Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME III / X.M.
OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME III / X.M.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME III

Primeira Parte

 

MALPERTUIS

O Conde de Vergis recebera à noite a carta de Malpertuis, que um moço de recados lhe trouxera.

Este bilhete, apesar do seu laconismo, ou talvez por isso mesmo, causou-lhe uma profunda comoção.

Teriam os agentes secretos do ex-advogado sido bem sucedidos, nas suas pesquisas?

Iria finalmente respirar desafogadamente, livre do terrível ciúme que o sufocava?

Como sabemos, o escritório de Malpertuis abria logo às nove horas.

O senhor de Vergis saiu a pé de casa, subiu para um trem de praça na estação mais próxima, deu ordem para o conduzirem à rua da Vitória, e mandou o seu bilhete ao guarda-portão.

Malpertuis estava tratando de negócios.

Recebia os relatórios dos seus subordinados, e entre outros o daquele a quem encarregara das pesquisas relativas à filha da comediante Amélia Gonthier.

Bijou não estava mais adiantado que no primeiro dia. Não descobrira nada.

O ex-advogado ralhou com ele muito seriamente, ordenou-lhe que tornasse a empreender o inquérito tão mal conduzido, concedeu--lhe um lapso de quinze dias, e declarou-lhe que no fim deste tempo, em caso de insucesso, ele cessaria de fazer parte da polícia do escritório.

Depois de haver recebido esta advertência, Bijou saiu de cabeça baixa e Malpertuis deu ordem para introduzirem o Conde de Vergis.

 

O Conde esperava com impaciência febril.

Quando o homem de sobrecasaca escura o veio buscar, a impaciência metamorfoseou-se repentinamente em angústia.

Detrás da porta prestes a abrir-se, iria ele achar a confirmação das suas dúvidas, ou a asserção de que a carta anônima mentira?

Iria encontrar o repouso ou o desespero?

Foi tremendo, com o rosto pálido, o coração opresso, que ele transpôs a porta do gabinete.

Malpertuis tratou de se levantar da sua poltrona, e deu com deferência alguns passos ao encontro do senhor de Vergis.

Tinha o sorriso nos lábios.

O sorriso pareceu de feliz agouro para o Conde, cuja fisionomia se desanuviou durante um segundo.

— Recebi ontem à noite a sua carta, disse, e tratei logo de vir...

Malpertuis indicou uma poltrona junto dele, e disse com um novo sorriso:

— Queira sentar-se, senhor Conde.

O recém-chegado tornou:

— Adivinha de certo facilmente, que tenho pressa de saber o que me vai dizer... A alegria ou o suplício dos últimos anos que me restam a viver dependerão das suas palavras. Não me faça padecer, peço-lhe... Quis saber, quero ainda... Fale depressa!

— Dê-se ao incômodo de se sentar, repetiu Malpertuis. Tenho muito que conversar com o senhor.

— Isso não é uma resposta. Que devo recear? que posso esperar?

— Compreendo a sua pressa, senhor Conde, e desejaria satisfazê-lo quanto antes; mas é essencial que me conceda o favor de me deixar explicar.

O senhor de Vergis não podia insistir em face da resolução do seu interlocutor.

Instalou-se na poltrona designada, e esperou. Malpertuis principiou:

— Logo no dia que se seguiu à nossa primeira entrevista, pus os meus mais hábeis agentes em campo.

— E conseguiu saber...

— Não soube coisa alguma que confirme a denúncia da carta anônima... Não há nada até hoje que possa afugentar a tranqüilidade da sua alma...

— Têm a certeza de que os seus homens investigaram conscienciosamente?

— Quer ter a prova disso?

— De certo!

— Tê-la-á completa, suponho, se lhe disser quem foram durante uma semana, os visitantes do seu palácio, o que fez a senhora Condessa, o que o senhor mesmo fez... e vou dizer-lhe tudo isto...

— É impossível, murmurou o Conde com um gesto de incredulidade.

— Impossível? Será! volveu Malpertuis sorrindo. Mas se eu lhe disser o que prometo, far-me-á a honra de me conceder para o futuro uma confiança sem reserva, e de seguir cegamente os meus conselhos?

O senhor de Vergis fez um gesto afirmativo. Malpertuis continuou, deitando os olhos para um papel colocado diante dele:

— O senhor Conde recebeu, ou antes a senhora Condessa, os seguintes homens: os senhores de Valville e de Simiers, o Visconde de Chauzy, o Barão de Fossaro, o Conde de Villelieu, o Marquês de Samper, o Conde d'Illiers, o senhor de Marvaise, o Conde de Hornoy... Será verdade?

— É verdade, replicou o senhor de Vergis muito surpreendido, mas o senhor esquece-se de alguém...

— Não me esqueço de ninguém... Quer falar do Barão Arnaldo de Trois Monts... Ia nomeá-lo... Foi a sua casa três vezes no espaço de oito dias, mas foi mais por sua causa do que por causa da senhora Condessa. Será verdade?

— É verdade.

— Por ocasião da sua primeira visita, depois de haver passado alguns momentos no salão, subiu ao seu gabinete a fim de pôr em ordem algumas notas relativas à sua viagem à Itália, notas de que lhe pedia comunicação. Será ainda verdade?

— É... murmurou o Conde, estupefato por ver que tão íntima particularidade era conhecida de Malpertuis.

Este continuou:

— O senhor Conde sente pelo senhor de Trois-Monts uma afeição séria e a sua presença agrada-lhe, mas a senhora de Vergis esta longe de partilhar a simpatia que lhe inspira, e a frieza do seu acolhimento afugenta do palácio esse cavalheiro verdadeiramente perfeito. Bem vê que tenho muito boas informações.

O rosto do Conde cada vez mostrava maior espanto.. Ainda não é tudo... continuou o ex-advogado. O senhor foi ontem ao ministério dos negócios estrangeiros entregar ao ministro, a seu pedido, as provas de parte de uma grande obra que dentro de poucas semanas deve aparecer, e sua excelência partilhando todas as idéias do senhor Conde quis encarregá-lo de uma missão na Suíça perto do conselho federal. O senhor Conde declina essa honra.

O senhor de Vergis não podia acreditar o que ouvia.

— Mas, exclamou, como é que sabe?

— Pouco importa como é que sei, interrompeu Malpertuis, o essencial é que eu saiba... Poderia acrescentar numerosas informações, mas para quê? No que lhe diz respeito, a prova está dada. Passemos à senhora Condessa... Em contrário dos seus hábitos poucas vezes saiu esta semana... Ontem, após uma curta visita à Viscondessa de Ernesty, rua de Vaugirard, entrou em Saint-Sulpice onde rezou durante alguns minutos. Tendo partido da avenida de Villars às quatro horas, voltava para ali às seis menos um quarto. Julga, senhor Conde, que os meus agentes desempenham conscienciosamente o seu mandado?

— É prodigioso, convenho! replicou o senhor de Vergis; mas para obter tais resultados, é preciso que tenha informadores dentro de minha casa...

— Por outras palavras, supõe que algum dos seus criados está comprado por mim?

— Francamente suponho.

— Afirmo-lhe o contrário... Seria má polícia. Nenhum dos seus criados suspeita do inquérito a que estou procedendo, e que até ao presente, repito-lhe, não ministrou dado algum contra a senhora Condessa.

— A carta anônima mentiu?

— Por que não?

— precisava do nome do miserável que a escreveu... Quero vingar-me dos tormentos que o miserável me infligiu. Dá-me esse nome? Sabe, supõe alguma coisa?

O ex-advogado tomou nesse momento uma fisionomia misteriosa.

— É possível que eu esteja num rasto... disse ele proferindo as suas palavras uma a uma, mas sigo o princípio de não falar nunca, senão com muito fundamento, e portanto não me é possível dar hic et nunc uma resposta afirmativa. Demais não posso nada sem o senhor.

— Sem mim! repetiu o Conde cujo espanto tomava inauditas proporções.

— Sim.

— Não compreendo...

— Eu vou explicar-me... A carta anônima que tão infeliz o tornou é o fruto de uma odiosa colaboração.

— Como?

— O inimigo covarde, o perverso denunciante, não teve sequer a coragem da sua infâmia. Ditava em quanto uma mão que era paga segurava na pena.

— Tem a certeza disso?

— Tenho.

— Pôde então dar-me o nome de um dos seus cúmplices?

— Não os conheço, mas havemos de vir a conhecê-los. É para isso que tenho precisão do senhor.

— Para isso farei seja preciso o que for! Seguirei a senda seja ela qual for!

— Escute-me, pois, senhor Conde e tome nota do meu raciocínio. Tenho o costume de proceder por deduções lógicas que me conduzem noventa e nove vezes sobre cem, a uma certeza absoluta até certo ponto matemático. O caluniador não pôde ser senão um homem loucamente apaixonado pela Condessa, namorado sem esperança.

— Qual o seu fim?

— O mais simples do mundo. Inspirar-lhe suspeitas infundadas, levá-lo a atos de ciúme e de violência que fizessem da senhora de Vergis uma mártir, a reduzissem ao desespero e a levassem fatalmente a deplorar a sua união com o senhor Conde. Obtido este resultado, a ternura transformada em ódio, o paraíso metamorfoseado em inferno o covarde apresentar-se-ia como um consolador chegado a propósito para enxugar as lágrimas que o Conde fizesse correr... Ah! este patife conhece as mulheres. Sabe que se muitas fraquejam por amor, o nome das que cedem por despeito ou por vingança é muito maior.

— É verdade? murmurou o senhor de Vergis.

— O miserável em questão, vendo falhar os cálculos que baseava na carta infame, conserva-se trevas onde nenhum indício nos. revela a sua presença... tornou Malpertuis; é preciso obrigá-lo, a sair das trevas, é preciso constrangê-lo a denunciar-se.

— Como? perguntou o velho gentil-homem com vivacidade.

— Deixando-lhe crer que conseguiu o que pretendia, proporcionando-lhe a ocasião esperada... Um pouco de paciência, senhor Conde, vai compreender... A sua casa está montada com a grandeza própria de uma grande fortuna. Tem muitos criados... Pois considere como indiscutível que o seu correspondente anônimo tem espias entre os seus criados e sabe minuciosamente tudo quanto se passa na, avenida de Villars.

— Um dos meus criados está por conta dele? exclamou o senhor de Vergis.

— Afirmo-o.

— Porei tudo na rua.

— Ia aconselhar-lhe que fizesse isso, mas não basta. É preciso persuadir ao miserável que pela sua infâmia cavou um abismo entre o senhor Conde e a Condessa, e é chegada a hora de se desmascarar.

— Para isso que devo fazer?

— Aceitar a missão oferecida pelo ministro.

— E que eu recusei?

— Exatamente.

— Pensa em semelhante coisa, senhor Malpertuis? Afastar-me! Deixar a Condessa exposta às tentativas de um homem capaz de tudo!

— Tanto penso nisto, que reclamo a sua ausência, a fim de que este homem tenha o campo livre.

— Mas se ele, aproveitando-se da inexperiência da senhora de Vergis a atraísse a algum laço!

— Oh! quanto a isso não há nada que recear. Respondo por tudo... A senhora de Vergis será bem guardada. Para sem inquietação, e deixe a Condessa só.

— Aqui, em Paris?

— Em Paris, ou em qualquer outra parte, pouco importa. O que é necessário é que ela esteja só, e não pareça estar vigiada...

Minha mulher falava-me ontem em se instalar nas Épines Blanches, uma vivenda que possuo no Loiret, se eu aceitasse a missão do ministro.

— Pois seja nas Épines Blanches, se fantasia da senhora lhe dá para vilegiatura em pleno inverno. A vigilância no campo tornar-se-á mais fácil.

— Talvez tenha receio. Tomar-se-ão medidas nesse sentido... Não haverá suspeitas...

— O homem que pretendemos conhecer, atrever-se-á a vir encontrar a Condessa na sua solidão?

— A solidão dar-lhe-á ousadia, e não lhe faltarão pretextos para cair aos pés de uma mulher que ele poderá julgar abandonada, em conseqüência de alguma cena conjugal não menos injusta que veemente. Os namorados loucos são impacientes, e o nosso homem há de denunciar-se muito depressa.

— Se eu me contentasse com fingir uma ausência?...

— Isso já está fora de moda! um velho ardil que já não pega. É preciso partir a valer... é preciso que os jornais anunciem a sua chegada a Berne... Só assim conseguiremos alguma coisa...

O senhor de Vergis apoiou o rosto pálido entre as mãos contraídas, e pareceu, durante um instante, entregar-se a profundas reflexões.

No fim de alguns segundos, levantou a cabeça, e fixou em Malpertuis um olhar de tão estranha expressão, que o associado do Barão César de Fossaro, custou-lhe a suportar aquele olhar sem desviar os olhos.

— Senhor, proferiu o Conde com uma voz abafada, não me diz toda a verdade...

O ex-advogado julgando descoberto o segredo da sua diplomacia, estremeceu.

 

UMA BOA NOVA

A comoção de Malpertuis foi de curta duração.

— Como, não lhe digo toda a verdade! exclamou ele fazendo boa cara.

— Não, retorquiu o Conde.

— Dúvida da minha lealdade? — De modo nenhum.

— Julga a senhora de Vergis culpada, sem contudo ter a prova disso, e aconselha-me que parta para armar um laço, não ao covarde autor da carta anônima, mas ao verdadeiro amante da Condessa, para o obrigar a trair-se na minha ausência. Adivinhei ou não?

Malpertuis ficou aliviado; — o marido seguia trilho errado.

— Está enganado, juro-lhe! replicou Malpertuis sem hesitar; creio que a Condessa não está culpada, e é a sua inocência que eu quero provar-lhe entregando-lhe o caluniador.

— E consegui-lo-á?

— Se o senhor consentir em se afastar, afirmo-lhe que sim. O que arrisca em seguir os meus conselhos? A sua existência já não é tolerável; é preciso que se faça a luz, para o senhor Conde poder readquirir a paz. Parta sem receio, no dia em que eu tiver conseguido o que pretendo, mandar-lhe-ei dizer por um telegrama, e voltará para Paris com a alma aliviada do grande peso que a oprime.

Tem talvez razão, murmurou o senhor de Vergis com uma voz alterada, depois de refletir durante alguns segundos.

— Tenho razão com toda a certeza...

— Muito bem, visto que assim é preciso para me subtrair ao suplício que estou sofrendo, não hesito, partirei...

— Quando?

— Dentro de dois dias já não estarei em Paris.

— Felicito-o por tão acertada resolução... É uma garantia do bom resultado das nossas diligências. Mas sossegue, e saiba dissimular... Qualquer palavra imprudente. fazendo supor que a sua retirada, oculta algum laço, seria bastante para nos comprometer...

— Mostrar-me-ei plácido, serei mudo, e o meu rosto não me trairá.

— É o que se precisa. Mas antes de se retirar diga-me duas coisas...

— Quais?

— A residência escolhida pela senhora Condessa, e o lugar aonde poderei dirigir-lhe os meus telegramas, se for preciso fazer-lhe qualquer participação.

— Amanhã será informado do que pretende.

 

O senhor de Vergis retirou-se com a alma opressa, mas pondo no rosto uma máscara impenetrável, como acabava de o prometer a Malpertuis.

Apenas, quando atravessava o escritório, lhe deslizaram pelo rosto duas lágrimas.

Enxugou-as, e todos os sintomas exteriores das comoções que o transtornavam desapareceram.

Esperava o trem alugado às horas.

— Para o ministério dos negócios estrangeiros, disse ele ao co-cheiro.

Um continuo levou o bilhete do Conde ao secretário particular do ministro.

Sua excelência não recebia, mas fez uma exceção em favor do senhor de Vergis, deu ordem para imediatamente o introduzirem, e acolheu-o com estas palavras:

— A noite é boa conselheira. Vem por acaso dizer-me, meu querido Conde, que hoje aceita o que ontem rejeitava? Dar-me-ia por muito feliz.

— Sua excelência enche-me de favores, e a sua perspicácia não o engana. Venho, efetivamente, pôr-me à disposição de vossa excelência.

Adivinha-se o seguimento da conversa.

Depois de dois minutos de audiência, o senhor de Vergeis deixava o gabinete do ministro, e voltava apara a avenida de Villars.

Chegou a hora do almoço.

A Condessa estendida numa chaise-longue na saleta onde habitualmente se conservava pela manhã, entregava-se a negros pensamentos, cuja natureza nos parece indicar.

Quando o marido transpunha a porta da saleta, afugentou as nuvens de tristeza que lhe velavam o rosto pálido, e chamou aos lábios um sorriso.

Ao vê-la, tão castamente formosa, dirigir para ele os grandes olhos cismadores, o Conde experimentou um ligeiro alívio.

— Este rosto angélico não pode enganar, pensou ele; Maria está inocente, a carta anônima mentiu.

A senhora de Vergis estendeu a mão ao marido, e disse-lhe:

— Acabo de ouvir entrar o trem. Já saiu esta manhã?

— Sim, minha querida, replicou o velho fidalgo, e foi por sua causa...

— Por minha causa! repetiu Maria muito surpreendida. O senhor de Vergis ia responder.

O criado de quarto interrompeu a conversa, anunciando o almoço.

— Daqui a pouco explicar-lhe-ei tudo, tornou o ancião oferecendo o braço à Condessa para a conduzir à sala de jantar.

A jovem não pudera subtrair-se a uma pequena inquietação.

Vendo porém o marido sossegado e quase alegre, tranqüilizou-se e foi interrogá-lo; um olhar do Conde fez-lhe compreender que ele não desejava falar diante do criado.

A refeição durou apenas quarenta minutos.

— Servirá o café na estufa, ordenou a Condessa. Quando se achou a sós com o senhor de Vergis, exclamou:

— Sou filha de Eva a loura, por conseguinte curiosa. O Conde tem-me intrigado o mais que é possível. Explique-se depressa, peço-lhe!

— Que me disse ontem a propósito da minha recusa da missão... de que o ministro dos negócios estrangeiros queria encarregar-me? perguntou o senhor de Vergis.

— Agradeci-lhe o fato de haver sacrificado sem hesitação as horas a que tem direito ao desejo de não me deixar, balbuciou Maria, cujas inquietações renasciam.

— Sim, replicou o Conde. Mas censurava-me ao mesmo tempo por recusar uma honra de que a senhora teria orgulho por causa do nome que me pertence e que partilhei com a senhora.

De certo, pois que a glória do marido constitui para a mulher uma auréola... Cifro o meu orgulho em o ver engrandecer-se.

E tanto compreendi isso, que por amor da senhora aceitei hoje o que ontem recusava.

Ao ouvir estas palavras, a senhora de Vergis recebeu em cheio no coração uma comoção violenta.

Pareceu-lhe que o seu futuro sombrio se rasgava subitamente, aparecendo um canto de céu azul.

Invadiu-lhe a alma uma alegria imensa, mas compreendendo que para se comprometer, tinha de ocultar essa alegria, conseguir conservar-se impassível.

O Conde observava-a as ocultas; procurava ler-lhe no rosto o efeito produzido por aquela nova inesperada.

A senhora de Vergis fingiu-se surpreendida.

— Não sei se o compreendo bem, meu amigo, disse ela, mas duvido, tão singular me parece o que me anuncia! Aceitou efetivamente a sua missão na Suíça?

— Bem me compreende, querida filha, aceitei.

— Mas por quê?

— Pelo motivo que há pouco lhe expliquei... Refleti muito esta noite. Disse comigo que em troca da sua mocidade, devia-me um nome brilhante, e não hesitei mais...

— Portanto, está tomada a sua resolução?...

— Irrevogavelmente...

— Não tentarei pois combatê-la...

— Ser-me-á penosa a sua deliberação, mas viverei da sua recordação, esperarei do senhor Conde extensas cartas, e escrever-lhe-ei todos os dias.

— Promete-mo, minha querida? murmurou o Conde, em quem a atitude tão correta de Maria cada vez dissipava mais absolutamente as suspeitas.

— Será para mim uma alegria, a minha única alegria...

— A sua única alegria...

— A sua única alegria? Verdade, verdade?

— Não acredita?

— Não, não acredito, não quero acreditar...

E o Conde de Vergis, puxando a si a sua jovem esposa, pôs-lhe os lábios na fronte.

Apesar da sua força de vontade, a Condessa estremeceu toda sob o beijo do marido.

— Quando parte? perguntou ela com voz trêmula.

— Depois da manhã. — Tão depressa!

— Assim é preciso. De hoje em diante vou dar princípio aos meus preparativos.

— Será muito demorada a sua ausência?

— Não lhe poderei designar um prazo exato... Há de durar talvez muitos meses, como ontem lhe dizia.

— É a salvação! pensou Maria. O senhor de Vergis tornou:

— Resta-nos tratar de uma questão muito importante. Tem tenção de se conservar em Paris durante a minha residência em Berne?

— Isso é que não! Quase já não sou mulher de sociedade, e os prazeres que o meu amigo não partilha, não tem para mim valor algum. Irei viver nas Épines Blanches.

— Não a assusta uma tal solidão em pleno inverno?

De modo algum... Atrai-me pelo contrário... Fechar-me-ei como uma reclusa...

— Mas o tédio?

— Não tenho medo dele... Terei os livros da biblioteca, os jornais que me chegarem de Paris... e as suas cartas...

— Leva os trens e as criadas?

— Para quê? Madalena, a minha velha ama, e Pedro, seu marido, guarda da quinta, farão muito bem o meu serviço com Lucette, a filha do jardineiro... A caleche do campo e os dois cavalos que lá tem aposentados, bastarão para os meus passeios... Sairei mui pouco porque não me darei com a vizinhança.

— Não leva a sua criada de quarto? Maria abanou a cabeça.

— Não levo ninguém! respondeu.

 

O senhor de Vergis lembrou-se das palavras de Malpertuis.

Segundo o ex-advogado, o caluniador anônimo devia ter espias na avenida de Vallars.

Nunca se poderia apresentar melhor ocasião de fazer uma limpeza geral quanto a criadagem.

O Conde aproveitou-a. Nesse caso, disse ele com vivacidade, de que serve deixar em Paris uns dez criados que nada tendo que fazer tomarão costumes impossíveis? Tenho grandes desejos de confiar a guarda do palácio ao guarda-portão em quem tenho absoluta confiança, de pôr os cavalos como pensionistas no Tattersall, e despedir toda a gente, com exceção do meu criado de quarto, que levarei comigo. Aprova?

— Absolutamente.

— É portanto negócio resolvido.

— Acode-me uma idéia, e submeto-lha, volveu Maria. Não desejaria que os seus amigos e as minhas amigas de Paris, sabendo que eu estou nas Épines Blanches, tivessem a idéia de me irem ver... Não poderia eu já partir amanhã, anunciando que vou a Nice ou a Menton?

— Pode ser.

— O senhor por-se-ia a caminho no dia seguinte, deixando em Paris o seu criado de quarto, que viria ter conosco depois de haver despedido os criados, e fechado o palácio... Desse modo ninguém se lembrava de se ocupar de mim. Vê nisto algum obstáculo?

— Nenhum, respondeu o Conde perguntando a si próprio que motivo levaria a esposa a ocultar assim os seus vestígios. A final, poderia ser um capricho de rapariga, gostando muito de isolamento momentâneo. Não havia nada de suspeito em suma.

Após um momento, tornou:

— Não se esqueça de prevenir Magdalena da sua ida, para que Pedro a venha buscar de carruagem à gare, e prepararem o aposento que há de ocupar.

— Vou escrever imediatamente, e deitarei eu mesmo a carta no correio, indo fazer algumas compras.

— Vá, minha querida filha.

O senhor de Vergis tornou a colar os lábios na fronte de Maria, que saiu da estufa sorrindo.

O velho seguiu-a com os olhos.

O seu olhar tornou-se sombrio; a sua fronte enrugou-se.

— Será a alma de um anjo, ou o coração de um demônio que se oculta naquele rosto encantador? murmurou. Esta dúvida esmaga-me, e fará da minha viagem um suplício. Mas é preciso partir! Lutar sem descanso contra as minhas suspeitas, tornar-me-ia louco. Quero saber e viver feliz, ou morrer vingado!

A senhora de Vergis tendo voltado para o seu quarto, deixou-se cair numa cadeira, aniquilada pela luta que travara no seu íntimo.

Estranhos ruídos lhe ecoavam no cérebro; sufocavam-na os saltos desordenados do seu coração.

— Pôs as mãos e balbuciou:

— Meu Deus, tivestes piedade de mim... Socorrestes-me no meio da minha imensa aflição. Ele parte! estou salva... Poderá nascer meu filho!...

Um pouco restabelecida da sua comoção esmagadora, sentou-se à sua pequenina secretária de laça vermelha, e escreveu a Magdalena, a sua velha ama, a mulher do guarda das Épines Blanches.

Depois, em Outra folha de papel, e com uma letra disfarçada, traçou as linhas seguintes:

"Volveu a esperança.

"Amanhã estarei em Paris. Espere uma carta minha... Nada receie por mim... Ame-me..."

 

AMORES SÉRIOS

A senhora de Vergis dobrou o papel que acabava de escrever, sem lhe dar a forma de uma carta, meteu-o, como na véspera, no seio, e chamou pela criada de quarto.

— Julieta, disse-lhe ela, chame o criado de quarto, e que ele a ajude a pôr lá embaixo duas grandes malas...

— A senhora Condessa vai fazer uma viagem! exclamou a criada muito espantada.

— Sim, minha filha...

— E a senhora Condessa leva-me? Maria abanou a cabeça e respondeu:

— Não, não terei necessidade de ninguém... Parto amanhã para Nice, onde o senhor Conde virá ter comigo depois de amanhã. Trate dos meus preparativos...

— A menina Julieta fez beicinho, mas não, replicou, e tratou de obedecer às ordens que lhe davam.

A jovem saiu a pé, tomou um trem de praça, fez-se conduzir a Saint-Sulpice, entregou um bilhete com a palavra Remember, em casa do guarda-portão da Rua Ferou, meteu o bilhete no lugar que sabemos, fez diferentes compras, e voltou para a avenida de Villars.

Será preciso afirmar que César Fossaro espreitava a Condessa?

Assim que ela deixou a igreja, leu antes do seu destinatário a missiva dirigida ao senhor de Trois-Monts, pô-la no lugar que ela ocupava e retirou-se.

A retirada da senhora de Vergis teve lugar no dia seguinte.

As bagagens haviam sido levadas com antecedência à gare, e depositadas.

O próprio Conde foi quem as registrou, para que ninguém conhecesse o verdadeiro destino na viagem de Maria.

Ao saber repentinamente da viagem da Condessa, Jacques Sureau ficou como que prostrado no primeiro momento, mas fez diligência para recuperar o sangue frio, e disse para se tranqüilizar:

— Será curta a sua ausência. Voltará. Tornarei a vê-la...

— Sabemos que o dia seguinte lhe reservava segundo golpe, mais "terrível que o primeiro.

As despedidas do senhor de Vergis e da Condessa foram comoventes.

Maria não pôde reter as lágrimas ao abraçar aquele velho cujo grande coração, altas qualidades, absoluta dedicação, ela conhecia, e a quem a troco da sua infinita ternura, ela levava a mentira, a traição, a vergonha.

O Conde, como não pudesse ler na alma da mulher adúltera, atribuiu naturalmente ao pesar da separação as lágrimas que o remorso fazia correr, e essas lágrimas proporcionaram-lhe alívio.

 

Deixemos por pouco tempo o senhor de Vergis e Maria, e roguemos aos nossos leitores que nos acompanhem ao palácio de Chaslin.

Branca Adriana, como sabemos, captara imediatamente a confiança e a afeição da Duquesa, e à medida que os dias decorriam, aumentava o seu domínio, tomando, ao mesmo tempo, sobre o senhor de Chaslin um terrível ascendente.

O Duque Henrique já não tinha ilusões a respeito da natureza dos sentimentos que experimentava.

Sabia que uma paixão ardente, impetuosa, pela jovem dama da Duquesa se lhe apossara da alma.

Não tentava uma luta impossível consigo mesma, e sem calcular nada, dominado, vencido, escravo, entregava-se à sua paixão com amarga voluptuosidade.

A jovem desempenhava o seu papel como comediante primo cartello, e não se afastava da linha de conduta tão habitualmente traçada pelo seu amo Pedro Redon.

Deliciava-se imenso naquele meio que lhe lisonjeava os gostos, as aspirações, os desejos.

Parecia-lhe que já não poderia viver fora daquela atmosfera aristocrática.

Acreditando no seu futuro, firmemente convencida de que as promessas do cego se realizariam, e que lhe estavam reservados os mais altos destinos, estudava tudo, observava tudo, e preparava-se para corretamente desempenhar o papel de grande dama.

Um só ponto sombrio maculava as radiantes miragens em que o seu espírito se comprazia.

O ponto sombrio era a desconfiança, cada vez menos oculta, o ódio cada vez mais irascível de Mariana Gilberto.

Branca Adriana sentia fito nela o olhar desconfiado e hostil da velha ama de Helena, e por humilde que parecesse a condição da sua inimiga, não podia, de quando em quando, subtrair-se a uma inquietação vaga e indefinida.

No momento em que tornamos a transpor o limiar do palácio, o Duque, a Duquesa, e a jovem, acabavam de deixar a sala de jantar depois da refeição da manhã, e estavam reunidos ao pé do figão da sala pequena.

— Minha querida Adriana, disse a senhora de Chaslin, tenho um projeto que quero apresentar-lhe. Se ele tiver a sua aprovação, não perderemos um momento em realizá-lo.

— A minha aprovação, senhora? repetiu Branca com um gesto de admiração. Qualquer que seja esse projeto, o meu dever e a minha alegria consistirão em aprová-lo. Contanto que ele não consinta em afastar-me do pé de si, acrescentou, cravando na fidalga um olhar repassado de ternura.

— Não se trata de a afastar, minha amiga, retorquiu a Duquesa com vivacidade, mas pelo contrário aproximá-la ainda mais.

— De que se trata? perguntou o Duque.

— Desejo, respondeu a senhora de Chaslin. dar à nossa querida Adriana o quarto contíguo aos meus aposentos, cujo quarto de dormir comunica com o gabinete de toilette por uma porta que se pode deixar aberta.

O Duque franziu as sobrancelhas.

Por motivos ainda mal definidos no seu espírito, o projeto de sua mulher causava-lhe uma viva contrariedade.

Como, porém não podia levantar uma objeção, guardou silêncio.

— Mas, minha senhora, exclamou Branca com uma expressão de terror, Mariana Gilberto dorme todas as noites no gabinete de que a senhora fala, a fim de poder acudir ao primeiro chamado.

— Isso pouco importa... Mariana voltará para o seu antigo quarto. Vou já preveni-la.

— Oh! minha senhora, minha senhora... murmurou com uma voz agitada e suplicante, não faça isso, rogo-lhe.

— Então, por quê?

— Mariana Gilberto, constrangida a abandonar por minha causa o posto de confiança que recebeu da senhora de Chaslin, experimentaria uma profunda irritação, cuja primeira vítima seria eu.

— A senhora vítima de Mariana! exclamou a Duquesa com assombro. Que está a dizer? Mariana tem um mau caráter, não ignoro. A sua posição de ama da minha filha confere-lhe certos privilégios de que ela às vezes abusa. Pode ter ciúmes da afeição que eu lhe dedico, Branca, mas no fundo não é má, e creio-a incapaz dei faltar às atenções que lhes são devidas, e das quais não pode afastar-se por causa da situação que a senhora ocupa junto de mim.

Branca baixou a cabeça sem responder.

— Terá por acaso motivo de queixa contra ela? perguntou a Duquesa.

— Nunca, minha senhora... balbuciou a jovem com uma hesitação muito pronunciada.

— Isto é, não a quer acusar! interrompeu o senhor de Chaslin, exaltado contra sua vontade.

— Fale claramente, minha querida Adriana, peço-lhe. disse a doente. Pertence-me saber. Mariana ofendeu-a?

— Não se atreveria a insultar-me, sabendo que estou protegida pela senhora, replicou Branca, mas a malevolência dos seus olhares, certas palavras proferidas na minha presença, e que não podiam senão dirigir-se a mim, provam-me até a evidência, que ela é minha inimiga. Se a senhora Duquesa insistisse no seu projeto, o seu ódio sempre crescente, tornar-se-ia implacável. Havia de procurar todas as ocasiões de me prejudicar. Acabaria por me deitar a perder no espírito da senhora Duquesa.

— Não receie isso, minha filha, ninguém no mundo conseguiria semelhante coisa.

— Bem sei, senhora, quão boa é, e sou-lhe profundamente reconhecida, mas de joelhos lhe peço que não faça as coisas precipitadamente, e sem preparar Mariana Gilberto para uma mudança, que havia de lhe causar tanto desgosto, como a mim me havia de causar alegria.

— Talvez tenha razão, minha querida Adriana, volveu a senhora de Chaslin depois de refletir por alguns segundos; não precipitarei as coisas... A pobre Mariana tem a cabeça um pouco fraca... o excesso da sua dedicação enlouquece-a. Devemos ter muita indulgência com ela. Compreendendo isto, dá-me uma nova prova da bondade do seu coração...

O Duque escutava sem nada dizer, mas o fulgor sombrio do seu olhar, e a alteração do seu rosto, manifestavam uma irritação profunda.

 

A conversa foi interrompida pela entrada do criado de quarto, que trazia na bandeja de prata muitas cartas.

O senhor de Chaslin pegou nelas, leu os sobrescritos, e disse a Branca Adriana:

— Minha querida filha, aqui está uma carta que é para você.

— Para mim? exclamou a jovem fingindo-se surpreendida.

— Exatamente, uma carta de Paris... carta comercial, suponho, se nos regularmos pelas dimensões do envelope, e pelo caráter da letra...

Branca pegou na missiva que lhe dava o Duque, e dispunha-se a guardá-la.

O Duque de Chaslin observou porém:

— Essa carta é talvez importante; lê-a já.

— A senhora Duquesa dá licença?

— Não só dou licença, como exijo.

A filha de Pedro Redon rasgou o envelope tratou logo de ver a assinatura, e não pôde subtrair-se a uma certa impressão ao notar junto do nome de Malpertuis uma cruz.

Era a cruz um sinal convencionado entre ela e o cego, sinal cuja significação misteriosa nenhum olhar podia supor.

Apesar de ter sido muito sutil o movimento da jovem, a senhora de Chaslin reparou nele.

— É alguma nova má, minha flor? perguntou.

— Não, minha senhora, respondeu Branca, é uma carta comercial como o senhor Duque adivinhou. O senhor Malpertuis, com quem o doutor Frébault se pôs em relações por minha causa, pede-me que vá amanhã pela manhã ao escritório, se a senhora Duquesa me autorizar a isso, para se regular a questão dos meus honorários que se lhe devem.

— Autorizo-a com todo o gosto, disse Joana de Chaslin; mandarei pôr o coupé ao seu serviço amanhã, antes do almoço.

— Pedirei à senhora Duquesa licença para ir a pé... volveu Branca. Daqui à Rua da Victoria a caminhada não é longa... Um pouco de exercício não me há de fazer mal... A Magdalena fica-me no caminho. Entrarei lá. Não sou ingrata, e tenho tantas ações de: graças a dar a Deus, que para aqui me trouxe...

— Poderá, minha querida filha, fazer o que quiser...

 

O Duque, ao mesmo tempo que mostrava ler as cartas, não perdera uma só palavra trocada entre a Duquesa e Branca Adriana.

Brilhou-lhe nos olhos um relâmpago quando viu que a jovem sairia no dia seguinte só e a pé.

As horas que sucederam à conversa precedente, pareceram intermináveis ao senhor de Chaslin.

Finalmente, chegou a noite.

O ancião não pregou olho um só momento.

A febre do amor, que intrigava o seu paroxismo, abrasava-lhe o cérebro, e paralisava-lhe a razão.

Por instantes lutou contra o desejo furioso de confessar a Adriana a paixão devoradora que sentia por ela.

Eram porém de curta duração estas lutas, e deixavam o senhor de Chaslin mais que nunca resolvido a aproveitar qualquer ocasião Que se apresentasse.

Levantado e vestido desde o romper do dia, com as luvas e o chapeu ao seu alcance, instalou-se no seu gabinete de trabalho, do qual uma porta abria para a escada por onde a jovem devia descer.

Atento e como o ouvido à escuta ao pé da porta mal fechada, estremecia ao menor ruído, e parecia mais comovido que uma criança de dezesseis anos esperando a hora do seu primeiro "rendez-vous".

Foi demorada a sua expectativa.

Finalmente, ouviu uma porta fechar-se no andar superior, depois o rugir de um vestido de seda soou por sobre o felpudo tapete que cobria os degraus.

O Duque adivinhou a jovem, abriu repentinamente a porta no momento preciso em que ela ia a passar, e apareceu.

 

Branca previa esta aparição.

Não deixou por isso de simular um gesto de surpresa e murmurou com uma voz apenas distinta:

— Ah! senhor Duque, que medo me meteu!

Henrique balbuciou:

— Adriana, esperava-a.

— Esperava por mim, senhor Duque? Por quê?

— Sai...

— A senhora Duquesa teve a bondade de me dar licença...

— Preciso de lhe falar...

— O que tem a dizer-me?... Estou ouvindo.

— Não lhe posso falar aqui.

Apesar do seu diabólico aprumo, a filha de Pedro Carnot em face de um triunfo tão pronto e tão completo, não podia dominar a sua perturbação, e tremia quase tanto como o próprio Henrique de Chaslin.

— Mas, senhor Duque... principiou ela.

— Oh! suplico-lhe... interrompeu o velho num ímpeto de paixão, vai nisso o meu repouso... a minha vida... a minha e sua felicidade... Deve ir à igreja, como disse... É aí que me encontrarei com a senhora daqui a pouco... Espere-me... Esperar-me-á?... Promete esperar-me?...

— Ordena-mo, senhor Duque?

— Não ordeno, suplico.

— É urna ordem que quer?

— Pois sim, ordeno.

— O meu dever é obedecer... esperá-lo-ei.

E Branca sem acrescentar palavra, meteu-se pelo corredor e desapareceu.

 

A PRIMEIRA ENTREVISTA

O senhor de Chaslin ficou só, louco de esperança, ébrio de felicidade, e fechou, por um instante, após si, a porta do gabinete.

Davam nove horas no momento em que Branca atravessava o vestíbulo do palácio.

Aí encontrou Mariana Gilberto.

A criada vendo a jovem vestida e prestes a sair, lançou-lhe um olhar em que se liam a sua desconfiança e o seu ódio.

Branca cruzou o seu olhar com o dela, parou e disse-lhe num tom delicado que parecia irônico:

— Peço-lhe que previna a senhora Duquesa de que eu aproveito a licença que ela teve a bondade de me dar ontem, e que. eu estarei de volta antes do almoço.

Mariana retorquiu brutalmente:

— Não tenho nada com o que a senhora faz. Não tenho obrigação de me encarregar dos seus recados... A senhora deu-lhe licença para sair... Perfeitamente. Se a senhora não voltasse seria melhor...

A falsa Adriana acolheu estas palavras com um sorriso de desdém, abriu a porta envidraçada, desceu os degraus do vestíbulo, e atravessou o pátio de entrada.

Mariana Gilberto viu-a afastar-se e murmurou:

— Sim, sim, a senhora Duquesa embeiçando-se com esta Adriana deu entrada ao diabo. Esta sujeita toma uns ares de madona com que eu não me deixo iludir!! É bonita de truz! O senhor Duque não tem olhos senão para ela, e sei muito bem em que isto irá dar se não me meter de permeio. E hei de meter, que é a minha obrigação. Helena foi criada aos meus peitos... Pertenço à família!!

Este monólogo foi interrompido por um incidente que Mariana estava longe de esperar.

 

O senhor de Chaslin, de luvas, chapéu na cabeça, apareceu no vestíbulo.

A ama de Helena olhou para ele com ares espantados.

— O senhor Duque sai! balbuciou ela. — Sim, Mariana, volveu o velho.

— Tão cedo, e a pé?

— É como vê.

E o senhor de Chaslin, muito contrariado com este encontro inoportuno, abriu por seu turno a porta envidraçada e desceu os degraus. Marina abaixou a cabeça, dizendo baixinho:

— Como eu tinha razão em imaginar que esta Adriana era o diabo! Enfeitiçou-o! É atrás dela que ele vai, ia pôr as mãos no fogo! Ah! minha pobre ama, nem sequer a deixarão morrer em paz!

O Duque, depois de haver transposto o portão monumental, dirigiu-se para os lados do Elyseu, a fim de transviar os curiosos, se pôs acaso o espiassem.

Não tardou porém a voltar pela de Aguesseau e Rua de la Suresne.

Branca, saindo do palácio, apressou o passo.

Sabendo que o Duque ia segui-la, queria ganhar alguma dianteira.

Chegou rapidamente à Rua Royale, subiu os degraus da Magdalena, entrou na igreja, e deitou em roda um olhar perscrutador.

Um homem de pé, junto da pia da água benta, molhou os dedos, e ofereceu-lhe água santa.

A jovem levantou os olhos para o homem, o reconhecem o rosto pálido e o olho único de Pedro Rédon.

— O Duque vem atrás de mim... disse-lhe ela em voz baixa.

— Que te quer ele?

— Falar-me em particular.

— Está apaixonado de amores?

— Bravo, minha filha, és muito forte! Também eu tenho de te falar... Cedo o lugar ao Duque... Quando o deixares, vem ter comigo.

— Aonde?

— Aqui...

— Está dito...

— César, Barão de Fossaro, que por uma hora se tornara Pedro Rédon, o cego de um olho, desapareceu entre os fiéis que faziam as suas orações nas teias, e Branca, ajoelhou-se junto de um pilar, à entrada da nave.

 

No fim de menos de dez minutos, o senhor de Chaslin penetrara na igreja.

Descobriu logo aquela a quem procurava.

O rosto oculto nas mãos orava, ou pelo menos parecia orar com fervor.

O Duque aproximou-se lentamente, e ajoelhou numa cadeira próxima da sua.

Com o seu instinto de filha de Eva, Branca, que não o podia ver, adivinhara que ele se aproximava.

Sem fazer um movimento esperou.

O Duque estava trêmulo.

Este grande fidalgo, educado nos principais da sua raça, habituado desde a infância a respeitar as coisas santas, não dissimulava a si próprio que ia cometer uma ação odiosa, ímpia e sacrílega, proferindo num lugar sagrado palavras de amor adúltero.

Mas a paixão conduz os homens ao abismo.

Foi porém de pouca dura a sua hesitação.

Fez calar a consciência, abafou os remorsos, e inclinou-se para a. jovem.

— Adriana, murmurou ele com uma voz que parecia um sopro. Branca afastou as mãos, voltou-se para ele, e interrogou-o com o olhar.

— Cumpriu a sua promessa, e agradeço-lho do fundo dalma, tornou o velho.

Mas não posso falar-lhe aqui. Saia da igreja, que eu a seguirei.

A falsa Adriana levantou-se silenciosamente e dirigiu-se para: uma porta de saída.

O senhor de Chaslin caminhava atrás dela, a distância de uns quatro ou cinco passos.

Quando a jovem se achou fora da igreja, por baixo da colunata, aproximou-se dela.

— Dê-me o braço, disse.

— O meu braço, eu! murmurou Branca.

— Peço-lho.

Branca pareceu hesitar.

O Duque já não era senhor de si. Agarrou-lhe na mão, enfiou-lhe o braço no seu, fez-lhe descer rapidamente os degraus, levou-a até a estação dos trens que fica num dos lados da Magdalena, abriu a portinhola de um trem e murmurou:

— Suba!

Branca mostrou outra vez hesitar.

— Ah! continuou o Duque, peço-lho. Que receia? Não tem a certeza do meu respeito? Após cinco minutos de conversa reconduzi-la-ei ao lugar onde estamos.

A jovem pareceu dominada por esta voz suplicante, e subiu para o trem.

— Siga o boulevard Malesherbes a passo... disso o Duque ao cocheiro.

Depois, com uma agilidade de rapaz, saltou para o trem, cuja portinhola fechou sobre si.

O veículo pôs-se em movimento.

Pedro Redon, em pé, a vinte passos da estação, não perdera nenhum dos pormenores que acabamos de descrever.

Inscreveu na agenda o número da carruagem, depois acendeu um charuto, e principiou a passear de um lado para o outro com ar distraído.

Assim que se viu junto de Branca, em contato com o seu corpo flexível, e respirando-lhe o bafo perfumado, o Duque sentiu uma comoção tão profunda, tão fulminante, que tudo se tornou confusão no seu cérebro.

Batia-lhe o coração violentamente, e no caos dos seus pensamentos apenas distinguia uma sensação de intensa felicidade, de imensa embriaguez.

O seu rosto tornara-se de um vermelho sombrio, os seus olhos cintilavam, os seus lábios articulavam palavras sem nexo.

Branca tinha ouvido dizer que era assim que a apoplexia principiava muitas vezes.

Teve medo, e apressou-se a ser a primeira a tomar a palavra:

— Senhor Duque, disse, obedeci-lhe... Era o meu dever, pois que se tratava, segundo me afirmou, do seu repouso, da sua felicidade, da sua vida. Como havia eu de recusar ouvi-lo? Mas a minha situação neste momento não é por isso menos comprometedora. Suplico-lhe que abrevie uma entrevista cujo fim não adivinho, e que me arrependo de haver concedido. Que tem a dizer-me?

— As palavras de Branca produziram um efeito súbito, e afastaram como por magia os sintomas assustadores que indicamos, mas não dissiparam a embriaguez amorosa do velho.

— O que tenho a dizer-lhe? replicou ele com uma exaltação delirante, agarrando nas mãos da jovem. Pois ainda não adivinhou, ainda não compreendeu?

— Não, senhor Conde, não compreendi, não adivinhei.

— Pois bem, saiba, porque, nenhum poder humano seria capaz de hoje em diante de me constranger a guardar o meu segredo... tenho a dizer-lhe que a amo!...

Branca fez um movimento esplêndido, que as maiores comediantes da nossa época poderiam invejar-lhe.

Soltou repentinamente as mãos, e deitando-se para trás com um terror fingido, balbuciou com voz estrangulada:

— Não é verdade, não é possível! Não, senhor Duque, o senhor não me ama!

— Amo-a com todas as forças da minha alma, com todo o vigor do meu coração! tornou Henrique de Chaslin. Quereria inventar palavras para lhe pintar este amor que me domina, que me avassala, cave transforma a minha vida, e faz do meu inverno um estio flamejante! Dominou-me ao primeiro olhar... Assim que a vi tornei-me seu escravo. De hoje em diante... pertenço-lhe, pertenço só a senhora. Além da senhora, o mundo já não existe para mim! Em troca desta ternura sem reserva, sem limites, infinita, só lhe peço uma pouca de esperança. Amar-me-á um dia?

A filha de Pedro Carnot ouvira com um aparente terror vibrar nos ouvidos este fluxo apaixonado.

No fundo experimentava uma feroz alegria.

Aquele homem, aquele ancião, dizia a verdade.

Era um escravo, uma coisa sua. Tinha-o seguro por uma cadeia impossível de quebrar, e cujos anéis cada vez se soldariam mais fortemente.

O futuro que o cego predissera cessara de ser uma miragem longínqua, para em breve se tornar uma realidade palpável.

A coroa ducal! milhões! Esse sonho, que parecia insensato, bem depressa deixaria de ser um sonho!

Branca, em êxtase, mas conservando no rosto uma expressão de desvario, conservava-se calada.

Henrique de Chaslin sentiu o coração oprimir-se-lhe.

— Não me responde, Adriana? perguntou cheio de angústia.

— Que posso responder-lhe, senhor Duque? balbuciou a criatura infernal com uma perturbação maravilhosamente fingida. Pela primeira vez na minha vida acabo de sofrer uma ofensa, e foi o senhor que ma infligiu.

— O meu amor uma ofensa! exclamou.

— Não tem o direito de me amar, bem sabe!

— Por acaso uma pessoa é senhora do seu amor?

— É senhora de se calar! retorquiu a jovem com altivez. Se eu não ocupasse no palácio uma situação modesta, se eu lhe inspirasse uma estima verdadeira, não me faria semelhante confissão, porque ela é um insulto. Pois bem, senhor Duque, por pouco que eu valha a seus olhos, sei o que valho. Tenho o respeito de mim mesma e o culto do caminho reto. Estou pronta a deixar, com o coração oprimido, mas a cabeça erguida, uma casa que eu amava, e onde esperava viver feliz! Nada espere de mim. Não conte nem com as surpresas da minha inexperiência, nem com os arrastamentos da minha vaidade! Não serei nunca sua amante...

— Que palavra acaba de proferir?balbuciou o senhor de Chaslin, cujo desnorteamento em presença desta atitude é mais fácil de compreender que de descrever. Quem lhe fala em ser minha amante?

— Pois seria outra coisa se lhe desse ouvidos? A senhora Duquesa vive. e é de joelhos que peço a Deus lhe prolongue a existência.

— Adriana... disse o Duque com uma voz abafada, trêmulo por efeito do sentimento da infâmia que praticava. Joana está condenada, bem o sabe. A ciência nada pode em favor dela. Para a salvar seria preciso um milagre, e o milagre não se fará. No dia em que eu me vir livre, será Duquesa.

Branca estremeceu de alegria, ao mesmo tempo que um calafrio lhe passava pelas carnes.

Tão monstruosa era a promessa feita pelo velho sobre um túmulo ainda não aberto, que a filha de Pedro Redon não podia, ouvindo-a, deixar de se sentir aterrada.

— E agora, concluiu o senhor de Chaslin, agora, já não ignora que destino lhe preparo.

A falsa Adriana chamou aos lábios um sorriso embriagador, e olhando para o Duque com olhos velados, murmurou:

— Não posso proibir-lhe a esperança.

— Não ma proibir é pouco. Permita-ma?

— Senhor Duque, o dia em que Deus o deixar livre, interrogarei o meu coração e responder-lhe-ei...

Eram vagas estas palavras, mas o tom em que foram proferidas não deixava que elas fossem desanimadoras.

O senhor de Chaslin, embriagado pela esperança, quis novamente pegar nas mãos de Branca para as apertar contra o coração e contra os lábios.

A jovem soltou-as brandamente.

— Agora, disse, dê ordem ao cocheiro para voltar para trás. Pela sua honra, e pela minha, senhor Duque, é preciso que ninguém possa suspeitar a conversa que acaba de haver entre nós.

 

NOVAS COMPLICAÇÕES

— Obedeço, murmurou o senhor de Chaslin apoiando os lábios ardentes na mão descalça que Branca lhe abandonou durante um segundo. Aonde quer que a conduza?

— É prudente deixar-me aqui, respondeu a jovem.

— Quer?

— Peço-lho.

— Obedeço.

O Duque fez parar a carruagem e apeou-se.

— Aonde vai? perguntou.

— A Rua da Victoria. O cocheiro ouvira.

Virou de rédea, deixando na calçada da Rua o velho amoroso, ébrio de felicidade, delirante de esperança.

Depois do trem percorrer uma distância de uns cem metros, Branca baixou o vidro dianteiro e deu ordem para voltar para a Magdalena.

Cinco minutos depois o cavalo parava junto da grade.

— Branca ia apear-se,

Pedro Carnot apareceu à portinhola.

— Fica, disse, conversaremos no trem. E acrescentou dirigindo-se ao cocheiro:

— Siga para a Rua Royale, e suba para os Campos Elysios. Tomou lugar ao lado de Branca, e disse:

— Dispomos de pouco tempo. Poupemos as palavras. Que se passa no palácio?

— A Duquesa trata-me como sua própria filha.

— E o Duque?

— Adora-me. Acabo de ter a prova indiscutível. — Como?

Branca narrou resumidamente o que se passara entre ela e o Duque.

— Bravo! exclamou o zarolho. Bonito trabalho... Assim que morrer a Duquesa, tomaras o seu lugar... Entre nós e o êxito não vejo obstáculo. Só receava uma coisa, que a senhora de Chaslin tivesse ciúmes.

— Não tem, pode vir a tê-los. Bastaria abrir os olhos. O Duque sem o saber compromete-se a cada momento, e tenho no palácio uma inimiga.

— Então quem?

— A antiga ama de Helena, que se tornou criada de quarto e governante. O ódio que me tem, torna-a muito perspicaz. Tenho a certeza de que adivinhou tudo.

— Pode tornar-se perigosa, é preciso portanto perdê-la no espírito do senhor de Chaslin, e constrangê-la a deixar a casa.

— Será difícil. A sua influência sobre a Duquesa é grande. Se ela fala, tudo se compromete.

— Terá ela tempo de falar? a senhora de Chaslin vai morrer.

— Está certo disso?

— Estou. O doutor Frébault já não tem esperanças.

— Disse-lho?

— Disse ao Barão de Fossaro, um meu amigo íntimo, um outro eu. Outra coisa: A Duquesa escreve muitas vezes ao filho e à filha?

— Escreveu-lhes para lhes anunciar a minha entrada para o palácio, e fazer de mim o mais pomposo elogio.

— Vou fazer-te uma recomendação de alta importância. Se a senhora de Chaslin declinar muito rapidamente, e sentindo o seu fim Próximo, mandar chamar os filhos, será conveniente suprimir as cartas.

— Nada mais fácil... a correspondência da Duquesa passa pelas minhas mãos.

— Podes ler as cartas que ela recebe?

— Muito facilmente... Repito-lhe que a sua confiança em mim; não tem limites.

— Aproveita-a, e se a filha e o filho anunciarem a sua vinda, previne-me imediatamente... escrevendo para Malpertuis.

— Fica combinado.

— Que remédios toma a doente?

— Não são muitos. Algumas tisanas, e grânulos de digitalina, contidos em pequenos frascos de vidro.

— Preciso um desses frascos, e dois ou três grânulos.

— Tê-los-á.

— Fazes idéia exata das disposições interiores do palácio?

— Faço. Tracei o plano topográfico que me pediu, e trago-lho. Branca tirou da algibeira uma carteira, e pegou numa folha de papel coberta de linhas, de algarismos, indicações, e deu-a a Fossaro, acrescentando:

— Isto não está talvez absolutamente correto, mas está exato e creio que muito claro.

Depois de examinar atentamente o plano, perguntou:

— O quarto da Duquesa fica no primeiro andar, no fim de uma galeria, não é verdade?

— Fica.

— Chega-se a esta galeria de dois modos, pela escada principal e por uma escada de serviço que vai ter ao jardim, não é verdade?

— Exato, mas a escada de serviço dá ingresso a um gabinete ocupado de noite por Mariana Gilberto de que há pouco lhe falava, e o gabinete comunica com o quarto de dormir da Duquesa.

— Seria preciso substituir essa Mariana no gabinete em questão.

— Tem interesse nisso?

— Muito.

— Daqui a alguns dias ter-se-á conseguido o que deseja.

— Bem. Sabes que existe no fundo do jardim uma porta que deita para os Campos-Elyseos?

— Perfeitamente.

— Podes obter uma chave dessa porta, e também da que leva à. escada de serviço?

— Seria muito difícil e muito comprometedor. — Quem tem essas chaves?

— Mariana Gilberto, na sua qualidade de governante.

— Há duplicatas de chaves?

— Ignoro-o, e não entrevejo, confesso, nenhum meio de me apoderar delas.

— Pois preciso delas e obtê-las-ei. — De que modo?

O zarolho tirou do bolso uma caixinha de prata, que os nossos leitores já conhecem.

— Vês isto? disse ele abrindo-a e mostrando o conteúdo a Branca.

—Sim, replicou ela, é cera de modelar.

— Sabes o que vem a ser tirar um molde?

A jovem respondeu afirmativamente, depois acrescentou:

— Quer o molde das duas fechaduras?

— Não, mas das duas chaves...

— Farei o que puder, e espero sair-me bem. Fossaro fechou a caixinha e deu-lha.

— Mais nada? perguntou ela.

— Mais nada. Vais regressar ao palácio de Chaslin. Lembro-te que espero ter depois de amanhã os moldes, o frasco e os grânulos de digitalina.

— Tê-los-á.

— Uma pergunta mais: Quantos grânulos absorve a Duquesa por dia?

— Três. Um pela manhã, e dois à noite.

— A que horas?

— Às nove da manhã, e às nove e dez horas da noite. A senhora de Chaslin não adormece geralmente antes da meia-noite.

— É bom sabê-lo. Por hoje não tenho mais nada a dizer-te. Se sobrevir alguma coisa imprevista, uma carta a Malpertuis imediatamente.

— Não haveria meio, perguntou Adriana, de estabelecer entre nós uma correspondência regular e nada perigosa?

— Sim, pelo jardim, quando eu tiver a chave...

— É justo. À esquerda da entrada acha-se um pavilhão rústico. Num consolo de pedra do "rez-de-chaussée", duas janelas de velha louça de Delft contêm flores artificiais. Pode entrar de noite e meter debaixo do musgo um bilhete sem direção e sem assinatura, ou tirar daí o que eu própria tiver escrito.

— A chave do quiosque?

— Nunca a tiram.

— Depois de amanhã nos entenderemos a esse respeito, quando toe trouxeres os objetos pedidos...

— Onde o verei?

— Na Magdalena, às nove horas da manhã... Hão de achar muito natural esta pequena visita à igreja, da qual certa fidalga do meu conhecimento me deu idéia... Uma última palavra: Interrogaram-te a respeito do teu nascimento?

— Não...

— Trata de sugerir as perguntas... Parece-me útil que o mais cedo possível se saiba que és a filha do Conde Heitor de Lasseny e de Lucília Aurélia de Pont-Landry... Que pensas tu do Visconde Armando de Logeryl?

— É um homem encantador.

—E ele sente a influência da tua beleza?

— Não: entrega-se todo ao seu amor por Helena de Chaslin. e só a ela vê no mundo, mas mostra-se benévolo para mim. Só tenho que me louvar da sua cortesia.

— Perfeitamente; contudo, acautela-te! Armando de Logeryl é substituto do procurador da república, e desconfio da gente da justiça. Eis-nos próximo da Rua do Elyseu, deixa-me e volta para o palácio...

Branca apeou-se do trem, e chegou rapidamente ao Faubourg Saint-Honoré.

 

Ao voltar da sua entrevista com a jovem, o senhor de Chaslin deparou, como na ocasião da saída, com Mariana Gilberto sempre à espreita.

A criada viu-lhe o rosto radiante, a fisionomia triunfal, e caminhava com uma ligeireza de adolescente.

A velha franziu o sobrolho.

— Ia apostar que ele acaba de se entender com a velhaca, disse ela consigo.

O Duque perguntou:

— Mariana, a senhora está acordada?

— A senhora Duquesa ainda não chamou... respondeu com sequidão a antiga ama de Helena.

Ouviu-se um toque de campainha.

Mariana deixando sem cerimônia o senhor de Chaslin, subiu rapidamente a escada, e entrou no quarto da ama. Joana despertava.

— Que horas são, Mariana? perguntou-lhe.

— Dez horas, senhora Duquesa...

— Dormi até tarde. Abra as cortinas. O senhor Duque já saiu do seu quarto?

— O senhor Duque! replicou a criada com um riso sardônico, há já um bom pedaço que saiu, e até acaba de voltar para casa.

— Por que, saiu à rua? murmurou Joana um pouco surpreendida. De carruagem?

— A pé, senhora Duquesa. Exatamente cinco minutos depois da dama de companhia.

— Mariana, exclamou ela severamente, porque me fala da menina Adriana, quando se trata do senhor Duque?

— Por coisa nenhuma, senhora Duquesa... disse isto como diria outra coisa... muito simplesmente por ser verdade.

— Não gosta de Adriana, continuou a Duquesa. Desde que ela está ao meu serviço, não perde nunca ocasião de lhe ser desagradável...

— Por acaso essa menina queixou-se de mim?

— Nem por sombras, mas a sua animosidade, Mariana, é demasiado visível. One lhe fez a pobre rapariga? porque é essa aversão injusta?

— Injusta! exclamou a velha criada. Por acaso uma pessoa pode ser senhora dos seus sentimentos? Pode-se por acaso estimar uma criatura que ninguém conhecia há oito dias, mas que já dá a lei na casa?...

— Mariana, você é invejosa...

— Eu, senhora Duquesa!

— Sim, Mariana. E um ruim defeito a inveja! Peço-lhe que se emende... Gosto da menina Adriana. E uma jovem meiga, afetuosa, encantadora sob todos os aspectos. E orla... é pobre... Tem direito à minha mais viva simpatia, e não lhe regateio uma afeição que ela merece...

— Oh! bem sei que a senhora Duquesa é boa e caritativa... Às vezes aquece-se uma serpente no seio. mas quando a gente vê que é uma serpente, já é tarde.

— Teimas! exclamou Joana de Chaslin.

— Rogo à senhora me perdoe a minha franqueza. Digo o que penso... Tanto melhor se me enganar, mas quem viver há de ver...

— Deixei-lhe tomar maus costumes, Mariana, e não estou de humor para discutir exclamou a Duquesa com impaciência. Retire-se e mande-me Justina.

— A senhora Duquesa recusa os meus serviços esta manhã? balbuciou Mariana com os olhos rasos de lágrimas.

— Recuso-os, porque me é impossível deter o curso das suas insinuações malévolas e caluniosas.

Os soluços da mulher rebentaram.

— E é por causa dessa rapariga que me falam assim! exclamou ela com uma voz entrecortada; a mim que sustentei com o meu leite a própria filha da senhora Duquesa. £ o mundo às avessas! Ah! como tenho razão quando digo que o lobo está no redil!

E continuando a soluçar, Mariana retirou-se, deixando a ama perturbada.

 

UMA TEMPESTADE

Fora do quarto, a ex-ama de Helena, dando livre curso às lágrimas, continuou no seu monólogo desesperado.

— Ah! balbuciou ela quase em voz alta, deixam-me espezinhar por esta serigaita, que consente que o senhor Duque a namore, e lhe dá entrevistas fora do palácio, e a senhora tão cega que não percebe nada! Palavra de Mariana, a intrigante não há de levar a sua avante, e se uma de nós tem de ceder o terreno, não hei de ser eu quem se vá daqui.

A campainha do vestíbulo fez-se ouvir.

A porta do pátio abriu-se, e tornou a fechar-se.

A criada correu a uma janela.

Branca subiu os degraus do vestíbulo.

Mariana, querendo sair-lhe ao encontro, alcançou rapidamente o vestíbulo.

Mas no momento em que ia dirigir-lhe a palavra, — e Deus sabe em que termos violentos — a porta da primeira sala abriu-se, e apareceu o senhor de Chaslin.

Em presença do Duque, Mariana teve de se caiar, e dissimular a cólera que a sufocava.

De cabeça baixa, o coração ulcerado, afastou-se, dizendo:

— Nada perderás por esperar. A minha hora há de chegar.

Naquela mesma tarde, um sol radiante dos fins do outono, crivava com as suas flechas de ouro o grande jardim que se estendia entre o palácio e os Campos-Elyseos.

Joana de Chaslin apesar da inchação dos tornozelos, resultante da sua doença do coração, lhe tornar difícil o andar, quis respirar o ambiente tépido.

O Duque ofereceu-se para a conduzir.

Antes de se apoiar no braço do marido para descer, a doente pedira a Branca que fosse verificar as somas de algumas contas trazidas naquela manhã pelos fornecedores.

A dama de companhia sentou-se a uma pequena secretária no quarto da Duquesa, e deitou-se ao trabalho.

 

O trabalho das contas absorvia-a havia cinco minutos, quando Mariana entrou repentinamente.

Branca ergueu a cabeça, e viu a dois passos a criada, com os lábios desmaiados por efeito da cólera, os braços cruzados no peito, a fisionomia provocadora.

Era o inimigo!

No rosto contraído, liam-se as intenções hostis da recém-chegada.

A jovem procurou subtrair-se a uma cena quase inevitável.

No tom mais sossegado, proferiu:

— A senhora duquesa não está aqui, e eu não chamei ninguém. Esta frase estimulou o furor de Mariana.

— Tem por acaso a pretensão de me impedir a entrada no quarto de minha ama? perguntou Mariana com arrogância.

— Não tenho nenhuma pretensão desse gênero, e não me meto no que não me diz respeito, replicou brandamente. Encarregada pela senhora Duquesa de um trabalho que demanda toda a fuinha atenção, preciso de sossego, e peço-lhe que se retire...

A criada estava pálida, e tornou-se purpúrea.

— Com que então dá-me ordens! exclamou. Ordens a mim, a senhora, que está há apenas oito dias na casa, e criada como eu, pois que recebe ordenado como eu? Dê as ordens que quiser, não obedecerei.

Branca, cuja índole orgulhosa conhecemos, sentia a cólera insurgir-se no seu íntimo.

Contudo conseguiu reprimir-se. Sempre sossegada, respondeu:

— Falei-lhe com delicadeza, tenho a exigir da senhora uma delicadeza igual. A senhora odeia-me desde o dia em que para aqui entrei. Por quê? Ignoro, e não me inquietarei se não parecer que de propósito quer mostrar-se a meu respeito agressiva e ofensiva. Até agora tenho guardado silêncio, supondo que acabaria por compreender e arrepender-se das suas injustiças. Vejo que me enganava, e a minha paciência está esgotada. Um tal estado de coisas não pode prolongar-se. A senhora excede os limites, e convido-a a volver ao sentimento das conveniências.

— Conveniências! repetiu a velha desesperada. Tenho necessidade das suas lições para as conhecer? Odeia, diz. O que a senhora chama ódio, é perspicácia. Adivinho-a, e a minha presença não a deixa levar ao termo as suas velhacarias. Mariana vê muito claro para se deixar enganar como muitas pessoas com esses ares de sansadorninha! Não se faça tão presumida, minha menina. Já são conhecidas essas presunções! Não é preciso ser muito esperta para perceber o jogo! A senhora é uma ambiciosa, que vê uma mulher moribunda, e um homem prestes a deixar-se apanhar pela primeira serigaita! O senhor Duque faz-lhe olhos ternos, e a senhora perde a cabeça. Ele é rico, e a senhora diz que os seus milhões fariam conta. Pois mentes! Estou nesta casa há mais de vinte anos! Seria capaz de dar o sangue por aqueles a quem sirvo, apesar de hoje já não ser moda gostar dos amos! Todas as vezes que alguém ou alguma coisa pode fazer mal à senhora Duquesa, farei o meu dever gritando: Alto!

Branca encolheu os ombros.

— Ou a sua linguagem é muito obscura, ou a minha inteligência muito acanhada, replicou, e não compreendo as suas insinuações, mas o meu instinto de rapariga honrada, adverte-me que elas são ofensivas. Portanto, nem mais uma palavra, ou pedir-lhe-ei que se explique perante a senhora Duquesa...

— Fá-lo-ei, berrou Mariana. Não quero outra coisa. Estou pronta!

 

Exatamente neste momento Joana Chaslin, apoiada no braço do marido, e cansada do seu curto passeio, entrou no quarto, cuja porta a velha criada deixara aberta.

— Quem se atreve a falar tão alto? Que é isso, Adriana? perguntou a Duquesa.

— Com certeza, alguma insolência de Mariana! exclamou o Duque vendo o rosto congestionado e os olhos cintilantes da criada.

— Efetivamente, Mariana injuriava-me... volveu Branca com dignidade. Injuriava-me sem provocação da minha parte, sem motivos de espécie alguma; sou alvo do ódio desta mulher, a quem todavia nada fiz, e o seu ódio manifesta-se de uma maneira mortal para ser suportada. Em tais condições, apesar de toda a minha profunda e respeitosa ternura pela senhora Duquesa, não me é possível ficar mais tempo ao seu serviço.

Branca, querendo acabar com a contenda com Mariana, corria audaciosamente todo o risco.

A senhora de Chaslin sentiu o coração opresso por uma pungente angústia.

— Quer deixar-me, Adriana? balbuciou ela com voz trêmula.

— Será o maior desgosto da minha vida. senhora Duquesa, mas assim é preciso...

O Duque estava pálido. Tremiam-lhe as mãos.

— Repito, que se passou? perguntou imperiosamente. Devemos saber tudo.

— Muito bem, senhor Duque, disse Branca, logo que ordena, falarei. Só possuo uma coisa preciosa neste mundo, é a minha honra! Proíbo que lhe toquem! Fui insultada por esta mulher. Chamou-me intrigante... atribuiu-me projetos infames. Sem piedade, sem pudor, arrastou-me pela lama... E aqui está porque devo, porque quero partir.

— Ah! exclamou Mariana cerrando os punhos, ela acusa-me, e vai-se novamente dizer que tenho ciúmes desta rapariga!

— Cale-se, Mariana! Ordenou Joana de Chaslin. O seu procedimento neste momento prova-me que tinha razão esta manhã, quando lhe falei daquele modo.

— Assim, murmurou a criada, cujas lágrimas deslizaram novamente, assim, a senhora ralha comigo outra vez?

— E com razão; merece-o.

— Mereço censuras, porque velo pela felicidade da senhora Duquesa.

— Entende, senhora, interrompeu Branca, insulta-me na sua presença. Na sua presença atreve-se a sustentar que está ameaçada a sua felicidade, porque teve dó de uma pobre órfã, porque a senhora Duquesa quis mostrar-me uma estima que será o orgulho da minha vida! Que tenebroso segredo ocultam estas palavras? Que fiz eu? De que me acusam? Emprazo Mariana a que se explique, e rogo-lhe, senhora, de mãos postas, que lhe dê essas ordens.

— Ah! replicou a criada com violência. Não direi nada, porque diria muito! Uma pessoa deve calar-se numa casa onde os velhos criados já não são escutados, onde os amos guardam toda a sua confiança e toda a sua afeição, por uma desconhecida que vem não se sabe donde, e que nem tem nome de família!

 

Havia um momento que Branca tinha ocultado o rosto nas mãos.

Ergueu-se pálida e altiva.

— Senhora Duquesa, proferiu ela com uma voz vibrante, ha nomes que a miséria não consente. E era por isso que eu calava o meu. Obrigam-me a falar, tudo vai saber... Chamo-me Adriana Maria, sou filha legítima do conde Heitor de Lasseny, e de Luciana Aurelia de Font-Landry, sua mulher.

— A filha do Conde de Lasseny, que morreu em Inglaterra! exclamou o senhor de Chaslin estupefato.

— Sim, senhor Duque, e todos os papéis de família que comprovam o meu nascimento e a minha entidade, estão nas minhas mãos e vê-los-á num momento.

— Menina Adriana, tornou o Duque comovido, seu pai era do número dos meus mais queridos amigos... Ter-lhe-ia bastado outrora haver-se dirigido a mim para evitar a ruína. O que eu sem hesitar faria por ele, fá-lo-emos pela senhora, e será daqui em diante (ratada como filha... Se Mariana, decididamente louca, não consegue triunfar das suas antipatias, não será a senhora quem se retira, será ela...

— Ah! exclamou a velha criada, saindo fora de si, e perdendo toda a compostura em presença desta ameaça, quer esta rapariga, esta senhora, seja uma simples intrigante ou a filha de um conde, o Duque defendê-la-á sempre.

O senhor de Chaslin tornou-se lívido.

— Saia, disse, estendendo a mão para a porta; depois acrescentou dirigindo-se para a Duquesa:

— Bem vê que esta mulher não pode continuar a estar nesta casa!

Mariana fugiu espavorida.

— Henrique! Henrique!... balbuciou Joana, não seja falto de misericórdia! a pobre mulher foi ama de Helena.

— É uma víbora, e eu expulso-a...

— Serviu-nos fielmente durante mais de vinte anos, não a esqueça...

— Temo-la aturado por mais de vinte anos. O seu procedimento atual, deve pôr um termo à nossa indulgência...

Branca interveio.

— Senhor Duque, disse ela em tom de súplica comovente. Mariana teria razão em me acusar, se a paz do seu lar fosse perturbada por minha causa. Os serviços de Mariana e a sua antiga afeição, depõem em seu favor... Sou nova na casa... Devo retirar-me. retirar-me-ei...

— Ficará, senhora! replicou o Duque. Ficará junto da Duquesa que a estima e aprecia. E a minha vontade... Se alguém recusasse submeter-se a ela, já não seria senhor absoluto, e deixaria esta casa.

— Henrique... Henrique, balbuciou Joana desfalecida, faria semelhante coisa?

— Fá-lo-ei, se esta criada, que eu não quero tornar a ver, dormir esta noite debaixo deste teto.

A senhora de Chaslin levou precipitadamente a mão ao coração inchado e dorido.

Parecia-lhe que uma lâmina de ferro acabava de o atravessar, tão intolerável era aquele sofrimento.

— Peço-lhe um momento de atenção, Henrique... exclamou com uma voz fraca e como que entrecortada.

— Menina de Lasseny tenha a bondade de me deixar a sós com o senhor Duque.

Branca retirou-se lentamente, humilde e modesta na aparência, mas julgando-se no fundo segura do seu triunfo.

O senhor de Chaslin, muito perturbado, um pouco inquieto, aproximou-se da poltrona, na qual a doente se deixara cair.

— Querida Joana, perguntou, que me quer?

A Duquesa voltou para ele os olhos, que não tinham a expressão habitual.

O velho apaixonado julgou ver neles um começo de desconfiança, e não se enganava.

Um vago clarão, mas que depressa podia crescer, acabava de romper no cérebro da agonizante.

Embaraçado por aquele olhar fixo, inquisitorial, pesando imenso sobre ele, Henrique de Chaslin repetiu a sua pergunta.

A Duquesa não respondeu logo, e pela segunda vez pôs a mão no lado esquerdo do peito.

Cada vez se tornava mais intenso o ardor que sentia nesse lado.

Sentia-se morrer.

 

CONTINUAÇÃO

Ao fim de um ou dois segundos passou um pouco o sofrimento da Duquesa.

Afinal murmurou lentamente:

— Henrique ameaça-me deixar o palácio e afastar-se de mim? Que significa esta ameaça? Que interesse tão grande toma numa questão afinal secundária? Porque se torna em campeão apaixonado da menina de Lasseny?

— Por quê? volveu o senhor de Chaslin esforçando-se por dormir a sua perturbação. Porque revolta tudo quanto é injustiça... porque o meu dever de cavalheiro, é defender uma vez a filha do meu infeliz amigo, de ataques caluniadores.

— Mariana não teve razão, bem sei, e disse-lho; mas o senhor conhece tão bem como eu a sua profunda afeição, a sua dedicação sem limites... Foi a própria exageração desse sentimento que produziu esse mal.

— Talvez, disse o Duque amuando-se.

— A velha ama de Helena merecia da sua parte alguma indulgência mais. Eram injustas as suas acusações, creio, quero crer. O seu coração cegava-lhe o espírito, ajuizava, como o mundo faz muitas vezes, por falsas aparências mas as suas palavras inconsideradas deram-me sinal de alarme... Escute-me, meu amigo, sem cólera, conserve o seu sangue frio, reflita sossegadamente, compreenderá que tenho razão; a menina Lasseny é muito nova para ter experiência... a sua maravilhosa beleza atrai sobre ela a atenção, fatalmente, mais do que seria preciso. Com certeza que não duvido, nem do senhor, nem dela, mas a presença dessa deslumbrante jovem em nossa casa, pode ocasionar desagradáveis comentários, suspeitas ofensivas para a minha dignidade, para a sua honra, e para a honra da própria Adriana... Não lhe parece, como a mim, que tais suspeitas, tais comentários, e preciso evitá-los a todo o custo?

— Portando, exclamou o Duque não podendo já conter-se, portanto a loucura furiosa de Mariana produziu na senhora o seu efeito. Está com ciúmes!

— Repito-lhe que não estou, replicou Joana de Chaslin: mas poderia vir a estar, e os ciúmes que tão infeliz me fizeram quando eu era jovem, quando estava com saúde, e formosa ainda, e capaz de lutar com armas iguais contra os seus desvarios, matar-me-iam hoje. Henrique não queira que eu morra desesperada... Faça, portanto, um sacrifício que me restitua a tranqüilidade que pode faltar-me. Em lugar de despedir Mariana, não seria melhor separar-nos de Adriana?

— Separar-nos de Adriana! repetiu o velho aterrado. — Acredita então nas calúnias dessa insensível criada?

— Com certeza que não, mas afirmo-lhe que outras pessoas podem como ela incorrer em semelhante erro. A retirada da menina de Lasseny poria termo a tudo.

— Pois teria coragem de expulsar a infeliz menina?

— Tão mal me conhece? Quem fala em expulsá-la? Outro protegê-la, pelo contrário, e não desprezar nada para a tornar feliz... Hoje que vemos nela a herdeira de um grande nome, parecerá muito simples que não possa conservar junto de mim uma posição subalterna... Constituir-lhe-emos uma pensão, dar-lhe-emos um marido... e garantir-lhe-emos assim o seu futuro, afastando do nosso lar um motivo de discórdia.

Enquanto a Duquesa falava, o senhor de Chaslin por mais diurna vez se fizera sucessivamente pálido e corado.

Quando Joana concluiu, exclamou com uma cólera cuja explosão já não podia conter.

— E fica com Mariana, a causa única desta cena deplorável, o único elemento de discórdia que existe entre nós. Por causa dessa criatura odiosa, ofenderia a alma, despedaçaria o coração de uma pobre menina que a ama! Pois expulsaria do seu palácio um anjo de meiguice e de ternura a quem deve amar e estimar, não de longe, mas de perto! Não é a senhora que fala assim, é o seu ciúme sempre vivaz, sempre insensato! Esse ciúme que tanto me fez sofrer, é uma injúria imerecida contra a qual hoje me revolto... Tenho cedido por muito tempo... Não cederei mais! Ainda que a senhora me acusasse de tirania, imporia a minha vontade. Entre a filha do Conde de Lasseny e a ama de Helena, não hesitarei.

— Bem, seja! balbuciou a senhora de Chaslin trêmula. Partirão ambas.

— Sacrificar Adriana seria uma infâmia de que eu não quero julgá-la capaz... Se porém o seu ciúme furioso a leva a cometê-la, não serei testemunha. Adeus!

 

Henrique dirigiu-se para a porta.

— Aonde vai? perguntou a Duquesa, estendendo para ele as mãos suplicantes.

— Retiro-me. Quando tiver recuperado a razão, voltarei.

— Por favor escute-me...

— Não tenho nada a escutar...

E o Duque saiu do quarto, deixando a mulher mergulhada num desespero indivisível.

Dirigiu-se para o seu gabinete, onde se fechou.

Aí, pôs-se a caminhar rapidamente de um lado para o outro, segundo o costume das pessoas furiosas, e monologando.

— Não cederei! murmurou com uma voz que lhe sibilava por entre os dentes cerrados. Mariana deixará o palácio, ou eu não tornarei a pôr aqui os pés... Partirá, e eu constrangerei a Duquesa a conservar Adriana. Dois ou três dias de ausência fa-la-ão refletir e torná-la-ão dócil...

O senhor de Chaslin sentou-se à sua secretária, pegou num dos indicadores de estrada de ferro, consultou-o, e disse consigo mesmo:

— Há um comboio às cinco e meia. São quatro apenas, e só me resta o tempo necessário.

Depois, tocou chamando o criado de quarto, deu-lhe ordem de pôr o trem, e de meter dentro de uma mala os objetos necessários para uma viagem de alguns dias.

Meia hora depois subia para um trem, e fazia-se conduzir à gare de Orleans.

Digamos de passagem que possuía uma vivenda nas margens pitorescas do Loiret, não longe da Grand-Cour, a vivenda tão cordialmente hospitaleira do grande editor Eduardo Dentu.

Enquanto isto se passava, Mariana entregava-se na sua solidão a reflexões nada alegres.

Nunca, depois que estava havia vinte anos ao serviço da senhora de Chaslin, assistira a uma cena tão violenta.

Nunca o Duque lhe dera ordem para sair de casa.

Como acabaria aquilo?

A velha criada não se sentia nada tranqüila.

Contudo, ainda tinha esperanças de que o senhor de Chaslin, recuperando a sua serenidade, esquecesse as palavras proferidas na cólera.

Contava com a influência da Duquesa que a amava, e não deixaria de advogar a sua causa.

Apesar de tudo, julgava prudente não se mostrar, e passava o tempo a amaldiçoar a dama de companhia, que não deixava, na sua opinião, de ser para ela uma intrigante de pior espécie, ainda supondo-a filha do Conde de Lasseny.

Da sua parte, Branca, depois de se haver dirigido ao seu aposento para obedecer a Duquesa, estava em transes cruéis.

A formidável altercação provocada por Mariana, podia fazer desabar o edifício tão habilmente construído pelo cego.

O Duque tomara a sua defesa, mas a Duquesa declarara-se abertamente em favor de Mariana.

Quem venceria, o marido ou a mulher?

Se Branca se visse constrangida a deixar o palácio de Chaslin, o que pensaria, e o que diria Pedro Rédon?

Não a acusaria de imprudência ou de falta de tato?

Ora, Pedro Rédon metia-lhe medo, bem sabemos

O que fazer para conjurar o perigo iminente?

A jovem fazia a si própria estas perguntas, e corno era natural, não sabia que resposta dar.

A sua perplexidade aumentava de hora para hora, de minuto para minuto, ao mesmo tempo que as inquietações aumentavam.

Aguardava a solução do enigma no seu quarto de dormir cuias janelas davam para o pátio do palácio.

Apoiando a fronte contra os vidros para a refrescar, entregava-se aos seus pensamentos.

Um súbito incidente veio arrancá-la à sua meditação.

Tiravam da cocheira o coupé de que o Duque habitualmente se servia, e preparavam-se para o porem.

O senhor de Chaslin ia sair.

Até ali nada mais simples, não se via coisa que pudesse aumentar a perturbação da órfã.

De repente estremeceu.

O criado de quarto atravessou o pátio, levando na mão uma mala que depôs no coupé.

Quase no mesmo instante apareceu o Duque, deitou para a fronteira tristonha e para as janelas fechadas do segundo andar um demorado olhar, depois subiu para a carruagem.

Abriu-se o portão, e o cocheiro deu a mão aos cavalos que partiram a galope.

Branca possuída de um tremor nervoso, murmurou:

— Se ele se afasta assim, é porque não pode impor a vontade à Duquesa. A criada Mariana é mais forte que eu! Estou perdida!...

Este desfalecimento mais moral que físico foi de pouca duração. A filha de Pedro Rédon tranqüilizou-se depressa e murmurou, como o sorriso nos lábios:

— Perdida! Ora adeus! Pelo contrário, triunfo, e o Duque é hábil... Para tornar a chamar o Duque para junto de si, a moribunda cederá tudo!

 

Tornemos para junto da senhora de Chaslin, a quem deixamos entregue a uma profunda dor.

A terrível cena que acabara de se dar, prostrara-a.

A lembrança das feridas numerosas e penetrantes outrora feitas no seu coração pelas leviandades do seu querido Henrique, preocupava-a, juntando a amargura do passado ao penetrante pesar da hora presente.

 

Quando se achou só, principiou por chorar por muito tempo, amaldiçoando o Duque, amaldiçoando Adriana, amaldiçoando Mariana. que acabavam de aniquilar a tranqüilidade, o repouso, que a sua doença tornava tão necessários.

Pouco a pouco foi refletindo, e a reflexão trouxe-lhe um alívio.

Conhecendo o caráter irritável, e o gênio ferozmente suscetível de Mariana. disse consigo que esta última, com o espírito perturbado pela violência da sua antipatia, devia ter tomado os seus devaneios como realidades, e caluniar inconscientemente a dama de companhia, cujos privilégios invejava.

Destas premidas resultava a inocência absoluta de Adriana e do Duque. Só Mariana era culpada.

Seria preciso desistir da sua defesa, se da sua expulsão dependesse a paz.

Tomando esta resolução, Joana quis logo fazer saber ao marido que entregava as armas, e se retratava honrosamente.

Tocou uma campainha.

A segunda criada de quarto acudiu logo.

— Previna o senhor Duque, disse-lhe a senhora de Chaslin, que desejo conversar um instante com ele o mais cedo possível.

A criada de quarto desapareceu, e no fim de alguns minutos voltou com ar embaraçado.

— Viu o senhor Duque, e que resposta traz tia sua parte? perguntou a doente.

Dirigi-me ao criado de quarto para lhe dar o recado da senhora, balbuciou a camareira com uma hesitação visível, o senhor Duque não virá.

— Então, por quê? murmurou Joana, cujo coração se sentiu apertado por nova angústia.

— O Francisco acaba de me dizer que o senhor Duque partiu em viagem.

— Em viagem! repetiu a Duquesa sem forças.

— Sim. senhora. O senhor Duque partiu no cupê há quase uma hora. Levou até uma mala bem fornecida.

— Basta, retire-se.

A camareira rodou sobre os calcanhares, e afastou-se dizendo baixinho:

— Temos zangas. Estes grandes senhores não se dão melhor em casa que a gente ordinária. Se alguma vez encontrar marido, há de ser para me andar muito direitinho... e se refilar, tanto pior para ele!... Não responderei por coisa alguma!

Nem por um instante a senhora de Chaslin supusera que o Duque poria tão depressa a sua ameaça em execução.

— Foi-se! murmurou ela, dando livre curso às lágrimas que a sufocavam. Foi-se sem me dizer adeus! Afasta-se irritado contra mim! Esquece que estou muito doente, e que se demorar muito tempo já não me achará viva.

Após um prolongado silêncio tornou:

— E Mariana é causa de tudo! Devo-lhe o mais pungente pesar da minha vida! Por que foi que a defendi? Hoje faltam-me as forças e a coragem para proceder, mas amanhã farei justiça.

Chamou novamente a criada de quarto e disse-lhe.

— Sinto uma grande fadiga... tenho necessidade de repouso, vou deitar-me...

— Será preciso servir o jantar no quarto da senhora Duquesa?

— É inútil... Tomarei somente um caldo.

— Deverei mandar-lhe a menina Adriana?

— Não... Preveni-la-á da minha parte que jantará hoje só, e dará ordem para a servir na sala de jantar.

— Muito bem, minha senhora. A senhora Duquesa quer falar com Mariana?

— Não esta noite... Vá, minha filha.

A camareira retirou-se, e Joana de Chaslin, encostando ao travesseiro a cabeça dorida, procurou adormecer; o sono é o esquecimento...

 

AMA E CRIADA

Branca Adriana, informada pela segunda criada de quarto das vontades da Duquesa, jantou muito ligeiramente, e tornou a subir para o seu quarto, onde se fechou, dominada por uma angústia moral, e duvidosa do êxito da empresa, apesar da muita confiança que tinha em si.

Parece-nos supérfluo afirmar que mal dormiu, e o seu sono foi povoado de maus sonhos.

De pé logo ao romper do dia procurou tranqüilizar-se com a reflexão.

— A Duquesa não me quis ver ontem, disse ela consigo, porque ainda se achava sob a impressão penosa causada pelas violências de Mariana e a partida do senhor de Chaslin. Hoje, com certeza, manda-me chamar... Se ela se demorasse muito, apresentar-me-ia, porque quero saber o que devo pensar.

Depois de tornar a meditar por um momento. Branca continuou:

— É depois de amanhã que devo tornar a ver Pedro Redon. Pediu-me o molde das chaves das duas portas, a do jardim que deita para os Campos-Elíseos, e a da escada de serviço. Vou tomar as minhas medidas para lhas remeter com o frasco vazio e alguns dos grânulos de digitalina que fazem parte do tratamento da Duquesa. Vou tratar disso imediatamente.

A jovem abriu a gaveta de um móvel, tirou daí a caixinha de prata dada na véspera por Fossaro, e que encerrava, um pedaço de cera de modelar.

Amoleceu a cera entre os dedos, dividiu-a em dois fragmentos que tornou a pôr na caixa, meteu a caixa na algibeira e desceu ao jardim.

A hora tão matinal os criados não tinham, por assim dizer, saído dos seus aposentos.

Branca tinha, por conseguinte, a certeza de não ser vigiada.

Além disso, os maciços espessos da verdura não deixavam avistar o fundo do jardim das janelas do hotel.

Tirando o molde com uma incomparável habilidade, a jovem voltou para a escada de serviço e removeu para a segunda chave as operações que acabava de conseguir para a primeira.

 

Concluído este trabalho, voltou para casa e esperou.

Mariana Gilberto, havia vinte e quatro horas, não estava menos inquieta que a dama de companhia; contudo, não podia acreditar que a sentença de expulsão proferida pelo Duque fosse confirmada a sangue frio pela Duquesa.

Joana de Chaslin passara uma noite terrível.

Assaltavam-lhe o espírito pensamentos da mais sombria natureza.

Acusava-se de haver, por palavras injustas e suspeitas ofensivas, ofendido profundamente Henrique, e causado a sua retirada.

Sentia-se disposta a todas as concessões para o fazer voltar.

— Que ele volte, murmurava ela, e peça o que pedir, exija o que exigir, não terei outra vontade senão a sua!

Informou-se logo pela manhã se tinha vindo algum telegrama.

Mergulhou-a na consternação a resposta negativa.

Fez-se vestir pela segunda criada de quarto, e deu ordem para que lhe mandassem Mariana.

A ama de Helena, sabendo que a senhora de Chaslin a chamava, sentiu-se subitamente acometida de um tremor.

A explicação que ia ter com a ama, parecia-lhe temível, não que ela só arrependesse do que tinha feito na véspera, e tivesse por isso a menor sombra de pesar, mas porque se ia decidir ou a sua expulsão da casa ou a da intrigante.

Quem venceria?

A velha criada, dominando o melhor que pode a sua perturbação, entrou no quarto da Duquesa com um aspecto sossegado.

Este sossego simulado desvaneceu-se assim que Mariana viu o rosto lívido e transtornado de Joana de Chaslin.

— Meu Deus! exclamou com uma expressão dolorosa, a senhora Duquesa está mais doente.

— Mais doente, não, respondeu a grande fidalga, porém mais incomodada, sobretudo moralmente, e Mariana é n causa deste sofrimento.

— Eu! balbuciou a criada pondo as mãos. Eu que daria a vida pela senhora Duquesa!

— Não ponho em dúvida a sua dedicação, Mariana; mas seria bom demonstrar-me poupando-me terrível comoção. Há muitos anos que tento debalde a reforma do seu caráter indomável e dos seus exageros de linguagem. Nada tenho conseguido. Sentindo-se amparada pela minha confiança, e digamo-lo. também, pela minha afeição, julgava que tudo lhe devia ser permitido, e não refletiu que vem um dia em que a paciência se esgota.

Mariana, toda agitada, perguntou:

— Devo concluir das palavras da senhora Duquesa, que ela confirma uma sentença proferida pelo senhor Duque num momento de cólera?

— Não fale do senhor Duque. replicou severamente a senhora de Chaslin. Provocou a sua justa cólera... É a única causa da sua retirada.

Mariana, como desde a véspera não trocara nenhumas falas com os outros criados, ignorava o que se tinha passado.

— O senhor Duque partiu? murmurou estupefata.

— Deixou o palácio para aqui não voltar senão depois de você aqui não estar. A sua presença recordar-lhe-ia demasiado a acusação insultante que na sua loucura você fez pairar sobre ele.

— Então... visto isso... retorquiu Mariana que se fez pálida de morte. Visto isso... tenho de me retirar...

— Assim o quis, e sinto muito não a poder conservar junto de mim...

— Visto isto, a senhora Duquesa expulsa-me?

— Não, não a expulso... Por diversas razões que conhece não me é permitido viver para o futuro sob o mesmo teto, aí está... Mariana já não é moça... precisa de descansar. Vinte anos de serviços fiéis dão-lhe direito a uma reforma honrosa. Sairá desta casa levando toda a minha estima... Eu e o senhor Duque asseguramos-lhe uma renda vitalícia de mil e duzentos francos, e dar-lhe-ei além disso dois mil francos, no momento da sua retirada, a título de gratificação. Se for para a sua terra, será aí que receberá a renda, se, pelo contrário ficar em Paris, autorizá-la-ei a vir ver-me algumas vezes, e recebê-la-ei com prazer, porque a par dos seus defeitos tem grandes e sérias qualidades... Ama-me, a seu modo, é verdade, mas ama-me... Nunca duvidei da sua afeição, não duvidarei nunca, mas essa afeição é desastrada a ponto de se tornar perigosa. Eis porque se torna indispensável uma separação.

 

Mariana escutara as palavras precedentes sem interromper, e sem fazer um movimento.

Só a alteração sempre progressiva do seu rosto provava quão profunda ferida lhe fazia cada palavra proferida.

— E é para conservar a menina Adriana que a senhora Duquesa me deixa partir? perguntou com uma voz sibilante.

— É para obedecer ao senhor Duque.

— Então a afeição, a dedicação, são sacrificadas à hipocrisia, à duplicidade!

— Mariana... interrompeu a Duquesa num tom cheio de sequidão, quem acusa sem provas, pôde e deve ser suspeito de mentira... Que tem a dizer da menina de Lasseny?

— Devo repetir o que já disse... A sua dama de companhia acarretará a desgraça sobre esta casa!

— O que é isso! sempre frases vagas e insinuações hostis sem base alguma? Bem vê, Mariana, que é incorrigível! Formula uma acusação séria, baseada em fatos... Então, e então somente, deixarei de atribuir as suas palavras a um sentimento culpado como poucos, a inveja!

— Nada formulo, senhora, replicou a ama de Helena. Não tenha provas a dar... Escuto o instinto que me adverte, como o cão, do perigo que vão correr aqueles a quem amo. Sou iludida pela minha exaltação? A minha educação evocará fantasmas? Não creio, ia jurar o contrário! Por acaso uma pessoa é senhora dos seus pressentimentos! Não conhecia a menina de Lasseny, ignorava a sua existência... Logo no primeiro momento que a vi, senti a repulsão e a desconfiança apoderarem-se de mim! Adivinhei nela uma inimiga. Antes da sua chegada, reinava aqui a tranqüilidade. A inquietação, a dor, as lágrimas, chegaram ao mesmo tempo do que ela. É uma rapariga que tem mau olhado!

Joana de Chaslin encolheu os ombros.

— Ora, adeus! está louca! Que influência pode a menina de Lasseny ter no nosso repouso?

— A senhora Duquesa não é desconfiada! exclamou Mariana com amargura. A beleza da menina Adriana...

— Basta! interrompeu a Duquesa com altivez. Vai outra vez insultar o senhor Duque! Não duvido, não quero duvidar do cavalheiro cujo nome tenho a honra de usar, e que não vive senão para mim e para os seus filhos! lembro-lhe o respeito que lhe deve, o que de ontem para cá já por duas vezes esqueceu!

Joana de Chaslin falava com uma voz lenta e grave. No rosto manifestava irrevogável resolução.

Mariana sentiu-se vencida, e da sua alma apoderou-se o mais profundo desespero.

— Oh! minha senhora... minha senhora! exclamem ela caindo de joelhos, ao mesmo tempo que das faces lhe corriam torrentes de lágrimas, tenha piedade de mim, e não me afaste de si! Não me expulse desta casa onde passei os melhores anos da minha vida a amá-la, a abençoá-la. Não será cruel, a tal ponto! Considere, senhora, que para mim é tudo no mundo! Que quer que eu faça, afastada da senhora? Conheço o mal que fiz, e arrependo-me! Peça o meu perdão ao senhor Duque, ele concedê-la-á. Pedir-lhe-ei perdão, lançar-me-ei a seus pés. Tenha dó de mim, minha senhora, longe da senhora Duquesa morrerei, e de certo não quererá condenar-me á morte.

Estas frases sem nexo eram proferidas com uma voz pouco distinta, entrecortada por soluços.

As súplicas dilacerantes da velha ama iam ao mais profundo do coração da Duquesa que estava quase a chorar de comoção.

— Minha pobre Mariana, disse ela pegando nas mãos da criada, o seu pesar faz-me mal, e desejaria poder consolá-la com uma palavra, mas infelizmente não me assiste um tal direito. O Duque acusa-a com razão de ter trazido o desassossego a esta casa. Por sua causa partiu. Só voltará quando souber que as suas ordens foram cumpridas...

Mariana pôs as mãos balbuciando:

— Compreendo isso, senhora. Compreendo bem mie é preciso obedecer ao senhor Duque. Partirei, portanto. Partirei já amanhã, partirei já hoje se quiser... mas não me afastarei de Paris, e mais tarde, quando o senhor de Chaslin estiver de volta, prometa-me que intercederá em meu favor... obtenha dele permissão de voltar para esta casa, que eu seja até ao fim da minha vida, como tenho sido até hoje, sua dedicada servidora... que eu possa finalmente morrer nesta casa onde tenho vivido. Digne-se prometer-me isso, e parto imediatamente. Promete-mo?

— Sim, prometo-lhe. — E consegui-lo-á?

— Não posso a semelhante respeito dar-lhe a certeza, ma? espero e tenho grandes esperanças. Se conseguir verdadeiramente dominar-se, modificar o seu caráter, corrigir-se finalmente, estou convencida de que o senhor Duque não será falto de misericórdia...

— Oh! Obrigada, senhora, obrigada, exclamou a ama de Helena, depois de haver chegado aos lábios às mãos da Duquesa. Vou arranjar as minhas coisas sem dizer nada a ninguém. Sairei daqui esta noite mesmo, pretextando a necessidade de uma pequena viagem; ficarei porém em Paris...

"Tenho necessidade de me sentir sempre junto da senhora. Encontrarei meio de obter notícias suas. Tomarei a liberdade de lhe escrever, para a senhora Duquesa saber onde eu moro, e se chegar o perdão que desejo com tanto ardor, far-me-á a graça de me participar.

— A esse respeito fique sossegada, minha boa Mariana. Mas não quero que vá sem dinheiro. Vou pagar-lhe os ordenados vencidos e a gratificação prometida.

— Suplico à senhora Duquesa que não se ocupe hoje disso... Estou longe de me ver sem dinheiro. Tenho as minhas economias. E mais do que preciso para esperar o meu regresso ao palácio de Chaslin.

— Como quiser, Mariana, mas de hoje em diante os dois mil francos e a renda de mil e duzentos francos pertencem-lhe.

— Depois, minha senhora, depois. Retiro-me... Não faz idéia de como estou apoquentada. Ah! se soubesse o que sofri! O que me ampara é a esperança, se não fosse ela, deitar-me-ia para não me tornar a levantar com vida. Adeus, minha senhora, adeus... Velarei de longe, como velei de perto...

E Mariana, meio sufocada pelos soluços que lhe faziam arfar o peito, saiu cambaleante.

A Duquesa, profundamente comovida, viu-a afastar-se. Em seguida pendeu-lhe a cabeça para o peito.

— Pobre mulher! Como me amava! Como me ama! Serão fundados os seus pressentimentos? Só Deus o sabe! O futuro no-lo dirá... A sua retirada despedaça-me o coração, mas Henrique exigia--a. e não tenho direito de lhe desobedecer. Quando ele voltar, quando todo o vestígio de cólera lhe tiver desaparecido do espírito, advogarei a causa de Mariana. Tratarei de ser eloqüente... Ele é bom... perdoará também.

 

Neste momento bateram discretamente à porta do quarto de dormir.

— Entre, disse a senhora de Chaslin.

A porta abriu-se; Branca apareceu no limiar.

 

O - ANJO DEMÔNIO

A filha de Pedro Carnot, vendo que a Duquesa não se lembrava de reclamar os seus serviços, tomara a resolução de se apresentar sem ser chamada, a fim de se subtrair a todo o custo ás angústias que a oprimiam.

Acabava de compor o rosto com uma habilidade diabólica.

Tinha as pálpebras avermelhadas, as suas pupilas pareciam veladas pelas lágrimas.

Não foi sem uma hesitação que ela deu dois ou três passos no quarto.

— Ah! é a senhora, Adriana, murmurou a Duquesa em tom muito meigo.

— Sim, senhora, respondeu a jovem, cuja voz de cristal tremia. Ontem deu ordem de me retirar, e não pude esta manhã resistir ao desejo de saber como passou a noite?

— Estou um pouco mais incomodada, minha filha, mas espero que isto não seja nada...

Enquanto a senhora de Chaslin proferiu estas palavras, Branca avançava lentamente para ela.

Quando se achou perto da Duquesa, parou. Os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Deixou-se cair soluçando, aos pés da Duquesa.

— Oh! minha senhora... minha senhora, balbuciou, perdoe-me! Sou a causa involuntária deste sofrimento... Devia ter suportado em silêncio os ultrajes com que me vexavam. Nem a coragem, nem a resignação me teriam faltado, se eu imaginasse que lhe poupava um desgosto.

As hábeis entoações da boa comediante tinham um cunho de verdade que produziu na doente uma impressão profunda.

— Com certeza que Mariana está enganada, disse ela consigo. Esta jovem tão simpática, tão meiga, não era capaz de trazer a desgraça a minha casa.

Branca continuou:

— A senhora Duquesa perdoa-me, não é assim, o ter atraído sobre mim, sem o saber, a sua cólera e o seu desprezo?

— Adriana, minha querida filha, exclamou a Duquesa cada vez mais comovida, pegando nas mãos da sua serviçal, não me fale em cólera nem em desprezo; levante-se e sente-se junto de mim.

Nas pupilas de Branca brilhou um relâmpago de alegria que se apagou no mesmo instante.

Toda compenetrada do seu papel exclamou, apertando as mãos da Duquesa, e levantando para ela os belos olhos inundados de lágrimas:

— Visto isso estou perdoada?

— Não tenho nada que lhe perdoar, minha filha... Se há alguém culpado, não é Branca.

Oh! minha senhora, que alívio me dão as suas palavras; porém elas aumentam ao mesmo tempo o meu arrependimento! Andei mal em ligar importância, por pouca que fosse, às palavras de Mariana. Devia tê-la deixado falar e calar-me, desprezar ontem as suas injúrias como hoje as desprezo.

Enquanto proferia estas palavras, Branca fora-se levantando pouco a pouco, e atraída pela Duquesa, sentava-se ao lado dela.

Minha querida Adriana, disse Joana de Chaslin com uma voz comovida, quero que deste momento em diante não lhe fique como não me fica a mim, lembrança alguma do que se passou... A sua dignidade não lhe consentia ser injuriada. As palavras de Mariana contendiam com a sua honra, como contendiam com a do senhor Duque, e a mim própria me ofendiam. Fez bem em não as admitir.

"Nos primeiros momentos, sofri, é verdade, mas esqueci os meus sofrimentos, a culpada foi castigada, está tudo acabado... não falemos mais nisso... A menina já não é minha dama de companhia, é a filha de Aurélia de Lasseny que foi minha amiga, e a quem olho de hoje em diante como minha filha adotiva.

— Portanto, minha senhora, murmurou Branca, conheceu minha mãe?

— Conhecia-a, amei-a.

— Fale-me dela, peço-lhe. — Era formosa e meiga como a menina. Acho que se parece com ela. Tinha, estou certa, esses olhos azuis, e esses cabelos louros... Amava seu pai, como a menina há de um dia amar o homem de quem um dia for esposa.

— Oh! minha senhora, volveu Branca, e eu casarei? Quem me havia de querer sem dote?

— A sua beleza, querida filha, vale uma fortuna, retorquiu a Duquesa sorrindo; e demais, eu e o Duque juntar-lhe-emos um dote, e arranjar-lhe-emos um marido digno de lhe agradar...

A jovem pôs as mãos.

— Como é boa! exclamou com uma tocante expressão de reconhecimento. Não contente com dignar-se conceder-me a sua ternura, lembra-se ainda do meu futuro! Mas graças a Deus, não sou ingrata! Peça-me a vida... Pertence-lhe toda... Não quero casar, pois que o casamento me separaria da senhora. Quero dedicar-lhe todas as minhas horas, como já lhe dedico todos os meus pensamentos.

Joana de Chaslin tomou Branca nos braços, e deu-lhe no rosto um beijo maternal.

A falsa Adriana sentiu um calafrio percorrer-lhe as carnes ao contato dos lábios da Duquesa.

Esta tornou:

— Falaremos disso mais tarde. Entretanto, já esta noite ocupará a aposento contíguo ao meu.

— Oh! minha senhora, exclamou Branca com vivacidade, lembre-se, peço-lhe, do que ontem lhe deu... Não dê novo alimento ao ódio que eu inspiro a Mariana...

— Isso não lhe deve causar inquietação, minha querida filha.

— Por que Mariana reconheceu por acaso o seu erro, e as suas injustiças?

— Ainda que o fizesse seria muito tarde. Mariana já não estará esta noite no palácio...

Branca teve um estremecimento de alegria, mas soube ocultar o seu triunfo sob a máscara de uma compaixão hipócrita.

— Mariana expulsa desta casa, onde passou mais de vinte anos! murmurou. E eu é que sou causa de um tal rigor! Minha senhora, minha senhora! peço-lhe, perdoe a Mariana...

— Posso perdoar-lhe, mas não reconsiderar numa resolução tomada. A vontade do senhor Chaslin é formal, e devo obedecer a meu marido. Quando ele voltar a Paris, já aqui não deve estar uma mulher que a ofendeu.

 

Branca soube dar ao rosto uma expressão de espanto.

— O senhor Duque está ausente? perguntou ela.

— Está, mas a sua ausência será pequena... respondeu a duquesa, não querendo dizer a Adriana qual a causa verdadeira da ausência do senhor de Chaslin. Vou escrever-lhe, e não tarda que o vejamos... Mande-me o criado de quarto de meu marido, peço-lhe, e se encontrar Mariana, evite dirigir-lhe a palavra...

— Prometo-lhe, minha senhora... Deverei voltar para junto da senhora?

— Mais tarde. Neste momento tenho necessidade de descanso. A jovem saiu.

Ao ver afastar-se aquele demônio com rosto de anjo, Joana de Chaslin dizia baixinho:

— Oh! sim, aquela pobre Mariana perdeu a razão... Adriana é um anjo. Duvidar dela seria um crime!

Decorreram dois minutos.

O criado de quarto apareceu.

— Francisco, perguntou-lhe a Duquesa, sabe aonde o senhor Duque se fez ontem conduzir?

— À gare de Orleans, minha senhora.

— Está bom. Francisco retirou-se.

— Está na Roche-sur-Loire, pensou Joana. Amanhã hei de receber dele uma carta ou um telegrama, por certo, e já hoje vou participar-lhe que a paz reina nesta casa.

 

Por volta das cinco horas da tarde, Mariana solicitou uma audiência que logo lhe foi concedida.

Vinha despedir-se daquela de quem durante tanto tempo fora a fiel criada.

Tristes despedidas em que de um lado e de outro correram lágrimas sinceras.

Mariana teve todo o cuidado em não dizer aos criados que a sua retirada, segundo todas as aparências, era definitiva.

Deu como pretexto vários negócios de família, que a chamavam por alguns dias à sua terra.

A rigidez do seu caráter tornava-a pouco simpática à criadagem do palácio de Chaslin.

Por isso, a sua ausência, quer ela fosse de longa ou de curta duração, não inspirou pena a ninguém.

O doutor Frébault apareceu à noite.

Não prescreveu nenhum novo tratamento.

Só o que fez, depois de observar as pulsações do coração, foi receitar para todos os dias um grânulo de digitalina.

Depois retirou-se para ir à rua Francisco I ver o principezinho, cujo estado continuava a ser inquietador.

Branca subiu ao aposento contíguo ao la Duquesa, e deu as ordens relativas à sua instalação, a qual devia realizar-se naquele mesmo dia.

Dali dirigiu-se ao quarto de dormir da senhora de Chaslin, certificou-se de que todas as portas estavam bem fechadas, entrou no gabinete de toilette, e tirou de um móvel, dentre os pequeninos objetos que enchiam metade de um recipiente de ônix um frasquinho vazio que tinha o seguinte letreiro:

 

Grânulos de digitalina drageficados de Labelonie

 

Depois voltou ao quarto de dormir, aproximou-se da mesa de cabeceira onde havia vidros de remédios e um frasquinho semelhante àquele de que lançara mão, mas que encerrava uns pequeninos grânulos brancos, desarrolhou este frasquinho, deitou quatro ou cinco grânulos no primeiro recipiente que desapareceu em seguida no peitilho do vestido entre os dois seios, e tornou a pôr tudo no seu lugar.

— Vamos, murmurou em seguida num tom de triunfo, Pedro Rédon, amanhã, deve estar contente comigo.

O dia acabou-se sem incidentes.

Pelas dez horas da noite a senhora de Chaslin quis gozar um descanso de que tinha grande necessidade, depôs um beijo na fronte da falsa Adriana, que pela primeira vez tomou posse do quarto contíguo ao quarto da Duquesa e ao gabinete que tinha comunicação com este.

 

Tornemos a Henrique de Chaslin.

Deveras decidido a afastar-se momentaneamente de Paris, o duque resolvera passar dois ou três dias na sua vivenda de la Roche-Loire, onde importantes trabalhos, executados sob a direção do mordomo, tornavam a sua aparição muito útil, para não se dizer indispensável.

Por isso fizera-se conduzir à gare de Orleans.

Tomou bilhete para a estação de Meung-sur-Loire e achou-se só num compartimento de primeira classe.

A irritação resultante da cena a que assistimos, acalmara-se pouco a pouco.

O primeiro momento de cólera cedera o lugar às reflexões, e elas não tinham nada de alegre.

O Duque principiava a recear que a sua explosão de cólera, não denunciasse à senhora de Chaslin o fim do seu pensamento, e desse corpo a suspeitas até então vagas.

Henrique de Chaslin, apesar das suas leviandades muito numerosas, sentia pela Duquesa uma ternura que as paixões criminosas podiam fazer-lhe esquecer por um momento, mas que nem por isso ficava menos viva no seu coração.

Além disso, amava os seus filhos Rogério e Helena.

A sós com os seus pensamentos, enquanto a trepidação regular do comboio, caminhando a grande velocidade, lhe sacudia o coração acontoado num dos ângulos do "wagon", não teve remédio senão confessar a si próprio que não procedia nem como bom pai, nem como bom marido, nem como homem de bem, e procurar afugentar a imagem de Adriana.

Da censura das próprias ações, ao pesar e ao arrependimento, só havia um passo.

O passo foi transposto.

O Duque, quando às oito horas e meia da noite se apeou em Meung, já não era o mesmo homem que vimos afastar-se furioso do palácio de Chaslin.

A vivenda e o parque de la Roche-sur-Loire achavam-se a quatro quilômetros de Meung.

O senhor de Chaslin tomou um trem e fez-se ali conduzir.

A sua chegada, que coisa alguma fazia prever, encheu de surpresa, como é fácil de compreender, o guarda da propriedade e o caseiro.

As suas respeitosas perguntas, o senhor de Chaslin respondeu que se resolvera de um modo repentino, e não se lembrara de expedir um telegrama.

Em todo o caso o seu quarto estava preparado, e a mulher do guarda fez prodígios de zelo para improvisar uma refeição apresentável.

O Duque comeu pouco, e retirou-se logo para o seu quarto, dando, primeiramente, ordem de não o irem incomodar sob pretexto algum.

Escaldava-lhe o sangue uma febre violenta, sentia a imperiosa necessidade de respirar a plenos pulmões o ar fresco da noite.

As janelas davam para o imenso parque, ao qual se seguiam duzentos hectares de mato também pertencente ao Duque, e que subiam pelas fraldas da colina.

Henrique de Chaslin abriu uma das janelas e encostou-se ao parapeito.

A noite estava muito clara.

As massas de verdura, as poças de água cobertas de nenúfares, os vastos arrelvados matizados de grupos de árvores e de caixas de flores, tomavam na penumbra um aspecto de estranha melancolia.

O Duque deixando vaguear os olhares por aqueles horizontes conhecidos, cujas menores particularidades ele adivinhava em meio das trevas transparentes, foi vítima de uma singular alucinação.

 

O FANTASMA

Henrique de Chaslin julgou ver deslizar umas sombras indecisas nas alamedas que contornavam os tabuleiros de relva.

Estas sombras foram pouco a pouco tomando corpo, as suas formas acentuaram-se, as suas feições tornaram-se nítidas e distintas, iluminadas por um fulgor fantástico.

Foi primeiramente uma jovem esplendidamente formosa, uma jovem de cabelos dourados, de grandes olhos azuis, cujo olhar in-definível, se cravava nele, ao mesmo tempo que um sorriso de esfinge lhe pairava nos lábios avermelhados.

Henrique reconheceu Adriana.

Percorreu-lhe as carnes um calafrio.

Molhou-lhe as fontes um frio suor.

A visão desapareceu, mas uma outra substituiu-a imediatamente.

Joana de Chaslin, encantadora como era aos vinte anos, passava graciosa e casta, tendo impressas no rosto uma dignidade modesta, e uma angélica doçura.

Ao lado dela brincavam duas crianças adoráveis, o irmão e a irmã, Helena e Rogério.

O Duque estendeu os braços para eles; o seu coração batia com violência, e a lembrança de Adriana apagou-se do seu espírito ao mesmo tempo que se lembrava dos primeiros anos do seu casamento, dos primeiros momentos de embriaguez da sua ventura.

A meiga voz de Joana, o balbuciar infantil das queridas criaturas de quem era pai, soaram-lhe aos ouvidos.

Depois, no espaço de alguns segundos, decorreram anos, tornou a ver Rogério soldado, Helena formosa e sedutora como o fora a mãe, finalmente a própria Duquesa pálida, doente e condenada como estava.

Tornou então a volver a vista sobre si mesmo, e julgou severamente a cena odiosa em que, com o coração devorado por um amor culpado, tomara o partido de Adriana, e expulsara Mariana, a fiel servidora, que defendia contra ele próprio a honra da casa.

— Ah! murmurou com uma voz abafada, infeliz de mim! Que fiz eu?

 

E do peito saíram-lhe soluços que o sufocaram.

Chorou por espaço de alguns segundos.

As lágrimas dilataram-lhe os nervos, restituíram uma tranqüilidade relativa ao seu organismo sobre-excitado, e serenou-lhe um pouco a alma.

As visões tinham-se apagado, a escuridão envolvia novamente as solidões do parque.

O senhor de Chaslin deixou a janela, e veio sentar-se junto de uma pequena mesa, sustentando um candelabro de quatro velas.

A gaveta desta mesa encerrava tudo o que era preciso para escrever.

O duque tomou uma folha de papel para escrever, e com mão febril traçou as seguintes linhas:

"La Roche-sur-Loire, sexta-feira à noite.

"Minha adorada.

"Faltam-me as forças para continuar uma luta que me despedaça o coração. Já não resisto, já não hesito... Tudo o que quiser, quero-o, querê-lo-ei também eu. Por muito louco e cruel que seja o seu ciúme, cedo, não sem pesar, porque é uma ação criminosa que vamos cometer sacrificando uma inocente que nos amava, mas cedo, porque assim é preciso que Joana seja feliz, Joana, o meu único, o meu último amor...

"Suprima pois o obstáculo que se ergue entre nós... Quero consagrar o resto da minha vida ao plano de lhe proporcionar uma felicidade absoluta.

"Que se faça sem demora o que deseja, e que não haja dentro em pouco no palácio de Chaslin senão dois corações estreitamente unidos.

"Todo seu.

"Henrique de Chaslin."

O Duque tornou a ler esta carta que se ressentia das perturbações do seu espírito, meteu-a num sobrescrito, escreveu o endereço de Joana de Chaslin, no seu palácio no bairro de Saint-Honoré.

Em seguida meteu-se na cama, mas não conseguiu lograr um sono sossegado.

A imagem daquela Adriana, a quem acabava de sacrificar irrevogavelmente, julgava ele, apareceu-lhe durante toda a noite em sonhos.

Debalde instava contra ela; não conseguia afugentá-la.

Levantando-se logo pela manhã, desceu ao jardim onde os guardas faziam a sua ronda.

Chamou um deles, e entregou-lhe a carta com ordem de a levar imediatamente à mais próxima estação postal.

Após um almoço muito sumário, o Duque de Chaslin fez preparar um faeton que sempre estacionava no palácio, e foi com o seu feitor visitar os trabalhos que se estavam executando num dos seus domínios separado por dez ou doze quilômetros de Ia Roche-sur-Loire.

Voltou pelas sete horas da tarde muito fatigado, almoçou rapidamente, e voltou para o seu quarto de dormir.

A Carta escrita à Duquesa na manhã daquele dia, só podia no dia seguinte ser entregue no seu destino.

Segundo todas as probabilidades, a senhora de Chaslin responderia imediatamente, mas a sua resposta só no dia seguinte chegaria à Roche.

Grandes foram a surpresa e alegria do Duque, quando, ao acordar, lhe apresentaram uma carta originária de Paris, que se tinha cruzado com a sua.

Reconheceu as garatujas aristocráticas da Duquesa, rasgou o envelope e leu:

"Meu querido Henrique.

"Confessando-as com franqueza, e esforçando-nos para as reparar, fazem-se ou não esquecer as nossas culpas?

"Reconheço as minhas, deploro-as, e arrependo-me.

"Compreendi, depois do Duque ter se retirado, que um ciúme sem motivo me tinha feito perder a cabeça.

"Mariana deixou o palácio, e não nos separamos da menina de Lasseny.

"A pobre senhora tem um coração de pomba; temos obrigação de velar por ela, e de substituir o melhor que pudermos os parentes que ela perdeu.

"Penso no seu futuro, e talvez lhe apresente dentro em pouco, meu querido Duque, certos projetos que lhe dizem respeito, e se acham num estado vago no meu espírito.

"Que tudo fique esquecido! Volte depressa, meu querido Henrique. Espero-o com viva impaciência, e uma ternura sem limites.

"Joana de Chaslin."

Enquanto o Duque devorava esta carta, a expressão do seu rosto tornava-se radiante.

Não somente a Duquesa já não suspeitava, já não acusava, como ainda se declarava culpada, e pedia perdão.

As ordens dadas por ele num momento de cólera tinham sido religiosamente cumpridas.

Mariana exilada do palácio, livrava-o de uma vigilância importuna e ia ver-se novamente junto de Adriana, mais adorada que nunca.

Das exprobações que o Duque lançava a si próprio desde que ali chegara, já nada restava, nem sequer uma fugitiva impressão.

Os remorsos dissiparam-se como um leve nevoeiro se dissipa aos primeiros raios do sol.

 

Horas depois. Henrique de Chaslin fazia-se conduzir a Meung-sur-Loire, e tomava o comboio que o devia trazer a Paris.

Depois da saída do amo, nenhum incidente se produzira no palácio.

Os criados pareciam felizes por já não sentirem o imperioso domínio de Mariana, e atribuindo o seu livramento à menina Adriana, levavam às nuvens a jovem.

A segunda criada de quarto, tornando-se em primeira criada de quarto sem partilha nas suas atribuições, dera notícia da satisfação das companheiras, e a Duquesa. tornando a cair sob o feitiço da loura Circe, sentia-se contente.

Branca Adriana, ocultando o melhor que podia o orgulho de um tão completo triunfo, tomava sobre si a direção de tudo, e mostrava aos criados uma benevolência que não podia deixar de os chamar a partido.

No dia seguinte à retirada de Mariana, levantou-se muito cedo e saiu, dizendo à criada de quarto que ela ia fazer as suas orações, mas que seria curta a sua ausência.

Dirigiu-se efetivamente à Magdalena.

César de Fossaro, com o tipo e o fato de Pedro Rédon, esperava-a ao pé da grade, ao lado de um coupé, cuja portinhola estava aberta.

— Sobe... disse-lhe com vivacidade empurrando-a para dentro do trem.

Entretanto também, deu ordem ao cocheiro que seguisse a passo o boulevard Malesherbes.

— Fala, tornou ele quando o trem se pôs em movimento, estou escutando.

Pedro Rédon manifestou a princípio uma inquietação manifesta, mas o seu rosto sombrio iluminou-se quando a jovem chegou ao fim da narrativa.

— Os meus cumprimentos, exclamou. Isso é trabalhar como se deve! Repito-te que és de uma grande força! Com a retirada de Mariana, ficas senhora da casa. Mas o Duque?

— A senhora de Chaslin não duvida do seu pronto regresso.

— E tem razão! Se te ama como dizes, e como estou convencido, terá pressa de te tornar a ver.

Branca fez um sinal afirmativo, acompanhado de um sorriso orgulhoso.

Pedro Rédon tornou:

— Trazes o que te pedi?

— Trago.

— O molde das duas chaves, o frasco e os grânulos?

— Eis os moldes e o mais.

A jovem tirou da algibeira um embrulho muito pequeno, envolto em papel azul, e amarrado com uma fita cor de rosa.

— Aí está tudo, disse.

— Tens a certeza da fidelidade dos moldes?

— Toda a certeza.

— Então tornam-se inúteis novas saídas, salvo circunstâncias imprevistas. Nada te impede que ponhas amanhã no quiosque, no lugar combinado, o relatório das tuas impressões, e do que se tiver passado no palácio.

— Depois de amanhã?

— Sim, não desprezes nenhum pormenor.

— Não esquecerei nada, não desprezarei coisa alguma.

— Às mil maravilhas! Eis-nos perto da rua Boissy-d'Anglais. Apeia-te e volta para o palácio a pé. Eu fico com o trem.

Branca fez o que lhe ordenava o zarolho, e chegou rapidamente ao arrabalde Saint-Honoré.

 

No momento em que transpunha o portão de entrada, o porteiro entregou-lhe uma carta que acabava de chegar para a Duquesa.

A jovem examinou o grande sinete de lacre vermelho, e reconheceu as armas de Chaslin, encimadas pela coroa ducal.

— É dele, pensou ela. e com certeza que anuncia o seu regresso.

Subiu ao quarto, tirou o chapéu e o leve pardessus de manhã, e bateu de vagar à porta da Duquesa.

Joana acabava de despertar.

— Entre, disse ela. Ah! é a minha querida Adriana! Seja bem aparecida. Que me trás? acrescentou vendo um papel nas mãos da jovem que respondeu:

— É uma carta, senhora Duquesa. e se creio nos meus pressentimentos, uma boa nova.

A Duquesa, tremendo, rasgou e envelope, leu as primeiras linhas e soltou um grito de alegria.

A carta do senhor de Chaslin, provava-lhe até à evidência a inanidade das suas primeiras suspeitas.

O Duque com certeza não sentia pela menina de Lasseny um sentimento muito terno, porque consentia no seu afastamento.

— Não se enganava, minha filha, murmurou a Duquesa, são noticias do senhor Duque, boas noticias...

— Voltará breve? perguntou Branca com um ar tímido. Joana não recuando diante de uma piedosa mentira, respondeu:

— Sim, volta breve. Assim que ultimar os negócios que o chamaram a Ia Roche-sur-Loire.

A falsa Adriana pensava:

— Que escreveria ele para tornar a Duquesa tão alegre? Anunciará ele o seu regresso sem condições? Quero saber o que esta carta contém. Sabê-lo-ei!

A senhora de Chaslin tinha o hábito de fechar toda a sua correspondência num cofrezinho de cristal colocado sobre um dos móveis do seu quarto.

Abria-se este cofrezinho carregando num botão quase imperceptível, oculto nas cinzeladuras elegantes do engaste de prata.

Branca, diante de quem a senhora de Chaslin o tinha aberto e fechado por mais de uma vez, conhecia o segredo daquele botão.

Depois do almoço a Duquesa subiu ao seu quarto, e rogou à jovem que lhe fizesse uma leitura.

Por volta das duas horas e meia, a campainha do palácio fez-se ouvir, e o criado de quarto veio anunciar que o senhor de Logeryl esperava no salão.

A doente foi ter com ele, deixando só a dama de companhia.

Esta, assim que teve a certeza de que Joana não voltaria, correu ao cofrezinho, fez atuar a mola, tirou a carta, e foi fechar-se no seu quarto.

O pulso batia-lhe naquele momento mais de cem pulsações por minuto.

Tinha o peito opresso.

Que ia saber?

 

SOBRESSALTOS E DESENGANOS

A leitura da carta subtraída foi um raio.

O Duque parecia ter-se desprendido dela subitamente.

Esquecia-a, sacrificava-a; deixava à senhora de Chaslin a liberdade de a expulsar.

Que se passava então?

Que reviramento súbito e impossível de prever se operara nu coração e no espírito do senhor de Chaslin?

Abandonava-a realmente, ou tinha tenções de a procurar depois de deixar o palácio?

Quando Branca concluiu, bastou um minuto de reflexão para lhe restituir o sossego e a confiança.

— Não sabe que fico aqui... disse ela deitando à carta um olhar de provocação. Se julga que a cadeia está quebrada, engana-se. Um só olhar meu bastaria para lhe tornar a forjar os elos.

No fim de alguns segundos de novas reflexões, a jovem tornou:

— Devo ler a Pedro Rédon este bilhete, ou pelo menos a cópia. Depois de amanhã, disse-me ele, poderá penetrar no palácio. Depois de amanhã portanto lerá estas linhas.

Copiou rapidamente a carta, e tornou a meter o original no cofre donde o tirara.

 

Na noite seguinte chegava Henrique de Chaslin.

A falsa Adriana estremeceu de alegria.

Os olhos do Duque, fitos nela com uma indizível e opressão de embriaguez, provavam-lhe que a cadeia estava mais sólida que nunca.

Deixemos por um instante as peripécias a que devia servir de teatro o palácio do arrabalde de Saint-Honoré, e roguemos aos nossos leitores que nos sigam à avenida de Villars, a casa do Conde de Vergis.

O Conde e a Condessa tinham partido sucessivamente, com poucos minutos de intervalo, a Condessa para a vivenda de Épines-Blanches, o Conde para a Suíça, onde o criado de quarto havia de ir ter com ele depois de executar as instruções cujo teor conhecemos.

Antes de deixar Paris, o senhor de Vergis expedira a Malpertuis o seguinte bilhete lacônico, assinado unicamente com a inicial V.

"A Condessa está só nos Épines-Blanches.

"A sua vigilância deve principiar imediatamente.

"Um telegrama lhe dirá com que direção me deve escrever."

Lendo estas quatro linhas, onde se achava a prova de absoluta confiança que inspirava ao Conde, o ex-advogado sorriu.

César de Fossaro informado do que se passava, respondeu:

— Isto vai o melhor possível! Quando for tempo de fazer deste lado alguma coisa, fazê-la-emos.

Jacques Sureau vendo que o criado de quarto ficava no palácio, tranqüilizara-se.

— A ausência dos amos há de ser, creio, de curta duração... A decepção não se fez esperar...

No dia seguinte à retirada do senhor de Vergis, o criado de confiança reunindo os outros criados, disse-lhes que estava encarregado de os despedir a todos, de fechar o palácio, e de ir ter com o amo a uma terra que não nomeava.

Aquilo foi um raio para Jacques Sureau,

— Despedem-nos! exclamou cheio de raiva.

— Não se despede ninguém. Apenas se dispensam serviços que se tornaram inúteis. Tenho ordem de lhes pagar, e de dar a cada um de vocês uma boa gratificação, prova manifesta de que o senhor Conde só com pesar se separa dos seus criados.

Uma medida tão liberal punha termo a toda a recriminação. Ninguém proferiu palavra.

— É preciso sair do palácio antes de anoitecer, acrescentou o criado de quarto.

— Essa ordem não se pode entender com todos, observou Jacques Sureau.

— Por quê?

— Como os cavalos ficam aqui, é preciso alguém para cuidar deles.

— Não lhe dê isso cuidado. Os cavalos vão ser conduzidos o Tattersal, onde ficam em pensão na ausência dos donos.

— Mas, tornou o primo de Fernando Volnay, essa ausência não se poderá prolongar indefinidamente. Não poderemos conservar esperanças de que à volta do senhor Conde entremos outra vez para o seu serviço?

— A isso não posso responder, porque ignoro ao mesmo tempo a duração da ausência, e as intenções do senhor Conde.

— Eu lho perguntarei, retorquiu Jacques Sureau.

— Como?

— Escrever-lhe-ei.

— Será difícil.

— Por quê?

— Porque ignoro eu próprio onde se acha o Conde.

— Mas o senhor vai ter com ele...

— Quer dizer que parto, e num lugar combinado acharei uma carta indicando o sítio para onde me devo dirigir.

— Mas, nesse caso, exclamou Jacques com sombrio furor, quando uma pessoa se retira sem dizer aonde vai, quando se afasta ocultando o rasto, dá-se-lhe o nome de fugitivo!

— Que lhe importa? replicou severamente o criado de quarto. Não tem mais que pedir o pagamento do seu ordenado, e a indenização que se lhe concede. As ações do senhor Conde não lhe dizem respeito.

— É justo, murmurou o escudeiro entre os dentes mas em voz bastante alta, para ser ouvido de toda a gente. Cada qual está no direito de ocultar a sua vergonha como quer, ou antes, como pode.

— Que significam essas palavras insolentes? perguntou indignado o criado de quarto.

— É inútil explicá-las... não tarda que se expliquem por si.

— Jacques, você é um mau sujeito! Não tolero uma palavra mais! Aqui tem o seu dinheiro, vá-se.

— Bem, retiro-me, mas hão de ouvir falar de mim. Não digo adeus para sempre ao palácio de Vergis! Digo-lhe até a volta.

E Jacques Sureau afastou-se. com o desprezo no coração e uma tristeza de morte na alma.

 

Uma hora depois, os palafreneiros conduziam os cavalos ao Tattersal.

À noite, o palácio estava vazio.

O criado de quarto fechou as portas, entregou as chaves ao porteiro, a quem ficava confiada a vigilância do palácio, depois tomou por seu turno o caminho da gare, e partiu num expresso.

Jacques parecia um homem que acabava de perder a razão.

— Perdida! balbuciou ele gesticulando como um doido. Pois havia de ficar perdida, e eu não poderia possuí-la, nem vingá-la? Ora adeus! Com paciência tudo se consegue. E eu hei de conseguir o que pretendo.

E repetia: — Hão de ouvir falar de mim!

Alugou na avenida de Villars um pequeno quarto mobiliado, donde lhe seria fácil vigiar o palácio do Conde de Vergis; depois, quando anoiteceu, dirigiu-se ao teatro de Belleville.

Fernando Volnay continuava a representar os Beijos Mortais.

O duplo êxito da peça e do artista não diminuía, e a cifra muito elevada das receitas, faziam supor que esse êxito ainda por muito tempo se prolongaria.

Jacques subiu ao camarim de Fernando, e achou o seu primo tão alegre, quando ele próprio estava sombrio e triste.

— Mas espera lá, que sucede, meu velho? perguntou-lhe apertando a mão ao primo. Trazes uma cara de desenterrado! Sucedeu-te por acaso alguma desgraça?

— Sucedeu.

— Que foi?

— A mais terrível que poderia suceder-me. Ela partiu!

— Quem? a Condessa?

Jacques fez um sinal afirmativo, e contou-lhe o que sofria.

— Muito bem, primo, volveu Fernando, depois de ter prestado a maior atenção a esta narrativa, tenho pena de te ver sofrer; mas aqui para nós, não me pesa essa resolução da Condessa. É uma circunstância feliz que põe termo aos teus amores insensatos! Esses amores assim são fatais quando não se é correspondido, e quando detrás da mulher amada há um amante ou um marido...

— É possível, murmurou Jacques; mas sofro como um condenado...

— Esquece!

— Nunca poderei esquecer!

— Diz-se isso, mas sempre vamos esquecendo.

— Os outros vão esquecendo, mas eu é que não! listou condenado para toda a vida, fica sabendo! Há momentos que não sei o que me retém que não faço saltar a mioleira!

Fernando Volnay encolheu os ombros.

— Isso não passa de criancice, meu velho! Faze-te homem, com a breca! Não te deixes absorver pelas luas idéias, olha que endoideces!

— Oh! sinto muito bem que sim! murmurou o ex-escudeiro.

— Procura um emprego de picador ou de ensinador de cavalos em outra casa, continuou o comediante; o trabalho distrair-te-á...

Jacques Sureau já não ouvia nada.

— Se ao menos eu soubesse onde ela está... exclamou de repente com voz abafada

— Isso não te dava resultado nenhum.

— Talvez, mas parece-me que sofreria menos...

Duas grandes lágrimas deslizaram dos olhos do sombrio namorado escorrendo-lhe pelas faces.

Apesar do seu ceticismo habitual, Fernando viu aquelas lágrimas e sentiu-se comovido.

— O que, pois é tão sério como isso! Choras por uma mulher!

— Amo-a tanto! se soubesses! Amo-a de uma maneira mortal!

— Uma paixão como os autores pintam nas suas peças. E infelizmente um amor sem esperança... Enfim, sossega!... Desejavas saber onde está a rainha?

— Como, a rainha!

— Pensava em Ruy Blas... Quero dizer a Condessa de Vergis.

— Oh! sim, desejava.

— Bem, promete-me seguir os meus conselhos e... O artista calou-se.

— E... repetiu Jacques ansioso.

— E prometo-te dizer para onde foram o Conde e a mulher. — Então sabes?

— Não, mas hei de saber.

— Por quem?

— Pelos amigos do Conde.

— Conhece-os?

— Pudera!... Nessa roda tenho íntimos amigos. Tal qual me vês, meu querido, vou em muito bom caminho.

— Com o teu espírito, o teu físico, e o teu talento, não me admiro.

— Lisonjeiro! Em suma, torno o cumprimento pelo que ele vale, e vou habilitar-me para te satisfazer, com a condição que não ficarás na inação como uma alma penada. A ociosidade é a mãe de todos os vícios... Procura um emprego, trabalha, e no dia em que tiver as informações que tanto te interessam, comunicar-te-ei.

— E será para breve?

— Sim, será para breve. Agora digo-te adeus. Eis o momento da minha entrada.

— Queres cear comigo esta noite?

— Não me é possível.

— Por quê?

— Neste momento não resido em Paris, e sou obrigado, depois do espetáculo, a tomar um trem, e ir de corrida embarcar no comboio dos teatros da gare de Vincenes. Mas vem procurar-me aqui, e assim que tiveres um emprego, dá-me a tua nova morada.

— Está combinado.

Os dois primos trocaram um cordial aperto de mão, e separaram-se.

 

Fernando correu para a cena, e por pouco que não perdeu a sua entrada.

Jacques Sureau confiando na palavra do artista, retirou-se com o coração menos oprimido.

Quando seguia pelo corredor de saída, no momento de passar por defronte do bilheteiro, viu-se obrigado a afastar-se para deixar passar um sujeito que entrava e que olhava para ele com atenção.

Muito preocupado não levantou os olhos para o recém-chegado, e continuou o seu caminho.

O recém-chegado não era outro senão o Barão de Fossaro.

César foi bater à porta do camarim de Fernando.

Como ninguém respondia, e a chave estava na fechadura, o Barão entrou, fechou a porta após si, pôs o chapéu em cima de uma cadeira, e sentou-se.

Enquanto esperava o regresso do artista, pôs-se a contemplar distraidamente as gravuras e as fotografias que lhe ornavam as paredes, e em seguida os diferentes objetos amontoados sobre a pequenina mesa por baixo do espelho móvel.

Entre os frascos de carmim e alvaiade, os cosméticos e os pincéis, um relógio atraiu-lhe a atenção.

Este relógio era um cronômetro de um preço elevado.

As iniciais F V, em diamante, enlaçavam-se sobre o esmalte da caixa; na cadeia de ouro muito pesada, e de um precioso trabalho, pendiam berloques de um grande valor.

Fossaro pegou no relógio e examinou-lhe sorrindo as menores particularidades.

— Encantador! murmurou ele. Rico e do melhor gosto. Aposto que Fernando Volnay tem notas do banco nas algibeiras. e diamantes em todos os dedos!

O garoto deve sentir-se como o peixinho na água!

Um novo sorriso do Barão, sublinhando de um certo modo estas ultimas palavras, indicou claramente o seu verdadeiro sentido.

 

O ARTISTA QUERIDO

O quinto quadro dos Beijos Mortais acabara naquela momento. A porta do camarim abriu-se, e Fernando apareceu. Ao ver o Barão soltou uma exclamação alegre, e avançou precipitadamente para ele, de mão estendida. O senhor de Fossaro não se enganara.

No dedo anular desta mão brilhava um diamante da mais bela água.

César, contente com a sua perspicácia, sorriu pela terceira vez.

— Ah! é o querido Barão! exclamou o comediante com uma satisfação verdadeira. É bonito isso, e não posso expressar-lhe qual é o meu agradecimento pela sua amável visita!

— Há quase uma semana, e não se passou um só dia sem pensar no Barão.

— Devia ir a minha casa, replicou César.

— Bem o quis, mas foi-me impossível.

— Então, por quê?

— Por certas razões de natureza muito particular.

— E o Barão vai bem?

— Às mil maravilhas! E o senhor também, espero.

— Eu também, excetuando um pouco de fadiga...

— Fadiga muito natural... O seu papel é esmagador. Segundo penso, já está restabelecido das comoções do famoso duelo, cujo resultado tamanha honra lhe deu?

— Se eu fosse o senhor Prudome. disse o comediante rindo, responder-lhe-ia que este duelo é o mais belo dia da minha vida. porque me permitiu vingar uma mulher a quem adoro!

— Decididamente adora então a Marquesa, porque neste momento só dela se pôde tratar.

— Querido Barão, graças ao senhor graças aos seus acertados conselhos, sou o mais feliz dos homens! Nada devo portanto ocultar-lhe... Muito bem, idolatro a senhora de la Tour-du-Roy, e sou correspondido.

— Tem a certeza disso?

— Oh! toda a certeza.

— E provas?

— As mais completas que uma mulher bonita possa dar a um belo rapaz...

— Os meus melhores cumprimentos, querido artista! Safa! é uma amante que todos os Príncipes do mundo lhe poderiam invejar!

Fernando Volnay, empanturrado de orgulho, torcia o bigode sedoso, empertigando-se com ares pretensiosos. Fossaro tornou:

— Vê a Marquesa todos os dias?

— Todos os dias e todas as noites. Vivemos juntos.

— Juntos! repetiu o Barão estupefato ante a incompreensível loucura de Lazarine.

— Perfeitamente.

— No seu palácio da rua Murillo?

— Oh! Não, não em Paris...

— Então onde?

— Na estalagem da ponte de Creteil... É ali a nossa instalação provisória.

— Bravo! delicioso!... campestre e bucólico! Eis realizados os seus sonhos.

— E até excedidos, querido Barão.

— Suponho que a Marquesa se ocupará seriamente de si; porque o amor é coisa muito bonita, mas não basta.

— Deve falar amanhã com um autor em voga, que vai dar um drama no Ambigu, e pedir-lhe para mim o papel principal da peça. O autor é da intimidade da Marquesa, e por conseguinte caminhará por si.

— Resta a questão do diretor.

— A Marquesa conhece Chabrillart... Não lhe poderá recusar uma lx>a escritura para mim.

— Sim, sim, o senhor há de ser Item sustentado! Então a senhora Marquesa já não pensa no casamento de que se tratava muito a sério?

— De que casamento? perguntou Fernando.

— Com o Príncipe Emanuel de Brada.

— Não se fará.

— Lazarine rompeu as relações?

— Oficialmente; talvez ainda não, porque ela só tem falado comigo, mas eu me encarrego de a resolver a um rompimento,

— Pois terá sobre ela um tal ascedente?

— Terei sobre ela todos os ascendentes possíveis, e verá dentro em pouco, querido Barão, coisas que muita admiração, lhe hão de causar.

— Que coisas?

— Não me interrogue, quero deixar-lhe o prazer da surpresa, quero somente dizer-lhe que visto fazer-me a honra de se interessar por mim, há de ficar satisfeito... Dê-me agora notícias do outro Príncipe meu adversário...

— Está há dez dias entre a vida e a morte.

— Falou-lhe?

— Não... O médico não quer que ninguém se aproxime dele. Ordem rigorosa.

— Numa palavra, não há grandes esperanças...

— Não há mesmo nenhuma. Fernando olhou para o relógio.

— Com a breca! exclamou. Estou aqui a conversar, e esqueço-me de me despir. Tenho apenas o tempo indispensável.

E despiu-se à pressa.

— Deixo-o, disse Fossaro.

— Um instante mais... O senhor não me incomoda na minha caracterização, e tenho um pequeno pedido a fazer-lhe.

— À sua disposição... De que se trata?

— Conhece o Conde e a Condessa de Vergis?

— Muito bem.

— Acabam de deixar Paris, e desejava saber para onde foram. O Barão pôs-se a rir.

— Por que demônio quererá o senhor saber isso? Por acaso o senhor, não contente com a Marquesa, está também apaixonado pela Condessa?

— Nunca a vi...

— Então?...

— Não é a mim que interesse a informação pedida.

— Quem se interessa então?

— Esqueceu-se do meu primo João Jacques Sureau?

— O Ruy Blas... Verme da terra namorado de uma estrela...

— Esse mesmo... O senhor de Vergis, quando se retirou, despediu toda a criadagem. O meu primo está como doido... Pensava em fazer saltar os miolos... Sosseguei-o prometendo-lhe que havia de saber para onde tinham ido o Conde e a Condessa, e recorro ao senhor Barão para o cumprimento da minha palavra.

— O que quer então o seu primo?

— Não quer coisa que tenha um vislumbre de senso comum; mas seria bom impedir que ele fizesse alguma asneira...

— Nada tenho a recusar-lhe, meu querido artista, e hei de encontrar meio de lhe fazer saber o que pretende.

— Nesse caso posso dar algumas esperanças a Jacques?

— Pôde, mas com uma condição...

— Qual?

— É não lhe dizer de quem vêm as informações. Onero que o meu nome não seja proferido.

— Compreendo isso. Fique sossegado. Não sairá dos bastidores, e ninguém suspeitará do serviço que me prestou.

— Vou já amanhã procurar informações. Agora um aperto de mão, deixo-o.

— Tornarei a vê-lo brevemente?

— Sim. prometo-lhe.

 

César de Fossaro saiu do camarim, depois do teatro, e voltou à rua de Provence.

A senhora de la Tour-du-Roy, no dia seguinte àquele em que se entregara a Fernando Volnay, na casa da ponte de Créteil, acompanhara-o a Paris, e enquanto ele ia representar nos Beijos Mortais, dirigira-se ao seu palácio da rua Murillo.

Ali voltou misteriosamente pela portinha do jardim, subiu ao seu quarto sem encontrar ninguém, e chamou pela criada de quarto.

A jovem, apesar da sua inquietação mortal, soubera ocultar aos outros criados a ausência inexplicável da Marquesa.

— Ah! minha senhora, exclamou com uma expressão de alegria, cuja sinceridade não se podia pôr em dúvida, como me sinto feliz por ver a senhora. Há quarenta e oito horas que eu por assim dizer não vivia.

— Deve estar sossegada, minha filha, porque aqui estou, volveu Lazarine rindo.

— Receava tivesse sucedido alguma coisa desagradável à senhora.

— Nada me sucedeu desagradável, pelo contrário.

— Efetivamente, a senhora Marquesa tem uma cara alegre, apesar de estar um pouco mais pálida do que é costume.

Lazarine corou, e para ocultar a sua perturbação, perguntou com vivacidade?

— Que visitantes se apresentaram ontem e hoje no palácio?

— O senhor Príncipe de Brada veio duas vezes, o senhor Túlio Leroux só uma vez esta tarde.

— Que disseram ao Príncipe?

— Que a senhora Marquesa, muito incomodada, não recebia.

— E a meu pai?

— Que a senhora Marquesa tinha saído, e por certo voltaria tarde.

— A partir de amanhã as ordens são outras. Responderá às visitas que fui passar alguns dias na minha residência da la Tour-du-Roy.

— A senhora parte para o campo? perguntou a criada de quarto. Então leva-me consigo?

— Não, minha filha. Serve-me melhor estando aqui que além. Demais, a minha vilegiatura será de curta duração. Meta numa mala de viagem as coisas indispensáveis, e quando tiver acabado, mande buscar um trem...

— O trem deverá parar à portinha do jardim?

— Não. Que entre pelo contrário no pátio do palácio. Não oculto a minha retirada.

Três horas depois. Lazarine munida de uma boa quantia, e de um livrete de cheques, subia para o trem, com grande espanto da criadagem, que não sabia explicar o singular capricho da senhora Marquesa, e dava ordem para que a conduzissem ao caminho de ferro de Orleans.

No caminho modificou a ordem.

Foi para a gare de Vincenes que o cocheiro se dirigiu.

Às dez horas da noite Lazarine de la Tour-du-Roy chegava à ponte de Creteil, e mandava conduzir a mala para o quarto que conhecemos, quarto modesto, como os que eram que o amor metamorfoseava para ela num paraíso.

 

Na tarde seguinte o Príncipe Emanuel de Brada apresentou-se, segundo o costume, no palácio da rua Murillo, e perguntou pela Marquesa.

Por acaso a criada de quarto achava-se no vestíbulo com o criado grave.

Foi ela que respondeu.

— A senhora partiu ontem para o castelo de la Tour-du-Roy, pelo comboio das oito e cinco minutos.

O senhor de Brada fez-se pálido.

— Partiu! exclamou. Porém ela estava doente!

— A senhora ia muito melhor. Um despacho do feitor motivou a partida imediata da senhora.

— A sua ama não a incumbiu de coisa alguma para mim?

— Não, senhor Príncipe.

Emanuel de Brada levou a mão à fronte umedecida por um suor de angústia, e balbuciou:

— Quanto tempo deve durar a ausência da senhora Marquesa?

— Não deve durar muito tempo... sete ou oito dias talvez.

— Se me resolvesse a escrever, aonde deveria dirigir a minha correspondência?

— A vivenda de la Tour-du-Roy. por Olivet- Loiret.

— Obrigado, menina...

O Príncipe deu dois luizes à criada de quarto, e retirou-se profundamente triste.

— Partiu assim! murmurou. Partiu sem me deixar uma palavra de despedida, de recordação, depois do que me prometeu há oito dias apenas. É singular, muito singular!

Os nossos feitores não esquecem certa conversa entre Lazarine e o Príncipe, conversa no decurso da qual Lazarine e o Príncipe tomaram um compromisso positivo, na véspera da primeira representação dos Beijos Mortais!

O Príncipe, como então dissemos, tão frio na aparência, quanto capaz na realidade de uma grande paixão, conservara-se senhor do seu coração até ao dia em que, pela primeira vez, se encontrara com a senhora de la Tour-du-Roy.

A partir daquele dia, deu o coração a Lazarine com fúria, com delírio, com entusiasmo.

Aquele amor tornara-se sua existência. Todos os seus pensamentos se concentravam num só: amar a Marquesa, e ser amado por ela!

A fria promessa do seu ídolo, quase desanimadora para qualquer outro, bastava para o tornar feliz.

Como Lazarine lhe pedira um mês, ele fizera juramento de esperar com paciência, mas aquela partida repentina transtornava tudo.

Mas seria possível esperar sem ver todos os dias aquela a quem amava, sem lhe falar da sua paixão sempre em aumento?

Emanuel de Brada voltou à rua Murillo no dia seguinte, e ainda no outro dia, e a resposta que recebeu duas vezes seguidas, não era de certo de natureza que o consolasse e tranqüilizasse.

A senhora de la Tour-du-Roy não dera notícias suas.

Ao terceiro dia, o Príncipe, não podendo conter-se por mais tempo, escreveu a Lazarine uma carta, em que transbordavam o amor e o sofrimento, e dirigiu esta carta à vivenda de la Tour-du-Roy.

 

O CÉU DO AMOR

Na mesma noite em que Fernando Volnay recebera sucessivamente no seu camarim Jacques Sureau e o Barão César de Fossaro, um pouco depois da uma hora, o artista e a Marquesa estavam sentados no seu pequeno quarto da casa da ponte de Créteil, a uma mesa coberta de uma delicada ceia.

O dono do estabelecimento tinha ordem de se dirigir todas as manhãs a Paris e comprar o que houvesse de mais raro em peixe e caça, as preciosidades e os frutos mais dispendiosos.

Lazarine, também muito gulosa, tomava prazer em iniciar o amante nas superiores delícias da cozinha científica.

Servia-o com a sua mão branca e fidalga.

Enchia-lhe o copo, ora de Pontet-Canet, ora de Braune Mouton, ora, finalmente, do delicioso vinho de Chateau Malleret, que pode lutar em aveludado, em aroma, e em delicadeza, com os primeiros produtos do Bordelais, e uma das glórias da célebre casa Clossmann.

A orgulhosa Marquesa de le Tour-du-Roy, a altiva Lazarine. a quem o nome burguês do tenente Marcel Laugier tão fortemente lhe atacava os nervos em outros tempos, gostava daquela servidão de amor junto do comediante Fernando Volnay.

Aquele belo rapaz achava, aliás, aquilo, natural, e deixava-se servir sorrindo.

De repente a jovem, levantando-se para o beijar, perguntou-lhe:

— Representaste bem esta noite?

— O êxito não me abandonou, respondeu Fernando, mas não estava bem disposto. Incomodaram-me durante toda a noite. Quase faltei a duas entradas. Por felicidade o público adora-me, e não viu nisso senão motivos de entusiasmo.

A Marquesa franziu as sobrancelhas.

— Recebeste visitas no teu camarim? perguntou ela cheia de inquietação.

— Três ou quatro.

— Eram mulheres? Fernando sorriu.

— Lembraste- agora de teres ciúmes? perguntou encolhendo os ombros.

— Seria loucura! Pois não tens confiança em mim?

— Pode-se por acaso ter nunca confiança nos homens? És tão bonito! fazes andar a cabeça das mulheres à roda...

— Há nisso alguma verdade, replicou o comediante com um modo enfatuado, mas isso deve ser-te bem indiferente, porque eu só amo a minha Lazarine.

— Entretanto não me respondeste. Tiveste visitas de mulheres?

— Não, palavra de honra!

— Quem recebeste então?

— Vários amigos que tu não conheces, exceto um, o Barão de Fossaro.

— O senhor de Fossaro é teu amigo? murmurou a senhora de la Tour-du-Roy muito surpreendida.

— Meu amigo íntimo, apesar de ter sido uma das testemunhas do meu adversário. A minha bela atitude, e o meu procedimento correto no duelo, conciliaram-me todas as suas simpatias, toda a sua estima. É um belo cavalheiro.com o qual me parece poder contar absolutamente.

— Espero que não lhe falasses em mim, acudiu Lazarine com vivacidade.

— Falei até muito....

A jovem tornou-se cor de púrpura.

— Disseste-lhe que eras meu amante? perguntou ela com uma confusão involuntária.

— Não tinha motivo nenhum para lhe ocultar. Tenho orgulho de ti, e não suponho que te envergonhes do nosso amor...

— Com certeza que não. mas a opinião do mundo.

— Ora, que temos com a opinião do mundo! interrompeu Fernando. Amamo-nos, somos felizes. Que nos imporia o resto? Tenho ou não tenho razão?

— Tens razão, visto que te adoro.

— Tinha desejos de convidar o Barão para vir passar um dia conosco, tornou o comediante.

— Aqui?

— Perfeitamente! É muito campesino o meu amigo César. Segundo ele pretende, dolatra o campo.

— Mas não estamos instalados de modo que possamos receber um homem de hábitos tão elegantes, e o Barão César que não está apaixonado, zombaria de nós.

— Fiz essa reflexão e abstive-me.

— Convidarás o senhor de Fossaro mais tarde, em Paris.

— Então, para tua casa, porque a minha instalação em Belleville é pouco brilhante.

— Em minha casa não, porque isso seria faltar a todas as conveniências, mas no teu pequeno palácio.

Fernando sorria novamente, e disse torcendo o bigode:

— Então, positivamente, terei um palacete?

— É indispensável... Quando fores ator de primeira ordem num grande teatro, com um belo ordenado, é preciso que possas receber os diretores, os autores, os jornalistas, os artistas em voga... as celebridades de toda a espécie... exceto as atrizes, bem entendido. Isto por-te-á depressa em grandes alturas, e aumentará a reputação principiada pelo teu talento... Dir-se-á de ti: "Fernando Volnay não é somente um comediante de primeira ordem, é um homem chic, um gentleman!"

— E então, exclamou o ator entusiasmado, todos os diretores quererão ter-me, e disputar-me-ão entre si! Não assinarei mais escrituras... Serei uma celebridade, e levantarei dez ou quinze por cento da receita, o que representará uma quantia considerável. Serei rico dentro em pouco.

— Pois tu pensas em dinheiro, quando tens amor?

— Ora o dinheiro e o amor dão-se perfeitamente, e é á minha querida Lazarine que deverei tudo isto!

— E não serás ingrato?

— Nunca! prometo-te profunda gratidão...

— E amar-me-ás sempre?

— Toda a vida, e cada vez mais.

— E não amarás nunca outra mulher?

— Amar outra mulher! Isso seria lá possível? Só tenho um coração, que tu possuis inteiro.

— Fernando, tu enlouqueces-me!

A ceia foi interrompida por um duo de beijos, depois a conversa tornou-se mais serena.

— Amanhã, disse Lazarine, ou, antes, hoje, porque são mais de duas horas, iremos a Paris juntos. Almoçaremos na casa de pasto. e em seguida ocupar-me-ei muito a sério de ti, e prometo-te serei bem sucedida. Vamos agora descansar, porque deves estar prostrado de fadiga.

 

Um pouco antes do meio dia, os dois amantes apearam-se da estrada de ferro na gare de Vincennes, atravessaram a praça da Bastilha, e instalaram-se para almoçar num gabinete do restaurante dos Quatro Sargentos da Rochelle.

A refeição prolongou-se até depois das duas horas.

— É tempo de nos separarmos, disse então Lazarine. Vou dar os passos necessários. Tornaremos aqui para jantar, às cinco horas e meia em ponto. Dar-te-ei conta do resultado das minhas tentativas. Irás desempenhar o teu papel em Belleville, e voltarei só à ponte de Créteil, onde te esperarei pesando em ti...

— Está combinado...

Exatamente em frente do restaurante há uma praça de trens.

Fernando meteu Lazarine num trem, escolheu um bom charuto na sua charuteira cheia das melhores marcas da Havana, o ator já não fumava senão charutos a um franco e cinqüenta, acendeu-o e pisou com um pé ligeiro o asfalto dos "boulevards."

Enquanto jardinava, ia dizendo consigo:

— É uma amante preciosa a tal Marquesinha! Tem sólidas qualidades! Em menos de um mês terei o meu palácio. Quanto à escritura, é demasiado grande fidalga para não o obter. Idolatra-me, é positivo! Farei tudo quanto quiser desta mulher... Desposá-la-ei, se me der para aí o capricho, e uma vez casado, terei as minhas extravagâncias nas sociedades mais chics. Decididamente, a vida é bela! Vamos agora desfrutar os colegas.

 

Chegara ao "boulevard" de Saint-Martin.

Dirigiu-se ao café da Renascença, onde se reunia um bom número de comediantes, e os camaradas aos quais pagou liberalmente absintos, biters e chartreuses de todas as cores, assediaram-no com felicitações a propósito do seu êxito nos Beijos Mortais.

Estas felicitações serviram na maior parte para disfarçar uma inveja feroz!

O ator conhecia isto às mil maravilhas, mas o seu amor próprio nem por isso estava menos lisonjeado.

Lazarine, depois de deixar Fernando, foi sucessivamente a casa do ator dramático em voga, do qual o teatro do Ambigu se preparava para montar um drama de grande espetáculo, depois ao gabinete do jovem diretor, e, em seguida, ao escritório do Figaro, onde pagou a inserção das seguintes linhas:

"Deseja-se comprar nos arredores do bosque de Bolonha, no bairro da alameda do Trocadero, ou de Ia Muette, um palacete bonito, com pátio e jardim, mobiliado artisticamente; o palácio deve compreender um vestíbulo, uma saleta com casa de fumar, uma casa de jantar, dois quartos de dormir, gabinetes de toilette. quartos para criado, cocheiras e cavalariça. Propostas à Marquesa Laza, rua Murilo, nº..."

 

Desde as cinco e um quarto que Fernando de Volney esperava à janela do gabinete onde o almoço tivera lugar.

Às cinco e meia em ponto, parava uma carruagem defronte do restaurante, e apeava-se a senhora de la Tour-du-Roy com o rosto radiante.

Subiu rapidamente a escada, transpôs como um furacão o limiar do gabinete.

— Vitória! bradou ela. deitando os braços em volta do pescoço de Fernando.

— Foste bem sucedida? perguntou Fernando.

— Pois não havia de o ser, trabalhando por ti?

— Chabrilhart escritura-me?

— A lua escritura está assinada e estrear-te-ás no papel principal da peça de X, cujos ensaios vão principiar de um momento para o outro...

— A minha escritura está assinada? repetiu o comediante estupefato diante de um resultado tão rápido.

— E cm duplicado, e trago-te... Só falta a tua assinatura.

— E os honorários?

— Adivinha.

Fernando refletiu durante alguns segundos, e respondeu:

— Não tenho nada de modesto, e conheço o meu grande talento.

— Oh! sim, sim, tens um grande talento! interrompeu Lazarine. Mais que talento, tens gênio.

— Sim. terei gênio, tornou o artista sorrindo: mas por enquanto sou bem pouco conhecido, e o meu nome não faz ainda as receitas que mais tarde fará!... Se fosse oferecer-me, mesmo depois do meu triunfo de Belleville, dar-te-iam o muito quatro mil francos. Pudeste obter oito mil?

Lazarine fez beicinho.

— Pois eu dava-me ao incômodo de pedir tão pouca coisa? replicou ela... temos melhor que isso!

— Então dez mil?

— Não acertaste.

— Afinal, quanto?

— Olha!...

E a Marquesa de la Tour-du-Roy apresentou ao comediante os dois exemplares de uma escritura em devida forma, estipulando que ele, Fernando Volnay, pertencia por dois anos ao teatro do Ambigu na qualidade de primeiro galã, que todas as vezes que entrasse em qualquer peça, o seu nome ocuparia um lugar distinto no alto do cartaz, e que teria dois meses de licença, e receberia dezoito mil francos de ordenado anual, pagável por duodécimos.

A multa estava fixada em vinte mil francos.

Fernando não podia acreditar no que via.

A escritura concluída em tais condições parecia-lhe fabulosa, inverossímil, impossível.

Passado o primeiro momento de estupefação, exclamou:

— Chabrillart assinou isso!!

— Bem vês.

— Mas é um sonho!...

— É uma bonita realidade. Assinarás amanhã este exemplar, e levá-lo-ás ao teu novo diretor, que esperará a tua visita à tarde...

— Ah! minha querida Lazarine, murmurou o artista apertando ternamente a jovem contra o coração... és uma fada... possuis uma vara mágica!.

— Não sabias? retorquiu a Marquesa beijando-o.

— Uma vara mágica! dissera Fernando Volnay.

Era simplesmente uma vara de ouro posta pelo Demônio Ouro no serviço do Demônio Amor.

Isto demanda uma breve explicação.

Vamos dá-la.

Lazarine depois de visitar o autor em voga, e obtido dele a certeza de que nada tinha a recusar-lhe, dirigira-se ao teatro Ambigu como sabemos.

O seu bilhete de visita produziu o efeito de Sésamo abre-te! dos contos árabes.

O nosso amigo Chabrillart conhecia a Marquesa, e apreciava a sua beleza como fino conhecedor.

Mulher bonita e grande fidalga, reunia todos os dotes possíveis para que não a fizessem esperar.

A porta do gabinete diretorial abriu-se logo diante dela, e o jovem diretor acolheu-a, risonho, encantado, diligente.

Graças ao seu aprumo de mulher da grande sociedade, Lazarine parecia muito à sua vontade, mas no fundo o passo singular que ia empreender perturbava-a afinal.

 

A PROCURADORA POR AMOR

A senhora de la Tour-du-Roy formulou o seu pedido.

O jovem simpático diretor escutava-a sorrindo.

Fora a Belleville ver os Beijos Mortais.

Reconhecia em Fernando Volnay muito talento, muito futuro.

Já antes da visita de Lazarine, ele fazia tenção de o chamar para o seu teatro, nas melhores condições possíveis, já se vê, mas como perfeito cavalheiro, fingiu ceder unicamente aos desejos da jovem, e ao portador sobre a casa Henry Leroy 41, rua Taibout.

— Senhora Marquesa, disse, a sua recomendação é onipotente. Escrituro o seu protegido por dois anos.

— Em que condições?

— Em condições muito belas, que hão de por certo ultrapassar os seus sonhos mais ambiciosos. Os seus honorários anuais serão de quatro mil francos.

Lazarine sorriu por seu turno.

Meia hora depois levava a escritura que sabemos.

É verdade que deixava em poder do diretor um cheque à vista e ao portador sobre a casa Henry Leroy 41, rua Aibout.

Este cheque, do valor de vinte e oito mil francos, representava a diferença entre os oito mil francos oferecidos, e os trinta e seis mil francos pedidos.

Os miríficos honorários de Fernando Volnay deviam ser pagos em parte com o dinheiro da Marquesa, sem que ele próprio pudesse suspeitar, porque Chabrillart prometera a mais absoluta discrição.

 

O principezinho de Castel-Vivant não estava absolutamente fora de perigo.

Desde o dia do duelo, Antonino Frébault, como médico e como amigo, vivera em contínuas inquietações.

Heitor não saía de um estado de pesada sonolência, não ouvia nada, não reconhecia ninguém, e não podia proferir uma só palavra.

Entretanto, o doutor principiava a ter esperanças, mas, querendo tirar bom partido de uma cura que lhe faria tanto maior honra, quanto mais maravilhosa lhe parecia, calava as suas esperanças, e o boletim diário não indicava nenhuma melhoria notável no estado do ferido.

Os numerosos amigos do Príncipe raras vezes deixavam de vir de tarde tomar conhecimento daquele boletim, e inscrever-se no registro ad hoc.

Todos os dias, logo em seguida à vista do doutor, chegava uma jovem ao palácio.

Aquela jovem era Lucilia Gonthier, que depois de devorar aquele boletim, apenas traçava este nome, ou antes este sobrenome: A Toutinegra,

A pobre Lucilia estava muito transtornada.

O seu meigo rosto empalidecera.

Nos olhos encantadores já não apresentava o costumado brilho.

Rodeava-lhe as pálpebras um círculo lívido.

Já não cantava a Toutinegra.

O luto do seu coração emudecera-lhe a voz de cristal.

A tia Verdier, a ex-formosa hervanária não sabia a que atribuir uma melancolia tão visível, que Lucilia se esforçava debalde por negar, e cuja causa ela obstinadamente ocultava.

A pobrezinha amava! Amava o Príncipe com todas as forças do seu jovem coração, e da sua alma casta!

Certa manhã, chegando um pouco mais cedo do que era costume, ao palácio da rua Francisco I, achou-se na presença de Antonino Frébault que saia.

O médico reconheceu-a logo e leu na sua simpática fisionomia o desgosto e os cuidados que a atormentavam.

— Vem saber notícias do seu querido protetor, minha filha? perguntou-lhe.

Lucilia quis responder.

A comoção sufocou-lhe as palavras na garganta.

Apenas pode fazer um sinal afirmativo, e as lágrimas rebentaram-lhe.

Como sabemos, Antonino Frébault era o melhor homem do mundo, apesar dos seus singulares costumes de estróina excessivo e de cético endurecido.

Sentiu-se impressionado pela comoção tão comunicativa da jovem.

As suas pálpebras umedeceram.

Tomando Lucilia pela mão, puxou-a um pouco de lado.

— Ora vamos lá, pequena, disse-lhe, coragem! Não chore!

— Coragem, senhor doutor! murmurou a lourinha, isso é que eu já não tenho...

— E se eu lhe desse boas notícias?

A Toutinegra ergueu com vivacidade os olhos azuis, onde brilhava um raio de alegria, que as palavras do médico tinham acendido.

Repetiu:

— Boas notícias?

— Sim, minha filha.

— Verdade, verdade?

— Afirmo-lhe.

— Está então fora de perigo o Príncipe?

— Isso seria dizer muito, e não me atrevo a proferir uma sentença tão formal, mas espero hoje muito mais que esperava ontem, e isto, como bem deve compreender, é um progresso considerável... Há muitas probabilidades de que as melhoras principiadas avancem rapidamente, e nos conduzam à convalescença.

Lucilia pôs as mãos, balbuciando:

— Ah! senhor doutor, quão feliz me torna!

— Dentro em pouco será muito mais feliz!

— O Príncipe recuperou o uso da palavra?

— Se ele tentasse falar, comprometeria a sua cura... O silêncio primeiro que tudo, eis a minha receita...

— E não se esquece do que lhe pedi? do que teve a bondade de me prometer?

— De mostrar o seu nome ao Príncipe?

Lucilia pôs-se muito corada.

— Sim, isso respondeu.

— Repito-lhe a promessa de não me esquecer. Quando o Príncipe puder falar sem perigo, o primeiro nome que ouvir há de ser o seu.

— Oh! senhor doutor, que bondade!

— Quem não há de ser bom para com a senhora?

 

Pela primeira vez ao fim de tantos dias, sentiu o coração desoprimido, e respirava desafogadamente.

César de Fossaro, como Lucilia, e como Genoveva, não deixava um só dia de vir saber de Heitor.

O estado estacionado do Príncipe, que parecia não poder decidir-se nem a viver, nem a morrer, causou no Barão uma inquietação profunda, mas, apesar do tempo lhe parecer muito longo, a paciência impunha-se.

Fazendo da necessidade virtude, couraçava-se de filosofia, e dizia consigo, que ainda calculando tudo pelo pior. não teria mais que recomeçar o que já uma vez tentara sem resultado.

 

Haviam decorrido dois dias depois do regresso do Duque 1 [enrique ao palácio do faubourg Saint-Honoré.

O senhor de Fossaro possuía as chaves, executadas na oficina clandestina da rua de Lappe, conforme os moldes ministrados por Branca.

Tinha pressa de saber o que se passava em casa do senhor de Chaslin.

Por isso resolveu verificar, sem mais demora, se a falsa Adriana de Lasseny tinha posto no quiosque do jardim as informações pedidas.

Acabavam de dar duas horas da manhã.

Perto da meia-noite, César instalara-se a uma mesa de jogo numa das sociedades a que pertencia, e como a sorte o favoreceu, ganhou uns quinhentos ou seiscentos luizes, apesar do seu jogo ser muito moderado.

Saindo da sociedade, fez-se conduzir ao ângulo da rua Boissy d'Anglas e da avenida Gabriel.

A carruagem parou ao longo do muro de suporte do terraço do Círculo Imperial.

Apeou-se e continuou o seu caminho a pé.

Um céu nublado, sem estrelas e sem lua, tornava a noite muito sombria.

Os bicos do gás lutavam mal com a densa escuridão dos Campos Elíseos desertos.

Apenas, de tempos a tempos, se viam brilhar e desaparecer no mesmo instante, como dois pirilampos, as lanternas de algum trem que se dirigia para a praça da Concórdia.

Chegando em frente da grade que do lado da avenida, fechava o parque em miniatura do palácio Chaslin, Fossaro moderou o passo. e aproximou-se da portinha que havia nesta grade.

Olhando para a direita e para a esquerda, certificou-se de que nenhum transeunte retardado pisava a calçada da avenida Gabriel.

Tranqüilizou-o o silêncio absoluto.

No fim de um segundo, tirou as duas chaves da algibeira, escolheu a maior, e introduziu-a na fechadura.

O molde entregue por Branca habilitara o operário a realizar um verdadeiro trabalho de precisão.

Ao primeiro impulso a chave girou logo.

A portinha cujos gonzos a jovem algumas horas antes untara de azeite, abriu-se sem ruído.

O Barão olhou outra vez em roda, e pôs o ouvido à escuta.

Continuava o silêncio e a solidão.

Entrou empurrando a porta após si.

O plano topográfico, cujas linhas tinham sido traçadas por Branca, haviam-se-lhe gravado na memória e servia-lhe de guia em meio das trevas.

Chegou sem dificuldade ao pavilhão rústico situado à esquerda.

Segundo julgava, a chave devia estar na fechadura; as suas previsões foram confirmadas.

 

César entrou.

Era absoluta a escuridão.

O visitante noturno tirou da algibeira uma caixa de fósforos.

Acendeu um.

Este clarão fugitivo deixou-lhe ver o móvel onde estavam as duas jarras de louça de Delft indicadas por Branca Adriana, e contendo plantas artificiais rodeadas de musgo.

O barão aproximou-se do móvel, deixou cair o fósforo que se apagou, e meteu os dedos no musgo de uma das jarras.

Nada achou.

Fez segunda tentativa.

Foi então mais feliz.

Sentiu entre os dedos um papel dobrado em quatro.

O senhor de Fossaro pegou no papel, introduziu-o na algibeira do colete, e saiu do quiosque com tanto mistério e prudência como lá entrara.

Deixando o jardim, tornou a descer a alameda, e meteu-se na carruagem que o esperava no ângulo da rua Boissy d'Anglas.

Chegando pelas três horas da madrugada a sua casa na rua de Provence, fechou-se no gabinete de trabalho que conhecemos, tirou da algibeira o papel misterioso, abriu-o e examinou-o.

No alto, havia estas três linhas em estilo telegráfico:

"Duque de volta".

"Tudo sossegado".

"Eis a cópia da carta do Duque à Duquesa."

Por baixo destas poucas palavras, Branca tinha efetivamente copiado a carta de Henrique de Chaslin (datada de la Roche-sur-Loire, e que expusemos à vista do leitor.)

Fossaro leu com profunda atenção.

Encolheu os ombros imperceptivelmente, e estendia o papel para a chama para o destruir, quando de repente o seu rosto mudou de expressão.

Reconsiderou, e sentando-se a sua secretária, iluminada por uma lâmpada de refletor, tornou a ler, mas, desta vez, estudando as palavras, pesando as frases.

À medida que progredia neste trabalho mental, a sua pupila única chispava, ao mesmo tempo que uma alegria singular lhe iluminava a fisionomia expressiva.

— E ia eu queimar este bilhete sem o tornar a ler! murmurou. Estava idiota! Que tolices a irreflexão faz cometer! Isto nas minhas mãos é uma égide que me protege em caso de infelicidade, e torna impossível toda a acusação!

"Temos aqui mais do que é preciso para fazer cair a cabeça do Duque de Chaslin, mas a cópia não basta. Tenho precisão do próprio original, da carta assinada!

"Tenho precisão, e obtê-la-ei."

Após este curto monólogo, César pegou numa folha de papel e numa pena.

Em seguida, tendo o cuidado de disfarçar a letra, traçou estas poucas palavras:

"Preciso do original da cópia remetida. Indispensável e urgente. Estar em dia com tudo. Queimar este."

— Se Branca puder obedecer-me! Ficarei com muita força! Dobrou o papel e fechou-o num dos compartimentos da sua carteira.

No dia seguinte entrava como na véspera no jardim, depois no pavilhão, e ocultava o seu bilhete debaixo do musgo da jarra de velha louça de Delft.

 

CONTINUAÇÃO

Dez dias haviam decorrido depois dos últimos fatos que acabamos de expor aos olhos dos nossos leitores.

Resumamos num pequeno número de linhas, antes de prosseguir na nossa narrativa, os incidentes de alguma importância que tenham sobrevindo durante estes dez dias.

As notícias de teatro parecem-se com as notícias políticas, espalham-se com uma inverossímil rapidez.

A escritura de Fernando Colnay, anunciada em dois ou três jornais, era conhecida de toda a cidade de Paris.

O ruído desta escritura aumentava o êxito dos Beijos Mortais.

Grande número de curiosos queriam ver o futuro grande ator antes da sua estréia parisiense.

No dia seguinte levavam às nuvens a futura estrela, trabalhando deste modo para a reputação do artista.

A peça do autor em voga, tinha obtido no Ambigu um grande sucesso de leitura.

Os ensaios haviam principiado.

Fernando Volnay tomava magistralmente posse do seu papel, e não via em roda de si senão cortesãos, aduladores e invejosos, estes escusado é dizê-lo, não se mostravam menos zelosos em cumprimentar o sol nascente.

As respostas à nota inseria nos jornais do high-life pela Marquesa de la Tour-du-Roy não se tinham feito esperar.

Lazarine, como não tinha mais que escolher, comprara e pagara de pronto, em nome do ator, um pequeno palácio muito garrido e mobiliado artisticamente, situado na vila Montespan, avenida d'Eylau.

Fernando Volnay, ao pôr-se à mesa com a amante, encontrara debaixo do guardanapo os títulos de propriedade.

— Isto é muito bonito da tua parte, disse ele à Marquesa beijando-a com expressão de vivo reconhecimento.

E acrescentou baixinho:

— Muito bonito... oh! muito bonito! mas isto era-me devido! A posse do palacete foi imediata, porque o comediante só tinha de levar de Belleville o seu guarda roupa.

Combinou-se que se faria o banquete de inauguração alguns dias depois, e que a senhora de la Tour-du-Roy anunciaria, presidindo à ceia a, sua ligação com Fernando Volnay.

O pouco, e não diremos de pudor, mas de respeito humano, que ainda restava à viúva do Marquês Roberto, incitava-a a odiar tanto quanto lhe era possível, o momento de se tornar pública a confissão do seu rebaixamento.

Até então ocultava-se em casa do amante, só indo à rua Murillo buscar as suas cartas, e continuando a mandar responder às visitas, que ela estava nas suas terras do Loiret.

O Príncipe Emanuel de Brada vinha todas as tardes receber a resposta que a Marquesa não anunciava o regresso.

Estas respostas e o silêncio de madame de la Tour-du-Roy, a quem sabemos que escrevera, eram para ele punhaladas.

Torturavam-no a dúvida e o ciúme.

Tornava-se num suplício a sua vida. — Quero acabar com isto! disse ele finalmente, sentindo-se sem forças. Esta ausência de Lazarine parece uma fuga, por conseguinte, uma ruptura... Preciso, primeiramente, uma explicação... cm seguida, tomarei uma resolução.

E o senhor de Brada partiu para a vivenda de la Tour-du-Roy.

 

Sabemos o que ele devia ali averiguar.

Não tinham visto a Marquesa!

Nem a esperavam!

Foi um raio!

O Príncipe voltou a Paris entregue aos mais sombrio desespero.

Não perdoava, nem àquela que zombara dele, nem ao cúmplice desconhecido, de uma traição de que ele já não duvidava!

Sentindo a sua existência para sempre perdida, só pensava em vingar-se, e morrer depois.

Enquanto um príncipe perecia assim por causa dela. Lazarine mendigava beijos aos lábios de Fernando Volnay.

Entretanto a senhora de Vergis instalara-se na vivenda dos Épines-Blanches.

A velha ama Magdalena. casada com Pedro, o guarda da residência, recebera-a chorando lágrimas de alegria.

Esta mulher era dedicada em corpo e alma à Condessa, que ela chegava quase a considerar como filha.

Em presença desta afeição tão profunda, tão indestrutível. Maria sentiu as suas pálpebras umedecerem-se de lágrimas de enternecimento.

Tinha a certeza de encontrar em Magdalena a discreta confiança, sem a qual não podia passar, porque se lhe tornaria impossível dissimular a prenhês, sob pena de pôr em perigo a vida da criança, e a sua própria vida.

A pobre ama recebeu com terror a terrível nova..

Mal podia dar crédito ao testemunho dos próprios sentidos, tão impecável e imaculada julgara até então a Condessa.

Mas, esta amarga desilusão não abalou a sua dedicação, da qual a senhora de Vergis nunca duvidara.

Pela fatalidade das circunstâncias. Magdalena depois de confidente, tornou-se cúmplice.

Maria quis ver o amante.

A anciã consentiu em facilitar uma entrevista.

Arnoldo de Trois-Monts. prevenido, veio secretamente aos Épine-Blanches beijar as mãos da Condessa. e jurar-lhe eterno amor.

Ninguém duvidou da visita, salvo o Barão de Fossaro, informado do que se passava pelos agentes de Malpertuis.

A senhora de Vergis recuperava a esperança. Dizia consigo:

— Tudo acabará bem! Deus teve piedade de mim. Concedeu-me a impunidade...

 

Jacques Sureau, consumido pela sua paixão de fera e macerado pelo pesar, tinha, contudo, segundo os conselhos de Fernando Volnay, procurado uma colocação.

Entrara para um dos grandes comerciantes de cavalos nos Campos-Elyseos, Tony Monts.

O primo recompensara-o da sua obediência, prometendo-lhe estar dentro em pouco habilitado a dizer-lhe em que lugar se achava a Condessa.

Genoveva Lenien, a ex-amante oficial do Príncipe Totor, conformava-se estritamente com as instruções do Barão de Fossaro.

Dirigia-se todos os dias ao palácio da ma Francisco I, apesar da sua certeza absoluta de não poder se aproximar do ferido, pois que as ordens do doutor Frébault não admitiam exceção alguma.

Não obstante, isto deixava-a muito sossegada.

Acreditava cegamente na palavra de Fossaro, e este afirmara--lhe que dominava a situação, e que o sucesso final não podia ser posto em dúvida.

No palácio de Chaslin não havia nada de importante a mencionar.

A situação de expectativa dos nossos personagens não sofrerá alteração alguma, somente a paixão do Duque Henrique aumentava de hora para hora, o que se julgaria impossível.

De dois em dois, ou de três em três dias, Adriana depunha no quiosque algumas linhas anunciando que não havia nada de novo,

Não pudera remeter a Fossaro o original da carta escrita pelo Duque à sua mulher, ou antes não se atrevera a isso.

— É preciso esperar um pouco.escrevia ela àquele a quem chamava Pedro Redon, a desaparição imediata daquela carta, como não podia ser atribuída senão a mim, comprometer-me-ia de um modo muito grave, irremediável talvez.

Fossaro dizia consigo:

— Pois paciência! Mas hei de obter a carta, ainda que tenha eu mesmo de me apoderar dela, porque não tarda que dê o golpe decisivo.

 

Dois dos nossos antigos conhecimentos, Daniel Gaillet e Sta-Pi, procuravam ao mesmo tempo o rasto de Fanny Vernaut, a infanticida de Courbevoie.

Daniel Gaillet queria tornar a encontrá-la, para, por ela chegar a Pedro Carnot, o assassino de sua filha.

Sta-Pi aspirava ao mesmo resultado, com a idéia muito simples de ganhar e embolsar a quantia prometida pelo inspetor da segurança.

Quanto a Bijou, o agente do escritório Malpertuis, cuja demissão era certa em caso de insucesso, — Bijou relatava-se.

Lucilia Gonthier, a herdeira dos doze milhões de Nova York. continuava incógnita.

Como nenhum indício o vinha auxiliar, Bijou principiava a desesperar deveras.

Sabemos que a Toutinegra dirigia à administração da Salpetrière lima petição para que a sua tia cega viesse passar algumas semanas junto dela.

Não podia tardar o depoimento do pedido, que, por certo, havia de ser favorável, pois que não havia motivo para recusa.

Apesar de ser grande a sua tristeza naquele momento, parecia-lhe que a presença da septuagenária no seu quarto, daria origem a algum movimento, e não a deixaria entregar-se por muito tempo a um mesmo pensamento.

Finalmente, a carta esperada chegou.

Fora feita a concessão pedida.

Lucilia, quase alegre, tomou um trem, foi buscar a tia, e instalou-a junto de si.

A cega esquecia a sua enfermidade, e abençoava Deu- e a sobrinha.

 

Deixando o palácio de Chaslin, Mariana Gilberto não se afastara de Paris.

Fazia assim o que dissera à Duquesa.

Alugara uma água-furtada numa velha casa da rua de Miromenil e estava quase sempre a chorar com saudades daqueles a quem amava, e assustando-se com as desgraças que via iminentes sobre eles.

De dia, saía o menos possível.

À noite, vinha passar por diante do palácio, interrogando com o olhar, por cima dos altos muros, as janelas da sua querida ama.

Depois dirigia-se para os Campos-Elíseos, tomava pela avenida

Gabriel, e parava em frente do jardim no qual ela tantas vezes passeara outrora a Helenazinha, e que fazia nela agora o efeito do paraíso perdido.

Escrevera à Duquesa algumas linhas humildes e respeitosas, dando-lhe a sua morada, e suplicando-lhe que advogasse a sua causa junto do senhor de Chaslin, e lhe obtivesse autorização de voltar ao palácio.

Joana, em risco de irritar o Duque, falou-lhe de Mariana, e solicitou ardentemente um perdão completo.

Henrique de Chaslin respondeu serenamente, mas no tom de uma resolução inabalável:

— Bem sabe, minha amiga, quanto desejo ser-lhe agradável em tudo. Custa-me afligi-la com uma recusa, mas tenho obrigação de não ceder. Essa mulher faltou-me ao respeito, quase lançou entre nós a discórdia. Não me fale dela, peço-lhe...

Estava perdida, sem apelo, a causa de Mariana Gilberto.

 

Dez dias depois daquela noite em que pela primeira vez César de Fossaro transpusera a entrada do quiosque para tirar o bilhete de Adriana, o doutor viera mais cedo do que era costume ao palácio da rua Francisco I.

Havia quarenta e oito horas, a febre do principezinho diminuía de um modo muito sensível.

Dissipava-se pouco a pouco a prostração.

A ajuizar pelas aparências, Heitor ia bem depressa tornar a si.

Chegava finalmente o período de reação tão ardentemente esperado pelo doutor.

Daquele momento em diante, podia considerar-se o principezinho quase fora de perigo.

A cura completa tornava-se quase uma questão de tempo e de paciência, salvo o caso de uma recaída, o que era pouco provável.

Antonino Frébault, ao atravessar o vestíbulo, perguntou ao criado de quarto como havia passado, o Príncipe, a noite.

Como recebesse resposta satisfatória, apressou-se a entrar no quarto do doente.

Henrique não dormia. Ao ruído da porta que se abriu, e dos passos do doutor pisando o espesso tapete, os olhos do Príncipe, velados ainda na véspera, embaciados e sem expressão, fixaram-se no recém-chegado.

— Vitória! exclamou o médico radiante aproximando-se do leito, os diagnósticos não me enganavam, e posso gabar-me de haver feito uma bela cura!

Os lábios do mancebo agitavam-se.

— Olá! querido Príncipe, nem uma palavra! continuou Frébault com vivacidade, pondo-lhe a mão na boca. Falará quando eu lhe der licença! Até lá, caluda, se faz favor! Lembre-se de que respondo pelo amigo à faculdade, aos amigos, e a grande número de caras lindas que tomam pelo senhor vivo interesse! Deixe-me primeiramente verificar a intensidade das melhoras, auscultá-lo, e levantar o curativo que tem no ferimento. Depois conversaremos, se for possível.

Heitor Bégourde achava-se num estado de fraqueza extrema.

Havia quinze dias que não lhe chegara nenhum ruído aos ouvidos.

A voz de Antonino Frébault causava-lhe uma espécie de atordoamento.

Com o auxílio do criado de quarto e da enfermeira, o doutor procedeu sem perda de um minuto ao sério exame que lhe parecia necessário.

Encostou o ouvido ao lado esquerdo do peito, e fez respirar <> Príncipe por muitas vezes.

Depois disto levantou o curativo.

Descerrou-lhe os lábios um belo sorriso, e esfregou alegremente as mãos.

Estava inteiramente cicatrizada a ferida, e na alvura da pele sobressaía um laivo cor de rosa.

Antonino Frébault puxou uma cadeira, sentou-se à cabeceira do leito, e disse apertando a mão do Príncipe:

— Vai tudo muito bem! Levanto as ordens que dei. Pode, pois, com a minha autorização proferir algumas palavras, poucas, e em voz muito baixa.

 

Ao tempo que se passava esta cena no quarto de Heitor, travava-se o seguinte diálogo entre Lucilia e a sua tia cega:

— Lembras-te, Lucilia, do sonho que uma vez te contei? Lucilia soltou uma gargalhada argentina:

— Ah! lembro-me! Mas os sonhos não passam de sonhos, não passam de desvarios de imaginação.

A tia cega pôs-se muito séria, e ponderou com ar grave:

— Há coincidências que não podem deixar de fazer impressão.

— O que diz, minha tia? Explique-se. As suas palavras e o tom em que fala, parece envolverem um mistério!

— Envolvem por certo, mas não tenho infelizmente o condão de explicar mistérios, sejam eles quais forem. Têm, porém, o coração pressentimentos, e os meus são todos em teu favor.

— Então o que lhe dizem os seus pressentimentos? perguntou Lucilia, a um tempo duvidosa e cheia de curiosidade.

— Voltemos primeiro aos sonhos.

— Então pelo que vejo a tia passa a vida a sonhar?

— Quem se acha separada, por assim dizer, das coisas deste mundo, que há de fazer senão andar pelas regiões do devaneio?

— E então que tem sonhado?

— Coisas tristes que te hão de magoar, e coisas extraordinárias que te são favoráveis.

— Sou toda ouvidos.

— Imagina que sonhei que o alto personagem que te fazia a tua fortuna, se acha perseguido por muitos inimigos que lhe armavam terríveis ciladas, tentando um deles, de ferro em punho, contra a sua existência.

Lucilia fez-se pálida redobrando de atenção.

— E afinal, perguntou, conseguiram os seus nefandos intentos?

— Sim, minha filha, sonhei que o via ensangüentado, envolvido em ligaduras, com a palidez da morte no rosto.

O coração de Lucilia palpitava com força.

Extraordinária coincidência, o sonho da velha tia condizia com a terrível realidade do que há tempo sucedia ao Príncipe.

— E morria afinal?

— Se assim sucedesse, os meus sonhos não te seriam por forma alguma favoráveis.

— Continue, continue, minha tia.

— Apesar de não acreditares em sonhos, já te interessas pelos meus?

— Interessam-me, volveu Lucilia, fingindo indiferença e despreocupação, como me interessam no teatro os dramas em que há punhaladas e tiros, lágrimas e sangue, intrigas e ciladas.

— Pois seja como for, o que mais sonhei foi que o tal Príncipe de conto de fadas, saiu vencedor de todas as tentativas... para se vingar daqueles mesmos que o queriam exterminar, casava contigo.

— Sempre essas idéias! exclamou Lucilia. O muito bem que me quer, e que a faz devanear por esse modo, e sonhar de noite com certas coisas que não passam de visões absurdas.

— Pois sim, vai dizendo isso, mas a verdade é que os meus sonhos tendem sempre para o mesmo fim, e se tivesse muito dinheiro, se tivesse milhões, não duvidava apostar que hás de casar rica, muito rica.

— Ah! nesse caso, exclamou Lucilia rindo, também eu apostava; se a tia fosse rica, também eu o era, e não casava pobre. Olhe, tia, deite-se, e em todo o caso, já que não pode ter outra consolação, vá-se consolando de me ver casar rica, mas em sonho.

 

O RENASCIMENTO

Voltemos a Heitor e a Antonino Frébault. Heitor quis levantar-se.

— Não! não! disse o médico com vivacidade; permito-lhe falar, mas até nova ordem, proíbo-lhe todo o movimento!

— O meu ferimento foi muito perigoso, doutor, murmurou o Príncipe com uma voz fraca.

— Foi quase mortal, replicou Frébault. Cheguei a desesperar da sua salvação por muitos dias. Para se salvar foi preciso quase um milagre...

— R, prosseguiu Heitor, o milagre fez-se. Por-me-ei bom de todo?

— O demônio! tenho esperanças disso! Posso até afirmar que respondo pelo seu restabelecimento completo, mas com uma condição...

— Qual?

— Que siga à risca os meus conselhos e as minhas receitas...

— Prometo-lhe... Quero viver...

— Quando fala, sente-se incomodado?

— Um pouco... aqui...

E o Príncipe levou a mão ao peito.

— Havemos de fazer desaparecer esse sofrimento.

— Há muito tempo que estou entre a vida e a morte?

— Há quinze dias, meu pobre amigo! Há quinze dias que está sob um regimem de pílulas, de drogas de toda a espécie, e de caldo de frangão que lhe introduziam por entre os dentes para o sustarem. Não era muito substancial o regimem. Mas o vigor há de voltar depressa. Para o pôr de pé bastam-lhe costeletas em sangue, e o velho Pontet-Canet... do seu Pontet-Canet-Classmann...

— Veio muita gente saber de mim?

— Ah! pudera! Verá a prova de que os seus amigos não o esqueciam. As folhas expostas no vestíbulo para receberem os nomes todos os dias se enchiam.

— Vinham só homens? perguntou Heitor com alguma hesitação.

— Mulheres também, muitas mulheres. As amiguinhas novas pensam no senhor tanto como os velhos amigos. Em primeiro lugar Genoveva, Cuja aflição incomodava quando os boletins eram mais graves.

— Pôde citar-me alguns outros nomes?

— Posso, pelo menos, citar-lhe um, e até lhe devia dar o primeiro lugar, porque tenho razões muito especiais para não o esquecer, e a jovem a quem pertence parece-me muito interessante.

Uma ligeira vermelhidão coloriu as faces pálidas do Príncipe, que balbuciou:

— Ah! trata-se de uma jovem?

— Sim, de uma jovem adorável, de um anjinho louro, cujo sincero pesar me comovia profundamente, apesar do meu ceticismo habitual. Aquela não representava a comédia do desespero, afianço-lhe, e a pobrezinha chorava verdadeiras lágrimas. Prometi-lhe que havia de falar dela...

— O seu nome! o seu nome, doutor? exclamou com uma voz menos abafada, mas mais trêmula.

— Chama-se Lucilia, disse-me ela, por alcunha a Toutinegra.

— Lucilia! repetiu o ferido, cujo coração parecia querer saltar-lhe do peito. Veio muitas vezes? Doutor, fale, responda-me. Não me faça penar.

A agitação do doente inquietou o médico.

— Oh! oh! querido Príncipe, exclamou, se as minhas novas devem assim atuar sobre o senhor, calo-me, e não saberá mais nada por hoje.

— Pelo contrário, meu bom doutor, fale sem receio! replicou o jovem com uma entoação suplicante, pondo as mãos. O que acaba de me dizer, é para mim o mais eficaz dos medicamentos...

— Pois muito bem, mas sossegue.

— Sim, sim, vou sossegar. Olhe, aqui estou perfeitamente sossegado...

— Fale mais baixo...

— Falarei muito baixo, mas responda-me! Perguntava-lhe se Lucilia tinha vindo muitas vezes?

— Ora essa! todas as manhãs, exceto no primeiro dia em que veio à noite, e soubera, não sei como, do resultado fatal do duelo. Queria ser admitida junto de si, tratá-lo, velar à sua cabeceira. Tive o maior trabalho deste mundo em lhe demonstrar (pie era impossível a realização do que desejava. Os soluções da pobre pequena oprimiam-me literalmente o coração.

— Adorável criatura! murmurou o Príncipe, cujas pálpebras se umedeciam.

— E, continuou o doutor, repito-lhe, que de então para cá tem vindo todas as manhãs... Tranqüilizei-a um pouco há dois dias. Se visse a alegria dela! Ah! ali está uma pequena verdadeiramente grata ao que fez em favor dos seus!

— Em favor dos seus! repetiu o Príncipe que não compreendia.

— Mas, sim, senhor... o senhor, disse-me ela, garantiu a existência de uma sua parenta cega e velha...

 

Heitor adivinhou o motivo da tocante mentira de Lucilia; a doce comoção que experimentava, aumentou ainda mais.

— Frébault, disse ele após um instante de silêncio, o senhor é meu amigo...

— Afirmou-o, e espero que não duvidará.

— Não, não duvido, e a prova é que vou confiar absolutamente no senhor.

— A sua confiança não será mal empregada..

— Há pouco disse-lhe que queria viver...

— É muito natural! O senhor é moço, rico, ama o prazer, a vida é bela!

— Se morresse hoje, não seria o prazer, a fortuna, o luxo, de que teria pena. Tudo isto me deixa muito indiferente. Quero viver, porque amo.

— Ora! o senhor ama Genoveva. É sabido!

— Amar essa garota! Ora adeus! replicou o Príncipe. Ah! não torne a pronunciar o seu nome neste quarto onde ainda soa o nome tão puro, tão meigo de Lucilia.

Antonino deu um pulo na sua cadeira.

— A Toutinegra! murmurou estupefato. O senhor ama a Toutinegra!

— Com todas as forças da minha alma, com todas as veras do meu coração.

— Contudo, ela não é sua amante?

— Oh! doutor, está a blasfemar! Respeito Lucilia tanto quanto a amo. Ela não será minha amante, ela há de ser minha mulher.

— Que me está a dizer! exclamou Frébault profundamente assombrado.

— A verdade, doutor, mas uma verdade que só o senhor deve saber até ao dia em que Lucilia consentir em ser Princesa de Castel-Vivant. Confiei o meu segredo à afeição do doutor, e espero que o guardará.

— Quanto a isso, dou-lhe a minha palavra!

— A partir de hoje, tornou o de Bégourde, renuncio a esta existência febril e ruidosa, em que se toma o prazer pela felicidade, e a fantasia pelo amor... Assim que o doutor me puser completamente de pé, darei um festim de despedida à minha vida de rapaz, e no dia seguinte entrarei na categoria das pessoas a quem a fortuna impõe grandes deveres e os cumpre. Terei uma mulher adorada... Terei bebês, se Deus permitir. Farei deles homens úteis, e o doutor fará homens sólidos.

— Safa! replicou Frébault, pelo menos far-lhe-ei diligência...

— E há de conseguir! Agora escute-me. Persiste em deixar à porta todos os visitantes?

— Já se vê, porque receio por sua causa a fadiga. — E essa ordem deve durar?

— Mais alguns dias.

— Submeter-me-ei documente às ordens, mas peço-lhe que faça uma exceção.

— Quanto a Lucilia, não é assim?

— Exato.

— Tome cuidado... Receio que a entrevista tão ansiosamente desejada lhe seja funesta... O senhor vai bem, mas ainda não está bom... Toda a comoção viva ê perigosa. Uma imprudência pode comprometer os resultados adquiridos.

— Não imagine semelhante coisa, doutor. Ver Lucilia é para mim o renascer.

— Sim, sim, talvez tenha razão...

— Tenho razão, com toda a certeza...

— Bem, vê-la-á.

— Obrigado, doutor, mas isto não é ainda tudo. Conto com o senhor para a prevenir... para me trazer.

— Ah! demônio?

— Recusa?

— Não, pelo contrário, consinto. Com uma condição, porém. — A conversa que acabamos de ter fatigou-o muito... A alteração das feições é visível. São-lhe indispensáveis neste momento o sono e o repouso. Farei o que espera de mim. e fá-lo-ei de boa vontade, mas só depois de amanhã. Está combinado?

— Assim é preciso! disse Heitor suspirando.

— Bravo! ei-lo razoável! Depois de amanhã será feliz, e já hoje vou estabelecer-lhe um regimem que lhe restituirá as forças.

Antonino Frébault escreveu a receita de uma poção para tomar de hora em hora.

Depois retirou-se, prometendo voltar naquela mesma tarde.

Heitor, quando ficou só, não se lembrou sequer de se abandonar ao sono reparador que o médico lhe prescreveu.

Ainda antes de ter absorvido uma só colher da poção, sentiu o vigor renascer como por encanto.

Lucilia viera todos os dias, portanto era porque o amava...

Bastava-lhe esta certeza para ser feliz, e a felicidade é remédio soberano.

Quando à tarde o veio ver, Antonino Frébault verificou que as melhoras tinham feito em poucas horas grandes progressos.

— Estou encantado consigo, disse, e depois de amanhã cumprirei a minha promessa.

Naquela noite, Heitor teve sonhos deliciosos!

O doutor tomara nota da morada da Toutinegra.

No dia seguinte, logo pela manhã, fez-se conduzir à rua Julien Lacroix, em Belleville.

A jovem estava em casa, e trabalhava enquanto chegava a hora de ir saber de Heitor.

A tia cega dormia no quarto próximo.

Frébault bateu de vagar à porta.

Lucilia levantou-se para ir abrir.

Quando o médico entrou tornou-se muito pálida, soltou um grito abafado, e levou a mão ao coração que parecia saltar-lhe do peito.

— Valha-me Deus, que tem menina? perguntou o recém-chegado com vivacidade.

— Receio que me traga a notícia de alguma desgraça... A pobre Toutinegra cambaleava.

O doutor amparou-a, e apressou-se a responder:

— Não, não, minha querida filha, nada receie. Sou pelo contrário, mensageiro de boas novas...

Um fraco rubor tornou a tingir as faces de Lucilia. Deslizaram-lhe então pelas faces duas grandes lágrimas, ao mesmo tempo que um sorriso lhe descerrava os lábios.

— Ah! que medo me meteu, balbuciou. Parece-me que ia morrer.

— Felizmente, ei-la bem viva e- tranqüila.

— Sim, senhor doutor, mas fale baixo, rogo-lhe... A minha velha tia está ali, no outro quarto... descansa... não queria perturbar-lhe o sono... Entre, sente-se, e diga-me depressa o que o traz aqui.

— Venho confirmar-lhe a esperança que lhe dava há dois dias. O Príncipe está em via de restabelecimento.

— Ah! quão feliz me torna!

— Dentro em pouco sê-lo-á ainda mais, porque não disse tudo... Espere um alegrão.

— Falou em mim ao senhor de Castel-Vivant?

— Sim, minha querida filha, como lhe tinha prometido... Sabe que foi a primeira que veio, e voltou todos os dias...

Lucilia baixou os olhos.

O tom rosado das faces tornou-se-lhe de um vermelho muito vivo.

O doutor continuou:

— Foi o Príncipe que me deu a sua morada... É ele quem aqui me manda... e que a quer ver.

— Ver-me! repetiu a órfã.

— Sim, e este desejo tão natural, deve-o compreender tanto melhor que a menina foi a primeira a insistir num grande choro, para ser admitida junto dele.

— É verdade, balbuciou Lucilia, mas quão diferente era então a situação! O meu passo imprudente e tolo tinha uma desculpa. Queria velar um moribundo. Hoje, graças a Deus, e graças ao doutor, o Príncipe está curado! Oh! Sinto-me feliz, muito feliz, e não duvida, por certo, mas já não tenho o direito de entrar no seu palácio.

 

Antonino Frébault olhou para a jovem cheio de admiração. Maravilha-o a modéstia daquela jovem tão pura e tão amante.

— Compreendo a delicadeza dos seus escrúpulos, e aprecio-a. respondeu, mas devo combatê-la... A sua presença junto de um ressuscitado. é mais necessária que nunca...

Foi agora a Toutinegra quem cravou um olhar estupefato no doutor.

— É necessária a minha presença? disse ela.

— Sim, menina.

— Em que? Não compreendo.

 

UMA IRMÃ DE CARIDADE

— Quer a salvação de Heitor, não é assim? Tornou Antonino Frébault.

— Daria a vida para salvar o Príncipe, volveu a jovem com simplicidade.

— Pois muito bem, a vida do Príncipe ficaria comprometida se "ao fosse ao palácio...

Lucilia fez-se pálida e balbuciou:

— Há pouco afirmou-me que o perigo já não existia...

— De certo, mas pode renascer... O princípio de uma convalescença exige infinitas cautelas. Um grande desgosto comprometeria tudo, e talvez de um modo irremediável. Heitor não quer viver senão para a senhora. Recuar a vê-lo seria recusar-lhe a vida...

— O senhor de Castel-Vivant disse-lhe isso? murmurou a jovem levando ambas as mãos ao coração.

— Disse-me, pedindo para vir aqui buscá-la... Prometi... Acredita firmemente que a menina irá lá amanhã. Acompanhar-mc--á, não é verdade? porque, repito-lhe, a sua recusa, faria no Príncipe um ferimento tão cruel, tão perigoso talvez, como o ferro do seu adversário.

 

O amor, o pudor, o orgulho, travavam violento combate no coração de Lucilia.

Foi o amor quem venceu.

A adorável criança não devia dedicar-se até ao fim por Heitor?...

Não cumpriria ela além disso um dever levando-lhe o testamento em que ele lhe legava toda a sua fortuna?

De repente disse:

— Senhor doutor, irei.

— É um anjo, e o Príncipe tem muita razão em amá-la. Quer que venha buscá-la com a minha carruagem?

— Não, porque se haviam com certeza admirar de nos verem sair juntos. Deus sabe o que suporiam! O único bem que possuo é a minha reputação. Tenho-lhe apego.

— E aprovo-a... Convém-lhe ir ter comigo a minha casa? Todos podem ir à casa de um médico.

Lucilia fez rim sinal afirmativo.

— Aqui está a minha morada... continuou Frébault dando o seu bilhete de visita à Toutinegra. Esperá-la-ei amanhã às dez horas em ponto.

— Serei pontual.

Neste momento ouviu-se uma voz no segundo quarto. A septuagenária cega chamava Lucilia.

— É a minha tia cega que desperta... murmurou a jovem.

— Deixo-a, até amanhã...

— Até amanhã, senhor doutor... Frébault saiu.

A cega saltara da cama.

Abrira a porta tenteando.

— Estás ai, pequena? perguntou ela aparecendo no limiar.

— Sim, minha tia.

— Conversavas com alguém? Parece-me que te ouvi falar.

— Não se enganava, um empregado do armazém para onde trabalho, veio avisar-me de que teriam amanhã precisão de mim.

— Então almoçarei só?

— A tia Verdier lhe fará companhia.

— Como a tua voz está alegre esta manhã, pequena!

— É porque estou contente. A minha amiga doente de que lhe falei... sabe?

— A tua amiga da rua de Bellechasse?

— Não, a outra. Acabo de ter notícias suas. A sua convalescença começa. Há agora certeza de a salvar.

— Ah! tanto melhor. Demais, não admira que tudo hoje corra bem. Sonhei.

— Outra vez! exclamou Lucilia.

— Sim, e é por assim dizer a continuação dos meus sonhos passados. Lembras-te? O Príncipe que te amava.

— Lembro-me, lembro-me, exclamou a órfã muito perturbada,, e desta vez o que sonhou?

— Que o Príncipe fora ferido quase mortalmente, nela mau homem dos meus outros sonhos.

A Toutinegra estava extremamente comovida. A cega continuou:

— Mas à força de o amares, curava-o depressa, e ele depois de restabelecido, tomava-te por mulher.

— E nenhum novo perigo o ameaçava? perguntou Lucilia ofegante.

— Nenhum.

A jovem soltou um suspiro de alívio. Os sonhos da tia iam-se tornando para ela artigos de fé. Pobre Lucilia.

As horas lentas do dia. sucedeu uma noite de insônia quase completa.

A entrevista iminente, causava à pobre menina uma comoção fácil de compreender, misto de embriaguez e de terror.

 

Finalmente rompeu o dia, e depois chegou o momento de se Por a caminho.

Lucília recomendou a tia à ex-formosa hervanária,, tirou de um móvel o testamento do Príncipe, e dirigiu-se a casa do doutor Frébault, cuja carruagem a esperava.

No palácio da Rua Francisco I tudo ia pelo melhor

Os criados apresentavam cara alegre, e já não cochichavam como se costuma fazer no quarto de um doente.

Falava-se alto, ria-se, a atmosfera de tristeza que pesava naquela casa dissipara-se como por encanto.

O boletim da véspera tranqüilizara os numerosos amigos do Príncipe.

Sabia-se já que as ordens rigorosas do doutor seriam levantadas de um momento para o outro.

Os amigos íntimos preparavam as suas melhores felicitações.

César de Fossaro e Genoveva Leinen tinham-se reunido, como bem se imagina, para amaldiçoar o doutor, cuja ciência lhes arrebatava, até nova ordem, os milhões da herança cobiçada, mas o Barão, sempre senhor de si, lembrando-se da próxima desforra, tranqüilizou Genoveva, e preparou o seu novo plano de batalha.

Fazia muito boas tenções desta vez de proceder por si. e não deixar nada ao acaso nem ao imprevisto.

No dia seguinte, um pouco antes das dez e meia, Genoveva e Fossaro, vindo cada um do seu lado. encontraram no vestíbulo.

A uma pergunta do César, o criado de quarto respondeu:

— As melhoras continuam. Os amigos do Príncipe serão admitidos junto dele por espaço de alguns minutos esta tarde.

— Então, disse Genoveva. voltaremos às quatro horas, não é verdade, Barão?

— Sim, minha amiga, se a essa hora lhe convier. O criado de quarto interveio:

— Perdão, exclamou ele com uma delicadeza um pouco empertigada. A senhora incomodar-se-ia inutilmente, as ordens só para os homens serão levantadas.

— Quer dizer que não poderei ver o Príncipe? perguntou Genoveva com uma voz trêmula de cólera.

— Sim, minha senhora.

— Ê por que não me conhece?

— Tive a honra de perfeitamente a reconhecer, replicou o criado inclinando-se

— Sabe então que deve haver uma exceção em meu favor?

— Só sei uma coisa, minha senhora, é que recebi uma ordem e hei de fazê-la respeitar.

— Uma ordem do Príncipe?

— Não, do doutor, que vem a ser a mesma coisa.

Genoveva pôs-se a rir ruidosamente; mas as suas risadas soavam falso.

— Sabe que isto vai parecendo esquisito, exclamou ela em seguida. É preciso que o doutor esteja doido para me proibir a entrada, concedendo-a aos amigos de Heitor! Que lhe parece, senhor Fossaro?

— Parece-me que o doutor tem talvez as suas razões, respondeu César que não queria comprometer-se diante dos criados.

— Pois muito bem, tornou Genoveva, zombo perfeitamente das razões desse penetra! As ordens do doutor são uma insolência que não tolero! Quero entrar! Tenho o direito de entrar! Hei de entrar, e é já.

E a jovem, dizendo isto, dirigiu-se resolutamente para a primeira sala, cuja porta se via entreaberta no fundo do vestíbulo O criado de quarto atravessou-se diante da porta.

— Peço-lhe, minha senhora, não se obstine, seria debalde.

— Porventura, seria capaz de empregar a força para eu não passar?

— Terei muita pena, mas se for preciso...

— Vamos ver se se atreve a levantar a mão para mim.

— Atrever-me-ei... peço-lhe que não duvide.

— Ora então vamos a ver.

 

Genoveva, arrebatada pela raiva, ia por certo travar luta corpo a corpo, com o criado de quarto fiel às ordens recebidas.

Não teve tempo.

Abriu-se a porta envidraçada, e Antonino Frébault apareceu, conduzindo Lucília vestida com muita simplicidade, e com o rosto coberto com um véu muito espesso.

— Parece estar furiosa, minha querida Genoveva! disse ele num tom muito tranqüilo; que se passa?

A Toutinegra ao ver Genoveva, reconhecera imediatamente a companheira do Príncipe no teatro de Belleville, por ocasião da primeira representação dos Beijos Mortais.

O coração oprimiu-se-lhe, esperou, toda trêmula, a resposta que aquela mulher ia dirigir ao médico.

A cortesã, interrompendo o movimento principiado, voltou-se para a recém-vindo.

— Ah! chega a propósito, doutor, exclamou ela, e estimo vê-lo!

— Que tem a dizer-me, querida beldade?

— Tenho a perguntar-lhe qual é o sentido das ordens ineptas que o doutor dá!

O doutor sorriu...

— Se fossem ineptas, seriam destituídas de senso comum, replicou, mas creio-as muito razoáveis... Proíbo-lhe a entrada no quarto do Príncipe, porque tenho a convicção de que a conversa fatigaria o ferido...

— Mas isso é absurdo, é insensato!

— Então, por quê?

— Bem sabe que os meus direitos são indiscutíveis! Conhece, como Paris inteira, a minha profunda afeição pelo Príncipe. Bastante tenho chorado esse fatal ferimento que o afastava de mim, e podia arrebatar-mo! já tenho sofrido bastante com esta separação, e é no momento em que eu poderia finalmente sentar-me à sua cabeceira, cuidar dele, velar sobre ele, demonstra-lhe a minha dedicação, que o senhor me afasta como uma estranha, a mim, que sou a melhor, a sua mais querida amiga. Repito-lhe que é insensato!

Cada uma das palavras de Genoveva, entrava como um ferro cm brasa no coração de Lucília.

Aquela mulher falava da sua ternura, da sua dedicação, dos seus direitos, no momento em que a pobre Toutinegra levava ao Príncipe o seu ingênuo amor!

Lembrou-se por um momento de se afastar sem voltar sequer a cabeça, e fugir daquela casa onde a esperava uma tão pungente humilhação, uma tão dolorosa ferida.

Queria por força fazê-lo. pelo menos assim o julgava; não teve forças para isso.

Antonino Frébault não se abalou com a impetuosa tirada de Genoveva.

— Minha querida filha, respondeu, Deus me livre de duvidar das boas intenções; o que me parece é que neste momento o seu zelo seria pernicioso, em vez de ser útil.

— Portanto, mantém as suas ordens no que me diz respeito?

— Absolutamente.

— Então, continuou a cortesã com os dentes cerrados, o doutor promove um rompimento entre mim e o Príncipe?

O doutor encolheu os ombros.

— Palavra, disse o doutor, parece-me, minha querida filha, que perde a cabeça! Pois eu tenho alguma coisa com os seus pequenos negócios? Em que me vem falar a propósito de urna ordem do médico, cuja oportunidade, só eu sou o único a apreciar? Ah! está aí. Barão! bons dias, Barão! continuou Frébault estendendo a mão a César. Se é paciente, e se deseja muito ver o nosso amigo esta manhã, não se afaste. Depois da minha visita eu o mandarei chamar...

Depois o doutor, voltando-se para Lucília, acrescentou:

— Venha menina.

Genoveva ia responder sem dúvida, mas ficou silenciosa e aterrada ao ver Frébault pegar na mão daquela jovem vestida com simplicidade, em cuja presença ela mal reparara, e dirigiu-se na sua companhia para o quarto do Príncipe.

— Que significa isto? exclamou a cortesã com raiva, fecham-me a porta a mim, a amante de Heitor, e introduzem à minha vista outra mulher no seu quarto!

César de Fossaro não estava nem menos surpreendido, nem menos intrigado que a sua cúmplice.

 

AS DECLARAÇÕES

O Barão aproximou-se de Genoveva.

— Não compreendo melhor que a senhora, mas com certeza que se passa aqui alguma coisa extraordinária.

— Quem será esta mulher?

— Ignoro... Será uma rival?

— Havemos de sabê-lo. Volte para casa e espere-me. — O Barão fica aqui?

— Fico, parece-me necessária a minha presença aqui... o doutor prometeu mandar-me chamar. Tenho interesse em falar com o Príncipe.

Genoveva muito inquieta, porque a realização das suas esperanças começava a parecer-lhe comprometida, voltou para a carruagem que a trouxera.

Heitor passara uma noite excelente.

O seu rosto pálido, muito magro, manifestava alegria, os seus olhos brilhavam, mas já não era ao fogo da febre que deviam o brilho.

Acabavam de dar dez horas.

O criado de quarto abriu a porta.

— Está aqui o senhor doutor, disse ele.

— Manda entrar, replicou o Príncipe com interesse. Antonino Frébault entrou.

Heitor ao vê-lo só, manifestou então uma penosa surpresa.

— Ti inútil perguntar-lhe como está. meu querido doente, exclamou o médico. O aspecto é excelente.

— Doutor, doutor, murmurou o mancebo, esqueceu a sua promessa?

— Nada esqueci, mas da sua parte comprometeu-se a estar tranqüilo.

— Estou, estarei. Lucília está aí?

— Está. Vê-la-á dentro de alguns minutos.

— Oh! querido doutor, desejo vê-la quanto antes, suplico- lhe.

— Se o simples pensamento da sua visita lhe causa uma tão grande agitação, vou-me embora, e levo-a sem que a tenha visto.

— Não é a sua visita, é a sua retirada, que me faria mal, bem sabe.

— Aqui para nós duvido, murmurou Frébault sorrindo, e vou fazê-lo feliz sem mais demora.

Ao mesmo tempo tornava a abrir a porta da saleta que precedia o quarto de dormir.

— Entre menina, esperam-na, disse ele.

Lucília avançou, mas a comoção paralisava-a; no fim da alguns passos teve de parar, vacilante, mal se sustendo de pé, ainda antes de chegar ao limiar da porta.

O doutor tornou:

— Coragem, minha filha, mostre-se forte! Lembre-se que a sua presença fará mais pela rápida cura do nosso querido filho, que todas as prescrições da ciência.

Estas palavras produziram o efeito desejado; reanimaram a jovem, que se pôs outra vez a caminho.

Ao ver a órfã que trazia o véu levantado, estendeu os braços para ela. e com uma voz trêmula balbuciou duas vezes seguidas:

— Lucília, querida Lucília!

Ao ouvir esta voz, a Toutinegra sentiu parar as palpitações do seu coração.

Correram-lhe pelas faces, grandes lágrimas; dirigiu-se lentamente para o leito.

Os lábios de Heitor moviam-se sem articular sons perceptíveis; só os seus olhos falavam, e com que eloqüência!

A palidez lívida do mancebo assustava e consternava a órfã.

Comovida, abalada até ao fundo da alma, contemplava silenciosamente o Príncipe.

Os dois jovens dobravam de amor.

Antonino Frébault em pé a alguns passos, e muito comovido, partilhava a felicidade de que era testemunha.

Heitor, no fim de dois ou três segundos, tomou a palavra:

— Veio, disse ele, e não encontro palavras com que exprima o meu reconhecimento. A sua presença completa a obra do nosso bom doutor. Restitui-me a vida. Dê-me a sua mão.

Lucília estendeu-lhe a mão trêmula, o Príncipe chegou-a aos lábios, fechando os olhos para melhor se entregar à sua embriaguez.

— Sente-se ao pé de mim, continuou indicando uma cadeira que estava à cabeceira da cama.

— Tenho uma receita a escrever, disse Antonino Frébault, deixo-os sós por cinco minutos.

Lucília fez um movimento e retirou a mão.

— Não, não, doutor, replicou o mancebo, não se afaste. O que tenho a dizer a Lucília, o que Lucília me há de responder... pode deve ouvir... peço-lhe que fique.

— Bem, ficarei, visto que o quer... Mas, repito-lhes, nada de comoção muito viva... Sosseguem ambos!...

Heitor inclinou a cabeça de um modo afirmativo e sorriu.

— Sofreu muito cruelmente? perguntou Lucília.

— Sim, mas hoje os meus sofrimentos passaram... Só me lembro deles para os abençoar, porque é graças a eles, que neste momento está aí, e que tenho o direito de lhe repetir: Lucília, querida Lucília... amo-a!... Foi por eu estar quase a morrer que Lucília veio aqui...

— Vim. balbuciou a Toutinegra, cuja perturbação é mais fácil de compreender do que descrever, vim aqui, porque o Príncipe mostrou desejos de me ver, e também porque eu queria restituir-lhe o depósito que me confiou na véspera do terrível duelo...

— Esse depósito deve ficar nas suas mãos, respondeu Heitor... — Não posso conservá-lo mais tempo...

— Por quê?

— Por que a sua razão de ser já não existe... Julga que eu teria aceitado, julga que eu aceitaria uma fortuna que o senhor me desse? A que título? O senhor está vivo, graças a Deus, mas se tivesse morrido, eu conservar-me-ia pobre, guardando somente a sua recordação e o meu reconhecimento.

— Lucília, exclamou o Príncipe apertando ambas, as mãos da jovem, é a mais nobre das mulheres, já o sabia... Muito bem. restituir-me-á esse testamento, mas mais tarde...

— Mais tarde? repetiu a Toutinegra.

No dia em que eu já não tiver necessidade de dispor em seu favor dessa fortuna que se tornou sua. —Não compreendo...

— Vou, pois, explicar-me... Escute-me, Lucília, e o senhor também, meti bom doutor. Depois que um favor da sorte me fez subitamente rico, estraguei a vida, tomando o prazer pela felicidade, julgando que o meu ouro me tornaria o rei do mundo, e que neste mundo tudo se vendia, mesmo o amor, principalmente o amor! Que quer, a riqueza demasiada é má conselheira! Parece-se com o vinho capitoso, (pie perturba a cabeça, e afugenta a razão! Um dia, encontrei o ente mais puro e mais encantador que Deus tem criado! um anjo!... Esse anjo era Lucília... Amei-a logo apaixonadamente, e disse comigo que tendo comprado tantas outras mulheres, eu poderia também comprá-la. Deve-me perdoar, Lucília, repito-lhe que estava doido!! Minha querida filha, sabe o resto... Bastou-lhe uma palavra para me abrir os olhos, para me mostrar a profundeza do abismo a que eu esperava arrastá-la comigo. Não lhe regateei o meu arrependimento, faça-me essa justiça, e Deus que me concede o futuro, há de permitir-me resgatar as faltas do passado... Graças a você, Lucília, e graças só a você, voltei ao caminho direito... Guia dos meus primeiros passos, quer caminhai- até ao fim, a meu lado. de mãos dadas? Quer dar-me o seu coração em troca do meu, que lhe pertence, e não deixará nunca de lhe pertencer. Quer ser minha mulher?

À medida que Heitor falava, a sua comoção aumentava...

No momento em que proferia as suas últimas palavras, as lágrimas rebentaram-lhe, doces, benéficas lágrimas...

 

Sufocada pela comoção. Lucília apoiava as mãos no peito que parecia querer saltar-lhe.

Não podia falar.

O Príncipe inquieto com aquele mutismo de que não compreendia a verdadeira causa, apressou-se a continuar:

— Por que não me responde? O seu silêncio faz-me muito mal... Vê que não me ama, que não poderá nunca amar-me?

— Crê que não o amo! exclamou a jovem desvairada pelas palavras de Heitor; duvida da minha ternura quando estou aqui, junto dele! Quando tenho sofrido tanto, chorado tanto, orado tanto por ele! Eu que só vivo por ele!Eu que há pouco sentia fugir a vicia ao ouvir aquela mulher falar das suas lágrimas e da sua dor. enquanto que o seu olhar só expandiria cólera e cobiça!

— Oe mulher, doutor? que mulher? perguntou Heitor com viva-cidade.

— Genoveva... respondeu Frébault.

—Ah! cale-se exclamou o ferido, não profira esse nome diante de Lucilia! ficaria poluído o ar (pie ela respira... Lucília soltou um suspiro de alívio. O seu coração ficara aliviado de enorme peso.

— Não, o passado já não existe! continuou Heitor. Lucília, querida Lucília, compreendi bem, não é verdade? Ama-me?

— Com toda a minha alma, balbuciou a jovem inclinando-se sem o saber para o Príncipe, que levantando-se um pouco cingiu-a com os braços, e beijou-a na fronte.

O primeiro beijo! o mais casto o mais suave que Heitor jamais tinha dado.

Antonino Frébault interveio.

— Tudo isso é muito bonito, disse. São comoções salutares; convém comoções salutares, mas não muitas! Sossego no espírito, se fazem favor! Meu querido Heitor, dê-me a mão. O senhor é um homem e presentemente estimo-o tanto quanto já o amava! Menina Lucília. dê-me a sua... sinto imperiosa necessidade de lha apertar com muita força.

Sou um amigo verdadeiramente novo, mas peço o privilégio de amigo velho. A senhora é muito capaz de usar dignamente o nome que o Príncipe com muita razão lhe oferece! Há de vir a ser o anjo puro e encantador do seu lar!

— Obrigado, doutor, obrigado por essas boas palavras... balbuciou o convalescente.

— Também eu lhe agradeço, e do fundo do coração! disse a órfã com urna tocante expressão de reconhecimento.

— Ah! tornou Heitor, quão feliz sou! Lucília, minha querida Lucília, não me tornará a deixar, não é assim?

— Não o tornará a deixar! exclamou o médico rindo. Proíbo-lhe semelhante coisa, que seria verdadeira loucura! a menina Lucília vai afastar-se, pelo contrário, e far-lhe-á visitas muito raras, por três razões, cujo valor não discutirá quando tiver refletido. A primeira é que comoções muito vivas e muito freqüentes, são perigosas para si. A segunda, é que uma futura princesa de Castel-Vivant deve evitar tudo quanto a comprometa, e conservar intata uma reputação que é o seu dote, e ao qual o Príncipe dá por certo mais apreço que ninguém. A terceira, finalmente, é que a menina Lucília tem em sua casa uma tia cega que não pode passar sem ela.

— O que pois a sua tia cega está em sua casa! exclamou o mancebo.

— Sim, respondeu timidamente a Toutinegra. A velha irmã de minha pobre mãe desejava passar junto de mim algumas semanas. Solicitei e obtive do diretor da Salpetrière a autorização para a levar.

— Querido anjo. tem todas as virtudes! Quando estivermos caçados, a tia cega não nos tornará a deixar. Meu bom doutor, as suas razões são excelentes! A noiva do Príncipe de Castel-Vivant não deve tornar-se suspeita! Lucília só transporá o limiar deste palácio até eu estar completamente restabelecido. E quando eu me achar a pé...

— Quando se achar em pé, interrompeu o doutor, mandá-lo-ei fazer uma viagem a Nice. para acabar o seu restabelecimento.

— E Lucília e a tia também não poderiam ir a Nice?

— Sós?

— O senhor acompanhá-la-á.

— Eu! retorquiu Frébault encolhendo os ombros. É impossível! Esquece-se da minha clientela...

— A sua clientela passará sem o senhor! O senhor não exercerá clínica senão para mim e para Lucília. Será o médico privativo da princesa, com os honorários de cem mil francos por ano.

— Falaremos nisso depois. Em todo o caso devia fazer publicar os banhos antes da sua viagem, para pôr termo a iodos os boatos desagradáveis, e poderem casar-se ao voltar. Será esta a opinião da menina Lucília.

A jovem com os olhos baixos e o rosto vermelho de pudor respondeu:

— Farei o que o senhor de Castel-Vivant quiser. Não devo, desde hoje, habituar-me à obediência?

— Tudo corre então pelo melhor. E agora é preciso partir.

— Partir já! murmurou o Príncipe.

— Os amantes são insaciáveis, bem sei, disse o doutor rindo, mas até nova ordem devem respeitar-se as minhas prescrições, e ordeno que se separem, depois de terem trocado na minha presença o beijo esponsalício.

Por segunda vez Heitor chegou com os lábios à fronte de Lucília, balbuciando:

— Quanto a amo!

— E eu também! exclamou a Toutinegra com uma voz fraca como um bafejo.

— A dose é quanto deve ser! exclamou Frébault rindo. Um pouco mais, e transgrediria a receita!

Pegando então na mão da jovem, conduziu-a vagarosamente até à porta.

 

UMA TERRÍVEL DESCOBERTA

Lucília parou à entrada da porta, voltou-se para deitar um olhar e um sorriso ao ferido, cujo rosto estava radiante. Depois saiu.

Um criado esperava-a na saleta. O doutor disse ao criado:

— Acompanhe esta menina no meu trem, que ponho às suas ordens... Em seguida deixará entrar o Barão de Fossaro.

E dirigindo-se a Lucília, acrescentou: — Até à vista, minha filha, até à vista!

E depois de darem um aperto de mão muito sincero e muito cordial, voltou para junto de Heitor.

— Então! perguntou ele ao Príncipe sorrindo, sente-se feliz? — Sinto-me feliz, querido doutor, e graças ao senhor me esquecerei do que lhe devo!

E mudando de tom, perguntou:

— Então Genoveva estava aí há pouco?

— Se estava! e como entendi que devia manter rigorosamente perante ela as ordens dadas, retirou-se furiosa.

O Príncipe apenas respondeu com um gesto manifestando a maior indiferença.

O doutor continuou:

— Mas o senhor de Fossaro está na sala... espera, e eu dei ordem para o introduzir.

— Fez bem, terei grande prazer em apertar a mão a esse querido... É um amigo muito dedicado...

 

Neste momento entrava César radiante, apesar de "no intimo" estar muito preocupado e muito inquieto a respeito do que se passava a seus próprios olhos.

Aproximou-se muito rapidamente do leito, e apertou com fingida comoção a mão de Heitor.

— Ah! meu amigo, meu bom amigo! exclamou, este é para mim um belo dia. Que alegria de o ver curado, quando todos os seus amigos já não tinham esperanças!

— É verdade que voltei de muito longe! volveu Heitor sorrindo: devo um famoso círio bento ao nosso querido doutor! Graças a ele devo estar bem depressa em pé.

— Não tarda, pois, que torne a aparecer na sociedade onde a sua ausência deixava um grande vácuo!

O Príncipe trocou um olhar com Antonino. O senhor de Fossaro surpreendeu este olhar, e a sua inquietação aumentou.

— Tenho ainda necessidade de muitas cautelas, meu querido Barão, volveu Heitor; preciso de muito sossego durante alguns dias, e devo adotar um regime fortificante, porque, embora o perigo passasse, resta-me ainda uma grande fraqueza, mas assim que me sentir capaz de empunhar um copo e de o despejar com denodo, tenciono reunir os meus amigos à mesa, para lhes agradecer do fundo do coração o interesse que me manifestaram, e para lhes dar ao mesmo tempo uma notícia que lhes há de causar grande admiração.

Antonino Frébault pôs um dedo nos lábios. Heitor traduziu assim esta pantomima:

— Oculte a sua felicidade! guarde o seu segredo!

— Uma notícia que nos há de causar bastante admiração? repeliu o Barão cheio de curiosidade.

— Sim, sim, mais tarde hão de saber isso.

O senhor de Fossaro não se atreveu a insistir.

— Meu querido doutor, disse, para não deixar esmorecer a conversa; o senhor foi há pouco muito severo...

— Ora essa! Então, para quem? perguntou o médico.

— Para essa pobre Genoveva... Tinha grandes desejos de ver o Príncipe. Era muito natural, não é verdade? As suas ordens desapiedadas a fizeram-na desesperar. Retirou-se lavada em lágrimas, e parece-me que não lhe perdoa tão cedo...

— Ficarei muito penalizado, replicou Frébault com uma perfeita desenvoltura, mas primeiro que tudo os interesses dos meus doentes. Neste momento suprimo as mulheres... É uma regra absoluta.

— Que entretanto, comporia exceções, segundo me parece, observou o Barão com um sorriso forçado.

— Fala da jovem que me acompanhava?

— Poderá!

— As minhas ordens não podiam entender-se com essa... Vinha agradecer ao Príncipe um grande favor que ele dispensara à sua família. Não havia nenhuma comoção a recear...

— Deve ser mentira... pensou Fossaro.

— Sinto muito o desgosto que Genoveva deve ter sentido, interrompeu Heitor. Devo porém ao doutor uma absoluta obediência... Compreende...

— O melhor do mundo... Contudo, algumas linhas suas consolariam Genoveva, e bastariam, estou certo, para a tornar feliz.

— Não... não... nada de correspondências! disse Antonino Frébault. Até nova ordem proíbo ao Príncipe que pegue numa pena! Se ele tivesse cartas indispensáveis a escrever, recomendar-lhe-ia que se servisse de um secretário...

— Ofereço-me para desempenhar essas funções, exclamou César. Estimaria imenso prestar ao nosso amigo esse pequeno serviço.

— Barão, o senhor é um homem encantador, exclamou Heitor, e talvez, na sua próxima visita, eu aproveite a sua boa vontade.

— Disponha de mim.

O doutor interveio.

Declarou que Heitor, como havia conversado muito tempo, e principiavam a manifestar-se sintomas de fadiga, tornava-se urgente deixá-lo só, e, em conseqüência disso, levava consigo o senhor de Fossaro.

Partiram ambos.

— Almoçou, doutor? perguntou César.

— Ainda não.

Muito bem! ofereço-lhe ostras, uma costeleta, ovos com trufas, e um perdigoto frio com gelatina, no Bignon. Convém-lhe?

— Se me convém...

Dez minutos depois os dois almoçavam um diante do outro. — Mexi querido amigo, disse o Barão, não me canso em repetir. O senhor fez uma cura admirável. Os meus sinceros cumprimentos!...

— Aceito-os de boa vontade, e tenho orgulho pelo meu êxito. César de Fossaro continuou:

— O doutor faz milagres; a morte recua na sua presença? Pretendem, e o senhor é o primeiro a dizê-lo, que a senhora de Chaslin não tem cura. Pois eu não ficaria surpreendido se ouvisse um dia destes dizer que o doutor a tinha curado.

Antonino Frébault abanou a cabeça com um ar triste.

— Infelizmente, no que diz respeito à Condessa. engana-se, replicou... não tenho esperanças.

— Estará ela pior?

— Está, e devo com franqueza confessar que os caprichos da sua doença me espantam e me transtornam. Não compreendo nada do que se passa... Parece que algum remédio que eu não receito, combate e destrói o efeito dos remédios que eu receito.

— És muito perspicaz! pensou o Barão, mas isso não te dará felicidade.

E tornou em voz alta para mudar de conversa:

— Sabe, querido doutor, (pie extraordinária nova é essa que o Príncipe tem tenção de dizer aos amigos por ocasião de festejar com eles a sua cura completa?

— Não me passa pela idéia.

— Não lhe parece que ele fala muito friamente de Genoveva?

— Efetivamente, notei isso.

— A pobre rapariga ama-o loucamente, e não se consolaria se deixasse de ser amada... Parece-lhe que ele pensa num rompimento?

— Não sei nada a esse respeito, mas os doentes têm caprichos. O Príncipe não me fala em nada disso, e acho-me como o senhor, reduzido a conjeturas.

Fosse real ou fingida a ignorância de Frébault. o Barão não podia perguntar mais.

Assim o compreendeu, e daquele momento em diante a conversa só versou sobre banalidades.

Depois do almoço, que não se prolongou por muito tempo, Antonino Frébault, reclamado pela sua clientela, despediu-se do Barão.

Este fez-se conduzir ao boulevard Malesherbes, à casa de Genoveva. contou-lhe a sua conversa com o doutor, e apesar dele próprio estar muito preocupado, tranqüilizou-a o melhor possível.

César de Fossaro sentira viva alegria ao ver Heitor aceitar o seu oferecimento de lhe servir de secretário, o que lhe permitia iniciar-se nos negócios íntimos do Príncipe, e dava-lhe o acesso ao gabinete de trabalho, onde se achava o móvel italiano depositário do testamento.

O ferro velho da Rua de Lappe (como os nossos leitores devem estar lembrados), fornecera-lhe uma chave deste móvel.

O testamento de Heitor em favor de Genoveva estaria sempre no mesmo lugar?

Isto parecia-lhe positivo; contudo, julgava oportuno certificar-se disso o mais cedo possível.

No dia seguinte, e no outro, dirigiu-se para a Rua Francisco T.

Como Heitor não lhe falava, de coisa alguma, não julgou dever renovar os seus oferecimentos, e ocultou o seu desengano.

Finalmente, no terceiro dia, o senhor de Castel-Vivant disse-lhe:

— Se não tem que fazer, meu querido Barão, peço-lhe que me dedique uma hora. Tenho precisão do senhor.

— Nunca tenho une fazer, e sinto-me sempre feliz por lhe ser útil.

— O doutor permitiu-me esta manhã que me ocupasse um pouco dos meus negócios, mas continua a proibir que pegue na pena. Vou pois recorrer à sua amabilidade.

— Eis-me pronto a executar prodígios de caligrafia, replicou Fossaro rindo muito ruidosamente para dissimular a sua alegria secreta.

— Tenho que responder a muitas cartas... continuou Heitor. Faça-me favor de chamar o meu criado de quarto, que lhe dará o que é preciso para escrever.

— É escusado chamar. Vou buscar ao seu gabinete os objetos de que tenho precisão, e trazê-los-ei...

— Faça o que entender. Vejo que gosta, como eu, de se servir a si mesmo...

De certo, tanto quanto possível. O lugar de um criado de quarto é uma sinecura, ou pouco menos.

— As cartas que precisam de resposta estão aí em cima desta mesa.

— Ei-las... Torne a lê-las. Eu já volto.

Encostando-se ao travesseiro, pôs-se a percorrer esta correspondência atrasada, ao mesmo tempo que Fossaro tomava o caminho do gabinete de trabalho.

Todas as vezes que ele vinha ao palácio tinha o cuidado de se munir de chave falsa, porque podia apresentar-se de repente a ocasião de se servir dela.

Entrando no gabinete, deitou um rápido olhar para o móvel de ébano, incrustado de nácar e de marfim.

Além do testamento sem data, em favor de Genoveva Leinen, o móvel continha uma duplicata da certidão, com data de 23 de setembro, cm que Heitor constituía Lucília sua herdeira universal.

Não se deve ter esquecido por certo, que o Príncipe ia destruir o primeiro testamento no instante exatamente em que a chegada das suas testemunhas o interrompera.

Desde aquele momento, Heitor não tornara a tocar nele, e não se importara de modo algum com aquele statu quo.

— Está ali, murmurou o fiarão, mas o tempo falta-me, Não tarda que volte.

Tirou de cima da secretária um maravilhoso tinteiro de faiança de Marseille, guarnecido das suas penas, dos seus paus de lacre.

Tomando uma porção de papel com as armas dos Castel-Vivant, timbrado com a coroa fechada, voltou para junto do Príncipe, e preparou-se para escrever.

A sua ausência não durara dois minutos.

Heitor ditou uma primeira carta.

— Dê cá para assinar, disse, e tenha a bondade de meter num envelope e lacrar.

— Esqueci o sinete, volveu Fossaro, mas isso pouco importa. Assinará todas as cartas ao mesmo tempo, e irei fechá-las no mesmo gabinete. Será até melhor assim, porque o cheiro penetrante da cera poderia subir à cabeça.

— Tem razão e pensa em tudo...

Heitor ditou segunda carta, depois terceira e quarta.

A concentração de espírito que aquele trabalho exigia, fatigava-o de um modo bem visível, e o doutor Frébault, se ali estivesse, ter-lhe-ia sem dúvida alguma recomendado que se interrompesse.

Borbulhava-lhe na fronte o suor.

Sob o império de uma sonolência irresistível, as pálpebras agitavam-se-lhe.

A cabeça balouçava-lhe para a direita e para a esquerda, e as frases não lhe saíam dos lábios entre cortados, indistintos, quase ininteligíveis.

De repente cessou de ditar.

Fossaro olhou para ele.

A sonolência vencera-o, os dedos enfraquecidos do Príncipe acabavam de largar a carta a que respondia.

Os seus olhos tinham-se fechado de repente, e a cabeça descançava-lhe no travesseiro.

Mergulhara num profundo sono.

— A ocasião esperada! pensou o Barão. Finalmente!

Levantando-se então vagarosamente, dirigiu-se na ponta dos pés para a porta entreaberta, e saiu sem ruído, por conseguinte sem despertar o ferido.

 

CONTINUAÇÃO

Um segundo depois, o senhor de Fossaro transpunha o limiar do gabinete de trabalho, corria ao móvel italiano, introduzia a chave na fechadura, e abria a gaveta de cima.

Em cima de um molde de papéis em desordem estavam dois envelopes.

Ambos tinham em grandes caracteres estas palavras:

 

ISTO É O MEU TESTAMENTO

 

Nem um nem outro estavam lacrados.

— Que significa isto? perguntou o Barão de si para si muito surpreendido. Dois testamentos! Tenho a certeza de não ter visto senão um há três semanas.

Abriu o primeiro sobrescrito.

Continha as disposições tomadas em favor de Genoveva.

— Conheço este... continuou César. Vejamos o outro...

E tirando do segundo sobrescrito uma folha de papel selado, abriu-a.

Entre as sobrancelhas cavou-se-lhe uma profunda ruga; o seu rosto tornou-se sombrio.

— Os meus pressentimentos não me enganavam! murmurou. O reinado de Genoveva acabou. Substituiu-a outra mulher! Este testamento, a data o prova, foi destruído na véspera do duelo. Genoveva não tinha valor. A sua rival chama-se Lucília... Lucília, de alcunha a Toutinegra... em Belleville na Rua Julien Lacroix...

Foi na casa onde ela mora, que a Marquesa Lazarine viu entrar o Príncipe certa manhã... Tudo quanto me parecia incompreensível se explica! A situação não é desesperada! tanto pior para esta rapariga que vem atravessar-se nos meus projetos! Os obstáculos fizeram-se para serem suprimidos! Por que foi que o Príncipe não rasgou o primeiro testamento? Perco-me em conjeturas! Lembra-se ele sequer de que exista? Lembre-se ou não, arrecado-o...

César meteu no envelope o documento que constituía Genoveva legatária universal, e guardou-o na algibeira.

O segundo testamento tornou o tomar o seu lugar entre os papéis espalhados, e a gaveta fechou-se.

De repente o rosto de Fossaro iluminou-se, ao mesmo tempo que os seus lábios proferiam estas palavras em voz baixa:

— Acode-me uma idéia triunfante! E voltou para o quarto do Príncipe.

O que fica dito, passou-se em menos tempo do que nós levamos a contar.

O ferido continuava a dormir.

César voltou para o seu lugar, e pôs-se a tossir.

Heitor abrindo os olhos, levantou-se sobre um cotovelo.

— Perdoe-me, querido Barão, disse, parece que me deixei dormir.

— Apenas durante alguns segundos.

— Estou ainda muito fraco, e a fadiga é a minha desculpa, mas aqui estou pronto a continuar.

Às suas ordens.

— Tem a bondade de me tornar a ler a carta interrompida?

César fez o que o Príncipe desejava.

Heitor continuou, e concluiu o seu ditado, assinou com mão um pouco hesitante, e exclamou:

— Mais nada.

— Não esquece coisa alguma? perguntou o Barão.

— Não esqueço.

— Supunha que tinha tenção de escrever a Genoveva.

— Não, na verdade, não me passa isso pela idéia. Depois, não sabia o que lhe havia de dizer.

— Então vou lacrar estas cartas no seu gabinete de trabalho.

— Bem, e depois mandá-la-a deitar no correio por um dos meus criados.

— Posso eu mesmo deitá-las, porque me retiro dentro de cinco minutos.

César voltou ao gabinete, pegou em muitas folhas de papel para cartas, e em envelopes com as armas do Príncipe e guardou na sua carteira.

Em seguida acendeu uma vela, muniu-se de um pau de lacre vermelho e do sinete de Heitor, e lacrou os sobrescritos.

Feito isto deitou num quadrado de papel algumas gotas de lacre incandescente e assentou sobre o lacre o sinete com armas, obtendo uma marca muito nítida que juntou às folhas roubadas.

Com este brasão cm relevo, era fácil obter uma marca côncava e por meio dela chegar a uma reprodução idêntica do sinete desejado.

O senhor de Fossaro tornou a entrar no quarto, apertou a mão do convalescente que o sorriso tornava a prostrar, saiu do palácio e deu ordem a Beneditte para o conduzir à Rua de Provence.

Pelo caminho deitou na caixa as quatro cartas para o Príncipe.

R chegando a casa correu os fechos do quarto misterioso onde ninguém entrava.

Sentou-se à sua secretária, colocou diante de si uma folha de papel com as armas dos Castel-Vivant e o testamento completo do punho de Heitor; depois com o seu maravilhoso talento de falsificar, imitando com perfeição a letra do ex-Begourd traçou as linhas seguintes:

 

"Meu querido Fossaro

"Considero-o como amigo de muita confiança, como o mais sincero dos meus amigos, e vou dar-lhes uma prova da minha afeição e da minha confiança.

"Não querendo morrer sem manifestar o meu reconhecimento àquela que sinceramente me amou, faço o meu testamento e endereço-lho, selado com as minhas armas, acompanhado desta carta em que o nomeio meu testamenteiro.

"Quando já não existir, remeta a quem deve este testamento.

"Tal é o último serviço que espera de si o seu amigo dedicado."

César imitou a assinatura do Príncipe como imitara a letra do bilhete, mas deixou a data em branco; depois sobre o envelope brasonado traçou o seu próprio endereço:

"Senhor Barão de Fossaro.

No seu palácio.

Na Rua de Provença."

 

Terminada esta tarefa, o sócio de Malpertuis esfregou as mãos, fechou o testamento e a carta, saiu, tomou um trem, e fez-se conduzir à praça da Bastilha, de onde se dirigiu a pé à Rua de Lappe e à loja empoeirada do adelo que já conhecemos.

O motivo da sua visita a estas longínquas paragens adivinha-se.

O molde foi entregue ao adelo que se incumbiu de dar um sinete antes do fim da semana.

César jantou num restaurante do boulevard do Templo, dirigiu-se perto das nove horas ao teatro de Belleville. e fez que lhe abrissem o camarim de Fernando Volnay.

O comediante soltou uma exclamação de alegria.

— Seja bem vindo, querido Barão! disse ele estendendo ambas as mãos para o senhor de Fossaro. Já ninguém o vê!

— E de quem é a culpa?

— Não é minha.

— Perdão, é só sua porque sabe muito bem a minha morada.

— De certo, mas os ensaios roubam-me as tardes. Represento à noite.

— E a ma de mel absorve o resto, interrompeu César rindo.

— Concordo e reclamo toda a sua indulgência.

— Está perdoado! Os jornais anunciaram a sua escritura nó Ambigu e dou-lhe os parabéns.

— Meu querido Barão, é aos seus bons conselhos que devo a minha boa sorte!

— Está com o pé no estribo. Não lhe falta nada para ser afortunado. Há de ir longe.

— Assim espero. A propósito, traz-me notícias a respeito da murada de uma certa grande fidalga?

— Ah! a Condessa de Vergis?... Não, ainda não. Mas a informação esperada não tardará. Então o seu primo está ainda apaixonado?

— Mais que nunca, pobre rapaz!

— Faça-o ter paciência. Qualquer dia lhe enviarei uma nota relativa ao que tanto interessa. Sempre na Rua Julien Lacroix não é verdade?

— Ah! isso é que não, respondeu o comediante com vivacidade. Deixei aquele horrível Belleville e Deus sabe que não o lastimo. Habito um bairro catita! Sou proprietário de um delicioso palacete com pátio e jardim na avenida do Legeau, e espero aí recebê-lo muito proximamente com as honras que lhe são devidas.

— Bravo, meu querido artista! Basta mostrar-lhe o caminho! Quando é a festa da inauguração?

— Dentro de oito dias... O dia não está ainda fixado... Receberá um convite... Um colega está estudando o meu papel para me substituir aqui nos Beijos Mortais, e não representarei ainda no Ambigu... Disporemos, portanto, de toda a noite. Iremos exatamente à meia hora depois da meia noite, e é a Marquesa quem preside à pequena festa.

Cesar fez um gesto de espanto.

A Marquesa! repetiu, pois ela aparece lá?

— Pudera! Fiz-lhe compreender que o meu amor próprio o exigia.

— Mas isso vai fazer em Paris um barulho infernal.

— Tanto melhor... Falando de Lazarine, falarão de mim. Que reclame!

— Safa! meu querido, o senhor é prático.

— Sim, encaro a vida pelo lado sério. A Marquesa adora-me. E eu aproveito.

— E, perguntou César, conduzindo habilmente a conversa para o único motivo que ali o levava, o seu coração não sofreu muito quando o senhor deixou a Rua Julien Lacroix?

— Isso é um enigma pitoresco, meu querido Barão. Que há de comum, se faz favor, entre o meu coração e a Rua Julien Lacroix?

— Ora! tinham-me falado de uma certa Lucilia...

— Lucilia? A Toutinegra?

— Sim, a Toutinegra, exatamente.

— Quem demônio lhe contou isso?

— A voz pública.

— Pois a voz pública não tem senso comum! A Lucilia é muito bonita, é encantadora! Poderia ter-lhe oferecido um capricho de quinze dias, mas isso não lhe convinha. O demônio da rapariga! É uma rapariga pobre, alegre ganha quarenta francos, trabalha com alma, e está a cantar, desde pela manhã até à noite. Tem juízo, é uma verdadeira santinha, e segundo me parece, um pouco ambiciosa.

— Se a ambição faz das suas, então adeus santidades.

— Não há perigo, ingenuazinha, ambiciona um marido.

— E é bonita?

— De encantar, e olhe que eu sou entendedor! É digna de um príncipe, ou de um comediante!

— Vive só?

— Usualmente, vive, Mas neste momento tem junto de si, por alguns dias, uma parenta velha e pobre.

Fernando calou-se, olhou bem de frente para o seu visitante, pôs-se a rir e tornou:

— Mas espere, meu querido amigo, porque demônio me faz estas perguntas? Em que é que esta grizete pode interessar-lhe? Por acaso anda como a cabeça à roda por causa de Lucilia. sem a conhecer.

— Oh! isso é que não! Falo como curioso...

— É que, fique sabendo, rico e, apesar de barão, não teria probabilidades nenhumas de se sair bem. Eu mesmo, Fernando Volnay, ter-me-ia saído mal, tão séria é Lucilia Gonthier. Ora veja!

— Lucilia Gonthier! repetiu Fossam com uma surpresa que lhe foi impossível dissimular.

— A Toutinegra chama-se assim. E isto que lhe causou admiração?

— Desperta no meu espírito uma velha história. O triste fim de uma atriz quase célebre, das Variedades, do teatro Dejazet, Amélia Gonthier, que há alguns anos morreu miseravelmente, deixando uma filha. Será Lucília essa filha?

E, se acreditarmos a ex-formosa hervanária, a tia Verdier, porque a Toutinegra não fala nunca na mãe...

 

O Barão sabia o quanto bastava.

Levantou-se.

Fernando, perguntou-lhe:

— Já se retira?

— Sim, meu caro amigo. Tinha interesse em apertar-lhe a mão. Pronto e até já. Assim que tiver esclarecimentos, mandar-lhos-ei pelo primo.

— Fica entendido... Quanto á festa, receberá o seu convite daqui a dois dias... Não esqueça que Lazarine e eu contamos absolutamente com o senhor.

Fossaro saindo do teatro, chamou um trem, e tomou o caminho de Paris.

Ainda atordoado com o acaso que acabava de o servir de um modo tão prodigioso, dizia consigo:

— Lucília Gonthier! Ela, a herdeira dos doze milhões de Edgard Sydney, de Nova York. E ela, a quem o príncipe legava milhões ainda mais numerosos! Até que a apanhei! Ah! ela está duplamente condenada!

 

Davam onde horas da noite no momento em que o Barão entrava em casa.

Dirigiu-se logo para o gabinete onde o aparelho elétrico o punha em comunicação com o seu sócio, e carregou o botão.

Nenhum toque respondeu ao seu chamamento.

Este silêncio provou-lhe que Malpertuis, abandonando as suas preocupações quotidianas, procurava fora alguma distração do seu gosto.

— Falar-lhe-ei amanhã pela manhã cedo, pensou o Barão. Não há tempo perdido!

Depois, fatigado por um dia tão cheio, meteu-se na cama, adormeceu e teve sonhos esplêndidos.

 

NOVIDADES

Logo às oito horas da manhã o senhor de Fossaro fez soar a campainha elétrica.

Um toque semelhante respondeu-lhe que Malpertuis estava livre e só.

No mesmo instante, apareceu no gabinete do colega pela porta secreta que conhecemos.

— Trazes alguma coisa de novo? perguntou-lhe Malpertuis.

— Trago, e coisa que te vai surpreender.

— Boa ou má?

— Excelente.

— Estou escutando.

— Vou falar, mas dize-me primeiro que tempo seria preciso para realizares a herança de New York, desde o momento que fosses procurador de Lucília Gonthier?

— Recebi ontem uma carta a este respeito do meu correspondente James Elliot. O testamenteiro depôs os milhões no cofre de um banqueiro seguro. Está pronto a entregá-los, cm cheques sobre as primeiras casas bancárias de Paris, à herdeira ou a quem a represente. Para apanhar os milhões de. Edgar Sydney preciso de vinte, dias e dos documentos seguintes: a certidão de óbito de Amélia Gonthier, a certidão de batismo de Lucília Gonthier, a sua procuração em forma, uma carta dela legalizada pelo comissário de polícia do seu bairro, a minha certidão de identidade legalizada e um passaporte.

Manda então hoje mesmo um telegrama a James Elliot, dizendo-lhe que dentro cm pouco estarás em New York, munido de todos esses documentos.

— Achaste Lucília Gonthier?

— Achei.

— Por que milagre, depois de tantas pesquisas inúteis? Por um simples efeito do acaso, como vais ver.

E o Barão contou cm poucas palavras a Malpertuis o que os nossos leitores já sabem.

 

Muito bem, disse Malpertuis. Mas Lucília embaraça os nossos projetos relativamente a Castel-Vivant.

— Os embaraços fizeram-se para serem destruídos. Destruí-los-ei. Bem sabes o que te resta a fazer. Põe mãos à obra sem perda de uma hora...

Neste momento bateram por duas vezes à porta do gabinete. Fossaro levantou-se e dirigiu-se para a saída secreta.

— Espera, disse-lhe Malpertuis, tenho ainda que te falar. Se for cliente quem me anunciam, mandá-lo-ei embora depressa.

— Fico aqui, por detrás da papeleira. Ninguém me pode ver, e eu posso ouvir tudo. Bateram novamente.

— Entre! gritou o ex-advogado.

O homem de fato escuro apareceu, depois de le o cartão deu ordem para introduzirem o visitante dentro de cinco minutos. O continuo do escritório desapareceu.

— Quem é? perguntou Fossaro detrás da papeleira.

— Uma visita singular! O Príncipe Emanuel de Brada...

— O cavalheiro que devia esposar a Marquesa de la Tour-du-Roy! exclamou César. Que demônio vem ele cá fazer?

— Não posso imaginar, mas ouve e saberás.

— Podes ficar certo de que seu todo ouvidos.

Passados os cinco minutos, o moço do escritório introduziu o senhor de Brada.

 

No dia em que Lazarine tomara o compromisso positivo de aceitar a mão do Príncipe no prazo de um mês, apresentamos este ao leitor.

A partir deste tempo, a Marquesa, esquecendo a coroa fechada pelos belos olhos e os bigodes sedosos de um comediante, tornara-se a amante de Fernando Volnay.

O fidalgo ignorava ainda a absoluta degeneração daquela a quem amava até a adoração até a loucura, mas sabia da pretendida viagem da jovem ao palácio de la Tour-du-Roy, e tinha todas as suspeitas de que aquela mentira ocultava alguma vergonha.

No momento em que o Príncipe transpunha o limiar do gabinete do homem de negócios, o seu rosto exprimia a mais sombria tristeza: os seus olhares manifestavam uma espécie de alucinação feroz.

Malpertuis nunca vira o senhor de Brada; impressionou-o a expressão sinistra que acabamos de indicar.

— Queira sentar-se, senhor, disse-lhe inclinando-se, e dizer-me o motivo que me proporciona a honra da sua visita.

O Príncipe sentou-se e respondeu:

— Vou explicar-me; mas primeiro que tudo. senhor, permita-me que lhe faça uma pergunta... Malpertuis tornou a inclinar-se.

O senhor de Brada continuou:

— Afirmam que o senhor tem uma polícia especialmente sua, e que os seus empregados sabem, tão bem e melhor que os agentes da prefeitura, seguir uma pista e desvendar um mistério. Será verdade?

— É verdade.

— Quereriam os senhores encarregar-se de umas pesquisas por minha conta?

— Por que não? O seu nome é uma garantia segura de que o senhor nada me pedirá que não seja decente... nada que possa assustar a minha consciência de cavalheiro. De que se trata?

— Da vida ou da morte para mim, senhor.

— É muito sério o que está dizendo, principiou Malpertuis muito admirado.

— É muito grave bem sei... interrompeu o Príncipe. Parecem exageradas as minhas palavras, mas exprimem apenas a mais absoluta verdade. Pus a minha existência em jogo contra o amor e a honra de uma mulher, e parece-me que perdi. Contudo é possível que me engane, e quero certificar-me...

 

O senhor de Brada falava lentamente, com uma tranqüilidade relativa, mas a sua voz estridente e os seus gestos desordenados, eram voz e gestos de um homem cuja razão vacila.

— Este grande personagem está a caminho da loucura, pensou Malpertuis.

— Conhece a Marquesa da la Tour-du-Roy? perguntou repentinamente o Príncipe.

— De nome, como toda a gente.

— A senhora de la Tour-du-Roy mora na Rua Murillo...

— Não ignoro.

— Há quinze dias deixou ela o seu palácio, dando como pretexto uma viagem imaginária.

 

— Muito bem.

— Quero saber onde ela se oculta. Encarrega-se de me descobrir o seu paradeiro?

— Diga-me primeiramente, senhor, qual o interesse que o leva a solicitar-me semelhante diligência?

— O interesse da minha honra.

— Não compreendo.

— Vai compreender. Era... sou ainda o noivo da Marquesa. Um projeto de casamento, cuja realização devia efetuar-se em breve, fora combinado entre nós. Assiste-me o direito de saber se o procedimento da minha noiva não a torna indigna de usar o meu nome.

— Tem razão, senhor, aceito a missão de confiança de que me encarrega.

Um fulgor de feroz alegria brilhou nos olhos encovados do Príncipe.

— Obrigado! disse. No dia em que me trouxer a informação de que preciso, dar-lhe-ei cem mil francos.

— Cem mil francos! repetiu o ex-advogado, surpreendido da enormidade da conta.

— E não é pagar muito caro uma certeza! replicou o senhor de Brada. É imensa a minha fortuna, mas deve compreender que tenho pressa.

— Os meus agentes vão já pôr-se esta noite em campo.

— Conto com isso.

Estava terminada a conferência.

O Príncipe retirou-se, reconduzido até à ante-câmara por Malpertuis.

Este voltou em seguida para o seu gabinete, correu o ferrolho para se acautelar contra qualquer surpresa, e Fossaro tornou a aparecer.

— Ouviste? perguntou-lhe o sócio.

— Não perdi uma palavra.

— Que dizes àquilo?

— Digo que apanhamos os cem mil francos.

— Sabes então onde se pode encontrar a Marquesa?

— Sim, mas ainda não é tempo de consumar a extravagância que ele medita.

— Pareceu-te doido como a mim?

— Pelo menos está a caminho do hospital dos doidos. Isto de amor faz grande colheita para os hospícios de alienados. Eu te direi quando deves ir cobrar os cem mil francos que nos caem do céu. É uma gota de água!

— Esperarei... Outra coisa: Recebi um bilhete do Conde de Vergis. Está em Berne.

— Desse lado nada urge.

— Tens-te lembrado de Marcel Laugier, ou antes de seu filho? Quando a Marquesa veio aqui. prometi dar-lhe uma resposta no fim de um mês, bem sabes, e o mês toca no seu termo.

— Neste momento a Marquesa não pensa no filho, afirmo-te, disse Fossaro rindo. Tem preocupações muito mais agradáveis... Chegarei em tempo útil. O essencial hoje é arrecadar os milhões de New York, indicar-te-ei a marcha a seguir com Lucilia Gonthier. Escreve-lhe já para Belleville, rua Julien Lacroix... Apenas um nome próprio... nada de nome de família...

— A carta partirá dentro de dez minutos.

César voltou. O móvel tomou novamente o seu lugar de encontro à parede, Malpertuis sentou-se à secretária, puxou para si uma folha de papel com a marca da casa, e as seguintes linhas impressas:

 

"Paris..."

Senhora

"Queira ter a bondade de vir ao meu gabinete, das às horas, para negócio importante que lhe diz respeito.

"Com toda a consideração..."

 

Malpertuis preencheu os intervalos em branco, datou, assinou, meteu no envelope, escreveu o endereço de Lucilia, e mandou o empregado do escritório deitar a carta na caixa próxima.

 

Deixemos as aranhas parisienses urdirem as suas teias gigantescas, e voltemos à Toutinegra.

A loura jovem sentia-se cada vez mais feliz.

O seu amor mostrava-lhe o futuro cor de rosa, e os menos otimistas dos meus leitores hão de convir que bem difícil havia de ser o vê-lo de outro modo.

Voltara à rua Francisco I, sob a égide quase paternal do doutor Frébault, e a sua afeição pelo Príncipe aumentava de hora para hora.

Lucilia nada dissera a tia.

Por que era este mistério?

Pura criancice.

Heitor e a Toutinegra, forjavam uma surpresa à septuagenária cega, e queriam desfrutar o seu assombro e alegria quando ela soubesse a grande notícia, e se se visse de repente tia milionária e Princesa.

Às vezes, contudo, passavam pelo céu azul, algumas nuvenzinhas que depressa se dissipavam.

Lucilia que se tornara preocupada, perguntava de si para si, se o que acabava de suceder não era um sonho, se o Príncipe não cessaria de a amar, e se um dia não se arrependeria de ter concluído, levado pelo seu entusiasmo, uma união desproporcionada sob todos os aspectos?

Nestes momentos, o primeiro sonho da tia voltava-lhe ao espírito, e tinha medo.

Mas, repetimos, estas crises de dúvida eram raras e de curta duração.

Heitor quisera que a Toutinegra deixasse de trabalhar.

O doutor Frébault gastara muita eloqüência para lhe fazer aceitar, a título de empréstimo, as modestas somas necessárias à sua existência e à da tia.

Lucilia recusara terminantemente, fazendo-se muito corada, mas sentia quanto a sua posição ia tornar-se falsa e difícil. Lembrava-se da viagem projetada.

Como poderia essa viagem efetuar-se?

As suas modestas toilettes de humilde operária parisiense, não seriam insuficientes, não a tornariam ridícula aos olhos de Heitor?

Esta herdeira de doze milhões, esta noiva de um Príncipe, possuidor de milhões, ainda mais numerosos, trabalhava sem cessar, e passava a coser uma parte das noites, sem piedade para os seus belos olhos, fatigados e avermelhados.

Acabara uma encomenda para o seu armazém, e saía para levar a obra.

Quando chegava em frente do cubículo da porteira, esta chamou-a.

— Menina Lucilia, disse-lhe, uma carta para si. O carteiro entregou-me há cinco minutos. Ia já levar-lhe.

Ao mesmo tempo dava à Toutinegra uma carta de papel escuro, com aparência oficial.

Lucilia, intrigada e um pouco inquieta. rasgou o sobrescrito, tirou de dentro a folha que ele continha, e leu:

 

"Senhora."

"Roga-se-lhe que apareça no meu gabinete, amanhã, quinta feira, das nove da manhã às quatro da tarde, para negócio importante que lhe diz respeito.

"'Receba, minha senhora, os meus respeitos.

"Malpertuis."

 

A RODA DA FORTUNA

— Esta carta é de ontem, e hoje é quinta-feira, murmurou a jovem depois de ler. O "rendez-vous" que me dão é portanto para hoje. Que significa isto? Não tenho que tratar com gente de justiça. Não devo um ceitil. Anda com certeza nisto algum erro.

A Toutinegra, que ia andando e falando só, olhou para o sobrescrito e tornou:

— Entretanto, isto sempre parece para mim... Lucilia, rua Julien Lacroix. Não traz apelido de família, mas há tão poucas pessoas que conheçam o meu. Isto dá-me que cismar. Das nove às quatro horas. Saindo da oficina, irei à rua da Vitória, à casa de M. Malpertuis... Se fosse para uma herança? acrescentou a órfã sorrindo. Poderia ter um pouco de toilette para. a viagem, e para mandar fazer um belo vestido à minha tia... E depois, casando, levaria a Heitor um dote... Ele não tem necessidade... é tão rico... mas sempre me lisonjearia o meu amor próprio o não casarem comigo sem um sou.

A reflexão derribou repentinamente os seus castelos em Espanha.

— Estou louca! disse Lucilia consigo. Não posso herdar de ninguém neste mundo, e demais, o antigo funcionário que me escreve não sabe sequer o meu nome de família. Decididamente, é um enigma... Já me tarda a explicação.

 

Dali a duas horas, depois de ter levado a obra à modista, e recebido a fazenda necessária para novo trabalho, a Toutinegra chegava à rua da Vitória.

Quando subia a escada que conduzia ao escritório, o coração batia-lhe precipitadamente.

Quando entrou na ante-câmara, estava toda trêmula.

— Que deseja? perguntou-lhe o empregado.

— Desejo falar ao senhor Malpertuis.

— Para negócios?

— Sim, senhor.

— Quer dizer-me o seu nome?

— Tenho uma carta de convite.

— Dê-ma. se faz favor...

— Ei-la.

— Agora, menina, sente-se um instante... Vou prevenir o patrão. Por um caso ele está só. Não terá pois que esperar.

Lucilia sentou-se num banco e colocou o pequeno embrulho do lado, enquanto que o homem vestido de pardo tomou o caminho do gabinete diretorial.

Passado um minuto voltou e disse:

— Venha, menina, vou introduzi-la. Deixe aí o embrulho, não o perderei de vista...

A órfã seguiu o seu guia.

Abriu diante dela a porta do santuário e retirou-se.

Malpertuis, em pé, sorria com benevolência, penteando as compridas suíças.

Lucilia achou-lhe cara de muito bom homem.

— Agradeço-lhe, menina, o ter cedido tão depressa ao meu convite, exclamou, depois de cumprimentar corretamente. Eis aí ao pé da minha secretária uma poltrona que lhe estende os braços. Vamos conversar.

A Toutinegra sentou-se.

— Asseguro-lhe, senhor, que a sua carta deu-me bastante que cismar, murmurou ela em seguida. Quando a li, julguei que havia algum engano...

— Engano! repetiu Malpertuis. Tenho grande esperanças de que assim não sucederá, e daqui a pouco hei de ter a certeza.

— Então de que se trata?

— Explicar-lhe-ei logo que me fizer a honra de responder a uma ou duas perguntas, porque as suas respostas hão de demonstrar-me que a senhora é efetivamente a pessoa por quem se procura há um mês.

— Procuravam-me!! exclamou Lucilia.

— Muito ativamente, sim, menina, e não foi sem custo que lhe pusemos a mão em cima.

— Mas, senhor...

— Um pouco de paciência! interrompeu Malpertuis. Não a farei sofrer. Notou que a carta que lhe dirigi só levava no sobrescrito um nome de batismo?

— Notei, mas sem me admirar, porque o meu nome de família é pouco conhecido.

— Que nome é, menina? preciso ouvi-lo da sua boca.

— Gonthier, chamo-me Lucilia Gonthier...

 

CONTINUAÇÃO

— Às mil maravilhas... Filha natural, não é verdade, de Amélia Gonthier, artista dramática, falecida em Paris há oito anos.

— Sim, senhor, murmurou a órfã muito comovida. Eu era muito pequena, e estava num colégio quando perdi a minha mãe. Uma das suas antigas amigas teve a bondade de me recolher e educar. Esta boa mulher também morreu.

— Pode sem dúvida dar-me as provas da sua identidade?

— De que provas fala, senhor?

— Da sua certidão de batismo, e da certidão de óbito de sua mãe.

— Nada mais fácil, senhor. Não tenho esses documentos em casa, mas posso obtê-los. Só o que queria saber, primeiro que tudo, é para o que eles servirão.

— É muito justo, e posso agora dizer-lho, porque não me resta dúvida. A menina é efetivamente a pessoa que se procurava. Saiba pois que há uns dezoito anos a senhora Amélia Gonthier foi chamada à América por uma escritura. Deu representações muito brilhantes num dos teatros de New York, onde obteve um grande e legítimo êxito. Um dos admiradores do seu incontestável talento, um dos fanáticos da sua beleza, morreu ultimamente, e lembrando-se de um passado já longínquo, deixou à sua mãe um legado considerável.

— Um legado! exclamou Lucília; mas como já não existe a minha pobre mãe, a última vontade do testador não pôde receber a sua inteira execução.

— É no que se engana.

— Como assim?

— O testamenteiro estipulou formalmente que na falta de Amélia Gonthier, herdariam os que tivessem a isso direito. A menina é sua filha única, portanto herda.

— Eu, senhor?

— É indiscutível. A verdade pura. Bem vejo que é notícia inesperada, e acrescentarei que ela é feliz, porque segundo me consta, está longe de ser rica.

— Pode até dizer que sou muito pobre... trabalho para viver.

— Existência modesta e laboriosa, honrada como poucas, e à qual presto homenagem, disse Malpertuis num tom sentencioso.

— Mas, senhor, tornou Lucília, cuja perturbação é fácil de se imaginar. Como é que veio a saber tudo isso?

— Um correspondente da América pediu-me para fazer investigações por conta do testamenteiro. Pus-me logo em campo, nada desprezei. Revolveu-se Paris, exploraram-se os arrabaldes a fim de a encontrar, e estou amplamente recompensado dos meus trabalhos e cuidados, vendo quanto é digna da felicidade imprevista que lhe sobreveio. Nunca houve fortuna que caísse em melhores mãos do que nas suas...

— O senhor fala em fortuna...

— Pudera!

— One quantia vem então a ser?

— Adivinhe.

— Talvez uns dez mil francos? Malpertuis sorriu.

— Não adivinhou,

— Vinte mil?

— Vá subindo.

— Cinqüenta mil?

— Está ainda longe...

— É impossível que o legado de que se trata atinja a quantia de cem mil francos.

Lucília tornou-se pálida de comoção.

 

Como sabemos, a pobre pequena não pensava sequer no dinheiro, mas ouvimos dizer-lhe que ela estimaria muito levar um dote ao Príncipe riquíssimo que a esposava por amor, e não só o dote existia, como também tomava proporções consideráveis.

— Quatrocentos mil francos! repetiu a órfã estupefata.

— Sim, minha senhora. Devo porém acrescentar que as despesas do processo e os meus honorários, reduzirão a soma a trezentos e cinqüenta mil francos pouco mais ou menos:

— Mas, senhor, isso é ainda uma riqueza.

— Relativamente, minha senhora, essa riqueza estará bem depressa nas suas mãos, se me encarregar dos seus interesses constituindo-me seu procurador.

— Oh! exclamou Lucília, como me havia de lembrar de outro qualquer para concluir o que o senhor começou tão bem?

— Concede-me então a sua confiança?

— Sim, decerto, e estou convencida de que é muito bem empregada,

— Terá a prova disso... Isto andará muito depressa, logo que eu me achar munido dos documentos indispensáveis.

— Precisa, segundo me disse, da minha certidão de batismo, e da certidão de óbito de minha mãe?

— Sim, minha senhora. É preciso também que me escreva uma carta cuja assinatura fará legalizar pelo comissário de polícia do seu bairro, em presença de duas testemunhas idôneas.

— Que devo dizer-lhe nessa carta?

— Vou preparar o rascunho. Levá-lo-á, e não terá mais que o copiar.

Malpertuis traçou as seguintes linhas numa folha de papel sem marca da casa.

 

"Senhor Malpertuis.

"Por esta o incumbo de tratar do processo relativo à minha herança. Confio-lhe da maneira mais absoluta a direção deste negócio.

"Amanhã irei ao seu escritório para lhes fazer entrega dos documentos que precisa, e iremos juntos ao seu tabelião onde assinará a procuração, sem a qual nada poderá fazer.

"Sou com toda a consideração...

 

Malpertuis apresentou o rascunho à jovem.

— Queira ler... disse.

A órfã percorreu o rascunho e respondeu:

— Amanhã copiarei e assinarei isto, e irei legalizar a minha assinatura ao comissário de polícia.

— Não se esqueça, em companhia das duas testemunhas.

— Não será preciso. O comissário conhece-me pessoalmente. Fiz para a sua mulher trabalhos de costura. Está portanto convencido da minha identidade.

— Então muito bem.

— Quanto aos outros documentos eu os reclamarei na mairie do bairro onde nasci, e na do bairro onde minha mãe morreu, mas não sei se as obterei amanhã.

— Eu me encarregarei de dar esses passos. Queira indicar-me exatamente os lugares e as datas do nascimento e óbito. Eu incumbo de incutir zelo nos empregados.

 

Malpertuis escreveu as informações que Lucilia lhe ditou, e redarguiu:

— Agora, minha senhora, queira achar-se aqui amanhã às três em ponto. Iremos juntos à casa do meu tabelião para se passar a procuração.

— Bem, murmurou a jovem muito confusa. Mas tudo isso vai Custar dinheiro, e confesso que me seria impossível...

— Não lhe dêem cuidado essas bagatelas! interrompeu Malpertuis rindo. Regularemos mais tarde as nossas contas, quando lhe entregar a sua fortuna. Até lá eu me incumbo de tudo... de tudo absolutamente.

A Toutinegra sentia-se muito reconhecida.

— Ah! Meu senhor, que bondade a sua! exclamou.

— Agora me lembra, muito a propósito, continuou Malpertuis. Imagine que me ia esquecendo de lhe oferecer um adiantamento.

— Um adiantamento? repetiu Lucília interdita.

— Um adiantamento sobre a sua herança, já se vê. A senhora tem encargos, uma renda de casa, e os seus únicos recursos consistem no trabalho, o qual lhe esgota as forças. Pois muito bem; de hoje em diante, precisa de gastar à vontade, e só trabalhar para se distrair. Está possuidora de um rendimento de dezessete mil e quinhentos francos. Não dispõe ainda dele, é verdade, mas o possui. Ainda hão de decorrer uns trinta dias, antes que se ache senhora do que lhe pertence. Não admitiria que daqui até lá impusesse a si própria uma só privação, por pequena que fosse. Franqueio-lhe a minha caixa. Quanto quer?

A Toutinegra dizia baixinho:

— Que honrado homem! Que excelente homem! Respondeu timidamente:

— Parece-me que quinhentos francos... Mas talvez seja muito?

— Graceja! Vou adiantar-lhe cinco mil...

Lucília não acreditava no que ouvia.

Cinco mil francos! Uma nesga do Peru! O que poderia ela fazer de cinco mil francos?

Malpertuis abriu a caixa.

Tirou da caixa quatro notas de mil francos cada uma, e um rolo de cinqüenta luíses.

Depois colocou tudo num ângulo da secretária, em frente de Lucília.

 

UMA FORTUNA

— Isto pertence-lhe, menina! disse o ex-advogado mostrando o dinheiro em ouro e os cheques.

— Mas isto é muito, senhor! É demasiado! exclamou Lucilia.

— Se quiser faça economias... replicou Malpertuis sorrindo. Demais, não tarda que seja embolsada deste pequeno adiantamento. Daqui a um mês, ou muito cinco semanas, repito-lhe, entrará na posse da sua herança.

— Aceito.

— Queira passar-me recibo. Amanhã redigirei e assinará uma obrigação dos honorários que me serão devidos pelo meu trabalho e diligências, depois de lhe serem entregues os fundos. Os honorários consistirão em seis por cento da totalidade da herança.

— O que quiser, senhor...

— Oh! Bem sei que nos entenderemos às mil maravilhas. Agora, minha senhora, entendo, para seu interesse, dever recomendar-lhe que não fale a ninguém da fortuna que se lhe deparou, até o dia em que estiver no gozo dos seus capitais.

— Guardarei segredo, senhor.

— A senhora é uma bela rapariga, digna desta inesperada pechincha. Sinto-me satisfeito por haver servido de intermediário entre a menina e a Providência. Portanto, até amanhã, e não se esqueça de me trazer o rascunho da carta.

Lucília saiu do escritório da Rua da Vitória, perguntando no seu íntimo se sonhava.

Era porém impossível a dúvida.

A realidade impunha-se-lhe sob a forma de notas de banco e do rolo de cinqüenta luíses...

Rica! murmurou ela, caminhando rapidamente com o seu embrulho debaixo do braço. Sou rica! Não casarei sem dote! Qual não será a surpresa de Heitor, no dia do contrato, quando lhe entregar trezentos e cinqüenta mil francos!

Estes trezentos e cinqüenta mil francos pareciam á ingênua Toutinegra uma quantia enorme, fabulosa.

Entre esta quantia e os milhões do Príncipe de Castel-Vivant, a diferença parecia-lhe mínima.

 

Naquele momento Lucília passava pela frente de uma igreja.

Entrou e ajoelhou-se, para agradecer a Deus, e pedir-lhe que velasse por ela e por todos a quem amava.

Em seguida voltou para Belleville, e para o seu pequeno aposento da Rua Julien Lacroix, onde a esperava a tia cega.

Malpertuis esfregava as mãos.

A herdeira de Edgard Sydney era uma criança ingênua, incapaz de suspeitar um laço!

Logo depois dela se retirar, dirigiu-se ás duas mairies indicadas.

Obteve imediatamente, graças a boas gratificações, a certidão de óbito de Amélia Gonthier e a certidão de nascimento de Lucília Gonthier.

No dia seguinte, à hora combinada, a jovem comparecia no escritório, trazendo a carta copiada por ela, e cuja assinatura já vinha legalizada.

— Vou conduzi-la à casa do meu tabelião, disse-lhe Malpertuis. Mandei-lhe esta manhã o modelo da procuração, por conseguinte, não terá mais que ouvir a leitura e assinar, mas primeiramente queira tomar conhecimento do pequeno documento relativo aos meus futuros honorários, e aprová-lo se o teor lhe parecer conveniente.

A Toutinegra leu o pequeno documento, e assinou-o sem a menor desconfiança.

Do mesmo modo, em caso do tabelião, deu a sua assinatura depois de estudar o texto da operação.

Estava tudo perfeitamente em regra.

Informado destes resultados, o Barão mostrou-se satisfeito e disse:

— Faz visar estes documentos na legação americana, arranja um passaporte e prepara-te.

— Quando deverei pôr-me a caminho?

— No dia seguinte àquele em que tiveres recebido cem mil francos do Príncipe Brada.

— Quando os receberei? — No próximo sábado.

César recebera, para sábado, o convite do comediante para a festa da inauguração da Avenida de Eynau.

 

Na Rua de Francisco I corria tudo cada vez melhor.

O Barão ia lá fazer todos os dias uma pequena visita, com o fim de surpreender as relações que ele supunha existirem entre o Principezinho e Lucília Gonthier, mas as entrevistas que Antonino Frébault fazia, eram raras e muito secretas.

O sócio de Malpertuis não conseguia saber coisa alguma, salvo que a convalescença do ferido continuava de modo normal, e nas melhores condições.

César já não falava de Genoveva, que o Príncipe continuava a não receber.

 

O dia do festim chegara.

A senhora de la Tour-du-Roy assustava-se um pouco ria festa a que devia presidir, mas submetida ao domínio imperioso de Fernando Volnay, não pudera esquivar-se a levantar publicamente o véu que ocultava ainda os seus amores.

A ceia devia reunir vinte pessoas, entre as quais se achavam o senhor de Fossaro e dois diretores de teatro.

Os outros convidados eram jornalistas, autores e atores dramáticos.

O amor de Lazarine por Fernando era exacerbado por um ciúme violento que não lhe permitia tolerar a presença de atrizes no palácio da avenida de Eylau.

No sábado, pela manhã, César, depois da troca habitual de sinais elétricos, entrou pela porta secreta no gabinete de Malpertuis.

— Meu querido sócio, disse ele ao homem de negócios, o momento de nos pormos em ação, chegou... Pega numa pena e escreve...

O ex-advogado dispôs-se a obedecer. Fossaro ditou: "Senhor Príncipe.

"Terei a. honra esta noite, às nove horas, de me apresentar no seu palácio.

"Aceite os meus profundos respeitos."

— Assina...

— Agora a direção. Senhor Príncipe de Brada, Rua do Elyseu n.°... e manda levar a carta por um criado.

— Que devo dizer esta noite ao Príncipe?

— Apenas que na noite seguinte, pela uma hora da manhã, achará a Marquesa de la Tour-du-Roy ceando em numerosa e alegre companhia, na casa do comediante Fernando Volnay, na avenida de Eylau, Vila Montespan... Receberás cem mil francos, e a peça está pregada.

Malpertuis cocou atrás da orelha.

— Que fará esse fidalgo? perguntou.

— Alguma tolice, não oferece dúvida, respondeu César.

— Não ficarei comprometido? O Barão encolheu os ombros.

— Comprometido! repetiu ele. Por quê? A que propósito? Dás ao Príncipe uma informação que há de aparecer amanhã, nela manhã. em meia dúzia de jornais... Onde está o mal? Sossega! O senhor de Brada só comprometerá o Príncipe e a Marquesa...

— Que temos a ganhar com esse escândalo?

— Em primeiro lugar cem mil francos, o que já é (uma bonita conta. Devias compreender alem disso, (pie quanto mais baixo Lazarine cair, maior certeza teremos de lhe arrancarmos uma parte da fortuna do filho.

— Tens resposta para tudo!

— Pudera!

 

Emmanuel de Brada habitava na Rua do Elyseu, um desses palácios construídos pelo mesmo modelo, e que os parisienses conhecem.

Iam dar nove horas da noite.

O Príncipe estava só, no primeiro andar, num grande gabinete de trabalho, forrado de tapeçarias de Flandres.

Quatro estantes de madeira escura com filetes de cobre, ocupavam as quatro paredes.

Ao meio da casa. sobre uma grande mesa, servindo de secretária, e à claridade de uma lâmpada munida do seu abat-jour, achava-se uma carta aberta, a de Malpertuis.

Fora do círculo luminoso projetado pela lâmpada, reinava uma meia escuridão.

O senhor de brada passeava de um lado para o outro, a passo rápido e irregular.

Por vezes aproximara-se de uma janela, e por espaço de um segundo, apoiava a fronte no vidro para a refrescar, e depois tornava a tomar os seus movimentos de fera na jaula.

De repente parou.

Davam nove horas na pêndula de estilo Luís XIII, colocada sobre o alto da chaminé.

Ao mesmo tempo tocava a sineta do hotel, anunciando uma visita.

O Príncipe esperou imóvel com o rosto voltado para a porta.

Passado um minuto, a porta abriu-se e o criado anunciou:

— O senhor Malpertuis.

O agente, quando entrou, fez uma profunda reverência, à qual o Príncipe correspondeu com uma sumária inclinação de cabeça acompanhada das seguintes palavras:

— O senhor é exato e agradeço-lhe. O fim da sua visita é, por certo, dizer-me o resultado das pesquisas pedidas por mim.

— Sim, senhor Príncipe.

— E saiu-se bem?

— Perfeitamente.

— Sabe onde está a Marquesa de la Tour-du-Roy?

— Sei. e venho participar-lho.

— A Marquesa está ausente de Paris.

— Está em Paris, onde se oculta.

— Na Rua Murillo?

— Não. Na avenida de Eylau, Vila Montespan, num palacete com o n.°...

O Príncipe estremeceu.

— Desde quando? perguntou ele com uma voz abafada. — Há dez dias.

— E antes disso?

— Ocultava-se em Creteil, numa estalagem situada na cabeça da ponte.

— Em Creteil e na Vila Montespan! repetiu Emmanuel com uma angústia visível. A senhora de la Tour-du-Roy estava só?

— Não, senhor Príncipe.

O senhor de Brada tornou-se lívido, e teve um tremor convulso, mas fez sobre si mesmo um supremo esforço, e balbuciou:

— Um homem!

— Sim.

— O nome desse homem?

— Fernando Volnay.

— Fidalgo?

— Fernando Volnay, fidalgo! retorquiu Malpertuis num tom in-traduzível. Não! É um comediante dos arrabaldes.

— Oh! exclamou o Príncipe com desgosto. As pernas vergavam-lhe.

Deixou-se cair numa cadeira, ao mesmo tempo que limpava com o lenço as fontes molhadas de um suor frio.

 

Este estado de absoluta prostração durou pouco tempo. O senhor de Brada levantando a cabeça, continuou:

— Onde se conheceram?

— No teatro de Belleville. A Marquesa viu-o representar, e apaixonou-se por ele.

— O palácio da Vila Montespan pertence à senhora de la Tour-du-Roy?

— Não senhor Príncipe, mas a Fernando Volnay.

— Então ele é rico?

— Nada tinha. Foi um presente que lhe deu a Marquesa.

— Oh! repetiu o Príncipe.

Após um momento de silêncio, perguntou:

— Essas coisas extraordinárias que acaba de me dizer, são absolutamente ignoradas do público?

— No momento em que estou falando são, replicou Malpertuis, mas amanhã construirão o grande falatório de Paris.

— Como assim?

— Hoje pela uma hora da noite será a festa da inauguração no palácio da Vila Montespan, consistindo numa ceia de autores, jornalistas e atores.

— A Marquesa assiste?

— É ela quem vai presidir à festa. O comediante mostrou-se exigente, e a grande fidalga submeteu-se.

Emmanuel de Brada deixou pender a cabeça para o peito. Deslizavam-lhe dos olhos grossas lágrimas. Parecia fulminado.

Malpertuis tinha pressa de concluir.

— Prometi, cumpri a palavra, exclamou. Sinto que as informações obtidas sejam tão desagradáveis, mas eu devia dizer ao Príncipe toda a verdade:

O fidalgo ergueu a cabeça e murmurou:

— O senhor prestou-me um serviço, cumprindo aquilo a que se obrigou, e agora pertence-me cumprir aquilo a que também me obriguei...

E acrescentou abrindo uma gaveta da secretária, e tomando um maço de bilhetes de banco:

— Eis a quantia combinada... cem mil francos... conte, peço-lhe.

— Não me atreveria a contar depois do Príncipe! exclamou Malpertuis. Devo passar recibo?

— É absolutamente inútil. Está finda a sua missão. Não o demoro mais, e novamente lhe agradeço.

O Príncipe tocou uma campainha, e disse ao criado de quarto que se apresentou:

— Acompanhe este senhor...

 

UM GRANDE LANCE

Emmanuel de Brada, ficando só, deitou-se para trás na sua poltrona, e deixou vaguear os seus olhos tristes pelo teto pintado e decorado, mergulhado na penumbra.

A contração das suas feições lívidas, revelava com muda eloqüência a intensidade do seu sofrimento.

Cismava, e de segundo para segundo, tornava-se-lhe mais penetrante e dolorosa a insondável ferida do coração.

A pêndula dando dez e meia, tirou-o daquela terrível meditação.

Depois de ter passado duas vezes a mão pela fronte, como para afastar as imagens que o preocupavam, traçou algumas linhas sobre urna folha de papel, meteu-a num envelope, fechou-a com uma grande sinete de lacre preto, e expô-la bem cm evidência, no meio da sua secretária.

Em seguida, abriu uma segunda gaveta, pegou num revólver de coronha de ébano, com incrustações de prata, certificou-se de que os cartuchos estavam no seu lugar, e meteu a arma delicada na algibeira direita das calças.

Feito isto, transpôs a porta do quarto de dormir, escassamente iluminado por duas velas.

O imenso leito de colunas, com dossel e cortinas de Genova, parecia um catafalco.

Defronte deste havia um retrato em pé, de tamanho natural.

Representava este retrato uma mulher de feições nobres e cabelos brancos.

A um ângulo da tela, a coroa fechada encimava um duplo escudo.

O senhor de Brada contemplou este retrato com ternura.

Em seguida ajoelhou em frente dele. balbuciando:

— Minha mãe... minha mãe, perdoe-me!

Depois ficou silencioso, chorando sem enxugar as lágrimas.

Quando levantou os olhos, já enxutos, brilhavam estes de um modo estranho.

Entrou no seu gabinete de toilette, vestiu um pardessus muito leve, calçou as luvas, pôs o chapéu, tornou a atravessar o quarto de dormir, deitou um último olhar para o retrato, tocou uma campainha, e disse ao criado de quarto que se apresentou:

— Saio a pé.

— Deverei esperar o senhor?

— Não... Não sei a que horas tornarei a entrar. Emmanuel saiu do palácio, dirigiu-se para os Campos Elysios

e subiu lentamente a grande avenida com o passo automático de um homem cujo pensamento está ausente, e não tem consciência dos seus movimentos.

Chegando ao pé do Arco de Triunfo voltou para Paris.

A avenida, nitidamente delineada pelas luzes dos seus candeeiros, ia estreitando em direção à Praça da Concórdia, picada de pontos luminosos.

Por cima da grande cidade flutuava uma névoa avermelhada, quase semelhante ao último reflexo de um incêndio longínquo.

— Além há pessoas amadas... murmurou o Príncipe, há pessoas felizes.

E do peito saiu-lhe um longo suspiro.

Tornou a pôr-se lentamente a caminho dobrando, para a esquerda, e meteu-se pela Avenida de Eylau.

Quando chegava quase à praça do mesmo nome, onde está a pequena igreja Saint-Honoré. paróquia de uma parte importante do décimo sexto bairro, olhou para o relógio.

Era meia-noite.

— Ti muito cedo! pensou o senhor de Brada.

Quase em frente da igreja existe um estabelecimento, metade café, metade restaurante, cuja especialidade consiste em jantares de casamentos burgueses.

Vários noivos, rodeados das famílias e dos amigos, preludiavam naquela festa por meio de copiosas libações as alegrias problemáticas do casamento.

O gás flamejava na grande sala, onde saltavam as rolhas de vinho de champanha.

O café estava aberto, mas quase solitário.

O Príncipe procurava um lugar onde pudesse esperar.

Apresentava-se-lhe aquele muito a propósito.

Entrou e sentou-se.

Um criado aproximou-se dele e perguntou-lhe:

— Que devo trazer?

— O que quiser.

— Café, chartreuse, conhaque ou rum?

— Rum, respondeu Emmanuel ao acaso.

O criado colocou em cima da mesa uma bandeja já desprateada com um copo de cálice do tamanho de um dedal, e uma garrafa. Pelo espírito do Príncipe passou subitamente uma idéia.

— Dê-me um copo grande, disse.

 

Persuadido de que o freguês ia preparar um grog, o criado trouxe o recipiente pedido, uma garrafa d'água e açúcar.

O senhor de Brada deitou no copo grande todo o conteúdo da garrafa, e engoliu de um trago.

O criado observava cheio de curiosidade o que ele fazia e dizia consigo.

— Que freguês tão exótico! Se tem o costume de tratar assim o álcool, deve ser sujeito com a cabeça muito sólida.

Assim que bebeu, o Príncipe sentiu uma espécie de comoção elétrica.

Agitou-lhe os nervos um tremor nervoso, ao mesmo tempo que uma vermelhidão ardente lhe purpureava as faces, mas o tremor nervoso durou apenas um segundo, e o rosto retomou a melancólica palidez...

 

No momento em que o senhor de Brada entrava no café da Praça de Eylau. os convidados de Fernando Volnay chegavam ao palácio da Vila Montespan, cheio de flores, e mergulhado de jorros de luz.

A ceia devia ser servida por Paulo Brébant.

O amável e célebre restaurateur das letras, o amigo dos artistas, mandara um dos seus chefes de cozinha e dois ajudantes que preparavam na cozinha, situada no subterrâneo, algumas maravilhas gastronômicas.

— A sala de jantar, ainda deserta, mas iluminada a giorno, apresentava um maravilhoso aspecto.

As velas numerosas da suspensão dos candelabros e das serpentinas, faziam cintilar a baixela de prata completamente nova, os cristais, as porcelanas, e listravam de cintilações luminosas as louças artísticas suspensas da parede forrada de couro de Córdova.

No lugar de honra, ao lado do talher destinado a Lazarine, via-se um ramo do mais alto modelo.

Era uma galanteria que o artista fazia à amante.

Muito correto, e quase tão belo sob a casaca preta e o colete aberto do perfeito gommeux, como sob o gibão dos fidalgos, ou a casaca dos mosqueteiros, Fernando sentia-se literalmente ébrio de alegria e orgulho mas apresentava-se bem, e graças às feições reiteradas da Marquesa, recebia os hóspedes com uma facilidade de bom gosto, da qual alguns no íntimo se admiravam.

César de Fossaro fora um dos primeiros a chegar.

Quisera ver tudo, admirar tudo, e os seus cumprimentos hiperbólicos mergulhavam o comediante na alegria mais viva.

A meia-noite e meia o número dos convivas achava-se quase completo.

Lazarine, de quem todos tinham cuidado de não falar, mas que toda gente esperava com impaciência ainda não chegara.

Alguns convivas não estavam longe de supor que no momento de se comprometer de um modo irremediável, a grande senhora recusaria.

O Barão sentia-se inquieto.

Mas não tardou que se dissipasse a inquietação.

Entrou na sala Um criado de mesa, e falou em voz baixa a Fernando, que sorriu com indizível expressão de fatuidade, e saiu com o rosto radiante.

— Aí a temos... pensou Fossaro.

Quase no mesmo instante tornou a abrir-se a porta de par cm par, o criado de quarto fazendo as funções de introdutor, anunciou:

— A senhora Marquesa de la Tour-du-Roy...

Ao mesmo tempo Lazarine entrava pelo braço de Fernando, graciosa, risonha, radiante, como uma jovem imperatriz em meto da sua corte.

Elevou-se um murmúrio de admiração, aliás absolutamente sincera.

A deslumbrante Lazarine estava naquela noite mais deslumbrante talvez que nunca.

A sua toilette valia um poema.

Merece ser sumariamente descrita, a título de esclarecimento para as futuras idades.

A Marquesa trajava uma saia de cetim cor-de-rosa desmaiada, de imensa saúda, com aplicações de veludo cor-de-rosa frappé.

Entre as aplicações de veludo. sobrepunham-se laços de cetim cor-de-rosa e entremeios bordados de pérolas.

De cada lado da saia uma grinalda de rosas-chás, e de rosas-de-musgo.

O corpete, aberto em quadrado, muito baixo, e enfeitado de rosas, deixava ver quase completamente, com uma audácia de deusa segura de si mesma, a garganta triunfante.

O veludo cor-de-rosa, matizado de pérolas e de diamantes, formava as obreiras e o peitilho do corpete.

Nem uma jóia velava a esplêndida nudez dos braços e dos ombros.

Um pente de diamantes segurava-lhe no alto da cabeça os cabelos cor de fogo enrolados como os de uma ninfa.

Dois grandes caracóis desciam-lhe pelas costas chegando até a cintura.

Na mão esquerda trazia um leque maravilhoso, leque de Keés, o confeccionador de leques dos artistas e das princesas.

A firmeza de Lazarine, no momento de entrar, era mais aparente que real.

A Marquesa persuadia-se de que a admiração causada pela sua presença ia produzir um mal-estar geral.

Não sucedeu semelhante coisa.

Todos disseram consigo:

— Se ela aqui está, é por ser muito da sua vontade!

O meio mais seguro de lhe agradar, é simular que se acham muito simples as suas excentricidades.

 

A senhora de la Tour-du-Roy era muito inteligente para não compreender o que se passava no espírito dos convidados de Fernando.

Por isso readquiriu logo a sua serenidade.

Depois, entre os convidados, ela conhecia diversos, o Barão de Fossaro entre outros, o jovem diretor do Ambigu, e o autor dramático, cuja peça Fernando representava.

Achou uma palavra agradável para cada um dos convidados que o amante lhe apresentava, depois pôs-se a fazer coquetismo em regra com Chabrillart e Fossaro.

— Os senhores hão de ser meus vizinhos à mesa, disse-lhes ela. e pretendo embriagá-los a ambos...

— Bastariam os seus olhos para isso, senhora Marquesa, replicou César rindo.

Chabrillart aprovou com um gesto.

O criado de mesa apareceu, grave e solene, e proferiu com uma voz sonora a frase sacramental:

— A senhora Marquesa está servido.

— Lazarine foi a primeira a pôr-se a caminho, pelo braço de Fossaro, e os convivas seguiram-na em boa ordem à sala de jantar.

O princípio do jantar não foi animado, regra geral, que não julgamos tenha exceção, mas a senhora de la Tour-du-Roy encarregou-se de desfazer o gelo.

Como sabemos, ela estava senhora, havia muito, de todas as sutilezas do calão parisiense, e o melhor dos pais, (os leitores do Demônio Ouro, hão de estar lembrados disso), achava extremo prazer em ouvi-la fazer blague, quando ela era ainda a pequena Leroux.

Atirou com toda a franqueza a sua coroa de Marquesa para trás das costas, e deu o sinal da alegria gaulesa com uma verve endiabrada, com um brilho incomparável.

Os convivas não queriam outra coisa senão segui-la nesta senda, e quando a carpa do Reno à la Chambord fez a sua aparição, com o seu acompanhamento obrigatório de vinho de Chateau Yquem, meio gelado, todos falavam ao mesmo tempo, e tão alto, que ninguém se entendia.

 

Voltemos ao Príncipe de Brada.

Sentado, de cabeça baixa, diante da garrafa vazia, com certeza se absorvia nutri pensamento sinistro, porque a expressão do seu rosto tornava-se terrível.

O relógio do pequeno botequim, acabava de dar uma hora.

Os noivos, as suas famílias, e os amigos, tornavam a subir para a carruagem, e uma das testemunhas da noiva cantava com uma voz de tenor enrouquecida, um velho estribilho popular.

O criado chegou-se ao Príncipe.

— Senhor, disse-lhe. vamos fechar.

O senhor de Brada atirou para cima da mesa com uma moeda de ouro.

— Eu vou buscar o troco, disse o criado.

— Guarde tudo, replicou o gentleman. E levantou-se para sair.

Vendo-o afastar-se, o criado pensava:

— Este sujeito tão generoso, tem cara de alguém que projeta coisa má.

O Príncipe continuou o seu caminho; em menos de dez minutos chegou à grade da festa a entrada da Montespan, grade que tinham deixado aberta para as carruagens.

A Vila Montespan é uma rua de pequena extensão orlada de árvores que vai da Avenida de Eylau à Rua da Pompe, e ladeada à esquerda e à direita de graciosas habitações.

Emmanuel de Brada meteu-se por aquela rua.

Esquecera-se do número do palácio dado por Lazarine a Fernando, mas nessa noite era impossível um erro.

 

SOLUÇÃO FATAL

As janelas do palácio em festa, separado da avenida por um pátio muito estreito, cintilavam.

Uma das janelas tinha sido entreaberta para dar uma pouca de frescura à atmosfera ardente da sala de jantar.

Saía dali o ruído de alegres exclamações, de sonoras risadas, de tinir de cristais.

— É acolá... disse o Príncipe.

Entrou no pátio, cuja porta não estava fechada, e parou.

Os vapores do álcool que acabava de beber de um trago, subiam-lhe ao cérebro já perturbado pela dor, e ocasionavam uma espécie, de embriaguez ao mesmo tempo lúcida e feroz.

No rumor geral houve de repente uma interrupção.

Depois, uma voz elevou-se. e aos ouvidos de Brada chegara nestas palavras nítidas e distintas:

— Bebo à bela das belas! A Marquesa de la Tour-du-Roy, esclarecida protetora da arte e dos artistas!

Uma trovoada de aplausos acolheu este toast.

O Príncipe levou a mão ao coração que parecia estalar-lhe, um sorriso terrível descerrou-lhe os lábios, e com um passo pesado, mas firme, dirigiu-se para os degraus do vestíbulo.

Na sala de jantar os convivas faziam novamente grande ruído.

Produziam efeito as libações reiteradas dos vinhos de todas as qualidades.

A extrema liberdade dos ditos quase atingia a licença.

A ceia principiava a degenerar em orgia.

O ex-primeiro ator de Belleville achava-se no seu elemento o triunfava de um modo ruidoso, despejando sem cessar o copo renovado constantemente, e falando, ele só, mais alto que todos os convivas juntos.

Lazarine olhava para ele com paixão e com orgulho.

De repente levantou-se, segurando na mão um copo meio de champanha gelado.

— Escutem! Escutem! bradaram vinte vozes, a Marquesa quer falar.

A senhora de la Tour-du-Roy sorriu.

— Senhores, disse ela. vão-me corresponder. Chegou o copo à flor dos lábios e exclamou:

— Bebo ao rei do mundo! Bebo ao demônio amor! Amar é viver.

Exatamente neste momento a porta que ficava detrás de Fernando Volnay, e defronte da qual se achava Lazarine, abriu-se repentinamente. e o senhor de Brada apareceu.

A senhora de la Tour-du-Roy viu-o, soltem um grito de terror e tornou-se pálida como uma estátua de alabastro.

— Amar é viver diz? Pois amar é às vezes morrer, replicou o Príncipe com uma voz abafada.

Todos compreenderam instintivamente que alguma coisa terrível ia se passar.

Ficaram assombrados e aterrados.

Fernando Volnay levantou-se e encaminhou-se para o singular visitante.

— Senhor, disse-lhe num tom quase ameaçador, está em minha casa. Não o conheço. Quem é? Que me quer?

— Chamo-me o Príncipe de Brada, respondeu Emmanuel desdenhosamente, e estou em casa do amante pago pela Marquesa de la Tour-du-Roy, bem o sei, mas não é com o senhor que tenho contas a ajustar, é com ela.

— Senhor! exclamou Fernando.

— Ah! Cale-se! ordenou o Príncipe com uma autoridade que constrangeu o ator ao silêncio. Repito, não falo com o senhor, falo com aquela que tinha jurado ser Princesa de Brada! Joguei a existência sobre o amor e sobre a honra desta mulher, e dissera-lho! Atraiçoar-me cobardemente, era condenar-me à morte. Sabia-o e não hesitou. E não é só a sua traição que me mata, é a sua vergonha. Vou morrer, Lazarine, porque a amei! Vou morrer porque sou covarde, e apesar de tudo ainda a amo. Mas morrendo, farei justiça. Não quis partilhar a minha vida, partilhará a minha sepultura!

E dizendo isto, Emmanuel de Brada tirava da algibeira o revólver engatilhado.

Pronto como o raio, apontou para Lazarine.

Fossaro que dera volta à mesa, achava-se ao lado do Príncipe.

Agarrou-lhe no braço no momento em que dava ao gatilho.

O revólver desfechou, mas a bala sumiu-se no teto.

A senhora de la Tour-du-Roy, julgando-se ferida, desmaiou de terror.

Emmanuel de Brada desembaraçou-se com um movimento repentino das mãos de Fossaro, recuou um passo, encostou o revólver à fronte, fez fogo e caiu morto.

A esta dupla detonação seguiu-se então um tumulto geral.

Todos os convivas se agruparam assustados, uns em roda do cadáver do Príncipe, outros junto do corpo da Marquesa.

 

— Era um louco! exclamou o Barão.

— Um louco bem malévolo! retorquiu Fernando Volnay. Quase feriu Lazarine, e mata-se sobre as minhas alcatifas! Que coisa tão bonita! Vamos jogar as cristas com a justiça!

— Soberbo desenlace de drama para o Ambigu, pensava Chabrillat. Amanhã falarei nisto a Busnach.

Levaram a senhora de la Tour-du-Roy para o seu leito, onde não tardou a recuperar os sentidos.

Ao mesmo tempo um criado corria a toda pressa a chamar um comissário de polícia.

O suicídio, presenciado por vinte testemunhas, não podia ser posto em dúvida.

Logo depois de ter redigido o auto de corpo-de-delito, o comissário fez colocar o corpo do Príncipe numa carruagem que conduziu no palácio pelo senhor da Rua do Elyseu.

Ali. abriram a carta deixada pelo senhor de Brada sobre a secretária.

A carta atestava que ele resolvera matar-se, depois de ter matado a Marquesa.

Ti escusado afirmar que os jornais do dia seguinte, falariam todos da festa tão lugubremente terminada em casa de Fernando Volnay.

Foi para o comediante uma verdadeira auréola, e para Lazarine um deslocamento completo.

Daquele dia em diante, a Marquesa de la Tour-du-Roy, apesar do seu nome e do seu título, já não pertencia à verdadeira sociedade, mas à sociedade das mulheres de mau proceder.

— Tem o demônio no corpo! pensou o melhor dos pais. Era tão fácil esposar o Príncipe, evitar todo o escândalo, e conservar o ator!

Sempre prático o bom Júlio Leroux!

O senhor de Fossaro levou a notícia da catástrofe ao Príncipe Totor, que não suspeitava dos novos amores da sua antiga noiva.

— O tal senhor de Brada tinha a cabeça um pouco fraca na verdade! disse. Foi melodrama demais! Então aí temos a Marquesa amante declarada do comediante?

— Sim, querido, Príncipe, e foi o senhor que o lançou nos seus braços.

— Eu! Como?

— Paga a Fernando os juros da estocada que ele lhe deu ao senhor.

 

Heitor ia cada vez melhor.

Antonino Frébault permitia-lhe agora levantar-se depois do meio-dia, e dar duas ou três voltas pelo quarto.

Dali em diante a convalescença devia ir depressa.

No dia seguinte à ceia da Vila Montespan, Malpertuis dirigiu-se para o Havre, onde embarcou para New York.

Durante a sua ausência, o empregado principal ficava encarregado da direção da agência, mas tinha ordem de só dar seguimentos aos negócios de pouca importância e de solução fácil.

Todas as cartas, todos os papéis destinados a Malpertuis, deviam ser classificados dia a dia, e colocados em boa ordem em cima da secretária do agente.

Fossaro podia, assim, todas as noites tomar conhecimento deles, e sem se por em evidência pessoalmente, fazer o necessário em caso de urgência absoluta.

Nada, aliás, fazia supor que um caso deste gênero se havia de apresentar.

O Barão ocupava-se ao mesmo tempo do palácio do arrabalde Saint-Honoré, e do da Rua Francisco I.

Queria despedir um grande golpe, um golpe decisivo para ambos os lados ao mesmo tempo.

As breves palavras de Branca, depostas no quiosque do jardim, sob o musgo do vaso de Delft, davam-lhe a certeza de que o estado da Marquesa se tornava cada vez mais grave, e que o Duque, uma ver viúvo, não hesitaria em pôr o seu nome e tudo quanto lhe pertencia, aos pés da falsa Adriana.

Antonino Frébault, da sua parte, confessou ao Barão o enfraquecimento rápido da senhora de Chaslin, sem ocultar que este enfraquecimento lhe parecia inexplicável e nada natural.

 

Roguemos aos nossos leitores que nos sigam ao arrabalde Saint-Honoré, ao quarto de dormir de Joana de Chaslin.

A doente concluía a leitura de uma carta que acabava de chegar, e o seu rosto pálido exprimia alegria.

"Branca sentada junto dela, observava-a atentamente.

— Parece-me que a senhora Duquesa recebeu boas notícias.

— Sim, minha filha, respondeu Joana, boas notícias. Ú uma carta de meu filho...

— Do senhor Rogério.

— Do meu querido Rogério, do 7.º de hussares... Não me escrevia havia um mês.

— O seu regimento continua em guarnição na Haute-Saône?

— Sim, em Vesoul... Mas Rogério ficará livre dentro de alguns meses e voltará... Verá então, Adriana, que quando eu faço o seu elogio, o meu orgulho e o meu amor de mãe não exasperam as suas qualidades. É o que se chamava cm outros tempos um cavalheiro perfeito, e hoje se chama um perfeito gentleman! file fala em você, Adriana.

— Em mim! exclamou a jovem com verdadeira admiração. — Sim, minha filha...

— Mas como é isso, minha senhora?

— É muito simples. A minha última carta deu-lhe parte da sua entrada para a nossa casa... Disse-lhe que tínhamos tido a alegria de encontra em você a filha de amigos nossos, que outrora nos foram bem caros. Gabei-lhe os cuidados tocantes, a afeição terna. a dedicação de que me rodeia.. Tem pressa de a conhecer, de lhe agradecer, de a amar tanto como nós a amamos. A menina também o há de amar, não é verdade, Adriana?

— Como não hei de o amar, senhora Duquesa, se é seu filho?

— E depois ele é tão bom, tão interessante! Não julgue que me iludo a respeito da sua beleza. Vai avaliar.

— Eu, minha senhora!

— Sem dúvida, e já... Rogério manda-me a sua fotografia de grande uniforme. Olhe...

A senhora de Chaslin tirou-a do sobrescrito, e mostrou â jovem um retrato.

Branca olhou com curiosidade para a fiel imagem do Marquês Rogério de Chaslin de Hervilliens, naquela ocasião quartel-mestre do 7.° de hussares.

Aquelas feições corretas sem frieza, e aristocráticas sem altivez, aquele rosto exprimindo ao mesmo tempo a doçura e a firmeza, aqueles grandes olhos ternos e altivos, impressionaram-na vivamente.

A elegância do talhe, a gentileza viril do busto, completavam o mais elegante conjunto que se pode imaginar.

A filha de Pedro Carnot não podia despregar os olhos do retrato, e pela primeira vez experimentava contemplando-o uma sensação de perturbação que não era destituída de encanto.

— Então! Tenho ou não razão? perguntou a senhora de Chaslin, a quem a admiração visível da jovem causava um gozo delicioso. Não será belo o meu Rogério?

— Oh! Sim, muito belo! respondeu Branca com entusiasmo. Nunca vi ninguém tão belo. Parece-se consigo, minha senhora... Tem os seus olhos e o seu sorriso... Tem a sua fronte, onde brilha a inteligência. Deve ser bondoso, como é a senhora.

— É um coração de ouro, uma alma eleita! exclamou a Duquesa. Ah! Querida, querida Adriana, adivinhou-o, compreendeu o meu Rogério, e parece-me que será motivo para ainda mais a amar.

E Joana de Chaslin, puxando Branca para si, abraçou-a, beijou-a na fronte por muitas vezes com uma ternura quase maternal, murmurando com uma voz muito baixa, mas distinta:

— Se pudesse um dia chamar-lhe filha! Branca sentiu um grande abalo.

Como um raio de luz, acabava uma idéia de lhe perpassar pelo espírito.

— Eli, minha senhora, eu sua filha!

— Decerto.

— Que diz. minha senhora?

— Digo que se realizaria o meu sonho mais caro.

— Mas é impossível!

— Então, por quê? Sente-se junto de mim, Adriana, e conversemos...

 

INTRIGAS

— A minha querida Adriana tem vinte anos, continuou a senhora de Chaslin. É a idade em que se decide da vida... A aparente inferioridade da sua posição causa-me uma verdadeira mágoa.

— Não pense em tal.

— Pelo contrário. É tempo de, aos olhos de toda a gente, se tornar a filha do Conde de Lasseny. É preciso que o seu futuro se decida.

— O meu futuro, interrompeu Branca, cobrindo de beijos uma das mãos da Duquesa, consiste em ficar para sempre junto de si.

— Sim, conheço a sua profunda afeição, estou convencida da sua dedicação sem limites, replicou Joana, e é por isso que vou falar como falaria a uma filha minha... Pertence a uma família que foi outrora aliada aos maiores nomes da França... A nobreza de Lasseny vale pela de Chaslin. Creio que o seu coração está livre... Se assim não fosse mo diria... O meu filho Rogério não tarda que volte para junto de nós, porque o alistamento que ele contraiu num momento de despeito, chega ao seu termo. Vai vê-lo, conhecê-lo, avaliá-lo. Se Deus permitir que ele a ame, e se Adriana se sentir impelida para ele, dir-lhe-ei: Adriana, querida Adriana, quer ser minha filha?

Branca deixou-se cair de joelhos diante do leito:

— Ah! minha senhora, balbuciou com voz trêmula, ser mulher de seu filho! Dar-lhe em voz alta esse título de mãe que lhe pertence no meu coração, seria uma felicidade que não me atrevo a imaginar! Reflita, minha senhora, quão pobre sou!

— E o que importa? Rogério tem riqueza suficiente para ambos! Escrever-lhe-ei... Deixar-lhe-ei entrever vagamente os meus projetos e as minhas esperanças... O senhor de Chaslin, a quem não quero ainda falar do delicioso sonho que me preocupa, não poderá deixar de me aprovar. Estou firmemente convencida de que ele me animará na minha resolução.

 

O Duque acabava de abrir a porta cio quarto de dormir. Ouvira as últimas palavras.

— De que resolução fala, querida Joana? perguntou Joana ficou sobressaltada.

O Duque prosseguiu:

— A senhora já tinha falado de um projeto vago que amadurecia no seu espírito. Não me explicará hoje do que é que se trata?

Branca esperava toda trêmula a resposta da Duquesa. Desta resposta ia depender o seu futuro, e o dos planos concebidos por Pedro Rédon.

A senhora de Chaslin disse com um sorriso:

— Paciência, meu amigo... Eu me explicarei, mas um pouco mais tarde... Tenha confiança em mim, e lembre-se de que trabalho para a felicidade de Adriana.

Henrique não insistiu. Pensava:

— A felicidade de Adriana! É a mim, e só a mim, que pertence assegurá-la.

Depois do seu regresso ao palácio, depois da sua fuga para a Roche-sur-Loire, o senhor de Chaslin não dirigira uma só palavra de amor à jovem.

Só os seus olhos revelavam a sua paixão.

Conservava-se senhor de si, mas o mutismo que se impunha exacerbava-lhe a loucura.

Estas palavras: a felicidade de Adriana, proferidas pela mulher, acabavam de lhe causar uma sensação de angústia.

Queria saber se a menina de Lasseny conhecia o segredo da Duquesa.

 

Durante toda a noite espreitou a ocasião de se achar a sós um instante com a falsa Adriana.

Como a ocasião se apresentasse, aproveitou-a. Com uma voz alterada pela comoção, murmurou:

— Depois da cena deplorável em que, para impor a minha vontade, tive de deixar o palácio, murmurou ele com uma voz perturbada pela comoção, nunca lhe falei da hora mais luminosa da minha existência... da hora cuja recordação me faz febre... da hora abençoada em que me disse que talvez me amasse algum dia...

— Senhor Duque, replicou a jovem mergulhando o rosto nas mãos para ocultar uma vermelhidão imaginária, não me lembre, peço-lhe, as palavras imprudentes que a mim mesmo exprobo amargamente, e das que eu quereria até apagar a recordação...

— Pelo contrário, replicou o Duque, preciso de lhas recordar, preciso não as esquecer nunca, senão por amor. pelo menos por piedade. A sua indiferença, seria a minha morte! Só a esperança me sustenta! Ora, desde esta manhã já não vivo! A Duquesa ocupa-se, disse, da sua felicidade... Essa pretendida felicidade assusta-me... ela tenciona casá-la?

— Eu, senhor Duque, casar-me! exclamou Branca com uma surpresa admiravelmente fingida.

— A Duquesa não lhe deu a saber quais as suas intenções relativas ao seu futuro?

— Nunca...

— Pois é possível isso?

— A senhora Duquesa exprimiu-se vagamente, como se estivesse na sua presença, e sem me deixar ler no fundo do coração.

— Isso é verdade?"

— Juro-lhe.

— Então acredito... quero acreditar... É que. Adriana, sabe tudo me inquieta e mete medo... Amo-a tanto!

Branca pôs as mãos, e disse com voz aterrada:

— Suplico-lhe, senhor Duque, rogo-lhe, não me fale assim... Não posso escutar semelhante linguagem.

Henrique de Chaslin fez-se pálido.

— Ah! exclamou sentindo o coração oprimir-se-lhe, não me ama, nunca me amará.

 

A filha do Pedro Carnot, como grande atriz que era, conseguiu derramar verdadeiras lágrimas, filie num instante lhe inundaram o rosto.

— Ah! balbuciou ela com uma fingida alucinação, é porventura o momento de me interrogar, e como poderei responder-lhe quando eu mesma ignoro o que se passa no fundo do meu coração. Não é meu rigoroso dever lutar com todas as minhas forças? Quando me acho em presença da senhora Duquesa, tão boa, tão terna, tão maternal para mim, deploro o fato de lhe inspirar um sentimento criminoso... Deus sabe que não tenho culpa nenhuma disso, e contudo faço horror a mim mesma como se fosse culpada.

— Adriana... Adriana... murmurou o Duque chegando ao paroxismo da paixão, tenha piedade daquele a quem enlouquece, e não desejaria curar-se da sua loucura... O meu amor consome-me. o meu instinto adverte-me que a Duquesa pensa em nos separar, lançando-a nos braços de um marido. Para tornar irrealizável o projeto insensato que ela concebeu, só tem um meio, um só...

— Qual?

— Seja minha!

Branca recuou dois passos fria e altiva, com o olhar desdenhoso e carregado de cólera.

— Se é esse o seu amor, como se exprime o seu desprezo?

O senhor de Chaslin pôs um joelho em terra com verdadeira alucinação.

— Ofendi-a, balbuciou. perdoe-me! repito-lhe que enlouqueço! O sangue exalta-me as veias... A sua beleza embriaga-me, e faz-me perder a razão... Perdoe-me, perdoe-me!...

O Duque estendia para Branca as mãos trêmulas.

Branca tomou-lhas apertando-as suavemente nas suas.

A este contato, Henrique estremeceu.

Por diante dos olhos perturbados, passou-lhe uma nuvem de fogo.

— Para todos os pecados há misericórdia! murmurou a jovem com um meio sorriso. Perdôo-lhe, mas não torne a pecar! Deve levantar-se, senhor Duque, e não esquecer que não está livre...

— Quando eu estiver livre, replicou o senhor de Chaslin com voz abafada, a senhora será Duquesa...

E sem voltar a cabeça, afastou-se com um passo vacilante.

— Duquesa... pensava Branca que ficara só, Duquesa com este velho! Rogério, esse é moço, esse é formoso... e também ele há de ser Duque um dia.

 

Durante toda a refeição da noite, Henrique de Chaslin esteve triste e sombrio.

Para explicar a sua atitude, alegou que estava um pouco doente, e dirigiu-se muito cedo para o seu quarto particular, onde se fechou.

Por volta das dez e meia a Duquesa mandou Branca deitar-se.

Muito antes da meia noite, os criados do palácio tinham-se retirado.

A falsa Adriana, depois de se certificar que a senhora de Chaslin repousava, dirigiu-se nos bicos dos pés para o segundo aposento, que como sabemos, tinha uma saída para a escada de serviço.

Desceu sem fazer ruído, e abriu a porta que deitava para o jardim.

Tornou a escutar, não ouviu nada de suspeito, saiu e dirigiu-se através dos massiços, para o pavilhão rústico, onde depunha os bilhetes lacônicos destinados a Pedro Rédon.

No momento de ali chegar estremeceu e parou como uma cabrinha espantada.

Acabava de distinguir um ruído fraco, mas distinto, do lado da grade que deitava para a avenida Gabriel.

O encontro era para a meia noite... pensou a jovem.

Ele é exato. Deve ser ele.

Correu a ocultar-se detrás de um grupo de arbustos, e com os olhos fitos na portinha aberta na grade, aguardou.

Girou uma chave na fechadura.

A porta abriu-se.

Pedro Rédon entrou, e tornou a fechar a porta após si.

Branca saindo do seu esconderijo, avançou.

— Vim, porque o senhor me ordenou, disse ela em voz baixa, mas é uma imprudência... Tenho pressa de voltar para o meu quarto. Fale depressa. Por que foi que não escreveu segundo o costume?

— Porque há coisas que não podem escrever-se. replicou o cego de um olho.

— Pedro, assusta-me.

— Por quê?

— O papel que me impõe nesta casa, é odioso.

Pedro encolheu os ombros, rindo com uma expressão sarcástica.

— Tem por acaso remorsos? perguntou.

— Tenho.

— Escolhes a ocasião própria! Remorsos quando estás a tocar numa imensa fortuna, num título de Duquesa! Toma cuidado! No dia em que tu fraquejasses, tu minha cúmplice, tu minha escrava, suprimir-te-ia... e eu não teria remorso!!

E ao mesmo tempo que ia proferindo estas palavras, Pedro Carnot pegara no braço da jovem e apertava-lhe com força despedaçadora.

— Ah! pensou ela cheia de terror, não hesitaria, era muita capaz de me matar como diz.

Depois em voz alta:

— Prometo-lhe ser forte e obedecer. Que devo fazer?

— Tornar a pôr, amanhã já, em cima da mesa da Duquesa, em lugar do frasco de grânulos de digitalina, o frasco que te dei.

— O que encerra o frasco?

Pedro Carnot sorriu com uma expressão malévola.

— A coroa ducal, e os milhões de Henrique de Chaslin... Branca estremeceu.

— A morte da Duquesa, balbuciou.

— Ora essa! pois não é preciso que o Duque enviúve para te desposar?

— Amanhã farei a troca.

— Tenha o cuidado, tornou César, de retirar o frasco suspeito à hora da visita, cotidiana do doutor.

— Esteja descansado...

— Não tinha mais nada a dizer. Retira-te, se quiseres... vou--me embora.

Pedro Carnot dirigiu-se para a grade sem acrescentar palavra. Dali a um minuto estava fora do jardim.

 

Branca muito assustada, voltou para o quarto. Pela primeira vez, de certo, tinha ela plena consciência do crime horroroso de que se fazia instrumento.

Horrorizava-a o crime, mas não pensava em recuar.

Desobedecer a Pedro Carnot parecia-lhe impossível.

Depois, a sua ambição sem limites impelia-a.

Deitou-se e adormeceu quase no mesmo instante.

O seu sono foi agitado, nervoso, povoado de sonhos espantosos.

A imagem do filho da Duquesa volvia sem cessar aos seus sonhos.

E ao romper do dia, (mando despertou, o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi este, já formulado na véspera, após a sua entrevista com o senhor de Chaslin:

— Rogério há de ser também Duque!

 

Passaram-se alguns dias sem sobrevirem fatos imprevistos.

Antonino Frébault cada vez se admirava mais da marcha extraordinária da doença de Joana, marcha, que segundo já dissemos, transtornava-lhe as previsões, e comprometia-lhe a ciência.

Para ele a Duquesa estava, havia muito, condenada sem apelo.

Podia ele por ventura imaginar que mão criminosa apressava o fim da desgraçada mulher!

Todos os crimes têm um móvel, ou a Cupidez ou a vingança.

A que móvel atribuir um assassinato cometido na pessoa da Duquesa?

Ninguém no mundo, parecia, tinha interesse na sua morte.

Antonino Frébault nem por isso estava menos preocupado a esse respeito, e não ocultava as suas preocupações ao fiarão de Fossaro.

Na rua de Francisco I, pelo contrário, tudo corria o melhor possível.

A convalescença do Príncipe Totor fazia rápidos progressos, o doutor, encantado, esfregava as mãos.

Uma manhã, segundo o costume. César fez-se anunciar em casa do ex-Bégourde.

Seriam umas onze horas da manhã.

Heitor, já levantado, com o rosto sereno, cor fresca, concluía a sua toilette sem auxílio do criado de quarto.

 

UMA ARMADILHA

— Os meus cumprimentos, querido Príncipe! exclamou o Barão. A cura está hoje completa, e vejo-lhe cara de quem está bom. Vai sair?

— A cara não engana, volveu Heitor rindo. Sinto-me inteiramente bem disposto... As forças voltaram-me, e vou aproveitá-las para fazer algumas visitas...

— Visitas! Seriamente?

— Muito seriamente.

— Não têm medo da fadiga?

— Fatigar-me-ei, não há dúvida: mas o nosso amigo Frébault não vê agora nenhum inconveniente nisso.

— Se tem autorização do doutor, tudo vai bem...

— De mais, tornou o Príncipe Totor, é preciso que torne a entrar no movimento, e deixe de me poupar. Daqui a alguns dias tenciono reunir os amigos à mesa para festejar de copo em punho a minha cura completa. O senhor está no alto da lista. Espero mostrar-me sólido bebedor, como antes do meu duelo.

— Beberemos de bom grado à sua saúde, e quando não bebêssemos, não sei quando deveríamos beber. Agora, querido Príncipe, outra coisa.

— Diga.

— Quer ser-me agradável?

— Se duvidasse disso, nunca lhe perdoaria! De que se trata?

— Um compatriota meu, capitão de longo curso, a quem prestei alguns serviços, acaba de me enviar, como testemunho de gratidão, uma coleção de armas indianas, que não têem outro mérito mais que a sua extrema originalidade. Permita-me que lhas ofereça para as panóplias já tão ricas, do seu gabinete de fumar.

O senhor de Castel-Vivant replicou, apertando a mão de Fossaro:

— Aceito-as, meu querido Barão, aceito-as com muito gosto, e agradeço-lhas de todo o coração.

— Eu é que lhe fico agradecido, tornou Cesar, porque me aceita um presente tão modesto... Mandar-lhe-ei as armas por um operário italiano, muito hábil e cheio de experiência, que as disporá nas panóplias, coisa bastante difícil... O operário apresentar-se-á na primeira ocasião com o meu bilhete de visita... Previna o seu criado de quarto para que ponha o gabinete de fumar à sua disposição durante duas horas.

— Fica entendido.

— Demais, procurarei achar-me aqui ao mesmo tempo do que ele e talvez lhe possa dar indicações úteis...

— Isso assim será melhor...

 

Fossaro despediu-se do Príncipe.

Heitor, um quarto de hora depois, subia para o seu coupê, e dava ordem para o conduzirem à rua Julien Lacroix.

Tinha pressa de tornar a ver a sua adorada Lucilia, que havia quatro dias que não vinha ao palácio da rua Francisco I.

Era irrevogável a resolução do Príncipe. Queria desposar a Toutinegra no mais breve prazo, sem se preocupar com o que diriam os seus antigos amigos, vendo-lhe dar o seu nome e os seus milhões a uma rapariga sem outro dote mais que os seus cabelos louros, os seus belos olhos, e a sua virtude.

Que lhe importava a opinião do mundo?

De gracejos e zombarias não fazia caso.

Parecia-lhe absurda a sua existência passada.

Os seus sonhos eram a vida a duo, a felicidade íntima, e tinha grandes esperanças de dar ao nome principesco de Castel-Vivant numerosos herdeiros.

Pensava nestas coisas, enquanto rodava na direção de Beleville.

Quando tornou a ver a casa de Lucilia, uma salutar comoção fez-lhe palpitar o coração de um modo violentíssimo.

Vagarosamente, porque as suas forças, apesar do que Fossaro tinha dito, ainda não tinham completamente voltado, meteu-se pelo corredor, passou pela frente do cubículo da porteira que não lhe deu atenção, e não sem algum custo, subiu os degraus, parando em cada andar para retomar o fôlego.

Deixando-o prosseguir na sua ascensão, precedê-lo-emos em casa de Lucilia.

A órfã, rica com os cinco mil francos, adiantados por Malpertuis, dissera que devia estar preparada para a viagem a Nice, cuja época se fixaria de um momento para o outro.

Tinha por isso comprado diversas fazendas, e cortava, ajustava, cosia com uma habilidade de fada, e uma perícia de parisiense.

Não querendo ainda confiar à tia e à senhora Verdier a sua felicidade, pretendia fazer executar os trabalhos encomendados pela casa de confecções que lhe dava que fazer.

No momento em que transpomos o limiar da mansarda, Lucilia andava em roda da cega, a qual estava em pé e muito preocupada.

— Mas espera, pequena, dizia a boa da velha, que estás a fazer? Parece que estás a tomar-me medida de um vestido.

— E tem razão, minha tia, volveu a Toutinegra rindo, quero fazer-lhe um vestido novo.

— Porque, o meu está rasgado?

— Rasgado, não, mas usado; é preciso substituí-lo o mais depressa possível.

— Bem sabes que tenho outro, ainda muito bem conservado.

— Sim, sim, bem sei, mas isso não vai ao caso... seja como for há de ter um novo...

— Pois é muito preciso?

— É indispensável... e também saias brancas.

— Saias brancas! Como as senhoras ricas. Ó pequena, tu estás doida!

— Estou com o meu perfeito juízo, tia, o que eu quero é vê-la bem vestida...

— Imaginas que me vestirei assim na Salpétrière! Zombariam de mim.

— Será para os dias em que vier cá...

— Bem. visto que assim queres, resigno-me a fazer-me coquette. — Isso... As minhas medidas estão tomadas. Vou preparar um molde, e principiar imediatamente.

— Fazes-me um vestido preto, não é assim?

— Sim, minha tia.

— De molleton? Agasalha muito o molleton.

— Sim, minha tia.

— Deixa-me apalpar a fazenda...

Lucilia sorriu, deitando os olhos para um corte de bela seda preta que se preparava a cortar, e respondeu:

— Ainda não tenho cá a fazenda... Irei buscá-la amanhã, e ao mesmo tempo direi ao sapateiro que lhe traga as botinhas...

— As botinhas! exclamou a cega batendo as palmas. Espera lá! casa-se alguém, e nós vamos ao casamento?

— Talvez, tia, respondeu a Toutinegra tornando a sorrir. O que haveria nisso de espantar?

— Se fosse o teu, quão feliz seria! tornou a anciã. E contudo não poderia ver-te, pequena! acrescentou tristemente. Deus negou-me essa alegria!

— Querida tia, não esteja a pensar em coisas tristes! A gente precisa de se resignar a tudo cá nesta vida. Esta é a hora em que tem por costume dormir um sono. Vou conduzi-la ao outro quarto. enquanto dorme cortarei eu os meus moldes.

— Isso, minha querida, guia-me...

Lucilia pegou na mão da cega, que tendo de se encostar à jovem, abraçou-a com uma voz trêmula por efeito da comoção.

— Que o bom Deus te abençoe, como eu te abençôo! Tens o coração de um anjo!

A órfã devolveu à cega os seus ósculos.

Depois, fazendo-lhe transpor o limiar do segundo quarto, instalou-a num fauteuil, fechou a porta após si e voltou para junto da mesa continuando a trabalhar.

Enquanto cortava o molde segundo as regras, a Toutinegra cantava, ou antes trauteava a meia voz, ao mesmo tempo que o seu pensamento vagabundo afagava as mais risonhas esperanças.

 

Bateram devagar à porta, tão devagar que Lucilia, julgando ter ouvido mal, levantou a cabeça e pôs o ouvido à escuta. Tornaram a bater.

— Entre quem é, disse a jovem. A porta abriu-se.

A órfã reprimiu um grito de surpresa e alegria. Em frente dela estava o principezinho, que esfalfado por uma ascensão de cinco andares, se apoiava à ombreira da porta.

A pobre pequena murmurou com uma voz fraca como um sopro:

— O senhor! em perigo de novamente cair doente! Que imprudência.

— Lucília! querida Lucilia! volveu Heitor pegando nas mãos que a sua prometida lhe estendia, e levando-as aos lábios, há quatro (lias que não a via.

— Venha sentar-se depressa! Como está pálido! Tem a testa suada! Que loucura! Como eu vou ralhar com o senhor... se tiver coragem para isso!...

— Ah! como eu a amo! (ornou Heitor... Se Lúcia...

A órfã pôs-lhe a mão na boca para o interromper, deitando um olhar para o quarto próximo.

— Minha, tia está acolá, disse ela. Não quero que ela me ouça...

— Então ela não sabe ainda nada...

— Nada...

— Pois bem, serei eu quem lhe há de dizer tudo. Para mim, substitui a mãe que perdeu, é a ela que eu devo pedir a sua mão.

— Heitor! Como é bom e leal o seu caráter!

— Pois é ser leal fazer o seu dever de homem de bem? É bondade querer tornar indissolúvel os laços de amor que já nos unem? A minha pressa não passa de egoísmo! Quero apressar o momento da minha felicidade. Ainda hoje estarei com a sua tia, falarei com ela, obterei o seu consentimento para a nossa próxima união. Dentro de poucos dias reunirei os meus amigos fiara um jantar, em que me despedirei desta vida de solteiro, que abandono sem pesar. Logo em seguida partiremos para Nice, deixando os papéis necessários fiara os nossos banhos. Assim que voltarmos assinaremos o contrato que havemos de encontrar já pronto. Depois, querida filha adorada, conduzi-la-ei à "mairie" e à igreja, donde sairá Princesa de Castel-Vivant. Convém-lhe assim, não é verdade?

— Pois lembra-se de me perguntar semelhante coisa? murmurou Lucilia sorrindo e fazendo-se corada ao mesmo tempo.

Após um momento acrescentou:

— Permite-me que lhe faça uma pergunta?

— De certo, e não uma só, mas cem.

— Bastará uma... esta: Quanto tempo durará a nossa viagem?

— Perto de um mês.

— Muito bem, se quer tornar-me muito feliz, prometa-me uma coisa.

— Prometo-lhe já. De que se trata?

— Que me permita ser eu que fixe o dia da assinatura do contrato.

— Por quê? exclamou Heitor surpreendido.

— Nada de curiosidade, peço-lhe! É o meu segredo. Demais, o senhor prometeu...

— E cumprirei a minha promessa. Mas não demorará a minha felicidade?

— Não, porque seria demorar a minha...

O principezinho beijou a mão de Lucilia e continuou com ar tímido e visível hesitação.

— Agora, minha querida, pertence-me também fazer-lhe um pedido.

Lucilia olhou para ele com muita curiosidade.

— Oh! é um pedido muito simples, acudiu o Príncipe. Vai ser minha mulher... Entre nós tudo será comum. Sou rico, e Lucilia não é. Aceite um adiantamento sobre a comunidade. Permita-me que lhe ofereça...

— Que me sirva da sua bolsa? interrompeu a Toutinegra; já recusei, e torno a recusar.

— Lembre-se de que para a nossa próxima viagem terá precisão de muitas coisas.

— Já as tenho. Veja, estou fazendo os meus preparativos. — E Lucilia mostrava as fazendas colocadas em cima das cadeiras.

— Foi Lucilia quem comprou tudo isso? murmurou o Príncipe estupefato.

— De certo, e causa-lhe admiração?

— Alguma, bastante até. Tinha-me dito...

— Então?

— Mas tinha algumas economias... Sem falar no armazém para onde trabalho, que tem confiança em mim, e me fia tudo quanto quero.

— Lucilia, Lucilia... suspirou o Príncipe. É feio, é muito feio! Dir-se-ia que capricha em não aceitar nada de mim...

— Ingrato! volveu a órfã fitando em Heitor um demorado olhar em que se exprimia a infinita ternura que lhe transbordava do coração. Aceito o seu amor... Dou-lhe o meu... e queixa-se!...

Absortos no seu colóquio, não tinham ouvido abrir a porta do quarto próximo.

A tia cega, muito próxima, e com o rosto transtornado, parou no limiar da porta.

— Lucilia, exclamou ela com uma voz agitada e quase desconhecida, tu não estás só...

Vendo a septuagenária, o Príncipe e a Toutinegra levantaram-se com vivacidade.

Heitor quiz dirigir-se para ela.

Lucilia deteve-o com um gesto e respondeu.

— Efetivamente, tia, não estou só...

— Quem está contigo?

— Uma pessoa de amizade.

— Uma pessoa de amizade! repetiu a cega. Não se dizem a uma simples pessoa de amizade as palavras que acabo de ouvir... e que me assustam.

A órfã tornou-se purpúrea.

— Tia, balbuciou ela, duvida de mim? Isso seria cruel... seria injusto.

— Ouvi...

— Pois muito bem! continue a ouvir, querida tia... Ouça até ao fim, e não continuará a ter medo.

 

PAZ GERAL

A voz de Lucilia era grave.

A cega voltou a cabeça para os lados do aposento donde a voz partia.

Ao mesmo tempo, os seus olhos apagados pareciam fixar-se no rosto da órfã, como se pudessem ler no fundo do seu pensamento.

A Toutinegra levou-a para uma cadeira, fê-la sentar-se a seu lado, pegou-lhe nas mãos, e disse:

— Tia, lembra-se de um sonho que teve na Salpetrière, e de que me falou não há muitos dias?

— Lembro-me, respondeu a septuagenária... Não se esquecem sonhos desses... Nunca... Um jovem Príncipe viu-te. Enamorou-se de ti... Queria tomar-te por mulher... mas a seu lado achava-se um homem... ou antes um demônio, que preparava a sua perda... O demônio cumpria a sua palavra, e o Príncipe ferido mortalmente, caía.

Heitor sentiu um pequeno calafrio.

O sonho da cega, lembrava-lhe o duelo e o ferro de Volnay atravessando-lhe as carnes.

— Mas depois teve outro sonho, tornou Lucilia, o qual desmentia o fatal desenlace do primeiro. Salvava o Príncipe à força de amor... e casava comigo.

— É verdade, murmurou a anciã. Porque me lembras isso? Foi Heitor quem respondeu, pegando por sua vez nas mão da cega.

— Por que, senhora? repetiu ele com uma voz trêmula. Porque o sonho de sangue realizou-se, e o sonho da ventura também se vai realizar...

— Quem me fala? perguntou a septuagenária com vivacidade.

— Um homem que sabe que Lucilia é a mais pura das jovens, a mais encantadora, a mais digna de ser amada... Um homem que a adora, e hoje pede-lhe a sua mão...

— O senhor ama-a? exclamou a cega.

— De toda a minha alma.

— E Lucilia ama-o?

— Ah! murmurou a órfã, de todo o meu coração!

— E querem casar?

— O mais depressa que for possível! exclamou Heitor impetuosamente.

— Isso é muito louvável, e sinto que o senhor é homem de bem. Mas não basta amar e casar, é preciso primeiro que tudo viver. A agulha de Lucilia não basta para a despesa de uma casa. Depois de casados o que tencionam fazer?

— Sossegue, senhora, disse o ex-Bégourde sorrindo. Lucilia nunca mais trabalhará... o futuro da senhora e o dela estão seguros.

— Tem então algum bom emprego?

— Tenho milhões, minha senhora... e chamo-me Heitor, Príncipe de Castel-Vivant.

A cega levantou as mãos ao teto, ao mesmo tempo que imensa alegria lhe brilhava no rosto enrugado.

— Um príncipe!

— Sim, um príncipe!

— Oh! um verdadeiro príncipe! balbuciou... o meu sonho todo inteiro!

— Sim, o seu sonho, minha tia! replicou a órfã... o seu sonho sem lhe faltar coisa nenhuma. E se soubesse como Heitor é belo! Se soubesse principalmente como ele é bom... e como me ama!

— E amar-te-á sempre?

— Oh! sempre! exclamou o principezinho. É a minha vida inteira que lhe dou.

 

A cega chorava enternecida.

Com uma voz entrecortada, exclamou:

— Dêem-me as mãos, meus filhos... Deixem-me apertá-las nas minha! Chamo sobre vós a benção do céu e abenço-os! Senhor Príncipe, case depressa com Lucilia. Quero presenciar a sua felicidade antes de morrer! Depois morrerei sossegada e sem pena...

E a boa mulher puxando a si as formosas cabeças dos dois noivos, cobriu-as de beijos e de lágrimas.

— Há de viver ainda muito tempo, minha senhora... tornou Heitor, cuja comoção lhe apertava a garganta. Viverá junto de nós. Não nos deixará nunca...

— Ah! como eu sou feliz, repetia a septuagenária, como sou feliz! Velhacazinha, acrescentou dirigindo-se a Lucilia, foi do vestido para assistir ao casamento que esta manhã tomaste medida, não é verdade?

— Não, querida tia, mas do seu vestido de viagem...

— Vamos então fazer uma viagem?

— Sim, minha senhora, respondeu o Príncipe. Por ordem do médico, a quem devo a vida, tanto como a Lucilia, passaremos um mês em Nice. Os banhos serão publicados na nossa ausência, e o casamento terá lugar depois do nosso regresso a Paris...

Durante uma hora, Heitor deu parte à septuagenária de todos os radiantes projetos do futuro de que temos conhecimento. Depois, com o coração cheio de alegria, deixou as duas mulheres prometendo-lhes voltar no dia seguinte.

 

MAQUINAÇÕES DO INFERNO

À meia noite, o senhor de Fossaro entrava pela portinha da avenida Gabriel, no jardim de Chaslin.

Transpôs o limiar do pavilhão rústico e meteu debaixo do musgo da velha jarra de Lelft um bilhete tendo só as seguintes palavras:

"Amanhã, à meia noite, no jardim... é preciso trabalhar."

Branca encontrou o bilhete logo pela manhã, e prometeu ser exata no "rendez-vous" indicado.

À hora designada, o Barão César, ou por outras palavras, Pedro Rédon, o zarolho, chegava à avenida Gabriel.

Branca esperava-o, muito preocupada, muito inquieta.

— Portanto, perguntou-lhe, é chegado o momento de nos. pormos em ação?

— É.

— Espero as suas ordens...

— Eu tas darei, mas responde-me primeiramente. Seguiste as minhas instruções relativas aos grânulos?

— Religiosamente.

— A Duquesa tomou-os hoje?

— Tornou.

— Quantos?

— Três, segundo o costume...

— Como tem ela passado esta noite?

— Desde a troca dos grânulos, fica às vezes numa prostração de que o doutor se admira, procurando debalde a causa. Receitou mais um grânulo todas as noites de hoje em diante.

— A que horas deve a Duquesa absorver os dois últimos?

— Às dez horas.

— Quem lhos dá?

— Eu.

— Sempre?

— Sempre.

— Muito bem. Estamos hoje a 15. Lembra-te que a partir de amanhã, e até 20 à noite, deixarás de fazer a troca dos frascos. E preciso desfazer as suspeitas do doutor.

— Até 20, à noite?

— Sim, não te esqueça.

— Terei todo o cuidado.

César de Fossaro tirou da algibeira um pequeno frasco, e deu-o a Branca, continuando:

— No dia 20, às dez horas, farás tomar à Duquesa dois dos grânulos que aqui estão. Toma cuidado não os confundas com os primeiros, cuja aparência eles têem.

— Sossegais... evitarei todo o erro. E depois?

— Depois porás este frasco e o que te entreguei primeiramente, num lugar bem visível do teu quarto. Em cima do fogão, por exemplo, diante da pêndula.

— Far-se-á isso, depois?

— Onde é que a Duquesa fecha as cartas importantes que recebe e que pretende conservar?

— Num cofre de cristal guarnecido de prata, colocado em cima de uma banquinha no seu quarto de dormir.

— Como se abre esse cofrezinho?

Branca explicou muito claramente o mecanismo da mola oculta do cofre.

— Compreendi. A que horas tinha o serviço cios criados?

— Às dez e meia... É raro às dez e meia não ser eu a única pessoa em pé no palácio.

— O Duque vem saber da Duquesa às onze horas menos um quarto, e volta para o seu quarto, mas não me parece que se deite... a sua luz brilha ainda por muito tempo.

— Escuta e toma sentido, pontue o que te vou dizer é de importância capital. É preciso que o senhor de Chaslin não faça a sua visita habitual à Duquesa depois das dez horas da noite de 20... é preciso que esteja ausente em seguida, e só volte para o palácio depois da urna hora da manhã...

— É impossível! murmurou Branca.

— Não há impossíveis para quem quer... replicou Pedro Rédon com voz dura.

— O que hei de fazer?

— Isso é contigo... O teu império sobre esse velho enamorado é absoluto... Arranja um pretexto para o levares contigo, seguir-te-á prontamente. Mas que ninguém te veja sair do palácio. Toda a gente deve julgar-te fechada no teu quarto. Demais, quando tu saíres, os criados já hão de estar deitados.

— E isso há de ser por força na noite de 20?

— Sim, partirás depois de dar à Duquesa os dois grânulos do frasco que acabo de te entregar.

— Muito bem...

— Quando saíres, certificar-te-ás de que a porta próxima da escada de serviço não está fechada à chave.

— Far-se-á. Só uma coisa me preocupa...

— O que?

— Se eu não conseguisse levar o Duque comigo?

Fossaro encolheu os ombros.

— Pois duvidas de ti desse modo tão tolo? replicou com uma gargalhada sarcástica. Bastar-te-ia uma palavra, menos que uma palavra, um sinal, para arrastares o senhor de Chaslin até ao fim do mundo.

— Experimentarei o meu poder...

— E conseguirás! Vou agora procurar-te uma casa...

— Uma casa! repetiu Branca muito surpreendida.

— De certo, porque dentro de pouco tempo terás de abandonar o palácio de Chaslin.

— Deixar este palácio! Mas quais são os seus projetos?

— É para que se realizem que tu deves partir... Não poderás ficar aqui depois de realizados os sucessos que se preparam, e deves retomar perante toda a gente, o nome de Lasseny que te pertence. O Duque saberá muito bem tornar a encontrar-te.

— Quando será preciso partir?

— Quando eu to disser... Agora, adeus, ou antes até à vista... Se tiver alguma comunicação a fazer-te antes do 20, encontrá-la-ás no pavilhão. Se não houver novidade até lá, não te esqueças que no dia 20 deves pôr-te em ação...

— Ah! murmurou Branca, nada esquecerei.

O pai e a filha, ou antes os dois cúmplices, separaram-se depois da troca destas últimas palavras.

 

Estava na véspera do grande jantar, em que Heitor de Castel-Vivant tencionava dizer adeus à vida de solteiro.

César de Fossaro, naquela manhã, tomou um coupé de aluguel que o conduziu à praça da Bastilha.

Dali dirigiu-se a pé à rua de Lape.

Foi à casa do alemão que nós conhecemos.

Este honrado personagem recebeu-o com um sorriso de bom acolhimento.

Fazendo-o entrar para os fundos do estabelecimento, a fim de evitar qualquer olhar indiscreto, disse-lhe na pronúncia germânica que temos evitado reproduzir por meio da ortografia:

— Vem buscar os objetos?

— Venho. Está tudo pronto?

— Está. Vai ficar contente... É trabalho esmerado... não se pode fazer coisa melhor.

O ferro-velho abriu um antigo cofre que lhe servia de armário.

Tirou deste uma pequena caixa de papelão escuro, e da caixa três objetos: um prego de parafuso com a cabeça em forma de anel, assaz forte, e uma marca de sinete em lacre.

— Em primeiro lugar, aqui está o sinete, disse. Uma verdadeira obra prima, palavra de honra! Não há um traço, uma linha, que não reproduzam exatamente o modelo que me deixou, e que aqui está. O senhor mesmo se pode certificar. Ah! o operário que fez isto, é muito esperto!...

Fossaro armou-se de uma lente, pegou no sinete e na marca, e examinou-os atentamente.

— Irrepreensível! exclamou. Sou da sua opinião... o operário que fez isto sabe bem do seu ofício.

— Por isso o pago bem... Conhece quanto vale e pede os olhos da cara!

E o alemão pegando no prego, continuou:

— Agora, eis o segundo objeto, cujo mecanismo vou explicar.

"A cabeça compõe-se de dois pedaços fixos um no outro por meio de uma pequenina cavilha de aço, terminada por um anel imperceptível... Tirando a cavilha, a argola divide-se, e cada um dos pedaços apresenta o aspecto de se ter quebrado, como se no ferro houvesse uma falha. Estenda a mão e verá.

O ferro velho tirou a cavilha.

A argola que formava a cabeça do prego dividiu-se logo e os dois pedaços caíram na palma da mão de Fossaro.

O Barão examinou com a lente os dois pedaços, como fizera ao sinete.

Era absolutamente maravilhoso.

O buraco da cavilha desaparecia nas rugosidades da fratura; quem não estivesse prevenido, devia supor um acidente casual.

— Isto está muito bem imaginado! exclamou César.

— Vale bem quinze luíses... retorquiu o ferro velho piscando o olho.

— Com um peso no prego, a cavilha não pode dar de si?

— Pode muito bem agüentar um peso de quinhentas libras...

— Mas para a tirar?

— Bastará passar no anel um fio de latão muito delgado, quase imperceptível. Um puxão no fio fará sair a cavilha do encaixe... e... zás...

— Bem, compreendi... Vou pagar.

E Fossaro estendeu para o alemão um bilhete de quinhentos francos.

 

NOVOS MANEJOS

No mesmo dia, por volta das sete horas, um homem de cabelos louros, cego de um olho, com traje de operário, mãos negras, rosto queimado pela limalha do ferro, trazendo sob o braço esquerdo um embrulho comprido, coberto de pano verde, e que parecia pesado, apresentava-se no palácio do príncipe Totor.

O homem trazia a tiracolo um desses sacos de couro grosso, onde os serralheiros guardam a ferramenta.

— Que quer? perguntou-lhe o criado, a quem o guarda-portão o mandara.

O homem respondeu com uma pronúncia italiana muito carregada, tirando da algibeira um bilhete em cartão porcelana que deu ao criado:

— Venho da parte do senhor de Fossaro... Trago umas peças indianas que é preciso colocar nas panóplias de um dos quartos do palácio... Deve estar já prevenido.

— Efetivamente esperava-o havia dois dias, e vou conduzi-lo.

— Si signor.,.

O criado de quarto introduziu o operário no gabinete que já conhecemos.

— Eis as panóplias... tornou o criado: traz a ferramenta?

— No meu saco, si signor.

— Precisa de alguma coisa?

— Uma escada de tesoura, mais nada.

— Quer que o ajudem?

— Não. signor, não preciso de ninguém.

— Vou então acender as velas deste candelabro, para o alumiarem, e deixá-lo-ei com o seu trabalho a contas.

 

Dali a um instante, o operário, cego de um olho, em quem os nossos leitores já reconheceram de certo o Barão de Fossaro, ou antes Pedro Rédon, achava-se só no gabinete de fumar.

Espalhou em cima da mesa as armas indianas, depois, despregou o escudo de veludo vermelho que sustentava a panóplia composta em parte de flechas envenenadas.

— Cuidado! murmurou. Não tenho desejos de experimentar em mim o efeito das picadas. É preciso prudência, é preciso até muita prudência.

Com incomparável destreza o operário desguarneceu o escudo de veludo, e misturando as armas indianas com as flechas venenosas, dispôs o troféu de armas como artista hábil, apaixonado pelo pitoresco.

Quando lhe pareceu satisfatório o efeito procurado, principiou por segurar as armas inofensivas.

Pegou em seguida em pontas de aço muito ligeiras, e em pequenos semicírculos de fio de ferro fino como seda. e fixou as flechas mortíferas de um modo aparentemente sólido, mas na realidade tão fraco, que um puxão repentino devia infalivelmente soltá-las.

Feito isto, o operário tirou da algibeira o objeto fornecido pelo ferro-velho da rua de Lape, certificou-se de que a cavilha funcionava bem, e cravou o parafuso de anel na parte superior da armadura da panóplia, em lugar da que lá se achava antes, e que suprimiu.

Tirou, então, do saco um pedaço de fio de latão envernizado de preto, delgado, mas resistente, e meteu a extremidade do fio no anel da cavilha, onde o torceu de modo a formar um nó.

Pegando na panóplia cautelosamente, subiu os degraus da escada, e pendurou-a pelo parafuso de anel no prego que ficava exatamente por cima do divã de couro fulvo.

O fio de latão pendia invisível, ao longo da parede.

Fossaro estendeu-o ligeiramente, ocultou-o detrás de uma serpentina, e formou uma espécie de laçada na extremidade, para se poder agarrar facilmente.

Afinal, anunciou o seu trabalho, e declarou-se satisfeito.

 

— A vida de quem aqui vier sentar-se neste divã, está nas minhas mãos! disse ele consigo. Nem o Príncipe, nem o doutor escapam.

O facínora tratou em seguida das outras três panóplias, e como a segunda parte do trabalho não precisava de tantas precauções, caminhou mais depressa que o primeiro.

Às nove horas o criado de quarto entrou no gabinete

— Então, meu rapaz, em que alturas vai isso?

— Signor, já acabei.

— Só me falta pagar-lhe. Diga quanto se lhe deve...

— Não me deve nada.

— Como assim?

— O senhor Barão pagou-me adiantado... file lá ajustará as contas com o seu amo...

— Muito bem. Mas aceitará pelo menos um copo de vinho na cozinha?

— É impossível, signor... Vim depois do meio dia... Tenho a minha mulher e os meus dois pequenos à minha espera para cearem... e moro no arrabalde Antoine... Uma boa caminhada daqui até lá.

O criado de quarto não insistiu, e o operário deixou o palácio.

 

Na manhã do dia em que o jantar de despedida devia ter lugar, Heitor querendo desfazer de uma maneira absoluta e definitiva os laços que o prendiam ao passado, sentou-se à sua carteira e escreveu as seguintes linhas:

"Minha querida Genoveva.

"À hora em que receber este bilhete, todos os meus amigos devem já saber que desisto para sempre da existência absurda que eu passava desde o dia em que o acaso me fez rico, mas não esqueço que Genoveva foi a amiga das horas loucas e alegres, e envio-lhe uma prova material desta lembrança.

"Incluso achará um cheque de trezentos mil francos.

"Com certeza que não é uma fortuna, mas a tranqüilidade para o futuro.

"Não devemos tornar a ver-nos, minha querida Genoveva, digo-lhe por isso adeus, e por última vez lhe aperto amigavelmente a mão.

"Heitor."

 

O principezinho assinou o cheque cuja quantia acabava de enunciar, meteu-o no sobrescrito conjuntamente com a carta, traçou no sobrescrito o endereço de Genoveva e chamou pelo criado de quarto.

— Esta noite, às dez em ponto, não antes, mandará um criado com esta carta à menina Leinen.

— Tem resposta?

— Não, não deve ter.

Heitor almoçou, depois pôs o trem e dirigiu-se para a rua Julien Lacroix.

Não podia passar um só dia sem ver Lucília.

A Toutinegra continuava os seus preparativos para a viagem a Nice, cuja época se ia aproximando.

 

No palácio de Chaslin tudo estava, ou, pelo menos, tudo parecia sossegado.

O doutor Frébault fizera naquela manhã uma visita à Duquesa: apesar de não notar nenhuma mudança extraordinária no estado da doente, tencionava voltar à noite antes de ir para casa do príncipe Totor.

Pelas duas horas o Duque entrou no quarto da Duquesa.

A senhora de Chaslin repousava.

Branca tendo a mão um livro aberto que não lia, sentara-se junto do leito.

O rosto pálido da jovem denunciava intensa preocupação.

A falsa Adriana de Lasseny pensava com uma angústia fácil de compreender nos terríveis acontecimentos que estavam para se efetuar, pensava sobretudo em Rogério de Chaslin, naquele mancebo tão belo e tão altivo, que havia de ser duque um dia, e cuja imagem se desenhava sem cessar na sua imaginação em traços de fogo.

Vendo entrar o velho, Branca indicou com o gesto a doente adormecida, pondo um dedo nos lábios.

O Duque aproximou-se da jovem, e inclinando-se um pouco, disse-lhe em voz muito baixa:

— Menina Adriana, é preciso que lhe fale...

Depois, vendo o rosto de Branca tornar-se sombrio, apressou-se a acrescentar:

— Trato da sua família, dos seus interesses. Trago-lhe uma boa notícia.

— Uma boa notícia? — Sim.

— A senhora Duquesa está a dormir,e o murmúrio das nossas vozes acordá-la-á. Permita-me que a conduza ao meu quarto? Peço-lhe.

Branca levantou-se, e andando nos bicos dos pés, dirigiu-se para um quarto próximo, cuja porta estava entreaberta.

Henrique de Chaslin seguiu-a, e assim que se achou a sós com ela quis agarrar-lhe nas mãos.

A jovem soltou-se suavemente.

— Ah! murmurou o Duque. É cruel. Porque me repele assim? Sem responder, Branca perguntou:

— Essa nova feliz de que me fala será apenas um pretexto para me atrair aqui?

— Não, de certo, quer a prova disso?

— Fale então sem demora, peço-lhe, porque o sono da senhora de Chaslin pode cessar de um momento para o outro.

— Bem sabe, principiou o Duque, que ocupa exclusivamente o meu espírito, a sua felicidade é a minha única preocupação. Disse comigo que talvez fosse possível fazê-la recuperar uma parte da fortuna tão loucamente comprometida com seu pai...

— Que me diz? Que novidade me vai dar?

— Procurei... achei... No momento de deixar a França para fugir a credores que na maior parte não eram mais que usurários, o Conde de Lasseny, querendo a todo o transe criar recursos no estrangeiro, fez uma última loucura mais imperdoável ainda do que as outras. Vendeu, mediante uma miserável soma de cinqüenta mil francos, vários bens, cujo valor ainda era importante, apesar das hipotecas que os oneravam. Morreu sem se ter reembolsado, e os comparadores, ou antes, os agiotas, entraram na posse desses bens. Eu adivinhava vagamente de que maneira as coisas se tinham passado. Pus em campo vários agentes de negócios muito hábeis que ameaçaram as pessoas enriquecidas com os despojos do seu pai, e como o aumento do valor dos bens era considerável, obrigaram-nas a uma transação. Tenho até agora guardado silêncio a respeito das diligências que ordenei. Não se admire; com o receio de causar uma alegria enganadora, não lhe quis falar em coisa nenhuma.

— Rompe hoje o silêncio, disse Branca, quer dizer que conseguiu o que queria?

— Além das minhas esperanças. Os restos salvos do naufrágio têm até sua importância... sobem a quinhentos mil francos...

— Quinhentos mil francos! repetiu a jovem estupefata. Mas isso é uma fortuna.

— Uma fortuna de que não tem necessidade, querida Adriana, replicou o senhor de Chaslin, visto que dando-lhe o meu coração, dei-lhe tudo quanto me pertence.

 

Branca não retirou a mão, que Henrique tinha tomado nas suas. Parecendo obedecer a um impulso irresistível, murmurou:

— Oh! senhor Duque, há de obrigar-me a amá-lo.

— Há de amar-me, há de amar-me, tartamudeou o velho apaixonadamente, atraindo e apertando contra o peito a filha de Pedro Carnot.

Branca fez-se vermelha e baixou os olhos.

— Não, não, aqui não, suplico-lhe! Nesta casa, tão perto da Duquesa, escutar a voz do meu coração, é um crime. Tenho vergonha de mim mesma.

— Sim, tem razão, mas essas palavras de esperança que acaba de pronunciar, e que me embriagam, há de repeti-las noutra parte, promete-mo?

— Senhor Duque, eu também tenho que lhe falar seriamente; mas assim como eu não quero ouvi-lo nesta casa, também não onero falar-lhe aqui.

— Que devo fazer? Bem sabe que sou seu escravo...

— Não podemos esta noite encontrar-nos fora do palácio?

— Será fácil, respondeu impetuosamente o senhor do Chaslin, a quem a idéia de um encontro longe de toda a vigilância incendiava: será fácil, mas onde?

— Ignoro, pertence ao senhor o designar o lugar onde me há de r esperar.

— Então, tornou o Duque delirante, saia pela poria do jardim que deita para a avenida Gabriel. Estarei no ângulo da rua Boissy d'Anglas com uma carruagem. A Duquesa deixa-a livre por volta das dez e meia, venha ter comigo às onze. Virá?

— Prometo-lho. Sairei até mais cedo, se a senhora de Chaslin adormecer. Das dez e meia em diante espere por mim.

— Ah! como me torna feliz!

O Duque tinha os lábios trêmulos.

Um olhar de sátiro perseguindo uma ninfa, brilhava entre as suas pálpebras meio fechadas.

A paixão sensual tornava-o assustador, e os seus braços estendiam-se para um novo amplexo.

Branca recuou dois passos.

— Até esta noite, disse ela.

— Sim, até esta noite! Até esta noite! Mas primeiramente tome lá isto que lhe pertence.

É o senhor de Chaslin apresentava à jovem um papel que acabava de tirar da sua carteira.

Branca, muito admirada, perguntou:

— Que vem a ser isto?

— Um cheque de quinhentos mil francos à vista, sobre o Banco. Os restos de que lhe falava há pouco...

— Obrigada, ser-lhe-ei reconhecida...

E a falsa Adriana metendo no seio o precioso papel, voltou para o quarto da Duquesa, dando como adeus ao senhor de Chaslin um sorriso e estas palavras:

— Até esta noite!

 

SÓ MORRE QUEM DEUS QUER

De tudo o que o Duque acabava de dizer a Branca, relativamente aos restos da fortuna do falecido Conde de Lasseny, não havia uma palavra fie verdade.

Os leitores já o deviam ter compreendido.

Henrique de Chaslin ocupado da idéia fixa de enriquecer aquela a quem amava, e convencido de que ela nada lhe aceitaria, torturava o espírito para inventar um pretexto de restituição.

Acabara por encontrar o pretexto, e apesar de que ele não resistia à crítica, a falsa Adriana acreditava nele ou pelo menos fingia acreditar.

O velho não queria mais.

Voltando para junto da moribunda, Branca murmurava:

— Vamos, é o princípio da fortuna...

A Duquesa, quando despertou, achou a jovem à cabeceira, velando-lhe o sono com solicitude filial.

Um pouco antes das seis. o Duque e Antonino Frébault entraram juntos no quarto.

Acabavam de lhe servir uma ligeira refeição.

— O apetite volta, senhora Duquesa? perguntou o doutor. Joana de Chaslin abaixou a cabeça.

— Faço diligência por comer, respondeu, mas não posso vencer a repugnância que me causa o alimento.

— Sufocações?...

— Desde esta manhã têm aumentado.

— Havemos de triunfar delas. A menina Adriana, a sua simpática enfermeira, há de dar-lhe esta noite, das nove e meia para dez horas, dois grânulos de digitalina. Se não se produzir o resultado que espero, mudarei amanhã de tratamento.

— Tenho confiança no meu querido doutor. Trate-me bem, desejaria viver, menos por mim que por aqueles a quem amo.

— Há de viver, senhora Duquesa, e por-se-á boa, prometo-lhe.

 

Mas Frébault pensava entretanto:

— É extraordinário o que se passa e não compreendo. Amanhã hei de proceder a investigações.

Depois de uma breve visita o doutor retirou-se.

Ta vestir-se para assistir ao grande jantar do Príncipe Totor.

— Sabe se o senhor de Logeryl virá esta noite? perguntou Joana ao Duque.

— Sei que não virá, respondeu o Duque. Foi chamado repentinamente a Senlis, para uma devassa, relativa, creio ao negócio misterioso do infanticídio de Courbevoie. Não pode estar de volta ante-; de amanhã. Tem portanto alguma coisa a dizer-lhe?

— Queria saber o que ele manda dizer a Helena, de quem não tenho recebido notícias há dias, e a quem vou escrever...

— Falo por ele. e não receie exagerar a expressão da sua ternura, porque ele está seriamente apaixonado.

Vieram anunciar que o jantar estava servido.

O senhor de Chaslin dirigiu-se para a sala do jantar na companhia de Branca.

Os dois convivas, durante todo o jantar, que aliás foi muito breve, só poderiam trocar frases banais em presença de um criado que não os deixava.

Levantando-se da mesa, o Duque lançou à jovem um olhar que significava claramente:

— Até esta noite!

Branca respondeu com um sinal afirmativo.

 

Por volta das seis horas e meia, César Fossaro subiu para o seu coupé, e deu ordem a Benedetto para o conduzir ao palácio do Príncipe Totor.

Não deviam ir para a mesa senão às sete e meia.

Ele, porém, tinha interesse em chegar primeiro.

Quando se apeou do trem, recomendou ao cocheiro que o viesse esperar às dez horas e meia em ponto, não diante do palácio, mas no ângulo da rua, e não se arredar dali sob que pretexto fosse.

Segundo o seu costume, Heitor recebeu cordialmente o Barão, a quem tinha na conta de um dos seus melhores amigos.

— Então, querido Príncipe, disse-lhe César com o sorriso nos lábios, é esta noite que nos vai dar a nova que nos há de causar geral admiração.

— Sim, meu querido, replicou o ex-Bégourde com os modos de gommeux que ele agora só por intermitências ostentava, é uma notícia de arromba, de um chic por aí além. Há de ser uma coisa obeliscal, piramidal, de pôr tudo a uma banda, como diz o Príncipe de Chypre! O Barão há de ver, e não há de crer!

— Bem, então deixe-me já com a cara a uma banda.

— É impossível, amizade verdadeira ter os seus privilégios.

— Reconheço isso, e em outra qualquer ocasião seria o primeiro a prestar homenagem a esse direito, mas não quero ultimar o meu efeito com antecipadas confidencias...

O Barão não insistiu. Frébault chegava.

— Eis o meu salvador! exclamou o Príncipe apertando-lhe as mãos.

— O seu salvador, perfeitamente! volveu Antonino. Isso dá-me sobre o meu amigo certos direitos de que não abusarei, mas de que pretendo servir-me. Poupe-se, querido Príncipe, poupe-se esta noite!

— E o que quer dizer com isso?

— Quero dizer que à meia noite deve estar a fazer ó ó.

— Obedecer-lhe-ei, doutor... À mesa deve ficar a meu lado para me vigiar. O difícil é de deitar-me à meia noite...

— Então por quê?

— Depois de jantar sempre se há de armar um joguinho.

— Não ponho nisso nenhum obstáculo. Jogar-se-á sem o senhor, ora aí está.

— Na verdade, é uma idéia... pensou o ex-Bégourde. Deitando-me à meia noite, estarei amanhã fresco e disposto para ir muito cedo à Rua Julien Lacroix.

E torne/u em voz muito alta:

— Barão, as suas armas indianas brilham de um modo maravilhoso nas panóplias... Foi um presente soberbo que me fez.

— Ainda bem que lhe agrada... Dá-me licença que vá dar-lhe uma vista de olhos?

— Bem sabe que aqui está em sua casa.

Fossaro dirigiu-se para o gabinete de fumar.

 

Aproximou-se da panóplia formada em parte de flechas envenenadas, e convencido de que ninguém o observava, meteu a mão detrás da serpentina, e pendurou o fio de latão invisível preso de um lado ao anel da cavilha, e terminado do outro lado por uma espécie de laçada.

— Tudo vai bem, murmurou.

Depois voltou para a sala. aonde acabavam de chegar muitos dos convidados do Príncipe.

Às sete e meia, menos alguns minutos, os convidados, em número de trinta, achavam-se todos presentes.

Eram, já se vê. só homens.

Heitor jurara que nenhuma mulher do mundo duvidoso transporia o limiar do palácio, que a presença de Lucília, transformada em Princesa de Castel-Vivant, ia bem depressa mudar num tempo consagrado aos castos amores.

Deu a meia hora.

As portas abriram-se de par em par.

Uni criado de mesa proferiu a frase sacramentai:

— O senhor Príncipe está servido.

Os convivas invadiram a imensa sala de jantar, onde muitos criados de libré formavam alas na sua passagem.

O jantar foi logo no princípio muito animado. Heitor achava-se entre o Barão e o doutor.

Antonino Frébault não se mostrava mentor muito severo, e bebendo de um trago copázios cheios, não punha o convalescente no regimem do vinho com água.

Demais, o Príncipe bebia com moderação relativa.

O Chateau Laffite e o Musignoy substituíram as tisanas, e os vapores destes vinhos generosos subindo-lhe à cabeça, punham-no de uma alegria louca.

 

Deixemos por uns minutos a Rua Francisco I, e roguemos aos nossos leitores que os acompanhem ao palácio de Chaslin, ao quarto da Duquesa.

Os ponteiros da pêndula de velho Saxe ornada de flores e de amores, indicam nove horas e três quartos.

Joana de Chaslin, deitada, com a parte superior do corpo amparada por almofadas postas umas sobre as outras, e uma escrivaninha diante de si, escrevia.

Este trabalho parecia fatigá-la muito.

Por instantes, a mão tremia-lhe, a pena só traçava então caracteres indecisos, mas legíveis.

Quase a cada frase detinha-se para lançar um olhar repassado de ternura à falsa Adriana, que à viva claridade de um candieiro de abatjour, trabalhava num bordado.

O Duque entrou.

Joana estendeu para ele a mão esquerda, e disse-lhe sorrindo:

— Vem dar-me as boas noites, meu amigo?

— Sim, uma boa noite.

— Não sei se a noite será boa... replicou a senhora de Chaslin, Todos os vestígios da minha habitual sonolência desapareceram, e não tenho desejos de dormir.

— Está a escrever?

— Sim, a Rogério.

— Tome cuidado com a fadiga.

— Estou a acabar. Vá descansar, meu amigo.

— Até amanhã, querida Joana...

O Duque inclinando-se, chegou os lábios à fronte da moribunda, que respondeu:

— Sim, até amanhã.

O senhor de Chaslin retirou-se sem se atrever a olhar para Branca na presença da mulher.

A Duquesa voltou-se para a jovem:

— Está bem pálida, minha querida Adriana... disse-lhe ela, está por acaso incomodada?

— Incomodada, não, minha senhora... mas levantei-me hoje mais cedo que tenho por costume, e devo admitir que estou prostrada pelo sono.

— Porque não me avisou mais cedo? retire-se.

— A senhora Duquesa já não precisa de mim?

— Não precisarei de mais nada, depois de me haver dado os dois grânulos prescritos pelo doutor.

 

Branca levantou-se.

A Duquesa tivera razão falando na sua extrema palidez.

Estava lívida, e um círculo violáceo orlava-lhe as pálpebras avermelhadas.

Neste momento, a força traía-lhe quase a vontade.

Dirigiu-se com um passo vacilante para um pequeno móvel colocado detrás do leito.

E, quando ninguém a podia ver, em lugar de tirar do móvel o frasco que encerrava os verdadeiros grânulos de digitalina, tirou do seio o outro frasco idêntico, entregue por Pedro Rédon, e voltou para junto da doente.

Dando então ao rosto uma expressão obrigada de serenidade, desrolhou o tubo de vidro, e deitou dois grânulos na colher de prata dourada que a senhora de Chaslin estendia para ela.

Tremia-lhe a mão.

A terceira pílula escapou-lhe do frasco e rolou sobre o tapete. Branca baixou-se rapidamente para a apanhar.

Mas de certo que a minúscula bolinha rolara para mais longe.

Com grande surpresa nada viu.

— Ah! disse a Duquesa, não procure. Para quê? Uma de mais ou de menos, que importa?

E absorveu os dois grânulos.

Branca teve um calafrio em todo o corpo. Parecia-lhe que o chão lhe fugia debaixo dos pés, e ia cair. Tornou a dominar os nervos, conseguindo ocultar a terrível sensação que a dominava.

— Obrigada, querida filha, tornou a Duquesa. Dê-me um abraço e vá dormir.

A filha de Pedro Carnot debruçou-se para o leito, e sem se fazer pálida, e sem tremer daquela vez, ofereceu a fronte à nobre dama que acabava de condenar e executar.

A senhora de Chaslin beijou-a repetindo:

— Vá dormir, minha filha... Eu vou concluir a carta... Até amanhã.

Branca sem responder recuou lentamente com uma rigidez de estatua, dirigiu-se com um passo automático para a porta do gabinete, abriu-a, fechou-a após si, e arrastou-se ao seu quarto.

Aí, os seus nervos contraídos espantosamente, dilataram-se-lhe, as forças abandonaram-na, e caiu numa cadeira, prostrada por um desfalecimento que foi de curta duração.

— Pronto, murmurou ela passado um instante. Dez vezes julguei que me ia entregar! Jogava a cabeça por uma coroa de Duquesa... Ganhei a partida? E quem, pai ou filho, me dará essa coroa? Um futuro próximo me dirá. Agora trata-se de executar à risca as ordens de Pedro Rédon. É preciso que o Duque não entre no palácio antes da uma hora da manhã.

Levantou-se, banhou o rosto em água fresca, olhou para a pêndula e disse:

— Só dez e meia... É muito cedo... devo esperar ainda...

 

ACONTECIMENTOS

Branca fez erguer sem ruído o fecho interior da porta, depois, como lhe recomendara Pedro Rédon, colocou os dois frascos em cima da mesa.

Tornou, em seguida, a sentar-se e esperou.

Deram onze horas no relógio.

— Estão todos deitados, murmurou a jovem, e o senhor de Chaslin espera por mim. É tempo de me pôr a caminho.

Neste momento chegou-lhe aos ouvidos um leve ruído.

Aproximou-se da porta que dava para o corredor, pôs <> ouvido à escuta, e ouviu passos de homem.

— É o Duque que sai pelo jardim, continuou ela. Vou ter com ele.

Branca deitou sobre os ombros uma capa de peles, e pôs na cabeça um chapéu escuro, cujo véu de renda preta lhe formava uma máscara impenetrável.

Depois de baixar a luz do seu candieiro, desceu pela escada de serviço, atravessou o jardim, e achou-se dali a pouco na avenida Gabriel.

Levava consigo a chave da portinha.

A noite estava sombria.

Um espesso nevoeiro flutuando na atmosfera, tornava as trevas mais espessas.

Os perfis das árvores dos Campos-Elyses a custo se avistavam, parecendo fantasmas.

A filha de Pedro Carnot seguiu pelo passeio, até. ao ângulo da Rua Boissy d'Anglas.

O senhor de Chaslin esperava-a debaixo do terraço fio Club Imperial.

Reconheceu-a, ou antes adivinhou-a na escuridão, e dirigiu-se rapidamente ao seu encontro.

— Não me fale aqui, disse-lhe Branca em voz baixa sem parar. Vamos mais longe. Siga-me.

Apressou o passo já rápido, e só parou debaixo das arcadas da Rua Rivoli, onde o Duque se lhe reuniu.

A hábil comediante parecia suster-se de pé com dificuldade.

— Que tem? perguntou-lhe o velho muito inquieto, por vê-la tremer.

— Tenho medo, respondeu.

— Estando eu aqui que pode recear?

— Se alguém nos visse!

— É verdade! Não podemos conversar junto de um club onde tenho tantos amigos. De um momento para o outro posso ser reconhecido...

— Para onde ir?

— Para um lugar seguro... Tem confiança em mim? — Se não a tivesse estaria aqui?

O Duque apertou a mão de Branca, para lhe agradecer a resposta.

 

Passava um trem de aluguel sem gente.

Fez parar o trem, subir a jovem, e subiu para o lado dela, depois de dizer ao cocheiro:

— Recanto da Rua da Chaussée d'Antin e do Boulevard. O trem rodou.

Voltemos ao palácio de Chaslin, ao quarto da Duquesa.

A Duquesa, assim que a falsa Adriana de Lasseny a deixou, quis continuar o seu trabalho interrompido.

Principiou por ler a meia voz as linhas seguintes, já escritas:

"Meu bem amado Rogério.

"Recebi a tua querida carta. Sinto-me feliz por saber que pensas muitas vezes em tua mãe, que também pensa sem cessar em ti.

"É chegado o momento em que acabará o exílio que te impuseste. Não tarda que estejamos reunidos, e esqueçamos as pequenas tempestades do passado, para só pensarmos no teu futuro...

"Bastante desejava poder mandar-te boas notícias... infelizmente e impossível, porque nenhumas melhoras se manifestam no meu estado.

"Tenho porém a consolação de achar junto de mim um anjo, que sem hesitar daria uma parte da vida para prolongar a minha.

"Este anjo é Adriana de Lasseny, de quem te falava na minha última carta; Adriana, a filha de um velho amigo de teu pai, e a última descendente de uma grande raça...

"Adriana é pobre, mais a sua nobreza vale a nossa, e a fortuna nada acrescentaria aos encantos do rosto, e às perfeições da alma.

"Imagina. Rogério, que tive um sonho, cuja realização depende absolutamente de ti. É nunca me separar de Adriana, chamar-lhe minha filha, e ouvir-la chamar-me minha mãe.

"Quem sabe, — quando conheceres a menina de Lasseny, se não terás pressa, tanto como eu. e mais que eu talvez, - de mudar o sonho em realidade?...

 

A carta não passava dali.

A senhora de Chaslin tornou a pegar na pena.

Ta molhá-la na tinta, quando de repente parou, com a boca entreaberta, os olhos espantados...

A pena escapou-lhe da mão, ao mesmo tempo que uma expressão de indizível angústia lhe subia ao rosto.

Quis chamar...

Da garganta opressa, não lhe saiu um som sequer.

Os seus olhos tornaram-se fixos.

As suas mãos contraídas rasgaram a coberta da cama.

Um tremor convulso abalou-lhe todo o corpo, fazendo tremer a cama.

Esta terrível crise apenas durou.alguns segundos.

De repente os seus membros tomaram uma rigidez cadavérica.

A Duquesa soltou um fraco suspiro, e tornou a cair sobre as almofadas.

Passava-se isto no momento exatamente em que o senhor de Chaslin, ébrio de amor sensual, fazia subir Branca para um trem no canto da Rua Florentin.

Ao mesmo tempo outro acontecimento não menos trágico se realizava no canto da Rua Francisco I.

O jantar oferecido -pelo Príncipe Totor aos seus amigos, tornava-se cada vez mais animado e ruidoso.

O doutor Frébault não se poupava, e principiava a falar muito, embrulhando-se-lhe alguma coisa a fala.

O próprio Fossaro tinha os olhos mais animados mie do costume ; e parecia sentir tanto como os jovens elegantes ali reunidos. a influência dos grandes vinhos.

Nós, porém, não duvidamos afirmar que era simulada a sua embriaguez.

— Meus rapazes, disse ele de repente, estamos à sobremesa, e sei de ciência certa que o nosso amável anfitrião nos poupa uma surpresa. Reclamo a surpresa! Se o nosso amigo se demorar um pouco mais, parece-me que já não estaremos em estado de a saborear, porque, com a breca! tudo principia a dançar menos mal, e as velas do lustre bailam uma sarabanda insensata!

— Sim, sim, gritaram os convivas que ainda tinham forças para isso, a surpresa, venha a surpresa!

 

Heitor estremeceu, e passou o lenço pela fronte inundada de suor.

Antonino Frébault levantando-se, não sem custo, proferiu:

— Meus amigos, meus queridos amigos, o meu amigo, o nosso amigo, o nosso excelente amigo, o Príncipe Totor, vai pedir a palavra... Peço-lhes um silêncio, cuja necessidade se impõe... O que ele quer dizer-lhes é muito curioso... Ele vai explicar-lhes como eu, que o curava, não fui a final quem o curou... Vai provar-lhes por A mais B, que eu, doutor em medicina da faculdade de medicina de Paris, e muito apreciado dos conhecedores, não passo de um animal ao lado de um outro médico, que não é médico, mas que sabe mais que eu, e que todos os meus colegas... Passo a palavra ao Príncipe Totor.

Antonino Frébault deixou-se cair na sua cadeira em meio de grande ruído de aplausos, e bebeu um copázio de vinho de Champanhe para se refrescar.

Heitor, por seu turno levantara-se.

— Meus bons amigos, principiou ele com a voz um pouco embrulhada a princípio, mas que se desembaraçou no mesmo instante, não tenham receio, que serei breve... Querem saber o nome do médico de que falava o nosso querido Frébault, e que não sendo médico, era mais esperto que todos os doutores? Chama-se o Amor!

Os convivas, supondo aquilo um gracejo de quem estava alegre, gritaram: bravo!

Só o Barão César franziu o sobrolho, e disse com um sorriso constrangido:

— Pede-se a explicação do enigma.

— A explicação do enigma? repetiu o ex-Bégourde... ah! é muito simples! O jantar que nos reúne esta noite, é o meu jantar de despedida à vida de rapaz solteiro! O Príncipe Totor passou! Agora vai figurar o Príncipe de Castel-Vivant. Amo, sou amado, e dentro de um mês, aquela a quem amo, será minha mulher.

— Como fiz bem em me apressar! pensou Fossaro. Tudo nos fugia!

Às últimas palavras de Heitor sucedeu um ruído infernal.

Em meio de uma matinada de ensurdecer, cruzaram-se aclamações confusas, ouviam-se estas palavras, que um peralvilho mais embriagado que os outros repetia com uma persistência idiota:

— Homem ao mar! homem ao mar!

— Não, palavra, o principezinho falou como um anjo! balbuciou Frébault enchendo o copo outra vez. Bebo à sua saúde! aqui jaz Totor e viva Heitor! Palavra, que se abafa aqui... tenho precisão de mudar de ar por um pouco...

O médico deixou a mesa, e dirigiu-se para o gabinete de fumar, titubeando de um modo extraordinário.

César alcançou-o no caminho, tomou-lhe o braço amigavelmente, e conduziu-o até ao divã que ficava por baixo da panóplia das armas empeçonhadas.

Chegando ali cessou de o amparar.

César sentou-se, ou antes deixou-se cair sobre o divã.

— Meu querido doutor, disse o Barão, não receia que o Príncipe nosso amigo, abuse das suas forças, e se exponha a uma recaída?

Antonino fez maquinalmente um sinal afirmativo.

— Quer que lho mande? continuou César. Pregar-lhe-á uma lição de moral.

— Uma lição de moral! repetiu o médico bamboleando a. cabeça. Uma lição, uma pequena lição de moral. Aconselhar-lhe-ei a que se vá deitar. Eis a minha lição de moral. Com a breca! Sempre tenho um peso na cabeça!

César voltou para a sala de jantar, aproximou-se do Príncipe e segredou-lhe:

— Antonino Frébault tem alguma coisa de importante a dizer-lhe. Está à sua espera.

 

A CATÁSTROFE

Heitor dirigiu-se para junto do doutor, e um bom número de convivas seguiram-no ao gabinete de fumar, aonde os chamava o charuto de digestão.

— Vejamos, querido doutor, que pretende?

O médico respondeu:

— Uma lição de moral, uma pequena lição de moral. Vou passar a receita. Sente-se aí.

E puxava para junto de si Heitor, cuja mão tomara e que não lhe apresentava resistência.

Quando César de Fossaro os viu instalados ao pé um do outro, despediu do seu único olho um fulvo lampejo.

Estendeu o braço como quem acende o charuto numa das velas da serpentina, agarrou na extremidade do fio de latão invisível sobre a parede, e recuou dando um puxão, e desprendendo assim a cavilha que enfiava na cabeça do prego.

Os dez ou doze indivíduos reunidos no gabinete de fumar soltaram na uníssona um grito de terror.

A panóplia desabava com ruído sobre o doutor e sobre o Príncipe, saltando em seguida sobre o tapete.

Heitor ergueu-se de um pulo, sem outro mal mais que uma forte contusão na cabeça.

O doutor levantou-se dificilmente, com o rosto ensangüentado.

— Ferido! balbuciou o Príncipe torcendo as mãos. Ferido! E as flechas estão envenenadas! Socorro! depressa, socorro!

Antonino Frébault, a quem a embriaguez completamente se desvanecera, mal se sustinha de pé. Procurava, contudo, persuadir-se a si próprio que o perigo não existia.

— Sossego! exclamou, não é nada! Apenas um arranhão. Água fresca, gelo e ligadura, não preciso de mais nada.

Foi quem havia de correr mais para lhe obter os objetos pedidos. Decorreu um quarto de segundo.

De repente o desgraçado Frébault sentiu um calafrio percorrer-lhe a epiderme, descendo-lhe da nuca até aos calcanhares.

— Vamos, disse ele com um estranho sangue frio. mas com voz estrangulada, estou perdido.

— Frébault, querido Frébault, tornou o Príncipe, havemos de salvá-lo.

— Nada me pode salvar, o veneno que corre nas minhas veias nunca perdoa! Há pouco era gelo, agora é fogo! Tenho ainda cinco minutos de vida, e sofro como um condenado! De beber, por Deus dêem-me de beber!

Trouxeram uma garrafa cheia.

O doutor agarrou-a, mas agitavam-lhe as mãos terríveis convulsões.

O gargalo de cristal quebrou-se-lhe entre os dentes, sem que pudesse engolir uma só gota de água.

Os olhos revolviam-se-lhe nos órbitas.

Apresentava o rosto de um homem consumido em vida pelas chamas.

Um estertor, entrecortado de lamentos abafados, saía-lhe dos lábios.

Caiu, contorceu-se numa convulsão suprema, e não se moveu mais.

Estava tudo acabado.

— Morto, está morto, exclamou o Príncipe caindo de joelhos junto do corpo.

— Não falará, disse Fossaro em voz baixa!

 

CONTINUAÇÃO

Heitor sufocado pela dor e pela comoção, perdeu os sentidos.

— Depressa, levem-no para o seu quarto, deitem-no em cima da cama, e tratem dele, ordenou Fossaro.

Os criados consternados obedeceram prontamente. A embriaguez geral dissipara-se como por encanto. A alegria louca fora substituída por um profundo terror.

— Não será preciso levar para casa o corpo do desgraçado Frébault! atreveu-se a perguntar um dos convivas.

— Não, respondeu César, a verificação do óbito deve-se efetuar. Previnam sem perda de um minuto o comissário de polícia, para que venha fazer auto de corpo de delito.

— Eu vou avisar o médico.

E o Barão apressou-se a sair, depois de ter enrolado nos dedos e metido na algibeira o fio de latão.

Na rua o nevoeiro cada vez se tornava mais espesso. Fossaro encontrou o coupé que o esperava no lugar designado.

— Avenida Gabriel, canto da praça da Concórdia, e toca a bater, disse ele a Benedetto saltando para o trem.

E enquanto o cavalo desfilava rapidamente, o Barão murmurava:

— O demônio transtorna-me o jogo! Só Frébault ficou ferido. O Príncipe é portanto invulnerável. Não importa, irei até ao fim, e hei de ganhar a partida.

 

Há já algum tempo que não falamos de Mariana Gilberto, expulsa do palácio de Chaslin pela vontade inflexível do Duque Henrique, a quem assustava a grande perspicácia daquela mulher.

A antiga ama de Helena, não podia conformar-se com um exílio que lhe envenenava a existência.

Nos primeiros tempos, veio todas as noites passear defronte do palácio, com o coração opresso, as pálpebras úmidas, olhando para as janelas iluminadas, como Adão e Eva depois da queda contemplavam os horizontes do paraíso perdido.

Não podia, contudo, imobilizar-se na sua dor.

Era preciso viver, e como não queria aceitar os oferecimentos generosos da Duquesa, procurou trabalho como enfermeira, e foi admitida na Rua do Bac, em casa de uma senhora idosa e decente, onde passava os dias.

Às onze horas, regularmente, uma enfermeira da noite vinha substituí-la. e ela dirigia-se para o seu humilde quarto da Rua Miroménil, passando pela ponte da Concórdia, praça do mesmo nome, Avenida Gabriel, e rua do Elyseu.

Nunca deixava de parar em frente do pequeno parque, onde outrora Helena de Chaslin, a quem chamava filha, experimentava os seus passos vacilantes.

Os olhos arrasavam-se-lhe então de lágrimas.

Na noite em que tão terríveis coisas tinham sucedido no arrabalde de Saint-Honoré e Rua de Francisco I, como a enfermeira da noite se fizera esperar um pouco, Mariana só sairá da Rua do Bac às onze e um quarto.

A densidade do nevoeiro fez-lhe recear que se perdesse ao atravessar a praça da Concórdia.

Tomou pela ponte Royal, costeou as Tulherias, e chegou à Rua de Rivoli que a conduzia diretamente à Avenida Gabriel.

Como andava ligeiramente, apesar da idade, percorreu quase todo v caminho em menos de meia hora.

No momento em que a anciã costeava os muros do Círculo Imperial, viu uma carruagem, cujas lanternas, no meio do nevoeiro, pareciam duas manchas de sangue, chegar a toda a velocidade, e parar de repente no ângulo da Rua Boissy d'Anglas.

Um homem apeou-se da carruagem, meteu-se pela Avenida Gabriel, e Mariana ouviu passos atrás de si, ao mesmo tempo que a carruagem se afastava.

O terror não raciocina.

Segundo todas as aparências, a pobre criada nada tinha a perder, contudo teve medo.

E atravessando a calçada, refugiou-se entre as árvores dos Campos Elysios.

— O solo úmido abafava-lhe os passos, enquanto que, pelo contrário, os calcanhares do passeante noturno soavam sobre o asfalto.

De repente cessou todo o ruído.

O homem fazia alto.

Mariana surpreendida, parou também,

Achava-se defronte do palácio de Chaslin, mergulhado no nevoeiro.

Procurou distinguir a portinha da grade.

Um vulto que se movia ocultava aquela porta.

— Não me engano, murmurou, ali está alguém. É um homem, bem vejo, ou antes adivinho.

E encostando-se a uma árvore, esperou.

No fim de um segundo, chegou-lhe aos ouvidos o ruído de uma chave girando na fechadura.

A portinha girou nos gonzos, e o vulto desapareceu.

— Quem quer que é, entrou... disse Mariana consigo. Quem será?... Será o Duque! Mas por que havia ele de ocultar-se? Não está ele no direito de fazer o que bem lhe parece, e de entrar pela porta principal? É singular... Quero saber...

Tornou a atravessar a rua, e certificou-se de que a porta estava fechada.

— Que se passa para lá dessa grade? continuou a criada principiando a sentir-se assustada. Parece-me extraordinário este mistério... Quem sabe se a menina de Lasseny, não tem alguma coisa com esta visita noturna? Julgo a velhaca muito capaz de receber um amante... Ah! se eu pudesse ler as provas disso! Esperarei.

E Mariana embrulhando-se no seu chalé de quadrados, porque a névoa penetrante a gelava até à medula dos ossos, afastou-se uns dez passos, e pôs-se de observação.

O homem que acabava de transpor a porta do jardim, — o que é quase supérfluo afirmar aos nossos leitores, - era o Barão de Fossaro.

Apeando-se, dissera a Benedetto:

— Vá imediatamente à Rua Verneuil, a casa do doutor Frébault... chame pelo porteiro, anuncie-lhe que sucedeu uma desgraça ao seu locatário, e que de um momento para o outro lhe levarão o cadáver. Que trate de prevenir os criados do médico.

— Si, signor.

— Se o interrogarem, não saberá nada.

— Si, signor.

Assim que se achou no jardim, dirigiu-se para a porta por onde Branca tinha saído, tendo o cuidado de não a fechar.

Fossaro empurrou-a e achou-se num pequeno vestíbulo.

Apesar de haver estudado o plano, traçado pela falsa Adriana, não podia às cegas caminhar pelo palácio, sem se arriscar a denunciar a sua presença com encontrões imprevistos.

No palácio estava tudo silencioso.

César de Fossaro fez girar o fecho da porta, e não encontrando resistência, entrou sem hesitar.

A lâmpada, cuja torcida Branca baixara, derramava uma fraca claridade.

O Barão dirigiu u olhar para a pedra do fogão.

Os dois frascos estavam ainda ali.

Avançou, pegou neles, e meteu-os na algibeira, onde guardara o fio de latão.

Neste momento, um ruído inesperado fez-lhe desce um calafrio pelas costas, mas sorriu no mesmo momento daquele terror irrefletido, cuja causa única estava no mecanismo das horas do relógio.

— Meia noite... disse, lançando um olhar para o mostrador esmaltado. Há meia hora, pelo menos, tudo deve estar terminado... Vou certificar-me... Preciso da carta do Duque à Duquesa que Branca não se atreveu a empolgar.

Fossaro atravessou o gabinete do toilette, e encostou o ouvido à porta do quarto de Joana.

Nenhum ruído suspeito se fazia ouvir.

Puxou o fecho que a jovem tinha corrido antes de sair, abriu a porta com precaução, e tornou a parar novamente.

No vasto aposento reinava silêncio de morte.

Um candieiro de Carcel de grande luz, colocado sobre uma mesa pequenina ao pé do leito, banhava de esplêndida luz o corpo já hirto da senhora de Chaslin.

O Barão aproximou-se nos bicos dos pés, precaução inútil e inconsciente.

Um sorriso de triunfo iluminou-lhe as feições, ao mesmo tempo que relanceava pelo quarto a sua pupila única, procurando o cofrezinho de cristal montado em prata, e do qual a falsa Adriana falara.

Quando o descobriu, fez jogar a mola, levantou a tampa, e depois trouxe-o para junto da luz, a fim de lhe examinar melhor o conteúdo.

A sua exploração foi coroada de repentino êxito.

— Eis o que quero! disse metendo na carteira a carta escrita pelo senhor de Chaslin, e datada do palácio de la Roche-sur-Loire.

Feito isto, e posto o cofre no seu lugar, César deixou um derradeiro olhar para a cama fúnebre, atravessou o gabinete de toilette, depois de novamente fechar a porta, correu o fecho do quarto de Branca, baixou a torcida do candieiro, seguiu ao longo do corredor, desceu a escada, saiu do palácio, depois do jardim, e voltou para o trem.

 

— Fez o que lhe disse, Benedetto? perguntou ao cocheiro. Recebeu uma resposta afirmativa, e deu ordem para o conduzirem à Rua Francisco I.

Quando César chegou ao palácio do principezinho, o comissário de polícia acabava de terminar o seu auto de corpo de delito.

Este auto declarava que a morte do doutor Frébault fora acidental, em presença de numerosas testemunhas.

— Este pobre Antonino havia de querer saber porque é que a Duquesa morrera tão depressa... pensou o Barão. Sabe-o agora, se o outro mundo existe, mas não o pôde dizer a ninguém. Tudo corre perfeitamente!

O cadáver do médico foi logo colocado numa carruagem para ser conduzido à rua de Verneuil.

Fossaro viu-o partir, depois dirigiu-se para o quarto de Heitor.

O Príncipe voltara a si, mas achava-se numa prostração penosa, quase inquietadora.

César apertando-lhe afetuosamente a mão, disse-lhe:

— Coragem, querido Príncipe!

— Coragem! não tenho! Eu era muito amigo de Frébault... Não me consolarei nunca com a sua morte...

— O que acaba de se passar é profundamente triste, tornou o Barão; mas a catástrofe podia ser mais terrível ainda... A sua estrela protege-o visivelmente!... Sentado ao lado de Frébault, devia ter ficado ferido como ele...

Heitor limpou o rosto inundado de lágrimas e balbuciou:

— Deus, de certo, quer que eu viva...

— Veremos! disse Fossaro.

 

Voltemos a Mariana Gilberto. Ouvira abrir a porta do jardim...

Vira o vulto humano tornar a sair, e dirigir-se para a Rua de Boissy d'Anglas.

O visitante noturno tornando a sair do palácio, não podia ser o Duque.

Quem seria então, e porque estivera ausente tanto tempo?

Por um instante, Mariana teve idéias de o seguir.

Mas ele caminhava depressa, e chegou num instante à carruagem que o trouxera, e que logo se afastou.

A velha criada, com a alma atormentada por negros pressentimentos, em vez de voltar para casa pela Avenida Gabriel, Rua do Elyseu e Praça Beauveau, tornou para trás.

Dirigiu-se para o faubourg Saint-Honoré, pela Rua Boissy d'Anglas, e parou em frente do palácio de Chaslin, tendo o cuidado de se colocar na calçada, do lado oposto da rua.

Apesar da densidade do nevoeiro, pareceu-lhe distinguir uma fraca claridade através das cortinas descidas das janelas do primeiro andar.

— Há luz no aposento da senhora Duquesa, murmurou. Também há luz no quarto onde eu ficava, para estar ao pé da minha ama. Também há luz no do Duque... Que se passa esta noite no palácio?

Durante mais de vinte minutos, Mariana andou a passear de um lado para o outro pelo passeio, perguntando no seu íntimo se não deveria despertar o porteiro, e contar o que acabara de presenciar na Avenida Gabriel.

Mas a idéia de que o senhor de Chaslin a tornaria a acusar de mentirosa e a faria expulsar novamente, não a deixou dar seguimento ao seu projeto.

Não podia, contudo, resolver-se a sair dali.

Via que não poderia pregar olho em toda a noite.

Queria, pelo menos, antes de voltar para a Avenida Gabriel, certificar-se de que daquele lado nada havia de anormal.

Por isso tornou a encaminhar-se para a Rua Boissy d'Anglas.

Era uma hora da manhã...

 

ROMEU E JULIETA

O trem onde se achavam o senhor de Chaslin e Branca fez alto no ângulo do boulevard e da Rua de Ia Chaussée de Antin, defronte do Vaudeville.

O Duque abriu a portinhola e apeou-se.

— Chegamos, disse, apeie-se, querida Adriana. A jovem saltou ligeiramente para o passeio.

— Para onde me leva? perguntou.

— Ao Bignon.

— Um restaurante! murmurou Branca com gesto de terror.

— Vamos para um gabinete, onde estaremos ao abrigo de toda a curiosidade indiscreta, onde poderemos conversar à nossa vontade. Não hesite... venha.

Branca fez uma ou duas objeções, por simples formalidade, e seguiu o ancião que subiu com ela os degraus cobertos de um tapete felpudo que conduziu ao primeiro andar.

Um criado majestoso, com suíças de ministro, introduziu-os num gabinete onde os perfumes combinados do charuto e do opoponax, produziam aquele cheiro sui generis, muito conhecido dos pândegos noturnos, das bonitas cocotes e das mulheres casadas que cultivam a flor do adultério.

A falsa Adriana de Lasseny deitou um olhar curioso pelas paredes forradas de papel e guarnecidas de frisos de madeira dourada, daquele gabinete banal, pela mesa posta, pelo amplo divã de fisionomia provocante, pelos espelhos garatujados de nomes e de letras por garotas idiotas que a si mesmas querem provar que têm nos dedos verdadeiros diamantes.

O criado majestoso entufou o peito, afagou com a mão esquerda as suíças sedosas, e formulou esta interrogação:

— O senhor quer escrever o que escolhe?

O Duque perguntou então à sua companheira:

— Que come?

— Não tenho fome...

— O apetite virá... replicou o senhor de Chaslin. Depois, dirigindo-se ao criado:

— Traga-nos ostras de Ostende, sopa de purée de caça, um perdigoto com trufas, uvas e peras...

— Vinho?...

— Champanhe nevado.

— Durante toda a refeição?

— Sim.

— Bem, senhor.

O criado saiu para ir transmitir as ordens que acabava de receber.

Passado um momento veio pôr em cima da mesa os hors d'oeuvres, as ostras e uma garrafa de cápsula dourada num regelador de plaque.

 

Branca não levantara ainda o véu.

Para se dar uma atitude, procurava ler os nomes escritos num dos espelhos.

Quando o criado se retirou, o Duque aproximou-se da jovem.

— Querida Adriana, exclamou ele num tom suplicante, venha sentar-se à mesa; mas tire primeiramente esse véu que lhe oculta as feições; tire esse chapéu que lhe esconde os cabelos ; essa capa de peles que não me deixa admirar o seu talhe.

Branca obedeceu silenciosamente.

O senhor de Chaslin sentiu-se numa atmosfera de fogo, quando a viu de cabeça descoberta, os grandes olhos cismadores, ainda maiores por efeito da aureola lívida, e o rosto mais pálido que de costume, sob o diadema dos seus cabelos louros.

Quis agarrar-lhe as mãos.

Branca retirou-as suavemente.

— Pedi-lhe que me concedesse uma entrevista fora de casa, e segui-o aonde lhe aprouve conduzir-me... disse ela com voz firme. Se fiz isto, foi que um motivo grave e legítimo desculpa a meus próprios olhos um passo tão comprometedor... Devo falar-lhe demorada e seriamente...

— Querida Adriana, replicou o senhor de Chaslin, que pensava em coisa muito diferente de uma conversa séria; não poderíamos pensar primeiro que tudo na felicidade de nos vermos juntos?

— Se estamos juntos, interrompeu a jovem, é porque devo ocupar-me do meu futuro.

— Do seu futuro repetiu o Duque. Mas não está o seu futuro já garantido? Não estou eu para velar incessantemente sobre ele, para a rodear de cuidados e de amor?

— Ah! exclamou Branca com vivacidade, cale-se! Não torne a proferir semelhante palavra, peço-lhe!

— Posso eu impor silêncio ao sentimento que me domina a alma? Posso porventura deter nos lábios os gritos da paixão que me saem do peito?

— Pode, porque assim é preciso, porque lho exijo! Não me faça arrepender da minha confiança! Não me obrigue a fugir-lhe. Sossegue e domine-se...

— Pois sim, sossegarei, obedecer-lhe-ei. Que devo fazer?

— Primeiro cear, depois escutar-me...

O Duque sentou-se todo trêmulo ao lado de Branca, e encheu us copos.

Branca comeu algumas ostras, e bebeu um gole de Champanhe.

O criado tornou a aparecer com a sopa. Quando ele se retirou, Branca volveu:

— Sim, creio na sua amizade.

— Não é na minha amizade que deve crer! murmurou o senhor de Chaslin. O que sinto por si é uma paixão profunda... infinita...

— Diga-me então aonde nos levará essa paixão? interrompeu a jovem.

O velho baixou os olhos, sob o olhar que descia sobre ele a prumo.

— O senhor Duque cala-se, continuou Branca passado um instante. Não se atreve a responder! Pois bem, responderei pelo Duque, porque leio no seu pensamento. Quer fazer de mim sua amante...

— Quero fazê-la meu ídolo... meu culto... uma divindade que se adora de joelhos...

— Sua amante, em suma... repito a palavra... - talvez brutal, mas absolutamente verdadeira.

— Bem sabe que será minha mulher...

Branca encolheu os ombros. A final retorquiu:

— É uma promessa que o obriga a tão pouco! A Duquesa está viva...

— Adriana, quer então encher-me de desespero?

— O que eu quero é torná-la razoável, mais nada... Sirva-me dessa sopa, e deite-me de beber...

Branca bebeu com delicadeza e aprumo.

O criado entrou, trazendo a continuação da ceia, e tornou logo a sair.

Reinou demorado silêncio. A falsa Adriana rompeu-o.

— Senhor Duque, exclamou, eis-me chegada às cousas sérias que devo dizer-lhe... vou pedir-lhe um conselho.

— Um conselho? a mim?

— Sim.

— Fale.

— Não acha que seria acertado ver se se encontra um pretexto que me permitisse deixar o palácio de Chaslin?

O velho amante estremeceu; a estupefação e a angústia manifestaram-se no rosto.

— Deixar o palácio? balbuciou com uma voz alterada. Por quê?

— Pois não compreende quanto a minha posição é falsa, e até odiosa junto da Duquesa? O Duque fez-me a confissão de uma paixão falsa, e eu proibi-lhe que me falasse em semelhante coisa, mas sem ter a coragem de lhe proibir que me amasse! Sabendo que o senhor Duque está apaixonado por mim, e continuando a ficar sob o mesmo teto que o cobre, torno-me sua cúmplice, apesar da minha inocência! A minha presença é um contínuo insulto para a nobre senhora que tem o seu nome! Não esqueça que Mariana Gilberto despertou na sua alma suspeitas, agora desvanecidas, creio, mas que podem de um momento para o outro reviver. Ora, Adriana de Lasseny deve estar acima de toda a suspeita! Será verdade?

— Sim, é verdade, respondeu o Duque, arrastado contra sua vontade; mas se Adriana se retirar, será para mim a morte!

— A morte! repetiu Branca sorrindo. Compreendo mal...

— Não a ver, é o mesmo que não viver!

— Quem lhe impede que me veja? Não pôde vir visitar-me à casa onde eu estiver?

Uma imensa alegria invadiu a alma do senhor de Chaslin.

— Receber-me-á? exclamou. Permitir-me-á passar junto de si longas horas que me hão de parecer muito breves?

— Permitir-lho-ei de muito boa vontade... respondeu Branca: sou a filha de um dos seus velhos amigos... Nada será pois mais natural que as suas freqüentes visitas; ninguém poderá admirar-se... e acredite que me tornarão feliz...

— Adriana, Adriana... tornou o velho cingindo com os braços o corpo da jovem que pretendeu puxar para si. Nessa nova habitação que o meu amor espera transformar em paraíso, não recusará a fortuna que deponho a seus pés! Onero rodeá-la das maravilhas do luxo e das artes. Quero preparar uma moldura real à sua divina beleza. Consentirá, não é verdade? Deixar-me-á admirar o meu ídolo, não é assim?

Branca soltou-se repentinamente.

— De que desprezo se complica o seu amor! replicou ela com altivez. O senhor propõe-me mancebia! Os olhos de Branca fuzilavam.

— Senhor Duque, não sou mulher que se venda! Não esqueça para o futuro o respeito que me deve, aliás juro-lho pela minha honra, entre nós acabar-se tudo.

O senhor de Chaslin murmurou desculpas.

A jovem não pareceu ouvi-las. Consultou o relógio. Faltava um quarto para a uma hora.

— É tarde... continuou ela levantando-se. Reconduza-me.

 

O Duque, confuso e arrependido, não replicou, e chamou pelo criado, para pedir a conta e um trem.

A falsa Adriana punha o chapéu, deixava cair novamente o véu, e punha a capa nos ombros.

O nevoeiro tornava-se cada vez mais denso.

Mariana Gilberto, dominada por sombrios pressentimento, não se resolvia a sair da Avenida Gabriel.

Encostada a uma das árvores dos Campos-Elysios, fitava persistente o olhar na portinha do jardim, naquela portinha que duas vezes se abrira para dar passagem a um desconhecido suspeito.

Sentiu uma comoção repentina ao ouvir o rodar de uma carruagem que vinha da Praça da Concórdia e se aproximava da avenida.

A vinte passos da grade a carruagem parou, depois, no fim de um segundo, gritou sobre si mesma e afastou-se.

Mariana viu então, na espessura, avançarem dois vultos e pararem defronte de uma porta.

Apesar da espessura do nevoeiro, a velha criada distinguiu um homem e uma mulher.

Parecia-lhe vagamente reconhecer o andar da mulher.

O ranger do ferro contra o ferro demonstrou-lhe que introduziam uma chave na fechadura.

— Entre depressa, disse uma voz.

Não foi sem custo que Mariana abafou o grito prestes a escapar-lhe dos lábios.

— É o Duque! murmurou ela, o Duque e Adriana de Lassen?! Ah! o meu instinto não me enganava! Eu avaliava bem a miserável rapariga! A vergonha e a desgraça entraram com ela em casa da minha querida senhora!

A antiga ama de Helena sabia agora demasiado.

Nada mais lhe restava que saber naquela noite.

Tornou encaminhar-se para a Rua Miromenil.

 

Logo que o Duque e Branca se acharam no jardim, a jovem dirigiu-se rapidamente para a portinha do palácio, deixando atrás de si o seu companheiro sem lhe dirigir uma palavra, subiu a escada que conduzia ao seu quarto, fechou-se, e atirou para cima de uma cadeira a capa e o chapéu.

— Parece que endoideço, disse ela. Na minha ausência que se passaria? Viria Pedro Rédon?

Depois de levantar a torcida do candieiro, correu ao fogão.

— Sim, continuou ela, veio... Os frascos já aqui não estão, tenho medo.

As pernas fraquejavam-lhe, mas a sede de saber restituiu-lhe a energia, esmorecida.

Puxou o fecho, atravessou o gabinete como fizera Fossaro, e encostou o ouvido à porta do quarto de Joana.

— Um silêncio de morte... continuou a falsa Adriana... Está consumada a obra... Quero certificar-me... A incerteza matar-me-ia.

Abriu a porta com precaução, e caminhando nos bicos dos pés, avançou até à cama fúnebre.

Pálida de pavor recuou, mas sem soltar um grito, e já senhora de si, constrangeu-se a contemplar as feições decompostas e os olhos muito abertos da vítima.

— Está tudo acabado, balbuciou ela; serei Duquesa. Passado um momento acrescentou:

— Quando eu parti, a senhora de Chaslin escrevia... Tinha a pasta em cima dos joelhos. Pedro Rédon levaria a carta principiada?

Descobriu entre as dobras da cobertura de seda da cama, rasgada pela vítima na sua convulsão suprema, um ângulo da pasta.

Apoderou-se dela, descobriu a folha de papel coberta de letras, pegou nela, e aproximando-se do candieiro, cuja torcida quase toda carbonizada, só projetava um clarão avermelhado, leu as últimas linhas traçadas pela moribunda, e destinadas, como sabemos, a Rogério de Chaslin.

À proporção que lia, a expressão de terror ia-se lhe desvanecendo no rosto, sendo substituída por uma irradiação de alegria.

— Designa-me a seu filho como a filha das suas afeições, como a mulher sonhada para ele. E Rogério é moço, é belo, e será Duque! Vou amá-lo, amo-o já talvez! Que me importa ao presente o velho que me adora? Eis o meu futuro. É preciso que o Duque não suspeite a existência de semelhante carta... O seu ciúme levá-lo-ia a aniquilá-lo... mas é preciso que Rogério leia... O que fazer?

Branca, com a cabeça baixa, e os olhos fixos, procurou a solução do enigma.

Achou-a finalmente.

Tornando a pegar na pasta abriu-a, meteu-lhe a carta dentro, atirou-a para o espaço que medeava entre a cama e a parede, dizendo:

— A confusão das primeiras horas há de ser tal, que durante este tempo ninguém, com certeza, se lembrará de que a Duquesa escrevia ontem à noite, e pensará nesta carta. Porém, eu falarei nela quando a ocasião chegar... Só me resta retirar... A criada de quarto entrará aqui esta manhã segundo o costume, e dará o sinal de alarma. Deste momento em diante, o meu papel limitar-se-á a fazer face aos acontecimentos.

 

NOVAS MAQUINAÇÕES

Branca entrou para o seu quarto, despiu-se e meteu-se na cama, prostrada do corpo e do espírito.

Parece-nos supérfluo afirmar aos nossos leitores que ela não pregou olho por um minuto.

Quando o ruído de passos no palácio anunciaram que os criados acabavam de se levantar, e principiavam o seu serviço, levantou-se sobre um cotovelo e pôs o ouvido à escuta.

Por volta das nove horas fê-la estremecer um grito terrível, seguido de pancadas violentas na porta.

Ao mesmo tempo uma voz transtornada repetia:

— Menina Adriana! menina Adriana...

— Descalça, e sem se dar ao trabalho de enfiar uma saia, Branca correu a abrir.

— Que há de novo? perguntou a miserável criatura com uma expressão de angústia capaz de enganar o mais sagaz dos juízes.

— Uma horrível desgraça, menina! respondeu a criada de quarto, cujo rosto estava banhado de lágrimas.A senhora Duquesa morreu...

— Morreu! repetiu Branca. Ah! meu Deus! Mas é impossível! é impossível!

Atravessou de um salto o gabinete de toilette, correu ao leito, soltou um grito abafado, e caiu de joelhos, ocultando o rosto nas mãos, e balbuciando palavras entrecortadas e frases sem nexo.

— Bem vê, menina, que não me enganava! tornou a criada de quarto. Que fazer, meu Deus? que fazer?

Branca levantou-se:

— Primeiro que tudo é preciso prevenir o senhor Duque enquanto me vou vestir, replicou ela. Vá! vá depressa!

A criada de quarto saiu correndo.

A envenenadora voltou para o seu quarto, acabou de vestir à pressa um penteador, e atava o cabelo, quando as portas se abriram com violência, e se ouviram passos precipitados no quarto da morta.

O senhor de Chaslin, ofegante, alucinado, dominado por um desespero sincero, chegava, e atrás dele afluíam os criados lavados em lágrimas, porque sabemos que Joana era adorada pelos criados.

 

A filha de Pedro Carnot entrou.

— Morta, a senhora Duquesa! Morta a minha benfeitora! murmurou ela com uma voz quase indistinta, entrecortada por soluços. Oh! meu Deus! meu Deus! quão cruelmente me feris!!

E por segunda vez deixou-se cair de joelhos.

Em roda dela não se ouviam senão gemidos abafados!

Em pé, à cabeceira do leito, o Duque conservava-se mudo, aterrado, como idiota, os lábios trêmulos, os olhos espantados.

Grandes lágrimas deslizavam-lhe uma a uma, sem que ele tivesse consciência disso.

De repente passou a mão pela fronte como um homem que desperta.

— O doutor Frébault... ordenou. O senhor de Logeryl... os meus filhos... Helena e Rogério... previnam-nos.

E prostrando-se aos pés do leito, enterrou o rosto nas coberturas da cama, ao mesmo tempo que o peito lhe arfava convulso.

Partiram dois criados a toda a pressa, um para casa do doutor Frébault, o outro para casa do senhor de Logeryl.

Branca chamou o criado de quarto do Duque, e disse-lhe:

— Um telegrama para a menina Helena, em casa da senhora Condessa de Roncey, em Besançon, e outro para o senhor Rogério, em Vesoul... Depressa!

O criado saiu.

Durante alguns minutos reinou um silêncio profundo e sinistro no quarto mortuário.

O senhor de Chaslin levantou-se.

Deitava em roda de si olhares sem expressão, e parecia aniquilado.

Alguns minutos tinham-no envelhecido dez anos.

Lembrava-se talvez com terror de que no momento em que a Duquesa Joana de Chaslin morria, dizia ele a outra mulher, no delírio da sua paixão adúltera.

— Será Duquesa! Entretanto Branca dava ordens.

Fecharam-se as cortinas das janelas; acenderam-se velas em roda do leito.

Despenduraram da parede um crucifixo de marfim, e coloram-no em cima do peito da morta.

Os criados mandados em missão voltaram um depois do outro.

— Então? perguntou Branca ao primeiro criado que apareceu: O criado respondeu:

— O senhor de Logeryl não está de volta. Só o esperam depois do meio dia.

O segundo criado chegou.

— O doutor Frébault estava em casa? interrogou a jovem,

— O doutor Frébault morreu. Branca teve um estremecimento... Compreendia, adivinhava.

O Duque ouvira.

— Morreu! exclamou com voz abafada.

— Sim, senhor Duque, esta noite.

E o criado referiu o que acabavam de lhe contar na Rua Verneuil. Henrique de Chaslin levantou as mãos ao céu, e deixou-se cair numa poltrona.

A envenenadora aproximou-se dele.

— Senhor Duque, murmurou.

O velho ergueu a cabeça, fixou na jovem um olhar sem ardor, e balbuciou:

— Que me quer?

Branca continuou:

— Apesar da sua imensa dor é preciso pensar nos deveres que lhe incumbem. Devem fazer-se as declarações legais.

O Duque respondeu com um sinal afirmativo.

Levantou-se, não sem custo, apoiando-se nos braços da cadeira, curvou o joelho diante do leito fúnebre, e saiu do quarto cambaleando como um homem embriagado.

A bastarda de Pedro Carnot não se desmentirá.

Mandou chamar um padre, foi vestir um traje de luto, e voltou a representar junto do cadáver da santa mulher que lhe chamava filha, a comédia sacrílega da oração e das lágrimas.

O médico enviado pela "mairie" para verificar o óbito, declarou que como a morte remontava a noite precedente, a decomposição do corpo devia ser rápida, convinha proceder ao enterro na manhã seguinte.

Atribuiu a morte à ruptura de um aneurisma.

Corriam as horas.

Próximo da noite, o senhor de Logeryl chegou todo assustado.

A falsa Adriana continuava a orar e a chorar.

— Ah! senhor, balbuciou ela com uma explosão de soluços, que terrível golpe para todos nós, e para mim que eterno luto. Parece-me que acabo de perder minha mãe.

O substituto pegou nas mãos de Branca, apertou-as da maneira mais afetuosa, e dirigiu-se ao quarto do senhor de Chaslin.

O Duque depois de haver escrito os apontamentos necessários para as declarações legais, fechara-se no seu quarto e absorvera-se nos seus desgostos e nos seus remorsos, remorsos pungentes que lhe dilaceravam a alma, porque lembrando-se da sua casta companheira moribunda e tão cobardemente atraiçoada, tinha horror de si mesmo.

Deus sabe se naquele momento Adriana já não existia para ele?

Ao ver a terrível alteração das feições do Duque, o senhor de Logeryl estremeceu.

O ancião estendeu-lhe os braços, e encostando a cabeça ao seu ombro, balbuciou:

— Morreu a minha pobre Joana! Morreu. Ah! eu desejava morrer também!

Tio e sobrinho choraram juntos.

Bateram de manso à porta.

Um criado trazia dois telegramas.

Eram as respostas aos telegramas expedidos algumas horas antes.

— Leia, meu filho, disse o Duque.

O senhor de Logeryl rasgou os envelopes. Henrique de Chaslin interrogou-o com o olhar.

— Rogério estará aqui amanhã pela manhã, exclamou o substituto.

— E Helena?

— Helena achava-se no campo com a tia a dez léguas da Besançon. Fez-se seguir o telegrama. Helena também deve chegar amar nhã, mas de certo mais tarde que o irmão.

— Valha-me Deus, murmurou o Duque, chegará ela a tempo de ver por última vez a mãe?

— A que horas deve efetuar-se a cerimônia fúnebre?

— Ao meio dia.

— Não se poderá adiar?

— O empresário do enterro disse que era impossível. O senhor de Logeryl passou toda a noite junto do tio. Antes de sair do palácio quis despedir-se da falsa Adriana. Kra uma atenção devida a quem tão dedicada fora a sua tia.

 

Foi encontrá-la na câmara mortuária, que ela não consentia em deixar sob nenhum pretexto.

Os criados não se fartavam de elogiar a sua dedicação e a sua gratidão.

O senhor de Logeryl dirigiu-se-lhe com respeitoso interesse:

— Menina, olhe que sucumbe a tanta fadiga! É preciso fazer-se substituir aqui durante algumas horas, e tomar um pouco de descanso.

Branca retorquiu chorando:

— Sou mais forte do que julga, senhor. Demais, pouco importa que eu sucumba. Não deixarei a minha benfeitora.

— Tem o coração de um anjo, pensou o substituto. Branca tornou:

— Permita-me, senhor, que lhe faça uma pergunta. O senhor de Logeryl inclinou-se.

— Quando chegam os filhos do senhor Duque?

— Vêem ambos amanhã pela manhã, mas Rogério chega primeiro.

— Permita Deus que eles tornem a ver o rosto de sua pobre mãe.

— Duvida?

— Infelizmente duvido, porque o telegrama expedido por sua ordem, não a encontrou sua prima em Besançon.

— O namorado de Helena retirou-se, e Branca voltou para a cabeceira da morta.

Desde pela manhã que ela impusera a si própria um jejum voluntário, o que, junto à ausência do sono e à intensidade das suas preocupações, dava-lhe ao rosto pálido um caráter doloroso e trágico.

Era impossível não a julgar esmagada sob o peso de um incomensurável pesar.

Absorvia-a uma idéia fixa.

 

Dentro de algumas horas ia ver Rogério de Chaslin de Kervilliers, aquele Rogério tão jovem e tão belo. que seria Duque e milionário, e a quem a Duquesa a destinava para mulher.

Durante toda a noite, enquanto parecia chorar e orar, ardentes sonhos lhe povoavam o cérebro febricitante.

Por volta das sete horas da manhã, o rodar de uma carruagem que vinha a toda a pressa, e parou repentinamente na rua, mesmo em frente do portão, despertou-a da sua absorção.

Ao mesmo tempo soava a campainha do palácio.

Branca correu uma das janelas, levantou as cortinas, e olhou.

O portão abriu-se.

Um mancebo de uniforme de hussardo dirigiu-se rapidamente para os degraus do vestíbulo.

— É Rogério, disse Branca, a fotografia que sua mãe que mostrou não exagera a sua beleza. Vou ver finalmente aquele que me há de fazer Duquesa. Como o meu coração bate! Tenho afinal coração.

Depois deste breve monólogo, a filha de Pedro Carnot voltou para junto do leito, e volveu à sua atitude recolhida.

Rogério de Chaslin, encontrando pelo caminho os criados inclinados e silenciosos, galgou as escadas, atravessou a sala de entrada, entrou como um furacão no quarto da mãe, e correu para a câmara fúnebre, sem reparar sequer na jovem que ocultava o rosto entre as mãos.

O filho da Duquesa caiu de joelhos.

As suas lágrimas por muito tempo reprimidas, rebentaram. Balbuciou:

— Oh! minha mãe, minha doce e santa mãe. Por que a chamou Deus tão depressa para si, sem permitir aos seus filhos o receberem o último ósculo?

Ao ouvir a voz de Rogério, Branca sentiu vibrar-lhe todas as fibras.

Ao ouvir as palavras proferidas pelo seu desespero, as palpitações do coração aumentaram-lhe.

Levantou-se e olhou para o mancebo que não a via.

— Quais serão as primeiras palavras trocadas entre nós? perguntava ela.

No limiar da porta que ficava aberta, apareceu o senhor de Logerly que se apeara e acabara de ser prevenido da chegada do primo.

Armando aproximou-se dele, o tocou-lhe brandamente no ombro.

Rogério voltou a cabeça, reconheceu o substituto, lançou-se nos seus braços, e teve-o muito tempo abraçado, soluçando sem proferir palavra.

Branca conservava-se um pouco afastada.

A dor daquele filho cuja mãe matara, importunava-a.

Quis voltar para o seu quarto.

O ruído ligeiro dos seus passos atraiu sobre ela a atenção do senhor de Logeryl.

— Não se afaste, menina Adriana, peço-lhe, disse-lhe com vivacidade; desejo mesmo apresentá-la ao meu primo.

E voltando-se para Rogério, acrescentou:

— Rogério, eis aqui a menina de Lasseny, a nobre menina a quem a senhora Duquesa chamava, com razão, o anjo do seu lar. Pelo amor da nossa querida morta, é preciso amá-la como uma irmã, ela pertence-nos.

 

NOVO IDÍLIO

Branca estacara numa atitude modesta. Parecia confusa ante as palavras laudatórias proferidas pelo senhor de Logeryl.

Rogério ergueu pra a jovem os olhos avermelhados e intumescidos pelas lágrimas.

Durante um segundo, apesar da violência da dor, experimentou uma sensação de surpresa e de deslumbramento.

— Ah! A menina de Lasseny, balbuciou, de quem minha mãe me falava nas cartas com profunda ternura.

A filha de Pedro Carnot sentiu o coração fundir-se-lhe. O sonho de amor e de ambição que ela afagava havia alguns dias não tardaria a realizar-se. Tinha já disso a certeza. Rogério estava encantado. Sem responder inclinou-se. O mancebo tornou com vivacidade:

— Minha mãe amava-a. Tinha na senhora toda a confiança... Viu-a morrer. Diga-me se o seu último pensamento... Se o último nome proferido pelos seus lábios moribundos foi o meu.

Falando assim, Rogério agarrava nas mãos de Branca, e senti-as tremer nas suas.

— Ai de mim, senhor, replicou a falsa Adriana, soluçando. O senhor, sem querer, aviva o meu mais pungente pesar. A senhora Duquesa morreu esta noite de repente, e eu não estava ao pé dela! Obedecendo à sua vontade formal, ao seu desejo imperioso, tomava algum repouso...

— De repente! De noite! exclamou Rogério, é horrível essa agonia solitária, é horrível! O quê, ninguém ao pé de minha mãe! Nem saberemos se quer se ela morreu chamando pelos filhos!

— Pensava continuadamente no senhor e na menina Helena, tornou Branca, e lembro-me... quando a senhora Duquesa, ao pé da qual trabalhei até às onze horas da noite, me deu ordem para me retirar, escrevia-lhe, e queria terminar a sua carta.

— Escrevia-me!... repetiu o mancebo sufocado pela comoção.

— Sim, confirmou Branca.

— Uma carta de minha mãe no momento em que ia subir ao céu! Os seus últimos pensamentos! A suprema expressão da sua ternura! E essa carta existe?

— Sem dúvida.

— Que é feito dela?

— Não sei.

— Foi talvez meu pai que se apoderou dela, como de uma relíquia sagrada. Não lhe parece?

Branca refletiu.

— Não, não me parece, disse afinal.

— Por quê?

— O senhor Duque fulminado por um golpe inesperado, não podia pensar senão na sua desgraça. Eu mesma, no meio da alucinação do meu desespero, esqueci-me dessa carta que deve estar na pasta de que a senhora duquesa costumava servir-se para escrever, e que eu lhe trouxera tão pouco tempo antes da catástrofe.

— Onde está essa pasta?

— Em cima da cama... Pode ter caído para o chão.

— Sim?

— Não é certo, mas provável, e vou já certificar-me disso.

Branca meteu-se entre o espaço da cama e a parede, baixou-se e pareceu procurar.

— Ei-la, senhor, disse, não me enganava...

 

Ao mesmo tempo apresentava o objeto a Rogério, que agarrou nele, abriu-o e tirou a carta por acabar que chegou aos lábios.

— A letra de minha mãe! as últimas palavras que a sua mão traçou!

Deixou-se cair numa cadeira, e durante alguns segundos tornou-se-lhe impossível decifrar uma só linha.

Cegavam-no as lágrimas.

Finalmente, um momento de calma no seu desespero, permitia-lhe ler em voz baixa a carta que nós conhecemos.

Quando acabou de decifrar a última frase, tornou a olhar para Branca e balbuciou com uma voz abafada:

— Menina Adriana, minha mãe amava-a do fundo dalma... Pusera na senhora certas esperanças de que me fala nesta carta, e se isso depender de mim só, tais esperanças não serão logradas.

— Eu amava a senhora Duquesa como se fosse sua filha... volveu Branca simplesmente. Por ela houvera dado sem pesar a vida, Deus bem o sabe!

Após um momento de silêncio, tornou:

— Permita-me que me retire, senhor... tenho algumas instruções a dar aos seus criados.

— Vá, minha senhora, e continue a dirigir tudo aqui, como se fazia antes do golpe terrível que nos feriu a todos... Já não tarda a dizer à minha irmã, à minha querida Helena, quanta gratidão lhe devemos...

Branca inclinou-se diante dos dois homens e saiu. No seu rosto manifestou-se a mais profunda tristeza. Uma alegria imensa fazia-lhe, porém, pulsar o coração. Quando a porta se fechou após ela, Rogério disse ao senhor de Logeryl:

— Armando, minha mãe tinha razão, aquela jovem é um anjo.

Voltou-se para o leito onde jazia a morta, e continuou:

— Oh! minha mãe... minha mãe. Juro-lhe que satisfarei o seu último voto... Não o esquecerei nunca.

Os soluços embargaram-lhe a voz.

— Vamos, Rogério, exclamou o senhor de Logeryl pegando-lhe nas mãos, sê homem! Poupa-te a estas frases banais de consolação que não consolam, e luta porém contra a dor, e mostra que és o mais forte! Lembra-te de que deves a teu pai o exemplo da coragem.

— Tens razão! Meu pobre pai! Sobreviverá ele ao infortúnio que o esmaga? Vamos ter com ele...

— Depois iremos... O seu criado de quarto, no momento em que cheguei, disse-me que dormitava após uma longa insônia... Deixemo-lo saborear uma hora de descanso, de que tanto carece!...

— Mas por que é que minha irmã não está aqui? Não foi prevenida por despacho ao mesmo tempo do que eu?

O senhor de Logeryl explica a causa da demora de Helena.

— Chegará ela a tempo para o séquito fúnebre? murmurou Rogério.

O criado de quarto entrou.

Acabava de anunciar que o Duque de Chaslin esperava Rogério e Logeryl.

Não descreveremos a entrevista de pai e filho.

Para que havemos de enegrecer mais ainda as cores de tão sombrio quadro?

 

Soavam as doze badaladas do meio dia.

Havia mais de uma hora que o caixão de Joana de Chaslin estava exposto numa verdadeira capela ardente, por baixo dos panos de luto encimados pelas armas ducais que ornavam a porta monumental do palácio.

Os empregados das pompas fúnebres, levantando o caixão, colocaram-no no luxuoso trem, cujo pano mortuário desapareceu debaixo de um montão de coroas e de flores.

O Duque estava aniquilado.

Amparado pelo filho e por Armando, veio colocar-se à frente do cortejo; as carruagens de luto desfilaram-se, seguidas de centenas de carruagens particulares, e o préstito dirigiu-se lentamente para a igreja.

 

No momento em que se punha a caminho, um comboio da linha de Paris-Mediterrâneo-Lyão, vindo de Dijon, parava em Brunoy.

Uma jovem de vinte anos, trigueira, muito bela, vestida de luto, pálida, com os olhos avermelhados, o rosto angustiado, meio deitada no ângulo num compartimento de primeira classe, onde se achava só com uma criada de quarto, murmurava ouvindo nomear a estação pelos empregados:

— Brunoy! Estamos apenas em Brunoy! Faltava ainda uma hora para chegar a Paris! Meia hora pelo menos para ir da gare ao palácio. Chegarei muito tarde!

E a jovem, em quem os nossos leitores já adivinharam a menina Helena de Chaslin, abafou os soluços com o lenço.

O comboio tornou a seguir rapidamente, e passando como um raio pelas estações intermediárias, parou na gare de Paris.

Helena, abrindo a portinhola, saltou, seguida da criada de quarto, no cais de desembarque.

Um coupé enviado pelo senhor de Logeryl esperava desde pela manhã.

Helena não o viu sequer, atravessou a multidão, correu à estação dos trens de praça, e disse a um cocheiro indicando-lhe o palácio de Chaslin:

— Vinte francos pela corrida, mas com toda a velocidade. O cavalo tinha gênio, e o cocheiro não poupou o pingalim. Não obstante, eram quase duas horas quando o trem parou no faubourg Saint-Honoré.

A menina de Chaslin apeou-se e tocou com violência. A porta abriu-se logo.

Toda a casa assistia à cerimônia fúnebre, salvo o porteiro, que não podia deixar o seu posto.

 

Ao ver entrar a filha do Duque, o velho servidor soltou uma exclamação abafada e ocultou o rosto nas mãos. Helena compreendeu e balbuciou:

— Chego muito tarde, não é verdade, Etiene?

— Infelizmente, menina, tudo está acabado... A estas horas o cadáver da nossa boa ama deve ter entrado no cemitério, e eu estou só, como vê.

Helena deixou-se cair de joelhos no empedrado de entrada do palácio, levantou as mãos e os olhos para o céu, e da alma, mais que dos lábios, saíram-lhe estas palavras:

— Oh! minha mãe! minha mãe! não devia tornar a abraçá-la, nem viva, nem morta. Porque partiu, minha mãe, sem receber o último beijo de sua filha?

A criada de quarto, jovem camponesa da Franche Comté, chorava também rezando em voz baixa. A menina de Chaslin levantou-se.

— Entre no meu cubículo, menina Helena, se faz favor, disse-lhe o porteiro, esperará o senhor Duque, o senhor Rogério, e o senhor Logeryl.

— Meu irmão chegou a tempo, não é verdade? tornou a jovem.

— Chegou esta manhã muito cedo. Se lhe apraz, venha sentar-se.

Helena abanou a cabeça e perguntou:

— As portas do palácio estão abertas?

— Sim, menina.

— Vou ao quarto de minha mãe.

— Só!

— Só, sim... Quero estar só! Julga que tenho medo de quem tanto me amou? Ah! se a sombra querida de minha mãe se dignasse aparecer-me!! Fique com Antonieta.

E a irmã de Rogério dirigiu-se para o vestíbulo. - Pobre menina Helena! murmurou o velho guarda-portão limpando os olhos. Pobre menina! E invejam os ricos! Pois a riqueza não lhes faz derramar uma lágrima de menos!

Helena subiu os degraus, abriu um dos batentes da grande porta de vidraça, e entrou no vestíbulo.

O silêncio profundo que reinava em volta dela oprimiu-lhe o coração, e regelou-lhe o sangue nas veias.

Mal teve forças para subir a escada que conduzia do quarto da Duquesa.

A porta do quarto de dormir e as duas janelas, estavam abertas de par em par.

A menina de Chaslin, meio sufocada pelos soluços, dirigiu-se para o leito com um passo vacilante, prostrou-se diante daquela cama onde sua mãe dera o último suspiro, e não podendo agora conter a expressão do seu desespero, deu livre curso às lágrimas e aos gemidos que ecoaram de um modo lúgubre na casa maldita...

 

Depois de deixar a avenida Gabriel à uma hora da noite, em que se efetuara o crime, Mariana Gilberto assustada com o que vira à porta do jardim, voltou para a sua mansarda da Rua Miromenil.

Torturavam-lhe a alma terríveis angústias; tudo receava pelo futuro, mas tratava-se do duque, e o passado condenava-a ao silêncio.

Não podia senão amaldiçoar Henrique de Chaslin. e, sobretudo, Adriana de Lasseny, em quem adivinhara a alma de um demônio sob a forma de um anjo.

A velha criada dali a um quarto de hora já não se preocupava com o homem cuja entrada no jardim e saída a tinham a princípio intrigado e inquietado tanto.

Aquele homem devia ser o próprio Duque.

A densidade do nevoeiro não a deixara reconhecê-lo.

O criminoso acordo do marido de Joana e da dama de companhia, já não podiam pôr-se em dúvida, existia a prova material indiscutível.

Mas de que lhe servia aquela certeza?

Que resolução tomar?

Devia avisar a senhora de Chaslin?

Seria tropeçar novamente numa incredulidade completa, e além disso causar à doente comoções talvez funestas...

Mariana, para nos servirmos da sua linguagem, sabia por experiência que maus resultados dava o pôr o dedo na ferida.

Feitas todas estas reflexões, resolveu abster-se e calar-se, pelo menos até nova ordem.

 

                                                                                 CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades