reclusão de Paulo, junto aos Apóstolos galileus, jamais saindo à rua, para não entrar em contacto com o cenário vivo do seu passado tumul­tuoso.

Finalmente, tudo pronto e ajustado, a missão se dispôs a regressar. Havia em todas as fisionomias um sinal de gratidão e de esperança santificada nos dias do porvir. Verificava-se, no entanto, um detalhe curioso, que é indispensável destacar. Solicitado pela irmã, Bar­nabé dispusera-se a aceitar a contribuição de João Mar­cos, em nova tentativa de adaptação ao serviço do Evangelho. Considerando a boa intenção com que ace­dera aos pedidos da irmã, o ex-levita de Chipre achou desnecessário consultar o companheiro de esforços co­muns. Paulo, porém, não se magoou. Acolheu a resolu­ção de Barnabé, um tanto admirado, abraçou o jovem afetuosamente e esperou que o discípulo de Pedro se pro­nunciasse, quanto ao futuro.

O         grupo, acrescido de Silas, Barsabás e João Mar­cos, pôs-se a caminho para Antioquia, nas melhores disposições de harmonia.

Revezando-se na tarefa de pregação das verdades eternas, anunciavam o Reino de Deus e faziam curas por onde passavam.

Chegados ao destino, com grandes manifestações de júbilo da gentilidade, organizaram o plano colimado para dar-lhe imediata eficiência. Paulo expôs o propósito de voltar às comunidades cristãs já fundadas, estendendo a excursão evangélica por outras regiões onde o Cristia­nismo não fosse conhecido. O plano mereceu aprovação geral. A instituição antioquena ficaria com a cooperação direta de Barsabás e Silas, os dois companheiros devotados que, até ali, haviam constituído duas fortes colunas de trabalho em Jerusalém.

Apresentado o relatório verbal dos esforços em pers­pectiva, Paulo e Barnabé entraram a cogitar das últimas disposições particulares.

—        Agora — disse o ex-levita de Chipre —, espero concordes com o que resolvi relativamente a João.

—        João Marcos? — interrogou Paulo admirado.

—        Sim, desejo levá-lo conosco, a fim de afeiçoá-lo à tarefa.

O         ex-rabino franziu o sobrecenho num gesto muito seu, quando contrariado, e exclamou:

—        Não concordo; teu sobrinho está ainda muito jovem para o cometimento.

—        Entretanto, prometi à minha irmã acolhê-lo em nossos labores.

—        Não pode ser.

Estabeleceu-se entre os dois uma contenda de pala­vras, na qual Barnabé deixava perceber seu descontentamento. O ex-rabino procurava justificar-se, ao passo que o discípulo de Pedro alegava o compromisso assumido e impugnava, com tal ou qual amargura, a atitude do companheiro, O ex-doutor, contudo, não se deixou convencer. A readmissão de João Marcos, dizia, não era justa. Pode­ria falhar novamente, fugir aos compromissos assumidos, desprezar a oportunidade do sacrifício. Lembrava as per­seguições de Antioquia de Pisídia, as enfermidades ine­vitáveis, as dores morais experimentadas em Icônio, o apedrejamento cruel na praça de Listra. Acaso o rapaz estaria preparado, em tão pouco tempo, para compreen­der o alcance de todos esses acontecimentos, em que a alma era compelida a regozijar-se com o testemunho?

Barnabé estava magoado, de olhos úmidos.

—        Afinal, disse em tom comovedor, nenhum desses argumentos me convence e me esclarece, em consciência. Primeiramente, não vejo por que desfazer nossos laços afetivos...

O         ex-rabino não o deixou terminar e concluiu:

—        Isso nunca. Nossa amizade está muito acima destas circunstâncias. Nossos elos são sagrados.

—        Pois bem — acentuou Barnabé —, como inter­pretar, então, tua recusa? Por que negarmos ao rapaz uma nova experiência de trabalho regenerativo? Não será falta de caridade desprezar um ensejo talvez pro­videncial?

Paulo fixou demoradamente o amigo e acrescentou:

—        Minha intuição, neste sentido, é diversa da tua. Quase sempre, Barnabé, a amizade a Deus é incompatí­vel com a amizade ao mundo. Levantando-nos para a execução fiel do dever, as noções do mundo se levantam contra nós. Parecemos maus e ingratos. Mas, ouve-me: ninguém encontrará fechadas as portas da oportunidade, porque é o Todo-Poderoso quem no-las abre. A ocasião é a mesma para todos, mas os campos devem ser dife­rentes. No trabalho propriamente humano, as experiên­cias podem ser renovadas todos os dias. Isso é justo. Mas considero que, no serviço do Pai, se interrompemos a tarefa começada, é sinal de que ainda não temos todas as experiências indispensáveis ao homem completo. Se a criatura ainda não sabe todas as noções mais nobres, relativas à sua vida e deveres terrestres, como consa­grar-se com êxito ao serviço divino? Naturalmente que não podemos ajuizar se este ou aquele já terminou o curso de suas demonstrações humanas e que, de hoje por diante, esteja apto ao serviço do Evangelho, porque, neste particular, cada um se revelará por si. Creio, mes­mo, que teu sobrinho atingirá essa posição, com mais algumas lutas. Nós, entretanto, somos forçados a considerar que não vamos tentar uma experiência, mas um testemunho.

Compreendes a diferença?

Barnabé compreendeu o imenso alcance daquelas razões concisas, irrefutáveis, e calou-se para dizer daí a momentos:

— Tens razão. Desta vez não poderei, portanto, ir contigo.

Paulo sentiu toda a tristeza que transbordava daque­las palavras e, depois de meditar longo tempo, acentuou:

— Não nos entristeçamos. Estou refletindo na pos­sibilidade de tua partida, com João Marcos, para Chipre. Ele encontraria, ali, um campo adequado aos trabalhos que lhe são necessários e, ao mesmo tempo, cuidaria da organização que fundamos na ilha. Dentro deste plano, continuaríamos em cooperação perfeita, mesmo no que se refere à coleta para a igreja de Jerusalém. Desnecessário será dizer da utilidade de tua presença em Nea-Pafos e Salamina. Quanto a mim, tomaria a Silas, inter­nando-me pelo Tauro, e a igreja de Ãntioquia ficará com a cooperação de Barsabás e Tito.

Barnabé ficou contentíssimo. O projeto pareceu-lhe admirável. Paulo continuava, a seus olhos, como o com­panheiro das soluções oportunas.

E dentro de breves dias, a caminho de Chipre, onde serviria a Jesus até que partisse, mais tarde, para Roma, Barnabé foi com o sobrinho para Selêucia, depois de se abraçarem, ele e Paulo, como dois irmãos muito amados, que o Mestre chamava a diferentes destinos.

 

Peregrinações e sacrifícios

Em companhia de Silas, que se harmonizara com as suas aspirações de trabalho, o ex-rabino partiu de Autioquia, internando-se pelas montanhas e atingindo sua cidade natal, depois de enormes dificuldades. Breve, o companheiro indicado por Simão Pedro habituava-se com o seu método de trabalho. Silas era um tempera­mento pacífico, que se enriquecia de notáveis qualidades espirituais, pelo seu devotamento integral ao Divino Mes­tre. Paulo, por sua vez, estava plenamente satisfeito com a sua colaboração. Palmilhando longos e impérvios cami­nhos, alimentavam-se parcamente, quase só de frutas silvestres eventualmente encontradas. O discípulo de Jerusalém, todavia, revelava alegria uniforme em todas as circunstâncias.

Antes de atingir Tarso, pregaram a Boa Nova, no curso mesmo da viagem. Soldados romanos, escravos misérrimos, caravaneiros humildes, receberam de seus lábios as confortadoras notícias de Jesus. E não poucos escreveram, à pressa, uma que outra das anotações de Levi, preferindo as que mais se ajustavam ao seu caso particular. Por esse processo, o Evangelho difundia-se, cada vez mais, enchendo de esperanças os corações.

Na cidade do seu berço, mais senhor das convicções próprias, o tecelão que se consagrara a Jesus espalhou a mancheias os júbilos do Evangelho da Redenção. Muitos admiraram o conterrâneo, cada vez mais singularmente transformado; outros prosseguiram na tarefa ingrata da ironia e do lamentável esquecimento de si mesmos. Paulo, no entanto, sentia-se forte na fé, como nunca. Defrontou a velha casa em que nascera, reviu o sítio ameno onde brincara os primeiros tempos da infância; contemplou o campo de esportes onde guiara sua biga romana; mas exumou as recordações sem lhes sofrer a influência de­pressiva, porque tudo entregava ao Cristo como patrimônio em cuja posse poderia entrar mais tarde, quando houvesse cumprido seu divino mandato.

Depois de breve permanência na capital da Cilícia, Paulo e Silas procuraram alcançar os cumes do Tauro, empreendendo nova etapa da rude peregrinação em co­meço.

Noites ao relento, sacrifícios numerosos, ameaças de malfeitores, perigos sem conta foram enfrentados pelos missionários que, todas as noites, entregavam ao Divino Mestre os resultados da recolta e, pela manhã, rogavam à sua misericórdia não lhes faltasse com a valiosa opor­tunidade de trabalho, por mais dura que fosse a tarefa diária.

Cheios dessa confiança ativa, chegaram a Derbe, onde o ex-rabino abraçou comovidamente os amigos que ali chegara a fazer, após a dolorosa convalescença, quando da primeira excursão.

O Evangelho continuava, a estender seu raio de ação em todos os setores. Profundamente sensibilizado, o con­vertido de Damasco, no desdobramento natural do ser­viço, começou a obter notícias da ação de Timóteo. O jovem filho de Eunice, pelo que lhe informavam, soubera enriquecer, de maneira prodigiosa, os conhecimentos adquiridos. A pequena cristandade de Derbe já lhe devia grandes benefícios. Por mais de uma vez, o novo discípulo ali acorrera em missões ativas. Disseminava curas e con­solações. Seu nome era abençoado de todos. Cheio de júbilo, após o término de suas tarefas naquela cidade pequenina, o ex-rabino demandou Listra, com ansiedade carinhosa.

Lóide o recebeu, bem como a Suas, com a mesma satisfação da primeira vez. Todos queriam notícias de Barnabé, que Paulo não deixava de fornecer, solícito e prazenteiro. Na tarde desse dia, o convertido de Da­masco abraçou Timóteo com imensa alegria a transbor­dar-lhe da alma O rapaz chegava da faina diária junto dos rebanhos. Em breves minutos, Paulo conhecia a extensão dos seus progressos e conquistas espirituais. A comunidade de Listra estava rica de graças. O moço cristão conseguira a renovação de muita gente: dois judeus dos mais influentes na administração pública, destacados entre os que promoveram a lapidação do Apóstolo, eram agora seguidores fiéis da doutrina do Cristo. Cuidava-se da construção de uma igreja, onde os doentes fossem amparados e as crianças abandonadas encontrassem um ninho acolhedor. Paulo regozijou-se.

Naquela mesma noite, houve em Listra grande as­sembléia. O Apóstolo dos gentios encontrou uma atmos­fera carinhosa, que lhe prodigalizava grande conforto. Expôs o objetivo de sua viagem, revelando suas preo­cupações pela difusão do Evangelho e acrescentando o assunto pertinente à igreja de Jerusalém. Como em Derbe, todos os companheiros contribuíram com o pos­sível. Paulo não cabia em si de contentamento, obser­vando o triunfo tangível do esforço de Timóteo nas camadas populares.

Aproveitando sua passagem por Listra, a bondosa Lóide confidenciou-lhe suas necessidades particulares. Ela e Eunice tinham parentes na Grécia, por parte do pai de seu neto, os quais lhes reclamavam a presença pessoal, a fim de que não lhes faltassem com os socorros afetuosos, Os recursos que lhes restavam, em Listra, estavam prestes a esgotar-se.

Por outro lado, desejava que Timóteo se consagrasse ao serviço de Jesus, ilumi­nando o coração e a inteligência. A generosa velhinha e a filha projetavam, então, a mudança definitiva e consultavam o Apóstolo sobre a possibilidade de acei­tar a companhia do rapaz, pelo menos durante algum tempo, não só para que ele adquirisse novos valores no terreno da prática, como também porque isso facilitaria a transferência de todos para lugar tão distante.

Paulo acedeu de bom grado. Aceitaria a cooperação de Timóteo com sincero prazer. O rapaz, a seu turno, conhecendo a decisão, não sabia como traduzir seu pro­fundo reconhecimento, com transportes de alegria.

Nas vésperas da partida, Silas entrou prudentemente no assunto e perguntou ao Apóstolo se não era de bom alvitre operar a circuncisão do moço, a fim de que o judaísmo não perturbasse os labores apostólicos. Em socorro de sua argüição, invocava os obstáculos e lutas acerbas de Jerusalém. Paulo meditou bastante, recordou a necessidade de espalhar o Evangelho sem escândalo para ninguém, e concordou com a medida aventada. Timóteo teria de pregar publicamente. Conviveria com os gentios, mas, maiormente, com os israelitas, senhores das sinagogas e de outros centros, onde a religião era ministrada ao povo. Era justo refletir na providência para que o moço não fosse incomodado em sua com­panhia.

O filho de Eunice obedeceu sem hesitação. Daí a dias, despedindo-se dos irmãos e das generosas mulheres que ficavam a chorar nos votos de paz em Deus, os missionários demandaram Icônio, cheios de coragem in­dômita e do firme propósito de servir a Jesus.

No espírito amoroso de pregação e fraternidade, dilatando o poder do Evangelho redentor sobre as almas e jamais esquecendo o auxílio à igreja de Jerusalém, os discípulos visitaram todas as pequeninas aldeias da Ga­lácia, demorando-se algum tempo em Antioquia de Pisí­dia, onde trabalharam, de algum modo, para se manterem a si mesmos.

Paulo estava satisfeitíssimo. Seus esforços, em com­panhia de Barnabé, não haviam sido improfícuos. Nos lugares mais remotos, quando menos esperava, eis que surgiam notícias das igrejas anteriormente fundadas. Eram benefícios a necessitados, melhoras ou curas de enfermos, consolações aos que se encontravam em ex­tremo desespero. O Apóstolo experimentava o conten­tamento do semeador que defronta as primeiras flores, como radiosas promessas do campo.

Os emissários da Boa Nova atravessaram a Frígia e a Galácia sem perseguições de grande envergadura. O         nome de Jesus era, agora, pronunciado com mais respeito.

O        ex-rabino continuava em franca atividade para a difusão do Evangelho na Ásia, quando, uma noite, após as preces habituais, ouviu uma voz que lhe dizia com amoroso acento:

— Paulo, sigamos adiante .... Levemos a luz do Céu a outras sombras; outros irmãos te esperam no caminho infinito!...

Era Estevão, o amigo de todos os minutos, que, representando o Mestre Divino junto do Apóstolo dos gentios, o concitava à semeadura noutros rumos.

O         valoroso emissário das verdades eternas compre­endeu que o Senhor lhe reservava novos campos a des­bravar. No dia seguinte, informando Silas e Timóteo do sucedido, concluía inspirado:

—        Tenho, assim, que o Mestre me chama a novas tarefas. Ë justo. Aliás, reconheço que estas regiões já receberam a semente divina.

E acentuava depois de uma pausa:

— Desta vez, já não encontramos muitas dificulda­des. Antes, com Barnabé, experimentamos as expulsões, o cárcere, os açoites, o apedrejamento... Agora, porém, nada disso aconteceu. Quer dizer que por aqui já existem bases seguras para a vitória do Cristo. É preciso, por­tanto, caminhar para onde se encontrem os obstáculos e vencê-los, para que o Mestre seja conhecido e glorificado, pois nós estamos numa batalha e é necessário não desprezar as frentes.

Os dois discípulos ouviram e procuraram meditar na grandeza de semelhantes conceitos.

Decorrida uma semana, lá se foram a pé, procurando a Mísia. E contudo, intuitivamente, Paulo percebeu que não seria ainda ali o novo campo de operações. Pensou em se dirigir para a Bitínia, mas a voz que o gene­roso Apóstolo interpretava como sendo a do “Espírito de Jesus” (1), sugeriu-lhe a alteração do trajeto, indu­zindo-o

 

(1) Atos, capítulo 16º, versículo 7. — (Nota de Emmanuel)

 

a descer para Trôade. Chegados ao ponto do destino, acolheram-se cansadíssimos, numa hospedaria modesta. E Paulo, numa visão significativa do espírito, viu um homem da Macedônia, que identificou pelo ves­tuário característico, a acenar-lhe ansiosamente, exclamando: — “Vem e ajuda-nos!” O ex-doutor interpretou o fato como ordenação de Jesus, a respeito de seus novos encargos. Cientificou os companheiros logo pela manhã, não sem ponderar a extrema dificuldade da viagem por mar, baldo que estava de recursos.

—        Entretanto, concluía, creio que o Mestre lá nos facultará o necessário.

Silas e Timóteo calaram-se respeitosoS.

Saindo à rua cheia de sol, pela manhã, eis que o Apóstolo fixa o olhar numa casa de comércio e para lá se dirige com ansiosa alegria. Era Lucas que parecia fazer compras.

O         ex-rabino aproximou-se com os discípulos, e ba­teu-lhe carinhosamente no ombro:

—        Por aqui? — disse Paulo, com grande sorriso.

Abraçaram-se alegremente. O pregador do Evange­lho apresentou ao médico os novos companheiros, falan­do-lhe dos objetivos de sua excursão por aquelas para­gens. Lucas, a seu turno, explicou que, havia dois anos, era encarregado dos serviços médicos, a bordo de grande embarcação ali ancorada, em trânsito para Samotrácia.

Paulo recebeu a informação com profundo interesse. Muito impressionado com o encontro, deu-lhe a conhe­cer a revelação auditiva do roteiro, bem como a vidência da véspera.

E convicto da assistência do Mestre naquele ins­tante, falava com segurança:

— Estou certo de que o Senhor nos envia os recur­sos necessários na tua pessoa. Precisamos transportar-nos à Macedônia, mas estamos sem dinheiro.

— Quanto a isso — respondeu Lucas, com fran­queza —, não te preocupes. Se não tenho fortuna, tenho vencimentos. Seremos companheiros de viagem e tudo pagarei com muita satisfação.

A palestra prosseguiu animada, relatando o antigo hóspede de Antioquia as suas conquistas para Jesus. Nas suas viagens, havia aproveitado todas as oportuni­dades em prol do Evangelho, transmitindo a quantos se lhe aproximavam os tesouros da Boa Nova. Quando con­tou que estava só no mundo, com a partida da genitora para a esfera espiritual, Paulo fez-lhe nova observação, acentuando:

—        Ora, Lucas, se te encontras sem compromissos imediatos, por que não te dedicas inteiramente aos tra­balhos do Mestre Divino?

A pergunta produziu certa emoção no médico, como se valesse por uma revelação. Passada a surpresa, Lucas acrescentou, um tanto indeciso:

—        Sim, mas há que considerar os deveres da pro­fissão..

—        Mas, quem foi Jesus senão o Divino Médico do mundo inteiro? Até agora tens curado corpos, que, de qualquer modo, cedo ou tarde hão de perecer. Tratar do espírito não seria um esforço mais justo? Com isso não quero dizer que se deva desprezar a medicina pro­priamente do mundo; no entanto, essa tarefa ficaria para aqueles que ainda não possuem os valores espiri­tuais que trazes contigo. Sempre acreditei que a me­dicina do corpo é um conjunto de experiências sagradas, de que o homem não poderá prescindir, até que se resolva a fazer a experiência divina e imutável, da cura espi­ritual.

Lucas meditou seriamente nessas palavras e re­plicou:

—        Tens razão.

—        Queres cooperar conosco na evangelização da Macedônia? — interrogou o ex-rabino sentindo-se triun­fante. Irei contigo — concluiu Lucas.

Entre os quatro discípulos do Cristo houve enorme júbilo.

No dia seguinte, a missão navegava para a Samotrácia. Lucas explicou-se como pôde,

Solicitando ao co­mando a permissão de se afastar por um ano dos serviços a seu cargo. E porque apresentasse substituto, conseguiu com facilidade o seu intento.

A bordo, como fazia em toda parte, Paulo aproveitou todos os ensejos para a pregação.

As menores margens eram grandes temas evangélicos no seu raciocínio su­perior, O próprio comandante, romano de boa têmpera, abandonava-se prazerosamente ao gosto de ouvi-lo.

Foi nessas viagens que Paulo de Tarso travou rela­ções com grande círculo de simpatizantes do Evange­lho, conquistando numerosos amigos, citados nas futuras epístolas.

Desembarcados, os missionários, enriquecidos com a cooperação de Lucas, descansaram dois dias em Neápolis, dirigindo-se em seguida para Filipes. Quase às portas da cidade, Paulo sugeriu que Lucas e Timóteo se diri­gissem, por outros caminhos, para Tessalônica, onde os quatro se reuniriam mais tarde. Com esse programa, nem uma aldeia ficaria esquecida e as sementes do Reino de Deus seriam espalhadas nos meios mais simples. A idéia foi aprovada com satisfação.

Lucas não deixou de perguntar se Timóteo era cir­cuncidado. Conhecia as tricas dos judeus e não desejava atritos nas suas tarefas iniciais.

—        Esse problema — esclareceu o Apóstolo dos gen­tios — já foi necessariamente atendido. As duas hu­milhações infligidas a um jovem confrade que levei a Jerusalém, não a conselho da sinagoga, mas a uma reunião da igreja, levaram-me a refletir na situação de Timóteo, que precisará, muitas vezes, dos favores dos israelitas no curso das pregações. Até que Deus opere a circuncisão de tantos corações endurecidos, é indis­pensável saibamos agir com prudência, sem atritos que nos inutilizem os esforços.

Esclarecido o assunto, entraram na cidade onde o médico e o jovem de Listra descansariam um pouco, antes de tomarem o rumo de Tessalônica por estradas diferentes, de modo a multiplicar os frutos da missão.

Hospedaram-se num albergue quase miserável que a população da cidade reservava aos estrangeiros. Depois de três noites ao relento, os amigos de Jesus dirigiram-se à casa de oração, que ficava à margem do rio Gangas. Filipes não possuía sinagoga e o santuário destinado às preces, embora tomasse o titulo de “casa”, não era mais que um recanto ameno da Natureza, rodeado de muros em ruínas.

Ciente da situação religiosa da cidade, Paulo diri­giu-se para lá com os companheiros. Muito surpreendi­dos, entretanto, os missionários não encontraram senão senhoras e meninas em oração. O ex-rabino penetrou resolutamente no círculo feminino e falou dos objetivos do Evangelho, como se estivesse diante de imenso público. As mulheres estavam magnetizadas por sua palavra ardo­rosa e sublime. Enxugavam discretamente as lágrimas que lhes afluiam ao rosto, ao receberem notícias do Mes­tre, e uma delas, chamada Lídia, viúva digna e generosa, aproximou-se dos missionários e, confessando-se conver­tida ao Salvador esperado, oferecia-lhes a própria casa para fundarem a nova igreja.

Paulo de Tarso contemplou-a de olhos úmidos. Es­cutando-lhe a voz desbordante de cristalina sinceridade, recordou que no Oriente, no dia inesquecível do Calvário, só as mulheres haviam acompanhado Jesus no doloroso transe, sendo as primeiras criaturas que o viram na gloriosa ressurreição; e eram ainda elas que, em doce reunião espiritual, vinham receber a palavra do Evangelho no Ocidente, pela primeira vez. Em silenciosa con­templação, o Apóstolo dos gentios fixou o grande número de meninas que se ajoelhavam à sombra carinhosa das árvores. Observando-lhes os trajes muito claros, teve a impressão de que via à sua frente um gracioso bando de pombas muito alvas, prestes a desferir o vôo glorioso dos ensinamentos do Cristo, pelos céus maravilhosos da Europa.

Foi por isso que, contrariamente à expectativa dos companheiros, o enérgico pregador respondeu à Lídia em tom muito afável.

—        AceitamoS vossa hospedagem.

Desde aquele minuto, travou-se entre Paulo de Tarso e sua carinhosa igreja de Filipes a mais formosa amizade.

Lídia, cuja casa era muito abastada, em vista do movimento comercial de púrpuras, acolheu os discípulos do Messias com júbilo indescritível. Enquanto isso, Lucas e Timóteo continuavam a viagem. Silas e o ex-doutor de Jerusalém consagravam-se ao serviço do Evangelho, entre os generosos filipenses.

A cidade singularizava-se por seu espírito romano. Havia nas ruas vários templos dedicados aos deuses an­tigos. E como apenas as mulheres procuravam o recinto da casa de orações, Paulo, com o desassombro que o caracterizava, deliberou fazer pregações do Evangelho na praça pública.

Na mesma época, possuía Filipes uma pitonisa que se celebrizara nas redondezas. Como nas tradições de Delfos, suas palavras eram interpretadas como oráculo infalível. Tratava-se de uma rapariga cujos patrões pro­curaram mercantilizar seus poderes psíquicos. A mediunidade era utilizada por Espíritos menos evoluídos, que se compraziam em dar palpites sobre motivos de ordem temporal. A situação era altamente rendosa para os que a exploravam descaridosamente. Aconteceu que a jovem estava presente à primeira pregação de Paulo, recebida pelo povo com êxito inexcedível. Terminado a exposição evangélica, os missionários observam a moça que, em grandes brados que impressionavam o público, se põe a exclamar:

— Recebei os enviados do Deus Altíssimo!... Eles anunciam a salvação!...

Paulo e Silas ficaram um tanto perplexos; entre­tanto, nada replicaram, conservando o incidente no cora­ção, em atitude discreta. No dia seguinte, porém, repe­tia-se o fato e, durante uma semana, os discípulos do Evangelho ouviram, após as pregações, a entidade que se assenhoreava da jovem, atirando-lhes elogios e títulos pomposos.

O ex-rabino, no entanto, desde a primeira manifes­tação procurara saber quem era a rapariga anônima e ficou conhecendo os antecedentes do caso. Estimulados pelo ganho fácil, os patrões haviam instalado um gabi­nete onde a pitonisa atendia às consultas. Ela, por sua vez, de vítima ia passando a sócia da empresa, que pingues eram os rendimentos. Paulo, que nunca se con­formou com a mercancia dos bens celestes, percebeu o mecanismo oculto dos acontecimentos e, senhor de todos os particulares do assunto, esperou que o visitante do invisível novamente aparecesse.

Assim, terminada a pregação na praça, quando a jovem começou a gritar:

“Recebei os mensageiros da redenção! Não são ho­mens, são anjos do Altíssimo!...” — o convertido de Damasco desceu da tribuna a passos firmes e, aproxi­mando-se da locutora dominada por estranha influência, íntimou a entidade manifestante, em tom imperativo:

—        Espírito perverso, não somos anjos, somos tra­balhadores em luta com as próprias fraquezas, por amor ao Evangelho; em nome de Jesus-Cristo ordeno que te retires para sempre! Proibo-te, em nome do Senhor, esta­beleceres confusão entre as criaturas, incentivando inte­resses mesquinhos do mundo em detrimento dos sagrados interesses de Deus!

Imediatamente, a pobre rapariga recobrou energias e libertou-se da atuação malfazeja.

O         fato provocou enorme admiração popular.

O         próprio Silas que, de algum modo, se comprazia em ouvir as afirmações da pitonisa, interpretando-as como um conforto espiritual, estava boquiaberto.

Quando se viram a sós, quis lhe dissesse Paulo os motivos que o levaram a semelhante atitude, e pergun­tou-lhe:

—        Acaso não falava ela do nome de Deus? Sua pro­paganda não seria para nós valioso auxílio?

O         Apóstolo sorriu e sentenciou:

— Porventura, Silas, poder-se-á na Terra julgar qualquer trabalho antes de concluído?

Aquele Espírito poderia falar em Deus, mas não vinha de Deus. Que fizemos para receber elogios? Dia e noite, estamos lu­tando contra as imperfeições de nossa alma. Jesus man­dou que ensulássemos, a fim de aprendermos duramente. Não ignoras como vivo em batalha com o espinho dos desejos inferiores. Então? Seria justo aceitarmos títulos imerecidos quando o Mestre rejeitou o qualificativo de “bom”? Claro que, se aquele Espírito viesse de Jesus, outras seriam suas palavras. Estimularia nosso esforço, compreendendo nossas fraquezas.

Além do mais, procurei informar-me a respeito da jovem e sei que ela é hoje a chave de grande movimento comercial.

Silas impressionou-se com os esclarecimentos mais que justos. Mas, dando a entender suas dificuldades para os compreender integralmente, acrescentou:

—        Todavia, será o incidente uma lição para não entretermos relações com o plano invisível?

      - Como pudeste chegar a semelhante conclusão? — respondeu o ex-rabino muito admirado.

      - O Cristia­nismo sem o profetismo seria um corpo sem alma. Se fecharmos a porta de comunicação com a esfera do Mestre, como receber seus ensinos? Os sacerdotes são homens, os templos são de pedra. Que seria de nossa tarefa sem as luzes do plano superior? Do solo brota muito alimento, mas, apenas para o corpo; para a nutri­ção do espírito é necessário abrir as possibilidades de nossa alma para o Alto e contar com o amparo divino. Nesse particular, toda a nossa atividade repousa nas dádivas recebidas. Já pensaste no Cristo sem ressurrei­ção e sem intercâmbio com os discípulos? Ninguém poderá fechar as portas que nos comunicam com o Céu.

       O Cristo está vivo e nunca morrerá. Conviveu com os amigos, depois do Calvário, em Jerusalém e na Galiléia; trouxe uma chuva de luz e sabedoria aos cooperadores galileus, no PentecosteS; chamou-me às portas de Damas­co; mandou um emissário para a libertação de Pedro, quando o generoso pescador chorava no cárcere...

A voz de Paulo tinha acentos maravilhosos, nessas profundas evocações. Silas compreendeu e calou-se, de olhos rasos de pranto.

O incidente, entretanto, teria mais vastas reper­cussões, além daquelas que os Apóstolos do Mestre po­deriam esperar. A pitonisa não mais recebeu a visita da entidade que distribuía palpites de toda sorte. Em vão, os consulentes viciados lhe bateram à porta. Ven­do-se privados da renda fácil, os prejudicados fomentaram largo movimento de revolta contra os missionários. Espalhava-se o boato de que Filipes, em virtude da audácia do pregador revolucionário, fora privada da assis­tência dos Espíritos de Deus. Os fanáticos exaltaram-se.

Daí a três dias, Paulo e Silas foram surpreendidos, em plena praça, com um ataque do povo e foram presos a troncos pesadíssimos e flagelados, sem compaixão. Sob os apupos da massa ignorante, submeteram-se, com humil­dade, ao suplício. Quando sangravam sob as varas impie­dosas, houve a intervenção das autoridades e foram então conduzidos ao cárcere, abatidos e cambaleantes. Dentro da noite escura e dolorosa, incapacitados de dormir, pelas dores crudelíssimas, os discípulos de Jesus vigiaram em preces ungidas de luminoso fervor.

Lá fora, rugia a tempestade em trovões terríveis e ventos sibilantes. Filipes inteira parecia abalada em seus alicerces pela tormenta fragorosa. Passava da meia-noite e os dois Apóstolos oravam em voz alta. Os prisioneiros vizinhos, vendo-os em oração, pareciam acompanhá-los, pela ex­pressão do rosto. Paulo contemplou-os, através das gra­des, e, aproximando-se, a custo, começou a pregar o Reino de Deus. Ao comentar a tempestade imprevista que se abatera sobre o ânimo dos discípulos, enquanto Jesus dormia na barca, um fato maravilhoso feriu os olhos dos encarcerados. As portas pesadas das nume­rosas celas se abriram sem ruído. Silas ficou lívido. Paulo compreendeu e saiu ao encontro dos companheiros. Con­tinuou pregando as verdades eternas do Senhor, com entonação impressionante; e vendo umas dezenas de homens de peito hirsuto, barbas longas, fisionomias taciturnas, como se estivessem plenamente esquecidos do mundo, o Apóstolo dos gentios falou, com mais entusias­mo, da missão do Cristo e pediu que ninguém tentasse fugir. Os que se reconhecessem culpados agradecessem ao Pai os benefícios da corrigenda; os que se julgassem ino­centes dessem expansão ao regozijo, porque só os martí­rios do justo podiam salvar o mundo. Esses argumentos de Paulo contiveram toda a estranha e reduzida assem­bléia. Ninguém procurou alcançar a porta de saída, senão que, reunindo-se em torno daquele desconhecido, que tão bem sabia falar aos desgraçados, muitos se ajoelharam em pranto, convertendo-se ao Salvador que ele anunciava com bondade e energia.

Ao alvorecer, amainada a tormenta, levanta-se o carcereiro, perturbado pelo vozerio singular. Vendo as portas abertas e temendo a sua responsabilidade, tenta matar-se, instintivamente. Mas Paulo avança e impos­sibilita-lhe o gesto extremo, explicando-lhe a ocorrência. Todos os encarcerados regressaram humildes ao seu cubículo. Lucano, o carcereiro, converte-se à nova dou­trina. Antes que a claridade diurna invadisse a paisagem, ei-lo que traz aos Apóstolos os socorros de emergência, pensando-lhes as feridas, sensibilizado como nunca. Resi­dindo ali mesmo, conduz os discípulos ao interior domés­tico, manda servir-lhes alimento e vinho reconfortante. Logo nas primeiras horas, os juizes filipenses são infor­mados dos fatos. Cheios de temor, mandam libertar os pregadores; mas, Paulo, desejando oferecer garantias ao serviço cristão que se iniciava na igreja fundada em casa de Lídia, alega sua condição de cidadão roma­no, a fim de infundir mais respeito aos magistrados de Filipes pelas idéias do profeta nazareno. Recusa a ordem de soltura para exigir a presença dos juízes, que comparecem receosos. O Apóstolo anuncia-lhes o Reino de Deus e, exibindo seus títulos, obriga-os a escutar suas dissertações relativamente a Jesus. Fê-los sabedores dos trabalhos evangélicos que alvoreciam na cidade, com a cooperação de Lídia e comentou o direito dos cristãos em toda parte. Os magistrados apresentaram-lhe des­culpas, garantiram a manutenção da paz para a igreja nascente, e, alegando a extensão de suas responsabilida­des perante o povo, rogaram a Paulo e Silas que deixas­sem a cidade, para evitar novos tumultos.

O ex-rabino sentiu-se satisfeito e, voltando à resi­dência da generosa purpureira, em companhia de Silas que lhe reconhecia a fortaleza, sem dissimular o grande espanto, ali demorou alguns dias traçando o programa dos trabalhos da nova sementeira de Jesus. Em seguida, rumou para Tessalônica, escalando em todos os recantos onde houvesse sítios ou aldeias à espera de notícias do Salvador.

Nesse novo centro de lutas, reencontraram Lucas e Timóteo que os aguardavam ansiosos.

Os trabalhos seguiram ativíssimos. Em toda parte, os mesmos choques. Judeus preconceituosos, homens de má-fé, ingratos e indiferentes, conluiavam-se contra o ex-doutor de Jeru­salém e seus devotados companheiros.

Paulo mantinha-se forte e superior nas mínimas refregas. Sobrevinham dissabores, angústias na praça pública, acusações injustas, calúnias cruéis; poderosas ameaças caiam às vezes, inesperadamente, sobre o de­sinteresse divino de suas obras; mas o valoroso discípulo do Senhor prosseguia sempre, sereno e firme através das tormentas, vivendo estritamente do seu trabalho e compelindo os amigos a fazerem o mesmo. Era indis­pensável que Jesus triunfasse nos corações, esse o seu programa primordial. Desatendia a qualquer capricho, sobrepunha essa realidade a quaisquer conveniências e a missão continuava entre dores e obstáculos formidan­dos, mas, segura e vitoriosa em sua divina finalidade.

Depois de incontáveis atritos, com os judeus, em Tessalônica, o ex-rabino resolveu transferir-se para Be­réia. Novos labores, novas dedicações e novos martírios. Os trabalhos missionários, iniciados sempre em paz, con­tinuavam debaixo de lutas extremas.

Os judeus rigorosos, de Tessalônica, não faltaram em Beréia. A cidade movimentou-se contra os discípulos do Evangelho, os ânimos exaltaram-se. Lucas, Timóteo e Silas foram obrigados a afastar-se, perambulando pelas aldeias circunvizinhas. Paulo foi preso e açoitado.

A custa de grandes sacrifícios dos simpatizantes de Jesus, deram-lhe liberdade, com a condição de retirar-Se dentro do menor prazo possível.

O ex-rabino acedeu prontamente. Sabia que atrás de si e através de esforços insanos, sempre ficaria uma igreja doméstica, que se alargaria ao infinito, bafejada pela misericórdia do Mestre, a fim de proclamar a exce­lência da Boa Nova.

Era noite, quando os irmãos de ideal conseguiram trazê-lo do cárcere para a via pública.

O Apóstolo dos gentios procurou informar-se sobre os companheiros e soube das vicissitudes que os assoberbavam. Lembrou que Silas e Lucas estavam doentes, que Timóteo neces­sitava encontrar-se com a sua mãe no porto de Corinto. Era melhor proporcionar aos amigos uma trégua no vórtice das atividades renovadoras. Não seria justo re­quisitar-lhes a cooperação, quando ele próprio experi­mentava a necessidade de repouso.

Os irmãos de Beréia insistiam pela sua partida. Era uma temeridade provocar novos atritos. Foi aí que Paulo deliberou pôr em prática um velho plano. Visitaria Atenas. satisfazendo um velho ideal. Muitas vezes, im­pressionado com a cultura helênica recebida em Tarso, alimentara o desejo de conhecer-lhe os monumentos glo­riosos, os templos soberbos, o espírito sábio e livre. Quando ainda muito jovem, cogitara dessa visita à cidade magnificente dos velhos deuses, disposto a levar-lhe os tesouros da fé, guardados em Jerusalém: procuraria as assembléias cultas e independentes e falaria de Moisés e da sua Lei. Pensando, agora, na realização de tal projeto, considerava que levaria luzes muito mais ricas ao espírito ateniense: anunciaria à cidade famosa o Evangelho de Jesus. Certo, quando falasse na praça pública, não encon­traria os tumultos, tão do gosto israelita. Antegozava o prazer de falar à multidão afeiçoada ao trato das coisas espirituais. Indubitavelmente, os filósofos esperavam no­tícias do Cristo, com impaciência. Teriam nas suas pre­gações evangélicas o verdadeiro sentido da vida.

Embalado por essas esperanças, o Apóstolo dos gen­tios decidiu a viagem, acompanhado de alguns amigos mais fiéis. Estes, porém, regressaram das portas ate­nienses, deixando-o completamente só.

Paulo penetrou na cidade possuído de grande emo­ção. Atenas ainda ostentava numerosas belezas exte­riores. Os monumentos de suas tradições veneráveis estavam quase todos de pé; brandas harmonias vibravam no céu muito azul; vales risonhos atapetavam-se de flores e perfumes. A grande alma do Apóstolo extasiou-se na contemplação da Natureza. Recordou os nobres filósofos que haviam respirado aqueles mesmos ares, reme-morou os fastos gloriosos do passado ateniense, sentin­do-se transportado a maravilhoso santuário. Entretanto, o transeunte das ruas não lhe podia ver a alma, e de Paulo viram apenas o corpo esquálido que as priva­ções tornaram exótico. Muita gente o tomou por men­digo, farrapo humano da grande massa que chegava, em fluxo contínuo, do Oriente desamparado. O emissário do Evangelho, no entusiasmo de suas generosas intenções, não podia perceber as desencontradas opiniões a seu res­peito. Cheio de bom ânimo, resolveu pregar na praça pública, na tarde desse mesmo dia. Ansiava por defron­tar o espírito ateniense, tal como já defrontara as grandezas materiais da cidade.

Seu esforço, no entanto, foi seguido de penoso in­sucesso. Inúmeras pessoas aproximaram-se no primeiro momento; mas, quando lhe ouviram as referências a Jesus e à ressurreição, grande parte dos assistentes rom­peu em gargalhadas de irritante ironia.

— Será este filósofo um novo deus? — perguntava um transeunte com ar de pilhéria.

—        Está muito desajeitado para tanto — respondia o interpelado.

—        Onde já se viu um deus assim? — indagava ainda outro. — Vede como lhe tremem as mãos! Parece doente e enfraquecido. A barba é selvagem e está cheio de cicatrizes!...

—        E louco — exclamava um ancião com vastas presunções de sabedoria. — Não percamos tempo.

Paulo tudo ouvia, notou a fila dos retirantes, indi­ferentes e endurecidos, e experimentou muito frio no coração. Atenas estava muito distanciada das suas espe­ranças. A assembléia popular deu-lhe a impressão de enorme ajuntamento de criaturas envenenadas de falsa cultura. Por mais de uma semana perseverou nas pre­gações públicas sem resultados apreciáveis. Ninguém se interessou por Jesus e, muito menos, em oferecer-lhe hospedagem por uma simples questão de simpatia. Era a primeira vez, desde que iniciara a tarefa missionária, que se retiraria de uma cidade sem fundar uma igreja. Nas aldeias mais rústicas, sempre aparecia alguém que copiava as anotações de Levi para começar o labor evángélico no recinto humilde de um lar. Em Atenas ninguém apareceu interessado na leitura dos textos evan­gélicos. Entretanto, foi tanta a insistência de Paulo junto de algumas personagens em evidência, que o leva­ram ao Areópago, para tomar contacto com os homens mais sábios e inteligentes da época.

Os componentes do nobre conclave receberam-lhe a visita com mais curiosidade que interesse.

O Apóstolo ali penetrara por mercê de Dionisio, homem culto e generoso, que lhe atendera às solicita­ções, a fim de observar até onde ia a sua coragem na apresentação da doutrina desconhecida.

Paulo começou impressionando o auditório aristocrá­tico, referindo-se ao “Deus desconhecido”, homenageado nos altares atenienses. Sua palavra vibrante apresentava cambiantes singulares; as imagens eram muito mais ricas e formosas que as registradas pelo autor dos Atos. O próprio Dionisio estava admirado. O Apóstolo revela­va-se-lhe muito diferente de quando o vira na praça pú­blica. Falava com alta nobreza, com ênfase; as imagens revestiam-se de extraordinário colorido; mas, quando, co­meçou a discorrer sobre a ressurreição, houve forte e prolongado murmúrio. As galerias riam a bandeiras des­pregadas, choviam remoques acerados. A aristocracia Intelectual ateniense não podia ceder nos seus preconcei­tos científicos.

Os mais irônicos deixavam o recinto com gargalha­das sarcásticas, enquanto os mais comedidos, em consi­deração a Dionisio, aproximaram-se do Apóstolo com sorrisos intraduzíveis, declarando que o ouviriam de bom grado por outra vez, quando não se desse ao luxo de comentar assuntos de ficção.

Paulo ficou, naturalmente, desolado. No momento, não podia chegar à conclusão de que a falsa cultura encontrará sempre, na sabedoria verdadeira, uma expres­são de coisas imaginárias e sem sentido. A atitude do Areópago não lhe permitiu chegar ao fim. Em breve o    suntuoso recinto estava quase silencioso, O Apóstolo, então, lembrou que seria preferível arrostar o tumulto dos judeus. Onde houvesse luta, haveria sempre frutos a colher. As discussões e os atritos, em muitos casos, representavam o revolvimento da terra espiritual para a semente divina. Ali, entretanto, encontrara a frieza da pedra. O mármore das colunas soberbas deu-lhe imediatamente a imagem da situação. A cultura ateniense era bela e bem cuidada, impressionava pelo exterior magnífico, mas estava fria, com a rigidez da morte intelectual.

Apenas Dionisio e uma jovem senhora de nome Dâmaris e alguns serviçais do palácio permaneciam a seu lado, extremamente constrangidos, embora propensos à causa.

Não obstante o desapontamento, Paulo de Tarso fez o possível por evitar a nuvem de tristeza que pairava sobre todos, a começar por ele próprio. Ensaiou um sor­riso de conformação e tentou algo de bom-humor. Dio­nisio consolidou, ainda mais, sua admiração pelas pode­rosas qualidades espirituais daquele homem de aparência franzina, tão enérgico e cioso de suas convicções.

Antes de se retirarem, Paulo falou na possibilidade de fundar uma igreja, ainda que fosse num humilde santuário doméstico, onde se estudasse e comentasse o Evangelho. Mas os presentes não regatearam excusati­vas e pretextos. Dionisio afirmou que lamentava não lhe ser possível amparar o cometimento, dada a angústia de tempo; Dâmaris alegou os impedimentos domésticos; os servos do Areópago, um por um, manifestaram difi­culdades extremas. Um era muito pobre, outro muito incompreendido, e Paulo recebeu todas as recusas man­tendo singular expressão fisionômica, como o semeador que se vê rodeado somente de pedras e espinheiros.

O Apóstolo dos gentios despediu-se com serenidade; mas, tão logo se viu só, chorou copiosamente. A que atribuir o doloroso insucesso? Não pôde compreender, imediatamente, que Atenas padecia de seculares intoxica­ções intelectuais, e, supondo-se desamparado pelas ener­gias do plano superior, o ex-rabino deu expansão a terrível desalento. Não se conformava com a frieza geral, mesmo porque, a nova doutrina não lhe pertencia e sim ao Cristo. Quando não chorava refletindo na própria dor, chorava pelo Mestre, julgando que ele, Paulo, não havia correspondido à expectativa do Salvador.

Por muitos dias, não conseguiu desfazer a nuvem de preocupações que lhe ensombrou a alma. Todavia, encomendava-se a Jesus e suplicava-lhe proteção para os grandes deveres da sua vida.

Nesse bulcão de incertezas e amarguras, surgiu o socorro do Mestre ao Apóstolo bem-amado. Timóteo che­gara de Corinto, carregado de boas notícias.

 

As Epístolas

O         neto de Lóide trazia ao ex-rabino muitas novida­des confortadoras. Já havia instalado as duas senhoras na cidade, era portador de alguns recursos e falou-lhe do desenvolvimento da doutrina cristã, na velha capital da Acaia. Uma notícia lhe foi, sobretudo, particularmente grata. É que Timóteo mencionava o encontro com Áquila e Prisca. Aquelas duas criaturas, que se lhe fizeram solidárias nas dificuldades extremas do deserto, tra­balhavam agora em Corinto pela glória do Senhor. Ale­grou-se íntima, profundamente. Além das muitas razões pessoais que o chamavam a Acaia, isto é — às recorda­ções indeléveis de Jeziel e Abigail, o desejo de abraçar o casal amigo foi também uma circunstância decisiva da sua partida imediata.

O         valoroso pregador saía de Atenas assaz abatido. O insucesso, em face da cultura grega, compelia-lhe o espírito indagador aos mais torturantes raciocínios. Co­meçava a compreender a razão por que o Mestre preferira a Galiléia com os seus cooperadores humildes e simples de coração; entendia melhor o motivo da palavra franca do Cristo sobre a salvação, e decifrava a sua predileção natural pelos desamparados da sorte.

Timóteo notou-lhe a tristeza singular e debalde pro­curou convencê-lo da conveniência de seguir por mar, em vista das facilidades no Pireu. Ele fez questão de ir a pé, visitando os sítios isolados no percurso.

—        Mas, sinto-vos doente — objetava o discípulo, tentando dissuadi-lo. — Não será mais razoável des­cansardes?

Lembrando os desalentos experimentados, o Após­tolo acentuava:

—        Enquanto pudermos trabalhar, há que esmarmos no trabalho um elixir para todos os males. Além do mais, é justo aproveitar o tempo e a oportunidade.

—        Julgo, entretanto — justificava o jovem amigo —, que poderíeis adiar um pouco...

—        Adiar por quê? — redarguiu o ex-rabino fazendo o possível por desfazer as mágoas de Atenas. — Sempre tive a convicção de que Deus tem pressa do serviço bem feito. Se isso constitui uma característica de nossas mes­quinhas atividades nas coisas deste mundo, como adiar ou faltar com os deveres sagrados de nossa alma, para com o Todo-Poderoso?

O         rapaz ponderou no acerto daquelas alegações e calou-se. Assim venceram mais de sessenta quilômetros, com alguns dias de marcha e intervalos de prédicas. Nessa tarefa entre gente simples, Paulo de Tarso sen­tia-se mais feliz. Os homens do campo receberam a Boa Nova com maior alegria e compreensão. Pequenas igrejas domésticas foram fundadas, não longe do golfo de Saron.

Enlevado pelas recordações cariciosas de Abigail, atravessou o istmo e penetrou na cidade, movimentada e rumorosa. Abraçou Lóide e Eunice numa casinha do porto de Cencréia e logo procurou avistar-se com os ve­lhos amigos do “oásis de Dan”.

Os três abraçaram-se, tomados de infinito júbilo. Áquila e a companheira falaram longamente dos servi­ços evangélicos, aos quais haviam sido chamados pela misericórdia de Jesus. De olhos brilhantes, como se houvessem vencido grande batalha, contaram ao Apóstolo haverem realizado o ideal de permanecer em Roma, algum tempo. Como tecelões humildes, habitaram um velho casarão em ruínas, no Trastevere, fazendo as pri­meiras pregações do Evangelho no ambiente mesmo das pompas cesarianas. Os judeus haviam declarado guerra franca aos novos princípios. Desde o primeiro rebate da Boa Nova, iniciaram-se grandes tormentas no “ghetto” do bairro pobre e desprotegido. Prisca relatou como um grupo de israelitas apaixonados lhe assaltara o aposen­to, à noite, com instrumentos de flagelação e castigo. O marido demorava-se na oficina, e assim não pôde ela esquivar-se aos impiedosos açoites. Só muito tarde, fora socorrida por Áquila, que a encontrou banhada em san­gue. O Apóstolo tarsense exultava. Contou aos amigos, por sua vez, as dores experimentadas em toda parte, pelo nome de Jesus-Cristo. Aqueles martírios em comum eram apresentados como favores de Jesus, como títulos eternos da sua glória. Quem ama inquieta-se por dar alguma coisa e os que amavam o Mestre sentiam-se extre­mamente venturosos em sofrerem algo por devotamento ao seu nome.

Desejoso de reintegrar-se na serenidade de suas realizações ativas, olvidando a frieza ateniense, Paulo comentou o projeto da fundação de uma igreja em Co­rinto, ao que Áquila e sua mulher se prontificaram para todos os serviços. Aceitando-lhes o oferecimento gene­roso, o ex-rabino passou a residir em sua companhia, ocupando-se diariamente do seu oficio.

Corinto era uma sugestão permanente de lembran­ças queridas do seu coração. Sem comunicar aos amigos as reminiscências que lhe borbulhavam na alma sensível, procurou rever os sítios a que Abigail se referia sempre com enlevo. Com extremo cuidado, localizou a região onde deveria ter existido o pequeno sítio do velho Jo­chedeb, agora incorporado ao imenso acervo de proprie­dades dos herdeiros de Licínio Minúcio; contemplou a velha prisão de onde a noiva pudera evadir-se para salvar-se dos celerados que lhe haviam assassinado o pai e escravizado o irmão; meditou no porto de Cencréia, de onde Abigail partira, um dia, para conquistar-lhe o cora­ção, sob os desígnios superiores e imutáveis do Eterno.

Paulo entregou-se, de corpo e alma, ao serviço rude. O labor ativo das mãos proporcionara-lhe brando esque­cimento de Atenas. Compreendendo a necessidade de um período de calma, induzira Lucas a descansar em Trôade, já que Timóteo e Silas haviam encontrado trabalho como caravaneiros.

Antes, porém, de retomar as pregações, começaram a chegar a Corinto emissários de Tessalônica, de Beréia e outros pontos da Macedônia, onde fundara suas bem-amadas igrejas.

As comunidades tinham assuntos ur­gentes, que requeriam delicadas intervenções da sua parte. Sentindo-se em dificuldades para tudo atender com a presteza devida, chamou novamente Silas e Timó­teo para a cooperação indispensável. Ambos, valendo-se das oportunidades da profissão, poderiam contribuir de maneira eficaz na solução dos problemas imprevistos.

Confortado pelo concurso dos amigos, Paulo falou, pela primeira vez, na sinagoga. Sua palavra vibrante logrou êxito extraordinário. Judeus e gregos falaram de Jesus com entusiasmo. O tecelão foi convidado a pros­seguir nos comentários religiosos, semanalmente.

Mas tão logo começou a abordar as relações existentes entre a Lei e o Evangelho, repontaram os atritos. Os israelitas não toleravam a superioridade de Jesus sobre Moisés, e, se consideravam o Cristo como profeta da raça, não o suportavam como Salvador. Paulo aceitou os desafios, mas não conseguiu demover corações tão endurecidos; as discussões prolongaram-se por vários sábados, segui­damente, até que, um dia, quando o verbo inflamado e sincero do Apóstolo zurzia os erros farisaicos com ve­emência, um dos chefes principais da sinagoga íntima-o com aspereza:

— Cala-te, palrador impudente! A sinagoga tem to­lerado teus embustes por verdadeiros prodígios de paciên­cia; mas, em nome da maioria, ordeno que te retires para sempre! Não queremos saber do teu Salvador, exter­minado como os cães da cruz!.

Ouvindo expressões tão desrespeitosas ao Cristo, o Apóstolo sentiu os olhos úmidos. Refletiu maduramente na situação e replicou:

— Até agora, em Corinto, procurei dizer a verdade ao povo escolhido por Deus para o sagrado depósito da unidade divina; mas, se não a aceitais desde hoje, procurarei­ curarei os gentios!... Caiam sobre vôs mesmos as injus­tas maldições lançadas sobre o nome de Jesus-Cristo!...

Alguns israelitas mais exaltados quiseram agredi-lo, provocando tumulto. Mas um romano de nome Tito Justo, presente à assembléia, e que, desde a primeira pregação, sentira-se fortemente atraído pela poderosa personalidade do Apóstolo, aproximou-se e estendeu-lhe os braços de amigo. Paulo pôde sair incólume do recinto, enca­minhando-se para a residência do benfeitor, que pôs à sua disposição todos os elementos imprescindíveis à organi­zação de uma igreja ativa.

O tecelão estava jubiloso. Era a primeira conquista para uma fundação definitiva.

Tito Justo, com auxílio de todos os simpatizantes do Evangelho, adquiriu uma casa para início dos serviços religiosos. Áquila e Prisca foram os principais colabo­radores, além de Lóide e Eunice, para que se executas­sem os programas traçados por Paulo, de acordo com a querida organização de Antioquia.

A igreja de Corinto começou, então, a produzir os frutos mais ricos de espiritualidade. A cidade era famosa por sua devassidão, mas o Apóstolo costumava dizer que dos pântanos nasciam, muitas vezes, os lírios mais belos; e como onde há muito pecado há muito remorso e sofri­mento, em identidade de circunstâncias, a comunidade cresceu, dia a dia, reunindo os crentes mais diversos, que chegavam ansiosos por abandonar aquela Babilônia incendiada pelos vícios.

Com a presença de Paulo, a igreja de Corinto adqui­ria singular importância e quase diariamente chegavam emissários das- regiões mais afastadas. Eram portadores da Galácia a pedirem providências para as igrejas de Pisídia; companheiros de Icônio, de Listra, de Tessalô­nica, de Chipre, de Jerusalém. Em torno do Apóstolo formou-se um pequeno colégio de seguidores, de com­panheiros permanentes, que com ele cooperavam nos mínimos trabalhos. Paulo, entretanto, preocupava-se in­tensamente. Os assuntos eram urgentes quão variados. Não podia olvidar o trabalho de sua manutenção; assu­mira compromissos pesados com os irmãos de Corinto; devia estar atento à coleta destinada a Jerusalém; não podia desprezar as comunidades anteriormente fundadas. Aos poucos, compreendeu que não bastava enviar emis­sários. Os pedidos choviam de todos os sítios por onde pe­rambulara, levando as alvíssaras da Boa Nova. Os irmãos, carinhosos e confiantes, contavam com a sua sinceridade e dedicação, compelindo-o a lutar intensamente.

Sentindo-se incapaz de atender a todas as necessi­dades ao mesmo tempo, o abnegado discípulo do Evan­gelho, valendo-se, um dia, do silêncio da noite, quando a igreja se encontrava deserta, rogou a Jesus, com lágri­mas nos olhos, não lhe faltasse com os socorros necessá­rios ao cumprimento integral da tarefa.

Terminada a oração, sentiu-se envolvido em branda claridade. Teve a impressão nítida de que recebia a visita do Senhor. Genuflexo, experimentando indizível comoção, ouviu uma advertência serena e carinhosa:

—        Não temas — dizia a voz —, prossegue ensinando a verdade e não te cales, porque estou contigo.

O         Apóstolo deu curso às lágrimas que lhe fluíam do coração. Aquele cuidado amoroso de Jesus, aquela exortação em resposta ao seu apelo, penetravam-lhe a alma em ondas cariciosas. A alegria do momento dava para compensar todas as dores e padecimentos do cami­nho. Desejoso de aproveitar a sagrada inspiração do momento que fugia, pensou nas dificuldades para aten­der às várias igrejas fraternas. Tanto bastou para que a voz dulcíssima continuasse:

—        Não te atormentes com as necessidades do ser­viço. É natural que não possas assistir pessoalmente a todos, ao mesmo tempo. Mas é possível a todos satis­fazeres, simultaneamente, pelos poderes do espírito.

Procurou atinar com o sentido justo da frase, mas teve dificuldade íntima de o conseguir.

Entretanto, a voz prosseguia com brandura:

      - Poderás resolver o problema escrevendo a todos os irmãos em meu nome; os de boa-vontade saberão compreender, porque o valor da tarefa não está na pre­sença pessoal do missionário, mas no conteúdo espiritual do seu verbo, da sua exemplificação e da sua vida.

       Doravante, Estevão permanecerá mais conchegado a ti, trans­mitindo-te meus pensamentos, e o trabalho de evangeli­zação poderá ampliar-se em benefício dos sofrimentos e das necessidades do mundo.

O dedicado amigo dos gentios viu que a luz se extinguira; o silêncio voltara a reinar entre as paredes singelas da igreja de Corinto; mas, como se houvera sorvido a água divina das claridades eternas, conservava o Espírito mergulhado em júbilo intraduzível. Recome­çaria o labor com mais afinco, mandaria às comunidades mais distantes as notícias do Cristo.

De fato, logo no dia seguinte, chegaram portadores de Tessalônica com notícias desagradabilíssimas. Os ju­deus haviam conseguido despertar, na igreja, novas e estranhas dúvidas e contendas. Timóteo corroborava com observações pessoais. Reclamavam a presença do Após­tolo com urgência, mas este deliberou pôr em prática o alvitre do Mestre, e recordando que Jesus lhe prome­tera associar Estevão à divina tarefa, julgou não dever atuar por si só e chamou Timóteo e Silas para redigir a primeira de suas famosas epístolas.

Assim começou o movimento dessas cartas imor­tais, cuja essência espiritual provinha da esfera do Cristo, através da contribuição amorosa de Estevão — compa­nheiro abnegado e fiel daquele que se havia arvorado, na mocidade, em primeiro perseguidor do Cristianismo.

Percebendo o elevado espírito de cooperação de todas as obras divinas, Paulo de Tarso nunca procurava escre­ver só; buscava cercar-se, no momento, dos companheiros mais dignos, socorria-se de suas inspirações, consciente de que o mensageiro de Jesus, quando não encontrasse no seu tono sentimental as possibilidades precisas para transmitir os desejos do Senhor, teria nos amigos instru­mentos adequados.

Desde então, as cartas amadas e célebres, tesouro de vibrações de um mundo superior, eram copiadas e senti­das em toda parte. E Paulo continuou a escrever sem­pre, ignorando, contudo, que aqueles documentos sublimes, escritos muitas vezes em hora de angústias extremas, não se destinavam a uma igreja particular, mas à cristandade universal. As epístolas lograram êxito rápido. Os irmãos as disputavam nos rincões mais humildes, por seu conteúdo de consolações, e o próprio Simão Pedro, recebendo as primeiras cópias, em Jerusalém, reuniu a comunidade e, lendo-as, comovido, declarou que as cartas do convertido de Damasco deviam ser interpretadas como cartas do Cristo aos discípulos e seguidores, afirmando, ainda, que elas assinalavam um novo período luminoso na história do Evangelho.

Altamente confortado, o ex-doutor da Lei procurou enriquecer a igreja de Corinto de todas as experiências que trazia da instituição antioquense. Os cristãos da cidade viviam num oceano de júbilos indefiníveis. A igreja possuía seu departamento de assistência aos que necessitavam de pão, de vestuário, de remédios. Vene­randas velhinhas revezavam-se na tarefa santa de aten­der aos mais desfavorecidos. Diariamente, à noite, havia reuniões para comentar uma passagem da vida do Cristo; em seguida à pregação central e ao movimento das ma­nifestações de cada um, todos entravam em silêncio, a fim de ponderar o que recebiam do Céu através do pro­fetismo. Os não habituados ao dom das profecias pos­suíam faculdades curadoras, que eram aproveitadas a favor dos enfermos, em uma sala próxima. O mediunismo evangelizado, dos tempos modernos, é o mesmo profe­tismo das igrejas apostólicas.

Como acontecia, por vezes, em Antioquia, surgiam também ali pequeninas discussões em torno de pontos mais difíceis de interpretação, que Paulo se apressava a acalmar, sem prejuízo da fraternidade edificadora.

Ao fim dos trabalhos de cada noite, uma prece cari­nhosa e sincera assinalava o instante de repouso.

A instituição progredia a olhos vistos. Aliando-se à generosidade de Tito Justo, outros romanos de for­tuna aproximaram-se do Evangelho, enriquecendo a orga­nização de possibilidades novas. Os israelitas pobres encontravam na igreja um lar generoso, onde Deus se lhes manifestava em demonstrações de bondade, ao con­trário das sinagogas, em cujo recinto, em vez de pão para a fome voraz, de bálsamo para as chagas do corpo e da alma, encontravam apenas a rispidez de preceitos tirânicos, nos lábios de sacerdotes sem piedade.

Irritados com o êxito inexcedível do empreendimento de Paulo de Tarso, que se demorava na cidade já por um ano e seis meses, tendo fundado um verdadeiro e perfeito abrigo para os “filhos do Calvário”, os judeus de Corinto tramaram um movimento terrível de perse­guição ao Apóstolo. A sinagoga esvaziava-se. Era ne­cessário extinguir a causa do seu desprestígio social. O ex-rabino de Jerusalém pagaria muito caro a audácia da propaganda do Messias Nazareno em detrimento de Moisés.

Era procônsul da Acaia, com residência em Corinto, um romano generoso e ilustre, que costumava agir sem­pre de acordo com a justiça, em sua vida pública. Irmão de Sêneca, Júnio Gálio era homem de grande bondade e fina educação. O processo iniciado contra o ex-rabino foi às suas mãos, sem que Paulo tivesse a mínima notícia e era tão grande a bagagem de acusações levantadas pelos israelitas, que o administrador foi compelido a determi­nar a prisão do Apóstolo para o inquérito inicial. A sina­goga pediu, com particular empenho, que lhe fosse dele­gada a tarefa de conduzir o acusado ao tribunal. Longe de conhecer o móvel do pedido, o procônsul concedeu a permissão necessária, determinando o comparecimento dos interessados à audiência pública do dia seguinte.

De posse da ordem, os israelitas mais exaltados deli­beraram prender Paulo na véspera, num momento em que o fato pudesse escandalizar toda a comunidade.

A noite, justamente quando o ex-rabino comentava o Evangelho, tomado de profundas inspirações, o grupo armado parou à porta, destacando-se alguns judeus mais eminentes que se dirigiram ao interior.

Paulo ouviu a voz de prisão, com extrema sereni­dade. Outro tanto, porém, não aconteceu com a assem­bléia. Houve grande tumulto no recinto. Alguns moços mais exaltados apagaram as tochas, mas o Apóstolo valoroso, num apelo solene -e comovedor, bradou alto:

—        Irmãos, acaso quereis o Cristo sem testemunho?

 A pergunta ressoou no ambiente, contendo todos os ânimos. Sempre sereno, o ex-rabino ordenou que acen­dessem as luzes e, estendendo os pulsos para os judeus admirados, disse com acento inesquecível:

—        Estou pronto!...

Um componente do grupo, despeitado com aquela superioridade espiritual, avançou e deu-lhe com os açoi­tes em pleno rosto.

Alguns cristãos protestaram, os portadores da ordem de Gálio revidaram com aspereza, mas o prisioneiro, sem demonstrar a mais leve revolta, clamou em voz mais alta:

— Irmãos, regozijemo-nos em Cristo Jesus. Este­jamos tranqüilos e jubilosos porque o Senhor nos julgou dignos!...

      Grande serenidade estabeleceu-se, então, na assem­bléia. Várias mulheres soluçavam baixinho. Áquila e a es­posa dirigiram ao Apóstolo um inolvidável olhar e a pequena caravana demandou o cárcere, na sombra da noite. Atirado ao fundo de uma enxovia úmida, Paulo foi atado ao tronco do suplício e houve de suportar a flagelação dos trinta e nove açoites. Ele próprio estava surpreendido. Sublime paz banhava-lhe o coração de brandos consolos. Não obstante sentir-se sozinho, entre perseguidores cruéis, experimentava nova confiança no Cristo. Nessas disposições, não lhe doíam as vergas­tadas impiedosas; debalde os verdugos espicaçavam-lhe o espírito ardente, com insultos e ironias. Na prova rude e dolorosa, compreendeu, alegremente, que havia atingido a região de paz divina, no mundo interior, que Deus concede a seus filhos depois das lutas acerbas e incessantes por eles mantidas na conquista de si mes­mos. De outras vezes, o amor pela justiça o conduzira a situações apaixonadas, a desejos mal contidos, a polê­micas ríspidas; mas ali, enfrentando os açoites que lhe caíam nos ombros seminus, abrindo sulcos sangrentos, tinha uma lembrança mais viva do Cristo, a impres­são de estar chegando aos seus braços misericordiosos, depois de caminhadas terríveis e ásperas, desde a hora em que havia caído às portas de Damasco, sob uma tempestade de lágrimas e trevas. Submerso em pensa­mentos sublimes, Paulo de Tarso sentiu o seu primeiro grande êxtase. Não mais ouviu os sarcasmos dos algozes inflexíveis, sentiu que sua alma dilatava-se ao infinito, experimentando sagradas emoções de indefinível ventura. Brando sono lhe anestesiou o coração e, somente pela madrugada, voltou a si do caricioso descanso, O sol visi­tava-o alegre, através das grades. O valoroso discípulo do Evangelho levantou-se bem disposto, recompôs as vestes e esperou pacientemente.

Só depois do meio-dia, três soldados desceram ao cárcere das disciplinas judaicas, retirando o prisioneiro para conduzi-lo à presença do procônsul.

Paulo compareceu à barra do tribunal, com imensa serenidade - O recinto estava cheio de israelitas exalta­dos; mas o Apóstolo, notou que a assembléia se com­punha, na maioria, de gregos de fisionomia simpática, muitos deles seus conhecidos pessoais dos trabalhos de assistência da igreja.

Júnio Gálio, muito cioso do seu cargo, sentou-se sob o olhar ansioso dos espectadores cheios de interesse.

O procônsul, de conformidade com a praxe, teria de ouvir as partes em litígio, antes de pronunciar qualquer julgamento, apesar das queixas e acusações exaradas em pergaminho.

Pelos judeus falaria um dos maiores da sinagoga, de nome Sóstenes; mas, como não aparecesse o repre­sentante da igreja de Corinto para a defesa do Apóstolo, a autoridade reclamou o cumprimento da medida sem perda de tempo. Paulo de Tarso, muito surpreendido, rogava íntimamente a Jesus fosse o patrono de sua causa, quando se destacou um homem que se prontificava a depor em nome da Igreja. Era Tito Justo, o romano generoso, que não desprezava o ensejo do testemunho. Verificou-se, então, um fato inesperado. Os gregos da assembléia prorromperam em frenéticos aplausos.

Júnio Gálio determinou que os acusadores inicias­sem as declarações públicas necessárias.

Sóstenes entrou a falar com grande aprovação dos judeus presentes. Acusava Paulo de blasfemo, desertor da Lei, feiticeiro. Referiu-se ao seu passado, acrimonio­samente. Contou que os próprios parentes o haviam abandonado. O procônsul ouvia atento, mas não deixou de manter uma atitude curiosa. Com o indicador da direita comprimia um ouvido, sem atender à estupefação geral. O maioral da sinagoga, no entanto, desconcerta­va-se com aquele gesto. Terminando o libelo apaixo­nado quanto injusto, Sóstenes interrogou o administrador da Acaia, relativamente à sua atitude, que exigia um esclarecimento, a fim de não ser tomada por desconsi­deração.

Gálio, porém, muito calmo, respondeu fazendo hu­morismo:

— Suponho não estar aqui para dar satisfação de meus atos pessoais e sim para atender aos imperativos da justiça. Mas, em obediência ao código da fraterni­dade humana, declaro que, a meu ver, todo administrador ou juiz em causa alheia deverá reservar um ouvido para a acusação e outro para a defesa.

Enquanto os judeus franziam o sobrecenho extre­mamente confundidos, os coríntios riam gostamente. O próprio Paulo achou muita graça na confissão do procônsul, sem poder disfarçar o sorriso bom que lhe ilumi­nou repentinamente a fisionomia.

Passado o incidente humorístico, Tito Justo aproxi­mou-se e falou sucintamente da missão do Apóstolo. Suas palavras obedeciam a largo sopro de inspiração e beleza espiritual. Júnio Gálio, ouvindo a história do convertido de Damasco, dos lábios de um compatrício, mostrou-se muito impressionado e comovido. De quando em vez, os gregos prorrompiam em exclamações de aplauso e contentamento. Os israelitas compreenderam que perdiam terreno de momento a momento.

Ao fim dos trabalhos, o chefe político da Acaia tomou a palavra para concluir que não via crime algum no discípulo do Evangelho; que os judeus deviam, antes de qualquer acusação injusta, examinar a obra gene­rosa da igreja de Corinto, porqüanto, na sua opinião, não havia agravo dos princípios israelitas; que a só controvérsia de palavras não justificava violências, con­cluindo pela frivolidade das acusações e declarando não desejar a função de juiz em assunto daquela natureza.

Cada conclusão formulada era ruidosamente aplau­dida pelos coríntios.

Quando Júnio Gálio declarou que Paulo devia con­siderar-se em plena liberdade, os aplausos atingiram ao delírio. A autoridade recomendou que a retirada se fi­zesse em ordem; mas os gregos aguardaram a descida de Sóstenes, e quando surgiu a figura solene do “mestre” atacaram sem piedade. Estabelecido enorme tumulto na escada longa que separava o Tribunal da via pública, Tito Justo acercou-se aflito do procônsul e pediu que interviesse. Gálio, entretanto, continuando a preparar-se para regressar a casa, dirigiu a Paulo um olhar de simpatia e acrescentou, calmamente:

— Não nos preocupemos. Os judeus estão muito habituados a esses tumultos. Se eu, como juiz, resguardei um ouvido, parece-me que Sóstenes deveria resguardar o

corpo inteiro, na qualidade de acusador.

E demandou o interior do edifício em atitude im­passível. Foi então que Paulo, surgindo no topo da es­cada, bradou:

—        Irmãos, apaziguai-vos por amor ao Cristo!...

A exortação caiu em cheio sobre a turba numerosa e tumultuária. O efeito foi imediato. Cessaram os rumo­res e os impropérios. Os últimos contendores paralisaram os braços inquietos. O convertido de Damasco acorreu pressuroso em socorrer Sóstenes, cujo rosto sangrava. O acusador implacável do dia foi conduzido à sua resi­dência pelos cristãos de Corinto, por atenderem aos ape­los de Paulo, com extremos cuidados.

Grandemente despeitados com o insucesso, os israe­litas da cidade maquinaram novas investidas, mas o Apóstolo, reunindo a comunidade do Evangelho, decla­rou que desejava partir para a Ásia, a fim de atender a insistentes chamados de João (1), na fundação definitiva

 

(1) João iniciou suas atividades na igreja mista de Éfeso, muito cedo, embora não se desligasse de Jerusalém. — (Nota de Emmanuel.)

 

da igreja de Éfeso. Os coríntios protestaram amistosa­mente, procurando retê-lo, mas o ex-rabino expôs com firmeza a conveniência da viagem, contando regressar muito breve. Todos os cooperadores da igreja estavam desolados. Principalmente Febe, notável colaboradora do seu esforço apostólico em Corinto, não conseguia ocultar as lágrimas do coração. O devotado discípulo de Jesus fez ver que a igreja estava fundada, solicitando apenas a continuidade de atenção e carinho dos compa­nheiros. Não seria justo, a seu ver, enfrentar novamente a ira dos israelitas, parecendo-lhe razoável esperar o concurso do tempo para as realizações necessárias.

Dentro de um mês, partiu em demanda de Éfeso, levando consigo Áquila e a esposa, que se dispuseram a acompanhá-lo.

Despedindo-se da cidade, teve o pensamento voltado para o pretérito, para as esperanças de ventura terrestre que os anos haviam absorvido. Visitou os sítios onde Abigail e o irmão haviam brincado na infância, saturou-se de recordações suaves e inesquecíveis e, no porto de Cencréia, lembrando a partida da noiva bem-amada, ra­pou a cabeça, renovando os votos de fidelidade eterna, consoante os costumes populares da época.

Depois de viagem difícil, repleta de incidentes pe­nosos, Paulo e os companheiros chegaram ao ponto des­tinado.

A igreja de Éfeso enfrentava problemas torturantes. João lutava seriamente para que o esforço evangélico não degenerasse em polêmicas estéreis. Mas os tecelões chegados de Corinto deram-lhe mão forte na cooperação imprescindível.

Em meio das acaloradas discussões que houve de manter com os judeus, na sinagoga, o ex-rabino não olvidou certas realizações sentimentais que almejava des­de muito. Com delicadeza extrema, visitou a Mãe de Jesus na sua casinha singela, que dava para o mar. Impressionou-se fortemente com a humildade daquela criatura simples e amorosa, que mais se assemelhava a um anjo vestido de mulher. Paulo de Tarso interes­sou-se pelas suas narrativas caridosas, a respeito da noite do nascimento do Mestre, gravou no íntimo suas divinas impressões e prometeu voltar na primeira opor­tunidade, a fim de recolher os dados indispensáveis ao Evangelho que pretendia escrever para os cristãos do futuro. Maria colocou-se à sua disposição, com grande alegria.

O Apóstolo, entretanto, depois de cooperar algum tempo na consolidação da igreja, considerando que Áquila e Prisca se encontravam bem instalados e satisfeitos, resolveu partir, buscando novos rumos. Debalde os ir­mãos procuraram dissuadi-lo, rogando ficasse na cidade por mais tempo. Prometendo regressar logo que as cir­cunstâncias permitissem, alegou que precisava ir a Jeru­salém, levar a Simão Pedro o fruto da coleta de anos consecutivos nos lugares que percorrera. O filho de Zebedeu, que conhecia o projeto antigo, deu-lhe razão para empreender a viagem sem mais demora.

Como já se encontrassem novamente a seu lado, Silas e Timóteo fizeram-lhe companhia nessa nova ex­cursão.

Através de enormes dificuldades, mas pregando sem­pre a Boa Nova com verdadeiro entusiasmo devocional, chegaram ao porto de Cesaréia, - onde permaneceram alguns dias, instruindo os interessados no conhecimento do Evangelho. Dali, dirigiram-se a pé para Jerusalém, distribuindo consolações e curas, ao longo dos caminhos. Chegados à capital do judaísmo, o ex-pescador de Ca­farnaum recebeu-os com júbilos inexcedíveis. Simão Pe­dro apresentava grande abatimento físico, em virtude das lutas terríveis e incessantes para que a igreja suportasse, sem maiores abalos, as tempestades primitivas; seus olhos, porém, guardavam a mesma serenidade caracte­rística dos discípulos fiéis.

Paulo entregou-lhe, alegremente, a pequena fortuna, cuja aplicação iria assegurar maior independência à ins­tituição de Jerusalém, para o desenvolvimento justo da obra do Cristo.

Pedro agradeceu comovido e abraçou-o com lágrimas. Os pobres, os órfãos, os velhos desampa­rados e os convalescentes teriam doravante uma escola abençoada de trabalho santificante.

Pedro notou que o ex-rabino também estava alque­brado de corpo. Muito magro, muito pálido, cabelos já grisalhos, tudo nele denunciava a intensidade das lutas empenhadas. As mãos e o rosto estavam cheios de ci­catrizes.

O ex-pescador, diante do que via, falou-lhe com en­tusiasmo das suas epístolas, que se espalhavam por todas as igrejas, lidas com avidez; profundamente experimen­tado em problemas de ordem espiritual, alegou a con­vicção de que aquelas cartas provinham de uma inspira­ção direta do Mestre Divino, observação que Paulo de Tarso recebeu comovidíssimo, dada a espontaneidade do companheiro. Além disso — acrescentava Simão praze­rosamente —, não podia haver elemento educativo de tão elevado alcance quanto aquele. Conhecia cristãos da Palestina que guardavam cópias numerosas da mensagem aos tessalonicenses. As igrejas de Jope e Antipátris, por exemplo, comentavam as epístolas, frase por frase.

O ex-rabino sentiu imenso conforto para prosseguir na luta redentora.

Após alguns dias, demandou Antioquia, junto dos discípulos. Descansou algum tempo junto dos compa­nheiros bem-amados, mas sua poderosa capacidade de trabalho não permitia maiores intermitências de repouso.

Nessa época, não passava semana que não recebesse representações de diversas igrejas, dos pontos mais dis­tantes. Antioquia de Pisídia sumariava dificuldades; Icônio reclamava novas visitas; Beréia rogava providên­cias. Corinto carecia esclarecimentos. Colossas insistia por sua presença breve. Paulo de Tarso, valendo-se dos companheiros da ocasião, enviava-lhes letras novas, a todos atendendo com o maior carinho. Em tais cir­cunstâncias, nunca mais o Apóstolo dos gentios esteve só na tarefa evangelizadora. Sempre assistido por dis­cípulos numerosos, suas epístolas, que ficariam para os cristãos do futuro, estão, em sua maioria, repletas de referências pessoais, suaves e doces.

Terminando o estágio em Antioquia, voltou ao berço natal, aí falando das verdades eternas e conseguindo despertar grande número de tarsenses para as realidades do Evangelho.

Em seguida, internou-se de novo pelas alturas do Tauro, visitou as comunidades de toda a Galácia e Frígia, levantando o ânimo dos companheiros de fé, no que empregou elevada percentagem de tempo. Nesse afã incansável e incessante, conseguiu arregimen­tar novos discípulos para Jesus, distribuindo grandes benefícios em todos os recantos iluminados pela sua pa­lavra edificante, porque também ilustrada em fatos.

Em toda parte, lutas sem tréguas, alegrias e dores, angústias e amarguras do mundo, que não chegavam a lhe arrefecer as esperanças nas promessas de Jesus. De um lado, eram os israelitas rigorosos, inimigos ferrenhos e declarados do Salvador; do outro, os cristãos indecisos, vacilando entre as conveniências pessoais e as falsas interpretações, O missionário tarsense, no entanto, conhecendo que o discípulo sincero terá de experimentar as sensações da “porta estreita” todos os dias, nunca se deixou empolgar pelo desânimo, renovando a cada hora o propósito de tudo suportar, agir, fazer e edificar pelo Evangelho, inteiramente entregue a Jesus-Cristo.

Vencidas as lutas indefesas, deliberou regressar a Éfeso, interessado na feitura do Evangelho decalcado nas recordações de Maria.

Não mais encontrou Áquila e Prisca, retornados a Corinto em companhia de um tal Apolo, que se nota­bilizara por sua cultura, entre os recém-convertidos. Embora pretendesse apenas manter algumas conversa­ções mais longas com a filha inesquecível de Nazaré, foi compelido a enfrentar a luta séria com os coopera­dores de João. A sinagoga conseguira grande ascendente político sobre a igreja da cidade, que ameaçava soçobrar. O ex-rabino percebeu o perigo e aceitou a luta, sem reservas. Durante três meses discutiu na sinagoga, em todas as reuniões. A cidade, que se mantinha em dúvidas atrozes, parecia alcançar uma compreensão mais elevada e mais rica de luzes. Multiplicando as curas maravilho­sas, Paulo, um dia, tendo imposto as mãos sobre alguns doentes, foi rodeado por claridade indefinível do mundo espiritual. As vozes santificadas, que se manifestavam em Jerusalém e Antioquia, falaram na praça pública.

       Esse fato teve enorme repercussão e deu maior autori­dade aos argumentos do Apóstolo, em contradita aos judeus.

Em Éfeso não se falava de outra coisa. O ex-rabino fora elevado ao apogeu da consideração, de um dia para outro. Os israelitas perdiam terreno em toda a linha. O tecelão valeu-se do ensejo para lançar raízes evangé­licas mais fundas nos corações. Secundando o esforço de João, procurou instalar na igreja os serviços de assis­tência aos mais desfavorecidos da fortuna. A instituição enriquecia-se de valores espirituais. Compreendendo a importância da organização de Éfeso para toda a Ásia, Paulo de Tarso deliberou prolongar, ali, a sua perma­nência. Vieram discípulos da Macedônia. Áquila e a es­posa tinham regressado de Corinto; Timóteo, Silas e Tito cooperavam ativamente visitando as fundações cristãs já estabelecidas. Assim vigorosamente auxiliado, o generoso Apóstolo multiplicava as curas e os benefícios em nome do Senhor. Trabalhando pela vitória dos princípios do Mestre, fez que muitos abandonassem crendices e supers­tições perigosas, para se entregarem aos braços amorosos do Cristo.

Esse ritmo de trabalho fecundo perdurava há mais de dois anos, quando surgiu um acontecimento de vasta repercussão entre os efésios.

A cidade votava um culto especial à deusa Diana. Pequeninas estátuas, imagens fragmentárias da divin­dade mitológica surgiam em todos os cantos, bem como nos adornos da população. A pregação de Paulo, entre­tanto, modificara as preferências do povo. Quase nin­guém se interessava mais pela aquisição das imagens da deusa. Esse culto, porém, era tão lucrativo que os ourives da época, chefiados por um artífice de nome Demétrio, iniciaram veemente protesto perante as autoridades competentes.

Os prejudicados alegavam que a campanha do Após­tolo aniquilava as melhores tradições populares da cidade notável e florescente. O culto a Diana vinha dos ante­passados e merecia mais respeito; além disso, toda uma classe de homens válidos ficava sem trabalho.

Demétrio movimentou-se, Os ourives reuniram-se e pagaram amotinadores. Sabiam que Paulo falaria no teatro, naquela mesma noite que sucedeu às combina­ções definitivas. Pagos pelos artífices, os maliciosos começaram a espalhar boatos entre os mais crédulos.

Insinuavam que o ex-rabino preparava-se para arrom­bar o templo de Diana, a fim de queimar os objetos do Culto. Acrescentavam que a malta iconoclasta sairia do teatro para executar o projeto Sinistro. Irritaram-se os ânimos. O plano de Demétrio calava fundo na ima­ginação dos mais simplórios. Ao entardecer, grande massa popular postou-se na vasta praça, em atitude expectante. A noite fechou, a multidão crescia sempre. Ao acenderem-se no teatro as primeiras luzes, os ourives acreditaram que o Apóstolo lá estivesse. Com imprecações e gestos ameaçadores, a multidão avançou em furiosa grita, mas somente Gaio e Aristarco, irmãos da Macedônia, ali se encontravam, preparando o ambiente das pregações da noite. Ambos foram presos pelos exal­tados. Verificando a ausência do ex-rabino, a massa inconsciente encaminhou-se para a tenda de Áquila e Prisca. Paulo, no entanto, lá não estava.

A oficina sin­gela do casal cristão foi totalmente desmantelada a golpes impiedosos. Teares quebrados, peças de couro atiradas à rua, furiosamente. Por fim, o casal foi preso, sob os apupos da turba exacerbada.

A notícia espalhou-se com extrema rapidez. A co­luna revolucionária arrebanhava aderentes em todas as ruas, dado o seu caráter festivo. Debalde acorreram soldados para conter a multidão. Os maiores esforços tornavam-se inúteis. De vez em quando Demétrio asso­mava a uma tribuna improvisada e dirigia-se ao povo envenenando os ânimos.

Recolhido à residência de um amigo, Paulo de Tarso inteirou-se dos fatos graves que se desenrolavam por sua causa. Seu primeiro impulso foi seguir logo ao en­contro dos companheiros capturados, para libertá-los, mas os irmãos impediram-lhe a saída. Essa noite dolo­rosa ficaria inesquecível em sua vida. Ao longe, ouvia-se a gritaria estentórica: — “Grande é a Diana de Éfeso! Grande é a Diana de Éfeso!” Mas o Apóstolo, constran­gido à força, pelos companheiros, houve que desistir de esclarecer a massa popular, na praça pública.

Só muito tarde, o escrivão da cidade conseguiu falar ao povo, concitando-o a levar a causa a juízo, abando­nando o louco propósito de fazer justiça pelas próprias mãos.

       A assembléia dispersou-se, pouco antes da meia-noite, mas só atendeu à autoridade depois de ver Gaio, Aristarco e o casal de tecelões trancafiados na enxovia.

No dia seguinte, o generoso Apóstolo dos gentios foi, em companhia de João, observar os destroços da tenda de Áquila. Tudo em frangalhos na via pública. Paulo refletiu com imensa mágoa nos amigos presos e falou ao filho de Zebedeu, com os olhos mareados de lágrimas.

—        Como tudo isto me contrista! Áquila e Prisca têm sido meus companheiros de luta, desde as primeiras horas da minha conversão a Jesus. Por eles devia eu sofrer tudo, pelo muito amor que lhes devo; assim, não julgo razoável que sofram por minha causa.

—        A causa é do Cristo! — respondeu João com acerto.

O         ex-rabino pareceu conformar-se com a observação e sentenciou:

—        Sim, o Mestre nos consolará.

E, depois de concentrar-se longamente, murmurou:

—        Estamos em lutas incessantes na Ásia, há mais de vinte anos... Agora, preciso retirar-me da Jônia, sem demora. Os golpes vieram de todos os lados. Pelo bem que desejamos, fazem-nos todo o mal que podem. Ai de nós se não trouxéssemos as marcas do Cristo Jesus!

O         pregador valoroso, tão desassombrado e resistente, chorava! João percebeu, contemplou-lhe os cabelos pre­maturamente encanecidos e procurou desviar o assunto:

—        Não te vás por enquanto — disse solícito —, ainda és necessário aqui.

—        Impossível — respondeu com tristeza —, a revo­lução dos artífices continuaria. Todos os irmãos paga­riam caro a minha companhia.

—        Mas não pretendes escrever o Evangelho, con­soante as recordações de Maria? — perguntou meliflua­mente o filho de Zebedeu.

—        É verdade — confirmou o ex-rabino com sereni­dade amarga —, entretanto, é forçoso partir. Caso não mais volte, enviarei um companheiro para colher as devi­das anotações.

—        Contudo, poderias ficar conosco.

O         tecelão de Tarso fitou o companheiro com tran­qüilidade e explicou, em atitude humilde:

—        Talvez estejas enganado. Nasci para uma luta sem tréguas, que deverá prevalecer até ao fim dos meus dias. Antes de encontrar as luzes do Evangelho, errei criminosamente, embora com o sincero desejo de servir a Deus. Fracassei, muito cedo, na esperança de um lar.

Tornei-me odiado de todos, até que o Senhor se compa­decesse de minha situação miserável, chamando-me às portas de Damasco. Então, estabeleceu-se um abismo entre minha alma e o passado. Abandonado pelos amigos da infância, tive de procurar o deserto e recomeçar a vida. Da tribuna do Sinédrio, regressei ao tear pesado e rústico. Quando voltei a Jerusalém, o judaísmo con­siderou-me doente e mentiroso. Em Tarso experimentei o abandono dos parentes mais caros. Em seguida, reco­mecei em Antioquia a tarefa que me conduzia ao serviço de Deus. Desde então, trabalhei sem descanso, porque muitos séculos de serviço não dariam para pagar quanto devo ao Cristianismo. E sai às pregações. Peregrinei por diversas cidades, visitei centenas de aldeias, mas de nenhum lugar me retirei sem luta áspera. Sempre saí pela porta do cárcere, pelo apedrejamento, pelo golpe dos açoites. Nas viagens por mar, já experimentei o naufrágio mais de uma vez; nem mesmo no bojo estreito de uma embarcação, tenho podido evitar a luta. Mas Jesus me tem ensinado a sabedoria da paz interior, em perfeita comunhão de seu amor.

Essas palavras eram ditas em tom de humildade tão sincera que o filho de Zebedeu não conseguia esconder sua admiração.

—        És feliz, Paulo — disse ele convicto —, porque entendeste o programa de Jesus a teu respeito. Não te doa a recordação dos martírios sofridos, porque o Mes­tre foi compelido a retirar-se do mundo pelos tormentos da cruz. Regozijemo-nos com as prisões e sofrimentos.

Se o Cristo partiu sangrando em feridas tão dolorosas, não temos o direito de acompanhá-lo sem çicatrizes...

O         Apóstolo dos gentios prestou enorme atenção a essas palavras consoladoras e murmurou:

—        É verdade!...

—        Além do mais — acrescentou o companheiro emo­cionado —, devemos contar com calvários numerosos. Se o Cordeiro Imaculado padeceu na cruz da ignomínia, de quantas cruzes necessitaremos para atingir a redenção? Jesus veio ao mundo por imensa misericórdia. Acenou-nos brandamente, convocando-nos a uma vida melhor... Agora, meu amigo, como os antepassados de Israel, que saíram do cativeiro do Egito à custa de sacrifícios ex­tremos, precisamos fugir da escravidão dos pecados, vio­lentando-nos a nós mesmos, disciplinando o espírito, a fixa de nos juntarmos ao Mestre, correspondendo à sua imensa bondade.

Paulo meneou a cabeça, pensativo, e acentuou:

—        Desde que o Senhor se dignou convocar-me ao serviço do Evangelho, não tenho meditado noutra coisa.

Nesse ritmo cordial conversaram muito tempo, até que o Apóstolo dos gentios concluiu mais confortado:

—        O que de tudo concluo é que minha tarefa no Oriente está finda. O espírito de serviço exige que me vá além... Tenho a esperança de pregar o Evangelho do Reino, em Roma, na Espanha e entre os povos menos conhecidos...

Seu olhar estava cheio de visões gloriosas e João murmurou humildemente:

—    Deus abençoará os teus caminhos.

       Demorou-se ainda em Éfeso, movimentando os me­lhores empenhos a favor dos prisioneiros. Conseguida a liberdade dos detentos, resolveu deixar a Jônia dentro do menor prazo possível. Estava, porém, profundamente abatido. Dir-se-ia que as últimas lutas haviam cooperado no desmantelo de suas melhores energias. Acompanhado de alguns amigos dirigiu-se para Trôade, onde se demo­rou alguns dias, edificando os irmãos na fé. A fadiga, entretanto, acentuava-se cada vez mais. As preocupações enervaram-no. Experimentava no íntimo profunda deso­lação, que a insônia agravava dia a dia. Paulo, que nunca esquecera a ternura dos irmãos de Filipes, deli­berou, então, procurar ali um abrigo, ansioso de repousar alguns momentos. O Apóstolo foi acolhido com inequí­vocas provas de carinho e consideração. As crianças da instituição desdobraram-se em demonstrações de afetuosa ternura. Outra agradável surpresa ali o esperava: Lucas encontrava-se acidentalmente na cidade e foi abraçá-lo. Esse encontro reanimou-lhe o ânimo abatido. Avistan­do-se com o amigo, o médico alarmou-se. Paulo pare­ceu-lhe extremamente debilitado, triste, não obstante a fé inabalável que lhe nutria o coração e transbordava dos lábios. Explicou que estivera doente, que muito so­frera nas últimas pregações de Éfeso, que estava sozinho em Filipes, depois do regresso de alguns amigos que o haviam acompanhado, que os colaboradores mais fiéis ha­viam partido para Corinto, onde o aguardavam.

Muito surpreendido, Lucas tudo ouviu silencioso e perguntou:

—        Quando partirás?

—        Pretendo aqui ficar duas semanas.

E depois de vaguear os olhos na paisagem, concluiu em tom quase amargo:

—        Aliás, meu caro Lucas, julgo ser esta a última vez que descanso em Filipes...

—        Mas, por quê? Não há motivos para pressenti­mentos tão tristes.

Paulo notou a preocupação do amigo e apressou-se a desfazer-lhe as primeiras impressões:

—        Suponho que terei de partir para o Ocidente —esclareceu com um sorriso.

—        Muito bem! — respondeu Lucas reanimado. —Vou ultimar os assuntos que aqui me trouxeram e irei contigo a Corinto.

O         Apóstolo alegrou-se. Rejubilava-se com a pre­sença de um companheiro dos mais dedicados. Lucas também estava satisfeito com a possibilidade de assisti-lo na viagem. Com grande esforço procurava dissimular a penosa impressão que a saúde do Apóstolo lhe causara. Magríssimo, rosto pálido, olhos encovados, o ex-rabino dava a impressão de profunda miséria orgânica. O mé­dico, no entanto, fez o possível por ocultar suas dolo­rosas conjeturas.

Como de hábito, Paulo de Tarso, durante a viagem até Corinto, falou do projeto de chegar a Roma, para levar à capital do Império a mensagem do amor do Cristo Jesus. A companhia de Lucas, a mudança das paisagens revigoravam-lhe as forças físicas. O próprio médico es­tava surpreendido com a reação natural daquele homem de vontade poderosa.

Pelo caminho, através das pregações ocasionais de um longo itinerário, juntaram-se-lhes alguns companhei­ros mais devotados.

Novamente em Corinto, o ex-rabino ratificou as suas epístolas, reorganizou amorosamente os quadros de ser­viços da igreja e, no círculo dos mais íntimos, não falava de outra coisa senão do grandioso projeto de visitar Roma, no intuito de auxiliar os cristãos, já existentes na cidade dos Césares, a estabelecerem instituições seme­lhantes às de Jerusalém, de Antioquia, de Corinto e outros pontos mais importantes do Oriente. Nesse meio tempo, readquiriu as energias latentes do organismo debi­litado. Desdobrava-se no plano, coordenando idéias e mais idéias do programa colimado, na imperial metrópole. Aventou numerosas providências. Pensou em preparar sua chegada, fazendo-a preceder de carta na qual reca­pitulasse a doutrina consoladora do Evangelho e no­measse, com saudações afetuosas, todos os irmãos do seu conhecimento no ambiente romano. Áquila e Prisca tinham voltado de Éfeso para a capital do Império, no intuito de recomeçar a vida. Seriam auxiliares diletos. Para esse fim, Paulo empregou alguns dias na redação do célebre documento, concluindo-o com uma carga de saudações particulares e extensas. Foi aí que se verificou um episódio escassamente conhecido pelos seguidores do Cristianismo. Considerando que todos os irmãos e pre­gadores eram criaturas excessivamente ocupadas nos mais variados misteres e que Paulo custaria a encontrar portador para a missiva famosa, a irmã de nome Febe, grande cooperadora do Apóstolo dos gentios no porto de Cencréia, comunicou-lhe que teria de ir a Roma, em visita a parentes, e se oferecia, de bom grado, a levar o do­cumento destinado a iluminar a cristandade póstera.

Paulo exultou de contentamento, aliás extensivo a toda a confraria. A epístola foi terminada com enorme entusiasmo e júbilo. Tão logo partiu a emissária heróica, o ex-rabino reuniu a pequena comunidade dos discípulos diletos para assentar as bases definitivas da grande excursão. Começou explicando que o inverno estava a começar, mas, tão depressa voltasse o tempo de navega­ção, embarcaria para Roma. Depois de justificar a exce­lência do plano, visto já estar implantado o Evangelho nas regiões mais importantes do Oriente, pediu aos ami­gos íntimos lhe dissessem como e até que ponto lhes seria possível secundá-lo.

Timóteo alegou que Eunice não podia, no momento, dispensar seus cuidados, dado o fale­cimento da veneranda Lóide. Segundo expôs, precisava regressar a Tessalônica e Aristarco o secundou nesse pa­recer. Sópatro falou de suas dificuldades em Beréia. Gaio pretendia partir para Derbe no dia seguinte. Tíquico e Trófimo alegaram a necessidade urgente de irem a Éfeso, de onde pretendiam mudar para Antioquia, berço natal de ambos.

Quase todos os demais estavam impossibilitados de participar da excursão. Apenas Silas afirmou que poderia fazê-lo, fosse como fosse. Chegada, porém, a vez de Lucas, que se mantivera até então calado, disse ele estar pronto e resolvido a compartilhar dos trabalhos e alegrias da missão de Roma. De toda a assembléia, dois apenas poderiam acompanhá-lo.

Paulo, todavia, mos­trou-se conformado e satisfeitíssimo. Bastavam-lhe Silas e Lucas, habituados aos seus métodos de propaganda e com os mais belos títulos de trabalho e dedicação à causa de Jesus.

Tudo corria às maravilhas, o plano combinado aus­piciava grandes esperanças, quando, no dia imediato, um peregrino, pobre e triste, surgia em Corinto, desembar­cado de uma das últimas embarcações chegadas ao Pelo­poneso para a ancoragem longa do inverno. Vinha de Jerusalém, bateu às portas da igreja e procurou instan­temente por Paulo, a fim de entregar-lhe uma carta confidencial. Defrontando o singular mensageiro, o Após­tolo surpreendeu-se.

Tratava-se do irmão Abdias, a quem Tiago incumbira de entregar a carta ao ex-rabino. Este, tomou-a e desdobrou-a um tanto nervoso.

À medida que ia lendo, mais pálido se fazia.

Tratava-se de um documento particular, da mais alta importância. O filho de Alfeu comunicava ao ex-doutor da Lei os dolorosos acontecimentos que se desenrolavam em Jerusalém. Tiago avisava que a igreja sofria nova e violentíssima perseguição do Sinédrio. Os rabinos ha­viam decidido reatar o fio das torturas infligidas aos cristãos. Simão Pedro fora banido da cidade. Grande número de confrades eram alvo de novas perseguições e martírios.

A igreja fora assaltada por fariseus sem consciência e só não sofrera depredações de maior vulto em virtude do respeito que o povo lhe consagrava. Den­tro de suas atitudes conciliatórias, conseguira aplacar os ânimos mais exaltados, mas o Sinédrio alegava a necessidade de um entendimento com Paulo, a fim de conceder tréguas. A ação do Apóstolo dos gentios, in­cessante e ativa, conseguira lançar as sementes de Jesus em toda parte. De todos os lados, o Sinédrio recebia consultas, reclamações, notícias alarmantes. As sinago­gas iam ficando desertas. Tal situação requeria esclare­cimentos. Baseado nesses pretextos, o maior Tribunal dos Israelitas desfechara tremendos ataques contra a organização cristã em Jerusalém. Tiago relatava os acontecimentos com grande serenidade e rogava a Paulo de Tarso não abandonasse a igreja naquela hora de lutas acerbas. Ele, Tiago, estava envelhecido e cansado. Sem a colaboração de Pedro, temia sucumbir. Pedia, então, ao convertido de Damasco fosse a Jerusalém, afrontasse as perseguições por amor a Jesus, para que os doutores do Sinédrio e do Templo ficassem bastantemente escla­recidos. Acreditava que lhe não poderia advir nenhum mal, porqüanto o ex-rabino saberia melhor dirigir-se às autoridades religiosas para que a causa lograsse justo êxito. A viagem a Jerusalém teria somente um objetivo: esclarecer o Sinédrio, como se fazia indispensável. Depois disso, que Tiago considerava de suma importância para salvar a igreja da capital do judaísmo, Paulo voltaria tranqüilo e feliz para onde lhe aprouvesse.

A mensagem estava crivada de exclamações amargas e de apelos veementes.

Paulo de Tarso terminou a leitura e lembrou o pas­sado. Com que direito lhe fazia o Apóstolo galileu seme­lhante pedido? Tiago sempre se colocara em posição antagônica. Em que pesasse à sua índole impetuosa, franca, inquebrantável, não podia odiá-lo; entretanto, não se sentia perfeitamente afim com o filho de Alfeu, a ponto de se tornar seu companheiro adequado em lance tão difícil. Procurou um recanto solitário da igreja, sentou e meditou. Experimentando certas relutâncias ín­timas em renunciar à partida para Roma, não obstante o projeto formulado em Éfeso nas vésperas da revolução dos ourives, de só visitar a capital do Império depois de nova excursão a Jerusalém, procurou consultar o Evan­gelho, por desfazer tão grande perplexidade. Desenrolou os pergaminhos e, abrindo-os ao acaso, leu a advertência das anotações de Levi: — “Concilia-te depressa com o teu adversário”. (1)

Diante dessas palavras judiciosas, não dissimulou o assombro, recebendo-as como um alvitre divino para que não desprezasse a oportunidade de estabelecer com o Apóstolo galileu os laços sacrossantos da mais pura fraternidade. Não era justo alimentar caprichos pessoais na obra do Cristo. No feito em perspectiva, não era Tiago o interessado na sua presença em Jerusalém: era a igreja, era a sagrada instituição que se tornara tutora dos pobres e dos infelizes. Provocar as iras farisaicas

 

(1)       Mateus, capítulo 5º, versículo 25. — (Nota de Emmanuel.)

 

sobre ela, não seria lançar uma tempestade de imprevi­síveis conseqüências para os necessitados e desfavoreci­dos do mundo? Recordou a juventude e a longa perse­guição que chegara a mover contra os discípulos do Crucificado. Teve a nítida recordação do dia em que efetuara a prisão de Pedro entre os aleijados e os en­fermos que o cercavam, soluçantes.

       Lembrou que Jesus o chamara para o divino serviço, às portas de Damasco; que, desde então, sofrera e pregara, sacrificando-Se a si mesmo e ensinando as verdades eternas, organizando igrejas amorosas e acolhedoras, onde os “filhos do Cal­vário” tivessem consolo e abrigo, de conformidade com as exortações de Abigail; e assim chegou à conclusão de que devia aos sofredores de Jerusalém alguma coisa que era preciso restituir. Em outros tempos, fomentara a confusão, privara-os da assistência carinhosa de Estevão, iniciara banimentos impiedosos. Muitos doentes foram obrigados a renegar o Cristo em sua presença, na cidade dos rabinos. Não seria aquela a ocasião adequada para resgatar a dívida enorme? Paulo de Tarso iluminado agora pelas mais santas experiências da vida, com o Mestre Amado, levantou-se e a passos resolutos dirigiu-se ao portador que o esperava em atitude humilde:

—        Amigo, vem descansar, que bem precisas. Leva­rás a resposta em breves dias.

—        Ireis a Jerusalém? — interrogou Abdias com certa ansiedade, como se conhecesse a importância do assunto.

—        Sim — respondeu o Apóstolo.

O         emissário foi tratado com todo o carinho. Paulo procurou ouvir-lhe as impressões pessoais sobre a per­seguição novamente desfechada contra os discípulos do Cristo; buscou firmar idéias sobre o que competia fazer; mas, não conseguia furtar-se a certas preocupações im­periosas e aparentemente insolúveis. Como proceder em Jerusalém? Que espécie de esclarecimentos deveria pres­tar aos rabinos do Sinédrio? Qual o testemunho que com­petia dar?

Grandemente apreensivo, adormeceu aquela noite, depois de pensamentos torturantes e exaustivos. Sonhou, porém, que se encontrava em longa e clara estrada tona­Lizada de maravilhosos clarões opalinos. Não dera muitos passos, quando foi abraçado por duas entidades carinho­sas e amigas. Eram Jeziel e Abigail, que o enlaçavam com indizível carinho. Extasiado, não pôde murmurar uma palavra. Abigail agradeceu-lhe a ternura das lem­branças comovidas, em Corinto, falou-lhe dos júbilos do seu coração e rematou com alegria:

— Não te inquietes, Paulo. Ë preciso ir a Jerusa­lém para o testemunho imprescindível.

No íntimo, o Apóstolo reconsiderava o plano de excursão a Roma, no seu nobre intuito de ensinar as verdades cristãs na sede do Império. Bastou pensá-lo, para que a voz querida se fizesse ouvir novamente, em timbre familiar:

Tranqüiliza-te, porque irás a Roma cumprir um sublime dever; não, porém, como queres, mas de acordo com os desígnios do Altíssimo...

E logo esboçando angelical sorriso:

— Depois, então, será a nossa união eternal em Jesus-Cristo, para a divina tarefa do amor e da verdade à luz do Evangelho.

Aquelas palavras caíram-lhe nalma com a força de uma profunda revelação. O Apóstolo dos gentios não saberia explicar o que se passou no âmago do seu Espí­rito. Sentia, simultaneamente, dor e prazer, preocupação e esperança. A surpresa pareceu impedir o seguimento da visão inesquecível. Jeziel e a irmã, endereçando-lhe gestos amorosos, pareciam desaparecer numa faixa de névoas transparentes. Acordou em sobressalto e concluiu, desde logo, que devia preparar-se para os derra­deiros testemunhos.

No dia seguinte, convocou uma reunião dos amigos e companheiros de Corinto. Mandou que Abdias expli­casse, de viva voz, a situação de Jerusalém e expôs o plano de passar pela capital do judaísmo antes de seguir para Roma. Todos compreenderam os sagrados imperativos da nova resolução. Lucas, todavia, adiantou-se e perguntou:

— De acordo com a modificação do projeto, quando pretendes partir?

— Dentro de poucos dias — respondeu resoluto.

— Impossível — respondeu o médico —, não pode­remos concordar com a tua viagem, a pé, a Jerusalém; além de tudo, precisas descansar alguns dias depois de tantas lutas.

O         ex-rabino refletiu um momento e concordou:

—       Tens razão. Ficarei em Corinto algumas sema­nas; no entanto, pretendo fazer a viagem por etapas, no intuito de visitar as comunidades cristãs, pois tenho a intuição ‘de minha partida breve, para Roma, e de que não mais verei as igrejas amadas, em corpo mortal...

Essas palavras eram pronunciadas em tom melan­cólico. Lucas e os demais companheiros ficaram silen­ciosos e o Apóstolo continuou:

—        Aproveitarei o tempo instruindo Apólo sobre os trabalhos indispensáveis do Evangelho, nas diversas re­giões da Acaia.

Em seguida, desfazendo a impressão de suas afir­mativas menos animadoras, no tocante à viagem a Roma, incutiu novo alento ao auditório, emitindo conceitos oti­mistas e esperançosos. Traçou vasto programa para os discípulos, recomendando atividades à maioria, entre as comunidades de toda a Macedônia, a fim de que todos os irmãos estivessem a postos para as suas despedidas; outros foram despachados para a Ásia com idênticas instruções.

Decorridos três meses de permanência em Corinto, novas perseguições dos judeus foram desfechadas contra a instituição. A sinagoga principal da Acaia havia rece­bido secretas notificações de Jerusalém. Nada menos que a eliminação do Apóstolo, a qualquer preço.

Paulo percebeu a insídia e despediu-se prudentemente dos corín­tios, partindo em companhia de Lucas e Silas, a pé, para visitar as igrejas de Macedônia.

Por toda a parte pregou a palavra do Evangelho, convencido de que era a última vez que fixava aquelas paisagens.

Despedia-se, comovido, dos velhos amigos de outros tempos. Fazia recomendações, no tom de quem ia partir para sempre. Mulheres reconhecidas, anciães e crianças acorriam a beijar-lhe as mãos com enternecimento. Che­gando a Filipes, cuja comunidade fraternal lhe falava mais intimamente ao coração, sua palavra suscitou tor­rentes de lágrimas. A igreja amorosa, que vicejava para Jesus à margem do Gangas, consagrava ao Apóstolo dos gentios singular afeição. Lídia e seus numerosos auxilia­res, num impulso muito humano, queriam retê-lo em sua companhia, insistiam para que não prosseguisse, receosos das perseguições do farisaismo. E o Apóstolo, sereno e confiante, acentuava:

— Não choreis, irmãos. Convicto estou do que me compete fazer e não devo esperar flores e dias felizes. Cumpre-me aguardar o fim, na paz do Senhor Jesus. A existência humana é de trabalho incessante e os der­radeiros sofrimentos são a coroa do testemunho.

Eram exortações cheias de esperanças e alegrias, por confortar os mais tímidos e renovar a fé nos cora­ções fracos e sofredores.

Dando por terminada a tarefa nas zonas de Fili­pes. Paulo e os companheiros navegaram com destino a Trôade. Nesta cidade, o Apóstolo fez, com inexcedível êxito, a derradeira pregação na sétima noite de sua chegada, verificando-se o célebre incidente com o jovem Éutico, que caiu de uma janela do terceiro andar do prédio em que se realizavam as práticas evangélicas, sendo imediatamente socorrido pelo ex-rabino, que o colheu semimorto e devolveu-lhe a vida em nome de Jesus.

Em Trôade, outros confrades se reuniram à pequena caravana. Atentos à recomendação de Paulo, partiram com Lucas e Silas para Assôs, a fim de contratar a preço módico algum velho barco de pescadores, porqüanto o Apóstolo preferia viajar desse modo entre as ilhas e por­tos numerosos, para despedir-se dos amigos e irmãos que por ali mourejavam. Assim aconteceu; e, enquanto os colaboradores tomavam embarcação confortável, o ex-rabino palmilhou mais de vinte quilômetros de estrada, só pelo prazer de abraçar os continuadores humildes da sua grandiosa faina apostólica.

Adquirindo em seguida um barco muito ordinário, Paulo e os discípulos prosseguiram a viagem para Jeru­salém, distribuindo consolações e socorros espirituais às comunidades humildes e obscuras.

Em todas as praias eram gestos comovedores, adeu­ses amargurosos. Em Éfeso, porém, a cena foi muito mais triste, porque o Apóstolo solicitara o compareci­mento dos anciães e dos amigos, para falar-lhes parti­cularmente ao coração. Não desejava desembarcar, no intuito de prevenir novos conflitos que lhe retardassem a marcha; mas, em testemunho de amor e reconhecimento, a comunidade em peso lhe foi ao encontro, sen­sibilizando-lhe a alma afetuosa.

A própria Maria, avançada em anos, acorrera de longe em companhia de João e outros discípulos, para levar uma palavra de amor ao paladino intimorato do Evangelho de seu Filho. Os anciães receberam-no com ardorosas demonstrações de amizade, as crianças ofere­ciam-lhe merendas e flores.

Extremamente comovido, Paulo de Tarso prelecio­nou em despedida e, quando afirmou o pressentimento de que não mais ali voltaria em corpo mortal, houve grandes explosões de amargura entre os efésios.

Como que tocados pela grandeza espiritual daquele momento, quase todos se ajoelharam no tapete branco da praia e pediram a Deus protegesse o devotado bata­lhador do Cristo.

Recebendo tão belas manifestações de carinho, o ex-rabino abraçou, um por um, de olhos molhados. A maioria atirava-se-lhe nos braços amoro­sos, soluçando, beijando-lhe as mãos calosas e rudes. Abraçando, por último, à Mãe Santíssima, Paulo tomou­-lhe a destra e nela depôs um beijo de ternura filial.

A viagem continuou com as mesmas características. Rodes, Pátara, Tiro, Ptolemaida e, finalmente, Cesaréia. Nesta cidade, hospedaram-se em casa de Filipe, que ali fixara residência desde muito tempo. O velho compa­nheiro de lutas informou Paulo dos fatos mínimos de Jerusalém, onde muito esperavam do seu esforço pessoal para continuação da igreja. Muito velhinho, o generoso galileu falou da paisagem espiritual da cidade dos rabi­nos, sem disfarçar os receios que a situação lhe causava. Não somente isso constrangeu os missionários. Agabo, já conhecido de Paulo em Antioquia, viera da Judéia e, em transe mediúnico na primeira reunião íntima em casa de Filipe, formulou os mais dolorosos vaticínios. As perspectivas eram tão sombrias que o próprio Lucas chorou. Os amigos rogaram a Paulo de Tarso que não partisse. Seria preferível a liberdade e a vida a benefício da causa.

Ele, porém, sempre disposto e resoluto, referiu-se ao Evangelho, comentou a passagem em que o Mestre pro­fetizava os martírios que o aguardavam na cruz e con­cluía arrebatadamente:

— Por que chorarmos magoando o coração? Os se­guidores do Cristo devem estar prontos para tudo. Por mim, estou disposto a dar testemunho, ainda que tenha de morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus!.

A impressão dos vaticínios de Agabo ainda não havia desaparecido, quando a casa de Filipe recebeu nova surpresa, no dia imediato. Os cristãos -de Cesaréia leva­ram à presença do ex-rabino um emissário de Tiago, de nome Mnason. O Apóstolo galileu soubera da chegada do convertido de Damasco ao porto palestinense e dera-se pressa em se comunicar com ele, mediante um portador devotado à causa comum. Mnason explicou ao ex-rabino o motivo de sua presença, advertindo-o dos perigos que arrostaria em Jerusalém, onde o ódio sectarista esfer­vilhava e atingia as mais atrozes perseguições. Dadas a exaltação e a vigilância do judaísmo, Paulo não deveria procurar imediatamente a igreja, mas, hospedar-se em casa dele, mensageiro, onde Tiago iria falar-lhe em par­ticular e assim resolverem o que melhor conviesse aos sagrados interesses do Cristianismo. Isto posto, o Após­tolo dos gentios seria recebido na instituição de Jerusa­lém, para discutir com os atuais diretores os destinos da casa.

Paulo achou muito razoáveis os cuidados e suges­tões de Tiago, mas preferiu seguir os alvitres verbais do portador.

Angustiosas sombras pairavam no espírito dos com­panheiros do grande Apóstolo, quando a caravana, se­guida de Mnason, se deslocou de Cesaréia para a capital do judaísmo. Como sempre, Paulo de Tarso anunciou a Boa Nova nos burgos mais humildes.

Após alguns dias de marcha vagarosa, para que todos os trabalhos apostólicos fossem suficientemente atendidos, os discípulos do Evangelho transpuseram as portas da cidade dos rabinos, assomados de graves preocupações.

Envelhecido e alquebrado, o Apóstolo dos gentios contemplou os edifícios de Jerusalém, demorando o olhar na paisagem árida e triste que lhe recordava os anos da mocidade tumultuosa e morta para sempre. Elevou o pensamento a Jesus e pediu-lhe que o inspirasse no cumprimento do sagrado ministério.

 

O martírio em Jerusalém

Obedecendo às recomendações de Tiago, Paulo de Tarso hospedou-se em casa de Mnason, antes de qual­quer entendimento com a igreja. O Apóstolo galileu pro­meteu visitá-lo na mesma noite.

Pressentindo acontecimentos de importância naquela fase de sua existência, o ex-rabino aproveitou o dia tra­çando planos de trabalho para os discípulos mais diretos.

À noite, quando espesso manto de sombras envolvia a cidade, Tiago apareceu, cumprimentando o companheiro em atitude muito humilde. Também ele estava envelhe­cido, exausto, doente. O convertido de Damasco, ao con­trário de outras vezes, experimentou extrema simpatia pela sua pessoa, que parecia inteiramente modificada pelos reveses e tribulações da vida.

Trocadas as primeiras impressões relativamente às viagens e feitos evangélicos, o companheiro de Simão Pedro pediu ao ex-rabino lhe marcasse lugar e hora em que pudessem falar mais intimamente.

Paulo atendeu de pronto, seguindo ambos para um aposento particular.

O filho de Alfeu começou explicando o motivo de suas graves apreensões. Havia mais de um ano que os rabinos Eliakím e Enoch deliberaram reviver os pro­cessos de perseguições iniciados por ele, Paulo, quando da sua movimentada gestão no Sinédrio. Alegaram que o antigo doutor incidira nos sortilégios e feitiçarias da espúria grei, comprometendo a causa do judaísmo, e não era justo continuar tolerando a situação, tão-somente porque o doutor tarsense perdera a razão, no caminho de Damasco. A iniciativa ganhara enorme popularidade nos círculos religiosos de Jerusalém e o maior instituto legis­lativo da raça — o Sinédrio — aprovou as medidas pro­postas. Reconhecendo que a obra evangelizadora de Paulo produzia maravilhosos frutos de esperança em toda a parte, conforme as notícias incessantes, de todas as sinagogas das regiões por ele percorridas, o grande Tribunal começou por decretar a prisão do Apóstolo dos gentios. Numerosos processos de perseguição individual, deixados a meio por Paulo de Tarso, quando de sua inesperada conversão, foram restaurados e, o que era mais grave — quando falecidos os réus, era a pena aplicada aos descendentes, que, assim, eram torturados, humilhados, desonrados!

O         ex-rabino tudo ouvia calado, estupefato.

Tiago prosseguia, esclarecendo que tudo fizera por atenuar os rigores da situação.

Mobilizara influências políticas ao seu alcance, conseguindo atenuar umas tan­tas sentenças mais iníquas. Não obstante o banimento de Pedro, procurou manter os serviços de assistência aos desvalidos, bem como a colônia de serviço, fundada por inspiração do convertido de Damasco e na qual os convalescentes e desamparados encontravam precioso am­biente de atividade remunerada e pacífica. Depois de vários entendimentos com o Sinédrio, por intermédio de amigos influentes no judaísmo, teve a satisfação de abrandar o rigor das exigências a serem aplicadas no caso dele, Paulo. O ex-doutor de Tarso ficaria com liberdade de agir, poderia continuar propugnando suas convicções íntimas; daria, porém, uma satisfação pú­blica aos preconceitos de raça, atendendo aos quesitos que o Sinédrio lhe apresentaria por intermédio de Tiago, que se mostrava seu amigo. O companheiro de Simão Pedro explicava que as exigências eram muito rigorosas a princípio, mas agora, mercê de enormes esforços, cin­giam-se a uma obrigação de somenos.

Paulo de Tarso escutava-o extremamente sensibili­zado. Dono de luminoso cabedal evangélico, entendia chegado o momento de testemunhar seu devotamento ao Mestre, justamente através do mesmo órgão de persegui­ção que a sua ignorância engendrara em outros tempos. Naqueles minutos rápidos, sutilizou a mnemônica e lobri­gou os quadros terríveis de outrora... Velhos torturados em sua presença, para sentir o prazer da apostasia cristã, com a repetição do voto de fidelldade eterna a Moisés; mães de família arrancadas de seus lares obscuros, obri­gadas a jurar pela Antiga Lei, que renegavam o carpin­teiro de Nazaré, abominando a cruz do seu martírio e ignomínia. Os soluços daquelas mulheres humildes, que abjuravam da fé porque se viam feridas no que possuíam de mais nobre, o instinto maternal, chegavam, agora, a seus ouvidos como brados de angústia, clamando resgates dolorosos. Todas as cenas antigas desdobravam-se-lhe na retina espiritual, sem omissão do mais insignificante por­menor. Moços robustos, arrimos de famílias numerosas, que saíam mutilados do cárcere; jovens ‘que pediam vin­gança, crianças que reclamavam os pais encarcerados. Entestando as revocações encapeladas, passou ao quadro da morte horrível de Estevão com as pedradas e insul­tos do povo; reviu Pedro e João abatidos e humildes, à barra do Tribunal, como se fossem malfeitores e crimi­nosos. Agora, ali estava ele perante o filho de Alfeu, que nunca o compreendera de forma integral, a falar-lhe em nome do passado e em nome do Cristo, como a conci­tá-lo ao resgate de suas derradeiras dívidas angustiosas.

Paulo de Tarso sentiu que uma lágrima lhe apon­tava nos olhos, sem chegar a cair. Que espécie de tor­tura lhe estaria reservada? Quais as determinações da autoridade religiosa a que Tiago se referia com evidente interesse?

Quando o companheiro de Simão fez uma pausa mais longa, o ex-rabino perguntou muito comovido:

—        Que pretendem eles de mim?

O         filho de Alfeu fixou nele os olhos serenos e explicou:

— Depois de muito relutarem, os israelitas congre­gados em nossa igreja vão pedir-te, apenas, que pagues as despesas de quatro homens pobres, que fizeram voto de nazireu, comparecendo com eles no templo, durante sete dias consecutivos, para que todo o povo possa ver que continuas bom judeu e leal filho de Abraão... À primeira vista, a demonstração poderá parecer pueril; entretanto, colima, como vês, satisfazer a vaidade fa­risaica.

O         ex-rabino fez um gesto muito seu, quando con­trariado, e replicou:

—        Pensei que o Sinédrio ia exigir minha morte!... Tiago compreendeu quanto de repugnância transbor­dava de semelhante observação e objetou:

—        Bem sei que isso te repugna e, contudo, insisto para que acedas, não por nós, propriamente, mas pela igreja e pelos que de futuro nos hajam de secundar.

—        Isso — obtemperou Paulo, com enorme desen­canto — não representa nobreza alguma. Essa exigência é uma ironia profunda e visa reduzir-nos a crianças, de tão fútil que é.

Não é perseguição, é humilhação; é o desejo de exibir homens conscientes como se fossem meninos volúveis e ignorantes...

Tiago, porém, tomando uma atitude carinhosa que o ex-rabino jamais lhe surpreendera em qualquer cir­cunstâncias da vida, falou com extrema ternura frater­nal, revelando-se ao companheiro surpreendido, por outro prisma:

Sim, Paulo, compreendo tua justa aversão. O Sinédrio, com isso, pretende achincalhar nossas con­vicções. Sei que a tortura na praça pública te doeria menos; entretanto, supões que isso não represente, para mim uma dor de muitos anos?... Acreditarias, acaso, que minhas atitudes nascessem de um fanatismo incons­ciente e criminoso? Compreendi, muito cedo, desde a primeira perseguição, que a tarefa de harmonização da igreja, com os judeus, estava mais particularmente em minhas mãos. Como sabes, o farisaísmo sempre viveu numa exuberante ostentação de hipocrisia; mas, con­venhamos, também, que é o partido dominante, tradicio­nal, das nossas autoridades religiosas. Desde o primeiro dia, tenho sido obrigado a caminhar com os fariseus muitas milhas para conseguir alguma coisa na manutenção­ da igreja do Cristo. Fingimento? Não julgues tal. Muitas vezes o Mestre nos ensinou, na Galiléia, que o melhor testemunho está em morrer devagarinho, dia­riamente, pela vitória da sua causa; por isso mesmo, afiançava que Deus não deseja a morte do pecador, porque é na extinção de nossos caprichos de cada dia que encontramos a escada luminosa para ascender ao seu infinito amor. A atenção que tenho dedicado aos judeus é gêmea do carinho que consagras aos gentios. A cada um de nós confiou Jesus uma tarefa diferente na forma, mas idêntica no fundo. Se muitas vezes tenho provocado falsas interpretações das minhas atitudes, tudo isso é mágoa para meu Espírito habituado à simplicidade do ambiente galileu. De que nos valeria o conflito des­truidor, quando temos grandiosos deveres a cuidar? Importa-nos saber morrer, para que nossas idéias se transmitam e floresçam nos outros. As lutas pessoais, ao contrário, estiolam as melhores esperanças. Criar separações e proclamar seus prejuízos, dentro da igreja do Cristo, não seria exterminarmos a planta sagrada do Evangelho por nossas próprias mãos?

A palavra de Tiago toava imantada de bondade e sabedoria e valia por consoladora revelação. Os galileus eram muito mais sábios que qualquer dos rabinos mais cultos de Jerusalém. Ele, que chegara ao mundo reli­gioso através de escolas famosas, que tivera sempre na mocidade, a inspiração de um Gamaliel, admirava agora aqueles homens aparentemente rústicos, vindos das chou­panas de pesca, que, em Jerusalém, alcançavam inesque­cíveis vitórias intelectuais, somente porque sabiam calar quando oportuno, aliando à experiência da vida uma enorme expressão de bondade e renúncia, à feição do Divino Mestre.

O convertido de Damasco entreviu o filho de Alfeu por um novo prisma. Seus cabelos grisalhos, o rugoso e macilento rosto, falavam de trabalhos árduos e incessan­tes. Agora, percebia que a vida exige mais compreensão que conhecimento. Presumia conhecer o Apóstolo galileu com o seu cabedal psicológico, e, no entanto, chegava à conclusão de que apenas naquele instante pudera com­preendê-lo no título que lhe competia.

Quando o companheiro de Simão Pedro fez uma pausa mais longa, Paulo de Tarso contemplou-o com imensa simpatia e falou comovidamente:

—        Vejo que tens razão, mas a exigência requer dinheiro. Quanto terei de pagar pela sentença? Segre­gado e distante do judaísmo há muitos anos, ignoro se os cerimoniais sofreram alterações apreciáveis.

—        Os preceitos são os mesmos — respondeu Tiago —, já que serás obrigado a te purificares com eles e, segundo as tradições, custearás a compra de quinze ovelhas, além dos comestíveis preceituais.

—        É um absurdo! — objetou o Apóstolo dos gentios.

—        Como sabes, a autoridade religiosa exige de cada nazireu três animais para os serviços da consagração.

—        Dura exigência — disse Paulo comovido.

—        No entanto — replicou Tiago, com um sorriso —, nossa paz vale muito mais que isso e, além dela, somos obrigados a não comprometer o futuro do Cristianismo.

O         convertido de Damasco descansou o rosto na mão direita por longo tempo, dando a perceber a amplitude de suas meditações, e acabou falando em diapasão que traía a sua enorme sensibilidade:

—        Tiago, como tu mesmo, atingi hoje um nível mais alto de compreensão da vida. Entendo melhor os teus argumentos. A existência humana é bem uma ascen­são das trevas para a luz. A juventude, a presunção de autoridade, a centralização de nossa esfera pessoal, acarretam muitas ilusões, laivando de sombras as coisas mais santas. Assiste-me o dever de curvar-me às exi­gências do judaísmo, conseqüentes de uma perseguição por mim próprio iniciada em outros tempos.

Deteve-se, evidenciando dificuldade para confessar-se plenamente. Mas tomando uma atitude mais humilde, como quem não encontra outro recurso, prosseguiu quase tímido:

— Nas minhas lutas, nunca me presumi vítima, considerando-me sempre como antagonista do mal. Só Jesus, em sua pureza e amor imaculados, podia alegar a condição de anjo vitimado por nossa maldade sombria; quanto a mim, por mais que me apedrejassem e ferissem, sempre julguei que era muito pouco em relação ao que me competia sofrer nos justos testemunhos. Agora, porém, Tiago, estou preocupado com um pequenino obstáculo.

Como não ignoras, tenho vivido absolutamente do meu trabalho de tecelão e, presentemente, não dispo­nho de dinheiro com que possa prover às despesas em perspectiva...

Seria a primeira vez que houvesse de re­correr à bolsa alheia, quando a solução do assunto de­pende exclusivamente de mim...

Suas palavras demonstravam acanhamento, aliado à tristeza comumente experimentada nos dias de humi­lhação e de infortúnio. Ante aquela expressão de renún­cia, Tiago, num movimento de grande espontaneidade, tomou-lhe a mão e beijou-a murmurando:

— Não te aflijas: sabemos em Jerusalém da exten­são de teus esforços pessoais e não seria razoável que a igreja se desinteressasse dessas imposições que se não justificam ... Nossa instituição pagará todas as despesas. Não é pouco concordares com o sacrifício.

Conversaram ainda longo tempo, com relação aos problemas interessantes à propaganda evangélica e, no dia seguinte, Paulo e os companheiros compareceram na igreja de Jerusalém, recebidos por Tiago acompanhado de todos os anciães judeus, simpatizantes do Cristo e seguidores de Moisés, congregados para ouvi-lo.

A reunião começou com rigoroso cerimonial, per­cebendo o ex-rabino a extensão das influências farisaicas no instituto que se destinava à sementeira luminosa do Divino Mestre.

Seus companheiros, acostumados à inde­pendência do Evangelho, não conseguiam ocultar a sur­presa; mas, com um gesto, o convertido de Damasco fez que todos permanecessem silenciosos.

Convidado a explicar-se, o ex-rabino leu um longo relatório de suas atividades junto dos gentios, havendo-se com muita ponderação e inexcedível prudência.

Os judeus, que, contudo, pareciam definitivamente instalados na igreja, mantendo as velhas atitudes dos mestres de Israel, pelo seu vogal Cainan, formularam ao ex-doutor conselhos e censuras. Alegaram que tam­bém eram cristãos, mas, rigorosos observadores da Lei Antiga; que Paulo não deveria trabalhar contra a cir­cuncisão e lhe cumpria dar ampla satisfação de seus atos.

Com profunda admiração dos companheiros, o ex-rabino mantinha-se calado, recebendo as objurgatórias e repreensões com imprevista serenidade.

Por fim, Cainan fez a proposta a que Tiago se re­ferira na véspera. A fim de satisfazer a exigência do Sinédrio, o tecelão de Tarso deveria purificar-se no Tem­plo, com quatro judeus paupérrimos que haviam feito voto de nazireus, ficando o Apóstolo dos gentios obrigado a custear todas as despesas.

Os amigos de Paulo surpreenderam-Se, ainda mais, quando o viram levantar-se na assembléia preconceituosa e confessar-se pronto a atender a íntimação.

O representante dos anciães discorreu, ainda, pedante e demoradamente sobre os preceitos da raça, ouvido por Paulo com beatifica paciência.

Regressando à casa de Mnason, o ex-rabino procurou informar os companheiros das razões da sua atitude. Ha­bituados a acatar-lhe as decisões confiadamente, dispen­saram-se de perguntas quiçá supérfluas, mas desejavam acompanhar o Apóstolo ao Templo de Jerusalém, para experimentarem alguma coisa da sua renúncia sincera, com relação ao futuro do evangelismo. Paulo frisou a conveniência de seguir só, mas Trófimo, que ainda se demorava alguns dias em Jerusalém, antes de regressar a Antioquia, insistiu e conseguiu que o Apóstolo lhe aceitasse a companhia.

O comparecimento de Paulo de Tarso no Templo, acompanhando quatro irmãos de raça, em mísero estado de pobreza, a fim de com eles purificar-se e pagar-lhes as despesas do voto, causou enorme sensação em todos os círculos do farisaísmo. Acenderam-se discussões vio­lentas e rudes. Assim que viu o ex-rabino humilhado, o Sinédrio pretendia impor sentenças novas. Já não lhe bastavam as imposições anteriores - No segundo dia da santificação, o movimento popular crescera no Templo em proporções assustadoras. Todos queriam ver o célebre doutor que enlouquecera às portas de Damasco, devido ao sortilégio dos galileus. Paulo observava a eferves­cência do cenário em torno da sua personalidade e pedia a Jesus não lhe faltasse com as energias suficientes. No terceiro dia, à falta de outro pretexto para condenação maior, alguns doutores alegaram que Paulo tinha o atrevimento de se fazer acompanhar aos lugares sagrados por um homem de origem grega, estranho às tradições israelitas. Trófimo nascera em Antioquia, de pais gregos, tendo vivido muitos anos em Éfeso; entretanto, apesar do sangue que lhe corria nas veias, conhecia os preceitos do judaísmo e portava-se, nos recintos consagrados ao culto, com inexcedível respeito. As autoridades, contudo, não quiseram ponderar tais particularidades. Era pre­ciso condenar Paulo de Tarso novamente, haviam de fazê-lo a qualquer preço.

O         ex-rabino percebeu a trama que se delineava e rogou ao discípulo não mais o acompanhasse ao monte Moriá, onde se processavam os serviços religiosos. O ódio farisaico, porém, continuava a fermentar.

Na véspera do último dia da purificação judaica, o convertido de Damasco compareceu às cerimônias com a mesma humildade. Logo, porém, que se colocou em posição de ôrar ao lado dos companheiros, alguns exal­tados o cercaram com expressões e atitudes ameaça­doras.

—        Morte ao desertor!... Pedras à traição! gri­tou uma voz estentórica, abalando o recinto.

Paulo teve a impressão de que esses brados eram a senha para maiores violências, porque, imediatamente, estourou uma gritaria infernal. Alguns judeus frementes agarraram-no pela gola da túnica, outros travaram-lhe os braços, violentamente, arrastando-o para o grande pátio reservado aos movimentos do grande público.

—        Pagarás teu crime!... diziam uns.

—        É necessário que morras! Israel se envergonha de tua presença no mundo! — bradavam outros mais furiosos.

       O Apóstolo dos gentios entregou-se sem a mínima resistência. Num relance, considerou os objetivos profundos de sua vinda a Jerusalém, concluindo que não fora convocado tão-só para a obrigação pueril de acom­panhar ao Templo quatro irmãos de raça, desolados na sua indigência. Cumpria-lhe afirmar, na cidade dos ra­binos, a firmeza de suas convicções. Entendia, agora, a sutileza das circunstâncias que o conduziam ao tes­temunho.

       Primeiramente, a reconciliação e o melhor conhecimento de um companheiro como Tiago, obede­cendo a uma determinação que lhe parecera quase in­fantil; em seguida, o grande ensejo de provar a fé e a consagração de sua alma a Jesus-Cristo. Com enorme surpresa, tomado de profundas e dolorosas reminiscên­cias, notou que os israelitas exaltados deixavam-no à mercê da multidão furiosa, justamente no pátio onde Estevão havia sido apedrejado vinte anos atrás. Alguns populares desvairados arrebataram-no à força, prenden­do-o ao tronco dos suplícios. Engolfado nas suas lem­branças, o grande Apóstolo mal sentia os bofetões que lhe aplicavam. Rápido, arregimentou as mais singulares reflexões. Em Jerusalém, o Mestre Divino padecera os martírios mais dolorosos; ali mesmo, o generoso Jeziel se imolara por amor ao Evangelho, sob os golpes e chuf as da populaça. Sentiu-se então envergonhado pelo suplício infligido ao irmão de Abigail, oriundo de suas próprias iniciativas. Somente agora, atado ao poste do sacrifício, compreendia a extensão do sofrimento que o fanatismo e a ignorância causavam ao mundo. E refletiu: — O Mestre é o Salvador dos homens e aqui padeceu pela redenção das criaturas. Estevão era seu discípulo, devotado e amoroso, e aqui experimentou. igualmente, os suplícios da morte. Jesus era o Filho de Deus, Jeziel era seu Apóstolo. E ele? Não estava ali o passado a reclamar resgates dolorosos? Não seria justo padecer muito, pelo muito que martirizara os outros? Era razoável que sentisse alegria naqueles instantes amargos, não só por tomar a cruz e seguir o Mestre bem-amado, como por ter tido o ensejo de sofrer o que Jeziel havia experimentado com grande amargura.

       Essas reflexões proporcionavam-lhe algum consolo. A consciência sentia-se mais leve. Ia dar testemunho da fé, em Jerusalém, onde se encontrara com o irmão de Abigail; e, depois da morte, podia aproximar-se do seu coração generoso, falando-lhe com júbilo dos seus pró­prios sacrifícios. Pedir-lhe-ia perdão e exaltaria a bon­dade de Deus, que o conduzira ao mesmo lugar, para os resgates justos. Alongando o olhar, entreviu a pequena porta de acesso ao pequeno aposento onde estivera com a noiva amada e seu irmão prestes a desprender-se do mundo nas agonias extremas. Parecia ouvir ainda as derradeiras palavras de Estevão misturadas de bondade e perdão.

Mal não saíra de suas reminiscências, quando a primeira pedrada o despertou para escutar o vozerio do povo.

O grande pátio estava repleto de israelitas sanhu­dos. Objurgatórias sarcásticas cortavam os ares. O es­petáculo era o mesmo do dia em que Estevão partira da Terra, Os mesmos impropérios, as fisionomias escar­ninhas dos verdugos, a mesma frieza implacável dos carrascos do fanatismo, O próprio Paulo não se furtava à admiração, ao verificar as coincidências singulares. As primeiras pedras acertaram-lhe no peito e nos braços, ferindo-o com violência.

— Esta será em nome da Sinagoga dos cilícios! —dizia um jovem, em coro de gargalhadas.

A pedra passou sibilando e dilacerou, pela primeira vez, o rosto do Apóstolo. Um filete de sangue começou a ensopar-lhe as vestiduras. Nem um minuto, porém, deixou de encarar os carrascos com a sua desconcertante serenidade.

Trófimo e Lucas, entretanto, cientes da gravidade da situação, desde os primeiros instantes, através de um amigo que presenciara,a cena inicial do suplício, procuraram imediatamente o socorro das autoridades ro­manas. Receosos de novas complicações, não declinaram as verdadeiras condições do convertido de Damasco. Ale­gavam, apenas, tratar-se de um homem que não devia padecer nas mãos dos israelitas fanáticos e inconscientes.

Um tribuno militar organizou incontinenti um troço de soldados. Deixando a fortaleza, penetraram no amplo átrio, com ânimo decidido. A massa delirava num tur­bilhão de altercações e gritarias ensurdecedoras. Dois centuriões, obedecendo às ordens do comando, avança­ram, resolutos, desatando o prisioneiro e arrebatando-o à multidão que o disputava ansiosa.

—        Abaixo o inimigo do povo!... Ë um criminoso! Ë um malfeitor! Estraçalhemos o ladrão!...

Pairavam no ar as exclamações mais estranhas. Não encontrando rabinos de responsabilidade para os esclarecimentos imprescindíveis, o tribuno romano man­dou que o acusado fosse algemado. O militar estava convencido de que se tratava de perigoso malfeitor que, de há muito, se transformara em terrível pesadelo dos habitantes da província. Não encontrava outra explica­ção para justificar tanto ódio.

O         peito contuso, ferido no rosto e nos braços, o Apóstolo seguiu para a Torre Antônia, escoltado pelos prepostos de César, enquanto a multidão encaudava o pequeno cortejo, bradando sem cessar: — Morra! Morra!

Ia penetrar o primeiro pátio da grande fortaleza romana quando Paulo, compreendendo afinal que não fora a Jerusalém tão-só para acompanhar quatro nazi­reus paupérrimos ao monte Moriá, e sim para dar um testemunho mais eloqüente do Evangelho, interrogou o tribuno com humildade:

—        Permitis, porventura, que vos diga alguma coisa? Percebendo-lhe as maneiras distintas, a nobre in­flexão da palavra em puro grego, o chefe da coorte repli­cou muito admirado:

—        Não és tu o bandido egípcio que, há algum tempo, organizou a malta de ladrões que devastam estas pa­ragens?

—        Não sou ladrão — respondeu Paulo, parecendo uma figura estranha, em vista do sangue que lhe cobria o rosto e a túnica singela —, sou cidadão de Tarso e rogo-vos permissão para falar ao povo.

O         militar romano ficou boquiaberto com tamanha distinção de gestos e não teve outro recurso senão ceder, embora hesitante.

Sentindo-se num dos seus grandes momentos de tes­temunho, Paulo de Tarso subiu alguns degraus da esca­daria enorme e começou a falar em hebraico, impressio­nando a multidão com a profunda serenidade e elegância do discurso. Começou explicando suas primeiras lutas, seus remorsos por haver perseguido os discípulos do Mestre Divino; historiou a viagem a Damasco, a infinita bondade de Jesus que lhe permitira a visão gloriosa, dirigindo-lhe palavras de advertência e perdão. Rico das reminiscências de Estevão. falou do erro que havia come­tido em consentir na sua morte.

Ouvindo-lhe a palavra cinzelada de misteriosa beleza, Cláudio Lísias, tribuno romano que efetuara a prisão, experimentou sensações indefiníveis. Por sua vez, havia recebido certos benefícios daquele Cristo incompreendido a que se referia o orador em circunstâncias tão amargas. Tomado de escrúpulos, mandou chamar o tribuno Zelfos, de origem egípcia, que adquirira certos títulos romanos, pela expressão de sua enorme fortuna, e solicitou:

— Amigo — disse com voz quase imperceptível —, não desejo tomar aqui certas decisões, relativamente ao caso deste homem. A multidão está exaltada e é possível que ocorram acontecimentos muito graves. Desejaria tua cooperação imediata.

— Sem dúvida — respondeu o outro, resoluto.

E enquanto Lísias procurava examinar, de modo minucioso, a figura do Apóstolo, que falava de maneira impressionante, Zelfos desdobrava-se em providências oportunas. Reforçou a guarnição dos soldados, iniciou a formatura de um cordão de isolamento, buscando res­guardar o orador de um ataque imprevisto.

Paulo de Tarso, depois de circunstanciado relatório da sua conversão, começou a falar da grandeza do Cristo, das promessas do Evangelho, e quando se detinha a comentar suas relações com o mundo espiritual, de onde recebia as mensagens confortantes do Mestre, a massa inconsciente, furiosa, agitou-se em ânsias mesquinhas. Grande número de israelitas despia o manto, arrojando poeira no ar, num impulso característico de ignorância e maldade.

O momento era gravíssimo. Os mais exal­tados tentaram romper o cordão dos guardas para tru­cidar o prisioneiro. A ação de Zelfos foi rápida. Mandou recolher o Apóstolo ao interior da Torre Antônia. E enquanto Cláudio Lísias se recolhia à residência, a fim de meditar um pouco na sublimidade dos conceitos ouvi-dos, o companheiro de milícia tomou providências enér­gicas para dispersar a multidão. Não eram poucos os que teimavam em vociferar na via pública, mas o chefe militar mandou dispersar os recalcitrantes à pata de cavalo.

Conduzido a uma cela úmida, Paulo sentiu que os soldados o tratavam com a maior desconsideração. As feridas doíam-lhe penosamente. Tinha as pernas dolo­ridas e trôpegas. A túnica estava empapaçada de sangue. Os guardas impiedosos e irônicos amarraram-no a grossa coluna, conferindo-lhe o tratamento destinado aos crimi­nosos comuns. O Apóstolo, sentindo-se exausto e febril, chegou à conclusão de que não lhe seria fácil resistir à nova provação de martírio. Refletiu que não era justo entregar-se de todo às disposições perversas dos soldados que o guardavam. Lembrou que o Mestre se imolara na cruz, sem resistir à crueldade das criaturas, mas também afirmara que o Pai não deseja a morte do pecador. Não podia alimentar a presunção de entregar-se como Jesus, porque somente Ele possuía bastante amor para consti­tuir-se Enviado do Todo-Poderoso; e como se reconhecia pecador convertido ao Evangelho, era justo o desejo de trabalhar até ao último dia de suas possibilidades na Terra, em favor dos irmãos em humanidade e em bene­fício da própria iluminação espiritual.

Recordou a pru­dência que Pedro e Tiago sempre testemunharam para que as tarefas a eles confiadas não sofressem prejuízos injustificáveis e, verificando as suas escassas probabili­dades de resistência física, naquela hora inesquecível, gritou aos soldados:

—        Prendestes-me à coluna reservada aos crimino­sos, quando não podeis imputar-me falta alguma!... Vejo, agora, que preparais açoites para a flagelação, quando já me encontro banhado em sangue, no suplício imposto pela turba inconsciente...

Um dos guardas, um tanto irônico, procurou cor­tar-lhe a palavra e sentenciou:

—        Ora esta!... Não sois um Apóstolo do Cristo? Consta que teu Mestre morreu na cruz caladinho e, por fim, ainda pediu perdão para os algozes, alegando que ignoravam o que faziam.

Os companheiros do engraçado romperam em gar­galhadas estrídulas. Paulo de Tarso, entretanto, eviden­ciando toda a nobreza do coração, no fulgor do olhar, replicou sem hesitação:

—        Sim, rodeado pelo povo ignorante e inconsciente, no dia do Calvário, Jesus pediu a Deus perdoasse as tre­vas de espírito em que se submergia a multidão que lhe levantara o madeiro de ignomínia; mas os agentes do governo imperial não podem ser a turba que desconhece os próprios atos. Os soldados de César devem saber o que fazem, porque, se ignorais as leis, para cuja execução recebeis soldo, seria mais justo abandonardes o posto.

Os guardas ficaram imóveis, tomados de assombro.

Paulo, entretanto, continuou em voz firme:

—        Quanto a mim, pergunto-vos: — Será lícito açoi­tardes um cidadão romano, antes de condenado?

O         centurião que presidia os serviços da flagelação suspendeu os primeiros dispositivos. Zelfos foi chamado com espanto. Ciente do ocorrido, o tribuno interrogou o Apóstolo, sumamente admirado:

—        Dize-me. És de fato romano?

       — Sim.

Ante a firmeza da resposta, Zelfos achou razoável modificar o tratamento do prisioneiro. Receoso de com­plicações, ordenou que o ex-rabino fosse retirado do tron­co, permitindo-lhe ficar à vontade no acanhado âmbito da cela. Somente então, Paulo de Tarso conseguiu algum repouso num leito duro, recebendo uma bilha de água trazida com mais respeito e consideração. Saciou a sede intensa e dormiu, apesar das feridas sangrentas e do­lorosas.

Zelfos, contudo, não estava tranqüilo. Desconhecia, por completo, a condição do acusado.

       Temendo compli­cações prejudiciais para a sua posição, aliás invejável do ponto de vista político, procurou avistar-se com o tribuno Cláudio Lisias. Esclarecendo o motivo de sua preocupação, o outro murmurou:

—        Isso me surpreende, porque a mim afirmou que era judeu, natural de Tarso da Cuida.

Zelfos explicou, então, que tinha dificuldade para discernir a causa, concluindo:

—        Pelo que dizes, ele parece-me antes um mentiroso vulgar.

—        Isso não — exclamou Lisias —, naturalmente possuirá titulos de cidadania do Império e agiu por mo­tivos que não estamos habilitados a apreciar.

Percebendo que o amigo se irritara íntimamente com as suas primeiras alegações, Zelfos apressou-se a corrigir:

—        Teus conceitos são justos.

—        Tenho de emiti-los em consciência — acrescentou Lísias bem inspirado —, porque esse homem, desconhe­cido para nós ambos, falou de problemas muito sérios.

Zelfos pensou um instante e ponderou:

—        Considerando tudo isso, proponho seja apresen­tado, amanhã, ao Sinédrio. Julgo que somente assim poderemos encontrar uma fórmula capaz de resolver o assunto.

Cláudio Lísias recebeu o alvitre com displicência. No íntimo, sentia-se mais propenso a patronar a defesa do Apóstolo. Sua palavra, inflamada de fé, impressio­nara-o vivamente. Em breves, rápidos momentos de meditação, analisou todos os lances pró e contra uma atuação dessa natureza. Subtrair o acusado à persegui­ção dos mais exaltados era uma ação justa; mas disputar com o Sinédrio era uma atitude que reclamava mais prudência. Conhecia os judeus, muito de perto, e, por mais de uma vez, experimentara o grau de suas paixões e caprichos.

Compreendendo, igualmente, que não deve­ria despertar qualquer suspeita do colega, com relação às suas crenças religiosas, fez um gesto afirmativo e declarou:

—        Concordo com o alvitre. Amanhã, entregá-lo-emos aos juizes competentes em matéria de fé. Poderás deixar isso a meu cargo, porque o prisioneiro será acompanhado­ de escolta que o garanta contra qualquer vio­lência.

E assim foi. Na manhã seguinte, o mais alto Tri­bunal dos israelitas foi notificado pelo tribuno Cláudio Lísias de que o pregador do Evangelho compareceria perante os juizes para os inquéritos necessários, às pri­meiras horas da tarde. As autoridades do Sinédrio experimentaram enorme regozijo. Iam, enfim, rever o deser­tor da Lei, face a face. A notícia foi espalhada com invulgar rapidez.

Paulo, por sua vez, na solidão do cárcere, sentiu-se felicitado com uma grande surpresa, naquela manhã de sombrias perspectivas. É que, com permissão do tribuno, uma velha senhora e seu filho, ainda jovem, penetravam na cela a fim de visitá-lo.

Era sua irmã Dalila com o sobrinho Estefânio, que conseguiram, depois de muito esforço, permissão para uma entrevista ligeira. O Apóstolo abraçou a nobre senhora, com lágrimas de emoção. Ela estava alquebra­da, envelhecida, O jovem Estefânio tomou as mãos do tio e beijou-as com veneração e ternura.

Dalila falou das saudades longas, recordou episódios familiares com a poesia do coração feminino, e o ex-dou­tor de Jerusalém recebia todas as notícias, boas e más, com imperturbável serenidade, como se procedessem de um mundo muito diferente do seu.

Buscou, entretanto, confortar a irmã, que, a uma reminiscência mais dolo­rosa, se desfazia em prantos. Paulo historiou sucintamente as suas viagens, lutas, obstáculos dos caminhos palmilhados por amor de Jesus. A venerável senhora, embora alheia às verdades do Cristianismo, muito deli­cadamente não quis tocar nos assuntos religiosos, de­tendo-se nos motivos afetuosos de sua visita fraternal e chorando copiosamente ao despedir-se. Não podia com­preender a resignação do Apóstolo, nem apreciava devi­damente a sua renúncia.

Lastimava-lhe, íntimamente, a sorte e, no fundo, tal como a maioria dos compatriotas, desdenhava aquele Jesus que não oferecia aos discípulos senão cruzes e sofrimentos.

Paulo de Tarso, todavia, experimentara grande con­forto com a sua presença; sobretudo, a inteligência e a vivacidade de Estefânio, na ligeira palestra mantida, proporcionavam-lhe enormes esperanças no futuro espi­ritual do sobrinho.

Ainda repassava na mente essa grata impressão quando numerosa escolta se postava junto à cela, para acompanhá-lo ao Sinédrio, no momento oportuno.

Logo após o meio-dia, compareceu à barra do Tri­bunal e percebeu, de pronto, que o cenáculo dos gran­des doutores de Jerusalém vivia um dos seus grandes dias, repleto de compacta massa popular. Sua presença provocava uma aluvião de comentários. Todos queriam ver, conhecer o trânsfuga da Lei, o doutor que repudiara e deprimira os títulos sagrados. Sobremaneira comovido, o Apóstolo lembrou ainda uma vez a figura de Estevão. Competia-lhe, agora, dar igualmente o testemunho do Evangelho de verdade e redenção. A agitação do Siné­drio dava-lhe a mesma tonalidade dos tempos ali vividos. Ali, precisamente, infligira as mais duras humilhações ao irmão de Abigail e aos prosélitos de Jesus. Era justo, portanto, esperar, agora, acerbos e remissores sofrimen­tos. Depois, para cúmulo de amargura, a singular coinci­dência: o sumo-sacerdote que presidia o feito chamava-se também Ananias! Acaso? Ironia do destino?

Tal como se verificou com Jeziel, lido o libelo acusa­tório, deram a palavra ao Apóstolo para defender-se, em atenção às prerrogativas de nascimento.

Paulo entrou a justificar-se, sumamente respeitoso. Risos abafados, não raro, quebravam o silêncio ambiente, a indiciarem a termometria sarcasticamente hostil do auditório.

Quando a sua altiloqüente oratória começou a im­pressionar pela fidelidade do testemunho cristão, o sumo-sacerdote lhe impôs silêncio e vociferou enfático:

— Um filho de Israel, ainda que portador de títulos romanos, quando desrespeite as tradições desta casa, com afirmativas injuriosas à memória dos profetas, tor­na-se passível de severas reprimendas. O acusado parece ignorar o dever de explicar-se convenientemente, para tresvariar em conceitos. sibilinos, próprios da sua desre­grada e criminosa obsessão pelo carpinteiro revolucio­nário de Nazaré! Minha autoridade não permite abusos nos lugares santos. Determino, pois, que Paulo de Tarso seja ferido na boca, em desafronta aos seus termos insultuosos.

O         Apóstolo endereçou-lhe um olhar de serenidade indizível e replicou.

—        Sacerdote, vigiai o coração para não incidirdes em repressões injustas. Os homens, como vós, são como as paredes branqueadas dos sepulcros, mas não deveis ignorar que também sereis ferido pela justiça de Deus. Conheço de sobra as leis de que vos tornastes executor. Se aqui permaneceis para julgar, como e por que man­dais ferir?

Antes, porém, que pudesse prosseguir, um pequeno grupo de prepostos de Ananias avançou com açoites mi­núsculos, ferindo-o nos lábios.

—        Ousas injuriar o sumo-sacerdote? — exclamavam fulos de cólera. — Pagarás os insultos!...

As lambadas riscavam o rosto rugoso e venerando do ex-rabino, sob os aplausos gerais.

Vozes irônicas ele­vavam-se, incessantes, do seio da turba refece. Uns pe­diam mais rigor, outros, estentóricos, reclamavam o ape­drejamento. A serenidade do Apóstolo dava pleno teste­munho e mais acirrava os ânimos impulsivos e crimino­sos. Destacaram-se certos grupos de israelitas mais soezes e, cooperando com os verdugos, cuspinhamam-lhe o rosto.

Generalizou-se o tumulto. Paulo tentou falar, explicar-se mais detalhadamente, mas a confusão era tal que nada se ouvia e ninguém se entendia.

O sumo-sacerdote permitira a desordem deliberadamente. Os elementos principais do Sinédrio desejavam exterminar o ex-doutor a qualquer preço. O Tribunal só se prestara ao julgamento de entremez, porque havia percebido o interesse pessoal de Cláudio Lísias pelo prisioneiro. Não fora isso, Paulo de Tarso teria sido assas­sinado em Jerusalém, para satisfazer aos sentimentos odiosos dos inimigos gratuitos da sua abençoada tarefa apostólica. Solicitado pelo tribuno, presente à reunião memorial, Ananias conseguiu restabelecer a calma no ambiente. Depois de apelos desesperados, a assembléia emudeceu, expectante.

Paulo tinha o rosto a sangrar, a túnica em fran­galhos; mas, com surpresa e pasmo gerais, revelava no olhar, ao contrário de outros tempos, em circunstâncias dessa natureza, grande tranqüilidade fraternal, dando a entender que compreendia e perdoava os agravos da ignorância.

Supondo-se em posição vantajosa, o sumo sacerdote acentuou em tom arrogante:

—        Devias morrer como teu Mestre, numa cruz des­prezível! Desertor das tradições sagradas da pátria e blasfemo criminoso, não te bastam, por justo castigo, os sofrimentos que começas a experimentar entre os legíti­mos filhos de Israel!...

O         Apóstolo, no entanto, longe de acovardar-se, re­plicou tranqüilamente:

—        Juízo apressado o vosso... Não mereço a cruz do Redentor, porque a sua auréola é gloriosa demais para mim; entretanto, os martírios todos do mundo se­riam justos, aplicados ao pecador que sou. Temeis os sofrimentos porque não conheceis a vida eterna, considerais as provações como quem nada vê além destes efêmeros dias da existência humana. A política mesquinha vos distanciou o espírito das visões sagradas dos profetas!... Os cristãos, sabei-o, conhecem outra vida espiritual, suas esperanças não repousam em triunfos mendazes que vão apodrecer com o corpo no sepulcro! A vida não é isto que vemos na banalidade de todos os dias terrestres; é antes afirmação de imortalidade glo­riosa com Jesus-Cristo!

A palavra do orador parecia magnetizar, agora, a assembléia em peso. O próprio Ananias, não obstante a cólera surda, sentia-se incapaz de qualquer reação, como se algo de misterioso o compelisse a ouvir até ao fim. Imperturbável em sua serenidade, Paulo de Tarso prosseguiu:

— Continuai a ferir-me! Escarrai-me na face! Açoi­tai-me! Esse martirológio me exalta para uma esperança superior, porque já criei no meu íntimo um santuário intangível às vossas mãos e onde Jesus há de reinar para Sempre...

— Que desejais — continuou em voz firme — com as vossas arruaças e perseguições? Afinal, onde o mo­tivo para tantas lutas estéreis e destruidoras? Os cris­tãos trabalham, como o fez Moisés, para a crença em Deus e em nossa gloriosa ressurreição. É inútil dividir, fomentar a discórdia, tentar empanar a verdade com as ilusões do mundo. O Evangelho do Cristo é o Sol que ilumina as tradições e os fatos da Antiga Lei!...

Nesse ínterim, não obstante a estupefação de mui­tos, estabeleceu-se nova balbúrdia. Os saduceus atira­ram-se contra os fariseus, com gestos e apóstrofes deli­rantes. Em vão, o sumo-sacerdote procurava acalmar os ânimos. Um grupo mais exaltado tentava aproximar-se do ex-rabino, disposto a estrangulá-lo.

Foi aí que Cláudio Lísias, apelando para os soldados, fez-se ouvir na assembléia, ameaçando os contendores. Surpreendidos com o fato insólito, porqüanto os romanos jamais procuravam intervir em assuntos religiosos da raça, os trêfegos israelitas submeteram-se imediatamente. O tribuno dirigiu-se, então, a Ananias e reclamou o en­cerramento dos trabalhos, declarando que o prisioneiro voltaria ao cárcere da Torre Antônia, até que os judeus resolvessem ventilar o caso com mais critério e sere­nidade.

As autoridades do Sinédrio não disfarçaram seu enorme espanto; mas, como o governador da província continuava em Cesaréia, não seria razoável desatender ao seu preposto em Jerusalém.

Antes que se verificassem novos tumultos, Ananias declarou que o julgamento de Paulo de Tarso, consoante a ordem recebida, prosseguiria na próxima sessão do Tri­bunal, a realizar-se daí a três dias.

Os guardas retiraram o prisioneiro, com grande cautela, enquanto os israelitas mais eminentes buscavam conter os protestos isolados dos que acusavam Cláudio Lísias de parcial e simpatizante do novo credo.

Reconduzido à cela silenciosa, Paulo pôde respirar e refazer o ânimo para enfrentar a situação.

Experimentando justa simpatia por aquele homem valoroso e sincero, o tribuno tomou novas providências a seu favor. O ex-doutor da Lei estava mais satisfeito e aliviado. Teve um guarda para atendê-lo em qualquer necessidade, recebeu água em abundância, remédio, alimentos e a visita dos amigos mais íntimos. Essas mos­tras de apreço muito o comoviam. Espiritualmente, sen­tia-se até mais confortado; doía-lhe, porém, o corpo ferido, e físicamente estava exausto... Depois de palestrar alguns minutos, conforme a permissão recebida, com Lucas e Timóteo, sentiu que certas preocupações dolo­rosas lhe amarguravam o coração. Seria justo pensar numa viagem a Roma, quando seu estado físico era assim precário? Resistiria por muito tempo às tremendas per­seguições iniciadas em Jerusalém? Contudo, as vozes do mundo superior haviam-lhe prometido essa viagem à capital do Império... Não deveria duvidar das promessas feitas em nome do Cristo. Certa fadiga, aliada a grande amargura, começava a infirmar-lhe as esperanças sempre ativas. Mas, caindo numa espécie de modorra, percebeu, como de outras vezes, que uma viva claridade inundava o cubículo, ao mesmo tempo que suavíssima voz lhe sus­surrava:

— Regozija-te pelas dores que resgatam e iluminam a consciência! Ainda que os sofrimentos se multipliquem, renova os júbilos divinos da esperança!... Guarda o teu bom ânimo, porque assim como testificaste de mim, em Jerusalém, importa que o faças também em Roma!...

De pronto sentiu que novas forças lhe retempera­vam o combalido organismo.

A claridade da manhã surpreendeu-o quase bem dis­posto. Nas primeiras horas do dia, Estefânio procurava-o com certa ansiedade. Recebido com afetuoso interesse, o rapaz informou o tio dos graves projetos que se tra­mavam na sombra. Os judeus haviam jurado exterminar o convertido de Damasco, ainda que para isso houvessem de assassinar o próprio Cláudio Lísias. O ambiente no Sinédrio era de atividades odiosas. Projetava-se matar o pregador da gentilidade, à plena luz do dia, na próxima sessão do Tribunal. Mais de quarenta comparsas, dos mais fanáticos, haviam prometido, solenemente, a con­secução do sinistro desígnio. Paulo tudo ouviu e, calma­mente chamando o guarda, disse-lhe:

—        Peço-te conduzir este moço à presença do chefe dos tribunos para que o ouça sobre um assunto urgente.

Assim, Estefânio foi levado a Cláudio Lísias, apre­sentando-lhe a denúncia, O arguto e nobre patrício, com o tacto político que lhe caracterizava as decisões, pro­meteu examinar devidamente a questão, sem deixar pre­sumir a adoção de providências definitivas para burlar a conjura. Agradecendo a comunicação, recomendou ao jovem o máximo cuidado nos comentários da situação, a fim de não exacerbar maiormente os ânimos parti­dários.

Na solidão do seu gabinete, o tribuno romano pensou seriamente naquelas perspectivas sombrias. O Sinédrio, na sua capacidade de intrigar, poderia promover mani­festações do povo sempre versátil e agressivo. Rabinos apaixonados podiam mobilizar facínoras e quiçá assas­siná-lo em condições espetaculares. Mas, a denúncia par­tia de um jovem, quase criança.

Além disso, tratava-se de um sobrinho do prisioneiro. Teria dito a verdade ou seria mero instrumento de possível mistificação afetiva, nascida de justas preocupações da família?

Ainda bem não conseguira destrinçar as dúvidas para firmar con­duta, quando alguém pedia o obséquio de uma entrevista. Desejoso de atreguar cogitações assim graves, acedeu prontamente. Abriu a porta luxuosa e um velhinho de semblante calmo apareceu sorridente. Cláudio Lisias alegrou-se. Conhecia-o de perto. Devia-lhe favores, O visitante inesperado era Tiago, que vinha interpor sua generosa influência em favor do grande amigo de suas edificações evangélicas. O filho de Alfeu repetiu o plano já denunciado por Estefânio, minutos antes. E foi mais longe. Contou a história comovedora de Paulo de Tarso, revelando-se como testemunha imparcial de toda a sua vida e esclarecendo que o Apóstolo viera à cidade, por insistência de sua parte, a fim de combinarem momen­tosas providências atinentes à propaganda. Concluía a exposição atenciosa pedindo ao amigo ilustre medidas eficazes, para evitar o monstruoso atentado.

Maiormente apreensivo agora, o tribuno ponderou:

— Vossas considerações são justas; entretanto, sin­to dificuldadeS para coordenar providências imediatas. Não será melhor aguardar que os fatos se apresentem e reagir, então, à força com a força?

Tiago esboçou um sorriso de dúvidas e sentenciou:

—        Sou de parecer que vossa autoridade encontre recursos urgentes. Conheço as paixões judaicas e o furor de suas manifestações. Nunca poderei esquecer o odioso fermento dos fariseus, no dia do Calvário. Se receio pela sorte de Paulo, temo igualmente por vos mesmo.

A mul­tidão de Jerusalém é criminosa muitas vezes.

Lísias franziu a testa e refletiu longo tempo. Mas, arrancando-o de sua indecisão, o velho galileu apre­sentou-lhe a idéia de transferir o prisioneiro para Ce­saréia, tendo em vista um julgamento mais justo. A medida teria a virtude de subtrair o Apóstolo do ambiente irritado de Jerusalém e faria abortar de início o plano de homicídio; além disso, o tribuno permaneceria a salvo de suspeitas injustas, mantendo íntegras as tradições de respeito em torno do seu nome, por parte dos judeus malevolentes e ingratos. O feito seria conhecido apenas dos mais íntimos e o patrício designaria uma escolta de soldados corajosos para acompanhar o prisioneiro, de­vendo sair de Jerusalém depois de meia-noite.

Cláudio Lísias considerou a excelência das sugestões e prometeu pô-las em prática nessa mesma noite.

Logo que Tiago se despediu, o romano chamou dois auxiliares de confiança e deu as primeiras ordens para a formação da escolta, forte, de cento e trinta soldados. duzentos archeiros e setenta cavaleiros, sob cuja prote­ção Paulo de Tarso haveria de comparecer perante o go­vernador Félix, no grande porto palestinense. Os pre­postos, atendendo às instruções recebidas, reservaram para o prisioneiro uma das melhores montarias.

Alta noite, Paulo de Tarso foi chamado com grande surpresa. Cláudio Lísias explicou-lhe, em poucas palavras, o objetivo de sua decisão e a extensa caravana partiu em silêncio, rumo a Cesaréia.

Dado o caráter secreto das providências tomadas, a viagem correu sem incidentes dignos de menção. Apenas muitas horas depois partiam da Torre Antônia os res­pectivos informes, convencendo-se os judeus, com grande desapontamento, da inutilidade de quaisquer represálias.

Em Cesaréia o governador recebeu a expedição com enorme espanto. Conhecia o renome de Paulo e não era estranho às lutas que sustentava com os irmãos de raça, mas aquela caravana de quatrocentos homens armados, para proteger um preso, era de causar admiração.

Depois do primeiro interrogatório, o preposto má­ximo do Império, na província, sentenciou:

— Atento à origem judaica do acusado, nada posso julgar sem ouvir o órgão competente, de Jerusalém.

E mandou que o Sinédrio se fizesse representar na sede do Governo, com a maior urgência.

Os israelitas estavam sumamente satisfeitos com a ordem.

Conseqüentemente, cinco dias depois da remoção do Apóstolo, o próprio Ananias fizera questão de chefiar o conjunto de autoridades do Sinédrio e do Templo, que acorreram a Cesaréia com os projetos mais estranhos, relativamente à situação do adversário. Os velhos rabi­nos, conhecendo o poder da lógica e a formosura da palavra do ex-doutor de Tarso, fizeram-se acompanhar de Tértulo, uma das mais notáveis mentalidades que co­operavam no colendo sodalício.

Improvisado o Tribunal para decidir o feito, o orador do Sinédrio teve a prioridade da palavra, usando-a em tremendas acusações contra o indiciado réu, desenhando a cores negras todas as atividades do Cristianismo, e ter­minando por pedir ao governador a entrega do acusado aos seus irmãos de raça, a fim de ser por eles devida-mente julgado.

Concedido ao ex-rabino o ensejo de explicar-se, Paulo começou a falar com grande serenidade. Félix lhe obser­vou logo os elevados dotes intelectuais, os primores dialé­ticos e ouvia-lhe a argumentação com invulgar interesse. Os anciães de Jerusalém não sabiam ocultar a própria ira. Se possível, teriam espostejado o Apóstolo ali mes­mo, tal a irritação que os assomava, a contrastar com a tranqüilidade transparente da oratória e da pessoa do orador adverso.

O         governador teve grande embaraço para pronun­ciar o “veredictum”. De um lado, via os anciães de Israel em atitude quase colérica, reclamando direitos de raça; do outro, contemplava o Apóstolo do Evangelho, calmo, imperturbável, senhor espiritual do assunto, a esclarecer todos os pontos obscuros do processo singular, com a sua palavra elegante e refletida.

Reconhecendo o extremo valor daquele homem fran­zino e envelhecido, cujos cabelos pareciam encanecidos por dolorosas e sagradas experiências, o governador Félix modificou, apressadamente, suas primeiras impressões e encerrou os trabalhos nestes termos:

— Senhores, reconheço que o processo é mais grave do que julguei à primeira vista.

Neste caso, resolvo adiar a sentença definitiva, até que o tribuno Cláudio Lísias seja convenientemente ouvido.

Os anciães morderam os lábios. Debalde o sumo-sa­cerdote solicitou a continuação dos trabalhos. O man­datário de Roma não modificou o ponto de vista e a grande assembléia dissolveu-se, com imenso pesar dos israelitas constrangidos a regressar, extremamente desa­pontados.

Félix, entretanto, passou a considerar o prisioneiro com maior deferência. No dia seguinte, foi visitá-lo, concedendo-lhe permissão para receber os amigos na sala do expediente. Depreendendo que Paulo gozava de grande prestígio entre e perante todos os seguidores da doutrina do profeta nazareno, imaginou, desde logo, tirar algum proveito da situação. Cada vez que o visi­tava, surpreendia-lhe maior acuidade mental, a interes­sá-lo pela sua palestra viva e palpitante de observações sábias, no conceito e na experiência da vida.

Certo dia, o governador abordou jeitosamente o prisma dos interesses pessoais, insinuando-lhe a vantagem­ da sua libertação, de maneira a atender às aspira­ções da comunidade cristã, a que emprestava tanto relevo.

Paulo, porém, observou resoluto:

—        Não sou tanto de vossa opinião. Sempre consi­derei que a primeira virtude do cristão é estar pronto para obedecer à vontade de Deus, em qualquer parte. Certo, não estou detido à revelia de sua assistência e proteção, e desta forma acredito que Jesus julga melhor conservar-me prisioneiro, nos dias que correm. Servi-lo-ei, pois, como se estivesse em plena liberdade de corpo.

—        Entretanto, continuou Félix, sem coragem para ferir diretamente o ponto —, vossa independência não seria coisa muito difícil.

—        Como assim?

—        Não tendes amigos ricos e influentes em todos os recantos provinciais? — interrogou o preposto gover­namental, de maneira ambígua.

—        Que desejais dizer com isso? — perguntou o Apóstolo por sua vez.

—        Creio que se conseguísseis o dinheiro suficiente para atender aos interesses pessoais de quantos hajam de funcionar no processo, estaríeis completamente livre da ação da justiça, dentro de poucos dias.

Paulo compreendeu as insinuações mal veladas e nobremente revidou:

       - Percebo agora. Falais de uma justiça condicio­nada ao capricho criminoso dos homens.

       Essa justiça não me interessa. Ser-me-á preferível conhecer a morte no cárcere, a servir de obstáculo à redenção espiritual do mais humilde dos funcionários de Cesaréia. Dar-lhes dinheiro em troca de uma independência ilícita, seria habituá-los ao apego dos bens que lhes não pertencem. Minha atividade seria, então, um esforço reconhecidamente perverso. Além do mais, quando temos a consciên­cia pura, ninguém nos pode tolher a liberdade e eu me sinto aqui tão livre como lá fora, na praça pública.

       O governador recebeu a observação franca e áspera, disfarçando o seu enleio. A lição humilhava-o duramente e, desde então, desinteressou-se da causa. Já havia, po­rém, comentado, entre os amigos mais íntimos, a privi­legiada inteligência do prisioneiro de Cesaréia e, daí a dias, sua jovem esposa Drusila manifestava-lhe o desejo de conhecer e ouvir o Apóstolo. A seu mau grado, não podendo esquivar-se, acabou por levá-la à presença do ex-rabino.

Judia de origem, Drusila não se contentou, qual fizera o marido, com simples indagações superficiais. Desejosa de sondar-lhe as idéias mais profundas, pediu-lhe um comentário geral da nova doutrina que esposara e procurava difundir.

Perante destacadas figuras da Corte Provincial, o va­loroso Apóstolo dos gentios fez brilhante panegírico do Evangelho, ressaltando a inolvidável exemplificação do Cristo e os deveres do proselitismo que repontava de todos os recantos do mundo. A maioria dos ouvintes escutava-o com evidentes mostras de interesse; mas, quando ele co­meçou a falar da ressurreição e dos deveres do homem em face das responsabilidades no mundo espiritual, o governador fez-se pálido e interrompeu a pregação.

— Por hoje basta! — disse com autoridade. — Meus familiares poderão ouvir-vos de outra feita, se lhes aprouver, pois quanto a mim não creio na existência de Deus.

Paulo de Tarso recebeu a observação com serenidade e respondeu com benevolência:

— Agradeço a delicadeza da vossa declaração e todavia, senhor governador, ouso encarecer-vos a neces­sidade de ponderar o assunto, porque, quando um homem afirma não aceitar a paternidade do Todo-Poderoso, é que, em regra, se arreceia do julgamento de Deus.

Félix lançou-lhe um olhar raivoso e retirou-se com os seus, prometendo a si próprio deixar o prisioneiro entregue à sua sorte.

À vista disso, embora respeitado pela franqueza e lealdade, Paulo houve de amargar dois anos de reclusão em Cesaréia, tempo esse aproveitado em relações cons­tantes com as suas igrejas bem-amadas. Inumeráveis mensagens iam e vinham, trazendo consultas e levando pareceres e instruções.

A esse tempo, o ex-doutor de Jerusalém chamou a atenção de Lucas para o velho projeto de escrever uma biografia de Jesus, valendo-se das informações de Maria; lamentou não poder ir a Éfeso, incumbindo-o desse tra­balho, que reputava de capital importância para os adeptos do Cristianismo, O médico amigo satisfez-lhe integralmente o desejo, legando à posteridade o precioso relato da vida do Mestre, rico de luzes e esperanças divinas. Terminadas as anotações evangélicas, o espírito dinâmico do Apóstolo da gentilidade encareceu a neces­sidade de um trabalho que fixasse as atividades apostóli­cas logo após a partida do Cristo, para que o mundo conhecesse as gloriosas revelações do Pentecostes, e assim se originou o magnífico relatório de Lucas, que é — Atos dos Apóstolos.

Não obstante a condição de prisioneiro, o conver­tido de Damasco não relaxou o trabalho um só dia, va­lendo-se de todos os recursos ao seu alcance, em favor da difusão da Boa Nova.

O tempo corria célere. Os israelitas, no entanto, nunca desistiram do primitivo plano de eliminar o va­loroso campeão das verdades do Céu. O governador foi abordado, várias vezes, sobre a oportunidade de reenviar o encarcerado a Jerusalém; entretanto, ao lembrar-se de Paulo, a consciência lhe vacilava. Além do que por si mesmo observara, ouvira o tribuno Cláudio Lísias que lhe falara do ex-rabino com indisfarçável respeito. Mais por medo dos poderes sobrenaturais atribuídos ao Apósto­lo, que por dedicação aos seus deveres de administrador, resistiu a todas as investidas dos judeus, mantendo-se firme no propósito de custodiar o acusado, até que sur­gisse o ensejo de um julgamento mais ponderado.

Dois anos de prisão contava a folha corrida do gran­de amigo dos gentios. Uma ordem imperial transferira Félix para a administração de outra província. Sem es­quecer a mágoa que a franqueza de Paulo lhe causara, fez questão de o abandonar à própria sorte.

O novo governador, Pórcio Festo, chegou a Cesaréia em meio de ruidosas manifestações populares. Jerusalém não poderia esquivar-se às homenagens políticas e, tão logo assumira o poder, o ilustre patrício foi visitar a grande cidade dos rabinos. O Sinédrio aproveitou o ensejo para requisitar, instantemente, o velho inimigo de tantos anos. Um grupo de doutores da Lei Antiga buscou avistar-se, cerimoniosamente, com o generoso romano, solicitando a restituição do prisioneiro para julgamento do Tribunal religioso. Festo recebeu a comissão, cavalheirescamente, e mostrou-se inclinado a atender, mas, prudente por índole e por dever do cargo, declarou que preferia solucionar a questão em Cesaréia, onde se lhe facultava conhecer o assunto com os detalhes imprescin­díveis. Para esse fim, convidava os rabinos a acompa­nhá-lo no seu regresso. Os israelitas exultaram de con­tentamento. Espalharam-se os mais sinistros projetos, para a recepção do Apóstolo em Jerusalém.

O         governador ali ficou dez dias, mas, antes que regressasse, alguém se encaminhava a Cesaréia, de cora­ção oprimido e ansioso. Era Lucas, que, esforçado e solícito, propunha-se informar o prisioneiro de todas as singulares ocorrências. Paulo de Tarso ouvia-o com atenção e serenidade; mas, quando o companheiro passou a relatar os planos do Sinédrio, o amigo do gentilismo fez-se pálido. Estava definitivamente assentado que o trânsfuga seria crucificado, como o Divino Mestre, no mesmo local da Caveira. Havia preparativos para ence­nar fielmente o drama do Calvário. O acusado carregaria a cruz até lá, arrostando os sarcasmos da populaça e havia até quem falasse no sacrifício de dois ladrões, para que se repetissem todos os detalhes característicos do martírio do Carpinteiro.

Poucas vezes o Apóstolo manifestara tamanha im­pressão de espanto. Por fim, acrimonioso e enérgico, exclamou:

—        Tenho experimentado açoites, apedrejamentos e insultos por toda parte, mas, de todas as perseguições e provações, esta é a mais absurda...

O         próprio médico não sabia como interpretar esse conceito, quando o ex-rabino prosseguiu:

— Temos de evitar isso, por todos os meios ao nosso alcance. Como encarar essa deliberação extravagante de repetir a cena do Calvário? Qual o discípulo que teria a coragem de submeter-se a essa falsa paródia com a idéia mesquinha de atingir o plano do Mestre, no teste­munho aos homens? O Sinédrio está enganado. Ninguém no mundo logrará um Calvário igual ao do Cristo. Sabe­mos que em Roma os cristãos começam a morrer no sacrifício, tomados por escravos misérrimos. Os poderes perversos do mundo desencadeiam a tempestade de igno­mínias sobre a fronte dos seguidores do Evangelho. Se eu tiver de testificar de Jesus, fá-lo-ei em Roma. Saberei morrer junto dos companheiros, como um homem comum e pecador; mas não me submeterei ao papel de falso imitador do Messias prometido. Destarte, já que o pro­cesso vai ser novamente debatido pelo novo governador, apelarei para César.

O         médico fez um gesto de assombro. Como a maio­ria dos cristãos eminentes de todas as épocas, Lucas não conseguia compreender aquele gesto, interpretado, à primeira vista, como negativa do testemunho.

—        Entretanto — objetou com certa hesitação —Jesus não recorreu para as altas autoridades no sacri­fício da cruz, e eu receio que os discípulos não saibam interpretar tua atitude, como convém.

—        Discordo de ti — respondeu Paulo, resoluto

se as comunidades cristãs não puderem compreender mi­nha resolução, prefiro passar a seus olhos como pedante e desatento, nesta hora singular de minha vida. Sou pecador e devo desprezar o elogio dos homens. Se me condenarem, não estarão em erro. Sou imperfeito e pre­ciso testemunhar nessa condição verdadeira de minha vida. De outro modo seria perturbar minha consciência, provocando um falso apreço humano.

Muito impressionado, Lucas guardou a lição ines­quecível.

Três dias depois dessa entrevista, o governador re­gressava à sede do Governo provincial, acompanhado de numeroso séquito de israelitas dispostos a conseguir a entrega do famoso prisioneiro.

Pórcio Festo, com a serenidade que lhe marcava as atitudes políticas, procurou conhecer imediatamente a situação. Reviu o processo meticulosamente, inteirando­-se dos títulos de cidadania romana do acusado, de acordo com a legislação em vigor. E notando a insistência dos rabinos que denotavam enorme ansiedade pela solução do assunto, convocou uma reunião para novo exame das declarações do acusado, no intuito de satisfazer a política regional de Jerusalém.

O convertido de Damasco, alquebrado de corpo, mas sempre revigorado de espírito, compareceu à assembléia sob os olhares rancorosos dos irmãos de raça, que plei­teavam sua remoção a todo custo. O Tribunal de Cesaréia atraía grande multidão, ansiosa de conhecer o novo jul­gamento. Discutiam os israelitas, os cristãos comen­tavam os debates em atitude defensiva. Mais de uma vez, Pórcio Festo foi obrigado a levantar a voz, recla­mando atenção e silêncio.

Abertos os trabalhos da assembléia singular, o go­vernador interrogou o acusado, com energia cheia de nobreza.

Paulo de Tarso, entretanto, respondeu a todas as argüições com a serenidade que lhe era peculiar. Não obstante a manifesta animosidade dos judeus, declarou que em nada os havia ofendido e não se recordava de qualquer ato de sua vida no qual houvesse atacado o Templo de Jerusalém ou as leis de César.

Festo percebeu que tratava com um espírito culto e eminente, e que não seria tão fácil entregá-lo ao Siné­drio, conforme julgara a princípio. Alguns rabinos ha­viam insistido para que ordenasse a remoção para Jeru­salém, pura e simplesmente, à revelia de quaisquer preceitos legais. O governador não hesitaria, nesse par­ticular, fazendo valer sua influência política; mas, não quis praticar um ato arbitrário antes de conheçer as qualidades morais do homem focalizado pelas intrigas judaicas. No íntimo, considerava que, se se tratasse de uma personagem vulgar, poderia entregá-lo sem receio à autoridade tirânica do Sinédrio que, certo, o liqüida­ria; mas, outro tanto não aconteceria, caso verificasse nobreza e inteligência no prisioneiro, porqüanto, com o seu acurado senso político, não desejava adquirir um inimigo capaz de prejudicá-lo a qualquer tempo. Tendo reconhecido os altos dotes intelectuais e morais do Após­tolo, modificou inteiramente a sua atitude. Passou logo a considerar com mais severidade o interlocutor, che­gando à conclusão de que seria crime agir com par­cialidade no feito. Além da cultura que o acusado exibia, tratava-se de um cidadão romano por títulos legitima­mente adquiridos. Formulando novas conjeturas e com imensa surpresa para os representantes confiados do Sinédrio, Pórcio Festo perguntou ao prisioneiro se con­sentia em voltar a Jerusalém, a fim de lá ser julgado, perante ele próprio, pelo Tribunal religioso da sua raça. Paulo de Tarso, compreendendo a cilada dos israelitas, replicou tranqüilamente, enchendo a assembléia de assombro:

—        Senhor governador, estou diante do Tribunal de César, a fim de ser definitivamente julgado. Há mais de dois anos espero a decisão de um processo que não posso compreender. Como sabeis, a ninguém ofendi. Minha prisão derivou, tão-só, das intrigas religiosas de Jerusalém. Desafio, neste particular, o conceito dos mais exigentes. Se pratiquei algum ato indigno, peço, eu mesmo, a sentença de morte. Convocado a novo jul­gamento, acreditei tivésseis a coragem necessária para romper com as aspirações inferiores do Sinédrio, fazendo justiça à vossa longanimidade de administrador conscien­cioso e reto. Continuo confiando na vossa autoridade, na vossa imparcialidade, isenta de favor, que ninguém poderá exigir dos vossos encargos honrosos e delica­dos. Examinai detidamente as acusações que me retêm no cárcere de Cesaréia! Verificareis que nenhum poder provincial poderá entregar-me à tirania de Jerusalém! Reconhecendo essa valiosa circunstância e invocando meus títulos, embora creia sinceramente em vossas deli­berações sábias e justas, apelo, desde já, para César!...

A atitude inesperada do Apóstolo dos gentios pro­vocou geral espanto. Pórcio Festo, muito pálido, en­golfou-se em sérias cogitações. De sua cátedra de juiz, ensinara, generosamente, o caminho da vida a muitos acusados e malfeitores; entretanto, naquela hora inolvidável de sua existência, encontrava um réu que lhe falava ao coração. A resposta de Paulo valia um pro­grama de justiça e de ordem. Com imensa dificuldade pedia o restabelecimento da calma, no recinto. Os repre­sentantes do judaísmo discutiam acaloradamente entre si; alguns cristãos, mais apressados, comentavam desfa­voravelmente a atitude do Apóstolo, apreciando-a super­ficialmente, como se constituísse uma negação do tes­temunho. O governador reuniu, à pressa, o pequeno conselho dos rabinos mais influentes.

Os doutores da Lei antiga insistiram pela adoção de medidas mais enér­gicas, no pressuposto de que Paulo se modificaria com algumas bastonadas. Entretanto, sem desprezar a opor­tunidade de mais uma prestigiosa lição para sua vida pública, o governador cerrou ouvidos às intrigas de Jerusalém, afirmando que de modo algum podia tran­sigir no cumprimento do dever, naquele significativo instante de sua vida. Desculpou-se, desapontado, com os velhos políticos do Sinédrio e do Templo, que o fixavam com olhos rancorosos e pronunciou as célebres palavras.

—        Apelaste para César? Irás a César!

Com essa antiga fórmula ficaram encerrados os trabalhos do novo julgamento. Os representantes do Sinédrio retiraram-se extremamente irritados, exclaman­do um deles, em voz alta, para o prisioneiro que recebeu o insulto serenamente:

—        Só os desertores malditos apelam para César. Vai-te para os gentios, indigno intrujão!...

O         Apóstolo fixou-o com benignidade, enquanto se preparava para voltar ao cárcere.

O governador, sem perder tempo, determinou se anotasse a petição do réu, para prosseguimento do feito. No dia seguinte demorou-se a estudar o caso e sentiu-se presa de grande indecisão. Não podia enviar o acusado à capital do Império, sem justificar os motivos da prisão, por tanto tempo, nos cárceres de Cesaréia. Como pro­ceder? Mas, decorridos alguns dias, Herodes Agripa e Berenice vinham saudar o novo governador, em visita cerimonioSa e imprevista. O preposto imperial não pôde dissimular as preocupações que o absorviam, e depois das solenidades protocolares, devidas a hóspedes tão ilustres, Contou a Agripa a história de Paulo de Tarso, cuja personalidade empolgava os mais indiferentes. O rei palestinense, que conhecia a fama do ex-rabino, ma­nifestou desejo de observá-lo de perto, ao que Festo anuiu satisfeitíssimo, não somente pela possibilidade de proporcionar um prazer ao hóspede generoso, senão tam­bém por esperar das impressões do mesmo algo de útil para ilustrar o processo do Apóstolo, que lhe incumbia enviar para Roma.

Pórcio deu a esse ato um caráter festivo. Convidou as personalidades mais eminentes de Cesaréia, reunindo luzida assembléia em torno do rei, no melhor e mais vasto auditório da Corte Provincial. Primeiramente houve bailados e música; em seguida, o convertido de Damasco, devidamente escoltado, foi apresentado pelo próprio go­vernador, em termos discretos, mas cordiais e sinceros.

Herodes Agripa impressionou-se logo, vivamente, com a figura alquebrada e franzina do Apóstolo, cujos olhos serenos traduziam a energia inquebrantável da raça. Curioso por conhecê-lo melhor, mandou que se defendesse de viva voz.

Paulo compreendeu a profunda significação daquele minuto e passou a historiar os transes da sua existência com grande erudição e sinceridade. O rei ouvia assom­brado. O ex-rabino evocou a infância, deteve-se nas reminiscências da mocidade, explicou sua aversão aos se­guidores do Cristo Jesus e, exuberante de inspiração, traçou o quadro do seu encontro com o Mestre redivivo, às portas de Damasco, à viva luz do sol. Em seguida, passou a enumerar os feitos da obra de gentilidade, as perseguições sofridas em toda parte por amor ao Evan­gelho, concluíndo, com veemência, que, sem embargo, suas pregações não contrariavam, antes corroboravam as pro­fecias da Lei Antiga, desde Moisés.

Dando curso à imaginação ardente e fácil, o orador tinha os olhos jubilosos e brilhantes.

A assembléia aris­tocrática estava eminentemente impressionada com os fatos narrados, denotando entusiasmo e alegria. Herodes Agripa, muito pálido, tinha a impressão de haver encon­trado uma das mais profundas vozes da revelação divina. Pórcio Festo não ocultava a surpresa que lhe assaltara subitamente o espírito. Não presumia no prisioneiro tamanho cabedal de fé e persuasão. Ouvindo o Apóstolo descrever as cenas mais belas do seu apostolado com os olhos repletos de alegria e de luz, transmitindo ao audi­tório atento e comovido idéias imprevistas e singulares, o governador considerou que se trataria de um louco sublime e disse-lhe, em alta voz, na intercorrência de uma pausa mais prolongada:

—        Paulo, és um desvairado! As muitas letras fa­zem-te delirar!...

O         ex-rabino, longe de se atemorizar, respondeu no­bremente:

—        Enganais-vos! Não sou um louco! Diante da vossa autoridade de romano ilustre, eu não me atreveria a falar desta maneira, pois reconheço que não estais de­vidamente preparado para ouvir-me. Os patrícios de Augusto são também de Jesus-Cristo, mas ainda não conhecem plenamente o Salvador. A cada qual, devemos falar de acordo com sua capacidade espiritual. Aqui, porém, senhor governador, se falo com ousadia é por­que me dirijo a um rei que não ignora o sentido de minhas palavras. Herodes Agripa terá ouvido Moisés, desde a infância. É romano pela cultura, mas alimen­tou-se da revelação de Deus aos seus antepassados. Nenhuma de minhas afirmações lhe pode ser desconhe­cida. De outro modo, ele trairia sua origem sagrada, pois todos os filhos da nação que aceitou o Deus único devem conhecer a revelação de Moisés e dos profetas. Credes assim, rei Agripa?

A pergunta causou enorme espanto. O próprio admi­nistrador provincial não teria coragem de se dirigir ao rei com tamanha desenvoltura. O ilustre descendente de Ântipas estava altamente surpreendido. Extrema palidez cobria-lhe o semblante. Ninguém, assim, jamais lhe houvera falado em toda a sua vida.

Percebendo-lhe a atitude mental, Paulo de Tarso completou a poderosa argumentação, acrescentando:

—        Sei que credes!...

Confuso com o desembaraço do orador, Agripa sa­cudiu a fronte como se desejasse expulsar alguma idéia importuna, esboçou um sorriso vago, dando a entender que estava senhor de si, e disse em tom de gracejo:

—        Ora esta! por pouco me persuades a fazer uma profissão de fé cristã...

O         Apóstolo não se deu por vencido e revidou:

—        Oxalá que, por pouco ou muito, vos fizésseis discípulo de Jesus; não somente vós, mas todos quantos nos ouviram hoje.

Pórcio Festo compreendeu que o rei estava muito mais impressionado do que se supunha e, desejoso de modificar o ambiente, propôs que as altas personalidades se retirassem para a refeição da tarde, em palácio. O ex-rabino foi reconduzido ao cárcere, deixando nos ouvin­tes imorredoura impressão. Berenice, sensibilizada, foi a primeira a manifestar-se, reclamando demência para o prisioneiro. Os demais seguiram a mesma corrente de benévola simpatia. Herodes Agripa tentou uma fórmula digna para que o Apóstolo fosse restituido à liberdade. O governador, porém, explicou que, conhecendo a fibra moral de Paulo, tomara a sério o seu recurso para César, estando já pergaminhadas as primeiras instruções a res­peito. Cioso das leis romanas, pôs embargos ao alvitre, embora pedisse o socorro intelectual do rei para a carta. de justificação, com que o acusado deveria apresentar-se à autoridade competente, na capital do Império. Dese­joso de conservar sua tranqüilidade política, o descen­dente dos Herodes não aventou qualquer nova sugestão, lamentando apenas que o prisioneiro já houvesse recor­rido em derradeira instância. Procurou então cooperar na redação do documento, mostrando-se contrário ao pre­gador do Evangelho tão-só pela circunstância de haver suscitado muitas lutas religiosas na camada popular, em desacordo com a unidade de fé colimada pelo Sinédrio como baluarte defensivo das tradições do judaísmo. Para isso, o próprio rei assinara como testemunha, empres­tando maior importância às alegações do preposto im­perial. Pórcio Festo registrou o auxílio, extremamente satisfeito. Estava resolvido o problema e Paulo de Tarso poderia partir com a primeira leva de sentenciados, para Roma.

Escusado dizer que recebeu a notícia com sereni­dade. Depois de um entendimento com Lucas, pediu que a igreja de Jerusalém fosse avisada, bem como a de Sídon, onde o navio, certo, haveria de receber carga e passageiros. Todos os amigos de Cesaréia foram mobilizados no serviço das comovedoras mensagens que o ex-rabino dirigiu às amadas igrejas, menos Timóteo, Lucas e Aristarco, que se propunham acompanhá-lo à capital do Império.

Os dias correram, céleres, até que chegou o mo­mento em que o centurião Júlio com a sua escolta foi buscar os prisioneiros para a viagem tormentosa. O cen­turião tinha plenos poderes para determinar todas as providências e, logo, evidenciando simpatia pelo Apóstolo, ordenou fosse ele conduzido à embarcação desalgemado, em contraste com os demais prisioneiros.

O         tecelão de Tarso, apoiado ao braço de Lucas, reviu, placidamente, a tela clara e barulhenta das ruas, afagan­do a esperança de uma vida mais alta, em que os homens pudessem gozar fraternidade em nome do Senhor Jesus. Seu coração mergulhava em doces reflexões e preces ardentes, quando foi surpreendido com a compacta mul­tidão que se premia e agitava na extensa praça a bei­ra-mar.

Filas de velhos, de jovens e crianças, aglomeraram-se junto dele, a poucos metros da praia. À frente, Tiago alquebrado e velhinho, vindo de Jerusalém com grande sacrifício, por trazer-lhe o ósculo fraternal. O ardente defensor da gentilidade não conseguiu dominar a emoção. Bandos de crianças atiraram-lhe flores. O filho de Alfeu, reconhecendo a nobreza daquele Espírito heróico, tomou-lhe a destra e beijou-a com efusão. Ali estava com todos os cristãos de Jerusalém, em condições de fazer a viagem. Ali estavam confrades de Jope, de Lida, de Antipátris, de todos os quadrantes provinciais. As crian­ças da gentilidade uniam-se aos pequeninos judeus, que saudavam carinhosamente o Apóstolo prisioneiro. Velhos aleijados aproximavam-se respeitosos e exclamavam:

— Não deveríeis partir!...

Mulheres humildes agradeciam os benefícios rece­bidos de suas mãos. Doentes curados comentavam a colônia de trabalho que ele sugerira e ajudara a fundar na igreja de Jerusalém e proclamavam sua gratidão em altas vozes. Os gentios, convertidos ao Evangelho, bei­javam-lhe as mãos, murmurando:

— Quem nos ensinará doravante, a sermos filhos do Altíssimo?

Meninos amorosos apegavam-se-lhe à túnica, sob os olhares de mães consternadas.

Todos lhe pediam que ficasse, que não partisse, que voltasse breve para os serviços abençoados de Jesus.

Subitamente, recordou a velha cena da prisão de Pedro, quando, ele, Paulo, arvorado em verdugo dos dis­cípulos do Evangelho, visitara a igreja de Jerusalém, che­fiando uma expedição punitiva. Aqueles carinhos do povo lhe falavam brandamente à alma. Significavam que já não era o algoz implacável que, até então, não pudera compreender a misericórdia divina; traduziam a quitação do seu débito com a alma do povo. De consciência um tanto aliviada, recordou-se de Abigail e começou a cho­rar. Sentia-se, ali, como no seio dos “filhos do Calvário” que o abraçavam, reconhecidos. Aqueles mendigos, aque­les aleijados, aquelas criancinhas eram a sua família. Naquele inesquecível minuto da sua vida, sentia-se plenamente identificado no ritmo da harmonia universal. Bri­sas suaves de mundos diferentes balsamizavam-lhe a alma, como se houvesse atingido uma região divina, depois de vencer grande batalha. Pela primeira vez, al­guns pequeninos chamaram-lhe “pai”. Inclinou-se, com mais ternura, para as criancinhas que o rodeavam. Inter­pretava todos os episódios daquela hora inolvidável como uma bênção de Jesus que o ligava a todos os seres. À sua frente, o oceano em calma assemelhava-se a um caminho infinito e promissor de misteriosas e inefáveis belezas.

Júlio, o centurião da guarda, aproximou-se comovido e falou com brandura:

—        Infelizmente, chegou o momento de partir.

E, testemunha das manifestações tributadas ao Após­tolo, também ele tinha os olhos úmidos. Muitos réus se lhe haviam já deparado naquelas circunstâncias e eram todos revoltados, desesperados, ou penitentes arrepen­didos. Aquele, porém, estava sereno e quase feliz. Júbilo indizível lhe transbordava dos olhos brilhantes. Além disso, sabia que aquele homem, dedicado ao bem de todas as criaturas, não cometera falta alguma. Por isso mesmo, conservou-se ao seu lado, como querendo compartilhar dos transportes afetuosos do povo, como a demonstrar a consideração que lhe merecia.

O         Apóstolo dos gentios abraçou os amigos pela últi­ma vez. Todos choravam discretamente, à maneira dos sinceros discípulos de Jesus, que não pranteiam sem con­solo: as mães ajoelhavam-se com os filhinhos na areia alva, os velhos, apoiando-se a rudes cajados, com imenso esforço. Todos os que abraçavam o campeão do Evan­gelho, punham-se de joelhos, rogando ao Senhor que abençoasse o seu novo roteiro.

Concluíndo as despedidas, Paulo acentuava com se­renidade heróica:

—        Choremos de alegria, irmãos! Não há maior gló­ria neste mundo que a de estar o homem a caminho de Cristo Jesus!... O Mestre foi ao encontro do Pai, através dos martírios da Cruz! Abençoemos nossa cruz de cada dia. É preciso trazermos as marcas do Senhor Jesus! Não acredito possa voltar aqui, com este alquebrado corpo de minhas lutas materiais. Espero que o Senhor me conceda o derradeiro testemunho em Roma; entre­tanto, estarei convosco pelo coração; voltarei às nossas igrejas em Espírito; cooperarei no vosso esforço nos dias mais amargos. A morte não nos separará, tal como não separou o Senhor da comunidade dos discípulos. Nunca estaremos distantes uns dos outros e, por isso mesmo, prometeu Jesus que estaria ao nosso lado até ao fim dos séculos!...

Júlio ouviu a exortação, comovidamente. Lucas e Aristarco soluçavam baixinho.

A seguir, o Apóstolo tomou o braço do médico amigo e, seguido de perto pelo centurião, caminhou resoluto e sereno em demanda do barco.

Centenas de pessoas acompanharam as manobras da largada, em santificado recolhimento regado de lágrimas e preces. Enquanto o navio se afastava lento, Paulo e os companheiros contemplavam Cesaréia, de olhos ume­decidos. A multidão silenciosa, dos que ficavam em pran­to, acenava e ondeava na praia que a distância, aos poucos, diluía. Jubiloso e reconhecido, Paulo de Tarso descansava o olhar no campo de suas lutas acerbas, me­ditando nos longos anos de viltas e reparações necessá­rias. Recordava a infância, os primeiros sonhos da juven­tude, as inquietações da mocidade, os serviços dignifi­cantes do Cristo, sentindo que deixava a Palestina para sempre. Grandiosos pensamentos o empolgavam, quando Lucas se aproximou e, apontando a distância os amigos que continuavam genuflexos, exclamou brandamente:

— Poucos fatos me comoveram tanto no mundo, como este! Registrarei nas minhas anotações como foste amado por quantos receberam das tuas mãos fraternais o benefício de Jesus!...

Paulo pareceu ponderar profundamente a advertên­cia e acentuou:

— Não, Lucas. Não escrevas sobre virtudes que não tenho. Se me amas não deves expor meu nome a falsos julgamentos. Deves falar, isso sim, das perseguições por mim movidas aos seguidores do santo Evangelho; do favor que o Mestre me dispensou às portas de Damasco, para que os homens mais empedernidos não desesperem da salvação e aguardem a sua misericórdia no momento justo; citarás os combates que temos travado desde o pri­meiro instante, em face das imposições do farisaísmo e das hipocrisias do nosso tempo; comentarás os obstáculos vencidos, as humilhações dolorosas, as dificuldades sem conta, para que os futuros discípulos não esperem a re­denção espiritual com o repouso falso do mundo, confiantes no favor incompreensível dos deuses e sim com trabalhos ásperos, com sacrifícios abençoados pelo aper­feiçoamento de si mesmos; falarás de nossos encontros com os homens poderosos e cultos; de nossos serviços junto dos desfavorecidos da sorte, para que os seguidores do Evangelho, no futuro, não se arreceiem das situações mais difíceis e escabrosas, conscientes de que os mensa­geiros do Mestre os assistirão, sempre que se tornem instrumentos legítimos da fraternidade e do amor, ao longo dos caminhos que se desdobram à evolução da Humanidade.

E depois de longa pausa, em que observou a atenção com que Lucas lhe acompanhou os inspirados raciocínios, prosseguiu em tom sereno e firme:

— Cala sempre, porém, as considerações, os favo­res que tenhamos recolhido na tarefa, porque esse galar­dão só pertence a Jesus. Foi Ele quem removeu nossas misérias angustiosas, enchendo o nosso vácuo; foi sua mão que nos tomou caridosamente e nos reconduziu ao caminho santo. Não me contaste tuas lutas amargurosas no passado distante? Não te contei como fui perverso e ignorante, em outros tempos? Assim como iluminou mi­nhas veredas sombrias, às portas de Damasco, levou-te Ele à igreja de Antioquia, para que lhe ouvisses as ver­dades eternais. Por mais que tenhamos estudado, senti­mos um abismo entre nós e a sabedoria eterna; por mais que tenhamos trabalhado, não nos encontramos dignos dAquele que nos assiste e guia desde o primeiro instante da nossa vida. Nada possuímos de nós mesmos!... O Se­nhor enche o vácuo de nossa alma e opera o bem que não possuímos. Esses velhinhos trêmulos que nos abraçaram em lágrimas, as crianças que nos beijaram com ternura, fizeram-no ao Cristo. Tiago e os companheiros não vie­ram de Jerusalém tão-só para manifestar-nos sua fra­ternidade afetuosa; vieram trazer testemunhos de amor ao Mestre que nos reuniu na mesma vibração de solida­riedade sacrossanta, embora não saibam traduzir o meca­nismo oculto dessas emoções grandiosas e sublimes. No meio de tudo isso, Lucas, fomos apenas míseros servos que se aproveitaram dos bens do Senhor para pagar as próprias dívidas. Ele nos deu a misericórdia para que a justiça se cumprisse. Esses júbilos e essas emoções divinas lhe pertencem... Não tenhamos, portanto, a mí­nima preocupação de relatar episódios que deixariam uma porta aberta para a vaidade incompreensível. Que nos baste a profunda convicção de havermos liqüidado nossos débitos clamorosos...

Lucas ouviu admirado essas considerações oportu­nas e justas, sem saber definir a surpresa que lhe causavam.

—        Tens razão — disse finalmente —, somos fracos demais para nos atribuirmos qualquer valor.

—        Além disso — acrescentou Paulo —, a batalha do Cristo está começada. Toda vitória pertencerá ao seu amor e não ao nosso esforço de servos endividados... Escreve, portanto, tuas anotações do modo mais simples e nada comentes que não seja para glorificação do Mestre no seu evangelho imortal!...

Enquanto Lucas procurava Aristarco para transmi­tir-lhe aquelas sugestões sábias e afetuosas, o ex-rabino continuou fitando o casario de Cesaréia, que se apagava agora no horizonte. A embarcação navegava suavemente, afastando-se da costa... Por longas horas, deixou-se ficar ali, meditando o passado que lhe surgia aos olhos espirituais, qual imenso crepúsculo. Mergulhado nas re­miniscências entrecortadas de preces a Jesus, ali perma­neceu em significativo silêncio, até que começaram a brilhar no firmamento muito azul os primeiros astros da noite.

 

O prisioneiro do Cristo

O navio de Adramítio da Mísia, em que viajavam o Apóstolo e os companheiros, no dia imediato tocou em Sídon, repetindo-se as cenas comovedoras da véspera. Júlio permitiu que o ex-rabino fosse ter com os amigos, na praia, verificando-se as despedidas entre exortações de esperanças e muitas lágrimas. Paulo de Tarso ganhou ascendência moral sobre o comandante, marinheiros e guardas. Sua palavra vibrante conquistara as atenções gerais.

Falava de Jesus, não como de uma personalidade inatingível, mas como de um mestre amoroso e amigo das criaturas, a seguir de perto a evolução e redenção da Humanidade terrena desde os seus primórdios. Todos desejavam ouvir-lhe os conceitos, relativamente ao Evan­gelho e quanto à sua projeção no futuro dos povos.

A embarcação freqüentemente deixava divisar pai­sagens gratíssimas ao olhar do Apóstolo. Depois de costear a Fenícia, surgiram os contornos da ilha de Chipre — de cariciosas recordações. Nas proximidades de Panfília exultou de íntima alegria pelo dever cumprido, e assim chegou ao porto de Mira, na Lícia.

Foi aí que Júlio resolveu tomar passagem com os companheiros numa embarcação alexandrina, que se di­rigia para a Itália. Desse modo, a viagem continuou, mas com perspectivas desfavoráveis. O navio levava excesso de carga. Além de grande quantidade de trigo, tinha a bordo duzentas e setenta e seis pessoas. Aproximava-se o período difícil para os trabalhos de navegação. Os ven­tos sopravam de rijo, contrariando a rota. Depois de lon­gos dias, ainda vogavam na região do Caldo. Vencendo dificuldades extremas, conseguiram tocar em alguns pon­tos de Creta.

Observando os obstáculos da jornada e obedecendo à própria intuição, o Apóstolo, confiado na amizade de Júlio, chamou-o em particular e sugeriu o inverneio em Kaloi-Limenes. O chefe da coorte tomou o alvitre em con­sideração e apresentou-o ao comandante e ao piloto, os quais o houveram por descabível.

— Que significa isso, centurião? — perguntou o capitão, enfático, com um sorriso algo irônico.

— Dar crédito a esses prisioneiros? Pois estou a ver que se trata de algum plano de fuga, maquinado com sutileza e prudência... Mas, seja como for, o alvitre é inaceitá­vel, não só pela confiança que devemos ter em nossos recursos profissionais, como porque precisamos atingir o porto de Fênix, para o repouso necessário.

O         centurião desculpou-se como pôde, retirando-se um tanto vexado. Desejaria protestar, esclarecendo que Paulo de Tarso não era um simples réu comum; que não falava por si só, mas também por Lucas, que igualmente fora marítimo dos mais competentes. Não lhe convinha, porém, comprometer sua brilhante situação militar e polí­tica, em antagonismo com as autoridades provincianas. Era melhor não insistir, sob pena de ser mal compreen­dido pelos homens de sua classe. Procurou o Apóstolo e fê-lo sabedor da resposta. Paulo, longe de magoar-se, murmurou calmamente:

—        Não nos entristeçamos por isso! Estou certo de que os óbices hão de ser muito maiores do que possamos suspeitar. Haveremos, porém, de lograr algum proveito, porque, nas horas angustiosas, recordaremos o poder de Jesus, que nos avisou a tempo.

       A viagem continuou entre receios e esperanças. O próprio centurião estava agora convencido da inopor­tunidade da arribada em Kaloi-Limenes, porque, nos dois dias que se seguiram ao conselho do Apóstolo, as condições atmosféricas melhoraram bastante. Logo, po­rém, que se fizeram ao mar alto, rumo a Fênix, um furacão imprevisto caiu de súbito. De nada valeram providências improvisadas. A embarcação não podia en­frentar a tempestade e forçoso foi deixá-la à mercê do vento impetuoso, que a arrebatou para muito longe, envolta em denso nevoeiro. Começaram, então, padeci­mentos angustiosos para aquelas criaturas insuladas no abismo revolto das ondas encapeladas. A tormenta pa­recia eternizar-se. Havia quase duas semanas que o vento rugia incessante, destruidor. Todo o carregamento de trigo foi alijado, tudo que representava excesso de peso, sem utilidade imediata, foi tragado pelo monstro insa­ciável e rugidor!

A figura de Paulo foi encarada com veneração. A tripulação do navio não podia esquecer o seu alvitre. O piloto e o comandante estavam confundidos e o prisio­neiro tornara-se alvo de respeito e consideração unâni­mes. O centurião, principalmente, permanecia constan­temente junto dele, crente de que o ex-rabino dispunha de poderes sobrenaturais e salvadores, O abatimento moral e o enjôo espalharam o desânimo e o terror. O Apóstolo generoso, no entanto, acudia a todos, um por um, obrigando-os a se alimentarem e confortando-os moralmente. De quando a quando, soltava o verbo elo­quente e, com a devida permissão de Júlio, falava aos companheiros da hora amarga, procurando identificar as questões espirituais com o espetáculo convulsivo da Natureza:

— Irmãos! — dizia em voz alta para a assembléia estranha, que o ouvia transida de angústia — eu creio que tocaremos breve a terra firme! Entretanto, assu­mamos o compromisso de jamais olvidar a lição terrível desta hora. Procuraremos caminhar no mundo qual ma­rinheiro vigilante, que, ignorando o momento da tempes­tade, guarda a certeza da sua vinda. A passagem da existência humana para a vida espiritual assemelha-se ao instante amarguroso que estamos vivendo neste barco, há muitos dias. Não ignorais que fomos avisados de todos os perigos, no último porto que nos convidava estagiar, livres de acidentes destruidores. Buscamos mar alto, de própria conta. Também Cristo Jesus nos concede os celestes avisos no seu Evangelho de Luz, mas, freqüentemente optamos pelo abismo das expe­riências dolorosas e trágicas. A ilusão, como o vento sul, parece desmentir as advertências do Salvador, e nós continuamos pelo caminho da nossa imaginação vi­ciada; entretanto, a tempestade chega de repente. É preciso passar de uma vida para outra, a fim de retifi­carmos o rumo iniludível. Começamos por alijar o car­regamento pesado dos nossos enganos cruéis, abando­namos os caprichos criminosos para aceitar plenamente a vontade augusta de Deus. Reconhecemos nossa insignificância e miséria, alcança-nos um tédio imenso dos erros que nos alimentavam o coração, tal como sen­timos o nada que representamos neste arcabouço de madeiras frágeis, flutuante no abismo, tomados de sin­gular enjôo, que nos provoca náuseas extremas! O fim da existência humana é sempre uma tormenta como esta, nas regiões desconhecidas do mundo interior, por­que nunca estamos apercebidos para ouvir as advertên­cias divinas e procuramos a tempestade angustiosa e destruidora, pelo roteiro de nossa própria autoria.

A assembléia amedrontada ouvia-lhe os conceitos, empolgada de inominável pavor.

Observando que todos se abraçavam, confraternizando-se na angústia comum, continuava:

— Contemplemos o quadro dos nossos sofrimentos. Vede como o perigo ensina a fraternidade imediata. Es­tamos aqui, patrícios romanos, negociantes de Alexan­dria, plutocratas de Fenícia, autoridades, soldados, pri­sioneiros, mulheres e crianças... Embora diferentes uns dos outros, perante Deus a dor nos irmana os sentimentos para o mesmo fim de salvação e restabelecimento da paz. Creio que a vida em terra firme seria muito diferente, se as criaturas lá se compreendessem tal como acontece aqui, agora, nas vastidões marinhas.

Alguns sopitavam o despeito, ouvindo a palavra apostolar, mas a grande maioria acercava-se, reconhe­cendo-lhe a inspiração superior e desejosa de confugir-se à sombra da sua virtude heróica.

Decorridos catorze dias de cerração e tormenta. o barco alexandrino atingiu a ilha de Malta. Enorme, geral alegria; mas, o comandante, ao ver afastado o perigo e sentindo-se humilhado com a atitude do Apóstolo durante a viagem, sugeriu a dois soldados o assassínio dos prisioneiros de Cesaréia, antes que pudessem eva­dir-se. Os prepostos do centurião assumiram a paterni­dade desse alvitre, mas Júlio se opôs, terminantemente, deixando perceber a transformação espiritual que o feli­citava agora, à luz do Evangelho redentor. Os presos que sabiam nadar atiraram-se à água corajosamente; os de­mais agarravam-se aos botes improvisados, buscando a praia.

Os naturais da Ilha, bem como os poucos romanos que lá residiam a serviço da administração, acolheram os náufragos com simpatia; mas, por numerosos, não havia acomodação para todos. Frio intenso enregelava os mais resistentes. Paulo, todavia, dando mostras do seu valor e experiência no afrontar intempéries, tratou de dar o exemplo aos mais abatidos, para que se fizesse fogo, sem demora. Grandes fogueiras foram acesas rapi­damente para aquecimento dos desabrigados; mas, quan­do o Apóstolo atirava um feixe de ramos secos à laba­reda crepitante, uma víbora cravou-lhe na mão os dentes venenosos. O ex-rabino susteve-a no ar com um gesto sereno, até que ela caísse nas chamas, com estu­pefação geral. Lucas e Timóteo aproximaram-se aflitos. O chefe da coorte e alguns amigos estavam desolados. É que os naturais da Ilha, observando o fato, davam alarme, asseverando que o réptil era dos mais venenosos da região, e que as vítimas não sobreviviam mais que horas.

Os indígenas, impressionados, afastavam-se discreta­mente. Outros, assustadiços, afirmavam:

— Este homem deve ser um grande criminoso, pois, salvando-se das ondas bravias, veio encontrar aqui o castigo dos deuses.

Não eram poucos os que aguardavam a morte do Apóstolo, contando os minutos; Paulo, no entanto, aque­cendo-se como lhe era possível, observava a expressão fisionômica de cada um e orava com fervor. Diante do prognóstico dos nativos da Ilha, Timóteo aproximou-se mais intimamente e buscou cientificá-lo do que diziam a seu respeito.

O ex-rabino sorriu e murmurou:

— Não te impressiones. As opiniões do vulgo são muito inconstantes, tenho disso experiência própria. Es­tejamos atentos aos nossos deveres, porque a ignorância sempre está pronta a transitar da maldição ao elogio e vice-versa. É bem possível que daqui a algumas horas me considerem um deus.

Com efeito, quando viram que ele não acusara nem mesmo a mais leve impressão de dor, os indígenas pas­saram a observá-lo como entidade sobrenatural. Já que se mantivera indene ao veneno da víbora, não poderia ser um homem comum, antes algum enviado do Olimpo, a que todos deveriam obedecer.

A esse tempo, o mais alto funcionário de Malta, Públio Apiano, chegara ao local e ordenava as primeiras providências para socorrer os náufragos, sendo eles con­duzidos a vastos galpões desabitados, próximo de sua residência, lá recebendo caldos quentes, remédio e roupas. O preposto imperial reservou os melhores cômodos da própria moradia para o comandante do navio e o cen­turião Júlio, atento ao prestígio dos respectivos cargos, até que pudessem obter novas acomodações na Ilha. O chefe da coorte, no entanto, sentindo-se agora extrema­mente ligado ao Apóstolo dos gentios, solicitou ao gene­roso funcionário romano acolhesse o ex-rabino com a deferência a que fazia jus, ao mesmo tempo que elogiava as suas virtudes heróicas.

Ciente da elevada condição espiritual do convertido de Damasco e ouvindo os fatos maravilhosos, que lhe atribuíam no capítulo das curas, lembrou comovidamente ao centurião:

—        Ainda bem! Lembrança preciosa a vossa, mesmo porque, tenho aqui meu pai enfermo e desejaria experi­mentar as virtudes desse santo varão do povo de Israel!...

       Convidado por Júlio, Paulo aquiesceu desassombrado e assim compareceu em casa de Públio. Levado à pre­sença do ancião enfermo, impôs-lhe as mãos calosas e enrugadas, em prece comovedora e ardente. O velhinho que ardia e se consumia em febre letal, experimentou imediato alívio e rendeu graças aos deuses de sua crença. Tomado de surpresa, Públio Aplano viu-o levantar-se pro­curando a destra do benfeitor para um ósculo santo. O ex-rabino, no entanto, valeu-se da situação e, ali mesmo, exaltou o Divino Mestre, pregando as verdades eternas e esclarecendo que todos os bens provinham do seu coração misericordioso e justo e não de criaturas pobres e frágeis, quanto ele.

O preposto do Império quis conhecer o Evangelho imediatamente. Arrancando das dobras da túnica, em frangalhos, os pergaminhos da Boa Nova, único patri­mônio que lhe ficara nas mãos, depois da tempestade, Paulo de Tarso passou a exibir os pensamentos e ensinos de Jesus, quase com orgulho. Públio ordenou que o do­cumento fosse copiado, e prometeu interessar-se pela situação do Apóstolo, utilizando suas relações em Roma, a fim de lhe conseguir a liberdade.

A notícia do feito espalhou-se em poucas horas. Não se falava de outra coisa, senão do homem providencial que os deuses haviam mandado à Ilha, para que os doen­tes fossem curados e o povo recebesse novas revelações.

Com a complacência de Júlio, o ex-rabino e os com­panheiros obtiveram um velho salão do administrador, onde os serviços evangélicos funcionaram regularmente, durante os meses do inverno rigoroso. Multidões de enfermos foram curados. Velhos misérrimos, na clari­dade dos tesouros do Cristo alcançaram novas esperan­ças. Quando voltou a época da navegação, Paulo já havia criado em toda a Ilha uma vasta família cristã, cheia de paz e nobres realizações para o futuro.

Atento aos imperativos da sua comissão, Júlio re­solveu partir com os prisioneiros no navio “Castor e Pólux”, que ali invernara e se destinava à Itália.

No dia do embarque, o Apóstolo teve a consolação de aferir o interesse afetuoso dos novos amigos do Evan­gelho, recebendo, sensibilizado, manifestações de frater­nal carinho. A bandeira augusta do Cristo também ali ficara desfraldada, para sempre.

O         navio demandou a costa italiana debaixo de ven­tos favoráveis.

Chegados a Siracusa, na Sicília, amparado pelo ge­neroso centurião, agora devotado amigo, Paulo de Tarso aproveitou os três dias de permanência na cidade, em pregações do Reino de Deus, atraindo numerosas criatu­ras ao Evangelho.

Em seguida, a embarcação penetrou o estreito, tocou em Régio, aproando daí a Pouzzoles (Putéoli), não longe de Vesúvio.

Antes do desembarque, o centurião aproximou-se do Apóstolo, respeitosamente, e falou:

—        Meu amigo, até agora estiveste sob o amparo da minha amizade pessoal, direta; daqui por diante, po­rém, temos de viajar sob os olhares indagadores de quan­tos habitam nas proximidades da metrópole e há que considerar vossa condição de prisioneiro...

Notando-lhe o natural constrangimento, mescla de humildade e respeito, Paulo exclamou:

—        Ora esta, Júlio, não te incomodes! Sei que tens necessidade de algemar-me os pulsos para a exata exe­cução de teus deveres. Apressa-te a fazê-lo, pois não me seria lícito comprometer uma afeição tão pura, qual a nossa.

O         chefe da coorte tinha os olhos molhados, mas, retirando as algemas da pequena bolsa, acentuou:

— Disputo a alegria de ficar convosco. Quisera ser, como vós, um prisioneiro do Cristo!...

Paulo estendeu a mão, extremamente comovido, per­manecendo ligado ao centurião, sob o olhar carinhoso dos três companheiros.

Júlio determinou que os prisioneiros comuns fossem instalados em prisões gradeadas e que Paulo, Timóteo, Aristarco e Lucas ficassem em sua companhia, numa pensão modesta.

Em face da humildade do Apóstolo e de seus colaboradores, o chefe da coorte parecia mais generoso e fraternal. Desejoso de agradar ao velho discípulo de Jesus, mandou sindicar, imediatamente, se em Pouzzoles havia cristãos e, em caso afirmativo, que fossem à sua presença, para conhecerem os trabalhadores da semeadura santa. O soldado incumbido da missão, dai a poucas horas, trazia consigo um generoso velhinho de nome Sexto Flácus, cuja fisionomia transbordava a mais viva alegria. Logo à entrada, aproximou-se do velho Apóstolo e osculou-lhe as mãos, regou-as de lágrimas, em transportes de espontâneo carinho.

Estabeleceu-se, imediatamente, consoladora palestra de que Paulo de Tarso participava comovido. Flácus informou que a cidade tinha há muito a sua igreja; que o Evangelho ganhava terreno nos corações; que as cartas do ex-rabino eram tema de meditação e estudo em todos os lares cristãos, que reconheciam em suas atividades a missão de um mensageiro do Messias salvador. Tomando a velha bolsa arrancou, ali mesmo, a cópia da epístola aos roma­nos, guardada pelos confrades de Pouzzoles com especial carinho.

Paulo tudo ouvia gratamente impressionado, pare­cendo-lhe que chegava a um mundo novo.

Júlio, por sua vez, não cabia em si de contente. E, dando largas ao seu entusiasmo natural, Sexto Flácus expediu recados aos companheiros. Aos poucos, a mo­desta estalagem enchia-se de caras novas. Eram padei­ros, negociantes e artífices que vinham, ansiosos, apertar a mão do amigo da gentilidade. Todos queriam beber os conceitos do Apóstolo, vê-lo de perto, beijar-lhe as mãos. Paulo e companheiros foram convidados a falar na igreja àquela mesma noite e, cientes de que o centu­rião pretendia partir para Roma no dia imediato, os sinceros discípulos do Evangelho, em Pouzzoles, rogaram a Júlio permitisse a demora de Paulo entre eles, ao menos por sete dias, ao que o chefe da coorte atendeu de bom grado.

A comunidade viveu horas de júbilo imenso. Sexto Flácus e os companheiros expediram dois emissários a Roma, para que os amigos da cidade imperial tivessem conhecimento da vinda do Apóstolo dos gentios. E, can­tando louvores no coração, os crentes passaram dias de ilimitada ventura.

Decorrida a semana de trabalhos frutuosos, felizes, o centurião fez ver a necessidade de partir.

A distância a vencer excedia de duzentos quilôme­tros, com sete dias de marcha consecutiva e fatigante.

O         pequeno grupo partiu acompanhado de mais de cinqüenta cristãos de Pouzzoles, que seguiram o ex-rabino até Fórum de Ápio, em cavalos resistentes, montando carinhosa guarda aos carros dos guardas e prisioneiros. Nessa localidade, distante de Roma quarenta e poucas milhas, aguardava o Apóstolo dos gentios a primeira representação dos discípulos do Evangelho na cidade imperial. Eram anciães comovidos, cercados por alguns companheiros generosos, que, por pouco, carregavam o ex-rabino nos braços. Júlio não sabia como disfarçar a surpresa que lhe ia nalma. Jamais viajara com um pri­sioneiro de tamanho prestígio. De Fórum de Ápio a caravana demandou o sítio denominado “As Três Ta­vernas”, acrescida agora do grande veículo que levava os anciães romanos, e sempre rodeada de cavaleiros for­tes e bem dispostos. Nessa região, singularmente nomeada, em vista do grande conforto de suas hospedarias, outros carros e novos amigos esperavam Paulo de Tarso com sublimes demonstrações de alegria. O Apóstolo, agora, contemplava as regiões do Lácio empolgado por emoções suaves e doces. Tinha a impressão de haver aportado a um mundo diferente da sua Ásia cheia de combates acerbos.

Com permissão de Júlio, a figura mais representa­tiva dos anciães romanos tomara assento junto de Paulo, naquele jubiloso fim de viagem. O velho Apolodoro, de­pois de certificar-se da simpatia do chefe da coorte pela doutrina de Jesus, tornou-se mais vivo e minucioso no seu noticiário verbal, atendendo às perguntas afetuosas do Apóstolo dos gentios.

—        Vindes a Roma em boa época — acentuava o velhinho em tom resignado —; temos a impressão de que nossos sofrimentos por Jesus vão ser multiplicados. Estamos em 61, mas há três anos que os discípulos do Evangelho começaram a morrer nas arenas do circo pelo nome augusco do Salvador.

— Sim — disse Paulo de Tarso solicitamente.

       Eu ainda não havia sido preso em Jerusalém, quando ouvi referências às perseguições indiretas, movidas aos adeptos do Cristianismo pelas autoridades romanas.

—        Não são poucos — acrescentou o ancião — os que têm dado seu sangue nos espetáculos homicidas. Nossos companheiros têm caído às centenas, aos apupos do povo inconsciente, estraçalhados pelas feras ou nos postes do martírio...

O         centurião, muito pálido, interrogou:

—        Mas como pode ser isso? Há medidas legais que justifiquem esses feitos criminosos?

—        E quem poderá falar em justiça no governo de Nero? — replicou Apolodoro com um sorriso de santa resignação. — Ainda agora, perdi um filho amado nessas horrorosas carnificinas.

—    Mas, como? — tornou o chefe da coorte admi­rado.

       - Muito simplesmente — esclareceu o velhinho —: os cristãos são conduzidos aos circos do martírio e da morte, como escravos faltosos e misérrimos. Como ainda não existe um fundamento legal que justifique seme­lhantes condenações, as vítimas são designadas como cativos que mereceram os suplícios extremos.

—        Mas não existe um político, ao menos, que possa desmascarar o torpe sofisma?

—        Quase todos os estadistas honestos e justos estão exilados, para não falar dos muitos induzidos ao suicídio pelos prepostos diretos do Imperador. Acreditamos que a perseguição declarada aos discípulos do Evangelho não tardará muito. A medida tem sido retardada somente pela intervenção de algumas senhoras convertidas a Jesus, que tudo têm feito pela defesa de nossos ideais. Não fora isso, talvez a situação se revelasse mais dolorosa.

—        Precisamos negar a nós mesmos e tomar a cruz —exclamou Paulo de Tarso, compreendendo o rigor dos tempos.

—        Tudo isso é muito estranho para nós outros —ponderou Júlio acertadamente —, pois não vemos razão para tamanha tirania. É um contra-senso a persegui­ção aos adeptos do Cristo, que trabalham pela formação de um mundo melhor, quando por aí medram tantas comunidades de malfeitores, a reclamarem repressão legal. Com que pretexto se promove esse movimento sorrateiro?

Apolodoro pareceu concentrar-se e replicou:

—        Acusam-nos de inimigos do Estado, a solapar-lhe as bases políticas com idéias subversivas e destruidoras. A concepção de bondade, no Cristianismo, dá azo a que muitos interpretem mal os ensinamentos de Jesus. Os romanos abastados, os ilustres, não toleram a idéia de fraternidade humana. Para eles o inimigo é inimigo, o escravo é escravo, o miserável é miserável. Não lhes ocorre abandonar, por um momento sequer, o festim dos prazeres fáceis e criminosos, para cogitar da elevação do nível social. Raríssimos os que se preocupam com os problemas da plebe. Um patrício caridoso é apontado com ironias. Num tal ambiente, os desfavorecidos da sorte encontraram no Cristo Jesus um Salvador bem-amado, e os avarentos um adversário a eliminar, para que o povo não alimente esperanças. Examinada essa circunstância, podemos imaginar o progresso da doutrina cristã, entre os aflitos e pobres, tendo-se em vista que Roma sempre foi um enorme carro de triunfo mundano, que segue com os verdugos autoritários e tirânicos na boléia, cercado de multidões famintas, que vão apanhando as migalhas de sobejo. As primeiras pregações cristãs passaram despercebidas, mas, quando a massa popular demonstrou entender o elevado alcance da nova doutrina, começaram as lutas acerbas. De culto livre em suas manifestações, o Cristianismo passou a ser rigorosa-mente fiscalizado. Dizia-se que nossas células eram ori­ginárias de feitiçarias e sortilégios. Em seguida, como se verificaram pequenas rebeliões de escravos, nos palá­cios nobres da cidade, nossas reuniões de preces e bene­fícios espirituais foram proibidas. As agremiações foram dissolvidas à força. Em vista, porém, das garantias de que gozam as cooperativas funerárias, passamos a nos reunir alta noite no âmago das catacumbas. Ainda assim, descobertos pelos sequazes do Imperador, nossos núcleos de oração têm experimentado pesadas torturas.

—        É horrível tudo isso! — exclamou o centurião compungido — e o que admira é haver funcionários dis­postos a executar determinações tão injustas!...

Apolodoro sorriu e acentuou:

—        A tirania contemporânea tudo justifica. Não le­vais, vós mesmo, um apóstolo prisioneiro? Entretanto, reconheço que sois dele um grande amigo.

A comparação do velho e arguto observador fez em­palidecer ligeiramente o centurião.

—        Sim, sim — murmurava ele, tentando explicar-se.

Paulo de Tarso, todavia, reconhecendo a posição e

o embaraço do amigo, acudiu esclarecendo:

—        Mas a verdade é que não fui encarcerado por malvadez ou inópia dos romanos, desconhecedores de Jesus-Cristo, mas por meus próprios irmãos de raça. Aliás, tanto em Jerusalém como em Cesaréia, encontrei a mais sincera boa-vontade dos prepostos do Império.

Em tudo isso, amigos, preponderam as injunções do ser­viço do Mestre. Para o êxito indispensável dos seus esforços remissores, os discípulos não poderão caminhar no mundo sem as marcas da cruz.

Os interlocutores entreolharam-se satisfeitos. A ex­plicação do Apóstolo vinha elucidar completamente o problema.

O         grupo numeroso alcançou Alba Longa, onde novo contingente de cavaleiros esperava o valoroso missioná­rio. Daí até Roma, a caravana moveu-se mais vagarosa, experimentando sublimadas sensações de alegria. Paulo de Tarso, muito sensibilizado, admirava a beleza singu­lar das paisagens desdobradas ao longo da Via Apia. Mais alguns minutos e os viajores atingiam a Porta Capena, onde centenas de mulheres e crianças aguar­davam o Apóstolo. Era um quadro comovente!

O         cortejo parou para que os amigos o abraçassem. Eminentemente emocionado, o centurião acompanhou a cena inesquecível, contemplando anciãs de cabelos neva­dos osculando as mãos de Paulo, com infinito carinho.

O Apóstolo, enlevado naquelas explosões de afeto, não sabia se havia de contemplar os panoramas prodi­giosos da cidade das sete colinas, se paralisar o curso das emoções para prosternar-se em espírito, num preito justo de reconhecimento a Jesus.

Obedecendo às ponderações amigas de Apolodoro, o grupo dispersou-se.

Roma inteira banhava-se suavemente no crepúsculo de opalas. Brisas cariciosas sopravam, de longe, balsa­mizando a tarde quente. Considerando que Paulo pre­cisava de repouso, o centurião resolveu passar a noite numa hospedaria e apresentar-se com os prisioneiros no dia imediato, ao Quartel dos Pretorianos, depois de refei­tos da longa e exaustiva viagem.

Somente na manhã seguinte, compareceu perante as autoridades competentes, apresentando os acusados. Feliz expediente aquele, porque o ex-rabino sentia-se perfeitamente reconfortado. Na véspera, Lucas, Timóteo e Aristarco separaram-se dele, a fim de se instalarem na companhia dos irmãos de ideal, até poderem fixar a sua posição.

O         centurião de Cesaréia encontrou no Quartel da Via Nomentana altos funcionários que podiam perfeita­mente atendê-lo, com referência ao assunto que o trazia à capital do Império; mas, fez questão de esperar o General Búrrus, amigo pessoal do Imperador e conhecido por suas tradições de honestidade, no intuito de escla­recer o caso do Apóstolo.

O         General o atendeu com presteza e solicitude e ficou suficientemente informado da causa do ex-rabino, tanto quanto dos seus antecedentes pessoais e das lutas e sacrifícios que vinha amargurando. Prometeu estu­dar o caso com o maior interesse, depois de guardar, solícito, os pergaminhos remetidos pela Justiça de Ce­saréia. Na presença do Apóstolo, afirmou ao centurião que, caso os documentos provassem a cidadania romana do acusado, ele poderia gozar das vantagens da “custódia libera”, passando a viver fora do cárcere, apenas acom­panhado por um guarda, até que a magnanimidade de César decidisse o seu recurso.

Paulo foi recolhido à prisão com os demais com­panheiros, como medida preliminar ao exame da do­cumentação trazida. Júlio despediu-se comovido, os guar­das abraçaram o ex-rabino, contristados e respeitosos. Os altos funcionários do Quartel acompanharam a cena com indisfarçável surpresa. Prisioneiro algum havia ali entrado, até então, com tamanhas manifestações de cari­nho e apreço.

Depois de uma semana, em que lhe fora permitido o contacto permanente com Lucas, Aristarco e Timóteo, o Apóstolo recebia ordem para fixar residência nas pro­ximidades da prisão — privilégio conferido pelos seus títulos, embora obrigado a permanecer sob as vistas de um guarda policial, até que o seu recurso fosse definiti­vamente julgado.

Auxiliado pelos confrades da cidade, Lucas alugou um aposento humilde na Via Nomentana, para lá se transferindo o valoroso pregador do Evangelho, cheio de coragem e confiança em Deus.

Longe de esmorecer diante dos obstáculos, conti­nuou redigindo epístolas consoladoras e sábias às comu­nidades distantes. No segundo dia de sua nova insta­lação, recomendou aos três companheiros procurassem trabalho, para não serem pesados aos irmãos, explicando que ele, Paulo, viveria do pão dos encarcerados, como era justo, até que César pudesse atender ao seu apelo.

Assim o fez, de fato, e diariamente lá se ia às grades do calabouço, onde tomava a sua ração alimen­tar. Aproveitava, então, essas horas de convivência com os celerados ou com as vítimas da maldade humana para pregar as verdades confortadoras do Reino, ainda que algemados. Todos o ouviam em deslumbramento espiri­tual, jubilosos com a notícia de que não se encontravam desamparados pelo Salvador. Eram criminosos do Esquilino, bandidos das regiões provincianas, malfeitores da Suburra, servos ladrões entregues à justiça pelos senho­res para a necessária regeneração, e pobres perseguidos pelo despotismo da época, que sofriam a terrível influência dos vícios da administração.

       A palavra de Paulo de Tarso atuava como bálsamo de santas consolações. Os prisioneiros ganhavam novas esperanças e muitos se converteram ao Evangelho, como Onésimo, o escravo regenerado, que passou à história do Cristianismo na carinhosa epístola a Filêmon.

No terceiro dia da nova situação, Paulo de Tarso chamou os amigos para resolver determinados empreen­dimentos que julgava indispensáveis. Encareceu a dili­gência de um entendimento com os israelitas. Precisava transmitir-lhes as claridades da Boa Nova. No entanto, era impossível, no momento, uma visita à sinagoga. Sem paralisar, contudo, os impulsos dinâmicos da sua menta­lidade vigorosa, pediu a Lucas convocasse os maiorais do judaísmo na capital do Império, a fim de lhes apre­sentar uma exposição de princípios, que supunha con­veniente.

Na mesma tarde, grande número de anciães de Israel compareciam no seu aposento.

Paulo de Tarso expõe as notícias generosas do Reino de Deus, esclarece a sua posição, refere-se às preciosi­dades do Evangelho. Os ouvintes mostram-se algo inte­ressados, mas, ciosos de suas tradições, acabam tomando atitude reservada e duvidosa.

Quando terminou a oração entusiástica, o rabi Me­nandro exclamou em nome dos demais:

       - Vossa palavra merece nossa melhor considera­ção; entretanto, amigo, ainda não recebemos nenhuma notícia da Judéia, a vosso respeito. Temos, todavia, algum conhecimento desse Jesus a quem vos referis com ternura e veneração. Fala-se dele, em Roma, como de um revolucionário criminoso, que mereceu o suplício re­servado aos ladrões e malfeitores, em Jerusalém. Sua doutrina é havida por contrária à essência da Lei de Moisés. Sem embargo, desejamos sinceramente ouvir-vos sobre o novo profeta, com a calma necessária. Por outro lado é justo que não sejamos nós, apenas, os ouvintes dessas notícias singulares. Convém que vossos conceitos sejam dirigidos à maioria dos nossos irmãos, a fim de que os julgamentos isolados não prejudiquem os inte­resses do conjunto.

       Paulo de Tarso percebeu a sutileza da observação e pediu que marcassem o dia da pregação a uma assembléia maior, alvitre esse que foi recebido pelos velhos judeus com justo interesse.

No dia aprazado, vasta aglomeração de israelitas comprimia-se e desbordava do quarto humilde onde o ex-rabino montara a nova tenda de trabalhos evangéli­cos. Ele pregou a lição da Boa Nova e explicou, pacien­temente, a missão gloriosa de Jesus, desde a manhã até a tarde. Alguns raros irmãos de raça pareciam compreender os novos ensinamentos, enquanto que a maioria se entregava a interpelações ruidosas e a polêmi­cas estéreis. O Apóstolo recordou o tempo de suas via­gens, vendo ali a repetição exata das cenas irritantes das sinagogas asiáticas, onde os judeus se empenhavam em combates acérrimos.

A noite avizinhava-se e as discussões prosseguiam acaloradas. O sol despedia-se da paisagem, dourando o cume das colinas distantes. Observando que o ex-rabino fizera uma pausa para ganhar algum fôlego, Lucas apro­ximou-se e confidenciou-lhe:

—        Dói-me constatar quanto esforço despendes para vencer o espírito do judaísmo!...

Paulo de Tarso meditou alguns momentos e res­pondeu:

— Sim, verificar a rebeldia voluntária dá enfado ao coração; contudo, a experiência do mundo tem-me ensinado a discernir, de algum modo, a posição dos espí­ritos. Há duas classes de homens para as quais se torna mais difícil o contacto renovador de Jesus. A primeira é a que vi em Atenas e se constitui dos homens envene­nados pela falaciosa ciência da Terra; homens que se cristalizam numa superioridade imaginária e muito pre­sumem de si mesmos.

São estes, a meu ver, os mais infelizes. A segunda é a que conhecemos nos judeus recalcitrantes que, possuindo um patrimônio precioso do passado, não compreendem a fé sem lutas religiosas, pe­trificam-se no orgulho de raça e perseveram numa falsa interpretação de Deus. De tal arte, entendemos melhor a palavra do Cristo, que classificou os simples e pacíficos da Terra como criaturas bem-aventuradas. Poucos gen­tios cultos e raros judeus crentes na Lei Antiga estão preparados para a escola bendita da perfeição com o Divino Mestre.

Lucas passou a considerar o justo conceito do Após­tolo; mas, a esse tempo, as palestras ruidosas e irritan­tes dos israelitas pareciam o fermento rápido de pugila­tos inevitáveis, O ex-rabino, porém, desejoso de paz, subiu novamente à tribuna e exclamou:

— Irmãos, evitemos as contendas estéreis e ouçamos a voz da própria consciência!

Continuai examinando a Lei e os Profetas, nos quais encontrareis sempre a pro­messa do Messias, que já veio... Desde Moisés, todos os mentores de Israel referiram-se ao Mestre, com ca­racteres de fogo... Não somos culpados da vossa surdez espiritual. Invocando as discussões ferinas de há pouco, recordo a lição de Isaías quando declara que muitos hão de ver sem enxergar, e ouvir sem entender. São os espíritos endurecidos que, agravando as próprias enfer­midades, culminam em lutas desesperadoras para que Jesus possa, mais tarde, convertê-los e curá-los com o bálsamo do seu infinito amor. No entanto, podeis estar convictos de que esta mensagem será auspiciosamente re­cebida pelos gentios simples e infelizes, que são, na ver­dade, os bem-aventurados de Deus.

A declaração franca e veemente do Apóstolo caiu na assembléia como um raio, impondo absoluto silêncio. Mas, destoando dos sentimentos da maioria, um velhinho judeu aproximou-se do convertido de Damasco e disse:

—        Reconheço o exato sentido da vossa palavra, mas desejaria pedir-vos que este Evangelho continuasse a ser ministrado à nossa gente. Há seguidores de Moisés bem-intencionados, que podem aproveitar o ensino de Jesus, enriquecendo-se com os seus valores eternos.

O         apelo carinhoso e sincero era proferido em tom comovedor. Paulo abraçou o simpatizante da nova dou­trina, fundamente sensibilizado, e acrescentou:

— Este aposento humilde é também vosso. Vinde conhecer o pensamento do Cristo, sempre que vos aprou­ver. Podereis copiar todas as anotações que possuo.

—        E não ensinais na sinagoga?

— Por enquanto, preso como estou, não poderei fazê-lo, mas hei de escrever uma carta aos nossos irmãos de boa-vontade.

Dentro de poucos minutos, a compacta reunião se dissolvia com as primeiras sombras da noite.

Daí por diante, aproveitando as últimas horas de cada dia, os companheiros de Paulo viram que ele es­crevia um documento a que dedicava profunda atenção. Às vezes, era visto a escrever com lágrimas, como se desejasse fazer da mensagem um depósito de santas ins­pirações. Em dois meses entregava o trabalho a Aris­tarco para copiá-lo, dizendo:

—        Esta é a epístola aos hebreus. Fiz questão de grafá-la, valendo-me dos próprios recursos, pois que a dedico aos meus irmãos de raça e procurei escrevê-la com o coração.

O         amigo compreendeu o seu intuito e, antes de começar as cópias, destacou o estilo singular e as idéias grandiosas e incomuns.

E Paulo continuou trabalhando incessantemente a benefício de todos. A situação, como prisioneiro, era a mais confortadora possível. Fizera-se benfeitor desve­lado de todos os guardas que lhe testemunhavam o esfor­ço apostólico. A uns aliviara o coração com as alegrias da Boa Nova; a outros curara moléstias crônicas e dolo­rosas. Freqüentemente, o benefício não se restringia ao interessado, porque os legionários romanos lhe traziam os parentes, os afeiçoados e os amigos, para se benefi­ciarem ao contacto daquele homem dedicado aos interes­ses de Deus. Logo ao terceiro dia deixou de ser algemado, porque os soldados dispensavam a formalidade, apenas guardando-lhe a porta como simples amigos.

Não poucas vezes, esses militares benévolos o convidavam a passear pela cidade, especialmente ao longo da Via Apia, que se havia tornado o local da sua predileção.

Sensibilizado, o Apóstolo agradecia essas provas de condescendência.

Os benefícios do seu convívio tornavam-se dia a dia mais evidentes. Impressionados com a sua palestra edu­cativa e com as suas maneiras atenciosas, muitos legio­nários, antes relapsos e negligentes, transformavam-Se em elementos úteis à administração e à sociedade. Os guardas começaram a disputar o serviço de sentinela ao seu aposento, e isso lhe valia pelo melhor atestado de valor espiritual.

Visitado, incessantemente, por irmãos e emissários das suas igrejas queridas, da Macedônia e da Ásia, pros­seguia desdobrando energias na tarefa de amorosa assis­tência aos amigos e colaboradores distantes, mediante cartas inspiradíssimas.

Havia quase dois anos que o seu recurso a César jazia esquecido nas mesas dos juizes displicentes, quando sobreveio um acontecimento de magna importância. Certo dia, um legionário amigo levou ao convertido de Damasco um homem de feições másculas e enérgicas, aparentando quarenta anos mais ou menos. Tratava-se de Acácio Domício, personalidade de grande influência política, e que de algum tempo tinha cegado em misteriosas cir­cunstâncias.

Paulo de Tarso o acolheu com bondade e, depois de impor-lhe as mãos, esclarecendo-o sobre o que Jesus desejava de quantos lhe aproveitavam a munificência, exclamou comovidamente:

— Irmão, agora, convido-te a ver, em nome do Senhor Jesus-Cristo!

— Vejo! Vejo! — gritou o romano tomado de júbilo infinito; e logo, num movimento instintivo, ajoelhou-se em pranto e murmurou:

       - Vosso Deus é verdadeiro!...

Profundamente reconhecido a Jesus, o Apóstolo deu-lhe o braço para que se levantasse e, ali mesmo, Domício procurou conhecer o conteúdo espiritual da nova dou­trina, a fim de reformar-se e mudar de vida. Solícito, anotou logo as informações relativas ao processo do ex-rabino, acentuando ao despedir-se:

— Deus me ajudará para que possa retribuir o bem que me fizestes! Quanto à vossa situação, não duvideis do desfecho merecido, porque, na próxima semana, tere­mos resolvido o processo com a absolvição de César!

De fato, decorridos quatro dias, o velho servidor do Evangelho foi chamado a depor. De conformidade com as ordens legais, compareceu sozinho perante os juizes, respondendo com admirável presença de espírito às menores argUições que lhe foram desfechadas. Os magistrados patrícios verificaram a inconsistência do libelo, a infantilidade dos argumentos apresentados pelo Sinédrio e, não só atendendo à situação política de Acácio, que empenhara no feito os bons ofícios de que podia dispor, como pela profunda simpatia que a figura do Apóstolo despertava, instruíram o processo com os mais nobres pareceres, restituindo-o, por intermédio de Domício, para o veredicto do Imperador.

O generoso amigo de Paulo regozijou-Se com a vi­tória inicial, convencido da próxima liberdade do seu ben­feitor. Sem perda de tempo, mobilizou as melhores ami­zades, entre as quais contava Popéia Sabina, conseguindo, afinal, a absolvição imperial.

Paulo de Tarso recebeu a notícia com votos de reco­nhecimento a Jesus. Mais que ele próprio, rejubilavam-se os amigos, que celebraram o acontecimento com expan­sões memoráveis.

O convertido de Damasco, entretanto, não viu nisso tão-só um motivo para regozijo pessoal, mas a obrigação de intensificar a difusão do Evangelho de Jesus.

Durante um mês, no princípio do ano 63, visitou as comunidades cristãs de todos os bairros da capital do Império. Sua presença era disputada por todos os cír­culos, que o recebiam entre carinhosas manifestações de respeito e de amor pela sua autoridade moral.

Organi­zando planos de serviço para todas as igrejas domésticas que funcionavam na cidade, e depois de inúmeras pré­dicas gerais nas catacumbas silenciosas, o incansável trabalhador resolveu partir para a Espanha. Debalde intervieram os colaboradores, rogando-lhe que desistisse. Nada o demoveu. De há muito, alimentava o desejo de visitar o Extremo do Ocidente e, se fosse possível, dese­jaria morrer convicto de haver levado o Evangelho aos confins do mundo.

 

Ao encontro do Mestre

Às vésperas da partida em busca da gentilidade es­panhola, eis que o Apóstolo recebe uma carta comovente de Simão Pedro. O ex-pescador de Cafarnaum escrevia-lhe de Corinto, avisando sua próxima chegada à cidade imperial. A missiva era afetuosa e enternecedora, cheia de confidências amargas e tristes. Pedro confiava ao amigo suas derradeiras desilusões na Ásia e mostrava-se-lhe vivamente interessado pelo que lhe sucedera em Roma. Ignorando que o ex-rabino fora restituido à liber­dade, procurava confortá-lo fraternalmente. Também ele, Simão, deliberara exilar-se junto dos irmãos da metrópole imperial, esperando ser útil ao amigo, em quaisquer cir­cunstâncias. Ainda no mesmo documento íntimo, rogava aproveitasse o portador para comunicar aos confrades romanos o propósito de se demorar algum tempo entre eles.

O convertido de Damasco leu e releu a mensagem amiga, altamente sensibilizado.

Pelo emissário, irmão da igreja de Corinto, foi avi­sado de que o venerando Apóstolo de Jerusalém chegaria ao porto de Óstia dentro de dez dias, mais ou menos.

Não hesitou um momento. Lançou mão de todos os meios ao seu alcance, preveniu os íntimos e preparou uma casa modesta, onde Pedro pudesse alojar-se com a família. Criou o melhor ambiente para a recepção do res­peitável companheiro. Valendo-se do argumento de sua próxima excursão à Espanha, dispensava as dádivas dos amigos, indicando-lhes as necessidades de Simão, para que nada lhe faltasse. Transportou quanto possuía, em objetos de uso doméstico, do singelo aposento que alugara junto à Porta Lavernal para a casinha destinada a Simão, próximo dos cemitérios israelitas da Via Ápia. Esse exemplo de cooperação foi altamente apreciado por todos. Os irmãos mais humildes fizeram questão de oferecer pe­queninas utilidades ao Apóstolo venerando que chegaria desprovido.

Informado de que a embarcação entrava no porto, o ex-rabino largou-se pressurosamente para Óstia. Lucas e Timóteo, sempre em sua companhia, junto de outros cooperadores devotados, o amparavam nos pequenos aci­dentes do caminho, dando-lhe o braço, aqui e ali.

Não fora possível organizar uma recepção mais os­tensiva. A perseguição surda aos adeptos do Nazareno apertava o cerco por todos os lados. Os últimos conse­lheiros honestos do Imperador estavam desaparecendo. Roma assombrava-se com a enormidade e quantidade de crimes que se repetiam diariamente. Nobres figuras do patriciado e do povo eram vítimas de atentados cruéis. Atmosfera de terror dominava todas as atividades polí­ticas e, no cômputo dessas calamidades, os cristãos eram os mais rudemente castigados, em vista da atitude hostil de quantos se acomodavam com os velhos deuses e se regalavam com os prazeres de uma existência dissoluta e fácil. Os seguidores de Jesus eram acusados e respon­sabilizados por quaisquer dificuldades que sobrevinham. Se caía uma tempestade mais forte, devia-se o fenômeno aos adeptos da nova doutrina. Se o inverno era mais rigoroso, a acusação pesava sobre eles, porqüanto nin­guém como os discípulos do Crucificado havia desprezado tanto os santuários da crença antiga, abominando os fa­vores e os sacrifícios aos numes tutelares. A partir do reinado de Cláudio, espalhavam-se lendas torpes a res­peito das práticas cristãs. A fantasia do povo, ávido das distribuições de trigo nas grandes festas do circo, ima­ginava situações inexistentes, gerando conceitos extra­vagantes e absurdos, com relação aos crentes do Evan­gelho. Por isso mesmo, desde o ano de 58, os cristãos imbeles eram levados ao Circo como escravos revolucio­nários ou rebeldes, que deveriam desaparecer. A opressão agravara-se dia a dia. Os romanos mais ou menos ilus­tres, pelo nome ou pela situação financeira, que simpa­tizavam com a doutrina do Cristo, continuavam indenes de públicos vexames; mas os pobres, os operários, os filhos da plebe, eram levados ao martírio, às centenas. Assim, os amigos do Evangelho não prepararam nenhuma homenagem pública à chegada de Simão Pedro. Ao invés, procuraram dar ao fato um cunho todo íntimo, de ma­neira a não despertar represálias dos esbirros da si­tuação.

Paulo de Tarso estendeu os braços ao velho amigo de Jerusalém, tomado de alegria. Simão trouxera a es­posa e os filhos, além de João. Sua palavra generosa estava cheia de novidades para o Apóstolo do gentilismo. Em poucos minutos, ficou sabendo da morte de Tiago e das novas torturas infligidas pelo Sinédrio à igreja de Jerusalém. O velho pescador contava as últimas peripécias da sua sorte, bem-humorado. Comentava os tes­temunhos mais pesados com um sorriso nos lábios e intercalava toda a narrativa de louvores a Deus. Depois de reportar-se às lutas que empenhara em muitas e repetidas peregrinações, contava ao ex-rabino que se refugiara alguns dias em Éfeso, junto de João, sendo acompanhado pelo filho de Zebedeu até Corinto, onde resolveram demandar a capital do Império. Paulo, por sua vez, relatou as tarefas recebidas de Jesus, nos últi­mos anos, e era de ver-se o otimismo e a coragem desses homens que, inflamados do espírito messiânico e amoroso do Mestre, comentavam as desilusões e as dores do mundo como láureas da vida.

Depois das suaves alegrias do reencontro, o grupo se encaminhou discretamente para a casinha reservada a Simão Pedro e sua família.

O         ex-pescador, sentindo a excelência da acolhida carinhosa, não encontrava palavras para traduzir os júbi­los dalma. Como Paulo quando chegou a Pouzzoles, tinha a impressão de estar num mundo diferente daquele em que vivera até então.

Com a sua chegada, recrudesceram os serviços apos­tólicos: mas o pregador do gentilismo não abandonou a idéia de ir à Espanha. Alegando que Pedro o substi­tuiria com vantagem, deliberou embarcar no dia pre­fixado, num pequeno navio que se destinava à costa gau­lesa. Não valeram amistosos protestos, nem mesmo a Insistência de Simão para que adiasse a viagem. Acom­panhado de Lucas, Timóteo e Demas, o velho advogado dos gentios partiu ao amanhecer de um dia lindo, cheio de projetos generosos.

A missão visitou parte das Gálias, dirigindo-se ao território espanhol, demorando-se mais na região de Tor­tosa. Em toda parte, a palavra e feitos do Apóstolo ganhavam novos corações para o Cristo, multiplicando os serviços do Evangelho e renovando as esperanças populares, à luz do Reino de Deus.

Em Roma, todavia, a situação prosseguia cada vez mais grave. Com a perversidade de Tigelino à frente da Prefeitura dos Pretorianos, acentuara-se o terror entre os discípulos de Jesus. Faltava somente um édito em que os cidadãos romanos, simpatizantes do Evangelho, fossem condenados publicamente, porque os libertos, os descendentes de outros povos e os filhos da plebe já enchiam as prisões.

Simão Pedro, como figura de relevo do movimento, não tinha descanso. Não obstante a fadiga natural da senectude, procurava atender a todas as necessidades emergentes. Seu espírito poderoso sobrepunha-se a todas as vicissitudes e desempenhava os mínimos deveres com devotamento máximo à causa da Verdade. Assistia os doentes, pregava nas catacumbas, percorria longas dis­tâncias, sempre animoso e satisfeito. Os cristãos do mun­do inteiro jamais poderão esquecer aquela falange de abnegados que os precedeu nos primeiros testemunhos da fé, afrontando situações dolorosas e injustas, regando com sangue e lágrimas a sementeira do Cristo, abra­çando-se mutuamente confortados nas horas mais negras da história do Evangelho, nos espetáculos hediondos do circo, nas preces de aflição que se elevavam dos cemi­térios abandonados.

Tigelino, grande inimigo dos prosélitos do Naza­reno, buscava agravar a situação por todos os meios ao alcance da sua autoridade odiosa e perversa.

O filho de Zebedeu preparava-se para regressar à Ásia, quando um grupo de esbirros dos perseguidores o colheu em pregação carinhosa e inspirada, na qual se despedia dos confrades de Roma, com exortações de to­cante reconhecimento a Jesus. Apesar das atenciosas explicações, João foi preso e esbordoado impiedosamente. E, com ele, dezenas de irmãos foram trancafiados nos cárceres imundos do Esquilino.

Pedro recebeu a notícia dolorosamente surpreendido. Conhecia a extensão dos trabalhos que aguardavam na Ásia o companheiro generoso e rogou ao Senhor não o abandonasse, a fim de obter absolvição justa. Como proceder em tão difíceis circunstâncias? Recorreu às relações prestigiosas que a cidade lhe oferecia. Entre­tanto, seus afeiçoados eram igualmente pobres de influência política nos gabinetes administrativos da época. Os cristãos de posição financeira mais destacada não ousavam enfrentar a onda avassaladora, de perseguição e tirania. O antigo chefe da igreja de Jerusalém não desanimou. Precisava libertar o amigo, concorrendo, para isso, com todo o potencial de energia, na esfera de suas possibilidades.

Compreendendo a timidez natural dos romanos simpatizantes do Cristo, buscou reunir apressadamente uma assembléia de amigos íntimos, para examinar o caso.

No meio dos debates alguém se lembrou de Paulo.

O Apóstolo dos gentios dispunha na capital do Império de grande número de afeiçoados eminentes. No caso da sua absolvição, a providência partira do círculo dileto de Popéia Sabina. Muitos militares colaboradores de Afrâ­nius Búrrus eram seus admiradores. Acácio Domício, que dispunha de valiosos empenhos junto dos pretorianos, era seu amigo dedicado e incondicional. Ninguém melhor que o ex-tecelão de Tarso poderia incumbir-se da delicada missão de salvar o prisioneiro. Não seria razoável pedir sua ajuda? Comentava-se o caráter urgente da medida, mesmo porque, numerosos cristãos morriam todos os dias na prisão do Esquilino, vítimas das queimaduras de azeite fervente. Tigelino e alguns comparsas da administração criminosa distraíam-se com os suplícios das vítimas. O azeite era lançado aos infelizes no poste do martírio. Outras vezes, os prisioneiros maniatados eram mergulha­dos em grandes barris de água em ebulição. O Prefeito dos Pretorianos exigia que os correligionários assistissem ao suplício, para escarmento geral. Os encarcerados acompanhavam as tristes operações, banhados em pranto silencioso. Verificada a morte da vítima, um soldado se encarregava de lançar as vísceras aos peixes famintos, nos tanques vastos das prisões odiosas. Dada a situação geral, apavorante, poder-se-ia contar com a intervenção de Paulo? A Espanha ficava muito distante. Era possível que a sua vinda não aproveitasse ao caso pessoal de João. Pedro, porém, considerou a oportunidade do recurso e advertiu que seguiriam trabalhando a favor do filho de Zebedeu. Nada impedia, porém, de recorrer desde logo para o prestígio de Paulo, ainda porque a situação piora­va de instante a instante. Aquele ano de 64 começara com terríveis perspectivas. Não se podia dispensar um homem enérgico e resoluto à frente dos interesses da causa.

Dado este parecer do venerando Apóstolo de Jeru­salém, a assembléia concordou com a medida aventada. Um irmão que se tornara devotado cooperador de Paulo, em Roma, foi mandado à Espanha, com urgência. Esse emissário era Crescêncio, que saiu de Óstia, com enorme ansiedade, levando a missiva de Simão.

O Apóstolo dos gentios, depois de muito peregrinar, demorava-se em Tortosa, onde conseguira reunir grande número de colaboradores devotados a Jesus. Suas ativi­dades apostólicas continuavam ativas, conquanto atenua­das, em virtude do cansaço físico. O movimento das epístolas diminuira, mas não se interrompera de todo Atendendo à necessidade das igrejas do Oriente, Timóteo partira da Espanha para a Ásia, carregado de cartas e recomendações amigas. Em torno do Apóstolo agrupa­ra-se novo contingente de cooperadores diligentes e sin­ceros. Em todos os recantos, Paulo de Tarso ensinava o trabalho e a renúncia, a paz da consciência e o culto do bem.

Quando planejava novas viagens na companhia de Lucas. eis que surge em Tortosa o mensageiro de Simão.

O ex-rabino lê a carta e resolve regressar à cidade imperial, imediatamente. Através das linhas afetuosas do velho antigo, entreviu a gravidade dos acontecimen­tos. Além disso, João necessitava voltar à Ásia. Não ignorava a influência benéfica que ele exercia em Jeru­salém.

Em Éfeso, onde a igreja se compunha de ele­mentos judaicos e gentios, o filho de Zebedeu fora sempre um vulto nobre e exemplar, indene de espírito sectarista. Paulo de Tarso passou em revista as necessidades do serviço evangélico entre as comunidades orientais, e con­cluiu pela urgência do regresso de João, deliberando in­tervir no assunto sem perda de tempo.

Como de outras vezes, nada valeram as considera­ções dos amigos, no tocante ao problema de sua saúde. O homem enérgico e decidido, apesar dos cabelos brancos, mantinha o mesmo ânimo resoluto, elevado e firme, que o caracterizara na mocidade distante.

Favorecido pela grande movimentação de barcos, nos princípios de maio de 64, não lhe foi difícil retornar ao porto de Óstia, junto dos companheiros.

Simão Pedro recebeu-o enternecido. Em poucas ho­ras o convertido de Damasco conhecia a situação intole­rável criada em Roma pela ação delituosa de Tigelino. João continuava encarcerado, apesar dos recursos leva­dos aos tribunais, O antigo pescador de Cafarnaum, em significativas confidências, revelava ao companheiro que o coração lhe pressagiava novas dores e testemunhos cruciantes. Um sonho profético anunciava-lhe persegui­ções e provas ásperas. Numa das últimas noites, contem­plara um quadro singular, em que uma cruz de propor­ções gigantescas parecia envolver com sua sombra toda a família dos discípulos do Senhor. Paulo de Tarso ou­viu-o, com interesse, manifestando-se de inteiro acordo com os seus pressentimentos. Apesar dos horizontes car­regados, deliberaram uma ação conjunta para libertar o filho de Zebedeu.

Corria o mês de junho.

O ex-rabino desdobrou-se em atividades intensas, procurou Acácio Domicio, solicitando a sua intervenção e valimento. Mais ainda: considerando que as providên­cias morosas poderiam redundar num fracasso, auxiliado por amigos eminentes procurou avistar-se com numero­sos áulicos da Corte Imperial, chegando à presença de Popéia Sabina, a fim de rogar seus bons ofícios, no caso do filho de Zebedeu. A célebre favorita ouviu-lhe a con­fidência com enorme surpresa. Aquelas revelações de uma vida eterna, aquela concepção da Divindade assus­tavam-na. Embora inimiga declarada dos cristãos, dada a simpatia que mantinha pelo judaísmo, Popéia impres­sionou-se com a figura ascética do Apóstolo e com os argumentos de reforço ao seu pedido. Sem ocultar sua admiração, prometeu atendê-lo, apontando desde logo as providências imediatas.

Paulo retirou-se esperançoso da absolvição do com­panheiro, porque Sabina prometera libertá-lo dentro de três dias.

Voltando à comunidade, deu ciência aos irmãos da entrevista que tivera com a favorita de Nero; mas, ter­minada a exposição, notou, algo surpreso, que alguns companheiros reprovavam a sua iniciativa. Pediu, então, que o esclarecessem e justificassem quaisquer dúvidas. Surgiram fracas considerações que ele acolheu com a sua inesgotável serenidade.

Alegava-se que não era louvável dirigir-se a uma cortesã dissoluta, para impetrar um favor. Semelhante proceder afigurava-se de Éfeso a segui­dores do Cristo. Popéia era mulher de vida notadamente dissoluta, banqueteava-se nas orgias do Palatino, caracte­rizava-se por sua luxúria escandalosa. Seria razoável pedir-lhe proteção para os discípulos de Jesus?

Paulo de Tarso aceitou as mofinas argüições com beatífica paciência e objetou, sensatamente:

— Respeito e acato a vossa opinião, mas, antes de tudo, considero necessário libertar João. Fosse eu o pri­sioneiro e não haveria de julgar o caso tão urgente e tão grave. Estou velho, alquebrado, e, portanto, melhor me fora, e mais útil quiçá, meditar na misericórdia de Jesus, através das grades do cárcere. Mas João está relativa­mente moço, é forte e dedicado; o Cristianismo da Ásia não pode dispensar-lhe a atividade construtiva, até que outros trabalhadores sejam chamados à semeadura di­vina. Com referência às vossas dúvidas, porém, cum­pre-me aduzir um argumento que requer ponderação. Por que considerais imprópria uma solicitação a Popéia Sabina? Teríeis a mesma idéia, se me dirigisse a Tigelino ou ao próprio imperador? Não serão eles vítimas da mesma prostituição que estigmatiza as favoritas de sua Corte? Se combinasse com um militar embriagado, do Pa­latino, as providências imprescindíveis à libertação do companheiro, talvez aplaudísseis meu gesto, sem res­trições.

Irmãos, é indispensável compreender que a der­rocada moral da mulher, quase sempre, vem da prostitui­ção do homem. Concordo em que Popéia não é a figura mais conveniente ao feito, em virtude das inquietações da sua vida; entretanto, é a providência que as circunstâncias indicaram e nós precisamos libertar o devotado discípulo do Senhor. Aliás, procurei valer-me de seme­lhantes recursos, recordando a exortação do Mestre, na qual recomenda ao homem granjear amigos com as rique­zas da iniqüidade (1). Considero que quaisquer relações com o Palatino constituem expressões da fortuna iníqua, mas suponho útil mobilizar os que se conservam “mortos” no pecado para algum ato de caridade e de fé, pelo qual se desliguem dos laços com o passado delituoso, auxilia­dos pela intercessão de amigos fiéis.

A elucidação do Apóstolo espalhou grande calma em todo o recinto. Em poucas palavras, Paulo de Tarso fi­zera ver, aos companheiros, transcendentes conclusões de ordem espiritual.

A promessa não falhara. Em três dias o filho de Zebedeu era restituído à liberdade. João estava abati­díssimo. Os maus tratos, a contemplação dos quadros

 

(1) Lucas. Capítulo 16º, versículo 9. — (Nota de Emmanuel.)

 

terríveis do cárcere, a expectação angustiosa, haviam-lhe mergulhado o espírito em perplexidades dolorosas.

Pedro regozijava-se, mas o ex-rabino, atento à ten­são ambiente, sugeriu o regresso do Apóstolo galileu à Ásia, sem perda de tempo. A igreja de Éfeso esperava-o. Jerusalém devia contar com a sua colaboração desinte­ressada e amiga. João não teve tempo para muitas considerações, porque Paulo, como que possuído de amargos pressentimentos, foi ao porto de Óstia para predispor o seu embarque, aproveitando um navio napolitano prestes a largar para Mileto. Colhido pelas providências e im­possibilitado de resistir ao resoluto ex-rabino, o filho de Zebedeu embarcou em fins de junho de 64, enquanto os demais amigos permaneceriam em Roma para a boa batalha em prol do Evangelho.

Quanto mais sombrios os horizontes, mais coeso se tornava o grupo dos irmãos na fé, em Cristo Jesus. Multiplicavam-se as reuniões nos cemitérios distantes e abandonados. Naqueles dias de sofrimentos, as prega­ções pareciam mais belas.

Paulo de Tarso e os cooperadores desdobravam-se em edificações espirituais, quando a cidade foi sacudida, de súbito, por espantoso acontecimento. Na manhã de 16 de julho de 64 irrompeu violento incêndio nas pro­ximidades do Grande Circo, abrangendo toda a região do bairro localizado entre o Célio e o Palatino. O fogo começara em vastos armazéns repletos de material infla­mável e propagara-se com rapidez assombrosa. Debalde foram convocados os operários e homens do povo para atenuar-lhe a violência; em vão a turba numerosa e compacta movimentou recursos para aliviar a situação. As labaredas subiam sempre, alastrando-se com furor, dei­xando montões de escombros e ruínas. Roma inteira acudia a ver o sinistro espetáculo, já empolgada pelas suas paixões ameaçadoras e terríveis. O fogo, com prodigiosa rapidez, deu volta ao Palatino e invadiu o Velabro. O primeiro dia findava-se com angustiosas perspectivas. O firmamento cobria-se de fumo espesso, iluminando-se grande parte das colinas com o clarão odioso do incêndio terrível. As elegantes construções do Aventino e do Célio pareciam árvores secas de flo­resta em chamas. Acentuara-se a desolação das vítimas da enorme catástrofe. Tudo ardia nas adjacências do Fórum. Começou o êxodo com infinitas dificuldades. As portas da cidade congestionavam-se de pessoas toma­das de profundo terror. Animais espavoridos corriam ao longo das vias públicas, como acossados por perseguidores invisíveis. Prédios antigos, de sólida constru­ção, ruiam com sinistro estrondo. Todos os habitantes de Roma desejavam distanciar-se da zona comburente.

Ninguém mais se atrevia a atacar a fogueira indômita. O segundo dia apresentou-se com o mesmo espetáculo inesquecível. Os populares desistiram de salvar alguma coisa; contentavam-se em poder enterrar os mortos sem conta, encontrados nos locais de possível acesso. Dezenas de pessoas percorriam as ruas em gargalhadas de hor­rível acento; a loucura generalizava-se entre as criaturas mais impressionáveis. Macas improvisadas conduziam feridos sem destino certo. Longas procissões invadiam os santuários para salvar as suntuosas imagens dos deuses. Milhares de mulheres acompanhavam a figura impassível dos numes tutelares, em dolorosas súplicas, fazendo votos de penosos sacrifícios, em vozes esten­tóricas. Homens piedosos apanhavam, no remoinho das multidões estonteadas, as crianças massacradas ou ape­nas feridas. Toda a zona de acesso a Via Ápia, em direção de Alba Longa, estava entupida de retirantes apressados e desiludidos. Centenas de mães gritavam pelos filhinhos desaparecidos e, não raro, tomavam-se providências, à pressa, para socorrer as que enlouque­ciam. A população em peso desejava abandonar a cidade, ao mesmo tempo. A situação tornara-se perigosa. A turba amotinada atacava as liteiras dos patrícios. So­mente os cavaleiros desassombrados conseguiam romper a mole humana, provocando novas blasfêmias e lamen­tações.

O fogo já havia devorado, quase totalmente, os pala­cetes nobres e preciosos das Carinas e continuava des­troçando os bairros romanos, entre os vales e as colinas, onde a população era muito densa. Durante uma semana, dia e noite, lavrou o fogo destruidor, espalhando deso­lações e ruínas. Das catorze circunscrições em que se dividia a metrópole imperial, apenas quatro ficaram in­cólumes. Três eram uma aluvião de escombros fumegan­tes e as outras sete conservavam tão-só alguns vestígios dos edifícios mais preciosos.

O         imperador estava em Áncio (Antium), quando irrompeu a fogueira por ele mesmo idealizada, pois a verdade é que, desejoso de edificar uma cidade nova com os imensos recursos financeiros que chegavam das pro­víncias tributárias, projetara o incêndio famoso, assim vencendo a oposição do povo, que não desejava a trans­ferência dos santuários.

Além dessa medida de ordem urbanística, o filho de Agripina caracterizava-se, em tudo, pela sua origi­nalidade satânica. Presumindo-se genial artista, não pas­sava de monstruoso histrião, assinalando a sua passagem pela vida pública com crimes indeléveis e odiosos. Não seria interessante apresentar ao mundo uma Roma em chamas? Nenhum espetáculo, a seus olhos, seria ines­quecível como esse. Depois das cinzas mortas, reedifi­caria os bairros destruídos. Seria generoso para com as vítimas da imensa catástrofe. Passaria à história do Império como administrador magnânimo e amigo dos súditos sofredores.

Alimentando tais propósitos, combinou o atentado com os áulicos de sua maior confiança e intimidade, ausentando-se da cidade para não despertar suspeitas no espírito dos políticos mais honestos.

Entretanto, não pudera prever, ele próprio, a exten­são da espantosa calamidade. O incêndio tomara pro­porções indesejáveis. Seus conselheiros menos dignos não puderam pressentir a amplitude do desastre. Arran­cado, à pressa, dos seus prazeres criminosos, o impera­dor chegou a tempo de observar o último dia de fogo, verificando o caráter da medida odiosa. Dirigindo-se a um dos pontos mais elevádos, contemplou o montão de ruínas e sentiu a gravidade da situação. O extermínio da propriedade particular atingira proporções quase infinitas. Não se pudera prever tão dolorosas conseqüências.­ Reconhecendo a irritação justa do povo, Nero pro­curou falar, em público, esboçando algumas lágrimas na sua profunda capacidade de dissimulação. Prometeu au­xiliar a restauração das casas particulares, declarou que compartilhava do sofrimento geral e que Roma. se levan­taria novamente sobre os escombros fumegantes, mais imponente e mais bela. Imensa multidão ouvia-lhe a palavra, atenta aos seus mínimos gestos. O imperador na sua mímica teatral, assumia atitudes comovedoras. Referia-se aos santuários perdidos, debulhado em pranto. Invocava a proteção dos deuses, a cada frase de maior efeito. A turba sensibilizara-se. Jamais o César se mos­trara tão paternalmente comovido. Não seria razoável duvidar das suas promessas e observações.

Em dado instante, a sua palavra vibrou mais patética e expres­siva. Comprometia-se, solenemente, com o povo, a punir inexoravelmente os responsáveis. Procuraria os incendiários, vingaria a desgraça romana sem piedade. Roga­va, mesmo, a todos os habitantes da cidade cooperassem com ele, procurando e denunciando os culpados.

Nesse ínterim, quando o verbo imperial se tornara mais significativo, notou-se que a massa popular se agi­tava estranhamente. Maioria esmagadora irmanava-se, agora, num grito terrível:

—        Cristãos às feras! Às feras!

O filho de Agripina encontrara a solução que pro­curava. Ele que procurava, em vão, no espírito super-excitado, as novas vítimas das suas maquinações exe­crandas, às quais pudesse atribuir a culpa dos sucessos lamentáveis, viu no brado ameaçador da turba uma resposta às próprias cogitações sinistras. Nero conhecia o ódio que o vulgo votava aos seguidores humildes do Nazareno, Os discípulos do Evangelho mantinham-se alheios e superiores aos costumes dissolutos e brutais da época. Não freqüentavam os circos, afastavam-se dos templos pagãos, não se prosternavam diante dos ídolos nem aplaudiam as tradições políticas do Império. Além disso, pregavam ensinamentos estranhos e pare­ciam aguardar um novo reino. O grande histrião do Palatino sentiu uma onda de alegria invadir-lhe os olhos míopes e congestos. A escolha do povo romano não poderia ser melhor. Os cristãos deviam ser mesmo os criminosos. Sobre eles deveria cair o gládio vingador. Trocou um olhar inteligente com Tigelino, como a expri­mir que haviam apanhado, ao acaso, a solução imprevista e logo afirmou à massa enfurecida que tomaria providên­cias imediatas para reprimir os abusos e castigar os culpados da catástrofe; finalmente, que o incêndio seria considerado crime de lesa-majestade e sacrilégio, para que os castigos também fossem excepcionais.

O povo aplaudia freneticamente, antegozando as sen­sações do circo, com esgares de feras e cânticos de martírio.

A nefanda acusação pesou sobre os discípulos de Jesus, como fardo hediondo.

As primeiras prisões realizaram-se como flagelo mal­dito. Numerosas famílias refugiaram-se nos cemitérios e nos arredores da cidade meio destruída, receosas dos algozes implacáveis. Praticava-se toda a espécie de abu­sos. Jovens indefesas eram entregues, nos cárceres, ao instinto feroz de soldados sem entranhas. Anciães res­peitáveis conduzidos à enxovia, sob algemas e pancadas. Os filhos arrancados do colo maternal, entre lágrimas e apelos comovedores. Tempestade sinistra caíra sobre os seguidores do Crucificado, que se submetiam a puni­ções injustas, de olhos postos no céu.

De nada valeram, para Nero, as ponderações dos patrícios ilustres, que ainda cultivavam as tradições de prudência e honestidade. Quantos se aproximavam da autoridade imperial, com a valiosa contribuição de alvi­tres justos, eram declarados suspeitos, agravando a situação.

O filho de Agripina e seus áulicos imediatos deli­beraram que se oferecesse ao povo o primeiro espetáculo no princípio de agosto de 64, como positiva demonstra­ção das providências oficiais, contra os supostos autores do nefando atentado. As demais vítimas, isto é, todos os prisioneiros que chegassem ao cárcere, depois da festa inicial, serviriam de ornamento aos futuros regozijos, à medida que a cidade pudesse recompor-se com as novas construções em perspectiva. Para isso, determinara-se a reedificação imediata do Grande Circo. Antes de aten­der às próprias necessidades da Corte, o imperador dese­java as simpatias do povo ignorante e sofredor, alimen­tando o que pudesse satisfazer seus estranhos caprichos.

A primeira carnificina, destinada a distrair o ânimo popular, foi levada a efeito em jardins imensos, na parte que permanecera imune da destruição, por entre orgias indecorosas, de que participaram a plebe e a grande fra­ção do patriciado que se entregara à dissolução e ao desregramento. A festividade prolongou-se por noites sucessivas, sob a claridade de esplêndida iluminação e o ritmo harmonioso de numerosas orquestras, que inunda­vam o ar de melodias enternecedoras. Nos lagos artifi­ciais deslizavam barcos graciosos, artisticamente ilumi­nados. No seio da paisagem, favorecida pelas sombras da noite, que as tochas poderosas não conseguiam afastar de todo, repastava-se a devassidão em jogo franco. Ao Lado das expressões festivas, enfileiravam-se as do mar­tírio dos pobres condenados. Os cristãos eram entregues ao povo para o castigo que ele julgasse mais justo. Para isso, com intervalos regulares, os jardins estavam cheios de cruzes, de postes, de açoites e numerosos instrumentos outros de flagelação. Havia guardas imperiais para auxi­liarem as atividades punitivas - Em fogueiras preparadas, encontravam-se água e azeite fervente, bem como pontas de ferro em brasa, para os que desejassem aplicá-las.

Os gemidos e soluços dos desgraçados casavam-se ironicamente com as notas harmoniosas dos alaúdes. Uns expiravam entre lágrimas e preces, aos apupos do povo; outros, entregavam-se estoicamente ao martírio, contemplando o céu alto e estrelado.

A linguagem mais forte será pobre para traduzir as dores imensas da grei cristã, naqueles dias angustio­sos. Não obstante os tormentos inenarráveis, os segui­dores fiéis de Jesus revelaram o poder da fé àquela so­ciedade perversa e decadente, afrontando as torturas que lhes cabiam. Interrogados nos tribunais, em momento tão trágico, declaravam abertamente sua confiança em Cristo Jesus, aceitando os sofrimentos com humildade, por amor ao seu nome. Aquele heroismo parecia acirrar, ainda mais, os ânimos da multidão animalizada.

Inven­tavam-se novos gêneros de suplício. A perversidade apre­sentava, diariamente, números novos em sua venenosa facúndia. Mas os cristãos pareciam possuidos de energias diferentes das conhecidas nos campos de batalhas san­guinolentas. A paciência invencível, a fé poderosa, a capacidade moral de resistência, assombravam os mais afoitos. Não foram poucos os que se entregaram ao sa­crifício, cantando. Muita vez, diante de tanta coragem, os verdugos improvisados temeram o misterioso poder triunfante da morte.

Terminada a chacina de agosto, com grande entu­siasmo popular, continuou a perseguição sem tréguas, para que não faltasse o contingente de vítimas nos espetáculos periódicos, oferecidos ao povo em regozijo pela reconstrução da cidade.

Diante das torturas e da carnificina, o coração de Paulo de Tarso sangrava de dor. A tormenta operava confusão em todos os setores. Os cristãos do Oriente, em sua maioria, trabalhavam por desertar do campo da luta, forçados por circunstâncias imperiosas da vida par­ticular. O velho Apóstolo, entretanto, unindo-se a Pedro, reprovava essa atitude. À exceção de Lucas, todos os cooperadores diretos, conhecidos desde a Ásia, haviam regressado. O ex-tecelão, todavia, fazendo causa comum com os desamparados, fez questão de assisti-los no transe inaudito. As igrejas domésticas estavam silenciosas. Fe­chados os grandes salões alugados na Suburra para as pregações da doutrina. Restava aos seguidores do Mes­tre apenas um meio de se entreverem e se reconfortarem na prece e nas lágrimas comuns: era as reuniões nas catacumbas abandonadas. E a verdade é que não poupa­vam sacrifícios para acorrer a esses lugares tristes e ermos. Era nesses cemitérios esquecidos que encontravam o conforto fraternal, para o momento trágico que os visitava. Ali oravam, comentavam as luminosas lições do Mestre e hauriam novas forças para os testemunhos impendentes.

Amparando-se em Lucas, Paulo de Tarso enfrentava o frio da noite, as sombras espessas, os caminhos ásperos. Enquanto Simão Pedro cogitava de atender a outros setores, o ex-rabino encaminhava-se aos antigos sepul­cros, levando aos irmãos aflitos a inspiração do Mestre Divino, que lhe borbulhava na alma ardente. Muitas ve­zes as pregações se realizavam alta madrugada, quando soberano silêncio dominava a Natureza. Centenas de dis­cípulos escutavam a palavra luminosa do velho Apóstolo dos gentios, experimentando o poderoso influxo da sua fé. Nesses recintos sagrados, o convertido de Damasco associava-se aos cânticos que se misturavam de prantos dolorosos. O espírito santificado de Jesus, nesses momentos, parecia pairar na fronte daqueles mártires anô­nimos, infundindo-lhes esperanças divinas.

Dois meses haviam decorrido, após a festa hedionda, e o movimento das prisões aumentava dia a dia. Espe­ravam-se grandes comemorações. Alguns edifícios nobres do Palatino, reconstruídos em linhas sóbrias e elegantes, reclamavam homenagens dos poderes públicos. As obras de reedificação do Grande Circo estavam adiantadíssimas. Era imprescindível programar festejos condignos. Para esse fim, os cárceres estavam repletos.

Não faltariam figurantes para as cenas trágicas. Projetavam-se nau-maquias pitorescas, bem como caçadas humanas no circo, em cuja arena seriam igualmente representadas peças famosas de sabor mitológico.

Os cristãos oravam, sofriam, esperavam.

Certa noite, Paulo dirigia aos irmãos a palavra afe­tuosa, no comentário do Evangelho de Jesus. Seus con­ceitos pareciam, mais que nunca, divinamente inspirados. As brisas da madrugada penetravam a caverna mortuá­ria, que se iluminava de algumas tochas bruxuleantes. O recinto estava repleto de mulheres e criança , ao lado de muitos homens embuçados.

Depois da pregação comovedora, ouvida por todos, com os olhos molhados de lágrimas, o ex-tecelão de Tarso perolava solícito:

— Sim, irmãos, Deus é mais belo nos dias trágicos. Quando as sombras ameaçam o caminho, a luz é mais preciosa e mais pura. Nestes dias de sofrimento e morte, quando a mentira destronou a verdade e a virtude foi substituida pelo crime, lembremos Jesus no madeiro in­famante. A cruz tem, para nós outros, uma divina men­sagem. Não desdenhemos o testemunho sagrado, quando o Mestre, não obstante imáculo, só alcançou neste mundo batalhas silenciosas e sofrimentos indefiníveis. Forta­leçamo-nos na idéia de que seu reino ainda não é deste mundo. Alcemos o espírito à esfera do seu amor imortal. A cidade dos cristãos não está na Terra; ela não poderia ser a Jerusalém que crucificou o Enviado Divino, nem a Roma que se comprás em derramar o sangue dos már­tires. Neste mundo, estamos em uma frente de combate incruento, trabalhando pelo triunfo eterno da paz do Senhor. Não esperemos, portanto, repousar no lugar do trabalho e dos testemunhos vivos. Da cidade indestrutível da nossa fé, Jesus nos contempla e balsamiza o coração. Caminhemos ao seu encontro, através dos su­plícios e das perplexidades dolorosas. Ele ascendeu ao Pai, do cimo do Calvário; nós lhe seguiremos as pegadas, aceitando com humildade os sofrimentos que, por seu amor, nos forem reservados...

O         auditório parecia extático, ouvindo as palavras proféticas do Apóstolo. Entre as lajes frias e impassí­veis, os irmãos na fé sentiam-se mais unidos entre si. Em todos os olhares cintilava a certeza da vitória espi­ritual. Naquelas expressões de dor e de esperança havia o tácito compromisso de seguir o Crucificado até ao seu Reino de Luz.

O         orador fizera uma pausa, sentindo-se dominado por estranhas comoções.

Nesse instante inesquecível, um magote de guardas rompeu afoito no recinto. O centurião Volúmnio, à testa da patrulha armada, fazia íntimações em alta voz, en­quanto os crentes pacíficos estarreciam surpresos.

—        Em nome de César! — bradava o preposto im­perial, exultando de contentamento. E ordenando aos soldados que fechassem o círculo em torno dos cristãos indefesos, continuava gritando de modo espetacular. — E que ninguém fuja! Quem o tentar, morre como um cão!

Apoiando-se a forte cajado, pois, nessa noite não tivera a companhia de Lucas, Paulo, erecto, evidenciando sua energia moral, exclamou firmemente:

—        E quem vos disse que fugiríamos? Ignorais, por­ventura, que os cristãos conhecem o Mestre a quem servem? Sois emissário de um príncipe do mundo, que estes sepulcros esperam; mas nós somos trabalhadores do Salvador magnânimo e imortal!...

Volúmnio fitou-o surpreso. Quem seria aquele velho, cheio de energia e combatividade?

Apesar da admiração que lhe inspirava, o centurião manifestou seu desagrado num sorriso de ironia. Medindo o ex-rabino de alto a baixo, com olhar de profundo desprezo, acrescentou:

—        Atentem bem no que aqui dizem e fazem...

E depois de uma gargalhada, dirigiu-se a Paulo com insolência:

—        Como ousas afrontar a autoridade de Augusto? Devem existir, de fato, diferenças singulares entre o imperador e o crucificado de Jerusalém. Não sei onde estaria seu poder de salvação para deixar suas vítimas ao abandono, no fundo dos cárceres ou nos postes do martírio...

Essas palavras eram pontilhadas de mordaz ironia, mas o Apóstolo respondeu com a mesma nobreza de Convicção:

—        Enganai-vos, centurião! As diferenças são apre­ciáveis!.. É que vós obedeceis a um infeliz e odiento perseguidor e nós trabalhamos por um salvador que ama e perdoa. Os administradores romanos, impensadamente, poderão inventar crueldades; mas Jesus nunca cessará de nutrir a fonte das bênçãos!..

A resposta produzira grande sensação no auditório. Os cristãos pareciam mais calmos e confiantes, os sol­dados não ocultavam a enorme impressão que os domi­nava. O centurião, embora reconhecendo o desassombro daquele espírito varonil, não queria parecer fraco aos olhos dos subalternos e exclamou irritado:

—        Vamos, Lucílio: três bastonadas neste velho atre­vido.

O         nomeado avançou para o Apóstolo, impassível. Ante a admiração silenciosa dos presentes, o bastão zuniu no ar, bateu em cheio no rosto do Apóstolo que, nem por isso, se alterou. As três pancadas foram rápi­das; no entanto, um filete de sangue lhe escorria da face dilacerada.

O         ex-rabino, a quem haviam tomado o cajado de apoio, mantinha-se de pé com certa dificuldade, mas sem trair o bom ânimo que lhe caracterizava a alma enérgica. Fixou os verdugos com firmeza e sentenciou:

—        Não podeis ferir senão o corpo. Podereis amar­rar-me de pés e mãos; quebrar-me a cabeça, mas as mi­nhas convicções são intangíveis, inacessíveis aos vossos processos de perseguição.

Diante de tanta serenidade, Volúmnio quase recuou aterrado. Não podia compreender aquela energia moral que se lhe deparava aos olhos cheios de espanto. Come­çava a acreditar que os cristãos, desprotegidos e anô­nimos, retinham um poder que a sua inteligência não lograva atingir. Impressionando-se com semelhante re­sistência, organizou, à pressa, as filas dos pobres perseguidos, que, humildes, obedeciam sem vacilar. O velho Apóstolo tarsense tomou lugar entre os prisioneiros sem trair o mínimo gesto de enfado ou rebeldia.

Observando atentamente a conduta dos guardas, exclamou, quando se deslocava o bloco de vítimas e verdugos, ao primeiro contacto com o relento frio da madrugada:

—        Exigimos o máximo respeito para com as mu­lheres e crianças!.. -

Ninguém ousou responder à observação, articulada em tom grave de advertência. O próprio Volúmnio parecia obedecer inconscientemente às admoestações daquele homem de fé poderosa e invencível.

O         grupo marchou em silêncio, atravessando as es­tradas desertas, chegando à Prisão Mamertina quando listravam o horizonte os primeiros clarões da aurora.

Atirados, previamente, num pátio escuro, até serem alojados individualmente nas divisões gradeadas e in­fectas, os discípulos do Senhor aproveitaram esses rápidos­ momentos para conforto mútuo, para trocarem idéias e conselhos edificantes.

Paulo de Tarso, todavia, não descansou. Solicitou audiência ao administrador da prisão, prerrogativa con­ferida ao seu titulo de cidadania romana, sendo prestes atendido. Expôs sua doutrina sem rebuços e, impres­sionando a autoridade com seu verbo fluente e sedutor, encareceu as providências atinentes ao seu caso, pedindo a presença de vários amigos como Acácio Domício e outros, para deporem no concernente à sua conduta e antecedentes honestos. O administrador vacilava na reso­lução a tomar. Tinha ordens terminantes de recolher ao cárcere todos os componentes de assembléias que se fi­liassem à crença perseguida e execrada. No entanto, as determinações de ordem superior continham certas restrições, no sentido de preservar, de algum modo, os “hu­miliores” (1), aos quais a Corte oferecia recursos de liberdade, caso prestassem juramento a Júpiter, abju­rando o Cristo Jesus.

Examinando os títulos de Paulo e conhecendo, através de seus informes verbais, as prestigiosas relações de que podia dispor nos círculos roma­nos, o chefe da Prisão Mamertina resolveu consultar Acácio Domício, sobre as providências cabíveis no caso.

Chamado ao estudo da questão, o amigo do Apóstolo compareceu solícito, procurando falar com o prisioneiro, depois de longa entrevista com o diretor da prisão.

Domício explicou ao benfeitor que a situação era muito grave; que o Prefeito dos Pretorianos estava in­vestido de plenos poderes para dirigir a campanha como melhor entendesse; que toda a prudência era indispen­sável e que, como último recurso, só restava um apelo à magnanimidade do imperador, perante quem o Apóstolo devia comparecer para defender-se pessoalmente, caso fosse deferida a petição apresentada a César naquele mesmo dia.

 

(1) Humiliores eram as pessoas de condição humilde sem qualquer titulo de dignidade social. — (Nota de Emma­nuel.)

 

Ouvindo essas ponderações, o ex-rabino recordou que uma noite, em meio à tempestade, entre a Grécia e a Ilha de Malta, ouvira a voz profética de um men­sageiro de Jesus, que lhe anunciava o comparecimento perante César, sem esclarecer os motivos do evento. Não seria aquele o momento previsto? Milhares de irmãos estavam presos ou em extrema desolação.

Acusados de incendiários, não haviam encontrado uma voz firme e resoluta que lhes advogasse a causa com o preciso desas­sombro. Percebia em Acácio a preocupação pela sua liberdade; mas, por trás das insinuações delicadas, havia um convite discreto para que ocultasse a sua fé perante o imperador, na hipótese de ser admitido à real entre­vista.

Compreendia os receios do amigo, mas, íntimamente, desejava alcançar a audiência de Nero, a fim de esclarecê-lo quanto aos sublimes princípios do Cristia­nismo. Constituir-se-ia advogado dos irmãos perseguidos e desditosos. Afrontaria de face a tirania ovante, clama­ria pela retificação do seu ato injusto. Se fosse nova­mente preso, voltaria ao cárcere com a consciência edifi­cada no cumprimento de um sagrado dever.

Depois de rápida meditação sobre a conveniência do recurso que lhe parecia providencial, insistiu com Do­mício para que o patrocinasse com os empenhos ao seu alcance.

O amigo do Apóstolo multiplicou atividades pessoais para alcançar os fins em vista.

Valendo-se do prestígio de todos os que viviam em condições de subalternidade junto do imperador, conseguiu a desejada audiência para que Paulo de Tarso se defendesse, como convinha, no apelo direto à autoridade de Augusto.

No dia aprazado, foi conduzido entre guardas, à pre­sença de Nero, que o recebeu curioso num vasto salão onde costumava reunir os favoritos ociosos da sua Corte criminosa e excêntrica. Interessava-lhe a personalidade do ex-rabino. Queria conhecer o homem que mobilizara grande número de seus íntimos para apoiar-lhe o recurso. A presença do Apóstolo dos gentios causou-lhe enorme decepção. Que valor poderia ter aquele velho insignifi­cante e franzino? Ao lado de Tigelino e de outros conselheiros­ perversos, fixou ironicamente a figura de Paulo. Era incrível tamanho interesse em torno de uma criatura tão vulgar. Quando se dispunha a recambiá-lo à prisão sem lhe ouvir o apelo, um dos áulicos lembrou que seria conveniente facultar-lhe a palavra, para que se lhe afe­risse a indigência mental. Nero, que jamais perdia oca­sião de ostentar suas presunções artísticas, considerou o alvitre bem apresentado e ordenou ao prisioneiro que falasse à vontade.

Ladeado por dois guardas, o inspirado pregador do Evangelho levantou a fronte cheia de nobreza, fitou César e os companheiros do seu séquito leviano e come­çou, resoluto:

—        Imperador dos romanos, compreendo a grandeza desta hora em que vos falo, apelando para os vossos sentimentos de generosidade e justiça. Não me dirijo, aqui, a um homem falível, a uma personalidade humana, simplesmente, mas ao administrador que deve ser consciencioso e justo, ao maior dos príncipes do mundo e que, antes de tomar o cetro e a coroa de um Império imenso, deve considerar-se o pai magnânimo de milhões de criaturas!.

As palavras do velho Apóstolo ecoavam no recinto com o caráter de uma profunda revelação. O imperador fixava-o, admirado e enternecido. Seu temperamento ca­prichoso era sensível às referências pessoais, onde pre­dominassem as imagens brilhantes. Percebendo que se impunha ao reduzido auditório, o convertido de Damasco prosseguiu mais corajoso:

—        Confiando em vossa longanimidade, pleiteei esta hora inesquecível, a fim de apelar para o vosso coração, não somente por mim, mas por milhares de homens, mu­lheres e crianças, que padecem nos cárceres ou sucum­bem nos circos do martírio. Falo, aqui, em nome dessa multidão incontável de sofredores, perseguida com re­quintes de crueldade por favoritos de vossa Corte, que deveria ser constituída de homens íntegros e humanitá­rios.

Acaso não chegarão aos vossos ouvidos os lamentos angustiosos da viuvez, da velhice e da orfandade? Oh! Augusto imperante do trono de Cláudio, sabei que uma onda de perversidade e de crimes odiosos varre os bairros da cidade imperial, arrancando soluços dolorosos aos vossos tutelados miserandos! Ao lado da vossa atividade governamental, por certo, rastejam víboras venenosas que é necessário extirpar, a bem da tranqüilidade e do trabalho honesto do vosso povo. Esses cooperadores per­versos desviam vossos esforços do caminho reto, espa­lham terror entre as classes desfavorecidas da sorte, ameaçam os mais infelizes! São eles os acusadores dos prosélitos de uma doutrina de amor e redenção. Não acrediteis no embuste dos seus conselhos que ressumam crueldade. Ninguém trabalhou, talvez, quanto os cris­tãos, no socorro às vítimas do incêndio voraginoso. Enquanto os patrícios ilustres fugiam de Roma desolada, enquanto os mais timidos se recolhiam aos lugares mais abrigados de perigo, os discípulos de Jesus percorriam os quarteirões em chamas, aliviando as vítimas infor­tunadas. Alguns imolaram a vida ao altruísmo dignifi­cador.

E por fim, vede, os trabalhadores sinceros do Cristo foram recompensados com a pecha de autores do crime hediondo, de caluniadores sem entranhas. Acaso não vos doeu a consciência ao endossardes tão infames alegações, à revelia de uma sindicância imparcial e rigorosa? No esfervilhar das calúnias, não vi surgir uma voz que vos esclarecesse. Admito que participais, certa­mente, de tão trágicas ilusões, porque não creio no des­virtuamento da vossa autoridade reservada às melhores resoluções em favor do Império. Ë por isso — 6 impe­rador dos romanos! — que, reconhecendo o grandioso poder enfeixado em vossas mãos, ouso levantar minha voz para esclarecer-vos. Atentai para a extensão gloriosa de vossos deveres. Não vos entregueis à sanha de polí­ticos inconscientes e cruéis. Lembrai-vos de que, numa vida mais elevada que esta, ser-vos-ão pedidas contas de vossa conduta nos atos públicos. Não alimenteis a pretensão de que vosso cetro seja eterno. Sois mandatário de um Senhor poderoso, que reside nos Céus. Para vos convencerdes da singularidade de semelhante situação, volvei um olhar, apenas, ao passado brumoso. Onde os vossos antecessores? Em vossos palácios faustosos pe­rambularam guerreiros triunfantes, reis improvisados, herdeiros vaidosos de suas tradições. Onde estão eles? A História nos conta que chegaram ao trono com os aplau­sos delirantes das multidões. Vinham soberbos, osten­tando magnificências nos carros do triunfo, decretando a morte dos inimigos, adornando-se com os despojos san­grentos das vítimas. Entretanto, bastou um sopro para que resvalassem do esplendor do trono para a escuridão do sepulcro. Uns partiram pelas conseqüências fatais dos próprios excessos destruidores; outros assassinados pelos filhos da revolta e do desespero. Recordando semelhante situação, não desejo transformar o culto da vida em culto da morte, mas demonstrar que a fortuna suprema do homem é a paz da consciência pelo dever cumprido.

Por todas essas razões, apelo para a vossa magnanimi­dade, não só por mim como por todos os correligionários que gemem à sombra dos cárceres, esperando o gládio da morte.

Observando-se longa pausa no verbo eloqüente do orador, podia ver-se a estranha sensação que a sua pala­vra havia causado. Nero estava lívido. Tigelino, pro­fundamente irritado, procurava um recurso para insi­nuar-se com alguma observação menos digna, a respeito do postulante. As raras cortesãs presentes não disfar­çavam a indizível comoção que lhes abalara o sistema nervoso. Os amigos do Prefeito dos Pretorianos mostra­vam-se indignados, rubros de cólera. Depois de ouvir um áulico, o imperador ordenou que o apelante se conser­vasse em silêncio, até que tomasse as primeiras deli­berações.

Estavam todos surpreendidos. Não se podia esperar de um velho franzino e doente tamanho poder de per­suasão, um desassombro que raiava pela loucura, segundo as noções do patriciado. Por muito menos, velhos e pro­bos conselheiros da Corte haviam alcançado o exílio ou a sentença de morte.

O filho de Agripina parecia abalado. Não mais assentava no olho a impertinente esmeralda, à guisa de monóculo. Tinha a impressão de haver escutado sinistros vaticínios.

Entregava-se, automaticamente, aos seus ges­tos característicos, quando impressionado e nervoso. As advertências do Apóstolo penetravam-lhe o coração, suas palavras pareciam ecoar-lhe nos ouvidos para sempre. Tigelino percebeu a delicadeza da situação e aproxi­mou-se.

—        Divino — exclamou o Prefeito dos Pretorianos em atitude servil, a voz quase imperceptível —, se quiser­des, o atrevido poderá morrer aqui mesmo, ainda hoje!

—        Não, não — redargüiu Nero comovido —, este homem é dos mais perigosos que tenho encontrado. Ninguém, como ele, ousou comentar a presente situação nestes termos.

Vejo, por detrás da sua palavra, muitos vultos talvez eminentes, que, conjugando valores, pode­riam fazer-me grande mal.

—        Concordo — disse o outro hesitante, em voz muito baixa.

—        Assim, pois — continuou o imperador pruden­temente —, é preciso parecer magnânimo e sagaz. Dar-lhe-ei o perdão, por agora, recomendando que não se afaste da cidade, até que se esclareça de todo a situação dos seguidores do Cristianismo..

Tigelino escutava com um sorriso ansioso, enquanto o filho de Agripina rematava em voz sumida:

—        Mas vigiarás seus menores passos, mantê-lo-ás em custódia oculta, e quando vier a festividade da re­construção do Grande Circo, aproveitaremos a oportuni­dade para despachá-lo a lugar distante, onde deverá desaparecer para sempre.

O         odioso Prefeito sorriu e acentuou:

—        Ninguém resolveria melhor o intrincado pro­blema.

Terminada a breve conversação, imperceptível aos demais, Nero declarou, com enorme surpresa dos palacia­nos, conceder ao apelante a liberdade que pleiteava em sua primeira defesa, mas reservava o ato de absolvição para quando se apurasse definitivamente a responsabi­lidade dos cristãos. Dessarte, o defensor do Cristianismo poderia permanecer em Roma, à vontade, submetendo-se, contudo, ao compromisso de não se ausentar da sede do Império, até que seu caso pessoal fosse bastantemente esclarecido, O Prefeito dos Pretorianos lavrou a sentença em pergaminho. Paulo de Tarso, por sua vez, estava confortado e radiante.

O caviloso monarca pare­ceu-lhe menos mau, digno de amizade e reconhecimento. Sentia-se possuído de grande alegria, por isso que os resultados da sua primeira defesa eram de molde a pro­porcionar nova esperança aos seus irmãos na fé.

Paulo retornou ao cárcere, ficando o administrador notificado das últimas disposições a seu respeito. Só então lhe deram liberdade.

Assaz esperançado, procurou os amigos; mas, por toda parte, só encontrava desoladoras notícias. A maio­ria dos colaboradores mais íntimos e prestimosos haviam desaparecido, presos ou mortos. Muitos haviam deban­dado, temerosos do extremo sacrifício. Por fim, sempre teve a satisfação de reencontrar Lucas. O piedoso médico informou-o dos acontecimentos dolorosos e trágicos que se repetiam, diariamente. Ignorando que um guarda o seguia de longe, para lhe situar a nova residência, Paulo, acompanhado do amigo, atingiu uma casa pobre nas proximidades da Porta Capena. Necessitando repousar e fortalecer o corpo debilitado, o velho pregador pro­curou dois generosos irmãos, que o receberam com imensa alegria. Trata-se de Lino e Cláudia, dedicados servido­res de Jesus.

O Apóstolo dos gentios instalou-se no lar pobre, com a obrigação de comparecer à Prisão Mamertina, de três em três dias, até que se aclarasse a situação, de modo definitivo.

Não obstante o consolo de que se sentia possuído, o venerável amigo do gentilismo experimentava singu­lares presságios. Surpreendia-se a refletir no coroamento da carreira apostólica como se nada mais lhe restasse senão morrer por Jesus. Combatia tais pensamentos, no propósito de continuar propugnando pela difusão dos ensinamentos evangélicos. Não mais pôde encaminhar-se à pregação das catacumbas, dada a prostração física, mas, valia-se da colaboração afetuosa e dedicada de Lucas para as epístolas que julgava necessárias. Nessas, inclui-se a derradeira carta que escreveu a Timóteo, apro­veitando dois amigos que partiam para a Ásia. Paulo escreve esse último documento ao discípulo muito amado, tomando-se de singulares emoções que lhe enchem os olhos de lágrimas abundantes. Sua alma generosa deseja confiar ao filho de Eunice as últimas disposições, mas luta consigo mesmo, de modo a não se dar por vencido.

       O ex-rabino, ao traçar conceitos afetuosos, sente-se qual

discípulo chamado a esferas mais altas, sem poder fur­tar-se à condição de homem que não deseja capitular na luta. Ao mesmo tempo que confia a Timóteo a con­vicção de haver terminado a carreira, pede-lhe que envie a ampla capa de couro deixada em Trôade, em casa de Carpo, visto necessitar de agasalho para o corpo aba­tido. Enquanto lhe envia as últimas impressões cheias de prudência e carinho, roga os seus bons ofícios para que João Marcos venha à sede do Império, a fim de auxiliá-lo no serviço apostólico. Quando a mão trêmula e rugosa escreve melancolicamente:

       — “Só Lucas está comigo” (1), o convertido de Damasco interrompe-se para chorar sobre os pergaminhos. Nesse instante, porém, sente afagar-lhe a fronte um como flabelo de asas que adejassem de leve. Brando conforto lhe invade o coração amoroso e intrépido. Nesse ponto da carta, recobra novo ânimo e volta a demonstrar decisão de luta, terminando com as recomendações atinentes às necessidades da vida material e aos seus labores evangélicos.

Paulo de Tarso, entretanto, entrega a missiva a Lucas para expedi-la, sem conseguir disfarçar os seus lúgubres pressentimentos. Em vão, o carinhoso médico e devotado amigo procura desfazer aquelas apreensões. Debalde Lino e Cláudia tentam distrai-lo.

Embora não abandonasse os trabalhos condizentes com a nova situação, o velho Apóstolo mergulhou-se em profundas meditações, das quais apenas se forrava para atender às necessidades triviais.

Efetivamente, decorridas algumas semanas após a carta a Timóteo, um grupo armado visitou a residência

 

(1) 2ª Epístola a Timóteo. Capítulo 4º, versículo 11.  — (Nota de Emmanuel)

 

de Lino, depois de meia-noite, na véspera das grandes festividades com que a administração pública desejava assinalar a reconstrução do Grande Circo, O dono da casa, a esposa e Paulo de Tarso foram presos, escapando Lucas pelo fato de pernoitar em outra parte. As três vítimas foram conduzidas a um cárcere do monte Esqui­lino, dando provas de poderosa fé em face do martírio que começava.

O Apóstolo foi atirado a uma cela escura e incomu­nicável, Os próprios soldados se intimidavam da sua coragem. Ao despedir-se de Lino e sua mulher, enquan­to esta se desfazia em lágrimas, o valoroso pregador abraçava-os dizendo:

— Tenhamos coragem. Esta deve ser a última vez em que nos saudamos com os olhos materiais; mas have­mos de avistar-nos no reino do Cristo. O poder tirânico de César não atinge senão o corpo miserável...

Em virtude de ordem expressa de Tigelino, o pri­sioneiro ficou insulado de todos os companheiros.

Na escuridão do cárcere, que mais se assemelhava a uma cova úmida, deu um balanço retrospectivo em todas as atividades de sua vida, entregando-se a Jesus, inteiramente confiado na sua divina misericórdia. Desejou sinceramente permanecer junto dos irmãos que, por certo, se destinavam aos espetáculos nefandos do dia imediato, esperando com eles comungar a hóstia dos martírios, quando chegasse a hora extrema.

Não pôde dormir, a considerar as horas transcor­ridas desde o momento da prisão, e concluiu que o dia do sacrifício estaria iminente. Nem uma réstia de Luz penetrava o cubículo infecto e acanhado. Percebia, so­mente, vagos rumores longínquos, que Lhe davam idéia da aglomeração popular nas vias públicas. As horas pas­saram em expectativas que pareciam intermináveis. De­pois de angustioso cansaço, conseguiu algumas horas de sono. Acordou, mais tarde, já incapacitado de calcular as horas decorridas. Tinha sede e fome, mas orou com fervor, sentindo que fluíam brandas consolações para sua alma, das fontes da providência invisível. No fundo, es­tava preocupado com a situação dos companheiros. Um guarda o informara de que enorme contingente de cris­tãos seria levado ao circo e ele sofria por não ter sido chamado a perecer com os irmãos, na arena do martírio, por amor a Jesus. Mergulhado nessas reflexões, não tardou a sentir que alguém abria, cautelosamente, a porta da enxovia. Conduzido ao exterior, o ex-rabino defrontou seis homens armados que o aguardavam junto de um veículo de regulares proporções. Ao longe, no horizonte pontilhado de estrelas, delineavam-se os tons maravilho­sos da madrugada próxima.

O         Apóstolo, silencioso, obedeceu à escolta. Ataram-lhe as mãos calejadas, brutalmente, com grosseiras cor­das. Um vigilante noturno, visivelmente embriagado, aproximou-Se e escarrou-lhe na face. O ex-rabino recor­dou os sofrimentos de Jesus e recebeu o insulto sem revelar o mínimo gesto de amor-próprio ofendido.

Mais uma ordem, tomou lugar no veículo, junto dos seis homens armados que o observavam, admirados de tanta serenidade e coragem.

Os cavalos trotaram lépidos como se quisessem ate­nuar a friagem úmida da manhã.

Chegados aos cemitérios que se enfileiravam ao longo da Via Apia, as sombras noturnas se desfaziam quase completamente, auspiciando um dia de sol radioso.

O         militar que chefiava a escolta mandou parar o carro e, fazendo descer o prisioneiro, disse-lhe hesitante:

—        O Prefeito dos Pretorianos, por sentença de César, ordenou que fosseis sacrificado no dia imediato ao da morte dos cristãos votados às comemorações do circo, realizadas ontem. Deveis saber, portanto, que estais vivendo os últimos minutos.

Calmo, olhos brilhantes e mãos amarradas, Paulo de Tarso, mudo até então, exclamou, surpreendendo os verdugos com a sua majestosa serenidade:

—        Ciente da tarefa criminosa que vos incumbe de­sempenhar .. Os discípulos de Jesus não temem os algozes que só lhes podem aniquilar o corpo. Não jul­gueis que vossa espada possa eliminar-me a vida, de vez que, vivendo estes fugazes minutos em corpo carnal, isso significa que vou penetrar, sem mais demora, nos tabernáculos­ da vida eterna, com o meu Senhor Jesus-Cristo, o mesmo que vos tomará contas, tanto quanto a Nero e Tigelino ....

A patrulha sinistra estarrecia de assombro. Aquela energia moral, no momento supremo, era de molde a abalar os mais fortes. Percebendo a surpresa geral e cioso do seu mandato, o chefe da escolta tomou a iniciativa do sacrifício. Os demais companheiros pareciam desorientados, nervosos, trêmulos. O inflexível preposto de Tigelino, porém, ordenou ao prisioneiro que desse vinte passos à frente. Paulo de Tarso caminhou serena-mente, embora, no íntimo, se recomendasse a Jesus, com­preendendo a necessidade de amparo espiritual para o testemunho supremo.

Ao chegar no local indicado, o sequaz de Tigelino desembainhou a espada, mas, nesse instante, tremeu-lhe a mão, fixando a vítima, e falou-lhe em tom quase im­perceptível:

—        Lastimo ter sido designado para este feito e íntimamente não posso deixar de lamentar-vos...

Paulo de Tarso, erguendo a fronte quanto lhe era possível, respondeu sem hesitar:

—        Não sou digno de lástima. Tende antes compai­xão de vós mesmo, porqüanto morro cumprindo deveres sagrados, em função de vida eterna; enquanto que vós ainda não podeis fugir às obrigações grosseiras da vida transitória. Chorai por vós, sim, porque eu partirei buscando o Senhor da Paz e da Verdade, que dá vida ao mundo; ao passo que vós, terminada vossa tarefa de sangue, tereis de voltar à hedionda convivência dos man­dantes de crimes tenebrosos da vossa época!...

O         algoz continuava a fitá-lo com assombro e Paulo, notando a tremura com que ele empunhava a espada, concitou resoluto:

—        Não tremais!... Cumpri vosso dever até ao fim! Um golpe violento fendeu-lhe a garganta, seccio­nando quase inteiramente a velha cabeça que se nevara aos sofrimentos do mundo.

Paulo de Tarso caiu redondamente, sem articular uma palavra. O corpo alquebrado embolou-se no solo, como um despojo horrendo e inútil. O sangue jorrava em golfões nas últimas contrações da agonia rápida, enquanto a expedição regressava penosamente, muda, dentro da luz matinal e triunfante.

O         valoroso discípulo do Evangelho sentia a angústia das derradeiras repercussões físicas; mas, aos poucos, experimentava uma sensação branda de alívio reparador. Mãos carinhosas e solicitas pareciam tocá-lo de leve, como se arrancassem, tão-só nesse contacto divino, as terríveis impressões dos seus amargurosos padecimentos. Tomado de surpresa, verificou que o transportavam a local distante e pensou que amigos generosos desejavam assisti-lo, em lugar mais conveniente, para que lhe não faltasse a doce consolação da morte tranqüila.

Depois de alguns minutos as dores haviam desaparecido por completo. Guardando a impressão de permanecer à som­bra de alguma árvore frondosa e amiga, experimentava a carícia das brisas matinais que passavam em lufadas frescas. Tentou levantar-se, abrir os olhos, identificar a paisagem. Impossível! Sentia-se fraco, qual convales­cente de moléstia prolongada e gravíssima. Reuniu as energias mentais, como lhe foi possivel, e orou, suplicando a Jesus permitisse o esclarecimento de sua alma, naquela nova situação.

Sobretudo, a falta de visão deixava-o submerso em angustiosa expectativa. Recordou os dias de Damasco, quando a cegueira lhe invadira os olhos de pecador, ofuscados pela luz gloriosa do Mestre. Lem­brou o carinho fraternal de Ananias e chorou ao influxo daquelas singulares reminiscências. Depois de grande esforço, conseguiu levantar-se e refletiu que o homem precisava servir a Deus, ainda que tateasse em densas trevas.

Foi ai que ouviu passos de alguém que se aproxi­mava de leve. Ocorreu-lhe subitamente o dia inesquecível em que fora visitado pelo emissário do Cristo, na pensão de Judas.

—        Quem sois? — perguntou como o fizera outrora, naquele lance inolvidável.

—        Irmão Paulo... — começou a dizer o recém-chegado.

Mas o Apóstolo dos gentios, identificando aquela voz bem-amada, interrompeu-lhe a palavra, bradando com júbilo inexprimível:

—        Ananias!... Ananias!...

E caiu de joelhos, em pranto convulsivo.

—        Sim, sou eu — disse a veneranda entidade pou­sando a mão luminosa na sua fronte —; um dia Jesus mandou que te restituisse a visão, para que pudesses conhecer o caminho áspero dos seus discípulos e hoje, Paulo, concedeu-me a dita de abrir-te os olhos para a contemplação da vida eterna. Levanta-te! Já venceste os últimos inimigos, alcançaste a coroa da vida, atingiste novos planos da Redenção!...

O         Apóstolo levantou-se afogado em lágrimas de jubilosa gratidão, enquanto Ananias, pousando a destra nos seus olhos apagados, exclamou com carinho:

— Vê, novamente, em nome de Jesus!... Desde a revelação de Damasco, dedicaste os olhos ao serviço do Cristo! Contempla, agora, as belezas da vida eter­na, para que possamos partir ao encontro do Mestre amado!...

Então, o devotado trabalhador do Evangelho re­conheceu as maravilhas que Deus reserva aos seus cooperadores no mundo cheio de sombras. Tomado de espanto, identificou a paisagem que o rodeava. Não longe estavam as catacumbas da Via Apia. Misteriosas forças o haviam afastado do quadro triste em que se decompunham os despojos sangrentos. Sentiu-se jovem e feliz. Compreendia, agora, a grandeza do corpo espi­ritual no ambiente estranho aos organismos da Terra. Suas mãos estavam sem rugas, a epiderme sem cicatri­zes. Tinha a impressão de haver sorvido um misterioso elixir de juventude. Uma túnica de alvura resplandecente envolvia-o em graciosas ondulações. Mal despertava do seu deslumbramento, quando alguém lhe bateu levemente no ombro: Era Gamaliel que lhe trazia um ósculo fraternal. Paulo de Tarso sentiu-se o mais ditoso dos seres. Abraçando-se ao velho mestre e a Ananias, num só gesto de ternura, exclamava entre lágrimas:

       — Só Jesus me poderia conceder alegria igual.

       Mal não acabara de o dizer, começaram a chegar velhos companheiros de lutas terrenas, amigos de outros tempos, irmãos desvelados que lhe vinham trazer as boas-vindas, ao transpor os umbrais da eternidade. Os deslumbramentos do Apóstolo sucediam-se ininterruptos. Como se ficassem em Roma, à sua espera, todos os már­tires das festividades da véspera chegaram cantando, nas proximidades das catacumbas. Todos queriam abra­çar o generoso discípulo, oscular-lhe as mãos. Nesse ínterim, dando a impressão de nascer em maravilhosas fontes do mais além, ouviu-se uma cariciosa melodia acompanhada de vozes argentinas, que deviam ser angé­licas. Surpreendido com a beleza da composição, intra­duzível na linguagem humana, Paulo ouvia o venerando amigo de Damasco, que explicava solícito:

       - Este é o hino dos prisioneiros libertados!...

Observando-lhe a intensa comoção, Ananias pergun­tou qual o seu primeiro desejo na esfera dos redimidos. Paulo de Tarso, íntimamente, recordou Abigail e os ane­los sagrados do coração, como aconteceria a qualquer ser humano; mas, integrado no ministério divino, que manda esquecer os caprichos mais singelos, e sem trair a gra­tidão à misericórdia do Cristo, respondeu comovidamente:

— Meu primeiro desejo seria rever Jerusalém, onde pratiquei tantos males e, ali, orar a Jesus, para ofertar-lhe o meu agradecimento.

Tão depressa o disse e a luminosa assembléia se punha em movimento. Assombrado com o poder da voli­tação, Paulo observava que as distâncias nada represen­tavam agora para as suas possibilidades espirituais.

De mais alto continuavam fluindo harmonias de sublimada beleza. Eram hinos que exaltavam a ventura dos trabalhadores triunfantes, e a misericórdia das bên­çãos do Todo-Poderoso.

Paulo desejava imprimir à divina excursão o sabor de suas reminiscências. Para esse fim, o grupo seguiu ao longo da Via Apia até Arícia, de onde se desviou em direção a Pouzzoles, em cuja igreja se deteve em preces, por alguns minutos de ventura inigualável. Daí a caravana espiritual demandou a Ilha de Malta. transportan­do-se em seguida para o Peloponeso, onde Paulo se extasiou na contemplação de Corinto, dando curso a re­cordações carinhosas e doces. Inflamados de entusiasmo fraternal, os componentes da caravana acompanhavam o valoroso discípulo no caminho das sagradas lembranças que lhe vibravam no coração. Atenas, Tessalônica, Fili­pes, Neápolis, Trôade e Éfeso foram pontos nos quais o Apóstolo estacionara, demoradamente, orando com lá­grimas de gratidão ao Altíssimo.

Atravessadas as zonas da Panfilia e da Cilícia, entraram na Palestina, tomados de júbilo e sagrado respeito. Em todos os caminhos in­corporavam-se emissários e trabalhadores do Cristo. Paulo não conseguia avaliar a alegria da chegada a Jeru­salém, sob o prodigioso azul do crepúsculo.

Obedecendo ao alvitre de Ananias, reuniram-se no cimo do Calvário e ali cantaram hinos de esperanças e de luz.

Lembrando os erros do passado amarguroso, Paulo de Tarso ajoelhou-se e elevou a Jesus fervorosa súplica. Os companheiros remidos recolheram-se em êxtase, en­quanto ele, transfigurado, em pranto, procurava exprimir a mensagem de gratidão ao Divino Mestre.

Desenhou-se então, na tela do Infinito, um quadro de beleza singular. Como se houvesse rasgado a imensurável umbela azul, surgiu na amplidão do espaço uma senda luminosa e três vultos que se aproximavam radiantes. O Mestre estava no centro, conservando Estevão à direita e Abigail ao lado do coração. Deslumbrado, arrebatado, o Apóstolo apenas pôde estender os braços, porque a voz lhe fugia no auge da comoção. Lágrimas abundantes perolavam-lhe o rosto também transfigurado. Abigail e Estevão adiantaram-se. Ela tomou-lhe delicadamente as mãos num assomo de ternura, enquanto Estevão o abraçava com efusão.

Paulo quis lançar-se nos braços dos dois irmãos de Corinto, beijar-lhes as mãos no seu arroubo de ventura, mas, qual a criança dócil que tudo devesse ao Mestre dedicado e bom, procurou o olhar de Jesus, para sen­tir-lhe a aprovação.

O     Mestre sorriu, indulgente e carinhoso, e falou:

—        Sim, Paulo, sê feliz! Vem, agora, a meus braços, pois é da vontade de meu Pai que os verdugos e os már­tires se reúnam, para sempre, no meu reino!...

E assim unidos, ditosos, os fiéis trabalhadores do Evangelho da redenção seguiram as pegadas do Cristo, em demanda às esferas da Verdade e da Luz...

Lá em baixo, Jerusalém contemplava, embevecida, o dilúculo vespertino, esperando o luar que não tardaria com os primeiros clarões...

 

                                                                                            Chico Xavier

 

                      

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