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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EU CONFESSO TUDO / J. M. Simmel
EU CONFESSO TUDO / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

EU CONFESSO TUDO

 

        Através da aventura, do esplendor e das tentações do mundo do cinema desenvolve-se o dramático destino de um escritor que, depois de uma vida amorosa desenfreada e sem escrúpulos, fraudes e crimes, encontra o caminho da volta a si mesmo.

        James Elroy Chandler, bem-sucedido roteirista de Hollywood, está trabalhando em seu mais novo filme na Alemanha. Uma série de intrigas ameaça seu entendimento com o chefe da produção; seu casamento começa a degenerar; comete adultério, e sua relação com esta outra excêntrica e apaixonada mulher é atormentadora.

        Chandler vem então, da noite para o dia, a saber que está sofrendo de uma doença incurável: dispõe de apenas mais um ano de vida. O modo como ele vai utilizar esse prazo final constitui talvez o tema mais empolgante em torno do qual Johannes Mario Simmel já escreveu, conforme assinala o Stuttgarter Zeitung: "Aqui se precipitam acontecimentos tão sensacionais, que dificilmente o leitor conseguirá deixar de lado o livro por um instante sequer... Deslumbrado, o leitor verá correr diante de si uma sucessão de cenas de singela beleza poética e humana, nas quais Simmel faz a criação e formação dos personagens exceder de longe o soberano domínio de técnica"...

       

       

       

        Meu nome é Walter Frank.

        Nasci em 17 de maio de 1906 em Viena. Sou cidadão austríaco, católico apostólico romano e casado com Valerie Frank, nascida em Kesten. Minha profissão, comerciante de exportação; resido na casa n.° 112 da Reisnerstrasse, no terceiro distrito municipal de Viena, e as anotações que faço aqui são a história de um erro.

        Refleti longo tempo sobre a possibilidade de haver mesmo encontrado na palavra "erro" a melhor forma com que resumir as experiências, as vivências e os acontecimentos dos últimos meses; sobre se essa palavra corresponde a um balanço escrupuloso de tudo isso, inclusive à quinta-essência da aventura e de suas conseqüências, que agora me acompanham para um desfecho quase definitivo; sobre se talvez seja por demais pretensiosa; ou então sobre se tenho algum direito de aplicá-la em minha história e em meu caso. Refleti, guardando grande consciência dos fatos, sem disfarce e sem esquecimento de nada, com o mesmo escrúpulo com que agora passo a anotar minha história sem nada esquecer ou dissimular seja lá o que for. Acredito, pois, que a palavra "erro" é correta.

        Foi o maior erro que cometi em minha vida e será o último, porque estou doente e vou morrer em breve. A doença que me acometeu não é desagradável... se a gente deixa de lado a idéia de que ela se desencadeará impreterivelmente para o letal. Comecei a suportar seus sintomas naturais no estágio avançado em que agora me encontro. No entanto, um remédio forte contra as dores é necessário. O remédio que estou usando se chama "cloridrato de morfina". Com ele fico livre das dores. Tomo minhas precauções, e quando observo que a pressão sobre a base do nariz aumenta, anunciando-se aquele latejar costumeiro e familiar por trás das órbitas dos olhos, abro simplesmente uma ampola e eu mesmo me injeto. É tudo, não precisa mais nada. Não é uma doença desagradável, se a gente deixa de pensar que ela é inevitavelmente mortal.

        Analisando-se com precisão, ela se faz notar, ainda, através de uma série de outros sinais, tais como sensações de vertigem, paralisações da atividade do cérebro e o desgaste irregular de diversos músculos de constituição homogênea. Meus olhos ficam também logo fatigados e por essa razão é que, ao registrar minha história, irei escrevendo apenas capítulos menores, e terei de interromper não poucas vezes. Acho que será melhor simplesmente numerar esses capítulos em sua ordem, em parte para facilitar a leitura das folhas soltas nas quais escrevo minha história para o Dr. Freund, em parte a fim de prestar contas a mim mesmo do trabalho diário que me propus fazer. Isso porque preciso manipular meu tempo com muita economia e sensatez, se meu desejo é terminá-la antes de morrer. Sobretudo, quero deixá-la pronta. É a única coisa que desejo. Ficar livre, escrever a história desse erro até o fim, sem me esquecer de nada, sem disfarces e fantasia.

        Leio mais uma vez as primeiras linhas e noto que nessas mesmas primeiras linhas omiti e fantasiei alguma coisa; enfim, menti já nessas primeiras linhas. Entendo que não adianta continuar escrevendo sem antes corrigir meus próprios pensamentos. Não devo narrar minha história para fazer surtir algum efeito, para conseguir uma importância fácil e barata; antes, acredito que estou comprometido a relatá-la de modo que a verdade em si transpareça ao máximo e fique mais bem esclarecida. Por esse motivo me retrato no que escrevi.

        Meu nome não é Walter Frank.

        Não nasci em 17 de maio de 1906 em Viena. Não sou cidadão austríaco, nem católico apostólico romano e nem casado com Valerie Frank, nascida em Kesten, como também minha profissão não é comerciante de exportação. Tudo isso foram dados falsos; passo agora aos exatos.

        Meu nome certo é James Elroy Chandler.

        Nasci em 21 de abril de 1911 na cidade de Nova Iorque, no Estado de Nova Iorque, E.U.A. Sou cidadão norte-americano, protestante e casado com Margaret Chandler, nascida em Davis. E minha profissão é — ou melhor, era — roteirista cinematográfico em Hollywood.

      

        Neva.

        Em frente às janelas do quarto de onde estou escrevendo, os flocos caem silenciosamente na terra. A luz no aposento é tênue, um lusco-fusco. Faz bem aos meus olhos e à cabeça. O Dr. Freund foi muito amável em deixar esse quarto para mim. Fica na ala ajardinada do grande e moderno edifício da escola onde ele trabalha. Abaixo das janelas de meu quarto há uma quadra de ginástica cercada de árvores, antigas e altas. Quando o tempo está melhor, as vozes claras das crianças que estão brincando chegam até mim e então escuto seus risos, as exclamações e os gritinhos ofegantes. Hoje a quadra está abandonada e, em silêncio, ela se afunda em neve.

        Estou sentado numa cadeira confortável, o papel em que escrevo sobre os joelhos. Há pouco o Dr. Freund veio se informar do meu estado. Alegrou-se muito quando lhe disse que hoje iria começar a escrever minha história. A idéia de fazer as anotações na verdade parte dele. Todos os meus planos dos últimos tempos vêm dele. Desde que nos conhecemos, entreguei-me cada vez mais à sua orientação e aos seus conselhos, e a partir do momento em que não mais me senti bem na casa da Reisnerstrasse e, praticamente, me transferi para cá, é para ele que ainda faço apenas aquilo que considera bom e que me pede para fazer. Tenho confiança nele. É bondoso, inteligente, e sabe tudo a meu respeito. Estou muito feliz por ainda havê-lo encontrado.

        Quando cheguei e lhe contei minha história, e ele percebeu o que se passava comigo, aconselhou-me a escrever minha aventura. Iria me aliviar, opinou. Os sucessos de seu trabalho pedagógico atribuem-se, como os resultados de todos os esforços do gênero, ao fato de, no início, deixar que seus pacientes (e também eu me tornei um deles) contem sobre o que os oprime e o que os satisfaz, a fim de lhes dar, desse modo, uma primeira sensação de alívio. Compreendi isso imediatamente, quando pela primeira vez me fez a sugestão.

        —  O senhor acha — disse eu — que todo criminoso se sente impelido a falar de seu delito, a se gabar dele, ou seja, acusar-se pelo que cometeu?

        Ele concordou com a cabeça.

        —  Essa compulsão — disse ele — de falar sobre coisas que nos abalam mais profundamente se apossa, na mesma medida, de criminosos e santos. Não só o Dr. Crippen foi impelido a voltar ao cenário de seu assassínio; também São João e São Lucas se viram compelidos a escrever seus evangelhos.

        —  Eu não sou nenhum santo.

        —  Claro que não — disse ele —, mas o senhor é um escritor. O senhor sempre quis escrever um livro e jamais o fez. Escreva-o agora. É sua última oportunidade.

        De fato, é minha última oportunidade.

        Tive muitas oportunidades para escrever livros, porém nunca me aproveitei delas, não obstante tantas coisas que vivi, que vi e ouvi. Escrevi roteiros, nenhum deles bom. Se tivessem sido bons, eles e os filmes que se fizeram a partir deles teriam podido assumir o lugar de livros. Contudo os textos não eram bons e ocuparam mal o lugar. Perdi minhas oportunidades, perdi-as exceto uma, extrema, última, que agora se me apresenta, aqui nesse quarto silencioso e de luz crepuscular, pouco tempo antes de minha morte. Essa oportunidade não me permito perder. Tenho de aproveitá-la, e quero aproveitá-la. Quero narrar minha história, registrá-la por escrito.

        No entanto, agora que se trata de minha própria história, também de repente sou acometido de dúvidas, inibições, insegurança. Sempre escrevi exclusivamente histórias alheias, inventadas, elaboradas, falsas histórias que imaginava e construía a partir de seu efeito (eu começava pelo fim e recuava a trama até o princípio); e agora, súbito, vejo-me face a uma realidade impiedosa, encarando fatos implacáveis e frios, um desenrolar progressivo do qual conheço apenas o começo, e não o final.

        O começo! Aliás, será que eu o conheceria, mesmo? Poderia dizer quando se iniciou minha história, a partir de que momento merece ser contada? Teria começado no anoitecer daquele dia em que desci no aeroporto de Munique? Naquela noite em que, numa villa na entrada da cidade, encontrei Jolanthe? Começara no Hospital da Cruz Dourada? Terá sido antes? Ou mais tarde? Enfim, começando somente na Alemanha, e não pouco antes, em Hollywood? Afinal de contas, minha história não será apenas uma seqüência infinita de acontecimentos formando uma corrente que se alastra para trás até o dia de meu nascimento? E, por isso, não preciso, com certa arbitrariedade, escolher um ponto dessa progressão e dizer: Este foi o começo?

        Estou quase acreditando que seja assim.

        Creio, inclusive, haver encontrado esse ponto. Foi há uns cinco meses, calculando que agora estamos em janeiro, dia 4 de janeiro. Era um domingo de céu nublado, chovia, e a luz verde de lusco-fusco entrou pelo quarto onde me alojava, quando despertei. O quarto se achava no segundo andar da casa 127 da Romanstrasse, em Munique. As paredes eram revestidas de cor vinho. Lá fora, a chuva rumorejava caindo pelas árvores da rua silenciosa, e ao abrir os olhos a primeira coisa que vi foram as folhas novas, de um verde-escuro e pesadas de umidade, de um castanheiro diante da janela. Sim, a primeira coisa, lembro-me ainda com nitidez, e me assombra um pouco verificar, agora, que tudo isso jaz em um tempo remoto, cinco meses atrás; que tudo já tenha tido começo há cinco meses atrás, numa tarde chuvosa de domingo...

       

        Sentia dor de cabeça, ao despertar.

        Eram as dores de cabeça habituais que sempre sentia ao despertar, só que naquele dia também um certo mal-estar desagradável se juntou a elas, proveniente de meu estômago, e sua causa era o excesso de álcool que consumira na noite de sábado. Havia bebido demais e isso não me fez bem. Ergui-me com um gemido e apanhei meu relógio de pulso sobre a mesinha de cabeceira. Eram quatro e dez.

        Jolanthe ainda dormia.

        Estava deitada ao meu lado, sobre o ombro esquerdo, e seus cabelos vermelhos-ruivos se espalhavam, desgrenhados, sobre o travesseiro, que ela abraçava com firmeza. Olhei para ela. O batom que usava era de um vermelho muito vivo e a cor meio manchada de gordura. Produzia pequenas nódoas na pele muito branca de seu rosto. Respirava profundamente, os seios desnudos se erguiam e baixavam com regularidade. Jolanthe sempre dormia nua e invariavelmente se descobria durante o sono. Estendi a colcha sobre ela e levantei-me da cama. Sentia dores de cabeça, no crânio. Procurei minhas pílulas, mas não pude encontrá-las de imediato. No quarto reinava certa desordem. As peças do vestuário de Jolanthe estavam espalhadas por lodo canto, as minhas sobre uma poltrona; notei então que antes de adormecer havíamos esquecido de mudar, no rádio, de estação. Zumbia baixinho e a luz das faixas de freqüência ardia. Havíamos escutado música para dançar em ondas curtas, num comprimento de onda cuja emissora já tinha acabado a transmissão.

        Desliguei o aparelho e procurei no meu terno os comprimidos para dor de cabeça. Estava irritado e meus movimentos tinham aquela certa hesitação histérica de sempre quando eu bebia demais. Não encontrei nada nos bolsos do terno. Entrei no banheiro, e também lá não descobri nada do que procurava; contudo, abri a torneira da banheira e atirei uma toalha sobre a borda. Depois voltei para o quarto; Jolanthe continuava dormindo. Ela se havia descoberto de novo, agora estava de bruços, suas compridas pernas pendiam na beira da cama. Ela conversava durante o sono.

        — Isso não prova absolutamente nada — gritou e riu. — Nada, não prova nada! — Então disse algumas palavras, que não entendi. E voltou a falar: — Você não pode se dirigir a mim com tais acusações.

        Eu não dava atenção, ela sempre falava durante o sono, o mais das vezes conversas sem sentido. No início, quando eu era muito desconfiado e ciumento, costumava fazer-lhe perguntas, à noite. Ela contava as coisas mais incríveis, e eu ficava fora de mim, furioso, até que um dia ela me contou uma história a meu próprio respeito. Era uma história inventada.

        A partir daquele momento extinguiu-se meu interesse por suas confissões noturnas.

        Despertei de uma sensação de ausência mais longa, absorto em meditação, e me encontrei sentado à beira da cama, com o olhar preso às costas alvas e lisas de Jolanthe. Talvez estivesse dormindo de olhos abertos, os ponteiros do relógio de pulso marcavam quatro e meia. Nos últimos tempos advinha-se com freqüência um estado parecido com este: de repente, ao despertar, eu sentia verdadeiros "vácuos da consciência". Principalmente quando eu tirava folga, podia acontecer que, na manhã seguinte, me pusesse de pé para calçar um sapato, e meia hora depois me encontrasse na mesma posição, com o olhar fixo em ponto algum, com a mão levantada segurando o mesmo sapato.

        Esfreguei as têmporas e, com algum esforço, pensei no que pretendia fazer ao voltar para o quarto. Então me lembrei, e no mesmo instante também vi as pílulas que procurava. Estavam na mesinha de cabeceira, ao lado do relógio, e junto delas um copo com água. Ao voltar para casa havia, ainda, preparado tudo, posto tudo em ordem antes de me deitar. Só que, aparentemente, não ousava mais engolir as pílulas. Foi um pecado de omissão. Noutras circunstâncias sempre tomava o remédio ainda de noite, para ficar, de manhã, com as idéias claras e poder trabalhar. Era patente que a perspectiva de um domingo livre me tornara displicente. Retratei-me de minha negligência. A água tinha gosto de óleo de fígado e senti a língua grossa como lixa. Lembrei-me então da banheira e corri para lá. A banheira estava prestes a transbordar. Fechei a torneira, tirei o pijama e entrei na água quente.

        No princípio senti-me mal.

        As órbitas dos olhos latejavam como loucas e o suor saltava na testa em grossas gotas. Mal podia respirar, mas agüentei. Sabia o que era. Dez minutos depois eu me sentiria maravilhosamente bem. Era sempre a mesma coisa. Deitei-me na água e fechei os olhos. Persistia a dor de cabeça. Por dentro das pálpebras via as rodas de fogo girar em círculos, vermelhas, tal como se vinham repetindo há muito tempo; então pensei em Margaret.

        Ela havia ido ao Chiemsee para visitar uns amigos americanos que lá passavam o verão e a quem encontrara casualmente em Munique. Eu prometera buscá-la ao anoitecer, já havia quatro dias que ela se encontrava lá. A empresa cinematográfica para a qual eu trabalhava havia colocado um pequeno carro à minha disposição. Em duas horas estaria junto ao lago. Eram quatro e meia, eu despertara no tempo justo.

        O mal-estar passou, a dor de cabeça continuou. Molhei várias vezes o rosto com água fria, mas não adiantou. Em frente à janela do banheiro a chuva batia contra o gradeado de zinco da cimalha na parede. O silêncio era completo, apenas de tempo em tempo escutava os passos de um único pedestre caminhando pela rua. Peguei a toalha de rosto e me enxuguei. Minha cabeça doía muito. Com sensações as mais confusas pensei na iminente viagem de duas horas pela estrada, e, com sentimentos mais complexos ainda, em Margaret e seus amigos. Provavelmente deveríamos ficar para jantar. Margaret iria enaltecer meu trabalho e eu me aborreceria terrivelmente. No final teríamos uma discussão por causa de uma banalidade qualquer e ela cairia em prantos. Era tudo muito aflitivo, inevitável; sempre a mesma coisa.

        Voltei para o quarto. Ainda precisava telefonar para Hellweg. Hellweg era o autor que escrevia a versão alemã do filme no qual trabalhávamos. Eu escrevia a versão inglesa. Precisava pedir-lhe que viesse ver-me no hotel pela manhã. Eu não podia mais escrever no escritório da companhia, a quantidade de gente me deixava nervoso. Talvez saísse da cidade, com Hellweg, por alguns momentos. Era um sujeito simpático, com ele gostaria de estar a sós algum tempo. Sozinho, com um homem. Achei que as mulheres, ultimamente, me irritavam, me tornavam mais nervoso do que nunca. E não só Margaret. Jolanthe também. Todas as mulheres. Eu havia trabalhado em demasia, o roteiro estava pronto, faltando apenas cotejar as duas versões. Além disso, ainda teria de me ocupar com meus diálogos. Sempre às voltas com meus diálogos. Deus, minha cabeça, como dói!

        Fui até o espelho para dar o nó na gravata. Era um espelho grande, típico e adequado às necessidades femininas. Em frente dele havia uma penteadeira e um banquinho de veludo vermelho. O arranjo do quarto era moderno, prático e feminino. Cheirava a alfazema e cera de assoalho. Levei algum tempo para endireitar o nó da gravata e xinguei em voz baixa. Meus dedos tremiam, coisa insólita, simplesmente não conseguia firmá-los onde queria. Excesso de trabalho, muito uísque. Cigarros demais. Com grande ansiedade pensei no dia em que meu trabalho estivesse terminado e eu pudesse deixar Munique. Talvez passasse algum tempo na Riviera. Dinheiro eu teria.

        Levantei os olhos e pelo espelho vi que Jolanthe acordara. Estava deitada de costas, as longas pernas cruzadas, e seus olhos verde-escuro me observavam, cismados. Tive a desagradável sensação de que já estavam me observando todo aquele tempo.

        —  Olá — disse eu.

        —  Olá — respondeu Jolanthe.

        —  Como está?

        — Bem, obrigada. — Alçou os braços por cima da cabeça e bocejou. Contorceu o corpo como uma gata preguiçosa. Sentou-se na cama e coçou as costas roçando-as de encontro à cabeceira. Encolheu as pernas junto ao ventre e soprou os cabelos da testa. — E você?

        —  Dor de cabeça — respondi. A gravata agora estava bem.

        —  Um dia destes você devia ir a um médico.

        —  Já fui a uma dúzia de médicos.

        —  Mas é preciso saber como combater isso!

        —  Claro — disse eu.

        —  O quê?

        —  Tomar pílulas. — Sentei-me e procurei meus sapatos. Fitou-me, silenciosa. Tinha um rosto muito interessante, anguloso, de uma irregularidade espantosa, que o deixava com uma expressão acerba, certa mordacidade. Seus dentes eram alvos, largos, em uma boca farta, de lábios folgados, o nariz fino, não especialmente reto, e negras e espessas sobrancelhas contrastando, desafiantes, com os cabelos de fogo que ela, acompanhando a moda, trazia penteado para o alto. Eram particularidades desse rosto a capacidade de levar as emaranhadas sobrancelhas, separadamente, a uma altura vertiginosa, como também um nervo da narina esquerda que às vezes se tornava independente e começava a se agitar latejando e tremulando, fazendo-a, assim, parecer mais nervosa do que era.

        —  Você vai sair? — perguntou com indiferença.

        —  Vou — respondi, e apertei os cordões do sapato.

        —  Logo vi. — Oscilou as pernas para fora da cama, fisgou os chinelinhos de salto alto que estavam perto, debaixo de uma cadeira, e pôs-se de pé: visão de mulher muito alta. Nua como estava, passou por mim e saiu do quarto. Enquanto me penteava à frente do espelho, escutei-a na cozinha abrir e fechar a porta da geladeira. Em seguida, voltou. Trazia um copo e uma garrafa de cerveja. Colocou-os sobre a mesinha e, séria e absorta, abriu a garrafa embaciada de gotículas de água. Encheu o copo e a goles lânguidos sorveu sequiosamente. Bebia em pé, a cabeça bem inclinada para trás. O revestimento de seu estômago pequeno e reto subia e baixava a cada gole. Desviei o olhar. Não podia ficar olhando para ela; o cheiro da cerveja nova e gelada, que senti de imediato, me causou novo mal-estar. Essa capacidade extravagante de beber cerveja de manhã cedo e invariavelmente após acordar, sem se importar com o ambiente nem com a situação, jamais deixava de provocar em mim a mesma surpreendente aversão. Jolanthe era a única mulher do meu círculo de amizades que o fazia, e eu sofria um pouco com isso. Nesse meio tempo já esvaziara um segundo copo, sentou-se na cama novamente e pôs na boca um cigarro. Acendi-o. Soprou uma nuvem de fumaça e perguntou:

        —  Para onde?

        Essa era mais uma de suas incontáveis singularidades: prover a conversa de lacunas propositais e adiá-la longamente, a seguir retomar abruptamente um fio interrompido do diálogo e, com a mesma brusquidão, voltar a quebrá-lo. No começo, essa técnica de conversa me perturbara, contudo logo me acostumei a ela.

        —  Preciso tratar de um assunto.

        —  Mas você volta?

        —  Não.

        —  Não? — A sobrancelha direita subiu. — Mas planejamos ir ao teatro.

        —  Sinto muito, não vou poder. Vá com alguma amiga. — Pus a mão em seu ombro e, ausente, procurei acariciá-lo. Ela retirou a mão.

        —  Não faça isso!

        —  O que há com você?

        Olhou para mim em silêncio. Seus lábios, outras vezes sempre largos e descontraídos, apertaram-se. A narina tremeu. Uma madeixa dos cabelos caiu-lhe novamente sobre o rosto, mas dessa vez não notou. Continuou em silêncio. Eu só escutava sua respiração e a chuva.

        —  Eu lhe fiz uma pergunta! — Minha cabeça doía cada vez mais. Com um gesto mecânico, também apanhei um cigarro.

        —  Você precisa ver sua mulher, não é isso?

        —  Também isso — respondi.

        —  Por que você não me disse antes?

        —  Mas você sabia!

        —  Eu não sabia!

        Minhas pálpebras latejavam, podia sentir o sangue passando por elas.

        —  Jolanthe, o que há com você? Está com ciúme?

        —  De Margaret? — Bateu com desdém a cinza do cigarro, que caiu no tapete. As cinzas continuavam caindo no tapete.

        —  E daí...

        —  Não estou com ciúme. Estou é farta!

        — Farta de que? — Estava muito nervoso e muito irritado. Repeti sua frase alongando as palavras e com uma expressão amargurada.

        —  Não faça uma cara sofrida dessas! — Ela fumava com nervosismo. — Você não tem motivo para tanto! Se há alguém com motivo aqui, sou eu!

        —  Calma, devagar...

        —  Sim, fale.

        —  Provavelmente você não está bem.

        —  Por Deus, você acha?

        —  Não está satisfeita comigo.

        —  Não.

        —  Talvez devêssemos então terminar.

        —  Talvez. Controlei-me. Sorri amistoso.

        — Espere um instante — falei. — O que está realmente acontecendo com nós dois? Como foi que tudo isso começou? Há pouco ainda estávamos em completa boa-paz, ou não? — Ela não respondeu. — Ora, vamos, façamos a paz novamente. Sinto muito se lhe causei alguma mágoa. — Eu sabia bem que não fizera absolutamente nada de errado, um mínimo pelo que devesse arrepender-me, e, no entanto, eu disse para ela. Tudo para ter sossego. Tudo por um pouco de paz. — Agora está bem, de novo? — Beijei-a no ombro. — Sim?

        —  Não — respondeu.

        Respirei fundo. Ela parecia decidida a fazer uma cena comigo.

        —  Por que não? — Deus do céu, eu sabia tudo que viria, as palavras, os olhares, os gestos. Como era insuportável, como me parecia ridículo tudo aquilo!

        —  Porque não me convém!

        —  O que não lhe convém? — O tradicional diálogo, o velho método: repetir expressões, escutar, sorrir. E dor de cabeça. Sobretudo, dor de cabeça.

        —  Nada me convém! — Levantou-se de um salto, embrulhou-se num roupão e começou a ir e vir pelo quarto. Era visível como esses curtos rompantes lhe faziam bem, como os desfrutava. A ampla veste caseira de seda verde flutuava ao redor de suas níveas coxas. Perdendo o equilíbrio sobre o salto dos chinelos, atirou-os à frente dos pés. — Nada! O que você realmente julga de mim? Por quanto tempo ainda quer continuar com isso?

        —  Isso o quê?

        — Esse joguete! Amor com hora marcada! Segunda-feira das quatro às oito, quarta-feira à tardinha no escritório mas somente quando precisa de alguma coisa, quinta-feira pela manhã, e, depois, no fim de semana, quando sua mulher sai de viagem... — Olhei para ela. Achei que nesses três meses de nossas relações ela envelhecera. Não era mais tão bonita. Descobri determinadas falhas em seu corpo. Sucedia-me o mesmo com todas as mulheres. Só que com a maioria delas durara mais tempo. Talvez fosse bom terminar.

        —  Você sabe exatamente que esse "horário" é conseqüência da situação difícil em que estou. Afinal de contas sou casado.

        —  E, em conclusão, você dormiu comigo!

        —  A seu amável convite!

        —  Você é ordinário!

        —  Fiz com grande prazer — disse, levantei-me e me aproximei dela. Defendeu-se de mim quando a abracei, mas segurei-a com firmeza e apertei-a contra o corpo. Por um breve momento senti mesmo algo parecido com um desejo. Então senti a cerveja, e larguei-a. — Desde o princípio ficou esclarecido entre nós o tipo de relação que teríamos — expus-lhe. — Ou será que de repente você passou a me amar?

        —  Por Deus que não — exclamou, em voz muito baixa, e os olhos verdes brilhavam de fúria.

        —  Pois então, por que ficar assim exaltada?

        De súbito aproximou-se de mim e me fitou nos olhos. Falou precipitada: — Isso eu vou lhe dizer, querido Jimmy! Porque me atrevo a mostrar que possuo alguma coisa parecida com sentimento de dignidade. De dignidade feminina!

        —  Muito bem!

        —  Fique quieto! — De pé, bem ao meu lado, seu corpo tocou no meu, então passei a sentir não só o cheiro da cerveja como também de seus cabelos e do perfume que estava usando. —Ainda não terminei! Acho que também me cabem direitos pelo prazer que lhe dou. Direitos de natureza social! Os mesmos direitos de sua mulher! Meus direitos!

        —  Está bem, sim!

        —  Ou será que não? Que faz ela? Ela dá prazer a você? Ajuda você?

        —  Não — respondi.

        —  Mas eu, eu fiz isso! Ou não fiz?

        —  Sim, Jolanthe.

        —  Talvez não nos tenhamos amado, mas nos entendemos desde o primeiro momento! Você podia vir a minha casa quando queria! Eu estava sempre lá para recebê-lo! Fui fiel a você, embora não o amasse! E sua mulher? Foi fiel?

        —  Tiremos minha mulher da berlinda.

        —  Quero saber! Foi fiel?

        —  Não.

        —  No entanto, você precisa buscá-la, não é mesmo?

        —  Sim.

        " De repente sentia-a muito distante de mim, como se a estivesse vendo através das lentes maiores de um binóculo. Também sua voz me chegava como através de uma parede de algodão. Apenas a chuva rumorejava em viva voz. E o sangue pulsava nas pálpebras. Tam-tamtam, tam-tamtam.

        —  Você precisa salvar as aparências!

        —  É isso.

        —  E ninguém pode notar absolutamente nada.

        —  Não.

        —  Porque você tem compromissos sociais.

        —  Exato.

        —  Embora não a ame.

        —  Certo.

        —  Embora há anos que você já não sente mais amor por ela. Embora há muitos anos que ela não mais o ama!

        —  Sim, Jolanthe.

        —  E por quê?

        —  Porque ela é minha mulher — falei. Afastei-me dela. Notei que essa conversa me enredava cada vez mais, levando-me consigo. Um diálogo já velho. Já o tive, muitas vezes, não só com Jolanthe, e não foi só em Munique. Em outras cidades também. E com outras mulheres. Estava enfastiado dessa conversa. Farto, como de tantas outras coisas.

        —  Porque é sua mulher! Isso é tudo?

        —  Isso é tudo.

        —  Por isso você não pode abandoná-la?

        —  Não.

        —  E por que não?

        —  Porque não quero. — Poderia ter dito: porque queria evitar um escândalo. Ou, então, porque eu era muito covarde. Mas não disse. Jolanthe não tinha nada com isso. E eu tinha dor de cabeça.

        —  No entanto eu... a mim você quer deixar!

        —  Não quero, absolutamente.

        —  Não, mas você está deixando!

        —  Como assim? Quando?

        —  Agora! Você se afasta de mim, para ela!

        — Jolanthe, não seja infantil. Apanho Margaret era casa de amigos e a levo para casa. Amanhã nos vemos novamente.

        —  Das quatro à oito!

        —  Não posso alterar as coisas.

        —  Você poderia alterar! Poderia dar um jeito de as pessoas não se desbocarem a meu respeito, de não precisarmos ficar vagueando como escolares pelas confeitarias e bares, de acabar com esse esconde-esconde idiota! Poderia! Mas você não quer! Porque ela é sua esposa!

        Só assentia com a cabeça, cansava-me falar.

        —  Por que não diz nada?

        —  Porque minha cabeça dói.

        —  Mande sua cabeça às favas!

        —  Não fui eu quem começou com as dores. Tenho preocupações bem diferentes.

        —  Sim, sua pobre mulher!

        —  Também.

        —  Você não a ama, ela não o ama, no entanto ela o preocupa! Pois ela é sua mulher!

        Concordei com a cabeça.

        —  É evidente que isso é diferente, há que reconhecer isso, claro. Ela é sua esposa. É preciso levá-la em consideração, respeitá-la. De vez que ela é sua mulher. Por causa dela preciso acostumar-me a tudo, por causa dela engolir tudo. Pois é sua mulher! Ao passo que eu... sou o quê? Sou apenas uma ordinária, imunda, uma pequena à-toa...

        —  É — disse eu.

        —  O quê? — Ela andava em círculo pelo quarto.

        —  Foi por isso também que você me fascinou imediatamente — expliquei-lhe. — Não fique zangada, Jolanthe. A intenção foi lisonjeá-la. Pensei que fosse alegrá-la.

        —  Alegra-me infinitamente — falou e sorriu, gélida. — Foi o cumprimento mais cortês que você foi capaz de me fazer. Estou certa de que foi um cumprimento que você jamais conseguiu fazer a sua querida esposa. — Ficamos novamente face a face, bem próximos, e sorríamos os dois. — Se ela fosse uma prostitutazinha ordinária, então você nunca se teria interessado por mim, não é verdade, Jimmy?

        —  Não, cara Jolanthe.

        —  Se você tivesse sido alguma vez capaz de se deixar ir para casa, jamais teria vindo até a minha.

        —  Isso não, evidente que não.

        —  Eu agradeço, queridinho. Isso foi amável de fato. E agora também quero lhe dizer algo amável.

        —  Sim?

        —  Sim. Quero lhe dizer o que você é.

        —  Não é necessário, de modo algum, eu mesmo sei.

        —  Não, você não sabe! É preciso que alguém um dia lhe diga, caro Jimmy. É importante, para seu progresso nas letras. Talvez possa utilizar o assunto em seu próximo filme! Pressupondo que mais uma vez o encarreguem de escrever um filme. — Deu um sorriso largo e vi os dentes fortes e brancos. Acercou-se um pouco mais, abraçou-me e encostou a cabeça em meu rosto. — Pois ouça bem! Você é um miserável pequeno-burguês, vulgar e limitado, caro Jimmy. Dos piores entre os mais ínfimos. Um aflito, dos mais tristes, nos quais tudo é deturpado, mentiroso e imundo.

        —  Obrigado.

        —  De nada. Tem mais. Você é um daqueles que lançam sempre olhares de cobiça, e numa mulher a primeira coisa que vêem são as pernas, e, desde então, precisam também imaginá-la sempre em idêntica situação. Só que sua fantasia excede de longe seu talento! E por isso também está constantemente buscando, sempre desiludido e agitado. Um triste pequeno-burguês, como disse, redondamente triste.

        No amor ou no trabalho, de medíocre para baixo. — Passou o rosto, de lado a lado, pelo meu e suas mãos roçavam suavemente minhas costas. — Um filisteu entupido de inibições e complexos!

        —  Totalmente ao contrário de você.

        —  Totalmente ao contrário de mim.

        —  Razão por que, também, você fez aquele amável convite.

        —  Fiz aquele amável convite porque, naquela ocasião, eu ainda vivia obcecada com a idéia de que alguém pudesse fazer de você alguma coisa, pelo menos pudesse sair daí alguma coisa amena, divertida...

        —  ... e de que eu, porventura, tivesse dinheiro.

        —  ... e porventura você tivesse dinheiro.

        —  No entanto, fui uma decepção.

        —  Foi, caro Jimmy.

        —  Não no aspecto financeiro.

        —  Não, nesse ponto não.

        —  Mas fora disso...!

        —  Fora disso...! Creio que vou desistir de você. Não quero dizer que você seja um homem sem talento. Mas não acredito que você ainda vá se modificar. Não, é bem plausível que não. Vai ficar como está. Junto de sua mulher, que você não ama, com seu trabalho que não lhe dá prazer, com sua insatisfação, sua busca contínua, seus devaneios, com as palavras e as imagens...

        —  Jolanthe — disse, e sorri —, agora você pode encerrar.

        —  Por quê? — perguntou. — Por que deveria encerrar, caro Jimmy?

        —  Porque já basta.

        — Basta? Devo dizer-lhe, ainda, que você é um deplorável covarde, um frustrado, um completo fracasso?

        —  Não — falei.

        —  Acho que lhe faria bem.

        —  Eu acho que não.

        —  Oh, se ia...!

        —  Jolanthe — disse, sorrindo —, se você mais uma vez me disser isso, vou querer esbofeteá-la.

        Sorriu, também. Então repetiu.

        Dei-lhe um tapa no rosto.

        A face que atingi ficou rubra, em fogo. Havia batido bem firme. Jolanthe continuou sorrindo. Apenas o cigarro voou de sua mão e caiu no tapete. Deslizou o pé para dentro de um chinelo e pisou sobre ele apagando-o.

        —  Agora você pode ir — falou em seguida.

        —  Veja só... — admirei-me.

        —  E cuide de arranjar uma nova secretária!

        —  Ora veja...! — continuei. Encaminhei-me para a porta. Voltei-me mais" uma vez. — Enfim por que tudo tinha de ser assim? — perguntei. — Não teria sido mais simples e menos doloroso me informar que você já enfastiou e que gostaria de pôr fim a nossa relação?

        Sacudiu a cabeça, como que infinitamente surpreendida.

        —  Pobre idiota — disse.

        —  Como?

        —  Eu não queria terminar. Minha esperança era, talvez, induzi-lo a terminar. Terminar com sua mulher.

        Não fechei a porta, e saí para o hall, onde estava meu chapéu. Junto à entrada, olhei para Jolanthe novamente, pelo espelho. Estava no meio do quarto, muda, olhando para suas unhas. Desci então os degraus silenciosos da casa e saí para a rua. Ainda estava chovendo. Minhas pálpebras só faltavam inchar-se de todo. Os olhos doíam a cada passo. Nunca me senti tão miserável como agora. Tive um medo repentino de não poder chegar até o carro.

        A discussão com Jolanthe me havia esgotado, além da conta. Não fora a primeira discussão dessa natureza. Mas deveria ser a última! Sim, pensei, haveria de ser a última! Tudo aquilo era muito penoso. Precisava terminar de escrever o filme. Depois, ir para longe. Para uma outra cidade. Talvez encontrasse uma outra mulher. Talvez não. No momento, não imaginava ser algo tão tentador assim encontrar uma outra mulher. Ao voltar para casa, tiraria férias. Talvez fosse para pescar. Completamente só. Gostaria de pescar. Alguma coisa escorreu por meu rosto e, de repente, notei que chorava. Parei e assoei o nariz. Nervos. Minha descoberta me deixou muito amargurado, e não podia reter as lágrimas. Elas continuavam escorrendo. Junto ao portão de entrada, sentada sobre os ladrilhos do jardim à frente da casa, uma menina olhou para mim com curiosidade.

        —  Você não está bem, moço?

        —  Oh... sim.

        —  Mas você está chorando! — A menina levantou-se e olhou para mim com animação. — Está sentindo alguma dor?

        —  Não.

        —  Então por que está chorando?

        —  Algum cisco que caiu nos olhos.

        Meu carro estava estacionado na rua, para chegar até ele ainda tinha de andar uns vinte passos.

        —  Deixe-me passar, por favor — falei para a menina. — Estou com pressa. — Ela se afastou para o lado, então veio correndo atrás de mim.

        — Moço! Moço! Parei.

        —  Sim?

        —  Estou com pena de você — disse-me ela. — Vou lhe dar uma coisa de presente!

        De baixo do aventalzinho tirou um pacotinho de papel manchado e, com os dedos sujos, retirou dele um bombom, também sujo, e acrescentou: — Tome, é recheado!

        —  Obrigado — falei.

        —  Ponha na boca.

        —  Depois.

        —  Não, agora! Quero ver!

        Meti o bombom na boca. Senti uma consistência pegajosa e lisa na língua. Meu estômago contraiu-se convulsivamente. Engoli-o com desespero. Ato contínuo, uma flecha preta, enorme, disparou de encontro a meus olhos, fez-se em estilhaços no rosto e me atingiu as duas pupilas. Dei um grito, e caí. O clarão da flecha explodindo cegou-me por uns instantes. Tive a impressão de bater com a cabeça contra uma pedra, e ouvi a menina soltar um gemido, apavorada.

        "Mas eu ainda não havia telefonado para Hellweg", articulei, antes de cair, desfalecido, no poço largo e profundo da inconsciência.

       

        Foi meu primeiro desmaio.

        Em meus filmes gostava, muitas vezes, de fazer os protagonistas — e sobretudo as mulheres — sofrerem desmaios, para produzir grandes efeitos mas para mim, pessoalmente, foi uma experiência completamente nova e fascinante. Mais ainda: foi, inclusive, a mais bela experiência de minha vida. O lapso de tempo que durou meu primeiro desmaio não se comparava, em toda sua plenitude, estado de paz, êxtase e lassidão serena, com nenhum outro estado que eu conhecia. Estava no paraíso, se é que existe um paraíso; e se a morte for, só de leve, assim tão maravilhosa como o desmaio que me surpreendeu, a minha hora final então será a mais esperançosa e a mais feliz de minha vida.

        Não tive sonhos, nem visões, não me sobreveio, naquele molde de imagens que traduzem a voragem dos tempos, uma sucessão de impressões significativas do passado. Não ouvi nenhuma voz, nem música. Não tive um pesadelo, nenhum estado de depressão.

         Eu tinha paz.

        A paz perfeita e beatífica de que, segundo me lembro, na Bíblia se fala vez por outra como de uma promessa. Uma paz que me envolvia de todos os lados e me mantinha a distância de tudo quanto me pudesse trazer o sentimento do grave e do opressor: a lembrança, a consciência, a compulsão das idéias, o fardo dos processos mentais automáticos do cérebro. Talvez seja essa a sensação que os cocainômanos, os fumantes de maconha, os viciados em tóxicos buscam; talvez seja esse o estado que eles guardam e preservam angustiadamente dos outros como um tesouro secreto. Sendo como tal, posso então compreendê-los, todos eles, que falsificam receitas e se tornam ladrões, que abandonam suas famílias e descem para imundos porões para se denegrir e se rebaixar: posso compreendê-los a todos, se é ansiedade desse estado de paz, desse grau bem-aventurado de redenção que os move. Desde meu desfalecimento sou um irmão deles, sinto como eles, e anseio veementemente o retorno àquele meu instante da mais extrema fraqueza, como é também grande meu desejo de recuperar a felicidade de minha infância alegre, há muito submersa e há muito esquecida. Não sei se todos os desmaios de todos os indivíduos são assim tão maravilhosos — o meu foi. E, por isso, aguardo a morte já quase com impaciência, na esperança de que ela se assemelhe um pouco a minha infância: no curto instante antes de despertar, num breve e louco momento tive a sensação de que ela já sobreviera, de que eu já me encontrava em seus domínios. Contudo, foi um equívoco. De um relance, recuperei os sentidos e as portas do paraíso fecharam-se às minhas costas. Eu fora apenas um hóspede seu.

       

        Estava deitado numa cama branca, num quarto amplo e branco. Tudo era branco nesse quarto. As paredes, os móveis, as cortinas, as portas. O próprio homem sentado em minha cama, que me estava observando quando abri os olhos, era branco. Vestia um sobretudo branco e tinha cabelos brancos.

        Fiquei olhando para ele, mudo, por algum tempo. Então passeei os olhos pelo quarto em direção à janela. Fora, a neve caía. A luz doía-me nos olhos, virei-me para outro lado.

        —  Dor de cabeça? — perguntou o homem.

        —  Sim.

        —  Dor na vista também?

        —  Sim.

        —  Hum —cismou, então sorriu. — Mr. Chandler?

        —  Sim.

        —  Eu me chamo Eulenglas.

        —  Muito prazer — disse-lhe. Então de novo me veio à mente, afinal, aquilo que eu logo quisera perguntar: — Onde estou?

        —  Na Cruz Dourada.

        —  Numa car... cor... cos.... — Interrompi, horrorizado comigo mesmo. Queria dizer "casa de saúde", mas não conseguia produzir a palavra.

        Eulenglas, imóvel, olhou-me: — Como foi?

        —  Numa car... cas...a, casa, de so... — Eu suava, nas têmporas um rugido ensurdecedor, estava próximo das lágrimas. Ali deitado, um pobre idiota balbuciante, incapaz de dizer a palavra "casa"! Meu Deus, que aconteceu comigo?

        —  O senhor não pode dizer a palavra? — perguntou Eulenglas. Odiei-o pela pergunta tola.

        Sacudi a cabeça.

        —  Mas o senhor sabe o que quer dizer?

        Com um movimento da cabeça respondi que sim.

        —  Tente mais uma vez!

        Procurei dizer mais uma vez. Era um pavor, as lágrimas enchiam os olhos. — Mas me ajude!... — gritei.

        —  Numa  casa, casa de saúde, um hospital, Mr. Chandler — falou num tom amável e pausado.

        Então fui capaz de proferir a palavra; foi, por assim dizer, um alívio físico: — Numa casa de saúde!

        —  Pois então! — confirmou Eulenglas.

        —  Como foi isso?

        —  Que disse?

        —  O que é que me inibe, que me impede de proferir palavras?

        —  Isso vai passar, Mr. Chandler!

        —  Quero saber o que é!

        — Chamamos isso de parafasias literais — esclareceu prontamente. Reconhecera em mim um intelectual. A um intelectual sempre é preciso explicar tudo. Uma vez acreditando que compreende, sente-se aliviado. — Seu cérebro está irritado. Algum músculo central da fala está irritado e não funciona direito. A irritação vai diminuir. É tudo, Mr. Chandler.

        —  Hã... — arrematei, achando que entendia. E me senti aliviado. Agora enxergava melhor seu rosto. Meus olhos, que a princípio estiveram como que encobertos de espessos véus, voltaram a funcionar perfeitamente. Eulenglas usava óculos de lentes agudas e tinha uma cabeça estreita e bronzeada de cientista.

        —  O senhor sofreu um pequeno acidente. Trouxeram-no para cá, para o Professor Vogt. Sou assistente dele.

        —  Vogt? — Tive uma lembrança nebulosa do nome. — O cirurgião?

        —  É.

        —  Que significa isso? — Ergui-me na cama. — Por causa de que estou aqui?

        —  Para um exame. — Recostou-me de volta no travesseiro.

        —  Quem me trouxe até aqui?

        —  Sua esposa, Mr. Chandler.

        — Ah, bem... — disse. Fiquei em silêncio por algum tempo, refletindo. Tentava lembrar-me. Mas minha memória ainda estava obscurecida.

        —  Foram primeiro até o pronto-socorro — disse Eulenglas. — Depois informaram sua esposa e ela arranjou sua transferência para a clínica.

        —  Quando foi isso?

        —  Ontem.

        De repente senti aproximar-se novamente de mim, numa onda violenta, toda miséria e sacrifício da vida. Fechei os olhos.

        —  Que dia é hoje?

        —  Segunda-feira.

        —  E que horas são?

        —  Quase meio-dia.

        —  Mas não pode ser! Eu me lembro bem de que... — comecei, mas logo interrompi meu pensamento. Não me lembrava de nada.

        —  O senhor foi levado ao pronto-socorro ontem, por volta das cinco horas. Estava sem sentidos, Mr. Chandler. Desfalecido por muito tempo.

        —  Quanto tempo?

        —  Até a meia-noite, mais ou menos.

        —  E depois?

        —  Demos-lhe um sonífero, a fim de lhe tornar mais agradável o transporte para a clínica.

        Perpassou-me uma centelha de lembrança: — Jo... Jo... Jo... — balbuciei. Era aquilo novamente. Sequer o nome dela podia pronunciar. Meu Deus, pensei, meu Deus!

        —  Como disse? — fitou-me Eulenglas, com um olhar perscrutador.

        —  Nada. Onde foi que me encontraram?

        —  No jardim da casa 127 da Romanstrasse — respondeu. — Suponho que lá estivesse para tratar de algum assunto profissional.

        —  Sim — concordei. — Com minha secretária. Estou escrevendo o roteiro para um filme. — Depois de refletir, acrescentei: — Precisava ditar para ela duas novas cenas.

        —  Ela já esteve aqui — disse Eulenglas.

        —  Quem? — perguntei, com uma ponta de descrença.

        —  Frãulein Jolanthe Caspari — retrucou ele. — Este é o nome de sua secretária, não?

        —  Sim — respondi. — Quando foi que ela esteve aqui?

        — Hoje de manhã. As flores, foi ela quem trouxe. — Apontou para a mesinha ao lado da cama. Na mesinha havia um telefone e, ao lado dele, duas jarras de flores. Uma com gladíolos vermelhos, e outra com malvas. Eulenglas indicou as malvas.

        —  Os gladíolos são de sua esposa — falou, e de novo olhou para mim. Tive a impressão de que ele sorria, divertido.

        —  Por que o senhor está sorrindo? — perguntei com rispidez. Ele me examinou, sem compreender.

        —  Perdão, Mr. Chandler?

        — Eu lhe perguntei por que o senhor está sorrindo! O que é assim tão engraçado?

        — O senhor está nervoso, Mr. Chandler. Eu não estava sorrindo.

        —  Bem — falei, desapontado. Pode ser que realmente não tivesse sorrido. Eu estava nervoso. — Desculpe-me.

        — Naturalmente, Mr. Chandler. O senhor fala alemão maravilhosamente bem.

        —  Meus avós eram alemães. Em nossa família sempre se falou alemão, como segunda língua.

        —  Realmente? — Agora sorria de fato. Era, contudo, um afável sorriso de médico. — As duas senhoras vão voltar — esclareceu. — Sua esposa, logo que lhe comunicarmos que o senhor já despertou; e Fraulein Caspari virá à tarde.

        —  Obrigado — murmurei. Então senti que, finalmente, minhas idéias voltaram a ficar totalmente claras. Até mesmo as dores, pela primeira vez há muito tempo, haviam de novo desaparecido por completo. Quando me sentei na cama, ao erguer o corpo notei que usava um estranho pijama, e pigarreei forte.

        —  Pois bem — falei. — Agora que recuperei meus cinco sentidos, o senhor poderia me informar o que está acontecendo comigo e por que devo ser examinado? Pois bem, preciso retomar meu trabalho quanto antes. Minha firma vai me procurar por toda parte.

        —  Sua firma foi informada, ainda de noite. Mr. Clayton — de um papel que retirou do bolso, leu o nome do produtor americano para quem eu trabalhava — vai passar aqui por volta das dezessete horas. Se quiser, o senhor poderá telefonar para o escritório dele. Ele lhe manda lembranças e pede ao senhor que não se preocupe, que tudo está em ordem.

        Uma enfermeira, loura e bonita, entrou no quarto. Trazia um copo com um líquido opaco, cor de âmbar, e fez um cumprimento amável.

        —  Beba isso — disse Eulenglas. — O senhor vai gostar.

        Bebi. De fato o sabor me agradou. Era frio, refrescante e efervescente ao contato com a língua.

        —  O que deseja almoçar, Mr. Chandler? — perguntou a linda enfermeira.

        —  Puxa vida! — disse eu. — Vim aterrissar num verdadeiro hotel, hein?

        —  Quase isso, Mr. Chandler. O senhor está em um sanatório particular. Queremos tornar sua permanência aqui a mais agradável possível.

        —  O senhor sente fome? — perguntou Eulenglas. Pensei sobre a pergunta, longa e seriamente.

        —  Muita — concluí então.

        —  Ótimo — disse o médico.

        —  Bem, o que oferecem?

        A loura enfermeira me disse o que havia. Pedi um absurdo de almoço.

        —  E então? — perguntei, após ela fechar a porta atrás de si, ao sair. Automaticamente me vi descambado para a técnica de Jolanthe do diálogo interrompido. Eulenglas foi capaz de me acompanhar.

        —  Não sabemos ainda o que o senhor tem, Mr. Chandler. Um primeiro exame superficial revelou os sintomas de um colapso nervoso típico com todos os fenômenos colaterais. O senhor tem trabalhado muito ultimamente, sua esposa disse.

        —  Sim.

        —  Justamente! Além disso, contudo... — Calou-se, e fez um movimento vago com a mão erguida.

        —  O que foi?

        Fez menção de falar, reconsiderou o que pensava dizer, e aquilo que afinal exprimiu não era nitidamente o que a princípio quisera dizer: — Essas dores de cabeça, Mr. Chandler... o senhor pode descrevê-las com exatidão?

        Descrevi-as com exatidão.

        —  Bem — especulou. — Nos Estados Unidos o senhor já consultou vários médicos, não foi o que disse?

        —  Sim. Todos constataram o mesmo.

        —  Chegaram a alguma conclusão?

        —  Nada. Apenas as chamaram de neurose vegetativa.

        — Mas então. — Sorriu. — É bem plausível que seja isso. E tomou sempre pó contra as dores?

        —  Somente pó.

        —  Que substância em pó? — Eu lhe disse qual. Concordou com novo movimento da cabeça. — Mr. Chandler, o senhor alguma vez já tirou radiografia, da cabeça, claro?

        —  Não, nunca. — Levantei os olhos, alarmado. — Por quê? O senhor acredita que...

        —  Não pensamos nada em absoluto, Mr. Chandler. Ainda é muito cedo para acreditar nisto ou naquilo. — Vacilou, e encarou-me com expressão amável. — Meu desejo é ser bem franco.

        —  Por favor, peço-lhe.

        — Sua esposa mostrou-se muito preocupada. Ela provavelmente ouviu que sintomas como os seus possivelmente — quero frisar: possivelmente! — podem revelar determinadas alterações mais sérias... do cérebro; razão por que ela insistiu muito para um exame geral do seu estado de saúde.

        —  Alterações? Que alterações?

        —  Não deve ser, Mr. Chandler, não é absolutamente necessário que existam. Na quase totalidade dos casos um exame apresenta a inocuidade completa dos sintomas.

        —  Sei, sei — retruquei. — Que alterações são essas?

        —  E mesmo que não revelem uma natureza benigna, com os recursos da cirurgia atual é fácil...

        —  Mas que raios de alterações são essas?

        —  Tumoração, excrescências — respondeu o Dr. Eulenglas.

        —  O senhor quer dizer... um tumor? Assentiu com um lento movimento da cabeça.

        —  Sim, Mr. Chandler, é o que estou dizendo.

       

        Por um momento, o quarto ficou em silêncio.

        Eulenglas fitava-me com atenção: — O senhor quis saber, Mr. Chandler — disse finalmente —, e agora o senhor está inteirado. Mas quero repetir: talvez sim, necessariamente também não. Na maioria dos casos dessa natureza...

        —  Está muito bem — interrompi.

        —  Na verdade, seria por simples medida de precaução o senhor deixar-se examinar, uma questão de segurança pessoal.

        —  Sim, sim — disse eu.

        — Agora que já falamos sobre isso, eu aconselharia impreterivelmente um exame, que lhe vai dar então alguma certeza. Para que o senhor, no subconsciente, não fique ruminando com a idéia da possibilidade...

        —  Minha mulher pediu o exame?

        —  Sim, ela estava muito aflita.

        —  Quanto tempo isso demora?

        —  O senhor deverá ficar conosco uns três ou quatro dias.

        —  É doloroso? Sou muito medroso.

        —  Não provoca uma dor sequer, Mr. Chandler. É um exame complexo, mas absolutamente sem dor. Vamos fazer um encefalograma.

        Já ouvira a palavra em algum lugar. Não associava uma boa lembrança a ela.

        —  Encefalograma?

        —  Um eletroencefalograma — completou, tranqüilizando, e acentuou sobretudo as primeiras sílabas.

        —  Onde está a diferença?

        —  Anteriormente — explicou — os encefalogramas eram feitos soprando-se ar no cérebro do paciente, e a partir do comportamento do ar tiravam-se determinadas conclusões.

        —  Diabólico!

        — Não oculto do senhor que era um tipo de exame desagradável, nem tampouco totalmente isento de riscos. O exame com auxílio de um eletroencefalograma, pelo contrário, é agradável e completamente inofensivo.

        —  O senhor é bom psicólogo — disse-lhe.

        —  Como assim?

        —  Porque está querendo eliminar um possível receio meu do segundo método, falando mal do primeiro.

        Ele sorriu e replicou que de modo algum exagerava: o novo processo era realmente indolor e mera formalidade. Em seguida perguntou-me se concordava com um exame geral.

        —  Naturalmente — disse a ele. Era a única coisa que podia dizer. Se eu não revelasse agora, logo de saída, capacidade para receber um julgamento inequívoco a respeito de meu estado, adeus com minha paz interior.

        —  Muito bem — disse, levantando-se —, então agora vou me entender com sua esposa. À tarde virei visitá-lo com o Prof. Vogt. — Acenou-me com a cabeça e retirou-se do quarto. Dez minutos mais tarde a linda enfermeira trouxe o suntuoso almoço que pedira. Não toquei na maior parte, meu apetite desaparecera. Toquei a campainha e pedi para levarem o serviço. A seguir, telefonei para Clayton em seu escritório.

        —  Alô, alô alô! — exclamou ele, animado.

        —  Bom dia, Joe — falei. Clayton não dizia uma palavra em alemão. Só tinha aprendido as formas de saudação. Era um homem de negócios, gordo, faces vermelhas, que durante a guerra trabalhava com aço, tendo com isso conquistado a confiança de várias firmas que, entre 1941 e 1945, passaram por situação difícil no mercado. Após o fim da guerra, fundou em Hollywood uma companhia cinematográfica independente, e foi um dos primeiros a ter a idéia de trabalhar na Europa, após descobrir que ali poderia realizar seu plano com uma só fração dos recursos necessários para produzir um filme em Hollywood. Para as somas de que precisava contribuíram os seus antigos amigos industriais da época da guerra. Clayton era muito hábil, não possuía nenhuma centelha de senso crítico para a arte e, Simpaticamente, também jamais simulava algo desse gênero. Essa ingenuidade, afinal de contas, também apresentava seus lados obscuros e duvidosos: constantemente fazia sua a opinião de alguém com quem ele havia discutido por último a respeito de um problema artístico. Isso lhe dificultava um pouco o trabalho.

        —  Sinto muito estar lhe causando contrariedades desse tipo — disse-lhe em inglês, mas ele me interrompeu imediatamente.

        —  Cale-se, Jimmy! Que contrariedades são essas? Tudo está na mais perfeita ordem! Você cumpriu admiravelmente sua missão. Agora você está bonitinho, deitado na sua caminha e flertando com a enfermeira, hahaha!

        —  Só vai demorar uns poucos dias.

        —  Não importa quanto tempo, não fique preocupado! Vou vê-lo à tarde, Jimmy. Tenho boas notícias! Taschenstadt leu o script em esboço e está entusiasmado!

        —  Ótimo — disse eu. Taschenstadt era o chefe da firma alemã fornecedora dos recursos, e que se encarregaria do filme.

        —  Hoje chegou um cabograma da América — prosseguiu Clayton. — Fizeram a remessa do dinheiro.

        —  Parabéns.

        —  Obrigado. Você está vendo, Jimmy, a coisa também funciona sem você! Você precisa de algo? Posso ajudar-lhe em alguma coisa?

        —  Creio que não.

        —  Vou levar-lhe uma garrafa de uísque.

        —  Ok!

        —  Então, como disse: descanse o máximo, você merece um bom repouso, rapaz.

        Despedi-me dele e desliguei. A voz de Clayton traía um certo tom de maligno contentamento, pensei. Podia-se ter quase a impressão de que estava encantado por saber-me no hospital. Estranho, muito estranho. Mas encolhi os ombros, indiferente. Que desejava eu afinal? Eu teria apreciado mais se ele se enfurecesse?

        O sol agora brilhava diretamente sobre a cama, sentia-me quente, cômodo e sonolento. Em alguma parte um rádio estava ligado baixinho, Uma voz de mulher, meio tristonha, cantava:

         I' m gonna take a sentimental journey...

        Eu conhecia a canção.

        O telefone tocou. Tirei o fone do gancho.

        —  Ligação para o senhor, Mr. Chandler — falou uma voz de mulher.

        —  Obrigado — disse-lhe. Escutei um estalido no fio. — Alô?

        —  Alô — respondeu uma voz. Era Jolanthe. Estava deitado de costas, com o fone no ouvido, e não dei resposta.

        —  Jimmy, é você?

        —  Sim.

        —  Sozinho?

        —  Sim.

        —  Você já está melhor?

        —  Sim.

        —  Estou terrivelmente assustada, Jimmy. Eu não disse nada.

        —  Foi culpa minha. Você se excitou. O que eu disse foi tudo muito vulgar. Sinto muito, Jimmy. Você me perdoa?

        .. .sentimental journey home..., cantava a voz de mulher.

        —  Jimmy, você está me ouvindo?

        —  Sim.

        —  E então?!

        .. .seven, that's the time we leave, at seven...

         —  É.

        —  Você me perdoa?

        —  Naturalmente.

        .. .counting every mile of railroad-track...

        —  Eu só quis fazer você ficar furioso. Não há nenhuma verdade nas palavras que eu disse, realmente, juro...

        ... that takes me back, that takes me back...

        —  Está bem, Jolanthe.

        —  Não, não está bem! Posso sentir que não em sua voz! ...never thought, my heart could be so yearning...

        —  Tanto faz, Jolanthe.

        —  Jimmy!

        —  É possível que eu tenha um tumor.

        —  Jimmy!

        — Na cabeça. Uma excrescência. Ainda não sei. ...why did I decide to roam...

        —  Oh meu Deus, que horror! Quem lhe disso isso? Como foi que você soube? Vão operá-lo?

        —  Ninguém me disse. Ainda não sei de nada! ... gonna take a sentimental journey...

        —  Jimmy, oh Jimmy, deixe-me ir até aí, agora mesmo, eu tomo um táxi...

        —  De jeito nenhum.

        —  Mas por que não?

        —  Porque não quero.

        —  Porque sua mulher vai!

        —  Por Deus, Jolanthe!

        ... sentimental journey home...

        —  Mas preciso! Preciso te ver! Eu te amo!

        —  Passe bem! - exclamei, ainda, e desliguei o telefone. Lá fora a mulher terminava a canção.

        A voz de um locutor anunciava as horas:

        —  Ao último sinal, quinze horas.

        Deitado de costas, olhava para o forro branco do quarto. Bateram aporta.

        —  Entre — disse eu. Era Margaret.

        Vestia uma saia inglesa colante, de tecido negro e brilhante, uma blusa de seda branca e um pequeno chapéu preto, redondo, com um véu. Havia passado um pouco de ruge e parecia cansada. Sentei-me na cama e ela beijou-me ligeiramente.

        —  Então, seu vagabundo — disse ela em inglês. Falava mal alemão. Olhou-me e sorriu. Eu conhecia bem esse sorriso. Conhecia por um sem-número de motivos, e todos esses motivos tinham um ponto em comum: neles recalcavam-se fatos que Margaret não queria admitir. Quando Margaret não desejava aceitar um fato, o fato então não existia. Era um sorriso de fria superioridade, um sorriso de perdão, de condescendência e clemência. Era um sorriso de realeza e era também particularmente profícuo em público, útil em suas exibições. Eu conhecia esse sorriso de estréias, de conversas com críticos, de noites alcoolizadas, e presente em discussões conjugais. Conhecia muito bem.

        —  Já falei com os médicos — disse Margaret. — Você está em boas mãos, sob a melhor proteção. Acredito também que nos tirarão  um peso do coração quando tivermos a certeza de que você está absolutamente com saúde, não é verdade, Roy? — Chamava-me sempre de Roy, segunda sílaba de meu segundo prenome. Recostei-me e olhei para ela. Margaret falava depressa. — Os Baxters me amedrontaram, sabe? — Os Baxters eram seus amigos do Chiemsee. — Foi Ted Baxter quem teve a idéia de telefonar para os hospitais, quando você não chegou para me apanhar. Meu Deus, Roy, você não pode imaginar como me senti quando me disseram onde estava! Você jamais poderia imaginar! Pensei que ia desmaiar! Ted foi um doce, trouxe-me até a cidade, uma centena de milhas, fez toda a estrada o bom homem! E durante a viagem falamos sobre seus sintomas. Ele me disse o que poderiam significar. Com um tio dele começou assim também; então precisaram operá-lo, e ele ficou cego de um olho. Oh, Roy, perdão, que disparate o meu... mas você entende como estou querendo explicar, não é? Mas é só porque isso me alarmou tanto, e também porque nós queremos ter certeza, os dois, não é mesmo?

        Fitou-me nos olhos rogando que eu concordasse. Seu sorriso era pura e simplesmente de perdão.

        — Margaret — falei —, você bem sabe onde foi que me encontraram.

        —  Claro, Roy. — De sua bolsa tirou revistas e jornais. — Trouxe-lhe alguma coisa para ler. O último New Yorker. Tem uns desenhos muito engraçados!

        —  Romanstrasse 127 — disse eu. — Você sabe quem mora lá.

        —  Evidente, querido. — Sorriu com amabilidade. — E aqui está a correspondência de hoje. Os Ezzards viajam de novo para Miami. Eu só gostaria de saber como as pessoas conseguem isso! — Remexeu na bolsa e colocou alguns envelopes na cama. — Robby escreveu que agora está na Warners, trabalhando para Siodmak. Uma linda carreira, não acha?

        —  Margaret...

        —  E aqui, algumas críticas sobre seu último filme. Algumas estão excelentes! Trouxe apenas as melhores. Joguei fora as outras, eram tão idiotas...

        — Jolanthe — pontifiquei. — Jolanthe Caspari. Minha secretária. Passei o fim de semana com ela.

        —  Sim, claro, Roy. — Tirou o chapéu e o pôs em cima da mesinha. Seu cabelo era preto e liso, repartido no meio. Cruzou as pernas, bem torneadas e longas, nas meias claras de náilon. — Suponho que sejam delas as malvas.

        —  São. Cheirou-as.

        —  Não têm perfume — disse-lhe.

        —  Mas são lindas.

        —  Jolanthe é minha amante — falei.

        Com uma mão fria e bem cuidada acariciou-me o rosto. Estava sem me barbear um bom tempo. A mão cheirava a creme para o dia, de Elizabeth Arden.

        —  Sim, Roy, eu sei.,Precisamos falar sobre isso?

        —  Eu gostaria.

        —  É muita gentileza de sua parte.

        —  O quê?

        —  Você querer desculpar-se.

        —  Não quero me desculpar. Quero é falar sobre isso.

        Ela sorriu.

        —  Mas eu não. Também, para quê? Se eu já soube.

        —  Ah sim.

        —  É.

        —  E então?

        —  Sabia também que você se comportaria discretamente como sempre. Tão cauteloso, que as pessoas não notaram nada. Para que eu não sofresse. Da maneira como você sempre fez essas coisas. Entendo perfeitamente que é desagradável para você ter-me levado a essa situação.

        —  Em que si... si... sa... satua... — balbuciei, e mordi os lábios de fúria e vergonha. A coisa voltava.

        —  O que há, Roy? — assustou-se.

        —  O doutor chama isso de parafasias literais — esclareci. — Supostamente isso passa. — Respirei fundo. — Que você queria dizer?

        —  Naturalmente irão falar de nós.

        —  Lamento muito isso.

        —  Eu sei, Roy. Mas não censuro você. Não foi culpa sua perder os sentidos justamente no jardim daquela casinha. Foi uma force majeure.

        —  Concordo.

        — Você não fez intencionalmente. Não quis me magoar premeditadamente. Não vamos mais falar disso.

        —  Ah sim, iremos falar.

        —  Eu não, querido. — Seu sorriso abriu-se mais ainda. — Você vai, agora, terminar com ela?

        —  Ainda não sei.

        — Claro, precisa refletir. Dê algum tempo. Nesse momento precisa de sossego, é o principal, o Prof. Vogt também disse. Não deve esquentar a cabeça agora. É prejudicial para o exame. E para seu trabalho. Talvez vamos por uns dias à Riviera, quando não tiver mais o que fazer aqui, que você acha?

        —  Detesto a Riviera — repliquei.

        —  Então fique sozinho. Além do mais prometi aos Baxters ir com eles a Paris de avião. Eles alugaram uma casinha encantadora, em Saint-Cloud, vi fotos dela.

        —  Margaret, queria pedir o nosso divórcio.

        —  Querido, você já quis isso tantas vezes.

        —  É, tem razão. Olhou para o relógio.

        —  Meu Deus, três e meia!

        —  E...?

        — Preciso tomar um táxi. Ted detesta que a gente chegue atrasada.

        —  Você marcou encontro com ele?

        —  Sim.

        —  Onde?

        —  Nas "Vier Jahreszeiten", no bar. Vera está lá também. — Vera era a mulher de Ted Baxter. — Eles querem saber como você está. Eles podem visitar você?

        —  Não.

        —  Está bem. Volto aqui amanhã, e de tarde lhe telefono. Ah, isso mesmo, já ia quase esquecendo! — Remexeu na sua enorme bolsa e dela retirou um retrato emoldurado. A foto mostrava Margaret em maio branco, numa praia de Los Angeles. Colocou-o à frente dos gladíolos.—Aqui!

        —  Por quê?

        —  Parece melhor assim, Roy. — Inclinou-se sobre mim e beijou-me na boca. Rescendia a frescor e limpeza: a Pepsodent, Chanel n.° 5, e sabonete Palmolive. — Bem, tchau. Dê uma olhada no New Yorker. Esse número está realmente bastante cômico.

        —  Até logo, Margaret — disse-lhe. Encaminhou-se para a porta. A saia colante modelava suas linhas impecáveis. Parou em frente de um espelho ao lado da porta e endireitou o chapeuzinho, olhando para mim com um sorriso, pelo espelho.

        —  Naturalmente jamais me divorciarei — disse ela. — Você sabe bem disso, querido, não é?

        —  Sim — articulei. — Eu sei disso.

        —  Ótimo. — Voltou-se para mim. — Então, está tudo em ordem. — Atirou um beijinho na ponta dos dedos e saiu do quarto. O odor fresco e limpo de seu corpo continuou no ar. Cruzei os braços por trás da cabeça e fechei os olhos. Senti-me cansado e um pouco indisposto. Provavelmente ainda eram os efeitos residuais do sonífero que me tinham dado.

        Tentei dormir, mas não consegui. Instantes depois deixei meus esforços de lado e apanhei os recortes de jornal que Margaret trouxera. Eram críticas extraídas de jornais do interior, que se limitavam a informar o tema de meu último filme e acrescentar algumas palavras elogiosas, e bobas. Era o tipo de elogio que não causa satisfação: algumas frases estereotipadas, mostrando que o crítico não tem a menor idéia do que está falando.

        Apanhei o New Yorker. Com efeito, era um número muito cômico, esplêndidos desenhos. Olhei todos. Entre eles havia também um novo quadro de Charles Addams. Os dois monstros da sua Família do Horror decapitavam uma boneca com uma guilhotina de brinquedo. Realmente muito engraçado.

        Numa das páginas finais achei uma crítica também de meu último filme. Era a mais,sagaz, mais jocosa e mais aniquiladora que se pode imaginar. O crítico não me poupou um fio de cabelo. Acreditei que Margaret talvez tivesse passado por cima, mas repudiei imediatamente esse pensamento. Margaret jamais desprezava assunto algum, sobretudo críticas sobre meus filmes. Trouxera-me o New Yorker deliberadamente. Era uma de suas várias formas de vingar-se de mim.

        Mais exatamente, essa tem sido sua principal atividade nos últimos anos: vingar-se, descobrir os pontos nos quais eu pudesse ser atingido mais fácil e dolorosamente, e neles repisar com força, caprichosamente exata, fria, com seu afável sorriso de madona. Devo ter sido para ela uma grande decepção. Ela depositara sua inteira confiança em mim.

        Deixei cair no chão o New Yorker e continuei pensando a respeito de Margaret. Eu a conhecera em 1940. Era ela uma das incontáveis garotas que povoavam Hollywood, tão parecidas umas com as outras como dois ovos: pernas esguias, corpos esplendidamente maduros e rostinhos lindos. Ambiciosas e sem meios de vida, sempre à espera de sua oportunidade. Podendo ser encontradas em todos os coquetéis e em qualquer clube noturno. Vez por outra, empurradas pelo namorado e levadas às adjacências de uma produção efetiva, circunstancialmente até mesmo visíveis com algum papel na tela, persistentes, resistentes à bebida e pensando exclusivamente em sua carreira. Encontrei-a numa festa oferecida por Bette Davis. Jerry Wald trouxera-a consigo. Estava magnífica, dançava maravilhosamente bem, e eu flertei com ela. Naquela ocasião eu escrevia justamente como quinto autor um filme policial para Charles Laughton. Ela sabia disso. Bebemos bastante e eu a levei para casa comigo. Eu tinha um pequeno apartamento em Beverly Hills. Ela era jovem, bonita e cheirava a sabonete Palmolive, Chanel n.° 5 e Pepsodent. Eu estava bastante embriagado e ela me pareceu muito apaixonada. Disse que gostaria de ter-me amado há mais tempo e fez elogios sobre meu trabalho. Após despir-se, ao vir para junto de mim, na cama, ela tremia dos pés à cabeça e gaguejava que certamente eu iria acreditar que ela perpetrava tudo aquilo para conseguir algum papel, mas que eu estava equivocado. Que ela o fazia por amor, porque não sabia como se arranjar, porque eu podia fazer com ela o que quisesse. Isso me causou profunda impressão.

        No dia seguinte ela se transferiu para minha casa e no segundo dia conversei com Irving Wallace, nosso chefe de produção. Ele pediu a Margaret para falar com ele, como teste de expressão, fizeram-lhe tomadas experimentais e ela ganhou um pequeno papel. Laughton foi muito amável com ela. No entanto, não adiantou nada. Ela era tão espantosamente sem talento que, no final, por conveniência e interesse do filme e por ordens de cima, tiveram que reduzir as cenas com ela a um mínimo absolutamente necessário.

        Foi muito corajosa quando ficou sabendo, e disse que me havia desde já avisado, e que nunca se sentira propriamente uma atriz de cinema. No dia da exibição da produção, ela me disse, ainda, mais uma outra coisa. Sorrindo, encostou-se em mim com meiguice, dizendo o que era. Estávamos sentados bem atrás, na sala de projeção, e ela aguardou até que a víssemos na tela. Falou-me então que estivera com o médico e que não havia dúvida.

        Estava grávida.

       

        —  Estou incomodando? — perguntou Joe Clayton.

        Fingi não ouvi-lo bater, ele já estava dentro do meu quarto do hospital, segurando nas mãos algumas revistas e uma garrafa de uísque.

        —  Claro que não — respondi —, vá entrando, Joe.

        Riu com espalhafato e apertou-me a mão com força. Tinha a figura de um corretor de valores, obeso e satisfeito.

        —  Antes vamos tomar um gole — explicou, bateu a campainha e, enquanto se sentava, tirou do bolso um canivete, desses que têm um saca-rolhas. Com ele abriu a garrafa. Tirou do bolso também uma carteira de charutos.

        —  É permitido fumar aqui?

        —  Sem dúvida.

        Acendeu um grosso charuto e soprou grossas nuvens de fumaça à sua frente. Parecia muito satisfeito consigo mesmo.

        —  Você parece estar muito contente consigo mesmo — disse eu. Por algum motivo eu não me sentia bem. Alguma coisa estava errada, não sabia dizer o que era, contudo percebia nitidamente. Ele me pareceu um pouco bem-humorado demais.

        —  E estou, estou mesmo, meu rapaz — resplandeceu de ânimo, enquanto encaixava uns nos outros os dedos curtos e roliços. — Um Grito no Escuro está a salvo. Dentro de quatro semanas entramos no estúdio. — Um Grito no Escuro era o nome de meu filme. Seu contentamento tornava-se a cada minuto mais estranho, temível, para mim.

        —  Como dentro, já, de quatro semanas? — perguntei. — Você tem somente meus scripts em esboço.

        —  Seu roteiro está magnífico, Jimmy! — Bateu-me nas costas. — Não poderia estar melhor, palavra. Todos estão entusiasmados com ele, mesmo Taschenstadt. E você próprio sabe como é difícil que ele se entusiasme com alguma coisa!

        —  Sim, sim — falei —, mas ainda assim é apenas um roteiro. Hellweg e eu queríamos mudar algumas cenas, então... — Interrompi minha idéia: — Espere aí, Taschenstadt não sabe uma palavra em inglês!

        —  Claro que não, por quê?

        —  Como então terá lido meu roteiro?

        —  É claro que ele não leu seu roteiro, mas o de Hellweg.

        —  Então é isso!

        —  Isso o quê?

        —  Lógico que a coisa é outra. Os diálogos de Hellweg já estão em ordem. Mas nos meus ainda será preciso trabalhar muito.

        —  Sem dúvida, sem dúvida — contemporizou ele, com o pensamento longe. Agora então é que eu não mais o entendia. Quis perguntar algo, mas a porta se abriu e uma enfermeira apareceu. Era feia e gorda.

        —  Dois copos, por favor — disse Clayton, em inglês.

        —  Dois copos, por favor — pedi, em alemão.

        —  Pois não, sem demora — disse em inglês a feia mulher e se foi.

        —  Você também julga necessário trabalhar nos diálogos, ainda?

        —  Sim, Jimmy. — Lambeu o charuto, que ameaçava abrir-se.

        —  Ainda será necessário mexer um pouco mais neles. Mas não fique preocupado! Dê tempo ao tempo, você tem de se refazer completamente, que é o principal! A saúde antes de tudo! Não há nada mais importante!

        —  Sei, mas...

        — Você cumpriu magistralmente com sua parte, estou muitíssimo satisfeito com você. Com Hellweg também. Mas sobretudo com você, Jimmy. E quando eu rodar meu próximo filme — provavelmente no outono, e na Espanha —, você pode contar com toda certeza que pensarei em você novamente.

        —  Que está havendo com você, Joe? Você fala como se eu já tivesse terminado meu trabalho.

        —  E já mesmo, Jimmy, haha! — Riu, e de novo bateu-me nas costas. A enfermeira voltou com dois copos.

        —  Obrigado — disse Clayton e sorriu para ela.

        —  De nada — respondeu ela. Não sorriu. Primeiro olhou para a garrafa de uísque, depois para mim, sacudiu a cabeça e desapareceu.

        —  Ok, tome! — Clayton estendeu-me um copo. — Um brinde ao seu breve restabelecimento! — Tomamos o uísque, estava morno e pesado. Senti quando ele me passou pelo peito. Então coloquei o copo na mesinha.

        —  Joe, que quer dizer com: eu ter terminado meu trabalho?

        —  Agora sabia com certeza que algo desagradável havia sucedido. Olhou em direção ao chão, evitando encontrar meu olhar. Ele era um sujeito decente, bem educado, e mentia terrivelmente mal. Não respondeu. — Mas responda! Como então já estar quite com meu trabalho, se ainda preciso reescrever partes de meus diálogos?

        —  Mas você não é capaz de reescrever seus diálogos, assim doente, no hospital!

        —  Vou estar aqui apenas uns três ou quatro dias.

        —  Três ou quatro dias só? — Assustara-se. Sem dúvida, confiava em que iria demorar mais tempo. Por que, diabos, por quê?

        —  É, três ou quatro dias! Depois ficarei à sua disposição! Qual o problema? Posso escrever aqui mesmo, para não perder tempo. Além do mais, não tenho nada que fazer! Aliás, será mesmo a melhor coisa...

        Mordeu os lábios. O charuto havia acabado, sem que ele notasse. No jardim, lá fora, a luz do crepúsculo se instalava lentamente.

        —  Jimmy, não diga bobagens! — Levantou os olhos, centímetro por centímetro, e, finalmente, mirou-me no rosto com um miserável sorriso de cão maltratado. — Como então é capaz de escrever, aqui, nesse ambiente, no seu estado...!

        —  Estou na mais perfeita ordem!

        — Evidente, mas ainda assim: você ainda não conhece o resultado desse exame. Deus queira que, naturalmente, dê que sua saúde está perfeita, mas até lá...

        —  Joe — disse eu, devagar —, o que está escondendo de mim?

        —  Nada, nada não, Jimmy. Quer mais um uísque?

        —  Não.

        —  Mas eu quero! — Encheu o copo e virou rapidamente.

        —  Pois bem! — falei. — Que quer dizer com eu não poder escrever os diálogos aqui? Então quem irá escrevê-los?

        —  Felizmente Collins está em Munique — disse ele, sem olhar para mim. Ruborizou-se completamente, o pobre sujeito.

        —  Ah bem — articulei e deixei-me afundar na cama. Collins era, na América, autor muito solicitado, que se encontrava em visita à Europa. Nós nos conhecíamos, eu o admirava, e ele de mim não achava nada. Quer dizer então que Collins iria escrever meus diálogos. Nesse dia, pela primeira vez, senti que as têmporas recomeçavam a doer.

        —  Ele se prontificou amavelmente a fixar as pequenas alterações, quando lhe disse da situação embaraçosa em que fiquei com o seu colapso...

        —  Joe — falei —, ao telefone você ainda me contou que de forma alguma estaria em apuros por causa de meu colapso, seu velho mentiroso!

        —  Mas aí eu já havia falado com Collins, Jimmy — disse em tom de súplica, infeliz.

        —  Acredito — considerei — que você, de fato, não ficou em apuros com meu colapso. Muito pelo contrário. Digamos, mesmo, que meu acidente deve ter sido para você um presente caído do céu.

        —  Jimmy, não fale dessa forma!

        —  Foi a melhor maneira de me passar para trás, não acha?

        —  Por favor, Jimmy, você sabe como o estimo!

        —  Você, me estimar! Desde quando você está insatisfeito comigo?

        —  Nunca, jamais fiquei insatisfeito com você! — gritou e ergueu-se de um salto.

        —  Não grite! — gritei-lhe. — Isso aqui é um hospital. E sente-se! — Sentou-se. Suas gordas mãos tremiam. — Vamos, diga-me de uma vez quem foi que me difamou, quem meteu na sua cabeça que meu trabalho não tinha valor algum!.

        —  Ninguém me fez sugestão alguma desse tipo, Jimmy, é verdade, acredite!

        —  Bem. Então preste atenção no que vou lhe dizer: Collins não vai mudar meus diálogos!

        —  Mas ele já está fazendo isso! — falou, ofegante e choramingando. Portanto, a coisa era bem pior do que eu pensava.

        —  Pois bem — estabeleci —, então retire dele o script. Ainda tenho um contrato com você. E enquanto eu estiver sob contrato com você, pelas leis sindicais você não pode meter nenhum outro autor nessa história. Fale com Collins que você sente muito. Enfim, é trabalho meu! E quero terminá-lo! Ou me demita, se você achar preferível! Aí você vai poder arranjar quantos autores desejar. Respirou com ímpeto e, mudo, olhou para mim.

        —  Você me entendeu? Concordou com a cabeça.

        —  E então? Levantou-se, novamente.

        —  Jimmy...

        —  Continue sentado!

        Sacudiu a cabeça e permaneceu de pé.

        —  Jimmy, esperava que você me poupasse isso. Se você se nega a reconhecer ou aceitar Collins, então... — Fez grande esforço para buscar o ar, agora realmente seus olhos estavam úmidos.

        —  Então?

        —  Então vou precisar demiti-lo — disse, baixinho, e voltou a sentar-se.

        Nos instantes seguintes, calamo-nos os dois.

        —  Agora você pode me dar um uísque — articulei por fim. Encheu nossos copos, com muita insegurança nas mãos, um pouco do líquido entornou-se em minha cama. Bebemos.

        —  Obrigado — falei.

        —  Você aceita Collins? — perguntou ele, mais baixo ainda.

        —  Não. Por força do amor-próprio, não.

        —  Então, assim...

        —  Sim, Joe, naturalmente. Você me pagará até o fim da semana, está certo.

        —  Está zangado comigo?

        —  Não — respondi. — Acabo de me apaixonar por você.

        —  Meu Deus, que profissão terrível! Palavra, Jimmy, odeio o filme. Detesto-o! Você é meu amigo, e tenho de lhe dizer uma coisa dessas! Mas, afora isso, se você tem alguma dificuldade...

        —  Nada disso, absolutamente você não vai fazer nada.

        —  Mas, sem dúvida, eu preciso! Quanto ao mais, o que me restaria fazer então?

        —  Fazer, por exemplo, um juízo de você mesmo! Nem sempre acreditar naquele com quem você falou por último!

        Ele balançou a cabeça.

        —  O pior, rapaz, é que não falei com ninguém, com ninguém aqui em Munique.

        —  E de onde veio sua decisão de me enxotar?

        —  De lá — disse, quase num sussurro — da costa.

        Sempre dizíamos a "costa" quando nos referíamos a Hollywood.

        —  Ah — disse eu. Ele tinha razão: de fato era mais grave. — Com o telegrama comunicando que o dinheiro tinha sido remetido, havia mais um outro — prosseguiu — dizendo que eu devia providenciar para que Collins reescrevesse seus diálogos. Devia, ouviu, Jimmy, entende? Você pode ver o telegrama, caso não acredite em mim!

        —  Eu acredito em você.

        —  Ademais, eu próprio não sou mais do que um simples empregado! E tenho que fazer o que me exigirem lá da costa. Para eles sou responsável por tudo! E, aliás, me pagam por isso!

        —  Dela, quem foi que leu?

        —  O quê? — Encarou-me, sem entender.

        —  Meu roteiro.

        —  Halloran. Ele emitiu um parecer.

        Halloran era o dramaturgo da companhia, um homem escrupuloso, honesto e competente. O pessoal do aço tinha a maior confiança nele, eu próprio também. Era incorruptível, inteligente e entendia bem de sua profissão.

        —  Pois bem?

        —  Disse que a história estava em ordem. Mas que os diálogos não estavam nada bons. — As duas últimas palavras Clayton disse em alemão.

        Olhei para fora, para o jardim já mergulhando no lusco-fusco, e senti que a dor novamente vinha se aproximando, em ondas largas, pesadas e indolentes.

        —  Ele disse que os diálogos eram muito ruins?

        —  Sim, Jimmy. Falou que não entendia coisa alguma, que noutras épocas, no entanto, você foi um escritor realmente bom, mas dessa vez simplesmente fracassou. Que o trabalho está fragmentado, indiferente, seco, fútil e superficial. — Balancei a cabeça, aquiescendo com um riso forçado. — Inclusive, que precisava desaconselhar filmarem o roteiro em sua forma atual. — Minha cabeça anuiu com um movimento automático, também a boca automaticamente sorriu contrafeita, a impressão que sentia de mim próprio era de um boneco. — Sinto muito — tornou a dizer o pobre Clayton.

        —  Está bem, Joe. Você não pode fazer nada. Óbvio que tudo isso é muito desagradável. Entretanto, você sabe o que é mais desagradável de tudo? Que eu, agora, por Deus que fiquei completamente inseguro! Presumivelmente já não possuo mais um discernimento próprio para a arte! Já escrevi muita droga, mas sabia que era droga! No entanto, agora, dessa vez, Joe, acredite-me ou não, eu esperava haver escrito um bom roteiro. Com diálogos passíveis de ser ainda um pouquinho melhorados, mas não muito! Achei que já estivessem incrivelmente bons! Aliás, só estou conversando por vaidade de ser bom e fazer coisa melhor! Para ouvir algum elogio, sabe?

        —  Sei, Jimmy — disse ele, embaraçado.

        —  E agora aparece Halloran para dizer que os diálogos estão fragmentados, insípidos, supérfluos, friteis e idiotas.

        —  Idiotas não — frisou Clayton. — Idiotas ele não disse.

        —  Não disse — exclamei —, idiotas ele não disse! Por isso vamos festejar, Joe! Dê-me mais um copo de uísque!

        Passou-me o copo. Bebi.

        —  Jimmy, realmente não sei o que devo dizer. Gostaria muito de ajudá-lo. Mas pode ter certeza, este é um trabalho maldito, miserável, sujo, que aniquila com as pessoas e assassina as mentes! Veja o pobre do Lubitsch! Precisou morrer, com cinqüenta e cinco anos.

        —  Acabe com isso de me consolar!

        —  Você sabe em que termos falei sobre essas coisas, não?!

        —  Sim, Joe, eu sei. Você quer sair agora? Levantou-se.

        —  Você pretende...

        —  Não o faço por mai — falei. — Apenas gostaria de ficar só.

        —  Está bem! — Apanhou o chapéu, estendeu-me a mão. — Não se deprima muito com isso, Jimmy. O que eu disse, você ouviu bem!

        —  Que foi que você disse?

        —  Que eu quero trabalhar de novo com você... na Espanha.

        —  Ah bem...

        —  Mais uma coisa, Jimmy: lá na costa ninguém sabe dessa coisa, pode ficar completamente despreocupado. Meu pessoal é bastante honesto... e Halloran, você mesmo sabe quem é!

        —  Sim — concordei—, a Halloran eu conheço, sem dúvida.

        —  Então, até logo!

        —  Até logo, Joe — disse-lhe.

        Quando fechou a porta, ao sair, o telefone tocou. Era Margaret. Perguntou-me como estava.

        —  Tudo ótimo, obrigado.

        —  Estou lhe telefonando quanto antes, porque Ted arranjou entradas para o teatro, e depois não terei mais tempo.

        —  Vocês vão ver o quê?

        —  Fidélio. Você não fica zangado? ----Pelo amor de Deus, não.

        —  Ted acha que eu deveria me distrair.

        —  Sem dúvidas, Margaret.

        —  Amanhã passo aí novamente.

        —  Muito bem.

        —  O professor já esteve com você?

        —  Não.

        —  Prometeu-me que veria você ainda hoje. O exame começa amanhã. Disse que, antes de tudo, você deveria estar em repouso o dia inteiro, ouviu? Oh, Roy, quase já me esquecia de dizer: encontramos Clayton no bar! — Assustei-me. — Ele me contou como a costa e a co-produtora aqui estão entusiasmadas com seu roteiro! — O gorducho do Clayton. —Não é maravilhoso?

        —  Maravilhoso.

        —  Ele já esteve com você, aí?

        —  Já.

        —  E lhe falou sobre isso?

        —  Falou, Margaret.

        —  Veja você! E quem foi que aproximou vocês dois?

        —  Você, Margaret! — Tive a sensação bem definida de que ela não estava sozinha. — Você está sozinha?

        —  Não, Vera e Ted estão comigo, ainda estamos no bar! — A voz de Ted insinuou-se na conversa, dizendo algo ininteligível. — Estão lhe enviando recomendações!

        —  Obrigado — disse eu.

        —  Agora você vê: eu realmente sei com quem você pode trabalhar!

        —  Sim, Margaret!

        —  Sou sua pequena empresária! Ainda farei de você o roteirista mais solicitado do mundo!

        Imaginei-a sentada ao balcão, acenando aos Baxters com uma expressão radiante e como os Baxters a admiravam.

        —  Joe mentiu para você, Margaret — disse-lhe. — O roteiro foi recusado. Joe me demitiu. Collins está reescrevendo o script!

        Após um segundo de silêncio, recobrou seu autodomínio: — Fico contente, isso me causa um prazer enorme, Roy! Não foram dois filmes que Joe ofereceu a você de saída? Estou lhe dizendo, você ainda vai fazer carreira! Mas agora se venda o mais caro possível! Você conhece seu valor. Enquanto estiver no hospital, deixe que eu dirija os negócios para você, como sempre...

        —  Boa noite, Margaret — falei. Continuou falando, com irritação, mas coloquei o fone no gancho. Ela iria segurar, ainda, o seu no ouvido, como se a ligação não tivesse sido interrompida, continuar falando e, depois, despedir-se carinhosamente de mim. Os Baxters se encantariam com ela. Mas que mulher maravilhosa! Um artista por marido, ela, o ser que, com abnegado amor e fiel dedicação, lhe desembaraçava os caminhos, soerguia-o para a fama sem considerar as próprias ambições cinematográficas, fazia as negociações e fechava contratos, que o aproximava de grandes figuras do mundo do cinema, tais como Joe Clayton...

        Ridícula situação, mas de fato ela fez isso — sempre fazia coisas desse gênero. Ela foi a pessoa que estabeleceu um primeiro contato entre nós, e eu lhe ficara sinceramente grato por isso. Todavia, naqueles tempos eu seria grato a qualquer um que me possibilitasse trabalhar, não importa para quem ou em que lugar; já fazia ano e meio que não escrevia um roteiro, e nossa situação era bastante miserável. Foi nessas condições que Margaret desenvolveu sua agitada participação.

        Começou com a maior inocência, uma inocência por assim dizer comovente. Fiquei muito feliz quando me disse que ia ter uma criança, então decidimos nos casar logo. Na época, eu desejava ter um filho, uma casa, uma família. Foi um período de minha vida no qual sentia intensos desejos e ansiedades burgueses. Os pais dela vieram à cidade para o casamento. Gente simples e simpática do meio-oeste, possuíam um drugstore numa cidade chamada Louisville, Ohio. Margaret lhes escrevera muito a meu respeito e sobre as maravilhas que eu realizava em Hollywood, e eles me admiravam com respeito e veneração. Ficaram muito felizes com o casamento. Eu gostava deles, sobretudo da mãe de Margaret.

        Depois, retornaram a Louisville, Ohio, e eu comecei minha vida de casado. Foi uma época muito bonita. Tínhamos um médico admirável, que dava a Margaret toda atenção, e a criança fazia magníficos progressos. Meus amigos vinham visitar-nos e aceitavam, de pronto, Margaret, amáveis e à vontade, com aquela naturalidade desafetada que é uma característica das relações sociais em minha profissão, onde qualquer um pode vir a ser tudo se tiver talento.

        Por um curto tempo vivemos em paz e harmonia. Depois, Margaret começou a tomar conta de minha carreira. Para melhor compreensão dos fatos que se seguem, devo adiantar que em Hollywood, como em qualquer outro lugar onde filmes são gerados, reina espantosa degenerescência, verdadeira panelinha de interesses. Gente de cinema relaciona-se apenas com gente de cinema, e o assunto exclusivo das suas conversas chama-se cinema. Não existe nenhum outro tema além deste. Fala-se de cinema pela manhã, à tarde, na rua, no restaurante, no clube e na cama. Fala-se sobre papéis, atores, temas, enredos, intrigas, salários e projetos futuros. E uma doença. É um tipo especial de exibicionismo, um delírio de desnudar e de participar da vida, de tudo, como nenhuma outra atividade ou profissão apresenta.

        Médicos e engenheiros, físicos e advogados possuem interesses secundários, fazem música ou colecionam selos, sabem como escutar e dar atenção, e, encerrada a jornada de trabalho, se desligam de suas profissões. Mas é diferente com as pessoas do teatro e do cinema. Elas jamais se desligam de seu trabalho, não possuem interesses paralelos, uma ocupação compensatória, precisam estar sempre falando naquilo que mexe com elas, noite e dia, entra ano, sai ano. Precisam se participar umas às outras, mostrar-se em sua realidade nua e crua, têm de falar sobre si próprias e seu trabalho. Provocam-se umas às outras e, com isso, também acabam caceteadas, vez por outra procuram escapar a essa peste de simplismos da profissão, e se precipitam em furiosas excursões ou retiros para o campo e para lugares ermos... E, passados alguns poucos dias, regressam, esfaimadas e sedentas de notícias, animadas por um único ardente desejo: saber das novidades ocorridas em sua ausência.

        Nesse mundo é que, hoje, vivia Margaret. Anteriormente, também; contudo, apenas como uma linda garotinha que se podia apanhar e levar junto para qualquer festinha onde ela, quieta e tímida, tomava o seu traguinho, um adorno apenas para o cavalheiro que a trouxera. Entretanto, agora, vivia nesse mundo como que em igualdade de condições. A aristocracia profissional do cinema, a única aristocracia que o cinema conhece, Margaret a reconhecera e adotara em sua qualidade de mulher do escritor, do roteirista James Elroy Chandler.

        Como mulher dele, Margaret extasiou-se ao constatar, logo, que já não era mais apenas uma beldadezinha que se pudesse apanhar e ser levada a uma festinha, que ali, calada e bem comportada, bebesse seu drinque, enfeite a tiracolo do cavalheiro que a recolhera — verificou que a deixavam insinuar-se nas conversas, que era ouvida com atenção, que as pessoas se voltavam e lhe acenavam amavelmente com a cabeça quando ela falava.

        Quero tentar ser imparcial. Ela jamais falava de si mesma. Nunca procurou colocar-se em primeiro plano, enaltecer seu talento, fazer-se interessante. Mas, ah, se ela o tivesse feito! Quão agradável, inocente, inofensiva teria sido! Ela cometia algo bem pior: falava sobre mim. Procurava empurrar-me para o primeiro plano, gabar-se de meu talento, fazer-me espetacular. Era esse o pecado imperdoável.

        Se existe uma lei consuetudinária nesse exótico, irreal e duvidoso mundo ilusório do cinema, só pode ser esta: você poderá falar mal de toda a humanidade, mas jamais falarás sobre você mesmo ou de seus familiares mais próximos, vangloriando-se. Isso não existe. São os outros que hão de constatar talento em você, não você mesmo. Revelar de dentro para fora, tudo bem, isso é diferente, disso cuidam seus empresários e agentes, e ninguém "do sistema" irá superestimar o que dizem. De fora para dentro, porém, lá onde estão seus colegas, você se permitirá falar apenas de seu trabalho, não de seus méritos. Frente a frente com o outro, nós todos somos pobres e nus, mortos de trabalhar e de fadiga. Indivíduos que, em um ambiente desses, envolvem seus ombros com o manto purpurino do extraordinário, do excepcional, agem inoportunamente. As pessoas fogem deles. Um exibicionista não guardará rancor de um outro, se este lhe der a entender que sabe se despir melhor do que ele.

        Era precisamente isso que Margaret começava a fazer. Ela falava mal dos colegas, e tudo estava em perfeita ordem. Só que, além disso, fazia propaganda de mim — coisa absolutamente equivocada. Era inadmissível! Aqui acabava a brincadeira. Pedi-lhe encarecidamente que procurasse evitar isso, e ela prometeu-me que sim, mas foi incapaz de manter a promessa. Sua língua disparava, ininterruptamente, junto com seus pensamentos. "Se eles deixassem para Jimmy", era o seu refrão.

        Se ao menos deixassem Jimmy fazer, os Warners logo estariam numa situação diferente. Se deixassem Jimmy fazer, o último filme de Bette Davis não teria fracassado. Se deixassem Jimmy fazer, Gordon McKeith não teria em seu último roteiro um papel para Robert Montgomery, tão abaixo de qualquer crítica que o pobre Robert, infelizmente ignorando o que é bom para si, agora está precisando pedir e mendigar um novo contrato. Jimmy teria melhorado isto e evitado aquilo, há um ano que Jimmy prognosticou um ato e há três anos atrás tinha na estante um manuscrito cuja idéia agora a Fox está querendo roubar dele. Jimmy é cem vezes melhor do que todos os outros autores, inclusive os presentes, e unicamente sua própria indolência e a convencida estupidez de seu ambiente é que o impede de receber, todos os anos, o Oscar pelo melhor roteiro. Ah, se eles deixassem para Jimmy!

        Continuo tentando ser fiel aos fatos. É preciso repetir que Margaret jamais fazia essas coisas por interesses próprios. Com energia e aspereza haviam-lhe dito que ela não possuía uma chispa sequer de talento para o cinema. Acaso foi um milagre, algo prodigioso, transferir ela para seu marido suas próprias ambições, desejar vê-lo grande, famoso e cobiçado? Haveria algo mais comovente? Haveria maior prova de seu amor? Meu Deus — haveria algo mais horrível do que isso?

        Por fim, chegou o momento em que ela, ao menos em minha presença, se abstraiu de fazer seus exaltados elogios a Jimmy. Logo, porém, vieram contar-me que ela, agora, apenas em minha ausência, e mais ainda por isso, propalava ao som do seu clarim o refrão: "Se-deixassem-Jimmy-fazer". Meus amigos, se já não ficavam aborrecidos de fato, piscavam os olhos para mim com ironia: fora uma bela idéia fazer de minha mulher meu agente de publicidade, e eu, com protestos perenes, erguia as mãos inculpes para o alto. Eles me felicitavam com irritação. Em qualquer lugar, junto a qualquer produtor, cantilenas dessa natureza pairavam continuamente no ar — e faziam sucesso. Que motivos tenho para explicar que eles, os colegas, me levavam a mal por isso?

        Nossas primeiras divergências giraram, pois, em torno, também desse estado de coisas que acabo de descrever; foi em virtude disso que rolaram as primeiras lágrimas de Margaret. Dizia que a sua era a melhor das intenções, tudo aquilo era feito em meu benefício. E eu sem querer compreendê-la. Ela soluçava, eu sentia vergonha, ficava encabulado e desculpava-me, ela prometia não voltar a fazê-lo, eu adivinhava que ela quebraria a promessa. Eu tinha razão. A catástrofe que, afinal, sobreveio, foi uma conseqüência de sua promessa não cumprida.

        Aconteceu em 1941, na primavera.

        Margaret já estava em adiantado estado de gravidez quando vimos a estréia de A Morte é uma Mulher. Esse filme baseou-se em uma idéia que me ocorreu em 1938. Naquela época havia firmado contrato permanente e com ótima remuneração com a Warners. Compraram a idéia e pediram-me que escrevesse o roteiro. Era um thriller psicanalítico, com o papel de protagonista para Dorothy McGuire. Quando entreguei o esboço de meu roteiro, todos se decepcionaram. Eu falhara. Foram muito gentis comigo e, de imediato, puseram-me a elaborar um novo roteiro. Entregaram meu script a Dore Thompson para revisão e elaboração.

        Isso se dava com freqüência, é a regra, por assim dizer. Naquela ocasião, fora a primeira vez que me acontecera e soara muito desagradável para mim. Para a pobre Margaret, foi o próprio fim do mundo.

        Não foi capaz de esquecer. Irrompeu num choro histérico quando a pus a par. Tornou-se áspera e amarga. Não cumprimentava mais o inocente Dore Thompson quando o via, como se ele pudesse ter alguma culpa no cartório. Nas reuniões falava mal dele, contava "histórias" a seu respeito. Creio que parte desse desgosto possa ser atribuído ao fato de ela então haver sido, pela primeira vez, acometida da sensação de que eu, com efeito, talvez não passasse de um roteirista altamente medíocre, que jamais faria carreira.

        A estréia do filme ocorreu na noite de 23 de fevereiro.

        Fazia muito frio. A pequena sala de projeção, repleta de gente, estava mal aquecida. Todos os atores e a equipe de técnicos foram convidados, a direção de produção, o contra-regra, e Jack Warner em pessoa.

        Na época, Margaret já estava bastante deformada pela gravidez, sofria com isso, era impossível ocultar-se com as roupas apropriadas. Estava inquieta, irritada e insegura. Com expressão de desespero sorria para todos os lados com seu velho sorriso de madona, e puxava conversa. Não ignorava que muita gente não respondia mais ao sorriso.

        Assistimos ao filme. Ela me cutucou e pigarreou com ar de pouco caso quando surgiu na apresentação: "Roteiro: Dore Thompson, baseado em uma novela de James Elroy Chandler."

        —  Psiu! — chamei sua atenção, aflito.

        —  Veja só! — sibilou, com desprezo.

        —  Margaret, por favor!

        Em seguida, ficou calada noventa minutos. Um silêncio insólito, quase temível, pensei. Ali sentada, as mãos dobradas sobre o ventre, olhava para frente, para a tela luminosa. Seu mutismo me preocupava mais ainda do que o próprio filme, que era ruim. Não estou dizendo isso por haverem criticado meu roteiro. De fato não era bom, críticas posteriores e sua receptividade junto ao público corroboraram isso. Dore Thompson transformara em um indigesto e fastidioso enredo literário um tema cujas pré-condições básicas eram ansiedade, ação e tensão. No entanto, nessa noite naturalmente nada disso era importante. Era um dos tabus da profissão que, custasse o que custasse alguém felicitasse como "gênios" os colegas e colaboradores que trabalharam para um novo filme, após sua estréia. Aquele que infringe esse preceito não é mais capaz de reparar o pecado cometido. Admito que também fora esse o motivo — ou, pelo menos, um dos motivos — por que congratulações gerais e apertos de mão se desencadearam quando as luzes da sala se acenderam.

        Margaret continuou sentada, os lábios pálidos, e não olhou para mim. Levantei-me para participar das conversas em volta de mim. Tinha ela uma desculpa para continuar sentada, era notório seu estado.

        Primeiro dirigi-me para Dorothy McGuire.

        —  Formidável, realmente formidável, Dorothy. Meus parabéns sinceros. Foi seu melhor papel.

        —  Oh, Jimmy, que amor, você está exagerando!

        —  Não, Dorothy, é verdade, juro! O senhor também não acha, Mr. Warner?

        O velho Warner assentiu com a cabeça, devagar, e acariciou sorridente a mão de Dorothy.

        —  Sim, minha filha, estou muitíssimo contente com você.

        —  Também eu, Dorothy! — Era Dore Thompson. Beijou-lhe a mão. — Estou entusiasmado.

        — Dore — falei —, a idéia foi minha, Mr. Warner adaptou-a então ao script, mas espero que lhe dê prazer ouvir de minha própria boca que você realizou um esplêndido trabalho.

        — Obrigado, Jimmy, obrigado! Realmente alegro-me muito com isso!

        E assim por diante.

        Criados traziam drinques, fumava-se e, por alguma razão desconhecida, ninguém era capaz de se resolver a deixar a pequena e fria sala. Tudo sempre igual. Sobretudo com filmes cuja qualidade todo mundo reconhecia não ser incontestável. Passeava-se de um grupo a outro trocando-se amabilidades. Era um luxo discreto. Escutavam-se coisas desagradáveis, nada gentis. E é uma realidade trivial artistas viverem mais de aplauso do que de seu pão de cada dia.

        Jack Warner ia daqui para ali, o sorriso paternal, falando com seus filhos. Procurei de todas as formas mantê-lo distante de Margaret, sentada no centro de uma roda de atores coadjuvantes; no final, porém, não consegui evitar. Warner encaminhou-se para ela. Respeitosamente, abriram-lhe espaço e, num instante, o círculo de novo fechou à sua volta, mais estreito do que antes. Fiquei separado de Margaret.

        —  Pois bem, Mrs. Chandler — disse o velho Warner, beijando a mão de Margaret num galanteio cômico, embora bastante cordial —, gostou do filme?

        Grandes gotas de suor brotaram-me na testa. O ambiente silenciou-se e Margaret, sua voz irrompendo pelo silêncio adentro, falou alto e com frieza:

        —  Achei fétido.

        "Deus, meu Deus", pensei, "não, isso não!" Fechei os olhos. Ouvi o riso divertido de Dore Thompson. (Terá ele rido de bom humor?) Escutei então a voz de Jack Warner:

        —  Mas, Mrs. Chandler, todos nós o achamos magnífico!

        Abri os olhos novamente. Vi minha mulher, sentada, empertigada, as faces febrilmente ruborizadas, protegendo com as mãos unidas o ventre disforme em toda sua esfericidade, e sacudindo a cabeça. Lentamente e plena de insólita indignidade, sentenciou:

        —  Acho o filme hediondo.

        —  Mas a nossa Dorothy...

        —  Miss McGuire não tem nada a ver — disse Margaret. — O responsável é o roteiro, horrível. Se o senhor, Mr. Warner, tivesse um mínimo de inteligência e aceito o roteiro de meu marido, o senhor teria hoje um filme que valeria uma fortuna. — Ela olhou para Dore. — Sinto muito, Mr. Thompson, mas esta é a minha opinião. — E prosseguiu, dizendo a Jack Warner: — O senhor vai perder um dinheirão nessa coisa! — Benza-a Deus, ela estava com toda a razão, a companhia com efeito perdeu muito dinheiro em A Morte é uma Mulher. Naquela ocasião, contudo, ninguém esperava isso. Como também ninguém desejava saber.

        Margaret levantou-se. Surpreendidos e inamistosos, abriram-lhe caminho. Com seu pobre e disforme corpo avançou com altivez e dirigiu-se até onde eu estava, com seu sorriso de madona.

        — Roy — falou —, gostaria de ir para casa.

       

        Isso, aliás, não tinha sido ainda a catástrofe propriamente dita.

        A catástrofe propriamente dita ocorreu somente em 1." de março. A 1.° de março os Warners remetiam os formulários nos quais os empregados eram informados da prorrogação de seus contratos por mais um ano. Era um dia temido esse 1.° de março. Estava em meu escritório, escrevendo, quando o mensageiro chegou, para entregar o envelope amarelo, fechado. Estava terminando de bater a máquina a página em que escrevia; em seguida, rasguei-a, e enquanto me dirigia para a porta passei sobre a folha uma olhadela ligeira. Iria até a cantina almoçar. Era uma hora.

        Nesse dia não fui à cantina. Cheguei apenas até o corredor: fiquei então sabendo o que dizia a carta.

        Os Warners não prorrogaram meu contrato.

        Desci, a passos lentos, até o saguão, passando pelo Hall 3. A carta na mão. A Warner não prorrogou meu contrato. Sentei-me numa cama com dossel, cor azul-pálido, estilo Luis XIV, estendida ao sol da primavera em frente da entrada do estúdio; então acendi um cigarro. Os Warners não prorrogaram meu contrato. Levantei as pernas e desci-as sobre a cama, na qual ontem mesmo Betty Grable se havia deitado, e fiquei pensando. Estava no olho da rua. O bebê viria. Eu reservara um pouco de dinheiro e agüentaria por alguns meses. Além do mais, tinha algumas idéias que poderia vender. Não obstante, o pior ali estava: os Warners não prorrogaram meu contrato. Eu era um escritor freelance. Havia muitos escritores freelance em melhor situação do que os de emprego fixo. No entanto, também tantos outros estavam pior. Muitos, miseravelmente. E o bebê ia nascer. E os Warners não haviam prorrogado meu contrato. Porque, diabo, não o fizeram?

        Levantei-me e subi para o edifício central. Minha intenção era falar com Jack Warner, ou então com um de seus assistentes. Queria saber por que não fora prorrogado meu contrato. Sim, era o que desejava saber. Saber tintim por tintim, ora bolas!

        A entrada do edifício central era formada por uma gigantesca porta de vidro. Numa cabina de vidro, junto à porta, ficava uma beldade loura platinada. Eu a conhecia havia sete anos. Chamava-se Mabel Dermott e era casada com um caixeiro-viajante. Tinha dois filhos e não se deixava seduzir. O truque da porta de vidro consistia em se abrir apenas por um botão que Mabel apertava. Era esse todo seu trabalho. Tinha de conhecer todo mundo e saber exatamente quem podia entrar no edifício central e quem não podia. Conhecia todos, um por um. Também me conhecia. Ao longo de sete anos apertava o botão para me deixar entrar, caso tivesse algo a resolver no edifício. Acenei-lhe com a cabeça e ela fez o mesmo. No instante seguinte choquei-me com a colossal porta de vidro.

        Sacudi a maçaneta. A porta não se mexeu. Mabel não havia pressionado o botão. Pôs a cabeça para fora de uma janelinha.

        —  Olá, Mabel — disse-lhe, sentindo meu estômago contrair-se em convulsões.

        —  Boa tarde, Mr. Chandler — disse ela, amavelmente.— O senhor tem algum encontro marcado? — Portanto, ela já sabia. Eu era um daqueles para quem ela não mais apertaria o botão. Tudo foi rápido, passou-se muito rápido.

        —  Não — respondi—, não tenho nenhum encontro.

        —  Devo anunciá-lo?

        —  Obrigado — retruquei.

        —  Boa tarde, Mr. Chandler.

        —  Boa tarde, Mabel — falei. Regressei a minha sala a fim de apanhar minha máquina de escrever e meu cachimbo.

        Margaret tricotava quando cheguei em casa. Havíamos alugado uma casa em Northwood Drive, uma linda casinha com um hall e uma ampla escada de madeira que dava para o andar de cima. Ela me ouviu fechando a porta da entrada e chamou-me.

        —  Sou eu, Margaret — respondi. Deixei a máquina sobre um móvel e subi para o quarto onde ela estava. Trazia um peignoir largo e recebeu-me sorridente.

        —  Alô — disse-me, com orgulho. Mostrou-me uma roupinha de nenê.

        —  Linda.

        Ficou desconfiada.

        —  O que houve?

        —  Nada.

        —  Mas sim, aconteceu alguma coisa! Roy, o que foi que houve? Fui até a janela e olhei para fora. Na grama, dois cachorros estranhos procuravam pegar um ao outro.

        —  Que cachorros são estes? — perguntei.

        —  Onde?

        —  Em nosso jardim. Dois cães desconhecidos.

        Levantou-se e encaminhou a passos morosos até mim. Afastou-me da janela e obrigou-me a fitá-la:

        —  Roy, diga-me o que aconteceu. Encarei-a.

        E então contei.

        Ela se voltou e, lenta, foi de novo sentar-se na poltrona. Dali, olhou para a calcinha de bebê e deixou-a cair. Seus cabelos estavam caídos na testa, em desalinho, seu rosto mostrava as características pigmentações amarelas da gravidez, estava sem pintura alguma...

        —  Sou eu a culpada, não é? — perguntou, taciturna.

        — Ridículo! — Assumi um ar de indiferença, andando pelo quarto. Claro que ela era a culpada. Entretanto, seria eu capaz de confirmar? — Que bobagem é essa? Culpada de quê?

        —  Por ter dito a Mr. Warner que achei o filme detestável.

        —  Bobagem! — Olhei de novo para os cachorros no jardim, que, latindo e esganiçando, cavavam um buraco em nosso canteiro de rosas. — Não tem nada a ver com isso.

        —  Lógico que tem! Acredite em mim, Roy! Eu sei. Dore é amigo pessoal de Mr. Warner. Aliás, por isso é que recebeu a incumbência de reescrever o script! — Levantou-se e passou a andar para lá e para cá. O comprido peignoir atrapalhava seus passos e ela tropeçou duas vezes.

        —  É óbvio que foi assim mesmo! Dore chegou junto a Warner e instigou-o contra você! Porque você tem talento demais para ele!

        —  Eu não tenho talento.

        —  Você é cem vezes mais talentoso do que Dore!

        —  Não, Margaret, não sou não.

        —  É! É sim! Dore tem medo de sua concorrência! Ele sabe que logo você vai colocá-lo contra a parede! É por isso que quer sujar a sua barra! Porque você é mais talentoso do que ele!

        Aproximei-me e pus a mão em seu ombro.

        —  Agora me escute bem, Margaret. Não sou mais talentoso do que ninguém. Sou um escritor mediano, já lhe disse isso várias vezes, e agora estou lhe pedindo encarecidamente para, pela última vez, pôr isso na cabeça.

        —  Eu...

        —  Espere! Sei que é mais agradável estar casada com Paul Osborn ou com John Steinbeck, quando se é ambiciosa. Só que eu não sou Osborn! E não sou Steinbeck! E exijo de você que enfim se resigne com isso!

        —  Não vou me resignar com isso! — gritou, nervosa. — Não vou me resignar, porque não é verdade! Simplesmente você está se subestimando!

        —  Nada disso, não me subestimo. Você é que me superestima. E isso tem que acabar!

        —  Acabar por quê?

        — Porque isso está me tirando permanentemente a possibilidade de trabalhar! Porque perco meus amigos, minhas relações...

        —  ...e seu contrato com Mr. Warner — disse ela, vagarosamente. Seus olhos fitavam-me como que sugando os meus. Respondi a seu olhar sem dizer uma palavra. Pois bem, pensei, se você deseja incondicionalmente ouvir... paciência.

        —  E meu contrato com Mr. Warner.

        —  Quer dizer que então sou eu a culpada! Eu não desejava, mas disse:

        —  Sim, Margaret.

        —  Ah!...

        — Sinto muito, mesmo. O que você fez na estréia foi imperdoável! Eu amo você, você é minha mulher, mas não posso desculpá-la!

        —  Então... então não pode me desculpar!

        —  Não.

        —  Foi indesculpável?

        —  Foi.

        —  Você sentiu vergonha de mim?

        —  Senti, Margaret.

        —  E por minha causa, pela cena da estréia, Mr. Warner não renovou seu contrato?

        Eu falava automaticamente, não queria falar, mas as palavras saíam:

        —  Não é nenhuma desgraça terrível, embora naturalmente também não seja agradável. Mas preciso lhe pedir, cam toda clareza, para você se controlar. Futuramente vai ser preciso ser diferente. Do contrário...

        Deu um salto da poltrona.

        —  Do contrário...

        —  ...você vai me ver sempre desempregado! Sorriu, a boca escancarada.

        —  Você quer dizer que eu é que faço você ficar desempregado! Precisamente eu? Essa é boa! Muito boa mesmo! — E continuou aos tropeços pelo quarto.

        —  Sente-se, Margaret, pense na criança.

        —  Eu então agora preciso pensar na criança?! Agora, quanto antes? Você tem pensado na criança?

        —  Margaret, por favor!

        —  Deixe-me em paz! Que é que você está pensando de fato? Você se atreve a me censurar? Procuro ajudar, apoiar, empurrar você para frente... e você me repreende por isso?

        —  Eu lhe pedi somente que...

        —  Eu apoio, defendo você, digo a verdade para Jack Warner... e você me reprova? Isso mesmo, o que você está querendo realmente? Qualquer prostitutazinha que fique calada, olhando as pessoas difamarem você? Que se cale quando lhe fazem injustiça? Que fique sorrindo e a Mr. Thompson, talvez, faça a corte? Você está insatisfeito comigo, não? Sou uma mulher má, não? É desagradável que eu apóie você? Você preferiria que eu também representasse nesse falso teatro, não e? Sim, Mr. Warner! Oh, maravilhoso, Miss McGuire! O senhor e um gênio, Mr. Thompson! Que acha?

        Parou à minha frente, o corpo arfante.

        —  Pois diga o que você pretende! Vamos, diga!

        —  É sossego o que eu quero, trabalhar tranqüilo é o que desejo! — gritei.

        —  Ah, e aí entro eu, perturbando você!

        Eu não queria dizer, Deus é testemunha, não queria dizer, mas não me contive!

        —  É, você me perturba no trabalho! Encarou-me.

        Lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

        —  Essa é a pagã, a gratidão por tudo que fiz por você! — Deu-me as costas e correu aos tropeços em direção à porta.

        —  Margaret, por favor!

        A porta bateu. Os saltos de seu sapato batiam, lá fora, forte, no assoalho. Corri também para a porta. Antes de chegar até ela, escutei o grito. Um grito pavoroso, de um animal, sem nada de humano.

        —  Margaret!—gritei.

        Vi-a caída no chão do hall, embaixo, com o corpo enrodilhado, um pavor mortal estampado no rosto, mãos comprimidas de encontro ao ventre. Olhou para mim, olhos de puro horror, acompanhando-me enquanto eu descia até onde estava. A roupa azul, ampla, espraiada pelos lados como um leque.

        —  O médico, rápido, o médico — articulou, o peito arfante. Margaret caíra diretamente do alto da abrupta escadaria.

      

        Deus meu, fazei com que nada lhe tenha acontecido, fazei com que tudo esteja bem, oh, meu Deus, mil vezes por favor. Foi culpa minha, eu a irritei. E, com seu nervosismo, ela correu até a escada. Meu Deus, por favor, fazei com que nada de mal tenha ocorrido, e que o bebê nada tenha sofrido. Não desejarei jamais escrever um bom filme se fizerdes, bom Deus, com que ela se salve, eu vos juro, jamais terei vontade de ser feliz novamente, mas rogo-vos, por favor, fazei com que ela escape e nada tenha acontecido com o bebê, amém.

        Três horas depois.

        Eu esperava num dos inúmeros corredores brancos do Bellevue Hospital, sem me sentar. Minhas mãos suavam frio, minha camisa estava empapada de suor. Suava de medo.

        O médico chegara, chamara uma ambulância, Margaret havia sofrido alguma hemorragia e, a seguir, perdera os sentidos. Sentei-me a seu lado, e a ambulância ganhava a rua uivando a toda velocidade; senti como o médico me olhava, e eu, de esguelha, como se à espreita, cheio de horror.

        Foi levada imediatamente para a sala de operações, na ambulância já lhe haviam dado as injeções necessárias. O médico repeliu-me com um empurrão quando quis entrar acompanhando Margaret para dentro da sala.

        —  O senhor fica aqui — disse-me com frieza. Ele me odiava. Eu próprio me odiava. Fiquei para trás. A luz acima da entrada da sala de operações tremulava, reverberando:

        "Operação. Proibida a entrada", eram os dizeres luminosos.

        Não entrei. Sentei-me num banco e comecei a rezar. Por Margaret, por sua vida. Pela vida do bebê. Fiquei rezando por mais de meia hora. As duas partes da porta então se abriram e trouxeram Margaret em uma maca rolante. Estava inconsciente, parecia morta.

        —  Que aconteceu? — perguntei ao médico.

        —  É muito cedo para dizer.

        —  A criança...?

        —  Morreu — falou, simplesmente.

        —  E ela...?

        —  Ainda é cedo — falou. — Volte dentro de uma hora. — E afastou-se, deixando-me sem mais palavras. Ele sabia que o culpado era eu. Saí. Achei um bar aberto e pedi uísque. O bar ficava nas proximidades do hospital. O homem acenou-me com a cabeça, amigavelmente.

        —  O senhor tem que esperar?

        —  Sim.

        —  Todos os homens que vêem aqui precisam esperar — disse-me. Nada retruquei. Um instante depois voltou-se para mim e, sem nada dizer, colocou um segundo uísque à minha frente. Voltou mais vezes. Retornei à clínica. A enfermeira, sentada em frente ao quarto de Margaret, disse que ainda era muito cedo. Eu deveria voltar de novo dentro de uma hora.

        Dentro de uma hora!

        O barman balançou a cabeça quando me viu. Pôs à minha frente uma grande xícara de café simples.

        —  O senhor ainda continua esperando?

        —  Sim.

        —  Beba isso. Todos os homens que precisam esperar tomam isso. Bebi o café preto. Estava amargo e muito forte. Em seguida, voltei ao uísque.

        Não demorou e um outro homem entrou no bar. Transpirava e pediu cerveja. O barman sacudiu a cabeça e deu-lhe um grande copo de uísque.

        —  O senhor vai ter bastante com que se ocupar — falei para ele.

        —  É possível, senhor — replicou ele. — À noitinha a coisa termina.

        Finalmente a hora passara e saí de volta para o hospital. Naquele dia já fazia muito calor, muito quente para o mês de março. A enfermeira informou que ainda ia demorar alguns minutos e eu poderia esperar no corredor, em frente ao quarto. Esperei.

        Beberá bastante, mas não sentia nenhum efeito. O uísque tinha sabor de água. Fiquei rezando por uns momentos. O médico chegou. Acendeu um cigarro e observou-me com hostilidade.

        —  Posso ir até ela?

        —  Sim.

        —  Está fora de perigo?

        —  Está.

        —  E o que houve?

        —  Ela jamais poderá ter uma criança novamente — disse e deu-me as costas. Passei então a odiá-lo também. Fui até onde estava Margaret. Estava deitada, num quarto simples e claro, e parecia como se tivesse envelhecido uns vinte anos. Deu o mesmo sorriso tradicional de madona, que de perfil lhe ficava muito bem, e disse:

        —  Não se importe com isso, querido.

        Caminhei até ela e fiquei de joelhos. Pousei minha cabeça sobre seu peito.

        —  Perdoe-me — sussurrei.

        —  Perdôo — disse ela, tranqüila. Levantei os olhos.

        Margaret sorria.

       

        Ao ler o que escrevi até agora, surpreende-me o fato de haver deixado de falar a respeito de meu estado de ânimo naquele primeiro dia da clínica, a respeito de meus pensamentos e de minha disposição face à possibilidade de um tumor no cérebro e da operação conseqüente. Essa omissão talvez se explique pela circunstância de que naqueles momentos todos, em virtude da urgência em ocupar-me das visitas que mencionei e das novidades de que fui informado, não tivera até o anoitecer sequer folga para me ocupar com mais atenção de minha estranha doença. A oportunidade só se me apresentou quando desceu a escuridão. Provavelmente tive momentos de depressão e de um crescente estado de irritação relacionados com minha incapacidade de encontrar determinadas palavras ou, então, de pronunciá-las; no entanto, de modo geral me tornei, ainda, presa dos eventos que se sucederam à minha volta. Apenas com a progressão do exame é que fui perdendo meu interesse por eles e, num crescendo, fui-me isolando mais e mais em meditações e lucubrações a respeito do futuro e de meu destino.

        Após o telefonema de Margaret, minha dor de cabeça recrudesceu. O culpado pode ter sido o uísque, que eu tomara apressadamente. Apertei a campainha, pois queria pedir à enfermeira que me trouxesse um remédio; contudo, por alguma razão, este sinal, e um segundo, que o seguiu, ficou sem resposta. Acendi a lâmpada ao lado da cama e levantei-me para sair até o corredor. Era a primeira vez, nesse dia, que me levantava, e tive a impressão de estar pisando sobre nuvens, como se todos os objetos se estivessem afastando de mim de forma estranha, como se recuassem à minha passagem, ou o chão se movesse como o de um navio jogando em alto-mar. Senti vertigens e, finalmente, ao chegar até a porta, agarrei-me, tonto, na maçaneta. Por meio metro eu teria caído. Que teria sido isso? Apenas fraqueza. Qual seria realmente a extensão de minha doença? Que se passava comigo? Quando é que pensariam em me dizer o que era? Afinal, quando viriam os médicos? Pela primeira vez senti pânico, e como ele sobrevinha. Passei a suar muito. Respirava com certa violência, na esperança de que a tonteira desaparecesse. Mas ela não se ia, e só o balanço do assoalho é que se amainou um pouco. O braço direito voltou a doer. Oh, Senhor, onde estavam os médicos?

        Do lado de fora, apertaram a maçaneta para baixo. Afastei-me da porta, que se abriu deixando aparecer o Dr. Eulenglas. Acompanhava-o um homenzinho gordo vestido em uma bata branca. Parecia um esperto bookmaker — ladino, inescrupuloso e cínico. Apenas as mãos o denunciavam como médico. Era o Prof. Vogt.

        Eulenglas apresentou-nos e foi apanhar um remédio, depois de eu lhe haver comunicado o motivo que me fizera levantar. Vogt conduziu-me de volta à cama.

        —  É melhor o senhor se mover o mínimo por enquanto — falou. Sua voz parecia a de um eunuco. Alta, cantante e feminina. Um médico muito esquisito, pensei. Sentou-se ao meu lado e da bata tirou um estetoscópio. — O senhor poderia tirar o paletó, Mr. Chandler? — Fiz isso e ele começou a me auscultar. Seus dedos eram duros e quentes.

        — Respire fundo — disse, enquanto continuava —, respire bem fundo, isso... Pare agora, por favor... E agora, de novo, respire fundo, isso...

        —  Ele me examinava, conscienciosamente e rápido. Olhou-me no pescoço, apalpou com os dedos as glândulas e testou meus reflexos com um pequeno martelo prateado. Depois olhou cara dentro de meus olhos e me pediu para virá-los. — Um exame geral minucioso far-lhe-á muito bem, Mr. Chandler. Eu já o prometera a sua esposa. Amanhã cedo iremos imediatamente para o laboratório oftalmológico.

        —  O senhor acha que eu... que tenho...

        —  Sim? — Fitou-me com uns olhinhos astutos, calmamente.

        —  .. .que eu tenho um tumor? Sorriu amavelmente:

        —  Meu caro amigo, crê que poderia fazer um roteiro de minha vida?

        —  Isso não sei, Sr. professor. Para escrevê-lo, conheço muito pouco sobre sua vida.

        —  Veja então — disse ele. — E eu também conheço bem pouco seu organismo para saber se o senhor tem um tumor. Portanto, vai precisar de me dar um pouco de tempo ainda.

        Eulenglas chegou com um remédio, que eu engolia enquanto descrevia a Vogt novamente os sintomas que até então sentira, os quais seu colega já conhecia.

        —  Ah, é isso — constatou ele, quando lhe contei sobre minhas dificuldades esporádicas de exprimir-me —, então uma ou outra palavra o senhor não recorda.

        —  É.

        —  Que palavras? Certas palavras?

        —  Não. Vem tudo de repente. Qualquer palavra. Tirou um lápis do bolso.

        —  O que é isso? — perguntou e eu respondi. Apontou para um quadro e perguntou novamente. Depois do quarto objeto, que ele foi designando da mesma forma, minha expressão deve ter-se alterado, pois ele me perguntou o que eu estava sentindo.

        —  Não é nada. Só estou assustado.

        —  Como quê?

        —  Com... com esse interrogatório. Na verdade, dá quase a impressão de que estou maluco.

        —  Não diga tolices, Mr. Chandler — falou ele, austero, com um grunhido, sua voz quase me provocando o riso —, e contenha-se. Não há motivo para tais impressões. — Olhou-me. Seus olhos de repente se tornaram autoritários e rígidos. Minha compulsão a rir esvaiu-se.

        —  É certo, Sr. professor. — Continuou perguntando. Então, deu-se por satisfeito. Tirou uma chave e me mostrou.

        —  Que é isto?

        —  Um ch... uma chuf... uma chap... — Eu suava, senti pulsações violentas nas têmporas, furiosas; quase rompendo em lágrimas. Meu peito arfava. Tentei novamente. Era incapaz de pronunciar a palavra "chave".

        —  Mas o senhor sabe o que a gente faz com esse objeto?

        —  Sei.

        —  O que se faz com ele?

        —  A gente faz... fa... — Vi Eulenglas escrevendo alguma coisa num bloco, que ele colocou no bolso.

        —  Feg... — De nervosismo, senti os olhos umedecerem-se. — Não sou capaz de dizer, mas sei o que a gente faz com isso.

        —  Mostre-nos, Mr. Chandler — falou, gentilmente. Peguei a chave e fiz o gesto de fechar.

        —  Muito obrigado — concluiu. — Foi esplêndido. Isso mesmo, a gente fecha com a chave. — Ele disse a frase lentamente.

        —  A gente fecha com a chave — repeti, sentindo alívio infinito. Cheguei a sorrir. — Eu sabia, professor, mas não conseguia dizer a palavra.

        —  O senhor está com fome?

        —  Não.

        —  O remédio já está surtindo efeito?

        —  Um pouco.

        Vogt ergueu o tronco. — Procure dormir bem, para estar bem disposto amanhã. E não enfie preocupações na cabeça. Não existe o menor motivo, absolutamente, antes de encontrarmos alguma coisa. — Entendeu-me sua mão seca e cálida. — Boa noite, Mr. Chandler.

        —  Boa noite, senhores — disse-lhes. Eulenglas também se despediu e acompanhou seu chefe. Estava novamente só.

        Parafasias literais, pensei. O nome soava pomposo. Iria incluir a expressão em meu vocabulário e excitar com ela meus conhecidos e amigos, depois de sair daqui.

        —  Collins era meu sucessor em Um Grito no Escuro. Ele produziria uma parafasia literal.

        Soava mordaz, cáustico. Principalmente se ninguém sabia de que assunto se falava. De manhã cedo eu iria ao oftalmologista. Para que o oftalmologista? Que relação teria tudo isso com meus olhos? E se alguma coisa tivesse a ver com meus olhos, será que iriam ser afetados? Talvez estivesse correndo o risco de ficar cego? Ou demente? Ou cego e também doente?

        Foi esse o começo dessa primeira noite. Não acreditava mais que iria chegar ao fim dela. O pedido do Prof. Vogt para procurar dormir bem, infelizmente não conseguia satisfazê-lo. Sequer também dormi mal. Aconteceu que não dormi absolutamente. Deitado, fiquei pensando sobre minha enfermidade, da qual ninguém sabia nada ainda. Imaginei suas conseqüências. Havia de tudo para imaginar. Eu era dotado de muita fantasia.

        Sempre tive muita fantasia. Por essa razão é que, também, sempre senti grande compaixão pelos indivíduos de minha natureza. Quando alguém possui demasiada fantasia, já não é mais capaz de possuir uma série de outras qualidades, tais como coragem. Fantasia e coragem são incompatíveis uma com a outra. Uma exclui a outra. Aquele que, em virtude de sua fantasia, é capaz de fazer uma idéia completa, global, do futuro, de um perigo ou de uma situação em todas as suas possibilidades, deixa de ter competência para enfrentar qualquer dessas condições. Corajosos são apenas os indivíduos desprovidos de dom da imaginação. Eles ignoram tudo que lhes possa acontecer, não conseguem imaginar o que quer que seja. Os grandes heróis, invariavelmente, foram naturezas menos complexas, tipos mais simples. E os maiores covardes, por conseguinte, provavelmente os intelectuais. Sempre invejei os de natureza simples. Acham tudo mais fácil. Inclusive, caem cada vez mais no agrado de todos. Na verdade é uma injustiça considerar as coisas nessa ordem.

        Quando, finalmente, mergulhei em um sonho, confuso e angustioso, eram cinco horas, e no jardim lá fora os passarinhos já estavam cantando. Menos de duas horas depois uma enfermeira já estava me despertando. Era pálida, jovem e apalermada.

        —  O desjejum, Mr. Chandler. — Pôs a bandeja adiante de mim. Sentei-me. Já não sentia mais tonteira e a cabeça doía pouco.

        —  Será que a senhora não podia me deixar dormir mais um pouco?

        —  Sinto muito, Mr. Chandler. Dr. Eulenglas foi quem mandou. Seu exame começa às oito horas.

        —  Então, paciência.

        —  O segundo remédio fez efeito? Olhei para ela, sem entender.

        —  Que segundo remédio?

        —  Que lhe dei.

        —  Quando?

        —  Há duas horas atrás, Mr. Chandler. — Ficou explicado que, antes de amanhecer, eu a chamara pela campainha e lhe pedira, quando chegou, para trazer-me ainda algum remédio para minha dor de cabeça. Por mais que eu quisesse, não conseguia lembrar-me disso. Como tudo aquilo era desagradável, pensei, enquanto sorvia o café quente. Também passara a me esquecer de acontecimentos.

        —  Talvez o senhor ainda não estivesse totalmente desperto, Mr. Chandler — disse a enfermeira. — O senhor teve um sono muito inquieto, fiquei sentada junto a sua cama por algum tempo.

        —  Ah!

        —  O senhor gritou e falou durante o sono.

        —  Mesmo? — Agora me pergunto se era preciso ouvir coisas desse tipo em um sanatório particular. — Falei sobre o quê?

        —  O senhor mencionava sempre um homem... um senhor. — A jovem parecia ser das montanhas da Baviera, tinha um sotaque muito forte.

        —  Como se chamava o senhor?

        —  Acho que era Hiob — disse-me.

        Tratava-se de uma enfermeira muito boba e ignorante.

       

        Às sete e quarenta e cinco fizeram-me a barba, lavaram-me e vestiram-me. Sentia-me muito bem disposto. O chão não oscilava mais, as tonteiras haviam cedido, a dor de cabeça mínima. Às oito Margaret telefonou para dizer-me que viria à tarde. Fidelio havia sido fantástico. E os Baxters mandavam recomendações. Às oito e dez apareceu Eulenglas com Vogt. Vogt não estava com a bata branca, presumo que por motivos psicológicos. Queriam dar-me a impressão de um exame rápido, descontraído e passageiro. E realmente a tive, no início. Caminhamos por longos corredores brancos, fumando e conversando, até chegarmos a uma porta sobre a qual estava escrito "Laboratório I". Era um laboratório de radiologia.

        — Antes de tudo, veremos o cérebro — falou Vogt. No laboratório estava um assistente. Eulenglas foi quem me fez o exame, Vogt ficou parado ao lado, olhando apenas. Puseram-me à frente dos aparelhos, a sala escureceu-se, tubos zumbiam, e Vogt desapareceu com Eulenglas por trás do anteparo das telas radiográficas. Trocaram algumas palavras incompreensíveis, em seu jargão científico, e bateram duas chapas de minha cabeça.

        —  Os senhores viram alguma coisa? — perguntei, tão logo deixaram que eu me mexesse novamente. O assistente desaparecera com os filmes expostos à luz. Vogt sacudiu a cabeça.

        —  Não — disse ele. Respirei aliviado.

        —  Graças a Deus, então já posso ir embora.

        —  Ainda não terminamos.

        —  Mas se os senhores não viram nada!

        —  Que deveríamos ter visto?

        —  Ora, o tumor — falei. Sorriu, conduzindo-me até uma porta que se abria para uma sala contígua.

        —  O senhor imagina que as coisas são um tanto quanto simples, Mr. Chandler.

        —  Porquê?

        —  Porque em uma chapa de raios X jamais se vê um tumor.

        — Não? — De repente, senti-me novamente miserável e cansado. Estremeci de frio.

        —  Não, pois ele é formado de carne, como o resto do cérebro. Calei-me, confuso. Vim saber, então, o que é que me confundia.

        —  Para que então os senhores me radiografaram?

        — Por outras razões, Mr. Chandler. Queremos ficar familiarizados com sua cabeça, verificar a sua pressão cerebral...

        —  E como é a pressão cerebral? Fitou-me, um pouco nervoso. Nesse meio tempo já havíamos entrado na saleta ao lado, que tinha o aspecto de um consultório BI             de oculista.

        —  Mr. Chandler, por favor, o senhor não deve ficar impaciente.

        —  Não estou impaciente.

        —  Como também tão curioso, por favor.

        —  Apenas queria saber...

        —  Sem dúvida, sem dúvida — disse Eulenglas, respondendo ao olhar de seu chefe —, dê-nos mais um pouco de tempo, Mr. Chandler. Em breve poderemos dizer-lhe o que há. — Levou-me até uma cadeira, o aposento ficou novamente às escuras e ele então passou a examinar meus olhos.

        —  Que é isso? — perguntei-lhe, apontando para um aparelho que apanhou na mão.

        —  Um oftalmoscópio.

        —  E o senhor o que faz com ele? — Eulenglas olhou para Vogt. Vogt suspirou.

        —  Meus senhores — retruquei —, não fiquem zangados com minha curiosidade. Mas estou nervoso, e, afinal, é meu cérebro que estão examinando. Sei que os senhores não estão tão nervosos, mas eu sim. Pois, se há aqui algum doente, sou eu o doente, é o meu ta... meu toma... — Sufocava-me. Senti, pairando em mim, em ondas poderosas, a depressão histérica. Eu não podia pronunciar a palavra "tumor", só chegava até certo ponto, novamente. — Meu to... to... —' Gaguejava, desajeitado, tinha a impressão de que não podia mais abrir a boca para terminar a palavra. — Bolas, me ajudem! — gritei. — Falem a palavra para mim!

        —  Seu tumor — disse Eulenglas. Vogt não disse nada. Não olhou para mim. Achei que me detestava. Um pobre covarde, rico e histérico, que ele tinha de agüentar com seus caprichos.

        —  Sinto muito — falei. — Não vou mais amolar os senhores. É porque sou uma pessoa cheia de fantasias. — Em seguida, fiquei calado durante certo tempo. Numa fração de segundo os dois médicos me pareceram extremamente detestáveis. Cabe-me acrescentar que tive igual impressão de que eu também lhes era extremamente detestável. Eulenglas deslocava para cá e para lá o oftalmoscópio à frente de meu rosto, pedindo-me para olhar para cima, para baixo, para a direita e para a esquerda. De vez em quando o raio de alguma fonte luminosa escondida, que talvez estivesse localizada em algum lugar dentro do espelho, atingia-me no meio do olho, cegando-me de forma bastante incômoda. Parecia ser uma fonte de luz muito clara, o mistério é que eu não podia vê-la.

        —  Hum — articulou Eulenglas, uns instantes após. Levantou-se, então, e entregou o instrumento a seu chefe. Recomeçavam o exame, e dessa vez foi Vogt que me exortou a olhar para cima, para baixo, para a direita e para a esquerda. Aproximava seu rosto do meu, a poucos centímetros de distância, e continuava olhando invariavelmente dentro de meus olhos. Detinha-se mais vezes em meu olho esquerdo, ocupando-se dele com mais intensidade. Ele devia ter comido alguma coisa no café da manhã que continha alho. Finalmente, levantou-se e confabulou com Eulenglas. De tudo que ouvi da conversa, ficaram retidas apenas três palavras em minha mente: "papila de congestão". Gravei-as, a fim de, posteriormente, procurar em um dicionário o seu significado. Dois minutos depois Eulenglas virou-se para mim e me ofereceu um cigarro.

        —  Obrigado — disse eu. Fumamos os três. Tive a sensação de que essa atenciosidade de Eulenglas era mau sinal. Parecia que havia encontrado alguma coisa em meus olhos, e que era da opinião de que eu merecia um cigarro. Contudo, trinquei os dentes e calei-me. Eu não voltaria a perguntar! Vogt, após fazer algumas anotações, de súbito olhou para mim, amistoso.

        —  Obrigado — disse-me, sorrindo.

        —  Porquê?

        —  Por não ter perguntado novamente.

        —  Oh, por favor — falei.

        —  Como se sente?

        — Bem. — Desejaria ser amaldiçoado, caso houvesse perguntado.

        — Continua, ainda, cedo demais para se fazer alguma constatação. — Vogt apagou seu cigarro no cinzeiro. — Determinados indícios revelam que seu cérebro está irritado. — Ao dizer isso, olhou-me fixo nos olhos, a fim de verificar o efeito dessa explicação sobre o neurastênico intelectual James Elroy Chandler, o covarde histérico: provavelmente ele teria gostado de ver-me transido de susto. Todavia não me assustei. Não lhe dei esse prazer.

        —  Paciência— disse eu, e sorria divertido. Pelo menos, esperava que aquele fosse um sorriso divertido.

        —  Para termos garantia, agora faremos rapidamente, ainda, um eletroencefalograma — disse Eulenglas.

        —  É preciso ser imediatamente?

        —  O senhor estaria de acordo?

        —  Estou de acordo com tudo — falei e voltei a sorrir com ar divertido . Eles precisavam conhecer-me.

       

        O posto onde se faziam os eletroencefalogramas ficava no subsolo e se compunha de três grandes salas. Na primeira delas, uma jovem médica estava sentada junto à janela, tomando café. Tinha estatura bem avantajada, cabelos negros com uma madeixa tingida de branco e usava uns óculos modernos, de aros largos. Era muito míope, os aros das lentes em tom de prata, cintilantes.

        —  Bom dia, Dra. Reuter — disse Eulenglas. — Este é Mr. Chandler. — Estendi a mão para ela. Ela sorriu, descobrindo seus fortes dentes.

        —  Vi seu último filme, Mr. Chandler.

        —  Qual? — Mencionou um filme para o qual eu havia, há uns seis anos atrás, escrito um roteiro, uma comédia conjugai para Katherine Hepburn.

        —  Não foi meu último filme.

        —  Mas só agora começou a passar na Alemanha. Sentei-me numa cadeira que ela empurrara para mim.

        —  A senhora gostou?

        —  Achei horrível — respondeu, e manipulava todo tipo de instrumento técnico.

        —  O que, aliás, realmente não importa — expliquei, sorrindo amigavelmente em sua direção. Ela também sorria enquanto se aproximava de mim. Na mão segurava uma larga e grossa atadura de borracha.

        —  Por favor, feche a boca, Mr. Chandler. Fechei a boca.

        Firmou a bandagem por baixo de meu queixo e começou a girá-la para cima, a fim de poder passá-la por cima de meus cabelos. Eulenglas e seu chefe já haviam começado a falar um com o outro em voz baixa e prosseguiram caminhando devagar até a sala contígua.

        —  Faça pressão contra — pediu a Dra. Reuter. Fiz pressão. Ela então esticou e puxou a atadura, comprimindo-me no alto da cabeça. — Apóie firme a cabeça contra meu peito. — Ao fazê-lo, fechei os olhos. Meu nariz ficou enterrado entre seus seios. Podia sentir-lhes o odor. Cheiravam a algo saudável, fresco, jovial. Ela resistiu à pressão de meu rosto e eu, para não tombar da cadeira, tive que refrear o corpo na poltrona. Finalmente, a atadura deslizou-me por cima dos cabelos.

        —  Bom — disse ela, satisfeita. Na parede à minha frente havia um espelho. Olhei-me nele. Era como se eu estivesse com dor de dentes. Não conseguia mais falar, pois a atadura comprimia as mandíbulas uma de encontro à outra. A Dra. Reuter apanhara de uma mesa uma quantidade de fitas de metal, que estavam escondidas, e de novo se dirigiu até mim. Começou a adaptar as fitas ao redor de minha cabeça, aparafusando-as bem apertado. Uns minutos depois, por cima da cabeça foi, assim, surgindo uma espécie de jaula. De vez em quando apanhava um compasso esquisito e fazia medições. Como se as fitas de metal devessem ficar fixas em zonas preestabelecidas da cabeça. Enquanto operava dessa maneira, falava sem cessar. Contou-me todos os aspectos do filme que não lhe agradaram. Eram inúmeros e ela se exprimia com a maior franqueza. Achei um pouco descortês essa forma de crítica e apanhei então um lápis e um pedaço de papel.

        —  Não é correto — escrevi. — Não posso me defender. Ela riu satisfeita:

        —  Isto é o melhor da história! — Afastou-se novamente, indo juntar uma certa quantidade de tomadas e grampos, semelhantes aos fusos empregados na radiotecnia como toma-corrente. Acompanhei-a com o olhar. Logo atravessou-me um pensamento e de relance desviei os olhos. Pensei no que Jolanthe dissera. Olhei para as pernas da Dra. Reuter. Tinha lindas pernas.

        Começou a prender os grampos e as tomadas, com ajuda das fitas metálicas, em diversos pontos de minha cabeça, na zona do cérebro, antes passando, sempre, sobre ela um líquido transparente como água. Ao todo, prendeu dezenove grampos, contei-os pelo espelho. A cada grampo, fazia medições precisas com o compasso curvo. No final eu tinha o aspecto de um porco-espinho atado e embrulhado, havia grampos e fusos por todos os lados da cabeça, até nos ouvidos estavam fixados. Durante todo o tempo desses preparativos até o final, a Dra. Reuter não parou de falar. Foi meu propósito magoá-la quando comecei novamente a escrever:

        —  Receio que a senhora não goste de homens — escrevi. Dessa vez seu riso foi de alegre contentamento.

        —  Odeio homens — falou, e puxou, apertando um pouco mais ainda, as tarraxas do meu capacete metálico.

        —  Acho a senhora simpática — escrevi.

        —  Também o acho simpático — disse-me e bateu-me no ombro. Em seguida, levou-me para a sala vizinha, que parecia uma biblioteca — as paredes todas cobertas de estantes onde havia um sem-número de manuscritos de fina espessura — e, dela, para o terceiro aposento.

        Ali voltei a ver Eulenglas e Vogt, parados junto a uma mesa enorme mostrando um painel de controle, e olhava por cima do ombro de um jovem médico sentado junto à mesa. Em frente da mesa estava uma cama. Nela havia um homem deitado, cuja cabeça estava atada de fios, exatamente como a minha. Dos fusos da cabeça partiam fios coloridos até uma caixinha fixada na cabeceira da cama; da caixinha um grosso cabo de borracha se alongava até a enorme mesa de controle onde estava o jovem médico. Este operava comutadores e botões.

        —  Abra os olhos! — disse ele.

        O paciente na cama abriu os olhos. Suava um pouco. Olhei-o detidamente, para ver se sentia dor, mas não dava impressão alguma.

        —  Feche os olhos — falou o jovem médico. O paciente voltou a fechar os olhos. Aproximei-me da mesa.

        Nela havia inúmeras lâmpadas, cabos para manejo e botões. Indistintamente sobre ela corria uma interminável tira de papel sobre a qual oito estiletes trêmulos desenhavam linhas tremulantes. O papel ia-se enrolando automaticamente em um bloco. Para mim as oito linhas pareciam todas iguais.

        O jovem médico girou o comutador que operava e os estiletes começaram a tremer mudando de ritmo.

        —  Respire fundo — disse o médico. — Respire depressa e fundo, por favor.

        Na cama, o homem começou a respirar depressa e profundamente.

        —  Talvez o senhor sinta vertigem e também suas mãos fiquem entorpecidas — explicou, insensível, o jovem médico —, mas isso passa logo.

        O homem aquiesceu com um sinal de cabeça e apressou a respiração. Os oito estiletes vermelhos tremiam sobre o papel que não acabava. Olhei com mais atenção para a colossal aparelhagem. Sobre a chapa frontal notei uma pequena placa, onde se lia: "Tipo D Eletroencefalógrafo". E abaixo: "Offner Electronics Inc., Chicago". Era ridículo, mas a plaqueta me tranqüilizou.

        —  Essa placa o tranqüiliza, não é verdade? — perguntou Vogt, que se aproximara de mim, dizendo-o em um sussurro. Concordei com a cabeça. — Não posso falar em voz alta — continuou em um murmúrio —, do contrário iria afetar os impulsos de nosso paciente. — De novo sacudi a cabeça. — Este aparelho — sussurrou — intensifica as correntes elétricas emitidas pelo cérebro, ampliando-as dez milhões de vezes. Aliás o cérebro emite diferentes correntes, sabia? Correntes de intensidade trinta vezes menor do que um milionésimo de volt. No mundo inteiro, chegamos a um acordo a respeito, fazendo comparações, em dezenove locais diferentes nos quais examinamos essas correntes, e confrontando as observações conseguimos tirar determinadas conclusões sobre as condições no interior do cérebro.

        Balancei a cabeça.

        Apanhei então o lápis de Frau Doktor Reuter, antipatizante dos homens, e escrevi em um pedaço de papel: "Obrigado."

        —  Porquê? — perguntou ele.

        —  Pela explicação — escrevi. Ele sorriu.

        Cinco minutos depois haviam terminado com o homem na cama, o qual se levantou. Ocupei seu lugar e, agora, experimentava o tratamento cujo processo havia acompanhado. A Dra. Reuter acoplou os dezenove fusos sobre minha cabeça nos dezenove cabos da tomada, na extremidade anterior da cama. Os aparelhos começaram a zunir e os oito estiletes vermelhos a tremer. Vogt e Eulenglas estavam de pé ao lado do jovem e observavam as linhas no papel em movimento.

        —  Abra os olhos — disse o jovem médico. Abri os olhos.

        —  Feche os olhos.

        Então fechei de novo os olhos.

        Rotina, pensei, só rotina, também aqui, aliás como em todo lugar. Um jovem que examina cabeças. Cabeças humanas onde se comprimem desejos, pensamentos, paixões, morte e vida, carregando olhos que vêem e ouvidos que escutam e bocas que falam e narizes que cheiram. Uma cabeça em trinta minutos. Numa jornada de oito horas de trabalho com uma hora de intervalo para o almoço, perfaz quatorze cabeças. Oitenta e quatro cabeças em uma semana. Num mês, quatro vezes mais isso, portanto trezentas e trinta e seis cabeças . E em um ano...

        —  Agora vou lançar um feixe luminoso sobre sua cabeça — esclareceu o médico. — Quando eu disser "já!", o senhor abra os olhos. E quando disser "pronto!", feche-os! — Trouxe uma lâmpada com luz extremamente forte acima de minha cabeça, voltou para a mesa e novamente ligou suas alavancas.

        —  Já! — disse ele.

        Abri os olhos e olhei para dentro da luz, que me cegava dolorosamente.

        —  Pronto! — concluiu. Voltei a fechar os olhos.

        — Por favor, durante quatro minutos respire fundo e uniformemente. Talvez sinta alguma vertigem e é possível que suas mãos fiquem dormentes, mas isso passa.

        Respirei fundo e com regularidade. O aparelho zumbia. De um modo misterioso, ininteligível e complicado para mim, as correntes emitidas pelo meu cérebro da mesma forma misteriosa, ininteligível e complicada, eram intensificadas dez milhões de vezes e transformadas em linhas trêmulas sobre papel branco. Que foi mesmo que eu havia escrito? Uma história sobre desentendimentos de um casal, na trama uma conotação humorística para Katherine Hepburn. Por que jamais escrevi uma história sobre esse jovem médico com suas trezentas e trinta e seis cabeças humanas por mês? Ou seja, com suas quatro mil e trinta e duas cabeças por ano. Não, estava errado, ele saía de férias por quatro semanas. Seriam então quatro mil e trinta e duas menos trezentas e trinta e seis — três mil seiscentas e noventa e seis cabeças por ano, abatendo os feriados oficiais e os principais feriados cristãos.

        —  Respire mais fundo, Mr. Chandler, por favor!

        Respirei mais fundo. A Dra. Reuter, à frente, sorria. Parecia sentir muito prazer com o que via. Via que eu transpirava. Sentia indisposição e tonteira. À minha volta tudo girava. A Dra. Reuter sentou-se à beira da cama e cruzou as lindas pernas. Também as lindas pernas giravam.

        —  Respire mais fundo, Mr. Chandler.

        Respirei mais fundo. Na verdade, quanto tempo duravam quatro minutos?

        —  Está sentindo tonteiras? — perguntou a Dra. Reuter. Acenei com a cabeça que sentia.

        Inclinou-se para trás e ergueu o torso.

        Continuei respirando, era uma tonteira só e muito enjôo, minhas mãos adormeciam; por fim, no entanto, tudo terminou, deixaram-me levantar e a Dra. Reuter livrou-me dos grampos da cabeça. Vogt e Eulenglas, juntos, se acercaram, enquanto ela me retirava as fitas de metal. Eulenglas tinhas nas mãos um grosso maço de papel — os registros sismográficos das minhas correntes cerebrais. Senti-me indisposto e cansado.

        —  Agora, o que vai acontecer? — perguntei.

        —  O senhor vai almoçar — respondeu Vogt, amável.

        —  E o diagnóstico?

        —  Temos que verificar o diagrama primeiro, Mr. Chandler. A tarde o senhor terá nossa resposta.

        —  Ótimo — falei. — Um bom dia, Frau Doktor! Ela me estendeu a mão.

        —  Passe bem, Mr. Chandler. Gostei muito de vê-lo, foi um prazer.

        —  Percebi — disse-lhe, e rimos os dois. E saí, caminhando pelos compridos corredores brancos, subindo muitos degraus, até chegar em meu quarto. Estava exausto e a cabeça voltou a doer, mas agora a dor vinha de fora, das zonas sobre as quais as tiras de metal haviam feito pressão. Alcancei a porta do quarto e abri-a.

        Sentada na cama, estava Jolanthe.

        No jardim, os passarinhos continuavam cantando, brilhava o sol, nos arredores, em algum lugar, começaram a soar os sinos do meio-dia, e na cama estava sentada Jolanthe. Estava com um vestido verde e brilhante, com um cinto de verniz preto. O vestido modelava seu corpo, tornava-o provocante; estava sem chapéu. Os cabelos rubros caíam-lhe pelos ombros. Tinha uma expressão de desagrado, os olhos sombrios. Levantou-se quando entrei.

        —  Vá embora — disse-lhe.

        Sacudiu a cabeça e caminhou em minha direção.

        —  Eu proibi você de vir aqui.

        — Eu precisava vir — articulou com voz rouca. Já se havia acercado de mim e pôs as mãos em meus ombros. Recuei até a porta, mas ela me seguiu. Parou bem à minha frente.

        —  Por que precisava vir?

        —  Porque amo você.

        Ri: — Desde quando?

        —  Desde hoje — falou, baixinho, Jolanthe. Estava tão próxima que senti seu hálito de encontro a minha face.

        —  Estive com Clayton e li um telegrama.

        —  Que telegrama? — perguntei, apesar de saber o que era.

        —  Um telegrama de Halloran. Calei-me.

        Ela me abraçou e senti seu corpo colado ao meu.

        —  Seu script não vale nada — disse ela —, não é verdade?

        —  Sim — assenti.

        —  Foi recusado por eles?

        —  Foi.

        —  Você está demitido?

        —  Sim, Jolanthe.

        Seus cabelos, os olhos, os lábios, o cheiro de sua pele...

        —  Pressenti — falou —, por isso vim até aqui.

        —  Por que de repente se deu conta de que me ama?

        —  É.

        —  Assim, sem mais nem menos?

        —  Sem mais nem menos.

        —  E aquilo que você disse...

        —  Esqueça. Sentia muita tonteira.

        —  E por que você me ama? — perguntei.

        —  Porque você falhou — redargüiu, séria. — Porque você não tem valor... exatamente como eu. Porque, Jimmy, somos tão parecidos um com o outro, ouviu?, porque compreendi que você é tão inútil e tão perdido como eu. Por isso é que amo você. — Fitei-a em silêncio. Ela respirava com dificuldade. — Me beije — falou.

        Beijei-a.

        Percebi que ela girava, às minhas costas, a chave do quarto, de modo que a porta ficou trancada; e senti o sangue brotar de um dos lábios quando ela o atravessou com os dentes.

        Sorvi o sangue. Um gosto quente e amargo.

       

        Vi Jolanthe pela primeira vez na casa de Joe Clayton.

        Ele alugara em Grünwald o segundo andar de uma villa, e quando cheguei a Munique, organizou uma pequena multidão em minha homenagem. Eu residia no hotel, mas já tinha o meu carro. Saí, então, com Margaret. Era um bonito, calmo, entardecer de primavera, e contrastando com um céu claro sobressaíam, escuras, as árvores da floresta de Grünwald.

        A villa ficava situada num grande jardim, de gramado emaranhado e capim crescido. Havia um pavilhão de cristal atrás da villa. Quando chegamos, os outros já estavam lá. Joe cordialmente nos cumprimentou e, em seguida, fui apresentado a mais ou menos uma dúzia de pessoas. Hellweg, o roteirista alemão, e alguns membros da equipe técnica do filme estavam entre eles. E Jolanthe. Ao lhe dar a mão, senti uma pontada nas costas e me assustei. No mesmo instante observei que ela também se assustou. Contemplei-a. Seus olhos, na direção de meu olhar, não tinham expressão. Desprendi a mão, de leve.

        —  Glad to meet you — disse a ela. Todos falavam apenas em inglês.

        — Likewise — falou, em tom sério. Trajava um vestido de noite, negro e colante, os cabelos vermelhos penteados para cima. Eu abria e fechava a mão direita. Ainda podia sentir a pressão de seus dedos. Sentia-a a noite inteira. Falei com outras pessoas e entrei em outro aposento. Ao voltar-me, vi Jolanthe. Seu olhar repousava em mim, sério, pensativo, um pouco sonolento. Meia hora depois ela era a única pessoa que eu conseguia ver.

        Foi contratada como minha secretária, já havia trabalhado, em duas ocasiões, com pessoal de cinema americano na Alemanha, falava inglês com fluência e era exímia datilografa e estenógrafa. Tudo isso Clayton me informou. Eu mal escutava. De propósito não olhava na direção onde supunha que ela estivesse. Mas, então, olhei. Lá estava ela, fitava-me nos olhos. Observei-a, ali parada, com seu vestido negro. Não era para ele que eu olhava. Via-a nua, a cada vez que olhava.

        Margaret desfrutou muito a noite. Hellweg era um homem simpático e amável e se deixou enredar, por ela, em uma conversa sobre a literatura européia contemporânea. Era este o tema predileto de Margaret. Havia terminado de ler 1984, de Orwell, e estava entusiasmada com o livro. Alguns dos presentes ainda não o conheciam. Margaret informava: — Um livro fantástico, podem crer! Oh, todos têm que ler! Original! Um grande poeta!

        —  Certamente — disse Hellweg. Falava devagar e com um forte sotaque, buscando as expressões corretas. — Mas receio que não tenha compreendido bem.

        —  Que quer dizer com isso? — perguntou Margaret. Seus olhos brilhavam e ela esvaziou o copo. Gostava de expor o seu lado intelectual. Enchi seu copo, novamente. Estávamos tomando coquetéis. Consumiam muita bebida. Um rádio tocava música baixinho.

        —  Os senhores sabem quem foi Coué? — perguntou, nesse momento, uma voz.

        Todos se voltaram.

        Jolanthe fizera a pergunta. Aproximara-se de nossa mesa e agora estava sentada no encosto de uma poltrona. Dava tragadas nervosas em seu cigarro, segurando o copo na mão. Olhei para ela. Via-a nua.

        —  Naturalmente — explicou Clayton. — Coué... bem, foi um médico francês que metia na cabeça de seus pacientes, tentando convencê-los, que eles imaginavam, apenas, as suas doenças... não estou certo?

        —  Certo — disse Hellweg. — Por que está se lembrando dele?

        —  Esse Coué — explicou Jolanthe — era um fanático. Quando os pacientes iam mal, não tolerava que seus colaboradores ou assistentes se exprimissem da mesma forma, também. Nesse ou naquele caso semelhante, seu pessoal não deveria dizer: o senhor X não se sente bem, mas dizer que o senhor X imagina que não está se sentindo bem.

        Um homem alto e moreno, de cara fechada, que escutara a conversa, falou:

        —  Certa vez as coisas chegaram a tal ponto que foi até preciso que se relatasse a Coué: o senhor X imagina ter falecido.

        Todos riram. Clayton foi quem riu mais alto. Bateu no ombro do homem e, voltando-se para todos, explicou:

        —  O Sr. Mordstein aconselha nossa companhia em questões que concernem a situações e condições tipicamente alemãs, visita as autoridades e repartições e resolve para nós assuntos bancários.

        —  Criado para todo serviço — falou o homem que se chamava Mordstein —, eu sou isso. — Olhou para Jolanthe. — Desculpe-me, interrompi sua conversa.

        Ela balançou a cabeça:

        —  Em absoluto, o senhor me tirou a palavra da boca. Como com o pobre senhor X, a nós todos na Europa, em especial, sucede o mesmo. O paciente Europa imagina estar morto.

        —  Bravo!—exclamou Hellweg.

        —  Receio não ter compreendido — disse Margaret.

        —  Você vem de um mundo diferente — respondeu Hellweg — e não vai entender muita coisa que vir e ouvir em nossa terra. Mas Fráulein Caspari tem razão — Hellweg continuava falando e eu era incapaz de acompanhá-lo. Estava vendo Jolanthe. De relance, tive a sensação do estar ficando embriagado, vertiginosa e horrivelmente. Embora eu me tivesse servido de muito pouco, subitamente tudo começou a girar à minha volta. Com um gesto mecânico acendi um cigarro e evitei olhar para Jolanthe.

        Quis prestar atenção em Hellweg.

        Não o ouvia.

        Olhei novamente para Jolanthe.

        E vi-a como todas as vezes quando olhava para ela — nua.

      

        Apagou o cigarro no cinzeiro, inclinou-se à frente e interceptou meu olhar. Olhos sérios, verdes e velados. Seu olhar prendeu o meu, como um imã, aferrou-se nele e não o deixando mais, e senti como a voz de Hellweg voltava a desaparecer em ondulações, para longe, como tudo ficava nublado e turvo, e a sala começava a girar em volta. Comprimi os dedos fechando-os sobre a mão. E então ouvi um ruído e senti uma pontada de dor. Havia quebrado o pé do copo que segurava na mão. Uma parte da taça jazia no chão. A bebida infiltrara-se pelo tapete, formando uma mancha escura.

        —  Desculpem — falei. Apanhei a taça.

        —  Sua mão!—exclamou Joe. Tinha um corte no polegar, esvaía-se sangue da ferida. Tirei um lenço do bolso.

        —  Vou trazer iodo!

        — Não se levante — disse-lhe. — Foi só um arranhão. — Jolanthe não disse nada. Dei-lhe as costas e curvei-me para frente a fim de escutar Hellweg. Após a interrupção que eu havia provocado, ele recomeçara a falar. — Numa atmosfera espiritual assim a juventude da Europa vai crescendo, numa atmosfera de desesperança. Os nossos intelectuais são os cronistas dessa desesperança. — Hellweg falava mais alto, ele parecia haver chegado, naquele ponto, a seu tema predileto. Os outros ouviam com atenção como ele ia formando de maneira lenta e prudente as suas frases em inglês. O rádio tocava Um Americano em Paris, de Gershwin. Mordstein preocupava-se em manter nossos copos sempre cheios. A luz do abajur era quente e amarela.  Numa atmosfera dessas cabia muito bem uma conversa a respeito do fim do mundo.

        Eu havia enganado Margaret com outras mulheres, muitas vezes. Ela sabia. E eu sabia que ela sabia. Jamais me esforçara particularmente em ocultar isso dela. Naquela noite, duas idéias circulavam em minha cabeça: eu sabia que ia traí-la com Jolanthe Caspari e, dessa vez, me esforçaria o máximo para esconder dela. Eu só ignorava uma coisa: por que desejava, agora, ocultar dela? O que dessa vez era diferente? Que coisa me oprimia? Pois alguma coisa me oprimira, não conseguia dizer o quê. Não me passava pela consciência. Sentia medo.

        —  Mas o senhor não está bebendo mesmo — asseverou alguém ao meu lado. Era Mordstein. Tinha na mão um jarro de vidro e sorria.

        —  Oh, estou sim. — Sorvi de um só trago o conteúdo do copo.

        —  Assim está melhor — falou, e encheu-o de novo. O coquetel, feito de gim, rum e suco de frutas, ardia levemente em contato com a língua. Olhei para Jolanthe. Não tirara os olhos de mim. Ergueu o copo e, por sua vez, também bebeu. Sorri de leve.

        Por um momento ela também sorriu.

        Pois bem, pensei.

        No entanto, sentia medo.

        —  Deixe o jarro aqui perto — pedi.

        —  Com prazer, sirva-se — disse Mordstein, e o pôs diante de mim. Jolanthe cruzou as pernas e retirou outro cigarro. Fiz menção de acender-lhe o cigarro, minha mão tremia como se eu estivesse padecendo convulsões. Olhou para a mão, depois olhou para mim, e voltou a olhar para a mão. Gostaria de tê-la esbofeteado. Finalmente, então, ela puxou-a para acender. Demorou tanto a fazê-lo, que o fósforo acabou por me queimar o dedo. Era um dos dedos da mão que eu havia enrolado com o lenço.

        Hellweg e Margaret prosseguiam em seus debates.

        — Para os comunistas — falou o roteirista alemão —, a literatura anticomunista do Ocidente é, com poucas exceções, a única prova triunfal da autenticidade do caminho em que eles se encontram, e da certeza da vitória definitiva para a qual estão se dirigindo. — Dito isso, Hellweg, então, também bebeu. Foi a primeira vez que bebeu nessa noite, e seu rosto estava vermelho. Pareceu que havia tocado num tema que muito o comovia. Provavelmente isso sucedia, na Alemanha, com todas as pessoas, eu também já notara esse fenômeno. Ninguém conseguia estar junto com alguém sem, de momento, um quarto de hora depois, já estar se vendo enredado num colóquio político de vida e de morte. Era uma mania, era uma epidemia, a Europa parecia estar morrendo asfixiada na política. Todo mundo precisava se ocupar de política, sempre, todos, sem exceção. Não, de fato Margaret não fazia idéia alguma deste continente. Nenhum de nós, chegados do outro lado do oceano, da paz e da fartura, não fazia idéia alguma.

        —  Como se está chegando a essa situação? — indagou, nesse instante, o bom e gordo Joe. Seu charuto estava apagado, e ele estava sentado em frente a Hellweg, como que sentado, já, à frente de seu procurador.

        —  É fácil de compreender — articulou o alemão. — Os horrores da guerra não foram tão horríveis assim. Podíamos superá-los e assim temos feito. Horrível foi a desilusão da paz. Vocês nos prometeram — e não somente a nós! — a paz, e também dignidade humana, livrar-nos do medo e da necessidade, a liberdade da palavra e do credo  assim por diante, não preciso continuar falando.

        —  Não — disse Mordstein —, por Deus que o senhor não precisava mesmo.

        —  Continue a conversa — falei.

        —  Se lhe apraz escutar, pois não! — Todos então já estavam um pouco tocados, inclusive o próprio Hellweg. — Pois bem, depois que acreditamos em tudo isso de vocês, "Voz da América" e Radiodifusão de Londres e Rádio de Moscou, depois que vocês, com essa paz de vocês, foram nossa última esperança, estamos então acabando mesmo de experimentá-la, essa sua paz. E vocês nos enganaram. E nos lograram com a mentira! Mal chegou a paz, e lá vinham voces novamente, caindo uns sobre os outros. Mal a paz ali estava e a gente teve de sentir o medo novamente, a gente, de um momento para outro, já se via seqüestrado, espancado, encarcerado. Até mesmo vocês, os aliados, se engalfinharam e preferiram se confraternizar com os velhos nazistas a continuar de mãos dadas com seus amigos da guerra. Nós não esquecemos o que Mr. Churchill disse.

        —  Que foi que ele disse?

        —  Ele disse: abatemos o porco errado. Clayton riu.

        —  Muito engraçado — disse Hellweg —, não é verdade? Clayton parou de rir.

        —  Portanto, você entende — falou Hellweg, bebendo um novo trago — por que na Europa tais livros são escritos, não é?

        —  Estou começando a compreender — disse Margaret.

        —  Ainda a isso se acresce o atormentado sentimento de se estar vivendo num sistema econômico superado e moribundo. Não é preciso ser comunista para saber que o capitalismo sem dúvida não será a reforma social do futuro. E apesar disso: a época dos aparelhos gêiger e falsos passaportes ainda não chegou! — Interrompeu-se, deu um sorriso jovial e disse: — Meu bom Deus, um boche típico, não é mesmo? Faz logo discursos. Peço-lhes desculpas.

        Aumentou o volume do rádio. Uma música para dançar inundou a sala.

        Hellweg levantou-se e dirigiu-se para onde estava Jolanthe. Perguntou:

        —  Shall we dance? — Soou um pouco estranho, pois ambos eram alemães.

        Jolanthe aceitou com um sinal de cabeça. Saiu dançando com ela.

        A concentração à volta da mesa havia-se dissolvido. Margaret dançava com Clayton. Os outros hóspedes os acompanharam. Fiquei para trás, a sós com Mordstein, olhando ambos para os dançarinos.

        —  Agora o senhor está sabendo a hora de fazer alguma coisa — falou Mordstein. Sua pele era excepcionalmente escura, notara isso apenas quando se achegou mais perto de mim. Trazia nos dedos vários anéis.

        —  É bastante informativo enxergar a situação com os olhos de alemão.

        Fitou-me com curiosidade.

        —  Que aconteceu?

        —  Nada, nada, Mr. Chandler. Por quê?

        —  O senhor está me olhando de uma forma tão esquisita.

        — Estava pensando como vocês, americanos, facilmente se deixam influenciar.

        Voltei-lhe as costas sem dar-lhe resposta.

        Jolanthe dançava com Hellweg. Sabia dançar bem. A cada passagem por mim, olhava-me nos olhos. E a cada vez eu sentia medo.

        Mordstein continuou falando:

        —  De fato vocês não sabem o que realmente está acontecendo. Acreditam que têm o poder e que nós, aqui na Alemanha, somos criaturas que lhes pertencem. Se ao menos vocês fizessem uma idéia! Mas não! Hellweg, e mais dez minutos de seu nebuloso discurso, são suficientes, e lá estão vocês na igreja. — E imitou a voz de Hellweg:

        — A época dos aparelhos gêiger e falsos passaportes ainda não chegou.

        — Bebeu um trago e riu satisfeito. — O senhor imagina o quanto já se ganha, por outro lado, na Alemanha, com aparelhos gêiger? E com bunkers, tanques blindados, radares?

        A dança terminara.

        Hellweg curvou-se um pouco rígido, muito alemão, diante de Jolanthe. Ela acenou com a cabeça em sua direção e afastou-se, dirigindo-se para a porta. Ali se deteve e voltou-se. Seus olhos eram sombrios, profundos e perigosos. Respondi a seu olhar. Clayton e Margaret passaram, conversando, para a sala ao lado.

        —  E quanto ao que se refere aos falsos passaportes, para os quais imaginam que a época ainda não chegou... quem sabe, um dia o senhor vai precisar de um, Mr. Chandler?

        —  Não preciso de nenhum.

        —  Quem poderá dizer? Algum dia talvez se chegue lá. E então, quem irá ajudar? Para onde então o senhor se voltará? Não tenha receio, Mr. Chandler, se as coisas chegarem a esse ponto. Simplesmente, procure esse bom e velho camarada Mordstein. Vamos querer ver o que se pode fazer por um irmão americano...

        Jolanthe deu as costas e deixou a sala. Levantei-me; agora eu estava realmente embriagado.

        —  Desculpe-me!

        — Mas claro — falou, com um ar de satisfação, Mordstein e encheu seu copo. Caminhei para a porta. Minha vontade não me deixava andar. As pernas me levavam automaticamente. Vi Jolanthe à minha frente. Jolanthe, que já não estava mais ali. O rádio continuou tocando música para dançar. Passei para o hall de entrada.

        Uma escada de madeira levava até a porta da casa.

        Ouvi a porta fechando-se.

        Dirigi-me para a escada, passando por uma espécie de vestiário. A porta de entrada abriu-se sem ruído. Saí para o jardim, que estava inundado da luz irreal e clara da luz cheia já aparecendo por cima das árvores. Tudo estava muito calmo e fazia calor. De repente minha cabeça começou a doer e meus olhos a enxergar mal.

        A minha frente, um vulto se mexeu dirigindo-se para o pavilhão de cristal.

        Segui atrás.

        Alcancei-o junto ao pavilhão.

        Era Jolanthe.

        Entrou no pavilhão descendo os dois degraus de pedra; pela janela brilhava a luz da lua. Dentro havia uma mesa, instrumentos de jardinagem e alguns vasinhos de plantas. No centro, um velho sofá, já rasgado.

        Jolanthe foi andando até o sofá.

        Não dissemos uma palavra.

        Tomei-a nos braços, atraindo-a junto de mim e beijei-a. Ela própria desceu de leve o vestido pelos ombros e então afundamos no sujo divã. Nossas mãos, unidas, fizeram o mesmo movimento. A luz da lua, o rosto de Jolanthe estava todo branco, os zigomas, bem marcados, sobressaíam, e os olhos encravados em fundas órbitas: A boca dava a impressão de uma grande ferida. Os seios eram duas manchas na láctea atmosfera crepuscular.

        Sua respiração estava ofegante, mas ela não disse nada.

        Também calei-me. Escutei-a gemer. Minhas mãos a seguravam por baixo dos ombros, eu a apertava de encontro ao corpo quando ouvi um zunido baixinho que, numa rapidez frenética, aumentou de volume mudando-se em um bramido insuportável. Uma formação de caças a jato americanos, em exercícios noturnos, passava veloz em vôo rasante por cima do jardim.

        O chão estremeceu. Um vaso de flores revirou-se. O clangor crescia cada vez mais e, por último, ressoou como se as máquinas estivessem irrompendo pelo pavilhão. Pensei que todos os meus sentidos se perdiam, tamanha a excitação e o medo. No mesmo momento Jolanthe cravou com furor os dentes em meus lábios. Dei um grito angustioso. Senti o sangue escorrer-me para dentro da boca, o gosto quente e amargo.

      

        —  O que dizem os médicos?

        Era meia hora mais tarde. Jolanthe estava deitada, o corpo estendido em minha cama, no hospital e o sol entrava pelo quarto.

        Ninguém nos incomodara. Sentia-me pesado, exausto, indisposto.

        —  O exame apenas começou.

        Estava sentado na beirada da cama e a contemplava refletidamente. Seus cabelos se espalhavam por sobre o travesseiro, as roupas que ela despira com a maior pressa jaziam em desordem no assoalho. Seu peito movia-se, em ritmo regular, para baixo e para cima, respirava profundamente. Por que permitira que ficasse? Por que voltávamos sempre a nos atirar um sobre o outro, como animais, depois de passarmos alguns dias sem nos vermos? Por que não nos desprendíamos um do outro? O que nos atava?

        —  Em que você está pensando? — perguntou-me, preguiçosa e apanhou um cigarro.

        — Nada de especial. — Tirei o cigarro de sua mão. — Ande, vista-se, peço-lhe. A qualquer momento alguém pode entrar. — Sem uma palavra, aquiesceu e ergueu-se. Com a maior despreocupação apanhou suas roupas. Possuía uma naturalidade animal, não havia situação em que se sentisse reprimida ou embaraçada. Caminhou até a janela, que estava aberta, ainda abotoando a blusa.

        —  Você está louca?

        —  Por quê? — Voltou a cabeça, admirada.

        —  Afaste-se da janela! Alguém pode ver você.

        —  E daí?

        —  Não é absolutamente necessário. E logo aqui!

        —  Logo aqui não — falou, e começou um riso que ressoou pelo quarto. Ela parecia achar a coisa muito cômica. E ria sem parar.

        —  Não ria — falei. Eu próprio, porém, já me encontrava rindo, também, um riso incontrolável, meio histérico. Jolanthe tinha toda razão. Por que justamente aqui não? Comparando-se, era um local respeitável, se levado em consideração os lugares e as oportunidades nos quais nos havíamos amado. Na mata, no trem, no chão, no camarim de um ateliê, num vão de uma passagem subterrânea do metrô. Eu também ria. Ela se aproximou e pôs sua boca, ainda rindo, sobre a minha. Agarrei-a firme quando me beijou. Não rimos mais.

        —  Quando vamos nos ver de novo? — perguntou, finalmente já vestida para sair. Não se falou mais de minha doença.

        —  Eu lhe telefono.

        —  Ficarei à espera.

        Não me deu a mão, não me tocou mais, andou até a porta sem se voltar. Fiquei sentado na cama, vendo-a sair.

        —  Jolanthe — disse-lhe com voz rouca.

        Estacou o passo, mas não se virou para trás. Ficou esperando. Calei-me.

        —  O quê? — perguntou, também com voz rouca.

        —  Nada — respondi. — Vá.

        Foi-se. A porta fechou-se atrás dela. Recostei-me lentamente e olhei para o teto. Com cuidado, tateei com a língua por cima do lábio que fora mordido. O quarto inteiro rescendia ao perfume de Jolanthe.

        À tarde, chegou Margaret. Sentia-me exausto, e ela logo foi embora. Não tinha nada a me dizer. Eulenglas, com quem falou antes de ver-me, prometera um diagnóstico definitivo para os próximos dias. De resto, nada mais aconteceu nesse dia. A não ser ao anoitecer, quando ainda recebi um estranho telefonema. Era Mordstein no aparelho. Havia meses que não mais o vira e fiquei surpreso.

        —  Não fique surpreso — disse, a voz traduzindo simpatia. — Ouvi de Mr. Clayton que o senhor não estava bem.

        —  Já estou bem de novo.

        —  Alegro-me com isso, realmente; fico contente, Mr. Chandler!

        —  Obrigado — repliquei e aguardei que ele colocasse o fone no gancho.

        Não desligou.

        —  Quanto ao mais, que eu ainda queria dizer... se o senhor precisar de mim, tem meu endereço, não é?

        —  Sim.

        —  Basta vir ver-me.

        —  Muita amabilidade. Mas não sei...

        —  Nunca ninguém pode saber... — disse.ele. — Hoje o senhor está pensando ainda: Mordstein deveria deixar-me em paz...

        —  Mas claro que não!

        —  No entanto, talvez amanhã tudo seja diferente! Amanhã o senhor irá pensar: Mordstein é o único que pode me ajudar!

        Cedo eu teria oportunidade de me lembrar dessas palavras.

      

        — Prof. Dr. Viktor C. Vogt — lia-se sobre uma placa à porta.

        Foi dois dias depois. Vogt me pedira para ir vê-lo, a fim de saber de seu diagnóstico. Pediu que me avisassem para estar às cinco horas, já eram quinze para as seis; entretanto, mandou que uma enfermeira viesse pedir desculpas: ficara detido, ocupado com alguma coisa. Sentado na sala de espera vazia, já escura do lusco-fusco, fiquei folheando revistas. Marlene Dietrich recebera da França a Cruz da Legião de Honra. Em Nova York deram uma batida em um clube onde moças adolescentes eram alugadas a milionários. Numa caverna nos Pireneus quatro exploradores perderam a vida. E a guerra prosseguia na Coréia. Folheei todas as revistas, lendo primeiramente as legendas das figuras e das fotos e, em seguida, as piadas. Muitas piadas eram bastante engraçadas. Voltei a olhar para a placa na porta e fiquei imaginando qual a razão provável daquele "C". Seria de Casar? Ou Christoph? Foi ficando mais escuro.

        Os dois dias anteriores foram preenchidos com novos exames, submeteram-me a radioscopias, auscultaram-me e deram-me líquidos variados para beber. Eulenglas e Vogt eram, inalteradamente, amáveis e objetivos. Sobre o prosseguimento do exame não perderam uma palavra. Eu também não perguntei mais nada. Ficara muito mais sossegado, a atmosfera do hospital me entorpecia. É possível que também tivessem misturado à minha comida algum tranqüilizante, brometo ou algo do gênero. Já ouvira falar que isso era comum. Talvez era isso que esclarecia a indiferença com que acompanhei os fatos à minha volta. As minhas disfasias tinham-se atenuado, as dores de cabeça mantinham-se em limites suportáveis. Margaret vinha todos os dias. Com Jolanthe não falei mais desde a última visita.

        Apanhei mais uma revista. Enquanto virava as páginas, experimentei elevar minha disposição a determinados graus de excitação e nervosismo. Os minutos seguintes invariavelmente decidiriam pelo meu futuro. Eu saberia se estava com saúde ou enfermo, se viveria ou iria morrer. Tudo dependia do diagnóstico dos médicos. Esperava que as palmas das mãos ficassem úmidas e meus lábios ressequidos. No entanto, nada disso aconteceu. Fiquei sentado, tranqüilamente, e constatei que, muito pelo contrário, as minhas reflexões me aborreciam. A razão disso tudo, sem dúvida, deveria estar na comida que me serviam.

        A porta com a placa abriu-se e surgiu Eulenglas.

        Levantei-me.

        Eulenglas desculpou-se mais uma vez pelo atraso, enquanto me fazia passar à sua frente para entrar na sala de seu chefe. Era uma sala de estar confortável, ampla, não dando a mínima suspeita, o menor vestígio, da atividade médica de seu proprietário. Estendi a mão para Vogt e nos sentamos. O professor ofereceu cigarros e conhaque. A seguir, moveu-se para mais perto de mim.

        —  Pretendemos falar sobre a única coisa que o interessa: sobre seu diagnóstico.

        — Está bem — concordei e sorri. Sentia-me muito à vontade naquela sala.

        Vogt olhou para mim e, num tom de franqueza, falou:

        —  Mr. Chandler, nós o examinamos da forma mais escrupulosa que os métodos à nossa disposição nos permitiram. Avaliamos os resultados cuidadosamente, e, todavia, continuamos como antes, sem condições para lhe fornecer dados exatos a respeito de seu estado.

        Calou-se, em seguida, e o ambiente ficou em silêncio.

        —  Que quer dizer com isso? — perguntei afinal. — Os senhores não são capazes de me dizer se tenho ou não um tumor?

        —  Não podemos lhe dizer com certeza absoluta — esclareceu Eulenglas e mexeu em suas grossas lentes.

        —  Mas, para falar a verdade, era esta a finalidade do exercício! — exclamei e dei um riso curto, que ressoou de forma estranha. Espantei-me com ele. Vogt esfregou as mãos uma na outra, na luz do lusco-fusco seu rosto redondo parecia uma grande lua branca.

        Sua voz soou como um grunhido:

        —  Mr. Chandler, estamos falando sobre a situação do exame até agora. Ainda não chegamos ao fim.

        —  Por que então não prosseguem?

        — Porque, para isso, precisamos do seu acordo — disse Eulenglas. Senti uma espécie de pontada ao ouvir isso, despertei por alguns segundos da minha letargia.

        —  Acordo? Para quê?

        — É mera formalidade — como num queixume disse a voz feminina e cantante de Vogt, vinda do crespúsculo —, mas precisamos dele. — Acercou-se um pouco mais, senti novamente o cheiro de alho. — Até agora, Mr. Chandler, podemos informar-lhe-com precisão que algumas coisas dentro de seu cérebro não estão normais como deveriam estar. Na região cefálica anterior esquerda existe uma excrescência que já se alastra.

        —  Ha-ha — articulei.

        —  O senhor quer mais um pouco de conhaque? — perguntou Hulenglas.

        —  Não, por quê?

        —  Apenas pensei que sim — disse ele.

        —  Se estou com um tumor... — comecei a falar.

        —  Não é um tumor, é uma excrescência—Vogt corrigiu-me.

        —  Pois bem, uma excrescência! Logo, se os senhores já sabem que eu possuo algo assim, por que então não me operam? Aliás, o que está tão confuso ainda para os senhores? — Então era assim, pensei. Era assim que eles comunicavam as coisas. Com a maior inexpressividade. "O senhor deseja mais uma dose de conhaque?" E acabava por aí? Isso era coisa que um autor em Hollywood iria se permitir! Como se fosse uma cena estragada.

        —  O senhor está um pouco apressado e impaciente, Mr. Chandler! — Vogt encheu novamente o próprio copo. — Com tanta rapidez assim não existe para nós disponibilidade para a operação. Especialmente, em muitos casos podemos até mesmo poupar uma operação.

        —  Quando isso?

        —  Quando se trata de uma excrescência benigna, que se pode fazer desaparecer através de aplicação de raios.

        — E os senhores julgam possível que eu tenha uma excrescência benigna?

        —  Naturalmente, Mr. Chandler!

        —  É evidente, Mr. Chandler!

        Isso partiu como dois tiros de canhão simultâneos. Os dois me contemplavam, sorridentes. Minha impressão era que eu lhes devia estar dando uma pequena alegria, tamanho o empenho que tinham por mim.

        — Agora eu gostaria de mais um conhaque — falei. Apressaram-se em me servir.

        —  Obrigado — disse. Recostei-me no assento e ri. — A tal ponto não creio que já chegamos! É um sistema que os senhores possuem?

        —  O quê?

        —  Participar em prestações a sentença de morte ao paciente?

        —  Mr. Chandler — redargüiu Vogt, censurando, num grasnido.

        —  Está bem — falei. — Pois então eu sou, em suma, um cliente bem tolerável. Antes, quando os senhores me comunicaram o assunto da excrescência, sem dúvida eu seria até capaz de cair desmaiado, não é verdade?

        Garantiram-me que sim.

        — Claro — falei — que esse estágio intermediário não é especialmente agradável! Quando posso ter certeza?

        —  Quando o senhor der seu consentimento para uma pequena intervenção, amanhã ao anoitecer.

        —  Que pequena intervenção é esta?

        —  Trata-se de uma coisa chamada ventriculografia — disse Eulenglas.

        —  Hã...

        —  Um método de averiguação — explicou Vogt (ele se lembrou de que deveriam esclarecer tudo para mim) — com cujo auxílio podemos determinar com precisão os contornos da excrescência, sua natureza e sua localização. Injetamos em seu cérebro um líquido de contraste e observamos a tela de raios X. O líquido, espalhado, envolve a formação por todos os lados e ela aparece desenhada com grande nitidez.

        —  Isso parece que faz muito sentido.

        —  É um método magnífico — disse, com entusiasmo, Eulenglas.

        —  Uma pergunta... — pus meu copo na mesa.

        —  Sim, por favor.

        —  Como o líquido de contraste é inserido em meu cérebro?

        —  Através de dois pequenos orifícios — falou Vogt, e tossiu de leve, acanhado.

        —  Através de dois pequenos orifícios — repeti.

        —  Através de dois pequenos orifícios — repetiu Eulenglas. De relance parecíamos os três estar sofrendo de parafrasias literais. Vogt levantou-se e acendeu a luz de um abajur.

        — Onde ficariam os dois pequenos orifícios? — perguntei. Aproximou-se de mim e tocou-me na cabeça, na região occipital,

        dos dois lados da coluna vertebral, mais ou menos dez centímetros acima da linha da nuca onde começava o cabelo.

        —  E para isso os senhores necessitam de meu consentimento?

        —  Não — respondeu Vogt, em tom de repentina surpresa.

        —  Mas...

        —  Não precisamos de seu acordo para a ventriculografia, Mr. Chandler. Entretanto, se, ao fazê-la, verificarmos não se tratar de uma excrescência benigna, mas de uma formação maligna, não iremos expor o senhor a uma nova espera, mas operamos imediatamente.

        —  Sem me deixar voltar a mim novamente?

        —  É, Mr. Chandler.

        Levantei-me e caminhei até a janela. Lá fora já havia escurecido completamente. Via as luzes da rua através das árvores do parque. Passou um carro. Voltei-me para dentro.

        —  Escutem — especulei —, toda essa conversa sobre a ventri...

        —  Ventriculografia...

        —  ... não é o método dos senhores de me instruírem que uma operação é necessária? Será que já não sabem, durante todo esse tempo, que tenho um tumor, e maligno?

        —  Não, Mr. Chandler — protestou Vogt e fitou-me. — Nada além disso — e calou-se. Instantaneamente, porém, as coisas se me esclareceram: eles, na verdade, não sabiam. Andei de volta até a mesa e sentei-me.

        —  O que devo assinar?

        —  Então, o senhor está de acordo?

        —  Naturalmente — falei. — Agora não posso, de modo algum, continuar vivendo sem ter certeza.

        —  Muito sensato de sua parte, Mr. Chandler. — Eulenglas apanhou um formulário da escrivaninha. — É o termo costumeiro que se assina antes de qualquer operação... mesmo quando se quer extirpar apenas o apêndice. O senhor declara, então, que está de acordo com a intervenção.

        — O senhor tem uma caneta?

        Entregou-me uma.

        Assinei o formulário.

        Não li o que nele estava escrito. Tinha medo de encontrar em alguma parte do texto a palavra "morte''.

      

        —  Vou rezar por você — disse Margaret.

        Eram sete horas da noite, ela estava sentada em minha cama. A enfermeira dissera-lhe que deveria retirar-se às sete e meia. Em seguida, tomei um soporífero que me deram.

        —  Vou rezar por você e tudo sairá bem. Não dói de forma alguma, o Dr. Vogt deu-me sua palavra. E estou certa de que não vão operar você, absolutamente.

        —  Também creio que não, Margaret.

        —  A excrescência é inofensiva. Vogt diz que é inacreditável quantas dessas formações são inofensivas.

        —  Sim, ele também me disse.

        —  E se por acaso são inofensivas, consegue-se desfazê-las com aplicações de raios.

        —  É.

        —  Com raios X. Já conseguiram ótimos resultados de cura.

        —  Sim, estou ouvindo.

        —  Mas você sabe, eu sempre possuí algo parecido com um sexto sentido, querido... não é mesmo?

        —  Sim.

        . — E estou sentindo isso: eles não vão operar você.

        —  Seria uma maravilha.

        —  Decididamente não, preste atenção! Dois pequenos orifícios, é tudo que vai haver.

        —  E uma calva.

        —  Sim, é claro, você vai ficar com uma calva! — Ela sorriu.

        — Já estou curiosa para ver como você vai ficar.

        —  Eu não.

        —  Vão raspar a cabeça toda?

        —  Sim.

        —  Engraçado. Aliás, por quê?

        —  No caso de eles então me operarem imediatamente — falei.

        — E vão precisar de lugar.

        Margaret balançou a cabeça. Parecia exausta, seu lábio inferior tremia um pouco.

        —  Foi uma tolice minha esquecer esse detalhe.

        —  Margaret — falei —, em minha escrivaninha, na prateleira da direita, está um testamento.

        Ela se pôs de pé.

        —  Pelo amor de Deus, não fale dessas coisas, está bem?

        —  Preciso falar sobre isso — repliquei. — É o testamento que mandei redigir quando a guerra eclodiu. Tudo que possuo pertence a você.

        Ela irrompeu em prantos.

        —  Querido, oh, por favor...

        —  Está bem — falei. — Afinal de contas, a idéia é admissível, não?

        Segurou forte minha mão.

        —  Não, não é admissível! Isso está fora de discussão... ainda que o operem! Vogt é uma capacidade! Operações dessa natureza são o seu forte! Já fez centenas delas! É o melhor profissional na Alemanha!

        —  Sei — aquiesci.

        —  Eu... eu tenho certeza de que vai sair bem! Eu sei que sim! E eu... eu espero, Roy, que depois você não fique apenas com saúde, mas que nós dois, que eu e você... a gente comece uma nova vida... — Seu rosto agora repousava junto ao meu, no travesseiro; continuava chorando. — Você também não acha?

        Não, não acreditava, mas disse:

        —  Acho, Margaret!

        —  Muitas vezes fui injusta com você, magoei você, sei disso. Tudo isso vai mudar, Roy, quando você sair daqui, prometo...

        —  Sim, Margaret. — O travesseiro ficou molhado com suas lágrimas.

        —  Tudo ficará diferente... você também, Roy, nós nos amamos ainda, não é verdade!? Eu amo você, eu sei que sim. E você, ainda me ama também, não?

        Concordei com um sinal de cabeça.

        —  Diga, diga que ainda me ama, Roy!

        —  Arno você, Margaret — falei. Não a amava mais. Sentia o peso de seu corpo sobre meu braço.

        —  Vamos sair desta cidade, Roy. Não tivemos nenhuma sorte aqui. Viajamos de volta para casa. Em casa tudo vai ficar bem. Talvez não devassemos jamais ter vindo à Europa.

        —  É, talvez.

        —  A Europa foi má para nós, Roy. Foi como em Dodsworth.

        —  Igual.

        —  Más entre nós vai acabar diferente, não é mesmo?

        —  Sim — respondi. Para mim, já havia acabado, há muito tempo. E também para ela. Só que ela não queria admitir.

        —  Roy, beije-me — disse-me, de relance.

        Beijei-a e senti o superfamiliar cheiro: Pepsodent, Chanel n.° 5 e sabonete Palmolive.

        —  Obrigada, Roy — articulou.

        —  Porquê?

        —  Por tudo. Por todos os anos, cada dia.

        —  Também agradeço — falei. A enfermeira entrou.

        —  Agora a senhora precisa ir, Mrs. Chandler.

        —  Sim! — Ergueu-se e alisou a roupa. Os olhos estavam vermelhos de chorar, ela sorriu com heroísmo e afastou-se para o lado a fim de dar lugar à enfermeira, que, então, me deu o remédio para dormir. Enquanto isso, recompôs rapidamente a aparência.

        —  Pois bem, nesse caso... —beijou-me mais uma vez.

        —  Adeus! — disse-lhe, dando-lhe a mão.

        —  Quando você despertar da anestesia, estarei sentada em sua cama.

        —  Ótimo — falei.

        —  Durma bem.

        —  Claro.

        —  E não se esqueça do meu sexto sentido.

        —  Não, Margaret.

        —  Não vou mais telefonar.

        —  Não precisa, também é melhor assim. Vou dormir.

        —  E eu vou rezar por você.

        —  Sim.

        —  Passe bem, Roy — sussurrou. As lágrimas brotaram-lhe novamente nos olhos, ela então apressou o passo até a porta. De lá, voltou-se e sorriu, o rosto molhado.

        —  Boa noite, Margaret — disse-lhe.

        Deu um soluço alto e saiu correndo do quarto. A enfermeira abriu1 a janela e bateu meu travesseiro.

        —  Amanhã de tarde tudo estará em perfeita ordem — disse ela e sorriu tranqüilizando-me.

        —  Sim, enfermeira.

        —  Precisa de mais alguma coisa?

        —  Não, obrigado.

        —  Durma bem, Mr. Chandler. — Foi-se. Desliguei a luz e fiquei no escuro. Sombras da folhagem caminhavam pelo teto. Um cão latiu. E, de novo, silêncio. Tentei pensar no dia seguinte, mas sentia-me muito cansado. A enfermeira dera-me um soporífero muito forte. A cama estava macia e quente, as pálpebras ficaram pesadas. E se eu telefonasse para Jolanthe? Refleti. De minuto a minuto, tornava-se menos uma questão de bom senso, racional, e foi-se, cada vez mais, tornando um problema físico. Tive a sensação de não conseguir mais erguer os braços, de tanto cansaço. Estava esgotado. E tudo para mim era quase totalmente indirerente. Quando estava prestes a adormecer, o telefone tocou.

        Soergui-me e tateei às apalpadelas o fone. Encontrei-o, afinal, segurei-o junto ao ouvido e afundei-me de volta ao travesseiro. Era Jolanthe.

        —  Não quiseram deixar-me comunicar com você. — Sua voz soava um tanto misteriosa e muito distante. Contudo, insisti.

        —  Sim, Jolanthe — disse, lentamente.

        —  Você já dormiu?

        —  Deram-me um soporífero. Silêncio.

        —  Você não telefonou — falou, então.

        —  Não. Novo silêncio.

        —  Não tem importância — disse ela.

        — Jolanthe? — Consegui dizer as sílabas da palavra apenas uma de cada vez, estava deitado sobre o fone, sem poder mais segurá-lo.

        —  O quê?

        —  Eles vão me operar... amanhã.

        —  Sim.

        —  Sinto muito não ter telefonado.

        —  Não tem importância.

        Um longo silêncio.                                 '

        —  Você ainda está aí? — perguntou.

        —  Sim.

        —  Tudo de bom, Jimmy.

        —  Obrigado.

        —  De resto não consigo dizer nada.

        —  Eu sei.

        Escutava o rumor da corrente da ligação feita. Ninguém falava. Meus olhos ardiam, embora os mantivesse fechados.

        —  Você tem uísque em casa, Jolanthe?

        —  Tenho.

        —  Tome um trago.

        —  Sim, Jimmy. — Um instante depois, perguntou: — Você está pensando?

        —  Sim — respondi. Com efeito, eu estava pensando naquilo.

        —  Na última vez?

        —  Também — falei.

        —  E vai me telefonar... depois?

        —  Sim.

        De novo, uma pausa. Prosseguiu:

        —  Você se zanga se eu desligar agora?

        —  Não — disse a ela. — Boa noite. Não esqueça o uísque.

        —  E você pense naquilo.

        —  Está bem. Acrescentou, ainda:

        —  Se... se correr mal, Jimmy, eu me mato, com veronal. E também estou pensando naquilo. É muito agradável se nós dois pensamos, não é verdade?

        —  Sim — falei —, muito agradável.

      

        Para mim o dia começou às seis horas da manhã.

        Não trouxeram nada para eu comer, mas apareceu o barbeiro. Fez seu trabalho com rapidez e conscienciosamente. Primeiro, cortou meus cabelos. A seguir, tosou-os com um aparelho elétrico. Finalmente, ensaboou minha cabeça e raspou-a. Sentiu que deveria fazer alguma coisa para me distrair e passou a falar de seus filhos. Eram três, dois rapazes e uma moça. Os rapazes tinham boa saúde, mas a jovem era doentia. O barbeiro preocupava-se. Chamava-se Kafanke e era de Berlim, de onde as bombas o expulsaram. Em 1945 viera para Munique. Era um barbeiro muito simpático. Às seis e meia já havia acabado seu trabalho.

        —  Boa sorte, Mr. Chandler — falou, cortesmente, ao se despedir. Depois dele, chegou a Dra. Reuter.

        Estava com uma aparência maravilhosa, desafiadora, de quem havia descansado bem, e bem cuidada. Segurava uma agulha de injeção e me pediu para descobrir a coxa direita. Tirei a calça do pijama. Segurava a agulha entre dois dedos, oscilou algumas vezes para cima e para baixo e, em seguida, introduziu-a em minha carne.

        —  Assim — falou, satisfeita.

        —  O que é isso que está injetando?

        —  Um tranqüilizante — respondeu. — Mais tarde irá receber mais uma injeção.

        —  Para quê?

        —  Para se sentir perfeitamente bem, Mr. Chandler. O senhor vai ver, o remédio vai tranqüilizá-lo de forma admirável.

        —  Não estou agitado.

        —  Não, estou vendo que não — disse-me, e sorriu. — O senhor ainda tem algum desejo?

        —  Gostaria de me olhar no espelho.

        —  Melhor que não olhe — riu.

        —  A senhora deve satisfazer o último desejo do delinqüente — asseverei.

        —  Muito bem — falou, e tirou do armário um espelho de mão. Segurou-o à minha frente e olhei para minha imagem. Era horrível meu aspecto. O couro da cabeça estava vermelho, e nela havia algumas espinhas cortadas. Os ossos do crânio apontavam salientes.

        —  Obrigado — disse.

        —  Eu avisei! — Riu novamente, levou o espelho de volta e deixou-me sozinho. Fui ficando visivelmente sonolento, cada vez mais.

        Todos os ruídos se perdiam de mim e, mais uma vez, sobreveio uma grande apatia. Além disso, perdi toda noção do tempo, pareceu-me que se haviam passado cinco minutos quando a doutora retornou. Meia hora, porém, havia decorrido.

        Após a segunda injeção, mergulhei num leve entressono. A Dra. Reuter veio e saiu algumas vezes mais. Eu a enxergava com os olhos semicerrados, também escutava quando falava comigo e fazia o que ela pedia, mas logo que acabava de fazê-lo, esquecia imediatamente suas palavras. Eu ainda tinha diversas vontades com relação a determinadas providências, contudo não sei como não lograva exprimi-las, também, de modo audível.

        —  Frau Doktor — eu me escutava dizer —, ainda há uma coisa que gostaria de lhe pedir. Trata-se da firma onde trabalho. Precisava... — Mais ou menos a essa altura de minhas explicações minha voz invariavelmente se extinguia, obnubilava-se minha capacidade de concentração e meus pensamentos divagavam soltos e despreocupados. Havia esquecido o que queria dizer. Não, eu ainda sabia. Agora, de novo, já não sabia mais. E, no fundo, também é provável que não fosse tão importante assim. Nada tinha especial importância. E tudo parecia tão agradável...

        Um indivíduo corpulento, vestido com uma blusa branca, entrou no quarto empurrando uma maca de operação. Aproximou-se de mim, levantou-me da cama como uma criancinha e me colocou no carro. Cobriu-me com um lençol e saiu levando-me para o corredor. Eu me achava a uma distância incrivelmente enorme de tudo, mas meus sentidos ainda percebiam tudo a meu redor, vozes e rostos, portas, janelas, um elevador de carga.

        Alcançamos, então, a saleta de entrada para a sala de operações, no último pavimento, junto ao teto. Ali o grandalhão me deixou só. Perto, algumas pessoas conversavam. A injeção já estava atuando com toda a intensidade. Ouvia as vozes, mas não compreendia as palavras, não sabia mais o que significavam. O tempo parecia voltar a expandir-se desmedidamente, os minutos viravam horas. Por que nada acontecia? Por que ninguém vinha até mim? Por que, enfim, não me vinham buscar? Mas vieram buscar-me, o gigante e a enfermeira. Conduziram-me para dentro da sala. As grandes janelas estavam escurecidas, ardiam lâmpadas e luminárias de luz muito forte. Sob uma esfera prateada luminosa ficava a mesa de operação. Ergueram-me do carrinho e me puseram sobre ela. Estranhos rostos curvaram-se por cima de mim. Eram estranhos, esses rostos? Acreditei, de relance, reconhecer o Dr. Vogt. — Como está se sentindo? — perguntou o rosto que me lembrava o doutor e que flutuava por cima de mim na claridade leitosa da cúpula iluminada.

        —  Bem, obrigado — falei, embora não mais escutasse minha própria voz. O rosto afastou-se pairando pelo ar.

        Uma enfermeira prendeu firme meus braços. Agora não conseguia me mexer mais. No instante seguinte comecei a sentir comichões no nariz. A cócega era insuportável, tentei reprimir a irritação mas não consegui. O incômodo causado pela comichão ficava maior a cada segundo.

        —  Meu nariz — falei.

        —  Sim? — perguntou a enfermeira.

        —  Coce-o para mim, por favor. Ela o fez.

        Agora, de todos os lados, pessoas de branco se acercavam e me contemplavam.

        —  Pois bem, vamos começar — disse uma voz. Instrumentos tiniam.

        Alguma coisa começou a zumbir. Mãos invisíveis agarraram meu crânio raspado. Não, pensei, não mesmo! Ainda estou consciente, ouço e vejo e sinto tudo, ainda. Como vocês podem começar, se eu ainda estou sentindo tudo?

        Senti nova comichão no nariz.

        Talvez dentro de uma hora eu esteja morto, pensei.

        Talvez esteja vendo esta sala pela última vez. Talvez minha vida já esteja no fim...

        Os rostos tinham máscaras. Alguém passou um objeto gelado pela minha cabeça. Se morresse, pensei, não deixaria legado algum. Nenhum luto, nenhum amigo, nada que tenha sido belo, nenhuma criação, nenhuma lembrança. Ódio algum. Também amor algum. Nenhuma lacuna. Nenhum modelo exemplar. Nada. Não teria sido uma bela existência. Ou teria. Algumas vezes a vida foi bonita. Em horas diversas. Procurei lembrar-me de uma dessas horas. Mas nenhuma lembrança me ocorreu.

        Novamente a comichão no nariz.

        —  Por favor, enfermeira — murmurei. Com a mão esquerda coçou-me o nariz. Com a direita espetou-me uma agulha no antebraço atado à mesa. Foi isso a última coisa de que tive noção. No momento imediato, a luz apagou-se e as vozes emudeceram; então, mergulhei nas trevas cada vez mais dilatadas de um poço gigantesco.

       

        No fundo do poço havia de novo claridade.

        Assemelhava-se a um pátio interno. Os edifícios ao redor eram ruínas; as janelas, buracos escuros. Estava frio, o céu cinzento. No pátio havia trastes velhos e entulhos de todo tipo, detritos e imundícies variados, e um castanheiro desfolhado. Sob a árvore estava um banco. No banco, Jolanthe estava sentada. Vi-a imediatamente, quando entrei no pátio, e no mesmo instante caminhei até ela.

        —  Desculpe, eu me atrasei.

        —  Está bem — replicou —, só faz dois anos que estou esperando. Suas vestes eram longas e claras, tinham semelhança com uma camisola luxuosa. Ela agora acabava de se pôr de pé e começou a caminhar ao meu lado pelo pátio devastado. — Precisamos nos apressar — disse-me — o trem já vai partir. — Um curto instante depois acrescentou: — É o último.

        Fomos avançando a passos ligeiros, embora o chão fosse muito acidentado e desigual. Tinha a impressão de que nossos pés mai o tocavam, pairávamos por cima dele como se estivéssemos voando. Deixamos o pátio e, passando por um corredor sujo, de teto baixo, chegamos no interior de uma ruína.

        —  Olhe — disse Jolanthe. Apontou com a mão para o canto de um recinto que outrora teria sido um banheiro. Duas grandes ratazanas cor-de-rosa, no chão, nos encaravam com um olhar sério.

        —  Elas também queriam ir-se — falou Jolanthe. — Mas não lhes deram o visto de saída.

        —  É preciso um visto?

        —  De uns dias para cá — respondeu e acenou com a cabeça em direção das ratazanas.

        —  Boa sorte! — exclamou uma ratazana.

        —  Obrigado — falou Jolanthe. Saímos então para a rua. Era uma rua vazia, consumida pelo fogo. Casas sem vida, como fantasmas, margeavam-na pelos dois lados. Nos arcos meio desabados dos portões de entrada havia pessoas sentadas em cadeiras de vime, como às vezes se vê quando os porteiros já terminaram o trabalho deles. Nessa rua, todos os indivíduos vestiam roupas domingueiras. E eles todos estavam mortos. Seus olhos rotos e prostrados contemplavam fixamente o vazio. Jolanthe cumprimentou-os ao passarmos por eles, com pressa. Os mortos não se mexeram. No entanto, Jolanthe continuava cumprimentando amigavelmente.

        —  Eles têm muita influência.

        —  Onde?

        —  Junto à direção da estação ferroviária — falou e puxou-me para longe. Seu largo vestido envolveu-a em um sopro turbulento, uma forte ventania sobreveio e começou a chover grosso.

        A estação, que alcançamos depois de vagarmos a esmo, por algum tempo, por ruas do mesmo aspecto, também estava carbonizada. Compridas filas de gente esperavam diante dos seus guichês provisórios. Eu quis também entrar na fila, mas Jolanthe continuou me puxando. Corremos em volta da estação até chegarmos a uma pequena porta de madeira, na qual então Jolanthe bateu. Um gigante de blusão branco abriu. Parecia conhecer Jolanthe, pois lhe fez um sinal com a cabeça e nos deixou entrar em uma sala de espera de terceira classe. Feito isso, fechou a porta atrás de nós, agarrou Jolanthe e, com um só movimento, rasgou-lhe do corpo o longo vestido. Estava nua por baixo. O homem beijou-a. Fiquei ao lado e não me mexia. O beijo demorou muito tempo. Lá fora, na plataforma, uma locomotiva uivava. O gigante então soltou Jolanthe.

        —  Venham — disse ele. Conduziu-nos através da sala de espera, até um escritório onde havia uma grande escrivaninha. Jolanthe, despida como estava, e eu em traje normal de passeio, caminhamos para a frente da escrivaninha. Numa cadeira, atrás dela, estava o Prof. Vogt. Vestia uma capa de chuva cuja gola estava levantada, e sacudiu a cabeça em nossa direção.

        —  Boa tarde, que desejam? — Não nos conhecia. O gigante disse-lhe algo junto ao ouvido. O rosto de Vogt revelou admiração.

        —  Ah, bem — disse ele, com o pescoço esticado.

        —  Sim — falou Jolanthe, e balançou a cabeça.

        —  E com o que comprovam os motivos de sua proposta?

        (Tratava-se do pedido de visto no passaporte, lembrei-me de relance. O gigante prometera sua intervenção em nosso favor, caso Jolanthe se entregasse a ele. Jolanthe me havia perguntado o que ela deveria fazer. Aconselhei que se entregasse. Ela se oferecera ao gigante. Foi este o momento de sua intervenção. Imediatamente tudo isso me veio de novo à memória.)

        Vogt sacudiu a cabeça, olhando-nos e esperando uma resposta, a qual não veio. E prosseguiu:

        —  É preciso exporem as razões de seu pedido. É o regulamento.

        —  Queremos ir embora — disse Jolanthe.

        —  Isso não basta para comprovar—falou Vogt.

        —  Não podemos mais viver nesta cidade — disse eu.

        —  Isso não basta para comprovar — disse Vogt. O grandalhão pressentiu que deveria interceder em nosso favor, e voltou a sussurar no ouvido de Vogt. Este encolheu os ombros e olhou para cima.

        —  E quando foi que os senhores morreram?—perguntou.

        —  Já faz tempo — retruquei.

        —  Diga a data exata.

        —  A 7 de maio de 1945 — disse Jolanthe. Ela notou que os olhos de Vogt estavam colados nela, então cobriu os seios com as mãos. Vogt pigarreou e desviou o olhar para longe.

        —  Então já faz tempo que estão aqui.

        —  Fazemos parte daqueles que estão aqui há mais tempo — disse-lhe eu. — E não foi por nossa culpa que morremos.

        —  Sou apenas um simples funcionário — murmurou ele. — A culpa não cabe a mim também. Simplesmente não estou autorizado a fornecer mais vistos, mais do que os lugares no trem.

        —  Há ainda lugar no trem?

        —  Sim — esclareceu —, mas não para os senhores.

        —  Para quem então?

        —  Para as crianças. Ainda há muitas crianças aqui. Elas vão-se embora primeiro. Não suportam o clima.

        —  Talvez o senhor e a senhora pudessem viajar no carro-leito — falou o gigante. Foi a primeira vez que falou em voz alta, olhando triste e desesperado para Jolanthe, como se desejasse pedir-lhe perdão pela sua incapacidade em dar-nos ajuda.

        —  Mas então também preciso satisfazer a condição — disse Vogt.

        —  Que condição?

        —  A resposta afirmativa a uma pergunta.

        —  Que pergunta?

        Vogt deu um suspiro e levantou-se. Foi até a janela e olhou para a plataforma, lá fora, onde se encontrava o trem. Voltou-se e fitou-me.

        —  O senhor — falou — ama esta mulher?

        —  Não — respondi —, não amo ninguém.

        Vogt concordou com um sinal de cabeça e virou-se para Jolanthe:

        —  A senhora ama este homem? Jolanthe balançou a cabeça.

        —  Não — disse ela, calmamente —, não o amo. — A seguir virou-se para mim e sorriu. — Beije-me, querido — pediu em voz baixa.

        Beijei-a.

        Vogt voltou para sua escrivaninha.

        —  A resposta à pergunta foi negativa — disse ele. — Não lhes posso dar um visto.

        Ficamos parados em frente dele, calados. O trem uivou novamente.

        —  Permita-me lembrar-lhe o motivo especial — o gigante disse para Vogt. Falou em tom de súplica e humilhação. O rosto de Vogt ficou triste. Foi-se levantando com um gesto de desesperança e chamou-me para perto dele com um movimento de cabeça:

        —  Venha comigo.

        —  Eu?

        —  Sim, o senhor — disse com impaciência. Olhei para Jolanthe, ela então soltou minha mão.

        —  A senhora fica aqui — disse o grandalhão para Jolanthe. Acompanhei Vogt e saímos para a suja plataforma. Ao longo do trem uns homens começaram a correr vendendo refrigerantes. Estavam com máscaras contra gás.

        —  O motivo especial — disse Vogt para mim, logo após fechar a porta de seu escritório — me põe em condições de deixar que um dos senhores viaje com o trem. Mas os senhores mesmos terão de decidir quem será. O senhor ou a mulher. Um pode vir. O outro fica aqui.

        —  Eu viajo — disse rapidamente.

        —  Bom — concluiu —, aqui está seu passaporte. — E me deu o documento. — Vá. E não se vire mais para trás. No carro-leito, atrás da locomotiva, acha-se reservado um compartimento para o senhor.

        —  Obrigado — falei. Ele já havia desaparecido. Percorri a comprida plataforma até o carro-leito. Lá, um condutor cumprimentou-me.

        —  Por favor, cavalheiro — disse-me e foi me introduzindo no vagão. Aquele vagão não estava superlotado. No corredor não se via ninguém.

        —  Aqui está — falou o condutor e abriu a porta. — Espero que o senhor viaje despreocupado, cavalheiro.

        Entrei no compartimento. Os dois leitos já estavam armados e no de cima estava Jolanthe, deitada.

        —  Boa noite — disse ela. Estava fumando e não olhou para mim.

        — Boa noite. — Fechei a porta. — Eles também lhe perguntaram?

        —  Sim — respondeu Jolanthe.

        —  Como foi?

        —  Eu traí você.

        —  Eu também traí você.

        —  Um traiu o outro. Por isso os dois estamos aqui.

        —  No entanto, apenas um pode estar no trem — falei, assustado.

        Nesse momento, bateram à porta e um fiscal entrou sem aguardar permissão.

        —  Os passaportes, por favor!

        —  Escute, senhor — comecei a falar, nervoso —, eu sei que somente a um de nós dois é permitido estar neste trem...

        Examinou os passaportes, meteu-os no bolso e me devolveu um passaporte estranho. — Somente um está neste trem.

        —  Mas...

        —  É de supor que um traiu o outro, não? — indagou desconfiado,

        —  Lógico — falei. — Isso mesmo.

        —  Então está tudo em ordem — concluiu. — Os senhores são um só.

        Com isso, fechou a porta.

        Estático, olhei fixamente para Jolanthe. Em seguida, abri o passaporte. Só tinha páginas vazias e nenhum nome escrito.

        —  Vá dormir — estabeleceu Jolanthe. De repente, não tinha mais rosto. Despi-me devagar. Enquanto o fazia, fui sentindo que o trem se punha em movimento. Inclinei-me para frente e apaguei a luz. Depois, deitei-me no leito de baixo.

        —  Jolanthe?

        —  O quê?

        —  Quando vamos chegar?

        —  Não sei — replicou sua voz.

        Os eixos do carro batiam em ritmo regular. Viajávamos a grande velocidade.

       

        Estava com sede.

        Meus lábios ardiam, a língua pesava na boca. Doía-me a cabeça. As têmporas latejavam, como dois martelos batendo. Abrindo os olhos com todo o cuidado, a luz do dia me atingiu como um golpe.

        Estava em minha cama. À minha frente, Margaret, sentada. Lágrimas corriam-lhe pelas faces. Depois, sorriu.

        — Querido — falou em voz baixa, e respirou fundo.

        — Que é? — perguntei. Tentei mover-me mas não consegui. Estava muito fraco. — Por que estou aqui? Afinal, quando irão me operar?

        —  Já se passou tudo — disse, a voz rouca.

        —  Passou? — Senti muito calor, depois muito frio e a seguir um mal-estar. Tive vômitos, que me asfixiavam. Margaret secava-me o suor da testa, e pôs a bacia longe de mim.

        —  Era um tumor?

        —  Não.

        —  Então o que era?

        —  Uma excrescência inofensiva.

        —  Mais o quê?

        —  Querido — falou, e deu um riso histérico, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto —, eles fizeram apenas duas perfurações, mínimas, e examinaram a excrescência, e verificaram que não é maligna. Não operaram você de modo algum!

        Foi isso a última coisa que escutei, pois logo a seguir perdi os sentidos.

     

        Só fiquei na clínica dois dias mais.

        Ao anoitecer do primeiro dia já conseguia ouvir de novo com clareza, ver direito, e sentia-me em plena consciência. Na manhã do segundo dia a cabeça ainda doía um pouco e sentia um pouco de fraqueza nas pernas. Contudo, nesse meio tempo já tinha ciência de que em meu cérebro não se alastrava tumor algum, apenas uma excrescência benigna; sentia-me, assim, otimista e bem disposto.

        —  É uma formação que podemos desfazer com dez a vinte aplicações de raios X — explicou Vogt quando veio ver-me para me participar do diagnóstico final. — O senhor poderá providenciar para que as radiações sejam aplicadas ou aqui mesmo ou em outra parte.

        —  Quanto tempo demora o tratamento?

        —  Algumas semanas. A aplicação das radiações prosseguem em intervalos de dois em dois ou de três em três dias.

        —  A primeira, quando poderia receber?

        —  Dentro de uma, duas semanas. Seu cérebro precisa tranqüilizar-se, pois o exame foi muito cansativo. Agora repouse direitinho, relaxando-se, e então, dentro de uns dez dias, venha ver-nos novamente, Mr. Chandler. De acordo?

        —  De acordo — falei.

        Nessas horas era constante junto de mim a presença de Margaret. Seu aspecto não era nada agradável, revelava um estado de, a qualquer momento, irromper em lágrimas, deixando vislumbrar um profundo esgotamento nervoso. Na manhã do segundo dia eu telefonara a Jolanthe para lhe dizer que escapara relativamente bem daquilo tudo. Disse que ia visitá-la, uma vez saído do sanatório. De modo raro ela parecia impassível, tendo eu mantido com ela apenas uma breve conversa.

        Naquele segundo dia recebi visitas. Apareceu Clayton, Hellweg presenteou-me com flores, os próprios Baxters transmitiram seus votos de felicidades. Quando se foram, Margaret recomeçou a chorar, e demorou algum tempo até se acalmar. Pela primeira vez eu já vinha sentindo que algo parecido com compaixão estava ocorrendo com ela.

        O evento que desencadeou a catástrofe definitiva não teve nada a ver com ela. Portou-se de forma exemplar. Todas as pessoas à minha volta se comportavam de forma exemplar. E o ensejo que me permitiu, antes de tudo. adivinhar a verdade era, por assim dizer, ridículo em sua insignificante pequenez. Aliás, noutras circunstâncias jamais teria tido consciência dele. Somente meu cérebro excitado e superdesperto registrou-o, motivo aliás real da visita de Frau Doktor Reuter.

        Faltando pouco para eu deixar a clínica ela chegou para me dizer adeus. Tinha o mesmo aspecto bem cuidado e interessante. Dispunha ainda de alguns minutos e sentou-se à minha frente. Depois de congratular-se pelo diagnóstico dos médicos, veio a conversa sobre o tema "cinema". Naqueles últimos dias assistira a dois filmes: Heaven Can Wait, de Lubitsch, e The Silver Net, um policial. Gostou admiravelmente do filme de Lubitsch. The Silver Net passou na Alemanha com o título de A Rede da Morte, e em seguida também falou a respeito dele.

        —  Primeiro vi o de Lubitsch e, depois, a Rede — contou-me.

        — E de início devo dizer-lhe...

        —  O roteiro da Rede fui eu que escrevi'— interrompi com um sorriso amarelo, aguardando uma ofensiva. Regozijava-me com a possibilidade de uma investida, como na expectativa de uma luta-livre com um amigo. A Dra. Reuter, com seu ódio aos homens e sua predileção por dizer-me coisas desagradáveis, divertia-me. Eu não fazia idéia de que essa interrupção de seu pensamento ia alterar toda a minha vida a partir dali.

        —  Ah, bem — falou e olhou para mim.

        —  Meu nome não estava na apresentação?

        —  Cheguei bastante tarde e a apresentação já havia passado.

        —  Parecia estar meio embaraçada e, coisa que infinitamente me surpreendeu, de repente ruborizou-se.

        —  Diga apenas — exortei com um riso — que o filme foi uma droga como há muito tempo a senhora não via igual!

        —  Droga? — Balançou a cabeça, o sangue desapareceu de seu rosto e ela sorriu amavelmente. — Como droga? O filme agradou-me extraordinariamente! Verdade, Mr. Chandler. Sobretudo o enredo. Enfim posso dizer-lhe algo agradável!

        Aquele foi o momento em que minha desconfiança despertou, um medo gélido cresceu dentro de mim como maré violenta. O filme tinha-lhe agradado? Por isso é que falou primeiramente de Lubitsch, para depois, em nítido contraste, preparar-se para a critica da Rede? Agradeci pelas palavras amáveis que ela acrescentou a seguir, mas eu já não mais escutava. Estava mentindo, pensei. Ela queria dizer algo totalmente diferente. E teria dito se não a tivesse interrompido. Pretendia dizer que o filme lhe desagradou extremamente, que o achou horrível. E agora afirmava o contrário — depois de eu tê-la informado de um detalhe que ela desconhecia.

        Por que fez isso?

        Que se passou com ela? Ainda há três dias atrás isso teria sido para ela um motivo para me cumular de escárnios amistosos. Lembrava-me de meu primeiro encontro com ela. Agora, ali estava uma outra mulher, uma outra personalidade. Frau Doktor Reuter mentiu. Frau Doktor Reuter fazia-me elogios. Por quê?

        Súbito senti a cabeça estalar de dor. Estava sentado na cama, sorria, agradecendo seus elogios, e não me dei conta de observar o que estava sucedendo comigo; mas, compassadamente, uma palavra batia no interior da cabeça: por quê? por quê? por quê?

        Finalmente, quando ela se foi, fiquei em silêncio total, recostado na parede, os olhos fechados. Não era capaz de explicar a ninguém o que pressentia. Não diria a ninguém o que agora sabia, o que havia entendido graças ao raro comportamento da Dra. Reuter. Eu bem sabia. E ninguém sabia que eu sabia da coisa. Uma certeza instintiva atravessava-me o consciente, perfurando cada vez mais fundo, a cada segundo. Eu sabia: ela me enganara. Sabia: não tinha nenhuma excrescência inofensiva no cérebro. Sabia: meu caso não tinha esperança. Razão por que não me operaram. Não me disseram, mas era isso. Eu sabia, como se me tivessem dito. Soube, naquela tarde de outono, algumas horas antes de deixar a clínica, praticamente com saúde: estava perdido.

       

        Lendo o que acabo de escrever, verifico que tudo soa como algo absolutamente ridículo. O motivo não se relaciona de forma alguma com minha conclusão de que, com a leitura, eu próprio não consigo reprimir a sensação de uma leve indisposição e desagrado. E, no entanto, as coisas foram assim mesmo. Tão ridiculamente exaltadas, tão sem sentido e sem qualquer justificação. A fantasia de um hipocondríaco, o pesadelo de um cérebro superexcitado. Contudo, não me resta outra coisa senão relatar que aquele incidente e a idéia fixa gerada a partir dele determinaram, daquela tarde em diante, toda e qualquer ação minha posterior. O que aconteceu a partir daquele momento, vi e julguei à luz de uma convicção adquirida num relance.

        A amabilidade daqueles que me visitaram, as lágrimas de Margaret, sua angustiada preocupação com meu conforto — tudo isso constituiu provas, que cada novo dia me trazia. Provas de que eu caminhava de encontro à morte e de que mais nada podia salvar-me. Pensava nisso ao sol outonal, deitado no jardim de Clayton em Grünvald; à noite, quando Margaret dormia ao meu lado; pensava nisso a cada respiração minha, a cada mordida que dava para comer, nos dias que se seguiram à minha demissão.

        Repousava na espreguiçadeira quando ainda estava claro, e quando escurecia ia repousar em um confortável sofá na sala. Raramente me ocorria fazer outra coisa que não fosse descansar, naqueles dias de setembro do ano passado. E bem poucas vezes sucedia que, enquanto assim ficava, pensasse em outra coisa além de uma só: obter a certeza, poder estar certo, ter o conhecimento exato de tudo.

        Naturalmente porque meus cinco sentidos continuavam concentrados de forma precária, a ponto de não permitir que minha idéia fixa ganhasse ainda alguma confirmação absoluta. Tornei-me apenas desconfiado, incrivelmente desconfiado. Jamais fora desconfiado. Então passei a ser. Não confiava em mais ninguém. Tinha a sensação de que todos mentiam, de que ninguém me diria a verdade caso lhe perguntasse. E por isso não perguntei a ninguém.

        Quando, mais ou menos duas semanas depois, consegui voltar a andar e me mover com facilidade, meu plano já estava estabelecido em todas as minúcias. Estava decidido a descobrir o que de fato se passava comigo, se estava bem ou não. A Margaret nada disse a respeito de meu intento, aliás não disse nada a ninguém. Com Jolanthe, no princípio não consegui mesmo lhe contar coisa alguma. Chamei na segunda semana e seu telefone fora transferido para o número de informações. Em resposta, uma senhorita noticiou-me que Jolanthe deixara a cidade por alguns dias.

        —  Devo providenciar ou transmitir alguma coisa?

        —  Não, obrigado.

        —  Quem está falando?

        —  Não importa — falei e pus o fone no gancho. Tudo muito misterioso, pensei, e Jolanthe era um enigma para mim. Isso aconteceu em 21 de setembro. Naquele dia entrei com meu carro na cidade, pela primeira vez. Dirigi-me para a loja de um fabricante de perucas.

       

        Tirei seu endereço do catálogo telefônico.

        Morava em Nymphenburg, no porão de uma casa, e era magro, pele macilenta, e bêbado. Chamava-se Manierlich, seu nome estava inscrito na porta, Alfons Manierlich. Seus negócios iam mal. Expliquei-lhe que saíra de uma pequena operação e que achava desagradável ficar perambulando com uma cabeça raspada.

        — Os cabelos nascem depois, prezado cavalheiro — disse e seu hálito cheirava a cachaça de má qualidade. Estava escuro em sua oficina. Havia à nossa volta madeixas de cabelos por todos os lados e, num canto, estava sentada uma adolescente de ar atrevido, que torcia uma trança vermelha. Olhou para mim com uns olhinhos luminosos.

        —  Não é minha intenção ficar esperando que nasçam —esclareci.

        —  Por causa da senhorita, é? — perguntou Manierlich, astuto, e deu um riso amarelo.

        —  Por causa da senhorita.

        A adolescente deu um risinho irônico.

        —  Minha enteada — explicou Manierlich com um movimento de mão.

        —  Deus te abençoe — falou a enteada. Balancei a cabeça em sua direção. Tive a impressão de que não era enteada dele. Os dois mancomunados numa intimidade pouco decente.

        —  Sente-se, estimado cavalheiro — disse Manierlich —, vamos examinar o assunto. — Sentei-me. — Judith — chamou —, venha cá e

        me ajude. — A jovem a quem ele chamou Judith, ergueu-se e com movimentos preguiçosos e lentos dirigiu-se até onde estávamos. Limpou as mãos no vestido e apanhou um lápis.

        —  Onde foi que você "descansou"? —perguntou Manierlich.

        —  Como? — Não compreendi logo.

        —  Onde foi que você deixou sua fome — esclareceu Judith e esfregou as costas em um armário, enquanto me fitava com um ar insolente.

        —  É um engano! — Senti que me enfurecia e ruborizava. — Estou saindo do hospital.

        —  Lógico — falou Manierlich e começou a medir minha cabeça com uma fita métrica. — Quanto tempo você esteve lá dentro?

        —  O senhor está louco? — Afastei-o de mim e levantei-me.

        — Como se permite pensar assim?

        —  Ora moço, não venha com essa! — Judith riu na minha cara.

        — Você acha que é o único que aparece por aqui porque está precisando de cabelo novo? Vocês, primos, são os nossos mais queridos clientes!

        —  Os únicos, é quase certo dizer isso — explicou o padrasto, desconsolado.

        —  Quem?

        —  Ora, vocês presidiários — falou, e enfiou o dedo no nariz. Lá fora, um caminhão passou, as janelas da oficina ficavam ao nível da calçada, vi somente as rodas do veículo. Durante todo o tempo pernas também passavam para lá e para cá junto às janelas. De repente, não pude reprimir um riso.

        —  Pois então — disse Manierlich. — Pode me chamar de Alfons!

        —  Ok, Alfons — repliquei e sentei-me. Dei uma palmadinha em Judith. Requebrou, dengosa, com a parte inferior das costas e, de novo, deu risinhos abafados.

        —  Trinta e três — disse seu padrasto, que me media a cabeça, e ela anotou o número. Disse outros números. Depois, perguntou:

        — De que cor deverá ser?

        —  Preta.

        —  Curta ou comprida?

        —  Mais para curta.

        —  Mas não bastante curta.

        —  Não, não muito curta.

        —  Não posso agüentar os cabelos curtos demais — disse Judith e coçou as costas na caixa. — Assim os homens ficam todos parecidos com os prussianos.

        —  Muita aparência militar — disse o padrasto.

        —  Eu até sinto nojo — falou a enteada.

        —  Estamos por aqui de fartos" dessa gente — esclareceu o padrasto. — Atrás quarenta e quatro, de lado sobre a orelha trinta e um e meio. Você não vai acreditar, companheiro, mas eu tive uma moradia em Dresden, já te digo, rapaz, você ia cair de costas, totalmente! Tudo de mogno e embutido. E tapetes persas. Um chuchu de loja! Um negócio florescente. Ramo de teatro, compreende? Tudo lá, o lar, a grana e uma mulher linda.

        —  Uma mulher excepcionalmente linda — disse a enteada.

        —  Cale o bico — falou o padrasto. Torceu minha cabeça em direção da luz. — Homem, você está mesmo com duas cicatrizes!

        —  De uma pancadaria — respondi imediatamente. Não queria perder a simpatia dele. Concordou com a cabeça e prosseguiu, sem transição nenhuma de uma idéia e outra: — Aí veio o ataque. Fósforo e bombas incendiárias primeiro, e depois três ondas de bombas explosivas, sabe? A casa em cinzas, o negócio em cinzas e a mulher carbonizada. Muito bem, ela era uma prostituta! E daí? Por causa disso precisava ficar queimada?

        —  Mas eu só disse... — começou a adolescente.

        —  Bico calado — voltou a dizer. — Tivesse você a metade da beleza dela! Quando penso nisso hoje, ainda me sinto mal! Mergulhou na água, foi o que fez. E sempre que saía, começava de novo a queimar. Então gritou por mim. Tinha dormido com um outro sujeito quando o ataque começou. Mas foi para mim que ela gritou enquanto se queimava. Não pelo sujeito. Só meu nome. Sempre por mim. Também corri na direção dela, descendo para dentro do rio e fiquei junto dela, quando o segundo ataque começou na manhã do outro dia. Cale o bico! — de repente gritou alto.

        —  Eu não disse nada — resmungou Judith.

        —  Está bem então — falou ele. — Aí fiquei por lá, companheiro — continuou —, na beira do rio, sabe? Os cachorros voltaram a despejar sua carga. Dessa vez só bombas explosivas. E eu fiquei agachado e segurava a cabeça dela acima da água para que ela não virasse e morresse afogada, pois não conseguia mais ficar de pé. Outras pessoas estavam lá também. Mas nenhum médico. De vez em quando eu deixava ela sair um pouquinho fora da água, quando ela ia ficando azul. E aí ela começava a queimar. E nós deixávamos arder um pouco; até quanto ela agüentasse, aí metia-a de novo dentro da água. Já estava meio louca, sem saber mais o que estava gritando. E gritava demoradamente. As coisas mais absurdas. Mas era só meu nome, sempre, está ouvindo, companheiro? O dele nunca. O nome do gigolô não gritou uma só vez... — Atirou para longe a fita métrica.                                                 

        —  E então? — perguntei.

        —  Pelo meio-dia ela então estava morta. Foi de repente. Soltei ela e ela caiu no rio. Era muito bonita. Corpo mais lindo que jamais vi numa mulher. E novinha. Rapaz, o prazer que ainda os outros homens puderam ter tido! Fico maluco quando penso nisso! Você quer só preta mesmo ou com um toquezinho azul?

        —  Tanto faz.

        —  Com um toquezinho é americano — disse a enteada.

        —  Então sem — falei.

        —  Bom — concluiu ele —, sem. Agora você está conseguindo entender o que digo, estou dizendo que todos eles podem ir tomar na bunda com a nova guerra deles, companheiro, compreende?

        —  Sim.

        —  Podem tomar em qualquer lugar, os sem-vergonhas — disse ele. — Eu vi eles caírem dentro da água. Eles não me convencem com mais nada, os sujeitos de merda. Deviam é fazer sozinhos essa guerra porca deles! — Afastou-se de mim e levantei-me.

        —  Quando posso vir buscar a peruca? — perguntei.

        —  Ainda precisa de uma prova.

        —  Para quando?

        —  Dentro de três dias.

        —  E quando vou poder levá-la?                                                                   

        —  Em cinco.                                                                                               

        —  Bom.                                                                                                      

        —  Mas vai precisar de adiantar a metade — falou Judith largando o bloco.

        —  Quanto?

        —  Cem.

        Dei uma cédula para ela.                                                                              

        —  Quer um recibo?

        —  Não, obrigado.

        —  Como é seu nome mesmo? Hesitei.

        —  Ah bem, como é que você se chama agora? — ela me ajudou. Nisso, deu um sorriso maternal e, súbito, pareceu uma mulher adulta, com seu pulôver apertado e a saia suja.

        —  Frank — disse a esmo. — Walter Frank.

       

        Três dias mais tarde fui — em segredo e sem que Margaret soubesse coisa alguma do assunto, naturalmente — experimentar a peruca, e seis dias depois estava pronta. Era uma peruca imponente,  assentou-me maravilhosamente. No lado de dentro Manierlich adaptara a etiqueta de sua firma. Ele não se pouparia de dizer: — Artigo de qualidade, meu caro! Eu também preciso fazer um pouquinho de propaganda para mim.

        Eu estava convencido disso.

        Pus no bolso a peruca e coloquei a boina na cabeça, ao voltar para casa ao anoitecer daquele dia. A peruca era o meu segredo. Levara-a comigo até a cidade apenas a título de experiência, para ver se alguém a reconhecia como peruca. Ninguém se deu conta de que fosse. Era muito bem feita. Meti-a no porta-malas do carro e tranquei-a. Agora minha experiência podia começar.

        Começou em 28 de setembro, na verdade com um incidente inesperado. Meu plano era passar a tarde sozinho, mas Margaret causou-me um contratempo. Estava no jardim, deitado, quando ela se dirigiu a mim. Escondia as mãos atrás das costas.

        —  Adivinhe o que tenho!

        —  Não faço idéia.

        —  Entradas para o teatro! — E mostrou-as.

        —  Para quando?

        —  Para hoje à noite!

        Evidentemente, os Baxters haviam enviado as entradas. Estavam representando Ricardo IH em turnê com Werner Krauss, que viera de Viena.

        —  Não tenho nenhuma vontade — disse-lhe.

        —  Mas, querido, você provavelmente não escutou bem! Werner Krauss faz o papel do rei!

        —  Ainda assim, é isso mesmo!

        —  Ele é um dos maiores atores vivos! — Agachou-se na grama ao meu lado. — Você não sabe como foi difícil conseguir os bilhetes! É uma premiere sensacional! Temos que assistir! Não podemos fazer isso com os Baxters, depois que eles se esforçaram tanto!

        —  Por que não?

        —  Jamais iriam nos perdoar!

        —  E isso, no entanto, seria pavoroso. Ergueu-se:

        —  Por acaso você pretende fazer outra coisa?

        —  Porquê?

        —  Porque você está negando com tanta resolução em vir junto!

        —  Não estou negando, em absoluto, eu...

        —  Tem um compromisso com ela?

        —  Com quem?

        Ela riu, com um leve tom de desespero:

        —  Ah, mas não faça assim! Já faz tempo que você não a vê, não?

        —  Que inferno, quem? — perguntei, furioso. De fato eu não sabia.

        —  Jolanthe.

        —  Ah, meu Deus! — falei e ri.

        —  Qual é a graça?

        —  É muito engraçado. Ela começou a chorar.

        —  Ora, ora — concluí.

        —  Depois de tudo que fiz, que passei — soluçou —, você se comporta dessa maneira! Se expresso um pequeno desejo, você...!

        —  Ah, meu Deus!

        —  Sim, ah meu Deus, ah meu Deus, ah meu Deus! — súbito irrompeu num grito furioso. — Tenho dó de você! Coitado, você está mal, hem? Você está sofrendo, hem? Comigo, em especial, não é? Como é que a gente se sente como Jesus Cristo?

        —  Acabe com isso, Margaret, e não seja ridícula. Pois bem, vou junto. Onde vamos nos encontrar?

        —  Não precisa, se não quiser.

        —  Deus do céu, quero sim!

        —  Não há motivo para gritar comigo!

        —  Não estou gritando! — gritei.

        Levantou-se e voltou para a villa pisando no gramado, passou pelo pavilhão de cristal, em cujas vidraças faiscavam os raios de sol.

        Num salto levantei-me e fui caminhando, apressado, atrás dela. Alcancei-a junto ao pavilhão.

        —  Desculpe — pedi. Para meu espanto, num relance agarrou-se em mim, com fúria, e cobriu meu rosto de beijos. Sua respiração era descontínua, aos baques, e pelas faces escorriam lágrimas inexplicáveis.

        —  Que está havendo, Margaret, que é que você tem, pelo amor de Deus?

        —  Nada — murmurou, comprimindo-se contra mim —, nada, Roy, absolutamente, ah, sou é uma tola, horrivelmente tola! — Puxou-me a seu encontro e beijou-me apaixonadamente. Depois se soltou. Dei-lhe meu lenço. Enxugou o rosto.

        —  Você tinha outro plano — falou baixinho.

        —  Nada disso — menti.

        —  Tinha, sim.

        —  Não mesmo.

        —  Pois bem! — Sua expressão voltou ao normal, recuperando sua antiga e fria beleza. — Ainda tenho que ir ao cabeleireiro — disse devagar e fitou-me de modo esquisito. — É melhor nos encontrarmos na cidade.

        —  Mas como você vai para lá?

        —  Joe me levará no carro dele.

        —  E onde vamos nos encontrar?

        —  No Filmcasino, às sete e meia — sugeriu.

        —  Perfeito — falei. Aliás, por um momento tive a impressão de que tudo estava em perfeita ordem. Mas era uma falsa impressão minha. Não iria ao encontro de Margaret no Filmcasino.

        Após Margaret haver partido com Joe Clayton — às três horas, mais ou menos —, ainda esperei uma meia hora, depois vesti meu smoking e, em frente ao espelho, coloquei a peruca. Pus meu chapéu sobre ela e por cima do smoking atirei um guarda-pó cinza. Fui até a garagem, retirei o carro e parti em direção da Policlínica de Munique. Estacionei o carro num enorme terreno baldio, isolado por uma cerca, e a seguir caminhei para a casa da portaria do grande conjunto hospitalar.

        —  O senhor deseja algo? — perguntou o porteiro.

        —  Sou autor de roteiros cinematográficos — falei. — Pretendo escrever a história de um filme que se passa em ambiente médico, e preciso de algumas informações.

        —  Hem? — disse ele, interessado. — Quer dizer que escreve filmes?

        —  Sim.

        —  E de que informações precisa?

        —  Sobre doenças cefálicas — expliquei-lhe. — É um filme sobre um homem que tem um tumor. A quem posso me dirigir, aqui?

        —  A alguém da clínica de neurologia — falou, saiu de sua cabina e apontou-me o caminho. — Lá, subindo, depois à esquerda, três casas adiante, depois novamente à esquerda e então dobre fechado à direita, é o edifício amarelo.

        —  Obrigado — disse-lhe.

        O ambulatório neuropsiquiátrico da policlínica estava situado em plena área verde. Junto à entrada havia alguns bancos, onde estavam sentados pacientes com seus familiares, ao sol de outono. Ninguém me notou quando entrei no edifício. Procurei dar com algum médico ou uma enfermeira, mas os corredores estavam vazios, e meus passos ecoavam alto no grande silêncio do local. Numa porta li em uma placa a inscrição "Médico de Plantão". Bati e entrei.

        Na saleta branca estava sentada, atrás de uma máquina de escrever, uma jovem mulher com um sobretudo de médico.

        —  Deseja alguma coisa?

        —  Não sei se é aqui mesmo, mas eu desejava...

        —  Aliás como foi que o senhor entrou?

        —  O porteiro mandou-me até aqui.

        —  E o que é que o senhor quer aqui? — Olhou-me com desconfiança.

        —  Sou autor de roteiros cinematográficos — recomecei, com paciência, a dizer. — Pretendo escrever a história de um filme que se passa num ambiente médico, e necessito de algumas informações.

        —  A respeito de quê?

        —  Sobre doenças cefálicas — sorri amistosamente. Segurava na mão o chapéu. Esperava que a peruca estivesse assentada corretamente. — O protagonista de meu filme é um homem que tem um tumor.

        —  Porquê?

        —  Por que o quê?

        —  Por que tem ele um tumor?

        —  Porque... isso faz parte da história — a custo consegui dizer. — É a história de um homem que possui um tumor.

        —  É um filme alemão?

        —  Em parte — falei. — Sou americano. Vamos rodar o filme em co-produção, para os Estados Unidos e a Alemanha.

        —  Ah bem — disse ela.

        —  É — articulei.

        Depois disso, ninguém falou uma palavra. Olhamos um para o outro e nos calamos. Talvez a peruca estivesse torta, pensei, em pânico repentino. Por que não passei, antes, pela toalete, para ver pelo espelho?

        A jovem atrás da máquina de escrever fitou-me com um olhar de quem soubesse tudo a meu respeito. Eu já não estava mais suportando.

        —  O que foi? — perguntei.

        —  O senhor trabalhou em Hollywood?

        —  Claro.

        —  Conhece Alan Ladd?

        —  Lógico.

        Seus olhos brilharam.

        —  Dele eu gosto em especial — admitiu, com uma fisionomia feliz.

        —  Ah bem — concordei. E em seguida, pela primeira vez em minha vida, disse algo simpático a respeito de Alan Ladd. Disse que o considerava um grande ator. Isso lhe enterneceu o coração. Um minuto depois deu um telefonema para o chefe. E dois minutos depois eu já estava de posse de um cartão para livre trânsito. Três minutos depois já estava caminhando ao lado de uma jovem enfermeira através de enfermarias e compridos corredores em direção ao laboratório do médico do ambulatório, a quem me haviam anunciado como roteirista americano à cata de informações. O médico chamava-se Kletterhohn. A jovem atrás da máquina de escrever chamava-se Rüttgenstein. A Dra. Rüttgenstein disse que o Dr. Kletterhohn teria o prazer de me fornecer todas as informações de que eu precisasse. Era só ir perguntando. Tudo isso era muito simples. A Dra. Rüttgenstein apenas comuniquei que Alan Ladd estava previsto para ser o ator principal de meu filme.

     

        —  Pois não, Mr. Chandler, em que posso ajudar?

        O Dr. Kletterhohn recostou-se na poltrona e esfregou uma na outra as mãos brancas e carnudas. Estava sentado em frente dele. A sala do Dr. Kletterhohn estava confortavelmente instalada, a vista da janela dava para o parque. Acima de sua escrivaninha Kletterhohn havia prendido um quadro mostrando uma manada de cavalos selvagens que, saindo diretamente da moldura, parecia precipitar-se para cima do observador. Era um imponente quadro a óleo.

        —  Sou escritor de roteiros de cinema — recomecei pela terceira vez — e pretendo escrever um filme cujo protagonista...

        —  ...tem um tumor, eu sei. — Era alto. magro e tinha um nariz aquilino, forte, bem como um bigode descuidado e manchado, pendendo por cima dos cantos da boca. Os olhos mostravam expressão jovial, embora ele devesse contar pelo menos uns sessenta anos.

        —  De vez que sou completamente leigo em medicina, gostaria de saber, através do senhor, de que métodos se serve para averiguar e constatar a existência de um tumor dessa natureza, ou seja, também que possibilidades existem de operação, e de que maneira um semelhante tumor modifica o próprio paciente.

        —  Pois bem — disse, apertando novamente as palmas da mão — parecia um hábito constante seu —, mas isso é um campo muito vasto.

        —  Gostaria apenas de ter alguns pontos de referência, a fim de evitar descuidos ou erros mais graves.

        Refletiu por um instante. A seguir, fez-me um resumo panorâmico, muito inteligente e completo, dos primeiros sintomas (que eu bem conhecia), sobre o primeiro colapso (que também conhecia), até chegar aos diversos métodos para averiguação e exame (de que eu ainda guardava a lembrança). Escutava com atenção e fazia anotações, enquanto ia verificando com satisfação que chegávamos cada vez mais perto daquela parte de suas exposições que me interessava em especial. O Dr. Kletterhohn jamais hesitava, um momento sequer, em me iniciar, me confidenciar quaisquer artimanhas médicas ou truques psicológicos feitos com o paciente. Eu era um autor, estava escrevendo um filme. Minha saliente peruca sufocava cada indício de suspeita que se pudesse manifestar. Tudo era muitíssimo simples. Uma meia hora depois estávamos chegando no capítulo sobre "ventriculografia", e então me empertiguei, atento.

        —  Naturalmente, antes desse exame exigimos do paciente sua concordância por escrito — disse ele.

        —  Para quê?

        —  Durante a intervenção, verificando-se que o tumor é maligno, operamos imediatamente.

        —  O senhor quer dizer, sem deixar que o homem recobre a consciência?

        Aquiesceu com um sinal de cabeça:

        —  E uma operação dessas na cabeça já é, invariavelmente, uma coisa complexa. As vezes ela sai errado. Daí nossa necessidade de estarmos garantidos pela anuência do paciente.

        Meus lábios estavam secos e os umedeci antes de fazer a pergunta seguinte:

        —  A partir da ventriculografia existem, portanto, apenas duas outras possibilidades: ou a excrescência é inofensiva, e os senhores não operam. Ou é perigosa, e os senhores operam. E, naturalmente, nisso há duas alternativas: ou o paciente escapa, ou o paciente não escapa. Pois é assim, não é mesmo?

        —  Não — disse o médico.

        —  Não?

        —  Há ainda uma terceira possibilidade — esclareceu-me, assumindo uma expressão de apaixonado fervor. — Podemos constatar, durante o exame, que o tumor é perigoso a tal ponto que uma operação acarretaria inevitavelmente a morte do paciente.

        —  Também existe algo assim... — perguntei, com a voz rouca, velada, como que distante. Pigarreei. — Um tumor que não se possa extirpar?

        Esfregou as mãos.

        —  Mas claro que sim, Mr. Chandler — exclamou, radiante. — O senhor não vai acreditar quantas vezes isso acontece, ou vai? O pior tumor que conhecemos é o que chamamos de glioma.

        —  O que há de tão ruim assim com ele? — (Glioma, escrevi no meu papel. Marquei com uma cruz antes da palavra).

        —  O fato é que seus contornos não são demarcados com nitidez. Por isso não se consegue cortá-lo. Porque jamais se é capaz de dizer quando é que ele começa e quando acaba.

        —  Pavoroso — disse eu num sussurro, e marquei sobre a cruz com mais força.

        —  O homem de seu filme deveria, naturalmente, ter um glioma assim.

        —  Porquê? — Empertiguei na cadeira.

        —  O senhor dizia que ele ia ter apenas mais um ano de vida. E é aí que se baseia toda a história... ou não?

        —  É — falei e ri —, aí é que se baseia toda a história. Tem que ser um glioma, é o melhor. Fico realmente grato ao senhor, doutor, para mim o senhor está sendo de um valor inestimável.

        —  Mas, por favor!

        —  Não, de fato está sendo! Não saberia o que teria feito sem o senhor!

        —  Fico contente com isso, Mr. Chandler.

        —  E então o que acontece quando o senhor verifica tratar-se de um glioma?

        —  Absolutamente nada. Voltamos a fechar os dois orifícios abertos, e terminamos o assunto.

        —  Hem? — articulei. — E o paciente? Então lhe comunicam que ele tem uma doença incurável?

        —  Pelo amor de Deus! — sacudiu a cabeça. — Evidentemente que não! No máximo, dizemos isso a seus familiares.

        —  E a ele, o que os senhores dizem?

        —  Dizemos-lhe que, com a operação, identificamos a não periculosidade da excrescência e que, por isso, não achamos necessidade alguma de operar.

        —  Mas isso é uma mentira!

        —  Claro, Mr. Chandler. Que interessa ao pobre sujeito saber da verdade? Ele iria piorando cada vez mais depressa. Além do mais, depois do exame ele já está muito maltratado. Aí, merece um pequeno repouso. Dizemos a ele que deverá descansar e depois voltar. E quando ele volta, nós lhe fazemos um tratamento com raios de cobalto.

        —  De dois em dois ou de três em três dias — falei e calei-me apavorado.

        —  Como o senhor sabe disso?

        —  Li isso alguma vez — repliquei de imediato, e ele fez um movimento de cabeça, tranqüilizado.

        —  Sim, de dois em dois ou de três em três dias. De vinte a vinte e quatro aplicações, ao todo.

        —  E ajudam na cura? Kletterhohn encolheu os ombros:

        —  É difícil dizer. Às vezes mais, às vezes menos, mas sempre um pouco. Nesse estágio, depende inteiramente da disposição. E de auto-sugestão. É o estágio mais agradável para o paciente. Posteriormente, apenas uma situação algo amena ainda se segue.

        —  Ah sim — falei. — O que é que vem então?

        —  Então, lentamente, vai-se sucumbindo — concluiu o Dr. Kletterhohn.

       

        Ele acabara de proferir minha sentença de morte, sem saber. Estava sentado à minha frente, alto, magro e amável, e sacudia a cabeça, aquiescendo: — Sim, Mr. Chandler, é uma doença temível. Atualmente já conseguimos ajudarem muitos casos... mas na maioria... — Ergueu as mãos e deixou-as cair novamente.

        —  E que aspecto tem, essa agonia? —perguntei.

        —  Por que o senhor deseja saber mais isso também? Com efeito, é por demais penoso! Não se admitiria mostrar isso no filme.

        —  Realmente não queremos mostrar — falei. — Entretanto, preciso saber, mesmo as coisas que eu não possa mostrar.

        —  Seu protagonista deverá viver ainda algum tempo após ter sido examinado?

        —  Temo que sim — disse eu. — Alias, é so então que o filme começa verdadeiramente.

        —  Quanto tempo ele deverá viver?

        —  Tanto quanto possível. E lhe pergunto: quanto tempo, então, é possível?

        —  No máximo um ano — falou, refletindo. — Nem sequer isso, a maioria das vezes. Isso depende do resultado obtido com as aplicações de raios.

        —  E no mesmo ano ele, relativamente, ainda continua lúcido? Quero dizer: a morte vem de repente, ou o paciente vai perdendo o juízo lentamente, ou o que é que acontece?

        —  Às vezes a morte chega de relance, através de uma apoplexia cerebral. E o indivíduo morre num segundo. No meio de uma frase que estiver dizendo, no meio de uma palavra que estiver escrevendo.

        —  Bem — falei, aliviado.

        —  Mas ele, então, terá tido sorte — disse o médico.

        —  E quando é que não tem sorte?

        Dentro do quarto ia aos poucos escurecendo; o sol já se tinha posto.

        Kletterhohn levantou-se e acendeu uma luminária de luz solar elétrica, que começou a arder como um grande olho vermelho.

        —  Quando não tem sorte, inicia-se um processo muito desagradável de desintegração psíquica e física.

        —  De que forma?

        —  No começo, manifesta-se psiquicamente. O cérebro modifica-se. O homem desenvolve peculiaridades de caráter que não possuía anteriormente.

        —  Por exemplo?

        —  Por exemplo, ele se torna irremediavelmente desconfiado. É um sintoma típico.

        Desconfiado! Assustei-me. Um sintoma típico...

        —  Admite para si que todo mundo o engana. Não confia em mais ninguém. Sequer em suas próprias percepções. Assim vai passando para uma lenta demolição de seu senso de convivência social. Perde o contato com o meio ambiente, torna-se arredio, reservado, ardiloso.

        —  Ah sim — articulei.

        —  O estágio seguinte — prosseguiu Kletterhohn — é a conseqüência da primeira transformação. O paciente desenvolve características egoísticas, anti-sociais. Ele só continua pensando em si mesmo. Perde a faculdade de distinguir entre o bom e o mau. Fica amoral.

        Escrevi no papel: desconfiado, egoísta, anti-social, amoral.

        Parecia até um horário de viagens.

        O meu guia, o itinerário de minha viagem.

        A estação final desse itinerário chamava-se morte.

        —  Amoral, não imoral — disse o médico. — Ele não atua contra sua moral, ele não tem mais moral. Noções de propriedade, consciência de responsabilidade, laços religiosos e íntimos perdem toda significação.

        Nosso homem poderá roubar, enganar, trapacear, levar uma vida sexual imoderada, cometer assassinatos... sem com isso sentir coisa alguma, sem possuir sentimento algum relacionado aos crimes de que se torna culpado. Um homem com um tumor em estágio avançado levará, possivelmente, uma existência muito perigosa, trata-se de um indivíduo que seria melhor conservar atrás das grades.

        De repente, senti um mal-estar terrível, minhas mãos ficaram úmidas de suor.

        —  É pavoroso — falei —, é verdade que essa doença é freqüente?

        Olhou para mim de um modo estranho:

        —  Sabe, Mr. Chandler, às vezes tendo quase a acreditar que é a doença da nossa época... A explicação de toda essa loucura que está acontecendo hoje!

        —  Como explica essa sua opinião?

        —  Vejamos — disse ele —: também a nossa época não perdeu a razão? Todo o sofrimento, todo o caos e todo o horror deste século, não haveríamos de atribuí-los ao fato de nos termos tornado incapazes de pensar corretamente? Nossos cérebros alteraram-se, não mais conseguem apreender simples inter-relações humanas nem compreendê-las, e falsificam as mais simples verdades humanas. Mente doente, mundo doente: para mim, às vezes meus pacientes nada mais são do que símbolos com vida.

        —  Hum — articulei. Em seguida levantei a cabeça: — Esses fenômenos de desintegração que o senhor acaba de mencionar, é obrigatório que ocorram?

        —  Isoladamente, alguns deles invariavelmente surgem.

        —  E o doente fica consciente de seu estado? Quero dizer: ele sofre com seus atos? Sente-se envergonhado com eles?

        —  Em alguns casos. Mas, na maioria, o que ele faz não chega ao nível de sua consciência e então sente que é absolutamente natural ficar nu ou roubar dinheiro.

        —  Apesar disso, o senhor poderia imaginar um homem que nesse ultimo ano de vida ainda se comporte de modo relativamente normal?

        —  Estaria dentro dos limites da probabilidade médica.

        —  Bom — aquiesci.

        —  Mas o senhor, exatamente, me contou que o homem é um criminoso.

        —  Ele é um criminoso — concordei —, mas não é um demente. Embora os perpetre, seus crimes não são notados. Ele deve ser um criminoso muito esperto.

        —  Sim — concordou.

        —  E quanto às dores? — eu quis saber ainda.

        —  Naturalmente elas aumentam.

        —  É possível fazer alguma coisa para evitá-las?

        —  No começo, sim. Depois, só morfina ajuda. E, pois, evidente que o doente procura obtê-la custe o que custar. E quando consegue, a droga tira-lhe as últimas inibições remanescentes.

        —  E também a dor?

        —  Também a dor — respondeu. Esse aspecto era muito importante.

        —  Como termina seu filme?

        —  Precisamente ainda não sei — disse. — Para mim, a melhor maneira seria o homem, certo dia, constatar que está terminando com seus dias de vida de forma rápida e repugnante, e então matar-se antes de tornar-se um cretino basbaque, um débil mental.

        —  Compreendo.

        —  Bastaria tomar bastante morfina?

        —  Claro.

        —  Então — concluí — provavelmente é assim que vou deixá-lo morrer.

        A porta abriu-se e entrou a Dra. Rüttgenstein, com quem eu havia falado em primeiro lugar. Tinha na mão uns papéis. Levantei-me.

        —  Fique sentado, por favor — disse ela gentilmente —, estou saindo logo.

        —  Já sei tudo que é necessário. O Dr. Kletterhohn foi muito gentil comigo.

        —  Espero ter-lhe prestado algum auxílio complementar.

        —  Oh sim, de fato o senhor o prestou, muito obrigado. Juntei minhas anotações e estendi a mão para a doutora.

        —  O senhor crê que Alan Ladd me daria um autógrafo? — perguntou ela.

        —  Vou-lhe escrever ainda hoje. Qual é o seu prenome?

        —  Veronika.

        —  A senhora receberá a foto. Vou pedir para que a remetam ao hospital.

        Despedi-me de Kletterhohn, coloquei o chapéu e dirigi-me para a porta.

        —  Rüttgenstein com dois T — falou a doutora.

        —  Com dois T — repeti sorrindo e tirei o chapéu mais uma vez. Como a coisa aconteceu, não sei dizer. Mas sei que, no instante seguinte, senti que minha cabeça estava lisa. Olhei para o chapéu. A peruca estava aderida a ele. Eu a retirara da cabeça junto com o chapéu.

       

        O Dr. Kletterhohn ergueu-se de um salto. Fitou-me com os olhos arregalados.

        —  Mr. Chandler... — murmurou a doutora.

        —  É o senhor mesmo... — murmurou o médico.

        —  Sim — falei com voz rouca. Em seguida, dei as costas e saí correndo para o corredor.

        —  Espere! — gritou o médico. — Pare!

        Escutava seus passos. Ao virar, correndo, a primeira curva do corredor, olhei em volta. Estava me perseguindo.

        —  Mr. Chandler! — gritou. — Pare aí!

        Eu corria como se fosse questão de vida ou morte. Algumas pessoas, médicos e pacientes, saíam de diversas portas.

        —  Detenham-no! — gritou o médico, em minha perseguição. — Detenham esse homem!

        Uma enfermeira atravessava meu caminho. Corri direto ao encontro dela. Num cambaleio recostou-se contra a parede, deixando-me solto. Agora já eram muitas as pessoas que corriam em meu encalço. Partiam para cima de mim de todos os lados.

        Escorreguei pelo chão encerado. Vi mãos que se esticavam para me agarrar, vozes que gritavam em confusão. Aí avistei o elevador. Uma cabina vazia estava descendo exatamente no momento em que eu passava — arrisquei-me e deixei-me cair para frente. Resvalei de viés para dentro da fenda que se estreitava rapidamente, entre o assoalho e o teto do elevador, e caí sem me deixar machucar. A cabina continuou deslizando para baixo. Chegando ao andar térreo, saltei para fora, ao ar livre. O Vestíbulo estava vazio, meus perseguidores ainda não me haviam alcançado. Saí correndo pelo parque afora, já no escuro do lusco-fusco, descendo pelo caminho que levava à casa da portaria. Escutei o barulho de várias vozes exaltadas atrás de mim. Algumas pessoas, que eu encontrava pelo caminho, ficavam paradas e me acompanhavam com o olhar.

        O porteiro telefonava, absolutamente não me viu passar. Desci correndo pela rua até o terreno baldio onde estava meu carro. O tráfego era intenso, carros e mais carros moviam-se nas duas direções. Arfava quando me voltei mais uma vez. No portão de entrada do hospital vi a Dra. Rüttgenstein parada em meio a um grupo de pessoas. Discutiam e agitavam-se, apontando com as mãos, mas haviam cessado a perseguição.

        Esperei até que nesse meio tempo minha respiração voltasse ao normal, em seguida joguei fora o chapéu e recoloquei minha boina. Tomou-me uma sensação de leveza e plena paz. Agora que conseguia admitir com certeza que estava marcado pela morte, fui assaltado por uma monstruosa satisfação pela minha própria esperteza. Estava excepcionalmente bem-humorado quando cheguei até o carro e me sentei atrás do volante. Dei um marco ao vigia do estacionamento. Enquanto saía com o carro para a rua, assobiava a "Barcarola" dos Contos de Hoffmann.

        Só quando cheguei ao Stachus foi que ela disse alguma coisa.

        Estava sentada atrás de mim; parecia, eu diria, ridículo não havê-la notado antes. A culpa podia ser da escuridão que de súbito irrompera. Estava quieta, sem um movimento, e primeiro vi seu rosto no espelho retrovisor, quando então sua voz ressoou: — Boa noite — falou Margaret.

       

        —  Boa noite, Margaret — falei. Tive, de novo, vontade de assobiar, mas dominei-a.

        —  Hoje à tarde fiquei tão agitada, você estava tão esquisito. Então pedi a Joe para seguir você. — Em silêncio, continuei dirigindo até a Lenbachplatz, bem devagar e com cuidado.

        —  Você esteve no hospital?

        —  Estive.

        —  Foi... por causa de sua cabeça?

        —  Foi, Margaret.

        Colocou uma das mãos sobre meu ombro:

        —  E... e eles lhe disseram?

        Nesse instante, num relance soube exatamente como devia levar a situação a um termo.

        —  Sim, eles me disseram. Expliquei que, como autor de filmes, precisava de algumas informações, e então me disseram. Agora sei o que se passa.

        Conduzi o carro junto ao meio-fio e parei. Estávamos em frente do Cine Luitpold, já era quase o início da sessão das seis e meia e muita gente aguardava do lado de fora. Estavam passando Ninotchka.

        Tivesse ela simplesmente prestado atenção, ainda no último instante identificaria a armadilha, pensei. E de repente viu que eu não podia saber nada...

        —  Você sabe... — murmurou, emudecendo a voz.

        —  Sim. — E então arrisquei: — Um glioma — falei em voz alta. — Não podem me operar.

        Olhei para ela no espelho retrovisor. Seu rosto estava pálido e imóvel.

        —  Você sabia — falei.

        Assentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra.

        —  Disseram a você?

        De novo concordou com um movimento de cabeça.

        —  Afora você, alguém mais sabe... os Baxters ou...?

        —  Claro que não — falou num murmúrio. Esperei que ela fosse irromper em lágrimas, mas me enganei. Permaneceu na maior calma, uma calma insólita. — Ninguém sabe. Somente eu. Eu... eu não podia lhe dizer, Roy.

        Portanto, agora eu estava sabendo definitivamente. Foi, por assim dizer, de uma simplicidade pueril, o modo de saber a verdade. Meti a mão no bolso.

        —  Agora posso recolocar a peruca — falei, e coloquei-a na cabeça. Olhou para mim com olhos arregalados. — Hem? — articulei e virei-me para ela. — Gosta de mim assim? Não é uma peruca magnífica?

        Abriu a boca, pretendendo dizer alguma coisa, mas as palavras não vinham. Em vez disso, subitamente começou a rir. Um riso que ressoava como que convulsionado, pesadamente histérico. E ria, ria, sem parar.

        —  Pare — pedi-lhe.

        Não parou. Não conseguia mais parar de rir. Aí também comecei a rir. Ríamos os dois até as lágrimas, até o ponto de termos de nos esforçar para puxar o ar. Abruptamente, calamo-nos. E um medo pânico estampou-se em seu rosto. Eu sabia de quê: tinha medo do que eu agora iria dizer. Ela não precisava sentir medo, naquele minuto estava muito inofensivo, muito pacífico, divertido e bem disposto.

        —  É — falei —-, então, agora, depois do susto, vamos jantar. Estou com uma fome tremenda.

        Fomos ao Humpelmayr e pedi um cardápio enorme, dos maiores que já consumi em minha vida. Para acompanhar, primeiro tomamos um dry pale sherry, de entrada; para os pratos principais um Heidsieck Monopole brut; e na sobremesa Courvoisier e cafezinho.

        O atendimento foi uma maravilha. Da florista comprei uma rosa branca, grande, para Margaret. O prato de lagosta, repeti-o duas vezes. Minha mulher estava sentada à minha frente, a princípio ainda estarrecida, como se esperasse para qualquer instante o meu colapso definitivo. Como não veio, e como me comportava de forma absolutamente normal, ficou mais tranqüila. Depois do filé ela também mostrou que tinha fome. E dos aspargos comeu duas vezes. Foi um jantar que teria sido impossível ser mais bonito e mais sereno. Não mencionamos uma vez sequer o fato de minha morte para dentro em breve. Havia anos que não comia com Margaret de forma tão agradável. Achei-a muito bonita. O cabeleireiro que ela freqüentava tinha talento. Fiz-lhe um elogio. Ela respondeu, referindo-se a minha peruca. A respeito de bomba de chocolate da sobremesa, estávamos felizes com a mesma opinião: era a coisa mais saborosa que jamais nos haviam servido na região.

        Margaret levava na mão a rosa branca quando deixamos o local, e eu conservava a peruca na cabeça. Fomos de carro para o teatro, onde senhoras e cavalheiros, solenemente trajados, preparavam-se para desfrutar uma noite extraordinária. Encontramos os Baxters imediatamente, que já estavam com os bilhetes; tínhamos um camarote reservado exclusivamente para nós.

        O Curvoisier esquentava meu estômago, eu estava um pouco tomado pelo álcool e muito satisfeito comigo mesmo, quando, um quarto de hora mais tarde, do meu camarote, lançava o olhar para a casa cheia, radiosamente iluminada. Em todos os sentidos, fora um dia extremamente prazeroso.

        As luzes apagaram-se. A cortina ergueu-se por cima do cenário de uma rua de Londres, e eu, no escuro, cheguei a tatear à busca da mão de Margaret, e fiquei segurando-a. Inclinei-me para trás. O Gloster de Werner Krauss estava no palco. Em paz comigo próprio e com o mundo ouvi-o falar:

        — E o sol de York fez então do inverno de nossa desesperança um glorioso verão; as nuvens todas que ameaçavam nossa casa jazem sepultas no fundo seio do oceano...

       

        Isso não, Sr. Krauss, Sr. Gloster, Sr. Shakespeare!

        Isso não, meus senhores, não mesmo! Ainda estão lá, as nuvens. O fundo seio do oceano ainda não as tragou. Não as minhas nuvens. Não aquelas que ameaçam a minha casa. Muito pelo contrário, a tempestade ainda é iminente, o palco está apenas sendo armado, ainda.

        —  Pois não afeito, eu, a escândalos e momices... Já estava melhor.

        —  ... ainda enamorar-me com reflexos apaixonados; eu, por natureza, matéria bruta, despido da majestade do amor...

        Despido da majestade do amor — realmente era procedente. Werner Krauss, personificando o Duque de Gloster, mais tarde Rei Ricardo III da Inglaterra, bate com furor os pés ao longo da ribalta. Esse filho feio de Eduardo IV começa, aos poucos, devagar, a conquistar minha simpatia, à medida que prossegue sua fala: — Eu, extirpado dessa bela proporção, pela natureza malogrado na constituição, desfigurado, em abandono, pelo tempo enviado a este mundo, um bem mal-acabado ser, e entrevado e censurável, a ponto de cães latirem por onde eu passar manquejando...

        Os cães latirem, por onde eu passar manquejando.

        Muitos cães que latem.

        Joe Clayton late. Meus amigos de Hollywood latem. Meus amigos em Munique. E malogrado, torto, desfigurado e em abandono — também sou tudo isso. Até mesmo, sou um pouco mais, já que estamos falando sobre isso. Estou marcado pela morte. Soa tão patético. A morte é patética. Será que Ricardo III tinha um tumor? Sabia ele que haveria de morrer dentro em breve? Não. No entanto, ter-se-ia excedido falando tão repleto assim de autocomiseração?

        —  E porque sou, como um apaixonado, incapaz de abreviar estes dias de grande eloqüência, tenho vontade de tornar-me um diabólico malfeitor...

        Um malfeitor?

        Simplesmente porque ninguém o ama? Mormente agora é que ninguém vai amá-lo. Mas talvez isso lhe seja indiferente. Afinal de contas, para mim também é indiferente que alguém me ame ou não. Será que não me importo? Lógico que me« indiferente. Nisso é que me distingo de Ricardo III. Como também no fato de que ele não terá de morrer. Aliás, se bem me recordo, também ele morre. Mas não sabe ainda. Eu sei. Esta é a pequena diferença. Viva a pequena diferença!

        O que faz um homem que sabe que deverá morrer? É sua vontade imediata tornar-se um malfeitor? Não sei ao perto. Em todo caso, no ano que lhe resta ainda poderia fazer algumas coisas úteis, edificantes, agradáveis ao bom Deus. Também eu ainda poderia fazer uma quantidade de coisas.

        Sim?...

        Sem dúvida.

        Por exemplo?

        Poderia matar algum tirano. Um déspota político. De fato, há muitos deles. Poderia entrar furtivamente em seu palácio e ganhar sua confiança, e então matá-lo. Assim me tornaria um herói, e um povo oprimido respiraria enfim. Havia muitos povos oprimidos. Na Europa e em outras partes. Só que eu nada sabia com respeito a eles. E eram para mim totalmente indiferentes. Por que razão deveria matar um tirano? Tantos tiranos já foram assassinados. E, por outro lado, já havia monumentos demais. Pode ser que meu atentado também falhasse e então seria preso e encostado num paredão para ser fuzilado. Assim em nada me ajudaria chamar atenção sobre meu tumor. Não me deixariam esperar até o fim, antecipariam um pouco a data. Seria desagradável ser fuzilado. Talvez me enforcassem. E talvez o povo não desejasse, em absoluto, ser libertado. A maioria dos povos já foi, com bastante freqüência, libertada. Não sentiriam mais prazer.

        Naturalmente também poderia colocar-me à disposição de um pesquisador. Uma cobaia humana. Ele realizaria um experimento comigo, com risco de vida. Com algum novo soro. Combate ao câncer. Ou contra a paralisia infantil. Os jornais se encheriam de fotos minhas. "Heróico roteirista de filmes americanos arrisca a vida a serviço da humanidade." Repórteres de revistas e jornais junto a minha cama. Como está se sentindo, Mr. Chandler? Revele-nos suas impressões! O senhor também vai votar em Mr. Eisenhower se escapar com vida?

        Qual, se eu escapar com vida!

        Digamos, porém, que escape. A experiência é bem sucedida. O cientista recebe o Prêmio Nobel. Ganho uma medalha. E alguns meses depois estou morto. Se eu tiver sorte, na entrega da medalha ainda não tirarei minhas calças, conseguirei ainda controlar meus instintos exibicionistas. Talvez as tire. E é tão grande o escândalo, que irão imediatamente transferir-me para um instituto especial, particular. De volta ao sanatório, ao Sr. Dr. Kletterhohn. Ficará contente em rever-me.

        Ou então um livro.

        Poderia escrever um livro. Um esplêndido livro. O livro do século. O livro que comove o mundo. O livro que milhões de desesperados aguardavam. Sim, disso seria capaz... se pudesse. Só que não posso. Porque sou apenas um indivíduo pequeno, triste, ele próprio desesperado, que não acredita em nada e tem medo, que por isso mesmo mal conseguiria escrever um livro desesperado, angustiado. Não, acho que também isso não seria o certo.

        Naturalmente, há a igreja, sempre. Pessoas que conheço aconselharam-se com sacerdotes e conheceram muitas coisas interessantes. Depois disso, tornaram-se mais tranqüilas e mais felizes. Pelo menos foi isso que me contaram. Os sacerdotes não são absolutamente o que os outros pensam, disseram. Vivencia-se muita coisa admirável com sacerdotes. Mas não sei se devo dar crédito a tais histórias. Para mim o bom Deus jamais funcionou muito bem. Apesar disso, evidentemente poderia tentar, talvez ajudasse. Talvez a paz penetrasse em minha alma, cedesse a inquietação, e ainda passaria um lindo inverno todo branco ao lado de Margaret, na confiança em Deus todo-poderoso e em sua clemente e inesgotável deliberação.

        O pior é que não desejava mais passar inverno algum ao lado de Margaret.

         Agora, não mais.

        Mesmo antes não pretendia fazê-lo; só que então o problema não era tão importante assim. Agora, era contundente. Agora, cada dia contava. Agora, não mais desejava viver ao lado dela. Não, diabos me levem se eu estiver ainda desejando uma coisa dessas!

        No entanto, o que desejava de fato? Viver ao lado de outra pessoa? Ao lado de Jolanthe, por exemplo? Refleti seriamente. Rememorei tudo quanto fizera com Jolanthe. A vertigem e as tresloucadas horas de paixão vieram-me à lembrança, mas outras horas, também: horas de divergência e gélido ódio. Horas tediosas e vazias, insípidas, tolas e irrelevantes. Horas em que não conseguia suportá-la. Passar este último ano ao lado de Jolanthe? Quem ia saber se ela agüentaria tanto tempo assim? De repente, talvez desaparecesse... como acabara de fazer, depois de ameaçar suicídio no caso de eu falecer. Não, também Jolanthe não era o certo! Nada mais era o certo. E ninguém.

        A minha volta as luzes se acenderam e as pessoas aplaudiram como num delírio. Terminara o primeiro ato. Aplaudi também, mal desperto da concentração em que me via absorto. A noite inteira não mais fiquei acordado de todo. É verdade que falava com Margaret e com os Baxters, desci até mesmo ao foyer durante o grande intervalo, mas na realidade continuava era sentado em meu camarote escuro e refletia sobre que iniciativa desejava adotar. Notei que Margaret me olhava vez por outra, preocupada. Sempre que o fazia, eu sorria, tranqüilizando. Tão logons luzes da platéia se apagaram novamente e a peça continuou girando em torno do rei infame, voltei a mergulhar em meus devaneios — com certa alegria, até mesmo alívio, como alguém que do vez em quando se recorda de namoradas de há muito tempo, com saudade e amena tristeza, à noite, no trem, ou no inverno, quando escurece, diante da lareira; ou se lembra de situações ocorridas outrora, em prados floridos, calmos jardins ou clubes noturnos, com a música bem baixa...

        Para casa, pensei.

        Teria gostado de viajar de volta para casa nesse último ano. Para a casa de minha adolescência e para meus pais. Tínhamos uma casa bonita, grande, sentia-me muito feliz morando nela. Porém meus pais haviam morrido, e a casa fora vendida. Para casa! Pois, na verdade, onde mesmo é que ainda me achava em casa? Em quartos de hotel, no estúdio, ou em aviões? Com Jolanthe? Ou com Margaret? Ou comigo mesmo? Onde quer que estivesse, ansiava profundamente por partir para outro lugar. E em outro lugar, voltar para outra parte. Mas sempre desejando ansiosamente ir para longe. Há anos assim.

        Isso talvez fosse o melhor a fazer.

        Ir para outra parte. Ir só. E quando lá as coisas não estivessem como eu desejava, não demoraria a tentar um novo lugar. Havia muitos lugares, se se tivesse dinheiro suficiente.

        Eu teria dinheiro suficiente?

        Não exatamente muito. Gostaria de mais. Todavia, dificilmente haveria de admitir que ainda fosse ganhar mais. Ao menos, não honestamente. De outra forma talvez sim. Talvez fosse minha vontade tornar-me um malfeitor, um criminoso.

        Se quisesse tornar-me um criminoso, poderia ir para onde me desse vontade, para quaisquer locais e países. Tivesse dinheiro suficiente, tudo seria simples neste último ano. E haveria de ser simples. Um último ano com dificuldades eu não conseguiria suportar. Mas iria ser difícil... sem dinheiro. Um homem na minha situação precisaria de dinheiro. Para uma ou outra coisa. Mais tarde, para morfina. Haveria de supor que precisaria de muito dinheiro para morfina. Ainda não fazia uma idéia precisa a respeito dos últimos meses de minha vida, mas era evidente que seriam dispendiosos. Sobretudo se mentalmente não mais estivesse em perfeita ordem...

        Se tivesse dinheiro tudo seria mais fácil. Então estaria livre, poderia estar hoje aqui e amanhã ali e em lugar algum por um tempo suficiente para que me encontrassem e me apanhassem. E se um dia notasse que, na realidade, já estava amolando criancinhas ou então que não conseguia mais comer direito, continuava existindo a morfina. Haveria morfina, sempre.

        Mas eu estava livre! Inteiramente livre! Podia fazer o que quisesse. Não mais compromissos. Nenhuma coação. Sem ambições heróicas. Nenhuma humildade cristã. Nem desespero profissional. Nenhum amor com suas complicações. Somente eu. Eu exclusivamente. Desde sempre gostei de estar sozinho. E estaria de novo sozinho. Maravilhosamente só. Para tanto, precisava, ainda, apenas de dinheiro...

        Abri os olhos.

        Margaret, ao meu lado, fitou-me séria e sem desviar os olhos. Tive a sensação de que já estava me olhando dessa forma há algum tempo. Sorri. Ela também sorriu. Os Baxters olhavam para baixo, para o palco. A peça aproximava-se do final. Na planície de Tamworth apareciam para o rei adormecido os espectros de seus amigos traídos e assassinados. Foram-se levantando sucessivamente na pálida luz da lua em volta de sua tenda e sussurravam suas maldições. O espírito de Buckingham inclinou-se por cima dele.

        —  Continua sonhando — murmurou —, continua sonhando, sonha! Com morte e com ruína! Haverás de te desesperar e morrer em desespero...

        Não era muito agradável nem bonito.

        Contudo, Ricardo III não continuou a sonhar. Bruscamente ergueu-se, espantado, de seu leito e olhou à volta com ferocidade. Os espíritos haviam desaparecido. Nada se movia, nada se mexia nem no palco nem na platéia. Era a grande cena: — Oh vil consciência, como me afliges! Na luz bruxuleante, a meia-noite agoniza. Meus ossos trêmulos cobrem-se de frio suor. De que sinto medo? De mim próprio? Há mais alguém aqui?

        Curvei-me à frente, fascinado, lembrei-me de que certa vez havia lido a peça no colégio, com os papéis distribuídos pelos alunos. Fiz a fala de Ratcliff. Mas ainda conhecia o texto do rei, todas as palavras vieram-me à lembrança, e acompanhei-as em voz baixa: — Ricardo ama Ricardo: isto é, eu sou eu. Há um assassino aqui? Não. — Sim, cá estou. — Então fuja. — Como? — De ti mesmo? Com um bom motivo: gostaria de vingar-me. Como? Vingar-me de mim próprio? Na verdade amo a mim mesmo. Por que coisa? Pelo bem que jamais fiz para comigo mesmo?

        —  Psiu! — fizeram duas vozes furiosas. Espantei-me. Do camarote vizinho uns rostos indignados voltaram-se em minha direção. Calei-me e reclinei-me para trás. Fechei os olhos e escutei a voz do rei: — Tenho de desesperar-me, nenhuma criatura me ama. E morro se alma nenhuma se apieda. Sim, por que outros deveriam ter compaixão? Se eu próprio não encontro compaixão comigo mesmo...

        A voz voltava a esmorecer. Em minha cabeça o sangue latejava forte e quente. Meu sangue. Eu vivia ainda. E meu sangue dizia: para longe.

        Invariavelmente apenas: para longe.

        Extasiava-me com as palavras.

        Longe. Muito, muito longe.

        No palco, Werner Krauss passou descambando para o lado, e implorava gritando por um cavalo, pelo qual sua vontade era sacrificar seu reino.

        Para longe. Longe. Para longe, só isso, dizia meu sangue.

        O sangue em meu cérebro.

        O sangue que afluía para envolver e banhar o glioma.

        Meu sangue.                                                             

        Em meu cérebro.

        Através de um véu, vi o pano cair. Novos aplausos delirantes irromperam, luzes resplandeceram, pessoas gritavam com voz rouca pelo grande ator do papel-título. Este pisou no palco e curvou-se inúmeras vezes. Os aplausos não diminuíram. Entre aqueles que batiam palmas mais alto estava eu.

        —  Wonderful — gritou Ted Baxter para mim. — Ins't he just wonderful?

        —  Yeah — exclamei e bati palmas como um louco. — He's great! Olhei para a ribalta. De lá, Werner Krauss ainda se inclinava

        agradecendo interminavelmente. Todos tinham os olhos sobre ele, somente eu não o via. Via um outro, ali em seu lugar, via-o com a maior nitidez, e aplaudia-o ruidosamente.

        Via a mim mesmo.

        E curvava-me frente a mim, que aplaudia tributando a mim mesmo a homenagem.

       

        Após aquela noite os acontecimentos precipitaram-se um pouco. Pela manhã do dia seguinte tocaram a campainha, e o Dr. Kletterhohn veio visitar-me. Trazia consigo o Dr. Eulenglas. Não lhe custara muito descobrir onde eu morava, fazendo-o indiretamente através da clínica de Eulenglas.

        No começo ambos mostraram-se nervosos e preocupados, porém consegui, com um estado de espírito inteiramente equilibrado, quase com alegria e contentamento, tranqüilizá-los relativamente. Prometi não cometer nenhuma tolice (este o modo como Eulenglas se exprimiu), além de, dentro de alguns dias, também ir bem comportada-mente para a primeira aplicação de cobalto. Não pensava em cumprir minha promessa, de vez que já possuía planos totalmente diversos; todavia, isso preocupava muito a ambos. Também preocupou Margaret. Disse ainda a Kletterhohn que sentira profundamente tê-lo enganado, e ele aceitou minha desculpa. Quando lhe prometi que, apesar de tudo, conseguiria para sua colega a foto com autógrafo de Alan Ladd, examinou-me um pouco ansioso. Suspeitava das minhas idéias.

        A tarde chamei um determinado número de telefone, tinha a sensação inexplicável de que deveria voltar a chamar. Concretamente ninguém atendeu, o telefone continuava ligado ao serviço de informações.

        Jolanthe continuava desaparecida.

        O segundo telefonema, pelo contrário, não foi em vão. As duas vezes que telefonei foi de uma cabina da estação de bondes de Grosshesselohe; eu estava com o carro, Margaret se acalmara a ponto de deixar-me ir sozinho de carro até a cidade.

        —  Alô? — disse uma voz, depois que disquei o segundo número.

        —  Boa tarde, é Chandler quem está falando.

        Seguiu-se um breve silêncio.

        —  Pois não, Mr. Chandler? — falou Mordstein, já com cortesia. Tive a impressão de que o importunava.

        —  Posso dar um pulo até sua casa?

        —  Sim claro... — hesitou. — De que se trata, pode dizer?

        —  Faz tempo que o senhor me fez uma proposta... — comecei a falar, mas interrompeu-me com certa impulsividade:

        —  Claro, isso mesmo! Até agora, tudo bem!?

        —  Queria discutir com o senhor sobre isso.

        —  Ótimo. Quando pretende vir?

        —  Pode ser imediatamente? Tornou a hesitar e disse então:

        —  Em quanto tempo pode estar aqui?

        —  Em dez minutos.

        —  Perfeitamente.

        Ele morava nas proximidades da Estação Ferroviária Central, na Schwanthalerstrasse, eu tinha o endereço. Era um dia de outono, lindo e ensolarado, o calor fazia-me bem. Subi de elevador até o quinto andar e toquei a campainha de uma porta com o número de Mordstein.

        Foi ele mesmo quem abriu. Estava, como sempre, elegante, e trajava um roupão com listras azuis e vermelhas.

        —  Adiante-se — falou e conduziu-me para dentro de um apartamento de solteiro confortavelmente instalado. Uma das janelas estava aberta, e vindos bem de baixo, quase de longe, ruídos da rua entravam baixinho no aposento. Olhei à minha volta.

        —  Sente-se — disse ele.

        —  O senhor está sozinho?

        —  Sim, porquê?

        —  Perguntei só por perguntar — expliquei. De modo estranho tive a sensação de que alguém mais estava no apartamento. Não saberia como justificar essa sensação, mas não se desprendeu de mim. Não era uma sensação inquietadora, melhor diria que era uma impressão que me causava certo estado de satisfação melancólico, pesado e cansado. Havia mais alguém no apartamento, eu sabia. Mas ele disse o contrário... e, portanto, que podia eu fazer?

        Mordstein ofereceu-me cigarros e conhaque. Aceitei ambos. Sentou-se, então, voltado para mim.

        —  Pois bem, o senhor quer documentos? Confirmei com um movimento de cabeça.

        —  Não lhe disse que o senhor viria procurar-me, quando nos vimos a última vez?

        —  Foi. Penso nisso com freqüência. Como é que o senhor foi capaz de saber?

        —  Possuo uma espécie de sexto sentido — falou. — Os papéis são para o senhor somente... ou para mais alguém? — perguntou-me com olhar esquisito, como se à espreita de alguma coisa.

        —  Exclusivamente para mim.

        —  O senhor é casado, não? — perguntou com delicadeza.

        —  Isso não vem ao caso, em absoluto — disse secamente. Nesse momento uma porta bateu lá fora, fechando-se.

        —  Que foi isso? — Dei um salto da cadeira e olhei-o assustado.

        —  Uma porta, por quê? — permaneceu sentado.

        —  O senhor disse que estava só.

        —  É verdade.

        —  E a porta?

        —  Foi uma porta de alguma residência vizinha. — Bebeu um gole e não se mexeu. Virei-me e corri rapidamente até a ante-sala. Estava vazia. Abri a porta de entrada, deixando-a escancarada. Também o corredor estava vazio. Fiquei atento a algum ruído. Mas não ouvi um passo sequer. Enquanto caminhava de volta em sua direção, os passos lentos e envergonhado, senti como minha tristeza enigmática se havia intensificado. De repente, senti um calafrio quando ao pisar novamente no quarto.

        —  Desculpe-me — falei. — Estou nervoso.

        —  Não se incomode. Pois bem, de que precisa?

        —  Um passaporte, uma certidão de nascimento e um atestado de nacionalidade.

        —  Documentos americanos?

        —  Não.

        —  Alemães?

        —  Austríacos — disse-lhe. Levantou os olhos, surpreendido. Então, sorriu um pouquinho: — Desculpe-me pela minha certa exultação, Mr. Chandler, mas não é um desejo um tanto incomum?

        —  Refleti muito bem sobre tudo isso -- falei. — Aliás, uma coisa: se eu souber de alguém que o senhor não tratou confidencialmente a conversa que estamos tendo agora, negarei tudo. O senhor não tem testemunhas.

        Balançou a cabeça:

        —  Ora, ora, Mr. Chandler! Que juízo o senhor faz de mim? Afinal de contas, esta é minha profissão, não é? Não vou me pôr a mim mesmo atrás das grades de uma prisão. O senhor de modo algum jamais esteve aqui... ainda que venha a se lembrar de afirmar uma coisa assim.

        —  Não gostaria de saber por que preciso dos documentos?

        —  Não — respondeu. — Mas se o senhor quer documentos austríacos, teremos de providenciar também uma carteira de identidade. De outra maneira o senhor não passará para a zona russa, pela linha de demarcação.

        —  Está bem—falei.

        —  Com que nomes os papéis devem ser tirados?

        —  Com o nome Walter Frank — disse-lhe, lembrando-me do fabricante da peruca.

        —  Perfeitamente. — Esvaziou seu copo. — Casado?

        —  Não.

        —  Filhos?

        —  Não.

        —  Profissão?

        —  O que quiser, exceto artística.

        —  Lugar de nascimento?

        —  De preferência Viena.

        —  Idade?

        —  Quarenta e cinco, mais ou menos. Concordou novamente com um sinal de cabeça:

        —  Muito bem, Mr. Chandler.

        —  O senhor não anota nada?

        —  Nunca — falou. — Quem o senhor julga que sou?

        —  Posso tomar mais um conhaque? Deu-me a garrafa.

        — Dados a respeito dos pais, profissões, etc, ficam a meu critério, de acordo?

        —  De acordo.

        —  Trouxe fotos para passaporte?

        —  Trouxe. — Entreguei-as a ele. Olhou-as com atenção, em seguida meteu-as no bolso.

        —  Aliás, como foi o exame? — perguntou abruptamente.

        —  Terminou bem, obrigado — disse eu, surpreso com a pergunta.

        —  Fico contente. Quer dizer então que sua saúde vai bem?...

        —  Sim, muito bem.

        —  Ótimo — comentou com desinteresse e sorriu polidamente. Não sei por que lhe disse isso, tudo se passava sob a impressão

        da grande melancolia de que fui presa desde que viera vê-lo.

        —  Escute, Mordstein — disse baixinho —, não estou com saúde. Estou doente, irremediavelmente. E dentro de um ano estarei morto.

        —  Sinto muito — falou, desinteressado como antes. Pigarreou rapidamente, seco. — Quanto deseja pagar como parcela inicial?

        —  Quanto irão custar os documentos?

        —  Não me é possível dizer ainda.

        —  Aproximadamente.

        —  Mais ou menos sete mil — redargüiu, conciso. Eu contara com oito mil.

        —  Bom — concluí—, vou dar agora dois mil. Contou as notas com atenção e colocou-as no bolso.

        —  Quando poderei ter os documentos?

        —  Dentro de cinco dias.

        —  Quer dizer, sábado — falei.

        —  No sábado.

        —  Posso confiar? Preciso confiar.

        —  É sério, se o senhor trouxer o dinheiro. Balancei a cabeça aquiescendo.

        —  Sim, o dinheiro — repeti. A seguir olhei para ele. — Você ainda estaria interessado em um outro negócio?

        —  Estou interessado em qualquer negócio. De que se trata?

        —  De dinheiro.

        —  Que tipo de dinheiro?

        —  Dinheiro que me pertence — disse-lhe. — Marcos alemães. Um bocado de marcos alemães.

        —  E que papel devo fazer nesse negócio?

        —  Poderia ajudar-me a trocá-los por xelins austríacos. Fitou-me com curiosidade, mas calou-se, e tudo que fez então foi apenas começar a sorrir.

        —  E então?

        —  De quanto se trata?

        —  Quanto poderia comprar de mim?

        —  Dependeria. A que câmbio?

        —  Seis — falei.

        —  Cinco, cinco — estabeleceu.

        Depois de muitos acertos, concordamos com a taxa de cinco vírgula oito.

        —  Como vou receber o dinheiro na Áustria? Ainda não é permitido remeter legalmente alguma coisa.

        —  Eu lhe darei o endereço de um amigo. O senhor deposita o dinheiro aqui, em uma conta que vou indicar, e quando for para a Áustria mostrará a ele o recibo. Então recebe dele os xelins.

        —  Onde mora o seu amigo?

        —  São muitos em cogitação.

        —  Um deles mora em Viena?

        —  Sim — respondeu.

        —  Então escolhemos esse.

        —  Está bem — articulou.

        — Um momentinho — ergui a mão. — Quem me garante que vou receber o dinheiro em Viena, havendo depositado já o equivalente em dinheiro?

        —  Eu.

        —  É, justamente.

        —  Isso não é suficiente?

        —  Não — sentenciei. — Vou fazer outra sugestão. Deixarei a importância em marcos, na sua presença, como um embrulho na seção de guarda-volumes da estação central. O recibo de entrega levarei comigo para Viena. Quando tiver os xelins nas mãos, seu amigo terá o recibo.

        Ponderou e sorriu contrafeito.

        —  Como quiser. A idéia é muito boa.

        —  Passei uma noite inteira refletindo sobre ela.

        —  E a importância, de quanto seria?

        —  Quarenta mil marcos — falei.

        Ficou quieto e sorriu. Depois olhou para o copo de conhaque que segurava na mão, oscilando com ele para frente" e para trás.

        —  O senhor é uma pessoa interessante, Mr. Chandler — disse ele finalmente.

        —  A quantia é muito alta?

        —  Quarenta mil marcos são bem mais do que duzentos mil xelins.

        — Sacudiu a cabeça. — Não, não é tão alta assim. Quanto muito, meu amigo lhe dará a importância em duas parcelas.

        —  Combinado — falei. — Então deixaremos dois pequenos pacotes no guarda-volumes. — Levantei-me e estendi-lhe a mão. Ele a tomou e sorriu afinando os lábios. Seus dedos estavam quentes e secos, tive a impressão de que ocultava uma grande excitação.

        —  Mr. Chandler — disse em voz baixa —, enfim o senhor tem mesmo tanto dinheiro assim?

        —  Se não tivesse não teria vindo até aqui. — Na verdade, naquele mês eu tinha, com tudo que havia depositado em minha conta bancária, aproximadamente dez mil marcos. Mas no sábado, às doze horas, teria duzentos mil.

        Toda a operação foi relativamente complicada e, havendo que admitir que a polícia alemã ainda continua ocupada com o caso, é minha intenção fazer um relato mais completo possível dos fatos que me levaram a entrar na posse de uma importância tão grande.

        A iniciativa para a fraude perpetrada por mim foi fornecida por um fato que me aconteceu na primeira semana de minha estada na Alemanha, com Joe Clayton: uma experiência insignificante, de que só muito tempo depois voltei a lembrar-me.

        Foi no dia em que assinei meu contrato. Assinei-o no escritório da companhia cinematográfica, na Theatinerstrasse. A primeira parcela de pagamento já tinha vencido. Joe desculpou-se por não ter o valor no escritório. Precisava ir ao banco a fim de sacar alguns cheques. Se quisesse, podia acompanhá-lo, disse-me.

        O banco ficava perto, e fomos juntos para lá. No meio do caminho Joe Clayton explicou-me uma peculiaridade de nossa firma.

        —  Aqui em Munique na realidade somos apenas uma filial. O quartel-general da companhia fica cm Frankfurt. Lá, no Rhein-Bank, também está o dinheiro. Não todo ele, lógico, mas a maior parte. Uma vez por semana o caixa-geral vem de avião a Munique trazendo consigo dinheiro ou cheques. Desta vez trouxe cheques.

        —  Sim — articulei. Mal escutava o que dizia, interessava-me muito pouco saber como eu recebia meu dinheiro, se ia mesmo recebê-lo. Entramos lado a lado no amplo recinto dos guichês, com sua moderna instalação, do banco, e Joe encaminhou-se imediatamente para o jovem bem-humorado e satisfeito que ele parecia conhecer. Os dois cumprimentaram-se cordialmente.

        —  Bom dia, Sr. Kleinschmied — disse Joe em seu ridículo alemão. — E as trutas, como estão?

        Deduzi que Kleinschmied, como Joe, era um pescador apaixonado. Por possuírem um mesmo hobby, tornaram-se amigos. Depois de conversarem durante algum tempo com a perícia de experts no assunto, Clayton entregou seus cheques. Kleinschmied, apesar de jovem, aparentemente ocupava uma função elevada no banco. Tinha a expressão muito simpática. Quando sorria, descobria duas fileiras de dentes perfeitamente brancos.

        Agora estava sorrindo.

        —  Mr. Clayton, sinto muito mas não posso entregar-lhe dinheiro contra estes cheques!

        Joe enrubesceu.

        —  O senhor não pode? — exclamou em inglês. — Alguma coisa não está em ordem com os malditos cheques?

        Também Kleinschmied falou em inglês:

        —  São cheques cruzados, Mr. Clayton. O senhor deixou de verificar?

        Clayton olhou para os papéis.

        —  Maldição — falou em seguida —, realmente não percebi o detalhe.

        Aproximei-me um pouco mais e fiquei interessado, afinal de contas tratava-se do meu primeiro pagamento.

        —  O que é isso, um cheque cruzado? Kleinschmied entusiasmou-se com o assunto:

        —  Um cheque cruzado é aquele que contém impressa a anotação: para cruzamento. Com isso, pode-se remeter dinheiro de uma conta bancária para outra.

        —  E depois?

        —  Se o senhor nos apresenta, por exemplo, este cheque cruzado aqui, então o enviamos por via postal ao Rhein-Bank em Frankfurt, e o senhor recebe apenas um comprovante de entrega. O Rhein-Bank verifica se o cheque é autêntico e se tem cobertura, e nos devolve com uma marcação correspondente. Quando o recebemos de volta, o senhor também recebe seu dinheiro. É um dispositivo comercial. Instituído para dar proteção adicional contra fraude e facilitar a contabilidade.

        —  Compreendo — falei.

        —  Mr. Chandler, Mr. Kleinschmied — Joe fez a apresentação um pouco tarde. — Mr. Chandler é nosso autor de roteiros.

        —  Muito prazer, Mr. Chandler — disse Kleinschmied. Joe estava contrariado:

        —  Agora como vai ser? Precisamos de dinheiro!

        —  Telefone, então, para Frankfurt — sugeriu Kleinschmied — e peça para fazerem uma remessa por via postal telegráfica. Em uma ou duas horas estará chegando.

        —  Sim, precisamente. Mas o que fazemos com os cheques?

        —  Deixem-nos aqui.

        —  Quanto tempo vai demorar?                                                   

        —  Dois, três dias — replicou Kleinschmied. — Nós os expedimos hoje, amanhã estarão em Frankfurt e depois de amanhã aqui de volta.

        —  Não vai mais rápido?

        —  Raramente, Mr. Clayton.

        —  Fazendo uma exceção... não dá?

        —  Pessoalmente teria muito prazer. Mas temos nosso regulamento. Além disso, Mr. Clayton, trata-se de uma quantia elevada

        — cento e cinqüenta mil marcos.

        —  É, é — concordou Joe. Reconhecia esses detalhes todos. Mas a situação o contrariava.

        —  Um momentinho — exclamei. — Acho que se poderia acelerar a coisa um pouco, sabe?

        —  Como?

        Voltei-me para Kleinschmied e disse:

        —  Enviando os cheques por via expressa a Frankfurt, debitando-nos as despesas, e o Rhein-Bank informa aos senhores, por telegrama, se eles têm cobertura, claro que também arcando nós com as despesas.

        —  Sim — falou Kleinschmied —, isso seria possível. Agora são duas... — refletiu —, o trem da tarde sai às cinco e amanhã está em Frankfurt às cinco da manhã. A carta é entregue com a primeira distribuição postal, chegando ao banco às oito... e às nove ou dez horas poderíamos ter a resposta se telegrafarem imediatamente.

        —  Então vejam! — exclamei com júbilo e em tom de triunfo.

        — Assim o senhor economiza dois dias.

        —  Vamos tentar? — perguntou Kleinschmied mostrando a melhor boa vontade.

        Aborreci-me um pouco com Joe quando retrucou rabugento:

        —  Não, obrigado. Talvez uma outra vez. Prefiro telefonar e solicitar uma remessa telegráfica. Os senhores deixem os cheques seguirem o procedimento normal.

        Como disse, fiquei um pouco aborrecido, eu refletira sobre tudo de uma forma tão admirável. Mas Joe, estupidamente, só telefonou. Embora com sucesso: três horas depois chegava o vale postal ordenado por telegrama e recebi meu primeiro pagamento.

       

        Nas semanas seguintes acompanhei Joe, algumas vezes mais, até o banco e, da mesma forma, fiz alguma amizade com Peter Kleinschmied. Era um homem atencioso e solícito. Por sugestão sua eu mesmo também abri uma conta no banco. Nossa companhia pagava-nos quase que exclusivamente com cheques, e com o tempo fui gravando na memória os nomes dos dois procuradores em Frankfurt que assinavam os cheques. Um chamava-se Liddelton e o outro Hill. Liddelton só escrevia esse seu sobrenome. Hill antepunha as iniciais K.M.

        A cada semana eu levava meus cheques para Peter Kléinschmied, batia um pequeno papo com ele, quando lhe sobrava tempo, e voltava a despedir-me. A pequena cena ocorrida no encontro em que nos conhecemos, logo a esqueci. Mas na noite de 28 de setembro, no final da representação, quando saía do teatro para a rua, tropecei. K ao tropeçar, a cena veio-me à memória novamente. E mais alguma coisa, também. Passei uma noite inteira em vigília, às voltas com essa lembrança adicional. Ao romper do dia já havia elaborado meu plano.

        Foi numa segunda-feira.

        Naquele dia só visitei Mordstein e discuti com ele sobre os negócios principais, que mencionei anteriormente. Na terça-feira fui de carro até a Theatinerstrasse, ao escritório de Joe. Tinha a receber ainda algum dinheiro e, por isso, um motivo legal para interrompê-lo no trabalho. Foi cordial como sempre, e todos os empregados mostraram-se particularmente amáveis comigo. Sabiam que eu fora demitido e estivera no hospital, e manifestaram uma importuna simpatia, cuja persistência me incomodou um pouco.

        —  Na quinta-feira vamos começar, Jimmy — disse Joe, após haver-me conduzido para dentro do seu escritório.

        —  Já vai começar?

        —  Sim, Jimmy, primeiro dia de filmagem. Finalmente!

        —  Parabéns.

        —  Obrigado, Jimmy. — Falava com rapidez, de forma a me dar o mínimo possível de chance para dizer uma palavra. — Iniciaremos com as tomadas externas... no Chiemsee e nas montanhas. Iremos todos, a equipe inteira. Fechamos o escritório por duas semanas. E em Grünwald vocês poderão ter um bom sossego, você e Margaret.

        —  Como assim?

        —  A casa é de vocês! Naturalmente que vou junto com a equipe! Era bem melhor do que eu tinha esperado.

        —  Aí, então, talvez eu pudesse ter meu dinheiro ainda antes, não? — perguntei.

        —  Mas lógico que sim, Jimmy, ora por favor! — Tocou uma campainha e seu contador alemão entrou. Joe incumbiu-o de preencher um cheque em meu nome e trazê-lo para ele assinar. O contador afastou-se. No mesmo momento levantei-me para me despedir.

        —  Você não precisa ir embora já, Jimmy!

        —  Não, não, tenho de ir! Você tem um mundo de coisas a fazer, sei disso! Espero no escritório lá fora.

        Ficou comovido com minha delicadeza e seus olhos umedeceram-se quando apertou minha mão:

        —  Velho amigo Jimmy! Aproveite muito bem as duas semanas.

        —  Então, ainda nos vemos à noite.

        —  Sim, sim — falou confuso—, claro.

        Acenei para ele, novamente, com um movimento de cabeça e entrei na sala do contador, contígua à sua. Ele estava só e naquele momento preenchia meu cheque, com um ar pedante. O talão do qual destacara o cheque estava a seu lado. E o pequeno cofre-forte que continha dinheiro em espécie, documentos e outros talões de cheques estava aberto.

        —  Um momento só, Mr. Chandler — falou, levantando-se. Soprou sobre o papel para que a tinta secasse mais rápido.

        —  Posso ficar esperando?

        —  Por favor — respondeu, e entrou na sala de Joe.

        Um segundo depois eu estava parado em frente do cofre aberto. Uma olhadela, dois movimentos de mão para agarrar... e pronto, tinha o que buscava: um talão de cheques cruzados, já em parte utilizado, emitidos ao Rhein-Bank e à conta da companhia em Frankfurt. Arranquei três folhas não preenchidas, meti-as no bolso e sentei-me novamente. Imediatamente depois, o contador regressou da sala e deu-me o cheque habitual, assinado por Joe. Despedi-me com um agradecimento. O primeiro passo estava dado.

        Fazendo uma retrospectiva, é-me possível constatar que este foi, com efeito, o passo mais arriscado, combinado com o maior e mais perigoso grau de casualidade e coincidência. Todos os outros, embora comparativamente mais excitantes, na verdade foram bem mais simples e ocorreram em conseqüência do primeiro.

        Nos três dias seguintes passei a maior parte do tempo deitado no jardim, repousando. Margaret fez várias tentativas de conduzir a conversa sobre mim, minha doença, o futuro e seus problemas, mas eu frustrava sempre essas tentativas, e ela não tinha a coragem de continuar insistindo contra minha vontade.

        —  Não posso ainda lhe dizer absolutamente nada — expliquei. — Você precisa me dar tempo. Não é fácil para mim.

        —  Não, Roy — sussurrou. — Posso ajudar-lhe de alguma forma?

        —  Deixe-me um pouco sozinho — pedi. Utilizava esses momentos de solidão para um exame preciso e objetivo de minhas chances e das tarefas seguintes. Havia que refletir sobre uma quantidade de coisas. Na quarta-feira pela manhã comecei a praticar a assinatura dos senhores Liddelton e Hill (K.M.). Encontrara uma velha carta comercial que trazia a assinatura de ambos. Não os conhecia. A título de recreação, fiquei a imaginar que aspecto cada um teria. Meu juízo de Liddelton era de um homem baixo, gordo e malicioso, propenso à apoplexia. Hill, tive vontade de imaginá-lo como um asceta, pálido, aspecto monástico, e à noite compelido por instintos obscuros a sair por ruas escuras. À tarde já estava pronto para poder arriscar-me a escrever os nomes nos cheques. Não estavam tão idênticos assim, mas não tinha importância. Pois os cheques jamais deveriam alcançar o Rhein-Bank.

        Preenchi dois cheques. Um no valor de 104.650 marcos alemães, o outro de 84.500 marcos. De propósito não escolhi quantias arredondadas. Com exceção das duas assinaturas, fiz todas as notas à máquina. Poderiam facilmente verificar que era a minha máquina de escrever. Todavia não seria fácil assim verificar onde eu estava. Queimei o terceiro cheque e o papel no qual havia praticado as caligrafias. A seguir, voltei ao jardim para descansar na relva, e fiquei raciocinando.

        Na quinta-feira, à tarde, fui de carro para o banco. Demorei muito pouco tempo e apanhei um dos tantos envelopes comerciais que havia sobre todas as escrivaninhas do saguão dos guichês. No envelope estava estampado o timbre da casa bancária. Coloquei-o no bolso e voltei para casa, onde então, com minha máquina, bati sobre ele o endereço do Rhein-Bank bem como as anotações "Registrado" e "Expresso". No final, meti no envelope duas folhas limpas de papel de máquina e fechei com cola. Esse envelope teria um papel a desempenhar.

        Na manhã de sexta-feira tive uma discussão com Margaret. Disse-lhe que queria passar uma noite junto ao Chiemsee a fim de assistir à filmagem das cenas externas. Ela ficou muito entusiasmada com a idéia e tomou providências para se arrumar para uma viagem rápida. Vi-me forçado a esclarecer o mal-entendido:

        —  Eu gostaria de ir só, Margaret.

        —  Você não quer me levar também?

        —  Não. Prefiro não levar. Olhou para mim, emudecida.

        —  Ah bem... — falou, então, e afastou-se um pouco, desviando o rosto de mim.

        —  Ah bem, por quê?

        —  Nada. — Olhou para longe, para o jardim. Seus ombros tremiam. Estava chorando novamente. Nos últimos dias chorava com muita freqüência.

        —  Por que está chorando?

        —  Não estou chorando — falou num soluço.

        —  Só porque quero estar só por um dia?

        Ficou dando voltas, as maçãs do rosto estavam molhadas, mas nos olhos ardia um fogo louco, para mim nada parecido com compaixão e compreensão:

        —  A questão não é esta, um dia! Sei exatamente que você não vai para o Chiemsee. Também, é indiferente para mim! Mas agora precisamos conversar francamente um com o outro... sobre tudo! Agora precisamos conversar sobre isso!

        —  Porquê?

        —  Porque assim não dá mais! Será que não entende que isso é insustentável para mim? Diga-me a verdade de uma vez por todas! Ou você irá partir, vai-se embora? Fica deitado uma semana inteira no jardim meditando! Sobre o que fica meditando? Não quer me dizer?

        —  Ainda não — repliquei. Mas em mim palpitava um desejo louco de, não obstante, dizer-lhe. Logo, pensei com uma espécie de júbilo, você vai saber, não vai demorar e tudo ficará claro para você, extraordinariamente claro...

        Nossa pequena rusga não teve a mínima conseqüência. Parti sozinho, ela ficou em Grünwald. Disse-lhe que a qualquer hora no sábado eu estaria de volta. Ela registrou isso na resignada convicção de que eu ia à casa de Jolanthe e de que ela nada podia fazer para evitá-lo. Vi-a no espelho retrovisor de meu carro quando parti. Estava parada, imóvel, seu rosto era uma máscara de conturbação e fraqueza.

        Sua idéia fixa de que estava indo encontrar-me com Jolanthe levou-me a um plano repentino. Chegando à cidade dirigi-me a uma agência postal e, ao telefone, solicitei uma ligação com Chiemsee. Pedi para falar com Joe Clayton e tive sorte. Atendeu logo.

        —  Joe — falei com aquele tom de contentamento, chegando ao divertido, que os homens assumem quando falam coisas desse gênero —, você precisa fazer-me um pequeno favor!

        —  Diga, Jimmy.

        —  Contei para Margaret que um dia eu viria visitar vocês e passar a noite no Chiemsee.

        —  Ótimo, Jimmy! Esplêndida idéia! — O tom era sincero, ele realmente ficou contente.

        —  Só que, na verdade, não farei a visita nem pernoitarei no Chiemsee — disse-lhe.

        —  Não?

        —  Não. Vou passar a noite em outro lugar.

        Seguiu-se um silêncio constrangedor. Joe gostava de Margaret. Gostava mais de mim. No entanto, era-lhe desagradável o que estava exigindo dele.

        —  Você entendeu, Joe?

        —  Sim, Jimmy, entendi.

        —  E se ela telefonar...

        —  Sim, Jimmy, está bem. Direi que você está aqui, mas que no momento está dormindo ou pescando ou fazendo uma outra coisa qualquer.

        —  Obrigado, Joe.

        —  De nada. — Uma pausa. Em seguida: — Jimmy?

        —  Sim?

        —  Tem de ser assim?

        —  Tem, Joe.

        —  Margaret é uma boa mulher.

        —  Sim, é.

        —  E no entanto?

        —  É assim mesmo, Joe. Tenho de fazer isso. Preciso acertar algo urgente. — E emendei, dizendo-lhe mesmo a verdade.

        Passei o dia inteiro na cidade. No carro havia colocado uma maleta com algumas peças de roupa e uma bolsa com objetos de toalete. Depois do almoço dirigi-me a um joalheiro na Maximilianstrasse e pedi que me mostrasse jóias. Demorou algum tempo para nos entendermos bem e o joalheiro compreender que era minha intenção investir meu dinheiro em jóias. A partir de então fui tratado com apurada cortesia. Permaneci cerca de uma hora na loja. Finalmente escolhi três peças. Um anel de rubi antigo com brilhantes em forma de uma cobra e incrustado em platina, um anel de esmeralda em concepção moderna e uma tabaqueira de ouro que alojava dois anéis de safira trançados um no outro. Os dois anéis eram trabalhados de forma que um homem pudesse levá-los nos dedos. As três peças custaram, ao todo, trinta e cinco mil marcos. Eu disse que ainda teria de preencher determinadas exigências bancárias e que voltaria no sábado antes das doze horas. Por formalidade deixei mil marcos como sinal e dei meu nome verdadeiro: James Elroy Chandler. Parecia que o joalheiro estava muito habituado a lidar com americanos. Não revelou o mínimo assombro — nem quanto à importância nem quanto a meu modo de comprar jóias. Por volta das quinze horas dirigi-me à agência da Pan American Airways, na cidade, onde apanhei uma passagem de ida e volta para Frankfurt, que reservara por telefone. Elas também foram emitidas com o nome James Elroy Chandler. Tinha motivo para continuar usando esse nome com a maior freqüência possível nas últimas horas em que o utilizei. O avião partiria às dezoito horas, o ônibus de passageiros que levava ao aeroporto deixaria a agência às dezessete horas. Às vinte horas o avião estaria em Frankfurt. Telefonei então para Mordstein e perguntei-lhe se podia contar seriamente com os documentos.

        —  Sim, pois não! — falou. — E eu, posso contar seriamente com o dinheiro?

        —  Lógico que sim — redargüi e coloquei o fone no gancho. Tão logo o fiz, senti forte tonteira e me segurei firme de encontro à parede da cabina. De repente, percebi claramente em que situação me havia metido. Senti ao mesmo tempo calor e frio, mas trinquei os dentes. O acesso de vertigem passou. Enxuguei a testa com um lenço e saí. Eram quinze e trinta.

       

        Fui até o banco e estacionei o carro em frente à entrada, no lado oposto. O trânsito à tarde já começava a se fazer sentir, na rua havia muitas pessoas. Aguardei até cinco para as quatro, sabia que o banco fechava às quatro horas. Às quinze e cinqüenta e cinco deixei o carro e entrei no edifício do banco.

        O saguão dos guichês estava quase vazio, a maioria já tinha sido fechada. Olhei à minha volta. Para alívio meu enxerguei Kleinschmied. Encaminhou-se, sorrindo, em minha direção e cumprimentou-me com satisfação. Eram exatamente dois minutos para as dezesseis horas.

        — Escute, Peter — falei. — Você precisa me ajudar. Estou num autêntico beco sem saída. Minha companhia partiu para fazer tomadas de cenas externas, enviaram-me até aqui... e cá estou eu com dois cheques cruzados. — Coloquei-os à sua frente e observei-o aguçadamente enquanto os apanhava e examinava.

        Um minuto para as dezesseis horas.

        Senti-me como se estivesse no cinema e me visse a mim mesmo na tela. Não mostrei nervosismo algum, o que restava era só um interesse científico de saber se meu embuste seria bem sucedido.

        —  Uma soma elevada, Mr. Chandler — disse Kleinschmied e deixou os cheques caírem sobre a mesa.

        —  É uma parcela de pagamento da produção. Os atores e técnicos estão no Chiemsee sentados à espera do dinheiro. O trabalho pára na segunda-feira se até lá não tivermos descontado os cheques.

        Dezesseis horas.

        —  Senhores e senhoras, pedimos que deixem a sala dos guichês

        — falou em voz alta o contínuo uniformizado junto à entrada.

        —  Lamento profundamente, Mr. Chandler, mas de fato não sei como ajudá-lo. — Kleinschmied ergueu os ombros, desajeitado. Atrás dele, seus colegas de trabalho fechavam suas escrivaninhas. As secretárias andavam apressadas para lá e para cá, reinava uma atmosfera de ebulição geral. A certa distância vi um jovem magro, o rosto cheio de espinhas, indo de mesa em mesa recolhendo a correspondência.

        —  Você não poderia remeter os cheques, por via expressa, a Frankfurt e solicitar uma resposta por telegrama? — perguntei.

        —  Lembra-se, certa vez lhe fiz essa sugestão, na época em que nos conhecemos.

        —  Sim, Mr. Chandler... — Hesitou, rodou os cheques para lá e para cá e refletiu indeciso. — Mas o tempo é verdadeiramente escasso demais. Já fechamos. O trem para Frankfurt parte às cinco, logo dentro de uma hora... não sei como podemos ainda alcançá-lo.

        —  Aquele rapaz ali — disse eu e apontei para o jovem das espinhas, cujos cabelos ruivos estavam soltos em desalinho na cabeça —, ele não vai ainda ao correio?

        —  Sim, mas não à agência da estação, apenas à agência postal da esquina.

        —  Fazendo uma exceção ele não poderia...

        —  Já terminou o expediente para ele também, Mr. Chandler.

        —  Tenho um carro lá fora, eu o levaria até a estação.

        —  Sim...

        Kleinschmied vacilou novamente. Dezesseis horas e três minutos.

        O recinto dos guichês esvaziara-se. O homem uniformizado da entrada dirigiu-se a mim:

        —  Estão acabando de fechar o banco, cavalheiro.

        —  Um momentinho só — falei, e Kleinschmied fez um sinal para o contínuo, que se afastou. Kleinschmied virou-se.

        —  Konrad!—chamou ele.

        O rapazinho dirigiu-se até nós.

        —  Sim, Sr. Kleinschmied?

        —  Você iria com este senhor até à agencia postal da estação, ele leva você de carro, e lá entregar uma carta? É caso de muita urgência.

        —  Muito urgente — falei e dei a Konrad cinco marcos.

        —  Obrigado — disse Konrad. — Sim, Sr. Kleinschmied, à disposição! — Tinha espinhas sem conta e estava numa idade muito infeliz, até sua voz era frágil.

        Kleinschmied olhou para trás:

        —  As moças já foram embora — falou —, mas vou precisar escrever uma carta encaminhando o anexo...

        Levantou da mesa uma máquina de escrever e colocou-a sobre a prateleira atrás do guichê, prendeu uma folha de papel e começou a bater, copiando os números dos cheques. Fiquei olhando para ele. Quando presumi que tinha terminado, corri até uma das mesas e apanhei um envelope. — Aqui, tome logo este aqui! — Pegou o envelope.

        —  Rhein-Bank — bateu sobre ele e, a seguir, escreveu o endereço.

        —  Escreva ainda: expresso e registrado — falei. Ele escreveu.

        Agora o envelope parecia exatamente com aquele que eu tinha no bolso. Kleinschmied meteu os cheques dentro dele e fechou-o com cola.

        —  Dê-me aqui — disse ele a Konrad. Este entregou-lhe um caderno de protocolo, de capa preta, no qual Kleinschmied registrou o endereço da carta. Era o livro de controle de correspondência do banco. A agência postal passava o recibo pelas cartas registradas dando quitação do endereço correspondente anotado no livro. Por último, Kleinschmied deu-me um comprovante pelos dois cheques.

        —  Muito obrigado, Peter — falei. — Palavra que jamais vou esquecer isso de você.

        —  Está bem, Mr. Chandler! — Sorriu, com seu agradável e simpático sorriso. — Mas agora se apresse, para que a carta ainda alcance o trem das cinco horas.

        —  Sim — disse eu —, vamos, Konrad.

        Observei o lugar em que ele colocou a carta em sua pasta. Na pasta já havia muitas outras cartas. A minha ficou por cima de todas. Era uma pasta comum que se podia abrir sem dificuldade.

        —  Passo aqui amanhã cedo, assim por volta das dez horas — falei alto para Kleinschmied enquanto me apressava atrás de Konrad para a saída do banco.

        —  Está bem, Mr. Chandler! — respondeu ele, também em voz alta.

        O contínuo de uniforme segurou a porta aberta quando nos precipitamos para a rua.

        —  Meu carro está do outro lado! — falei. O tráfego estava muito intenso. Deixei que o rapazinho entrasse primeiro, abriu para mim a outra porta e então deslizei para trás do volante. Eram dezesseis horas e doze minutos.

        A pasta com a correspondência ficou entre nós dois, no assento da frente. Conduzi cuidadosamente o carro para a rua. Pusemo-nos a caminho da estação. Chegando à Odeonplatz, dei uma freada brusca, tentei arrancar novamente com a terceira marcha, afogando, assim, o motor. Paramos no meio da pista. Atrás de nós, os automóveis buzinavam, um guarda em sua torre de controle gritou para mim exortando-me a continuar andando. Sacudi a alavanca de marchas fingindo que não conseguia engrenar o carro.

        —  Que está havendo? — perguntou Konrad, meio agitado.

        À nossa volta irrompeu o inferno. Dezenas de carros estavam parados, ressoavam buzinas e vozes, e o guarda atravessou a rua correndo para o local em que estávamos.

        —  O senhor ficou louco? — gritou o guarda. — Por que não continua?

        —  Não posso! — rugi. — A marcha está emperrada.

        E continuei mexendo na alavanca. O guarda correu para trás do carro e tentou empurrá-lo. Eu deixava o motor pegar algumas vezes e o afogava logo a seguir.

        —  Espere aí! — Konrad saiu do carro, a porta bateu, fechando-se. Foi participar também da tentativa de afastar o carro do cruzamento. Pisei firme no freio, a fim de que essa tentativa não fosse coroada de êxito tão cedo assim, e segurei o volante com a mão esquerda. Com a direita apanhei a pasta de correspondência de Konrad e dela retirei a carta expressa ao Rhein-Bank. Meti-a no bolso. Retirei do bolso do casaco a minha carta para o Rhein-Bank na qual estavam as duas folhas de papel vazias, e coloquei-a na pasta. Tudo se passou com muita rapidez e ninguém notou coisa alguma. Konrad e o guarda estavam ocupados em empurrar o carro. Então tirei o pé do freio e arranquei com a marcha. O motor pegou imediatamente e o carro saltou para frente. Konrad veio correndo e num pulo sentou-se ao meu lado. A porta bateu atrás dele.

        —  Sigam! — gritou o guarda. — Vão embora! Parti.

        A carta com os cheques falsificados achava-se agora em meu bolso.

       

        Deixei Konrad junto à agência postal da estação. Acompanhei-o com a vista até ele desaparecer na entrada do edifício, em seguida olhei para o relógio. Eram dezesseis horas e trinta e um minutos.

        Regressei em seguida à agência de viagens da Pan American. Nas suas proximidades havia uma área de estacionamento com vigia. Deixei meu carro ali e fui a pé. O ônibus já estava esperando. Antes de entrar, ainda fui ao toalete da agência. No banheiro rasguei a carta com os cheques falsos em pedacinhos, joguei-os no vaso e dei descarga.

        O avião, um quadrimotor Douglas-Hudson, decolou pontualmente às dezoito horas. No ar o avião penetrou no horizonte do crepúsculo, foi um vôo muito agradável e bonito. Ainda no avião fiz um pequeno lanche. O ônibus que em Frankfurt nos levou do aeroporto até a cidade chegou ao centro por volta das oito e meia da noite. Às vinte e uma horas eu estava no Hotel Europa, onde havia reservado um quarto — também em nome de James Elroy Chandler. E às vinte e uma horas já estava dormindo, um sono profundo e sem sonhos.

        Na manhã seguinte estava chovendo, uma chuva fina, ondulada e desagradável.

        Levantei-me às seis horas, tomei o desjejum às seis e meia e às sete paguei minha conta. A seguir, levei minha mala para o escritório da Pan American de Frankfurt. O avião para Munique saía às nove e meia, o ônibus saía da agência às oito e meia. Apanhei um táxi e fui até o Rhein-Bank, onde tive que esperar um pouco. Às oito horas, quando os guichês foram abertos, informei-me em um deles se um certo Sr. Klaren (Joseph Maria Klaren, de Heidelberg) havia depositado dinheiro para mim, James Elroy Chandler. A mocinha a quem dirigi a pergunta prometeu ir verificar e afastou-se. Três minutos depois estava de volta e comunicou que um certo Sr. Joseph Maria Klaren, de Heidelberg, não depositara nenhuma quantia para mim, isso mesmo, que um senhor com esse nome era totalmente desconhecido pelo Rhein-Bank.

        Mostrei-me bastante surpreendido com essa informação.

        —  Mas isso é muito desagradável — disse eu, confuso. — Absolutamente não sei o que devo fazer agora. Estava contando com toda certeza com esse dinheiro. — Minha fisionomia iluminou-se um pouco. — É possível eu enviar um telegrama?

        —  Sem dúvida - disse a jovem. — Lá fora no saguão de entradas há duas cabinas à disposição de nossos clientes. Peça à senhora dos Correios para informar-lhe de imediato o preço do telegrama, aí o senhor poderá pagá-lo em nossa caixa.

        Agradeci à moça e fui até o saguão, onde me puseram em contato por telefone com a repartição de recebimento de telegrama, de Frankfurt. Ditei um telegrama com o seguinte texto:

        —  Cheques números (inseri os números dos dois cheques falsos, constantes do comprovante de recebimento que Kleinschmied me dera) com cobertura e à ordem de Rhein-Bank Reeger.

        O nome Reeger vi-o num comprovante de pagamento em cheque que uma vez vira com Joe.

        Essa informação que expedi com telegrama-relâmpago custou doze marcos e quarenta pfennig, que paguei no guichê de franquia postal. Com isso cumpria a finalidade de minha estada em Frankfurt, e retornei à agência de viagens. O avião, que deixou Frankfurt às nove e meia, chegou a Munique às onze e quinze. No aeroporto tomei um táxi, fui diretamente para o banco e entrei no edifício às onze e vinte e cinco.

        Mal  entrei vi Kleinschmied. Acenou para mim.

        —  Mr. Chandler, onde esteve todo esse tempo? Tentamos entrar em contato com o senhor pelo telefone!

        —  Foi? — Apoiei-me no peitoril do guichê. — Com quem?

        —  Com sua esposa em Grünwald — disse ele com a voz distante.

        —  Estive... — comecei fracamente, mas ele assentiu com um movimento de cabeça. — Sua esposa disse-nos que o senhor havia viajado para ver Mr. Clayton junto ao Chiemsee.

        —  Sim, correto — falei. Sua voz retomou o tom normal. — O telegrama chegou?

        —  Já, há uma hora atrás.

        —  Ótimo — falei.

        —  Sente-se um momento, vou buscar o dinheiro.

        Sentei-me rapidamente. Se tivesse ficado de pé por mais algum instante não há dúvida de que teria perdido os sentidos. Meus joelhos tremeram de repente, como se estivesse tendo convulsões espasmódicas. Três minutos depois chegou Kleinschmied acompanhado de um outro caixa. O segundo caixa ficou atento enquanto Kleinschmied contava. Recebi meu dinheiro em cédulas de cem marcos, enfaixadas em pequenas pilhas, Kleinschmied dispusera a importância sobre uma bandeja. Eram dezoito pacotes, de cem cédulas de cem marcos cada um, e um pacote com noventa cédulas de cem marcos. Assinei um comprovante como recibo e arrumei os molhos numa pasta que trouxera comigo. Mostrei minha gratidão a Kleinschmied pela sua grande ajuda e desejei-lhe bom fim de semana e muito sucesso na pesca das trutas. Quando deixei o edifício os sinos de todos os campanários de Munique começaram a tocar. Era meio-dia. Ainda sem o Rhein-Bank reclamar em Munique a ininteligível carta expressa contendo as duas folhas limpas, ou por telegrama ou por telefone, eu contava com uma vantagem de quarenta e oito horas até a segunda-feira de manhã. Entretanto, precisava também de providenciar ainda muita coisa.

        Em primeiro lugar, fui buscar meu carro.

        Coloquei a mala no banco de trás, a pasta com o dinheiro no porta-malas, depois de haver transferido uma parte da importância para os bolsos do paletó. Em seguida, telefonei para Margaret e disse-lhe que estava de volta a Munique e que à tardinha gostaria de ir a Grünwald. Os Baxters estavam com ela e mandavam abraços.

        —  Retribuo os abraços — falei.

        —  Obrigada. E venha logo, Roy, comprei filé à vienense para o jantar.

        Filé à vienense era meu prato predileto.

        —  Excelente — falei.

        —  Estava agradável no Chiemsee?

        —  Maravilhoso.

        —  Você pode ajudar Joe a resolver o problema dele?

        —  O problema dele... — Não compreendi de imediato, depois percebi que essa frase era devida à presença dos Baxters.

        —  Claro — disse-lhe.

        —  Veja só — exclamou num tom de contentamento artificial —, mal você saiu da clínica já estão precisando novamente de você! Que será que Joe iria fazer se não tivesse você ao lado dele!

        —  Sim, como seria?...

        —  Até logo, Roy. E venha logo. — Foi a última vez que escutei a voz de Margaret. Nunca mais voltei a vê-la.

        Dirigi-me para a Maximilianstrasse, para a loja do joalheiro, e apanhei as jóias. Pus no dedo um dos anéis, o outro e a tabaqueira foram embrulhados. O anel de rubi que levava no dedo era vermelho-sangue-de-pomba. Anéis como este, disse o joalheiro, sempre se consegue revender ao mesmo preço, constituem um real investimento.

        Desdobrando-se em mesuras acompanhou-me até a porta. Quando finalmente saí, vi do outro lado da rua uma confeitaria. Comprei uma garrafa de Hennessy, que pedi para abrir logo, e um copo de papel. Coloquei a garrafa no carro, a meu lado. De vez em quanto tomava um gole. Continuava chovendo sem parar.

        As ruas já estavam ficando vazias, e aquele vazio característico, comum em todas as grandes cidades às tardes de sábado, já começava a se delinear quando telefonei a Mordstein de uma cabina.

        —  Pensei que tivesse acontecido alguma coisa — disse ele com desconfiança.

        —  Está tudo em ordem. Em um segundo estarei em frente de sua casa. Desça até a rua.

        Ele já estava na rua quando parei o carro em frente ao edifício e abri a porta para ele.

        —  Entre.

        Deixei o carro rodar, para dentro de uma silenciosa rua lateral, e lá estacionei.

        —  Mostre-me os documentos — falei.

        —  Mostre-me o dinheiro — replicou. Mostrei-o.

        Então deu-me os documentos.

        Estavam perfeitos. Segundo a carteira de identidade eu era Walter Frank, nascido em 17 de maio de 1906 em Viena, residente em Innsbruck, Kaiserallee 34, católico apostólico romano, solteiro, profissão comerciante de exportação. Meu passaporte apresentava um visto alemão válido até dezembro e alguns carimbos de entrada e saída da República Federal da Alemanha. A certidão de batismo e o registro de nacionalidade também me satisfizeram. Como profissão de meu pai os falsificadores escolheram, engenhosamente, a de conselheiro da Suprema Corte de Justiça. Após examinar os documentos, bebi um gole da garrafa e, em seguida, ofereci-a a Mordstein, que fez o mesmo.

        —  Ao seu futuro — disse na ocasião e sorriu.

        —  Obrigado — falei. Entreguei-lhe o dinheiro que ainda tinha a receber pelos documentos. Fui retirando do bolso uma grande pilha de cédulas de cem marcos, mas ele nada disse, e ficou olhando em silêncio enquanto eu contava a quantia.

        —  Aí está — concluí —, e agora vamos em frente. Seu amigo pode aceitar quarenta mil marcos?

        —  Ele vai pagar-lhe em duas parcelas. Cada uma de cento e vinte mil xelins.

        —  Bom — falei —, então fazemos dois pacotes.

        Do assento traseiro apanhei papel de embrulho e barbante. A seguir, fiz dois pacotes pequenos. Cada pacote continha vinte mil marcos em cédulas de cem. Amarrei-os com cuidado. Mordstein, sem retirar os olhos fitos em meus dedos, nesse meio tempo tomou mais um gole da garrafa. Acabada a operação dirigimo-nos para a estação central. Estacionei o carro e fui até o guarda-volumes. Mordstein seguia-me como uma sombra. Não retirou um instante sequer os olhos dos pacotinhos.

        —  Está com receio de que eu os substitua?

        —  Sim, claro — replicou amistosamente.

        Entreguei os dois pacotes e recebi dois comprovantes de recebimento. De posse destes, regressei ao carro.

        —  Qual é o endereço de seu amigo? — perguntei a Mordstein, que agora parecia despreocupado.

        —  Anotei-o para o senhor — respondeu e deu-me um pedaço de papel. Nele lia-se: Engenheiro Jakob Lauterbach, Viena IV, Prinz Eugen Strasse n.° 108. E mais abaixo: Telefone R 28 8 42. — Quando vai telefonar-lhe? — perguntou Mordstein.

        —  Segunda-feira de manhã.

        —  Quer dizer que viaja hoje à noite?

        —  Sim — disse eu.

        —  Quando?

        —  Vai levar-me flores no trem?

        —  Não — falou. — Foi apenas uma pergunta. Não precisava responder. Além do mais, há dois trens...

        —  Exatamente. Quer tomar mais um gole comigo?

        —  Com prazer — disse ele. Dessa vez bebeu num copo e eu na garrafa. Estávamos sob a chuva, debaixo de um céu turvo, na área de estacionamento em frente da estação; senti que ia ficando pouco a pouco cansado por causa do conhaque. Hora de terminar, pensei, há ainda muita coisa para providenciar.

        —  Vamos devagar, Sr. Fank — disse Mordstein e atirou o copo fora. — Talvez voltemos a nos encontrar.

        —  Acho difícil — respondi e estendi-lhe a mão. Encolheu os ombros.

        —  Quem sabe? — Dizendo isso, deu as costas e foi-se. Acompanhei-o cornos olhos. Depois, entrei novamente no carro e parti, para tomar a auto-estrada para Stuttgart. Fora da cidade chovia mais forte.

        No começo da auto-estrada algumas mulheres faziam sinais ao passar, mas não parei para ninguém. A Rádio Munique transmitia música para dançar. Dirigia em alta velocidade. Uma hora e meia mais tarde cheguei a Augsburg, entrei numa alameda e parei. A rádio continuava tocando música, mas trechos de ópera, apanhei um lápis e comecei a fazer cálculos.

        Trinta e cinco mil foi quanto paguei pelas jóias. Seis mil pelos documentos. E quarenta mil estavam em Munique, na estação. Ao todo eram oitenta e um mil.

        Possuía cento e oitenta e nove mil e mais cerca de três mil do meu próprio dinheiro. Contei quanto me restava. Aproximadamente cento e onze mil marcos.

        Destes retirei, novamente, quinze mil e os meti no bolso esquerdo do casaco. Pus dois mil marcos no bolso direito. Da quantia restante fiz um terceiro pacotinho com papel de embrulho e barbante e coloquei-o ao meu lado. Atirei pela janela, para dentro da valeta que transbordava água, o papelzinho com as minhas somas. Entrei, a seguir, pela alameda abandonada e rumei para o centro de Augsburg. Eram quinze horas quando cheguei à estação central, onde também já reinava o sossego e a pouca pressa do fim de trabalho do dia. Entreguei o pacote de dinheiro à seção de guarda-volumes e guardei com cuidado o recibo. Em seguida, fui até à agência postal da estação e remeti os quinze mil marcos que pusera de lado a Margaret através de vale postal. O funcionário disse-me que o dinheiro chegaria na segunda-feira. Finalmente, comprei mais uma pequena quantidade de papel de carta, pus gasolina no carro e voltei para a auto-estrada.

        Cerca de vinte e cinco quilômetros adiante de Augsburg vi um grande posto de gasolina à frente do qual estavam estacionados alguns caminhões. Ao lado do posto havia um pequeno bar com cantina. Dentro estava agradavelmente quente. Duas garçonetes atendiam numerosos fregueses. Achei uma mesa vazia junto à janela e pedi café.

        Gotas d'água desciam pela vidraça da janela. A região plana que se estendia à frente estava envolta em névoa, a terra das lavouras brilhava de umidade e luzia de negro; na linha do horizonte, por cima de um pequeno morro corria uma rua cujas árvores semidesfolhadas erguiam sua silhueta em direção do céu cinzento. Bebi o café quente e tirei a tampa da caneta.

        Escrevi duas cartas.

       

        Querida Margaret,

        Escrevo esta carta poucos momentos antes de partir. Quando a estiver lendo já terei deixado o país. Não tem sentido avisar a polícia para me procurar, porque mudei de nome e levo comigo documentos falsos. Hoje remeti-lhe quinze mil marcos que você receberá na segunda-feira, a fim de possibilitar a você liquidar nossas despesas da casa de Munique e regressar ao nosso país. Infelizmente não poderei mais cuidar de você futuramente e julgo que a melhor atitude é voltar para seus pais. Vou passar o resto de minha vida fazendo viagens contínuas, e não sei se lhe escreverei novamente. É de propósito que me esquivo de uma despedida direta com você, e estou escrevendo esta carta a fim de evitar uma cena que para ambos só seria penosa e desagradável.

        Não posso exigir que me perdoe pelo que faço. Mas refleti longamente a esse respeito e penso que sei que isso é a única coisa que posso fazer. Desejo estar sozinho. Não amo você mais e tenho de ir para longe. Tranqüiliza-me um pouco saber que você, ao menos, com o apoio de seus pais, não passará por necessidades.

        Não sei que mais devo escrever-lhe, é possível que, na realidade, eu já tenha perdido um pouco do juízo, e peço-lhe aceitar uma situação desse tipo se lhe for facultado suportar os fatos. Digo-lhe adeus.

        Seu Roy.

       

        Querida Jolanthe,

        Você encontrará esta carta quando tiver voltado para casa. Por este meio gostaria de dizer-lhe que deixo o país Tioje ainda e que você jamais irá rever-me. Não estou, como você supõe, com saúde, mas irremediavelmente doente e deverei viver mais um ano, só. Passarei todo esse tempo com nome falso e viajando. Espero que as coisas, daqui por diante, corram bem para você e que não a envolvam demais num escândalo a meu respeito. Melhor seria que você também viajasse um pouco.

        Seu Jimmy.

       

        Reli as duas cartas, meti-as nos envelopes e escrevi neles os endereços. Consegui selos com a garçonete. Paguei o café e voltei para o carro. A chuva continuou caindo com regularidade, e logo ficou escuro.

        As quatro e meia estava de volta a Munique. Primeiramente fui até o escritório da companhia de carros-leito, na estação, e pedi um lugar no carro-leito de segunda classe do expresso para Viena, que deixava Munique às vinte e três horas. Reservei o leito sob o nome de Walter Frank e pela primeira vez apresentei meu passaporte austríaco. Quando saí para a rua avistei uma caixa de correio. Coloquei a carta para Margaret. Então hesitei. Parado na chuva, com a segunda carta na mão, em frente à caixa do correio amarela da estação, olhei pela praça ampla e vazia na qual já brilhavam luzes em alguns pontos. Incapaz de encontrar uma explicação do que me impeliu a fazê-lo, dei a volta e retornei ao carro com a segunda carta. Fui para a Romanstrasse 127.

        Estava escuro quando cheguei. Na Romanstrasse nenhuma lâmpada acesa. A chuva rumorejava e distribuía-se escorrendo por entre a folhagem grená que revestia a parede da casa, quando pisei na escada. Subi devagar até o segundo pavimento. Tinha comigo, ainda, as chaves do apartamento de Jolanthe e abri a porta de entrada. Na ante-sala também estava escuro. Chamei por Jolanthe, ninguém respondeu.

        Percorri o apartamento inteiro. Em cada cômodo em que entrava acendia a luz elétrica, na cozinha e no banheiro também. O apartamento estava vazio. A impressão era de que Jolanthe o abandonara para partir numa viagem mais longa. Armários estavam abertos, cabides pelo assoalho, e várias peças de roupas espalhadas pelas poltronas.

        Entrei no quarto de dormir e abri uma janela. A chuva tamborilava sobre a chapa de zinco da cornija da janela, sentei-me na cama em desordem. Na mesinha de cabeceira, ao lado do telefone, estava uma garrafa de cerveja, aberta e pela metade. Deixei-me cair sobre o travesseiro e virei o rosto para baixo. O travesseiro tinha o cheiro de Jolanthe. Fechei os olhos e fiquei quieto, deitado.

        A luz permaneceu acesa.

       

        Eram dez para as onze quando despertei.

        Minha cabeça doía e eu sentia frio. A princípio espantei-me com veemência, pois não reconheci onde me encontrava. Voltei-me a lembrar e levantei-me para fechar a janela. Chovera dentro do quarto, o tapete estava todo molhado. Percorri de novo o apartamento e fui apagando as luzes. Pus a carta para Jolanthe sobre sua cama. Em seguida fechei a porta de entrada e desci para o carro. Estacionara-o junto a uma grade do bueiro de esgoto. Joguei através da grade os pedaços picados de meu passaporte americano e de meus outros documentos pessoais, inclusive minha carteira de motorista. Feito isso, voltei para a estação. Deixei o carro trancado na área de estacionamento. Levei a mala comigo. Contei mais uma vez meu dinheiro. Sabia que era permitido atravessar a fronteira somente com pouco valor, por isso retive apenas cem marcos. O resto atirei no meio de umas ruínas. Eram cerca de mil e oitocentos marcos.

        Esperava que minha dor de cabeça cedesse com o ar fresco, mas frustrei-me. Pelo contrário, ficou mais forte. Eram onze e vinte da noite. Entrei no restaurante da estação, pedi café novamente e tomei duas aspirinas. Depois comi dois sanduíches, embora não sentisse o menor apetite. Às onze e quarenta e cinco saí para a plataforma. A dor de cabeça não diminuíra. A plataforma era comprida e reluzia com a umidade. Havia um número relativamente grande de pessoas. O trem para Viena parecia estar cheio. Perguntei onde ficava o meu carro-Ieito.

        —  O primeiro carro atrás da locomotiva, cavalheiro — disse um condutor.

        Caminhei ao longo do carro e senti a chuva escorrer do chapéu, através da peruca, até o pescoço. Quanto mais avançava, percebia com nitidez a sensação súbita de já haver percorrido uma vez esse mesmo caminho.

        Junto à entrada do carro-leito estava um condutor. Dei-lhe minha passagem de leito.

        —  Sr. Walter Frank — leu e fez um movimento cortês. — Permita-me que eu leve sua mala. — Subiu no carro à minha frente. Minha cabeça, na região do crânio, doía de estalar. — Leito 14 — disse o condutor descendo o corredor, à minha frente, e dirigindo-se a mim. — A senhora já está à sua espera.

        Cerrei os olhos.

        —  Quem está esperando?

        —  Sua senhora — disse o condutor, sem se deter. — Ela já se acomodou. — Parou diante da porta fechada de um compartimento e bateu.

        —  Entre — exclamou uma voz.

        O condutor entrou e ouvi-o desculpar-se. A porta fechou-se às suas costas enquanto ele acomodava a mala. Então voltou a abrir-se e o condutor dirigiu-se a mim.

        —  Muito bem, tenha a gentileza — disse ele com gesto convidando para entrar. — Sua passagem ficará comigo até amanhã.

        —  Pois não — falei.

        —  Deseja mais alguma coisa, senhor?

        —  Não — respondi.

        —  Então, uma boa noite, senhor.

        —  Obrigado — falei. Retirou-se. Entrei em meu compartimento e fechei a porta. As duas camas do compartimento estavam armadas. Na de cima, deitada, estava Jolanthe.

        —  Boa noite — disse ela. Estava fumando e não olhou para mim.

        —  Boa noite, Jolanthe.

        —  Não me chamo mais Jolanthe — retrucou e soprou uma nuvem de fumaça.

        —  Não? Então como se chama? — perguntei polidamente. Tive a sensação de que minha dor a qualquer momento me faria perder os sentidos.

        —  Chamo-me Valerie.

        —  Belo nome — disse-lhe sorrindo e segurei-me na borda do estrado da cama.

        —  E sobrenome Frank — continuou. — Valerie Frank. Sou sua esposa.

        Lá fora misturavam-se as vozes de carregadores e o apito do trem uivou clamorosamente. Apoiei-me de encontro ao espelho acima da pia.

        —  Mordstein contou-lhe tudo?

        Ela concordou com um movimento de cabeça.

        —  Você o conhece?

        —  Sim.

        —  Foi à casa dele?

        —  Não. Ele me telefonou e disse que você pretendia viajar.

        —  E os seus documentos... também vêm dele? Sacudiu a cabeça novamente.

        —  De onde tirou o dinheiro para pagá-los?

        —  Ele me fez a crédito — falou.

        Lá fora uma voz rouca anunciava no alto-falante que o expresso para Viena partiria dentro de poucos minutos da linha três. Pediu para que se fechassem as portas e se afastassem do trem.

        —  Onde você esteve nestes últimos dias, Jolanthe? — perguntei baixinho.

        —  Porquê?

        —  Procurei falar com você.

        —  Sinto muito por isso.

        —  Por que agiu assim? — perguntei. Senti o trem pôr-se em movimento. — Por que veio até aqui? Por que obteve documentos falsos?

        —  Porque quero ir para longe. Para bem longe. Sempre mais longe. Mas isso é o que você também quer fazer, ou não?

        —  É — falei —, também queria fazer isso.

        —  Agora não quer mais?

        —  Queria ir para longe sozinho. Fitou-me com atenção.

        —  Sem mim?

        —  Sim.

        —  Impossível, Jimmy — estabeleceu ela. — Você tem de levar-me com você. Verá que vamos nos dar bem. Você vai ver que será agradável. Já não foi agradável, pelo menos uma vez ou outra?

        —  Sim.

        —  E vai ser novamente.

        —  Mas não quero.

        —  Então você deve descer e chamar a polícia e contar que estou viajando com documentos falsos, porque quero estar com você...

        —  ... e porque o Sr. Mordstein lhe contou que tenho muito dinheiro — completei.

        —  Também isso você vai ter de contar à polícia — falou tranqüilamente.

        O apito do trem uivou outra vez.

        Não respondi. Olhei para a mesinha junto à janela. Sobre ela estava uma rosa branca de haste longa.

        —  Quem trouxe essa rosa?

          O Sr. Mordstein. Deu-a a mim na despedida. Por quê?

        —  Nada não — falei.

        Apanhou alguma coisa debaixo da sua almofada para repousar a cabeça.

        —  Aliás, aqui está a sua carteira de identidade certa. Mordstein pediu-me que lhe entregasse. A outra você tem de jogar fora. Na outra está registrado que você é solteiro.

        Entregou-me o documento amarelo.

        —  Obrigado — falei. Tirei do bolso a outra carteira de identidade e atirei-a pela janela.

        Jolanthe ficou olhando para mim.

        —  Jimmy...

        —  O quê?

        — O dinheiro que você passou a ter assim de repente... é roubado, certo?

        —  Sim — confirmei. — Fiz trapaça com um banco. A partir de segunda-feira virão atrás de mim.

        Balançou a cabeça.

        —  Foi isso mesmo que pensei. Sentei-me na cama de baixo e tirei os sapatos.

        —  Jimmy...

        —  Sim?

        —  Você está um pouco maluco, Jimmy, não é verdade?

        —  É, acho que sim.

        Levantei-me, tirei a camisa e retirei um pijama da mala.

        —  Jimmy...

        —  Que é?

        —  Acho que também estou louca. Você vai me bater se eu lhe contar?

        —  Não — murmurei —, não vou bater em você. O que é?

        —  Amo você — disse ela com voz rouca. Vesti o pijama e apaguei a luz.

        A seguir, deitei-me na cama de baixo. O compartimento estava agora completamente escuro, com exceção de alguma luz errante que entrava através de uma fresta da cortina da janela. Fiquei em silêncio e minha cabeça continuava doendo.

        —  Jimmy... — sua voz voltou a falar.

        —  Sim?

        —  Quando chegaremos na fronteira?

        —  Não sei — redargüi.

        Os eixos do carro batiam em marcha ritmada. Viajávamos em grande velocidade.

     

        Hoje estamos a 14 de fevereiro.

        Estou deitado na cama e o Dr. Freund proibiu-me de escrever. Ele ficaria muito zangado se soubesse que, todavia, continuo a escrever. Mas é preciso fazê-lo, pois quero avançar, quero terminar. Sei agora que não tenho mais muito tempo. Mais um ou dois ataques da forma que tive há uma semana atrás, e a morfina, também, deixará de me valer. Por isso é que será bom dar um desfecho. O ataque que me jogou de cama não foi o primeiro, mas o pior de todos. Veio inesperadamente. Acabara de escrever as últimas linhas de meu relato sobre o reencontro com Jolanthe no carro-leito do trem para Viena quando as dores de cabeça começaram.

        Essas dores de cabeça haviam, nos últimos tempos, alterado completamente sua característica. Agora, quando surgem, entram em fases de entorpecimentos, quase como um desmaio, e perduram dias a fio. É bem verdade que a morfina atenua a intensidade da dor, mas acentua o grau de estado crepuscular. Foi numa fase de devaneio persistente, os membros pesados como chumbo e as têmporas latejantes, que me encontrei por toda esta última semana.

        Hoje pela primeira vez estou um pouco melhor.

        O Dr. Freund cuidou de mim de modo comovente, ficava sentado a meu lado horas a fio e escutava meu palavreado confuso e febril: parece que nesta semana revelei uma necessidade insaciável de comunicar o que pensava e sentia. Provavelmente isso se explique como uma atividade substituta do ato interrompido de escrever.

        Escrever, que me ocupou por quatro semanas seguidas, desde manhã cedo até a noite, e que produziu a primeira parte de minha confissão, naturalmente também foi a causa de meu colapso. Simplesmente esforcei-me além das possibilidades. O Dr. Freund é da mesma opinião.

        — Vou cuidar para que o senhor, dessa maneira, não se mate, assim proposital e insensatamente — falou.

        Depois disso não me custou, naturalmente, tanto assim convencê-lo do próprio ridículo dessa explicação. Teve de admitir que sua intenção em nenhum caso pudesse produzir quaisquer êxitos. Aliás, ele está um pouco desamparado no que concerne a seu procedimento em relação a mim. Induzo-o a cometer uma série de atos ilegais. Até agora omitiu-se de dar parte à polícia, e eu lhe disse com a maior sinceridade que tomava morfina. Ignora o que deveria fazer. Isso o perturba muito, eu vejo. Finalmente, chegamos a um acordo, o de que eu não continuaria a escrever até que volte a sentir-me inteiramente — e relativamente — bem, e de que então procuraria poupar-me — relativamente — com um trabalho de quatro horas diárias, repousando o resto do meu tempo. Atendi a todas essas exortações. Embora, claro, isso também seja, no fundo, altamente ridículo.

       

         16 de fevereiro

        Hoje levantei-me da cama pela primeira vez. Já me sinto bem melhor, e acho que amanhã ou depois de amanhã vou continuar a escrever. Eu o faria o quanto antes, mas surgiu uma pequena dificuldade: preciso ler mais uma vez tudo que escrevi a fim de me pôr a par dos acontecimentos que se deram até agora. Um fato desagradável, que venho de constatar, é que não mais consigo ter idéia de determinados eventos. Tudo parece um tanto nebuloso em minha lembrança. Provavelmente agora é que minha memória está começando a realmente sofrer, da maneira em que o Dr. Kletterhohn faz tempo esquematizou de modo tão amável. Tentarei concentrar-me com intensidade.

       

         18 de fevereiro

        Estou novamente sentado à minha mesa junto à janela. Lá fora, no parque, os flocos caem na terra, em silêncio, continuamente, entra hora sai hora, dia e noite. A neve está bem profunda, as crianças do instituto brincam nela, fazem bonecos e bolas. A calefação central está trabalhando em meu quarto. Está agradavelmente silencioso e quente.

        Também o aquecimento interno do carro-leito no qual fui para Viena junto com Jolanthe estava funcionando. A cabina do trem aqueceu-se tanto, que eu à noite me levantei e abri um pouquinho a janela, deixando uma pequena fresta. Sobre a parte aberta puxei a cortina corrediça preta. Via luzes que passavam furtivamente, e quando o trem fez parada numa estação escutei várias vozes e ruídos. Mal dormi aquela noite. Jolanthe calou-se, mas também estava acordada. Eu sabia disso, embora não conversássemos.

        Por volta das duas horas alcançamos a fronteira austríaca, onde o trem ficou parado durante uma hora, aproximadamente. Quatro fiscais de fronteira e da alfândega visitaram-nos de um a um e carimbaram nossos papéis. Não examinaram a bagagem. Estavam com sono e molhados, lá também chovia. Às cinco horas chegamos à linha de demarcação soviética . margem do Enns. Jolanthe dormia quando o guarda russo se aproximou. Não a despertei com antecedência e ela assustou-se quando ele a tocou com cuidado e pediu seus documentos.

        —  Não é verdade! — gritou ela. — Ele está mentindo ao dizer isso! Não fiz isso não!

        O guarda recuou espantado.

        —  Jolanthe! — chamei. Olhou, confusa à sua volta, afastou os cabelos da testa e riu. — Ah bem — disse —, perdão! Deu sua carteira de identidade ao soldado. Ele olhou para ela e também riu, em seguida deixou-nos a sós. O condutor do carro-leito fechou a porta depois que o outro saiu. Ficamos deitados em nossas camas e não falamos.

        Uma hora depois foi clareando lentamente. A chuva havia parado, da janela via-se o campo outonal estendendo-se úmido, meio coberto pela neblina e despovoado. Uma delgada réstia de luz dourada apareceu ao lado da pia. A leste o sol havia nascido.

        —  Jolanthe?

        —  Sim?—falou imediatamente.

        —  Venha para cá, ficar comigo.

        Escorregou de sua cama de cima para o chão. Arredei-me para junto da parede. Ela deitou-se ao meu lado. Seu corpo estava quente, as mãos geladas.

        —  Que é? — perguntou.

        —  Jolanthe, refleti sobre tudo. Não posso procurar a polícia, é claro. Você pode, quando quiser.

        —  Sim — falou. O filete dourado junto à pia ficou mais largo. A cortina corrediça batia ritmadamente de encontro à janela.

        —  Preciso ficar sozinho — sussurrei. — Fiz tudo isso a fim de ficar sozinho. Não estou fazendo nenhuma objeção a você. Estou fazendo uma sugestão.

        —  Sim?

        —  Diga-me quanto custa, você me deixar sozinho e regressar a Munique.

        —  Não — veio rápido e com violência.

        —  Tenho muito dinheiro. Reflita.

        —  Já refleti.

        —  E então?

        —  Quero ficar com você. Não quero mais voltar. Nunca mais. Respirou com ímpeto.

        —  Quero ir para longe. Tenho tão pouca vontade de ficar, como você, e posso tanto quanto você. Preciso ir para longe, preciso! E você precisa levar-me junto. Por isso é que fiz tudo.

        —  E porque me ama — disse-lhe delicadamente. Seu corpo enrijeceu-se.

        —  E porque amo você — confirmou. — Sim, também por isso, seu bobo.

        —  Você não me ama — murmurei. — Tão pouco quanto amo você. Você resolveu extorquir dinheiro de mim de forma tão sem consideração e sem escrúpulo, como eu, também tão sem consideração e escrúpulo, decidi abandoná-la. Isso nós dois temos em comum: a falta de escrúpulo.

        —  Temos mais outras coisas em comum.

        —  Mas não amor.

        —  Também.amor — disse ela e suspirou de repente.

        —  Que foi?

        —  Nada — respondeu rápido. — Deite-se de volta. — Fiquei encolerizado e me inclinara por cima dela. Recuei afundando-me na cama. — Você é um escritor — falou —, você escreveu roteiros e novelas, nos quais se fala de amor. Procure explicar isso, eu não consigo. Faço extorsão com você e vivo com documentos falsos e quero viajar com você para longe. Talvez esteja louca, não sei, não consigo me expressar, mas é assim mesmo, Deus me castigará se estou mentindo. Você não acredita em mim, não é?

        —  Não.

        —  Você não pode me compreender.

        —  Não.

        —  Não sente nada por mim.

        —  Sim — falei —, mas isso não se chama amor. Tem um nome bem diferente.

        Suspirou novamente.

        —  Você não sabe nada — disse com voz rouca. — Não faz idéia alguma, Jimmy, pobre menino Jimmy, ignora o que está havendo...

        Calei-me diante dessas palavras. Depois, muito tempo depois, lembrei-me delas. Então, de fato eu não fazia idéia alguma do que fosse. Quando soube da verdade, era tarde demais... para todos nós.

        —  Volte para sua cama — pedi.

        —  Não — disse e virou-se para mim. Empertiguei-me.

        —  Vá, ou esbofeteio você. Não foi.

        Dei-lhe uma bofetada.

        Puxei-lhe do ombro a camisola para baixo. Ficou estendida em silêncio e olhando para mim. A boca aberta. Ela parecia a avó de todas as prostitutas do mundo. Senti ascender até mim, numa onda de calor, ao mesmo tempo fúria e impotência e ódio, quando a tomei nos braços.

        Mais tarde notei que meus olhos estavam molhados de lágrimas, lágrimas de cólera devido à minha própria fraqueza. Jolanthe não se deu conta disso, dormia. Mas fiquei acordado e olhava para fora, para a luz do sol da manhã de domingo. Entramos num trecho de floresta e escutava a locomotiva resfolegar. Na minha cabeça pensamentos difusos circulavam. Senti frio. Continuava reprimido, reconheci subitamente. Ainda não me havia libertado.

        Porque era fraco demais. E demasiadamente covarde.

       

        Em Viena, descemos no Hotel Sacher.

        O domingo transcorreu tranqüilamente, nos matutinos ainda não havia notícia alguma sobre minha fraude. Talvez não a tivessem descoberto ainda, pensei. Talvez, também, os jornais austríacos trabalhassem um pouco mais devagar. Ainda no domingo, telefonei ao engenheiro Lauterbach e ele me pediu para ir vê-lo em seu escritório na tarde de segunda-feira. O dinheiro, disse ele, já estava esperando por mim.

        Segunda-feira de manhã pedi a Jolanthe para ir até uma agência e informar-se sobre o aluguel de um apartamento mobiliado.

        —  Como assim? Não vamos ficar no hotel?

        —  Não — falei —, é muito arriscado. A polícia poderá verificar os nomes no livro de registro de hóspedes. Morando à parte, em algum lugar, fica bem mais difícil para ela.

        Suas sobrancelhas subiram na testa, as narinas vibraram nervosamente.

        —  Mas queremos ir para a Itália.

        —  Precisamos esperar um pouco.

        —  Não quero esperar! Quero ir embora daqui.

        —  Também quero ir — disse-lhe —, mas não para a prisão. No momento, atravessar qualquer fronteira seria loucura. Devemos ficar por aqui uma, duas, talvez quatro semanas, aguardando os acontecimentos.

        Convenceu-se de que eu tinha razão.

        —  Está bem, Jimmy, vou procurar um apartamento. — De relance vi que seus dedos começaram a tremer convulsivamente.

        —  O que foi?

        —  Nada! — disse isso cerrando os punhos. — Só quero estar longe daqui, é tudo.

        —  Também quero estar longe — falei —, mas não é assim tão fácil.

        Fiquei sozinho o dia todo. Dei um passeio pela cidade, desconhecida para mim, almocei num restaurante ao ar livre, com jardim, e, depois, dirigi-me para a Prinz Eugen Strasse. O escritório do engenheiro Lauterbach ficava no último andar de um suntuoso casarão e se compunha de vários cômodos também suntuosos. À porta liam-se sob seu nome as palavras "Agência de Imóveis".

        Não importa que imóveis o Sr. Lauterbach agenciava, mas parecia ser um empreendimento lucrativo. O rapazinho que atendia no escritório, que me pediu para entrar, conduziu-me para uma sala colossal onde me convidou a sentar-me por um momento. A sala tinha largas janelas, um lustre veneziano e um tapete persa autêntico. Nas paredes havia dois gobelins, e vi um móvel antigo.

        Atrás de uma escrivaninha rococó estava sentada uma jovem, que batia uma máquina de escrever. Levantou os olhos quando entrei e cumprimentou-me polidamente. Sentei-me em um canto, de frente para ela e, nervosamente, folheei algumas revistas que estavam sobre uma mesinha. Deixei, então, as revistas caírem pois tive a impressão de que a jovem me olhava. O próprio ruído da máquina emudecera.

        Fiquei algo surpreso ao constatar que ela, de fato, estava olhando para mim... com uns olhos claros, bem abertos. Deixara as mãos penderem para os lados e ficou em silêncio, com um ar de curiosidade, sentada à minha frente: uma jovem bonita de cabelos louros e boca bem traçada. Respondi a seu olhar. Permaneceu com uma seriedade maior, mesmo quando comecei a sorrir. Trajava um vestido esporte de cor cinza, uma blusa branca e sapatos marrom de camurça, sem saltos. Seus olhos eram cinza, passando para um tom esverdeado. Os cabelos louros estavam esticados para atrás, bem penteados, arrepanhados num grande coque.

        —  Sim? — indaguei.

        Quase desmaiou de susto e ficou ruborizada, o rosto assumiu um tom escuro.

        —  Perdão — disse embaraçada. Sorri amavelmente.

        —  Que há?

        —  Nada — respondeu depressa e curvou-se novamente por cima da máquina —, desculpe-me, por favor. — E continuou a datilografar sua carta. Logo em seguida, soou uma campainha. Levantou-se da cadeira, abriu uma porta e olhou para dentro de uma sala contígua de onde se ouviu uma voz de homem. Voltou-se e olhou para mim: — Por favor, Sr. Frank! O Sr. Engenheiro pede para o senhor entrar.

        Ao passar por ela procurei olhá-la mais uma vez, mas virou a cabeça para o lado, ostensivamente! Pude sentir seu cheiro, de frescor e limpeza. O rosto continuava vermelho do sangue que o irrigara fortemente. Ouvi a porta fechar-se atrás de mim com rapidez.

        O engenheiro Lauterbach veio a meu encontro. Sua sala de trabalho tinha a mesma amplidão e ostentação, a mesma genuína elegância da saía de recepção. Era um homem pesado, de tez morena, com um bigode de peixe-boi e mãos enormes, cobertas de manchas de pigmentação amarela. Andava curvado para frente como um urso, e dos punhos engomados assomavam tufos de cabelos negros.

        —  Sente-se, Sr. Frank — disse amavelmente. — Meu amigo Mordstein avisou-me de sua visita. O senhor trouxe o recibo da seção de guarda-volumes?

        —  Sim.

        —  Posso vê-lo?

        —  O senhor tem o dinheiro?

        —  Naturalmente. Dar- lhe-ei em cheques.

        —  De quanto?

        —  Primeiro num total de cento e vinte mil xelins. Está bem assim, ou...?

        —  Está — respondi — seria então a primeira parcela dos vinte mil marcos.

        —  Exatamente, Sr. Frank. — Apertou um botão. A porta voltou a abrir-se e a jovem loura entrou. — Os cheques para o Sr. Frank por favor — disse Lauterbach.

        Ela desapareceu.

        —  Vou-lhe dar quatro cheques — explicou. — E cada um a ser pago por um banco diferente.

        —  Mas hoje à tarde, agora, os bancos estão fechados.

        —  Sim, e daí? — Sorriu.

        —  Por isso talvez adiássemos o assunto para amanhã — falei. — Então o senhor também poderá vir comigo.

        —  Para quê?

        —  Para eu entregar-lhe o recibo após sacar o último cheque — concluí.

        —  O senhor não confia em mim, Sr. Frank?

        —  Não o conheço — repliquei. — Se estivesse em meu lugar o senhor agiria de modo diferente?

        —  Não — falou. — É esta a razão por que também telefonei para os quatro bancos. O dinheiro está lá, à disposição. Podemos buscá-lo agora, embora já seja de tarde. Tomo, também, a liberdade de levá-lo lá em meu carro, o quanto antes.

        —  Ótimo — disse-lhe. — E não leve a mal minhas palavras.

        —  Ora, por favor! — exclamou.

        A jovem loura entrou^de novo na sala. Veio direto a Lauterbach sem olhar para mim, como se, medrosa, evitasse reencontrar meu olhar. Quase bem junto a mim tropeçou numa dobra do tapete e um dos cheques que tinha na mão, caiu em frente de mim. Agachei-me e apanhei-o.

        —  Obrigada — falou ao tomá-lo na mão. Manteve a cabeça desviada de mim. Uma jovem muito esquisita, pensei.

        Deu os cheques a Lauterbach.

        —  Mais alguma coisa, Sr. Engenheiro?

        —  Não, obrigado. Voltou, então, para sua sala.

        —  Quando poderá dar-me a segunda parcela? — perguntei.

        —  Dentro de dez dias.

        —  Antes não?

        —  Infelizmente não.

        —  Mas que desagradável.

        —  Precisava do dinheiro mais cedo?

        —  Sim — falei.

        —  Sinto muito, Sr. Frank. — Levantou-se. — Mas talvez esteja bem dessa forma. O senhor deveria descansar um pouco. Acredito que isso seja oportuno no momento.

        —  Que quer dizer com isso?

        —  Como sabe — retrucou sem malícia —, Viena é uma bela cidade. Visite-a um pouco. Podemos ir?

        Assenti com um movimento de cabeça. Caminhando à minha frente, passou pela sala onde estava a jovem, e chegamos à saída.

        —  Boa noite, Srta. Vilma — disse ele.

        —  Boa noite, Sr. Engenheiro. O senhor ainda volta hoje?

        —  Não.

        Havíamos chegado à porta.

        —  Boa noite — disse eu, também. Não houve resposta. Voltei-me.

        Estava sentada atrás da máquina, com os olhos grandes e luminosos de novo dirigidos para mim. Moveu os lábios, vi que formavam as sílabas de um cumprimento, que, no entanto, não se tornou audível. A seguir baixou novamente a cabeça e recomeçou a bater. Fechei a porta.

       

        Recebi prontamente o dinheiro e dei a Lauterbach o recibo do primeiro dos dois pacotinhos que estavam na estação central de Munique. Combinamos que dez dias depois nos encontraríamos novamente em seu escritório. Feito isso, levou-me para o hotel em seu carro.

        Jolanthe já me esperava. Foi bem sucedida e encontrou um apartamento. Ficava num palacete no bairro diplomático e pertencia a uma velha Condessa que pretendia deixar Viena por meio ano e viajar para a região dos lagos das montanhas austríacas. Jolanthe já conversara com ela e podíamos mudar-nos imediatamente. O aluguel era caro, mas o apartamento oferecia todo conforto. Na terça-feira voltei lá com Jolanthe, a fim de convencer-me de sua utilidade e serventia; na quarta-feira deixamos o hotel e fomos para a Reisnerstrasse 112.

        Era um apartamento no primeiro andar, composto de três aposentos com cômodos anexos. A velha Condessa recebeu o dinheiro, como pagamento adiantado, de dois meses de aluguel, apresentou-nos ao zelador da casa e despediu-se por volta do meio-dia, após haver-nos entregue todas as chaves. Seu trem partia às quatorze horas. A impressão que tivemos é de havermos inspirado grande confiança à velha senhora.

        Naquela tarde fui ao centro da cidade para encomendar alguns ternos num alfaiate — tinha um apenas e pouquíssimas roupas, pois deixara tudo em Grünwald. Jolanthe trouxera consigo a maior parte de seu guarda-roupa. Comprei diversas coisas e tomei um táxi para chegar em casa mais facilmente com meus embrulhos. Antes de deixar o centro comprei um vespertino. Na segunda página vi então a notícia: "Ousada fraude em banco entre Frankfurt e Munique." Portanto, tínhamos, enfim, chegado lá.

        No carro passei uma olhadela rápida pela reportagem, depois pedi ao motorista para parar e fui também comprar os outros verpertinos. Já em casa, li-os junto com Jolanthe. Todos os jornais noticiavam a mesma coisa. Um certo James Elroy Chandler entendeu de, mediante um truque cheio de astúcia (e aqui deram a explicação com detalhes), arrancar de um banco de Munique uma quantia de quase duzentos mil marcos. Chandler, cidadão norte-americano, encontra-se foragido desde o seu crime perpetrado no sábado. Fica a suspeita de que se apossou de documentos falsos e provavelmente tenha deixado o país. A mulher do impostor foi ouvida pela polícia de Munique, constatando-se sua completa inocência e ignorância quanto aos planos do marido. Diligências foram feitas em todo o território federal no sentido de ir à procura do desaparecido, a polícia já encontrou determinados indícios e pontos de partida que favoreciam a sua captura dentro de breve tempo.

        Tudo então soava muito genérico, comum e, para dizer a verdade, satisfatório. Da circunstância de minha doença tampouco falou-se nas notícias, como sequer do desaparecimento de Jolanthe.

        Era a reportagem típica que surge em todos os países no mundo, quando a polícia não possui nenhum, absolutamente nenhum indício e tudo o mais é mais provável do que uma captura dentro em breve.

        —  Veja — falei — como precisamos ter um pouco de paciência. Gostaria também de esperar até meu cabelo voltar a crescer normalmente e não mais precisar de usar a peruca. Além disso, Lauterbach só vai pagar a segunda parcela dentro de dez dias.

        Ela concordou com um movimento de cabeça.

        —  Sim, compreendo! Aqui me sinto também mais segura do que no hotel. Por favor, Jimmy, por favor, mesmo, mas não vamos ficar aqui nem um dia a mais do que o estritamente necessário!

        —  De que está com receio? Sacudiu a cabeça, sem dizer nada.

        —  Da polícia?

        Balançou a cabeça, negando.

        —  De que, então? Mordeu os lábios e calou-se.

        —  Diga-me!

        Balançou novamente a cabeça.

        No instante seguinte tocaram a campainha e olhamos um para o outro.

        —  Quem poderá ser?

        —  Não faço idéia. — Observei que seus dedos começaram a tremer.

        —  Devo abrir?

        —  Espere — falei, passei ao seu lado e fui para perto da janela. Olhei para a rua. Do outro lado, em frente da casa, uma lâmpada a gás ardia solitária. E junto dela, encostado no muro de um jardim, estava um rapaz olhando para cima em direção da minha janela. Fumava um cigarro e trazia um guarda-pó claro.

        —  Polícia? — sussurrou Jolanthe, que se havia aproximado de mim.

        Encolhi os ombros.

        —  Deixe-me abrir — disse eu, então, e fui até a porta de entrada. Nesse meio tempo a campainha soou novamente, um pouco mais demorado. Abri a porta com a chave e olhei pelo vão.

        O corredor estava vazio. Fiquei meio apavorado.

        —  Alô!—exclamei. Nenhuma resposta.

        —  Alô! Há alguém aí?

        Então vi-a. Estava espremida num canto junto à porta, o sangue assomado à face e tão embaraçada que mal conseguia olhar para mim.

        —  Sim, eu — murmurou, gaguejando. — Por favor, perdoe o incômodo.

        —  Entre, Srta. Vilma — falei com estupefação.

       

        Depois de apresentá-la a Jolanthe (aí então soube de seu sobrenome, era Parisini) houve uma pequena pausa. A agitação de Jolanthe atenuara, mas ela observava Vilma com uma estranha expressão de curiosidade e desconfiança.

        —  Pois bem — falei —, que a traz até aqui, Srta. Parisini?

        —  Eu... eu estou... eu só queria... — começou a falar desastrosamente e voltou a interromper. — Não — disse ela, quase rompendo em lágrimas —, não estou conseguindo dizer ao senhor. Mas que disparate, não consigo me exprimir. Meu Deus, meu Deus, que idéia foi essa de vir até aqui? — Balançava a cabeça, com uma aflição de criança, inspirava e expirava com ímpeto o ar. Parecia não achar forças sequer para olhar para cima. Em seu casacão cintado, estava sentada numa das lindas e velhas poltronas barrocas, os joelhos comprimidos um contra o outro, as mãos unidas pelas palmas, um lenço colorido ainda na cabeça. (Recusara-se a tirá-lo.) — Não — murmurou, meio perdida —, não consigo, não posso dizer-lhe. Não imaginei que seria tão ruim assim. Mas agora... Agora estou vendo o que quis fazer...

        Jolanthe fitou-me e sacudi os ombros. Ela então inclinou-se para a frente.

        —  Como foi que descobriu onde moramos? — perguntou-lhe. Era uma pergunta tipicamente feminina, pensei com admiração, sensata e lógica. Vilma deu também uma resposta sensata e lógica.

        —  Perguntei no Hotel Sacher — explicou. Agora, pela primeira vez, levantou os olhos e esboçou um sorriso, ao qual Jolanthe correspondeu sorrindo.

        —  E depois? — perguntou Jolanthe encorajando-a.

        —  Depois então falei com Félix...

        —  Quem é Félix?

        —  Um amigo. Ele disse que eu devia tentar. Eu disse que ele viesse junto, mas achou que o melhor seria eu vir só. —Olhou para mim e de novo o sangue afluiu às suas bochechas de criança. — Eu não sabia que o senhor era casado, Sr. Frank.

        —  Que importância tem isso para o seu caso? — perguntou Jolanthe, sorrindo.

        —  Se eu soubesse não teria vindo, minha senhora — disse Vilma num relance.

        —  Não? — O sorriso de Jolanthe ampliou-se.

        —  Certamente que não, minha senhora! — Vilma elevou o tom de voz. — Jamais! — Olhou para um e para o outro e mordeu os lábios.

        —  Meu Deus, meu Deus, que coisa desagradável! Nunca passei por uma aflição assim...

        O sorriso de Jolanthe, tornou-se, por assim dizer, maternal, nesse momento sua expressão era muito afável.

        —  Qual é a sua idade?

        —  Como? — Vilma fixou nela o olhar.

        —  Quantos anos você tem!

        —  Dezenove.

        —  Dezenove — repetiu Jolanthe e arredou a poltrona onde estava sentada para junto de Vilma. — E por que razão você veio? Não quer me contar?

        —  Sim! — exclamou Vilma heroicamente, engolindo a seco.

        —  Pois bem? Vilma encarou-me.

        —  Queria pedir ao senhor para vir comigo até um teatro.

        —  Ah — articulou Jolanthe.

        — E com a senhora também! Com os dois, naturalmente! Não sabia que havia a senhora! Mas agora sei. E então gostaria de convidar os dois!

        Sorri.

        —  É muito amável de sua parte. Vilma, mas como foi que veio diretamente até mim... bem, até nós?

        Achei-a muito simpática, mas tive a impressão de ser uma jovenzinha meio excêntrica. Talvez não tivesse ainda ultrapassado a puberdade, ou, também, fosse um pouco maluca. Devia ser um pouco maluca para vir, assim sem mais nem menos, visitar um homem desconhecido, entrar numa casa estranha, sozinha, e depois de escurecer. De repente, senti-me bastante tranqüilizado com a presença de Jolanthe. No instante seguinte a insólita jovem irrompeu em lágrimas. Simplesmente repousou a cabeça sobre a mesa e pôs-se a soluçar. Fiquei pasmado.

        —  Pelo amor de Deus, o que há com a senhorita? — Procurei erguê-la.

        Jolanthe afastou-me. Sentou-se no encosto da poltrona de Vilma e acariciou-lhe a cabeça.

        —  Ora, ora — disse, como alguém falando para uma criancinha —, o que é tão horrível assim? Você pode nos dizer?

        Vilma emitiu um som alto, doloroso, sacudiu a cabeça e continuou com o rosto encostado no tampo da mesa. Jolanthe fez-me um sinal.

        —  Conhaque — falou. Eu não tinha certeza se este era o melhor remédio para uma mocinha na situação de Vilma, mas fui até uma mesinha sobre a qual havia uma garrafa, e enchi um pequeno copo.

        Enquanto o fazia, olhei casualmente da janela para a rua. O homem solitário junto ao poste mantinha invariavelmente os olhos levantados para minha janela. Não estava fumando, no momento, e enfiava as mãos no bolso do guarda-pó. Senti minhas axilas umedecerem-se.

        E de um só gole eu mesmo esvaziei o copo de conhaque.

       

        Voltei a enchê-lo e trouxe-o para Jolanthe.

        —  Bem — disse ela e ergueu a cabeça de Vilma, enquanto olhava para mim interrogativamente, volvendo, logo a seguir, o olhar em direção à janela. Balancei a cabeça. Fez um afago no desolado rosto de Vilma, banhado de lágrimas, e disse calmamente:

        —  Aqui, beba isso!

        Vilma, obediente, tomou-o sorvendo-o de uma vez só.

        —  Áspero — considerou ela. Num relance achei-a infantil e insuportável, tive a sensação de que estava como que representando num teatro.

        —  Srta. Vilma, agora já teve tempo suficiente para vencer sua timidez. Preciso pedir-lhe que afinal me diga o que deseja de mim!

        Assustei-me um pouco com minha própria voz. Soou dura e rudemente. E tão rude assim não era, em absoluto, o que queria ser. A reação de Vilma foi surpreendente. Parecia que, de fato, não estava acostumada com conhaque. Seus olhos brilhavam, como que faiscavam, ela olhou para mim quase desafiadoramente, jogando a cabeça para trás, e disse:

        —  Queria pedir-lhe dinheiro. Seguiu-se uma pausa eloqüente.

        —  Quanto? — perguntei finalmente.

        —  Quatro mil trezentos e cinqüenta xelins — disse ela, com precisão.

        —  Pensei que desejava ir ao teatro conosco... com meu marido... — especulou Jolanthe.

        —  Também, isso também — disse a esquisita jovem. — No começo eu queria ir com ele ao teatro e, depois, pedir-lhe dinheiro.

        —  E por que veio justamente a mim?

        —  Eu já tinha... — começou, mas interrompeu-se. — Posso tomar mais um conhaque?

        —  Claro, minha filha — disse Jolanthe. Passei a garrafa para ela.

        Vilma entornou num só gole o copo que Jolanthe havia enchido e soprou o ar por entre os dentes. Tinha um aspecto muito engraçado, cômico, e surpreendi-me nesse instante sorrindo comigo mesmo. Eu tinha outras preocupações, mas não consegui evitar: essa jovem agradava-me.

        —  O que tem?

        —  Eu preenchi os cheques para o senhor! — Os olhos claros, arregalados, olharam para mim. — Foi no sábado! Os quatro cheque» que o Sr. Lauterbach lhe deu. Cento e vinte mil xelins! Meu Deus, naquele sábado não pensei em mais nada o dia inteiro! À noite contei para Félix. E durante todo o domingo discutimos a respeito. Se eu devia tentar, se não devia tentar. Terça-feira de manhã fiquei na dependência de saber como é que o senhor se parecia.

        Sorri.

        —  Sim, lembro-me.

        —  Fiquei muito envergonhada com aquilo—falou.

        —  Fiquei muito lisonjeado — disse-lhe eu.

        —  Aliás de que é que vocês estão falando? — perguntou Jolanthe.

        —  Seu marido, eu... — começou a dizer Vilma.

        —  A Srta. Vilma me... — comecei também, ao mesmo tempo.

        —  Sim? — falou Jolanthe. Agora não estava mais sorrindo.

        —  A Srta. Vilma ficou olhando profundamente para mim, bem fixamente, quando fui ver seu chefe.

        —  Ah bem — articulou e encaminhou-se para a janela. — E não houve uma prova para o meu marido? — Baixou o olhar para a rua. Olhei em sua direção. Virou-se e balançou a cabeça, tal como eu fizera. O homem, então, continuava lá.

        —  Foi — falou Vilma e de repente encarou-me com uma expressão radiante.

        Foi minha vez de verificar como eu fiquei ruborizado.

        —  Por que então não veio imediatamente?

        —  Aí não podia mais vir justamente porque o senhor me agradou tanto — disse ela.

        —  Se tivesse agradado menos, a senhorita teria vindo logo?

        —  Naturalmente — disse com franqueza. — Com o senhor aconteceu que eu não quis absolutamente vir depois de saber que aparência tinha. Também disse isso a Félix. Não posso, falei. Com qualquer outro. Com ele não. E insisti que não. Não vim.

        —  Até hoje de noite — concluiu Jolanthe e voltou à janela.

        —  Sim, até hoje de noite. — Vilma sacudiu a cabeça, com uma expressão trágica. — Ainda continuei esperando que ocorresse um milagre e conseguíssemos o dinheiro de outra parte. Porém, hoje é a última noite, e não recebemos o dinheiro. Amanhã, se não pagarmos, vão fechar o nosso teatro. Quatro dias antes da estréia! O senhor compreende? Quatro dias antes de representar a primeira peça de Félix.

        —  Quem vai fechar o quê?!

        —  A Recebedoria da Fazenda fecha o nosso teatro — explicou.

        —  Que teatro é esse? — perguntei. Com efeito, a jovem era estranha.

        —  Temos um pequeno teatro. Félix, eu e uns outros. No porão do Café Schubert, Studio 52 é como se chama. Naturalmente o senhor já ouviu falar dele, não?

        —  Claro — menti.

        Jolanthe dirigiu um rápido olhar para mim.

        —  Mas nunca esteve lá?

        —  Infelizmente não.

        Vilma balançou a cabeça tristemente.

        —  Já estiveram lá só bem poucas pessoas — falou. — Aconteceu assim por culpa nossa.

        —  Porquê?

        —  Não pagamos os impostos durante dez meses.

        —  Ah, sim — sentenciei.

        —  E agora que finalmente chegamos ao ponto de Félix poder encenar sua peça, a autoridade diz que o teatro será fechado se não pagarmos. Até amanhã ao anoitecer — acrescentou. — E isso naturalmente não vamos conseguir — ajuntou ao que acabara de acrescentar. Em seguida, fez-se uma pausa na conversa. Jolanthe olhou para mim, mas dessa vez virei a cabeça para outro lado.

        —  Um momentinho — falou Jolanthe —, não estou entendendo muito bem. Pensei que você fosse secretária do Sr. Lauterbach.

        —  Sim, também sou.

        —  Entretanto...?

        — Mas é só como ocupação secundária. Minha profissão principal é atriz dramática. Mas trabalhando nessa profissão ganho muito pouco. No Studio recebo um mínimo; então faço algumas novelas no rádio e vez por outra um minúsculo papel em algum grande teatro. Assim se dá com muitos de nós. A maioria tem profissões secundárias.

        —  E elas se compatibilizam uma com a outra? — perguntei admirado. — Quero dizer: com relação ao horário?

        —  Não tão bem assim — disse ela. — Por isso mesmo já tive muita contrariedade com o Sr. Lauterbach. Possivelmente não vai demorar a demitir-me.

        Balancei a cabeça, concordando.

        —  Razão por que também não ousei pedir dinheiro a ele.

        Fiz o mesmo movimento de cabeça.

        —  Porque, independentemente disso, ele tem raiva de toda essa "brincadeira" de teatro.

        Concordei pela terceira vez e notei que Jolanthe também fez um sinal de cabeça.

        —  Seus pais não podem ajudá-la?

        —  Também para eles as coisas não vão bem. Meu pai é bibliotecário. Não ganha o suficiente. — Levantou-se e dirigiu-se até onde eu estava. — Sr. Frank, por favor, não pense que o senhor nos daria o dinheiro de presente! Só gostaríamos de solicitar-lhe um empréstimo. Um empréstimo a curto prazo. Félix disse que eu deveria propor juros ao senhor.

        —  Hum — refleti, e fiz uma expressão de seriedade. Jolanthe virou-se para outra direção.

        — Cinco por cento? — perguntou Vilma baixinho.

        —  Quê?

        —  Ou então mais? — perguntou rapidamente. — Félix e os outros disseram que eu devia chegar até dez por cento. São as condições costumeiras entre os agiotas.

        Abri a boca, mas achei que minha voz ia falhar. Jolanthe pegou um lenço e assoou nele o nariz, sufocando-se. Vi que suas costas estremeciam com uma risada reprimida.

        —  Srta. Vilma — grasnei, finalmente, com voz rouca —, está me oferecendo dez por cento de juros por um empréstimo de quatro mil trezentos e cinqüenta xelins?

        —  Sim — falou. — Félix é da opinião de que o senhor deveria ganhar alguma coisa no negócio. É preciso haver um estímulo. Do contrário, o senhor não o fará.

        Recuperei a calma e pigarreei.

        —  Ele tem toda razão. Até quando vocês querem o empréstimo?

        —  Até seis a oito semanas. — Ela ficou um pouco mais esperançosa, os lábios entreabriram-se de leve e seus olhos me fitaram, radiantes.

        —  De seis a oito semanas — repeti pausadamente. Examinei-a com o olhar, a seguir dei-lhe as costas, meti as mãos pelas axilas, por cima do colete, e comecei a andar para lá e para cá, absorto em reflexão. Fiquei por algum tempo resmungando comigo mesmo.

        —  E que garantias vocês podem oferecer-me?

        —  Penhoramos a venda da bilheteria da noite — disse ela imediatamente.

        —  Você chama isso de garantia? Enrubesceu-se novamente.

        —  Sr. Frank, a peça que Félix escreveu é muito boa! Sem dúvida, vai botar a casa cheia!

        —  Alguma vez vocês tiveram uma peça que lotasse a casa?

        —  Não, isso não, mas...

        —  E quantos espectadores devem encher a casa?

        —  Quarenta e nove — disse cabisbaixa. — Mas podemos ainda acrescentar ao mínimo mais vinte poltronas. Além disso, prometeram-nos uma subvenção através da municipalidade de Viena. E assim...

        —  Sim, sim — falei, sentindo-me um Papai Noel; minhas costas ferviam de prazer e divertimento, precisava conter-me para não esfregar as mãos —, tudo isso é muito bonito, está tudo bem, mas sem nenhuma garantia para mim, compreende? Sou um homem de negócios realista, para mim infelizmente não existem aspectos artísticos, mas apenas números e garantias!

        Surpreendi-me comigo mesmo: estava contente, as sombras do mês que se passara afastaram-se, eu respirava mais livremente. Era um milagre, não o entendia. Essa jovem que veio a minha casa para pedir dinheiro emprestado deixava-me contente. Essa jovem toda insólita, de olhos claros e cabelos penteados para o alto...

        —  E fiadores, como é que fica? — perguntei e senti o sangue ainda me aquecendo, meu coração batendo ainda, e senti como meus olhos eram capazes de transformar a visão da beleza e da juventude, da pureza e da inocência, em um profundo e íntimo sentimento de bem-estar e satisfação. — Vocês têm alguém que lhes dê fiança?

        Sacudiu, tristonha, a cabeça, não fazia idéia de quão próxima estava da realização de seus anseios.

        —  Não, Sr. Frank, não temos ninguém. Estamos completamente sozinhos. Quinze pessoas, com o técnico de iluminação e a camareira, e não acredito que alguém nos dê um aval, alguém que tenha dinheiro. Também não conhecemos ninguém. Entre nós um garante pelo outro, apenas isso. Mas isso não adianta para o senhor.

        —  Não — falei —, não adianta para mim.

        —  Félix acha que... — recomeçou sua fala, mas logo a seguir interrompeu-a, desanimada. Não sabia dizer mais nada, tentara tudo.

        Por um momento, instalou-se na sala um silêncio total. Então Jolanthe passou rapidamente à janela e abriu-a. Se é que eu alguma vez a tenha amado, foi nesse momento.

        —  Félix! — chamou na escuridão, dirigindo-se para fora.

        O homem que estava sozinho junto ao posto olhou para cima.

        —  Sim, pois não?

        —  Suba até aqui para tomar um conhaque conosco — falou Jolanthe.

       

        Naquela noite deram, em Viena, um espetáculo teatral exclusivamente para Jolanthe e para mim. Foi apresentado no porão do Café Schubert, num salão que media cinco metros por dez, sobre um palco de cinco metros por dois.

        Nas paredes da platéia foram instaladas figuras plásticas. Eram feitas de arame, papel colorido e lantejoulas, de concepção bem moderna e ousada. Ao redor de três das quatro paredes corria uma faixa com inscrições. As paredes eram cinza-escuro e as letras da faixa feitas de papelão branco. Formavam, numa sucessão simples, os nomes de grandes e famosas personalidades do teatro: Tairoff. Piscator. Jessner. Reinhardt. Stanislawski.

        Não havia filas de poltronas, apenas mesinhas com cadeiras. Antes de começar a representação, apareceu um garçom, que perguntou o que queríamos. Pedi uma garrafa de vinho. Estávamos sentados mais ou menos no centro do salão, em duas cadeiras duras de madeira, pintadas de branco e dourado. As mesinhas à nossa volta estavam vazias, e nelas recostavam-se as cadeiras.

        Jolanthe tomou a maior parte da garrafa, eu bebi apenas um copo. Levantei os olhos para a ridícula miniatura do palco, com seus ridículos e pretensos bastidores e a meia dúzia de jovens que lá em cima faziam teatro.

        Representavam teatro de grande vulto. Entre eles não havia um que não fosse incrivelmente talentoso. E a peça era boa. Passava-se na Viena da atualidade, entre indivíduos que tinham medo. Era uma peça contra o medo. Félix Reinert, o autor (vinte e dois anos de idade), era um jovem Kokoschka. Os cabelos escuros distribuíam-se desalinhados para longe de seu nodoso e decomposto crânio dolicocéfalo e pendiam-se sobre os sulcos da testa. A peça que escrevera e a que eu, naquela noite, assistia, chamava-se Os Mortos não Têm Lágrimas.

        —  De onde vem o título? — perguntara-lhe, depois de ele haver tomado um conhaque em nosso apartamento, a convite de Jolanthe. Ele falava muito depressa, esforçava-me para compreender o que dizia, e ele, também, gaguejava um pouco. Era como os pensamentos lhe adviessem mais rapidamente do que as palavras que os exprimiriam, precipitando-se àqueles continuamente.

        —  Da mitologia — disse ele. Vilma estava sentada a seu lado, num largo divã barroco e olhava-o com admiração. Para ela, ele era um grande homem. — O senhor conhece a história, sem dúvida. Os vivos precisam sofrer muito, os mortos menos. Mas não é o caso de se dever acreditar que, por isso, seria uma condição almejável estar morto. Muito pelo contrário! A vida é, ainda, sempre melhor. Porque, enquanto estamos vivendo, podemos nos defender e agir. Podemos chorar por causa de uma desgraça ou uma injustiça que aconteça a alguém.

        —: Eos mortos não conseguem mais chorar? — perguntou Jolanthe.

        —  Não — disse ele —, os mortos não podem mais agir, não podem mais defender-se, e não conseguem mais chorar. Eles sabem de tudo, estão em toda parte e permanecem jovens. Mas de chorar, não são mais capazes. Mesmo que estejam felizes. Os mortos não têm lágrimas.

        —  Então sua peça propala as lagrimas e a vida?

        —  Sim — respondeu Félix.

        E era o que acontecia. Estava sentado no frio salão do porão, sequer havíamos tirado os casacos e estávamos miseravelmente enregelados; vi-me tomado de grande comoção com relação àqueles jovens que faziam propaganda da esperança e das lágrimas, que não tinham dinheiro, pouco futuro e nenhum passado, e que, todavia, acreditavam nisso tudo e desejavam proclamar a todos que a pior das vidas continua sendo melhor do que a mais bela morte e que em nossa época existe apenas um pecado: perder a esperança.

        Com gratidão apossei-me desse conhecimento. Essa experiência não se turvou de auto-acusação ou dolorosas comparações com minha própria existência. Estava simplesmente feliz e repleto de um real alívio, de consolo. Por duas horas esqueci-me de que teria de morrer e de que a polícia de todo um continente estava à minha procura; de que abandonara minha mulher e me revelara incapaz de libertar-me de minha amante; de que minha vida efetivamente não tinha nem sentido nem valor.

        Tudo isso esqueci por duas horas.

        Contemplava Vilma no palco. Embora desempenhasse não mais do que um pequeno papel, achei que estava maravilhosa. Possuía a ternura de Elisabeth Bergner acrescida da força rústica de um jovem Wessely. Acreditava de coração no que dizia, e a cada palavra, cada expressão do rosto resplandecia tal interioridade e pureza, que qualquer um, ofuscado, deveria cerrar os olhos escutando-a e sentindo-a. Eu sabia que ali, se é que eu tenha aprendido alguma coisa erri Hollywood, desenvolvia-se uma grande atriz.

        Mas que estranha cidade esta, pensei, onde o talento jorrava, sem cessar, de todos os cantos, brotando do solo e se manifestando em porões e sótãos — uma cidade dividida em quatro partes, encravada num pequeno país dividido em quatro partes, demasiadamente pequeno para todo o talento que escondia e que produzia esbanjadoramente há séculos...

        A peça tinha três atos. No último, vi Jolanthe, ao meu lado, afastar os óculos, inclinar-se para trás e revolver em sua bolsa. Seus olhos estavam úmidos. Enxugou-os com um lenço, mas com todo o cuidado para não borrar a pintura dos cílios.

        Ambos aplaudimos quando as luzes acenderam. Estávamos sozinhos na platéia vazia e aplaudíamos, ríamos para o elenco que se curvava feericamente. A própria cortina eles mesmos abriam-na e fechavam-na. Então fui para a frente e dirigi-me a Vilma.

        —  Tome — falei e entreguei-lhe um envelope com o dinheiro. Deu um grito, jogou os braços para o ar e abraçou-me em volta no pescoço. Um segundo depois, desprendeu-se de mim, apavorada, e olhou horrorizada para Jolanthe.

        —  Perdão, por favor, senhora!

        Jolanthe aproximara-se de nós. Seus olhos luziam ainda de umidade. Ela sorriu.

        —  Vocês estiveram maravilhosos — falou. Em seguida cumprimentou um por um.

        Félix chegou-se e agradeceu-me.

        —  Vamos pagar-lhe de volta, claro, Sr. Frank, palavra, pode ficar bem certo disso! E jamais esqueceremos o que o senhor fez hoje por nós! — Vilma estava a seu lado e olhava-me radiante. De repente começou a chorar.

        —  O que há com você? — perguntou Félix assustado.

        —  Nada — soluçou —, nada! Tolice minha. Estou tão feliz! — E assoou no lenço de Félix, ruidosamente. Depois ainda subimos todos para o pequeno café. Reunimos algumas mesas e festejamos o evento da amizade que acabáramos de fazer. Todos participavam da festa, inclusive o técnico de iluminação e a camareira, além do proprietário do café e sua mulher. Parecíamos os membros de uma excursão de gente empresarial ou de uma reunião festejando um casamento pequeno-burguês, talvez também de uma sociedade anônima à noite em sua reunião anual. Estava sentado entre Jolanthe e Vilma. Todos comemos salsichas vienenses com mostarda, acompanhando com cerveja Pilsner. Cada um ficou com duas fileiras de duas salsichas. O ambiente estava quente. Todos falavam ao mesmo tempo. A mostarda era servida em grandes terrinas, sobre a mesa. Mergulhávamos as salsichas nas terrinas e as comíamos com as mãos. E confundíamos os dedos.

       

        Não sei exatamente quando tomei, pela primeira, vez, consciência de que amava Vilma. Provavelmente também não foi assim de repente que tive essa certeza. Essas coisas vão crescendo sem que as notemos, vão ficando maiores e mais intensas; e quando são reconhecidas, já se é, há muito tempo, vítima delas. Inicialmente fica-se revolvendo com um agradável estado de desassossego. Ainda não se adivinha a origem desse desassossego, mas o corpo inteiro já se encontra orientado em sua direção, caminha, transforma-se e se prepara para algo novo, tal qual um indicador, na química, que, também, vai verificando as mínimas alterações das proporções iônicas de uma solução aquosa. O cérebro interessa-se constantemente por coisas que não se percebem na consciência do indivíduo. Que idade tinha Vilma? Dezenove. Eu, quarenta e cinco. Vinte e seis anos mais velho. Era fantástico! Quando eu estivesse com cinqüenta, ela teria apenas a metade da minha idade...

        Caí em mim, jamais teria cinqüenta anos de idade. Sequer quarenta e seis. Era loucura, a própria loucura. Contudo, era uma doce loucura, e ela me embriagava como um vinho precioso. Encontrei-me quase diariamente com ela, na semana que se seguiu à nossa ida ao teatro. Ficava sentado acompanhando os ensaios, olhando. Com a petulância de um capitalista que, desde épocas mais primitivas, se excede em tiranizar artistas que financia; exprimia vontades, fazia perguntas, dava conselhos que não eram pedidos. Todos estavam emocionados comigo, entravam em pormenores comigo, pediam minha opinião.

        —  Sim, Sr. Frank, temos exatamente a mesma opinião que o senhor; o cenário do segundo quadro terá um efeito bem pobre. Mas Susi não tinha mais tela para fazer bastidores comuns.

        —  Por que não tinha mais tela?

        —  Falta de dinheiro — disse laconicamente Susi, a cenógrafa de cabelos de pônei e grandes óculos com armação de tartaruga.

        —  Tome o dinheiro — falei. — Vá comprar o tecido, Susi!

        —  Que bom, Sr. Frank, é tão gentil de sua parte!

        —  Claro que pagaremos de volta! — Era Félix.

        —  O senhor é maravilhoso, Sr. Frank! — E, aqui, era Vilma. Sim, eu era maravilhoso para eles. Era o lindo conto de fadas que

        se conta às crianças para que tenham bons sonhos. Com um movimento de mão — e lá chegava Susi em disparada, radiante de alegria, trazendo um rolo de tela. Paguei um pequeno funcionário, e máquinas punham-se em ação para imprimir cartazes em vermelho e azul sobre excelente papel branco, os quais eram colados nas colunas reservadas para eles nos locais públicos.

        "Studio 52 — anunciavam eles — apresenta a pré-estréia mundial da peça Os Mortos não Têm Lágrimas, de Félix Reinert."

        Abaixo desses dizeres, em ordem alfabética, os nomes dos participantes. Também o nome dela. Parisini. Vilma Parisini. Sob as árvores desfolhando-se da Reingstrasse vimos o primeiro desses cartazes afixado numa coluna — ela e eu. Estávamos indo para casa depois de um ensaio. Ela o viu primeiro.

        —  Ali — disse esbaforida —, olhe ali!

        Apontou com a mão para o outro lado da rua. Partiu em disparada e correu, como uma criança, sobre a pista — quase dando de encontro com um ônibus.

        —  Vilma — gritei.

        Mas não me escutava mais, e o gesto mais imediato que fiz foi correr atrás dela — eu, James Elroy Chandler, aliás Walter Frank, procurado pela polícia criminal internacional, eu, Walter Frank, morto dentro de um ano, se tiver azar, e mais cedo, se tiver sorte. Eu, Walter Frank, que me esqueci de tudo isso quando a alcancei e parei a seu lado, respirando com dificuldade como ela, e vi como estava contente, como ria, como as maçãs do seu rosto ardiam...

        —  Oh, Sr. Frank, estou tão feliz, tão feliz! Tudo isso devemos ao senhor. E quando penso quanto medo tive ao ir vê-lo em sua casa, há uns dias atrás...

        —  Estava com medo, Vilma?

        —  Um medo terrível, Sr. Frank! — E rimos novamente, peguei em sua mão e continuamos andando, sobre o asfalto, sobre as folhas amarelas, passando por muitas casas desconhecidas de uma cidade desconhecida, que naqueles dias me pareceu familiar, como se nela eu tivesse nascido.

        Sim, acredito que eu era, de fato, um milagre para ela. À noitinha, quando começou a chover, levantei a mão, um táxi freou e levou-nos para casa. Estava no assento de trás, ao meu lado, as luzes da cidade deslizavam em seu rosto enquanto me contava mil histórias, e eu sem prestar atenção numa única sequer, porque durante todo o tempo só pensava em como deveria ser maravilhoso beijá-la. Mas não a beijei. Em frente ao portão despedi-me e fui caminhando pela chuva de volta à Reinerstrasse, pára o silencioso apartamento da Condessa que eu havia alugado e no qual Jolanthe estava à minha espera.

        Eu era um milagre. Para Vilma, para os amigos dela, para mim mesmo. Difundia alegria e contentamento onde aparecesse. Eu, logo eu! A cortina estava velha e feia? Então, é preciso arranjar uma cortina nova! Tão poucas cadeiras boas? Ridículo, então providenciemos para que venham outras! Félix não tem um terno escuro para a estréia? Félix ganhou um terno escuro. E conseguiu-o com o melhor alfaiate da cidade, e em três dias.

        O dinheiro fazia milagres.

        Não eu, mas o dinheiro! Num relance tive consciência disso, certa manhã quando estava sentado na platéia do teatro, vendo-os instalar a nova cortina, em meio a gritos e gargalhadas. O dinheiro era a fonte de todo bem. O dinheiro pelo qual havia fraudado um banco e que o engenheiro Lauterbach convertera em outra moeda por meios ilícitos. Dinheiro sujo, maldito, atrás do qual correra a vida inteira e do qual jamais conseguira o bastante até aquele ponto de minha existência. Era o dinheiro, o dinheiro, e não eu! É, tivesse eu possuído sempre dinheiro, teria o mundo a meus pés, teria podido comprar mulheres e homens, amor e poder. O dinheiro, o dinheiro, o dinheiro.

        Não eu.

        Deitei a cabeça sobre o tampo de falso mármore da mesinha e fechei os olhos. Senti-me como um idiota sentimental. Então escutei a voz dela:

        —  O senhor não está bem, Sr. Frank?

        Estava de pé à minha frente, vestida para a cena e com ruge nus faces, a larga boca pintada e cílios recobertos de preto. Curvou-se sobre mim e em seus olhos havia preocupação.

        —  Sim, sim, estou bem. O que há?

        —  Oh, Sr. Frank, nós refletimos! A cortina nova não nos agrada, e é tão cara. Queremos devolver o tecido e Susi vai pintar a velha com tinta dourada, assim ela vai parecer nova.

        —  Isso mesmo — disse Susi, a cenógrafa (tinha dezessete anos de idade). — O que o senhor acha, quanto dinheiro vamos economizar assim!

        —  É essa realmente a opinião de vocês? — perguntei baixinho.

        —  Então, por isso mesmo! — exclamou Félix. — Não queremos deixar estragar as coisas, absolutamente, simplesmente porque encontramos o senhor e o senhor está ajudando-nos! — Levantei-me e senti novamente o peso em meus ombros e o doce cansaço em minha cabeça, como se estivesse inebriado por um bom vinho do sul.

        —  Deixe só eu fazer! — falou Susi. — Uma cortina assim, da forma como vou pintar, o senhor não é capaz de pagar com todo o dinheiro do mundo.

        —  Com todo o dinheiro do mundo! — repeti.

        —  Ou não acredita em mim? — perguntou Susi em tom de desafio.

        —  Eu? — articulei e olhei para eles todos. — Arno vocês!

        —  Amamos o senhor também! — exclamou Vilma.

       

        Sim, provavelmente foi assim que começou... naqueles últimos dias de outono que precederam a pré-estréia. Uma quarta-feira ela veio a minha casa. Dessa quarta-feira em diante vivi como se estivesse sonhando. Um breve sonho, que durou três semanas e então terminou. Mas foi o mais belo sonho de minha vida, e quando penso em tudo que veio depois, as patifarias e a traição dos últimos meses caem como uma casca podre em volta da lembrança dessas três semanas, as mais felizes de minha existência.

        Penso nela, à noite, quando estou deitado acordado, e de dia, sentado à minha escrivaninha, as semanas resplandecem, despidas de toda imundície; e quando fecho os olhos ainda vejo com nitidez como foi tudo, cada gesto ou ato insignificante, cada sorriso, cada aperto de sua mão.

        Jamais a possuí, mas ela esteve bem próxima de mim, e amei-a mais do que a qualquer outra mulher em minha vida. Acredito que ela sabia. Nunca falamos sobre isso, mas da forma que ela às vezes me olhava e falava comigo, podia reconhecer que adivinhava o que eu nunca disse, porque o tempo era curto demais e a morte me perseguia, já pisava meus calcanhares.

        Ignoro onde esteja hoje. Mas se um Deus existe, ele fará com que ela seja feliz, pela felicidade que me deu, antes que à minha volta tudo se escureça e se esfrie definitivamente. Se existe um Deus, ele a recompensará com o bem, com o que de bom ela me fez sem saber.

        Durante o dia, das nove às quatro, ela estava no escritório e eu não podia vê-la. Mas telefonava-lhe. Em sigilo, simulando a voz, para que ninguém reconhecesse, e o fazia de uma cabina pública.

        — Por favor, posso falar um instante com a Srta. Parisini? — Sentia-me como um colegial, como se ainda fosse ao colégio e estivesse telefonando para minha amiga Claudette, que era assistente num consultório de dentista:

        —  Um momento — dizia o office-boy, que também atendia ao telefone. Era sempre muito desconfiado. Mas não acredito que alguma vez tenha notado algo. E eu escutava a voz dela, voz de criança, um pouco frágil e interrompida, com as palavras invariavelmente em tom interrogativo de surpresa:

        —  Alô?

        —  Aqui é Frank.

        —  Oh, bom dia! — Ela não dizia meu nome, era uma combinação secreta entre nós, tínhamos assim um segredo em comum, o mais doce e inocente segredo do mundo.

        — Estou passando aqui por perto... Achei que talvez pudéssemos ver-nos?...

        —  Ah sim, seria bom.

        —  Como sempre? Na esquina, na pequena confeitaria?

        — Sim, pois não. — (Eu deveria dizer todas as coisas importantes, ela não podia falar, o rapaz estava atento.)

        —  Às quatro?

        —  Pois não.

        —  Fico contente, Vilma.

        —  Sim, pois não.

        —  Até logo.

        —  Pois não!

        E às quatro via-me sentado na pequena confeitaria da esquina, sempre vazia e cheirando sempre um pouco a naftalina, onde na vitrine estavam expostas sempre as mesmas tortas e, inalteradamente, o mesmo gato atravessava o salão, majestoso, imperturbável e inacessível. Ficava sentado, tomando um vermute, e a qualquer ruído de saltos de sapatos na calçada da tranqüila ruazinha lá fora, empertigava-me, e à vista de toda mulher que passava pela vitrina levantava-me não por completo da cadeira — até que ela então chegava, com sua espaçosa bolsa a tiracolo, na qual levava consigo, a toda parte, milhares de coisas, desde pãezinhos de merenda, passando por folhas com o texto da novela radiofônica, até meias de seda cujos fios precisavam ser costurados.

        A dona da confeitaria era uma velha senhora com aparência de caftina. Ficava com expressão radiante quando chegava até nossa mesa, e toda tarde fazia a mesma pergunta:

        —  Hoje o que será para a jovem senhora? E toda tarde ela recebia a mesma resposta:

        —  Chocolate quente com nata batida e três pedaços de torta de morango.

        Algumas vezes Vilma achava de comer quatro pedaços. Era sua torta preferida. Antes de pedir a porção extra, porém, invariavelmente a consciência se adiantava:

        —  Oh, Sr. Frank, de fato não sei se devo comer mais uma torta!

        —  Por que não, Vilma, se você gosta tanto?

        —  Sim, mas tudo está custando tanto dinheiro.

        —  Nesse momento ainda posso garantir para você comer mais uma — falava. Assim, pedia a torta. E eu pedia mais um vermute.

        —  Sei que não devo fazer isso — recomeçava ela.

        —  Agora acaba com esse assunto, Vilma!

        —  Não, não é apenas por causa do dinheiro. Também por causa ida linha. Como atriz preciso cuidar bem de minha linha.

        —  Você não precisa mudar sua linha!

        —  Sr. Frank! O senhor acredita que no mês passado engordei um quilo?

        —  Nunca!

        —  Mas foi. É horrível! Não sei aonde vou parar. Minhas roupas já estão apertadas no corpo.

        —  Ridículo.

        —  Não, é verdade, veja só a saia! — Abriu o casaco, levantou-se e deu um rodopio à minha frente. — É isso! E o pulôver? Aqui! — Parou à minha frente, ao alcance das mãos, e mostrou-me o quanto seu pulôver ficara apertado. E eu, da cadeira, contemplava o pulôver e os pequenos e firmes seios que alargavam a malha em dois lugares de modo que eu podia ver a roupa interior.

        —  Por favor, não vá dizer que não! Oh Deus, pensei. Meu Deus do céu!

       

        No sábado ela não precisou ir ao escritório, Lauterbach deu-lhe folga. Contou-me isso sexta-feira à noite quando a levava para casa.

        —  Amanhã também estou livre — esclareci. Pensei em Jolanthe, mas era-me indiferente. — Não poderíamos estar juntos?

        —  Sim, aliás eu queria... — começou a dizer.

        —  O que você queria?

        —  Tenho uma transmissão no rádio — falou. Paramos no portão da casa onde morava, a chuva voltou a cair, e trajava a mesma capa de quando veio a minha casa a primeira vez, e o mesmo lenço de cabeça. Ver esse lenço contrariava-me de tal maneira que a cada respiro que eu dava o coração doía-me, como se fosse estilhaçar-me no peito.

        —  Sim, e daí?

        —  E ainda vou ter de estudar o meu papel.

        —  Estudemos juntos.

        —  Sim, mas não sei...

        —  O que você não sabe?

        —  Vou sempre ao bosque quando estudo o meu papel — disse ela. — É que em casa faço barulho demais. Os vizinhos reclamam, as paredes são finas.

        —  Que idiotas — falei furioso.

        Fez um movimento de cabeça, concordando.

        —  O senhor acredita que uma vez chamaram a polícia?

        —  Não!

        — Sim! Estava estudando A Ascensão de Hannele. A cena em que a avó morre, sabe? Estudava em voz um pouco alta, devo confessar. Avó, gritei, avó, não morra, avó, você não pode morrer, está me ouvindo, avó?

        Meu coração doía tanto, que pensei que ia morrer. Resolvi respirar menos.

        —  E depois? — perguntei.

        —  Vinte minutos depois a polícia estava lá. Acreditaram que minha avó iria morrer realmente.

        —  Hum — articulei e não respirei.

        —  E no entanto ela morreu há dez anos.

        —  Sinto muito — falei amavelmente.

        —  Obrigada — replicou. — Então nos encontramos de manhã, às oito, no bonde, sim?

        —  Qual bonde?

        —  Linha 46 — explicou —, em frente à Bellaria. O senhor vai conseguir achar?

        —  Claro que sim.

        Consegui achar o local. Apanhei um táxi e disse o lugar. Mas pedi ao motorista para parar numa esquina antes e percorri a pé o resto do trecho. Não queria que Vilma me tomasse definitivamente por um capitalista.

        Ela já estava lá e acenou-me. Era um dia lindo, o céu sem nuvens, azul. O sol ainda aquecia, e um forte vento leste soprava. Vilma vestia um conjunto marrom. Naquele dia deixara o lenço de cabeça em casa. Só a bolsa a tiracolo continuava com ela, estufada de coisas. Dentro havia pãezinhos, conforme me explicou no bonde que nos levou até o Bosque de Viena, através dos subúrbios da zona oeste.

        —  Que pãezinhos são estes?

        —  Sanduíches. Salame, queijo emmental e mortadela. De qual gosta mais?

        —  Salame — falei ao acaso.

        —  Ah, é bom — mordia os lábios.

        —  Que foi?

        —  Nada.

        —  Diga, Vilma!

        —  Também gosto mais de salame — confessou meio vexada.

        —  Só estava brincando — falei imediatamente. — Não consigo suportar salame.

        —  Não é verdade!

        —  Mas é sim!

        —  Não, o senhor diz isso só para que eu possa comer os sanduíches!

        —  Vilma, que está achando que sou?

        —  Um mentiroso.

        —  Juro.

        —  Isso não basta! O senhor vai morrer dentro de um ano se estiver mentindo, aceita a aposta?

        Foi uma pergunta insignificante.

        —  Aceito — falei. Ela contentou-se.

        —  Trouxe junto pimentão também — explicou. — Pimentão verde, mamãe deu-me três. Gosta de pimentão?

        —  Adoro pimentão.

        —  Há também tomates — disse orgulhosamente. Parecia que havia trazido uma quitanda inteira. Foi sempre seu hábito, esclareceu um pouco mais tarde. Quando ia para o bosque a fim de estudar seu papel, sua mãe embrulhava-lhe sanduíches.

        —  Gasta-se tanto dinheiro comprando fora alguma coisa para comer.

        —  Mas é preciso trazer menos coisas — falei dirigindo o olhar para a pesada bolsa.

        —  A gente reveza um com o outro — opinou. Bem feito para mim ter dito aquilo.

        Por trás da estação terminal do bonde começava uma rua com mansões, que numa queda íngreme penetrava bosque adentro. Ali o vento soprava muito mais forte. Cantava nas árvores da alameda e por onde passava fazia girar em redemoinho a poeira e as folhas. Os cabelos de Vilma esvoaçavam à volta da cabeça. O céu iluminou-se. Sentia muito calor com a caminhada e tirei o casaco. Havia um cheiro de outono. Num jardim dois homens haviam acendido uma fogueira e queimavam madeira velha e seca e folhas murchas. A fumaça do fogo soprou em nossa direção, passando para a rua por onde vínhamos.

        Vilma cheirou o ar, farejando.

        —  Cheira muito bem, não é?

        —  Sim. O senhor também gosta tanto assim?

        —  Muito. Inclusive o cheiro da fogueira onde assam batatas.

        —  E o cheiro de alcatrão, quando estão consertando uma rua!

        —  De alcatrão também — falei. Era um amor perfeito. Entendíamo-nos um ao outro em todas as questões da vida. Pouco antes de começar realmente o Bosque de Viena, vimos uma banca de jornais.

        —  Um momentinho — disse Vilma. Correu até a banca e voltou com um jornal.

        —  Preciso ver se estou aí dentro — explicou, e começou a folhear.

        —  Dentro de quê?

        Fiquei sabendo, enquanto ela virava depressa as folhas do jornal, que este possuía uma coluna diária na qual vinham as críticas de transmissões radiofônicas. Na quinta-feira Vilma participara de um radioteatro.

        Deu um grito espantoso.

        —  Aqui! Olhe aqui!

        Olhei. No fim de um parágrafo, bem embaixo, li: "Num pequeno papel Vilma Parisini surpreendeu." Era tudo. Mas olhou-me de forma tão radiante que tive a impressão de que lhe houvessem conferido o prêmio Iffland-Ring.

        —  Hã! — articulou. — Dessa vez eles não podiam deixar-me de lado! Vou avançando aos pouquinhos! — Leu, maravilhada, a linha mais uma vez, depois meteu o jornal dentro da abarrotada bolsa a tiracolo. — Embora indo devagar — acrescentou. — A Sykora, claro, foi novamente magnífica! Um trabalho primoroso, com o xixi que ela faz! — A Sykora era uma colega a quem o crítico da seção radiofônica do jornal se referia mais detalhadamente e com alguns honrosos epítetos. — O senhor não vai acreditar, mas sei com toda garantia que ela escreve cartas para si mesma!

        —  O que faz ela?

        —  Depois de cada transmissão em que toma parte, o estúdio recebe algumas cartas de ouvintes entusiastas. Evi Sykora voltou a brilhar! Por que essa talentosa artista não é convidada com mais freqüência a atuar? Estamos aguardando a próxima novela com Evi Sykora! — Vilma fungou indignada. — Acha isso impossível?

        —  Incrível — falei.

        —  Mas o mais absurdo é que os idiotas do rádio levam isso a sério! Também acreditam em tudo! De fato julgam que é a voz do povo!

        —  Como assim? — disse eu. — Está na cara que é um embuste. Cartas sem remetentes!

        —  Mas elas têm um remetente! Aí é que está a baixeza da coisa! A Sykora pede a todos os conhecidos dela para escreverem esses tipos de carta. E naturalmente os nomes dos legítimos remetentes também estão lá!

        Fiquei impressionado.

        —  Isso é a última coisa que um artista podia fazer, não é?

        —  Não sei — redargüi —, isso me impressiona um pouco. As pessoas desejam ser enganadas, desafiam isso de forma direta!

        —  O senhor realmente acha isso?

        —  Naturalmente, Vilma. Logo que eu chegue em casa, sento-me e começo a escrever uma carta à incomparável atriz Vilma Parisini!

        Sua fisionomia mudou abruptamente, assumiu uma expressão radiante.

        —  Vai fazer isso realmente? — exclamou, esquecendo-se completamente do quanto, poucos segundos antes, ela própria havia reprovado esse método ilícito.

        —  Claro, Vilma, hoje mesmo!

        —  Ah — clamou —, seria magnífico! A Sykora vai explodir de raiva! Olhe, não envie a carta à direção da emissora, mas ao Sr. Jakobowitsch!

        —  Quem é o Sr. Jakobowitsch? — perguntei e senti pairar em meu espírito uma ilógica e ridícula onda de ciúme.

        —  É o contra-regra com quem sempre trabalho. Dê também uma "puxadinha" para ele!

        —  O quê? Ficou ruborizada.

        —  Meu Deus, desculpe-me, quero dizer... para o senhor também fazer uns elogios a ele.

        —  Pode confiar — falei. — O Sr. Jakobowitsch é para mim o maior contra-regra do continente.

        Naquele dia a temperatura subiu, ficou mais quente. Entramos pelo bosque passando por caminhos estreitos entre altas árvores nas quais a ventania rugia; ali o vento, enfim, se transformara numa ventania, quase tempestade. Uma ventania de outono, turbulenta, grandiosa, bramindo sobre nossas cabeças, e precisávamos gritar quando falávamos um com o outro. Falávamos muito pouco. íamos um trás do outro, ela à frente. Dentro do bosque ficou calmo, quase sem vento; a ventania roçava pela copa das árvores e o resvalar dela pelo alto criava uma atmosfera irreal que me deixou tonto. Escutava a ventania, que me tornava quase surdo, e no entanto não a percebia. A luz do sol, ofuscante, com seus raios inclinados, atravessava pelos troncos, e nossos sapatos afundavam em montes de folhagens murchas no chão. Meia hora depois, tive a sensação de vertigem do mai das alturas. Caminhava atrás de Vilma e volta e meia ela virava e ria para mim. Eu levava a bolsa a tiracolo.

        Em torno do meio-dia já estávamos cansados, o que bastava para então nos comprazer num restaurante que encontramos no meio do bosque. No lado da casa protegido do vento vimos ainda algumas mesas com cadeiras. Éramos os únicos fregueses. O garçom cumprimentou-nos amavelmente. Julgou que fôssemos um casal de namorados e imediatamente recomendou o melhor vinho da casa. Pedi uma garrafa. Vilma magoou o espírito de expert do garçom insistindo em beber o vinho misturado com soda. Disse que, do contrário, ficaria logo embriagada.

        Apaziguei o garçom convidando-o a tomar um copo conosco, e quando se retirou, Vilma desembrulhou os sanduíches. O vinho nos copos cintilava à luz do sol, a ventania bramia nas árvores e Vilma distribuía, séria e absorta, as provisões. Com efeito, comeu todos os sanduíches de salame. Comi três pimentões verdes em conserva e uma porção de emmental. Vilma também trouxera pimentão e sal em dois saquinhos de papel. Num deles estava escrito SAL em letras de imprensa e no outro PIMENTA. Para não trocar, disse Vilma.

        Depois, começamos a trabalhar. Ela tirou o script da bolsa e eu a acompanhava nos papéis. Tratava-se de um conto de fadas em radio-teatro. Vilma fazia o papel de uma fada má. Era um papel bastante longo e achei a novela abominável. Naquela manhã, porém, a minha impressão foi de estar escutando os eternos versos do imortal Shakespeare. Soprava para ela o início de cada fala, ela fechava os olhos e ia dizendo o texto, movendo ritmicamente a cabeça para frente e para trás e batendo com a mão esquerda cerrada sobre a mesa, escandindo os versos. Quando era necessário gritar, ela gritava. Era formidável vê-la gritar. Três passos adiante de nós ninguém conseguia ouvir, tão forte o vento cantava e rugia.

        Tomei alguns copos de vinho e fui ficando ainda um pouco mais aturdido, e mais feliz a cada minuto. Ao sol os cabelos de Vilma assumiam o brilho dourado e as manchinhas verdes de seus olhos cinza ficavam completamente escuras e pareciam veludo. Eram cerca de duas horas quando senti voltar minha dor de cabeça. Procurei ignorá-la. Não conseguindo esquecê-la, respirei fundo e falei o mínimo possível. Até então isso tinha ajudado. Mas dessa vez não valeu de nada. Enfim não suportei mais e engoli dois analgésicos. Vilma espantou-se.

        —  Não está se sentindo bem?

        —  Dor de cabeça — falei. — Vai passar logo.

        —  É o vinho. O senhor também deveria ter tomado com soda.

        —  É — falei.

        Ela arredou-se para o lado.

        —  Deite-se aqui!

        —  Como?

        —  O senhor devia deitar-se aqui. Com a cabeça no meu colo. Eu ponho a mão em sua testa.

        —  Isso funciona?

        —  Na maior parte das vezes — respondeu. — Meu pai também tinha dor de cabeça freqüentemente. Então eu colocava a mão sobre a testa dele e ela desaparecia. Já experimentamos isso muitas vezes. Também com outras pessoas.

        Pus as pernas sobre uma cadeira à frente e inclinei-me para trás. Pisquei os olhos para o alto em direção às copas das árvores através das quais brilhava o sol.

        —  Feche os olhos — disse ela e colocou sobre minha testa uma mão seca e fria. O bramido do vento, minha posição horizontal e a dor de cabeça reunidos com a proximidade de Vilma deixaram-me extremamente tonto. Tinha a impressão de estar balançando numa gangorra. Sobre meus olhos fechados círculos e redemoinhos vermelhos davam voltas. A mão de Vilma afagou de leve minha testa. Senti-me aquecido, feliz e sonolento. Dez minutos depois a dor de cabeça desapareceu.

        —  Viu, foi o que lhe disse — concluiu Vilma, contente.

        Do outro lado do pequeno terraço um esquilo castanho estava parado contemplando-nos com um ar sério. Segurava uma noz nas patinhas.

       

        A estréia na segunda-feira associou-se, em mim, também a um estado de grandes alvoroços. A causa foi um certo Josef Hermann!

        Josef Hermann tinha cinqüenta anos, era corrupto e desconhecido, um ator que jamais se realizara e que, agora, amargurado e desesperançado, rumava em direção a um crepúsculo de vida sem perspectivas. Ninguém sabia de que vivia. Mormente, ninguém sabia de onde retirava meios para beber. Pois bebia. Incessante e desmedidamente. Naturalmente bebia por motivos fáceis de explicar, para não dizer justificadamente, mas para o meio ambiente em que vivia isso nem sempre era agradável. Josef Hermann era o único ator do elenco com mais de vinte e cinco anos de idade. Félix contratara-o porque sentia grande compaixão pelo pobre comediante que vadiava dias a fio pelo Café Schubert, mudo, alcoolizado e queixoso de sua solitária existência. Além disso, na peça havia o personagem de um velho mendigo que nenhum dos jovens podia representar. Por injunções da ação, o mendigo deveria ter uma barba branca. Nos ensaios tudo ainda estava caminhando muito bem. Hermann era um esquisitão sujo, um tipo que nenhum de nós gostaria de ter como companhia. Recebendo o seu dinheirinho e tendo o seu gim para beber, sentia-se satisfeito. Descobrimos que era capaz de dizer seu texto ainda que bastante embriagado. Além disso, representava um mendigo que ficava sentado no chão. Não precisava sequer ficar em pé.

        Na tardinha de segunda-feira, às dezessete horas já me encontrava no teatro, tão nervoso que fumava um cigarro atrás do outro, ficava andando para lá e para cá, e suava espantosamente. Todos procuravam acalmar-me, mas de nada valia. Jolanthe chegou por volta das dezenove horas. Estava muito bonita, trazia um vestido negro para a noite, sob uma capa de pele, e foi cumprimentada com o maior respeito. Também ela preocupou-se comigo, possuía boa dose de humor e compreensão. Deixou que eu tomasse conhaque. Estávamos sentados no minúsculo camarim do teatro, o qual era dividido do resto por uma toalha de mesa alçada por cima de uma corda. Num lado as mulheres trocavam de roupa, no outro os homens. Em cada lado havia uma pequena penteadeira com um espelho, bem como um cabide tripé para os casacos.

        Sentei-me numa caixa e fiquei tomando o conhaque. Calculara que Jolanthe ficasse ao menos zangada com meu comportamento nos últimos dias, mas ainda revelava plena impassibilidade e simpatia. Você veio do mundo no qual acaba de se reencontrar, nele sente-se bem — foi o que ela disse quando certa vez me desculpei por chegar tão tarde em casa. Era uma mulher inteligente e perspicaz, embora, em última análise, infelizmente, nem sempre o fosse o suficiente.

        A representação começou às oito. Às sete e meia a platéia estava quase cheia. Havíamos esgotado os convites, e os primeiros críticos da cidade apareceram. Viena participava intensamente da atividade de seus vários teatros de porão e julgava os seus trabalhos com benevolência. Levantava-me de dois em dois minutos e olhava para a sala através de um orifício na velha cortina lindamente pintada por Susi. E a seguir tomava um gole de conhaque da garrafa.

        Já havia muito tempo que não estava mais lúcido, quando Félix me comunicou a catástrofe da noite. Alarmado pela circunstância de Josef Hermann às sete e meia ainda não haver aparecido, pusera-se em busca dele. Pouco depois o encontrou. Josef Hermann estava estirado no depósito de carvão da casa, aonde se podia chegar pela porta de ferro do toalete de senhoras. Nesse compartimento para guardar carvão também se achava a caldeira da calefação central que alimentava todo o edifício. Naquele ano ainda não estava em funcionamento, razão por que também não havia ainda um fogueiro. O fogueiro do ano anterior havia instalado uma cama de campanha ao lado da caldeira. Junto à cama havia uma mesa, e na parede estavam coladas algumas figuras com retratos de mulher recortados de revistas. Acima da cama balançava, pendida do teto, uma lâmpada sem globo.

        Naquela noite, sua luz cruel e rígida caía sobre Josef Hermann, o alcoólatra, que estava deitado na cama de campanha e roncando. Um pouco antes, eu disse que Hermann em seu papel não precisava ficar em pé, apenas sentado. No entanto, o seu estado nessa noite não lhe permitia sequer isso. Estava tão indescritivelmente embriagado que só conseguia mesmo ficar deitado (e ainda assim de forma nada bonita). Fedia a bebida forte e barata, o cheiro desagradável de toda uma cervejaria lotada.

        Ficamos parados ao redor da cama, consternados, calados. E agora, o que seria? Dentro de dez minutos a cortina se levantaria. A cena com Hermann era no primeiro ato. Onde se poderia conseguir às pressas um ator que fizesse com segurança o papel? Em parte alguma. Não existia esse ator. Um pavor fúnebre sobreveio-me. Tudo vinha por água abaixo. Num acesso de fúria insensata caí em cima do imobilizado Hermann e comecei a bater nele. O grupo puxou-me para longe dele.

        —  Porco miserável! — gritei. — Maldito porco! Soltem-me, mato esse indivíduo.

        Então escutei a fria voz de Jolanthe. Estava junto da caldeira, seu ? cabelo ruivo brilhava, resplandecendo em seu vestido negro, e todos viraram em sua direção:

        —  Entre no lugar dele!

        Eu, como disse, longe de estar lúcido, no entanto a entendera claramente.

        —  Eu? — sussurrei horrorizado.

        —  Por que não? Você conhece de cor o papel, esteve em todos os ensaios! — Olhei-a aguçadamente a fim de descobrir se talvez fosse o seu jeito de vingar-se, mas permaneceu num estado da maior inocência, sem malícia, e de todo amável. Ato contínuo os demais presentes aceitaram a idéia com entusiasmo.

        —  Isso! — exclamou Félix. — Claro! É a solução! O senhor tem quase a mesma idade de Hermann! (Muito amável, pensei.) — E é tão alto quando ele!

        —  E com a barba mal se veria seu rosto! — Foi Vilma quem disse.

        —  Mas não sou um ator!

        —  Para o papel não precisa de ser! Sr. Frank, o senhor vai conseguir sentar-se no chão e mendigar um pouco!

        —  Não, não posso!

        —  Dará certo! Pense na estréia!                                                         

        —  Estou pensando na estréia! — gritei. — E sei que não vai dar certo!

        Jolanthe deu-me a garrafa.

        —  Beba mais um gole, querido. Agarrei a garrafa e bebi um grande gole.

        —  Pois bem — resmunguei — e agora quero dizer-lhes uma coisa: prefiro deixar que me matem, a sair daqui para o maldito palco!

        —  É sua última palavra, Sr. Frank?

        —  Isso mesmo, é minha última palavra!

        Quinze minutos depois eu estava no palco. Haviam trocado minha roupa, maquiaram-me, adaptaram-me a asquerosa barba e ainda me deram duas vezes mais a garrafa. A princípio pus-me na defensiva e vociferei, tão alto que fui ouvido até na platéia, lá fora, provocando uma pequena inquietação. Finalmente, Vilma obteve êxito.

        —  Por favor, Sr. Frank — disse, enquanto os outros me forçavam a entrar dentro dos trajes sebentos do sebento Hermann —, não nos abandone!

        Isso pôs termo à minha resistência.

        Todos fizeram um movimento simbólico de cuspirem sobre mim antes de me empurrarem para o diminuto palco, e Jolanthe ficou no camarim, totalmente sem força para reprimir as gargalhadas que gostaria de dar. Sentei-me no meu canto e estendi o chapéu à minha frente. Transpirava tanto que fileiras de pingos não cessavam de correr da nuca descendo pelas costas e da testa até as sobrancelhas. Quando a cortina subiu e olhei para a sala às escuras de onde num e noutro ponto brilhava de forma estranha o olho de alguém, senti-me repentinamente tão embriagado que não conseguia abrir a boca. Fiquei caído no canto, sentado, murmurando a esmo. Fechei os olhos e recostei-me na parede. Acreditei que Vilma já me havia abordado duas vezes quando, enfim, despertei assustado. Estava em frente de mim e me contemplava. Seus olhos eram grandes e muito escuros. Estava de costas para o público e, aparentemente, sua intenção era hipnotizar-me. Seu olhar não se desprendia de mim, queria — e isso claro, vi imediatamente —forçar-me a dizer meu texto.

        Mas o limite daquilo que eu tinha condições de suportar parecia atingido. A própria Vilma não conseguiu mudar nada! Doce Vilma. Linda Vilma. Adorada, jovem Vilma, pensei. Essa era a realidade. A mim você não hipnotiza porque estou bêbado e tenho medo. Além do mais, já não sou mais capaz de ficar sentado direito. Não vai demorar eu cair para o lado. Sinto muito, amada, doce Vilma, mas não vou responder. Não saberia o quê. Esqueci todo o texto.

        E não respondi. Fiquei sentado lá, tranqüilamente, em silêncio. A minha volta só havia um grande zunido e estrondo, e, se bem me lembro, a próxima coisa que sucedeu foi que, num grupo de três, me arrastaram de volta para o camarim comum e lá me deitaram num sujo sofá. Estavam todos parados ao meu redor quando abri os olhos, Vilma ajoelhada ao meu lado.

        —  Pois é — constatei. — Vocês quiseram assim, crianças.

        —  De que você está falando? — perguntou Jolanthe.

        —  Vocês tiveram que interromper o espetáculo? Houve escândalo?

        —  Quer dizer que você não sabe nada a respeito? — perguntou Jolanthe.

        —  O que apenas sei é que Vilma tentou hipnotizar-me para me induzir a também representar, e não conseguiu.

        Olharam um para o outro e começaram todos a rir.

        —  Muito engraçado, não é? —falei. — Então agora podemos ir para casa!

        —  Podemos o quê?

        —  Ir para casa.

        —  Você está louco — disse Jolanthe. — Estamos agora justamente no grande intervalo.

        —  Grande intervalo? — repeti estupidificado. — A representação vai continuar?

        —  Claro!

        —  Mas eu estraguei o primeiro ato!

        —  O senhor não estragou nada — disse Vilma sorrindo.

        —  Não?

        —  O senhor foi magnífico, Sr. Frank — disse Félix. — Jamais vimos algo assim. A cena foi interrompida com aplausos, de tão boa a sua representação.

        Meu estômago contraiu-se convulsivamente.

        —  Espere — decidi — eu falei o meu papel?

        —  Lógico.

        —  E como, Sr. Frank!

        —  Uma maravilha!

        —  E agradou às pessoas?

        —  Esplêndido!

        —  Estou lhe dizendo: interrompido com aplausos!

        —  Mas não é possível. — Senti um certo mal-estar. — Mas não disse uma palavra e só fiquei lá, sentadinho. Ouvi até a inquietação do público na sala!

        —  Eram os aplausos — falou Jolanthe.

        —  Mas não sei nada de tudo que ocorreu... mas não foi... não é possível...

        —  É verdade — confirmou Félix. — Vilma de fato o hipnotizou. Olhei para Vilma. Seus olhos estavam de novo brilhantes e radiantes. Respondeu ao meu olhar.

        —  Sim — murmurei — parece que fez isso.

        Num relance levantei-me de um salto e corri para a porta.

        —  Pelo amor de Deus! — gritou Jolanthe. — Que houve com você?

        —  Nada — respondi com voz rouca —, não se assustem por favor, volto logo. De repente comecei a me sentir mal.

       

        Nos dias seguintes colecionei recortes de jornais.

        As críticas davam grande destaque, foi um grande sucesso para o Studio 52. Eu mesmo também fui mencionado e elogiado, embora só indiretamente. O elogio era dirigido para o "extravagante, cômico, maravilhoso e original ator Josef Hermann", que o público gostaria de ver em breve num palco de maior categoria e representando um papel de maior importância. Sim, foi assim mesmo: a crítica de fato nada havia notado. No cartaz do teatro lia-se: "Um mendigo: Josef Hermann"; portanto, Josef Hermann fora o mendigo. Uma sorte eu não possuir nenhuma ambição de ator, senão poderia facilmente ter degenerado a coisa toda numa tragédia!

        Mas a coisa revelou-se cômica, embora não inteiramente. Isso porque em cada novo jornal que eu abria, acometia-me o medo de que Josef Hermann pudesse ler nele, a seu respeito, uma crítica má. Também isso correria por minha conta. E ele, todavia, deveria responsabilizar-se por isso, como pelo elogio. Não lhe invejava o elogio, mas a idéia de que ele fosse criticado em virtude de minha substituição no palco era-me hedionda. O pobre sujeito, na sua situação, haveria de sentir qualquer calúnia como um golpe mortal. Fiquei sentado, lendo febrilmente as novas notícias, e sempre que voltavam a referir-se a "Hermann, o maravilhoso e incompreendido ator popular" ou ao "comovente esboço de um grande ator caracterizador do gênero humano" ou então à "vergonha de que uma cidade como Viena pudesse deixar desempregado um ator como esse" — então eu respirava aliviado e tinha a sensação de que nós dois, Hermann e eu, estávamos saindo-nos bem mais uma vez.

        Na quinta-feira passava o prazo de dez dias do engenheiro Lauterbach. Telefonei-lhe na quarta e perguntei-lhe se ainda mantinha o nosso acordo. Disse que sim. Na quinta-feira, por volta das três da tarde, dirigi-me com o carro para a Prinz Eugen Strasse, sem qualquer alegria, meio perturbado e indeciso. Se Lauterbach trocasse em xelins a segunda parcela da quantia em marcos, perante Jolanthe eu perderia qualquer motivo para um prolongamento de nossa estada em Viena. Cedo ou tarde deveria deixar a cidade ou suscitar uma decisão de outra ordem. Senti medo de uma decisão dessa natureza. Uma vez já provara que não estava apto para ela.

        Quando entrei no grande edifício aristocrático em que Lauterbach mantinha seu escritório, por um momento tive a louca idéia de que mais agradável seria se Lauterbach não pudesse pagar-me. O fato de a porta de entrada do engenheiro estar aberta não chegou a causar-me tanta estranheza assim. Espanto maior foi o que me causou a circunstância de que o office-boy não estava na ante-sala. Quando entrei na sala de Vilma e também a encontrei vazia, tive calafrios.

        —  Alô! — exclamei alto. Mas o silêncio era total, à exceção da calefação central com seu tique-taque baixinho. Passei adiante e abri com um golpe a porta da sala de Lauterbach. Nela estavam sentados dois cavalheiros trajando ternos comprados prontos, que disputavam um jogo de paciência com o baralho.

        —  Boa tarde —falei. Os dois levantaram os olhos. Suas cartas estavam dispostas sobre a escrivaninha de Lauterbach. Um era magro, meio macilento e rosto amarelado, o outro era gordo e de tez rosada.

        —  Boa tarde — disse o corado. — Deseja algo?

        —  Gostaria de falar com o Sr. Lauterbach.

        O rosado colocou as cartas na escrivaninha, ergueu-se e perguntou:

        —  Sobre que assunto?

        —  Um assunto particular.

        —  Vamos com calma — falou com um riso amarelo, enquanto se aproximava e examinava-me.

        O amarelo também se levantou, dirigiu-se até mim e disse:

        —  Mostre-nos sua identidade.

        —  Não pretendo fazer isso!

        —  Devagar — contemporizou novamente o rosado. Mas o sorriso amarelo desaparecera.

        —  Aliás, quem são os senhores?

        —  Polícia criminal — explicou o amarelo e mostrou-me uma ficha com emblema.

        —  Então, vai mostrar logo? — perguntou o rosado.

        —  Pois não, cavalheiros — concordei e mostrei-lhes minha carteira de identidade. O gordo retirou um bloco do bolso e nele escreveu os dados a meu respeito. Não foi tão agradável assim, mas eu não podia fazer nada contra.

        —  Onde está o Sr. Lauterbach ?

        —  Nós o prendemos — disse o rosado, tentando levantar-se para ver as cartas de seu colega por trás deste.

        —  Porquê?

        —  O senhor é parente dele?

        —  Não.

        —  Ou um amigo?

        —  Não.

        —  O que é, então?

        —  Queria discutir um negócio com ele.

        —  Que negócio?

        —  Exportação — falei.

        —  Vamos devagar — voltou a falar o gordo, como que pedindo paciência.

        —  O senhor vai ter de fazer o seu negócio com um outro — disse o amarelo.

        —  Muita gentileza de sua parte, cavalheiros. Agora posso ir?

        —  Por favor — falou o magro.

        —  Obrigado — articulei, enquanto ele apanhava da mesa a identidade e entregava a mim. Caminhei para a porta. — Embaralhe as cartas — ainda aconselhei a ele —, seu colega viu o valete de copas e a dama de paus que estão por cima.

        Num instante já estava novamente lá fora. Descendo os degraus do patamar de entrada, refleti sobre o que podia fazer agora que Lauterbach fora preso. Será que ele iria falar? Dificilmente, e embora falasse... o pacotinho em Munique não estava em meu nome e os quatro primeiros cheques, ele próprio os havia assinado no verso. Contudo havia o seguinte: o Sr. Lauterbach não podia mais trocar os vinte mil marcos seguintes pelos lindos e antigos móveis de escritório... Saí para a rua. Soprava um vento frio e caía uma chuvinha fina. Após uma curta reflexão, entrei na ruazinha lateral e, num instante, na tranqüila confeitaria. Lá estava Vilma, sentada, à sua frente um prato com três pedaços de torta de morango.

        —  Olá — falei.

        Balançou a cabeça, denotando mau humor.

        —  Esperei que o senhor viesse, Sr. Frank.

        Sentei-me à sua frente; a proprietária, com seu ar de cúmplice apareceu e cumprimentou com um sorriso radiante:

        —  Um conhaque?

        —  Dose tripla — falei. Ela desapareceu.

        O gato passeava empertigado pelo pequeno salão.

        —  Vejo que não está comendo nada — disse eu.

        —  Não consigo! — Vilma parecia indisposta, assustada e pálida, sombras pairavam sobre seus olhos. — Eles só me deixaram ir há uma hora atrás.

        —  Quem?

        —  Os agentes de polícia.

        —  Que foi que houve? Seu chefe foi preso?

        —  Sim.

        —  Porquê?

        —  Oh, é horrível! — Sacudiu a cabeça e mordeu os lábios.

        —  Vamos, diga-me o que foi.

        —  Ele deve ser um grande trapaceiro, Sr. Frank! — Engoliu com dificuldade e ficou desbastando com a colherinha os pedacinhos de torta. — Já está em prisão preventiva, passou-se tão rápido! E no entanto era um homem tão sério. O senhor é capaz de entender?

        A velha caftina chegou com o conhaque.

        —  Saúde e bom proveito — disse ela.

        —  Obrigado — falei e esvaziei o copo. — Mais um, por favor.

        —  Pois não, sem demora — disse ela num sussurro e afastou-se apressada.

        —  Que foi que lhe perguntaram? — indaguei.

        —  Sobre o que eu sabia a respeito dele.

        —  E que foi que respondeu?

        —  Só coisas boas. Ele me deu tanta pena. Parecia tão velho quando o levaram embora. E tão triste.

        —  Falaram também a meu respeito?

        —  Não, Sr. Frank! — Levantou os olhos. — Por que o fariam?

        —  Eventualmente, poderia ser.

        Negou com um movimento de cabeça.

        —  Não conversaram a respeito do senhor. Mas, mesmo que tivessem falado sobre o senhor... interrompeu a idéia e enfiou na boca um pedaço de torta.

        —  Sim?

        —  Não diria uma palavra que denunciasse!

        —  O quê?—perguntei em voz baixa.

        —  A troca dos marcos — falou. — É mais do que certo, Sr. Frank, que eu me calaria, e mesmo que o senhor tivesse realizado outros negócios diferentes com o engenheiro!

        —  Sim?

        —  Sim.

        —  É muito amável de sua parte, Vilma. — Pus minha mão sobre a dela. Não a retirou. — Coma a sua torta — falei.

        —  Não consigo.

        —  Por que não?

        —  Porque... porque... — Mordeu os lábios e sacudiu a cabeça.

        —  Então?

        —  Porque sou tão infeliz — murmurou, e de repente brotaram-lhe lágrimas dos olhos.

        —  Por que está infeliz?

        —  Por causa do senhor.

        —  Por minha causa?

        Assentiu com um movimento de cabeça, desesperada, e sorveu o ar pelo nariz.

        —  Mas por quê?

        —  Hoje o senhor iria receber seu dinheiro!

        —  É, está correto.

        —  Sr. Frank, escondi os cheques quando a polícia chegou.

        —  Onde os escondeu?

        —  Aqui — falou e ficou muito vermelha. Apontou para os seios.

        —  Vilma — articulei com a voz sufocada.

        Ela confirmou com um sinal de cabeça.

        —  Meti-os em meu sutiã — murmurou com uns olhos chamejantes — e quando me deixaram sair por um momento, rasguei-os e os joguei no vaso. O senhor não precisa recear, jamais será descoberto o que fiz.

        Não a via com nitidez, pois também meus olhos encheram-se de lágrimas; procurei, porém, gravar sua figura, ali sentada no lusco-fusco daquele anoitecer de outono, naquela ridícula confeitaria, e minha mão ainda repousando sobre a dela. Naquele segundo ela estava tão linda, e eu sabia que essa noite ela se tornaria minha amante.

        —  Obrigado — disse baixinho.

        —  Agora o que é que o senhor vai fazer?

        —  Como assim?

        —  Mas o senhor não vai receber o dinheiro?

        —  Não.

        —  E então?

        —  Vou consegui-lo em outra parte.

        —  Onde?

        —  Isso ainda não sei, Vilma. — Contemplei-a fixamente e ela não mais se desviou de meu olhar, correspondeu a ele com firmeza e com o fervor de uma jovem mulher que se rejubila com um primeiro amor nascente. A porta da confeitaria abriu-se e uma velha senhora entrou. Trazia uma cesta com alça, cheia de rosas, e imediatamente caminhou em nossa direção.

        —  Uma rosa para a noivinha?

        —  Traz aqui — pedi.

        —  Uma?

        —  Todas!

        —  Não! — Vilma gritou.

        —  Sim — falei rapidamente. — Quanto custam? A mulher mencionou a quantia. Paguei.

        —  Não! Não! Não! — Vilma batia com seus pequenos punhos sobre a mesa. — Não faça isso! Não quero! Por favor!

        —  Dê-me todas — falei para a mulher e tirei todas as flores do cesto. Ela foi-se embora. A caftina apareceu, observou-nos sorrindo e voltou a desaparecer em seu compartimento, uma espécie de tabique.

        —  O senhor não deveria ter feito isso. — Vilma estava prestes a chorar. Reuni as rosas vermelhas, eram cerca de três dúzias, fazendo um grande buquê e coloquei-as em seu colo. Olhou para mim, arfante ao respirar, não disse uma palavra, seus olhos brilhavam. Já estava escuro na confeitaria, lá fora as luzes da rua estavam acesas.

        —  Por que está fazendo isso?

        —  Porque estou feliz.

        —  Feliz... com quê?

        —  Por Lauterbach ter sido preso e eu não receber o meu dinheiro "— expliquei, e ri alegre e livremente.

        —  Não estou entendendo. É por isso que está feliz?

        —  É, porque agora ainda posso continuar aqui — disse-lhe e falava com toda a firmeza.

        —  E por que o senhor quer permanecer aqui, Sr. Frank?

        —  Porque amo você — respondi. Então beijei-a. Seu colo estava cheio de rosas, que ela segurou firme e obstinadamente quando a abracei, e de seus lábios maravilhosos e frescos irradiava-se toda a sua juventude. Enquanto abraçada, escorregou para trás, contra a parede, e gemeu. Sua boca tornou-se quente e macia, abrindo-se, e segurei-a com firmeza nos braços sentindo seu corpo colado ao meu e seu hálito em meus lábios, e nossas mãos moviam-se juntas.

        —  Também amo você — disse ela, com um súbito desapontamento.

        Eu não podia ir para minha casa, e odiava a idéia de um hotel, qualquer que fosse. Segurava minha mão envolvendo-a com firmeza.

        —  Venha comigo para casa — disse ela.

        —  Para sua casa? Mas seus pais! — balbuciei.

        —  Eles não estão lá — disse em voz baixa. — Estou sozinha até amanhã cedo.

        Mesmo na grande escuridão reinante — a velha caftina ainda não havia acendido nenhuma luz — eu podia enxergar o sangue afluir em sei: rosto em transbordante onda de calor. Assaltou-me uma espécie de nostalgia ansiosa e de desejo que nunca havia sentido ainda. Não era o desejo cobiçoso que Jolanthe me provocava. Era um desejo com sabor de aventura, perigoso e condenado à desesperança, que me afligia, solapando-me e queimando-me por dentro em desespero, auto-acusações e falta de energia. A ansiedade que sentia por Vilma, porém, me tornava feliz e me fortalecia, e senti-me livre e seguro, a salvo e em casa, no amor que sentia por ela.

        Andamos pela cidade. Agora chovia mais forte, as ruas brilhavam e os carros espirravam lama sobre nós, mas nem notávamos. Caminhávamos de braços dados e falávamos pouco. A chuva desabou sobre nós e pessoas estranhas colidiam conosco, mas também não nos dávamos conta disso. Estávamos felizes. Breve, pensei, breve estaríamos a sós! Era-me indiferente o que ainda estivesse por vir. Que me prendessem, hoje mesmo, ou que fosse amanhã. Que Jolanthe me denunciasse, ou eu morresse. Encontrara Vilma, amava-a, numa noite em que chovia e um obscuro engenheiro fora preso, eu a amava como ninguém poderia amar, e tudo mais não importava. Chegamos à sua casa. Ela se deteve, e senti que ficou estarrecida. Havia luz nas janelas do seu apartamento.

        —  Meus pais — sussurrou. — Devem ter voltado para casa mais cedo.

        Meu coração contraiu-se convulsivamente, levantei os olhos para os três retângulos iluminados, e tudo dentro de mim ficou morto e vazio.

        —  Que devemos fazer?

        —  Não sei — murmurou.

        O sangue circulava em rumor pelas minhas veias e senti o hálito de Vilma junto o meu rosto. A chuva descia e as trevas nos envolviam.

        Sorri. Ainda pensei num quarto de hotel, em seguida disse com animação:

        —  Vá.

        —  Não — e ficou em meus braços.

        —  Sim, vá — falei. — Vá agora, meu amor. Ainda temos muito tempo. Não há de ser assim. Posso esperar. Acredite-me, posso esperar.

        —  Acredito em você — sussurrou. Então se desprendeu de mim e entrou na casa correndo. Acompanhei-a com o olhar. Meus sapatos estavam encharcados, sentia-me feliz. E se algum Deus existe, agradeço-lhe por essa caminhada pela cidade de Viena, no dia quinze de outubro, cerca das vinte horas, passeando na chuva ao lado de Vilma, liberto, repleto de amor e possuído de um desejo insatisfeito, que não obstante significava a plenitude.

       

        —  Até logo, adeus, não fique longe tanto tempo...

        A voz de uma jovem cantora e o saxofone que a acompanhava penetravam pela silenciosa escada de acesso ao apartamento. Jolanthe ligara nosso rádio num volume excessivo, o apartamento repercutia o barulho de um ritmo sincopado primitivo quando nele entrei, meia hora depois. Todos os cômodos estavam radiantemente iluminados, e neles reinava relativa desordem.

        —  Boa noite — falei e olhei, surpreso, à minha volta. — O que houve aqui?

        Jolanthe levantou um pouco a cabeça— estava no chão, ajoelhada, encurvada por cima de uma mala — e em seguida voltou para seu trabalho.

        —  Vamos partir de viagem.

        Contemplei a pilha de roupas sobre a cama, os sapatos no tapete e os cabides espalhados no quarto, esbocei uma fisionomia amável e polida.

        —  Assim tão de repente?

        —  Sim. — Jolanthe jogou os cabelos para trás e endireitou o tronco para apanhar um copo pela metade, que estava a seu lado. Junto ao copo havia uma garrafa de conhaque. Também estava pelo meio. Jolanthe bebeu. Parecia já haver bebido bastante, seus olhos tinham um brilho úmido e seus movimentos não eram muito seguros. Os dedos tremiam um pouco quando pôs um cigarro na boca. Adiantei-me para acendê-lo e, ao mesmo tempo, diminuí o volume do rádio.

        —  Por que está desligando?

        —  Não estou desligando, só reduzindo o volume.

        Olhava-me de forma esquisita, depois afastou-se novamente de mim, sem dizer uma palavra, e continuou a fazer a mala.

        —  Jolanthe — falei —, não podemos viajar.

        —  Podemos.

        —  Não, não podemos.

        —  Pois bem. Por que não?

        —  Porque Lauterbach foi preso.

        Isso fez com que ela prestasse atenção.

        —  Você não conseguiu o dinheiro?

        — Não.

        Hesitou, absorta na contemplação de uma meia de seda que no momento tinha na mão. Num relance colocou-a com energia dentro da mala.

        —  Então viajaremos sem o dinheiro.

        —  De forma alguma — protestei. — Meus planos são de uma natureza completamente diferente.

        —  Não me importa!

        —  Jolanthe, que há com você? — perguntei, já com voz mais elevada. Lá fora bramiu uma tempestade surgida de repente. As janelas bateram discretamente, era uma casa nova, de construção moderna.

        Esvaziou o copo.

        —  Estou farta de Viena, é só. Por isso vou partir. E você vem comigo.

        —  Ah não.

        —  Bom — concluiu. Seus olhos verdes detinham-se agora sobre mim, frios e ásperos pela primeira vez. — Então você certamente vai ter de explicar várias coisas à polícia.

        De repente senti-me muito cansado e aborrecido. A imagem de Vilma escapava, fugitiva, de minha percepção, eu procurava segurá-la, mas voltava novamente a se esvanecer. Suspirei.

        —  Você bebeu, Jolanthe.

        —  Oh, claro!

        —  Bastante.

        —  Nem tudo por minha conta — esclareceu com um movimento em direção à garrafa.

        —  Recebi uma visita.

        —  Quem foi?

        —  O Sr. Félix — disse ela.

        —  Quem é? — De início eu não soube realmente ligar o nome a algo ou alguém.

        —  Não se lembra do Sr. Félix?                     

        —  Lamento, mas não.

        —  Aliás, veio para falar com você. — Sentou-se sobre a mala aberta e puxou as pernas para junto do tronco. As peças de sua camisola separaram-se uma da outra. Ficou numa atitude displicente, com os calcanhares virados para dentro, os dedos dos pés para fora. As meias calçadas enroladas nas pernas. Tragava a bebida com dignidade. Cheirei o conhaque.

        —  Sobre o que ele queria falar comigo? — Pela primeira vez, depois de muito tempo, minhas têmporas recomeçaram a doer.

        —  Sobre a Srta. Vilma — disse Jolanthe e soprou uma nuvem de fumaça. A ponta de cinzas de seu cigarro crescia. Agora voltava a saber quem era o Sr. Félix. O amigo de Vilma. O amigo de Vilma, que eu amava. Sr. Félix. Estivera aqui.

        —  Quando soube que você não estava, decidiu conversar comigo.

        —  Sobre o quê?

        —  Sobre as preocupações dele.

        —  Ele tem problemas?

        —  Sim. — O cilindro de cinza estava com dois centímetros de comprimento. — Com Vilma. — A cinza caiu no tapete, entre as pernas de Jolanthe. Apanhou a garrafa. Agarrei-a e segurei-a firme. A garrafa foi puxada às sacudidelas para lá e para cá...

        —  Já basta.

        —  Ainda não. — Arrancou a garrafa da minha mão e encheu seu copo. O líquido transbordou. Ao erguer o copo derramou mais ainda. — O Sr. Félix está muito consternado com o fato de que Vilma ama você. Veio pedir conselho e ajuda. Aconselhá-lo eu não podia. Mas prometi-lhe ajuda.

        Minha dor de cabeça ficou mais forte.

        —  Na realidade, veio aqui para lhe contar que Vilma me ama?

        —  Ele é ainda muito jovem, Jimmy. Você não pode julgá-lo mai. Ele também ama a Srta. Vilma.

        —  Pois bem.

        —  Mais do que você.

        —  Como?

        —  Eu disse, mais dó que você.

        —  Não amo a Srta. Vilma — falei alto. Isso doeu-me, não queria dizê-lo. Tive a impressão de, com isso, perder Vilma.

        Por que menti?

        —  Por que está mentindo? — perguntou Jolanthe. A pintura em volta de sua boca lambuzara-se. Parecia um pouco inchada. Sua pele tornava-se gordurosa.

        —  É — articulei com um asco repentino. — De fato, por quê? Corrijo o que disse: amo a Srta. Vilma.

        —  Exatamente. — Balançou a cabeça seguidamente, já estava achando que não ia cessar mais de agitá-la.

        Agarrei o copo que ela segurava na mão, mas não o soltou.

        —  Eu lhe dou de volta — falei. — Só quero um trago também. Soltou então o copo. O conhaque queimava violentamente e

        tinha um sabor desagradavelmente adocicado. Levantei-me, pois de repente senti dificuldade, ao engolir, o que não era costumeiro. Inspirei o ar profundamente. Voltei a ficar melhor. Só a dor de cabeça perseverava.

        —  Havia proposto a mim mesmo falar com você sobre isso. É simplesmente o seguinte: apaixonei-me por essa jovem. Já faz algum tempo.

        —  Isso eu sei — redargüiu calmamente.

        Passei a andar para lá e para cá. Quando lhe voltava as costas, via-a no espelho veneziano pendurado na parede. Ela também me via.

        —  Precisamos conversar com calma a esse respeito — sugeri amigavelmente. — Acharemos uma solução. Para nós dois.

        —  Temos que ir para longe — disse ela apertando os lábios.

        —  Por que temos que partir, se você, como diz, sabe da realidade já há algum tempo?

        —  Não é por causa de Vilma que precisamos ir embora.

        —  Por causa de que, então?

        —  A razão é outra.

        —  Qual?

        —  Não posso falar a esse respeito.

        —  Ridículo! — exclamei. — Por que não?

        Fiquei parado em frente ao espelho e encarei-a. Vi que seus joelhos batiam um contra o outro, como se estivesse acometida de um espasmo súbito. Notou que eu estava vendo e recolheu a bata que usava.

        —  Repito, não posso!

        —  Então não pode exigir de mim que parta com você.

        —  Tenho medo! — deu um grito repentino, feroz. — Tenho medo, você entende?

        —  Não.

        —  Preciso ir embora daqui! Quanto antes! Ainda esta noite! E você precisa vir junto! Amanhã será tarde demais!

        —  Tarde demais para quê?

        —  Para tudo! Seu idiota, você se apaixona por uma jovenzinha e acredita que, por isso, o mundo vai ficar parado! Você não sabe o que está acontecendo à sua volta!

        —  Aparentemente não. Mas você pode me explicar.

        —  Não poderia, não posso! Só digo a você que é questão de vida ou morte para mim! E para você!

        Minhas têmporas doíam de forma insuportável.

        —  Você está bêbada e com ciúmes — retruquei em voz alta. — Nada mais que isso.

        —  Seu porco — falou, começando a chorar. Encurvou-se para frente, num relance inesperado. O copo de conhaque voou sobre mim. Era talhado de um bloco de vidro maciço e muito pesado. Arremeti a cabeça para o lado, desviando-me. O copo bateu no espelho, que se partiu em várias fendas.

        —  Jolanthe! — gritei e saltei à frente. Ela, porém, foi mais rápida. Só vi a garrafa uma fração de segundo antes de me atingir na base do nariz. No instante seguinte estava quebrada. Senti forte ardor quando o álcool tocou minha pele cortada, e a seguir uma rubra cortina de sangue desceu-me sobre os cílios. Cambaleei para frente, caindo em seus braços.

        —  Jimmy, meu Deus, que fiz?

        —  Dê-me um lenço — falei. Não via mais nada.

        —  Sim, Jimmy, sim. Não quis fazer isso! Tenho medo! Um medo terrível!

        —  O lenço, depressa!

        —  Aqui! — Comprimiu-o contra o ferimento. Aí a coisa surgiu.

        Rápida como um raio, asfixiante, horrenda.

        Surgiu, como já ocorrera uma vez.

        O clarão ofuscante, uma dor louca, a queda no vazio.

        —  Jolanthe — gritei desesperado. — Segure-me! Segurou-me. Apesar disso, caí no chão, fui afundando, mais fundo do que jamais sentira antes. Foi meu segundo ataque sério. 

     

        As dores.

        Não sei descrevê-las, as dores das horas que se seguiram, dos dias seguintes. Não continham em si mesmas nada passível de definição. Seria preciso inventar novas palavras para defini-las. Entretanto, um ser humano não é capaz de achar tais palavras. Pois a dor que definissem, nada de humano a traria em si. Eu não vivia mais. Existia em estado crepuscular, entre sonhar e despertar, incapaz de ouvir, incapaz de ver, incapaz de pensar. Não comia nada, não bebia nada. Não conseguia mover os membros. Estava como um paralítico. Fiquei à espera de que a dor passasse. Mas não passou. A dor persistiu.

       

        Será dia?

        Será noite?

        Que hora? Que dia?

        Abro os olhos mais uma vez. Jolanthe está sentada em minha cama, consigo reconhecê-la pela silhueta, num plano de sombra. Silhueta avermelhada, desmanchando-se nas bordas. Uma bandagem envolve-me a cabeça, estou sentindo. Ela se curva sobre mim.

        —  Melhor?

        —  Não—respondo.

        Ignoro que esteja dizendo alguma coisa ou nada, pois que apenas meus lábios se movem. Não me sinto melhor. A impressão que tenho é de que jamais vou melhorar. Talvez seja o fim? Mas se é o fim por que então demora tanto?

        Será que o fim nunca chega ao fim?

     

        A dor, um câncer que já se vinha expandindo por toda a cabeça. Às vezes, tenho a sensação de que minha cabeça absolutamente não dói mais, como se já estivesse sem vida e seus vasos e órgãos estivessem murchos e definhados como um galho doente. E passam os minutos nos quais o inferno se enfurece em minha perna direita, ou no meu peito, ou nos dedos da mão.

        Naturalmente, o que aqui se revela são apenas estados de exaustão e desgaste de meus nervos, que não conseguem acompanhar a fadiga desses dias. Os órgãos de comunicação de meu corpo incidiram em completa desordem, todos os reflexos e reações estão confusos, embaralhados. Apenas uma coisa existe em calma soberana: a dor. A dor em si mesma. No terceiro dia — Jolanthe depois me diz a hora — chego a conseguir, com um lápis, rabiscar uma palavra num bloco que ela segura para mim. Lê a palavra enquanto eu a contemplo com ansiedade. Faz um movimento de cabeça concordando e levanta-se para sair, enquanto fecho os olhos esgotado à espera da preciosa maravilha. Eu escrevera: morfina.

       

        Não a consegui de imediato.

        Não era simples obter morfina sem receita. Jolanthe rodou de carro por toda a cidade. Entrou nos locais mais mal-afamados, nos becos mais escuros dos subúrbios, do outro lado do Danúbio. Lidou com cáftens, contrabandistas, marinheiros e viscosas mulheres que nos salões de chá serviam rum.

        Ficava deitado na cama, meio inconsciente, esperando que ela viesse para casa. Continuava sem poder falar, embora, mesmo em estado crepuscular, chegava à consciência do pavoroso fato de que Jolanthe não podia chamar um médico que me examinasse e tratasse de mim; de que não podia ser internado em uma clínica, de que me era irremediavelmente vedado qualquer socorro médico — caso eu não pretendesse trair-me quanto antes, ser preso nos próximos minutos e autuado judicialmente.

        Isso não se me afigurava suficientemente claro quando iniciei minha aventura. Agora o via claramente. Agora sabia que um sem-número de agentes anônimos da polícia criminal em vários países só estavam aguardando, esperando pacientemente que um certo dia, em alguma parte, emergisse um homem que não estava agüentando mais de dor e implorava por socorro. Esperavam por esse homem que tinha um tumor. Eles podiam esperar. Tinham tempo. E não sentiam dor nenhuma.

        Jolanthe estava pálida e esgotada quando chegou em casa, quase de madrugada.

        —  Amanhã — falou imediatamente. Seus lábios tremiam. — Amanhã vou conseguir.

        Semicerrei os olhos para mostrar-lhe que a entendera.

        —  O homem que vai me fornecer virá trazê-la aqui. Às dez horas. Tateei buscando o bloco e escrevi:

        —  Não quero isso!

        —  É impossível de outra forma — disse ela com voz rouca. — Ele insiste em vir.

        —  Por quê? — escrevi.

        — É a condição que impôs — replicou, e seu lábio inferior passou a tremer, como que acometida de calafrios. — Do contrário, não vamos consegui-la.

        Não compreendi; fiquei, porém, em silêncio e, com estranheza crescente, vi que Jolanthe de repente começou a soluçar histericamente. Quis acalmá-la, mas só podia mover-me de forma extremamente penosa, e falar era coisa em que deveria nem pensar. Por isso fiquei apenas olhando fixamente em sua direção, vendo-a molhar de lágrimas meu travesseiro e, ao abrir nervosamente as mãos, cerrando os punhos novamente. Antes, jamais havia chorado, pensei surpreendido e incomodado. Que foi que a acometeu? Seus nervos a teriam abandonado? Ou foi meu caso com Vilma? Soluçava, muda; aquela impressão penetrou claramente em meu consciente nebuloso e embrutecido.

        A segunda impressão que conservei foi o fato de que Jolanthe, na manhã seguinte — ambos havíamos dormido mal, e eu já estava atormentado pela falta de qualquer alimento e pelo esgotamento definitivo de meu corpo que se instalou com a maior rapidez, por problemas de visão e audição —, às nove horas, entornou de uma só vez um copo grande cheio de conhaque. Ela o fez sigilosamente e pensou que eu não a vira porque se encontrava no quarto ao lado. Mas pude ver sua imagem através de um ângulo do espelho partido, ainda preso na moldura. Estava recostada na janela, olhava fixamente para a rua e dobrou-se toda quando engoliu a enorme quantidade de álcool. Em seguida, entrou no banheiro e escovou os dentes.

        No correr de uma hora foi mais duas vezes ao banheiro, depois de haver entrado no mesmo quarto e tomado mais uma dose. Usava um vestido azul todo abotoado, e quando se dirigiu a mim e se sentou em minha cama, assustei-me ao vê-la com o rosto empoado, branco como giz e a boca pintada de um vermelho berrante, que mais parecia uma horrível ferida aberta. Os olhos afundavam-se em cavidades azuladas. Seu aspecto era fantasmagórico. Como um palhaço após a morte. Procurei sorrir, mas permaneceu séria.

        —  Ele virá sem falta? — escrevi em meu bloco.

        —  Sem falta — disse, sem me olhar.

        Ele chegou pontualmente. Quando a campainha tocou, Jolanthe levantou-se mecanicamente como uma boneca.

        —  A culpa é sua — disse em tom de veemência e fervor, com os olhos pregados em mim —, é tudo culpa sua. Eu queria ir embora. Agora é tarde demais.

        Dizendo isso, deixou-me sozinho e foi para a ante-sala.

        Não a compreendi. Não fazia nenhuma idéia do que dizia, e veio-me o pensamento, e não pela primeira vez, de que talvez estivesse louca. Vários detalhes em seu comportamento corroboravam essa impressão. Depois, entrou no quarto novamente. O homem que a acompanhava entrou imediatamente depois dela. Sorria e ergueu o braço num cumprimento, quando me viu. Na mão direita segurava um pequeno pacote.

        —  Olá, Mr. Chandler — disse em voz alta. Era o Sr. Mordstein.

       

        Contemplei-o fixamente.

        Meu cérebro atormentado procurou inutilmente um dos mil pensamentos que o invadiram. Não compreendi mais nada. Jolanthe passou para trás de Mordstein. Seu rosto branco parecia de pedra, nele nada mais se mexia. Mordstein sentou-se cuidadosamente na beira da cama.

        —  O senhor — falou — estará certamente assustado por me ver aqui.

        Aquiesci com um movimento de cabeça.

        —  Não pode falar? Balancei a cabeça.

        —  Dores?

        Confirmei com um novo sinal de cabeça.

        A resposta pareceu satisfazê-lo. Cruzou as pernas e retirou do bolso uma tabaqueira.

        —  Não se incomoda que eu fume, não? — perguntou sorrindo. Não me mexi, apenas fitava-o detidamente. Pôs um cigarro na boca e, em seguida, virou-se um pouco para o lado. — Fogo, por favor — disse.

        Como uma sonâmbula, Jolanthe apanhou um isqueiro que estava sobre a mesa e o acendeu. A mão que segurava o isqueiro tremia tanto que precisou ajudá-la com a outra para manter-se firme.

        —  Obrigado — disse Mordstein, e sorriu. Seus olhos desceram, sem brilho nem cor. Mordstein voltou-se para mim. — Para responder à pergunta que sem dúvida mais o preocupa, Mr. Chandler: sim, trouxe a morfina.

        Expirei profundamente o ar.

        —  O senhor está contente com isso, não é mesmo? Balancei a cabeça, concordando.

        —  Olhe, esta aqui — prosseguiu, em voz amigável. Abriu o pacotinho e retirou dele uma caixa com ampolas. — Pensei até mesmo numa agulha de injeção — disse e pôs uma agulha sobre a cama.

        — O médico que me vendeu as coisas explicou-me perfeitamente como se dá uma injeção. Sou um enfermeiro perfeito. — Riu efusivamente com o que acabava de declarar e segurou a agulha, examinando-a contra a luz.

        Que significava tudo aquilo? Como foi que Mordstein viera até aqui? Que era ele realmente? Que Jolanthe sabia dele? Que sabia ele a respeito de Jolanthe? Essas perguntas, ou melhor, os fragmentos confusos dessas perguntas, afligiam-me. Aguardei receoso os acontecimentos que viriam. Estava lúcido de que novos acontecimentos estavam por vir.

        —  Devo preparar-lhe logo uma injeção? — perguntou Mordstein. Assenti com um sinal de cabeça.

        —  O senhor sente dores realmente incômodas, não é? — Fiz novo movimento de cabeça. Qual o motivo para isso? Por que perguntava? Se ele sabia!... — Também compreendeu que apenas a morfina pode livrá-lo dessas dores?

        Novo movimento de cabeça.

        —  Esta morfina — falou lentamente. — Minha morfina. Repeti o movimento.

        Achei que compreendia. Peguei o bloco e rabisquei: — Claro que vou pagar.

        Leu o que escrevera e voltou a rir:

        —  Sem dúvida, Mr. Chandler, claro que vai pagar!

        Precisei fechar os olhos. De repente não podia mais olhar a agulha e as ampolas, a dor, mais intensa, extravasava-me a cabeça numa onda de calor. Obriguei-me a abrir os olhos novamente. Ele ainda conservava a agulha à frente de meu rosto. Devo ter mostrado uma impressão de avidez e desespero tão bestial, que Jolanthe não suportou.

        —  Acabe logo com isso! — falou, com enorme ansiedade. Ele voltou-se lentamente para ela.

        —  Cale-se, querida — pediu-lhe sem elevar a voz. O rosto dela assumiu uma impressão de medo, humildade e uma resignação, tal como jamais vira em qualquer pessoa. Jolanthe foi até a janela. Suas costas estremeciam. Estava chorando novamente. Naquele momento percebi a maior parte daquilo que me havia confundido. Mordstein explicou-me o resto, em seguida.

        —  Desculpe o incômodo, Mr. Chandler — disse ele polidamente.

        — Minha mulher às vezes é um pouco indiscreta.

        Um silêncio mortal caiu sobre todos no quarto. Olhamos longamente um para o outro, Mordstein e eu.

        —  Sim — falou então e balançou a cabeça. — Jolanthe é minha mulher. O senhor não sabia?

     

        Não, não sabia.

        Acreditava que sabia uma porção de coisas. Aliás, tudo. Mas a gente sempre cometia falhas. Com efeito, eu poderia, agora, ter pensado nisso. Era tão simples, para dizer a verdade, desde o começo era evidente. E explicava tudo. O comportamento de Jolanthe em Munique, seu desaparecimento, o oferecimento de Mordstein de ajudar-me, o reencontro no carro-leito, o temor de Jolanthe em Viena, as lágrimas de Jolanthe. Sim, explicava tudo! E eu não soubera.

        —  Exprimindo-me com mais clareza — prosseguiu Mordstein — talvez eu precise dizer que Jolanthe foi minha mulher. Há dois anos atrás conseguiu separar-se de mim. Mas fora disso, e literalmente se compreende o que quero dizer, ela ainda continua sendo minha mulher. No mínimo, uma vez ou outra. Nos momentos decisivos, gostaria de dizer. — Voltou-se e olhou em direção a ela. Viu somente suas costas. Bastava-lhe isso. — Temos em comum tantas coisas, Mr. Chandler. Tantas coisas que, como devo expressar-me, nos ligam um ao outro, não é verdade? Uma pessoa jamais se livra inteiramente de uma outra a quem amou uma vez. Assim também sucede entre nós. Sobretudo Jolanthe. O senhor não pode levar isso a mal da parte dela, Mr. Chandler. — Curvou-se por cima de mim, pois eu gemera. — O que foi?

        —  Dê-me a morfina — escrevi no bloco.

        —  Sem demora, Mr. Chandler, sem demora. Só preciso, antes, ainda esclarecer-lhe algumas miudezas. O plano de apropriar-se de seu dinheiro...

        —  A morfina, por favor!

        —  O senhor não deve ficar impaciente, Mr. Chandler. Com isso pretendo demorar apenas mais um tempinho. Pois bem: o plano de apossar-me de seu dinheiro, naturalmente me veio à cabeça em seguida ao seu pedido para conseguir-lhe documentos falsos. Pretendia extorquir-lhe dinheiro. Nossa querida Jolanthe, e desde já me desculpe se falo "nossa", também se dispôs imediatamente a ajudar-me. Mais tarde, porém, mostrou-me uma grande decepção, o que lamento... por ela.

        Voltou a olhar em direção à janela, depois fitou-me novamente.

        —  Ela deveria tê-lo extorquido logo de saída. Ainda no carro-leito. Pelo meu plano naquela noite mesmo deveríamos estar de posse do dinheiro...

        —  A morfina, por favor!!!

        —  Sim, Mr. Chandler, já estou chegando lá. Jolanthe não fez, assim, a extorsão, mas usou os papéis que eu lhe dera para fugir com o senhor. Ontem mesmo ela me explicou, quando a reencontrei em Viena, que nisso não havia intenção de me lograr, e estou quase inclinado a acreditar nela. Pois quem não sabe como são as mulheres? Volúveis, submissas e indecisas em seus ânimos, covardes. E, inclusive, não se há de se esquecer do amor. O senhor causou alguma impressão em minha mulher, Mr. Chandler. Quem conseguiria levar-lhe a mal o fato dela haver querido fugir com o senhor, e de mim?

        Fugir. Fugir comigo. Dele. Sim, o propósito ela tivera, era exato. Só que isso também constituía um daqueles aspectos que eu não entendia com exatidão. Julguei que o medo dela era ciúme. Agora percebia a verdade. Mas já era tarde demais.

        —  Mas agora é demasiado tarde — Mordstein falou devagar. — Eu já estava bastante preocupado em não ter, por tanto tempo, notícias de Jolanthe. Por isso vim a Viena. Meus receios eram fundados. Não se deve confiar em mulheres.

        A morfina. A morfina.

        — Por favor, Mordstein!

        —  Agora chegamos lá, Mr. Chandler. — Meteu os dedos dentro da caixa retirando uma ampola de vidro, cuja ponta, no gargalo, serrou com uma pequena lixa. Puxou o conteúdo do pequeno tubo para dentro da seringa, segurou-a no alto e introduziu o cilindro móvel. Manteve-a no ar, sem fazer um movimento.

        —  Antes — falou — ainda temos apenas de acentuar um detalhe insignificante. Dê-me o talão de entrega do pacote de dinheiro da estação central de Munique.

        Não me mexi.

        —  O senhor ouviu-me?

        Aquiesci com um movimento de cabeça.

        —  Pois então?

        —  Não — escrevi no bloco. Vi Jolanthe, junto à janela, voltar-se para dentro.

        —  Mr. Chandler — disse Mordstein amavelmente —, se o senhor não me der o talão, esvazio no chão do quarto o conteúdo desta ampola. Seria uma pena, por causa do conteúdo. Portanto, como fica?

        Balancei a cabeça.

        Esguichou o conteúdo da ampola no quarto. Pressionou o cilindro dentro da seringa e dela um jato de líquido jorrou descrevendo no ar um gracioso arco.

        Com dois saltos Jolanthe veio para junto de mim. Sua expressão estava vazia e o rosto, como que crestado, num relance ganhou um aspecto envelhecido.

        —  Dê-lhe o dinheiro, Jimmy. Isso não tem sentido.

        Tive a sensação de que estiveram arrancando meus dentes, todos de uma só vez. Meu corpo contraiu-se convulsivamente e vomitei. Não sujei muito a cama. Só um pouco de bílis amarelada saiu de minha boca. Jolanthe limpou os vestígios. Vi Mordstein quebrar a ponta da ampola seguinte e encher a seringa novamente.

        —  Havia doze ampolas na caixa — falou. — Agora só há onze. Se não decidir logo, só haverá dez, ainda. — Manteve a seringa no alto. Jolanthe ficou a seu lado, parada, os ombros pensos. Não se mexeu. Os olhos arregalados, as pupilas pequenas como cabeças de alfinete.

        —  Então, Mr. Chandler?

        —  Jimmy, por favor! Balancei a cabeça, negando.

        Jolanthe gemeu como se tivesse recebido um chute no estômago.

        Assim, havia apenas dez ampolas... ainda.

        Na quarta ampola, cujo conteúdo esguichou no tapete, desisti!

        —  Onde está o talão? — perguntou Mordstein, compreendendo imediatamente que eu chegara ao fim de minha relutância. Escrevi onde o guardara. Dirigiu-se para a pequena escrivaninha barroca e tirou-o de uma gaveta lateral. Então encaminhou-se de volta em minha direção. Jolanthe comprimiu a mão em punho contra a boca quando ele quebrou a ampola, e encheu a seringa. Pela primeira vez, em três dias, consegui mover o braço direito que eu, aos solavancos, arremetia contra ele.

        —  Está bem, está bem — apaziguou —, apenas mais um último detalhezinho, Mister Chandler. Onde está o talão de entrega do resto do dinheiro? — Continuei imóvel. — O senhor deve ter deixado a segunda parte da quantia em algum lugar na Alemanha.

        Não me mexi.

        —  Muito bem — sentenciou. Agora só havia sete ampolas.

        —  Pare! — falei. Foi a primeira palavra que proferi nos últimos três dias, e minha voz soou de forma muito estranha. — Espere, está na minha carto-ta-to... — Meu queixo ficou caído, balbuciava como uma criança.

        —  Na sua carteira — disse ele solícito balançando a cabeça. Tirou-a da mesa e remexeu. E encontrou o talão de entrega da estação de Augsburg. — É o talão da quantia total?

        Assenti com a cabeça.

        — É claro que não acredito no senhor — redargüiu —, mas como viajará comigo para a Alemanha a fim de retirar o dinheiro, o risco não é tão grande. Lá fora posso denunciá-lo quando quiser. — Meteu no bolso os dois talões. Com eles, cem mil marcos mudavam de dono. Tudo se passou com a maior rapidez. Durou apenas um quarto de hora, e custou cinco ampolas de morfina. Mordstein apanhou novamente a agulha de injeção que colocara na mesa e levantou meu braço. — Pois bem — falou —, então estamos quites, não? Alegro-me por ter sido sensato em compreender-me e atender-me.

        Ele não era um sádico. Não me atormentou por prazer seu e não manteve mais outro tipo de conversa. Injetou logo a agulha em meu braço e apertou o cilindro para baixo. Dez minutos depois eu dormia como um morto e não sentia mais dor.

        A morfina fizera efeito.

     

        Não sei com precisão quando foi que Jolanthe me sugeriu pela primeira vez matar Mordstein. Certo é que sei ainda que foi ela a fazer a sugestão, embora naturalmente também eu viesse convivendo com esse pensamento. Ela, porém, estava em condições de apresentar idéias concretas.

        É plausível que tenha sido quatro ou cinco dias depois da cena que acabo de descrever, que falamos sobre seu plano. Fiquei de cama mais dois dias, nos quais as dores cessaram por completo e ganhei novas energias. Mordstein visitou-nos uma vez, para saber como eu estava. Combináramos deixar Viena imediatamente após meu restabelecimento. Mordstein, de resto, quando veio, trouxe ainda uma segunda caixa de morfina. Fez-me presente dela. Pela primeira cobrou-me sete mil xelins.

        —  Já está tudo preparado da melhor forma — esclareceu quando da sua visita. — Viajamos de carro para Munique.

        —  Com que carro?

        —  Com o meu. Vim a Viena de carro. — A seguir, desenvolveu seu plano. Pretendia levar-me até Salzburg. Lá eu deveria descer e viajar sozinho de trem e atravessar a fronteira alemã até chegar em Freilassing, onde ele e Jolanthe estariam à minha espera. — Principalmente quero evitar o risco de estar em sua companhia se alguém talvez prendê-lo no posto aduaneiro.

        —  Por que iriam prender-me? Se estou usando meus documentos falsos.

        —  Certamente poderia existir um mandado de busca com sua descrição na estação de fronteira.

        Reconheci a validade da explicação.

        —  Por isso Jolanthe, inclusive, não irá atravessar comigo como sua, mas como minha mulher. Com os velhos documentos. Se acontecer alguma coisa, nada temos a ver um com o outro. Saindo-se bem, voltamos a nos encontrar uma hora depois em Freilassing.

        —  E se eu não aparecer? Ele sorriu e esfregou as mãos.

        —  Então, Mr. Chandler, existem duas possibilidades: ou o senhor foi preso ou tentou escapar. Tendo sido preso, tudo fica bem, e não lhe guardarei rancor. Se tentar escapar, a estação de fronteira receberá um telefonema anônimo, informando que o senhor deve estar nas proximidades, quem é, que aspecto tem e como as coisas andam com seus papéis falsos. O senhor não irá muito longe.

        —  Não — disse então, enquanto refletia se realmente não iria muito longe —, naturalmente que não. E na volta?

        —  Na volta pode fazer o que quiser. Aí estará sozinho. Não regressarei à Áustria.

        —  E Jolanthe?

        —  Jolanthe ficará comigo.

        Estranhamente, foi essa explicação que fez com que, independentemente um do outro, eu e Jolanthe ficássemos absortos e mergulhados em uma série de pensamentos cujas conseqüências custavam a vida de Mordstein. Fizemo-lo por motivos inteiramente diversos. Para mim, a razão principal era de natureza financeira, temores que me assomaram em torno de minha segurança pessoal. Se ele, de fato, recebesse os dois pacotes de dinheiro, eu — excetuando a primeira parcela — estaria sem recursos. Também não poderia saber se eu próprio ficaria garantido contra ele, se, por exemplo, um dia me denunciasse, se não por outro motivo, ao menos por ciúme. Ninguém seria capaz de dizer o que um homem, que evidentemente não conseguia ter êxito em sustentar uma relação normal com Jolanthe, teria condições de fazer estando irritado.

        Além disso, eu odiava Mordstein. Esse motivo por enquanto ficava em terceiro lugar, mas existia. Odiava-o pela forma como me negara a morfina, e também odiava-o — fato este que a mim mesmo surpreendeu — porque dominava Jolanthe. Odiava-o por estar sujeito a ele. Jamais pensara que eu dava tanta importância a JolantheI

        Por outro lado, no que concernia aos motivos de Jolanthe atentar contra a vida de Mordstein, eram eles de natureza diferente e menos primitiva. Ela procurou explicá-los a mim nos dias que antecederam nossa partida. Mostrou uma nova relação para comigo desde que Mordstein aparecera. Tratava-me mais ou menos como uma mulher trata um psiquiatra a quem ela narra os piores e os mais secretos de seus sonhos maus, e diante do qual não mostra sentimento algum de vergonha. Precisava de alguém a quem pudesse dizer de si depois do longo tempo que passara em silêncio. Soube então do pior de que ela queria poupar-me. E agora deveria também atentar para os detalhes.

        Jolanthe vinha de uma família abastada, muito burguesa. Seu pai era um industrial renano, a mãe originava-se dos meios da aristocracia rural, empobrecidos, embora corretos e irreprováveis. A primeira infância de Jolanthe transcorreu de forma extremamente organizada e sob os olhos vigilantes de uma governanta francesa. O pai vivia constantemente viajando, enquanto a mãe se fazia o centro admirado e altamente cobiçado de suntuosas festas. Pela manhã, Jolanthe era levada até ela, para tomarem juntas o desjejum, e à noite ela vinha à cama da filha para dar-lhe boa noite. Nessa ocasião, aparecia então com um vestido resplandecente e com o agradável odor de um caro perfume. Jolanthe beijava-a respeitosamente e adormecia na certeza de possuir a mais linda mãe do mundo. Aos seis anos de idade, enviaram-na para um internato.

        Era um instituto orientado e dirigido exemplarmente, que desfrutava de excelente renome, e era muito dispendioso. As alunas provinham, sem exceção, de famílias ricas. O instituto era dirigido por uma ordem religiosa feminina. As meninas vestiam o mesmo uniforme, dormiam em grandes salões e era-lhes permitido ultrapassar o parque em volta da grande casa apenas em companhia de uma pessoa adulta ou em grupos.

        A princípio, Jolanthe sentia-se muito infeliz entre as ursulinas. Mademoiselle Janine, a governanta, fazia-lhe uma falta terrível, e ela tinha a sensação de estar completamente só e abandonada. As meninas de sua classe comportavam-se com reserva. À noite, cochichavam umas com as outras, sem Jolanthe conseguir entender a respeito de quê, e nos passeios que faziam juntas ela andava sozinha, a última, atrás das outras que caminhavam à sua frente de braços dados, contentes e barulhentas.

        Por essa razão logo apegou-se a Irmã Benvenuta, que dava aula de religião. Irmã Benvenuta era boa e amável, suave, um tom agradavelmente róseo no rosto. Falava em voz baixa, calma, sobre Nosso Senhor Jesus Cristo e seu sofrimento na Terra, e parecia a Jolanthe que Irmã Benvenuta conhecera pessoalmente o Salvador — pela forma tão fervorosa, comovente até as lágrimas, com que narrava sua árdua existência. Jolanthe escutava com atenção arrebatada. Estas foram as horas de sua primeira e tranqüila felicidade no novo mundo hostil no qual a puseram. Zelava ciumentamente sobre essa felicidade e perseguia com ódio e hostilidade todo aquele que a ameaçava. Por causa de Irmã Benvenuta e de seu amor tão evidente por Jesus Cristo, Jolanthe, em fúria homicida, pela primeira vez em sua vida caiu aos sopapos com uma menina gorda, precoce e atrevida, chamada Maud.

        Maud, uns olhos espertos e uma língua mais esperta, ainda, era a pior criança da classe. Vivia perturbando a todo instante e em toda parte, tinha as notas mais baixas e ficava de castigo constantemente. Nas aulas de Irmã Benvenuta sempre perturbava da forma mais desrespeitosa. Tagarelava e soltava risinhos irônicos, fazendo-se o centro irrequieto de uma oposição progressiva. Jolanthe chamou-lhe a atenção, como que para pedir-lhe satisfação de sua rebeldia, e pediu-lhe para se controlar.

        —  Você é uma boboca — disse Maud com cinismo. — Ainda acredita na asneira que Benni conta. — Sempre chamava a irmã só de Benni.

        —  Não são bobagens! É a verdade! Maud riu:

        —  Mentira, é o que é! Benni está mentindo! Coelhinho de Páscoa! Papai Noel! Menino Jesus! Tudo bobagem! Tudo para enganar! Quando você for mais velha, vai entender. E eu posso lhe contar outras coisas bem diferentes disso!

        —  Não quero ouvir nada! Mas lhe digo uma coisa — a voz de Jolanthe soava, para ela própria, de forma estranha e incomum —, se você incomodar mais uma vez, você vai ver!

        —  Você vai fazer alguma coisa?

        —  Vou, eu mesma! Maud não conteve o riso.

        Na aula de religião, continuou perturbando como nunca. Após a aula, Jolanthe, num acesso mudo de furor, caiu-lhe em cima e começou a surrá-la. Maud defendeu-se com energia. As outras pararam em volta e ficaram olhando as duas meninas rolarem no chão encerado e liso da classe, a puxarem-se pelos cabelos, chutarem uma à outra, arranharem-se e cuspirem uma na outra. Era uma luta digna de se ver e só terminou com a intervenção da Irmã Benvenuta, que se dera conta da gritaria da turma.

        Irmã Benvenuta, nervosa com os incidentes da aula anterior, perguntou, asperamente e com o rosto obscurecido por manchas que lhe cobriam o suave rubor, pelo motivo da briga. Maud calou-se. As outras meninas calaram-se também. E Jolanthe, no papel de uma pessoa que assume a humilhação infligida a um amante e sofre, também calou-se. De cabeça erguida e com um sentimento de profunda satisfação, compreendeu que Irmã Benvenuta exprimia a intenção de castigar tanto a ela como Maud. No domingo seguinte, para o qual estava programada uma grande excursão, Maud ficou presa no quarto sem poder sair. A Jolanthe, Irmã Benvenuta encarregou de enfeitar com flores novas o altar da capelinha da instituição. Não fazia idéia de que, com isso, dava a Jolanthe uma alegria íntima. Não adivinhava absolutamente a inclinação da menina, seu amor contido, não tinha o menor pressentimento de que à noite, em sua pequena cama, Jolanthe regozijava-se pela grande felicidade que, finalmente, lhe fora propiciada, ela poderia enfeitar o altar no qual havia uma imagem de gesso de Cristo, poderia oferecer flores ao homem que a amada Irmã Benvenuta venerava e a quem associava um profundo relacionamento íntimo.

        Cheia de alegria, Jolanthe viu, naquele domingo, as outras meninas partirem. Contente, atirou-se ao trabalho. Limpou até que o altar reluzisse como ouro. Selecionou, a seguir, as mais lindas flores que conseguiu encontrar na floricultura do instituto. Trabalhou horas a fio. Acalorada, as maçãs do rosto avermelhadas e com gotas de suor que lhe caíam pela testa, concluiu sua obra, e respirou aliviada, livre, quando o altar ficou radiante em meio às novas cores que o adornavam..

        Jolanthe afastou-se um pouco. O Redentor, em sua branca imagem, erguia, abençoando, a mão em sua direção, e o olhar era tão meigo, tão amável, caindo sobre ela, que chegava a perturbar-lhe os sentidos. Num relance Jolanthe sentiu o sangue subir-lhe à cabeça, ardente e vertiginosamente. Numa inspiração adveio-lhe o desejo de beijar o Salvador. Quis abraçar a fria estátua de pedra e comprimi-la de encontro ao peito, para que o milagroso, o silente, o divino, compreendesse aquele amor secreto, de que Irmã Benvenuta não fazia idéia alguma.

        Seus membros então moveram-se como que automaticamente. Num paroxismo de carência afetiva, numa fome desesperada de ternura, subiu ao altar, pisou com suas sandalinhas na alva toalha de damasco e levantou os braços; ato contínuo, segurou, num abraço,, com um gesto de definitiva passionalidade, o branco tronco do Salvador.  Jolanthe sentiu tonteiras. Fechou os olhos. Era a felicidade, a bem-aventurança.

        Irmã Benvenuta, que naquele instante entrava na capela, contemplou um quadro que a deixou ruborizada de vergonha. A pose da menina pareceu-lhe de tal perversidade, de tão indescritível lascívia, que ela, mais tarde, diante da Superiora, não procurou justificar seu procedimento, de forma alguma ilícito, com a perturbação momentânea. Irmã Benvenuta superou em frações de segundo a paralisia que a princípio dela se apossara e precipitou-se: com uma das mãos arrancou Jolanthe do altar; com a outra, esbofeteou-lhe violentamente o rosto.

       

        O pai, chamado às pressas pela direção do estabelecimento, viu-se em condições de abafar o escândalo mediante palavras agradáveis, um charme inato e um considerável donativo em dinheiro. ("Em benefício dos pobres.") Jolanthe não foi expulsa da escola. Com Irmã Benvenuta ocorreu algo semelhante a uma reconciliação formal. Apenas o pai decepcionou-a, despedindo-se de uma maneira para ela profundamente insatisfatória. Até o fim ela procurou explicar-lhe que não desejara fazer nada de mal, muito pelo contrário. Ele julgou esses apaixonados esforços por ser compreendida como uma tentativa de tranqüilizá-lo, e sorriu. Jamais ficara incomodado com a situação. Os "passarinhos de crista", como ele as chamou, eram, segundo sua mais profunda convicção, todas histéricas e esquisitas —, e é normal que uma menina de vez em quando apronte alguma coisa. De resto, Jolanthe prometera não voltar a repetir o que fizera. Duas semanas depois, ele já contava a façanha da filha de forma anedótica, no clube dos industriais:

        —  Aquela coisinha subindo no altar e beijando Nosso Senhor! Absurdo, que acham? Custou-me quinhentos marcos! Ha ha! Garçom, mais um uísque!

        Por ocasião de sua visita, as afirmações da filha bastaram. O tempo passou rápido e ele agora olhava o relógio. Às seis seu avião partia para Düsseldorf, era preciso apressar-se.

        —  Minha filha, é claro que entendo você. Está tudo bem; de hoje em diante fique bem-comportadinha; foi isso que você me prometeu, não foi?

        —  Sim, papai. — (Você não compreende uma só palavra. Quem é você realmente? Não o conheço em absoluto. Uma pessoa estranha.) — Muitos abraços para mamãe! — (Essa é outra pessoa estranha. Onde está mamãe? Na Riviera. Onde é a Riviera? Não sei. De qualquer jeito, longe, muito longe. Por que ela não está aqui? Por que mamãe não está aqui? Por que me deixam sempre sozinha?)

        —  Pois bem, até logo, Jolanthe!

        Pai e filha haviam chegado até o automóvel que vinha estacionando, ele beijou-a fugazmente, o chofer fez uma saudação meio irônica. Jolanthe sacudiu a cabeça distraída. O carro pôs-se em movimento. Uma nuvem de poeira ficou para trás. Foi tudo o que houve. Jolanthe voltou-se. Ombros pensos, começou o caminho de volta e assustou-se quando, dos arbustos, uma menina saltou para a estradinha de saibro. Era Maud. Sorriu amigavelmente.

        —  Lindo carro — falou elogiando.

        Jolanthe fez um movimento de cabeça, calada. Continuaram andando uma ao lado da outra.

        —  Um tipo simpático, seu pai. Silêncio.

        —  Como foi que ele agiu... com a pata choca?

        —  Que pata choca?

        —  Ora, a Benni. Ou não é uma boboca?

        —  Ah, sim — disse Jolanthe. (Longe, bem ao longe pairava a branca figura do Redentor.)

        —  Até que enfim você descobriu!

        Jolanthe balançou a cabeça. Maud pôs a mão em seu ombro.

        —  Acho que você não é assim de jeito nenhum — disse pacificamente. — Vamos nadar? — Jolanthe estacou o passo. Como se acabasse de despertar, olhou fixamente para Maud. — Que há com você? — perguntou esta, curiosa.

        —  Nada —-respondeu Jolanthe. — Vamos nadar? Este foi o início de uma amizade que durou anos.

        Era o fim de Irmã Benvenuta, o fim do amor para com o Salvador, o fim de uma era. E começo de outra. Porque sob a influência de Maud, Jolanthe modificou-se. Exteriormente, permaneceu como sempre: sossegada, bem-educada, reservada Interiormente, porém, fez suas as experiências e as opiniões de Maud, nos meses que se seguiram. Noite e dia as duas estavam sempre juntas, sua amizade tornou-se notória, proverbial. Tratava-se de amizade desigual: Maud era a que eternamente dava, Jolanthe a que eternamente recebia. Nem tudo que recebia de Maud era proveitoso para a formação de seu caráter, embora aceitasse passivamente, sem crítica: as primeiras insinuações sobre o nascimento das pessoas, o descrédito da história da cegonha, as imundas historietas e novelas pornográficas copiadas a máquina, cheias de erros, as figuras, as fofocas, os segredos de sua primeira puberdade.

        Maud era uma menina precoce. A partir dos doze anos conservou-se cheia de uma inquietação e excitação sempre crescentes, que nada atenuava. Vivia invadida de sensações. Furtivamente e em voz baixa, encostada na amiga, de madrugada e na mesma cama, não parava com seus relatos sobre elas: sobre o jovem jardineiro que ela beijara; sobre Irmã Benvenuta e Irmã Camilla, bem como a incrível relação entre as duas; sobre seu pai, que acabava de separar-se da mãe porque esta tinha um amigo e chegara embriagada em casa; sobre vários meninos do ginásio da cidade; sobre artistas de cinema; sobre os cães vadiando pelas ruas e sobre as estranhas e descomunais particularidades de seu próprio corpo em desenvolvimento.

        Aos treze anos Maud expôs à amiga um plano de fuga do internato. Tinha sido abordada por alguns camioneiros (ela aparentava ter dezesseis anos) que estacionavam seus veículos colossais na rodovia interurbana, por trás do instituto. Os motoristas, homens de alta estatura, risonhos, em blusões de couro e botas de borracha, haviam-lhe dirigido, através da cerca, palavras inequívocas e feito propostas significativas, a que Maud respondera com movimentos igualmente claros e significativos, e com uma promessa. Prometera levar uma amiga junto para o "passeio". Mas a Jolanthe faltou coragem para acompanhar. Deixou Maud partir sozinha, numa noite de lua cheia em que chovia forte. Maud desceu pela janela do dormitório, enquanto lá fora toques impacientes de buzina se faziam ouvir; desapareceu por sete dias. As freiras ficaram fora de si, a polícia foi notificada e Jolanthe, que não traiu a amiga, tremia, à espera de seu regresso e dos relatos das novas e excitantes experiências, de que jamais ouvira falar.

        Maud retornou, mas não contou nada mais a respeito de suas experiências. No oitavo dia fora trazida de volta por um policial. Jolanthe brincava no jardim quando ela chegou. Assustou-se profundamente. As roupas de Maud estavam amarrotadas e sujas, os cabelos desgrenhados, no rosto uma camada borrada de pintura; parecia inchada e doente. O policial puxava a menina submissa através do caminho do jardim, em cujos lados formara-se uma fileira de meninas silenciosas, que Maud examinava com ar de pouco caso. Quando viu Jolanthe, sua boca torceu-se e falou em voz alta uma única palavra de monstruosa obscenidade. Foi a última palavra que Jolanthe escutou dos lábios de Maud. A fugitiva foi imediatamente isolada, em solitária, no instituto. À tarde chegou o médico a fim de examiná-la, e já na noite do mesmo dia uma ambulância veio buscá-la. Jolanthe olhou-a mais uma vez quando foi conduzida para o carro. Trajava uma camisola de dormir e estava branca, doentia, enfraquecida.

        — Ela está doente — disseram as meninas quando foram para a cama. E então relataram o que haviam sabido pelas insinuações da cozinheira, do porteiro e da lavadeira. A doença de Maud era algo abominável, repelente, que carcomia o rosto e os ossos, que jamais conseguiriam curar, que com o tempo fazia a pessoa ficar feia, desfigurada e cega, uma doença que se contraía quando alguém se metia com homens, quando alguém os "amava".

        O coração de Jolanthe batia forte, comprimia as mãos uma na outra e levantava os olhos em chamas, fixando-os no teto. Pois assim era. Quando alguém amava, ficava doente e tinha de ir para o hospital. O amor era uma coisa suja que tinha um nome imundo. O amor corroia o rosto e os membros e tornava a pessoa surda e cega e demente. O amor era uma doença. Asqueroso. As figuras, os livros, as histórias, Asqueroso e monstruoso. O amor.

       

        Em 1933 Jolanthe perdeu ambos os pais, ao mesmo tempo.

        O pai, por motivos políticos, e também particulares, viu-se impossibilitado de continuar vivendo na Alemanha; por isso, matou com um tiro a mulher e depois suicidou-se. Legou seus bens, por testamento, a sua filha, que acabava de concluir o curso secundário e pretendia deixar a escola das freiras. O Estado invalidou o testamento e confiscou propriedades e dinheiro. Da noite para o dia Jolanthe, nascida e criada em abastança, ficou sem recursos e sem amparo. Parentes generosos que viviam junto à fronteira holandesa tomaram-na a seus cuidados. Acabou por vir para uma grande herdade rural. Estava com dezoito anos, e era virgem. Trabalhou no escritório da administração da herdade, escrevia cartas, calculava os impostos e tributos, e pagava os empregados. Um jovem aldeão, forte e grosseiro, perseguia-a enamorado dela. Ela o rejeitava. Sentia medo dele. Ele julgou seu comportamento uma forma de coquetismo. Na festa de aniversário de seus dezenove anos, para a qual também fora convidado, embriagou-se, e aproveitou-se da oportunidade de um passeio noturno que todos fizeram juntos, para empreender uma rude e brutal tentativa de deflorá-la. Ela gritou e defendeu-se desesperadamente, uma sensação de asco sufocando-lhe a garganta. Mas a choupana onde se armazenava feno, na qual se deu o fato, continuou silenciosa e escura. Ela sentiu-se perder as forças, sentiu o bafo nauseabundo da bebida em seus lábios, o peso do corpo dele sobre o dela, reparou em suas mãos de louco, de assassino, escutou o balbuciar de palavras absurdas junto ao ouvido, e entregou-se. Entretanto, foram interrompidos. O tio, à procura deles, havia-os seguido. O camponês escapou de seus braços e saiu correndo. Jolanthe jazia sobre o feno, humilhada, em desespero, e, segundo disse, conspurcada para sempre. Torceu o corpo para o lado, enfraquecida, e vomitou de forte náusea. No dia seguinte deixou a herdade. Foi para a cidade, aceitou um emprego de secretária de um advogado, e viveu meses com o medo pânico de estar doente. Consultou vários médicos, acreditou que identificava em si os sintomas da doença e não conseguia mais dormir.

        — Estou doente, devo estar doente, sinto que sim! — exclamava gritando para os especialistas, que desejavam consolá-la com diagnósticos inequivocamente negativos. Mandaram-na a um psicanalista, um judeu baixinho e assustado, que — escrevia-se em 1934 — ainda podia praticar, mas já estava preparando sua emigração. Ele conseguiu livrá-la da idéia de que estava doente. Não a libertou, porém, de outras obsessões. Ela começou a namorar de forma turbulenta, absurda e indisciplinada, teve um sem-número de amores e relações que transcorreram, invariavelmente, do mesmo modo insatisfatório; ela sempre culpava seus parceiros por isso. O médico judeu dissera-lhe a esse propósito:

        — Você é uma mulher inteiramente normal com limites de sensibilidade absolutamente normais. Se não encontra com um homem nenhuma satisfação, o homem é o culpado... e não você.

        O homem era culpado, não ela. Jolanthe acreditou. Começou a odiar os homens, começou a atormentá-los. Nesse meio tempo embelezara bastante, era muito cobiçada e sentia certo prazer de ver os homens procurarem-na, empenharem-se por ela, de vê-los sofrerem quando deixava de lhes corresponder, recusando-os; gostava que se enfurecessem, aflitos. Era inteligente, pelo menos assim se achava, era superior, nunca seria tão boba como a tola e pobre da Maud, trazida de volta ao instituto suja e doente, só porque "amou" uma vez. Jolanthe não "amava" jamais. Deixava-se amar. Achava que era este o sentido da vida.

        Em 1939, ao irromper a guerra, seu patrão foi preso, e ela ficou desempregada. Indiferente e sedenta de aventuras, tornou-se colaboradora da Força Aérea. Não precisava ter conhecimentos especiais, o Exército alemão precisava de gente; Jolanthe foi imediatamente admitida no serviço militar. Encaminharam-na para a Polônia. Trabalhou num agrupamento de caças noturnos. O comandante era um certo primeiro-tenente Mordstein. Jolanthe via-o diariamente, trabalhava no mesmo escritório. Era alto, esguio, de notável aparência. Fez a corte a Jolanthe. Tornou-se mais íntima dele, embora da sua maneira antiga, fria e rotineira. Deixou-o decidir por ela, deixou-se acompanhá-lo nas incursões, ia com ele até a frente das operações; bebia, dançava e ria com ele. Para ela, ele era tão estranho como qualquer outro homem imundo, doente, asqueroso.

        Mordstein era oficial de carreira, inescrupuloso e corajoso. A reserva, a frieza de Jolanthe, seu desinteresse punham-no louco. Estes eram os motivos reais por que se apaixonara furiosamente por ela. Dava-lhe presentes, excedia-se fazendo-lhe propostas de casamento — ela permanecia inabordável. Já estava quase disposto a dar um fim a seus empenhos quando, certo dia, surpreendeu-se.

        Foi numa tarde em que ambos tiveram folga do serviço. Saíram para passear pelo campo, no carro dele. Era um dia de outono, tranqüilo e ensolarado. Nada anunciou o repentino bombardeio inimigo sobre um depósito de munições alemão. Os poloneses atacaram o depósito com a bravura de uma força militar que sabia que estava perdida. Ondas e ondas de aviões sobrevoaram a aldeia por onde Mordstein passava naquele momento, e atrás da qual, na floresta vizinha, situava-se o objetivo do ataque. O deslocamento do ar, causado pela explosão, atirou Jolanthe para fora do carro. Mordstein parou, saltou atrás dela, levantou-a e arrastou-a, inconsciente, pelo inferno das casas que desabavam, através das bombas e dos barracões em chamas, e entraram numa capela próxima.

        Estava deitada num tapete vermelho e grosso, em frente do altar, quando recobrou os sentidos. Mordstein estava ajoelhado, curvado sobre ela. Arquejava. Abrira com violência sua blusa cinza, para ver se estava ferida, e seus seios desnudos resplandeciam, alvos, na luz crepuscular da nave da capela.

        Uma nova formação aproximava-se. O barulho dos motores foi-se avolumando; em seguida, a ele misturou-se também o pavoroso e estridente assobio das bombas, em queda orientada sobre seu alvo. As paredes da capela estremeciam, o chão balançava, enquanto Jolanthe se lhe entregava. Ficou surpreso com a loucura da paixão que ela demonstrou. Havia imaginado que tudo fosse muito mais difícil, e tinha experiência suficiente para saber que aquela mulher que, ali, em meio ao caos, segurava seus braços, era feliz. Não viu o branco Cristo de Thorwaldsen, que, por trás dele, erguia-se no altar estreito, estendendo suas mãos por cima da mulher que ofegava, abençoando-a.

       

        Ainda na Polônia fizeram-se casar por um capelão militar. Jolanthe voltou para a Alemanha. Seu marido, o primeiro-tenente Robert Mordstein, permaneceu no front, ou melhor, nos fronts da guerra. Foi para a Noruega, França, Rússia, África. Ficou afastado durante seis anos. Fora seu mérito haver libertado Jolanthe de um choque traumático (o médico judeu lhe explicara o termo com precisão), destruindo sua frigidez. Entretanto, tal mérito teve também seu lado negativo. Jolanthe agora se tornara uma mulher que mudara radicalmente seus pontos de vista sobre o amor e suas comodidades. Precisava de um homem. Precisava de Mordstein, o homem que a tomara por esposa. Mas Mordstein, quando precisava dele, não estava ali. Estava na Noruega, França, Rússia e África. Ao lado de Jolanthe, não.

        Em Munique, onde morava, logo ganhou incomparável má fama. Mantinha relações íntimas com outros homens, tornou-se despudorada em seu descomedimento e, de repente, todos eles, os homens repugnantes, doentes, asquerosos, transformaram-se em amigos, amantes, em sua salvação. Mordstein tinha-a curado. Curara-a muitíssimo bem, foi o que pensou, quando, em 1945, finalmente voltou para casa. As fofocas, os boatos alcançaram-no logo. Ficou muito tempo sem tomar conhecimento deles, na febril anarquia dos primeiros meses do pós-guerra. E isso sobretudo pelo fato de que estava feliz com Jolanthe. E ela, feliz com ele. Com ele era mais feliz do que com qualquer outro homem. O antigo encantamento da campanha na Polônia continuava atuando, os outros homens estavam esquecidos e desaparecidos, jamais haviam existido, quando ele voltava a tomá-la em seus braços.

        Não foi ela que dissolveu o casamento, foi ele. Ele passou a ter outros interesses, quis liberdade. Jolanthe transigiu quando ele lhe mostrou que sabia o que ela fizera em sua ausência. No fim, ela própria desejava afastar-se. Separaram-se. E Jolanthe haveria de saber que não podia separar-se de Mordstein. Tentou desesperadamente, mas não conseguiu. Sempre que ele se aproximava dela, abandonavam-na as forças, a ponderação, os sentidos, sempre quando se encontrava com ele, a "Polônia" voltava com veemência.

        Lutou contra essa situação. Começou a odiar Mordstein. E ele, a quem o pós-guerra induzira a caminhos dos mais escusos, começou a explorá-la. Conhecia bem o valor de seu poder sobre ela, e de modo circunspecto e refletidamente começou a capitalizar os juros desse poder.

        No que me concerne pessoalmente, hoje sei que fui algo como uma última e desesperada tentativa de Jolanthe de livrar-se de seu marido. Sei também que essa tentativa malogrou-se por minha culpa — se é que, aliás, se pode, em casos como este, falar de culpa. E dou testemunho de que tinha condições de compreender Jolanthe, quando, afinal, dirigiu-se a mim e falou:

        — Vamos matá-lo!

       

        —  Uma coisa dessas, pelo menos em tempo de paz, não é tão simples assim — falei. Estávamos sentados na sala de estar de nosso apartamento e conversávamos com a maior descontração sobre sua sugestão, não devíamos fingir em nada um para o outro.

        —  Sei que não é simples, mas acho que achei um meio. — Lá fora chovia. Na mesinha que estava entre nós havia uma garrafa e dois copos. Ambos bebíamos. Jolanthe beberá o dia todo; eu só começara depois de deixar a cama.

        —  Não gostaria de ser enforcado.

        —  Na Áustria e na Alemanha não existe mais forca — disse Jolanthe.

        —  É um grande consolo — retruquei e completei os copos.

        —  Você quer que lhe tomem o dinheiro? Como vai ser se você tiver um novo ataque? Crê que ele vai nos deixar sossegados por um minuto?

        —  Não, não creio.

        —  Se não quer ajudar-me, é só dizer. Faço a coisa sozinha. Vou fazê-la de qualquer modo. Não volto mais para ele. Já estou saturada. Para mim, já está morto. — Tomou um trago, em seguida olhou para mim e perguntou com voz rouca: — Acredita se lhe disser que amo você?

        —  Acredito, Jolanthe — respondi, meio oprimido —, acredito em você.

        —  Vai me ajudar?

        Assenti com a cabeça. Com esse movimento estava abolindo um indivíduo, acabando com sua vida. Assustei-me um pouco com a facilidade com que vim a concordar daquele jeito.

        Ela chegou-se mais perto e revelou seu plano, como se estivesse propondo um negócio de exportação de laranjas.

        —  Preste atenção! Vou junto com ele, como mulher dele. Você parte sozinho com seus documentos falsos. Em Freilassung voltamos a nos encontrar. Se ele for vitimado por um acidente na rodovia, vão encontrar o Sr. Mordstein, de Munique, que estava visitando a Áustria. Se fizerem investigações, talvez na polícia da fronteira, deduzirão que sua mulher estava com ele no carro quando viajava para a Alemanha. A mulher desapareceu. Provavelmente irão procurá-la como a assassina. Mas não vão encontrá-la. Pois a Sra. Mordstein, nesse momento, estará novamente com seu marido e, como Valerie Frank, terá regressado à Áustria. De você não irão saber absolutamente nada, você chega de trem... e parte de trem. Está claro?

        —  Até aí, sim. E como deverá ele ser vitimado?

        —  Um acidente de carro. Você conhece a Ponte da Baviera?

        —  Não.

        —  A Ponte da Baviera — explicou Jolanthe com objetividade — passa por cima de um vale profundo da rodovia Salzburg—Munique. É muito comprida e de altura enorme, e nos últimos dias da guerra foi dinamitada. O trecho central ainda não existe. Por isso o tráfego foi desviado. A ponte está bloqueada com uma barreira iluminada. É por essa barreira que ele vai atravessar de carro e, assim, cair no abismo.

        —  E como vamos escapar do carro?

        —  Antes da barreira. — Esmagou o cigarro no cinzeiro. — Você pode ajustar o carro no acelerador, comprimir para baixo a embreagem com um pedaço de pau, quando já estiver no pára-lama, e saltar depois de soltá-la. O carro então atravessará a barreira seguindo pela ponte, com Mordstein ao volante.

        —  Com Mordstein ao volante — repeti.

        —  Claro que então ele já estará morto.

        —  Ah, bem — falei. — Você quer dizer que antes temos de... Balançou a cabeça, com expressão séria.

        —  Naturalmente — falou vagarosamente. Nesse instante tocou o telefone. Atendi. Era Vilma. Jolanthe percebeu logo, mesmo antes de Vilma falar. Olhou-me com um sorriso. Era um sorriso amável e ela ficou me contemplando tranqüilamente, com a maior complacência, enquanto eu respondia.

        —  Boa noite, Vilma. Havia embaraço em sua voz.

        —  Desculpe-me estar telefonando. Estava tão preocupada. Não tive mais notícias suas. — Depois perdeu o autocontrole. — Aconteceu alguma coisa? Por favor, diga-me!

        —  Estive doente, Vilma,

        —  Oh, meu Deus!

        —  Já está tudo bem de novo.

        —  Você não está só?

        —  Não.

        —  Ah, bem. Ela está aí?

        —  Esta, Vilma. Jolanthe está sentada ao meu lado.

        —  Você... você já falou com ela?

        —  Falei, Vilma. Calou-se.

        —  Eu... eu vou partir de viagem por alguns dias, Vilma. Quando regressar conversaremos sobre tudo.

        —  Vou desligar — falou baixinho. — Por favor, ligue para mim assim que estiver de volta. E... e, por favor, não me responda, eu sei, para você não é fácil, e também não é necessário, mas eu... eu amo você!

        —  Obrigado, Vilma.

        —  E você... você também? ...

        —  Também, Vilma.

        Ela deu um suspiro, feliz.

        —  Então está tudo bem. Adeus.

        —  Adeus — falei e coloquei o telefone no gancho. Jolanthe ficou em silêncio. Encheu os copos e passou um para mim.

        —  Obrigado — disse. Balançou a cabeça, polidamente.

        —  Beba!

        —  Acho que não vou conseguir.

        —  Tente!

        —  Não.

        —  Deus — exclamou Jolanthe —, que pobre coitado você é! A chuva continuava a cair.

       

        Partimos na sexta-feira.

        Mordstein determinou que não deixássemos Viena antes do meio-dia, a fim de que chegássemos a Salzburg somente depois de escurecer.

        —  Para o senhor de dia é ainda mais arriscado, Mr. Chandler. De noite, o senhor atravessa com mais facilidade. E à noite a estrada também está muito mais calma.

        Jolanthe olhava para mim. A estrada, à noite, era muito mais calma.

        Mordstein estava bem-humorado. Indicou-me o lugar a seu lado. Ele mesmo dirigia. Jolanthe sentou-se atrás.

        —  Isso para que o senhor não pense em tolices, Mr. Chandler.

        —  Que tolices poderia eu fazer?

        —  Por exemplo, matar-me — falou e riu-se divertido. — Por isso, vai manter bonitinho as mão sobre os joelhos, entendido?

        Balancei a cabeça.

        —  Espere aí — disse e tateou no meu terno. — Será que o senhor está escondendo no bolso algum revolverzinho ou alguma arma bonitinha para matar? — Eu não tinha revólver algum, nem nenhuma outra arma nos bolsos. Nosso plano era fazer a coisa de forma bem diferente, ou seja, com a ajuda da barra do macaco. A barra estava atrás, no fundo, ao lado de Jolanthe.

        Viajamos através da região outonal da Planície Austríaca, em direção ao oeste. As árvores já estavam desfolhadas, caía uma chuva fina e fria, as estradas brilhavam à luz dos faróis. Falamos pouco. Pareceu-me que Jolanthe dormia. Mordstein dirigia com velocidade. Tinha um carro grande e possante. Às sete horas estávamos em Salzburg. Mordstein levou-me até a estação.

        —  Seu trem parte às vinte horas. Às vinte e quinze estarei esperando-o na saída da estação de Freilassing.

        —  Está bem — articulei. Entregou-me a maleta que eu antes estava levando. Jolanthe não se mexeu. Sob a chuva, caminhei até a estação e, no guichê, comprei uma passagem de segunda classe para Munique. Fm seguida, uma vez que tinha algum tempo de sobra, sentei-me em um restaurante e bebi algumas doses de conhaque. Já estava muito nervoso quando me separei de Mordstein, e isso de modo algum era conveniente. Todas as dificuldades estavam ainda ali, à minha frente. Precisava ficar completamente calmo se quisesse superá-las. Depois do quinto conhaque, recuperei a tranqüilidade.

        No grande relógio da parede eram dezenove e quarenta. Paguei e dirigi-me ao posto de controle e despacho da alfândega, passando pela suja calçada de tijolo da plataforma. O posto encontrava-se num grande saguão iluminado. Os passageiros para a Alemanha já estavam sendo atendidos ali, em solo austríaco. A próxima estação ferroviária — Freilassing —já ficava em território alemão.

        O saguão estava cheio de gente, todos que desejavam tomar o trem das vinte horas. Isso me tranqüilizou. Coloquei-me no final de uma comprida fila ao lado das mesas dos funcionários. Dois homens verificaram os documentos, dois outros, a bagagem. Remexeram em meu saco de roupas, examinaram-me os bolsos do casaco e imprimiram dois carimbos em meu passaporte.

        —  Muito obrigado, Sr. Frank! — disse um deles. Depois, atravessei para diante. A passos moderados, subi para a plataforma onde outras pessoas já aguardavam. Fazia frio e estava escuro naquela parte, mas o conhaque aqueceu-me de forma agradável, e encontrava-me novamente em perfeito autodomínio e segurança. Num balcão comprei ainda unia garrafa de conhaque e pedi para abri-la. Ganhei três copinhos de papel. Era necessário que encontrassem bebida alcoólica no corpo de Mordstein mais tarde, ao examinarem-no.

        O trem chegou pontualmente. Era um expresso que já percorrera um longo caminho e iria percorrer o mesmo tanto. Subi para um compartimento vazio e bebi um novo gole da garrafa. O trem parava em Freilassing só dois minutos para pegar e entregar a correspondência. Apressei-me, portanto, com a descida e saltei entre os trilhos, para o ar livre, a fim de não ser visto. Antes do trem dar a partida e pôr-se em movimento, precipitei-me pelas escadas que levavam à passagem subterrânea. A cancela de transito de passageiros achava-se mais à frente, junto à entrada. Ouvira dizer que era preciso entregar a passagem. Mas isso não convinha a meus planos e, por isso, na escuridão, atravessei por cima de uma cerca entre uns arbustos e ganhei a rua, Foi tudo muito fácil. A neblina não deixava enxergar dez passos à frente.

        Mordstein estava ao lado do carro. Estacionara-o à sombra de um armazém e levantou a mão ao reconhecer-me.

        —  Muito bem — disse, enquanto eu entrava no carro. Soou como em tom de alívio. Provavelmente receara que eu tentasse fugir com o trem. Não olhei para ele, mas para trás, para Jolanthe. Ela respondeu calmamente ao meu olhar e balançou leve a cabeça. Seu rosto maquiado de branco, a boca larga, iluminou-se, lívido, nas trevas. Mordstein bateu a porta e partiu. Na auto-estrada havia neve em alguns trechos. A chuva açoitava os vidros da janela do carro, e naquela altura do caminho o vento soprava mais forte. Apanhei a garrafa e bebi ostensivamente.

        —  Passe-a para mim — falou Mordstein —, também posso estar precisando de um trago.

        Bebeu um gole normal e a seguir passou a garrafa para Jolanthe, que a devolveu a mim. Deixei-a circular mais algumas vezes entre nós três. Quando quase vazia, coloquei-a no assento, entre mim e Mordstein. Dez minutos depois das vinte e uma horas passamos por Traun-stein. Depois de Traunstein, como me dissera Jolanthe, vinha um grande posto de gasolina. Nesse posto eu devia ficar atento. Faltavam ainda uns dez minutos até lá.

        Mordstein fez-se conversador.

        —  E agora o que vai fazer, Mr. Chandler? — Chamava-me de Chandler e mister, até o fim.

        —  Não sei ainda.

        —  Sem dinheiro, hem?

        —  É.

        —  Sabe, refleti sobre isso. Não vou tirar tudo do senhor. Seria ordinário de minha parte. Vou deixar-lhe um pouquinho.

        —  Obrigado.

        —  O senhor nunca me foi antipático, Mr. Chandler, acredite! Mas a vida é dura, cada um tem de ver onde vai ficar. Tomo seu dinheiro sem ter nada contra o senhor.

        —  Isso me tranqüiliza muito. Pensei que estivesse zangado comigo.

        Passei-lhe a garrafa mais uma vez. Então avistei o posto de gasolina. Muito iluminado, só um carro estacionado em frente. Naquela noite o tráfego estava calmo. Esperei até ficarmos diante das bombas de gasolina, então comecei a contar regularmente de vinte e um a trinta. Quando cheguei a vinte e nove, agarrei no volante. Trinta, e ouvi o grito de Mordstein. Não olhei para ele. Olhava apenas para frente e esforcei-me para não deixar o carro derrapar. As mãos de Mordstein na direção crisparam-se e giravam-na para um lado e para o outro. Seu pé escorregou do pedal. Mexi a perna esquerda e pisei novamente sobre ele com o sapato, e o carro seguiu viagem.

        A barra do macaco bateu-me no pescoço. Jolanthe mantinha-a comprimida contra a garganta de Mordstein. De trás erguera os braços ao redor dele. Em seguida escutei-o gemer e, imediatamente após, um ruído feio, ofegante. Não desejo registrar o que foi que Jolanthe fez com a barra de ferro. Em todo caso, dois minutos depois Mordstein estava morto. Dirigi o carro para o acostamento e parei.

       

        Foi tudo muito rápido.                      ,

        Jolanthe ajudou-me a puxar Mordstein para o lugar onde antes eu estava sentado. Não mostrava nenhum ferimento, não sangrava. Somente a cabeça pendia para frente e ameaçava bambolear para um lado e outro. Procuramos então em seu bolso os talões dos pacotes de dinheiro. Encontramos logo. Meti-os no bolso e sentei-me atrás da direção.

        —  Entre — falei para Jolanthe.

        —  Venho logo — respondeu, meio sufocada. Correu um pequeno trecho entrando pela floresta que começava junto da estrada. Voltou a seguir. Agachou-se e apanhou com a mão em concha uma porção de neve, que meteu na boca. Em seguida, cuspiu-a fora novamente.

        —  Vamos — disse eu. Bateu com a porta depois de entrar, e dei partida no carro. Mordstein caiu pesadamente de encontro a meu ombro e deslizou por cima do volante.

        —  Segure-o firme! — exclamei num cicio.

        —  Estou segurando! — gritou em voz alta.

        —  Não grite! — Empurrei o cadáver, ela o agarrou e puxou-o para trás, conseguindo mantê-lo sentado direito.

        —  Grito se quiser!

        —  Não agora! Agora precisamos poupar os nervos!

        —  Você! Seus nervos! Que foi que você fez até agora? Alguma vez pensou em mim? — Dava soluços histéricos. Passei-lhe para trás, com uma mão, a garrafa aberta. Arrancara a rolha com os dentes. Ela bebeu, a garrafa segura em uma mão, depois devolveu-a.

        —  Quanto falta ainda até a ponte?

        —  Uma meia hora. Pisei no acelerador.

       

        Meia hora é muito tempo quando se tem um cadáver do seu lado. E a mulher com quem você o matou, está atrás de você. A estrada voa para cima de você, vez por outra um carro vem a seu encontro, de vez em quando algum o ultrapassava, e você pára de sentir as axilas se molharem, a camisa colar-lhe no corpo, o queixo começando a bater. E inesperadamente um carro passa em alta velocidade. Pronto. Passou. As trevas e os pensamentos voltam de novo. Você envolve-se com pensamentos nessa meia hora. Os pensamentos vêm, não se consegue evitar, vêm e perduram, perseveram.

        Um gole da garrafa.

        Mas não adianta. Você matou um homem. Não foi sozinho. Sozinho, não teria sido assim tão ruim. Sozinho, já teria resolvido tudo com mais facilidade. Mas com Jolanthe. Mas com uma mulher que alega que o ama. Pode-se acreditar em uma mulher, se ela ama ou não a alguém? Alguma vez conseguiu confiar numa mulher? Em nenhuma, até agora. Mordstein pôde confiar em Jolanthe? Não, ela foi comigo para longe, fugiu dele... e, no fim, ainda lhe quebrou a espinha.

        E então?

        Pois bem, e então?

        Bem, como você imagina tudo isso? Você e ela. Agora vocês são um só. Agora não se livram mais um do outro. Nunca mais. Não importa absolutamente se a ama ou não. E, realmente, não a ama. Ama Vilma. Vilma, você agora pode esquecê-la. Agora é de Jolanthe que você depende. E ela, também, de você. Mas você não quer, de modo algum, tê-la em suas mãos. Certamente ela terá pensado nisso quando forjou seu plano. Você também faz parte de seu plano. E Vilma. Por isso ela sorriu quando Vilma telefonou, por isso não disse nada. Ela sabia: tinha-o em suas mãos. Ela não precisava fazer absolutamente nada, tudo se processou automaticamente. Agora, está feito. Agora, está terminado. Agora, você é um só com ela, queira ou não. Vai ter de fazer o que ela exigir. Até o fim de sua vida. Até o seu fim infeliz.

        Bebe mais uma vez. Está olhando fixamente na escuridão lá fora. O motor zune. A chuva escorre. E, de repente, insólita, lentamente, escorrega-se-lhe, subindo pelo corpo, desde as pontas dos pés até à mente, uma pegajosa, gélida, certeza: o mundo não é suficientemente grande para duas pessoas que assassinaram uma terceira. Não importa para onde fuja, ou o quanto se embriague, onde se esconda, não é bastante grande, este mundo, para você e para o outro. Para você e para Jolanthe.

        Meia hora é muito tempo, quando existe um cadáver a seu lado. Você pensa: que devo fazer? É, que é que você deve fazer? O que tem de fazer, se deseja, finalmente, estar sozinho, livre enfim, quando sabe que você é muito covarde para libertar-se de outra forma? Matar Jolanthe. É uma boa idéia. Você gostaria de ficar livre dela. Quase como o prazer que ela tivera de sentir-se livre de Mordstein. Então, considerando as coisas com precisão, você está sujeito a ela da mesma forma que ela estava a Mordstein. Isso não é, também, uma sensação nada agradável. Como não é nenhuma base sadia de um negócio de assassínio. Que aconteceria se a matasse?

        Nada. Tiraria dela os documentos falsos, aqueles que tinham o nome Frank, iria colocá-la ao lado do ex-marido. E o carro se precipitaria com eles para além da Ponte da Baviera, para o fundo do abismo. No fundo, uma queda para o mais profundo do abismo. Quando então encontrassem os dois, e se neles ainda estivesse intacto algo que alguém pudesse identificar, iriam, pois, identificá-los: Sr. e Sra. Mordstein, vítimas de um acidente de tráfego, causado por estarem dirigindo descuidadamente sob efeito do álcool.

        O cálculo não deixava sobra alguma, do modo como Jolanthe o fizera. Daquela forma também não restaria vestígio nenhum. Nem o vestígio de um vestígio. E você fica livre. Livre pelo curto tempo que ainda tem. Livre para Vilma, que está à sua espera...

        Você escuta uma voz.

        Sobressalta-se.

        —  Sim, que há? Jolanthe dirigiu-se a você.

        A Ponte da Baviera está à sua frente.

        Pára o carro.

        Um indivíduo pode ter muitas idéias em meia hora.

       

        A ponte estava ali à nossa frente.

        A uns cem metros adiante erguia-se a barreira guarnecida de pontos luminosos vermelhos. A direita bifurcava-se o desvio que levava vale abaixo. Eram os minutos mais arriscados. Se um outro motorista agora nos visse, tudo estaria frustrado. Trabalhamos com rapidez. Mordstein de novo escorreu para trás da direção. Deixaram o motor ligado e agora acabara de ajustar a aceleração do carro. A marcha estava ainda em ponto morto. Saltei para fora atrás de Jolanthe. Ficou sobre a grama junto à estrada e respirava com dificuldade. Ali não havia neve. Isso foi bom, por causa das marcas de pés e da freada. Caminhei até ela. Olhava-me com seus verdes olhos arregalados, encravados nas órbitas escuras e pintadas.

        —  Beije-me — sussurrou.

        Beijei-a. Ela gemeu e agarrou-se em mim. Não viu a barra de ferro. Só quando meu braço ergueu-se, bruscamente recuou. Mas já era tarde demais. Atingi-a na nuca e ouvi novamente o mesmo ruído repugnante. Inclinou-se e caiu na terra. Seu corpo contraiu-se num espasmo, depois ficou imóvel. Levantei-a segurando-a por baixo dos ombros e arrastei-a para dentro do carro, onde a atirei junto de Mordstein, caído por cima da direção. Agora estavam novamente lado a lado, o casal Mordstein, ele e ela. O motor batia regularmente. Estendi o braço para trás e apanhei a bolsa de Jolanthe. Remexi dentro dela e logo encontrei os seus documentos falsos. Meti-os no bolso e joguei a bolsa de volta.

        Estava com sorte. A noite estava calma e escura, nenhum carro passava quando me coloquei ao lado de Mordstein e pressionei com a barra de ferro a embreagem. Ajustei a primeira e soltei a embreagem. O carro pôs-se em movimento. Segurei-me firme enquanto ele disparava velozmente para cima da barreira. Colidindo com ela, atirou-a para o lado, resfolegou e continuou em frente. À minha frente estendia-se a faixa da ponte dinamitada. Pisei novamente a embreagem e mudei para a segunda. Vi então, saída da neblina, o fim da pista aproximar-se cada vez mais rápido de mim, saltei e voei para o solo, o rosto voltado para frente. Pus as mãos na cabeça e fiquei esperando. Nada ouvi por algum tempo. O vale era muito fundo. Quando viria o baque? Quando viria?

        Não agüentei mais esperar, ergui-me um pouco. Aí ouvi um estrondo, e logo em seguida, um outro, muitas vezes maior. Levantei-me, cambaleando e corri até o ponto onde não se podia mais prosseguir. Abaixo, no vale, avistei uma chama vermelha, subindo em minha direção. O carro ardia. O tanque de gasolina deve ter explodido.

        Bati no casaco para tirar o sujo sobre ele e apanhei a barra de ferro que me havia escapado da mão. Caminhei de volta pela pista até o desvio. Atravessei pelos campos e pelo bosque em direção a Rosenheim. Andei durante cinco horas, e encontrei o caminho com facilidade. Tinha um mapa perfeito da região. Pertencia a Jolanthe. Ela o comprara em Viena. Era seu plano andar até Rosenheim pelos campos e pelo bosque, depois de perpetrado o crime.

        Cheguei por volta das três da madrugada.

        O trem para Munique partia às quatro. Comprei uma passagem. Às seis horas estava em Munique. Fiz o desjejum no restaurante da estação, depois fui apanhar o pacote com o dinheiro. Recebi-o prontamente. O trem para Augsburg saía às oito. Lá também recebi meu dinheiro. De Augsburg parti para Stuttgart, onde ainda comprei jóias no valor de setenta mil marcos. Passei o resto do dia no quarto de um hotel.

        O expresso para Viena chegou a Stuttgart às vinte e uma horas. Tomei uma cabina do carro-leito, dei vinte marcos ao condutor e fiquei sozinho. À meia-noite estávamos em Munique. Do dinheiro que ainda possuía, fiz um pacote e meti-o na pia do toalete no fim do corredor. O controle da fronteira austríaca foi superficial e os funcionários trataram-me polidamente. O dinheiro continuou escondido. Se tivesse sido descoberto, teria dito que não era meu. Refletira longamente sobre o modo como poderia atravessar com ele da forma mais segura, mas, no final, estranhamente deixara de me importar. De qualquer maneira, pensei, eu possuía o bastante.

        Quando o trem deixou Salzburg, fui apanhar o pacote, deitei-me na cama e contemplei a manchete do Münchner Abendzeitung, que comprara na estação: "Grave acidente de carro na ponte da Baviera". Li e reli a reportagem com a maior atenção. Narrava que, na noite de sexta-feira para sábado, um automóvel havia atravessado e destruído a barreira antes da ponte, precipitando-se no abismo. Os dois ocupantes foram recolhidos mortos. Havendo-se o carro incendiado, ficaram carbonizados, irreconhecíveis e inidentificáveis. No entanto, pelo número do motor conseguira-se verificar que o proprietário do carro era um certo Robert Mordstein, de Munique. A morta provavelmente era sua mulher, Jolanthe. Atirei o jornal pela janela e adormeci.

        No domingo, às dez horas da manhã, estava novamente em meu apartamento na Reisnerstrasse.

        Tomei um banho e troquei de roupa, pois ficara imundo. Às doze horas, telefonei para Vilma. Não estava em casa. Tentei, ainda, seu escritório e, depois, o teatro. No escritório, ninguém atendeu, mas, no teatro, Félix respondeu.

        —  A Srta. Vilma não está — disse ele, com hostilidade. Conhecia minha voz.

        —  Onde se pode encontrá-la?

        —  Não sei.

        —  Quando virá ao teatro?

        —  Também não sei.

        —  Quando ela vier, teria a gentileza de dizer-lhe para me telefonar?

        —  Hum...

        —  Muito obrigado, Félix — concluí —, você é muito amável. Deitei-me na cama e procurei dormir, mas não consegui. Fiquei

        aguardando o telefonema de Vilma. O telefone continuou mudo. No quarto ainda se sentia o perfume de Jolanthe e algumas de suas roupas se espalhavam pelos cantos. Levantei-me e recolhi-as. Acendi o fogo da lareira, pois fazia um dia muito frio. Sentei-me perto das chamas e fiquei olhando-as dançarem ao longo das achas de faia. Refleti sobre minha vontade de, antes de tudo, viajar com Vilma para a Itália. Para tanto não era preciso visto algum e no sul, sem dúvida, ainda estava quente. Se falasse hoje mesmo com ela, talvez pudéssemos amanhã à noite iniciar nossa viagem.

        Tirei do bolso as jóias que comprara na Alemanha e escolhi um anel que desejava presentear a Vilma. Meti-o no bolso. Voltei a sentar-me perto do fogo e fiquei esperando a ligação. Eram cinco horas quando, afinal, o telefone tocou. Atravessei o quarto escuro até o aparelho e apanhei o fone. Ouvi a voz de Vilma.

        —  Que bom que você está aí de novo.

        —  É, Vilma, foi mais rápido do que pensei.

        —  Podemos nos ver?

        —  Quando você quiser! Imediatamente, se puder!

        —  Então você está sozinho? — Um tom de inquietação.

        —  Sim, estou sozinho.

        —  Sua mulher... — falou gaguejando.

        —  ... ficou na Alemanha — disse, sem a menor dificuldade.

        —  Ah... — a voz de Vilma ia desaparecendo, a ligação chiou levemente.

        —  Ah, o quê?

        —  Nada, Walter! Você... falou com ela?

        —  Claro. Foi também por isso que ela ficou na Alemanha. Nós nos separamos.

        Ela não disse nada.

        —  Que está havendo, Vilma? Não está contente?

        —  Estou! Sem dúvida! — De repente sua voz elevou-se. — Preciso vê-lo! Preciso falar com você!

        —  Eu também, Vilma! Venha aqui em casa!

        —  Não, não gostaria. Vamos nos encontrar na confeitaria.

        —  Está bem — falei, com uma leve decepção. — Quando?

        —  Dentro de meia hora — respondeu.

        Às cinco e meia entrei na confeitaria. A gorda proprietária apressou-se em atender-me, encantada.

        —  Oh que prazer em revê-lo, senhor! A simpática senhorita já está esperando!

        —  Traga-me...

        —  ...um conhaque duplo, eu sei! — falou, de modo afetado, e desapareceu. Acabei de entrar no local. Num nicho junto à janela estava Vilma, sentada, e ao ver-me sorriu. Trajava um pulôver cinza e saia da mesma cor, estava encantadora. Caminhei apressado para ela e beijei-a, mas rapidamente soltou-se de mim. A mulher gorda chegou com meu conhaque. O gato seguiu-a solenemente e sentou-se, curioso, à minha frente. Acariciei as mãos de Vilma e senti uma leveza absoluta. Agora, pensei, tinha chegado à minha meta, agora tudo estava bem, podíamos ser felizes.

        —  Estou tão feliz por estar aqui novamente — declarei. Ela sorriu, mas seus olhos mostravam seriedade.

        —  Eu também.

        —  Agora ficaremos juntos.

        —  Sim, Walter.

        —  Vamos viajar à Itália, Vilma!

        —  Não sei se meus pais vão permitir...

        —  Conversarei com eles! Você vai apresentar-me a eles! Vou casar com você...

        —  Mas você ainda é casado!

        —  Vou me divorciar! — Ri de forma alegre e descontraída. Não pensava mais em Jolanthe, nem na ponte, nem na barra de ferro, no sufocante, horrível ruído! — Trouxe-lhe até o anel de noivado! — exclamei com contentamento e tirei a jóia do bolso. As pedras do anel cintilavam à luz da lâmpada. Vilma empertigou-se e olhou-me com gravidade.

        —  Você gosta?

        —  Muito.

        —  Não quer aceitá-lo? Comprei-o para você!

        Tentei passá-lo de leve pelo seu dedo, mas retirou sua mão das minhas.

        —  Preciso dizer-lhe uma coisa.

        —  O quê?

        —  Recebi uma carta.

        —  Bem — falei, divertido —, e de quem é a carta?

        —  De sua mulher — disse.

       

        Lá fora passou uma motocicleta, como um trovão atordoante. Senti como se uma gélida mão acariciasse minhas costas de cima a baixo, e revi tudo: Jolanthe, a ponte, a barra de ferro; voltava a escutar o horrível e repelente ruído.

        —  Você... está com a carta aí?

        Assentiu com um movimento de cabeça e pôs na mesa uma folha de papel, à minha frente.

        —  Chegou ontem com o correio da manhã. Apanhei a folha e li:

        "Cara Srta. Vilma é um pouco inconveniente que eu me dirija por escrito e, sobretudo, a si, mas me encontro em uma situação excepcional e espero sua compreensão. Sei que ama meu marido e ele me disse que também a ama. Foi-me muito doloroso saber desse fato, pois também amo meu marido, provavelmente de uma forma inteiramente diferente da sua. Ele é, se me for permitido dizê-lo, para mim o último apoio, a última força que ainda tenho nesta vida. Minhas condições são relativamente complicadas e penosas, e meu marido é o único homem em quem ainda posso confiar...

        Pobre Jolanthe, pensei, e continuei a ler.

        "Temos em mente viajar para a Alemanha, por causa de um importante negócio a que devemos dar curso, e dentro de alguns dias estaremos de volta a Viena. Não ouso pedir-lhe com insistência que nesse entretempo faça um exame de consciência e verifique se realmente seu sentimento é o de amar tanto meu marido de maneira que não possa viver sem ele. Sei que já não possuo as armas da sua juventude e imaculada beleza. Contudo, pense também no fato de que meu marido não provém de sua esfera de relações nem pertence à sua geração. Ele tem muito mais idade. Não está com saúde. E é uma pessoa muito difícil. A senhorita até hoje só tem estado junto a pessoas jovens, entre as quais se encontra um indivíduo que a ama sinceramente e a quem a senhorita, com seu comportamento, tornou muito infeliz. Pense também nele, nestes dias de nossa ausência, e tenha a gentileza de telefonar-me após meu regresso e dizer-me que a decisão terá chegado. Sei que esta carta está parecendo um pedido de clemência e bondade de minha parte, mas isso não me importa.

        Sua Valerie Frank."

        Levantei os olhos, lentamente fui-me tornando capaz de sorrir, como o fizera antes.

        —  Pois é — sentenciei —, naturalmente não foi fácil para ela, sabe? Falamos longamente a esse respeito, mas, em última análise, Valerie reconheceu que era insensato insistir em reivindicar direitos que já não mais possuía há tempos.

        Vilma não olhou para mim quando falou.

        —  A carta tem ainda um P.S.

        —  Verdade? Voltei a olhar o papel. Em seguida, li.

        "P.S. Caso meu marido, o que evidentemente também é possível, retornar a Viena sem mim e dizer-lhe que se separou de mim, peço-lhe, em seu próprio interesse, para abrir a segunda carta que anexo à primeira.''

        Deixei cair a folha. Via-me sentado, novamente, no carro de Mordstein, correndo em direção à Ponte da Baviera, sobre a gélida auto-estrada, e o carro que se precipitara no abismo, as chamas levantando-se, tudo fazendo-se medonhamente presente, repetindo-se...

        —  E daí? — perguntei baixinho. — Você então abriu, também, a segunda carta?

        Vilma balançou a cabeça, confirmando, sem dizer uma palavra, e remexeu na bolsinha. Primeiro retirou um lenço no qual assoou ruidosamente o nariz, em seguida uma segunda folha de papel.

        —  Sinto muito, não queria fazer isso. Mas quando lhe telefonei e você disse que tinha vindo sozinho e tinha falado com ela... abri-a. Não sei por que, tinha simplesmente que abri-la e ler. Você está zangado comigo!

        —  Não.

        —  Está, vai ficar zangado comigo...

        —  Claro que não, Vilma. Posso... também posso ler a segunda carta?

        —  Naturalmente — falou.

        —  Peguei a carta e comecei a ler.

        "Cara Vilma quando ler estas linhas já estarei morta. Meu marido me terá assassinado. Não me é possível dizer, agora, de que forma ele fará isso, mas me terá assassinado. Antes de nossa viagem à Alemanha eu já estava contando com essa possibilidade, porém não me defendi dela absolutamente. O fato de que meu marido me assassinou é apenas o extremo de sua vontade de separar-se de mim. Independentemente disso, sem ele eu não conseguiria mais viver. Por isso é que escrevo estas linhas sem rancor e sem ressentimento, exclusivamente com o propósito de preveni-la, jovem e promissora como é, para não ser envolvida em uma catástrofe. Porque é uma catástrofe na qual meu marido terminará sua própria vida. Ele está gravemente doente e tem somente meio ano de vida. Nesse meio ano vai decair a olhos vistos e, no final, será apenas um destroço humano. Hoje ele já é inteiramente hostil ao relacionamento social e, às vezes, não é mais senhor de seu juízo. Se chegar a abrir esta carta e se, após isso, vir ainda meu marido, mostre-lhe a carta e pergunte-lhe o que ele tem a dizer com relação a ela. Estou segura de que ele dirá a verdade. Ele não é um mentiroso. Ele é apenas o meu assassino. Valerie Frank.''

        Os olhos de Vilma pousavam sobre mim quando levantei os meus. Não perguntou nada; após um instante de silêncio, lágrimas rolaram-lhe pela face.

        —  É verdade, Vilma — disse-lhe em voz baixa.

        —  Você então...

        Assenti com um movimento de cabeça.

        —  Meu Deus — murmurou.

        —  Jamais saberão — falei rapidamente —, fiz tudo com muita habilidade desde o princípio; julgam que foi um acidente de tráfego. Não precisa ter medo, Vilma, prometo-lhe que isso nunca virá a ser conhecido. É assim mesmo, não estou com saúde, mas sinto-me completamente normal, estou no melhor estado de nervos possível, e você de modo algum poderá julgar meu ato sem conhecer os motivos originais, ocultos, da história. Arno você, Vilma, quero explicar-lhe tudo, escute-me, começou há uns meses atrás, quando...

        Interrompi, pois senti que alguém chegara no pequeno compartimento e agora estava atrás de mim. Virei-me e vi Félix. As maçãs do rosto rubras, estava parado, ereto e rígido, e não cabia em si de fúria.

        —  Seu porco — exclamou e agarrou as lapelas do meu paletó para me puxar da cadeira e pôr-me de pé —, eu sabia que Vilma mentiu quando disse que precisava ir para casa! Mas agora o senhor vai pagar, seu ordinário, imundo...

        —  Félix! — gritou Vilma.

        Tentou bater-me no rosto, mas fui mais rápido e bati primeiro. Ele voou, chocando-se estrondosamente contra a parede, derrubando uma mesa. A dona do estabelecimento acudiu apavorada e caiu imediatamente em cima de Félix.

        —  Que você está pensando? Vamos, caia fora se não quiser que eu chame um guarda!

        —  Este homem... — começou a dizer Félix, pálido e branco como giz, mas a mulher não permitiu que continuasse:

        —  Desapareça! Está incomodando os meus clientes! Vai naturalmente, ou preciso pedir ajuda?

        Félix preparou-se para investir sobre mim, quando Vilma ergueu-se.

        —  Vou com você — disse em voz baixa.

        —  O quê? — Ele não compreendeu.

        —  Vou com você — repetiu Vilma e apanhou seu casaco. Deu-me as duas cartas e devolveu-me o anel. — Sinto muito — falou —, mas não posso. Pensei que poderia, verdade, ainda à tarde pensava que sim, mas agora não consigo mais. Queime as cartas. Nunca as li.

        —  Vilma — falei, desesperado —, você não pode ir embora! Preciso falar com você! Há tanta coisa para esclarecer.

        Ela sacudiu a cabeça.

        —  Vá na frente — pediu a Félix. — Vou logo à seguir. Foi-se de má vontade. A mulher gorda também se afastou.

        —  Arno você — disse Vilma num sussurro, colocando os braços sobre meus ombros —, mas eu... eu tenho um medo tão terrível de você. — Balancei a cabeça. Num átimo já estava novamente calmo. Compreendi tudo intrinsecamente, entendi tudo como era.

        —  Se eu não tivesse medo, não seria tão ruim assim — sussurrou —, mas dessa forma é impossível.

        —  Claro que é impossível — falei —, eu deveria ter pensado nisso imediatamente.

        —  Não precisa temer que eu vá traí-lo um dia.

        —  Não temo isso, Vilma.

        —  Adeus — disse ela. E, mais rápido do que julgava possível, desapareceu. Fiquei parado, só, diante da mesinha. Lá fora vi-os passarem, como que deslizando, pelos vidros das janelas, dois jovens em seus casacões baratos. Ela ia um pouco mais à frente dele, ele seguia-a apressado e totalmente sem compreender.

        Paguei a despesa e também deixei a confeitaria. Atravessando a cidade, escura e outonal, fui para casa. Na lareira havia brasas ainda. Coloquei sobre elas algumas achas novas e fiz uma xícara de chocolate. Sentei-me em frente ao fogo. Agora, também isso estava acabado, pensei. Agora perdera também Vilma. Tinha que perdê-la, fora loucura admitir outra coisa. Não podia dar certo, Jolanthe era muito astuta. E talvez realmente me tivesse amado. Quem poderia dizer?

        Meu cérebro já começava a proscrever o episódio Viena, meus pensamentos já estavam distantes, bem longe, no sul, numa ilha, em alguma costa de praia e rochedos. Sim, pensei, agora sim, estava realmente livre. Amanhã vou viajar e não mais retornar. Havia tantos lugares e tantas pessoas. Ainda vivia. Tinha dinheiro e morfina. Todos que se aproximaram de mim, se relacionaram comigo, agora se haviam afastado, estava disponível para encontrar uma nova pessoa, uma nova mulher, um novo amigo. Havia tantas mulheres, e talvez houvesse também amigos. Estava muito confiante, e passou-se uma hora até que lembrei de Vilma, e não consegui mais respirar de tanta saudade e tanta ansiedade, a ponto de querer terminar com minha vida na mesma noite.

        Apanhei a garrafa de conhaque e esvaziei-a. Em seguida, já embriagado, fui buscar as ampolas de morfina. Queria tomar uma superdose e de jeito a não mais despertar. Tudo parecia em ordem, preparado, a cama estava feita, o fogo ainda ardia... só que não conseguia achar a seringa. Procurei-a por todo canto, com a falta de habilidade e hesitação de um bêbado, porém ela continuava desaparecida. Chorei e amaldiçoei, bati-me contra um movel e outro e tropecei nos tapetes. A seringa continuava escondida. Arrastei toalhas de mesa comigo, ao passar por elas, e quebrei alguns copos, e já estava prestes a destruir minha escrivaninha, como um vândalo, absurdamente, quando tocou a campainha.

        Cambaleei de volta à parede, onde me apoiei, e lambi os lábios.

        A campainha voltou a tocar.

        Resolvi não abrir. Mas vi que as cortinas não estavam corridas e que, conseqüentemente, a visita sabia que alguém estava em casa. Nesse meio tempo soou pela terceira vez, e longamente.

        Assumi o controle de meu estado e fui até a porta, que abri com um movimento ligeiro. Fora, estava um homem de uns cinqüenta anos, baixo, roliço e jeito amável. Falava com voz macia e suave, uma expressão de bondade no rosto, dominado por lentes polidas à perfeição. Retirou a cartola preta, descobrindo um cabelo raro, louro fosco, quando fez uma mesura dizendo:

        —  Perdoe o incômodo, senhor, mas seria possível falar com sua esposa?

        Segurei firme na esquadria da porta.

        —  De que se trata?                                                                                     

        —  Tenho a honra de falar com o Sr. Frank?

        — Sim.                                                                                                              O homenzinho sorriu:

 — Muito prazer. Meu nome é Dr. Freund.

        Não me mexi.  Ficou com a mão estendida, e peguei nela mecanicamente. No  patamar a luz estava apagada. O Dr. Freund pigarreou. Fiquei parado.            

        —  Sua esposa... — recomeçou a dizer.                                                        

        —  ... não está — respondi rudemente.

        —  Quando ela vai chegar?

        —  Não sei.

        —  Seria possível esperar por ela, aqui?

        —  Quase improvável — retruquei, e dei um arroto.

        —  Já telefonei algumas vezes — explicou —, mas infelizmente ninguém atendeu.

        —  Não estávamos em casa.

        — Mas hoje, agora... — sorriu tranqüilamente. O homem tornava-me incrivelmente nervoso. Quem era esse Dr. Freund? Seria da polícia?

        —  Enfim, o que deseja?

        —  Já disse: falar com a senhora.

        —  Ela não está, já disse também.

        —  E quando é que vai voltar?

        —  Não sei. Está na Alemanha.

        —  Oh! — ficou surpreso. — Mas onde na Alemanha?

        —  Ignoro o endereço, está viajando.

        —  Mas o senhor, sem dúvida, pode entrar em contato com ela...

        —  Não! — gritei alto. — Não posso saber onde ela está! Dê um jeito de desaparecer! Estou cansado! — E tentei bater-lhe a porta na cara. Porém foi mais rápido e meteu o pé entre ela e a esquadria.

        —  Sinto muito, Sr. Frank, mas é impossível. — Voltou a abrir a porta, fazendo pressão, e cambaleei afastando-me. Ele era muito resistente, o doutorzinho Freund. — Se sua esposa não está, tenho que conversar com o senhor.

        —  Sobre o quê? — Olhei-o fixamente quando, passando por mim, entrou na ante-sala e fechou a porta atrás de si.

        —  Sobre várias coisas. Esperei bastante tempo, agora precisamos chegar a uma decisão. Sua esposa, infelizmente, esqueceu-se de conversar comigo. Lamento muito. — Virou-se um pouco para trás, achou um gancho, no qual pendurou seu ridículo chapéu. Depois passou a retirar o casaco.

        — Mas, enfim, de que se trata? —balbuciei, desajeitado. O Dr. Freund sorriu de novo.

        —  Trata-se de seu filho, Sr. Frank — falou.

     

        O bonde passou, com ruído de engrenagens e serpenteando impetuosamente pelas desoladas ruas periféricas, tomando o rumo da área industrial de Viena. Sob a luz dos carros que passavam resvalando pelo asfalto, via as silhuetas dos edifícios das fábricas, depósitos, galpões e chaminés. Em alguma parte uma locomotiva uivou. Pelo vidro da janela corriam grossos pingos de chuva.

        O carro estava quase vazio. Algumas mulheres cansadas, com lenços na cabeça e grandes sacolas dormiam irrequietas, um jovem de óculos lia um livro com expressão de seriedade, e atrás, na plataforma, um bêbado discutia com o condutor. O Dr. Freund estava sentado de frente para mim. Estava calado. Durante a última hora que estivemos juntos falara bastante.

        Depois de pendurar seu chapéu, passara por mim, assim sem mais nem menos, e entrara na sala de estar:

        —  Venha — havia dito. — Quero explicar-lhe a razão de minha presença.

        Continuei olhando fixamente para sua figura, depois notei que minhas pernas se puseram automaticamente em movimento e seguiram-no. O Dr. Freund era uma personalidade extraordinária, senti logo da primeira vez. Minha cabeça flutuava, e ainda estava muito embriagado quando me sentei à sua frente. Contemplou, com ar de interesse, a garrafa de conhaque vazia, a desordem no quarto e, no final, a mim próprio. Seus olhos olhavam de modo ardente e amável, mas eu não confiava nele. Pode ser por causa do chapéu, disse para mim mesmo, atenção! Se você se trai agora, está perdido. E você pode trair-se facilmente, pois está bêbado. Que é que esse homem conhece a meu respeito? Que é que você sabe sobre ele? Fique atento, pelo amor de Deus! Pondere no que vai dizer.

        —  Sr. Frank — disse o Dr. Freund, sem retirar de cima de mim seu olhar interessado —, prefiro começar comunicando-lhe quem sou eu.

        —  Sim — falei. (Respondido corretamente.)

        —  Sou o diretor de uma escola em Viena.

        —  De uma escola? — (Atenção. Nenhum assombro. Talvez, você, enfim, precise saber quem é ele.)

        O Dr. Freund balançou a cabeça, assentindo:

        —  Não é uma escola comum. Do mesmo modo que eu... hã... não sou um professor nos termos assim tão habituais.

        —  Não é?

        —  Não. Para falar a verdade, sou um educador, trabalhei com o psicólogo Alfred Adler. Só mais tarde é que assumi o trabalho efetivo de escola. Passaram-me a escola, por assim dizer, apenas como um laboratório.

        Que é que este indivíduo está me contando? Que tem tudo isso a ver comigo? Será que fiquei maluco? Ou estou sonhando? Ele não disse que se tratava de meu filho?

        —  O senhor falou algo a respeito de meu filho... — (Cuidado. Talvez não tenha dito absolutamente nada sobre um filho. Por que está sorrindo daquela maneira? Você já se terá traído? Maldito conhaque.)

        —  Um momento, Sr. Frank, logo chego a ele. Preciso somente dar-lhe, antes, mais algumas informações.

        —  Pois não. — (Esta foi uma boa resposta.)

        —  Fazemos experiências em minha escola.

        —  Com crianças?

        —  É — respondeu —, com todos os tipos de crianças. Com normais, mas também com crianças que sofrem de retardamento, recalcadas, doentes. É uma espécie de escola experimental que dirijo.

        —  Hã.

        —  Paralelamente — prosseguiu o homenzinho —_, instalei também um consultório. Numa clínica neurológica. Para lá poderão ir pais e filhos a quem alguma coisa esteja preocupando. Nós, meus colegas e eu, procuramos então ajudá-los.

        —  Pois bem.

        —  O senhor também deveria vir ao meu consultório.

        — Eu?

        —  Sim. Sua esposa visitou-me, uma única vez. — Olhou para a garrafa vazia. — Infelizmente — falou, e deu um suspiro. E olhou para mim de repente. — Sabia disso, Sr. Frank?

        —  Eu... — comecei a falar e interrompi. Seu olhar confundiu-me, hesitei, depois entendi que devia arriscar um pouco, caso desejasse prosseguir com o assunto: — Não — respondi —, não sabia.

        —  Foi o que pensei.

        —  O quê?

        —  Que sua esposa nada lhe disse da visita.

        Há momentos em que o álcool atua de uma forma libertadora. Inibições e receios são superados, a pessoa torna-se mais corajosa, a vida não mais se afigura com demasiada importância, arrisca-se, joga-se fácil.

        —  Doutor, o que minha mulher desejava saber com o senhor? Olhou para suas mãos. Eram mãos firmes, ossudas, de unhas achatadas, pareciam as mãos de um escultor.

        —  Sua mulher — explicou —, veio ver-me depois de haver estado no lar dos meninos no qual internara seu filho. Mandaram-na vir visitar-me. Especialmente porque eu já vinha tratando de seu filho há mais tempo.

        Jolanthe tivera um filho. Nunca me dissera, eu não podia saber, não podia adivinhar. Aliás, por que eu não fora capaz de adivinhar? Era assim algo tão desnatural? Ela já era suficientemente madura. Fora casada. Por que não poderia ter um filho? Com efeito, por que não? Oh, meu Deus, era tão espantosamente engraçado...

        —  Por que está rindo? — perguntou o Dr. Freund e olhou-me com preocupação.

        —  Não estava rindo, apenas tossi.

        Levantou-se e aproximou-se. Depois, tão baixinho, como se a ninguém além de nós fosse permitido escutar:

        —  Sr. Frank, o senhor sabia algo sobre a existência dessa criança? Não respondi. Fiquei refletindo. Mas o Dr. Freund já conhecia a resposta, antes mesmo de eu sacudir lentamente a cabeça.

        —  Claro que não — disse ele em voz baixa. — Lamento que seja eu a ter de lhe contar tudo.

        —  Não lamente — retruquei, e de repente recuperei completa lucidez, total clareza e calma. — Conte-me tudo.

        Fez um sinal de cabeça e passou a caminhar pela sala.

        —  O que sei — esclareceu — soube através da direção do estabelecimento e das anotações e documentos relativos ao menino. Aliás, ele se chama Martin.

        Chamava-se Martin. Ora, claro, um nome teria de ter. Por que não Martin? Martin era, também, um nome, simplesmente.

        —  Continue a história, doutor — pedi-lhe.

        —  Martin — falou e retomou a volta para sala — vem do primeiro casamento de sua mulher. Quando o casal se separou, há quatro anos atrás, a mãe entregou a criança ao referido lar. As vezes ela o visitava lá. Nos últimos tempos, as visitas rarearam. — Acercara-se de mim e ficou parado à minha frente. — Sr. Frank — disse —, peço-lhe para acreditar em mim, não sinto prazer nenhum de invadir dessa forma a sua vida particular.

        —  Por que então está fazendo isso? Sua voz tornou-se subitamente dura.

        —  Porque não se trata do senhor nem de sua vida particular, mas de uma criança.

        —  Continue falando — pedi.

        —  Sua mulher pagava regularmente as despesas com a casa — prosseguiu, e voltei a interrompê-lo.

        —  Como podia pagar? Ela morava na Alemanha.

        —  Deixava que as contas, em Viena, fosse saldadas através de um conhecido, um certo...

        —  ... engenheiro Lauterbah — falei.

        —  É. Como é que sabe?

        —  Foi o que pensei — expliquei-lhe. O círculo fechava-se. Eu não estava louco. Na verdade, tudo era muito lógico e simples. — Prossiga, por favor.

        —  Quando Martin tinha seis anos a mãe transferiu para a direção da casa os demais direitos de educação. Enviaram Martin à escola.

        — O Dr. Freund acendeu um cigarro e soprou uma nuvem de fumaça.

        — Entenda-me bem, Sr. Frank, estou apenas prestando informações e abstenho-me de qualquer crítica com relação ao comportamento de sua mulher, embora este esteja em íntima conexão com tudo que veio a acontecer.

        —  Que mais aconteceu?

        —  Martin — falou o Dr. Freund —, que não conhece o pai, em absoluto, e muito pouco sua mãe, já depois de um ano foi expulso da escola.                      

        —  Mas por quê?

        —  Foi, sucessivamente, também expulso de mais duas outras escolas — relatou o Dr. Freund. — Por quê? Porque ele era um pequeno demônio, como diziam os professores. Aterrorizava a classe. Batia nas meninas até tirar sangue; destruía os pertences alheios. Era incapaz de acompanhar a aula. Era o exemplo escolar clássico de uma criança patológica. A direção do estabelecimento trouxe-o ao meu consultório. Eu, Sr. Frank, conheço seu filho há um ano. Ele vem me ver toda quinta-feira. Não posso dizer que não conseguimos nenhum contato durante esse mesmo ano. Não posso dizer que não possuo a confiança de Martin. Se é que existe alguém com quem ele gosta de falar, com quem ele encontra algum contato, esse alguém sou eu. Além disso, também já houve indícios de certa melhora... — O Dr. Freund balançou a cabeça, pensativo, segurava o cigarro na mão, desapercebido do gesto. Era um homem velho, pensei num relance, só agora é que tomava consciência disso. Bem velho, cuja idade notava-se apenas em poucos momentos de cansaço e esgotamento, pois escondia-os por trás de uma fachada de força e de tranqüilidade. — Sim — murmurou—, indícios concretos de uma melhora... — Levantou os olhos e sua idade esvaiu-se-lhe como um véu que a encobrisse, sua expressão readquiriu jovialidade. — Por isso — continuou — alegrei-me quando sua mulher, há umas semanas atrás, veio ver-me e me comunicou que havia casado de novo.

        —  Isso Jo... — corrigi —, Valerie disse isso ao senhor?

        —  Foi, Sr. Frank. Disse-me também que o senhor havia adotado a criança.

        —  Que eu havia...

        —  Exibiu um papel referente a esse fato, um documento, Sr. Frank. — Olhou-me atentamente, um interesse fervoroso em minha pessoa brilhou subitamente em seus olhos. — Seria um...

        —  Seria o quê?

        —  Não seria um documento autêntico?

        Oh Jolanthe, que foi que você fez? Que pessoa era você? Você está morta, eu matei você. Mas você continua vivendo, continuo sempre tomando conhecimento de sua existência. Será que jamais deseja estar morta? Será que seu vestígio jamais se apagará? Que mais você aprontou, que eu ainda ignore? Onde estão espalhados seus outros segredos, onde mais você estendeu malhas nas quais irei tropeçar, e cavado fossos onde ainda irei cair?

        —  Era — falei, com penosa dificuldade — um documento autêntico. Adotei o menino.

        —  Mas o senhor sequer sabia que ele existia.

        —  Falamos ligeiramente a esse respeito, minha mulher e eu. Dei imediatamente minha aprovação para a adoção. Assinei o formulário exigido sem ver...

        —  ... e sem saber como seu filho se chamava. — Não desviou os olhos de mim.

        Não suportei o olhar. Olhei para o lado.

        —  E sem ter desejo de ver, alguma vez, o seu filho — prosseguiu a voz sossegada, inexorável.

        Meu Deus, era realmente uma loucura! Como deveria acabar tudo isso? A situação estava completamente perdida! O que narrei, nisso nenhuma pessoa mais conseguiria acreditar! Suspirei. Lá se fora a insuspeita facilidade de meus planos, a tranqüilidade sonambúlica com que cometi meus crimes, tudo por água abaixo. Eu era uma só ruína, prestes a irromper em lágrimas diante desse homem que eu não conhecia, que nada sabia de mim e que sequer era um funcionário da polícia. Acabado. Tudo perdido.

        —  Doutor — falei, voltando a olhar para ele —, mas isso não faz sentido. Quis proteger minha mulher. Mas estou vendo que não acredita em mim. Infelizmente terei de desmascará-la. Pois bem! Não sabia que Valerie trazia um filho à nossa união. Não adotei a criança.

        —  Naturalmente que não, Sr. Frank. Agradeço-lhe pela sua confiança, alivia-me em muitas coisas. Algum dia, porém, o senhor haveria de saber disso.

        —  É — articulei —, algum dia eu haveria de saber.

        —  Martin tem seu sobrenome. Calei-me.

        —  Martin Frank — disse o Dr. Freund —, este é, hoje, o nome dele, em tudo e para todos.

        Meu nome. Meu nome, porém, não era Frank. Meu nome era Chandler. E Martin, que não tinha nem pai nem mãe, agora já não possuía nome algum. Vivia com documentos falsos, antes mesmo de deixar a escola primária.

        —  Ele... — balbuciei, e engoli a seco — perguntou por mim?

        —  Nunca. Então. Nunca.

        —  E pela mãe dele?

        —  Também nunca, Sr. Frank. Ah, sim. Também nunca.

        —  A mãe dele, Sr. Frank, quero dizer, sua mulher, infelizmente, na visita que fez há muito tempo, não exerceu uma influência favorável sobre Martin. Entre os dois logrou-se um reencontro, depois de muito tempo, que para a criança foi um evento muito excitante. A mãe prometeu que logo ficariam juntos para sempre.

        Juntos para sempre. Jolanthe prometera isso. Pobre Jolanthe. Terá mesmo vindo para Viena na esperança de uma segurança e paz burguesa? Será que eu a conhecera assim tão pouco? Juntos para sempre. A situação, no entanto, era quase como se ela tivesse alcançado esse objetivo após a sua morte. Pois agora estávamos juntos. Para sempre. Eu não podia contradizê-la. Também não podia escapar dela. Não dela. De Martin também não. O Dr. Freund não admitiria. Assim, estávamos juntos. Para sempre...

        O Dr. Freund continuou falando, escutava sua voz com a impressão de senti-la através de uma nuvem de nevoeiro.

        —  Infelizmente essa promessa não foi cumprida, até agora, Sr. Frank. Sua mulher não deu mais sinal de vida. E agora, como o senhor diz, até mesmo partiu em viagem sem um destino determinado!

        —  Ela precisava atender a um compromisso urgente na Alemanha.

        —  Só posso lamentar profundamente tudo o que ela fez.

        Ora, que está dizendo? Você sabe o que ela fez? O que eu fiz? Sabe das lágrimas, dos falsos juramentos, da ansiedade e da saudade, da deslealdade, da esperança, da última traição? Não sabe de nada. Pode apenas lamentar.

        —  Lamento também — concordei.

        —  O último choque que ela infligiu à criança, com sua promessa quebrada, logo teve conseqüências catastróficas. O menino recaiu em sua agressividade. Fez uma coisa que não sou capaz de consertar, nem proteger. A direção telefonou-me e comunicou-me que hoje ainda Martin deverá deixar a instituição. Neste momento encontra-se preso, de castigo, em seu quarto.

        —  Que fez ele? — perguntei em voz baixa.

        —  Tentou enforcar um colega menor e mais fraco do que ele — disse o Dr. Freund, também baixinho —, e quase conseguiu.

       

        —  Mas, pelo amor de Deus, como foi que isso lhe veio à cabeça?

        —  As crianças estavam brincando de julgamento de criminosos de guerra — respondeu o Dr. Freund. — Martin era o presidente do Tribunal de Nurenberg. Condenou seu amiguinho à morte pela forca.

        Existem limites que um indivíduo consegue tolerar. Vi isso num relance. Levantei-me.

        —  Doutor — disse-lhe —, por favor, veja se me compreende: não posso, no caso dessa criança, tomar nenhuma decisão. Não me sinto competente... não sou apto para enfrentar essa situação... precisamos esperar até... ate que minha mulher esteja de volta.

        —  Não podemos esperar — falou gravemente. Sua sombra caiu, descomunal, sobre a parede às minhas costas. Endireitou-se na cadeira. — É preciso que o senhor me ajude.

        —  Não posso ajudá-lo.

        —  O senhor é o único que pode.

        —  Ele não é meu filho.

        —  É o filho de sua esposa. O senhor casou-se com ela.

        Senti novamente que estava prestes a irromper em lágrimas. —- Não posso! Não posso, estou lhe dizendo! Não tenho saúde. Não gosto de crianças. Não quero o menino!

        —  Sr. Frank — sentenciou o Dr. Freund e sua voz de repente se fez fria como gelo —, se não tomar a seus cuidados o menino, apresentarei à polícia uma denúncia contra o senhor.

        Obrigado, Jolanthe, pensei. A seguir, falei:

        —  Desculpe o nervosismo. Vamos então.

        —  Isso soa melhor — concluiu o Dr. Freund.                        

        — Vamos de quê?

        —  De bonde — respondeu —, para fora da cidade.

       

        O carro estava quase vazio. Algumas mulheres cansadas, com lenços na cabeça e grandes bolsas, cochilavam num sono inquieto, um jovem de óculos lia gravemente um grosso livro, e um bêbado discutia com o condutor. O bonde prosseguiu viagem, adentrando o terreno plano, apenas parcialmente acidentado e obstruído, afastando-se do centro. O Dr. Freund sentara-se de frente para mim. Estava calado. Pela vidraça das janelas a chuva escorria.

        Fomos até o ponto final. Depois, caminhamos mais uns quinze minutos até o internato, através de uma estradinha barrenta. A tempestade caía com furor ali naquele trecho, e procuramos nos defender contra ela. O Dr. Freund ia um pouco adiante de mim, segurava sua ridícula cartola comprimindo-a com as mãos contra a cabeça. Tropecei, pisei numa poça e senti a água da chuva correr para dentro dos meus sapatos. Estava escuro. Apenas alguma luz vinha da estrada, luz de uma ou outra lâmpada bruxuleando na tempestade.

        Não seria muito difícil, refleti, fugir do Dr. Freund. Com certeza, ele não viria alcançar-me. Quanto a isso não precisava preocupar-me. E embora chamasse por auxílio... ali ninguém iria ouvi-lo.

        Mas até onde conseguiria chegar?

        Ele já me conhecia, sabia meu nome, conhecia meus traços fisionômicos. Sem dúvida, haveria aqui, também, um telefone. A polícia seria avisada em dez minutos. Eu teria sequer deixado a cidade. Não, assim não daria certo. Mas também não era admissível que essa criança patológica fizesse de mim um prisioneiro, que estivesse à minha volta até o fim de minha vida. Não foi para isso que fiz o que fiz. Não, para isso não. Minha vontade era sair, ir para longe. Precisava ir embora. Mas precisava ir embora, para longe, de forma prática e segura. Ainda não. Ainda era muito cedo. Ainda precisava esperar um pouco. O internato era cercado por um muro alto. Ao lado do portão de ferro batido ficava a guarita do porteiro. O Dr. Freund apertou a campainha.

        Um velho veio em nossa direção com um guarda-chuva na mão e abriu. Parecia conhecer bem o Dr. Freund. 

        —  Boa noite, doutor! — Deixou-nos entrar e examinou-me com desconfiança. — É este o pai?

        —  É — respondeu o Dr. Freund. — Veio buscar Martin. O porteiro balançou a cabeça.

        —  Eu não gostaria de estar na sua pele.

        Esta foi a recepção. Mas houve coisa pior ainda. A diretora da instituição, uma senhora gorda e de idade, de cabelos cor cinza-ferrugem, soltos e penteados em desalinho para todos os lados, recebeu-me em seu escritório com visível desprezo. Antes falou brevemente com o Dr. Freund, procedendo como se eu de modo algum estivesse presente. Preencheu um formulário, a cujas perguntas na realidade seria eu quem deveria responder. Ela, porém, fez as perguntas ao Dr. Freund.

        —  O pai tem vontade de tomar a criança a seus cuidados?

        —  Sim.

        —  Residência?

        O Dr. Freund disse meu endereço. A mulher anotou.

        —  Sua profissão?

        —  Sua profissão? — perguntou o Dr. Freund e olhou para mim.

        —  Comerciante — falei. A diretora continuou ignorando minha presença.

        —  Comerciante — disse o Dr. Freund.

        —  Comerciante — escreveu ela no formulário.

        —  A mãe está...

        —  Viajando. Mas o Sr. Frank prometeu zelar pela criança.

        —  É verdade? — perguntou ela e olhou para mim pela primeira vez. Seu olhar era inamistoso e frio. — O senhor realmente tem este propósito?

        —  Sim — menti e voltei os olhos para a mesa. Virou a folha.

        —  Está o... hum... pai de acordo com que a criança vá para sua escola, Dr. Freund?

        —  Sobre isso ainda não conversamos... — começou ele a falar.

        —  Estou de acordo — estabeleci prontamente.

        —  Também não haveria mesmo nenhuma outra escola que o admitisse — retrucou ela.

        —  Justamente — respondi.

        Levantou a cabeça, olhou-me em silêncio e continuou escrevendo. Em seguida, apertou uma campainha e uma mulher jovem apareceu.

        —  As coisas de Martin estão arrumadas?

        —  Estão, Sra. Diretora. A mala está no corredor.

        —  Bom, traga Martin até aqui. — A jovem retirou-se. Junto à porta, voltou-se para a sala e olhou-me com curiosidade.

        —  O Dr. Freund — disse a diretora para mim — certamente já lhe informou que estamos em condições de abrir um processo na polícia contra o senhor, se futuramente negligenciar seus deveres paternos com relação a Martin.

        —  Sim, ele me informou.

        —  Bem — articulou e empurrou o formulário em minha direção. — Assine aqui.

        Assinei uma declaração solene, caráter de juramento, de que todos os dados que eu fornecera correspondiam à verdade e que me comprometia doravante "de sã e plena consciência e na medida de minhas capacidades e recursos cuidar da supracitada criança, de nome Martin Frank, nascida a 5.3.1942, que me foi entregue na data de hoje".

        Bateram à porta e a jovem de antes entrou.

        —  Martin está pronto — avisou.

        —  Mande-o entrar — falou a diretora. Martin entrou na sala.

        Para sua idade era pequeno e mais franzino do que se podia pensar. Mal alguém poderia imaginar que tivesse aquelas forças colossais, necessárias à prática das brutalidades que lhe imputavam. Seu rosto era desproporcionadamente grande em relação ao corpo, a cabeça grande, pesada e disforme. Sua pele era pálida; os olhos pretos, apurados e astutos, alojavam-se nas órbitas sombreadas; o cabelo louro, curto, aderia à cabeça. Os* lábios finos, anêmicos, tremiam nervosamente, e ele retorceu-o num sorriso irônico ao aproximar-se e cumprimentou, da forma como lhe instruíram:

        —  Boa noite.

        O Dr. Freund levantou-se e foi, sorrindo, ao seu encontro.

        —  Boa noite, Martin! Estou contente de ver você!

        Deu a mão à criança. O rosto do menino iluminou-se ligeiramente, e quando me enxergou ali, voltou a assumir expressão de reserva.

        —  Martin — disse a diretora —, hoje à noite você vai nos deixar. Seu pai veio buscá-lo.

        —  Este é seu pai, Martin! — O Dr. Freund levou-me à frente.

        —  Boa noite, jovem — murmurei e estendi a mão em sua direção. Ele não a apertou. Seu olhar fixava-se em mim, hostil, examinando-me.

        — O senhor não é meu pai — falou. Deixei o braço cair.

        —  Casei-me com sua mãe — comecei a dizer, e ele interrompeu-me:

        — Eu sei. Minha mãe me contou. O senhor é marido dela. Mas não é meu pai.

        —  Você está certo, Martin — falei amigavelmente —, iremos com certeza ser também bons amigos. — Não respondeu. — Não acha que sim?

        —  Não, não acho — respondeu. — Também tanto faz para mim. Não preciso de amigos.

        — Todo mundo precisa de amigos, Martin — disse o Dr. Freund.

        — Sobre isso já falamos muitas vezes, lembre-se!

        Martin balançou a cabeça, impaciente.

        —  Sim, me lembro! Mas não acredito mais nisso, doutor! É tudo mentira!

        —  Ora, escute, Martin! — O Dr. Freund bateu em seu ombro.

        — Que bobagem é esta que você está dizendo?

        —  Não é bobagem. É verdade. Não existem amigos.

        —  Pois bem. E eu e você... que somos? Será que não somos amigos?

        —  Isso é diferente — disse Martin e olhou para suas botinas. Calçava botinas pretas e vestia uma fatiota azul. Estava admiravelmente bem vestido.

        —  Como diferente?

        —  Porque... o senhor é uma exceção — explicou o menino, embaraçado. Seus lábios tremiam mais intensamente, parecia que era uma reação motora natural dele quando estava nervoso. Lembrei-me das narinas palpitantes de Jolanthe. O menino de repente olhou para mim.

        —  Onde está minha mãe?

        —  Na Alemanha. Vai voltar logo.

        Sua boca repuxou-se numa expressão de escárnio.

        —  Ela não vai voltar nunca mais! Meu Deus, pensei.

        —  Mas para mim não importa — prosseguiu, ao mesmo tom cortante —, não preciso dela.

        — Toda pessoa precisa de uma mãe — disse o Dr. Freund.

        —  Eu não — exclamou alto a criança — não preciso de ninguém! Boa noite, Sra. Diretora. — Deu a mão à diretora sem olhar para ela.

        —  Adeus, Martin. Espero que se sinta bem e que agora você realmente vá ser bem comportado. Sei que sente muito pelo que feze...

        —  Não sinto muito nada — disse Martin e retirou sua mão, que a diretora ainda segurava. — E não espere que vá me sentir bem. Vocês estão contentes por se livrarem de mim.

        —  Não, Martin, não é assim.

        Balançou a cabeça, num sinal de maturidade.

        — Já sei como é. Vocês todos me odeiam.

        —  Ninguém odeia voce, Martin — falou alto o Dr. Freund. — Que bobagem é esta?

        —  Não é bobagem nenhuma! Sei direitinho! Mas isso não vale nada para mim! Odeio vocês também! Um dia... — interrompeu o que ia dizer.

        —  O que, um dia... Martin?

        —  Vocês vão pagar — falou num murmúrio sombrio e foi para a porta. Não se voltou mais. — Eu mesmo posso levar minha mala, doutor — disse virando a cabeça sobre o ombro. A mim não deu a mínima atenção. Apanhou a bagagem que estava do lado de fora e arrastou-a até a escada.

        Olhei para a diretora e para a jovem.

        —  Boa noite — falei embaraçado. Não responderam.

       

        O Dr. Freund voltou conosco para a cidade. No meio do caminho falamos pouquíssimo um com o outro. Só quando chegamos à porta da casa, onde ele se despediu, é que o homenzinho das lentes grossas disse para mim:

        —  Promete agora não deixar Martin sozinho?

        —  Como não?

        —  O senhor poderia deixar a cidade, Sr. Frank.

        —  É — concordei.

        —  Mas não vai fazer isso!

        —  Não — repliquei.

        —  Acredito no senhor. E agradeço-lhe. — Sacudiu com força minha mão. Depois inclinou-se em direção a Martin, que se afastara alguns passos. (Conservava sua mala na mão, não deixara que a tomassem dele.) — Durma bem, Martin! E amanhã venha ver-me na escola, está bem?

        —  Sim, doutor.

        —  Lá uns amiguinhos muito simpáticos já estão esperando por você.

        —  Não acredito.

        —  Mas estão, sim, Martin! Palavra!

        —  Não acredito.

        —  Mas eu, eu espero você! Ou também não acredita?

        —  Ah, sim, doutor, nisso eu acredito — disse o menino. Só aí é que notei que ele trazia debaixo do braço uma caixa de papelão marron, que mantinha apertada contra o corpo.

        —  Escute só! E nós dois, você e eu, os dois, vamos nos divertir um bocado um com o outro!

        Martin sorriu ligeiramente.

        —  Boa noite — falou.

        O Dr. Freund ficou nos olhando enquanto entrávamos na casa. Pequeno, roliço e um pouco encurvado para frente, ficou parado na chuva e acenou para nós.

        No apartamento a luz ainda estava acesa, mas o fogo da lareira se havia extinguido. Martin atravessou a sala desconfiada e sorrateiramente.                               ,

        —  Teremos de dormir juntos — disse-lhe. — As camas ficam uma ao lado da outra.

        Não deu resposta.

        —  Venha, vamos tirar suas coisas.

        Novamente sem resposta. Abri a pequena mala que trouxera e vi, com surpresa, que não continha mais do que umas poucas roupas e alguns cadernos da escola.

        —  É tudo que trouxe?

        —  É, porquê?

        —  Você não tem nenhum brinquedo?

        —  Não preciso de brinquedos.

        Coloquei as peças de roupa, uma por uma, sobre a mesa, tudo parecia de tamanho muito pequeno e irreal: calças irreais, meias irreais, sapatos irreais. Eu lhe deixaria dinheiro, pensei. Bastante dinheiro. Se não fôssemos à escola, o Dr. Freund voltaria a nos visitar no apartamento e encontraria Martin.

        —  Mostro-lhe o banheiro?

        —  Para quê?

        —  Para você poder se lavar.

        —  Não me lavo.

        —  Todo mundo... — comecei a falar mas interrompi-me. — Pois bem — constatei com indiferença —, então não se lave. — Que me interessava o menino? Ao mais tardar, dentro de uma hora eu já estaria longe.

        Esvaziara a mala e, sem pensar em coisa alguma, apanhei a caixa de papelão marrom. Com um grito selvagem, Martin investiu para cima de mim.

        —  Não!

        Assustei-me. Ficou parado à minha frente, a caixa nas duas mãos, arfando, pura sanha assassina nos olhos chamejantes.

        —  Que houve, Martin? Que há com você?

        —  A caixa é minha! Minha! Minha!

        —  Não quero tirá-la de você!

        —  Quer! Está tirando de mim!

        —  Mas não, Martin! Não penso em fazer isso! O que há dentro da caixa?

        —  Meu brinquedo — sussurrou, e suas mãozinhas acariciaram ternamente o papelão.

        —  Pensei que você não tivesse nenhum brinquedo.

        —  Não é igual aos outros!

        —  Que é, então?

        —  Não digo .

        —  Por favor, diga.

        —  Não! Voltei-lhe as costas.

        —  Então está bem, não precisa dizer!

        Senti que me acompanhava com os olhos, mas não me virei. Então veio o que eu esperava:

        —  Será que posso lhe mostrar?

        Passou à minha frente. Seus olhos coriscavam, tremiam-lhe os lábios, o menino sem dúvida achava-se num estado de grande agitação.

        —  Se você quiser, pois não!

        —  Mas o senhor vai ter que me prometer não tirar de mim.

        —  Está bem.

        Ele mal podia esperar para abrir a caixa. Seus dedos tremiam ligeiramente enquanto a abria. Notei que no papelão havia alguns orifícios. Levantou a tampa.

        —  Pronto! — disse em voz rouca.

        Olhei para dentro. Meu estômago contraiu-se de nojo. Na caixa havia um camundongo branco. Estava preso no fundo com esparadrapo, de tal forma que não conseguia mover-se. O próprio rabo, comprido e fino, estava firmemente colado.

       

        —  É este o seu brinquedo?

        —  É! — Encarou-me com olhos radiantes, naquele instante parecia um louco.

        —  Isso não e nenhum brinquedo!

        —  Para mim é! — Passou o dedo pelo dorso do ratinho. Este estremeceu, parecia muito fraco, apenas com um vestígio de vida. — Eu mesmo comprei! Com meu próprio dinheiro!

        Olhei-o fixamente. Nas faces pálidas formaram-se duas manchas vermelhas.

        —  Eu comprei e trouxe escondido para o instituto. Ninguém notou. Depois prendi firme com esparadrapo.

        —  Mas por que, pelo amor de Deus?

        —  Porque me deu prazer. Eu sempre quis fazer isso. Na verdade com um gato. Mas os gatos são grandes demais, arranham e fogem correndo. Com o ratinho foi muito fácil.

        — Quanto tempo — falei e tive receio de ter de vomitar, a qualquer instante —, quanto tempo ele já está... assim?

        —  Três dias — respondeu alegremente. Foi a primeira vez que o vi contente. — Estou curioso por saber quanto tempo ele agüenta ficar assim. Aliás, não dou nada de comer para ele.

        Uma criança, pensei. Filho de Jolanthe. Meu filho.

        —  Não creio que ainda vá viver muito tempo. Antes, quando o espetei com um alfinete, ele não tremeu mais. Olhe aqui! — Tirou um alfinete da lapela do casaco.

        —  Não — falei em voz alta e arranquei a caixa de suas mãos. Ele gritou como um desvairado. Pegou-me e me segurou com toda força, mordeu-me e arranhou-me como um animal selvagem.

        —  Minha caixa! É minha! É minha! Me dá! O senhor prometeu! — Sacudi-o e o fiz cair no chão.

        Corri para a porta.

        Mas antes de atingi-la, ele me alcançou. Mostrou uma força descomunal, por um momento temi que ia me derrubar no chão junto consigo. Senti de repente um medo pânico dele. A caixa caiu-me da mão. Agarrei-o pela gola, levantei-o e, com toda a energia, levei-o para o quarto, onde o atirei na cama. Deu um grito estridente, engoliu em seco, ofegou procurando ar, e continuou gritando. Seus olhos reviraram-se até eu conseguir ver somente as corneas, e uma ligeira espuma surgiu-lhe pela boca.

        —  Seu porco! — gritou. — Porco! Porco! Mentiroso! Cão ordinário! O ratinho é meu! Meu! Meu!

        Meti-o sob o travesseiro, enrolei suas pernas no lençol e, em seguida, corri até a porta, fechando-a pelo lado de fora. Imediatamente ouvi-o bater furiosamente pelo lado de dentro. Xingou-me com palavras que prefiro não repetir.

        Peguei a caixa e levei-a à cozinha, onde cortei com uma faca as tiras, libertando o camundongo. Ele estava tão assustado que mal conseguia arrastar-se por cima da mesa. Mas eu não podia deixá-lo na cozinha! Do quarto chegavam os impropérios de Martin.

        Nos fundos da casa, havia uma sacada coberta por uma densa parreira. Pus um pouco de leite num pires, coloquei o ratinho ao lado dele e tranquei a porta da sacada. Escondi a chave. Finalmente, retornei ao quarto pois me preocupou o repentino silêncio que se fez. Talvez Martin estivesse sufocando, pensei, ou pulado da janela.

        Estava sentado na cama quando entrei. Sob a fraca luz do abajur da mesinha de cabeceira, seu rosto grande e pálido assumiu de relance uma espantosa semelhança com o rosto pintado de Jolanthe. Encarava-me com olhos nos quais ardia em brasa um ódio desumano.

        —  Você tirou ele de mim — disse baixinho.

        —  Foi, Martin. Um ratinho não é um brinquedo, e... Não me ouviu em absoluto.

        —  Tomara que você morra — falou. — Tomara que morra logo e sinta dor quando morrer e grite o tempo todo, e ninguém possa ajudá-lo! Espero que isso aconteça!

        Deixou-se cair na cama e ficou de bruços. Apaguei a luz do abajur.

        —  Boa noite, Martin — disse. Não respondeu. Fui para o quarto ao lado e comecei a fazer a mala às pressas. Tirei as poucas coisas que cabiam na pequena mala de Martin. Pus o dinheiro para ele num envelope sobre a mesa. Depois abri novamente a porta do quarto e escutei a respiração tranqüila e regular de Martin. Havia adormecido.

        Desliguei a luz e deixei o apartamento. Eram onze e quinze da noite. Às onze e quarenta e cinco o expresso de Arlberg deixava a cidade, eu estava informado. Tinha tempo suficiente. Esgueirei-me até o portão pelas escadas e abri-o sem fazer ruído. Não chovia mais, a noite mostrava uma claridade leitosa que partia do brilho das lâmpadas da rua, cuja luz se infiltrava pelo leve, vaporoso nevoeiro.

        O portão fechou-se atrás de mim. Desci rápido para a rua.

        Tendo andado uns dez passos, vi-o então. Estava encostado num poste, fumando. Suas grossas lentes faiscavam. Detive o passo.

        —  Esperava pelo senhor — disse o Dr. Freund calmamente. Encostei-me à parede de uma casa e respirei fundo. Ao respirar senti uma dor.

        —  O senhor pretendia fugir?

        Assenti, mudo, com um movimento de cabeça.

        Ficou observando-me longamente e com uma expressão amável.

        —  Sr. Frank — falou, então, com sua voz mansa —, acredite em mim: o senhor não pode mais fugir. Ninguém pode ficar fugindo eternamente. Para todo mundo, afinal, chega o dia em que deverá parar, com as costas contra a parede, como o senhor está agora, para enfrentar a realidade.

        —  E por que — disse eu em sussurro — não posso mais fugir? Sorriu. A luz do poste tecia uma coroa luminosa em volta da sua cartola.

        —  Porque o senhor prometeu ficar, Sr. Frank. As pessoas decentes e honestas mantêm sua promessa.

        —  Não sou um homem decente —retruquei.

        —  Claro que é — redargüiu. — O senhor tem de ser um homem decente!

        —  Mas por quê? — perguntei com ferocidade, já sabia que aquele homenzinho ridículo seria mais forte do que eu.

        —  Porque acredito no senhor — respondeu o Dr. Freund. Segurou em minha mão. — Venha — e conduziu-me, como uma criança, de volta até o portão da casa. Agora vá dormir. Amanhã continuamos nossa conversa.

        Balancei a cabeça. Mal conseguia sustentar-me em pé de tão cansado, tão ansioso por dormir. Abriu o portão com a chave que lhe dei.

        —  Boa noite, Sr. Frank — falou. — Ah, mais uma coisa: agora também vou para casa. Sei que já não tenho mais que ficar esperando.

        Dizendo isso, foi-se, deixando-me ali, parado. Acompanhei-o com o olhar até que desapareceu na primeira esquina da rua. Voltei para o apartamento. Martin dormia um sono profundo e roncava um pouco. Deixei-me cair na outra cama, na qual Jolanthe deitara-se, e pus os pés para o alto. Não tirei a roupa. Fiquei deitado, olhando fixamente o teto branco do quarto. Os galhos da árvore desfolhada, em frente à janela, faziam passear inquietamente suas sombras sobre ele.

       

        —  Os pedagogos do mundo inteiro chegaram recentemente à mesma conclusão de que o destino e o desenvolvimento de cada indivíduo dependem da influência de suas impressões e sensações meio-ambientais na primeira infância — disse o Dr. Freund. Estava sentado de frente para mim na sala da diretoria da escola, um amplo aposento de paredes em tom amarelo e janelas enormes que davam para os trilhos da linha férrea do este. Os móveis tinham cores claras, alegres, e nas paredes estavam pendurados desenhos coloridos de crianças, emoldurados e envidraçados.

        Às oito horas, eu chegava ao instituto com Martin. Ainda estávamos zangados um com o outro e ele ignorava minha companhia. A escola, um antigo edifício dos nazistas, dava a impressão de que era constituída apenas de vidro, aço e concreto. Fora construída naquele estilo monumental, frio, impessoal, extremamente feio, que se tornara símbolo do Terceiro Reich. Essa feiúra parecia também surpreender os novos moradores a quem a prefeitura de Viena passou o prédio após o fim da guerra. Seus novos moradores procuravam remediar as discrepâncias dele. As paredes do patamar de entrada e dos largos e ressonantes corredores foram pintadas por mãos de crianças. Exibiam flores, aldeias, animais, pessoas e trens — desproporcionais em relação um com outro, mas coloridos, audaciosamente concebidos e cheios de detalhes fantásticos. Além disso, havia em todos os nichos das janelas flores cuidadosamente cultivadas em jarros. Nos patamares e nas saliências dos muros e paredes, foram colocadas cristaleiras, nas quais se encontravam brinquedos de todo tipo (fabricados pelas crianças), objetos artesanais e vários recursos para aprendizagem. Havia animais empalhados "de nossa pátria", um ouriço, um ratão-d'água e uma grande lebre do campo ("a lebre do campo é um animal útil e amigo do homem. Vive em tocas que ela própria cava, e que possui nove saídas..."). Junto a cada objeto achava-se uma pequena placa que dava informações sobre ela em letras de forma.

        Notei que o interesse de Martin fora captado pelo que via. Ao meu lado e sem me dar a mínima atenção, caminhou por entre a turma de alegres crianças que entravam apressadas nas salas de aula, e seus olhos passeavam alvoroçadamente para lá e para cá. Ficou visivelmente superfascinado por uma grande cozinha, de moderna instalação, que havia no primeiro andar e cuja porta estava aberta. Ficou observando seis meninas lidando ativamente no fogão, lavando legumes e descascando batatas. Sua primeira pergunta, depois do Dr. Freund havê-lo cumprimentado com cordialidade e prazer, referiu-se também à cozinha.

        —  Ah — exclamou Freund —, então não lhe contei que nós mesmos fazemos nossa comida?

        Martin lambeu os lábios, baixou a cabeça e calou-se.

        —  Cozinhamos para todos que estão na escola. E ao meio-dia almoçamos, então, juntos, sabe? Cozinhar é matéria de aula, tanto quanto aritmética e alemão. Durante uma semana as meninas cozinham e na outra são os meninos.

        Martin riu:

        —  Mas não são capazes de cozinhar, aposto!

        — Mas eles cozinham muito bem, Martin! — O Dr. Freund estalou a língua. — Você não faz nem idéia!

        —  Mas como podem fazer isso?

        —  Aprenderam! Qualquer um pode aprender de tudo. Você também não vai acreditar em mim, mas aqui, quando é a semana dos meninos, as meninas têm aula de trabalhos manuais. Nossas meninas serram madeira, pregam e colam, e os nossos meninos fazem tricô, bordam e cerzem meias.

        Martin riu de novo:

        —  Ora, mas é uma escola muito engraçada!

        —  De fato, é uma escola engraçada, isso tenho certeza de que já lhe disse. Você vai gostar muito dela. O que você gostaria de aprender primeiro? Trabalhos manuais ou cozinhar?

        —  Cozinhar! —exclamou Martin rapidamente.

        Logo em seguida entrou uma jovem professora que estendeu a mão, amavelmente, a Martin e disse-lhe que deveria acompanhá-la. Havia ainda algumas formalidades a preencher com relação a sua mudança para uma nova escola e, além disso, antes toda criança era examinada por um médico do estabelecimento, para verificar seu estado geral de saúde.

        —  Mas pensei que podia cozinhar agora! — disse Martin, contrariado.

        —  Amanhã, Martin! A aula de culinária é só amanhã! Primeiramente você deverá ir com a professora. Dentro de duas horas você está de volta. Então poderá ficar conosco.

        —  Está bem — falou Martin.

        Quando se foi, perguntei ao Dr. Freund se não sentiria receio com a admissão de Martin numa nova comunidade de colegas de classe, ao que respondeu discorrendo sobre sua teoria do tratamento, contando a respeito do sentimento em torno do meio ambiente, que decide tudo na vida do indivíduo.

        —  Esse sentimento para com o meio ambiente — falou —, ou sentimento de comunidade, como também se poderia chamar, é a capacidade de um indivíduo achar contato com os outros, buscar e oferecer amizade, dar e receber amor, manter relações sociais normais e viver normalmente numa comunidade normal com seus direitos e deveres. — Acendeu outro cigarro. Fumava bastante, as pontos dos dedos estavam amareladas. — O primeiro indivíduo com o qual a criancinha faz contato é sua mãe. A mãe é o primeiro ser que se mostra a ela com bondade, amor, afabilidade, que a alimenta, aquece, afaga e protege, e a criança reage a isso da mesma maneira, desenvolvendo as mesmas qualidades. — Soprou uma nuvem de fumaça e, como que perdido em divagações, de repente, em voz baixa repetiu: — Amor, amizade, bondade, paciência, humor e ternura, justiça e tranqüilidade, coisas maravilhosas que trazem a paz aos homens...

        Fazia calor na sala, a calefação sob as janelas zumbia seu tique-taque; recostei-me na cadeira, a atmosfera da casa começava a atuar beneficamente sobre mim.

        —  Nós — prosseguiu o Dr. Freund — examinamos as reações de um grande número de crianças a determinados acontecimentos e dividimos as próprias crianças em três grupos: aquelas que puderam ter uma infância vivida sem conturbações ao lado de uma mãe constante e ininterruptamente vivendo para elas; a seguir, aquelas que viveram uma infância separadas da mãe; finalmente, aquelas que, a princípio, cresceram ao lado de sua mãe, posteriormente foram separadas dela e, passado longo tempo, voltaram a se reunir a ela. — O Dr. Freund inclinou-se para frente, sua voz tornou-se enérgica. — Assim, chegamos ao resultado de que uma separação de seis meses — seis meses!

        — na evolução prematura da criança já basta para reduzir, de forma duradoura e sensível, o potencial de seu sentimento para com o meio ambiente!

        —  Que quer dizer com ''de forma duradoura'' ?

        —  Por toda a vida, Sr. Frank.

        —  E não se pode recarregar o potencial?

        —  É possível, mas trata-se de um processo terrivelmente difícil, demorado e complicado.

        — Isso significa que as crianças são os produtos dos delitos cometidos por seus pais?

        —  De seus delitos e de suas virtudes, Sr. Frank!

        — Mas Deus do céu... — subitamente exaltei-me, de forma inteiramente ilógica, pensei — ... e se, por exemplo, a mãe morrer! Isso não é nenhum delito! Diante disso ela não pode fazer nada!

        —  Quando, imediatamente, alguém entra em seu lugar, Sr. Frank, num caso desses, também não sucede nenhuma desgraça. A criança, aí, procura para si, nessa pessoa, uma nova relação. Nos casos que preciso tratar, todavia, não existia uma tal pessoa que pudesse substituir a mãe negligente e relapsa, esquecida de seus deveres.

        — Olhou-me, calei-me, e num relance baixei os olhos para o chão ao ver-me encarado pelo seu claro e agudo olhar, como há pouco ocorrera com Martin.

        —  Sim, compreendo — articulei. (Meu Deus, que estava acontecendo comigo? Onde fui parar? Deveria pagar pelos atos cometidos por pessoas estranhas? Talvez. Alguém pagã sempre. Nenhuma conta fica sem liquidar. A vida é uma boa escrituraria.) — E como... como vamos tentar restaurar o potencial danificado de Martin?

        —  Oferecendo-lhe uma nova pessoa que substitua a mãe.

        —  Quem? — perguntei em pânico. Sorriu calmamente.

        — Eu — respondeu. Afundei-me na cadeira.

        —  Ah, sim — falei. — O senhor está em condições para tanto. O senhor pode fazê-lo.

        Seus olhos continuaram voltados para mim.

        —  Sr. Frank — perguntou discretamente —, o senhor, pessoalmente, cresceu em companhia de seus pais?

        Não sabia o que dizia, fui falando automaticamente:

        —  Não, somente com meu pai. O casamento de meus pais terminou em divórcio por culpa de minha mãe.

        Fez um movimento de cabeça e acendeu um novo cigarro com a ponta do outro. Olhei-o com repentino temor.

        —  Que quer dizer? Por que está perguntando? — Tive a impressão de haver traído tudo diante dele com minha resposta, o roubo, o assassínio, tudo. Conhecia-me, agora de cabo a rabo, pensei. Meu Deus, mas que grande idiota sou eu!

        —  Isso não tem importância, Sr. Frank. Interessa apenas a mim. Não continuamos a conversar a respeito de Martin?

        —  Sim — falei —, continuemos conversando sobre Martin. — (Falávamos sobre mim quando falávamos sobre Martin, o tempo inteiro, era evidente.)

        —  Provavelmente será muito difícil restaurar em Martin o sentimento para com o meio ambiente. Passou-se muito tempo, desde a renúncia da mãe e o advento de minha pessoa. Da parte do senhor não haveria por que exigir de mim um milagre. Não sou o Dr. Mesmer, não tenho uma varinha de condão que cure da noite para o dia. A cura de Martin — de resto, se possível — exigirá anos. Mas posso dizer o seguinte: o que estamos tentando fazer aqui é a única coisa que aliás pode ser tentada ainda. E mais: Caso também não consigamos curá-lo ... podemos, em todo caso, melhorá-lo.

        —  Disso estou convencido — disse-lhe. — Mas há uma coisa que me preocupa: se o senhor tem intenção de ser para ele a pessoa de relação, significa então que eu só estou importunando. Não seria melhor que ficasse permanentemente com o senhor e morasse aqui na escola?

        Sacudiu a cabeça.

        — Não, Sr. Frank.

        —  Não?

        —  Não. Muito pelo contrário! O senhor é uma peça importante em nosso jogo. É o pai dele. Mas ele não tem relação alguma com o senhor. É um estranho para ele. A mim ele já conhece, em mim tem um pouco de confiança.

        —  Pois bem — falei —, mas se ele não tem confiança em mim, então também não gosta de mim, também vive opondo-me resistência, então talvez tenha medo!

        O Dr. Freund assentiu com um sinal de cabeça.

        —  Isto! Ele precisa ter medo!

        —  Precisa ter medo?

        —  E, Sr. Frank. Veja o senhor, há quinze anos atrás, era o ideal uma educação numa existência sem medo. — O Dr. Freund riu e olhou para um jornal à sua frente. Li a manchete estampada: "Novas ofensivas na Coréia". O Dr. Freund ergueu a mão. — Vida sem medo! Isso não existe mais! Se educarmos uma criança para uma vida sem medo, ela ficará desamparada quando, certo dia, nessa mesma vida vier a ter medo, quando, certo dia, haverá de ter medo! — Sacudiu a cabeça. — Não, Sr. Frank, numa época como a nossa, com toda a sua calamidade, o perigo ameaçador de guerra e o recrudescimento rápido da esfera política como influência na existência de cada indivíduo, seria um crime educar crianças para uma vida sem medo. Precisamos educá-las para uma vida cheia de medo...

        —  Mas? — perguntou.

        —  ... mas, ao mesmo tempo, pô-las em condições de vencer esse medo! — disse o miúdo Dr. Freund e, com um gesto de rei, atirou o jornal no cesto de papéis.

       

        —  E como começará a fazer isso com Martin? — perguntei, depois de uma pausa. Levantou-se e passou a andar pela sala. Parecia que gostava de andar pelos recintos onde se encontrava.

        —  Num caso já tão adiantado como este, precisamos apelar para uma cura pela força, pela autoridade, para um pequeno tratamento de choque.

        —  Pelo amor de Deus! — exclamei. — O senhor conhece quão agressivo ele é!

        —  Não estou falando de um tratamento de choque através de espancamento — explicou o Dr. Freund polidamente e veio em minha direção. — As más qualidades de Martin iriam, movidas de premissas contrárias, parecer todas desejáveis. São virtudes meramente recíprocas.

        —  Isso soa bastante teórico — retruquei.

        —  Acha? — perguntou, divertido. — Então venha comigo!

        —  Aonde?

        —  Temos de preparar — esclareceu — uma pequena encenação teatral antes que Martin esteja de volta. — Acompanhei-o pelo edifício da escola, onde agora reinava completo silêncio, e passamos para o andar seguinte.

        —  Preste atenção — falou e parou diante de uma porta —, esta é a classe dele. Ao lado existe uma sala de projeção. Na parede há duas janelinhas para a aparelhagem. Através delas o senhor pode observar a sala de aula e entender tudo que estão dizendo, sem que ninguém o veja!

        Abriu uma outra porta e pediu-me para entrar numa saleta de projeção, pequena e escura. Na parede de frente descobri, de fato, as duas janelas para os aparelhos de projeção. Aproximei-me de uma delas. O Dr. Freund fechou a porta atrás de mim. Estava escuro.

        Pela janela olhei para dentro de uma grande sala de aula, onde havia cerca de trinta alunos entre meninos e meninas, sentados em suas carteiras. Junto ao quadro-negro, em pé, uma jovem professora explicava a matéria. Era aula de aritmética. Estavam praticando subtração. Vi o Dr. Freund entrar na sala. As crianças levantaram-se, a professora caminhou em sua direção e estendeu-lhe a mão.

        —  Sentem-se — falou o Dr. Freund. — Vim até aqui só para comunicar a vocês que hoje um novo companheiro virá para esta turma. Chama-se Martin Frank e é um amigo meu, que já conheço há muito tempo.

        —  Oh! — exclamou a jovem professora, numa súbita expressão radiante — mas que alegria! — Parecia alegrar-se de fato. Provavelmente, pensou, não sabia com que estava se alegrando. Mas então voltei atrás: claro que sabia. E, contudo, estava contente! Ou por isso mesmo! Pois as crianças normais não tinham interesse para esta escola. Interessante eram apenas as anormais. Vi o Dr. Freund deixar a classe. Logo em seguida ouvi-o entrar na cabina de projeção. Colocou-se ao meu lado.

        —  Agora preste atenção!—disse ele baixinho.

        Nesse meio tempo, a jovem professora voltara-se para a turma.

        —  Escutem — disse ela, contente —, esse Martin Frank que nosso diretor acabou de anunciar é um menino que parece muito simpático e muito querido. Ouvi falar muito sobre ele. Vocês vão se entender maravilhosamente bem!

        Deus os proteja, pensei. Esperem só até começarem a cair tijolos em suas cabeças e ver os cabelos puxados pela escola inteira.

        —  Martin — prosseguiu a professora — só tem um defeito. — Agucei o ouvido. — Ele não pode lutar contra esse defeito, nem sequer sabe que tem esse defeito.

        —  Que defeito é este, Sra. Professora? — Uma garotinha de tranças negras fez a pergunta.

        —  Seu defeito é que ele pensa errado. Ele comete um erro de lógica, de pensamento, compreendem? Ele acha que as pessoas não conseguem suportá-lo! — Nesse instante eu mal respirei, a fim de não perder uma única palavra. Senti que o Dr. Freund me observava no escuro. — Ele acha que todas as pessoas são inimigas dele!

        —  Que bobagem! — exclamou um menino.

        — Naturalmente, é uma bobagem — disse a professora imediatamente —, mas ele é assim mesmo, compreendem? Ninguém consegue ter pena dele, pobre garoto! Deve ser terrível achar que ninguém gosta de uma outra pessoa, não é? Achar assim: aquele ali, aquela lá, vai logo bater em mim! Aquele outro vai me denunciar! E aquela, ainda, só está esperando para cuspir em mim.

        Oh, Deus, pensei, aqui estou dentro de uma câmara pequena e escura, eu que assassinara, que enriquecera às custas de bens alheios; e escutava atentamente os esforços pela salvação de um menino pequeno, malvado e perigoso; era testemunha de como pessoas adultas e ainda não adultas se investiam na educação de uma criança, com um fervor e uma seriedade tal, como se o futuro do mundo dependesse disso. Mordi os lábios. E, perguntou uma voz dentro de mim, o futuro do mundo não dependia, com efeito, da educação dessa criança, da educação de todas as crianças doentes e anti-sociais? Onde vim parar, meu Deus, onde?

        —  Estando conosco por um momento, Martin, por si só, vai compreender o seu defeito — disse, lá fora, a jovem professora. — Mas nos primeiro tempos não será tão simples assim. Vocês sabem como é. Quando vocês acreditam que estão com a razão, um outro pode dizer dez vezes que vocês não têm razão, e simplesmente não irão acreditar! Também Martin, no começo, não acreditará em vocês! No início vai continuar pensando errado! E por isso é que eu poderia imaginar que ele, às vezes, diga, erradamente, claro, o seguinte: "Toni quer me dar uma surra no recreio! Eu sei bem! Mas antes de deixar que Toni bata em mim, eu mesmo bato nele! Para que ele não tenha, de jeito nenhum, tempo de fazer isso comigo!" Aí talvez Martin vá surrar o pobre Toni no recreio, que naturalmente não tem absolutamente nada conta ele. — A professora olhou à volta. — E o que vai acontecer quando Toni, depois, na próxima oportunidade, bater em Martin?

        —  O Martin vai achar que ele teve razão e que Toni realmente não pode suportá-lo — exclamou uma meninazinha.

        —  Isso mesmo — confirmou a professora. — Estou vendo que vocês me compreenderam. Martin vai acreditar que ele pensou acertadamente! Mas o que aconteceu é que pensou erradamente! O Toni não tinha coisa alguma conta ele! Mas agora Martin vai ver confirmada a sua idéia, agora será mais difícil alguém conseguir fazê-lo desistir dela ... e no recreio seguinte, Martin vai pensar, é o Toni e o Albert que vão me surrar! E se os dois então o surrarem de fato, ele vai acreditar mais firmemente ainda em seu erro, e numa semana ele mesmo vai querer b ater na turma toda.

        As crianças riram.

        —  Claro que assim não pode ser — falou a professora. — Assim não ajudamos Martin a aprender a pensar direito, não é verdade?

        —  É, professora.

        —  Mas então que devo fazer? — perguntou um menino gorduchinho, provavelmente Toni. — Eu simplesmente não posso deixar que esse Martin me dê uma surra!

        —  Lógico que não — opinou a professora. — Mas outra coisa você pode fazer: evitar!

        —  Evitar?

        — É, ser simpático para com ele, amável e prestimoso. Se, o quanto antes, desde o início, você for agradável e amável para com ele, então ele não poderá achar que você não gosta dele, pois Martin não pensa tão errado assim! E com isso você terá contribuído para libertá-lo de seu erro.

        Toni balançou a cabeça com um sinal de concordância.

        —  Já estou entendendo, professora. Eu sim, consigo pensar corretamente!

        O Dr. Freund puxou-me levemente pela manga.

        —  Venha — falou —, precisamos ir, Martin vai chegar logo.

        —  Gostaria de ficar aqui.

        —  Voltaremos — replicou.

        Excitado e curioso face ao prosseguimento da experiência, voltei com ele para a sala da diretoria, onde de fato já estava Martin, sentado. Parecia assustado e empalidecido.

        —  Então, Martin, como foi na cidade?

        —  Horrível, Doutor.

        —  Horrível? Como assim?

        — Muita gente! — Martin agitou os ombros. Não olhava em absoluto para mim.

        —  E o que estava errado com as pessoas, Martin?

        —  Ah, foram detestáveis. Ninguém gostou de mim!

        — Calma; ninguém gostou de você. Assim, certamente, você está feliz de estar aqui conosco novamente, onde todos estão esperando por você.

        Martin voltou a sacudir os ombros.  

        —  Ou acredita que nós, aqui, também não gostamos de você?

        —  Não sei.

        — Mas eu sei, Martin! As crianças da sua nova turma já perguntaram por você! Todas elas estão...

        Bateram à porta.

        —  Entre — exclamou alto. o Dr. Freund. A porta abriu-se e duas crianças entraram: o gorducho Toni e a menininha das tranças negras. O Dr. Freund lançou-me um olhar.

        —  O que foi?

        —  Sr. Doutor — disse a menina e aproximou-se — A Sra. Professora disse-nos que Martin Frank entra hoje para a nossa turma. Queríamos perguntar seja está aqui e se podemos saudá-lo! — Martin, visivelmente, não acreditava no que ouvia. Perplexo, mexeu com as mãos e olhou a menininha.

        O Dr. Freund levantou-se sorrindo.

        —  Ora vejam, que feliz coincidência! Não é que vocês chegaram no momento certo! O nosso Martin está aqui diante de vocês!

        —  É ele? — perguntou Toni com curiosidade.

        — É, é este aqui! — O Dr. Freund levou Martin um pouco adiante.

        —  Viu, eu lhe falei a verdade! Todos aqui já estamos realmente esperando por você!

        As duas crianças resplandeceram de entusiasmo.

        —  Hum — fez Martin, meio perturbado.

        —  Posso fazer as apresentações? — O Dr. Freund sorria. — Pois bem, este é Martin, este é Toni, o monitor da classe II B, e esta é Use, sua substituta. — Toni e Use apertaram a mão de Martin.

        —  Bem-vindo! — disse Ilse.

        —  Muito prazer!—falou Toni.

        —  Muito bem! — O Dr. Freund esfregou as mãos. — E sabem de uma coisa? Já que vocês desceram, não vou precisar de levar Martin para cima. Vocês mesmos podem fazer isso, não?

        —  Claro, Sr. Doutor!

        —  Ótimo! — O Dr. Freund fez um movimento de cabeça. — Está bem, então até logo, Martin, ainda nos veremos mais tarde!

        Meu filho olhou, perplexo, de um para o outro.

        —  Eu devo ir realmente com eles? ... — titubeou.

        —  Sem dúvida, Martin, os outros meninos também querem conhecê-lo! — disse Toni. Tomou Martin pela mão, Use pôs um bracinho fino em volta de seu ombro e assim conduziam com todo cuidado o menino, emudecido, para fora da sala. A porta bateu, fechando-se. e ficamos a sós. Senti meu coração disparar quando disse:

        —  Claro que as crianças foram mandadas até aqui, não?

        —  Naturalmente — replicou o Dr. Freund, divertido, e tomou a minha mão. — Agora venha rápido! A representação continua!

        Apressamo-nos para voltar à cabina de projeção. Estava tão excitado como não ocorria há dias. Mal alcançamos as janelinhas, ali adiante, na sala de aula, bateram à porta.

        —  Entre! —falou a jovem professora.

        Use e Toni conduziram Martin para dentro da sala.

        No mesmo instante, todas as crianças, como que sob uma ordem de comando, levantaram-se, riram para o menino, meio abalado e exclamaram alegremente:

        —  Bom dia, Martin!

        Os olhinhos irrequietos de Martin tremeluziram. Passou as costas da mão pelo nariz e pigarreou.

        —  Hr... Hrrrmm!!! — fez Martin. A professora veio-lhe ao encontro.

        —  Até que enfim! — exclamou com satisfação. — Você nos fez esperar tanto tempo, Martin! Mas onde é que estava todo esse tempo?

        —  Com o... com o... precisei ir ver o doutor — conseguiu emitir com esforço.

        —  Hã! — A professora balançou a cabeça. — Mas agora, finalmente, você está aqui, e também vai ficar aqui! — Dizendo isso, levou-o sem pressa para frente, até ele ficar diante do tablado. — Agora não vamos deixá-lo ir embora! Vamos escolher um bom lugar para você... — Parou e olhou para os lados. — Não, mas que coisa — falou —, esquecemos por completo, crianças! O pobre Martin está sem lugar!

        —  Mas como, professora?! — exclamou um dos meninos e levantou-se de um salto. — Que significa isso, nenhum lugar?! Aqui, arranjamos um lugar para ele, aqui! — E apontou para a carteira ao seu lado.

        A professora franziu o cenho, incomodada.

        —  Não, que coisa! Como pude me esquecer disso! Claro, Martin! Olhe ali!

        Levou-o até a carteira junto à qual estava o menino.

        Martin engoliu em seco, como num ato heróico, não acreditava no que seus olhos viam.

        A carteira estava coberta de um papel de embrulho branco. No papel, as crianças haviam pintado uma coroa de flores, com lápis de cor. Dentro da coroa de flores ostentava-se, brilhando em vermelho: "Bem-vindo!" Martin estacou, em silêncio. Todas as crianças olhavam para ele. Ninguém falava.

        —  Você gosta de seu lugar, Martin? — perguntou a professora.

        —  Hr... hr... hrrmmm! —fez Martin, em desespero.

        —  Não gosta dele?

        —  Gosto — disse. Quase não se ouviu a palavra.

        —  Fomos nós que fizemos isso — exclamou Toni — porque ficamos muito contentes com a sua chegada!

        O olhar de Martin perpassou pelos rostos infantis. Engoliu em seco e sentiu-se meio sufocado.

        —  Obrigado — disse então, mais baixo ainda.

        —  Pois bem — concluiu a professora —, agora sente-se. No momento estamos aprendendo aritmética. Você pode acompanhar a aula.

        —  Eu...—começou Martin.

        —  O que foi?

        —  Não estou com material de escola.

        —  Tenho um caderno para você! — exclamou um dos meninos. — Dou-lhe de presente!                                                                ! -

        —  E aqui tem um lápis! — falou, enfaticamente, o vizinho de Martin. — Pode ficar com ele, não preciso dele!

        —  Ob... obrigado — murmurou Martin, num som abafado. Passou o dedo indicador pelas flores pintadas e não olhou ninguém. Seus ombros tremiam ligeiramente.

        —  Isso mesmo! — disse a professora. — Então hoje você vai escrever apenas com lápis e não a tinta. Afinal de contas, tanto faz, não é verdade?

        Martin assentiu com um sinal de cabeça, sem emitir um som.

        —  Professora! — chamou Use.

        —  O que é?

        —  Martin não precisa escrever a lápis! Tenho aqui uma outra caneta para ele!

        —  Mas que ótimo! — alegrou-se a professora. Use dirigiu-se até Martin.

        —  Olhe aqui — falou ela. No canto superior direito da carteira as crianças haviam recortado uma pequena tampa de papel. A tampa estava fechada com um percevejo. Use retirou o percevejo, abriu a tampa, descobrindo o tinteiro no fundo, onde mergulhou a caneta. Depois passou-a a Martin, que a segurou entre os dedos.

        —  Então agora vamos continuar a aula — disse a professora e foi até o quadro-negro. As crianças escreviam, Martin também, sem demora e sem vacilar. Pouco depois, sua caneta estava vazia.

        —  Preste atenção! — sussurrou o Dr. Freund ao meu lado. Vi Martin hesitar. Em seguida, devagar e com cuidado, retirou o percevejo do papel, abriu a tampa, mergulhou a caneta, voltou a fechar a tampa, prendeu firme o percevejo e continuou a escrever.

        —  O senhor viu? — A voz do Dr. Freund era uma voz de felicidade. — Ele não rasgou a tampa! Abriu-a e fechou-a de novo, para não estragar sua bela carteira.

        Senti um bolo na garganta.

        Martin escrevia. Algum tempo depois, abriu novamente, e com cuidado, a tampa, mergulhou a caneta e fechou-a a seguir. Repetiu esse procedimento, solene e indiferentemente, durante toda a aula. Fiquei atrás da janelinha observando-o. Pensei na criança que Martin quase havia enforcado, no camundongo preso com esparadrapo e em Jolanthe. Martin, em sua carteira enfeitada, escrevia.

        —  Choque! — disse o Dr. Freund. — Sabia que apenas com um tratamento de choque iríamos avante.

        Martin abria a tampa. Martin voltava a fechá-la. Martin escrevia.

        —  Agora, é claro, devemos esperar a primeira recaída — esclareceu Freund. De repente, não consegui mais respirar. Lutava, asfixiado, para absorver o ar e, logo em seguida, meus olhos umedeceram-se. Ali fiquei, a cabeça encostada na parede, o choro sacudindo-me como um espasmo.

        —  O que houve? Que tem o senhor?

        —  Nada — disse, suspirando —, passa logo. São só os nervos.

        —  Pois não — falou o Dr. Freund. Levantei a cabeça, chorando. A pouca luz que incidia pela janelinha tecia um aro luminoso ao redor de sua cabeça redonda. Meus olhos nadavam em lágrimas. Via-o à minha frente, nebuloso, difuso. Parecia um daqueles santos pintados a cores, que se encontram nos nichos de pequenas igrejas.

        —  Desculpe-me — disse eu num murmúrio —, estou extenuado. Preciso um pouco de tranqüilidade.

        —  Disso todos precisamos — falou baixinho. — Tranqüilidade e amor.

       

        O choque continuou.

        Passou-se uma semana sem que adviesse uma recaída. Martin sentia-se visivelmente bem no novo ambiente, de manhã ia com prazer para a escola, eu o acompanhava, pois o caminho era longo e ele ainda não o conhecia bem. No mínimo, era esse o pretexto, com o qual me deixava conduzir até o instituto. Na verdade, via-me magicamente atraído de volta para o Dr. Feund, ansiava por estar à sua volta, gostava profundamente de conversar com ele e encontrava paz em sua presença. Enquanto Martin passava as horas de aula em sua turma, eu ficava sentado na sala da diretoria ouvindo com atenção o Dr. Freund, que me contava fatos a respeito de outras crianças problemáticas, de seus receios, de seus êxitos e fracassos. Também falávamos sobre Martin.

        —  Não tenho ilusões — disse ele, com seriedade —, o rebate virá. Sempre vem. Virão ainda muitas outras recaídas até começar a melhora definitiva. — Atirou as mãos para o alto. — Meu Deus, quisera que curar fosse simples, que o primeiro êxito fosse um êxito permanente! Infelizmente não é, nunca é. Porque, como no caso de Martin, é provocada por um choque. E um choque só assusta, mas não cura.

        —  Mas por que deverá ocorrer uma reação? Se Martin está tão bem! Gostam dele, compreendem-no, ele não precisa mais ter medo.

        —  Ah, o medo! — O Dr. Freund sorriu. — O medo, hoje em dia, na vida das pessoas, desempenha um papel muito menos funesto do que em geral se supõe. A época do medo ficou para trás, desapareceu nos primeiros anos de pós-guerra. O mal que atualmente subjuga o mundo é a desconfiança. A desconfiança corrompe nossas relações, solapa nossa vitalidade, inibe e impede nossas ações e atividades. O senhor observa isso tanto no grande como no pequeno — com minhas crianças e com os poderosos desta terra. Será que ainda confia no outro? Um consegue ainda confiar no outro? Não! Desconfiança em toda parte. Seria preciso que alguém escrevesse um livro a respeito disso: "A grande desconfiança."

        —  Mas como se pode combatê-la? Como as grandes potências poderiam reencontrar a confiança recíproca?

        O Dr. Freund sacudiu a cabeça.

        —  As grandes potências não podem encontrar confiança uma na outra. As grandes potências não são indivíduos. São apenas conceitos para definir pessoas, milhões e milhões de indivíduos que nada sabem um do outro, todos vivendo juntos na desconfiança e representados por umas poucas pessoas que, por injunção de seus cargos, deverão odiar e lograr o outro — os políticos, em suma. Não, hoje não podemos mais pensar através de conceitos tão elevados. Precisamos procurar pensar através de conceitos muitíssimo menos amplos, em cada indivíduo em particular! Precisamos raciocinar sobre o modo como Martin vai perder sua desconfiança com relação a Albert. E Albert, pobre vítima de cretinismo, sua desconfiança diante de Use. Cada indivíduo que perde sua desconfiança e torna-se cheio de confiança contagia um indivíduo de seu mesmo ambiente. Daí resulta uma progressão, como aquela que se conhece com os grãos de mostarda. Acredite-me, é o único meio! Nisso é que vemos o sentido do nosso trabalho. Invariavelmente é uma minoria que transforma o mundo. Quem hoje ainda pensa em massas, haverá de falhar inevitavelmente.

        Sentado em frente dele, via-o fumar cigarros e mais cigarros, e escutava-o atentamente. Sentia-me na escola freqüentando suas aulas. Ele era meu professor. Confiava nele. Quando não tinha tempo para mim, eu ia para a biblioteca e ficava lendo relatórios de casos clínicos ou folheando as estatísticas. Aceitou tranqüilamente o fato de que eu provavelmente tinha tempo de sobra, depois que fiz uma referência passageira a umas férias que tirara. Assim, toda manhã estava ali, lendo, tendo à frente papéis batidos a máquina, as linhas bem juntas umas das outras.

        As estatísticas eram estarrecedoras. 43% das crianças da sua escola (entre 6 e 14 anos) nunca dormiam em sua própria cama. Desses 43%, 24 dormiam junto com uma outra criança, 19 com 2 ou mais crianças, 17 de todas as crianças vinham de famílias nas quais um dos pais era vítima do alcoolismo, 5 haviam tomado álcool já na idade de 4 anos. Para 21 % de todas, um dos pais era falecido, em 32% dos casos o casamento dos pais de desfizera, 7% de todas as crianças viviam com parentes ou pais adotivos. E apenas 12% moravam em casa com um quarto próprio.

        — Temos planos — sorria o Dr. Freund ao falar —, mas não temos dinheiro. Estamos cogitando em fundar um grande lar no gênero de um hotel, na periferia da cidade, no qual as crianças ameaçadas de um perigo maior de anomalia possam morar. Já achamos o edifício adequado, como também dispomos de determinados recursos... mas ainda não o suficiente para terminar a reconstrução.

        Adiante das janelas da sala onde estávamos conversando a neve caía. O ano terminava. Os trilhos da ferrovia do oeste jaziam, negros, na neve branca. As nuvens estavam baixas. Fazia frio.

        Martin tratava-me como sempre, sem alteração. Tomava conhecimento de minha existência; no entanto, continuava dizendo "o senhor" e não falava comigo nada mais além do estritamente necessário. À noitinha, quando íamos para casa, fazia seus deveres e ia dormir. Agora já se lavava. O Dr. Freund persuadira-o. Foi um período raro, estranho, quando hoje dele me recordo. Teria tido toda razão de ficar desesperado a respeito de meus tão brilhantes planos naufragados, mas era feliz e estava tranqüilizado. Não ansiava partir, tornara-me muito calmo naqueles poucos dias de minha amizade com o Dr. Freund. Foi a 11 de novembro que, com o correio matutino, a carta chegou. Eu deveria, segundo constava, comparecer no dia 14 de novembro, às dez horas da manhã, no edifício do Comissariado de Polícia do Primeiro Distrito com o objetivo de prestar esclarecimentos.

       

        Dirigi-me para lá num inusitado estado de espírito, que longas horas de reflexão haviam precedido. Encarava minhas chances com a maior apatia e isenção. Prestar esclarecimentos — por trás dessas inofensivas palavras ocultava-se tudo. Na realidade, também não poderia admitir que meu crime fosse conservar-se eternamente oculto. Agora algum indício fora encontrado, a partir de algum erro que me escapara em algum lugar, em algum momento. Iriam interrogar-me, voltar a interrogar e, pela terceira vez, interrogar. Talvez estivesse com sorte e lucidez suficiente para responder às perguntas de maneira satisfatória. Talvez não. Aí então eu me daria mal, não teria muitas esperanças...

        Naturalmente, também, ainda poderia tentar fugir. Mas, provavelmente, as fronteiras já tivessem sido fechadas para mim, caso a polícia guardasse a mais mínima suspeita contra mim, e aí então é que eu cairia numa armadilha mais segura. Também não tinha mais a intrepidez dos primeiros dias, o elã do começo. Tornara-me lerdo e mais cansado e, certamente, mais doente, também. Respirava com mais dificuldade, as dor s de cabeça sucediam-se com freqüência. Sequer era capaz de dominá-las, facilmente, com a morfina de Mordstein. No entanto, não era mais a mesma antiga pessoa. Mudara, e via isso claramente. É plausível que não fora eu próprio que me transformara, mas o Dr. Freund. Suas palavras na primeira noite ficaram na minha memória. Não se poderia continuar fugindo eternamente. Na vida de cada um, chegava o dia em que o indivíduo teria de deter-se, a fim de lutar, uma vez posto contra a parede. Eu quis lutar. Cansara-me de fugir. Mas, tentassem ou não prender-me!

        Fui.

        Tive que esperar algum tempo, havia algumas pessoas que chegaram antes de mim. Fiquei sentado num banco, num corredor frio e sujo em frente à porta para onde me haviam mandado, e tremia de frio. Estava muito tranqüilo, possuído daquele estado de êxtase resignado e cordato com tudo, parecido com o estado de ligeira embriaguez que se sente diante das dificuldades da vida. Pois, mais do que qualquer coisa, tudo me era indiferente. A morfina parecia haver produzido os primeiros efeitos em meu organismo. Estava tão calmo, que pude inclusive encetar uma interessante conversa com um homem que apareceu dez minutos depois e sentou-se ao meu lado. Era um homem de uns quarenta e cinco anos, preocupado, mal vestido e simpático. Agradou-me desde o primeiro momento.

        —  Hoje está demorando de novo — falou, pacientemente.

        —  É.

        —  O senhor já esteve muitas vezes aqui?

        —  Não.

        —  É só por perguntar. Era preciso que eu viesse aqui algumas vezes.

        —  Ah... sim.

        —  É.

        A conversa estava em andamento, quando ele, subitamente, apresentou-se.

        —  Permita-me: Hohenberg.

        —  Muito prazer — respondi e estendi-lhe a mão —, meu nome é Frank.

        —  Também o senhor está aqui por causa de seu filho? — perguntou com timidez.

        —  Não. Como assim?

        —  O senhor não tem filhos?

        —  T... tenho — respondi lentamente—, um menino.

        —  Eu também. — Ficou balançando a cabeça repetidamente.

        — Deus do céu, se eu tivesse adivinhado... — Interrompeu-se e deu um suspiro.

        —  Algo não está indo bem com seu filho?

        —  Nada — disse ele, com apatia —, nada está indo bem com o meu menino. Chama-se Herbert. Dez anos. Era uma criança boa... até pouco tempo atrás. Aí o diabo deve ter tomado conta dele. O senhor não faz idéia do que sofremos com ele, eu e minha mulher. Sobretudo a coitada da minha mulher. Sou representante de firma. Sempre viajando, não me atinge tanto assim. Mas a minha mulher!

        —  Suspirou de novo. Olhei para ele. Tinha um rosto afável, bom.

        —  Herbert está doente?

        —  Sim, Sr. Frank. Não fisicamente. Deve estar doente da cabeça, é o que sempre acho.

        —  Da cabeça?

        —  É, eu e minha mulher estamos convencidos disso. Deve ter acontecido alguma coisa dentro dele que o mudou.

        —  De que modo?

        Hohenberg olhou timidamente à sua volta, depois disso quase num sussurro:

        —  Expulsaram-no da escola, Sr. Frank.

        —  Porquê?

        —  Por causa de um delito sexual. — Olhou fixamente para o chão. — O senhor imagine! Meu filho! Vai e tenta seduzir uma garota. Terrível, não acha?

        Fiquei calado.

        —  Eles abafaram a coisa — disse o pequeno representante.

        — Abafaram por minha causa, porque me conheciam. Pusemos Herbert em outra escola. Durante meio ano foi tudo bem. Mas agora...

        —  Mas agora?...

        —  A mesma coisa — falou. — Uma recaída. Pior do que a primeira vez. A polícia interveio depois que a mãe da menina deu parte. É por isso que estou aqui agora. O caso dele será julgado pelo juizado de menores. Pode imaginar uma coisa dessas, Sr. Frank? Com antecedentes penais! Meu menino, julgado, com antecedentes penais... e com dez anos de idade? — Cobriu os olhos contra a mão.

        Refleti um pouco. Depois falei:

        —  Escute, Sr. Hohenberg, acho que posso dar-lhe um conselho. Também tenho um filho problemático. Aqui, em Viena, há um educador maravilhoso, um certo Dr. Freund. Instalou um consultório para pais e filhos e dá consultas às quintas-feiras, das quatro às oito horas. Vá vê-lo com seu filho Herbert.

        —  Acredita que ele possa ajudar-me?

        —  Se ele não conseguir, ninguém mais conseguirá — falei com convicção. — Para mim o homem é um santo. Experimente. Ele fez milagres com meu garoto. Teria prazer em pôr o senhor em contato com ele.

        —  Oh, o senhor realmente faria isso?

        —  Claro.

        Trocamos endereços e telefones, prometi ligar para ele. A porta à frente da qual estávamos esperando abriu-se, um funcionário saiu para o corredor.

        —  Sr. Walter Frank! — exclamou uma voz alta. Levantei-me.

        —  Sim, estou indo — falei com frieza e indiferença. Então fiz uma coisa rara, inesperada. Até hoje não consigo explicar a mim mesmo por que o fiz. Voltei-me para Hohenberg. — Venha visitar-me — disse-lhe —, certamente temos muito que contar um ao outro.

        —  Com prazer, se é que eu possa. — Estava embaraçado.

        —  Digamos à noite. Sábado lhe conviria?

        —  Excelente, Sr. Frank. — Sorriu.

        —  Então sábado, às oito e meia, após o jantar — falei satisfeito. Não conscientizei que talvez não pudesse cumprir esse compromisso.

        —  Sábado às oito e meia — repetiu.

        —  Ótimo. Fico muito contente!-Leve sua esposa também!

        —  Infelizmente não será possível, Sr. Frank, ela viajou para o interior.

        —  Pois bem — concluí —, então venha só.

        Dizendo isso, virei-me e, passando pelo funcionário, entrei no escritório da delegacia. Parei junto à porta. A sala era pequena. Junto à janela havia uma escrivaninha. Atrás da escrivaninha estava sentado um outro funcionário. À frente da escrivaninha, sentada, estava Vilma.

       

        Olhou-me com expressão de seriedade. A seguir, baixou a cabeça com um gesto ligeiro de cumprimento.

        —  Bom dia, Vilma — falei e estendi-lhe a mão. Ela apertou-a.

        —  Sente-se, Sr. Frank — pediu o funcionário do outro lado da escrivaninha. O outro funcionário sentou-se em frente a uma máquina de escrever e olhou-me com curiosidade. Pois sim, pensei, então as coisas estão nesse pé. Vilma também ali. Eu gostaria de saber o que ela já teria declarado sobre — e contra — mim. Mas é provável que não iria saber. Olhei-a. Desviou o olhar. Afinal, ela também era apenas uma mulher, pensei.

        —  Posso retirar-me? — perguntou ela ao homem por trás da escrivaninha.

        —  Não, fique, por favor! Encolheu os ombros.

        Portanto, era uma acareação. Está bem! O Dr. Freund, será que cuidaria de Martin? E meu dinheiro, lá em casa ainda. Ah, tivesse-o levado para longe! Grande idiota. Provavelmente me reteriam ali. Sem dúvida, poderiam meter-me logo em prisão preventiva. Não pensava que já sabiam tanto assim. E que Vilma também estaria ali...

        —  Sabe por que o chamamos, Sr. Frank? — perguntou o funcionário. Era magro, alto, e seu rosto envelhecido por excesso de trabalho.

        —  Sei.

        —  Bom. Isso nos facilita as coisas. Deseja falar, ou quer que eu lhe faça perguntas?

        Naquele instante senti-me frágil como nunca. Minha intenção de lutar (com as costas contra a parede) estava esquecida. Desejei confessar tudo.

        —  Quero falar! — (Por que não? De algum jeito, afinal, tudo deveria terminar. Jolanthe estava morta. Margaret, minha mulher, estava não se sabe onde. Por que não deveria falar? Antes que pronunciassem uma sentença condenando-me, já estaria morto...)

        —  Muito bem — falou o esgotado funcionário atrás da escrivaninha, e fez um sinal para seu colega junto à máquina de escrever, ao que este respondeu colocando na máquina uma folha de papel. — Então fale, por favor, Sr. Frank.

        —  Sim. Levantou a mão.

        —  Mas, por favor, o máximo possível apenas sobre fatos que se relacionem diretamente com o Sr. Lauterbach — falou.

       

        Bastaram poucos segundos para eu compreender que não sabiam absolutamente nada a meu respeito, que só queriam inquirir-me sobre o pobre Lauterbach, que estava na prisão por causa de alguma fraude cometida em negócios de câmbio. Num curto instante recuperei meu autocontrole, consegui falar de novo. Vilma olhava-me com seriedade. Muda em sua cadeira, escutava-me com atenção. Ela, se não me ajudasse, me teria deixado ir de encontro à minha ruína, pensei.

        Sem dúvida.

        Disse o que sabia sobre Lauterbach. Expliquei que fora procurá-lo para discutir com ele sobre um assunto comercial.

        Que assunto comercial?

        Um negócio de exportação de tecidos. Era meu ramo. (O funcionário olhou os documentos falsos.)

        E o negócio foi realizado?

        Infelizmente não. Lauterbach foi preso antes da conclusão.

        Foi só isso.

        Achei que foi muito pouco, e procurei ajudar Lauterbach. Falei que ele me causara muito boa impressão. Não poderia imaginar, em absoluto, que ele estivesse envolvido em transações ilegais.

        O funcionário deu a entender que eu não continuasse.

        Disse que era o bastante. Em seguida agradeceu-me a ajuda, devolveu-me os falsos papéis e apertou minha mão. Dez minutos depois, já estava de novo no corredor. Vilma também podia ir-se. Q

        outro funcionário acompanhou-nos até a porta e chamou o próximo que esperava.

        —  Sr. Robert Hohenberg!

        Meu novo conhecido levantou-se. Passou por mim.

        —  Até sábado — falei.

        Concordou com um movimento de cabeça. Depois fechou a porta atrás de si.

        Dirigi-me, ao lado de Vilma até a escada e desci. Saímos para a rua movimentada. Nevava forte, os flocos caíam em massa.

        —  Walter — articulou Vilma, sufocada.

        —  Sim?

        Seu rosto fino tremeu.

        —  Vou-me embora de Viena.

        —  Ah...

        Onde estava a doçura de sua proximidade? Onde seu encanto? Onde? A neve caía silenciosamente, floco a floco. Sua expressão pareceu-me estranha, mai a reconhecia. Quão remoto está tudo, quão longe...

        —  Nosso teatro recebeu uma oferta da Alemanha. Devemos fazer uma tournê na Renânia, com a peça de Félix.

        —  Fico contente, Vilma!

        —  Walter! — Soou como um pedido de socorro. Estacou, comprimindo-se contra a parede da fachada do edifício, um xale envolvendo-lhe a cabeça, as maçãs do rosto avermelhadas, os cabelos revoltos.

        —  Sim, Vilma?

        —  Eu prometi, Walter. Não tive coragem de não prometer. Pedestres roçavam-nos ao passarem, carros buzinavam, bondes

        passavam com as campainhas tilintado. Ficamos em silêncio em meio ao caos.

        —  Oh, Walter. Walter! Sabe pelo que passei nestes últimos dias? Queria telefonar-lhe. Queria vir à sua casa, no meio da noite. Havia momentos em que tudo me era indiferente!

        Não respondi.

        —  Mas tive medo. Aquele horrível medo de antes! Não podia ir! Não devia ir! Mas agora... — Sua voz emudeceu.

        —  Agora?... — Pensei no Dr. Freund. Que será que ele diria? Que teria feito em meu lugar?

        —  Mas agora não sei mais o que fazer! Diga-me o que devo fazer, Walter! Por favor, diga-me! — Carros e bondes. Barulho e pedestres. Os jornais do meio-dia. Os vendedores gritavam as últimas notícias pela forte nevada afora. Família inteira morta com gás. Catástrofe no Tirol provocada por avalanches. Chiang Kai-Chek exigiu fornecimento de armas a Formosa para uma bem sucedida invasão da China Vermelha.

         Der Kurier! Die Weltpresse! Der Abend!

        —  Arno você, Walter! Amo-o tanto!

        Respirei fundo. (Ao inspirar, senti uma dor no peito.) Olhei para ela, parada à minha frente, frágil e carente de proteção.

        —  Vá para a Alemanha, Vilma — falei.

        —  Já está tão grave assim, com você?

        —  Está — disse-lhe —, está ruim. Amo-a também, Vilma. E porque amo você, digo-lhe o seguinte: Vá para a Alemanha! Vá embora de Viena. Fique com Félix.

         Der Abend! Der Kurier! Die Weltpresse! Últimas notícias do mundo inteiro.

        —  Vilma?

        —  Hem?

        —  Vou morrer em breve, Vilma — disse em voz baixa e agarrei a sua mão. Estava quente e seca.

        —  Sim, Walter. Não me importaria.

        —  Eu sei, Vilma. Mas não adianta.

        —  Não?

        —  Não.

        —  Eu sabia — disse ela com voz rouca. Em seguida, pôs a mão no bolso e tirou um envelope. — Esperava vê-lo hoje. Trouxe algo para você.

        —  O que é?

        —  O dinheiro que nos emprestou. Agora podemos devolvê-lo a você.

        —  Ah, meu Deus! Deixe isso!

        Sacudiu a cabeça, negando, e enfiou o envelope em minha mão, apertando-a.

        —  Não, por favor, tome! Meti o envelope no bolso.

        —  Walter, se eu for à Alemanha, ficarei longe durante seis meses!

        —  Então não vamos nos rever mais. Olhou-me.

        —  Acha mesmo que devo ir?

        —  Acho, Vilma.

        Num átimo enlaçou-me com os braços e beijou-me com desespero e furor. Era nosso último beijo, eu sabia.

        —  Adeus — falei quando se desprendeu de mim.

        —  Adeus, Walter. — Deu-me a mão novamente. Foi-se. Fiquei acompanhando-a com o olhar. Não se voltou mais e logo desapareceu em meio à densa e forte nevada. Estava completamente tranqüilo. A tarde, pensei, vou sair novamente para ver o Dr. Freund.

       

        A noite de sábado com Hohenberg transcorreu harmônica e agradavelmente. Mandara Martin para a cama, preparei alguns sanduíches, bem como uísque e soda, e tive a impressão de que logo de início Hohenberg sentiu-se bem em minha casa. Fiquei contente com isso, pois sua natureza calma e tímida era-me muito simpática.

        Bebeu pouco, mas aceitou, agradecido, charutos americanos que eu por acaso ainda tinha. Sentamo-nos em frente da lareira, olhávamos para as chamas e conversávamos. Era uma experiência singular para mim voltar a receber uma visita após todas daquelas longas e agitadas semanas, a falar com uma outra pessoa, não ter pressa nem medo. Desfrutei cada minuto dessa noite. Esquecera-me, quase, de que eu era um impostor e um assassino, marcado pela morte, sem esperança. Na companhia de Hohenberg sentia tranqüilidade e sossegada paz burguesa. Falamos principalmente sobre nossos filhos.

        —  O senhor já esteve como Dr. Freund?

        — Já, Sr. Frank. — Ficou radiante. — É um homem maravilhoso.

        —  Eu não disse?

        —  Como conversou com Herbert... como olhava para ele... não pensei que em nossa época ainda houvesse uma coisa assim! Gostaria muito de eu mesmo ir à escola para vê-lo e confessar-lhe meus erros e minhas faltas.

        —  A gente às vezes é levado a isso — falei e esvaziei meu copo.

        —  O que vai acontecer ao seu menino?

        —  Na quinta-feira deverá vir ao consultório. O Dr. Freund acha que vai demorar muitos meses, talvez anos.

        —  E ele não poderá admiti-lo em sua escola?

        —  Infelizmente não. O Conselho Escolar da Municipalidade não deu autorização para isso. Ele terá de freqüentar uma escola de sua circunscrição.

        —  Mas no caso de meu filho...

        —  Seu caso está num nível um pouquinho diferente, Sr. Frank. Nenhuma outra escola quis recebê-lo mais. Aí o Conselho Escolar teria de aprovar. — Puxou a fumaça do cigarro e olhou em direção do fogo.

        — Como vai sua esposa? — perguntou após um intervalo. Dissera-lhe que ela estava na Alemanha.

        —  Bem, obrigado.

        —  Voltará em breve? — Continuava olhando para as chamas.

        —  Espero que sim. Tenho muita coisa a discutir com ela.

        —  Ah, sim?—Volveu os olhos para mim. Balancei a cabeça.

        —  O futuro de Martin. Para mim é como uma pedra pesando-me no peito. Agora nós, os pais, ainda estamos aí para cuidar dele. Mas o que sucederia se morrêssemos?

        Falara sem refletir. Então observei seu olhar de assombro.

        —  Mas então Martin já estará crescido!

        —  Claro — retruquei apressadamente. — No entanto, nenhum de nós sabe quando sua hora chegará. Pode ser amanhã mesmo. Um acidente, uma doença grave... e Martin ficará só. Aí o que será dele?

        —  O Dr. Freund tomará conta dele.

        —  É — concordei —, talvez.

        —  Mas certamente! — Hohenberg empertigou-se e alterou a voz.

        — Ele mesmo me disse, conversamos sobre isso.

        —  Sobre a minha morte?

        —  Pelo amor de Deus, não! Conversamos muito genericamente a respeito. Ele já tem em sua escola algumas crianças que perderam ambos os pais. Moram lá. Alguns quartos foram instalados para casos dessa natureza. Ele é um pai com muitos filhos, o nosso Dr. Freund,

        —  É verdade? — Eu estava agitado.

        —  É, Sr. Frank.

        —  Disse que cuidaria de uma criança cujos pais falecessem?

        —  Disse que tomaria conta de todas as crianças cujos pais falecessem, caso dispusesse de meios para tanto. Mas o senhor sabe: na zona periférica da cidade, num determinado local, há um albergue semiconstruído. As crianças poderiam viver nele. Só falta dinheiro. Mas não é, absolutamente, tanto dinheiro assim. Acho que com um milhão se poderia terminar a obra, pelo menos provisoriamente.

        —  Com um milhão?

        —  Sim, Sr. Frank. Seu olhar amável repousou em mim. — Mas quem possui um milhão?

        —  Concordo — falei, perdido em pensamentos. — Quem possui um milhão?

       

        Precisei de dez dias para vender as jóias.

        A transação exigiu tempo integral, durante o qual não vi o Dr. Freund sequer uma vez. Porém, por mais doloroso que esse fato fosse para mim, levei adiante a empresa, de vez que aquilo que fazia, fazia-o para e por ele. Claro que não vendi as jóias a joalherias. Teria sido muito arriscado. Precisei fazer contato com o mundo de receptadores de Viena. Era a parte mais difícil da operação. Os receptadores não confiavam em mim. E eu não confiava nos receptadores. Encontravamo-nos nos cafés, pequenos e sujos, do Canal do Danúbio, nos escritórios de advogados duvidosos e nas entradas de casas escusas. Negociava com muitos interessados, dividira as jóias em três partes, que vendi separadamente uma da outra. Tomavam-me, geralmente, por um ladrão, e não um ladrão de todo refinado. Uma vez fui enganado. O homem que me prometera comprar o anel de esmeralda, desapareceu com ele num beco, e não foi mais visto. Era esse o risco que sempre enfrentava no último momento, antes da compra efetiva. Pois os receptadores e contrabandistas primeiro exigiam a mercadoria, antes do dinheiro.

        Finalmente consegui. Sentia-me muito orgulhoso. Recebera pelas jóias todas o total de 500.000 xelins, acima portanto de meio milhão. Além disso, ao fazer um balanço, ainda possuía 80.000 xelins dos 110.000 xelins do Sr. Lauterbach, bem como 55.000 marcos alemães. (40.000 marcos retirei na estação em Munique, e 85.000 marcos na estação em Augsburg. Desse total de 125.000 marcos comprara jóias no valor de 70.000 marcos.) Fiquei contente quando vi que nenhum dinheiro se perdera ou fora desbaratado. Queimei imediatamente o papelzinho com minhas anotações. Trocar os 55.000 foi muito mais fácil do que vender as jóias, e exigiu-me apenas dois dias de ocupação. Uma parte troquei no câmbio negro; a outra, em alguns bancos, ao câmbio oficial (e naturalmente pior) e em quantidades permitidas. No décimo segundo dia, possuía 933.500 em espécie, quase um milhão portanto. Dessa quantia pus à parte 233.500 xelins. Com os restantes 700.000 xelins, passei para a segunda parte do trabalho. Em Viena existem ao todo 140 agências postais, nas quais se pode entregar em depósito importâncias em dinheiro. A cada uma delas, no decorrer de mais dois dias, levei um valor de aproximadamente 6.000 xelins. Utilizei formulários de vale postal. Como remetente preenchia cada um com um nome diferente, escolhido a esmo, juntamente com um endereço sempre diferente, também escolhido ao acaso. No verso do espaço destinado a "Anotações para o Destinatário" escrevia invariavelmente "De um doador anônimo". O destinatário era sempre o mesmo, nos 140 casos. Vim a saber de seu endereço exato durante uma conversa com o Dr. Freund: "À Sociedade Beneficiente para a Construção do Albergue para Crianças, em Neustift am Walde, Viena I, AmHofll2."

        Começara meu trabalho no dia 20 de novembro. A 6 de dezembro estava concluído. A 9 de dezembro adveio a primeira grave recaída de Martin, esperada há tempos pelo Dr. Freund.

       

        —  O motivo de sua recaída, como sempre costuma acontecer, foi em si insignificante — disse o Dr. Freud. Achava-me novamente sentado em seu gabinete de trabalho, a nevada cessara, começara a degelar. As ruas estavam sujas e negras. — Além disso, Martin ainda escolheu o caminho da resistência mínima. Afirmou que Albert zombou dele. Albert, como o senhor sabe, é, entre os da classe, o que sofre de cretinismo; em todo caso, uma criança retardada, infeliz. Admito que Albert, na realidade, tem um modo peculiar de subitamente começar a rir com jeito de bobo. Contudo, isso está relacionado com seu triste estado e não tem a mínima significação. Depois que Albert riu três vezes do jeito que referi, Martin, sem mais nem menos, espancou-o, após as aulas, de maneira tão terrível que lhe quebrou dois dentes e fez vários ferimentos.

        —  Meu Deus do céu!

        —  Eram apenas dentes-de-leite — disse o Dr. Freund — e vão crescer de novo, mas de qualquer maneira!... Os pais de Albert vieram ver-me, participaram o incidente ao Conselho Escolar da Municipalidade, e recebi uma séria repreensão quanto a meu método pedagógico.

        —  Sinto muito, doutor.

        —  Não há por que se lamentar. Freqüentemente recebo repreensões do Conselho. Sou teimoso.

        —  Mas agora o que vai acontecer?

        —  Já falei com Martin e dei-lhe um castigo...

        —  De que forma?

        —  Proibi-o de vir à escola amanhã — disse o Dr. Freund. — Essa proibição atingiu-o com evidente gravidade. Além disso, os dois monitores da turma, Toni e Use, prometeram-me refletir sobre o que se pode fazer.

        —  E o senhor acredita — perguntei duvidoso — que Toni e Use vão achar a solução?

        Olhou-me surpreendido.

        —  Lógico, quem mais pode ser? Nós, talvez?

        —  É — falei—, também procede.

        Toni e Use, entretanto, não encontraram a solução — ao menos de imediato. Martin ficou afastado da escola por um dia, zangado e mudo. Em 11 de dezembro voltou. No recreio das dez horas, bateu, pela segunda vez, no pobre Albert. Motivo: "Ele me denunciou. Por causa dele não me permitiram vir para a escola por um dia."

        —  Pois bem — disse o Dr. Freund —, e você gosta tanto de vir à escola, que simplesmente não podia perdoar Albert por ter tirado um dia de você?

        Martin assentiu com um sinal de cabeça.

        —  Foi, Dr. Freund. Agora talvez eu não posso, de novo, voltar à escola por um dia.

        O Dr. Freund balançou a cabeça, discordando.

        —  Pelo contrário, agora é Albert que não poderá mais vir à escola. Não pode vir de jeito nenhum, porque você o maltratou. Você poderá vir se se desculpar com ele e prometer ficar bem comportado amanhã.

        —  Eu me desculpo e prometo, Sr. Doutor. — Martin cumpriu a primeira parte dessa afirmação. Estendeu a mão para Albert, que ele foi visitar no apartamento deste, trazendo-lhe chocolates. A segunda parte, ele não cumpriu.

        No dia seguinte espancou uma menina.

        —  Ela também riu de mim.

        —  E por que ela riu de você?

        —  Porque fui à casa de Albert e pedi desculpas. Ela disse que sou um covarde!

        A menina, segundo se verificou depois, de fato havia rido e feito a observação citada. Mas o Dr. Freund sacudiu a cabeça.

        —  Saia, Martin, você não me interessa mais.

        —  Não posso fazer nada, Sr. Doutor. — O menino estava em pânico.

        —  Você quebrou sua palavra. Não quero mais falar com você. Por favor, volte para sua sala.

        Martin retirou-se. Soluçava ao fechar a porta e sair. Um pouco depois entraram Toni e Use.

        —  Sr. Diretor, temos um plano.

        —  Têm?

        —  Achamos que podemos ajudar Martin.

        —  É mesmo?

        — A Use e umas outras meninas têm observado Martin e descobriram que ele gosta tremendamente de comer passas.

        —  Isso é verdade? — perguntou o Dr. Freund.

        —  Não faço idéia — respondi.

        —  Mas é! Já notei algumas vezes! — exclamou Use.

        —  E aí resolvemos experimentar a idéia das passas — disse Toni.

        —  Como? — perguntei.

        — Cada colega — falou Toni — dá de seu dinheiro vinte centavos. Com o arrecadado compramos passas. Então Use vai falar com Martin e dizer: se você não bater em ninguém hoje, vai ganhar, ao meio-dia, um saquinho de passas.

        —  Parece boa idéia, meus caros — disse o Dr. Freund, esfregando as mãos. — Mãos à obra!

        Puseram-se em atividade.

        O que Use disse a Martin jamais será sabido, pois falaram em segredo. O fato é que nesse dia ninguém foi agredido por ele. Ao meio-dia vi-o, atrás de Use, esgueirar-se até a quadra de ginástica. Da sala do Dr. Freund pude acompanhar tudo, como Use deu-lhe o saquinho. Ele o esvaziou no pátio mesmo.

        O dia seguinte transcorreu da mesma maneira. Albert estava lá de novo; Martin, porém, não o agrediu. Também nos dois outros dias não houve violências. Ao meio-dia Martin saiu para a quadra junto com Use. Comeu suas frutas preferidas e voltou para junto dos outros sereno e sossegado. No quarto dia Use foi ver o Dr. Freund mais uma vez. Parecia bastante preocupada.

        —  Não sabemos o que vamos fazer!

        —  O que houve?

        —  O dinheiro foi embora. Não podemos mais comprar passas. O senhor não tem quatro xelins que possa nos emprestar?

        Os olhos do Dr. Freund brilharam.

        —  Claro que tenho os quatro xelins. Mas acho que também tenho uma idéia. Preste atenção: amanhã cedo, antes das oito horas, diga a verdade a Martin, que vocês não têm mais dinheiro e que por isso ele também não vai ganhar passas.

        Use balançou a cabeça, preocupada.

        —  O senhor não acha que ele então vai voltar a surrar o Albert?

        —  Vamos ver — respondeu o Dr. Freund.

        Na manhã do dia seguinte fiquei aguardando na escura cabina de projeção, por trás das janelinhas. O Dr. Freund estava a meu lado. Do outro lado da parede, bem abaixo de nós, Use conversava com Martin. Ela lhe dizia a verdade. Martin hesitou um pouco.

        —  Mas que nada! — articulou ele, assim: — Além do mais não posso ficar comendo passas todos os dias! Já está tudo bem... está bem!

        Nesse dia Martin não bateu em ninguém, embora soubesse que a partir de então não haveria mais a recompensa. A crise, aparentemente, estava superada.

        —  Agora só estou com medo é de sábado — disse-me o Dr. Freund.

        —  Por quê?

        —  Todo sábado à tarde a turma se reúne e as crianças discutem sobre a semana que passou. Se Use não mostrar a magnanimidade de omitir seu próprio feito, ou se qualquer outra criança então contar a história das passas, haver-se-á de temer que Martin pense que estarão fazendo troça dele novamente e tudo recomeçará do princípio.

        —  Posso estar presente?

        —  Com prazer — falou.

        Sábado, à tarde, eu entrava na sala de aula pela primeira vez.

        As crianças relatavam ao Dr. Freund os acontecimentos da semana. Haviam salvo um gato. A mãe de Gerda explicara que sua filha não podia ir mais com os outros passear na floresta, no domingo. Que ela já era muito crescida para essas coisas.

        —  Perguntamos a ela se proibia porque não eram só meninas que iam passear, mas também meninos.

        —  E aí?...

        —  Ela disse que era por isso mesmo.

        —  E que foi que vocês disseram?

        —  Dissemos que se ela estava com receio, então devia vir junto.

        —  Ela virá?

        —  Virá, Doutor! Amanhã ela vem, e no outro domingo vem a mãe de Hans, e depois a mãe de um outro, até todas as mães. Em seguida, começamos novamente com a mãe de Gerda.

        —  Vocês fizeram uma coisa ótima — elogiou o pedagogo. Olhou em torno.

        —  Há mais alguma coisa, além disso?

        —  Há, doutor! — A pequena Use, de tranças pretas, levantou-se. É agora, pensei.

        —  Que houve, Use?

        —  O senhor sabe o que se passou com Martin, não é?

        Martin fixou o olhar sobre a carteira. Estava terrivelmente envergonhado.

        —  Sim, Use, eu sei.

        — Conversamos com ele Doutor — disse a maravilhosa, adorável, grandiosa, inteligente pequena Use —, e ele nos prometeu que, de agora em diante, será bem comportado!

        Dizendo isso, sentou-se novamente. O Dr. Freund passou o lenço na testa.

        —  Agradeço a vocês — disse energicamente —, foi uma boa semana para nós todos.

        Use olhou Martin do outro lado. Ela sorria. Martin ruborizou-se. Então sorriu também. Começava sua primeira amizade.

       

        —  Venha comigo — falou o Dr. Freund quando, um pouco mais tarde, acabada a conferência das crianças, saímos para o corredor. — Preciso contar-lhe uma coisa! — Acompanhei-o; uma vez em sua sala, puxou a gaveta de baixo da grande escrivaninha. Dentro, havia uma garrafa de Steinhàger. Abriu-a, foi buscar dois copos e encheu-os.

        —  Beba comigo — disse ele contente.

        —  Com prazer.

        Bebemos. Completou os copos.

        —  Estou feliz — falou e sentou-se.

        —  Já notei.

        — Não queria dizer-lhe antes, porque não concerne ao senhor, em absoluto. Mas também não queria guardar só para mim, e de vez que o senhor manifestou algum interesse em meu trabalho...

        —  O senhor pode dizer! O que é? Curvou-se para frente e falou em tom feérico:

        —  Recebemos dinheiro!

        —  Dinheiro? — repeti estupefato. Desempenhava, pensei, otimamente o meu papel. — Que dinheiro? De onde? E quanto?

        —  Um total de setecentos mil xelins — falou num sussurro. E de onde? Não sabemos: de um "doador anônimo". Retirou, enternecido, os óculos e limpou-os. — Não pensei que ainda existisse uma coisa dessas.

        Meu coração batia forte, tive a impressão de que podiam ler facilmente em meu rosto de onde o dinheiro provinha. Mas continuei representando.

        —  Espere aí! — Franzi a testa. — Mas é uma quantia enorme!

        —  Exatamente!

        —  O senhor diz que um doador desconhecido remeteu-lhe setecentos mil xelins?

        —  É, Sr. Frank, exatamente! — Esvaziou seu copo de um só trago. Vi que transpirava. Acendeu um cigarro e fumou com nervosismo. — Nenhum de nós quis acreditar! Não conseguimos entender. Mas é isso mesmo, é a pura verdade.

        Fechei os olhos. Naquele instante morreria com prazer.

        —  Meus parabéns — falei, meio sufocado, após uma pausa. Estendi-lhe a mão. Apertou-a com força. Observei que não suava: chorava, algumas lágrimas desciam-lhe pelo rosto.

        —  Desculpe-me — disse e esfregou os olhos com a palma das mãos —, é tolice minha. É porque estou tão feliz!

        —  Entendo. E o que... que vai fazer com o dinheiro? Deu um sorriso largo.

        —  Construir o albergue, Sr. Frank! Logo depois do Natal o trabalho vai prosseguir! Na primavera estará concluído!

        —  Mas o dinheiro será suficiente?

        —  Claro que não! É quase suficiente. Recebemos adicionalmente um empréstimo... e aí a coisa vai progredir!

        —  Fico contente junto com o senhor — falei. Olhou para mim.

        —  Acredito, Sr. Frank — respondeu. — O senhor é um homem bom.

        A essas palavras, calamo-nos os dois. Um instante depois perguntou:

        —  E sabe o que ainda vamos fazer com o dinheiro?

        —  Não.

        —  Uma festa de Natal! — disse cheio de satisfação. — A maior e mais bonita festa de Natal que jamais houve nesta escola!

        E assim foi.

        Uma festa de Natal maravilhosa. Verdadeiramente celestial. Todos os pais e todas as crianças foram convidados. Os convidados sentavam-se em mesas compridas e cobertas de iguarias, no pavilhão de ginástica. Sobre um estrado erguia-se uma grande árvore de Natal iluminada com dezenas de velas. Na parede, por trás dela, uma faixa dizia com letras douradas: "Paz na Terra aos Homens de Boa-Vontade".

        Houve música. Houve bolos. Houve chocolates. Houve frutas. E houve presentes. Cada criança recebeu um saquinho de doces e balas, uma ficha para um par de sapatos e uma ficha para um vestido ou um terno. Houve lágrimas de alegria e risos, gritos e pequenos suspiros de contentamento. Os pais, sentados, em silêncio, entre as crianças, sorriam uns para os outros. As crianças representaram uma peça teatral: Naquela Noite era o título. Martin também participou. Usava uma longa barba branca e representava um dos três magos do Oriente. Quando a peça chegou ao fim, todos aplaudiram extasiados. E Martin não parava de se inclinar para agradecer. Ainda se curvava, quando os outros já haviam deixado o palco, permanecendo sozinho sobre ele.

        A seguir, todos cantamos "Noite Feliz". Depois um mágico entrou a tirar coelhos de um chapéu e ovos do nariz. As crianças riam. O mágico fez grande sucesso, quase não conseguiu parar de fazer suas proezas.

        Fiquei sentado em um canto, sentia-me muito cansado. Pensei em todas as pessoas que perdera no ano que chegava ao fim, e também no fato de que essa era a minha última festa de Natal. Minha cabeça doía ligeiramente, mas pela primeira vez senti a dor como algo quase agradável. Preencheu-me de uma profunda melancolia, satisfação: já nos conhecíamos bem, eu e a dor. Quando se tornasse mais grave, ao chegar em casa tomaria uma injeção e dormiria. Estava muito contente comigo mesmo, com tanta gente feliz à minha volta. O Dr. Freund proferiu um pequeno discurso quando a festa chegou ao fim e, em seguida, foi para a saída do pavilhão de ginástica e a cada um que passava por ele, a cada criança e a cada adulto, estendia sua mão. Houve quem a beijasse.

        Finalmente, foram-se todos. A árvore, com as luzes apagadas, ficou na sombra, a iluminação elétrica foi desligada, à exceção de uma lâmpada. Levantei-me e dirigi-me ao Dr. Freund.

        Ele esfregava as mãos.

        —  Linda noite, não é?

        —  Uma noite maravilhosa. A mais linda de todas.

        —  Venha, vamos embora.

        —  Doutor — falei —, o senhor tem um tempinho para mim?

        —  Claro, Sr. Frank. O que há?

        —  Gostaria de contar-lhe uma história.

        —  Uma história? Refere-se a Martin?

        —  Não — respondi —, refere-se a mim.

        Encarou-me longo tempo, examinando-me, a seguir fechou a porta da sala, e balançou a cabeça.

        —  É minha própria história — falei. — Sou um assassino.

       

        Contei-lhe tudo, ou quase tudo: silenciei o que fizera com o dinheiro roubado. Afirmei que ainda o tinha em meu poder, por receio de que, sabendo-o, não aceitasse, e devolvesse o dinheiro de seu albergue para as crianças. Mas, por outro lado, não houve nada que tivesse omitido, nada que tivesse atenuado ou simulado. Falei durante uma hora inteira. Estávamos sós, ninguém nos perturbou. Fôramos para seu escritório, mandara Martin para casa, e o Dr. Freund trancara a porta. Não me interrompeu nem um segundo, e não me olhou uma só vez. Fumava, e afastava de mim o olhar, para qualquer lugar, na escuridão de sua sala.

        Quanto mais falava, mais liberto me sentia. Não me importava o que ele fizesse a partir daquele momento, não me preocupava mais. Um grande e insuportável peso ia-se esvaindo de mim à medida que eu confessava meu crime, e minha fadiga intensificava-se cada vez mais. Falava como que automaticamente, tivera de calar-me durante longo tempo. As palavras formavam-se por si mesmas, não pensava mais em nada, nem no futuro, nem nas conseqüências. Sequer pensava em Martin. Enfim, dito tudo, levantei os olhos.

        O Dr. Freund acendeu outro cigarro e manteve-se calado. Olhei para ele, desviou-se de meu olhar.

        Fiquei esperando.

        Ele continuava em silêncio.

        —  Acabei — disse em voz alta. —Agora fale! Balançou a cabeça num lento movimento.

        —  Também sou apenas um homem, Sr. Frank. Não consigo falar. Que deveria dizer?

        —  O que devo fazer!

        —  Como me é possível?

        —  Ordene que eu faça alguma coisa, e obedecerei!

        — Não me permito ordenar-lhe fazer alguma coisa — estabeleceu. — E receio que minha ajuda lhe seja de muito pouca valia.

        —  Não vai denunciar-me?

        —  Não, Sr. Frank. — Então olhou-me com seriedade. — Minha profissão tem certa semelhança com a de um sacerdote. Também eu conheço o conceito do segredo profissional. Não me sinto convocado a denunciá-lo. Só quero aconselhá-lo a que o senhor mesmo o faça.

        Levantei-me.

        —  Esperava que o senhor o fizesse. Sou muito covarde. Não quero ser preso e expiar minha culpa, nestes últimos meses que ainda vou ter que viver.

        —  Não vê então? E o senhor espera que eu o denuncie? Talvez não devesse ter contado sua história.

        —  Não podia fazer outra coisa! Precisava ter alguém a quem contá-la, uma pessoa com quem pudesse conversar!

        —  Sr. Frank, o senhor está muito doente.

        —  É, eu sei.

        —  Não só fisicamente. Psiquicamente também. Seu cérebro funciona de forma equívoca. O senhor não pensa mais com precisão.

        —  O senhor achaque já estou demente?

        —  Receio que sim, Sr. Frank!

        —  Mas ainda me sinto muitíssimo normal! Não falo disparates, nem me comporto de forma estranha, chocante!

        —  O senhor está demente de outra forma, de uma forma que é mais perigosa, Sr. Frank. Os conceitos básicos da vida humana perderam o significado para o senhor. Não sabe mais o que é o bem e o que é o mai. Não sabe mais o que significa um ser humano e o que significa a morte.

        —  Sei muito bem — falei em voz baixa.

        —  O senhor acredita que sabe, Sr. Frank — retrucou no mesmo tom. — Prende-se ainda às palavras, porém não mais ao conteúdo delas. Sente arrependimento?

        Ponderei a esse respeito escrupulosamente.

        —  Não — disse, surpreendido com minha própria resposta.

        —  O senhor está vendo. — Fez um movimento de cabeça. — Sente medo?

        —  Não, doutor.

        —  Nenhum, mesmo?

        —  Não gostaria de acabar na prisão — falei. — Mas não tenho medo algum da prisão. Se o senhor me denunciasse não me importaria absolutamente. É antes comodismo do que medo aquilo que me inibe.

        —  E o senhor ainda ama alguém? Balancei a cabeça, afirmativamente.

        —  Sim — falei —, amo o senhor, Dr. Freund.

        Ficou em silêncio, levantou-se e encaminhou-se até o rádio, que, distraído, ligou. Um breve momento depois, ouviram-se canções natalinas, bem baixinho.

        —  E se lhe pedisse para o senhor mesmo se denunciar?

        —  Eu lhe prometeria. Mas receio que, no final, não iria fazê-lo. Certa vez tive a oportunidade. E não consegui.

        —  Sim — foi só o que disse e aproximou-se da janela.

        ''Es it ein Ros entsprungen aus einer Wurzel zart''

             1 — cantavam vozes infantis.

        Voltou-me as costas, continuando a falar.

        —  Estou tão indeciso quanto o senhor. Sempre pensei que podia ajudar todas as pessoas. Superestimei minhas capacidades. Não sei de conselho algum que lhe possa dar. — De repente virou-se e olhou para mim, meio assustado. — Meu Deus do céu, mas precisamos fazer alguma coisa! Não posso deixá-lo ir! O senhor está doente! O senhor é um perigo para os que o cercam!

        —  Não sou mais.

        —  Qualquer homem doente é um perigo para o meio em que vive — disse ele. — O senhor também. Não sabe. Mas o senhor é um perigo.

        Fitou-me fixamente.

        —  Doutor — falei —, preciso fazer-lhe mais uma confissão.

        —  Não! — gritou rápido.

        —  Sim, preciso fazer. Não tenha medo, não é pavorosa. Acredito que de fato meu cérebro não está mais normal. Associei à minha confissão um propósito. Esperava que o senhor não poderia dar-me conselho. Esperava que reconhecesse que não significo um perigo para outras pessoas e que não pudessem mais deixar-me sozinho.

        Veio devagar em minha direção, em seus olhos reluzia a perplexidade.

        —  O senhor quer dizer...?

        Assenti com um movimento de cabeça.

        —  Tive receio de que o senhor fosse recusar meu pedido. Agora estou vendo que não fará isso. Não posso mais ficar sozinho. Quero morrer aqui, na escola. Não quero nunca mais sair daqui. Quero ficar com o senhor, doutor! Exclusivamente com o senhor. Posso vir junto com Martin?

        Ficou calado longo tempo.

        Depois, a voz rouca, taciturna, falou:

        —  Pode.

        —  Aleluia! — bradaram em júbilo vozes de anjos vindas do céu.

       

        Era o mês de janeiro; lá fora, adiante da janela, a neve caía, quando comecei a escrever esta história. Agora, estamos em março, e a neve já derreteu. A primavera chega cedo este ano. No jardim da escola já florescem o açafrão e a prímula, e os arbustos estão carregados de grandes botões. Fui muito ativo nestes três últimos meses. Produzi uma boa parcela de trabalho, embora mais recentemente me custasse muito trabalhar. As dores surgem com mais freqüência, a respiração torna-se mais penosa, não creio que vá ver o verão, apesar de que gostaria muito: em julho, segundo se calcula, o albergue das crianças em Neustift am Walde ficará pronto e os primeiros hóspedes se transferirão para lá. Martin deverá estar entre eles, prometeu-me o Dr. Freund. (Ele continua ignorando que o albergue foi construído com meu dinheiro roubado. Disse-lhe que o legaria, em testamento, ao banco em Munique.) Sinto júbilo com o fato de que a obra já fez grandes progressos. Agora nada mais poderá acontecer. O dinheiro está irremediavelmente investido em janelas, portas, paredes, muros, móveis, tapetes e fogões. Mesmo que demolissem a casa, nada se recuperaria. Na semana passada o telhado ficou pronto. O Dr. Freund levou-me para fora e olhamos para o multicolorido mastro na cumeeira, percorremos todos os quartos e salas, e bebemos vinho com os operários. Foi um belo dia.

        Vivo uma vida regular. Martin mora no quarto ao lado, continua muito formal e apresenta um estado uniforme de desinteresse com relação a mim; contudo, aprende suas lições com relativa facilidade e não dá motivo para queixas. Aguardamos sua próxima recaída. Antes, aceitou com entusiasmo minha sugestão de mudar-se. Fomos para nosso apartamento escolar em 26 de dezembro. Trouxemos pouca bagagem. À Reisnerstrasse só voltei duas vezes mais. Também, para que mais?

        O Dr. Freund explica nossa presença na escola diante de seus colaboradores e superiores declarando que deseja manter perto de si, por algum tempo, pai e filho (disse "por algum-tempo", pois não poderá durar eternamente, sinto que tudo se aproxima do fim), isso para que possa mais rapidamente e com mais facilidade agir sobre Martin, mediante nosso contato íntimo. Sou muito discreto e nenhum estorvo para ninguém. O mais das vezes faço as refeições num pequeno bar das proximidades, onde motoristas de táxi, condutores de bondes e operários se relacionam; Martin come na escola. Ele já sabe cozinhar bem.

        Habitualmente escrevia, nas últimas semanas, mais ou menos das nove ao meio-dia e, depois, à tarde, voltava a escrever das três até as sete horas. Quando não me sentia bem, escrevia na cama. Não passava um dia que não tivesse escrito alguma coisa. No início, mencionei que a idéia efetiva de fazer estes apontamentos partira do Dr. Freund. Deu-me essa sugestão na noite de Ano Novo, quando tomávamos juntos uma garrafa de vinho.

        —  O senhor acha — disse-lhe na ocasião — que todos os criminosos se vêem compelidos a contar seus delitos, gabar-se deles, ou então denunciar-se a si próprios pelo que cometeram?

        Balançou a cabeça, corroborando.

        —  Essa compulsão de falar sobre coisas que nos emocionam ou abalam apossa-se, indistintamente, de criminosos e de santos. Não só o Dr. Crippen viu-se compelido a voltar ao cenário de seu assassínio, também São João e São Mateus viram-se como que obrigados a escrever seus Evangelhos.

        —  Não sou um santo.

        —  Absolutamente — disse ele —, mas o senhor é um escritor. Sempre desejou escrever um livro e jamais o fez. Escreva-o agora. É a sua última oportunidade.

        Comecei a escrever. Tornei-me mais tranqüilo, perdi minha espantosa inquietude e minha interminável carência de comunicar-me com os outros. Se não tivesse escrito esta confissão, talvez, afinal de contas, ainda tivesse ido à polícia e me denunciado. O Dr. Freund aparecia regularmente para visitar-me e perguntava-me sobre o progresso do trabalho. Nunca me pediu para ler uma página sequer. E para quê? Conhece a minha história, e seu tempo é exíguo. Não sei exatamente o que farei com o manuscrito, caso o termine. Nem sequer sei se vou terminá-lo. Tornou-se uma espécie de diário para mim, não gostaria de separar-me dele.

        De Vilma recebi um postal de Düsseldorf, onde está em turnê. "Estou chorando", assim estava escrito no postal. Não respondi. Não sabia o que deveria responder, refleti longo tempo sobre isso. Contudo mai consigo lembrar-me de Vilma com nitidez. Já se passou tanto tempo e esqueço com facilidade rostos e acontecimentos.

        Por outro lado, de minhas amizades anteriores restou apenas o Sr. Hohenberg. Vem aqui amiúde para visitar-me. Jantamos juntos no pequeno bar, à tardinha e, às vezes, depois, sobe até meu quarto, onde jogamos uma partida de xadrez ou conversamos sobre seu filho. Ele está melhor. Jamais vi o menino, mas, pela descrição de Hohenberg, posso imaginar bem como é.

        Alegra-me que Dr. Freund também o esteja ajudando. Hohenberg tornou-se algo assim como um amigo meu.

        As dores estão voltando.

        Uma felicidade existir a morfina.

       

         21 de março.

        Há cerca de uma semana atrás, um novato entrou para a classe de Martin. Chama-se Adam e é débil mental de uma natureza específica: não fala com ninguém. Ou, pelo menos, não falava com ninguém há uma semana atrás. O Dr. Freund já o conhecia, há meses, de seu consultório e, no final, quando ninguém mais quis ficar com ele, trouxe-o para a escola. Aqui, no princípio, nem mesmo ajudou um tratamento de choque, como aquele outrora tão cuidadosamente preparado para Martin. Adam continuava mudo.

        O Dr. Freund conversou com a mãe, totalmente desesperada.

        —  E, no entanto, é uma criança tão boa, doutor! Antes, ainda há um ano atrás, só tivemos alegria com ele! Tinha tanto talento para a música! Acredite ou não, mas com cinco anos já sabia tocar saxofone!

        —  Ah! — exclamou o Dr. Freund. (Mais tarde contou-me a história.)— Então ele tem um?

        —  Tem, compramos para ele um instrumento, porque o desejava muito. Agora o perdemos, e mesmo assim não teria mais nenhum sentido, pois nosso filho não toca mais.

        —  O que ele mais gostava de tocar?

        —  Uma música americana — disse a mãe. — Jazz, sabe? Mas como se chamava? Não consigo mais lembrar-me do título. Meu marido sem dúvida ainda se lembra!

        —  Pergunte a ele — disse o Dr. Freund.

        Ela perguntou.  A  canção chamava-se Sentimental Journey. O Dr. Freund foi até a cidade e comprou um saxofone. Deu-o à mãe de Adam.

        —  Coloque-o hoje de noite sobre o travesseiro dele — falou — e amanhã conte-me o que aconteceu.

        Não aconteceu nada, assim informou a mãe no dia seguinte. Adam viu o saxofone, pegou nele, contemplou-o ligeiramente e deixou-o de lado.

        —  Hum — fez o Dr. Freund.

        Durante quase meio dia telefonou várias vezes até que encontrou um colega que tocava saxofone. Pediu ao colega para conseguir para si um tempo livre à noite. Às oito horas os dois entraram no pátio da casa onde Adam morava e o colega do Dr. Freund começou a tocar em seu saxofone Sentimental Journey, para grande incômodo dos outros moradores.

        Tocava alto, tirando um lindo som.

        Adam estava no quarto. O saxofone ao seu lado. Adam não se mexeu.

        —  Hum — articulou o Dr. Freund. Em seguida, foi para casa. No dia seguinte voltou a chamar seu colega para vê-lo.

        —  Preste atenção — falou —, refleti de novo sobre a situação. Começamos errado. Adam sem dúvida é uma criança dotada de grande talento musical. Até agora você tocou Sentimental Journey perfeitamente. Agora toque uma vez a passagem do blues, mas proposital-mente errado. Você me entende?

        —  Lógico — respondeu o colega.

        Naquela noite estavam novamente no pátio, e Adam também em seu quarto. O colega do Dr. Freund começou a tocar com muito sentimento. A passagem do blues, propositalmente, foi executada de modo precipitado. O Dr. Freund susteve a respiração. E imediatamente, ao mesmo tempo, do quarto de Adam, ouviu-se o som de um saxofone. Adam tocava. E tocava certo! Estava corrigindo o colega do Dr. Freund. Tocava a passagem do blues como convinha à música. E na manhã do dia seguinte, Adam, pela primeira vez depois de muitas semanas, respondeu a uma pergunta que a professora lhe fez.

       

         27 de março

         O Dr. Freund disse:

        — A desgraça de nosso tempo é que os homens não são mais capazes de pensar corretamente. Ficam confundidos com os milhares de ismos, perturbados pelo terror do Estado totalitário e pelo fracasso total do sistema social capitalista obsoleto. Vemos aqui violência e horror, ali estupidez e imprudência. Como então podem os homens ainda pensar direito? Precisam raciocinar de maneira errada. Com conceitos falsos e segundo normas falsas. Precisam confundir brutalidade com heroísmo, a força autoritária com liberdade, insensatez com progresso e técnica com gênio. Precisam acreditar que o amor, a bondade, o saber perdoar e o humor são conceitos antiquados; desiludidos por vezes incontáveis, têm de perder a crença no bem e na vida. Precisam tornar-se cínicos e rudes, desesperançosos e desesperados. Do homem sem amor estende-se um caminho direto para o homem sem apoio e sem equilíbrio, para o homem sem fé, para o homem sem força. Sr. Frank, se o senhor tivesse tido alguma coisa em que acreditar, algo que pudesse amar, em que pudesse amparar-se, não se teria tornado um assassino. Seu cérebro doente é, na realidade, apenas um caso típico do cérebro doente de nosso mundo. Seu crime não é um crime comum, encarando-o como tal. Seu crime é uma metáfora.

       

         2 de abril

         O Dr. Freund disse:

        — Logrei obter a exata impressão de que a psique humana não tolera uma submissão constante. Não às leis da natureza, que ela visa a suplantar mediante astúcia e autoridade, não no amor e na amizade e, menos do que tudo, na educação. Nessa contenda para ser livre, autônomo, e estar em cima, emerge visivelmente uma parte daquele impulso de prepotência e poder que movimenta para frente toda a humanidade. Os próprios devotos e santos tiveram suas horas de revolta interior, e a persistente e humilhante adoração das forças da natureza só durou até certo tempo, até que o homem arrebatou o raio das mãos de Deus.

        Esta a razão por que não podemos conjugar esse instinto em direção ao alto com uma pressão exercida para baixo. Por isso não podemos pagar ódio com ódio, por isso devemos pagar o ódio com o amor. Não podemos, se lidamos com aço, fazer com que de novo o aço atue sobre o aço; devemos, outrossim, recorrer à cera. Precisamos aprender a ser tolerantes, generosos, amáveis e solícitos numa época de intolerância, de frio autoritarismo, de cólera e de rejeição. E, como ocorre numa criancinha, então iremos, suscitar no indivíduo, automaticamente, aquela contra-reação, que almejamos. Somente assim o mundo deverá ser ajudado. E nós o ajudamos da melhor maneira ocupando-nos de suas crianças. Pois aos adultos pertencem o presente e o passado. Às crianças, porém, aos adultos de amanhã, pertence o futuro. Hoje vocifera ainda'a luta pela liberdade de espírito, hoje todos nós ainda sacudimos as grades da superstição e do preconceito — amanhã nossas crianças irão ufanar-se na luz amena da liberdade, e, despreocupadas face às ameaças de modernos modos de pensar, beberão das fontes da amizade. Se hoje assistimos à queda daquilo que é antiquado e podre, haveremos, contudo, de nos comprometer a ajudar, de forma previamente planejada, a preparação daquela força do genuíno sentimento de humanidade, diante da qual todo terror e todas as mentiras se desfazem. Nossas crianças deverão desfrutar, daquilo por que ainda estamos lutando: ar, luz, alimento em abundância, moradias saudáveis, salário suficiente, trabalho digno e honesto, um conhecimento e uma libertação genuínos da penúria e da desconfiança. Nossa luta é a saúde delas. E nossa vida deverá ser a paz para elas.

       

         7 de abril

        Estou muito agitado escrevendo estas palavras, tentando relatar um acontecimento que abalou profundamente tanto a mim como ao Dr. Freund. Acho que nestas páginas já mencionei Adam, o pobre débil mental, que vai para a classe de Martin e lentamente recomeça a aprender a falar, depois que o Dr. Freund foi bem sucedido em sua experiência com o saxofone.

        Para melhor compreensão do que se segue, devo adiantar ainda, que recentemente Martin tem tido grandes dificuldades em ortografia. Em aritmética é bom, como sempre, mas caiu muito em ortografia. Por isso, o Dr. Freund mandou chamá-lo ao gabinete da diretoria, para falar com ele. Cheguei depois que ele já havia entrado.

        —  Muito bem, Martin — falou o Dr. Freund. — Ótimo que tenha vindo logo. Gostaria de conversar um pouco com você.

        Martin balançou a cabeça, meio vexado.

        —  Você já sabe do que se trata?

        —  Não, Doutor.

        O Dr. Freund inclinou-se para diante.

        —  Ouça, a professora contou-me uma coisa boa sobre você. Faz idéia do que seja?

        —  Provavelmente que voltei a ficar pior.

        —  Mas, Martin! — O Dr. Freund sacudiu a cabeça, com estupefação. — Disse-lhe que ela me contou uma coisa boa sobre você. É coisa boa você ter ficado pior?

        — Não.

        —  Pois então. Logo não pode ter sido isso. Não se recorda em absoluto? Na aula de história natural...

        Martin sacudiu a cabeça. Não fazia nenhuma idéia. (Aliás não poderia, pois o que o Dr. Freund estava dizendo a ele, acabara de inventar de sua imaginação. Sua intenção era advertir Martin por causa de seu baixo rendimento em ortografia. Estava apenas fazendo um pequeno rodeio.)

        —  Pois se não sabe, tenho de dizer-lhe; a professora disse-me que você prestou muito bem atenção na aula de história natural, e comportou-se muito bem.

        Martin ficou espantado. Ao entrar, estava convencido de que receberia uma repreensão. E agora recebe um elogio? Deu um sorriso forçado.

        —  Então isso não o surpreendeu absolutamente, não foi?

        —  Não. — O sorriso amarelo ficou mais largo.

        —  Mas a nós surpreendeu, Martin! Você mesmo não nota mais nada quando se comporta bem e presta atenção, já é totalmente natural para você. E por que você recebe isso assim com a maior naturalidade?

        —  Porque agora é diferente!

        —  O que é diferente, agora?

        — Tudo! — Ele mudara mesmo.

        —  Certo, Martin, certo! — O Dr. Freund segurou as mãos do menino nas suas, balançou-se para frente e para trás, como numa cadeira de balanço, e o que perguntou soou como o texto de uma ladainha, que proferira cem mil vezes, que era o seu Credo, o primeiro que ensinava a todas as crianças, a fim de que elas jamais pudessem esquecer!

        —  E que foi que mudou? Unicamente quem é que pode mudar? Quem foi o único em todo o mundo capaz disso?

        —  Eu mesmo — falou Martin. O Dr. Freund soltou-o.

        —  Muito bem, Martin, bom... Se você agora já está bem em história natural, e em aritmética creio que também, não é?, não existe talvez alguma matéria na qual você ainda não esteja de todo tão bem assim?

        Agora chegara lá. Mas Martin não notou. Mediante o pequeno rodeio do Dr. Freund, ficou seguro, ingênuo e sincero, por completo. Ele próprio admitiu o que quisera omitir:

        —  Já que está me perguntando, Sr. Diretor, não vou muito bem em ortografia.

        —  Calma... então... em ortografia. Você... mas fico admirado com você. Sobre isso o professor não me disse nada, absolutamente nada.

        —  Não? — Martin levantou os olhos, surpreso.

        —  Não, nenhuma palavra. Sabe, só existe uma explicação para isso: o professor ainda não notou que você não está bem. Do contrário, sem dúvida ele já teria falado comigo. — O Dr. Freund de repente começou a rir. — Neste momento me veio à cabeça uma coisa muito engraçada, Martin! Digo o que foi?

        —  Sim, diga.

        —  Pois bem, preste atenção: se você, por exemplo, agora estudasse com assiduidade, bem rápido e em segredo, dentro de uma ou duas semanas voltaria a estar melhor na matéria, não é mesmo? E se começar com habilidade suficiente, o professor não notará nada nas duas semanas, e quando for examiná-lo, você já estará sabendo tudo, receberá uma boa nota, como em história natural, e aí ele vai chegar e dizer: o Martin é excelente em minha matéria! Seria uma graça, não? O professor jamais saberia o que somente nós dois sabemos: que você, por um período não andou tão excelente assim na matéria dele!

        Agora Martin também ria.

        —  Claro, é bem engraçado, Doutor!

        —  E então, o que você vai fazer?

        —  Estudar, doutor!

        —  Isso é o que precisa. Você, somente. Ninguém poderá ajudá-lo. Pude dar-lhe a idéia. Mas melhorar em ortografia... somente quem é que vai poder?

        —  Só eu, mais ninguém, doutor.

        —  Portanto estamos falados. Agora volte para a sala de aula... e conte-me sem demora, depois de duas semanas, como foi na prova!

        Martin balançou a cabeça, aquiescendo. Dirigiu-se até a porta, voltou-se e disse:

        —  Doutor?

        —  Sim?

        —  O Albert está aqui fora. Ele pode entrar por um momento? O Dr. Freund ficou surpreso.

        —  Como, o Albert está aí fora?

        —  Trouxe-o comigo — disse o meu filho. — Pensamos numa coisa que gostaríamos de contar ao senhor.

       

        E ali estavam ele, diante da grande escrivaninha: Martin, o porta-voz, e ao seu lado, ruborizado no rosto, pisando encabulado ora sobre um ora sobre o outro pé, resmungando, rindo embaraçado, tossindo de leve e nervoso, Albert.

        —  Trata-se do Adam, Doutor.

        —  Haha! — Albert confirmou.           

        —  Bem, o que se passa com Adam? — O próprio Dr. Freund estava nervoso. Curvou-se para frente. O telefone tocou. Apanhou o fone, disse secamente: — Agora não! —, e pôs o fone sobre a mesa.

        —  Pois é, o senhor sabe, Doutor, Adam é péssimo em aritmética. — Era Martin que falava, Martin, meu filho, expulso de quatro escolas e considerado "insuportável", e o que estava ao seu lado, era anormal. — Adam é um pobre garoto, Doutor! A professora explicou-nos direitinho. Por muito tempo esteve gravemente doente, e agora finalmente está ficando melhor, com mais saúde. Ele ainda está muito fraco, e nem tudo está funcionando tão bem com ele, como com Albert ou comigo.

        —  Haha — fez Albert, com quem nem tudo ainda funcionava bem.

        —  Vejamos, então, o que se passa com a aritmética?

        —  Sempre a mesma coisa, Doutor! Quando a professora chama o Adam, ele fica tão nervoso que é incapaz de responder a uma pergunta. — Mas por que ele fica nervoso?

        —  Porque na sala há uns idiotas que ficam sempre rindo quando ele é chamado!

        —  Sempre rindo — ressoou rouca a voz de Albert.

        —  Quantos são os que ficam rindo? — perguntou o Dr. Freund.

        —  Deixe-me ver, de uns seis a doze, varia. De qualquer jeito, são muitos. Mais do que Albert e eu, juntos, seríamos capazes de bater. Já pensamos nisso... mas não ia adiantar.

        —  Adiantar — repetiu Albert num grasnido e deu um salto para o alto —, adiantar, haha!

        Levantei-me e aproximei-me. Senti que ali algo formidável se preparava para emergir, algo que comoveria o próprio Dr. Freund, que escutava tantos fatos e coisas formidáveis.

        —  O Albert e eu, Doutor, agora que nos sentamos um ao lado do outro, já conversamos muitas vezes sobre o Adam. Conhecemos bem ele, pois ele...

        —  ... senta na nossa frente, é! —falou Albert.

        —  E aí nós o vemos escrever, não?

        —  Sim — disse o Dr. Freund em voz baixa.

        —  E o Albert e eu, nós achamos que, às vezes, de fato o Adam sabe muito bem a resposta antes da professora dizer seu nome na chamada. Mas então vêm os risos estúpidos. Aí ele fica tão magoado que depois não sabe mais responder.

        —  Riso estúpido, riso estúpido! — articulou Albert em tom de censura.

        —  A situação agora ficou tão ruim que o Adam sente medo do riso dos outros, mesmo antes da professora chamá-lo. Agora o Adam já fica com medo a aula inteira, Doutor! Se isso continuar assim os doze idiotas, no final, vão ser culpados pelo que acontecer com ele! Pois ele não consegue mais pensar direito, se é ele ou não que está sendo chamado.

        —  E, é uma história desagradável a que vocês estão me contando — falou o Dr. Freund. — E claro que não vai continuar assim. Precisamos imaginar alguma coisa para ajudar o pobre do Adam, não é mesmo?

        —  Já fizemos, já fizemos — explicou Albert.

        —  Que fizeram? — perguntou o Dr. Freund em voz baixa. Segurava um cigarro na mão, mas se esquecera completamente de acendê-lo.

        —  Já imaginamos o que fazer, Doutor — disse Martin. — E queríamos perguntar ao senhor se nós inventamos uma coisa correta e se podemos pô-la em prática.

        —  Vamos ver, contem como é:

        —  É muito simples, Doutor: Como já disse, não podemos bater naqueles que riem. São muitos para nós. E conversar com eles não vai adiantar porque são uns idiotas. Portanto, pensamos que vamos precisar de fazer alguma coisa, embora os idiotas riam. Precisamos fazer alguma coisa para que o Adam, se rirem de novo daquela maneira, dê uma resposta certa!

        —  Nossa! — Os olhos do Dr. Freund iluminaram-se. — Vocês tiveram essa idéia?

        —  Foi, Doutor! O Albert e eu! Mas o senhor entende o que estamos dizendo com isso, não?

        —  Entendo vocês muito bem! A opinião de vocês é a seguinte: se o Adam responder certo, embora os idiotas riam, na próxima vez então ele não terá mais nenhum medo dos risos...

        —  Nenhum medo talvez ainda não, mas o certo é que muito menos medo.

        —  Menos medo, menos medo — aquiesceu Albert com um movimento de cabeça e bateu palmas.

        —  E de que modo vocês querem executar isso?

        —  É — disse Martin, preocupado —, só vai funcionar, naturalmente, se o senhor falar com a professora e se ela concordar e participar. Estamos sentados atrás do Adam. Se a professora, antes da aula, dissesse para nós que perguntas ela vai fazer ao Adam, então podíamos, eu e o Albert, escrever a resposta num pedaço de papel. E quando ela for mesmo perguntar a ele, e ele se levantar, e os outros começarem a rir, eu passo o papel para a frente, para ele, e basta apenas ele ler a resposta certa.

        —  Claro, sem notar! — avisou Albert.

        —  Ele quer dizer que a professora, lógico, não poderá notar que ele está com um papel! Ela deve fingir que fica muito contente com a resposta certa, e deve elogiar o Adam.

        —  Compreendo — disse o Dr. Freund, baixinho. — E a aula seguinte vocês provavelmente iriam fazer isso novamente, e depois repetir mais uma vez... até que os idiotas não encontrem mais motivo para rir.

        —  E isso, Doutor. — Martin balançou a cabeça prontamente.

        —  E quando eles deixarem de rir, também não precisamos mais dizer para ele, pois aí ele mesmo já estará sabendo as respostas certas!

        — Olhou para o Dr. Freund, cheio de expectativa. — É uma idéia boa?

        Este levantou-se e estendeu feericamente a mão para ambos:

        —  Amigos — exclamou —, está é a melhor idéia que já ouvi de dois jovens! E olhem que já escutei as idéias de muitos jovens! Dou-lhes meus parabéns! No intervalo mandem sua professora vir falar comigo, vou conversar com ela, e ela então vai preparar tudo com vocês dois. Mas não deixem que notem nada do que farão. É um segredo entre nós, não é mesmo? Ninguém poderá saber nada sobre isso!

        Martin ficou radiante.

        —  Obrigado, Doutor! Até logo, Doutor! — E lançando um olhar para mim, perpassando-me de leve, distante: — Até logo, meu pai! — Segurou a mão de Albert. — Venha — falou. — Agora vamos: — E juntos deixaram a sala.

        Olhei para o Dr. Freund. Enternecido, tirou os óculos e limpou-os.

        —  É para tais momentos — sentenciou — que se vive. Estes momentos... — Recolocou os óculos, tossiu de leve e finalmente acendeu o cigarro. — Veja só, as coisas são assim: os frágeis ajudam os doentes; os pobres, os mais pobres. Não são os poderosos que acharão a solução, mas os desamparados; nem os fortes conhecem o segredo da recuperação, mas os fracos. Um desajustado anti-social e uma vítima de cretinismo associam-se para ajudar um outro igual. É o que se passa na escola. E assim será por toda parte, no mundo inteiro. Os destituídos de direito e os traídos, os desesperançados, desprezados e oprimidos apoiarão um ao outro, fortalecerão e salvarão um ao outro. Certa vez li um poema. Anotei um dos versos. Dizia: "Covarde, tome a mão de um covarde..." Este é o começo. Assim, a situação se tornará melhor, de dia para dia. — Olhou-me. — Que está havendo? O senhor não diz nada!

        —  Provavelmente o senhor não escutou — retruquei em surdina.

        — Mas Martin, há pouco... ele hoje...

        —  Que foi que ele fez?

        —  Pela primeira vez ele me chamou de pai — disse-lhe num murmúrio.

       

        Quando iniciei estas anotações, disse que seriam a história de um erro. Hoje à noite, 7 de abril, escrevendo estas linhas, reconheço, repleto de felicidade, que ainda me fora concedido examinar meu erro e reconhecê-lo. Há poucos momentos telefonei para Hohenberg, ele prometeu passar por aqui ainda, depois do jantar. Preciso contar-lhe a história de Martin e Albert, pois ela me emociona profundamente. Que bom que ainda possa desfrutá-la com outros, participar dela, que ainda serei testemunha da experiência com Adam, o débil mental.

        Quero firmar nestas páginas, conscientemente, tudo a respeito do caso, a partir de agora quero, a cada dia, e em todos os seus pormenores, relatar o que vai acontecer proximamente. Absolutamente não posso esperar conhecer mais coisas, vivenciar mais fatos. Talvez não chegue mais a ver o progresso definitivo, a mudança final para o bem. Sei que não vou viver por muito tempo. Ainda escuto a voz do especialista de Munique em meus ouvidos:

        — Quando o paciente tem sorte, a morte o alcança em júbilo celestial, entre um segundo e outro, no meio de um passo que dá, no meio de uma frase que está dizendo, no meio de uma palavra que está escrevendo.

        Embora a morte me surpreenda aqui e agora, e no meio de uma palavra que esteja escrevendo, eu estou feliz. A semente foi plantada. Os frutos hão de crescer. Não é necessário que os veja maduros. Sei que amadurecerão. Sob esse aspecto, minha vida corrupta sequer terá sido em vão, assim como também não fui uma'semente sem vida. Encontrei Martin e levei-o ao Dr. Freund e, depois, coloquei-o em condições de ajudar Adam. A progressão dos grãos de mostarda, da qual certa vez o Dr. Freund falou, já começou. Era um... e agora já são três. Se algum dia Adam ajudar um quarto, logo serão oito e, depois, dezesseis, e depois trinta e dois... e então milhões...

        Não pensei que ainda fosse encontrar tranqüilidade. Encontrei-a. Não pensei que fosse ser feliz uma vez mais. Sou feliz. Vivi em meio ao ódio, e não no amor. O ódio é a morte. O amor é a vida. Agora, não quero mais odiar. Agora quero finalmente repou...

       

         Declaração:

        Certifico, na data de hoje, 7 de abril de 1952, haver recebido do Dr. Alexander Freund o manuscrito anexo de James Elroy Chandler, aliás Walter Frank. O manuscrito deve ser interpretado como confissão do falecido e será remetido à Delegacia de Polícia Criminal de Munique para elucidação final do caso.

         Robert Hohenberg

        Inspetor de Polícia

 

                                                                                            J. M. Simmel

 

                      

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