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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAULO E ESTEVÃO / Chico Xavier
PAULO E ESTEVÃO / Chico Xavier

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAULO E ESTEVÃO

Primeira Parte

 

Breve Notícia

Não são poucos os trabalhos que correm mundo, re­lativamente à tarefa gloriosa do Apóstolo dos gentios. É justo, pois, esperarmos a interrogativa: — Por que mais um livro sobre Paulo de Tarso? Homenagem ao grande trabalhador do Evangelho ou informações mais detalhadas de sua vida?

Quanto à primeira hipótese, somos dos primeiros a reconhecer que o convertido de Damasco não necessita de nossas mesquinhas homenagens; e quanto à segunda, responderemos afirmativamente para atingir os fins a que nos pro pomos, transferindo ao papel humano, com os recursos possíveis, alguma coisa das tradições do pla­no espiritual acerca dos trabalhos confiados ao grande amigo dos gentios.

Nosso escopo essencial não poderia ser apenas reme­morar passagens sublimes dos tempos apostólicos, e sim apresentar, antes de tudo, a figura do cooperador fiel, na sua legitima feição de homem transformado por Jesus-Cristo e atento ao divino ministério.

Esclarecemos, ainda, que não é nosso propósito levantar apenas uma biografia romanceada.

O mundo está repleto dessas fichas educa­tivas, com referência aos seus vultos mais notáveis. Nosso melhor e mais sincero desejo é recordar as lutas acerbas e os ásperos testemunhos de um coração extraordinário, que se levantou das lutas humanas para seguir os passos do Mestre, num esforço incessante.

As igrejas amornecidas da atualidade e os falsos de­sejos dos crentes, nos diversos setores do Cristianismo, justificam as nossas intenções.

Em toda parte há tendências à ociosidade do espí­rito e manifestações de menor esforço. Muitos discípulos disputam as prerrogativas de Estado, enquanto outros, distanciados voluntariamente do trabalho justo, suplicam a proteção sobrenatural do Céu. Templos e devotos entre­gam-se, gostosamente, às situações acomodatícias, prefe­rindo as dominações e regalos de ordem material.

Observando esse panorama sentimental é útil recor­darmos a figura inesquecível do Apóstolo generoso.

Muitos comentaram a vida de Paulo; mas, quando não lhe atribuíram certos títulos de favor, gratuitos do Céu, apresentaram-no como um fanático de coração res­sequido. Para uns, ele foi um santo por predestinação, a quem Jesus apareceu, numa operação mecânica da graça; para outros, foi um espírito arbitrário, absorvente e rís­pido, inclinado a combater os companheiros, com vaida­de quase cruel.

Não nos deteremos nessa posição extremista.

Queremos recordar que Paulo recebeu a dádiva santa da visão gloriosa do Mestre, às portas de Damasco, mas não podemos esquecer a declaração de Jesus relativa ao sofrimento que o aguardava, por amor ao seu nome.

Certo é que o inolvidável tecelão trazia o seu ministé­rio divino; mas, quem estará no mundo sem um ministério de Deus? Muita gente dirá que desconhece a própria tarefa, que é insciente a tal respeito, mas nós poderemos responder que, além da ignorância, há desatenção e muito capricho pernicioso. Os mais exigentes advertirão que Paulo recebeu um apelo direto; mas, na verdade, todos os homens menos rudes têm a sua convocação pes­soal ao serviço do Cristo. As formas podem variar, mas a essência ao apelo é sempre a mesma. O convite ao ministério chega, ás vezes, de maneira sutil, inesperada­mente; a maioria, porém, resiste ao chamado generoso do Senhor. Ora, Jesus não é um mestre de violências e se a figura de Paulo avulta muito mais aos nossos olhos, é que ele ouviu, negou-se a si mesmo, arrependeu-se, tomou a cruz e seguiu o Cristo até ao fim de suas tarefas materiais. Entre perseguições, enfermidades, apodos, zombarias, desilusões, deserções, pedradas, açoites e encarceramentos, Paulo de Tarso foi um homem intrépido e sincero, caminhando entre as sombras do mundo, ao encontro do Mestre que se fizera ouvir nas encruzilhadas da sua vida.

Foi muito mais que um predestinado, foi um realizador que trabalhou diariamente para a luz.

O Mestre chama-o, da sua esfera de claridadeS imor­tais. Paulo tateia na treva das experiências humanas e responde: — Senhor, que queres que eu faça?

Entre ele e Jesus havia um abismo, que o Apóstolo soube transpor em decênios de luta redentora e cons­tante.

Demonstrá-lo, para o exame do quanto nos compete em trabalhO próprio, a fim de Ir ao encontro de Jesus, é o nosso objetivo.

Outra finalidade deste esforço humilde é reconhecer que o Apóstolo não poderia chegar a essa possibilidade, em ação isolada no mundo.

Sem Estevão, não teríamos Paulo de Tarso. O gran­de mártir do Cristianismo nascente alcançou influência muito mais vasta na experiência paulina, do que podería­mos imaginar tão-só pelos textos conhecidos nos estudos terrestres. A vida de ambos está entrelaçada com miste­riosa beleza. A contribuição de Estevão e de outras per­sonagens desta história real vem confirmar a necessida­de e a universalidade da lei de cooperação. E, para ve­rificar a amplitude desse conceito, recordemos que Jesus, cuja misericórdia e poder abrangiam tudo, procurou a companhia de doze auxiliares, a fins de empreender a re­novação do mundo.

Aliás, sem cooperação, não poderia existir amor; e o amor é a força de Deus, que equilibra o Universo.

Desde já, vejo os críticos consultando textos e com­binando versículos para trazerem á tona os erros do nosso tentame singelo. Aos bem-intencionados agradecemos sin­ceramente, por conhecer a nossa expressão de criatura falível, declarando que este livro modestO foi grafado por um Espírito para os que vivam em espírito; e ao pedan­tismo dogmático, ou literário, de todos os tempos, recorremos ao próprio Evangelho para repetir que, se a letra mata, o espírito vivifica.

Oferecendo, pois, este humilde trabalho aos nossos irmãos da Terra, formulamos votos para que o exemplo do Grande Convertido se faça mais claro em nossos cora­ções, a fim de que cada discípulo possa entender quanto lhe compete trabalhar e sofrer, por amor a Jesus-Cristo.

Pedro Leopoldo, 8 de julho de 1941.

 

 

Corações flagelados

       A manhã enfeitava-se de muita alegria e de sol, mas as ruas centrais de Corinto estavam quase desertas.

       No ar brincavam as mesmas brisas perfumadas, que sopravam de longe; entretanto, não se observava, na fisionomia suntuosa das vias públicas, o sorriso de suas crianças despreocupadas, nem o movimento habitual das liteiras de luxo, em seu giro costumeirO.

       A cidade, reedificada por Júlio César, era a mais bela jóia da velha Acaia, servindo de capital à formosa pro­víncia. Não se podia encontrar, na sua intimidade, o espírito helênico em sua pureza antiga, mesmo porque, depois de um século de lamentável abandono, após a destruição operada por Múmio, restaurando-a, o grande imperador transformara Corinto em colônia importante de romanos, para onde acorrera grande número de liber­tos ansiosos de trabalho remunerador, ou proprietários de promissoras fortunas. A estes, associara-se vasta cor­rente de israelitas e considerável percentagem de filhos de outras raças que ali se aglomeravam, transformando a cidade em núcleo de convergência de todos os aventu­reiros do Oriente e do Ocidente. Sua cultura estava muito distante das realizações intelectuais do gosto grego mais eminente, misturando-se, em suas praças, os templos mais diversos.

       Obedecendo, talvez, a essa heterogeneidade de sentimentos, Corinto tornara-se famosa pelas tradições de libertinagem da grande maioria dos seus habitantes.

Os romanos lá encontravam campo largo para as suas paixões, entregando-se, desvairadamente, ao vene­noso perfume desse jardim de flores exóticas. Ao lado dos aspectos soberbos e das pedrarias rutilantes, o pân­tano das misérias morais exalava nauseante bafio. A tragédia foi sempre o preço doloroso dos prazeres fáceis. De quando em quando, os grandes escândalos reclama­vam as grandes repressões.

Nesse ano de 34, a cidade em peso fora atormentada por violenta revolta dos escravos oprimidos.

Crimes tenebrosos foram perpetrados na sombra, exigindo severas devassas. O Pró-consul não hesitara, ante a gravidade da situação. Expedindo mensageiros oficiais, solicitara de Roma os recursos precisos. E os recursos não tardaram. Em breve, a galera das águias dominadoras, auxiliada por ventos favoráveis, trazia no bojo as autoridades da missão punitiva, cuja ação deveria esclarecer os acontecimentos.

Eis por que, nessa manhã radiosa e alegre, os edi­fícios residenciais e as lojas do comércio apresentavam-se envolvidos em profundo silêncio, semicerrados e tristes. Os transeuntes eram raros, com exceção de vários ma­gotes de soldados, que cruzavam as esquinas despreocupa­dos e satisfeitos, como quem se entregava, de bom grado, ao sabor das novidades.

Já de alguns dias, um chefe romano, cujo nome se fazia acompanhar de sombrias tradições, fora recebido pela Corte Provincial, ali desempenhando as elevadas fünções de legado de César, cercado de grande número de agentes políticos e militares e estabelecendo o terror entre todas as classes, com os seus processos infaman­tes. Licínio Minúcio chegara ao poder, mobilizando todos os recursos da intriga e da calúnia. Conseguindo voltar a Corinto, onde estacionara anos antes, sem maior auto­ridade, tudo ousava agora, por aumentar seus cabedais, fruto de avareza insaciável e sem escrúpulos. Pretendia recolher-se, mais tarde, àqueles sítios, onde suas pro­priedades particulares atingiam grandes proporções, es­perando aí a noite da decrepitude. Assim, de maneira a consumar seus criminosos desígnios, iniciou largo mo­vimento de arbitrárias expropriações, a pretexto de ga­rantir a ordem pública em benefício do poderoso Império, que a sua autoridade representava.

Numerosas famílias de origem judaica foram esco­lhidas como vítimas preferenciais da nefanda extorsão.

Por toda parte começavam a chorar os oprimidos; entretanto, quem ousaria o recurso das reclamações pú­blicas e oficiais? A escravidão esperava sempre os que se entregassem a qualquer impulso de liberdade contra as expressões da tirania romana. E não era só a figura desprezível do odioso funcionário que constituía para a cidade uma angustiosa e permanente ameaça. Seus asseclas espalhavam-se em vários pontos das vias públicas, provocando cenas insuportáveis, características de uma perversidade inconsciente.

A manhã ia alta, quando um homem idoso, dando a entender que buscava o mercado, pelo cesto que lhe pendia das mãos, atravessava a passos vagarosos uma praça ensolarada e extensa.

Um grupo de tribunos alvejava-o com ditérios de­primentes, entre gargalhadas de ironia.

O         velhinho, que denunciava nos traços fisionômicos a linha israelita, demonstrava perceber o ridículo de que vinha sendo objeto; mas, distanciando-se dos militares patrícios, como desejoso de resguardar-se, caminhou com mais timidez e humildade, desviando-se em silêncio.

Foi nesse instante que um dos tribunos, em cujo olhar autoritário perpassava acentuada malícia, acercou-se dele, interrogando-o asperamente:

— Olá, judeu desprezível, como ousas passar sem saudar os teus senhores?

O interpelado estacou, pálido e trêmulo. Seus olhos revelaram estranha angústia que resumia, na sua elo­qüência silenciosa, todos os martírios infinitos que fla­gelavam a sua raça. As mãos enrugadas lhe tremiam ligeiramente, enquanto o busto se arqueava reverente, premindo a longa barba encanecida.

— Teu nome? — tornou o oficial, entre desrespeitoso e irônico.

       — Jochedeb, filho de Jared — respondeu timidamente.

—        E por que não saudaste os tribunos imperiais?

—        Senhor, eu não ousei! — explicou quase lacri­moso.

—        Não ousaste? — perguntou o oficial com pro­funda aspereza.

E, antes que o interpelado conseguisse oportunidade para mais amplas desculpas, o mandatário imperial as­sentou-lhe os punhos cerrados no rosto venerável, em bofetões sucessivos e impiedosos.

—        Toma! Toma! — exclamava rudemente, ao es­tridor das gargalhadas dos companheiros presentes à cena, em tom festivo — guarda mais esta lembrança! Cão asqueroso, aprende a ser educado e agradecido!...

O         velhinho cambaleou, mas não reagiu. Percebia-se-lhe a surda revolta íntima, a traduzir-se no olhar chamejante, indignado, que lançou ao agressor com uma sere­nidade terrível. Num movimento espontâneo, olhou os braços encarquilhados na luta e no sofrimento, reconhe­cendo a inutilidade de qualquer revide. Foi quando o verdugo inesperado, observando-lhe a calma silenciosa, pareceu medir a extensão da própria covardia e, colando as mãos na complicada armadura do cinto, voltou a dizer com profundo desdém:

—        Agora que recebeste a lição, podes procurar o mercado, judeu insolente!

A vítima dirigiu-lhe, então, um olhar de ansiosa amargura, no qual transpareciam as dolorosas angústias em toda uma longa existência. Emoldurado na túnica singela e na velhice venerável, aureolada por cabelos branqueados nas mais penosas experiências da vida, o olhar do ofendido semelhava-se a um dardo invisível que penetraria, para sempre, a consciência do agressor des­respeitoso e mau. No entanto, aquela dignidade ferida não se demorou muito na atitude de exprobração, intra­duzível em palavras. Em breves instantes, suportando os ditérios da geral zombaria, prosseguiu no objetivo que o levara a sair à rua.

O velho Jochedeb experimentava agora estranhas e amargas reflexões. Duas lágrimas quentes e doloridas sulcavam-lhe as rugas da face macilenta, perdendo-se nos fios grisalhos da barba veneranda. Que fizera para merecer tão pesados castigos? A cidade fora trabalhada pelos movimentos de rebeldia de numerosos escravos, mas seu pequeno lar prosseguia com a mesma paz dos que trabalham com dedicação e obediência a Deus.

A humilhação experimentada fazia-o regressar, pela imaginação, aos períodos mais difíceis da história de sua raça. Por que motivo, e até quando sofreriam os israelitas a perseguição dos elementos mais poderosos do mundo? Qual a razão de serem sempre estigmatiza­dos, como indignos e miseráveis, em todos os recantos da Terra? Entretanto, amavam sinceramente aquele Pai de justiça e amor, que velava dos Ceus pela grandeza da sua fé e pela eternidade dos seus destinos. Enquanto OS outros povos se entregavam ao relaxamento das forças espirituais, transformando esperanças sagradas em ex­pressões de egoísmo e idolatria, Israel sustentava a lei do Deus único, esforçando-se, em todas as circunstâncias, por conservar intacto o seu patrimônio religioso, com sacrifício embora da sua independência política.

Acabrunhado, O pobre velho meditava na própria sorte.

Esposo dedicado, enviuvara quando aquele mesmo Licínio Minúcio, questor do Império, anos antes, instau­rara nefandos processos em Corinto, a fim de punir alguns elementos de sua população descontente e rebe­lada. Sua grande fortuna pessoal fora extremamente re­duzida e houve de amargar uma prisão injusta, resultante de falsas acusações, que lhe valeram pesados dissabores e terríveis confiscos. Sua mulher não havia resistido aos sucessivos golpes que lhe feriram fatalmente o cora­ção sensível, mergulhando-se na morte, ralada de acerbos desgostoS e deixando-lhe os dois filhinhos que consti­tuíam a coroa de esperança da sua laboriosa existência. Jeziel e Abigail desenvolviam-se sob o carinho de seuS braços afetuosos e, por eles, no acúmulo dos sagrados deveres domésticos, sentia que a neve da estrada humana lhe alvejara precocemente os cabelos, consagrando a Deus as suas mais santas experiências. À mente lhe veio então, mais viva, a silhueta graciosa dos filhos. Era um leni­tivo conhecer o sabor agradável das experiências do mundo, a benefício deles. O tesouro filial compensava-o das flagelações em cada acidente do caminho. A evoca­ção do lar, onde o amor carinhoso dos filhos alimentava as esperanças paternas, suavizou-lhe as amarguras.

Que importava a brutalidade do romano conquista­dor, quando sua velhice se aureolava dos mais santos afetos do coração? Experimentando resignado consolo, chegou ao mercado, onde se abasteceu do que neces­øitava.

O movimento não era intenso na feira habitual, como nos dias mais comuns; entretanto, havia certa concor­rência de compradores, mormente de libertos e pequenos proprietários, que afluiam das estradas de Cencréia.

Mal não havia terminado a compra de peixe e legu­mes, luxuosa liteira parou no centro da praça e dela saltou um oficial patrício, desdobrando largo pergami­nho. Ao sinal de silêncio, que fizera emudecer todas as vozes, a palavra da estranha personagem vibrou forte na leitura fiel do édito que trazia:

— “Licínio Minúcio, questor do Império e legado de César, encarregado de abrir nesta província a necessária devassa para restabelecimento da ordem em toda a Acata, convida a todos os habitantes de Corinto que se consi­derarem prejudicados em seus interesses pessoais, ou que se encontrarem necessitados de amparo legal, a compare­cerem amanhã, ao meio-dia, no palácio provincial, junto ao templo de Vênus Pandemos, a fim de exporem suas queixas e reclamações, que serão plenamente atendidas pelas autoridades competentes.”

Lido o aviso, o mensageiro retornou a elegante via­tura, que, sustentada por hercúleos braços escravos, desa­pareceu na primeira esquina, envolvida por uma nuvem de pó levantada em remoinho pela ventania da manhã.

Entre os circunstantes, surgiram logo opiniões e comentários.

Os queixosos não tinham conta. O legado e seus prepostos logo de começo se apossaram de pequenos patrimônios territoriais da maioria das famílias mais humildes, cujos recursos financeiros não davam para custear processos no foro provincial. Daí, a onda de esperanças que avassalava o coração de muitos e a opi­nião pessimista de outros, que não enxergavam no édito senão nova cilada, para obrigar os reclamantes a paga­rem muito caro as suas legítimas reivindicações.

Jochedeb ouviu a comunicação oficial, colocando-se imediatamente entre os que se julgavam com direito a esperar legítima indenização pelos prejuízos sofridos nou­tros tempos.

Animado das melhores esperanças, desan­dou para casa, escolhendo caminho mais longo, de modo a evitar novo encontro com os que o haviam humilhado rudemente.

Não havia caminhado muito, quando lhe surgiram à frente novos grupos de militares romanos, em conver­sações ruidosas, que transbordavam alacremente nas cla­ridades da manhã.

Defrontando o primeiro grupo de tribunos e sentin­do-se alvo de comentários deprimentes a transparecerem em risos escarninhos, o velho israelita considerou: —“Deverei saudá-los, ou passar mudo e reverente, como procurei fazer na vinda?” Preocupado com o evitar novo pugilato que agravasse as humilhações daquele dia, in­clinou-se profundamente qual mísero escravo e murmu­rou, tímido:

— Salve, valorosos tribunos de César!

Mal acabou de o dizer e um oficial de fisionomia dura e impassível se acercou, exclamando colérico:

— Que é isso? Um judeu a dirigir-se impunemente aos patrícios? Chegou a tanto a condenável tolerância da autoridade provincial? Façamos justiça por nossas próprias mãos.

E novas bofetadas estalaram no rosto dorido do infeliz, que necessitava concentrar todas as energias na vontade para não se atirar, de qualquer modo, a uma reação desesperada. Sem uma palavra de justificação, o filho de Jared submeteu-se ao castigo cruel. Seu coração precipite, parecia rebentar de angústia no peito en­velhecido; todavia, o olhar refletia a intensa revolta que lhe ia na alma opressa. Impossibilitado de coordenar idéias em face da agressão inesperada, na sua atitude humilde reparou que, desta vez, o sangue jorrava das narinas, tingindo-lhe a barba branca e o linho singelo das vestiduras. Isso, porém, não chegou a sensibilizar o agressor, que, por fim, lhe vibrou a última punhada na fronte enrugada, murmurando:

—        Safa-te, insolente!

Sustentando, a custo, o cesto que lhe pendia dos braços trêmulos, Jochedeb avançou cambaleante, sufo­cando a explosão do seu extremo desespero. “Ah! ser velho!” — pensava.

Simultaneamente, os símbolos da fé modificavam-lhe as disposições espirituais, e sentia no íntimo a palavra antiga da Lei: — “Não matarás”. No entanto, os ensinamentos divinos, a seu ver, na voz dos profetas, aconselhavam o revide — “olho por olho, dente por dente”. Seu espírito guardava a intenção da represália como remédio às reparações a que se julgava com direito; mas as forças físicas já não eram compatí­veis com os requisitos da reação.

Profundamente humilhado e presa de angustiosos pensamentos, buscou recolher-se ao lar, onde se aconse­lharia com os filhos muito amados, em cujo afeto encon­traria, decerto, a necessária inspiração.

Sua modesta vivenda não demorava longe e, ainda a distância, acabrunhado, entreviu o singelo e pequenino teto do qual fizera a edícula do seu amor. Presto, en­veredou na trilha que terminava na cancelinha tosca, quase afogada pelas roseiras de Abigail, a exalarem forte e delicioso perfume. As árvores verdes e copadas espalhavam frescor e sombra, que atenuavam o rigor do sol. Uma voz clara e amiga chegava de longe aos seus ouvidos. O coração paternal adivinhava. Àquela hora, Jeziel, conforme o programa por ele mesmo traçado, arava a terra, preparando-a para as primeiras semeadu­ras. A voz do filho parecia casar-se à alegria do sol.

A velha canção hebraica, que lhe saía dos lábios quentes de mocidade, era um hino de exaltação ao trabalho e à Natureza. Os versos harmoniosos falavam do amor à terra e da proteção constante de Deus. O generoso pai afogava, a custo, as lágrimas do coração. A melodia popular sugeria-lhe um mundo de reflexões. Não havia trabalhado a existência inteira? Não se presumia um homem honesto nos mínimos atos da vida, para jamais perder o título de justo? Entretanto, o sangue da per­seguição cruel ali estava a pingar-lhe da barba veneranda sobre a túnica branca e indene de qualquer mácula que lhe pudesse atormentar a consciência.

Ainda não transpusera o cercado rústico da vivenda humilde, quando uma voz cariciosa lhe gritava assusta­diça e veemente:

— Pai! Pai! que sangue é esse?

Uma jovem de notável formosura corria a abraçá-lo com imensa ternura, ao mesmo tempo que lhe arrancava o cesto das mãos trêmulas e doloridas.

Abigail, na candidez dos seus dezoito anos, era um gracioso resumo de todos os encantos das mulheres da sua raça. Os cabelos sedosos caíam-lhe em anéis capri­chosos sobre os ombros, emoldurando-lhe o rosto atraente num conjunto harmonioso de simpatia e beleza. No en­tanto, o que mais impressionava, no seu talhe esbelto de menina e moça, eram os olhos profundamente negros, nos quais intensa vibração interior parecia falar dos mais elevados mistérios do amor e da vida.

— Filhinha, minha querida filha! — murmurou ele, amparando-se nos seus braços carinhosos.

Em breve, dava conta de todas as ocorrências. E, enquanto o velho genitor banhava o rosto contundido, na infusão balsâmica que a filha preparara cuidadosa­mente, Jeziel era chamado a inteirar-se do acontecido.

O jovem acorreu solícito e pressuroso. Abraçado ao pai, ouviu-lhe o desabafo amargo, palavra por palavra. No vigor da juventude, não se lhe poderia dar mais de vinte e cinco anos; mas o comedimento dos gestos e a gravidade com que se exprimia, deixavam entrever um espírito nobre, ponderado e servido por uma consciência cristalina.

—        Coragem, pai! — exclamou depois de ouvir a dolorosa exposição, pondo nas expressões de firmeza um acentuado cunho de ternura — nosso Deus é de justiça e sabedoria. Confiemos na sua proteção!

Jochedeb contemplou o filho de alto a baixo, fixan­do-lhe o olhar bondoso e calmo, onde desejaria lobrigar, naquele momento, a indignação que lhe parecia natural e justa, dominado pelo desejo das represálias. Ë ver­dade que criara Jeziel para as alegrias puras do dever, em obediência à leal execução da lei; entretanto, nada o compelia a abandonar suas idéias de desforra, de maneira a desafrontar-se dos ultrajes recebidos.

—        Filho — obtemperou depois de meditar longo tempo —, Jeová é cheio de justiça, mas os filhos de Israel, como escolhidos, precisam igualmente exercê-la. Podería­mos ser justos, olvidando afrontas? Não poderei des­cansar, sem o repouso da consçiência pela obrigação cum­prida. Tenho necessidade de assinalar os erros de que fui vítima, no presente e no passado, e amanhã irei ao legado ajustar minhas contas.

O         jovem hebreu fez um movimento de espanto e acrescentou:

—        Ireis, porventura, à presença do questor Licínio, esperando providências legais? E os antecedentes, meu pai? Pois não foi esse mesmo patrício quem vos despojou de grande patrimônio territorial, atirando-vos ao cár­cere? Não vedes que ele tem nas mãos as forças da iniqüidade? Não será de temer novas investidas com o fim de extorquir o pouco que nos resta?

Jochedeb mergulhou no olhar do filho, olhar que a nobreza do coração orvalhava de lágrimas emotivas, po­rém, na sua rigidez de caráter, acostumado a executar os desígnios próprios até ao fim, exclamou quase seca-mente:

—        Como sabes, tenho contas velhas e novas a acer­tar, e, amanhã, de conformidade com o édito, aprovei­tarei o ensejo que o Governo provincial nos faculta.

—        Meu pai, suplico-vos — advertiu o rapaz, entre respeitoso e carinhoso — não lanceis mão desses re­cursos!

— E as perseguições? — explodiu o velho energi­camente — e esse turbilhãO incessante de ignomínias em torno dos homens de nossa raça? Não haverá um paradeiro nesse caminho de infinitas angústias? Assis­tiremos, inermes, ao enxovalho de tudo que possuimos de mais sagrado? Tenho o coração revoltado com esses crimes odiosos, que nos atingem impunemente...

A voz tornara-se-lhe arrastada e melancólica, dei­xando perceber extremo desânimo; todavia, sem se per­turbar com as objeções paternas, Jeziel prosseguiu:

            - Essas torturas, entretanto, não são novas. Há muitos séculos, os faraós do Egito levaram tão longe a crueldade para com os nossos ascendentes, que os meninos de nossa raça eram trucidados logo ao nascer. Antíoco Epifânio, na Síria, mandou degolar mulheres e crianças, no recesso mesmo dos nossos lares. Em Roma, de tempos a tempos, todos os israelitas sofrem vexames e confiscos, perseguição e morte. Mas, certamente, meu pai, Deus permite que assim aconteça para que Israel reconheça, nos sofrimentos mais atrozes, a sua missão divina.

O         velho israelita parecia meditar as ponderações do filho; contudo, acrescentou resoluto:

—        Sim, tudo isso é verdade, mas a justiça reta deve ser cumprida, ceitil por ceitil, e nada poderá demover-me.

—        Então, ireis reclamar, amanhã, perante o legado?

—        Sim!

Nesse momento, o olhar do jovem demorou na velha mesa onde repousava a coleção dos Escritos Sagrados da família. Animado por súbita inspiraçãO, Jeziel lembrou humildemente:

—        Pai, não tenho o direito de exortar-vos, mas vejamos o que nos suscita a palavra de Deus a respeito do que pensais neste momento.

E abrindo os textos ao acaso, conforme o costume da época, a fim de conhecer a sugestão que lhes pudes­sem facultar as sagradas letras, leu na parte dos Pro­vérbios:

—        “Filho meu, não rejeites o corretivo do Senhor, nem te enojes de sua repreensão; porque Deus repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem”. (1)

O         velho israelita abriu os olhos espantados, reve­lando a estupefação que a mensagem indireta lhe causa­va; e como Jeziel o fixasse longamente, demonstrando ansioso interesse por conhecer-lhe a atitude íntima, em face da sugestão dos pergaminhos sagrados, acentuou:

—        Recebo a advertência dos Escritos, meu filho, mas não me conformo com a injustiça e, segundo tenho resolvido, levarei minha queixa às autoridades compe­tentes.

O         rapaz suspirou e disse resignado:

— Que Deus nos proteja!...

 

No dia seguinte, avolumava-se compacta multidão junto ao templo da Vênus popular. Do antigo casarão onde funcionava um tribunal improvisado, viam-se as luxuosas e extravagantes viaturas que cruzavam a gran­de praça em todas as direções. Eram patrícios que se dirigiam às audiências da Corte Provinciana, ou antigos proprietários da fortuna particular de Corinto, que se entregavam aos entretenimentos do dia, à custa do suor dos misérrimos cativos. Desusado movimento caracte­rizava o local, observando-se, de vez em quando, os oficiais embriagados que deixavam o ambiente viciado do templo da famosa deusa, entupido de capitosos perfumes e condenáveis prazeres.

Jochedeb atravessou a praça, sem se deter para fixar qualquer detalhe da multidão que o rodeava e penetrou no recinto, onde Licínio Minúcio, cercado de muitos auxi­liares e soldados, expedia numerosas ordens.

Os que se atreveram à queixa pública excediam tão­-somente de uma centena e, depois de prestarem declara­ções individuais, sob o olhar percuciente do legado, eram

 

(1) Provérbios, capítulo 3º, versículos 11 e 12.

 

um por um conduzidos para a solução isolada do assunto que lhes dizia respeito.

Chegada a sua vez, o velho israelita expôs suas reclamações particulares, atinentes às indébitas expro­priações do passado e aos insultos de que fora vítima na véspera, enquanto o orgulhoso patrício lhe anotava as menores palavras e atitudes, do alto de sua cátedra, como quem já conhecia, de longo tempo, a personagem em causa. Conduzido novamente ao interior, Jochedeb esperou, como os demais, a solução dos seus pedidos de reparação à Justiça; mas aos poucos, enquanto outros eram convocados nominalmente ao acerto das contas com o Governo provincial, reparava que o antigo casarão se envolvia em grande silêncio, percebendo que sua vez, pos­sivelmente, fora adiada por circunstâncias que não podia presumir.

Instado nominalmente a dirigir-se ao juiz, ouviu, grandemente surpreendido, a sentença negativa, lida por um oficial que desempenhava as atribuições de secretário daquela alçada.

—        O legado imperial, em nome de César, resolve ordenar o confisco da suposta propriedade de Jochedeb ben Jared, concedendo-lhe três dias para desocupar as terras que ocupa indebitamente, visto pertencerem, com fundamento legal, ao questor Licinio Minúcio, habilitado a provar, a qualquer tempo, seus direitos de propriedade.

A decisão inesperada causou intensa comoção ao ve­lho israelita, a cuja sensibilidade aquelas palavras leva­ram um efeito de morte. Nem saberia definir a angustiosa surpresa. Não confiara na Justiça e não estava à procura de sua ação reparadora? Queria gritar o seu ódio, mani­festar suas pungentes desilusões; mas a língua estava como que petrificada na boca retraída e trêmula. Após um minuto de profunda ansiedade, fixou no alto a figura detestada do antigo patrício, que lhe causava, agora, a derradeira ruína, e, envolvendo-o na vibração colérica da alma revoltada e sofredora, encontrou energias para dizer:

— Ó ilustríssimo questor, onde está a eqüidade das vossas sentenças? Venho até aqui implorando a interven­ção da Justiça e me retribuís a confiança com mais uma extorsão que me aniquilará a existência? No passado, sofri a desapropriação descabida de todos os meus bens territoriais, conservando com enormes sacrifícios a chá­cara humilde, onde pretendo esperar a morte!... Será crivel que vós, dono de opulentos latifúndios, não sintais remorso? Era subtrair ao mísero velho a derradeira côdea de pão?

O         orgulhoso romano, sem um gesto que denotasse a mais leve emoção, retrucou secamente:

—        Ponha-se na rua; e que ninguém discuta as deci­sões imperiais!

—        Não discutir? — clamou Jochedeb já desvairado.

      — Não poderei altear a voz amaldiçoando a memória dos criminosos romanos que me espoliaram? Onde colo­careis vossas mãos, envenenadas com o sangue das ví­timas e as lágrimas das viúvas e dos órfãos esbulha­dos, quando soar a hora do julgamento no Tribunal de Deus?...

Mas, recordando subitamente o lar povoado pela ternura dos filhos amorosos, modificou a atitude mental, sensibilizado nas fibras recônditas do ser. Prostrando-se, de joelhos, em convulsivo pranto, exclamou comovedora-mente:

—        Tende piedade de mim, Ilustríssimo!... Poupai-me a vivenda modesta, onde, acima de tudo, sou pai... Meus filhos esperam-me com o beijo da sua afeição sin­cera e desvelada!...

E acrescentava, afogado em lágrimas:

—        Tenho dois filhos que são duas esperanças do coração. Poupai-me, por Deus! Prometo conformar-me com esse pouco, nunca mais reclamarei!...

Entretanto, o legado impassível respondeu com frie­za, dirigindo-se a um soldado:

—        Espártaco, para que esse judeu impertinente se afaste do recinto, com as suas lamentações, dez bas­tonadas.

O         preposto formalizou-se para cumprir imediata­mente a ordem, mas o juiz implacável acrescentou:

        — Tenha cuidado em não lhe cortar o rosto, para que o sangue não escandalize os transeuntes.

De joelhos, o pobre Jochedeb suportou o castigo e, terminada a prova, levantou-se, cambaleante, alcançando a praça ensolarada, sob as risotas disfarçadas de quantos haviam presenciado o ignóbil espetáculo. Nunca, em sua vida, experimentara tão intenso desespero como naquela hora. Quereria chorar e tinha os olhos frios e secos, lamentar a desdita imensa e os lábios estavam petrifi­cados de revolta e dor. Parecia um sonâmbulo vagando inconsciente entre as viaturas e os transeuntes que se aglomeravam na praça enorme.

Contemplou com extrema e íntima repugnância o templo de Vênus. Desejava ter voz estentórica e poderosa para humilhar todos os cir­cunstantes com a palavra da condenação.

Observando as cortesãs coroadas que o encontravam, as armaduras dos tribunos romanos e a ociosa atitude dos afortunados que passavam despercebidos do seu martírio, molemente recostados nas liteiras vistosas da época — sentiu-se como que mergulhado num dos pântanos mais odiosos do mundo, entre os pecados que os profetas da sua raça jamais se cansaram de profligar, com todas as veras do coração consagrado ao Todo-Poderoso. Corinto, a seus olhos, era uma nova edição da Babilônia condenada e desprezível.

De súbito, apesar dos tormentos que lhe perturba­vam a alma exausta, recordou novamente os filhos queridos, sentindo, por antecipação, a profunda amargura que a notícia da sentença lhes causaria ao espírito sen­sível e afetuoso. A lembrança da ternura de Jeziel enter­necia-lhe o peito galvanizado no sofrimento. Teve a impressão de vê-lo ainda a seus pés, suplicando desistisse de qualquer reclamação e, aos ouvidos, ecoava-lhe agora, com mais intensidade, a exortação dos Escritos: — “Fi­lho meu, não rejeites a repreensão do Senhor!”

Mas, ao mesmo tempo, idéias destruidoras invadiam-lhe o cérebro cansado e dolorido. A Lei sagrada estava cheia de símbolos de justiça. E, para ele, impunha-se como dever sobe­rano providenciar a reparação que lhe parecia conve­niente. Agora, em desolação suprema, regressava ao lar, despojado de tudo que possuía de mais humilde e mais simples, e já no fim da vida! Como lhe viria o pão de amanhã? Sem elementos de trabalho e sem teto, via-se constrangido a peregrinar em situação parasitária, ao lado da juventude dos filhos.

Inenarrável martírio moral sufocava-lhe o coração.

Dominado por acerbos pensamentos, aproximou-se do sítio bem-amado, onde edificara o ninho familiar. O sol quente da tarde fazia mais doce a sombra das árvores, de ramarias verdes e abundantes. Jochedeb avançou no terreno, que era propriedade sua, e, angustiado pela pers­pectiva de abandoná-lo para sempre, deu ensejo a que terríveis tentações lhe desvairassem a mente. As terras de Licínio não se limitavam com a chácara? Afastan­do-se do caminho que o levava ao ambiente doméstico, penetrou nos matagais próximos e, depois de alguns passos, demorou o olhar na linha de demarcação, entre ele e o seu verdugo. As pastagens do outro lado não pareciam bem cuidadas. A falta de melhor distribuição da água comum, certa secura geral fazia-se sentir aspe­ramente. Apenas algumas árvores, isoladas, ameniza­vam a paisagem com a sua sombra, refrescando a região abandonada, entre espinheiros e parasitas que sufocavam as ervas úteis.

Obcecado pela idéia de reparação e vingança, o ve­lho israelita deliberou incendiar as pastagens próximas. Não consultaria os filhos, que, possivelmente, dobrariam o seu espírito, inclinados à tolerância e à benignidade. Jochedeb recuou alguns passos e, recorrendo ao material de serviço ali guardado nas proximidades, fez o fogo com que acendeu um feixe de ervas ressequidas. O rastilho comunicou-se, célere, e em rápidos minutos o incêndio das pastagens propagava-se com a velocidade do relâmpago.

Terminada a tarefa, sob a penosa impressão dos ossos doloridos, regressou cambaleante ao lar, onde Abi­gail o inquiriu, inutilmente, dos motivos de tão profundo abatimento. Jochedeb deitou-se à espera do filho; mas, dentro em pouco, um ruído ensurdecedor ecoava-lhe aos ouvidos. Não longe da chácara, o fogo destruía árvores amigas e frondes robustas, reduzindo pastos verdes a punhados de cinzas. Grande área ardia, irremediavel­mente, escutando-se os gritos lamentosos das aves que fugiam espavoridas. Pequenas benfeitorias do questor, inclusive algumas termas pitorescas de sua predileção, construídas entre as árvores, ardiam igualmente, con­vertendo-se em negros escombros. Aqui e acolá, o ala­rido dos trabalhadores do campo, em espantosa correria por salvar da destruição a residência campestre do pode­roso patrício, ou procurando insular a serpente de fogo que lambia a terra em todas as direções, aproximando-Se dos pomares vizinhos.

Algumas horas de ansiedade espalharam as mais angustiosas expectativas; mas, ao fim da tarde, o incên­dio fora dominado, depois de ingentes esforços.

Debalde o velho judeu enviara mensagens à pro­cura do filho, dentro dos círculos de serviço da sua pequena herdade. Desejava falar a Jeziel das suas neces­sidades e da situação tormentosa em que se encontravam novamente, ansioso por descansar a mente atormentada nas palavras dulcificantes da sua ternura filial. Entre­tanto, somente à noite, com as vestes chamuscadas e as mãos ligeiramente feridas, o jovem entrou em casa, deixando entrever no cansaço da fisionomia a laboriosa tarefa a que se impusera. Abigail não se surpreendeu com o seu aspecto, entendendo que o irmão não deixara de auxiliar os companheiros de trabalho da vizinhança, nas ocorrências da tarde, preparando-lhe aos pés cansados e às mãos doloridas o banho de água aromatizada; mas, tão logo o viu e notou as mãos feridas, foi com espanto que Jochedeb exclamou:

—        Onde estiveste, filho meu?

Jeziel falou da cooperação espontânea no salva­mento da propriedade vizinha e, à medida que relatava os tristes sucessos do dia, o pai deixava trair a própria angústia nas fácies sombrias, em que se estereotipavam os traços rudes da revolta que lhe devorava o coração. Ao cabo de alguns minutos, erguendo a voz desalentada, falou com profunda emoção:

—        Meus filhos, custa dizer-lhes, mas fomos espo­liados na derradeira migalha que nos resta... Repro­vando minha reclamação sincera e justa, o legado de César determinou o seqüestro do nosso próprio lar. A iníqua sentença é o passaporte da nossa ruína total. Pelas suas disposições, somos obrigados a abandonar a chácara em três dias!

E, elevando os olhos para o Alto, como a insistir junto à divina misericórdia, exclamava com o olhar em­baciado de lágrimas:

—        Tudo perdido!... Por que fui assim desampa­rado, meu Deus? Onde a liberdade do vosso povo fiel, se, em toda parte, nos exterminam e perseguem sem piedade?

Grossas lágrimas escorriam-lhe pelas faces, enquan­to com a voz trêmula narrava aos filhos os pesados tor­mentos de que fora vítima. Abigail osculava-lhe as mãos enternecidamente, e Jeziel, sem qualquer alusão à rebeldia paterna, abraçava-o depois da sua dolorosa exposição, consolando-o com amor:

            - Meu pai, por que vos atemorizardes? Deus nunca é avaro de misericórdia. Os Escritos Sagrados nos ensi­nam que Ele, antes de tudo, é o Pai desvelado de todos os vencidos da Terra! Essas derrotas chegam e passam. Tendes os meus braços e o cuidado afetuoso de Abigail. Por que lastimar, se amanhã mesmo, com o socorro di­vino, poderemos sair desta casa, para buscar outra em qualquer parte, a fim de nos consagrarmos ao trabalho honesto? Deus não guiou o nosso povo expulso do lar, através do oceano e do deserto? Por que negaria, então, seu apoio a nós que tanto o amamos neste mundo? Ele é a nossa bússola e a nossa casa.

            Os olhos de Jeziel fixavam o velho genitor numa atitude de súplica profundamente cariciosa. Suas pala­vras revelavam o mais doce enternecimento no coração. Jochedeb não era insensível àquelas formosas manifes­tações de carinho; mas, ante a revelação de tanta confiança no poder divino, sentia-se envergonhado, depois do ato extremo que praticara.

       Descansando na ternura que a presença dos filhos lhe oferecia ao espírito deso­lado, dava curso às lágrimas dolorosas que lhe fluíam da alma pungida por acerbas desilusões. Entretanto, Jeziel continuava:

—        Não choreis meu pai, contai conosco! Amanhã, eu próprio providenciarei a nossa retirada, como se faz preciso.

Foi nesse instante que a voz paternal se ergueu soturna e acentuou:

—        Mas não é tudo, meu filho!...

E, pausadamente, Jochedeb pintou o quadro de suas angústias reprimidas, da sua cólera justa, que culminara com a decisão de atear fogo à propriedade do verdugo execrando. Os filhos ouviam-no espantados, entremos­trando a dor sincera que a conduta paterna lhes causava. Depois de um olhar de infinito amor e funda preocupação, o jovem abraçou-o, murmurando:

—        Meu pai, meu pai, por que levantastes o braço vingador? por que não esperastes a ação da justiça divina?...

Embora perturbado pelas afetuosas admoestaçõeS, o interpelado esclarecia:

—        Está escrito nos mandamentos: — “não furtarás”; e, fazendo o que fiz, procurei retificar um desvio da Lei, porqüanto fomos espoliados de tudo que constituía o nosso humilde patrimônio.

—        Acima de todas as determinações, porém, meu pai — acentuou Jeziel sem irritação -, Deus mandou gravar o ensinamento do amor, recomendando que o amássemos sobre todas as coisas, de todo o coração e todo o entendimento.

—        Amo o Altíssimo, mas não posso amar o ro­mano cruel — suspirou Jochedeb, amargurado.

       — Mas, como revelarmos dedicação ao Todo-Pode­roso que está nos Céus — continuou o jovem compa­decido —, destruindo suas obras? No caso do incêndio, não temos só a considerar o nosso testemunho de des­confiança para com a justiça de Deus, mas os campos que nos fornecem agasalho e pão sofreram com a nossa atitude e os dois melhores servos de Licínio Minúcio, Caio e Rufílio, foram feridos de morte quando tentavam salvar as termas prediletas do amo, numa luta inútil para livrá-las do fogo que as destruiu; ambos, apesar de escravos, têm sido nossos melhores amigos. As ár­vores frutíferas e os canteiros de legumes de nossa pro­priedade devem quase tudo a eles, não só no concernente às sementes vindas de Roma, mas também no esforço e cooperação com o meu trabalho. Não seria justo hon­rarmos sua amizade, dedicada e diligente, evitando-lhes a punição e os sofrimentos injustos?

Jochedeb pareceu meditar profundamente nas obser­vações filiais, ditas em tom carinhoso. Enquanto Abigail chorava em silêncio, o moço acrescentava:

— Nós que estávamos em paz, nas derrotas do mun­do, porque trazíamos a consciência pura, precisamos re­solver, agora, em face do que nos advirá em represálias. Quando dava o meu esforço contra o fogo, observei que muitos afeiçoados de Minúcio me contemplavam com indisfarçável desconfiança. A esta hora, já ele terá re­gressado dos serviços da Corte Provincial. Precisamos encomendar-nos ao amor e à complacência de Deus, pois não ignoramos os tormentos reservados pelos romanos a todos os que lhes desrespeitam as determinações.

Penosa nuvem de tristeza mergulhara os três em sombrias preocupações. No velho observava-se uma an­siedade terrível, que se misturava à dor do remorso pungente e, em ambos os jovens, notava-se, no olhar, inexcedível amargura, angustiosa e intraduzível.

Jeziel tomou de sobre a mesa os velhos pergaminhos sagrados e disse à irmã, com triste acento:

— Abigail, vamos recitar o Salmo que nos foi ensi­nado pela mamãe para as horas difíceis.

Ambos se ajoelharam e suas vozes comovidas, como a de pássaros torturados, cantavam baixinho uma das formosas orações de David, que haviam aprendido no colo maternal:

 

“O Senhor é o meu Pastor,

Nada me faltará.

Deitar-me faz em verdes pastos,

Guia-me mansamente

A águas mui tranqüilas,

Refrigera minhalma,

Guia-me nas veredas da justiça

Por amor do seu nome.

Ainda que eu andasse

Pelo vale das sombras da morte,

Não temeria mal algum,

Porque Tu estás comigo...

A Tua vara e o Teu cajado me consolam.

Prepara-me o banquete do amor

Na presença dos meus inimigos,

Unges de perfume a minha cabeça,

O meu cálice transborda de júbilo!...

Certamente,

A bondade e a misericórdia

Seguirão todos os dias de minha vida

E habitarei na Casa do Senhor

Por longos dias...“ (1)

 

O         velho jochedeb acompanhava o cântico dolorido, sentindo-se opresso de amargosas emoções. Começava a compreender que todos os sofrimentos enviados por Deus sãO proveitosos e justos. e que todos os males procurados pelaS mãos do homem trazem, invariavel­mente, torturas infernais à consciência invigilante O cântico abafado dos filhos enchia-lhe o coração de tris­tezas pungentes. Lembrava, agora, a companheira que­rida que Deus havia chamado à vida espiritual. Quantas vezes, acalentar-lhe ela o espírito atormentado com aqueles versos inesquecíveis do profeta? Bastava que sua observação amiga e fiel se fizesse ouvir para que o sentido da obediência e da justiça lhe falasse mais alto ao coração.

Ao ritmo da harmOnia caridOSa e triste, que apre­sentava acento singular na voz dos filhos idolatrados, Jochedeb chorou longamente. Da pequenina janela aberta no aposento humilde, seus olhos buscaram ansiosamente o céu azul, que se enchera de sombras tranqüilas. A

 

(1)       Salmo 23º. — (Nota de Emmanuel.)

 

noite abraçara a Natureza e, muito longe, no alto, come­çavam a luzir as primeiras estrelas.

      Identificando-se com as sugestões grandiosas do firmamento, experimen­tou intensas comoções na alma ansiosa. Profundo enter­necimento fê-lo levantar-se e, sedento de revelar aos filhinhos quanto os amava e quanto deles esperava na­quela hora culminante da sua vida, inclinou-se de braços abertos, com significativa expressão de carinho e, quando as últimas notas se desprendiam do cântico dos jovens enlaçados e genuflexos, abraçou-os em pranto, murmu­rando:

— Meus filhos! meus queridos filhos!...

Mas, nesse instante abriu-se a porta e um pequenino servidor das vizinhanças anunciou com grande assombro a lhe transparecer nos olhos:

      - Senhores, o soldado Zenas e mais alguns compa­nheiros chamam-vos à porta.

O velho colou a destra ao peito opresso, enquanto Jeziel parecia meditar um instante; todavia, revelando a firmeza do seu espírito resoluto, o jovem exclamou:

— Deus nos protegerá.

Daí a instantes, o mensageiro que chefiava a pe­quena escolta leu o mandado de prisão de toda a família. A ordem era categórica e irrevogável. Os acusados de­veriam ser recolhidos imediatamente ao cárcere, a fim de que se lhes esclarecesse a situação no dia seguinte.

Abraçado aos dois filhos, o pobre israelita marchou à frente da escolta, que os observava sem piedade.

Jochedeb contemplou os canteiros de flores e as árvores bem-amadas junto da casinha singela onde tecera todos os sonhos e esperanças da sua vida. Singular emo­ção dominou-lhe o espírito cansado. Uma torrente de lágrimas fluía-lhe dos olhos e, transpondo a cancela florida, falou em voz alta, olhando o céu claro, agora recamado pelos astros da noite:

— Senhor! compadece-te do nosso amargurado des­tino!...

Jeziel apertou-lhe docemente a mão encarquilhada, como a lhe pedir resignação e calma, e o grupo marchou silenciosamente à luz das estrelas.

 

Lágrimas e sacrifícios

A prisão que recebera as nossas personagens, em Corinto, era um velho casarão de corredores úmidos e escuros, mas a sala destinada aos três, conquanto des­provida de qualquer conforto, apresentava a vantagem de uma janela gradeada, que comunicava o ambiente desolado com a natureza exterior.

Jochedeb estava cansadíssimo e, servindo-se do man­to que apanhara ao acaso, ao retirar-Se, Jeziel impro­visou-lhe um leito sobre as lajes frias. O velho, ator­mentado por uma aluvião de pensamentos, descansava o corpo dolorido, entregue a penosas meditações sobre os problemas do destino humano. Sem saber externar suas dores pungentes, engolfara-se em angustioso mutismo, evitando o olhar dos filhos. Jeziel e Abigail aproximando-se da janela segurando-lhe as grades in­flexíveis e abafando, com dificuldade, a justa inquieta­ção. Ambos olharam, instintivamente, o firmamento, cuja imensidade sempre resumiu a fonte das mais ternas espe­ranças para os que choram e sofrem na Terra.

O         jovem abraçou a irmã, com imensa ternura, e disse comovido:

—        Abigail, lembras-te da nossa leitura de ontem?

            — Sim — respondeu ela com a ingênua serenidade dos seus olhos negros e profundos -, tenho agora a impressão de que os Escritos nos davam uma grande mensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente  aquele em que Moisés contemplava, de longe, a terra da Promissão sem poder alcançá-la.

O         rapaz sorriu satisfeito por sentir-se identificado nos seus pensamentos e confirmou:

—        Vejo que estamos de perfeito acordo, O céu, esta noite, oferece-nos a perspectiva de uma pátria lumi­nosa e distante. Lá — continuava apontando o zimbório estrelado — organiza Deus os triunfos da verdadeira justiça: dá paz aos tristes; conforto aos desalentados da sorte.

Certamente, nossa mãe está com Deus, espe­rando por nós.

Abigail mostrou-se muito impressionada com as pa­lavras do irmão- e acentuou:

—        Estás triste? Ficaste agastado com o proceder de nosso pai?

—        De modo algum — atalhou o moço afagando-lhe os cabelos —, estamos em experiências que devem ter a melhor finalidade para a nossa redenção, porque, de outro modo, Deus não no-las mandaria.

—        Não nos aborreçamos com o pai — tornou a jovem —; estive pensando que, se a mamãe estivesse conosco, ele não chegaria a reclamações de tão tristes conseqüências. Nós não temos aquele poder de persuasão com que ela, carinhosa sempre, iluminava a nossa casa.

Lembras-te? Sempre nos ensinou que os filhos de Deus devem estar prontos para a execução das divinas-vontades. Os profetas, por sua vez, nos esclarecem que os homens são varas no campo da criação. O Todo-Pode­roso é o lavrador e nós devemos ser os galhos floridos ou frutíferos, na sua obra. A palavra de Deus nos ensina a ser bons e amáveis. O bem deve ser a flor e o fruto, que o Céu nos pede.

Nessa altura, a bela jovem fez uma pausa signi­ficativa. Seus grandes olhos estavam velados por um tênue véu de pranto, que não chegava a cair.

— Entretanto, continuou ela, emocionando o irmão carinhoso: sempre desejei fazer algum bem, sem jamais o conseguir. Quando nossa vizinha enviuvou, quis auxi­liá-la com dinheiro, mas não o possuia; sempre que me surge uma oportunidade de abrir as mãos, tenho-as po­bres e vazias. Então, agora, penso que foi útil a nossa prisão. Não será uma felicidade, neste mundo, podermos sofrer alguma coisa por amor de Deus? Quem nada tem, inda possui o coração para dar. E estou convicta de que o Céu nos abençoará pela nossa resolução em servi-lo com alegria.

O         rapaz aconchegou-a ao peito e exclamou:

—        Deus te abençoe pelo entendimento das suas leis, irmãzinha!

Longa pausa estabelecera-se entre ambos, enquanto mergulhavam no infinito da noite clara os olhos ternos e ansiosos.

Em dado instante, voltou a jovem a considerar:

—        Por que será que os filhos de nossa raça são perseguidos em toda parte, provando injustiça e sofri­mentos?

—        Suponho — respondeu o moço — que Deus o permite a exemplo do pai amoroso que, para educar os filhos mais jovens e ignorantes, toma por base os filhos mais experientes.

Enquanto os outros povos amortecem forças na dominação pela espada, ou nos prazeres con­denáveis, nosso testemunho ao Altíssimo, pelas dores e amarguras, multiplica em nosso espírito a capacidade de resistência, ao mesmo tempo que os outros homens aprendem a considerar, com o nosso esforço, as verdades religiosas.

E, fixando o olhar sereno no firmamento, acres­centou:

— Mas eu creio no Messias Redentor, que virá esclarecer todas as coisas. Os profetas nos afirmam que os homens não o compreenderão; entretanto, ele há de vir ensinando o amor, a caridade, a justiça e o perdão. Nascerá entre os humildes, exemplificará entre os pobres, iluminará o povo de Israel, levantará os tris­tes e oprimidos, tomará, com amor, todos os que pade­cem no abandono do coração. Quem sabe, Abigail, estará ele no mundo, sem o sabermos? Deus opera em silêncio e não concorre com as vaidades da criatura. Temos fé e a nossa confiança no Céu é uma fonte de força inesgo­tÀvel. Os filhos da nossa raça muito têm padecido, mas Deus saberá por quê, e não nos enviaria problemas de que não necessitássemos.

A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de alguns instantes:

—        E já que falamos em sofrimentos, como devere­mos esperar o dia de amanhã? Prevejo grandes contra­riedades no interrogatório e, afinal, que farão os juizes de nosso pai e de nós próprios?

—        Não deveremos aguardar senão desgostos e de­cepções, mas não esqueçamos a oportunidade de obedecer a Deus - Quando experimentou a ironia de sua mulher. nas desditas extremas, Job teve a boa lembrança de que, se o Criador nos dá os bens para nossa alegria, pode enviar-nos igualmente os dissabores para nosso proveito. Se o papai for acusado, direi que fui eu o autor do delito.

—        E se te flagelarem por isso? — perguntou ela de olhos ansiosos.

—        Entregar-me-ei ao flagício com a paz da cons­ciência - Se estiveres junto de mim, nesse instante, can­tarás comigo a prece dos que se encontram em aflição

—        E se te matarem, Jeziel?

—        Pediremos a Deus que nos proteja.

Abigail abraçou mais ternamente o irmão, que, por sua vez, dissimulava a custo a emoção que lhe ia nalma. A irmã querida constituíra sempre o tesouro afetivo de toda a sua vida. Desde que a morte lhes arrebatara a genitora, dedicara-se à irmã, com  todas as veras do coração. Sua vida pura dividia-se entre o trabalho e a obediência ao pai; entre o estudo da lei e a afeição meiga companheira da infância. Abigail contemplava-o. ternamente, enquanto ele a abraçava com o enlevo da amizade pura, que reúne duas almas afins.

Depois de meditar longos minutos, Jeziel falou co­movido: — Se eu morrer, Abigail, hás de prometer-me seguir à risca aqueles conselhos da mamãe, para que tivéssemos a vida sem mácula, neste mundo. Lem­brar-te-ás de Deus e da nossa vida de trabalho santifi­cador, e nunca ouvirás a voz das tentações que arrastam as criaturas à queda nos abismos do caminho.

Recor­das-te das últimas observações da mamãe no leito da morte?

— Se recordo — respondeu Abigail com uma lágri­ma. — Tenho a impressão de ouvir ainda as suas últimas palavras: “e vocês, meus filhos, amarão a Deus acima de tudo, de todo o coração e de todo o entendimento”.

Jeziel sentiu os olhos úmidos, com aquelas recorda­ções, e murmurou:

— Feliz de ti que não esqueceste.

E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou sensibilizado:

— Agora precisas descansar.

Embora ela se recusasse ao repouso, tomou-lhe o manto pobre, improvisou um leito à luz baça do luar que penetrava pelas grades e, osculando-lhe a fronte com indizível ternura, advertiu afetuosamente:

— Descansa, não te impressiones com a situação, nosso destino pertence a Deus.

Abigail, para lhe ser agradável, aquietou-se como pôde, enquanto ele se aproximava da janela para con­templar a beleza da noite polvilhada de luz. Seu coração moço, atufava-se de angustiosas cogitações. Agora que o pai e a irmãzinha repousavam na sombra, dava curso às idéias profundas que lhe empolgavam o espírito generoso. Buscava, ansiosamente, uma resposta às inter­rogações que mandava às estrelas distantes. Esperava, com sinceridade e confiança, no seu Deus de sabedoria e misericórdia, que os pais lhe haviam dado a conhecer.

       A seus olhos, o Todo-Poderoso sempre fora infinita­mente justo e bom. Ele, que esclarecera o genitor e con­solara a irmãzinha, perguntava também, por sua vez, dentro de si, o porquê das suas provas dolorosas. Como se justificava, por causa tão comezinha, a prisão ines­perada de um ancião honesto, de um homem trabalhador e de uma criança inocente? Que delito irreparável haviam praticado para merecer expiação tão penosa? O pranto correu-lhe copioso ao relembrar a humilhação da irmã, mas também não procurou enxugar as lágrimas que lhe inundavam o rosto, de maneira a escondê-las de Abigail, que talvez o observasse na sombra. Rememorava, um a um, todos os ensinamentos dos Escritos Sagrados. As lições dos profetas consolavam-lhe a alma ansiosa. En­tretanto, vagava-lhe no coração uma saudade infinita. Lembrava-se do carinho materno que a morte lhe arre­batara. Se presente àquele transe, a mãe saberia como confortá-los. Quando criança, nas suas pequenas con­trariedades, ela ensinava que, em tudo, Deus era bom e misericordioso; que, nas enfermidades, corrigia o corpo, e nas angústias da alma esclarecia, iluminava o coração; no desfile das reminiscências, considerava igualmente que ela sempre o incitara à coragem e à alegria, fazendo-lhe sentir que a criatura convicta da paternidade divina anda, no mundo, fortalecida e feliz.

Edificado na fé, cobrou ânimo e, depois de longas reflexões, aquietou-se na laje fria, procurando o repouso possível no silêncio augusto da noite.

O dia amanheceu prenhe de lúgubres expectativas.

Dentro de poucas horas, Licínio Minúcio, rodeado de numerosos guardas e satélites, recebeu os prisionei­ros na sala destinada aos criminosos comuns, onde se ostentavam alguns instrumentos de punição e suplício.

Jochedeb e os filhos traíam na palidez do semblante a emoção profunda que os dominava.

Os costumes da época eram excessivamente desu­manos para que o juiz implacável e a maioria dos cir­cunstantes se inclinassem à comiseração pelo aspecto desditoso deles.

Alguns esbirros perfilavam-se junto dos potros de castigo, de onde pendiam açoites e algemas impiedosos.

Não houve interrogatório, nem depoimento de tes­temunhas, como seria de esperar antes de providências tão odiosas, e, chamado rudemente pela voz metálica do legado, o velho judeu aproximou-se vacilante e trê­mulo:

— Jochedeb — exclamou o algoz impassível e sa­nhudo —, os que desacatam as leis do Império devem ser punidos de morte, mas eu procurei ser magnânimo, em consideração à tua velhice desamparada.

Um olhar de angustiada expectação transfigurou o rosto do acusado, enquanto o patrício esboçava um sor­riso irônico.

—        Alguns operários lá da herdade — continuou Licínio — viram-te as mãos perversas na tarde de ontem, quando incendiaste as pastagens. Esse ato redundou em sérios prejuízos para os meus interesses, além de ocasio­nar males talvez irreparáveis à saúde de dois servos mui prestimosos. Como nada tens de teu para compensar o dano causado, receberás o justo corretivo em flagelações, para que nunca mais venhas a erguer tuas garras de abutre contra os interesses romanos.

Sob o olhar angustiado e lacrimoso dos filhos, o ve­lho israelita ajoelhou-se e murmurou:

—        Senhor, por piedade!

—        Piedade? — berrou Minúcio com rispidez. — Cometes um crime e imploras favores? Bem se diz que tua raça se compõe de vermes asquerosos e desprezíveis.

E, designando o tronco, disse friamente a um dos sequazeS:

—        Pescênio, avia-te! Vergasta-o vinte vezes.

Ante a muda aflição dos jovens, o respeitável ancião foi solidamente algemado.

O         castigo ia começar quando Jeziel, rompendo a expectativa geral, aproximou-se da mesa e falou com humildade:

—        Questor Ilustríssimo, perdoai minha covardia de haver calado até agora; asseguro-vos, porém, que meu pai está sendo acusado injustamente. Fui eu quem incendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentença de confisco exarada contra nós. Dignai-vos, pois, libertá-lo e dar-me a mim a merecida punição. Aceitá-la-ei de bom grado.

O         patrício teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que se caracterizavam por mobilidade extrema, e acentuou:

—        Mas, não auxiliaste os meus homens a salvar uma parte das termas? Não foste o primeiro a medicar Rufílio?

- Assim fiz levado pelo remorso, ilustríssimo -retrucou o rapaz, ansioso por isentar o pai do suplício iminente -; quando vi a extensão do fogo comunicando-se às árvores, temi as conseqüências do ato praticado, mas, agora, confesso ter sido o seu autor.

Nesse ínterim, receoso pela sorte do filho, Jochedeb exclamou, íntimamente atormentado:

- Jeziel, não te inculpes por uma falta que não cometeste!...

Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou, dirigindo-se ao moço hebreu:

- Está bem: poupei-te até agora, baseado nas falsas informações que me deram a teu respeito; contudo, terás também o teu quinhão de disciplina indispensável. Teu pai pagará pelo crime em que foi visto, de maneira inegável; e tu pagarás pelo que confessaste espontaneamente.

Colhido de surpresa pela decisão que não esperava, Jeziel foi conduzido ao poste de tortura, em frente da angústia paterna. A seu lado, postou-se o companheiro de Pescênio, que o atou sem piedade aos elos de bronze, e as primeiras vergastadas começaram a lamber-lhe o dorso, impiedosas, isócronas.

Uma... duas... três...

Jochedeb revelava profunda debilidade, vendo-se-lhe o peito a arfar penosamente, ao passo que o filho demonstrava tolerar o suplício com heroismo e nobre serenidade; ambos de olhos fixos em Abigail, que os contemplava excessivamente pálida, entremostrando nas lágrimas ardentes que derramava o cruciante martírio do seu espírito afetuoso.

A punição terrível ia quase a meio, quando um mensageiro entrou no recinto e, em voz alta, anunciou ao legado, em tom solene:

- Ilustríssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Rufílio acaba de falecer.

O cruel patrício franziu o sobrolho como costumava fazer nos momentos de explosão colérica. Sentimentos rancorosos lhe afloraram à face, que a perversidade de egoísmo exacerbado vincara de traços indeléveis.

—        Era o melhor dos meus homens — bradou. —Estes judeus malditos pagarão muito caro esta afronta.

—        Filócrio, aplica-lhe mais vinte vergastadas e, em seguida, leva-o à prisão, de onde deverá seguir para o cativeiro nas galeras.

Entre as pobres vítimas e a jovem aflita trocou-se um olhar de significação intraduzível.

Aquele cativeiro era a ruína e a morte. E ainda não se haviam recobrado da cruel surpresa, quando o juiz inexorável prosseguiu:

—        Quanto a ti, Pescênio, renova a tarefa. Esse velho, criminoso e sem escrúpulos, pagará a morte do meu fiel servidor. Golpeia-lhe as mãos e os pés até que fique impossibilitado de caminhar e praticar o mal.

Ante a sentença iníqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes. Do peito do irmão escapavam fundos suspiros, nevoando-se-lhe os olhos de lágrimas dolorosas, ao conjeturar a inexorável desdita da irmãzinha, enquan­to o pai lhes buscava ansiosamente o olhar, receoso da hora extrema.

As vergastadas continuavam sem trégua, mas, de uma feita, Pescênio não conseguira equilibrar-se e a aguçada ponta de bronze do açoite lanhou fundo a gar­ganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotões. Os filhos compreenderam a gravidade da situação e entreolharam-se ansiosos. Em preces de sublimado fervor, Abigail dirigia-se a Deus, àquele Deus terno e amoroso que sua mãe lhe ensinara a adorar. Filócrio concluírs a sua empreitada.

A fronte de Jeziel erguia-se a custo, exibindo pastoso suor tisnado de sangue. Os olhos fixa­vam-se na irmã muito amada, mas, em todo o seu as­pecto, deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas resistências. Incapaz de definir os próprios pensamentos, Abigail repartia sua atenção an­gustiada com o pai e o irmão; todavia, em breves instan­tes, ao fluxo incessante do sangue que corria abundante, Jochedeb deixou pender, para sempre, a cabeça alvejada de cabelos brancos. O sangue alagara as vestes e empas­tava-se-lhe nos pés.

Sob o olhar cruel do legado, ninguém ousou articular palavra. Apenas o açoite, cortando o ambiente morno da sala, quebrava o silêncio num silvo singular. Mas, notaram que do peito da vítima ainda se escapavam palavras confusas, das quais sobressaiam as carinhosas expressões:

—        Meus filhos, meus queridos filhos!...

A jovem talvez não pudesse compreender que che­gara o momento decisivo, mas Jeziel, não obstante o terrível sofrimento daquela hora, tudo compreendeu e, num esforço profundo, gritou para a irmã:

—        Abigail, papai está expirando; tem coragem, con­fia... Não posso acompanhar-te na oração... mas fazes por todos nós... a prece dos aflitos...

Dando mostras de fé invejável em tão amarguradas circunstâncias, a jovem, de joelhos, fixou longamente o velho pai cujo peito já não arfava; depois, erguendo os olhos ao Alto, começou a cantar com voz trêmula, porém harmoniosa e cristalina:

 

“Senhor Deus, pai dos que choram,

Dos tristes, dos oprimidos,

Fortaleza dos vencidos,

Consolo de toda a dor,

Embora a miséria amarga

Dos prantos de nosso erro,

Deste mundo de desterro

Clamamos por vosso amor!

 

Nas aflições do caminho,

Na noite mais tormentosa,

Vossa fonte generosa

É o bem que não secará.

Sois, em tudo, a luz eterna

Da alegria e da bonança,

Nossa porta de esperança

Que nunca se fechará.”

 

      Suas expressões vocais enchiam o ambiente de so­noridade indefinível. O canto semelhava-se mais a um gorjeio de dor de um rouxinol que cantasse, ferido, numa alvorada de primavera. Tão grande, tão sincera se lhe revelava a fé no Todo-Poderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e obediente, comunicando-se com o pai silencioso e invisível. O pranto perturbava-lhe a voz trêmula, mas repetia com desassombro a prece aprendida no lar, com a mais formosa expressão de con­fiança no Altíssimo.

Penosa emoção apossara-se de todos. Que fazer com uma criança cantando o suplício dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos? Soldados e guardas presentes mal dissimulavam a emoção. O próprio questor parecia imobilizado, como que submetido a enfadonho mal-estar. Abigail, estranha à perversidade das criatu­ras, suplicando o amparo do Onipotente, não sabia que o cântico era inútil à salvação dos seus, mas que desper­taria a comiseração pela sua inocência, ganhando-lhe, assim, a liberdade.

Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral, Licínio esforçou-se por não perder a dureza de espírito e recomendou a um dos velhos ser­vidores, em tom imperioso:

— Justino, leva esta mulher para a rua e solta-a, mas que não cante mais, nem mesmo uma nota!

Diante da ordem retumbante, Abigail não terminou a oração, emudecendo instantaneamente, como se obede­cesse a estranho estacato.

Lançou ao cadáver ensangüentado do pai um olhar inesquecível e, logo contemplando o irmão ferido e alge­mado, com quem trocava as mais íntimas impressões na linguagem dos olhos doridos e ansiosos, sentiu-se tocada pela mão calosa de um velho soldado que lhe dizia em voz quase áspera:

— Acompanha-me!

Ela estremeceu; todavia, endereçando a Jeziel o der­radeiro e significativo olhar, seguiu o preposto de Minú­cio, sem resistência. Após atravessar inúmeros corredores úmidos e sombrios, Justino, modificando sensivelmente a voz, deu-lhe a perceber extrema simpatia por sua figu­ra quase infantil, murmurando-lhe ao ouvido, comovidamente:

—        Minha filha, também sou pai e compreendo o teu martírio. Se queres atender a um amigo, escuta o meu conselho. Foge de Corinto a toda pressa. Vale-te deste instante de sensibilidade dos teus verdugos e não vol­tes aqui.

Abigail cobrou algum ânimo e, sentindo-se encora­jada por aquela simpatia imprevista, perguntou extrema­mente perturbada:

—        E meu pai?

—        Teu pai descansou para sempre — murmurou o generoso soldado.

O         pranto da jovem se fez mais copioso, borbulhan­do-lhe dos olhos tristes. Todavia, ansiosa por defender-se contra a perspectiva de solidão, perguntou ainda:

—        Mas... e meu irmão?

—        Ninguém volta do cativeiro das galeras — res­pondeu Justino com olhar significativo.

Abigail levou as mãos pequeninas ao peito, desejan­do afogar a própria dor. Os gonzos de velha porta ran­geram vagarosamente e o seu inesperado protetor excla­mou, apontando a rua movimentada:

—        Vai em paz e que os deuses te protejam.

A pobre criatura não tardou a sentir o insulamento entre as fileiras de transeuntes que cruzavam, apressa­dos, a via pública. Habituada aos carinhos domésticos, no lar onde o idioma paterno substituía a linguagem das ruas, sentiu-se estranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de interesses e preocupações ma­teriais. Ninguém lhe notava as lágrimas, nenhuma voz amiga procurava inteirar-se das suas íntimas angústias.

Estava só! Sua mãe fora chamada por Deus, anos antes; seu pai acabava de sucumbir covardemente assas­sinado; o irmão, prisioneiro e cativo, sem esperança de remissão. Apesar do sol do meio-dia, tinha a sensação de intenso frio. Deveria regressar ao ninho doméstico?

Mas, com que fim, se haviam sido expulsos? A quem confiar sua enorme desdita?

Lembrou-se de uma velha amiga da família. Procurou-a. A viúva Sostênia, muito afeiçoada à sua mãe, recebeu-a com o sorriso generoso da sua velhice bondosa.

Desfeita em pranto, a infortunada contou-lhe todo o sucedido.

A veneranda velhinha, acariciando-lhe a cabeleira anelada, falou comovida:

—        Nas perseguições passadas, nossos sofrimentos foram os mesmos.

E dando a entender que não desejava reviver antigas e dolorosas reminiscências, Sostênia acentuou:

— É indispensável o máximo de coragem nas situa­ções penosas como esta. Não é fácil elevar o coração em meio de tão terríveis escombros; mas é preciso con­fiar em Deus nas horas mais amargas. Que contas fazer, agora que todos os recursos desapareceram? Por minha vez, nada te posso oferecer, senão o coração amigo, pois também aqui estou por esmola da pobre família que me agasalhou caridosamente, na última tempestade da minha vida.

— Sostênia — disse Abigail suspirando —, meus pais me prepararam para uma existência de corajoso esforço próprio. Estou pensando em recorrer ao legado e suplicar-lhe um cantinho da nossa chácara para ali viver uma vida honesta, na esperança de reaver Jeziel e sua fraterna companhia. Que pensas a respeito?

Notando a indecisão da veneranda amiga, continuou:

— Quem sabe o questor Licínio se condoerá da mi­nha sorte? Minha resolução talvez o enterneça; voltarei para casa e levar-te-ei comigo. Ser-me-ias uma segunda mãe para o resto da vida.

Sostênia conchegou-a de encontro ao coração e acen­tuou de olhos úmidos:

—        Minha querida, tu és um anjo, mas o mundo ainda é propriedade dos maus. Viveria contigo eterna­mente, minha boa Abigail; entretanto, não conheces o legado nem a sua camarilha. Ouve, filha! É preciso que fujas de Corinto, de modo a não incidires em mais duras humilhações.

A moça teve uma exclamação de abatimento e, de­pois de longa pausa, acrescentou:

—        Aceitarei teus conselhos, mas, antes de qualquer providência, necessito voltar a casa.

—        Para quê? — interrogou a amiga admirada. — É imprescindível que partas quanto antes. Não voltes ao lar. A esta hora, é possível já esteja ocupado por homens sem escrúpulos, que te não respeitariam. Con­vém-te uma atitude de sincera fortaleza moral, pois vivemos uma época em que necessitamos fugir da perdi­ção, como Lot e seus familiares, correndo o risco de sermos transformados em estátua inútil, se olharmos para trás.

A irmã de Jeziel bebia-lhe as palavras com dolo­rosa estranheza, em face do imprevisto da situação.

Passado um momento, Sostênia levou a mão à fron­te, como a recordar uma providência oportuna e falou com animação:

—        Lembras-te de Zacarias, filho de Hanan?

—        Aquele amigo da estrada de Cencréia?

—        Ele mesmo. Fui informada de que, em compa­nhia da esposa, prepara-se para deixar definitivamente a Acaia, por haver sido assassinado pelos romanos irres­ponsáveis, nestes últimos dias, o seu único filho.

Confortada por ardente esperança, concluía com ansiedade:

—        Corre à casa de Zacarias! Se ainda o encontra­res, fala-lhe em meu nome. Pede-lhe acolhimento. Ruth é um coração generoso e não deixará de estender-te as mãos generosas e fraternais; sei que ela te receberá com afagos maternos!...

       Abigail tudo ouvia, parecendo indiferente à própria sorte. Mas Sostênia fê-la considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolações recípro­cas, a jovem, sob o calor causticante das primeiras horas da tarde, pôs-se a caminho para Cencréia, dando a im­pressão de um autômato que vagasse na estrada, a que vários veículos e inúmeros pedestres imprimiam considerável movimento. O porto de Cencréia ficava a certa distância do centro de Corinto. Situado de maneira a servir às comunicações com o Oriente, seus bairros populosos estavam cheios de famílias israelitas, fixadas de longa data nas regiões da Acaia, ou em trânsito para a capital do Império e adjacências. A irmã de Jeziel chegou à casa de Zacarias dominada por terrível abatimento. Aliado à vigília da última noite e às angústias do dia, penoso cansaço físico lhe agravava os desalentos. Pernas trôpegas, a relembrar o pai morto e o irmão prisioneiro, não reparava em si própria, no mísero estado do seu organismo enfermo e desnutrido. Somente ao defrontar a modesta morada do amigo, verificou que a febre come­çava a devorar-lhe as entranhas, obrigando-a a refletir nas suas dolorosas necessidades.

Zacarias e Ruth, sua mulher, atendendo ao chamado, receberam-na espantados e aflitos.

— Abigail!...

O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho.

A filha de Jochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre, rojou-se aos pés do casal, exclamando em tom lancinante:

— Meus amigos, tende piedade do meu infortú­nio!... Nossa boa Sostênia lembrou-me vosso afeto, no transe doloroso por que passo. Eu, que já não tinha mãe, tive hoje meu pai assassinado e Jeziel escravizado sem remissão. Se é verdade que partireis de Corinto, levai-me, por compaixão, em vossa companhia!

Abigail abraçava-se agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga a acarinhava entre lágrimas.

Soluçante, a jovem relatou os fatos da véspera e os tristes episódios daquele dia.

Zacarias, cujo coração paterno acabava de sofrer tremendo golpe, abraçou-a com afeto e amparou-a sensi­bilizado, exclamando solícito:

— Dentro de uma semana voltaremos à Palestina. Ainda não sei bem onde nos vamos fixar, mas nós, que perdemos o filho querido, teremos em ti uma filha estremecida.­ Acalma-te! Irás conosco, serás nossa filha para sempre.

       Incapaz de traduzir seu jubiloso agradecimento, ator­mentada pela febre alta, a jovem ajoelhou-se, em pranto, procurando externar sua gratidão carinhosa e sincera. Ruth tomou-a ternamente nos braços e, qual desvelado anjo maternal, conduziu-a a um leito macio, onde Abigail, assistida pelos dois amigos generosos, delirou três dias. entre a vida e a morte.

 

Em Jerusalém

       Depois de contemplar angustiadamente o cadáver paterno, o jovem hebreu acompanhou a irmã, de olhar ansioso, até à porta de acesso a um dos vastos corredo­res da prisão. Jamais experimentara tão profunda emo­ção. Ao cérebro atormentado acudiam-lhe os conselhos maternos, quando asseverava que a criatura, acima de tudo, devia amar a Deus. Jamais conhecera lágrimas tão amargas como aquelas que lhe fluiam em torrente, do coração dilacerado. Como reaver a coragem e reorga­nizar o caminho? Desejou, num relance, romper as alge­mas, aproximar-se do pai inanimado, afagar-lhe os cabe­los brancos e, simultaneamente, abrir todas as portas, correr no encalço de Abigail, tomá-la nos braços para nunca mais se apartarem nas estradas da vida. Debalde se estorceu no tronco do martírio, porque, em retribuição aos esforços, somente o sangue manava mais copioso das feridas abertas. Singultos dolorosos abalavam-lhe o peito, a cuja altura a túnica se fizera em rubros fran­galhos. Abismado em si mesmo, finalmente foi recolhido a uma cela úmida, onde, por trinta dias, mergulhou o pensamento em profundas cogitações.

       Ao fim de um mês, as feridas estavam cicatrizadas e um dos prepostos de Licínio julgou chegado o momento de o encaminhar a uma das galeras do tráfego comercial, onde se encontrava o questor, interessado em assuntos lucrativos.

O         moço hebreu perdera o viço róseo das faces e o tom ingênuo da fisionomia carinhosa e alegre. A rude experiência dera-lhe uma expressão dolorosa e sombria. Vagava-lhe no semblante indefinível tristeza e na fronte apontavam rugas precoces, nunciativas de velhice pre­matura; nos olhos, porém, a mesma serenidade doce, oriunda da íntima confiança em Deus. Como outros descendentes da sua raça, sofrera o sacrifício pungente; todavia, guardara a fé, como a auréola divina dos que sabem verdadeiramente agir e esperar. O autor dos Provérbios recomendara, como imprescindível, a sereni­dade da alma em todas as flutuações da vida humana, porque dela procedem as fontes mais puras da existên­cia e Jeziel guardara o coração. Órfão de pai e mãe, cativo de verdugos cruéis, saberia conservar o tesouro da esperança e procuraria a irmã, até aos confins do mundo, se um dia conseguisse, de novo, o beijo da liber­dade na fronte escravizada.

Seguido de perto por sentinelas impiedosas, qual se fora um vagabundo vulgar, cruzou as ruas de Corinto até o porto, onde o internaram no porão infecto de uma galera adornada com o símbolo das águias dominadoras.

Reduzido à mísera condição de condenado a traba­lhos perpétuos, enfrentou a nova situação cheio de con­fiança e humildade. Foi com admiração que o feitor Lisipo anotou-lhe a boa conduta e o esforço nobre e generoso. Habituado a lidar com malfeitores e criaturas sem escrúpulos, que, não raro, requeriam a disciplina do chicote, surpreendeu-se ao reconhecer no moço hebreu a disposição sincera de quem se entregava ao sacrifício, sem rebeldias e sem baixeza.

Manejando os remos pesados com absoluta sereni­dade, como quem se dava a uma tarefa habitual, sentia o suor abundante inundar-lhe a face juvenil, relembran­do, comovido, os dias laboriosos da sua charrua amiga. Em breve, o feitor reconhecia nele um servo digno de estima e consideração, que soubera impor-se aos pró­prios companheiros com o prestígio da natural bondade que lhe transbordava dalma.

— Ai de nós! — exclamou um colega desalentado.

      — São raros os que resistem a estes remos malditos, por mais de quatro meses!...

— Mas todo o serviço é de Deus, amigo — respon­deu Jeziel altamente inspirado —, e desde que aqui nos encontramos em atividade honesta e de consciência tran­qüila, devemos guardar a convicção de servos do Cria­dor, trabalhando em suas obras.

Para todas as complicações da nova modalidade de sua existência, tinha uma fórmula conciliatória, harmo­nizando os ânimos mais exaltados. O feitor surpreen­dia-se com a delicadeza do seu trato e capacidade de tra­balho, que se aliavam aos mais altos valores da educação religiosa recebida no lar.

No bojo escuro da embarcação, sua firmeza de fé não se modificara. Dividia o tempo entre os labores rudes e as sagradas meditações. A todos os pensamentos, so­brelevava a saudade do ninho familiar, com a esperança de rever a irmã algum dia, por mais que se lhe dilatasse o cativeiro.

De Corinto, a grande embarcação aproara em Cef a­lônia e Nicópolis, de onde deveria regressar aos portos da linha de Chipre, depois de ligeira passagem pela costa da Palestina, consoante o itinerário organizado para aproveitar o tempo seco e tendo em vista que o inverno paralisava toda a navegação.

Afeito ao trabalho, não lhe foi difícil adaptar-se à pesada faina de carga e descarga do material trans­portado, à manobra dos remos implacáveis e à assistência aos poucos passageiros, sempre que lhe requisitavam préstimos, sob o olhar vigilante de Lisipo.

Voltando de Cefalônia, a galera recebeu um pas­sageiro ilustre. Era o jovem romano Sérgio Paulo, que se dirigia para a cidade de Citium, em comissão de natureza política. Com destino ao porto de Nea-Pafos, onde alguns amigos o esperavam, o moço patrício se constituiu, desde logo, entre todos, alvo de grandes aten­ções. Dada a importância do seu nome e o caráter oficial da missão a ele cometida, o comandante Sérvio Carbo lhe reservou as melhores acomodações.

Sérgio Paulo, entretanto, muito antes de aportarem novamente em Corinto, onde a embarcação deveria per­manecer alguns dias, em prosseguimento da rota prefi­xada, adoeceu com febre alta, abrindo-se-lhe o corpo em chagas purulentas. Comentava-se, à sorrelfa, que nas cercanias de Cefalônia grassava uma peste desconhecida. O médico de bordo não conseguiu explicar a enfermi­dade e os amigos do enfermo começaram a retrair-se com indisfarçável escrúpulo. Ao fim de três dias, o jovem romano achava-se quase abandonado, O coman­dante, preocupado, por sua vez, com a própria situação e receoso por si mesmo, chamou Lisipo, pedindo-lhe que indicasse um escravo, dos mais educados e maneirosos, capaz de incumbir-se de toda a assistência ao passageiro ilustre, O feitor designou Jeziel, incontinenti, e, na mes­ma tarde, o moço hebreu penetrou no camarote do en­fermo, com o mesmo espírito de serenidade que costumava testemunhar nas situações mais díspares e arriscadas.

Sérgio Paulo tinha o leito em desalinho. Não raro, levantava-se de súbito, no auge da febre que o fazia delirar, pronunciando palavras desconexas e agravando, com o movimento dos braços, as chagas que sangravam em todo o corpo.

—        Quem és tu? — perguntou o doente em delírio, logo que enxergou a figura silenciosa e humilde do jovem de Corinto.

—        Chamo-me Jeziel, o escravo que vos vem servir. E a partir daquele momento, consagrou-se ao en­fermo com todas as reservas da sua afetividade. Com a permissão dos amigos de Sérgio, utilizou todos os recursos de que podia dispor a bordo, imitando a medicação aprendida no lar. Dias seguidos e longas noites, velou à cabeceira do ilustre romano, com devotamento e boa-vontade. Banhos, essências e pomadas eram mani­pulados e aplicados com extrema dedicação, como se esti­vesse a tratar um parente íntimo e muito caro.

Nas horas mais críticas da enfermidade dolorosa, falava-lhe de Deus, recitava trechos antigos dos profetas, que trazia de cor, cumulando-o de consolações e carinho fraternal.

Sérgio Paulo compreendeu a gravidade do mal que afastara os amigos mais caros e, no convívio daqueles dias, afeiçoou-se ao enfermeiro humilde e bom. Depois de alguns dias em que Jeziel conquistara plenamente a sua admiração e o seu reconhecimento, pelos atos de inexcedível bondade, o doente entrou em rápida conva­lescença, com manifestações de geral alegria.

E contudo, na véspera de regressar ao porão aba­fado, o jovem cativo apresentou os primeiros sintomas da moléstia desconhecida que grassava em Cefalônia.

Após entender-se com alguns subordinados de cate­goria, o comandante chamou a atenção do patrício, já quase restabelecido, e lhe pediu aprovação para o pro­jeto de lançar o jovem ao mar.

—        Será preferível envenenar os peixes, antes que afrontar o perigo do contágio e arriscar tantas vidas preciosas — esclarecia Sérvio Carbo com malicioso sor­riso.

O         patrício refletiu um instante e reclamou a presença de Lisipo, entrando os três a tratar do assunto.

—        Qual a situação do rapaz? — perguntou o ro­mano com interesse.

O         feitor passou a esclarecer que o jovem hebreu lhe viera com outros homens capturados por Licinio Minúcio, por ocasião dos últimos distúrbios da A caia. Lisipo, que simpatizava extremamente com o moço de Corinto, procurou pintar com fidelidade a correção da sua conduta, suas maneiras distintas, a benéfica influên­cia moral que ele exercia sobre os companheiros muitas vezes desesperados e insubmissos.

Depois de longas considerações, Sérgio ponderou com profunda nobreza:

—        Não posso admitir que Jeziel seja atirado ao mar com a minha aquiescência. Devo a esse escravo uma dedicação que equivale à minha própria vida. Conheço Licínio e, se necessário, poderei esclarecê-lo mais tarde sobre esta minha atitude. Não duvido que a peste de Cefalônia esteja trabalhando o seu organismo e, por isso mesmo, é que lhes peço a cooperação necessária, a fim de que esse jovem fique liberto para sempre.

—        Mas isso é impossível... — exclamou Sérvio re­licenciosamente.

—        Por que não? — revidou o romano. — Em que dia atingiremos o porto de Jope?

—        Amanhã, à noitinha.

—        Pois bem; espero que vocês não se oponham aos meus planos, e tão logo alcancemos o porto, levarei Jeziel num bote até às margens, pretextando o ensejo de exercício muscular, que preciso recomeçar. Aí, então, lhe daremos liberdade. É um feito que se me impõe, em obediência aos meus princípios.

—        Mas, senhor... — obtemperou o comandante indeciso.

—        Não aceito quaisquer restrições, mesmo porque Licínio Minúcio é um velho camarada de meu pai.

E continuou, depois de refletir um momento:

      — Não ias atirar o rapaz ao fundo do mar?

      — Sim.

—        Pois fase constar nos teus apontamentos que o escravo Jeziel, atacado de mal desconhecido, contraído em Cefalônia, foi sepultado no mar, antes que a peste contagiasse os tripulantes e passageiros. Para que o rapaz não se comprometa, instruí-lo-ei a respeito, dando-lhe umas tantas ordens terminantes. Além disso, noto-o bastante enfraquecido para resistir com êxito às crises culminantes da moléstia ainda em começo. Quem poderá garantir que ele resistirá? Quem sabe morrerá ao aban­dono, no segundo minuto de liberdade?

O         comandante e o feitor trocaram um olhar inte­ligente, de implícito acordo mútuo.

Depois de longa pausa, Sérvio concordou, dando-se por vencido:

—        Está bem, seja.

O         moço patrício estendeu a mão aos dois e mur­murou:

—        Por este obséquio ao meu dever de consciência, poderão sempre dispor em mim de um amigo.

      Daí a instantes, Sérgio acercou-se do jovem, semi­-adormecido junto do seu camarote e já tomado da febre em começo de explosão, dirigindo-lhe a palavra com deli­cadeza e bondade:

—        Jeziel, desejarias voltar à liberdade?

—        Oh! senhor, exclamou o jovem reanimando o organismo com um raio de esperança.

—        Quero compensar a dedicação que me dispensaste nos longos dias da minha enfermidade.

—        Sou vosso escravo, senhor. Nada me deveis.

Ambos falavam o grego e, refletindo subitamente na situação de futuro, o patrício interrogou:

—        Sabes o idioma comum da Palestina?

—        Sou filho de israelitas, que me ensinaram a lín­gua materna nos mais verdes anos.

—        Então, não te será difícil recomeçar a vida nessa província.

E medindo as palavras, como se temesse alguma surpresa contrária aos seus projetos, acentuou:

—        Jeziel, não ignoras que te encontras enfermo, talvez tão gravemente quanto eu, há alguns dias. O comandante, atento à possibilidade de um contágio geral, dada a presença de numerosos homens a bordo, pre­tendia lançar-te ao mar; contudo, amanhã de tarde chegaremos a Jope e hei de valer-me dessa circunstância para devolver-te à vida livre. Não desconheces, todavia, que, assim procedendo, estou a infringir certas determi­nações importantes que regem os interesses de meus compatriotas, e é justo pedir-te sigilo do meu feito.

—        Sim, senhor — respondeu o rapaz extremamente abatido, tentando com dificuldade coordenar as idéias.

—        Sei que dentro em pouco a enfermidade assu­mirá graves proporções, prosseguiu o benfeitor. Dar-te-ei a liberdade, mas só o teu Deus poderá conceder-te a vida. Entretanto, caso te restabeleças, deverás ser um novo homem, com um nome diferente. Não desejo ser incul­pado de traidor dos meus próprios amigos e devo contar com a tua cooperação.

—        Obedecer-vos-ei em tudo, senhor.

Sérgio lançou-lhe um olhar generoso e terminou:

—        Tomarei todas as providências. Dar-te-ei algum dinheiro para atenderes as primeiras necessidades e vestirás uma de minhas velhas túnicas; mas, tão logo seja possível, vai-te de Jope para o interior da província. O porto está sempre cheio de marinheiros romanos, curiosos e maleficentes.

O enfermo fez um gesto de agradecimento, enquanto Sérgio se retirava para atender ao chamado de alguns amigos.

No dia imediato, à hora esperada, o casario palesti­nense estava à vista. E quando luziam os primeiros astros da noite, pequeno batel aproximava-se de local silencioso das margens, tripulado por dois homens cujos vultos se perdiam na sombra. Derradeiras palavras de bom conselho e despedida, e o moço hebreu osculou, como­vidamente, a destra do benfeitor, que voltou à galera apressado, de consciência tranqüila.

Mal não dera os primeiros passos, Jeziel sentou-se premido pelas dores gerais que lhe tomavam todo o corpo e pelo abatimento natural, conseqüente à febre que o consumia. Idéias confusas dançavam-lhe no cérebro. Que­ria pensar na ventura da libertação; desejava fixar a imagem da irmã, que haveria de procurar no primeiro ensejo; mas estranho torpor infirmava-lhe as faculda­des, acarretando-lhe sonolência invencível. Olhou, indi­ferente, as estrelas que povoavam a noite refrescada pelas brisas marinhas. Reparou que havia movimento nas casas próximas, mas deixou-se, ficar inerte no ma­tagal a que se recolhera, junto da praia. Pesadelos es­tranhos dominaram-lhe o repouso físico, enquanto o vento lhe acariciava a fronte febril.

De madrugada, acordou ao contacto de mãos des­conhecidas, que lhe revistavam atrevidamente os bolsos da túnica.

Abrindo os olhos, estremunhado, notou que os pri­meiros clarões da alvorada listravam os horizontes. Um homem de fisionomia sagaz inclinava-se para ele, pro­curando alguma coisa, com ansiedade que o moço hebreu adivinhou de pronto, convencido de haver topado um desses malfeitores comuns, ávidos da bolsa alheia. Estre­meceu e fez um movimento involuntário, observando que o assaltante inesperado alçara a mão direita, empunhando um instrumento, na iminência de exterminar-lhe a vida.

—        Não me mates, amigo — balbuciou com voz trêmula.

A essas palavras, ditas comovedoramente, o meliante susteve o golpe homicida.

—        Dar-vos-ei todo o dinheiro que possuo — rematou o rapaz com tristeza.

E, vasculhando a algibeira em que guardara o es­casso dinheiro que lhe dera o patrício, tudo entregou ao desconhecido, cujos olhos fulguraram de cobiça e prazer. Num relance, aquela fisionomia contrafeita trans­formava-se no semblante risonho de quem deseja aliviar e socorrer.

—        Oh! sois excessivamente generoso! — murmurara, apossando-se da bolsa recheada.

—        O dinheiro é sempre bom — disse Jeziel — quan­do com ele podemos adquirir a simpatia ou a misericórdia dos homens.

O         interlocutor fingiu não perceber o alcance filo­sófico daquelas palavras e asseverou:

- Vossa bondade, entretanto, dispensa o concurso de quaisquer elementos estranhos para a conquista de bons amigos. Eu, por exemplo, dirigia-me agora para o meu trabalho no porto, mas experimentei tanta sim­patia pela vossa situação que aqui estou para quanto vos preste.

—        Vosso nome?

—        Irineu de Crotona, para vos servir — respondeu o interpelado, visivelmente satisfeito com o dinheiro que lhe refertava o bolso.

—        Meu amigo — exclamou o rapaz extremamente enfraquecido —, estou enfermo e não conheço esta cidade, de modo a tomar qualquer resolução. Podeis indicar-me algum albergue ou alguém que me possa prestar a cari­dade de um asilo?

Irineu esboçou uma fácies de fingida piedade e res­pondeu:

— Pesa-me nada ter para colocar à disposição de vossas necessidades; e também não sei onde possa existir um abrigo adequado para receber-vos, como se faz pre­ciso. A verdade é que, para a prática do mal, todos estão prontos, mas para fazer o bem...

Depois, concentrando-se por momentos, acrescentou:

—        Ah! agora me lembro!... Conheço umas pes­soas que vos podem auxiliar. São os homens do “Ca­minho”. (1)

Mais algumas palavras e Irineu prontificou-se a con­duzi-lo ao conhecido mais próximo, amparando-lhe o corpo enfermo e vacilante.

O         sol caricioso da manhã começava a despertar a Natureza com os seus raios quentes e confortadores. Feita a reduzida caminhada por um atalho agreste, sustido pelo meliante arvorado em benfeitor, Jeziel pa­rava à porta de uma casa de aparência humilde. Irineu entrou e de lá regressou com um homem idoso, de sem­blante agradável, que estendeu a mão, cordialmente, ao moço hebreu, dizendo:

—        De onde vens, irmão?

O         rapaz admirou-se de tanta afabilidade e delica­deza, num homem a quem via pela primeira vez. Por que lhe dava o título familiar, reservado ao círculo mais íntimo dos que nasciam sob o mesmo teto?

—        Por que me chamais irmão, se não me conheceis? — interrogou comovido.

Mas o interpelado, renovando o sorriso generoso, acrescentava:

—        Somos todos uma grande família em Cristo Jesus.

Jeziel não compreendeu. Quem seria aquele Jesus? Um novo deus para os que desconheciam a lei? Reco­nhecendo que a enfermidade não lhe dava ensanchas a cogitações religiosas ou filosóficas, respondeu simples­mente:

Deus vos recompense pela generosidade da aco­lhida. Venho de Cefalônia, tendo adoecido gravemente em viagem, e assim e que, neste estado, recorro à vossa caridade.

 

(1)       Primitiva designação do Cristianismo. (Nota de Emmanuel.)

 

—        Efraim — disse Irineu dirigindo-se ao dono da casa —, nosso amigo tem febre e o seu estado geral requer cuidados. Você, que é um dos bons homens do “Caminho”, há de acolhê-lo com o coração dedicado aos que sofrem.

Efraim aproximou-se mais do jovem enfermo e observou:

—        Não é o primeiro doente de Cefalônia que o Cristo envia à minha porta. Ainda anteontem, outro aqui surgiu com o corpo crivado de feridas de mau caráter. Aliás, conhecendo a gravidade do caso, pretendo logo à tarde levá-lo para Jerusalém.

—        Mas, é necessário ir tão longe? — perguntou Irineu com certo espanto.

—        Somente lá, temos maior número de cooperado­res — esclareceu com humildade.

Ouvindo o que diziam e considerando a necessidade de ausentar-se do porto em obediência às recomendações do patrício que se lhe mostrara tão amigo, restituindo-o à liberdade, Jeziel dirigiu-se a Efraim num apelo humilde e triste:

—        Por quem sois! levai-me para Jerusalém convos­co, por piedade!...

O         irterpelado, evidenciando natural bondade, anuiu sem maior estranheza:

—        Irás comigo.

Abandonado por Irineu aos cuidados de Efraim, o doente recebeu carinhos de um verdadeiro amigo. Não fosse a febre e teria travado com o irmão um conheci­mento mais íntimo, procurando conhecer minuciosamente os nobres princípios que o levaram a estender-lhe a mão protetora. Contudo, mal conseguiu manter-se de pensa­mento vigilante sobre si mesmo, a fim de elucidar as suas interrogações carinhosas, medicando-se convenientemente.

Ao crepúsculo, aproveitando a frescura da noite, uma carroça, cuidadosamente velada por um toldo de pano barato, saía de Jope com destino a Jerusalém.

Caminhando cuidadoso para não esfalfar a pobre alimária, Efraím transportava os dois enfermos à cidade próxima, buscando os recursos indispensáveis. Descan­sando aqui e ali, somente na manhã seguinte o veículo parou à porta de um casarão de grandes proporções, aliás paupérrimo em sua feição exterior. Um rapaz de semblante alegre veio atender ao recém-vindo, que o interpelou com intimidade:

-           Urias, poderás dizer-me se Simão Pedro está?

-           Está, Sim.

-           Poderás chamá-lo em meu nome?

-           Vou já.

Acompanhado de Tiago, irmão de Levi, Simão apareceu e recebeu o visitante com efusivas demonstrações de carinho. Efraim esclareceu o motivo da sua presença. Dois desamparados do mundo requeriam auxílio urgente.

-           Mas é quase impossível - atalhou Tiago. - Estamos com quarenta e nove doentes acamados.

Pedro esboçou um sorriso generoso e obtemperou:

-           Ora, Tiago, se estivéssemos pescando, seria justo nos eximíssemos desse ou daquele dever que exorbitasse a esfera das obrigações inadiáveis de cada dia, junto da família, cuja organização vem de Deus; mas agora o Mestre nos legou o trabalho de assistência a todos os seus filhos, no sofrimento. Presentemente, nosso tempo se destina a isso; vejamos, pois, o que é possível fazer.

E o bondoso Apóstolo adiantou-se para acolher os dois infelizes.

Desde que viera do Tiberíades para Jerusalém, Simão transformara-se em célula central de grande movimento humanitarista. Os filósofos do mundo sempre pontificaram de cátedras confortáveis, mas nunca desceram ao plano da ação pessoal, ao lado dos mais infortunados da sorte. Jesus renovara, com exemplos divinos, todo o sistema de pregação da virtude.

Chamando a si os aflitos e os enfermos, inaugurara no mundo a fórmula da verdadeira benemerência social.

As primeiras organizações de assistência ergueram-se com o esforço dos apóstolos, ao influxo amoroso das lições do Mestre.

Era por esse motivo que a residência de Pedro, doação de vários amigos do "Caminho", regurgitava de enfermos e desvalidos sem esperança. Eram velhos a exibirem úlceras asquerosas, procedentes de Cesaréia; loucos que chegavam das regiões mais longínquas, conduzidos por parentes ansiosos de alívio; crianças para­líticas, da Iduméia, nos braços maternais, todos atraidos pela fama do profeta nazareno, que ressuscitava os pró­prios mortos e sabia restituir tranqüilidade aos corações mais infortunados do mundo.

Natural era que nem todos se curassem, o que obri­gava o velho pescador a agasalhar consigo todos os neces­sitados, com carinho de um pai. Recolhendo-se ali, com a família, era auxiliado particularmente por Tiago, filho de Alfeu, e por João; mas, em breve, Filipe e suas filhas instalavam-se igualmente em Jerusalém, cooperando no grande esforço fraternal.

Tamanho o movimento de ne­cessitados de toda sorte, que há muito Simão não mais podia entregar-se a outro mister, no concernente à pre­gação da Boa Nova do Reino. A dilatação desses mis­teres vinculara o antigo discípulo aos maiores núcleos do judaísmo dominante. Obrigado a valer-se do socorro dos elementos mais notáveis da cidade, Pedro sentia-se cada vez mais escravo dos seus amigos benfeitores e dos seus pobres beneficiados, acorridos de toda parte, em grau de recurso supremo ao seu espírito de discípulo abnegado e sincero.

Atendendo às solicitações confiantes de Efraim, pro­videnciou para que ambos os enfermos fossem instalados na sua casa pobre.

Jeziel ocupou leito asseado e singelo, em estado de completa inconsciência, no delírio da febre que o pros­trava. Suas palavras desconexas, entretanto, revelavam tão exato conhecimento dos textos sagrados, que Pedro e João se interessaram de modo especial por aquele jovem de faces macilentas e tristes. Mormente Simão, passava longas horas entretido em ouvi-lo, anotando-lhe os conceitos profundos, embora filhos da exaltação febril.

Decorridas duas semanas exaustivas, Jeziel melho­rou, rearmonizando as próprias faculdades para melhor analisar e sentir a nova situação. Afeiçoara-se a Pedro, como um filho afetuoso ao legitimo pai. Notando-lhe o carinho, de leito em leito, de necessitado a necessitado, o            moço hebreu experimentava deliciosa e íntima sur­presa, O ex-pescador de Cafarnaum, relativamente moço ainda, era o exemplo vivo da renúncia fraterna.

Tão logo convalescente, Jeziel foi transferido a am­biente mais calmo, à sombra amena de vetustas tama­reiras que circundavam a velha casa.

Entre ambos estabelecera-se, desde os primeiros dias, a corrente magnética das grandes atrações afetivas.

Nessa manhã, as observações amáveis sucediam-se e, não obstante a justa curiosidade que lhe pairava nal­ma, a respeito do interessante hóspede, Simão ainda não tinha logrado o ensejo de um intercâmbio de idéias, mais íntimo, de maneira a sondar-lhe os pensamentos, inteirando-se dos seus sentimentos e da sua origem. Ao sopro generoso da aragem matinal, sob as árvores frondosas, o Apóstolo criou ânimo e, a certa altura, depois de distrair o convalescente com alguns ditos afetuosos, buscou penetrar-lhe o mistério, cuidadosamente:

—        Amigo — disse com jovial sorriso —, agora que Deus te restituiu a saúde preciosa, regozijo-me por havermos recebido tua visita em nossa casa. Nosso júbilo é sincero, pois que, nos mínimos detalhes da tua perma­nência entre nós, revelaste a condição espiritual de filho legítimo dos lares organizados com Deus, pelo conheci­mento que tens dos textos sagrados. E tanto me im­pressionei com as tuas referências a Isaías, quando deliravas com febre alta, que desejaria saber de que tribo descendes.

Jeziel compreendeu que aquele amigo sincero, antes irmão carinhoso nas horas mais críticas da enfermidade, desejava conhecê-lo melhor, identificá-lo íntima e pro­fundamente, com delicada argúcia psicológica. Achou justo e considerou que não devia desprezar o amparo de um coração verdadeiramente fraterno, para o acendra­mento das próprias energias espirituais.

—        Meu pai era filho dos arredores de Sebaste e descendia da tribo de Issacar — esclareceu, atencioso.

—        E era tão altamente dedicado ao estudo de Isaías?

— Estudava sinceramente todo o Testamento, sem preferências, talvez, de ordem particular. A mim, porém, Isaías sempre me impressionou profundamente pela be­leza das promessas divinas de que foi portador, anun­ciando-nos o Messias, sobre cuja vinda tenho meditado desde a infância.

Simão Pedro esboçou um sorriso de viva satisfação e disse:

— Mas, não sabes que o Messias já veio?

Jeziel teve um brusco sobressalto na cadeira im­provisada.

— Que dizeis? — inquiriu ansioso.

— Nunca ouviste falar em Jesus de Nazaré?

Embora recordasse vagamente as palavras ouvidas de Efraim, declarou:

— Nunca!

— Pois o profeta nazareno já nos trouxe a mensa­gem de Deus para todos os séculos.

E Simão Pedro, olhos acesos na chama luminosa dos que se sentem felizes ao recordar um tempo ven­turoso, falou-lhe da exemplificação do Senhor, traçando uma perfeita biografia verbal do Mestre sublime.

Em traços de forte colorido, lembrou os dias em que o hospedava no seu tugúrio à margem do Genesaré, as excursões pelas aldeias vizinhas, as viagens de barca, de Cafarnaum aos sítios marginais do lago. Era de se lhe ver a emoção intraduzível da voz, a alegria interior com que rememorava os feitos e prédicas junto ao lago marulhoso, acariciado pelo vento, a poesia e a suavidade dos crepúsculos vespertinoS. A imaginação viva do Após­tolo sabia tecer comentários judiciosos e brilhantes ao evocar um leproso curado, um cego que recuperara a vista, uma criancinha doente e prestes restabelecida.

Jeziel bebia-lhe as palavras, inteiramente empolga­do, como se houvesse encontrado um mundo novo. A mensagem da Boa Nova penetrava-lhe o espírito desen­cantado, como um bálsamo suave.

Quando Simão parecia prestes a terminar a narrativa, não pôde conter-se e perguntou:

— E o Messias? Onde está o Messias?

— Há mais de um ano — exclamou o Apóstolo apa­gando a vivacidade com a lembrança triste — foi crucifi­cado aqui mesmo em Jerusalém, entre os ladrões.

Em seguida, passou a enumerar os martírios pun­gentes, as dolorosas ingratidões de que o Mestre fora vítima, os ensinos derradeiros e a gloriosa ressurreição do terceiro dia. Depois, falou dos primeiros dias do apostolado, dos acontecimentos do Pentecostes e das últi­mas aparições do Senhor, no cenário sempre saudoso da Galiléia distante.

Jeziel tinha as pupilas úmidas. Aquelas revelações sensibilizavam-lhe o coração, como se houvesse conhe­cido o profeta de Nazaré. E, ligando o perfil deste aos textos que retinha de cor, enunciou, quase em voz alta, como se falasse consigo mesmo:

 

— “Levantar-se-á (1) como um arbusto ver­de, na ingratidão de um solo árido...

Carregado de opróbrios e abandonado dos homens.

Coberto de ignomínias não merecerá consi­deração.

Será ele quem carregará o fardo pesado de nossas culpas e sofrimentos, tomando sobre si todas as nossas dores.

Parecerá um homem vergado sob a cólera de Deus...

Humilhado e ferido deixar-se-á conduzir como um cordeiro, mas, desde o instante em que oferecer sua vida, os interesses do Eterno hão de prosperar nas suas mãos.”

 

Simão, admirado de tanto conhecimento dos sagra­dos textos, terminou dizendo:

— Vou buscar-te os textos novos. São as anotações de Levi (2) sobre o Messias redivivo.

 

(1) Do Capítulo 53º, de Isaías.

(2) Mateus.

 

E, em breves minutos, o Apóstolo lhe punha nas mãos os pergaminhos do Evangelho. Jeziel não leu; devorou. Assinalou, em voz alta, uma a uma, todas as passagens da narrativa, seguido pela atenção de Pedro intimamente satisfeito.

Terminada a rápida análise, o jovem advertiu:

       - Encontrei o tesouro da vida, preciso examiná-lo com mais vagar, quero saturar-me da sua luz, pois aqui pressinto a chave dos enigmas humanos.

Quase em lágrimas, leu o Sermão da Montanha, secundado pelas comovedoras lembranças de Pedro. Em seguida, ambos passaram a comparar os ensinamentos do Cristo com as profecias que o anunciavam.

O jovem hebreu estava comovidíssimo e queria conhecer os mí­nimos episódios da vida do Mestre. Simão procurava satisfazê-lo, edificado e satisfeito.

O generoso amigo de Jesus, tão incompreendido em Jerusalém, experimentava uma alegria orgulhosa por haver encontrado um jovem que se entusiasmava com os exemplos e ensinamentos do Mestre incomparável.

— Desde que dei acordo de mim em vossa casa —disse Jeziel —, verifiquei que participais de princípios que me não são conhecidos. Tanta preocupação em am­parar os desfavorecidos da sorte representa uma lição nova para minha alma. Os doentes que vos abençoam, qual o faço agora, são tutelados desse Cristo que eu não tive a ventura de conhecer.

— O Mestre amparava a todos os sofredores e nos recomendou que o mesmo fizéssemos em seu nome, escla­receu o Apóstolo enfaticamente.

—        De acordo com as instruções do Levítico — disse Jeziel —, toda cidade deve possuir, longe de suas portas, um vale, destinado aos leprosos e pessoas consideradas imundas; entretanto, Jesus nos deu um lar no coração daqueles que o seguem.

— O Cristo nos trouxe a mensagem do amor — ex­plicou Pedro —, completou a Lei de Moisés, inaugurando um novo ensinamento. A Lei Antiga é justiça, mas o Evangelho é amor.

Enquanto o código do passado pre­ceituava o “olho por olho, dente por dente”, o Messias ensinou que devemos “perdoar setenta vezes sete vezes” e que se alguém quiser tirar-nos a túnica devemos dar-lhe também a capa.

Jeziel sensibilizou-se e chorou. Aquele Cristo amo­roso e bom, suspenso na cruz da ignomínia humana, era a personificação de todos os heroísmos do mundo. Como se aliviava ao analisá-lo! Sentia-se bem por não haver reagido contra o despotismo de que fora vítima. Cristo era o Filho de Deus e não desdenhara o sofrimento. Seu cálice transbordara e Pedro lhe fazia sentir que, nos instantes mais acerbos, aquele Mestre desconhecido e humilde, no mundo, sabia transmitir a lição da cora­gem, da renúncia e da vida. Como exemplo do seu amor, ali estava aquele homem simples e carinhoso, que lhe chamava irmão, que o acolhia como pai dedicado. O rapaz lembrou seus últimos dias em Corinto e chorou longamente. Foi aí que, abrindo o coração, tomou as mãos de Pedro e contou-lhe toda a sua tragédia, sem nada omitir e rogando-lhe conselhos.

Finalizando a narrativa, acrescentou comovido:

      - Revelastes-me a luz do mundo; perdoai, pois, se vos revelo meus sofrimentos, que devem ser justos. Ten­des no coração as claridades da palavra do Salvador e haveis de inspirar minha pobre vida.

O         Apóstolo abraçou-o e murmurou:

—        Julgo prudente guardares o anonimato, pois Je­rusalém regurgita de romanos e não seria justo com­prometer o generoso amigo que te restituiu à liberdade. Teu caso, entretanto, não é novo, meu amigo. Estou nesta cidade há quase um ano, e, por estes leitos sin­gelos, têm passado as mais singulares criaturas. Eu, que era um paupérrimo pescador, tenho adquirido ampla experiência do mundo, nestes poucos meses! A estas portas têm batido homens esfarrapados, que foram po­líticos importantes; mulheres leprosas, que foram quase rainhas!

Em contacto com a história de tantos castelos desmoronados, no jogo das vaidades mundanas, agora reconheço que as almas necessitam do Cristo, acima de tudo.

Essas explicações singulares constituíam conforto para Jeziel, que interrogou agradecido:

—        E achais que vos poderia servir em alguma coisa? Eu, que era cativo dos homens, desejaria escra­vizar-me ao Salvador, que soube viver e morrer por todos nós.

—        Serás meu filho, doravante — exclamou Simão num transporte de júbilo.

—        E já que preciso reformar-me em Cristo, como me chamarei? — perguntou Jeziel com olhos fulgurantes de alegria.

O         Apóstolo refletiu algum tempo e falou:

—        Para que não te esqueças da Acaia, onde o Senhor se dignou de buscar-te para o seu ministério divino, eu te batizarei no credo novo com o nome grego de Estevão.

Consolidaram-se ainda mais os laços de simpatia que os aproximavam desde o primeiro instante, e o moço jamais olvidaria aquele encontro com o Cristo, à sombra das tamareiras aureoladas de luz.

Durante um mês, Jeziel, agora conhecido por Estevão, absorveu-se no estudo de toda a exemplificação e ensinos do Mestre que não chegara a conhecer de modo direto.

A casa dos apóstolos, em Jerusalém, apresentava um movimento de socorro aos necessitados cada vez maior, requerendo vasto coeficiente de carinho e dedi­cação. Eram loucos a chegarem de todas as províncias, anciães abandonados, crianças esquálidas e famintas. Não só isso. À hora habitual das refeições, extensas filas de mendigos comuns imploravam a esmola da sopa. Acumulando ar tarefas com ingente sacrifício, João e Pedro, com o concurso dos companheiros, haviam cons­truído um pavilhão modesto, destinado aos serviços da igreja, cuja fundação iniciavam para difundir as mensa­gens da Boa Nova. A assistência aos pobres, entretanto, não dava tréguas ao labor das idéias evangélicas. Foi quando João considerou irrazoável que os discípulos di­retos do Senhor menosprezassem a sementeira da palavra divina e despendessem todas as possibilidades de tempo no serviço do refeitório e das enfermarias, visto que, dia a dia, multiplicava o número de doentes e infelizes que recorriam aos seguidores de Jesus como a última espe­rança para os seus casos particulares. Havia enfermos que batiam à porta, benfeitores da nova instituição que requeriam situações especiais para os seus protegidos, amigos que reclamavam providências a favor dos órfãos e das viúvas.

Na primeira reunião da igreja humilde, Simão Pe­dro pediu, então, nomeassem sete auxiliares para o ser­viço das enfermarias e dos refeitórios, resolução que foi aprovada com geral aprazimento. Entre os sete irmãos escolhidos, Estevão foi designado com a simpatia de todos.

Começou para o jovem de Corinto uma vida nova. Aquelas mesmas virtudes espirituais que iluminavam a sua personalidade e que tanto haviam contribuído para a cura do patrício, que o restituira à liberdade, difundiam entre os doentes e indigentes de Jerusalém os mais santos consolos. Grande parte dos enfermos, recolhidos ao casarão dos discípulos, recobraram a saúde. Velhos desalentados encontravam bom ânimo sob a influência da sua palavra inspirada na fonte divina do Evangelho. Mães aflitas buscavam-lhe o conselho seguro; mulheres do povo, esgotadas pelo trabalho e angústias da vida, ansiosas de paz e consolação, disputavam o conforto da sua presença carinhosa e fraterna.

Simão Pedro não cabia em si de contente, em face das vitórias do filho espiritual. Os necessitados tinham a impressão de haver recebido um novo arauto de Deus para alívio de suas dores.

Em pouco tempo, Estevão tornou-se famoso em Jerusalém, pelos seus feitos quase miraculosos. Consi­derado como escolhido do Cristo, sua ação resoluta e sincera arrigimentara, em poucos meses, as mais vastas conquistas para o Evangelho do amor e do perdão. Seu nobre esforço não se limitava à tarefa de mitigar a fome dos desvalidos. Entre os Apóstolos galileus, sua palavra resplandecia nas pregações da igreja, iluminada pela fé ardente e pura. Quando quase todos os companheiros, a pretexto de não ferirem velhos princípios estabelecidos, deixavam de ampliar os comentários públicos para além das considerações agradáveis ao judais­mo dominante, Estevão apresentava à multidão, desas­sombradamente, o Salvador do mundo na glória das novas revelações divinas, indiferente às lutas que iria provocar, comentando a vida do Mestre com o seu verbo inflamado de luz. Os próprios discípulos surpreendiam-se com a magia das suas profundas inspirações. Alma temperada na forja sublime do sofrimento, sua pregação estava cheia de lágrimas e alegrias, de apelos e aspi­rações.

Em poucos meses, seu nome era aureolado de uma veneração surpreendente. E, ao fim do dia, quando che­gavam as orações da noite, o moço de Corinto, ao lado de Pedro e João, falava das suas visões e das suas espe­ranças, cheio do espírito daquele Mestre adorável, que, através do seu Evangelho, lhe semeara no coração as estrelas abençoadas de um júbilo infinito.

 

Nas estradas de Jope

Estamos na velha Jerusalém, numa clara manhã do ano 35.

No interior de sólido edifício, onde tudo transpira conforto e luxo da época, um homem ainda moço parece impaciente, à espera de alguém que se demora. Ao menor rumor da via pública, corre à janela, apressado, voltando a sentar-se e a examinar papiros e pergaminhos, como quem se diverte matando o tempo.

Chegando à cidade, depois de uma semana de via­gem exaustiva, Sadoc aguardava o amigo Saulo para o abraço afetuoso da sua amizade de muitos anos.

Dentro em breve um carro minúsculo, semelhante às bigas romanas, estacava à porta, tirado por dois soberbos cavalos brancos. Num minuto, as nossas perso­nagens se abraçaram efusivamente, transbordantes de alegria e juventude.

O jovem Saulo apresentava toda a vivacidade de um homem solteiro, bordejando os seus trinta anos. Na fisionomia cheia de virilidade e máscula beleza, os traços israelitas fixavam-se particularmente nos olhos profundos e percucientes, próprios dos temperamentos apaixonados e indomáveis, ricos de agudeza e resolução. Trajando a túnica do patriciato, falava de preferência o grego, a que se afeiçoara na cidade natal, ao convívio de mestres bem-amados, trabalhados pelas escolas de Atenas e Alexandria.

—        Quando chegaste? — perguntou Sadoc, bem-hu­morado, ao visitante.

—        Estou em Jerusalém desde ontem de manhã. Aliás, estive com tua irmã e teu cunhado, que me deram notícias tuas ao partirem para Lida.

—        E como vais de vida lá por Damasco?

—        Sempre bem.

Antes que se fizesse alguma pausa, o outro observou:

—        Mas como estás modificado!... Um carro à ro­mana, a conversação em grego e...

Saulo, porém, não o deixou prosseguir e rematou:

—        E no coração a Lei, sempre desejoso de submeter Roma e Atenas aos nossos princípios.

—        Sempre o mesmo homem! — exclamou o amigo com um sorriso franco. — Aliás, posso apresentar um complemento às tuas próprias explicações. A biga éindispensável’ às visitas a uma casinha florida, na estrada de Jope; e a conversação grega é necessária aos colóquios com uma legítima descendente de Issacar, nascida entre as flores e os mármores de Corinto.

—        Como o sabes? — inquiriu Saulo admirado.

—        Pois não te disse que estive ontem à tarde com tua irmã?

E os dois, acomodados em poltronas confortáveis da época, entremeando a conversação com algumas pe­quenas taças do capitoso “Chipre”, esfloravam larga­mente os problemas da vida pessoal, relacionando as pequenas ocorrências de cada dia.

Jovialíssimo, Saulo contou ao amigo que, de fato, se enamorara de uma jovem da sua raça, que aliava os dotes de peregrina beleza aos mais elevados tesouros do coração. Seu culto ao lar constituía um dos mais santificados atributos femininos. Explicou o primeiro encontro que tiveram. Em companhia de Alexandre e Gamaliel, fora, havia uns três meses, à festividade íntima que Zacarias ben Hanan, adiantado lavrador no caminho de Jope, oferecera a alguns amigos bem colocados, em homenagem à circuncisão dos filhinhos de seus servidores. Acrescentou que o anfitrião era antigo comerciante israelita emigrado de Corinto, após longos anos de trabalho na Acaia, desgostoso com as perseguições de que fora vítima.

Após grandes provações na viagem de Cencréia a Cesaréia, Zacarias chegara àquele porto em péssimas condições financeiras, mas foi auxiliado por um patrício romano, que lhe facultou recursos para arrendar uma grande propriedade na estrada de Jope, a regular distância de Jerusalém. Acolhido generosa­mente em sua casa, agora farta e feliz, ali conhecera na jovem Abigail um terno coração de menina, dona dos mais belos predicados morais que pudessem exornar uma filha da sua raça. Era, de fato, o seu ideal de moço:

inteligente, versada na Lei e, sobretudo, dócil e carinhosa. Adotada pelo casal como filha muito cara, havia sofrido amargamente em Corinto, ali deixando o pai morto e o irmão escravizado para sempre. Havia três meses que se conheciam, permutando-se as mais risonhas esperanças e, quem sabe? talvez o Eterno lhes reservasse a união conjugal, como coroamento dos sonhos sagrados da ju­ventude. Saulo falava com o entusiasmo próprio do seu temperamento apaixonado e vibrátil. No olhar pro­fundo, notava-se-lhe a chama viva dos sentimentos reso­lutos, com respeito à afeição que lhe dominava a capaci­dade emotiva.

—        E já comunicaste a teus pais esses projetos? —perguntou Sadoc.

—        Minha irmã pretende ir a Tarso nestes dois me­ses e será a intérprete dos meus votos, concernentes à organização do meu futuro. Aliás, sabes, isso não pode nem deve ser um problema de soluções precipitadas. Penso que ao homem não convém entregar—se assim, sem mais nem menos, a uma questão decisiva do seu destino. Obedecendo ao nosso velho instinto de prudência, venho analisando demoradamente meus próprios ideais e ainda não trouxe Abigail para conviver com Dalila, alguns dias, em nossa casa; pretendo fazê-lo tão-só nas vésperas da visita de minha irmã ao lar paterno.

            — Já que acalentas tantos projetos para o futuro adjuntou o amigo com bondoso interesse —, em que pé estão as tuas pretensões ao cargo no Sinédrio?

 Não posso queixar-me, porqüanto o Tribunal me confere atualmente atribuições especialissimas. Sabes que Gamaliel há muito vem instando com meu pai a respeito da minha transferência para Jerusalém, onde me prometem lugar de relevo na administração do nosso povo. Como sabemos, o antigo mestre está idoso e deseja retirar-se da vida pública. Não tardarei a substituí-lo no voto das mais altas deliberações, além de auferir atualmente ótima remuneração, independente da contri­buição que me vem de Tarso periodicamente. Tenho, acima de tudo, o ideal político de aumentar meu prestígio junto aos rabinos. É preciso não esquecer que Roma é poderosa e que Atenas é sábia, tornando-se in­dispensável acordar a eterna hegemonia de Jerusalém como tabernáculo do Deus único. Precisamos, pois, do­brar os joelhos de gregos e romanos ante a Lei de Moisés.

Sadoc, no entanto, deixando perceber que não pres­tava muita atenção ao seu idealismo nacionalista, retinha o pensamento na situação particular, advertindo delica­damente.

—        Pelo que me dizes, folgo em saber que teu pai vai melhorando, progressivamente, as condições finan­ceiras. E dizer-se que foi tecelão humilde..

—        Por isso mesmo, talvez — glosou Saulo —, ensi­nou-me a profissão, quando menino, para que nunca me esquecesse de que o progresso de um homem depende do seu próprio esforço. Hoje, porém, depois de tantas fadigas no tear, ele descansa, com justiça, numa velhice honrada e sem cuidados, junto de minha mãe. Suas caravanas e camelos percorrem toda a Cilícia e os trans­portes lhe garantem um desenvolvimento de renda cada vez maior.

A palestra continuou animada e, em dado instante, o moço de Tarso inquiriu o amigo sobre os motivos que o traziam a Jerusalém.

—        Vim certificar-me da cura de meu tio Filodemos, que ficou curado da velha cegueira, mediante processos misteriosos.

E, como se trouxesse o cérebro onusto de interro­gações de toda sorte, para as quais não encontrava res­posta nos próprios conhecimentos, acentuou:

—        Já ouviste falar nos homens do “Caminho”?

—        Ah! Andrônico falou-me a respeito deles, há muito tempo. Não se trata de uns pobres galileus mal­trapilhos e ignorantes que se refugiam nos bairros des­prezíveis?

—        Isso, justamente.

E contou que um homem chamado Estevão, por­tador de virtudes sobrenaturais, no dizer do povo, havia devolvido a vista ao tio, com assombro geral de muita gente.

—        Como é isso? — disse Saulo admirado. Como pôde Filodemos submeter-se a experiências tão sórdidas? Acaso não terá compreendido que o fato pode radicar nas artimanhas dos inimigos de Deus? Várias vezes, desde que Andrônico me referiu o assunto pela primeira vez, tenho ouvido comentários a respeito desses homens e cheguei mesmo a trocar idéias com Gamaliel, no intuito de reprimir essas atividades perniciosas; entretanto, o mestre, com a tolerância que o caracteriza, me fez ver que essa gente vem auxiliando a numerosas pessoas sem recursos.

—        Sim — atalhou o outro —, mas ouço dizer que as pregações de Estevão estão arrebanhando muitos es­tudiosos a novos princípios que, de algum modo, infirmam a Lei de Moisés.

—        Todavia, não foi um carpinteiro galileu, obscuro, sem cultura, que originou tal movimento? Que pode­ríamos esperar da Galiléia? Porventura terá produzido outra coisa além de legumes e peixes?

      E, contudo, o carpinteiro martirizado tornou-se um ídolo para os sequazes. Procurando desfazer as im­pressões de meu tio, chamando-o à razão com a ener­gia necessária, fui levado a visitar, ontem, as obras de caridade dirigidas por um tal Simão Pedro. É uma instituição estranha e que não deixa de ser extraordinária. Crianças desamparadas que encontram carinho, leprosos que recobram a saúde, velhos enfermos e des­protegidos da sorte, que exultam de conforto.

—        Mas os doentes? Onde ficam esses doentes? —interrogou Saulo assombrado.

—        Todos se agasalham junto desses homens incom­preensíVeiS.

—        Estão todos malucos! — disse o moço de Tarso com a franqueza espontânea que lhe marcava as atitudes.

Ambos trocaram impressões íntimas, sobre a nova doutrina, pontuando de ironia o comentário de muitos fatos piedosos que empolgavam a atenção do povo sim­ples de Jerusalém.

Ao finalizar a conversa, Sadoc acrescentou:

— Não me conformo em ver os nossos princípioS aviltados e proponho-me a cooperar contigo, embora es­teja em Damasco, para estabelecermos a imprescindível repressão a tais atividades. Com as tuas prerrogativas de futuro rabino, em destaque no Templo, poderás encabeçar uma ação decisiva contra esses mistificadores e falsos taumaturgos.

— Sem dúvida — respondeu. — E prontifico-me a executar todas as providências que o caso requer. Até agora, a atitude do Sinédrio tem sido da máxima tole­rância mas farei que todos os companheiros mudem de opinião e procedam como lhes compete, em face dessas investidas que estão a desafiar severa punição.

E, quase solene, concluía:

      — Quais os dias de pregação desse tal Estevão?

      — Os sábados.

—        Pois bem; depois de amanhã iremos juntos apre­ciar os sandeus. Caso verifique o caráter inofensivo dos seus ensinamentos, haverá que os deixar em paz com a sua logomania, ao lado das mazelas do próximo; mas, caso contrário, pagarão muito caro a audácia de ofender nossos códigos religiosos, na própria metrópole do ju­daísmo.

Ainda por longo tempo comentaram os fatos sociais, as tricas do farisaísmo a que pertenciam, os sucessos do presente e as esperanças do porvir.

Ao cair da tarde desse mesmo dia, a biga elegante de SauLo de Tarso atravessava as portas de Jerusalém, tomando a direção do porto de Jope.

O sol ardente, alto ainda no horizonte, enchia o caminho com a sua luz muito viva, O semblante do jovem doutor da Lei irradiava uma alegria louca, ao trote largo dos animais, que, de quando em vez, passa­vam a galopar. Recordava, satisfeito, o esporte a que se afeiçoara na cidade natal, tão ao gosto grego em que fora educado, graças à solicitude paterna. Olhos fixos nos cavalos árdegos e velozes, vinham-lhe à mente as vitórias alcançadas, entre os parceiros de jogos na sua descuidosa adolescência.

Poucas milhas distante, erguia-se uma casa con­fortável, entre grandes tamareiras e pessegueiros em flor. Em torno, grandes plantações de legumes, ao lado de tênue fio dágua inteligentemente aproveitado em extenso horto. A propriedade era parte integrante de uma das muitas pequenas aldeias que rodeavam a cidade santa, onde quer que houvesse condições favoráveis para a pequena lavoura, de alto interesse nos mercados de Jerusalém, colocada no meio de uma secura singular. Era aí que Zacarias se instalara com a família, para recomeçar a vida honesta, Ruth e Abigail procuravam ajudá-lo no seu nobre esforço de homem ativo e traba­lhador, cultivando frutos e flores, e com isso aprovei­tando toda a terra disponível.

Deixando Corinto, o generoso israelita encontrou grandes dificuldades, até que desembarcou em Cesaréia, onde se lhe esgotaram os últimos recursos, Alguns con­terrâneos, entretanto, o apresentaram a conhecido patrí­cio romano, grande proprietário na Samaria e que lhe emprestou avultada soma, recomendando-lhe aquela zona de Jope onde poderia arrendar-lhe a propriedade de um amigo. Zacarias aceitou o auxílio e tudo ia às mil maravilhas. A venda de legumes e frutas, bem como a criação de aves e animais pesados, compensavam-lhe as fadigas. Embora distante de Jerusalém, tivera ensejo de visitar a cidade, mais de três vezes, sendo que, sob o amparo de Alexandre, parente próximo de Anás, conseguira incluir-se entre os negociantes privilegiados, que podiam vender animais para os sacrifícios do Templo.

Auxiliado por amigos influentes, do estofo de Gamaliel e de Saulo de Tarso, que se emancipara da condição de discípulo para graduar-se em autoridade competente, no mais alto tribunal da raça, pudera resgatar grande parte de suas dívidas, caminhando vertiginosamente para uma bela posição de independência financeira, no país natal. Ruth regozijava-se com a vitória do marido, secundada por Abigail, em quem encontrara a dedicada afeição de verdadeira filha.

A irmã de Jeziel parecia haver refundido a delica­deza dos traços feminis, na forja dos sofrimentos expe­rimentados. A gracilidade do semblante e o negrume dos olhos haviam-se irmanado a um véu de formosa tris­teza, que a envolvera toda, a partir daqueles dias trá­gicos e lúgubres, passados em Corinto. Quanto desejava uma notícia, ainda que ligeira e banal, do irmão que o destino havia convertido em escravo de verdugos cruéis!... Para isso, desde os primeiros tempos, Zaca­rias não poupara expedientes nem esforços. Incumbindo a um fiel amigo da Acaia de promover diligências em tal sentido, apenas fora informado de que Jeziel havia sido levado, quase a ferros, para bordo de um navio mercante que se destinava a Nicópolis. Nada mais. Abigail instara novamente. E de Corinto vinham novas promessas dos amigos, que prosseguiriam investigando nas rodas afei­çoadas a Licínio Minúcio, de modo a descobrirem o para­deiro do jovem cativo.

Nesse dia, a moça recordava profundamente a figura do irmão querido, as suas advertências e conselhos tão carinhosos sempre.

Desde que travara relações com o rapaz de Tarso e entrevira a possibilidade de uma união conjugal, era com ansiedade que suplicava a Deus a consoladora cer­teza da existência do irmão, fosse onde fosse. A seu ver, Jeziel gostaria de conhecer o eleito do seu coração, cujos pensamentos eram igualmente iluminados pelo zelo sincero de bem servir a Deus.

Contar-lhe-ia que a afei­ção da sua alma era também entretecida de comentários religiosos e filosóficos, e não tinham conta as vezes em que ambos se submergiam na contemplação da Natureza, comparando as suas lições vivas com os símbolos divinos dos Escritos Sagrados.

Saulo muito lhe ajudara no cultivo das flores da fé, que Jeziel havia semeado em sua alma singela. Não era ele um homem excessiva­mente sentimental, dado às efusões dos carinhos que passam sem maior significação, mas, compreendera-lhe o espírito nobre e leal, que um profundo sentimento de autodomínio assinalava. Abigail estava certa de enten­der-lhe as aspirações mais íntimas, nos sonhos grandio­sos que lhe empolgavam a mocidade. Sublime atração, essa que a impelia para o jovem sábio, voluntarioso e sincero! As vezes, parecia-lhe áspero e enérgico em demasia. Suas concepções da Lei não admitiam meios-termos. Sabia ordenar e desagradava-lhe qualquer ex­pressão de desõbediência aos seus propósitos. Aqueles meses de convívio, quase diário, davam-lhe a conhecer o seu temperamento indômito e inquieto, a par de um coração eminentemente generoso, onde uma fonte de ignorada ternura se retraía em abismais profundezas.

Mergulhada em cismas, num gracioso banco de pedra junto dos pessegueiros em festa primaveril, viu que o carro de Saulo se aproximava ao trote largo dos animais.

Zacarias o recebeu a distância e, juntos, em conver­sação animada, demandaram o interior, para onde a jovem se dirigiu.

A palestra estabeleceu-se no tom de cordialidade, que se repetia várias vezes na semana, e, como de cos­tume, os dois jovens, no deslumbramento da paisagem crepuscular, quase de mãos dadas como dois prometidos, desceram ao pomar cuja relva se constituía de espaçosos canteiros de flores orientais. O mar estendia-se à dis­tância de muitas milhas, mas o ar fresco da tarde dava a impressão dos ventos suaves que sopram do litoral. Saulo e Abigail falaram, a princípio, das banalidades de cada dia; contudo, em dado momento, reconhecendo o véu de tristeza que se estampava no rosto da compa­nheira, o moço interrogou-a com ternura:

      — Por que estás tão triste hoje?

—        Não sei — respondeu ela de olhos úmidos

mas tenho pensado muito em meu irmão. Espero, ansiosa, notícias dele, pois guardo a esperança de que te possa conhecer, mais cedo ou mais tarde. Jeziel acolheria tua palavra com entusiasmo e contentamento. Um amigo de Zacarias prometeu informações a respeito e estamos es­perando notícias de Corinto.

Depois de pequena pausa, ergueu os grandes olhos e prosseguiu:

—        Ouve, Saulo: Se Jeziel ainda estiver preso, pro­metes-me teu auxílio em seu favor? Teus prestigiosos amigos de Jerusalém poderão intervir para libertá-lo, junto do Procônsul da Acaia! Quem sabe? Minhas espe­ranças, agora, resumem-se exclusivamente em ti.

Ele tomou-lhe a mão e replicou enternecido:

— Farei tudo por ele.

E, fixando nela os olhos dominadores e apaixonados, acentuou:

—        Abigail, amarias a teu irmão mais que a mim?

—        Que dizes? — exclamou, compreendendo a deli­cadeza da pergunta. — Entendes o meu coração fra­terno e isso me exime de mais amplas explicações. Como sabes, querido, Jeziel foi meu amparo nos dias da orfan­dade materna. Companheiro de infância e amigo da juventude sem sonhos, foi sempre o irmão carinhoso que me ensinou a soletrar os mandamentos, a cantar os Salmos de mãos-postas, livrando-me das veredas do mal e inclinando-me ao bem e à virtude. Tudo que encon­traste em mim, constitui dádiva da sua generosa assis­tência de irmão desvelado.

Saulo observou-lhe o olhar úmido de pranto e con­siderou com bondade:

— Não chores. Compreendo as tuas sagradas razões afetivas. Se necessário, irei ao fim do mundo descobrir Jeziel, caso ainda esteja vivo. Levarei cartas de Jeru­salém à Corte Provincial de Corinto. Farei tudo. Tran­qüiliza-te, pois. Pelos teus informes, presumo nele um santo. Mas falemos de outras coisas. Há problemas imediatos a resolver. E nossos projetos, Abigail?

—        Deus há de abençoar-nos, murmurou a jovem, comovida.

—        Ontem, Dalila e o esposo foram a Lida, em visita a alguns parentes nossos.

Entretanto, ficou tudo combinado para que estejas conosco em Jerusalém, daqui a dois meses. Antes que minha irmã empreenda a pró­xima viagem a Tarso, quero que ela te conheça mais intimamente, a fim de que exponha, com franqueza, a meus pais, o nosso projeto de casamento.

—        Teu convite me sensibiliza sobremaneira, mas...

—        Nada de restrições nem timidez. Viremos bus­car-te. Combinarei todas as providências indispensáveis, com Ruth e Zacarias, e, quanto ao necessário para que te apresentes numa cidade grande, não permitirei que façam aqui despesa alguma. Já estou providenciando para que recebas, em breves dias, várias túnicas de modelo grego.

E rematava a observação com um belo sorriso:

—        Quero que apareças em Jerusalém como expoente perfeito da nossa raça, desenvolvida entre as antigas belezas de Corinto.

A moça fez um gesto tímido, demonstrando íntimo contentamento.

Mais alguns passos e sentaram-se sob velhos pesse­gueiros floridos, respirando a longos haustos as virações suaves que perfumavam o ambiente. A terra cultivada e colorida de rosas de todos os matizes, exalava delicioso aroma. O fim do crepúsculo está sempre cheio de sons que passam apressados, como se a alma das coisas estivesse igualmente ansiosa pelo silêncio, amigo do grande repouso... Eram árvores frondosas que se vela­vam nas sombras, derradeiros passarinhos errantes que voejavam céleres e as brisas cariciosas que chegavam de longe, agitando as grandes ramarias e acentuando os doces murmúrios do vento.

Saulo, inebriado de indefinível alegria, contemplou as primeiras estrelas que sorriam no céu recamado de luz. A Natureza é sempre o espelho fiel das emoções mais íntimas, e aquelas vagas de perfume, que as vira­ções traziam de longe, encontravam eco de misterioso júbilo no seu coração.

      — Abigail disse retendo-lhe a mãozinha entre as suas —, a Natureza canta sempre com as almas esperan­çosas e crentes. Com que ansiedade esperei-te no cami­nho da vida!... Meu pai falou-me do lar e das suas doçuras e eu aguardava a mulher que me compreendesse inteiramente.

— Deus é bom — replicou ela com enlevo — e somente agora reconheço que, depois de tantos sofri­mentos, Ele me reservava, na sua misericórdia infinita, o tesouro maior da minha vida, o teu amor, na terra de meus pais. Teu afeto, Saulo, concentra todos os meus ideais. O Céu nos fará felizes. Todas as manhãs, quando estivermos casados, pedirei, em preces fervoro­sas, aos anjos de Deus que me ensinem a tecer a rede das tuas alegrias; à noite, quando a bênção do repouso envolver o mundo, dar-te-ei um carinho sempre novo, do meu afeto. Tomarei tua cabeça atormentada pelos problemas da vida e ungirei tua fronte com a carícia de minhas mãos. Viverei com Deus e contigo, somente. Ser-te-ei fiel por toda a vida e amarei os próprios sofri­mentos que acaso o mundo possa acarretar-me, por amor à tua vida e ao teu nome.

Saulo apertou-lhe as mãos com mais enlevo, redargüindo deslumbrado:

— Dar-te-ei, por minha vez, meu coração dedicado e sincero. Abigail, meu espírito estava possuído somente do amor à Lei e a meus pais. Minha mocidade tem sido muito inquieta, mas pura. Não te oferecerei uma flor sem perfume. Desde os primeiros dias da juventude, conheci companheiros que me incitaram a lhes seguir os passos incertos na embriaguez dos sentidos, precursora da morte de nossas preocupações mais nobres neste mundo, mas nunca traí o ideal divino que me vibraria alma sincera. Depois dos estudos iniciais da minha carreira, encontrei mulheres que me acenavam, levadas por uma concepção perigosa e errônea do amor. Em Tarso, nos dias suntuosos dos jogos juvenis, após a conquista das melhores láureas, recebia, de jovens inquie­tas, declarações de amor e propostas de núpcias, mas, a verdade é que permanecia insensível, a esperar-te como heroína ignota do meu sonho, nas assembléias ostento­sas de púrpuras e flores. Quando Deus aqui me con­duziu ao teu encontro, teus olhos me falaram, num lampejo, de sublimes revelações. És o coração do meu cérebro, a essência do meu raciocínio e serás a mão guiadora das minhas edificações, em toda a vida.

Enquanto a moça, sensibilizada e venturosa, tinha os olhos mareados de pranto, o fogoso mancebo con­tinuava:

—        Viveremos um para o outro e teremos filhos fiéis a Deus. Serei a ordenação da nossa vida, serás a obe­diência em nossa paz. Nossa casa será um templo. O amor a Deus será sua maior coluna e, quando o trabalho exigir minha ausência do altar doméstico, ficarás velando no tabernáculo da nossa ventura.

—        Sim, querido. Que não faria por ti? mandarás e obedecerei. Serás a ordem de minha vida e eu rogarei ao Senhor que me auxilie a ser teu bálsamo de ternura. Quando estiveres fatigado, lembrar-me-ei de minha mãe e adormecerei tua alma generosa com as mais formosas orações de David!... Interpretarás para mim a palavra de Deus. Serás a lei, serei tua serva.

Saulo enternecia-se ouvindo aquelas expressões blan­diciosas. Eram as mais belas que já havia recolhido de um coração feminino. Mulher alguma, que não Abigail, jamais assim lhe falara ao espírito impetuoso. Habituado aos longos e difíceis raciocínios, escaldando o cérebro nos silogismos dos doutores, em busca de futuro brilhante, sentia a alma ressecada, sedenta de verdadeiro idealismo. Desde criança, com a sadia educação doméstica, guardava puros os primeiros impulsos do coração, sem jamais con­taminá-los na esteira dos prazeres fáceis ou do fogo das paixões violentas, que soem deixar na alma o carvão das dores sem esperanças. Acostumado ao esporte, aos jogos da época, seguido sempre de muitos companheiros em desvario, tivera o heroísmo sagrado de sobrepor as disposições da Lei às próprias tendências naturais. Sua concepção de serviço a Deus não admitia concessões a si mesmo. A seu ver, todo homem devia conservar-se indene de contactos inferiores com o mundo, até que atingisse o tálamo nupcial. O lar constituído haveria de ser um tabernáculo das bênçãos eternas; os filhos, as primícias do altar do Maior Amor, consagrado ao Senhor Supremo. Não que a sua juventude estivesse isenta de desejos. Saulo de Tarso experimentava todos os anseios da moci­dade impetuosa do seu tempo. Imaginava situações de anelos satisfeitos, e, no entanto, sujeito aos carinhos ma­ternos, prometera a si mesmo jamais tergiversar. A vida do lar é a vida de Deus. E Saulo guardava-se para emo­ções mais sublimadas. De esperança em esperança, via passar os anos, esperando que a inspiração divina deter­minasse a rota dos seus ideais. Esperava e confiava. Seus pais presumiam encontrar, ali ou acolá, aquela a quem devesse ele eleger; entretanto, Saulo, enérgico e resoluto, removia a intervenção dos entes caros, no con­cernente à escolha que afetava a decisão do seu destino. Abigail enchera-lhe o coração. Era a flor mística do seu ideal, a alma que lhe entenderia as aspirações em per­feita ressonância de pensamentos. De olhos fixos nas suas feições delicadas, que o luar pálido iluminava, teve ânsias de guardá-la para sempre nos braços fortes. Ao mesmo tempo, doce enternecimento lhe vibrava na alma. Desejava atraí-la a si, como se o fizesse a uma criança meiga e afagar-lhe os cabelos sedosos com todo o cabedal do seu carinho.

Inebriados de gozo espiritual, falaram longo tempo do amor que os identificava na mesma aspiração de ventura. Todos os comentários mais íntimos faziam de Deus o sagrado partícipe de suas esperanças no futuro que se lhes auspiciava, santificado em júbilos infinitos.

De mãos dadas extasiaram-Se com o plenilúnio ma­ravilhoso, Os eloendros pareciam sorrir-lhes. As rosas orientais, aureoladas pelos raios da lua, eram-lhes qual mensagem de beleza e perfume.

Ao despedir-se, Saulo acrescentou, venturoso:

— Dentro de dois dias voltarei a ver-te. Ficamos combinados. Quando Dalila partir, levará notícias nossas a meus pais e, precisamente de hoje a seis meses, quero ter-te comigo para sempre.

—        Seis meses? — revidou ela meio ruborizada e surpreendida.

—        Nada haverá, penso, que possa embargar esta resolução, de vez que já temos o indispensável.

—        E se ainda não tivermos, até lá, notícias de Jeziel? Por mim, desejaria casar-me convicta do seu contentamento e aprovação.

Saulo esboçando leve sorriso, em que havia muito de contrariedade mal dissimulada, esclareceu:

—        Quanto a isso, fica tranqüila. Cuidaremos pri­meiramente da atitude dos meus, que se encontram em plano mais imediato; e tão logo resolvamos o problema, se preciso for, irei pessoalmente a Acaia. É impossível que Zacarias não receba novas notícias de Corinto, nas próximas semanas. Então, providenciaremos com mais segurança.

Abigail teve um gesto de satisfação e reconheci­mento.

Irmanados, agora, na mesma vibração de júbilo, antes que reentrassem em casa, onde os donos os aguardavam entretidos com a leitura das Profecias, Saulo levou a mão da jovem aos lábios e murmurou a despedida habitual:

—        Fiel para sempre!...

Daí a minutos, depois de ligeira palestra com os amigos, ouvia-se o trotear dos animais estrada em fora, de regresso a Jerusalém. O carro minúsculo rodava, celeremente, ao luar, sob uma nuvem de pó.

 

A pregação de Estevão

Saulo e Sadoc entraram na igreja humilde de Je­rusalém, notando a massa compacta de pobres e mise­ráveis que ali se aglomeravam com um raio de esperança nos olhos tristes.

O pavilhão singelo, construído à custa de tantos sacrifícios, não passava de grande telheiro revestido de paredes frágeis, carente de todo e qualquer conforto.

Tiago, Pedro e João surpreenderam-Se singularmente com a presença do jovem doutor da Lei, que se populari­zara na cidade pela sua oratória veemente e pelo acurado conhecimento das Escrituras.

Os generosos galileus ofereceram-lhe o banco mais confortável. Ele aceitou as gentilezas que lhe dispensa­vam, sorrindo com indisfarçável ironia de tudo que ali se lhe deparava.

Íntimamente, considerava que o próprio Sadoc fora vítima de falsas apreciações. Que podiam fazer aqueleS homens ignorantes, irmanados a outros já envelhecidos, valetudinários e doentes? Que podiam significar de perigoso para a Lei de Israel aquelas crian­ças ao abandono, aquelas mulheres semimortas, em cujo coração pareciam aniquiladas todas as esperanças? Experimentava grande mal-estar defrontando tantos ros­tos que a lepra havia devastado, que as úlceras ma­lignas haviam desfigurado impiedosamente. Aqui, um velhote com chagas purulentas envolvidas em panos fétidos; além, um aleijado mal coberto de mulambos, ao lado de órfãos andrajosos que se acomodavam com humildade.

O conhecido doutor da Lei notou a presença de várias pessoas que lhe acompanhavam a palavra na interpre­tação dos textos de Moisés, na Sinagoga dos cilícios; outras que seguiam de perto as suas atividades no Sinédrio, onde a sua inteligência era tida como penhor de esperança racial. Pelo olhar, compreendeu que esses amigos ali estavam igualmente pela primeira vez. Sua visita, ao templo ignorado dos galileus sem-nome, atraira muitos afeiçoados do farisaísmo dominante, ansiosos pelos serviços eventuais que pudessem destacá-los e re­comendá-los às autoridades mais importantes. Saulo concluiu que aquela fração do auditório fazia ato de presença e de solidariedade em qualquer providência que houvesse de tomar. Pareceu-lhe natural e lógica aquela atitude, conveniente aos fins a que se propunha. Não se contavam fatos incríveis, operados pelos adeptos do “Caminho”? Não seriam grosseiras e escandalosas mis­tificações? Quem diria que tudo aquilo não fosse o produto ignóbil de bruxarias e sortilégios condenáveis? Na hipótese de lhe identificar qualquer finalidade desonesta, podia contar, mesmo ali, com grande número de correligionários, dispostos a defender o rigoroso cumprimento da Lei, custasse-lhes embora os mais pesados sacrifícios.

Notando um que outro quadro menos grato ao seu olhar acostumado aos ambiéntes de luxo, evitava fixar os aleijados e doentes que se acotovelavam no recinto, chamando a atenção de Sadoc, com observações irônicas e pitorescas. Quando o vasto recinto, desnudo de orna­tos e símbolos de qualquer natureza, de todo se encheu, um Jovem permeou as filas extensas, ladeado de Pedro e João, galgando os três um estrado quase natural, for­mado de pedras superpostas.

—        Estevão!... É Estevão!...

Vozes abafadas inculcavam o pregador, enquanto seus admiradores mais fervorosos apontavam para ele com jubiloso sorriso.

Inesperado silêncio mantinha todas as frontes em singulares expectativas, O moço, magro e pálido, em cuja assistência os mais infelizes julgavam encontrar um desdobramento do amor do Cristo, orou em voz alta suplicando para si e para a assembléia a inspiração do Todo-Poderoso. Em seguida, abriu um livro em forma de rolo e leu uma passagem das anotações de Mateus:

—        Mas, ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel; e, indo, pregai dizendo: é chegado o reino dos Céus. (1)

Estevão ergueu alto os olhos serenos e fulgurantes, e, sem se perturbar com a presença de Saulo e dos seus numerosos amigos, começou a falar mais ou menos nestes termos, com voz clara e vibrante:

—        “Meus caros, eis que chegados são os tempos em que o Pastor vem reunir as ovelhas em torno do seu zelo sem limites. éramos escravos das imposições pelos raciocínios, mas hoje somos livres pelo Evangelho do Cristo Jesus. Nossa raça guardou, de épocas imemoriais, a luz do Tabernáculo e Deus nos enviou seu Filho sem mácula. Onde estão, em Israel, os que ainda não ouvi­ram as mensagens da Boa Nova? Onde os que ainda não se felicitaram com as alegrias da nova fé? Deus enviou sua resposta divina aos nossos anseios milená­rios, a revelação dos Céus aclara os nossos caminhos. Consoante as promessas da profecia de todos quantos choraram e sofreram por amor ao Eterno, o Emissário Divino veio até ao antro de nossas dores amargas e jus­tas, para iluminar a noite de nossas almas impenitentes, para que se nos desdobrassem os horizontes da redenção. O Messias atendeu aos problemas angustiosos da criatura humana, com a solução do amor que redime todos os seres e purifica todos os pecados. Mestre do trabalho e da perfeita alegria da vida, suas bênçãos representam nossa herança. Moisés foi a porta, o Cristo é a chave. Com a coroa do martírio adquiriu, para nós outros, a láurea imortal da salvação. éramos cativos do erro, mas seu sangue nos libertou. Na vida e na morte, nas

 

(1) Mateus, capítulo 10º, versículos 6 e 7. — (Nota de Emmanuel.)

 

alegrias de Caná, como nas angústias do Calvário, pelo que fez e por tudo que deixou de fazer em sua gloriosa passagem pela Terra, Ele é o Filho de Deus iluminando o caminho.

“Acima de todas as cogitações humanas, fora de todos os atritos das ambições terrestres, seu reino de paz e luz esplende na consciência das almas redimidas.

“Ó Israel! tu que esperaste por tantos séculos, tuas angústias e dolorosas experiências não foram vãs!... Enquanto outros povos se debatiam nos interesses in­feriores, cercando os falsos ídolos de falsa adoração e promovendo, simultaneamente, as guerras de extermínio com requintes de perversidade, tu, Israel, esperaste o Deus justo. Carregaste os grilhões da impiedade hu­mana, na desolação e no deserto; converteste em cânticos de esperança as ignomínias do cativeiro; sofreste o opróbrio dos poderosos da Terra; viste os teus varões e as tuas mulheres, os teus jovens e as tuas crianças exterminados sob o guante das perseguições, mas nunca descreste da justiça dos Céus! Como o Salmista, afir­maste com teu heroismo que o amor e a misericórdia vibram em todos os teus dias! Choraste no caminho longo dos séculos, com as tuas amarguras e feridas. Como Job, viveste da tua fé, subjugada pelas algemas do mundo, mas já recebeste o sagrado depósito de Jeová — O Deus Único!... Oh! esperanças eternas de Jeru­salém, cantai de júbilo, regozijai-vos, embora não tivés­semos sido fiéis inteiramente à compreensão, por condu­zir o Cordeiro Amado aos braços da cruz. Suas chagas, todavia, nos compraram para o céu, com o alto preço do sacrifício supremo!...

“Isaías o contemplou, vergado ao peso de nossas iniqüidades, florescendo na aridez dos nossos corações, qual flor do céu num solo adusto, mas, revelou também, que, desde a hora da sua extrema renúncia, na morte infamante, a sagrada causa divina prosperaria para sem­pre em suas mãos.

“Amados, onde andarão aquelas ovelhas que não souberam ou não puderam esperar?

Procuremo-las para o Cristo, como dracmas perdidas do seu desvelado amor!

Anunciemos a todos os desesperançados as glórias e os júbilos do seu reino de paz e de amor imortal!...

“A Lei nos retinha no espírito de nação, sem con­seguir apagar de nossa alma o desejo humano de supre­macia na Terra. Muitos de nossa raça hão esperado um príncipe dominador, que penetrasse em triunfo a cidade santa, com os troféus sangrentos de uma bata­lha de ruína e morte; que nos fizesse empunhar um cetro odioso de força e tirania. Mas o Cristo nos libertou para sempre. Filho de Deus e emissário da sua glória, seu maior mandamento confirma Moisés, quando reco­menda o amor a Deus acima de todas as coisas, de todo o coração e entendimento, acrescentando, no mais formoso decreto divino, que nos amemos uns aos outros, como Ele próprio nos amou.

“Seu reino é o da consciência reta e do coração purificado ao serviço de Deus. Suas portas constituem o maravilhoso caminho da redenção espiritual, abertas de par em par aos filhos de todas as nações.

“Seus discípulos amados virão de todos os qua­drantes. Fora de suas luzes haverá sempre tempestade para o viajor vacilante da Terra que, sem o Cristo, cairá vencido nas batalhas infrutuosas e destruidoras das me­lhores energias do coração. Somente o seu Evangelho confere paz e liberdade. Ë o tesouro do mundo. Em sua glória sublime os justos encontrarão a coroa de triunfo, os infortunados o consolo, os tristes a fortaleza do bom ânimo, os pecadores a senda redentora dos resgates mi­sericordiosos.

“É verdade que o não havíamos compreendido. No grande testemunho, os homens não entenderam sua di­vina humildade, e os mais afeiçoados o abandonaram. Suas chagas clamaram pela nossa indiferença criminosa. Ninguém poderá eximir-se dessa culpa, visto sermos todos herdeiros das suas dádivas celestiais. Onde todos gozam do benefício, ninguém pode fugir à responsabili­dade. Essa a razão por que respondemos pelo crime do Calvário.

Mas, suas feridas foram a nossa luz, seus martírios o mais ardente apelo de amor, seu exemplo o roteiro aberto para o bem sublime e imortal.

“Vinde, pois, comungar conosco à mesa do banquete divino! Não mais as festas do pão putrescível, mas o eterno alimento da alegria e da vida... Não mais o vinho que fermenta, mas o néctar confortante da alma, diluído nos perfumes do amor imortal.

“O Cristo é a substância da nossa liberdade. Dia virá em que o seu reino abrangerá os filhos do Oriente e do Ocidente, num amplexo de fraternidade e de luz. Então, compreenderemos que o Evangelho é a resposta de Deus aos nossos apelos, em face da Lei de Moisés. A Lei é humana; o Evangelho é divino. Moisés é o condutor; O Cristo, o Salvador. Os profetas foram mordomos fiéis; Jesus, porém, é o Senhor da Vinha. Com a Lei, éramos servos; com o Evangelho, somos filhos livres de um Pai amoroso e justo!...”

Nesse ínterim, Estevão sustou a palavra que lhe fluía harmoniosa e vibrante dos lábios, inspirada nos mais puros sentimentos. Os ouvintes de todos os mati­zes não conseguiram ocultar o assombro, ante os seus conceitos de vigorosas revelações. A multidão embeve­cera-se com os princípios expostos. Os mendigos, ali aglomerados, endereçavam ao pregador um sorriso de aprovação, bem significativo de jubilosas esperanças. João fixava nele os olhos enternecidos, identificando, mais uma vez, no seu verbo ardente, a mensagem evan­gélica interpretada por um discípulo dileto do Mestre inesquecível, nunca ausente dos que se reúnem em seu nome.

Saulo de Tarso, emotivo por temperamento, fun­dia-se na onda de admiração geral; mas, altamente sur­preendido, verificou a diferença entre a Lei e o Evan­gelho anunciado por aqueles homens estranhos, que a sua mentalidade não podia compreender. Analisou, de relance, o perigo que os novos ensinos acarretavam para o judaísmo dominante. Revoltara-se com a pré­dica ouvida, nada obstante a sua ressonância de mis­teriosa beleza. Ao seu raciocínio, impunha-se eliminar a confusão que se esboçava, a propósito de Moisés. A Lei era uma e única. Aquele Cristo que culminou na derrota, entre dois ladrões, surgia a seus olhos como um mistificador indigno de qualquer consideração. A vi­tória de Estevão na consciência popular, qual a veri­ficava naquele instante, causava-lhe indignação. Aqueles galileus poderiam ser piedosos, mas não deixavam de ser criminosos pela subversão dos princípios invioláveis da raça.

O         orador preparava-se para retomar a palavra, mo­mentaneamente interrompida e aguardada com expecta­ção de júbilo geral, quando o jovem doutor se levantou ousadamente e exclamou, quase colérico, frisando os conceitos com evidente ironia.

—        “Piedosos galileus, onde o senso de vossas dou­trinas estranhas e absurdas? Como ousais proclamar a falsa supremacia de um nazareno obscuro sobre Moi­sés, na própria Jerusalém onde se decidem os destinos das tribos de Israel invencível? Quem era esse Cristo? Não foi um simples carpinteiro ?“

Ao orgulhoso entono da inesperada apóstrofe, houve no ambiente um tal ou qual retraimento de temor, mas, dos desvalidos da sorte, para quem a mensagem do Cristo era o alimento supremo, partiu para Estevão um olhar de defesa e jubiloso entusiasmo. Os Apóstolos da Galiléia não conseguiam dissimular seu receio. Tiago estava lívido. Os amigos de Saulo notaram-lhe a máscara escarninha. O pregador também empalidecera, mas reve­lava no olhar resoluto o mesmo traço de imperturbável serenidade. Fitando o doutor da Lei, o primeiro homem da cidade que se atrevera a perturbar o esforço generoso do evangelismo, sem trair a seiva de amor que lhe des­bordava do coração, fez ver a Saulo a sinceridade das suas palavras e a nobreza dos seus pensamentos. E antes que os companheiros voltassem a si da surpresa que os assomara, com admirável presença de espírito, indi­ferente à impressão do temor coletivo, obtemperou:

—        “Ainda bem que o Messias fora carpinteiro: por­que, nesse caso, a Humanidade já não ficaria sem abrigo. Ele era, de fato, o Abrigo da paz e da esperança! Nunca mais andaremos ao léu das tempestades nem na esteira dos raciocínios quiméricos de quantos vivem pelo cálculo, sem a claridade do sentimento.”

A resposta concisa, desassombrada, desconcertou o futuro rabino, habituado a triunfar nas esferas mais cultas, em todas as justas da palavra. Enérgico, rubori­zado, evidenciando cólera profunda, mordeu os lábios num gesto que lhe era peculiar e acrescentou com voz dominadora:

—        Aonde iremos com semelhantes excessos de in­terpretação, em torno de um mistificador vulgar, que o Sinédrio puniu com a flagelação e a morte? Que dizer de um Salvador que não conseguiu salvar-se a si mesmo? Emissário revestido de celestes poderes, como não evitou a humilhação da sentença infamante? O Deus dos exér­citos, que seqüestrou a nação privilegiada ao cativeiro, que a guiou através do deserto abrindo-lhe a passagem do mar; que lhe saciou a fome com o maná divino e, por amor, transformou a rocha impassível em fonte de água viva, não teria meios, outros, de assinalar o seu enviado senão com uma cruz de martírio, entre malfeitores co­muns? Tendes, nesta casa, a glória do Senhor Supremo, assim barateada? Todos os doutores do Templo conhecem a história do impostor que celebrizais com a simplicidade da vossa ignorância! Não vacilais em rebaixar nossos próprios valores, apresentando um Messias dilacerado e sangrento, sob os apupos do povo ..... Lançais vergonha sobre Israel e desejais fundar um novo reino? Seria justo dardes a conhecer, inteiramente, a nós outros, o móvel das vossas fábulas piedosas.”

Estabelecida uma pausa na sua objurgatória, o ora­dor voltou a falar com dignidade:

— Amigo, bem se dizia que o Mestre chegaria ao mundo para confusão de muitos em Israel. Toda a história edificante do nosso povo é um documento da revelação de Deus. No entanto, não vedes nos efeitos maravilhosos com que a Providência guiou as tribos hebréias, no passado, a manifestação do carinho extremo de um Pai desejoso de construir o futuro espiritual de crianças queridas do seu coração? Com o correr do tempo, observamos que a mentalidade infantil enseja mais vastos princípios educativos, O que ontem era carinho, é hoje energia oriunda das grandes expressões amorosas da alma. O que ontem era bonança e verdor, para nutrição da sublime esperança, hoje pode ser tempestade, para dar segurança e resistência. Antigamente, éramos meninos até no trato com a revelação; agora, porém, os varões e as mulheres de Israel atingiram a condição de adultos no conhecimento, O Filho de Deus trouxe a luz da ver­dade aos homens, ensinando-lhes a misteriosa beleza da vida, com o seu engrandecimento pela renúncia. Sua glória resumiu-se em amar-nos, como Deus nos ama.

Por essa mesma razão, Ele ainda não foi compreendido. Acaso poderíamos aguardar um salvador de acordo com os nossos propósitos inferiores? Os profetas afirmam que as estradas de Deus podem não ser os caminhos que desejamos, e que os seus pensamentos nem sempre se poderão harmonizar com os nossos. Que dizermos de um Messias que empunhasse o cetro no mundo, dispu­tando com os príncipes da iniqüidade um galardão de triunfos sangrentos?

Porventura a Terra já não estará farta de batalhas e cadáveres? Perguntemos a um general romano quanto lhe custou o domínio da aldeia mais obscura; consultemos a lista negra dos triunfadores, segundo as nossas idéias errôneas da vida. Israel jamais poderia esperar um Messias a exibir-se num carro de glórias magnificentes do plano material, suscetível de tombar no primeiro resvaladouro do caminho. Essas ex­pressões transitórias pertencem ao cenário efêmero, no qual a púrpura mais fulgurante volta ao pó. Ao contrário de todos os que pretenderam ensinar a virtude, repou­sando na satisfação dos próprios sentidos, Jesus executou sua tarefa entre os mais simples ou mais desventuradoS, onde, muitas vezes, se encontram as manifestações do Pai, que educa, através da esperança insatisfeita e das dores que trabalham, do berço ao túmulo, a existência humana. O Cristo edificou, entre nós, seu reino de amor e paz, sobre alicerces divinos. Sua exemplificação está projetada na alma humana, com luz eterna! Quem dê nós, então, compreendendo tudo isso, poderá identificar no Emissário de Deus um príncipe belicoso? Não! O Evangelho é amor em sua expressão mais sublime. O Mes­tre deixou-se imolar transmitindo-nos o exemplo da redenção­ pelo amor mais puro. Pastor do imenso rebanho, Ele não quer se perca uma só de suas ovelhas bem-amadas, nem determina a morte do pecador, O Cristo é vida, e a salvação que nos trouxe está na sagrada opor­tunidade da nossa elevação, como filhos de Deus, exer­cendo os seus gloriosos ensinamentos.”

Depois de uma pausa, o doutor da Lei já se erguia para revidar, quando Estevão continuou:

—        “E agora, irmãos, peço vênia para concluir minhas palavras. Se não vos falei como desejáveis, falei como o Evangelho nos aconselha, argüindo a mim pró­prio na íntima condenação de meus grandes defeitos. Que a bênção do Cristo seja com todos vós.

Antes que pudesse abandonar a tribuna para con­fundir-se com a multidão, o futuro rabino levantou-se de chofre e observou enraivecido:

—        Exijo a continuação da arenga! Que o pregador espere, pois não terminei o que preciso dizer.

Estevão replicou serenamente:

—        Não poderei discutir.

—        Por quê? — perguntou Saulo irritadíssimo. — Estais intimado a prosseguir.

—        Amigo — elucidou o interpelado calmamente —‘o Cristo aconselhou que devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Se tendes alguma acusação legal contra mim, exponde-a sem receio e vos obedecerei; mas, no que pertence a Deus, só a Ele com­pete argüir-me.

Tão alto espírito de resolução e serenidade, quase desconcertou o doutor do Sinédrio; compreendendo, po­rém, que a impulsividade somente poderia prejudicar-lhe a clareza do pensamento, acrescentou mais calmo, apesar do tom imperioso que deixava transparecer toda a sua energia:

—        Mas eu preciso elucidar os erros desta casa. Necessito perguntar e haveis de responder-me.

— No tocante ao Evangelho — replicou Estevão —. já vos ofereci os elementos de que podia dispor, escla­recendo o que tenho ao meu alcance. Quanto ao mais, este templo humilde é construção de fé e não de justas casuísticas. Jesus teve a preocupação de recomendar a seus discípulos que fugissem do fermento das discussões e das discórdias. Eis por que não será lícito perdermos tempo em contendas inúteis, quando o trabalho do Cristo reclama o nosso esforço.

— Sempre o Cristo! sempre o impostor! — trovejou Saulo, carrancudo. — Minha autoridade é insultada pelo vosso fanatismo, neste recinto de miséria e de igno­rância.

Mistificadores, rejeitais as possibilidades de es­clarecimento que vos ofereço; galileus incultos, não que­reis considerar o meu nobre cartel de desafio. Saberei vingar a Lei de Moisés, da qual se tripudia. Recusais a intimativa, mas não podereis fugir ao meu desforço.

Aprendereis a amar a verdade e a honrar Jerusalém, renunciando ao nazareno insolente, que pagou na cruz os criminosos desvarios. Recorrerei ao Sinédrio para vos julgar e punir. O Sinédrio tem autoridade para desfazer vossas condenáveis alucinações.

Assim concluindo, parecia possesso de fúria. Mas nem assim logrou perturbar o pregador, que lhe res­pondeu de ânimo sereno:

—        Amigo, o Sinédrio tem mil meios de me fazer chorar, mas não lhe reconheço poderes para obrigar-me a renunciar ao amor de Jesus-Cristo -

Dito isso, desceu da tribuna com a mesma humil­dade, sem se deixar empolgar pelo gesto de aprovação que lhe enderaçavam os filhos do infortúnio, que ali o

ouviam como a um defensor de sagradas esperanças -

Alguns protestos isolados começaram a ser ouvidos. Fariseus irritados vociferavam insolências e remoques. A massa agitava-se, prevendo atrito iminente; mas, antes que Estevão caminhasse dez passos para o interior junto dos companheiros, e antes que Saulo o alcançasse com outras objeções pessoais e diretas, uma velhinha maltra­pilha apresentou-lhe uma jovem pobremente vestida e exclamou cheia de confiança:

— Senhor! sei que continuais a bondade e os feitos do profeta de Nazaré, que um dia me salvou da morte, apesar dos meus pecados e fraquezas. Atendei-me tam­bém, por piedade!

Minha filha emudeceu há mais de um ano. Trouxe-a de Dalmanuta até aqui, vencendo enor­mes dificuldades, confiada na vossa assistência fra­ternal!

O pregador refletiu, antes de tudo, no perigo de qualquer capricho pessoal da sua parte, e, desejoso de atender à suplicante, contemplou a doente com sincera simpatia e murmurou:

— De nós nada temos, mas é justo esperar do Cristo as dádivas que nos sejam necessárias. Ele que é justo e generoso não te esquecerá na distribuição santificada da sua misericórdia.

E, como atuado por força estranha, acrescentava:

— Hás de falar, para louvor do bom Mestre!...

Então, viu-se um fato singular, que impressionou de súbito a numerosa assembléia. Com um raio de infinita alegria nos olhos, a enferma falou:

— Louvarei ao Cristo de toda minhalma, eternamente.

Ela e a genitora, tomadas de forte comoção, caíram, ali mesmo, de joelhos e beijaram-lhe as mãos; Estevão, entretanto, tinha agora os olhos mareados de pranto, profundamente sensibilizado. Era o primeiro a como­ver-se e admirar a proteção recebida, e não tinha outro meio que não o das lágrimas sinceras para traduzir a intensidade do seu reconhecimento.

Os fariseus, que se aproximavam no intuito de com­prometer a paz do recinto humilde, recuaram estupefatos. Os pobres e os aflitos, como se houvessem recebido um reforço do Céu para o êxito da crença pura, encheram a sala de exclamações de sublime esperança.

Saulo observava a cena sem poder dissimular a própria ira. Se possível, desejaria esfrangalhar Estevão em suas mãos. No entanto, apesar do temperamento impulsivo, chegou à conclusão de que um ato agressivo levaria os amigos presentes a um conflito de sérias proporções.

       Refletiu, igualmente, que nem todos os adeptos do “Caminho” estavam, como o pregador, em condições de circunscrever a luta ao plano das lições de ordem espiritual, e, de certa maneira, não recusariam a luta física. De relance, notou que alguns estavam armados, que os anciães traziam fortes cajados de arrimo, e os aleijados exibiam rijas muletas. A luta corporal, naquele recinto de construção frágil, teria conseqüências lamen­táveis. Procurou coordenar melhores raciocínios. Teria a Lei a seu favor. Poderia contar com o Sinédrio. Os sacerdotes mais eminentes eram amigos devotados. Lu­taria com Estevão até dobrar-lhe a resistência moral. Se não conseguisse submetê-lo, odiá-lo-ia para sempre. Na satisfação dos seus caprichos, saberia remover todos os obstáculos.

Reconhecendo que Sadoc e mais dois companhei­ros iam iniciar o tumulto, gritou-lhes em voz grave e imperiosa:

— Vamo-nos! Os adeptos do “Caminho” pagarão muito caro a sua ousadia.

Nesse momento, quando todos os fariseus se dis­punham a lhe atender a voz de comando, o moço de Tarso notou que Estevão se encaminhava para o in­terior da casa, passando-lhe rente aos ombros. Saulo sentiu-se abalado em todas as fibras do seu orgulho. Fixou-o, quase com ódio, mas o pregador correspondeu-lhe com um olhar sereno e amistoso.

Tão logo se retirou o jovem doutor da Lei com os companheiros numerosos que não conseguiam disfarçar o seu despeito, os Apóstolos galileus passaram a consi­derar, com grande receio, as conseqüências que poderiam advir do inesperado episódio.

No dia seguinte, como de costume, Saulo de Tarso, à tardinha, entrava em casa de Zacarias, deixando trans­parecer na fisionomia a contrariedade que lhe ia no íntimo. Depois de aliviar-se um tanto dos pensamentos sombrios que o atribulavam, graças ao carinho da noiva amada, por ela instado a dizer os motivos de tamanha preocupação, narrou-lhe os acontecimentos da véspera, acrescentando:

— Esse Estevão pagará caríssimo a humilhação que pretendeu infligir-se publicamente.

Seus raciocínios sutis podem confundir os menos argutos e necessário é fazermos preponderar nossa autoridade em face dos que não têm competência para versar os princípios sagrados. Hoje mesmo conversei com alguns amigos relativamente às providências que nos cumpre tomar. Os mais tole­rantes alegam o caráter inofensivo dos galileus, pacíficos e caritativos, mas sou de opinião que uma ovelha má põe o rebanho a perder.

—        Acompanho-te na defesa das nossas crenças — advertiu a moça satisfeita —, não devemos abandonar nossa fé ao trato e ao sabor das interpretações indivi­duais e incompetentes.

Depois de uma pausa:

—        Ah! se Jeziel estivesse conosco, seria teu braço forte na exposição dos conhecimentos sagrados. Cer­tamente, ele teria prazer em defender o Testamento contra qualquer expressão menos razoável e fidedigna.

—        Combateremos o inimigo que ameaça a genuini­dade da revelação divina exclamou Saulo e não cederei terreno aos inovadores incultos e cavilosos.

—        Esses homens são muitos? perguntou Abigail apreensiva.

—        Sim, e o que os torna mais perigosos é o mas­cararem as intenções com atos piedosos, por exaltar a imaginação versátil do povo com pretensos poderes mis­teriosos, naturalmente alimentados à custa de feitiça­rias e sortilégios.

Em qualquer hipótese — advertiu a jovem de­pois de refletir um momento — convém proceder com serenidade e prudência, para evitar os abusos de auto­ridade. Quem sabe são criaturas mais necessitadas de educação que de castigo?

— Sim, já pensei em tudo isso. Aliás, não pretendo incomodar os galileus simplórios e despretensiosos que se cercam, em Jerusalém, de inválidos e doentes, dando-nos a impressão de loucos pacíficos. Contudo, não posso deixar de reprimir o orador, cujos lábios, a meu ver, destilam poderoso veneno no espírito volúvel das massas sem consciência perfeita dos princípios esposados. Aos primeiros importa esclarecer, mas o segundo precisa ser anulado, visto não se lhe conhecerem os fins, quiçá criminosos e revolucionários.

— Não tenho como desaprovar as tuas ilações —concluiu a jovem, condescendente.

Em seguida, como de costume, palestraram sobre os sentimentos sagrados do coração, notando-se que o moço de Tarso encontrava singular encanto e caridoso bálsamo nas observações afetuosas da companheira que­rida.

Passados alguns dias, tomavam-se em Jerusalém providências para que Estevão fosse levado ao Siné­drio e ali interrogado sobre a finalidade colimada com as prédicas do “Caminho”.

Dada a intercessão conciliatória de Gamaliel, o feito se resumiria a uma discussão em que o pregador das novas interpretações definisse perante o mais alto tri­bunal da raça os seus pontos de vista, a fim de que os sacerdotes, como juizes e defensores da lei, expusessem a verdade nos devidos termos.

O convite à requesta chegou à igreja humilde, mas Estevão se esquivou, alegando que não seria razoável disputar, em obediência aos preceitos do Mestre, apesar dos argumentos do filho de Alfeu, a quem intimidava a perspectiva de uma luta com as autoridades em evidência, parecendo-lhe que a recusa chocaria a opinião pública. Saulo a seu turno, não poderia obrigar o anta­gonista a corresponder ao desafio, mesmo porque, o Sinédrio só poderia empregar meios compulsórios no caso de uma denúncia pública, depois da instauração de um processo em que o denunciado fosse reconhecido como blasfemo ou caluniador.

Ante a reiterada escusa de Estevão, o doutor de Tarso exasperou-se. E depois de irritar a maioria dos companheiros contra o adversário, arquitetou vasto pla­no, de modo a forçá-lo à polêmica desejada, na qual buscaria humilhá-lo diante de todos os maiorais do judaísmo dominador.

Depois de uma das sessões comuns do Tribunal, Saulo chamou um de seus amigos serviçais e falou-lhe em voz baixa:

—        Neemias, nossa causa precisa de um coopera­dor decidido e lembrei-me de ti para a defesa dos nossos princípios sagrados.

—        De que se trata? — perguntou o outro com enigmático sorriso. — Mandai e estou pronto a obedecer.

—        Já ouviste falar num falso taumaturgo chamado Estevão?

—        Um dos tais homens detestáveis do “Caminho”? Já lhe ouvi a própria palavra e por sinal que reconheci nas suas idéias as de um verdadeiro alucinado.

—        Ainda bem que o conheces de perto — replicou o jovem doutor, satisfeito.

Necessito de alguém que o denuncie como blasfemo em face da Lei e lembrei-me da tua cooperação neste sentido.

—        Só isso? — interrogou o interpelado, astuta­mente. — Ë coisa fácil e agradável. Pois não o ouvi dizer que o carpinteiro crucificado é o fundamento da verdade divina? Isso é mais que blasfêmia. Trata-se de um revolucionário perigoso, que deve ser punido como caluniador de Moisés.

—        Muito bem! — exclamou Saulo num largo sor­riso. — Conto, pois, contigo.

No dia imediato, Neemias compareceu ao Sinédrio e denunciou o generoso pregador do Evangelho como blasfemo e caluniador, acrescentando criminosas obser­vações de própria conta. Na peça acusatória, Estevão figurava como feiticeiro vulgar, mestre de preceitos subversivos em nome de um falso Messias que Jerusalém havia crucificado anos antes, mediante idênticas acusa­ções - Neemias inculcava-se como vítima da perigosa seita que lhe atingira e disturbara a própria família, e afir­mava-se testemunha de baixos sortilégios por ele prati­cados, em prejuízo de outrem.

Saulo de Tarso anotou as mínimas declarações, acentuando os detalhes comprometedores.

A notícia estourou na igreja do “Caminho”, pro­duzindo efeitos singulares e dolorosos.

Os menos re­solutos, com Tiago à frente, deixaram-se empolgar por considerações de toda ordem, receosos de se verem perseguidos; mas Estevão, com Simão Pedro e João, mantinha-se absolutamente sereno, recebendo com bom ânimo a ordem de responder corajosamente ao libelo.

       Cheio de esperança, rogava a Jesus não o desam­parasse, de maneira a testemunhar a riqueza da sua fé evangélica.

       E esperou o ensejo com fidelidade e alegria.

 

Ante o Sinédrio

No dia fixado, o grande recinto do mais alto soda­lido israelita enchia-se de verdadeira multidão de cren­tes e curiosos, ávidos de assistir ao primeiro embate entre os sacerdotes e os homens piedosos e estranhos, do “Caminho”. A assembléia congraçava o que Jerusa­lém tinha de mais aristocrático e de mais culto. Os mendigos, porém, não tiveram acesso, embora se tra­tasse de um ato público.

O Sinédrio exibia suas personagens mais eminen­tes. De mistura com os sacerdotes e mestres de Israel, notava-se a presença das personalidades mais salientes do farisaismo. Lá estavam representantes de todas as sinagogas.

Compreendendo a acuidade intelectual de Estevão, Saulo queria fornecer-lhe um confronto do cenário em que dominava o seu talento, com a igreja humilde dos adeptos do carpinteiro de Nazaré. No fundo, seu pro­pósito radicava na jactanciosa demonstração de supe­rioridade, afagando, ao mesmo tempo, a íntima esperança de conquistá-lo para as hostes do judaismo. Preparara, por isso, a reunião com todos os requisitos, de feição a impressionar-lhe os sentidos.

Estevão comparecia como um homem chamado a defender-se das acusações a ele imputadas, não como prisioneiro comum obrigado a acertar contas com a justiça. Examinando, pois, a situação, rogou com in­sistência aos Apóstolos galileus não o acompanhassem, considerando, não só a necessidade de permanecerem junto dos sofredores, como também a possível ocorrên­cia de sérios atritos, no caso de comparecimento dos adeptos do “Caminho”, dada a firmeza de ânimo com que procuraria salvaguardar a pureza e a liberdade do Evangelho do Cristo. Além disso, os recursos de que poderiam dispor eram demasiadamente simples e não seria justo afrontar com eles o poderio supremo dos sacerdotes, que tinham encontrado recursos para crucificar o próprio Messias. Em favor do “Caminho” pontificavam, apenas, aqueles enfermos desventurados; as convicções puras dos mais humildes; a gratidão dos mais infelizes — única força poderosa pelo seu conteúdo de virtude divina, a lhes amparar a causa perante as autoridades dominantes do mundo. Assim ponderando, disputava o júbilo de assumir, sozinho, a responsabilidade da sua atitude, sem comprometer qualquer companheiro, tal como fizera Jesus um dia, no seu apostolado sublime. Se necessário, não desdenharia a possibilidade do derradeiro sacrifício, no sagrado testemunho de amor ao seu coração augusto e misericordioso. O sofrimento, por Ele, ser-lhe-ia suave e doce. Sua argumentação vencera o bom desejo dos companheiros mais veementes.

Assim, sem amparo de qualquer amigo, compareceu ao Sinédrio, tomado de forte impressão ao lhe observar a grandeza e a sun­tuosidade. Habituado aos quadros tristes e pobres dos subúrbios, onde se refugiavam os infelizes de toda espécie, deslumbrava-se com a riqueza do Templo, com o aspecto soberbo da torre dos romanos, com os edi­fícios residenciais de estilo grego, com a feição exterior das sinagogas que se espalhavam em grande número por toda parte.

Compreendendo a importância daquela sessão a que acorriam os elementos de escol, por identificarem o invulgar interesse de Saulo, que, no momento, era a expressão de mocidade mais vibrante do judaísmo, o Sinédrio requisitara o concurso da autoridade romana para a absoluta manutenção da ordem. A Corte Pro­vincial não regateara providências. Os próprios patrí­cios residentes em Jerusalém compareceram, numerosos, ao grande feito do dia, considerando que se tratava do primeiro processo em torno das idéias ensinadas pelo profeta nazareno, depois da sua crucificação, que deixara tanta perplexidade e tantas dúvidas no espírito público.

Quando o grande recinto regurgitava de pessoas de alto destaque social, Estevão sentou-se no lugar previamente designado, conduzido por um ministro do Templo, ali permanecendo sob a guarda de soldados que o fixavam ironicamente.

A sessão começou com todas as cerimônias regi­mentais. Ao iniciar os trabalhos, o sumo-sacerdote anun­ciou a escolha de Saulo, consoante seu próprio desejo, para interpelar o denunciado e averiguar a extensão de sua culpa no aviltamento dos princípios sagrados da raça. Recebendo o convite para funcionar como juiz do feito, o jovem tarsense esboçou um sorriso triunfante. Com imperioso gesto, mandou que o humilde pregador do “Caminho” se aproximasse do centro da sala suntuosa, para onde se dirigiu Estevão serenamente, acompanhado por dois guardas de cenho carregado.

O moço de Corinto fixou o quadro que o rodeava, considerando o contraste de uma e outra assembléia e recordando a última reunião da sua igreja pobre, onde fora compelido a conhecer tão caprichoso antagonista. Não seriam aquelas as “ovelhas perdidas” da casa de Israel, a que aludia Jesus nos seus vigorosos ensina­mentos? Ainda que o judaísmo não houvesse aceitado a missão do Evangelho, como conciliava ele as observa­ções sagradas dos profetas e sua elevada exemplifica­ção de virtude, com a avareza e o desregramento? O próprio Moisés fora escravo e, por dedicação ao seu povo, sofrera inúmeras dificuldades em todos os dias da existência consagrada ao Todo-Poderoso. Job pade­cera misérias sem-nome e dera testemunho de fé nos sofrimentos mais acerbos. Jeremias chorara incompre­endido. Amós experimentara o fel da ingratidão. Como poderiam os israelitas harmonizar o egoísmo com a sabedoria amorosa dos Salmos de David? Estranhável que, tão zelosos da Lei, se entregassem de modo abso­luto aos interesses mesquinhos, quando Jerusalém es­tava cheia de famílias, irmãs pela raça, em completo abandono. Como cooperante de uma comunidade modes­ta, conhecia de perto as necessidades e sofrimentos do povo. Com essas unções, sentia que o Mestre de Nazaré se elevava muito mais, agora, aos seus olhos, distri­buindo entre os aflitos as esperanças mais puras e as mais consoladoras verdades espirituais.

Ainda não voltara a si da surpresa com que exami­nava as túnicas brilhantes e os ornamentos de ouro que exuberavam no recinto, quando a voz de Saulo, clara e vibrante, o chamou à realidade da situação.

Depois de ler a peça acusatória em que Neemias figurava como principal testemunha e no que foi ouvido com a máxima atenção, Saulo interrogou Estevão entre ríspido e altivo:

—        Como vedes, sois acusado de blasfemo, calunia­dor e feiticeiro, perante as autoridades mais representa­tivas. No entanto, antes de qualquer decisão, o Tribunal deseja conhecer vossa origem para determinar os direi­tos que vos assistem neste momento. Sois, porventura, de família israelita?

O         interrogado fez-se pálido, ponderando as dificul­dades de uma plena identificação, caso fosse indispen­sável, mas respondeu firmemente:

—        Pertenço aos filhos da tribo de Issacar.

O         doutor da Lei surpreendeu-se, ligeiramente, de ma­neira imperceptível para a assembléia, e continuou:

— Como israelita, tendes o direito de replicar livre­mente às minhas interpelações; todavia, faz-se mister esclarecer que essa condição não vos eximirá de pesados castigos, caso perseverardes na exposição dos erros crassos de uma doutrina revolucionária, cujo fundador foi con­denado à cruz infamante pela autoridade deste Tribu­nal, onde pontificam os filhos mais veneráveis das tribos de Deus. Aliás, apreciando, por suposição, a vossa ori­gem, convidei-vos a discutir lealmente comigo, quando de nosso primeiro encontro na assembléia dos homens do “Caminho”. Fechei os olhos aos quadros de miséria que então me cercavam, para analisar tão-só os vossos dotes de inteligência; mas, evidenciando estranha exal­tação de espírito, talvez em virtude de sortilégios, cujas influências são ali visíveis, vos mantivestes em singular reserva de opinião, apesar dos meus apelos reiterados. Vossa atitude inexplicável deu azo a que o Sinédrio considerasse a presente denúncia de vosso nome como inimigo de nossas ordenações. Sereis agora obrigado a responder a todas as interpelações convenientes e neces­sárias, e eu espero reconheçais que o título de israelita não vos poderá livrar da punição reservada aos traidores de nossa causa.

Depois de não pequeno intervalo em que o juiz e o denunciado puderam verificar a ansiosa expectativa da assembléia, Saulo entrou a interrogar:

—        Por que rejeitastes meu convite à discussão quan­do honrei a pregação no “Caminho” com a minha pre­sença?

Estevão, que tinha os olhos fulgurantes, como ins­pirado por uma força divina, replicou em voz firme, sem revelar a emoção que íntimamente o dominava:

—        O Cristo, a quem sirvo, recomendou aos seus dis­cípulos evitassem, a qualquer tempo, o fermento das discórdias. Quanto ao ato de haverdes honrado minha palavra humilde com a vossa presença, agradeço a prova de imerecido interesse, mas prefiro considerar com David (1) que nossa alma se gloriará no Senhor, visto nada possuirmos de bom em nós mesmos, se Deus nos não amparar com a grandeza da sua glória.

Em face da lição sutil que lhe era lançada em rosto, Saulo de Tarso mordeu os lábios, entre colérico e despeitado, e, procurando evitar, agora, qualquer alu­são pessoal, para não cair em situação semelhante, prosseguiu:

—        Sois acusado de blasfemo, caluniador e feiti­ceiro.

—        Permito-me perguntar em que sentido — retru­cou o interpelado, com desassombro.

 

(1) Salmos de David, capítulo 34º, versículo 2. — (Nota de Emmanuel.)

 

—        Blasfemo quando inculcais o carpinteiro de Na­zaré como Salvador; caluniador quando achincalhais a Lei de Moisés, renegando os princípios sagrados que nos regem os destinos. Confirmais tudo isso? Aprovais essas acusações?

Estevão esclareceu sem titubear:

—        Mantenho minha crença de que o Cristo é o Salvador prometido pelo Eterno, através dos ensinos dos profetas de Israel, que choraram e sofreram no decurso de longos séculos, por transmitir-nos os júbilos doces da Promessa. Quanto à segunda parte, suponho que a acusação procede de interpretação errônea em torno de minhas palavras. Jamais deixei de venerar a Lei e as Sagradas Escrituras, mas considero o Evangelho de Jesus o seu divino complemento. As primeiras são o trabalho dos homens, o segundo é o salário de Deus aos trabalhadores fiéis.

—        Sois então de parecer — disse Saulo sem dissi­mular irritação diante de tanta firmeza — que o car­pinteiro é maior que o grande legislador?

—        Moisés é a justiça pela revelação, mas o Cristo éo amor vivo e permanente.

A essa resposta do acusado, houve um prurido de exaltação na grande assembléia.

Alguns fariseus encole­rizados gritavam injúrias. Saulo, porém, lhes fez um sinal imperioso e o silêncio voltou a possibilitar o inter­rogatório. E, dando à voz um timbre de severidade, prosseguiu:

—        Sois israelita e jovem ainda. Uma inteligência apreciável serve ao vosso esforço.

Temos então o dever, antes de qualquer punição, de trabalhar pelo vosso re­gresso ao aprisco. É imprescindível chamar o irmão desertor, com carinho, antes do extremo recurso às armas. A Lei de Moisés poderá conferir-vos uma situa­ção de grande relevo, mas, que proveito tiraríeis da palavra insignificante, inexpressiva, do operário igno­rante de Nazaré, que sonhou com a glória para pagar as esperanças loucas numa cruz de ignomínia?

— Desprezo o valor puramente convencional que a Lei me poderia oferecer em troca do apoio à política do mundo, que se transforma todos os dias, considerando que a nossa segurança reside na consciência iluminada com Deus e para Deus.

—        Mas, que esperais do mistificador que lançou a confusão entre nós, para morrer no Calvário? — tornou Saulo exaltadamente.

—        O discípulo do Cristo deve saber a quem serve e eu me honro em ser instrumento humilde nas suas mãos.

—        Não precisamos de um inovador para a vida de Israel.

—        Compreendereis, um dia, que, para Deus, Israel significa a Humanidade inteira.

Diante dessa resposta ousada, a quase totalidade da assembléia prorrompeu em apupos, mostrando sua hostilidade franca ao denunciado de Neemias. Afeitos a um regionalismo intransigente, os israelitas não tole­ravam a idéia de confraternização com os povos que consideravam bárbaros e gentios. Enquanto os mais exaltados davam expansão a protestos veementes, os romanos observavam a cena, curiosos e interessados, como se presenciassem uma cerimônia festiva.

Depois de longa pausa, o futuro rabino continuou:

—        Confirmais a acusação de blasfêmia, enunciando semelhante princípio contra a situação do povo escolhido, a vossa primeira condenação.

—        E isso não me atemoriza — disse o acusado, re­soluto —; às ilusões orgulhosas que nos conduziriam a tenebrosos abismos, prefiro acreditar, com o Cristo, que todos os homens são filhos de Deus, merecendo o carinho do mesmo Pai.

Saulo mordeu os lábios raivosamente, e, acentuando sua atitude rigorosa de julgador, prosseguiu com aspe­reza.

—        Caluniais Moisés, proferindo tais palavras. Aguar­do vossa confirmação.

O         interpelado, dessa vez, endereçou-lhe significativo olhar e murmurou:

— Por que aguardais minha confirmação se obede­ceis a um critério arbitrário? O Evangelho desconhece as complicações da casuística. Não desdenho Moisés, mas não posso deixar de proclamar a superioridade de Jesus-Cristo. Podeis lavrar sentenças e proferir anátemas contra mim; entretanto, é necessário que alguém coopere com o Salvador no restabelecimento da verdade acima de tudo, e sem embargo das mais dolorosas conseqüências. Aqui estou para fazê-lo e saberei pagar, pelo Mestre, o preço da mais pura fidelidade.

Depois de cessar o abafado vozerio da assistência, Saulo voltou a dizer:

—        O Tribunal reconhece-vos como caluniador, passí­vel das punições atinentes a esse título odioso.

E tão logo foram grafadas as novas declarações pelo escriba que anotava os termos da inquirição, acentuou sem disfarçar a ira que o dominava:

—        É indispensável não esquecer que sois acusado de feiticeiro. Que respondeis a semelhante argüição?

—        De que me acusam, nesse particular? — inter­rogou o pregador do “Caminho”, com galhardia.

—        Eu próprio vos vi curar uma jovem muda, num dia de sábado, e ignoro a natureza dos sortilégios que utilizastes nesse feito.

—        Não fui eu quem praticou esse ato de amor, como, certamente, me ouvistes afirmar; foi o Cristo, por intermédio de minha pobreza, que nada tem de boa.

—        Pensais inocentar-vos com esta ingênua declara­ção? — objetou Saulo com ironia. — A suposta humil­dade não vos exculpa. Fui testemunha do fato e só a feitiçaria poderá elucidar seus ascendentes estranhos.

Longe de se perturbar, o acusado respondeu inspi­radamente:

—        E, contudo, o judaísmo está cheio desses fatos que julgais não compreender. Em virtude de que sor­tilégio conseguiu Moisés fazer jorrar de uma rocha a fonte de água viva? Com que feitiçaria o povo eleito viu abrirem-se-lhe as ondas revoltas do mar para a necessária fuga do cativeiro? Com que talismã pre­sumiu Josué atrasar a marcha do Sol? Não vedes em tudo isso, os recursos da Providência Divina? De nós nada temos, e, todavia, no cumprimento do nosso dever, tudo devemos esperar da divina misericórdia.

Analisando a resposta concisa, reveladora de ra­ciocínios lógicos, irretorquíveis, o doutor de Tarso quase rilhou os dentes. Um rápido relancear de olhos na assem­bléia deu-lhe a conhecer que o antagonista contava com a simpatia e admiração de muitos. Chegava a descon­ceifar-se íntimamente. Como recuperar a calma, dado o temperamento impulsivo que o levava aos extremos emotivos? Examinando a última assertiva de Estevão, sentia dificuldade em coordenar uma argumentação de­cisiva. Sem poder revelar o desapontamento próprio, incapaz de encontrar a resposta devida, considerou a urgência de uma saída a propósito e dirigiu-se ao sumo-sacerdote, nestes termos:

— O acusado confirma, por sua palavra, a denúncia de que foi objeto. Acaba de confessar, de público, que é blasfemo, caluniador e feiticeiro. Entretanto, por sua condição de nascimento, ele tem direito à defesa última, independentemente das minhas interpretações de julga­dor. Proponho, então, que a autoridade competente lhe conceda esse recurso.

Grande número de sacerdotes e personalidades emi­nentes entreolharam-se, quase com espanto, como a pre­libar a primeira derrota do orgulhoso doutor da Lei, cuja palavra vibrante sempre conseguira triunfar sobre quaisquer adversários, fixando-lhe o rosto rubro de cóle­ra, denunciando a tempestade que lhe rugia no coração.

Aceita a proposta formulada pelo juiz da causa, Estevão passou a usar de um direito que lhe era con­ferido pelo seu nascimento.

Levantando-se, nobremente contemplou os rostos an­siosos que o buscavam de todos os lados. Adivinhou que a maioria dos presentes presumia na sua figura um perigoso inimigo das tradições raciais, tal a sua expres­são de hostilidade; mas notou, igualmente, que alguns israelitas o encaravam com simpatia e compreensão. Va­lendo-se desse auxílio, sentiu consolidar-se-lhe o bom ânimo, de maneira a expor com maior serenidade os sagrados ensinos do Evangelho. Lembrou, instintivamente, a promessa de Jesus aos seus continuadores, de que estaria presente no instante em que devessem dar testemunho pela palavra, competindo-lhe não tremer ante as provocações inconscientes do mundo. Mais que nunca, sentiu a convicção de que o Mestre auxiliá-lo-ia na expo­sição da doutrina de amor.

Passado um minuto de ansiosa expectativa, começou a falar de modo impressionante:

—        Israelitas! por maior que fosse nossa divergên­cia de opinião religiosa, não poderíamos alterar nossos laços de fraternidade em Deus — o supremo dispensa­dor de todas as graças. É a esse Pai, generoso e justo, que elevo minha rogativa em favor de nossa compreen­são fiel das verdades santas. Outrora, nossos antepassa­dos ouviram as exortações grandiosas e profundas dos emissários do Céu. Por organizar um futuro de paz sólida aos seus descendentes, nossos avós sofreram misérias e penúriaS do cativeiro. Seu pão era molhado nas lágrimas de amargura, sua sede angustiava. Viram malogradas todas as esperanças de independência, perseguições sem conto destruíram-lhes o lar, com agravo de sofrimentos nas lutas de seu roteiro. A frente de seus martírios dignificantes, andaram os santos varões de Israel, Como gloriosa coroa do seu triunfo. Alimentou-os a palavra do Eterno, através de todas as vicissitudes. Suas expe­riências constituem poderoso e sagrado patrimônio. Delas, temos a Lei e os Escritos dos profetas. Apesar disso, não podemos iludir nossa sede. Nossa concepção de justiça é fruto de um labor milenário, em que empregamos as maiores energias, mas sentimos, por intuição, que existe algo de mais elevado, além dela. Temos o cárcere para os que se transviam, o vale dos imundos para os que adoecem sem a proteção da família, a lapidação na praça pública para a mulher que fraqueja, a escravidão para os endividados, os trinta e nove açoites para os mais infelizes. Bastará isso? As lições do passado não estão cheias da palavra “misericórdia”? Algo nos fala à consciência, de uma vida maior, que inspira sentimen­tos mais elevados e mais belos. Ingente foi o trabalho no curso longo e multissecular, mas o Deus justo res­pondeu aos angustiados apelos do coração, enviando-nos seu Filho bem-amado — O Cristo Jesus!...

 

A assembléia ouvia grandemente surpreendida. No entanto, quando o orador frisou mais forte a referência ao Messias de Nazaré, os fariseus presentes, fazendo causa comum com o jovem de Tarso, prorromperam em protestos, gritando alucinadamente:

— Anátema! Anátema!... Punição ao trânsfuga!

Estevão recebeu com serenidade a tormenta objur­gatória e, tão logo foi a ordem restabelecida, prosseguiu com firmeza:

— Por que me apupais desta forma? Toda precipi­tação de julgamento demonstra fraqueza. Primeiramente, renunciei à discussão considerando que se deve eliminar todo fermento de discórdia; mas, dia a dia o Cristo nos convoca para um trabalho novo e, certamente, o Mestre me chama hoje, a fim de palestrar convosco rela­tivamente às suas verdades poderosas. Desejais impor-me o ridículo e a zombaria? Isso, porém, deve confortar-me, porque Jesus experimentou esse tratamento em grau su­perlativo. Não obstante vossa repulsa, honra-me em pro­clamar as glórias inexcedíveis do profeta nazareno, cuja grandeza veio ao encontro de nossas ruínas morais, le­vantando-nos para Deus com o seu Evangelho de re­denção.

Nova saraivada de apóstrofes cortou-lhe a palavra. Ditos mordentes e ásperos baldões eram-lhe atirados a esmo, de todos os lados. Estevão não esmoreceu. Vol­tando-se, sereno, fixou nobremente os circunstantes, guar­dando a intuição de que os mais exaltados seriam os fariseus, os mais fundamente atingidos pelas verdades novas.

Esperando que recobrassem a calma, falou nova­mente:

— Fariseus amigos, por que teimais em não com­preender? Porventura temeis a realidade das minhas afirmações? Se vossos protestos se fundam nesse receio, calai-vos para que eu continue. Lembrai-vos de que me refiro aos nossos erros do passado e quem se associa na culpa dá testemunho de amor, no capítulo das repa­rações. Apesar de nossas misérias, Deus nos ama e, reconhecendo eu a própria indigência, não poderia falar-vos senão como irmão. Entretanto, se expressais desespero e revolta, recordai que não poderemos fugir à realidade da nossa profunda insignificância. Lestes, acaso, as lições de Isaías? Importa considerar a exor­tação (1) de que não poderemos sair, apressadamente, nem enganando a nós mesmos, nem fugindo aos nossos deveres, porque o Senhor irá adiante e o Deus de Israel será a nossa retaguarda. Ouvi-me! Deus é o Pai, o Cristo é o Senhor nosso.

Muito falais da Lei de Moisés e dos Profetas; todavia, podereis afirmar com a mão na consciência a plena observância dos seus gloriosos ensinamentos? Não estaríeis cegos atualmente, negando-vos à compreensão da mensagem divina? Aquele, a quem chamais ironica­mente o carpinteiro de Nazaré, foi amigo de todos os infelizes. Sua pregação não se limitou a expor princípios filosóficos. Antes, pela exemplificaçãO, renovou nossos hábitos, reformou as idéias mais elevadas, com o selo do amor divino. Suas mãos nobilitaram o trabalho, pensa­ram úlceras, curaram leprosos, deram vista aos cegos. Seu coração repartiu-Se entre todos os homens, dentro do novo entendimento do amor que nos trouxe com o exemplo mais puro.

Acaso ignorais que a palavra de Deus tem ouvintes e praticantes? Convém consultardes se não tendes sido meros ouvintes da Lei, de maneira a não falsear o tes­temunho.

Jerusalém não me parece o santuário de tradições da fé, que conheci por informações de meus pais, desde criança. Atualmente, dá impressão de um grande bazar onde se vendem as coisas sagradas. O Templo está cheio de mercadores. As sinagogas regurgitam de assuntos atinentes a interesses mundanos. As células farisaicas assemelham-se a um vespeiro de interesses mesquinhos. O luxo das vossas túnicas assombra. Vossos desperdícios espantam. Não sabeis que à sombra de vossos muros há

 

(1)       Isaias, capítulo 52º. Versículo 12. — (Nota de Emmanuel.)

 

infelizes que morrem de fome? Venho dos subúrbios, onde se concentra grande parte de nossas misérias.

Falais de Moisés e dos Profetas, repito. Acreditais que os antepassados veneráveis mercadejassem com os bens de Deus? O grande legislador viveu entre expe­riências terríveis e dolorosas. Jeremias conheceu longas noites de angústias, a trabalhar pela intangibilidade do nosso patrimônio religioso, entre as perdições de Babi­lônia. Amós era pobre pastor, filho do trabalho e da humildade. Elias sofreu toda sorte de perseguições, com­pelido a recolher-se ao deserto, tendo só lágrimas como preço do seu iluminismo. Esdras foi modelo de sacri­fício pela paz dos seus compatriotas. Ezequiel foi conde­nado à morte por haver proclamado a verdade. Daniel curtiu as infinitas amarguras do cativeiro. Mencionais os nossos heróicos instrutores do passado, tão-só para justificar o gozo egoístico da vida? Onde guardais a fé? No conforto ocioso, ou no trabalho produtivo? Na bolsa do mundo, ou no coração que é o templo divino? Incen­tivais a revolta e quereis a paz? Explorais o próximo e falais de amor a Deus? Não vos lembrais de que o Eterno não pode aceitar o louvor dos lábios quando o coração da criatura permanece dele distante?

A assembléia, ante o sopro daquela sublime inspi­ração, parecia imóvel, incapaz de se definir. Muitos israelitas supunham ver em Estevão o ressurgimento de um dos primevos profetas da raça. Mas os fariseus, como se quebrassem a misteriosa força que os emudecia, romperam em algazarra ensurdecedora, gesticulando a esmo, proferindo impropérios, no propósito de atenuar a forte impressão causada pelos surtos eloqüentes e calo­rosos do orador.

— Apedrejemos o imundo! Matemos a calúnia! Aná­tema ao caminho de Satanás!...

Nesse comenos, Saulo levantou-se rubro de cólera. Não conseguia disfarçar a fúria do temperamento im­pulsivo, a desbordar-lhe dos olhos inquietos e brilhantes.

Caminhou presto para o acusado, dando a entender que ia cassar-lhe a palavra, e a assembléia logo se acalmou, embora continuasse o rumor dos comentários aba­fados.

Percebendo que ia talvez ser coagido pela violência e, mais, que os fariseus pediam sua morte, Estevão fixou os mais irônicos e arrebatados, exclamando em voz alta e tranqüila:

—        Vossa atitude não me intimida. O Cristo foi solí­cito no recomendar não temêssemos os que só podem matar-nos o corpo.

Não pôde prosseguir. O moço tarsense, mãos àcintura, olhar iracundo e gestos rudes como se defron­tasse um malfeitor comum, gritou-lhe furiosamente no ouvido:

—        Basta! Basta! Nem mais uma palavra!... Agora que te foi concedido o último recurso inutilmente, tam­bém usarei o que me faculta a condição do nascimento, em face de um irmão desertor.

E caiu-lhe de punhos fechados no rosto, sem que Estevão tentasse a menor reação. Os fariseus aplaudi­ram o gesto brutal, em atroada delirante, qual se esti­vessem num dia de festa.

Dando expansão ao seu arreba­tamento, Saulo esmurrava sem compaixão. Sem recursos de ordem moral, ante a lógica do Evangelho, recorria àforça física, satisfazendo à índole voluntariosa.

O         pregador do “Caminho”, submetido a tais extre­mos, implorava de Jesus a necessária assistência para não se trair no testemunho. Não obstante a reforma radical que a influência do Cristo havia imposto às suas concepções mais íntimas, ele não podia fugir à dor da dignidade ferida. Procurou, contudo, recompor imedia­tamente as energias interiores, na compreensão da re­núncia que o Mestre predicara como lição suprema. Lem­brou os sacrifícios do pai em Corinto, reviu na imagina­ção o seu suplício e morte. Recordou a prova angustiosa que sofrera e considerou que, se tão-só no conhecimento de Moisés e dos Profetas tanto conseguira em energia moral para enfrentar os ignorantes da bondade divina, que não poderia testemunhar agora com o Cristo no coração? Esses pensamentos acudiam-lhe ao cérebro atormentado, como bálsamo de suprema consolação. Entretanto, embora a fortaleza de ânimo que lhe marcava o caráter, viu-se que ele vertia copiosas lágrimas. Quando lhe observou o pranto misturado com o sangue a jorrar da ferida que as punhadas lhe abriram em pleno rosto, Saulo de Tarso conteve-se saciado na sua imensa cólera. Não podia compreender a passividade com que o agre­dido recebera os bofetões da sua força enrijada nos exer­cícios do esporte.

A serenidade de Estevão perturbou-o ainda mais. Sem dúvida, estava diante de uma energia ignorada.

Esboçando um sorriso de zombaria, advertiu alta­neiro:

— Não reages, covarde? Tua escola é também a da indignidade?

O pregador cristão, apesar dos olhos molhados, res­pondeu com firmeza:

— A paz difere da violência, tanto quanto a força do Cristo diverge da vossa -

Verificando tamanha superioridade de concepção e pensamento, o doutor da Lei não podia ocultar o des­peito e a fúria que lhe transpareciam nos olhos chamejantes. Parecia no auge da irritação, a extravasar nos maiores despropósitos. Dir-se-ia haver chegado ao cúmulo de tolerância e resistência.

Voltando-se para observar a aprovação dos seus partidários, que se contavam por maioria, dirigiu-se ao sumo-sacerdote e impetrou uma sentença cruel. Tremia-lhe a voz, pelo esforço físico despendido.

— Analisando a peça condenatória — acrescentou ufano — e, considerados os graves insultos aqui bolça­dos, como juiz da causa rogo seja o réu lapidado -

Frenéticos aplausos secundaram-lhe a palavra in­flexível. Os fariseus tão duramente atingidos pelo verbo ardente do discípulo do Evangelho supunham vingar, desse modo, o que consideravam escárnio criminoso às suas prerrogativas.

A autoridade superior recebeu o alvitre e procurou submetê-lo à votação no reduzido círculo dos colegas mais eminentes.

Foi então que Gamaliel, depois de palestrar em voz baixa com os colegas de elevada investidura, comen­tando talvez o caráter generoso e a incoercível impulsivi­dade do ex-discípulo, dando-lhes a entender que a sanção proposta seria a morte imediata do pregador do “Ca­minho”, levantou-se no inquieto cenáculo e ponderou nobremente:

— Tendo voto neste Tribunal e não desejando pre­cipitar a solução de um problema de consciência, pro­ponho que se estude mais ponderadamente a sentença pedida, retendo-se o acusado em calabouço até que se esclareça a sua responsabilidade perante a justiça.

Saulo percebeu o ponto de vista do antigo mestre, inferindo que ele punha em jogo o seu reconhecido pendor à tolerância. Aquela advertência contrariava-lhe sobre­maneira os propósitos resolutos, mas, sabendo que não lhe poderia ultrapassar a autoridade veneranda, acentuou:

— Aceito a proposição na qualidade de juiz do feito; entretanto, adiada a execução da pena, qual fora de desejar e tendo em vista o veneno destilado pelo verbo irreverente e ingrato do réu, espero seja este algemado e recolhido imediatamente ao cárcere. E proponho igual­mente investigações mais amplas sobre as atividades supostamente piedosas dos perigosos crentes do “Cami­nho”, a fim de que se extirpe na raiz a noção de indis­ciplina por eles criada contra a Lei de Moisés, movi­mento revolucionário de conseqüências imprevisíveis, que significa, em substância, desordem e confusão em nossas próprias fileiras e ominoso esquecimento das ordenações divinas, conjurando assim a propagação do mal, cujo crescimento intensificará os castigos.

A nova proposta foi plenamente aprovada. Com a sua profunda experiência dos homens, Gamaliel com­preendeu que era indispensável conceder alguma coisa.

Ali mesmo, Saulo de Tarso foi autorizado pelo Sinédrio a iniciar as mais latas diligências em torno das atividades do “Caminho”, com ordem de admoestar, cor­rigir e prender todos os descendentes de Israel dominados pelos sentimentos colhidos no Evangelho, considerado, desde aquela hora, pelo regionalismo semita, como repo­sitório de veneno ideológico, com que o ousado carpinteiro nazareno pretendia revolucionar a vida israelita, operan­do a dissolução dos seus elos mais legítimos.

O moço tarsense, em frente de Estevão prisioneiro, recebeu a notificação oficial com um sorriso triunfante.

Encerrou-se, assim, a memorável sessão. Numerosos companheiros acercaram-se do moço judeu, felicitando-o pela palavra vibrante, ciosa da hegemonia de Moisés. O ex-discípulo de Gamaliel recebia a saudação dos amigos e murmurava confortado:

— Conto com todos, lutaremos até ao fim.

Os trabalhos daquela tarde tinham sido exaustivos, mas o interesse despertado fora enorme. Estevão sen­tia-se cansadíssimo. Ante os grupos que se retiravam esflorando os mais diversos comentários, foi ele ma­niatado antes de conduzido à prisão. Polarizando os sentimentos do Mestre, não obstante a fadiga, tinha con­fortada a consciência. Com sincera alegria interior, veri­ficava que mais uma vez Deus lhe concedia à oportuni­dade de testemunhar a sua fé.

Em poucos instantes, a sombra do crepúsculo parecia caminhar rápida para a noite sombria.

Após suportar as mais dolorosas humilhações de alguns fariseus que se retiravam sob profunda impressão de despeito, custodiado por guardas rudes e insensíveis, ei-lo recolhido ao cárcere, com pesadas algemas.

 

As primeiras perseguições

Saulo de Tarso, nas características de sua impulsi­vidade, deixou-se empolgar pela idéia de vingança, im­pressionado com o desassombro de Estevão em face da sua autoridade e da sua fama. A seu ver, o pregador do Evangelho infligira-lhe humilhações públicas, que impunham reparações equivalentes.

Todos os círculos de Jerusalém, não obstante o curto prazo da sua nova permanência na cidade, não escondiam a admiração que lhe votavam. Os intelectuais do Templo estimavam nele uma personalidade vigorosa, um guia seguro, tomando-o por mestre no racionalismo superior. Os mais antigos sacerdotes e doutores do Sinédrio reconheciam-lhe a inteligência aguda e nele depositavam a esperança do porvir. Na época, sua ju­ventude dinâmica, votada quase inteiramente ao minis­tério da Lei, centralizava, por assim dizer, todos os interesses da casuística. Com a argúcia psicológica que o caracterizava, o jovem tarsense conhecia o papel que Jerusalém lhe destinava. Assim, as controvérsias de Estevão doíam-lhe nas fibras mais sensíveis do coração. No fundo, seu ressentimento era apanágio de uma juventude ardorosa e sincera; entretanto, a vaidade ferida, o orgu­lho racial, o instinto de domínio, toldavam-lhe a retina espiritual.

No âmago das suas reflexões, odiava agora aquele Cristo crucificado, porque detestava a Estevão, consi­derado então como perigoso inimigo. Não poderia tolerar qualquer expressão daquela doutrina, aparentemente simples, mas que vinha abalar o fundamento dos prin­cípios estabelecidos. Perseguiria inflexivelmente o “Ca­minho”, na pessoa de quantos lhe estivessem associados. Mobilizaria, intencionalmente, todas as simpatias de que dispunha, para multiplicar a devassa imprescindível. Cer­to, deveria contar com as admoestações conciliatórias de um Gamaliel e de outros raros espíritos, que, ao seu ver, se deixariam embair pela filosofia de bondade que os galileus haviam suscitado com as novas escrituras; mas estava convencido de que a maioria farisaica, em função política, ficaria a seu lado, animando-o na empresa começada.

No dia seguinte à prisão de Estevão, procurou arre­gimentar as primeiras forças com a máxima habilidade. À cata de simpatia para o amplo movimento de perse­guição que pretendia efetuar, visitou as personalidades mais eminentes do judaísmo, abstendo-se, contudo, de procurar a cooperação das autoridades reconhecidamente pacifistas. A inspiração dos prudentes não o interessava. Necessitava de temperamentos análogos ao seu, para que o cometimento não falhasse.

Depois de concertar largo projeto entre os compa­trícios, solicitou uma audiência da Corte Provincial, para obter o apoio dos romanos encarregados da solução de todos os assuntos políticos da província. O Procurador, apesar de residir oficialmente em Cesaréia, estagiava na cidade e ali tivera notícia dos fatos interessantes da véspera. Recebendo a petição do prestigioso doutor da Lei, hipotecou-lhe solidariedade plena, elogiando as pro­vidências em perspectiva. Seduzido pelo verbo fluente do moço rabino, fez-lhe sentir, com a displicência do homem de Estado de todos os tempos e em quaisquer circunstâncias pelos assuntos religiosos, que reconhecia no farisaismo razões de sobra para mover combate aos galileus ignorantes, que perturbavam o ritmo das ma­nifestações de fé, nos santuários da cidade santa.

Con­cretizando as promessas, concedeu, imediatamente, ao movo de Tarso a necessária outorga para o feito coli­mado, ressalvando naturalmente os direitos de natureza política, que a suprema autoridade romana devia manter intangíveis.

Entretanto, bastava ao novel rabino a adesão dos poderes públicos aos projetos aventados.

Animado em seus propósitos pela quase geral apro­vação do seu plano, Saulo começou a coordenar as pri­meiras diligências por desvendar as atividades do “Cami­nho” em suas mínimas modalidades. Obcecado pela idéia da desforra pública, idealizava quadros sinistros na mente superexcitada. Tão logo fosse possível, prenderia todos os implicados. O Evangelho, aos seus olhos, dissimulava sedição iminente. Apresentaria os conceitos oratórios de Estevão como senha da bandeira revolucionária, de ma­neira a despertar a repulsa dos companheiros menos vigi­lantes, habituados a pactuar com o mal, a pretexto de acomodatícia tolerância. Combinaria os textos da Lei de Moisés e dos Escritos Sagrados, para justificar que se deveria conduzir os desertores dos princípios da raça, até à morte. Demonstraria a irrepreensibilidade da sua con­duta inflexível. Tudo faria por conduzir Simão Pedro ao calabouço. Na sua opinião, devia ser ele o autor inte­lectual da trama sutil que se vinha formando em torno da memória de um simples carpinteiro. No arrebatamento das idéias precipitadas, chegava a concluir que ninguém seria poupado nas suas decisões irrevogáveis.

Nesse dia, singularizado pela visita às autoridades em evidência, no intuito de as atrair à sua causa, outros fatos surpreendentes vieram agravar as preocupações que o assoberbavam. Oséias Marcos e Samuel Natan, dois compatriotas riquíssimos, de Jerusalém. depois de ouvirem a defesa pessoal de Estevão, no Sinédrio, impressio­nados com a eloqüência e justeza dos conceitos do orador, distribuíram com os filhos a parte da herança cabível a cada um, e doaram ao ‘Caminho o restante de seus haveres. Para isso, procuraram Simão Pedro beijando-lhe as mãos calejadas no trabalho, depois de lhe ouvirem a palavra acerca de Jesus-Cristo.

A notícia ecoou nos círculos farisaicos com as características de verdadeiro escândalo.

Saulo de Tarso teve conhecimento do fato, no dia imediato, aferindo o abalo geral que a atitude de Estevão provocara. A defecção dos dois correligionários ban­deando-se para os galileus causou-lhe profundo senti­mento de revolta. Falava-se, mais, que Oséias e Samuel, entregando ao “Caminho” a totalidade de seus bens, haviam declarado, entre lágrimas, que aceitavam o Cristo como o Messias prometido. Os comentários dos amigos, a respeito, instigavam-no às mais fortes represálias. De­signado pelas caprichosas correntes populares como o mais jovem defensor da Lei, sentia-se compelido, cada vez mais, a revelar o seu ascendente nesse posto que considerava sagrado. Na defesa do seu mandato, por isso mesmo, desprezaria todas as considerações tendentes a ínfirmar-lhe o rigorismo, em que presumia um divino dever.

Considerando a gravidade da última ocorrência que ameaçava a estabilidade do judaísmo no seio mesmo dos seus elementos mais destacados, procurou novamente as autoridades supremas do Sinédrio, a fim de apressar as repressões em perspectiva.

Atento à autorização concedida pelos mais altos poderes políticos da província, Caifás propôs fosse o zeloso doutor de Tarso nomeado chefe e promotor de todas as providências atinentes e indispensáveis à guarda e defesa da Lei. Competia-lhe, então, promover todos os recursos que julgasse convenientes e úteis, reservadas ao Sinédrio as últimas decisões, máxime, as de natureza mais grave.

Satisfeito com o resultado da reunião que impro­visara, o moço tarsense acentuou antes de se despedir dos amigos:

— Hoje mesmo requisitarei o corpo de tropa que deverá operar no perímetro da cidade.

Amanhã ordenarei a detenção de Samuel e Oséias, até que se resolvam a retomar juízo e, no fim da semana, tratarei das capturas da gentalha do “Caminho”.

— Não temerás, acaso, os sortilégios? — interrogou Alexandre com ironia.

—        De modo algum — respondeu sentencioso e de­cisivo. — Sabendo de oitiva que os próprios militares começam a ficar supersticiosos sob a influência das idéias extravagantes dessa gente, chefiarei em pessoa a expe­dição, porqüanto tenciono recolher o tal Simão Pedro ao calabouço.

—        Simão Pedro? — perguntou um dos presentes. admirado.

—        Por que não?

—        Sabes o motivo da ausência de Gamaliel ao nosso encontro de hoje? — tornou o outro.

—        Não.

—        É que, a convite desse mesmo Simão, ele foi observar as instalações e os feitos do “Caminho”. Não achas tudo isso extremamente curioso? Temos, de ma­neira geral, a impressão de que o chefe humilde dos galileus, desaprovando a atitude de Estevão perante o Sinédrio, deseja recompor a situação, buscando apro­ximar-se de nossa autoridade administrativa. Quem sabe? Talvez tudo isso seja útil. No mínimo, é bem possível estejamos caminhando para a necessária rearmonização.

Saulo mostrava-se mais que surpreso, porque es­tupefato.

—        Mas, que vem a ser tudo isso? Gamaliel visitando o “Caminho”? Chego a duvidar da sua integridade mental.

—        Mas sabemos — interveio Alexandre — que o mestre sempre pautou seus atos e pensamentos com a máxima correção. Era justo se negasse a tal convite, em consideração a nós outros; entretanto, se tal não fez, é igualmente preciso não desacatemos a deliberação tomada, certo, com a nobreza de objetivos que sempre o inspirou.

— De acordo — disse Saulo algo contrafeito —‘entretanto, apesar da amizade e gratidão que lhe con­sagro, nem mesmo Gamaliel poderá modificar minhas resoluções. É possível que Simão Pedro se justifique, saindo ileso das provas a que será submetido; mas, seja como for, terá de ser conduzido ao cárcere para as necessárias inquirições. Desconfio da sua aparente hu­mildade. Com que fim se abalançaria ele a deixar suas redes para arvorar-se em benfeitor gracioso dos pobres de Jerusalém? Vejo, em tudo isso, propósitos de sedução que não deve andar muito longe. Os mais humildes e ignorantes caminham à frente dos perigos. Os senhores da destruição aparecem depois.

A palestra animou-se ainda algum tempo, em torno da expectativa geral dos acontecimentos que se aproxi­mavam, até que Saulo se despediu e voltou para casa, disposto a assentar os últimos detalhes do seu plano.

A prisão de Estevão tivera, na igreja modesta do “Caminho”, ampla repercussão despertando justificados receios aos Apóstolos da Galiléia. Pedro recebera a notícia com profunda tristeza. Encontrara no rapaz de Co­rinto um auxiliar devotado e um irmão. Além disso, pela nobreza de suas qualidades afetivas, Estevão se tornara uma figura central a focalizar todas as atenções. Para a sua fronte inspirada convergiam numerosos problemas, em cuja solução o ex-pescador de Cafarnaum não mais dispensava a sua prestigiosa cooperação.

Amado pelos aflitos e sofredores, tinha sempre a palavra de bom ânimo, que levantava o mais desalentado coração. Pedro e João preocuparam-se mais por amor, que por quaisquer outras considerações. Entretanto Tiago, filho de Alfeu, não conseguia disfarçar seu desgosto em face da conduta desassombrada do irmão de fé, que não hesitara em afrontar os poderes farisaicos, dos senhores da situação. Na opinião dele, Estevão andara errado no capítulo das exortações; deveria comedir-se, merecera a prisão pelos argumentos precipitados na defesa de si mesmo. Fer­mentara-se a discussão. Pedro fazia-lhe sentir a opor­tunidade da ocorrência, para que se revelasse a liberdade do Evangelho. E reforçava os argumentos com a lógica dos fatos. A resolução de Oséias e Samuel, entregando-se ao Cristo, era invocada para justificar o êxito espiritual do “Caminho”. Toda a cidade comentava os aconteci­mentos; muitos se aproximavam da igreja com sincero desejo de melhor conhecer o Cristo, e isso devia significar a vitória da causa. Tiago, no entanto, não se deixava vencer pelos mais fortes raciocínios. A discórdia tomava corpo, mas Simão e o filho de Zebedeu sobre­punham a tudo os interesses da Mensagem de Jesus.

       O Mestre afirmara-se emissário para todos os desalen­tados e doentes. E estes já conheciam a igreja humilde de Jerusalém, iluminando-se com a palavra de vida e de verdade.

       Os enfermos, os desiludidos da sorte, os desprotegidos do mundo, os tristes, iam-lhe ao encontro para o esclarecimento consolador. Era de ver-se como se rejubilavam na dor, quando se lhes falava da claridade eterna da ressurreição. Velhinhos trêmulos abriam os olhos desmesuradamente, como se contemplassem novos horizontes de imprevistas esperanças. Criaturas cansadas da luta terrestre sorriam venturosas, quando, em ouvindo a Boa Nova, compreendiam que a existência amargurada não era tudo.

Pedro observava os sofredores que Jesus tanto amara e experimentava novas forças.

Ciente da atitude nobre de Gamaliel ante as acusa­ções do doutor de Tarso, e crente de que só ela evitara o apedrejamento imediato de Estevão, concebeu o pro­jeto de convidá-lo a visitar as instalações toscas da igreja do “Caminho”. Exposta aos companheiros, a idéia foi unanimemente aprovada. João era o mensageiro esco­lhido para o novo cometimento.

Gamaliel não só recebeu cavalheirescamente o emis­sário como também demonstrou grande interesse pelo convite, aceitando-o com a generosidade que lhe exornava a velhice veneranda.

Entabuladas as combinações, o sábio rabino deu entrada na casa pobre dos galileus, que o receberam com infinita alegria. Simão Pedro, profundamente res­peitoso, explicou-lhe as finalidades da instituição, es­clareceu-o relativamente aos feitos verificados e falou do conforto dispensado aos que se encontravam em aban­dono. Carinhosamente, ofereceu-lhe uma cópia, em pergaminho, de todas as anotações de Mateus sobre a personalidade do Cristo e seus gloriosos ensinamentos. Gamaliel agradecia, atencioso, ao ex-pescador, tratando-o igualmente com deferência e consideração. Dando a en­tender que desejava expor à sua respeitável apreciação todos os programas da igreja humilde, Simão conduziu o velho doutor da Lei a todas as dependências. Chegados à longa enfermaria em que se aglomeravam os mais diversos doentes, o grande rabino de Jerusalém não pôde ocultar a máxima impressão, comovido até as lágrimas com o quadro que se lhe deparava aos olhos espantados. Em leitos acolhedores via anciães de cabelos nevados pelos invernos da vida, e crianças esquálidas cujos olha­res agradecidos acompanhavam o vulto de Pedro, como se estivessem na presença de um pai. Não dera ainda dez passos em torno dos móveis singelos e limpos, quando estacou à frente de um velhinho de miserável aspecto. Imobilizado péla enfermidade que o prostrara, o pobre enfermo pareceu reconhecê-lo igualmente.

E o diálogo se travou sem preâmbulos:

—        Samônio, tu aqui? — interrogou Gamaliel admi­rado. — Pois será possível que abandonasses Cesaréia?

—        Ah! sois vós, senhor! — respondeu o interpelado com uma lágrima no canto dos olhos. — Ainda bem que um dos meus compatrícios e amigos chegou a observar minha grande miséria.

O         pranto embargou-lhe a voz, impedindo-o de con­tinuar.

—        Mas, os teus filhos? E os parentes? Na posse de quem estão tuas propriedades da Samaria? — per­guntava o velho mestre perplexo. — Não chores, Deus tem sempre muito para nos dar.

Decorrida longa pausa em que Samônio pareceu coordenar as idéias para explicar-se, conseguiu limpar as lágrimas e prosseguir:

— Ah! senhor, como Job, vi meu corpo apodrecer entre os confortos de minha casa; Jeová em sua sabe­doria reservava-me longas provanças. Denunciado como leproso, em vão solicitei socorro dos filhos que o Criador me concedeu na mocidade. Todos me abandonaram. Os familiares deram-se pressa em partir deixando-me sozi­nho. Os amigos que se banqueteavam comigo, em Ce­saréia, fugiram sem que os pudesse ver. Fiquei só e desamparado. Um dia, para suprema desesperação da minha desdita, os executores da justiça procuraram-me para notificar a sentença cruel. Combinados entre si, a conselho da iniqüidade, meus filhos destituiram-me de todos os bens, assenhorearam-Se de minhas posses e dos títulos em dinheiro, que representavam a esperança de uma velhice honesta. Por fim e para cúmulo de sofri­mentos, conduziram-me ao vale dos imundos, onde me abandonaram como se fora um criminoso sentenciado a morte. Senti tanto abandono e tanta fome, experimentei tamanhas necessidades, talvez pela minha vida passada no trabalho e no conforto, que fugi do vale dos leprosos, fazendo longa jornada a pé, esperançoso de encontrar em Jerusalém as amizades valiosas de outrora.

Ouvindo o relato doloroso, o velho mestre tinha os olhos úmidos. Conhecera Samônio nos dias mais felizes de sua vida. Homenageado em sua residência, de pas­sagem por Cesaréia, espantava-se agora daquela angus­tiosa indigência.

Depois de pequeno interregno em que o doente pro­curava enxugar o suor e as lágrimas, com voz pausada continuou:

— Empreendi a viagem, mas tudo conspirou contra mim. Em breve os pés chagados não podiam caminhar. Arrastava-me como podia, cheio de cansaço e sede, quan­do um carroceiro humilde, apiedado, me colheu e trouxe a esta casa, onde a dor encontra um consolo fraternal.

Gamaliel não sabia como externar sua surpresa, tal a emoção que lhe vibrava no íntimo. Pedro, igualmente, estava sensibilizado. Acostumando-se à prática do bem sem cogitar jamais dos antecedentes do socorrido, via no caso uma confortadora revelação do amoroso poder do Cristo.

O grande rabino estava atônito diante do que ali via e ouvia. Com a sinceridade que lhe era peculiar, não podia dissimular sua amizade agradecida ao pobre enfermo; mas, sem recursos para retirá-lo daquele pobre albergue, via-se na contingência de estender seu reconhecimento a Simão Pedro e demais companheiros do ex-pescador de Cafarnaum. Só agora reconhecia que o judaísmo não havia cogitado desses pousos de amor. Encontrando ali o amigo leproso, desejou sinceramente ampará-lo. Mas como? Pela primeira vez pensou na dolo­rosa eventualidade de enviar um ente amado ao vale dos imundos. Ele que aconselhara esse recurso a tanta gente, ali estava considerando, agora, a situação de um amigo querido. O episódio abalava-o profundamente Procuran­do evitar raciocínios filosóficos, de modo a não cair em conclusões apressadas, falou com doçura:

—        Sim, tens razão para agradecer o esforço dos teus benfeitores.

—        E também a misericórdia do Cristo — acentuou o doente com uma lágrima. — Creio, agora, que o gene­roso profeta de Nazaré, com o testemunho de amor que nos trouxe, é o Messias prometido.

O         grande doutor compreendeu o êxito da nova dou­trina. Aquele Jesus desconhecido, ignorado da sociedade mais culta de Jerusalém, triunfava no coração dos infe­lizes, pela contribuição de amor desinteressado que trou­xera aos mais deserdados da sorte.

Compreendeu, ao mesmo tempo, a discrição que se lhe impunha naquele meio humilde, atentas as suas responsabilidades na vida pública. Precisando prosseguir na conversa, por testemu­nhar o seu altruísmo e piedade, advertiu com um sorriso:

—        Acredito que Jesus de Nazaré, de fato, foi um modelo de renúncia a prol de idéias que, até hoje, não pude perquirir ou compreender; mas daí a considerá-lo o próprio Messias..

Essas palavras reticenciosas davam a compreender o escrúpulo do seu coração delicado, entre a Lei Antiga e as novas revelações do Evangelho. Simão Pedro assim o entendeu e, debalde, procurava um meio para desviar a palestra noutro rumo, O próprio Samônio, porém, como tutelado do Mestre, foi em auxílio do Apóstolo, redar­guindo a Gamaliel com observações ponderadas e justas:

— Se eu estivesse com saúde, plenamente identifi­cado com a família e no gozo dos bens que conquistei com esforço e trabalho, talvez duvidasse também dessa realidade confortando- a,  Mas estou prostrado, esquecido de todos e sei quem me deu mão amiga. Como israelitas, amantes da Lei de Moisés, temos esperado um Salvador na pessoa mortal de um príncipe do mundo; contudo, essa crença há de prevalecer para uma situação passa­geira. São ilusórios preconceitos, esses que nos levam a induzir uma dominação de forças perecíveis. A enfermidade, porém, é conselheira carinhosa e esclarecida. De que nos valeria um profeta que salvasse o mundo para depois desaparecer entre as misérias anônimas de um corpo apodrecido? Não está escrito que toda iniqüidade perecerá? E onde está o príncipe poderoso da Terra que domine sem a garantia das armas? O leito de dor é um campo de ensinamentos sublimes e luminosos. Nele, a alma exausta vai estimando no corpo a função de uma túnica.

Tudo o que se refira à vestimenta vai perdendo, conseqüentemente, de importância.

Persevera, contudo, a nossa realidade espiritual. Os antigos afirmavam que somos deuses. Na minha situação atual tenho a per­feita impressão de que somos deuses projetados num turbilhão de pó. Apesar das chagas pustulentas que me segregaram das afeições mais queridas, penso, quero e amo. Na câmara escura do sofrimento, encontrei o Se­nhor Jesus, para compreendê-lo melhor. Hoje creio que seu poder dominará as nações, porque é a força do amor triunfando da própria morte.

A voz daquele homem marcado de feridas roxas, no seu grave entono, parecia o clarim da verdade saindo de um montão de pó. Pedro verificava, satisfeito, o pro­gresso moral daquele mendigo anônimo, para avaliar íntimamente a força regeneradora do Evangelho.

Gamaliel, por sua vez, aturdia-se com o profundo sentido daqueles conceitos. A pregação do Cristo, nos lábios de um doente desamparado, tinha um cunho de beleza misteriosa e singular. Samônio falara no tom de quem tivera experiências diretas de um encontro real com o profeta nazareno. Buscando afastar qualquer possibili­dade de controvérsia religiosa, o generoso rabino sorriu e acrescentou:

— Reconheço que falas com muita sabedoria. Se é incontestável que estou numa idade em que não seria útil alterar os princípios, não posso manifestar-me con­trário às tuas suposições, pois estou bem de saúde, gozo o          carinho dos meus e tenho vida tranqüila. Minha facul­dade de julgar, portanto, tem de operar noutro rumo.

       Sim, é justo — retrucou Samônio, inspirado —, por enquanto não estais precisando de um salvador. Eis por que o Cristo afirmava que viera para os doentes e para os aflitos.

Gamaliel compreendeu o alcance dessas palavras que davam para meditar uma vida inteira. Sentiu os olhos úmidos. A observação de Samônio penetrara-lhe fundo o coração sensível de homem justo. Percebendo, todavia, que necessitava de prudência para não confundir os sen­timentos do povo, atento o cargo oficial que ocupava, esboçou um manso sorriso para o interlocutor, bateu-lhe levemente no ombro, e com acento de fraternal sinceridade acentuou:

— Talvez tenhas razão. Estudarei o teu Cristo.

E lembrando o pouco tempo de que dispunha, reco­mendou o amigo a Simão, despedindo-se num abraço, para acompanhar o Apóstolo de Cafarnaum às últimas dependências.

Antes de se retirar, o sábio rabino felicitou os com­pànheiros de Jesus pela obra que realizavam na cidade, e, compreendendo a delicadeza de sua missão num am­biente por vezes tão hostil, aconselhou a Pedro não es­quecer, na igreja do “Caminho”, todas as práticas exteriores do judaísmo. Seria justo, ao seu ver, que se cuidasse da circuncisão de todos os que lhe batessem à porta; que evitassem as viandas impuras; que não olvi­dassem o Templo e seus princípios. Gamaliel sabia que os galileus não seriam isentos de perseguição, ainda mais tratando-se de uma organização iniciada por alguém que fora condenado à morte pelo Sinédrio. Com aqueles con­selhos, visava aparar os golpes da violência, que, cedo ou tarde, haveriam de chegar.

Pedro, João e Tiago agradeceram sensibilizados a carinhosa admoestação e o velho doutor regressou ao lar, fundamente impressionado com as lições do dia, le­vando consigo os apontamentos de Mateus, que se pôs a ler imediatamente.

Mais dois dias decorreram e as perseguições capi­taneadas por Saulo de Tarso começaram a sacudir Jeru­salém em todos os setores de suas atividades religiosas.

Oséias Marcos e Samuel Natan foram presos, sem nota de culpa, a fim de responderem a rigoroso inqué­rito. Os cooperadores do movimento organizaram longas nominatas dos israelitas mais destacados que freqüenta­vam as reuniões da igreja do “Caminho”. O moço de Tarso determinara que se abrisse inquérito geral. En­tretanto, como desejava dar uma demonstração de desas­sombro aos adversários, julgou que deveria iniciar as prisões de maior importância, depois do encarceramen­to de Oséias e Samuel, no reduto mesmo dos galileus obscuros, que haviam ousado afrontar a sua autoridade.

Foi pela manhã de um dia muito claro, que o futuro rabino, cercado de alguns companheiros e soldados, bateu à porta da casa humilde, fazendo grande alarde dos fins de sua visita insidiosa. Simão Pedro em pessoa foi atendê-lo com grande serenidade nos olhos.

Indisfarçável pavor estabeleceu-se entre os mais tímidos, porqüanto, dois jovens que acompanhavam o Apóstolo se incumbi­ram de correr ao interior e espalhar a notícia.

—        És tu Simão Pedro, antigo pescador de Cafar­naum? perguntou Saulo com certa insolência.

—        Eu mesmo — respondeu com firmeza.

       - Estás preso! — disse o chefe da expedição num gesto de triunfo. E mandando que dois dos companheiros se adiantassem, ordenou fosse o Apóstolo algemado in­continenti. Pedro não opôs a mínima resistência. Impressionado com o temperamento pacífico que os continuadores do Nazareno testemunhavam sempre, Saulo objetou com escárnio:

—        O Mestre do “Caminho” deve ter sido um alto modelo de inércia e covardia. Ainda não encontrei qual­quer indício de dignidade nos seus discípulos, cujas faculdades de reação parecem mortas.

Recebendo em cheio tão acerba injúria, o ex-pes­cador respondeu serenamente:

— Enganài-vos quando assim julgais. O discípulo do Evangelho é apenas inimigo do mal e, na sua tarefa coloca o amor acima de todos os princípios. Além do mais, nós consideramos que todo jugo, com Jesus, é suave.

O         jovem tarsense, detentor de tão alto poderio, não dissimulou o mal-estar que a resposta lhe causava e, apontando o continuador de Jesus, disse a um dos ho­mens da escolta:

       - Jonas, toma conta dele.

E, acentuando ironicamente as palavras, dirigiu-se aos demais com um gesto de desprezo para o Apóstolo algemado, que o contemplava sereno, embora surpre­endido:

Não discutamos. com este homem. Esta gente do “Caminho” está sempre cheia de raciocínios absur­dos. É preciso não perder tempo com a cegueira da ignorância. Vamos até lá dentro, prendamos os chefes. Os sequazes do carpinteiro hão de ser perseguidos até ao fim.

Resoluto, tomou a dianteira, penetrando ousadamente em busca dos apartamentos mais íntimos. De porta a porta, encontrava mendigos que o fitavam toma­dos de espanto e amargura. O quadro vivo de tanta miséria abrigada enchia-o de admiração; mas, esforça­va-se por não perder a enfibratura implacável, de ma­neira a executar seus projetos nos menores detalhes. Ao lado da enfermaria de mais vastas proporções, en­controu o filho de Zebedeu, que lhe ouviu a voz de prisão sem alterar a serenidade fisionômica.

Sentindo as mãos grosseiras do soldado que lhe aplicava as algemas, João ergueu os olhos ao Alto e murmurou simplesmente:

—        Encomendo-me ao Cristo.

O         chefe da caravana olhou-o com profundo desprezo e exclamou altivamente para os companheiros:

—        Faltam dois dos mais suspeitos. Procuremo-los Referia-se a Filipe e Tiago, na qualidade de discí­pulos diretos do Messias Nazareno.

Mais alguns passos e o primeiro foi encontrado facilmente. Filipe deixou-se algemar sem um protesto. Suas filhas o rodearam aflitas e chorosas.

—        Coragem, filhas — disse ele sem temor —, acaso seríamos superiores a Jesus, que foi perseguido e cru­cificado pelos homens?

—        Ouves, Clemente? — perguntou SauLo, irritado, a um dos amigos mais cotados. — Não se percebe outra coisa a não ser referências ao estranho Nazareno! O primeiro falou em jugo do Cristo, o segundo encomen­dou-se ao Cristo, este alude à superioridade do Cristo... Aonde iremos?

Após desabafar a cólera, em termos ásperos, rema­tava com o estribilho constante:

—        Havemos de ir até ao fim.

Seguros os três prisioneiros, faltava o filho de Alfeu. Alguém se lembrou de procurá-lo no tosco biombo que ocupava. Com efeito, lá o acharam ajoelhado, tendo diante dos olhos um rolo de pergaminhos em que se en­contrava a Lei de Moisés. Via-se-Lhe a palidez marmórea do rosto, quando Saulo se aproximou ríspido:

—        Que é isso? Há aqui alguém que cuide da Lei?

O         irmão de Levi levantou os olhos transbordantes de sincero receio e explicou humilde:

—        Senhor, jamais esqueci a Lei de nossos pais. Meus avós ensinaram-me a receber de joelhos as luzes do profeta santo.

A atitude de Tiago não traduzia fingimento. Con­sagrando o máximo respeito ao libertador de Israel, sem­pre ouvira dizer que seus livros sagrados estavam tocados de virtude santa. Na expectativa do cárcere, atemoriza­ra-se com o perigo iminente. Não pudera compreender, maiormente, como outros companheiros, o sentido divino e oculto das lições do Evangelho. O sacrifício inspirava-lhe indisfarçáveis temores. Afinal, pensava ele na compreensão parcial do Cristo: — quem ficaria para supe­rintender as obras começadas? O Mestre expirara na cruz e, naquele instante, os Apóstolos de Jerusalém esta­vam presos.

Precisava defender-se com os meios possí­veis, ao seu alcance. Imaginou recorrer às virtudes sobre­naturais da Lei de Moisés, de acordo com as velhas crenças. Genuflexo, esperara os verdugos que se apro­ximavam.

Em face da atitude imprevista de Tiago, Saulo de Tarso estava atônito. Só os espíritos profundamente aferrados ao judaísmo liam, de joelhos, os ensinamentos de Moisés. Em sã consciência, não poderia ordenar a prisão daquele homem, O argumento que justificava sua tarefa, perante as autoridades políticas e religiosas de Jerusalém, era o combate aos inimigos das tradições.

—        Mas não sois amigo do carpinteiro?

Com invejável presença de espírito o interpelado respondeu:

—        Não me consta que a Lei nos impeça de ter amigos.

Saulo perturbou-se, mas prosseguiu:

—        Mas, que escolheis? A Lei ou o Evangelho? Qual dos dois aceitais em primeiro lugar?

—        A Lei é a primeira revelação divina — disse Tiago com inteligência.

Ante a resposta que o desconcertava, de alguma sorte, o moço de Tarso refletiu um momento e acres­centou, dirigindo-se, aos circunstantes:

—        Está bem. Este homem fica em paz.

O         filho de Alfeu, íntimamente satisfeito com o re­sultado de sua iniciativa, acreditava agora que a Lei de Moises estava tocada de graças vivas e permanentes. A seu ver, fora o código do judaísmo o talismã que o con­servara em liberdade. Desde esse dia, o irmão de Levi ia consolidar, para sempre, suas tendências supersticio­sas. O fanatismo que os historiadores do Cristianismo encontraram na sua personalidade enigmática teve aí sua origem.

Afastando-se do aposento de Tiago, Saulo prepa­rava-se para sair, quando, de regresso à portaria para ordenar a partida dos prisioneiros, esbarrou com a cena que mais o haveria de impressionar.

Todos os doentes que se podiam arrastar, todos os abrigados capazes de se moverem, cercavam a pessoa de Pedro, chorando comovidamente. Algumas crianças lhe chamavam “pai”; anciães trêmulos osculavam-lhe as mãos...

—        Quem se compadecerá de nós, agora? — pergun­tava uma velhinha debulhada em pranto.

—        Meu “pai”, aonde vão levar-vos? — dizia um órfão afetuoso, abraçando-se ao prisioneiro.

—        Vou ao monte, filho — respondia o Apóstolo.

—        E se vos matarem? — tornava o pequenino com uma grande interrogação nos olhos azuis.

—        Encontrar-me-ei com o Mestre e voltarei com ele — esclarecia Pedro bondosamente.

Nesse instante, surgiu a figura de Saulo, que re­gressava. Contemplando a multidão de aleijados, cegos, leprosos e crianças que entupiam a sala, exclamou irri­tado:

—        Afastem-se, abram caminho!

Alguns recuaram, espavoridos, vendo os soldados que se aproximavam, enquanto que os mais resolutos não arredavam passo. Um leproso, que mal se punha em pé, adiantou-se. O velho Samônio, recordando-se do tempo em que podia mandar e ser obedecido, aproxi­mou-se de Saulo com desassombro.

—        Nós precisamos saber para onde vão estes prisioneiros       disse com gravidade.

—        Para trás! — exclamou o moço tarsense, esboçando um gesto de repugnância.             Será possível que um homem da Lei tenha de dar satisfações a um velho imundo?

Os guardas armados tentaram adiantar-se, para cas­tigar o atrevido; no entanto, a lepra defendia Samônio dos seus ataques. Prevalecendo-se da situação, o antigo proprietário de Cesaréia revidou com firmeza:

—        O homem da Lei não precisa prestar contas senão a Deus, quando no exato cumprimento dos seus deveres; mas, nesta casa, falam os códigos de humanidade. Para vós eu sou imundo, mas para Simão Pedro sou um irmão. Prendeis os bons e libertais os maus!

Onde a vossa justiça? Credes somente no Deus dos exércitos? Ë indispensável saberdes que se o Eterno é o fator supremo da ordem, o Evangelho nos ensina a buscar em sua providência o carinho de um Pai.

Em ouvindo aquela voz digna, que fluia da miséria e do sofrimento como um apelo de desesperação, Saulo quedara-se admirado. O mendigo, entretanto, depois de longa pausa, prosseguia resoluto:

— Onde estão vossas casas de arrimo aos oprimi­dos da sorte? Quando vos lembrastes de um asilo para os mais infelizes? Enganais-vos se supondes inércia em nossa atitude. Os fariseus levaram Jesus ao Calvário da crucificação, privando os necessitados de sua pre­sença inefável. Por haver praticado o bem, Estevão foi metido no cárcere. Agora, o Sinédrio requisita os Apósto­los do “Caminho”, retribuindo-lhes a bondade com a es­curidão do calabouço. Mas estais equivocados. Nós, os miseráveis de Jerusalém, haveremos de lutar convosco. De Simão Pedro nós disputaremos a própria sombra. Se vos negardes a atender nossas súplicas, importa lem­brardes que somos leprosos. Envenenaremos vossos poços. Pagareis a perversidade com a saúde e com a vida.

Nesse ínterim, não pôde continuar.

Ante a expectação angustiosa de todos, Saulo de Tarso sentenciou ríspido:

— Cala-te miserável! Onde estou que te pude ouvir até agora? Nem mais uma palavra -

E designando-o a um dos soldados, murmurou com desprezo:

— Sinésio, dá-lhe dez bastonadas. É indispensável castigar-lhe a língua insolente e viperina.

Ali mesmo, à vista de todos os companheiros que se retraíam amedrontados, Samônio recebeu o castigo sem balbuciar uma queixa. Pedro e João tinham os olhos úmidos. Os demais doentes encolhiam-se estarrecidos.

Terminada a tarefa, um grande silêncio dominava os corações ansiosos e doloridos. O doutor de Tarso rompeu a expectativa com a ordem de partida, a caminho do cárcere.

Duas crianças pálidas acercaram-se, então, do ex-pescador de Cafarnaum e perguntaram chorosas:

— “Pai”, com quem ficaremos nós?

Pedro voltou-se, acabrunhado, e respondeu com ter­nura:

—        As filhas de Filipe ficarão convosco... Se Jesus permitir, meus filhos, não me demorarei.

O         próprio Saulo, intimamente, estava comovido; en­tretanto, não desejava trair-se a si mesmo, deixando-se vencer pela emoção que o quadro lhe provocava.

Pedro compreendeu que as lágrimas silenciosas de todos os tutelados humildes do “Caminho” traduziam desvelado amor, naquele momento de angustiantes des­pedidas.

Em seguida a esse feito, o jovem tarsense desdobrou as energias na primeira perseguição experimentada pelas expressões individuais e coletivas do Cristianismo nas­cente. Mais do que se poderia supor, Jerusalém regur­gitava de criaturas que se interessavam pelas idéias do Messias Nazareno. Saulo prevaleceu-se dessa circuns­tância para fazer sentir, mais uma vez, o perigo ideoló­gico que o Evangelho representava. Numerosas prisões foram efetuadas. Na cidade, iniciara-se um êxodo de grandes proporções. Os amigos do “Caminho”, com possibilidades financeiras, preferiam encetar vida nova na Iduméia ou na Arábia, na Cilícia ou na Síria. Os que podiam. escapavam ao rigor dos inquéritos violentos, iniciados com retumbâncias de escândalo público. As personalidades mais eminentes eram metidas na prisão, incomunicáveis, mas os anônimos e humildes, os da plebe, sofriam grandes vexames nas dependências do tribunal onde se faziam os interrogatórios. Os guardas assalaria­dos por Saulo. para a execução do nefando trabalho, excediam-se nos abusos.

—        És do “Caminho” de Cristo Jesus? — pergun­tava um deles a uma desventurada mulher, com risinhos de ironia.

—        Eu... eu... — gaguejava a infeliz, compreen­dendo a delicadeza da situação.

—        Depressa, dize depressa! — tornava o beleguim desrespeitoso.

A mísera criatura empalidecia a tremer, refletindo nos pesados castigos que lhe seriam impostos e retru­cava com profundo temor:

—        Eu... não...

— E que foste fazer nas suas assembléias sedi­ciosas?

— Fui buscar remédio para um filhinho doente.

Em face da negativa, o preposto do Sinédrio pa­recia acalmar-se, mas logo exclamava para um dos auxiliares:

— Muito bem! A interrogada pode ir em paz; antes, porém, de retirar-se, manda o regulamento se lhe aplique alguns golpes de chanfalho.

E era inútil resistir. Naquele tribunal singular, por longos dias seguidos, verificaram-se punições de toda espécie. Das respostas do querelado dependiam o encar­ceramento, os açoites, o chanfalho. as bastonadas. as macerações e os apupos.

Saulo tornara-se a mola central do movimento ter­rível e execrado por todos os simpatizantes do “Cami­nho”. Multiplicando energias, visitava diariamente os núcleos do serviço a que costumava chamar “expurgo de Jerusalém”, desenvolvendo atividade pasmosa, dentro da qual mantinha a vigilância constante das autoridades administrativas, encorajava os auxiliares e prepostos, instigava outros perseguidores dos princípios de Jesus, sem deixar arrefecer-se o zelo religioso do Sinédrio.

Dentro de uma semana, após as prisões efetuadas na igreja modesta, realizava-se a memorável sessão em que Pedro, João e Filipe deveriam ser julgados. A assem­bléia excepcional despertara a maior curiosidade. Lá se congregavam todas as personalidades eminentes do fari­saísmo dominante. Gamaliel compareceu, dando mostras de profundo abatimento.

De modo geral, comentava-se a atitude dos mendi­gos que, não obtendo permissão de ingresso, aglomera­vam-se em longas filas na grande praça e protestavam em atroante vozerio.

Debalde aplicavam-lhes bastonadas a torto e a direito, porque a turba de miseráveis assu­mira proporções nunca vistas, O quadro era curioso e alarmante. Tomar providências para correr com a massa, parecia tarefa impossível, Os peregrinos e os doentes contavam-se por centenas numerosas. Era inútil reprimir nos pontos isolados, o que somente vinha agravar a revolta e desesperação de muitos. Em altos brados re­clamavam a liberdade de Simão Pedro.

Exigiam em tumulto a sua libertação, como se exigissem um legado de seu legítimo direito.

            No salão nobre, não só os assistentes comentavam o fato, mas, também os juizes não dissimulavam pro­funda impressão. O próprio Anás contava o assédio de que vinha sendo objeto, por parte dos favorecidos de Je­rusalém. Alexandre alegava que à sua residência afluíram centenas de aflitos a solicitar-lhe os bons ofícios a favor dos prisioneiros. Saulo, de vez em quando, respondia a um que outro, com rápidos monossílabos. Sua fisionomia carregada traduzia propósitos inferiores relativamente ao destino dos Apóstolos da Boa Nova, que lá estavam à sua frente, no fundo da sala, humildes, serenos, no banco dos criminosos comuns.

       Viu-se, então, que Gamaliel se detinha com o sumo-sacerdote em conversação íntima, que durou alguns mi­nutos e despertava grande curiosidade entre os colegas. Em seguida, o venerando doutor da Lei chamou o ex-dis­cípulo para um entendimento particular, antes de inicia­rem os trabalhos. Os colegas perceberam que o rabino tolerante e generoso ia advogar a causa dos continuado­res do Nazareno.

—        Qual a sentença a ser proposta para os prisio­neiros? — interrogou o velhinho com bondoso interesse, logo que se viram distanciados dos grupos rumorosos.

—        Sendo eles galileus — disse Saulo enfático da sua autoridade —, não lhes será conferido o direito da palavra no recinto; de maneira que já deliberei a punição que lhes cabe.

Vou propor a morte dos três, com a de Estevão, pelo apedrejamento.

—        Que dizes? — exclamou Gamaliel, surpreso.

—        Não vejo outro recurso — disse o moço tar­sense —, precisamos extirpar pela raiz os males que começam. Acredito que, se encararmos o movimento com tolerância, teremos o prestígio do judaísmo abalado por nossas próprias mãos.

— Entretanto, Saulo — replicou o velho mestre com profunda bondade —, devo invocar o ascendente que tenho em tua formação espiritual, para defender estes homens da pena de morte.

O         moço caprichoso fez-se lívido. Não se habituara a transigir nos seus conceitos e decisões. Sua vontade era sempre tirânica e inflexível. Mas Gamaliel fora de todos os tempos o seu melhor amigo. Aquelas mãos rugosas lhe haviam ministrado os exemplos mais santos.

Delas recebera vasto potencial de socorro em todos os dias da vida. Compreendeu que defrontava um obstáculo poderoso na consecução integral de seus desejos. O vene­rando rabino percebeu a perplexidade e logo insistiu:

—        Ninguém mais do que eu conhece a generosidade do teu coração e sou o primeiro a reconhecer que tuas resoluções obedecem ao zelo inexcedível na defesa de nossos princípios milenários; mas o “Caminho”, Saulo, parece ter uma grande finalidade na renovação dos nossos valores humanos e religiosos. Quem, entre nós, se havia lembrado de amparar os infortunados com o provimento de um lar afetuoso e fraterno? Antes da tua diligência corretiva, visitei essa instituição singela e pude confor­tar-me na observação do seu excelente programa.

O         jovem doutor estava pálido, ouvindo tais conceitos, que, a seu ver, eram positivo sinal de fraqueza.

Mas será possível — disse admirado — que tam­bém vós tenhais lido o Evangelho dos galileus?

—        Estou a lê-lo — confirmou Gamaliel sem titu­bear — e pretendo meditar mais demoradamente os fenômenos que ocorrem em nosso tempo. Pressinto gran­des transformações em toda parte. Tenciono retirar-me da vida pública em breves dias, a fim de tomar o caminho do deserto. É claro, porém, que estas minhas palavras devem ser guardadas por ti, em penhor de mútua con­fiança.

Sumamente impressionado, o moço de Tarso não sabia o que responder. Presumia o mestre respeitável mentalmente prejudicado por excesso de lucubrações. O mestre, porém, como se lhe adivinhasse o pensamento, acrescentou:

— Não me suponhas mentalmente debilitado. A ve­lhice no corpo não me apagou a capacidade de pensar e discernir por mim mesmo. Compreendo o escândalo que se levantaria em Jerusalém se um rabino do Siné­drio modificasse publicamente as convicções mais ínti­mas. Mas é preciso convir que estou falando a um filho espiritual. E expondo, sinceramente, o meu ponto de vista, faço-o tão-só para defender homens generosos e justos de uma sentença iníqua e indevida.

—        Vossa revelação — exclamou Saulo de roldão — decepciona-me profundamente!

—        Conheces-me de menino e sabes que o homem sincero não se poderá preocupar com os que o elogiem ou o lamentem no cumprimento de um sagrado dever.

E, imprimindo carinhoso acento à voz, acentuava solícito:

—        Não me faças ir contigo, nesta assembléia, aos debates públicos escandalosos e atentatórios da feição amorosa que toda verdade deve trazer consigo. Liber­tarás estes homens em atenção ao nosso passado de mútuo entendimento. É só o que te peço. Deixa-os em paz, por amor aos nossos laços afetivos. Daqui a alguns dias não precisarás conceder mais coisa alguma ao velho mestre. Serás meu substituto neste cenáculo, porqüanto tenciono abandonar a cidade em breves dias.

E como Saulo hesitasse, continuou:

—        Não precisarás refletir muito tempo. O sumo-sacerdote está ciente de que eu pediria tua demência para os prisioneiros.

—        Mas... e a minha autoridade? — interrogou o rapaz com orgulho. — Como conciliar a indulgência com a necessidade de reprimir o mal?

—        Toda a autoridade é de Deus. Nós somos sim­ples instrumentos, meu filho. Ninguém se diminuirá por ser bom e tolerante. Quanto à providência mais digna, cabível no caso, é conceder liberdade a todos eles.

—        Todos? — perguntou Saulo num gesto de grande admiração.

— Como não? — confirmou o venerável doutor da Lei. — Pedro é um homem generoso, Filipe é um pai de família extremamente dedicado ao cumprimento de seus deveres, João é um moço simples, Estevão se consagrou aos pobres.

— Sim, sim — interrompeu o moço tarsense. —Concordo com a libertação dos três primeiros, com uma condição. Por serem casados, Pedro e Filipe poderão continuar em Jerusalém, restringindo suas atividades ao socorro dos doentes e necessitados; João será banido; mas Estevão deverá sofrer a sentença decisiva. Já propus, publicamente, a lapidação, e não vejo motivos para transigir, mesmo porque, para escarmento, pelo menos um dos discípulos do carpinteiro deve morrer.

Gamaliel compreendeu a força daquela resolução pela veemência das palavras que a traduziam. Saulo deixara bem claro que não transigiria, quanto ao taumaturgo. O velho rabino não insistiu. Para evitar um escândalo, entendeu que Estévão pagaria com o sacrifício. Aliás, considerando o temperamento voluntarioso do ex-discí­pulo, a quem a cidade havia conferido atribuições tão vastas, já não era pouco obter demência para os três homens justos, consagrados ao bem comum.

Compreendendo a situação, acentuou o respeitável rabino.

— Pois bem, seja assim!

E, com um sorriso de bondade, deixou o moço algo preocupado e perplexo.

Daí a instantes, com surpresa geral da assembléia, Saulo de Tarso, da tribuna, propunha a libertação de Pedro e Filipe, o banimento de João, e reiterava o pedido de apedrejamento para Estevão, por considerá-lo o mais perigoso dos elementos do “Caminho”. As autoridades do Sinédrio apreciando os alvitres, com satisfação, por saberem que a medida agradaria à turba numerosa, afir­maram seu unânime consentimento e a morte de Estevão foi aprazada para uma semana depois, convidando Saulo os amigos para a triste cerimônia pública a que ele pró­prio haveria de presidir.

 

A morte de Estevão

Apesar das atividades intensas, o moço de Tarso não deixara de comparecer pontualmente em casa de Zacarias, onde, no coração de Abigail, encontrava o neces­sário repouso. Se as lutas em Jerusalém consumiam-lhe as forças, perto da mulher amada parecia recobrá-las, no doce encantamento com que esperava a realização das mais caras esperanças.

Tinha a impressão de que o mundo era um campo de batalha, no qual lhe cabia combater pela lei de Deus; todavia, como o Eterno era justo e generoso, concedera-lhe, na dedicação da sua eleita, um pouso de consolação.

Abigail era o seu mundo sentimental. As lutas de cada dia, as providências rigorosas que lhe impunha o cargo, a rigidez com que deveria tratar as questões confiadas ao seu foro, eram transvazadas no coração da noiva, cheio de amor, de piedade e justiça. Ela acolhia-lhe as idéias com atenção afetuosa, parecia tem­perá-las na ternura da alma fraterna, restituindo-as ao noivo amado em forma de sugestões carinhosas e justas.

Saulo habituara-se a esse precioso intercâmbio de cada dia. Quando lhe faltavam ao coração os brandos consolos da estrada de Jope, sentia-se perturbado pelos próprios sentimentos enérgicos e impulsivos. Abigail corrigia-lhe o espírito. Aparava as arestas do seu ca­ráter violento e rude, cooperava para que se atenuasse o rigor das decisões autoritárias.

Horas a fio o jovem tarsense embevecia-se a ouvi-la, como se os seus senti­mentos de bondade fossem alimento suave para sua alma, que os raciocínios rígidos do mundo costumavam rescaldar. Ele, que não experimentara as aventuras ga­lantes do tempo, cioso de conservar pura a consciência em face da Lei, descobrira na criatura eleita a personi­ficação de todos os sonhos de sua mocidade esperançosa.

Na noite seguinte à memorável sessão do Sinédrio, Saulo de Tarso, abandonando todas as preocupações de ordem imediata, buscou mais ansioso a residência de Za­carias. As fadigas do dia abalavam-lhe as forças. Queria vencer rapidamente a distância, absorver-se no afeto da noiva, olvidar as preocupações que lhe ardiam na mente trabalhada pelos mais desencontrados raciocínios.

A noite já desdobrava o manto de luar sobre a Natureza, quando o jovem doutor transpôs o umbral, sur­preendendo a generosa família com uma saudação deli­cada e afetuosa.

A presença da noiva propiciava-lhe um bálsamo de suave refrigério ao coração. Em breves momentos, pa­recia reconfortar-se. Tomado de bom-humor, agora que as energias interiores descansavam em brandas carícias, narrou entusiasticamente os últimos sucessos. Zacarias, como observador fiel da Lei, dava-lhe razões de sobejo no caso das deliberações assumidas. A personalidade de Estevão foi discutida minuciosamente, O ex-discípulo de Gamaliel, naturalmente, esclareceu o assunto a seu modo, retratando o pregador do “Caminho” como homem inte­ligente e, por isso mesmo, perigoso, em virtude das idéias revolucionárias que o seu verbo fluente propagava.

Abigail e Ruth escutavam silenciosas, enquanto os dois mantinham a palestra animada.

A certa altura, atenta a uma observação direta de Saulo, a jovem murmurou:

— Mas não haveria um meio de modificar, ao menos, a pena arbitrada?

— Que desejarias que fizéssemos? — disse o moço com ênfase. — Não é pouco havermos libertado os três cabeças mais em evidência, levando-se em conta o atre­vimento de suas estranhas prédicas. Quanto a Estevão, tudo se fez para que voltasse ao aprisco, como descenden­te direto das tribos de Israel. Entretanto, a rebeldia foi a sua condenação. Insultou-me publicamente no Sinédrio, espezinhou nossos princípios mais sagrados, criticou as figuras mais representativas do farisaísmo, com ilustra­ções mentirosas e ingratas.

E concluía:

—        De mim para comigo, estou satisfeito. Considero o apedrejamento esperado um dos feitos de mais impor­tância para o futuro da minha carreira. Atestará meu zelo na defesa do nosso patrimônio mais estimável. Pre­cisamos considerar que Israel, nos dias mais sombrios, preferiu a emancipação religiosa à independência política. Poderíamos, porventura, expor nossos valores morais mais preciosos à influência deprimente de um aventureiro qualquer?

O         jovem procurou mudar o curso da conversação, enquanto Ruth mandava servir uma taça de vinho re­confortante.

Antes de partir, o moço tarsense convidou a noiva ao passeio habitual. Nessa noite, a Natureza parecia enfeitar-se de maravilhas. O luar, que destacava todas as flores em tons pálidos, estava saturado de perfumes deliciosos. Os dois, de mãos enlaçadas, no banco rústico, contemplavam o quadro embevecidamente. Saulo expe­rimentava suave conforto.

Desafogava-se. Se Jerusalém lhe obscurecia a mente num torvelinho de preocupações, aquela mansão singela da estrada de Jope parecia des­carregá-lo de todos os desgostos, prodigalizando-lhe ao espírito enorme potencial de consolação.

—        Agora, minha querida, tudo está pronto — dizia solícito. — De hoje a seis dias Dalila virá buscar-te pessoalmente. Conhecerás a cidade e os meus amigos honrarão em tua alma generosa a minha feliz escolha. Estás satisfeita?

—        Muito — murmurava ela com ternura.

— Já organizamos vasto programa recreativo. Quero levar-te a Jericó, onde pessoas de nossas relações nos esperam com imensa alegria. Em Jerusalém far-te-ei conhecer todos os edifícios mais importantes. Ficarás deslumbrada com o Templo e com os tesouros ali encerrados pela dedicação religiosa de nossa raça. Verás a torre dos romanos. Meus conterrâneos que freqüentam a Sinagoga dos cilícios querem oferecer-te valioso mimo.

Abigail extasiava-se, ouvindo-o discorrer. Aquele moço impulsivo e rude a olhos estranhos, mas afetuoso e sensível na intimidade, era justamente o seu ideal, o homem esperado pela sua alma carinhosa.

—        Ninguém poderá oferecer-me um presente mais precioso que o enviado por Deus à minha existência, com o teu coração leal e generoso — murmurou a jovem num franco sorriso.

       — Ganhei muito mais — tornava o doutor de Tarso recebendo a jóia rara do teu afeto, que enriquecerá toda a minha vida. Às vezes, Abigail — continuava com o entusiasmo próprio da juventude sonhadora —, no meu idealismo de vitórias para Jerusalém sobre as grandes cidades do mundo, penso chegar à velhice como um triun­fador cheio de tradições de sabedoria e de glória. Desde que te encontrei, aumentou-se-me a fé no destino; con­solidei minhas esperanças, terei teu concurso na tarefa imensa que se desdobra a meus olhos. Os romanos outorgam aos triunfadores uma coroa triunfal de louros e rosas. Se um dia Jerusalém me conceder a sua coroa triunfal, não a cingirei em minha fronte, para só deixá-la a teus pés como tributo de amor eterno e único.

Ainda hoje — prosseguiu Saulo confiante no fu­turo —, Gamaliel notificou-me que vai afastar-se breve do Sinédrio, para que eu lhe suceda no prestigioso cargo. Aí tens, querida, nossa primeira vitória de maiores pro­porções. Tão logo Dalila volte de Tarso, poderemos mar­car o dia jubiloso das núpcias. Presumo que, em te tendo sempre a meu lado, corrigirei meus impulsos, a tarefa ser-me-á mais leve, a existência mais fácil e mais ditosa. O lar é uma bênção. E nós teremos esse lar.

—        Nunca me senti tão venturosa — exclamou a jovem, com lágrimas de alegria.

Ele acariciou-lhe as mãos e, como desejava que ela compartilhasse dos seus sentimentos mais íntimos, acres­centou:

—        Chegarás conosco à cidade, justamente na vés­pera da morte do pregador revolucionário. O ato, como de justiça, obedecerá ao cerimonial estabelecido pelos nossos costumes e eu pretendo que assistas a ele em minha companhia.

—        Mas, por quê? — perguntou ela estremecendo li­geiramente.

—        Porque lá encontraremos nossos amigos mais eminentes e desejo valer-me da oportunidade para apre­sentar-te, indiretamente, a todos eles.

—        Não haveria um meio de me poupares a esse es­petáculo? — insistiu timidamente. — A morte de meu pai, no suplício, diante da soldadesca brutal, jamais me saiu da mente.

Saulo não dissimulou a contrariedade e respondeu:

—        Porventura não estarás compreendendo? O caso de Estevão é muito diferente. Trata-se de um homem sem significação para nós outros, que se arvorou em reformador sedicioso e insolente. Sua personalidade re­presenta, de fato, a continuidade do desrespeito e do insulto à Lei de Moisés, iniciados em movimento de vastas proporções por um carpinteiro alucinado, de Na­zaré. Achas, então, que se não deve punir o ladrão que assalta uma residência? Não merecerão castigo os que blasfemam no santuário do Eterno?

A jovem, compreendendo que desagradaria ao noivo se lhe demonstrasse divergência de opinião, acrescentou:

—        Vejo que tens muita razão. Não devo discutir os teus conceitos, sábios e justos. Aliás, tenho mesmo a intenção de conquistar a amizade dos teus amigos do Sinédrio, pois não perco a esperança de sua proteção para o caso de Jeziel, logo que se ofereça uma oportu­nidade para novas pesquisas na Acaia. Mas ouve, Saulo:

se permitires, irei quando a cerimônia estiver a findar. Está dito?

Notando a boa-vontade conciliatória, o moço tar­sense abriu o semblante num belo sorriso de satisfação.

— Sim, ficamos de acordo. Espero, porém, que assistas a tudo com serenidade, segura de que eu só poderia tomar encargos justos e decisões estimáveis no cumprimento do dever. É lamentável que o prisioneiro se haja mostrado recalcitrante a ponto de me compelir a providências extremas. No entanto, podes crer que tudo fiz por evitar o derradeiro recurso.

Empreguei todos os processos conciliatórios para dissuadi-lo de tão perigosas ilusões, mas sua conduta foi de tal modo irritante que toda transigência se tornou praticamente impossível.

Trocaram-se ainda, por longo tempo, impressões afe­tuosas que a noite amiga guardava, solicitamente, sob o manto luminoso das estrelas. Eram juras caridosas de um amor imortal, ante a bênção de Deus, tomada como objeto mais alto de seus santificados pensamentos. projetos e esperanças de futuro.

Era tarde quando Saulo se despediu, regressando a Jerusalém, de alma feliz.

Daí a dias, Abigail, em companhia do noivo e da irmã, demandou a cidade, cujo perfil interessante apre­sentava novos quadros para os seus olhos. A casa de Dalila, na mesma noite de sua chegada, encheu-se de amigos que iam levar à escolhida de Saulo a homenagem da sua admiração; e a jovem de Corinto a todos seduzia por seus dotes naturais, aliados à sólida e bem cuidada formação de espírito. Sua palavra, cheia de ternura, parecia distanciar-se profundamente das futilidades que caracterizavam a mocidade da época. Sabia aplicar os mais delicados conceitos, no trato de todos os assuntos a que era convocada, tirando formosas ilações da Lei e dos Escritos Sagrados, para definir a posição da mulher em face dos mais íntimos deveres na vida familiar. O doutor de Tarso sentia-se orgulhoso, ao notar a admi­ração geral em torno de sua personalidade vibrante e carinhosa. Abigail, sintetizando o seu maior ideal, en­chia-lhe o coração de maravilhosas promessas. A sur­presa dos amigos, que o felicitavam com o olhar, punha-lhe na alma ardente um júbilo novo.

O dia seguinte rompeu claro e lindo. Ao sol rútilo de Jerusalém, Saulo despediu-se da noiva amada, por atender, ainda cedo, aos trabalhos do Sinédrio.

—    Então, até logo, no Templo — disse carinhosa­mente.

—    No Templo? — perguntou Dalila admirada, abra­çando-se a Abigail.

—        Sim — explicou solícito —, Abigail irá assistir à parte final da punição de Estevão.

—        Mas como? — interrogou ainda a jovem senho­ra. — Mulheres na cerimônia?

—        A lapidação se dará nas proximidades do altar dos holocaustos e não nos átrios sagrados — esclareceu. A meu ver, não haverá impedimento de representações femininas, e ainda que isso constitua resolução de última hora, a critério dos sacerdotes, a medida não poderá atingir decisão pessoal de minha parte e eu desejo que Abigail participe do meu primeiro triunfo na defesa dos nossos princípios soberanos.

Ambas sorriram, venturosas, observando-lhe as dis­posições excelentes.

—        Em último recurso, Saulo — disse Abigail num gesto de tranqüilidade e ternura —, não deixes de ofere­cer ao condenado uma derradeira oportunidade para sal­var-se da morte.

Após dois meses de cárcere, é possível que tenha refundido os sentimentos mais profundos. Pergunta-lhe, mais uma vez, se insiste em insultar a Lei.

O         moço tarsense enviou-lhe um olhar satisfeito e reconhecido, jubiloso por verificar tanta grandeza de coração, e acentuou:

       - Assim farei.

       Nesse dia, desde muito cedo, o mais alto Tribunal de Israel apresentava desusado movimento. A execução do pregador do “Caminho” constituía objeto de largos co­mentários. Sobretudo os fariseus faziam questão de todos os informes. Ninguém queria perder o angustioso espe­táculo. A igreja modesta de Simão Pedro, entretanto, não ousou aproximar-se para qualquer indagação. Saulo, como perseguidor declarado e usando das prerrogativas da investidura legal, mandara anunciar que nenhum adepto do “Caminho” poderia assistir à execução a efeti­var-se num dos grandes pátios do santuário. Longas filas de soldados foram dispostas na grande praça, para dispersar quaisquer grupos de mendigos que se formas­sem com intuitos desconhecidos e, desde as primeiras horas da manhã, numerosos pedintes de Jerusalém eram corridos das imediações a golpes de chanfalho.

Depois do meio-dia, autoridades e curiosos reuniam-se, ávidos de sensação, no recinto do Sinédrio, em aba­fado vozerio. Aguardava-se o sentenciado, que chegou, finalmente, cercado de escolta armada, como se fora um malfeitor comum.

Estevão apresentava-se bastante desfigurado, em­bora o semblante não traisse a peculiar serenidade. O passo tardio, o cansaço extremo, as equimoses das mãos e dos pés, patenteavam os pesados tormentos físicos que lhe eram infligidos à sombra do calabouço. A barba crescida alterava-lhe o aspecto fisionômico, todavia, os olhos tinham a mesma fulgurância de cristalina bondade.

Em meio da curiosidade geral, Saulo de Tarso o encarou satisfeito. Estevão pagaria, afinal, as incom­preensões e os insultos.

No instante aprazado, o doutor inflexível fez a lei­tura do libelo. Antes, porém, de pronunciar a sentença última, fiel ao que prometera, mandou que os soldados empurrassem o condenado até à sua tribuna. Enfrentan­do o pregador do Evangelho, sem qualquer expressão de piedade, interrogou com aspereza:

— Estarias disposto, agora, a jurar contra o car­pinteiro Nazareno? Lembra-te que é a última oportuni­dade de conservares a vida.

Tais palavras, pronunciadas mecanicamente, soaram de modo estranho aos ouvidos do moço de Corinto, que as recebeu, na alma sensível e generosa, como novos dardos de ironia.

— Não insulteis o Salvador! — disse o arauto do Cristo, com desassombro. — Nada no mundo me fará renunciar à sua tutela divina! Morrer por Jesus significa uma glória, quando sabemos que ele se imolou na cruz pela Humanidade inteira!

Mas, uma torrente de impropérios cortava-lhe a pa­lavra.

— Basta! Apedrejemo-lo quanto antes! Morte ao imundo! Abaixo o feiticeiro! Blasfemo!... Caluniador!

A gritaria tomava proporções assustadoras. Alguns fariseus mais irritados, burlando os guardas, aproxima­ram-se de Estevão tentando arrastá-lo sem compaixão. Entretanto, ao primeiro puxão na gola rota, um pedaço da túnica rafada ficava-lhes nas mãos. Foi necessário a intervenção da força armada para que o moço de Corinto não fosse estraçalhado, ali mesmo, pela multidão furiosa e delirante. Saulo, em altas vozes, ordenou a intervenção dos soldados.

Queria a execução do discípulo do Evangelho, mas, com todo o cerimonial previsto -

Estevão tinha agora o rosto enrubescido, envergo­nhado. Seminu, foi auxiliado por um legionário romano a recompor os sobejos da veste em frangalhos, acima dos rins, para não ficar inteiramente nu. Com a mão trêmula, pelos maus tratos recebidos, procurava limpar a saliva que os mais exaltados lhe haviam esputado em pleno rosto - Forte pancada no ombro causava-lhe intensa dor no braço todo. Compreendeu que lhe chegavam os últimos instantes de vida. A humilhação doía-lhe fundo. Mas recordou as descrições de Simão a respeito de Jesus, no derradeiro transe. Em frente de Herodes Antipas, o Cristo sofrera dos israelitas idênticas ironias. Fora açoitado, ridicularizado, ferido. Quase nu, suportara todos os agravos sem uma queixa, sem uma expressão menos digna. Ele que amara os infelizes, que trabalhara por fundar uma doutrina de concórdia e de amor para todos os homens, que abençoara os mais desgraçados e os acolhera com carinho, recebera o galardão da cruz em suplícios imensuráveis. E Estevão pensou: — “Quem sou eu e quem era o Cristo ?“ Essa íntima interrogação propiciava-lhe certo consolo. O Príncipe da Paz fora arrastado pelas ruas de Jerusalém, sob o escárnio das maiores injúrias, e era o Messias esperado, o Ungido de Deus!

Por que, sendo ele homem falível, portador de numerosas fraquezas, haveria de hesitar no momento do testemunho? E, com o pranto a escorrer-Lhe no rosto lacerado, escutava a voz cariciosa do Mestre no coração:

“Todo aquele que desejar participar do meu reino, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga os meus passos”. Era preciso negar-se para aceitar o sacrifício proveitoso. Ao fim de todos os martírios, deveria encontrar o amor glorioso de Jesus, com a beleza da sua ternura imortal. O pregador humilhado e ferido recordou o passado de trabalhos e esperanças.

Parecia-lhe rever a infância sau­dosa, na qual o zelo materno lhe incutira os fundamen­tos da fé confortadora; depois, as nobres aspirações da mocidade, a dedicação paterna, o amor da irmãzinha que as circunstâncias do destino lhe haviam arrebatado. Ao pensar em Abigail, experimentou certa angústia no cora­ção. Agora, que deveria enfrentar a morte, desejava revê-la para as últimas recomendações. Relembrou a derradeira noite em que haviam permutado tantas im­pressões de ternura, tantas promessas fraternais, na lôbrega prisão de Corinto.

Apesar dos movimentos reno­vadores da fé, de cujos trabalhos compartilhava ativa­mente em Jerusalém, jamais pudera esquecer o dever de procurá-la, fosse onde fosse. Enquanto em derredor se multiplicavam impropérios no turbilhão de gritos e amea­ças revoltantes, o sentenciado chorava com as suas re­cordações. Socorrendo-se das promessas do Cristo no Evangelho, experimentava brando alívio. A idéia de que a irmãzinha ficaria no mundo, entregue a Jesus, suavi­zava-lhe as angústias do coração.

Mal não saíra de suas dolorosas reminiscências, ouviu a voz imperiosa de Saulo dirigindo-se aos guardas:

— Algemai-o novamente, tudo está consumado, si­gamos para o átrio.

O         discípulo de Simão Pedro, estendendo os pulsos para receber as algemas, sofreu pancadas tão fortes de um soldado inescrupuloso, que dos pulsos feridos co­meçou a jorrar muito sangue.

Estevão, porém, não fez o menor gesto de resis­tência. De quando em quando, levantava os olhos como se implorasse os recursos do Céu para os seus minutos supremos. Não obstante os apupos e as chagas que o dilaceravam, experimentava uma paz espiritual desconhecida. Todos aqueles sofrimentos do cerimonial eram pelo Cristo. Aquela hora era a sua oportunidade divina. O Mestre de Nazaré havia convocado o seu coração fiel ao público testemunho dos valores espirituais da sua gloriosa doutrina. Confiante, raciocinava: — “Se o Mes­sias aceitara a morte infamante do Calvário para salvar todos os homens, não seria uma honra dar a vida por Ele? “Seu coração, sempre ávido de dar testemunho ao Senhor, desde que lhe conhecera o Evangelho de reden­ção. não deveria rejubilar-se com o ensejo de oferecer-lhe a própria vida? Entretanto, a ordem de caminhar arran­cou-o dos mais elevados pensamentos.

O generoso pregador do “Caminho” hesitava nos passos cambaleantes, mas tinha sereno e firme o olhar, revelando desassombro nos derradeiros lances do tes­temunho.

Naquelas primeiras horas da tarde, o sol de Jeru­salém era um braseiro ardente. Não obstante o calor insuportável, a massa deslocou-se com profundo inte­resse. Tratava-se do primeiro processo concernente às atividades do “Caminho”, após a morte do seu funda­dor. Destacando-se de todas as correntes judaicas ali presentes, em penhor de prestígio à Lei de Moisés, os fariseus faziam grande alarde do feito. Ladeando o condenado, faziam questão de atirar-lhe em rosto as mais pesadas injúrias.

Ele, porém, embora evidenciasse profunda tristeza, caminhava seminu, sereno, imperturbável.

A sala de reuniões do Sinédrio não distava muito do átrio do Templo, onde se realizaria a macabra ceri­mônia. Apenas alguns metros e a caminhada terminava, justamente no local onde se erguia o enorme altar dos holocaustos.

Tudo estava preparado a caráter, como Saulo dei­xara perceber em seus propósitos.

Ao fundo do pátio espaçoso, Estevão foi atado a um tronco, para que o apedrejamento se efetuasse na hora precisa.

Os executores seriam os representantes das diver­sas sinagogas da cidade, de vez que era função honrosa atribuida a quantos estivessem em condições de operar na defesa de Moisés e de seus princípios. Cada sinagoga indicara o seu delegado e, ao iniciar a cerimônia, como chefe do movimento, Saulo recebia um por um, junto da vítima, guardando nas mãos, de acordo com a prag­mática, os mantos brilhantes, enfeitados de púrpura.

Mais uma ordem do moço tarsense e a execução começou entre gargalhadas. Cada verdugo mirava friamente o ponto preferido, esforçando-se para tirar maior partido.

Risos gerais seguiam-se a cada golpe.

Poupemos-lhe a cabeça — dizia um dos mais exal­tados —, a fim de que o espetáculo não perca a inten­sidade e o interesse.

Cada expressão do judaísmo acompanhava o ver­dugo indicado pelos maiorais da sinagoga, com atenção e entusiasmo, aos berros de “Morra o traidor! o feiti­ceiro!. .

— Fere no coração, em nome dos cilícios! — excla­mava alguém, do meio da turba.

— Separa-lhe a perna pelos idumeus! — secundava outra voz impudente.

Mais ou menos afastado da turba, seguindo de perto os movimentos do condenado, Saulo de Tarso apreciava a vibração popular, satisfeito e confortado. De qualquer maneira, a morte do pregador do Cristo representava o seu primeiro grande triunfo na conquista das atenções de Jerusalém e de suas prestigiosas corporações polí­ticas. Naquela hora em que focalizava tantas aclama­ções do povo de sua raça, orgulhava-se com a decisão que o levara a perseguir o “Caminho”, sem consideração e sem tréguas. Aquela tranqüilidade de Estevão, no entanto, não deixava de o impressionar bem no imo do coração voluntarioso e inflexível. Onde poderia ele haurir tal serenidade? Sob as pedras que o alvejavam. aqueles olhos encaravam os algozes sem pestanejar, sem revelar temor nem turbação!

De fato, amarrado de joelhos ao tronco do suplício, o moço de Corinto guardava impressionante caracterís­tica de paz nos olhos translúcidos, de onde as lágrimas silenciosas corriam abundantes, O peito descoberto era uma chaga sangrenta. As vestes esfrangalhadas cola­vam-se ao corpo, empastadas de suor e sangue.

O mártir do “Caminho” sentia-se amparado por forças poderosas e intangíveis. A cada novo golpe, sentia recrudescer os padecimentos infinitos que lhe azorraga­vam o corpo macerado, mas, no íntimo, guardava a im­pressão de uma lenidade sublime. O coração batia des­compassadamente. O tórax estava coberto de feridas profundas, as costelas fraturadas.

Nesta hora suprema, recordava os mínimos laços de fé que o prendiam a uma vida mais alta. Lembrou todas as orações prediletas da infância. Fazia o possí­vel por fixar na retina o quadro da morte do pai supli­ciado e incompreendido. Íntimamente, repetia o Salmo 23º de David, qual o fazia junto da irmã, nas situações que pareciam insuperáveis. “O Senhor é meu pastor. Nada me faltará...” As expressões dos Escritos Sagra­dos, como as promessas do Cristo no Evangelho, esta­vam-lhe no âmago do coração. O corpo quebrantava-se no tormento, mas o espírito estava tranqüilo e espe­rançoso.

Agora, tinha a impressão de que duas mãos cari­ciosas passavam de leve sobre as chagas doloridas, pro­porcionando-lhe branda sensação de alívio. Sem qual­quer receio, percebeu que lhe havia chegado o suor da agonia.

Dedicados amigos, do plano espiritual, rodeavam o mártir nos seus minutos supremos.

No auge das dores físicas, como se houvesse transposto infinitos abismos de percepção, o moço de Corinto notou que alguma coisa se lhe havia rasgado na alma ansiosa. Seus olhos pareciam mergulhar em quadros gloriosos de outra vida. A legião de emissários de Jesus, que o cercava carinhosa­mente, figurou-se-lhe a corte celestial. No caminho de luz desdobrado à sua frente, reconheceu que alguém se aproximava abrindo-lhe os braços generosos. Pelas descrições que ouvira de Pedro, percebeu que contemplava o próprio Mestre em toda a resplendência de suas glórias divinas. Saulo observou que os olhos do condenado estavam estáticos e fulgurantes. Foi quando o herói cristão, movendo os lábios, exclamou em alta voz:

— Eis que vejo os céus abertos e o Cristo ressus­citado na grandeza de Deus!...

Viram, então, que duas mulheres jovens aproxima­vam-se do perseguidor com gestos íntimos. Dalila en­tregou Abigail ao irmão, despedindo-se logo para atender ao chamado de outra amiga. A noiva terna cingia uma túnica à moda grega, que mais lhe realçava o formoso rosto. Fosse pela dolorosa cena em curso, ou pela pre­sença da mulher amada, percebia-se que Saulo estava um tanto perplexo e sensibilizado. Dir-se-ia que a cora­gem indomável de Estevão o levara a considerar a tran­qüilidade desconhecida que deveria reinar no espírito do mártir.

Em face da gritaria que a rodeava e notando a miserável situação da vítima, a jovem mal pôde conter um grito de espanto. Que homem era aquele, atado ao tronco do suplício? Aquele peito arfante, empastado de sangue, aqueles cabelos, aquele rosto pálido que a barba crescida desfigurava, não seriam de seu irmão? Ah! como falar das ansiedades imensas na surpresa im­prevista de um minuto? Abigail tremia. Seus olhos aflitos acompanhavam os menores movimentos do herói, que parecia indiferente, no êxtase que o absorvia. Em­balde Saulo chamava-lhe a atenção, discretamente, de modo a poupá-la de penosas impressões. A moça parecia nada ver além do sentenciado a esvair-se no sangue do martírio. Lembrava-se agora...

Em se afastando do calabouço, depois da morte do pai, foi assim mesmo que deixara Jeziel na posição do suplício. O tronco execrável, as algemas impiedosas e o pobrezinho de joelhos! Tinha ímpetos de atirar-se à frente dos algozes, esclarecer a situação, saber a identidade daquele homem.

Nesse instante, ignorando-se alvo de tão singular atenção, o pregador do “Caminho”  saiu de sua impres­sionante imobilidade. Vendo que Jesus contemplava, me­lancolicamente, a figura do doutor de Tarso, como a lamentar seus condenáveis desvios, o discípulo de Simão experimentou pelo verdugo sincera amizade no coração. Ele conhecia o Cristo e Saulo não.

Assomado de frater­nidade real e querendo defender o perseguidor, exclamou de modo impressionante:

—        Senhor, não lhe imputes este pecado!...

Isso dito, voltou os olhos para fixá-los no verdugo, amorosamente. Eis, porém, que divisou junto dele a figura da irmã, trajada como nos dias de júbilo, na casa paterna. Era ela, a irmãzinha amada, por cujo afeto tantas vezes lhe palpitara o coração, de saudade e de esperança. Como explicar sua presença? Quem sabe havia sido também levada ao reino do Mestre e regres­sava com ele, em espírito, para trazer-lhe as boas-vindas, de um mundo melhor? Quis bradar sua alegria infinita, atraí-la, ouvir-lhe a voz nos cânticos de David, morrer embalado pelo seu carinho; mas a garganta já não tim­brava. A emoção dominara-o na hora extrema. Sentiu que o Mestre de Nazaré acariciava-lhe a fronte, onde a última pedrada abrira uma flor de sangue. Ouvia, muito longe, vozes argentinas que cantavam hinos de amor sobre os gloriosos motivos do Sermão da Montanha. Incapaz de resistir por mais tempo ao suplício, o discípulo do Evangelho sentia-se desfalecer.

Escutando as expressões do condenado e recebendo-lhe o olhar fulgurante e límpido, Abigail não pôde dis­simular a angustiosa surpresa.

—        Saulo! Saulo!... É meu irmão — exclamou ater­radamente.

—        Que dizes? — gaguejou baixinho o doutor de Tarso arregalando os olhos. — Não pode ser! Enlouque­ceste?

—        Não, não, é ele; é ele! — repetia tomada de extrema palidez.

—        É Jeziel — insistia Abigail assombrada —, que­rido; concede-me um minuto, deixa-me falar ao mori­bundo apenas um minuto.

—        Impossível! — replicou o moço, contrafeito.

—        Saulo, pela Lei de Moisés, pelo amor de nossos pais, atende — exclamava torcendo as mãos.

       O ex-discípulo de Gamaliel não acreditava na pos­sibilidade de semelhante coincidência.

       Além do mais, havia a diferença do nome. Convinha esclarecer esse ponto, antes de tudo.

       Certo, a falsa impressão de Abi­gail se desfaria ao primeiro contacto direto com o agonizante. Sua índole, sensível e afetuosa, justificava o que a seu ver era um absurdo.

       Conjugando essas reflexões de um segundo, falou à noiva, com austeridade:

— Irei contigo identificar o moribundo, mas, até que o possamos fazer, cala as tuas impressões... Nem uma palavra, ouviste? iË necessário não esquecer a res­peitabilidade do local em que te encontras!

Logo após, chamava um funcionário de alta cate­goria, secamente:

— Manda levar o cadáver para o gabinete dos sa­cerdotes.

— Senhor — respondeu o outro respeitoso —, o condenado ainda não está morto.

       — Não importa, vai assim mesmo, pois arrancar-lhe-ei a confissão do arrependimento na hora extrema.

A determinação foi cumprida sem mais demora, enquanto Saulo mandava servir, de modo geral, aos amigos e admiradores, várias ânforas de vinho delicioso, por comemorarem o seu primeiro triunfo. Depois, cenho carregado, apreensivo, esgueirou-se quase sorrateiramente até à sala reservada aos sacerdotes de Jerusalém, em companhia da noiva.

Atravessando os grupos que o saudavam com fre­néticas aclamações, o moço tarsense parecia alheado de si mesmo. Conduzia Abigail pelo braço, delicadamente, mas não lhe dirigia palavra. A surpresa emudecera-o. E se Estevão fosse, de fato, aquele Jeziel que aguarda­vam com tamanha ansiedade? Absorvidos em angustio­sas reflexões, penetraram na câmara solitária. O jovem doutor ordenou a retirada dos auxiliares, fechou cuida­dosamente a porta.

Abigail aproximou-se do irmão ensangüentado, com infinita ternura. E, como se sentisse chamado à vida por uma força poderosa e invencível, ambos notaram que a vítima movia a cabeça sangrenta. Evidenciando o penoso esforço da derradeira agonia, Estevão mur­murou:

—        Abigail!...

Aquela voz era quase um sopro, mas o olhar estava calmo, límpido. Ouvindo-lhe a expressão vacilante e arrastada, o jovem tarsense recuou tomado de espanto. Que significava tudo aquilo? Não poderia duvidar. A vítima de sua perseguição implacável era o irmão bem-amado da mulher escolhida. Que mecanismo do destino engendrara semelhante situação, que lhe havia de amar­gurar toda a vida? Onde estava Deus, que não o inspi­rara no dédalo de circunstâncias que o levaram até àquele irremediável, cruel desfecho? Sentiu-se possuído de um pesar sem limites. Ele, que elegera Abigail o anjo tutelar da existência, seria obrigado a renunciar a esse amor para sempre. O orgulho de homem não lhe permitiria desposar a irmã do suposto inimigo, confes­sado e julgado reles criminoso. Aturdido, deixou-se ali ficar, como se força incoercível o chumbasse ao solo, transformando-o em objeto de insuportáveis ironias.

—        Jeziel! — exclamou Abigail osculando e regando de lágrimas a fronte do moribundo — como te vejo eu!... Parece que o suplício te durou desde o dia em que nos separamos!... E soluçava...

—        Estou bem... — disse o discípulo de Jesus, fa­zendo o possível por mover a destra quebrada e deixando perceber o desejo de acariciar-lhe os cabelos, como nos dias da meninice e da primeira juventude. — Não cho­res!... Eu estou com o Cristo!...

—        Quem é o Cristo? — murmurou a jovem — Por que te chamam Estevão? Como te modificaram assim?

—        Jesus... é o nosso Salvador... — explicava o agonizante, no propósito de não perder os minutos que se escoavam céleres. — E, agora, chamam-me Estevão... porque um romano generoso me libertou... mas pediu... absoluto segredo. Perdoa-me... Foi por gratidão que obedeci ao conselho. Ninguém será reconhecido a Deus se não mostrar agradecimento aos homens...

Vendo que a irmã prosseguia em soluços, continuou:

—        Sei que vou morrer... mas a alma é imortal.. Sinto deixar-te... quando mal torno a ver-te, mas hei de ajudar-te do lugar em que estiver.

—        Ouve, Jeziel — exclamou a irmã num desabafo —, que te ensinou esse Jesus para te levar a um fim tão doloroso? Quem assim abandona um servo leal, não será antes um senhor cruel?

O         moribundo pareceu admoestá-la com o olhar.

—        Não penses dessa maneira — prosseguiu com dificuldade. — Jesus é justo e misericordioso... pro­meteu estar conosco até à consumação dos séculos... mais tarde compreenderás; a mim, ensinou-me amar os próprios verdugos...

Ela abraçava-o, carinhosa, desfeita em lágrimas abundantes. Depois de uma pausa em que a vítima se revelava nos derradeiros instantes da vida material, viu-se que Estevão se agitava em esforços supremos.

—        Com quem te deixarei?

—        Este é meu noivo — esclareceu a jovem apon­tando o moço de Tarso, que parecia petrificado.

O         moribundo contemplou-o sem ódio e acentuou:

—        Cristo os abençoe... Não tenho no teu noivo um inimigo, tenho um irmão... Saulo deve ser bom e generoso; defendeu Moisés até ao fim... Quando conhe­cer a Jesus, servi-lo-á com o mesmo fervor... Sê para ele a companheira amorosa e fiel...

Mas a voz do pregador do “Caminho” estava agora rouca e quase imperceptível. Nas vascas da morte, con­templava Abigail fraternalmente enternecido.

Ouvindo-lhe as últimas frases, o doutor de Tarso fizera-se lívido. Queria ser odiado, maldito. A compaixão de Estevão, fruto de uma paz que ele, Saulo, jamais conhecera no fastígio das posições mundanas, impressio­nava-o fundamente. Entretanto, sem saber por quê, a resignação e a doçura do agonizante assaltavam-lhe o coração enrijecido. Trabalhava, porém, intimamente, para não se comover com a cena dolorosa. Não se dobraria por uma questão de sentimentalismo. Abominaria aquele Cristo, que parecia requisitá-lo em toda parte, a ponto de colocar-se entre ele e a mulher adorada. O cérebro atormentado do futuro rabino suportava a pressão de mil fogos. Desprezara o orgulho de família e elegera Abigail para companheira de lutas, embora lhe não co­nhecesse os ascendentes familiares. Amava-a pelos laços da alma, descobrira no seu delicado coração feminino tudo quanto havia sonhado nas cogitações de ordem tem­poral. Ela sintetizava as suas esperanças de moço; era o penhor do seu destino, representava a resposta de Deus aos apelos da sua juventude idealista. Agora, abrira-se entre ambos um abismo profundo. Irmã de Estevão! Ninguém ousara afrontar-lhe a autoridade na vida, a não ser aquele ardoroso pregador do “Caminho”, cujas idéias jamais se poderiam casar com as suas. De­testava aquele rapaz apaixonado pelo ideal exótico de um carpinteiro, e tinha culminado nos propósitos de vin­gança. Se desposasse Abigail, jamais seriam felizes. Ele seria o verdugo, ela a vítima. Além disso, sua família, aferrada ao rigorismo das velhas tradições, não poderia tolerar a união, depois de conhecidas as circunstâncias.

Levou as mãos ao peito, dominado por angustioso desalento.

Em pranto, Abigail acompanhava a agonia dolorosa do irmão, cujos derradeiros minutos se escoavam len­tamente. Penosa emoção apossara-se de todas as suas energias. Na dor que a dilacerava nas fibras mais sensíveis, parecia não ver o noivo que lhe seguia os me­nores movimentos, entre surpreso e estarrecido. Com muito cuidado, a jovem sustinha a fronte do moribundo, depois de haver sentado para conchegá-lo carinhosa­mente.

Observando que o irmão lhe lançava o último olhar, exclamou angustiada:

— Jeziel, não te vás... Fica conosco! Nunca mais nos separaremos!...

Ele, quase a expirar, ciciava:

— A morte não separa... os que se amam...

E, como se houvera lembrado algo de muito grato ao coração, arregalou os olhos desmesuradamente. numa expressão de imenso júbilo:

— Como no Salmo... de David... — dizia arrasta­damente — podemos... dizer... que o amor.. e a misericórdia... seguiram... todos os dias... de nossa vida... (1)

A jovem escutava-lhe as derradeiras palavras, como­vidíssima. Enxugava-lhe o suor sanguinolento do rosto, que se iluminava de uma serenidade superior.

—        Abigail... — murmurava ainda como num so­pro —, vou-me em paz... Quisera ouvir-te na prece... dos aflitos e agonizantes...

Ela recordou os últimos momentos do suplício do genitor, no dia inesquecível da separação nos calabouços de Corinto. De relance, compreendeu que, ali, outras forças se encontravam em jogo. Não mais Licínio Minú­cio e os sequazes cruéis, mas o próprio noivo transfor­mado em verdugo, por um terrível engano. Afagou com mais carinho a cabeça sangrenta. Conchegou o mo­ribundo ao coração como se fosse uma adorável criança. Então, embora rígido e inquebrantável na aparência, Saulo de Tarso observou, mais nitidamente, o quadro que nunca mais lhe sairia da imaginação. Guardando o moribundo no regaço fraterno, a jovem elevou o olhar para o alto, mostrando as lágrimas que lhe caíam pun­gentes. Não cantava, mas a oração lhe saía dos lábios como a súplica natural do seu espírito a um pai amoroso que estivesse invisível:

 

Senhor Deus, pai dos que chorara,

Dos tristes, dos oprimidos,

Fortaleza dos vencidos,

Consolo de toda a dor,

Embora a miséria amarga

Dos prantos de nosso erro,

Deste mundo de desterro,

Clamamos por vosso amor!

 

Nas aflições do caminho,

Na noite mais tormentosa,

Vossa fonte generosa

É o bem que não secará...

Sois, em tudo, a luz eterna

Da alegria e da bonança

Nossa porta de esperança

Que nunca se fechará.

 

Quando tudo nos despreza

No mundo da iniqüidade

Quando vem a tempestade

Sobre as flores da ilusão!

Ó Pai, sois a luz divina,

O         cântico da certeza,

Vencendo toda aspereza,

Vencendo toda aflição.

 

No dia da nossa morte,

No abandono ou no tormento,

Trazei-nos o esquecimento

Da sombra, da dor, do mal...

Que nos últimos instantes,

Sintamos a luz da vida

Renovada e redimida

Na paz ditosa e imortal.

 

(1) Salmo 23º, de David.

 

Terminada a prece, Abigail tinha o rosto orvalhado de pranto. Sob a carícia suave de suas mãos, Jeziel aquietara-se. Palidez de neve caracterizava-lhe a face cadavérica, aliada à profunda serenidade fisionômica. Saulo compreendeu que ele estava morto. E enquanto a jovem de Corinto se levantava, cuidadosamente, como se o cadáver do irmão requisitasse toda a ternura do seu espírito bondoso, o moço tarsense aproximou-se de cenho carregado e falou com austeridade:

— Abigail, tudo está consumado e tudo terminou, também, entre nós.

A pobre criatura voltou-se com assombro. Então não lhe bastavam os golpes recebidos? Seria possível que o noivo amado não tivesse uma palavra de con­ciliação generosa naquela hora difícil da sua vida? Receberia­ a humilhação mais fria com a morte de Jeziel e ainda por cima o abandono? Consternada por tudo que viera encontrar em Jerusalém, entendeu que precisava utilizar todas as energias, para não cair nas provas ríspidas que lhe haviam sido reservadas. E viu logo que, no orgulho de Saulo, não encontraria consola­ção. Num momento, chegou às mais latas conclusões, quanto ao papel que lhe competia em tão embaraçosas conjunturas. Sem recorrer à sensibilidade feminina, co­brou ânimo e falou com dignidade e nobreza:

—        Tudo terminado entre nós, por quê? O sofrimento não deveria escorraçar o amor sincero.

—        Não me compreendes? — replicou o orgulhoso rapaz... — Nossa união tornou-se inexeqüível. Não poderei desposar a irmã de um inimigo de maldita me­mória, para mim. Fui infeliz escolhendo esta ocasião para tua visita a Jerusalém. Sinto-me envergonhado não só diante da mulher com quem nunca mais poderei unir-me pelo matrimônio, como perante os parentes e amigos, pela situação amarga que as circunstâncias interpuseram no meu caminho...

Abigail estava pálida e penosamente surpreendida.

—        Saulo... Saulo... não te envergonhes perante meu coração. Jeziel morreu estimando-te.

Seu cadáver nos escuta — acentuava com doloroso acento. — Não posso obrigar-te a desposar-me, mas não transformes nossa afeição em ódio surdo... Sê meu amigo!... Ser-te-ei eternamente grata pelos meses de ventura que me deste. Voltarei amanhã para casa de Ruth...

Não te envergonharás de mim! A ninguém direi que Jeziel era meu irmão, nem mesmo a Zacarias! Não quero que algum amigo nosso te considere um carrasco.

Observando-a naquela generosidade humilde, o moço de Tarso teve ímpetos de estreitá-la ao coração, como se o fizera a uma criança. Quis avançar, apertá-la con­tra o peito, cobrir-lhe de beijos a fronte bondosa e inocente. Súbito, porém, vieram-lhe à mente os seus títulos e atribuições; via Jerusalém revoltada, tisnando­-lhe a reputação de amargas ironias. O futuro rabino não poderia ser vencido; o doutor da Lei rígida, e implacável, devia sufocar o homem para sempre.

Mostrando-se impassível, replicou em tom áspero:

—        Aceito o teu silêncio em torno das lamentáveis ocorrências deste dia; voltarás amanhã para casa de Ruth, mas não deves esperar a continuação das minhas visitas, nem mesmo por cortesia injustificável, porque, na sinceridade dos de nossa raça, os que não são amigos são inimigos.

A irmã de Jeziel recebia aquelas explicações com espanto profundo.

—        Então, abandonas-me inteiramente, assim? —perguntou entre lágrimas.

—        Não estás desamparada — murmurou inflexivel­mente —, tens os teus amigos da estrada de Jope.

—        Mas, afinal, por que odiaste tanto a meu irmão? Ele foi sempre bondoso.. Em Corinto nunca ofendeu a ninguém.

Era pregador do malfadado carpinteiro de Na­zaré — esclareceu, contrafeito e ríspido —; além disso, humilhou-se diante da cidade inteira.

Abigail, compelida pela severidade das respostas, calou-se inteiramente. Que poder teria o Nazareno para atrair tantas dedicações e provocar tantos ódios? Até ali, não se interessara pela figura do famoso carpinteiro, que morrera na cruz, como malfeitor; mas o irmão lhe dissera ter encontrado nele o Messias. Para seduzir um caráter cristalino, como Jeziel, o Cristo não poderia ser um homem vulgar. Lembrava o passado do irmão para considerar que, no caso da rebeldia paterna, conseguira manter-se acima dos próprios laços do sangue para admoestar o genitor, amorosamente. Se tivera forças para analisar os atos paternos com o preciso discernimento, era preciso que aquele Jesus fosse muito grande, para que a ele se consagrasse, oferecendo-lhe a própria vida ao recobrar a liberdade. Jeziel, a seu ver, não se enganaria. Conhecendo-lhe a índole, do berço, não era possível que se deixasse iludir em suas convicções reli­giosas. Sentia-se, agora, atraida para aquele Jesus desconhecido­ e odiado injustamente. Ele ensinara o irmão a bem-querer os próprios verdugos. Que lhe não reser­varia, pois, ao seu coração sedento de carinho e de paz? As últimas palavras de Jeziel exerciam sobre ela uma influência profunda.

Abismada em profundas cogitações, notou que Saulo abrira a porta, chamando alguns auxiliares, que se pre­cipitaram por cumprir-lhe as ordens. Em poucos minu­tos os despojos de Estevão eram removidos, enquanto amigos numerosos cercavam o jovem par, expansivamente loquazes e satisfeitos.

—        Que é isto — perguntou um deles a Abigail —, ao notar-lhe a túnica manchada de sangue.

—        O sentenciado era israelita — atalhou o moço tarsense, desejoso de antecipar explicações — e, como tal, amparamo-lo na hora extrema.

Um olhar mais severo deu a entender à jovem quanto devia conter as emoções próprias, longe e acima das ocorrências verídicas.

Daí a minutos, o velho Gamaliel chegava e solicitava ao ex-discípulo alguns momentos de atenção, em par­ticular.

- Saulo disse bondoso —, espero partir na se­mana próxima para além de Damasco. Vou descansar junto de meu irmão e aproveitar a noite da velhice para meditar e repousar o espírito. Já fiz a necessária noti­ficação no Sinédrio e no Templo, e acredito que, dentro de poucos dias, serás efetivamente provido no meu cargo.

O         interpelado fez um ligeiro gesto de agradecimento, cuja frieza mal disfarçava o abatimento que lhe ia na alma.

— Entretanto — prosseguia o generoso rabino, so­licitamente tenho um último pedido a fazer-te: É que tenho Simão Pedro em conta de um amigo. Esta confissão poderá escandallzarte mas, sinto-me bem ao fazê-la. Acabo de receber sua visita, pedindo a minha interferência para que o cadáver da vítima de hoje seja entregue à igreja do “Caminho”, onde será sepultado com muito amor. Sou o intermediário do pedido e espero não me recuses o obséquio.

—        Dizeis “vítima”? — perguntou Saulo admirado.

       — A existência de uma vítima pressupõe um algoz e éu não sou verdugo de ninguém. Defendi a Lei até ao fim.

Gamaliel compreendeu a objeção e replicou:

—        Não vejas laivo de recriminação nas minhas pa­lavras. Nem a hora, nem o local, tampouco, se prestam a discussões. Mas, para não faltar à sinceridade que em mim sempre conheceste, devo dizer-te, rapidamente, que venho chegando a profundas conclusões a respeito do chamado carpinteiro de Nazaré. Tenho refletido ma­duramente na sua obra entre nós; todavia, estou velho e alquebrado para iniciar qualquer movimento renova­dor no seio do judaísmo. Em nossa existência chega uma fase em que não nos é lícito intervir nos problemas coletivos; mas, em qualquer idade, podemos e devemos operar a iluminação ou o aprimoramento de nós mesmos. É o que vou fazer. O deserto, na majestade silenciosa do insulamento, constituiu sempre a sedução dos nossos antepassados. Sairei de Jerusalém, fugirei do escândalo que as minhas novas idéias e atitudes certo provocariam; buscarei a solidão para encontrar a verdade.

Saulo de Tarso estava estupefato. Também Gama­liel parecia sofrer a influenciação de estranhos sortilé­gios! Sem dúvida, os homens do “Caminho” o enfei­tiçaram, desbaratando-lhe as últimas energias... o velho mestre acabara capitulando, numa atitude de conseqüên­cias imprevisíveis! Ia impugnar, discutir, chamá-lo à realidade, quando o venerando mentor da mocidade fari­saica, deixando entrever que percebia as vibrações anta­gônicas do seu espírito ardoroso, sentenciou:

— Já sei o teor da tua resposta íntima. Julgas-me fraco, vencido, e cada qual analisa como pode; mas não me leves ao enfaro das controvérsias. Aqui estou so­mente para solicitar-te um favor e espero não mo negues. Poderei providenciar para remover os despojos de Estevão imediatamente?

Via-se que o moço de Tarso hesitava, premido por singulares pensamentos.

— Concede, Saulo!... Ë o último obséquio ao velho amigo!...

— Concedo — disse afinal.

Gamaliel despediu-se com um gesto de sincero reco­nhecimento.

Novamente rodeado de muitos amigos, que procura­vam alegrá-lo, o jovem doutor da Lei revelava-se muito alheio de si mesmo. Debalde erguia a taça das saudações. O olhar vago, cismativo, demonstrava o profundo alhea­mento em que se engolfara. Os inesperados aconteci­mentos acarretaram-lhe à mente um turbilhão de pensa­mentos angustiados. Queria pensar, desejava recolher-se em si mesmo para o exame necessário das novas perspec­tivas do seu destino, mas, até ao pôr do sol, foi obrigado a manter-se no quadro das convenções sociais, atendendo aos amigos até ao fim.

Alegando necessidade de trocar as vestes ensangüen­tadas, Abigail retirara-se logo após a entrevista de Ga­maliel.

Na casa de Dalila, entretanto, a pobrezinha foi aco­metida de febre alta, penalizando e alarmando a todos os que lá se encontravam.

Ao cair da noite, Saulo regressava ao lar da irmã, onde lhe comunicaram o estado da enferma.

Resolvido a imprimir novos rumos à sua vida, pro­curou sufocar a própria emoção para encarar os fatos com a naturalidade possivel.

Em lágrimas, a jovem de Corinto pediu que a re­conduzissem à casa de Zacarias, receando a marcha da enfermidade. Em vão, Dalila e os parentes procuraram intervir com recursos afetuosos. A súplica de Abigail ao espírito enérgico de Saulo foi exposta comovedora-mente e, dentro da severidade que lhe caracterizava as atitudes, o ex-discípulo de Gamaliel tomou todas as pro­vidências para satisfazê-la.

E à noitinha, com muito cuidado, modesta carreta saía de Jerusalém pela estrada de Jope.

Ruth recebeu a jovem nos braços, emocionada e aflita. Ela e o marido recordaram, então, que, somente com a morte do pai, Abigail tivera febre tão alta, acom­panhada de abatimento tão profundo. De cenho carre­gado, Saulo os ouvia, esforçando-se por dissimular a emoção. E enquanto os amigos da jovem procuravam assisti-la carinhosamente, o futuro rabino, sucumbido num bulcão de idéias antagônicas, dirigia-se para Jeru­salém, com intenção de não mais voltar a Jope.

 

Abigail cristã

Desde o martírio de Estevão, agravara-se em Je­rusalém o movimento de perseguição a todos os discí­pulos ou simpatizantes do “Caminho”. Como se fora tocado de verdadeira alucinação, ao substituir Gamaliel nas funções religiosas mais importantes da Cidade, Saulo de Tarso deixava-se fascinar por sugestões de fanatismo cruel.

Impiedosas devassas foram ordenadas a respeito de todas as famílias que revelassem inclinação e sim­patia pelas idéias do Messias Nazareno. A igreja modes­ta, onde a bondade de Pedro prosseguia socorrendo os mais desgraçados, era rigorosamente guardada por sol­dados, com ordem de impedir as prédicas que represen­tavam o brando consolo dos infelizes.

Obcecado pela idéia de resguardar o patrimônio farisaico, o moço tarsense entregava-se aos maiores desmandos e tiranias. Homens de bem foram expulsos da cidade por meras suspeitas. Operários honestos e até mães de família eram inter­pelados em escandalosos processos públicos, que o per­seguidor fazia questão de movimentar. Iniciou-se um êxodo de grandes proporções, como Jerusalém de há muito não via. A cidade começou a despovoar-se de trabalhadores. O “Caminho” havia seduzido para as suas doces consolações a alma do povo, cansada na incom­preensão e no sacrifício. Livre das prestigiosas adver­tências de Gamaliel, que se retirara para o deserto, e sem a carinhosa assistência de Abigail, que lhe facultava generosas inspirações, o futuro rabino parecia um louco, em cujo peito o coração estivesse ressequido. Debalde, mulheres indefesas suplicavam-lhe piedade; inutilmente, crianças misérrimas pediram complacência para os pais, abandonados como prisioneiros infelizes.

O         moço de Tarso parecia dominado por uma indi­ferença criminosa. As rogativas mais sinceras encon­travam no seu espírito um rochedo áspero. Incapaz de compreender as circunstâncias que lhe haviam modifi­cado os planos e esperanças da vida, imputava o insucesso dos seus sonhos de mocidade àquele Cristo que não conseguira entender. Odiá-lo-ia enquanto vivesse. Não sendo possível encontrá-lo para uma vingança di­reta, persegui-lo-ia na pessoa dos seus caudatários, atra­vés de todos os caminhos. A seu ver, era ele, o carpin­teiro anônimo, o causador dos seus fracassos em relação ao amor de Abigail, agora envenenado no seu coração impulsivo por sentimentos estranhos, que, dia a dia, ca­vavam profundos abismos entre sua figura inolvidável e as lembranças que lhe eram mais carinhosas. Não mais voltara à casa de Zacarias, e, embora os amigos da estrada de Jope instassem por suas notícias, mantinha-se irredutível no círculo do seu egoísmo sufocante. De vez em quando, sentia-se premido por uma saudade singular. Experimentava imensa falta da ternura de Abigail, cuja lembrança nunca mais se lhe havia apar­tado da alma enrijecida e ansiosa. Mulher alguma poderia substitui-la no carinho do seu coração. Entre angústias extremas, recordava a agonia de Estevão, sua invejável paz de consciência, as palavras de amor e de perdão; em seguida, via a noiva genuflexa, implorando-lhe amparo com um clarão de generosidade nos olhos súplices. Jamais esqueceria aquela prece angustiada e comovedora, que ela fizera ao abraçar o irmão nos der­radeiros instantes de vida. Não obstante a perseguição cruel que o transformara em mola-central de todas as atividades contra a igreja humilde do “Caminho”, Saulo sentia que as necessidades espirituais se multiplicavam no espírito sedento de consolação.

Oito meses de lutas incessantes passaram sobre a morte de Estevão, quando o moço tarsense, capitulando ante a saudade e o amor que lhe dominavam a alma, resolveu rever a paisagem florida da estrada de Jope, onde por certo reconquistaria o afeto de Abigail, de maneira a reorganizarem todos os projetos de um futuro ditoso.

Tomou o carro minúsculo com o coração opresso. Quantas hesitações não vencera para retornar à antiga situação, humilhando a vaidade de homem convenciona­lista e inflexível! A luz crepuscular enchia a Natureza de reflexos de ouro fulgurante. Aquele céu muito azul, a verdura agreste, as brisas caridosas da tarde, eram os mesmos. Sentia-se reviver. Sonhos e esperanças con­tinuavam, também, intangíveis. E refletia na melhor maneira de reaver a dedicação da mulher escolhida, sem humilhação para sua vaidade. Contar-lhe-ia sua desesperação, diria das suas insônias, da continuidade do imenso amor que nenhuma circunstância conseguira destruir. Embora mantivesse firme o propósito de omitir toda e qualquer alusão ao carpinteiro de Nazaré, falaria a Abigail do remorso por não lhe haver estendido mãos amigas no instante em que todas as esperanças de sua alma feminina se haviam abalado, ante o imprevisto da morte dolorosa do irmão, em circunstâncias tão amargas. Esclareceria os detalhes de seus sentimentos. Havia de referir-se à recordação indelével da sua prece angus­tiosa e ardente, quando Estevão penetrava os umbrais da morte.

Atraí-la-ia ao coração que jamais a esquecera, beijar-lhe-ia os cabelos, formularia novos projetos de amor e felicidade.

Mergulhado em tais pensamentos, atingiu a porta de entrada, identificando as roseiras em flor.

O         coração batia-lhe descompassado, quando Zacarias surgiu com grande surpresa. Um abraço demorado assi­nalou o reencontro. Abigail foi objeto de sua primeira interrogação.

Com estranheza notou que Zacarias en­tristeceu.

— Pensei que algum de teus amigos já te houvesse levado a desagradável notícia -  começou dizendo, enquanto o jovem buscava ouvi-lo ansioso. — Abigail, há mais de quatro meses, adoeceu dos pulmões e, para falar com franqueza, não temos qualquer esperança.

Saulo fizera-se lívido.

—        Logo depois que voltou precipitadamente de Je­rusalém, esteve mais de um mês entre a vida e a morte. Em vão nos esforçamoS, eu e Ruth, para restituir-lhe o viço e as cores da juventude. A pobrezinha entrou a definhar e, em pouco tempo, acamou-se abatida. Solicitei tua presença, com ansiedade, a fim de resolvermos o possível em seu benefício, mas não apareceste. Pare­cia-me que um ambiente novo lhe proporcionaria o resta­belecimento da saúde, mas, faltaram-me os recursos para uma iniciativa mais ampla, tal como se impunha.

—        Mas, Abigail fez alguma queixa a meu respeito?

— perguntou Saulo, aflito.

—        De modo algum. Aliás, o regresso inesperado de Jerusalém, a enfermidade súbita e teu injustificável afastamento desta casa eram de molde a causar-nos dúvidas e receios; mas logo se verificaram melhoras positivas, após o período mais agudo da febre, e ela nos tranqüilizou a respeito. Explicou a necessidade da tua ausência, disse estar ciente dos teus muitos afazeres e encargos políticos; referiu-se com gratidão ao acolhi­mento que lhe dispensaram teus parentes e, quando Ruth, para confortá-la, qualifica de ingrato o teu procedimento, Abigail é sempre a primeira a defender-te.

Saulo quis dizer alguma coisa, enquanto Zacarias fazia uma pausa, mas nada lhe ocorreu à mente. A emoção que lhe causava a nobreza espiritual da noiva amada, paralisava-lhe as idéias.

— Apesar do seu esforço para tranqüilizar-nos — continuava o marido de Ruth —, temos a impressão de que nossa filha adotiva se encontra dominada por desgostos profundos, que procura ocultar. Enquanto podia andar, visitava os pessegueiros, à mesma hora em que costumava fazê-lo contigo. A princípio, minha mulher surpreendeu-a chorando, nas sombras da noite; mas, em vão procuramos sondar a causa de seus ínti­mos padecimentos. O único motivo que alegava era justamente o da enfermidade, que começava a minar-lhe o organismo. Mais tarde estagiou uma semana, por aqui, um pobre velho chamado Ananias. Deu-se então um fato estranho: Abigail encontrou-o em casa dos nossos ren­deiros e, todas as tardes, detinha-se a ouvi-lo horas a fio, manifestando daí para cá muita fortaleza espiritual. Ao despedir-se, o pobre mendigo deu-lhe como lembrança alguns pergaminhos com os ensinamentos do famoso carpinteiro de Nazaré...

—        Do carpinteiro? — atalhou Saulo evidentemente contrariado. — E depois?

—        Tornou-se dedicada leitora do chamado Evan­gelho dos galileus. Consideramos a conveniência de afastá-la de semelhante novidade espiritual, mas Ruth ponderou ser essa, agora, a sua única distração. Com efeito, desde que começou a falar no discutido Jesus Nazareno, observamos que Abigail se enchera de pro­fundas consolações. E o fato é que não mais a vimos chorar, embora se lhe não apagasse do semblante aba­tido a dolorosa expressão de amargura e melancolia. Sua conversação, daí por diante, parece haver adquirido inspirações diferentes. A dor transformou-se-lhe em con­fortadora expressão de alegria íntima.

E fala a teu respeito com um amor cada vez mais puro. Dá impres­são de haver descoberto nos misteriosos escaninhos da alma, a energia de uma vida nova.

Depois de um suspiro, Zacarias terminava:

—       E, contudo, a mudança não alterou a marcha da enfermidade que a. devora devagarinho. Dia a dia, vemo-la inclinar-se para o túmulo, como flor que tomba do hastil ao sopro do vento forte.

Saulo experimentava indisfarçável angústia. Penosa emoção revolvia-lhe a alma generosa e sensível. Como definir-se? Esmagavam-lhe o espírito amargurosas inter­rogações.

Quem era, afinal, aquele Jesus que o topava em toda parte? O interesse de Abigail pelo Evangelho perseguido revelava a vitória do carpinteiro nazareno a contrastar os próprios sonhos da sua mocidade.

— Mas, Zacarias — perguntou irritadiço o doutor de Tarso —, por que não impediste semelhante contacto? Esses velhos feiticeiros percorrem as estradas dissemi­nando a confusão. Surpreende-me essa condescendência, porqüanto nossa fidelidade à Lei não admite, ou, pelo menos, nunca deverá admitir transigências.

O         interpelado recebeu a recriminação com serenidade e acentuou:

—        Antes de tudo, importa considerar que pedi em vão o socorro da tua presença, para orientar-me. E, além do mais, quem teria coragem de sonegar o remédio ao doente amado?

Desde que lhe vi a resignação santificada, fiz o propósito de não me referir aos seus novos pontos de vista em matéria de crença religiosa.

E como Saulo estivesse engolfado em profundas cismas, sem saber o que responder, o bom homem re­matou:

—        Vem comigo, verás com os próprios olhos!...

O         rapaz seguiu-lhe os passos, cambaleando. As idéias baralhavam-Se-lhe no cérebro dolorido. Aquelas notícias inesperadas envenenavam-lhe o coração.

Reclinada no leito, assistida pela afeição maternal de Ruth, a moça de Corinto estampava no rosto um profundo abatimento. Muito magra, a epiderme adqui­rira a cor do marfim, mas o olhar lúcido denotava absoluta calma espiritual. Carinhosa serenidade estam­pava-se-lhe na fisionomia entristecida. De vez em quan­do, renovava-se a dispnéia com prolongada aflição, vol­tando-se então para a janela aberta, como se dali espe­rasse remédio ao seu cansaço, através das brisas frescas que chegavam do seio generoso da Natureza.

Ao vê-la, Saulo não dissimulou o seu espanto. A jovem, por sua vez, recebendo a jubilosa surpresa, to­mou-se de sincera e transbordante alegria.

Saudações afetuosas se trocaram entre ambos, en­quanto os olhos traduziam a saudade angustiosa com que haviam esperado aquele momento. O futuro rabino acariciou-lhe as mãos mimosas, que pareciam agora modeladas em cera translúcida. Falaram da esperança que os alentara, constante, antes do reencontro. Notando que eles desejavam ficar sós, para confidenciar mais à vontade, Zacarias e Ruth retiraram-se discretamente.

—        Abigail! — exclamou Saulo comovidíssimo, logo que se viram a sós — abdiquei o meu orgulho e a minha vaidade de homem público para vir até aqui, perguntar se me perdoaste, se me não esqueceste!

—        Esquecer-te? — respondeu ela de olhos úmidos. Por mais rude e longa que seja a estação de sol ardente, a folha do deserto não poderá esquecer a chuva benéfica que lhe deu vida. Não me fales, igualmente, em perdão, pois acaso poderá alguém perdoar-se a si mesmo?

E nós, Saulo, pertencemo-nos um ao outro para a eternidade. Não me disseste, muitas vezes, que eu era o coração do teu cérebro?

Ouvindo o timbre caricioso daquela voz amada, o jovem de Tarso comovia-se nas entranhas do próprio ser arrebatado e ardente. Aquela humildade e aquele tom de ternura penetravam-lhe o coração, reconquistando-lhe o discernimento para o caminho reto.

Guardando, entre as suas, as mãos pálidas da noiva, exclamou com um lampejo de alegria nos olhos:

—        Por que dizes que “eras o coração”, se ainda és e sê-lo-ás para sempre? Deus abençoará nossas espe­ranças. Realizaremos nosso ideal. Voltei para levar-te comigo.

Teremos um lar, serás nele a rainha!...

Dominada por indefinível alegria, a noiva, que o contemplava com lágrimas, murmurou:

—        Desconfio, Saulo, que os lares da Terra não foram feitos para nós!... Deus sabe quanto desejei, ardente­mente, ser a mãe carinhosa de teus filhos; como conservei o ideal acima de todas as circunstâncias, para aformo­sear tua existência com o meu carinho! Desde menina, em Corinto, vi mulheres que desbaratavam os tesouros do Céu, simbolizados no amor do esposo e dos filhinhos; e pensei que o Senhor me concederia o mesmo patrimônio de esperanças divinas, pois aguardava as bênçãos do santuário doméstico para glorificá-lo de todo o coração. Para exaltá-lo, idealizei a vida do homem amado, que me auxiliaria a erguer o altar da prole; e, assim que me chegaste, organizei vastos planos de uma vida santa e venturosa, na qual pudéssemos honrar a Deus.

Saulo escutava comovido. Nunca lhe observara ta­manha largueza de raciocínio e lucidez, naquele tom de ternura tranqüila.

Mas o Céu — prosseguiu resignada — retirou-me as possibilidades de semelhante ventura na Terra. Nos meus primeiros dias de solidão, visitava os lugares ermos, como a procurar-te, requisitando o socorro do teu afeto. Os pessegueiros de nossa predileção pareciam dizer que nunca mais voltarias; a noite amiga aconselhava-me a esquecer; o luar, que me ensinaste a bem-querer, agra­vava as minhas recordações e amortecia as minhas esperanças. Da peregrinação de cada noite, voltava com lágri­mas nos olhos, filhas do desespero do coração. Embalde procurava tua palavra confortadora. Sentia-me profundamente só. Para lembrar e seguir tuas advertências, recordava que me chamaste a atenção, à última vez que nos encontramos, para a amizade de Zacarias e de Ruth. É verdade que não tenho outros amigos mais fiéis e generosos que eles; entretanto, não lhes poderia ser mais pesada na vida, além do que sou. Evitei, então, con­fiar-lhes minhas angústias. Nos primeiros meses da tua ausência, amarguei sem consolo a minha grande desdita. Foi quando surgiu aqui um velhinho respeitável, cha­mado Ananias, que me deu a conhecer as luzes sagradas da nova revelação. Conheci a história do Cristo, o Filho de Deus Vivo; devorei o seu Evangelho de redenção, edi­fiquei-me nos seus exemplos. Desde essa hora, compreen­di-te melhor, conhecendo a minha própria situação.

Súbito acesso de tosse cortou-lhe a narrativa.

As palavras da noiva caíam-lhe no coração como gotas de fel. Nunca experimentara dor moral tão aguda. Verificando a sinceridade natural, o carinho doce daque­las confissões, sentia-se pungido de acerbos remorsos. Como pudera abandonar, assim, a escolhida de sua alma, olvidando-lhe a fidelidade e o amor? Onde encontrara tamanha dureza de espírito para esquecer deveres tão sagrados? Agora, vinha encontrá-la exânine, desiludida de realizar na Terra os sonhos da juventude. Além de tudo, o carpinteiro odiado parecia tomar-lhe o lugar no coração da noiva adorada. Naquele momento, não experimentava apenas o desejo de lhe arrasar a doutrina e os adeptos, mas sentia ciúmes dele na alma caprichosa. De que poderes podia dispor o nazareno obscuro e martiri­zado na cruz, para conquistar os sentimentos mais puros da noiva carinhosa?

— Abigail — disse comovido —, abandona as idéias tristes que poderiam envenenar os sonhos de nossa mo­cidade. Não te entregues a ilusões. Renovemos nossas esperanças. Breve estarás restabelecida. Sei que me per­doaste a morte de teu irmão, e minha família te receberá em Tarso com júbilos sinceros! Seremos felizes, muito felizes!...

Seus olhos pareciam pairar numa região de sonhos deliciosos, procurando reavivar no coração amado os seus projetos de felicidade terrena.

Ela, porém, misturando sorrisos e lágrimas, acres­centava:

—        Francamente, querido, eu também desejaria re­viver!... Ser tua, entretecer teus sonhos de juventude, inventar estrelas para o céu da tua existência; tudo isso constitui meu ideal de mulher!... Ah! se pudesse, buscaria os teus parentes com amor, haveria de con­quistá-los para o meu coração, ao preço de um grande afeto; mas, pressinto que os planos de Deus são diferen­tes, no que concerne aos nossos destinos. Jesus cha­mou-me para a sua família espiritual...

—        Ai de mim! — exclamou Saulo cortando-lhe a palavra — em toda parte, topo expressões do carpinteiro de Nazaré! Que flagelo! Não repitas semelhante coisa. Deus não seria justo se te seqüestrasse ao meu afeto. -Quem poderia, então, como esse Cristo, interpor-se aos nossos votos?

Mas Abigail fixou-o com um gesto súplice e falou:

—        Saulo, de que nos valeria a desesperação? Não será melhor inclinarmo-nos com paciência aos sagrados desígnios? Não alimentemos dúvidas prejudiciais. Este leito é de meditação e de morte, O sangue, várias vezes, já me golfou prenunciando o fim. Mas nós cremos em Deus e sabemos que esse fim é apenas corporal. Nossa alma não morrerá, amar-nos-emos eternamente...

—        Não concordo — respondia ele extremamente aflito —, essas presunções são fruto de ensinamentos absurdos, quais os desse fanático nazareno que morreu na cruz, entre a humilhação e a covardia. Nunca assim foste, melancólica e desalentada; somente os sortilégios galileus podiam convencer-te de tais absurdos funestos. Mas, procura raciocinar por ti mesma! Que te deu o crucificado senão tristeza e desolação?

—        Enganas-te, Saulo! Não me sinto desanimada, embora convicta da impossibilidade de minha ventura terrena. Jesus não foi um mestre vulgar de sortilégios, foi o Messias dispensador de consolação e vida. Sua influência renovou-me as forças, saturou-me de bom ânimo e verdadeira compreensão dos desígnios supre­mos. Seu Evangelho de perdão e amor é o tesouro di­vino dos sofredores e deserdados do mundo.

O         jovem não conseguia dissimular a irritação que lhe vagava na alma.

—        Sempre o mesmo refrão — disse confuso — in­variavelmente, a afirmativa de ter vindo para os infeli­zes, para os doentes e infortunados. Mas, as tribos de Israel não se compõem apenas de criaturas dessa es­pécie. E os homens valorosos do povo escolhido? E as famílias de tradições respeitáveis? Estariam fora da influência do Salvador?

—        Tenho lido os ensinamentos de Jesus — respon­deu a moça com firmeza — e suponho compreender as tuas objeções. O Cristo, cumprindo a sagrada palavra dos profetas, revela-nos que a vida é um conjunto de nobres preocupações da alma, a fim de que marchemos para Deus pelos caminhos retos. Não podemos conceber o Criador como juiz ocioso e isolado, senão como Pai desvelado no benefício de seus filhos. Os homens valo­rosos a que te referes, os forros de enfermidades e so­frimentos, na posse das bênçãos reais de Deus, deviam ser filhos laboriosos, preocupados com o rendimento da tarefa que foram chamados a cumprir, a prol da feli­cidade de seus irmãos. Mas, no mundo, temos contra nossas tendências superiores o inimigo que se instala em nosso próprio coração. O egoísmo ataca a saúde, o             ciúme prejudica o mandato divino, como a ferrugem e a traça que inutilizam nossas vestes e instrumentos, quando nos descuidamos. São poucos os que se recor­dam da proteção divina, nos dias alegres da fartura, como raríssimos os que trabalham à revelia do aguilhão. Isso demonstra que o Cristo é um roteiro para todos, constituindo-se em consolo para os que choram e orien­tação para as almas criteriosas, chamadas por Deus a contribuir nas santas preocupações do bem.

Saulo estava impressionado com aquela clareza de raciocínio. Mas a conversação exigira da enferma maior esforço e conseqüente fadiga. A respiração tornara-se difícil, e não tardou que o sangue lhe borbotasse do peito em prolongada hemoptise. Aquele sofrimento, adornado de ternura e humildade, comovia e exasperava profun­damente o noivo. Compreendeu que seria impiedoso ata­car perante a noiva aquele Jesus que lhe cumpria perseguir até ao fim. Não queria crer que a sua Abigail estivesse nas vésperas da morte. Preferia encarar o futuro com otimismo. Restabelecida, fá-la-ia voltar aos seus antigos pontos de vista. Não toleraria a intromis­são do Cristo no santuário doméstico. No esforço in­trospectivo, entretanto, concluiu que precisava dar uma trégua aos seus pensamentos antagônicos, para cogitar dos problemas essenciais da sua própria tranqüilidade. A jovem enferma, após a crise que durara minutos longos e tristes, tinha os grandes olhos serenos e lúci­dos. Contemplando-a naquela doce atitude de suprema resignação, Saulo de Tarso experimentou enternecedo­ras comoções íntimas. Seu temperamento arrebatado entregava-se facilmente às impressões extremadas.

Apro­ximando-se mais da noiva amada, tinha os olhos úmidos. Desejou acariciá-la como se o fizesse a uma criança.

—        Abigail — murmurou ternamente —, não fale­mos mais de idéias religiosas. Perdoa-me! Recordemos nosso porvir de flores, esqueçamos tudo para consolidar as melhores esperanças.

      E as palavras lhe borbulhavam ardentes de emo­ção. O carinho que evidenciavam era sintoma do arre­pendimento e das aspirações nobres e sinceras que lhe trabalhavam, agora, no espírito angustiado. Entretanto, como se fora presa de singular abatimento depois do esforço despendido, a jovem de Corinto estava lânguida, receando prosseguir no colóquio, em virtude dos acessos de tosse que a ameaçavam freqüentemente. O noivo, preocupado, compreendeu a situação e, apertando-lhe as mãos transparentes, beijou-as enternecido.

—        Precisas repousar — disse com inflexão cari­nhosa —, não te preocupes por minha causa. Dar-te-ei de minhas próprias forças. Breve estarás restabelecida.

E, depois de envolvê-la num olhar cheio de gratidão e infinita ternura, rematava:

—        Voltarei a ver-te todas as noites que possa afas­tar-me de Jerusalém, e logo que puderes voltaremos a ver o luar, lá no jardim, para que a Natureza abençoe os nossos sonhos, sob as vistas de Deus.

—        Sim, Saulo — disse pausadamente —, Jesus nos concederá o melhor. De qualquer modo, no entanto, esta­rás no meu coração, sempre, sempre...

O         doutor da Lei ia despedir-se, mas refletiu que a noiva nada lhe dissera com referência ao irmão. A ge­nerosidade daquele silêncio impressionava-o. Preferia ser acusado, discutir o feito com as suas penosas circunstân­cias, para que também se justificasse. Mas, em vez de reprimendas, encontrava carícias, em vez de exprobra­çÕes, uma tranqüilidade generosa, com que a meiga jovem sabia ocultar as profundas feridas que lhe iam nalma.

—        Abigail — exclamou algo hesitante —, antes de partir, quisera saber francamente se me desculpaste pela morte de Estevão. Nunca mais pude falar-te das con­tingências que me levaram a tão triste desfecho; no entanto, estou convicto de que tua bondade olvidou minha falta.

— Por que te recordas disso? — respondeu-lhe es­forçando-se por manter a voz firme e clara. — Minhalma está agora tranqüila. Jeziel está com o Cristo e morreu legando-te um pensamento amistoso. Que poderia eu reclamar de minha parte, se Deus tem sido tão misericordioso para comigo? Ainda agora, estou agradecendo ao Pai justo, de todo o coração, a dádiva da tua presença nesta casa. Há muito vinha pedindo ao Céu não me dei­xasse morrer sem te rever e ouvir..

Saulo calculou a extensão daquela generosidade es­pontânea e teve os olhos úmidos. Despediu-se. A noite fresca estava repleta de sugestões para o seu espírito. Nunca meditara nos insondáveis desígnios do Eterno, como naquele momento em que recebera tão profundas lições de humildade e amor, da mulher amada. Experi­mentava na alma opressa o embate de duas forças antagônicas, que lutavam entre si para a posse do seu coração generoso e impulsivo.

Não compreendia Deus senão como um senhor po­deroso e inflexível. À sua vontade soberana, dobrar-se-iam todas as preocupações humanas. Mas começava a perquirir o motivo de suas dolorosas inquietudes. Por que não encontrava, em parte alguma, a paz anelada ardentemente? E, todavia, aquela gente miserável do “Caminho” entregava-se às algemas do cárcere, sorridente e tranqüila. Homens enfermos e valetudinários, isentos de qualquer esperança do mundo, suportavam-lhe as per­seguições com louvores no coração. O próprio Estevão, cuja morte lhe servira de exemplo inesquecível, aben­çoara-o pelos sofrimentos recebidos por amor ao carpin­teiro de Nazaré. Aquelas criaturas desamparadas goza­vam de uma tranqüilidade que ele desconhecia, O quadro da noiva doente não lhe saía dos olhos. Abigail era sen­sível e afetuosa, mas lembrava sua ansiedade feminina, a intensidade de suas preocupações de mulher, quando, eventualmente, não conseguia comparecer com pontualidade no adorável recanto da estrada de Jope. Aquele Jesus desconhecido proporcionara-lhe forças ao coração. Se era inconteste que a enfermidade lhe extinguia a vida aos poucos, também evidente era o rejuvenescimento das suas energias espirituais. A noiva falara-lhe como que tocada de novas inspirações; aqueles olhos pareciam con­templar interiormente a paisagem de outros mundos.

Essas reflexões não lhe deram ensejo à admiração da Natureza. Reentrando em Jerusalém, guardou a impres­são de que despertava de um sonho. À sua frente dese­nhavam-se as linhas majestosas do grande santuário. O orgulho de raça falava-lhe mais forte ao espírito.

Era impossível conferir superioridade aos homens do “Cami­nho”. Bastou a visão do Templo para que encontrasse em si mesmo os esclarecimentos que desejava. A seu ver, a serenidade dos discípulos do Cristo provinha, natural­mente, da ignorância que lhes era apanágio. Geralmente, os que se afeiçoavam aos galileus eram, apenas, criaturas que o mundo desclassificara pela decadência física, pela educação falha, pelo supremo abandono. O homem de responsabilidade, por certo, não poderia encontrar a paz a preço tão vil. Figurarase-lhe haver resolvido o pro­blema. Continuaria a luta. Contava com o breve restabe­lecimento da noiva; logo que possível desposaria Abigail e, com fácilidade, dissuadi-la-ia dos fantasiosos quão peri­gosos engodos daqueles ensinamentos condenados. Do âmbito do seu lar, feliz, prosseguiria na perseguição de quantos esquecessem a Lei, trocando-a por outros prin­cípios.

Esses raciocínios lhe acalmaram, de certo modo, as inquietações.

Mas, no dia seguinte, manhã alta, um mensageiro de Zacarias golpeava-lhe a alma com uma notícia grave:

Abigail piorara, estava agonizante!

Incontinenti, tomou o caminho de Jope, ansioso de arrebatar a bem-amada ao perigo iminente.

Ruth e o marido estavam desolados. Desde a ma­drugada, a enferma caíra em penosa prostração. Os vômitos de sangue sucediam-se ininterruptos. Dir-se-ia que só esperava a visita do noivo para morrer. Saulo escutou-os, lívido como cera. Mudo, dirigiu-se para o quarto, onde o ar fresco penetrava embalsamado, tra­zendo a mensagem das flores do pomar e do jardim, que pareciam enviar despedidas às mãos delicadas e carinho­sas que lhes haviam dado a vida.

Abigail recebeu-o com um raio de infinita alegria nos olhos translúcidos. O tom de marfim do semblante abatido acentuara-se rapidamente. O peito arfava-lhe precípite, o coração batia sem ritmo. Sua expressão geral evidenciava a derradeira agonia. Saulo aproximou-se angustiado. Pela primeira vez na vida, sentia-se tré­mulo diante do irremediável. Aquele olhar, aquela palidez de mármore, aquela aflição tocada de angústia. anuncia­vam-lhe o desenlace.

       Depois de inquiri-la, quanto à razão daquele abatimento inesperado, tomou-lhe as mãos fláci­das, banhadas do suor frio dos moribundos.

—        Como foi isso, Abigail? — dizia perturbado —ainda ontem, deixei-te tão esperançado... Pedi sinceramente a Deus te curasse para mim!...

Extremamente sensibilizados, Zacarias e sua mulher afastaram-se.

Vendo que a noiva tinha imensa dificuldade em expor as últimas idéias, Saulo ajoelhou-se a seu lado, cobriu-lhe as mãos de beijos ardentes. A agonia dolo­rosa parecia-lhe o sofrimento injustificável, que o céu houvera enviado a um anjo. Ele, que trazia o espírito ressecado pela hermenêutica das leis humanas, sentiu que chorava intensamente pela primeira vez. Lendo-lhe a sensibilidade através das lágrimas que lhe desciam silenciosamente dos olhos, Abigail esboçou um gesto de carinho com dificuldade infinita. Conhecia Saulo e comprovara-lhe a rigidez do caráter. Aquele pranto revelava o calvário íntimo do bem-amado, mas demonstrava, igual­mente, o alvorecer de uma vida nova para o seu espírito.

—        Não chores, Saulo — murmurou dificilmente a morte não é o fim de tudo...

—        Quero-te comigo em toda a vida — replicou o rapaz desfeito em lágrimas.

       — E, contudo, é preciso morrer para vivermos ver­dadeiramente acrescentava a agonizante, cortando as palavras com a respiração opressa. — Jesus nos ensinou que a semente caindo na terra fica só, mas se morrer dá muitos frutos!... Não te rebeles contra os desígnios supremos que me arrebatam do teu convívio material! Se nos uníssemos pelo matrimônio, talvez tivéssemos mui­tas alegrias; teríamos um lar com os nossos filhos; mas destruindo nossas esperanças de uma felicidade passa­geira na Terra, Deus nos multiplica os sonhos genero­sos... Enquanto esperarmos a união indissolúvel, auxiliar-te-ei de onde estiver e te consagrarás ao Eterno, em esforços sublimes e redentores...

Via-se que a agonizante movimentava recursos su­premos para pronunciar as derradeiras palavras.

—    Quem te deu semelhantes idéias? — perguntou o jovem ralado de angústia.

       - Esta noite, depois que partiste, senti que alguém se aproximava enchendo o quarto de luz... Era Jeziel que vinha ver-me... Ao avistá-lo, lembrei-me de Jesus no inefável mistério da sua ressurreição. Anunciou-me que Deus santificava os nossos propósitos de ventura, mas que eu seria levada ainda hoje à vida espiritual. En­sinou-me a quebrar o egoísmo de minhalma, encheu-me de bom ânimo e trouxe-me a grata nova de que Jesus ama-te muito, tem esperanças em ti!... Refleti, então, que seria útil entregar-me jubilosa às mãos da morte, pois, quem sabe, se ficasse no mundo não iria perturbar a missão que o Salvador te destinou... Jeziel afirmou que nós te ajudaremos de um plano mais alto! Por que, então, deixarei de ser tua companheira?... Seguirei teus passos no caminho, levar-te-ei onde se encontrem nossos irmãos do mundo, em abandono, auxiliarei teus racio­cínios a descobrir sempre a verdade!... Ainda não aceitaste o Evangelho, mas Jesus é bom e terá algum meio de nos unir os pensamentos na verdadeira com­preensão!...

O         esforço da moribunda havia sido imenso. A voz extinguira-se-lhe na garganta. De seus olhos, profun­damente lúcidos, as lágrimas corriam abundantes.

—        Abigail! Abigail! — gritava Saulo desesperado.

Mas, após longos minutos de angustiosa ansiedade, ela dizia num arranco supremo:

—        Jeziel já veio ... buscar-me...

Instintivamente, Saulo compreendeu que era chega­do o momento fatal. Em vão chamou pela moribunda, cujos olhos se empanavam; debalde lhe beijou as mãos geladas, agora cobertas de um palor de neve translúcida. Como louco, gritou por Zacarias e Ruth. Esta, soluçante, desfeita em pranto, abraçou-se a Abigail que, desde a morte do filho, resumia todo o seu tesouro maternal.

A agonizante fixou o olhar, respectivamente, em cada um, como a evidenciar amoroso agradecimento. Depois... uma só lágrima silenciosa foi o seu último adeus.

Do jardim próximo chegavam perfumes brandos; o céu crepuscular tonalizava-se de nuvens aurifulgentes, enquanto os pássaros em recolhida cruzavam os ares alegremente...

Pesada amargura abatera-se sobre a mansão da estrada de Jope. Alara-se ao céu a filha dileta, a noiva amada, a amiga carinhosa das flores e dos passarinhos.

Saulo de Tarso ali se deixou ficar mudo, estarrecido enquanto Ruth, lavada em lágrimas, cobria de rosas a morta adorada, que parecia dormir.

 

No caminho de Damasco

       Durante três dias, Saulo deixou-se ficar em com­panhia dos amigos generosos, recordando a noiva ines­quecível. Profundamente abatido, procurava remédio para as mágoas íntimas, na contemplação da paisagem que Abi­gail tanto amara. Como triste consolo ao coração deses­perado, buscava inteirar-se das preocupações da morta nos últimos tempos e, de olhos úmidos, ouvia as refe­rências carinhosas de Ruth a tudo que se relacionava com a morta querida. Acusava a si próprio de não haver chegado mais cedo para arrebatá-la à enfermidade dolo­rosa. Pensamentos amargos o atormentavam, tomado de angustioso arrependimento.

       Afinal, com a rigidez das suas paixões, aniquilara todas as possibilidades de ven­tura. Com o rigorismo da sua perseguição implacável, Estevão encontrara o suplício terrível; com o orgulho inflexível do coração, atirara com a noiva ao antro inde­vassável do túmulo.

       Entretanto, não podia esquecer que devia todas as coincidências penosas àquele Cristo cruci­ficado, que não pudera compreender. Por que topava, em tudo, traços do carpinteiro humilde de Nazaré, que seu espírito voluntarioso detestava? Desde a primeira con­trovérsia na igreja do “Caminho”, nunca mais conse­guira passar um dia sem encontrá-lo na fisionomia de algum transeunte, na admoestação dos amigos, na do­cumentação oficial das suas diligências punitivas, na boca dos míseros prisioneiros. Estevão expirara falando nele com amor e júbilo; Abigail nos últimos instantes consolava-se em recordá-lo e o exortava a segui-lo. Por todo esse acervo de considerações que se lhe represavam na mente exausta, Saulo de Tarso galvanizara o ódio pessoal ao Messias escarnecido. Agora que se encontrava só, inteiramente liberto de preocupações particulares, de natureza afetiva, buscaria concentrar esforços na puni­ção e corretivo de quantos encontrasse transviados da Lei. Julgando-se prejudicado pela difusão do Evangelho, renovaria os processos da perseguição infamante. Sem outras esperanças, sem novos ideais, já que lhe faltavam os fundamentos para constituir um lar, entregar-se-ia de corpo e alma à defesa da Lei de Moisés, preservando a fé e a tranqüilidade dos compatrícios.

Na véspera do seu regresso a Jerusalém, vamos en­contrar o jovem doutor em conversa particular com Za­carias, que procurava ouvi-lo atentamente.

—        Afinal de contas — exclamava Saulo sombria-mente preocupado —, quem será esse velho que conse­guiu fascinar Abigail, a ponto de ela abraçar as doutrinas estranhas do Nazareno?

—        Ora — replicava o outro sem maior interesse —, é um desses miseráveis eremitas que se entregam comu­mente a longas meditações no deserto. Zelando o patri­mônio espiritual da pupila que Deus me confiou, indaguei da sua origem e das atividades de sua vida, chegando a saber que se trata de um homem honesto, apesar de extremamente pobre.

—        Seja como for — objetava o rapaz com austeri­dade —, ainda não pude compreender os motivos da tua tolerância. Como não te insurgiste contra o inovador? Tenho a impressão de que as idéias tristes e absurdas dos adeptos do “Caminho” contribuíram, de modo deci­sivo, para a moléstia que vitimou a nossa pobre Abigail.

— Ponderei tudo isso, mas a atitude mental da querida morta revestiu-se de imensa consolação, depois do contacto com esse anacoreta honesto e humilde. Ananias tratou-a sempre com profundo respeito, aten­deu-a sempre alegre, não exigiu qualquer recompensa, e assim procedeu com os próprios empregados, revelando uma bondade sem limites. Seria, então, lícito impugnar, desprezar benefícios? É verdade que, na esfera de minha compreensão, não poderei aceitar outras idéias além das que nos foram ensinadas por nossos avós, respeitáveis e generosos; mas não me julguei com o direito de subtrair aos outros o objeto de suas consolações mais preciosas. Tua ausência, ao demais, colocou-me em situação difícil. Abigail fizera da tua pessoa o centro de todos os seus interesses afetivos. Sem compreender as razões que te levaram a desaparecer de nossa casa, compadeci-me da sua amargura íntima, a traduzir-se em tristeza inalte­rável. A pobrezinha não conseguia ocultar suas mágoas aos nossos olhos amorosos. O encontro de um remédio era providencial. Desde a intervenção de Ananias, Abigail transformou-se, parecia converter toda a angústia em esperanças de uma vida melhor. Embora doente, recebia os mendigos que lhe vinham falar desse Jesus que, também, não consigo compreender. Eram amigos da vizinhança, gente simples, com quem ela parecia alegrar-se. Obser­vando o mal irremediável que a consumia, eu e Ruth acompanhávamos tudo isso enternecidamente. Como não proceder assim, se estava em jogo a paz espiritual de uma filha dileta, nos derradeiros dias da sua vida? Épossível que ainda não consigas entender o sentido da minha conduta, neste particular, mas em sã consciência estou justificado, porqüanto sei que cumpri meu dever, não lhe embargando os recursos que julgou necessários à sua consolação.

Saulo ouvia-o admirado. A serenidade e a pondera­ção de Zacarias infirmavam-lhe os estos mais fortes de reprimenda e severidade. As acusações veladas ao seu afastamento da noiva, sem motivo justificado, penetra­vam-lhe o coração com pruridos de remorso pungente.

—        Sim — revidou menos áspero —, reconsidero me­lhor as razões que te induziram a suportar tudo isso, mas, não quero, não posso e não devo exonerar-me do compromisso que assumi em desafronta da Lei.

—        Mas, a que compromisso te referes? — interro­gou Zacarias surpreendido.

—        Quero dizer que preciso encontrar Ananias, a fim de castigá-lo devidamente.

—        Que é isso, Saulo? — objetou Zacarias penosa­mente impressionado. — Abigail acaba de baixar ao sepulcro; seu espírito, de compleição sensibilíssima e afetuosa, sofreu profundamente por motivos que igno­ramos e que talvez conheças; o conforto único que ela encontrou foi, justamente, a amizade paternal desse velhinho bom e honesto; e queres puni-lo pelo bem que nos fez e à criatura inesquecível?

—        Mas é a defesa da Lei de Moisés que está em jogo — respondeu o moço tarsense com firmeza.

—        Entretanto — advertiu sensatamente Zacarias —, revistando os textos sagrados, não encontrei qualquer dispositivo que autorize a castigar os benfeitores.

O         doutor da Lei esboçou um gesto de contrariedade em face da observação justa, mas, valendo-se da sua hermenêutica, considerou com sagacidade:

—        Mas uma coisa é estudar a Lei e outra é defender a Lei. Na tarefa superior em que me encontro, sou obrigado a examinar se o bem não oculta o mal que condenamos. Aí reside a nossa divergência. Tenho de punir os transviados, como necessitas podar as árvores da tua chácara.

Fez-se prolongado silêncio. Absortos em profunda meditação, separados mental e intimamente, foi Saulo quem retomou a palavra perguntando:

—        Desde quando Ananias se ausentou destas pa­ragens?

—        Há mais de dois meses.

      — E chegaste a conhecer o rumo que tomou?

      - Abigail disse-me que ele fora chamado a Jeru­salém, a fim de confortar os doentes dos bairros pobres, dada a situação difícil que por lá se criara com a per­seguição.

—        Pois a sua nefasta influência será igualmente ju­gulada pelas forças da nossa vigilância.

Regressando à cidade, amanhã, como pretendo, procurarei localizar-lhe o paradeiro.

Ananias não dementará outras cabeças! Ja­mais chegou a pensar na reação que provocou em minhal­ma, embora não nos conheçamos pessoalmente.

Zacarias não conseguiu dissimular o seu desgosto e sentenciou:

—        Na simplicidade da minha vida rural não posso atinar com a razão das lutas religiosas de Jerusalém; mas, enfim, trata-se de problemas inerentes aos teus mis­teres profissionais e não devo intrometer-me nas provi­dências que mais convenham.

Saulo deixou-se ficar longo tempo pensativo, para, em seguida, imprimir novos rumos à conversação.

No dia seguinte, muito consternado, regressou àcidade, ansioso por encher o vácuo do coração, perdido no labirinto das horas vagas. A ninguém revelou a gran­de amargura que lhe ia na alma. Fechando-se em mu­tismo absoluto, retomou as funções religiosas, de sem­blante carregado.

Ao sol claro da manhã alta, vamos encontrá-lo no Sinédrio, interrogando um auxiliar de serviço, com vi­vacidade:

—        Isaac, cumpriste minhas ordens para os informes desejados?

—        Sim, senhor, encontrei entre os prisioneiros um rapaz que conhece o velho Ananias.

—        Muito bem — disse o doutor de Tarso evidente­mente satisfeito —, e onde mora o tal Ananias?

—        Ah! lá isso ele não quis dizer, apesar do muito que insisti. Alegou que não sabia.

—        Entretanto, é possível que esteja mentindo —ajuntou Saulo com rancor. — Esses homens são capazes de tudo. Providencia, já, para que ele aqui compareça quanto antes. Saberei como arrancar-lhe a verdade.

Como quem já lhe conhecia as decisões irrevogáveis. Isaac obedeceu com humildade. Daí a uma hora mais ou menos, dois soldados penetravam no gabinete, acom­panhando um rapaz de fisionomia miserável. Sem trair qualquer comoção, Saulo de Tarso mandou que se reco­lhessem à sala de punições, onde iria ter com o prisioneiro dentro de alguns minutos.

Terminada a escrituração de alguns papiros, diri­giu-se, resoluto, ao salão dos castigos. Alinhavam-se, ali, todos os instrumentos odiosos e execráveis das per­seguições político-religiosas, que envenenavam Jerusalém nos embates da época.

Depois de sentar-se enfaticamente, o moço de Tarso inquiriu o mísero encarcerado com aspereza:

—        Teu nome?

—        Matatias Johanan.

—        Conheces o velho Ananias, pregador ambulante da igreja do “Caminho”?

—        Sim, senhor.

—        Desde quando?

—        Conheci-o nas vésperas de minha prisão, que se verificou há um mês.

—        E onde reside esse adepto do carpinteiro?

—        Isso não sei — exclamou o interpelado em voz tímida. — Quando o conheci, morava num bairro pobre de Jerusalém, onde ensinava o Evangelho. Mas Ananias não tinha pouso certo. Veio de Jope, estacionando em diversas aldeias, onde pregava as verdades de Jesus­-Cristo. Aqui, vivia de bairro em bairro, no seu piedoso mister.

O         moço tarsense não prestou atenção naquela ati­tude de profunda humildade, e, franzindo o sobrolho, acrescentou ameaçadoramente:

—        Achas que podes mentir a um doutor da Lei?

—        Senhor, eu juro... — dizia o jovem ansiosamente.

Saulo não se dignou fixar-lhe o gesto suplicante. Dirigindo-se a um dos guardas, exclamou impassível:

—        Júlio, não temos tempo a perder. Necessito da informação necessária. Aplica-lhe o tormento das unhas. Acredito que, por esse processo, não se animará a pros­seguir na dissimulação da verdade.

       A ordem foi logo cumprida. Aguçadas pontas de ferro foram tiradas de um grande armário cheio de pó. Em poucos instantes, Júlio e o companheiro, depois de amarrarem o pobre rapaz num tronco rústico, aplicavam-lhe os instrumentos pontiagudos na ponta dos dedos, provocando-lhe gritos lancinantes. O jovem prisioneiro clamava, em vão, suas dores atrozes. Os verdugos ou­viam-no com indiferença. Quando o sangue começou a gotejar da unha arrancada violentamente, a vítima bra­dou em altas vozes:

—        Por piedade!... Confessarei tudo, direi onde ele está!... Tende compaixão de mim!...

Saulo ordenou sustassem a punição por momentos, a fim de ouvir as novas declarações.

            — Senhor! — acrescentou o infeliz entre lágrimas Ananias não se encontra mais em Jerusalém. – Em nossa última reunião, três dias antes de cairmos no cár­cere, o velho discípulo do Evangelho se despediu, afir­mando que ia fixar-se em Damasco.

Aquela voz lamentosa era um eco de profundas amarguras a se represarem num coração moço, mas repleto de penosas desilusões da vida. Saulo, entretanto, parecia não ter olhos de ver sofrimentos tão comove­dores.

—        É tudo quanto sabes? — perguntou secamente.

—        Juro-o — tornou o rapaz humildemente.

Diante daquela afirmação categórica, transparente no olhar sincero e na inflexão da voz comovente e triste, o doutor da Lei deu-se por satisfeito, mandando reco­lher o prisioneiro ao calabouço.

Daí a dois dias, o moço tarsense convocava uma reu­nião no Sinédrio, à qual atribuía singular importância. Os colegas acorreram ao chamado, sem exceção. Abertos os trabalhos, o doutor de Tarso esclareceu o motivo da convocação.

— Amigos — declarou ciosamente —, há tempos nos reunimos para examinar o caráter da luta religiosa que se criara em Jerusalém com as atividades dos asseclas do carpinteiro de Nazaré. Felizmente, nossa intervenção chegou a tempo de evitar grandes males, dada a argúcia dos falsos taumaturgos exportados da Galiléia. Á custa de grandes esforços, a atmosfera desanuviou-se. É ver­dade que os cárceres da cidade transbordam, mas a medida se justifica, porqüanto é indispensável reprimir o instinto revolucionário das massas ignorantes.

A cha­mada igreja do “Caminho” restringiu suas atividades àassistência aos enfermos desamparados. Nossos bairros mais humildes estão em paz. Voltou a serenidade aos nossos afazeres no Templo. Entretanto, não se pode afirmar o mesmo quanto às cidades vizinhas.

Minhas consultas às autoridades religiosas de Jope e Cesaréia dão a conhecer os distúrbios que os adeptos do Cristo vêm provocando, acintosamente, com prejuízo sério para a ordem pública. Não somente nesses núcleos precisamos desenvolver a obra saneadora, mas, ainda agora, che­gam-me notícias alarmantes de Damasco, a requererem providências imediatas.

Localizam-se ali perigosos ele­mentos. Um velho, chamado Ananias, lá está pertur­bando a vida de quantos necessitam de paz nas sinago­gas. Não é justo que o mais alto tribunal da raça se desinteresse das coletividades israelitas noutros setores. Proponho, então, estendermos o benefício dessa cam­panha a outras cidades. Para esse fim, ofereço todos os meus préstimos pessoais, sem ônus para a casa a que servimos. Bastar-me-á, tão-só, o necessário documento de habilitação, a fim de acionar todos os recursos que me pareçam acertados, inclusive o da própria pena de morte, quando a julgue necessária e oportuna.

A proposta de Saulo foi recebida com demonstrações de simpatia. Houve mesmo quem chegasse a propor um voto especial de louvor ao seu zelo vigilante, com aplau­sos unânimes da reduzida assembléia. Faltava ao cenáculo a ponderação de um Gamaliel, e o sumo-sacerdote, com­pelido pela aprovação geral, não hesitou em conceder as cartas indispensáveis, com ampla autorização para agir discricionariamente. Os presentes abraçaram o jovem ra­bino com muitos encômios ao seu espírito arguto e enér­gico. Francamente, aquela mentalidade moça e vigorosa constituía auspicioso penhor de um futuro maior, com a emancipação política de Israel. Alvo das referências lisonjeiras e estimuladoras dos amigos, Saulo de Tarso aguçava o orgulho de sua raça, esperançoso nos dias do porvir. Verdade é que sofria amargamente com a derrocada dos sonhos da juventude, mas empregaria a soledade da existência nas lutas que reputava sagradas, ao serviço de Deus.

De posse das cartas de habilitação para agir con­venientemente, em cooperação com as Sinagogas de Damasco, aceitou a companhia de três varões respeitáveis, que se ofereceram a acompanhá-lo na qualidade de ser­vidores muito amigos.

Ao fim de três dias, a pequena caravana se deslocou de Jerusalém para a extensa planície da Síria.

Na véspera da chegada, quase a termo da viagem difícil e penosa, o moço tarsense sentia agravarem-se as recordações amargas que lhe assomavam constantes. Forças secretas impunham-lhe profundas interrogações. Passava em revista os primeiros sonhos da juventude. Sua alma desdobrava-se em perguntas atrozes. Desde a adolescência que encarecia a paz interior: tinha sede de estabilidade para realizar a sua carreira. Onde en­contrar aquela serenidade, que, tão cedo, fora objeto das suas cogitações mais íntimas? Os mestres de Israel preconizavam, para isso, a observância integral da Lei. Mais que tudo, havia ele guardado os seus princípios. Desde os impulsos iniciais da juventude, abominava o pecado. Consagrara-se ao ideal de servir a Deus com todas as suas forças. Não hesitara na execução de tudo que considerava dever, ante as ações mais violentas e rudes. Se era incontestável que tinha inúmeros admi­radores e amigos, tinha igualmente poderosos adversá­rios, graças ao seu caráter inflexível no cumprimento das obrigações que considerava sagradas. Onde, então, a paz espiritual que tanto almejava nos esforços comuns? Por mais energias que despendesse, via-se como um labo­ratório de inquietações dolorosas e profundas. Sua vida assinalava-se por idéias poderosas, mas, no seu íntimo, lutava com antagonismos irreconciliáveis. As noções da Lei de Moisés pareciam não lhe bastar à sede devoradora. Os enigmas do destino empolgavam-lhe a mente. O mistério da dor e dos destinos diferenciais crivava-o de enigmas insolúveis e sombrias interrogações. Entretanto, aqueles adeptos do carpinteiro crucificado ostentavam uma serenidade desconhecida! A alegação de ignorância dos problemas mais graves da vida não prevalecia no caso, pois Estevão era uma inteligência poderosa e mos­trara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de valores espirituais que infundiam assombro.

Por mais que os companheiros lhe chamassem a atenção para os primeiros quadros de Damasco, que se desenhavam ao longe, Saulo não conseguia forrar-se ao solilóquio sombrio.

Parecia não ver os camelos resigna­dos, que se arrastavam pesadamente sob o sol de brasas, a pino, do meio-dia. Embalde foi convidado à refeição. Detendo-se por minutos num pequeno oásis delicioso, esperou que terminasse o leve repasto dos companheiros e prosseguiu na marcha, absorvido pela intensidade dos pensamentos íntimos.

Ele próprio não saberia explicar o que se passava. Suas reminiscências atingiam os períodos da primeira infância. Todo o seu passado laborioso aclarava-se, niti­damente, naquele exame introspectivo. Dentre todas as figuras familiares, a lembrança de Estevão e de Abigail destacava-se, como a solicitá-lo para mais fortes inter­rogações. Por que haviam adquirido, os dois irmãos de Corinto, tal ascendência em todos os problemas do seu ego? Por que esperava Abigail através de todas as estra­das da mocidade, na idealização de uma vida pura? Recor­dava os amigos mais eminentes, e em nenhum deles encontrou qualidades morais semelhantes às daquele jo­vem pregador do “Caminho”, que afrontara a sua auto­ridade político-religiosa, diante de Jerusalém em peso, desdenhando a humilhação e a morte, para morrer depois, abençoando-lhe as resoluções iníquas e implacáveis. Que força os unira nos labirintos do mundo, para que o seu coração nunca mais os esquecesse? A verdade dolorosa é que se encontrava sem paz interior, não obstante a conquista e gozo de todas as prerrogativas e privilégios, entre os vultos mais destacados da sua raça. Enfileirava, no pensamento, as jovens que havia conhecido no trans­curso da vida, as afeiçoadas da infância, e em nenhuma podia encontrar as mesmas características de Abigail, que lhe adivinhava os mais recônditos desejos. Atormen­tado pelas indagações profundas que lhe assoberbavam a mente, pareceu despertar de um grande pesadelo. Devia ser meio-dia. Muito distante ainda, a paisagem de Da­masco apresentava os seus contornos: pomares espessos, cúpulas cinzentas que se esboçavam ao longe. Bem montado, evidenciando o aprumo de um homem habituado aos prazeres do esporte, Saulo ia à frente, em atitude dominadora.

Em dado instante, todavia, quando mal despertara das angustiosas cogitações, sente-se envolvido por luzes diferentes da tonalidade solar. Tem a impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob pressão invisível e poderosa. Íntimamente, considera-se presa de inesperada vertigem após o esforço mental, persistente e doloroso. Quer voltar-se, pedir o socorro dos companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o auxílio.

—        Jacob!... Demétrio!... Socorram-me!... — gri­ta desesperadamente.

Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio e tomba do animal, ao desamparo, sobre a areia ardente. A visão, no entanto, parece dilatar-se ao infinito. Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados, e no caminho, que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de majestática beleza, dando-lhe a im­pressão de que descia do céu ao seu encontro. Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos ombros, à nazarena, os olhos magnéticos, imanados de simpatia e de amor, iluminando a fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.

O         doutor de Tarso contemplava-o com espanto pro­fundo, e foi quando, numa inflexão de voz inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:

—        Saulo!... Saulo!... por que me persegues?

O         moço tarsense não sabia que estava instintiva-mente de joelhos. Sem poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude desesperada. Incoer­cível sentimento de veneração apossou-se inteiramente dele. Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de emoções desconhecidas?

Enquanto os companheiros cercavam o jovem ge­nuflexo, sem nada ouvirem nem verem, não obstante ha­verem percebido, a princípio, uma grande luz no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:

—        Quem sois vós, Senhor?

Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de in­concebível doçura, o Senhor respondeu:

—        Eu sou Jesus!...

Então, viu-se o orgulhoso e inflexível doutor da Lei curvar-se para o solo, em pranto convulsivo. Dir-se-ia que o apaixonado rabino de Jerusalém fora ferido de morte, experimentando num momento a derrocada de todos os princípios que lhe conformaram o espírito e o nortearam, até então, na vida. Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele Cristo magnânimo e incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam iludidos! A palavra de Estevão era a verdade pura! A crença de Abigail era a senda real. Aquele era o Messias! A his­tória maravilhosa da sua ressurreição não era um recurso lendário para fortificar as energias do povo. Sim, ele, Saulo, via-o ali no esplendor de suas glórias divinas!

E que amor deveria animar-lhe o coração cheio de augusta misericórdia, para vir encontrá-lo nas estradas desertas, a ele, Saulo, que se arvorara em perseguidor implacável dos discípulos mais fiéis!. .. Na expressão de sinceridade da sua alma ardente, considerou tudo isso na fugacidade de um minuto. Experimentou invencível vergonha do seu passado cruel. Uma torrente de lágrimas impetuosas lavava-lhe o coração. Quis falar, penitenciar-se, clamar suas infindas desilusões, protestar fidelidade e dedicação ao Messias de Nazaré, mas a contrição sincera do espí­rito arrependido e dilacerado embargava-lhe a voz.

Foi quando notou que Jesus se aproximava e, contem­plando-o carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os ombros com ternura, dizendo com inflexão paternal:

—        Não recalcitres contra os aguilhões!...

Saulo compreendeu. Desde o primeiro encontro com Estevão, forças profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação dos novos ensinamen­tos. O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os modos.

Sem que pudessem entender a grandeza divina da­quele instante, os companheiros de viagem viram-no cho­rar mais copiosamente.

O         moço de Tarso soluçava. Ante a expressão doce e persuasiva do Messias Nazareno, considerava o tempo perdido em caminhos escabrosos e ingratos. Doravante necessitava reformar o patrimônio dos pensamentos mais íntimos; a Visão de Jesus ressuscitado, aos seus olhos mortais, renovava-lhe integralmente as concepções reli­giosas. Certo, o Salvador apiedara-se do seu coração leal e sincero, consagrado ao serviço da Lei, e descera da sua glória estendendo-lhe as mãos divinas. Ele, Saulo, era a ovelha perdida no resvaladouro das teorias escal­dantes e destruidoras. Jesus era o Pastor amigo que se dignava fechar os olhos para os espinheirOS ingratos, a fim de salvá-lo carinhosamente. Num ápice, o jovem rabino considerou a extensão daquele gesto de amor. As lágrimas brotaram-lhe do coração amargurado, como a linfa pura, de uma fonte desconhecida. Ali mesmo, no santuário augusto do espírito, fez o protesto de entre­gar-se a Jesus para sempre. Recordou, de súbito, as provações rígidas e dolorosas. A idéia de um lar morrera com Abigail. Sentia-se só e acabrunhado. Doravante, porém, entregar-se-ia ao Cristo, como simples escravo do seu amor.

E tudo envidaria para provar-lhe que sabia compreender o seu sacrifício, amparando-o na senda es­cura das iniqüidades humanas, naquele instante decisivo do seu destino. Banhado em pranto, como nunca lhe acontecera na vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assom­brado dos companheiros e ao calor escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.

—        Senhor, que quereis que eu faça?

            Aquela alma resoluta, mesmo no transe de uma capitulaçãO incondicional, humilhada e ferida em seus princípios mais estimáveiS, dava mostras de sua nobreza e lealdade.

        Encontrando a revelação maior, em face do amor que Jesus lhe demonstraVa solícito, Saulo de Tarso não escolhe tarefas para servi-lo, na renovação de seus esforços de homem.

        Entregando-se-lhe de alma e corpo, como se fora ínfimo servo, interroga com humildade o que desejava o Mestre da sua cooperação.

Foi aí que Jesus, contemplando-o mais amorosa­mente e dando-lhe a entender a necessidade de os homens se harmonizarem no trabalho comum da edificação de todos, no amor universal, em seu nome, esclareceu gene­rosamente:

—        Levanta-te, Saulo! Entra na cidade e lá te será dito o que te convém fazer!...

Então, o moço tarsense não mais percebeu o vulto amorável, guardando a impressão de estar mergulhado num mar de sombras. Prosternado, continuava chorando, causando piedade aos companheiros. Esfregou os olhos como se desejasse rasgar o véu que lhe obscurecia a vista mas só conseguia tatear no seio das trevas densas. Aos poucos, começou a perceber a presença dos amigos, que pareciam comentar a situação:

—        Afinal, Jacob — dizia um deles, evidenciando grande preocupação —, que faremos agora?

—        Acho bom — respondia o interpelado — enviar­mos Jonas a Damasco, requisitando providências ime­diatas.

—        Mas, que se teria passado? — perguntava o velho respeitável que respondia por Jonas.

       - Não sei bem — esclarecia Jacob impressiona­do —, a princípio, notei intensa luz nos céus e, logo em seguida, ouvi que ele pedia socorro. Nem tive tempo de atender, porque, no mesmo instante, ele caiu do ani­mal, sem poder esperar qualquer recurso.

—        O que me preocupa — ponderava Demétrio — é esse diálogo com as sombras. Com quem conversará ele? Se lhe escutamos a voz e não vemos ninguém, que se passará aqui, nesta hora, sem  que possamos com­preender?

       — Mas não percebes que o chefe está em delírio? —-objetou Jacob prudentemente — as grandes viagens, com o sol causticante, costumam abater as organizações mais resistentes. Além disso, como vimos, desde a manhã, ele parece acabrunhado e doente. Não se alimentou, en­fraqueceu-se com o esforço destes dias tão longos, que vimos atravessando, desde Jerusalém, com grande sacri­fício. A meu ver — concluía abanando a cabeça entristecido — trata-se de um desses casos de febres que atacam repentinamente no deserto...

O         velho Jonas, no entanto, de olhos arregalados, fixava o rabino soluçante, com grande admiração. De­pois de ouvir a opinião dos companheiros, falou, receoso, como se temesse ofender alguma entidade desconhecida:

—        Tenho grande experiência destas marchas com o sol a pino. Gastei a mocidade conduzindo camelos através dos desertos da Arábia. Mas, nunca vi um doen­te, nesses lugares, com estas características — a febre dos que caem extenuados no caminho não se manifesta com delírio e com lágrimas. O enfermo cai abatido, sem reações. Aqui, porém, observamos o patrão como se estivesse a conversar com um homem invisível para nós.

Reluto em aceitar essa hipótese, mas estou desconfiado de que, em tudo isso, haja sinal dos sortilégios do “Ca­minho” Os seguidores do carpinteiro sabem processos mágicos que estamos longe de compreender. Não igno­ramos que o doutor se consagrou à tarefa de persegui-los onde se encontrem. Quem sabe planejaram contra ele alguma, vingança cruel?

Ofereci-me para vir a Damasco, a fim de fugir dos meus parentes, que parecem seduzidos por essas doutrinas novas. Onde já se viu curar a ce­gueira de alguém com a simples imposição das mãos? Entretanto, meu irmão curou-se com o famoso Simão Pedro. Só a feitiçaria, a meu ver, esclarecerá essas coisas. Vendo tantos fatos misteriosos, em minha pró­pria casa, tive medo de Satanás e fugi.

Recolhido em si próprio, surpreendido no meio das trevas densas que o envolviam, Saulo escutou os comen­tários dos amigos, experimentando grande abatimento, como se voltasse exausto e cego, de uma imensa derrota.

Limpando as lágrimas, chamou um deles com pro­funda humildade. Acudiram todos solicitamente.

—        Que aconteceu? — perguntou Jacob preocupado e ansioso. — Estamos aflitos por vossa causa. Estais doente, senhor ?... Providenciaremos o que julgardes necessário...

Saulo fez um gesto triste e acrescentou:

—        Estou cego.

—        Mas que foi? — perguntoú o outro inquieto.

—        Eu vi Jesus Nazareno! — disse contrito, inteira­mente modificado.

Jonas fez um sinal significativo, como a afirmar aos companheiros que tinha razão, entreolhando-se todos muito admirados. Entenderam, de modo instintivo, que o jovem rabino se havia perturbado. Jacob, que era pes­soa de sua intimidade, tomou a iniciativa das primeiras providências e acentuou:

Senhor, lamentamos vossa enfermidade. Precisa­mos resolver quanto ao destino da caravana.

O         doutor de Tarso, entretanto, revelando uma humil­dade que jamais se coadunara com o seu feitio domina­dor, deixou cair uma lágrima e respondeu com profunda tristeza:

—        Jacob, não te preocupes comigo... Relativamente ao que me cumpre fazer, preciso chegar a Damasco, sem demora. Quanto a vocês... — e a voz reticenciosa que­brantara-se dolorosamente, como premida de grande an­gústia, para concluir em tom amargo —, façam como qui­serem, pois, até agora, vocês eram meus servos, mas, de ora em diante, eu também sou escravo, não mais me per­tenço a mim mesmo.

Ante aquela voz humilde e triste, Jacob começou a chorar. Tinha plena convicção de que Saulo enlou­quecera. Chamou os dois companheiros à parte e ex­plicou:

—        Vocês voltarão para Jerusalém com a triste nova, enquanto me dirijo à cidade próxima, com o doutor, a providenciar da melhor forma. Levá-lo-ei aos seus ami­gos e buscaremos o socorro de algum médico... Noto-o extremamente perturbado...

       O jovem rabino cientificou-se das deliberações quase sem surpresa. Conformou-se passivamente com a resolução do servo. Naquela hora, submerso em trevas densas e profundas, tinha a imaginação repleta de conjeturas transcendentes. A cegueira súbita não o afligia. Do âmbito daquela escuridão que lhe enchia os olhos da carne, parecia emergir o vulto radioso de Jesus, aos seus olhos de Espírito. Era justo que cessassem as suas per­cepções visuais, a fim de conservar, para sempre, a lem­brança do glorioso minuto de sua transformação para uma vida mais sublime.

Saulo recebeu as observações de Jacob, com a humil­dade de uma criança. Sem uma queixa, sem resistência, ouviu o trotar da caravana que regressava, enquanto o velho servidor lhe oferecia o braço amigo, tomado de infinitos receios.

Com o pranto a escorrer dos olhos inexpressivos,

como perdidos nalguma visão indevassável no vácuo, o

orgulhoso doutor de Tarso, guiado por Jacob, seguiu a pé, sob o sol ardente das primeiras horas da tarde.

Comovido pelas bênçãos que recebera das esferas mais elevadas da vida, Saulo chorava como nunca. Es­tava cego e separado dos seus. Dolorosas angústias re­presavam-se-lhe no coração opresso. Mas a visão do Cristo redivivo, sua palavra inesquecível, sua expressão de amor lhe estavam presentes na alma transformada. Jesus era o Senhor, inacessível à morte.

Ele orientaria os seus passos no caminho, dar-lhe-ia novas ordens, se­caria as chagas da vaidade e do orgulho que lhe corroíam o coração; sobretudo, conceder-lhe-ia forças para reparar os erros dos seus dias de ilusão.

Impressionado e triste, Jacob guiava o chefe amigo, perguntando a si próprio a razão daquele pranto inces­sante e silencioso.

Envolvido na sombra da cegueira temporária, Saulo não percebeu que os mantos espessos do crepúsculo abraçavam a Natureza. Nuvens escuras precipitavam a queda da noite, enquanto ventos sufocantes sopravam da imensa planície. Dificilmente, acompanhava as pas­sadas de Jacob, que desejava apressar a marcha, receoso da chuva. Coração resoluto e enérgico, não reparava os obstáculos que se antepunham à sua jornada dolorosa. Faltava-lhe a visão, necessitava de um guia; mas Jesus recomendara que entrasse na cidade, onde lhe seria dito o que tinha a fazer. Era preciso obedecer ao Salvador que o honrara com as supremas revelações da vida. A passos indecisos, ferindo os pés em cada movimento inseguro, caminharia de qualquer modo para executar as ordens divinas. Era indispensável não observar as dificuldades, era imprescindível não esquecer os fins. Que importava o olhar em trevas, o regresso da caravana a Jerusalém, a penosa caminhada a pé em demanda de Damasco, a falsa suposição dos companheiros a respeito da inolvidável ocorrência, a perda dos títulos honoríficos, o repúdio dos sacerdotes seus amigos, a incompreensão do mundo inteiro, diante do fato culminante do seu destino?

Saulo de Tarso, com a profunda sinceridade que lhe caracterizava as mínimas ações, só queria saber que Deus havia mudado de resolução a seu respeito. Ser-lhe-ia fiel até ao fim.

Quando as sombras crepusculares se faziam mais densas, dois homens desconhecidos entravam nos subúr­bios da cidade. Embora a ventania afastasse as nuvens tempestuosas na direção do deserto, grossos pingos de chuva caíam, aqui e ali, sobre a poeira ardente das ruas.

As janelas das casas residenciais fechavam-se com es­trépito.

Damasco podia recordar o jovem tarsense, formoso e triunfador. Conhecia-o nas suas festas mais brilhantes, costumava aplaudi-lo nas sinagogas. Mas, vendo passar na via pública aqueles dois homens cansados e tristes, jamais poderia identificá-lo naquele rapaz que caminhava cambaleante, de olhos mortos...

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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