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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM TOQUE DE CAMPAINHA / Rex Stout
UM TOQUE DE CAMPAINHA / Rex Stout

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM TOQUE DE CAMPAINHA

 

Visto que se tratava de um fator decisivo, bem posso começar por descrevê-lo. Era um pedacinho de papel cor-de-rosa, de sete centímetros de largura e 17 centímetros de comprimento, em que se dizia que o First National City Bank pagaria, à ordem de Nero Wolfe, cem mil dólares. Assinado, Rachel Bruner. Lá estava ele, sobre a mesa de Wolfe, em que a Sra. Bruner o deixara. Depois de deixá-lo, voltara à cadeira de couro vermelho.

Havia meia hora que se achava lá, pois chegara poucos minutos antes das seis. Como a secretária tivesse telefonado a fim de marcar entrevista apenas três horas antes, o tempo não fora muito para fazer averiguações a seu respeito, porém mais do que suficiente para se ficar sabendo que a viúva herdara o remanescente da fortuna de Lloyd Bruner. Pelo menos oito das várias dúzias de edifícios que Bruner lhe deixara tinham mais de doze andares, e havia sempre um que se podia ver de qualquer lugar — do norte, do leste, do sul, do oeste —, contanto que a distância do observador lhe permitisse incluí-lo em seu campo de visão. Com efeito, teria bastado telefonar para Lon Cohen, da Gazette, e perguntar-lhe se havia alguma notícia não publicável a respeito de alguém chamado Bruner; ainda assim dei mais duas telefonadas, uma ao vice-presidente do nosso banco e outra a nosso advogado. Não fiquei sabendo nada, a não ser que, a certa altura, o vice-presidente exclamou:

— Oh... uma coisa engraçada... — e parou.

Perguntei o quê.

Pausa.

— Nada, realmente. O Sr. Abernathy, nosso presidente, recebeu um livro dela...

— Que espécie de livro?

— É... Esqueci. Tenha a bondade de desculpar-me, Sr. Goodwin, estou muito ocupado.

Por conseguinte, a única coisa que eu sabia a seu respeito, ao atender à campainha da porta da velha casa de pedra marrom da Rua Trinta e Cinco, oeste, deixá-la entrar e conduzi-la ao escritório, era que havia mandado um livro a um homem. Depois que se instalou na cadeira de couro vermelho, coloquei-lhe o casaco, tão bom, pelo menos, quanto outro, de zibelina, pelo qual um amigo meu pagara dezoito mil dólares, sobre o sofá, sentei-me à minha mesa e entrei a observá-la. Embora um pouco baixa e um pouco cheia demais para ser elegante, ainda que o vestido castanho-amarelado viesse de Dior, e embora o rosto fosse demasiado redondo, não havia nada que opor aos olhos castanho-escuros que ela fitou em Wolfe ao perguntar-lhe se precisava dizer quem era.

 

Ele considerou-a, sem nenhum entusiasmo. Acontece que um ano novo começara poucos dias antes e tudo indicava que teria de trabalhar. Em novembro ou dezembro, depois de se ver incluído numa classificação fiscal que lhe tomaria três quartas partes — antigamente mais, até — de qualquer rendimento, a recusa de serviço era praticamente automática; mas em janeiro as coisas mudavam, e já estávamos no dia cinco, e aquela mulher tinha dinheiro à beça. Não lhe agradou a pergunta.

— O Sr. Goodwin disse-lhe o nome — replicou, friamente — e costumo ler jornais.

Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.

— Sei que o senhor os lê. Sei muita coisa a seu respeito, e por isso estou aqui. Quero que faça uma coisa que talvez nenhum outro homem vivo seja capaz de fazer. O senhor lê livros também. Já leu O FBI que Ninguém Conhece?

— Já.

— Nesse caso, não preciso falar-lhe a respeito. O livro impressionou-o?

— Sim.

— Favoravelmente?

— Sim.

— Santo Deus, como é lacônico!

— Respondi às suas perguntas, minha senhora.

— Sei que respondeu. Também sei ser lacônica. O livro impressionou-me, a mim. Impressionou-me tanto que comprei dez mil exemplares e mandei-os a uma porção de gente em todo o país.

— Deveras? — As sobrancelhas de Wolfe ergueram-se alguns milímetros.

— Sim. Mandei-os aos membros do gabinete, aos juízes do Supremo Tribunal, aos governadores de todos os Estados, a todos os senadores e deputados, aos membros das assembléias estaduais, aos diretores de jornais e revistas, a editores, a chefes de corporações e bancos, a diretores e comentaristas de rádio e televisão, a colunistas, promotores públicos e a outros — oh sim, a chefes de polícia. Terei de explicar por que fiz isso?

— A mim, não.

Observei-lhe um lampejo nos olhos castanho-escuros.

— Não gosto de seu tom. Quero que faça alguma coisa e pagar-lhe-ei o máximo e até mais do que o máximo; não há limite, mas não adianta continuar se... Disse que o livro o impressionou favoravelmente. Concorda, portanto, com a opinião do autor sobre o FBI?

— Com algumas pequenas restrições, concordo.

— E sobre J. Edgard Hoover?

— Também.

— Nesse caso, não o surpreenderá saber que estou sendo seguida dia e noite. Creio que a palavra é "acampanada". E assim também estão meu filho, minha filha, minha secretária e meu irmão. Os meus telefones estão censurados, e meu filho acha que o dele também está — é casado e tem um apartamento. Alguns empregados da Bruner Corporation foram interrogados. Ela ocupa dois andares do Edifício Bruner e lá há mais de cem empregados. Isso não o surpreende?

— Não — grunhiu Wolfe. — A senhora enviou cartas com os livros?

— Cartas, não. O meu cartão com meia dúzia de palavras.

— Então, a senhora não deveria estar surpresa.

— Mas estou. Estava. Não sou membro do Congresso, nem diretor de jornal, nem comentarista de rádio, nem professor de colégio, nem tenho um emprego que não posso perder. Esse megalómano estará pensando que pode ferir-me, a mim?

— Pfui. Ele a está ferindo.

— Não. Está-me aborrecendo, apenas. Alguns de meus associados e amigos pessoais estão sendo inquiridos — discretamente, é claro, com muitos pedidos de desculpas. A coisa começou há umas duas semanas. Creio que meus telefones principiaram a ser censurados há cerca de dez dias. Disseram a meus advogados que, provalmente, não haverá maneira de acabar com isso, mas estão pensando no assunto. São uma das maiores e melhores firmas de Nova Iorque, e até eles têm medo do FBI! Desaprovam o que fiz; dizem que foi "imprudente" e "quixotesco" remeter os livros! Não me importa o que digam. Quando li o livro, fiquei furiosa. Telefonei aos editores, eles mandaram um homem falar comigo, e esse homem me contou que haviam vendido menos de vinte mil exemplares. Num país de quase duzentos milhões de habitantes, vinte e seis milhões dos quais votaram em Goldwater! Pensei em mandar publicar alguns anúncios, mas achei que seria melhor enviar os livros, e comprei-os com um desconto de quarenta por cento — Ela crispou os dedos sobre os braços da poltrona. — Agora, ele está me aborrecendo e quero que acabe com isso. Quero que o senhor o faça parar.

Wolfe sacudiu a cabeça.

— Absurdo.

Ela estendeu o braço para a mesinha que lhe ficava ao lado, apanhou a bolsa de couro marrom, abriu-a, tirou dela uma caderneta de cheques e uma caneta, estendeu a caderneta sobre a mesinha, sem pressa, e escreveu, preenchendo primeiro o canhoto, com cuidado. Metódica. Destacou o cheque, levantou-se, colocou-o sobre a mesa de Wolfe e voltou à poltrona.

— Esses cinqüenta mil dólares — anunciou — são apenas um sinal. Eu disse que não haveria limite.

Wolfe nem sequer olhou para o cheque.

— Minha senhora — disse ele —, não sou taumaturgo nem imbecil. Se está sendo seguida, foi seguida até aqui, e a presunção é de que veio contratar-me. Provavelmente, outro sujeito já terá começado a vigiar esta casa; se não começou, começará no instante em que surgir a primeira indicação de que cometi a supina estupidez de aceitar o serviço. — Voltou-se-lhe a cabeça. — Archie, quantos agentes têm eles em Nova Iorque?

— Oh... — franzi os lábios. — Não sei, talvez duzentos. Estão sempre mudando.

Wolfe voltou-se para ela.

— Tenho um. O Sr. Goodwin. Nunca saio de casa a serviço. Seria...

— O senhor tem Saul Panzer, Fred Durkin e Orrie Cather.

Normalmente, a enumeração dos nomes deles o teria tocado. Naquele momento, porém, não surtiu o menor efeito.

— Eu não lhes pediria que assumissem esse risco — replicou. — Nem esperaria que o Sr. Goodwin o assumisse. De qualquer maneira, seria fútil e fátuo. Diz a senhora: "faça-o parar". Imagino que queira dizer com isso que eu teria de impedir o FBI de importuná-la.

— Sim.

— Como?

— Não sei.

— Nem eu. — Ele abanou a cabeça. — Não, madama. A senhora os provocou, agora agüente as conseqüências. Não digo que eu desaprove o envio dos livros, mas concordo com os advogados em que foi quixotesco. O chefão já passou seus maus bocados; agora é sua vez de passá-los. Eles não a molestarão para sempre e, como a senhora mesma o disse, não é nenhum congressista nem um trabalhador qualquer, que pode perder o emprego. Mas não mande mais livro algum.

Ela estava mordendo o lábio.

— Pensei que o senhor não tivesse medo de nada nem de ninguém.

— Medo? Posso negar-me a uma loucura sem, por isso, estar com medo.

— Eu disse que nenhum outro homem vivo seria capaz de fazê-lo.

— Então, a senhora está no mato sem cachorro.

Ela apanhou a bolsa, abriu-a, tirou dela a caderneta de cheques e a caneta, tornou a escrever, primeiro no canhoto, como antes, foi até a mesa dele, retirou dali o primeiro cheque, substituiu-o pelo novo e tornou à cadeira.

Esses cem mil dólares — disse ela — são apenas um sinal. Pagarei todas as despesas. Se for bem-sucedido, seus honorários, que o senhor mesmo estipulará, ser-lhe-ão pagos além do sinal. Se falhar, ficará com os cem mil.

Ele inclinou-se para a frente, a fim de pegar o cheque, considerou-o atentamente, depô-lo sobre a mesa, inclinou-se para trás e cerrou os olhos. Conhecendo-o, percebi que estava refletindo. Não sobre o serviço; como já o dissera, era absurdo; estava cogitando no formoso fato de que, com aqueles cem mil dólares em caixa no dia cinco de janeiro, não precisaria aceitar, nem aceitaria, serviço algum durante o resto do inverno, durante a primavera e até durante o verão. Poderia ler uma centena de livros e criar um milhar de orquídeas. Paraíso! Contraiu-se-lhe um dos cantos da boca, o que, para ele, era sorrir largamente. Estava-se lavando em água de rosas. Isso, entretanto, seria admissível por meio minuto, pois o homem tem o direito de sonhar, mas, transcorrido um minuto, tossi alto.

Ele abriu os olhos e endireitou-se.

— Archie? Tem alguma sugestão? — perguntou.

Com que, então, a idéia o fisgara mesmo! Era possível até que ele se comprometesse, pelo menos parcialmente, e isso precisava ser evitado a todo o transe. Ora, a melhor maneira de evitá-lo seria tirá-la depressa dali.

— De momento, não — repliquei. — Nenhuma sugestão. Mas tenho uma observação. Diz o senhor que, se ela está sendo acampanada, foi seguida até aqui, mas se seu telefone está censurado, eles não precisaram dar-se ao trabalho de chegar tão longe, porque ouviriam a secretária marcar a entrevista.

Ele franziu o cenho.

— E esta casa está sob vigilância.

— Possivelmente. Pode ser que as coisas não sejam tão más como ela as supõe. Está claro que

i não as terá aumentado deliberadamente, mas...

— Eu não "aumento" coisas — atalhou ela.

— É claro que não — volvi, dirigindo-me a ela. E, logo, a Wolfe: — As pessoas não habituadas a ser molestadas molestam-se com facilidade. Podemos verificar a campana imediatamente. — Voltei-me de novo para ela. — Veio de táxi, Sra. Bruner?

— Não. Meu carro e meu chofer estão lá fora.

— Ótimo. Sairei com a senhora e esperarei que se afaste para ver o que acontece. — Levantei-me. — O Sr. Wolfe mandar-lhe-á dizer amanhã o que tiver decidido.

O golpe funcionou. Ela não gostou. Fora até lá para contratar Nero Wolfe, e ainda insistiu uns cinco minutos, tentando liqüidar o assunto, mas logo viu que o estava apenas irritando; levantou-se e esperou o casaco. Mostrou-se perfeitamente à altura de Wolfe. Percebendo que ele não gostava de dar a mão, não ofereceu a sua mas, quando a acompanhei até a varanda, tendo concluído que eu influiria na decisão, apertou a minha com firmeza e calor. Havia um par de lugares escorregadios nos sete degraus da varanda, de modo que lhe segurei o cotovelo até chegarmos à calçada, onde já estava o chofer, ao pé da porta do carro, para ajudá-la a entrar. Antes de fazê-lo, porém, ela ergueu os olhos de través para mim e disse:

— Obrigada, Sr. Goodwin. Está visto que haverá um cheque especial para o senhor.

O chofer não tocou nela; pelos modos, ela preferia fazer tudo sozinha; não era o tipo da viúva de meia-idade que gosta de sentir no braço uma vigorosa pressão masculina. Quando ela entrou, ele fechou a porta, instalou-se atrás da direção e partiu; e a trinta metros para leste, na direção da Nona Avenida, um carro cujos faróis se tinham acendido e cujo motor principiara a funcionar saiu de onde estava, adiantou-se e passou por mim. Iam dois homens no assento dianteiro. Lá fiquei, exposto ao vento frio de janeiro, o tempo suficiente para vê-lo entrar na Décima Avenida. A história era risível, de sorte que desatei a rir ao subir os degraus, mas fiz-me sério antes de entrar no vestíbulo.

Recostado na poltrona, olhos cerrados, Wolfe comprimia os lábios, sem contrair as comissuras. Quando me abeirei de sua mesa, ele abriu imperceptivelmente os olhos. Apanhei o cheque e examinei-o. Nunca vira nenhum, ainda, de cem mil dólares redondos, embora já tivesse visto maiores. Deixei-o cair, fui para minha mesa, sentei-me, rabisquei o número da chapa do carro perseguidor no bloco de notas, apanhei o telefone, disquei um número e entrei em contato com um homem, funcionário da municipalidade, a quem já prestara, de uma feita, um belíssimo favor. Quando lhe dei o número da chapa, ele disse que poderia demorar uma hora, e respondi que ficaria esperando.

Ao desligar, ouvi a voz de Wolfe:

— Isso não é besteira?

Voltei-me para ele.

— Não, senhor. Ela está, realmente, em perigo. Havia um par deles num carro, no fim do quarteirão. Acenderam as luzes quando ela entrou e, quando o Rolls virou na Décima Avenida, já estavam tão perto que quase o abalroaram. Uma campana aberta, mas eles estão exagerando. Se o Rolls parar de repente, são capazes de bater nele. Ela está em perigo.

— Grrrhh — disse ele.

— Sim, senhor. Concordo plenamente. Trata-se agora de saber quem são eles? Se for coisa particular, os cem mil dólares talvez possam ser ganhos. Mas é claro que, se forem realmente G-men, ela terá de passar seus maus bocados, como o senhor disse. Daqui a uma hora, mais ou menos, ficaremos sabendo.

Ele olhou para o relógio na parede. Faltavam doze para as sete. Fitou a vista em mim.

— O Sr. Cohen estará em sua sala?

— Provavelmente. De ordinário, só sai lá pelas sete.

— Convide-o para jantar conosco.

Grande finório! Se eu dissesse que não valia a pena, pois o caso era absurdo, responderia que eu devia compenetrar-me da importância de manter boas relações com o Sr. Cohen — o que era verdade — e que fazia mais de um ano que não o via — o que também era verdade.

Fiz girar a cadeira, peguei no telefone e disquei.

 

Às nove horas estávamos de volta ao escritório; Lon instalara-se na cadeira de couro vermelho, Wolfe e eu às nossas mesas, enquanto Fritz servia café e conhaque. A hora e meia passada na sala de jantar, do outro lado do vestíbulo, transcorrera sociável, com bolinhos de mexilhões ao molho de tomate com pimenta malagueta, carne cozida em vinho tinto, abóbora com creme de leite azedo e endro em fatias, abacate com agrião e nozes, e o Liederkranz. A conversa girara sobre o estado da União, o estado da mente feminina, a comestibilidade das ostras cozidas, a lingüística estrutural e os preços dos livros. Só se exacerbara quando se discutiu a mente feminina, e Lon o fizera acinte, para ver até onde iria o ardor de Wolfe.

Lon tomou um gole de conhaque e consultou o relógio de pulso.

— Se não se incomodam — disse — vamos ao assunto. Tenho de estar num lugar às dez horas. Sei que não esperam que eu pague o jantar, mas sei também que, normalmente, quando há alguma coisa que querem obter ou dar, Archie me telefona ou dá um pulo no jornal, de modo que isto deve ser algo especial. E terá de ser fora do comum para ser tão especial quanto o conhaque.

Wolfe pegou num pedaço de papel que se achava sobre a sua mesa, carranqueou para ele e repô-lo onde estava. Eu o colocara ali meia hora antes. Meu jantar fora interrompido pelo telefonema do funcionário municipal com a informação solicitada e, antes de voltar à sala de jantar, eu escrevera FBI numa folha do bloco de apontamentos e deixara-a na mesa de Wolfe. Aquilo em nada melhorara meu apetite. Se ela se tivesse enganado a respeito da campana, o caso teria grandes possibilidades, inclusive um belo aumento para mim na forma de um cheque em meu nome.

Wolfe bebericou o café, devolveu a xícara ao pires e disse:

— Tenho ainda catorze garrafas.

— Meu Deus — exclamou Lon, e cheirou o conhaque.

Era engraçado aquele moço. Com os cabelos bem penteados para trás e a pele lisa do rosto, ninguém dava nada por ele; mas o caso é que sempre parecia estar em seu lugar, sem embargo do que estivesse fazendo — em sua sala, no vigésimo andar do edifício da Gazette, duas portas abaixo da sala do diretor, ou dançando com alguma boneca no Flamingo, ou à mesa, conosco, no apartamento de Saul Panzer, onde jogávamos pôquer. Ou cheirando um conhaque de cinqüenta e cinco anos.

Tomou um gole.

— O que quiserem — disse ele. — Sem nenhuma restrição.

— Na realidade — acudiu Wolfe — não é nada de muito especial. E, sem dúvida, nada de fantástico. Primeiro uma pergunta: sabe de alguma conexão, ainda que remota, entre a Sra. Lloyd Bruner e o Departamento Federal de Investigações?

— E claro que conheço. Quem não conhece? Ela mandou a um milhão de pessoas exemplares do livro de Fred Cook, incluindo nosso redator-chefe e nosso diretor. É o símbolo mais recente de prestígio social e o pior é que não recebi nenhum. Vocês receberam?

— Não. Comprei o meu. Está a par de alguma atitude que o Departamento haja tomado em represália? Esta é uma conversação particular e confidencial.

Lon sorriu.

— Qualquer atitude que eles tivessem tomado seria também particular e confidencial. Vocês terão de perguntar a J. Edgard Hoover — a não ser que já o saibam. Já sabem?

— Já.

O queixo de Lon pulou para cima.

— Sabem coisa nenhuma! Nesse caso, o povo que paga o salário dele deveria saber também!

Wolfe assentiu com a cabeça.

— Este seria, naturalmente, seu ponto de vista. Procura notícias para publicá-las; eu procuro-as por uma questão de interesse particular. No momento, procuro-as apenas para decidir onde está meu interesse. Não tenho cliente e não tenho compromisso, e quero esclarecer que, mesmo que me comprometa e comece a trabalhar, não poderei, provavelmente, dar-lhe nenhuma informação publicável, seja qual for o resultado. Se puder, dá-la-ei, mas duvido que possa. Estamos em débito com você?

— Não. Bem feitas as contas, eu é que estou em débito com o senhor.

— Muito bem. Nesse caso, vou sacar. Por que a Sra. Bruner mandou os tais livros?

— Não sei. — Bebericou o conhaque e moveu os lábios e as bochechas, a fim de espalhá-lo pela boca toda antes de engoli-lo. — Presumivelmente à guisa de serviço público. Eu mesmo comprei cinco exemplares e mandei-os a pessoas que deveriam lê-lo, mas que provavelmente não o lerão. Um homem que conheço distribuiu trinta exemplares como presentes de Natal.

— Sabe-se se ela tinha alguma razão particular de animosidade contra o FBI?

— Não.

— Ouviu alguma insinuação a respeito dessa animosidade? Alguma conjetura?

— Não. Mas o senhor, evidentemente, ouviu. Ouça, Sr. Wolfe, muito aqui entre nós, quem está querendo contratá-lo? Se eu o soubesse, talvez fosse capaz de fornecer-lhe um ou dois fatos.

Wolfe tornou a encher a xícara e depôs o bule na mesa.

— Eu talvez não seja contratado — disse ele. — Se o for, é muito provável que o senhor nunca venha a saber quem me contratou. Quanto a fatos, sei do que preciso. Preciso de uma lista de todos os casos em que os agentes do FBI trabalharam recentemente, e ainda estão trabalhando, dentro e em volta de Nova Iorque. Pode fornecê-la?

— Infelizmente, não. — Lon sorriu. — Raios me partam. Eu estava pensando, seria incrível, mas eu estava pensando, ou melhor, estava perguntando a mim mesmo se seria possível que Hoover quisesse pô-lo no encalço da Sra. Bruner. Isto seria uma notícia. Mas se o senhor... Raios me partam. — Estreitaram-se-lhe os olhos. — O senhor vai realizar um serviço público?

— Não. Talvez nem particular. Estou pensando no assunto. Sabe como poderei arrumar essa lista?

— Não pode. Está claro que alguns dos serviços deles são do conhecimento público, como o roubo da jóia no Museu de História Natural e o caminhão do banco naquela igreja em Jersey — meio milhão em notas pequenas. Mas alguns casos estão muito longe de serem públicos. O senhor leu o livro. E claro que há falatórios, há sempre falatórios, que não se publicam. Isso ajudaria?

— Pode ser que sim, especialmente se forem sobre coisas escusas, possivelmente extralegais. São assim?

— É claro. Não há nenhuma graça em falar de coisas decentes. — Consultou o relógio. — Tenho vinte minutos. Se eu puder beber mais uma dosezinha de conhaque, se ficar entendido que isto é particular, e se o senhor seguir na direção que parece estar seguindo, terei prazer em colaborar. — Olhou para mim. — Você vai precisar do caderno de apontamentos, Archie.

Vinte minutos depois o copo de conhaque dele voltara a esvaziar-se, eu enchera cinco páginas do meu canhenho, e ele se fora. Não referirei o que continham as cinco páginas, porque delas muito pouco se utilizou até agora e também porque algumas pessoas mencionadas poderiam não gostar. Naquela ocasião, quando voltei ao escritório, depois de haver acompanhado Lon até a porta, meu espírito concentrara-se em Wolfe, não no caderno de apontamentos. Estaria ele, realmente, pensando no caso? Não. Impossível. Estivera apenas matando o tempo e, naturalmente, tentando arreliar-me. Tratava-se de saber como lidar com o caso. Ele estaria esperando que eu subisse a serra. Entrei, aproximei-me de minha mesa, sorri para ele e disse:

— Foi divertido!

Arranquei as cinco páginas do caderno de apontamentos, rasgueia-as ao meio e já me dispunha a continuar a rasgá-las quando ele berrou:

 — Pare com isso!

Ergui uma sobrancelha, coisa que ele não pode fazer.

— Desculpe-me — exclamei, em tom amistoso.— Quer guardar como lembrança? — Não. Faça o favor de sentar-se.

Sentei-me.

— Deixei escapar alguma coisa?

— Duvido. Você raramente o faz. Uma pergunta hipotética: se eu lhe dissesse que resolvi ficar com os cem mil dólares, que me diria?

— O que o senhor já disse. Absurdo.

— Isso não se discute. Continue.

— Digo tudo?

— Diga.

— Eu diria que o senhor deveria vender a casa e tudo o que ela contém, e passar a viver numa casa de saúde, visto que está, manifestamente, de miolo mole. A não ser que pretenda bigodeá-la e não fazer nada.

— Não.

— Então está de miolo mole. O senhor leu o livro. Não poderíamos nem começar. O plano consistiria em trabalhar de tal maneira que se pudesse dizer ao FBI: "Acabe com isso" — e o FBI acabasse com isso. Besteira. Xingá-los apenas não adiantaria. Eles teriam de ser efetivamente acuados, todos eles. Teríamos de deixá-los em situação difícil. Muito bem, digamos que tentássemos começar. Escolhemos um destes casos — bati nas folhas arrancadas do canhenho — e começamos a investigá-lo. A partir desse momento, toda vez que eu saísse de casa, levaria o tempo todo procurando despistar meus seguidores, que seriam traquejados. Quem quer que tivesse alguma relação com o caso estaria marcado. Nosso telefone seria censurado, e também o seriam outros, como o da Srta. Rowan, o de Saul, o de Fred e o de Orrie, estivessem ou não metidos no barulho. E, naturalmente, o de Parker. Eles poderiam, ou não, tentar armar-nos uma cilada, provavelmente nem precisariam fazê-lo, mas, se o fizessem, armá-la-iam bem armada. Eu teria de dormir aqui no escritório. Janelas e portas, mesmo com ferrolho, são uma sopa para eles. Poderiam controlar-nos a correspondência. Não estou apenas amontoando fatos. O que fariam depende de muita coisa, mas o caso é que podem fazer tudo isso. Conhecem todos os truques necessários, inclusive alguns de que nunca ouvi falar.

Cruzei as pernas.

— Jamais completaríamos a primeira volta. Digamos, porém, que o conseguíssemos, que realmente chegássemos a enfiar uma cunha num buraquinho qualquer: nesse caso, começariam efetivamente a operar. Têm seis mil homens treinados, alguns muito bons, e trezentos milhões de dólares por ano. Eu gostaria de pedir o dicionário emprestado para procurar uma palavra mais forte do que "absurdo".

Descruzei as pernas.

— Além disso, que dizer dela? Não creio que esteja sendo simplesmente molestada. Aposto um contra vinte que está tremendamente assustada. Sabe que há alguma sujeira em algum lugar, se não em relação a ela, pelo menos em relação ao filho, à filha ou ao irmão, e tem medo de que a descubram. Sabe que não a estão apenas arreliando, mas andam à procura de alguma coisa que possa ferir o que suavizaria muito o ferrão do livro. Quanto aos cem mil dólares, para ela são uma ninharia, que sua classificação fiscal lhe permite gastar sem sentir.

Cruzei as pernas.

— Eis aí o que eu diria.

Wolfe grunhiu.

— A última parte é irrelevante.

— Sou muitas vezes irrelevante. Isso confunde as pessoas.

— Você continua a agitar as pernas.

— Isso também as confunde.

— Pfui. Você está nervoso e não é de admirar. Cuidei que o conhecesse, Archie, mas esta é uma nova faceta.

— Não é nova coisa alguma. É simples bom senso cavalar.

— Não. Canino. Você está movendo as pernas de um lado para outro porque tem o rabo entre elas. Em realidade, o que disse foi isto: Ofereceram-me um serviço com o maior sinal que já vi em toda a vida. Sem limite de despesas e honorários, mas devo decliná-lo. Devo decliná-lo, não porque seria difícil e talvez impossível, mas porque isso ofenderia determinado homem e sua organização, e ele revidaria. Declino-o porque não me atrevo a aceitá-lo; prefiro ceder a uma ameaça a...

— Eu não disse isso!

— Está implícito. Você está intimidado. Amedrontado. Não sem razão, concordo: as mãos e as vozes de muitos homens bem colocados já se viram detidas pelo mesmo tremor. As minhas talvez o fossem também, se se tratasse apenas de declinar ou aceitar um serviço. Mas não devolverei esse cheque de cem mil dólares só porque tenho medo de um sujeito truculento. Meu amor próprio não o admitiria. Sugiro que você tire férias por tempo indeterminado. Pagas; estou em condições de pagá-las.

Descruzei as pernas.

— A começar de agora?

— Sim.

Ele estava decidido.

— Estas notas estão em meu código pessoal. Datilografo-as?

— Não. Poderiam implicá-lo. Tornarei a ver o Sr. Cohen.

Enclavinhei as mãos atrás da cabeça e encarei com ele.

— Continuo a dizer que o senhor está de miolo mole — exclamei — e nego que tivesse o rabo entre as pernas, visto que estavam cruzadas, e seria uma delícia pôr-me de lado e ver como o senhor se sairia sem mim; mas, depois de trabalhar tantos anos juntos, seria uma cachorrada deixá-lo afundar sozinho. Se eu me sentir amedrontado no meio do caminho, avisá-lo-ei. — Apanhei as folhas rasgadas. — Quer que datilografe estas notas?

— Não. Quando as discutirmos, você as traduzirá à proporção das necessidades.

— Certo. Uma sugestão. No estado de espírito em que o senhor se encontra, quer declarar guerra telefonando para a cliente? Ela deixou um número que não se acha na lista e que, naturalmente, está censurado. Chamo-a?

— Sim.

Peguei o telefone e disquei o número.

 

Indo à cozinha antes de subir para me deitar, cerca da meia-noite, a fim de verificar se Fritz aferrolhara a porta dos fundos, folguei em ver que a massa de bolos de trigo sarraceno e leite azedo estava lá, numa tigela, sobre o fogão. Naquela situação, torradas ou croissants folheados teriam sido inadequados. Por isso, ao descer os dois lanços de escada, pouco depois das nove da manhã de quarta-feira, conheci que seria convenientemente abastecido. Quando entrei na cozinha, Fritz acendeu o lume debaixo da chapa, eu disse-lhe bom-dia e fui buscar meu suco de laranja na geladeira. Wolfe, que desjejua no quarto com o que lhe traz Fritz, numa bandeja, subira ao viveiro, no telhado, para passar as duas horas de costume com as orquídeas; eu ouvira o elevador como sempre. Ao dirigir-me à mesinha encostada à parede, onde faço o desjejum, perguntei a Fritz se havia novidade.

— Há — replicou ele — e você precisa contar-me o que é.

— Oh, ele não lhe disse?

— Não. Disse apenas que as portas têm de ser aferrolhadas e as janelas fechadas, sempre, e que preciso ser... que quer dizer "circunspecto"?

— Quer dizer ter cuidado com o que faz. Não diga nada a ninguém pelo telefone que não lhe agradasse ler nos jornais. Quando sair, não faça nada que não gostaria de ver na televisão. Por exemplo, garotas. Afaste-se delas. Desista delas. Desconfie de todos os estranhos.

Fritz não falaria, nem falou, enquanto os bolos assumiam o tom exato de tostadura. Quando os colocou à minha frente, com a salsicha, enquanto os besuntava de manteiga, exclamou:

— Quero saber, Archie, e tenho o direito de sabê-lo. Ele me disse que você explicaria. Bien. Eu o exijo.

Peguei do garfo.

— Você sabe o que é o FBI?

— Claro. O Sr. Hoover.

— Isso é o que ele pensa. Por amor de uma cliente, vamos torcer-lhe o nariz. Simples servicinho de rotina; mas, como ele é um não-me-toques, tentará deter-nos. Tão fútil!

Introduzi um pedaço de bolo onde lhe cumpria estar.

— Mas ele... ele é um grande homem. Não é?

— Naturalmente. Imagino que já lhe tenha visto alguns retratos.

— Já.

— Que acha do nariz dele?

— Não é grande coisa. Não exatamente épaté, mas largo. Não é bienfait.

— Por isso mesmo vamos torcer-lho.

— Espetei o garfo numa salsicha.

Eu já o havia tranqüilizado quando acabei de comer e fui para o escritório. A comida, pelo menos naquele dia, sairia perfeita. Enquanto espanava as mesas, arrancava folhas das folhinhas e abria a correspondência, que pouco ou nada valia, meditei uma experiência. Se discasse um número, qualquer número, o de Parker, por exemplo, ficaria sabendo se nosso telefone estava, ou não, censurado. Seria interessante verificar se eles já haviam reagido ao telefonema dado à Sra. Bruner. Mas vetei a experiência. Pretendia ater-me rigorosamente a minhas instruções. Ao fazê-lo, apanhei o caderninho de notas e outro item da gaveta da minha escrivaninha, abri o cofre para tirar o cheque, fui à cozinha dizer a Fritz que não me esperasse para o almoço, passei pelo vestíbulo, a fim de apanhar o chapéu e o casaco, e saí.

Rumando para leste, pus-me a caminhar. E facílimo descobrir uma campana, ainda que boa, sobretudo num dia de inverno quando as rajadas de um vento frio reduzem consideravelmente o tráfego nas calçadas; mas, presumivelmente, eles deveriam saber aonde eu ia, de modo que não se dariam ao trabalho de seguir-me. No banco, na Avenida Lexington, tive o prazer de ver o caixa arregalar os olhos ao examinar pela segunda vez o cheque. Os prazeres simples dos ricos. Quando me vi novamente na rua, passei a caminhar em sentido contrário ao do centro. Tinha duas milhas para andar, mas eram apenas dez e vinte; gosto de andar e, se alguém me estivesse seguindo, teria pela frente um bom exercício para os pulmõess e para as pernas.

A casa de quatro andares na Rua Setenta e Quatro, entre Madison e o Parque, tinha, pelo menos, duas vezes o tamanho da casa de pedra marrom de Wolfe, mas não era marrom. A porta que dava acesso ao vestíbulo, três degraus abaixo, era sólida, mas a interna consistia numa grade de metal envidraçada. Foi aberta por um homem de preto, sem lábios, que só a abriu de todo depois de ouvir-me o nome. Conduziu-me, pelo vestíbulo, a uma porta aberta à esquerda e fez-me sinal para entrar.

Era um escritório, não muito grande — arquivos, um cofre, duas escrivaninhas, prateleiras, uma mesa e desordem. Na parede, atrás da mesa, via-se a reprodução, ampliada, de uma fotografia do edifício Bruner. O rápido olhar que circunvaguei foi pousar num rosto que o merecia, pois pertencia à criatura sentada a uma das mesas. Os olhos castanho-claros enfrentaram meu olhar.

— Sou Archie Goodwin — anunciei.

Ela aquiesceu com um aceno de cabeça.

— Sou Sarah Dacos. Tenha a bondade de sentar-se, Sr. Goodwin.

Ergueu o fone de um aparelho, apertou um botão e, instantes depois, disse a alguém que eu estava lá; recolocou o fone no gancho e avisou-me de que a Sra. Bruner não demoraria.

Enquanto me assentava, perguntei-lhe:

— Há quanto tempo está com a Sra. Bruner?

Ela sorriu.

— Sei que o senhor é detetive, Sr. Goodwin; escusa de prová-lo.

Retribuiu-lhe o sorriso.

— Preciso praticar. — Ela sorria com facilidade. — Há quanto tempo?

— Quase três anos. Quer o tempo certo?

— Mais tarde, talvez. Devo esperar que chegue a Sra. Bruner?

— Não necessariamente. Ela disse que o senhor me faria algumas perguntas.

— Então, vamos lá. Que fazia antes disso?

— Era taquígrafa da Bruner Corporation e fui, depois, secretária do Sr. Thompson, o vice-presidente.

— Nunca trabalhou para o governo? Para o FBI, por exemplo?

Ela sorriu.

— Não. Nunca. Eu tinha vinte e dois anos quando comecei a trabalhar na Bruner Corporation. Tenho vinte e oito agora. O senhor não está tomando notas.

— Aqui — levei a mão à testa. — O que lhe deu a idéia de que o FBI a está acampanando?

— Não sei se é o FBI. Mas deve ser, porque ninguém mais o faria.

— Tem certeza de que está sendo acampanada?

— Absoluta. Não vivo olhando para trás, nada disso, mas meus horários são irregulares. Saio daqui em horas diferentes; porém, quando chego ao ponto de ônibus, sempre aparece um homem que o toma depois de mim e desce onde desço. O mesmo homem.

— O ônibus da Avenida Madison?

— Não, o da Quinta Avenida. Moro na Village.

— Quando começou isso?

— Não tenho certeza. A primeira vez que o notei foi na segunda-feira depois do Natal. Ele está lá de manhã também. E à noite, quando saio. Eu não sabia que era assim que se fazia. Pensei que, ao seguir uma pessoa, a gente procurasse evitar que ela o percebesse.

— Depende. Às vezes a gente quer que ela o perceba. Chama-se campana aberta. Pode descrever o homem?

— Está visto que posso. É uns quinze ou vinte centímetros mais alto do que eu, terá seus trinta anos, talvez um pouco mais, rosto comprido, queixo quadrado, nariz longo e fino, boca pequena e reta. Os olhos são de um cinza-esverdeado. Está sempre de chapéu, de sorte que não sei como são seus cabelos.

— Nunca falou com ele?

— É claro que não.

— Já deu parte à polícia?

— Não, o advogado achou que eu não devia. O advogado da Sra. Bruner. Explicou que, se for o FBI, eles poderão sempre dizer que se trata de uma fiscalização preventiva.

— Podem. E dizem. A propósito: sugeriu à Sra. Bruner que mandasse exemplares daquele livro a outras pessoas?

As sobrancelhas dela arquearam-se. Eram sobrancelhas bonitas e macias.

— Eu? Não. Não o tinha lido. Só o li depois.

— Depois que foi acampanada?

— Não, depois que ela decidiu mandar os exemplares.

— Sabe quem lhe sugeriu isso?

— Não sei se alguém o sugeriu. — ela sorriu — Imagino que seja natural que me faça essas perguntas, visto que é detetive, mas eu acharia mais natural que as fizesse a ela. Ainda que soubesse que alguém o havia sugerido, não creio...

Ouviram-se passos no vestíbulo, que se aproximavam. A Sra. Bruner apareceu. Quando ela entrou, levantei-me, e Sarah Dacos também. Aproximei-me para apertar a mão que ela me oferecia e retribuir-lhe as saudações e, quando ela foi sentar-se na outra escrivaninha, mudei também de cadeira. Ela limitou-se a olhar para a pilha de papéis que descansavam debaixo de um peso, afastou-a de si e disse-me:

— Creio que lhe devo alguns agradecimentos, Sr. Goodwin. Mais do que simples agradecimentos.

Meneei a cabeça.

— Não, não deve. Não que isso tenha alguma importância, pois o cheque já foi depositado, mas combati a idéia. Agora que é uma incumbência, defendo-a.

Saquei do bolso o item que tirara da gaveta da escrivaninha e estendi-lho. Era uma folha de papel em que eu escrevera, a máquina:

 

“Sr. NeroWolfe

Rua Trinta e Cinco, n.° 914, Oeste

Cidade de Nova Iorque 1

6 de janeiro de 1965

Prezado Senhor:

Confirmando a nossa conversação de ontem, fica V.S. encarregado, por meio desta, de agir em defesa de meus interesses no assunto que discutimos. Acredito que o Departamento Federal de Investigações seja responsável pela espionagem que eu, minha família e meus associados estamos sofrendo, pelos motivos que lhe expus, mas seja qual for o responsável, V.S. deverá investigá-lo e envidar todos os seus esforços no sentido de fazê-la cessar. Seja qual for o resultado, os $100 000 (cem mil dólares) que lhe dei a título de sinal não serão reclamados por mim. Pagarei todas as despesas que vier a fazer por minha causa e, se lograr o resultado que almejo, pagar-lhe-ei os honorários que V.S. determinar.

(Sra. Lloyd Bruner)”

 

Ela leu-o duas vezes, primeiro de relance, em

seguida palavra por palavra. Ergueu os olhos para mim.

— Devo assiná-lo?

— Deve.

— Não posso. Nunca assino nada que meu advogado não tenha lido.

— A senhora pode chamá-lo ao telefone e ler-lhe a carta.

— Mas meu telefone está censurado.

— Eu sei. É até possível que, ao saberem que a senhora está dando a Nero Wolfe plena liberdade, sem limite de honorários, eles esfriem. Diga isso ao advogado. Não que tenham medo dele, pois não têm medo de ninguém, mas sabem muita coisa sobre ele. No tocante à ultima sentença, a respeito dos honorários que serão estipulados por ele, há aí uma escapatória. Reza a carta: "se lograr o resultado que almejo". É evidente que isso será determinado pela senhora, de modo que não estará assinando um cheque em branco. O advogado deverá concordar.

Ela tornou a ler a carta e depois fitou em mim os olhos castanho-escuros.

— Não posso fazer isso. Meus advogados não sabem que procurei Nero Wolfe. Não o aprovariam. Ninguém sabe, a não ser a Srta. Dacos.

— Então estamos num impasse. — Estendi uma mão com a palma voltada para cima. — Ouça, Sra. Bruner. O Sr. Wolfe não poderia, de maneira alguma, encarregar-se do caso sem ter um documento escrito. E se a coisa esquentasse tanto que a senhora decidisse largá-la e o deixasse no fogo? E se tentasse tergiversar e reclamasse de volta o sinal?

— Eu não faria isso. Não costumo tergiversar, Sr. Goodwin.

— Muito bem. Então assine a carta.

Ela olhou para o pedaço de papel, olhou para mim, tornou a olhar para o papel, olhou para a Srta. Dacos.

— Pronto, Sarah — ordenou —, tire uma cópia disso.

— Já tirei uma cópia com carbono — atalhei, e entreguei-lha. — Por Deus! — ela leu-a inteirinha. Devia ter sido bem treinada pelo marido, ou pelos advogados, depois que o primeiro morrera. Tomou de uma caneta e assinou o original, que empolguei.

— Por isso, então, é que o Sr. Wolfe queria que o senhor viesse hoje cedo — disse ela.

Anuí com a cabeça.

— Em parte. Queria que eu fizesse à Srta. Dacos algumas perguntas sobre a campana, que já fiz. Ontem vi os homens que a seguiam. Quando a senhora saiu, um carro acompanhou-a, de perto; iam dois caras dentro dele, e tomei o número da chapa, são do FBI. Querem que a senhora o saiba. Daqui por diante, provavelmente, não teremos nada para perguntar-lhe nem para dizer-lhe, a não ser que surja uma novidade; entretanto, como pode ocorrer algo inesperado, será melhor combinarmos qualquer coisa. Já que a senhora leu aquele livro, deve saber o que significa "minada". Sabe se esta sala está minada?

— Não, não sei. É claro que já pensei nisso e nós a examinamos diversas vezes. Não tenha certeza. Mas eles precisariam ter entrado, não é verdade? Para pôr alguma coisa aqui dentro?

— Claro. A menos que a eletrônica já tenha descoberto algum treco ainda não mencionado, do que duvido muito. Não quero forçar a nota, Sra. Bruner, mas não creio que parte alguma desta casa seja um bom lugar para conversarmos. Lá fora está frio, mas um pouco de ar fresco lhe fará bem. Não quer ir buscar um casaco?

Ela fez um aceno afirmativo.

— Está vendo, Sr. Goodwin? Nem em minha própria casa. Está bem. — Levantou-se. — Espere aqui. — E saiu.

Sarah Dacos sorria para mim.

— Poderiam ter subido ao primeiro andar — disse ela. — Não posso ouvir através de paredes nem mesmo de buracos da fechadura.

— Não?

Olhei-a de alto a baixo, contente por ter um pretexto para fazê-lo. Ela era muito olhável.

— Poderia estar aparelhada para ouvir, e só existe uma forma de averiguá-lo, que talvez não lhe agradasse.

Riram-se os olhos castanho-claros. — E como sabe que não me agradaria?

— Meu conhecimento da natureza humana. Seu tipo é o melindroso. Não se acercou do homem que a segue e não lhe perguntou: "Quem é o senhor e o que deseja?"

— Acha que deveria tê-lo feito?

— Não. Mas não fez. Posso saber se dança?

— Às vezes.

— Eu saberia mais a seu respeito se dançasse comigo. Não me refiro à possibilidade de que esteja fazendo o jogo do FBI. Se trabalhasse para eles, não precisariam estar acampanando a Sra. Bruner e a família inteira. A única razão que eu...

A cliente assomou à porta. Eu não lhe ouvira os passos. Mau sinal. A Srta. Dacos era atraente, mas não tanto que me impedisse de ouvir passos, ainda que estivesse conversando. Isto só poderia significar que minha opinião do caso não me permitia entregar-me plenamente a ele, o que não estava certo. Quando saí da sala e acompanhei a cliente até a porta da frente, levava os maxilares apertados. O homem de preto abriu a porta, eu segurei a porta externa, esperando que ela passasse, e saímos para o frio do vento de janeiro. Rumamos para leste, na direção de Park Avenue, e paramos na esquina.

— Falaremos melhor em pé — disse eu. — Primeiro, a hipótese de precisarmos falar-lhe com urgência. Ninguém será capaz de prever o que pode acontecer. E até possível que o Sr. Wolfe e eu tenhamos de deixar a casa e enfurnar-nos num lugar qualquer. Se receber um recado, por telefone ou por qualquer outra forma, dizendo que a pizza azedou, vá imediatamente para o Hotel Churchill e procure um homem chamado William Coffey. E um detetive da casa — um assistente do departamento de segurança do hotel. Pode fazê-lo abertamente. Ele terá qualquer coisa para entregar-lhe ou para dizer-lhe. A pizza azedou. Hotel Churchill, William Coffey. Procure lembrar-se. Não escreva nada.

— Não escreverei. — Ela enrugara a fronte. — Imagino que tem certeza de poder confiar nele.

— Tenho. Se a senhora nos conhecesse melhor, ao Sr. Wolfe e a mim, não faria essa pergunta. Entendeu o que precisa fazer?

— Entendi.

Ela aconchegou um pouco mais do pescoço à gola do casaco, que não era o de zibelina, mas outro qualquer.

— Muito bem. Admitamos agora que queira comunicar-se conosco para dizer-nos alguma coisa que não deve ser divulgada. Vá a uma cabina telefônica, ligue para o número de Sr. Wolfe, diga a quem quer que esteja no aparelho que Fido está doente — só isso — e desligue. Espere duas horas, vá ao Churchill e procure William Coffey. Está visto que só o fará se precisar dizer-nos alguma coisa que eles não devem saber. Para inteirar-nos de qualquer coisa que eles tenham feito ou já saibam, basta telefonar-nos. Fido está doente.

Ela ainda conservava o cenho franzido.

— Mas eles ficarão sabendo da existência de William Coffey desde a primeira vez que eu o procurar abertamente.

— Só poderemos usá-lo uma vez. Deixe isso conosco. Em realidade, Sra. Bruner, a senhora está mais ou menos fora da operação. Estaremos trabalhando para a senhora, mas sem sua participação e sem seu auxílio. Provavelmente, não precisaremos estabelecer contato algum com a senhora. Tudo isto são apenas precauções para uma eventualidade. Mas há uma coisa que precisamos saber agora. A senhora disse que procurou o Sr. Wolfe e lhe deu aquele cheque de seis algarismos apenas porque estava sendo aborrecida. A senhora, naturalmente, é uma mulher riquíssima, mas isso é difícil de acreditar. Palpita-me que há qualquer coisa enterrada em algum lugar — a seu respeito ou a respeito dos seus — que a senhora não quer que se desenterre e receia que eles o façam. Se é esse o caso, devemos sabê-lo — não o que é, mas quão urgente é. Estão chegando perto?

Uma rajada de vento esbofeteou-a e ela inclinou a cabeça e encolheu os ombros.

— Não — respondeu. Mas o vento levou-lhe a resposta e ela repetiu-a, mais alto: — Não.

— Mas podem chegar.

Os olhos dela estavam pregados em mim, embora o vento os mantivesse quase fechados.

— Não discutiremos esse assunto, Sr. Goodwin — disse ela. Cuido que toda família tem seu... alguma coisa. Talvez eu não tivesse pensado suficientemente nesse risco quando mandei os livros, mas agora já os mandei, e não me arrependo. Eles não estão "chegando perto" de coisa alguma, pelo que sei. Ainda não.

— É tudo o que a senhora quer dizer a esse respeito?

— É.

— Muito bem. Se um dia tiver vontade de dizer mais alguma coisa, já sabe o que fazer. O que foi que azedou?

— A pizza.

— Quem está doente?

— Fido.

— Qual é o nome dele?

— William Cofrey. No Churchill.

— Muito bem. Agora, aconselho-a a entrar, que suas orelhas já estão vermelhas. Tornarei a vê-la, provavelmente, algum dia, mas só Deus sabe quando.

Ela tocou-me o braço.

— Que vai fazer?

— Dar uma olhada por aí. Andar. Espiar.

Ela ia dizer-me qualquer coisa; decidiu calar-se, virou-se e lá se foi. Esperei que chegasse a sua porta e entrasse; em seguida, rumei para oeste. Não tinha cabimento ficar devassando pátios e janelas, mas dei uma espiada nos carros estacionados e, um pouco para cá da Avenida Madison, avistei um automóvel com dois homens sentados no banco da frente. Parei. Eles não estavam olhando para mim, tal como aprendem a fazer em Washington. Recuei uns dois passos, saquei do caderninho de apontamentos e tomei nota do número da chapa. Se queriam uma campana aberta, por que não? Ainda assim não olharam, e eu continuei.

Descendo a Madison, não me preocupei em verificar se alguém me seguia, visto que, na véspera, de um telefone público, fizera um arranjo com um chofer de praça meu conhecido, Al Goller. Meu relógio indicava 11 horas e 35 minutos, de modo que me sobrava tempo e parei, aqui e ali, no caminho, para admirar as vitrinas. Na esquina da Rua Sessenta e Cinco entrei numa drogaria, onde havia um balcão de refeições, encarapitei-me num tamborete diante do balcão, perto da porta, e pedi um sanduíche de carne de lata com pão de centeio e um copo de leite. Nunca aparece carne de lata nem pão de centeio à mesa de Wolfe. Quando dei cabo do sanduíche e do leite, pedi um pedaço de torta de maçã e café. Às 12 e 27 acabara de beber a segunda xícara de café e virei-me sobre o tamborete para olhar pela janela. Às 12 e 31 um táxi marrom e amarelo estacou diante da drogaria, e saí depressa — menos depressa do que devia, porque uma mulher se endereçava à porta. Mas cheguei à porta antes dela, entrei no carro, Al colocou à vista a tabuleta que dizia RECOLHE, ergueu a bandeirinha, e partimos.

— Espero que não sejam os tiras — disse Al, por cima do ombro.

— Não — respondi. — São árabes montados em camelos. Vá virando esquinas, por enquanto. As probabilidades são pouquíssimas, mas é indispensável que não me sigam agora. Desculpe minhas costas.

Virei-me no assento para observar a retaguarda. Seis voltas e dez minutos mais tarde já não havia dúvida de que ninguém me seguia, e ordenei-lhe que se dirigisse à esquina da Primeira Avenida com a Rua Trinta e Seis. Dei-lhe, ali, uma nota de dez dólares e disse-lhe que esperasse vinte minutos; se, findo esse tempo, eu não tivesse aparecido, poderia ir-se embora. Uma nota de cinco teria sido mais do que suficiente, mas o cliente podia pagar e nós, provavelmente, precisaríamos de Al outra vez. E outra vez e mais outra. Caminhei um quarteirão e meio para o sul, entrei num prédio que três anos antes não existia, consultei a lista de endereços na parede do saguão, fiquei sabendo que a Eletrônica Evers ficava no oitavo andar e tomei o elevador.

O andar inteiro era deles; a mesa da recepcionista ficava logo à saída do elevador, mas não encontrei a moça de praxe, senão um latagão de ombros largos, queixo quadrado e olhos de poucos amigos. Acerquei-me dele e disse-lhe:

— O Sr. Adrian Evers, por favor. Meu nome é Archie Goodwin.

Ele não acreditou. Não teria acreditado nem se eu lhe tivesse dito que estávamos a seis de janeiro. Perguntou:

— Tem entrevista marcada?

— Não. Trabalho para Nero Wolfe, o investigador particular. Tenho uma informação para o Sr. Evers.

Também não acreditou nisso.

— O senhor disse Nero Wolfe?

— Disse. Tem uma Bíblia aí?

Sem se preocupar em zangar-se, dirigiu-se a um telefone, falou qualquer coisa, ouviu outro tanto, desligou e ordenou-me:

— Espere aqui.

E cravou os olhos em mim. Estava calculando, provavelmente, o trabalho que eu poderia dar-lhe. Para mostrar-lhe que não me sentia desconcertado, virei-lhe as costas e fui examinar uma fotografia de uma construção esparramada, de dois pavimentos, que trazia a inscrição FÁBRICA, EM DAYTON, DA ELETRÔNICA EVERS. Tinha acabado de contar as janelas quando uma porta se abriu para deixar passar uma mulher, que pronunciou o meu nome e pediu-me que a seguisse. Acompanhei-a através de um vestíbulo e embarafustei por um corredor até chegar a uma porta em que se lia: SR. EVERS. Ela abriu-a, eu entrei, mas ela ficou.

Evers estava sentado à mesa, entre duas janelas, mordendo um sanduíche. Dei dois passos, detive-me e declarei:

— Não quero interromper-lhe o almoço.

Evers mastigou o bocado de sanduíche, enquanto me media de alto a baixo, através dos óculos sem aros. O rostinho bem proporcionado era do tipo em que ninguém repara, a menos que se empenhe nisso. Engolido o bocado, tomou um gole de café de um copo de papel e disse:

— Alguém sempre interrompe. Que negócio é esse de Nero Wolfe e informação? Que espécie de informação?

Mordeu outro pedaço de sanduíche de salmão e pão torrado.

Encaminhei-me para uma cadeira, junto da mesa, e sentei-me.

— O senhor talvez já a tenha — comecei. — Refere-se a um contato do governo.

Ele mastigou, engoliu e perguntou:

— Nero Wolfe está trabalhando para o governo?

— Não. Trabalha para um cliente particular. O cliente interessa-se pelo fato de que, após submeter um funcionário de sua companhia a uma fiscalização preventiva, o governo cancelou um contrato ou está em vias de cancelá-lo. Isso é assunto de interesse público e...

— Quem é o cliente?

— Não posso dizer-lhe o nome. É confidencial, e...

— É pessoa ligada a esta companhia?

— Não. De maneira alguma. Como eu estava dizendo, Sr. Evers, o senhor compreende que a matéria é de interesse público. Se o direito de exercer fiscalizações preventivas está sendo levado a extremos, de modo que os direitos pessoais ou de propriedade dos cidadãos venham a ser violados, o assunto deixa de ser particular. O cliente do Sr. Wolfe interessa-se por esse aspecto da questão. O que quer que o senhor me revele será estritamente confidencial e só será utilizado mediante sua autorização. O senhor, naturalmente, não quer perder seu contrato, pois imaginamos que seja um contrato grande, mas também, como cidadão, não há de querer que se cometam injustiças. Do ponto de vista do cliente do Sr. Wolfe, esse é o problema.

Evers colocou sobre a mesa o que restava do sanduíche e ficou olhando para mim.

— O senhor disse que tinha uma informação. Qual é?

— Bem, julgamos possível que ainda não soubesse que o contrato vai ser cancelado.

— Uma centena de pessoas já sabe disso. Que mais?

— Aparentemente, a razão do cancelamento é porque a fiscalização preventiva exercida sobre seu primeiro vice-presidente revelou alguns fatos relativos à vida particular dele. Isso sugere duas perguntas: quão exatos são os pretensos fatos, e se realmente o colocam, a ele ou sua companhia, em situação de risco? Estará ele, ou estarão os senhores, recebendo um tratamento injusto?

— Que mais?

— Só isso. Creio que é o bastante, Sr. Evers. Se não quer discutir o assunto comigo, discuta-o com o Sr. Wolfe. Se não está a par da situação ou da reputação dele, verifique-as. Ele pediu-me que lhe esclarecesse que, se o senhor levar alguma vantagem em conseqüência do que ele fizer, não precisará pagar-lhe coisa alguma. Ele não está atrás de cliente; já tem um.

Evers fechara a cara para mim.

— Não entendo. O cliente... é algum jornal?

— Não.

— Uma revista? O Time?

— Não. — Decidi esticar um pouco as instruções que recebera. — Só posso dizer-lhe que é um cidadão particular, que acha que o FBI está passando da conta.

— Não acredito. E não gosto disso. — Premiu um botão sobre uma placa. — O senhor é do FBI?

Eu disse que não e já ia continuar, quando a porta se abriu, uma mulher apareceu, a mesma que me fizera entrar, e Evers ordenou-lhe, ríspido:

— Acompanhe esse homem, Srta. Bailey. Até o elevador.

Objetei. Disse-lhe que, se ele discutisse o caso com Nero Wolfe, o pior que lhe poderia acontecer seria perder o contrato, o qual, aliás, já estava perdido e se houvesse alguma possibilidade de salvá-lo... Mas a expressão de seu rosto, quando ele estendeu a mão para a placa, a fim de apertar outro botão, indicou-me claramente que não adiantava. Eu não conseguira vender meu peixe, nem tinha esperanças de vendê-lo. Levantei-me e saí, com a mulher atrás de mim, e verifiquei, logo na ante-sala, que aquele não era mesmo meu dia. Quando entrei, abriu-se a porta do elevador e dele saiu um homem, e conheci que não era estranho. Trabalhando num caso cerca de um ano antes, eu tivera de lidar com um G-man chamado Morrison, e lá estava ele. Nossos olhos se encontraram e, depois, nós nos encontramos. Enquanto estendia a mão, ele perguntou:

— Ué, ué! Nero Wolfe está utilizando agora a eletrônica também?

Apertei-lhe amistosamente a mão e sorri.

— Oh — repliquei —, estamos tentando manter-nos a par do progresso. Vamos "minar" certo edifício da Rua Sessenta e Nove. — Aproximei-me do elevador e apertei o botão. — Estou estudando os últimos retoques.

Ele riu-se para ser polido e disse que, dali por diante, todas as conversas com G-men teriam de ser travadas em código. Abriu-se a porta do elevador, entrei e a porta voltou a fechar-se. Positivamente aquele não era meu dia. Não que isso tivesse grande importância, visto que eu não conseguira nada com Evers, mas é sempre ruim andar ao arrepio da sorte, e só Deus sabia de quanta sorte precisávamos então. Eu estava pisando chão duro, e não ar, quando saí para a calçada e guiei para fora do centro.

Tinham-se passado mais de vinte minutos e Al já se fora. Havia muitos táxis na Primeira Avenida àquela hora; fiz sinal para um deles e dei um endereço ao chofer.

 

Faltava um quarto para as onze daquela noite de quarta-feira, quando, pessimista e exausto, subi os degraus que conduziam à velha casa de pedra marrom e toquei a campainha. Estando a porta aferrolhada, precisaria esperar que me deixassem entrar. Quando Fritz chegou, perguntou-me se eu queria que esquentasse um pedaço de pato com caril; respondi-lhe que não. Desfiz-me do chapéu e do sobretudo e entrei no escritório; lá estava o agigantado gênio à sua mesa, na cadeira feita de encomenda para suas excepcionais medidas, com uma garrafa de cerveja e um copo numa bandeja, lendo, confortavelmente, seu livro favorito — O Tesouro de Nossa Língua, de Lincoln Barnett. Fui para minha mesa, fiz girar a cadeira e sentei-me. Ele ergueria os olhos quando chegasse ao fim do parágrafo.

Ergueu-os, efetivamente. Inseriu o marcador — uma fita delgada de ouro que lhe dera, anos antes, um cliente que não se achava em condições de fazê-lo — entre as páginas e colocou o livro sobre a mesa.

— Você já jantou, naturalmente — disse ele.

— Não jantei. — Cruzei as pernas. — Desculpe-me se agito as pernas. Comi qualquer coisa gordurosa, já nem sei o que, numa baiúca do Bronx. Foi...

— Fritz esquentará o pato, e...

— Não, não esquentará. Eu lhe disse que não o fizesse. Foi o dia mais desgraçado que já tive em toda a minha vida e quero terminá-lo condignamente. Farei um relatório completo e depois irei para a cama com gosto de gordura. Primeiro, o...

— Com a breca, você precisa comer!

— Eu já disse que não. Primeiro, o cliente.

Expus-lhe todos os diálogos, palavra por palavra, e a ação, incluindo os dois homens no carro estacionado, cuja chapa anotara. Ao concluir, acrescentei algumas opiniões: que (a) seria perda de tempo mandar verificar o número da chapa; (b) Sarah Dacos poderia ser, provavelmente, posta de lado ou, pelo menos, classificada para referência futura; e (c) fosse qual fosse a sujeira que existia escondida na família Bruner, o escondimento continuava ao parecer da cliente. Quando me levantei para entregar-lhe o documento que a Sra. Bruner assinara, Wolfe limitou-se a passar os olhos por ele e disse-me que o guardasse no cofre.

Referi-lhe também, textualmente, o encontro com Evers, sem esquecer Morrison, é claro. A respeito disso, opinei apenas que eu não soubera tratar do caso, pois deveria ter-lhe dito que possuíamos uma informação secreta que ele ignorava e não poderia obter, e que poderíamos exercer pressão no sentido de salvar-lhe o contrato e, se o fizéssemos, esperaríamos ser pagos por isso. E claro que teria sido arriscado, mas ele talvez tivesse aberto o jogo. Wolfe sacudiu a cabeça e disse que isso nos teria tornado vulneráveis demais. Ergui-me e rodeei-lhe a mesa para chegar à prateleira em que se achava o dicionário, abri-o, encontrei o que buscava e tornei a minha cadeira.

— Capaz de ser ferido — repeti. — Sujeito a ataque, ou dano. Isso é o que quer dizer "vulnerável". Teríamos de fazer muita força para ficarmos mais vulneráveis do que já estamos. Mas, para acabar o dia. Levei a tarde inteira procurando Ernst Muller, que está sendo acusado de participar do transporte de mercadorias roubadas através das divisas do Estado, e está solto sob fiança, e foi até pior do que Evers. Cismou de bater-me e, como não estivesse só, precisei reagir, e talvez lhe tenha quebrado o braço. Então...

— Você foi ferido?

— Só meus sentimentos. Então, depois de engolir a gordura, saí à procura de Julia Fenster, que foi, ou não, vítima de um flagrante preparado de espionagem, julgada e absolvida, e assim passei o princípio inteirinho da noite buscando encontrá-la. Finalmente, encontrei o irmão dela, que é um bobo alegre. Nenhum homem jamais conseguiu tão pouco num dia inteiro. Um verdadeiro recorde. E essas foram as três que escolhemos como as melhores dicas. Estou ansioso por ver o programa que o senhor planejou para amanhã. Vou pô-lo debaixo do travesseiro.

— Em parte é seu estômago — disse ele. — Se não quiser o pato, pelo menos uma omeleta.

— Não.

— Caviar. Há uma libra nova.

— Sabe muito bem que gosto de caviar. Seria incapaz de insultá-lo.

Serviu-se de cerveja, esperou que o colarinho atingisse a espessura de um centímetro, bebeu, lambeu os beiços e olhou para mim.

— Archie. Você está tentando irritar-me para que eu devolva aquele sinal?

— Não. Sabe que não poderia fazê-lo.

— Então, está disparatando. Não ignora que aceitamos um serviço que, logicamente considerado, é absurdo. Ambos o dissemos. É pouquíssimo provável que qualquer uma das sugestões que nos forneceu o Sr. Cohen nos proporcione um ponto de partida, mas é concebível que uma delas o faça. Há um pouco de acaso em toda operação, mas esta é só acaso. Estamos à mercê das vicissitudes da fortuna; só podemos convidar, não podemos ordenar. Não tenho programa para amanhã; esse dependeria de hoje. Você não pode afirmar que o dia de hoje tenha sido inútil. Uma cutucada pode ter posto alguém em movimento. Ou poderá fazê-lo amanhã, ou na semana que vem. Você está cansado e faminto. Coma qualquer coisa, que diabo!

Abanei a cabeça.

— Que faremos amanhã?

— Pensaremos nisso amanhã cedo. Hoje não.

E Wolfe agarrou o livro.

Ergui-me da cadeira, dei-lhe um pontapé, tirei o papel da minha mesa e guardei-o no cofre; fui à cozinha e enchi um copo de leite. Fritz já se recolhera. Compreendendo que o que seria um insulto para o caviar sê-lo-ia também para o leite, devolvi-o ao recipiente de papelão, peguei outro copo e a garrafa de uísque Old Sandy, enchi três dedos do copo e emborquei um bom trago. Isso bastou para derreter a gordura e, depois de certificar-me de que a porta dos fundos estava aferrolhada, acabei o uísque, enxagüei os copos, subi os dois lanços de escada até meu quarto, vesti o pijama e calcei chinelos.

Pensei em levar o cobertor elétrico, mas acabei desistindo. Num apuro, dispensam-se as grandes comodidades. Da cama tirei apenas o travesseiro e fui buscar lençóis e cobertores no armário do vestíbulo. Com os braços carregados, desci, entrei no escritório, retirei as almofadas do sofá e estendi os lençóis. Estava desdobrando um cobertor quando ouvi a voz de Wolfe.

— Não vejo necessidade disso.

— Eu vejo. — Estendi o cobertor, mais outro, e voltei-me. — O senhor leu aquele livro. Eles trabalham depressa. Com alguns dos documentos que estão nos arquivos fariam um belo piquenique e ainda teriam o cofre de sobremesa.

— Ora! Você está exagerando. Arrebentar um cofre numa casa habitada?

— Não precisariam fazê-lo, isso é coisa do passado. O senhor precisava ler alguns livros sobre eletrônica.

Empurrei os cobertores para o pé do sofá.

Ele levou a cadeira para trás, ergueu-se, disse boa-noite e saiu, carregando O Tesouro de Nossa Língua.

 

Na quinta-feira pela manhã havia uma remota possibilidade de que Fritz, depois de entregar a bandeja do desjejum, descesse com o aviso de que eu devia subir para conversar, mas isso não ocorreu. Assim sendo, visto que Wolfe não desceria do viveiro senão às onze, passei o tempo fazendo o serviço de rotina e, às dez, eu já dera conta do recado — as roupas de cama lá em cima, o desjejum no bucho, o Times examinado, a correspondência aberta e colocada debaixo de um peso de papéis sobre a mesa de Wolfe, e Fritz inteirado. Inteirado, mas não tranqüilizado. Ainda trazia vívida na memória, como todos nós, a noite em que as metralhadoras do telhado, do outro lado da rua, haviam metralhado o viveiro, espatifando centenas de vidros e estragando milhares de orquídeas, e metera na cabeça que eu estava dormindo no escritório porque meu quarto defrontava com a Rua Trinta e Cinco e o espetáculo seria bisado. Expliquei-lhe que eu, agora, era guarda, e não refugiado, mas ele não acreditou e disse-mo.

No escritório, depois de abrir a correspondência, só me restava matar o tempo. Houve um telefonema para Fritz, de um peixeiro, e eu ouvi-o, mas não percebi sinal algum de que a linha estivesse censurada, embora, naturalmente, o estivesse. Vivam os técnicos! A ciência moderna está chegando ao ponto em que qualquer um pode fazer qualquer coisa, mas ninguém sabe o que está acontecendo. Tirei o caderno de apontamentos da gaveta e passei os olhos pelas informações que Lon Cohen nos fornecera, considerando-lhes as possibilidades. Havia catorze itens ao todo, e pelo menos cinco deles eram obviamente sem esperanças. Dos outros nove, tínhamos feito uma tentativa com três e não havíamos conseguido nada. Sobravam seis, que examinei, um por um. Decidi que o mais promissor ou, pelo menos, o menos desalentador, referia-se a uma mulher que fora dispensada de um cargo no Departamento de Estado e fora readmitida, e já ia pegar na lista telefônica de Washington, para ver se o nome dela ali estava, quando soou a campainha da porta.

Dirigindo-me ao vestíbulo, para dar uma olhadela pelo olho mágico, que só permite a visão de dentro para fora, esperava dar com um estranho, talvez dois. O aproche direto. Ou talvez Morrison. Mas bispei uma figura muito conhecida, na varanda — o Dr. Vollmer, com consultório numa casa que comprou no mesmo quarteirão. Abri a porta e saudei-o, e ele entrou, em companhia de uma rabanada fresca e fria. Depois de fechar a porta, eu disse-lhe que, se estava procurando serviço, deveria tentar a casa do vizinho, e estendi a mão para receber-lhe o chapéu.

Ele não se descobriu.

— Estou aqui de serviço, Archie. Todo mundo ficou doente. Mas tenho um recado para você, que acabo de receber pelo telefone. Um homem, sem nome. Disse-me que lho transmitisse pessoalmente. Você deverá estar no Hotel Westside, quarto 214, à Rua Vinte e Três, às onze e meia ou, depois disso, o mais cedo que puder, e precisa ter certeza de não ter sido seguido.

Eu erguera as sobrancelhas.

— Um recado e tanto.

— Foi o que pensei. Ele disse ainda que você me pediria para guardar o segredo debaixo do chapéu.

— Muito bem, vou pedir-lhe. Por isso é que o senhor está de chapéu na cabeça. — Olhei para o pulso: eram 10 e 47. — Que mais disse ele?

— Só isso, só o recado. Depois me perguntou se eu viria transmiti-lo pessoalmente.

— Quarto 214, Hotel Westside.

— Certo.

— Que tipo de voz?

— Nenhum tipo especial, sem qualquer característico, nem alta nem baixa. Voz normal de homem.

— Muito bem, doutor, muito obrigado. Mas agora precisamos de outro favor seu, se for possível. Estamos metidos numa operação meio espinhosa e o senhor, provavelmente, foi visto. É possível que alguém queira saber por que veio cá. Se alguém perguntar, poderá...

— Direi que você me telefonou e pediu-me que viesse examinar-lhe a garganta.

— Não. Duas vezes errado. O perguntador saberá que não tenho nada na garganta e saberá que não telefonei. A nossa linha está censurada. O pior é que, se alguém cismar que estamos recebendo mensagens confidenciais por seu intermédio, seu telefone será censurado também.

— Meu Deus! Mas isso é ilegal!

— Eis por que é tão divertido. Se alguém lhe perguntar, o senhor poderá ficar indignado e dizer que não é da conta de ninguém, ou poderá mostrar-se obsequioso e responder que veio tomar a pressão de Fritz... Não, não trouxe o estojinho. Veio...

— Vim buscar-lhe a receita dos escargots bourguignonne. Prefiro isso, não é profissional. — Aproximou-se da porta. — Francamente, Archie, o negócio é espinhoso mesmo!

Concordei e tornei a agradecer-lhe, e ele me pediu que desse lembranças a Wolfe. Quando fechei a porta, assim que ele saiu, não me dei ao trabalho de aferrolhá-la, visto que não tardaria a sair também. Fui à cozinha e disse a Fritz que ele acabara de dar a receita dos escargots bourguignonne ao Dr. Vollmer; depois voltei ao escritório e chamei o viveiro pelo telefone interno. Recusava-me a acreditar que eles alcançassem censurar um telefone interno. Wolfe atendeu ao aparelho e eu lhe contei. Ele grunhiu e perguntou:

— Você tem alguma idéia?

— Nem a mais remota das idéias. O FBI não é. Por que o fariam eles? Pode ser que sua idéia da cutucada esteja funcionando. Evers, a Srta. Fenster ou até Muller. Alguma instrução?

Ele fez pfui e desligou, e tive de confessar que eu o merecera.

Haveria o problema de descobrir a campana e desvencilhar-me dela, e isso, às vezes, demanda tempo, de modo que precisaria de ajuda se quisesse chegar pontualmente à entrevista. E também precisaria estar preparado para a remota possibilidade de que Ernst Muller houvesse ficado sensibilizado com a torcida de braço que eu lhe dera e tencionasse retribuir o cumprimento, de sorte que tirei da gaveta o coldre de usar a tiracolo, coloquei-o, tirei também a Marley 38 e carreguei-a. Além disso, poderia ser necessária outra espécie de munição: abri o cofre e dele retirei mil dólares em notas usadas de dez e vinte, da caixa de reserva. Está claro que havia outras possibilidades imagináveis tal como a de me tirarem o retrato com uma mulher nua num quarto, ou com um cadáver, ou sabe Deus com o que, mas só poderia safar-me de uma enrascada assim depois que me visse metido nela.

Faltava um minuto para as onze quando saí de casa. Sem olhar para os lados, encaminhei-me para a drogaria na esquina da Nona Avenida, entrei na cabina telefônica e disquei o número da garagem na Décima Avenina, onde se guarda o sedan Heron que Wolfe possui e eu dirijo. Tom Halloran, que lá trabalha há dez anos, não atendeu, mas, depois de esperar um pouco, consegui falar com ele, expliquei-lhe o programa, e ele prometeu que estaria pronto dali a cinco minutos. Achando que seria melhor dar-lhe dez, quedei-me a ler os títulos das brochuras que havia na prateleira, antes de sair. Rumando para a Rua Trinta e Cinco, passei pela casa de pedra marrom, virei na Décima Avenida, entrei no escritório da garagem, atravessei-o e aproximei-me de um Ford que lá estava, com o motor funcionando. Tom instalara-se na frente, à direção. Entrei na parte traseira, tirei o chapéu, deitei-me no chão, todo enrolado, e o carro partiu.

Pode ser que esse modelo da Ford tenha muito espaço para os pés, mas não tem espaço algum para o corpo de um homem de um metro e oitenta e três de altura, que não é contorcionista profissional, e eu padeci. Cinco minutos depois, principiei a desconfiar que Tom freava o carro e dobrava esquinas de propósito, só para saber quanto eu agüentaria, e eu me sentia entalado em mais de um sentido. Minhas costelas estavam a termos de arrebentar e minhas pernas começavam a ficar insensíveis quando ele parou pela sexta vez e ouvi-lhe a voz:

— Pronto, companheiro, a costa está livre.

— Maldição! Dê-me uma alavanca.

Ele riu-se. Ergui a cabeça e os ombros, consegui agarrar a borda do assento traseiro, fiz um esforço, endireitei-me e enfiei o chapéu na cabeça. Estávamos na esquina da Rua Vinte e Três com a Nona Avenida.

— Você tem certeza? — perguntei-lhe.

— Absoluta. Não há possibilidade de erro.

— Ótimo. Mas, da próxima vez, arranje uma ambulância. Você encontrará um pedaço de minha orelha no canto. Guarde-o como lembrança.

Saí. Ele perguntou-me se havia mais alguma coisa, respondi-lhe que não, que lhe agradeceria mais tarde, e ele arrancou-se.

O Hotel Westside, no meio do quarteirão, não era exatamente um pardieiro, embora muita gente o chamasse assim. Evidentemente ainda gozava de má fama, pois reformara a fachada e remodelara o saguão uns dois anos antes. Entrando, sem dar bola para nada nem para ninguém, inclusive um mensageiro careca, dirigi-me ao elevador automático, apertei o botão e comecei a subir. Quando saí e me acheguei à porta mais próxima para ver-lhe o número, notei que minha mão deslizara para dentro do sobretudo, à procura da Marley, e sorri para mim mesmo. Se era J. Edgard Hoover quem estava à minha espera, seria melhor que se comportasse, pois poderia levar um tirinho. A porta do quarto 214, no meio do corredor, à esquerda, estava fechada. Meu relógio dizia que eram 11 e 33. Bati, ouvi passos e a porta se abriu; fiquei parado, olhando, apalermado. Eu tinha os olhos postos no rosto redondo e vermelho e no corpanzil do Inspetor Cramer, da Divisão de Homicídios.

— Em cima da hora — resmungou ele. — Entre.

Afastou-se para um lado e transpus a soleira.

Fazia tanto tempo que minha vista se avezara a reparar nas coisas que tomei nota, mentalmente, de todo o quarto, de forma quase automática — a cama de casal, a cômoda com espelho, duas cadeiras, a mesa com uma pasta de escritório, que precisava ser trocada, a porta aberta para o banheiro — enquanto meu espírito ia-se ajustando ao choque. Logo depois, entretanto, ao colocar o sobretudo e o chapéu sobre a cama, levei outro choque: uma das cadeiras, a que não tinha braços, estava junto da mesa e, sobre a mesa, havia um cartucho de leite e um copo. Misericórdia, ele o comprara e comprara-o para seu hóspede! Não censurarei o leitor se não acreditar. Também não acreditei, mas lá estava o leite.

Ele dirigiu-se para a cadeira que tinha braços, sentou-se e perguntou:

— Você não foi seguido?

— Não. Sempre obedeço às instruções.

— Sente-se.

Encaminhei-me para a outra cadeira. E ele, cravando em mim os olhos cinzentos:

— O telefone de Wolfe está censurado?

Meus olhos enfrentaram os seus.

— Ouça — disse eu —, o senhor sabe perfeitamente como é. Se eu tivesse feito uma lista de cem nomes de pessoas que poderiam estar aqui, o seu não figuraria entre eles. Esse leite é para mim?

— É.

— Então o senhor está fora dos eixos. Não é o Inspetor Cramer, que conheço tão bem, e não sei o que me espera. Por que pergunta se nosso telefone está censurado?

— Porque não gosto de fazer as coisas mais complicadas do que já o são. Gosto das coisas simples. Eu queria saber se lhe poderia ter telefonado diretamente e dito a você que viesse encontrar-me aqui.

— Oh. E claro que sim, mas, se o tivesse feito, eu teria respondido que talvez fosse melhor darmos um passeio de automóvel.

Ele assentiu com a cabeça.

— Muito bem. Quero saber, Goodwin. Sei que Wolfe enredou-se com o FBI, e quero que você me descreva a situação. Tim-Tim por tim-tim. Nem que isso nos tome o resto do dia.

Sacudi a cabeça.

— É impossível e o senhor o sabe.

Ele explodiu.

— Raios me partam! Isto, sim, é impossível! Eu estar aqui! Eu fazê-lo vir aqui! Pensei que você tivesse alguma inteligência! Não compreende o que estou fazendo?

— Não. Não tenho a menor idéia do que o senhor está fazendo.

— Pois, então, vou-lhe contar. Conheço-os muito bem, Goodwin. Sei que você e Wolfe andam por atalhos, e sei-o por experiência própria, mas sei também que não ultrapassam certos limites. De modo que aqui, entre nós, eu lhe direi. Há cerca de duas horas o comissário me chamou. Recebera um telefonema de Jim Perazzo. Sabe quem é Jim Perazzo?

— Sim, acontece que sei. Serviço de licenças, Departamento de Estado, Estado de Nova Iorque. Broadway, 270.

— Você haveria de saber. Não vou encompridar o assunto. O FBI quer que Perazzo casse a licença de Wolfe e a sua também. Perazzo quer que o comissário lhe forneça tudo o que tivermos a seu respeito. O comissário está inteirado de que, durante anos, tive... uh... contatos com vocês e pediu-me um relatório completo, por escrito. Você sabe o que são relatórios; dependem de quem os escreve. Antes de escrever o meu, quero saber o que Wolfe fez ou está fazendo para ter o FBI atrás de si. Quero uma descrição completa da situação.

 

Quando nos mostram alguma coisa que precisa de uma boa olhada, é muito conveniente que nossas mãos estejam fazendo alguma coisa, tal como acender um cigarro — eu não fumo — ou assoar o nariz. Tomei do cartucho de leite, abri-o e deitei o leite, com o máximo cuidado, no copo. Uma coisa era óbvia. Ele poderia ter-me telefonado, chamando-me a sua sala, ou poderia ter ido à casa de Wolfe, mas não fizera nada disso porque suspeitava que nosso telefone estivesse censurado e a casa vigiada. Por conseguinte, não queria que o FBI soubesse que procurava estabelecer contato conosco, e tivera um trabalhão para estabelecê-lo. Contara-me a história do FBI, de Perazzo e do comissário, o que era ridículo da parte de um inspetor de polícia em conversa com um detetive particular. Por conseguinte, não queria que perdêssemos as licenças e, portanto, alguma coisa o estava mordendo, e convinha descobrir o que era. Numa situação dessas, antes de dar com a língua nos dentes, especialmente diante de um tira, eu deveria telefonar para Wolfe e colocá-lo a par de tudo, mas isso era impossível. Minhas instruções correntes rezavam que, em qualquer emergência, eu deveria utilizar a inteligência, secundada pela experiência.

Foi o que fiz. Beberiquei algum leite, coloquei o copo sobre a mesa e disse-lhe:

— Se o senhor pode violar uma norma, eu também posso. O negócio é o seguinte.

Referi-lhe a história toda — a conversa com a Sra. Bruner, o sinal de cem mil dólares, o jantar com Lon Cohen, minha conversa com a Sra. Bruner e Sarah Dacos, meu dia na Eletrônica Evers, atrás de Ernst Muller e Julia Fenster, a noite que dormi no sofá, no escritório. Não reproduzi os diálogos textualmente, mas não deixei nada por contar e respondi às perguntas que me fez durante a narrativa. Quando terminei, o copo de leite esvaziara-se e ele tinha um charuto entre os dentes. O inspetor não fuma charutos, estraga-os apenas.

Ele tirou o charuto da boca e observou:

— Quer dizer que os cem mil dólares já são dele, aconteça o que acontecer?

Anuí com a cabeça.

— E haverá um cheque para mim, especial. Não lhe falei nisso?

— Falou. Não me admiro de Wolfe. Com sua presunção, não há nada nem ninguém que ele não seja capaz de enfrentar, contanto que lhe paguem. Mas estou admirado de você. Sabe perfeitamente que o FBI não pode ser abalado. Nem mesmo pela Casa Branca. E você está saltaricando por aí, feito passarinho, beliscando os coscorões dos outros. Está procurando sarna para se coçar e a acabará encontrando. Você é quem está fora dos eixos.

Deitei mais leite no copo.

— O senhor tem toda a razão — assenti. — Seja qual for o ponto de vista, está absolutamente certo. Uma hora antes, eu diria amém. Agora, entretanto, já penso de maneira diferente. Não lhe repeti uma frase que o Sr. Wolfe pronunciou ontem à noite! Ele disse que uma cutucada poderia levar alguém a mexer-se. Pois muito bem, a cutucada neles resultou numa cutucada em Perazzo, que cutucou o comissário, que cutucou o senhor, e o senhor, cutucado, fez-me vir sozinho até aqui e ofereceu-me um quarto de leite, o que é perfeitamente incrível. Ora, se uma coisa incrível pode acontecer, por que não pode acontecer outra coisa incrível? O senhor responderia a uma pergunta?

— Faça-a.

— O senhor não morre de amores por Nero Wolfe e, positivamente, não me ama. Por que quer fazer um relatório ao comissário que dificulte a cassação de nossas licenças?

— Eu não disse que vou fazê-lo.

— Pois sim! — Atirei um piparote ao cartucho de leite. — E isto? E o haver-me trazido até aqui como o fez? Por quê?

Ele ergueu-se da cadeira e, na ponta dos pés, com uma macieza e um silêncio admiráveis para sua idade e tamanho, aproximou-se da porta, abriu-a de golpe e pôs a cabeça para fora. Evidentemente, não tinha tanta certeza quanto eu de não ter sido seguido. Fechou a porta, guiou para o banheiro, ouvi a água jorrar de uma torneira e, um minuto depois, voltou com um copo d'água. Bebeu-o, sem pressa, pôs o copo sobre a mesa, sentou-se e apertou os olhos em minha direção.

— Faz trinta e seis anos que sou policial — disse ele — e esta é a primeira vez que vou passar um serviço a um estranho.

Deixei que meus olhos sorrissem um pouco.

— Estou lisonjeado. Ou é o Sr. Wolfe quem

está.

— Sebo! Ele não distinguiria uma lisonja, nem que ela viesse cheia de rótulos, e você também não. Goodwin, vou contar-lhe uma coisa que é para você, para Wolfe e para mais ninguém. Nem Lon Cohen, nem Saul Panzer, nem Lily Rowan. Compreendido?

— Não sei por que há de incluir a Srta. Rowan na lista. E apenas uma amiga particular minha. E não adianta dizer-me uma coisa se não pudermos utilizá-la.

— Podem utilizá-la, sim, senhor. Mas não digam que ela partiu de mim. Nunca, a ninguém.

— O Sr. Wolfe não está aqui para garanti-lo com sua palavra de honra, por isso dou-lhe a minha, por ele. Por nós. Nossa palavra de honra.

— Terei de contentar-me com isso. Com a memória que tem, você não precisará tomar notas. O nome Morris Althaus significa-lhe alguma coisa? — E repetiu-o, soletrando.

Acenei afirmativamente com a cabeça.

— Leio jornais. Um caso que vocês não conseguiram deslindar. Baleado. No peito. Novembro último. Não havia arma.

— Sexta-feira à noite, vinte de novembro. O corpo foi encontrado na manhã seguinte, pela mulher da limpeza. Morreu entre oito horas da noite de sexta-feira e três horas da madrugada de sábado. Um tiro só, no peito, bem no meio do coração; a bala saiu pelas costas, raspando uma costela. Depois continuou, bateu na parede a uma altura de um metro do chão, mas, já sem forças, apenas a arranhou. Ele estava de costas, as pernas esparramadas, o braço esquerdo esticado ao longo do corpo, o direito dobrado sobre o peito. Vestido, mas sem paletó, em mangas de camisa. Nenhuma desordem, nenhum sinal de luta. Como você disse, não havia arma. Estou indo muito depressa?

— Não.

— Interrompa-me, se quiser fazer perguntas. Era a sala de estar do apartamento, no terceiro andar do prédio número 63 da Rua Arbor — sala, quarto, kitchenette e banheiro. Morava lá havia três anos, sozinho, solteiro, trinta e seis anos de idade. Escritor independente, nos últimos quatro anos escrevera sete artigos para a revista Tick-Tock. Ia casar, em março, com uma moça chamada Marian Hinckley, de vinte e quatro anos, que trabalha na Tick-Tock. Está visto que eu poderia continuar. Poderia ter trazido o processo. Mas não traz nada sobre seus movimentos, ligações ou associados que possa ajudar. Não nos ajudou.

— O senhor esqueceu um detalhezinho, o calibre da bala.

— Não esqueci. Não havia bala. Não estava lá.

Abotiquei os olhos.

— Muito bem. Servicinho limpo.

— E. Limpo e a sangue-frio. A julgar-se pelo ferimento, devia ser trinta e oito, ou maior. Agora, dois fatos. Primeiro: fazia três semanas que Althaus estava coligindo material a fim de escrever um artigo sobre o FBI, para a revista Tick-Tock, e não se encontrou nenhum sinal dele, nada, no apartamento. Segundo: cerca das onze horas naquela noite de sexta-feira, três homens do FBI saíram do prédio número 63 da Rua Arbor, entraram num carro parado na esquina e arrancaram-se.

Sentei-me e olhei para ele. Há várias razões para a gente ficar de boca fechada, mas a melhor é não ter o que dizer.

— De modo que o mataram — disse Cramer. — Teriam ido lá para matá-lo? É claro que não. Há várias maneiras de figurar o que aconteceu. A que mais me agrada é que telefonaram para o apartamento e, como ele não atendesse, supuseram que tivesse saído. Foram até lá, tocaram a campainha e também não obtendo resposta abriram a porta e entraram para recolher o que encontrassem. Ele sacou de um revólver, mas um deles atirou primeiro. São bem treinados naquele porão em Washington. Procuraram o que queriam, acharam-no, apossaram-se dele e carregaram-no, levando também a bala, porque era de um de seus revólveres.

Eu estava prestando atenção. Nunca prestara tanta atenção. E perguntei:

— Ele tinha arma?

— Tinha. Um S & W, trinta e oito. Tinha licença também. Não estava lá. Levaram-no, e você terá de perguntar-lhes por quê. Havia uma caixa de balas, quase cheia, numa gaveta.

Continuei sentado a olhar para ele. Afinal, disse:

— Quer dizer que vocês resolveram o caso. Meus parabéns.

— Você faria piadinhas até na cadeira elétrica, Goodwin. Terei de descrevê-la?

— Não. Mas, afinal de contas... Quem os viu?

Ele abanou a cabeça.

— Dir-lhe-ei tudo, menos isso. De qualquer maneira, ele não poderia ajudá-lo. Viu-os saírem, dirigirem-se ao carro e partir, e tomou o número da chapa. Foi assim que o soubemos e é tudo quanto sabemos. Estamos amarrados. Ainda que pudéssemos dizer-lhes os nomes, que lucraríamos com isso? Vi muitos assassinos cujos nomes eu poderia dizer, mas para que, se não conseguiria provar-lhes os crimes? Mas este aqui, este grupelho excomungado, eu daria um ano de salários para poder agarrá-lo e acusá-lo. Esta não é a cidade deles, é a minha. A nossa. Do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Há anos que nos fazem ranger os dentes. Agora, acham que podem invadir as casas dos outros, praticar homicídio em meu território e depois rir-se de mim!

— Riram do senhor?

— Riram. Fui pessoalmente à Rua Sessenta e Nove para falar com Wragg. Disse-lhe que eles sabiam, naturalmente, que Althaus estava recolhendo material para um artigo, e talvez o tivessem procurado para acomodar as coisas na noite em que foi morto e, a ser assim, eu gostaria de receber alguma colaboração. Respondeu-me que gostaria de ajudar, se pudesse, mas tinha muita coisa importante para fazer em lugar de preocupar-se com um picareta, catador de escândalos. Não lhe contei que tinham sido vistos. Isso, sim, o faria rir de verdade.

Suas mandíbulas trabalhavam.

— É claro que o caso foi discutido na sala do comissário. Várias vezes. Estou amarrado. Nada nos agradaria tanto quanto imputar o caso a essa turma de piranhas; mas que temos nós para apresentar a um júri, e que conseguiríamos? Por isso desistimos. E por isso digo: não somente escreverei um relatório sobre Wolfe e você para o comissário, mas também irei falar com ele. Não creio que percam suas licenças. Mas não lhe direi que estive com você.

Levantou-se, foi até a cama e voltou com o chapéu e o sobretudo.

— Por que não acaba de tomar o leite? E espero que a Sra. Bruner tenha empregado bem seu dinheiro. — Estendeu a mão. — Feliz Ano-Novo.

— O mesmo para o senhor. — Ergui-me e apertei-lhe a mão. — Ele seria capaz de identificá-los, se fosse preciso?

— Pelo amor de Deus, Goodwin. Três contra

um?

— Eu sei. Mas digamos que fosse necessário...?

— Talvez. Ele acha que sim. Já lhe disse tudo o que sei. Não me apareça nem me telefone. E dê-me alguns minutos para sair.

Encaminhou-se para a porta, voltou-se e recomendou-me:

— Lembranças a Wolfe. E saiu.

Acabei de tomar o leite, de pé.

 

Era meio-dia e vinte quando deixei o saguão do Hotel Westside. Senti vontade de andar. Em primeiro lugar, não estava sendo acampanado, e era gostoso caminhar sem se preocupar com uma possível companhia. Em segundo lugar, não queria pensar aturadamente no assunto e, quando ando, meus pensamentos não precisam de palavras. Em terceiro lugar, pretendia apreciar a paisagem. Era um belo e ensolarado dia de inverno, sem muito vento; depois de meter-me pela Sexta Avenida, virei para o sul.

Para mostrar os tipos de pensamento que me acodem sem esforço quando estou andando, ao atravessar a Praça de Washington ocorreu-me que era uma coincidência que a Rua Arbor ficasse na Village e Sarah Dacos morasse na Village. Isso não poderia classificar-se de pensamento aturado, visto que um quarto de milhão de pessoas morava na Village, mais ou menos, e tenho conhecido coincidências mais estranhas; mas eis aí um belo exemplo das atividades de minha mente quando estou caminhando.

Eu já estivera na Rua Arbor, e o motivo não faz ao caso. É estreita e só tem três quarteirões de comprimento, com uma coleção de casas velhas de tijolos de cada lado. O número 63, que ficava mais ou menos no meio, não tinha nada que o estremasse dos outros prédios. Em pé, na calçada oposta, passei a observá-lo. As janelas do terceiro andar, onde Morris Althaus vivera e morrera, ostentavam cortinas castanho-amareladas, que estavam descidas. Fui até a esquina onde os G-men haviam estacionado o carro. Como já disse, apreciava a paisagem, sem ser seguido por ninguém. Na verdade, é claro, eu estava observando profissionalmente a cena de um crime, que poderia vir a receber minha atenção. De um modo ou de outro, isso ajuda. Ajuda-me a mim, não a Wolfe. Este seria incapaz de sair à janela para examinar a cena de um crime. Eu teria gostado de subir ao terceiro pavimento, a fim de espiar a sala de estar, mas desejava chegar em casa para o almoço, por isso desandei até a Rua Christopher e acenei para um táxi.

O motivo que me levava a querer estar em casa à hora do almoço era a norma de que nunca se deve falar em negócios durante as refeições. O relógio marcava uma e vinte quand Fritz abriu a porta; coloquei o sobretudo e o chapéu no cabide. Wolfe já estava à mesa. Dirigi-me à sala de jantar, sentei-me diante dele e fiz um comentário sobre o tempo. Ele grunhiu e engoliu um naco de timo de vitela, cozido no bafo. Fritz trouxe o prato e eu me servi de alguns pedaços. Minha atitude não era de simples mesquinhez; eu estava tentando mostrar-lhe também que as normas, às vezes, são extremamente tolas; uma norma que se estabeleça com o propósito de não tirar o prazer à comida pode estragar uma refeição. Não estragou a minha, mas pouco se falou à mesa.

Havia, contudo, outra razão para não falarmos. Quando afastamos as cadeiras, eu disse-lhe que desejava mostrar-lhe qualquer coisa no porão, e saí à frente em direção ao vestíbulo; depois dobrei à direita e desci a escada. O porão se constituía do quarto e do banheiro de Fritz, de um quarto de depósito e de uma sala grande onde havia uma mesa de snooker. Nesta última, via-se não somente o costumeiro banco em relevo, mas também uma grande cadeira confortável, sobre uma plataforma, onde Wolfe se assenta quando lhe dá na veneta ver Saul Panzer e eu manejarmos os tacos, o que acontece uma vez por ano. Levei-o para essa sala, liguei o interruptor na parede a fim de acender a luz e falei.

— Seu novo escritório. Espero que goste. Pode ser que haja uma probabilidade num milhão de que eles consigam minar um quarto sem entrar nele, mas isso já é o suficiente. Sente-se. — Alcei o traseiro até colocá-lo sobre a borda da mesa de snooker, diante da cadeirona.

Ele olhou feio para mim.

— Você está-me arreliando ou isso é possível?

— E plausível. Eu não me arriscaria a deixar transpirar que o Inspetor Cramer lhe mandou lembranças. Comprou-me também um cartucho de leite, apertou-me a mão e desejou-me feliz Ano-Novo.

— Isso é piada.

— Não, senhor. Era Cramer.

— Naquele quarto de hotel?

— Sim, senhor.

Wolfe trepou na plataforma e resmungou:

— Fale.

Obedeci. Não me apressei, porque queria ter certeza de não pular uma única palavra. Se estivéssemos no escritório, ele se teria reclinado na cadeira e fechado os olhos; mas, como a cadeira não fora construída para isso, era obrigado a manter-se ereto. Nos últimos dez minutos manteve os lábios apertados, fosse pelo que ouvia, fosse pela cadeira em que estava sentado, provavelmente por ambos. Terminei descrevendo minha excursão panorâmica, e observei que um homem do outro lado da rua, talvez levando um cachorro a passeio, ou postado à janela de uma das duas casas fronteiras, poderia tê-los visto sair do número 63, tomar o carro na esquina e poderia até anotar o número da chapa. Havia um lampião na esquina.

Ele aspirou um alqueire de ar pelo nariz e expirou-o pela boca.

— Nunca imaginei — comentou — que o Sr. Cramer fosse um jumento tão chapado.

Assenti com a cabeça.

— De fato, é a impressão que se tem. Mas só depois que lhe contei é que ficou sabendo por que o FBI anda atrás de nós. Sabia apenas que haviámos pisado no calo deles e, como tivesse um homicídio que não conseguia imputar-lhes, decidiu passá-lo para nós. O senhor terá de confessar que devia sentir-se lisonjeado por ele havê-lo imaginado, ainda que remotamente, capaz de fazer o serviço, e veja só o trabalhão que teve. E, mesmo depois que lhe contei o caso da Sra. Bruner, não deixou de imaginá-lo. É possível que já não imagine. Admitamos que o senhor operasse o milagre e conseguisse imputar-lhes esse homicídio, de modo que eles não pudessem negá-lo. Isso não resolveria o problema de sua cliente. A única maneira de ajudá-la e fazer jus a seus honorários seria dizer-lhes: Ouçam, desisto desse homicídio, mas, em troca, terão de desistir da Sra. Bruner. Cramer não teria gostado disso; não são esses seus planos. Aliás, nem o senhor teria gostado. Fazer tratos com um assassino não é de seu feitio. Não é isso mesmo?

Wolfe grunhiu.

— Não gosto de seus pronomes.

— Muito bem, ponha aí "nós" e "nosso". Também não é de meu feitio.

Ele sacudiu a cabeça.

— Isso é espeto. — E franziu-se-lhe um dos cantos da boca.

Olhei para ele e perguntei:

— Por que diabo está sorrindo?

— Por causa do espeto. Da alternativa. Você mostrou, claramente, que seria inútil provar que o FBI matou o homem. Muito bem. Provemos, então, que não o matou.

— Melhor para nós. E depois?

— Veremos. — Virou uma das mãos para cima. — Archie. Não tínhamos nada. Os itens que o Sr. Cohen nos forneceu eram bobagens, que não encerravam sequer uma esperança malograda. Agora, graças ao Sr. Cramer, temos um caso, um homicídio não esclarecido, em que o FBI está profundamente envolvido, quer o tenha praticado, quer não. Um franco desafio à inteligência, a nossos talentos, se é que temos algum. Precisamos saber primeiro, com certeza, quem matou o homem. Você viu o rosto do Sr. Cramer e ouviu-lhe a voz. Ele está realmente convencido de que foi o FBI?

— Está.

— Com razão?

— Ele acha que sim. A solução, naturalmente, lhe agrada. Refere-se a eles como a esse grupelho excomungado e a essa turma de piranhas. Depois de saber que os três G-men estiveram na cena do crime no momento exato, provavelmente deixou de preocupar-se com outras possibilidades; mas é bom policial e, se existisse qualquer outra pista, tê-la-ia seguido, o que, aparentemente, não fez. De mais a mais, se Althaus já estava morto quando eles entraram, por que não deram parte da morte? Anonimamente, é claro, depois que saíram. Talvez preferissem calar, eu sei, mas a pergunta é procedente. Além disso, a bala. Não haveria muitos assassinos capazes de perceber que ela atravessara o corpo, batera na parede e caíra ao chão e, tendo-a encontrado, a levassem consigo. Para um velho profissional como Cramer isso seria um ponto importante. De modo que, em meu entender, pode-se dizer com razão.

Ele estava olhando para mim com o cenho franzido.

— Quem é o Wragg que o Sr. Cramer mencionou?

— Richard Wragg. O chefão dos G-men em Nova Iorque. Agente especial encarregado.

— Saberá ele, ou acredita, que Althaus foi morto por um de seus homens?

— Eu teria de perguntar-lho. Poderia saber que um deles o matou, mas não poderia saber que não o matou, pois não estava lá. Ele não é bobo e seria bobíssimo se acreditasse em tudo o que lhe dizem. Isso tem alguma importância?

— Talvez. Pode ter até muita importância.

— Meu palpite, então, é que ele sabe que um G-men o matou, ou isso lhe parece provável. A não ser assim quando Cramer foi falar com ele e pedir-lhe a colaboração, teria provavelmente aberto o jogo. O FBI gosta de obsequiar os policiais do lugar quando isso não lhe custa nada — prestígio, por exemplo — e Wragg saberia que Cramer não se importaria que eles tivessem ido à casa de Althaus sem serem convidados. Como o senhor sabe, os policiais também fazem essas coisas. De modo que Wragg até pode estar guardando a bala numa gaveta de sua mesa.

— Qual é sua opinião? Você concorda com o Sr. Cramer?

— Eis aí uma estranha pergunta, vinda de quem vem. Não dou valor a opiniões, nem o senhor. Talvez o senhorio tenha matado Althaus porque ele estava com o aluguel atrasado. Ou e ou e ou.

Wolfe fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— É isso o que devemos explorar. Você começará já, como lhe parecer melhor. Talvez procurando a família dele. O pai, David Althaus, se não me engano, faz vestidos para mulheres.

— Precisamente. Na Sétima Avenida. — Escorreguei de cima da mesa de snooker e pus-me em pé. — Visto que preferimos que ele não tenha sido morto por um G-men, imagino que não estejamos interessados no que coligiu sobre o FBI.

— Estamos interessados em tudo. — Fez uma careta. — E se descobrir alguém que eu precise ver, traga-o. — Careteou de novo e ajuntou: — Ou traga-a.

— Com prazer. Minha primeira parada será na Gazette, para examinar o arquivo, e Lon talvez tenha alguns fatos não publicados. E quanto a trazer gente para cá, a casa poderá ficar abarrotada. Como farei para introduzi-los e despachá-los?

— Use a porta. Estamos investigando um homicídio com o qual o FBI não tem relação alguma. Foi o que o Sr. Wragg disse ao Sr. Cramer. E, pela primeira vez, o Sr. Cramer não terá do que se queixar.

— Nesse caso, não me preocupo com campanas?

— Não.

— Ainda bem.

 

Meu relógio assinalava 4 e 35 quando entrei numa drogaria, perto do Grand Central, consultei a lista telefônica de Manhattan, rumei para uma cabina, fechei a porta e disquei um número.

Com o que eu descobrira nos arquivos da Gazette e ouvira de Lon Cohen, que não constava dos arquivos, enchera uma dúzia de páginas de meu canhenho. Tenho-o aqui, mas sua transcrição na íntegra exigiria também doze páginas impressas; por isso registrarei apenas o que o leitor precisa saber para compreender o que aconteceu. Aqui estão os nomes principais:

 

MORRIS ALTHAUS, falecido, 36 anos, 1,80 de altura, 80 de peso, trigueiro, bem parecido, apreciado pelos homens, mas muito mais apreciado pelas mulheres. Tivera um caso, durante dois anos, 1962 e 1963, com certa personalidade do teatro, cujo nome se omite. Ganhava, com seus escritos, cerca de dez mil dólares anuais, mas esse dinheiro fora, provavelmente, acrescentado pela mãe, à revelia do pai. Não se sabia a data em que ele e Marian Hinckley haviam decidido casar, mas, pelo visto, não tivera outra garota durante vários meses. Trezentas e oitenta e quatro páginas datilografadas de um romance não terminado haviam sido encontradas em seu apartamento. Ninguém na Gazette, incluindo Lon, tinha opinião formada sobre a identidade do assassino. Ninguém de lá soubera, antes do assassínio, que ele estivera reunindo material para um artigo sobre o FBI, e Lon achava que isso era uma vergonha para o jornalismo em geral e para o pessoal da Gazette em particular. Aparentemente, Althaus usara solas de borracha.

 

DAVID ALTHAUS, pai de Morris, que orçava pelos 60 anos, era sócio de Althaus & Greif, fabricantes da linha Peggy Pilgrim de vestidos e costumes (veja o jornal de sua localidade). David doera-se de que Morris, seu filho único, houvesse abandonado Peggy Pilgrim, e as relações entre ambos, nos últimos anos, estavam um tanto estremecidas.

 

IVANA (Sra. David) ALTHAUS não atendera nenhum repórter e negava-se a atendê-los. Sete semanas após a morte do filho, continuava a receber apenas uns poucos amigos íntimos.

 

MARIAN HINCKLEY, de 24 anos, pertencia, havia cerca de dois anos, à turma de pesquisas da revista Tick-Tock. Encontrei retratos dela no arquivo, pelos quais se compreendia facilmente por que decidira Althaus concentrar-se nela. Recusara-se também a falar a jornalistas, mas uma repórter do Post lhe acabara arrancando o suficiente para uma reportagem de duas páginas, que provocara um desaguisado na Gazette. Isso enfurecera tanto uma mulher da Gazette, que ela chegara a arquitetar uma teoria segundo a qual Marian Hinckley matara Althaus com o revólver dele porque ele a estava enganando, mas essa teoria se acabara desvanecendo.

 

TIMOTHY QUAYLE, quarentão, redator-chefe da Tick-Tock. Incluo-o na lista porque se indispusera e chegara a vias de fato com um jornalista do Daily News que tentara apertar Marian Hinckley no saguão do edifício da Tick-Tock. Um homem tão galante merece ser observado.

 

VICENT YARMACK, cinqüentão, outro redator-chefe da Tick-Tock. Incluído no rol, porque o artigo de Althaus sobre o FBI fora projeto seu.

 

Nada disso se me afigurava muito promissor. Pensei na personalidade do teatro, mas seu caso com Althaus terminara havia mais de um ano e, além disso, um par de experiências anteriores me ensinara que as atrizes são melhores quando vistas da quinta ou da sexta filas. Os dois redatores desligariam o telefone. O pai, provavelmente, não tinha nada. Marian Hinckley torceria o nariz para mim. O melhor palpite me pareceu a mãe, e foi o número de seu telefone que procurei na lista e entrei na cabina para discar.

Primeiro que tudo, naturalmente, urgia conseguir que viesse ao telefone. Ã mulher que atendeu ao aparelho, não dei nome algum; disse-lhe apenas, em tom oficial, que avisasse a Sra. Althaus de que eu me achava numa cabina telefônica, em companhia de um homem do FBI, e precisava falar com ela. O plano funcionou. Dois minutos depois outra voz se ouvia.

— Quem está falando? Um homem do FBI?

— Sra. Althaus?

— Sim.

— Meu nome é Archie Goodwin. Não sou do FBI. Trabalho para Nero Wolfe, o investigador particular. O homem do FBI não está aqui na cabina; está comigo porque me anda seguindo. Seguir-me-á até sua casa, mas não me incomodarei com isso se a senhora não se incomodar. Preciso vê-la; agora, se possível. Será...

— Não estou recebendo ninguém.

— Eu sei. A senhora talvez tenha ouvido falar em Nero Wolfe. Não ouviu?

— Ouvi.

— Um homem que ele conhece muito bem disse a ele que seu filho Morris foi morto por um agente do FBI. Por isso estou sendo seguido. E por isso preciso vê-la. Posso estar aí em dez minutos. Ouviu bem meu nome? Archie Goodwin.

Silêncio. Finalmente:

— O senhor sabe quem matou meu filho?

— O nome não. Não sei nada. Só sei o que contaram ao Sr. Wolfe. É o máximo que posso dizer ao telefone. Permite que faça uma sugestão? Achamos que Marian Hinckley deveria estar a par disso também. A senhora talvez pudesse telefonar a ela e pedir-lhe que fosse aí, e eu falaria a ambas. Seria possível?

— Possível seria. O senhor não é repórter de jornal? Isto não será algum truque?

— Não. E, se fosse, seria muito idiota, pois a senhora poderia mandar enxotar-me. Sou Archie Goodwin.

— Mas eu não... — Longa pausa. — Muito bem. O recepcionista lhe pedirá os documentos.

Eu disse-lhe que era natural e desliguei antes que ela mudasse de idéia.

Ao sair de casa, decidira ignorar completamente a questão da campana, mas não pude impedir que meus olhos, enquanto esquadrinhavam a rua à procura de um táxi vazio, reparassem nos veículos estacionados. Entretanto, depois que entrei no carro de praça, que subiu a Avenida Madison e embarafustou pela Park Avenue, conservei a vista voltada para a frente. A retaguarda que fosse para o inferno.

Era um prédio comum da década de oitenta em Park Avenue — com toldo, porteiro que sai correndo quando o táxi se detém, passadeira de borracha para não estragar o tapete do saguão — mas era de Classe A, porque o porteiro não fazia as vezes de recepcionista. Quando mostrei a licença de investigador particular a este último, que estava à minha espera, ele examinou-a detidamente, devolveu-ma, disse-me o número do apartamento — 10-B — e eu me dirigi ao elevador. No décimo andar fui recebido por uma mulher de uniforme, que pegou meu chapéu e o sobretudo, colocou-os num armário, e conduziu-me, através de um arco, a uma sala ainda maior que a de Lily Rowan, onde vinte pares podem dançar. Tenho um teste para gente com salas desse tamanho — não são os tapetes, nem a mobília, nem as cortinas, mas os quadros nas paredes. Se sei dizer o que significam, muito bem. Mas se apenas o presumo, cuidado; essa gente precisa ser vigiada. A sala passou lindamente pelo teste. Eu estava olhando para uma tela em que se viam três meninas sentadas sobre a relva debaixo de uma árvore, quando ouvi passos e voltei-me. Ela aproximou-se. Não me ofereceu a mão, mas disse, em voz baixa e suave:

— Sr. Goodwin? Sou Ivana Althaus.

E encaminhou-se para uma cadeira.

Mesmo sem o teste dos quadros eu a teria aprovado — o corpo miúdo e franzino, com seus ângulos honestos, o cabelo com seu honesto tom grisalho, os olhos com sua dúvida honesta. Ao virar a cadeira para sentar-me a sua frente, decidi ser o mais honesto possível. Ela estava dizendo que a Srta. Hinckley não demoraria, mas preferia não esperar. Se não lhe falhava a memória, ouvira-me dizer ao telefone que o filho dela fora morto por um agente do FBI. Era isso mesmo?

Ela cravou os olhos nos meus e eu lhe retribuí o olhar.

— Não rigorosamente — respondi-lhe. — Eu disse que alguém contou isso ao Sr. Wolfe. Devo explicar-lhe algumas coisas a respeito do Sr. Wolfe. Ele é... digamos... excêntrico, e não vê com bons olhos o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Ressente-se da atitude dele em relação a sua pessoa e seu trabalho e acha que ele interfere demais. Lê os jornais, sobretudo as notícias sobre homicídios e, há umas duas semanas, ocorreu-lhe a idéia de que a polícia e o promotor público não se mostravam muito interessados pelo assassínio de seu filho, e ao saber que seu filho andara coligindo material para um artigo sobre o FBI, suspeitou de que o desinteresse fosse deliberado. A ser assim, isso talvez lhe abrisse ensejo de dar quinau na polícia, e nada lhe seria mais agradável.

Os olhos dela continuavam pregados em mim, e ela mal piscava.

— Dessa maneira — prossegui —, como não tivéssemos nenhum caso nas mãos, ele iniciou algumas investigações. Uma coisa ficamos sabendo, um fato que não foi publicado, isto é: que no apartamento de seu filho a polícia nada encontrou sobre o FBI; nenhuma nota, nenhum documento. A senhora talvez soubesse disso.

Ela assentiu com a cabeça.— Eu sabia.

— Foi o que supus; por isso mencionei o fato. Soubemos ainda de outros fatos, que recebi ordens para não revelar. A senhora há de compreender. O Sr. Wolfe quer guardá-los, até reunir material suficiente pra entrar em ação. Ontem à tarde, porém, um homem lhe disse saber que um agente do FBI matou seu filho, e sustentou a afirmativa com algumas informações. Não lhe direi seu nome nem as informações que prestou, mas é um homem digno de fé e as informações são sólidas, embora não bastem para prová-lo. De sorte que o Sr. Wolfe deseja todas as informações possíveis das pessoas que tiveram contato mais chegado com seu filho — por exemplo, pessoas a quem ele tenha contado o que descobrira sobre o FBI. A senhora, naturalmente, é uma delas, como o é a Srta. Hinckley. E como o é o Sr. Yarmack. Tenho instruções para deixar bem claro que o Sr. Wolfe não está à procura de cliente nem de honorários. Está fazendo tudo isso por conta própria e não quer nem espera ser pago pelo que fizer.

Seus olhos continuavam parados em mim, mas seu espírito andava longe. Parecia estar remoendo alguma coisa.

— Não vejo razão... — disse ela, e parou.

Esperei um pouco e disse depois:

— Sim, Sra. Althaus?

— Não vejo razão para não lho dizer. Desconfiei que fosse o FBI desde que o Sr. Yarmack me contou que nada se encontrou sobre eles no apartamento. Foi o que disse o Sr. Yarmack e foi o que disse a Srta. Hinckley. Não sou uma mulher vingativa, Sr. Goodwin, mas ele era meu... — A voz ameaçava-lhe tremer, e ela se deteve. Pouco depois, prosseguiu. — Ele era meu filho. Ainda estou tentando aceitar que ele... que ele se foi. O senhor o conheceu? Encontraram-se algumas vezes?

— Não

— O senhor é detetive.

— Sou.

— Está esperando que eu o ajude a encontrar... a descobrir o culpado pela morte de meu filho. Muito bem, quero fazê-lo. Mas não creio que possa. Ele raramente me falava de seu trabalho. Não me lembro de tê-lo ouvido falar, uma única vez, sobre o FBI. A Srta. Hinckley perguntou-me isso, e o Sr. Yarmack também. Lamento muito não poder dizer-lhe nada a esse respeito, lamento-o sinceramente, porque, se eles o mataram, espero que sejam castigados. Está no Levítico: "Não te vingarás" — mas Aristóteles escreveu que a vingança é justa. Como vê, andei pensando nisso. Acredito...

Voltou a vista na direção do arco. Uma porta se fechara, ouviram-se vozes e uma moça apareceu. Quando ela se aproximou, eu me levantei, mas a Sra. Althaus continuou sentada. As fotografias dos arquivos da Gazette não lhe faziam justiça. Marian Hinckley era uma uva. Nem loira nem morena, tinha cabelos castanhos, olhos azuis e o andar direito e macio. Se viera de chapéu, deixara-o na entrada. Aproximou-se, beijou no rosto a Sra. Althaus e voltou-se para olhar-me quando a Sra. Althaus pronunciou meu nome. Ao ver seus olhos azuis fixos em mim, dei instruções a minha mente para que ignorasse todo e qualquer aspecto da situação que não dissesse respeito ao serviço. Quando a Sra. Althaus a convidou a sentar-se, fui buscar uma cadeira. Ao sentar-se, dirigiu-se à Sra. Althaus.

— Se bem a compreendi ao telefone... a senhora disse que Nero Wolfe sabe que foi o FBI? Foi isso?

— Acho que não entendi direito — respondeu a Sra. Althaus. — Não quer explicar a ela, Sr. Goodwin?

Descrevi-lhe o caso, os três pontos: por que Wolfe estava interessado, o que o levara a desconfiar, e como suas suspeitas haviam sido confirmadas pelo que um homem lhe contara na véspera. Expliquei que ele não sabia que havia sido o FBI e, evidentemente, não o poderia provar, mas tencionava tentar e por isso eu estava lá

A Srta. Hinckley enrugara a fronte.

— Mas não entendo... Ele contou à polícia o que o homem lhe contou?

— Sinto muito — respondi —, creio que não fui bastante claro. Na opinião dele, a polícia sabe que foi o FBI, ou suspeita disso. Por exemplo, uma coisa que ele quer saber das senhoras: a polícia tem-nas importunado? Voltando à carga, uma, duas, uma porção de vezes, fazendo sempre as mesmas perguntas? Sra. Althaus?

— Não.

— Srta. Hinckley?

— Não. Mas nós já dissemos a ele tudo o que sabíamos.

— Não importa. Na investigação de um homicídio, quando não encontra uma pista que lhe agrade, a polícia nunca deixa ninguém em paz e, desta vez, parece que deixou em paz todo mundo. Essa é uma das coisas que precisamos saber. A Sra. Althaus acaba de dizer-me que a senhorita e o Sr. Yarmack acreditam, ambos, que foi o FBI quem o matou. Está certo?

— Está. Está, sim. Porque não havia nada sobre o FBI no apartamento dele.

— E sabia o que poderia haver? O que ele já descobrira?

— Não. Morris nunca me falou sobre essas coisas.

— O Sr. Yarmack o saberá?

— Não sei. Acho que não.

— Quais são seus sentimentos a esse respeito, Srta. Hinckley? Quer que seja preso o assassino de Morris Althaus? Seja ele quem for? Preso e processado?

— É claro que quero. Por certo que quero.

Voltei-me para a Sra. Althaus.

— A senhora também. Pois sou capaz de apostar que ele nunca será descoberto se Nero Wolfe não o descobrir. A senhora talvez saiba que ele não sai de casa para falar com ninguém. Terá de ir à casa dele... a senhora, a Srta. Hinckley e, se possível, o Sr. Yarmack. Podem estar lá, hoje à noite, às nove horas?

— Bem... — Ela entrelaçara as mãos. — Eu não... De que adiantaria isso? Não há nada que eu possa contar-lhe.

— Pode haver. Muitas vezes acho que não há nada que eu possa contar-lhe e acabo verificando que estou errado. Ou, se ele chegar à conclusão de que nenhuma das senhoras pode contar-lhe coisa alguma, já isso ajudará. A senhora irá?

— Acho que...

Ela voltou-se para a moça que esperara ser sua nora.

— Irei — decidiu a Srta. Hinckley. — Irei, sim.

Tive vontade de abraçá-la com toda a força. Isso dizia respeito ao serviço. Perguntei-lhe:

— E poderia levar também o Sr. Yarmack?

— Não sei. Posso tentá-lo.

— Ótimo. — Levantei-me. — O endereço está na lista telefônica. — Em seguida, dirigindo-me à Sra. Althaus, ajuntei: — Eu já devia ter-lhe dito que, com toda certeza, o FBI está vigiando a casa e a senhora será vista. Se isso não lhe faz mossa, ao Sr. Wolfe também não, pois está perfeitamente de acordo em que se saiba que ele anda investigando o assassínio de seu filho. Nove horas?

Ela disse que sim e eu saí. Na entrada, a empregada apareceu e quis ficar segurando o casaco para mim; não querendo magoá-la, deixei que me ajudasse a vesti-lo. Em baixo, no saguão, pelo olhar que me dirigiu o porteiro ao abrir a porta, deduzi que o recepcionista lhe dissera quem eu era e, para não decepcioná-lo, fitei nele dois olhos cautos e penetrantes. Lá fora, alguns flocos de neve cabriolavam. No táxi, que se dirigia para o centro, tornei a ignorar a retaguarda. Calculei que, se me estivessem seguindo, o que era probabilíssimo, talvez um centavo de cada dez mil dólares do imposto de renda de Wolfe e um milésimo de cada dez mil dólares meu se destinavam a pagar funcionários do governo para me fazerem companhia sem serem convidados, o que não parecia direito.

Wolfe acabara de descer do viveiro depois da sessão das quatro às seis com as orquídeas e achava-se refestelado na poltrona com O Tesouro de Nossa Língua. Ao invés de entrar e guiar para minha mesa, como sempre o faço, detive-me à porta do escritório e, quando ele ergueu os olhos, apontei um dedo diretamente para baixo, enfaticamente, voltei-me, dirigi-me à escada que levava ao porão e desci. Ligando o interruptor de luz, empoleirei-me na mesa de snooker. Dois minutos. Três. Quatro, e ouvi passos. Ele assomou à porta, olhou feio para mim e declarou:

— Não tolerarei isto.

Ergui uma sobrancelha.

— Posso escrevê-lo.

— Pfui. Dois pontos. Primeiro, o risco é diminuto. Segundo, podemos aproveitá-lo. Enquanto fala, você pode inserir comentários ou declarações à vontade, que eu ignorarei, bastando, para isso, que levante o dedo. Farei o mesmo. Sem qualquer alusão, naturalmente, ao Sr. Cramer; esse risco não podemos correr; e sempre mantendo nossa conclusão de que o FBI matou aquele homem, e que pretendemos demostrá-lo.

— Mas, na verdade, não o pretendemos.

— É claro que não.

Ele voltou-se e saiu.

De modo que eu fora taboqueado. Sua casa, seu escritório, sua cadeira. Mas, enquanto galgava os degraus, tive de reconhecer que a idéia não era má. Se eles tivessem, realmente, um ouvido eletrônico no escritório, no que eu não acreditava, poderia ser até uma esplêndida idéia. Quando entrei na sala, ele já estava de volta a sua mesa; fui para a minha e, ao sentar-me, ele perguntou:

— E então?

Deveria ter levantado um dedo. Nunca perde tempo para dizer "e então?" quando volto de alguma incumbência; limita-se a depor o livro, ou o copo de cerveja e espera que eu fale.

Ergui um dedo.

— Seu palpite de que eles poderiam ter atinado com a teoria do FBI na Gazette, e estar trabalhando nela, não foi lá grande coisa. — Abaixei o dedo. — Lon Cohen não a mencionou, de modo que também não falei nisso. Eles não têm teoria alguma. Deixou-me consultar os arquivos, conversamos sobre o assunto, e enchi uma dúzia de páginas com nomes e pormenores diversos, alguns dos quais talvez possam ser úteis. — Ergui o dedo. —

Datilografarei tudo ao preço normal de cinco dólares por página. — Abaixei o dedo. — Depois telefonei para a Sra. David Althaus de uma cabina telefônica; ela concordou em receber-me, e lá fui eu. Park Avenue, na década de oitenta, apartamento no décimo andar, todos os ornatos que seriam de esperar. Quadros em ordem. Não a descreverei, porque o senhor vai vê-la. Cita o Levítico e Aristóteles. — Dedo erguido. — Eu quis citar Platão, mas não consegui encaixá-lo. — Dedo para baixo. — Eu lhe pedira, pelo telefone, que convidasse Marian Hinckley a ir também, e ela me disse que a moça não tardaria. Ajuntou que depreendera, da nossa conversa pelo telefone, que o filho fora morto por um agente do FBI e perguntou se era isso mesmo. Acho que, a partir desse ponto, será preferível que eu lhe repita a conversa palavra por palavra.

E foi o que fiz, de fio a pavio, pois sabia não ter dito nada que não quiséssemos que chegasse aos ouvidos do FBI. Inclinado para trás, com os olhos cerrados, ele não poderia ver meu dedo erguido, de sorte que não pude fazer nenhuma inserção. Quando terminei, grunhiu, descerrou os olhos e disse:

— Já é bem ruim quando se sabe que há uma agulha no palheiro. Mas quando nem se sabe...

A campainha da porta retiniu. Indo ao vestíbulo para dar uma espiada, lobriguei um G-man na varanda. Não que o reconhecesse, mas não poderia deixar de sê-lo — a idade certa, os ombros largos, a cara máscula, de queixo firme, o sobretudo bem talhado, cinza-escuro. Abri os cinco centímetros de porta permitidos pela corrente do ferrolho e perguntei:

— O senhor deseja...?

Ele explodiu, através da brecha:

— Meu nome é Quayle e quero ver Nero Wolfe.

— Soletre, por favor!

— Timothy Quayle! Q-U-A-Y-L-E!

— O Sr. Wolfe está ocupado. Vou ver.

Cheguei até a porta do escritório.

— Um dos nomes de meu caderno de apontamentos. Timothy Quayle, redator-chefe da revista Tick-Tock. Tipo heróico. Bateu num repórter que estava aborrecendo Marian Hinckley. Ela lhe deve ter telefonado e falado no senhor logo depois que saí.

— Não — grunhiu ele.

— Falta meia hora para o jantar. O senhor está no meio de um capítulo?

Ele fitou-me, enfezado.

— Traga-o.

Voltei ao vestíbulo, corri o ferrolho, abri a porta e ele entrou. Enquanto eu fechava a porta, disse-me que eu era Archie Goodwin; concordei com ele, tomei-lhe o sobretudo e o chapéu e conduzi-o ao escritório. Depois de dar três passos pela sala, parou para olhar a sua volta, assestou o olhar para Wolfe e perguntou:

— Já lhe disseram meu nome?

Wolfe fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Sr. Quayle.

Ele aproximou-se da escrivaninha.

— Sou amigo da Srta. Marian Hinckley. Quero saber que espécie de jogo o senhor está jogando. Exijo uma explicação.

— Bah — disse Wolfe.

— Não diga "bah" para mim. O que o senhor pretende?

— Isso é ridículo — tornou Wolfe. — Gosto de olhos ao nível dos meus. Se veio aqui só para dizer asneiras, o Sr. Goodwin o porá para fora. Se quiser sentar-se nessa cadeira, mude de tom, e dê-me uma razão aceitável para que eu lhe forneça explicações. Eu talvez o ouça.

Quayle abriu a boca e tornou a fechá-la. Virou a cabeça para olhar-me, a mim, que continuava em pé, aparentemente para ver se eu era homem bastante. Ter-me-ia agradado igualmente se ele houvesse decidido que não, porque depois daquela noite e daquele dia eu teria recebido com prazer qualquer pretexto para torcer outro braço. Mas ele não deve ter chegado a uma conclusão muito satisfatória, pois se dirigiu à cadeira de couro vermelho, sentou-se e olhou, com má sombra, para Wolfe.

— Eu o conheço — disse ele. O tom era menos irritado, mas continuava de poucos amigos. — Sei como opera. Se pretende fisgar a Sra. Althaus, para variar, o problema é dela, mas não vai meter nisso a Srta. Hinckley. Não pretendo...

— Archie — ordenou, áspero, Wolfe —, ponha-o na rua. Fritz abrirá a porta.

E premiu um botão.

Aproximei-me até a distância de um braço da cadeira de couro vermelho e fiquei contemplando o herói. Fritz apareceu, e Wolfe recomendou-lhe que mantivesse a porta da frente aberta, e ele saiu.

A situação de Quayle era má. Estando eu em pé diante dele, poderia, se fizesse menção de erguer-se, agarrá-lo como bem entendesse enquanto ele se levantava. Mas minha situação também não era boa. Tirar um homem de 82 quilos de uma poltrona estofada é um problema, e ele tinha suficiente bom senso para continuar sentado, com o corpo inclinado para trás. Mas os pés não estavam suficientemente protegidos. Fiz menção de levar as mãos aos ombros dele, depois mergulhei, agarrei-lhe os tornozelos, dei-lhes um empuxão e saí andando; num abrir e fechar de olhos ele estava no vestíbulo, de costas, antes que pudesse sequer tentar um contra-ataque; depois, o tonto procurou virar de bruços para fazer alavanca das mãos. Chegado à porta da frente, brequei, no momento em que Fritz lhe segurava os braços e os mantinha abaixados.

— Há neve na varanda — disse eu. — Se eu o deixar levantar-se e lhe der o sobretudo e o chapéu, vá andando. Conheço mais truques do que você. Está certo?

— Está. Seu maldito macaco (goon).

— Goodwin. Você se esqueceu do D, do W e do I, mas não vamos brigar por causa disso. Pronto, Fritz.

Soltando-o, ele ergueu-se em pé, com alguma dificuldade. Fritz foi buscar-lhe o casaco no cabide, mas ele disse:

— Quero voltar lá. Vou perguntar uma coisa a ele.

— Não. Você tem maus modos. Teremos de botá-lo na rua outra vez.

— Não, não terão. Quero perguntar-lhe uma coisa.

— Polidamente. Com muito tato.

— É.

Fechei a porta.

— Dou-lhe dois minutos. Não se sente, não levante a voz e não use palavras como "macaco". Vá na frente, Fritz.

Tornamos a atravessar o vestíbulo, em fila indiana, Fritz na frente, eu como cerra-fila. Wolfe, que tem bom ouvido e ouve o que se diz no vestíbulo, encarou-o friamente quando ele se deteve à beira da mesa, cercado por Fritz e por mim.

— O senhor queria uma razão aceitável — disse ele a Wolfe. — Como já lhe expliquei, sou amigo da Srta. Hinckley. Tão bom amigo, que ela me telefonou para contar-me a visita de Goodwin e o que ele disse a ela e à Sra. Althaus. Aconselhei-a a não vir até aqui esta noite, mas ela virá. Às nove horas?

— É.

— Então eu vou... — Deteve-se. O jeito não era aquele. Foi difícil, mas consegui-o. — Quero estar aqui. O senhor me... Posso vir?

— Se se controlar.

— Eu me controlarei.

— Acabou-se o prazo — anunciei, e travei-lhe do braço para levá-lo embora.

 

Dez minutos depois das nove horas da noite daquele longo dia fui à cozinha. Wolfe estava na mesa do centro, ao lado de Fritz, e ambos discutiam o número de bagas de zimbro que deviam ser colocadas no escabeche de costeletas de veado. Sabendo que aquilo poderia continuar indefinidamente, comuniquei:

— Sinto muito, mas estão todos aí, e mais alguns. David Althaus, o pai, também veio. É o careca, à sua direita, na última fileira. E veio ainda um advogado, chamado Bernard Fromm, à sua esquerda, na última fileira. De cabeça comprida e olhos duros.

Wolfe carranqueou.

— Não o quero.

— É claro que não. Digo isso a ele?

— Sebo! — Voltou-se para Fritz. — Muito bem, continue. Eu digo três, mas faça como quiser. Se puser cinco, não terei nem de prová-lo; o cheiro mo dirá. Com quatro talvez seja comível.

Fez-me um sinal com a cabeça e eu dirigi-me ao escritório, seguido por ele.

Contornou a poltrona de couro vermelho, em que se assentara a Sra. Althaus, enquanto eu pronunciava os nomes. Havia duas fileiras de cadeiras amarelas, em que se haviam instalado Vicent Yarmack, Marian Hinckley e Timothy Quayle na frente, e David Althaus e Bernard Fromm atrás. Essa disposição colocava Quayle mais próximo de mim, o que me parecera aconselhável. Wolfe sentou-se, circunvagou os olhos pelos circunstantes, e falou:

— Devo dizer-lhes que, através de um mecanismo eletrônico de escuta, pode ser que os agentes do Departamento Federal de Investigações ouçam tudo o que se disser nesta sala. O Sr. Goodwin e eu achamos que isso é pouco provável, embora perfeitamente possível. Sou de opinião que os senhores...

— E por que fariam isso? — perguntou Fromm, o advogado. Tom judicial, de inquirição.

— O senhor o saberá, Sr. Fromm, a seu tempo. Entendo que os senhores deveriam estar cientes dessa possibilidade, ainda que remota. Rogo-lhes agora que façam uma fineza. Vou falar um pouco. Só posso esperar que colaborem com meu interesse se puder demonstrar que seus interesses coincidem com o meu. Os senhores são o pai, a mãe, a noiva e os companheiros de um homem assassinado há sete semanas, cujo assassino ainda não foi descoberto. Pretendo descobri-lo. Pretendo demonstrar que Morris Althaus foi assassinado por um agente do Departamento Federal de Investigações. Essa intenção...

Ouviram-se duas perguntas simultâneas. Yarmack perguntou:

— Como?

E Fromm perguntou:

— Por quê?

Wolfe fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— Essa intenção se apóia em duas pernas. Encarreguei-me, recentemente, de um serviço que me obrigou a fazer averiguações a respeito de certas atividades do FBI, e eles retaliaram de pronto, tentando cassar-me a licença de investigador particular. Pode ser que o consigam; entretanto, ainda que o façam, posso, como cidadão particular, levar a cabo uma investigação em meu próprio interesse, e será, sem dúvida, de minha conveniência desacreditar-lhes a pretensão de serem campeões sem jaça da lei e da justiça. Essa é uma perna. A outra perna é meu velho ressentimento contra a Turma de Homicídios do Departamento de Polícia de Nova Iorque. São pretenciosos demais. Em muitas ocasiões estorvaram minhas legítimas atividades. Ameaçaram, mais de uma vez, processar-me por sonegação de provas e obstrução da ação da justiça. Ser-me-ia sumamente grato poder retribuir-lhes a gentileza, demonstrando que sabem ou suspeitam que o FBI está implicado num homicídio e eles estão obstruindo a ação da justiça. Isso também serviria de...

— O senhor está falando muita coisa — atalhou Fromm. — Pode provar tudo isso?

— Por inferência, posso. A polícia e o promotor público sabem que Morris Althaus andara reunindo material para um artigo sobre o FBI, mas não encontraram esse material no apartamento. Sr. Yarmack: o senhor, se não me engano, estava envolvido no projeto?

Vincent Yarmack correspondia melhor à minha idéia de redator-chefe do que Timothy Quayle — ombros arredondados e curvos, boca pequena e apertada, e olhos tão pálidos que a gente precisava adivinhar que estavam lá, atrás dos óculos de aros pretos.

— Estava — respondeu ele, com voz que mais parecia um guincho.

— E o Sr. Althaus havia coligido algum material?

— Com certeza.

— Ele o entregara ao senhor, ou ainda o conservava em seu poder?

— Pensei que o conservasse em seu poder. Mas fiquei sabendo, pela polícia, que não havia nada sobre o FBI no apartamento.

— E não tirou disso inferência alguma?

— Bem... uma inferência era óbvia, a saber, que alguém o tirara dali. Não era provável que Morris o tivesse guardado em outro lugar.

— A Sra. Althaus disse, hoje à tarde, ao Sr. Goodwin que o senhor desconfiava de que fosse o FBI. Está certo?

Yarmack virou o rosto, a fim de olhar para a Sra. Althaus, e tornou a encarar Wolfe.

— Posso ter dado a ela essa impressão numa conversa particular. Mas esta conversa agora não é muito particular, segundo suas próprias palavras.

Wolfe grunhiu.

— Eu disse que a escuta é possível, embora não fosse constatada. Se o senhor sacou essa inferência, é lógico que a polícia a sacasse também. — Moveram-se-lhe os olhos. — Não é assim, Sr. Fromm?

O advogado assentiu com a cabeça.

— Presumivelmente. Mas isso não justifica a conclusão de que eles estejam obstruindo a ação da justiça.

— A conclusão, não. Mas a presunção, sim. E se não há obstrução há, pelo menos, omissão. Como advogado militante, o senhor há de ter reparado na tenacidade da polícia e do promotor público em todos os casos não resolvidos de homicídio. Ora, se eles...

— Não advogo no crime.

— Pfui. Mas há de ter-se advertido do que qualquer criança sabe. Ora, se eles não estivessem satisfeitos com a suposição de que o FBI é responsável pelo desaparecimento do material e, portanto, está provavelmente envolvido no assassínio, estariam, sem dúvida, explorando outras possibilidades — por exemplo, o Sr. Yarmack. Estão, Sr. Yarmack? Estão-no apoquentando?

O editor arregalou os olhos para ele.

— Apoquentando-me? A mim? A troco de quê?

— A troco da possibilidade de que o senhor tivesse matado o Sr. Althaus e levado o material. Não se exalte. Muitos homicídios já têm sugerido teorias menos plausíveis. Ele lhe referiu um descobrimento que fizera e mostrou-lhe as provas que conseguira, as quais, talvez sem que ele o soubesse, constituíam ameaça mortal para o senhor, e o senhor deu cabo dele e das provas. Uma teoria excelente. Sem dúvida alguma...

— Tolice. Rematada tolice.

— Para o senhor, talvez. Mas, atarantados, às voltas com um caso não solucionado de homicídio, eles estariam, sem dúvida, atrás do senhor; mas não estão. Não quero acusá-lo de assassínio, pelo menos por enquanto; quero mostrar apenas que a polícia se omite ou negligencia seus deveres. A menos que o senhor tenha apresentado um álibi indestrutível para a noite do dia vinte de novembro. Apresentou-o?

— Não. Indestrutível, não.

— E o senhor, Sr. Quayle?

— Bolas — disse Quayle. Voltavam os maus modos.

Wolfe encarou com ele.

— O senhor está aqui por condescendência minha. Queria saber o que tenciono fazer. É o que estou esclarecendo. Movido unicamente por meu interesse particular, espero revelar a implicação do FBI num homicídio e o malogro da polícia em cumprir sua obrigação. Nessa tentativa, devo guardar-me do perigo de ser obstado pelas circunstâncias. Ontem recebi, em caráter confidencial, uma informação que inculca vigorosamente a culpa do FBI, embora não se trate de uma informação concludente. Também não ignoro a possibilidade de que a aparente inação da polícia seja apenas tática, e que tanto ela quanto o FBI conheçam a identidade do assassino e estejam apenas esperando dispor de uma prova decisiva. Preciso certificar-me plenamente desse assunto antes de fazer qualquer coisa. O senhor pode ajudar-me; mas se, em lugar disso, prefere insultar-me, não o quero aqui. O Sr. Goodwin já o pôs para fora uma vez e poderá repetir a dose, se for necessário. Seria até mais eficiente diante de uma audiência; ele aprecia tanto as audiências quanto eu. Se prefere ficar, eu fiz-lhe uma pergunta.

Quayle apertava os maxilares. O coitado se achava numa situação embaraçosa. Ao lado dele, tão perto que lhe bastaria estender o braço para tocá-la com a mão, sentara-se a jovem pela qual e diante da qual se engalfinhara com um repórter abelhudo e, agora, estava sendo acuado por um abelhudo detetive. Esperei que virasse a cabeça, ou para ela, a fim de mostrar-lhe que, por amor dela, era capaz de engolir o amor-próprio, ou para mim, a fim de mostrar-me que eu, na realidade, não constituía problema. Entretanto, permaneceu com a vista cravada em Wolfe.

— Eu lhe disse que me controlaria — fez ele. — Muito bem. Não tenho um álibi indestrutível para a noite de vinte de novembro. Isso responde a sua pergunta; pois, agora, faço outra. Como espera o senhor que a Srta. Hinckley o ajude?

Wolfe anuiu com a cabeça.

— A pergunta é razoada e relevante. Srta. Hinckley, está, manifestamente, disposta a ajudar, pois, do contrário, não estaria aqui. Sugeri uma teoria para explicar a culpa do Sr. Yarmack; agora sugiro outra, para explicar a do Sr. Quayle. E muito simples. Milhões de homens já mataram um semelhante por causa de uma mulher — para mortificá-la, para desgraçá-la, para possuí-la. Se o Sr. Quayle matou seu noivo, a senhorita quer vê-lo desmascarado?

Ela ergueu as mãos e deixou-as cair.

— Isso é ridículo!

— Absolutamente. Para a família e os amigos de quase todos os assassinos a imputação parece ridícula, mas isso não a faz ridícula. Não estou imputando a culpa ao Sr. Quayle; limito-me a examinar as possibilidades. Tem algum motivo para supor que seu noivado com o Sr. Althaus o tenha desagradado?

— O senhor não vai esperar que eu responda a isto.

— Pois eu responderei — acudiu Quayle. — Sim. Desagradou-me.

— Deveras? Houve alguma transgressão de direitos?

— Não entendo de "direitos". Eu pedira a Srta. Hinckley em casamento. Eu me fiava... eu esperava que ela aceitasse.

— E ela aceitou?

O advogado interveio.

— Devagar, Wolfe. O senhor falou em transgressão. A meu ver, quem está transgredindo é o senhor. Aqui estou a pedido do Sr. Althaus, meu cliente, e não tenho autorização para falar em nome da Srta. Hinckley ou do Sr. Quayle, mas acho que o senhor está exorbitando. Conheço-lhe a reputação. Sei que não é picareta, e não porei em dúvida sua boa-fé a menos que tenha razões para isso, mas como advogado, corre-me obrigação de dizer que o senhor está se excedendo. O Sr. Althaus, sua esposa e eu, seu advogado, queremos, naturalmente que se faça justiça. Mas se o senhor recebeu uma informação que atribui vigorosamente a culpa ao FBI, por que esta inquisição?

— Creio que o deixei bem claro.

— Como justificação de posição, sim, ou como apologia de prudência. Mas não como pretexto para inquisição de pessoas. Daqui a pouco estará perguntando se Morris me surpreendeu praticando algum crime grave.

— Surpreendeu-o?

— Recuso-me a desempenhar um papel numa farsa. Repito que está exorbitando.

— Nesse caso, não insisto, mas não abrirei mão da prudência. Far-lhes-ei uma pergunta, uma pergunta de rotina em qualquer caso de morte com violência: se o FBI não matou Morris Althaus, quem o matou? Façam de conta que o FBI está inteiramente livre de suspeitas e que eu sou o promotor público. Quem tinha razões para querer morto esse homem? Quem o odiava, quem o temia, ou quem lucraria alguma coisa com sua morte? Pode sugerir-me um nome?

— Não. Pensei no assunto, naturalmente. Não posso.

Os olhos de Wolfe correram para a direita e para a esquerda.

— Algum dos presentes pode fazê-lo?

Dois menearam a cabeça. Ninguém pronunciou palavra.

— A pergunta é rotineira — prosseguiu Wolfe — mas nem sempre fútil. Peço-lhes que reflitam. Sem se preocuparem com a possibilidade de calúnias; os senhores não serão citados. Morris Althaus, sem dúvida alguma, não poderia ter vivido trinta e seis anos sem magoar ninguém. Magoou o pai. Magoou o Sr. Quayle. — Olhou para Yarmack. — Os artigos que escreveu para sua revista eram inócuos?

— Não — replicou o redator-chefe. — Mas, se feriram tanto algumas pessoas que as levassem a assassiná-lo, não creio que tivessem esperado até agora.

— Uma delas teria de esperar — sobreveio Quayle. — Estava na cadeia.

Wolfe mudou de redator-chefe.

— Por quê?

— Fraude. Um negócio escuso de imóveis. Morris escreveu um artigo que intitulamos "A Picaretagem Imobiliária"; daí nasceu uma investigação e um dos implicados foi para trás das grades. Sentenciado a dois anos. Já se passaram os dois anos, ou pouco menos; mas, descontado o tempo por bom comportamento, ele deve estar na rua. Mas não é assassino, não teria coragem de matar ninguém. Vi-o umas duas vezes, quando tentava persuadir-nos a omitir-lhe o nome. Não passa de um malandrinho à-toa.

— Como se chama?

— Não s... Sei, sim. Isso tem importância? Odell. Qualquer coisa Odell. Frank, isso mesmo. Frank Odell.

— Não compreendo... — principiou a Sra. Althaus, mas a voz lhe soou rouca, e ela limpou a garganta. Tinha os olhos fitos em Wolfe. — Não compreendo nada disto. Se foi o FBI, por que fazer todas estas perguntas? Por que não pergunta ao Sr. Yarmack o que Morris havia encontrado sobre o FBI? Já lhe perguntei, e ele me disse que não sabe.

— Não sei — confirmou Yarmack.

Wolfe acenou afirmativamente com a cabeça.

— Era o que eu imaginava. Do contrário, o senhor não estaria sendo apoquentado apenas pela polícia. Ele não lhe contara nada sobre seus descobrimentos e conjeturas?

— Não. Aliás, nunca o fazia. Esperava até completar o primeiro rascunho. Era assim que trabalhava sempre.

Wolfe grunhiu.

— Minha senhora — exclamou, dirigindo-se à Sra. Althaus —, como eu já disse, preciso inteirar-me dos fatos. Eu faria mil perguntas — a noite inteira, a semana inteira. O Departamento Federal de Investigações é um inimigo formidável, entrincheirado no poder e no privilégio. Não é fanfarronada, mas simples declaração de fato afirmar que nenhum indivíduo, nenhum grupo, na América, se encarregaria da tarefa a que me cometi. Se um agente do FBI matou seu filho, não haverá a menor probabilidade de que seja processado, a menos que eu tome a iniciativa. Por conseguinte, a escolha dos métodos é inteiramente minha. Isso é exorbitar, Sr. Fromm?

— Não — admitiu o advogado. — Seria fugir à realidade não concordar com o senhor a respeito do FBI. Quando fiquei sabendo que nada se encontrara no apartamento, fiz a dedução óbvia, e disse à Sra. Althaus que julgava muito pouco provável viesse a descobrir-se o criminoso, um dia. O FBI é intocável. Goodwin contou à Sra. Althaus que um homem ontem lhe afirmou saber que um agente do FBI matou o filho dela e corroborou a afirmativa com uma informação; vim aqui com a intenção de exigir o nome do homem e a informação, mas o senhor tem razão. O método de ação fica a seu cargo. Creio que não poderá fazer nada, mas desejo-lhe boa sorte e quisera pode ajudar.

— Eu também. — Wolfe empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — E possível, se esta conversação foi ouvida fora daqui, que um ou mais dentre os senhores sejam, realmente, aponquentados. Nesse caso, eu gostaria de ficar sabendo. E gostaria de inteirar-me de qualquer fato que chegasse a seu conhecimento, por mais trivial que fosse. Tenha sido ouvida, ou não, nossa conversa, esta casa está sob vigilância, de modo que o FBI sabe agora que estou interessado no assassínio de Morris Althaus. Creio que a polícia o ignora, e peço-lhes que não lhe digam nada; isso só serviria para dificultar as coisas. Rogo-lhes que me desculpem por não lhes haver oferecido nada para tomarem; eu estava preocupado. Sr. Althaus, o senhor até agora não falou. Quer dizer alguma coisa?

— Não — respondeu David Althaus. — E foi essa a única palavra que pronunciou durante todo o tempo.

— Então, boa noite — disse Wolfe, afastando-se.

Quando eles se ergueram das respectivas cadeiras, pus-me em pé. Os cavalheiros poderiam ajudar as damas a vestirem os casacos; não precisavam de mim. Eu deveria estar incrivelmente deprimido, pois só me ocorreu que seria um prazer ficar segurando o casaco para a Srta. Hinckley quando ouvi abrir-se a porta da frente e, então, já era tarde.

Permaneci no lugar até que a ouvi fechar-se e fui aferrolhá-la. O grupo estava na calçada.

Eu não ouvira o elevador, de modo que Wolfe devia estar na cozinha, e para lá me dirigi. Mas não estava. Nem Fritz. Teria ele, efetivamente, subido a escada? Por quê? A outra alternativa era o porão. Optei por ela e, enquanto descia, ouvi-lhe a voz. Vinha pela porta aberta do quarto de Fritz, e para lá me encaminhei.

Fritz poderia ter ficado com um quarto no primeiro andar, mas prefere o porão. Seu antro tem o tamanho do escritório e da sala da frente reunidos, mas, com o passar dos anos, foi ficando atravancado. Tem mesas com pilhas de revistas, bustos de Escoffier e Brillat-Savarin sobre peanhas, cardápios emoldurados nas paredes, uma cama enorme, cinco cadeiras, prateleiras de livros (ele tem 289 livros de cozinha). Tem a cabeça de um urso selvagem que matou nos Vosges, um aparelho combinado de televisão e vitrola estereofónica, duas grandes caixas de antigos petrechos culinários, um dos quais crê que pertenceu ao cozinheiro de Júlio César, e assim por diante.

Wolfe sentara-se na cadeira maior, ao pé da mesa, com uma garrafa de cerveja e um copo. Sentado diante dele, Fritz levantou-se quando entrei, mas eu arrastei outra cadeira.

— É pena — observei — que o elevador não venha até aqui. Talvez possamos dar um jeito.

Wolfe tomou um gole de cerveja, depôs o copo sobre a mesa e lambeu os beiços.

— Quero saber — disse ele — a respeito dessas abominações eletrônicas. Poderíamos ser ouvidos daqui?

— Não sei. Li a respeito de um troço que se afirma capaz de captar vozes a meia milha de distância, mas não sei qual é a área que cobre, como também não sei se paredes e pisos são obstruções para ele. Poderia haver itens, a cujo respeito não li, que lhe permitissem abranger uma casa toda. Se ainda não há, logo haverá. As pessoas terão de falar com as mãos.

Olhou feio para mim. E como eu não tivesse feito nada, olhei feio para ele.

— Você há de compreender — disse ele — que nunca foi tão imperioso o sigilo.

— Compreendo. Deus sabe o quanto o compreendo.

— Sussuros seriam ouvidos?

— Não. Uma probabilidade num bilhão. Nenhuma.

— Então vamos sussurar.

— Isso o deixaria complexado. Se Fritz ligar a televisão, bem alto, e nós nos sentarmos perto um do outro, e não berrarmos, será o bastante.

— Poderíamos fazer o mesmo no escritório.

— Poderíamos, sim, senhor.

— E por que, diabo, não o sugeriu?

Acenei com a cabeça.

— O senhor está preocupado. Eu também. Surpreende-me que tenha pensado nisso agora. Vamos experimentá-lo aqui. No escritório eu teria de debruçar-me sobre sua mesa.

Ele voltou-se.

— Por favor, Fritz. Não importa o quê.

Fritz endereçou-se ao aparelho, girou um botão e, logo depois, uma mulher dizia a um homem que lamentava tê-lo conhecido. Ele perguntou (Fritz, não o homem) se estava suficientemente alto, e eu disse-lhe que aumentasse um pouquinho mais o volume e aproximei minha cadeira da de Wolfe. Este inclinou-se para a frente e grunhiu, a meio metro de meu ouvido:

— Vamos preparar-nos para uma contingência. Você sabe se os Dez Paladinos da Aristologia ainda existem?

Meus ombros subiram e desceram. Só um retardado mental ou um gênio pode fazer uma pergunta completamente fora de propósito.

— Não — respondi. — Isso foi há sete anos. Provavelmente ainda existem. Posso telefonar para Lewis Hewitt.

— Não daqui.

— Irei a uma cabine. Já?

— Já. Se ele disser que o grupo ainda... Não. O que quer que diga sobre os Paladinos da Aristologia, pergunte-lhe se posso procurá-lo amanhã cedo para consultá-lo sobre um assunto particular urgente. Se me convidar para almoçar, como naturalmente o fará, aceite.

— Ele passa em Long Island o ano inteiro.

— Eu sei.

— Teremos, provavelmente, de despistar a campana.

— Não será preciso. Se me virem sair à procura dele, tanto melhor.

— Então, por que não chamá-lo daqui?

— Porque quero, faço até questão, que minha visita a ele seja conhecida, mas não quero que saibam que me convidei.

— E se não puder ser amanhã?

— Que seja o mais breve possível.

Fui. Enquanto subia para o vestíbulo, apanhava o sobretudo e o chapéu e saía rumo da Nona Avenida, refleti que duas normas seriam violadas por ele no mesmo dia: cancelar o programa da manhã e sair de casa a serviço — e por quê? Os Dez Paladinos da Aristologia eram um grupo de dez cidadãos abastados que, como eles próprios se definiam, "buscavam o ideal da perfeição no comer e no beber". Sete anos atrás, em casa de um deles, Benjamin Schriver, o magnata da navegação, tinham-se encontrado para buscar seu ideal comendo e bebendo, e Lewis Hewitt, um dos membros, obtivera de Wolfe que Fritz cozinhasse o jantar. Claro está que Wolfe e eu tínhamos sido convidados e tínhamos ido, e o sujeito que se sentara entre nós à mesa ganhara uma dose de arsênico com o primeiro prato, caviar com blinis e creme de chantilly, e morrera. Uma festa e tanto. Isso não afetara as relações entre Wolfe e Lewis Hewitt, que ainda se sentia grato por um favor que Wolfe lhe prestara havia muito tempo; possuía um orquidário de trinta metros de comprimento em sua propriedade de Long Island, e ia jantar à velha casa de pedra marrom duas vezes por ano.

Ele demorou algum tempo para vir ao telefone, porque houve necessidade de passar a chamada para o orquidário, ou para os estábulos, ou talvez para o cambrone mas teve grande prazer em ouvir minha voz; foi o que ele disse. Quando lhe contei que Wolfe gostaria de visitá-lo, respondeu que ficaria encantado e que, naturalmente, almoçaríamos com ele, ajuntando que gostaria de fazer uma pergunta a Wolfe a respeito do almoço.

— Acho que a pergunta terá de ser feita a mim — repliquei. — Estou falando de uma cabina numa drogaria. Ainda que mal lhe pergunte, pode haver aí alguém numa extensão?

— Ué... ué, acho que não. Não haveria motivo...

— Muito bem. Estou falando de uma cabina porque nosso telefone está censurado e o Sr. Wolfe não quer que se saiba que ele teve a idéia de telefonar-lhe. Por isso mesmo, não nos telefone. É admissível que o senhor receba, amanhã à tarde, uma chamada de alguém que se intitule repórter e queira fazer perguntas. Falo nisso agora porque posso esquecer-me de falar amanhã. Faça de conta que essa visita, o nosso almoço de amanhã, foi decidida na semana passada. Está certo?

— Está, naturalmente. Mas, por Deus, se vocês sabem que seu telefone está censurado... isso não é ilegal?

— É claro, e por isso é que é gozado. Contar-lhe-emos tudo amanhã... Acho que contaremos.

Ele disse que guardaria a curiosidade para o dia seguinte e nos esperaria ao soar do meio-dia.

Há um televisor e um rádio no escritório, de modo que eu estava esperando encontrar Wolfe ali, refestelado na poltrona predileta, provavelmente com o rádio ligado, mas, achando o escritório vazio, segui para os fundos, para o porão e fui encontrá-lo onde o deixara. A televisão ainda estava ligada e Fritz assistia ao programa, bocejando. Wolfe inclinara-se para trás e tinha os olhos fechados, enquanto os lábios se moviam, para fora e para dentro. Com que, então, estava trabalhando, mas em quê? Parei e deixei-me ficar a observá-lo. E a única coisa que nunca interrompo, a operação labial; dessa feita, porém, precisei botar o queixo numa prensa para não abrir a boca, pois não conseguia acreditar no que via. Não havia nada, absolutamente nada, que ele pudesse estar tramando. Passaram-se dois minutos inteiros. Três. Decidi que estava apenas treinando, passatempo inútil; aproximei-me de uma cadeira, sentei-me, e tossi alto. Instantaneamente, ele abriu os olhos, pestanejou e endireitou-se.

Arrastei a cadeira para junto dele.

— Tudo combinado — expliquei. — Estamos sendo esperados ao meio-dia, de modo que precisamos sair daqui às dez e meia.

— Você não vai — resmungou Wolfe. — Telefonei para Saul. Ele virá às nove.

— Oh, entendo. O senhor quer que eu esteja em casa no caso de Wragg mandá-los aqui para confessarem.

— Quero que encontre Frank Odell.

— Pelo amor de Deus! Era por isso que seus lábios se mexiam?

— Não. — Ele virou a cabeça. — Um pouco mais alto, Fritz. — E, voltando-se de novo para mim: — Eu disse, depois do almoço, que você deixara claro que seria fútil provar que o FBI praticou esse homicídio. Retiro o que disse. Não me inclinarei diante da futilidade. Temos de arrumar uma situação em que nenhuma das três alternativas seja fútil. São elas: primeira, provar que o FBI praticou o homicídio; segunda, provar que não o praticou; e terceira, não provar coisa alguma e deixar o criminoso em liberdade. Preferimos muitíssimo a segunda, e é por isso que você vai desentocar Frank Odell; mas se formos obrigados a aceitar a primeira ou a terceira, precisamos ajeitar as circunstâncias de modo que fiquemos, sem embargo disso, em condições de cumprir nossa obrigação para com a cliente.

— O senhor não tem nenhuma obrigação senão investigar e envidar seus melhores esforços.

— Olhe seus pronomes outra vez.

— Está bem, "nós" e "nossos".

— Agora está melhor. Exatamente, nossos melhores esforços. Ou seja, a maior obrigação possível para um homem de brio, e possuímos ambos boa cota disso. Um ponto é vital. Seja qual for a alternativa que as circunstâncias nos forcem a aceitar, o Sr. Wragg deve acreditar, ou pelo menos suspeitar, que um de seus homens matou Morris Althaus. Não consigo atinar com manobra alguma, de nossa parte, que possa contribuir para esse resultado; estava tentando fazê-lo quando você voltou. Você consegue?

— Não. Ou ele acredita ou não acredita. Aposto dez contra um como acredita.

— Pelo menos temos por nós as probabilidades. Preciso de sugestões relativas ao arranjo que pretendo fazer com o Sr. Hewitt amanhã. Isso levará tempo e estou com sede. Fritz?

Silêncio.

Voltei-me. Fritz estava profundamente adormecido na cadeira, provavelmente roncando mas, a ser assim, a televisão lhe abafava os roncos. Sugeri que fôssemos para o escritório e ouvíssemos um pouco de música da WQXR, para variar. Wolfe concordou. Em vista disso, despertamos Fritz, agradecemos-lhe a hospitalidade e dissemos-lhe boa noite. A caminho do escritório, separei-me de Wolfe para ir buscar-lhe a cerveja e um pouco de leite para mim. Quando fui ter com ele, o rádio estava ligado e ele se instalara a sua mesa. Como a conversa seria demorada, coloquei uma cadeira amarela ao pé da cadeira dele.

Ele serviu-se de cerveja, tomei um gole de leite, e confessei-lhe:

— Esqueci-me de dizer que não perguntei a Hewitt sobre os Dez Paladinos da Aristologia. Como o senhor pretendia vê-lo de qualquer maneira, pode fazer-lhe a pergunta amanhã. E o programa?

Wolfe falou.

Passava muito da meia-noite quando ele se dirigiu ao elevador e eu fui buscar os lençóis, os cobertores e o travesseiro para minha segunda noite no sofá.

 

Havia mais de cem Odells nas listas telefônicas dos cinco distritos, mas nenhum Frank. Estabelecido isto, sentei-me a minha mesa às nove e meia da manhã de sexta-feira e pensei no que havia de fazer. Não era o tipo de problema que se poderia discutir com Wolfe e, além disso, ele já não estava à mão. Saul Panzer chegara às nove horas em ponto e, em vez de subir para o viveiro, Wolfe descera, enfiara o pesado sobretudo, cobrira a cabeça com o chapelão de castor e seguira Saul até o meio-fio para entrar no Heron. Ele sabia, naturalmente, que, se ligasse todo o aquecedor, poderia transformar num forno o interior do Heron, mas levou o sobretudo pesado porque desconfia de qualquer máquina mais complicada do que um carrinho de mão. Esperaria ver-se perdido nalgum trecho solitário e selvagem do jângal de Long Island, ainda que eu estivesse dirigindo.

Foi-me necessária alguma força de vontade para concentrar a mente na extravagância de Frank Odell, que não passava de uma tacada no escuro com os olhos vendados, ordenada por Wolfe só porque este preferia a segunda das três alternativas. Meu espírito desejava estar em Long Island. Em toda a minha experiência dos arranjos de circunstâncias feitos por Wolfe, nunca o vira engenhar nada mais ardiloso do que o programa que pretendia impingir a Lewis Hewitt, e eu deveria estar lá. O gênio é magnífico para produzir a centelha de ignição, mas, para chegar ao ponto visado, alguém tem de verificar se o radiador não está vazando e se não há nenhum pneu vazio. Eu teria insistido em ir não fora por Saul Panzer. Wolfe dissera que Saul participaria da trama e ele é o único homem a quem eu entregaria um problema se viesse, por acaso, a quebrar uma perna.

Obriguei o espírito a enfocar o problema de Frank Odell. A providência óbvia consistia em telefonar para a Divisão de Livramento Condicional do Estado de Nova Iorque e perguntar se lá o tinham arrolado. Mas, é claro, não de nosso telefone. Se o FBI soubesse que estávamos gastando tempo e dinheiro com Frank Odell, depois do que Quayle dissera a seu respeito, conheceria que não se tratava apenas de uma medida de prudência e que, pelo contrário, julgávamos houvesse realmente uma probabilidade de que ele estivesse envolvido, e isso não servia. Decidi ir pelo seguro. Se algum G-man ler isto aqui e pensar que estou sobrestimando sua organização, é que ainda está longe de conhecer todos os segredos da família. Não estou por dentro, mas também não estou muito por fora.

Depois de ir à cozinha, avisar Fritz de que ia sair, e de passar pelo vestíbulo para apanhar o sobretudo e o chapéu, arranquei-me, fui à Décima Avenida, de lá à garagem, obtive permissão de Tom Halloran para usar o telefone, disquei o número da Gazette e chamei Lon Cohen. Ele foi discreto. Não me perguntou como nos estávamos saindo com a Sra. Bruner e o FBI. Perguntou apenas se eu sabia onde poderia arranjar uma garrafa de conhaque.

— Eu talvez lhe mande uma um desses dias — respondi — se você fizer jus a ela. E pode começar desde já. Há cerca de dois anos, um homem chamado Frank Odell foi encanado por fraude. Se se comportou direitinho e obteve redução da pena, pode ser que já esteja na rua e na lista de livramento condicional. Estou fazendo agora assistência social e preciso descobri-lo, depressa, para reabilitá-lo. Você pode encontrar-me, quanto mais cedo melhor, neste número. — Dei-lhe o número da garagem. — Estou mantendo em segredo meu trabalho de assistente social, por isso faça o favor de não falar nele.

Ele garantiu-me que uma hora seria suficiente, e fui à loja para dar uma espiada nos automóveis. Wolfe compra um carro novo todo ano, achando que isso diminui os riscos de uma pane, o que não é verdade, e deixa a escolha a meu cargo. Já me senti tentado a comprar um Rolls, mas seria uma pena atirá-lo fora depois de um ano. Naquele dia não havia nada na loja que eu trocasse pelo Heron. Tom e eu estávamos discutindo o painel de um Lincoln 1965 quando tilintou o telefone e fui atendê-lo. Era Lon, que conseguira o que eu queria. Frank Odell fora solto em agosto e estaria sob livramento condicional até o fim de fevereiro. Morava à Avenida Lamont, 2553, no Bronx, e trabalhava numa filial da Agência Predial Driscoll, em Grand Concourse, 4618. Lon sugeriu que uma boa maneira de começar a reabilitá-lo seria convidá-lo para uma partida de pôquer e eu disse que um jogo de dados me parecia mais indicado.

Decidi tomar o metrô em lugar de um táxi, não para poupar o dinheiro da cliente, mas por achar que já era tempo de fazer alguma coisa a respeito da campana. Fazia dois dias e duas noites que o FBI, presumivelmente, se interessara por nós, e vinte e cinco horas que pedira a Perazzo a cassação de nossas licenças, e eu ainda não percebera sinal algum de que tinha companhia. Está visto que me esquivara ou não prestara atenção. Agora decidi olhar, mas não enquanto caminhava. Esperei chegar à estação central do metrô e tomar um expresso que se afastava do centro.

Se o leitor desconfiar que está sendo seguido no metrô e quiser identificar o seguidor, basta-lhe andar enquanto o trem está em movimento e, em cada estação, aproximar-se o bastante da porta para poder saltar. Numa hora de rush isso é difícil, mas eram dez e meia da manhã e nós íamos na direção dos bairros. Descobri-o quando fizemos a terceira parada — ou melhor, descobri-os. Eram dois. Um deles, um espécime atarracado, cuja altura mal se enquadrava nas especificações, tinha grandes olhos castanhos com os quais não sabia o que fazer, e o outro seria do tipo Gregory Peck não fossem as orelhinhas enroladas. O jogo, só por desfastio, consistia em identificá-los sem que eles o percebessem e, quando apeei, na estação da Rua 170, estava absolutamente certo de havê-lo conseguido. Ao chegar novamente à calçada, ignorei-os.

Para uma pessoa acampanada nas ruas de Nova Iorque, que se sabe seguida e não tem cérebro de passarinho, livrar-se da campana é canja. Há milhares de saídas, e o acampanado só tem o trabalho de escolher a que melhor se adapta à hora e ao lugar. Na Avenida Tremont deixei-me ficar flanando, consultando, vez por outra, o relógio de pulso e olhando para os números das portas, até avistar um táxi que se aproximava. Quando o vi chegar a trinta metros de distância, precipitei-me entre os carros estacionados, fiz-lhe sinal, entrei e disse ao chofer, enquanto fechava a porta:

— Pode pisar.

Ao passarmos, avistei Gregory Peck, que olhava para mim com os olhos aboticados. O outro estava na calçada oposta.

Percorremos sete quarteirões antes que um sinal vermelho nos detivesse, de modo que consegui despistá-los. Confesso que fiquei olhando para trás. Dei ao motorista o endereço de Grand Concourse, a luz mudou e nós partimos.

Os escritórios de algumas sucursais de agências imobiliárias situam-se acima do primeiro andar, mas aquele instalara-se ao rés-do-chão de um edifício de apartamentos, naturalmente um dos edifícios que administrava. Pequeno, tinha apenas duas escrivaninhas, uma mesa e um arquivo. Uma bela rapariga, com cabelos pretos suficientes para um beatle, estava sentada à escrivaninha mais próxima e, quando sorriu para mim e perguntou-me em que poderia servir-me, tive de respirar fundo para impedir que a cabeça me andasse à roda. Garotas assim deveriam ficar em casa durante as horas de trabalho. Eu disse-lhe que desejava falar com o Sr. Odell e ela voltou a cabeça bonita e fez um sinal para trás.

Ele estava sentado à outra escrivaninha. Eu queria vê-lo primeiro antes de decidir-me pelo método de abordagem, e um olhar me bastou. Certos homens, depois de passarem algum tempo na cadeia, por menor que seja, acovardam-se para o resto da vida, mas aquele, não. Em matéria de estatura era um amendoim, mas um amendoim elegante. De pele clara e cabelos claros, estava muito bem vestido. O terno cinzento, de listras muito finas, custara-lhe, ou custara a alguém, pelo menos, duas centenas de dólares.

Ergueu-se da cadeira, acercou-se de mim, disse que era Frank Odell e estendeu-me a mão. Teria sido mais simples se trabalhasse sozinho numa sala; era possível que ela não soubesse que estava engaiolada em companhia de um presidiário. Apresentei-me, tirei a carteira do bolso e dei-lhe um cartão. Ele examinou-o com atenção, enfiou-o na algibeira e disse:

— Santo Deus, eu deveria tê-lo reconhecido! Pelo retrato no jornal.

Fazia catorze meses que meu retrato não saía no jornal e, nessa ocasião, ele estava em cana; mas eu não quis fazer disso um cavalo de batalha.

— Estou começando a ficar velho — expliquei-lhe. — Pode conceder-me alguns minutos? Nero Wolfe encarregou-se de um servicinho que envolve um homem chamado Morris Althaus e acha que o senhor talvez possa fornecer alguma informação.

Ele não pestanejou. Não pareceu acovardado. Disse apenas:

— É o homem que foi assassinado.

— Certo. Está visto que a polícia já andou por aí investigando. Mera rotina. Esta é uma investigação particular em torno de uma questão secundária.

— Se o senhor quer saber se a polícia esteve aqui, não esteve. Por que não nos sentamos? — Encaminhou-se para a escrivaninha, acompanhei-o e sentei-me numa cadeira ao lado. — Qual é a questão secundária? — perguntou ele.

— É um pouco complicado. Trata-se de uma pesquisa que ele estava fazendo quando foi morto. O senhor talvez saiba qualquer coisa a respeito, se o viu durante esse período — digamos, no mês de novembro, novembro passado. Encontrou-se com ele nessa ocasião?

— Não, a última vez que o vi foi há dois anos. Numa sala de tribunal. Quando certas pessoas que eu supunha que fossem minhas amigas resolveram transformar-me em bode expiatório. Por que haveria a polícia de procurar-me, a mim?

— Oh, num caso de homicídio, que não consegue deslindar, ela procura todo mundo. — Fiz um gesto, como que a dispensar o assunto. — O que me diz sobre ter sido transformado em bode expiatório é interessante. Talvez tenha alguma relação com o que pretendemos saber, isto é, se Althaus costumava adulterar os fatos. Foi ele um dos amigos que o transformaram em bode expiatório?

— Santo Deus, não. Não era um amigo. Só nos encontramos duas vezes, enquanto ele estava escrevendo o tal artigo, ou preparando-se para escrevê-lo. Andava atrás de peixe graúdo. Eu era um simples corretor, que trabalhava na Imobiliária Bruner.

— Imobiliária Bruner? — Franzi o sobrolho. — Não me lembro desse nome em ligação com o caso. E claro que não estou muito familiarizado com ele. Foram, então, seus amigos da Imobiliária Bruner que o transformaram em bode expiatório?

Ele sorriu.

— O senhor não está mesmo familiarizado com ele. Foram uns negócios que fiz por fora. Tudo isso apareceu no julgamento. A gente da Bruner foi muito boazinha, muito boazinha. O vice-presidente chegou até a arranjar uma entrevista para mim com a Sra. Bruner. Foi essa a segunda vez que vi Althaus, no escritório, em casa dela. Ela também foi boazinha. Acreditou no que eu lhe disse. Chegou a pagar a meu advogado a parte dos honorários. Veja o senhor, compreendeu que eu me vira metido num negócio escuso, mas expliquei-lhe que não sabia o que estava fazendo, e ela não quis que um homem que trabalhava para sua companhia sofresse por falta de amparo. Eu chamo a isso ser boazinha.

— Eu também. O que me surpreende é que o senhor não tenha voltado para a Imobiliária Bruner, quando sa... quando pôde.

— Eles não me quiseram.

— Mas aí já não foram tão bonzinhos, foram?

— Bem, é a filosofia da história. Afinal de contas, eu fora condenado. O presidente da companhia é um camarada muito duro. Eu poderia ter procurado a Sra. Bruner, mas tenho um pouco de orgulho, e soube dessa vaga na Driscoll. — Sorriu. — Não estou derrotado, longe disso. Há muitas oportunidades neste negócio, e ainda sou novo. — Abriu uma gaveta. — O senhor me deu um cartão, vou dar-lhe outro.

Não me deu um, deu-me cerca de uma dúzia, além de algumas informações sobre a Agência Predial Driscoll. Possuíam nove escritórios em três distritos, administravam mais de cem edifícios e proporcionavam o melhor serviço em toda a área metropolitana. Fiquei com uma forte impressão de que Driscoll era boazinha. Ouvi o suficiente para mostrar-me polido, agradeci-lhe e, ao sair, tomei a liberdade de trocar olhares com a formosa senhorita, que sorriu para mim. Aquele era, sem dúvida, um lugar muito bonzinho.

Desci o Grand Concourse ao sol de inverno, para refrescar-me; não me tinham convidado a tirar o sobretudo. Entretive-me sumariando os itens da coincidência:

1. A Sra. Bruner distribuíra exemplares do livro.

2. Morris Althaus andara coligindo material para escrever um artigo sobre o FBI.

3. Os G-men haviam matado Althaus ou, pelo menos, tinham estado em seu apartamento mais ou menos na ocasião em que ele foi morto.

4. Althaus conhecera a Sra. Bruner. Estivera em casa dela.

5. Um homem que trabalhara para a firma da Sra. Bruner fora preso (transformado em bode expiatório?) em resultado de um artigo escrito por Althaus.

Isso não era coincidência; eram relações de causa e efeito no meio de uma confusão danada. Comecei a ajustá-las, mas logo cheguei à conclusão de que havia tantas combinações e possibilidades, que se poderia até chegar à conclusão de que a Sra. Bruner matara Althaus, mas isso não servia, porque ela era a cliente. A única conclusão aceitável era a de que havia uma agulha naquele palheiro, e precisava ser encontrada. Wolfe lavrara mais um tento. Limitara-se a perguntar a Yarmack se os artigos que Althaus escrevera para a Tick-Tock eram inócuos, e limitara-se a dizer-me que encontrasse Odell porque não conseguira descobrir outra coisa para eu fazer, e ali estava o resultado.

Eu não poderia ter telefonado para Wolfe, mesmo que ele estivesse em casa, e decidi não o chamar na residência de Hewitt. Não somente um lugar como aquele tem uma dúzia ou mais de extensões, mas também os G-men o haviam, provavelmente, seguido até lá, visto que Saul recebera instruções para ignorar possíveis seguidores; e censurar uma linha telefônica no campo era facílimo para eles. Aliás, uma vez... Mas não falemos nisso.

Entretanto, eu não ficaria sentado, em casa, à espera de que ele voltasse. Encontrei uma cabina telefônica, disquei o número da Sra. Bruner, consegui falar com ela e perguntei-lhe se poderia encontrar-se comigo no Rusterman's, ao meio-dia e meia, para almoçar. Ela disse que podia. Telefonei para Rusterman's, chamei Felix e perguntei-lhe se seria possível usarmos a sala à prova de som do primeiro andar, a pequena. Ele disse que sim. Saí e tomei um táxi.

O Rusterman's perdera algum prestígio após a morte de Marko Vukcic. Wolfe já não é o depositário, mas ainda vai lá uma vez por mês, e Felix, de quando em quando, aparece na velha casa de pedra marrom para pedir conselhos. Quando Wolfe vai conosco ao restaurante, com Fritz e comigo, comemos na saleta do primeiro andar, e sempre começamos pela rainha das sopas, Germiny à VOseille. Por isso eu conhecia muito bem a sala. Felix lá estava, fazendo-me as honras da casa, quando a Sra. Bruner apareceu, com apenas dez minutos de atraso.

Ela pediu um martini seco duplo, com cebola. Nunca se sabe; eu teria apostado que pediria xerez ou Dubonnet e, sem dúvida, sem cebola. Chegado o martini, tomou três bons goles em seguida, olhou para ver se o garçom fechara a porta, e disse:

— Está visto que não lhe perguntei ao telefone. Aconteceu alguma coisa?

Eu pedira um martini para fazer-lhe companhia, mas sem cebola. Tomei um gole e respondi:

— Nada de mais. O Sr. Wolfe violou hoje duas normas. Perdeu a sessão matutina no viveiro de plantas e saiu de casa a serviço — a seu serviço. Está em Long Island, conversando com um homem. Isso poderá redundar em alguma coisa, mas não fique muito esperançosa. Quanto a mim, fiz apenas uma excursão ao Bronx para ver um cidadão chamado Frank Odell. Costumava trabalhar para a senhora, na Imobiliária Bruner. Não é verdade?

— Odell?

— Sim.

Ela carregou as sobrancelhas.

— Não sei... Oh, naturalmente. Odell, é o homenzinho que se meteu naquela encrenca toda. Mas ele... ele não está preso?

— Estava. Teve livramento condicional há alguns meses.

Ela continuava com o cenho franzido.

— Mas a troco de que o senhor foi vê-lo?

— É uma história comprida, Sra. Bruner. — Sorvi um trago. — O Sr. Wolfe decidiu começar investigando um pouco as atividades do FBI dentro e à volta de Nova Iorque. Entre outras coisas, ficamos sabendo que, no outono passado, um homem chamado Morris Althaus andara coligindo material para um artigo sobre o FBI, que seria publicado numa revista e, sete semanas atrás, foi assassinado. Isso merecia uma boa assuntada e fizemos averiguações a respeito dele. Soubemos que havia escrito um artigo chamado "A Picaretagem Imobiliária" há uns dois anos e que, em conseqüência, um homem chamado Frank Odell fora condenado à prisão por fraude. O Sr. Wolfe mandou-me procurá-lo, eu localizei-o, fui vê-lo, e fiquei sabendo que ele trabalhou para sua firma. Por isso pensei que devia fazer-lhe algumas perguntas.

Ela depusera o copo sobre a mesa.

— Mas o que há para perguntar-me?

— Coisas muito simples. Por exemplo, a respeito de Morris Althaus. Quão bem a senhora o conheceu?

— Não o conheci coisíssima nenhuma.

— Ele foi, pelo menos, uma vez a sua casa — seu escritório. De acordo com Odell.

Ela assentiu com a cabeça.

— É verdade, foi mesmo. Lembrei-me disso quando li a respeito dele, do assassínio. — Ela empinou o queixo para a frente. — Não gosto de seu tom, Sr. Goodwin. O senhor estará insinuando que escondi alguma coisa?

— Estou, Sra. Bruner, estou. Que a senhora pode ter escondido. Será até melhor esclarecermos o assunto antes do almoço do que deixar para fazê-lo depois. A senhora contratou o Sr. Wolfe para realizar um serviço tão impossível quanto o que mais o seja. O menos que pode fazer é contar-nos tudo o que tenha alguma relação com ele. O fato de haver conhecido Morris Althaus, de ter sido, pelo menos, apresentada a ele, sugere, naturalmente, algumas perguntas. Sabia que ele estava trabalhando num artigo sobre o FBI? Deixe-me terminar. Sabia, ou desconfiava, que o FBI estava envolvido no assassínio dele? Foi por isso que mandou aqueles livros? Foi por isso que procurou Nero Wolfe? Não se zangue. Acontece apenas que precisamos saber o que a senhora sabe, mais nada.

Ela agüentou firme. Uma mulher capaz de atirar à gente um cheque de cem mil dólares sem piscar não tem muita prática de ser interpelada por um assalariado; mas ela não tugiu nem mugiu. Não contou até dez, ou pelo menos não o fez audivelmente, mas tomou do copo, bebeu, fitou os olhos em mim, colocou o copo sobre a mesa e disse:

— Não "escondi" coisa alguma. Apenas não me ocorreu falar em Morris Althaus. Ou talvez me tenha ocorrido enquanto pensava no caso, mas não enquanto conversei com o Sr. Wolfe. Porque era apenas... porque eu realmente não sabia coisa alguma. Como não sei até agora. Eu lera a história do assassínio e lembrava-me de que lhe fora apresentada; mas a única relação existente entre esse fato e o FBI era o que a Srta. Dacos, minha secretária, me havia contado, e isso não passava de conversa fiada de moça. Ela também não sabia realmente coisa alguma. E o caso não teve nenhuma relação com a remessa dos livros. Mandei-os porque, tendo lido o livro, entendi que pessoas importantes deviam lê-lo também. Isso responde suas perguntas?

— Perfeitamente, mas sugere outra. Não se esqueça de que estou trabalhando para a senhora. O que foi que a Srta. Dacos lhe contou?

— Nada de mais. Ela morava no mesmo endereço, aliás, ainda mora. O apartamento dela...

— Que mesmo endereço?

— O mesmo daquele homem, Morris Althaus. Na Village. O apartamento dela fica no segundo andar, abaixo do apartamento dele. Ela havia saído naquela noite, e logo depois...

— Na noite em que ele foi morto?

— É. Pare de interromper-me. Logo depois que ela voltou ao apartamento ouviu passos fora, de gente que descia a escada e, sentindo-se curiosa, foi à janela, olhou para a rua e viu três homens que saíam da casa e dirigiam-se à esquina, e pensou que fossem homens do FBI. A única razão que tinha para pensar que fossem homens do FBI era que pareciam G-men; disse que eram "daquele tipo". Como já expliquei, ela não sabia coisa alguma, e eu ignorava que houvesse qualquer ligação entre Morris Althaus e o FBI. O senhor me perguntou se eu sabia que ele estava trabalhando num artigo sobre o FBI. Não, só fiquei sabendo depois que o senhor me contou. Ressinto-me de sua sugestão de que escondi alguma coisa. — Olhou para o relógio-pulseira. — Já passa da uma e tenho um compromisso para as duas e meia, a reunião de uma comissão, e não posso chegar atrasada.

Apertei duas vezes, rapidamente, um botão que havia sobre a mesa, e pedi-lhe perdão por havê-la convidado para almoçar e deixá-la passar fome. Dois minutos depois, surgiu Pierre com a sopa de lagostas, e eu lhe disse que trouxesse os borrachos dali a dez minutos, sem esperar por meu sinal.

Havia um pequeno problema de etiqueta. Comercialmente, teria sido perfeitamente natural que eu lhe dissesse que nem a Nero Wolfe nem a mim se permitia pagarmos o que quer que nós, ou nossos convidados, comêssemos no Rusterman's, de modo que aquela despesa não figuraria na relação dos gastos que lhe seria apresentada; tal observação contudo, não parecia harmonizar-se com pombos à la Moscovite, cogumelos Polonaise, Salade Béatrice e Soufflé Armenonville. Achei melhor calar. Não voltei a falar sobre a Srta. Dacos, mas nosso único interesse comum conhecido era o FBI. Ela contou-me que recebera 607 cartas de agradecimento pelo livro, constantes, na maioria, de uma ou duas sentenças polidas; 184 cartas de desaprovação, algumas vazadas em termos vigorosos; e 29 cartas e cartões anônimos com palavrões. Surpreendeu-me que fossem apenas 29; entre os dez mil destinatários deveria haver, pelo menos, umas duas centenas de membros da Sociedade John Birch e de outras organizações congêneres.

Ao café, tornei à Srta. Dacos, depois de haver feito alguns cálculos. Se Wolfe deixasse Hewitt às quatro horas, estaria de volta às cinco e meia, mas poderia sair mais tarde, digamos às cinco e, nesse caso, chegaria às seis e meia, muito precisado de refrigério depois da perigosa viagem pela escuridão da noite, cercado de milhares de máquinas traiçoeiras. Teria de ser após o jantar. Quando Pierre saiu, depois de servir o café, eu disse à Sra. Bruner:

— Está claro que o Sr. Wolfe terá de avistar-se com a Srta. Dacos. Ela pode não saber nada, como a senhora explicou, mas ele terá de certificar-se disso. Quer pedir-lhe que esteja aqui, hoje à noite, às nove horas? Nesta sala. O nosso escritório talvez tenha sido minado.

— Mas eu já lhe disse que foi apenas conversa fiada de mocinha.

Respondi que ela, provavelmente, teria razão, mas uma das especialidades de Wolfe era arrancar informações úteis de pessoas que conversavam fiado e, quando acabou de tomar o café, levei-a para o escritório de Felix, nos fundos; ela comunicou-se com a Srta. Dacos pelo telefone e deixou acertada a entrevista.

Depois que a escoltei ao automóvel, tornei a subir à sala e bebi outra xícara de café. Não chamaria Wolfe enquanto não tivesse certeza de que eles haviam acabado de almoçar. Sentei-me e passei revista aos fatos. Falhara num ponto; não perguntara se a Srta. Dacos estava presente quando Morris Althaus e Frank Odell haviam conversado com a Sra. Bruner no escritório dela. Está visto que a Srta. Dacos poderia dizer-nos isso, mas esse é o tipo do pormenor que Wolfe espera que eu esclareça e cujo esclarecimento também espero de mim. Teria sido Sarah Dacos a informante da polícia a respeito dos três homens? Era pouquíssimo provável, a não ser que ela houvesse enfeitado a história ou para os tiras ou para a Sra. Bruner. Da janela do número 63 não poderia tê-los visto dirigir-se para um carro na esquina, nem tomar nota do número da chapa. Nesse caso estaríamos obtendo uma corroboração, mas da primeira alternativa, a de que ele fora morto pelo FBI, e não da nossa preferida. E que tinha isso, visto que nada era fútil, segundo o programa de Wolfe?

Lembrei-me de como, ao cruzar a Praça de Washington na véspera, durante minha excursão panorâmica, me parecera coincidência estar a Rua Arbor localizada na Village e Sarah Dacos morar na Village. Agora talvez fosse mais do que simples coincidência; poderia ser outra relação de causa e efeito.

Às três horas dirigi-me ao escritório de Felix e liguei para o número de Lewis Hewitt. Há qualquer coisa de errado no modo por que as pessoas, naquele palácio, atendem ao telefone. Tive de esperar uns quatro minutos mas, afinal, ouvi a voz de Wolfe.

— Sim, Archie?

— Sim e não — respondi —, porém mais sim do que não. Estou no Rusterman's, onde a Sra. Bruner e eu acabamos de almoçar. Se o senhor chegar até as seis e meia poderei fazer o relatório antes do jantar. Talvez fosse melhor comermos aqui, porque alguém virá para cá às nove horas, a fim de discutir coisas.

— Irá para aí?

— Sim, senhor.

— Por quê? Por que não vai ao escritório?

— Será melhor aqui. A não ser que o senhor queira ter uma pequena bonita praticamente sentada no colo, durante um par de horas, com o rádio ligado.

— Que pequena?

— Sarah Dacos, a secretária da Sra. Bruner. Farei o relatório quando o senhor chegar.

— Se eu chegar. Muito bem.

E desligou o aparelho.

Disquei o número que eu melhor conhecia e disse a Fritz que jantaríamos no Rusterman's e que ele teria de deixar as costeletas de veado marinadas até o dia seguinte. Depois descobri o número da Sra. Althaus na lista, mas, quando ela veio atender, já decidira não fazer a pergunta pelo telefone. Eu só queria saber se ela ouvira, alguma vez, o filho referir-se a uma moça chamada Sarah Dacos; mas, como me restavam três horas para matar, poderia, perfeitamente, dar um passeio. Perguntei-lhe se me deixaria entrar caso eu aparecesse por lá às quatro e meia, mais ou menos, e ela me disse que sim. Ao sair avisei Felix de que Wolfe e eu jantaríamos lá.

 

Eu estava de volta à sala à prova de som, sentado sobre o traseiro, com as pernas esparramadas e os olhos fitos nos dedos dos pés, recapitulando aquela mixórdia pela décima vez, quando Wolfe chegou, às seis e quarenta, introduzido por Felix. Sabendo que era aquela a hora mais apertada do dia para Felix lá embaixo, mandei-o embora, peguei o sobretudo de Wolfe, pendurei-o no cabide e disse esperar que ele tivesse feito um passeio interessante.

Ele resmungou e foi sentar-se na poltrona que Marko Vukcic comprara, alguns anos antes, para uso exclusivo de seu amigo Nero. Nos intervalos entre as visitas de Wolfe, ela permanece guardada na sala que fora a toca pessoal de Marko.

— Decidi — disse ele — que todo homem vivo hoje em dia é meio idiota e meio herói. Só os heróis conseguiriam sobreviver nesta balbúrdia, e só os idiotas desejariam fazê-lo.

— É dura em certos pontos — anuí — mas o senhor se sentirá melhor depois que comer. Felix tem galinhola.

— Eu sei que ele tem. — Wolfe olhou feio para mim. — E você gosta.

— Tenho gostado até hoje. Agora já não estou tão certo assim. Que tal Hewitt?

— Ele também gosta, o sacripanta. Está tudo arrumado. Saul foi muito prestativo, como sempre. Satisfatório.

Sentei-me numa cadeira.

— Meu relatório pode não ser satisfatório, mas tem seus pontos. Começando pelo fim, a Sra. Althaus nunca ouviu o filho referir-se a Sarah Dacos.

— E por que teria ouvido?

— Esse é um dos pontos. Causa e efeito.

Referi as conversações por extenso e as ações com minúcias, incluindo a brincadeira com os G-men. Fora nosso primeiro contato verdadeiro com o inimigo, e achei que ele deveria saber como nos havíamos saído. A poltrona não era tão boa quanto a sua, do escritório, para reclinar-se e fechar os olhos, mas quebrava o galho, e era quase como estarmos em casa. Quando terminei, ele não moveu um músculo, nem sequer abriu um olho. Fiquei sentado, esperando, durante três minutos de completo silêncio e depois falei.

— Compreendo, naturalmente, que tudo isso o tenha enfastiado, se é que o senhor se deu ao trabalho de ouvir. Não se lhe dá de saber quem matou Morris Althaus. Só lhe interessa agora essa mistificação petulante que anda tramando e pouco se preocupa em descobrir quem matou quem. Agradeço-lhe por não haver roncado. Um homem sensível como eu!

Abriram-se-lhe os olhos.

— Pfui. Posso dizer satisfatório e digo-o. Satisfatório. Mas você poderia ter continuado. Poderia ter trazido essa mulher para cá hoje à tarde, em lugar de trazê-la hoje à noite.

Fiz um aceno afirmativo com a cabeça.

— O senhor não só está enfastiado como suas conexões estão emperradas. Afirmou que preferia muitíssimo a segunda alternativa, de modo que estamos tentando descobrir se há alguma probabilidade de consegui-la. Sarah Dacos estava lá na casa, se não quando ele foi baleado pelo menos pouco depois. É possível que ela possa resolver a questão, de uma forma ou de outra. Se o senhor quiser...

Abriu-se a porta, e Pierre entrou com uma bandeja cheia. Olhei para o relógio: eram 7 e 15. Ele, portanto, dissera a Felix que servisse o jantar às sete e um quarto. Por Deus! estava, pelo menos, respeitando uma norma e respeitaria, sem dúvida, outra, a saber, que não se fala em negócios à mesa. Levantou-se e saiu da sala, a fim de lavar as mãos. Quando voltou, Pierre já servira os mariscos e estava esperando para empurrar-lhe a cadeira. Ele sentou-se, levou à boca um marisco espetado no garfo, acariciou-o com a língua e com os dentes, engoliu-o, fez um gesto mudo de aprovação, e disse:

— O Sr. Hewitt conseguiu flores de quatro cruzamentos entre Miltonia sanderae e Odontoglossum pyramus. Uma delas merece nomeada.

O que queria dizer que haviam achado tempo para visitar o orquidário.

Cerca das oito e meia, Felix apareceu e perguntou se lhe concederíamos um minuto para discutir o problema do embarque de langoustes da França por via aérea. Verificou-se depois que o que realmente desejava era a aprovação de Wolfe às langoustes congeladas, a qual, evidentemente, não conseguiu. Mas, como fosse teimoso a discussão continuava quando Pierre introduziu Sarah Dacos na sala. Ela chegara na hora. Ao entregar-me o casaco, aceitou meu oferecimento de um café, de modo que a fiz sentar-se numa cadeira à mesa e esperei que Felix saísse para dizer a Wolfe seu nome.

Ele é capaz de avaliar um homem ao primeiro relancear de olhos, mas não sabe avaliar uma mulher, pois está persuadido de que qualquer opinião formada sobre uma mulher é, fatalmente, falsa. Olhou para Sarah Dacos, é claro, visto que ia falar com ela. Disse-lhe supor que a Sra. Bruner lhe contara a conversação que travara comigo.

Ela mostrou-se menos animada do que se mostrara no escritório; os olhos castanho-claros não pareciam tão vivos. A Sra. Bruner dissera que ela falara por falar; talvez, enviada ao encontro de Nero Wolfe por causa disso, estivesse achando que falara demais. Disse que sim, que a Sra. Bruner lhe contara.

Wolfe piscou para ela. A luz da sala não era igual à do escritório e, além disso, os olhos tinham tido um dia penoso.

— Meu interesse está concentrado em Morris Althaus — disse ele. — A senhora o conheceu bem?

Ela meneou a cabeça.

— Bem mesmo, não.

— Moravam debaixo do mesmo teto.

— Ora... o senhor sabe que isso nada significa em Nova Iorque. Mudei-me para lá há cerca de um ano e, quando nos encontramos no vestíbulo, um dia, percebemos que nos havíamos encontrado antes, no escritório da Sra. Bruner, no dia em que ele lá esteve com aquele homem, Odell. Depois disso, jantamos juntos algumas vezes, umas duas vezes por mês.

— Isso não fez progredir a intimidade?

— Não. Seja qual for a definição que o senhor empreste à palavra "intimidade". Não éramos íntimos.

— Essa parte, então, está esclarecida e nós podemos chegar ao ponto principal. A noite de sexta-feira, dia vinte de novembro. A senhora jantou com o Sr. Althaus nessa noite?

— Não.

— Mas saiu.

— Saí. Fui a uma conferência na Escola Nova.

— Sozinha?

Ela sorriu.

— O senhor é como o Sr. Goodwin: quer provar que é detetive. Sim, eu estava sozinha. A conferência versava sobre fotografia. Interesso-me por fotografia.

— A que horas voltou para o apartamento?

— Um pouco antes das onze. Uns dez minutos antes. Eu queria ouvir o jornal das onze.

— E depois? Seja tão precisa quanto possível.

— Não há muito sobre o que ser precisa. Entrei e subi — é um andar só — para meu apartamento. Tirei o casaco, tomei um gole d'água e estava começando a despir-me quando ouvi passos na escada. Soavam como se as pessoas não quisessem fazer bulha, e fiquei curiosa. São apenas quatro pavimentos e a mulher do último andar estava fora — viajara para a Flórida. Dirigi-me à janela, abri-a o suficiente para enfiar a cabeça por ela, e três homens saíram do prédio, viraram à esquerda e dobraram a esquina, caminhando depressa. — Ela fez um gesto e rematou: — Foi só.

— E eles, um deles ou mais de um, não a ouviram abrir a janela e não olharam para cima?

— Não. Eu já a tinha aberto quando eles saíram.

— E falaram alguma coisa?

— Não.

— A senhora não os reconheceu? A nenhum deles?

— Não. É claro que não.

— É claro por quê? Mas não os reconheceu.

— Não.

— Seria capaz de identificá-los?

— Não. Não lhes vi o rosto.

— Notou alguma peculiaridade — estatura, modo de andar?

— Bem... não.

— Não notou?

— Não.

— Aí, então, foi para a cama?

— Fui.

— Depois de entrar no apartamento, antes de ouvir os passos na escada, não observou ruído algum em cima, no apartamento do Sr. Althaus?

— Não observei nenhum. Eu estava andando de um lado para outro, tirando o casaco e colocando-o no guarda-roupa, e deixara a água correndo para que esfriasse e eu pudesse bebê-la. E a sala dele tem um tapete grosso.

— A senhora esteve lá?

Ela assentiu com a cabeça.

— Umas poucas vezes. Três ou quatro. A fim de tomar um trago antes de sairmos para o jantar. — Pegou na xícara de café e percebi que a mão não lhe tremia.

Eu disse-lhe que o café estava frio e ofereci-me para servir-lhe outro, quente, mas ela respondeu que não fazia mal e tomou-o. Wolfe deitou algum na própria xícara e provou um gole.

— Quando e como — perguntou — a senhora soube que o Sr. Althaus havia sido morto?

— De manhã. Não trabalho aos sábados e acordo tarde. Irene, a mulher da limpeza, veio bater a minha porta. Eram mais de nove horas.

— Foi a senhora, então, quem telefonou à polícia?

— Fui eu.

— Disse-lhes que vira três homens saírem do prédio?

— Disse.

— Disse-lhes que pensou que fossem homens do FBI?

— Não. Isso não... era... acho que eu estava em estado de choque. Nunca vira um cadáver antes — a não ser num caixão.

— E quando disse à Sra. Bruner que lhe pareciam homens do FBI?

Seus lábios se moveram, num momento de hesitação.

— Na segunda-feira.

— Por que pensou que o fossem?

— Pareciam sê-lo. Pareciam jovens e... bem, meio atléticos; além disso, o jeito de andarem...

— A senhora afirmou que não havia peculiaridades.

— Eu sei que afirmei. Não eram... eu não lhes chamaria peculiaridades. — Mordeu os lábios. — Eu sabia que o senhor me faria essa pergunta. Creio que devo confessá-lo... acho que a principal razão que me levou a dizer isso a ela era conhecer-lhe os sentimentos a respeito do FBI; ouvira-a falar sobre o livro, e concluí que ela gostaria... isto é, que minha observação estaria de acordo com seu pensamento a respeito deles. Não me agrada confessar uma coisa destas, Sr. Wolfe, é claro que não. Sei o que parece. Espero que o senhor não diga nada à Sra. Bruner.

— Só lhe direi se isso servir a algum propósito.

Wolfe pegou na xícara, bebeu-lhe o café, depôs a xícara na mesa e olhou para mim.

— Archie?

— Talvez um ou dois pontinhos. — Olhei para ela e ela olhou para mim. Os olhos castanho-claros pareciam mais escuros quando fitos na gente.

— Está visto — principiei — que os tiras lhe perguntaram quando foi a última vez que falou com Althaus. Quando foi?

— Três dias antes... antes daquela sexta-feira. Terça-feira de manhã, no vestíbulo, por um ou dois minutos. Simples casualidade.

— Ele lhe contou que estava escrevendo um artigo sobre o FBI?

— Não. Ele nunca me falava sobre seu trabalho.

— Quando foi a última vez que esteve com ele — para jantar, para qualquer coisa?

— Não tenho muita certeza da data. Foi cerca de um mês antes, num dia qualquer de outubro. Tínhamos jantado juntos.

— Num restaurante?

— Sim. No Jerry's Joint.

— Nunca foi apresentada à Srta. Marian Hinckley?

— Hinckley? Não.

— Nem a um homem chamado Vincent Yarmack?

— Não.

— Nem a outro, chamado Timothy Quayle?

— Não.

— Althaus nunca se referiu a nenhum desses nomes?

— Que me lembre, não. Mas pode ter-se referido a eles.

Ergui as sobrancelhas para Wolfe. Ele considerou-a por meio minuto, grunhiu e disse-lhe duvidar que ela tivesse fornecido algum dado interessante, de sorte que a noite, provavelmente, fora perdida. Enquanto ele falava, fui buscar o casaco dela e fiquei segurando-o quando ela se levantou. Wolfe não se arredou da cadeira. Ergue-se, às vezes, quando uma mulher entra ou sai; é provável que tenha alguma regra para isso, mas nunca atinei com o que fosse. Ela disse que eu não precisava dar-me ao incômodo de acompanhá-la, mas eu a segui, desejando mostrar-lhe que alguns detetives particulares têm modos. Na calçada, enquanto o porteiro fazia sinais para um táxi, ela pôs a mão em meu braço e disse que ficaria muitíssimo agradecida se não contássemos nada à Sra. Bruner, e eu dei-lhe uma palmadinha no ombro. A palmadinha no ombro pode representar desde um pedido de desculpas até uma promessa, mas só o autor poderá dizer o que de fato representa.

Quando voltei à sala do primeiro andar, Wolfe ainda estava na poltrona e tinha os dedos enclavinhados no topo da segunda barriga. Ao virar-me, depois de fechar a porta, ele perguntou-me:

— Ela mente?

Declarei que não havia dúvida alguma e fui sentar-me.

— E como é que você sabe?

— Muito bem — disse eu —, para evitar discussões, admitirei que sou entendido em moças bonitas e o senhor não é, visto que é essa sua maneira de pensar. Mas até o senhor compreenderá que ela não seria tão idiota que tentasse impingir essa baboseira toda à Sra. Bruner sobre os homens do FBI só por achar que ela gostaria de ouvi-la. Aliás, duvido que seja idiota. Mas ela disse isso à Sra. Bruner; logo, tinha uma razão para fazê-lo, e não seria apenas aquela patacoada sobre o jeito de andarem. Tinha uma razão verdadeira, sabe Deus qual. Um palpite no meio de uma dúzia: quando foi para casa, ouviu ruídos, subiu mais um andar, ficou escutando à porta de Althaus e surpreendeu qualquer coisa que disseram. Não me agrada a hipótese, porque, a ser assim, por que não o revelou aos tiras? Prefiro alguma coisa que ela não quisesse revelar. Por exemplo: talvez soubesse que Althaus estava escrevendo a respeito do FBI. Ele tinha...

— Como o saberia?

— Oh, a intimidade havia progredido. Essa é a mentira mais fácil que as mulheres podem dizer, faz dez mil anos que a vêm dizendo. Tudo muito conveniente, ambos na mesma casa, ele gostava de mulheres e ela não é nenhuma bruxa. Ele lhe contara, sim. Contara-lhe até que poderiam aparecer em sua casa quando ele estivesse ausente. De modo que ela...

— Teria subido para ver se ele estava lá.

— Subiu, depois de ter visto saírem os três homens, mas a porta estava trancada, ela não tinha chave e ninguém lhe respondeu às batidas nem aos toques de campainha. De qualquer maneira, estou apenas respondendo sua pergunta sobre se ela mente. Mente, sim.

— Então precisamos da verdade. Vá buscá-la.

Aquilo era normal. Wolfe não acredita que eu possa levar uma pequena ao Flamingo, dançar um par de horas com ela e sair de posse de todos os seus mais íntimos segredos, mas finge que acredita por entender que assim me animo a fazer mais força.

— Vou pensar no caso — retruquei. — Dormirei sobre ele; no sofá. Posso mudar de assunto? Ontem à noite, o senhor me perguntou se eu poderia arquitetar alguma manobra que ajudasse a incutir no espírito de Wragg a idéia de que um de seus homens matou Althaus, e eu disse que não. Mas já arquitetei. Eles mantêm uma campana aberta sobre Sarah Dacos, de modo que sabem que ela esteve aqui e é quase certo que saibam que o senhor também está. Sabem ainda que ela mora na Rua Arbor 63, e ignoram o que viu ou ouviu aquela noite. Por conseguinte, ignoram o que ela lhe pode ter contado, esta noite, mas suporão que foi qualquer coisa a respeito daquela noite. Isso deveria ajudar.

— Possivelmente. Satisfatório.

— Sim. Mas se tomássemos um táxi agora, fôssemos à casa de Cramer, passássemos uma hora com ele, suporiam, sem sombra de dúvida, que temos alguma novidade a respeito do homicídio não solucionado e que a obtivemos de Sarah Dacos. Isso, sim, ajudaria.

Ele abanou a cabeça.

— Você deu ao Sr. Cramer nossa palavra de honra.

— Apenas no tocante a ele ter estado comigo e me haver contado a história. Vamos procurá-lo porque, na tentativa de descobrir alguma coisa sobre o FBI, passamos a interessar-nos por Morris Althaus, que estava fazendo um trabalho sobre eles, e foi assassinado, e Sarah Dacos nos forneceu um elemento sobre o assassínio que, a nosso ver, Cramer deveria conhecer. A nossa palavra de honra não terá sofrido o menor arranhão.

— Que horas são?

Olhei para o relógio.

— Três para as dez.

— O Sr. Cramer já estaria deitado e não temos nada para ele.

— Como é que não temos? Temos alguém que tinha uma razão para pensar que fossem G-men e não quer contá-la. Isto será um prato suculento para Cramer.

— Não. O prato é nosso. Daremos a Srta. Dacos ao Sr. Cramer depois que a tivermos nós. Se a tivermos. — Empurrou a cadeira para trás. — Arranque isso dela. Amanhã. Estou cansado. Vamos para casa dormir.

 

Às 10 e 35 da manhã de sábado, introduzi uma chave na porta do número 63 da Rua Arbor, subi dois lanços de escada de madeira, enfiei outra chave em outra porta e entrei no apartamento em que morara Morris Althaus.

Eu estava utilizando meus próprios métodos na solução do problema de arrancar a verdade de Sarah Dacos. Confesso que eram um tanto indiretos, sobretudo em vista da premência do tempo, mas preferi tentar obter resultados a persuadi-la a ir dançar uma noite no Flamingo. O fato de que o tempo era escasso fora tornado publicamente evidente por uma notícia inserta na vigésima oitava página do jornal da manhã, que eu lera à mesa do desjejum, na cozinha. Sob o título DEDOS CRUZADOS? — rezava assim:

Os Dez Paladinos da Aristologia, um dos grupos mais fechados de gastrônomos de Nova Iorque, não acredita, evidentemente, que a história se repita. Lewis Hewitt, o capitalista, figura de destaque da alta sociedade, cultivador de orquídeas e aristólogo, receberá o grupo para um jantar em sua casa em North Cove, Long Island, quinta-feira à noite, dia 14 de janeiro. A lista de pratos será escolhida por Nero Wolfe, o conhecido investigador particular, e a comida será preparada por Fritz Brenner, cozinheiro do Sr. Wolfe. O Sr. Wolfe e Archie Goodwin, seu assistente, estarão presentes como convidados.

Essa reunião recorda-nos outra ocasião em que o Sr. Brenner preparou um jantar para os Dez Paladinos da Aristologia, a que o Sr. Wolfe e o Sr. Goodwin também foram convidados, em casa de Benjamin Schriver, o magnata da navegação. Ocorreu no dia 1.° de abril de 1958, e um dos Dez, Vincent Pyle, chefe de uma firma de corretagem de Wall Street, foi envenenado com arsênico, misturado à sua porção do primeiro prato, que lhe foi servido por Carol Anris, o qual, subseqüentemente, foi condenado por homicídio doloso.

Ontem, lembrado dessa ocasião anterior, um repórter do Times telefonou ao Sr. Hewitt e perguntou-lhe se algum dos Dez Paladinos da Aristologia (aristologia significa ciência do jantar) mostrara alguma relutância em participar da reunião da próxima quinta-feira, e o sr. Hewitt respondeu-lhe negativamente. Quando o repórter lhe perguntou se ele ficaria com os dedos cruzados, o Sr. Hewitt protestou: "Como? Eu não poderia segurar a faca nem o garfo".

Será, sem dúvida, um jantar excelente.

 

A marcação definitiva da data, quinta-feira, dia catorze, fora o detalhe que mais discuti com Wolfe quando falamos no assunto quinta-feira à noite. Eu dissera convir que a data permanecesse em aberto, e que a notícia do jornal deveria dizer apenas "uma noite qualquer deste mês", ou coisa parecida. Wolfe replicou-me que, ao telefonar para os colegas aristólogos, Hewitt teria de fixar um dia. Retruquei que ele poderia alegar que a data ainda não era definitiva porque dependia da ocasião em que Fritz recebesse material remetido da França por via aérea. Mas Wolfe insistira, e agora estávamos encalacrados e tínhamos apenas cinco dias para trabalhar.

Por isso mesmo não me agradara o método indireto de abordar Sarah Dacos, mas era, obviamente, o melhor e, logo após o desjejum, telefonei à Sra. Althaus para saber se poderia conceder-me dez minutos. Ela respondeu afirmativamente, e fui até lá, ignorando, é claro, o problema da campana. Quanto mais me vissem mexendo no caso Althaus, tanto melhor. Eu disse-lhe que haviam surgido alguns fatos novos, que lhe contaríamos quando os tivéssemos apurado, e seria ótimo se ela me permitisse examinar tudo o que havia no apartamento do filho, pelo menos o que ficara. Ela explicou que ficara tudo. O aluguel ainda estava pago por quase um ano, e eles não tinham tentado sublocá-lo. A família não tirara nada e, pelo que sabia, a polícia também não; nem solicitara permissão para tanto. Prometi não levar coisa alguma sem sua autorização se me deixasse dar uma espiada nas coisas, e ela foi buscar as chaves sem telefonar para o advogado e nem mesmo para o marido. Eu talvez impressione melhor as mulheres de meia-idade do que as moças mas, pelo amor de Deus, não digam isso a Wolfe.

Nessas condições, às 10 e 35 da manhã de sábado entrei no apartamento do finado Morris Althaus, fechei a porta e circunvaguei os olhos. Nada mau, se se ignorassem os quadros. Como o dissera Sarah Dacos, o tapete, que ia de uma parede a outra, era espesso. Havia um grande sofá, com uma mesa de centro à frente, uma poltrona confortável ao pé de um abajur, quatro cadeiras, uma mesinha sobre a qual se via um objeto de metal, que poderia ter sido fabricado por um garoto destro no manejo de ferramentas com a sucata encontrada na garagem, uma ampla escrivaninha sobre a qual pouca coisa havia além de um telefone e uma máquina de escrever numa mesinha. A maior parte de uma das paredes era ocupada por prateleiras de livros, cheias, que iam quase até o teto. Quanto menos se disser sobre os quadros que pendiam das demais paredes, tanto melhor. Seriam excelentes para um jogo de adivinhação — uma reunião em que todos os presentes procurassem adivinhar o que eram — se fosse possível encontrar alguém que conhecesse as respostas.

Coloquei o chapéu e o sobretudo no sofá e dei uma volta. Dois armários na sala. Havia um banheiro, uma cozinha pequena e um dormitório com cama de solteiro, camiseira, cômoda com espelho, duas cadeiras e um armário cheio de roupas. Sobre a cômoda havia fotografias emolduradas do pai e da mãe, o que significava que ele não renunciara à família, apenas a Peggy Pilgrim. Voltei à sala de estar e principiei a olhar. Com as cortinas castanho-claras descidas o aposento ficava escuro, de sorte que acendi as luzes. A poeira acumulara-se em toda a parte, mas eu ali estava legalmente, autorizado por quem de direito, de modo que não me preocupei em calçar as luvas.

Claro está que não esperava encontrar nada óbvio, que apontasse diretamente para alguém ou para alguma coisa em particular, visto que os tiras já o haviam revistado, mas eles não tinham nenhum propósito específico, e eu tinha: Sarah Dacos. O leitor gostaria muito, sem dúvida, de ler o inventário completo de tudo o que havia no lugar, sobretudo nas gavetas e nos armários, mas isso exigiria demasiado espaço. Citarei apenas um item, as 384 páginas do romance inacabado. Li uma página e meia. Lê-lo inteirinho para verificar se havia nele alguma personagem que me recordasse Sarah Dacon teria sido tarefa para um dia inteiro.

O único outro item que menciono encontrei-o na última gaveta da camiseira, no dormitório. Ao lado de uma porção de artigos diversos dei com cerca de uma dúzia de fotografias. Nenhuma de Sarah Dacos, mas havia uma de Althaus, deitado, de lado, no sofá da sala, nuzinho da silva. Eu ainda não o vira em trajes de Adão, visto que em seus retratos dos arquivos da Gazette apresentava-se decentemente. Estava em muito boa forma, músculos visíveis, sem barriga, mas as costas da fotografia eram ainda mais interessantes do que a frente. Alguém escrevera ali um poema, ou parte dele. Obtive, posteriormente, licença para reproduzi-lo, de modo que posso mostrá-lo aqui:

Bold Lover, ever, ever shalt thou kiss,

And win the willing goal, and never leave;

She will notfear, and thow shalt have thy bliss,

Forever wilt thou love, and she befair/'

“Ousado amante, sempre, sempre beijarás

E alcançarás a desejosa meta, e nunca a deixarás;

Ela não se temerá e a felicidade será tua,

Para sempre amarás e pulcra ela será.”

Não li toda a poesia que há no mundo, mas Lily Rowan tem uma prateleira só de versos e, em certas ocasiões, faz-me ler-lhe alguns em voz alta, e eu tinha absoluta certeza de haver lido aqueles, embora algo neles me parecesse errado. Tentei identificá-los, mas não o consegui. Como quer que fosse, o principal era saber quem os escrevera. Althaus não fora; eu já lhe vira a letra numa série de itens. Sarah Dacos? Nesse caso, eu teria alguma coisa. Teria muita coisa. Coloquei a fotografia sobre a camiseira e passei outra hora esquadrinhando o apartamento, mas não descobri mais nada.

Eu prometera à Sra. Althaus não tirar coisa alguma sem sua autorização, porém me senti tentado. Poderia levar a fotografia, não para fora do prédio, mas até o andar de baixo, bater à porta de Sarah Dacos e, se ela estivesse em casa, como era possível num sábado, mostrar-lhe os versos e perguntar:

— Foi você quem escreveu isto?

A ação, rápida e direta, tentou-me seriamente. Mas teria sido demasiado direta. Eu precisava continuar trabalhando por vias indiretas. Deixei o apartamento e o prédio, encontrei uma cabina telefônica, disquei o número da Sra. Bruner, chamei-a ao aparelho e disse-lhe que desejava ir a sua casa a fim de pedir-lhe uma coisa. Ela respondeu-me que estaria lá até uma hora. Era apenas doze e vinte. Saí e tomei um táxi.

Ela estava no escritório, sentada à escrivaninha, examinando papéis, a minha espera. Perguntou-me se a Srta. Dacos comparecera à entrevista conforme o combinado, dizendo que esperara um telefonema dela, mas não o recebera. Eu disse que sim, que ela comparecera e se mostrara muito cooperativa. Pus ênfase no "muito", pois era possível que a sala estivesse minada. Depois me sentei, inclinei-me para ela e murmurei:

— Incomoda-se que sussurremos?

Ela enrugou o cenho e protestou:

— É tão ridículo!

— É — sussurrei —, mas é seguro. A senhora não precisa dizer muita coisa. Quero apenas uma amostra de letra da Srta. Dacos. Qualquer coisa, um memorando, um recado para a senhora. Sei que isto parece até mais ridículo ainda, mas não é. Não me peça explicações porque não posso dá-las. Estou cumprindo ordens. Ou a senhora se fia de que o Sr. Wolfe faz o trabalho e fá-lo direito, ou não se fia.

— Mas por que cargas d'água... — principiou ela, mas eu lhe mostrei as palmas da mão.

— Se não quiser sussurrar — sussurrei — basta que me dê o que lhe pedi, e eu vou-me embora.

Quando saí da casa, cinco minutos depois com duas amostras da letra de Sarah Dacos no bolso — um assentamento de nove palavras feito numa folha de anuário e um memorando de seis linhas dirigido à Sra. Bruner — estava persuadido de que as mulheres de meia-idade são a espinha dorsal do país. Ela não sussurrara uma palavra. Vasculhara uma gaveta, encontrara o memorando, arrancara a folha do anuário, entregara-mos e dissera, em tom um pouco mais alto do que o normal:

— Avise-me quando houver alguma coisa que eu deva saber — e voltou a um dos papéis que estivera lendo. Que cliente!

No táxi, de regresso ao centro da cidade, examinei as amostras, e já estava noventa e nove por cento convencido quando subi os dois lanços de escada da Rua Arbor, número 63. Fui ao dormitório em busca da fotografia, refestelei-me na poltrona, debaixo do abajur, na sala de estar, e cotejei as letras. Não sou versado em grafologia, mas nem o seria preciso. A pessoa que escrevera as amostras escrevera os versos nas costas da fotografia. Provavelmente tirara também a fotografia, mas isso não tinha importância. Cheguei a uma conclusão. Concluí que a memória de Sarah Dacos falhara quando dissera que suas relações não tinham sido íntimas.

A questão imediata consistia em saber se eu devia telefonar à Sra. Althaus pedindo permissão para levar a fotografia, ou se devia largá-la ali. Decidi que seria muito arriscado deixá-la; Sarah poderia entrar no apartamento, de uma forma ou de outra, encontrá-la e carregá-la. Tirei uma folha de papel de máquina da escrivaninha, dobrei-a e coloquei a fotografia dentro dela. Quase não me coube no bolso interno do paletó, mas consegui ajeitá-la. Olhei à minha volta, por força do hábito, para certificar-me de que as coisas estavam onde as encontrara, e saí com meus despojos. Ao passar pela porta do apartamento de Sarah Dacos, a caminho, atirei-lhe um beijo. Depois me ocorreu que aquilo merecia mais do que um beijo e fui dar uma espiada na fechadura. Era igual à fechadura da porta de Althaus, uma Bermatt, nada de especial.

Da mesma cabina de onde telefonara para a Sra. Bruner, disquei o número da Sra. Althaus, chamei-a ao aparelho, disse-lhe que tinha deixado tudo em ordem no apartamento, e perguntei-lhe se desejava as chaves de volta imediatamente. Ela respondeu-me que isso ficaria a meu critério, pois não havia pressa.

— A propósito — ajuntei — estou levando um item, se a senhora não se incomodar: a fotografia de um homem, que encontrei numa gaveta. Quero ver se alguém a reconhece. Está certo?

Ela disse que eu estava muito misterioso, mas que sim, que podia levá-la. Senti vontade de contar-lhe o que eu pensava das mulheres de meia-idade, mas decidi que não éramos suficientemente íntimos. Disquei outro número, expliquei à mulher que atendeu, e cujo nome era Mimi, que desejava falar com a Srta. Rowan e, transcorrido um momento, a voz familiar soou-me aos ouvidos.

— Almoço em dez minutos. Venha buscá-lo.

— Você é muito nova para mim. Decidi que as mulheres com menos de cinqüenta anos são... o que é que elas são?

— Insípidas é uma boa palavra.

— Tem muitos ii. Vou pensar em outra para dizer-lhe hoje à noite. Duas coisas. Uma, terei de estar em casa à meia-noite. Estou dormindo no escritório e... explicarei quando a vir.

— Santo Deus! Ele alugou seu quarto?

— Na realidade, alugou, por uma noite. Isso não explicarei. Espere um segundo. — Passei o fone para a mão direita e usei a esquerda para tirar a fotografia do bolso. — Aqui estão uns versos. Preste atenção. — Li-os, com unção. — Você os reconhece?

— Claro! E você também.

— Eu, não, embora me pareçam familiares.

— E deveriam parecer mesmo. Onde foi que os arranjou?

— Um dia lhe direi. Que são?

— São uma paródia dos quatro últimos versos da segunda estrofe da "Ode a Uma Urna Grega" de Keats. Estão bem-feitos, mas ninguém devia brincar com Keats. Escamillo, você é um excelente detetive, dança como um anjo e ainda possui outras qualidades notáveis, mas nunca será um intelectual. Venha ler Keats para mim.

Chamei-lhe insípida, desliguei o telefone, devolvi a fotografia ao bolso, saí e tomei o quinto táxi em cinco horas. A cliente podia pagar.

Faltavam cinco minutos para as duas quando pendurei o sobretudo e o chapéu no cabide, no vestíbulo, fui até a porta da sala de jantar, disse a Wolfe, sentado à mesa, que parecia que ia nevar, e encarreirei-me para a cozinha. Não me sento ao lado de Wolfe quando chego no meio de uma refeição; concordamos em que um homem comer de mãos à boca o peixe ou a carne, enquanto o outro ronceia com massas ou queijo prejudica a atmosfera. Fritz arrumou as coisas na mesa da copa e trouxe-me o que sobrara do peixe cozido; perguntei-lhe como iam os preparativos para o banquete de quinta-feira.

— Não discuto o assunto — retrucou ele. — Não discuto mais nada, Archie. Ele passou em meu quarto mais de uma hora antes do almoço, com a televisão ligada bem alto. Se a coisa é tão perigosa assim, não falo mais.

Expliquei-lhe que deveríamos voltar ao normal quando começassem a chegar as ovas de sável, e ele atirou as mãos para cima e disse bom Deus em francês.

Quando terminei de almoçar e fui para o escritório, ali encontrei Wolfe ao pé do globo, fazendo-o girar e carranqueando para ele. O homem que lhe deu esse globo, o maior de quantos já vi, não poderia adivinhar a utilidade que teria. Toda vez que uma situação se torna tão precária que ele sente ganas de ver-se em outro lugar, pode dirigir-se ao globo e escolher lugares aonde ir. Maravilhoso. Quando entrei, perguntou-me se eu tinha alguma coisa, e como eu acenasse afirmativamente com a cabeça, foi para sua mesa. Liguei o rádio, empurrei uma cadeira amarela para junto de seu ombro e fiz o relatório. Não levei muito tempo, pois não havia convesações para repetir, só ação. Não mencionei o telefonema a Lily Rowan porque fora puramente pessoal.

Tendo lido os versos duas vezes, ele devolveu-me a fotografia e observou que ela tinha ouvido para métrica.

— Eu lhe disse que ela não era idiota — retruquei. — Muito viva, fazendo isso com os quatro últimos versos da segunda estrofe da "Ode a Uma Urna Grega", de Keats.

Seus olhos estreitaram-se ao fitar-me.

— Como sabe disso? Você não lê Keats.

Dei de ombros.

— Em Ohio, em meus tempos de menino. Como o senhor não ignora, tenho boa memória. Não me gabo disso, mas vou gabar-me disto aqui. — Bati com o dorso da mão na fotografia. — Sabemos por que foi que ela mentiu. Está envolvida no caso. Talvez não muito profundamente; pode ser que apenas não quisesse admitir que era íntima dele, tão íntima que soubesse o que ele estava fazendo sobre o FBI. Ou talvez muito profundamente. "Sempre, sempre beijarás". E "Para sempre amarás". Mas ele lhe disse que ia casar com outra moça, e ela matou-o, provavelmente com o revólver. Eis aí a segunda alternativa, que é nossa franca favorita. Será difícil apanhá-la. Ela talvez possa provar que esteve na tal conferência, mas não provará a hora em que saiu. Possivelmente, nem esteve lá. Passou a noite no número 63 da Rua Arbor, chamando às falas o ousado amante, e matou-o antes que chegassem os G-men. Agrada-lhe isso?

— Como conjetura, sim.

— Então preciso examinar a questão da conferência. Ela pode ter um álibi. Segundo Cramer, os G-men saíram cerca das onze horas, depois, naturalmente, de escarafunchar o apartamento, quer o tivessem matado, quer não. Acharam o material que ele ajuntara. Assim sendo, não devem ter chegado depois das dez e meia, digamos mesmo das dez e quarenta. Se ela o matou, saiu antes que chegassem. A Escola Nova fica na Rua Doze. Se foi vista na conferência às dez e vinte, ou mesmo às dez e um quarto, está livre de suspeitas. Vou começar a perguntar.

— Não.

— Não?

— Não. Se eles souberem que você está fazendo isso, ou através da vigilância em que o trazem ou por inadvertência sua, saberão que estamos considerando seriamente a possibilidade de que a mulher o matou, o que seria desastroso. Precisamos conservá-los na ilusão de que estamos convencidos de que um membro do Departamento Federal de Investigações matou Morris Althaus e de que andamos à cata de provas para demonstrá-lo; de outro modo, nossos preparativos para a noite da próxima quinta-feira darão em nada. Para proteção de nosso flanco, cumpria-nos saber, definitivamente, se a Srta. Dacos estava mentindo, e você esclareceu o assunto: estava. Satisfatório. Mentiu para encobrir o fato de se haver comprometido, e isso nos basta. Se o envolvimento dela se resume numa intimidade secreta, que ela não quer revelar, ou se se trata de assassínio cometido pelas próprias mãos, não nos interessa.

— Cramer ficaria encantado ao saber disso. Depois de ter-nos dado a dica. Telefonarei a ele e lho direi, para aliviar-lhe o espírito.

— Pfui. Quando tivermos aliviado nosso espírito, terminando a tarefa para a qual fomos contratados, pensaremos na obrigação que lhe devemos. Se nos parecer factível sem muito esforço, desmascararemos o criminoso para ele. Se não for um membro do FBI, como ele espera e deseja, não nos agradecerá, mas não lhe ficaremos devendo favores.

— Esqueceremos, então, o assassínio até depois de quinta-feira?

— Sim.

— Ótimo. As agências estarão fechadas hoje e amanhã, de modo que Hewitt só poderá começar a procurar segunda-feira. Estarei no Flamingo esta noite, caso aconteça alguma coisa; como, por exemplo, se Hewitt telefonar dizendo achar que a história é complicada demais e nós tivermos de encontrar outra pessoa. Amanhã a Srta. Rowan vai oferecer um almoço dançante a uma porção de gente, e ficarei até mais tarde para ajudar a limpar os cinzeiros. Alguma instrução para esta tarde?

— Desligue o rádio.

 

Isso me preocupou durante quatro dias e quatro noites, desde sábado à tarde, quando Wolfe me disse que deveríamos esquecer o assassínio, até quarta-feira pela manhã, quando fiz uma coisa por minha alta recreação.

Havia dois aspectos que era preciso considerar. Primeiro, se a conjetura a respeito de Sarah Dacos, ou qualquer coisa desse gênero, viesse a comprovar-se, eu tirara uma prova da cena do crime e a estava sonegando. E claro que os tiras tinham tido sua oportunidade, tinham visto, sem dúvida, a fotografia e a tinham deixado lá, e a Sra. Althaus me entregara as chaves, mas isso era apenas uma saída legal. O segundo aspecto é que realmente me preocupava. Cramer nos salvara as licenças, pelo menos até aquele momento, e fora a mim, Archie Goodwin, que ele convidara para uma conferência e a quem comprara um cartucho de leite e a quem entregara um caso de homicídio. Não me oponho a fazer brincadeiras com tiras, às vezes a gente tem até vontade de fazê-las e às vezes é obrigado a fazê-las, mas isto era diferente. Eu tinha uma dívida pessoal para com Cramer.

Por conseguinte, sentia-me preocupado, mas havia outra coisa que me preocupava ainda mais, ou seja, o espetáculo que Wolfe estava encenando, o mais fantasioso que se poderia imaginar. Grande parte dele, quase todo ele, achava-se inteiramene fora de nosso controle. Por exemplo, quando telefonei para Hewitt, de uma cabina, segunda-feira à tarde, para saber como se houvera na empreitada e ele respondeu que se houvera muito bem, que descobrira um ator numa agência e outro em outra, e que ambos estariam em sua casa terça-feira à noite, e eu lhe perguntei se se certificara de que o homem encarregado de minha parte sabia dirigir, e tinha licença, ele confessou que se esquecera de perguntar, mas qualquer pessoa dirigia automóvel! E esse era um ponto vital e ele sabia-o. Mas prometeu verificá-lo imediatamente; tinha o número do telefone do ator. Outros pormenores haviam sido muito bem tratados, como o telefonema para nossa casa na terça-feira ao meio-dia, conforme ficara combinado. Disse a Wolfe que lamentava muitíssimo, pedia muitas desculpas, mas só poderia incluir doze exemplares de Phalaenopsis Aphrodite na remessa, em lugar de vinte, e nenhum Oncidium flexuosum. Ajuntou que faria o possível para enviar as flores quarta-feira ao meio-dia, de sorte que elas deveriam chegar pelas duas horas da tarde. Tratou desse assunto com perfeição. Portou-se também corretamente no telefonema que deu terça-feira à noite, quando falou sobre os suprimentos e preparativos para o jantar dos Dez Paladinos da Aristologia, mas aquilo para ele era corriqueiro e, de qualquer maneira, saiu-se muito bem.

Fred Durkin e Orrie Cather não constituíam problema, porque Saul ficara encarregado de lidar com eles e, se sobreviesse alguma dificuldade, saberia avisar-nos. Como o faria era problema seu.

Durante o dia e a noite de segunda-feira, e até na terça, discutimos, várias vezes, um problema. Não foi propriamente uma discussão; apenas ventilamos o caso. Deveria eu telefonar para Wragg, o agente encarregado do FBI, combinar com ele um encontro em algum lugar, dizer-lhe que Wolfe tinha informações suficientes sobre o homicídio de Althaus para torná-lo realmente perigoso e, querendo desfazer-me delas, eu me propunha a transmitir-lhe tudo o que sabíamos por dez, vinte ou cinqüenta mil dólares? O diabo é que não o conhecíamos. Poderia ser quase certo que ele engolisse a isca, mas poderia acontecer exatamente o contrário e que ele ficasse de orelha em pé. Por fim, pouco antes do meio-dia de terça-feira, desistimos da idéia. Era arriscado demais e tínhamos muito pouco tempo.

As nove horas da manhã de quarta-feira, quando ouvi o elevador transportar Wolfe ao viveiro, levei minha segunda xícara de café do desjejum ao escritório, onde me sentei para ruminar uma idéia que me acudia, intermitentemente, desde segunda-feira de manhã. Eu não teria nada que fazer até que o caminhão das orquídeas chegasse, às duas horas; já se fizera tudo o que era possível fazer, pelo que eu sabia, o que não era grande coisa. Terminei o café às nove e vinte, e calculei que Sarah Dacos, provavelmente, não começaria a trabalhar no escritório Bruner antes das nove e meia ou mesmo das dez. Dirigi-me ao armário, abri a gaveta onde guardamos coleções de chaves e escolhi algumas. Não foi tarefa complicada, pois eu sabia que a fechadura era Bermatt. De outra gaveta retirei um par de luvas de borracha.

Às 9 e 35 disquei para o número da Sra. Bruner e obtive resposta:

— Escritório da Sra. Bruner, bom dia.

— Bom dia. Srta. Dacos?

— Sim.

— Aqui é Archie Goodwin. Eu talvez precise ver a Sra. Bruner mais tarde, e estou telefonando para saber se ela estará aí.

Ela respondeu-me que isso dependeria da hora, pois a Sra. Bruner esperava ficar no escritório das três e meia às cinco e meia, e eu disse que voltaria a telefonar se precisasse ir até lá.

Ela, portanto, estava trabalhando. Eu teria de arriscar-me a encontrar a mulher da limpeza. Fui à cozinha para dizer que ia sair a fim de dar algumas telefonadas, passei pelo vestíbulo, onde apanhei o chapéu e o sobretudo, e saí, rumo à Nona Avenida, à caça de um táxi.

Para a porta da rua do número 63 da Rua Arbor eu ainda tinha a chave que a Sra. Althaus me dera, de sorte que tudo correu bem até que me vi à porta de Sarah Dacos e saquei da coleção de chaves. Depois de haver batido duas vezes e premido duas vezes o botão, ouvindo soar a campainha, sem obter resposta, experimentei uma chave. A quarta serviu, e girou fácil e suavemente na fechadura. Calcei as luvas, girei a maçaneta, abri a porta, transpus o limiar, e assim dei início a uma violação de domicílio de acordo com os estatutos do Estado de Nova Iorque.

A disposição dos cômodos era idêntica à do andar superior, mas os móveis diferiam muitíssimo. Havia ali várias alfombras em lugar de um tapete só, um sofá menor, cheio de almofadas, nada de escrivaninha nem de máquina de escrever, um número menor de cadeiras, a quarta parte dos livros, cinco quadrinhos nas paredes, que o ousado amante deveria ter tachado de velharias. As cortinas estavam descidas, de sorte que acendi as luzes, pus o sobretudo e o chapéu no sofá e abri a porta de um dos armários.

Dois fatos me preocupavam: a arrumadeira poderia surgir a qualquer momento, e eu não tinha a menor idéia do que haveria de encontrar, se é que encontraria alguma coisa. Tratava-se pura e simplesmente de verificar se havia lá alguma coisa que ajudasse, sem embargo do que ia acontecer na quinta-feira à noite, para retribuir a Cramer o cartucho de leite. Fazia-se mister um exame rápido; por isso gastei apenas dez minutos na sala de estar e em seus dois armários, e passei ao dormitório.

Quase cheguei a deixá-lo para trás. O armário do dormitório estava abarrotado — roupas nos cabides, sapateiras, malas de viagem caixas e chapeleiras nas duas prateleiras superiores. A mala e as duas maletas continham roupas de verão, e passei por alto as chapeleiras; eu teria dado uma boa soma do meu dinheiro para saber se a mulher da limpeza aparecia às quartas-feiras. Mas, dez minutos depois, passando revista a uma gaveta cheia de fotografias e examinando-as uma por uma, compreendi que seria estupidez deixar de parte as chapeleiras e, depois, perder tempo com uma pilha de fotografias que não poderiam contar-me nada que eu já não soubesse; cheguei uma cadeira ao armário, trepei nela e desci as caixas de chapéus. Na primeira havia três pretensos chapéus e dois biquínis. Na segunda, um chapelão adejante. Ergui-o e descobri, no fundo, um revólver. Fiquei olhando para ele, apalermado, durante uns cinco segundos, depois peguei-o na mão e examinei-o. Era um S & W trinta e oito e continha uma cápsula deflagrada e outras cinco intactas.

Deixei-me ficar com ele na mão. Eu apostaria cem contra um que era o revólver que Althaus tinha licença para usar, o mesmo que disparara a bala que lhe varara o corpo, e que Sarah Dacos puxara o gatilho. Mas as cem probabilidades contra uma bem poderiam ir para o inferno. A questão era saber o que fazer com ele. Se eu o levasse comigo, nunca seria elemento material de prova aceitável num processo-crime, visto que o obtivera ilegalmente. Se saísse da lá, fosse a uma cabina telefônica, chamasse Cramer e lhe sugerisse que solicitasse um mandado para revistar o apartamento de Sarah Dacos, os tiras encontrariam o revólver, sem dúvida alguma; entretanto, se o FBI se inteirasse disso antes de decorridas as trinta e seis horas fatais, o que poderia acontecer com muita facilidade, o grande espetáculo de quinta-feira à noite daria em água de bacalhau. E, naturalmente, se eu o deixasse na chapeleira e não telefonasse para Cramer, Sarah Dacos poderia achar aquela noite uma boa ocasião para levá-lo embora e atirá-lo ao rio.

Visto que só me restava uma alternativa, a única decisão que me cumpria tomar era escolher o lugar em que havia de deixá-lo. Devolvi o chapéu à chapeleira e as chapeleiras ao armário, recoloquei a cadeira onde estava, e circungirei os olhos. Nenhum sítio no dormitório me pareceu adequado, e passei à sala de estar. Naquele momento era mais desejável do que nunca que eu não fosse interrompido pela arrumadeira nem por ninguém. Examinei o sofá e descobri que, debaixo da almofada, havia um estrado de molas e, debaixo das molas, um fundo de madeira compensada. Esplêndido. Se ela pegasse na chapeleira e nao encontrasse o revólver, por certo não cuidaria que ele apenas mudara de lugar, no próprio apartamento, e não se poria a procurá-lo. Coloquei-o no fundo, debaixo do estrado de molas, olhei à minha volta para verificar se as coisas continuavam como eu as encontrara, apanhei o chapéu e o sobretudo e saí com tanta pressa que quase apareci no passeio calçando luvas de borracha.

No táxi tive de responder a outra pergunta: devia, ou não, contar a Wolfe? Por que não esperar que a noite de quinta-feira chegasse e passasse? A resposta era muito simples mas, naturalmente, uma das razões pelas quais usamos a cabeça é a busca de motivos complicados para evitar respostas simples. Quando o carro de praça parou diante da velha casa de pedra marrom, minha mente esgotara o estoque de motivos e concluí, melancólico, que não melhoraria com a idade.

Eram onze e dez, de sorte que Wolfe já deveria ter descido do viveiro, mas não o encontrei no escritório. Havia barulho na cozinha, o rádio estava ligado, e para lá me dirigi. Wolfe achava-se em pé, junto à mesa grande, carranqueando para Fritz, que se inclinara a fim de cheirar uma posta de esturjão defumado. Não me ouviram entrar, mas Fritz me viu ao endireitar-se e Wolfe, virando-se, perguntou:

— Onde esteve?

 

Eu disse-lhe que tinha um relatório. Ele ordenou a Fritz que aprontasse as costeletas para as duas e um quarto, pois não esperaria mais do que isso, encaminhou-se para o escritório, e eu segui-lhe no encalço. Liguei o rádio. Ao aproximar a cadeira amarela, enxerguei três chaves de fenda sobre um bloco, em cima da mesa — uma tirada da gaveta de minha escrivaninha e duas da cozinha, e não pude menos de sorrir. Ele mesmo aprontara as ferramentas. Ao sentar-me, disse-lhe ter imaginado que ele almoçaria cedo. Ele respondeu-me que não, pois se um homem tem convidados deve sentar-se à mesa com eles.

— Então — ajuntei —, há muito tempo para discutir um rápido relatório. Com tanta coisa que o senhor tem na cabeça, eu poderia deixá-lo para depois, mas o senhor gostará de saber que destrinchei a alternativa que preferimos. Saí a passeio, acertei de passar pelo número 63 da Rua Arbor, e aconteceu que eu tinha uma chave no bolso que servia na fechadura da porta de Sarah Dacos, de modo que entrei, dei uma espiada e, numa chapeleira guardada num armário, encontrei um revólver, um S & W trinta e oito, com uma cápsula deflagrada. Como o senhor sabe, Cramer me contou que Althaus tinha licença para usar um S & W trinta e oito, que não se achava no apartamento, embora lá houvesse uma caixa de balas numa gaveta. De sorte que ela...

— O que foi que você fez com ele?

— Mudei-o de lugar. Pareceu-me deslocado numa chapeleira com um chapéu de senhora, e coloquei-o debaixo do estrado de molas de um sofá.

Ele aspirou profundamente, reteve o ar por um segundo e expirou-o.

— Ela o matou — grunhiu.

— Certo. Como eu estava dizendo quando o senhor me interrompeu.

— E poderá encontrá-lo?

— Não. Se lhe der pela falta, nem sequer o procurará. E o que me diz o conhecimento que tenho das moças bonitas. Mas pode pôr-se ao fresco. Se o fizer, terei um problema. Se ela fugir e eu contar a Cramer a história do revólver, ficarei esnucado. Se não lhe contar, não dormirei de noite.

Wolfe fechou os olhos. Dois momentos depois, abriu-os.

— Você devia ter-me dito que ia lá.

— Não devia. Era uma missão particular, em que está envolvido um cartucho de leite. Mesmo que ela seja agarrada, terei um problema nas mãos se o negócio, amanhã à noite, der em droga. Se e se. Agora mesmo eu gostaria de telefonar a Hewitt de uma cabina e perguntar-lhe se as orquídeas estão encaixotadas. Vou?

— Não. Ele está ocupado. Se não me engano, revólveres podem ser identificados.

— Claro. Os cientistas conseguem fazê-lo agora, ainda que o número tenha sido apagado. E Cramer deve ter o número do revólver licenciado por Althaus.

— Então não haverá problema. Preciso ver aquele esturjão.

Levantou-se da cadeira e endireitou para a porta. A um passo dela, sobresteve, voltou-se e disse:

— Satisfatório.

E saiu. Abanei a cabeça e continuei a abaná-la enquanto recolocava a cadeira amarela no lugar.

"Não haverá problema." Pelo amor de Deus! Cuidei que, se eu tivesse uma vaidade daquele tamanho, seria o dono do FBI, e depois compreendi que não era essa a verdadeira maneira de colocar a questão. Devolvi as chaves e as luvas ao armário, e fui à cozinha buscar um copo de leite, visto que o almoço sairia tarde, e ouvi-los discutirem esturjões.

Com um par de horas para passar, talvez mais, depois que o leite desceu, fui dar minhas voltas — primeiro a meu quarto, lá em cima, a fim de ver se estava tudo em ordem para os hóspedes que ocupariam minha cama. Fritz não pode tocar no meu quarto; ele é todo meu, inclusive sua responsabilidade. Estava em ordem, a não ser os travesseiros, que eu tirara do armário aquela manhã, que eram de tamanhos diferentes, mas não havia outro remédio. Depois me encaminhei para o quarto do sul, que fica acima do de Wolfe, onde mais dois hóspedes dormiriam nas camas gêmeas. Essa visita era desnecessária, visto que Fritz nunca se engana, mas eu tinha tempo para matar.

E o caso é que o matei, de uma forma ou de outra.

Não os esperava senão às duas, quando muito, mas devia ter-me lembrado de que era Saul o encarregado. Wolfe estava na cozinha e eu na sala da frente, que fica ao lado do escritório, verificando se haviam sido colocados cobertores no sofá, quando soou a campainha da porta e olhei para o relógio. Faltavam vinte para as duas, de modo que não poderia ser o caminhão. Mas era. Dirigindo-me ao vestíbulo, dei com um homenzarrão de paletó de couro na varanda. Quando abri a porta, ele precipitou-se em minha direção:

— Nero Wolfe? Orquídeas para o senhor!

Saí para a varanda. Rente ao meio-fio estacionara um grande caminhão verde com o nome da firma em letras vermelhas, do lado: COMPANHIA DE TRANSPORTES DA ZONA NORTE. Outro latagão, na traseira, abria as portas. Eu disse bem alto que a temperatura estava muito fria para as orquídeas e que iria dar uma mão. Ao tempo em que enfiei o casaco e saí, eles já estavam equilibrando um caixote na borda do caminhão, puxando-o para fora. Acontece que lhes conheço o tamanho exato — 92 centímetros de largura, 1,50 metro de comprimento e 60 centímetros de altura — porque já acondicionara orquídeas em caixotes daquele mesmíssimo tamanho para serem remetidas a negociantes ou exposições. Dos lados estava escrito:

FRÁGIL PERECÍVEL PLANTAS TROPICAIS

CONSERVE O MAIS QUENTE POSSÍVEL

Desci à calçada, mas eles ergueram-no, segurando-o pelas alças nas extremidades, obviamente desnecessitados de ajuda, nem mesmo para subir a escada. Em cima, Wolfe mantinha a porta aberta e eles entraram. A única coisa que me restava fazer era ficar lá fora, de guarda ao caminhão, e lá fiquei. Havia mais cinco caixotes no interior, todos iguais ao primeiro. Um dos cinco seria particularmente pesado, até para aqueles taludões, mas eu não sabia qual deles. Verificou-se que era o penúltimo. Quando o depuseram no chão e empolgaram as alças, disse um dos carregadores:

— Jesus, essas devem estar em potes de chumbo.

Ao que o outro respondeu:

— Não, de ouro.

Fiquei imaginando se haveria algum G-man suficientemente próximo para ouvi-los. Levaram-no escada acima sem um tropicão, embora devesse pesar quase cento e trinta e cinco quilos, contando o caixote — eu, pelo menos, esperava que pesasse. Quando levaram o derradeiro para dentro, acompanhei-os. Wolfe assinou um recibo, eu dei dois dólares a cada um, recebi os devidos agradecimentos e esperei que chegassem à calçada para fechar a porta e aferrolhá-la.

Os caixotes tinham sido enfileirados no vestíbulo, o rádio no escritório fora ligado bem alto, e Wolfe já estava usando uma chave de fenda na terceira caixa a partir da última. Perguntei-lhe se tinha certeza e, quando ele me disse que sim, por causa do X feito com giz na tampa, fui buscar outra chave de fenda. Havia apenas oito parafusos e, dois minutos depois, tínhamos soltado todos eles. Tirei a tampa, e lá estava Saul Panzer, de lado, com os joelhos dobrados para cima. Comecei a inclinar o caixote, mas Saul, que só tem grandes o nariz e as orelhas, girou sobre si mesmo, ficou de joelhos e depois ergueu-se em pé.

— Boa tarde — disse Wolfe.

— Não muito — volveu Saul, que se esticou todo. — Posso falar?

— Com o rádio, pode.

Tornou a esticar-se.

— Foi uma viagem e tanto. Espero que estejam vivos.

— Quero certificar-me — disse Wolfe — de que tenho os nomes certos. O Sr. Hewitt deu-os a Archie pelo telefone.

— Ashley Jarvis é o senhor. Dale Kirby é Archie. É melhor tirá-los dali.

Foi a primeira e única vez em toda a vida que vi homens serem apresentados enquanto encaixotados.

— Um momento — disse Wolfe. — Você lhes deu uma explicação completa?

— Dei, sim, senhor. Não devem falar, nem uma palavra, a não ser que o senhor lhes peça que falem — ou Archie. Não sabem quem minou a casa ou quem a está vigiando, nem por que, mas têm a promessa formal de Hewitt de que não correm perigo nem o correrão. Ele deu quinhentos dólares a cada um e o senhor deverá dar-lhes outros quinhentos. Entregou-lhes também as declarações assinadas pelo senhor. Creio que servirão. — Abaixou um pouco a voz. — Kirby é melhor do que Jarvis, mas servirão.

— Sabem que terão de ficar no quarto e afastar-se das janelas?

— Sabem. A não ser quando estiverem... uh... ensaiando.

— Trouxeram as roupas apropriadas para quinta-feira à noite?

— Naquele caixote. — Saul apontou para o caixote. — Nossas coisas estão lá também, incluindo os revólveres. Eles, naturalmente, usarão seu chapéu e seu sobretudo, e os de Archie.

Wolfe fez uma careta.

— Muito bem. Fred e Orrie primeiro.

— Estão assinalados. — Tirou a chave de fenda de Wolfe, dirigiu-se a um caixote em que se via um círculo de giz, e disse-me:

— O de Orrie tem um triângulo. — E atacou um parafuso.

Achei o triângulo e comecei a desaparafusá-lo. Ele topou com Fred antes que eu desse com Orrie, porque um de meus parafusos tinha a cabeça estragada. Esses também tinham recebido instruções para não falar enquanto não lhes fosse dirigida a palavra e, pela expressão do rosto deles quando se levantaram dos caixotes, achei sábia a recomendação. Ergui as sobrancelhas para Saul e bati no peito; ele apontou para o último caixote da fieira; fui até lá e pus-me a trabalhar.

Sei que os atores profissionais têm muita prática de dizer apenas o que são obrigados a dizer e de ficar de bico calado quando o texto o exige mas, mesmo assim, tive de dar mentalmente os parabéns a Ashley Jarvis e Dale Kirby. Tinham passado por um mau bocado nas últimas duas horas, ou mais — mormente Jarvis, que carregava, manifestamente, os mesmos quilos de Wolfe e muito menos bem distribuídos. Tivemos de deitar o caixote de lado para que ele pudesse sair, e permaneceu no chão uns bons cinco minutos, recusando oferecimentos de ajuda, flectindo braços e pernas; mas quando, finalmente, se recompôs e empertigou-se, voltou-se para Wolfe e fez-lhe uma mesura, uma mesura e tanto. Kirby não me fizera mesura alguma, mas não pronunciara uma palavra. Enquanto esperávamos que Jarvis levantasse, ficou para um lado, fazendo ginástica rítmica, seguindo o compasso da música no rádio.

Eu já estava concordando com Saul: eles servirão, sim. Kirby seria um centímetro e meio mais baixo do que eu, mas a compleição era igual. Jarvis tinha, exatamente, a altura de Wolfe. Não teria os ombros tão largos e seria um pouco mais protuberante no meio mas, de sobretudo, ficaria ótimo. Os rostos é que não eram lá muito parecidos, mas estaria escuro na hora e nenhum G-man chegaria muito perto.

Wolfe retribuiu a mesura com um aceno de cabeça e convidou:

— Venham, cavalheiros — e entrou no escritório.

Ao invés de ir sentar-se a sua mesa, puxou uma cadeira amarela para o centro do tapete, tão grosso que abafaria qualquer ruído, e foi buscar outra. Peguei duas e Saul, Fred e Orrie pegaram uma cada um, e todos nos sentamos, em dois círculos, com Wolfe, Jarvis e Kirby no círculo interno. Mas Wolfe disse:

— O dinheiro, Archie.

Levantei-me e fui buscá-lo no cofre — dois pacotes de vinte e cinco notas de vinte dólares cada um, que lá estavam à espera.

Os olhos de Wolfe alternaram-se entre Jarvis e Kirby.

— O almoço está pronto — disse ele — mas, primeiro, esclareçamos alguns pontos. Esse dinheiro lhes pertence. Archie?

Entreguei-lhos, um pacote para cada um, Jarvis limitou-se a olhar para o seu e metê-lo no bolso externo do paletó. Kirby tirou uma carteira do bolso interno, arrumou as notas direitinho dentro dela e recolocou-a no lugar donde a tirara.

— O Sr. Hewitt explicou-lhes — disse Wolfe — que os senhores receberiam mil dólares cada um, e acabam de recebê-los. Mas tendo-os visto emergirem daqueles caixotes, achei que já fizeram jus aos mil dólares. Amplamente. Por conseguinte, se desempenharem o resto de suas missões de maneira satisfatória, acharei que terão feito jus a mais mil, e os senhores os receberão. Sexta ou sábado.

Jarvis abriu a boca, lembrou-se na hora H, tornou a fechá-la. Apontou para Kirby, bateu no peito, e fez cara de pergunta.

Wolfe assentiu com a cabeça.

— Dois mil dólares. Mil para cada um. Ura pouco mais perto, Sr. Kirby. Não posso falar alto. Os senhores ficarão aqui vinte e oito horas. Durante esse período não se deverá escutar um único som que, ouvido por terceiros, revele sua presença nesta casa. O quarto dos senhores fica dois andares acima deste. Subirão pela escada, não usarão o elevador. Se precisarem de alguma coisa, haverá um homem no vestíbulo, ao lado do quarto. Se tiverem de comunicar-se um com o outro, sussurrem. Há várias dúzias de livros no quarto. Se nenhum lhes agradar, podem escolher o que quiserem nesta estante. Nem rádio nem televisão; a casa não pode virar uma babel. Os senhores terão de observar atentamente os gestos e a maneira de andar do Sr. Goodwin e os meus, e terão várias oportunidades de fazê-lo. Não nossas vozes; não será necessário. — Apertou os lábios. — Creio que é tudo. Se quiserem fazer perguntas, façam-nas agora, em voz baixa, ao meu ouvido. Querem?

Eles sacudiram a cabeça.

— Então, vamos almoçar. O rádio ficará em silêncio. Não discutimos negócios à mesa. Ninguém falará, exceto o Sr. Goodwin e eu.

Levantou-se.

 

Eu não gostaria de reviver aquelas vinte e oito horas.

Para atravessar uma floresta em que se sabe que há atiradores atocaiados e um deles pode estar encarapitado numa árvore qualquer, requer-se apenas coragem e olho vivo. Mas quando não se sabe se há atiradores, e só se sabe que pode havê-los, a coisa é diferente. Para que servem a coragem e o olho vivo? Não sabíamos se a casa estava minada; sabíamos apenas que podia estar. Se Jarvis ou Kirby amassassem um dedo na porta do banheiro e gritassem um palavrão, poderiam estragar a festa, mas apenas poderiam, e isso é que era o diabo. Todas as vezes que eu fazia uma excursão ao último andar, para verificar se Saul, Fred ou Orrie estavam no vestíbulo e não se tinham enfarado daquilo e começado a conversar, eu me sentia com cara de bobo. Gente grande não olha debaixo da cama todas as noites para ver se há lá um ladrão, embora possa haver um.

As duas refeições foram estapafúrdias, estando Wolfe e eu encarregados de toda a conversação, principalmente Wolfe, enquanto os outros cinco se limitavam a comer e ouvir. Experimente o leitor fazê-lo algum dia. Eu não podia sequer pedir a um deles que me passasse a manteiga; só me era dado apontar para ela. E quando estávamos fazendo alguma coisa, levando, por exemplo, os caixotes para o quarto de despejo e empilhando-os, nem eu podia falar, pois com quem estaria falando?

Saí de casa apenas uma vez, à tardinha de quarta-feira, para telefonar a Hewitt de uma cabina e dizer-lhe que a remessa chegara em boas condições, e dar um pulo à garagem a fim de fornecer a Tom Halloran um apanhado da situação.

Houve alguns bons momentos, dois deles na quarta-feira e quatro na quinta, enquanto Jarvis observava Wolfe. Jarvis colocava-se no pé da escada e estudava de baixo para cima os movimentos de Wolfe ao descer os degraus, depois subia ao topo e estudava-os de cima para baixo, depois postava-se no vestíbulo e estudava-os no mesmo nível. Na segunda sessão de quinta-feira conheci que Jarvis estava bulindo com Wolfe, divertindo-se com a expressão que lhe via no rosto, mas eu me diverti também. E claro que Kirby me observava da mesma maneira, mas isso não me fazia mossa porque, num dia normal, subo e desço aquela escada uma dúzia de vezes, ou mais. O que Kirby não poderia observar era meu modo de dirigir. Eles seriam, provavelmente, acampanados até a casa de Hewitt e, se seu estilo ao volante fosse muito diferente do meu, poderia despertar as suspeitas de um G-man esperto. Na quinta-feira pela manhã levei-o ao escritório e discutimos o assunto durante meia hora.

 

Recapitulando a história toda, chego à conclusão de que não nos esquecemos de nada. Cerca das onze horas da noite de quarta-feira subi para meu quarto, que dá para a Rua Trinta e Cinco, não dispensei às cortinas maior atenção do que o faço habitualmente, vesti o pijama e apaguei a luz à cabeceira da cama. Dois minutos depois Fred e Orrie chegaram, trocaram de roupa no escuro, eu saí e eles entraram. Saul dormiu no sofá da sala da frente, e lá nem acendemos as luzes. Raro o fazemos.

Mencionarei uma coisa engraçada. Quando apaguei a luz do escritório na noite de quarta-feira e me meti entre os lençóis, no sofá, não pensei na armadilha que estávamos preparando nem se ela iria funcionar, mas no sofá do apartamento de Sarah Dacos. E se a arrumadeira decidisse virar do avesso a almofada e olhasse por baixo do estrado? Se eu tivesse ficado mais cinco minutos ali talvez houvesse encontrado um esconderijo melhor.

As duas refeições a que aludi foram o almoço e o jantar de quarta-feira. O desjejum e o almoço de quinta-feira transcorreram de modo diferente porque Fritz não estava lá. Ficara combinado que Hewitt mandaria um automóvel buscá-lo às oito da manhã, e o carro chegou exatamente na hora. Carreguei-lhe a mala e, à porta do carro, ele me apertou a mão com expressão sucumbida. Positivamente não se achava no estado de espírito ideal para produzir obras-primas destinadas a um grupo de aristólogos. Saul e eu resolvemos o problema do desjejum e, para o almoço, tivemos fatias frias de carne, inclusive de esturjão, que fora declarado comestível, duas garrafas de champanha e cinco tipos de queijo.

As 4 e 45 da tarde de quarta-feira eu me achava no escritório com Saul, Fred e Orrie quando Theodore Horstmann, o tratador das orquídeas, que recebera ordens para sair cedo, desceu, disse boa-noite e saiu. Wolfe estava lá em cima, no quarto. Às 5 e 10 subi para meu quarto, acendi as luzes e principiei a trocar-me. Eu poderia ter-me certificado de que não havia frestas nas cortinas e ficar apenas sentado, mas não seria normal de minha parte preocupar-me com frestas e queríamos que tudo fosse normalíssimo. Wolfe, em seu quarto, estava fazendo o mesmo. Às 5 e 40, vestido para o jantar, volvi ao escritório; às 5 e 45 ouvi o som do elevador, e Wolfe apareceu, vestido também. Ele e eu principiamos a falar, sem rádio, sobre problemas de tráfego. Às 5 e 55 em ponto ouviu-se leve som de passos no vestíbulo, e Jarvis e Kirby lá estavam. O uniforme de jantar de Jarvis era bem superior ao de Wolfe, que já conhecera melhores anos, mas o de Kirby não chegava aos pés do meu, que me custara trezentos dólares. Pararam à porta. Eu disse a Wolfe que esperaria no automóvel, fui para o vestíbulo, segurei meu sobretudo para Kirby vesti-lo, dei-lhe meu chapéu, e fiquei num canto, onde ninguém me pudesse ver, enquanto ele abria a porta, transpunha a soleira e tornava a fechá-la. Quando Jarvis apareceu e ficou olhando pelo olho mágico, comigo a seu lado, apagaram-se as luzes do escritório e fui buscar o sobretudo e o chapéu de Wolfe para Jarvis. Cerca de meia hora depois, em que, na realidade, não se passaram mais de seis minutos, o Heron apareceu e parou junto ao meio-fio. Jarvis apertou o interruptor e as luzes do vestíbulo se apagaram, mas voltei ao meu canto até que ele saiu e a porta se fechou. Observei-o e decidi que ele estava fazendo jus aos mil dólares extraordinários. Eu não formara opinião a respeito de Kirby, pois não sei como pareço ao andar, mas, se não o soubesse, teria jurado que era Wolfe quem descia a escada, atravessava o passeio e entrava no carro. O Heron afastou-se, suavemente, sem trancos, como faz comigo, e percebi que eu estivera retendo o fôlego, sabe Deus por quanto tempo.

O escritório deveria estar vazio se eles tivessem obedecido ao texto. Antes que as luzes se apagassem no vestíbulo, Wolfe se recolhera à cozinha escura, Orrie à escura sala de jantar, e Saul e Fred, pela porta de comunicação, à escura sala da frente. Eu não os ouvira, de sorte que ninguém os ouvira. Enfiei a mão no bolso externo do paletó, para tocar na Marley trinta e oito, aproximei-me da porta e passei a mão pela borda, para certificar-me de que estava fechada, esperei que meus olhos se acostumassem o quanto possível ao escuro, e sentei-me na cadeira encostada à parede oposta ao cabide.

Sentia-me esplendidamente. A tensão se acabara. O plano poderia ter gorado de cem maneiras diferentes, já por mau desempenho, já por má sorte, mas lá estávamos nós, com tudo pronto, sem outra coisa que fazer senão esperar. Ou eles haviam decidido vir fazer uma limpeza, ou não, mas a tensão, nesse caso, era deles, já não era minha. Eu não sabia quantas operações do gênero eles já tinham feito, nenhum estranho o sabe, mas eu tivera conhecimento positivo de quatro realizadas em Nova Iorque no ano anterior, e ouvira falar em várias outras. Isso dependia de Wragg acreditar ou não que um G-man matara Althaus. Se acreditasse, era quase certo que viriam. Se não acreditasse, se estivesse persuadido, por uma razão qualquer, de que seus homens não tinham culpa no cartório, não viriam. Se a isca fora suficientemente boa dependia dele, não de nós. Eu me sentia muito bem.

Quando decidi que se passara meia hora, fui até a porta para consultar o relógio à luz que entrava pelo olho mágico e, ao ver que eram 6 e 22, já me senti menos bem. Errara por oito minutos. Sou tido por bom calculador de tempo, de sorte que, evidentemente, não me achava tão desconturbado quanto o cuidara. Em lugar de sentar-me, cruzei o vestíbulo na direção da porta do escritório e senti-me ainda menos bem depois de dar duas trombadas na parede. Aquilo era indesculpável. Está visto que a volta para a frente, para o retângulo de luz, era simples, mas que diabo, eu deveria ser capaz de chegar diretamente ao centro do vestíbulo, que conhecia tão bem, na maior escuridão. Fi-lo, por três vezes, depois voltei à cadeira e sentei-me.

Não posso dizer o momento preciso em que chegaram, porque eu estava decidido a não olhar para o relógio enquanto não dessem as sete, mas faltaria pouco. De repente, a luz tenuíssima da porta ficou ainda mais tênue e eles lá estavam. Dois deles. Um terceiro estaria, provavelmente, na calçada. O primeiro inclinou-se para examinar a fechadura, e o outro quedou-se no topo do primeiro degrau, de costas para a porta, examinando a rua.

Está visto que sabiam que a fechadura era uma Rabson e tinham trazido os petrechos necessários; mas, por melhor que fossem, não conseguiriam abrir uma Rabson na primeira tentativa, de modo que não havia pressa. A porta do vestíbulo que dava para a sala da frente, aberta, estava mesmo ali, a um metro e vinte da cadeira. Fui até lá, enfiei a cabeça para dentro, emiti um silvo baixo, entre dentes, e ouvi outro em resposta. Encaminhei-me para a porta da sala de jantar, sem tocar na parece, expedi outro silvo, e este também foi respondido. Depois fui colocar-me à porta do escritório. Eles não acenderiam luz alguma logo que entrassem. Ficariam parados, escutando.

Já discuti depois disso, com Saul, o tempo que levaram para entrar. Diz ele que a porta se abriu oito minutos depois que assobiei, e eu afirmei que foram dez. De qualquer maneira, abriu-se e, quando principiou a mover-se, entrei no escritório, encostei-me à parede, à esquerda da porta, levei a mão esquerda para trás, com um dedo no interruptor de luz, e tirei a Marley do bolso com a direita.

Após entrarem, não ficaram espreitando mais de cinco segundos, o que é má técnica. Embarafustaram logo pelo vestíbulo. Com a cabeça virada, vi a fraca claridade de um lápis-laterna tornar-se mais intensa, vi-a depois invadir o escritório, depois os vi. Deram três ou quatro passos e pararam. O que trazia a lanterna principiou a descrever com ela um círculo à sua volta e, três segundos depois, daria comigo, de modo que gritei:

— Começou o jogo!

Ergui a Marley, premi o interruptor e fez-se a luz.

Um deles limitou-se a olhar, bestificado, mas o que trazia a lanterna deixou-a cair e fez menção de introduzir a mão no interior do paletó. Mas não somente eu sacara da pistola, como Orrie também se achava a meu lado com a sua, e a voz de Saul ouviu-se à porta da sala da frente:

— Chute daí!

Eles viraram a cabeça e viram mais duas armas.

— O negócio vai mal — disse eu. — Não precisamos nem revistá-los, pois vocês não podem atirar em duas direções ao mesmo tempo. Sr. Wolfe!

Lá estava ele. Deve ter deixado a cozinha quando gritei: "Começou o jogo!" Eu disse-lhes:

— Vão andando.

Mas ele já se antecipara, colocando-se à direita da cadeira de couro vermelho, bem longe do alcance dos dois. Sentou-se à escrivaninha e olhou para eles — para seus perfis, visto que tinham o rosto voltado para Orrie e para mim.

Ele falou:

— Isto é deplorável. Archie, chame a polícia.

Saí de meu canto. Não dei uma volta tão grande quanto Wolfe, mas o programa transcorreria melhor sem pescoções, de modo que descrevi um círculo. A meio caminho de minha mesa, detive-me e disse-lhes:

— Ouçam. Se vocês pularem em cima de mim enquanto eu estiver discando, não sairão daqui em pé. Imagino que conheçam a lei, os escrunchantes normalmente a conhecem. Estão aqui dentro. Se se meterem a engraçadinhos, serão alvejados, e a única coisa que a lei nos dirá será muito obrigado.

— Bolas.

Era o grandalhão, bem parecido, de queixo quadrado e ombros retos. O outro, mais alto, porém mais magro, tinha um rosto em que transpareciam os ossos. O bonitão dirigiu-me o olhar número três, duro como pedra.

— Não somos escrunchantes e você sabe disso.

— Sei coisa nenhuma. Vocês escruncharam. Poderão explicá-lo aos tiras. Já os avisei. Fiquem quietos. Comecem a mexer-se e cairão duros. Um deles tem o dedo ligeiro.

Para chegar ao telefone, em minha mesa, eu precisava dar-lhes as costas. Foi o que fiz e, quando estendi a mão para o aparelho, ele acudiu:

— Pare com isso, Goodwin. Você sabe muito bem o que somos. — Voltou-se para Wolfe. — Somos agentes do Departamento Federal de Investigações, e o senhor sabe disso. Não mexemos em nada, nem pretendíamos mexer. Queríamos vê-lo. Quando tocamos a campainha não ouvimos resposta e, como a porta não estivesse fechada, entramos.

— O senhor está mentindo — atalhou Wolfe, como se constatasse um fato. — Cinco homens jurarão que a porta estava fechada e que os senhores não tocaram a campainha. Quatro os ouviram forçá-la. Quando forem revistados, pela polícia, suas ferramentas serão encontradas. Departamento Federal de Investigações? Pfui. Chame a polícia, Archie, e diga-lhes que mandem homens capazes de lidar com um par de valentões.

Antes de começar a discar eu disse:

— Fred. — E fiz-lhe sinal com o dedo e ele veio. Passando pelos dois, mal lhes deixou espaço para se mexerem. Um dia, um G-man lhe torcera o braço e ele teria acolhido com alegria a oportunidade de devolver-lhes a gentileza. Com a parte posterior das coxas encostada à escrivaninha de Wolfe, olhando para eles, o revólver no quadril, parecia muito mais mau do que realmente era. Na verdade, é um ótimo sujeito, com mulher e quatro filhos. Quando comecei a discar, eu teria apostado cem contra um que não chegaria ao fim, e foi o que aconteceu. Ao discar o quarto algarismo, o bonitão exclamou, num impulso:

— Deixe disso, Goodwin.

Ergui o dedo e voltei-me. Ele estava enfiando a mão direita dentro do casaco. Repus o fone no gancho e fui colocar-me ao lado de Fred. A mão do G-man voltou com a carteirinha preta.

— Credenciais — disse ele, abrindo-a e mostrando-a.

Aquele era o momento delicado. Eles podem mostrá-la, mas não podem entregá-la a ninguém. Wolfe grunhiu:

— Quero examiná-la.

O bonitão fez um movimento para a frente, e a manopla esquerda de Fred o deteve e empurrou-o para trás. Estendi a mão, com a palma para cima, sem dizer nada. Ele hesitou, mas não por muito tempo, e colocou a carteirinha na palma de minha mão.

— Você também — disse eu ao magrela, e estendi o braço. Este já havia tirado a carteirinha e colocou-a sobre a outra; eu voltei-me e entreguei-as a Wolfe.

Ele considerou-as, primeiro uma e depois a outra, abriu uma gaveta, tirou dela um lente, estudou-as através da lente, com pachorra, devolveu a lente à gaveta, deixou cair as carteirinhas sobre ela, fechou a gaveta e encarou com eles.

— Provavelmente falsificadas — declarou. — O laboratório da polícia o dirá.

Eles devem ter precisado de muito autodomínio para controlar-se. Eu os teria admirado se não estivesse pensando em outra coisa. Contraíram os músculos, mas não se mexeram; depois disse o magruço.

— Seu gordo filho da mãe.

Wolfe assentiu com a cabeça.

— Reação natural. Façamos uma suposição. Suponhamos, apenas para discutir, que os senhores sejam, de fato, agentes do Departamento Federal de Investigações. Nesse caso, têm uma queixa justa, mas não contra mim; e sim contra seus colegas, que foram levados a crer que esta casa estava vazia. Não têm por que pedir desculpas.

Limpou a garganta e prosseguiu:

— Agora. Continuando com a presunção.

Conservarei as credenciais como reféns. Os senhores só poderão recobrá-las, ou seu departamento poderá fazê-lo, através de uma ação judicial, que revelará, publicamente, como foi que chegaram aqui, e é claro que eu contestarei a ação, visto que os senhores entraram em minha casa ilegalmente e foram surpreendidos flagrante delicto, do que tenho quatro testemunhas. Duvido que seus superiores estejam dispostos a pagar esse preço. De modo que a iniciativa me cabe, a mim. Podem ir. Eu só queria, para não fugirmos à suposição, uma prova incontestável de que membros do Departamento Federal de Investigações cometeram um crime grave e poderão ser processados, e tenho-a aqui na gaveta. A propósito, não mencionei as luvas que estão usando. Claro está que todos as notamos. Serão um detalhe corroborativo quanto isto for levado a um tribunal, se chegar a sê-lo. Podem sair, cavalheiros.

— Vá para o inferno. — Era o bonitão. — Será um tribunal federal. Estas credenciais são propriedade de funcionários federais.

— Pode ser. E ainda que o sejam, tenho uma defesa. Pondo de parte a suposição, custa-me crer que funcionários federais da justiça sejam capazes de entrar ilegalmente em minha casa; justifica-se, portanto, que eu guarde as credenciais até que sua autenticidade seja estabelecida.

— E como vai estabelecê-la?

— E o que vou ver. Aguardarei os acontecimentos. Se forem genuínas, talvez receba uma visita de um dos seus superiores, talvez o Sr. Wragg.

— Seu gordo filho da mãe — disse o magriço. Parecia pouco imaginoso sob os efeitos da tensão.

— Em realidade — tornou Wolfe — estou sendo condescendente. Os senhores forçaram a en trada em minha casa e, pelo que me é dado saber, estão-se fazendo passar por funcionários da justiça. Dois crimes. Se vieram armados, deveríamos tirar-lhes as armas e também as ferramentas que trouxeram para arrombar minha porta — e, sem dúvida, para abrir portas e gavetas neste escritório. E as luvas que estão calçando. Aconselho-os a saírem o mais depressa possível. Estes quatro homens não gostam de arrombadores nem do FBI, e teriam prazer em humilhá-los. Com seiscentos diabos, saiam!

Eles ficaram olhando para ele. O campo visual do bonitão era limitado pelo ombro de Fred e pelo meu, e o do magricela ficava à direita de Fred. Entreolharam-se, voltaram a olhar para Wolfe e afastaram-se. Quando se aproximaram da porta, Orrie passou para o vestíbulo, às arrecuas, sempre com o revólver apontado. Ele gosta de apontar revólveres. Saul dirigiu-se ao vestíbulo pela sala da frente e acendeu as luzes. Fred e eu seguimos os G-men. Quando se aproximaram da porta da frente, Saul abriu-a e Orrie, Fred e eu nos juntamos a ele para vê-los descerem a escada e chegarem ao passeio. Era quase certo que havia um terceiro, mas não se via em parte alguma. Dobraram à esquerda, na direção da Décima Avenida, mas não saímos para vê-los tomarem o carro. Antes de fecharmos a porta, examinamos a fechadura e achamo-la intacta. Enquanto eu corria o ferrolho, Fred observou que eles deveriam ter a melhor coleção de chaves do mundo.

Quando voltamos, em fila, para o escritório, Wolfe lá estava, no centro do tapete, examinando um objeto que tinha na mão — o lápis-lanterna que o bonitão deixara cair. Atirou-o sobre minha mesa e berrou:

— Falem! Vocês todos! Falem!

Todos abrimos a rir.

— Estou oferecendo um prêmio — disse eu, em voz alta. — Uma fotografia, num quadro, de J. Edgar Hoover para quem quer que prove que a casa está minada e que eles têm uma gravação desta conversa para mandar-lhe.

— Por Deus — exclamou Fred — se eles, ao menos, tivessem tentado fazer alguma coisa!

— Quero champanha — disse Saul.

— Prefiro uísque — disse Orrie. — Estou com fome.

Faltavam vinte minutos para as oito. Dirigimo-nos à cozinha, inclusive Wolfe, falando todos ao mesmo tempo. Wolfe entrou a tirar coisas da geladeira — caviar, paté de faie gras, esturjão, um faisão inteiro defumado. Saul abriu o congelador à procura de gelo para o champanha. Orrie e eu tiramos garrafas do guarda-louça. Fred perguntou se podia usar o telefone para falar com a esposa, e eu disse-lhe que sim, que lhe desse lembranças minhas, mas Wolfe atalhou-me:

— Diga a ela que você vai ficar aqui esta noite. Todos ficarão. De manhã, Archie levará estas coisas para o banco e vocês irão junto. Eles, provavelmente, não farão nada, mas podem tentar qualquer coisa. Fred, não diga nada disto a sua senhora, nem a ninguém. Ainda não acabou, está apenas no começo. Se quiserem alguma coisa quente, poderei dar-lhes veado à Yorkshire em vinte minutos, se Archie escaldar os ovos.

Todos disseram que não, o que me agradou bastante. Detesto escaldar ovos.

Uma hora depois estávamos passando uma noite agradável. Os três hóspedes e eu, na sala da frente, entretidos num jogo bravo de cartas, e Wolfe, repoltreado em sua cadeira, no escritório, a ler um livro. Era O FBI que Ninguém Conhece. Ou estaria a lavar-se em água de rosas ou fazia pesquisas. Não sei.

Às dez horas, precisei ausentar-me brevemente da mesa de jogo; Wolfe anunciou que queria falar com Hewitt naquele instante, quando os aristólogos, presumivelmente, já haviam terminado o jantar. Fui ao escritório e fiz a ligação. Wolfe contou a Hewitt que tudo transcorrera perfeitamente e agradeceu-lhe. Hewitt garantiu que haviam achado os substitutos muito interessantes; Jarvis recitara trechos de Shakespeare e Kirby arremedara o Presidente Johnson, Barry Goldwater e Alfred Lunt. Wolfe pediu-lhe que transmitisse aos outros seus cumprimentos, eu voltei ao jogo e ele ao livro.

Mas houve outra interrupção pouco depois das onze horas. O telefone tocou. E como Wolfe não gosta de atender, fui a minha mesa receber a chamada.

— Residência de Nero Wolfe. E Archie Goodwin quem está falando.

— Aqui é Richard Wragg, Goodwin. — A voz era arrastada, suave, baixa. — Quero falar com Wolfe.

Sabíamos que isso poderia acontecer, e eu tinha instruções a respeito.

— Creio que não pode, Wragg. Ele está ocupado.

— Quero vê-lo.

— Boa idéia. Ele calculou mesmo que você quisesse. Diga uma coisa: que tal no escritório dele, amanhã, às onze da manhã?

— Quero vê-lo esta noite. Agora.

— Sinto muito, Wragg, mas não é possível. Ele está muito ocupado. O horário mais próximo disponível é às onze da manhã.

— O que é que ele está fazendo?

— Está lendo um livro. O FBI que Ninguém Conhece. Daqui a meia hora estará na cama.

— Estarei aí às onze.

Tive a impressão de que ele colocou o fone no gancho com um soco, mas poderia tê-lo previsto. Voltei-me para Wolfe.

— Chamei-o de Wragg porque é o nome dele. Às onze da manhã, amanhã. Como se esperava.

— E se desejava. Precisamos conferenciar. Quando acabar o jogo.

Levantei-me.

— Não levará muito tempo. Agora mesmo fiz trezentos e quarenta.

 

Preciso, e quase sempre as desfruto, de umas boas oito horas de sono mas, naquela noite, só dormi seis. A 1 e 10, depois que Wolfe se recolhera, Fred e Orrie também, Saul se deitara no sofá da sala da frente, e eu já me dispunha a acomodar-me no meu, soou a campainha da porta. Eram Fritz, Jarvis e Kirby e, quando vi Kirby cambalear ao transpor a soleira, logo me pus a imaginar em que fosso caíra o Heron. Perguntei-lhe onde estava o carro e ele apenas arregalou os olhos para mim, apertando os lábios. Cuidando que estivesse obedecendo às instruções, eu disse-lhe que poderia falar agora, mas Fritz explicou que ele agora não podia falar porque bebera demais, acrescentando que o carro estava na frente, em perfeitas condições, mas que só o bom Deus sabia como chegara até lá. Levou-os para o quarto de elevador, enquanto eu calçava os sapatos, vestia o sobretudo sobre o pijama e saía para conduzir o Heron à garagem. Nem um arranhão.

O primeiro número do programa de sexta-feira estava marcado para as 8 e 30. As 7 e 45 liguei a força de vontade, pulei da cama, enchi os braços de cobertores, lençóis e travesseiros, e levei-os para meu quarto. Quando saí do banheiro, depois de tomar um banho de chuveiro e de fazer a barba, dei com Fred e Orrie sentados na beira da cama, bocejando. Observei-lhes que sairíamos dali a uma hora e vinte minutos e eles me mandaram lamber sabão. Eu estava imaginando que teria de preparar meu próprio desjejum mas, ao descer, encontrei Fritz, que emergia do quarto de Wolfe, e ali deixara a bandeja do desjejum quase a tempo. Eram 8 e 28, fui para o escritório e comecei o dia discando o número do telefone da Sra. Bruner e mandando chamá-la. Disse-lhe que lamentava importuná-la a uma hora tão imprópria, mas tinha um recado importante, de modo que lhe pedia que fosse a uma cabina telefônica e procurasse comunicar-se comigo em certo número, que lhe dei, às 9 e 45 ou logo depois, assim que possível. Ela respondeu que isso atrapalharia um compromisso seu e perguntou se era muito importante; repliquei que era importantíssimo e ela acabou concordando.

Podíamos, portanto, fazer tranqüilamente o desjejum, o que veio a calhar. Fritz sabe que Saul, Fred e Orrie gostam dos ovos au beurre noir, de sorte que foi este o item principal, com torradas e lombo de porco defumado, com direito a repetição, o que deu um total de dezesseis ovos. A conta das despesas para essa operação ia ser uma delícia.

Com as credenciais no bolso, saí de casa em companhia de meus guarda-costas às 9 e 40, caminhei até a drogaria da esquina e postei-me ao pé do telefone. Com meu conhecimento das mulheres, estava preparado para esperar vinte minutos, mas ele tocou às 9 e 46, no momento exato em que um homem, que entrara, se dirigia à cabina. Ao tirar o fone do gancho, decidi que não era um G-man que tivesse vindo atender ao chamado; faltava-lhe jeito para isso.

A Sra. Bruner disse esperar que o assunto fosse realmente importante, porque chegaria atrasada ao compromisso.

— Seu compromisso nunca poderá ser tão importante quanto isto — retruquei-lhe. — Esqueça os compromissos. Esteja no escritório do Sr. Wolfe quando faltar um quarto para as onze; nem um segundo mais tarde.

— Hoje de manhã? Não posso.

— Pode e deve. A senhora já me disse duas vezes que não gostava de meu tom, mas isso não foi nada diante do tom que ouvirá se disser que não vai. O Sr. Wolfe poderá até devolver-lhe os cem mil dólares.

— Mas por quê? Que aconteceu?

— Sou apenas o moço de recados. Ficará sabendo quando for. Não é apenas importante. É vital.

Curto silêncio.

— Um quarto para as onze?

— Ou antes.

Novo silêncio.

— Muito bem. Lá estarei.

— Magnífico. É a cliente perfeita. Se não fosse rica, eu casaria com a senhora.

— O que foi que o senhor disse?

— Nada.

Desliguei o telefone.

Não me senti transbordante de energia, com apenas seis horas de sono, mas senti-me importante ao cruzar a cidade rumo ao Banco Continental, na Avenida Lexington, com o vento de inverno a zurzir-me as costas. Poucos homens já tiveram uma turma assim de guarda-costas — o melhor detetive entre os dois oceanos, além de outros dois, de primeira ordem. Se o leitor julgar que estávamos sendo excessivamente precavidos, diga-me: e se eu tropeçasse e quebrasse a cabeça, ou se topasse com uma sereia que me fascinasse e depois se descobrisse ser uma G-woman? De qualquer maneira, eles estavam em casa e o passeio lhes faria bem. Chegado ao banco, a primeira coisa que fiz foi descer ao cofre-forte e guardar ali as credenciais. Em seguida subi e, ao retirar cinco mil dólares para reforçar o caixa, lembrei-me de que fazia então exatamente nove dias que eu lá estivera, àquela mesma hora, para depositar o sinal. Eu pensara então que tínhamos uma oportunidade num milhão. Agora...

Teríamos de andar depressa para chegar à velha casa de pedra marrom antes das 10 e 45, e por pouco não o conseguimos. Estávamos no vestíbulo, guardando os sobretudos, quando vi o Rolls da Sra. Bruner estacionar defronte da casa. No momento em que ela chegou à varanda, abri a porta. Fred e Orrie fizeram menção de afastar-se, mas chamei-os de volta.

— Sra. Bruner — disse eu —, gostaria de conhecer três homens que, trabalhando para a senhora, viajaram sessenta milhas num caminhão dentro de caixotes de madeira com as tampas parafusadas? E que ficaram vinte minutos, ontem à noite, apontando revólveres para dois homens do FBI enquanto o Sr. Wolfe lhes fazia um sermão?

— Ora... eu gostaria muito.

— Foi o que pensei. Sr. Saul Panzer. Sr. Fred Durkin. Sr. Orrie Cather. A senhora passará algum tempo em companhia do Sr. Panzer. Se não se incomoda, colocarei seu casaco na sala da frente. Richard Wragg, o principal G-man de Nova Iorque, está para chegar, e não deve vê-lo.

Ela aboticara os olhos, mas continuou de boca fechada. Resolvi casar com ela a despeito de toda a sua grana. Enquanto eu lhe transportava o casaco, Fred e Orrie se encaminharam para a escada, dispostos a ficar de atalaia diante do quarto do sul, a fim de impedir que Jarvis e Kirby descessem e interrompessem a conversação.

Na extremidade do corredor que dá para a cozinha há uma recâmara à esquerda e, perto do canto da recâmara, um buraco na parede ao nível dos olhos de uma pessoa. Do lado do buraco que dá para a recâmara corre um painel e do lado do buraco que dá para o escritório há um quadro ilusivo, que representa uma cascata. Quem estiver na recâmara e abrir o painel terá uma visão quase completa do escritório, através da cascata e, naturalmente, ouvirá o que nele se disser.

Levando a Sra. Bruner para a recâmara, seguida de Saul, corri o painel e mostrei-lhe o buraco.

— Como eu lhe disse — expliquei. — Wragg não demora e estará no escritório com o Sr. Wolfe e comigo. O Sr. Panzer trará o tamborete da cozinha, para que a senhora possa sentar-se, e ficará aqui. A conversa poderá durar de dez minutos a duas horas, não sei. A senhora talvez não entenda tudo o que ouvir, mas entenderá o suficiente. Se sentir vontade de tossir ou de espirrar, corra para a cozinha, na ponta dos pés. Saul lhe fará um sinal se...

Soou a campainha da porta. Passei a cabeça pelo canto da recâmara e lá o divisei, na varanda, cinco minutos adiantado. Recomendei a Saul que fosse buscar o tamborete e, quando ele se encarreirou para a cozinha, frechei para o vestíbulo. Chegando à porta, olhei para trás, recebi um aceno dele, do canto da recâmara, e abri a porta.

Richard Wragg completara quarenta e quatro anos de idade. Morava num apartamento em Brooklyn, com mulher e dois filhos, e estava no FBI havia quinze anos. Os detetives sabem certas coisas. Tinha, aproximadamente, minha altura, rosto comprido e queixo pontudo, e ficaria careca no cocoruto em quatro anos, talvez em três. Não me estendeu a mão, mas voltou-me as costas enquanto o ajudei a tirar o sobretudo, de modo que se fiou de mim até certo ponto. Quando o introduzi no escritório e o levei para a cadeira de couro vermelho, deteve-se, circunvolveu os olhos pelo aposento e pensei observar nele um interesse exagerado pelo quadro da cascata, mas talvez me enganasse. Ainda estava em pé quando se ouviu o som do elevador e Wolfe, entrando, parou a certa distância de sua mesa e apresentou-se:

— Sr. Wragg? Sou Nero Wolfe. Sente-se.

Enquanto ele procurava sua cadeira, Wragg sentou-se, percebeu que se sentara na pontinha da poltrona e sentou-se mais para trás.

Os olhos de ambos se encontraram. Do lugar em que eu me colocara, não podia ver os de Wolfe, mas os de Wragg eram diretos e firmes.

— Já ouvi falar no senhor — disse Wragg — embora nunca lhe fosse apresentado.

Wolfe assentiu com a cabeça.

— Há caminhos que não se cruzam.

— Mas os nossos agora se cruzaram. Imagino que esta conversa esteja sendo gravada.

— Não. Tenho o equipamento, mas não está ligado. Seria melhor ignorarmos tais assuntos. Durante uma semana presumi que tudo o que se dizia nesta casa era ouvido por terceiros. O senhor pode ter trazido um aparelhamento consigo. Eu poderia ter posto a funcionar o meu gravador mas, como já disse, não pus. Ignoremos essas coisas.

— Nós não minamos esta casa.

Os ombros de Wolfe subiram um oitavo de polegada e tornaram a baixar.

— Não se incomode com isso. Queria ver-me?

Os dedos de Wragg estavam dobrados na extremidade dos braços da poltrona. A vontade.

— De acordo com sua expectativa. Não precisamos perder tempo com evasivas. Quero as credenciais que tomou de dois de meus homens, ontem à noite, à força.

Wolfe virou para cima a palma de uma das mãos. À vontade também.

— Mas é o senhor que me vem com evasivas. Retire esse "à força". A força foi primeiro empregada por eles. Entraram à força em minha casa. Limitei-me a responder à força com a força.

— Quero as credenciais.

— Retira o seu "à força"?

— Não. Reconheço que sua resposta é válida. Dê-me as credenciais e falaremos em termos de igualdade.

— Pfui. O senhor é bobo ou está-me tomando por bobo? Não tenho a menor intenção de falar em termos de igualdade. Veio ver-me porque o constrangi a vir; mas, se veio disparatar, é melhor que se vá. Posso descrever a situação como a enxergo?

— Pode.

Wolfe virou-se para mim.

— Archie. A carta da Sra. Bruner, em que ela contrata meus serviços.

Fui até o cofre e tirei-a de lá. Quando voltei, Wolfe fez um aceno a Wragg, e eu entreguei-lha. Fiquei a seu lado e, quando ele acabou de lê-la, estendi a mão. Ele releu-a, mais devagar, e devolveu-ma sem erguer os olhos para mim. Tornei à minha escrivaninha e guardei-a numa gaveta.

— Um documento e tanto — disse ele a Wolfe. — A propósito, se houve alguma espionagem em torno da Sra. Bruner, ou de sua família, ou de seus associados, o que não estou admitindo, foi decorrência de uma fiscalização preventiva.

Wolfe fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— O senhor, naturalmente, há de dizer isso. Uma mentira de rotina. Estou descrevendo a situação. Seus homens foram-se ontem à noite, deixando as credenciais em meu poder, porque não se atreveram a chamar a polícia em sua ajuda. Sabiam que, se um cidadão os acusasse do crime de haver entrado ilegalmente nesta casa, e levasse adiante a acusação, as simpatias da polícia e do promotor público de Nova Iorque estariam com o cidadão. O senhor também sabe disso. Não tomará providências legais para recuperar as credenciais, de modo que elas não serão recuperadas. Ficarão comigo. Sugiro uma permuta. O senhor se compromete a desistir de toda e qualquer vigilância sobre a Sra. Bruner, a sua família e seus associados, incluindo a censura ao telefone dela, e eu...

— Eu não admiti a vigilância.

— Bah. Se o senhor... Não. É mais simples reformular a proposta. Deixando de parte o passado, o senhor se compromete, a partir das seis horas de hoje, a suspender, por parte de seu departamento, toda e qualquer vigilância sobre a Sra. Bruner, a família e os associados dela, ou a casa, o que inclui a censura de seu telefone, bem como qualquer vigilância contra o Sr. Goodwin, minha pessoa ou minha casa. E eu me comprometo a deixar as credenciais onde estão, em meu cofre, na caixa forte no Banco, e não mover processo algum contra seus homens por haverem invadido minha propriedade, bem como não permitir que o caso se divulgue. Essa é a situação e essa é minha proposta.

— O senhor se refere a um compromisso por escrito?

— Não, a menos que o senhor o prefira.

— Não. Nada por escrito. Concordo com a parte da vigilância, mas preciso das credenciais.

— Pois não as terá. — Wolfe apontou um dedo para ele. — Compreenda isto, Sr. Wragg. Só entregarei as credenciais se a tanto me obrigar uma ordem judicial, e contestarei a ordem com todos os meus recursos e os da minha cliente. O senhor pode...

— Homessa! O senhor tem quatro testemunhas!

— Eu sei. Mas os juízes e os júris são, às vezes, extravagantes. Podem, caprichosamente, duvidar da credibilidade das testemunhas, até de cinco delas — contando comigo. Seria tolice de sua parte suspeitar de minha boa fé. Não tenho vontade alguma de empenhar-me numa luta mortal com seu departamento; meu único propósito é cumprir a missão para a qual fui contratado. Enquanto o senhor não atormentar nem aborrecer minha cliente ou a mim, não terei por que utilizar as credenciais ou as testemunhas.

Wragg olhou para mim. Pensei que fosse perguntar-me qualquer coisa, mas não; eu era apenas um sítio em que ele podia descansar os olhos da vista de Wolfe, enquanto respondia a alguma pergunta que formulara a si mesmo. Levou nisso algum tempo. Por fim, tornou a Wolfe.

 

— O senhor deixou uma coisa de fora — disse ele. — Disse que seu único propósito é cumprir a missão para a qual foi contratado. Nesse caso, por que andou investigando um homicídio com o qual não temos relação alguma? Por que foi Goodwin duas vezes visitar a Sra. Althaus e duas vezes ao apartamento de Morris Althaus, e por que estiveram aqui aquelas seis pessoas na noite de quinta-feira passada?

Wolfe assentiu com a cabeça.

— Porque o senhor acha que um de seus homens matou Morris Althaus.

— Não acho coisíssima nenhuma. Isso é absurdo.

Wolfe enfezou.

— Ora, bolas! Cavalheiro, acaso não sabe dizer coisa com coisa? Atrás de que estariam, concebivelmente, seus homens quando invadiram minha casa? O senhor suspeitou que eu descobrira, fosse lá como fosse, que três de seus homens estiveram no apartamento de Morris Althaus na noite em que ele foi assassinado, como, de fato, eu descobrira. Eles lhe tinham dito que já o encontraram morto ao chegar, mas o senhor não lhes deu fé. Pelo menos duvidou deles. Não sei por quê; o senhor os conhece; eu, não. E suspeitou, ou receou, que eu não somente ficara sabendo que eles haviam estado lá, mas também obtivera provas de que eles, um deles, o matara. Não disparate.

— O senhor ainda não me disse por que estava investigando um homicídio.

— Mas isso não é óbvio? Porque eu soubera que seus homens haviam estado lá.

— Como o soube?

Wolfe abanou a cabeça.

— Isso é segredo.

— Esteve em contato com o Inspetor Cramer?

— Não. Faz meses que não o vejo nem falo com ele.

— Ou com a promotoria pública?

— Não.

— Vai continuar a investigação?

Ergueu-se um dos cantos da boca de Wolfe.

— Fique sabendo, Sr. Wragg, que não só me acho em condições, senão também desejoso de aliviar-lhe o espírito, mas preciso certificar-me primeiro de haver cumprido minha tarefa. O senhor aceitou meu oferecimento? Garante-me que, a partir das seis horas da tarde de hoje, não haverá vigilância de espécie alguma, por parte de seu departamento, contra a Sra. Bruner ou contra quem quer que tenha alguma relação com ela?

— Sim. Isso já está resolvido.

— Satisfatório. Agora vou pedir-lhe que assuma outro compromisso. Quero que o senhor volte aqui, quando eu lho pedir, e traga a bala que um de seus homens tirou do chão do apartamento de Morris Althaus.

Não deveria ser fácil desconcertar Richard Wragg. Não chega a ser o principal G-man do lugar mais importante do país, depois de Washington, quem se desconcerta facilmente. Mas isso realizou o milagre. Caiu-lhe o queixo. Levou apenas dois segundos para tornar a fechar a boca, mas ficara desconcertado.

— Agora é o senhor quem está disparatando.

— Não estou. Se o senhor me trouxer a bala quando eu lha pedir, é quase certo — estou para dizer que é certo — que poderei provar que Althaus não foi morto por um de seus homens.

— Misericórdia, o senhor é tremendo!

A boca de Wragg já não estava aberta. E seus olhos, estreitando-se, haviam-se transformado em duas frinchas.

— Se eu tivesse a bala, talvez a trouxesse só para vir visitá-lo.

— Tem, sim, senhor. — Wolfe mostrou-se paciente. — Que aconteceu aquela noite no apartamento de Althaus? Uma pessoa a quem chamarei X — poderia dar-lhe um nome melhor, mas por ora X está servindo — matou-o com o próprio revólver dele. A bala atravessou-lhe o corpo, bateu na parede e caiu ao chão. X saiu, levando o revólver consigo. Logo depois chegaram seus três homens, que invadiram o apartamento exatamente como invadiram ontem esta casa. Entro em pormenores?

— Entre.

— Aqui não tocaram a campainha porque sabiam ou pelo menos supunham que a casa estava vazia. Estivera sob vigilância durante uma semana. Tocaram a campainha de Althaus e, provavelmente, seu telefone, mas ele não respondeu, porque estava morto. Depois de revistarem o apartamento e acharem o que tinham ido buscar, ocorreu-lhes que o senhor desconfiaria de que um deles o matara e, para provar que não o tinham feito, levaram a bala, que estava no chão. Isso violava a lei do Estado de Nova Iorque; mas já a haviam violado uma vez, por que não a violariam uma segunda? Pegaram-na e entregaram-na ao senhor, com o relatório.

Ele fez um gesto com a mão.

— É possível que o fato de lhe haverem levado a bala, em vez de convencê-lo da inocência deles, surtisse o resultado oposto, mas não especularei seus processos mentais, o motivo por que não lhes deu crédito. Como já disse, o senhor conhece seus homens. Mas, naturalmente, ainda tem a bala, e eu vou querê-la.

Os olhos de Wragg continuavam apertados.

— Ouça, Wolfe, você nos tapeou uma vez, com seiscentos demônios. Tapeou-nos direitinho. Mas não tornará a fazê-lo. Se eu tivesse a bala não seria calhorda a ponto de entregá-la a você.

— Seria calhorda se não o fizesse. — Wolfe fez uma careta. Há poucas palavras de gíria que ele aprecia e usa, mas "calhorda" não é uma delas, e ele a pronunciara. — Interesso-me por isso porque devo uma obrigação à pessoa de quem fiquei sabendo que seus homens estiveram lá naquela noite, e não gosto de obrigações. O desmascaramento do criminoso cancelará a dívida e, incidentalmente, aliviará seu espírito. Não lhe agradaria ver provado que Althaus não foi assassinado por um de seus homens? Traga-me a bala, que fornecerei a prova. Faço outro oferecimento: traga-me a bala e, se seus homens não forem isentados de culpa dentro de um mês pelo desmascaramento do criminoso, eu lhe darei as credenciais. Não levará um mês, provavelmente nem uma semana.

Os olhos de Wragg estavam abertos.

— Você devolverá as credenciais?

— Devolverei.

— Você falou em "desmascaramento". Desmascarado diante de quem?

— Do senhor. Desmascarado o suficiente para convencê-lo de que seus homens são inocentes — do assassínio, bem entendido.

— Você me fez um oferecimento. Que garantias me dá?

— Minha palavra.

— Quanto vale sua palavra?

— Mais do que a sua. Muito mais, a acreditar-se naquele livro. Nenhum homem vivo poderá dizer que faltei à minha palavra.

Wragg ignorou o sarcasmo.

— Quando é que você quereria a bala — se ela estivesse comigo?

— Não sei. Talvez hoje mesmo, mais tarde. Ou amanhã. Mas gostaria de recebê-la de suas mãos.

— Se ela estivesse comigo. — Wragg levantou-se. — Ainda preciso pensar um pouco. Não estou prometendo nada. Eu...

— Mas está. Já prometeu. Nenhuma vigilância sobre minha cliente nem sobre mim.

— Isso, sim. Quero dizer... você sabe o que quero dizer. — Afastou-se, parou e voltou. — Estará aqui o dia todo?

— Estarei. Mas, se telefonar, cuidado, que a linha está censurada.

Ele não achou graça naquilo. Naquele momento, duvido muito que achasse alguma coisa engraçada. Quando o acompanhei ao vestíbulo e segurei-lhe o casaco para que o vestisse e entreguei-lhe o chapéu, nem sequer se advertiu de que eu estava lá. Quando me voltei, depois de fechar a porta, vi a cliente entrar no escritório, acompanhada de Saul, e decidi não casar com ela. Deveria ter-me esperado para que eu a escoltasse. Ao chegar ao escritório, dei com o quadro armado. A Sra. Bruner e Saul estavam em pé, lado a lado, junto à mesa de Wolfe, olhando para ele, e ele, recostado no espaldar da poltrona, tinha os olhos cerrados. Belo quadro! Parei à porta para apreciá-lo. Meio minuto. Um minuto. Pronto. Já era o bastante, pois ela tinha compromissos. Ao acercar-me, perguntei:

— A senhora ouviu bem?

Abriram-se os olhos de Wolfe. Sem me responder, ela disse a ele:

— O senhor é um homem incrível. Absolutamente incrível. Efetivamente, não pensei que o conseguisse. Incrível. Haverá alguma coisa que o senhor não possa fazer?

Ele endireitou-se.

— Há, sim, senhora — respondeu —, há. Eu não poderia enfiar bom senso na cabeça de um tolo. Já o tentei. Poderia citar-lhe outros. Compreende, agora, por que convinha que a senhora estivesse presente? A carta que assinou reza "se lograr o resultado que almejo". Está satisfeita?

— É claro que estou. Incrível.

— Eu mesmo acho meio difícil acreditar. Tenha a bondade de sentar-se. Há uma coisa que preciso contar-lhe.

— É claro que há. — Ela dirigiu-se à cadeira de couro vermelho. Saul sentou-se numa cadeira amarela e eu sentei-me na minha. Ela perguntou:

— Qual foi a armadilha que o senhor lhes preparou?

Wolfe sacudiu a cabeça.

— Isso, não. Isso pode esperar. O Sr. Goodwin lhe dará todos os pormenores, quando se oferecer a oportunidade. Não preciso contar-lhe o que foi feito, senão o que tem de ser feito. A senhora é minha cliente e devo poupar-lhe constrangimentos. Até onde vai sua discrição?

Ela franziu o nariz.

— Por que pergunta?

— Tenha a bondade de responder. Até onde vai sua discrição? Posso confiar-lhe um segredo?

— Pode.

A sua cabeça voltou-se.

— Archie?

Homem do diabo. Constranger-me, a mim, não tinha importância. E se eu tivesse mudado de idéia outra vez e estivesse disposto a casar com ela?

— Sim — respondi —, se é que sei o que o senhor está pensando, e acho que sei.

— Está visto que sabe. — E, voltando-se para ela: — Quero poupar-lhe o constrangimento de ver a polícia chegar a seu escritório para levar-lhe a secretária, talvez em sua presença, a fim de interrogá-la sobre um assassínio que ela, provavelmente cometeu.

Ele apenas desconcertara Wragg, mas isso atarantou a cliente. Não lhe caiu o queixo; ela, porém, esbugalhou os olhos, incapaz de falar.

— Eu disse provavelmente — continuou Wolfe — mas é quase certo. A vítima foi Morris Althaus. O Sr. Goodwin lhe contará isso também, minuciosamente, mas não agora, enquanto a situação não estiver resolvida. Neste momento, eu teria preferido deixá-la na ignorância do próprio fato; mas, como minha cliente, a senhora merece minha proteção. Desejo fazer uma sugestão.

— Não acredito — reconveio ela. — Quero os detalhes agora.

— Pois não os terá. — A voz soou-lhe áspera. — Tive uma semana exasperante, noite e dia. Se me dificultar a tarefa, sairei da sala, a senhora sairá desta casa e, provavelmente, interrogará a Srta. Dacos. Ela ficará assustada e se fará ao largo, e quando a polícia a encontrar e a trouxer de volta, fará perguntas à senhora — perguntas delicadas, mas muitas. E isso o que quer?

— Não.

— Crê que eu faria uma acusação tão grave por desfastio?

— Não.

— Nesse caso, tenho uma sugestão. — Olhou para o relógio da parede. Meio-dia e cinco. — A que horas a Srta. Dacos vai almoçar?

— Depende. Ela come lá, na copa, geralmente à uma.

— Então o Sr. Panzer irá com a senhora agora. Diga a ela que vai redecorar o escritório — pintá-lo, empapelá-lo, o que quiser — e que não precisará dela o resto da semana. O Sr. Panzer iniciará os preparativos imediatamente. Ela, sua secretária, será levada, mas, pelo menos, não sairá de sua casa. Não quero que uma assassina seja detida pela polícia em casa de minha cliente. A senhora o quer?

— Não.

— E gostaria de ter a desagradável surpresa de estar sentada em seu escritório, com sua secretária, e ver a polícia aparecer de repente para levá-la?

— Não.

— Então pode agradecer-me, quando quiser, por havê-lo impedido. Sei que não se sente disposta a agradecer a ninguém o que quer que seja, neste momento. Quer que o Sr. Panzer vá em seu carro, em sua companhia, ou prefere ir sozinha? Poderiam discutir o assunto durante o trajeto. Ele não é bobo.

Ela olhou para mim e tornou a olhar para Wolfe.

— O Sr. Goodwin não pode ir?

 

Saul ainda não levara a melhor nesse caso. Isso não me alterou a decisão sobre o casamento, porque prefiro fazer pessoalmente minhas cortes, mas ele ficou-me devendo uma. Wolfe respondeu-lhe que não, que o Sr. Goodwin tinha o que fazer, e a pobre mulher teve de conformar-se com Saul. Ele foi buscar-lhe o casaco na sala da frente e ficou a segurá-lo para ela, e confesso que senti um espasmo de tristeza. Ao tempo em que chegassem à Rua Setenta e Quatro ela já o estaria apreciando. Não querendo intrometer-me, não os acompanhei ao vestíbulo.

Quando se ouviu o som da porta da frente que se fechava, Wolfe virou o rosto para mim e pediu:

— Diga alguma coisa.

— Bejabers — disse eu. — Serve? Um conhecido meu, chamado Birnbaum, diz isso quando quer mostrar que não está magoado. Bejabers.

— Satisfatório.

— Também acho.

— O nosso telefone ainda está censurado. Vai ver o Sr. Cramer antes do almoço?

— Seria melhor depois. Ele estará mais bem disposto. Não levarão mais de uma hora para conseguir o mandado.

— Muito bem. Mas não... Que foi, Fred?

Fred Durkin, à porta, anunciou:

— Eles querem comer.

 

O escritório do inspetor-chefe da Divisão de Homicídios do Setor Sul, à Rua Vinte, Oeste, não é, realmente, vergonhoso, mas também está longe de ser um espetáculo. O linóleo do chão apresentava sinais de uso, a mesa de Cramer agradeceria um polimento, eu nunca vira as janelas realmente limpas e todas as cadeiras, exceto a de Cramer, são de madeira tosca, honesta e dura. Quando pus o rabisteco numa delas, às 2 e 35 da tarde, ele me observou, enquizilado:

— Eu lhe disse que não viesse, nem telefonasse.

Acenei afirmativamente com a cabeça.

— Mas agora está tudo em ordem e eu precisava vir. O Sr. Wolfe...

— O que é que está tudo em ordem?

— Ele ganhou os cem mil dólares e os honorários.

— Ganhou nada. Ele os obrigou a deixarem em paz a Sra. Bruner?

— Obrigou. Bejabers. Mas não obedecemos às suas instruções. Nós...

— Eu não lhe dei instrução nenhuma.

— Está certo. Soubemos que não foi um G-man quem matou Morris Althaus. Acreditamos saber quem foi e como se pode prová-lo. Não lhe direi como conseguimos encostar o FBI na parede. Não foi para isso que vim aqui, e o Sr. Wolfe gostará de contar-lhe, um dia em que tiverem tempo, e o senhor gostará de ouvir. Foi o golpe mais atrevido que ele já deu e o negócio funcionou. Estou aqui para falar em homicídio.

— Muito bem. Fale.

Enfiei a mão no bolso interno do paletó, retirei dele qualquer coisa e entreguei-lha.

— Duvido que tenha visto isto antes — disse eu. — Mas um ou mais dentre seus homens já o viram. Estava numa gaveta, no quarto de Althaus. A mãe dele deu-me as chaves, de modo que não precisa processar-me por invasão de domicílio. Veja as costas.

Ele virou a fotografia e leu os versos.

— Isso — expliquei — é uma paródia dos quatro últimos versos da segunda estrofe da "Ode a Uma Urna Grega", de Keats. Bem feitinha. Foi escrita pela Srta. Dacos, secretária da Sra. Bruner, que mora na Rua Arbor, 63, segundo andar, logo abaixo do apartamento de Althaus. Com jeitinho, pedi amostras da letra dela à Sra. Bruner. Aqui estão. Tirei-as de um bolso e dei-lhas. — A propósito, ela viu os três G-men saírem da casa. Da janela de seu apartamento. Lembre-se disso quando a estiver interrogando.

— Interrogando-a por quê? Por causa disto? — perguntou Cramer, atirando um piparote à fotografia.

— Não. O motivo principal de minha visita foi fazer uma aposta. Aposto cinqüenta contra um que, se conseguir um mandado e der uma boa batida no apartamento dela, encontrará alguma coisa que lhe interesse. Quanto antes melhor. — Levantei-me. — Isso é tudo por enquanto. Nós gostaríamos...

— É tudo coisa nenhuma. — O rosto redondo e vermelho dele estava mais vermelho ainda. — Sente-se. Vou interrogar você. O que é que vamos encontrar e quando foi que você o colocou ali?

— Eu não coloquei. Ouça. Como sabe, quando lida comigo, o senhor está lidando com o Sr. Wolfe. Sabe também que sempre me atenho às instruções que recebo. Por ora já terminei. Ficarei mudo. Todo o tempo que gastar branqueando será tempo perdido. Consiga o mandado, use-o e, se encontrar alguma coisa, o Sr. Wolfe terá muito prazer em discuti-lo consigo.

— Vou discuti-lo com você primeiro. Você fica aqui.

— Só se for preso. — Exasperei-me. — Que mais quer o senhor, meu Deus do céu? Está às voltas com esse homicídio há quase dois meses! Nós estivemos há uma semana!

Voltei-me e saí. Eu estava apostando que seria detido, senão por ele, pelo menos no andar térreo, quando saísse do elevador. Entretanto, só recebi do tira que estava de plantão, à entrada, um aceno de cabeça, não muito amistoso, mas quase humano. Não me demorei por lá.

Rumei para a Sexta Avenida e, de lá, para o sul. Estava tudo em ordem na velha casa de pedra marrom. Ashley Jarvis e Dale Kirby, com uma ressaca não muito brava, tinham calçado o peito com um bom desjejum, embolsado a bonificação de mil dólares cada um e saído. Fred e Orrie haviam ganho seiscentos dólares por dois dias de trabalho, para não falar nas noites, muito acima da taxa normal, e também haviam partido. Saul estava ocupado no escritório da Sra. Bruner, preparando-se para pintá-lo ou empapelá-lo. Wolfe estaria, naturalmente, lendo um livro, não O FBI que Ninguém Conhece, porque agora o conhecia, pelo menos três de seus membros e, às quatro horas, subiria ao viveiro, de volta ao programa cotidiano. Como nunca durmo de tarde, mesmo havendo dormido pouco à noite, poderia dar um passeio, e foi o que fiz.

Parei diante do número 63 da Rua Arbor. Mas o termômetro do lado de fora da janela da sala da frente indicava dezesseis graus acima de zero quando me levantei, e não subira mais do que cinco risquinhos depois disso; eu trazia as chaves no bolso, de sorte que atravessei a rua, entrei e subi os dois lanços de escada que conduziam ao apartamento de Althaus. Incluo esse fato no relatório não porque ele alterasse alguma coisa, mas porque me lembro muito bem de meu estado de espírito. Vinte e três horas se haviam passado desde que metera o revólver debaixo do estrado de molas, e esse tempo fora mais do que suficiente para uma moça sacudida encontrar uma dúzia de revólveres e mudá-los de lugar. Se ele não estivesse lá, estaríamos agora numa enrascada, e numa enrascada feia, visto que eu já contara a Cramer. Ele sabia que Wolfe não me mandara procurá-lo movido apenas de uma suspeita ou de um palpite; sabia que sabíamos haver algo importante naquele apartamento e, se isso tivesse desaparecido, estaríamos numa sinuca. Se eu lhe falasse a respeito do revólver, estaria admitindo que mexera numa prova; se não falasse, incorreria na suspeita de algo muito pior, e adeus nossas licenças.

O leitor pode não estar interessado por meu estado de espírito, mas acredite que eu estava. Numa das janelas da frente da sala de Althaus empurrei a cortina para um lado e comprimi a testa de encontro à vidraça para poder ver o passeio, lá embaixo. Rematada estupidez, mas há estados de espírito que nos deixam estúpidos. Eram 3 e 25. Fazia apenas 35 minutos que eu deixara Cramer, e eles levariam uma hora para conseguir o mandado, de modo que eu não poderia esperar ver coisa alguma. Além disso, a vidraça também estava fria e recuei um pouco. Mas a verdade é que me sentia tenso e, de quando em quando, voltava a colar a testa à vidraça; volvido algum tempo, consegui ver alguma coisa. Sarah Dacos apareceu à minha vista na calçada, com um grande saco de papel marrom debaixo do braço, e entrou no prédio. Vê-la não melhorou meu estado de espírito. Eu não tinha nada contra Sarah Dacos. Está claro que também não tinha nada a seu favor. Uma mulher que enfia uma bala no coração de um homem pode, ou não, merecer alguma simpatia, mas positivamente não pode esperar que um estranho faça um rodeio porque ela lhe surge no caminho enquanto ele está trabalhando.

Fitando os ouvidos, ouvi abrir-se e fechar-se a porta de seu apartamento.

Às quatro e um quarto dois carros da polícia pararam diante do edifício. Um deles encontrou espaço para estacionar junto ao meio-fio e o outro parou ao lado dele; reconheci os três tiras da Divisão de Homicídio que desceram dos carros e se dirigiram para o número 63. Um deles, o Sargento Purley Stebbins, estaria, provavelmente, pensando em mim ao apertar o botão da campainha. Detesta encontrar-nos, a Nero Wolfe ou a mim, no mesmo condado num caso de homicídio, e lá estava ele agora desempenhando uma incumbência cuja responsabilidade nos pertencia. Eu gostaria de descer ao vestíbulo para ouvir a conversação quando ele lhe mostrasse o mandado, mas não desci. O sargento poderia farejar-me a presença e isso atrapalharia a busca.

Não levaram mais de dez minutos para encontrá-lo. Entraram no apartamento às 4 e 21, hora em que ouvi fechar-se a porta, e Purley saiu do prédio, com ela, às 4 e 43. Estou-lhe concedendo doze minutos para fazer algumas perguntas depois de haver topado com o revólver. Quedei-me à janela, vi Purley entrar no carro com ela, vi o carro sair e, depois, fui sentar-me no sofá. Visto que ele a levara, a pergunta sobre a arma estava respondida. Permaneci no sofá alguns minutos, enquanto reajustava meu estado de espírito.

Peguei o chapéu e o sobretudo e saí. Havia ainda um carro da polícia na frente do prédio, à espera dos dois tiras que continuavam no apartamento, e o motorista poderia conhecer-me, mas que tinha isso? Eu não o reconhecera da janela e não sei se ele me conhecia ou não. Quando passei pelo carro, ele me dirigiu um olhar severo, mas isso talvez porque me tivesse visto sair do edifício.

Voltei a pé para casa. Passava um pouco das cinco e meia e estava escuro quando cheguei à varanda e entrei. Fui à cozinha, peguei um copo de leite e perguntei a Fritz:

— Ele já lhe contou que estamos livres e desembaraçados?

— Não.

Fritz examinava umas cenouras.

— Pois estamos. Você já pode dizer o que quiser pelo telefone. Volte a procurar suas amiguinhas. Se um estranho lhe dirigir a palavra, faça o que bem entender. Quer um bom conselho?

— Quero.

— Peça-lhe um aumento. Eu vou pedir. A propósito, não lhe perguntei como foi o jantar na noite passada. Você fez coisas gostosas para eles?

Fritz colocou os olhos ao nível dos meus.

— Archie, nunca mais me fale nisso. Que dia terrível! Epouvantable. Meu espírito estava aqui com vocês. Não sei o que fiz, sei o que foi servido. Hei de esquecê-lo, se for possível.

— Hewitt contou pelo telefone que eles se puseram em pé e aplaudiram-no.

— Naturalmente. Foram delicados. Eu sei que não pus trufas no Périgourdine.

— Misericórdia! Ainda bem que eu não estava lá. Está certo, nós o esquecemos. Posso pegar uma cenoura? É uma delícia com leite.

Ele disse que sim e eu servi-me.

Eu estava à minha escrivaninha, fazendo cheques para pagar contas, quando Wolfe desceu do viveiro. Embora ele não o tivesse confessado, eu sabia-o tão tenso quanto eu mesmo estivera e, quando se dirigiu para sua mesa, virei a cabeça e disse-lhe:

— Sossega. Acharam o revólver.

— Como é que você sabe?

Contei-lhe tudo, a começar pela conversação com Cramer e a terminar pela conversação com Fritz. Ele perguntou-me se eu tinha recibo da fotografia.

— Não — retruquei. — Cramer não estava com disposição para assinar recibos. Contei-lhe que Althaus não fora morto por um G-man e isso doeu.

— Sem dúvida. O Sr. Wragg estará no escritório?

— Pode ser.

— Chame-o.

Voltei-me e apanhei o telefone, mas a campainha da porta tocou quando principiei a discar. Recoloquei o fone no gancho, fui dar uma espiada no vestíbulo, voltei-me e disse-lhe:

— O senhor, agora, pode pedir-lhe o recibo.

Wolfe respirou fundo.

— Ele está sozinho?

Eu disse-lhe que sim, fui até a porta da frente e a abri. Cramer não trazia um cartucho de leite para mim. Aliás, não trazia nada para mim, nem sequer um cumprimento. Depois de me entregar o sobretudo, encaminhou-se para o escritório e, quando lá cheguei, encontrei-o instalado na cadeira de couro vermelho, falando. Ainda peguei o fim da frase:

— ... e eu poderia ter sabido. Deus sabe que eu deveria ter sabido. — Voltou-se para mim quando me sentei: — Onde é que você arrumou aquele revólver e quando o colocou ali?

— Bolas! — grunhiu Wolfe. — O senhor não deveria ter vindo. Deveria ter esperado acalmar-se-lhe o espírito. Archie, chame o Sr. Wragg.

Quando Cramer está fervendo não é fácil deter-lhe o vapor, mas isso o conseguiu: o nome Wragg. Não o vi apertar as maxilas nem olhar feio para Wolfe; mas sei que o fez, porque estava de costas para ele enquanto discava LE 5-7700. Já me preparava para ter muita paciência enquanto esperasse ao telefone, mas não foi preciso. Aparentemente, ele ordenara que se desse prioridade à chamada de Nero Wolfe, o que era bom sinal. Num átimo, a voz arrastada, suave e baixa me soava aos ouvidos, e nos de Wolfe também, porque este apanhou seu telefone. Não desliguei o meu.

— Wolfe?

— Sim. Sr. Wragg?

— Sim.

— Estou pronto para a bala. Agora. Como combinamos. Traga a bala, que lhe devolverei as credenciais se, daqui a um mês, o senhor não estiver satisfeito. Creio que será antes, muito antes.

Nenhuma hesitação.

— Irei.

— Agora?

— Sim.

Quando desligamos, Wolfe perguntou-me:

— Quanto tempo levará ele para chegar aqui?

Respondi que levaria uns vinte minutos, ou

menos, pois não teria de campear um táxi, e Wolfe voltou-se para Cramer:

— O Sr. Wragg estará aqui dentro de vinte minutos. Sugiro...

— Wragg, do FBI?

— Sim. Sugiro que o senhor adie sua arremetida para depois que ele chegar e, talvez, para depois de ele partir. Entrementes, descreverei uma operação que concluimos. Eu disse ao Sr. Wragg que não a tornaria pública, mas o senhor não é o público, e visto que foi o senhor quem a tornou possível, ao senhor a devo. Mas será mais fácil lidar com ele se me responder a duas perguntas. Foi encontrado um revólver no apartamento da Srta. Dacos?

— Foi. Acabei de perguntar a Goodwin quando é que ele o colocou ali e vou repetir a pergunta.

— Não poderá fazê-lo enquanto não resolvermos o caso com o Sr. Wragg. Era o revólver para o qual Morris Althaus tinha uma licença?

— Era.

— Isto simplifica enormemente o assunto. Agora, quanto à operação...

Descreveu-a, e ele descreve quase tão bem quanto eu — melhor até, para quem gosta de palavras difíceis. Como não houvesse motivo para deixar de fora o nome de Hewitt, visto que o FBI estava a par de tudo, referiu todos os pormenores. Ao chegar à cena do escritório, quando os dois G-men se viram completamente rodeados de revólveres e ele deixou cair as credenciais na gaveta, vi uma coisa que nunca tinha visto antes e que, provavelmente, nunca tornarei a ver: um largo sorriso no rosto do Inspetor Cramer. E o sorriso voltou quando, referindo a conversação que travara com Wragg naquela manhã, Wolfe chegou ao ponto em que dissera que sua palavra valia mais do que a dele. Eu já o supunha capaz até de levantar-se e ir dar uma palmadinha nas costas de Wolfe, quando soou a campainha da porta e fui atender.

Eu disse que Wragg ficou desconcertado quando Wolfe lhe pediu que trouxesse a bala, mas isso não foi nada em comparação com o susto que levou ao entrar no escritório e dar com Cramer. Eu estava atrás dele e não poderia ver-lhe o rosto, mas vi-o enrijecer-se e vi que se lhe crispavam os dedos. Cramer, em pé, fez menção de estender-lhe a mão, mas desistiu em tempo.

Enquanto eu trazia uma cadeira amarela, Wragg disse a Wolfe:

— A sua palavra? Vale mais do que a minha? Seu traste ordinário!

— Sente-se — disse Wolfe. — Se minha palavra vale mais ou não, meu cérebro vale. Não julgo uma situação antes de compreendê-la. O Sr. Cramer é...

— Todos os acordos estão cancelados.

— Pfui. O senhor não é imbecil. O Sr. Cramer está lamentando haver presumido que um membro de seu departamento fosse um assassino. Se o senhor se sentar e se acalmar, ele talvez lhe diga isso.

— Não peço desculpas a ninguém — grunhiu Cramer. Virou a cabeça para certificar-se de que a cadeira de couro vermelho ainda estava lá e sentou-se. — Quem quer que sonegue informações...

— Nada disso — atalhou Wolfe. — Se os cavalheiros quiserem brigar, não tenho nada com isso, mas não briguem em meu escritório. Quero resolver uma situação, não quero complicá-la. Gosto de olhos ao nível dos meus, Sr. Wragg. Sente-se.

— Resolver como?

— Sente-se, que lho direi.

Ele não queria sentar-se. Olhou para Cramer, olhou até para mim, como um general que examina o campo de batalha e observa seus flancos. Não gostou da idéia, mas sentou-se.

Wolfe virou uma palma para cima.

— Na realidade — disse ele — a situação não tem nada de complicada. Todos desejamos a mesma coisa. Eu quero livrar-me de uma obrigação. O senhor, Sr. Wragg, quer tornar público que seus homens não estão criminalmente implicados num homicídio. O senhor, Sr. Cramer, quer identificar e levar à justiça a pessoa que matou Morris Althaus. Nada poderia ser mais simples. O senhor, Sr. Wragg, entrega ao Sr. Cramer a bala que traz no bolso e diz-lhe de onde veio. O senhor, Sr. Cramer, manda comparar essa bala com a que foi disparada pelo revólver tirado esta tarde do apartamento de Sarah Dacos, e isso, aliado a outras provas que os seus homens, sem dúvida, já têm agora em mãos, resolverá o assunto. Não há...

— Eu não disse que trazia uma bala no bolso.

— Tolice. Aconselho-o a controlar-se, Sr. Wragg. O Sr. Cramer tem boas razões para supô-lo de posse de um elemento essencial de prova num homicídio ocorrido na jurisdição dele. De acordo com os estatutos do Estado de Nova Iorque, pode, legalmente, revistá-lo, aqui mesmo, e tirar-lhe esse elemento. É assim mesmo, Sr. Cramer?

— É.

— Mas — prosseguiu Wolfe, dirigindo-se a Wragg — isso não deverá ser necessário. O senhor tem cabeça. É manifestamente de seu interesse e do interesse de seu departamento entregar essa bala ao Sr. Cramer.

— Não é coisa nenhuma — recalcitrou Wragg. — E um de meus homens subirá ao banco das testemunhas e dirá, sob juramento, que esteve no apartamento e tirou-a de lá? De maneira nenhuma.

Wolfe abanou a cabeça.

— Não, senhor. Nada disso. O senhor dará ao Sr. Cramer sua palavra, aqui particularmente, de que foi de lá que veio a bala, e um dos homens dele subirá ao banco das testemunhas e dirá, sob juramento, que a encontrou no apartamento. Haverá...

— Meus homens não são perjuros — sobreveio Cramer.

— Bah! Isto não está sendo gravado. Se o Sr. Wragg lhe entregar a bala e lhe disser que foi encontrada no chão do apartamento de Morris Althaus, cerca das onze horas da noite de sexta-feira, dia vinte de novembro, o senhor acreditará nele?

— Acreditarei.

— Então guarde suas atitudes para auditórios que possam apreciá-las. Este não é suficientemente ingênuo. Não creio...

— Ele talvez não esteja assumindo atitudes — atalhou Wragg. — Pode subir pessoalmente ao banco das testemunhas e contar como encontrou a bala. E eu também seria chamado a depor.

Wolfe assentiu com a cabeça.

— É verdade. Poderia. Mas não o fará. Se o fizesse, eu também seria chamado a depor, e o Sr. Goodwin também, e um auditório muito maior do que este saberia como se desmascarou o assassino de Morris Althaus, depois que a polícia e a promotoria pública gastaram oito semanas inúteis à cata da solução. Ele não o fará.

— Vão para o inferno! — exclamou Cramer.

— Os dois.

Wolfe olhou para o relógio.

— Já estou atrasado para o almoço, cavalheiros. Eu já disse tudo o que tinha pra dizer e já satisfiz minha obrigação. Querem resolver o assunto, ou preferem teimosamente deixar de fazê-lo, em outro lugar?

Wragg olhou para Cramer.

— Vê algum inconveniente nisso?

Os olhos do tira e do G-man encontraram-se e nenhum deles se abaixou.

— Não — disse Cramer. — E você?

— Também não. Você está com o revólver?

— Estou. — Cramer voltou-se para Wolfe. — Você disse que eu talvez não perguntasse a Goodwin depois que tivéssemos resolvido o caso com Wragg. Não perguntarei. Poderei fazê-lo mais tarde, se toparmos com alguma dificuldade. Eu só receberia uma série de evasivas, e não quero saber disso. — Voltou-se para Wragg. — Você é quem decide.

A mão de Wragg introduziu-se num bolso e dele voltou segurando um frasquinho de plástico. Levantou-se e deu um passo.

— Esta bala — disse ele — foi encontrada no chão do apartamento de Morris Althaus, em sua sala de estar, cerca das onze horas da noite de sexta-feira, dia vinte de novembro. Agora é sua. Nunca a vi.

Cramer levantou-se para recebê-la. Tirou a tampa do frasco, deixou cair a bala na palma da mão, examinou-a, e devolveu-a ao frasco.

— Você tem toda razão: é minha mesmo — confirmou.

 

Três noites depois, segunda-feira, lá pelas seis e meia, Wolfe e eu estávamos no escritório, discutindo um ponto sobre a especificação das despesas que acompanhariam a conta da Sra. Bruner. Reconheço que se tratava de um ponto de menor importância, mas era uma questão de princípios. Dizia ele ser justo e adequado incluir o almoço no Rusterman's baseado em que as refeições que lá fazíamos nos eram oferecidas em consideração pelos serviços que ele prestara e ainda estava prestando ao restaurante e, portanto, não seriam, realmente, gratuitas. Segundo meu ponto de vista, os serviços anteriores já haviam sido prestados e os atuais o seriam, ainda que ela e eu tivéssemos ido almoçar no restaurante automático.

— Compreendo — disse eu — que o senhor está em dificuldades financeiras. Mesmo que repute os honorários ao máximo, digamos, em outros cem mil dólares, isso talvez ainda não baste para chegarmos ao fim do ano, e no Dia do Trabalho ou, pelo menos, no Dia de Ação de Graças, talvez se veja obrigado a aceitar algum serviço, de modo que precisa tirar todos os níqueis que puder. Mas, por outro lado, ela tem sido uma cliente maravilhosa, e o senhor deveria ter alguma consideração por ela e, indiretamente, por mim também, caso eu resolva casar com ela. A Sra. Bruner tem uma porção de outras despesas além do senhor, e agora terá outra, contratando um advogado caro para defender Sarah Dacos.

— Como você sabe, a Srta. Dacos confessou.

— Mais uma razão para precisar de advogado. Faço muito empenho nisso. Convidei-a para almoçar. Estou para dizer que, se essa despesa lhe for cobrada, eu me sentirei na obrigação de dizer-lhe, particularmente, que o almoço foi por conta da casa. Ela pode querer...

Soou a campainha da porta. Levantei-me, fui ao vestíbulo e vi, na varanda, um camarada que nunca vira antes em pessoa, mas que já vira um sem-número de vezes em fotografias. Voltei e anunciei:

— Bem, bem. É o tubarão.

Wolfe carranqueou para mim; depois compreendeu e fez uma coisa que nunca tinha feito. Levantou-se da cadeira e foi até a porta. Ficamos lado a lado, olhando. O visitante colocou um dedo no botão e a campainha da porta soou outra vez.

— Não tem hora marcada — disse eu. — Levo-o para a sala da frente e faço-o esperar um pouco?

— Não. Não tenho nada para ele. Deixá-lo ficar com o dedo doendo.

Virou-se e voltou para sua escrivaninha.

Entrei no escritório.

— É provável que ele tenha vindo lá de Washington só para vê-lo. E uma honra.

— Pfui. Venha terminar isto. — Voltei à minha cadeira.

— Como ia dizendo eu talvez diga a ela particularmente...

Soou a campainha da porta.

 

                                                                                            Rex Stout  

 

                      

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