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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FREUD - Volume XI (1910 [1909])
FREUD - Volume XI (1910 [1909])

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XI

 

Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos

 

PREFÁCIO ESPECIAL PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA DE ANNA FREUD

 

Produzir e editar em português uma Edição Standard das obras de Freud constitui ingente tarefa, na qual aqueles que participaram são dignos de louvores. Quando, como na Psicanálise, o pioneiro de uma nova disciplina formulou novos conceitos revolucionários e empregou novos termos, seus tradutores precisam não somente de conhecimentos e habilidade, como também de uma inventividade criadora no ampliar os vocábulos existentes que ultrapassam de muito as fronteiras do comum.

Esta nova edição em português substitui uma anterior, malograda, que saiu de circulação. Sobre esta, apresenta a imensa vantagem de ser não apenas completa, mas uma tradução direta do texto original em alemão, sem que se utilizasse qualquer tradução intermediária.

Não tenho nenhuma dúvida em meu espírito de que o próprio autor a acolheria com todo o entusiasmo.

Anna Freud

Londres, fevereiro de 1970

 

CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE (1910 [1909])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)

ÜBER PSYCHOANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1910 Leipzig e Viena: Deuticke. P. 62 (2ª ed. 1912, 3ª ed. 1916, 4ª ed. 1919, 5ª ed. 1920, 6ª ed. 1922, 7ª ed. 1924, 8ª ed. 1930; todas sem modificações.)

1924 G.S., 4, 349-406. (Ligeiramente modificada.)

1943 G.W., 8, 3-60. (Não modificada da G.S.)

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

`The Origin and Development of Psychoanalysis’

1910 Am. J. Psychol., 21 (2 e 3), 181-218. (Tr. H. W. Chase.)

1910 Em Lectures and Addresses Delivered before the Departments of Psychology and Pedagogy in Celebration of the Twentieth Anniversary of the Opening of Clark University, Worcester, Mass., Parte I, pp. 1-38. (Reimpressão da acima mencionada.)

1924 Em An Outline of Psychoanalysis, ed. Van Teslaar, Nova Iorque: Boni and Liveright. Pp. 21-70. (Reedição da acima mencionada.)

 

A presente tradução inglesa, inteiramente nova, com o título diferente de Five Lectures on Psycho-Analysis, é de James Strachey.

 

Em 1909, a Clark University, Worcester, Massachusetts, comemorou o vigésimo ano de sua fundação, e seu presidente, o Dr. G. Stanley Hall, convidou Freud e alguns de seus principais seguidores (C. G. Jung, S. Ferenczi, Ernest Jones e A. A. Brill) para participarem das celebrações e receberem graus honoríficos. Foi em dezembro de 1908 que Freud recebeu pela primeira vez o convite, mas foi somente no outono seguinte que esse convite se concretizou, tendo as cinco conferências de Freud sido pronunciadas na segunda-feira, 6 de setembro de 1909, e nos quatro dias subseqüentes. Isto, conforme declarou o próprio Freud na ocasião, foi o primeiro reconhecimento oficial da novel ciência, havendo ele descrito em seu Autobiogra-phical Study (Estudo Autobiográfico) 1925d, Capítulo V), como, ao subir ao estrado para pronunciar suas conferências, `isso lhe pareceu a concretização de um incrível devaneio’.

As conferências (em alemão, naturalmente) foram, de acordo com a prática quase universal de Freud, pronunciadas de improviso e, conforme nos informa o Dr. Jones, sem notas e depois de muito pouco preparo. Foi somente depois de sua volta a Viena que ele foi induzido, a contragosto, a escrevê-las. Esse trabalho somente foi concluído na segunda semana de dezembro, mas sua memória verbal era tão boa que, segundo nos assegura o Dr. Jones a versão impressa `não fugia muito da exposição original’. Sua primeira publicação foi feita numa tradução inglesa no American Journal of Psychology no início de 1910, mas o original em alemão apareceu pouco depois sob a forma de panfleto em Viena. O trabalho tornou-se popular e teve várias edições; em nenhuma delas, contudo, houve qualquer alteração de substância, salvo quanto à nota de rodapé acrescentada em 1923 bem no início, aparecendo somente no Gesammelte Schriften e Gesammelte Werke, nos quais Freud retirou suas expressões de gratidão a Breuer. Um exame da atitude modificada de Freud quanto a Breuer encontrar-se-á na Introdução do Editor a Studies on Hysteria (Estudos sobre a Histeria), Standard Ed., 2, XXVI ss.

Durante toda sua carreira Freud sempre estava pronto a apresentar exposições de suas descobertas. Já publicara ele alguns curtos relatos de psicanálise, mas esse grupo de conferências foi o primeiro numa escala ampliada. Essas exposições naturalmente variavam de dificuldade de acordo com o auditório para o qual se destinavam, devendo essas ser consideradas como as mais simples, mormente quando postas em confronto com a grande série de Introductory Lectures (Conferências Introdutórias) pronunciadas alguns anos depois (1916-17). Não obstante, apesar de todos os acréscimos que iriam ser feitos à estrutura da psicanálise durante o próximo quartel de um século, essas conferências ainda proporcionam admirável quadro preliminar que exige muito pouca correção. E dão elas uma excelente idéia da facilidade e clareza de estilo e do irrestrito sentido de forma que tornou Freud um conferencista tão notável quanto à exposição.

Consideráveis trechos da tradução anterior (1910) deste trabalho foram incluídos na General Selection from the Works of Sigmund Freud (Seleção Geral dos Trabalhos de Sigmund Freud), de Rickman (1937, 3-43).

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira, diretamente do alemão, é da autoria de Durval Marcondes (Professor de Psicologia Clínica da Universidade de S. Paulo e Presidente da Associação Brasileira de Psicanálise) e de J. Barbosa Corrêa (Professor de Clínica Médica da Escola Paulista de Medicina). Feita para a Companhia Editora Nacional, data de 1931. Foi ligeiramente modificada por Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE

 

Pronunciadas por Ocasião das Comemorações

do Vigésimo Aniversário da Fundação da

CLARK UNIVERSITY, WORCESTER

MASSACHUSETTS

Setembro de 1909

 

Ao

DR. G. STANLEY HALL, Ph. D., LL. D.

Presidente da Clark University

Professor de Psicologia e Pedagogia

Este Trabalho é Penhoradamente Dedicado

 

PREFÁCIO PARA AS CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE DE DURVAL MARCONDES

 

As lições que se seguem foram pronunciadas em língua alemã por Freud, em 1909, na “Clark University” em Worcester (Estados Unidos), por ocasião do vigésimo aniversário dessa instituição, e a convite de seu presidente, o eminente psicólogo Stanley Hall. Elas constituem a primeira exposição sistemática que Freud fez de sua teoria e, embora não envolvam as aquisições mais recentes da psicanálise, são, a meu ver, a leitura mais apropriada para quem aborda pela primeira vez a obra do mestre.

A psicanálise estava longe de ter, naquela época, a importância e o renome que hoje desfruta. Se é exato que já em 1907 ela era estudada e utilizada pelo notável psiquiatra Bleuler e por seus assistentes, na clínica de Zurique; e que já em 1908 se reunia em Salisburgo o primeiro congresso psicanalítico internacional, nem por isso as novas idéias eram bem recebidas nas rodas científicas oficiais, onde as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses esbarravam quase sempre com os preconceitos de uma falsa moral. Daí a alta significação para a jovem doutrina teve a sua consagração na cátedra de Worcester. “Na Europa, escreveu Freud, eu me sentia como um proscrito; ali me via acolhido pelos melhores como um igual. A psicanálise não era mais, portanto, uma concepção delirante, mas se tornara uma parte preciosa da realidade.”

Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, tendo passado aos quatro anos para Viena, onde fez seus estudos. Formou-se em Medicina em 1881. Ainda estudante, entrou, em 1876, a trabalhar no laboratório de fisiologia de Ernst Brücke, sob cuja direção efetuou pesquisas de histologia nervosa. Depois de formado, ingressou no serviço do grande psiquiatra Theodor Meynert, tendo-se dedicado, por essa época, a estudos de neuroanatomia. Antes de entregar-se definitivamente à investigação psicanalítica, publicou vários trabalhos sobre afecções orgânicas do sistema nervoso, tais como as afasias e as encefalopatias infantis. Entre 1885 e 1886 foi discípulo de Charcot, em Paris, e acompanhou, em 1889, em Nancy, as experiências de Bernheim sobre o hipnotismo. A influência de ambos nas concepções iniciais da teoria psicanalítica poderá ser bem avaliada nestas “Cinco Lições”.

Essas concepções tiveram sua primeira expressão na nota prévia que Freud publicou em 1893 com o Dr. Breuer, intitulada “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”, a que se seguiu, em 1895, o livro, também em colaboração, “Estudos Sobre a Histeria.”

A vida de Freud tem sido toda ela uma luta incessante pela verdade. Exposto, pela sua coragem de afirmar, ao anátema das escolas psiquiátricas dominantes, preferiu suportar por muito tempo a dureza de um verdadeiro exílio intelectual a ceder naquilo que era o honesto resultado de sua investigação. Desde o começo de sua carreira profissional, o amor à certeza científica fê-lo prejudicar deliberadamente a clínica em início pela tenacidade em pesquisar em seus doentes o exato determinismo dos sintomas. Sua obra fundamenta-se na mais demorada e paciente observação dos fatos. Há cerca de quarenta anos que ele se dedica diariamente a oito, nove, dez, às vezes mesmo onze análises de uma hora cada uma, podendo-se, portanto, dizer que passou toda uma existência debruçado sobre a alma dos neuróticos. O impiedoso rigor para com as próprias convicções chegou, às vezes, ao ponto de fazê-lo adiar por vários anos a publicação de seus trabalhos até que a experiência ulterior proporcionasse a confirmação de suas descobertas. “Minha A Interpretação de Sonhos”, diz ele, “e meu Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria (o caso de Dora) foram retidos por mim — se não pelos nove anos aconselhados por Horácio — em todo caso por quatro ou cinco anos antes que me decidisse a publicá-los.”

Compreende-se, portanto, que quem adquiriu uma visão nova dos fatos à custa de tão penosos sacrifícios, se tenha recusado a mudar de idéia ante a pressão de uma crítica partidária, que se não baseia na verificação objetiva. Essa justificada intransigência de Freud foi, não obstante, tachada de dogmatismo, o que não impede, porém, que novos dados da observação direta e imparcial confirmem e completem cada vez mais as suas conclusões.

 

“Os homens são fortes enquanto representam uma idéia forte.” Em sua aureolada velhice, Freud assiste presentemente ao triunfo gradual e seguro de seus princípios, cujo enunciado já não constitui uma blasfêmia. Eles conquistam paulatinamente o lugar que lhes cabe na ciência dos fenômenos espirituais e se vão tornando aceitos pelos mais legítimos representantes da psiquiatria moderna. Existe, na verdade, quem insista em rejeitar as conseqüências teóricas da psicanálise sem lhe conhecer sequer os métodos. Mas aos poucos irão chegando os últimos retardatários. “Quem sabe esperar não necessita fazer concessões.”

São Paulo, novembro de 1931.

Durval Marcondes.

 

PRIMEIRA LIÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES, — Constitui para mim sensação nova e embaraçosa apresentar-me como conferencista ante um auditório de estudiosos do Novo Mundo. Considerando que devo esta honra tão somente ao fato de estar meu nome ligado ao tema da psicanálise, será esse, por conseqüência, o assunto de que lhes falarei, tentando proporcionar-lhes, o mais sinteticamente possível, uma visão de conjunto da história inicial e do ulterior desenvolvimento desse novo processo semiológico e terapêutico.

Se algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe, pois não participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me com os meus últimos exames, quando outro médico de Viena, o Dr. Joseph Breuer, empregou pela primeira vez esse método no tratamento de uma jovem histérica (1880-1882). Ocupemo-nos, pois, primeiramente, da história clínica e terapêutica desse caso, a qual se acha minuciosamente descrita nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a Histeria) [1895d] que mais tarde publicamos, o Dr. Breuer e eu.

Mas, preliminarmente, uma observação. Vim a saber, aliás com satisfação, que a maioria de meus ouvintes não pertence à classe médica. Não cuidem, porém, que seja necessária uma especial cultura médica para acompanhar minha exposição. Caminharemos por algum tempo ao lado dos médicos, mas logo deles nos apartaremos, para seguir, com o Dr. Breuer, uma rota absolutamente original.

 

A paciente do Dr. Breuer, uma jovem de 21 anos, de altos dotes intelectuais, manifestou, no decurso de sua doença, que durou mais de dois anos, uma série de perturbações físicas e psíquicas mais ou menos graves. Tinha uma paralisia espástica de ambas as extremidades do lado direito, com anestesia, sintoma que se estendia por vezes aos membros do lado oposto; perturbações dos movimentos oculares e várias alterações da visão; dificuldade em manter a cabeça erguida; tosse nervosa intensa; repugnância pelos alimentos e impossibilidade de beber durante várias semanas, apesar de uma sede martirizante; redução da faculdade de expressão verbal, que chegou a impedi-la de falar ou entender a língua materna; e, finalmente, estados de `absence‘ (ausência), de confusão, de delírio e de alteração total da personalidade, aos quais voltaremos mais adiante a nossa atenção.

Ao terem notícia de semelhante quadro mórbido, os senhores tenderão, mesmo não sendo médicos, a supor que se trate de uma doença grave, provavelmente do cérebro, com poucas esperanças de cura, e que levará rapidamente o enfermo a um desenlace fatal. Os médicos podem, entretanto, assegurar-lhes que, numa série de casos com fenômenos da mesma gravidade, justifica-se outra opinião muito mais favorável. Quando tal quadro mórbido é encontrado em indivíduo jovem do sexo feminino, cujos órgãos vitais internos (coração, rins etc.) nada revelam de anormal ao exame objetivo, mas que sofreu no entanto violentos abalos emocionais, e quando, em certas minúcias, os sintomas se afastam do comum, já os médicos não consideram o caso tão grave. Afirmam que não se trata de uma afecção cerebral orgânica, mas desse enigmático estado que desde o tempo da medicina grega é denominado histeria e que pode simular todo um conjunto de graves perturbações. Nesses casos não consideram a vida ameaçada e até acham provável o restabelecimento completo. Nem sempre é fácil distinguir a histeria de uma grave doença orgânica. Não nos importa, porém, precisar aqui como se faz um diagnóstico diferencial desse gênero, bastando-nos a certeza de que o caso da paciente de Breuer era daqueles em que nenhum médico experimentado deixaria de fazer o diagnóstico de histeria. Podemos também acrescentar, consoante a história clínica, não só que a afecção lhe apareceu quando estava tratando do pai, que ela adorava e cuja grave doença havia de conduzi-lo à morte, como também que ela, por causa de seus próprios padecimentos, teve de abandonar a cabeceira do enfermo.

 

Até aqui nos tem sido vantajoso caminhar ao lado dos médicos mas breve os deixaremos. Não devem os senhores esperar que o diagnóstico de histeria, em substituição ao de afecção cerebral orgânica grave, possa melhorar consideravelmente para o doente a perspectiva de um auxílio médico. Se a medicina é o mais das vezes impotente em face das lesões cerebrais orgânicas, diante da histeria o médico não sabe, do mesmo modo, o que fazer, tendo de confiar à providencial natureza a maneira e a ocasião em que se há de cumprir seu esperançoso prognóstico.

Com o rótulo de histeria pouco se altera, portanto, a situação do doente, enquanto que para o médico tudo se modifica. Pode-se observar que este se comporta para com o histérico de modo completamente diverso que para com o que sofre de uma doença orgânica. Nega-se a conceder ao primeiro o mesmo interesse que dá ao segundo, pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave. Mas acresce outra circunstância: o médico, que, por seus estudos, adquiriu tantos conhecimentos vedados aos leigos, pode formar uma idéia da etiologia das doenças e de suas lesões, como, por exemplo, nos casos de apoplexia ou de tumor cerebral, idéia que até certo ponto deve ser exata, pois lhe permite compreender os pormenores do quadro mórbido. Em face, porém, das particularidades dos fenômenos histéricos, todo o seu saber e todo o seu preparo em anatomia, fisiologia e patologia deixam-no desamparado. Não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo, posição nada agradável a quem tenha em alta estima o próprio saber. Os histéricos ficam, assim, privados de sua simpatia. Ele os considera como transgressores das leis de sua ciência, tal como os crentes consideram os hereges: julga-os capazes de todo mal, acusa-os de exagero e de simulação, e pune-os com lhes retirar seu interesse.

O Dr. Breuer não mereceu certamente essa censura com relação à sua paciente. Embora não pretendesse, no princípio, curá-la, não lhe negou, entretanto, interesse e simpatia, o que lhe foi provavelmente facilitado pelas elevadas qualidades de espírito e de caráter da jovem, das quais ele nos dá testemunho na história clínica que redigiu. Sua carinhosa observação proporcionou-lhe bem logo o caminho que lhe permitiu prestar à doente os primeiros auxílios.

Havia-se notado que nos estados de `absence‘ (alteração da personalidade acompanhada de confusão), costumava a doente murmurar algumas palavras que pareciam relacionar-se com aquilo que lhe ocupava o pensamento. O médico, que anotara essas palavras, colocou a moça numa espécie de hipnose e repetiu-as, para incitá-la a associar idéias. A paciente entrou, assim, a reproduzir diante do médico as criações psíquicas que a tinham dominado nos estados de `absence‘ e que se haviam traído naquelas palavras isoladas. Eram fantasias profundamente tristes, muitas vezes de poética beleza — devaneios, como podiam ser chamadas — que tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem à cabeceira do pai doente. Depois de relatar certo número dessas fantasias, sentia-se ela como que aliviada e reconduzida à vida normal. Esse bem-estar durava muitas horas e desaparecia no dia seguinte para dar lugar a nova `absence‘, que cessava do mesmo modo pela revelação das fantasias novamente formadas. É forçoso reconhecer que a alteração psíquica manifestada durante as `absences‘ era conseqüência da excitação proveniente dessas fantasias intensamente afetivas. A própria paciente, que nesse período da moléstia só falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de `talking cure’ (cura de conversação) qualificando-o também, por gracejo, de `chimney sweeping’ (limpeza da chaminé).

Verificou-se logo, como por acaso, que, limpando-se a mente por esse modo, era possível conseguir alguma coisa mais que o afastamento passageiro das repetidas perturbações psíquicas. Pode-se também fazer desaparecer sintomas quando, na hipnose, a doente recordava, com exteriorização afetiva, a ocasião e o motivo do aparecimento desses sintomas pela primeira vez. `Tinha havido, no verão, uma época de calor intenso e a paciente sofria de sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se, de repente, impossibilitada de beber. Tomava na mão o cobiçado copo de água, mas assim que o tocava com os lábios, repelia-o como hidrófoba. Nesses poucos segundos, ela se achava evidentemente em estado de absence. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, melões etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, falou, certa vez, durante a hipnose, a respeito de sua “dama de companhia” inglesa, de quem não gostava, e contou então com demonstrações da maior repugnância que, tendo ido ao quarto dessa senhora, viu, bebendo num copo, o seu cãozinho, um animal nojento. Nada disse, por polidez. Depois de exteriorizar energicamente a cólera retida, pediu de beber, bebeu sem embaraço grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A perturbação desapareceu definitivamente.

Permitam-me que os detenha alguns momentos ante esta experiência. Ninguém, até então, havia removido por tal meio um sintoma histérico nem penetrado tão profundamente na compreensão da sua causa. O descobrimento desses fatos devia ser de ricas conseqüências, se se confirmasse a esperança de que outros sintomas da doente — e talvez a maioria — se houvessem originado do mesmo modo e do mesmo modo pudessem ser suprimidos. Para verificá-los, Breuer não mediu esforços e pesquisou sistematicamente a patogenia de outros sintomas mais graves. E realmente era assim. Quase todos se haviam formado desse modo, como resíduos — como `precipitados’, se quiserem — de experiências emocionais que, por essa razão, foram denominadas posteriormente `traumas psíquicos’; e o caráter particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena traumática que o causara. Eram, segundo a expressão técnica, determinados pelas cenas cujas lembranças representavam resíduos, não havendo já necessidade de considerá-los como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose. Registremos apenas uma complicação que não fora prevista: nem sempre era um único acontecimento que deixava atrás de si os sintomas; para produzir tal efeito uniam-se na maioria dos casos numerosos traumas, às vezes análogos e repetidos. Toda essa cadeia de recordações patogênicas tinha então de ser reproduzida em ordem cronológica e precisamente inversa — as últimas em primeiro lugar e as primeiras por último — sendo completamente impossível chegar ao primeiro trauma, muitas vezes o mais ativo, saltando-se sobre os que ocorreram posteriormente.

Os senhores desejam, por certo, que lhes apresente outros exemplos de produção de sintomas histéricos, além do da hidrofobia originada pela repugnância diante do cão que bebia no copo. Para manter-me, porém, no meu programa, devo limitar-me a poucas ilustrações. Assim, relata Breuer que as perturbações visuais da doente remontavam a situações como aquelas em que `estando a paciente com os olhos marejados de lágrimas, junto ao leito do enfermo, perguntou-lhe este, de repente, que horas eram, e, não podendo ela ver distintamente, forçou a vista, aproximando dos olhos o relógio, cujo mostrador lhe pareceu então muito grande — devido à macropsia e ao estrabismo convergente. Ou se esforçou em reprimir as lágrimas para que o enfermo não as visse.’ Todas as impressões patogênicas provinham, aliás, do tempo em que ela se dedicava ao pai doente. `Uma noite velava muito angustiada junto ao doente febricitante e estava em grande ansiedade porque se esperava de Viena um cirurgião para operá-lo. Sua mãe ausentara-se por algum tempo e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Caiu em estado de semi-sonho e viu, como se viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que no campo situado atrás da casa algumas cobras tivessem de fato aparecido, assustando anteriormente a moça e fornecendo agora o material de alucinação.) Ela quis afastar o ofídio, mas estava como que paralisada; o braço direito, que pendia no espaldar, achava-se “adormecido”, insensível e parético, e, quando ela o contemplou, transformaram-se os dedos em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). Provavelmente procurou afugentar a cobra com a mão direita paralisada e por isso a anestesia e a paralisia da mesma se associaram com a alucinação da serpente. Quando esta desapareceu, aterrorizada, quis rezar, mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se duma poesia infantil em inglês, pode pensar e rezar nessa língua. Com a reconstituição dessa cena durante a hipnose foi removida a paralisia espástica do braço direito, que existia desde o começo da moléstia, e teve fim o tratamento.

Quando, alguns anos mais tarde, comecei a empregar nos meus próprios doentes o método semiótico e terapêutico de Breuer, fiz experiências que concordam com as dele. Numa senhora de cerca de quarenta anos existia um tic (tique) sob a forma de um especial estalar da língua, que se produzia quando a paciente se achava excitada e mesmo sem causa perceptível. Originara-se esse tique em duas ocasiões nas quais, sendo desígnio dela não fazer nenhum rumor, o silêncio foi rompido contra sua vontade justamente por esse estalido. Uma vez, foi quando com grande trabalho conseguira finalmente fazer adormecer seu filhinho doente, e desejava, no íntimo, ficar quieta para o não despertar; outra vez, quando numa viagem de carro com os dois filhos, por ocasião de uma tempestade, assustaram-se os cavalos e ela cuidadosamente quisera evitar qualquer ruído para que os animais não se espantassem ainda mais. Dou esse esse exemplo dentre muitos outros que se acham consignados nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a Histeria).

Senhoras e Senhores. Se me permitem uma generalização — inevitável numa exposição tão breve — podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). Uma comparação com outros símbolos mnêmicos de gênero diferente talvez nos permita compreender melhor esse simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são também símbolos dessa ordem. Passeando em Londres, verão, diante de uma das maiores estações da cidade, uma coluna gótica ricamente ornamentada — a Charing Cross. No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas, que fez transportar para Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor, erigiu cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife. Charing Cross é o último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre. Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge, verão uma coluna moderna e muito alta, chamada simplesmente `The Monument’, cujo fim é lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade. Tanto quanto se justifique a comparação, esses monumentos são também símbolos mnêmicos como os sintomas histéricos. Mas que diriam do londrino que ainda hoje se detivesse compungido ante o monumento erigido em memória do enterro da rainha Eleanor, em vez de tratar de seus negócios com a pressa exigida pelas modernas condições de trabalho, ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu coração? Ou de outro que, em face do `Monument’ chorasse a incineração da cidade querida, reconstruída depois com tanto brilho? Como esses londrinos pouco práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior significação prática.

 

Desde já aceito a objeção que provavelmente os senhores formularam refletindo sobre a história da paciente de Breuer. Todos os traumas que influíram na moça datavam do tempo em que ela cuidava do pai doente, e os sintomas que apresentava podem ser considerados como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele. Correspondem, portanto, a uma manifestação de luto, e a fixação à memória do finado, tão pouco tempo depois do traspasse, nada representa de patológico; corresponde antes a um processo emocional normal. Reconheço que na paciente de Breuer a fixação aos traumas nada tem de extraordinário. Mas em outros casos — como no tique por mim tratado, cujos fatores datavam mais de quinze e dez anos —, é muito nítido o caráter da fixação anormal ao passado. A doente de Breuer nos haveria de oferecer oportunidade de apreciar a mesma fixação anormal, se não tivesse sido tratada pelo método catártico tão pouco tempo depois do traumatismo e da eclosão dos sintomas.

Até aqui apenas discorremos sobre as relações entre os sintomas histéricos e os fatos da vida da doente, mas dois outros elementos da observação de Breuer podem também indicar-nos como conceber tanto o mecanismo da moléstia como o do restabelecimento.

Quanto ao primeiro, é preciso salientar que a doente de Breuer em quase todas as situações teve de subjugar uma poderosa emoção, em vez de permitir sua descarga por sinais apropriados de emoção, palavras ou ações. No trivialíssimo incidente relativo ao cãozinho de sua dama de companhia, por consideração a esta ela não deixou sequer transparecer a sua profunda aversão; velando à cabeceira do pai, estava sempre atenta para que o doente não lhe percebesse a ansiedade e a penosa depressão. Ao reproduzir posteriormente estas mesmas cenas diante do médico, a energia afetiva então inibida manifestava-se intensamente, como se estivera até então represada. Além disso, o sintoma — resíduo desta cena — atingia a máxima intensidade quando durante o tratamento ia-se chegando à sua causa, para desaparecer completamente quando esta se aclarava inteiramente. Por outro lado, pode-se verificar que era inútil recordar a cena diante do médico se, por qualquer razão, isto se dava sem exteriorização afetiva. Era pois a sorte dessas emoções, que podemos imaginar como grandezas variáveis o que regulava tanto a doença como a cura. Tinha-se de admitir que a doença se instalava porque a emoção desenvolvida nas situações patogênicas não podia ter exteriorização normal; e que a essência da moléstia consistia na atual utilização anormal das emoções `enlatadas’. Em parte ficavam estas como carga contínua da vida psíquica e fonte permanente de excitação para a mesma; em parte se desviavam para insólitas inervações e inibições somáticas, que se apresentavam como os sintomas físicos do caso. Para este último mecanismo propusemos o nome de `conversão histérica’. Demais, uma certa parte de nossas excitações psíquicas é conduzida normalmente para a inervação somática, constituindo aquilo que conhecemos por `expressão das emoções’. A conversão histérica exagera então essa parte da descarga de um processo mental catexizado emocionalmente; ela representa uma expressão mais intensa das emoções, conduzida por nova via. Quando uma corrente de água se escoa por dois canais, num deles o líquido se elevará, logo que no outro se interponha um obstáculo. Como vêem, estamos quase chegando a uma teoria puramente psicológica da histeria, onde assinalamos o primeiro lugar para os processos afetivos.

Uma segunda observação de Breuer obriga-nos agora a atribuir grande significação aos estados de consciência para a característica dos fatos mórbidos. A doente de Breuer exibia, ao lado de seu estado normal, vários outros de `absence‘, confusão e alterações do caráter. Em estado normal ela ignorava totalmente as cenas patogênicas ou pelo menos havia rompido a conexão patogênica. Sob hipnose era possível, depois de considerável esforço, trazer tais cenas à memória, e por este trabalho de evocação os sintomas eram removidos. Ficaríamos em grande perplexidade para interpretar esse fato se a experiência do hipnotismo já não nos tivesse indicado o caminho. Pelo estudo dos fenômenos hipnóticos tornou-se habitual a concepção, a princípio estranhável, de que num mesmo indivíduo são possíveis vários agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos independentes entre si, sem que um `nada saiba’ do outro, e que podem se alternar entre si em sua emersão à consciência. Casos destes, também ocasionalmente, aparecem de forma espontânea, sendo então descritos como exemplos de `double consciente‘. Quando nessa divisão da personalidade a consciência fica constantemente ligada a um desses dois estados, chama-se esse o estado mental `conscience‘e o que dela permanece separado o `inconsciente‘. Nos conhecidos fenômenos da chamada `sugestão pós-hipnótica’, em que uma ordem dada durante a hipnose é depois, no estado normal, imperiosamente cumprida, tem-se um esplêndido modelo das influências que o estado inconsciente pode exercer no consciente, modelo esse que permite sem dúvida compreender o que ocorre na manifestação da histeria. Breuer resolveu admitir que os sintomas histéricos apareciam em estados mentais particulares que chamava `hipnóides’. As excitações durante esses estados hipnóides tornam-se facilmente patogênicas porque não encontram neles as condições para a descarga normal do processo de excitação. Origina-se então, do processo de excitação, um produto anormal — o sintoma — que, como corpo estranho, se insinua no estado normal, escapando a este, por isso, o conhecimento da situação patogênica hipnóide. Onde existe um sintoma, existe também uma amnésia, uma lacuna da memória, cujo preenchimento suprime as condições que conduzem à produção do sintoma.

Receio que esta parte de minha exposição não lhes pareça muito clara. Os presentes devem, contudo, ser indulgentes; trata-se de concepções novas e difíceis que talvez não possam fazer-se muito mais claras, prova de que nossos conhecimentos ainda não progrediram muito. A teoria de Breuer, dos estados hipnóides, tornou-se aliás embaraçante e supérflua, e foi abandonada pela psicanálise moderna. Mais tarde me ouvirão falar, nem que seja sucintamente, das influências e processos que era mister descobrir atrás das fronteiras dos estados hipnóides, por Breuer fixadas. Hão de ter tido também a impressão, sem dúvida justa, de que a pesquisa de Breuer só lhes pode dar uma teoria muito incompleta e uma explicação insuficiente dos fenômenos observados; porém as teorias completas não caem do céu e com toda a razão desconfiarão se alguém lhes apresentar, logo no início de suas observações, uma teoria sem falhas, otimamente rematada. Tal teoria certamente só poderá ser filha de sua especulação e nunca o fruto da pesquisa imparcial e desprevenida da realidade.

 

SEGUNDA LIÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES, — Quase ao mesmo tempo em que Breuer praticava a talking cure (cura de conversação) com sua paciente, começava o grande Charcot, em Paris, com as doentes histéricas da Salpêtrière, as investigações de onde havia de surgir nova concepção da enfermidade. Estes resultados não podiam, naquela ocasião, ser conhecidos em Viena. Quando, porém, cerca de dez anos mais tarde, Breuer e eu publicávamos nossa `Preliminary Communication‘ (Comunicação Preliminar) sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, relacionada com o tratamento catártico da primeira doente de Breuer [1893a], já nos achávamos de todo sob a influência das pesquisas de Charcot. A nosso ver, os acontecimentos patogênicos de nossos doentes, isto é, os traumas psíquicos, eram equivalentes dos traumas físicos cuja influência nas paralisias histéricas fora precisada por Charcot; e a hipótese dos estados hipnóides de Breuer nada mais é que o reflexo da reprodução artificial daquelas paralisias traumáticas, que Charcot obtivera durante a hipnose.

O grande observador francês, de quem fui discípulo em 1885 e 1886, não era propenso às concepções psicológicas. Foi seu discípulo Pierre Janet que tentou penetrar mais intimamente os processos psíquicos particulares da histeria, e nós seguimos-lhes o exemplo, tomando a divisão da mente e a dissociação da personalidade como ponto central de nossa teoria. Segundo a de Janet, que leva em grande conta as idéias dominantes na França sobre o papel da hereditariedade e da degeneração, a histeria é uma forma de alteração degenarativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica. Os pacientes histéricos seriam, desde o princípio, incapazes de manter como um todo a multiplicidade dos processos mentais, e daí a dissociação psíquica. Se me for permitida uma comparação trivial mais precisa, direi que o paciente histérico de Janet lembra uma pobre mulher que saiu a fazer compras e volta carregada de pacotes. Não podendo só com dois braços e dez dedos conter toda a pilha, cai-lhe primeiro um embrulho; ao inclinar-se para levantá-lo, cai-lhe outro, e assim sucessivamente. Contrariando, porém, esta suposta fraqueza mental dos pacientes histéricos, podem observar-se neles, além dos fenômenos de capacidade diminuída, outros, por assim dizer compensadores, de exaltação parcial da eficiência. Durante o tempo em que a doente de Breuer esquecera a língua materna e outros idiomas exceto o inglês, era tal a facilidade com que falava este último, que chegava a ponto de ser capaz, diante de um livro alemão, de traduzi-lo à primeira vista, perfeita e corretamente.

 

Quando eu, mais tarde, prosseguia sozinho as pesquisas iniciadas por Breuer, fui levado a outro ponto de vista a respeito da dissociação histérica (a divisão da consciência). Era fatal essa divergência, aliás decisiva para o resultado futuro, visto que eu não partia, como Janet, de experiências de laboratório e sim do trabalho terapêutico.

O que sobretudo me impelia era a necessidade prática. O procedimento catártico, como Breuer o praticava, exigia previamente a hipnose profunda do doente, pois só no estado hipnótico é que tinha este o conhecimento das ligações patogênicas que em condições normais lhe escapavam. Tornou-se-me logo enfadonho o hipnotismo, como recurso incerto e algo místico; e quando verifiquei que apesar de todos os esforços não conseguia hipnotizar senão parte de meus doentes, decidi abandoná-lo, tornando o procedimento catártico independente dele. Como não podia modificar à vontade o estado psíquico dos doentes, procurei agir mantendo-os em estado normal. Parecia isto a princípio empresa insensata e sem probabilidade de êxito. Tratava-se de fazer o doente contar aquilo que ninguém, nem ele mesmo, sabia. Como esperar consegui-lo? O auxílio me veio da recordação de uma experiência de Bernheim, singularíssima e instrutiva, a que eu assistira em Nancy [em 1889]. Bernheim nos havia então mostrado que as pessoas por ele submetidas ao sonambulismo hipnótico e que nesse estado tinham executado atos diversos, só aparentemente perdiam a lembrança dos fatos ocorridos, sendo possível despertar nelas tal lembrança, mesmo no estado normal. Quando interrogadas a propósito do que havia acontecido durante o sonambulismo, afirmavam de começo nada saber; mas se ele não cedia, insistindo com elas e assegurando-lhes que era possível lembrar, a recordação vinha sempre de novo à consciência.

Procedi do mesmo modo com os meus doentes. Quando chegávamos a um ponto em que nos afirmavam nada mais saber, assegurava-lhes que sabiam, que só precisavam dizer, e ia mesmo até afirmar que a recordação exata seria a que lhes apontasse no momento em que lhes pusesse a mão sobre a fronte. Dessa maneira pude, prescindindo do hipnotismo, conseguir que os doentes revelassem tudo quanto fosse preciso para estabelecer os liames existentes entre as cenas patogênicas olvidadas e os seus resíduos — os sintomas. Esse processo era, porém, ao cabo de algum tempo, extenuante, inadequado para uma técnica definitiva.

Não o abandonei, contudo, sem tirar, das observações feitas, conclusões decisivas. Vi confirmado, assim, que as recordações esquecidas não se haviam perdido. Jaziam em poder do doente e prontas a ressurgir em associação com os fatos ainda sabidos, mas alguma força as detinha, obrigando-as a permanecer inconscientes. A existência desta força pode ser seguramente admitida, pois sentia-se-lhe a potência quando, em oposição a ela, se intentava trazer à consciência do doente as lembranças inconscientes. A força que mantinha o estado mórbido fazia-se sentir como resistência do enfermo.

Nesta idéia de resistência alicercei então minha concepção acerca dos processos psíquicos na histeria. Para o restabelecimento do doente mostrou-se indispensável suprimir estas resistências. Partindo do mecanismo da cura, podia-se formar idéia muito precisa da gênese da doença. As mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido volte à consciência deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da consciência os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo, por mim formulado, dei o nome de `repressão‘ e julguei-o demonstrado pela presença inegável da resistência.

Podia-se ainda perguntar, sem dúvida, que força era essa e quais as condições da repressão, em que reconhecemos agora o mecanismo patogênico da histeria. Um exame comparativo das situações patogênicas, conhecidas graças ao tratamento catártico, permitia dar a conveniente resposta. Tratava-se em todos os casos do aparecimento de um desejo violento mas em contraste com os demais desejos do indivíduo e incompatível com as aspirações morais e estéticas da própria personalidade. Produzia-se um rápido conflito e o desfecho desta luta interna era sucumbir à repressão a idéia que aparecia na consciência trazendo em si o desejo inconciliável, sendo a mesma expulsa da consciência e esquecida, juntamente com as respectivas lembranças. Era, portanto, a incompatibilidade entre a idéia e o ego do doente, o motivo da repressão; as aspirações individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas. A aceitação do impulso desejoso incompatível ou o prolongamento do conflito teriam despertado intenso desprazer; a repressão evitava o desprazer, revelando-se desse modo um meio de proteção da personalidade psíquica.

Dos muitos casos por mim observados quero relatar-lhes um apenas, no qual são patentes os aspectos determinantes e a vantagem da repressão. Para não me afastar do meu propósito, sou forçado a resumir esta história clínica, deixando de lado importantes hipóteses. A paciente era uma jovem que perdera recentemente o pai, depois de tomar parte, carinhosamente, nos cuidados ao enfermo — situação análoga à da doente de Breuer. Nascera, quando a irmã mais velha se casou, uma simpatia particular para o novo cunhado, que se mascarava por disfarce de ternura familiar. Esta irmã adoeceu logo depois e veio a falecer durante a ausência da minha doente e de sua mãe. Estas foram chamadas urgentemente, sem notícia completa do doloroso acontecimento. Quando a moça chegou ao leito da morta, correu-lhe na mente, por um rápido instante, uma idéia mais ou menos assim: `ele agora está livre, pode desposar-me.’ É-nos lícito admitir como certo que esta idéia, denunciando-lhe à consciência o intenso amor que sem o saber tinha ao cunhado, foi logo entregue à repressão pelos próprios sentimentos revoltados. A jovem adoeceu com graves sintomas histéricos e quando comecei a tratá-la tinha esquecido não só aquela cena junto ao leito da irmã, como também o concomitante sofrimento indigno e egoísta. Mas recordou-se de tudo durante o tratamento, reproduziu o incidente patogênico com sinais de intensa emoção, e curou-se.

Talvez possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria situação neste recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com risotas, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora da porta. Ele está agora `reprimido’ e posso continuar minha exposição. Para que, porém, se não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a repressão, se postam como `resistências’. Se traduzirmos agora os dois lugares, sala e vestíbulo, para a psique, como `consciente’ e `inconsciente’, os senhores terão uma imagem mais ou menos perfeita do processo de repressão.

Os senhores podem ver desde logo onde está a diferença entre nossa concepção e a de Janet. Não atribuímos a divisão psíquica à incapacidade inata para a síntese da parte do aparelho psíquico, mas explicamo-lo dinamicamente pelo conflito de forças mentais contrárias, reconhecendo nele o resultado de uma luta ativa da parte dos dois agrupamentos psíquicos entre si. De nossa concepção surgem novos problemas, em grande número. Os conflitos psíquicos são excessivamente freqüentes; observa-se com muita regularidade o esforço do eu para se defender de recordações penosas, sem que isso produza a divisão psíquica. É forçoso, portanto, admitir que outras condições são também necessárias para que do conflito resulte a dissociação. Concordo de boa-vontade que com a hipótese da repressão, estamos não no remate, mas antes no limiar de uma teoria psicológica; só passo a passo podemos avançar, esperando que um trabalho posterior mais aprofundado aperfeiçoe os conhecimentos.

Os presentes devem abster-se de examinar o caso da doente de Breuer sob o ponto de vista da repressão: essa história clínica não se presta para isso porque foi obtida sob o influxo do hipnotismo. Só prescindido deste último poderão perceber a resistência e a repressão, e formar idéia exata do processo patogênico real. A hipnose encobre a resistência, deixando livre e acessível um determinado setor psíquico, em cujas fronteiras, porém, acumula as resistências, criando para o resto uma barreira intransponível.

O que de mais importante nos proporcionou a observação de Breuer foi esclarecer as relações dos sintomas com as experiências patogênicas ou traumas psíquicos, resultado que não devemos deixar de focalizar agora sob o ponto de vista da teoria da repressão. À primeira vista, com efeito, não se percebe como, partindo da repressão, se pode chegar à formação dos sintomas. Em lugar de trazer uma complicada dedução teórica, prefiro retornar à comparação que há pouco nos serviu. Suponhamos que com a expulsão do perturbador e com a guarda à porta não terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e sem nenhuma consideração, continue a nos dar que fazer. Ele já não está aqui conosco; ficamos livres de sua presença, dos motejos, dos apartes, mas a expulsão foi por assim dizer inútil, pois lá de fora ele dá um espetáculo insuportável, e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do que antes. Em tais conjunturas poderíamos felicitar-nos se o nosso honrado presidente, Dr. Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e pacificador. Iria parlamentar com o nosso intratável companheiro e voltaria pedindo-nos que o recebêssemos de novo, garantindo-nos um comportamento conveniente daqui por diante. Graças à autoridade do Dr. Hall, condescendemos em desfazer a repressão, voltando a paz e o sossego. Eis uma representação muito apropriada da missão que cabe ao médico na terapêutica psicanalítica das neuroses.

Agora, para dizê-lo sem rebuços: chegamos à convicção, pelo exame dos doentes histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias, a que o desejo insuportável está apenso, malogrou. Expeliram-nas da consciência e da lembrança; com isso os pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores. Mas o impulso desejoso continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência, substituto ao qual logo se liga a mesma sensação de desprazer que se julgava evitada pela repressão. Esta substituição da idéia reprimida — o sintoma — é protegida contra as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento interminável. No sintoma, a par dos sinais do disfarce, podem reconhecer-se traços de semelhança com a idéia primitivamente reprimida. Pelo tratamento psicanalítico desvenda-se o trajeto ao longo do qual se realizou a substituição, e para a recuperação é necessário que o sintoma seja reconduzido pelo mesmo caminho até a idéia reprimida.

Uma vez restituído à atividade mental consciente aquilo que fora reprimido — e isso pressupõe que consideráveis resistências tenham sido desfeitas — o conflito psíquico que desse modo se originara e que o doente quis evitar, alcança, orientado pelo médico, uma solução mais feliz do que a oferecida pela repressão. Há várias dessas soluções para rematar satisfatoriamente conflito e neurose, as quais, em determinados casos, podem combinar-se entre si. Ou a personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama `sublimação’ do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático por isso mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do homem — o controle consciente do desejo é atingido.

Desculpem-me se porventura não logrei apresentar-lhes mais compreensivelmente estes pontos de vista capitais do método terapêutico hoje denominado `psicanálise’. A dificuldade não está só na novidade do assunto. A natureza dos desejos incompatíveis que, não obstante a repressão, continuam a dar sinal de si no inconsciente, e os elementos determinantes subjetivos e constitucionais que devem estar presentes em qualquer pessoa antes do malogro da repressão podem ocorrer e um substituto ou sintoma ser formado — sobre tudo isto procurarei esclarecer em algumas observações posteriores.

 

TERCEIRA LIÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES, — Nem sempre é fácil dizer a verdade, mormente quando é mister ser conciso, e por isso vejo-me obrigado a corrigir uma inexatidão que cometi na última conferência. Dizia-lhes eu que quando, posto de lado o hipnotismo, eu forçava os doentes a comunicarem o que lhes viesse à mente — pois que saibam, apesar de tudo, aquilo que supunham ter esquecido, e a idéia que lhes brotasse havia de certamente conter em si o que se procurava —, pude, com efeito, verificar que o primeiro pensamento surgido trazia o elemento desejado e se revelava como a continuação inadvertida da lembrança. Isto, porém, nem sempre é certo; foi por amor à concisão que o apresentei com essa singeleza. Na realidade, só nas primeiras vezes aconteceu que pela simples pressão de minha parte exatamente o esquecido que buscávamos se apresentasse. Continuando a empregar o método, vinham pensamentos despropositados, que não poderiam ser o procurado e que os próprios doentes repeliam como inexatos. Já não adiantava insistência e poder-se-ia de novo lamentar o abandono do hipnotismo.

Neste estado de perplexidade vali-me de um pressuposto cuja exatidão científica foi anos depois demonstrada pelo meu amigo C. G. Jung, de Zurique, e seus discípulos. Devo afirmar que às vezes é muito útil ter um pressuposto. Eu tinha em alto conceito o rigor do determinismo dos processos mentais e não podia crer que uma idéia concebida pelo doente com atenção concentrada fosse inteiramente espontânea, sem nenhuma relação com a representação mental esquecida e por nós procurada. Que não fosse idêntica a esta, explicava-se satisfatoriamente pela situação psicológica suposta. Duas forças antagônicas atuavam no doente; de um lado, o esforço refletido para trazer à consciência o que jazia deslembrado no inconsciente; de outro lado a resistência, já nossa conhecida, impedindo a passagem para o consciente do elemento reprimido ou dos derivados deste. Se fosse igual a zero ou insignificante a resistência, o olvidado se tornaria consciente sem deformação. Podemos admitir que seja tanto maior a deformação do elemento procurado quanto mais forte a resistência que o detiver. O pensamento que no doente vinha em lugar do desejado, tinha origem idêntica à de um sintoma; era uma nova substituição artificial e efêmera do reprimido e tanto menos semelhante a ele quanto maior a deformação que tivesse de sofrer sob a influência da resistência. Ele devia mostrar, porém, certa parecença com o procurado, em virtude da sua natureza de sintoma; e desde que a resistência não fosse muito intensa, seria possível, partindo da idéia, lobrigar o oculto que se buscava. O pensamento devia comportar-se em relação ao elemento reprimido com uma alusão, como uma representação do mesmo por meio de palavras indiretas.

Conhecemos, no domínio da vida psíquica normal, exemplos em que situações análogas às que admitimos produzem resultados semelhantes. É o caso do chiste. O problema da técnica psicanalítica forçou-me a estudar o mecanismo da formação das pilhérias. Quero expor-lhes apenas um desses exemplos, aliás uma anedota da língua inglesa.

Diz a anedota: Por uma série de empresas duvidosas, dois comerciantes tinham conseguido reunir grandes cabedais e esforçavam-se para penetrar na boa sociedade. Entre outros, pareceu-lhes um meio conveniente fazerem-se retratar pelo pintor mais notável e mais careiro da cidade, cujo quadro fosse um acontecimento. Numa grande reunião foram inaugurados os custosíssimos quadros, um ao lado do outro, e os dois proprietários conduziram até a parede o mais influente crítico de arte a fim de obterem o valioso julgamento. O crítico examinou longamente o quadro, sacudiu a cabeça como se achasse falta de alguma coisa e perguntou apenas, indicando o espaço entre os dois quadros: `But where’s the Saviour? (`Mas onde está o Redentor?’) Vejo que todos se riem da boa pilhéria; penetramos-lhes agora a significação. Os presentes compreendem que o crítico queria dizer: vocês são dois patifes como aqueles que ladearam o Cristo crucificado. Mas não o disse; em lugar disso exprimiu coisa que à primeira vista parece extraordinariamente abstrusa e fora de propósito, mas que logo depois reconhecemos como uma alusão à injúria que lhe estava no íntimo, e que vale perfeitamente como substituto dela. Não podemos esperar que numa anedota sejam encontradas todas as circunstâncias que pressupomos na gênese das idéias associadas dos nossos doentes; queremos todavia realçar a identidade de motivação para a anedota e para a idéia. Por que é que o nosso crítico não lhes falou claramente? Porque nele outras razões contrárias também atuavam ao lado do ímpeto de dizê-lo francamente, face a face. Não deixa de ser perigoso desfeitear pessoas de que somos hóspedes e que dispõem de criadagem numerosa, de pulsos vigorosos. A sorte poderia ser a mesma que na conferência anterior serviu de exemplo para a repressão. Por tal razão o crítico atirou indiretamente a ofensa que estava ruminando, transfigurando-a numa `alusão com desabafo’. É, a nosso ver, devido à mesma constelação que o paciente produz uma idéia de substituição, mais ou menos distorcida, em lugar do elemento esquecido que procuramos.

Senhoras e Senhores. Aceitando a proposta da Escola de Zurique (Bleuler, Jung e outros), convém dar o nome de `complexo’ a um grupo de elementos ideacionais interdependentes, catexizados de energia afetiva. Vemos assim que partindo da última recordação que o doente ainda possui, em busca de um complexo reprimido, temos toda a probabilidade de desvendá-lo, desde que o doente nos proporcione um número suficiente de associações livres

. Mandamos o doente dizer o que quiser, cônscios de que nada lhe ocorrerá à mente senão aquilo que indiretamente dependa do complexo procurado. Talvez lhes pareça muito fastidioso este processo de descobrir os elementos reprimidos, mas, asseguro-lhes, é o único praticável.

No emprego desta técnica o que ainda nos perturba é que com freqüência o doente se detém, afirmando não saber dizer mais nada, que nada mais lhe vem à idéia. Se assim fosse, se o doente tivesse razão, o método ter-se-ia revelado impraticável. Uma observação atenta mostra, contudo, que as idéias livres nunca deixam de aparecer. É que o doente, influenciado pela resistência disfarçada em juízos críticos sobre o valor da idéia, retém-na ou de novo a afasta. Para evitá-la põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente. Pela observância dessa regra garantimo-nos o material que nos conduz ao roteiro do complexo reprimido.

 

Esse material associativo que o doente rejeita como insignificante, quando em vez de estar sob a influência do médico está sob a da resistência, representa para o psicanalista o minério de onde com simples artifício de interpretação há de extrair o metal precioso. Se diante de um doente quiserem os presentes ter um conhecimento rápido e provisório dos complexos reprimidos, sem lhes penetrar na ordem e nas relações, podem dispor da `experiência da associação’, cuja técnica foi aperfeiçoada por Jung (1906) e seus discípulos. Para o psicanalista este método é tão precioso quanto para o químico a análise qualitativa; prescindível na terapêutica dos neuróticos, é indispensável para a demonstração objetiva dos complexos e para o estudo das psicoses, com tanto êxito empreendido pela Escola de Zurique.

Não é o estudo das divagações, quando o doente se sujeita à regras psicanalíticas, o único recurso técnico para sondagem do inconsciente. Ao mesmo escopo servem dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos lapsos e atos casuais.

Confesso-lhes, prezados ouvintes, que estive longo tempo indeciso sobre se, em lugar desta rápida vista geral sobre todo o domínio da psicanálise, não seria preferível expor-lhes minuciosamente a interpretação de sonhos. Motivo puramente subjetivo e aparentemente secundário me deteve. Pareceu-me quase escandaloso apresentar-me neste país de orientação prática, como `onirócrita’, antes de mostrar-lhes qual a importância a que pode aspirar esta velha e ridicularizada arte. A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos. Os adversários da psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado estudar de perto A Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções superficialíssimas. Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos problemas da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades trazidas pela psicanálise.

 

Não se esqueçam de que se nossas elaborações oníricas noturnas mostram de um lado a maior semelhança externa e o mais íntimo parentesco com as criações da alienação mental, são, de outro lado, compatíveis com a mais perfeita saúde na vida desperta. Não é nenhum paradoxo afirmar que quem fica admirado ante essas alucinações, delírios ou mudanças de caráter que podemos chamar `normais’, sem procurar explicá-los, não tem a menor probabilidade de compreender, senão como qualquer leigo, as formações anormais dos estados psíquicos patológicos. E entre esses leigos os ouvintes podem contar atualmente, sem receio, quase todos os psiquiatras.

Acompanhem-me agora numa rápida excursão pelo campo dos problemas do sonho. Quando acordados, costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém com que os doentes rejeitam as idéias soltas despertadas pelo psicanalista. Desprezamo-los, olvidando-os em geral rápida e completamente. O nosso descaso funda-se no caráter exótico apresentado mesmo pelos sonhos que possuem clareza e nexo, e sobre a evidente absurdez e insensatez dos demais; nossa repulsa explica-se pelas tendências imorais e menos pudicas que se patenteiam em muitos deles. É de todos sabido que a antigüidade não compartilhou tal desapreço para com os sonhos. As camadas baixas do nosso povo, mesmo hoje, não estão totalmente desnorteadas na apreciação do valor dos sonhos, dos quais esperam, como os antigos, a revelação do futuro. Confesso-lhes que não tenho necessidade de nenhuma hipótese mística para preencher as falhas de nossos conhecimentos atuais e por isso nunca pude descobrir nada que confirmasse a natureza profética dos sonhos. Coisa muito diferente disso, embora assaz maravilhosa, se pode dizer a respeito deles.

Em primeiro lugar, nem todos os sonhos são estranhos, incompreensíveis e confusos para a pessoa que sonhou. Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade, verificarão que eles são extremamente simples e de fácil explicação. A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há necessidade de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com a criança na véspera (`dia do sonho’). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da criancinha: realização de desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta removem-se uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos.

A primeira objeção e a mais importante é a de que os sonhos dos adultos via de regra têm um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Resposta: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico correspondente teria originariamente uma expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho, recordado vagamente de manhã e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime em palavras com esforço, deve ser diferenciado dos pensamentos latentes do sonho que se têm de admitir como existentes no inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que já conhecemos desde quando examinamos a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova da participação da mesma interação de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas. O conteúdo manifesto do sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes do sonho. Esta deformação é obra das forças defensivas do ego, isto é, das resistências que na vigília impedem, de modo geral, a passagem para a consciência, dos desejos reprimidos do inconsciente; enfraquecidas durante o sono, estas resistências ainda são suficientemente fortes para só os tolerar disfarçados. Quem sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de seus sonhos, como o histérico as correlações e a significação de seus sintomas.

De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto existe de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de sonhos, cuja técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos elementos do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, partindo de cada um desses elementos e observando as regras da prática psicanalítica. De posse deste material chegarão aos pensamentos latentes do sonho com a mesma perfeição com que conseguiram surpreender no doente o complexo oculto, por meio das idéias sugeridas pelas associações livres a partir dos sintomas e lembranças. Pelos pensamentos latentes do sonho, descobertos desse modo, pode-se ver sem mais nada como é justo equiparar o sonho dos adultos ao das crianças. O que agora, como verdadeiro sentido do sonho, substitui o seu conteúdo manifesto — e isto é sempre claramente compreensível — liga-se às impressões da véspera e se patenteia como a realização de um desejo não-satisfeito. O sonho manifesto que conhecem no adulto graças à recordação pode então ser descrito como uma realização velada de desejos reprimidos.

Podem agora os ouvintes, por uma espécie de trabalho sintético, examinar o processo mediante o qual os pensamentos inconscientes do sonho se disfarçam no conteúdo manifesto. Esse processo, que denominamos `elaboração onírica’, é digno de nosso maior interesse teórico, porque em nenhuma outra circunstância poderíamos estudar melhor do que nele os processos psíquicos, não-suspeitados, que se passam no inconsciente, ou, mais exatamente, entre dois sistemas psíquicos distintos, como consciente e inconsciente. Entre tais processos psíquicos recentemente descobertos ressaltam notavelmente o da condensação e o do deslocamento. A elaboração onírica é um caso especial da influência recíproca de agrupamentos mentais diversos, isto é, o resultado da divisão psíquica, e parece essencialmente idêntico ao trabalho de deformação que transforma em sintomas os complexos cuja repressão fracassou.

Pela análise dos sonhos descobrirão os senhores ainda mais, com surpresa, porém do modo mais convincente possível, o papel importantíssimo e nunca imaginado que os fatos e impressões da tenra infância exercem no desenvolvimento do homem. Na vida onírica a criança prolonga, por assim dizer, sua existência no homem, conservando todas as peculiaridades e aspirações, mesmo as que se tornam mais tarde inúteis. Com força irresistível apresentar-se-lhes-ão os processos de desenvolvimento, repressões, sublimações e formações reativas, de onde saiu, da criança com tão diferentes disposições, o chamado homem normal — esteio e em parte vítima da civilização tão penosamente alcançada.

Quero ainda fazer notar que pela análise de sonhos também pudemos descobrir que o inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais, de certo simbolismo, em parte variável individualmente e em parte tipicamente fixo, que parece coincidir com o que conjecturamos por detrás dos nossos mitos e lendas. Não seria impossível que essas últimas criações populares recebessem, portanto, do sonho, a sua explicação.

Impende-nos adverti-los finalmente de que não se deixem desorientar pela objeção de que aparecimento de pesadelos contradiz o nosso modo de entender o sonho como satisfação de desejos. Além de que é necessário interpretar os pesadelos antes de sobre eles poder firmar qualquer juízo, pode dizer-se de modo geral que a ansiedade que os acompanha não depende assim tão simplesmente do conteúdo oniríco, como muitos imaginam por ignorar as condições da ansiedade neurótica. A ansiedade é uma das reações do ego contra desejos reprimidos violentos, e daí perfeitamente explicável a presença dela no sonho, quando a elaboração deste se pôs excessivamente a serviço da satisfação daqueles desejos reprimidos.

Como vêem, o estudo dos sonhos já estaria em si justificado, pelo fato de que proporciona conclusões sobre coisas de que por outros meios dificilmente chegaríamos a ter noção. Foi todavia no decorrer do tratamento psicanalítico dos neuróticos que chegamos até ele. Pelo que até agora dissemos podem compreender facilmente que a interpretação de sonhos, quando não a estorvam em excesso as resistências do doente, leva ao conhecimento dos desejos ocultos e reprimidos, bem como dos exemplos entretidos por este. Posso agora tratar do terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou recurso técnico da psicanálise.

Os fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e aos neuróticos, fatos aos quais não costumamos ligar importância — o esquecimento de coisas que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga temporária dos nomes próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até mesmo conosco, na escrita ou na leitura em voz alta; atrapalhações no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc., bagatelas de cujo determinismo psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo como casualidades, como resultado de distrações, desatenções e outras condições semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e, sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias, brincar com objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas, os atos falhos, como os sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídas de valor como por uma espécie de acordo tácito e hábito admitir. São extraordinariamente significativas e quase sempre de interpretação fácil e segura, tendo-se em vista a situação em que ocorrem; verifica-se que mais uma vez exprimem impulsos e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos reprimidos e dos complexos que, como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores dos sonhos. Fazem jus à mesma consideração que os sintomas, e o seu exame, tanto quanto o dos sonhos, pode levar ao descobrimento da parte oculta da mente. Por elas o homem trai, em regra, os mais íntimos segredos. Se se produzem com grande facilidade e freqüência, até em indivíduos normais, cujos desejos inconscientes estão reprimidos de modo eficaz, isso se explica pela futilidade e inverossimilhança das mesmas. São porém do mais alto valor teórico: testemunham a existência da repressão e da substituição mesmo na saúde perfeita.

Notarão desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal, que supomos inata, se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica.

 

Se os ouvintes reunirem os meios que estão ao nosso alcance para descobrimento do que na vida mental jaz escondido, deslembrado e reprimido — o estudo das idéias livremente associadas pelos pacientes, seus sonhos, falhas e ações sintomáticas; se ainda juntarem a tudo isso o exame de outros fenômenos surgidos no decurso do tratamento psicanalítico e a respeito dos quais farei algumas observações quando tratar da `transferência’ — chegarão comigo à conclusão de que a nossa técnica já é suficientemente capaz de realizar aquilo que se propôs: conduzir à consciência o material psíquico patogênico, dando fim desse modo aos padecimentos ocasionados pela produção dos sintomas de substituição. O fato de enriquecermos e aprofundarmos durante o tratamento os nossos conhecimentos sobre a vida mental, dos sãos e dos doentes, deve ser considerado apenas como estímulo especial a este trabalho e uma de suas vantagens.

Não sei se ficaram com a impressão de que a técnica, através de cujo arsenal os conduzi, apresenta dificuldades especiais. Para mim, ela amolda-se perfeitamente aos seus fins. Mas não é menos certo também que não constitui prenda inata; tem de ser aprendida, como a histológica ou a cirúrgica. Talvez se espantem em saber que na Europa ouvi uma série de juízos relativos à psicanálise expendidos por pessoas jejunas a respeito desta técnica, que elas não exercitam, as quais pessoas ainda por ironia nos exigem lhes demonstremos a exatidão de nossos resultados. No meio de tais opositores encontram-se sem dúvida homens familiarizados com o raciocínio científico em outras matérias, incapazes de contestar, por exemplo, o resultado dum exame microscópico, só porque não o podem confirmar pela inspeção do preparado anatômico com a vista desarmada, e que não emitiriam parecer algum antes de minuciosa observação ao microscópio. Mas no tocante à psicanálise as circunstâncias são realmente desfavoráveis a um imediato assentimento. Quer a psicanálise tornar conscientemente reconhecido aquilo que está reprimido na vida mental, e todo aquele que a julga é homem com as mesmas repressões, mantidas talvez à custa de penosos sacrifícios. Neles devem levantar-se, pois, as mesmas resistências, como nos doentes, e estas se revestem facilmente das roupagens da impugnação intelectual, suscitando argumentos semelhantes aos que desfazemos nos doentes com a regra psicanalítica fundamental. Como nos doentes, podemos reconhecer em nossos adversários notável influxo afetivo na faculdade de julgamento, com prejuízo desta. O orgulho da consciência que chega por exemplo a desprezar os sonhos pertence ao forte aparelhamento disposto em nós de modo geral contra a invasão dos complexos inconscientes. Esta é a razão por que tão dificultoso é como vencer os homens da realidade do inconsciente e dar-lhes a conhecer qualquer novidade em contradição com seu conhecimento consciente.

 

QUARTA LIÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES, — Desejam os ouvintes saber agora o que, com auxílio dos meios técnicos descritos, logramos averiguar a respeito dos complexos patogênicos e dos desejos reprimidos dos neuróticos.

Mas, antes de tudo, uma coisa: o exame psicanalítico relaciona com uma regularidade verdadeiramente surpreendente os sintomas mórbidos a impressões da vida erótica do doente; mostra-nos que os desejos patogênicos são da natureza dos componentes instintivos eróticos: e obriga-nos a admitir que as perturbações do erotismo têm a maior importância entre as influências que levam à moléstia, tanto num como noutro sexo.

Bem sei que não se acredita de boa mente nesta minha afirmação. Mesmo os investigadores que me seguem solícitos os trabalhos psicológicos são inclinados a julgar que eu exagero a participação etiológica do fator sexual, e vêm a mim perguntando por que outras excitações mentais não hão de dar também motivo aos fenômenos da repressão e formação de substitutivos. Por ora só lhes posso responder: não sei. Mas a experiência mostra que elas não têm a mesma importância. Quando muito, reforçam a ação do elemento sexual, mas nunca podem substituí-lo. Esta ordem de coisas não a determinei mais ou menos teoricamente. Quando, em 1895, publiquei com o Dr. J. Breuer os Estudos sobre a Histeria, ainda não tinha esta opinião; vi-me forçado a adotá-la quando as minhas experiências se tornaram mais numerosas e penetraram mais intimamente o problema. Senhores! Acham-se entre os presentes alguns de meus adeptos e amigos mais chegados, que viajaram comigo até Worcester. Se os interrogarem, ouvirão que todos eles a princípio recebiam com a maior descrença a afirmação da importância decisiva da etiologia sexual, até que pelo exercício analítico pessoal foram obrigados a aceitar como sua própria aquela afirmação.

O modo de proceder dos doentes em nada facilita o reconhecimento da justeza da tese a que estamos aludindo. Em vez de nos fornecerem prontamente informações sobre a sua vida sexual, procuram por todos os meios ocultá-la. Em matéria sexual os homens são em geral insinceros. Não expõem a sua sexualidade francamente; saem recobertos de espesso manto, tecido de mentiras, para se resguardarem, como se reinasse um temporal terrível no mundo da sexualidade. E não deixam de ter razão; o sol e o ar em nosso mundo civilizado não são realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode manifestar o seu erotismo francamente à turba. Quando porém seus pacientes tiverem percebido que durante o tratamento devem estar à vontade, se despojarão daquele manto de mentira, e só então estarão os presentes em condições de formar juízo a respeito deste problema. Infelizmente, os médicos não desfrutam nenhum privilégio especial sobre os demais homens no tocante ao comportamento na esfera da vida sexual, e muitos deles estão dominados por aquela mescla de lubricidade e afetado recato, que é o que governa a maioria dos `povos civilizados’ nas coisas da sexualidade.

Deixem-me prosseguir no relato das nossas contestações. Em outra série de casos o exame psicanalítico vem sem dúvida ligar os sintomas não a fatos sexuais senão a acontecimentos traumáticos comuns. Mas, por outra circunstância, esta diferenciação perde todo valor. O trabalho de análise necessário para o esclarecimento completo e cura definitiva de um caso mórbido não se detém nos episódios contemporâneos da doença; retrocede sempre, em qualquer hipótese, até a puberdade e a mais remota infância do doente, para só aí topar as impressões e acontecimentos determinantes da doença ulterior. Só os fatos da infância explicam a sensibilidade aos traumatismos futuros e só com o descobrimento desses restos de lembranças, quase regularmente olvidados, e com a volta deles à consciência, é que adquirimos o poder de afastar os sintomas. Chegamos aqui à mesma conclusão do exame de sonhos, isto é, que foram os desejos duradouros e reprimidos da infância que emprestaram à formação dos sintomas a força sem a qual teria decorrido normalmente a reação contra traumatismos posteriores. Estes potentes desejos da infância hão de ser reconhecidos, porém, em sua absoluta generalidade, como sexuais.

Mas, agora sim, estou realmente certo do espanto dos ouvintes. `Existe então — perguntarão — uma sexualidade infantil?’ `A infância não é, ao contrário, o período da vida marcado pela ausência do instinto sexual?’ Não, meus senhores. Não é verdade certamente que o instinto sexual, na puberdade, entre o indivíduo como, segundo o Evangelho, os demônios nos porcos. A criança possui, desde o princípio, o instinto e as atividades sexuais. Ela os traz consigo para o mundo, e deles provêm, através de uma evolução rica de etapas, a chamada sexualidade normal do adulto. Não são difíceis de observar as manifestações da atividade sexual infantil; ao contrário, para deixá-las passar desapercebidas ou incompreendidas é que é preciso certa arte.

Por um feliz acaso acho-me em condições de chamar dentre os presentes uma testemunha em favor de minhas afirmações. Eis aqui o trabalho do Dr. Sanford Bell, impresso em 1902, em The American Journal of Psychology. O autor é um “Fellow” da Clark University, o mesmo instituto em cujo seio nos achamos no atual instante. Nesse trabalho, intitulado `A Preliminary Study of the Emotion of Love Between the Sexes’, publicado três anos antes dos meus Three Essays on the Theory of Sexuality [1905d], (Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade), escreve o autor, tal qual há pouco lhes dizia: `A emoção do amor sexual… não aparece pela primeira vez no período da adolescência, como se tem pensado.’ Procedendo `à americana’, como diríamos na Europa, reuniu durante 15 anos nada menos de 2.500 observações positivas, das quais 800 são próprias. Dos sinais por que se revelam esses temperamentos namoradiços, diz ele: `O espírito mais desprevenido, observando estas manifestações em centenas de casais de crianças, não poderá deixar de atribuir-lhes uma origem sexual. O mais rigoroso espírito satisfaz-se quando a estas observações se juntam as confissões dos que em criança sentiram a emoção intensamente e cujas recordações daquela época são relativamente nítidas.’ Aqueles dentre os ouvintes que não queriam acreditar na sexualidade infantil terão o maior assombro ouvindo que entre estas crianças, tão cedo enamoradas, não poucas se encontram na tenra idade de três, quatro ou cinco anos.

Não me admiraria se estas observações de seu compatriota lhes merecessem mais crédito que as minhas. A mim mesmo foi-me dado obter recentemente um quadro mais ou menos completo das manifestações instintivas somáticas e das produções mentais num período precoce da vida amorosa infantil, graças à análise empreendida, com todas as regras, pelo próprio pai de um menino de cinco anos atacado de ansiedade. Devo lembrar-lhes que meu amigo Dr. C. G. Jung há poucas horas, nesta mesma sala, lhes expôs a observação de uma menina ainda mais nova, que pelo mesmo motivo do meu paciente (nascimento de um irmãozinho) evidenciava quase os mesmos impulsos sensuais e idêntica formação de desejos e complexos. [Cf. Jung, 1910.] Não duvido, pois, de que os presentes se acabarão familiarizando com a idéia, de início tão exótica, da sexualidade infantil; memore-se o exemplo notável do psiquiatra E. Bleuler, de Zurique, que há poucos anos dizia publicamente `que não compreendia minha teoria sexual’ mas que de então para cá, pôde, mediante observações próprias, confirmar a sexualidade infantil em toda a extensão. (Cf. Bleuler, 1908.)

É facílima de explicar a razão por que a maioria dos homens, observadores médicos e outros, nada querem saber da vida sexual da criança. Sob o peso da educação e da civilização, esqueceram a atividade sexual infantil e não desejam agora relembrar aquilo que já estava reprimido. Se quisessem iniciar o exame pela auto-análise, com uma revisão e interpretação das próprias recordações infantis, haviam de chegar a convicção muito diferente.

Deixem que se dissipem as dúvidas e examinemos juntos a sexualidade infantil, desde os primeiros anos. O instinto sexual se nos apresenta muito complexo, podendo ser desmembrado em vários componentes de origem diversa. Antes de tudo, é independente da função procriadora a cujo serviço mais tarde se há de pôr. Serve para dar ensejo a diversas espécies de sensações agradáveis que nós, pelas suas analogias e conexões, englobamos como prazer sexual. A principal fonte de prazer sexual infantil é a excitação apropriada de determinadas partes do corpo particularmente excitáveis, além dos órgãos genitais, como sejam os orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies sensoriais. Como nesta primeira fase da vida sexual infantil a satisfação é alcançada no próprio corpo, excluído qualquer objeto estranho, dá-se-lhe o nome, segundo o termo introduzido por Havelock Ellis, de auto-erotismo. Zonas erógenas denominam-se os lugares do corpo que proporcionam o prazer sexual. O prazer de chupar o dedo, o gozo da sucção, é um bom exemplo de tal satisfação auto-erótica partida de uma zona erógena. Quem primeiro observou cientificamente esse fenômeno, o pediatra Lindner (1879), de Budapeste, já o tinha interpretado como satisfação dessa natureza e descrito exaustivamente a transição para outras formas mais elevadas de atividade sexual. Outra satisfação da mesma ordem, nessa idade, é a excitação masturbatória dos órgãos genitais, fenômeno que tão grande importância conserva para o resto da vida e que muitos indivíduos não conseguem suplantar jamais. Ao lado dessas e outras atividades auto-eróticas revelam-se, muito cedo, na criança, aqueles componentes instintivos do gozo sexual ou, como preferimos dizer, da libido, que pressupõem como objeto uma pessoa estranha. Estes instintos aparecem em grupos de dois, um oposto ao outro, ativo e passivo: cito-lhes como mais notáveis representantes deste grupo o prazer de causar sofrimento (sadismo) com o seu reverso passivo (masoquismo) e o prazer visual, ativo ou passivo. Do gozo visual ativo desenvolve-se mais tarde a sede de saber, como do passivo o pendor para as representações artísticas e teatrais. Outras atividades sexuais infantis já incidem na `escolha do objeto’, onde o principal elemento é uma pessoa estranha, a qual deve primordialmente sua importância a considerações relativas ao instinto de conservação. Mas a diferença de sexo ainda não tem neste período infantil papel decisivo; pode-se, pois, atribuir a toda criança, sem injustiça, uma parcial disposição homossexual. Esta vida sexual infantil desordenada, rica mas dissociada, em que cada impulso isolado se entrega à conquista do gozo independentemente dos demais, experimenta uma condensação e organização em duas principais direções, de tal modo que ao fim da puberdade o caráter sexual definitivo está completamente formado. De um lado subordinam-se todos os impulsos ao domínio da zona genital, por meio da qual a vida sexual se coloca em toda a plenitude ao serviço da propagação da espécie, passando a satisfação daqueles impulsos a só ter importância como preparo e estímulo do verdadeiro ato sexual. De outro lado a escolha de objeto repele o auto-erotismo, de maneira que na vida erótica os componentes do instinto sexual só querem satisfazer-se na pessoa amada. Mas nem todos os componentes instintivos originários são admitidos a tomar parte nesta fixação definitiva da vida sexual. Já antes da puberdade, sob o influxo de educação, certos impulsos são submetidos a repressões extremamente enérgicas, ao mesmo passo que surgem forças mentais — o pejo, a repugnância, a moral — que como sentinelas mantêm as aludidas repressões. Chegando na puberdade a maré das necessidades sexuais, encontra nas mencionadas reações psíquicas diques de resistência que lhe conduzem a corrente pelos caminhos chamados normais e lhe impedem reviver os impulsos reprimidos. Os mais profundamente atingidos pela repressão são primeiramente, e sobretudo, os prazeres infantis coprófilos, isto é, os que se relacionam com os excrementos, e, em segundo lugar, os da fixação às pessoas da primitiva escolha de objeto.

Senhores. Um princípio de patologia geral afirma que todo processo evolutivo traz em si os germes de uma disposição patológica e pode ser inibido ou retardado ou desenvolver-se incompletamente. Isto vale para o tão complicado desenvolvimento da função sexual que nem em todos os indivíduos se desenrola sem incidentes que deixem após si ou anormalidade ou disposições a doenças futuras por meio de uma regressão. Pode suceder que nem todos os impulsos parciais se sujeitem à soberania da zona genital; o que ficou independente estabelece o que chamamos perversão e pode substituir a finalidade sexual normal pela sua própria. Segundo já foi dito, acontece freqüentemente que o auto-erotismo não seja completamente superado, como testemunham as multiformes perturbações aparecidas depois. A equivalência primitiva dos sexos como objeto sexual pode conservar-se, e disso se originará no adulto uma tendência homossexual, capaz de chegar em certas circunstâncias até a da homossexualidade exclusiva. Esta série de distúrbios corresponde a entraves diretos no desenvolvimento da função sexual: abrange as perversões e o nada raro infantilismo geral da vida sexual.

A propensão à neurose deve provir por outra maneira de uma perturbação do desenvolvimento sexual. As neuroses são para as perversões o que o negativo é para o positivo. Como nas perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de sintomas; mas aqui eles agem do inconsciente, onde puderam firmar-se apesar da repressão sofrida. A psicanálise nos mostra que a manifestação excessivamente intensa e prematura desses impulsos conduz a uma espécie de fixação parcial — ponto fraco na estrutura da função sexual. Se o exercício da capacidade genética normal encontra no adulto um obstáculo, rompe-se a repressão da fase do desenvolvimento justamente naquele ponto em que se deu a fixação infantil.

É muito possível que me contestem dizendo que nada disto é sexualidade e que emprego a palavra num sentido mais extenso do que estão habituados a entender. Concordo. Mas pode-se perguntar se não têm antes utilizado os presentes o vocábulo em sentido nímio restrito, quando o limitam ao terreno da procriação. Sacrificam assim a compreensão das perversões, do enlaçamento que existe entre estas, a neurose e a vida sexual normal, e os senhores se colocam em situação de não reconhecer, em seu verdadeiro significado, os primórdios, facilmente observáveis, da vida erótica somática e psíquica das crianças. Qualquer que seja a opinião dos presentes sobre o emprego do termo, devem ter sempre em conta que o psicanalista considera a sexualidade naquele sentido amplo a que o conduziu a apreciação da sexualidade infantil.

Volvamos ainda uma vez à evolução sexual da criança. Temos aqui ainda muito que rever, porque nossa atenção foi dirigida mais para as manifestações somáticas da vida sexual do que às psíquicas. A primitiva escolha de objeto feita pela criança e dependente de sua necessidade de amparo exige-nos ainda toda a atenção. Essa escolha dirige-se primeiro a todas as pessoas que lidam com a criança e logo depois especialmente aos genitores. A relação entre criança e pais não é, como a observação direta do menino e posteriormente o exame psicanalítico do adulto concordemente demonstram, absolutamente livre de elementos de excitação sexual. A criança toma ambos os genitores, e particularmente um deles, como objeto de seus desejos eróticos. Em geral o incitamento vem dos próprios pais, cuja ternura possui o mais nítido caráter de atividade sexual, embora inibido em suas finalidades. O pai em regra tem preferência pela filha, a mãe pelo filho: a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da filha. Os sentimentos nascidos destas relações entre pais e filhos e entre um irmão e outros, não são somente de natureza positiva, de ternura, mas também negativos, de hostilidade. O complexo assim formado é destinado a pronta repressão, porém continua a agir do inconsciente com intensidade e persistência. Devemos declarar que suspeitamos represente ele, com seus derivados, o complexo nuclear de cada neurose, e nos predispusemos a encontrá-lo não menos ativo em outros campos da vida mental. O mito do rei Édipo que, tendo matado o pai, tomou a mãe por mulher, é uma manifestação pouco modificada do desejo infantil, contra o qual se levantam mais tarde, como repulsa, as barreiras do incesto. O Hamlet de Shakespeare assenta sobre a mesma base, embora mais velada, do complexo do incesto.

No tempo em que é dominada pelo complexo central ainda não reprimido, a criança dedica aos interesses sexuais notável parte da atividade intelectual. Começa a indagar de onde vêm as criancinhas, e com os dados a seu alcance adivinha das circunstâncias reais mais do que os adultos podem suspeitar. Comumente o que lhe desperta a curiosidade é a ameaça material do aparecimento de um novo irmãozinho, no qual a princípio só vê um competidor. Sob a influência dos impulsos parciais que nela agem, forma até numerosas `teorias sexuais infantis’. Chega a pensar que ambos os sexos possuem órgãos genitais masculinos; que comendo é que se geram crianças; que estas vêm ao mundo pela extremidade dos intestinos; que a cópula é um ato de hostilidade, uma espécie de subjugação. Mas justamente a falta de acabamento de sua constituição sexual e a deficiência de conhecimentos, especialmente no que se refere ao tubo genital feminino, forçam o pequeno investigador a suspender o improfícuo trabalho. O próprio fato dessa investigação e as conseqüentes teorias sexuais infantis são de importância determinante para a formação do caráter da criança e do conteúdo da neurose futura.

É absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa neste primeiro objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança torna-se portanto uma obrigação inelutável, sob pena de graves ameaças para a função social do jovem. Durante o tempo em que a repressão promove a seleção entre os impulsos parciais de ordem sexual, e, mais tarde, quando a influência dos pais, principal fator da repressão, deve abrandar, cabem no trabalho educativo importantes deveres que atualmente, por certo, nem sempre são preenchidos de modo inteligente e livre de críticas.

Senhoras e senhores. Não julguem que com esta dissertação acerca da vida sexual infantil e do desenvolvimento psicossexual da criança nos tenhamos afastado da psicanálise e da terapêutica das perturbações nervosas. Se quiserem, podem definir o tratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo destinado a vencer os resíduos infantis.

 

QUINTA LIÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES, — Com o descobrimento da sexualidade infantil e atribuindo aos componentes eróticos instintivos os sintomas das neuroses, chegamos a algumas fórmulas inesperadas sobre a natureza e tendência destas últimas. Vemos que os indivíduos adoecem quando, por obstáculos exteriores ou ausência de adaptação interna lhes falta na realidade a satisfação das necessidades sexuais. Observamos que então se refugiam na moléstia, para com o auxílio dela encontrar uma satisfação substitutiva. Reconhecemos que os sintomas mórbidos contêm certa parcela da atividade sexual do indivíduo ou sua vida sexual inteira. No distanciar da realidade reconhecemos também a tendência principal e ao mesmo tempo o dano capital do estado patológico. Conjecturamos que a resistência oposta pelos doentes à cura não seja simples, mas composta de vários elementos. Não somente o ego do doente se recusa a desfazer a repressão por meio da qual se esquivou de suas disposições originárias, como também pode o instinto sexual não renunciar à satisfação vicariante enquanto houver dúvida de que a realidade lhe ofereça algo melhor.

A fuga, da realidade insatisfatória para aquilo que pelos danos biológicos que produz chamamos doença, não deixa jamais de proporcionar ao doente um prazer imediato; ela se dá pelo caminho da regressão às primeiras fases da vida sexual a que na época própria não faltou satisfação. Esta regressão mostra-se sob dois aspectos: temporal, porque a libido, na necessidade erótica, volta a fixar-se aos mais remotos estados evolutivos — e formal, porque emprega os meios psíquicos originários e primitivos para manifestação da mesma necessidade. Sob ambos os aspectos a regressão orienta-se para a infância, restabelecendo um estado infantil da vida sexual.

Quanto mais profundamente penetrar-lhes a patogênese das afecções nervosas, mais claramente verão os liames entre as neuroses e outras produções da vida mental do homem, ainda as mais altamente apreciadas. Hão de notar que nós, os homens, com as elevadas aspirações de nossa cultura e sob a pressão das íntimas repressões, achamos a realidade de todo insatisfatória e por isso mantemos uma vida de fantasia onde nos comprazemos em compensar as deficiências da realidade, engendrando realizações de desejos. Nestas fantasias há muito da própria natureza constitucional da personalidade e muito dos sentimentos reprimidos. O homem enérgico e vencedor é aquele que pelo próprio esforço consegue transformar em realidade seus castelos no ar. Quando esse resultado não é atingido, seja por oposição do mundo exterior, seja por fraqueza do indivíduo, este se desprende da realidade, recolhendo-se aonde pode gozar, isto é, ao seu mundo de fantasia, cujo conteúdo, no caso de moléstia, se transforma em sintoma. Em certas condições favoráveis, ainda lhe é possível encontrar outro caminho dessas fantasias para a realidade, em vez de se alhear dela definitivamente pela regressão ao período infantil. Quando a pessoa inimizada com a realidade possui dotes artísticos (psicologicamente ainda enigmáticos) podem suas fantasias transmudar-se não em sintomas senão em criações artísticas; subtrai-se desse modo à neurose e reata as ligações com a realidade. (Cf. Rank, 1907). Quando com a revolta perpétua contra o mundo real faltam ou são insuficientes esses preciosos dons, é absolutamente inevitável que a libido, seguindo a origem da fantasia, chegue ao reavivamento dos desejos infantis, e com isso à neurose, representante, em nossos dias, do claustro aonde costumavam recolher-se todas as pessoas desiludidas da vida ou que se sentiam fracas demais para viver.

Seja-me lícito referir neste ponto o que de mais importante pudemos conseguir pelo estudo psicanalítico dos nervosos, e vem a ser que as neuroses não têm um conteúdo psíquico que, como privilégio deles, não se possa encontrar nos sãos; segundo expressou C. G. Jung, aqueles adoecem pelos mesmos complexos com que lutamos nós, os que temos saúde perfeita. Conforme as circunstâncias de quantidade e da proporção entre as forças em choque, será o resultado da luta a saúde, a neurose ou a sublimação compensadora.

Senhoras e senhores. Não lhes falei até agora sobre a experiência mais importante, que vem confirmar nossa suposição acerca das forças instintivas sexuais da neurose. Todas as vezes que tratamos psicanaliticamente um paciente neurótico, surge nele o estranho fenômeno chamado `transferência’, isto é, o doente consagra ao médico uma série de sentimentos afetuosos, mesclados muitas vezes de hostilidade, não justificados em relações reais e que, pelas suas particularidades, devem provir de antigas fantasias tornadas inconscientes. Aquele trecho da vida sentimental cuja lembrança já não pode evocar, o paciente torna a vivê-lo nas relações com o médico; e só por este ressurgimento na `transferência’ é que o doente se convence da existência e do poder desses sentimentos sexuais inconscientes. Os sintomas, para usar uma comparação química, são os precipitados de anteriores eventos amorosos (no mais amplo sentido) que só na elevada temperatura da transferência podem dissolver-se e transformar-se em outros produtos psíquicos. O médico desempenha nesta reação, conforme a excelente expressão de Ferenczi (1909), o papel de fermento catalítico que atrai para si temporariamente a energia afetiva aos poucos libertada durante o processo. O estudo da transferência pode dar-lhes ainda a chave para compreenderem a sugestão hipnótica de que a princípio nos servimos como meio técnico de esquadrinhar o inconsciente dos doentes. Naquela época o hipnotismo revelava-se um meio terapêutico, mas constituía ao mesmo tempo um empecilho ao conhecimento científico da questão, removendo as resistências psíquicas de um certo território, para amontoá-las como muralha intransponível nos confins do mesmo. Não pensem, além disso, que o fenômeno da transferência, a respeito do qual infelizmente pouco posso dizer aqui, seja produzido pela influência da psicanálise. A transferência surge espontaneamente em todas as relações humanas e de igual modo nas que o doente entretém com o médico; é ela, em geral, o verdadeiro veículo da ação terapêutica, agindo tanto mais fortemente quanto menos se pensa em sua existência. A psicanálise, portanto, não a cria; apenas a desvenda à consciência e dela se apossa a fim de encaminhá-la ao termo desejado. Não posso certamente deixar o assunto da transferência sem frisar que este fenômeno é decisivo não só para o convencimento do doente mas também do médico. Sei que todos os meus adeptos só pela experiência própria sobre a transferência se convenceram da exatidão das minhas afirmações referentes à patogênese das neuroses; posso perfeitamente compreender que ninguém alcance um modo de julgar tão seguro, enquanto não se faça psicanalista e não observe dessa maneira a ação da transferência.

Senhoras e senhores. Do ponto de vista intelectual, devemos levar em conta, julgo eu, que existem especialmente dois obstáculos, dignos de nota, contra a aceitação das idéias psicanalíticas: primeiramente, a falta de hábito de contar com o rigoroso determinismo da vida mental, o qual não conhece exceção, e, em segundo lugar, o desconhecimento das singularidades pelas quais os processos mentais inconscientes se diferenciam dos conscientes que nos são familiares. Uma das formas de oposição mais espalhadas contra o emprego da psicanálise, tanto em doentes como em sãos, se liga ao último desses dois fatores. Teme-se que ela faça mal, tem-se medo de chamar à consciência do doente os impulsos sexuais reprimidos, como se lhe oferecessem então o perigo de aniquilar as mais altas aspirações morais e o privassem das conquistas da civilização. Nota-se que o doente apresenta feridas na vida psíquica, mas receia-se tocar nelas, para não aumentar os sofrimentos. Podemos aceitar esta analogia. Não devemos com efeito tocar em pontos doentes quando estamos certos de que com isso só provocamos dor e nada mais. Todos sabem, porém, que o cirurgião não deixa de examinar, palpando o foco da moléstia, quando tem em vista realizar uma operação que há de proporcionar a cura completa. Ninguém pensa já em incriminá-lo pelos inevitáveis incômodos do exame nem pelos fenômenos pós-operatórios, desde que a operação tenha bom êxito e que, mediante a agravação passageira do mal, o doente alcance a definitiva supressão do estado mórbido. Em relação à psicanálise, as condições são semelhantes; pode ela reivindicar os mesmos direitos que a cirurgia; a exasperação dos incômodos que impõe ao doente durante o tratamento é, uma vez observada a boa técnica, incomparavelmente menor que a infligida pelo cirurgião, e em geral nem deve ser tomada em consideração diante da gravidade da moléstia principal. A destruição do caráter civilizado pelos impulsos instintivos libertados da repressão é um desfecho temido mas absolutamente impossível. É que este temor não leva em conta o que a nossa experiência nos ensinou com toda segurança: que o poder mental e somático de um desejo, desde que se baldou a respectiva repressão, se manifesta com muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a consciência, só se pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente é atalhado por tudo quando, igualmente consciente, se lhe opuser. O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização.

Que acontece geralmente com os desejos inconscientes libertados pela psicanálise, e quais os meios por cujo intermédio pretendemos torná-los inofensivos à vida do indivíduo? Desses meios há vários. O resultado mais freqüente é que os mesmos desejos, já durante o tratamento, são anulados pela ação mental, bem conduzida, dos melhores sentimentos contrários. A repressão é substituída pelo julgamento de condenação efetuado com recursos superiores. Isso é possível porque quase sempre temos de remover tão-somente conseqüências de estados evolutivos anteriores do ego. Como o indivíduo na época se achava ainda incompletamente organizado, não pôde senão reprimir o instinto inutilizável; mas na força e madureza de hoje, pode talvez dominar perfeitamente aquilo que lhe é hostil. Outro desfecho do tratamento psicanalítico é que os impulsos inconscientes, ora descobertos, passam a ter a utilização conveniente que deviam ter encontrado antes, se a evolução não tivesse sido perturbada. A extirpação radical dos desejos infantis não é absolutamente o fim ideal. Por causa das repressões, o neurótico perdeu muitas fontes de energia mental que lhe teriam sido de grande valor na formação do caráter e na luta pela vida. Conhecemos uma solução muito mais conveniente, a chamada `sublimação‘, pela qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual. Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele, está novamente livre o caminho para a sublimação.

Não devemos deixar de contemplar também o terceiro dos possíveis desenlaces do tratamento psicanalítico. Certa parte dos desejos libidinais reprimidos faz jus à satisfação direta e deve alcançá-la na vida. As exigências da sociedade tornam o viver dificílimo para a maioria das criaturas humanas, forçando-as com isso a se afastarem da realidade e dando origem às neuroses, sem que o excesso de coerção sexual traga maiores benefícios à coletividade. Não devemos ensoberbecer-nos tanto, a ponto de perder completamente de vista nossa natureza animal, nem esquecer tampouco que a felicidade individual não deve ser negada pela civilização. A plasticidade dos componentes sexuais, manifesta na capacidade de sublimarem-se, pode ser uma grande tentação a conquistarmos maiores frutos para a sociedade por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa. Mas assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em desviar a totalidade da energia do instinto sexual da sua finalidade própria. Nem o conseguiríamos. E se o cerceamento da sexualidade for exagerado, trará consigo todos os danos duma exploração abusiva.

Não sei se da parte dos senhores considerarão como presunção minha a admoestação com que concluo. Atrevo-me apenas a representar indiretamente a convicção que tenho, narrando-lhes uma anedota já antiga, cuja moralidade os senhores mesmo apreciarão. A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam eles um cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diarimente, até acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu magnificamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por que.

Nós nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem certa ração de aveia não podemos esperar em geral trabalho de animal algum.

Pelo convite e pela atenção com que me honraram, os meus agradecimentos.

 

LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DA SUA INFÂNCIA (1910)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)

 

EINE KINDHEITSERINNERUNG DES LEONARDO DA VINCI

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1910 Leipzig e Viena: Deuticke. P. 71. (Schriften zur angewandten Seelenkunde, Heft 7)

1919 2ª ed. Mesmos editores, P. 76.

1923 2ª ed. Mesmos editores. P. 78.

1925 G.S., 9, 371-454.

1943 G.W., 8, 128-211.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

Leonardo da Vinci

1916 Nova Iorque: Moffat, Yard. P. 130. (Trad. A. A. Brill.)

1922 Londres: Kegan Paul. P. v + 130. (Mesmo tradutor, com prefácio de Ernest Jones.)

1932 Nova Iorque: Dodd Mead. P. 139. (Reedição da tradução acima.)

 

A tradução atual inglesa, com o título modificado para `Leonardo da Vinci and a Memory of his Childhood’, é inteiramente nova, feita por Alan Tyson.

O interesse de Freud por Leonardo datava de longe, conforme o prova uma frase sua, em carta endereçada a Fliess, em 9 de outubro de 1898 (Freud, 1950 a, Carta 98) na qual comentava que `Leonardo, que talvez fosse o mais famoso canhoto da história, jamais tivera um caso de amor’. Este interesse não foi tampouco um interesse passageiro, pois nas respostas de Freud a um `questionário’ sobre seus livros prediletos (1907d) vamos encontrar uma referência a um estudo de Merezhkovsky sobre Leonardo. Mas o verdadeiro estímulo para que escrevesse o presente trabalho parece ter surgido no outono de 1909, na figura de um de seus pacientes, o qual, conforme seu comentário em carta a Jung, em 17 de outubro, parecia ter a mesma constituição de Leonardo sem, no entanto, possuir o seu gênio. Dizia, ainda, que estava esperando receber da Itália um livro sobre a juventude de Leonardo. Este livro era a monografia, por Scognamiglio, mencionada em [1]. Após ler este e outros livros sobre Leonardo, Freud discorreu sobre o assunto perante a Sociedade Psicanalítica de Viena, no dia 1º de dezembro; mas foi somente em princípios de abril de 1910 que terminou de escrever o seu estudo, publicado em fins de maio.

Freud fez uma série de correções e acréscimos nas edições seguintes do livro. Entre eles, podemos ressaltar a pequena nota ao pé da página sobre circuncisão (ver em [2]), o resumo de um trecho de Reitler (ver em [3]) e a extensa citação de um trecho de Pfister (ver em [4]), todos incluídos na edição de 1919, e os comentários sobre o desenho de Londres (ver em [5]), acrescentado em 1923.

Este trabalho de Freud não foi o primeiro em que foram aplicados métodos clínicos da psicanálise no estudo de vultos históricos do passado. Experiências nesse sentido já haviam sido feitas por outros, sobretudo por Sadger, que publicara estudos sobre Conrad Ferdinand Meyer (1908), Lenau (1909) e Kleis (1909). O próprio Freud nunca fizera um estudo biográfico extenso dessa natureza, embora houvesse feito análises fragmentárias de alguns escritores, baseadas em episódios contidos em seus respectivos trabalhos. De fato, em época muito anterior, em 20 de junho de 1898, ele enviara a Fliess um estudo sobre uma historieta de C.F. Meyer, `Die Richterin’, que esclarecia a vida infantil do autor (Freud, 1950a, Carta 91). A monografia sobre Leonardo, no entanto, não foi somente a primeira, mas, também, a última incursão extensa de Freud no terreno da biografia. O livro parece ter sido recebido com uma avalancha de críticas desfavoráveis, que ultrapassaram os limites normais, o que evidentemente justificou a defesa antecipada, feita por Freud, com as observações no começo do capítulo VI (ver em [1]), observações que ainda hoje se aplicam aos autores e críticos de biografias.

É de admirar, no entanto, que até bem pouco tempo nenhum dos críticos deste trabalho se tenha detido naquilo que, sem dúvida alguma, é o seu ponto mais fraco. Uma parte importante é desempenhada pela lembrança ou pela fantasia de Leonardo de ter sido visitado em seu berço por uma ave de rapina. O nome por ele usado para a ave, em suas anotações, foi `nibio‘, que em italiano (em sua forma moderna, `nibbio‘) significa `milhafre’. No entanto, Freud, no decorrer de todo o seu estudo, usa a palavra alemã `Geier‘, que em inglês só pode ser traduzida por `vulture‘ (em português `abutre’).

O equívoco de Freud parece ter-se originado de algumas das traduções alemãs de que se utilizou. Marie Herzfeld (1906), por exemplo, usa a palavra `Geier‘ em uma de suas versões da fantasia do berço, ao invés de `Milan‘, a palavra alemã comum por `milhafre’. Mas, provavelmente, a influência mais importante terá sido a tradução alemã do livro de Merezhkovsky sobre Leonardo, o qual, a julgar pelo exemplar anotado pertencente à biblioteca de Freud, foi a sua grande fonte de informações sobre Leonardo e onde provavelmente, pela primeira vez, veio a ter conhecimento daquela fantasia. Aqui, também, a palavra alemã usada na fantasia do berço foi `Geier‘, embora o próprio Merezhkovsky usasse corretamente a palavra `korshun‘ que, em russo, significa `milhafre’.

Diante desse equívoco, muitos leitores se sentirão inclinados a abandonar o estudo considerando-o sem valor. Será, no entanto, aconselhável examinar a situação mais calmamente e analisar detalhadamente os pontos exatos em que os argumentos e deduções de Freud se invalidam.

Em primeiro lugar, a idéia do `pássaro oculto’ no desenho de Leonardo (ver em [1]) deve ser posta de lado. Se de fato era um pássaro, será um abutre; em nada se parece com um milhafre. Esta `descoberta’, entretanto, não foi feita por Freud e sim por Pfister. Somente foi introduzida na segunda edição da obra, e foi recebida por Freud com grande reserva.

A seguir, e mais importante ainda, vem a associação egípcia. O hieróglifo para a palavra `mãe’, em egípcio `mut‘, representa sem dúvida alguma um abutre e não um milhafre. Gardiner, em sua abalizada Egyptian Grammar (2ª ed., 1950, 469), identifica o pássaro como sendo `Gyps fulvus‘, ou grifo. Deduz-se daí que a teoria de Freud de que o pássaro da fantasia de Leonardo significava sua mãe, não se pode basear no mito egípcio, deixando de ser importante a questão de sua relação com o mito. A fantasia e o mito não parecem ter qualquer relação entre si. Cada um deles, no entanto, quando analisado separadamente, oferece um problema interessante. Por que terão os antigos egípcios associado as idéias de `abutre’ e de `mãe’? Será satisfatória a explicação dos egiptólogos de que seja meramente uma coincidência fonética? Caso contrário, o estudo freudiano sobre mães-deusas andróginas terá valor original, independente de suas relações com o caso de Leonardo. Do mesmo modo, a fantasia de Leonardo sobre o pássaro a visitá-lo no berço e a meter-lhe a cauda na boca continua a exigir uma explicação, mesmo no caso de o pássaro não ser um abutre. E a análise psicológica de Freud relativa a essa fantasia não se desvaloriza com essa correção, perde, apenas, um elemento de apoio.

Portanto, levando-se em conta a pouca importância do estudo do caso egípcio — embora persista o seu valor intrínseco —, o estudo de Freud, em sua essência, não sofre com esse erro: permanece a reconstrução detalhada da vida emotiva de Leonardo, desde os seus primeiros anos; a descrição do conflito entre seus impulsos artísticos e científicos; a análise profunda de sua história psicossexual. Além desses assuntos importantes, o estudo nos apresenta uma quantidade de temas colaterais de igual valor: uma discussão mais geral da natureza e do trabalho da mente de um artista criador; uma descrição da gênese de um tipo especial de homossexualidade; e, o que é especialmente interessante para a história da teoria da psicanálise, o aparecimento, pela primeira vez, do conceito de narcisismo.

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução é da autoria de Walderedo Ismael de Oliveira (Professor Adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DE SUA INFÂNCIA

 

I

QUANDO a pesquisa psiquiátrica, que geralmente se contenta em usar pessoas comuns como material de estudo, se aproxima de alguém que figura entre os expoentes da raça humana, não o faz pelos motivos que tão freqüentemente lhe atribuem os leigos. O seu objetivo não é `denegrir os brilhantes e arrastar na lama os sublimes’, Und das Ernabene in den Staub zu ziehn.(O mundo gosta de denegrir o brilhante e arrastar na lama o sublime.)De um poema de Schiller, `Das Mädchen von Orleans’, inserido como um prólogo extra na edição de 1801 de sua peça Die Jungfrau von Orleans. O poema foi considerado como sendo um ataque ao La Pucelle, de Voltaire.] e não lhe traz satisfação alguma encurtar a distância que separa a perfeição dos grandes da deficiência daqueles que geralmente constituem o objeto de seus estudos. Mas a psiquiatria não pode deixar de considerar como digno de ser compreendido tudo que possa vir a encontrar nesses modelos ilustres e acredita que não existe ninguém tão grande que venha a ser desonrado simplesmente por estar sujeito às leis que regem, igualmente, as atividades normais e as patológicas.

Leonardo da Vinci (1452-1519) foi admirado, até mesmo pelos seus contemporâneos, como um dos maiores homens da renascença italiana. No entanto, já nessa época começara a parecer um enigma, tal como nos parece hoje em dia. Era um gênio universal `cujos traços se podia apenas esboçar mas nunca definir’. Durante sua época, sua influência decisiva foi sobre a pintura, cabendo a nós reconhecer a grandeza do homem de ciências naturais (e engenheiro) que se combinava nele com o artista. Embora tivesse deixado obras-primas de pintura, enquanto suas descobertas científicas permaneciam inéditas e sem uso, o pesquisador que nele existia nunca libertou totalmente o artista durante todo o curso de seu desenvolvimento, limitando-o muitas vezes e talvez, mesmo, chegando a eliminá-lo. Nos últimos momentos de sua vida, segundo palavras que lhe atribui Vasari, acusou-se de haver ofendido Deus e os homens, não cumprindo o seu dever para com sua arte. E ainda que esta história de Vasari não passe de lenda, lenda esta que mesmo antes de sua morte começou a crescer em torno do Mestre misterioso, servirá sempre de testemunho valioso do que pensavam dele os homens de seu tempo.

O que impediu que a personalidade de Leonardo fosse compreendida pelos seus contemporâneos? O motivo, certamente, não terá sido a versatilidade de seus talentos nem a extensão do seu saber, que lhe permitiu apresentar-se na corte do Duque de Milão, Ludovido Sforza, apelidado Il Moro, como um virtuoso numa espécie de alaúde de sua própria invenção, ou escrever a notável carta, ao mesmo duque, na qual se gabava de suas realizações como arquiteto e como engenheiro militar. Na época do renascimento a combinação de tão amplas e diversas habilidades em um mesmo indivíduo eram comuns, embora tenhamos de reconhecer que Leonardo foi um dos exemplos mais brilhantes. Tampouco pertencia ele à classe dos gênios fisicamente mal dotados pela natureza e que por isso mesmo desprezam as formas exteriores da vida e, numa atitude de penosa melancolia, fogem a qualquer contato com seus semelhantes. Ao contrário, era alto e bem proporcionado; suas feições eram belas e invulgar a sua força física; era encantador em suas maneiras e de fácil eloqüência, alegre e amável para com todos. Adorava o belo em tudo o que cercava; apreciava as roupagens suntuosas e valorizava todos os requintes da vida. Num trecho de seu tratado sobre a pintura, que bem revela sua tendência para as diversões, compara a pintura às artes irmãs e descreve os reveses que aguardam o escultor: `Pois seu rosto fica empoeirado pelo mármore, de modo que mais parece um padeiro; fica também todo salpicado de flocos de mármore que fazem com que pareça ter estado na neve — sua casa é cheia de poeira e de lascas de pedra. Quanto ao pintor, seu caso é bem diferente… pois o pintor senta-se em frente ao seu trabalho, cercado de todo o conforto. Veste-se bem e utiliza pincéis delicados e leves, que mergulha em cores lindas. Usa roupas que lhe agradam e sua casa é imaculada e repleta de belos quadros. Muitas vezes trabalha ao som de música ou, então, cercado de homens que lhe lêem trechos de obras lindas e variadas que pode ouvir prazerosamente sem o barulho do martelo e outros ruídos.’

Na verdade, é muito possível que a imagem de um Leonardo extremamente feliz e amante de todos os prazeres não seja verdadeira senão no primeiro período, e o mais longo também, da vida do artista. Mais tarde, quando a queda de Ludovico Moro fê-lo deixar Milão, a cidade que era o centro de suas atividades e onde tinha uma situação assegurada, forçando-o a uma vida instável e de poucos sucessos externos, até encontrar seu último refúgio na França, a centelha de seu gênio poderá ter-se esmaecido e alguma faceta estranha de sua natureza poderá ter vindo à tona. De mais a mais, a transferência de seu interesse pelas artes para sua dedicação à ciência, que se foi acentuando com o decorrer do tempo, deve ter influído para aumentar a distância que o separava de seus contemporâneos. Todos os seus esforços representavam, na opinião deles, o desperdício de um tempo que poderia ser usado para pintar encomendas e fazer fortuna (como fez, por exemplo, o seu condiscípulo Perugino). Pareciam-lhes mero diletantismo e até mesmo tornavam-no suspeito de estar a serviço da `magia negra’. Nós, hoje, podemos compreendê-lo melhor pois através de seus apontamentos sabemos quais eram as artes a que se dedicava. Em uma época em que se começava a substituir a autoridade da Igreja pela da antiguidade e em que não se haviam ainda acostumado com nenhuma forma de pesquisa que não fosse baseada em pressuposições, Leonardo — o precursor e rival de Bacon e de Copérnico, igualando-se a eles em valor — foi por isso, forçosamente, um solitário entre seus contemporâneos. Ao dissecar cadáveres de cavalos e de homens, ao construir máquinas voadoras e ao estudar a nutrição das plantas e suas reações e venenos, certamente distanciou-se enormemente dos comentadores de Aristóteles, aproximando-se muito mais dos alquimistas desprezados, em cujos laboratórios a pesquisa experimental encontrara algum refúgio, pelo menos durante aqueles tempos adversos.

O efeito disso tudo sobre suas pinturas foi o de fazê-lo usar com menos entusiasmo o pincel, pintar cada vez menos, deixando a maioria do que começara inacabado, e não se preocupar com o destino final de suas obras. E foi disso que o acusaram seus contemporâneos. Para eles, sua atitude em face da sua arte foi sempre incompreensível.

 

Posteriormente, muitos dos admiradores de Leonardo tentaram defendê-lo dessa acusação de inconstância. Em sua defesa eles alegavam ser esta, justamente, uma característica dos grandes artistas; até mesmo Miguel Angelo, que era inteiramente dedicado a seu trabalho, deixou muitas de suas obras inacabadas e disso teve tanta culpa quanto Leonardo, em circunstâncias iguais. Alegam, além do mais, que, com referência a alguns quadros de Leonardo, não se trata somente de estarem inacabados, mas sim de os ter ele dado por findos. O que ao leigo pode parecer uma obra-prima nunca chega a representar para o criador uma obra de arte completa mas, apenas, a concretização insatisfatória daquilo que tencionava realizar; ele possui uma tênue visão da perfeição, que tenta sempre reproduzir sem nunca conseguir satisfazer-se. Sobretudo, alegam eles, é um direito do artista ser responsável pelo destino final de suas obras.

Por mais válidas que possam ser essas desculpas, elas não conseguem livrar Leonardo de toda a responsabilidade. A mesma luta penosa frente a um trabalho, a fuga final e a indiferença quanto ao seu destino futuro, tudo isso pode acontecer a muitos outros artistas, mas não há dúvida de que esse comportamento ocorre em Leonardo em grau muito mais elevado. Solmi (1910, 12) menciona a observação de um de seus alunos: `Pareva che ad ogni ora tremasse, quando si poneva a dipingere, e però non diede mai fine ad alcuna cosa cominciata, considerando la grandezza dell’arte, tal que che egli scorgeva errori in quelle cose, che ad altri parevano miracoli.’ Seus últimos quadros, continua ele, a Leda, a Madonna di Sant’Onofrio, Baco e São João Batista moço, ficaram inacabados `come quasi intervenne di tutte le cose sue…’ Lomazzo, que fez uma cópia da Última Ceia, comenta em um soneto a notória incapacidade de Leonardo para ultimar seus trabalhos:

Protogen che il pennel di sue pitture

Non levava, agguaglio in Vinci Divo

Di cui opra non è finita pure.

A vagareza do trabalho de Leonardo era proverbial. Depois de meticulosos estudos preparatórios, levou três anos inteiros para pintar a Última Ceia para o Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão. Um de seus contemporâneos, o contista Matteo Bandelli, que na época era um jovem frade naquele convento, conta que Leonardo costumava muitas vezes subir nos andaimes pela manhã cedo e lá permanecer até o cair da tarde sem nem uma vez descansar o pincel e nem se lembrar de comer ou de beber. Depois, passava dias sem tornar a tocar no trabalho. Muitas vezes passava horas diante de sua obra, somente analisando-a mentalmente. Algumas vezes vinha para o convento diretamente do pátio do castelo de Milão, onde estava trabalhando no modelo para a estátua eqüestre de Francesco Sforza, dava algumas pinceladas em algum dos seus personagens, partindo logo a seguir. Segundo Vasari, levou quatro anos pintando o retrato de Mona Lisa, a mulher do florentino Francesco del Giocondo, sem conseguir dá-lo por terminado. Este fato pode explicar por que este retrato nunca foi entregue a quem o encomendou, ficando em mãos de Leonardo, que o levou consigo para a França. Foi adquirido pelo rei Francisco I, e hoje em dia constitui um dos mais valiosos tesouros do Louvre.

Se compararmos esses relatos sobre o modo de trabalhar de Leonardo com a evidência de inúmeros desenhos e estudos que deixou e que mostram todos os motivos que aparecem em suas pinturas sob os aspectos mais variados, seremos compelidos a rejeitar o conceito de que sua impaciência e sua volubilidade possam, de algum modo, tê-lo influenciado com relação à sua arte. Ao contrário, é possível observar uma extraordinária profundeza e uma riqueza de possibilidades que vêm dificultar qualquer decisão final, ambições enormes, difíceis de satisfazer, e uma inibição na execução definitiva para a qual não encontramos justificativa, mesmo considerando que o artista nunca consegue realizar o seu ideal. A vagareza, que era conspícua no trabalho de Leonardo, apresenta-se como um sintoma dessa inibição e um prenúncio de seu subseqüente desinteresse pela pintura. Isso foi a causa do destino que teve a Última Ceia — destino, aliás, merecido. Leonardo não se podia acostumar ao afresco, que exigia trabalho rápido na aplicação das tintas na superfície ainda úmida e, por isso, preferiu usar as tintas a óleo, de secagem mais lenta, que lhe permitiam protelar o término da obra de acordo com seu humor e lazer. Estas tintas, no entanto, desprendiam-se da superfície onde eram aplicadas e que as isolava do muro. Além do mais, os defeitos próprios do muro e o destino posterior do edifício provavelmente determinaram o que parece ser a ruína inevitável do quadro.

 

O fracasso de uma experiência técnica semelhante parece ter causado também a destruição da Batalha de Anguiari, pintura que ele começou a executar, competindo com Miguel Ângelo, algum tempo depois, em um muro da Sala del Consiglio em Florença, e que também abandonou antes de terminar. Neste caso, no entanto, parece ter havido outro interesse em jogo — o do experimentador — que a princípio terá incentivado o interesse artístico, vindo porém a prejudicar a obra depois.

O caráter de Leonardo, como homem, revelava outros traços incomuns e outras contradições aparentes. Uma certa ociosidade e indiferença são evidentes em sua personalidade. Numa época em que todos procuravam conseguir um campo amplo onde desenvolver suas atividades — para o que necessitavam de uma enérgica agressividade contra os demais — Leonardo se fazia notar pela sua pacatez e pela aversão a qualquer antagonismo ou controvérsia. Era gentil e amável para com todos; recusava-se, dizem, a comer carne por não achar justo matar animais; gostava sobretudo de comprar pássaros no mercado para soltá-los depois. Condenava a guerra e o derramamento de sangue e descrevia o homem como sendo não tanto o rei do mundo animal, e sim a pior das bestas selvagens. Essa feminina delicadeza, no entanto, não impedia que acompanhasse os criminosos a caminho da execução a fim de estudar-lhes as feições distorcidas pelo medo e desenhá-las em seus cadernos. Nem tampouco deixou de desenhar as mais cruéis armas de agressão e de pertencer ao serviço de Cesare Borgia como chefe da engenharia militar. Muitas vezes parecia indiferente ao bem e ao mal ou parecia deixar-se guiar por normas diferentes. Acompanhou Cesare, em posto importante, durante a campanha que deixou Romagna como possessão do mais cruel e desleal dos adversários. Não existe nas anotações de Leonardo um único comentário a respeito dos acontecimentos de sua época ou qualquer demonstração de preocupação com eles. Isto induz a uma comparação com Goethe durante a campanha da França.

Se um estudo biográfico tem realmente como objetivo chegar à compreensão da vida mental de seu herói, não deverá omitir, como acontece com a maioria das biografias — por discrição ou por melindre — sua atividade sexual ou sua individualidade sexual. O que se conhece de Leonardo neste setor é pouco; porém este pouco é repleto de significados. Em uma época que presenciou a luta entre uma sensualidade sem limites e um ascetismo melancólico, Leonardo representava a fria rejeição da sexualidade — coisa que não se deveria esperar de um artista e pintor da beleza feminina. Solmi cita a seguinte frase sua que bem evidencia a sua frigidez: `O ato da procriação e tudo o que a ele se relaciona é de tal maneira abjeto que a humanidade certamente se extinguiria não fora isso um costume já consagrado e não fora o fato de existirem rostos lindos e naturezas sensuais.’ Seus escritos postumamente publicados cuidam tanto dos maiores problemas científicos como também de trivialidades que não merecem tão grande inteligência (uma história natural alegórica, fábulas de animais, brincadeiras, profecias); são tão castos, e mesmo abstinentes, que ainda causariam admiração se encontrados em qualquer trabalho de belles lettres de hoje em dia. Tão resolutamente se abstém de todo o tema sexual que dá a impressão de que somente Eros, o preservador de todas as coisas vivas, fosse assunto indigno para o pesquisador em sua busca da sabedoria. É sabido que freqüentemente grandes artistas se comprazem em dar vazão a suas fantasias por meio de desenhos eróticos e mesmo obscenos. No caso de Leonardo, no entanto, possuímos apenas alguns esboços anatômicos do aparelho genital interno feminino, da posição do embrião no útero e assim por diante.

 

É duvidoso que Leonardo tenha jamais abraçado uma mulher com paixão; ou tenha tido alguma amizade intelectual íntima com uma mulher, como a de Miguel Ângelo com Vittoria Colonna. Quando ainda aprendiz e vivendo em casa de seu mestre Verrocchio, foi-lhe feita e a alguns outros jovens uma acusação de práticas homossexuais proibidas, que terminou em absolvição. Parece que a origem desta acusação foi o fato de ter usado um menino de má fama como modelo. Quando veio a tornar-se mestre, cercou-se de belos rapazes e meninos que tomava como alunos. O último desses alunos, Francesco Melzi, acompanhou-o à França, ficou a seu lado até a sua morte e foi por ele nomeado seu herdeiro. Sem compartilhar a certeza de seus biógrafos modernos, que naturalmente rejeitam a possibilidade da existência de relações sexuais entre ele e seus alunos, considerando-a um insulto grosseiro ao grande homem, achamos muito mais provável que as relações afetuosas de Leonardo para com os jovens que — como era costume entre aprendizes da época — compartilhavam sua vida, não chegassem até relação sexuais. E ainda mais, uma grande atividade sexual não condizia muito com ele.

 

Existe uma única maneira de compreender a peculiaridade dessa vida sexual e emocional com relação à dupla natureza de Leonardo como artista e como pesquisador científico. Entre os seus biógrafos, muitas vezes alheios a qualquer enfoque psicológico, existe, a meu entender, apenas um, Edmondo Solmi, que se aproximou da solução do problema; mas um escritor que escolheu Leonardo como o personagem de uma longa novela histórica, Dmitry Sergeyevich Merezhkovsky, interpretou do mesmo modo esse homem incomum ao retratá-lo e exprimiu claramente o seu ponto de vista, não com palavras simples porém (segundo o estilo dos autores imaginativos) em termos plásticos. A opinião de Solmi sobre Leonardo é a seguinte (1908, 46): `O seu insaciável desejo de tudo compreender em seu redor e de pesquisar com atitude de fria superioridade o segredo mais profundo de toda a perfeição condenou sua obra a permanecer para sempre inacabada.’

Em um ensaio publicado na Conferenze Fiorentine faz-se menção à seguinte frase de Leonardo, que bem representa sua confissão de fé e fornece a chave para a compreensão de sua natureza: `Nessuma cosa si può amare nè odiare, se prima non si ha congnition di quella.’ Isto é: Não se tem o direito de amar ou odiar qualquer coisa da qual não se tenha conhecimento profundo. Leonardo se repete em um trecho do tratado sobre pintura, onde parece estar-se defendendo contra a acusação de ateísmo: `Mas esses críticos desagradáveis melhor fariam se ficassem quietos. Pois é esse o caminho que conduz ao conhecimento do Criador de tantas coisas maravilhosas, e o melhor processo para se vir a amar um Inventor tão grandioso. Pois, na verdade, o grande amor surge do conhecimento profundo do objeto amado e, se este for pouco conhecido, o seu amor por ele será pouco ou nenhum…’

O valor nesses comentários de Leonardo não está em olhá-los como reveladores de fatos psicológicos importantes pois o que eles afirmam é, obviamente, falso e Leonardo era tão sabedor disto quanto nós. Não é verdade que os seres humanos protelam o amor ou o ódio até adquirirem conhecimento mais profundo e maior familiaridade com o objeto desses sentimentos. Ao contrário, amam impulsivamente, movidos por emoções que nada têm a ver com conhecimento e cuja ação, muito ao contrário, poderá ser amortecida pela reflexão e pela observação. Leonardo, portanto, poderia, no máximo, querer dizer que o amor praticado por seres humanos não seria tão desejável e irrepreensível: dever-se-ia amar controlando o sentimento, sujeitando-o à reflexão e somente permitir sua existência quando capaz de resistir à prova do pensamento. Percebemos, assim, que procurou mostrar-nos como ele próprio procedia e demonstrar que todos deveriam tratar o amor e o ódio como ele o fazia.

No seu caso parece que foi isso o que realmente sucedeu. Seus afetos eram controlados e submetidos ao instinto da pesquisa; ele não amava nem odiava, porém se perguntava acerca da origem e do significado daquilo que deveria amar ou odiar. Parecia, assim, forçosamente, indiferente ao bem e ao mal, ao belo e ao horrível. Durante esse trabalho de pesquisa, o amor e o ódio se despiam de suas formas positivas ou negativas e ambos se transformavam apenas em objeto de interesse intelectual. Na verdade, Leonardo não era insensível à paixão; não carecia da centelha sagrada que é direta ou indiretamente a força motora — il primo motore — de qualquer atividade humana. Apenas convertera sua paixão em sede de conhecimento; entregava-se, então, à investigação com a persistência, constância e penetração que derivam da paixão e, ao atingir ao auge de seu trabalho intelectual, isto é, a aquisição do conhecimento, permitia que o afeto há muito reprimido viesse à tona e transbordasse livremente, como se deixa correr a água represada de um rio, após ter sido utilizada. Quando, ao chegar ao clímax de uma descoberta, podia vislumbrar uma vasta porção de todo o conjunto, ele se deixava dominar pela emoção e, em linguagem exaltada, louvava o esplendor da parte da natureza que estudara ou, em sentido religioso, a grandeza do seu Criador. Esse processo de transformação em Leonardo foi bem compreendido por Solmi. Depois de citar uma passagem desse gênero em que Leonardo exalta a sublime lei da natureza (`O mirabile necessità…’), escreveu (1910, 11): `Tale trasfigurazione della scienza della natura in emozione, quasi direi, religiosa, è uno dei tratti caratteristici de’ manoscritti viancini, e si trova cento e cento volte expressa…’

Devido à sua sede insaciável e incansável de conhecimento, Leonardo tem sido chamado o Fausto italiano. Embora longe de discutir a possível transformação do instinto de investigação em prazer de viver — transformação que devemos considerar como fundamental na tragédia de Fausto — cremos poder arriscar a afirmativa de que a evolução de Leonardo se aproxima do pensamento de Spinoza.

A transformação da força psíquica instintiva em várias formas de atividade, da mesma maneira que a transformação das forças físicas, não poderia ser realizada sem prejuízo. O exemplo de Leonardo mostra-nos quantas outras coisas precisam ser consideradas com relação a estes processos. O adiamento do amor até o seu pleno conhecimento constitui um processo artificial que se transforma em uma substituição. De um homem que consegue chegar até o conhecimento não se poderá dizer que ama ou odeia; situa-se além do amor e do ódio. Terá pesquisado em vez de amar. E será, talvez, este o motivo pelo qual a vida de Leonardo foi tão mais pobre de amor do que a de outros grandes homens, e de outros artistas. As tormentosas paixões de uma natureza, que inspiram e que esgotam, paixões que foram, para outros, fonte das experiências mais plenas, parecem não o haver atingido.

Existem ainda outras conseqüências. A investigação substituiu a ação e também a criação. Um homem que começou a vislumbrar a grandeza do universo com todas as suas complexidades e suas leis, esquece facilmente sua própria insignificância. Perdido de admiração e cheio de verdadeira humildade, facilmente esquece ser, ele próprio, uma parte dessas forças ativas e que, de acordo com a medida de sua própria força, terá um caminho aberto diante de si para tentar alterar uma pequena parcela do curso preestabelecido para o mundo — um mundo em que as menores coisas são tão importantes e extraordinárias quanto o são as coisas grandiosas.

As pesquisas de Leonardo visavam, originalmente, como acredita Solmi, o interesse de sua arte; dedicou seus esforços a estudar as particularidades e as leis da luz, das cores, das sombras e da perspectiva, a fim de tornar-se exímio em suas imitações da natureza e transmitir aos outros os seus conhecimentos. É provável que nesse tempo ele já superestimava o valor, para o artista, desses ramos do conhecimento. Sempre seguindo o rumo determinado pelas solicitações de sua pintura, foi levado a estudar os modelos do pintor, animais e plantas, e as proporções do corpo humano; e, depois do conhecimento de sua forma exterior, continuou ainda a estudar-lhe a estrutura interna e as suas funções vitais, coisa que, na verdade, influi também na aparência externa e merece ser considerada nos trabalhos artísticos. E, finalmente, o instinto, que se tornara dominante, carregou-o mais longe ainda fazendo-o ultrapassar as limitações da demanda de sua arte e descobrir as leis gerais da mecânica e adivinhar a história da estratificação e fossilização no vale do Arno, até chegar ao ponto de poder escrever em seu livro, com letras enormes, a sua descoberta: Il sole non si move. Suas investigações estenderam-se praticamente a quase todos os ramos da ciência natural e em cada um ele foi um descobridor ou, pelo menos, um profeta e pioneiro. No entanto, sua ânsia de conhecimento foi sempre dirigida ao mundo exterior; qualquer coisa o afastava da investigação da alma humana. Na `Academia Vinciana’ [ver em [1]], para a qual desenhou alguns emblemas habilmente entrelaçados, pouco lugar havia para a psicologia.

Depois da pesquisa, quando tentou voltar ao seu ponto de partida, o exercício de sua arte, sentiu-se perturbado pelo novo rumo de seus interesses e pela mudança na natureza de sua atividade mental. O que o interessava num quadro era, acima de tudo, um problema; e após o primeiro via inúmeros outros problemas que surgiam, como costumava acontecer com suas intermináveis e infatigáveis investigações sobre a natureza. Não conseguia mais limitar suas exigências, ver a obra de arte isoladamente, separando-a da vasta estrutura da qual sabia que era parte integrante. Depois de esforços exaustivos para exprimir numa obra de arte tudo o que tinha em seu pensamento com relação a ela, era forçado a desistir, deixando-a inacabada ou declarando-a incompleta.

O artista usara o pesquisador para servir à sua arte; agora o servo tornou-se mais forte que o seu senhor e o dominou.

Quando verificamos que na imagem apresentada pelo caráter de uma pessoa um único instinto adquiriu uma força exagerada, como aconteceu com a ânsia de conhecimento em Leonardo, procuramos a explicação numa predisposição especial — embora as suas determinantes (provavelmente orgânicas) nos sejam ainda praticamente desconhecidas. Nossos estudos psicanalíticos dos neuróticos levaram-nos, no entanto, a formular mais duas hipóteses que seria gratificante encontrar confirmadas em cada caso particular. Cremos ser provável que um instinto como aquele, de força excessiva, já era ativo na primeira infância do indivíduo e que a sua supremacia foi estabelecida por impressões ocorridas na vida da criança. Admitimos ainda que este instinto foi reforçado por aquilo que, originariamente, seriam forças sexuais instintivas, de modo que mais tarde poderia vir a substituir uma parcela da vida sexual do indivíduo. Uma pessoa desse tipo poderia, por exemplo, dedicar-se à pesquisa com o mesmo ardor com que uma outra se dedicaria ao seu amor, e seria capaz de investigar em vez de amar. Aventuramo-nos a asseverar que não será somente no caso do instinto de investigação que terá havido uma intensificação sexual mas, também, em muitos outros casos em que um instinto se torne sobremodo intenso.

A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para sua atividade profissional. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados. Aceitamos este processo como verdadeiro sempre que na história da infância de uma pessoa — isto é, na história de seu desenvolvimento psíquico — evidenciamos que, na infância, esse instinto poderoso foi usado para satisfazer interesses sexuais. Constatamos a veracidade deste fato se ocorrer uma atrofia estranha durante a vida sexual da maturidade, como se uma parcela da atividade sexual houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante.

Parece haver uma dificuldade especial na aplicação dessas hipóteses no caso em que o instinto todo-poderoso é o de pesquisa, pois que, sobretudo em se tratando de crianças, há sempre uma relutância em conceder-lhes tanto esse instinto como qualquer interesse sexual que seja digno de atenção. No entanto, essas dificuldades são facilmente solucionáveis. A curiosidade das crianças pequenas se manifesta no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso deixa o adulto perplexo até vir a compreender que todas essas perguntas não passam de meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está usando em substituição àquela única pergunta que nunca faz. Quando ela cresce e se sente mais bem informada, essa forma de curiosidade muitas vezes desaparece repentinamente. A pesquisa psicanalítica oferece-nos a explicação completa mostrando que a maioria das crianças, ou pelo menos as mais inteligentes, atravessam um período de pesquisas sexuais infantis. Ao que sabemos, a curiosidade das crianças nessa idade não é espontânea mas ocasionada pela impressão causada por algum acontecimento importante — pelo nascimento de um irmãozinho ou irmãzinha ou pelo temor de que isso aconteça, baseado em outras experiências externas — e que representa para elas uma ameaça aos seus interesses egoístas. As investigações visam a saber de onde vêm os bebês, exatamente como se a criança estivesse procurando modos e meios de evitar tão indesejável acontecimento. Desse modo, temos verificado, com surpresa, que as crianças se negam a aceitar as poucas informações que se lhes dão — assim, por exemplo, recusam energicamente a fábula da cegonha, com a sua riqueza de significados mitológicos — iniciando sua independência intelectual com esse ato de incredulidade, sentindo-se muitas vezes em franco antagonismo com os adultos e, de fato, jamais lhe perdoam por tê-las decepcionado naquela ocasião omitindo os fatos reais. Elas investigam por conta própria, adivinham a presença do bebê dentro do corpo de sua mãe e, seguindo os impulsos de sua própria sexualidade, teorizam tudo: a origem do bebê, atribuindo-a à comida; o seu nascimento, explicando-o pelas vias intestinais, e sobre a parte obscura que cabe ao pai. Naquela ocasião, já têm uma noção do ato sexual, que lhes parece ser alguma coisa hostil e violenta. Mas como a sua própria constituição sexual ainda não atingiu o ponto de poder fazer bebês, sua investigação sobre o problema da origem dos bebês acaba também sem solução sendo finalmente abandonada. A impressão causada por esse fracasso em sua primeira tentativa de independência intelectual parece ser de caráter duradouro e profundamente depressivo.

Quando o período de pesquisa sexual infantil chega a um final após um período de enérgica repressão sexual, o impulso de pesquisa terá três possíveis diferentes vicissitudes, resultantes de sua relação primitiva com interesses sexuais. No primeiro caso, a pesquisa participa do destino da sexualidade; portanto, a curiosidade permanecerá inibida e a liberdade da atividade intelectual poderá ficar limitada durante todo o decorrer de sua vida, sobretudo porque, logo a seguir, a influência da educação acarretará uma intensa inibição religiosa do pensamento. Este é o tipo caracterizado por uma inibição neurótica. Bem sabemos que o enfraquecimento intelectual adquirido nesse processo representa um fator efetivo na irrupção de uma enfermidade neurótica. Num segundo tipo, o desenvolvimento intelectual é suficientemente forte para resistir à repressão sexual que o domina. Algum tempo após o término das pesquisas sexuais infantis, a inteligência, tendo se tornado mais forte, recorda a antiga associação e ajuda a evitar a repressão sexual, e as suprimidas atividades sexuais de pesquisa emergem do inconsciente sob a forma de uma preocupação pesquisadora compulsiva, naturalmente sob uma forma distorcida e não-livre, mas suficientemente forte para sexualizar o próprio pensamento e colorir as operações intelectuais, com o prazer e a ansiedade característicos dos processos sexuais. Neste caso, a pesquisa torna-se uma atividade sexual, muitas vezes a única, e o sentimento que advém da intelectualização e explicação das coisas substitui a satisfação sexual; mas o caráter interminável das pesquisas infantis é também repetido no fato de que tal preocupação nunca termina e que o sentimento intelectual, tão desejado, de alcançar uma solução, torna-se cada vez mais distante.

Devido a uma predisposição especial, o terceiro tipo, que é o mais raro e mais perfeito, escapa tanto à inibição do pensamento quanto ao pensamento neurótico compulsivo. É verdade que nele também existe a repressão sexual, mas ela não consegue relegar para o inconsciente nenhum componente instintivo do desejo sexual. Em vez disso, a libido escapa ao destino da repressão sendo sublimada desde o começo em curiosidade e ligando-se ao poderoso instinto de pesquisa como forma de se fortalecer. Também nesse caso a pesquisa torna-se, até certo ponto, compulsiva e funciona como substitutivo para a atividade sexual; mas, devido à total diferença nos processos psicológicos subjacentes (sublimação ao invés de um retorno do inconsciente), a qualidade neurótica está ausente; não há ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil e o instinto pode agir livremente a serviço do interesse intelectual. A repressão sexual, que tornou o instinto tão forte ao acrescentar-lhe libido sublimada, ainda influencia o instinto, no sentido de fazê-lo evitar qualquer preocupação com temas sexuais.

Se refletirmos acerca da ocorrência, em Leonardo, desse poderoso instinto de pesquisa e a atrofia de sua vida sexual (restrita ao que poderíamos chamar de homossexualidade ideal [sublimada]), sentir-nos-emos inclinados a proclamá-lo um modelo ideal do nosso terceiro tipo. A essência e o segredo de sua natureza parecem derivar do fato que, depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de interesses sexuais, conseguiu sublimar a maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa. Mas, por certo, não será fácil provar a verdade dessa hipótese. Para fazê-lo, necessitaríamos conhecer alguns pormenores sobre seu desenvolvimento mental durante os primeiros anos de sua infância, e parece absurdo desejar dados dessa natureza quando os pormenores sobre sua vida são tão escassos e tão inseguros, e ainda mais por tratarem de informações sobre circunstâncias que ainda hoje escapam à atenção dos observadores, mesmo em se tratando de pessoas de nossa geração.

Sobre a juventude de Leonardo sabemos muito pouco. Nasceu em 1452 na cidadezinha de Vinci, entre Florença e Empoli; era filho ilegítimo, o que naqueles dias certamente não constituía estima social muito grave; seu pai era Ser Piero da Vinci, um tabelião que descendia de uma família de tabeliães e de fazendeiros que tiraram seu sobrenome da localidade de Vinci; sua mãe foi uma tal Caterina, provavelmente uma camponesa, que mais tarde se casou com outro compatrício de Vinci. Esta mãe não volta a aparecer na história da vida de Leonardo e somente Merezhkovsky, o escritor, acreditou ter encontrado vestígios seus. O único fragmento de informação precisa sobre a infância de Leonardo aparece num documento oficial do ano de 1457; trata-se de um registro de terras, em Florença, para taxação de impostos e que, entre os componentes da família Vinci, menciona Leonardo, de cinco anos de idade e filho ilegítimo de Ser Piero. Do casamento de Ser Piero com uma tal Donna Albiera não houve filhos, o que tornou possível educar o pequeno Leonardo na casa de seu pai. Permaneceu nesta casa até entrar para o estúdio de Andrea del Verrocchio, como aprendiz, não sabemos com que idade. No ano de 1472, o nome de Leonardo já se encontrava na lista dos membros da `Compagnia dei Pittori‘. E isso é tudo.

 

II

Ao que eu saiba, existe apenas um trecho nos apontamentos científicos de Leonardo em que ele insere um fragmento de informação sobre sua infância. Numa passagem acerca do vôo dos abutres ele se interrompe subitamente para descrever uma recordação de sua tenra infância, que lhe veio à memória:

`Parece que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres; pois guardo como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios.’

O que encontramos aqui é, portanto, uma recordação de infância, e sem dúvida de natureza bem estranha. Não só estranha pelo que conta como pela idade a que se refere. Que uma pessoa possa lembrar-se de alguma coisa da época de sua amamentação talvez não seja impossível, porém essa recordação não poderá, certamente, ser considerada real. No entanto, o que a memória de Leonardo afirma — que um abutre abriu a boca da criança com sua cauda — parece tão pouco provável e tão fabuloso, que uma outra hipótese seria talvez mais cabível e poria um fim às duas dificuldades antes mencionadas. Nessa outra versão, a cena do abutre não seria uma recordação de Leonardo, porém uma fantasia que ele criou mais tarde transpondo-a para sua infância.

 

É deste modo que muitas vezes se originam as lembranças da infância. Muito diferentes das lembranças conscientes da idade adulta, elas não se fixam no momento da experiência para mais tarde serem repetidas; somente surgem muito mais tarde, quando a infância já acabou; nesse processo, sofrem alterações e falsificações de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser claramente diferençadas de fantasias. Talvez se possa melhor explica-lhes a natureza comparando-as com o começo da crônica histórica entre os povos da antiguidade. Enquanto as nações eram pequenas e fracas, não cuidavam de escrever a sua história. Os homens lavravam suas terras, lutavam com seus vizinhos defendendo sua sobrevivência e procuravam conquistar mais território e riquezas. Foi uma época de heróis e não de historiadores. Seguiu-se outra época — a da reflexão; os homens sentiram-se ricos e poderosos e agora sentiam uma necessidade de saber de onde tinham vindo e como haviam evoluído. Os relatos históricos, que começaram por anotar os sucesso do presente, voltam-se então para o passado recolhendo lendas e tradições, interpretando os vestígios da antiguidade que subsistiam ainda em costumes e usos, e dessa maneira criou-se uma história do passado. Era inevitável que essa história primitiva fosse a expressão das crenças e desejos do presente, e não a imagem verdadeira do passado; muitas coisas já haviam sido esquecidas enquanto outras haviam sido destorcidas e alguns remanescentes do passado eram interpretados erradamente, de modo a corresponderem às idéias contemporâneas. Além do mais, o motivo que levava as pessoas a escreverem história não era uma curiosidade objetiva mas sim o desejo de influenciar seus contemporâneos, de animá-los e inspirá-los, ou mostrar-lhes um exemplo onde mirar-se. A memória consciente do homem com relação aos acontecimentos do seu período de madureza pode bem ser comparada ao tipo primitivo de relatos da história [uma crônica dos acontecimentos da época]; enquanto as lembranças que ele tem de sua infância correspondem, quanto às suas origens e credibilidade, à história das origens de uma nação compilada mais tarde e sob influências tendenciosas.

 

Portanto, se a história de Leonardo a respeito do abutre que o visitou no berço houver sido apenas uma fantasia de uma época posterior, poderíamos concluir não valer a pena dedicar-lhe tanto tempo. Poderíamos satisfazer-nos em explicá-la a partir da tendência, que ele próprio não esconde, de considerar a sua preocupação com o vôo dos pássaros como sendo uma fatalidade de seu destino. No entanto, menosprezando essa história cometeríamos uma injustiça tão grande como faríamos se desprezássemos o conjunto de lendas, tradições e interpretações encontradas na história primitiva de uma nação. A despeito de todas as distorções e mal-entendidos elas ainda representam a realidade do passado: representam aquilo que um povo constrói com a experiência de seus tempos primitivos e sob a influência de motivos que, poderosos em épocas passadas, ainda se fazem sentir na atualidade; e, se fosse possível, através do conhecimento de todas as forças atuantes, desfazer essas distorções, não haveria dificuldade em desvendar a verdade histórica que se esconde atrás do acervo lendário. Isto se aplica também às lembranças da infância ou às fantasias do indivíduo. O que alguém crê lembrar da infância não pode ser considerado com indiferença; como regra geral, os restos de recordações — que ele próprio não compreende — encobrem valiosos testemunhos dos traços mais importantes de seu desenvolvimento mental. Como hoje contamos nas técnicas da psicanálise com excelentes métodos que nos ajudam a trazer para a superfície esses elementos ocultos, podemos tentar preencher a lacuna que existe na história da vida de Leonardo analisando a sua fantasia infantil. E se ao fazê-lo não ficarmos satisfeitos com o grau de certeza que alcançamos, teremos de consolar-nos lembrando que inúmeros outros estudos sobre esse grande e enigmático homem não tiveram melhor destino.

Se a examinarmos do ponto de vista de um psicanalista, a fantasia de Leonardo acerca do abutre não nos parecerá mais tão estranha. Verificaremos já ter encontrado casos semelhantes em muitas situações diferentes, em sonhos, por exemplo. Aventuramo-nos, assim, a traduzir a linguagem da fantasia em palavras mais facilmente compreensíveis. A tradução nos revelará então um conteúdo erótico. A cauda, `coda‘, é um dos símbolos mais familiares e substitui expressões referentes ao órgão masculino, tanto em italiano como em outras línguas; a situação, na fantasia, de um abutre abrindo a boca da criança e fustigando-a vigorosamente por dentro com a sua cauda, corresponde à idéia de um ato de fellatio, um ato sexual no qual o pênis é introduzido na boca da pessoa envolvida. É estranho que essa fantasia represente uma situação de caráter tão evidentemente passivo; parece-se com certos sonhos e fantasias encontradas em mulheres ou em homossexuais passivos (que desempenham o papel da mulher nas relações sexuais).

Espero que o leitor não se deixe dominar por um sentimento de indignação que o impeça de seguir a psicanálise ao verificar que em sua primitiva aplicação infere uma imperdoável ofensa à memória de um homem grande e puro. Evidentemente tal indignação jamais nos fará conhecer o significado da fantasia de infância de Leonardo. Por sua vez, Leonardo descreveu a fantasia da maneira mais inequívoca e nós não podemos abandonar nossa esperança, ou, melhor ainda, nossa certeza, de que uma fantasia dessa natureza terá de ter algum significado, da mesma forma que qualquer outra criação psíquica: um sonho, uma visão, um delírio. Vamos, portanto, dar uma oportunidade ao trabalho da análise, que na verdade ainda não disse sua última palavra.

A tendência a botar o órgão sexual masculino na boca e a chupá-lo, o que numa sociedade respeitável é considerado uma perversão sexual horrível, encontra-se, no entanto, com muita freqüência entre as mulheres de hoje — e de outros tempos também, como o evidenciam esculturas da antiguidade — e no ardor da paixão isso parece perder completamente o seu caráter repulsivo. Fantasias derivadas dessa tendência têm sido encontradas pelos médicos até mesmo em mulheres que nunca leram a Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing ou outra qualquer fonte de informação que lhes mostrasse a possibilidade de obter satisfação sexual desse modo. Parece que as mulheres não sentem dificuldade em imaginar espontaneamente uma fantasia dessa natureza. Novas pesquisas levam-nos a verificar que essa situação, que a moral condena com tanta severidade, pode ser reduzida a uma origem das mais inocentes. Ela não faz senão reproduzir, de modo diferente, uma situação em que todos nós já nos sentimos confortáveis — quando ainda mamávamos (`essendo io in culla‘) e púnhamos em nossa boca o bico do seio de nossa mãe (ou ama-de-leite) e o sugávamos. A impressão orgânica dessa experiência — a primeira fonte de prazer em nossa vida — permanece, sem dúvida, indelevelmente marcada em nós; e quando mais tarde a criança descobre o úbere da vaca, cuja função é a mesma que a do seio porém que mais se assemelha a um pênis pela sua forma sua posição em baixo da barriga, terá atingido a fase preliminar que mais tarde lhe permitirá formular a fantasia sexual repulsiva.

Compreendemos então porque Leonardo veio a associar a lembrança de sua suposta experiência do abutre com a sua época de lactância. O que a fantasia encerra é meramente uma reminiscência do ato de sugar — ou ser sugado — o seio de sua mãe, uma cena de humana beleza que ele, como tantos outros artistas, esmerou-se em reproduzir em seus quadros ao representar a mãe de Deus e seu Menino. Existe, também, um outro aspecto que ainda não compreendemos e que não devemos perder de vista; essa recordação igualmente importante para ambos os sexos, foi transformada, pelo homem Leonardo, numa fantasia homossexual passiva. Por enquanto deixaremos de lado a relação que possa ter a homossexualidade com a imagem da criança mamando no seio da mãe, lembrando-nos, apenas, que a tradição, na verdade, sempre apontou Leonardo como sendo um homem de sentimentos homossexuais. Neste sentido não tem muita importância para o nosso estudo saber se era justificada, ou não, a acusação feita ao jovem Leonardo (ver a partir de [1]). O que nos leva a classificar alguém como sendo um invertido não é o seu comportamento real porém a sua atitude emocional.

O nosso interesse é despertado, a seguir, por outra faceta incompreensível da fantasia infantil de Leonardo. Interpretamos a fantasia como o ato de ser amamentado por sua mãe e vemos a mãe ser substituída por um abutre. De onde veio esse abutre e por que motivo aparece nesse lugar?

Neste ponto surge em nossa mente um pensamento vindo de tão longe que somos quase tentados a pô-lo de lado. Nos hieróglifos do antigo Egito a mãe era representada pela imagem de um abutre. Os egípcios veneravam também uma Deusa-Mãe que era representada com cabeça de abutre ou, então, com várias cabeças, das quais pelo menos uma era de abutre. O nome dessa deusa era pronunciado Mut. Será que a sua semelhança com a nossa palavra Mutter [mãe] é mera coincidência? Existe, portanto, uma relação real entre abutre e mãe — mas em que é que isto nos pode ajudar? Não podemos esperar que Leonardo tivesse tido conhecimento disto pois sabemos que o primeiro homem que conseguiu decifrar os hieróglifos foi François Champollion, que viveu entre 1790-1832.

Seria interessante procurar saber por que motivo os antigos egípcios vieram a escolher o abutre como símbolo da maternidade. A religião e a civilização dos egípcios sempre constituiu objeto de curiosidade científica, até mesmo entre os gregos e romanos; e mesmo antes de podermos decifrar os monumentos egípcios, dispúnhamos já de muitos elementos de informação sobre eles, tirados dos escritos remanescentes da antiguidade clássica. Alguns desses escritos eram de autores bastante conhecidos, tais como Estrabão, Plutarco e Amiano Marcelino; ao passo que outros são de autores pouco conhecidos e duvidosos quanto às suas origens e datas de composição, tal como a Hieroglyphica de Horapollo Nilous e o livro da sabedoria sacerdotal oriental, que chegou até nós sob o nome do deus Hermes Trismegistos. Por essas fontes ficamos sabendo que o abutre era considerado um símbolo da maternidade, pois acreditavam que somente havia abutres do sexo feminino; não havia, pensavam eles, machos nessa espécie. Uma contraparte dessa limitação a um único sexo existia também na história natural da antiguidade: neste caso, referia-se ao escaravelho, que os egípcios adoravam como divino e do qual julgavam existir somente machos.

Portanto, como poderiam os abutres ser fertilizados se não existiam senão fêmeas? Isto se encontra claramente explicado num trecho de Horapollo. Em certa época essas aves se detêm em meio ao vôo, abrem a sua vagina e são fecundados pelo vento.

Chegamos agora, inesperadamente, a um ponto em que podemos considerar assaz provável aquilo que pouco antes tínhamos de recusar como absurdo. É bem possível que Leonardo conhecesse a fábula científica responsável por ser a figura do abutre usada pelos egípcios para representar a idéia de mãe. Ele lia muito e o seu interesse estendia-se a todos os ramos da literatura e do saber. No Codex Atlanticus encontramos um catálogo de todos os livros que possuía em determinada data e, além disso, conhecemos muitas anotações suas em livros emprestados por amigos; e, se considerarmos o extrato de seus apontamentos feitos por Richter [1883], veremos que a extensão de suas leituras dificilmente será superestimada. Obras antigas sobre história natural figuram em grande número ao lado de livros contemporâneos; e, já naquela época, todos eles tinham sido impressos. Na verdade, Milão era a cidade italiana líder na nova arte de imprimir.

Mais adiante chegamos a uma fone de informação que poderá transformar em certeza a hipótese de ter Leonardo conhecimento da lenda do abutre. O culto editor e comentador de Horapollo escreveu a seguinte nota no texto já mencionado acima [Leemans, 1835, 172]: `Caeterum hanc fabulam de vulturibus cupide amplexi sunt Patres Ecclesiastici, ut ita argumento ex rerum natura petito refutarent eos, qui Virginis partum negabant; itaque apud omnes fere hujus rei mentio occurrit.’

Assim, portanto, a fábula sobre o sexo único dos abutres e sobre seu modo de fecundação estava longe de ser apenas uma anedota, como o caso análogo do escaravelho; tinha sido adotada pelos Padres da Igreja a fim de ser usada como um exemplo tirano da história natural e servir de prova para os que pusessem em dúvida a história sagrada. Se os abutres, segundo os melhores testemunhos da antiguidade, dependiam do vento para serem fertilizados, por que não teria, alguma vez, acontecido a mesma coisa com uma mulher? Já que a fábula do abutre podia ser usada para este fim, `quase todos’ os Padres da Igreja passaram a narrá-la e, portanto, será quase impossível duvidar que Leonardo também a conhecesse, considerando-se o fato de a sua divulgação ter sido feita por meio de tão amplo patrocínio.

Podemos, assim, reconstituir a origem da fantasia de Leonardo com o abutre. Ele provavelmente teria lido em algum compêndio de história natural ou num livro de algum Padre a afirmação de que todos os abutres eram fêmeas e podiam reproduzir-se sem ajuda de qualquer macho; nessa altura ocorreu-lhe uma lembrança que se transformou na fantasia que estamos analisando mas que, na verdade, significava que ele também havia sido uma tal cria de abutre — tinha mãe mas não tinha pai. E essa lembrança se associava — na única maneira que impressões de idade tão distante se podem manifestar — com a reminiscência que podia subsistir do prazer que teria sentido sugando o seio de sua mãe. A insinuação feita pelos Padres da Igreja relativamente à Virgem Sagrada e seu filho — idéia essa cara a todos os artistas — deve ter influído para valorizar sua fantasia e torná-la ainda mais importante. Deste modo podia identificar-se, ele próprio, com o Menino Jesus, o salvador e consolador de todos, e não de uma única mulher.

O nosso objetivo ao analisar uma fantasia da infância é o de separar o elemento mnênico real que ela contém dos motivos posteriores que o modificam e distorcem. No caso de Leonardo, acreditamos conhecer agora o significado real da fantasia: a substituição de sua mãe pelo abutre indica que a criança tinha conhecimento da ausência do pai e se sentia solitário junto à sua mãe. O nascimento ilegítimo de Leonardo concorda com a sua fantasia sobre o abutre; somente debaixo desse aspecto poderia comparar-se a um filhote de abutre. Depois disso, o que de verdadeiro sabemos de sua infância é que, aos cinco anos, ele tinha sido recebido já em casa de seu pai. Não temos, no entanto, a menor indicação de quando isto aconteceu — se foi poucos meses após seu nascimento ou poucas semanas antes de ser feito o levantamento para o registro territorial [ver em [1]]. É nesse ponto que a interpretação da fantasia do abutre interfere: ela parece querer contar-nos que Leonardo passou os primeiros e decisivos anos de sua vida, não ao lado do pai ou da madrasta, mas sim com a sua verdadeira mãe, pobre e abandonada, e assim teve tempo de sentir a ausência de seu pai. Embora ousada, esta conclusão parece ser por demais insignificante para ser apresentada como resultado de nossos estudos psicanalíticos, porém a sua importância aumentará à medida que continuarmos a nossa investigação. A sua veracidade é confirmada quando consideramos as circunstâncias que de fato rodearam a infância de Leonardo. No mesmo ano em que Leonardo nasceu, segundo as fontes oficiais, seu pai, Ser Piero da Vinci, casou-se com Donna Albiera, senhora de boa origem. Foi devido à esterilidade desse casamento que o menino foi recebido em casa de seu pai (ou melhor, em casa de seu avô) — coisa que havia acontecido quando ele se encontrava pelos cinco anos, segundo atesta o documento. Ora, não é comum logo no princípio de um casamento trazer um filho ilegítimo para ser cuidado pela jovem esposa, que ainda espera ser afortunada com o nascimento de seus próprios filhos. Muitos anos de frustração terão certamente decorrido antes da decisão de adoção do filho ilegítimo — que provavelmente já se havia tornado um garoto interessante — para compensar a ausência dos filhos legítimos desejados. A interpretação da fantasia do abutre tornar-se-ia mais fácil se houvessem decorrido uns três anos da vida de Leonardo, talvez mesmo cinco, antes que ele pudesse trocar a figura solitária de sua mãe por uma parelha parental. Já era tarde, no entanto. Nos primeiros três ou quatro anos da vida certas impressões tornam-se fixadas e as formas de reação para com o mundo exterior ficam estabelecidas, e nunca mais perderão a sua importância por meio de outras experiências posteriores.

Se é verdade que as lembranças ininteligíveis da infância de uma pessoa, as fantasias que delas resultam, invariavelmente gravam os elementos mais importantes do desenvolvimento mental, segue-se, então, que o fato confirmado pela fantasia do abutre, isto é, que Leonardo passou os primeiros anos de sua vida sozinho com sua mãe, terá exercido influência decisiva na formação de sua vida interior. Uma conseqüência inevitável dessa situação foi que a criança — que em sua tenra infância enfrentou um problema a mais do que as outras crianças — começou a pensar nesse enigma com uma intensidade toda especial, e, assim, numa tenra idade tornou-se um pesquisador atormentado pela grande pergunta — saber de onde vêm os bebês e o que tem a ver o pai com sua origem. Foi uma vaga suspeita de que suas pesquisas e a história de sua infância estivessem assim ligadas que o fez mais tarde, declarar que tinha sido destinado, desde o começo de sua vida, a investigar o problema do vôo das aves, já que havia sido visitado por um abutre, quando em seu berço. Mais tarde, não será difícil mostrar que sua curiosidade acerca do vôo das aves deriva das pesquisas sexuais da sua infância.

 

III

Na fantasia infantil de Leonardo tomamos o elemento abutre como representante do conteúdo real de sua lembrança, ao passo que o contexto em que o próprio Leonardo coloca sua fantasia esclarece muito a importância que teve esse conteúdo para sua vida posterior. Continuando com o nosso trabalho de interpretação, chegamos agora ao estranho problema de saber por que motivo esse conteúdo foi transformado em uma situação homossexual. A mãe que amamenta a criança, isto é, em cujo seio a criança mama, foi transformada num abutre que põe a sua cauda dentro da boca da criança. Já tivemos ocasião de mostrar [ver em [1]] que, de acordo com as freqüentes substituições de que se serve a linguagem, a `cauda‘ do abutre deve, com toda certeza, significar o genital masculino, um pênis. Mas não podemos compreender como a atividade imaginativa pode ter atribuído justamente a esse pássaro, que representa a mãe, as características da masculinidade; diante desse absurdo ficamos sem saber como reduzir esta criação da fantasia de Leonardo a qualquer significado racional.

No entanto não devemos perder a esperança, sobretudo quando nos lembramos do número enorme de sonhos, aparentemente absurdos, cujo significado já conseguimos desvendar. Existe alguma razão para que uma lembrança da infância nos ofereça maiores dificuldades do que um sonho?

Recordando que não convém analisar uma característica peculiar isoladamente, apressamo-nos em trazer uma outra que nos parece ainda mais estranha.

A deusa egípcia Mut, que tinha cabeça de abutre, figura sem nenhuma característica pessoal, segundo o artigo de Drexler no léxico de Roscher, fundia-se freqüentemente com outras deusas de personalidade mais marcante, tais como Ísis e Hathor, porém conservou, ao mesmo tempo, separados, sua existência e seu culto. Uma característica especial do panteão egípcio era que os deuses individuais não desapareciam quando ocorria um processo de sincretismo. Ao mesmo tempo que sucedia a fusão dos deuses, as divindades individuais continuavam a sua existência independente. Ora, essa deusa-mãe com cabeça de abutre era geralmente representada pelos egípcios com um falo; seu corpo era de mulher, conforme mostram os seus seios, mas possuía também um membro masculino em ereção. Encontramos, portanto, na deusa Mut a mesma combinação de características maternais e masculinas que existem na fantasia de Leonardo sobre o abutre. Deveremos explicar esta coincidência afirmando que Leonardo tomou conhecimento, através da leitura de seus livros [ver em [1]] da natureza andrógina do abutre maternal? Uma tal possibilidade é assaz duvidosa; parece que as fontes às quais tinha acesso não continham nenhuma informação sobre este notável pormenor. Parece mais plausível buscar a explicação dessa coincidência num fator comum operativo, válido para ambos os casos mas desconhecidos para nós até este momento.

A mitologia nos ensina que a constituição andrógina, isto é, uma combinação das características masculinas e femininas, era atributo não só de Mut mas também de outras divindades, tais como Ísis e Hathor — estes, no entanto, talvez pelo fato de possuírem também uma natureza maternal e se confundirem com Mut (Römer, 1903). Ensina-nos, mais, que outras divindades egípcias tais como Neith de Saís — de quem se originou, mais tarde, a Atenéia dos gregos — foram originariamente representadas como andróginas, isto é, como hermafroditas, e que o mesmo se dava com muitos dos deuses gregos, especialmente aqueles que eram associados a Dionísio mas também a Afrodite, que mais tarde se limitou a representar uma deusa feminina do amor. A mitologia explica que o acréscimo de um falo ao corpo feminino é uma representação da força primitiva criadora da natureza, e que todas essas divindades hermafroditas são expressões da idéia de que somente a combinação dos elementos masculino e feminino poderão de fato simbolizar a perfeição divina. Mas nenhuma dessas considerações nos explica o fato psicológico tão estranho de a imaginação humana não vacilar em emprestar a uma imagem que pretende essencialmente representar a mãe um atributo da potência masculina que representa exatamente o oposto de qualquer idéia maternal.

As teorias sexuais infantis explicam-nos isso. Existe uma época em que o genital masculino é compatível com a imagem da mãe. Quando um menino começa a ter curiosidade pelos enigmas da vida sexual, fica dominado pelo interesse que tem pelo seu próprio genital. Passa a considerar essa parte de seu corpo valiosa e importantíssima para ele e crê que ela deve existir nas outras pessoas com as quais ele se acha parecido. Como não pode adivinhar a existência de outra conformação genital igualmente importante, é forçado a forjar a hipótese de que todos os seres humanos, tanto os homens quanto as mulheres, possuem um pênis igual ao seu. Este preconceito se torna de tal maneira imbuído no investigador infantil que não desaparece nem mesmo quando, pela primeira vez, chega a observar o genital das meninas. Sua percepção mostra-lhe que há alguma coisa diferente do que ele possui mas é incapaz de admitir que o conteúdo de sua percepção é que ele não pode encontrar um pênis nas meninas. A sua falta parece-lhe uma coisa sinistra e intolerável e procurando uma solução de compromisso chega à conclusão de que as meninas também possuem um pênis, somente que é ainda muito pequeno; e que, depois, ele crescerá. Mais tarde, quando percebe que isso não acontece, encontra outra explicação: as meninas também tinham um pênis, mas ele foi cortado e em seu lugar ficou apenas uma ferida. Este avanço teórico já implica experiências pessoais de caráter penoso: nesse intervalo o menino já terá ouvido ameaças de lhe cortarem o órgão que tanto preza, caso venha a demonstrar um interesse demasiadamente ostensivo por ele. Sob a influência dessa ameaça de castração, ele agora interpreta de modo diferente o conhecimento adquirido sobre os genitais femininos; daí em diante receará por sua masculinidade e, ao mesmo tempo, menosprezará as infelizes criaturas que já receberam o cruel castigo, conforme ele presume.

Antes de a criança ser dominada pelo complexo de castração — isto é, numa época em que a mulher ainda conserva para ela todo o seu valor — ela começa a exteriorizar um intenso desejo visual, como atividade erótica instintiva. Quer ver os genitais de outras pessoas, a princípio provavelmente para compará-lo com o seu próprio. A atração erótica que sente por sua mãe logo se transforma em um desejo pelo seu órgão genital, que supõe ser um pênis. Com a descoberta que fará, mais tarde, de que as mulheres não possuem pênis, este desejo muitas vezes se transforma no seu oposto, dando origem a um sentimento de repulsa que, na época da puberdade, poderá ser a causa de impotência psíquica, misoginia e homossexualidade permanente. Porém a fixação no objeto antes tão intensamente desejado, o pênis da mulher, deixa traços indeléveis na vida mental da criança, quando esta fase de sua investigação sexual infantil foi particularmente intensa. Um culto fetichista cujo objeto é o pé ou calçado feminino parece tomar o pé como mero símbolo substitutivo do pênis da mulher, outrora tão reverenciado e depois perdido. Sem o saber, os `coupeurs de nattes‘ desempenham o papel de pessoas que executam um ato de castração sobre o órgão genital feminino.

Enquanto as pessoas se mantiverem na atitude ditada pela nossa civilização de desprezo pelos órgãos genitais e pelas funções sexuais, não poderão absolutamente compreender as atividades da sexualidade infantil e provavelmente fugirão ao assunto afirmado ser incrível o que aqui dissemos. Para compreender a vida mental das crianças necessitamos recorrer a analogias encontradas nos tempos primitivos. Para nós, durante muitas gerações os genitais foram sempre as partes `pudendas‘, motivo de vergonha e até mesmo (devido a posterior repressão sexual bem sucedida) de repugnância. Se fizermos um histórico extenso da vida sexual de nossa época e sobretudo das classes que são o sustentáculo da civilização humana, seremos tentados a declarar que é a contragosto que a maioria daqueles que vivem nos dias de hoje obedecem à lei de propagar a espécie; sentem-se, nesse processo, diminuídos em sua dignidade humana. Entre nós, somente a classe menos culta de nossa sociedade difere desse ponto de vista sobre a vida sexual. Para a classe mais alta e refinada, ela constitui uma coisa que se oculta, desde que é considerada culturalmente inferior, e quando se permitem dar-lhe vazão, fazem-no contra a sua consciência. Nos tempos primitivos da raça humana, a concepção era diferente. Dados trabalhosamente compilados por estudiosos da civilização apresentam testemunho irrefutável de que primitivamente os genitais eram o orgulho e a esperança dos seres humanos; eram adorados como deuses e transmitiam a essência divina de suas funções a todas as novas atividades humanas. Como resultado da sublimação de sua natureza básica criaram-se inúmeras divindades: e quando a conexão entre a religião oficial e a atividade sexual se tornou oculta da consciência geral, cultos secretos se dedicavam a conservá-la viva entre um certo número de iniciados. Durante o decurso do desenvolvimento cultural tanta coisa divina e sagrada foi, em última essência, extraída da sexualidade, que o remanescente, quase esgotado, foi desprezado. Mas, dado o caráter indelével de todos os processos mentais, não é de admirar que mesmo as formas mais primitivas do culto genital existissem até bem pouco tempo e que a linguagem, os costumes e as superstições da humanidade de hoje contenham ainda remanescentes de todas as fases deste processo de desenvolvimento.

Notáveis analogias biológicas levam-nos a descobrir que o desenvolvimento mental do indivíduo repete, de modo abreviado, o processo do desenvolvimento humano; e as conclusões a que chegaram as pesquisas psicanalíticas acerca da mente infantil, referentes à importância concedida aos genitais na infância, não são tão inverossímeis. A hipótese infantil de que sua mãe tem um pênis será, portanto, a origem comum de que derivam tanto a mãe-deusa andrógina como a Mut egípcia, e a `coda‘ do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Na verdade, ao classificar de hermafroditas, no sentido médico, essas representações de deuses, cometemos realmente uma impropriedade. Em nenhuma delas existe realmente a combinação dos genitais dos dois sexos — uma combinação que se observa em algumas malformações e que constituem uma deformação repulsiva; a única coisa que acontecia era que o órgão masculino era acrescentado as seios, que são a característica da mãe, como se dá também na representação infantil do corpo materno. Esta forma do corpo materno, criação reverenciada da fantasia primitiva, foi conservada fielmente pela mitologia. Podemos apresentar agora a seguinte interpretação da ênfase dada à cauda do abutre na fantasia de Leonardo: `Isso foi numa época em que a minha curiosidade afetuosa era toda dirigida à minha mãe, e que eu pensava ter ela um órgão genital igual ao meu.’ Constitui mais uma evidência das precoces pesquisas sexuais de Leonardo que, em nossa opinião, tiveram influência decisiva sobre toda a sua vida futura.

Neste ponto, um pouco de reflexão mostrará que não nos satisfaz ainda o modo pelo qual foi explicada a cauda do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Parece haver nela alguma coisa mais que não conseguimos ainda compreender. A mais notável de todas elas foi ter sido transformado o ato de mamar no seio materno em ser amamentado, isto é, em passividade, portanto, numa situação cuja natureza é indubitavelmente homossexual. Quando nos lembramos da probabilidade histórica de Leonardo ter-se comportado em sua vida como uma pessoa emocionalmente homossexual, ocorre-nos perguntar se esta fantasia não indicaria a existência de uma relação causal entre as relações infantis de Leonardo com a mãe e sua posterior homossexualidade manifesta, ainda que ideal [sublimada]. Não nos atreveríamos a inferir qualquer conexão dessa natureza da reminiscência confusa de Leonardo se não soubéssemos, pelos estudos psicanalíticos de pacientes homossexuais, que tal ligação existe de fato e é, na verdade, condição intrínseca e necessária.

Os homossexuais, que em nossos dias se têm defendido energicamente das restrições impostas por lei às suas atividades sexuais, gostam de ser apresentados, por intermédio de seus teóricos defensores, como pertencendo a uma espécie diferente, como um estágio sexual intermediário ou como um `terceiro sexo.’ Eles se declaram homens inatamente compelidos, por disposições orgânicas, a achar prazer com outros homens, o que não conseguem com mulheres. Por maior que seja a nossa vontade, por motivos humanitários, de acatar suas declarações, devemos analisar as suas teorias com reservas, pois foram feitas sem levar em conta a gênese psíquica da homossexualidade. A psicanálise oferece meios para preencher essa lacuna e para testar as afirmativas dos homossexuais. Embora só tenha conseguido colher dados de um número reduzido de pessoas, todas as investigações empreendidas até agora produziram o mesmo resultado surpreendente. Em todos os nossos casos de homossexuais masculinos, os indivíduos haviam tido uma ligação erótica muito intensa com uma mulher, geralmente sua mãe, durante o primeiro período de sua infância, esquecendo depois esse fato; essa ligação havia sido despertada ou encorajada por demasiada ternura por parte da própria mãe, e reforçada posteriormente pelo papel secundário desempenhado pelo pai durante sua infância. Sadger chama atenção para o fato de as mães dos seus pacientes homossexuais serem muitas vezes masculinizadas, mulheres com enérgicos traços de caráter e capazes de deslocar o pai do lugar que lhe corresponde. Observei ocasionalmente a mesma coisa, porém me impressionei mais com os casos em que o pai estava ausente desde o começo, ou abandonara a cena muito cedo, deixando o menino inteiramente sob a influência feminina. Na verdade, parece que a presença de um pai forte asseguraria, no filho, a escolha correta de objeto, ou seja, uma pessoa do sexo oposto.

 

Depois desse estágio preliminar, estabelece-se uma transformação cujo mecanismo conhecemos mas cujas forças determinantes ainda não compreendemos. O amor da criança por sua mãe não pode mais continuar a se desenvolver conscientemente — ele sucumbe à repressão. O menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele transformou-se num homossexual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto-erotismo, pois os meninos que ele agora ama à medida que cresce, são, apenas, figuras substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância — meninos que ele ama da maneira que sua mãe o amava quando era ele uma criança. Encontram seus objetos de amor segundo o modelo do narcisismo, pois Narciso, segundo a lenda grega, era um jovem que preferia sua própria imagem a qualquer outra, e foi assim transformado na bela flor do mesmo nome.

Considerações psicológicas mais profundas justificam a afirmativa de que um homem que assim se torna homossexual, permanece inconscientemente fixado à imagem mnêmica de sua mãe. Reprimindo seu amor à sua mãe, conserva-o em seu inconsciente e daí por diante permanece-lhe fiel. Quando parece perseguir outros rapazes e tornar-se seu amante, na realidade está fugindo das outras mulheres que o possam levar à infidelidade. Em casos individuais, a observação direta tem-nos permitido demonstrar que o homem que dá a impressão de ser sensível somente aos encantos de outros homens sente-se, na verdade, atraído pelas mulheres, como qualquer homem normal; mas em cada ocasião procura transferir imediatamente a excitação provocada pela mulher para um objeto masculino e, desse modo, repete incessantemente o mecanismo pelo qual adquiriu sua homossexualidade.

Estamos longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das teorias adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não são bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema. Aquilo que, por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade poderá ser o resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios psicossexuais; o processo particular que destacamos é, talvez, apenas um entre muitos outros e talvez corresponda a um único tipo de `homossexualidade’. Devemos também admitir que o número de casos de homossexualismo deste tipo, em que podemos reconhecer as causas determinantes assinaladas por nós, é bem maior do que aqueles em que ele de fato se concretiza. Portanto, nós também não podemos negar a influência exercida por fatores constitucionais desconhecidos, aos quais geralmente se atribui toda a homossexualidade. Não teríamos tido motivo algum para entrar na gênese psíquica da forma de homossexualidade que estudamos se não houvesse um forte pressentimento de que Leonardo, cuja fantasia sobre o abutre foi o nosso ponto de partida, fosse, na verdade, um homossexual exatamente desse tipo.

Conhecem-se poucos detalhes sobre o comportamento sexual do grande artista e cientista, mas devemos crer na possibilidade de as afirmativas de seus contemporâneos não terem sido totalmente erradas. À luz de tais afirmativas, portanto, ele nos parece ter sido um homem cujas necessidades e atividades sexuais eram excepcionalmente reduzidas, como se uma aspiração mais elevada o houvesse colocado acima das necessidades animais comuns da humanidade. Haverá sempre uma dúvida quando se trata de saber se ele terá alguma vez procurado a satisfação sexual direta e, se o fez, de que maneira; ou teria ele prescindido completamente de qualquer ato dessa natureza? Achamos justo, no entanto, procurar nele também as forças emocionais que impulsionam outros homens imperativamente à prática do ato sexual; pois não podemos imaginar a vida mental de nenhum ser humano sem que tivesse havido em sua formação o desejo sexual em seu sentido mais amplo — libido — mesmo que tal desejo se tivesse afastado de sua finalidade original, ou fosse refreado, e não chegasse a exercer-se.

Não podemos esperar encontrar em Leonardo senão indícios de inclinação sexual não-transformada. Estes indícios, porém, apontam uma direção que nos faz reconhecer nele um homossexual. Sempre foi notório que ele somente admitia como alunos meninos e rapazes que fossem belos. Tratava-os com gentileza e consideração, tomava conta deles e, quando doentes, cuidava-os ele próprio como uma mãe cuida de seus filhos, e assim como o teria tratado a sua própria mãe. Como os escolhia pela beleza e não pelo talento, nenhum deles — Cesare da Sesto, Boltraffio, Andrea Salaino, Francesco Melzi e outros mais — veio a tornar-se um pintor de importância. Geralmente não eram capazes de se libertar de seu mestre e, após a sua morte, desapareceram sem terem deixado qualquer marca definitiva na história da arte. Quanto a outros, como Luini e Bazzi, chamado Sodoma, cujos trabalhos lhes permitem classificar-se como seus discípulos, talvez jamais os tivesse conhecido pessoalmente.

Ser-nos-á provavelmente alegado que a conduta de Leonardo para com seus alunos nada tem a ver com motivos de ordem sexual, e que portanto não justifica deduções sobre a sua particular inclinação sexual. Respondendo a isso, gostaríamos de demonstrar, com o devido cuidado, que o nosso ponto de vista explica algumas características peculiares do comportamento do artista que de outro modo permaneceriam um mistério. Leonardo mantinha um diário onde fazia anotações com sua letra miúda (escrevendo da direita para a esquerda) somente para seu próprio uso. É digno de nota que naquele diário ele tratava a si próprio na segunda pessoa. `Aprende a multiplicação de raízes com Mestre Luca.’ (Solmi, 1908, 152). `Faze com que o Mestre d’Abacco te ensine a quadratura do círculo.’ (Loc. cit.) Ou, durante uma viagem: `Estou indo para Milão tratar de assuntos referentes a meu jardim… Manda fazer duas malas. Faze com que Boltraffio te mostre o torno e faze-o polir uma pedra. Deixa o livro para Mestre Andrea il Todesco.’ (Ibid., 203) Ou, então, uma resolução de importância bem diversa: `Deves mostrar em teu tratado que a terra é uma estrela, como a lua ou coisa parecida, e assim provar a nobreza de nosso mundo.’ (Herzfeld, 1906, 141.)

No referido diário, que, igual ao que acontece nos diários de outros mortais, muitas vezes comenta em poucas palavras os acontecimentos mais importantes do dia ou mesmo nem os menciona, existem algumas notas que, pela sua estranheza, são relatadas por todos os biógrafos de Leonardo. São apontamentos de pequenas quantias de dinheiro, gastas pelo artista — anotadas com uma precisão minuciosa como se houvessem sido feitas por um austero ou parcimonioso chefe de família. No entanto nada há sobre qualquer extravagância maior ou nenhuma evidência de que fizesse parte de sua natureza anotar sempre suas despesas. Uma destas anotações refere-se a uma capa nova que comprou para seu aluno Andrea Salaino:

Brocado de prata               15 lire     4 soldi

Enfeite de veludo vermelho          9 lire — soldi

Galões                                                            9 soldi

Botões                                                          12 soldi

Outra nota muito detalhada soma todas as despesas que fez por causa do mau caráter e do costume de furtar de outro aluno: `No dia vinte e um de abril de 1940 comecei este livro e recomecei o cavalo. Jacomo procurou-me no dia se Santa Madalena, em 1940: ele tem dez anos.’ (Nota à margem: `gatuno, mentiroso, egoísta, voraz.’) `No segundo dia, mandei cortar-lhe duas camisas, um par de calças e uma jaqueta e, quando separei o dinheiro para o pagamento, ele o roubou de minha bolsa e jamais consegui fazê-lo confessar, embora tivesse certeza disso.’ (Nota à margem: 4 lire…’) O relatório sobre as faltas do menino continua por aí a fora e termina com a demonstração das despesas: `No primeiro ano, uma capa, 2 lire; 6 camisas, 4 lire; 3 jaquetas, 6 lire; 4 pares de meias, 7 lire; etc.’

Os biógrafos de Leonardo não desejam de modo algum procurar a solução dos problemas mentais de seu personagem partindo de suas pequenas fraquezas e peculiaridades; e o comentário que habitualmente fazem sobre essas contas estranhas são para ressaltar-lhes a gentileza e a consideração para com os alunos. Esquecem-se de que o que carece de explicação não é o comportamento de Leonardo mas sim o fato de ter deixado, acerca dele, esses testemunhos. Como é impossível acreditar que seu motivo tenha sido deixar provas de sua bondade, devemos pressupor ter sido outra razão, de natureza afetiva, que o levou a fazer esses apontamentos. Será difícil adivinhar qual o motivo e nós nada poderíamos sugerir, não fora o fato de ter sido encontrado outro apontamento de despesas, entre os papéis de Leonardo, que esclarece essas estranhas notas, tão pouco importantes, sobre as roupas de seus alunos etc.:

 

Despesas com o funeral de Caterina                   27 florins

2 libras de cera                                           18 florins

Para o transporte e levantamento da cruz         12 florins

Essa                                                              4 florins

Carregadores                                                          8 florins

4 padres e 4 sacristãos                                         20 florins

Para soar o sino                                          2 florins

Para os escavadores                                             16 florins

Pela licença - para os funcionários                     1 florim

Total                                                              108 florins

Despesas anteriores

Médico                                                                     4 florins

Açúcar e castiçais                                      2 florins

Total                                                              16 florins

 

Total completo                                                        124 florins

 

O escritor Merezhkovsky é o único que nos diz quem foi essa Caterina. Baseado em duas breves notas ele concluiu que a mãe de Leonardo a pobre camponesa de Vinci, foi a Milão em 1493 para visitar seu filho, que tinha, então, 41 anos; que lá adoeceu e Leonardo a internou num hospital, e quando morreu foi homenageada por ele com esse custoso enterro.

Esta interpretação feita pelo escritos psicólogo não pode ser provada mas é tão verossímil e está tão de acordo com tudo o que conhecemos da atividade emocional de Leonardo, que não posso deixar de aceitá-la como correta. Ele conseguira sujeitar seus sentimentos ao domínio da pesquisa e reprimir a sua livre expressão; mas para si mesmo havia ocasiões em que o que suprimira forçava um meio de expressão. A morte da mãe, a quem tanto amara em certa época, foi uma delas. O que temos diante de nós nesses apontamentos sobre as despesas do enterro é a expressão, sob um disfarce quase irreconhecível, de sua tristeza pela morte da mãe. Ficamos pensando o porquê desse disfarce, e na verdade não o podemos entender se o consideramos um processo mental normal. Porém, processos semelhantes são por nós bem conhecidos nas condições anômalas da neurose, sobretudo na que é conhecida como `neurose obsessiva’. Nestes casos podemos observar como a expressão de sentimentos intensos, que se haviam tornado inconscientes graças à repressão, é deslocada para ações triviais e às vezes mesmo tolas. A expressão desses sentimentos reprimidos foi de tal modo enfraquecida pelas forças que a eles se opõem, que seríamos levados a considerá-los insignificantes; mas a compulsão imperativa que leva a executar esse ato trivial revela a verdadeira força dos impulsos — força que se origina no inconsciente e que a consciência gostaria de negar. Somente comparando esta situação com a que ocorre na neurose obsessiva é que poderemos explicar as anotações de Leonardo relativas às despesas com o enterro de sua mãe. Em seu inconsciente, ele ainda se achava ligado a ela por sentimentos de matiz erótico, como acontecera em sua infância. A oposição que se originou na subseqüente repressão deste amor infantil não lhe permitiu reverenciar sua mãe em seu diário, de modo diferente e melhor. Mas o que emergiu como um compromisso desse conflito neurótico tinha de ser externado; e foi assim que esta anotação veio a fazer parte de seu diário e chegou ao conhecimento da posteridade como coisa ininteligível.

 

Não nos parece muito ousado aplicar às notas sobre as despesas com os alunos aquilo que descobrimos nas notas sobre o enterro. Seriam elas, portanto, outro testemunho dos esparsos remanescentes dos impulsos libidinais de Leonardo, que encontravam assim expressão, de maneira compulsiva e sob forma distorcida. Sob esse ponto de vista, sua mãe e seus alunos, que representavam a imagem de sua própria beleza infantil, haviam sido seus objetos sexuais — tanto quanto a repressão sexual que dominava sua natureza nos permite reconhecê-los — e a compulsão a anotar detalhadamente os seus gastos com eles revelava, desse modo estranho, seus conflitos rudimentares. Assim, pareceria que a vida erótica de Leonardo pertencia realmente ao tipo de homossexualidade cujo desenvolvimento psíquico conseguimos desvendar, e a emergência da situação homossexual em sua fantasia do abutre tornar-se-ia inteligível para nós; porque seu significado era exatamente o que já havíamos afirmado relativamente a esse tipo. Teríamos de traduzi-lo assim: `Foi através dessa relação erótica com minha mãe que me tornei um homossexual.’

 

IV

Ainda não demos por terminada a análise da fantasia do abutre de Leonardo. Com palavras que tão claramente sugerem a descrição de um ato sexual (`e fustigou muitas vezes sua cauda contra meus lábios’), Leonardo acentua a intensidade das relações eróticas entre mãe e filho. Da ligação desta atividade de sua mãe (o abutre) com a dominância da zona bucal, não será difícil adivinhar que a fantasia contém uma outra lembrança. Podemos traduzi-la assim: `Minha mãe beijou-me apaixonada e repetidamente na boca.’ A fantasia surge da lembrança de ser alimentado no seio e de ser beijado pela mãe.

A natureza generosa deu ao artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio dos trabalhos que cria; e estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem, elas também, a origem da emoção que sentem. Será que nada existe na obra de Leonardo para testemunhar aquilo que sua memória conservou como uma das impressões mais fortes de sua infância? Deveríamos certamente poder encontrar alguma coisa. Porém, se considerarmos a transformação enorme que terá de sofrer qualquer impressão vivida por um artista antes que ela venha a ser transformada em uma contribuição para uma obra de arte, teremos de observar um grande comedimento ao proclamarmos a nossa certeza quanto aos resultados a que chagamos em nossas pesquisas; sobretudo com referência a Leonardo. Qualquer pessoa que pense nas pinturas de Leonardo recordar-se-á de um sorriso notável, ao mesmo tempo fascinante e misterioso, que ele punha os lábios de seus modelos femininos. É um sorriso imutável, desenhado em lábios longos e curvos; tornou-se uma característica do seu estilo e o termo `Leonardiano’ tem sido usado para defini-lo. Este sorriso no rosto estranhamente lindo da florentina Mona Lisa del Giocondo tem causado, em todos que o contemplam, os efeitos mais fortes e controvertidos. [Ver Lâmina II.] Este sorriso requer uma interpretação e de fato tem merecido as mais variadas explicações sem que nenhuma ainda tenha conseguido satisfazer. `Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre la tête a tous ceux qui parlent d’elle, après l’avoir longtemps regardée.’

Muther (1909, 1, 314) escreveu: `O que sobretudo enfeitiça o espectador é a magia demoníaca desse sorriso. Centenas de poetas e escritores já escreveram sobre essa mulher que ora parece sorrir-nos tão sedutoramente, ora parece fitar o espaço, friamente e sem alma. E ninguém jamais decifrou o enigma de seu sorriso nem leu o significado de seus pensamentos. Tudo, até mesmo a paisagem, assemelha-se a um sonho e parece sofrer a influência opressiva da sensualidade.’

A idéia de que dois elementos diferentes estejam combinados no sorriso de Mona Lisa já foi suscitada por diversos de seus críticos. Muitos deles vêem na expressão da linda florentina a mais perfeita representação dos contrastes que dominam a vida erótica das mulheres; o contraste entre a reserva e a sedução, e entre a ternura mais delicada e uma sensualidade implacavelmente exigente, destruindo os homens como se fossem seres estranhos. Este é o ponto de vista de Müntz (1899, 417): `On sait quelle énigme indéchiffrable et passionnante Monna Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux admirateurs pressés devante elle. Jamais artiste (j’emprunte la plume du délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay) “a-t-il traduit ainsi l’essence même de la féminité: tendresse et coquetterie, pudeur et sourde volupté, tout le mystère d’un coeur qui se réserve, d’un cerveau qui réflechit, d’une personnalité que se garde et ne livre d’elle-même que son rayonnement…” O escritor italiano Angelo Conti (1910, 93) descreve que viu no Louvre o retrato iluminado por um raio de sol. `La donna sorrideva in una calma regale: i suoi istinti di conquista, di ferocia, tutta l’eredità della specie, la volontà della seduzionne e dell’agguato, la grazia del inganno, la bontà che cela un proposito crudele, tutto ciò appariva alternativamente e scompariva dietro il velo ridente e si fondeva nel poeme del suo sorriso… Buona e malvagia, crudele e compassionevole, graziosa e felina, ella rideva…’

Leonardo passou quatro anos pintando esse retrato, talvez de 1503 até 1507, durante a sua segunda permanência em Florença, época em que tinha mais de cinqüenta anos. Segundo Vasari, durante o trabalho Leonardo empregou todos os meios ao seu alcance para divertir essa senhora e conservar-lhe no semblante o sorriso famoso. No seu estado atual, o quadro conserva pouco de todos os detalhes delicados que seu pincel, na época, reproduziu sobre a tela; enquanto foi pintado, foi proclamado como sendo o mais elevado que a arte poderia realizar, porém é sabido que o próprio Leonardo não se satisfez com o resultado; declarando que estava incompleto não o entregou à pessoa que o encomendara, levou-o consigo para a França, onde o seu patrono, Francisco I, o adquiriu para o Louvre.

Deixando sem solução a enigmática expressão no rosto de Mona Lisa, vamos anotar o fato inegável de que o seu sorriso, que tanto fascina todos os que têm contemplado durante esses quatro séculos, exerceu também poderoso fascínio sobre Leonardo. Dessa data em diante, o sorriso cativante reaparece em todos os seus quadros assim como nos de seus alunos. Sendo a Mona Lisa de Leonardo um retrato, não cremos que lhe tivesse imprimido, por sua própria inspiração, característica tão expressiva à sua face — característica que não lhe pertence realmente. Torna-se, portanto, inegável concluir que ele encontrou esse sorriso em seu modelo e ficou por ele tão enfeitiçado que daí por diante reproduziu-o em todas as criações livres de sua fantasia. Esta interpretação, que não poderá ser considerada forçada, é defendida, por exemplo, por Konstantinowa (1907, 44):

`Durante o longo período em que o artista trabalhou no retrato de Mona Lisa del Giocondo, estudou tão apaixonadamente os detalhes mais sutis e delicados deste rosto que passou a reproduzir os seus traços — sobretudo o seu misterioso sorriso e estranho olhar — em todos os rostos que veio a pintar e desenhar depois. Até no retrato de São João Batista, no Louvre, pode-se perceber esta expressão facial, tão peculiar da Gioconda; mas é sobretudo no rosto da Virgem Maria, no quadro da “Madona e o Menino com Sant’Ana”, que mais claramente o reconhecemos.’ [Ver o Frontispício deste volume.]

No entanto, esta situação pode ter ocorrido de outro modo. A necessidade de um motivo mais profundo para explicar a atração tão forte que o sorriso da Gioconda exerceu sobre o artista, a ponto de nunca mais vir a libertar-se dele, tem sido mantida por mais de um de seus biógrafos. Walter Pater, que vê no retrato de Mona Lisa `uma presença… expressiva daquilo que os homens sempre ambicionaram, durante milênios, possuir’ [1873, 118], e que descreve com muita sensibilidade o `sorriso distante, sempre sombreado por algum triste presságio, que transparece em toda a obra de Leonardo` [ibid., 117], fornece-nos um outro dado quando declara (loc. cit.):

`Além do mais, o quadro é um retrato. Desde a infância, vemos esta imagem vir-se definindo na contextura de seus sonhos; e, a não ser por algum testemunho histórico expresso, poderemos supor que essa foi sua mulher ideal, finalmente concretizada e finalmente possuída…’

Marie Herzfeld (1906, 88) sem dúvida nenhuma participa de opinião muito semelhante quando declara que na Mona Lisa Leonardo encontrou o seu próprio eu (self), e por isso conseguiu transferir tanta coisa de sua própria natureza para o retrato `cujas feições jaziam há muito tempo, em misteriosa harmonia, na mente de Leonardo’,

Vamos tentar explicar melhor o que aqui sugerimos. Poderia ser que Leonardo tivesse ficado fascinado pelo sorriso de Mona Lisa, por lhe ter despertado alguma coisa que há muito habitava sua mente — provavelmente uma antiga lembrança. Esta lembrança era de suficiente importância pois, uma vez despertada, nunca mais dela se libertou; sentia-se sempre forçado a dar-lhe novas formas de expressão. A afirmativa de Pater, segundo a qual podemos ver desde a infância um rosto como o de Mona Lisa esboçar-se na contextura de seus sonhos, parece convincente e merece ser acatada.

Vasari conta que `teste di femmine, che ridono’ foi tema tratado em seus primeiros ensaios artísticos. Este trecho, do qual não necessitamos duvidar, já que nada pretende provar, está transcrito mais extensamente na versão de Schorn (19843, 3, 6): `Em sua juventude, modelou em barro algumas cabeças sorridentes de mulher, reproduzidas depois em gesso; e algumas cabeças de crianças, lindas como se houvessem sido modeladas por mãos de um mestre…’

Ficamos sabendo, assim, que ele começou sua carreira artística reproduzindo duas espécies de objeto; e estes infalivelmente nos fazem lembrar os dois tipos de objetos sexuais que deduzimos da análise de sua fantasia sobre o abutre. Se as lindas cabeças de criança eram a reprodução da sua própria pessoa, como ele era na sua infância, então as mulheres sorridentes nada mais seriam senão a reprodução de sua mãe Caterina, e começamos a suspeitar a possibilidade de que este misterioso sorriso era o de sua mãe — sorriso que ele perdera e que muito o fascinou, quando novamente o encontrou na dama florentina.

O quadro de Leonardo mais próximo da Mona Lisa em ordem cronológica é o chamado `Sant’Ana com Dois Outros’, ou seja, Sant’Ana com a Madona e o Menino. [Ver Frontispício.] Nele o sorriso leonardiano aparece evidente e lindo nas fisionomias de ambas as mulheres. Não é possível descobrir quanto tempo antes ou depois da Mona Lisa, Leonardo começou a pintar o quadro. Como os dois trabalhos o ocuparam durante anos, penso que podemos afirmar que o artista trabalhava em ambos ao mesmo tempo. Estaria mais de acordo com a nossa teoria admitirmos que foi a intensidade da concentração de Leonardo nas feições da Mona Lisa que o estimulou a criar a composição de Sant’Ana como produto de sua imaginação. Porque, se é verdade que o sorriso de Gioconda lhe despertava recordações de sua mãe, fácil será compreender como isso o levou a criar uma glorificação da maternidade, e a restituir à sua mãe o sorriso que encontrara na nobre dama. Podemos, portanto, transferir o nosso centro de interesse do retrato da Mona Lisa para este outro quadro — igualmente belo, e que hoje também se encontra no Louvre.

Sant’Ana com sua filha e o neto é assunto que raramente foi tratado na pintura italiana. De qualquer modo, a composição de Leonardo difere enormemente de qualquer outra versão conhecida, segundo escreve Muther (1909, 1, 309):

`Alguns artistas como Hans Fries, Holbein, o velho, e Girolamo dai Libri, representaram Ana sentada ao lado de Maria, colocando o Menino entre as duas. Outros, como Jakob Cornelisz em seu quadro de Berlim, pintaram aquilo que realmente se poderia chamar de “Sant’Ana com Dois Outros”, em outras palavras, eles a representaram sustentando nos braços a figura menor de Maria, que por sua vez carrega no colo a figura menor ainda de Cristo menino. No quadro de Leonardo, Maria está sentada no colo de sua mãe e se debruça, com os braços estendidos para o Menino que brinca com um cordeirinho, talvez o tratando com pouca delicadeza. A avó apóia na cintura o braço visível e contempla o par com um sorriso de felicidade. A composição, na verdade, não aparenta muita naturalidade. O sorriso que paira nos lábios de ambas as mulheres, embora seja inegavelmente o mesmo da Mona Lisa, perdeu seu caráter estranho e misterioso; o que ele exprime aqui é sentimento íntimo e serena felicidade.

Depois de estudarmos o quadro por algum tempo, ocorre-nos subitamente a idéia de que somente Leonardo o poderia ter pintado assim como somente ele poderia ter criado a fantasia do abutre. O quadro contém a síntese da história de sua infância: os seus detalhes devem ser explicados relembrando as impressões mais pessoais da vida de Leonardo. Na casa de seu pai, ele encontrou não somente a sua boa madrasta Donna Albiera mas também a sua avó, mãe de seu pai, Monna Lucia, que — assim o supomos — foi para ele tão carinhosa quanto geralmente o são os avós. Essas circunstâncias podem muito bem ter influído para que representasse num quadro a imagem da criança vigiada pela mãe e pela avó. Outra característica evidente desse quadro é ainda mais significativa. Sant’Ana, a mãe de Maria e a avó do Menino, que deveria ser uma matrona, é representada como um pouco mais madura e mais séria do que a Virgem Maria, porém ainda uma mulher jovem e de inalterável beleza. Na verdade, Leonardo deu ao Menino duas mães; uma que lhe estende os braços e outra no segundo plano; ambas deixando transparecer o sorriso bem-aventurado da alegria maternal. Essa característica do retrato sempre chamou a atenção daqueles que o descrevera. Muther, por exemplo, é de opinião que Leonardo nunca procurava pintar a velhice, com suas marcas e rugas, e por esse motivo pintou Ana também como uma mulher de radiante beleza. Mas será que nos poderemos satisfazer com esta explicação? Outros tem negado haver qualquer similaridade de idade entre mãe e filha. Mas a explicação dada por Muther mostra bem que a impressão que se tem de que Sant’Ana foi pintada mais jovem provém mesmo do quadro e não constitui nenhuma invenção para justificar objetivo posterior.

 

A infância de Leonardo teve característica igual à que o quadro reproduz. Teve duas mães: primeiro, sua verdadeira mãe Caterina, de quem o separaram quando tinha entre três e cinco anos; e depois uma madrasta moça e carinhosa, Donna Albiera, esposa de seu pai. Pela combinação dessa situação de sua infância com a outra que mencionamos acima (a presença da mãe e da avó) e pela composição que fez reunindo os três personagens numa unidade, o desenho de `Sant’Ana com Dois Outros’ veio a concretizar-se para ele. A figura maternal mais afastada do Menino — a avó — corresponde à primeira e verdadeira mãe, Caterina, tanto em sua aparência quanto em sua relação especial com o menino. O artista parece ter usado o sorriso bem-aventurado da Sant’Ana para negar e encobrir a inveja que sentiu a pobre mulher quando foi obrigada a entregar o filho à sua rival nascida em berço mais nobre, assim como já lhe havia outrora entregado o pai.

Encontramos também uma confirmação, em outro trabalho de Leonardo, de nossa suspeita de que o sorriso de Mona Lisa del Giocondo havia despertado nele, já homem feito, a lembrança da mãe que tivera em sua primeira infância. Dessa época em diante, as madonas e as senhoras aristocráticas dos quadros italianos passaram a ser pintadas com a humilde inclinação da cabeça e sorrindo o estranho e bem-aventurado sorriso de Caterina, a pobre camponesa que dera à luz o magnífico filho cujo destino seria pintar, pesquisar e sofrer.

Se Leonardo teve sucesso ao reproduzir nas feições de Mona Lisa a dupla significação contida naquele sorriso, a promessa de ternura infinita e ao mesmo tempo a sinistra ameaça (segundo a frase de Pater [ver em [1]]), manteve-se também fiel ao conteúdo de sua lembrança mais distante. Porque a ternura de sua mãe foi-lhe fatal; determinou o seu destino e as privações que o mundo lhe reservava. A violência das carícias evidentes em sua fantasia sobre o abutre eram muito naturais. No seu amor pelo filho, a pobre mãe abandonada procurava dar expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia por outras mais. Tinha necessidade de fazê-lo, não só para consolar-se de não ter marido mas também para compensar junto ao filho a ausência de um pai para acarinhá-lo. Assim, como todas as mães frustradas, substitui o marido pelo filho pequeno, e pelo precoce amadurecimento de seu erotismo privou-o de uma parte de sua masculinidade. O amor da mãe pela criança que ela mesma amamenta e cuida é muito mais profundo que o que sente, mais tarde, pela criança em seu período de crescimento. Sua natureza é a de uma relação amorosa plenamente satisfatória, que não somente gratifica todos os desejos mentais mas também todas as necessidades físicas; e se isto representa uma das formas possíveis da felicidade humana, em parte será devido à possibilidade que oferece de satisfazer, sem reprovação, desejos impulsivos há muito reprimidos e que podem ser considerados como perversos. Nos casais jovens e mais felizes, o pai se dá conta de que o bebê, sobretudo se for um menino, transforma-se em seu rival, o que vem a constituir o ponto de partida de um antagonismo para com o favorito, que está profundamente arraigado no inconsciente.

Quando em pleno vigor de sua mocidade, Leonardo reencontrou o sorriso de beatitude e enlevo que vira pairar nos lábios de sua mãe quando o acariciava, ele já tinha estado tempo demais sob o domínio da inibição para que pudesse voltar a desejar tais carícias dos lábios de outras mulheres. Ele porém se tornara pintor e, portanto, lutou para reproduzir com seu pincel o sorriso famoso em todos os seus quadros (tanto nos que ele próprio pintou como nos que incumbia seus alunos de fazer sob sua orientação) — assim foi com a Leda, com o João Batista e com o Baco. Os dois últimos são variantes do mesmo tipo. `Leonardo transformou o comedor de gafanhotos da Bíblia’, disse Muther (1909, 1, 314), `num Baco, ou melhor, num jovem Apolo, que, com um sorriso misterioso nos lábios e com suas pernas macias cruzadas, fita-nos com olhos que nos perturbam os sentidos.’ Esses quadros transmitem um misticismo cujo segredo ninguém ousa desvendar; o máximo que poderíamos tentar seria determinar a sua relação com as criações anteriores de Leonardo. As figuras ainda são andróginas mas não mais no sentido da fantasia do abutre. São jovens lindos, de uma delicadeza feminina e de formas afeminadas; já não abaixam os olhos mas contemplam-nos com uma expressão de misterioso triunfo como se conhecessem uma grande felicidade cujo segredo devessem calar. O sorriso fascinante e familiar leva-nos a crer tratar-se de um segredo de amor.

É possível que nestas figuras Leonardo tenha negado a infelicidade de sua vida erótica e que tenha triunfado sobre ela em sua arte, proclamando os desejos do menino apaixonado pela sua mãe, com um sentimento de realização nessa união bem-aventurada das naturezas masculina e feminina.

 

V

Entre as anotações feitas por Leonardo em seu diário, existe uma que chama a atenção do leitor pela importância do seu significado e também por um pequeno erro na sua redação.

Ele escreveu, em julho de 1504:

`Adì 9 de Luglio 1504 mercoledi a ore morì Ser Piero da Vinci, notalio al palazzo del Potestà, mio padre, a ore 7. Era d’età d’anni 80 lascio 10 figlioli maschi e 2 femmine.’

Como vemos, a nota refere-se à morte do pai de Leonardo. O pequeno erro de redação consiste na repetição da hora do dia `a ore 7’ [às 7 horas], que é dada duas vezes, deixando a impressão de que Leonardo, ao chegar ao fim da frase, esqueceu já ter mencionado isto no início. É apenas um pequeno detalhe e ninguém, a não ser um psicanalista, lhe daria maior importância. Nem ele próprio talvez o notasse, e se alguém lhe chamasse atenção poderia alegar ser coisa que acontece a qualquer um num momento de distração, ou de grande emoção, e que isto nada significava.

O psicanalista pensa de maneira diferente. Para ele não há detalhe, por mais insignificante que pareça, que não possa revelar um processo mental oculto. O analista conhece, há muito tempo, a importância de tais casos de esquecimento ou de repetição, e sabe que é justamente essa `distração’ que permite a libertação de impulsos reprimidos.

Nós diríamos que esta nota como as contas referentes ao enterro de Caterina [ver em [1]] e às despesas de seus alunos [ver em [2]], representam casos em que Leonardo não conseguiu suprimir o seu afeto, de onde alguma coisa, há muito reprimida, encontrou uma forma destorcida de expressão. Até mesmo a forma é semelhante: encontramos a mesma precisão pedante e a mesma importância dada aos números.

Casos de repetição desta natureza são por nós chamados de perseveração. É um meio excelente para revelar a nuance afetiva. Faz-nos lembrar, por exemplo, as palavras de São Pedro no Paraíso de Dante, contra o seu indigno representante na terra:

 

Quegli ch’usurpa in terra il luogo mio,

Il luogo mio, il luogo mio, che vaca

Nella presenza del Figliuol di Dio,

Fato há del cimiterio mio cloaca.

Se não existisse uma inibição afetiva em Leonardo, a anotação feita em seu diário teria sido redigida mais ou menos assim: `Hoje às 7 horas meu pai morreu — Ser Piero da Vinci, meu pobre pai!’ Porém o deslocamento da perseveração para um detalhe tão indiferente no relato de sua morte, a hora em que ele faleceu, esvazia a anotação de qualquer emoção e deixa transparecer a existência de algumas coisa que se deseja ocultar ou suprimir.

Ser Piero da Vinci, tabelião e descendente de tabeliães, era homem dotado de grande energia e que veio a tornar-se próspero e estimado. Casou-se quatro vezes. Suas duas primeiras mulheres morreram sem lhe deixar filhos e foi somente a sua terceira mulher que o presenteou com seu primeiro filho legítimo, em 1476, época em que Leonardo já atingira a idade de 24 anos, e de há muito deixara a casa do pai para viver no estúdio de seu mestre Verrocchio. Com a quarta e última mulher, com quem se casou já na casa dos cinqüenta, teve mais nove filhos e duas filhas.

É fora de dúvida que seu pai exerceu também influência importante no desenvolvimento psicossexual de Leonardo, não somente de modo negativo por sua ausência durante sua primeira infância, mas também de modo direto, por sua presença no período posterior da infância de Leonardo. Quem deseja a própria mãe na infância não poderá evitar o desejo de substituir o pai e de identificar-se com ele na imaginação, e depois constituir como tarefa de sua vida obter ascendência sobre ele. Quando Leonardo foi recebido em casa de seu avô, antes de ter completado cinco anos, sua jovem madrasta Albiera terá certamente substituído sua mãe em sua afeição, e ele terá sentido o que pode ser chamado de relações normais de rivalidade com seu pai. Como sabemos, uma decisão no sentido da homossexualidade somente se concretiza nos anos da puberdade. Quando esta decisão ocorreu no caso de Leonardo, sua identificação com o pai perdeu toda a significação para sua vida sexual mas manteve-se presente em outras esferas de atividade não-erótica. Sabemos que gostava de luxo e de roupagens finas, e que possuía criados e cavalos, embora, segundo Vasari, `pouco possuísse e pouco produzisse.’ A responsabilidade por estes gostos não deve ser atribuída somente à sua sensibilidade ao belo; reconhecemos neles também uma compulsão a copiar e ultrapassar seu pai. Seu pai fora um grande cavalheiro para a pobre camponesa, e seu filho por isso nunca deixou de sentir o desejo de representar também o grande cavalheiro — o impulso de `to out-herod Herod’, — e mostrar ao pai o que vinha a ser um verdadeiro gentil-homem.

Não há dúvida de que o artista criador se considera como o pai de sua obra. Para Leonardo, o reflexo de sua identificação com o pai foi prejudicial para sua pintura. Criava a obra de arte e depois dela se desinteressava, do mesmo modo que seu pai se desinteressara por ele. O cuidado que seu pai demonstrou, mais tarde, em nada conseguiu alterar esta compulsão; porque a compulsão derivada das impressões dos primeiros anos de infância, e o que foi reprimido e se tornou inconsciente, não pode ser corrigido pelas experências futuras.

Na época da Renascença — e também muito depois — todo artista dependia de algum nobre de alta linhagem, um benfeitor e patrono, que lhe dava encomendas e de cujas mãos dependia a sua fortuna. Leonardo encontrou seu patrono em Ludovico Sforza, chamado II Moro, um homem ambicioso e amante do esplendor, diplomata astuto, porém de caráter inconsciente e em quem não se podia confiar. Na sua corte em Milão, Leonardo passou o período mais brilhante de sua vida, a seu serviço seu poder criador atingiu o mais alto grau de realização, como o atestam a Última Ceia e a estátua eqüestre de Francesco Sforza. Ele deixou Milão antes da desgraça de Ludovido Sforza, que morreu prisioneiro numa fortaleza na França. Quando teve a notícia do destino de seu patrono, Leonardo escreveu em seu diário: `O duque perdeu seu ducado, sua propriedade e sua liberdade, e nunca terminou nenhuma das obras que empreendeu.’ É interessante, e sobretudo significativo, que ele fizesse ao seu patrão a mesma acusação que a posterioridade lhe viria fazer. Era como se quisesse fazer de alguém que pertencesse à categoria paternal, responsável por ter deixado suas obras inacabadas. Na verdade, não errou no que afirmou acerca do duque.

 

Se sua imitação do pai o prejudicou como artista, sua rebeldia contra ele foi a determinante infantil do que foi talvez uma realização igualmente sublime no campo da pesquisa científica. Segundo a comparação admirável de Merezhkovsky (1903, 348), era como um homem que despertara cedo demais, na escuridão, enquanto os outros ainda dormiam. Ele teve a coragem de fazer a declaração que contém a justificação de toda pesquisa independente: `Aquele que apela para a autoridade quando existe diferença de opinião, está fazendo mais uso da memória do que da razão.’ Foi assim que se tornou o primeiro cientista natural moderno e uma abundância de descobertas e de idéias sugestivas recompensaram sua coragem de ter sido o primeiro homem, desde o tempo dos gregos, a indagar os segredos da natureza baseando-se unicamente na observação e em seu próprio julgamento. Mas quando ensinava que a autoridade deveria ser desprezada e que a imitação dos `antigos’ deveria ser repudiada, e ao afirmar constantemente que o estudo da natureza era a fonte de toda verdade, não fazia senão repetir — na mais alta sublimação que o homem pode atingir — o ponto de vista resoluto que já se impusera ao menino, quando fitava atônito o mundo em redor. Se transformarmos novamente a abstração científica em experiência individual concreta, veremos que os `antigos’ e a autoridade correspondem simplesmente a seu pai, e a natureza vem a ser novamente a mãe gentil e carinhosa que o amamentou. Na maioria dos seres humanos — tanto hoje como nos tempos primitivos — a necessidade de se apoiar numa autoridade de qualquer espécie é tão imperativa que o seu mundo se desmorona se essa autoridade é ameaçada. No entanto, Leonardo pôde dispensar esse apoio; não teria podido fazê-lo se nos primeiros anos de sua vida não tivesse aprendido a viver sem o pai. Sua ulterior investigação científica, caracterizada por sua ousadia e independência, pressupõe a existência de pesquisas sexuais infantis não inibidas pelo pai e representa uma prolongação das mesmas com a exclusão do elemento sexual.

Quando alguém, como aconteceu com Leonardo, escapa à intimidação pelo pai durante a primeira infância e rompe as amarras da autoridade em suas pesquisas, muito nos admiraríamos se continuasse sendo um crente, incapaz de se desfazer dos dogmas religiosos. A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade de religião se encontram no complexo parental. O Deus todo-poderoso e justo e a Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações do pai e da mãe, ou melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos. Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência e necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é realmente frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a sentir-se como na infância e procura então negar a sua própria dependência, por meio de uma regressiva renovação das forças que a protegiam na infância. A proteção contra doenças neuróticas, que a religião concede a seus crentes, é facilmente explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu problema.

O caso de Leonardo não parece desmentir este ponto de vista relativo à religião. Enquanto vivo, foram-lhe feitas acusações de heresia e de apostasia contra o Cristianismo (o que, na época, significava a mesma coisa) que foram claramente descritas na primeira biografia que Vasari [1550] escreveu sobre ele. (Müntz, 1889, 292ss.) Na segunda edição (1568) de sua Vite, Vasari suprimiu estas observações. Devido à suceptibilidade enorme de sua época no tocante a questões religiosas, bem podemos compreender por que Leonardo, até mesmo em seus cadernos evitou qualquer comentário direto à sua posição face ao Cristianismo. Em suas pesquisas, jamais se deixou induzir em erro por influência dos relatos sobre a Criação, contidos nas Sagradas Escrituras; pôs em dúvida, por exemplo, a possibilidade de um dilúvio universal, e em geologia fez cálculos em termos de centenas de milhares de anos sem hesitação maior do que a dos homens dos tempos modernos.

Entre as suas `profecias’ existem algumas que certamente teriam ofendido a sensibilidade de um crente cristão. Assim, por exemplo, em `Sobre o hábito de rezar defronte às imagens de santos’:

 

`Os homens falarão com homens que nada percebem, que têm os olhos abertos mas que nada vêem; falarão com eles e não terão resposta; implorarão as graças daqueles que têm orelhas mas nada ouvem; acenderão luzes para quem é cego.’ (Segundo Herzfeld, 1906, 292.)

Ou, então, `Sobre o luto na Sexta-feira Santa’:

`Em toda a Europa, inumeráveis povos chorarão a morte de um único homem que morreu no Oriente.’ (ibid., 297.)

Sobre a arte de Leonardo, já foi dito que ele despiu as sagradas figuras de todos os vestígios de sua ligação com a Igreja, tornando-as humanas, para nelas representar grandes e belas emoções humanas. Muther o elogia por libertar-se do ambiente de decadência que prevalecia na época e por restituir ao homem o seu direito à sensualidade e à alegria de viver. Nas anotações que nos mostram Leonardo, entregue à sondagem dos grandes mistérios da natureza, há um número enorme de passagens onde ele manifesta a sua admiração pelo Criador, última causa de todos esses nobres segredos; mas nada existe que possa indicar que desejou manter relações pessoais com esse divino poder. As reflexões que encerram a profunda sabedoria dos últimos anos de sua vida exalam a conformação do homem que se entrega ao ƒ±ƒÞƒÑƒ×ƒÛƒØ, às leis da natureza, e que nenhuma misericórdia espera da bondade ou da graça de Deus. Parece não haver dúvida de que Leonardo superou tanto a religião dogmática quanto a pessoal, e que afastou-se muito da concepção cristã do mundo, através do seu trabalho de pesquisa.

As descobertas, anteriormente mencionadas [ver a partir de [1]], que fizemos sobre o desenvolvimento da vida mental infantil, levam-nos a crer que no caso de Leonardo também as suas primeiras pesquisas na infância se orientaram para os problemas da sexualidade. Ele próprio se denuncia, sob disfarce transparente, ao relacionar sua ânsia de pesquisa à fantasia do abutre e ao destacar o problema do vôo das aves como assunto para o qual se sentia fatalmente impelido por uma série de circunstâncias. Um trecho sobremodo obscuro de suas anotações referentes ao vôo das aves, e que se assemelha a uma profecia, demonstra muito bem o grau de interesse afetivo que o fazia fixar-se na idéia de poder um dia imitar, ele próprio, esse vôo: `O grande pássaro alçará o seu primeiro vôo partindo do dorso de seu Grande Cisne; fará o mundo ficar maravilhado, será por todos descrito e será a glória eterna do ninho onde nasceu.’ Provavelmente esperava que ele próprio chegaria a voar um dia e conhecemos, pelos sonhos realizadores de desejos, que felicidade se aguarda da realização dessa esperança.

 

Mas por que será que tantas pessoas sonham sentindo-se capazes de voar? A resposta que nos dá a psicanálise é que voar, ou ser um pássaro, é somente um disfarce para outro desejo, e que mais de uma conexão, seja por meio de palavras ou de coisas, leva-nos a reconhecer esse desejo. Quando consideramos que às crianças perguntadoras dizemos que os bebês são trazidos por um grande pássaro, tal como a cegonha; quando nos lembramos de que os antigos povos representavam o falo como possuindo asas; que a expressão mais comum, em alemão, para a atividade sexual masculina é `vögeln‘ [`passarear’: `Vogel‘ é a palavra alemã para `pássaro’; que o órgão masculino é chamado de `l’uccello‘ [`o pássaro’] em italiano — vemos que todos esses dados constituem apenas uma pequena fração de um conjunto de idéias correlatas que nos mostram que, nos sonhos, o desejo de voar representa verdadeiramente a ânsia de ser capaz de realizar o ato sexual. Este é um desejo que surge nos primeiros anos da infância. Quando o adulto relembra sua infância, esta parece-lhe como tendo sido uma época feliz, na qual se gozava o momento e se encarava o futuro sem nenhum desejo; é por essa razão que ele inveja as crianças. No entanto, se as próprias crianças nos pudessem contar a sua história nessa época, elas provavelmente o fariam de modo diferente. Parece que a infância não é bem esse idílio bem-aventurado que retrospectivamente destorcemos; ao contrário, as crianças durante toda a sua infância sentem-se fustigadas pelo desejo de crescer e de fazer o que fazem os grandes. Este desejo reflete-se em todas as brincadeiras. Sempre que as crianças sentem, no curso de suas explorações sexuais, que, nesse terreno tão misterioso e tão importante para elas, existe alguma coisa maravilhosa permitida aos adultos, mas que elas estão proibidas de conhecer e de fazer, sentem um desejo violento de ser capazes de fazê-lo e sonham-no sob a forma de voar, ou preparam este disfarce de seu desejo para ser usado mais tarde em seus sonhos de voar. Assim, a aviação, que em nossos dias está finalmente conseguindo realizar esse objetivo, tem também suas raízes eróticas infantis.

 

Ao admitir que desde sua infância sentia-se ligado de maneira especial e pessoal ao problema do vôo, Leonardo confirma que as suas pesquisas infantis eram dirigidas para questões sexuais; e era isso exatamente o que esperávamos, de acordo com a investigação que fizemos sobre crianças de nossa época. Pelo menos esse problema escapara à repressão que mais tarde o afastaria da sexualidade. Com ligeiras variantes em seus significados, o mesmo assunto continuou a interessá-lo, desde os anos de sua infância até a época de sua plena maturidade intelectual; e é muito possível que não tivesse conseguido a destreza que desejava, quer no sentido sexual primário, quer no sentido mecânico, e que permaneceu frustrado em ambos os desejos.

Na verdade, o grande Leonardo permaneceu como uma criança durante toda a vida, sob diversos aspectos; diz-se que todos os grandes homens conservam algo de infantil. Mesmo quando adulto, continuava ele a brincar, o que constituiu mais um motivo por que freqüentemente pareceu estranho e incompreensível para seus contemporâneos. A nós não satisfaz, porém, saber que construía os mais complicados brinquedos mecânicos, que exibia em festejos da corte e recepções cerimoniosas, pois relutamos em conceber o artista usando o seu talento em coisas tão sem importância. No entanto, ele não parecia aborrecer-se em gastar assim o seu tempo pois Vasari conta-nos que fazia essas coisas mesmo sem receber encomendas: `Quando estava lá (em Roma) pegou um pedaço de cera e com ele modelou bichos muito delicados, que enchia de ar; quando soprava, eles voavam e quando o ar escapava, caíam no chão. Para um lagarto estranho, que o vinhateiro de Belvedere encontrou, fez umas asas tiradas da pele de outros lagartos e encheu-as com mercúrio, de maneira que elas se agitavam e tremiam quando o lagarto caminhava. Em seguida, fez-lhe uns olhos, uma barba e chifres, domesticou-o e o guardou numa caixa, para com ele assustar todos os seus amigos’. Tais habilidades muitas vezes serviam para exprimir pensamentos mais sérios. `Algumas vezes limpava os intestinos de um carneiro tão cuidadosamente que poderiam depois caber na concha de sua mão. Levava-os, então, para um grande quarto, ajustava-os a um fole de ferreiro situado numa sala contígua e os enchia, a ponto de virem a ocupar a sala inteira, assim forçando as pessoas que lá estavam a se refugiarem num canto. Dessa forma, ele mostrava como se tornavam transparentes à medida que se enchiam de ar; e pelo fato de que a princípio eles ocupavam pouco espaço, e que gradualmente espalhavam-se pela sala inteira, ele os comparava ao gênio.’ O mesmo prazer brincalhão de esconder coisas, fazendo-as depois reaparecer sob os mais engenhosos disfarces, encontra-se em suas fábulas e adivinhações. Estas últimas eram feitas sob a forma de `profecias’: quase todas eram ricas em idéias mas notoriamente desprovidas de espirituosidade.

Os jogos e brincadeiras com que Leonardo ocupava sua imaginação, em alguns casos, levaram os seus biógrafos, que não lhe compreendiam este lado do caráter, a interpretá-lo erroneamente. Nos manuscritos milaneses de Leonardo, existem, por exemplo, alguns rascunhos de cartas para o `Diodario de Sorio` (Síria), Vice-rei do Sagrado Sultão da Babilônia’, nas quais Leonardo se apresenta como sendo um engenheiro enviado àquelas regiões orientais para a execução de determinados trabalhos; nelas defende-se da acusação de preguiça; fornece algumas descrições geográficas de cidades e montanhas, e conclui com o relato de um fenômeno da natureza que teria acontecido quando lá se encontrava.

Em 1883, J. P. Richter tentou provar com esses documentos que Leonardo havia realmente feito todas essas observações quando em viagem a serviço do Sultão do Egito, e até mesmo adotara a religião maometana, quando no Oriente. Segundo ele, a visita deu-se antes de 1843 — isto é, antes de ter-se instalado na corte do Duque de Milão. Mas a argúcia de outros autores facilmente reconheceu a evidência do que a suposta viagem de Leonardo ao Oriente realmente significava — uma produção imaginária do jovem artista, criada para seu próprio divertimento e na qual ele encontrou expressão para um desejo de conhecer o mundo e enfrentar aventuras.

Outro provável exemplo de criação de sua imaginação encontra-se na `Academia Vincina’, que chegou a ser admitida devido a existência de cinco ou seis emblemas, com motivos laboriosamente entrelaçados, ostentando o nome da Academia. Vasari menciona esses desenhos mas não faz referência à Academia. Müntz, que reproduziu um desses emblemas na capa de seu extenso trabalho sobre Leonardo, é um dos poucos que acredita na realidade de uma `Academia Vinciana’.

É provável que o instinto brincalhão de Leonardo tenha desaparecido nos seus anos de maturidade, e que encontrasse derivativo na atividade de pesquisa que representou o último e mais alto nível de expansão de sua personalidade. A sua longa duração, no entanto, nos ensina como lentamente o indivíduo se desliga de sua infância, se nos dias infantis desfrutou a maior felicidade erótica, coisa nunca mais conseguida.

 

VI

Seria fútil tentar negar que os leitores de hoje não apreciam a patografia. Eles encobrem sua aversão alegando que a investigação patográfica de um grande homem jamais conduz à compreensão de sua importância e de seus feitos, e que, portanto, constitui uma impertinência sem sentido estudar nele aspectos que poderiam ser facilmente encontrados em qualquer outra pessoa. Mas esta crítica é de tal maneira injusta que só poderá ser compreendida se a tomamos como um pretexto ou uma desculpa. A patografia não tem como finalidade tornar inteligíveis os feitos dos grandes homens; e seguramente ninguém poderá ser censurado por não realizar algo que jamais prometeu. Os verdadeiros motivos para essa oposição são diferentes. Podemos descobri-los se nos lembrarmos de que os biógrafos se fixam em seus livros de uma maneira toda especial. Muitas vezes escolhem o herói como assunto de seu estudo porque — segundo razões de sua vida emocional pessoal — desde o começo sentiram por ele uma afeição especial. Dedicam suas energias a um trabalho de idealização, destinado a incluir o grande homem na série de seus modelos infantis — revivendo neles, talvez, a idéia infantil que faziam de seu pai. Para satisfazer este desejo, eliminam até as características fisionômicas de sua personagem; apagam as marcas das lutas de sua vida, com resistências internas e externas, e nela não toleram nenhum vestígio de fraqueza ou imperfeições humanas. Apresentam-nos, assim, uma figura ideal, fria, estranha, em vez de uma pessoa humana com a qual nos pudéssemos sentir remotamente relacionados. Isto é lastimável, pois assim sacrificam a verdade em benefício de uma ilusão, e por causa de suas fantasias infantis abandonam a oportunidade de penetrar nos mais fascinantes segredos da natureza humana.

O próprio Leonardo, com seu amor à verdade e sua sede de conhecimento, não desencorajaria qualquer tentativa de descobrir o que determinava seu desenvolvimento mental e intelectual, tomando como ponto de partida as peculiaridades triviais e os enigmas de sua natureza. Nós o homenageamos quando dele aprendemos algo. Em nada ficará diminuída sua grandeza ao fazermos um estudo dos sacrifícios que lhe custou o desenvolvimento a partir de sua infância, e se juntarmos os fatores que o marcaram com o estigma trágico do fracasso.

Devemos assinalar insistentemente que nunca classificamos Leonardo como um neurótico ou um `doente dos nervos’, conforme a denominação usual imprópria. Qualquer um que proteste contra o fato de ousarmos examiná-lo sob a luz dos conhecimentos adquiridos no campo da patologia ainda se estará apegando aos preconceito que nós já abandonamos. Não mais consideramos que a saúde e a doença, ou que os normais e os neuróticos se diferenciem tanto uns dos outros e que traços neuróticos devem necessariamente ser tomados como sendo prova de uma inferioridade geral. Hoje em dia, sabemos que os sintomas neuróticos são estruturas que funcionam como substitutos para algumas conseqüências de repressão, à qual devemos submeter-nos no curso de nosso desenvolvimento, desde a criança ao ser humano civilizado. Sabemos, também, que todos nós produzimos essas estruturas substitutivas e que somente o seu número, intensidade e distribuição nos poderá justificar na utilização do conceito prático de doença e inferir a presença de uma inferioridade constitucional. Partindo das indicações escassas que temos sobre a personalidade de Leonardo, estamos inclinados a classificá-lo como próximo ao tipo de neurótico que descrevemos como `obsessivo’; e poderíamos comparar suas pesquisas à `meditação obsessiva’ dos neuróticos e suas inibições como aquilo que chamamos de `abulias’.

O objetivo de nosso trabalho foi explicar as inibições na vida sexual e na atividade artística de Leonardo. Tendo isso em vista, podemos resumir o que conseguimos descobrir sobre o curso de seu desenvolvimento psíquico.

Não podemos conhecer direito as circunstâncias de sua hereditariedade; verificamos, por outro lado, que as circunstâncias acidentais de sua infância tiveram sobre ele um efeito profundo e perturbador. A sua origem ilegítima privou-o da influência do pai, talvez até os cinco anos, e deixou-o entregue à carinhosa sedução de uma mãe para quem ele talvez fosse o único consolo. Depois que os seus beijos lhe despertaram precocemente a madureza sexual, deve ter provavelmente atravessado uma fase de atividade sexual infantil da qual uma única manifestação foi definitivamente comprovada — a intensidade de suas pesquisas sexuais infantis. O instinto de ver e o de saber foram os mais fortemente excitados pelas impressões mais remotas de sua infância; à zona erógena da boca foi dava uma ênfase da qual nunca mais se libertou. Por sua conduta posterior, em direção oposta, assim como sua simpatia exagerada pelos animais podemos concluir pela existência de fortes indícios de traços sádicos naquele período de sua infância.

Uma poderosa onda de repressão pôs fim a esse excesso infantil e determinou as disposições que se deveriam manifestar nos anos da puberdade. O resultado mais evidente da transformação foi o afastamento de toda atividade sexual grosseira. Leonardo estava capacitado para viver em abstinência e dar a impressão de ser uma criatura assexuada. Quando ondas de excitações da puberdade chegaram ao adolescente, elas não o molestaram forçando-o a procurar formações substitutivas custosas e prejudiciais. Devido à sua tendência muito precoce para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades de seu instinto sexual puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim à repressão. Uma parte muito menor de sua libido continuou orientada para fins sexuais e representa a atrofiada vida sexual do adulto. Porque o amor que tinha pela mãe foi reprimido, esta parte foi levada a tomar uma atitude homossexual e manifestou-se no amor ideal por rapazes. A fixação em sua mãe e nas felizes lembranças de suas relações com ela continuou preservada no inconsciente, permanecendo, porém, inativa por algum tempo. Desse modo, a repressão, a fixação e a sublimação desempenharam sua parte absorvendo as contribuições do instinto sexual para a vida mental de Leonardo.

Leonardo surge da obscuridade de sua infância como artista, pintor e escultor devido a um talento específico que foi reforçado, provavelmente, nos primeiros anos de sua infância pelo precoce despertar do seu instinto escoptofílico. Gostaríamos enormemente de descrever o modo pelo qual a atividade artística se origina nos instintos primitivos da mente, se não fosse aqui, justamente, que falham nossas capacidades. Devemos contentar-nos em enfatizar o fato de que dificilmente se pode duvidar — de que a criação do artista proporciona, também, uma válvula de escape para seu desejo sexual; e no caso de Leonardo podemos ver, segundo a informação de Vasari [ver em [1]] que cabeças de mulheres sorridentes e de lindos rapazes — em outras palavras, a representação de seus objetos sexuais — eram freqüentes em suas primeiras tentativas artísticas. No verdor de sua mocidade, Leonardo parece trabalhar sem inibição. Assim como tomava seu pai como modelo para a conduta exterior de sua vida, também atravessou um período de masculina força criadora e produção artística quando um destino feliz o fez encontrar, em Milão, um pai substituto na figura do duque Ludovico Moro. Mas logo encontramos a confirmação de nossa experiência, isto é, que a repressão quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas. O padrão imposto pela vida sexual termina por se impor. Sua atividade e sua capacidade de tomar rápidas decisões começam a falhar; sua tendência à indecisão e à protelação se fazem sentir como elemento perturbador na `Última Ceia’ e, influenciando sua técnica, tiveram um efeito decisivo no destino daquela grande obra. Lentamente desenvolveu-se nele um processo somente comparável às regressões nos neuróticos. O desenvolvimento que o levou a tornar-se um artista ao atingir a puberdade cedeu lugar ao processo que o tornou pesquisador e que tem suas determinantes na primeira infância. A segunda sublimação do seu instinto erótico cedeu lugar à sublimação original, cuja forma tinha sido preparada por ocasião da primeira repressão. Tornou-se um pesquisador, a princípio a serviço de sua arte, porém, mais tarde, independentemente dela e mesmo dela se afastando. Com a perda de seu patrono, substituto de seu pai, e com as sombras que, progressivamente, lhe marcavam a vida, esta substituição regressiva assumiu proporções cada vez maiores. Tornou-se `impacientissimo al pennelo‘ conforme nos conta um correspondente da condessa Isabella d’Este, que desejava ardentemente possuir um quado seu. Seu passado infantil passou a dominá-lo. Mas a pesquisa, que toma agora o lugar da criação artística, parece ter contido alguns traços que caracterizam a atividade de impulsos inconscientes; insaciabilidade, rigidez de comportamento e falta de capacidade para adaptar-se às circunstâncias reais.

Ao atingir o ápice de sua vida, quando ingressava na casa dos cinqüenta — época em que as características sexuais das mulheres já sofreram a involução, enquanto nos homens a libido, com freqüência, apresenta um enérgico surto — sofreu ele uma nova transformação. Camadas ainda mais profundas de seu conteúdo anímico tornaram-se mais uma vez ativas; mas esta nova regressão veio beneficiar a sua arte que se encontrava num processo de atrofiamento. Encontrou a mulher que lhe despertou a lembrança do sorriso feliz e sensual de sua mãe; e, influenciado por eta lembrança reaguçada, voltou a encontrar o estímulo que o guiava no princípio de suas tentativas artísticas, na época em que retratou mulheres sorridentes. Pintou a Mona Lisa, a `Sant’Ana com Dois Outros’ e a série de retratos misteriosos caracterizados pelo sorriso enigmático. Com a ajuda do mais antigo de todos os seus impulsos eróticos goza o triunfo de, uma vez mais, dominar a inibição na sua arte. Este último desenvolvimento vai-se tornando impreciso para nós, com as sombras da velhice que se aproxima. Antes disso, seu intelecto se elevara até o mais alto grau de realização formulando uma concepção do mundo que de muito ultrapassou a sua época.

Nos capítulos anteriores, já mostrei o que pode justificar este retrato do curso do desenvolvimento de Leonardo — propondo estas subdivisões de sua vida e explicando, dessa forma, sua vacilação entre a arte e a ciência. Se as afirmativas que fiz provocaram críticas, mesmo de amigos e conhecedores da psicanálise, de ter eu apenas escrito uma nova psicanalítica, responderei que jamais superestimei a certeza desses resultados. Como tantos outros, sucumbi à atração desse grande e misterioso homem, em cuja natureza podemos entrever poderosas paixões instintivas que, no entanto, somente se podem exprimir de modo tão impreciso.

Seja qual for a verdade sobre a vida de Leonardo, não podemos abandonar nossa tentativa de encontrar uma explicação psicanalítica antes de completarmos uma outra tarefa. Devemos fixar, de modo geral, os limites do que a psicanálise pode conseguir no campo da biografia: de outro modo, todo esclarecimento que não for logo comprovado será considerado como um fracasso nosso. O material de que dispõe a psicanálise para uma pesquisa consta de dados da história da vida de uma pessoa; de um lado as circunstâncias acidentais e as influências do meio e, do outro lado, as reações conhecidas do indivíduo. Baseada em seu conhecimento dos mecanismos psíquicos, propõe-se, então, estabelecer uma base dinâmica para a sua natureza, fundamentada na intensidade de suas reações, e desvendar as forças motivadoras originais de sua mente, assim como as suas transformações e desenvolvimentos futuros. Se isso tem sucesso, o comportamento de uma personalidade no curso de sua vida é explicado em termos da ação conjugada da constituição e do destino, de forças internas e poderes externos. Quando tal estudo não fornece resultados indubitáveis — e talvez suceda assim no caso de Leonardo — a culpa não está nos métodos falhos e inadequados da psicanálise, mas na incerteza e na natureza fragmentária do material com ele relacionado, e que a tradição nos legou. Portanto, somente o autor deverá ser considerado responsável pelo fracasso, por ter obrigado a psicanálise a exprimir sua opinião abalizada, apoiando-se em material tão insuficiente.

Ainda que o material histórico de que dispomos fosse muito abundante e os mecanismos psíquicos pudessem ser usados com a máxima segurança, existem dois pontos importantes onde uma pesquisa psicanalítica não nos consegue explicar por que razão é tão inevitável que a personagem estudada tenha seguido exatamente essa direção e não outra qualquer. No caso de Leonardo, tivemos de sustentar o ponto de vista de que o acaso de sua origem ilegítima e a ternura exagerada de sua mãe tiveram influência decisiva na formação de seu caráter e na sorte de seu destino, pois a repressão sexual que se estabeleceu depois dessa fase de sua infância levou-o a sublimar sua libido na ânsia de saber e estabelecer sua inatividade sexual para o resto de sua vida. Mas esta repressão após as primeiras satisfações eróticas da infância não tinha necessariamente de se estabelecer; em outra pessoa talvez não tivesse acontecido, ou talvez tivesse atingido proporções muito menores. Temos de reconhecer aqui uma margem de liberdade que não pode mais ser resolvida pela psicanálise. Assim, também, não podemos afirmar que a conseqüência dessa onda de repressão tivesse sido a única possível. É provável que uma outra pessoa não tivesse conseguido livrar da repressão a maior parte da sua libido sublimando-a numa sede de conhecimentos; sob as mesmas influências, teria sofrido perturbação permanente de sua atividade intelectual ou adquirido uma disposição incoercível para a neurose obsessiva. Deixamos, portanto, estas duas características de Leonardo que não podem ser explicadas pela psicanálise: sua tendência muito especial para a repressão dos instintos e sua extraordinária capacidade para sublimar os instintos primitivos.

Os instintos e suas transformações constituem o limite do que a psicanálise pode discernir; daí em diante cede lugar à investigação da biologia. Somos obrigados a procurar a fonte da tendência à repressão e a capacidade para a sublimação nos fundamentos orgânicos do caráter, sobre o qual se vem erigir posteriormente a estrutura mental. Já que o talento artístico e a capacidade estão intimamente ligados à sublimação, temos de admitir que a natureza da função artística também não pode ser explicada através da psicanálise. A tendência da pesquisa biológica, hoje em dia, é explicar as principais características orgânicas de uma pessoa, como o resultado da mistura das disposições masculina e feminina, baseada em substâncias [químicas]. A beleza física de Leonardo e o fato de ser canhoto poderão ser mencionadas em apoio a este ponto de vista. Não abandonaremos, no entanto, o campo da pesquisa puramente psicológica. Nosso objetivo continua a ser demonstrar a relação que existe, seguindo o caminho da atividade instintiva, entre as experiências externas de um indivíduo e suas reações. Mesmo que a psicanálise não esclareça o poder artístico de Leonardo, pelo menos torna, para nós, mais compreensíveis suas manifestações e suas limitações. Parece, em todo caso, que somente um homem que tivesse passado pelas experiências infantis de Leonardo poderia ter pintado a Mona Lisa e a Sant’Ana, ter acarretado um destino tão melancólico para suas obras e ter embarcado numa carreira tão extraordinária de cientista, como se a chave para todas as suas realizações e fracassos estivesse escondida na sua fantasia infantil sobre o abutre.

 

Mas será que não devemos fazer objeções aos achados de uma investigação que atribui a circunstâncias acidentais, referentes à sua constelação parental, uma influência tão decisiva no destino de uma pessoa? O que, por exemplo, fez com que o destino de Leonardo viesse a depender de sua origem ilegítima e da esterilidade de sua primeira madrasta, Donna Albiera? Creio que ninguém terá o direito de fazê-lo. Se considerarmos que o acaso não pode determinar nosso destino, será apenas um retorno ao ponto de vista religioso sobre o Universo, que o próprio Leonardo estava a ponto de superar quando escreveu que o sol não se move [ver em [1]]. Sentimo-nos naturalmente decepcionados por ver que um Deus justo e uma providência bondosa não nos protegem melhor contra tais influências durante o período mais vulnerável de nossas vidas. Ao mesmo tempo, estamos sempre demasiadamente prontos a esquecer que, de fato, o que influi em nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozóide com um óvulo — acaso que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos desejos e ilusões. A distribuição dos fatores determinantes de nossa vida entre as `necessidades’ de nossa constituição e o `acaso’ de nossa infância pode ser ainda incerta em seus detalhes; mas não será mais possível duvidar precisamente da importância dos primeiros anos de nossa infância. Nós todos ainda sentimos muito pouco respeito pela natureza, que (nas palavras obscuras de Leonardo, que lembram o Hamlet) `está cheia de inúmeras razões [`ragioni’] que nunca penetram a experiência.’

Cada um de nós, seres humanos, corresponde a uma dessas inúmeras experimentações por meio das quais as `ragioni’ da natureza são compelidas a compartilhar a experiência.

 

AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA (1910)

 

DIE ZÜKNFTIGEN CHANCEN DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE

 

(a)   EDIÇÕES ALEMÃS:

1910   Zbl. Psychoan., 1 (1-2), 1-9.

1913   S.K.S.N., 3, 288-298. (2ª ed. 1921.)

1924   Technik und Metapsychol., 25-36.

1925   G.S., 6, 25-36.

1943   G.W., 8, 104-115.

(b)   TRADUÇÕES INGLESAS:

`The Future Chances of Psychoanalytic Therapy’

1912   S.P.H. (2ª ed.), 207-215. (Trad. A. A. Brill.) (3ª ed. 1920.)

`The Future Prospects of Psycho-Analytic Therapy’

1924   C.P., 2, 285-296. (Trad. Joan Riviere.)

A presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924.

Este trabalho foi proferido em forma de comunicação para a abertura do Segundo Congresso de Psicanálise, realizado em Nurembergue, em 30 e 31 de março de 1910. Como uma visão geral da posição contemporânea da psicanálise, pode-se compará-lo com uma conferência similar `Lines of Advance in Psycho-Analytic Therapy’ (Linhas de Desenvolvimento da Terapêutica Psicanalítica) (1919a) proferida por Freud oito anos depois no Congresso de Budapeste. Em especial, a segunda parte do presente trabalho, que trata da técnica, prefigura a terapia `ativa’ que constituiu o tema principal do último trabalho.

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira é de autoria de David Mussa. Revisão geral e técnica de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA

 

SENHORES, — De vez que os objetivos para os quais nos reunimos aqui, hoje, são eminentemente práticos, escolherei para minha conferência introdutória um tema clínico e solicito-lhes o interesse, não científico, mas médico. Posso imaginar seus prováveis pontos de vista sobre o resultado de nossa terapia e presumo que a maioria dos senhores já passou pelos dois estágios que atravessam todos os principiantes, o do entusiasmo pelo aumento inesperado de nossas façanhas terapêuticas e o da depressão pela magnitude das dificuldades que impedem nossos esforços. Qualquer que seja, no entanto, o grau de desenvolvimento em que cada um dos senhores possa encontrar-se, é minha intenção, hoje, mostrar-lhes que, de nenhuma maneira, chegamos ao final de nossos recursos no combate às neuroses e que podemos esperar, em pouco tempo, melhoria substancial nas nossas perspectivas terapêuticas.

Penso que este reforço virá de três direções:

(1) do processo interno,

(2) do aumento da autoridade; e

(3) da eficiência geral de nosso trabalho.

(1) Sob `progresso interno’ quero dizer os avanços: (a) em nosso conhecimento analítico, (b) em nossa técnica.

(a) Avanços em nosso conhecimento. Na verdade, estamos ainda muito longe de saber tudo o que se requer para o conhecimento dos inconsciente de nossos doentes. É evidente que cada avanço em nosso conhecimento significa um acréscimo de nosso poder terapêutico. Na medida em que nada compreendemos, nada realizamos; quanto mais compreendermos, mais alcançaremos. No início, o tratamento analítico era inexorável e exaustivo. O doente tinha de dizer tudo de si e a atividade do médico consistia em pressioná-lo, incessantemente. As coisas, hoje, possuem atmosfera mais cordial. O tratamento compõe-se de duas partes — o que o médico infere e diz ao doente, e o que o doente elabora de quanto ouviu. O mecanismo de nosso auxílio é fácil de entender; damos ao doente a idéia antecipadora consciente [a idéia do que ele espera encontrar] e, então, ele acha a idéia inconsciente reprimida, em si mesmo, no fundamento de sua similaridade com a idéia antecipadora. É esta a ajuda intelectual que lhe torna mais fácil superar as resistências entre consciente e inconsciente. A propósito, devo salientar que este não é o único mecanismo de que se faz uso no tratamento analítico; os senhores todos conhecem aquele bem mais poderoso que repousa no emprego da `transferência’. E em minha intenção, em futuro próximo, tratar desses diversos fatores, que são tão importantes para a compreensão do tratamento, em uma Allgemeine Methodik der Psychoanalyse. E, além disso, ao falar-lhes, não preciso refutar a objeção de que o valor indicativo que sustenta a correção de nossas hipóteses se obscureça, em nosso tratamento, tal como hoje o praticamos; os senhores não devem esquecer-se de que se pode encontrar essa evidência em outro lugar e de que se pode realizar um procedimento terapêutico da mesma forma que uma investigação teórica.

Permitam-me, agora, tocar em um ou dois setores em que novas coisas temos para aprender e em que, de fato, novas coisas devemos descobrir, a cada dia. Há, acima de tudo, o setor do simbolismo nos sonhos e no inconsciente — tema ardentemente contestado, como os senhores sabem. Não é pequeno o mérito de nosso colega, Wilhelm Stekel, que, imperturbado por todas as objeções levantadas por nossos opositores, empreendeu um estudo dos símbolos oníricos. Há ainda, por certo, muito a aprender aqui; a minha Interpretation of Dreams (A Interpretação de Sonhos), escrita em 1899, aguarda importante ampliação das pesquisas no simbolismo.

 

Direi algumas palavras acerca de um dos símbolos que se reconheceram recentemente. Ouvi dizer, pouco tempo atrás, que um psicólogo, cujos pontos de vista eram algo diferentes dos nossos sonhos, salientara a um de nós, que, conquanto tudo o que se disse e se fez, sem dúvida exageramos a significação sexual oculta dos sonhos: o seu próprio sonho mais comum era o de subir escadas e, por certo, não poderia haver nada de sexual naquilo. Pusemo-nos alerta no tocante a essa objeção e começamos a voltar nossa atenção para o aspecto dos degraus, escadas e escadas de mão nos sonhos e ficamos logo em posição de mostrar que as escadas (e coisas análogas) eram, inquestionavelmente, símbolos da cópula. Não é difícil descobrir a base da comparação: chegamos ao topo numa sucessão de movimentos rítmicos e com crescente perda de fôlego e, depois, com alguns saltos rápidos podemos crescer de novo. Assim, o modelo rítmico da cópula é reproduzido no subir as escadas. Nem devemos omitir em trazer à evidência o uso lingüístico. Ele nos revela que `trepar’ [em alemão `steigen‘] se usa como equivalente direto do ato sexual. Falamos de um homem como um `Steiger‘ [um `trepador’] e de `nachsteigen‘ [`correr atrás de’, literalmente `trepar’]. Em francês os degraus de uma escada chamam-se `marches‘ e `un vieux marcheur tem o mesmo sentido que o nosso `ein alter Steiger‘ [`um velho devasso’]. O material do sonho de onde tais simbolismos, recentemente reconhecidos, foram extraídos, ser-lhes-á apresentado, no devido tempo, pela comissão que estamos formando para o estudo coletivo do simbolismo. Os senhores encontrarão algumas observações sobre outro símbolo interessante, o do `salvamento’ e suas alterações em significação, no segundo volume do nosso Jahrbuch (Anuário). Mas, devo interromper aqui ou não chegarei aos meus outros objetivos.

Cada um dos senhores pode saber, de sua própria experiência, que atitude bastante diferente terá para um novo caso de enfermidade, quando certa vez se apoderou, profundamente, da estrutura de alguns casos característicos. Imaginem que tenhamos chegado a uma fórmula sucinta dos fatores que, comumente, participam da constituição das diversas formas de neurose, como aconteceu, até aqui, na estruturação dos sintomas histéricos, e considerem como isso pode estabelecer, firmemente, nosso julgamento prognóstico! Assim como um obstetra pode dizer, ao examinar a placenta, se ela foi completamente expelida ou se ainda permanecem seus fragmentos nocivos, do mesmo modo nós, independentemente do resultado e do estado do paciente, no momento, lograremos saber se nosso trabalho foi bem-sucedido ou se teremos de esperar recaídas e novas crises de enfermidade.

(b) Apressar-me-ei em torno das inovações no setor da técnica, onde, na verdade, quase tudo ainda aguarda a posição final e muita coisa, somente agora, começa a esclarecer-se. Há, hoje, dois objetivos na técnica psicanalítica: poupar o esforço do médico e dar ao paciente o mais irrestrito acesso ao seu inconsciente. Como sabem, nossa técnica passou por uma transformação fundamental. À época do tratamento catártico, o que almejávamos era a elucidação dos sintomas; afastamo-nos, depois, dos sintomas e devotamo-nos, em vez disso, a desvendar os `complexos’, para usar uma palavra que Jung tornou indispensável; agora, no entanto, nosso trabalho objetiva encontrar e sobrepujar, diretamente, as `resistências’, e podemos confiar em que venham à luz, justificadamente, sem dificuldade, os complexos, tão logo se reconheçam e se removam as resistências. Alguns dos senhores têm sentido, desde então, a necessidade de que se possa fazer uma pesquisa dessas resistências e classificá-las. Pedir-lhe-ei que examinem seu material e vejam se podem confirmar a afirmação generalizada de que, nos pacientes masculinos, a maioria das resistências importantes ao tratamento parecem derivar-se do complexo paterno e expressar-se neles no medo ao pai, desobediência ao pai e desavença do pai.

As outras inovações na técnica relacionam-se com o próprio médico. Tornamo-nos cientes da `contratransferência’, que, nele, surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência, em si mesmo, e a sobrepujará. Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas; e, em conseqüência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma auto-análise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer idéia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise.

Estamos chegando, agora, também, à opinião de que se deve modificar a técnica psicanalítica, em certos setores, de acordo com a natureza da doença e das tendências instintivas predominantes no paciente. Partimos do tratamento da histeria de conversão; na histeria de angústia (fobias), devemos alterar, em certa extensão, o nosso procedimento. Pois esses pacientes não podem expressar o material necessário para resolver as suas fobias, uma vez que se sentem protegidos por obedecer à situação que se estabeleceu. Não se pode ser bem-sucedido, por certo, em persuadi-los a abandonar suas medidas protetoras e a trabalhar, sob a influência da ansiedade, desde o início do tratamento. Deve-se, portanto, auxiliá-los ao interpretar-lhes o inconsciente, até que possam tomar uma decisão, sem a proteção de sua fobia e sem que se exponham a sua ansiedade já grandemente mitigada. Somente depois de assim procederem, o material torna-se acessível, e, uma vez dominado, conduz à solução da fobia. As outras modificações da técnica, que ainda não me parecem maduras para exame, serão requeridas no tratamento das neuroses obsessivas. Nessa conexão, surgem muitas questões importantes, as quais, até aqui, não foram elucidadas: até que ponto se deve permitir, durante o tratamento, certa satisfação dos instintos que o paciente está combatendo e que diferença faz se esses impulsos são ativos (sádicos) ou passivos (masoquistas), em sua natureza.

Espero que os senhores tenham formado a impressão de que quando soubermos tudo quanto, só agora, suspeitamos e realizarmos todas as melhorias na técnica, a que nos conduz uma observação mais profunda dos pacientes, o nosso procedimento clínico alcançará grau de precisão e certeza de sucesso que se hão de encontrar em todo campo especializado da medicina.

(2) Disse que muito se tinha de esperar do aumento em autoridade, que nos adviria, na medida em que passa o tempo. Não necessito dizer-lhes muito sobre a importância da autoridade. Poucas pessoas civilizadas, apenas, são capazes de existir sem confiar em outras ou, até mesmo, de vir a ter uma opinião independente. Os senhores não podem exagerar a intensidade de carência interior de decisão das pessoas e de exigência de autoridade. O aumento extraordinário das neuroses desde que decaiu o poder das religiões pode dar-lhes uma medida disso. O empobrecimento do ego devido ao grande dispêndio de energia, na repressão, exigido de cada indivíduo pela civilização, pode ser uma das principais causas desse estado de coisas.

Até o momento, essa autoridade, com seu enorme peso de sugestão, ficou contra nós. Todos os nossos sucessos terapêuticos foram alcançados em face dessa sugestão: é surpreendente que se tenham conseguido quaisquer sucessos em tais circunstâncias. Não devo deixar que me levem a descrever minhas experiências satisfatórias durante o período em que, sozinho, representava a psicanálise. Posso dizer, apenas, que, quando assegurava a meus pacientes que sabia como aliviar-lhes, permanentemente, os sofrimentos, olhavam em torno da minha modesta sala, que refletia a ausência de fama e de título, e me consideravam como possuidor de um sistema infalível numa casa de jogo, de quem as pessoas dizem que, se pudesse fazer o que professa, pareceria bem diferente do que é. Nem realmente era agradável realizar uma operação psíquica enquanto os colegas, cujo dever seria o de assistir, se deliciassem, particularmente, em cuspir no campo operatório, quando aos primeiros sinais de sangue, ou de agitação do paciente, os seus parentes começassem por ameaçar o cirurgião. Uma operação, por certo, se destina a produzir reações; em cirurgia, estamos acostumados a isso, há muito tempo. As pessoas simplesmente não acreditavam em mim, como, até mesmo, hoje em dia, não crêem muito em qualquer de nós. Sob tais condições, não poucas tentativas destinavam-se ao fracasso. Para avaliar o aumento de nossas perspectivas terapêuticas, quando recebermos o reconhecimento geral, os senhores devem pensar na posição de um ginecologista, na Turquia e no Ocidente. Na Turquia, tudo o que ele pode fazer é sentir o pulso de um braço, que se lhe estende, através de um buraco na parede: e os alcances clínicos estão em proporção com a inacessibilidade de seu objeto. Nossos adversários, no Ocidente, querem permitir-nos mais ou menos o mesmo grau de acesso às mentes de nossos pacientes. Mas, agora que a força da sugestão social impele as mulheres doentes ao ginecologista, transformou-se ele no seu assistente e salvador. Confio em que não dirão que o fato de a autoridade de sociedade, vindo em nossa ajuda e aumentando tanto nossos êxitos, nada faria por provar a validez de nossas hipóteses — argumentando do mesmo modo que os senhores, visto que se supõe que a sugestão logre fazer qualquer coisa, os vossos sucessos seriam, então, êxitos de sugestão e não de psicanálise. A sugestão social é favorável, no presente, a tratar os pacientes nervosos pela hidropatia, dieta e eletroterapia, mas isso não capacita que tais recursos possam vencer as neuroses. O tempo há de mostrar se o tratamento psicanalítico pode realizar mais.

Agora, no entanto, devo, mais uma vez, arrefecer as expectativas dos senhores. A sociedade não terá pressa em conferir-nos autoridade. Está determinada a oferecer-nos resistência, porque adotamos em relação a ela uma atitude crítica; assinalamos-lhe que ela própria desempenha papel importante em causar neuroses. Da mesma maneira que fazemos de um indivíduo nosso inimigo pela descoberta do que nele está reprimido, do mesmo modo a sociedade não pode responder com simpatia a uma implacável exposição dos seus efeitos danosos e deficientes. Porque destruímos ilusões, somo acusados de comprometer os ideais. Poderia parecer, portanto, como se a condição de que espero tão grandes vantagens, para as nossas perspectivas terapêuticas, jamais se preencherá. E, todavia, a situação não é, no momento, tão desesperançosa quanto se poderia pensar. Embora sejam poderosos os próprios interesses e emoções dos homens, não obstante o intelecto também é um poder — um poder que se faz sentir não imediatamente, é verdade, mas, sobretudo, seguramente, no fim. As mais ásperas verdades, finalmente, são ouvidas e reconhecidas, depois que os interesses que se feriram e as emoções que se instigaram tiveram exaurido a própria fúria. Tem sido sempre assim, e as verdades indesejáveis, que nós, psicanalistas, temos de dizer ao mundo, contarão com o mesmo destino. Apenas não acontecerá muito depressa; devemos ser capazes de esperar.

(3) Finalmente, tenho de explicar-lhes o que quero dizer com a `eficiência geral’ de nosso trabalho e como chego a nele ter esperanças. O que temos, aqui, é uma constelação terapêutica bastante fora do comum, cuja semelhança talvez não se encontre em qualquer outra parte, e que pode parecer-lhes estranha, a princípio, até que os senhores reconheçam nela algo que a longo tempo lhes tenha sido familiar. Naturalmente, os senhores sabem que as psiconeuroses são satisfações substitutivas de algum instinto, cuja presença o indivíduo é obrigado a negar a si e aos outras. Sua capacidade de existir depende dessa distorção e da falta de reconhecimento. Quando o enigma que elas apresentam é resolvido e a solução é aceita pelos pacientes, essas doenças cessam em ser capazes de existir. Em medicina, quase nada há igual a isso, embora, em contos de fadas, os senhores ouçam falar de espíritos maus, cujo poder se rompe, tão logo possam dizer-lhes o próprio nome — o nome que eles guardaram em segredo.

Em lugar de uma simples pessoa enferma, ponhamos a sociedade — padecendo como um todo de neuroses, embora composta de membros doentes e sadios; e, em lugar da aceitação individual, naquele caso, coloquemos, nesse, o reconhecimento geral. Uma pequena reflexão lhes revelará, então, que tal substituição não pode alterar, de modo algum, o resultado. O sucesso que o tratamento pode ter com o indivíduo, deve ocorrer, igualmente, com a comunidade. As pessoas doentes não serão capazes de deixar que as suas diversas neuroses se tornem conhecidas — a sua ansiosa superternura que tem em mira ocultar-lhe o ódio, a sua agorafobia que se relaciona com a ambição frustrada, as suas atitudes obsessivas que representam auto-censuras por más intenções e precauções contra as mesmas — se todos os seus parentes e cada estranho, dos quais desejam ocultar os seus processos mentais, conheceram o significado geral de tais sintomas, e se eles próprios souberem que, nas manifestações de sua doença, nada estão produzindo que outra pessoa, imediatamente, não possa interpretar. O efeito, no entanto, não se limitará ao encobrimento dos sintomas — o que, incidentalmente, é amiúde impossível de conseguir porque essa necessidade de encobrimento destrói a vantagem de ser doente. A revelação do segredo terá atacado, em seu ponto mais sensível, a `equação etiológica’, da qual surgem as neuroses — terá tornado ilusória a vantagem da doença; e, em conseqüência, o resultado final da situação modificada, provocada pela indiscrição do médico, só pode ser o de que a produção da doença será detida.

Se essa esperança parece, aos senhores, utópica, lembrem-se de que os fenômenos neuróticos já têm sido, de fato, dissipados, por esses meios, embora apenas em exemplos bem isolados. Pensem sobre quão comuns costumavam ser, antigamente, as alucinações da Virgem Maria entre as camponesas. Uma vez que tal fenômeno trouxesse uma multidão de crentes e pudesse levar a que se construísse uma capela, no lugar santo, o estado visionário dessas moças era inacessível a influência. Hoje em dia, nosso próprio clero modificou sua atitude com relação a tais coisas; permite que polícia e médicos examinem a visionária, e, agora, apenas muito raramente, existem em aparições da Virgem.

Ou, permitam-me examina esses desenvolvimentos, que tenho descrito como se tivessem lugar no futuro, numa situação análoga que existe em escala menor e, conseqüentemente, mais fácil de reconhecer. Suponhamos que certo número de senhoras e cavalheiros, de bom convício social, tenham planejado fazer um piquenique, em certo dia, numa hospedaria no campo. As senhoras combinaram, entre si, que se uma delas desejasse satisfazer suas necessidades fisiológicas, diria que iria colher flores. No entanto, uma pessoa maliciosa soube do segredo e mandou imprimir no programa, que se fez circular por todo o grupo: `Pede-se às senhoras que desejam retirar-se à toilette, que anunciem que vão colher flores.’ Depois disso, por certo, nenhuma mulher pensará em aproveitar-se desse pretexto florido, e, do mesmo modo, outras fórmulas similares que pudessem estabelecer ficariam seriamente comprometidas. Qual será o resultado? As senhoras admitirão, sem pejo, as suas necessidades fisiológicas e nenhum dos homens objetará.

Retornemos ao nosso caso mais sério. Certo número de pessoas, ao defrontar-se, em suas vidas, com conflitos que constataram muito difíceis de resolver, fogem para a neurose e, desse modo, retiram da doença vantagem inequívoca, embora, com o tempo, acarrete bastante prejuízo. Que terão de fazer essas pessoas, se sua fuga para a enfermidade for barrada pelas revelações indiscretas da psicanálise? Terão de ser honestas, confessar quais os instintos que nelas estão em atividade, em face do conflito, lutar por aquilo que desejam ou renunciar ao mesmo; e a tolerância da sociedade, que está fadada a seguir-se, como resultado do esclarecimento psicanalítico, ajudá-las-á em sua tarefa.

Lembremo-nos, no entanto, de que nossa atitude perante a vida não deve ser a do fanático por higiene ou terapia. Devemos admitir que a prevenção ideal de enfermidade neuróticas, que temos em mente, não seria vantajosa para todos os indivíduos. Um bom número daqueles que, hoje, fogem para a enfermidade não suportariam o conflito, sob as condições que supomos, mas sim, sucumbiriam, rapidamente, ou causariam prejuízo maior que a sua própria doença neurótica. As neuroses possuem, de fato, sua função biológica, como um dispositivo protetor, e têm sua justificação social: a `vantagem da doença’, que proporcionam, não é sempre uma vantagem puramente subjetiva. Existe alguém entre os senhores que, alguma vez, não examinou a causalidade da neurose, e não teve de admitir que esse era o mais suave resultado possível da situação? E dever-se-iam fazer tais pesados sacrifícios, a fim de erradicar as neuroses, em especial, quando o mundo está cheio de outras misérias inevitáveis?

Devemos, então, abandonar nossos esforços para explicar o significado oculto da neurose como sendo, em última instância, perigoso para o indivíduo e nocivo para as funções da sociedade? Devemos renunciar a retirar conclusões práticas de uma parte da compreensão científica? Não; penso que, apesar disso, nosso dever repousa noutra direção. A vantagem da enfermidade, que proporciona as neuroses é, não obstante, no todo, e, finalmente, prejudicial aos indivíduos e, igualmente, à sociedade. A infelicidade que nosso trabalho de esclarecimento pode causar, atingirá, afinal, apenas alguns indivíduos. A modificação, para uma atitude mais realista e respeitável, da parte da sociedade, não será comparada, a preço bastante elevado, através desses sacrifícios. Acima de tudo, porém, todas as energias que se consomem, hoje em dia, na produção de sintomas neuróticos, que servem aos propósitos do mundo da fantasia, isolado da realidade, ajudarão, mesmo que não possam ser postos de imediato em uso na vida, a fortalecer o clamor pelas modificações, em nossa civilização, através das quais, unicamente, podemos procurar o bem-estar das gerações futuras.

Desejaria, portanto, deixá-los ir com a segurança de que, ao tratarem seus pacientes psicanaliticamente, estarão cumprindo com o seu dever em mais de um sentido. Os senhores não estarão trabalhando, apenas, a serviço da ciência, ao fazer uso de uma única oportunidade, para descobrir os segredos da neuroses; estarão, não apenas, dando aos seus pacientes o remédio mais eficaz para os seus sofrimentos, de que dispõem hoje em dia; estarão contribuindo, com a sua parcela, para o esclarecimento da comunidade, através do qual esperamos alcançar a profilaxia mais radical, contra as perturbações neuróticas, ao longo do caminho indireto da autoridade social.

 

A SIGNIFICAÇÃO ANTITÉTICA DAS PALAVRAS PRIMITIVAS (1910)

 

ÜBER DEN GEGENSINN DER URWORTE

 

(a)   EDIÇÕES EM ALEMÃO:

1910   Jb. psychoana., psychopath. Forsch., 2, (1), 178-184.

1913   S.K.S.N., 3, 280-287. (2ª.ed. 1921.)

1924   G.S., 10, 221-228.

1943   G.W., 8, 214-221.

(b)   TRADUÇÃO INGLESA:

“O Sentido Antitético de Palavras Primitivas”

1925   C.P., 4, 184-191. (Trad. de M. N. Searl.)

A presente tradução inglesa com um título modificado, “A Significação Antitética de Palavras Primitivas”, é uma nova tradução de Alan Tyson.

Conta-nos Ernest Jones (1955, 347) que Freud tomou conhecimento do panfleto de Abel no outono de 1909. Experimentou uma satisfação particular com a descoberta, como se vê das muitas referências que a ela fez em seus escritos. Em 1911, por exemplo, acrescentou uma nota de rodapé a respeito dela, em The Interpretation of Dreams (A Interpretação de Sonhos) (1900a), ver em [1], e a resume com certa extensão, em duas passagens de suas Introductory Lectures (Conferências Introdutórias) (1916-17), nas Conferências XI e XV. O leitor deve ter em mente o fato de que o panfleto de Abel foi publicado em 1884 e não seria surpresa se algumas de suas descobertas não fossem aceitas por filólogos ulteriores. Isso é principalmente verdade para seus comentários egiptológicos, que foram feitos antes que Erman tivesse colocado a filologia egípcia, pela primeira vez, em base científica. As citações de Abel que aqui se fazem foram traduzidas sem qualquer modificação da ortografia de seus exemplos.

 

A SIGNIFICAÇÃO ANTITÉTICA DAS PALAVRAS PRIMITIVAS

 

EM MINHA The Interpretation of Dreams (A Interpretação de Sonhos) fiz uma afirmação acerca de uma das descobertas de meu trabalho analítico, que eu, naquela época, não entendi. Repito-a aqui à guisa de prefácio a esta crítica:

`O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante singular. Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir, no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso, a liberdade de representar qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo.’

Os intérpretes de sonhos da antiguidade parecem ter feito uso mais extenso da noção de que uma coisa num sonho pode significar seu oposto. Esta possibilidade também tem sido de vez em quando reconhecida pelos modernos estudiosos de sonhos, na medida em que admitem que os sonhos têm uma significação e podem ser interpretados. Não acho que serei contraditado ao pressupor que todos aqueles que me acompanharam no interpretar sonhos em bases científicas tenham encontrado uma confirmação da assertiva acima citada.

Eu não conseguia entender a tendência singular do trabalho do sonho para desconhecer a negação e empregar os mesmos meios de representação para expressar os contrários até que me aconteceu, por acaso, ler um trabalho do filólogo Karl Abel, publicado em 1884, em panfleto separado e, no ano seguinte, incluído nos Sprachwissenschaftliche Abhbandlungen [Ensaios Filológicos] do autor. O assunto é de interesse suficiente para justificar que eu cite aqui o texto completo das passagens cruciais do artigo de Abel (omitida, no entanto, a maioria dos exemplos). Delas obtemos a informação surpreendente que o comportamento do trabalho do sonho que acabei de descrever é idêntico a uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos.

 

Depois de acentuar a antiguidade da língua egípcia que deve ter-se desenvolvido muito tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas, Abel continua (1884,4):

`Atualmente na língua egípcia, esta relíquia única de um mundo primitivo, há um bom número de palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra. Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que em alemão a palavra “forte” signifique ao mesmo tempo “forte” e “fraco”; que em Berlim o substantivo “luz” se use para significar ao mesmo tempo “luz” e “escuridão”; que um cidadão de Munique chame cerveja de “cerveja”, enquanto outro use a mesma palavra para falar de água: nisto é que importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos antigos egípcios em sua linguagem. Como incriminar-se alguém que, incrédulo, abane a cabeça?…’ (Omitem-se os exemplos.)

(Ibid., 7): `Em vista destes e de muitos casos similares de significação antitética (veja-se o Apêndice) está fora de dúvida que numa língua, pelo menos, havia um grande número de palavras que designavam, ao mesmo tempo, uma coisa e seu oposto. Por surpreendente que seja, estamos diante do fato e temos de reconhecê-lo.’

O autor prossegue, rejeitando uma explicação destas circunstâncias que sugere podem acontecer, por acaso, que duas palavras tenham o mesmo som, e repudiando, com igual firmeza, a tentativa de referi-la ao baixo nível de desenvolvimento mental do Egito:

(Ibid., 9): `Mas o Egito não tinha nada de terra do absurdo. Pelo contrário, foi um dos berços do desenvolvimento da razão humana… Ele reconheceu uma moral pura e digna e formulou uma grande parte dos Dez Mandamentos numa época em que os povos em cujas mãos a civilização hoje repousa tinham o hábito de imolar vítimas humanas em sacrifício a ídolos sedentos de sangue. Um povo que acendeu a tocha da justiça e da cultura numa era tão sombria não pode por certo ter sido completamente estúpido na linguagem e no pensamento de cada dia … Homens que foram capazes de fazer o vidro e erguer e movimentar, por máquinas, blocos imensos devem, pelo menos, ter possuído senso suficiente para não considerar uma coisa como sendo simultaneamente ela e seu oposto. Como iremos então conciliar isso com o fato de que os egípcios se permitiam uma linguagem tão estranhamente contraditória?… que eles usassem dar um e mesmo veículo fonético aos pensamentos mais reciprocamente desavindos, e usassem ligar numa espécie de união indissolúvel coisas que estavam na mais forte oposição uma com a outra?

Antes de tentar qualquer explicação, deve-se também mencionar um estágio ulterior desse comportamento ininteligível da língua egípcia. `De todas as excentricidades do vocabulário egípcio, talvez a característica mais extraordinária seja que, excetuando inteiramente as palavras que aliam significações antitéticas, ele possui outras palavras compostas em que dois vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois componentes. Assim, nesta extraordinária língua há não só palavras significando igualmente “forte” ou “fraco”, e “comandar” ou “obedecer”; mas há também compostos com “velho-jovem”, “longe-perto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”… que, apesar de combinarem os extremos de diferença, significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro” respectivamente… Desse modo, nessas palavras compostas, conceitos contraditórios se combinaram de modo inteiramente intencional, não de maneira a produzirem um terceiro conceito, como às vezes acontece no chinês, mas apenas de modo a usar o composto para exprimir a significação de uma de suas partes contraditórias — uma parte que teria tido a mesma significação só por si…’

O enigma é, no entanto, mais fácil de solucionar do que parece. Nossos conceitos devem sua existência a comparações. `Se sempre houvesse luz, não seríamos capazes de distinguir a luz da escuridão, e conseqüentemente não seríamos capazes de ter nem o conceito de luz nem a palavra para ele…’ `É claro que tudo neste planeta é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas…’ `De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida do seu contrário…? (Ibid., 15): `De vez que o conceito de força não se podia formar exceto com um contrário de fraqueza, a palavra designando “forte” continha uma lembrança simultânea de “fraco”, como coisa por meio da qual ele, de início, ganhou existência. Na realidade, esta palavra não designava nem “forte” nem “fraco”, mas a relação e a diferença entre os dois, que criou a ambos igualmente…’ `O homem não foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os outros.

De vez que a linguagem serve não só para expressar os próprios pensamentos, mas, essencialmente, para comunicá-los a outrem, pode-se levantar a questão de como foi que o `egípcio primitivo’ fez seu próximo entender `que pólo do conceito geminado ele significava numa ocasião particular qualquer.’ Na linguagem escrita, isso se fazia com o auxílio dos chamados sinais “determinativos” que, colocados depois dos sinais alfabéticos, lhes atribuíam sua significação e não eram para ser pronunciados. (Ibid., 18): `Se a palavra egípcia “ken” devia significar “forte”, seu som, que fosse alfabeticamente escrito, seguia-se da figura de um homem em pé, armado; se a mesma palavra tinha de expressar “fraco”, as letras que representavam o som se seguiam de figura de um corcunda, coxo. A maioria das outras palavras com duas significações similarmente e acompanhavam de figuras explicativas.’ Abel acha que, no falar, a significação desejada da palavra dita se indicava pelo gesto.

Segundo Abel, é nas `raízes mais antigas’ que se vê ocorrerem as significações duplas antitéticas. No curso subseqüente do desenvolvimento da linguagem, esta ambigüidade desapareceu e, no Antigo Egito, pelo menos, todos os estágios intermediários se podem acompanhar, até a não-ambigüidade dos vocabulários modernos. `Uma palavra que originariamente comportava duas significações separa-se, na linguagem ulterior, em duas palavras com significações individuais, num processo pelo qual cada uma das duas significações opostas sofre uma “redução” (modificação) fonética particular da raiz original.’ Assim, por exemplo, nos hieróglifos, a palavra “ken”, “forte-fraco”, já se divide em “ken, “forte” e “kan”, “fraco”. Em outras palavras, conceitos a que só se poderia chegar por meio de uma antítese tornaram-se, no curso do tempo, suficientemente familiares às mentes dos homens, possibilitando uma existência independente, para cada uma de suas duas partes, e, em conseqüência, permitindo a formação de um representante fonético separado para cada parte.’

Uma prova da existência de significações primitivas contraditórias, que facilmente se estabelece em egípcio, estende-se segundo Abel, também às línguas semita e indo-européia. `Até que ponto isto pode acontecer em outros grupos lingüísticos está por ver; pois, embora a antítese deva ter estado presente, de início, nas mentes pensantes de cada raça, não precisou necessariamente ter-se tornado reconhecível ou ter sido mantida por toda parte nas significações de palavras.’

Abel em seguida chama a atenção para o fato de que o filósofo Bain, aparentemente sem conhecimento de que o fenômeno de fato existia, sustentou essa dupla significação de palavras sobre fundamentos puramente teóricos, como uma necessidade lógica. A passagem em questão começa com estas frases:

`A relatividade essencial de todo conhecimento, pensamento ou consciência, não se pode mostrar a não ser na linguagem. Se tudo que podemos conhecer é visto como transição de alguma outra coisa, toda experiência deve ter dois lados; e, ou cada nome deve ter uma significação dupla, ou,então, para cada significação deve haver dois nomes.’

Do `Apêndice de Exemplos de Significações Antitéticas Egípcias, Indo-Germânicas e Árabes’ selecionei alguns exemplos que podem impressionar mesmo aqueles de nós que não somos especialistas em filologia. Em latim `altus‘ significa `alto’ e `profundo’, `sacer‘ `sagrado’ e `maldito’; aqui por conseguinte temos a antítese completa de significação sem qualquer modificação do som da palavra. A alteração fonética para distinguir os contrários se ilustra por exemplos como `clamare‘ (`gritar’) … `clam‘ (`suavemente’, `secretamente’); `siccus‘ (`seco’) — `succus‘ (`suco’). Em alemão `Boden‘ (`sótão’ ou `solo’) ainda significa o mais alto bem como o mais baixo da casa. Nosso `bös‘ (`mau’ em alemão) se casa com a palavra `bass‘ (`melhor’ em alemão); em saxão antigo `bat‘ (`bom’) corresponde ao inglês `bad‘ (`mau’) e o inglês `to lock‘ (`fechar’) ao alemão `Lücke‘, `Loch’ (`vazio’, `buraco’). Podemos comparar o alemão `kleben‘ (`espetar’) com o inglês `to cleave‘ (no sentido de `cindir’); as palavras alemãs `stumm‘ (`mudo’) com `Stimme‘ (`voz’), e assim por diante. Desse modo, mesmo a derivação etimológica bastante risível de lucus a non lucendo teria em si algum sentido.

Em seu ensaio sobre `A Origem da Linguagem’ Abel (1885, 305) chama a atenção para traços outros de antigas dificuldades do pensar. Mesmo hoje o homem inglês para exprimir `ohne‘ (`sem’ em alemão) diz `without‘ (`mitohne isto é “com-sem” em alemão) e o prussiano oriental faz o mesmo. A própria palavra `with‘ (`com’ em inglês), que hoje corresponde ao `mit’ (`com’ em alemão) originariamente significava `without‘ (`sem’ em inglês) e ao mesmo tempo `with‘ como se pode reconhecer em `withdraw‘ (`retirar’ em inglês) e `withhold (`reter’ em inglês). A mesma transformação pode ser vista em `wider‘ (`contra’ em alemão) e `wieder‘ (`junto com’ em alemão).

Para uma comparação com o trabalho do sonho há outra característica extremamente estranha da antiga língua egípcia que é significativa. `Em egípcios, as palavras podem — diremos de início, aparentemente — inverter seu som bem como seu sentido. Suponhamos que a palavra alemã `gut‘ [“bom”] fosse egípcia: ela poderia então significar `mau’ do mesmo modo que `bom’, e ser pronunciada `tug‘ do mesmo modo que `gut‘. Numerosos exemplos de tais inversões de som, que são demasiado freqüentes para se explicarem como ocorrências fortuitas, se podem igualmente extrair das línguas ariana e semita. Limitando-nos a princípio às línguas germânicas podemos assinalar: Topf — pot (`pote’ em alemão e `pote’ em inglês); boat — tub (`barco’ em inglês e `banheira’ em inglês); wait — täuwen (`esperar’ em inglês e `esperar’ em alemão); hurry — Ruhe (`pressa’ em inglês e `descanso’ em alemão); care — reck (‘cuidar’ em inglês e `importar-se’ em inglês); Balken — klobe, club (`viga’ em alemão e `cepo’ em alemão e `cepo’ em inglês). Se tomamos as outras línguas indo-germânicas em consideração, o número de exemplos relevantes cresce em conseqüência; por exemplo, capere — packen (`tomar’ em latim e `agarrar’ em alemão); ren — Niere (`rim’ em latim e `rim’ em alemão); leaf — folium (`folha’ em inglês e `folha’ em latim); dum-a, ƒáƒåƒÝƒßƒÆ — mêdh, mûdha, Mut (`pensamento’ em russo, `espírito’ ou `coragem em grego e `mente’ em sânscrito, `coragem’ em alemão); rauchen — kur-ít (`fumar’ em alemão e `fumar em russo); kreischen — to shriek (`gritar` em alemão e `gritar’ em inglês) etc.

Abel tenta explicar o fenômeno de inversão de som como um dobrar ou uma repudiação da raiz. Aqui encontraríamos certa dificuldade em seguir o filólogo. Relembramos nesta conexão o quanto as crianças gostam de brincar de inverter o som de palavras e quão freqüentemente o trabalho do sonho faz uso da inversão do material representativo para várias finalidades. (Aqui não são mais as letras mas as imagens cuja ordem se inverte.) Deveríamos, portanto, nos inclinar mais a fazer provir a inversão de som de um fator de origem mais profunda.

Na correspondência entre a peculiaridade do trabalho do sonho mencionado no início do artigo e a prática descoberta pela filologia nas línguas mais antigas, devemos ver uma confirmação do ponto de vista que formamos acerca do caráter regressivo, arcaico da expressão de pensamentos em sonhos. E nós, psiquiatras, não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem.

 

UM TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELOS HOMENS (CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR I) (1910)

 

BEITRÄGE ZUR PSICHOLOGIE DES LIEBESLEBENS I

ÜBER EINEN BESONDEREN TIPUS DER OBJEKTWAHL BEIM MANNE

 

(a)   EDIÇÕES ALEMÃS:

1910   Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 2 (2), 389-97. (`Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens’ 1.)

1918   S.K.S.N., 4, 200-12 (2ª ed. 1922.)

1924   G.S., 5, 186-978.

1924   Em Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens, Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. (Pp. 3-14.)

1931   Sexualtheorie und Traumlehre, 69-80.

1943   G.W., 8, 66-77.

(b)   TRADUÇÃO INGLESA:

`Contributions to the Psychology of Love:A Special Type of Choice of Object made by Men’

1925   C.P., 4, 192-202. (Tr. Joan Riviere.)

 

A presente tradução inglesa é uma nova feita por Alan Tyson.

Este trabalho, os dois seguintes, embora tenham sido escritos e publicados durante o período de alguns anos, foram reunidos, por Freud, na quarta série de seus ensaios maus curtos (S.K.S.N., 4, 1918) sob o título geral acima impresso. Soubemos, através de Ernest Jones (1955, 333), que Freud anunciara sua intenção de escrever um trabalho desta natureza para uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, em 28 de novembro de 1906. A essência deste trabalho foi apresentada perante a mesma sociedade em 19 de maio de 1909 e comentada uma semana depois. Mas não foi escrita, realmente, senão no começo do verão do ano seguinte.

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira é da autoria de Clotilde da Silva Costa. Revisão geral e técnica de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

UM TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELOS HOMENS (CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR 1)

 

ATÉ AQUI deixamos ao escritor de ficção descrever-nos as condições necessárias ao amor’ que determinam a escolha de um objeto feita pelas pessoas e a maneira pela qual elas conduzem as exigências de sua imaginação em harmonia com a realidade. O escritor pode, realmente, valer-se de certas qualidades que o habilitam a realizar essa tarefa: sobretudo, de sensibilidade que lhe permite perceber os impulsos ocultos nas mentes de outras pessoas e de coragem para deixar que a sua própria, inconsciente, se manifeste. Há, entretanto, uma circunstância que diminui o valor comprobatório do que ele tem a dizer. Os escritos estão submetidos à necessidade de criar prazer intelectual e estético, bem como certos efeitos emocionais. Por essa razão, eles não podem reproduzir a essência da realidade tal como é, se não que devem isolar partes da mesma, suprimir associações perturbadoras, reduzir o todo e completar o que falta. Esses são os privilégios do que se convencionou chamar `licença poética’. Além disso, eles podem demonstrar apenas ligeiro interesse pela origem e pelo desenvolvimento dos estados psíquicos que descrevem em sua forma completa. Torna-se, pois, inevitável que a ciência deva, também, se preocupar com as mesmas matérias, cujo tratamento, pelos artistas, há milhares de anos, vem deleitando tanto a humanidade, muito embora seu trato seja mais tosco e proporcione menos prazer. Essas observações, esperamos, servirão para nos justificar, de modo amplo, o tratamento estritamente científico que damos ao campo do amor humano. A ciência, é, afinal, a renúncia mais completa ao princípio de prazer de que é capaz nossa atividade mental.

No curso do tratamento psicanalítico, há amplas oportunidades para colher impressões sobre a maneira como os neuróticos se comportam em relação ao amor; conquanto possamos evocar, ao mesmo tempo, tendo observado ou ouvido falar de comportamento semelhante em pessoas de saúde normal ou mesmo naquelas de qualidades excepcionais. Quando acontece que o material é favorável e conduz, assim, à acumulação dessas impressões, surgem mais claramente tipos definidos. Começarei aqui pela descrição de um desses tipos de escolha de objeto — que ocorre no homem — já que se caracteriza por uma série de `condições necessárias ao amor’, cuja combinação é ininteligível, e até desconcertante, e visto que admite uma explicação simples de contexto psicanalítico.

 

(1) A primeira dessas precondições para o amor pode ser descrita como positivamente específica: onde quer que ela se manifeste, pode-se procurar a presença de outras características desse tipo. Pode-se designá-la a precondição de que deva existir `uma terceira pessoa prejudicada’; estipula que a pessoa em questão nunca escolherá uma mulher sem compromisso, como seu objeto amoroso — isto é uma moça solteira ou uma mulher casada livre — mas, apenas, aquela sobre a qual outro homem possa reivindicar direitos de posse, como marido, noivo ou amigo. Em alguns casos, essa precondição evidencia-se de modo tão convincente que a mulher pode ser ignorada ou mesmo rejeitada, desde que não pertença a qualquer homem, mas torna-se objeto de sentimentos apaixonados, tão logo estabeleça um desses relacionamentos com outro homem.

(2) A segunda precondição é talvez menos freqüente, mas não menos digna de nota. Deve-se encontrar em conjunção com a primeira para que o tipo se configure, enquanto a primeira precondição parece ocorrer muito amiúde, também, independentemente. Consiste a segunda precondição no sentido de que a mulher casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à condição de objeto amoroso, mas apenas a mulher que é, de uma ou outra forma, sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão expostas a alguma dúvida. Esta última característica pode variar dentro de limites substanciais, do leve murmúrio de escândalo a respeito de uma mulher casada que não seja avessa a namoricos, até o modo de vida francamente promíscuo de uma cocotte ou uma profissional na arte do amor; mas os homens que pertencem ao tipo que descrevemos não ficarão satisfeitos sem algo desta espécie. Pode-se designar esta a segunda condição necessária, de maneira um tanto crua, `amor à prostituta.’

Enquanto a primeira precondição fornece a oportunidade para gratificar impulsos de rivalidade e hostilidade em direção ao homem de quem a mulher é arrebatada, a segunda, a da mulher se assemelhar a uma prostituta, se relaciona à experiência do ciúme, que parece ser uma necessidade para os amantes desse tipo. Sua paixão só atinge o apogeu e a mulher só adquire pleno valor quando, apenas, conseguem sentir ciúmes e eles nunca deixam de aproveitar a ocasião que lhes permita experimentar essas emoções tão poderosas. O incomum é que se torna alvo desse ciúme não o possuidor legítimo da pessoa amada, mas estranhos que fazem seu aparecimento pela primeira vez, em relação aos quais a amada pode ser induzida sob suspeita. Em casos evidentes, o amante não demonstra qualquer desejo de posse exclusiva da mulher e parece sentir-se perfeitamente à vontade na situação triangular. Um de meus pacientes, que sofrera terrivelmente com as escapadelas de sua amada, não fazia qualquer objeção a que ela se casasse e fez todo o possível para que tal acontecesse; e nos anos que se seguiram nunca demonstrou o menor sinal de ciúme do marido. Outro paciente típico havia tido, é verdade, muito ciúme do marido no seu primeiro caso amoroso e proibira a mulher de ter relações maritais; porém, nos seus numerosos casos subseqüentes comportou-se como os demais integrantes desse tipo e já não mais considerava o marido legítimo como um entrave.

É o suficiente para as condições que se exigem do objeto amoroso. Os seguintes pontos descrevem o comportamento do amante em relação ao objeto que escolheu.

(3) No amor normal, o valor da mulher é aferido por sua integridade sexual, e é reduzido em vista de qualquer aproximação com a característica de ser semelhante a prostituta. Por conseguinte, o fato de que as mulheres com essa característica sejam consideradas pelos homens do tipo em questão como objetos amorosos do mais alto valor parece constituir acentuável desvio do normal. Seus relacionamentos amorosos com essas mulheres exigem-lhes enorme dispêndio de energia mental, com exclusão de todos os demais interesses; elas são sentidas como as únicas pessoas a quem é possível amar, e a exigência de fidelidade que o amante faz a si próprio repete-se, sempre e sempre, não obstante quantas vezes, na realidade, seja transgredida. Essas características de relacionamentos amorosos, que ora descrevo, revelam, muito claramente, sua natureza compulsiva, conquanto seja algo que, até certo ponto, ocorra a qualquer pessoa que se apaixone. Mas a fidelidade e a intensidade que caracterizam a relação não nos devem levar a esperar que um único relacionamento amoroso dessa espécie possa constituir toda a vida erótica da pessoa em questão, ou ocorrer, apenas, uma vez na vida. Ao contrário, os relacionamentos apaixonados desse tipo repetem-se com as mesmas peculiaridades — cada qual uma réplica exata dos outros — sempre e sempre, nas vidas do homem desse tipo; de fato, devido a ocorrências externas, como mudança de residência e de ambiente, os objetos amorosos podem substituir uns aos outros, tão amiúde, que se forma uma extensa série dos mesmos.

 

(4) O que é mais espantoso, para o observador de amantes desse tipo, é a ânsia que demonstram de `salvar’ a mulher amada. O homem se convence de que ela precisa dele, que sem ele perderá todo o controle moral e, rapidamente descerá para um nível lamentável. Salva-a, portanto, por não a abandonar. Em certos casos individuais, a idéia de ter de salvá-la pode ser justificadas por alusão à sua inconstância sexual e aos perigos de sua posição social: mas não é menos evidente quando isto, na realidade, não possui base. Um homem do tipo que estou descrevendo, que sabia como conquistar suas mulheres, com métodos inteligentes de sedução e argumentos engenhosos, não media esforços, no decorrer dessas aventuras, para manter a mulher, pela qual estava apaixonado no momento, no caminho da `virtude’, emprestando-lhe traços de sua própria constituição.

Se examinarmos as diferentes características do quadro aqui apresentado — as condições que se impõem ao homem, de que sua amada não deve ser desimpedida e deve ser semelhante a prostituta, o alto valor que lhe atribui, sua necessidade de sentir ciúmes, sua fidelidade que, não obstante, é compatível em ser transgredida, em uma longa série de circunstâncias, e a ânsia de salvar a mulher — parecerá pouco provável que todas decorram de uma única fonte. No entanto, a investigação psicanalítica da biografia de homens deste tipo tem revelado, facilmente, que não há uma fonte única. A escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada, e esta maneira extremamente singular de se comportar no amor, tem a mesma origem psíquica que encontramos nos amores das pessoas normais. Derivam da fixação infantil de seus sentimentos de ternura pela mãe e representam uma das conseqüências dessa fixação. No amor normal, apenas sobrevivem algumas características que revelam, de maneira inconfundível, o protótipo materno da escolha de objeto, como, por exemplo, a preferência demonstrada pelos homens jovens por mulheres mais maduras; o destacamento da libido da mãe efetuou-se de maneira relativamente rápida. No tipo que descrevemos, por outro lado, a libido permaneceu ligada à mãe por tanto tempo, mesmo depois do início da puberdade, que as características maternas permanecem impressas nos objetos amorosos que são escolhidos mais tarde, e todas elas se transformam em substitutos facilmente reconhecíveis da mãe. A comparação com a maneira em que é formado o crânio de um recém-nascido vem logo à mente neste ponto: depois de um parto prolongado ele toma sempre a forma do molde da parte estreita da pelve materna.

Vamos agora demonstrar a plausibilidade de nossa afirmação de que os traços característicos do tipo que descrevemos — suas condições para amar e seu comportamento no amor — realmente decorrem da constelação psíquica relacionada à mãe. Isto pareceria ser mais fácil no que diz respeito à primeira precondição — a condição de que a mulher deve ser desimpedida, ou de que haja uma terceira pessoa injuriada. É, de imediato, evidente que, para a criança que está crescendo no círculo familiar, o fato de que a mãe, ao pertencer ao pai, torna-se parte inseparável da essência da mãe, e que a terceira pessoa injuriada não é outra senão o próprio pai. Pode-se observar a característica de supervalorizar a pessoa amada, e de considerá-la como única e insubstituível, por recair, também, naturalmente no contexto da experiência da criança, pois ninguém possui mais de uma mãe, e a relação com ela baseia-se em um acontecimento que não pode ser exposto a qualquer dúvida e nem pode ser repetido.

Se quisermos entender os objetos amorosos escolhidos pelo tipo que descrevemos como sendo, sobretudo, substitutos da mãe, então a formação de uma série deles, que parece contradizer tão positivamente a condição de ser fiel a um, pode também, agora, ser compreendida. Aprendemos pela psicanálise, em outros exemplos, que a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada. É esta a explicação do desejo insaciável de fazer perguntas, demonstrado pelas crianças de certa idade: têm apenas uma simples pergunta a fazer, mas nunca chegam a formulá-la. Explica também a garrulice de certas pessoas atingidas pela neurose; vêem-se sob a pressão de um segredo que estão ansiosos por divulgar, mas que, apesar de todas as tentações, nunca revelam.

Por outro lado, a segunda precondição para amar — a condição de que o objeto escolhido deva se assemelhar a uma prostituta — parece se opor, energicamente, à derivação do complexo materno. O pensamento consciente do adulto apraz-se em considerar a mãe como uma pessoa de pureza moral inatacável; e poucas idéias são para ele tão ofensivas, quando partem de outros, ou sente como tão atormentadoras, quando surgem de sua própria mente, como a que proclama esse aspecto de sua mãe. No entanto, exatamente essa relação do contraste agudo entre a `mãe’ e a `prostituta’ nos animará a investigar a história do desenvolvimento desses dois complexos e da relação inconsciente entre os mesmos, já que, há muito tempo, descobrimos que o que, no consciente, se encontra dividido entre dois opostos, muitas vezes ocorre no inconsciente como uma unidade. A investigação leva-nos, então, de volta a uma época na vida do menino em que ele adquire conhecimento mais ou menos completo das relações sexuais entre os adultos, aproximadamente em torno dos anos da pré-puberdade. Partes brutais de informação que são indiscriminadamente destinadas a suscitar desprezo e rebeldia, agora, lhe comunicam o segredo da vida sexual e destroem a autoridade dos adultos, que parece incompatível com a revelação de suas atividades sexuais. O aspecto dessas descobertas, que afetam mais profundamente a criança recém-instruída, é a maneira em que são aplicadas a seus próprios pais. Essa aplicação é, muitas vezes, francamente rejeitada por ela, mais ou menos nestas palavras: `Seus pais e outras pessoas podem fazer coisas como esta entre si, mas meus pais, possivelmente, não podem fazê-las.’

Como um corolário praticamente invariável desse esclarecimento sexual, o menino adquire, ao mesmo tempo, o conhecimento da existência de certas mulheres que praticam relações sexuais como um meio de vida e, que, por esse motivo, são mantidas no desprezo geral. O menino, ele próprio, se encontra, evidentemente, longe de sentir esse desprezo: tão logo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes na vida sexual, que até então ele aceitava como estando exclusivamente reservadas para `a gente grande’, ele, apenas, as considera como um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode mais nutrir qualquer dúvida que tornem seus pais uma exceção às normas universais e odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica cínica, que a diferença entre sua mãe e uma prostituta não é afinal tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa. A informação esclarecedora que recebeu, despertou, de fato, traços de lembrança das impressões e desejos de sua tenra infância que, por sua vez, levaram à reativação de certos impulsos psíquicos. Ele começa a desejar a mãe para si mesmo, no sentido com o qual, há pouco, acabou de se inteirar, e a odiar, de nova forma, o pai como um rival que impede esse desejo; passa, como dizemos, ao controle do complexo de Édipo. Não perdoa a mãe por ter concedido o privilégio da relação sexual, não a ele, mas a seu pai, e considera o fato como um ato de infidelidade. Se esses impulsos não desaparecem rapidamente, não há outra saída para os mesmos, senão seguir seu curso através de fantasias que têm por tema as atividades sexuais da mãe, nas mais diversas circunstâncias; e a tensão conseqüente leva, de maneira particularmente rápida; a buscar alívio na masturbação. Como resultado da ação combinada, constante, de duas forças impulsivas, desejo e sede de vingança, as fantasias acerca da infidelidade da mãe são, de longe, as que prefere; o amante com o qual ela comete o ato de infidelidade, quase sempre exibe as feições do próprio ego do menino, ou, mais extamente, de sua própria personalidade idealizada, adulta e, assim, elevada ao nível do pai. O que, em outra parte descrevi como o `romance familiar’ comprende as várias ramificações dessa atividade imaginativa e a maneira pela qual elas se entrelaçam com os diversos interesses egoístas desse período da vida.

Agora que adquirimos a compreensão dessa parte do desenvolvimento psíquico, já não podemos mais considerar contraditório e incompreensível que a precondição de que a pessoa amada se assemelhe a prostituta derive diretamente do complexo materno. O tipo de amor masculino que descrevemos tem os traços dessa evolução e é fácil de compreender como uma fixação das fantasias formadas pelo menino na puberdade — fantasias que, afinal, mais tarde, encontraram vazão na vida real. Não é difícil admitir que a prática assídua da masturbação durante os anos da puberdade desempenhou seu papel na fixação das fantasias.

A ânsia de salvar a pessoa amada parece conduzir a uma relação, apenas, vaga e superficial, e plenamente explicada por motivos conscientes, com essas fantasias que acabaram por dominar o amor do homem na vida real. Devido a sua propensão a ser volúvel e infiel, a pessoa amada se coloca em situações perigosas e, assim, é compreensível que o amante tenha de se esforçar para protegê-la contra esses perigos, vigiando-lhe a virtude e combatendo-lhe as tendências más. Entretanto, o estudo das lembranças encobridoras das pessoas, fantasias e sonhos noturnos, revela que deparamos, aqui, com uma `racionalização’ especialmente oportuna de um motivo inconsciente, um processo que pode ser comparado à elaboração secundária bem- sucedida de um sonho. No fato real, o `tema-salvamento’ tem um significado e um histórico próprios, e é um derivativo independente do complexo materno ou, mais exatamente, do complexo parental. Quando a criança ouve dizer que deve sua vida aos pais, ou que sua mãe lhe deu a vida, seus sentimentos de ternura aliam-se a impulsos que lutam pelo poder e pela independência, e geram o desejo de retribuir essa dádiva aos pais e de compensá-los com outra de igual valor. É como se o desafio do menino o fizesse dizer: `Não quero nada de meu pai; devolver-lhe-ei tudo quanto gastou comigo. Ele cria, então a fantasia de salvar o pai de perigo e de proteger-lhe a vida; desse modo ajusta as contas com ele. Essa fantasia, via de regra, é muito deslocada em direção a um imperador, rei ou outro grande homem; depois de haver sido assim destorcida torna-se admissível à consciência, e pode até ser utilizada pelos escritores de ficção. Nessa aplicação ao pai do menino, o sentido desafiador da idéia de salvamento é de longe o mais importante; no que diz respeito à mãe, o mais importante é, geralmente, o sentido da ternura. A mãe deu à criança a vida, e não é fácil encontrar um substituto de igual valor para essa dádiva sem par. Com uma ligeira modificação do significado, tal como é facilmente realizado no inconsciente, e é comparável à maneira pelaqual os conceitos da consciência se diluem uns nos outros, salvar a mãe adquire o significado de lhe dar uma criança ou de lhe fazer uma criança — é supérfluo dizer, uma igual a ele. Isso não se afasta muito do sentido original o salvamento, e a mudança de significado não é arbitrária. Sua mãe lhe deu a vida — sua própria vida — e, em troca, ele lhe dá uma outra vida, a de uma criança que tem com ele a maior semelhança. O filho demonstra sua gratidão desejando ter, com sua mãe, um filho igual a ele próprio; em outras palavras, na fantasia de salvamento ele está se identificando completamente com o pai. Todos os seus instintos, os de ternura, gratidão, lascívia, desafio e independência encontram satisfação no desejo único de ser o próprio pai. Mesmo o elemento de perigo não se perdeu na modificação de significado; pois o próprio ato do nascimento é o perigo de que foi salvo pelos esforços da mãe. O nascimento é tanto o primeiro de todos os perigos de sua vida, como o protótipo de todos os subseqüentes que nos levam a sentir ansiedade, e a experiênmcia do nascimennto, provavelmente, nos legou a expressão de afeto que chamamos de ansiedade. Macduff, da lenda escocesa, que não nasceu de sua mãe mas lhe foi arrancado do ventre, por esse motivo não conhecia a ansiedade.

Artemidoro, o intérprete dos sonhos da antiguidade, estava certamente com razão ao afirmar que a significação de um sonho depende de quem venha a ser a pessoa que sonha. De acordo com as leis que regem a expressão dos pensamentos inconscientes, o significado de salvamento pode variar, dependendo de o autor da fantasia ser homem ou mulher. Pode igualmente significar (no caso de um homem) fazer uma criança, isto é, causar seu nascimento, ou (no caso de uma mulher) dar à luz uma criança. Esses vários significados do salvamento nos sonhos e fantasias podem ser reconhecidos de maneira especialmente clara, quando são encontrados em conexão com a água. Um homem que salva uma mulher da água, em um sonho, quer dizer que a torna mãe, o que, do ponto de vista do comentário acima, equivale a fazer dela sua própria mãe. Uma mulher que salva alguma outra pessoa (uma criança) da água, reconhece ser a mãe que a gerou, como a filha do Faraó na lenda de Moisés (Rank, 1909). Às vezes, existe também um significado de ternura contido nas fantasias de salvamento em relação ao pai. Nestes casos, visam a expressar o desejo da pessoa de ter o pai como seu filho — isto é, de ter um filho igual ao pai.

 

É devido a todas essas conexões entre o tema-salvamento e o complexo parental que a ânsia de salvar a pessoa amada constitui uma característica importante do tipo de amor que vimos estudando.

Não creio necessário justificar meu método de trabalho sobre este assunto; como na minha apresentação a respeito do erotismo anal [Freud 1908b], também aqui procurei, em primeiro lugar, destacar, do material observado, os tipos extremos e claramente definidos. Em ambos os casos, encontramos um número muito maior de indivíduos nos quais apenas algumas características do tipo podem ser identificadas, ou apenas características que não são nitidamente acentuadas, e é evidente que não será possível avaliar adequadamente esses tipos enquanto todo o contexto a que pertencem não for investigado.

 

SOBRE A TENDÊNCIA UNIVERSAL À DEPRECIAÇÃO NA ESFERA DO AMOR

(CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II) (1912)

 

BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS II

ÜBER DIE ALLGEMEINSTE ERNIEDRIGUNG

DES LIEBESLEBENS

 

(a)   EDIÇÕES ALEMÃS:

1912   Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 4 (1), 40-50 (`Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens’ II.)

1918   S.K.S.N., 4, 213-28 (2ª ed. 1922.)

1924   G.S., 5, 198-211.

1924   In Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens. Leipzig, Viena e Zurique: International Psychoanalytischer Verlag. (Págs. 15-28.)

1931   Sexualtheorie und Traumlehre, 80-95.

1943   G.W., 8, 78-91

 (b)   TRADUÇÕES INGLESAS:

`Contribuitions to the Psychology of Love: The Most Prevalent Form of Degradation in Erotic Life’

1925   C.P., 4, 203—16. (Trad. Joan Riviere.)

 A tradução inglesa atual, feita por Alan Tyson, é inteiramente nova e com um título diferente `On the Universal Tendenty of Debasement in the Sphere of Love’ (Sobre a Tendênia Universal à Depreciação na Esfera do Amor).

A discussão das duas correntes sexuais na primeira parte deste trabalho é, na realidade, um suplemento ao Three Essays on the Theory of Sexuality (1905d) (Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade), edição de 1915, na qual está, de fato, incluído um pequeno resumo desta (ver em [1]). A análise da impotência psíquica que ocupa a parte central deste trabalho é a contribuição mais importante de Freud nesta matéria. A última parte do trabalho é uma das suas longas séries de elaborações no tema do antagonismo entre a civilização e a vida instintiva, do qual mostra um outro exemplo em Five Lectures (Cinco Lições), ver em [2]. Seu argumento mais completo neste assunto pode ser encontrado no trabalho sobre `“Civilized” Sexual Ethics and Modern Nervous Illness’ (1908d) (`Ética Sexual “Civilizada” e Enfermidade Nervosa Moderna’) e no livro escrito muito mais tarde, Civilization and its Discontents (1930a) (O Mal-Estar na Civilização).

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira é da autoria de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

SOBRE A TENDÊNCIA UNIVERSAL À DEPRECIAÇÃO NA ESFERA DO AMOR

(CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II)

 

1

Se o psicanalista clínico indagar a si mesmo qual perturbação leva as pessoas com maior freqüência a o procurarem em busca de auxílio, ele será compelido a responder — deixando de lado as diversas formas de ansiedade — que consiste na impotência psíquica. Esta singular perturbação atinge homens de natureza intensamente libidinosa e se manifesta como uma recusa dos órgãos executores da sexualidade de levar a cabo o ato sexual, conquanto antes e depois eles possam demonstrar-se como íntegros e capazes de praticá-lo e conquanto apresentem forte propensão psíquica a realizá-lo. A primeira chave para a compreensão do seu estado se obtém do próprio paciente, ao efetuar-se a descoberta de que um malogro dessa espécie só surge quando a tentativa se realiza com determinadas pessoas, enquanto com outras nunca há qualquer cogitação de tal insucesso. Ele se dá conta, então, de que constitui alguma característica do objeto sexual que dá origem à inibição de sua potência masculina e, às vezes, declara que possui a sensação de um obstáculo dentro dele, a sensação de uma vontade contrária que interfere vitoriosamente com a sua intenção consciente. No entanto, é incapaz de se representar que obstáculo interno é esse e que característica do objeto sexual o põe em funcionamento. Se a experiência do malogro se repetiu, é provável que atribua ao processo habitual de `conexão errônea,’ de que a recordação da primeira ocasião evocava a idéia de ansiedade perturbadora, e assim motivava que o malogro se repetisse todas as vezes; conquanto atribua a primeira ocasião em si a alguma impressão `fortuita’.

Os estudos psicanalíticos da impotência já foram realizados e publicados por vários autores. Todo analista pode confirmar as explicações por eles fornecidas, através de sua própria experiência clínica. Trata-se, de fato, de uma questão da influência inibitória de certos complexos psíquicos que são removidos do conhecimento do indivíduo. Uma fixação incestuosa na mãe ou na irmã, que nunca foi superada, desempenha um papel importante nesse material patogênico e constitui o seu conteúdo mais universal. Além disso, existe a influência, a se considerar, das impressões penosas acidentais relacionadas à atividade sexual infantil, e também aqueles fatores que, de maneira geral, reduzem a libido que se deve dirigir ao objeto sexual feminino.

Quando se investigam, exaustivamente, casos marcantes de impotência psíquica pela psicanálise, obtém-se a seguinte informação sobre os processos psicossexuais ativos nos mesmos. Aqui de novo — como muito provavelmente em todas as perturbações neuróticas — a origem da perturbação é determinada por uma inibição na história do desenvolvimento da libido antes que esta assuma a forma que tomamos como sua terminação normal. Nos casos que estamos considerando, duas correntes cuja união é necessária para assegurar um comportamento amoroso completamente normal, falharam em se combinar. Podem-se distinguir as duas como a corrente afetiva e a corrente sensual.

A corrente afetiva é a mais antiga das duas. Contitui-se nos primeiros anos da infância; forma-se na base dos interesses do instinto de autopreservação e se dirige aos membros da família e aos que cuidam da criança. Desde o início, leva consigo contribuições dos instintos sexuais — componentes de interesse erótico — que já se podem observar, de maneira mais ou menos clara, mesmo na infância, e que se descobrem de algum modo mais tarde nos neuróticos através da psicanálise. Corresponde à escolha de objeto, primária, da criança. Aprendemos, assim, que os instintos sexuais encontram seus primeiros objetos ao se apegarem às apreciações feitas pelos instintos do ego, precisamente no momento em que as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções necessárias à preservação da vida. A `afeição’ demonstrada pelos pais da criança e pelos que dela cuidam, que raramente deixa de delatar sua natureza erótica (`a criança é um brinquedo erótico’), concorre, em grande parte, para erigir as contribuições feitas pelo erotismo às catexias de seus instintos do ego e para incrementá-la numa medida em que se compele a desempenhar um papel em seu desenvolvimento ulterior, principalmente quando algumas outras circunstâncias emprestam seu suporte.

Essas fixações afetivas da criança persistem por toda a infância e continuamente conduzem consigo o erotismo, que, em conseqüência, se desvia de seus objetivos sexuais. Então, com a puberdade, elas se unem através da poderosa corrente `sensual’, a qual já não se equivoca mais em seus objetivos. Evidentemente, jamais deixa de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os objetos da escolha infantil primária com cotas de libidos, que são agora muito mais poderosas. Neste ponto, no entanto, defronta-se com obstáculos que, nesse meio tempo, foram erigidos pela barreira contra o incesto; em conseqüência, se esforçará por transpor esses objetos que são, na realidade, inadequados, e encontrar um caminho, tão breve quanto possível, para outros objetos estranhos com os quais se possa levar uma verdadeira vida sexual. Esses novos objetos ainda serão escolhidos ao modelo (imago) dos objetos infantis, mas com o correr do tempo, atrairão para si a afeição que se ligava aos mais primitivos. Um homem deixará seu pai e sua mãe — segundo o preceito bíblico — e se apegará à sua mulher; então, se associam afeição e sensualidade. O máximo de intensidade de paixão sensual trará consigo a mais alta valorização psíquica do objeto — sendo esta a supervalorização normal do objeto sexual por parte do homem.

Dois fatores decidirão se esse avanço no caminho do desenvolvimento da libido pode falhar. Em primeiro lugar, há a quantidade de frustração da realidade que se opõe à nova escolha de objeto e reduz seu valor para a pessoa em questão. Afinal não há qualquer sentido em decidir-se por uma escolha de objeto se nenhuma escolha será de todo permitida ou se não há nenhuma perspectiva de ser capaz de escolher alguma coisa adequada. Em segundo lugar, há a quantidade de atração que são capazes de exercer os objetos infantis, que deverão ser abandonados, e que existe em proporção às catexias eróticas que se ligam a eles na infância. Se esses dois fatores forem suficientemente fortes, o mecanismo geral, por meio do qual se estruturam as neuroses, entra em funcionamento. A libido afasta-se da realidade, é substituída pela atividade imaginativa (o processo de introversão), fortalece as imagens dos primeiros objetos sexuais e se fixa nos mesmos. O obstáculo erguido contra o incesto, entretanto, compele a libido, que se transferiu para esses objetos, a permanecer no inconsciente. A atividade masturbatória levada a efeito pela corrente sensual, que agora é parte do inconsciente, faz sua própria contribuição, ao fortalecer essa fixação. Nada se altera nesse estado de coisas, se o avanço, que é abortado na realidade, se completa agora na fantasia e se nas situação que levam à satisfação masturbatória os objetos sexuais originais são substituídos por objetos diferentes. Em conseqüência dessa substituição, as fantasias se tornam admissíveis à consciência, mas não se faz qualquer progresso na localização da libido na realidade. Deste modo, pode acontecer que a totalidade da sensualidade de um jovem se ligue a objetos incestuosos no inconsciente, ou para colocar em outras palavras, se fixe em fantasias incestuosas inconscientes. O resultado, então, é a impotência total que, talvez, mais tarde se reforce pelo início simultâneo de um real debilitamento dos órgãos que realizam o ato sexual.

Necessita-se de condições menos graves para dar origem ao estado conhecido especificamente como impotência psíquica. Neste caso, o destino da corrente sensual não deve ser o de que sua carga total tenha de se ocultar atrás da corrente afetiva; ela deve ter permanecido suficientemente forte ou desinibida para assegurar vazão parcial à realidade. A atividade sexual dessas pessoas apresenta sinais muito evidentes, entretanto, de que não possui a força impulsiva psíquica total do instinto por trás dela. É caprichosa, facilmente perturbada, muitas vezes não propriamente executada e não acompanhada de muito prazer. Mas, acima de tudo, é forçada a evitar a corrente afetiva. A restrição, assim, se colocou na escolha do objeto. A corrente sensual, que permaneceu ativa, procura apenas objetos que não rememorem as imagens incestuosas que lhe são proibidas; se alguém causa uma impressão que pode levar à sua alta estima psíquica, essa impressão não encontra escoamento em nenhuma excitação sensual, exceto na afeição que não possui efeito erótico. Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece dividada em duas direções personificadas na arte do amar tanto sagrada como profana (ou animal). Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar. Procuram objetos que não precisem amar, de modo a manter sua sensualidade afastada dos objetos que amam; e, de acordo com as leis da `sensibilidade complexiva’ e do retorno do reprimido, o estranho malogro, demonstrado na impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido através de alguma característica, freqüentemente imperceptível.

A principal medida protetora contra essa perturbação a que os homens recorrem nessa divisão de seu amor consiste na depreciação do objeto sexual, sendo reservada a supervalorização, que normalmente se liga ao objeto sexual para o objeto incestuoso e seus representantes. Logo que se consuma a condição de depreciação, a sensualidade pode se expressar livremente e podem se desenvolver importantes capacidades sexuais e alto grau de prazer. Há um outro fator que contribui para esta conseqüência. As pessoas nas quais não houve a confluência apropriada das corrente afetiva e sensual geralmente não demonstram muito refinamento nas suas formas de comportamento amoroso; elas retiveram suas finalidades sexuais perversas, cuja não-realização é sentida como uma grave perda de prazer e cuja realização, por outro lado, só parece possível com um objeto sexual depreciado e desprezado.

Podemos agora compreender os motivos ocultos sob as fantasias do menino, mencionadas na primeira dessas `Contribuições’ (ver em [1]), que degradam a mãe ao nível de uma prostituta. São esforços para transpor a distância entre as duas correntes amorosas, pelo menos em fantasia e, pela depreciação da mãe, adquiri-la como objeto de sensualidade.

2

 No capítulo anterior, abordamos o estudo da impotência psíquica do ângulo médico-psicológico, ao qual o título deste trabalho não faz alusão. Tornar-se-á evidente, no entanto, que esta introdução foi por nós requerida para proporcionar acesso a nosso tema propriamente dito.

Reduzimos a impotência psíquica à falha em se combinar as correntes afetivas e sensual no amor e se explicou essa inibição do desenvolvimento, por sua vez, como se devendo a influências de poderosas fixações infantis e da subseqüente frustração da realidade através da intervenção da barreira contra o incesto. Há uma objeção principal à teoria que desenvolvemos: oferece demasiado. Explica por que certas pessoas padecem de impotência psíquica, mas nos deixa frente ao mistério aparente de como outras foram capazes de escapar a essa perturbação. Visto que devemos reconhecer que todos os fatores relevantes que conhecemos — a forte fixação infantil, a barreira ao incesto e a frustração nos anos de desenvolvimento depois da puberdade — podem ser encontrados em praticamente todos os seres humanos civilizados, deve-se justificar a perspectiva da impotência psíquica como uma condição universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos.

Seria fácil fugir a esta conclusão apontando para o fator quantitativo na motivação da doença — para o maior ou menor grau da contribuição feita pelos vários elementos que determinam se resulta ou não uma enfermidade reconhecível. Conquanto, porém, eu aceite esta resposta como correta, não é minha intenção transformá-la no motivo para rejeitar a própria conclusão. Ao contrário, apresentarei o conceito de que a impotência psíquica está muito mais difundida do que se supõe e que certa extensão desse comportamento caracteriza, de fato, o amor do homem civilizado.

Se se ampliar o conceito da impotência psíquica e não se restringir o malogro em realizar o ato do coito, em circunstâncias em que esteja presente o desejo de obter prazer e o aparelho genital esteja intacto, podemos, em primeiro lugar, acrescentar todos aqueles homens que são descritos como psicanestésicos: homens que nunca falham no ato, mas que o realizam sem dele derivar qualquer prazer especial — um estado de coisas que é muito mais comum do que se pensa. O exame psicanalítico desses casos revela os mesmos fatores etiológicos encontrados na impotência psíquica no seu sentido mais estrito, sem antes encontrar qualquer explicação para a diferença entre seus sintomas. Uma analogia facilmente justificável nos leva desses homens anestésicos para o imenso número de mulheres frígidas; e não há melhor maneira de descrever ou compreender seu comportamento amoroso do que comparando-o à perturbação manifesta da impotência psíquica nos homens.

Se, no entanto, voltarmos nossa atenção, não para a extensão do conceito de impotência psíquica mas para as gradações em sua sintomatologia, não poderemos fugir à conclusão de que o comportamento amoroso dos homens, no mundo civilizado de hoje, de modo geral traz o selo da impotência psíquica. Existe apenas um pequeno número de pessoas educadas em que as duas correntes, de afeição e de sensualidade, se fundiram adequadamente; o homem quase sempre sente respeito pela mulher, que atua como restrição à sua atividade sexual, e só desenvolve potência completa quando se acha com um objeto sexual depreciado; e isto, por sua vez, é causado, em parte, pela entrada de componentes perversos em seus objetivos sexuais, os quais não ousa satisfazer com a mulher que ele respeita. Assegura-se de prazer sexual completo apenas quando se pode dedicar sem reserva a obter satisfação, o que, com sua mulher bem educada, por exemplo, não se atreve a realizar. É esta a origem de sua necessidade de um objeto sexual depreciado, de uma mulher eticamente inferior, a quem não precise atribuir escrúpulos estéticos, que não o conheça em seu outro círculo de relações sociais e que ali não o possa julgar. É a esta mulher que prefere dedicar sua potência sexual, mesmo quando toda sua afeição pertença a uma mulher de natureza superior. Também é possível que a tendência a escolher uma mulher de classe mais baixa para sua amante permanente ou mesmo para sua esposa, tão freqüentemente observada nos homens das classes mais altas da sociedade, nada mais seja que a conseqüência de sua necessidade de um objeto sexual depreciado, a quem se vincule psicologicamente a possibilidade de completa satisfação sexual.

Não vacilo em admitir que os dois fatores em atividade na impotência psíquica, no sentido estrito — os fatores de intensa fixação incestuosa, na infância, e a frustração devida à realidade, na adolescência — respondam também por esta característica extremamente comum do amor dos homens civilizados. Parece não só desagradável mas também paradoxal, que deva, não obstante, afirmar que alguém, para ser realmente livre e feliz no amor, tem de sobrepujar seu respeito pelas mulheres e aceitar a idéia do incesto com sua mãe ou irmã. Qualquer pessoa que se sujeite a uma séria introspecção a respeito dessa necessidade certamente se convencerá ao descobrir que considera o ato sexual, basicamente, algo degradante, que conspurca e polui mais do que simplesmente o corpo. A origem dessa vil opinião, que ele certamente não reconhecerá de boa-vontade, deve ser procurada no período de sua infância em que a corrente sensual nele existente já estava grandemente desenvolvida, mas sua satisfação com um objeto fora da família era quase tão absolutamente proibida como o era com um objeto incestuoso.

No nosso mundo civilizado, as mulheres estão sob a influência de um efeito residual, semelhante, de sua educação e, além disso, de sua reação ao comportamento dos homens. É, naturalmente, tão desvantajoso para uma mulher se um homem a procura sem sua potência plena como o é se a supervalorização inicial dela, quando enamorado, dá lugar a uma subvalorização depois de possuí-la. No caso das mulheres, há pouca indicação da necessidade de depreciar seu objeto sexual. Isto se liga, sem dúvida, com a ausência nelas, geralmente, de nada semelhante à supervalorização que se encontra nos homens. Porém, sua longa contenção de sexualidade e seu anseio de sensualidade em fantasia, tem para elas outra conseqüência importante. São, muitas vezes, subseqüentemente, incapazes de desfazer a conexão entre a atividade sensual e a proibição, tornando-se psiquicamente impotentes, isto é, frígidas, quando tal atividade, finalmente, lhes é permitida. Esta é a origem do empenho realizado por muitas mulheres de manter secretas, por certo tempo, mesmo suas relações legítimas; e da capacidade de outras mulheres para a sensação normal, tão logo a condição de proibição se restabeleça devido a uma relação amorosa secreta: infiéis a seus maridos, são capazes de manter um segunda espécie de finalidade em relação a seus amantes [cf. em [1]].

A condição de proibitividade na vida erótica das mulheres é comparável, creio eu, à necessidade da parte dos homens de depreciar seu objeto sexual. Ambas são conseqüências de um longo período de demora, que é exigida pela educação, por razões culturais, entre a maturidade sexual e a atividade sexual. Ambas tendem a abolir a impotência psíquica que resulta do malogro de se fundirem os impulsos afetuosos e sensuais. O fato de que o efeito das mesmas causas seja tão diferente nos homens e nas mulheres pode talvez ser atribuído a outra diferença no comportamento dos dois sexos. As mulheres civilizadas geralmente não transgridem a proibição de atividade sexual durante o período em que têm de esperar e, assim, estabelecem a ligação íntima entre proibição e sexualidade. Os homens geralmente desrespeitam essa proibição se podem satisfazer a condição de depreciar o objeto e, em conseqüência, mantêm essa condição em seu amor mais tarde, na vida.

Em vista dos esforços extenuantes que se fazem hoje, no mundo civilizado, para reformar a vida sexual, será supérfluo advertir que a pesquisa psicanalítica está tão isenta de tendenciosidade quanto qualquer outra espécie de pesquisa. Não há nenhum outro objetivo em vista além de derramar alguma luz sobre as coisas, ao procurar que se revele o que está oculto. Será bastante satisfatório se as reformas fizerem uso dessas descobertas para substituir o que é prejudicial por algo mais vantajoso; mas não se pode predizer se outras instituições não redundarão em outros sacrifícios, talvez mais sérios.

3

O fato de que a restrição feita ao amor pela civilização envolva uma tendência universal a depreciar os objetos sexuais pode conduzir-nos, talvez, a desviar nossa atenção do objeto para os instintos em si. O prejuízo causado pela frustração inicial do prazer sexual se evidencia no fato de que a liberdade mais tarde concedida a esse prazer, no casamento, não proporcione satisfação completa. Mas, ao mesmo tempo, se não se limita a liberdade sexual desde o início, o resultado não é melhor. Pode-se verificar, facilmente, que o valor psíquico das necessidades eróticas se reduz, tão logo se tornem fáceis suas satisfações. Para intensificar a libido, se requer um obstáculo; e onde as resistências naturais à satisfação não foram suficientes, o homem sempre ergueu outros, convencionais, a fim de poder gozar o amor. Isto se aplica tanto ao indivíduos como às nações. Nas épocas em que não havia dificuldades que impedissem a satisfação sexual, como, talvez, durante o declínio das antigas civilizações, o amor tornava-se sem valor e a vida, vazia; eram necessárias poderosas formações reativas para restaurar os valores afetivos indispensáveis. Nessa conexão, pode-se afirmar que a corrente ascética da Cristandade criou valores psíquicos para o amor que a antiguidade pagã nunca fôra capaz de lhe conferir. Essa corrente adquiriu sua maior importância através dos monges ascéticos, cujas vidas foram quase exclusivamente dedicadas a combater a tentação libidinosa.

Nosso primeiro impulso consiste, sem dúvida, em retraçar as dificuldades aqui reveladas às características universais de nossos instintos orgânicos. Por certo também é verdade que, em geral, a importância psíquica de um instinto cresce em proporção a sua frustração. Suponhamos que uma série de pessoas, totalmente diferentes, fossem todas igualmente sujeitas à fome. À medida que sua necessidade imperiosa de alimentos crescesse, todas as diferenças individuais desapareceriam e, em seu lugar, observar-se-iam manifestações uniformes do único instinto não-saciado. Mas, será também verdade que, com a satisfação de um instinto, seu valor psíquico sempre cai na mesma proporção? Consideremos, por exemplo, a relação de um beberrão com o vinho. Não é verdade que o vinho sempre proporciona ao beberrão a mesma satisfação tóxica que, na poesia, tem sido tão freqüentemente comparada à satisfação erótica — uma comparação que também é igualmente aceitável do ponto de vista científico? Alguém já ouviu falar de que o beberrão seja obrigado a trocar constantemente de bebida, porque logo enjoa de beber a mesma coisa? Ao contrário, o hábito constantemente reforça o vínculo que prende o homem à espécie de vinho que ele bebe. Alguém já ouviu falar de um beberrão que precise ir a um país em que o vinho seja mais caro ou em que seja proibido beber, de modo que, erguendo obstáculos, ele possa aumentar a satisfação decrescente que obtém? De maneira nenhuma. Se atentarmos para o que dizem os grandes alcoólatras, como Böcklin, a respeito de sua relação com o vinho, ela aparece como a mais harmoniosa possível, um modelo de casamento feliz. Por que a relação do amante com seu objeto sexual será tão profundamente diferente?

Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza do próprio instinto sexual é desfavorável à realização da satisfação completa. Se considerarmos a longa e difícil história do desenvolvimento do instinto, nos virão à mente, imediatamente, dois fatores que podem ser julgados os responsáveis por essa dificuldade. Primeiramente, em conseqüência da irrupção bifásica da escolha de objeto, e da interposição da barreira contra o incesto, o objeto final do instinto sexual nunca mais será o objeto original, mas apenas um sub-rogado do mesmo. A psicanálise revelou-nos que quando o objeto original de um impulso desejoso se perde em conseqüência da repressão, ele se representa, freqüentemente, por uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos quais, no entanto, proporciona satisfação completa. Isto pode explicar a inconstância na escolha de objetos, o `anseio pela estimulação’ que tão amiúde caracterizam o amor dos adultos.

Em segundo lugar, sabemos que o instinto sexual é, originalmente, dividido em grande número de componentes — ou melhor, desenvolve-se desses componentes — alguns dos quais não podem integrar o instinto em sua forma final, mas têm de ser suprimidos ou destinados a outros empregos em uma fase anterior. São eles, principalmente, os componentes instintivos coprófilos, que demonstraram ser incompatíveis com nossos padrões estéticos de cultura, provavelmente porque, em conseqüência de havermos adotado a postura ereta, erguemos do chão nosso órgão do olfato. O mesmo se aplica a uma grande parte dos impulsos sádicos que constituem parte da vida erótica. Mas todos esses processos do desenvolvimento só atingem as camadas mais superiores de estrutura complexa. Os processos fundamentais que produzem excitação erótica permanecem inalterados. O excrementício está todo, muito íntima e inseparavelmente, ligado ao sexual; a posição dos órgãos genitais — inter urinas et faeces — permanece sendo o fator decisivo e imutável. Poder-se-ia dizer neste ponto, modificando um dito muito conhecido do grande Napoleão: `A anatomia é o destino.’ Os órgãos genitais propriamente ditos não participaram do desenvolvimento do corpo humano visando à beleza: permaneceram animais e, assim, também o amor permaneceu, em essência, tão animal como sempre foi. Os instintos do amor são difíceis de educar; sua educação ora consegue de mais, ora de menos. O que a civilização pretende fazer deles parece inatingível, a não ser à custa de uma ponderável perda de prazer: a persistência dos impulsos que não puderam ser utilizados pode ser percebida na atividade sexual, sob a forma de não-satisfação.

Assim, talvez tenhamos de ser forçados a nos reconciliar com a idéia de que é absolutamente impossível harmonizar os clamores de nosso instinto sexual com as exigências da civilização: de que, em conseqüência de seu desenvolvimento cultural, a renúncia e o sofrimento, bem como o perigo de extinção no futuro mais remoto, não podem ser evitados pela raça humana. Este sombrio prognóstico repousa, é verdade, na simples conjectura de que a não-satisfação inerente à civilização é conseqüência necessária de certas peculiaridades que o instinto sexual adotou sob a pressão da cultura. A própria incapacidade do instinto sexual de produzir satisfação completa, tão logo se submete às primeiras exigências da civilização, torna-se a fonte, no entanto, das mais nobres realizações culturais que são determinadas pela sublimação cada vez maior de seus componentes instintivos. Pois, que motivo teria o homem para colocar as forças instintivas sexuais a outros serviços se, com qualquer distribuição dessas forças, eles poderiam conseguir prazer completamente satisfatório? Não renunciariam nunca a esse prazer e jamais realizariam qualquer outro progresso. Parece, portanto, que a diferença irreconciliável entre as exigências dos dois instintos — o sexual e o egoísta — tornou os homens capazes de realizações cada vez melhores, conquanto sujeitos, é verdade, a um perigo constante, ao qual, sob a forma de neurose, sucumbem hoje os mais fracos.

O objetivo da ciência não é atemorizar ou consolar. Mas, de minha parte, estou pronto a admitir que conclusões importantes, como as que inferi, deveriam apoiar-se em fundamento mais amplos, e que, talvez, desenvolvimentos em outras direções possam permitir à humanidade corrigir os resultados dos desenvolvimentos que aqui venho considerando isoladamente.

 

O TABU DA VIRGINDADE (1918 [1917])

(CONTRIBUIÇÃO À PSICOLOGIA DO AMOR III)

 

BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS III

DAS TABU DER VIRGINITÄT

 

 (a)    EDIÇÕES ALEMÃES:

(1917   Lido como uma comunicação à Sociedade Psicanalítica de Viena, 12 de dezembro de 1917.)

1918   S.K.S.N., 4, 229-51. (`Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens’ III. 2ª ed., 1922.)

1924   G.S., 5, 212-31.

1924   Em Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens., Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. (Págs. 29-48.)

1931   Sexualtheorie und Traumlehre, 95-115.

1947   G.W., 12, 161-80.

(b)   TRADUÇÃO INGLESA:

`Contributions to the Psychology of Love: The Taboo of Virginity’

1925   C.P., 4, 217-35. (Trad. Joan Riviere.)

A presente tradução inglesa, completamente nova, é de Angela Richards.

Este artigo foi escrito em setembro de 1917, mas só foi publicado no ano seguinte. Apesar do espaço de vários anos que separa este artigo dos dois precedentes, pareceu acertado reuni-los, visto que o próprio Freud os juntou sob o mesmo título. Totem and Taboo (Totem e Tabu)(1912-13) aparecera no meio tempo, já que o segundo artigo da série, e este terceiro, sob certo ponto de vista, podem ser considerados como acréscimo ao segundo ensaio dessa obra. Por outro lado, entretanto, inclui o exame do problema clínico da frigidez nas mulheres e, sob este aspecto, é o equivalente do estudo da impotência nos homens, no segundo artigo da série (vide [1]).

 

O TABU DA VIRGINDADE

(CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III)

 

POUCAS particularidades da vida sexual dos povos primitivos são tão estranhas a nossos próprios sentimentos quanto a valorização da virgindade, o estado de intocabilidade da mulher. O alto valor que o pretendente atribui à virgindade da mulher parece-nos tão fortemente enraizado, tão natural, que ficaremos quase perplexos se tivermos de oferecer razões para justificar essa opinião. A exigência de que a moça leve para seu casamento com determinado homem qualquer lembrança de relações sexuais com outro nada mais é, realmente, que a continuação lógica do direito à posse exclusiva da mulher, que constitui a essência da monogamia, a extensão desse monopólio para incluir o passado.

Partindo deste ponto, não temos dificuldade em justificar o que a princípio parecia um preconceito, quando nos referimos a nossos pontos de vista sobre a vida erótica das mulheres. Seja quem for o primeiro a satisfazer o desejo de amor de uma virgem, longa e penosamente refreado, e que ao fazê-lo vence as resistências que nela foram criadas através das influências de seu meio e de sua educação, este será o homem que a prenderá num relacionamento duradouro, possibilidade esta que jamais se oferecerá a qualquer outro homem. Essa experiência cria, na mulher, um estado de sujeição que garante que sua posse permanecerá imperturbada e que a torna capaz de resistir a novas impressões e tentações estranhas.

A expressão `sujeição sexual’ foi escolhida, por von Krafft-Ebing, (1892) para descrever o fenômeno de uma pessoa adquirir um grau de dependência, invulgarmente alto, e carente de autoconfiança em relação a outra pessoa com quem mantém um relacionamento sexual. Esta sujeição pode, em certa circunstância, estender-se bastante, ir até a perda de toda vontade independente e até fazer a pessoa sofrer os maiores sacrifícios de seus próprios interesses; o autor, no entanto, não deixa de salientar que certa proporção dessa dependência `é absolutamente necessária, se o laço for destinado a durar um período de tempo razoável. Certa medida de sujeição sexual é, de fato, indispensável para a manutenção do casamento civilizado e para manter afastadas as tendências à poligamia que o ameaçam e, em nossas comunidades sociais, este fator é comumente levado em consideração.

Segundo von Krafft-Ebing a formação da sujeição sexual decorre da associação de um `grau invulgar da condição de estar amando e da franqueza de caráter’ de uma pessoa, e do egoísmo sem limites da outra. A experiência analítica, no entanto, não pode nos deixar satisfeitos com este simples esforço de explicação. Podemos observar, antes, que o fator decisivo é a proporção de resistência sexual que é vencida e, além disso, o fato de que o processo de vencer a resistência se concentra e ocorre apenas uma vez. Este estado de sujeição é, em conseqüência, muito mais freqüente e mais intenso nas mulheres que nos homens, conquanto seja verdade que ocorra nos últimos muito mais amiúde hoje que antigamente. Sempre que se nos ofereceu a oportunidade de estudar a sujeição sexual nos homens, esta se revelou como resultante da superação de impotência psíquica, por meio de determinada mulher a quem, subseqüentemente, o homem em questão permaneceu sujeito. Muitos casamentos estranhos e não poucos acontecimentos trágicos — alguns mesmo de amplas conseqüências — parecem ser explicados por essa origem.

Voltando à atitude dos povos primitivos, é incorreto descrevê-la afirmando que não atribuíam valor à virgindade e oferecer como prova disto o fato de que realizam o defloramento das moças fora do casamento e antes do primeiro ato de relação sexual marital. Ao contrário, o defloramento, para eles, parece que também é um ato significativo; tornou-se, porém, matéria de tabu — de uma proibição que se pode descrever como religiosa. Em lugar de reservá-la para o noivo da moça e futuro companheiro no casamento, o costume determina que ele se absterá de executá-la.

Não é parte de minha intenção fazer uma compilação completa da evidência literária de que existe esse costume da proibição, aprofundar sua distribuição geográfica e enumerar todas as formas em que ela se manifesta. Limitar-me-ei, portanto, a declarar o fato de que a prática da ruptura do hímen dessa maneira, fora do casamento subseqüente, é muito disseminada entre as raças primitivas que vivem ainda hoje. Como diz Crawley, `Essa cerimônia do casamento consiste na perfuraçãodo hímen por uma pessoa designada que não o marido; é muito comum nos estágio mais baixos de cultura, especialmente na Austrália.’ (Crawley, 1902, 347.)

No entanto, se o defloramento não é para ser conseqüência do primeiro ato de relação sexual marital, então, é porque deve ter sido executado antecipadamente — não importa de que maneira nem por quem. Transcreverei algumas passagens do livro de Crawley, acima mencionado, que fornecem informações sobre esses pontos, mas que também dão vaza a algumas observações críticas.

(Ibid., 191.) `Assim na tribo Dieri e em suas vizinhas (na Austrália) é costume universal perfurar o hímen da menina quando ela atinge a puberdade (Journal of Royal Anthropological Institute, 24, 169). Nas tribos Portland e Glenelg isto é feito à noiva por uma mulher idosa; e, às vezes, com essa finalidade são solicitados homens brancos para deflorar as moças (Brough Smith, [1878], 2, 319).’

(Ibid, 307) `A ruptura artificial do hímen, às vezes, ocorre na infância, mas, geralmente, na puberdade... É freqüentemente acompanhada, como na Austrália, por um ato cerimonial de relações sexuais.’

(ibid., 348) (A respeito das tribos australianas entre as quais vigoram as conhecidas restrições ao casamento exógamo, segundo Spencer e Gillen [1899]:) `O hímen é perfurado artificialmente e, então, os homens da assistência têm acesso (cerimonial, bem entendido) à moça em ordem determinada.... O ato se realiza em duas partes, perfuração e relação sexual.’

(Ibid., 349.) `Uma preliminar importante do casamento entre os Masai (da África Equatorial) é a execução dessa operação na menina (J. Thomson, [1887], 2, 258). Esse defloramento é efetuado pelo pai da noiva entre os Sakais (Malásia), os Battas (Sumatra) e os Alfoers das Celebes (Ploss e Bartels, [1891], 2, 490). Nas Filipinas, havia determinados homens cuja profissão era deflorar noivas, caso o hímen não houvesse sido perfurado na infância por uma mulher idosa, às vezes contratada para esse fim (Featherman, [1885-91], 2, 474). O defloramento da noiva entre certas tribos Esquimós era confiado ao angekok, ou sacerdote (ibid, 3, 406).

As observações críticas a que me referi dizem dizem respeito a dois pontos. Em primeiro lugar, é lamentável que nessas comunicações não se tenha estabelecido uma distinção mais cuidadosa entre a simples ruptura do hímen sem relação sexual, e a relação sexual com finalidade de efetuar a ruptura. Há apenas uma passagem que nos dá conta, expressamente, de que o procedimento se faz em dois atos: o defloramento (efetuado à mão ou por meio de algum instrumento) e o ato da relação sexual que se lhe segue. O material em Ploss e Bartels 91891), sob outros aspectos tão rico, é quase inútil para nosso propósito, porque em sua apresentação a importância psicológica do ato do defloramento é completamente deslocado em favor de suas conseqüências anatômicas. Em segundo lugar, gostaríamos de saber de que maneira o `cerimonial’ do coito (puramente formal, ritual ou oficial), que ocorre nessas ocasiões, difere da relação sexual comum. Os autores a que tive acesso, ou se sentiram muito acanhados para comentar o assunto, ou mais uma vez subestimaram a importância psicológica desses pormenores sexuais. Resta-nos esperar que os relatos de primeira mão de viajantes e missionários possam ser mais completos e menos ambíguos; visto que a literatura sobre esta matéria, em sua maior parte estrangeira, é, no momento, inacessível, nada posso afirmar de definitivo sobre o assunto. Além do mais, poderemos contornar o problema que surgiu em relação a este segundo ponto, se levarmos em conta o fato de que um cerimonial de coito simulado poderia afinal apenas representar o substituto, e, talvez, de modo geral, a recomposição de um ato que anos antes teria sido completamente levado a cabo.

Vários fatores podem ser acrescentados para explicar esse tabu da virgindade, os quais enumerarei e considerarei brevemente. Quando uma virgem é deflorada, de maneira geral, sangra: a primeira tentativa de explicação baseia-se, pois, no horror ao sangue entre as raças primitivas que consideram sangue como a origem da vida. Observa-se esse tabu do sangue em numerosos tipos de práticas que nada têm que ver com a sexualidade; está claramente relacionado com a proibição de assassinar e constitui uma medida de proteção contra a primitiva sede de sangue, o prazer primevo do homem ao matar. De acordo com esta concepção, o tabu da virgindade se relaciona com o tabu da menstruação, que é quase universalmente conservado. Os povos primitivos não podem dissociar esse estranho fenômeno do fluxo mensal de sangue de idéias sádicas. A menstruação, especialmente, na primeira vez que aparece, é interpretada como a mordedura do espírito de um animal, talvez como um sinal de relação sexual com este espírito. Ocasionalmente, alguma informação fornece fundamentos para reconhecer o espírito como o de um antepassado e, então, apoiados em outras descobertas, chegamos à conclusão de que a menina que menstrua é tabu porque constitui propriedade desse espírito ancestral.

Outras considerações, no entanto, advertem-nos a não superestimar a influência de um fator como o horror ao sangue. Afinal ele não foi assim tão forte para impedir práticas tais como a circuncisão de meninos e seu equivalente ainda mais cruel nas meninas (excisão do clitóris e dos pequenos lábios), que são, em certa extensão, costume nessas mesmas raças, nem para abolir a prevalência de outras cerimônias que envolvem derramamento de sangue. Portanto, também não seria surpreendente se este horror fosse sobrepujado em benefício do marido na ocasião da primeira coabitação.

Há uma segunda explicação, que também não leva em conta a sexualidade, que tem, no entanto, alcance muito mais geral que a primeira. Sugere que o homem primitivo é vítima de perpétua apreensão secreta, tal como, na teoria psicanalítica das neuroses, afirmamos ser o caso das pessoas que sofrem de neurose de angústia. Esta apreensão se manifestará de forma mais intensa em todas as ocasiões que diferem de qualquer forma do habitual, que envolvam alguma coisa nova ou inesperada, algo não compreensível ou misterioso. É esta, também, a origem das práticas de cerimoniais, amplamente adotadas por religiões subseqüentes, relativas ao início de qualquer novo empreendimento, ao começo de cada novo período de tempo, aos primeiros frutos da vida humana, animal ou vegetal. Os perigos que o homem ansioso acredita que o ameaçam nunca parecem tão vívidos em sua expectativa como no limiar de uma situação perigosa e, também, é a única ocasião em que se proteger contra os mesmos produz alguma ajuda. O primeiro ato de relação sexual, no casamento, pode certamente requerer, em ordem de importância, ser precedido dessas medidas de precaução. Estas duas tentativas de explicação, baseadas no horror ao sangue e no medo dos primeiros acontecimentos, não se contradizem mas, ao contrário, se reforçam. A primeira ocasião de relação sexual é, certamente, um ato perigoso, sobretudo se implia fluxo de sangue.

A terceira explicação — a que Crawley prefere — chama a atenção para o fato de que o tabu da virgindade é parte de uma grande soma que abrange a totalidade da vida sexual. Não é, apenas, o primeiro coito com uma mulher que constitui tabu e sim a relação sexual de um modo geral; quase se pode dizer que a mulher inteira é tabu. A mulher não é unicamente tabu em situações especiais decorrentes de sua vida sexual, tais como a menstruação, a gravidez o parto e o puerpério; além dessas situações, as relações sexuais com as mulheres estão sujeitas a restrições tão solenes e numerosas que temos muitas razões para duvidar da suposta liberdade sexual dos selvagens. É verdade que, em ocasiões especiais, a sexualidade do homem primitivo pode sobrepujar todas as inibições; mas, de maneira geral, parece ser mais fortemente dominada por proibições do que o é nas camadas mais altas da civilização. Sempre que o homem se lança em um empreendimento especial, como partir para uma expedição, para uma caça ou uma campanha, é obrigado a se afastar da mulher e, principalmente, da relação sexual com a mesma; pois, de outra forma, ela pode lhe paralisar a força e lhe trazer má sorte. Nos costumes da vida diária, há, igualmente, uma tendência inequívoca para manter os sexos separados. As mulheres vivem com mulheres, os homens, com homens; a vida de família, como a entendemos, parece quase não existir em muitas tribos primitivas. Esta separação vai às vezes tão longe que não se permite a um sexo pronunciar em voz alta os nomes próprios dos membros do outro sexo e as mulheres criam uma linguagem com um vocabulário especial. As necessidades sexuais podem, de tempos a tempos, derrubar novamente essas barreiras de separação mas, em algumas tribos, mesmo os encontros entre marido e mulher têm de se realizar fora de casa e às escondidas.

Toda vez que o homem primitivo tem de estabelecer um tabu, ele teme algum perigo e não se pode contestar que um receio generalizado das mulheres se expressa em todas essas regras de evitação. Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por sua feminilidade e, então, mostra-se ele próprio incapaz. O efeito que tem o coito de descarregar tensões e causar flacidez pode ser o protótipo do que o homem teme; e a representação da influência que a mulher adquire sobre ele através do ato sexual, a consideração que ela em decorrência do mesmo lhe exige pode justificar a ampliação desse medo. Em tudo isso, não há nada obsoleto, nada que não permaneça ainda vivo em nós mesmos.

Muitos estudiosos das raças primitivas, que ainda vivem hoje, formularam a teoria de que seus impulsos no amor são relativamente fracos e nunca atingem o grau de intensidade que estamos acostumados a encontrar nos homens civilizados. Outros observadores contestaram esta opinião, mas, de qualquer modo, a prática de tabus, que descrevemos, testemunha a existência de uma força que se opõe ao amor pela rejeição de mulheres por serem estranhas e hostis.

Crawley, numa linguagem que difere apenas ligeiramente da terminologia habitual da psicanálise, afirma que cada indivíduo é separado dos demais por um `tabu de isolamento pessoal’ e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa idéia e derivar desse `narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar ao seu próximo. A psicanálise acredita que descobriu grande parte do que fundamenta a rejeição narcísica das mulheres pelos homens, a qual está tão entremeada com o desprezo por elas, ao chamar a atenção para o complexo da castração e sua influência sobre a opinião em que são tidas as mulheres.

Podemos ver, no entanto, que estas últimas considerações nos levaram a pesquisar muito além do nosso tema. O tabu geral das mulheres não deita nenhuma luz sobre as regras especiais em relação ao primeiro ato sexual com a virgem. No que lhes diz respeito, não fomos além das duas primeiras explicações, baseadas no horror ao sangue e no medo das primeiras ocorrências e, mesmo estas, devemos assinalar, não vão ao âmago do tabu em questão. É perfeitamente claro que a intenção que motiva este tabu é negar ou repudiar precisamente o futuro marido, o que não pode ser dissociado do primeiro ato sexual, muito embora, de acordo com nossas observações preliminares, exatamente essa relação levaria a mulher a se tornar especialmente ligada a esse único homem.

Não nos cabe nesta oportunidade examinar a origem e a significação definitiva das observâncias de tabus. Fi-lo em meu livro Totem and Taboo (Totem e Tabu) [1912-13], em que dediquei a devida consideração ao papel desempenhado pela ambivalência primitiva na determinação da formação de tabus e em que delineei a gênese dos mesmos nos acontecimentos pré-históricos que levaram à fundação da família humana. Já não podemos mais reconhecer uma significação original desta espécie nos tabus observados entre tribos primitivas de nossos dias. Esquecemos tudo muito facilmente, na expectativa de encontrar alguma coisa que, mesmo os povos mais primitivos existentes em uma cultura muito distante daquela dos tempos primevos, a qual é tão velha quanto a nossa própria cultura, do ponto de vista do tempo e, como a nossa, corresponde a um estágio de desenvolvimento posterior, embora diferente.

Hoje, encontramos, entre os povos primitivos, tabus já elaborados em um sistema complicado exatamente da mesma espécie dos que os neuróticos de nosso meio desenvolvem com suas fobias e observamos velhos temas substituídos por novos que se adaptam uns aos outros de forma harmoniosa. Deixando de lado esses problemas genéticos, então, podemos voltar ao conceito de que o homem primitivo institui um tabu quando teme algum perigo. De modo geral, esse perigo é de natureza física, pois o homem primitivo, a essa altura, não é impelido a estabelecer duas distinções que, para nós, não podem ser ignoradas. Ele não separa o perigo material do psíquico, nem o real do imaginário. Em sua concepção animista do universo consistentemente aplicada, todo perigo decorre da intenção hostil de algum ser dotado de alma como ele próprio, e isto se aplica tanto aos perigos que o ameaçam, procedentes de alguma força natural, como aos perigos procedentes de outros seres humanos ou animais. Mas, por outro lado, ele está acostumado a projetar seus próprios impulsos internos de hostilidade no mundo exterior, isto é, a atribuí-los aos objetos que sente como desagradáveis ou mesmo, meramente, estranhos. Desta maneira, as mulheres também são consideradas como sendo desses perigos, e o primeiro ato sexual com a mulher destaca-se como um perigo de especial intensidade.

Eu, por exemplo, acredito que encontraremos alguma indicação sobre o que é esse perigo intensificado e por que ele ameaça, precisamente, o futuro marido, se examinarmos mais detidamente o comportamento, nas mesmas circunstância, de mulheres de nosso próprio estágio atual de civilização. Submeter-me-ei antecipadamente como resultado desse exame, que tal perigo realmente existe, de modo que, no caso do tabu da virgindade, o homem primitivo está se defendendo de um perigo corretamente pressentido, apesar de psíquico.

Consideramos como reação normal que a mulher, em subseqüência à introdução do pênis, abrace o homem, apertando-o contra ela no auge da satisfação, e observamos essa atitude como expressão de sua gratidão e prova de sujeição duradoura. Mas sabemos que não é regra, de maneira alguma, que a primeira ocasião do ato sexual conduza a esse comportamento; muito freqüentemente significa apenas desapontamento para mulher, que permanece fria e insatisfeita e, geralmente, requer bastante tempo e freqüente repetição do ato sexual, antes que também comece a encontrar satisfação no mesmo. Há uma sucessão ininterrupta dos casos de simples frigidez inicial que logo desaparece, até a triste manifestação de permanente e obstinada frigidez que nenhum esforço carinhoso da parte do marido pode vencer. Acredito que essa frigidez nas mulheres ainda não é suficientemente compreendida e, exceto para aqueles casos que devem ser atribuídos à potência insuficiente do homem, clama por elucidação, possivelmente através de fenômenos coligados.

Não quero introduzir, a esta altura, as tentativas — que são freqüentes — de fugir da primeira ocasião de relação sexual, porque estão abertas a diversas interpretações e são, na maioria das vezes, conquanto nem sempre, compreendidas como expressão da tendência geral feminina a tomar uma atitude defensiva. Em oposição a este conceito, acredito que se pode esclarecer o enigma da frigidez da mulher por determinados casos patológicos nos quais, depois da primeira, e por certo, depois de cada experiência repetida de relação sexual, a mulher dá expressão manifesta de sua hostilidade para com o homem, injuriando-o, levantando a mão contra ele ou, realmente, batendo-lhe. Em um caso muito evidente deste tipo, o qual logrei submeter a uma análise completa, isto aconteceu, embora a mulher amasse muito o homem, costumasse exigir relações sexuais com ele e, inequivocamente, encontrasse nas mesmas grandes satisfação. Penso que esta reação, estranha e contraditória, é conseqüência dos mesmos impulsos que, comumente, só podem encontrar expressão na forma de frigidez — isto é, que podem deter a reação de ternura sem, ao mesmo tempo, lograrem eles próprios se colocar em ação. No caso patológico, encontramos separados, por assim dizer, em seus dois componentes, o que no exemplo bastante comum de frigidez se une para produzir um efeito inibidor, tal qual o processo que há muito reconhecemos nos chamados `sintomas bifásicos’ da neurose obsessiva. O perigo que assim se levanta pelo defloramento de uma mulher consiste em atrair sua hostilidade para si próprio, e o marido em perspectiva é exatamente a pessoa que teria toda razão para evitar tal inimizade.

Desde que a análise nos permite inferir sem dificuldade quais os impulsos que, nas mulheres, tomam parte na realização desse comportamento paradoxal eu espero encontrar a explicação da frigidez. O primeiro ato sexual mobiliza uma série de impulsos que estão deslocados na atitude feminina do desejo, alguns dos quais, incidentemente, não necessitam tornar a suceder nas relações sexuais subseqüentes. Em primeiro lugar, pensamos na dor que o defloramento causa à virgem e estamos, talvez mesmo, inclinados a considerar este fator como decisivo e a abandonar a procura de outros. Mas não podemos atribuir tanta importância a essa dor; temos, antes, de substituí-la pela injúria narcísica que decorre da destruição de um órgão e que é mesmo representada de forma racionalizada no conhecimento de que a perda da virgindade leva à diminuição do valor sexual. Os costumes do casamento entre povos primitivos, no entanto, contêm uma advertência contra a superestimação deste fato. Soubemos que, em alguns casos, o rito recai em duas fases; depois que se rompeu o hímen (com a mão ou algum instrumento), segue-se o ato cerimonial do coito ou do ato sexual simulado com os representantes do marido e isto nos prova que a finalidade da observância do tabu não é cumprida ao se evitar o defloramento anatômico, e que o marido deve ser poupado de alguma outra coisa, bem como da reação da mulher à lesão dolorosa.

Encontramos outra razão para o desapontamento experimentado no primeiro ato sexual no fato de que, pelo menos com as mulheres civilizadas, a satisfação pode não corresponder às expectativas. Antes disto, a relação sexual fora associada, da maneira mais decisiva possível, às proibições; a relação sexual legítima e permissível não é, portanto, sentida como a mesma coisa. Quão íntima pode ser esta associação se demonstra, de forma quase cômica, através dos esforços de tantas moças prestes a se casar para conservar seu novo relacionamento amoroso em segredo de todas as outras pessoas, e de certo até mesmo de seus pais, quando não há necessidade real de fazê-lo e de onde se pode esperar qualquer objeção. As moças freqüentemente dizem abertamente que seu amor perde o valor para elas se as outras pessoas souberem dele. De vez em quando, este sentimento pode se tornar dominante e impedir completamente o desenvolvimento de qualquer capacidade para o amor do casamento. A mulher só recupera sua susceptibilidade aos sentimentos de ternura em um relacionamento ilícito que tenha de se manter secreto, e no qual só ela sabe com certeza que sua própria vontade não é influenciada [cf. em [1]].

No entanto, também este motivo não conduz a um aprofundamento suficiente; além do mais, sendo limitado por condições civilizadas, falha em prover uma conexão satisfatória com as circunstâncias entre os povos primitivos. Tanto mais importante, portanto constitui o próximo fator, que se baseia na evolução da libido. Aprendemos, das investigações analíticas, quão universais e quão poderosas são as distribuições iniciais da libido. Nelas nos preocupamos com os desejos sexuais infantis a que estão apegados (na mulher geralmente a fixação da libido localiza-se no pai ou em um irmão que o substitui) — desejos que, muito freqüentemente, estavam dirigidos para outras coisas que a relação sexual ou que a incluía, apenas, como um objetivo vagamente percebido. O marido é, quase sempre, por assim dizer, apenas um substituto, nunca o homem certo; é outro homem — nos casos típicos o pai — que primeiro tem direito ao amor da mulher, o marido quando muito ocupa o segundo lugar. Depende de quão intensa seja essa fixação e de quão obstinadamente ela seja conservada, quer ou não o substituto seja rejeitado como insatisfatório. A frigidez inclui-se, assim, entre os determinantes genéticos das neuroses. Quanto mais poderoso o elemento psíquico na vida sexual de uma mulher, maior será a capacidade de resistência demonstrada por sua distribuição da libido à revolta contra o primeiro ato sexual, e menos esmagador será o efeito que sua posse corporal pode produzir. A frigidez pode, então, se estabelecer como uma inibição neurótica ou fornecer a base para o desenvolvimento de outras neuroses e, até mesmo, uma pequena diminuição da potência no homem contribuirá grandemente para influir nesse processo.

Os costumes dos povos primitivos parecem levar em consideração esse tema do desejo sexual precoce, confiando a tarefa do defloramento a um ancião, sacerdote ou homem santo, isto é, a um substituto do pai (vide [1]). Parece-me que existe um caminho direto que leva desse costume para a questão muito debatida do jus primae noctis do senhor do castelo dos tempos medievais. A. J. Storfer (1911) apresentou o mesmo conceito e, além disso, como o fizera Jung (1909) antes dele, interpretou a difundida tradição das `noites de Tobias’ (o costume da continência durante as três primeiras noites do casamento) como o reconhecimento do privilégio do patriarca. Ele, portanto, concorda com nossas suposições quando encontramos imagens de deuses incluídas entre os sub-rogados do pai incumbidos do defloramento. Em algumas regiões da Índia, a mulher recém-casada era obrigada a sacrificar seu hímen à linga de madeira e, segundo Santo Agostinho, o mesmo costume era observado na cerimônia de casamento dos romanos (de seu tempo?), porém modificado de maneira que a jovem esposa tinha apenas de sentar-se no gigantesco falo de pedra de Príapo.

Há outro motivo, que penetra ainda mais fundo, que pode ser demonstrado como o principal responsável pela reação paradoxal em relação ao homem e que, na minha opinião, além disso, exerce influência na frigidez da mulher. O primeiro ato de relação sexual ativa na mulher outros impulsos antigos, que como os já descritos, e este estão em absoluta oposição a seu papel feminino e à sua função.

Aprendemos das análises de muitas mulheres neuróticas que elas passam, em sua infância, por uma fase em que invejam nos irmãos o seu símbolo de masculinidade e se sentem em desvantagem e humilhadas devido à falta dele em si mesmas (na verdade devido à sua proporção diminuta). Incluímos essa `inveja do pênis’ no `complexo de castração’. Se compreendemos `masculino’ como noção que inclui o desejo de ser masculino, então a designação `protesto masculino’ se adapta a esse comportamento: a expressão foi cunhada por Adler [1910] com a intenção de proclamar este fator como o responsável pelas neuroses em geral. Durante essa fase, as meninas, geralmente, não fazem segredo de sua inveja, nem da hostilidade para com seus irmãos favoritos dela decorrente. Tentam até urinar de pé, como seus irmãos, a fim de provar a igualdade a que aspiram. No caso já descrito [ver em [1]] no qual a mulher costumava mostrar, depois da relação sexual, uma agressividade incontrolável dirigida contra o marido, que aliás amava, consegui provar que essa fase existira antes da fase da escolha de objeto. Só mais tarde, foi a libido da menina dirigida para seu pai e, então, em vez de desejar ter um pênis, desejou — um filho.

Não deveria me surpreender se, em outros casos, a ordem em que esses impulsos ocorreram fosse invertida e essa parte do complexo de castração só se tornasse efetiva depois que a escolha de objeto se houvesse realizado com êxito. Mas a fase masculina na menina, na qual ela inveja o menino por seu pênis é, em qualquer caso, desenvolvimentalmente a anterior e está mais próxima do narcisismo original do que o objeto de amor.

Há algum tempo tive a oportunidade de obter a compreensão (insight) através de um sonho de uma mulher recém-casada, em que era reconhecível a reação à perda de sua virgindade. Delatava, espontâneamente, o desejo da mulher de castrar seu jovem marido e guardar o pênis dele para ela. Evidentemente, também havia lugar para uma interpretação mais inocente de que o que ela desejava era o prolongamento e a repetição do ato, mas vários pormenores do sonho não se enquadradavam nesse significado e, tanto o caráter como o comportamento subseqüente da mulher que teve o sonho evidenciaram em favor do aspecto mais grave. Por trás dessa inveja do pênis, manifesta-se a amarga hostilidade da mulher contra o homem, que nunca desaparece completamente nas relações entre os sexos e que está claramente indicada nas lutas e na produção literária das mulheres `emancipadas’. Em uma especulação paleobiológica, Ferenczi atribuiu a origem dessa hostilidade das mulheres — não sei se foi ele o primeiro a fazê-lo — à época em que os sexos se tornavam diferenciados. A princípio, em sua opinião, a cópula realizou-se entre dois indivíduos semelhantes, um dos quais, no entanto, transformou-se no mais forte e forçou o mais fraco a se submeter à união sexual. Os sentimentos de amargura decorrentes dessa sujeição ainda persis-tem na disposição das mulheres hoje em dia. Não creio que haja qualquer inconveniente em utilizar essa especulações desde que não se empreste a elas demasiado valor.

Depois desta enumeração dos motivos da reação paradoxal das mulheres ao defloramento, cujos traços ainda persistem na frigidez, podemos resumir dizendo que a sexualidade imatura de uma mulher descarrega-se no homem que primeiro lhe faz conhecer o ato sexual. Assim sendo, o tabu da virgindade é bastante razoável e podemos compreender a regra que decreta que exatamente o homem que deve ingressar numa vida em comum com essa mulher evite esse perigos. Nos estágios mais altos da civilização, a importância atribuída a esse perigo diminui em face de sua promessa de sujeição e, sem dúvida, de outros motivos e persuasões; a virgindade é considerada uma propriedade a que o marido não é solicitado a renunciar. Mas, a análise de casamento infelizes nos ensina que os motivos que procuram levar a mulher a se vingar do seu defloramento não estão completamente extintos, mesmo na vida psíquica das mulheres civilizadas. Creio que deve chamar a atenção do observador o número extraordinariamente elevado de casos em que a mulher permanece frígida e se sente infeliz em um primeiro casamento, ao passo que, depois que este se dissolveu, ela se torna uma esposa meiga, capaz de fazer feliz o seu segundo marido. A reação arcaica esgotou-se, por assim dizer, no primeiro objeto.

O tabu da virgindade, no entanto, mesmo independentemente disto, não desapareceu em nossa existência civilizada. É conhecido da crença popular e oportunamente os escritores têm-se utilizado desse material. Uma comédia da autoria de Anzengruber mostra como um simples camponês é dissuadido de casar com sua noiva pretendida porque ela é `uma rapariga que lhe cobrará primeiro a vida’. Por esse motivo, ele concorda em que ela case com outro homem e está disposto a aceitá-la quando ficar viúva e não for mais perigosa. O título da peça, Das Jungferngift [`O Veneno da Virgem’], traz-nos à lembrança o hábito dos encantadores de serpentes que, primeiro, fazem as cobras venenosas morderem um pedaço de pano a fim de, depois, lidarem com elas sem perigo.

 

O tabu da virgindade, e alguma coisa sobre sua motivação, foi representado, da maneira mais vigorosa, por uma conhecida caracterização dramática, a de Judite, na tragédia de Hebbel, Judith und Holofernes (Judite e Holofernes), Judite é uma dessas mulheres cuja virgindade é protegida por um tabu. Seu primeiro marido foi paralisado na noite nupcial por uma misteriosa ansiedade e nunca mais ousou tocá-la. `Minha beleza é como a beladona’, diz ela `Seu deleite traz a loucura e a morte.’ Quando o general assírio está cercando sua cidade, ela concebe o plano de seduzi-lo com sua beleza e de destruí-lo, usando assim um motivo patriótico, para esconder outro, sexual. Depois de haver sido deflorada por esse homem poderoso, que se gaba de seu vigor e de sua insensibilidade, ela encontra forças em sua fúria para lhe cortar a cabeça, tornando-se assim a libertadora de seu povo. A decapitação é nossa conhecida como símbolo substituto da castração; Judite é, assim, a mulher que castra o homem que a deflorou, o que constitui justamente o desejo da mulher recém-casada, expresso no sonho que comuniquei. É claro que Hebbel sexualizou intencionalmente a narrativa patriótica do Apócrifo do Velho Testamento, pois, nela, Judite pode se gabar, depois ao voltar, que não foi violada, e nem existe no texto bíblico qualquer menção de sua misteriosa noite nupcial. Mas, provavelmente, com a fina percepção de poeta, ele percebeu o velho motivo, que se havia perdido na narrativa tendenciosa, e apenas restituiu seu primitivo conteúdo ao material.

Sadger (1912) demonstrou, em uma análise penetrante, como Hebbel foi influenciado em sua escolha do material por seu próprio complexo paterno, e como chegou a tomar a defesa da mulher tão freqüentemente, na luta entre os sexos, e a sentir seu caminho nos impulsos mais ocultos de sua mente. Ele também transcreve os motivos que o próprio poeta dá para as alterações que fez no material, e corretamente considera-as artificiais e como se pretendessem justificar exteriormente algo de que o poeta, ele próprio, não tem consciência, ao passo que no fundo o esconde. Não pretendo contestar a explicação que Sadger dá ao fato de Judite, que segundo a narrativa da Bíblia é uma viúva, ter de se transformar em uma viúva virgem. Ele se refere à finalidade encontrada nas fantasias infantis de negar as relações sexuais dos pais e de transformar a mãe em uma virgem ilesa. Mas eu acrescento: depois que o poeta provou a virgindade de sua heroína, sua sensível imaginação frisa-se na reação hostil desencadeada pela violação de sua virgindade.

Podemos então dizer, em conclusão, que o defloramento não tem apenas a única e civilizada conseqüência de amarrar a mulher permanentemente ao homem; desencadeia, também, a reação arcaica de hostilidade para com ele, que pode assumir formas patológicas, bastante freqüentemente expressas no aparecimento de inibições no lado erótico da vida marital, e às quais poderemos atribuir o fato de que segundos casamentos tantas vezes dêem mais certo que o primeiro. O tabu da virgindade, que nos parece tão estranho, o horror com que, entre os povos primitivos, o marido evita o ato do defloramento, são plenamente justificados por essa reação hostil.

É interessante que, em nossa condição de analista, possamos encontrar mulheres em quem as reações opostas de sujeição e hostilidade encontrem, ambas, expressão e permaneçam intimamente associadas entre si. Há mulheres dessa espécie que parecem ter-se desavindo completamente com seus maridos e que mesmo assim só podem fazer esforços vãos para se libertar. Tantas vezes quantas queiram endereçar seu amor a qualquer homem, a imagem do primeiro, conquanto não seja mais amado, intervém com efeito inibitório. A análise, portanto, nos ensina que essas mulheres, de fato, ainda se sentem ligadas a seus primeiros maridos em estado de sujeição, mas não mais por afeição. Não se podem afastar deles, porque ainda não completaram sua vingança contra eles e, em casos mais acentuados, nem mesmo trouxeram os impulsos de vingança para a consciência.

 

A CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DA PERTURBAÇÃO PSICOGÊNICA DA VISÃO (1910)

 

DIE PSYCHOGENE SEHSTÖRUNG IN

PSYCHOANALYTISCHER AUFFASSUNG

 

(a)   EDIÇÕES ALEMÃES:

1910   Ärziliche Fortbildung, suplemento de de Ärztiliche Standeszeitung, 9, (9), 42-4 (1º de maio).

1913   S.K.S.N., 3, 314-21. (2ª ed., 1921.)

1924   G.S., 5, 301-9.

1943   G.W., 8, 94-102.

(b)   TRADUÇÃO INGLESA:

`Psychogenic Visual Disturbance according to Psycho-Analytical Conceptions’

1924   C.P., 2, 105-12. (Trad. E. Colburn Mayne.)

A atual tradução inglesa, com o título diferente, `The Psicho-Analytic View of Psychogenic Disturbance of Vision’, é completamente nova, feita por James e Alex Strachey.

Este trabalho é uma contribuição a uma Festschrift em homenagem a Leopold Königstein, conhecido oftamologista vienense e um dos mais antigos amigos de Freud. Descreveu-o, em carta a Ferenczi, escrita em 12 de abril de 1910, como sendo simplesmente uma pièce d’ocassion, sem nenhum valor (Jones, 1955, 1955, 274). Contém, no entanto, pelo menos uma passagem de interesse muito especial. Pois foi nele que pela primeira vez empregou o termo `instintos do ego’, identificou-os, explicitamente, com os instintos de autopreservação e atribui-lhes papel vital na função da repressão. Certas consideração a respeito do desenvolvimento das concepções de Freud sobre os instintos será encontrada na Nota do Editor a `Instincts and their Vicissitudes’ (Os Intintos e suas Vicissitudes) (1915c), volume XIV da Standard Ed. Também vale a pena notar que nos últimos parágrafos deste trabalho (ver a partir de [1]). Freud expressa, com firmeza especial, sua convicção de que os fenômenos psíquicos se baseiam definitivamente nos físicos.

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira é da autoria de Paulo Dias Corrêa (Presidente da Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro. Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).

 

 

A CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DA PERTURBAÇÃO PSICOGÊNICA DA VISÃO

 

SENHORES, — Proponho tomar o exemplo da perturbação psicogênica da visão a fim de lhes mostrar as modificações que se operam em nossa concepção da gênese dos distúrbios dessa espécie, sob a influência dos métodos de investigação psicanalítica. Como sabem, a cegueira histérica é considerada um tipo de perturbação psicogênica visual. Acredita-se, de modo geral, como resultado das pesquisas da Escola Francesa (inclusive homens da categoria de Charcot, Janet e Binet), que a gênese desses casos já é conhecida. Pois estamos em condições de provocar, experimentalmente, uma cegueira dessa espécie, se dispusermos de alguém susceptível ao sonambulismo. Se o submetermos a hipnose profunda e lhe sugerirmos a idéia de que ele nada vê com um de seus olhos, ele realmente se comportará como se tivesse ficado cego daquele olho, como o histérico que, espontaneamente, desenvolveu uma perturbação visual. Podemos, portanto, armar o mecanismo das perturbações histéricas, espontâneas, da visão, baseados apenas no modelo de sugestão hipnótica. No histérico, a idéia de estar cego surge, não da insinuação do hipnotizador, mas espontaneamente — pela auto-sugestão, como se diz; e em ambos os casos, a idéia é tão poderosa que se converte em realidade, exatamente como uma alucinação ou paralisia etc., sugerida.

Isto parece perfeitamente lógico e satisfará qualquer pessoa que não leve em consideração os numerosos enigmas que se escondem por trás dos conceitos da hipnose, da sugestão e da auto-sugestão. A auto-sugestão, em particular, levanta outras dúvidas. Como e em que condições torna-se uma idéia tão poderosa a ponto de atuar como sugestão e de se converter facilmente em realidade? Uma investigação mais aprofundada nos revelou que não podemos responder a essa pergunta sem nos valermos do concurso do conceito de `inconsciente’. Muitos filósofos rebelam-se contra a admissão de um inconsciente mental dessa natureza, porque não tomaram conhecimento dos fenômenos que nos obrigam a tal admissão. Os psicopatologistas chegaram à conclusão de que não podem evitar trabalhar com elementos tais como processos psíquicos inconscientes, idéias inconcientes e assim por diante.

Experiências apropriadas demonstraram que as pessoas que ficam cegas em virtude de histeria vêem, não obstante, em certo sentido, mas não completamente. As excitações no olho cego podem provocar certas conseqüência psíquicas (por exemplo, podem provocar emoções) muito embora não se tornem conscientes. Assim, as pessoas histericamente cegas só o são no que diz respeito à consciência; em seu inconsciente elas vêem. São observações como estas que nos levam a distinguir os processos mentais conscientes dos inconscientes.

Como podem essas pessoas desenvolver a `auto-sugestão’ inconsciente de que estão cegas, quando, não obstante, vêem em seu inconsciente? A resposta apresentada pelas pesquisas francesas pretende explicar que, nos pacientes predispostos à histeria, há uma tendência inerente à dissociação — a uma desagregação das conexões em seu campo psíquico — em conseqüência da qual certos processos inconscientes não prosseguem até o consciente. Deixamos de lado, completamente, o valor que essa tentativa de explicação possa ter no que diz respeito à compreensão dos fenômenos em questão, e encaremos o problemas de outro ângulo. Como vêem, senhores, a identidade da cegueira histérica com a cegueira provocada pela sugestão, a que a princípio se deu tanta importância, foi agora descartada. O paciente histérico fica cego, não em conseqüência de uma idéia auto-sugestiva de que ele não pode ver, mas como resultado de uma dissociação entre os processos inconscientes e conscientes no ato de ver; sua idéia de que não vê é a expressão bem fundada da condição psíquica e não sua causa.

Mas, se os senhores se queixarem da obscuridade desta exposição, não me será fácil defendê-la. Procurei dar-lhes uma síntese dos conceitos de diferentes pesquisadores e, ao fazê-lo, talvez os tenha associado muito intimamente. Desejei condensar em forma sintética todos os conceitos apresentados, a fim de tornar inteligível as perturbações psicogênicas — sua origem das idéias excessivamente poderosas, a diferença entre processos mentais conscientes e inconscientes e a admissão de dissociação psíquica. E não fui mais bem-sucedido, em minha tentativa, do que o foram os escritores franceses, encabeçados por Pierre Janet. Espero, portanto, que me perdoem não só a falta de clareza como a inexatidão da minha exposição e que me permitam explicar-lhes como a psicanálise nos levou a uma concepção das perturbações psicogênicas da visão mais lógica e, talvez, mais de acordo com os fatos.

A psicanálise também aceita as hipóteses da dissociação e do inconsciente, porém as relacionamos de modo mutuamente diferente. O conceito psicanalítico é dinâmico e atribui a origem da vida psíquica a uma interação entre forças que favorecem ou inibem uma à outra. Se, em qualquer circunstância, um grupo de idéias permanece no inconsciente, a psicanálise não infere desse fato, de que há uma incapacidade constitucional para a síntese que se evidencia nessa determinada dissociação, mas sustenta que o isolamento e o estado de inconsciência desse grupo de idéias foram causados por uma oposição ativa de parte de outros grupos. O processo, devido ao qual teve esse destino, é conhecido como `repressão’ e o consideramos algo análogo a um julgamento condenatório nos domínios da lógica. A psicanálise ressalta que as repressões dessa espécie desempenham um papel extraordinariamente importante em nossa vida psíquica, mas que podem também, muitas vezes, falhar e que essas falhas da repressão constituem a precondição da formação de sintomas.

Então, se, como aprendemos, as perturbações psicogênicas da visão dependem de certas idéias relacionadas com a visão ser suprimida da consciência, teremos de admitir, do ponto de vista psicanalítico, que essas idéias entraram em oposição a outras idéias, mais poderosas, em relação às quais adotamos o conceito coletivo do `ego’ — um conjunto que é constituído de maneira heterogênea, em épocas diferentes — e, por esse motivo, se encontram sob repressão. Mas qual pode ser a origem dessa oposição que provoca a repressão entre o ego e os vários grupos de idéias? Sem dúvida terão notado que não foi possível elaborar essa pergunta antes do advento da psicanálise, pois nada se sabia anteriormente a respeito de conflito psíquico e repressão. Nossas pesquisas, no entanto, nos colocaram em posição de nos dar a resposta desejada. Nossa atenção foi atraída para a importância dos instintos na vida ideacional. Descobrimos que cada instintos procura tornar-se efetivo por meio de idéia ativantes que estejam em harmonia como seus objetivos. Estes instintos nem sempre são compatíveis entre si; seus interesses amiúde entram em conflito. A oposição entre as idéias é apenas uma expressão das lutas entre os vários instintos. Do ponto de vista de nossa tentativa de explicação, uma parte extremamente importante é desempenhada pela inegável oposição entre os instintos que favorecem a sexualidade, a consecução da satisfação sexual, e os demais instintos que têm por objetivo a autopreservação do indivíduo — os instintos do ego.

 

Como disse o poeta, todos os instintos orgânicos que atuam em nossa mente podem ser classificados como `fome’ ou `amor’. Delineamos o `instinto sexual’ desde suas primeiras manifestações nas crianças, até sua forma final, que é descrita como `normal’. Descobrimos que é constituído por numerosos `instintos componentes’ que se relacionam com as excitações de partes do corpo; e chegamos a observar que esse instintos separados têm de passar por um desenvolvimento complicado, antes de poderem servir eficazmente aos objetivos da reprodução. A luz projetada pela psicologia sobre a evolução de nossa civilização mostrou-nos que ela se origina, principalmente, à custa dos instintos sexuais componentes e que estes têm de ser suprimidos, restringidos, transformados e dirigidos para objetivos mais elevados, a fim de que de que se possam estabelecer as construções psíquicas da civilização. Conseguimos reconhecer como um resultado valioso dessa pesquisa algo que nossos colegas ainda não estão prontos para aceitar, isto é, que os padecimentos humanos conhecidos como `neuroses’ se derivam das maneiras muito diversas em que esses processos de transformação dos instintos sexuais componentes podem malograr. O `ego’ sente-se ameaçado pelas exigências dos intintos sexuais e os desvia através de repressões; estas, no entanto, nem sempre produzem o resultado esperado, mas levam à formação de substitutos perigosos para o reprimido e a reações incômodas por parte do ego. Dessas duas classes de fenômenos, tomadas como um todo, emergem o que chamamos os sintomas da neurose.

Desviamos-nos aparentemente de nosso problema, muito embora ao fazê-lo, tenhamos tocado na maneira pela qual as condições patológicas da neurose se relacionam como nossa vida psíquica em geral. Retornemos, porém, à questão mais restrita. Tanto os instintos sexuais como os instintos do ego, têm, em geral, os mesmos órgãos e sistemas de órgãos à sua disposição. O prazer sexual não está apenas ligado à função dos genitais. A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor — seus encantos. Confirma-se, assim, o adágio segundo o qual não é fácil para alguém servir a dois senhores ao mesmo tempo. Quanto mais estreita a relação em que um órgão, uma função dupla desta espécie, contra com um dos principais instintos, tanto mais ele se retrai do outro. Este princípio não pode deixar de provocar conseqüências patológicas, caso os dois intintos fundamentais estejam desunidos e caso o ego mantenha a repressão do instinto sexual componente em questão. Isto pode ser facilmente aplicados ao olho e à visão. Suponhamos que o instinto sexual componente que se utiliza do olhar — o prazer sexual em olhar em olhar — o prazer sexual em olhar [escoptofilia] — atraiu sobre si a ação defensiva dos intintos do ego, em conseqüência de suas exigências excessivas, de maneira que as idéias através das quais seus desejos se expressam sucumbam à repressão e sejam impedidas de se tornar conscientes; nesse caso haverá uma perturbação geral da relação do olho e do ato de ver com o ego e a consciência. O ego perderia seu domínio sobre o órgão, que ficaria, então, totalmente à disposição do instintos sexual reprimido. É como se a repressão houvesse sido exagerada pelo ego, como se tivesse despejado a criança com a água do banho: o ego se recusa a ver outra coisa qualquer, agora que o interesse sexual em ver se tornou tão predominante. Mas o quadro alternativo parece mais importante. Este atribui o papel ativo em vez disso ao prazer reprimido de ver. O instinto reprimido vinga-se por ter sido impedido de maior expansão psíquica, tornando-se capaz de ampliar seu domínio sobre o órgão que está a seu serviço. A perda do domínio consciente sobre o órgão é o substituto prejudicial para a repressão que malogrou e que só se tornou possível a esse preço.

Essa relação de um órgão com uma dupla exigência sobre ele — sua relação com o ego consciente e com a sexualidade reprimida — pode ser encontrada de maneira ainda mais evidente nos órgãos motores do que no olho: como, por exemplo, a mão que procurou executar um ato de ataque sexual ed ficou paralisada histericamente é incapaz, depois da inibição do ato, de fazer outra coisa — como se estivesse insistindo obstinadamente em efetuar uma enervação reprimida; ou como os dedos de pessoas que renunciaram à masturbação se recusam a aprender os movimentos delicados indispensáveis para tocar piano ou violino. Quanto ao olho, estamos acostumados a interpretar os obscuros processos psíquicos implicados na repressão da escoptofilia sexual e no desenvolvimento da perturbação psicogênica da visão, como se uma voz punitiva estivesse falando de dentro do indivíduo e dizendo: `Como você tentou utilizar mal seu órgão para prazeres sensuais perversos, é justo que você nunca mais veja nada’, e como se, desta maneira, estivesse aprovando o resultado do processo. A idéia da pena de talião está implícita nisto e, de fato, nossa explicação da perturbação visual psicogênica coincide com o que sugerem os mitos e as lendas. A bela lenda de Lady Godiva nos conta como todos os habitantes da cidade se esconderam por trás de suas venezianas fechadas, a fim de tornar mais fácil a tarefa da senhora de cavalgar nua pelas ruas, em pleno dia, e como o único homem que espreitou pelas venezianas os seus encantos descobertos foi punido com a cegueira. E este não é o único exemplo que sugere que a enfermidade neurótica também possui a chave secreta da mitologia.

Senhores, a psicanálise é injustamente acusada de apresentar teorias puramente psicológicas para problema patológicos. A ênfase que ela coloca no papel patogênico da sexualidade, que, afinal, não é certamente um fator exclusivamente psíquico, deveria por si própria defendê-la contra essa acusação. Os psicanalistas nunca se esquecem de que o psíquico se baseia no orgânico, conquanto seu trabalho só os possa conduzir até essa base e não além. A psicanálise está, portanto, pronta a admitir, e mesmo a postular, que nem todas as perturbações da visão devem ser psicogênicas, como as que são provocadas pela repressão da escoptofilia erótica. Se um órgão que serve a duas espécie de instintos aumenta seus papel erógeno, é de se esperar, em geral, que tal não ocorra sem a excitabilidade e a inervação do órgão, passivo das alterações que se manifestarão na forma de perturbação de suas funções a serviço do ego. De fato, se descobrirmos que um órgão que serve normalmente à finalidade da percepção sensorial começa a se comportar como um genital real quando se intensifica seu papel erógeno, não nos parecerá improvável que nele também estejam ocorrendo alterações tóxicas. Na falta de outra melhor, temos de conservar a velha e inadequada expressão, perturbações `neuróticas’ para as duas classes de perturbações funcionais — as de origem fisiológica e as de origem tóxica — que decorrem do aumento do fator erógeno. De maneira geral, as perturbações neuróticas da visão apresentam a mesma relação com as psicogênicas que as `neuroses atuais’ têm com as psiconeuroses: as perturbações visuais psicogênicas, sem dúvida, dificilmente se manifestam sem as neuróticas, porém estas últimas podem surgir sem as primeiras. Estes sintomas neuróticos, infelizmente, são pouco reconhecidos e compreendidos, mesmo hoje em dia; porque não são diretamente acessíveis à psicanálise e, além disso, outros métodos de pesquisa não levaram em consideração o ponto de vista da sexualidade.

Há ainda mais uma linha de pensamento que se estende aos ramos da pesquisa orgânica provenientes da psicanálise. Podemos indagar de nós mesmos se a supressão dos instintos sexuais componentes, que é determinada por influências do ambiente, é suficiente, em si mesma, para provocar perturbações funcionais nos órgãos, ou se devem estar presentes condições constitucionais especiais, para que os órgãos sejam levados à exageração de seu papel erógeno;, procurando, conseqüentemente, a repressão dos instintos. Teríamos de observar essas condições como a parte constitucional da disposição para adoecer de perturbações psicogênicas e neuróticas. Este é o fator ao qual, quando aplicado a histeria, dei o nome provisório de `submissão somática’.

 

PSICANÁLISE SILVESTRE (1910)

 

ÜBER WILDE PSYCHOANALYSE

 

(a)   EDIÇÕES ALEMÃS:

1910   Zbl. Psychoan., 1 (3), 91-5.

1913   S.K.S.N., 3, 299-305. (2ª ed. 1921.)

1924   Technik und Metapsychol., 37-44.

1924   G.S., 6, 37-44.

1943   G.W., 8, 118-25.

(b)   TRADUÇÃO INGLÊSAS:

‘Concerning “Wild” Psychoanalysis’

1912   S.P.H., (2ª ed.), 201-6. (Trad. A.A. Brill.) (3ª ed. 1920.)

‘Observations on “Wild” Psycho-Analysis’

1924   C.P., 2, 297-304. (Trad. Joan Riviere.)

A presente tradução inglesa, com o título modificado ‘ “Wild” Psycho-Analysis’ baseia-se na publicada em 1924.

O tema essencial deste artigo (publicado em dezembro de 1910) já tinha sido tratado por Freud, cerca de seis anos antes, numa conferência sobre psicoterapia (1905a), ver em [1]. Além de seu tema principal, o artigo é digno de atenção por conter uma das raras últimas alusões de Freud às ‘neuroses atuais’, aliada ao lembrete da importância de se distinguir a neurose de angústia da histeria da angústia (ver a partir de [2]).

 

NOTA DO EDITOR BRASILEIRO

 

A presente tradução brasileira é da autoria de Paulo Dias Corrêa (Presidente da Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro, Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro).

 

PSICANÁLISE SILVESTRE

 

HÁ POUCOS dias, uma dama de meia-idade, sob a proteção de uma amiga, veio à minha consulta, queixando-se de estados ansiosos. Ela estava na segunda metade de sua década dos quarenta, razoavelmente bem conservada e, obviamente, não tinha ainda encerrado a sua condição de mulher. A causa precipitante da irrupção de seus estados ansiosos fora o divorciar-se de seu último marido; mas a ansiedade tinha-se tornado consideravelmente mais intensa, conforme seu relato, desde que consultara um jovem médico no subúrbio onde morava, porque ele a havia informado de que a causa de sua ansiedade era a sua falta de satisfação sexual. Disse-lhe que ela não poderia tolerar a falta de relações sexuais com o marido e, assim, havia apenas três maneiras pelas quais ela poderia recuperar a saúde — ela devia ou voltar para o marido, ou ter um amante, ou obter satisfação consigo mesma. Desde então, tinha ela estado convencida de que era incurável, pois não voltaria para o marido, e as outras duas alternativas eram repugnantes aos seus sentimentos morais e religiosos. Tinha vindo a mim, todavia, porque o médico dissera que esta era uma nova descoberta pela qual eu era responsável, e que ela teria apenas de vir e me solicitar que confirmasse o que ele lhe dissera, e eu falaria que esta e nada mais era a verdade. A amiga que estava com ela, uma mulher mais velha, ressequida e de aspecto doentio, implora-me então que assegure à paciente que o médico estava enganado; não era possível que fosse verdade, porque ela própria tinha ficado viúva há muitos anos e permanecia apesar disso respeitável, sem sofrer de ansiedade.

Não me deterei na desconcertante situação em que estive colocado por esta consulta, mas considerarei ao invés a conduta do clínico que enviou esta senhora a mim. Primeiro, no entanto, suportemos uma restrição mental que talvez possa não ser supérflua — em verdade, assim o esperamos. Longos anos de experiência me ensinaram — como podem ensinar a qualquer outro — a não aceitar de imediato como verdade o que os pacientes, especialmente os pacientes nervosos, relatam acerca de seus médicos. Não apenas facilmente se torna o especialista em doenças nervosas o objeto de muitos dos sentimentos hostis de seus pacientes, qualquer que seja o método de tratamento que empregue; ele deve também, muitas vezes, resignar-se a aceitar, por uma espécie de projeção, a responsabilidade pelos desejos reprimidos ocultos de seus pacientes nervosos. É um fato melancólico, mas significativo, que tais acusações em nenhum outro lugar encontrem crédito mais prontamente do que entre os outros médicos.

Tenho, por conseguinte, razão para esperar que essa dama me forneceu uma narração tendenciosamente distorcida do que seu médico havia dito, e que faço a um homem, que me é desconhecido, uma injustiça, por vincular minhas observações acerca da psicanálise ‘silvestre’ com esse incidente. Mas, ao fazer isso, talvez eu possa evitar que outros causem dano a seus pacientes.

Suponhamos, pois, que o doutor falou à paciente exatamente como aludiu. Qualquer pessoa adiantaria imediatamente a crítica de que, se um médico julga necessário discutir a questão da sexualidade com uma mulher, ele deve fazer isso com tato e consideração. Submeter-se a esta exigência, todavia, coincide com a prática de certas regras técnicas de psicanálise. Ademais, o médico em questão ignorou certo número das teorias científicas de psicanálise ou as apreendeu mal, e assim mostrou quão pouco ele havia penetrado na compreensão da natureza e finalidade dela.

Comecemos pelos últimos, os erros científicos. O conselho do doutor à dama mostra claramente em que sentido ele entende a expressão ‘vida sexual’ — no sentido popular, ou seja, em que por necessidades sexuais nada se significa senão a necessidade do coito ou de atos análogos produtores de orgasmo e emissão das substâncias sexuais. Ele não deve ter ficado esquecido, no entanto, de que a psicanálise é comumente censurada por haver estendido o conceito do que é sexual muito além de sua posição vulgar. O fato é incontestável; não discutirei aqui se ele pode ser judiciosamente usado como um reproche. Em psicanálise, o conceito do que é sexual abrange bem mais; ele vai mais abaixo e também mais acima do que seu sentido popular. Essa extensão se justifica geneticamente; nós reconhecemos como pertencentes à ‘vida sexual’ todas as atividades dos sentimentos ternos que têm os impulsos sexuais primitivos como fonte, mesmo quando esse impulsos se tornaram inibidos com relação a seu fim sexual original, ou tiveram de trocar esse fim por outro que não é mais sexual. Por essa razão, preferimos falar em psicossexualidade, colocando assim ênfase sobre o ponto de que o fator mental na vida sexual não deve ser desdenhado ou subestimado. Usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben [‘amar’]. Temos desde muito sabido também que a ausência mental de satisfação, com todas as sua conseqüências, pode existir quando não há falta de relações sexuais normais; e, como terapeutas, sempre temos em mente que as tendências sexuais insatisfeitas (cujas satisfações substitutivas na forma de sintomas nervosos nós combatemos) podem amiúde encontrar apenas uma derivação muito inadequada no coito ou em outros atos sexuais.

Quem quer que não partilhe desde ponto de vista de psicossexualidade não tem o direito de expor teses psicanalíticas tratando da importância etiológica da sexualidade. Ao acentuar exclusivamente o fator somático da sexualidade, ele, sem dúvida, simplifica grandemente o problema, mas ele apenas deverá carregar a responsabilidade por aquilo que ele faz.

Uma segunda e igualmente grande incompreensão se distingue por trás do conselho do médico.

É verdade que a psicanálise apresenta a ausência de satisfação sexual como a causa de distúrbios nervosos. Mas não diz ela mais do que isso? Deve-se ignorar seu ensinamento por ser assaz complicado quando ela afirma que os sintomas nervosos se originam de um conflito entre duas forças — de um lado a libido (que, de regra, se torna excessiva) e de outro uma rejeição da sexualidade ou uma repressão que é sobremodo intensa? Ninguém que se recorde desde segundo fator, que não é de modo algum secundário, em importância, jamais poderá acreditar que a satisfação sexual, só por si, constitua um remédio de universal eficácia para os sofrimentos dos neuróticos. Um bom número nessas pessoas, de fato, tanto em suas circunstâncias presentes, como de um modo geral, não é capaz de se satisfazer. Se o fosse, se estivessem livres de suas resistências internas, a força do próprio instinto lhes indicaria o caminho da satisfação, ainda que nenhum médico o aconselhasse. Qual o benefício, pois, de conselho médico tal como o que se admite tenha sido dado a esta senhora?

Ainda que ele pudesse cientificamente se justificar, este não é conselho que ela possa seguir. Se ela não tivesse tido resistências internas contra a masturbação ou contra uma ligação amorosa, naturalmente que já teria adotado, de há muito, uma dessas medidas. Será que o médico acha que uma mulher com mais de quarenta anos não se dá conta de que pode ter um amante ou será que superestima ele tanto sua influência a ponto de julgar que ela nunca chegaria a se decidir sobre tal passo sem aprovação médica?

Tudo isso parece muito claro, e não obstante deve-se admitir a existência de um fator que, amiúde, torna difícil formar uma opinião. Certos estados nervosos que chamamos de ‘neuroses atuais’, tais como a neurastenia típica e a neurose de angústia simples, obviamente dependem do fator somático da vida sexual, enquanto não temos, até agora, um quadro nítido do papel neles desempenhado pelo fator psíquico e pela repressão. Em tais casos, é natural que o médico deva considerar primeiro certa terapêutica ‘atual’, certa alteração da atividade sexual somática da paciente, e ele assim o faz com plena justificativa se o seu diagnóstico estiver certo. A dama que consultou o jovem doutor queixava-se, sobretudo, de estado de ansiedade e, assim, ele provavelmente supôs que ela vinha sofrendo de uma neurose de angústia, e se sentiu justificado em recomendar-lhe uma terapêutica somática. Outra vez uma cômoda incompreensão! Uma pessoa padecendo de ansiedade não está por essa razão necessariamente sofrendo de neurose de angústia; semelhante diagnóstico não se pode fundamentar sobre a designação [do sintoma]; tem-se de saber que sinais constituem uma neurose de angústia e ser capaz de distingui-la de outros estados patológicos que também se manifestam por ansiedade. Minha impressão foi que a dama em causa estava sofrendo de Histeria de angústia, e todo o valor de tais distinções nosográficas — um que perfeitamente as justifica — está no fato de que elas indicam uma etiologia diferente e um tratamento diferente. Ninguém que levasse em consideração a possibilidade de histeria de angústia nesse caso teria caído no erro de negligenciar os fatores mentais, como este médico fez com suas três alternativas.

Estranhamente bastante, as três alternativas terapêuticas desse assim chamado psicanalista não deixam lugar para a… psicanálise! Esta mulher, aparentemente, só se podia curar de sua ansiedade pela volta do marido, ou pela satisfação de suas necessidades através da masturbação ou com um amante. E onde entra o tratamento analítico, tratamento que consideramos o remédio principal dos estados de ansiedade?

Isto nos conduz aos erros técnicos que se vêem no comportamento do doutor neste caso citado. É idéia há muito superada, e que se funda em aparência superficiais, a de que o paciente sofre de uma espécie de ignorância, e que se alguém consegue remover esta ignorância dando a ele a informação (acerca da conexão causal de sua doença com sua vida, acerca de suas experiência de meninice, e assim por diante) ele deve recuperar-se. O fator patológico não é esse ignorar propriamente, mas estar o fundamento dessa ignorância em suas resistências internas; foram elas que primeiro produziram esse ignorar e elas ainda o conservam agora. A tarefa do tratamento está no combate a essas resistências. O informar ao paciente aquilo que ele não sabe porque ele reprimiu é apenas um dos preliminares necessários ao tratamento. Se o conhecimento acerca do inconsciente fosse tão importante para o paciente, como as pessoas sem experiência de psicanálise imaginam, ouvir conferências ou ler livros seria suficiente para curá-lo. Tais medidas, porém, têm tanta influência sobre os sintomas da doença nervosa, como a distribuição de cardápios numa época de escassez de víveres tem sobre a fome. A analogia vai mesmo além de sua aplicação imediata; pois, informar o paciente sobre seu inconsciente redunda, em regra, numa intensificação do conflito nele e numa exacerbação de seus distúrbios.

De vez, no entanto, que a psicanálise não pode abster-se de dar essa informação, prescreve que isto não se poderá fazer antes que duas condições tenham sido satisfeitas. Primeiro, o paciente deve, através de preparação, ter alcançado ele próprio a proximidade daquilo que ele reprimiu e, segundo, ele deve ter formado uma ligação suficiente (transferência) com o médico para que seu relacionamento emocional com este torne uma nova fuga impossível.

Somente quando estas condições forem satisfeitas se torna possível reconhecer e dominar as resistências que conduziram à repressão e à ignorância. A intervenção, portanto, requer de maneira absoluta um período bastante longo de contacto com o paciente. As tentativas de surpreendê-lo na primeira consulta, inopinadamente lhe contando os segredos que foram descobertos pelo médico, são tecnicamente inadmissíveis. E elas, as mais das vezes, trazem sua própria punição por produzirem uma franca inimizade pelo médico da parte do paciente, e por impedi-lo de ter qualquer influência ulterior.

Ao lado de tudo isto, a gente pode algumas vezes fazer uma suposição errônea, e nunca se está numa posição de descobrir a verdade toda. A psicanálise fornece essas regras técnicas definidas para substituir o indefinível ‘tato médico’ que se considera como um dom especial.

Não é bastante, pois, para um médico saber alguns dos achados da psicanálise; ele deve também estar familiarizado com a técnica se ele deseja que seu procedimento profissional se oriente por um ponto de vista psicanalítico. Esta técnica não pode no entanto ser adquirida nos livros, e ela por certo não pode ser descoberta independentemente, sem grandes sacrifícios de tempo, de cansaço e de sucesso. Como outras técnicas médicas, ela tem de ser aprendida com aqueles que já são experimentados nela. É tema de alguma significação, pois, ao formar um julgamento sobre o incidente que tomei como ponto de partida para estes comentários, que não conheço o médico que se supõe ter dado semelhante conselho à dama e nunca ouvi falar em seu nome.

Nem eu nem meus amigos e colaboradores achamos agradável reclamar um monopólio desse modo no uso de uma técnica médica. Mas, em face dos perigos para os pacientes e para a causa da psicanálise inerentes à prática que se pode antever de uma psicanálise ‘silvestre’, não tivemos outra escolha. Na primavera de 1910, fundamos uma International Psycho-Analytical Association (Associação Internacional de Psicanálise), a que seus membros declararam aderir, pela publicação de seus nomes, de maneira a serem capazes de repudiar a responsabilidade por aquilo que é feito pelos que não pertencem a nós e no entanto chamam a seu procedimento ‘psicanálise’. Pois, em verdade, os analistas ‘silvestres’ desta espécie causam mais dano à causa da psicanálise do que aos pacientes individualmente. Tenho amiúde encontrado que um procedimento inepto desses, mesmo se a princípio produzia uma exacerbação da condição do paciente, conduzia a uma recuperação ao final. Nem sempre, mas muito amiúde. Quando ele já insultou bastante o médico e se sente suficientemente distanciado de sua influência, seus sintomas cedem, ou ele se decide a tomar alguma iniciativa que vai no caminho da recuperação. A melhoria final então advém ‘por si’ ou é atribuída a certo tratamento totalmente neutro por algum outro doutor para quem o paciente tenha mais tarde se voltado. No caso da senhora cuja queixa contra seu médico ouvimos, eu devia dizer que, apesar de tudo, o psicanalista ‘silvestre’ fez mais por ela do que alguma autoridade altamente respeitada que lhe tivesse dito que ela estava sofrendo de uma ‘neurose vasomotora’. Ele forçou a atenção dela para a verdadeira causa de seu distúrbio, ou nessa direção, e não obstante toda a oposição dela, essa sua intervenção não pode ter ficado sem resultados favoráveis. Mas ele causou dano a si próprio e ajudou a intensificar as prevenções que os pacientes sentem, devido a suas resistências afetivas naturais, contra os métodos da psicanálise. E isto pode ser evitado.

 

BREVES ESCRITOS (1910)

 

CONTRIBUIÇÕES PARA UMA DISCUSSÃO ACERCA DO SUICÍDIO

 

I. OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Senhores. Todos vós ouvistes com muita satisfação o arrazoado feito por um educador que não admitirá que uma acusação injusta se levante contra a instituição que lhe é tão cara. Mas eu sei que, de todo modo, não estais inclinados a dar fácil crédito à acusação de que as escolas impelem seus alunos ao suicídio. Não nos deixemos levar demasiado longe, no entanto, por nossa simpatia pela parte que foi injustamente tratada nesse caso. Nem todos os argumentos apresentados pelo iniciador da discussão me parecem sustentáveis. Se é o caso que o suicídio de jovens ocorre não só entre os aluno de escolas secundárias, mas também entre aprendizes e outros, este fato não absolve as escolas secundárias; isto deve talvez ser interpretado como significando que no, concernente a seus alunos, a escola secundária toma o lugar dos traumas com que outros adolescentes se defrontam em outras condições de vida. Mas uma escola secundária deve conseguir mais do que não impelir seus alunos ao suicídio. Ela deve lhes dar o desejo de viver e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior. Esta não é a ocasião oportuna para uma crítica às escolas secundárias em sua forma presente; mas talvez eu possa acentuar um simples ponto. A escola nunca deve esquecer que ela tem de lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis. A escola não pode ajudicar-se o caráter de vida: ela não deve pretender ser mais do que uma maneira de vida.

II. OBSERVAÇÕES FINAIS

Senhores. Tenho a impressão de que, a despeito de todo o valioso material que nos foi exposto, nesta discussão, não chegamos a uma decisão sobre o problema que nos interessa. Estávamos ansiosos sobretudo em saber como seria possível subjugar-se ao extraordinariamente poderoso instinto da vida: isto pode apenas acontecer com o auxílio de uma libido desiludida, ou se o ego pode renunciar à sua autopreservação, por seus próprios motivos egoístas. Pode ser que tenhamos deixado de responder a esta indagação psicológica porque não temos meios adequado para abordá-la. Podemos, eu acredito, apenas tomar como nosso ponto de partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o afeto do luto. Os processos afetivos na melancolia, entretanto, e as vicissitudes experimentadas pela libido nessa condição nos são totalmente desconhecidos. Nem chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do luto. Deixemos em suspenso nosso julgamento até que a experiência tenha solucionado este problema.

 

A CARTA AO DR. FRIEDRICH S. KRAUSS

SOBRE A ANTHROPOPHYTEIA

 

MEU PREZADO DR. KRAUSS,

Você me pergunta que valor científico, em minha opinião, podem apresentar as coleções de piadas, de chistes, de anedotas etc., de natureza erótica. Sei que você não experimentou a menor dúvida de poder justificar haver reunido tais coleções. Você simplesmente me pede o testemunho, do ponto de vista do psicólogo, para o fato de que material dessa natureza não só é útil mas indispensável.

Há dois pontos, sobre que, principalmente, eu gostaria de insistir. Quando já tudo se disse e se fez, as sátiras e anedotas cômicas eróticas, que você colecionou e publicou em Anthropophyteia, só foram produzidas e repetidas porque elas causaram prazer tanto a seus narradores quanto a seus ouvintes. Não é difícil adivinhar que componentes instintivos da sexualidade (composta como é de tantos elementos) encontram satisfação dessa maneira. Essas histórias nos dão informação direta quanto a que instintos parciais da sexualidade se retêm num dado grupo de pessoas por serem especialmente eficientes na produção de prazer; e dessa maneira eles fornecem a confirmação mais nítida das descobertas conseguidas pelo exame psicanalítico de neuróticos. Permita-me indicar o exemplo mais importante desta natureza. A psicanálise nos levou a afirmar que a região anal — normalmente e não apenas nos indivíduos pervertidos — é a sede de uma sensibilidade erógena, e que a certos respeitos, ela se comporta exatamente como um órgão genital. Médicos e psicólogos, quando informados de que há um erotismo anal e um caráter anal dele derivado, ficam altamente indignados. Neste ponto, a Anthropophyteia vem em auxílio da psicanálise, mostrando quão universalmente as pessoas se demoram com prazer sobre essa parte do corpo, suas atividades e mesmo no produto das funções dela. Se isto assim não fosse, todas essas anedotas estariam fadadas a produzir desagrado em seus ouvintes, ou então toda a massa da população teria de ser `pervertida’ no significado em que se usa a palavra nos trabalhos a respeito da `psicopatia sexual’, de tom moralizador. Não seria difícil dar outros exemplos de como o material colecionado pelos autores da Anthropophyteia tem sido de valor para as pesquisas de psicologia sexual. Seu valor poderia mesmo aumentar, talvez, pela circunstância (não uma vantagem em si) de que os colecionadores nada sabem das descobertas teóricas da psicanálise e reuniram o material sem quaisquer princípios diretivos.

Outra vantagem de um caráter mais amplo se apresenta em particular nos chistes eróticos, em senso estrito, exatamente como nos chistes em geral. Mostrei em meu estudo sobre os chistes (1905c) que a revelação do que normalmente é o elemento inconsciente reprimido na mente pode, sob certos arranjos, tornar-se uma fonte de prazer e, assim, uma técnica para a construção de chistes. Em psicanálise, hoje, descrevemos um encadeamento de idéias e seus efeitos associados como um `complexo’; e estamos preparados para afirmar que muitos dos chistes mais apreciados são os chistes `complexivos’ e que devem seu efeito hilariante e alegre à engenhosa revelação do que, em regra, são complexos reprimidos. Levar-me-ia demasiado longe se eu fosse apresentar aqui exemplos como prova desta tese, mas posso afirmar que o resultado de tal exame da evidência é que os chistes, tanto os eróticos como os de outras espécies, que circulam popularmente, fornecem um excelente auxiliar de investigação da mente humana inconsciente — da mesma maneira que o fazem os sonhos, os mitos e as lendas, em cuja exploração a psicanálise já está ativamente empenhada.

Podemos, pois, por certo esperar que a importância psicológica do folclore seja cada vez mais claramente reconhecida, e que as relações entre esse ramo de estudo e a psicanálise logo se tornem mais estreitas.

Subscrevo-me, prezado Dr. Krauss, muito cordialmente,

FREUD

26 de junho de 1910

 

DOIS EXEMPLOS DE FANTASIAS PATOGÊNICAS REVELADAS PELOS PRÓPRIOS PACIENTES

 

A

HÁ POUCO tempo, examinei um paciente com cerca de vinte anos de idade, que apresentava um quadro inconfundível (confirmado por outras opiniões) de demência precoce (hebefrenia). Durante os estágios iniciais de sua doença, ele manifestara mudanças periódicas de humor e experimentara considerável melhoria. Enquanto estava nessa condição favorável, foi removido da instituição pelos pais e, durante cerca de uma semana, regalaram-no com distrações de toda espécie para celebrar seu suposto restabelecimento. A recidiva seguiu-se imediatamente a essa semana de festividades. Quando foi levado de volta à instituição, ele disse que seu médico assistente o aconselhara a `flertar um pouco com a mãe’. Não pode haver dúvida de que, nesta paramnesia delirante, ele estava dando expressão à excitação que provocara nele o fato de estar em companhia da mãe e que foi a provocação imediata de sua recaída.

 B

Há mais de dez anos, numa época em que as descobertas e hipóteses da psicanálise eram conhecidas apenas por poucas pessoas, os seguintes acontecimentos me foram referidos por fonte fidedigna. Uma jovem, que era filha de médico, adoeceu de histeria com sintomas localizados. O pai negou que fosse histeria e providenciou que se iniciassem vários tratamentos somáticos que trouxeram pouca melhoria. Certo dia, uma amiga da paciente disse a ela: `Você nunca pensou em consultar o Dr. F.?’ Ao que a paciente replicou: `Que benefício teria isso? Sei o que ele iria me dizer: “Você alguma vez já teve idéia de relação sexual com seu pai?” — Parece-me desnecessário afirmar explicitamente que nunca foi meu costume, e nem é meu costume hoje, fazer tais perguntas. Mas é digno de nota que muito do que os pacientes nos contam das palavras e das ações de seus médicos pode ser entendido como revelações de suas próprias fantasias patogênicas.

 

CRÍTICAS ÀS CARTAS A UMA MULHER NEURÓTICA,DE WILHELM NEUTRA

 

Deve tomar-se como um sinal auspicioso do interesse crescente pela psicoterapia que uma segunda edição desse livro tenha sido necessária tão depressa. Infelizmente, nós não podemos saudar o próprio livro como um fenômeno auspicioso. Seu autor, que é médico assistente do instituto hidropático de Gainfarn, perto de Viena, valeu-se da forma das Psychotherapeutische Briefe (Cartas Psicoterápicas) de Oppenheim, e deu a esta forma um conteúdo psicanalítico. Isto é, em certo sentido, uma deturpação, de vez que a psicanálise não se pode satisfatoriamente combinar com a técnica da `persuasão’de Oppenheim (ou, caso se prefira, de Dubois); ela busca seus resultados terapêuticos ao longo de caminhos inteiramente outros. O que é mais importante, porém, é o fato de que o autor não atinge os méritos de seu modelo — tato e seriedade moral — e em sua apresentação da teoria psicanalítica, ele, amiúde, descai para a retórica vazia, e é também culpado de algumas afirmações inexatas. Não obstante, muito do que ele escreve, expressa-o clara e convenientemente; e o livro se pode aceitar como um trabalho para consumo popular. Numa exposição séria, científica do assunto, o autor deveria ter indicado as fontes de suas opiniões e afirmativas com maior escrúpulo.

 

                                                                                             

                      

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