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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Psicoduelo / Willian Voltz
O Psicoduelo / Willian Voltz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Psicoduelo

 

O computador de Árcon foi enganado pelos acônidas...

Crest, o primeiro amigo arcônida de Perry Rhodan, previra há tempos que um dia a raça ativa e arrojada dos terranos assumiria o império decadente dos arcônidas, e sobre seus escombros construiria o reino estelar da Humanidade.

Será que já chegou o dia em que a previsão de Crest deve cumprir-se...? Será que no ano 2.105 — menos de século e meio depois do dia em que os homens se aventuraram pela primeira vez no espaço já estão em condições de substituírem os arcônidas no governo dos setores conhecidos da Via Láctea?

Atlan, o imperador, que nunca se deu bem com seus decadentes cortesãos, enfrenta tamanhas dificuldades que há muito só consegue manter-se graças ao auxílio dos terranos e do gigantesco computador. A missão dos sabotadores consistiu em pôr fora de ação o computador-regente. Embora tenham sido mortos pelas armas da máquina positrônica, assim que desativaram seu campo temporal, os sabotadores ainda parecem ter cumprido antes de sua morte a tarefa que lhes fora designada pelos homens que chefiavam a conspiração contra Atlan...

O computador não mais reage fielmente às ordens do imperador que exige a realização d'O Psicoduelo.

 

                                                 

 

Bastava que Salor Henno, representante do Grande Império em Zalit, olhasse pela janela lateral de seu gabinete, para que visse a tropa de choque dos revoltosos que, ajudada por dois robôs de combate, estava abrindo uma brecha nas barricadas. Além de Henno havia na sala um robô moderno e três criados zalitas. Estes não deixavam a menor dúvida sobre o lado ao qual dedicavam sua simpatia. Henno não se atreveria a dar-lhes as costas.

— Ponham fogo no edifício! — gritou uma voz estridente.

Henno, um homem pequeno e rechonchudo, de olhos miúdos e pernas curtas, fez um sinal para o robô.

— Seria preferível levar estes homens para fora — disse. — Talvez pensem em atacar-me de repente.

Sem dizer uma palavra, a máquina de guerra abriu a porta e num gesto ameaçador levantou os braços armados. Henno notou a expressão de furiosa obstinação nos olhos dos zalitas, mas estes souberam controlar-se e retiraram-se em silêncio.

— Fique de guarda na porta — ordenou Henno.

Voltou a olhar para baixo. Viu que a resistência das tropas que o protegiam estava prestes a desmoronar. O barulho era infernal. Os dois robôs dos rebeldes pareciam ter sido programados pelo demônio em pessoa, pois avançavam ininterruptamente à frente dos donos. Suas superfícies metálicas estavam foscas e cobertas de arranhões. Atrás deles, os zalitas subiam, com um barulho atordoante, nas barricadas e as derrubavam. Era um grupo heterogêneo, que trazia tudo quanto era arma. Só tinham uma coisa em comum: o desejo ardente de matar Henno e assumir o poder.

E, ao que parecia, conseguiriam seu intento. Henno aproximou-se da escrivaninha, abriu a gaveta e tirou a arma regulamentar. Pesou-a cuidadosamente nas mãos e enfiou-a no cinto. Quando voltou à janela, viu um homem solitário de pé sobre uma barricada semidestruída. O desconhecido jogava pedras, na direção das janelas que ficavam sob a de Henno. Este pegou a arma e quebrou as vidraças. O rugido da batalha era tão forte que não se ouviu o barulho produzido pelos cacos.

Uma coluna de fumaça azul-escura subiu a alguns metros do lugar em que se encontrava Henno. Provavelmente boa parte do pavimento inferior estava em chamas. Henno lançou um olhar cético para os aparelhos de rádio. Há dias emitira um pedido de socorro. Foi quando os tumultos começaram. Deveria esperar até que as massas enfurecidas conseguissem entrar no edifício?

“Se o imperador tivesse enviado a frota para me ajudar”, pensou, “não haveria motivo para eu me sacrificar.”

Henno sempre soubera pesar cuidadosamente todas as circunstâncias, à procura de sua vantagem. Sabia perfeitamente quando tinha perdido o jogo. O representante do Grande Império orientava seus atos pela situação existente a cada momento.

Os homens arrojados, que se lançavam ao ataque lá embaixo, estavam avançando. Haviam incendiado o edifício e penetravam na construção, vindos de todos os lados. O povo estava do lado deles. Fora excitado com discursos exaltados e absorvera as promessas como se fossem vinho, embriagando-se com as frases.

Mais uma vez a divisa era: Abaixo o imperador!

A fumaça penetrou-lhe nas narinas. Henno espirrou. O robô mantinha-se junto à porta, em atitude de espera.

— Vamos fugir — decidiu Henno. — Vá andando.

Afastou-se da janela, com o berreiro dos rebeldes ressoando nos ouvidos. Em cima da escrivaninha estava pendurado um retrato; um efeito tridimensional fazia com que parecesse mais jovem. Henno ergueu a arma e destruiu-o, pois a idéia de que pudesse fundir-se lentamente sob o efeito das chamas, que chegariam até o andar onde se encontrava, causava-lhe uma sensação nada agradável.

O robô abriu a porta. O braço armado apontava para o corredor, pronto para atacar.

— Espere! — ordenou o representante do Grande Império.

Henno foi até a gaveta secreta de sua escrivaninha e pegou uma carteira recheada de notas. Sorriu enquanto a prendia ao cinto. Fez pontaria com toda calma e disparou contra a escrivaninha, que pegou fogo imediatamente sob o efeito do raio saído da arma.

— É uma pena que o dinheiro do contribuinte tenha esse destino, imperador — disse em tom irônico.

Lançou mais um olhar para o ambiente com o qual estava tão familiarizado e dirigiu-se ao robô:

— Vamos embora!

Saíram em desabalada carreira pelo corredor. Dos elevadores e das escadas saíam os primeiros membros do corpo de guardas. Os rostos cobertos de suor fitavam-no com uma expressão de desespero.

Henno colocou-se à frente dos fugitivos.

— Temos de lutar — gritou para eles. — Se desistirmos, estaremos todos perdidos.

Brandia furiosamente a arma e, depois de uma ligeira hesitação, os soldados voltaram a entrar em combate. Henno sorriu; parecia satisfeito.

“Se esses idiotas ingênuos conseguirem deter os atacantes até que eu chegue à cobertura, nada poderá me acontecer”, pensava Henno. “O planador me levará ao porto espacial, onde posso continuar a fuga numa nave robotizada...”

Era pouco provável que o porto espacial já tivesse caído nas mãos dos rebeldes, pois estava cercado de fortificações poderosíssimas. Zalit era considerado um foco de desordens, pois, desde o tempo da colonização pelos velhos arcônidas, a subversão costumava lavrar nesse mundo.

Henno tomou a direção oposta, a fim de prosseguir na fuga. O robô passou silenciosamente por ele.

Subitamente um homem apareceu bem à frente, no fim do corredor.

Não era zalita nem arcônida puro. Movimentava-se com uma preocupação que quase chegava as raias da leviandade. O representante do Grande Império parou e fez um sinal para o robô. Depois disso Henno tirou sua própria arma.

O desconhecido não era alto, mas tinha os ombros largos. Henno teve a impressão de que havia uma expressão irônica em seu rosto anguloso. O homem envergava um traje de guerra arcônida e segurava a arma com uma atitude indiferente. Quando se encontrava a apenas cinco metros, Henno soltou um grito de advertência.

— Nem mais um passo — disse. — Quem é o senhor?

Um sorriso de criança surgiu no rosto do desconhecido. A aproximação do rugido da batalha não parecia impressioná-lo.

— Meu nome é Tate — disse, falando muito devagar e fitando Henno. — O senhor deve ser o representante do Grande Império em Zalit.

Falava o arcônida com um estranho sotaque, mas não cometeu nenhum erro.

Henno fitou-o com uma expressão de desconfiança.

— O que veio fazer aqui? — perguntou em tom contrariado. — Pretende esperar até que sejamos mortos a tiros?

Tate sorriu.

— Vim para ajudá-lo a sufocar a revolta — disse.

Henno ficou tão perplexo que não soube o que responder. Depois de algum tempo, disse em tom de incredulidade:

— Não venha me dizer que nós dois sozinhos estamos em condições de enfrentar essa turba.

Tate acenou fortemente com a cabeça.

— Nós dois e “chique-chique” — disse, acariciando a estranha arma, que trazia consigo. O que mais espantava nesse homem era o fato de que ele próprio parecia acreditar no que dizia.

Henno convenceu-se de que o homem que se encontrava à sua frente só podia ser um louco, e que não deveria permitir que o mesmo o detivesse por mais tempo.

— Saia do meu caminho — gritou. — Voarei até o porto espacial juntamente com este robô. Há um planador na cobertura. Venha comigo, se tiver bastante inteligência para isso. Daqui a algumas horas, a frota intervirá nos acontecimentos.

Tate ergueu “chique-chique” e, num gesto inconfundível, apontou para o peito de Henno. A expressão alegre de seu rosto apagou-se de um instante para outro.

— Acho que o senhor ainda não compreendeu — disse em tom suave. — Nem uma única nave pousará em Zalit.

O orifício escuro do cano de “chique-chique” apontava ameaçadoramente para Henno. O representante do Grande Império empalideceu, mas teve suas dúvidas em ordenar a intervenção do robô.

— Deixe que lhe conte rapidamente uma coisa — sugeriu Tate. — Antes de mais nada, não faça tolices. Reagirei antes que o senhor tenha tempo de piscar um olho para essa máquina.

Tudo que o homem dizia soava perfeitamente natural. Henno nunca vira ninguém que fosse dotado de tamanha autoconfiança.

— Fale — disse com a voz rouca.

— Sou um agente terrano que atua em Zalit — principiou Tate. — Até aqui minha tarefa consistiu em observar os acontecimentos, de uma distância segura, e apresentar meus relatórios a intervalos regulares.

— Quer dizer que o senhor é terrano — disse Henno, perplexo.

“Chique-chique” balançou ligeiramente quando Tate acenou com a cabeça para confirmar a suposição de Henno.

— O couraçado Tróia, acompanhado de seis cruzadores ligeiros da Frota Solar e mais quarenta e quatro unidades robotizadas pesadas do Grande Império estavam a caminho de Zalit — informou o agente.

— Estavam a caminho?! — repetiu Henno, em tom de espanto.

— Teremos de agir por nossa conta. A partir deste momento, assumo o comando. Num futuro próximo, o senhor receberá uma mensagem do imperador, na qual encontrará uma explicação para o que aconteceu.

Uma bomba de arremesso explodiu na extremidade oposta do corredor.

— Deixe-me fugir — pediu Henno.

— É tarde — respondeu Tate em tom indiferente e apontou com a cabeça na direção em que, segundo sabia Henno, estavam os rebeldes.

O representante do Grande Império virou a cabeça e viu os primeiros revoltosos precipitarem-se pelo corredor. Gritavam furiosamente, e muitos deles seguravam garrafas, das quais tomavam um gole a intervalos regulares.

— Estamos perdidos — disse Henno.

Tate arremessou-se para o lado. O disparo de um fuzil de radiações passou ruidosamente a seu lado. Henno jogou-se no chão. O barulho era indescritível. Henno virou o corpo e viu Tate apontar sua arma.

“Chique-chique” disparou pela primeira vez. Seu poder de fogo varreu o corredor, arrasou a parede e rachou a escada em duas partes. Tate soltou uma risada, enquanto Henno mal conseguia respirar e procurava acostumar os olhos lacrimejantes à fumaça.

Tate logo se pôs de pé e correu em direção à nova leva de atacantes que subia pela escada semidestruída, disparando suas armas em meio a uma gritaria infernal. Henno também interveio na luta, mas teve de agir com cuidado para não atingir o terrano, que parecia estar em quase todos os lugares ao mesmo tempo. A arma de Tate rechaçava o inimigo. O representante do Grande Império perguntou a si mesmo o que aconteceria se as unidades da frota não viessem em seu auxílio. Ouviu o terrano berrar uma ordem, mas não entendeu o sentido de suas palavras.

— O robô! — voltou a gritar Tate. — Mande a máquina entrar na luta.

Numa questão de minutos, o agente terrano passou a corporificar a coragem e a resolução na mente de Henno. Mas este duvidava de que Tate conseguisse resistir por muito tempo.

Henno pesou suas chances e chegou à conclusão de que não eram muito boas. Devia desviar as atenções do terrano de sua pessoa. Deu uma ordem ao robô, e a máquina de guerra pôs-se em movimento para ajudar Tate.

Henno viu o agente junto à escada. Estava envolto numa nuvem de pó e fumaça. Levou um instante para absorver o quadro inacreditável, mas logo saiu correndo. Ouviu “chique-chique” ser disparado mais uma vez. A força do deslocamento do ar atingiu-o até mesmo na entrada do elevador que levava para a cobertura, com a violência de um temporal. Henno saltou para dentro do poço e comprimiu os botões. Seu coração batia furiosamente, mas o alívio que lhe proporcionava a fuga bem-sucedida fez com que se sentisse mais calmo. O elevador parou e o representante do Grande Império saiu para o terraço com cobertura. Sentiu o ar frio bater em seu rosto e soltou um suspiro de alívio. O ruído do combate mal chegava aos seus ouvidos. Uma série de explosões fez um edifício estremecer. Nuvens de fumaça cinza-escura subiam junto à cobertura.

O planador estava estacionado no lugar de sempre. Parecia intacto. Muito satisfeito, Salor Henno pôs a mão na carteira que trazia presa ao cinto.

“Não existe nenhuma situação que um homem esperto não consiga enfrentar”, pensou.

Bastava não perder a cabeça nem agir loucamente como o tal de Tate. Henno sacudiu o corpo. Deveria ser grato ao terrano, pois este, ao travar o combate de retaguarda, lhe prestava um excelente serviço.

Henno chegou ao planador e entrou. Dali a dois minutos teve uma péssima surpresa. Constatou que os comandos automáticos e manuais estavam bloqueados. Henno soltou uma praga e pôs-se a procurar o defeito. O representante do Grande Império ficou trabalhando até que o suor começou a porejar em sua testa. Finalmente teve de reconhecer que seus esforços eram inúteis.

Alguns pavimentes abaixo, a luta parecia continuar. As chamas quase atingiam as laterais da cobertura.

Henno voltou a sentir o medo da morte. Sem um destino definido, saiu apressadamente do planador. Nem teve idéia de tomar qualquer medida para defender-se. Parecia um animal fugindo cegamente, à procura de um lugar em que pudesse abrigar-se.

Um vulto saiu do poço do elevador e começou a caminhar pelo terraço com cobertura. Cambaleou um pouco, mas sua mão livre pegou o colarinho de Henno e sacudiu-o, enquanto a outra mão segurava “chique-chique.”

— O que houve? — perguntou Tate.

Henno estremeceu, mas não demorou em reconhecer naquele rosto borrado os traços do agente terrano.

— Ainda está vivo? — gaguejou.

Tate deu uma risadinha e soltou o representante do Grande Império.

— Naturalmente — disse com uma calma inacreditável.

— Os comandos do planador não estão funcionando — disse Henno em tom animado, pois alguma coisa lhe dizia que o homem à sua frente estava em condições de remover as dificuldades.

— Sei — disse Tate, com a maior tranqüilidade. — Tomei a liberdade de mexer no seu aparelho voador, a fim de impedir que o senhor queira abandonar “chique-chique” e a minha pessoa.

Henno perguntou a si mesmo se a esperteza era suficiente para que um homem pudesse defender-se. Talvez ainda houvesse necessidade de combinar inteligência e coragem. E estas duas qualidades era Tate quem as possuía.

— O que houve com os rebeldes? — perguntou.

O agente fez um gesto indefinido.

— Estão lá embaixo — disse. — Conseguiram desligar seu robô, mas de qualquer maneira estarão ocupados por algum tempo. Podemos voar tranqüilamente até o porto espacial.

Henno começou a falar em tom de embaraço:

— Não deveria tê-lo deixado só, lá embaixo. Cometi um erro ao procurar fugir sem o senhor.

Tate nem parecia ter pensado nisso, pois limitou-se a fazer um gesto indiferente.

— Vamos — disse e saiu caminhando em direção ao planador.

Entraram no veículo. Com alguns movimentos Tate preparou os comandos do aparelho. Assobiava alegremente. Manteve “chique-chique” ao alcance da mão.

— Que arma é essa? — perguntou Henno, em tom hesitante.

— É uma arma velha, que já saiu da moda e nem deveria existir mais — respondeu o terrano. — Sua grande vantagem consiste no volume do ruído que produz. Sempre que explode uma granada arremessada por ela, tem-se a impressão de que várias bombas acabaram de ser jogadas.

Deu partida no planador, que se ergueu acima da cobertura. Henno olhou para a rua, onde os rebeldes cercavam o edifício em chamas e começavam a festejar a vitória, Se naquele momento havia alguma tristeza no espírito do representante do Grande Império, esse sentimento era provocado, antes por seus prejuízos pessoais, que os danos sofridos pelo império.

Mais dia menos dia, os novos detentores do poder seriam varridos por outra revolução. Outros nomes surgiriam e passariam a determinar os destinos de Zalit. Era um mundo conturbado; o coração dos colonos não conhecia o sossego. As lutas da independência, que se estenderam por decênios, fizeram com que se tornassem irritadiços e subversivos. Só mesmo com a intervenção de algumas unidades da frota seria possível sufocar a revolta.

Tate, o terrano, dissera a Henno que nenhuma nave viria ao planeta. Para Henno, o planeta apenas representava um trecho da vida, para Tate corporificava a idéia da luta e da intriga e para os rebeldes era o símbolo da liberdade.

Qualquer planeta pode significar coisas muito diversas para homens diferentes. Tudo depende do ponto de vista de cada um.

Henno viu o chão deslizar embaixo dele e absorveu as impressões causadas pelos reflexos coloridos. As costas largas do terrano estavam encurvadas em cima dos controles.

“Poderia abatê-lo pelas costas”, pensou Henno.

Não o fez, pois sabia perfeitamente que dependia de Tate.

— Bem — disse Tate. — Vou contar o que aconteceu com as naves convocadas pelo senhor.

Virou-se, apoiou-se sobre “chique-chique” e começou a contar.

 

A ordem de entrar em ação foi recebida poucos minutos depois das sete horas, tempo padrão. O comodoro Michael Fellmann, que se encontrava a bordo do couraçado Tróia, que circulava juntamente com seis cruzadores ligeiros e quarenta e quatro naves robotizadas do Grande Império pelo grupo estelar M-13, recebeu a ordem das mãos de Mac-Danies, chefe da equipe de rádio.

— Envie nossa confirmação Mac-Danies — disse Fellmann. — Tomaremos imediatamente o rumo de Zalit.

Fellmann era um homem calmo, que quase chegava a parecer melancólico. Segundo se dizia, possuía certas faculdades extraordinárias. Seu cabelo louro estava bem repartido, e as sobrancelhas espessas davam-lhe um aspecto sombrio. Ninguém jamais o ouvira rir alto, e quando falava seus lábios se moviam como os de um velho desdentado.

O comodoro nunca se mostrava mal-humorado e era muito raro que uma ironia vibrasse em sua voz. Entre ele e seus tripulantes era mantida uma reserva que não parecia malévola nem tensa. Era tão-somente o resultado do gênio reservado de Fellmann, que parecia sentir-se muito bem da forma que era. Fellmann saíra da Academia Espacial com a nota de distinção, e suas ações costumavam ser coroadas de êxito.

— É uma ordem pessoal do administrador — disse Fellmann, dirigindo-se ao imediato, o africano Donald Suwari. — Quer que nossa unidade se dirija imediatamente ao planeta Zalit. Por lá está havendo tumultos, e o representante do Grande Império, que é um certo Salor Henno, transmitiu um pedido de socorro. Vamos entrar em contato com Wayne Tate, que é nosso agente nesse mundo.

Os olhos claros de Suwari brilharam no rosto escuro.

— Conheço Tate, sir — disse com um sorriso. — Há quatro anos levamos a efeito uma ação conjunta. É um sujeito tão arrojado que dificilmente se encontra outro igual. Costuma carregar um lança-granadas muito antigo. Se não me engano até inventou um nome para aquilo.

— O nome é “chique-chique” — disse Fellmann em tom indiferente, provando mais uma vez que parecia saber de tudo.

— É verdade, sir — confirmou Suwari, em tom de perplexidade.

— Mande calcular imediatamente as coordenadas do salto para Zalit — ordenou o comodoro. — Não queremos sair muito perto do sistema. Observe a distância usual. Enquanto isso entraremos em contato com Tate pelo hiper-rádio. Pode-se alcançá-lo por meio de uma mensagem em código. Dispõe de um aparelho com o respectivo dispositivo de registro. Se não estiver em casa, poderá ouvir a mensagem posteriormente. Quero que ele saiba que estamos a caminho.

Da Tróia foram expedidas mensagens de rádio destinadas às naves do mesmo grupo. Os comandantes foram informados. Nas unidades robotizadas, as instruções de Fellmann eram absorvidas pelos computadores positrônicos, instalados a bordo das naves.

Menos de uma hora depois disso, as naves entraram em transição. Wayne Tate fora avisado, e dissera que procuraria entrar em contato com Henno assim que as espaçonaves saíssem do hiperespaço.

Quando a dor da transição passou, Fellmann dirigiu-se imediatamente ao aparelho de hiper-rádio e entrou em contato com Tate, que já se mantinha à espera.

— Aguarde mais alguns minutos, Tenente Tate. Vou realizar uma conferência com os oficiais e depois disso darei às minhas naves instruções definitivas para entrarem em ação.

— Está bem, sir — respondeu o agente. Fellmann dirigiu-se a Suwari.

— Avise as quarenta e quatro naves robotizadas de que iniciaremos uma ação contra Zalit — disse. — Assim que nossa conferência chegue ao fim, todas devem estar preparadas.

Qualquer oficial da Frota Solar, inclusive Fellmann, sabia que as naves robotizadas dos arcônidas não tinham a mesma mobilidade das unidades terranas. A causa disso era a falta de tripulantes, e o fato de que os computadores de bordo consultavam constantemente o computador-regente. Nenhuma nave podia desenvolver uma ação autônoma; todas eram dirigidas pelo gigantesco cérebro positrônico.

Suwari foi à cabina de rádio, a fim de instruir Mac-Danies.

O africano logo voltou. Fellmann estava estudando um mapa da superfície de Zalit. Interrompeu esse trabalho assim que Suwari entrou, pois sentiu o nervosismo do mesmo.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou o comodoro, franzindo as sobrancelhas espessas.

— Não estão respondendo — respondeu o imediato da Tróia, perturbado.

A expressão do rosto de Fellmann quase não se modificou. Empurrou o mapa por cima da mesa de navegação e fitou Suwari.

— Acho que não estou compreendendo — disse com a maior tranqüilidade.

— As naves robotizadas dos arcônidas não respondem à ordem de entrarem em ação contra Zalit — disse Suwari apressadamente. — Mac-Danies fez de tudo. Devem ter recebido nossas mensagens, mas não dão a menor atenção às mesmas.

— Não é possível! — exclamou Fellmann. — Mac-Danies! — gritou. — Será que há algum problema com o equipamento?

Mac-Danies enfiou a cabeça hirsuta pela porta da cabina e fitou seu superior com uma expressão preocupada.

— O equipamento está em ótimas condições, sir — disse num tom que fez com que Fellmann compreendesse não haver nada no mundo que pudesse fazer com que Mac-Danies mudasse de opinião.

Fellmann fez um sinal para Suwari e ambos se dirigiram ao lugar em que estava Mac-Danies. Suwari sentiu os olhares dos outros ocupantes da sala de comando.

— Vamos, Mac-Danies — ordenou Fellmann. — Vamos tentar mais uma vez.

Danies acionou os controles. Por algum tempo mantiveram-se com os ouvidos atentos. Finalmente o radio-operador disse em tom contrariado:

— O senhor está vendo, sir. Nem sinal de resposta.

Fellmann passou a mão pelo cabelo liso, ignorando o olhar de perplexidade de Suwari.

— Tente uma mensagem diferente — ordenou o comodoro. — Pergunte-lhes qual é o jogo em que estão metidos.

Não pôde deixar de confessar a si mesmo que a situação o deixava um tanto inquieto. Se as salas de comando daquelas naves fossem ocupadas por seres vivos, talvez haveria uma explicação. Acontece que se tratava de computadores desalmados, que agiam segundo as ordens do robô de Àrcon. Para Fellmann a Cibernética sempre fora um problema; era incapaz de imaginar o que teria levado as naves robotizadas a agirem dessa forma. Afinal, Rhodan ressaltara, no relatório dirigido à frota, que as naves robotizadas de Atlan apoiariam as unidades da Frota Solar e ficariam submetidas às ordens dos comandantes terranos. Acontece que as naves robotizadas recusavam todo e qualquer contato de rádio e seguiam as ordens do gigantesco centro de computação de Árcon III.

— Não estão respondendo, sir — disse Mac-Danies depois de algum tempo, interrompendo as reflexões de Fellmann.

— Deve ser um problema passageiro — observou o comodoro. — De qualquer maneira nos dirigiremos imediatamente a Zalit.

As ordens de Fellmann foram transmitidas para as diversas naves, que confirmaram o recebimento. Só as unidades arcônidas permaneceram mudas.

— Afinal, o que. importa é que nos acompanhem — disse Fellmann.

O couraçado Tróia foi-se desprendendo do ajuntamento das outras naves. Seus gigantescos propulsores entraram em funcionamento. Os seis cruzadores ligeiros acompanharam a unidade maior.

Suwari, que observava os controles, gritou para Fellmann:

— As naves robotizadas não nos acompanham, sir. Estão paradas no espaço.

Fellmann mandou que a Tróia parasse. As telas de imagem do serviço de localização espacial retratavam nitidamente as naves robotizadas do computador gigante. Fellmann teve a sensação de uma desgraça que se aproximava. Forçou o pensamento ao máximo, a fim de encontrar um princípio de explicação.

— Parece que não querem ir conosco a Zalit, sir — disse Viceroy, um oficial magro, que era o encarregado do sistema de computação de bordo.

Fellmann confirmou com um gesto.

— Gostaria de saber por quê — respondeu em tom deprimido.

De repente entesou-se.

— Recebemos ordens para sufocar a revolta em Zalit, e é o que faremos — disse. — É o que faremos com ou sem o apoio das unidades robotizadas.

Ouviu o murmúrio de confirmação dos tripulantes, que sempre tiveram certa antipatia para com as naves arcônidas. Fellmann sabia perfeitamente que os soldados da Frota Solar só esperavam uma oportunidade de provar que eram melhores que os mecanismos desalmados. Se prestasse atenção ao que se passava em sua mente, o comodoro não poderia deixar de reconhecer que com ele acontecia exatamente o mesmo.

— Vamos afastar-nos das naves robotizadas — ordenou.

O rosto escuro de Suwari manteve-se impassível quando este assumiu os controles do couraçado Tróia. Aquele africano temperamental costumava ser o extremo oposto de Fellmann.

— Ligue para a aceleração máxima — principiou Fellmann, mas não pôde concluir. Um forte abalo sacudiu o couraçado. O comodoro foi arremessado para o lado e bateu nas mesas de navegação.

— Estão atirando contra nós! — gritou Suwari, fora de si. — Estão atirando...

Fellmann levou apenas uma fração de segundo para compreender que o imediato se referia às naves robotizadas. A desgraça que sentira por perto estava desabando sobre ele com toda violência. O que acabara de acontecer era uma monstruosidade. As naves espaciais de um aliado, o Imperador Gonozal VIII, também conhecido como Atlan, abriram fogo contra eles. E essas naves haviam sido incumbidas de apoiar os terranos em sua missão...

Era inacreditável, e a mente de Fellmann recusava-se a aceitar o fato.

Teve a idéia vaga de que aquilo era parte de um grande conjunto de acontecimentos que chegaria a ameaçar até a Terra.

— Ao que parece, querem evitar que nos dirijamos a Zalit! — exclamou Viceroy, levantando-se com o auxílio das mãos junto aos controles em que caíra. Seu rosto magro estava convulsionado.

Fellmann teve certeza de que o robô gigante estava atrás desses atos, pois os computadores positrônicos das naves arcônidas nunca poderiam ter transmitido tal ordem, sem consultar o centro de computação de Árcon III.

Fosse por que fosse, o fato era que o cérebro robotizado mudara de idéia e resolvera recusar sua ajuda às naves terranas. E não era só isso. Chegava a atacar os terranos, se estes quisessem empreender qualquer ação em sua área de influência. Fellmann perguntou-se qual seria a reação de Atlan, o imperador.

No mesmo instante, a vontade de resistir ao ataque inesperado tomou corpo na mente do comodoro. Acreditava que os disparos só haviam sido feitos a título de advertência, pois as sete naves terranas não teriam resistido a um ataque maciço de surpresa de todas as unidades robotizadas. A lógica lhe dizia que, se houvesse um conflito, não teria nenhuma chance. Reprimiu a cólera. Afinal, era responsável por algumas centenas de homens, cuja vida não devia arriscar numa ação leviana.

— Vamos suspender a ação e nos retirarmos — ordenou. — Suwari, mande verificar imediatamente as avarias sofridas pela Tróia.

Mac-Danies saiu cambaleando da cabina de rádio, segurando a cabeça.

— A resposta foi essa, sir — disse num sarcasmo furioso. — Espero que o senhor não os deixe esperar pela nossa resposta.

Fellmann fitou atentamente o radio-operador.

— Se quiser uma batalha espacial, entre no seu traje de combate e lute sozinho — disse Fellmann.

Mac-Danies bateu ruidosamente na mesa de navegação. Seu rosto ficou vermelho.

— Sir, não venha me dizer que vai aceitar o ataque sem mais aquela!

Muito sério, Fellmann apontou para os controles, que mostravam as naves robotizadas sob a forma de pontos luminosos.

— Essa superioridade esmagadora não nos deixaria a menor chance — disse.

Mac-Danies massageou a cabeça e, gemendo fortemente, apalpou os quadris. Voltou à cabina de rádio.

— Seu gênio de irlandês mais uma vez levou a melhor — disse Viceroy, como se lhe coubesse encontrar uma desculpa para o procedimento do radioperador.

Seguida por seis cruzadores ligeiros, a Tróia retirou-se das imediações de Zalit, sem que as naves robotizadas, que se mantinham imóveis no espaço, procurassem impedi-la.

Fellmann estabeleceu contato com Terrânia, pelo hiper-rádio, a fim de que Rhodan fosse informado pessoalmente dos acontecimentos.

O comodoro ficou sabendo que acontecimentos semelhantes se verificavam em todos os pontos da Galáxia. O administrador ordenara a todas as naves que se retirassem para o sistema solar.

Fellmann mandou calcular as coordenadas do salto e seu pequeno grupo iniciou a viagem em direção à Terra.

A última coisa que fez antes da transição foi estabelecer contato com Tate, a fim de fornecer um relato minucioso ao agente.

Isso foi o início de uma série de acontecimentos que terminaria num confronto entre a Terra e o computador de Árcon. Em condições normais, a Terra não teria a menor chance.

 

— Como vê, é pouco provável que alguém venha ajudar-nos — concluiu Tate. — Não acredito que as naves robotizadas apareçam por aqui. Há algo de errado com o grande centro de computação.

Tal qual todos os arcônidas, Henno confiava cegamente no robô. Afinal, a máquina positrônica dirigia a história de sua raça desde tempos imemoriais.

— Deve haver uma explicação lógica para tudo — disse.

— Não nos cabe descobrir isso — lembrou o agente. — Temos outras coisas a fazer. Resta saber se o senhor está disposto a ajudar-me.

Henno sentiu que a energia interior desse homem era transferida para ele. Sentiu forças para acompanhar Tate em qualquer luta que o mesmo quisesse travar.

— O que faremos? — perguntou.

— Ainda pretende ir ao porto espacial? — perguntou Tate.

Henno tirou a carteira do cinto e agitou-a diante dos olhos de Tate.

— Acho que com isto poderemos fazer muita coisa — disse com um sorriso. — O dinheiro nos será útil no porto espacial ou em qualquer outro lugar em que o senhor queira fazer seu trabalho.

— Em três — respondeu Tate em tom suave, acariciando “chique-chique” — deixaremos este planeta de pernas para o ar, caso isso seja necessário.

Henno não teve a menor dúvida de que o terrano seria capaz disso...

 

Costuma-se dizer que só compreendemos quanto vale uma coisa depois que a perdemos. Sem dúvida havia no Grande Império muita gente que sabia apreciar o trabalho do robô gigante, mas para a grande maioria sua atividade se transformara numa coisa natural, que era aceita como um sol ou uma lua, que pertencem ao ambiente em que vivemos. Para muitos arcônidas a existência do gigantesco centro de computação era tão natural que nele não viam um conjunto mecânico, mas uma parte integrante do império, que funcionava muito bem.

Em outras palavras, os arcônidas, com raras exceções, haviam criado uma dependência completa face ao robô. Para esse tipo de gente, Atlan era uma figura secundária, um personagem puramente representativo que não tinha importância política, um boneco que se submetia à vontade do grande centro positrônico.

Mas havia pessoas que estavam muito bem informadas sobre as verdadeiras tarefas de Atlan. Essas pessoas conheciam o grau de influência exercido pelo imperador. As ordens mais importantes provinham dele, não do cérebro robotizado. Atlan ocupava um posto-chave que, contando com o apoio do grande centro de computação, representava um importantíssimo fator no jogo de forças.

Era bem verdade que as pessoas que conheciam a posição política de Gonozal VIII não se sentiam nada felizes com a mesma. Pelo contrário, empenhavam todas as forças para derrubar Atlan, a fim de colocar no poder um elemento saído de suas fileiras.

Os que participavam dos movimentos subversivos sabiam perfeitamente que, para derrubar o imperador, seria necessário antes de mais nada pôr fora de ação o computador. Por isso verificara-se, além dos constantes atentados contra Gonozal VIII, um ataque misterioso ao gigantesco cérebro positrônico. Oito acônidas conseguiram penetrar no interior do robô, por meio dos seus transmissores, e trabalharam com a maior calma até que Rhodan entrasse em ação, eliminando o outro pólo da estação transmissora. Mas o cérebro robotizado matou os oito acônidas com suas próprias armas, antes que Rhodan tivesse tempo para interrogá-los. Os únicos vestígios que restaram foram alguns fragmentos dos aparelhos acônidas, dos quais ninguém conseguia extrair um sentido.

Por enquanto não se sabia se os acônidas haviam conseguido influenciar o cérebro positrônico e reprogramá-lo segundo seus desejos.

Mas depois de algum tempo constatou-se que o ataque fora coroado de êxito, pois o regente tomou certas decisões que abalaram os alicerces de ambos os impérios, o arcônida e o solar...

 

O homem que se colocou à frente do mapa estelar iluminado, com o rosto sério e as mãos apoiadas nos quadris, estava acostumado a tomar decisões que se revestiam do mais amplo alcance para a Humanidade. Sob o ponto de vista físico parecia um homem jovem e ágil, mas a expressão de seus olhos não correspondia a esse quadro, pois sua tonalidade cinzenta revelava uma idade espiritual sem a qual esse homem não seria capaz de exercer as funções de administrador e comandar a História do Império Solar.

Perry Rhodan tirou o bastão luminoso de um estojo pendurado junto ao mapa e apontou alguns pontos vermelho-escuros.

— Nestas áreas — disse — estão concentrados grupos muito fortes de nossa frota. Todos sabem o que está em jogo. Essa distribuição de forças foi adotada por razões estratégicas.

Virou o rosto e fitou os homens reunidos. Todos eles eram oficiais e pessoas que ocupavam cargos de responsabilidade.

— Também devemos confessar que agimos por motivos egoístas, pois as esquadras mais fortes encontram-se nos pontos em que devemos demonstrar aos saltadores e a outras raças que não dormimos, mas estamos preparados para rechaçar um ataque a qualquer momento. Nos últimos meses nossas unidades costumavam receber o apoio das naves robotizadas arcônidas. Com a ajuda de Atlan, a fusão militar dos dois impérios prosseguia a todo vapor.

O bastão luminoso seguro pela mão firme do administrador executou um movimento circular.

— Esta evolução dos acontecimentos fez com que nos sentíssemos seguros demais. Nossa vigilância diminuiu, e passamos a dedicar nossa atenção a assuntos que na presente situação devem ser considerados de importância reduzidíssima. E agora recebemos a paga por isso — sacudiu levemente a cabeça. — Todos sabem que não podemos acusar Atlan. Ao que parece, os oito acônidas que penetraram no robô conseguiram alguma coisa. Seja como for, a reação do nosso centro de computação positrônica é anormal. Em todas as partes da Galáxia, as naves robotizadas afastam-se dos nossos grupos de naves e recusam-se a participar de vôos de patrulhamento. Até houve um caso em que abriram fogo contra uma nave terrana, a Tróia, quando esta pretendia cumprir as instruções que recebera, isto é, dirigir-se ao planeta Zalit a fim de sufocar uma revolta. Já recebi um minucioso relatório do comodoro Fellmann.

Bell, que se encontrava num ponto mais afastado, falou em tom furioso:

— Deveríamos voltar a sondar o robô gigante.

Houve um murmúrio de aprovação e muitas cabeças voltaram-se para Bell a fim de fazer gestos de concordância. Perry Rhodan levantou os braços, num gesto de recusa.

— Não devemos deixar-nos levar a uma reação precipitada. Se não refletirmos antes de agir, mais dia menos dia teremos de pagar por isso.

Allan D. Mercant, chefe da Segurança Solar, fez uma pergunta:

— Já pensou sobre o que podemos fazer?

— Já — respondeu Rhodan. — O fato de que os relês robotizados das naves teleguiadas se recusam a aceitar ordens faz-nos defrontarmos com dois problemas distintos. Muitas raças podem acreditar que ficamos tão fracos que vão querer lançar-se a novos atos de rebeldia. Mas o perigo maior não é este, pois deve ser procurado no próprio robô. Se este retira suas naves sem atender às ordens contrarias de Atlan, não podemos excluir a possibilidade de que o computador de Árcon tenha a intenção de lançar um ataque contra a Terra.

As palavras de Rhodan foram recebidas por um silêncio angustiante. Os homens ali reunidos sabiam o que significaria um ataque da frota robotizada de Árcon.

A Frota Solar ainda não estava em condições de resistir a um poderio militar concentrado como este.

— A única coisa que podemos fazer nestas próximas horas consistirá em consolidar nossa segurança militar — prosseguiu Rhodan. — Todas as unidades da Frota receberam ordens para retirarem-se imediatamente do sistema solar. Neste instante nossas naves aproximam-se vertiginosamente, vindas de todos os setores da Galáxia, a fim de formar um anel defensivo compacto em torno da Terra.

O administrador voltou a guardar o bastão luminoso e cruzou os braços sobre o peito. Seu rosto assumiu uma expressão pensativa.

— Refleti demoradamente sobre tudo isso e cheguei à conclusão de que devo proclamar o estado de emergência e colocar o Império Solar em estado de prontidão rigorosa — disse.

Aguardou para ver se havia alguém que se pronunciasse contra sua sugestão, mas ninguém fez uso da palavra. Os presentes conheciam Rhodan suficientemente bem para saber que suas experiências o habilitavam a ver as coisas sob um ângulo especial de previsão. Se o administrador acreditava que o estado de emergência era a solução adequada, não havia a menor dúvida de que estava com a razão.

— Convocaremos todos os reservistas, que representam um contingente de mais de cem milhões de astronautas bem treinados — prosseguiu Rhodan. — Espero que nunca nos vejamos obrigados a forçar esses homens a entrar em luta contra o maior poder da Galáxia, que é o robô gigante.

Ao fitar os olhos de seus colaboradores, Rhodan notou neles o mesmo desejo que acabara de exprimir. Todos eles eram combatentes intimoratos, mas não havia ninguém que se iludisse a ponto de não se dar conta de como terminaria um ataque do computador contra o sistema solar. Seu desfecho seria a destruição da Terra.

Para Rhodan, seu aliado Gonozal VIII representava uma última esperança; afinal, o robô o reconhecera e o aceitara como herdeiro legítimo do império.

Por enquanto Rhodan nem desconfiava das dificuldades que Atlan estava enfrentando.

 

Wock acreditava ser um súdito fiel do império e um servidor leal do imperador; acontece que não era nada disso. Sua crença resultava do fato de que, até então, não havia acontecido nada que pusesse à prova sua lealdade. Para Wock era fácil apoiar Atlan, pois por enquanto ninguém tentaria impedi-lo de fazer isso.

Sua fidelidade, que acreditava ser eterna, ainda perdurara quando Atlan disse que teria de abandonar Árcon I, porque não se sentia seguro no Palácio de Cristal. Wock, que estava informado praticamente sobre tudo que acontecia nas proximidades do imperador, lembrou-se da traiçoeira tentativa de assassinato, que se frustrara no último instante, graças à atuação de Gucky, o rato-castor.

Wock partira juntamente com Atlan a bordo de uma pequena nave, com destino a Árcon III, onde chegara há poucos dias. Notava que Gonozal VIII andava preocupado, mas isso não afetava sua dedicação ao mesmo.

O que fez Wock vacilar pela primeira vez foi primeiro uma arma de radiações de dimensões respeitáveis, e depois o homem que a segurava.

Wock estava caminhando pelo fresco corredor da nova residência de Atlan, quando o homem saiu de trás de uma coluna. No primeiro instante Wock só sentiu certa contrariedade pelo descuido do robô de vigilância, que deveria ter notado a entrada do intruso. O desconhecido era alto e tinha uma expressão fria nos olhos. Ao que tudo indicava, sabia lidar com a arma que mantinha apontada para as costas estreitas de Wock.

Wock parou e levantou os braços, para mostrar que compreendia perfeitamente a inutilidade de qualquer resistência.

— Muito bem, amigo — disse o desconhecido. — Vejo que nos entendemos muito bem.

Wock nunca ouvira dizer que o entendimento entre duas pessoas pode ser facilitado por uma arma, mas naquele momento estava disposto a aceitar essa estranha filosofia.

— O que deseja? — perguntou, notando que sua voz assumira o tom submisso de quem se vê em posição desvantajosa.

O homem fitou Wock com uma expressão pensativa e cocou a nuca com a mão livre.

— Vamos fazer uma experiência — disse.

O tom áspero de sua voz fez Wock estremecer instintivamente. Nunca gostara da palavra “experiência”, pois seu sentido literal indica algo cujo resultado é incerto.

— Daqui o senhor se dirigirá diretamente ao imperador — ordenou o desconhecido. — Transmita-lhe lembranças minhas.

— O imperador alarmará a guarda de robôs! — exclamou Wock. — O senhor não sairá daqui vivo.

— Sairei quando quiser — asseverou o homem. — Vá andando.

Wock virou-se e sentiu um calafrio descer-lhe pela espinha. Acreditou que a qualquer momento poderia ser atingido por um tiro disparado à traição. Todo seu ser ansiava para sair correndo, mas caminhou tranqüilamente. Quando olhou para trás, o desconhecido havia desaparecido.

De tão nervoso que estava, Wock esqueceu-se de bater à porta antes de entrar na sala em que estava Atlan. Abriu a porta e gaguejou uma desculpa.

O imperador estava debruçado sobre uma mesa, na qual se via um estranho aparelho. Certamente fora instalado há pouco, pois Wock nunca o tinha visto.

— Perdão, majestade — disse Wock, pronunciando mal as palavras.

Atlan ergueu-se. Seu rosto parecia indiferente, como se estivesse protegido contra todas as influências exteriores. Wock apontou por cima do ombro, em direção ao corredor.

— Há um desconhecido com uma arma por ali! — gritou em tom exaltado. — Manda lembranças para Vossa Majestade. Parece ser um indivíduo perigoso.

Atlan comprimiu o botão que alarmava os guardas-robôs e pôs a mão no bolso para tirar uma pequena pistola. Um alto-falante emitiu um estalo e uma voz indiferente disse:

— Registramos o alarma.

O imperador fitou Wock com uma expressão de pavor, deu um salto em direção à porta e fechou-a ruidosamente. Wock sentiu que alguma coisa não estava certa. Bem que gostaria de retirar-se para um lugar mais seguro.

Atlan pegou o microfone.

— Ordeno que o intruso seja procurado imediatamente — disse.

Tapou o microfone com a mão e cochichou:

— Há algo de errado com os guardas-robôs, Wock. Eles costumam reagir imediatamente a qualquer alarma, postando-se junto à porta. Acontece que desta vez se limitaram a confirmar o alarma.

Atlan foi interrompido por uma voz mecânica.

— Recebemos instruções para não aceitar ordens de Gonozal VIII — disse em tom calmo.

Wock emitiu um som rouco, que exprimia o pavor que sentiu ao dar-se conta do tipo de experiência que fizera juntamente com o desconhecido. O intruso tinha conhecimento do comportamento incompreensível dos robôs da guarda. Viera para certificar-se de que as máquinas de guerra realmente negariam seu auxílio ao imperador.

Atlan desenvolveu uma atividade febril para entrar em contato direto com o computador. Sob o ponto de vista cibernético os robôs estavam submetidos ao cérebro positrônico. A máquina gigantesca voltava a ser o regente de Árcon.

Atlan perguntou a si mesmo se era este o momento de crise que esperava há anos. Achava que só por milagre continuava vivo, pois os numerosos atentados contra sua vida muitas vezes só se frustraram por sorte ou por obra do acaso. O poder e a solidão nunca combinaram bem, pois um homem poderoso e solitário corre o risco de tornar-se amargurado e de agir sob a influência da tensão psíquica. Os dignitários da corte tratavam-no com uma delicadeza fria. Apesar de todas as demonstrações de submissão, faziam questão que percebesse que em sua opinião o imperador não passava de um anacronismo inconveniente no império estelar dos arcônidas.

Aos poucos roubaram-lhe todos os amigos. Até mesmo Moku, sua cadela de estimação, que lhe fora presenteada por Rhodan, teve de ser morta pelo mutante Fellmer Lloyd, porque fora preparada para desempenhar um papel traiçoeiro contra sua vida.

Por isso Atlan escolhera Wock, um velho arcônida, para ser seu criado pessoal. Sabia perfeitamente que esse homem o trairia. No entanto, Wock era tão covarde que nunca seria capaz de atacar o imperador.

A luz vermelha acendeu-se. Atlan estabeleceu o contato sonoro com o robô.

— Aqui fala o imperador — disse Atlan, embora o grande cetro de computação soubesse perfeitamente quem estava falando com ele, pois Atlan estava usando um canal reservado exclusivamente para ele, além do que os olhos do computador viam o grande homem pela transmissão visual.

— O que deseja? — perguntou em tom indiferente. Atlan franziu a testa diante da evidente descortesia.

O imortal empertigou-se. Havia algo de errado com o cérebro positrônico. Era importante descobrir logo de que maneira se poderiam reparar as avarias.

— Os robôs recusam-se a atender às minhas ordens — disse.

— É verdade — respondeu o centro de computação.

— Por quê? — perguntou Atlan.

— Houve necessidade de tomar uma decisão — respondeu o setor do regente que entrara na palestra.

Atlan compreendeu imediatamente que por ali não descobriria mais nada, pois a resposta concebida em termos vagos provava que o centro de computação se manteria em silêncio. Só havia uma possibilidade: o regente devia ter a impressão de que suas ordens eram tão lógicas que ele não poderia deixar de executá-las.

— Acredito que essa decisão prevê a participação de minha pessoa — observou Atlan, esforçando-se para dar um tom tranqüilo à sua voz.

— Isso é bastante provável — confirmou o cérebro.

Um ligeiro sorriso aflorou aos lábios de Atlan, que acreditava ter enganado o regente.

— Se eu for morto agora não estarei presente por ocasião da decisão e esta se tornará inexeqüível. Portanto, há uma necessidade lógica de os guardas protegerem minha vida.

Por algum tempo reinou o silêncio. Só se ouvia a respiração ofegante de Wock.

Finalmente o regente voltou a falar:

— Sua morte não alteraria nada. Pelo contrário, representaria uma decisão antecipada.

Atlan compreendeu que não poderia confiar mais no centro de computação. As unidades terranas estacionadas no porto espacial representavam a única possibilidade de salvação.

Wock soltou um grito histérico e saiu correndo. O som dos passos que se afastavam deixou Atlan impassível. Examinou a arma.

De repente as dimensões imensas do Grande Império desenharam-se quase materialmente diante de seus olhos. Atlan perguntou-se por que essa pesada carga ainda não o esmagara. Desempenhava um papel importante entre o tempo e o espaço — ou ao menos desempenhara até então — mas sempre se sentira pequeno, solitário e cansado. Gostaria de, com um simples gesto, apagar tudo que o cercava e desaparecer entre as estrelas, em algum lugar onde ninguém o conhecesse. Mas isso não era possível.

Dali a duas horas foi avisado de que as numerosas forças auxiliares, todas submetidas ao regente e dirigidas pelo mesmo, estavam suspendendo suas atividades. Os gigantescos estaleiros espaciais situados no interior do planeta da guerra corriam em ponto morto; a produção fora suspensa. O regente recusava-se obstinadamente a aceitar instruções de Atlan.

Só havia um homem na Galáxia que poderia ajudar Atlan numa situação como esta. Era Perry Rhodan. Porém o administrador também tinha seus problemas, e estes também haviam sido causados pelo regente. Por isso não havia a menor dúvida de que Rhodan viria.

Atlan irradiou seu pedido de socorro para Terrânia.

 

Quando a Ironduke pousou, Atlan conteve a respiração, pois receava que o regente agisse contra os terranos. Mas não aconteceu nada. Até mesmo os robôs, que guarneciam o porto espacial e costumavam precipitar-se sobre qualquer nave que pousasse, permaneceram em seus alojamentos. Até parecia que a vida abandonara o gigantesco mecanismo positrônico. Atlan sabia que não era assim; o regente aguardava alguma coisa.

— Aqui estamos, almirante — disse a voz de Rhodan, saída do alto-falante.

— O regente mantém-se em silêncio, Perry — informou Atlan. — Pode descer da nave.

Fitou a tela e viu os primeiros homens, fortemente armados, saírem do couraçado linear. Atlan gostaria de correr ao seu encontro, mas sabia perfeitamente que não devia abandonar a segurança de que gozava naquele recinto. Instantes depois, Rhodan saiu da nave. Caminhava calmamente pelo campo de pouso.

No mesmo instante, Gucky, Ras Tschubai e Tako Kakuta materializaram-se no interior da sala em que se encontrava Atlan. Os dois homens traziam armas de um novo tipo, enquanto Gucky tinha as mãos vazias.

— Somos a vanguarda, meu caro — disse, dirigindo-se ao imperador.

Dali a alguns minutos, boa parte do Exército de Mutantes, Rhodan, Claudrin, o Major Krefenbac e o Dr. Carlos Riebsam estavam reunidos na sala. Atlan informou-os sobre a situação que acabara de surgir, ressaltando que o regente se recusava a receber ordens dele.

— Não andamos dormindo — disse Rhodan, em tom sério. — Nossos especialistas ocuparam-se demoradamente com o problema. Com o auxílio dos nossos centros de computação e com base nos dados disponíveis chegaram a uma conclusão que me parece perfeitamente lógica.

Atlan lançou um olhar indagador para Rhodan, mas o terrano fez um sinal para o Dr. Riebsam. O matemático levantou-se e enfiou o polegar de uma das mãos embaixo do cinto. Atlan sentiu-se impressionado diante de sua atitude tranqüila. Sabia que ouviria um relato simples e verídico.

— Devemos aceitar o fato de que os oito acônidas conseguiram afetuar uma mudança negativa nos controles do regente — principiou o Dr. Riebsam. — Provavelmente mexeram nos controles de segurança A-1, cuja programação, ao que sabemos, deve estar completamente superada e deve ser adaptada às circunstâncias atuais.

— E verdade, doutor — admitiu Atlan.

— O senhor sabe que tentamos, mas os acônidas agiram antes de nossa chegada.

O Dr. Riebsam afastou o cabelo que lhe cala na testa.

— Não acredito que os oito homens do Sistema Azul tenham trabalhado ao acaso — disse. — Provavelmente eram técnicos, que sabiam perfeitamente o que deveria fazer. Suponho que tenham recebido suas informações dos revoltosos comandados por Carba.

— O regente teria resistido prontamente a qualquer programação errônea — objetou o imperador.

— Não há dúvida, almirante — confirmou Rhodan. — Essa gente pensou nisso. Por isso não modificaram a programação original, mas apenas introduziram alguns comandos adicionais na máquina.

— Alguns comandos adicionais?! — repetiu Atlan, em tom de espanto. — Isso é uma idéia bastante vaga...

— Só à primeira vista — disse o Dr. Riebsam. — Qualquer programação adicional destinada ao setor de segurança A-l deve ser estudada cuidadosamente, a fim de que não entre em conflito com os dados já armazenados na máquina. Concluiu-se que a área de manobra dos acônidas era bastante limitada. Podemos afirmar com razoável segurança qual é o conteúdo da programação adicional.

— Pelos planetas da Galáxia! Epetus! — exclamou Atlan, em tom exaltado, batendo contra a testa. — É claro que só pode ser isso. É simples. Apenas obrigaram o regente a fazer uma avaliação da situação global com base na sua lógica positrônica. A-l é apenas uma peça da programação de emergência denominada Epetus.

— Conte-nos mais alguma coisa sobre essa programação de emergência, imperador — pediu o Dr. Riebsam, em tom nervoso.

— Assim que receba as informações correspondentes, Epetus leva o setor de segurança A-l a assumir imediata e irrevogavelmente o poder em toda sua plenitude, desde que conclua que um imperador alçado ao poder pelo próprio A-l tenha fracassado, sob o ponto de vista dos velhos acônidas e da segurança do império.

Riebsam e Rhodan fitaram-se prolongadamente.

— Sob o ponto de vista dos velhos arcônidas... — repetiu Perry em tom sarcástico. — Sob esse ponto de vista você fracassou mesmo, almirante.

Atlan cerrou os punhos. Seus olhos estreitaram-se.

— Que jogo diabólico — disse em tom amargurado.

— Diabólico e bem pensado — confirmou Rhodan. — Era muito simples. O único problema consistia em penetrar no interior do regente e acionar os controles adicionais. A nova programação fez com que Epetus despertasse do seu sono e levasse A-l a avaliar a situação. Muita coisa mudou e alguns séculos se passaram desde que os dois setores trabalharam em conjunto pela última vez. Acontece que um mecanismo positrônico não possui capacidade de adaptação; age de acordo com os dados nele introduzidos, mesmo que estes dados já tenham sido superados.

— O centro de computação acha que fracassei — disse o arcônida. — Por isso resolveu neutralizar-me e não aceita ordens emitidas por mim.

Rhodan caminhava nervosamente de um lado para outro. Acreditava que aquilo apenas representava o princípio das dificuldades que teriam de enfrentar, pois os revoltosos não se contentariam com o que já haviam conseguido. Atlan fora posto fora de ação, mas não fora morto. Conseguiram até paralisar o regente quando do momento em que seria tomada a decisão a que aludira o mecanismo positrônico.

— Que máquina velha e idiota — disse o Dr. Riebsam no tom objetivo do cientista que via no regente apenas uma coisa, um objeto descaminhado por cérebros vivos.

Sob o ponto de vista matemático, os atos do regente eram perfeitamente compreensíveis, pois este não passava de um prisioneiro de seus imensos bancos de dados e memórias.

Comparado com qualquer computador positrônico, o cérebro humano é lento, indolente e pouco inteligente. Representa um nada diante do saber amontoado por um cérebro positrônico. Sua única vantagem e uma vantagem decisiva — consiste no fato de que um cérebro vivo é capaz de adaptar-se prontamente a uma situação nova e de varrer as convicções arraigadas.

— Devemos encontrar um meio de programar o cérebro de acordo com nossas intenções — sugeriu Claudrin, e sua voz retumbante encheu a sala.

— O regente não permite minha entrada — disse Atlan, em tom amargurado. — A área em que está instalado o grande centro de computação acha-se cercada por um campo energético em favos. Até mesmo seus mutantes serão impotentes diante do campo, John.

John Marshall, chefe do Exército de Mutantes, confirmou com um aceno de cabeça.

— Os teleportadores não podem atravessar o campo defensivo — disse. — Se tentarem, serão arremessados para trás. Até mesmo Gucky não teria a menor chance.

Os homens reunidos na sala mantiveram-se em silêncio, entregues às suas reflexões. Pelos seus rostos via-se que nenhum deles tinha uma idéia aproveitável.

— Atenção, sir! — disse de repente a voz de Stana Nolinow, saída dos alto-falantes.

O tenente permanecera a bordo da Ironduke.

— O que houve, Stana? — gritou Claudrin.

— Uma pequena espaçonave está pousando. Se não me engano é de construção acônida. De qualquer maneira seus pólos são achatados. Os aparelhos de rastreamento do regente deveriam ter notado sua presença, antes de nós.

— Os aparelhos foram paralisados — lembrou Atlan.

Rhodan não sacrificou nem um único dos seus preciosos segundos em discussões estéreis.

— Gucky, você saltará imediatamente comigo para a Ironduke. Ras pegue o almirante. Temos de agir imediatamente.

Gucky aproximou-se e um sorriso arrojado surgiu em seu rosto. Rhodan segurou sua mão e esperou que Tschubai se desmaterializasse juntamente com o arcônida.

Por um instante os homens que se encontravam na sala ainda enxergaram o rosto do rato-castor, mas logo o quadro começou a tremeluzir e os dois corpos desapareceram como se nunca tivessem estado naquele lugar.

Materializaram-se na sala de comando da Ironduke. Rhodan dirigiu-se imediatamente aos aparelhos de controle espacial.

— A nave acônida emitiu alguns inexplicáveis impulsos de rádio, sir — informou Nolinow. — Não sabemos o que significam.

— Provavelmente são sinais de identificação destinados ao regente — observou Atlan. — Sem dúvida o dispositivo positrônico devia ser informado de quem estava pousando. Ao que parece, o centro de computação já aguardava a chegada dessa nave.

— É isso! — exclamou Rhodan. — Essa nave deve ser detida de qualquer maneira. Se necessário teremos que destruí-la.

— Acho que alguém já fez esse trabalho para nós, sir — disse Nolinow, apontando para a grande tela panorâmica na qual se via o gigantesco porto espacial.

Não era a primeira vez que aqueles homens viam o quadro que surgia diante de seus olhos, mas nem por isso o espetáculo deixou de fasciná-los. Mais de mil naves robotizadas arcônidas ergueram-se que nem bolhas negras de sabão, de dimensões extraordinárias, e subiram ao céu de Árcon III.

— A nave acônida será destruída dentro de alguns segundos — disse Tschubai em voz baixa. — Até parece que no último instante o regente resolveu tomar o nosso partido.

— Será mesmo, Ras? — perguntou Atlan, em tom de dúvida.

O enxame de naves desapareceu da tela, mas os aparelhos de rastreamento continuaram a acompanhá-las. As naves esféricas corriam velozmente em direção ao lugar em que estava o veículo espacial acônida, que se desenhava sob a forma de um ponto minúsculo nos controles da Ironduke.

— Parece que não estão com vontade de fugir, sir! — exclamou Nolinow.

— É claro que não — disse Rhodan, bastante deprimido. Não era capaz de fitar Atlan. — Fomos muito lentos, almirante.

A expressão de perplexidade dos olhos de Atlan foi substituída pelo reconhecimento amargo do verdadeiro significado da decolagem-relâmpago das mil naves arcônidas.

— As naves robotizadas não estão atacando o veículo espacial acônida, sir — anunciou o tenente. — Apenas o estão cercando.

— Estão comboiando os acônidas — disse Rhodan. — O regente previu a possibilidade de nós atacarmos essa nave e resolveu cortar nossa tentativa pela raiz. Sabe perfeitamente que com as poucas unidades de que dispomos não podemos arriscar uma batalha aberta sobre Árcon III.

Atlan sorriu.

— Acabo de refletir sobre minha situação — disse. — Sou um imperador sem império, pois não há mais ninguém para quem eu possa transmitir minhas ordens ou mesmo alguém que queira obedecê-las. O que restou de minha majestade é apenas o título. Pelo menos, por enquanto, ninguém manifestou pretensões a este.

As palavras de Atlan foram proferidas em tom de ironia. Mas muito mais depressa do que imaginavam as pessoas da Ironduke se constataria que essa ironia encerrava a verdade.

A pessoa que formularia suas pretensões de ocupar o lugar do imperador encontrava-se no interior da nave acônida que acabara de pousar bem à vista dos tripulantes da Ironduke!

 

Desde o início tivera a impressão de que saíra das sombras de uma caverna profunda para a luz do dia, onde lhe era dado ver coisas que antes nem imaginara. Correra de encontro a esta luz e absorvera as novas impressões com uma disposição que quase chegava a ser gulosa. Não demorou em deixar para trás a escuridão da ignorância.

Carba nunca acreditaria que um aumento de sua inteligência produzisse um efeito como este. Sob o ponto de vista puramente objetivo encontrava-se num estado de embriaguez. Sentia-se atordoado com a violência com que seu cérebro absorvia os novos conhecimentos. Tal qual um viciado em drogas, que vive o paraíso equívoco de um mundo ilusório, Carba ficou sabendo que, em virtude de sua ignorância, até então atravessara a vida tal qual um cego. Seus novos dotes espirituais, ativados por meio dos recursos fornecidos pelos ancestrais dos arcônidas, conseguiram formar uma imagem totalmente nova do mundo que o cercava. Um homem sábio como ele deveria conduzir seu povo. Não era possível que vivesse entre idiotas de cabeça oca, cujo quociente intelectual não ultrapassava os 50 lerc, enquanto o de Carba era muito superior a essa marca.

Mas havia uma coisa que Carba não sabia: fora condenado intencionalmente à morte, pois nenhum cérebro suporta uma alteração contrária à natureza como esta.

Carba era jovem, o que significava que também era um tanto inexperiente. A paciência com que agiam seus comparsas, a circunspecção com que traçavam seus planos, deixava-o nervoso e irritadiço. Os acônidas não precipitavam nada. Conseguiam meditar por dias a fio num plano aparentemente sem importância que visava à queda de Atlan.

Era só por um motivo que Carba aceitava a lentidão com que agiam: os acônidas eram sempre bem-sucedidos. Estavam prestes a assumir o governo do Grande Império, e o jovem arcônida ficaria bem no topo: seria imperador. Sem dúvida, o regente o aceitaria, pois encontrava-se no nível intelectual exigido pelo setor de segurança A-l.

Carba era alto e magro. Tinha o hábito de passar nervosamente as mãos pelo corpo, como se estivesse à procura de algum objeto escondido sob a roupa.

Carba descendia da velha família de nobres dos Minterol, o que representaria mais um fator positivo na avaliação positrônica de sua personalidade, a ser realizada pelo regente.

Parado à frente da tela de imagem oval, contemplava o campo de pouso e deu-se conta de que era esta a primeira vez que estava de certa forma legitimado, para permanecer no lugar em que se encontrava. O regente destacara um grupo de naves para protegê-lo. Mular, um acônida de aspecto sombrio, que exercia as funções de comandante da nave, até chegou a dizer que mais dez mil naves decolariam a fim de vigiar todos os passos dos terranos. Carba sorriu ao pensar como, enquanto assistiam à execução de seu plano, os homens da Terra teriam de manter-se inativos. Realmente acreditava que era seu plano. Dez mil naves robotizadas, circulando em torno do pequeno veículo espacial, fariam com que compreendessem que qualquer ataque seria inútil.

Tusnor, um anti de boas falas, aproximou-se de Carba e cutucou-o. A amabilidade sórdida do sacerdote de Baalol deixava Carba enojado. Só toleraria a presença dos antis enquanto isso fosse absolutamente necessário. Havia mais um membro da seita a bordo. Era Uronla, que parecia ser um indivíduo calado e retraído.

— Não demora e você governará tudo isso, meu caro — disse Tusnor.

Carba teve a impressão de notar um tom de inveja na voz do anti. Apesar de tudo não pôde deixar de dar uma resposta conveniente.

— Está na hora de libertar o império dos parasitas terranos, que se instalaram em toda parte.

Quando falava nos terranos, Carba costumava fazer de conta que se tratava de animais. O jovem arcônida tornava-se perigoso em virtude da sua convicção de estar predestinado a salvar o império. Encarava sua missão sob uma visão ética abstrata, que ficava tão distante da realidade que não havia por onde formular alguma crítica contra a mesma. O grupo acônida sabia tirar proveito dessa peculiaridade de seu caráter. Na verdade Carba não passava de um boneco, por meio do qual os homens do Sistema Azul pretendiam atingir seus objetivos.

— Isso mesmo — confirmou Tusnor, em tom odiento. — Precisamos ensinar esses bárbaros a não saírem da linha.

Por um instante lembrou-se dos insucessos que seu povo sofrera, quando em luta contra os terranos.

Mular, o comandante, e Jergo, o navegador, entraram na sala. Atrás deles veio o verdadeiro chefe da missão, chamado Sansaro, mas este estava totalmente encoberto pelo corpo largo de Mular, e por isso Carba só o viu mais tarde.

— Acabo de conversar com o imperador sobre seus planos — anunciou Tusnor, sem reagir ao olhar zangado de Carba. — Não será nada mau se posteriormente ele se cercar de alguns conselheiros experimentados.

— Resta saber os nomes desses conselheiros — respondeu Jergo, provocador.

— Nesta altura não adianta perdermos tempo com isso — disse Sansaro em tom suave. — Devemos avançar passo a passo. Só assim poderemos alcançar o êxito.

Sansaro falara sem a menor ênfase, e as palavras saídas de sua boca pareciam sensatas. Era um bom condutor de homens, porque sabia convencer os outros, porque sabia escolher as palavras adequadas para colocar os homens na trilha certa e porque sempre conservava a objetividade. Sansaro — o revolucionário, que podia parecer-se com qualquer coisa, menos com um rebelde — um homem calmo e ponderado vindo das colinas verdes de Daraman era um dos elementos mais importantes do movimento subversivo acônida.

— É claro que o senhor está com a razão — disse Jergo.

Havia em sua voz um tom de irritação, que mostraria a Sansaro que ele estava disposto a ceder, mas que guardava consigo um ressentimento insuperável não contra ele, mas sim contra o anti.

Tusnor limitou-se a rir. Carba aproximou-se lentamente de Sansaro. Era um palmo mais alto que o acônida e só tinha a metade da idade deste.

— Temos trabalho — principiou Sansaro, em tom frio. — Não podemos perder tempo. Precisamos fazer com que Carba tenha acesso ao regente. Acho que ninguém duvida de que o imperador em exercício e seus amigos terranos não se manterão inativos. Por enquanto não se pode garantir que o centro de computação nos dê apoio militar integral. Devemos partir do pressuposto de que não nos ajudará. Devemos agir como se tivéssemos certeza de que o cérebro positrônico apóia o inimigo.

Era uma atitude típica do acônida, que sempre sabia encontrar a medida certa e avaliava as situações sob o ponto de vista negativo, a fim de evitar qualquer imprudência.

— Tudo depende de que consigamos convencer o regente de que Carba será um bom imperador. Quando Carba estiver no interior do cérebro positrônico, teremos ganho a partida, pois esse fato provará que o centro de computação está disposto a receber ordens de nosso jovem amigo. — Dirigiu-se a Mular: — Procure entrar em contato com o regente. Vamos informá-lo de que a bordo desta nave encontra-se um arcônida de boa estirpe, cheio de poder e espiritualidade, um homem capaz como os velhos arcônidas e imbuído da vontade de fazer tudo para garantir a existência do império.

 

Os outros homens também se haviam reunido na sala de comando da Ironduke, pois, na opinião de Rhodan, o edifício onde Atlan se encontrava não oferecia a necessária segurança.

Naquele momento o Major Hunt Krefenbac estava desligando o rastreador individual de grande alcance e lançou um olhar indagador para Rhodan.

— Fale com toda franqueza — pediu Atlan. — Não se deixe guiar por nenhuma consideração.

— O senhor não vai gostar do que tenho a dizer, sir — disse o major, em tom hesitante.

— É claro que não — admitiu Atlan. — Mas já estou acostumado a ouvir coisas desagradáveis.

— A bordo da nave acônida está um homem cuja inteligência foi elevada a um nível doentio. Suponho que seja Carba. Seu quociente intelectual fica bem acima dos cinqüenta lerc, sir. — Engoliu em seco e acrescentou: — O nível intelectual dele deve ser um pouco mais elevado que o do senhor.

— Acho que todos compreendemos o que isso significa — interveio o Dr. Riebsam. — Carba poderá assumir o poder no império, sem enfrentar o menor obstáculo. Traz consigo o necessário nível intelectual e estará em condições de provar que veio imbuído das melhores intenções a favor do império, enquanto Atlan anda de mãos dadas com os perigosos terranos.

Rhodan, que ouvira tudo em silêncio, disse:

— Devemos pôr um paradeiro a esse jogo. Gucky saltará para a nave dos acônidas e procurará pôr fora de ação o tal do Carba.

— Acontece que há dois ou mais antis a bordo da nave acônida, sir — disse John Marshall. — Já falei com alguns dos nossos mutantes que notaram certa restrição em suas faculdades, restrição esta que começou a surgir no momento em que essa nave pousou. Gucky não conseguirá nada, pois os antis não terão a menor dificuldade em neutralizar suas faculdades paranormais.

— Mas precisamos fazer alguma coisa! — exclamou Krefenbac, num tom que quase chegava a ser de desespero. — Vamos manter-nos inativos enquanto esses sujeitos dão o golpe, que lhes renderá o Império de Árcon?

A irrupção do major foi seguida de um silêncio deprimente. Todos sabiam que naquele momento só poderiam manter-se quietos, à espera de uma chance. Justamente no momento em que os terranos começavam a ocupar progressivamente os postos mais importantes do Grande Império, surgia um novo obstáculo em seu caminho.

— Nossa última esperança é o regente — disse o Dr. Riebsam, depois de algum tempo.

— Logo esse cérebro positrônico desalmado, doutor — observou Claudrin.

Riebsam respondeu com um aceno de cabeça.

— Não acredito que o setor de segurança reconheça Carba como imperador sem mais nem menos. Na minha opinião, o cérebro positrônico pedirá informações a Atlan, a fim de estabelecer uma série de comparações entre os dois rivais. E, do resultado dessas comparações, dependerá se Atlan vai continuar a ocupar o posto de imperador ou se o tal do Carba irá tomar seu lugar.

— Se encararmos o assunto sob este ângulo, tudo deve dar certo — disse Atlan.

— Não há nenhum motivo para sermos otimistas — respondeu o matemático. — Não se esqueça de que o setor de segurança avalia a atual situação, segundo os padrões dos velhos arcônidas, pois foram eles que programaram o centro de computação. Além disso, devemos considerar a programação adicional levada a efeito pelos oito acônidas. Afinal, foi essa programação que levou o regente a examinar a atual situação sob o prisma dos velhos arcônidas.

Seria mais ou menos como se um computador positrônico terrano fosse programado em conformidade com as idéias políticas do Presidente Lincoln e aplicasse estas aos tempos atuais. É claro que a máquina chegaria à conclusão de que os políticos da atualidade são uns incompetentes, pois só poderia lançar mão das concepções já superadas de um homem há muito falecido e que no seu tempo agiu de forma genial. Acontece, todavia, que no ano 2.105 sua linha política seria totalmente inadequada.

A programação de um computador de grande capacidade constituía uma tarefa tão complexa que qualquer erro, por menor que fosse, poderia causar uma catástrofe.

Os homens que se encontravam no interior da Ironduke, inclusive Atlan, defrontavam-se com dados políticos totalmente diversos e seriam incapazes de pensar nos mesmos termos que os cientistas arcônidas haviam usado há 5.000 anos na programação de certo centro de computação.

A influência dos velhos arcônidas chegava até os dias atuais, embora aqueles já estivessem mortos e esquecidos. O setor de segurança A-l, que superava todos os outros setores do centro de computação, parecia aos olhos de Rhodan um prolongamento do braço dos velhos, que os colocava em condições de tocar o presente e nele provocar modificações que correspondessem às suas idéias.

Naqueles minutos, Rhodan deu-se conta pela primeira vez do perigo que o regente representava para todos os seres vivos da Galáxia. Ninguém conhecia sua programação original e ninguém sabia quais eram as loucas decisões que poderiam tomar no futuro. O gigantesco centro de computação de Árcon III era semelhante a uma bomba de dimensões extraordinárias, da qual ninguém sabia quando seria detonada. O que se conhecia era apenas o efeito de uma explosão desse tipo. Quando o regente resolvesse golpear, não haveria nada na Galáxia que pudesse resistir à sua investida.

Ao pensar nisso, Rhodan teve um calafrio. O que teriam pensado aqueles arcônidas, os cientistas geniais que haviam construído e programado o grande cérebro? O regente não era a expressão de sua arrogância e presunção? Não representava a versão positrônica de sua sede de poder?

“Torna-se necessário destruir o regente!”

Este pensamento escorregou levemente para dentro do cérebro de Rhodan. Até parecia que sempre estivera lá, à espera do momento em que seria percebido. Talvez fosse isso mesmo. Há muito tempo Rhodan devia ter brincado com essa idéia em seu subconsciente.

Por estranho que pudesse parecer, a decisão que acabara de tomar restituiu-lhe a confiança na capacidade de seus homens. Tinha certeza de que nem Carba, nem os homens que estavam com ele e nem mesmo o próprio regente seriam capazes de deter a evolução que já tivera início. Muitas vezes o caminho trilhado pela Humanidade fora áspero e acidentado. E Carba só representava mais uma pedra nesse caminho, que teria de ser removida.

— Por todos os ratos-castores de pernas tortas que vivem na Galáxia — disse a voz de Krefenbac, em meio às suas reflexões. — A nave acônida está irradiando uma mensagem destinada a nós.

Gucky, que se sentiu ofendido com estas palavras, dispôs-se a dar uma resposta, mas Rhodan fez um gesto para que se calasse.

— Verifique o que querem — ordenou.

O major de boa estatura ligou a tela do rádio comum e um rosto bem marcado com os traços típicos de um acônida apareceu na mesma.

— Fico-lhes muito grato por se disporem a ouvir-nos. Meu nome é Sansaro — principiou o acônida em tom amável. — Seria conveniente ligar a transmissão, para que eu possa ver quem está falando comigo.

Rhodan fez um sinal para Krefenbac e colocou-se atrás do major.

— O senhor está falando comigo — disse em tom áspero.

— Perry Rhodan — repetiu o acônida com um sorriso. — Seu nome soa bem. Sinto-me orgulhoso por poder...

— Vá diretamente ao assunto — interrompeu-o Rhodan. — Não acredito que deseja falar conosco para fazer uma troca de amabilidades.

Sansaro sorriu.

— Quem respeita o inimigo costuma dar sinais desse respeito — explicou.

Rhodan fitou-o com uma expressão irônica.

— Não me lembro de já ter demonstrado qualquer respeito pelo senhor.

Sansaro esfregou o queixo com a mão.

— O senhor não conseguirá arrastar-me a fazer o que quer que seja, Rhodan.

O terrano teve a impressão de que o acônida olhava através de seu corpo.

— Direi apenas aquilo que planejei antecipadamente, seja qual for o seu comportamento — concluiu.

— Estou esperando — respondeu Rhodan com a maior tranqüilidade.

Sansaro possuía uma inteligência acima da média, mas o que mais pesava era sua experiência. Rhodan teve a impressão de que seu interlocutor era um homem esperto e sagaz.

— Não poderemos enganar-nos um ao outro — disse Sansaro. — Nossos objetivos estão definidos com bastante precisão, e tanto o senhor como eu temos nossos problemas. Acabamos de falar com o regente para convencê-lo a empossar Carba no cargo de imperador. Ao que parece, ele vê a idéia com “bons olhos” — sorriu ao notar a alteração no rosto de Rhodan. — Acontece que o regente nos incumbiu de marcar um encontro com o ex-imperador.

— Perry — disse a voz de Atlan, vinda dos fundos da sala. — Acho que, daqui em diante, eu devo falar com ele.

Rhodan afastou-se imediatamente. Sansaro fez uma mesura quando o arcônida entrou em seu campo de visão.

— Lamento ter de encontrar-me com Vossa Majestade numa situação como esta — disse. — Espero que logo possamos chegar ao fim deste triste acontecimento.

— O senhor me diverte — disse Atlan. — Será que já se esqueceu de quem encenou esse triste acontecimento?

— Não vamos discutir sobre questões formais — sugeriu Sansaro. — Apenas gostaria de chegar a um acordo sobre a hora do encontro.

— Que encontro será esse? Quem participará da... reunião?

O rosto de Sansaro continuou impassível. Rhodan confessou a si mesmo que raramente vira um homem com tamanho autodomínio.

— Do encontro participarão apenas o novo imperador e Vossa Majestade — respondeu Sansaro. — O regente quer examinar os dois e o convida para um duelo... psicológico, por meio do qual quer verificar quem se prestará melhor para o cargo de imperador.

Atlan parecia perplexo, mas Rhodan preferiu não perturbá-lo com perguntas.

— O que acontecerá se eu me recusar a participar de um duelo desse tipo? — perguntou o arcônida.

Sansaro virou a cabeça. Ao que tudo indicava, estava olhando para um relógio.

— O regente concede-lhe um prazo de três horas para que tome sua decisão. Caso recuse o duelo psicológico, Carba será investido automaticamente no cargo de imperador.

Atlan cruzou os braços sobre o peito e fitou Sansaro com uma expressão pensativa.

— O que acontecerá com meus amigos terranos e comigo, se ocorrer a hipótese a que acaba de aludir?

— Sinto muito, mas nesse caso teremos de prender Vossa Majestade — esclareceu Sansaro. — Os terranos terão de voltar para seu mundo.

— Não pense que isso será tão fácil assim — advertiu Rhodan.

Sansaro não lhe deu atenção. Examinava Atlan, que mantinha a cabeça abaixada.

— Estou disposto a participar do duelo — disse depois de algum tempo.

Sansaro não demonstrou satisfação ou qualquer outro sentimento. Não havia como adivinhar seus pensamentos, pois ele os mantinha ocultos sob a máscara rígida de seu rosto.

— Daqui a uma hora, Carba sairá da eclusa de ar de nossa nave. Irá desarmado e sem acompanhante. O regente pede que o senhor deixe a nave terrana no mesmo instante — deu a risada que lhe era peculiar. — Naturalmente o senhor também irá sem armas ou acompanhantes. Um robô irá buscá-los e os levará ao lugar do duelo. Não haverá espectadores. De qualquer maneira, estes não veriam nada. Após o duelo, o computador positrônico colocará o vencedor no lugar de imperador.

— Como podemos ter certeza de que isso não é truque, por meio do qual se quer fazer com que Atlan saia desta nave? — interveio Rhodan.

— Consulte o regente — sugeriu Sansaro.

Assim que acabou de proferir estas palavras, desligou. Sua imagem apagou-se. Naquele instante, todos os ocupantes da sala de comando fitavam Atlan e esperavam que o mesmo dissesse alguma coisa. Até mesmo Gucky desistira de sua postura relaxada e, sem querer pusera à mostra seu dente-roedor. O arcônida caminhava silenciosamente de um lado para outro.

— O que vem a ser um duelo psicológico? — perguntou Rhodan, depois de alguns minutos em meio ao silêncio.

Atlan levantou os olhos e sorriu. O arcônida era alto e esbelto como o administrador, mas por algum motivo nele tudo parecia mais polido e refinado que em Rhodan.

— Há muitos anos, quando meu povo ainda se mantinha física e mentalmente ativo, muitas vezes surgiam conflitos entre as famílias nobres, que disputavam o poder — disse Atlan. — Costumava-se decidir esses conflitos, entre os rivais, por meio de um duelo psicológico.

— Como é travado um duelo desse tipo? — perguntou Rhodan.

— Ficarei a sós com Carba — disse. — Seria inútil dizer qualquer coisa sobre a maneira estranha pela qual é travado um duelo desse tipo.

— Você terá uma chance de sair vencedor do conflito?

— Minhas possibilidades não serão maiores nem menores que as de Carba — disse Atlan, em tom indiferente. — Tudo depende de qual seja o mundo fictício para o qual seremos transferidos — virou-se abruptamente para o rato-castor. — Não é nada decente andar espionando meus pensamentos, pequeno.

— Queira desculpar — gaguejou Gucky, perplexo. — Foi apenas... bem... foi apenas uma rotina.

— Será que você pode contar-nos alguma coisa sobre os mundos fictícios para os quais serão transferidos? — perguntou Rhodan. — Talvez tenhamos uma possibilidade de ajudá-lo.

— Numa luta como esta não existe a menor possibilidade da interferência de outras pessoas — asseverou Atlan.

Rhodan compreendeu que o arcônida preferia não falar sobre os detalhes e respeitou essa decisão. Muitas vezes se vira em situações semelhantes. O tempo corria preguiçosamente. O Major Krefenbac cuidou dos controles de rotina que tinham de ser feitos.

Uma hora depois, Carba saiu da nave dos acônidas. As telas de imagem da Ironduke retrataram-no sob a forma de uma figura minúscula, que se desprendia lentamente da sombra da nave.

— Está na hora — disse Rhodan.

Atlan disse num tom que quase chegava a ser violento:

— Esta luta é minha luta, e ela é travada em torno de certas coisas que desejo...

Rhodan compreendeu o que o amigo queria dizer com estas palavras.

— Enquanto a luta não tiver chegado ao fim — prometeu.

— É possível que o duelo seja demorado — disse Atlan e saiu da sala de comando.

Dali a alguns minutos também o viram caminhar pelo enorme campo de pouso. Os dois arcônidas encontraram-se aproximadamente a meio caminho entre as duas naves. Eram dois homens que lutariam pelo maior reino estelar da Galáxia.

Um carro dirigido por robô parou junto aos participantes do duelo e esperou que ambos entrassem. Depois disso afastou-se velozmente.

Quando o veículo desapareceu do campo de visão, a voz aguda de Gucky fez-se ouvir na sala de comando.

— Ele pensa que não tem nenhuma chance, nenhuma mesmo.

Rhodan contemplou o campo de pouso abandonado. A qualquer hora, um dos dois arcônidas voltaria a aparecer. Seria Carba ou Atlan. Para a Terra e a Humanidade seria muito importante que fosse o segundo.

 

O jovem arcônida de rosto fino, que atendia pelo nome de Carba, endireitou-se no assento do carro dirigido por robô e disse:

— Fico muito satisfeito em, depois de tanto tempo, encontrar-me com um arcônida como Vossa Majestade. Lamento que as circunstâncias nos obriguem a lutar um contra o outro em vez de colaborarmos.

— Ninguém o impede de colocar-se ao nosso lado — respondeu Atlan.

O rosto de Carba ficou vermelho e seus dedos descreveram movimentos convulsivos sobre a manta ampla que usava.

— Nossas idéias políticas são inconciliáveis, imperador — disse. — Nenhum arcônida leal poderia fazer o que o senhor fez nestes últimos anos. Vendeu o império aos terranos.

Os lábios de Atlan estreitaram-se num traço.

— Se não fosse o acordo que fizemos eu lhe daria uma sova, seu jovem idiota — disse em voz baixa.

Num movimento instintivo, Carba encolheu-se no canto do assento. Reconheceu que tinha ido longe demais. Atlan não era um homem disposto a engolir ofensas.

— Logo veremos quem está com a razão — disse.

— Será mesmo? — perguntou Atlan, com uma risada sarcástica. — Admiro sua segurança, Carba. Seus amigos acônidas devem ter realizado um trabalho perfeito no setor de segurança do computador, pois a esta hora já está certo da vitória.

— O senhor quer insinuar que sou um covarde que só luta quando tem alguém que lhe dê apoio? — indagou o revolucionário, em tom indignado.

Atlan fitou-o com uma expressão de compaixão.

— Seu nível intelectual foi elevado para muito mais de cinqüenta lerc, mas ao que parece não lhe ensinaram a pensar sensatamente.

— Estou arrependido de ter rompido o silêncio — disse Carba.

O carro dirigido por robô entrou numa galeria subterrânea debilmente iluminada. Devia ser uma das inúmeras entradas que levavam ao interior do regente. Provavelmente, o cérebro desligara o campo defensivo por um momento, a fim de que o carro pudesse passar.

Atlan mantinha o jovem arcônida sob observação constante. Concluiu que Carba era um homem conduzido para uma trilha errada, em virtude da influência ininterrupta dos acônidas. O imortal também teve de concluir que nada neste mundo demoveria Carba das suas intenções. Havia um brilho fanático nos olhos de seu adversário. Era uma expressão confusa, que prenunciava a loucura.

Carba teria de pagar um preço elevado pela grande inteligência que lhe fora conferida por pouco tempo. Atlan reprimiu a compaixão que começou a apoderar-se dele. O rebelde era seu inimigo, e um inimigo perigoso. Ainda acontecia que o regente parecia mais disposto a creditar nos argumentos de Carba e de seus comparsas acônidas do que nos de Atlan.

O carro parou e as portas abriram-se. Os dois arcônidas desceram e foram recebidos por um robô, que lhes apontou o caminho que teriam de seguir. Atlan pensou nos homens que se encontravam a bordo da Ironduke, e que teriam de ficar paralisados, cheios de ódio impotente. Para Atlan, a simples presença deles em Árcon III representava um apoio moral.

O corredor terminou num grande pavilhão onde se viam inúmeros quadros de comando. O condutor mecânico atravessou o recinto com precisão absoluta. Passaram por gigantescos geradores, por usinas energéticas e por dutos de cabos. Atlan já estava familiarizado com o quadro, pois o aspecto do regente sempre era mais ou menos o mesmo. No entanto, Carba irradiava um nervosismo perceptível.

— O senhor já participou de um duelo psicológico? — perguntou em tom hesitante, enquanto entravam num corredor.

— Este será o primeiro duelo psicológico de que participarei — respondeu Atlan, com a maior tranqüilidade. — E também o último.

— Pelo que soube, muitas vezes até mesmo o vencedor enlouquece depois de uma luta desse tipo — observou Carba. — Faço votos de que nenhum de nós venha a ter um destino desses. Tomara que o regente adote uma decisão precisa de qual de nós dois será o melhor imperador.

Embora reconhecesse a inutilidade disso, Atlan fez mais uma tentativa para fazer o jovem membro da família dos Minterol mudar de idéia.

— Não é necessário que as coisas cheguem a este ponto, Carba. Basta que o senhor reflita calmamente.

— Desligue-se dos seus amigos terranos, e poderemos chegar a um acordo — disse Carba.

Atlan não respondeu. Ambos se obstinavam em sua posição. Nenhum dos dois modificaria sua opinião no sentido que o outro desejava.

Entraram numa sala menor e o robô parou o carro. Ouviu-se uma voz metálica saída da parede.

— Façam o favor de entrar nos nichos pequenos.

Num dos lados do recinto viam-se duas reentrâncias. Carba deixou que Atlan entrasse primeiro. Este escolheu o nicho da esquerda, embora sem dúvida fosse indiferente em qual dos dois entrasse. Viu inúmeros controles e cabos de força, que saíam de uma poltrona confortável e desapareciam na parede. À frente da poltrona havia uma espécie de capacete sobre uma pequena coluna. Carba se depararia com o mesmo quadro.

— Faça o favor de sentar-se — pediu alguém.

Atlan acomodou-se na poltrona. Por estranho que possa parecer, não se sentia nervoso.

— Coloque o capacete. O sinal em forma de V deve ficar bem em cima da testa.

Num gesto quase automático Atlan colocou o capacete sobre a cabeça. Imaginava que a alguns metros do lugar em que se encontrava, Carba fazia a mesma coisa. Provavelmente suas mãos tremiam de excitação.

A voz do regente voltou a soar.

— Dentro de alguns minutos, o aparelho será ligado. Ambos estarão num mundo fictício e se esquecerão do ambiente real em que se encontram. As experiências pelas quais passarem não serão reais, mas apenas representarão uma projeção feita em seu cérebro por meio do capacete psicológico. Durante o duelo, não saberão que se encontram num mundo fictício. Para os senhores, tudo será verdadeiro, e seus atos pautar-se-ão de acordo com essa consciência. Uma vez findo o duelo, serão formuladas mais algumas perguntas, a fim de que o setor de segurança tenha elementos para tomar sua decisão.

Atlan começou a suar e sentiu seu hálito subir pela superfície interna do capacete. Procurou concentrar-se e preparar-se para o que estava por vir. Mas teve de reconhecer que seria inútil fazer preparativos para alguma coisa que não conhecia. Sentia-se como um homem que se prepara para a chuva e vai parar no deserto.

— Mais alguma pergunta? — perguntou o centro de computação.

— Não — responderam Atlan e Carba, a uma voz.

Atlan descontraiu-se e recostou-se na poltrona. O que o esperava seria como um sonho. Se mais tarde tivesse oportunidade de recordar-se, esse trecho do passado sempre lhe pareceria um sonho. Mas durante o tempo em que vivia essa visão, tudo seria real.

Seus olhos acompanharam os fios e bobinas que iam do capacete para o painel de controle. Há muitos anos arcônidas poderosos se haviam defrontado ali, a fim de submeter-se ao julgamento do setor de segurança A-l.

“Ninguém entrou neste duelo tão cansado e desesperançado como eu”, pensou Atlan. “De certa maneira o duelo que vou travar com Carba é uma farsa.”

Neste momento ouviu um leve zumbido. Teve a impressão de que uma agulha penetrava em sua nuca. Quis dizer alguma coisa, mas a língua recusou-se a obedecer. Um peso tremendo desceu sobre ele, envolveu seu corpo e fez com que revirasse os olhos. A visão do painel de controle tornou-se confusa. Teve a impressão de estar deitado no interior de um enorme fardo de algodão. Em algum canto do subconsciente, os pensamentos ainda se atropelavam, mas estes tiveram de ceder diante do quadro que ia penetrando nas camadas superficiais do cérebro.

A cabeça caiu para o lado e o corpo amoleceu. Depois de algum tempo, só restava o zumbido suave das máquinas, que se espalhava pela extensão infinita dos corredores subterrâneos e se perdia num cochicho, em meio aos gigantescos pavilhões.

O duelo psicológico acabara de ser iniciado.

 

O vento escaldante da estepe parecia tê-lo arrastado, juntamente com os pés de sabugueiro, por cima das colinas baixas, tangendo-o para dentro da cidade. Era um homem alto e um tanto magro, cujos olhos brilhavam no rosto encovado como se fossem carvões em brasa. Desceu a passos largos pela encosta que se estendia atrás da casa de Dolanty. Lançou um olhar sobre a cidade, como se quisesse avaliá-la juntamente com seus habitantes.

O filho mais velho de Dolanty, que acabara de consertar o quebra-vento que protegia o canteiro de beterrabas, foi quem primeiro o viu. Surpreso, endireitou o corpo, pois seu pai lhe dissera que, do lugar de onde vinha o desconhecido, não havia mais nenhum ser vivo.

O homem alto aproximou-se do quebra-vento e, sem dizer uma palavra, olhou por cima do mesmo, fitando Sowan Dolanty.

Sowan levantou-se de vez e sentiu a areia que lhe descia pelo corpo. A cidade travava uma luta interminável contra essa areia, face à qual vivia batendo em retirada.

— Olá — disse o desconhecido.

Havia um tom estranho em sua voz. Até parecia que a mesma saía das profundezas de seu corpo emagrecido.

— De onde vem o senhor? — perguntou Sowan, filho, que não conseguiu reprimir a curiosidade.

Ouviu que o pai saía para o jardim atrás dele. Sentiu a atitude desconfiada nos movimentos do velho Dolanty e ouviu a voz trovejante que se elevava acima do vento:

— Quem é o senhor?

A cabeça de Sowan executou dois movimentos rápidos. Lançou um olhar para o pai, um homem atarracado que trajava jaqueta de couro, e depois para o homem magro que não conhecia, e que se mantinha parado junto ao quebra-vento.

— Meu nome é Carba — disse o desconhecido. Virou a cabeça e olhou para as colinas que acabara de atravessar. Seu rosto mostrou uma tristeza indefinida. — Esta é a primeira cidade que encontro em meu caminho — acrescentou.

— É a última cidade que ainda resta — disse o velho Dolanty. — Por mais que ande, não encontrará outra.

— Os outros largaram tudo e voltaram — disse Carba.

— Nós nunca desistiremos — disse o pai de Sowan, transmitindo uma impressão de disposição imbatível, com sua figura robusta coberta pela surrada jaqueta de couro.

Carba colocou a mão sobre o quebra-vento e o sacudiu.

— A areia é mais forte que nós. Nesta cidade vivem os últimos colonos. Também não demorarão a retirar-se — disse.

— Será que o senhor só veio para dizer-nos isto? — perguntou o velho Dolanty, em tom exaltado.

O desconhecido não parecia se impressionar com estas palavras. Sowan teve uma nítida impressão de que com este homem teria início uma modificação da colônia que ninguém poderia deter, à qual ninguém conseguiria opor-se.

— Quem dirige esta cidade? — perguntou Carba.

Por um instante, Dolanty ficou indeciso sobre se deveria expulsar o desconhecido de sua propriedade ou se era preferível dar-lhe a informação que pedira.

— É Atlan — disse depois de algum tempo.

Será que Sowan estava enganado, ou realmente surgira um sorriso de satisfação no rosto de Carba?

— Quero que este jovem me leve para onde está ele — pediu o desconhecido.

Sowan não compreendia como um homem que conseguiu percorrer os desertos infindáveis, junto à colônia, ainda dispunha de energia para dedicar-se imediatamente à execução dos seus planos. Carba parecia-lhe uma pessoa cada vez mais misteriosa. De onde tinha vindo, se em todo este mundo não havia outra cidade? Como conseguira manter-se vivo?

— Sowan, leve este homem para onde está Atlan — disse Dolanty.

Carba sorriu por cima do quebra-vento, mas Sowan, desconfiado, desviou o olhar. Aquele desconhecido infundia-lhe pavor e sua amabilidade parecia superficial.

— Acompanhe-me — disse a contragosto.

Saíram juntos do jardim. Na entrada da propriedade, o velho Dolanty parou. Movia facilmente o corpo robusto contra o vento, enquanto Sowan e o desconhecido tiveram de inclinar-se para a frente. O sol mal conseguia atravessar as nuvens de pó que pairavam sobre a cidade.

— Se fosse o senhor, teria colocado o quebra-vento em ângulo reto — disse Carba assim que chegaram à rua.

Em suas palavras não haviam nenhuma crítica. Antes, as mesmas exprimiam uma objetividade tranqüila e uma disposição suave de ajudar. Apesar disso, a sugestão deixou Sowan aborrecido.

— O senhor não entende disso! — exclamou em tom áspero.

— Tomara que o vento também não entenda — disse Carba, irônico.

— Colhemos as melhores beterrabas da colônia — respondeu Sowan em tom obstinado, embora soubesse que isso não era verdade, pois Fennler Omassage e Porante conseguiam melhores resultados.

Carba lançou um olhar crítico para o caminho que estavam percorrendo.

— Por que não fixam o leito da rua? — perguntou.

— O vento a cobriria da areia em poucas horas.

O homem alto que acompanhava Sowan sacudiu a cabeça.

— Isso não aconteceria se houvesse aparelhos de sucção a intervalos regulares — disse.

— Escute aí — disse Sowan. — Ninguém o convidou para vir para cá. Se não estiver gostando, vá embora.

— Só irei quando tiver concluído a missão que devo cumprir aqui — respondeu Carba.

Sowan parou e segurou a manga da capa do desconhecido.

— Que missão é essa? — perguntou.

— Vim para fechar a colônia — disse Carba, em tom indiferente.

Sowan teve a impressão de que alguém lhe dera uma pancada na cabeça. Caminhava ao lado desse homem terrível, e seus passos levantavam esguichos de areia. A imagem do pai surgiu na mente de Sowan. Viu-o à frente de sua casa, com as pernas bem abertas e um porrete na mão, para rechaçar qualquer atacante. Esse desconhecido falara no fim da cidade como se apenas tivesse vindo para fechar uma porta.

— O senhor nunca conseguirá fazer isso — exclamou fora de si, com a voz odienta.

— Conseguirei, sim — asseverou Carba.

— Todos os colonos sabem que os dias desta cidade estão contados. Basta que apareça alguém que os esclareça a este respeito. A espaçonave pertencente à minha companhia está pousada a poucos quilômetros daqui e oferece a todos a última oportunidade de sair deste mundo.

Estas palavras esclareciam o misterioso aparecimento desse homem: viera numa nave.

— Atlan não permitirá que o senhor faça isso — disse Sowan.

A risada de Carba superou o rugido do vento e os estalos produzidos pela areia que era atirada contra as casas, transformando-se num ruído desagradável que doeu nos ouvidos do jovem Dolanty.

— Essa casa apoiada sobre estacas marrons, que o senhor vê do outro lado da rua, é a sede do governo de Atlan — disse Sowan. — Acho que, daqui em diante, o senhor poderá seguir só.

— Sede do governo — repetiu Carba em tom sarcástico. — Que nome pomposo para uma velha cabana.

Sowan Dolanty já não estava a seu lado.

 

Lasan Porante voltou a examinar o desenho tosco que fizera há poucos minutos. Apontou com o estilete para a mancha escura que sombreara.

— A maior veia de água passa bem embaixo deste canteiro. Se eu perfurar o solo, perderei grande parte da colheita — disse. — Isso significa que, por algum tempo, eu dependeria do auxílio dos vizinhos.

— Se não tivermos água perderemos tudo, Lasan — lembrou Atlan. Porante era um homem teimoso e difícil de ser influenciado. — Se desistir deste canteiro, terá uma das melhores aguadas da colônia.

Os olhos de Porante iluminaram-se. Mas antes que tivesse tempo de responder, ouviram passos que subiam pela escada. Dali a pouco, alguém bateu à porta.

Porante lançou um olhar indagador para Atlan, mas o chefe da colônia estava tão surpreso quanto ele. Não estava acostumado a ouvir alguém bater à sua porta.

— Entre! — gritou em voz alta.

A porta abriu-se e Carba apareceu na soleira. O vento agitava sua ampla manta e um sorriso fugaz brincou em seu rosto.

— Cá estou — disse e foi entrando.

— Quem é este homem? — perguntou Porante, em tom desconfiado.

Atlan colocou o braço sobre o ombro de Porante.

— Queira deixar-nos a sós, Lasan — disse resoluto.

Porante saiu a contragosto.

— Esperava que o senhor não estivesse mais vivo — disse Atlan em tom contrariado, assim que Porante se encontrava fora do alcance de sua voz.

— Há anos carregamos essa esperança ilusória — respondeu Carba.

Atlan sentiu um cansaço profundo tomar conta de seu corpo, embora tentasse manter-se mais desperto que nunca.

— Como pretende agir desta vez? — perguntou em tom amargo.

Carba fechou cautelosamente a porta e levantou os braços, num gesto de súplica.

“Vejo que envelhecemos”, pensou Atlan. “Envelhecemos e acumulamos mais experiência. Mas ainda nos dedicamos ao mesmo trabalho, que nos transforma em inimigos.”

— Esta cidade será devorada pela areia — disse Carba. — Seu fim chegará mais dia menos dia. Neste momento, o senhor tem uma possibilidade de dar a todos os colonos uma oportunidade de emigrarem na nave da minha companhia. Tudo correrá sem incidentes.

— E se eu me recusar? — perguntou Atlan.

Carba foi à janela e olhou para fora. Suas costas estreitas pareciam ligeiramente encurvadas.

— Nesse caso terei de proferir um discurso para todos os habitantes da cidade — anunciou. — O senhor sabe que possuo um grande poder de persuasão.

— Pois a mim o senhor nunca convencerá — asseverou Atlan. — Recebi uma promessa dos hasantenses, que pretendem ajudar-nos.

— Os hasantenses são um povo de ladrões. Eles o ajudarão, intencionando apoderarem-se da colônia.

— Não acredito — objetou Atlan. — Eles nos mandarão uma nave com certos aparelhos úteis e veículos capazes de locomover-se na areia.

— O senhor confia demais na companhia deles. Ela só poderá subsistir, caso oriente sua ação pelos padrões dos resultados materiais. Não poderá fazer investimentos enormes pela colônia, caso esses investimentos não lhe proporcionem uma renda.

Atlan soltou uma risada sarcástica e disse:

— Quando foi fundada, a sua companhia tinha por finalidade dedicar-se ao bem comum. E agora transformou-se num monstro ávido de lucros.

Sua raiva estava tão desgastada que já não poderia produzir o menor efeito. Vivera muitos anos com ódio da companhia de Carba, embora fosse funcionário também da mesma, até que os sentimentos de rejeição se amortecessem, dando lugar à resignação.

— Pois a nossa companhia instalou quatorze colônias — ponderou Carba. — Cinco delas foram bem-sucedidas. As outras tiveram de ser abandonadas. Comparada com a de outros, sua sorte até que foi favorável.

— Já abandonaram mais de cinqüenta colônias — respondeu Atlan, em tom amargo. — E o senhor sempre foi bem-sucedido.

— O senhor escolheu a sua profissão, e eu escolhi a minha.

— Está bem, Carba. Vamos pôr um fim nisto. Recuso-me a fechar a colônia por minha livre e espontânea vontade e volto a lembrar que a nave dos hasantenses que traz auxílio está a caminho.

Sem dizer uma palavra, Carba dirigiu-se à porta. Ao chegar lá, virou-se mais uma vez.

— Conto com sua presença à conferência que proferirei hoje de noite — disse.

Atlan tirou uma pequena arma de radiações a apontou-a para o encarregado da companhia.

—Com isto eu poderia impedi-lo — disse. — Antes que o chefe mandasse outro homem, alguns anos se passariam. E até lá o assunto estaria esquecido.

Carba confirmou com um gesto.

— É verdade. O senhor se esquece de que não pode matar um homem pelas costas. O senhor não seria capaz disso, Atlan.

Deu as costas a Atlan e retirou-se. O vento balançou a porta de um lado para outro. Atlan voltou a guardar a arma. Seu olhar caiu sobre o desenho de Porante. Pegou-o e num gesto nervoso rasgou-o em pedacinhos.

 

A notícia da chegada de um estranho espalhou-se velozmente entre os colonos. Dolanty contava a todo mundo que estivesse disposto a ouvi-lo que Carba chegara numa espaçonave. Algumas horas depois, todos ficaram sabendo que Carba pretendia fazer um discurso no auditório da casa comunal.

Ao anoitecer, os colonos se reuniram no grande recinto e ficaram à espera do que o estranho teria a dizer-lhes. Todos compareceram, pois sentiam-se gratos por qualquer interrupção da monotonia do cotidiano. Carba falou durante mais de uma hora. Sua voz encheu todos os cantos do auditório e ninguém objetou ao que disse. Com proposições lógicas destruiu as esperanças de que os colonos pudessem manter a cidade. Falava constantemente na nave que os acolheria e os levaria para um futuro feliz.

— Cada minuto que os senhores passarem neste deserto representará um desperdício de tempo — disse ao concluir. — Querem esperar a nave dos hasantenses, que talvez não chegue nunca?

Estas últimas palavras não teriam sido necessárias para convencer os colonos. Atlan, que se encontrava atrás da tribuna, contemplou os olhos brilhantes dos homens barbudos e viu as mãos nervosas de suas mulheres que alisavam o cabelo ressequido. Conhecia a mentalidade dessa gente. Eles queriam trabalhar e construir, mas por que não haveriam de fazê-lo num lugar mais apropriado, e não neste deserto feito de pó e areia? Carba prometera que a espaçonave levaria todos a uma área que, comparada com o lugar em que se encontravam, seria um verdadeiro paraíso.

Seria inútil tentar explicar aos homens reunidos no auditório que a companhia de Carba apenas pretendia levá-los a outro planeta inóspito, a fim de verificar se este se prestava à colonização. Os planetas que correspondiam aos desejos da companhia eram muito raros, e para colonizá-los se precisava de homens de tempera rija como aqueles, dispostos a lutar por cada metro de chão.

— Agora, Atlan lhes dirigirá a palavra — concluiu Carba e saiu da tribuna.

Um murmúrio de embaraço encheu a sala. Era um ruído que já exprimia a decisão dos colonos.

— Cada um só poderá levar um peso limitado de objetos — disse Atlan. — Cuidem para que este peso não seja excedido. A partir deste momento, Carba dirigirá a operação.

Virou-se abruptamente e retirou-se, usando a porta dos fundos. Ouviu passos atrás de si. Era Sowan Dolanty, que lhe perguntou com a voz desfigurada pela raiva:

— Será que o senhor não tinha outra resposta para essa tagarelice?

— Acho que não — respondeu Atlan.

Sowan fitou-o com os olhos úmidos.

— Seu... seu covarde! — gritou o jovem com a voz furiosa e saiu correndo.

— Este rapaz é um esquentado — disse uma voz atrás de Atlan.

Era Carba que saía do auditório.

— Quando cheguei, ele me ofendeu — completou.

— Saia do meu caminho — gritou Atlan, em tom de ameaça.

Num gesto pensativo, Carba passou a mão pela nuca.

— O senhor é igual a ele — disse com amabilidade. — Só é mais velho e experimentado. Acho que, na juventude, o senhor fez as mesmas tolices que ele está fazendo.

— Desapareça da minha frente e recolha-se à sua maldita nave — falou Atlan.

— O senhor não vem comigo?

— Não.

Carba franziu as sobrancelhas. Do lado oposto do auditório, os colonos estavam saindo e dirigiam-se às suas casas, a fim de reunir seus pertences. Atlan sabia que, quando chegassem à nave, metade da sua bagagem seria rejeitada.

— Afinal, o que está querendo, Atlan? — perguntou Carba. — Pretende ficar sozinho na cidade e esperar que a areia o devore?

— Por que não?

— Quando todos os colonos estiverem a bordo virei buscá-lo, Atlan. Levá-lo-ei à força — disse Carba, em tom áspero.

— O senhor virá só ou trará seus soldados?

— Virei só.

Atlan lançou um olhar pensativo sobre as casas. A tensão entre ele e esse homem crescera bastante, e nada fora feito para reduzi-la. A descarga seria inevitável.

— Estarei à sua espera, Carba — disse em tom colérico.

 

Sob o ponto de vista estratégico, a cidade era fácil de ser atacada de qualquer lado. Um homem que se encontrasse só não poderia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, a fim de ver por onde entraria o inimigo.

Atlan refletiu sobre a situação que surgira com a saída dos colonos. Naquele momento era o único ser vivo que se encontrava na cidade, e a situação continuaria assim até que Carba aparecesse para levá-lo.

Lembrou-se dos colonos que naquele momento se comprimiam nos pequenos compartimentos da nave, esperançosos de pisarem no novo mundo descrito por Carba. Atlan não sentiu nenhum ressentimento para com esses homens e nem sequer decepcionou-se com eles, pois a maneira como agiam correspondia à sua mentalidade. Andavam constantemente à procura da terra da promissão, que nunca encontrariam, mas que existia em sua fantasia e parecia ao seu alcance. A companhia não tinha escrúpulos em aproveitar essa concepção para atingir suas finalidades.

Mas o problema já não era seu. Devia preparar-se para o momento em que Carba aparecesse. Não convinha subestimar esse homem.

Atlan examinou cuidadosamente a arma que trazia. Não tinha a menor idéia de como agiria o representante da companhia, mas queria estar preparado para qualquer eventualidade.

Encontrava-se no edifício sólido que os colonos designavam ironicamente como sede do governo. Pela janela do centro via as laterais da rua que atravessava o centro da cidade. O vento tangia os pés de sabugueiro que ficavam presos nas quinas das casas, até que as rajadas os atingissem de novo e voltassem a arrastá-los. A colônia estava morta. O chiado e o rugido do vento era o único ruído que soava naquela solidão. Vez por outra ouvia-se o matraquear de uma tábua solta ou a batida de uma porta que os colonos haviam-se esquecido de fechar.

Estava escurecendo. Carba não viria antes do amanhecer, pois sabia que não poderia encontrar Atlan na escuridão. Este deitou-se no leito estreito e cobriu-se. Seus pensamentos giravam em torno da luta que se aproximava.

Quando a escuridão desceu dormiu um pouco, até que foi despertado por um grito.

— Atlan!

Levantou-se de um salto e pegou a arma. Carba entrara na cidade em plena noite. Estava em algum lugar lá embaixo, entre as casas, à sua procura. Atlan pegou uma escada e colocou-a de modo que pudesse alcançar o pavimento superior.

Tateou cuidadosamente, à procura do gancho de ferro que devia estar por ali. Depois de algum tempo encontrou-o. Seus dedos crisparam-se em cima do alçapão. Desceu o gancho até que este se prendesse na escada, para que pudesse puxá-la para cima. Amarrou-a cuidadosamente. Dessa maneira uma pessoa que se encontrasse embaixo não poderia segui-lo.

Sem fazer o menor ruído, abriu a janela que saía para o telhado e enfiou a cabeça pela abertura. O vento atingiu sua face, e mesmo nessa altura sentiu as partículas de areia. Atlan segurou-se com ambas as mãos e puxou seu corpo para cima. Deixou-se cair para frente e segurou-se no parapeito que ficava junto à janela. A inclinação do telhado não era muito forte, mas este estava coberto de musgo e era escorregadio.

Atlan colocou as pernas para fora da janela e sentou-se no parapeito. Fechou a janela e pôs-se a escutar. O telhado era o lugar mais seguro. Carba não poderia vê-lo na escuridão, a não ser que tivesse trazido aparelhos de rastreamento da nave. Mas isso era pouco provável, pois o orgulho de Carba não permitiria que agisse dessa forma.

Atlan procurou colocar-se na posição do inimigo.

“O que eu faria se estivesse no lugar dele?”, indagou-se mentalmente.

Procurou pensar como Carba, a fim de imaginar os próximos passos do inimigo.

“Se eu estivesse no lugar do representante da companhia, a essa hora provavelmente estaria à espreita no jardim que fica atrás da casa de Dolanty, pois dali se tem uma visão completa da rua”, voltou a refletir.

Seria importante garantir esse lugar enquanto ainda estava escuro, pois, quando o dia clareasse, o esconderijo ofereceria inúmeras vantagens.

“Isso mesmo”, pensou Atlan, zangado. “Está no jardim de Dolanty.”

Começou a andar de quatro sobre o telhado.

 

Carba encostou-se ao quebra-vento inútil que o rapaz estava reparando quando chegara à cidade e pôs-se a refletir. Sem dúvida, Atlan ouvira seu grito e estava planejando alguma coisa.

Provavelmente Atlan não esperara que Carba se arriscasse a entrar na cidade de noite. Dali se concluía que o chefe da colônia se encontrava no edifício da sede do governo, que mantinha fechado. Carba acreditava que só mesmo um idiota sairia do edifício pela porta. E Atlan não era nenhum idiota. Se não houvesse nenhuma saída pelos fundos, procuraria outra saída. Carba concentrou-se no assunto, para descobrir o que faria se estivesse no lugar de Atlan.

“Eu procuraria chegar ao telhado”, pensou.

O edifício da sede do governo ficava aproximadamente no centro da cidade, enquanto a casa de Dolanty ficava na periferia. Carba procurou lembrar-se da distância que havia entre os telhados das casas. Um homem ágil poderia saltar perfeitamente de um telhado para outro, a fim de mudar de posição sempre que isso se tornasse necessário.

Carba soltou um assobio. No meio da noite, Atlan não conseguiria nada com isso, pois não sabia onde estava Carba. Não saberia mesmo? Carba levantou-se, possuído de uma sensação desagradável. Fizera um erro ao escolher o lugar mais favorável. Se Atlan refletisse um pouco, chegaria à conclusão de que devia procurar o inimigo nas proximidades da casa de Dolanty. Viria rastejando pelo telhado, iluminaria a noite com um tiro a esmo e acertaria com o segundo tiro.

Carba praguejou e saiu com o corpo abaixado. Não deveria seguir nenhum esquema, pois Atlan era um homem inteligente e saberia prever seus passos. Atlan teria de agir ao acaso.

Caminhando rapidamente, deixou para trás a casa de Dolanty e dirigiu-se ao centro da cidade. De repente sorriu. Sem dúvida Atlan se encontrava nos telhados do lado oposto. Avançaria até o lugar em que terminavam as casas, a fim de ficar acima do terreno de Dolanty. Assim que chegasse lá, dispararia. Carba teria de aguardar esse momento e de atirar também, mas de um lugar muito diferente daquele que Atlan imaginava...

Carba entrou numa casa cuja porta estava aberta e avançou às apalpadelas pelos aposentos escuros, até chegar à escada que levava ao andar de cima. Guardou a arma de cano curto e subiu os degraus. Depois de rastejar por alguns minutos encontrou uma escada de corda, pendurada à parede. Soltou-a e puxou-a para experimentar. Estava presa ao teto. Sem dúvida levava para o telhado. Subiu sem nenhum esforço, até que sua cabeça batesse na madeira. Segurou-se com uma das mãos e com a outra fez força contra o teto. Conforme previra, encontrava-se embaixo de um alçapão. Abriu-o com um forte empurrão. A escada desenvolvia movimentos pendulares sob o peso de seu corpo. Dali a poucos minutos encontrou-se em cima do telhado e olhou em torno, embora não visse nada na escuridão. Teve a impressão de ouvir um ruído tateante, vindo do outro lado da rua, mas era possível que fosse engano.

Carba arrancou um pedaço de musgo do revestimento do telhado e tateou até a extremidade deste. Atirou a matéria mole a uns dois metros de distância e ficou satisfeito ao ouvir o ruído do impacto no telhado da casa vizinha. Concluiu que a distância entre os telhados era menor do que supusera. Tomou impulso e saltou. No meio do salto, teve a impressão de ter calculado mal a distância. Um pavor gelado atravessou sua espinha. Mas, no mesmo instante, voltou a sentir o apoio dos pés. Agachou-se, a fim de diminuir a força do impacto. Fazia votos de que o barulho não fosse mais forte que o ruído do vento.

Avançou mais quatro casas, até chegar a um ponto situado a apenas cinqüenta metros da propriedade de Dolanty. Sorriu, satisfeito. Era apenas uma questão de tempo; Atlan dispararia do telhado de uma das casas que ficavam do lado oposto da rua, em direção ao jardim de Dolanty. Com isso estaria cavando a própria cova. Carba sacudiu a cabeça. Para um homem inteligente, as coisas eram muito simples, desde que este se dispusesse a refletir um pouco.

 

Atlan quase caiu no último salto. Escorregou e deslizou telhado abaixo. Cravou os dedos no revestimento e conseguiu amortecer o movimento. Arrastou-se lentamente para o centro do telhado. Respirando sofregamente, descansou. Atingira seu objetivo. Estava muito escuro, mas conhecia perfeitamente o ponto sobre o qual teria de fazer pontaria. Era claro que o primeiro raio disparado por sua arma não atingiria o inimigo, mas a descarga energética iluminaria a área. Antes que Carba se recuperasse do susto, Atlan voltaria a disparar e poria fim à luta.

Atlan ajoelhou-se e apontou a arma para o jardim de Dolanty. Suas mãos tremiam, e viu-se obrigado a descansar a arma. Era tão fácil! Era fácil demais...

Atlan mordeu o lábio. Quase teria cometido um erro. Teria algum motivo para supor que Carba estaria justamente no lugar que qualquer pessoa inexperiente escolheria? Carba não era tolo, e não se colocaria no lugar que aparentemente fosse melhor.

De repente Atlan deu-se conta de que, se disparasse, revelaria sua posição. Voltou a guardar a arma e sentou-se no telhado, para refletir.

Da mesma forma que ele adivinhara os pensamentos de Carba, o representante da companhia procuraria adivinhar os planos de Atlan. Bastaria que Carba refletisse um pouco para chegar à conclusão de que Atlan o procuraria nas proximidades da casa de Dolanty. O que faria Carba? Sem dúvida procuraria afastar-se do perigoso local. Até mesmo um homem dotado de menos imaginação que Carba seria capaz de prever que Atlan atacaria do telhado.

Atlan franziu a testa e concluiu que chegara a um beco sem saída. Naquela escuridão, o inimigo poderia estar escondido em qualquer lugar. Era bem possível que se encontrasse poucos metros abaixo dele.

Atlan arrastou-se até os fundos do telhado e saltou para o jardim. Houve um baque surdo, que seria ouvido pelo menos a vinte metros. Saiu correndo imediatamente, mas não houve nenhum disparo que iluminasse a noite. Bateu numa cerca e feriu-se na altura dos quadris. Devia estar nas proximidades de uma caixa d’água, pois o vento trazia um cheiro úmido. Encontrava-se atrás da casa de Tastat, que era uma das menores que havia na cidade. Espremeu-se por uma abertura na cerca e avançou às apalpadelas junto à parede, até chegar à rua.

Parou e pôs-se a escutar. Um pé de sabugueiro tangido pelo vento bateu nas suas pernas e ficou preso por um instante. Em algum lugar, um pedaço de madeira podre quebrou-se ruidosamente. O pé de Atlan bateu numa pedra. Levantou-a e, cuidadoso, pesou-a na mão.

Com um movimento amplo arremessou-a sobre o telhado da casa de Tastat. O ruído fê-lo estremecer. No mesmo momento, um raio de fogo saiu de uma das casas do outro lado da rua. Atlan teve uma sensação de triunfo e atirou-se ao chão, a fim de não ser visto na luz ofuscante. Assim que a escuridão voltou a reinar, Atlan levantou-se de arma em punho. Refletiu antes de atirar. Imaginava que Carba mudara sua posição assim que descobrira que se deixara enganar por um truque. O disparo de Atlan correu que nem uma língua de fogo em direção às casas do lado oposto da rua, iluminando-as tão bem que quase chegava a doer nos olhos. Viu a figura encolhida de Carba junto a uma chaminé, de arma em punho.

Dispararam ao mesmo tempo. Cascatas de luz surgiram nos lugares de descarga da energia dos raios. Atlan sentiu uma coisa quente roçar-lhe as costas. Depois disso ouviu-se um grito seguido de um baque surdo. Atlan rolou para o lado, a fim de apagar o fogo que se espalhava pela manta que vestia.

A concluir pelo ruído, o tiro derrubara Carba de cima do telhado. Mas logo ouviu o som de passos que corriam apressadamente pela madeira, mostrando que o inimigo ainda estava vivo e corria em torno de uma casa na intenção de pôr-se em segurança.

Atlan não hesitou. Atravessou a rua correndo e seguiu o ruído. O silêncio voltou a reinar. Atlan teve de parar para orientar-se. Sentiu que havia alguém nas imediações. Mas, antes que pudesse fazer alguma coisa, levou uma pancada na cabeça, deixou cair a arma e perdeu os sentidos.

 

Sowan Dolanty baixou o porrete e tremia de medo pelo que acabara de fazer. Permanecer fora da espaçonave era uma coisa, mas abater o representante da companhia era outra coisa muito diferente.

Sowan pôs as mãos em concha à frente da boca.

— Atlan! — gritou a plenos pulmões. — Eu o peguei, Atlan.

Ninguém respondeu. Por certo Atlan estava achando que fosse uma armadilha.

— Aqui fala Sowan Dolanty! — gritou. — Acabo de abater Carba.

— Já vou! — disse uma voz a alguma distância.

Muito orgulhoso, o jovem colono voltou a erguer-se.

— Estou aqui! — continuou gritando eufórico. — Aqui!

Pelos ruídos concluiu que Atlan se aproximava lentamente.

— Está ferido? — perguntou Sowan, em tom preocupado.

Ouviu-se um murmúrio afirmativo. Sowan foi ao encontro dos passos rastejantes.

— É grave?

Atlan encontrava-se a menos de dois metros, e quando voltou a falar sua voz parecia fria e mudada.

— Fique onde está, rapaz!

Sowan ficou rígido de pavor. Será que cometera um erro?

— Minha arma está apontada para você. Muito obrigado por ter-me livrado do trabalho de liquidar Atlan.

Os olhos de Sowan encheram-se de lágrimas de decepção. A escuridão fizera com que se enganasse: abatera Atlan em vez de Carba. O verdadeiro inimigo encontrava-se à sua frente e estava armado. O desespero comprimia a garganta de Sowan.

— Seu demônio! — gritou com a voz amarga.

— Por quê? — perguntou Carba. Sowan imaginou que um sorriso indiferente aparecia no rosto de seu interlocutor. — Foi ele que quis assim.

Carba aproximou-se e deu um ligeiro pontapé no homem que estava estendido no chão.

— Temos de carregá-lo até a nave — disse Carba. — Você acertou bem, rapaz.

— Quis ajudá-lo — disse Sowan, entre soluços. — Apenas quis ajudar.

— Ele sempre acreditou na bondade e na prestatividade dos outros — disse Carba, em tom seco. — E foi isso que o derrotou.

— O senhor não acredita nestas coisas, não é mesmo? — perguntou Sowan, em tom amargurado.

— É perigoso acreditar — disse Carba, convicto. — Só conheço um homem que nunca me enganou. Este homem sou eu.

Por um momento os dois se mantiveram em silêncio em meio à escuridão.

— Vim para ajudá-lo. Será que o senhor não compreende? — de repente não havia o menor ressentimento na voz de Sowan. — Ele tinha alguém que estava disposto a sacrificar a vida por ele, mas o senhor estava só e abandonado. Ninguém se empenhará pelo senhor, porque o senhor não concorda.

Carba soltou uma risadinha.

— Nunca pensei que um dia fosse ouvir um discurso como este da boca de um rapaz. Vamos pegar seu ídolo e levá-lo à nave.

— Se não houvesse o risco de atingir o rapaz, eu atiraria contra o senhor, Carba — disse Atlan que jazia no chão.

A reação do representante da companhia foi imediata. Atirou-se para o lado. Sowan ouviu que Atlan se afastava rastejando.

— O senhor não é nenhum covarde! — gritou Sowan. — Vim para dizer-lhe que estou arrependido por ter dito isso.

— Dê o fora — chiou a voz de Carba, em algum lugar na rua.

Sowan procurou abrigar-se atrás de uma casa. Comprimiu o corpo contra esta. Naquele instante lamentava ter perdido o porrete. Uma língua de fogo passou a seu lado, mas o disparo de Carba viera tarde. Atlan já desaparecera atrás das casas.

Uma luminosidade alva desceu sobre a cidade. Espantado, Sowan levantou a cabeça. A noite chegara ao fim e um novo amanhecer se anunciava.

Assim que o dia clareasse de vez os dois homens já não poderiam esconder-se um do outro. Enfrentar-se-iam em luta aberta.

Sowan pesou as chances e esforçou-se para evitar que o sentimento influenciasse sua decisão. Teve de reconhecer que a essa hora seria impossível saber quem sairia vencedor.

 

O raiar do novo dia provocou uma sensação de desassossego em Atlan. O sol, que não demoraria a romper os véus de bruma, aumentaria o perigo que irradiava de Carba. Poderia pôr fim a tudo. Para tanto bastaria que saísse para a rua, desarmado, e se declarasse disposto a subir a bordo da nave com Carba. Acontece que já era tarde para dar um passo como este. Nessa altura, só mesmo a luta poderia solucionar a pendência entre ele e Carba.

Atlan caminhou lentamente em direção ao edifício da sede do governo. Viu o tiro, disparado a esmo por Carba, passar a grande distancia às suas costas. Fazia votos de que nada tivesse acontecido ao jovem Dolanty.

Atlan perguntou a si mesmo que tipo de homem seria esse Carba, que voltara só para levá-lo. A nave proporcionaria muitos recursos bem mais eficazes a Carba. Bastaria recorrer aos soldados, aos robôs de guerra ou às armas automáticas. O representante da companhia renunciaria a tudo isso e arriscava a vida apenas para subjugar a ele, Atlan.

No fundo Atlan sabia que as coisas não poderiam ser diferentes. Mas não saberia dizer qual era a origem dessa convicção íntima.

Contornou o edifício da sede do governo e entrou pela porta da frente, que já se tornara bem visível. Do outro lado da cidade reinava o mais completo silêncio. Não se ouvia nada de Carba nem de Sowan.

Atlan entrou na sala ampla que lhe servira de escritório. Naquele momento lhe parecia estranha e apavorante. Tateou à procura da cadeira simples e deixou-se cair na mesma. O cansaço cedera, mas sentia fome. Levantou-se e tirou da gaveta superior do armário um pedaço de açúcar de beterraba cristalizado em gordura. Satisfeito, pôs-se a estalar a língua enquanto o confeito duro se desmanchava em sua boca. O que diriam os hasantenses quando sua gigantesca espaçonave pousasse nas proximidades da colônia e não encontrasse mais nenhum sinal de vida? Por que a companhia não queria compreender que o apoio desse povo poderia levá-la muito mais longe?

Atlan desistiu de formular constantemente as mesmas perguntas. Duvidava de que Carba pensasse em coisas desse tipo. O representante apenas executava as ordens da companhia a que prestava serviços.

A claridade já lhe permitia reconhecer os objetos que havia no interior da sala. Foi à janela e olhou para a rua deserta. Depois pegou um pedaço menor de confeito e enfiou-o na boca.

Assim que o dia raiou de vez, dirigiu-se lentamente para a rua.

 

Quando Atlan saiu, Carba aproximou-se, vindo do outro lado da rua. Parado na extremidade oposta da cidade, junto à casa do pai, Sowan contemplava a cena, muito tenso.

Carba ergueu a arma térmica de cano curto e disparou, mas não fizera boa pontaria. O tiro revolveu o chão ao lado de Atlan. Este parou e disparou o primeiro tiro de sua arma. Viu Carba ser atingido no ombro direito e cambalear. Enquanto caía, o representante da companhia voltou a disparar. Atingiu a porta do edifício da sede do governo, que logo foi tomada pelas chamas. A arma de Carba era muito mais potente que o radiador de Atlan. Um único impacto provavelmente bastaria para matar Atlan.

Durante a queda Carba continuava a disparar contra o inimigo, que se aproximava dele, correndo em ziguezague. A obstinação com que Carba continuava a atirar, apesar dos ferimentos graves que acabara de sofrer, deixou Atlan assustado. Voltou a disparar, mas o representante da companhia rolou o corpo, com o rosto desfigurado pela dor. O raio concentrado da arma de Atlan apenas revolveu a areia.

— Parem! — gritou Sowan, que continuava parado junto à casa do pai. — Parem, que já chega!

Ao ouvir o grito, Atlan parou um instante. Foi atingido pelo disparo de Carba e perdeu o apoio dos pés. Por estranho que pudesse parecer, Atlan não sentiu o impacto. Deitado calmamente no chão, sentiu o vento que passava por cima dele. Carba aproximou-se, rastejando de joelhos, e inclinou-se por cima dele. Havia em seu rosto desfigurado pela dor uma expressão de profunda tristeza.

— Você não poderá levar-me para essa nave — disse Atlan, num cochicho. — Já é tarde.

— Receio que tanto o senhor como eu nunca mais sairemos dessa cidade — disse Carba, esboçando um sorriso.

Sowan aproximou-se e fitou-os em silêncio.

— Vá à nave, Sowan — ordenou Atlan.

O jovem Dolanty sacudiu a cabeça.

— Esperarei — disse em tom de desânimo.

Sentou-se ao lado dos dois homens, prestando atenção ao ruído do vento, que tangia a areia para dentro da cidade abandonada...

 

Acordaram de repente e tão depressa que o subconsciente de Atlan ainda agarrava fortemente aos acontecimentos irreais que o capacete colocara diante de seus olhos. Teve de fazer um grande esforço para encontrar o caminho de volta ao verdadeiro ambiente que o cercava. Por alguns segundos sua mente ficou dividida; seu cérebro não conseguia decidir qual era o plano existencial que devia ser aceito como real. Só aos poucos seu pensamento voltou a funcionar, e a pressão nitidamente perceptível do capacete trouxe de volta as recordações.

Atlan levantou a cabeça. A dor que sentia na nuca fez com que fechasse os olhos.

Sentiu-se aliviado, pois deu-se conta de que tudo aquilo não passara de um sonho. Tanto a colônia como Sowan Dolanty jamais tiveram existência real. O duelo psicológico acabara de chegar ao fim. Ainda não se sabia quem saíra vencedor.

Ouviu Carba, que se encontrava no outro nicho, tirar o capacete. Seguiu o exemplo do rebelde. Quando começou a soltar os contatos, suas mãos tremeram.

— O resultado do duelo não está bem definido — disse a voz mecânica do regente. — Cada um dos participantes fez o que pôde no mundo irreal, a fim de executar sua tarefa. Carba teve uma atuação mais direta que Atlan, que pretendeu recorrer à colaboração de outras pessoas. Isso permite várias conclusões diferentes. A decisão final só será adotada depois que os candidatos tiverem respondido a algumas perguntas.

— Estou pronto para responder — disse o adversário de Atlan.

— Evidentemente as pretensões de Carba resultam em grande parte da insatisfação com a maneira pela qual o imperador em exercício se desincumbe das funções governamentais — constatou o grande centro de computação positrônica. — Quais são os argumentos que Carba pode apresentar?

Carba soltou uma risada sarcástica.

— Apenas quero evitar que o Grande Império caia nas mãos dos terranos, com os quais Gonozal VIII mantém relações tão amistosas. Tenho provas de que o imperador colocou à disposição dos dirigentes do Império Solar certos conhecimentos e fatores de poder que, mais dia menos dia, serão usados contra nós.

— O que nos diz, imperador? — perguntou o regente.

— Gostaria de lembrar a amizade de Perry Rhodan, Administrador do Império Solar — disse Atlan, que sentia suas esperanças renovadas. Por enquanto o regente não havia tomado nenhuma decisão. — Este homem nos ajudou muitas vezes em situações perigosas.

— Só ajudou para pedir uma contra-prestação por baixo do pano, contraprestação esta que sempre obteve — acusou Carba. — Será que o senhor pensa que os terranos agiram por puro altruísmo, imperador? Nada disso. Seus motivos foram totalmente diferentes. A confiança que o senhor deposita neles não tem o menor fundamento, Gonozal.

Refletiu por um instante e logo prosseguiu.

— Regente, peço-lhe que examine seus arquivos e procure verificar o paradeiro das seguintes pessoas: Testol de Amarat, Lischer Amson, Delent Omaris e Halto Teschner. Estes homens atuaram como representantes do Grande Império no sistema planetário de Otalka. Seu trabalho produziu bons resultados. Nunca houve notícias de qualquer revolta que tivesse ocorrido em Otalka.

Atlan sabia perfeitamente quais eram as intenções do jovem arcônida. Lembrava-se perfeitamente do que acontecera com os quatro oficiais que este acabara de mencionar.

— Não há necessidade de o regente transferir sua ligação para os bancos de dados — observou Atlan. — Eu lhe direi o que aconteceu com as pessoas cujos nomes acabam de ser mencionados.

— O senhor é de uma franqueza notável! — exclamou Carba, irônico.

Atlan fez como se não tivesse ouvido a observação. A discussão acabara de atingir um ponto crítico. Seria inútil tentar convencer o regente, usando argumentos que este nunca poderia aceitar, em virtude de seu setor de segurança ser totalmente antiquado. E Atlan não viu a menor possibilidade de explicar a esse cérebro que raciocinava em termos puramente lógicos a amizade que mantinha com Rhodan e muito menos a mentalidade dos terranos. Os sentimentos constituíam um fator totalmente secundário. Tornava-se necessário apresentar ao grande centro positrônico uma prova lógica de que as medidas tomadas por ele, Atlan, eram corretas. Isso seria simples, se o setor A-l pudesse ser reprogramado no sentido de ser capaz de reagir em conformidade com as circunstâncias atuais. Nesse ponto, Carba e seus comparsas levavam uma boa vantagem, pois haviam trabalhado em A-l, fazendo com que o regente examinasse a atual situação, sob um ponto de vista que teria sido válido há cinco mil anos.

A Atlan não restava outra coisa senão tentar construir uma ponte sobre esse tremendo hiato temporal. Para isso procuraria uma via intermediária que pudesse parecer lógica ao regente.

— Estes homens foram afastados dos seus cargos por ordem minha — informou Atlan. — Foram substituídos por oficiais terranos.

— Havia algum motivo para a troca?

A voz do regente permaneceu inalterada.

— Houve — respondeu Atlan. — Os terranos são nossos aliados. Só se tiverem uma boa visão de conjunto, poderão dar-nos apoio integral. Devem estar em condições de avaliar a situação do Grande Império, não por peças e fragmentos, mas em seu conjunto. Seria inútil se só ocasionalmente lhes déssemos uma chance de ajudar-nos. Nesse caso só fariam experiências sem conhecimento de causa e nos trariam mais prejuízos que vantagens.

— Se fosse assim — disse Carba — também deveria haver arcônidas que atuassem no Império Solar, a fim de que pudéssemos obter uma visão de conjunto de nossos aliados.

Atlan percebeu tarde demais que acabara de cometer um erro de que Carba estava tirando proveito.

— É verdade — disse o grande cérebro.

— Existe um número equivalente de arcônidas no Império Solar?

— É claro que não — respondeu Atlan.

— Não podíamos dispensar nenhum homem capaz de que pudéssemos lançar mão. A única coisa que podíamos oferecer aos terranos eram as naves robotizadas, que neste meio tempo foram afastadas das frotas terranas.

— Quer dizer que se trata de uma infiltração unilateral — disse Carba. — Alguns arcônidas são dispensados, embora tivessem feito um trabalho bom, a fim de serem substituídos por terranos. Não posso deixar de lembrar ao regente que os terranos são uma raça perigosa, que já nos causaram problemas.

— O senhor realmente acredita que o império poderá ser mantido apenas com homens decadentes e robôs desalmados, Carba? Será que é possível a existência de um povo dominado por um robô que se guia obstinadamente por uma série de instruções programadas várias gerações atrás?

Atlan sabia perfeitamente que com estas palavras só fazia o jogo de Carba, mas naquele momento isso pouco lhe importava. Se tinha mesmo que ser derrotado, queria mostrar a esse membro presunçoso da família Minterol o que estava em jogo. Era indiferente quem seria alçado ao poder ou o que o regente pensava dele. Só uma coisa importava: bilhões de arcônidas deviam ser salvos, salvos da decadência, das guerras, da ruína econômica.

— Acho que não é necessário acrescentar qualquer coisa às palavras que acabam de ser proferidas — disse Carba, que já se sentia seguro da vitória. — O homem que está a meu lado não pretende manter-se leal ao império. Pretende atingir seus objetivos por meio de alianças absurdas e de concepções vagas como a da amizade. Não compreende qualquer política bem definida, colocada ao serviço de todos os arcônidas.

— Essas palavras representam o canto fúnebre do Grande Império — disse Atlan, profundamente abalado.

— De forma alguma! — exclamou o rebelde. — Minhas palavras representam o prenuncio de um novo começo, fundado em decisões objetivas. Dentro em breve, o império ficará livre dos parasitas terranos. Nós os expulsaremos deste setor da Galáxia e conquistaremos seu ridículo sistema.

— Sua bandeira mostra-se sanguinolenta, antes mesmo de ser desfraldada — disse Atlan. — Qualquer um que marche com ela será conspurcado pelo sangue. Seu nome ainda será lembrado, Carba, mais tarde, quando sua campanha insensata tiver chegado ao termo.

— A decisão já foi tomada — disse o regente. — Anunciá-la-ei aos setores competentes.

Atlan contemplou o capacete que jazia sobre o painel de controle. Nunca se sentira muito feliz com a tarefa que tivera que desempenhar. Apesar disso a idéia de ser afastado por essa maneira pareceu-lhe inconcebível.

Recostou-se na poltrona e ficou à espera do momento em que o gigantesco centro de computação positrônica fosse anunciar o nome do vencedor pelos alto-falantes.

 

O Dr. Riebsam olhou para o relógio e sacudiu a cabeça. Rhodan, conseguindo adivinhar os pensamentos do matemático, disse:

— Já se passaram mais de quatro horas, doutor.

— Suponho que nossos amigos acônidas, que se encontram naquela nave, também comecem a impacientar-se — disse Riebsam, com um sorriso. — É possível que saibam tanto a respeito desse duelo quanto nós.

— O duelo pode levar dias — ponderou Marshall. — Por enquanto não aconteceu nada que nos deva deixar desconfiados. Sem dúvida, Atlan conseguirá avisar-nos sobre o resultado.

As palavras do chefe dos mutantes não tranqüilizaram Rhodan. Milhares de naves robotizadas arcônidas descreviam uma órbita em torno de Árcon III. Estavam preparadas para rechaçar prontamente qualquer ataque do pequeno grupo de naves terranas. Se as coisas ficassem sérias, seria até difícil fugir sem sofrer perdas.

Por que Atlan não falara no duelo, limitando-se a algumas indicações misteriosas? Será que já sabia que não tinha a menor chance? Se o arcônida silenciara perante os terranos sobre o perigo que corria, isso teria correspondido ao seu caráter.

Rhodan refletiu intensamente, mas não descobriu nenhum meio de ajudar o velho amigo. Seria inútil recorrer aos mutantes, pois o regente não permitiria que alguém penetrasse em seu interior.

De repente Rhodan teve uma idéia. Não era de supor que os acônidas soubessem mais a respeito do duelo que ele mesmo. Provavelmente também se sentiam muito nervosos. Os ocupantes da nave esférica de pólos achatados, que estava pousada a algumas centenas de metros da Ironduke, estariam ocupados com o mesmo problema. Rhodan refletiu sobre seu plano. Não se poderia prever se os acônidas que eram uma raça inteligente, se deixariam enganar, mas de qualquer maneira não havia nada a perder.

O administrador dirigiu-se ao Major Krefenbac.

— Procure estabelecer contato com a nave dos arcônidas, major — ordenou Rhodan. — Quero falar com Sansaro.

Krefenbac debruçou-se sobre os controles do rádio comum. Naquele momento, os acônidas não estariam fazendo outra coisa senão prestar atenção ininterruptamente a eventuais sinais de rádio. Rhodan ordenara a seus subordinados que se mantivessem atentos ao tráfego de rádio e localizassem a fonte de qualquer impulso que conseguissem captar. Queria descobrir quando o regente entrasse em contato com os acônidas. Não se precisava ser nenhum adivinho para afirmar que Sansaro também mandava vigiar as naves terranas.

A tela iluminou-se. Rhodan esperou até que o rosto de Sansaro surgisse nitidamente. O acônida parecia indiferente como sempre. Seu rosto era uma máscara impenetrável.

Rhodan sorriu e tamborilou no painel de controle. Os acônidas deviam ter a impressão de que se sentia bem à vontade.

— O que acha do resultado do duelo psicológico? — perguntou no tom de quem possui uma informação e supõe que a mesma também já tenha sido transmitida ao seu interlocutor.

Por um instante o acônida fitou-o em silêncio. Rhodan soube manter a expressão de seu rosto sob controle.

— Não me surpreendi com o mesmo — disse Sansaro. — Eu sabia que Carba venceria.

Sansaro devia ser o ator mais sagaz do Sistema Azul... ou então estava dizendo a verdade.

Rhodan respondeu com a maior tranqüilidade:

— Eu esperava que o senhor não procurasse esconder a derrota com uma resposta tão ingênua.

Sansaro riu como um negociante que acaba de fazer um negócio muito lucrativo.

— Não procuremos enganar-nos um ao outro, terrano — sugeriu. — O senhor subestima minha inteligência. Realmente acredita que conseguirá espalhar o desassossego entre nós? Nem o senhor nem eu sabemos o que está acontecendo no subsolo do planeta.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Lamento que não estejamos do mesmo lado — disse com toda sinceridade. — De qualquer maneira, quero ponderar que é bem possível que o regente esteja fazendo um jogo exclusivamente seu. Talvez tenha atraído Carba e o imperador com a perspectiva do duelo apenas na intenção de prender os dois.

A desconfiança fez o acônida cerrar as sobrancelhas. Havia entre ele e Rhodan uma estranha compreensão que se situava num plano mais elevado, pois o objetivo de ambos consistia em ampliar sua influência no Grande Império. Eram inimigos, mas entre eles se estabelecera uma muda concordância.

No entanto, Sansaro não parecia disposto a desistir de sua atitude rígida em benefício de uma suposição vaga.

— Não posso concordar com sua opinião — disse. — O que o senhor está fazendo pode inspirar-se no desejo de pôr fim ao duelo.

— Será difícil provar-lhe o contrário. De qualquer maneira recomendo-lhe que reflita sobre o que acabo de dizer.

Sansaro não parecia impressionar-se com as palavras de Rhodan. Se é que em seu rosto impassível se podia adivinhar alguma sensação, tal seria de um triunfo secreto.

Rhodan fez um ligeiro sinal para Krefenbac e o major interrompeu a ligação.

— Não mordeu a isca — constatou Jefe Claudrin, em tom furioso.

— Talvez tenha mordido — objetou Rhodan. — Quanto maior seja a duração do duelo, mais inseguros se sentirão as pessoas que se encontram na nave dos acônidas.

— O que podemos fazer neste meio tempo? — perguntou Gucky no tom de quem está com vontade de entrar em ação.

Rhodan lançou um olhar pensativo para os rostos tão familiares que o cercavam.

— Esperar — disse. — Só podemos esperar.

 

— Não há dúvida de que sob o governo do Imperador Gonozal VIII a influência dos terranos no Grande Império tem aumentado constantemente. O imperador em exercício favoreceu essa evolução. Tivemos conhecimento de vários casos em que arcônidas, que faziam um trabalho eficiente, tiveram que ceder seus lugares a terranos. Tal procedimento é incompatível com a segurança do império. Não há dúvida de que Carba, da família dos Minterol, possui os dotes espirituais que o habilitam a ser investido nas funções de imperador. No intuito de proteger o império contra novas influências estranhas, em virtude das quais este acabaria por cair nas mãos de uma raça inimiga, o setor de segurança A-l decidiu, depois de ter consultado todos os bancos de dados, que o imperador em exercício, Gonozal VIII, deve ser destituído a partir desta data. Neste momento, o mesmo fica privado de todos os poderes em que se achava investido.

Atlan manteve-se imóvel em sua poltrona, prestando atenção à voz indiferente do alto-falante, que o degradava à condição de um arcônida igual a qualquer outro, que não dispunha de nenhum direito especial. O alcance dessa decisão não devia ser subestimado. Era bem possível que, dali em diante, se tornasse impossível deter o processo de decadência do império Arcônida. E, no curso da evolução desejada por Carba, o Império Solar também seria atacado.

— Carba, membro da família venerável dos Minterol, é investido nas funções de imperador com todos os direitos inerentes ao cargo. De outro lado, o setor de segurança A-l nega em definitivo o poder de comando a Gonozal VIII. Daqui em diante, o campo defensivo que cerca o regente só se abrirá para Carba. O regente espera que Carba utilize imediatamente todos os recursos que lhe permitam fazer com que a raça terrana, que em virtude da evolução por ela atravessada se tornou perigosa, seja obrigada a conter-se nos limites devidos.

Atlan ouviu Carba levantar-se e caminhar lentamente em sua direção. Levantou a cabeça.

Um par de mãos pousou nos ombros de Atlan.

— Vá embora, homem velho — disse Carba.

Atlan levantou-se e fitou os olhos do novo imperador de Árcon. Os mesmos mostravam um brilho febril. Atlan percebeu que esse homem estava condenado à morte. Sua inteligência elevada ao extremo era tão antinatural que nenhum cérebro seria capaz de absorvê-la por muito tempo.

— Boa sorte, Carba — disse Atlan. — O senhor precisará.

— O conceito de sorte é muito vago — respondeu Carba, em tom irônico. — Até agora sempre confiei nas faculdades do espírito.

— Em quais delas? — perguntou Atlan. — Nas que o senhor adquiriu com o nascimento ou naquelas que adquiriu recentemente?

Por um instante parecia que Carba iria precipitar-se sobre o inimigo derrotado, mas acabou controlando-se.

— Sua ironia não lhe servirá de nada — disse, cerrando os dentes. — O senhor não passa de um homem banido. Vá para junto dos seus amigos terranos. Em Árcon não há mais lugar para o senhor.

— Peço o direito do mais fraco para mim e para os terranos: o da livre retirada — disse Atlan.

Não sabia o que se passava na cabeça juvenil que via à sua frente. Mas esperava que Carba tivesse guardado bastante decência, para permitir que Rhodan decolasse com as poucas naves que tinha consigo. E isso teria de acontecer depressa, antes que os manipuladores acônidas tivessem tempo para levá-lo a fazer aquilo que correspondesse aos seus interesses.

— Garanto-lhes esse direito — asseverou Carba. — Volte à superfície e conte a todos o que houve aqui embaixo. Enquanto isso darei uma olhada no regente.

O robô, que os conduzira do veículo até o lugar em que se encontravam, entrou e parou em atitude de espera. Atlan aproximou-se dele sem voltar a olhar para Carba. Fez um sinal para o robô.

— Vá à minha frente — disse.

Sem dizer uma palavra, a máquina colocou-se em movimento. Atravessando recintos frios e silenciosos, afastaram-se do palco dos acontecimentos que assumiriam grande importância na história, se bem que em sentido totalmente diverso do que imaginavam alguns participantes...

 

Ficou a sós.

Era o único arcônida vivo que tinha acesso a essas salas. O silêncio era tamanho que os passos de Carba pareciam produzir um eco retumbante. Todas as paredes eram brancas, circunstância que fazia com que o ambiente irradiasse uma impressão de esterilidade.

“Aqui estou em segurança” pensou Carba. “Ninguém poderá chegar ao lugar em que me encontro, nem mesmo meus amigos.”

Apesar de tudo Carba sentiu um ligeiro mal-estar ao pensar na nova posição que passara a ocupar no complicado jogo político da Galáxia. Tinha poder, e provavelmente esse poder maior que o de qualquer outro ser vivo da Via Láctea. Mas esse poder era garantido e representado pelo gigantesco complexo do grande cérebro positrônico. Carba imaginou que teria de recorrer a todas as forças de sua personalidade para exercer uma influência à que Gonozal VIII chegara a exercer.

De repente sentiu a personalidade do velho imperador como um peso físico que procurava atingi-lo através daqueles recintos. No mesmo instante voltou a sentir sua velha desconfiança.

Era possível que no Grande Império houvesse amigos do almirante que só aguardavam o momento propício para matar Carba.

Carba soltou uma risadinha. O que poderia acontecer-lhe? Aqui embaixo estava em segurança. Mas será que poderia ficar para sempre naquele subsolo, em meio ao labirinto de aparelhos positrônicos e gigantescos geradores?

“Usarei o nome do Imperador Minterol I”, pensou Carba.

Será que um nome poderia apagar o passado? Não, o passado só pode ser esquecido quando já estiver morto.

Seu antecessor não devia sair vivo de Árcon III.

Essa idéia parecia iluminar a mente de Carba. Uma vez executada, resolveria todos os problemas. Esqueceu-se da promessa de garantir a livre retirada de Atlan e seus aliados.

Carba era um homem solitário, encerrado nas instalações subterrâneas do gigantesco cérebro positrônico.

Os homens solitários e suas idéias são imprevisíveis.

Tanto no terreno do bem como no do mal.

 

O carro robotizado subiu pelo corredor comprido, passando por postos de controle e fontes de luz invisíveis. O ruído do motor era quase imperceptível e o dispositivo automático pilotava o veículo, com uma segurança maior do que qualquer mão humana seria capaz.

As recordações desenrolavam-se na mente de Atlan como se fossem um filme. Viu nitidamente diante de seus olhos o momento em que pela primeira vez penetrara no grande centro de computação, isso porque o setor de segurança o aceitara como descendente dos velhos arcônidas.

Carba passara a ocupar seu lugar. Parecia que os receios dos antepassados de Atlan, segundo os quais o grande império estelar poderia esfacelar-se em inúmeros grupos de interesses, começavam a transformar-se em realidade. Atlan tinha certeza de que Carba nunca seria capaz de salvar o império, pois era um homem doente. Era só uma questão de tempo e teria de pagar o preço pela superexcitação de seu cérebro. Carba era um homem condenado à morte, embora nem desconfiasse disso.

Atlan era um arcônida de boa estirpe, e por isso mesmo não podia conformar-se com a nova situação. Estava empenhado na conservação do Grande Império e já enfrentara muitos sofrimentos em busca desse objetivo. Vivera só, mesmo entre os dignitários que o rodeavam, mesmo entre os robôs, que o compreendiam em termos lógicos, mas nunca em termos de sentimento. Lembrou-se das boas horas alegres passadas com Rhodan e seus amigos terranos. Porém, mesmo entre eles, muitas vezes se vira diante de incompreensão misturada com escárnio.

Previu que muitos planetas adquiririam sua independência. Pequenos reinos surgiriam e os mercadores galácticos seriam bastante hábeis para tirar proveito da situação. A decadência econômica aconteceria inevitavelmente. Carba não teria muito tempo para ocupar-se com a Terra, pois dedicar-se-ia totalmente aos trabalhos exigidos pelo Grande Império.

Quando o carro robotizado freou de repente, sentiu-se arrancado brutalmente das suas reflexões. Atlan levantou-se e olhou para fora. Acabavam de passar por uma curva e o corredor começava a alargar-se. Atlan conhecia perfeitamente esse tipo de veículo e sabia que não havia nenhum motivo para a súbita parada. O carro robotizado era dirigido à distância, e esse comando remoto funcionava por três circuitos diferentes. Se um deles falhasse, ainda sobrariam os outros dois.

Só havia uma explicação. O carro fora detido intencionalmente. Carba ou o regente — ou os dois em conjunto — haviam resolvido outra coisa e pretendiam detê-lo. Acontece que isso não seria tão fácil assim.

No momento em que Atlan pretendia sair do carro para prosseguir seu caminho a pé, as portas de correr se fecharam. O arcônida acionou os controles manuais, mas o mecanismo não funcionou. O suprimento de energia fora retirado do veículo robotizado.

Atlan sorriu. Se as portas haviam sido fechadas por seus inimigos invisíveis, estes não poderiam pôr o veículo em movimento. Apesar disso encontrava-se numa situação perigosa. Carba poderia enviar outro carro ocupado por robôs, a fim de prender Atlan.

O imperador deposto começou a familiarizar-se com a construção do veículo. Seus idealizadores não poderiam ter deixado de prever uma possibilidade para que os ocupantes do veículo saíssem com as portas fechadas, no caso de uma falha no suprimento de energia. A cúpula que abria o veículo era transparente, mas dificilmente haveria uma possibilidade de destruí-la. No soalho também não viu nenhum lugar em que pudesse agir. Rastejando por cima dos assentos, Atlan dirigiu-se à parte traseira do carro. Descobriu na parede traseira duas aberturas de ventilação. Quando muito, poderia passar a mão fechada por elas. Sacudiu as portas com ambas as mãos, mas estas não cederam.

Estava preso.

Praguejou contra a falsidade de Carba e sua própria credulidade, que o fizera entrar naquela armadilha. Experimentou todas as chaves e controles que estavam ao seu alcance, mas tudo continuou na mesma.

Esforçando-se ao máximo, arrancou o assento do suporte e empurrou-o para trás. Embaixo do assento havia uma chapa de plástico adaptada ao soalho do veículo. Abriu dois fechos e levantou a chapa. A luz entrou pela mesma. Viu o eixo dianteiro do veículo.

Nesse instante, uma voz começou a falar bem atrás dele:

— O já não mais Imperador Gonozal VIII deverá ser preso imediatamente.

Atlan parecia paralisado. Permaneceu na mesma posição. Aos poucos, sua mente absorveu a idéia de que aquela voz vinha do alto-falante instalado no carro.

Agora já tinha certeza. Carba não queria permitir que ele saísse, e o regente apoiava seus esforços destinados a evitar que Atlan abandonasse Árcon III.

Atlan não acreditava que ainda pudesse encontrar um meio de fugir. Apesar disso redobrou seus esforços. O assento fechava a metade da abertura do soalho do veículo. Atlan deitou-se no chão e apoiou ambas as pernas contra a parte dianteira do carro. Colocou os ombros sob o assento e fez força. Suas veias incharam e o seu rosto ficou vermelho. Os apoios do assento foram-se dobrando... A tinta saía em lascas, caía na nuca de Atlan...

Teve a impressão de que já dispunha de lugar para passar e pôs-se de joelhos. Para sair por essa abertura, teria de passar junto ao eixo, que a dividia em duas partes. Ficava a pouco menos de meio metro do soalho do carro.

Seria mais fácil se saísse com as pernas para a frente. Atlan refletiu por um instante e enfiou os pés na abertura. O alto-falante repetia ininterruptamente a ordem de prender Atlan. Aquelas palavras tinham uma finalidade psicológica. Deveriam provocar um estado de pânico em Atlan, levando-o a praticar algum ato irrefletido.

Quando seu pé tocou o eixo, Atlan inclinou-se para trás e passou as pernas por cima do mesmo. Empurrando-se com os cotovelos, fez o corpo passar pela abertura, até o momento em que escorregou e sua cabeça bateu na borda. Não deu atenção à dor e, contorcendo o corpo, foi passando junto ao eixo. Finalmente colocou o corpo para fora do veículo, ficando pendurado na horizontal e com o tronco em cima do eixo. Começou a rastejar em sentido oposto. Finalmente suas mãos tocaram o chão. Puxou-se para fora.

Acima dele o alto-falante continuava a falar. Atlan soltou um suspiro de alívio. Estava deitado embaixo do carro. Respirava sôfrego e tinha o corpo coberto de suor.

De repente o veículo robotizado entrou em movimento...

 

A voz saiu dos alto-falantes da Ironduke que nem uma chicotada. Os homens que se mantinham à espera há horas a fio estremeceram.

— O já não mais Imperador Gonozal VIII deverá ser preso imediatamente.

Krefenbac ligou a ampliação. Até parecia que desejava evitar que qualquer dos astronautas deixasse de ouvir o aviso do gigantesco centro de computação. Por algum tempo o silêncio reinou na sala de comando da nave linear.

— Atlan perdeu — disse Rhodan, depois de algum tempo.

— Temos de ajudá-lo — gritou Claudrin, ávido de entrar em ação. — Não vamos ficar inativos enquanto ele é arrastado para algum lugar.

— Nada de atitudes irrefletidas — advertiu Rhodan. — Antes de mais nada precisamos descobrir onde está neste momento. Pelo que se conclui da mensagem que acabamos de ouvir, ainda não conseguiram agarrá-lo. Atlan conhece o local e talvez consiga chegar à superfície. Quando isso acontecer, será a hora de entrarmos em ação.

No seu íntimo, Rhodan duvidava de que seu amigo arcônida conseguisse sair do interior do cérebro positrônico. E ele mesmo não poderia sacrificar grande número de homens na vã tentativa de romper o campo defensivo do regente.

Além disso, não se devia esquecer da superioridade ameaçadora das naves robotizadas arcônidas que o regente mantinha em estado de prontidão.

— Estamos recebendo uma mensagem dos acônidas — anunciou Krefenbac.

— Responda, major — ordenou Rhodan prontamente. Talvez as negociações ajudassem a ganhar tempo. Sansaro era um homem inteligente, mas por certo a vitória o tornaria mais leviano.

Viu o rosto do acônida aparecer na tela e adquirir contornos nítidos.

— Suponho que também tenha ouvido a ordem do regente — disse Rhodan, em tom amável.

— Naturalmente — respondeu o acônida. — Estou interessado em saber de que forma avalia a atual situação de seu pequeno grupo de naves.

Rhodan fez como se não notasse a ironia. Não podia deixar-se arrastar a alguma observação irrefletida. Sansaro e seus companheiros eram os verdadeiros vencedores do conflito que acabara de ser travado. Nem Carba nem o regente perceberam que apenas serviam de instrumento ao grupo de acônidas que desejava adquirir maior influência no império. Seria inútil procurar entrar em contato com Carba, pois o novo imperador só faria aquilo que lhe fosse sugerido por seus companheiros. Estes o haviam ajudado a adquirir o poder, do qual agora estava desfrutando, e por isso era de supor que lhes dedicasse sua confiança ilimitada.

Sansaro era a figura-chave. Mais dia menos dia, todas as ordens seriam emitidas por ele, ou então por algum desconhecido que ainda não havia feito sua aparição, mas que era mais poderoso que Sansaro.

— Devo confessar que a situação não é muito animadora para nós — disse Perry Rhodan. — Mas daí não se pode concluir que desistiremos. O senhor é bastante inteligente para não nos subestimar, Sansaro. Por isso espero que nos trate com a maior cautela.

— Quem decidirá sobre isto será Carba, juntamente com o regente — respondeu com a maior tranqüilidade. — Apenas quero preveni-lo para que não tome nenhuma providência destinada a salvar seu amigo arcônida. Estamos preparados para qualquer incidente que possa surgir — ergueu a voz. — Há uma coisa que eu quero deixar bem clara, Rhodan. Se o senhor quiser sair em paz daqui, juntamente com suas espaçonaves, terá livre trânsito.

— O senhor foi bem claro — disse Rhodan, em tom frio.

Pela primeira vez Sansaro demonstrou certa sensibilidade.

— Continuemos a falar com franqueza, terrano — sugeriu. — O senhor sabe perfeitamente o que está em jogo para nós. No momento não temos o menor interesse no senhor e em suas naves. Teremos ainda muito o que fazer para consolidar nossa posição. Apenas quero evitar que o senhor faça alguma coisa que não poderá ser útil para nenhum de nós.

— Acho que fomos bastante úteis para pôr o regente de seu lado — a ironia mordaz de Rhodan fez com que o acônida, aborrecido, erguesse as sobrancelhas. — Agora está interessado em afastar-nos daqui e em eliminar Atlan, que é a única pessoa que ainda representa um obstáculo no seu caminho.

— O que pretende fazer para impedir isso?

Notava-se perfeitamente que Rhodan jogava todos os trunfos numa só cartada.

— Há alguns minutos preparamos algumas bombas de fusão de tal maneira que as mesmas explodirão assim que nossas naves forem atacadas.

— O senhor explodiria juntamente com as bombas... o senhor e seus homens, Rhodan. Sua maneira de resolver os problemas não é esta — respondeu o acônida.

— Pois procure descobrir se não mudei de idéia — pediu Rhodan.

— O senhor está blefando! — exclamou Sansaro.

Rhodan umedeceu os lábios.

— É possível — concordou. — Mas o senhor tem certeza absoluta de que realmente é assim?

Na sala de comando da Ironduke reinava um silêncio tenso. Rhodan estava empenhado num jogo arriscado com um homem que sabia raciocinar logicamente e nunca se deixara enganar por nenhum truque. Jefe Claudrin resmungou de forma quase imperceptível e apertava os dedos volumosos. Tal qual todas as pessoas a bordo, conhecia as qualidades da nave linear. Poderiam ter fugido imediatamente, sem que os acônidas pudessem fazer nada para impedi-lo. Mas o homem nativo de Epsal sabia perfeitamente que o administrador tentaria tudo para salvar o amigo.

— O que deseja mesmo, terrano? — perguntou Sansaro.

— Quero uma chance decente de ajudar o imperador deposto — pediu Rhodan. — Não atire contra nossas naves.

O acônida sacudiu lentamente a cabeça.

— Não — disse. — O senhor não pode acreditar realmente que ficaremos quietos, enquanto o senhor desembarcar calmamente os seus homens para salvar Gonozal VIII.

— É exatamente o que o senhor fará — afirmou Rhodan. — As tropas de robôs já nos causarão bastante problemas. Não será necessário que o senhor intervenha nos acontecimentos. Os robôs virão que nem marimbondos, assim que o primeiro dos nossos soldados saia da nave.

O acônida falou em tom pensativo:

— Não quer contar a história das bombas ao computador positrônico?

— Isso seria inútil — disse o Dr. Riebsam, que se encontrava em posição mais afastada. — Os setores de lógica do regente nunca se convenceriam de que estamos dispostos a assumir o risco de dissolver-nos em átomos, apenas para salvar um único homem que além do mais se revelou um inimigo do Grande Império.

Sansaro soltou uma gargalhada.

— E o senhor quer que eu aceite como verdade uma coisa que a grande máquina considerará inacreditável? — disse. — Não, o truque é muito grosseiro. Nesta não cairei.

— O risco será seu — disse Rhodan com a maior tranqüilidade. Sansaro virou-se de costas para a objetiva, dando a entender que não estava interessado no prosseguimento da palestra.

— Será que isto o levará a ficar quieto? — perguntou Claudrin em tom de dúvida, depois de Krefenbac ter desligado o aparelho.

— Não demoraremos a descobrir, major. De qualquer maneira, isto o levará a refletir um pouco. Se o regente nos criar muitos problemas, Sansaro se manterá inativo.

John Marshall, o telepata esbelto, sorriu.

— Isto nos obriga a tentar um ataque.

— Isso mesmo, John — confirmou Rhodan. — Desembarcaremos um pequeno grupo de soldados, que travarão um combate defensivo com as tropas robotizadas do regente. Enquanto Sansaro fica rindo da nossa derrota e se mantém quieto, Gucky, Ras e Tako tentarão trazer Atlan para a Ironduke — fez uma ligeira pausa. — Isso, naturalmente, se o almirante conseguir chegar à superfície.

Dificilmente havia algum oficial que acreditasse em tal acontecimento.

 

Foi um movimento puramente instintivo, que lhe salvou a vida. Atlan atirou os braços para cima e agarrou-se ao eixo dianteiro. O puxão esticou os músculos dos ombros e arrancou-lhe um gemido. Se tivesse demorado um segundo, a parte traseira do veículo, que era mais baixa, o teria esmagado. As pernas de Atlan arrastavam-se pelo chão, enquanto procurava segurar-se e mantinha a cabeça o mais alto possível. O veículo robotizado aumentou de velocidade. Atlan sabia que a cada metro que o carro percorria, mais se aproximava do interior do regente.

O veículo parou de repente. O arcônida saiu rapidamente de debaixo do carro, rolou para o lado e levantou-se de um salto. O motor zumbia levemente. Atlan fitou-o atento. Provavelmente só parara a fim de que se pudesse constatar se o prisioneiro ainda estava vivo.

Atlan contornou o veículo e pôs-se a correr, voltando pelo caminho do qual viera. Olhou para trás e viu que o veículo automático voltara a movimentar-se. Acelerou rapidamente e chegava cada vez mais perto. O arcônida começou a correr mais depressa. A largura do corredor correspondia aproximadamente ao triplo da do carro robotizado.

Atlan voltou a olhar para trás. Seu perseguidor mecânico havia se aproximado a poucos metros. O homem parou, enquanto a desgraça se precipitava sobre ele. No último instante, Atlan saltou para o lado e uma sombra cinzenta passou perto dele. Ouviu o ruído dos freios magnéticos forçados ao máximo e preparou-se para o novo ataque que estava para vir. O veículo de Carba descreveu uma curva fechada e voltou. Desta vez, o condutor invisível foi mais inteligente. Dirigiu o veículo bem para o lado direito, onde estava Atlan.

O arcônida respirava com dificuldade. De repente ouviu um ruído às suas costas. Virou-se abruptamente. Um segundo carro se aproximava em sentido oposto. Agora, apenas sobrar-lhe-ia um pequeno espaço vago...

Esse espaço vago seria a armadilha, se Atlan soubesse utilizá-lo.

Não teve muito tempo para refletir.

Ficou parado no mesmo lugar, enquanto as máquinas robotizadas se aproximavam silenciosamente. Concentrou-se no veículo que estava do mesmo lado que ele, pois era o que devia atingi-lo em primeiro lugar. Afastou-se calmamente da parede e dirigiu-se para o centro do corredor. Só então viu que se enganara. Os dois veículos robotizados o atingiriam ao mesmo tempo, pois o que aparecera por último desenvolvia mais velocidade, reduzindo a diferença na distância.

Atlan voltou a movimentar-se. Correu na direção do primeiro veículo, que imediatamente reduziu a marcha. Olhou rápido para trás. O espaço que o separava dos seus inimigos metálicos ainda era de cinqüenta metros. Depois reduziu-se para trinta metros, vinte metros, dez metros...

Atlan deu um enorme salto para a esquerda. O carro que vinha de trás acompanhou o movimento, mas o arcônida não perdeu tempo...

— É agora — gritou.

O ruído produzido pela colisão dos dois carros robotizados parecia uma explosão.

Atlan estava estendido no chão. No último instante colocara-se em segurança com um gigantesco passo lateral. Um dos dois veículos fumegava. Ambos estavam avariados a tal ponto que já não tinham condições de prosseguir na perseguição.

Atlan sentiu um calafrio ao lembrar-se de que os primeiros robôs de guerra enviados para persegui-lo não demorariam a aparecer. Teria de apressar-se. Fungando, correu pelo corredor. De repente a luz apagou-se. Sentiu-se envolvido pela escuridão.

Espremeu-se, ligeiro, junto à parede. Estendeu a mão e continuou a correr, deixando seus dedos deslizarem pelo metal liso. A escuridão representava mais uma vantagem para o inimigo. Enquanto ele, Atlan, não enxergava nada, seu corpo representava um objeto nitidamente perceptível para os instrumentos de observação do regente.

Estava fugindo de seu próprio império, que tanto se esforçara para salvar. O gigantesco centro de computação, que o assessorara por anos a fio, fora induzido a um erro e mandara caçá-lo como um criminoso, pois desejava prendê-lo, talvez mesmo matá-lo.

Se os velhos arcônidas, que haviam construído o regente, tinham cometido um erro, este consistia no fato de terem dado uma autonomia e um poder excessivo à sua criatura. Apesar de sua versatilidade, o regente era apenas uma máquina e apresentava todas as desvantagens da mesma.

Os ruídos vindos de trás arrancaram-no das reflexões. Esperava que a qualquer momento começassem a disparar contra ele. Carba não tinha escrúpulos, e não havia nada de que seu espírito doentio não fosse capaz.

Atlan não teve outra alternativa senão fugir pela escuridão, com o perseguidor invisível grudado em seus calcanhares.

 

Do outro lado do campo de pouso, a uns setecentos metros da Ironduke, um grupo de robôs de guerra saiu de uma galeria subterrânea e entrou em fila.

Rhodan contemplou o acontecimento em silêncio, enquanto Krefenbac ampliava a imagem projetada na tela, permitindo que se distinguisse perfeitamente cada um dos robôs.

— São máquinas de guerra — piou Gucky. — O que estarão procurando por ali?

— São o comitê encarregado de promover a recepção de Atlan, caso ele consiga chegar à superfície — disse Rhodan. — Agora já temos um pretexto para desembarcar uma pequena tropa que manterá o regente ligeiramente ocupado. Não acredito que Sansaro intervirá.

Num gesto resoluto, o administrador pegou o microfone.

— Rhodan chamando o Tenente Hotchkins.

Uma voz áspera respondeu:

— Às ordens, sir.

Olhando por cima do microfone, Rhodan sorriu para Jefe Claudrin, comandante da Ironduke.

— Está vendo aqueles robôs, Hotchkins? Acabam de aparecer na superfície.

— Vejo-os, sir — respondeu o oficial.

— Muito bem, tenente. Escolha alguns dos melhores homens. Quero que trave um combate contra os robôs. Esse combate deverá mostrar desde o início uma derrota de sua parte — Rhodan riu baixinho. — Não quero que saia correndo, mas que trave uma boa batalha defensiva.

Alguns segundos se passaram antes que Hotchkins voltasse a falar.

— Queira desculpar, sir — disse em tom cauteloso. — Acontece que posso garantir que conseguirei vencer esse grupo de robôs.

— Sei disso — confirmou Rhodan. — Mas, em hipótese alguma, o senhor deverá vencê-los. Cumpra minha ordem. Deixe o resto por nossa conta.

— Está bem, sir — respondeu o tenente.

— Provavelmente o oficial acredita que está prestando serviços a uma sociedade beneficente de robôs — disse John Marshall, depois que Rhodan acabara de desfazer a ligação.

Rhodan dirigiu-se aos três teleportadores.

— Espero que estejamos entendidos em todos os pontos. Hotchkins e seus homens travarão uma batalha simulada com os robôs. Essa batalha servirá para evitar um ataque de Sansaro, que verá nossa investida condenada ao fracasso. Assim que Atlan surgir na superfície, vocês saltarão. Gucky cuidará dos robôs que estarão à espera de Atlan. A maior parte deles terá sua atenção desviada por Hotchkins e seus homens. Ras, o senhor cuidará imediatamente de Atlan. Procure saltar para a Ironduke juntamente com ele. Tako Kakuta ficará de reserva. É possível que Atlan esteja sendo perseguido. Quando aparecer, poderá trazer alguns inimigos nada agradáveis. Assim que Ras tenha dado o salto juntamente com Atlan, Gucky e Tako também voltarão à nave. Se tudo der certo, a essa hora Hotchkins estará fugindo. Nós vamos recolhê-los a bordo e decolaremos sob a proteção do campo de libração.

Parecia muito simples, mas Rhodan sabia perfeitamente que, se não tivessem sorte, não daria certo. Havia muitos acontecimentos independentes, e poucas esperanças de que tudo corresse conforme era o desejado. Mas o que mais preocupava Rhodan era Atlan, pois era impossível penetrar nas profundezas em que o arcônida se encontrava.

Rhodan olhou para o relógio de bordo.

No dia três de dezembro do ano 2.105, às oito horas e sete minutos, tempo terrano, o Administrador do Império Solar pegou o microfone, chamou Hotchkins e lhe ordenou que abrisse fogo contra os robôs do poderoso regente.

 

Julien Hotchkins, tenente da Frota Solar, era um homem robusto como um tronco de árvore. Naquele momento caminhava à frente de 37 homens pelo gigantesco campo de pouso de Árcon III. Usava traje de guerra, dotado de campo defensivo e campo de absorção, e trazia uma carabina de radiações pendurada sobre o ombro. Antigamente, quando ainda era sargento, tinha numerosos apelidos, mas ao atingir o posto de tenente conseguira livrar-se de todos, com exceção de um...

Os homens que caminhavam resolutamente atrás do tenente sempre pensavam no “Cabeça de Fogo”, que era o apelido de que Hotchkins nunca conseguira livrar-se. Há muito aquele terrano alto não dava mostras de seu gênio impulsivo. Mas as proezas de sua juventude continuavam a andar de boca em boca e faziam com que conservasse o apelido. Hotchkins, o “Cabeça de Fogo”, pousara apenas com três nativos no inferno de Darcum IV e, apesar de todos os prognósticos sombrios, saíra vitorioso. Hotchkins levantou o braço e parou.

— Espalhem-se! — ordenou.

Viu o grupo que o acompanhava dividir-se e prosseguir em ligeiro semicírculo. Haviam percorrido aproximadamente metade do caminho. Encontravam-se, agora, no centro do triângulo formado pela nave dos acônidas, pelos robôs e pela Ironduke.

Hotchkins examinou atentamente a nave inimiga. Por enquanto tudo permanecera quieto por lá. Ao que parecia, não se atribuía grande importância àquele grupo reduzido. No seu íntimo, o tenente se sentia contrariado com a ordem de Rhodan. Bem que gostaria de mostrar àquela gente quem realmente eram os homens do seu grupo.

A Ironduke chamou. Hotchkins ouviu a voz de Rhodan no equipamento de rádio acoplado ao traje de guerra.

— Mande que seus homens abram um fogo pouco concentrado, tenente — ordenou Rhodan.

Hotchkins levantou a carabina de radiações e apontou.

— Atenção! — gritou com a voz sonora. Dali a alguns segundos deu ordem para abrir fogo. Os raios fulgurantes chiavam por cima das cabeças metálicas dos robôs. As máquinas de guerra logo responderam ao fogo. Alguns deles afastaram-se dos grupos a que pertenciam e aproximaram-se do pequeno pelotão de Hotchkins.

O tenente apontou cuidadosamente para o robô que vinha na frente, mas o campo defensivo da máquina de guerra fez com que o tiro não produzisse qualquer efeito. Só depois que outros homens fizeram pontaria contra o mesmo inimigo, o campo de absorção do robô ruiu e a máquina explodiu.

Em meio ao barulho, a voz de Hotchkins soou como um trovejar distante:

— Recuar devagar!

 

Atlan parou e pôs-se a escutar. Em meio ao ruído dos perseguidores ouvia-se outro som, que fez com que o arcônida recuperasse as esperanças. Uma batalha estava sendo travada na superfície, e o fato de estar ouvindo o ruído da mesma levava a concluir que não se encontrava longe do local.

A luz voltou a acender-se e o corredor descreveu uma curva fechada.

Antes de ganhar essa curva, Atlan voltou a olhar para trás. Estava sendo perseguido por um grupo de robôs.

Mas, à sua frente, a luz do dia penetrou no corredor, cuja saída se abriu diante dele. Numa reação inconsciente, as pernas cansadas passaram a mover-se depressa. Ainda não tinha um plano definido de como atravessar a grande distância entre a saída do corredor e a Ironduke. Ficaria exposto aos inimigos como se estivesse numa bandeja. Depositava suas esperanças na violenta batalha que rugia no campo de pouso. Afinal, não era impossível que Rhodan tivesse encontrado um meio de avançar até a entrada da galeria subterrânea.

Ao atingir o ponto em que pôde lançar uma olhada sobre a planície artificial do porto espacial, teve uma surpresa nada agradável. Em torno da saída do corredor estava postado um grupo de robôs, que disparava violentamente contra alguns terranos. Ao que parecia, os homens do planeta Terra estavam batendo em retirada.

Desesperado, Atlan olhou para trás. O que poderia fazer?

À sua frente os servos fiéis do regente estavam à espera para prendê-lo, assim que saísse da galeria. E, atrás dele, os robôs se aproximavam correndo.

Atlan respirava com dificuldade. Passou a mão pelo rosto coberto de suor. Será que estava na hora de desistir?

“Não”, pensou Atlan, obstinado. “Nunca”.

 

Concentrando-se ao máximo, Rhodan contemplava a tela. O Tenente Hotchkins e seus homens ofereciam um espetáculo formidável, mas o papel que desempenhavam obrigava os soldados a recuarem cada vez mais em direção à Ironduke. Rhodan fazia votos de que, se Atlan aparecesse, isso acontecesse no momento adequado.

— Sir! — gritou o Major Hunt Krefenbac. — Conseguimos captar as mensagens do regente.

Rhodan saiu do seu lugar e foi para onde estava Krefenbac. O major, que era um homem magro, disse:

— Nosso sistema de vigilância de rádio funcionou bem, sir. O regente está irradiando mensagens para todos os setores da Galáxia.

— Quero ouvi-las — pediu Rhodan. Krefenbac comprimiu a tecla do receptor da sala de comando.

— ...acaba de surgir a nova situação — disse uma voz insensível.

Rhodan inclinou-se para a frente. O silêncio passou a reinar na sala de comando da Ironduke.

— A segurança do Grande Império exigiu algumas modificações fundamentais, que estão sendo comunicadas a todos os povos coloniais e aos que estão ligados ao império. O Imperador Gonozal VIII foi destruído de suas funções, por ter cometido traição ao procurar os terranos e colocá-los em funções importantes, não só no interior de nosso império, mas em toda a Galáxia. A prisão de Gonozal VIII é iminente. A fim de preservar a paz e garantir a segurança do império, o regente de Árcon, depois de um exame detalhado, resolveu nomear outro imperador, cuja lealdade está acima de qualquer dúvida. Seu nome é Minterol I. Sua Majestade tomou imediatamente as medidas necessárias ao restabelecimento da ordem no império.

“Todas as colônias estão obrigadas a mandar imediatamente de volta ao sistema solar todos os terranos que por lá se encontrem por motivos políticos. Todos os cargos devem ser ocupados por arcônidas. Aos terranos não será concedida nenhuma ajuda militar ou econômica. A primeira ordem do dia do novo imperador é a seguinte: Tudo por Árcon. Tudo pelo nosso império!”

— Esta transmissão será repetida ininterruptamente, com a informação de que outras notícias se seguirão — anunciou Krefenbac.

— Ao que parece, nas idéias do novo imperador desempenhamos um papel que não é nada insignificante — disse Rhodan, em tom irônico. — Carba e seus asseclas sabem perfeitamente que faremos tudo para que Atlan tenha garantidos seus direitos, desde que nos deixem qualquer chance, por menor que seja. Só quando nos tivermos retirado para nosso sistema, se sentirão seguros.

Rhodan não se iludia. Se não pudesse contar com Atlan e o poder do Grande Império, a Terra estaria condenada a retirar-se cautelosamente e prosseguir lentamente na consolidação de seu poder. Os acontecimentos mais recentes significavam um recuo de vários decênios para a Terra. Rhodan sentiu-se apavorado ao pensar na possibilidade de os arcônidas, comandados por Carba, desfecharem um ataque contra o jovem império terrano. O regente sempre se mostrara desconfiado para com os terranos, e agora tinha motivos de sobra para agir contra eles.

— Atlan! — disse a voz retumbante de Jefe Claudrin. — Ele chegou.

Rhodan virou-se abruptamente e fitou a tela. O antigo imperador acabara de sair da galeria subterrânea e corria pelo campo de pouso, perseguido por mais de sessenta robôs. A distância entre ele e as máquinas de guerra diminuía rapidamente.

Rhodan limitou-se a acenar com a cabeça. Tudo fora previamente combinado. Não havia necessidade de trocar palavras.

Os três teleportadores desmaterializaram-se quase ao mesmo tempo.

 

Mular, comandante da espaçonave arcônida fitou Sansaro com uma expressão de contrariedade.

— Por que não fazemos alguma coisa? — perguntou em tom indignado. — Será que o senhor acredita na fábula das bombas de fusão?

O cientista apontou tranqüilamente para a tela.

— Por que assumir um risco desnecessário, comandante? Não vê que este punhado de terranos não está conseguindo nada? Os robôs do regente não terão a menor dificuldade em livrar-se deles.

— Acho que Rhodan está percebendo a mesma coisa — disse Mular. — Por que não envia reforços, já que os soldados não conseguem atingir seu objetivo?

Sansaro sorriu, com uma aparente expressão de tédio.

— O senhor é um bom comandante, Mular — disse em tom amável. — Mas o senhor deveria passar a interessar-se por outras coisas, além dos controles de uma nave.

Ao que parecia, Mular não levou muito a sério a crítica velada que acabara de lhe ser dirigida.

— O senhor tem alguma teoria sobre essa pequena tropa?

— Tenho, sim — confirmou Sansaro. — Suponho que Rhodan a esteja usando para fazer com que abandonemos a atitude de reserva em que nos mantemos. Provavelmente quer saber até onde estamos dispostos a ir. Acontece que não lhe faremos a vontade. Ficaremos bem quietos e veremos os terranos retirarem-se para sua nave. Rhodan saberá tanto quanto antes. Em outras palavras, não saberá absolutamente nada.

— Isso parece muito confuso — disse Mular, em tom contrariado.

Sansaro não perdeu a calma. Era um velho experimentado, que sempre lidava com os semelhantes como se fosse um professor.

— Procure sempre colocar-se no lugar do inimigo — disse, dirigindo-se a Mular. — Dessa forma saberá o que o mesmo pretende fazer.

Mular soltou uma risada irônica e fez um sinal em direção à tela, onde Atlan estava saindo da galeria subterrânea.

— Pois é bom que logo se coloque na posição do inimigo — recomendou ao cientista.

 

Gucky materializou-se em meio aos robôs que corriam atrás de Atlan. A reação da máquina foi rápida, mas ainda assim lenta demais para o rato-castor. Antes que tivesse tempo de disparar, Gucky recorreu às suas energias telecinéticas. Os quatro robôs que vinham na frente ergueram-se do solo e recuaram velozmente, até esbarrarem nos que vinham na retaguarda. Gucky efetuou um salto rapidíssimo. Os tiros dos atacantes perderam-se no lugar em que estivera pouco antes. Voltou a materializar-se e viu Kakuta aparecer na entrada da galeria. Perdeu um instante para olhar para Tschubai, que naquele momento materializava-se a dez metros de Atlan e imediatamente liquidou um robô com um tiro preciso. Gucky concentrou-se nas máquinas mais próximas de Atlan. Fê-las subir a vinte metros e largou-as. Esfacelaram-se no pavimento duro.

Seu pêlo foi chamuscado pelo raio disparado por uma arma. Teve de pôr-se a salvo com um novo tiro. Kakuta espalhou a confusão entre os robôs, executando saltos ininterruptos, a fim de não oferecer um alvo fixo às máquinas. Tschubai tropeçou num robô destruído e caiu. Atlan parou. Só agora estava vendo as pessoas que tinham vindo para salvá-lo. Gucky agitou os braços e gritou, mas estava tão longe de Atlan que o arcônida não pôde entendê-lo em meio ao ruído da luta.

O rato-castor liquidou mais três robôs, mas havia tantos no campo de pouso que quase chegavam a encostar uns nos outros. Um dos atacantes precipitou-se sobre Tschubai, que continuava deitado no chão, mas Kakuta, que parecia ter observado os acontecimentos, materializou-se ao lado do africano e começou a disparar contra o robô.

Tschubai voltou a colocar-se de pé.

— Para cá! — gritou para Atlan.

A reação do arcônida foi imediata. Hotchkins e seus homens disparavam como se fossem um exército, e seus gritos de entusiasmo quase chegavam a superar o ruído produzido pelas máquinas.

— Vamos depressa — gritou Tschubai e segurou a mão de Atlan.

Os robôs aproximaram-se. Não se interessaram pelas manobras do pequeno japonês. Precipitaram-se sobre Tschubai e Atlan. Gucky salvou a situação, que começava a ficar muito crítica. Liberando um volume tremendo de energia, deteve as máquinas que iam na frente, possibilitando o salto do africano.

O campo de pouso enxameava de robôs de guerra, que saíam de inúmeros túneis e galerias. Não se concentravam mais nos mutantes. O alvo de seus ataques era a Ironduke.

— Vamos dar o fora, Tako! — gritou Gucky, com a voz aguda, e desmaterializou-se.

O japonês voltou a olhar para a confusão de corpos metálicos, admirou-se por ainda estar vivo e saltou.

 

O rosto sombrio de Mular estava rubro de cólera.

— Não compreendo que o senhor seja capaz de sorrir numa situação destas — gritou para Sansaro. — Não existe a menor dúvida de que Rhodan nos enganou e agora levará calmamente seu amigo a um lugar seguro. O senhor deveria ter recorrido aos antis.

O arcônida interrompeu-o com um gesto indiferente.

— Está bem; cometi um erro. Rhodan enviou o pequeno grupo não para fazer com que abandonássemos a atitude de reserva, mas pretendia exatamente o contrário: queria que ficássemos quietos. E conseguiu. Pense um pouco, Mular! O que é que o terrano terá a ganhar se conseguir salvar Atlan? É um homem sem poder, sem amigos, sem influência e sem poderio militar. Praticamente só representa a pessoa viva do antigo imperador, que não nos poderá fazer qualquer mal. Rhodan terá de esconder seu amigo, pois deverá recear um atentado do regente.

Sansaro refestelou-se confortavelmente na poltrona e continuou:

— Minha missão foi bem cumprida. Carba foi investido nas funções de imperador e, no momento, é só o que importa. Por que iria arriscar a vida dos dois antis, enviando-os lá para fora a fim de que perturbassem o trabalho dos mutantes de Rhodan?

Mular sacudiu a cabeça. Parecia cético.

— Para mim não é bem assim — objetou. — Eu me sentiria mais à vontade se tivéssemos posto as mãos nesse arcônida perigoso. Ele ainda nos criará problemas. Seus amigos terranos incomodam mais que um bando de insetos daninhos. Tentarão obstinadamente reconquistar o terreno perdido.

— Tentar e conseguir são duas coisas muito diferentes — ponderou Sansaro. — O fato de termos executado nosso plano deixa claro que não nos limitamos à tentativa. Carba, que se deixa conduzir à vontade na direção que desejamos, é o novo imperador de Árcon. Já não haverá problemas em assumirmos o poder num futuro bem próximo.

Mular continuava cético.

— Nunca se pode prever o que fará um terrano — afirmou. — Gonozal VIII viveu por tanto tempo entre os terranos que quase chegou a transformar-se num deles. Receio que ainda sejamos obrigados a pronunciar seu nome muitas vezes.

Sansaro limitou-se a dar uma risada. Acabara de alcançar uma vitória formidável, e não permitiria que as dúvidas do comandante lhe estragassem o sabor da mesma.

Levantou os olhos para a tela que retratava o gigantesco campo de pouso. Deixou que a consciência do poder conquistado por ele e seus amigos agisse em sua mente.

“A única coisa que pode tornar um homem feliz é colocar-se acima dos outros e dominá-los”, pensou.

Talvez fosse este o motivo por que o acônida nunca conseguia ser verdadeiramente feliz...

 

Julien Hotchkins girou a carabina de radiações por cima da cabeça e deu ordem para a retirada final. Ele e seus homens correram em direção à nave linear. Observara a atuação bem-sucedida dos mutantes e sabia que Atlan fora salvo.

Hotchkins, o “Cabeça de Fogo”, prestara sua contribuição para isso, conquistando novos louros para si e seus homens. A idéia fez o tenente sorrir. Não estava interessado em ser o alvo da admiração dos outros apenas por ter feito alguma coisa. Havia inúmeros homens como ele, que haviam adquirido um nome: Emery, o “Organizador”, Tate, o da “chique-chique”, Princer, o “Novato”, Graybound, o “Contrabandista”, e muitos outros.

Ligou o propulsor antigravitacional de seu traje e deixou que este o levasse à comporta superior da Ironduke. O alto-falante do aparelho de rádio que trazia consigo deu um estalo.

— Muito bem, tenente — disse a voz de Rhodan. — Meus parabéns ao senhor e aos seus homens.

— Obrigado, sir — respondeu Hotchkins. — Quem sabe se em breve não poderemos atacar sem fugir?

Assim que a ligação foi cortada, Rhodan, que se encontrava na sala de comando, soltou uma gargalhada, dirigiu-se a Claudrin.

— Decolaremos imediatamente — falou. — Esta ordem é dirigida a todas as unidades.

Ligou os campos defensivos.

O vulto gigantesco do homem nascido em Epsal começou a mover-se. Enquanto os últimos membros da tropa de desembarque entravam pela comporta da nave, o major tomou os preparativos finais para a decolagem. Os primeiros robôs de guerra haviam chegado tão perto da nave que já começavam a abrir fogo com suas armas manuais. Mas os disparos eram repelidos pelo campo defensivo da Ironduke.

— Deixaremos que as primeiras naves decolem em primeiro lugar — ordenou Rhodan.

Dali a pouco as espaçonaves terranas começavam a erguer-se do campo de pouso. Rhodan lançou um olhar estranho para Atlan que exausto, estava sentado na poltrona.

— Vamos abandonar Árcon, almirante — disse.

Um sorriso triste surgiu no rosto de Atlan.

— Mais uma vez tenho de agradecer por terem salvo a minha vida — disse. — Se Ras e os outros dois não me tivessem tirado de lá, provavelmente seria arrastado para as profundezas, como prisioneiro.

— Esqueça — pediu Rhodan.

— Atenção! — gritou a voz retumbante de Jefe Claudrin. — Decolaremos dentro de dez segundos.

Dali a pouco, a gigantesca Ironduke ergueu-se do solo, impelida pela força de empuxo de todos os propulsores. Os conversores kalupianos entraram em funcionamento, criando uma zona de semi-espaço que protegia a nave contra todo e qualquer ataque.

— Darei ordem para que todas as unidades da Frota Solar se retirem para a Terra — disse Rhodan, quando já se encontravam no espaço. — É possível que o regente mande atacar nosso planeta.

Atlan não respondeu. O arcônida levantara-se e fora até a tela, na qual o sistema de Árcon continuava bem visível.

Rhodan aproximou-se do amigo e pousou a mão em seu ombro. Num ponto mais afastado, Claudrin dava suas ordens em voz baixa.

— É seu mundo, almirante — disse Rhodan a meia voz.

— Isso mesmo, bárbaro — confirmou Atlan. — É meu mundo. Apesar de tudo.

Fitou Rhodan, e uma expressão de firmeza surgiu em seus olhos.

— Um dia voltarei para cá — disse em tom resoluto.

 

                                                                                            Willian Voltz  

 

                      

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