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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ONDE ESTÁ O PAI / Rex Stout
ONDE ESTÁ O PAI / Rex Stout

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ONDE ESTÁ O PAI

 

Acontece uma ou duas vezes por semana. Lily Rowan e eu, ao regressarmos de uma festa ou de um jogo de hóquei, saímos do elevador e, quando nos aproximamos da porta de seu apartamento no edifício situado na 63rd Street, entre a Madison e a Park Avenue-, surge a inevitável questão. De minha parte, penso: “Devo aguardar e deixá-la tomar a iniciativa?”. Lily, por seu lado, se pergunta intimamente se deve aguardar e me deixar tomar a iniciativa. Nunca falamos no assunto, que acaba sempre por ser resolvido da mesma maneira. Quando ela tira as chaves da carteira, me sorri, o que significa o seguinte: “Sim, tens uma chave, mas a casa é minha.” Eu retribuo o sorriso e sigo-a. E é através desse silêncio que sei que a minha chave é para ser utilizada apenas em ocasiões muito especiais.

 

Naquela tarde de quinta-feira, em pleno agosto, tínhamos ido até ao Shea Stadium para assistir ao jogo entre os Mets e os Giants, em que os primeiros venceram, por 8 a 3. Passavam apenas vinte minutos das cinco quando Lily tirou a chave da carteira. Uma vez no apartamento, chamou Mimi, a criada, para lhe dizer que já estava de regresso. Depois, foi ao banheiro, enquanto eu avancei para o bar da grande sala de estar a fim de preparar um gin com gelo e uma água tônica. Lily já estava no terraço, sentada numa cadeira, estudando o cartão de registro dos resultados do jogo, quando atravessei a porta, com a bandeja.

 

—        Sim, senhor... Comentou. — Harrelson marcou três vezes e rebateu a bola três vezes. Se estivesse aqui, agora, juro que o abraçava.

—        Pois folgo muito em saber que não está, retorqui, ao me sentar ao lado de Lily, — Porque, se abraçasse aquele tipo, era capaz de ficar com uma costela quebrada...

—        Miss Rowan, já vou, anunciou uma voz, nesse instante.

 

Viramo-nos. A jovem que estava à soleira da porta tinha chegado ao apartamento, há pouco. Vira-a duas vezes, se tanto. Era uma moça atraente, com as curvas nos lugares certos e uma pele morena, que condizia, à perfeição, com os olhos castanhos. Usava o cabelo, que era do mesmo tom dos olhos, preso. Atendia pelo nome de Amy Denovo e se licenciara pela Smith em junho. Lily contratara-a, há dez dias, por cem dólares semanais, para que a jovem a ajudasse a recolher material suficiente sobre o falecido Mr. Rowan, que erigira uma série de arranha-céus e outras edificações e deixara dinheiro suficiente à filha para esta ser proprietária de uma dúzia de apartamentos, um pouco por todo o lado. Ao que parecia, havia um homem que estava interessado em escrever uma biografia sobre o velho Rowan. A jovem respondeu a umas perguntas que Lily lhe fez e, depois, saiu.

 

Retomamos a nossa conversa acerca do beisebol, nos concentrando nos trunfos que os Mets tinham, para além de Tommy Davis, Bud Harrelson e Tom Seaver, e no que poderiam alcançar, se vivêssemos o suficiente para presenciar tal coisa. Às seis, me despedi, para deixar Lily mudar de roupa, uma vez que tinha um jantar, onde um grupo de pessoas ia tentar abolir as favelas com discursos acalorados. Pela minha parte, também tinha um compromisso naquela noite, para mais tarde; ia procurar diminuir a “fortuna” de alguns amigos, sacando um segundo ás ou, talvez, um valete.

 

Contudo, no átrio de entrada, fui interceptado. Albert, o porteiro, já tinha aberto a porta para me deixar sair, quando uma voz me chamou pelo nome. Virei-me. Amy Denovo estava sentada numa cadeira. Levantou-se e avançou para mim. Sorriu timidamente e exclamou:

 

—        Poderia me conceder alguns minutos? Gostaria de lhe fazer uma pergunta...

—        Com certeza. Faça favor de dizer... Retorqui.

 

A jovem olhou de soslaio para Albert, que compreendeu imediatamente e saiu para a rua. Fomos nos sentar num dos bancos do átrio, mas, nesse instante, um casal entrou e se dirigiu ao elevador.

 

—        Estamos num local algo público, não concorda? Exclamou Amy Denovo. — Pedi-lhe apenas alguns minutos, mas suponho que... Bem, é capaz de demorar mais, isto, se o senhor puder, claro. É que... Trata-se de um assunto íntimo... Eu ainda não reparara nas covinhas do seu rosto.

—        Deve ter vinte e dois anos, não é verdade? Perguntei. Amy Denovo acenou afirmativamente.

—        Sendo assim, talvez baste um minuto. Não case com ele agora. É muito nova para saber se está fazendo a coisa certa. Aguarde, pelo menos, um ano, e...

—        Oh, não se trata disso! É realmente um assunto deveras íntimo.

—        E o que a leva a pensar que o casamento não o é? Aí reside o problema. Bem, se quer que lhe conceda algumas horas do meu tempo, então, lamento muito, mas tenho um compromisso, às oito. No entanto, há um bar, mesmo ao virar da esquina, onde fazem uns sanduíches de ovo com anchovas muito saborosos. Gosta de anchovas?

—        Por acaso, gosto.

 

A porta da rua tornou a se abrir e duas mulheres entraram. Amy Denovo tinha razão: de fato, não era o local mais indicado para se falar de assuntos pessoais. Àquela hora, em pleno mês de agosto, o THE COOLER estava vazio. Escolhemos a mesa do canto, onde Lily e eu costumávamos ficar, quando não tínhamos muita fome. A empregada anotou o nosso pedido e se afastou; então perguntei a Amy Denovo se não seria melhor ela comer qualquer coisa antes de desabafar comigo. Contudo, a jovem meneou a cabeça.

 

—        É melhor ir diretamente ao assunto... Não terminou a frase. Manteve-a em suspenso, durante alguns segundos, e, depois, declarou, de rompante: — Quero que o senhor encontre o meu pai. Ergui as sobrancelhas.

—        Porquê? Perdeu-o?

—        Não, porque nunca tive pai. Disse isto atabalhoadamente, como se receasse que alguém a interrompesse. — Decidi que tinha de contar a alguém, há um mês atrás. Depois, Miss Rowan me contratou, descobri que ela o conhecia e já ouvira falar tanto do senhor quanto de Nero Wolfe. Mas não quero que seja Nero Wolfe a tratar do caso. Quero que seja o senhor. Parara de sorrir e os seus olhos castanhos estavam postos nos meus.

—        Impossível, respondi. — Trabalho em tempo integral para Mr. Wolfe, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, quando é preciso, e não aceito casos por conta própria. No entanto, ainda tenho uma hora, acrescentei, depois de consultar o relógio, — E vinte minutos disponíveis, e, se precisar de um conselho, não me importo de ajudá-la, sem cobrar nada por isso.

—        Mas preciso mais do que um conselho!

—        Desculpe, mas não se encontra numa posição de poder julgar o que precisa, por estar demasiado envolvida.

—        E de que maneira... Os olhos castanhos não se desviavam dos meus. — Não podia contar a não ser ao senhor. Não podia revelar o que sei a qualquer outra pessoa. Quando o conheci, na semana passada, senti, soube, que era a única pessoa no mundo em quem podia confiar. Nunca antes sentira algo em relação a um homem, ou mesmo em relação a uma mulher.

—        É muito gentil da sua parte, mas poupe as lisonjas. Disse que nunca teve pai? A jovem desviou rapidamente o olhar, quando a empregada regressou com as bebidas e os sanduíches. De novo a sós, tentou sorrir.

—        E não apenas no sentido figurado. Falava tão baixo que eu tinha de fazer um esforço para conseguir ouvi-la. — Nunca tive um pai, em todos os sentidos. Não sei quem foi, quem é. Não sei qual é o seu nome de família, ou melhor, qual deveria ser. Ninguém sabe disto. absolutamente ninguém. Apenas o senhor, agora. E não me parece que Denovo fosse, sequer, o verdadeiro sobrenome da minha mãe, porque, tanto quanto me foi dado a entender, nunca se casou. Creio que escolheu esse sobrenome, porque recomeçou de novo, após eu nascer. Só gostaria de ter a certeza...

—        Já perguntou à sua mãe?

—        Não. Quis lhe perguntar e ia fazê-lo, mas, agora, já é tarde, porque ela morreu.

—        Quando?

—        Em maio passado, duas semanas antes de eu me formar. Foi atropelada por um carro. O motorista fugiu.

—        Conseguiram pegá-lo?

—        A polícia não conseguiu encontrá-lo, mas ainda não desistiu. Pelo menos, é o que me dizem.

—        E quanto a outros parentes? Uma irmã, um irmão...

—        Não tenho irmãos.

—        Mas deve ter, com certeza, parentes mais afastados, porque todos nós temos uma família.

—        Não no meu caso. Não tenho ninguém.

—        Nem mesmo primos, tios, do lado da sua mãe?

—        Não, porque, como já lhe disse, nem sequer sei se Denovo era o seu verdadeiro sobrenome.

 

A coisa começava a se complicar. Ou, melhor, começava a se tornar simples demais. Já tivera ocasião de conhecer pessoas que gostavam de se ter na conta de solitárias, mas Amy Denovo levava a melhor, porque, no caso dela, não se tratava apenas de uma atitude psicológica. Sugeri que experimentássemos os sanduíches, ela concordou e pegou num.

 

Regra geral, quando estou comendo com alguém, seja homem ou mulher, na primeira vez, atento nos pequenos pormenores que determinam a sua conduta, porque revelam muito acerca do caráter de uma pessoa. Porém, naquele caso, não o fiz, já que o modo como Amy Denovo mastigava, engolia uma bebida ou limpava a boca não tinha qualquer ligação com a situação em que se encontrava. Não obstante, reparei que tinha apetite e que apreciava sanduíches de ovo com anchovas.

 

Perguntou-me se aquele tipo de refeição era uma das favoritas de Nero Wolfe e lhe respondi que não, que ele olharia, com desdém, para algo tão frugal. Quando o prato ficou vazio, Amy Denovo declarou que nunca pensara que revelar o segredo que guardara, dentro de si, durante tanto tempo, lhe pudesse abrir o apetite. Sorriu, de leve, e arrematou:

 

—        Nunca nos conhecemos a nós próprios verdadeiramente, não acha?

—        Depende. Alguns se conhecem bem demais; outros, não o suficiente. Por mim, não quero saber por que acordo de manhã, envolto num nevoeiro de inquietações, pois isso iria me tirar o sono. Pouco me importa. O que interessa se acabo sempre por encontrar o caminho certo por entre o nevoeiro, por mais denso que seja. Quanto a si, ainda não se encontra envolta num nevoeiro de preocupações. Está, antes, em frente de um potente farol, que acendeu propositadamente. Porque não o desliga?

—        Não o acendi de propósito! Foram os outros, em especial, a minha mãe. E, agora, não posso apagar a luz potente que irradia desse tal farol representativo da minha maior preocupação, neste momento.

—        Muito bem. Qual é a sua prioridade máxima? Descobrir o sobrenome verdadeiro da sua mãe e por aí fora, ou descobrir o seu pai?

—        O meu pai, claro! No fim de contas, vivi sempre com a minha mãe e o fato de querer saber o seu nome verdadeiro é apenas uma simples curiosidade. Mas preciso saber tudo acerca do meu pai. Quem é? O que faz? Está vivo? Porque, afinal, foram os seus genes que me fizeram ser quem sou! Sorri.

—        Bem se vê que se licenciou pela Smith. Aprendeu coisas a mais sobre genes. Mr. Wolfe, certa vez, afirmou que os cientistas deveriam guardar sigilo absoluto acerca das suas descobertas, porque, ao revelá-las ao mundo, apenas complicam a vida aos outros. Café?

—        Não, obrigada.

—        Têm bolos deliciosos, aqui. Amy Denovo, contudo, meneou a cabeça.

—        Admito que fosse capaz de comer tudo o que me aparecesse à frente, neste momento... Este meu súbito apetite é realmente espantoso, mas prefiro não ceder à tentação... O senhor, há pouco, disse que talvez pudesse me aconselhar...

—        Eu sei, mas a verdade se encontra numa situação muito delicada e receio que necessite mais do que um conselho, mesmo partindo do único homem em quem confia. É que, para conseguir o que tanto deseja... Bem, as probabilidades de descobrir o seu pai, ao fim de uma semana de intensas investigações, são quase nulas. O mais provável é que se revele uma investigação demorada e muito dispendiosa. Tem algum dinheiro guardado?

—        Não muito, mas, como é óbvio, faço questão em pagar os seus serviços.

—        Os meus, não, como já expliquei. Só que Nero Wolfe possui ideias inflacionadas acerca de honorários; por isso preciso saber de quanto dinheiro pode dispor. Isto, se quiser me dizer, claro...

—        Não me importo. Nunca trabalhei, pelo menos, em nada digno de se mencionar, e, de qualquer modo, gastei o pouco dinheiro que ganhei, com pequenos trabalhos. Tudo o que possuo foi o que a minha mãe me deixou, depois de eu pagar o... As despesas da cremação. Ela deixou instruções para ser cremada. Tenho cerca de dois mil dólares no banco e felizmente não devo nada a ninguém. Ergui as sobrancelhas.

—        Quem era...? Não, esqueça. Vejo que a sua mãe teve dinheiro suficiente para lhe pagar os estudos numa faculdade privada. A não ser que contasse com a ajuda de alguém?

—        Não, nunca ninguém a ajudou. O senhor ia me perguntar o que a minha mãe fazia. Trabalhava numa produtora de televisão. Sempre na mesma, tanto quanto me lembro. Creio que ela ganhava quinze mil dólares por ano, talvez um pouco mais. Ela nunca me disse... Se eu desse os dois mil dólares que tenho a Mr. Wolfe, ele colocaria o senhor para trabalhar no meu caso? Meneei a cabeça.

—        Nem sequer o consideraria, por saber, tão bem quanto eu, que talvez demorasse um ano, e Nero Wolfe não se envergonha em cobrar cinco mil dólares a um cliente, por um caso simples, que se resolve numa semana. Disse-me que conhecia a fama de Nero Wolfe, mas vejo que não. É um homem casmurro, empertigado, arrogante, altivo, que julga ser o melhor detetive do mundo. Opinião da qual partilho, caso contrário, há muito teria me despedido... Bem, penso, que merece ser ajudada e vejo que precisa de apoio. Só que, se eu lhe falasse no seu caso e sugerisse uma entrevista, ele se limitaria a me lançar um olhar de desdém e a me alcunhar de louco. No entanto, tenho uma ideia e quero que a pondere... Miss Rowan sempre gostou de ajudar os outros, é uma mulher rica, e, se...

—        Não se atreva a lhe falar do meu problema!

—        Calma. Nunca me passou pela cabeça lhe revelar o que me contou. Nem a ela, nem a ninguém. Apenas pensei que talvez você quisesse desabafar com ela, e...

—        Nunca revelarei o meu segredo seja a quem for!

—        Nem eu. Os seus olhos têm um brilho impressionante, quando se exalta, comentei, ao fitá-la de frente. Ouça, Miss Denovo, se fecho a porta em sua cara, é apenas porque não me resta outra alternativa. Pessoalmente, gostaria de tratar do seu caso, porque apresenta certos ângulos devera interessantes, e preciso confessar que seria um prazer ter uma cliente tão bonita. Além do mais, existe sempre a possibilidade de estarmos lidando com um homicídio. Quando se...

—        Homicídio?

—        Não passa de uma mera hipótese, mas a ideia me passou pela cabeça. Quando se ouve dizer que alguém morreu em consequência de um atropelamento, que o culpado fugiu e que a polícia não conseguiu apanhá-lo, a ideia de homicídio nos vem logo à cabeça. Apenas menciono esta hipótese porque constitui uma das razões que levam a me interessar pelo seu caso. Só que, infelizmente, não existe a menor possibilidade de ser recebida por Mr. Wolfe. Lamento imenso... A jovem meneou a cabeça, mas sempre com os olhos cravados em mim.

—        Mas, Mr. Goodwin, fiquei na mesma! Aparentemente, a hipótese de um homicídio não a impressionara. — Que me resta fazer? Não posso revelar o meu segredo a qualquer um! E foi tudo.

 

Vinte minutos depois, quando fiz sinal a um táxi e indiquei o endereço de Saul Panzer ao motorista, não me sentia particularmente feliz. Trabalhar para e com o melhor detetive do mundo, opinião com a qual os leitores não têm de concordar forçosamente, é muito agradável. Contudo, quando uma jovem atraente nos diz que somos a única pessoa em quem ela confia, mesmo que se trate de um elogio falso, e não nos resta outra alternativa que não seja nos mostrarmos implacáveis com ela, isso não faz bem à nossa consciência.

 

Refestelado no banco de trás do táxi, tentei pensar novamente em beisebol e nos Mets. Faltavam seis minutos para as oito quando cheguei à esquina da 35th Street com a Park Avenue. Quanto ao que aconteceu à “fortuna” dos meus amigos, para não falar na minha, passarei. Por vezes, as cartas teimam em não ajudar.

 

Na sexta-feira, os meus afazeres se resumiam a seguir o programa estipulado. Às quinze para as dez da manhã, saí da velha mansão, de granito vermelho, da West 35th Street, e segui até à garagem, situada a uma esquina da Tenth Avenue, para ir buscar o Heron, que Wolfe possui mas que eu dirijo. Depois, segui até Long Island, onde Wolfe passara três dias, a convite de Lewis Hewitt, que tinha dez mil orquídeas agrupadas numa estufa com mais de trinta metros quadrados. De regresso a Manhattan, com Wolfe no banco de trás, se segurando firmemente no banco da frente, pois, de acordo com o meu patrão, não se pode confiar, por um só segundo, num automóvel, tentei evitar quaisquer solavancos. Não por causa de Wolfe, uma vez que, segundo penso, uns bons safanões só lhe fariam bem, mas por causa das orquídeas, instaladas no porta-malas, duas das quais eram um novo cruzamento entre uma Schroederi e uma Ashworthiana. Valiam, pelo menos, uns dois mil dólares, mas, mais importante ainda, ninguém possuía aquele raro espécime, a não ser Hewitt e, agora, Wolfe.

 

Ao estacionar em frente da velha mansão, buzinei e Theodore Horstmann surgiu à porta, como combinado, para me ajudar a tirar os vasos do carro e levá-los até às estufas do último andar. Wolfe se incumbiu de carregar a sua bagagem, porque, quanto a esse aspecto, já não se trata de uma teoria minha, mas de uma regra. É que ele precisa fazer algum exercício. De regresso ao escritório, fui encontrar Wolfe atrás da sua mesa, sentado na única poltrona que ele considera cômoda para o seu peso e largura. Passava em revista o correio. Pouco depois, Fritz entrou, para anunciar que o almoço estava pronto. Regra geral nunca se discute assuntos de trabalho, à mesa. De qualquer modo, não havia nada para falar, e, de minha parte, não tinha intenção de mencionar o problema de Amy Denovo. A conversa pode focar qualquer aspecto, que seja do agrado de Wolfe. Contudo, desta vez, fui eu a dar o tom, ao comentar, quando me servi, que um homem me dissera que um shish kebab era tão ou mais saboroso, se confeccionado com vitela em vez de carneiro. Wolfe retorquiu que qualquer prato de carne era sempre mais saboroso se confeccionado com vitela em vez de carneiro. Depois, passou da gastronomia para o significado dos nomes de certos pratos e declarou que era um erro se chamar àquela especialidade indiana shish kebab. De acordo com o meu patrão, a expressão correta era seekh kebab, pois era assim que a chamavam na Índia. Não contente com este reparo, me explicou que, em Hindu ou Urdu, um seekh é uma vareta fina de ferro, com um gancho, numa ponta, e um espigão, na outra, e que um kebab é uma almôndega de carne. Entusiasmado, ainda comentou que um ocidental, por certo, um idiota qualquer, transformara a palavra seekh em shish, por desconhecimento do idioma, e concluiu que seria muito bem feito se tivessem servido ao responsável pela adulteração da palavra, um seekh kebab feito com carne de burro. Ainda tecia considerações acerca das pessoas que deturpam o significado das expressões estrangeiras, quando Fritz nos serviu um pudim de amoras silvestres coberto com chantilly e amêndoas.

 

Finda a refeição, regressamos ao escritório. Wolfe se sentou, atrás da sua mesa, para tratar do correio em atraso, enquanto eu me ocupei do arquivo das plantas, para registrar o novo espécime que o meu chefe conseguira arranjar. Às quatro horas em ponto, quando Wolfe entrou no seu elevador pessoal, para a sua sessão da tarde na estufa, subi ao meu quarto para tratar de alguns afazeres pessoais, como, por exemplo, inspecionar as minhas cuecas e mudar a fita da máquina de escrever. Estes afazeres demoram sempre mais tempo do que se julga e, quando ouvi a campainha da porta e consultei o relógio, foi com surpresa que verifiquei que faltavam vinte minutos para as seis. Não me preocupei em ir ver quem era, porque Fritz se ocupa disso, quando não estou no escritório. No entanto, alguns minutos depois, o intercomunicador tocou e Fritz anunciou que uma jovem, de nome Amy Denovo, pedira para falar comigo. Respondi-lhe que a fizesse entrar para a sala de estar da frente. Quando se entra na mansão de Nero Wolfe, a segunda porta do lado esquerdo do átrio de entrada dá para o escritório. A primeira se abre para o que chamamos a sala da frente, pouco usada, a não ser para as visitas que não queremos receber no escritório. Não é uma divisão mobilada com o mesmo requinte do escritório ou, até, da cozinha, porque Wolfe raramente se serve dela. Quando cheguei lá, Amy Denovo estava sentada numa cadeira, junto à janela. Ao me ver, se levantou e exclamou:

 

—        Bem, aqui estou!

—        Sim, de fato... Folgo muito em voltar a vê-la. Não quero ser mal-educado, mas me parece que deixei bem claro qual a minha posição, ontem.

—        Eu sei, mas decidi que tinha de voltar a vê-lo e de falar com Nero Wolfe, se for necessário. Vai daí, eu... Fiz algo... Amy Denovo trazia a carteira debaixo do braço. Tornou a se sentar, e abriu a carteira, de onde retirou um pacote embrulhado com papel de jornal e preso com elásticos. Depois, me estendeu e peguei no pacote para não ser indelicado. — Estão aí vinte mil dólares, em notas de cem, declarou Amy. Então, sorriu. — Vai, com certeza, querer contá-las...

 

Como não consegui encontrar uma resposta adequada, desembrulhei o pacote e olhei. Continha vinte maços de notas de cem dólares, umas novas, outras, já muito gastas, presas com clips. Por fim, tornei a fechar o pacote.

 

—        A cinco mil dólares por semana, prosseguiu Amy Denovo, — Esse dinheiro deve chegar, pelo menos, para quatro semanas de investigação. Foi então que se ouviu o barulho da porta do

elevador. Wolfe terminara a sua sessão na estufa.

—        Quando lhe falei em cinco mil dólares por semana, estava apenas me referindo aos honorários, retorqui. — Não incluí as eventuais despesas. Contudo, Wolfe nem sempre cobra cinco mil dólares por semana. Apenas em casos especiais. Mas passemos ao que interessa: está querendo me dizer que quer contratar os serviços de Nero Wolfe e lhe entregar todo esse dinheiro, como adiantamento?

—        Sim, desde que o senhor se encarregue do meu caso.

—        Lamento imenso, mas é sempre Nero Wolfe quem toma a seu cargo a direção das operações. Eu me limito a tratar de certos assuntos.

—        Pois bem; desde que o senhor trate de certos assuntos relacionados com o meu problema...

—        Quanto a isso pode ficar descansada. Wolfe é apenas o grande cérebro. A parte prática é da minha inteira responsabilidade. Bem, vou falar com ele, e, depois, mandarei chamá-la. Não se importa de aguardar aqui?

 

Amy Denovo franziu as sobrancelhas e meneou a cabeça.

 

—        Não quero falar do meu segredo a mais ninguém.

—        Nesse caso, nada feito. Nero Wolfe nunca aceita os honorários de um cliente com quem não converse diretamente. Nunca o fez nem nunca o fará. Amy Denovo cerrou os lábios, respirou fundo e, por fim, exclamou:

—        Bem, creio que posso sempre tentar... Está bem.

—        Ótimo. Qualquer coisa me diz que não vai simpatizar com ele, mas desde já quero que saiba que pode confiar tanto em Wolfe como em mim. Quer me dizer algo em relação a isto? Acrescentei, dando uma pancadinha no pacote.

—        Não, porque não há nada a dizer.

—        Posso pressupor, então, que este dinheiro lhe pertence legalmente?

—        Claro! Empertigou-se a jovem. — Que pensa? Que assaltei um banco?

—        Lembre-se de que o dinheiro continua a lhe pertencer até Nero Wolfe aceitar tratar do seu problema, arrematei, devolvendo o pacote. — E tanto posso demorar cinco minutos como uma hora para convencê-lo; se ficar cansada de esperar, há, naquela mesinha, algumas revistas.

 

Dito isto, virei costas e ia me dirigir para a porta de comunicação entre a sala e o escritório, quando, no meio do caminho, mudei de ideia e saí pela porta que abre para o átrio de entrada. Wolfe estava sentado, atrás da mesa, lendo um livro: INCREDIBLE VÍCTORY, de Walter Lord. Provavelmente, não tivera muito tempo livre para ler, enquanto ficara hospedado na casa de Hewitt, e queria pôr a leitura em dia. Avancei para a minha mesa, me sentei e esperei que ele terminasse de ler um parágrafo. Pelo tempo que demorou, devia ser bastante comprido. Finalmente, ergueu o olhar e resmungou:

 

—        O que foi?

—        Temos uma visita, na sala da frente. É uma jovem, de nome Amy Denovo. Creio ter lhe dito, aqui há uns tempos, que Miss Rowan anda recolhendo material para uma biografia sobre o pai. Ora, contratou Miss Denovo para ajudá-la, e conheci-a na semana passada. Ontem à tarde, quando saí da casa de Miss Rowan, a tal jovem me interceptou. Fomos até um café, cuja especialidade é uns sanduíches de ovo e anchovas deliciosos. Já falei desses sanduíches a Fritz, mas ele não se mostrou muito interessado. A jovem queria contratar os meus serviços, porque sou o único homem no mundo em quem confia, mas repliquei que não podia ajudá-la, porque trabalho para o senhor. Foi então que ela me disse que estava disposta a contratar os seus serviços, desde que eu tratasse de tudo, e lhe expliquei que era sempre eu que tratava do trabalho mais pesado... Bem, a questão seguinte se centrava na parte financeira. A jovem me disse que tinha dois mil dólares no banco, que a mãe lhe deixou, mas nada mais. Ora, uma vez que o caso me parecia devera complexo e moroso, para já não falar nas eventuais despesas, expliquei que nada podia fazer por ela e que nem sequer lhe falaria no assunto. Depois, me arrependi, por que...

—        Pff! Rosnou Wolfe. — Porque me fala nisso, agora?

—        Deixe-me terminar. Depois, me arrependi, porque o caso me pareceu deveras interessante e difícil. Se falo nisso, agora, é porque ela está na sala da frente, neste momento, com um pacote, embrulhado em papel de jornal, que contém vinte mil dólares, em notas de cem, que ela quer que o senhor receba como adiantamento.

—        Onde ela arranjou esse dinheiro?

—        Não sei. Disse que lhe pertence legalmente. Wolfe pousou o livro.

—        Conte-me tudo acerca do que falaram ontem.

 

Já esperava por aquilo. Wolfe detesta se encarregar de um caso e é capaz de tudo para se furtar a um compromisso. Havia também a possibilidade de o meu patrão considerar certos pormenores absolutamente intoleráveis. Apesar disso, fiz o meu relatório. Já tinha muita prática em narrar uma conversa ipsis verbis. Como sempre, Wolfe se recostou na poltrona, de olhos fechados, e não me interrompeu. Nem sequer revelou qualquer reação ao “homem casmurro, empertigado, arrogante, altivo”, porque nada omiti. Quando terminei, ele se deixou ficar muito quieto, até que abriu os olhos e se endireitou.

 

—        Nem parece teu, Archie, comentou. — É apenas um esboço. Nem sequer é um começo.

—        Eu sei e, por isso, não havia razão para dar falsas esperanças à pobre jovem.

 

Wolfe nada respondeu. Consultou o relógio de parede e, depois, se virou para mim:

 

—        Podia... Não interessa. Muito bem; mande-a entrar.

 

Dirigi-me à porta de comunicação. Amy Denovo continuava sentada na mesma cadeira, junto à janela. Não tinha voltado a guardar o pacote na carteira. Wolfe raramente se levanta, quando uma visita entra no escritório, mas nunca o faz, se, por acaso, se trata de uma mulher. A sua expressão é sempre a mesma, se for uma mulher, independentemente de quem ela seja, porque está concentrado em reprimir o seu desdém. Não se consegue adivinhar se repara ou não na mulher que tem à sua frente. Por exemplo, neste caso, se reparou ou não que a saia da roupa que Amy Denovo usava era bastante curta, não o sei. Por outro lado, tenho a certeza de que não notou que a jovem tinha uns joelhos perfeitos, porque estes pormenores não contam para ele. O assento da poltrona de couro vermelha era muito fundo para Amy Denovo; por isso, a jovem optou por se sentar no rebordo, com a carteira debaixo do braço e o pacote no colo. Wolfe virou a cadeira de forma a fitá-la de frente, entrelaçou os dedos e exclamou:

 

—        Então, quer dizer, que Mr. Goodwin lhe causou muito boa impressão, assim que o viu? Os olhos dela, cravados em Wolfe, se abriram ao levemente.

—        Sim, causou.

—        Isso tanto pode ser um ponto a seu favor como pode não ser, porque Mr. Goodwin está habituado a causar boa impressão nas pessoas do sexo oposto. Relatou-me a conversa de ontem. Disse, também, que a senhora tem em seu poder, legalmente, neste momento, isto, segundo o que a senhora afirmou, vinte mil dólares em dinheiro, que quer me entregar, como adiantamento pelos meus serviços.

—        É verdade. Mas com uma condição: que Mr. Goodwin se encarregue de tudo.

—        Não se preocupe, que ele terá a sua quota parte de ação, sob as minhas instruções, a não ser que uma qualquer emergência o impeça. O dinheiro está nesse pacote? Posso vê-lo?

 

Amy Denovo se levantou, entregou o pacote a Wolfe e tornou a se sentar. Wolfe se demorou estudando, um a um, os vinte maços de notas de cem dólares, que foi pousando sobre a mesa. Em seguida, se virou para mim.

 

—        Não detecto qualquer indicação quanto à origem. E você? Respondi que não.

 

Virou-se de novo para Amy Denovo.

 

—        Foi Miss Lily Rowan quem lhe deu este dinheiro?

—        Claro que não!

—        Bem, então, foi outra pessoa qualquer. Perante o que contou, ontem, a Mr. Goodwin, precisarei saber a proveniência deste dinheiro. Onde e como o arranjou? A jovem contraiu os lábios.

—        Não vejo por que deva sabê-lo, ripostou. — Posso lhe assegurar que obtive esse dinheiro de forma perfeitamente legítima. Pertence-me de direito. Além do mais, se fosse a uma loja e pagasse algo com uma dessas notas, o empregado nunca me perguntaria onde e como eu fora arranjar o dinheiro! Wolfe meneou a cabeça.

—        A sua comparação não é lá muito feliz, Miss Denovo. Ontem, disse a Mr. Goodwin que tudo o que tinha eram dois mil dólares no banco e rejeitou a hipótese de Miss Rowan ajudá-la financeiramente. Ora, estão, aqui, vinte mil dólares. Precisarei saber se provêm de um empréstimo ou de uma doação. Se vendeu algo, vou ter de saber o que vendeu e a quem. Pode não ter consciência disso, na sua idade, mas se trata de uma atitude de simples prudência. Aceitar um adiantamento considerável, para uma investigação complexa, sem me assegurar da sua proveniência ou legitimidade, seria uma tolice da minha parte. Portanto, se não me disser como foi que obteve este dinheiro, não o aceitarei. Por outro lado, se o revelar, serei forçado a verificar discretamente se não mentiu, para minha própria defesa.

 

Amy Denovo franziu as sobrancelhas, perante o dilema em que se encontrava. Quando falou, se dirigiu a mim:

 

—        Ele tem razão, Mr. Goodwin? Ou está apenas me fechando a porta na cara, como o senhor fez ontem?

—        Não, Mr. Wolfe tem toda a razão. Como ele disse, se trata de uma simples precaução. No final das contas, se é de sua propriedade, como afirmou, e se o obteve de modo perfeitamente legítimo, porque não nos diz como arranjou esse dinheiro? Não deve ser, por certo, um segredo tão íntimo como aquele que já nos contou. Amy Denovo fitou, primeiro, Wolfe, e, em seguida, tornou a olhar para mim.

—        Posso dizer a si, Mr. Goodwin.

—        Muito bem, diga apenas a mim. Fingiremos que Mr. Wolfe não está presente.

—        Desculpe. Foi uma idiotice da minha parte. Depois de tomar conhecimento do meu segredo, tem todo o direito de saber o resto. Recebi esse dinheiro, e muito mais, do meu pai.

Ergui as sobrancelhas, estupefato.

—        Nesse caso, me mentiu, ontem, quando me disse que não tinha pai e não sabia quem era, e que os dois mil...

—        Mas é verdade! Nunca tive um pai! O que aconteceu foi o seguinte: quando a minha mãe faleceu, vim até Nova Iorque, ainda precisava terminar os meus estudos e, de qualquer forma, Mr. Thorne tinha em seu poder as instruções que ela deixara em relação à cremação. A minha mãe não queria um funeral, e foi ele que tratou de... Tudo. Depois, uma vez terminado o curso, quando regressei definitivamente a Nova Iorque, ele veio...

—        Mr. Thorne?

—        Sim. Ele veio...

—        Quem é esse tal Mr. Thorne?

—        É o produtor de televisão para quem a minha mãe trabalhava. Ele veio me ver e me entregou tudo o que havia na sala de minha mãe. Eram, na sua maioria, papéis, notas fiscais e cartas. Mas havia, também, uma caixa de metal, fechada com um cadeado, e com uma etiqueta colada, que dizia: “propriedade de Amy Denovo”. A chave do cadeado tinha outra etiqueta, onde se lia: “Chave da caixa pertencente a Amy Denovo”. Estava...

—        O nome próprio da sua mãe era Amy?

—        Não, era Elinor. A chave estava guardada numa gaveta, trancada, da sua mesa. Quanto à caixa, estava no cofre da empresa. Parece que se encontrava lá, há muito tempo, pelo menos, quinze anos, de acordo com o que Mr. Thorne me contou. Esperei que ele fosse embora para abrir a caixa, e ainda bem que o fiz. Continha apenas duas coisas: dinheiro, em notas de cem, e um sobrescrito selado com o meu nome. Abri o sobrescrito. Era uma carta de minha mãe. Quer saber o que dizia, não é verdade?

—        Como é evidente. Tem-na consigo?

—        Aqui, não. Deixei-a em casa. Oh, mas sei-a de cor. É uma carta escrita pela mão de minha mãe, sem data, e diz:

 

Querida Amy.

Este dinheiro é do seu pai, que não vejo desde que engravidei dele. Contudo, duas semanas depois de você nascer, recebi um cheque de mil dólares, pelo correio, e, desde então, tenho recebido um, do mesmo montante, todos os meses, e, neste momento, em que escrevo, o total já passa de cem mil dólares. No entanto, não sei quanto haverá, quando chegar a altura de ler esta carta. Nunca pedi nada nem quero seja o que for de seu pai. Você é minha filha e, felizmente, posso alimentá-la, vesti-la e alojá-la, sem ajuda de ninguém. Tenciono, também, lhe dar uma boa educação e sei que o conseguirei. Todavia, este dinheiro foi enviado por aquele que é seu pai e lhe pertence de direito. Podia tê-lo depositado, numa conta bancária em seu nome, mas haveria impostos a pagar e registros dos depósitos, por isso optei por guardá-lo nesta caixa.

Sua mãe.

 

—        E, por baixo, assinou Elinor Denovo, se bem que, segundo julgo, não fosse esse o seu nome verdadeiro. E deve ter recebido o dinheiro até morrer, porque havia duzentos e sessenta e quatro mil dólares na caixa. Ora, como é óbvio, eu não posso depositá-lo no banco, porque precisaria dizer como fora que o obtivera, não é verdade? E precisaria revelar o meu segredo, o que não quero!

 

Olhei para Wolfe. Contemplava os maços de notas, alinhados sobre a mesa. Outro homem poderia ter pensado que a vida pregava realmente grandes peças, mas Wolfe, provavelmente, estava refletindo que aquela quantia era apenas uma pequena parte do que um pai pagara pelo seu privilégio ou coisa do gênero. Virando-me para ele, exclamei:

 

—        Portanto, não se tratou de um empréstimo nem Miss Denovo vendeu o que quer que fosse. Temos de conceder que lhe pertença legalmente. Bem, claro que o IRS e a Direção-Geral de Impostos gostariam de colocar a mão em tal quantia, mas isso não nos diz respeito. Além disso, aquilo que eles não souberem não os afetará... Que mais quer que pergunte a Miss Denovo?

 

Wolfe respondeu com um grunhido e se virou para a jovem:

 

—        O dinheiro ainda está guardado nessa tal caixa?

—        Sim, com exceção desses vinte mil dólares, respondeu Amy Denovo, indicando a pilha de notas. — A caixa está no meu apartamento, que fica na 82nd Street, bem como a carta de minha mãe. Mas não quero... Mr. Goodwin mencionou o IRS...

—        Não pertencemos ao governo, Miss Denovo, nem somos obrigados a revelar informações confidenciais. Dito isto, Wolfe girou a poltrona para consultar o relógio de parede. — A hora de jantar se aproxima. Pode receber Mr. Goodwin amanhã?

—        Sim, porque não trabalho para Miss Rowan aos sábados.

—        Nesse caso, ele estará em sua casa por volta das dez da manhã. Vai querer ver a caixa e a carta que a sua mãe escreveu, bem como precisará de todas as informações que puder dar, uma vez que aquilo que revelou, ontem, não passou de um mero prólogo. Archie, passe um recibo a Miss Denovo pelos vinte mil dólares. Não como adiantamento. Isso terá de aguardar até você examinar o conteúdo da tal caixa e verificar se a carta foi efetivamente escrita pela mãe de Miss Denovo. Apenas um simples recibo onde declare que me foi pedido para guardar vinte mil dólares.

 

Puxei a máquina de escrever para junto de mim e tirei uma folha da gaveta.

 

Como é natural, estava interessado em visitar o apartamento onde a falecida Elinor Denovo vivera. Iríamos precisar de todas as pistas que pudéssemos encontrar e, com boa dose de sorte, a residência de uma senhora pode nos fornecer alguns indícios bastante interessantes. Assim, antes de me instalar no sofá e de pegar no meu bloco de apontamentos, Amy Denovo me mostrou a casa onde morava. Era um apartamento pequeno, constituído por uma entrada minúscula, uma sala de estar, dois quartos, cozinha e banheiro. Se havia pistas reveladoras, tanto na entrada como na cozinha e no banheiro, nada indicava que algum homem a tivesse utilizado regularmente. Mas era bom não esquecer que Elinor Denovo falecera, há quase três meses.

 

Olhei de relance para o quarto de Amy. No caso dela, não precisava procurar pistas, uma vez que podia esclarecer qualquer dúvida que tivesse com a própria. Deixara o quarto da mãe tal como estava, antes da sua morte. Demorei-me mais um pouco nesta divisão, mas sem grande êxito. Talvez revelasse muito a uma mulher, em especial a uma Lily Rowan. Quanto a mim, todavia, tudo o que concluí foi que a falecida optara por um tom verde pálido para a colcha e para os cortinados, que usava três perfumes caros e não se importava que o tapete do seu quarto tivesse uma grande nódoa. A sala de estar já apresentava alguns indícios, que poderiam ou não se revelar úteis. Nas paredes, havia quatro litografias de pinturas de Geórgia O'Keeffe, informação fornecida por Amy. Precisaria investigar a pintora. Quanto ao resto, o sofá constituía a única peça de mobiliário estofada, as quatro cadeiras da mesa eram todas diferentes e havia uma tal diversidade de estilos nos livros das estantes que, após ler os títulos dos primeiros vinte, desisti.

 

A única pista realmente interessante, se alguém me souber dizer o que isso significa, era o fato de não haver fotografias nem retratos no apartamento. Com exceção de uns retratos, no quarto de Amy, referentes aos seus tempos de universitária, não havia uma só fotografia, mostrando qualquer pessoa ou local, naquela casa. Mas a minha surpresa não ficou por aqui: ao comentar aquele fato com Amy, esta me respondeu que, tanto quanto se recordava, nunca vira retratos em casa; depois, acrescentou que não possuía uma só fotografia da mãe, o que era um revés terrível, uma vez que haveríamos de querer saber qual fosse a aparência de Elinor Denovo.

 

Em contrapartida, papelada não faltava, no apartamento: cartas, notas fiscais e recibos, mas nenhum diário ou coisa do gênero. Se a investigação se revelasse muito difícil, precisaria inspecionar o apartamento, uma segunda vez, ou pedir a Saul Panzer para se encarregar disso. Finalmente, verifiquei se a caligrafia de Elinor Denovo condizia com a da carta que estava dentro da caixa. Não restavam dúvidas de que era igual. Já pouco faltava para o meio-dia quando me sentei no sofá, com Amy, de um lado, e a caixa, do outro. A jovem parecia uns dois anos mais nova, porque não prendera o cabelo, que lhe caía sobre os ombros. Findo o exame minucioso, que impõe sempre a análise de uma caligrafia, tirei um papel do bolso do casaco, que entreguei a Amy Denovo.

 

—        Aqui tem um recibo, declarei, — Devidamente assinado por Mr. Wolfe; foi ele que me pediu que o entregasse, depois de me assegurar da legitimidade do conteúdo da caixa. Portanto, a partir de agora, é cliente de Nero Wolfe. Ontem à noite, após o jantar, falamos de si, Miss Denovo. Pode se considerar uma jovem bafejada pela sorte, porque a gaveta de um armário não é um lugar seguro para se guardar cerca de duzentos e cinquenta mil dólares. Tem todo o direito de pensar que, se recorremos a este procedimento, foi somente para nos assegurarmos de que uma parte desse dinheiro será necessária para a investigação, caso se revele muito demorada. No entanto, na verdade também nos preocupamos com os interesses dos nossos clientes. Daí, termos uma sugestão a lhe dar. Como sabe, os bancos estão fechados aos fins-de-semana. Portanto, quando eu for embora, levarei esta caixa comigo e guardá-la-ei no cofre do escritório. E, na segunda-feira, me encontro consigo, em frente do seu banco. A propósito: em que banco tem conta aberta?

—        Na filial do Continental, na 86th Street.

—        Excelente. Mr. Wolfe e eu temos conta aberta na filial da 34th Street. Emitiremos vinte cheques, de vinte mil dólares cada, em seu nome e levarei comigo doze cartas para abertura de outros tantos depósitos a prazo, prontas a serem assinadas por si. Só lhe restará endossar os cheques. Os juros lhe darão um rendimento de mil dólares por mês. Quanto aos restantes quatro mil dólares, poderá depositá-los em sua conta-corrente do Continental. Amy Denovo franziu as sobrancelhas.

—        Mas... O que irá acontecer? Como explicarei...?

—        Não terá de explicar nada. Se, no futuro, o IRS resolver se intrometer e tentar caçá-la, não lhes deverá nada porque se tratou de doações feitas pelo seu pai, ao longo de vinte e dois anos. Mr. Wolfe tem a certeza de que não terão forma de lhe cobrar o que quer que seja. Nunca poderiam alegar que o dinheiro foi utilizado para seu sustento, visto que viveu sempre com a sua mãe. Por outro lado, se guardar o dinheiro num cofre e gastar doze mil dólares por ano, terá gasto tudo ao fim de vinte anos. Em contrapartida, se aceitar a nossa sugestão, receberá doze mil dólares por ano, sem ter de tocar nos depósitos a prazo. Mas, no caso de alguma eventualidade, poderá sempre levantar o dinheiro, em qualquer altura, para comprar um cavalo de corrida ou qualquer outra coisa que desejar. Desta vez, Amy Denovo sorriu.

—        Gostaria de pensar nisso, durante uns tempos. Sabia que podia confiar no senhor. Tomarei a decisão, antes de ir embora.

—        Ótimo. Agora, quero lhe fazer uma pergunta: o carteiro trouxe alguma carta com um cheque, desde que a sua mãe morreu? Uma carta enviada para aqui ou para a produtora onde ela trabalhava?

—        Não, para aqui, não. E se tivessem recebido alguma carta dirigida à minha mãe, na empresa onde trabalhava, Mr. Thorne já teria me dito.

—        Muito bem. Quero mencionar que talvez a investigação não demore um ano, como julguei de início. Talvez uma semana, até menos, porque a sua mãe cometeu um erro, quando escreveu aquela carta. Se não queria, não devia ter mencionado que recebia os cheques pelo correio. Desse modo, tem de haver uma ligação entre a recepção desses cheques, por parte da sua mãe, e o remetente. Além de que a sua mãe devia levantar os cheques num banco, muito provavelmente, naquele onde tinha conta. Mas descobriremos isso na segunda-feira. Dito isto, abri o meu bloco de apontamentos. — Agora, passemos às outras perguntas. E desde já a aviso de que algumas serão muito íntimas.

 

Precisei de mais uma hora e regressei a casa, mesmo a tempo de almoçar. Wolfe estava na soleira da porta da sala de jantar, quando entrei em casa. Ali postado, me perguntava, em silêncio, por que raio eu não havia telefonado para dizer que ia demorar mais do que o previsto; mas, como chegara atrasado apenas três minutos, ignorei a sua expressão mal-humorada e lhe perguntei se queria dar uma olhada no conteúdo da caixa, antes do almoço. Respondeu que não. Levei a caixa até ao escritório, coloquei-a em cima da mesa e, em seguida, regressei à sala de jantar. Quando me sentei, exclamei que ele, por certo, não perderia o seu voraz apetite, ao saber que Miss Denovo aceitara a nossa sugestão e que se encontraria comigo, na segunda-feira de manhã, para tratarmos de tudo. Não contente com isso, acrescentei maliciosamente que, agora, se surgissem quaisquer despesas imprevistas na investigação, sempre tínhamos o dinheiro da jovem Amy Denovo em nosso poder.

 

Regra geral, tomamos o café na sala de jantar, ao almoçar, mas nunca ao jantar. Contudo, por vezes, quando tenho algo a relatar referente a uma investigação em que Wolfe se empenhou, ele dá ordens a Fritz para que sirva o café no escritório. Ora, o fato de eu haver trazido a caixa comigo era prova de que Wolfe, agora, estava empenhado numa nova investigação. Portanto, quando chegamos à sobremesa, fatias de melão frescas, regadas com uma calda de xerez e açúcar cristalizado, atravessamos o átrio de entrada e Fritz nos serviu o café no escritório. Mais reconfortado, abri a caixa, mas Wolfe se limitou a dar uma breve vista de olhos pelo seu interior e, depois, foi se sentar atrás da mesa. Imitei-o e, então, tirei o bloco de apontamentos do bolso do casaco.

 

—        Fiquei na casa de Miss Denovo quase três horas,       exclamei. — Quer que lhe relate tudo até ao mais ínfimo pormenor?

—        Não, apenas aquilo que puder se revelar útil.

—        Então, daqui a dez minutos estará lendo tranquilamente o seu livro. Para simplificar as coisas, vou me referir às pessoas envolvidas como Elinor e Amy. Aquilo que considero ser o indício mais importante é o fato de Elinor não ter, em sua casa, fotografias ou retratos. Nem sequer duas ou três, escondidas no fundo de uma gaveta. O que é deveras significativo, mas o que isso quer dizer, só o senhor poderá desvendar... Wolfe grunhiu.

—        Não descobriu mais nada?

—        Não. O problema é que Amy pouco ou nada sabe. Pergunto-me se haverá outra jovem, neste mundo, que, depois de viver vinte e dois anos com a mãe, saiba tão pouco sobre esta. Contudo, existe algo que parece saber, ou julgar. Segundo Amy, a mãe odiava-a, mas se esforçava por ocultar. Concluiu, me dizendo que “Amy” significava “amada”, num idioma qualquer, e que, provavelmente Elinor, não se deu conta de que estava sendo sarcástica, quando escolheu o nome da filha. Mas, adiante... Elinor tinha amigos íntimos, tanto do sexo feminino como do masculino? Amy não faz ideia. Bem, é preciso ter em conta que a jovem passou os últimos quatro anos na universidade... Que tipo de pessoa era Elinor? Uma mulher correta, cautelosa e fria, segundo Amy. Ah, usou também a palavra “introvertida” que, para uma jovem, acabada de sair da Smith, quer dizer o mesmo que antiquada. Contudo, por muito reservada que fosse, Elinor deve ter deixado escapar, irrefletidamente, em vinte anos, qualquer coisa acerca das suas origens, da sua infância; mas, mais uma vez, Amy me disse que não. Amy nem sequer sabe o que a mãe fazia, antes de ir trabalhar para Raymond Thorne Productions, onde estava empregada, quando morreu. Nem sequer sabe o que Elinor fazia, ao certo, na empresa. Todavia, tem uma vaga ideia de que a mãe devia ocupar um cargo importante. Acredite se quiser, mas Amy não sabe sequer onde nasceu. Julga que poderá ter sido no Mount Sinai Hospital, porque foi ali que Elinor foi operada ao apêndice, há dez anos atrás. Mesmo assim, não passa de um palpite. De qualquer modo, não é de grande ajuda, porque Elinor deve ter tido todo o cuidado em não revelar o que não queria que se soubesse. Vá lá, ao menos, Amy sabe em que dia nasceu, o que já não é ruim... Nasceu em 12 de Abril de 1945. Há cerca de cinco anos, decidiu ir ver o médico que assinou a sua certidão de nascimento, mas já tinha falecido. Portanto, Amy foi concebida em Julho de 1944. Pelo menos, já podemos localizar Elinor no tempo, mas, de novo, Amy desconhece por completo onde a mãe vivia, nessa altura. A primeira casa onde Amy se recorda de ter vivido, quando tinha três anos, é um prédio, muito velho, na West 92nd Street. Aos sete anos, se mudou para um apartamento mais moderno, na West 78th Street, e aos treze para o apartamento onde vive hoje. Vou passar à frente os pormenores da minha vistoria, a não ser que insista. Como disse, não encontrei quaisquer fotografias, o que não deixa de ser estranho. Quanto à papelada, também não ajudou em nada. Teria sido uma fonte de alegria encontrar um recorte de jornais, acerca de um homem, independentemente do que dissesse, mas nada feito. Já lhe disse que Amy não possui tampouco uma fotografia da própria mãe? Vamos ter de desencantar um retrato de Elinor Denovo, seja de que maneira for. Fechei o bloco de apontamentos. — Alguma pergunta?

—        Grrrrr!

—        Concordo plenamente. Ah, ontem à noite me perguntou se Amy não estaria mais interessada no dinheiro do que nos genes. Será que ela pensa que um pai, que pôde se dar ao luxo de enviar um cheque de mil dólares, todos os meses, durante vinte anos, possui um barril de ouro onde ela poderá mergulhar? Ontem, não quis me pronunciar a respeito dessa questão e continuo a não querer. Bem, depois de ter passado três horas com a jovem, não me parece, mas nunca se sabe... De qualquer modo, é importante para nós?

—        Não. Em princípio, terá mais sorte na segunda-feira. Vai sair? Acenei afirmativamente.

—        Como sabe, tive de adiar um compromisso, ontem à noite. Dito isto, me levantei. — Quer que guarde o dinheiro e a carta no cofre?

 

Wolfe me respondeu que se encarregaria disso. Entreguei-lhe a chave do cofre, guardei o bloco de apontamentos numa gaveta e saí. Subi ao meu quarto, para mudar de roupa e preparar um saco de viagem. Tinha telefonado para Lily para lhe dizer que chegaria à hora do jantar.

 

Eram quinze para as três quando saí de casa, fui buscar o Heron na garagem e segui até à Tenth Avenue. Chegando à 45th Street, virei à direita. O percurso mais curto seria virar à esquerda, na 45th Street e entrar pelo West Side, mas não gosto que algo me incomode, quando estou estendido na borda da piscina de Lily, inalando o suave odor das flores e ouvindo o canto dos pássaros. Não tive problemas em estacionar o carro na East 43rd Street, porque era sábado. Entrei no edifício da Gazette e subi até ao décimo segundo andar. Podia ter ido ao arquivo, mas Lon Cohen talvez soubesse de notícias mais recentes, não publicadas por falta de espaço. Quando entrei no seu gabinete, estava falando num dos três telefones da sua mesa, me sentei numa cadeira e esperei. Assim que desligou, Virou-se e exclamou:

 

—        Como foi que conseguiu vir até aqui, depois do jogo de quinta-feira à noite? A pé? Sim, porque não deve ter sequer dinheiro para apanhar um táxi... Respondi-lhe à altura, e quando ficamos quites, lhe disse que sabia que não devia incomodar um editor-adjunto acerca de uma trivialidade. Mas que queria conhecer os pormenores de um atropelamento que vitimara uma mulher chamada Elinor Denovo, na última semana de maio. Depois, lhe perguntei se podia telefonar para o arquivo e pedir ao pessoal ali em serviço se poderia me ajudar. Tal como eu esperava, Cohen pegou imediatamente no telefone e solicitou que trouxessem todo o processo relativo ao caso. Quando o mensageiro entrou no gabinete, uns seis minutos depois, Cohen já estava falando novamente ao telefone. Puxei a cadeira para um canto e abri a pasta.

 

Continha apenas quatro artigos e três relatórios datilografados. A notícia não ocupara a primeira página, mas a página 3 da edição de sábado, 27 de maio. A primeira coisa em que reparei foi que não havia uma fotografia da vítima ilustrando os artigos, o que significava que nem mesmo a Gazette conseguira encontrar qualquer uma. De acordo com os dados recolhidos, Mrs. Elinor Denovo (com que então, era casada para o mundo) estacionara o carro na garagem onde costumava guardá-lo, situada na Second Avenue, perto da 83rd Street, na sexta-feira, pouco depois da meia-noite, e dissera ao encarregado que iria precisar do carro no dia seguinte, por volta do meio-dia. Três minutos depois, quando atravessava a 83rd Street, de regresso a casa, fora atropelada por um automóvel, que a projetara no ar. O motorista fugira a toda a velocidade. Houvera apenas quatro testemunhas oculares: um homem, que descia a rua, do lado oriental e que se encontrava a uns trinta metros de distância do local do acidente; um casal, que passeava pela calçada, do lado ocidental, e que também se encontrava a grande distância do lugar do atropelamento; e, finalmente, um motorista de táxi, que tinha acabado de entrar na 83rd Street, vindo da Second Avenue.

 

Todos afirmavam que o automóvel que atingira Elinor Denovo nem sequer diminuíra a velocidade, mas a unanimidade parava aqui. O motorista julgava que o carro era dirigido por uma mulher. O transeunte solitário já dizia se tratar de um homem e o casal julgava ter avistado dois homens na parte da frente do automóvel. O mesmo se aplicava em relação à marca do automóvel: o motorista de táxi julgava se tratar de um Dodge Coronet, mas não tinha a certeza; o transeunte afirmava se tratar de um Chevy e o casal não sabia. Quanto à cor, dois afirmavam ser verde, um azul-escuro e o outro preto. Contudo, mais tarde veio a se descobrir que o automóvel que atropelara Elinor Denovo era um Ford cinzento-escuro, que havia sido roubado. Segundo o artigo, Mrs. David A. Ernst, residente em Scarsciale, após deixar o seu carro estacionado na West 11th Street, fora buscá-lo, na sexta-feira à noite, às dez horas, mas não o encontrara e apresentara queixa. Um polícia avistou a viatura roubada, estacionada na West 123rd Street, na tarde de sábado, mas só na segunda-feira seguinte os especialistas haviam concluído se tratar do automóvel que atropelara Elinor Denovo.

 

Quando o último artigo, relativo ao acidente, saiu, na edição da Gazette de terça-feira, 1 de junho, a polícia ainda não fizera quaisquer progressos na sua investigação. Nem sequer afirmava que alguém tivesse sido chamado a depor; tampouco dizia haver algum suspeito. Limitava-se a informar que a investigação estava em curso, o que talvez fosse verdade, uma vez que a polícia detesta este tipo de acidente, e só desiste quando já não há mais esperança, mas, mesmo assim, não esquece o acontecido.

 

Quanto à vítima não havia nada que eu já não soubesse, a não ser que se tratava da vice-presidente da Raymond Thorne Productions, Inc. Miss Amy Denovo tinha sido entrevistada, mas pouco ou nada revelara. Raymond Thorne, por seu lado, afirmara que Mrs. Denovo prestara um valioso contributo à arte da produção televisiva e que a sua morte não só era uma grande perda para a sua empresa, como, também, para a indústria televisiva americana. Quanto a mim, achei que o homem devia se decidir se a televisão era uma arte ou uma indústria. Tornei a pousar a pasta na mesa de Lon, aguardei que ele desligasse e exclamei:

 

—        Obrigado. Só há um pormenor que me deixa curioso: o último artigo saiu em 1 de junho. Não sabe se houve algum progresso, desde então? Lon Cohen mais uma vez pegou no telefone, apertou um botão, disse qualquer coisa e aguardou. Ouviu-se uma voz, do outro lado do fio, e, por fim, Lon Cohen retorquiu: “Sim, claro...” e desligou. Então, Virou-se para mim:

—        Ao que tudo indica, se trata de um caso perdido. As últimas informações que possuímos, e que datam de há um mês, são de que o caso é para esquecer. Neste momento, a polícia tem apenas um dos seus homens na investigação. Bem, mas, agora, como é evidente, com Nero Wolfe revelando interesse no caso, as coisas podem mudar... Quer então dizer que foi um homicídio? Não estou à espera que me revele o nome do criminoso, mas vou querer que me dê informações suficientes para encher uma página... Levantei-me.

—        Os jornalistas são o sal e a pimenta desta vida. Não me importaria de debater este assunto contigo, mas me encontro de saída para uma vivenda rústica, situada na clareira de uma floresta, em Westchester, e estou atrasado vinte horas. Além do mais, disse que se tratava apenas de uma trivialidade, mas interprete isso como quiser... Está bem, foi um homicídio, e o motorista do carro é o patife que cobriu os meus três ases com quatro valetes, na quinta-feira à noite. Só espero que o apanhem... Dito isto, virei costas.

 

Contudo, de regresso ao átrio de entrada, me dirigi a uma cabina telefônica, disquei um número que conhecia de cor, me identifiquei e perguntei se o sargento Stebbins estava. Após uma longa espera, uma voz roufenha exclamou:

 

—        Stebbins. Aconteceu alguma coisa, Archie?

 

O sargento Stebbins devia ter acabado de ganhar uma aposta ou de ser promovido, pois me chamava de Archie uma vez, de dois em dois anos, no máximo. Resolvi retribuir aquela rara honra.

 

—        Nada de importante, Purley. Apenas uma pergunta de rotina, mas para me responder, terá de consultar os arquivos... Se calhar já nem se lembra, pois foi algo que aconteceu há três meses atrás... Um atropelamento na East 83rd Street, em que o motorista fugiu e do qual resultou uma vítima, chamada Elinor Denovo...

—        Não me esqueci disso. Nunca nos esquecemos de um atropelamento, em que o motorista é covarde e foge.

—        Eu sei. Estava só a ser incorreto, como de costume. É que me perguntaram se vocês já tinham alguma coisa e, como é óbvio, eu não sabia. E então? Já fizeram alguns progressos?

—        Quem foi que perguntou isso?

—        Oh, Mr. Wolfe e eu estávamos falando do crime, em geral, e se a polícia era tão eficaz como deveria, quando ele mencionou o nome de Elinor Denovo. Respondi-lhe que, talvez, vocês já tinham apanhado o culpado, mas, depois, senti certa curiosidade. Bem, como é evidente, não quero que me revele informações confidenciais...

—        Não existem quaisquer informações, confidenciais ou não. O caso está pendente, mas não nos esquecemos.

—        Muito bem. Espero sinceramente que apanhem o culpado, porque ninguém gosta de saber que uma pessoa morreu atropelada e que o responsável anda à solta.

 

Quando regressei ao carro, tive de admitir que, mesmo após todas estas diligências, a minha curiosidade não fora mitigada.

 

Devem pensar, por certo, que, aos dez para as dez da manhã de segunda-feira, quando entrei no táxi e pedi ao motorista que me levasse até ao centro da cidade, já sabia o que me esperava. Enganam-se. Apesar de levar comigo a caixa de metal e de ter no bolso interior do casaco um maço de doze envelopes, porque nunca uso uma pasta sempre que possível, refletia nos acontecimentos da hora que passara. É que não gosto que me gritem, muito menos quando se trata de Nero Wolfe.

 

Até porque dormira apenas seis horas, duas menos do que o habitual, já que havia regressado para casa depois da meia-noite. Ainda me faltava datilografar doze cartas, antes de me recolher, mas, por me sentir cansado, decidi que o faria na manhã seguinte. Assim, marquei o despertador para as sete horas. Quando tocou, ainda abri um olho, mas sabia que tinha de me apressar. Seis, talvez sete minutos mais tarde, já tinha levantado. Às 7: 45, bebi o último gole de suco de laranja que Fritz preparara para o café-da-manhã, além de bacon e milho fritos. As 8:10, estava no escritório escrevendo à máquina. Eram 9: 15 quando terminei a ultima carta e começara a dobrá-la, quando a campainha da porta tocou. Me levantei, para ir ver quem era, e, quando olhei pelo óculo, avistei um homem alto, forte, de rosto corado, com um chapéu de feltro, de abas largas, já algo puído. Só o chapéu teria sido suficiente. O inspetor Cramer, da Brigada de Homicídios, deve ser o único homem, em Nova Iorque, que usa um chapéu assim, em pleno mês de agosto, ainda por cima num dia de muito calor. “Raios!”, praguejei mentalmente. “Deixe-o tocar! Espere; deve querer falar comigo, pois sabe que Wolfe nunca recebe visitas antes das onze da manhã.”. Por isso, abri a porta e cumprimentei alegremente:

 

—        Bom-dia, mas estou ocupado e com pressa.

—        Também eu, foi a resposta mal-humorada que recebi, para variar. — Resolvi passar por aqui, a caminho da brigada. Porque foi que você telefonou a Stebbins pedindo informações sobre aquele atropelamento?

—        Caramba! Eu expliquei a razão a Stebbins!

—        Eu sei. Só que os conheço bem, a si e a Wolfe. Discutindo o crime, em geral, uma ova! Pois bem: discutam o assunto comigo, aqui e agora, porque quero saber se estão trabalhando nesse caso.

—        Não, não estamos, respondi, enquanto consultava o relógio. — Gostaria de convidá-lo para dois dedos de conversa, porque sabe que isso me diverte sempre, mas tenho um compromisso. Regressando à sua pergunta, com exceção do que veio publicado nos jornais. nem eu, nem, muito menos, Mr. Wolfe sabemos o que quer que seja acerca desse tal atropelamento. Ninguém nos veio consultar acerca disso. O único cliente que temos, no momento, é uma jovem que quer que encontremos o seu pai. Tornei a olhar para o relógio, — Bolas, vou chegar atrasado! Dito isto, virei as costas. Cramer ainda abriu a boca, mas, depois, fechou-a e começou a descer os degraus Quando entrou no carro da polícia, estacionado em fila dupla, já eu regressara ao escritório.

 

O tempo escasseava, mas era possível que Cramer telefonasse, enquanto eu estivesse ausente, e Wolfe ainda não sabia que eu havia falado com Purley Stebbins. Muito embora não deva interrompê-lo, a não ser em caso de emergência, quando ele está na estufa tratando das suas orquídeas, tinha de pô-lo ao corrente do que acontecera. Apertei o botão do intercomunicador interno e passado algum tempo, uma voz resmungou:

 

—        Sim?

—        Sou eu. Cramer esteve aqui. Não tive oportunidade de lhe dizer, mas telefonei a Stebbins, no sábado à tarde, e...

—        Estou ocupado! Bradou Wolfe. E, sem mais, desligou.

 

Penso que devia ter acabado de encontrar uma erva daninha numa das suas plantas favoritas ou descoberto uma raiz apodrecida num bolbo raro, mas, como já disse, não gosto que me gritem. Se Cramer telefonasse, que discutisse o crime, em geral, com Wolfe. Que lhes fizesse bom proveito. Já na posse das doze cartas relativas a outras tantas aberturas de depósitos à prazo, ainda me faltava tratar de um último pormenor: telefonar para Mortimer N. Hotckiss, o vice-presidente da sucursal da 34th Street do Continental Bank and Trust Company. Felizmente, foi um telefonema rápido, porque Mr. Hotckiss se mostra sempre pronto a prestar um serviço a um cliente, não eu, claro, mas, sim, a Nero Wolfe, cujo extrato bancário nunca desce abaixo dos cinco algarismos, atingindo os seis, uma vez por outra. Por fim, retirei a caixa do cofre e saí. A carta havia sido guardada numa prateleira, juntamente com outros documentos.

 

Chegando ao banco, descobri que Mr. Hotckiss fora eficiente. Mal tinha acabado de entrar, quando um homem avançou na minha direção, perguntou se eu era Mr. Goodwin e me conduziu a um gabinete. Depois de fazer uma curta vênia, abriu a porta para eu entrar. Amy Denovo já se encontrava no gabinete, sentada numa cadeira. E, atrás de uma mesa com tampo de vidro, se achava um homem de meia-idade, calvo, que usava óculos de aros de metal muito fino. Levantou-se para me cumprimentar, disse “É um enorme prazer conhecê-lo, Mr. Goodwin”; embora Hotckiss seja o vice-presidente daquela sucursal, ainda faltavam muitos anos para aquele homem atingir tal posto.

 

—        Mr. Atwood! Exclamei.

 

O homem disse que sim, me convidou a me sentar, mas só o fiz depois de dar os bons dias a Amy Denovo. Por fim, pousei a caixa de metal na mesa, tirei a chave do bolso e levantei a tampa. Atwood, que, entretanto, ia se sentar novamente, se levantou para espiar o conteúdo da caixa. Pude perceber que, apesar de ser bancário, o seu olhar deixava transparecer certa surpresa.

 

—        Este dinheiro pertence a Miss Denovo, informei. — Suponho que Mr. Hotckiss o terá informado de que trabalho para Nero Wolfe. Ora, Miss Denovo contratou os serviços de Mr. Wolfe e estou aqui para ajudá-la. Essa caixa contém duzentos e quarenta e quatro mil dólares, em notas de cem. Miss Denovo gostaria de receber, em troca, doze cheques, de vinte mil dólares, cada, e depositar os restantes quatro mil dólares na sua conta corrente.

—        Certamente. É uma... Certamente. Vai desejar...? Bem, vai demorar um pouco para contar o dinheiro e preparar os cheques...

—        Não faz mal. Entretanto, se não estiver muito ocupado, gostaríamos de falar consigo sobre um outro assunto.

—        Certamente... Será um prazer, Mr. Goodwin.

 

Mr. Atwood ainda estendeu a mão para levantar o auscultador do telefone, mas mudou de ideia. Fechou a caixa de metal, meteu-a debaixo do braço, nos informou de que não se demoraria e saiu.

 

—        O que vai ele fazer? Perguntou Amy, assim que a porta se fechou.

—        O dever dele, retorqui. — Deixe-me dizer-lhe só uma coisa: desde que entrei, já cruzou e descruzou as pernas três vezes. Acalme-se. O “não demorar” depende sempre das circunstâncias.

 

Naquele caso, supus que se traduziria por cinco minutos, mas Atwood só regressou ao fim de doze minutos. Tornou a se sentar, atrás da mesa, e olhou ora para Amy, ora para mim, tentando decidir a quem devia se dirigir.

 

—        Vai levar um tempo... Anunciou, me fitando. — Mas queriam falar comigo?

—        Sim, respondi. — Sei que um banco deve usar de toda a prudência, quando se trata de divulgar informações acerca dos seus clientes, mas falo em nome de Miss Denovo. Acontece que a mãe de Miss Denovo teve conta corrente, nesta sucursal, durante nove anos. Ora, deduzo que, quando o senhor viu o conteúdo da caixa, perguntou a si próprio qual a sua proveniência. Pela nossa parte, julgamos que proveio deste mesmo banco. O homem me fitou, pasmado, algo que um bancário nunca deve fazer. Abriu a boca, tornou a fechá-la, mas, depois, ganhou coragem.

—        Importa-se de se explicar melhor, Mr. Goodwin?

—        É essa a minha intenção. Ao longo de vinte e dois anos, Mrs. Denovo recebeu, todos os meses, um cheque no montante de mil dólares, que levantava em notas de cem. É daí que provém o dinheiro daquela caixa. Contudo, a se avaliar por sua expressão, Mr. Atwood, talvez tenha lhe passado pela cabeça que era dinheiro ganho de forma ilícita, como, por exemplo, por meio de chantagem, mas não é o caso. Julgamos que Mrs. Denovo terá levantado esses cheques, aqui, nos últimos nove anos, e sua filha gostava de saber o nome do banco emissor. Ah, e também se os cheques eram emitidos ou endossados em nome de Elinor Denovo ou se eram ao portador. Os olhos de Atwood se fixaram em Amy, mas se virou novamente para mim.

—        Como o senhor mesmo disse, Mr. Goodwin, os bancos devem usar de toda a prudência, quando se trata de divulgar informações acerca dos seus clientes...

—        O que é perfeitamente natural.

—        Contudo, uma vez que se trata de Miss Denovo e da sua mãe, posso dizer que... Estou à vontade. Nem sequer preciso consultar os meus assistentes para responder às perguntas. Estou certo de que o senhor, como homem de grande experiência que é, Mr. Goodwin, deve ter conhecimento de que as instituições bancárias se mantêm informadas acerca de... Bem, chamemos de hábitos dos seus clientes. Há muitos anos que sabia que Mrs. Denovo levantava, todos os meses, um cheque no valor de mil dólares. Eram sempre cheques emitidos pelo Seaboard Bank and Trust Company, ao portador, e provinham da sede, situada na Broad Street. Aliás, para lhe ser sincero, estou muito agradecido, Mr. Goodwin. É que... Quando um cliente se nos apresenta, tendo em seu poder duzentos e cinquenta mil dólares, em dinheiro, sentimos... Bem, certa curiosidade. Por isso, fico feliz por me ter dado essa informação... Estou-lhe muito grato, Mr. Goodwin. E à senhora, também, Miss Denovo. Contudo, é tudo o que posso dizer, porque não sei mais nada.

—        E chega.

—        Ótimo. Dito isto, Atwood se levantou. — Vou ver se já está tudo pronto.

 

Assim que a porta se fechou atrás dele, Amy abriu a boca para dizer algo, mas lhe fiz um sinal para que se calasse. Deve haver cerca de dez mil gabinetes sob escuta, em Nova Iorque, e um deles podia muito bem ser o do responsável de uma agência bancária. Sendo assim, não era o local ideal para se falar de um segredo que um cliente guardara para si a maior parte da sua vida. Para passar o tempo, uma vez que não era de bom tom ficar, ali sentado, olhando para Amy, me levantei e resolvi ir ler os títulos dos livros que se alinhavam numa prateleira. Um deles me despertou a atenção. Tratava-se da Lista Internacional de Bancos. Abri-o na seção correspondente a Nova Iorque. As probabilidades de conhecer um dos diretores do Seaboard Bank eram, no mínimo, de uma num milhão; por isso, quando li aquele nome, Avery Bailou, o segundo nome, por ordem alfabética, da lista dos membros do Comitê de Diretores, exclamei: “Macacos me mordam!” tão alto, que Amy se virou, sobressaltada.

 

—        O que foi? Perguntou. Respondi que não era nada de importante e que lhe explicaria mais tarde.

 

O tempo que ficamos no banco, depois, se limitou ao estritamente necessário para simples operações de rotina. Às onze horas, estávamos numa drugstore da Madison Avenue, eu bebendo um café, e ela, um copo de leite, depois de eu pôr as doze cartas, com os respectivos cheques, numa caixa de correio. Da nossa visita ao banco, só restava a caixa de metal, que eu mantinha comigo. Só então lhe disse por que a mandara se calar, eu descobrira alguém, por acaso, sem mencionar, contudo, o nome de Bailou. As 11:10, lhe disse que precisava dar um telefonema, procurei uma cabine, disquei o número que tão bem conhecia e, após oito toques, ouvi o que já esperava.

 

—        Sim? Resmungou Wolfe.

—        Sou eu. Estou numa drugstore com a nossa cliente. As cartas já seguiram, com os respectivos cheques, e ela vai guardar a caixa, em memória da mãe ou do pai, não sei bem. Tenho três coisas para lhe contar: primeiro, o que quis lhe dizer, nesta manhã, quando gritou comigo. Cramer pode entrar em contato consigo e, por isso deve saber que telefonei para Stebbins, no sábado à tarde. Como pretexto, lhe disse que estávamos falando de crimes em geral, e que, no meio da conversa, o atropelamento que vitimou Elinor Denovo viera à baila, o que me despertara a curiosidade. Fui bem claro, quando expliquei que apenas queria saber se eles já haviam encontrado o culpado. Como não podia deixar de ser, Stebbins foi logo contar a Cramer. E, como é habitual, este parte sempre do princípio que a mais inofensiva das perguntas, se for feita por mim ou por si, é sinônimo de um caso de homicídio, e veio me procurar. Expliquei que apenas sabíamos o que saíra nos jornais e, portanto, se ele telefonar...

—        Pff... Que mais?

—        Segundo: na sexta-feira à noite, o senhor disse que, depois do banco, eu deveria me ocupar de Raymond Thorne. Houve alguma mudança de planos?

—        Não.

—        Terceiro: a coisa correu muito melhor do que eu esperava, no banco. Os cheques foram emitidos, ao portador, pelo Seaboard Bank and Trust Company, o terceiro maior banco de Nova Iorque. Ah, e enquanto eu esperava, resolvi consultar a Lista Internacional de Bancos. Não vou mencionar o nome pelo telefone, mas, com certeza, deve estar lembrado daquele homem, que, numa noite de Inverno, há cerca de um ano e meio atrás, veio nos ver. E, que quando se sentou na poltrona de couro vermelha, exclamou, e passo a citar: “Nunca passei uma hora sequer naquele quarto de dormir cor-de-rosa.”. Pois bem, faz parte do Comitê de Diretores do Seaboard Bank.

—        Sério? Seguiu-se uma pausa de cinco segundos. — Muito bem.

—        Devo falar primeiro com ele ou com Thorne?

—        É melhor se ocupar de Thorne. Nova pausa. — Preciso pensar nessa hipótese.

—        Está bem. Ah, e não fique espetado, na porta da sala de jantar, porque não devo chegar a tempo do almoço.

 

Quando me sentei de novo em frente de Amy, esta exclamou:

 

—        Venho pensando... O senhor é uma pessoa maravilhosa, Mr. Goodwin. Quem me dera... Como gostaria de poder tratá-lo por Archie.

—        Pois tente para ver o que acontece. Pode ser que eu goste. E, uma vez que me disse que a sua mãe foi sarcástica, quando lhe deu o nome de Amy, deduzo que vá querer que a trate por Araminta, Hephzihah ou por outro nome qualquer...

—        Creio que podia escolher outro nome, mais bonito...

—        Acredito que sim. Bem, há um problema. Vou ter de interrogar as pessoas que conheceram a sua mãe e que figuram naquela lista que me deu, ontem. Vou começar por Raymond Thorne. Quero que lhe telefone e diga que vou da sua parte. E não se esqueça de lhe dizer que conta com a colaboração dele. Só que não posso dizer a Thorne que ando atrás do homem que a sua mãe conheceu em 1944. Quando os seus genes se encontraram, uma vez que você não quer que ninguém saiba ou suspeite sequer que andamos tentando encontrar o seu pai. Por isso, tenho uma sugestão a fazer, já aprovada por Mr. Wolfe. Agora, só preciso da sua autorização.

—        Oh, da minha parte, autorizo tudo o que o senhor... Amy se deteve. O seu rosto estava crispado, mas, depois, sorriu. — Quem me ouvir, pode pensar que não sou inteligente... Conte-me o seu plano e assim veremos.

 

Assim fiz.

 

A sede da Raymond Thorne Productions ficava no sexto andar de um arranha-céu da Madison Avenue. A julgar pelo tamanho, mobiliário e aparelhagem, bem como pelo sorriso cordial da recepcionista, a arte, ou seria a indústria televisiva? Ia de vento em popa. Como é óbvio, não esperava que Raymond Thorne fosse o nosso alvo. Na carta, Elinor dizia à filha que não via o pai desta, desde que engravidara. E não havia motivos para supor que mentira e que vira o pai de Amy, cinco dias por semana, nos últimos vinte anos. A ideia de que um detetive deve suspeitar de tudo o que alguém afirma, em geral, é uma boa regra, mas tem limites.

 

Thorne condizia, à perfeição, com o seu gabinete, tão grande e moderno como ele. Deu-me um aperto de mão vigoroso, afirmou que queria ajudar Amy em tudo o que fosse possível, me convidou a sentar, mas, depois, confessou que não fazia ideia do que eu pretendia, porque Amy havia sido muito vaga, ao telefone.

 

—        Julgou que eu talvez pudesse lhe explicar melhor, retorqui. — Na realidade, é muito simples. Ela quer que Nero Wolfe... Talvez já tenha ouvido falar dele...?

—        Oh, sim claro!

—        Pois, Amy quer que Mr. Wolfe descubra quem matou a sua mãe. Pessoalmente, me parece que ela está algo obcecada, mas tem esse direito... Está convencida de que a polícia já deveria ter apanhado o culpado, ao fim de tanto tempo, e de que estão na pista errada. Na verdade ela crê ter se tratado de um homicídio premeditado. Ou, para ser mais precisa, tem certeza, Não me pergunte porquê. Já tentei descobrir, mas tudo o que ela me diz se trata de uma intuição. Diga-me, Mr. Thorne: que idade tinha, quando aprendeu que não se pode argumentar contra a intuição feminina?

—        Foi há tanto tempo que já nem me lembro...

—        Tal como eu. Só que a intuição de Amy não lhe revelou quem foi o assassino. Fez uma lista com os nomes, são vinte e oito, ao todo, das pessoas que eram amigas ou que tinham contato com Mrs. Denovo, mas, depois de passá-los em revista, concluí que não podia ser ninguém que ela conhecesse. Tem consciência de que nenhuma das pessoas da lista possuía um motivo para querer matar a mãe; portanto, deduziu que só pode ser alguém que ela não conhece, um colega do emprego, ou um conhecimento do passado. Por isso, vim falar primeiro com o senhor. A mãe de Amy trabalhava aqui e o senhor conhecia-a... Há quantos anos?

—        Há mais de vinte anos. O senhor crê mesmo que se tratou de um homicídio premeditado?

—        Mr. Wolfe lhe diria que é uma hipótese a ponderar. Sempre gostou de empregar este tipo de expressões. Talvez... Os fatos nada provam em contrário. E, se encontrarmos alguém com um bom motivo, o caso pode se revelar interessante. A primeira coisa que gostaria de lhe pedir era uma fotografia de Mrs. Denovo, pois estou certo que deve ter algumas. Raymond Thorne baixou o olhar por breves instantes.

—        Não creio... Deteve-se. — Amy não lhe deu nenhuma?

—        Não, porque não tem, nem encontrou retratos em casa. Mas, com certeza, o senhor deve ter, pelo menos, uma fotografia de Mrs. Denovo.

—        Bem... Raymond Thorne tornou a baixar o olhar. — Não me admira que não tenham encontrado uma só fotografia. Mrs. Denovo não gostava de retratos, pelo menos, dos dela. Quando queríamos tirar uma fotografia de todo o staff, para fins promocionais, já sabíamos que não podíamos contar com ela. Não havia ninguém que conseguisse convencê-la. Certa vez, imprimimos um folheto com retratos individuais, mas não o dela, muito embora devesse figurar, logo depois de mim. Não existe uma só fotografia de Elinor Denovo nos nossos arquivos. Contudo, Thorne me fitou e coçou o queixo, algo indeciso. — Mas possuo uma...

—        Sim, repliquei, estendendo a mão, — Na última gaveta da sua mesa. Thorne se empertigou.

—        Como sabe?

—        Até mesmo qualquer aprendiz de detetive saberia, e eu já tenho muitos anos de prática... Quando mencionei a palavra “fotografia”, o senhor, sem se dar conta, olhou para baixo e já o fez duas vezes.

—        Pois bem, se enganou. Não está na última gaveta, mas, sim, na penúltima. São duas fotografias. Foram tiradas, há muitos anos, por um câmera, que experimentava diversos ângulos. Lembrei-me das fotografias, uma semana depois de Mrs. Denovo morrer, e fui procurá-las nos velhos arquivos e consegui encontrá-las. Mas não me parece que deva... É que, se ela soubesse da existência destas fotografias, há muito as teria destruído. Não concorda?

—        Provavelmente. Só que Mrs. Denovo morreu, e se a intuição de Amy estiver certa, se efetivamente, se tratou de um homicídio e essas fotografias ajudarem a encontrar o culpado, o senhor as destruiria?

—        Não, claro que não.

—        Folgo muito em saber. Posso vê-las, por favor? Thorne se abaixou, abriu a gaveta e tirou um envelope castanho, de onde apanhou duas fotografias, que olhou.

—        Só quando vi estas fotografias, me lembrei de como ela fora bonita, na sua juventude... Foram tiradas em 1946 ou 1947, um ano depois dela vir trabalhar aqui. Meu Deus, como as pessoas mudam, com o passar dos anos...

 

Eu tinha me levantado e aproximado de Thorne, que me entregou as duas fotografias. Numa, se via quase todo o rosto de Elinor Denovo, mas, na outra, já estava de perfil. Quanto ao seu corpo, as fotografias não ajudavam muito, pois tinham sido tiradas de perto, focando apenas o tronco e o rosto. Havia certas semelhanças com Amy, mas a testa de Elinor Denovo era um pouco mais larga e o queixo, mais pontiagudo. Virei as fotografias, mas não havia qualquer data assinalada nem outras informações.

 

—        Não posso permitir que as leve consigo, declarou, então, Thorne. — No entanto, posso mandar fazer tantas cópias quantas as que forem necessárias. Tornei a olhar para aqueles retratos da mãe de Amy.

—        Podem nos ser de grande ajuda. E que tal se eu mandar fazer as cópias e devolvê-las, depois?

 

Thorne, todavia, se mostrou firme, alegando que se tratava da única recordação que tinha de uma mulher que o ajudara muito ao longo de vinte anos. Ao notar de que ele não ia mudar de ideia, devolvi as fotografias, não, sem antes, dizer, que iria precisar, pelo menos, de dez cópias. Resolvida àquela questão, retornei à minha cadeira e tirei o bloco de apontamentos do bolso do casaco.

 

 —       Agora, uma pergunta importante. Sei que tentará se esquivar, mas vou fazê-la assim mesmo. Amy julga que a pessoa responsável pela morte da sua mãe pode ser alguém que trabalhasse com ela, aqui. É capaz de sugerir um candidato? Thorne meneou a cabeça.

—        Já tinha notado isso, mas nem preciso de me esquivar à sua pergunta. Esqueça. Nesta empresa, trabalham quarenta e seis pessoas ao todo. E, ao longo dos últimos anos, devem ter passado pela nossa produtora uns cento e cinquenta colaboradores. Não vou dizer que todos eles achavam Mrs. Denovo perfeita, sim, porque, tínhamos as nossas divergências, mas homicídio? Nem pensar. Esqueça.

 

Essa ordem me agradou, sobremaneira, porque o pai de Amy nunca poderia ser uma dessas cento e cinquenta pessoas, a não ser que Elinor tivesse mentido, quando escrevera a carta à filha. De qualquer modo, decidi que não valia a pena continuar aborrecendo Thorne com esta questão, só para manter as aparências, e abri o meu bloco.

 

—        Muito bem, passemos à frente, por agora. Careço de algumas datas. Quando foi que Mrs. Denovo começou a trabalhar para o senhor?

—        Verifiquei isso, quando encontrei as fotografias. Começou a trabalhar para mim em 2 de Julho de 1945.

—        Já a conhecia, antes disso?

—        Não. Certa manhã, ela entrou no meu gabinete e disse que sabia que eu precisava de uma estenógrafa. Nessa altura, eu estava ligado à rádio, só mais tarde passei para a produção televisiva, e tinha apenas quatro pessoas que trabalhavam comigo, num pequeno apartamento da 39th Street. Estávamos no verão, e a minha secretária tinha saído de férias. Por isso, dei um bloco a Mrs. Denovo e mandei-a escrever algumas cartas. Ela se revelou tão eficiente que acabou por ficar.

—        Fora enviada por alguma agência de emprego?

—        Não. Perguntei-lhe quem a tinha enviado, e ela respondeu que não vinha da parte de ninguém, mas que sabia que eu precisava de uma estenógrafa.

—        E nem sequer tentou verificar as referências dela?

—        Nunca pedi. Bastou-me três dias para verificar como era eficiente, e não só como estenógrafa, e não pensei mais nisso. Ao fim de uma semana, pouco me importava onde ela trabalhara antes, ou como viera ter comigo. Fechei o bloco de apontamentos, que tornei a guardar no bolso do casaco.

—        Mas isso nos deixa completamente em branco, retorqui. — Primeiro, o senhor diz para eu esquecer todos aqueles que trabalharam com Mrs. Denovo, porque não existe a menor possibilidade de ter sido uma dessas pessoas a responsável pela sua morte e agora, afirma que nada sabia acerca de Mrs. Denovo, antes de 2 de Julho de 1945, nem o que fizera nem onde estivera?

—        Sim.

—        Depois de ter trabalhado em estreita colaboração com Mrs. Denovo, ao longo de vinte e dois anos? Não acredito.

—        Não é o primeiro. Dois policiais também não acreditaram. Mas é a...

—        Vieram vê-lo recentemente?

—        Não, estiveram aqui em maio, logo após o acidente. Mas é a verdade. Mrs. Denovo nunca falava da sua família ou das origens... Ou de tudo o que possa chamar-se de “pessoal”. Além de que não era uma mulher com quem... Digamos que era uma mulher que mantinha uma certa distância. Vou lhe dar um exemplo: certa vez, uma senhora, uma senhora muito importante para nós, porque representava um dos nossos maiores clientes, falou da irmã e perguntou a Mrs. Denovo se tinha irmãos. Ela nem sequer lhe respondeu. Sou um homem que avalia com alguma rapidez a personalidade dos outros e ao fim de um mês de convívio com Mrs. Denovo, notei que havia certas fronteiras que não deveria transpor, no caso dela, o que nunca fiz. No entanto, se quiser falar com uma das outras pessoas que trabalhavam com ela, faça favor, mas vai perder o seu tempo... Quer que...?

 

Noutras circunstâncias, teria dito que sim, e talvez devesse tê-lo feito, mas fora falar com Raymond Thorne, apenas porque Wolfe ordenara. Com quem queria me encontrar, era com Avery Bailou. Assim, repliquei que não queria incomodar as pessoas que trabalhavam na produtora, à hora do almoço, mas que talvez regressasse mais tarde. Por fim, exprimi os meus agradecimentos, em nome de Amy Denovo e Thorne me disse que, se regressasse, no dia seguinte, por volta das quatro da tarde, já estariam prontas as cópias das fotografias. Tornei a lhe agradecer.

 

De novo na rua, decidi almoçar no café de Al e me entupir com bacon, ovos e batatas fritas. A ideia de almoçar com Wolfe e de falar de algo como o futuro da informática ou do efeito do esporte organizado na cultura americana, quando deveríamos, antes, discutir como haveríamos de abordar Avery Bailou, não me agradava. Contudo, e porque sabia que Wolfe tivera tempo para refletir e devia estar ansioso como eu por falar em Bailou, resolvi lhe dar mais meia hora. Saí do café às duas horas em ponto e voltei para casa a pé. Às 2:05, entrei no escritório, tirei o recibo referente ao adiantamento de Amy Denovo do cofre, me dirigi à sala de jantar e exclamei:

 

—        O senhor me pediu para depositar este dinheiro na primeira oportunidade que eu tivesse e é o que vou fazer agora. Devo estar de volta, dentro de meia hora.

—        Não, ripostou Wolfe, enquanto pousava a xícara de café na mesa. — Isso pode esperar. Temos de tomar uma decisão.

—        Lamento, mas as ordens são para serem obedecidas. Dito isto, saí.

 

Devo admitir que acelerei o passo, até chegar à Lexington Avenue, mas, mesmo assim, demorei trinta e seis minutos. Quando entrei novamente no escritório, Wolfe estava postado em frente ao televisor com expressão carrancuda. Presumi que ficara tão irritado com a minha saída que concentrara a sua raiva na única coisa que o deixa fora de si: a televisão. Guardei o recibo do depósito bancário no cofre. Só então, Wolfe desligou o televisor. Virando-se para mim, exclamou:

 

—        Que diabo andou fazendo? Já sentado atrás da minha mesa, cruzei as pernas.

—        O meu almoço foi algo gorduroso e comi demais. Queria depositar os vinte mil dólares no banco, antes que fechasse. Mas me apressei a voltar para casa, porque sei que quer contar como devemos abordar Bailou. Primeiro, contudo, preciso fazer um relatório acerca do meu encontro com Raymond Thorne.

—        Não é preciso, a não ser que tenha descoberto algo que faça com que não seja necessário incomodar Mr. Bailou.

—        Não descobri nada, com exceção de duas fotografias de Elinor Denovo. Já tentou descobrir se ele se encontra na cidade?

—        Não. Você vai.

—        Claro... É que deve ser realmente fácil encontrar o presidente de um banco, em pleno mês de agosto... Pode estar em qualquer parte do mundo, de férias. Mas, se conseguir encontrá-lo, lhe peço que venha nos visitar ainda hoje? Sim, porque já notei que sou eu que vou ter de falar com ele.

—        Não, você, não, Archie. Wolfe pigarreou. — Possui muitas aptidões, algumas, extraordinárias, mas se trata de um assunto delicado, que pode se revelar espinhoso. Além do mais, fui eu que falei com ele, anteriormente. Você esteve presente, mas quem tratou do caso fui eu. Bem, agora quero me certificar quanto aos fatos apurados. Disse, pelo telefone, que os cheques que Mrs. Denovo recebia eram emitidos, ao portador, pelo Seaboard Bank and Trust Company. Tem certeza?

—        Só poderia ter, se os cheques estivessem na minha mão. A informação foi dada pelo gerente da sucursal do Continental, na 86th Street, onde Mrs. Denovo levantou cerca de uma centena de cheques nos últimos nove anos. O nome do homem é Atwood.

—        E diz que Mr. Bailou, agora, é diretor do Seaboard Bank?

—        A não ser que tenha se demitido. Obtive esta informação na edição deste ano da Lista Internacional de Bancos.

—        Acha que pode ser difícil descobrirmos quem passou esses cheques sem a ajuda de Mr. Bailou?

—        Diria que é quase impossível. O Seaboard Bank tem um volume de negócios de dois bilhões de dólares. O mais certo é a sede emitir milhares de cheques por ano, talvez mesmo dezenas de milhares, tratados por não sei quantos empregados. Para não falar do sistema informático. Nem sei por que lado havemos de começar. Bem, sempre podíamos pedir a Sue Corbett ou, inclusivamente, a Miss Denovo, para seduzirem um dos assistentes do vice-presidente, e, se não desse resultado, tentar outro. Assim, talvez daqui por um ano...

—        Telefone para Mr. Bailou.

—        Vai querer falar com ele?

—        Não. Pensará se tratar de um assunto urgente, se for você a falar com ele. Diga que, se não lhe causar incômodo, eu gostaria de falar com ele, aqui, hoje, às seis horas da tarde.

 

Virei-me e peguei no telefone. Tempos atrás, quando havia tentado entrar em contato com Bailou, tivera de falar, primeiro, com três pessoas e, desta vez, o ritual se repetiu. Falei primeiro com a telefonista, depois, com uma mulher que me obrigou a soletrar o meu nome por duas vezes, e, por fim, com um homem. Não sabia sequer se Mr. Bailou estava disponível, até que ouvi a voz dele.

 

—        Goodwin? Archie Goodwin?

—        Sim. Ao reconhecer a voz, continuei. — Ainda bem que o encontrei. Estou telefonando em nome de Mr. Wolfe. Se não for muito incômodo para o senhor, Mr. Wolfe gostaria de falar consigo. Pode vir até aqui, às seis da tarde? Silêncio, do outro lado do fio. Depois:

—        Hoje?

—        Sim. É que se trata de um assunto urgente...

 

Novo silêncio, mais demorado, e eu sabia porquê. Bailou não podia perguntar do que se tratava, porque havia sempre a possibilidade de alguém estar escutando a nossa conversa. No entanto, perguntou:

 

—        É assunto demorado?

—        Não; creio que não lhe roubará mais do que meia hora do seu tempo. Silêncio, mais uma vez.

—        Muito bem. Estarei aí às seis horas. Dito isto, desligou.

 

Pousei o fone no descanso, me virei para Wolfe, que ouvira a conversa pela extensão, e comentei: “Ele deve pensar que está de novo metido em apuros”, ao que Wolfe respondeu que, neste caso, Mr. Bailou se sentiria aliviado por ver que não era esse o caso. Depois, consultou o relógio de parede, declarou que ainda tinha uma hora livre, antes da sessão da tarde na estufa, e me disse que pegasse no meu bloco de apontamentos, porque ainda havia correspondência em atraso.

 

Às 5:30, depois de responder a uma dúzia de cartas, subi ao meu quarto para mudar de camisa, porque ficara empapado em suor, quando fora ao banco, às pressas, torrando no sol. Demorei apenas vinte minutos e já estava no escritório, quando Wolfe desceu no seu elevador pessoal. Tinha acabado de se acomodar na poltrona, quando a campainha da porta tocou.

 

Creio ter mencionado, antes, no relato que fiz sobre a morte da amante de uma figura importante, que o rosto de Avery Bailou apresentava uma tez rugosa, mas sem vincos. Contudo, quando abri a porta e o convidei a entrar, notei que havia um vinco profundo na sua testa. Parecia preparado para o pior e a sua expressão era soturna. Atravessou o átrio de entrada, apressado, se sentou na beira da poltrona de couro vermelho, depois de cumprimentar Wolfe com um aceno de cabeça nada cordial, e passou a mão por uma sobrancelha, um tique que eu já conhecia, da altura em que estivera realmente metido em apuros. Depois, cravou os dedos no braço da poltrona.

 

—        Não estou acostumado... Exclamou, mas a sua voz era rouca, e recomeçou. — Não estou habituado a receber ordens de um... De quem quer que seja.

—        Sim, suponho que não, concordou Wolfe. – Mas é que precisava vê-lo. Talvez se recorde de que nunca saio de casa para assuntos profissionais. Por outro lado, havia também a hipótese do senhor não querer que eu ou Mr. Goodwin fôssemos visitá-lo em seu escritório. Bem, mas primeiro, quero...

—        Porque pediu para me ver?

—        Já chegaremos lá. Primeiro, quero deixá-lo mais à vontade. O meu pedido não tem qualquer ligação com o que aconteceu, há dezoito meses atrás. Não está relacionado com o senhor ou com os seus assuntos particulares. É que...

—        Então, porque...?

—        Por favor. Passo por uma rara experiência, quase sem precedentes. Sinto-me embaraçado. Tenho de dizer algo, mas não sei como. Quero pedir a sua ajuda, mas como farei, sem correr o risco de ser mal interpretado?

—        Não sei. Nunca julguei que o senhor pudesse ter dificuldade em se exprimir. Mas é verdade? Não se trata de nada em que possa estar envolvido?

—        Não. Trata-se de um problema meu. E de Mr. Goodwin também.

 

Bailou respirou fundo. Finalmente, se ajeitou na poltrona, virou para mim e exclamou, já noutro tom de voz:

 

—        Aceitava, de bom grado, uma bebida...

—        Um gin on the rocks com uma rodela de limão, não é verdade?

—        Ainda se lembra? É fantástico!

 

Não me mexi, pois não queria perder pitada do que ia se seguir. Wolfe, ao ver que eu não me levantava, apertou um botão e, quando Fritz entrou no escritório, lhe pediu que trouxesse um gin para a visita, uma cerveja para ele e um copo de leite para mim. Feito o pedido, se concentrou de novo em Bailou.

 

—        É uma situação assaz delicada... Não posso fingir que o senhor me deve um favor. Pagou uma quantia substancial pelos meus serviços, após aquela investigação difícil e devera espinhosa. Lembro-me de que, na altura, frisou bem que eu devia salvá-lo, custasse o que custasse, da embrulhada em que se achava metido, mas era apenas o apelo desesperado de um homem que se encontrava debaixo de uma pressão insustentável. A conta foi saldada e o senhor não me deve nada. No entanto, a verdade é que, tanto eu como Mr. Goodwin, nos encontramos na posse de um segredo que o senhor continua querendo proteger a qualquer preço. Um segredo que podemos divulgar, nos baseando no nosso conhecimento e nas provas que apuramos durante a investigação. Sendo assim, seja o que for que eu disser, como posso lhe pedir ajuda, sem correr o risco de ser acusado de extorsão? De chantagem? Não por um júri, mas pelo senhor? Maldição! As palavras não ajudam, pois não existe uma fórmula mágica que possa eliminar o seu conhecimento de que eu posso divulgar um segredo que lhe diz respeito. Se bem que não existam circunstâncias para que eu ou Mr. Goodwin façamos tal coisa. Não obstante, o senhor sabe que podemos fazê-lo, e não posso abrir o seu crânio e lhe retirar essa suspeita da cabeça. Bolas! É melhor tentar novamente. Preciso da sua ajuda. Se me atrevo a pedi-la é baseado unicamente na suposição de que o senhor está disposto a me ajudar, não por obrigação, mas como prova do seu reconhecimento pelo serviço que lhe prestei. Se esse reconhecimento se desvaneceu, com o passar do tempo, nesse caso, nada lhe pedirei.

—        Posso assegurar que lhe continuo muito grato. O vinco da testa se desvanecera e Bailou sorrira mesmo, algumas vezes, perante a nítida atrapalhação de Wolfe. — Já podia ter me dito. Também fico contente por saber que não tenciona abrir o meu crânio.... Muito bem: qual é o seu problema?

 

A resposta àquela pergunta não foi dada de imediato, porque Fritz entrou nesse preciso momento. Serviu primeiro Wolfe, pousando uma garrafa de cerveja, por abrir, sobre a sua mesa, por serem essas as ordens que tinha. Wolfe tirou da gaveta um abridor, que Marko Vukcic lhe presenteara, mas que já não funcionava bem, e encheu o copo. Bailou bebeu quase metade do seu gin, mas tinha, a seu lado, a garrafa e o balde de gelo. Depois de Fritz se retirar, Wolfe limpou com o guardanapo, os lábios sujos de espuma branca e fitou Bailou.

 

—        Bem, tentei o melhor que pude... Anunciou. — Creio que será muito mais simples lhe fazer o pedido, sem mais rodeios. De acordo com Mr. Goodwin, o senhor é um dos diretores do Seaboard Bank and Trust Company.

—        Sim, faço parte do conselho de administração, bem como de outros oito, se a memória não me falha.

—        Não me diga. Pouco entendo de conselhos de administração, mas suponho que um diretor se dá com as pessoas que trabalham para ele. Passemos, então, ao meu problema: há vinte e dois anos atrás, mais precisamente, em junho de 1945, alguém passou um cheque, ao portador, no montante de mil dólares, do Seaboard Bank. Designemos essa pessoa por X. No mês seguinte, X emitiu novo cheque, de montante igual, e assim sucessivamente. Passou, no total, duzentos e sessenta e quatro cheques nestes últimos vinte e dois anos. O último foi emitido em maio deste ano. Ora, acontece que preciso saber quem é, porque tenho de lhe fazer uma pergunta. É este o meu problema. Bailou bebeu mais um gole de gin.

—        Que mais?

—        É tudo.

—        Meu Deus! Toda esta encenação, mandar me chamar, a sua visível atrapalhação, tudo isso para me pedir algo tão simples?

—        Não fazia ideia se seria simples ou não...

—        Mas é. Ainda o seria mais se os cheques tivessem sido endossados para uma determinada pessoa ou entidade, mas, mesmo assim, não é difícil, uma vez que se tratou de um mesmo montante, passado todos os meses, ao longo de vinte e dois anos. Basta um dos nossos funcionários ir consultar os arquivos. Goodwin podia ter me dito ao telefone. Telefono-lhe amanhã, o mais tardar, ou peço a alguém que lhe telefone. Dito isto, Bailou bebeu novo gole de gin. — Não há dúvida que me pregou um belo susto, o que não me agradou, mas, já que estou aqui, aproveito para lhe dizer que continuo muito grato pelo que fez por mim, numa altura em que eu precisava muito mais de ajuda do que o senhor, agora. E esvaziou, finalmente, o copo. — Como tem corrido o negócio detetivesco? Em seguida, Virou-se para mim. — Nem parece o Goodwin. Mr. Wolfe podia não saber como é fácil obter uma informação desse gênero, uma vez que quase não sai de casa, mas você devia saber. Amanhã, o mais tardar, um dos meus assistentes lhe telefona.

 

Bailou se levantou, se despediu e acompanhei-o à porta. De regresso ao escritório, comentei:

 

—        Já não tem o mesmo carro do ano passado. Afinal, não é verdade que uma pessoa compra um Rolls Royce para toda a vida...

 

Talvez os leitores concordem com Bailou. Não era necessária toda aquela encenação da parte de Wolfe, lhe pregando um susto, quando pediu que viesse visitá-lo, com urgência e, depois, se alongar num discurso algo confuso, mas não devem pensar assim. Bailou não sabia que X era, quase com certeza, um pai que não queria se dar a conhecer e que, podia inclusivamente, se tratar de um assassino, ao passo que os meus caros leitores sabem disso. Talvez se sintam igualmente satisfeitos por terem ouvido falar pela última vez de Avery Bailou, mas, se assim pensam, então, os espera uma surpresa desagradável. Assim como a mim, quando, às seis e quinze da tarde de terça-feira, a campainha tocou e vi Avery Bailou na soleira da porta. Ficara com a impressão de que não era assim tão fácil obter a informação que desejávamos, porque ainda não recebera qualquer telefonema do Seaboard Bank.

 

Ficara todo o dia em casa, mas, às quatro da tarde, depois de telefonar para Raymond Thorne e de este me dizer que as cópias das fotografias estavam prontas, informei Wolfe de que ia transferir as ligações para a extensão da estufa, e saí. Estava ainda mais calor do que na véspera, e foi com agrado que regressei à velha mansão, devidamente equipada com ar condicionado. As cópias eram tão nítidas quanto os originais. Eram 6:15, e Wolfe estava sentado em sua poltrona, estudando as fotografias, quando, como já disse, a campainha da porta tocou. Quando informei o meu patrão de que se tratava de Bailou, Wolfe resmungou baixinho e se apressou a esconder as fotografias.

 

Bailou não estendeu a mão para cumprimentar Wolfe. Acomodou-se na poltrona vermelha, dando a indicar que pensava demorar, se bem que o seu rosto não revelasse qualquer vinco. Fitou Wolfe e exclamou:

 

—        Teria dado tudo para ficar a par, ontem, do que o senhor sabe. Wolfe se endireitou. Tudo levava a crer que teria de recorrer a uma nova encenação.

—        Não está falando sério, retorquiu. — A sua afirmação é muito vaga. Sei de tanta coisa que não lhe interessa... Contudo, mesmo que nos confinemos ao que sei acerca de X, a resposta é: nada. Não só não possuo qualquer informação, como não tenho uma base para a mais simples conjectura. Estou perfeitamente...

—        O senhor fala demais. De uma coisa, tenho a certeza: de que o senhor sabe muito bem o motivo que o leva a desejar obter a informação que me pediu, assim, como tem consciência de que isso é suficientemente importante: caso contrário, não teria me pedido para vir até aqui. No entanto, agora, vai me dizer.

 

Wolfe recostou a cabeça nas costas da poltrona e fechou os olhos. Na maior parte das vezes, quando um cliente lhe dá uma reprimenda, olha para mim, à procura de ajuda. Neste caso, porém, de nada lhe servia. Talvez, utilizando uma tática de diversão para desviar o rumo da conversa, conseguisse se escapar, mas, com um homem como Avery Bailou, as hipóteses eram escassas. Além de que, se revelasse ao diretor do Seaboard Bank o que sabia, não sairia prejudicado nem, tampouco, comprometeria a nossa cliente. Foi o que concluí, assim como o próprio Wolfe, que tornou a abrir os olhos, mexeu a cabeça e retorquiu:

 

—        Mas teria dito, ontem, se tivesse perguntado. Uma jovem me contratou para eu descobrir quem foi, ou é, o seu pai. Tenho motivos para supor que seria relevante saber quem passou aqueles cheques. Mas revelar o nome da minha cliente, isso, já é violar uma confidência, e eu...

 

Wolfe se deteve porque tinha perdido a sua audiência. Bailou lançara a cabeça para trás e começara a rir às gargalhadas. Wolfe me fitou e encolhi os ombros, tão surpreso quanto ele. Por fim, Bailou parou de rir, nos fitou, sorridente, e desabafou:

 

—        Que maravilha! Caramba, me caiu muito bem! Ele se escondeu, durante vinte e dois anos? Macacos me mordam!

—        Vejo que o conhece.

—        Claro que o conheço! É de alguma ajuda se eu disser que aqueles cheques foram levantados por uma tal Elinor Denovo?

—        Mal não faz, se bem que não seja esse o nome da minha cliente. Mas não deixa de ser uma informação relevante. Agora, uma vez que o senhor conhece o homem que passou aqueles cheques, Mr. Bailou, quero que saiba, desde já, que não pode haver margem para qualquer mal-entendido. Se o senhor me revelar o nome desse homem, e espero que o faça, não poderei considerar isso como uma confidência. Servir-me-ei dessa informação no interesse da minha cliente.

—        Espero bem que o faça. Bailou parecia realmente divertido. — Ainda há poucas horas atrás, não pensava em revelar o nome dele. Ia telefonar para Mr. Goodwin e lhe dizer que não podia fornecer a informação pretendida, mas, depois, resolvi vir até aqui e descobrir por que motivo o senhor queria saber... Agora, que me revelou, vou lhe dizer o nome do homem que passou aqueles cheques, desde que... Que não esteja a me enganar. É só isso? Trata-se apenas de uma jovem que quer saber quem foi, ou é, o pai dela?

—        Sim, é só isso. E, ao me dizer que a pessoa que levantava aqueles cheques era Elinor Denovo, fez com que o homem que o senhor conhece seja quem procuro.

—        Macacos me mordam... E realmente incrível. Que idade tem essa tal jovem?

—        Vinte e dois anos. O primeiro cheque foi passado duas semanas depois dela nascer.

—        Ora vejamos... Setenta e seis menos vinte e dois... Ele tinha cinquenta e dois anos. Bem, também é verdade, que não o conhecia tão bem, nessa altura, como agora... O nome dele é Jarrett. Cyrus M. Jarrett. E não se trata de uma informação confidencial, porque qualquer pessoa que esteja ligada ao ramo bancário, o conhece. Ele era o presidente do Seaboard Bank, há vinte e dois anos atrás. Em 1953, quando tinha sessenta e dois anos, se tornou o presidente do Conselho de Administração do banco. Alguns de nós queríamos vê-lo fora do conselho, mas ele detém a grande maioria das ações do Seaboard, e não só... É um homem riquíssimo. Devia ter se aposentado aos sessenta e cinco anos, mas não o fez. Só que, por essa altura, conseguimos afastá-lo do executivo. Isso foi em 1959, há oito anos atrás. Mesmo assim, ainda faz parte do conselho de administração, mas raramente assiste às reuniões.

 

Bailou se deteve para sorrir, mas era um sorriso íntimo.

 

—        Tudo isto é do conhecimento geral, continuou. — Se friso bem este ponto, é, porque talvez o senhor tenha perguntado a si próprio, por que razão eu me mostrei disposto a revelar a sua identidade. A verdade é que nunca gostei dele, nem gosto, e não sou o único... Quanto ao fato de se poder considerar uma informação confidencial, pouco me importa que venha a se descobrir que fui eu que ajudei o senhor a descobrir Cyrus M. Jarrett. Duvido muito que isso vá tirar o sono do velho Jarrett, porque nunca ninguém o conseguiu, mas, mesmo assim, lhe desejo boa sorte. Ah, e se tiver mais perguntas, terei todo o gosto... Interrompeu-se para consultar o relógio. — Não, não é verdade, contrapôs, se levantando. — Ontem, cheguei atrasado, e vou chegar atrasado, outra vez, se houver muito trânsito.

 

Avançou para a porta, se virou para dizer: “Se tiver alguma dúvida, venha me visitar, Goodwin”, e saiu com tanta pressa que nem tive tempo de acompanhá-lo até à saída. Quando ouvimos a porta da rua se fechar, foi a vez de Wolfe consultar o relógio de parede. O jantar seria servido, dali a trinta e cinco minutos. Virou-se para mim e perguntou:

 

—        Gostou do que ouviu?

—        Bem... Não vou dizer que tenho vontade de pular de alegria... Já sabemos que é velho e que é rijo. Lembro-me de ter lido um artigo acerca dele na Fortune, certa vez, mas mais nada...

—        Tem o número de telefone de Miss Denovo?

—        Claro.

—        Telefone-lhe, mas quem vai falar, sou eu.

 

Consultei a minha agenda, disquei o número e, enquanto aguardava que Amy atendesse, decidi me anunciar como Archie Goodwin, e não apenas por Archie. Não queria dar uma oportunidade a Wolfe de tecer um dos seus comentários mordazes sobre o que ele chama a minha aptidão para estabelecer relações pessoais com mulheres novas. Quando ouvi a voz dela, perguntei:

 

—        Amy Denovo?

—        Sim, sou eu. Archie? Aquela pergunta mudou o meu plano inicial.

—        Sim. Estou lhe telefonando do escritório. Mr. Wolfe deseja lhe falar.

 

Wolfe levantou o auscultador do seu telefone, enquanto eu me mantive à escuta, pelo meu.

 

—        Nero Wolfe, Miss Denovo. Preciso lhe fazer uma pergunta. O seu telefone possui uma extensão?

—        Não.

—        De qualquer modo, serei reservado. Não gosto de telefones nem confio neles. Não me faça, pois, perguntas indiscretas. Descobrimos a pessoa que passou aqueles cheques. A informa...

—        Descobriram? Já?

—        Não me interrompa, por favor. Dir-lhe-ei apenas o que acho conveniente que seja dito ao telefone. A informação que recebemos é absolutamente segura. Quem passou os cheques está vivo, tem setenta e seis anos, é muito rico e se encontra aposentado. Mora em Nova Iorque... Bem, isso, eu não sei, mas sei que é fácil encontrá-lo. Por isso quero lhe fazer uma pergunta. A senhora sabe por que me contratou. Apesar de termos descoberto quem passou os cheques, isso não quer dizer que se trate da pessoa que a senhora tanto deseja encontrar. É apenas uma suposição, nada mais. Vai querer que eu...

—        Quero saber como ele se chama!

—        E saberá, se vier me ver, esta noite, às nove horas. O que quero perguntar é o seguinte: Vai querer que eu prossiga com a investigação ou prefere falar com ele pessoalmente? Gostaria de saber, antes do jantar.

—        Prefiro que seja o senhor a tratar do assunto, claro. Eu vou já para aí. Quero dizer... Posso ir agora?

—        Não. No meio de uma refeição? Esperamos pela senhora mais tarde, depois do jantar.

 

Dito isto, Wolfe desligou. Então, tirou as fotografias da gaveta, fitou-as, de sobrolho franzido, e, por fim, pousou-as sobre a mesa. Virei-me para ele e exclamei:

 

—        Quer que eu telefone a Cyrus M. Jarrett e lhe diga que o senhor deseja vê-lo, amanhã às onze da manhã?

—        Sim, sibilou, algo que nunca fazia.

 

Depois, se levantou e foi para a cozinha.

 

Eram três e meia da tarde de quarta-feira, quando me sentei numa cadeira de ferro forjado, à sombra de uma árvore, no alto de uma colina do condado de Dutchess. À minha direita, se estendia uma vista panorâmica do rio Hudson. À minha esquerda, à uns cem metros de distância, se erguia uma mansão, ou palácio, ou castelo, cujos muros estavam cobertos de hera e que devia ter entre trinta a cinquenta aposentos. A toda a volta da ancestral mansão havia arbustos, árvores, flores e outras coisas, como a estátua de uma corça comendo na mão de uma menina. Tudo colorido por um gramado esplendoroso. E, à minha frente, sentado numa cadeira, estava um homem magro, de rosto comprido e esquelético, cabeleira farta e branca e um par de olhos azuis, tão gélidos que pareciam não possuir vida. Às três e meia da tarde, lhe disse:

 

—        Foi apenas um ardil. Não tenho qualquer ábaco de prata. Nem nunca vi um em toda a minha vida.

 

Tinha passado a manhã na biblioteca e na “morgue” da Gazette para recolher informações sobre Cyrus M. Jarrett, o suficiente para encher doze páginas do meu bloco de apontamentos, mas, por certo, não vai interessar saber que foi a perna esquerda que ele quebrou, quando caiu do cavalo, em 1958. Não obstante, aqui ficam alguns dados. Quem comprara o palacete fora o seu, avô: o próprio Cyrus M. Jarrett nascera ali. Fora casado, mas a esposa falecera em 1943. Tinha dois filhos: uma jovem, morando no momento em Roma, porque era casada com um conde italiano, e um rapaz, de 43 anos, chamado Eugene E. Jarrett, que era membro de nove conselhos de administração, batendo o nosso amigo Avery Bailou por um ponto.

 

Cyrus M. Jarrett também fora membro da Comissão do Orçamento de Despesa Militar, durante a Segunda Guerra Mundial, e por aí fora.

 

Contudo, a informação mais importante para mim, foi o fato de Cyrus M. Jarrett usar seis dos aposentos da mansão para guardar uma das três maiores coleções de arte colonial do mundo, porque seria graças a essa sua paixão que pensava vir a ser recebido por ele. Ainda na biblioteca, consultei um livro sobre arte colonial, mas, ao fim de meia hora de leitura, notei que precisaria de, pelo menos, um mês, para arranjar um pretexto e conseguir com que Cyrus M. Jarrett me recebesse por uns meros cinco minutos. Assim, ali mesmo, inventei uma peça rara, me dirigi a uma cabina telefônica e disquei o número da residência do milionário.

 

A voz masculina que atendeu fez questão em saber exatamente qual o motivo que me levava querendo ver Mr. Jarrett; Disse-lhe que tinha em meu poder um ábaco de prata, da autoria de Paul Revere. O homem me pediu para aguardar e, após cinco minutos, regressou para me dizer que Mr. Jarrett afirmava que Paul Revere nunca fizera um ábaco de prata. Não me deixei intimidar e repliquei:

 

—        Não fez um ábaco de prata, uma ova! Faça favor de dizer a Mr. Jarrett que o tenho, neste momento, na minha mão.

 

A minha estratégia funcionou. Depois de aguardar mais cinco minutos, o homem me comunicou que Mr. Jarrett veria, a mim e ao “raro” ábaco de prata às três da tarde. Quando cheguei, às três em ponto, me conduziram ao jardim e fui informado de que Mr. Jarrett me receberia dali a pouco. O “dali a pouco” se traduziu em vinte e dois minutos, um por cada ano de vida de Amy Denovo, o que eu consideraria ser um bom presságio, se acreditasse nessas coisas.

 

Quando, por fim, Cyrus M. Jarrett veio ao meu encontro, reparei que parecia ter realmente setenta e seis anos, mas que caminhava como um homem de cinquenta e seis. Contudo, quando se sentou, à minha frente, lhe vi os olhos, que pareciam ser os de um homem de cento e setenta e seis anos de idade. Antes mesmo de me cumprimentar ele exclamou:

 

—        Onde está?

—        Foi apenas um ardil. Não tenho qualquer ábaco de prata. Nem nunca vi um em toda a minha vida. O velhote se virou:

—        Oscar! Chamou.

—        Mas tenho algo a lhe dizer. Trata-se de um recado de sua filha.

—        Da minha filha? O senhor é um mentiroso!

—        Não de Catherine. De Amy. Amy Denovo, insisti, enquanto olhava, de soslaio, para o homem, que, entretanto, se aproximava. — É um assunto muito... Pessoal.

—        O senhor não só é um mentiroso, como também um idiota.

—        Terei todo o gosto em falar sobre isso, mas preferia fazê-lo em particular... O homem parou a dois passos de Jarrett.

—        Chamou? Jarrett nem se deu ao trabalho de fitá-lo.

—        Julguei que precisava de você, mas não preciso. Pode se retirar. Depois, se virou para mim: — Quem é o senhor?

—        Identifiquei-me pelo telefone. O meu nome é Archie Goodwin. Trabalho para um detetive particular chamado Nero Wolfe. O recado que tenho, da parte de Amy, é que, agora que a sua mãe faleceu, ela gostaria de saber algo mais acerca do pai.

—        Podia tê-lo expulsado, mas prefiro deixá-lo se comprometer ainda mais, até eu chamar a polícia. Disse-lhe que o senhor era um idiota porque qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, sabe de que forma lido com chantagistas. Portanto, continue, até se comprometer seriamente.

—        Já estou seriamente comprometido, mas noutro sentido, repliquei, me recostando confortavelmente na cadeira. — Preciso admitir que poderia ser algo que desse motivo a uma chantagem, mas Amy pagou a Mr. Wolfe uma grande quantia e temos obrigações para com ela. Bem, no fim de contas, se trata do seu dinheiro, porque provém dos cheques que o senhor mandou à mãe dela.

—        Continue.

—        Ouça Mr. Jarrett. Não era fácil fitar aqueles olhos azuis e gélidos. — Não é necessário tratarmos do assunto em questão assim, deste modo. É bom que saiba que podíamos tê-lo deixado à espera, e tratar de investigar todos os pormenores que envolvem o nascimento de Amy Denovo. Só que isso representaria uma perda de tempo e de dinheiro, porque tudo o que Amy deseja é encontrá-lo. Não posso lhe garantir, mas duvido muito que ela arme um escândalo ou que exija que o senhor a reconheça como sendo sua filha legítima. É possível que queira receber algum dinheiro, mas, que diabo, o senhor possui dez vezes mais do que precisa. Ah, e não julgue que me baseio em simples conjecturas. Temos conhecimento dos cheques. Sabemos que foi o senhor que os emitiu. Duzentos e sessenta e quatro cheques, nestes últimos vinte e dois anos. Consta dos registros. Assim como sabemos que esses cheques foram sacados por Elinor Denovo. Bem, agora, creio que é a sua vez de falar.

—        Não, não! Continue, por favor. O que pretende esse tal Nero Wolfe?

—        Mr. Wolfe nada pretende. Quanto a mim, o que me deixaria realmente satisfeito seria algo do gênero: o senhor pede a Oscar para chamar a polícia. Quando chegarem, lhes diz que eu tentei fazer chantagem consigo, eu não abro a boca e eles me levam até à delegacia para me interrogarem, o que levantaria muita “poeira”, posso lhe garantir. A começar pelo nosso advogado e por um jornalista que conheço e trabalha na Gazette. Vejamos... Hoje é quarta-feira. Na sexta, dez milhões de pessoas estariam a par de muita coisa. Tanto rebuliço, ao fim de vinte e dois anos... Bem, como é óbvio, não revelaríamos o nome de Amy, mas, isso, pouco importa, porque é o seu nome que é conhecido. Quer que eu chame Oscar ou prefere fazê-lo?

 

Os olhos azuis ainda não tinham pestanejado. Juro. Contudo, o queixo ossudo se contraíra, uma ou duas vezes. Da minha parte, começava a notar por que havia tanta gente que não gostava de Cyrus M. Jarrett. É que as pessoas esperam que os seus interlocutores reajam, de uma forma ou de outra. Por fim, Jarrett falou:

 

—        Esses cheques constam dos registos do Seaboard Bank. Quem lhe deu essa informação? Abanei a cabeça negativamente. Bailou bem tinha dito que pouco lhe importava que se tornasse público que fora ele que nos ajudara a encontrar Jarrett, mas não ia lhe fazer a vontade.

—        Isso não interessa. O que conta é que os cheques foram descontados por Elinor Denovo. Posso sugerir uma coisa? É óbvio que não conseguimos nos entender. Se eu trouxer Amy até aqui, amanhã, talvez as coisas corram melhor. É boa jovem. Como deve saber, se formou pela Smith, é uma jovem atraente, de bons modos, e... Interrompi-me, porque Cyrus M. Jarrett tinha se levantado.

—        Nada sei, ripostou. — Não conheço nenhuma Amy e nunca ouvi falar de Elinor Denovo. Se essa mulher levantou cheques que foram debitados na minha conta, não faço ideia de como foram parar às suas mãos, nem isso me preocupa. Ah, e se publicar o que quer que seja acerca dessa história ridícula, processo-o. Dito isto, virou costas e se encaminhou para a mansão.

 

Deixei-me ficar sentado onde estava, porque o local era aprazível e desfrutava de uma bela vista para o rio. Pouco depois de Jarrett entrar, Oscar surgiu e foi se postar à sombra de uma árvore de ramos longos.

 

—        Que tipo de árvore é? Perguntei-lhe, mas não obtive resposta.

 

Teria sido interessante ficar ali, durante uma hora, para ver até que ponto o homem suportaria

ficar de pé, sem se mexer, mas eu estava com sede e duvidava muito que Oscar me trouxesse um refresco. Assim, levantei e me dirigi para o local onde deixara o Heron. Passei por Oscar, mas este fingiu não me ver.

 

O caminho que conduzia à mansão, tinha, pelo menos, um quilômetro. À saída da propriedade, transpus o portão, que era ladeado por altos pilares e virei à esquerda, em direção ao sul. Uma tabuleta anunciava:

 

NOVA IORQUE - 160 KM

 

Nunca tento pensar enquanto dirijo; a reflexão não nos leva a lado nenhum, ao passo que uma má condução pode nos levar aonde não queremos; de qualquer modo, não havia muito sobre o que refletir, uma vez que eu sabia o que ia se seguir. Wolfe e eu tínhamos concordado nesse ponto, sem discutir, caso eu não fosse recebido por Jarrett. Isto fora na véspera, depois de Amy sair do escritório.

 

Prometera-lhe que lhe contaria o que havia se passado e, por isso, chegando a Nova Iorque, entrei na 85th Street. Tentar encontrar um lugar para estacionar o carro, àquela hora, seria como tentar encontrar uma agulha num palheiro, e decidi ir até à garagem onde Elinor Denovo costumava guardar o seu automóvel. Não me perguntem porquê, mas sempre tive a sensação de que é de grande ajuda, visitarmos locais que estão relacionados, de uma forma ou de outra, com o caso que temos entre mãos, mesmo que não nos revelem nada de novo. Assim, segui o mesmo percurso de Elinor Denovo, na fatídica noite, desde que saíra da garagem, e depressa concluí que seria fácil, àquela hora da noite, para alguém que soubesse que era ali que ela guardava o carro, estacionar junto à esquina da Second Avenue, vê-la chegar, e depois, sair, a pé, e seguir em direção à 83rd Street. Nessa altura, o presumível assassino já teria posto o motor em marcha, pronto a arrancar a toda velocidade.

 

Não fiz um relato ipsis verbis a Amy, acerca do meu encontro com Jarrett. Raramente o faço com clientes, porque acabam sempre por perguntar porque não lhes dissemos isto ou aquilo, ou porque afirmamos esta ou outra coisa, a dado momento, o que pode levá-los a pensar que mentimos. Também não lhe revelei o que iria se seguir. Isso ainda seria pior; havia sempre o perigo de o cliente se opor aos nossos planos, por uma razão qualquer, ou, ainda, resolver fazer uma sugestão. Assim, quando relatei a Amy os fatos que achei serem relevantes, a única pergunta que me fez foi se eu pensava que Jarrett era, efetivamente, o pai dela. Como é óbvio, me mostrei cauteloso. Respondi-lhe que, se, por um lado, era o mais provável, por outro, ainda não tínhamos qualquer certeza. Em seguida, foi a minha vez de perguntar a Amy o que tencionava fazer, quando descobrisse finalmente quem era o pai dela, mas a jovem ainda não sabia. Aparentemente, era algo em aberto.

 

Faltavam dez minutos para o jantar ser servido, quando regressei à velha mansão de granito vermelho; por isso, o relatório teve de ficar para depois do delicioso enrolado de carne com molho de caril, da salada, da sobremesa e do café, servido, como de costume, no escritório. Quando terminei o meu relato, no qual incluí a minha ida a casa de Amy, a primeira coisa que Wolfe disse foi muito típico dele. Bebeu um gole de café e sentenciou, com ar solene:

 

—        Penso que é bem possível que Paul Revere tenha feito um ábaco de prata. Onde foi buscar essa ideia? Bati com os nós dos dedos na minha testa.

—        Certa vez, o senhor afirmou que quanto mais informações assimilarmos, maior é a capacidade do nosso cérebro em retê-las. Mas que dizer daquilo que nos vem à cabeça, mas que nunca assimilamos? É por essa razão que não posso lhe responder...

—        Aí você se engana. O seu cérebro reteve o nome de Paul Revere e sabia o que era prata e um ábaco. Aquilo que não consegue explicar é de que forma ligou essas três coisas, quando, pela primeira vez na sua vida, a sua conexão ia ao encontro de uma necessidade sua. Preciso concordar que não tenho resposta para tal. Desculpe. Não se importaria de telefonar, amanhã de manhã, a Mr. Bailou? Ou prefere ir visitá-lo?

—        Prefiro ir visitá-lo, porque não posso lhe mostrar uma fotografia pelo telefone.

—        Será que Mr. Jarrett vai fazer qualquer coisa? E se o fizer, o que poderá ser?

—        Em primeiro lugar, duvido muito de que ele se mexa. Em segundo lugar, eu não posso adivinhar qual seria a sua reação. Bem, como é óbvio, temos consciência de que, se aquele atropelamento foi um homicídio premeditado, e não involuntário, é bem possível que a nossa cliente, agora, seja um alvo a abater. E se me perguntar se eu acho que aquele homem respeitável, rico, de idade avançada, roubou um carro e atropelou uma mulher de meia-idade, honesta e trabalhadora, a resposta é sim. Aquele velho cretino, com olhos de peixe? Ah, sim!

—        É uma hipótese remota, mas... Avisou Miss Denovo do perigo que pode correr?

—        Não. Aí, sim, estamos perante uma hipótese muito remota. Pelo que eu disse e dei a entender, a única coisa que o velhote sabe que conseguimos descobrir que era ele quem emitia os cheques. Portanto, se Elinor tinha conhecimento de algo que ameaçava revelar, a ponto de se tornar forçoso eliminá-la, mesmo assim, o velhote não possui motivos para julgar que ela revelou esse segredo à filha. De qualquer forma, não me custa nada telefonar a Amy e lhe dizer que esteja preparada para dar um salto para trás, sempre que atravessar uma rua, mas creio que ela poderia interpretar mal a nossa intenção. Podia muito bem pensar que eu me preocupo mais com ela do que com o caso que temos entre mãos.

—        Muito bem, rematou Wolfe, encolhendo de leve os ombros.

 

Já tive ocasião de mencionar qual a opinião do meu patrão acerca do relacionamento que pode existir entre mim e uma mulher nova. Depois, pegou no peso-de-papéis (um pedaço de jade que certa mulher, nada nova, usara, há muitos anos, para golpear o marido) e murmurou:

 

—        Se estiver livre, esta noite, tenho três ou quatro cartas a que quero responder... Retorqui que quase metade da noite já se passara, mas, mesmo assim, peguei no meu bloco de notas.

 

 

Na quinta-feira de manhã, cometi o mesmo erro de sempre, abusando da minha sorte. Quando funciona, é ótimo; só que, na maior parte das vezes, a sorte não me sorri. Em vez de telefonar para Avery Bailou e marcar com ele uma hora em que pudesse me receber, fui até o banco, aonde cheguei pouco depois das dez horas, e, como consequência, fiquei duas horas na sala de espera do trigésimo quarto andar de um castelo financeiro de quarenta andares, situado na Wall Street. Mr. Bailou estava numa reunião. Isto quer dizer tudo, desde inspecionar pastilhas para a indigestão até presidir a uma reunião para decidir algo que irá afetar o futuro de milhões de pessoas. Fosse qual fosse o motivo, naquela manhã, estava comprometendo o meu dia. Havia muito com que distrair a vista, naquela sala com muros de mármore: pessoas que entravam e saíam a todo o instante, outros que estavam sentados, à espera, como eu. No entanto, me sentia tão desapontado com a minha boa estrela que nem me entretive a observar as outras pessoas.

 

Passavam cinco minutos do meio-dia, quando um assistente bem-parecido chamou e me conduziu ao gabinete de Bailou. O gabinete tinha seis janelas, cinco poltronas estofadas, mais duas portas e suponho que outras coisas, mas foi tudo o que consegui discernir, quando avancei para Bailou a fim de cumprimentá-lo. Se bem que houvesse uma mea enorme, ao fundo, ele estava de pé, junto de uma janela, e, se lamentava me ter feito esperar, não disse.

 

—        Que manhã! Exclamou. — Só posso lhe conceder cinco minutos, Goodwin.

—        Não vou precisar de mais. Dito isto, tirei algo do bolso. — O senhor disse que aqueles cheques foram sacados por Elinor Denovo. Aqui estão duas fotografias dela, tiradas há vinte anos atrás. Reconhece-a? Bailou examinou-as demoradamente, mas, depois, meneou a cabeça.

—        Não. Diz se tratar de Elinor Denovo?

—        Sim.

—        Foi ela que sacou os cheques e você conta descobrir qual a sua ligação com Jarrett, há vinte anos atrás, em 1947... Nessa altura, eu conhecia-o há pouco tempo... Aliás, nunca me dei com ele... Socialmente. Os meus contatos com Jarret foram praticamente relacionados com negócios. Dito isto, me devolveu as fotografias. — Mas vejo que é importante, para si, relacionar essa tal mulher a Jarrett.

—        É fundamental. Bailou se sentou atrás da mesa, apertou um botão e ordenou:

—        Ligue para o Seaboard e peça para falar com Mr. McCray.

 

Ainda bem que o intercomunicador da velha mansão não se estende ao meu quarto, porque ficaria danado se estivesse prestes a ir tomar banho e ouvisse a voz de Wolfe grasnar: “Onde está aquela carta de Mr. Hewit?”. Bailou não teve de esperar muito. Uma campainha tocou e ele levantou o fone.

 

—        Bailou... Bom dia, Bert. Tenho, aqui, comigo, um homem chamado Archie Goodwin... Sim, que trabalha para Nero Wolfe, como lhe disse ontem... Fez-me uma pergunta à qual não posso responder, mas talvez você possa. Posso mandá-lo até aí? Não, não demora nada... Sim, claro... Não, está apresentável... Sim, paletó, gravata... Caramba, está melhor do que eu... Ótimo. Eu sabia.

 

Desligou e se virou para mim.

 

—        Vai almoçar no Bankers Club com Bertrani McCray. Teve de soletrar o sobrenome. — Fica no n.º 120 da Broadway. Ele estará lá, daqui a dez minutos. Apresente-se como convidado de McCray. É o vice-presidente do Seaboard. Há vinte anos atrás, era o secretário, protegido de Jarrett e frequentava a casa dele. Depois, em 1950, se desentenderam, porque Jarrett não o promoveu a presidente, o que, entre nós, teria sido um absurdo, e McCray passou para o nosso lado, em 1953. Foi ele que, ontem, me forneceu a informação acerca dos cheques. Disse-me ainda que gostaria muito de conhecer Nero Wolfe; portanto, pode lhe fazer todas as perguntas que quiser. Entendido? Respondi que sim.

 

Bailou voltou a apertar o botão do telefone e anunciou:

 

—        Já posso receber aquele homem de Boston.

 

Assim, à uma da tarde, ocupava uma mesa numa sala espaçosa, que tinha outras cem mesas. Com uma média de três homens por mesa, suponho que estavam representados, ali, cerca de vinte bilhões de dólares, quer pessoalmente quer por procuração. O meu anfitrião, sentado à minha frente, tinha orelhas grandes demais, um nariz muito pequeno e um ligeiro tique no olho direito. Das duas, uma; ou era muitíssimo educado ou não tinha iniciativa, porque, quando escolhi linguado Véronique, acompanhado por uma salada, e, para sobremesa, sorvete de limão, ele pediu o mesmo.

 

Não obstante, ambos nos mostramos cordiais, durante a refeição; falamos sobre a onda de calor que assolava Nova Iorque, do problema da poluição, dos motins, enquanto nos deliciávamos com o prato principal. Porém, quando esperávamos pela sobremesa e pelo café, McCray anunciou que tinha apenas uma hora para o almoço e que Bailou lhe dissera que eu queria lhe fazer uma pergunta. Respondi na mesma moeda, retorquindo que Bailou me dissera que ele conhecia Cyrus M. Jarret há muitos anos, e talvez pudesse identificar uma mulher que Nero Wolfe desejava conhecer melhor. Tirei as fotografias do bolso do casaco e mostrei-as. McCray viu a primeira, me fitou, com olhos esbugalhados, viu a outra e tornou a me olhar, estupefato.

 

—        Macacos me mordam! Exclamou. — Mas é Lottie Vaughn! Esforcei-me por me manter impassível.

—        Ótimo, repliquei. — Ao menos, já sabemos o nome dela. Mas quem é Lottie Vaughn? Só então me dei conta de que estava cometendo uma tolice, porque já contara a verdade a Bailou. — O nome com que nos foi dado a conhecer é o de Elinor Denovo. E não restam dúvidas de que essas fotografias, tiradas há vinte anos atrás, retratam a mulher que dizia se chamar assim.

—        Não... McCray franzira as sobrancelhas. — Não entendo... Interrompeu-se e examinou novamente as fotografias. — Tenho certeza absoluta de que esta mulher é Carlotta Vaughn. Que quer dizer com “retratam a mulher que dizia se chamar Elinor Denovo”?

—        São as únicas fotografias que temos e precisamos delas, atalhei, estendendo a mão. — É uma história muito comprida e, em grande parte, confidencial. Pelo que Mr. Bailou me disse, fiquei com a impressão de que o senhor não morre de amores por Jarrett; mas como bancário que é, sabe que é sempre melhor revelar cautela demasiada do que nenhuma. Também está a par de que Mr. Wolfe espera chamar Jarrett à responsabilidade, em virtude de um certo assunto. Portanto, lhe ficaria muito agradecido se me falasse acerca de Carlotta Vaughn. Diga-me: Jarrett conheceu-a?

—        Foi na casa dele que travei conhecimento com ela.

—        Era convidada de Jarrett?

—        Não. Quando a conheci era a secretária particular de Mr. Jarrett, que a manteve ao seu serviço, após a morte da mulher. Nessa altura, eu era o secretário da mulher dele, mas o meu trabalho se dividia entre a sua mansão, ou, melhor, as suas mansões, e o escritório, e pode se dizer que ela era minha assistente. Pessoalmente considerava- a uma mulher muito inteligente e eficiente.

 

Nenhum de nós tocou nos sorvetes nem bebeu café. Entretanto, a hora que McCray tinha para almoçar já havia passado.

 

E devo dizer que o que me valeu, mais uma vez, foi a minha excelente memória, porque duvido muito de que McCray aprovasse que eu sacasse do meu bloco, com todos aqueles bilhões de dólares na sala. Deixo à vossa apreciação os fatos que recolhi acerca de Carlotta Vaughn, segundo o que Bertram McCray me contou. Tinha-a visto, pela primeira vez, na casa de Nova Iorque de Jarrett, em maio de 1942, quando Carlotta Vaughn era secretária particular de Mrs. Jarrett. Mantivera essas funções até novembro de 1943, quando Mrs. Jarrett falecera, vítima de câncer. Tornara-se depois, secretária particular de Cyrus M. Jarrett, porque, nessa altura, McCray passava dois terços do seu tempo no banco e o outro terço, em casa, quer na casa da cidade quer na de campo, e Carlotta era uma ajuda preciosa. Quase nunca ia ao banco; apenas fora lá, umas duas ou três vezes, em quatro meses.

 

Quanto às origens de Carlotta Vaughn, McCray sabia que ela era oriunda do Wisconsin, mais precisamente de uma pequena vila perto de Milwaukee, mas era tudo. Não sabia há quanto tempo ela vivia em Nova Iorque, onde estudara nem como se tornara secretária de Mrs. Jarrett. Era tudo o que sabia em relação à entrada de Carlotta Vaughn ao serviço dos Jarrett. Mas, relativamente à sua saída, era ainda pior. Carlotta Vaughn vivia com o casal, mas, no início da primavera de 1944, McCray pensava ter sido em fins de março, desaparecera. No entanto, podia ainda trabalhar para Jarrett, porque surgira na residência de campo, três ou quatro vezes, nos seis, sete meses seguintes. A última vez que McCray a vira fora no fim de setembro, ou no princípio de outubro de 1944, quando ela passara uma tarde com Jarrett, na biblioteca.

 

McCray não se mostrou igualmente de grande ajuda quanto às amizades e conhecimentos de Carlotta Vaughn. Gostava dela, admirava-a, e julgava que o respeito era recíproco, mas ele tinha se casado no ano anterior, aos 30 anos, e o seu primeiro filho acabara de nascer; portanto, não tinha muito tempo para pensar em Carlotta. Contudo, se lembrava vagamente de ficar com a ideia de que brotara algo mais do que uma simples amizade entre Carlotta e o filho de Jarrett, Eugene, que tinha 20 anos, em 1944, mas já não se recordava de qualquer incidente em particular. Quanto ao relacionamento de Carlotta com o velho Jarrett, McCray se debatia intimamente de forma tão transparente que tive de me conter para não rir. Era evidente que McCray sabia que Wolfe queria encurralar Jarrett, e teria adorado fornecer pormenores mais “picantes”, mas ou nascera demasiado honesto ou doentiamente tímido, para ir ao ponto de inventar um escândalo qualquer, só para se vingar do seu inimigo. Apenas realçou o que era óbvio: Que Carlotta passava grande parte do tempo a sós com o velho Jarrett, mas quando se esforçou por se lembrar se havia assistido a algo que levasse a suspeitar de que os serviços de Carlotta não se limitavam aos de secretariado, não conseguiu.

 

Acompanhei McCray até ao banco, só para ver a sede do Seaboard, agradeci o almoço e, em seguida, passei dez minutos na mais árdua tarefa que se pode ter em Nova Iorque: arranjar um táxi. Por fim, lá avistei um (preciso confessar que passei à frente de um homem que coxeava e não conseguiu chegar primeiro à viatura). Quando o motorista do táxi parou em frente da velha mansão de granito vermelho, às três menos vinte, já esboçara mentalmente o resumo que ia datilografar. Dizia o seguinte:

 

DADOS ACERCA DE CARLOTTA VAUGHN

Recolhidos a 24 de agosto de 1967, junto de Bertram McCray até maio de 1942.

Paradeiro desconhecido, mas, segundo a própria, se acreditar em McCray, vivia em algum lugar, no Wisconsin. De maio de 1942 a novembro de 1943, secretária particular de Mrs. Jarrett. Vivia com a família. De novembro de 1943 a março de 1944, secretária pessoal de Cyrus M. Jarrett. Vivia na mansão. De março de 1944 a outubro de 1944 (que inclui o mês em que Amy foi concebida), foi morar noutra parte, presumivelmente em Nova Iorque ou nos arredores, já que McCray a viu na mansão de Jarrett por três ou quatro vezes. De outubro de 1944 a 2 de julho de 1945 (que inclui o dia 2 de Abril, data de nascimento de Amy), nada se sabe. 2 de Julho de 1945 Elinor Denovo se apresentou no escritório de Raymond Thorne.

 

Quando, às cinco para as seis dessa mesma tarde, parei o Heron em frente da entrada principal da mansão de Jarrett, o céu se apresentava tão escuro e carregado de nuvens que parecia de noite, e chovia torrencialmente. Desliguei o motor e as luzes, guardei a chave no bolso, peguei na capa, para cobrir a cabeça, e corri para a porta. A recepção que me esperava ficou muito aquém das minhas expectativas. Foi Oscar que me recebeu, depois de tocar à campainha, três vezes. Dadas às circunstâncias, teria sido não só natural, como quase obrigatório, qualquer pessoa exclamar: “Que temporal!” ou perguntar: “Ficou encharcado?”, mas o homem abriu uma nesga da porta e quase rocei por ele, ao entrar, e, isto, porque me esperavam.

 

É frequente, após eu fazer um relatório ipsis verbis a Wolfe, se seguir uma longa discussão que, por vezes, termina, comigo ameaçando me despedir ou ele ameaçando me pôr na rua, mas, desta vez, não discutimos muito. Após uma breve troca de palavras, de três minutos, peguei no telefone e disquei o número da mansão de Jarrett. A mesma voz masculina que me atendera na véspera, atendeu ao telefone. Não soube se foi a de Oscar, porque este pouco ou nada dissera, quando o havia visto em pessoa.

 

—        Archie Goodwin, anunciei. — Estive aí ontem. Faça favor de dizer a Mr. Jarrett que vou visitá-lo, hoje. Estarei aí, dentro de duas horas.

—        Não posso fazer isso, Mr. Goodwin. Mr. Jarrett deu ordens para que não o deixássemos entrar e colocou um homem à porta...

—        Pois... Desculpe tê-lo interrompido, mas, como já esperava isso resolvi telefonar, primeiro. Faça o favor de dizer a Mr. Jarrett que quero lhe fazer algumas perguntas acerca de Carlotta Vaughn. Repeti o nome. — Carlotta Vaughn. Ele deve se recordar do nome. Espero que sim.

—        Mas, Mr. Goodwin, lhe asseguro...

—        Eu lhe asseguro, cavalheiro. Não digo que ele lhe vá agradecer pelo recado, mas tenho certeza de que irá me receber. Seguiu-se um breve silêncio.

—        Um momento... Retorquiu a voz, do outro lado da linha.

 

Aguardei mais do que na véspera. Wolfe, com o fone numa das mãos. Entretinha-se a ajeitar, com a outra, o rebento de uma Miltonia Hellemense que tinha à mesa. Por fim, a voz perguntou:

 

—        Mr. Goodwin?

—        Sim, ainda estou aqui.

—        Disse que estará aqui, dentro de duas horas?

—        Tudo depende... Talvez um pouco mais tarde.

—        Muito bem. Mr. Jarrett vai recebê-lo. Quando desliguei, Wolfe resmungou:

—        Essa criatura está tão habituada a uma subserviência contínua que até se mostrou respeitoso com você. Gostaria de falar pessoalmente com Mr. Jarrett. Seria mesmo quase capaz de me dar ao trabalho de ir contigo.

 

Mas era apenas conversa fiada, por parte de Wolfe. Antes de sair, passei à máquina o resumo sobre os dados relativos à vida de Carlotta Vaughn, que os leitores já puderam apreciar, no capítulo anterior. Desta vez, depois de dependurar a capa num cabide, segui atrás de Oscar.

 

Atravessamos um salão de entrada, um longo corredor e, depois, outro, mais estreito, ao fundo do qual havia uma porta aberta. Nem me lembrei de reparar na decoração porque estava demasiado ansioso em falar com Mr. Jarrett. Tinha a certeza de que, agora, haveria de reagir. Quando entrei numa sala, vasta, olhei, finalmente, em meu redor. Era uma divisão com um teto muito alto, um tapete Kashan cobrindo o assoalho, uma mesa, provavelmente de estilo colonial, e uma biblioteca ainda maior do que a de Wolfe. Havia muitas cadeiras, mas nenhuma estava ocupada. Oscar acendeu as luzes e comunicou que Mr. Jarrett me receberia dali a pouco. O “dali a pouco”, desta vez, demorou apenas um par de minutos.

 

Quando Jarrett entrou, por uma porta, mais estreita, situada entre as prateleiras da biblioteca, o clarão de um relâmpago recortou a sua silhueta sombria na sala. E, quando avançou para mim, ouviu-se o ribombar do trovão. Grande encenação, sim, senhor. Fitou-me com os seus olhos gélidos e exclamou:

 

—        Que deseja saber acerca de Carlotta Vaughn?

—        Talvez seja melhor, retorqui, — Contar-lhe o pouco que já sei. Carlotta Vaughn foi a secretária particular de Mrs. Jarrett, de maio de 1942 até à sua morte, e viveu aqui, bem como na casa que o senhor possui na cidade. Após o falecimento de Mrs. Jarrett, o senhor manteve-a no serviço. Em março de 1942, contudo, Carlotta Vaughn deixou de viver com o senhor, e, se bem que eu não possa provar que a manteve ao serviço, mas já com outro significado... Por mais tempo. Não existe qualquer lei que me proíba de tecer conjecturas, e começamos a investigação apenas há cinco dias. Dito isto, meti a mão no bolso. — Aqui estão duas fotografias dela, tiradas em 1946, mas, nessa altura, se apresentava como Elinor Denovo, e a filha, Amy, tinha um ano de idade. Veja. Estendi o braço, mas Jarrett não se mexeu.

—        Quem lhe paga, Goodwin? McCray? Provavelmente, ele não passa do moço de recados dos outros... Se bem que você deva saber os nomes deles. Se eu puder provar que se trata de uma conspiração com o fim de me difamar... Gostaria de meter na sua carteira dez mil dólares?

—        Nem por isso. Não passam de trocos, para mim. Ainda na semana passada, levei para casa uma caixa que continha duzentos e quarenta e quatro mil dólares que, por acaso, foram dados pelo senhor... Tornei a guardar as fotografias. — Os cheques que o senhor enviou a Elinor Denovo, que, no passado, se chamara Carlotta Vaughn...

—        Basta! Finalmente, Cyrus M. Jarrett reagia. Não através do olhar, mas pela voz. — Isso é ridículo! Os idiotas... Você pensa provar que eu sou o pai de uma jovem, chamada Amy, cuja mãe é Carlotta Vaughn, que trabalhou, em tempos, para a minha falecida mulher, e, depois, para mim, e que, presentemente, atende pelo nome de Elinor Denovo. Correto?

—        Diria mais, óbvio...

—        Quando foi que essa tal Amy nasceu?

—        Em 12 de abril de 1945, duas semanas antes de o senhor enviar o primeiro cheque a Elinor Denovo.

—        Nesse caso, foi concebida no verão de 1944, mais precisamente, em julho, a não ser que tenha sido um bebê prematuro... Bem, suponho que deve ter consigo um bloco. Pois bem, use-o. Apesar do tremendo berro que Jarrett dera, eu ainda não me reduzira à total subserviência, e bati na testa com a ponta dos dedos.

—        Arquivo todos os dados aqui.

—        Pois então, arquive isto. Em fins de maio de 1944, parti para a Inglaterra, como membro da Comissão do Orçamento de Despesa Militar, a fim de pedir conselho ao estado-maior de Eisenhower e aos ingleses. Uma semana após o desembarque na Normandia, apanhei um avião para o Cairo, sempre em serviço, e dali, segui para a Itália. Em 1 de julho de 1944, fui internado num hospital militar, em Nápoles, porque apanhara uma pneumonia. Como ainda estava muito debilitado, em 24 de julho, fui transferido para Marraquesh, a fim de me recuperar. O meu quarto era o mesmo que Churchill ocupara. A 20 de agosto, regressei a Londres, onde permaneci até 6 de setembro, e só então voltei a Washington. Se tivesse apanhado o seu bloco de notas quando lhe disse, teria escrito todas estas datas. Oscar!

 

A porta se abriu e Oscar se postou à entrada.

 

—        Idiotas! Resmungou Jarrett. — Sobretudo McCray, porque já nasceu assim. Se eles não sabiam onde eu havia passado o verão de 1944, podiam, ao menos, tê-lo descoberto. Era o que qualquer pessoa, com dois dedos de tino teria feito. Oscar, este senhor está de saída e não vai voltar. Dito isto, deu meia-volta e desapareceu pela mesma porta por onde tinha entrado.

 

Não estava com disposição para testar a paciência de Oscar, permanecendo naquela sala durante horas; por isso, saí. Quase ia me esquecendo da capa, mas, ao atravessar o átrio de entrada, avistei-a pelo canto do olho. Não a vesti, porque a chuva diminuíra.

 

Tive sorte em não ser multado. Regra geral, eu não ultrapasso os oitenta por hora, mas devo ter chegado aos cem, pelo menos, uma dúzia de vezes. Suponho que queria me despachar para poder refletir, mas havia algo que me incomodava e, num cruzamento, freei a fundo, encostei, tirei o bloco do bolso e anotei os locais e datas que Jarrett enunciara. Quando regressei à estrada, resmunguei, em voz alta:

 

—        Meu Deus, se já nem posso confiar na minha memória, então é melhor pedir demissão!

 

Eram oito horas em ponto, quando entrei na velha mansão de granito vermelho. Wolfe estava na sala de jantar. Olhei, anunciei que ia comer qualquer coisa e segui para a cozinha. Fritz estava ocupado preparando alcachofras. Quando entrei, me fitou com ar malicioso e comentou:

 

—        Ah, voltou são e salvo! Já jantou?

—        Não.

—        Ele estava preocupado consigo. Mas, como já sabe, eu nunca me preocupo consigo. Tenho uma sopinha de marisco...

—        Não, obrigado, eu não quero sopa. Quero algo que possa mastigar. Não me diga que ele comeu um pato inteiro no jantar!

—        Oh, não, não... Se bem que tenha conhecido um suíço que era capaz de comer dois patos inteiros, numa só refeição. A viagem foi boa?

—        Não, foi péssima. Dirigi-me a um armário para tirar uma garrafa. — Hoje, não quero leite nem café. Quero, isso, sim, emborcar uma garrafa de uísque.

—        Não aqui, Archie. No seu quarto. Vai querer umas carottes Flamande?

—        Sim, por favor.

 

Enchi o meu copo, me sentei, bebi um gole e franzi o sobrolho, mal-humorado. Fritz, ao notar o meu estado de espírito, se calou. Acabara de encher o meu copo com uma terceira dose de uísque, quando a porta se abriu e Wolfe entrou. Virando-se para Fritz, disse:

 

—        Hoje, tomo o café aqui.

 

Depois, se afastou para ir montar o banco desdobrável que havia perto da mesa. No passado, tinha comprado uma cadeira suficientemente larga para o seu corpanzil e mandara-a instalar na cozinha, mas, no dia seguinte, a cadeira havia desaparecido. Fritz guardara-a na cave. Tanto quanto sei, o motivo daquela mudança nunca foi mencionado por nenhum deles, nem na altura, nem depois. Outra coisa que nunca foi estipulada verbalmente, mas que é uma espécie de acordo silencioso, é de que a regra de não se falar sobre trabalho às refeições, não se aplica quando eu como, sozinho, na cozinha ou no escritório, porque se trata de um lanche e não de uma refeição completa. Assim, quando Fritz me serviu e depois de eu saborear um pedaço de pato Mondor e uma garfada de cenouras, disse a Wolfe:

 

—        Fico-lhe muito grato. Notou imediatamente de que eu precisava desabafar e veio tomar o café na cozinha, sentando nesse banquinho, quando podia tomá-lo no escritório. Obrigado. Wolfe esboçou uma careta.

—        Não devia acompanhar uma refeição com uísque.

—        Devia antes estar bebendo cicuta. Quem foi que bebeu cicuta?

—        Daqui a pouco, não diz coisa com coisa. Como se sente?

—        Esta faca servia às mil maravilhas para cometer haraquiri, mas o senhor precisa saber o que aconteceu para poder prosseguir com o seu trabalho. Contar-lhe-ei tudo, entre duas garfadas, e mais uns goles de uísque. Assim fiz, relatando, palavra por palavra, o meu encontro com Jarrett.

 

Quando terminei, as cenouras tinham desaparecido e do pato, só sobravam os ossos e o molho; saboreara-o com dois pãezinhos torrados. Wolfe já bebera um café e se servia de um segundo. Engoli o último pedaço de pato e arrematei:

 

—        Não me agrada a ideia de cometer haraquiri, de estômago cheio. Além do mais, tenho alguns comentários a fazer. Mas talvez o senhor queira falar, primeiro...

—        Não. Teve duas horas para refletir.

—        Duas horas que passei atrás de um volante, não a pensar. Mas está bem. Em primeiro lugar, o álibi dele. É quase certo que é inabalável, mas creio que Saul ou Orrie podiam investigar, até porque Carlotta Vaughn podia ter se encontrado com ele, em qualquer parte do mundo, mesmo se ele passou o mês de julho hospitalizado, por causa de uma pneumonia. Agora, a minha opinião: vai ser uma perda de tempo e de dinheiro. Quanto a mim, ele não é o pai de Amy. Pareceu-me muito seguro de si. No entanto, não custa nada verificarmos o seu álibi.

—        Orrie se encarregará disso. Vou precisar de Saul para outros trabalhos mais complicados.

—        Não duvido. Agora eu. A culpa é toda minha. Fritz, mudei de ideia. Posso tomar um café? Preferia que fosse você a me servir, porque as minhas mãos estão tremendo. Puxei a cadeira de maneira a ficar em frente de Wolfe. — Nem sequer posso culpar McCray. Mesmo se sabia onde

Jarrett passou o verão de 1944, não sabe quando foi que Amy nasceu. Não o dissemos a Bailou. Mas eu? Se tivesse sido minimamente esperto, teria perguntado a McCray onde se encontrava Jarrett no verão de 1944. Portanto, a culpa é toda minha, quando fui à mansão de Jarrett, debaixo de um temporal, dando oportunidade a esse troglodita de me fazer passar por um perfeito imbecil. Despeça-me. Não me pague o salário desta semana. Arranjarei trabalho pregando botões.

—        Não, se cometer haraquiri, Archie, comentou Fritz.

 

Não teria dito aquilo, na presença de Wolfe, se estivéssemos na sala de jantar ou no escritório, mas a cozinha era o seu reino.

 

—        Não foi de todo inútil, sentenciou Wolfe. — Confirmou-se aquilo que não passava de uma suposição válida: que ele sabia a data de nascimento de Miss Denovo. É ponto assente, agora. Ele organizou mentalmente essas datas e locais, antes de você chegar, o que já é alguma coisa...

—        Hum, hum. Bebi o café tão depressa que queimei a língua. — Obrigado por tentar me reconfortar. Agora, uma pergunta: digo à nossa cliente o que descobri acerca de Carlotta Vaughn?

—        Não; pelo menos, por enquanto. Um telefonema é suficiente para lhe dizermos que é muito pouco provável que Jarrett seja o pai dela. Que horas são?

—        Oito e trinta e cinco.

—        Vai chegar atrasado ao jogo de pôquer. É no apartamento de Saul?

—        Sim, como sempre.

—        Se Saul estiver livre, amanhã, diga que venha me ver, às dez da manhã, e que traga Fred e Orrie. Quando chegarem, lhes conte tudo. Bem, você viu Mr. Jarrett, mas eu, não. Preciso saber a sua opinião. A carta de Elinor Denovo dizia: “Este dinheiro é do seu pai.”. Sabemos que Mr. Jarrett enviou o primeiro cheque, duas semanas antes de Amy nascer, mas, ao que tudo indica, não é ele o pai. Então? O que o levou a fazer tal coisa?

—        Sim, vi-o e ouvi-o, só Deus sabe como. Pode haver milhares de razões, inclusive chantagem, para um homem enviar a uma mulher mil dólares, todos os meses, durante vinte e dois anos. Mas decidimos levar a carta de Elinor à letra, e ela realmente escreveu: “Este dinheiro

é do seu pai.”. Só que não significava que o dinheiro viesse diretamente do pai de Amy, porque não vinha, a não ser que consigamos encontrar uma falha no álibi de Jarrett, o que não é provável. Só que Elinor Denovo sabia que aquele dinheiro era enviado por Jarrett. Mesmo se não havia um acordo ou algo do gênero, ela sabia, porque os cheques eram emitidos pelo Seaboard Bank. Nesse caso, a frase “Este dinheiro é do seu pai” quer dizer: “Este dinheiro me foi enviado por Cyrus M. Jarrett, porque um certo homem é o seu pai.”. Tudo o que precisamos fazer é dizer a Saul e a Fred, enquanto Orrie se encarrega de verificar o álibi, que investiguem a vida de Jarrett, há vinte e dois anos atrás, e descubram por quem ele seria capaz de assumir um encargo tão elevado, durante tanto tempo.

—        Pelo filho.

—        Evidente. O filho é o primeiro da lista. Roubou-me a deixa. Ia me levantar e exclamar: “Até mesmo um babuíno faria isso por um filho, e Jarrett é pai” e, depois, sair. Levantei-me. — Se acontecer algo, esta noite, sabe o número de Saul. Talvez Eugene Jarrett venha visitá-lo para lhe dar dois dedos de conversa...

 

Dito isto, fui embora.

 

Quando Wolfe entrou no escritório, às onze da manhã de sexta-feira, Saul Panzer (que cobrava 10 dólares pelos seus serviços, mas que podia pedir o dobro, tão eficiente era), Fred Durkin (que cobrava 8 dólares à hora, mas que eram bem empregues) e Orrie Cather (que também cobrava 8 dólares à hora, dinheiro bem empregue, na maior parte das vezes) estavam sentados, à minha frente, nas cadeiras amarelas, de blocos nas mãos. Tinham chegado há uma hora.

 

Saul, um homem, magro e baixo, mas com um nariz e orelhas enormes, podia ter seguido qualquer carreira que quisesse, mas decidira ser investigador por conta própria, porque, assim, podia trabalhar quando quisesse, ganhar dinheiro suficiente para os seus gastos, passear bastante e usar o seu velho boné de lã de 1 de novembro a 15 de abril. Um boné reversível como aquele, de um lado, pele, do outro, tweed, que se guarda facilmente no bolso, pode ser de grande ajuda, quando se segue alguém.

 

Fred, mais baixo e forte do que eu, enganava muito. E para quem possa pensar que era uma pena não se poder trocar a sua força muscular pelo seu poder de raciocínio, devo dizer que era capaz de encontrar uma brecha em qualquer muro intransponível que aparecesse no decurso de uma investigação. Quanto a Orrie, infelizmente, era uma pena ele saber como era bem parecido. Um espelho pode ser muito útil, mas deixa de o ser se estamos mais interessados em verificarmos o nosso penteado do que em vigiar um suspeito.

 

Os três homens se levantaram, quando Wolfe entrou; depois, cumprimentaram-no com um aperto de mão, porque não o viam há várias semanas. Quando Wolfe foi se sentar atrás da mesa, todos os três homens mudaram as cadeiras de lugar, de maneira a ficarem de frente para o patrão. Informei Wolfe que já tratara de tudo: narrara o caso que tínhamos em mãos, dera dinheiro para as eventuais despesas e discutira com Orrie de que forma podia verificar o álibi de Jarrett. Wolfe fitou Saul e perguntou:

 

—        Algum comentário a fazer? Saul fechou o seu bloco de apontamentos.

—        Vários, até. O problema que se coloca, se quisermos descobrir o paradeiro dessa mulher entre março e outubro de 1944, é que não sabemos quando foi que ela deixou de se chamar Carlotta Vaughn e passou a responder pelo nome de Elinor Denovo. Descobrir o paradeiro de alguém, há tanto tempo, é sempre difícil, mas com essa condicionante vai ser ainda mais.

—        Mas julga que devemos começar por aí?

—        Sim. Deixe isso comigo e com Fred. Como é evidente, o filho é a nossa melhor aposta. Não é a nossa única aposta, no momento, mas isso é já uma tarefa para o senhor e Archie. Depois, temos McCray. Bailou disse a Archie que ele queria conhecer o senhor, Mr. Wolfe. Wolfe franziu as sobrancelhas. Estava pagando, e muito bem, quatro homens e era ele que tinha de trabalhar? Virou-se para mim e vociferou:

—        Archie, telefone para Mr. McCray. Eu falo com ele.

 

Talvez pensem que falar com o vice-presidente de um banco é mais fácil do que falar com o presidente, mas não é. Um funcionário qualquer se recusou terminantemente a passar a ligação, até Wolfe intervir. Mesmo quando a ligação foi feita, a Wolfe se deparou com um novo obstáculo. Mostrou-se cortês, explicando como ficaria grato a McCray se este viesse visitá-lo às três da tarde. Só que McCray não sabia se poderia vir às seis e perguntou se o encontro não podia ficar para a segunda-feira seguinte, uma vez que ia passar o fim-de-semana fora. Por fim, depois de Wolfe muito insistir, McCray concordou em vir nos visitar, por volta das seis da tarde.

 

O trio ficou para o almoço. Pedi à telefonista que me fizesse uma ligação a Washington, para falar com um general do Pentágono, que não se esquecera de um favor particular que Wolfe lhe fizera, havia alguns anos. O general de três estrelas declarou que podia receber Orrie Cather e que o ajudaria naquilo que lhe fosse possível. Passamos a hora e meia seguinte discutindo as missões de Saul e de Fred. Tudo o que possuíam eram dois nomes e as fotografias; nem sequer sabiam se, durante aquele período obscuro da vida de Elinor Denovo que ia de março a outubro de 1944, ela ficara em Nova Iorque, em algum subúrbio ou, até, no Wisconsin. Quanto às pessoas que a tinham conhecido, nessa altura, eram apenas quatro: os Jarrett, pai, filho e filha, e Bertram McCray, que me dissera que vira Elinor Denovo, depois desta deixar de trabalhar para o velho Cyrus, três ou quatro vezes, nos seis ou sete meses seguintes. Era difícil começar a investigar, embora tivéssemos por onde. Só nos restavam três hipóteses: Fred, munido com as fotografias, iria dar uma volta pelas lojas, desde lavanderias a drugstores, situadas nas redondezas da mansão e da casa de cidade dos Jarrett; Saul tentaria tudo o que lhe viesse à ideia, desde consultar listas telefônicas antigas a verificar os registros das contas-correntes, enquanto que eu colocaria um anúncio em todos os jornais nova-iorquinos. Foi o que fiz, depois do almoço. Wolfe tratara de redigir o anúncio:

 

Oferecem-se 500 dólares por toda e qualquer informação referente ao paradeiro de

CARLOTTA VAUGHN

Também conhecida como

ELINOR DENOVO

Entre abril e outubro de 1944.

 

Wolfe redigira-o, mas não sem alguma discussão. Queria publicar o anúncio, em meia página, com a reprodução da fotografia de Elinor Denovo. Opus-me, afirmando que isso faria com que recebêssemos um sem número de cartas de pessoas dispostas a tudo para ganhar quinhentos dólares, e que levaria uma semana para lê-las e entrar em contato com os possíveis informantes que, em sua maioria, se revelariam perfeitos vigaristas. Ganhei. Outra objeção, feita por Saul, foi a de que seríamos contatados por pessoas que tinham visto Elinor Denovo em circunstâncias que não eram relevantes, como, por exemplo, criados que estiveram à serviço de Jarrett, naquele período, mas Wolfe não lhe deu ouvidos. A sua teimosia podia lhe custar entre cinco e dez mil dólares, mas ele sabia que havia muito mais nos depósitos a prazo de Amy Denovo. Outro tópico da discussão foi o de que Raymond Thorne não ia gostar da implicação pública de que havia algo no passado de Elinor Denovo que carecia de investigação, mas se tratou apenas de um aparte, não de uma objeção.

 

 

Bertram McCray chegou às seis horas e oito minutos. Parecia estar precisando mesmo passar um fim de semana fora da cidade, uma vez que todo o seu rosto se mostrava crispado e arrastava os pés. Devia ser extenuante ajudar outros a decidir o que fazer com uns bilhões de dólares. Depois de apresentá-lo a Wolfe e de conduzi-lo até à poltrona vermelha, perguntei se queria uma bebida, mas McCray respondeu que não, porque ainda ia dirigir uns cem quilômetros, de carro, naquela noite. Sentou-se e anunciou que esperava que a conversa não se arrastasse por muito tempo.

 

—        Não quero parecer rude, acrescentou, — Mas tive uma semana terrível e preciso respirar ar puro. Não perguntei pelo telefone, mas deduzo que se trata de Jarrett...

—        Falhamos, retorquiu Wolfe. — Tudo leva a crer que Cyrus M. Jarrett não é o pai da filha de Amy Denovo.

—        O quê? Exclamou McCray, estupefato. — Mas... Porquê? Pois se foi ele que enviou aqueles cheques!

—        Sim, isso já ficou provado, graças a Mr. Bailou e ao senhor. Contudo, a jovem nasceu em 12 de abril de 1945 e, portanto, foi concebida no verão precedente. Ora Mr. Jarrett afirma peremptoriamente que, nessa altura, se encontrava no estrangeiro, ao serviço da Comissão do Orçamento da Despesa Militar. Mais, segundo ele, durante o mês de julho, esteve internado num hospital, em Nápoles, porque apanhou uma pneumonia.

—        Meu Deus... McCray me fitou. — Eu não lhe disse isso? Meneei a cabeça.

—        Nem eu perguntei... Devia tê-lo feito, mas não me lembrei, do que peço desculpas. Jarrett me disse que partiu para a Inglaterra em fins de maio de 1944, depois, para o Egito, Itália e África, e que retornou ao país, em 6 de setembro. Estamos já investigando isso, mas talvez o senhor possa nos ajudar. Ele me acusou de estar mentindo. Mas, e o senhor? Crê que é ele quem mente?

—        Podia dizer que Cyrus M. Jarrett é muita coisa, mas... McCray tornou a fitar Wolfe. — Têm certeza quanto à data de nascimento?

—        Sim, certeza absoluta. Mr. Goodwin tem em seu poder a respectiva certidão.

—        Nesse caso, suponho que nós... Que o senhor... Oh, meu Deus... Ele esteve fora do país, durante todo o verão. Posso verificar as datas em que saiu e regressou ao país, mas servirá de alguma coisa?

—        Não, mas o que precisamos saber, agora, é se Elinor Denovo que, nessa altura, ainda se chamava Carlotta Vaughn, também esteve fora do país, nesse verão. Pode nos ajudar?

—        Claro que não. Eu não... Apenas a vi, três ou quatro vezes, depois dela deixar de trabalhar para Jarrett, e mal falei com ela. McCray parecia irritado. — Podiam ter me perguntado pelo telefone... Acrescentou e, depois, consultou o seu relógio de pulso. — E, com isto, perdi uma hora...

—        Talvez não, persistiu Wolfe. — O senhor se sente tão vexado quanto nós, Mr. McCray. Ninguém pode me acusar nem a Mr. Goodwin de termos partido de uma suposição indevida. Primeiro, houve os cheques, claro; depois, as circunstâncias que o senhor indicou... Que Carlotta Vaughn deixou de trabalhar para Jarrett na primavera de 1944, mas que continuou a se dar com ele. Ora, me pareceu ser uma hipótese válida, de que ele talvez tivesse arranjado moradia para Carlotta Vaughn, se as relações entre ambos houvessem tomado um rumo que Jarrett preferia não tornar público. Nem temos de abandonar essa hipótese, por enquanto; apenas devemos ajustá-la. Ontem, o senhor disse a Mr. Goodwin que, em dado momento, pensou que era possível existir algo entre Carlotta Vaughn e o filho de Mr. Jarrett. Algo mais do que uma pura amizade. Ora, o rapaz tinha vinte anos e presumo que estivesse estudando num colégio interno, mas não durante o verão. Ora, o jovem podia ter arranjado alojamento próprio para Carlotta Vaughn, algo não totalmente impossível para o filho de um homem riquíssimo. Não quero fazê-lo perder mais tempo, Mr. McCray, falando do que parece ser óbvio. De que os cheques que Mr. Jarrett passou, se não eram para uma filha, podiam ser para uma neta. Peço-lhe que me dê a sua opinião. McCray franziu o sobrolho. Virou-se para mim e perguntou:

—        Eu disse isso?

—        Posso repeti-lo, palavra por palavra, se o desejar, retorqui.

—        Não é preciso. Devo ter falado sem pensar.

—        Não me parece. Foi quando lhe perguntei se Carlotta Vaughn tinha amigos e se o senhor se recordava de algo, em especial, e me respondeu que não.

—        Claro que não. É ridículo. Quer dizer que os senhores julgam que Jarrett enviou dinheiro para essa mulher, durante vinte e dois anos, só porque o filho... É completamente ridículo. De qualquer modo, há motivo... Não. Ele, nunca... Não. Quero deixar uma coisa bem clara. Quando Mr. Bailou me questionou acerca daqueles cheques e descobri que tinham sido passados por Cyrus M. Jarrett, não me opus a que o senhor tivesse conhecimento desse fato. Estava disposto a passar uma informação, de simples rotina, que pudesse comprometer Cyrus Mr. Jarrett e o prejudicasse. Só Deus sabe quanto ele me prejudicou. Mas nunca revelaria o que quer que fosse que pudesse prejudicar o filho, mesmo se soubesse de algo, o que não é o caso. Nutro o maior respeito por Eugene Jarrett, não só como colega de profissão, mas também como amigo. Vou lhe dizer outra coisa, que, aliás, é do conhecimento público: Eugene Jarrett e o pai não se falam há dez anos. A minha opinião acerca do velho Jarrett é branda, comparada com a de Eugene. Claro que, para ele, se trata de uma questão pessoal. Coisas entre pais e filhos. Se Cyrus M. Jarrett continuou a enviar dinheiro a essa mulher, quer se chame Carlotta Vaughn ou Elinor Denovo, nos últimos dez anos, então, não foi para proteger o filho, com certeza. Dito isto, se levantou. — Esqueçam Eugene Jarrett. No entanto, se eu soubesse algo mais acerca do pai, não teria hesitado em contar. Preciso admitir que gostaria de ver o velho Cyrus sofrer um rude golpe, e não sou o único. Existem, pelo menos, mais umas vinte pessoas, cujos nomes poderia enunciar, que pensam como eu. Além do mais, o fato é que ele enviou, efetivamente, os cheques àquela mulher, ao longo de vinte e dois anos... Tratar-se-á de chantagem? Talvez ela soubesse qualquer coisa que pudesse comprometer seriamente o velho Jarrett...? Se for esse o caso, então, só espero que o descubram. Mais uma vez, se pudesse ajudar, não hesitaria. Os senhores...? McCray se deteve, hesitante. — Se precisarem de um financiamento...

—        Não, obrigado. As despesas são por conta da nossa cliente.

—        Bem, nesse caso...

 

Virou costas e se dirigiu para a porta. O seu passo era tão arrastado que não tive dificuldade em alcançá-lo e acompanhá-lo à porta. Na saída McCray abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas, depois, mudou de ideia. O seu carro, estacionado ao fundo da rua, era um Imperial de 1965. Wolfe coçava a orelha, de olhos fechados, quando retornei ao escritório e fui me sentar atrás da minha mesa.

 

—        Se quer a minha opinião, comentei, — Não só fizemos perder tempo a Mr. McCray, como também perdemos o nosso. Não acredito naquela tirada dele acerca do filho, mesmo que este deteste o pai. Raios, só pode ser o filho! Quem mais haveria de ser? Wolfe resmungou qualquer coisa baixinho e abriu os olhos.

—        E se a nossa suposição de base for falsa? E se o envio dos cheques não tiver qualquer relação com o nascimento da criança?

—        Então, estamos perdidos e é melhor desistirmos. No entanto, se for esse o caso, Elinor Denovo mentiu, do princípio ao fim, quando escreveu aquela carta, o que me custa a acreditar. Se o envio dos cheques nada teve a ver com Amy, por que foi que Elinor Denovo guardou todo aquele dinheiro para a filha?

—        As mulheres são um poço de extravagâncias.

—        Quem disse isso?

—        Eu.

—        Nem sempre. Wolfe encolheu os ombros.

—        Tem tempo de escrever uma carta à máquina, antes de sair? Podes colocá-la no correio ainda hoje?

—        Ainda tenho tempo para escrever a carta, mas não para colocá-la no correio. Tirei o meu bloco da gaveta. —      Miss Rowan me dá de jantar, seja a que horas for. É uma mulher muito compreensiva.

—        Puff... Wolfe nunca esquecerá a vez em que Lily o tratou por Pete e o borrifou com perfume. — Tem o endereço pessoal de Eugene Jarrett?

—        Obtive-o esta manhã, porque pensei que Saul pudesse precisar conhecê-lo.

—        É uma carta a enviar para casa dele, por correio especial. Anote: Caro Mr. Jarrett. Em nome de um cliente, procuro informações relativas às atividades e conhecimentos de Miss Carlotta Vaughn, vírgula, entre 1944 e 1945, vírgula, quando trabalhou para o seu pai, vírgula, e me disseram que o senhor talvez pudesse me ajudar. Ponto final. Ficaria muito agradecido se pudesse ter a amabilidade de vir até ao meu escritório, vírgula, no endereço indicado acima, vírgula, na segunda-feira, vírgula, às onze da manhã, vírgula, ou, vírgula, então, vírgula, às duas e meia ou às seis da tarde. Ponto final. Espero que uma destas horas seja da sua conveniência. Ponto final. Com os meus melhores cumprimentos, vírgula, Nero Wolfe.

—        Porque não lhe propõe igualmente vir até aqui às nove da noite?

—        Como sabe, não gosto de trabalhar depois do jantar. Mas, suponho... Está bem. Acrescente isso à carta. Tirei duas folhas de papel em branco, outra de carbono e comecei a escrever à máquina.

 

Uma hora depois, quando seguia para Norte, não me sentia realizado, quer profissional quer pessoalmente. Do ponto de vista profissional, a nossa cliente fora levada ao esquecimento. Tinha lhe telefonado, na sexta-feira de manhã, para dizer que era muito pouco provável que Cyrus M. Jarrett fosse o seu pai e explicara porquê, mas mais nada. Ora, ela merecia saber que não se enganara em relação ao seu sobrenome e que o nome verdadeiro da mãe era Carlotta Vaughn; era o menos que podíamos lhe dizer, ao fim de oito dias de investigação. Do ponto de vista pessoal, ia a caminho de uma piscina, situada no meio de uma floresta belíssima, enquanto Orrie estava em Washington consultando registros antigos de serviços militares, e Saul e Fred vasculhavam buracos, provavelmente, vazios. Sentia que devia fazer algo brilhante, como encontrar um colchão, em algum lugar, com dois fios de cabelo, que um cientista provaria, depois, haverem pertencido a Carlotta Vaughn, também conhecida por Elinor Denovo, e a Eugene Jarrett.

 

Quando retornei a Nova Iorque, no domingo à noite, não me sentia muito melhor. O fim de semana fora péssimo. Regra geral, sou o único hóspede de Lily Rowan. Por vezes, contudo, ela convida mais alguém, que tanto pode ser uma poetisa como um cowboy do rancho que Lily possui no estado de Montana. Mas, para mal dos meus pecados, Lily Rowan tinha se lembrado de convidar Amy Denovo, desta vez. As coisas começaram mal, ainda por cima.

 

Tinha acabado de chegar, havia menos de uma hora, quando Amy surgiu e me tratou por Archie. Estávamos no terraço, eu tinha acabado de comer o bife que Lily grelhara para mim e me preparava para me deliciar com a torta de amoras, quando Amy pegou num cigarro. Numa reação instintiva, de perfeito cavalheiro, me apressei a acendê-lo; ela agradeceu com um terno “Obrigada, Archie”. Lily nem sequer pestanejou; mas, tanto quanto sabia, Amy apenas me vira por três vezes e não mais de dez minutos. Lily era uma mulher suficientemente inteligente para se dar conta de que algo acontecera. Pela sua expressão, se perguntou intimamente se Amy estava apenas a ser insinuante comigo, se eu resolvera ver a jovem mais vezes ou se me deixara entusiasmar pela sua beleza. Da minha parte, não podia revelar a Lily que Miss Denovo contratara os serviços de Wolfe; por isso, não tive outro remédio senão fingir. Mas a atmosfera ficou pesada.

 

É certo que sempre existiu um acordo entre mim e Lily: o que quer que eu faça não é da sua conta, a não ser que lhe diga diretamente respeito, e vice-versa, claro. Só que como conhecera Miss Denovo em casa de Lili, o caso se tornava complicado. Foi, de fato, um fim de semana para esquecer. Houve outros fatores que também não ajudaram em nada. Um dos cinco convidados de Lily para o almoço de sábado era uma mulher que usava peruca verde e que afirmava possuir informações fidedignas de que o presidente Johnson e Dean Rusk tinham decidido, há três anos, matar todos os habitantes da China com bombas de hidrogênio e que era essa a verdadeira razão por que estavam a fazê-lo no Vietnam. Claro que a única atitude a tomar para com este tipo de pessoas é ignorá-las, mas a mulher repetiu aquela lengalenga tantas vezes, que, já farto, não me contive, e lhe disse que eu possuía informações fidedignas de que o senador Fullbright tivera, há tempos, um tórrido romance com uma das concubinas de Ho Chi Mihn, e que era esse o verdadeiro motivo que o levava a lançar as bombas. Foi um erro tremendo da minha parte. A ideia pareceu encantar a mulher, que não me largou mais, ávida por conhecer todos os pormenores.

 

Depois, no domingo à tarde, surgiram alguns convidados inesperados: um casal, que eu conhecera antes de possuir uma vila perto de Bedford Village. Eram simpáticos, mas estavam acompanhados por um amigo que insistira com eles em ir até à propriedade de Lily, porque queria me conhecer. O nome do homem era Floyd Vance e dizia ser consultor de relações públicas. Como é óbvio, queria me conhecer por ser essa a melhor maneira de arranjar um cliente na pessoa de Nero Wolfe. Afirmou, alto e bom som, que, se por acaso, precisasse do conselho de um especialista na gestão da sua imagem pública de detetive particular, ele ficaria encantado se pudesse apresentar uma proposta a Nero Wolfe. Foi mesmo ao ponto de me dizer que, se estivéssemos trabalhando num caso, eu deveria lhe revelar tudo, porque isso serviria de base para a sua apresentação. Quando ouvi isto, ainda pensei que ele era um detetive, disfarçado, a soldo, por exemplo, de Cyrus M. Jarrett, mas depressa concluí que não passava de um infeliz, que se dedicava tanto a melhorar a imagem dos outros que não lhe sobrava tempo para tratar da sua. Certa vez, conheci um... Não, acho que já chega.

 

Mas, como dizia, quando retornei a Nova Iorque, no domingo à noite, não me sentia muito melhor. Por vezes, este tipo de coisas nos tira a alegria de viver, tal como quando nos cai um botão da camisa ou quando estamos cheios de pressa, mas, geralmente, são as pessoas que nos rodeiam. Bem, claro que, das três pessoas que tinham tornado o meu fim de semana menos do que perfeito, apenas o contributo de Amy podia me trazer problemas. Lily ainda matutaria durante uma semana, e não podia censurá-la, mas eu não ia lhe dar qualquer explicação. Quando duas pessoas que se querem bem, começam a exigir explicações do parceiro, cuidado!

 

E diria à nossa cliente o verdadeiro nome de sua mãe, quando quisesse.

 

O problema, ao indicar uma caixa postal num anúncio, em vez de um endereço ou de um número de telefone, sobretudo quando é publicado em três jornais diferentes, é ter de ir buscar as cartas. Depois de telefonar, às dez horas da manhã de segunda-feira, e de saber que havia algumas respostas, fui buscá-las. Havia duas no Times e quatro na Gazette, mas eram tão confusas que, se me dei ao trabalho de trazê-las para casa, é porque guardo sempre tudo que esteja relacionado com um caso, enquanto o mesmo não ficar encerrado. Uma das cartas era de um homem que afirmava que Carlotta Vaughn era a sua avó, e talvez houvesse uma senhora chamada assim, mas não falava de Elinor Denovo. Regressei pouco depois das onze e Fritz me disse que não tinha havido ligações. Contudo, quando entrei no escritório, depois de cumprimentar Wolfe com um aceno de cabeça, o telefone tocou e fui atender.

 

—        Escritório de Nero Wolfe. Fala Archie Goodwin. Uma voz feminina declarou:

—        Bem dia. Mr. Jarrett gostaria de falar com Mr. Wolfe.

—        Bem dia. Pode lhe passar o telefone.

—        Mr. Wolfe está?

—        Sim.

—        Pode lhe passar o telefone?

—        Ouça, ripostei, enquanto fazia sinal a Wolfe, — Na sexta-feira passada, telefonei a Mr. McCray, a pedido de Mr. Wolfe, mas me obrigaram a passar o telefone a Mr. Wolfe, antes de Mr. McCray atender. Vejam lá se se decidem? Passe o telefone a Mr. Jarrett, caso contrário, desligo!

—        Com quem estou falando, por favor?

—        Com Archie Goodwin.

—        Um momento, Mr. Goodwin.

 

Cronometrei a espera: dois minutos e vinte segundos. Wolfe, entretanto, já levantara o auscultador do seu telefone.

 

—        Eugene Jarrett. Estou falando com Mr. Wolfe?

—        Um momento, Mr. Jarrett, que vou transferir a ligação. Wolfe devia ter aguardado, pelo menos, um minuto, mas, como detesta telefones, exclamou:

—        Sim, Nero Wolfe.

—        Recebi a sua carta. Estarei aí, por volta das seis da tarde.

—        Ótimo. Fico-lhe muito agradecido. Espero-o, então. Desligaram ao mesmo tempo.

 

Havia alguma correspondência para tratar, na parte da manhã, mas fomos interrompidos, algumas vezes, por telefonemas. Primeiro, foi Saul, que não tinha encontrado nada; depois, Fred, que se deparara com três pessoas que tinham reconhecido a mulher das fotografias, mas que não tinham revelado nada de interessante, e, por fim, Orrie, de Washington, que já tinha verificado a maior parte das datas e locais indicados por Cyrus M. Jarrett e estava trabalhando no resto. Quanto à internação no hospital, era verdade. Talvez estejam pensando que a nossa cliente recebia muito pouco pelo que tinha pagado, e preciso concordar. Ainda tive tempo de ir até a loja do correio mais próxima, antes do almoço, mas, quando nos dirigíamos para a sala de jantar, Wolfe disse algo, acerca de Cramer, que despertou a minha curiosidade. Perguntei-lhe se Cramer tinha telefonado, e Wolfe respondeu que Cramer não telefonara, mas que viera vê-lo, no sábado à tarde.

 

Fiquei com pena por ter perdido tal encontro, porque uma conversa entre aqueles dois é sempre digna de se escutar. Obtêm-se excelentes exemplos de quanto um homem pode dizer em poucas palavras e vice-versa. Assim, quando voltamos para o escritório, depois do almoço, quis saber o que Cramer queria. Wolfe respondeu o mesmo de sempre: informações apenas, e que nada revelara que nos pudesse ser útil. Recostei-me na minha cadeira e cruzei as pernas.

 

—        Nunca os contei, mas devo ter dado relatórios ipsis verbis de uma conversa, pelo menos, umas mil vezes. Não posso pedir que faça o mesmo, porque é o senhor que me paga e não o contrário, mas não custa nada sugerir. E é o que estou fazendo... Os cantos da boca de Wolfe se ergueram, de leve, o que, nele, constituía um sorriso rasgado.

—        Fique sabendo que a minha memória é tão boa quanto a sua, Archie...

—        Então, não deve ser difícil. Mas não se esqueça de que eu sugeri um relatório ipsis verbis.

—        Eu sei. Bem... Mr. Cramer apareceu, pouco depois das seis, e foi Fritz que o recebeu...

—        A hora exata, por favor...

—        Não sei, porque não uso relógio de pulso como você. Depois de trocarmos saudações, ele se sentou.

 

“Cramer: Onde está Goodwin?”.

“Eu: Não está aqui, como pode ver.”.

“Cramer: Duvido que haja um homem na face da terra que saiba se esquivar tão bem às perguntas que lhe são feitas como o senhor. Portanto, vou fazer outra pergunta. Há uma semana atrás, mais precisamente, no dia 19, um sábado, Goodwin telefonou ao Sargento Stebbins para perguntar como corria a investigação relativa a um atropelamento, ocorrido há três meses, e que vitimou uma mulher chamada Elinor Denovo. Como pretexto, inventou uma desculpa esfarrapada de que vocês estiveram falando de crime em geral. Na segunda-feira passada, passei por aqui e perguntei a Goodwin porque fora que telefonara a Stebbins. Disse-me que nada sabia acerca do tal atropelamento, com exceção do que lera nos jornais, que você não fora consultado sobre o caso e que o seu único cliente, no momento, era uma jovem que queria encontrar o pai. Pois bem; desejo saber o nome dessa jovem. Quem me dera que Goodwin estivesse aqui. Onde está?”.

“Eu: Está ausente, Mr. Cramer. E quero lhe dizer que só pode me interrogar nesse tom de voz, quando as suas perguntas são justificadas pelo cargo que ocupa.”.

“Cramer: Muito bem. Vou fazer uma pergunta que é justificada. Se não o consultaram acerca daquele atropelamento, então, porque está disposto a oferecer quinhentos dólares a quem puder fornecer informações a propósito de Elinor Denovo? Isto também justifica a minha pergunta em relação à jovem... E a Goodwin, também, que me mentiu descaradamente.”.

“Eu: Não. Posso repetir, aqui e agora, o que ele lhe disse, há uma semana atrás, e fá-lo-ei, porque é verdade. Não...”.

 

Aqui, Wolfe se interrompeu e exclamou:

 

—        Como ele descobriu que fui eu que coloquei o anúncio?

—        Algum jornalista deve ter lhe prestado esse favor. Se eu descobrir quem foi, o senhor sempre pode escrever uma carta ao editor.

—        Bah... Continuando:

 

“Eu: é verdade. Não estou investigando um caso de atropelamento. A preocupação da minha cliente em relação a Elinor Denovo não se reporta à sua morte, mas à sua vida. O senhor devia tê-lo deduzido pelo anúncio: pedi informações sobre Elinor Denovo, não em relação ao seu último ano ou dia de vida, mas ao seu passado. A informação...”.

“Cramer: Quem é Carlotta Vaughn?”.

“Eu: Está fora de forma. Mr. Cramer. O anúncio deixa bem claro que Carlotta Vaughn é, ou foi, Elinor Denovo. A informação que a minha cliente me deu é confidencial e não tem qualquer ligação com o atropelamento.”.

“Cramer: Isso o senhor não sabe. Quando investigo um homicídio, sou eu quem decide o que é ou não relevante.”.

“Eu: Teremos de nos repetir? Devo recomendar novamente que, até os acontecimentos responderem a essa pergunta de forma concreta, a minha opinião, pela qual sou o único responsável, não precisa se curvar perante a sua e vice-versa? Estou ocultando informações a um agente da lei? Sim. Se trata de algo pertinente para a investigação que ele conduz? Não. Nunca conseguiu fazer com que eu mudasse este “não” para um “sim”. Quando o fizer, me mande prender.”.

“Cramer: Pode estar certo de que o farei, um dia!”

 

Wolfe, terminado o seu relato, acenou com a mão para o corredor, indicando que fora nessa altura que Cramer saíra.

 

—        Da próxima vez, ligo o gravador, resmungou. — Tem alguma pergunta para fazer? Descruzei as pernas e me endireitei.

—        Não, apenas dois comentários. Primeiro, me parece que deixou passar uma ou outra palavra, especialmente aquela que Cramer usa tão frequentemente. Isso se trata de um ato de censura, algo que o senhor tanto condena. Em segundo lugar, existe algo acerca desse atropelamento que o torna especial, e seria bom sabermos o que é. Cramer nunca se daria ao incômodo de vir até aqui, em pessoa, por causa de um atropelamento que aconteceu há três meses, mesmo com o senhor revelando interesse pela vítima, se não tivesse algum motivo muito forte. Talvez tenha surgido um indício esclarecedor... Qualquer coisa foi. Mas, como o senhor disse, estamos investigando a vida e não a morte de Elinor Denovo. Obrigado pelo relatório. Foi razoável. Wolfe apertou o botão para pedir uma cerveja.

 

Passei as três horas seguintes tentando descobrir referências acerca de Eugene Jarrett, mas não fui bem sucedido. Não figurava no Who's Who e, uma vez que não tinha outra fonte de informação, ali, à mão, resolvi sair. Pouco mais encontrei na “morgue” da Gazette: quatro notícias breves, mas apenas anotei duas: Eugene Jarrett se casara com Adela Baldwin, em 18 de novembro de 1951, e se tornara vice-presidente do Seaboard Bank and Trust Company em dezembro de 1959. Lon Cohen nada sabia acerca dele, nem os outros jornalistas com quem ele falou pelo telefone. Ainda tive tempo para passar pelo décimo sexto andar para ver se tinham chegado mais respostas ao anúncio. Havia mais duas, mas eram tão confusas e disparatadas como as anteriores.

 

No Times havia outra resposta, igualmente disparatada, e nada nos arquivos sobre Eugene Jarrett, a não ser notícias de rotina: tinha se formado por Harvard, em 1945, e fora o patrocinador de um jantar de homenagem a alguém, em 1963. Contudo, ainda me esperava maior desilusão, na Biblioteca Pública, por causa da minha teimosia em passar uma hora folheando jornais. Custo a acreditar que, após toda a minha pesquisa meticulosa, nem sequer sabia se o vice-presidente do terceiro maior banco de Nova Iorque tinha filhos ou não.

 

Voltei à mansão de granito vermelho poucos minutos depois das seis. Quando Wolfe desceu da estufa, lhe disse que ele saberia mais acerca de Eugene Jarrett, com um simples olhar, do que eu, que passara toda a tarde vasculhando jornais velhos. Foi nesse momento que a campainha da porta tocou. E não me enganei. O que captei, ao olhar para Eugene Jarrett, ao escoltá-lo até ao escritório e ao convidá-lo a se sentar na poltrona vermelha, podia ser irrelevante, mas, ao menos, era concreto. Se o vice-presidente de um grande banco deve trabalhar, então, Eugene Jarrett se enganara na profissão. Não era parecido com o pai, sobretudo no que dizia respeito ao olhar, se bem que também tivesse olhos azuis. Mas, mesmo quando nos fitava de frente, ficávamos com a sensação de que ele estava sonhando acordado, olhando para um navio onde gostaria de estar, ou uma nuvem, onde pudesse ficar sentado, ao lado de uma bela mulher.

 

Não costumo fantasiar acerca das pessoas que nos visitam; portanto, isto demonstra o efeito que aqueles olhos sonhadores tiveram em mim. Seria uma bobagem esperar que aquele homem fosse um burocrata. Quanto ao seu aspecto, era normal, tinha a mesma altura que eu, ombros largos e um rosto comum. Acomodado confortavelmente na poltrona, ignorou Wolfe e olhou à sua volta, sem pressa. Aparentemente, gostou do tapete, mas o que lhe despertou mais a atenção foi o grande globo que ficava junto à biblioteca. Também é verdade que eram poucos aqueles que tinham visto, na sua vida, um globo de tão grandes dimensões. Por fim, se virou para Wolfe e exclamou:

 

—        Tem uma profissão fascinante, Mr. Wolfe. As pessoas procuram-no, à caça de respostas, como faziam, no passado, à pitonisa, em Delfos, ou aos profetas Clarianos. Mas, claro, o senhor não alega possuir dons divinatórios. Isso é para os charlatães. Diga-me: o que é, ao certo? Um cientista? Ou um artista? Wolfe fitava-o, de sobrolho franzido.

—        Por favor, Mr. Jarrett, não tente me rotular. Os rótulos foram feitos para as coisas que o homem fabrica, não para os seres humanos. É difícil rotular mesmo o homem mais primitivo. E o senhor? Possui algum rótulo?

—        Não. No entanto, posso rotular a personalidade de qualquer homem cujas faculdades estão concentradas num só objetivo, como Charles de Gaulle, Robert Welch ou Stokely Carmichael.

—        Se resolver rotulá-los, não use muita cola e tenha etiquetas novas à mão.

—        Nada é inalterável, nem mesmo uma etiqueta. Alterei aquela que define o meu pai, várias vezes. Falo dele porque vem a propósito. Na sua carta, o senhor menciona-o, apenas porque Carlotta Vaughn trabalhou para ele, mas Bert McCray me contou da sua investida contra o meu pai e qual foi a reação que obteve. Também me disse que o senhor pensa investir, agora, contra mim. Gostaria de falar acerca do meu pai com o senhor, talvez conseguíssemos encontrar um melhor rótulo para defini-lo, mas, na sua carta, pede informações acerca de Carlotta Vaughn. Contudo, tratemos primeiro de mim. Primeiro, o senhor julgou que o velho Cyrus M. Jarrett era o pai de uma criança que Carlotta teve, mas, ao ser confrontado com as provas de que isso não era possível, decidiu que era eu o pai da criança. É assim?

—        Não “decidi”. Pressupus, inferi.

—        Pouco importa, Aguarda-o nova desilusão. Quando Bert McCray me falou disso, no sábado e, depois, quando recebi a sua carta, decidi lhe poupar tempo e dinheiro, e também evitar futuros aborrecimentos, no que a mim diz respeito, lhe relevando algo que muitos supõem, mas que poucos sabem. No entanto, sei que o simples fato de eu lhe dizer não seria suficiente e, por isso, telefonei, hoje de manhã, para o meu médico. Eugene Jarrett. Virou-se para mim. — O senhor é Archie Goodwin?

 

Respondi que sim. Ele tirou um cartão da carteira e me entregou. Podia ler-se: “Dr. James Odell Worthington”.

 

—        O Dr. Worthington poderá recebê-lo, amanhã, às nove da manhã, continuou Jarrett. — Seja pontual, porque ele é um homem muito ocupado. Vai lhe dizer que sou incapaz de engravidar uma mulher, desde há muitos anos. É um profissional que goza de grande reputação e nunca a poria em risco, ao declarar tal coisa, se houvesse a mais remota probabilidade de o senhor provar que ele estava enganado. Eugene Jarrett se virou, de novo, para Wolfe. — Em sua carta, dizia que queria obter informações acerca de Carlotta. Pela parte que me toca, tê-lo-ia mandado dar uma volta.

 

Wolfe, provavelmente, gostaria de fazer o mesmo, mas o único sinal visível dessa vontade se exprimiu pelo fato dele ter começado a girar a ponta do dedo no mata-borrão da mesa.

 

—        O Dr. Worthington conhecia-o em 1944? Perguntou.

—        Sim. Foi um dos médicos que tentou salvar a minha mãe. É médico de clínica geral, e quem tomou conta do caso foram os oncologistas, mas a minha mãe confiava cegamente nele. Não me pergunte, pergunte a ele. Agora, pode me perguntar tudo o que quiser acerca de Carlotta Vaughn, mas duvido que saiba de algo que possa ajudá-lo. Passou a se chamar Elinor Denovo, teve uma filha, agora com vinte e dois anos, e, durante todo esse tempo, o meu pai lhe mandou um cheque mensal de mil dólares, não é assim?

—        Efetivamente...

—        Nesse caso, preciso encontrar um novo rótulo para definir o meu pai. É fantástico. Não se encaixa com a maneira de ser dele. Não que seja homem de fugir às suas responsabilidades. Pelo contrário. Só que é ele que as define. E tenho a certeza de que nunca se sentiria minimamente responsável, se eu tivesse engravidado Carlotta Vaughn ou outra mulher qualquer. Bert McCray julga se tratar de chantagem, mas é impensável, porque o meu pai nunca foi vítima de chantagem por parte de quem quer que fosse. É demasiado poderoso e reto para tal. Entretanto, eu soube, por Avery Bailou, que essa tal Elinor Denovo morreu. E ele nunca disse a ninguém por que motivo ela recebia aquele dinheiro?

—        Enquanto viva, não. No entanto, a filha encontrou uma carta, após Elinor Denovo falecer, em que ela dizia: Este dinheiro é do seu pai. E, mais à frente: Este dinheiro foi enviado pelo seu pai. Ora, Mr. Goodwin e eu não encontramos motivos para colocarmos em dúvida essas afirmações.

—        Fantástico! Inacreditável! Murmurou Jarrett. Então, se levantou, de repente. — Não gosto de ficar sentado muito tempo, explicou.

 

Avançou para a biblioteca, consultou os títulos de alguns livros, em seguida, se aproximou do globo, fê-lo girar lentamente, duas vezes, e, por fim, se postou no meio do escritório.

 

—        Não me dão muito trabalho no banco, porque não entendo nada do assunto. Mas não me mantêm e me pagam um salário, apenas porque o meu pai possui a maior parte das ações, que não quer vender. Não; dizem que eu tenho um sexto sentido. Pessoalmente, não sei como lhe chamar. Não consigo arranjar um rótulo para isso, mas, por vezes, vejo coisas que os outros não veem. Nunca tentei forçar essa minha faculdade, nem vou fazê-lo, agora, mas quero ver, mais do que nunca, o meu pai, tal como ele é.

 

Dito isto, tornou a se sentar.

 

—        Não lhe servirá de nada me fazer perguntas acerca de Carlotta Vaughn. Bert McCray me disse que a criança foi concebida no verão de 1944. Eu não fora chamado para combate e passei esse verão trabalhando numa fábrica de material de guerra, na Califórnia. Venha jantar comigo, um dia destes! Tornou a se levantar. Depois, me fitou. — E você também. Não sei porquê, mas, por vezes, ajuda termos companhia no jantar...

—        Duvido de que Mr. Goodwin e eu fôssemos boa companhia, replicou Wolfe. — Porque nos encontramos num beco sem saída. Na carta que lhe escrevi, afirmava lhe ficar grato por o senhor vir até ao meu escritório. Retiro o que disse. Não tenho nada por que deva lhe ficar grato.

—        Sim, suponho que não. Eugene Jarrett deu meia-volta e avançou para a porta, mas, a meio caminho, parou e se virou. — O seu problema não é nada comparado com o meu. Numa altura em que pensava conhecer finalmente o meu pai, acontece isto! Mas hei de conseguir. Não sei quando, mas hei de conseguir...

 

Acompanhei Eugene Jarrett até à porta. Quando voltei, fiquei de pé, olhando para Wolfe; estava tão cabisbaixo que tinha de arregalar os olhos para contemplar o globo. Ao fim de dez segundos, ergueu a cabeça e vociferou:

 

—        Sente-se! Raios, você sabe que gosto de olhar para as pessoas ao mesmo nível!

—        Tem razão. Quer que eu saia?

—        Não. Quanto dinheiro nós já gastamos?

 

Aquela pergunta era perigosa. Queria dizer: “Se eu devolver o adiantamento e desistir do caso, quanto dinheiro terei perdido?”. Não acontecia muitas vezes, mas também não era algo totalmente descabido. Sentei-me na minha cadeira e repliquei:

 

—        Preciso admitir que nunca tivemos um caso tão difícil, e ainda o deve ser mais para o senhor. No entanto, porque não aguentamos mais um pouco? Porque não esperamos que Eugene Jarrett “veja” aquilo que não compreende em relação ao pai? Ele há de nos dizer, se descobrir o que é. Depois, só temos de verificar a teoria dele e revelá-la à nossa cliente, que pensará...

—        Cale-se!

 

Assim já era melhor. Ao menos, não ia se seguir uma valente discussão. Wolfe me fitou, mal-encarado, e perguntou:

 

—        Que te parece? Devemos pôr de parte aquele infeliz? Achei que Wolfe estava sendo vulgar demais por considerar infeliz o vice-presidente de um banco, só porque não conseguia engravidar uma mulher.

—        Sim. Bem, é óbvio que irei ver o tal médico, mas tudo indica que devemos riscá-lo da lista.

—        E Mr. McCray? Também devemos riscá-lo da lista? Sorri. Apesar de se encontrar num beco sem saída, Wolfe ainda não havia desistido completamente.

—        Estou do seu lado, respondi. — Nunca pensamos em McCray; apenas nos Jarrett. O senhor se lembrou, depois de eu acompanhar aquele “infeliz” até à porta. O mesmo aconteceu comigo. É bom não esquecermos que foi McCray que nos revelou que os cheques tinham sido debitados na conta de Cyrus M. Jarrett, mas não houve qualquer verificação quanto a isso. Será possível que os cheques tenham sido debitados na conta de McCray? Claro que sim. Terá ele tido oportunidade de engravidar Carlotta Vaughn, durante o verão de 1944? Com toda a certeza. Mas, então, Jarrett não saberia dos cheques e nem sequer teria se dado ao trabalho de me receber... Ter-me-ia expulso da sua propriedade, sem dó nem piedade... Como se lembra, fiz um relatório ipsis verbis. Cyrus M. Jarrett, a certa altura, exclamou: “Esses cheques constam dos arquivos do Seaboard Band and Trust Company. Quem lhe forneceu essa informação?”. No dia seguinte, porque terá sido que, à simples menção de Carlotta Vaughn, ele aceitou me ver pela segunda vez? Porque estava pronto a me receber, com aquelas datas e locais referentes ao verão de 1944 na ponta da língua? E, depois, a forma como o velho Jarrett reagiu... Tudo o que disse... Meneei a cabeça. — Não restam dúvidas de que os cheques foram passados por Cyrus M. Jarrett. E, uma vez que o senhor teve uns dois minutos para pensar em McCray como possível suspeito, estou admirado por se ter dado ao trabalho de pedir a minha opinião...

—        É que você viu Mr. Jarrett e eu não.

—        Nem tenho vontade de tornar a vê-lo. Esqueça McCray.

—        Mas, assim, voltamos à estaca zero...

—        Temos Saul, Fred e Orrie. Para não falar em mim. E no senhor, claro.

 

Wolfe pegou no livro que andava lendo, voltou a pousá-lo e me deu um fulminante olhar.

 

Sessenta e oito horas depois, às três da tarde de quinta-feira, Wolfe e eu estávamos sentados no

escritório, sem nada para dizer um ao outro. Continuávamos a ter a mesma equipe: cinco detetives, contando comigo e com Wolfe, mas mais nada.

 

Primeiro, contudo, para riscar definitivamente Eugene Jarrett da nossa lista, às 8:50 da manhã de terça-feira, subi ao décimo andar de um edifício na Park Avenue, dei o meu nome a uma mulher, sentada atrás de uma mesa, e fui levado a uma sala de espera, com umas vinte cadeiras, oito ou nove das quais estavam ocupadas por pessoas que não pareciam muito felizes, o que não era assim tão deprimente, já que havia, na placa perto da porta de entrada, quatro nomes de médicos. Às 9:20, uma outra mulher surgiu, me guiou por um corredor e abriu a porta de um escritório. Quando entrei, um homem de cabelo grisalho, mas com fartas sobrancelhas negras, e boca cansada, estava anotando algo numa ficha, sentado atrás de uma mesa imponente. Ao me ver, fez sinal para que eu me sentasse e continuou a escrever, durante alguns minutos; depois, pousou a caneta, perguntou se o meu nome era Archie Goodwin, respondi que sim, e, por fim, exclamou, que, dado que a informação que ia me dar era confidencial, queria ter certeza de que estava falando com a pessoa certa. Apresentei-lhe os meus documentos. O homem acenou, mais satisfeito, e, em seguida, consultou o relógio de pulso.

 

—        Se consegui recebê-lo hoje, explicou, — Foi porque Mr. Jarrett me disse que era urgente. Pediu-me para eu confirmar que é estéril, desde que atingiu a idade adulta. Muito bem, é verdade.

—        Se não se importa, gostaria de me assegurar que a sua afirmação é incontestável. Diga-me, doutor: esse fato é do seu conhecimento pessoal? Ou se trata de algo que ouviu dizer?

—        Nunca prestaria uma informação destas, se fosse uma coisa que tivesse ouvido dizer. Não; se trata de algo do meu conhecimento profissional, em consequência de inúmeros exames e análises a que Mr. Jarrett se submeteu, ao longo de dezessete anos, e que revelaram que, no caso dele, não só a contagem de espermatozoides por segundo é muito baixa, como, também, a percentagem de células anormais é muito elevada. É um diagnóstico definitivo.

—        Obrigado. Há dezessete anos atrás, estávamos em 1950. E antes? Digamos em 1944... O médico meneou a cabeça.

—        É muito pouco provável. Só aceitaria tal hipótese se fosse baseada em provas irrefutáveis e, mesmo assim, com certa relutância. Conheço a família há quase trinta anos, desde 1940. Se Eugene Jarrett era fértil, em 1944, certas doenças, a mais comum é a caxumba, poderiam ter causado a presente condição, mas Mr. Jarrett nunca as teve, enquanto criança. Dito isto, o médico tornou a consultar o relógio. — Mr. Jarrett não me disse o objetivo desta conversa. Se, porventura, se trata de um processo de paternidade, é simplesmente ridículo, e estarei disposto a depor.

 

Agradeci-lhe, mais uma vez, e saí. Lá se ia a nossa teoria em relação a Eugene Jarrett. Porém, de regresso a casa, passei pelo consultório de Doe Voilmer, situado no mesmo quarteirão da mansão de granito vermelho, para lhe perguntar qual era a reputação do Dr. James Odell Worthington, e saber tudo acerca de contagens de espermatozoides, células anormais e caxumba. Depois dessa diligência, Eugene Jarrett ficou, definitivamente, fora da nossa lista.

 

Seguiu-se a vez de Cyrus M. Jarrett, na quarta-feira, quando Orrie regressou de Washington, com três blocos cheios de apontamentos relativos à ficha militar de Cyrus M. Jarrett. Segundo o que Orrie apurara, todas as datas e locais que o velho Jarrett me fornecera batiam certo. E, se ele tirara, secretamente, um dia de folga para atravessar o Atlântico, por motivos pessoais, a questão que se punha era como pudera arranjar um avião em plena guerra.

 

Antes disso, porém, na segunda-feira à noite, depois do jantar, eu fora até ao centro da cidade e passara algumas horas com a nossa cliente. A revelação de que o verdadeiro nome de sua mãe era Carlotta Vaughn e que provinha do Wisconsin pareceram não impressionar Amy. Tampouco se mostrou decepcionada com o fato de havermos eliminado os Jarrett da nossa lista. A verdade é que Amy não estava interessada nos homens que não podiam ser pai dela; o que ela queria, era descobrir quem era o seu pai. Deixei bem claro que isso seria difícil e demorado.

 

Saul e Fred prosseguiram com a investigação até ao meio-dia de terça-feira, quando os mandei chamar, porque havia mais sete respostas ao nosso anúncio, e três delas pareciam pertinentes. Saul se encarregou da primeira carta, em resposta ao anúncio do News. Tinha sido escrita por um sapateiro, da West 54th Street, que afirmava que Carlotta Vaughn fora sua cliente, durante vários meses, em 1944. Saul teve o cuidado de juntar mais seis fotografias de outras mulheres novas aos retratos de Carlotta Vaughn, quando foi falar com o sapateiro, mas o homem reconheceu-a a primeira vista. Nada sabia acerca de Elinor Denovo, mas se lembrava de que Carlotta Vaughn fora uma cliente habitual durante o verão de 1944, porque ele perdera, nesse mesmo ano, em agosto, o seu único filho, morto em combate, na França. Já não se lembrava, ao certo, quando tinha visto Carlotta Vaughn, pela última vez, mas julgava ter sido no fim do verão ou no princípio do outono de 1944. Não tinha ideia de possuir o seu endereço, mas, mesmo que o possuísse, já o teria rasgado, ao fim de tantos anos.

 

Tudo levava a crer, contudo, que ela devia viver naquela área; por isso, depois de entregar ao homem os quinhentos dólares de recompensa, Saul se lançara numa investigação meticulosa pelas redondezas. A segunda carta que recebemos, em resposta ao anúncio do Times era de uma mulher que trabalhara na Altmans, em 1944, mas, que, agora, estava empregada num lar de idosos, em Fairfield County. Foi Fred que se encarregou dela, mas achou a mulher tão vaga que, quarenta e oito horas depois, ainda tentava descobrir como era possível saber que uma cliente, a quem servira algumas vezes apenas, se chamava Carlotta Vaughn, uma vez que não havia registro de quaisquer entregas feitas a alguém com esse nome. No entanto, a mulher reconhecera imediatamente Carlotta Vaughn, de entre os sete retratos que Fred lhe mostrou e, consequentemente, recebeu os quinhentos dólares de recompensa.

 

Encarreguei-me da terceira carta, em resposta ao anúncio da Gazette, escrita por um homem chamado Salvatore Manzoni. Era garçom no Sardis, havia quinze anos, mas, em 1944, trabalhava no Tuflifi's, um restaurante da East 46th Street (que fechara em 1949), mas onde Carlotta Vaughn costumava jantar, duas ou três vezes por semana, durante vários meses, em 1944. Tal como os outros, o homem reconheceu-a imediatamente e sabia que ela se chamava Carlotta Vaughn, porque costumava reservar mesa. O que fez com que Salvatore Manzoni se revelasse num verdadeiro achado foi o fato de ele, provavelmente, haver visto o pai de Amy, em carne e osso, não uma, mas várias vezes, já que Carlotta se fazia sempre acompanhar pelo mesmo homem. Quando ouvi aquilo, senti um calafrio. Meu Deus, finalmente ia descobrir o nome do misterioso pai de Amy, ali, naquele momento! No entanto, o meu entusiasmo durou pouco. Não porque Salvatore Manzoni não conseguisse se recordar do nome do homem; mas porque nunca o soubera. As reservas eram sempre feitas em nome de Carlotta. No entanto, talvez alguém o conhecesse, tal como o proprietário do restaurante, Giuseppe Tuffiti, que podia estar vivo ou não, ao fim de tantos anos.

 

A descrição feita por alguém, relativa a um homem que viu na semana passada, nunca nos faz “vê-lo” completamente; e já tinham se passado vinte e três anos desde que Salvatore Manzoni vira o misterioso acompanhante de Carlotta Vaughn, o que só piorava a situação. Depois de muito esforço e concentração, tudo o que consegui obter foi o seguinte: devia ter trinta e poucos anos de idade, cerca de 1,80 m de altura, uns 80 quilos de peso e ombros, talvez direitos, talvez curvados. Quanto ao rosto não era redondo, mas mais para o comprido e, sim, tinha nariz, boca, orelhas e queixo. Se, com isto, os leitores conseguirem vislumbrar o aspecto do pai de Amy, então, possuem melhor visão do que eu. E que aquela descrição excluía os Jarrett e Bertram McCray, que, por sinal, já nem constavam da nossa lista.

 

Quem me dera saber, ao certo, se os leitores estão interessados em ficar a par do que descobrimos nas quarenta e oito horas seguintes. Duvido muito, porque, na verdade não descobrimos nada. Na quarta-feira de manhã, Saul, Fred e Orrie, recém-chegado de Washington, se lançaram na senda desta nova pista, porque, se conseguíssemos localizar e identificar o acompanhante de Carlotta Vaughn, então, era quase certo que teríamos descoberto o pai de Amy. Por conseguinte, demos o nosso melhor. Seguir uma pista pode ser divertido, mas, também, na maioria dos casos, uma verdadeira dor de cabeça, como aconteceu desta vez. Portanto, às três da tarde de quinta-feira, Wolfe e eu estávamos sentados no escritório, sem nada para dizer um ao outro. Saul, Fred e Orrie prosseguiam as investigações, mas, quando telefonaram para informar que não tinham encontrado qualquer vestígio, não ficamos desapontados porque não esperávamos um milagre. Wolfe já estava sua segunda cerveja depois do almoço, o que ultrapassava a dose habitual, e eu tinha acabado de ir buscar na cozinha um uísque. Fitei Wolfe, que tinha os olhos fechados, e exclamei:

 

—        Se está tentando descobrir quanto dinheiro gastamos até agora, já ultrapassou os três mil dólares, sem contar com o meu salário. Wolfe meneou a cabeça, com certo desdém, mas não abriu os olhos.

—        Estou avaliando certas suposições: que o pai de Miss Denovo assassinou a mãe; que é mais provável encontrá-lo enquanto criminoso do que como pai, já que é pai há vinte e dois anos, mas cometeu um homicídio, há apenas três meses; que o motivo do crime deve ter sido consequência de um acontecimento recente e que a pessoa que deve estar a par desse acontecimento é Raymond Thorne ou alguém que trabalhe com ele e que tivesse um relacionamento mais íntimo com Elinor Denovo. Wolfe abriu os olhos. — Vou começar por Mr. Thorne. Pousei o copo.

—        Macacos me mordam! É a hipótese mais remota que jamais se aventou!

—        Talvez. Mas ficar, aqui, sentado, horas, dias a fio, recebendo relatórios inúteis de você, de Saul, de Fred e de Orrie está afetando o meu apetite e o meu paladar. Esta manhã eu tive de ler a mesma página, duas vezes, o que é simplesmente intolerável. Pode arranjar as coisas de maneira que Mr. Thorne venha até aqui, hoje, às seis da tarde?

—        Posso tentar. Isso foi apenas um espasmo momentâneo ou está falando sério?

—        Não costumo ter espasmos.

—        Podemos falar disso numa outra hora... Posso fazer uma sugestão? Talvez se recorde de eu ter lhe dito, na segunda-feira à tarde, que Cramer nunca se interessaria por um caso de atropelamento e fuga, que ocorreu há três meses, se não houvesse algo mais. Talvez fosse de grande ajuda descobrirmos o quê. Por isso, peço permissão para ir visitá-lo.

—        E porque haveria ele de revelá-lo?

—        Deixe citá-lo; “à minha inteligência, guiada por uma vasta experiência”.

—        Não pode dizer o nome da nossa cliente.

—        Claro que não, se bem que ele, provavelmente, já o saiba, depois de termos publicado aquele anúncio nos jornais.

—        Muito bem. Mas, primeiro, vê se consegue falar com Mr. Thorne.

 

Precisei de quase uma hora para entrar em contato com Thorne, porque estava, em algum lugar, assistindo à filmagem de um programa da sua produção. Quando finalmente falei com ele, me disse que era impossível vir nos visitar às seis da tarde. Lembrei-lhe que ele dissera que estava disposto a ajudar Amy no que lhe fosse possível, e Thorne acabou por aceitar ir falar com Wolfe às nove horas da noite. Demorei muito menos tempo para encontrar o Inspetor Cramer. Estava na sua sala e poderia me receber. Wolfe, entretanto, já subira à estufa, e eu fui à cozinha avisar Fritz de que ia sair.

 

O Inspetor Cramer, da Brigada de Homicídios, podia muito bem ter uma sala mais espaçosa, uma mesa maior e cadeiras de melhor qualidade para as visitas, mas Cramer se apegava às coisas a que já estava habituado, incluindo o seu chapéu de feltro, muito velho, que pendia do cabideiro. Deixei-o terminar de ler um processo que tinha nas mãos e me sentei, à espera. Quando ele fechou a pasta, e se virou para mim, anunciei:

 

—        Sou portador de grandes notícias. Estamos finalmente trabalhando naquele caso de atropelamento e fuga. Mr. Wolfe achou por bem informá-lo porque, há alguns dias atrás, lhe dissemos que esse caso não nos interessava... Cramer resolveu se fingir de desentendido.

—        Que caso de atropelamento e fuga?

—        Aquele que ocorreu em 26 de maio de 1967, quando uma mulher, de nome Elinor Denovo, atravessou a 82nd Street, e...

—        Ah, sim, agora me lembro. Quer dizer, então, que estão trabalhando nesse caso? E porque Wolfe deseja obter mais informações mandou-o até aqui. Pois bem, pode lhe dizer que vá para o Inferno.

—        E, porque o senhor quer saber o que levou Wolfe a se interessar pelo caso, arranja tempo para me receber, numa altura em que está muito ocupado... Retorqui, sem dó nem piedade. — Bem, vou ser breve e responderei às perguntas que me fizer, dentro dos devidos limites. O que lhe dissemos foi a mais pura das verdades: a nossa cliente era, e é, uma mulher que quer que encontremos o seu pai, que nunca conheceu. Descobrimos três presumíveis suspeitos, mas, após apurada investigação, ficamos na mesma, e já se passaram duas semanas. Assim, há uma hora atrás, Mr. Wolfe concluiu que seria mais fácil encontrar um criminoso do que um pai, o que significa que foi o pai que assassinou a mãe da nossa cliente. Como o senhor sabe, a mente de Wolfe, via de regra, não funciona assim, mas isto não foi fruto do seu costumeiro raciocínio, mas, sim, de um espasmo momentâneo, embora ele afirme que não tem espasmos. De fato perdeu o apetite e está desesperado. E, como é ele que me paga, preciso satisfazer todos os seus caprichos, mesmo quando me manda fazer um recado com o qual não concordo. Bem, mas passemos ao que interessa: gostaria de lhe propor uma troca justa. Se existir algum fato relevante, em relação a este caso de atropelamento e fuga, que não tenha sido publicado nos jornais, e o senhor me revelar confidencialmente, eu estou autorizado a lhe dar a palavra de honra de Mr. Wolfe de que, se descobrirmos algo que nos leve até ao presumível criminoso, lhe diremos, antes de fazermos uso dessa informação. Pelo menos, uns dois minutos antes... Também lhe daria a minha palavra de honra, mas não me parece que, para si, tenha grande valor... Se quiser me fazer alguma pergunta...

 

Cramer levantou o auscultador do telefone, pediu que lhe trouxessem dois cafés e, depois, se virou, de novo, para mim:

 

—        Não nos incomodamos com Amy Denovo. Como é óbvio, já sabemos que ela era a cliente de Wolfe, depois daquele anúncio que vocês colocaram nos jornais, mas já a tínhamos interrogado em junho. Quanto à questão do pai dela, isso não nos beneficiava em nada, a não ser que ela o encontrasse, e mesmo assim, duvido muito que nos servisse para alguma coisa. Mas diz que não encontraram o pai dela?

—        E que nem chegamos lá perto. No entanto, apesar de se mostrar desinteressado, o senhor foi me ver e chegou mesmo a telefonar a Mr. Wolfe.

—        Sim, mas porque você, pelo seu lado, tinha telefonado para Stebbins. Sabe muito bem que quando descubro que Wolfe está interessado num caso da minha alçada, me cheira logo a confusão. Pensei...

—        Devo dizer isso a Mr. Wolfe?

—        Não. Ele pode ter muitos defeitos, mas é um homem sério, à sua maneira. Como estava dizendo, nessa altura, pensei que ele pudesse me revelar o nome do homem que fuma uma certa marca de charutos.

—        Conheço um que fuma apenas Monte Cristo. É o comissário de bordo de um navio que lhe consegue.

—        Claro... Gosta sempre de querer ser esperto... Se deseja saber de um fato interessante, confidencialmente, tenho um para lhe contar; pode até ser divulgado na televisão, porque, nesta altura, isso pouco importa. Conseguimos encontrar nove impressões digitais do motorista que atropelou aquela mulher, e seis são perfeitamente nítidas.

 

Nesse preciso instante, um homem de uniforme entrou e pousou um tabuleiro de madeira, muito velho, em cima da mesa de Cramer. Depois de agradecer e enquanto pegava no bule, perguntei:

 

—        Será possível que o imbecil do homem nunca tenha ouvido falar em luvas? Cramer pousou o bule.

—        Não encontramos as impressões digitais no automóvel. O que encontramos, na calçada, mais à frente, foi uma charuteira de couro. Ele deve tê-la tirado para acender um charuto, enquanto aguardava, estacionado na Second Avenue, que Elinor Denovo aparecesse, e, quando a viu, deve ter deixado cair a charuteira no banco... Ergui as sobrancelhas.

—        O senhor está me dizendo que se tratou de um homicídio qualificado!

 

Cramer bebeu o café de um gole. Já eu preciso bebê-lo, em pequenos goles, quando está quente.

 

—        Eu? Não; Wolfe o afirma. Eu apenas estava lhe fazendo um favor, ao reconstituir a cena. Pouco me importa o que levou o homem a deixar cair a charuteira; o que interessa é que a temos em nosso poder. O único senão: não conseguimos identificar as impressões digitais. Nem aqui, nem em Washington, nem mesmo em Londres. Encontramos, no interior da charuteira, dois Gold Label. Sabendo do tipo de artimanhas de que Wolfe é capaz, fiquei à espera que ele me perguntasse se eu gostaria de conhecer um homem que fuma Gold Label e por que razão eu ocultara a cigarreira onde ele os guardava.

—        Se for possível, gostaria de examinar essa tal charuteira, para poder descrevê-la a Mr. Wolfe.

—        Está no laboratório, mas posso lhe dizer que é feita de couro preto, envernizado, que não é nova, mas também não é velha, e que tem um carimbo, no interior, que diz: Corwin Deluxe. É tudo.

—        Suponho que a mulher a quem pertencia o carro...

 

Nesse preciso instante, a porta se abriu e um policial entrou, para anunciar que o Sargento Tal tinha acabado de chegar com Não Sei Quem. Levantei-me. Existem policiais muito inteligentes na Brigada de Homicídios, e um deles já devia ter perguntado com certeza, à proprietária do carro roubado, se a charuteira lhe pertencia.

 

Raymond Thorne se atrasou mais de meia hora. Eram 9:40, quando a campainha tocou. Conduzi-o ao escritório, indiquei a poltrona vermelha, perguntei o que queria beber e fui até à cozinha buscar um brandy e um copo de água.

 

Quando os três “teiros”, Saul, Fred e Orrie, telefonaram para dizer, mais uma vez, que não tinham encontrado nada, lhes pedi que estivessem no escritório, às nove horas da manhã do dia seguinte. Eram os três “teiros”, porque Orrie, certa vez, dissera que eles eram os três mosqueteiros, e tínhamos tentado inventar uma nova designação que lhes assentasse melhor. As propostas foram muitas: os três bisbilhoteiros, os três detetiveiros, os três wolfeteiros, e outros nomes, até decidirmos ficar pelos três “teiros”. Não lhes disse, pelo telefone, que, agora, andávamos na pista de um criminoso, e não de um pai. Decidi aguardar pelo dia seguinte e deixá-los dormir um sono sossegado.

 

Ao regressar a casa, depois de visitar o Inspetor Cramer, passei por uma loja que vendia Gold Label Bonitas e comprei duas caixas, por sessenta e cinco cêntimos, que, depois, Wolfe e eu examinamos. Um Gold Label Bonita tem cerca de catorze centímetros de comprimento e uma largura média. Vem envolto em celofane e, na cinta, pode se ler Gold Label, mas não Bonita. Esta última referência surge apenas na caixa. Acendi um charuto e puxei algumas baforadas, mas nem eu nem Wolfe poderíamos, alguma vez, entrar numa sala onde um homem estivera fumando um charuto e afiançar se tratar de um Gold Label Bonita. Tinha gosto e cheirava a tabaco, mas é tudo o que posso dizer. Guardei a segunda caixa numa gaveta e fiz um relatório meticuloso a Wolfe acerca da conversa que havia tido com Raymond Thorne, dez dias antes.

 

O primeiro comentário de Thorne, depois de bebericar o seu brandy, foi de que um close-up de Wolfe, sentado atrás da sua mesa e ladeado pelas suas orquídeas, daria um enquadramento espetacular para um anúncio. Acrescentou que não era propriamente a sua especialidade, mas que tinha um amigo que se dedicava à publicidade e que haveria de concordar com ele. Wolfe teve de passar os dedos pelos lábios para não dar uma resposta menos conveniente, porque, no fim de contas, esperava que Thorne o ajudasse a encontrar um criminoso.

 

—        O meu amigo teria todo o gosto em vir falar com o senhor para combinarem uma sessão fotográfica, insistiu Thorne.

—        Isso pode esperar, replicou Wolfe. — Neste momento, estou muito ocupado com o caso que tenho entre mãos. Antes de mais nada, quero lhe agradecer, em nome de Miss Denovo, por ter concordado em vir me ver. Sei que o senhor disse a Mr. Goodwin que nada sabia que pudesse nos ajudar, mas é comum um homem ter conhecimento de um fato e não se dar conta do seu real significado. Certa vez, questionei uma jovem, durante três dias a fio, acerca do que ela considerava serem meras trivialidades e, no fim, fiquei a par de certo fato que revelou um criminoso.

—        Receio bem não poder lhe dispensar três dias... Desculpou-se Thorne. Tornou a beber um gole de brandy e estalou a língua. — Este conhaque é maravilhoso. Mas, por falar em fatos, é evidente que o senhor teve conhecimento de algum, pelo que li naquele anúncio... Sim, porque suponho que aquele anúncio no “Times” foi colocado pelo senhor...

—        Sim, é verdade.

—        Também conhecida por Elinor Denovo. Carlotta Qualquer-Coisa também conhecida por Elinor Denovo. Porque usou essa expressão quando o nome de casada dela era Denovo? É bom não esquecermos que a filha se chama Amy Denovo.

—        Essa foi uma das complicações com que nos vimos confrontados, Mr. Thorne. As informações que um cliente presta ao detetive que contratou não estão protegidas, do ponto de vista legal, mas, nem por isso, deixam de ser, muitas vezes, confidenciais.

—        Goodwin me disse, ao telefone, que o senhor se encontrava num beco sem saída.

—        Mais do que isso; o meu raciocínio ficou completamente bloqueado.

—        E, mesmo assim, continua pensando que o atropelamento que vitimou Elinor foi um homicídio premeditado?

—        É essa a opinião de Miss Denovo, como Mr. Goodwin lhe disse, há dez dias atrás. Mas quer saber a minha opinião, não é verdade? Sim, também creio que foi um homicídio premeditado, por motivos que o senhor talvez ache insuficientes. Mas, se lhe pedi que viesse me ver, não foi somente por me encontrar num beco sem saída. Não é totalmente insensato presumir que certos acontecimentos recentes conduziram ao crime e que o senhor viu ou ouviu algo relacionado com tais acontecimentos. Quando se dirigia a Mrs. Denovo, de que forma a tratava?

—        Por Elinor.

—        Havia mais pessoas que a tratavam pelo seu nome próprio?

—        Deixe ver... Três pessoas. Não; quatro.

—        Como se chamam?

—        Ouça lá! Isso já não são mera trivialidades, mas, sim, uma perfeita tolice! Precisaria de três semanas, não de três dias, para encontrar o criminoso. Goodwin bem me disse que talvez algum dos meus colaboradores pudesse estar envolvido no caso, mas lhe respondi que tal hipótese não se punha, sequer, porque é simplesmente impossível. Ninguém tinha uma relação pessoal com Elinor. Nem mesmo eu, para lhe ser franco. Almoçávamos juntos, muitas vezes, mas, apenas, para tratarmos de negócios. Thorne se virou para mim. — Eu lhe disse que notei depressa de que não devia transpor certas fronteiras em relação a Elinor. De novo, fitando Wolfe: — Posso lhe dar o nome dessas pessoas, mas aviso-o, desde já, que isso não vai levá-lo a

parte alguma.

—        Não me admiraria. Depois de tudo o que aconteceu, o mais certo é regressarmos à estaca zero. Muito bem, passemos à frente. Quando e onde viu Elinor Denovo pela última vez?

—        Naquela fatídica sexta-feira, por volta do meio-dia, no estúdio. Eu precisava apanhar o avião, porque partia em viagem de negócios. Ficara de me encontrar com um argumentista.

—        Que estúdio?

—        O meu, claro!

—        Ela lhe disse que planos tinha para essa noite?

—        Sim; ia assistir à estreia de um filme, para observar discretamente um ator que pensávamos contratar.

—        Uma estreia? Onde? Num teatro da cidade?

—        Não. Num estúdio particular, no Bronx. Foi por isso, aliás, que levou o seu carro. Como deve calcular, eu já disse isto à polícia. Informaram-me, mais tarde, que Elinor saiu do estúdio, pouco depois das dez da noite. Respondi-lhes que, provavelmente, Elinor teria decidido ir dar um passeio, porque o fazia frequentemente. Dizia que ajudava a relaxá-la, se bem que eu nunca a tenha visto completamente relaxada...

—        Ela foi com mais alguém a essa tal estreia?

—        Não; foi sozinha. Thorne esvaziou o seu copo, pousou-o na mesinha e pegou na garrafa. — Este conhaque é um verdadeiro néctar dos deuses!

—        Sirva-se à vontade. Ainda tenho mais nove garrafas na adega. Começaremos por essa sexta-feira e, depois, recuaremos no tempo. Quanto tempo esteve com Elinor, por volta do meio-dia de sexta-feira?

—        Não muito. Havia uma reunião do staff, mas ela teve de sair, no meio, porque alguém queria vê-la. Mais tarde, eu...

—        Quem?

—        Uma mulher de uma agência para lhe falar sobre uma substituição que tínhamos feito e que não agradara ao seu cliente. Um assunto de rotina. Os clientes nunca ficam satisfeitos. Mais tarde, eu lhe ditei algumas cartas. Ambos tínhamos as nossas respectivas secretárias, mas ela aprendera estenografia e eu gostava de lhe ditar certas coisas, porque Elinor sabia do que eu estava falando. Era, de fato, uma mulher notável. Recebeu muitos convites por parte de agências e de pessoas ligadas ao setor das relações públicas, que lhe ofereciam duas, três, quatro vezes mais do que ganhava, na minha empresa, mas sempre recusou.

—        Porquê?

—        Não sei. Penso que a razão principal residiu em que se tratava de cargos de grande responsabilidade e Elinor apreciava a total liberdade que tinha comigo.

—        E se eu lhe pedir para o senhor me relatar tudo o que ela lhe disse naquela manhã? Acha que é capaz?

—        Meu Deus, não. De qualquer forma, falamos apenas de assuntos de trabalho. Não me disse nada que levasse a imaginar, sequer, o que iria lhe acontecer, naquela mesma noite. Mas talvez eu me saísse melhor, Mr. Wolfe, se soubesse o que o leva a pensar que se tratou de um homicídio premeditado. Goodwin me disse que era fruto de certa intuição, por parte de Amy, mas um atropelamento e fuga não é isso mesmo?

—        Sim, na maior parte das vezes. Gostaria de lhe ser agradável, Mr. Thorne, quanto mais não fosse como prova do reconhecimento de Miss Denovo pelo seu desejo de querer ajudá-la, mas não posso divulgar certas informações que estão em poder da polícia. Há apenas cinco horas atrás, um oficial da polícia, ao comentar o caso com Mr. Goodwin, afirmou: “Ele tirou um charuto, enquanto aguardava, estacionado na Second Avenue, que Elinor Denovo aparecesse.”. Creia-me, se tivesse a liberdade de lhe dizer mais, fá-lo-ia. Mas se sirva de outro brandy, por favor. Archie, pode me arranjar uma cerveja?

 

Aqui está um exemplo de como se pode mentir, sem fugir à verdade. Se não, vejamos: era verdade que Wolfe não podia, ou, pelo menos, não devia divulgar informações que estavam em poder da polícia. Era igualmente verdade que um oficial da polícia me dissera aquilo. Assim, adicionando uma verdade à outra, se obtinha uma rematada mentira. Contudo, foi a única mentira de Wolfe, ao longo das quatro horas em que Thorne, sentado na poltrona vermelha, quase esvaziou uma garrafa de brandy. Pessoalmente, duvidava que ele soubesse quão excepcional era aquele brandy, pelo qual um homem, certa vez, tinha oferecido cinquenta dólares a Wolfe, e só para conseguir ter uma garrafa.

 

A conversa se arrastou até à uma e meia da manhã; o brandy conduziu Thorne a uma espécie de transe: foi soltando a língua, se esqueceu do tempo e a sua memória se reavivou, como por magia. Lembrava-se mais do que acontecera na quinta-feira do que na sexta. E, na altura em que recuou até segunda-feira, se recordava tão bem do que acontecera que comecei a desconfiar. Isto porque nos revelou, a dado momento, que escrevera alguns argumentos, esporadicamente, e, por conseguinte, tinha alguma prática de inventar histórias. Porém, não inventou aquilo que nos iria atingir como um raio. Pessoalmente, quase me passou batido. Isto, porque havia mais de três horas que o ouvia falar de trivialidades; porque já passara da meia-noite; porque tivera de reprimir uma dúzia de bocejos e porque bebera leite e não brandy. Thorne havia acabado de falar, durante cerca de vinte minutos, sobre tudo o que acontecera na segunda-feira precedente e chegara ao momento em que ele e Elinor Denovo iam sair do estúdio para ir almoçar com alguém. Estava dizendo de que forma a recepcionista se aproximara de Elinor Denovo para informá-la de que Floyd Vance estivera no estúdio, de novo, e que ameaçara chamar a polícia se ele não fosse embora. A recepcionista, todavia, julgava que Floyd Vance podia estar ainda no átrio de entrada, à espera.

 

Elinor lhe agradeceu e depois, saíra. Como é natural, Wolfe quis saber quem era Floyd Vance, mas Thorne não fazia ideia; respondeu que era, provavelmente, um doido que queria vender uma ideia brilhante para um programa de televisão; era muito comum aparecerem, no estúdio, jovens com ideias mirabolantes para programas de televisão.

 

Mas, como já disse, esta revelação quase me passou por alto. Só me atingiu um pouco mais tarde, quando me preparava para reprimir novo bocejo, e foi aqui que cometi um erro. Esqueci-me do bocejo e abri a boca, o que me levou a cometer novo erro. Tentando não deixar transparecer que Thorne nos fornecera um fato que podia ser devera significativo, tentei despertar e me manter alerta, mas exagerei. Se Thorne estivesse atento, tê-lo-ia reparado, mas, chegada àquela altura, o seu estado de transe atingira o ponto mais alto e nem se dava conta de que eu o fitava com os olhos muito esbugalhados.

 

Só que Wolfe, por seu lado, reparou, e creio que foi isso que o impediu de continuar aquela conversa pela madrugada dentro. Assim, mal passava meia-hora da uma da manhã, e Thorne ainda só retrocedera até ao dia de segunda-feira anterior à morte de Elinor Denovo, quando Wolfe consultou o relógio de parede, declarou que estava muito cansado para continuar, acrescentou que Mr. Thorne também devia se sentir cansado, que Miss Denovo ficaria muito reconhecida pela sua colaboração e que ele e Mr. Goodwin tentariam descobrir algum indício em tudo o que ele revelara. Quando Thorne teve de se apoiar em ambas as mãos para se levantar, ainda pensei que precisaria carregá-lo, nos ombros, até à porta, se não mesmo ir buscar o Heron e levá-lo para casa, mas ele se aguentou. Não obstante, ainda teve de se encostar à parede, ao chegar ao átrio de entrada, e de respirar fundo, várias vezes, já na rua, mas conseguiu descer os degraus sem dificuldades, sempre comigo a vigiá-lo. Quando entrei de novo no escritório, Wolfe se virou para mim e vociferou:

 

—        Você descobriu qualquer coisa! O quê? Fui me sentar atrás da mesa.

—        Nada me daria mais prazer do que descobrir algo que tivesse passado despercebido a um grande gênio como o senhor, mas, neste caso, não me posso vangloriar disso. Creio que encontramos uma pequena brecha na muralha. Não sei se na verdade se trata do criminoso ou do pai, mas me parece ter descoberto uma brecha. No domingo passado, quando me encontrava na casa de campo de Miss Rowan, recebemos a visita inesperada de três pessoas. Um casal, amigo de Miss Rowan, bem, mais conhecido do que amigo... Pela parte que me toca, já cruzara com esse casal, anteriormente, porque possui uma casa naquela área. O terceiro convidado inesperado estava passando o fim-de-semana com o tal casal, e era um homem chamado Floyd Vance. Segundo o casal, assim que haviam dito a esse tal Vance que Archie Goodwin costumava passar os fins-de-semana na casa de campo de Lily Rowan, o homem insistira em ir até à casa de Miss Rowan, sem ser convidado, porque queria muito me conhecer. Fiquei com a impressão, pelo que ele me disse, que o que ele queria realmente era conhecer a si. Apresentou-se como sendo consultor de relações públicas. Foi mesmo ao ponto de afirmar que se, por acaso, o senhor precisasse do conselho de um especialista na gestão da sua imagem pública de detetive particular, ele ficaria encantado se pudesse lhe apresentar uma proposta. Mas não ficou por aqui: acrescentou que, se estivéssemos trabalhando num caso, eu deveria lhe revelar tudo, porque isso lhe serviria de base para a sua apresentação. Com esta última tirada, lhe prestei mais atenção, mas acabei por concluir que o homem estava apenas tentando encontrar um bobo a quem pudesse vender o seu peixe. Agora, muito sinceramente, espero ter me enganado. Apenas dois comentários: em primeiro lugar, não deve haver muitos Floyd Vance por aí. Em segundo lugar, se descontarmos vinte e três anos, o seu aspecto coincide perfeitamente com a descrição que Salvatore Manzoni me deu do misterioso acompanhante de Elinor Denovo, durante o verão de 1944.

—        Acho que vou beber mais uma cerveja, murmurou Wolfe.

—        Hoje, bebeu mais do que a sua conta e, além disso, já passa da uma da manhã.

—        Sim, não deixa de ser uma afirmação razoável, retorquiu Wolfe, deixando em aberto se estava se referirndo ao meu comentário acerca da cerveja ou à minha suposição de que tínhamos encontrado uma brecha na muralha. Empurrou a poltrona, levantou e se dirigiu para o átrio. Durante uma fração de segundo, julguei que ele decidira ir se deitar, mas, já no átrio, virou à esquerda. Fora buscar uma nova cerveja. Quando regressou, trazia consigo uma garrafa e um copo.

—        Podia ter passado despercebido facilmente, exclamou, indo se sentar atrás da mesa.

—        E foi o que quase aconteceu. Se, porventura, se trata apenas de uma coincidência, então, deixo esta profissão de detetive de uma vez por todas. Mas rapidamente saberemos, de uma forma ou de outra. A mais rápida e óbvia seria fazer com que Salvatore Manzoni visse Floyd Vance, o “relações públicas”, mas vinte e três anos é muito tempo. Temos, também, a recepcionista do estúdio de Thorne. Poderia dizer se foi Floyd Vance, o “relações públicas”, que ela expulsou, naquela sexta-feira, mas isso apenas provaria que eu descobri realmente uma brecha. Depois, temos as impressões digitais...

—        Sim, de fato...

—        Portanto, só nos resta obter as impressões digitais desse tal Floyd Vance e dá-las a Cramer para que verifique se coincidem com as que foram encontradas no carro.

—        Não, contrapôs Wolfe. — Se coincidirem, nos metemos numa confusão. Mr. Cramer teria apanhado o assassino, mas nós ainda precisaríamos encontrar um pai e, se fosse esse tal Vance, nunca poderíamos descobri-lo, porque estaria atrás das grades. Não disse que ele queria me conhecer?

—        Sim. Se ele é o nosso homem, então, o que queria, na realidade, era saber o que havíamos descoberto. Como foi que ele ficou sabendo que estamos investigando o caso, é outra questão que se põe, mas não precisamos obter uma resposta para isso, por enquanto. Sim, claro, posso arranjar maneira de fazer com que ele venha até aqui. Mas, e depois, o que se seguirá? Acha realmente que poderia interrogá-lo, sem deixar notar que queremos caçá-lo? Eu não. O risco seria o mesmo em relação à recepcionista que trabalha para Thorne, porque ela podia muito bem avisar esse tal Vance.

 

Wolfe encheu o copo, se reclinou na poltrona, fechou os olhos e começou a soprar, o que era uma novidade, Não o soprar, o se recostar na poltrona e o fechar dos olhos. Isso, nele, era rotineiro; significava que estava concentrado, muito concentrado, considerando um caso, e que não devíamos interrompê-lo. Mas era a primeira vez que se lançava naquele ritual, sem beber, primeiro, um pouco de cerveja, depois de encher o copo. Como iria se sair, assim? De que forma poderia saber que a espuma descera ao nível pretendido, de olhos fechados? Mas o mais incrível: ele pareceu adivinhar. Quando a espuma baixou a um nível que cobriria, de leve, os seus lábios, quando bebesse a cerveja, Wolfe abriu os olhos, esvaziou o copo, pousou-o, tornou a se recostar na poltrona, fechar os olhos e, depois de enxugar os lábios, recomeçou a soprar. Estupefato com aquele aparente sexto sentido, concluí que devia ter treinado, na minha ausência, para poder executar aquela espécie de truque.

 

Regra geral, cronometro o ritual do soprar, já que nada mais me resta fazer, a não ser tentar adivinhar o que Wolfe está pensando. Desta vez, demorou três minutos e dez segundos. Abriu os olhos, se endireitou e exclamou:

 

—        Telefonou para Saul, Fred e Orrie e lhes disse para estarem aqui, amanhã, às nove da manhã? Respondi que sim. — Suponho que um consultor de relações públicas deve ter uma residência e, até mesmo, um escritório... Peguei na lista telefônica.

—        Tem escritório no n.º 49 da Lexington Avenue, em Manhattan. Estava à espera de melhor... Devia ser na Madison Avenue...

—        Diga a Saul, Fred e Orrie que investiguem o passado de Floyd Vance e que o sigam, durante quarenta oito horas, sem interrupções e sem que ele note. Não deve ter problemas com Saul e Fred, mas, já com Orrie, lhe explique bem o que precisa fazer, como de costume.

—        Sim, senhor.

 

Quando Wolfe se retirou, me servi de um pouco de brandy. Talvez me colocasse para dormir alguns segundos mais depressa.

 

Não era uma mosca. As moscas não zunem. Era um mosquito. Não. Fazia muito barulho. Mas, então, que diabo... Ah, era o intercomunicador. Abri um olho, estendi o braço, alcancei o auscultador e exclamei, com voz ensonada:

 

—        O que aconteceu? Fritz retorquiu:

—        Bom dia, Archie. O patrão precisa de você.

 

Dei um olhar fulminante ao despertador, notei que já passavam vinte e cinco minutos das oito da manhã, e me levantei de um salto. Não tinha tempo para descobrir se esquecera de dar corda no despertador ou se este tocara, sem que eu ouvisse. Enchi-me de coragem, me concentrei em encontrar a porta e saí. A porta do quarto de Wolfe, que fica por cima da cozinha, nos fundos da mansão, onde o sol bate, no inverno, estava aberta. Quando entrei, descalço, sem fazer barulho, Wolfe se achava sentado em frente da mesa, lendo o Times, enquanto molhava a ponta de uma torrada no molho dos ovos au beurre noir. Quando pigarreei, engoliu a torrada, antes de se virar.

 

—        Como pode ver, ainda não me habituei à luz do dia, ao contrário do que acontece consigo, exclamei. Wolfe já estava vestido. Escolhera um terno completo, composto de uma camisa amarela, com finas listas castanhas, e uma gravata da mesma cor das listas da camisa. Quando subisse à estufa, às onze, trocaria o paletó por uma bata. Engoliu um pedaço de ovo e sentenciou:

—        São quase nove horas.

—        Sim, à luz do dia, são. Eu direi as instruções a Saul, Fred e Orrie, enquanto tomo o café-da-manhã.

—        Dê instruções apenas a Saul. Quanto a Fred e a Orrie, diga que fiquem de plantão. Discute com Saul de que forma deverão seguir Floyd Vance. Pode ser que venham a precisar de Fred e Orrie, mais tarde. A primeira questão que se coloca é: Floyd Vance está envolvido no caso? Se a resposta for afirmativa, estará envolvido, apenas como assassino, e o motivo do crime não nos interessa por agora, ou igualmente enquanto pai? É que não podemos nos dar ao luxo de perdermos o nosso tempo e de gastarmos o dinheiro da cliente só para descobrirmos um criminoso para Mr. Cramer. Dito isto, Wolfe pegou em outra torrada, que empapou no molho dos ovos.

—        Calma! Ripostei. — Das duas, uma: ou ainda não acordei completamente ou devo ter sonhado. Pensei ter deixado bem claro, ontem à noite, que não precisávamos saber, por ora, como foi que Floyd Vance descobriu que estamos investigando o caso. Contudo, se ele for o pai, pode ser importante saber. Porque, se Floyd Vance é o pai de Amy, existe uma ligação qualquer entre ele e Cyrus M. Jarrett. Pois não foi o velho Jarrett que passou aqueles cheques, ao longo de vinte e dois anos? Se Jarrett lhe disse que Nero Wolfe andava a procura do pai de Amy, e se esse tal Floyd Vance é igualmente o assassino, como Miss Denovo fica nisso tudo? Podemos perder a nossa cliente... Ora, duvido muito que o senhor queira sofrer nova baixa, no que diz respeito à clientela, como no caso de Simon Jacobs... Não ficaria bem no seu currículo. Eu não desejo me sentir responsável por nova morte. Creio que o melhor é Miss Denovo desaparecer da circulação... Wolfe me lançou um olhar fulminante.

—        Vai dizê-lo a Fritz.

 

Era àquilo que Nero Wolfe chamava “uma completa loucura”. É verdade que, quando, por motivos de segurança, fora necessário ter uma hóspede dormindo e comendo no quarto da ala sul, que fica por cima do de Wolfe, Fritz não conseguira esconder o que sentia. Mas Wolfe nem sequer se dera ao trabalho de disfarçar o seu profundo descontentamento.

 

 —       Tenho plena consciência, prossegui, — De que, se tornarmos a ter uma mulher nesta casa, Fritz é muito capaz de ir embora, assim como o senhor. Mas não foi nisso que pensei. Amy Denovo passa a maior parte dos seus dias em casa de Miss Rowan, e poderia passar lá as noites, também, até esclarecermos devidamente o assunto. Até porque Miss Rowan tem dois quartos vagos. Eu vou lhe sugerir isso. Mais alguma coisa?

 

Wolfe respondeu que não, e subi ao andar de cima para fazer, em dez minutos, aquilo que me leva, em regra, uma boa meia hora. Quando desci à cozinha, depois de passar pelo escritório e dizer a Fred e a Orrie que Saul e eu íamos seguir uma nova pista, e talvez precisássemos deles, mais tarde, me sentia menos confuso. Um detetive deve ter uma grande intuição, que o leva a entender, melhor do que ninguém, as pessoas e os acontecimentos, mas já desisti, há muito, no que toca a Fritz. Nem sequer me dei ao trabalho de tentar adivinhar como soubera que Fred e Orrie estavam de saída e que Saul ficaria.

 

Fritz sabe que Saul adora os seus ovos au berre noir, e havia dois lugares postos na mesa. Enquanto tomamos o café-da-manhã, falei de Floyd Vance para Saul e das várias hipóteses que se nos depararam. Levamos as xícaras de café para o escritório, a fim de planejar o modo como deveríamos agir. Wolfe afirmara que a primeira questão que se punha era saber se Floyd Vance estaria envolvido no caso. Saul concordou comigo que mal não faria se considerássemos aquela dúvida já esclarecida e agíssemos de acordo com essa convicção. Também concordou que ajudaria à investigação se ele visse Floyd Vance, em pessoa, e disquei, imediatamente, o número do telefone de Nathaniel Parker, o advogado.

 

—        Sim, Archie?

 

Gosto da forma como Parker diz “sim, Archie”. Ele sabe que tratar de algo para Wolfe pode se revelar interessante, mas igualmente difícil e espinhoso, portanto, aquele “sim, Archie” era uma expressão meio-triste, meio-alegre. Disse-lhe que, desta vez, era pouca coisa, para tranquilizá-lo.

 

—        É muito simples, continuei. — Um homem chamado Floyd Vance possui um escritório no n.º 49 da Lexington Avenue. É consultor de relações públicas, que, como deve saber, é uma nova profissão. Venho lhe pedir que telefone e diga que tem um cliente que está pensando contratar os seus serviços. O nome do seu cliente é Saul Panzer, cujas qualificações o senhor conhece bem. Saul pode ir visitar Mr. Vance a qualquer hora. Quanto mais depressa, melhor. Anotou o nome? Floyd Vance.

—        Sim. E se ele me pedir mais pormenores?

—        Diga-lhe que não pode dar.

—        Bela maneira de definir a situação. Mesmo se quisesse, não poderia dar porque não faço ideia do que se trata. Não se esqueça de apresentar os meus cumprimentos ao gênio da casa.

 

Parker estava sendo sincero, mas tinha consciência de que eu sabia que número ele iria escrever na nota que nos enviaria. Disquei outro número, que conhecia de cor, para fazer novo pedido e, depois, subi ao meu quarto, a fim de fazer a barba e mudar de roupa. Os dez minutos, antes do café-da-manhã, não haviam bastado. Estava muito calor para percorrer, a pé, os mais de três quilômetros de percurso até à East 63rd Street. De qualquer modo, tinha dito a Lily que estaria em sua casa, às onze e meia. Às onze e vinte e cinco, toquei a campainha do apartamento. Fiquei surpreso, ao ver Mimi. Quando sou esperado, a uma determinada hora, é sempre Lily que vem abrir, talvez em virtude de certas ideias que ela tem acerca de uma criada ter de abrir a porta a um homem que possui as chaves da casa. Mas me aguardava nova surpresa: Tinha dito a Lily, pelo telefone, que gostaria de falar com ela e com Miss Denovo.

 

Então, o que estariam fazendo no terraço, àquela hora do dia, com um jarro de chá gelado sobre a mesa, quando deveriam, isso, sim, estar trabalhando no escritório? Até porque todas as divisões do apartamento dispõem de ar condicionado. Seria possível que Lily ainda estivesse... Tanto me fazia, pois eu estava trabalhando. Puxei uma cadeira, coloquei-a entre as duas que estavam ocupadas por Lily e Amy Denovo, me sentei, me servi de chá gelado e exclamei:

 

—        Não reparem nos meus modos. É que, hoje, tenho muito que fazer. Virei-me para Lily. — Estamos investigando um caso, a pedido de Miss Denovo. Começamos...

—        Archie! Não! Aqui está um exemplo de como um cliente se mete onde não deve.

—        Agora, quem fala, sou eu! Ripostei, e me virei de novo para Lily. — É um assunto muito íntimo e Miss Denovo não quer que ninguém o saiba, nem mesmo você. Preciso admitir que me sinto contente e mesmo orgulhoso por ver que Miss Denovo tem tanta confiança em mim e que isso a leva a me tratar por Archie. Mas, regressando ao seu problema, apenas direi que não é da sua responsabilidade, mas, sim da de terceiros. Tudo o que ela deseja é resolvê-lo. Faz hoje, duas semanas, foi consultar Nero Wolfe.

—        Porque... Protestou Amy, mas se calou. Lily me sorria.

—        Olé! Exclamou, e, em seguida, me assoprou um beijo.

—        Ontem à noite, prossegui, me virando, desta vez, para Amy, — Houve uma evolução no caso. Não posso lhe fornecer pormenores, na presença de Miss Rowan, nem o faria, nesta altura. No entanto, agora, é mais do que um simples palpite pensarmos que a morte da sua mãe não foi apenas consequência de um atropelamento acidental, mas, sim, de um homicídio premeditado. Se for esse o caso, é muito provável que ele tenha certas ideias em relação a si. Não sabemos...

—        Ele? Quem?

—        Provavelmente nunca ouviu falar dele, nem vai ouvir tão cedo. Não sabemos que motivo tinha para desejar a morte da sua mãe, ou se tem alguma razão para desejar a sua, mas, certa vez, ao se nos deparar uma situação idêntica, cometemos um erro gravíssimo, e uma vez já bastou. Voltei-me para Lily. — Nem sequer deve se aproximar do elevador. Quanto ao terraço, creio não haver problemas, pois duvido muito que ele tenha um helicóptero. Gostaria que ela ficasse aqui, sob a sua custódia, até descobrirmos mais do que sabemos, neste momento. Talvez tudo se resolva em questão de dias, mas também pode demorar algumas semanas. Por outro lado, podia avançar bastante na preparação da biografia do seu pai...

—        E porque não? Respondeu Lily. — Com certeza! Amy me fitava, de sobrolho carregado.

—        Mas o senhor não pode esperar que eu... Não pode me dizer que... Olhou para Lily. — Se não se importar, Miss Rowan, gostaria de perguntar algo a Archie, a sós.

—        Não me importo, mas conheço-o melhor do que você. Ele se encontra trabalhando. Quando está se divertindo, é um homem maravilhoso, quer dizer, na maior parte das vezes, mas, quando se encontra trabalhando, é impossível aturá-lo. Archie já disse que não lhe forneceria quaisquer pormenores, mas, se, mesmo assim, quer tentar a sua sorte, faça. Não me incomoda nada.

—        Mas incomoda a mim, objetei. — Tenho muita coisa para fazer e, de qualquer forma, não há nada que eu seja capaz de lhe dizer. A nova pista que encontramos pode muito bem não levar a lado nenhum, e preciso descobri-lo, quanto antes. Levantei-me. — Talvez queira ir buscar as suas coisas ao apartamento, mas não demore o dia todo. Depois, me virei para Lily. — A taxa fixa para os serviços de um guarda-costas é de seis dólares à hora, mas deve descontar as horas em que estiverem trabalhando na pesquisa do livro...

—        Posso levá-la até ao campo, no fim-de-semana?

—        Não. Talvez precisemos dela.

—        Não bebeu o seu chá...

—        E o mais engraçado, eu estou com sede... Peguei na xícara, sorvi alguns bons goles, beijei Lily na testa e fui embora.

 

Não deve faltar muito para o dia em que eu já não seja capaz de escrever estes relatos, destinados a serem publicados. Talvez um, dois, cinco anos no máximo. Não haverá nada para relatar porque será quase impossível andarmos na cidade e o trabalho de investigação reduzir-se-á a ligações telefônicas e a alguns trabalhos feitos nas redondezas. O táxi demorou quarenta e nove minutos para percorrer a distância que separa a East 63rd Street do edifício onde a Companhia dos Telefones de Nova Iorque mantém em arquivo, as listas antigas para consulta.

 

No entanto, chegando ali, precisei apenas de nove minutos para ficar sabendo que “Vance, Floyd” constava da lista de Manhattan, referente ao ano de 1944, e de que o seu endereço, nessa altura, era no n.º 10 da East 39th Street. Devia se tratar do endereço profissional, porque não havia prédios para moradia naquele quarteirão. Esta descoberta era satisfatória, sob dois aspectos: um, de que, em 1944, ele vivia na cidade; e, outro, de que o seu escritório ficava a pouca distância do restaurante de Tuffiti, situado na East 46th Street. O passo seguinte era ir até ao n.º 10 da East 39 Street, mas isso precisaria ficar para mais tarde, porque Saul combinara almoçar e, logo em seguida, ter uma reunião conosco. Quando o táxi entrou na East 35th Street, Saul saía do seu carro, que estacionara, em fila dupla, à frente da velha mansão de granito vermelho.

 

A hora seguinte me forneceu alimento, tanto para o estômago quanto para o cérebro. Para o estômago, molejas de vitela Amandine, empadinhas e um pudim frio de milho verde. Para o cérebro, um debate sobre a questão de saber se a música, em geral, tinha, ou podia ter, qualquer conteúdo intelectual. Wolfe dizia que não; já Saul afirmava que sim. Apoiei este último, não só porque ele tem menos de metade do peso de Wolfe, mas, também, porque defendeu o seu ponto de vista com teorias deveras interessantes. O que me deixou algo confuso, no entanto, foi ouvi-lo emitir aquela opinião, depois de, numa terça-feira à noite, haver tocado ao piano para mim e Lon Cohen, uma peça de Debussy, enquanto aguardávamos os nossos parceiros de pôquer. Lon dissera algo acerca da força intelectual daquele trecho, tendo Saul replicado que nenhum tipo de música jamais poderia apresentar um conteúdo intelectual. Isto acontecera há poucas semanas. Mas, tal como a mulher disse ao papagaio, “tudo depende de com quem se está falando”, e era esse o caso. No escritório, informei Wolfe do que Saul e eu tínhamos decidido fazer, coloquei-o a par dos meus telefonemas para Nathaniel Parker e Lily e terminei com o meu relato costumeiro.

 

—        Fiz algo e descobri algo. Tratei da segurança da nossa cliente, pedindo a Miss Rowan que a hospede em sua casa, até ordens em contrário, e descobri que, em 1944, Floyd Vance dispunha de telefone num escritório do n.º 10 da East 39th Street. Não tive tempo de ir lá, mas soube que os velhos edifícios do lado sul daquele quarteirão ainda não foram demolidos. E, a não ser que Saul tenha descoberto algo mais importante, creio que devemos ir até lá e realizar a uma pequena investigação... Wolfe fitou Saul.

—        Não descobri nada, anunciou este. — Bem, é verdade que sempre ajuda vermos o suspeito, mas Archie já o viu e, portanto, não é novidade para ninguém que se trata de um homem de meia-idade que, talvez tenha tido boa aparência, há vinte e três anos atrás. Existem duas salas, muito pequenas, no seu escritório: uma, que ele ocupa, e outra, onde fica uma loura que abusa do batom. Quando lhe fiz algumas perguntas acerca dos seus antigos e atuais clientes, ou tinha muito pouco para me mostrar ou não quis fazê-lo. Como é evidente, quis saber quem era o cliente de Parker, o que é perfeitamente compreensível, mas foi um pouco mais insistente do que deveria. Ao ver que não ia descobrir grande coisa, quase cometi um erro. A certa altura, pensei em lhe perguntar se, alguma vez, tivera, como cliente, um produtor de televisão, mas, felizmente, me refreei a tempo. Quando me dirigi para lá, ainda pensei que talvez me fosse possível surripiar algo, com uma bela coleção de impressões digitais, mas o homem não me largou um só minuto. Mas, mesmo que tranque a porta, quando vai embora, isso não constitui problema, porque se trata de uma fechadura Wingate, perfeitamente comum. Até mesmo Archie ou eu poderíamos abri-la, de olhos fechados. Wolfe meneou a cabeça.

—        Por ora, não precisamos de impressões digitais. Talvez mais tarde...

—        Eu sei, mas pensei que seria agradável obtê-las. Apenas mencionei isto porque não cheguei sequer aos calcanhares de Archie, no que toca a descobertas. Bem, ainda estamos em agosto e o fim-de-semana começa daqui a umas horas. Dito isto, Saul se levantou. — Vamos embora, Archie. Podemos planejar as nossas diligências pelo caminho.

 

Tanto Saul como eu, dois homens capazes, treinados e inteligentes, trabalhamos muito nos dois dias seguintes. Saul cortou o cabelo, o que é uma verdadeira proeza, num sábado ou num domingo, em pleno verão, para alguém que vive no centro de Manhattan. Reparei no seu novo aspecto, quando me encontrei com ele, na segunda-feira de manhã. Quanto a mim, gastei $2385 do dinheiro da nossa cliente em táxis e gratificações, das dez da manhã às sete da tarde de sábado, o que também é um feito notável. Havia um restaurante, o Dyers, a três portas do n.º 10 da East 39th Street. O proprietário me disse que o tal estabelecimento existia havia trinta anos. Ele próprio estava instalado ali desde 1948, há quase dezenove anos, para meu grande desapontamento, mas sabia o nome e o endereço do antigo proprietário: se chama Herman Gottschaik e vivia no Bronx. Gastei nove horas para tentar localizá-lo, a fim de lhe mostrar os retratos de sete mulheres. Não se tratou de um ato tresloucado, mas sim desesperado.

 

Como é óbvio, o mais simples, quando se anda investigando o passado de alguém, é falar com os inquilinos do prédio em que essa pessoa morou, mas Saul e eu já tínhamos nos encarregado disso, na sexta-feira à tarde. Nem o ascensorista nem o porteiro nem nenhum outro funcionário trabalhavam no prédio, há mais de quatro anos, com exceção do superintendente. Este entrara no serviço em 1961, pouco depois de o prédio ser adquirido pelo atual proprietário. Disse a Saul que o seu predecessor ocupara aquele cargo, durante cinco anos apenas; não fazia ideia do nome do antigo proprietário nem do da agência imobiliária que se encarregava do aluguel dos apartamentos, mas sabia que nenhum dos inquilinos atuais morava há tanto tempo ali. No escritório da East and West Realty Corporation, a agência imobiliária que havia comprado o prédio, os únicos empregados de serviço, ao sábado de manhã, eram uma jovem, cuja mãe a deveria ter obrigado a usar um aparelho para endireitar os dentes, e um velhote, com um olho de vidro. Nem um nem outro souberam responder às perguntas de Saul.

 

No domingo, me encarreguei de outras tarefas. Levei Lily Rowan e Amy Denovo a uma partida dupla de beisebol, no Shea Stadium, e me certifiquei de que a nossa cliente regressava ao apartamento, sã e salva. Na segunda-feira de manhã, uma mulher bronzeada, no balcão do escritório da East and West Realty Corporation nos indicou o nome da agência imobiliária que se encarregava do aluguel dos apartamentos, antes de 1961. Tratava-se da Kauffman Management Company, em cujo escritório tivemos a sorte de encontrar um rapaz novo e expedito, que parecia com vontade de se mostrar prestativo, porque perdeu meia hora do seu tempo verificando registos antigos. O homem que era o superintendente do n.º 10 da East 39th Street, em 1944, chamava-se William Polk, mas falecera em 1962. Não havia registo dos outros funcionários, mas, em contrapartida, havia a lista completa dos inquilinos de 1944, que eram vinte e dois ao todo, incluindo Floyd Vance. O jovem ainda nos disse que ninguém trabalhava na Kauffman há vinte e cinco anos e que o fundador da agência, Bernard Kauffman, já falecera. Saul e eu dividimos a lista dos antigos inquilinos ao meio e colocamos mãos a obra.

 

Poderia lhes fornecer um relatório completo acerca dos primeiros quatro inquilinos que encontrei, mas este livro não é um tratado econômico ou social. O que nos interessa é o quinto inquilino com quem falei, pouco depois das cinco da tarde de segunda-feira. Era uma mulher chamada Dorothy Sebor, de cinquenta anos, cabelo grisalho, olhos azuis, corpo roliço, e tão expedita como o jovem da Kauffman Management, que dirigia (talvez fosse mesmo a proprietária) a empresa Serviços de Compras a Domicílio Sebor, cujo escritório ficava numa suíte do décimo andar do Rockefeller Center.

 

Tratava-se de uma mulher muito ocupada. Os quarenta minutos que passei com ela não teriam sido mais de vinte, se o telefone não estivesse constantemente interrompendo. Talvez deparasse, até, com alguma dificuldade em ser recebido, se não tivesse enviado, primeiro, um bilhete, em que dizia que pretendia lhe perguntar algo em relação ao n.º 10 da 39th Street. Quando entrei, a mulher me perguntou se era o Archie Goodwin que trabalhava para Nero Wolfe, e, perante a minha resposta afirmativa, prosseguiu:

 

—        Mas que posso eu lhe contar acerca do n.º 10 da East 39th Street? Saí de lá, há dezoito anos, mas adorava aquela espelunca... Sente-se. Obedeci.

—        Não sei o que poderá me revelar, Miss Sebor. Apenas sei o que desejo lhe perguntar. Estamos investigando um caso que remonta a muitos anos atrás e nos interessa particularmente o ano de 1944. Mas, primeiro, não se importa de me dizer que andar ocupava?

—        Claro que não. Ocupava o apartamento dos fundos do nono andar.

—        Temos conhecimento de que um outro inquilino, nessa altura, que se chamava Floyd Vance. Chegou a conhecê-lo?

—        Bem, conhecia-o apenas de vista, por assim dizer. O escritório dele era no mesmo andar do meu, no fundo do corredor, mas virado para a frente. Sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos ou falávamos do tempo e de outras trivialidades, mas mais nada.

 

Não queria levar a mão ao bolso. Tirara já vezes demais aqueles malditos retratos, mas precisava obedecer às ordens, e lá executei o ritual.

 

—        Vou lhe pedir que a senhora examine atentamente estas fotografias e me diga se reconhece alguém. No mesmo momento em que estendi o braço para lhe dar as fotografias, o telefone tocou. Miss Sebor pousou as fotografias em cima da sua mesa. Quando disse a alguém o que deveria fazer e desligou, pegou nas fotografias. Ao chegar à quarta, eu tinha sempre o cuidado de misturá-las, esbugalhou os olhos, me fitou, olhou novamente para a fotografia e exclamou:

—        Não é... Vance... É Vaughn. Carlotta Vaughn! Os olhos azuis pousaram em mim, semicerrados. — Vi o nome dela num anúncio de jornal, há pouco tempo, em que se dizia que ela também era conhecida por outro nome qualquer, de que não me recordo agora...

—        Conheceu-a?

—        Sim, porque ela trabalhava para esse tal Floyd Vance. Ou com ele. Isso eu já não sei... Senti, simultaneamente, dois impulsos contraditórios: abraçar e beijar aquela mulher, por um lado, e, por outro, lhe puxar as orelhas, por não haver respondido ao nosso anúncio, uma semana antes. Por fim, traduzi um destes impulsos por palavras.

—        Miss Sebor, exclamei, — A senhora é a mulher mais bonita que jamais vi em toda a minha vida e, se soubesse qual a sua cor favorita, oferecer-lhe-ia dez dúzias de rosas. Por conta do nosso cliente, claro... Ela sorriu, mais com os olhos do que com a boca.

—        O meu serviço de compras a domicílio não tem trabalhado muito com floristas, mas seria interessante tentar... Ao que tudo indica, acaba de tirar um ás...

—        Um, não! Quatro! A senhora respondeu a uma pergunta em relação à qual eu começava a pensar que nunca conseguiria obter resposta. Se a senhora...

—        O seu cliente é Carlotta Vaughn? Não, claro que não, caso contrário não teria publicado aquele anúncio... Mas anda tentando encontrá-la, é isso?

—        Não. Carlotta Vaughn morreu. Gostaria de lhe contar tudo, mas a senhora é uma mulher ocupada e se trata de uma história muito comprida. Além disso, tal como o nosso cliente afirma, é um assunto deveras íntimo, Ficar-lhe-ei muito agradecido, se tiver a bondade de responder, apenas, a mais algumas perguntas... Foi... Novamente o telefone. Desta vez, Miss Sebor demorou mais tempo, porque teve de dizer a alguém o que não devia fazer. Por fim, desligou e se virou para mim.

—        Não; eu vou lhe fazer uma pergunta, Mr. Goodwin. Gostava de Carlotta Vaughn. Era uma jovem muito trabalhadora e competente. Não a via com frequência, se bem que tenhamos almoçado juntas algumas vezes, mas o pouco que convivi com Carlotta foi o suficiente para me deixar bem impressionada. Eu estava começando o meu negócio, com muitas dificuldades, e tentei persuadi-la a se tornar minha sócia, mas ela sempre recusou. Sim, gostava muito dela. O senhor acabou de afirmar que Carlotta morreu. Diga-me: ela teria aprovado o que o senhor está fazendo? Tive de mentir. Podia ter me esquivado e dizer uma série de baboseiras, tal como que não conhecera Carlotta Vaughn e, que, por conseguinte, não podia imaginar qual seria a sua reação, mas resolvi mentir descaradamente.

—        Sim, com toda a certeza, respondi. — Já se passaram muitos anos, mas talvez a senhora se recorde. Quando foi que a viu pela primeira vez?

—        Isso é fácil. Nunca me esquecerei daquele primeiro Inverno, porque ainda trago, dentro de mim, as cicatrizes. Quando comecei, aluguei aquele escritório minúsculo, com uma só divisão, no outono de 1943, e vi Carlotta Vaughn, pela primeira vez, na primavera seguinte. Em abril ou março. Suponho que teremos nos cruzado no corredor ou no elevador, mas, disso, já não me recordo...

—        Então, ela trabalhou no n.º 10 da East 39th Street na primavera e no verão de 1944.

—        Exatamente.

—        E se lembra de quando a viu pela última vez?

—        Não muito bem... Não a ponto de lhe indicar uma data precisa, mas, quando deixei de vê-la, perguntei por ela a Floyd Vance, que me disse... Dorothy Sebor franziu a sobrancelhas, pensativa, mas, depois, meneou a cabeça. — Foi uma resposta muito vaga... Lembro-me de ter ficado com a ideia de que ela tinha se mudado para outro lugar ou conseguira outro emprego.

—        Isso foi quando? No verão? No outono? Ou no inverno?

—        No inverno não foi, porque, em novembro, o meu pequeno negócio começou a dar sinais de vida e quis dar a boa nova a Carlotta, mas ela já não estava lá. Provavelmente, terá sido no outono.

—        O que perfaz um total de seis ou sete meses. A senhora, ainda há pouco, afirmou que não sabia se ela trabalhava para ou com Floyd Vance. Mas ela ia todos os dias ao escritório, não é assim?

—        Não sei se ia todos os dias, mas estava no escritório dele, quase todo o tempo, isso sim. Ele era relações públicas. Não sei se ainda é... Nada sei acerca dele, para lhe ser sincera. Saiu do n.º 10... Creio que dois anos depois de Carlotta ir embora.

—        Tenho a impressão de que a simpatia que nutria por Carlotta não se estende a Floyd Vance...

—        E não se engana. Na verdade, não o conhecia bem, nem o desejava. Ele se achava um homem atraente e encantador, e talvez o fosse, mas, quanto a mim, era... Bem, era vaidoso demais para o meu gosto. Não era o tipo de homem para quem ou com quem eu trabalharia. E, se o senhor... Valha-me Deus? Não me diga que ele é o seu cliente!

—        Não, não é, fique descansada. Mas, voltando à nossa conversa, me permita que lhe diga que não me parece existir nenhum tipo de homem para quem ou com quem a senhora quisesse trabalhar... Ela sorriu, desta vez, mais com a boca do que com os olhos...

—        Nunca tentei nem tenciono. Se bem que não me importasse de ter um homem do seu tipo, trabalhando para mim... Quanto Nero Wolfe lhe paga?

—        Nada. Nem um tostão. Trabalho por pura dedicação, porque tenho oportunidade de conhecer pessoas interessantes como a senhora. No entanto, se eu, um dia, me fartar e pedir demissão, venho ter consigo. Por falar em pedir demissão, julga que Carlotta se despediu, por partilhar da sua opinião em relação a Floyd Vance? Talvez ela tenha lhe dito... O telefone, de novo. Desta vez, a julgar pela conversa, se tratava de um cliente importante, o que obrigou Miss Sebor a telefonar para dois dos seus empregados: a um, deu ordens precisas; ao outro, uma grande descompostura. Quando desligou, consultou o relógio de pulso.

—        Está ficando tarde e tenho muito trabalho...

—        Também eu, graças à senhora, retorqui e me levantei. — Julga que a sua opinião, em relação a Vance, era partilhada por Carlotta?

—        Duvido. Mesmo que o fosse, ela nunca teria me dito. Era uma mulher... Muito contida e reservada.

—        Costuma trocar um aperto de mãos com homens? Ela soltou uma sonora gargalhada.

—        Quase sempre, quando quero algo deles...

—        Nesse caso, preencho todas as condições, retorqui, ao estender a mão, — Porque a senhora quer que eu vá embora.

—        Se um dia se fartar de Wolfe, estou disposta a lhe pagar quinze mil dólares por mês. E seria apenas o começo...

—        Não vou me esquecer da sua proposta. Qual a cor de rosas que prefere?

—        Verdes com rebordos pretos. E, se me enviar dez dúzias de rosas, vendê-las-ei a um cliente, porque sou uma mulher de negócios.

 

E, de fato, era.

 

Quando Wolfe desceu da estufa às seis da tarde, eu tinha descalçado os sapatos, desfeito o nó da gravata, posto os pés em cima de uma das cadeiras amarelas e estava comodamente recostado no meu lugar, lendo uma revista. Quando Wolfe se dirigiu para a sua mesa, cumprimentei-o com um aceno de cabeça indolente, bocejei, e tornei a me concentrar na minha leitura. Não vi o olhar fulminante que ele me deu, mas pude senti-lo. Esperou alguns segundos e depois perguntou:

 

—        Teve uma tontura? Desmaiou por causa do calor? Virei-me despreocupadamente.

—        Oh, não, me sinto em plena forma! Estou só descansando. Saul telefonou, há poucos minutos atrás, e convidei-o para jantar. O caso está encerrado. Floyd Vance é o pai de Amy Denovo. Ia lhe telefonar para dar a notícia, mas talvez o senhor prefira fazê-lo...

—        Pff... Relate o que foi que descobriu.

 

Pousei os pés no chão, sem pressa, me endireitei e abaixei para calçar os sapatos. Quando estou no meu posto de trabalho, a porta e grande parte do escritório ficam atrás de mim; por isso, há um espelho de grandes dimensões na parede do fundo, para que eu possa observar o que acontece à minha volta. Servi-me do espelho para refazer o nó da minha gravata, penteei o cabelo com os dedos, e só então, me virei.

 

—        Não creio que queira saber os pormenores mais dolorosos que me levaram a tal conclusão. No entanto, se desejar terei o gosto em lhe fazer a vontade. Há uma hora e meia atrás, uma mulher chamada Dorothy Selbor, que dirige, repito, que dirige, um serviço de compras a domicílio e cujo escritório fica no Rockefeller Center, me disse: “Mas o que eu posso lhe contar acerca do n.º 10 da East 39th Street? Saí de lá, há dezoito anos, mas adorava aquela espelunca... Sente-se.” Ah, se não se importa, vou usar a minha fórmula e não a sua. Prefiro o “Eu” e “Ela” a “Goodwin” e “Sebor”... Assim, dei um relatório ipsis verbis a Wolfe que, como de costume, me ouviu, reclinado na poltrona, com os olhos fechados. Quando terminei, se deixou ficar, imóvel, durante um minuto, até mexer os lábios apenas para resmungar:

—        Muito bem.

—        Já não era sem tempo! Retorqui, com toda a sinceridade. — Alguma pergunta? Wolfe abriu os olhos.

—        Porquê rosas?

—        Já estava esperando essa... Saiu sem pensar, provavelmente porque ela não me pareceu ser o tipo de mulher que aprecia orquídeas. Se bem que talvez ganhasse muito mais dinheiro com as famosas orquídeas de Nero Wolfe do que com umas simples rosas...

—        Havemos de lhe enviar alguns rebentos de Phalaenopsis Aphrodite. Nunca estiveram tão belas e viçosas. Mas, agora que teve tempo para ponderar, considera que o caso está encerrado?

—        Estava apenas saboreando esta pequena vitória, ao fim de tantos dias de frustração. Tenho certeza absoluta de que Floyd Vance é o pai, mas devo admitir que não é o bastante para convencer um júri. Pode ser o suficiente para a nossa cliente, mas devo também admitir que existem outros aspectos da questão...

—        Explique-se melhor.

—        Muito bem. O aspecto mais importante, para nós, é a sua honra. Há quatro dias atrás, eu disse a Cramer: “estou autorizado a lhe dar a palavra de honra de Mr. Wolfe de que, se descobrirmos algo que nos leve até ao presumível criminoso, lhe diremos, antes de fazer uso dessa informação.” Ainda acrescentei: “Pelo menos, uns dois minutos antes...”, mas isso não desfaz o nosso compromisso. Até agora, apuramos os seguintes fatos. Primeiro: Carlotta Vaughn engravidou no verão de 1944 e é quase certo que não era casada. Segundo: conviveu com Floyd Vance, ao longo do verão de 1944. Terceiro: No dia 22 de maio de 1967, uma segunda-feira, quatro dias antes de Carlotta Vaughn, sob o nome de Elinor Denovo, falecer, Floyd Vance tentou falar com ela, mas foi expulso pela recepcionista. E, pelo visto, já tentara falar com Elinor, antes disso. Vou detestar ter de dizer a Cramer que estes três fatos, juntos, não lhe servirão de muito. Bem, como é evidente, é a sua honra que está em questão, mas eu empenhei-a.

—        A minha honra e a minha reputação, resmungou Wolfe. — Continue.

—        Depois, existe outro aspecto que, talvez, diga mais respeito a mim do que ao senhor. Não se trata da minha honra, mas dos meus sentimentos, porque Cyrus M. Jarrett correu comigo, por duas vezes, e gostaria de lhe retribuir. Que tipo de ligação existiu, e ainda existe, entre Jarrett e Vance, para levar o primeiro a começar a enviar cheques para Carlotta Vaughn, também conhecida por Elinor Denovo, assim que a filha dela nasceu? O que o levou a continuar a enviar esses cheques até à morte de Carlotta Vaughn? Talvez seja algo que Cramer possa utilizar, mas não é por isso que eu quero saber. Depois, como é óbvio, Miss Denovo também gostaria de sabê-lo e sempre fui de opinião de que devemos satisfazer os desejos dos nossos clientes. E os meus, também. Muito bem; preciso voltar atrás com a minha palavra: o caso não está encerrado. A partir de agora, contudo, é com o senhor...

 

Esperava que Wolfe desse início ao ritual do assoprar, mas ele se limitou a inclinar a cabeça de lado.

 

—        A questão é não sabemos qual das duas situações alternativas devemos encarar. Se ele for o pai, mas não um assassino, prová-lo será muito difícil, para não dizer impossível. Mas se é também um assassino, a situação, então, é muito mais simples: ele cometeu esse ato, apenas há três meses atrás. Teremos de nos decidir e, depois, agir de acordo com a nossa decisão. Pode arranjar uma maneira de fazer com que ele venha até aqui, esta noite?

—        Sob que pretexto? Devo lhe perguntar se ele ainda quer conhecer o senhor?

—        Isso deve bastar, para início de conversa. No entanto, se ele disser que não, diga que sou eu que quero conhecê-lo. Diga que eu quero perguntar porquê ele não respondeu ao anúncio pedindo informações acerca de Carlotta Vaughn, também conhecida por Elinor Denovo.

 

Tinha anotado o número de telefone da casa de Vance. Faltava quinze para as sete quando disquei o número, e, se ele tinha o costume de jantar fora, o mais provável era ninguém atender. Mas, ao fim de dois toques, ouvi um “Alô?”.

 

—        Desejo falar com Mr. Floyd Vance, por favor.

—        É o próprio.

—        O meu nome é Archie Goodwin. Trabalho para Nero Wolfe. Talvez se recorde de que nos conhecemos em casa de Lily Rowan, e que o senhor...

—        Lembro-me muito bem.

—        E que o senhor me disse que gostaria de conhecer Nero Wolfe para lhe fazer uma proposta. Falei nisso a Mr. Wolfe, agora, e ele também gostaria de conhecê-lo. Será que pode vir nos visitar nesta noite, por volta das nove horas? Silêncio total, do outro lado do fio.

—        É um pouco em cima da hora...

—        Bem sei. Não é assim tão urgente, mas se não lhe causar incômodo... O endereço é...

—        Eu conheço o endereço. Novo silêncio. —        Disse às nove horas?

—        Sim. Ou mais tarde, se lhe convier.

—        Não seja tão ridiculamente cortês. Estarei aí por volta das nove.

 

Quando desliguei, a campainha da porta tocou. Era Saul. Abri a porta, apenas uns centímetros, e anunciei, pela fresta:

 

—        Pode não querer entrar. Não temos champanhe, mas temos vários aspectos a ponderar.

 

A culpa era toda minha. Quando Saul telefonara, eu tinha acabado de retornar para a casa, tão contente comigo mesmo que não só o convidara a vir jantar conosco, como também lhe dissera que abriríamos uma garrafa de Dom Pérignon para comemorar. Só que, após ponderar os vários aspectos do caso, se tornara evidente que colocar uma garrafa de champanhe na geladeira era algo prematuro. Não que eu precisasse de me explicar ou de me desculpar, junto a Saul, mas porque ele também ficara com os nervos em frangalhos pelos longos dias de completa frustração.

 

De qualquer modo, Saul se desforrou. Bebeu mais de metade de uma garrafa de Montrachet, para acompanhar os bifes de tartaruga com amêijoas. Portanto, apenas ficou a perder quanto às borbulhas do espumante. De regresso ao escritório, após o jantar, estabelecemos o programa para aquela noite. Quando Vance chegasse, Saul se esconderia na sala da frente e, assim que a nossa visita estivesse instalada na poltrona vermelha, Saul sairia, para ir até ao n.º 490 da Lexington Avenue e, aí, recolher objetos que tivessem impressões digitais. Uma vez que já tinha visto a fechadura, sabia que chaves escolher do grande sortimento que tínhamos num armário. Depois, me ajudou a preparar os adereços do escritório. Limpamos, com todo o esmero, doze objetos: o tampo da mesinha que se encontrava ao lado da poltrona vermelha; dois cinzeiros, um, que havia em cima da dita mesinha, e outro, a um canto da mesa de Wolfe, duas fotografias de Elinor Denovo, que estavam guardadas numa gaveta da mesa de Wolfe, quatro copos de diferentes tamanhos, já que não sabíamos qual era a bebida preferida de Vance, duas caixas de fósforos, que estavam ao lado dos cinzeiros, e cada centímetro da poltrona.

 

De tempos a tempos, eu parava, para dar um olhar de soslaio a Wolfe, porque ele constituía uma visão extremamente engraçada. Estava sentado na sua poltrona, com as mãos entrelaçadas sobre a enorme pança, nos observando com expressão carrancuda. Sabia que o que estávamos fazendo era muito mais importante do que o que pudesse pensar, e isso irritava-o. Teria adorado manter a posição de que podia resolver qualquer problema, tanto no planeta Terra como no espaço, com o seu costumeiro ritual de se recostar na poltrona, fechar os olhos e assoprar. O verdadeiro problema era que os pequenos trabalhos que Saul e eu fazemos para Wolfe são sempre no exterior, mas, desta vez, estávamos agindo no território dele, mesmo à frente do seu nariz. Sentia-me até surpreso por ver que Wolfe ainda não se levantara para ir à cozinha.

 

Quando o pai de Amy tocou a campainha da porta, passavam dez minutos das nove horas. Quando fui abrir, Saul passou à sala da frente, e quando acompanhei Vance até ao escritório e indiquei a poltrona vermelha, fiz algo que fazia frequentemente, mesmo sabendo que era absolutamente inútil. É perfeitamente natural para um espectador de um julgamento, tentar decidir, apenas pela aparência de um homem, se é inocente ou não, até porque os espectadores têm de arranjar um meio de passar o tempo. Mas, para um detetive, isso não serve de nada. No entanto, tornei a fazê-lo. Examinei os olhos inchados de Vance, as suas faces flácidas, o cabelo ralo, os ombros curvados, até mesmo os sapatos, que estavam precisando urgentemente de graxa, na esperança de encontrar algo que respondesse à questão: fora ou não ele que matara Elinor Denovo? Como podem imaginar, o meu meticuloso exame não me serviu de nada. Quando cheguei a esta brilhante conclusão, Wolfe dizia:

 

 —       ... Não que eu despreze todas as expressões vulgares; algumas das palavras e frases mais refinadas da nossa linguagem, foram, em tempos, consideradas ordinárias. Mas um clichê tão batido como “imagem” é usado por tudo e por nada, o que abomino profundamente. O senhor disse a Mr. Goodwin que a minha “imagem pública” precisava da orientação de um especialista e que gostaria de me conhecer. Se tiver uma proposta para fazer, escutá-la-ei por simples cortesia, mas não se refira à minha reputação como sendo uma “imagem pública”.

 

A voz de Vance não condizia com aquela de que me recordava. Ficara com a ideia de que era um orador nato, quando o conhecera em casa de Lily Rowan, mas, agora, pronunciava as palavras com voz arrastada.

 

—        Aprendi algo acerca de si, desde que falei com Mr. Goodwin: não se preocupa minimamente com a sua imagem pública. Mandou-me vir até aqui só para me dizer que abomina palavras ou expressões vulgares? E clichês? Muito bem; já disse. E, agora, posso ir para casa?

—        A sua pergunta tem a ver com a razão por que o fiz vir até aqui. A minha pergunta é: porque veio? Duvido que ambos esperemos obter uma resposta sincera. Na realidade, Mr. Vance, me sinto algo confuso em relação ao meu objetivo. Tenho várias dúvidas. Primeiro, gostaria saber porquê o senhor insistiu com os seus amigos para ir até à casa de campo de Miss Rowan, com o fito de conhecer Mr. Goodwin. Depois, gostaria de saber porquê fez várias tentativas para ver Mrs. Elinor Denovo, em maio passado. E ainda gostaria de lhe perguntar qual foi a sua relação com Miss Carlotta Vaughn, durante o verão de 1944. E, ainda outra dúvida: me pergunto porquê o senhor não respondeu ao anúncio, que foi publicado...

—        Meu Deus! É melhor me dar um lápis e uma folha de papel, para anotar todas as suas perguntas.

 

Não tínhamos preparado um bloco de notas! Também, não se pode pensar em tudo... Tirei um bloco e um lápis da gaveta e me levantei. Vance pegou neles, provavelmente porque não sabia como fazer uso da língua e se sentia mais à vontade com algo nas mãos.

 

—        Como vê, prosseguiu Wolfe, — Possuo, e uma vez que o senhor parece gostar tanto de clichês, um certo patrimônio. Dito isto, Wolfe se virou. Eu ainda não tornara a me sentar. — Pode me arranjar uma cerveja, Archie?

—        Claro. Avancei um passo e parei. — Aceita uma bebida, Mr. Vance?

 

Ele meneou a cabeça energicamente e respondeu com um rotundo “não”. Dei meia volta, frustrado, porque um copo ou uma garrafa seria o ideal para a recolha de impressões digitais, mas, quando alcancei a porta, a sua voz me deteve.

 

—        Que se dane. Um uísque com água. E um balde de gelo.

 

Fritz, a quem Wolfe tinha dito que não precisaria dele, já saíra. Na cozinha, tive o cuidado de limpar muito bem um copo, um balde de gelo, um sifão de água e uma garrafa de Johnnie Walker Black, que coloquei num tabuleiro à parte. Isto me levou algum tempo e me fez perder uma parte da conversa. Quando retornei ao escritório, Vance se servira das mãos e segurava, agora, um charuto. Devido à minha ausência, não sabia se ele os trazia soltos no bolso, ou numa caixa, nem fazia ideia se ele se servira dos fósforos da mesinha para acender aquele. Era um panatela comprido, em nada semelhante a um Gold Label Bonita, mas isso não me incomodou; se, na verdade, havia deixado a charuteira no carro, depois do atropelamento, só revelaria bom senso se tivesse passado a fumar outro tipo de charutos. Depois de servir Wolfe e Vance, retornei à cozinha, para ir buscar um copo de leite, e, quando voltei, Vance segurava o seu copo na mão e Wolfe estava falando.

 

—        ... Pois não tenho qualquer intenção ou desejo de lhe fazer uma exigência ou uma acusação, nem, tampouco, o meu cliente. Apenas pretendo aquilo para que me contrataram: obter informações. Não posso mencionar o nome do meu cliente, mas, se as minhas perguntas lhe revelarem a sua identidade, só isso, em si, responderá à minha maior dúvida. O anúncio dava a entender claramente que uma mulher, em tempos chamada Carlotta Vaughn, passara a ser conhecida, depois, por Elinor Denovo. Mas se o senhor prefere não me dizer nada acerca de Elinor Denovo, ficaremos apenas em Carlotta Vaughn. A propósito...

 

Wolfe abriu uma gaveta de onde retirou as duas fotografias. Eu avisara-o para segurá-las de forma a não se tornar óbvio que não desejava deixar as suas impressões digitais até porque a polícia já as tinha, e até não se saiu mal quando me deu-as para que eu, por minha vez, pudesse entregá-las a Vance.

 

—        Atendia pelo nome de Elinor Denovo, quando essas fotografias foram tiradas, continuou Wolfe, — Mas ainda se chamava Carlotta, no ano anterior. Por isso, creio que o senhor a reconhecerá. Vance também pegou nas fotografias com toda a naturalidade. Tinha pousado o copo e, com uma em cada mão, examinou-as e, depois, fitou Wolfe.

—        E depois? Claro que a reconheço, replicou, enquanto pousava as fotografias na mesinha. — Não vou negar que conheci, em tempos, uma mulher chamada Carlotta Vaughn. Dito isto, tornou a pegar no copo e bebeu mais um gole de uísque.

—        Quando e onde a viu pela primeira vez?

—        Na primavera de 1944. Já não arrastava as palavras; ao que tudo indicava, uns bons goles de uísque com muito pouca água haviam sido de boa ajuda. — Creio que foi em fins de março. Meu Deus, isso se passou há vinte e três anos!

—        Onde?

—        Não me recordo. Suponho que terá sido numa festa. Nessa altura, eu tinha menos de trinta anos e costumava sair muito à noite.

—        E contratou-a?

—        Bem... Sim.

—        Pagava-lhe salário? Vance bebeu mais um trago de uísque.

—        Ouça, não quero me vangloriar. Como já disse, eu tinha menos de trinta anos e certa facilidade com mulheres. Pareciam gostar muito do meu estilo. Mas essa Carlotta Vaughn ficou realmente embeiçada por mim. Eu tinha acabado de me lançar no mercado, e ela sabia-o, que diabos, toda a gente o sabia, mas queria me ajudar, e era uma jovem esperta. Portanto, deixei-a me ajudar. Não, não lhe pagava salário.

—        E durante quanto tempo ela continuou ajudando-o?

—        Oh, durante todo o verão e o princípio do outono. Uns seis, sete meses.

—        Porque foi que ela deixou de fazê-lo?

—        Não sei, porque nunca perguntei.

—        Creio que pode me dar uma resposta mais concreta, Mr. Vance. Carlotta Vaughn não parou de ajudá-lo por estar grávida?

 

Vance colocou a cinza do charuto no cinzeiro, levou o charuto à boca, notou que tinha se apagado, pegou na caixa de fósforos, acendeu-o e lançou uma longa baforada de fumaça. Olhou para Wolfe, abriu a boca, tornou a fechá-la, pegou na garrafa, se serviu de mais uma dose de uísque, juntou uns cubos de gelo e tornou a olhar para Wolfe.

 

—        Sim, ela estava grávida. Pelo menos, foi o que me disse, porque não se notava...

—        Quer dizer que o senhor a tinha engravidado...

—        Eu! Uma ova!

—        Só pode ter sido o senhor...

—        Pelo amor de Deus! A mulher era uma ninfomaníaca, para não dizer pior. Nem sequer sabia quem era o pai da criança, como me confessou.

 

Aquilo provava, se precisávamos de mais provas, como seria impossível demonstrar que era ele o pai de Amy. No entanto, havia três pessoas, Raymond Thorne, Bertram McCray e Dorothy Sebor, que poderiam contradizê-lo, em relação à moralidade e aos costumes de Carlotta Vaughn, e talvez conseguíssemos algo mais, mas seria apenas um simples confronto de opiniões. Não obstante, Vance tinha um ponto fraco. O que iria, ou poderia, dizer em relação ao fato de Cyrus M. Jarrett haver enviado um cheque de mil dólares, todos os meses, a Carlotta Vaughn, enquanto ela fora viva? Concluí que ele podia dizer, e era o que ia fazer certamente: “Então, que investiguem o meu passado.” E Wolfe, provavelmente, tinha chegado à mesma conclusão. Enchera o seu copo e estava vendo baixar a espuma; também podia estar pensando, muito simplesmente, que Vance usara um clichê, ainda considerado vulgar. Virou-se para mim e perguntou:

 

—        Servirá de alguma coisa nós prosseguirmos? O que queria dizer: “Já temos impressões digitais que cheguem?”.

—        Não, retorqui, o que queria dizer: “Sim, já temos.”.

 

Tornou a olhar para o copo de cerveja. A espuma baixara ao nível exato, mas Wolfe se levantou e saiu, porta fora. Quando desapareceu no átrio, disse a mim mesmo, pela vigésima vez, que teríamos de mudar a disposição da mobília do escritório, para ele não ser obrigado a fazer um desvio e passar ao lado da poltrona vermelha, quando esta ainda estava ocupada por um visitante. Virei-me para Vance e exclamei:

 

—        Que lhe sirva de lição. Usei outro clichê.

—        Ele não vai voltar?

—        Volta, mas só depois de o senhor ir embora.

—        Diabos! Você podia ter me perguntado, pelo telefone, se fui eu que a engravidei. Teria respondido...

—        Sim, eu também tentei dizer isso a Mr. Wolfe, mas ele achou que se tratava de um assunto muito íntimo para ser discutido ao telefone. Além de que escolhe sempre o caminho mais difícil. E, depois, gosta muito de ouvir a si próprio... Vance fitou o seu copo, viu que ainda continha algumas gotas de uísque e esvaziou-o.

—        Julguei que ele ia... Deteve-se, para recomeçar de novo, logo a seguir. — Ele disse que queria saber por que razão eu quis ver Elinor Denovo. Caramba, só tentava arranjar clientela na Raymond Thorne Productions. Não tinha ideia de que ela era a famosa Carlotta Vaughn. A primeira vez que ouvi falar do caso, foi através daquele anúncio nos jornais.

—        Não se ouve um anúncio de jornal. Ouve-se um anúncio no rádio e se lê um anúncio no jornal. Já na televisão, se vê e se ouve um anúncio, ao mesmo tempo. As coisas estão se tornando tão complexas que, um dia destes, ainda...

—        Chega. Já estou farto de vocês. Não passam de um par de malditos criadores de caso, essa é a verdade!

 

Não era assim tão fácil uma pessoa se levantar da poltrona vermelha, e Vance teve de cravar os dedos nos braços para se levantar. Já de pé, me mandou para um certo lugar, empregando um outro clichê vulgar, e avancei para o átrio de entrada, porque ele podia muito bem virar à esquerda, em vez de virar à direita, e Wolfe se  encontrava na cozinha. Não o acompanhei até à saída. Não por ser um mentiroso; apenas porque me pareceu que não era necessário.

 

Quando a porta se fechou atrás dele, com toda a força, fui até à cozinha, abri a porta, anunciei, a plenos pulmões: “A visita já foi embora!” e, depois, desci ao sótão para apanhar caixas de papelão vazias, lenços de papel e cordéis. Quando retornei ao escritório, Wolfe estava atrás da mesa, mas de pé, olhando à sua volta, com expressão pensativa. Coloquei as caixas de papelão em cima do sofá e os lenços de papel e os cordéis na minha mesa. Depois, declarei:

 

—        Não trocaria de imagem, privada ou pública, com aquele espécime. Nunca senti tanta pena de um cliente, em toda a minha vida, porq...

—        Quanto tempo vai durar este cheiro horroroso a charuto? Rosnou Wolfe, não me dando ouvidos.

—        Com o ar condicionado ligado, deve desaparecer daqui a uma hora, respondi, enquanto embrulhava cuidadosamente o copo em lenços de papel. — Preciso da sua ajuda para tomar uma decisão. A garrafa está meio cheia do mais puro Johnnie Walker Black, que custa, por aí, uns quarenta dólares. Doamo-la a Cramer ou esvaziamo-la, primeiro?

—        Jogue esse uísque pelo sanitário abaixo. Está contaminado. Maldito cheiro! Vou subir, mas, antes, quero que escreva uma carta. Pegue o bloco.

 

Fui me sentar atrás da minha mesa e, pela primeira vez em não sei quantos anos, Wolfe me ditou uma carta de pé.

 

Caro Mr. Cramer.

Há cinco dias atrás o senhor disse a Mr. Goodwin que tinha em seu poder uma charuteira de couro, onde tinham sido detectadas nove impressões digitais. As caixas de papelão que Mr. Goodwin vai lhe entregar juntamente com esta carta, contêm um grupo de objetos, alguns dos quais poderão ter impressões digitais que talvez sejam condizentes com as encontradas na charuteira. Isto não passa de uma conjectura, e ficaria muito agradecido se me informasse se é válida. Com os meus cumprimentos...

 

—        Fritz pode levá-la ao meu quarto, amanhã, juntamente com o café-da-manhã para eu assiná-la, porque quando você e Saul tiverem terminado o trabalho, aqui, no escritório, é natural que eu já esteja dormindo. Dito isto, Wolfe apertou o nariz, me desejou boa-noite e avançou para a porta.

 

Quando cheguei à sede da Brigada de Homicídios, as quinze para as nove de terça-feira, me sentia indeciso. Queria entregar as caixas a Cramer, o mais depressa possível, mas, se ele estivesse, não queria entregá-las a ele pessoalmente, porque, assim que lesse a carta, não me largaria mais, até as impressões digitais serem recolhidas e comparadas. E, se fossem idênticas, então, ainda ficaria à sua mercê por mais tempo. Assim, fiquei satisfeito por saber que Cramer ainda não havia chegado. Nem, tampouco, o sargento Stebbins, mas falei com outro sargento que eu conhecia, chamado Berman. Quando ele viu as seis caixas de papelão, uma, muito grande, porque continha um cesto de papéis que Saul trouxera do n.º 490 da Lexington Avenue, comentou que esperava que não contivessem bombas. Respondi-lhe que não, acrescentando, em seguida, que apenas uma das caixas continha uma bomba e que o truque era descobrir qual. Berman guardou a carta no bolso e prometeu entregá-la a Cramer, assim que ele chegasse.

 

Seria instrutivo relatar como foi que Saul conseguiu tirar um cesto de papéis do escritório da Lexington Avenue, às dez da noite, mas, para tal, teria de escrever, pelo menos, mais uma página. De novo em casa, e porque bebera apenas um suco de laranja, antes de sair, tomei o café-da-manhã, tentei encontrar no Times algo de interessante para ler e aguardei. O problema, quando se aguarda, ficamos de sobreaviso, quer queiramos quer não. A análise das impressões digitais podia demorar de uma a oito horas, e, depois, seria preciso compará-las com as da charuteira.

 

No entanto, quando me dirigi ao escritório, para limpar o pó, arrancar as folhas dos calendários, regar as plantas e abrir o correio, esperava que o telefone tocasse a qualquer momento. Não se consegue evitar essa ansiedade, sobretudo quando não temos motivos para saber o que nos aguarda. Se as impressões digitais não coincidissem, ficávamos na mesma; se coincidissem, tínhamos, pelo menos, quatro alternativas a analisar.

 

Portanto, aguardei, e, se bem que tenha aberto a correspondência de Wolfe e lido todas as cartas, antes de colocá-las debaixo do peso-de-papéis de jade, nem sei do que tratavam. Ainda tentei passar o tempo, fitando a poltrona vermelha, coberta com grandes lençóis brancos. Na noite anterior, Saul e eu tínhamos concluído que já possuíamos impressões digitais que chegassem, sem ter de recorrer àquelas que haviam ficado marcadas nos braços da poltrona, mas tínhamo-la protegido com lençóis brancos, pelo sim, pelo não. Agora, ali estava, semelhante a um fantasma, uma forma ridícula. Tirei os lençóis, dobrei-os e fui guardá-los.

 

Ao regressar ao escritório, olhei para o relógio, vi que eram 10:38 e decidi, finalmente, que já era tempo de ponderar, com calma, a situação. Primeiro, se as impressões digitais não coincidissem, já sabia o que me esperava. Dali a uns dias, um policial de serviço telefonar-me-ia, me pedindo que fosse buscar toda a tralha que havia deixado na delegacia. Mas, se as impressões digitais coincidissem, o mais provável seria que o tenente Rowcliff ou o sargento Stebbins telefonassem, por volta das duas, três da tarde, informando que precisavam de me ver com urgência. Ou, então...

 

A campainha da porta tocou, naquele momento. Dirigi-me ao átrio de entrada e avistei, pela vidraça, Cramer e Stebbins, na soleira da porta. Em regra, a visão de dois policiais, que desejam

entrar na mansão, é algo que não me deixa doido de alegria, mas, quando avancei para a porta, apenas pensava numa coisa: a reconfortante certeza de que as impressões digitais condiziam e de que Floyd Vance havia assassinado Elinor Denovo. Devia ter me dado conta de que a vinda dos dois polícias, as quinze para as onze, num horário em que sabiam que Wolfe não recebia ninguém, dava a entender que aquela visita requeria algumas manobras de diversão. Antes de abrir a porta, deveria ter posto a corrente e abrir apenas uma nesga, já que seria preciso um mandado de busca para que eles entrassem na casa de Nero Wolfe, e Cramer não tivera tempo de obter esse mandado.

 

Contudo, fiquei tão contente por vê-los que abri a porta e, provavelmente, até os acolhi com um sorriso rasgado. Se fosse esse o caso, o meu sorriso depressa se desvaneceu. Passaram por mim, sem sequer me cumprimentarem, e avançaram para as escadas que conduzem aos andares superiores. Um agente da lei, dentro da nossa residência, já é coisa muito diferente do que um, à porta. Assim que transpõe a soleira, e eu tinha-a aberto, tudo o que nos resta fazer é nos sentarmos, atrás de uma mesa, e escrever uma carta endereçada ao Supremo Tribunal. E, mesmo que conseguisse chegar à estufa, antes deles, e não podia, porque o elevador pessoal de Wolfe estava no último andar, de que me serviria? Por isso, fui até à cozinha dizer a Fritz o que estava acontecendo e que ia me juntar ao grupo. Só depois, subi as escadas, sem pressa.

 

Atravessar as três estufas, a fria, a temperada e a quente, percorrer as alas, que se abrem por entre as bancadas de plantas, sem nos determos para admirar uma cor que nem sonhávamos poder existir, sob a forma de uma orquídea, é sinónimo de que a nossa mente está demasiado concentrada noutra coisa. Era o meu caso. Chegando à estufa do meio, pude ouvir uma voz e, quando abri a porta que comunicava com a estufa quente, reconheci aquela voz. Era Cramer. Aproximei-me do grupo. Wolfe, com uma bata amarela, estava encavalitado num tamborete, junto a uma bancada de vasos com rebentos, com Theodore a seu lado. Stebbins se encontrava à sua direita e Cramer, à sua frente, com o chapéu de feltro na mão, o que me deixou admirado. Postado perante Wolfe, falava num tom de voz mais alto do que necessário:

 

—        ... E vou detê-los como testemunhas materiais, até obtermos os mandados. Depois, juro que irão passar a noite numa cela! Muito bem! Falei! Mexa-se! Wolfe permaneceu onde estava, impassível. Ao notar que eu acabara de entrar, me fitou.

—        Tens alguma queixa a fazer, Archie?

—        Apenas em relação aos maus modos da polícia. Da próxima vez, hão de falar por uma nesga da porta de entrada... Wolfe se virou novamente para Cramer.

—        Mr. Cramer, como já lhe disse, me recuso a falar de assuntos de trabalho neste local. Se quiser ter a bondade de aguardar, descerei ao escritório, às onze horas em ponto. Se colocar a mão, em mim e no Mr. Goodwin, e nos levar consigo, não abriremos a boca e mandaremos chamar o nosso advogado. Quando ele chegar, falaremos apenas com ele, em particular. E a Gazette, um jornal vespertino, publicará esta tarde, na primeira página, que Nero Wolfe e Archie Goodwin descobriram a identidade do assassino de Elinor Denovo e que forneceram provas concludentes à Polícia. E que, em reconhecimento desse serviço público, cumprindo o seu dever de cidadãos respeitáveis, Nero Wolfe e Archie Goodwin foram detidos e se encontram atrás das grades, mas que o advogado deles está tentando fazer com que eles saiam em liberdade provisória, mediante fiança. Archie, a ficha de germinação desta Míltonia Charlesworth tem umas notas algo contraditórias. Precisamos verificar isso. Tirei o cartão das mãos de Wolfe e examinei-o, com expressão carrancuda.

 

Cramer se encontrava numa situação difícil. O fato de haver levado as caixas de papelão e a carta de Wolfe, se as impressões digitais coincidiam, tornava a mim e a Wolfe, efetivamente, testemunhas materiais. Mas, se nos levasse para a delegacia e nos comportássemos como Wolfe acabara de dizer, seria alvo da chacota geral. Se por outro lado, esperasse ali, na estufa, onde não havia local para sentar, permanecendo de pé, à espera, para após descer conosco até ao escritório, pode ser algo que faça parte das funções de um sargento, mas não das de um inspetor. Stebbins resmungou entre dentes:

 

—        Meu Deus, como eu gostava de fazê-lo cair daquele tamborete... Depois, fitou o seu superior. — Vamos levá-los, trancamo-los numa cela e expulsamo-los, antes que o advogado apareça.

 

Cramer podia ter muitos defeitos, mas não era estúpido. A ideia de vir nos visitar, antes das onze horas da manhã e de invadir as estufas, partira, muito provavelmente, de Stebbins, que julgara se tratar de um golpe de gênio. Só que, agora, estava indo longe demais. Cramer acenou, com a mão, para a porta, sem abrir a boca. Era uma ordem e Stebbins obedeceu. Avançou para a porta, abriu-a, para deixar passar o seu superior, e, depois, seguiu atrás deste, deixando a porta escancarada. Theodore foi fechá-la e Wolfe consultou o relógio eletrônico de um pequeno painel que registava a temperatura e a ventilação ambiente. Faltavam seis minutos para as onze.

 

—        Este cartão tem realmente erros da minha parte? Perguntei.

—        Não. Foi pretexto que encontrei para que fique aqui, comigo. Dito isto, Wolfe se virou para Theodore. — Estas Odoritoglossum Pyramus não estão prontas para serem mudadas para um vaso número sete. É melhor um vaso número seis, não concorda?

—        Não, respondeu Theodore. - Um pouco de espaço a mais não vai lhes fazer mal.

 

Não escutei a discussão que se arrastou pelos dez minutos seguintes. Estava concentrado tentando saber o que Stebbins e Cramer poderiam encontrar, se revistassem as nossas mesas, e me congratulei por ter destapado a poltrona vermelha. No entanto, tinha de permanecer, ali, na estufa, não só porque Wolfe queria, mas, também, porque, se tivesse seguido atrás dos dois agentes da lei, estes não hesitariam em me crivar com mil perguntas e, da forma como me sentia, talvez acabasse por perder a paciência.

 

Provavelmente, estavam à espera que eu e Wolfe descêssemos juntos, no elevador. Contudo, quando Wolfe desceu do tamborete e desabotoou a bata, lhe disse que desceria pelas escadas, e saí. Uma vez que todos os andares da mansão são atapetados, desci, sem fazer barulho, e Cramer e Stebbins só se deram conta de que eu me encontrava na soleira da porta do escritório, quando lhes falei. Stebbins ocupara o meu posto e abrira duas gavetas. Cramer fitava os armários, mas não conseguira abri-los, porque estavam trancados.

 

—        Ainda não abri o cofre, exclamei. — Peço desculpas. Cramer me fitou com os olhos semicerrados.

 

Stebbins se limitou a tirar mais uma pilha de papéis de uma gaveta e começou a examinar as folhas. É o que acontece quando um policial entra na nossa casa. Foi então que se ouviu o ruído do elevador parar no andar térreo e, quando Wolfe se aproximou, entrei, finalmente, no escritório. Wolfe fez o mesmo, se deteve, fitou Cramer, deu um olhar fulminante a Stebbins, que continuava a remexer nos papéis, e anunciou:

 

—        Archie, telefone para Mr. Parker. Eu atendo na cozinha.

—        Do que estava à espera? Ripostou Cramer. — Pare com isso, Purley. Goodwin quer ocupar o seu posto. Vamos, mexa-se!

 

Stebbins lançou os papéis para cima da mesa, se levantou, sem pressa, e foi buscar uma das cadeiras amarelas. Sempre gostou de apoiar as costas contra uma parede. Quando encontrou a posição que mais lhe agradava, Cramer já estava acomodado na poltrona vermelha, e Wolfe, atrás da sua mesa. Abriu uma gaveta para ver se estava tudo em ordem, fez uma careta, e se virou para Cramer.

 

—        Quanto mais breves formos, melhor. O senhor deseja saber de quem são aquelas impressões digitais.

—        Claro que desejo. Também desejo...

—        Sei muito bem o que deseja, mas, agora, é a minha vez. Não quero esse homem, e indicou Stebbins, com um gesto de desdém, — Na minha casa, a remexer no meu escritório. Pff... Também gostaria de expulsá-lo, a si, mas o mais provável seria que fosse substituído por alguém ainda menos tolerante... Archie, escreva à máquina, numa folha de papel timbrado, o nome, o endereço particular e profissional e respectivos números de telefone de Mr. Vance. Ah, e quero uma cópia.

 

Demorei mais tempo do que o costume para tirar uma folha de papel timbrado e outra, de papel carbono, porque Stebbins deixara tudo desarrumado. Enquanto escrevia à máquina, Cramer disse algo, notou que Wolfe não estava ouvindo, e se calou. Quando terminei, Wolfe ordenou:

 

—        Uma folha para cada. Entreguei o original a Cramer e a cópia a Stebbins. Por fim, Wolfe se dirigiu a Cramer.

—        Muito bem; agora mande esse homem embora.

 

Os leitores têm de admitir que Wolfe sabe muito bem quando pode impor a sua vontade, mesmo perante a autoridade. Noutras circunstâncias, nem sequer se atreveria a tentar dizer a Cramer para mandar embora Stebbins, mas eu acabara de lhe fornecer o nome e o endereço de um homem que deixara a sua charuteira num carro que atropelara uma mulher.

 

—        Floyd Vance, murmurou Cramer, depois de ler a folha. — São as impressões digitais dele que estão naqueles objetos todos que me enviou?

—        Sim. Deixou-as, ontem à noite, na minha presença, sentado aí, nessa poltrona. Cramer se virou para Stebbins.

—        Vá procurá-lo e prenda-o. Stebbins se levantou e saiu. Finalmente, ia deixar-nos em paz. Mal virou costas, Wolfe exclamou:

—        O senhor andou correndo, de um lado para o outro, num dia de muito calor, e, provavelmente, deseja beber qualquer coisa, mas perdeu todo o direito a qualquer cortesia. Demos-lhe o nome de um homem que anda tentando encontrar há mais de três meses. Que mais quer? O ar condicionado secara o suor que escorria pela testa de Cramer e atenuara mesmo o rubor do seu rosto.

—        Muita coisa. Quero ter um motivo muito forte para que o senhor e Goodwin não sejam acusados de haver ocultado informações à polícia e de haver impedido a ação da justiça. Quero saber há quanto tempo sabem que esse tal Floyd Vance era o motorista do carro daquele caso de atropelamento e fuga, e como foi que o descobriram. Quero saber se ele é o pai que os senhores procuravam e, se for esse o caso e se Elinor Denovo for a mãe, quero saber porque foi que ele a matou.

—        Isso vai demorar muito tempo para explicar, Mr. Cramer.

—        Provavelmente, mesmo se tratando de um homem eloquente como o senhor. Pode começar.

—        Primeiro tratemos da acusação que nos faz. Na quinta-feira passada, Mr. Goodwin lhe deu a nossa palavra de honra de que, se descobríssemos algo que nos levasse ao presumível criminoso, lhe diríamos, antes mesmo de fazer uso dessa informação. Ora, obtivemos as impressões digitais, ontem à noite, e entregámo-las ao senhor, nesta manhã, bem cedo. Não as utilizamos em nosso favor, nem tencionamos fazê-lo. E, em minha opinião, não possuo mais informações que lhe possam ser úteis.

—        A sua opinião não me interessa. Se julgar que pode decidir...

—        Por favor! O senhor pediu para eu me explicar. Como lhe disse, a minha cliente era, e ainda é, uma jovem que me pediu que encontrasse o seu pai. Descobrimos um possível suspeito, mas, depois de complicada investigação, riscamo-lo da lista. Descobrimos um segundo suspeito, mas também ficou provado que não poderia ser o pai da nossa cliente. Estava disposto a devolver o adiantamento que recebi e a desistir do caso. Só persisti, apenas por ser aquilo que chamo de “tenaz” e que Mr. Goodwin chama de “teimoso”. O nome Raymond Thorne lhe diz alguma coisa?

—        Raymond Thorne? Não.

—        Mas, diz, com certeza, aos seus subordinados. Elinor Denovo passou a maior parte da sua vida adulta trabalhando para ele, na Raymond Thorne Productions, uma produtora de televisão. A meu pedido, ele veio me ver, na quinta-feira à noite, e respondeu às minhas perguntas, durante mais de duas horas. Uma das coisas que fiquei sabendo foi que um homem, chamado Floyd Vance, tentara, por várias vezes, falar com Elinor Denovo, que sempre se recusou a recebê-lo. A última tentativa que Vance fez para ver Elinor Denovo foi em 22 de maio, quatro dias antes dela morrer. Se o senhor tivesse interrogado a recepcionista da Raymond Thorne Productions com alguma perseverança, talvez tivesse solucionado o caso, há muito tempo. Lançamo-nos numa meticulosa investigação, em relação à Floyd Vance, e descobrimos que ele tinha conhecido Elinor Denovo, quando esta ainda se chamava Carlotta Vaughn, em 1944, e que haviam convivido um com outro, durante vários meses. Era possível que ele fosse o pai que eu procurava, em nome da minha cliente, e conseguimos localizá-lo. É um consultor de relações públicas, uma dessas profissões modernas que constituem um insulto à dignidade do homem. Mr. Goodwin conseguiu fazer com que ele viesse até aqui, ontem à noite, e tratou de todos os preparativos, porque as tentativas que ele fizera para ver Elinor Denovo, pouco antes de esta morrer, levavam-nos a pensar que fora ele que a assassinara. Ora, como sabia que o senhor tinha em poder certas impressões digitais, Mr. Goodwin, com a ajuda de Mr. Panzer, se encarregou de tudo. O que veio a se revelar de grande ajuda, não para mim, mas para si. Sem isso, provavelmente, nunca o teria encontrado. E, agora, vem...

—        Que deseja? Que eu o condecore com uma medalha de ouro?

—        Não gosto de medalhas. As impressões digitais não me serviram de nada. Ele negou ser o pai da criança que Carlotta Vaughn teve, um 1945. Pode ter mentido, claro, mas eu nada podia fazer. Nem posso. Mesmo que seja o homem que procuro, não há maneira de provar. O senhor pode sugerir uma maneira de prová-lo?

—        Eu trato de homicídios, não de processos de paternidade.

—        É verdade. Contudo, com as impressões digitais que lhe fornecemos, pode encerrar o caso. O senhor afirmou que queria saber por que motivo Floyd Vance matou Elinor Denovo. Também eu, porque não faço a menor ideia. Já lhe disse tudo o que sabia. Vi apenas Mr. Vance uma vez, ontem à noite, mas não lhe fiz perguntas em relação à morte de Elinor Denovo, nem, tampouco, acerca do fato dele haver tentado vê-la, em maio passado. Bem, mas como é evidente, agora, o senhor vai se encarregar disso, porque precisa do motivo do crime, e até é possível que descubra algo que seja de interesse para o meu problema. Se isso acontecer, e se puder partilhar o que descobriu comigo, sem pôr em risco a sua investigação, tentarei apagar da memória o seu comportamento ultrajante desta manhã. E, lhe digo, desde já, que não vai ser fácil... Quando me lembro daquela criatura, sentado no posto de Mr. Goodwin, desarrumando as suas gavetas, e as minhas, enquanto o senhor assistia e aplaudia...

—        Eu não aplaudi. Como sempre, está exagerando.

—        Mas permitiu.

—        Oh, esqueça isso. Um policial tem certos hábitos, como qualquer outro profissional. Ele procurava informações; não provas. Mesmo que tivesse descoberto uma confissão de Goodwin, devidamente assinada, em que ele declarasse haver morto Elinor Denovo, isso nunca seria uma prova admissível em juízo; pergunte-o a qualquer Supremo Tribunal. Cramer consultou o relógio de pulso e, depois, fitando-me, perguntou: — Há quanto tempo Stebbins saiu?

—        Talvez uns quinze minutos, respondi. — Só uma coisa: quando se levantar, não se apoie no braço direito da poltrona, porque contém as impressões digitais de Floyd Vance.

—        Obrigado por me dizer. Cramer calcou ambas as mãos no braço esquerdo da poltrona, se levantou e, já de pé, encarou Wolfe. — Quero estar presente, quando Stebbins o trouxer. Devo admitir que o senhor não se saiu nada mal nas suas explicações, mas é sempre assim... Portanto, continuo a manter as minhas reservas, pelo menos, enquanto não vir esse tal Floyd Vance. Se as coisas evoluírem em bom sentido, talvez receba um telefonema meu. Contudo, se as coisas evoluírem noutro sentido, então, pode ter a certeza de que voltaremos a nos ver. Alguma vez lhe agradeci?

—        Não.

—        Nesse caso, também não vou fazê-lo, pelo menos, por enquanto.

 

Dito isto, Cramer deu meia volta e saiu. Wolfe abriu a gaveta da sua mesa para verificar, mais uma vez, se estava tudo em ordem e eu comecei a arrumar os meus papéis, depois do puro ato de vandalismo cometido por Stebbins. Felizmente, não havia o perigo de haver levado qualquer documento importante, porque os documentos desse tipo ficavam sempre bem guardados a sete chaves. Depois de repor tudo em ordem, concluí que Stebbins não levara nada, a não ser alguns dos meus cartões de visita, o que coloca a seguinte questão: se é ilegal um detetive particular se fazer passar por um policial, então, porque já não constitui ilícito o fato de um policial se fazer passar por um detetive particular? Precisaria perguntar isso a Wolfe. Já fechara a gaveta e estava recostado na sua poltrona, com ar pensativo, mas não concentrado. Quando me virei para ele, fez um sinal com a cabeça e exclamou:

 

—        Phalaenopsis Aphrodite Sanderiana.

—        Se se trata de um enigma, retorqui, — Então, digo que as cores mais comuns são o rosa, o castanho, a púrpura e o amarelo.

—        Havemos de enviar algumas a essa tal Dorothy Sebor. Vou buscá-las lá em cima. Tencionava trazê-las, quando aqueles idiotas invadiram a minha casa. E também me esqueci de trazer um exemplar para adornar a minha mesa. Dito isto, se levantou.

—        Tem instruções a dar? Perguntei.

—        Não. Nada pode fazer agora.

—        Saul, Fred e Orrie estão de plantão.

—        Diga que não é preciso. O nosso próximo passo precisará esperar até Mr. Cramer descobrir o motivo do crime, se conseguir, se bem que deveria, já que conta com uma equipe de não sei quantos homens treinados para tal.

 

Depois de ouvir o ruído do elevador subindo, me sentei novamente e estudei o caso, sob todos os seus ângulos. Era bom ouvir que havia um próximo passo, mas teria sido ainda melhor saber qual seria.

 

Não soube, na altura, e continuo sem saber até hoje, quanto tempo levaram as autoridades para descobrir por que motivo Floyd Vance assassinara Elinor Denovo. Cramer só telefonou às 6: 38 da tarde de quinta-feira, mesmo a tempo de me fazer chegar atrasado, outra vez mais, ao meu jogo de pôquer. Como também não sabia qual seria o nosso próximo passo. Um dos oitenta e sete fatos acerca de Wolfe, que eu alteraria de bom grado, se soubesse como, é que ele não gosta de dar explicações apenas para satisfazer a curiosidade alheia, até mesmo a minha. Contudo, tenho de admitir que, neste caso, podia haver outros fatores como, por exemplo, querer ver se eu era capaz de descobrir por mim mesmo e formular alguma sugestão.

 

Provavelmente, os leitores têm inúmeras sugestões a propor, mas já não seria assim se estivessem no meu lugar, à espera de uma evolução dos acontecimentos que dependia inteiramente de outras pessoas, sem saber o que essas pessoas faziam, naquele momento.

 

No entanto, ainda tomei uma iniciativa. Quando soube pelo rádio, na quarta-feira, ao meio-dia, que Floyd Vance fora detido, sem fiança, telefonei para Lon Cohen e confirmar se era verdade; depois, telefonei para Lily Rowan e lhe disse que lhe ficaria muito grato se me convidasse para almoçar, porque queria voltar a ver a nossa cliente. Assim, depois de nos regalarmos com uma salada de lagosta, uma mousse e de nos instalarmos no terraço, informei Amy de que ela já não

corria perigo de vida e de que, se resolvesse ir dar um passeio, as hipóteses de regressar a casa, sã e salva, eram idênticas às de qualquer outra pessoa.

 

Como é natural, Amy quis saber o que acontecera, assim como Lily, e creio que terá sido a primeira, e única, vez que Lily desconfiou de que eu estava fingindo, em relação a questões de trabalho. A certa altura, lembrou de que tinha um compromisso, uma espécie de reunião de um dos muitos comitês a que pertencia o que me deixou sérias dúvidas, e fiquei a sós com Amy. Tenho de admitir que Lily pensasse que, dessa forma, mostrava a sua consideração para comigo, mas na verdade não estava me prestando qualquer favor. Durante duas semanas, eu tinha evitado falar com Amy, que, agora, queria saber tudo, e devo confessar que não podia censurá-la por isso. Em regra, podemos revelar alguma coisa a um cliente, mas eu já lhe revelara que o verdadeiro nome de sua mãe era Carlotta Vaughn. Mais uma vez, tive de lhe dizer que não tinha mais nada a acrescentar. E, quando saí do apartamento, já não tinha tanta certeza de ainda ser o único homem no mundo em quem ela confiava.

 

Como é lógico, li todos os artigos dos jornais de quarta e de quinta-feira, relativos ao motorista do automóvel, envolvido no caso de atropelamento e fuga, que a polícia tinha prendido, ao cabo de três meses. Fiquei, também, com a impressão de que a descoberta das impressões digitais que haviam identificado o criminoso, tinha sido fruto da grande competência dos membros da Brigada de Homicídios, porque não havia qualquer menção a Nero Wolfe e a Archie Goodwin, nem qualquer relato mais pormenorizado sobre a descoberta da polícia. Em contrapartida, havia uma série de dados novos, pelo menos, para mim, acerca de Floyd Vance, e um deles esclareceu algo em que já havia pensado.

 

Em 1944, Floyd Vance tinha vinte e muitos anos e era solteiro. Então, porque não fora destacado, quer para a Europa, quer para a Ásia, para ajudar vários milhões de concidadãos seus a tratar da imagem pública dos Estados Unidos da América? De acordo com os artigos da Gazette, de quarta-feira, e do Times, de quarta e quinta-feira, ele havia sido dispensado porque tinha um problema qualquer no joelho. Outros dados, embora em nada esclarecessem o que havia acontecido, me revelaram mais coisas acerca de Floyd Vance, como, por exemplo, que ele nunca passara de um consultor de relações públicas de terceira categoria, coisa com muito pouca influência na dignidade humana, de acordo com Wolfe.

 

Quando o telefone tocou, às 6:38 da tarde, na quinta-feira,  eu estava sentado atrás da minha mesa, anotando dados nas fichas de germinação das orquídeas, enquanto Wolfe lia um novo livro: O FUTURO DA ALEMANHA, de Karl Jaspers. Levantei o fone e exclamei:

 

—        Escritório de Nero Wolfe. Archie...

—        Cramer. Quero falar com Wolfe, Goodwin.

—        Um bom dia para o senhor também! Retorqui.

 

Depois, sem me dar ao trabalho de tapar o bocal, anunciei “É Cramer”, talvez um pouco mais alto do que o costume. Mas Wolfe também levantou o auscultador do seu telefone, um pouco mais depressa do que o habitual.

 

—        Sim, Mr. Cramer?

—        É acerca de Floyd Vance. Já leu os jornais?

—        Sim.

—        Vamos levá-lo a tribunal por homicídio qualificado e temos esperança de que será condenado. Seguimos as novas regras e nem sequer lhe perguntamos se tinha sede, a não ser na presença do seu advogado. Bem; estou disposto a lhe revelar algumas informações, que não tornamos ainda públicas, se o senhor me der a sua palavra de honra de que não as divulgará.

—        Isso é quase impossível, porque, se me der informações que não posso utilizar, de nada me servirão.

—        Duvido muito de que lhe sirvam para alguma coisa... Mas, se quiser utilizá-las sem as divulgar, por mim, não há problema.

—        Nesse caso, lhe dou a minha palavra de honra.

—        Em relação ao que o senhor procura, nada descobrimos. Apuramos, contudo, que Elinor Denovo, durante um ano, pelo menos, ainda estamos investigando, tentou desacreditar profissionalmente Vance. Não conseguimos descobrir se ela mencionou o nome dele a alguém, mas o certo é que, na primavera passada, os dois únicos clientes que Vance tinha, e obtivemos os seus testemunhos, por escrito, deixaram de recorrer aos serviços dele e optaram por outra firma, que foi recomendada por Elinor Denovo. Estes são os dois casos mais flagrantes, mas há muitos mais, e, quando o julgamento começar, teremos um dossiê recheado. No entanto, no momento, o advogado dele vai alegar homicídio involuntário. Contudo, nós queremos que se chegue à conclusão de que se tratou de um homicídio qualificado e devemos consegui-lo. Ao que tudo indica, há cerca de um ano e meio atrás, Elinor Denovo decidiu arruinar Floyd Vance, e me deixe que lhe diga que estava fazendo um excelente trabalho... Mas o senhor investigou o passado de Floyd Vance. Não descobriu nada relativo ao que acabo de lhe revelar?

—        Não.

—        Ah, e como é evidente, se soubesse, nunca o ocultaria da Polícia...

—        O sarcasmo não é o seu ponto forte, Mr. Cramer.

—        Por isso nunca o emprego. E duvido que o senhor possa se servir do que eu lhe disse... Quanto a nós, descobrimos o motivo que levou Floyd Vance a matar Elinor Denovo, e estamos confiantes quanto à decisão do júri. Já em relação ao motivo que levou Elinor Denovo a querer arruinar Vance, isso é um problema seu. Talvez tenha sido para se vingar de algo que ele lhe fez, em 1944. Fico contente por, pelo meu lado, não ter de remontar tão longe no tempo... No entanto, se o senhor quiser tentar, esteja à vontade, só que Goodwin já não pode arranjar maneira de trazer Vance até ao seu escritório, porque ele não está disponível...

—        Eu sei. Estava à espera de obter informações que me fossem mais úteis, mas, ao que tudo indica, tenho de aceitar a derrota. Não obstante, fico muito agradecido. Sinceramente.

—        Ora aí está uma deixa para eu desligar, arrematou Cramer, e desligou.

 

Wolfe respirou fundo e os cantos da sua boca se ergueram, muito de leve. Fitou-me e murmurou:

 

—        Nada mal...

—        Nada mal? Exclamei. — É perfeito! Maravilhoso! Quer que eu passe um cheque de vinte mil dólares em nome de Miss Denovo?

—        Por enquanto, não. Talvez mais tarde. Dito isto, consultou o relógio. — Telefone para Mr. Jarrett. Eu falo. Ergui as sobrancelhas, espantado.

—        O pai ou o filho?

—        Mr. Cyrus M. Jarrett.

—        Está bem... Sabe que obedeço sempre às suas ordens, mas, desta vez, preciso de instruções mais específicas. Das duas vezes que telefonei a Cyrus M. Jarrett, creio que a pessoa que atendeu foi Oscar, e já que não foi nada mal...

—        Eu falo com esse tal Oscar.

 

Tornei a erguer as sobrancelhas, cada vez mais admirado. Depois, disquei o número. Wolfe levantou o auscultador do seu telefone, mas eu me mantive na linha. Ao fim de quatro toques, a mesma voz masculina das outras vezes anunciou:

 

—        Residência de Mr. Jarrett.

—        O meu nome é Nero Wolfe. Estou telefonando de Nova Iorque e desejo falar com Mr. Jarrett. Diga-lhe... Não me interrompa. Diga-lhe que quero falar com ele acerca de Floyd Vance. Pode repetir este nome, por favor?

—        Mas Mr. Jarrett está jantando...

—        Não se importa de repetir o nome que lhe indiquei? Floyd Vance.

—        Floyd Vance.

—        Muito bem. Mr. Jarrett irá escutá-lo, porque não come com os ouvidos. Diga-lhe que preciso falar com ele, agora, acerca de Floyd Vance. Guardou o meu nome?

—        Sim, senhor.

—        Eu aguardo, mas não demore.

 

Provavelmente, eu nem respirava. Era uma jogada tão arriscada que não me atrevia a fazer apostas. Muita coisa dependia daquele telefonema. Não só era possível que não existisse uma relação direta ente Jarrett e Floyd Vance, e houvesse outra explicação para o fato de o velho Jarrett haver enviado os cheques a Elinor Denovo, como era ainda perfeitamente admissível que ele nunca tivesse ouvido falar de Floyd Vance. O mais provável era ouvirmos Oscar, se fosse ele, desligando o telefone. Mas tal não aconteceu. Não contei o tempo que Wolfe esperou, porque me sentia completamente atordoado, mas me pareceu que foram três horas, quero dizer, três minutos.

 

—        O senhor está interrompendo o meu jantar. Fiz sinal a Wolfe. Era a voz de Cyrus M. Jarrett.

—        Mr. Jarrett?

—        O próprio.

—        O meu nome é Nero Wolfe. Não gosto de interromper o jantar de ninguém, mas é urgente. Tenho uma decisão a tomar que não pode ser adiada por mais tempo. Acabo de falar com o oficial de polícia encarregado da investigação da morte de Elinor Denovo, e creio poder lhe dizer, confidencialmente, que Mr. Archie Goodwin, que foi visitá-lo, por duas vezes, ele e eu somos os responsáveis pela detenção de Floyd Vance, enquanto acusado da morte de Elinor Denovo. Ora, para corroborar a acusação de homicídio qualificado, a polícia deseja descobrir o motivo do crime, e se torna óbvio que a ajudaria muito se tivesse acesso ao seu nome, para perguntar que relação existia entre Floyd Vance e Elinor Denovo, há vinte e três anos atrás. Isso levaria, inevitavelmente, à sua presença no banco das testemunhas, durante o julgamento de Floyd Vance, e me  sinto relutante em tomar sobre mim a responsabilidade de expor um homem do seu estatuto a tal suplício. Assim, antes de fornecer o seu nome à polícia, gostaria de discutir o assunto consigo. Fico à sua espera, aqui, no meu escritório, amanhã, às onze horas da manhã.

—        Nessa conversa que o senhor teve com o oficial de polícia, o meu nome já foi mencionado?

—        Não.

—        Nada sei acerca da relação entre Floyd Vance e Elinor Denovo, há vinte e três anos atrás.

—        Pff... Nesse caso, vou telefonar imediatamente a Mr. McCray e aconselhá-lo vivamente a se certificar de que certos cheques, passados ao longo de mais de vinte anos, e que constam dos arquivos do Seaboard Bank and Trust Company, não desapareçam “misteriosamente”. Até porque, se a Polícia quiser vê-los, poderá obter um mandado judicial.

—        E porque haveria a Polícia de querer ver os registros relativos a esses cheques?

—        Porque, regra geral, eles querem verificar tudo que é, ou possa ser, relevante na investigação de um homicídio. Mas, se o desejar, posso pedir a opinião do inspetor Cramer, depois de lhe explicar o significado desses cheques... Prefere assim, Mr. Jarrett?

—        Não. Se tivesse sabido isso, no dia em que Goodwin me veio visitar... Jarrett não acabou a frase. — Recebê-lo-ei, aqui, em minha casa, amanhã de manhã.

—        Só trato de assuntos de trabalho no meu escritório. E fique sabendo que estou mostrando mais consideração pelo senhor do que merece, Mr. Jarrett. Bem, estará aqui, amanhã, às onze horas ou não?

—        Estarei aí, ao fim da tarde.

—        Não. Precisa ser às onze da manhã ou, então, nada feito.

—        Na minha idade, as manhãs são difíceis...

—        Acorde mais cedo. Se não estiver aqui as onze em ponto, não se incomode.

—        Maldito seja! Estarei aí na hora combinada. A ligação se desfez. Virei-me e exclamei:

—        Suponho que o senhor não perdeu um só grama de peso, ao passo que eu devo ter perdido uns cinco quilos.

—        Não sou tão fleumático como você julga, resmungou  Wolfe. — Era isto, ou nada.

—        Bem, mas, agora, está feito. Não só está encurralado, como se encontra à nossa mercê. Já se decidiu quanto à relação que existe entre ele e Vance.

—        Não.

—        Ele é o pai de Vance.

—        Sim, isso seria o mais conveniente para os nossos propósitos. Existe uma semelhança patente entre os dois?

—        Patente, não.

—        Não que esse ponto seja definitivo, mas sempre ajudaria. No entanto, haveremos de sabê-lo, mais tarde. Amanhã, às onze da manhã. Acha que devemos chamar igualmente Miss Denovo?

—        Ora aí está uma boa pergunta. Tenho pensado muito nela, nestes últimos dois dias, e gostaria de dizer uma coisa.

—        Diga.

—        É boa jovem, uma boa cliente e, durante uma semana, senti pena por ter de lhe dizer que Floyd Vance era o pai dela. Este meu sentimento se intensificou ainda mais, desde terça-feira. É realmente triste ela ter de saber que não só um espécime como Vance é o pai dela, como também que ele foi o assassino da sua mãe. Ponderei em três modos de lidar com a situação, sem ter de lhe revelar a verdade, mas nenhum deles me convenceu. No entanto, estou aberto a qualquer sugestão...

—        Não tenho nenhuma sugestão a dar. Apenas um comentário.

—        Diga.

—        Também, eu refleti sobre o assunto, se não da mesma maneira como você, pelo menos, de forma similar. É sempre de desejar que um nosso cliente se sinta satisfeito não só com o nosso trabalho como com o resultado final. No caso de Miss Denovo, tal é impossível, dadas as circunstâncias que ambos conhecemos. Portanto, a questão que se põe é a seguinte: o que a desagradaria menos? Existem muito poucas perguntas, acerca do carácter feminino, a que me atrevo a responder com total confiança, mas, você já não sofre deste problema, e, além do mais, conhece Miss Denovo melhor do que eu. Se tivesse alternativa, o que escolheria? Saber, de uma vez por todas, que Floyd Vance, com todos os seus defeitos, é o pai dela? Ou permanecer, para o resto da vida, na total ignorância, situação que a fez vir até aqui, há três semanas atrás, com todo aquele dinheiro? E não quero que me diga o que sente em relação a ela, mas, sim, qual seria a sua reação.

 

Eu não precisaria pensar um minuto sequer para dar a resposta, mas fi-lo para salvar as aparências.

 

—        Ela preferiria conhecer toda a verdade, respondi.

—        Nesse caso, também deve estar aqui, amanhã de manhã. Escondida no nicho. Trate disso. Certifique-se de que ela não nos interromperá, a mim e a Jarrett, independentemente do que venha a ouvir. Você conhece-a bem. Talvez seja melhor que Saul também venha para lhe fazer companhia. Vai estar com ele hoje à noite?

—        Assim espero. Tudo vai depender de quanto tempo for preciso para encontrá-la, uma vez que, agora, está livre como um passarinho. Dito isto, tornei a pegar no telefone. Foi por isso que me atrasei para o jogo de pôquer.

 

Eram perto das dez horas da noite quando, finalmente, localizei Amy em seu apartamento. Mais uma vez, nada podia lhe dizer, a não ser que devia estar na mansão de Wolfe, às dez e meia. Com o trânsito que há em Nova Iorque, é melhor darmos uma meia hora de avanço, mesmo a um homem como Saul Panzer, se queremos que chegue no horário.

 

Para escutar o que se diz no escritório de Wolfe, existe um nicho, situado ao fundo do átrio de entrada, do lado esquerdo, antes de se chegar à cozinha. Na parede, ao nível dos olhos, para alguém da minha altura ou da de Wolfe, foi aberto um buraco retangular, com um diâmetro de vinte e cinco centímetros. Do lado de trás do buraco, há uma pequena portinhola, que se abre silenciosamente. Do lado do escritório, existe um quadro de Voeil, que representa uma cascata. Através do nicho não só se pode ouvir como, também, ver tudo o que acontece no escritório. Podia ter colocado uma pilha de listas telefônicas no chão do nicho, para que Amy, que era uns dezesseis centímetros mais baixa do que eu, pudesse ouvir e ver o que ia se passar, mas, pelo preço que pagara, vinte mil dólares, merecia algo melhor. Por isso, na sexta-feira de manhã, depois do café-da-manhã, levei o banco da cozinha para o nicho e me sentei para ver se os meus olhos ficavam ao mesmo nível do buraco, Concluí que ficavam uns doze centímetros acima. E, se bem que nunca tivesse medido a diferença de altura que havia entre mim e Amy, concluí que, com os devidos ajustes, seria o ideal para ela.

 

Amy chegou às 10:21 e Saul, às 10:29. Conduzi Amy até ao nicho, lhe pedi para se sentar no banco, abri a portinhola e vi que o buraco ficava ao nível dos seus olhos.

 

—        A avaliar pela largura do banco, comentei jovialmente, — Ainda bem que você é quem vai se sentar nele e não Mr. Wolfe...

—        Mas afinal, o que vem a ser isto? Perguntou Amy, algo irritada.

—        Para si, um lugar privilegiado, enquanto espectadora. Vai ver e ouvir o homem que enviou aqueles duzentos e sessenta e quatro cheques à sua mãe. Cyrus M. Jarrett deve chegar às onze em ponto, conforme combinado. Achamos que devia escutar o que ele tem para dizer com os seus próprios ouvidos. E, assim que ele se sentar na poltrona vermelha, o rosto dele ficará a cerca de três metros do seu. Ora veja... Amy se debruçou para olhar pelo buraco.

—        E ele? Não irá me ver?

—        Não, porque, do outro lado da parede, um quadro oculta este buraco. Amy se virou para mim.

—        Mas, porque... O que ele vai dizer?

—        Estamos todos à espera de ouvir. Talvez nos revele, entre outras coisas, o nome do seu pai. Isso... Foi quando a porta da campainha tocou. Fui abrir. Era Saul.

 

Já o colocara ao corrente de tudo, e, assim, só tive de conduzi-lo ao nicho e de apresentá-lo à cliente, que pagava pelos seus serviços, por meu intermédio, um pouco menos de mil dólares, por quinzena.

 

—        Uma vez que me trata por Archie, continuei, me virando para Amy, depois de feitas as apresentações, — Vai ter de tratá-lo por Saul, para não ferir os seus sentimentos. Ele ficará aqui, consigo, e, se você tiver alguma ideia de que não estamos fazendo as perguntas certas a Jarrett e decidir entrar no escritório, ele vai impedi-la. Jarrett não pode desconfiar de que tem outra audiência, além de mim e de Mr. Wolfe. Descalce os sapatos e, se sentir que vai tossir ou espirrar, por favor, sinta-o a tempo de correr para a cozinha. Dito isto, consultei o meu relógio de pulso. — Ele deve chegar daqui a vinte e cinco minutos, mas pode chegar mais cedo. Saul vai levá-la até à cozinha para que possa beber um café. Eu estarei no escritório, tomando tranquilizantes para acalmar os nervos.

—        Não acredito, retorquiu Amy.

—        Então, não acredite, repliquei, e saí, despreocupadamente, porque sabia que seriam precisos apenas cinco minutos para Saul travar amizade com Amy.

 

Apesar do telefonema de Wolfe a Jarrett, corríamos algum perigo. Um homem com a posição de Jarrett tinha suficiente poder para pressionar alguém, como o Comissário de Polícia ou o Prefeito de Nova Iorque, que são quem fornecem as licenças para o exercício da profissão de detetive particular, e nos deixar atados, de pés e mãos. Este fato não me saía da mente, desde que Jarrett desligara, mas, agora, à medida que faltava cada vez menos para as onze da manhã, essa hipótese ia se tornando cada vez mais remota. O que só confirmava que o envolvimento de Jarrett no caso era pessoal, de tal maneira que não podia correr quaisquer riscos.

 

Wolfe desceu as onze em ponto, colocou a orquídea do dia no vaso da sua mesa, se sentou e começou a ler o correio. Eu estava ocupado com o livro das despesas, verificando as entradas, somando-as, para obter os totais, que, em teoria, seriam definitivos, com exceção dos honorários que Saul cobraria pelo serviço daquela manhã. Aparentemente, éramos dois detetives tratando das suas tarefas diárias. Mas só aparentemente. A única razão por que não retínhamos a respiração é a de que um homem não pode retê-la por mais de dois minutos, e a campainha da porta só tocou às onze e quinze. As primeiras duas coisas em que reparei, quando abri a porta, foram que o carro de Jarrett era um Heron e que continuava a ter os mesmos olhos gélidos. Senti que merecia um voto de confiança, pelo modo como cumprimentei a nossa visita, com um simples “Bem dia.” Podia tê-lo dito em tom de desdém ou de escárnio, mas posso jurar que se tratou apenas de uma saudação cordial.

 

Jarrett também me saudou com um “Bem dia”, mas nada havia de cordial na sua voz. Provavelmente, era simplesmente a forma como cumprimentava , e continuaria a cumprimentar os outros, desde um mensageiro a um vice-presidente. A única coisa que diferia das vezes anteriores, era o seu passo, quando atravessou o átrio de entrada. Não que vacilasse, mas caminhava muito devagar, com cuidado. Uma vez no escritório, esperei que ele se acomodasse na poltrona vermelha para fazer as apresentações.

 

—        Mr. Jarrett. Mr. Wolfe.

—        Preciso de um banquinho para por os pés e de um copo d’água, declarou Cyrus M. Jarrett, logo a seguir.

 

Os únicos banquinhos que existem na mansão estão no quarto de Fritz, que fica no sótão. Ao me dirigir à cozinha, para pedir emprestado um banquinho a Fritz e lhe dizer que precisava de um copo d’água, me bastou um olhar de soslaio para ver que Amy e, Saul estavam no nicho e que ela tinha descalçado os sapatos. Na toca, muito desarrumada, de Fritz, com as onze prateleiras, onde se alinhavam 294 livros de culinária, havia três banquinhos. Trouxe o maior, coberto por uma tapeçaria, que representava um caçador apontando uma flecha para um urso selvagem.

 

De regresso ao escritório, depressa notei que não havia perdido nada da conversa. Jarrett, naquele momento, tirava um comprimido azul de uma caixinha dourada, e esperei que ele tomasse o comprimido com o copo d’água. Talvez esperasse que eu lhe levantasse os pés para colocar o banquinho por baixo. Possivelmente, era o que Oscar teria feito, mas eu também não era assim tão cordial. Por isso, depois de ele pousar o copo na mesinha, ergueu os pés e eu fiz deslizar o banquinho por baixo.

 

—        Há um médico muito bom a poucos metros daqui, exclamou Wolfe.

—        Não é preciso, retorquiu Jarrett. Os seus olhos eram tão gélidos como sempre. — Eu disse que as manhãs eram difíceis para mim. Agora, diga o que tem a dizer. Wolfe meneou a cabeça.

—        Não, porque não quero me mostrar autoritário para com um homem doente. O comprimido ajuda?

—        Que imprudência a sua! Sibilou Jarrett. — Estou velho, mas não estou doente! E fique descansado, porque não vai ser autoritário para comigo. Vá, diga o que tem a dizer! Wolfe encolheu os ombros, resignado.

—        Muito bem; falarei, mas seria mais rápido se o senhor aceitasse a realidade da situação. Declarou que eu não seria autoritário para consigo, mas a verdade é que já o fui. Intimidei-o, obrigando-o a vir até aqui hoje, e, ao fazê-lo, expus, por completo, a minha posição. Deixei bem claro que ao senhor se deparam duas alternativas: ou responde às minhas perguntas relativas a certos assuntos, que terão de me deixar satisfeito, ou passarei determinadas informações à Polícia, o que a levará a investigar meticulosamente a sua relação com duas pessoas: Floyd Vance e Carlotta Vaughn que, mais tarde, passou a responder pelo nome de Elinor Denovo. Se o senhor não possui conhecimentos sobre direito penal, então, talvez desconheça o interesse da Polícia na sua pessoa. O advogado de Floyd Vance, sabe que não pode fazer com que o seu cliente seja declarado inocente, devido às provas concludentes que eu e Mr. Goodwin fornecemos à Polícia e tentará tudo por tudo para obter um veredicto de homicídio acidental ou involuntário. Só que a Polícia quer que o veredicto seja de homicídio qualificado e, para isso, precisa estabelecer o motivo do crime. Poderia ter confirmado o que lhe digo, falando com a Polícia, mas, como é óbvio, não o fez, uma vez que não quer que se saiba da sua relação com os dois protagonistas do caso. Porém, isso virá à tona, inevitavelmente. Assim que a Polícia souber que o senhor enviou aqueles cheques, ao longo de vinte e três anos, a Elinor Denovo, descobrirá o resto.

 

Wolfe se deteve para fazer uma pausa, ergueu a mão e, sem mudar de tom de voz, perguntou:

 

—        O senhor deve ter tomado o café-da-manhã muito cedo e fez uma longa viagem. Aceita um refresco? Um café? Um sanduíche? Fruta? Bolinhos de milho com mel de tomilho? Jarrett cerrou os dentes.

—        Maldito seja! Sibilou, ignorando a oferta de Wolfe, o que era uma pena, porque Cyrus M. Jarrett nunca havia provado os deliciosos bolinhos de milho com mel de tomilho preparados por

Fritz. — Isto é um ato de pura chantagem! Mas, mesmo que estivesse disposto a pagar, eu não se safaria. Porque se não for você a informar a Polícia acerca daqueles cheques, será McCray ou um dos da sua quadrilha.

—        Não. Muito provavelmente, não, porque não têm conhecimento, nem sequer desconfiam que existe uma relação entre o senhor e Floyd Vance. Só eu e Mr. Goodwin sabemos disso.

—        Não é verdade, porque não existe nada que me ligue a ele! Se...

—        Mr. Jarrett, não diga bobagens... Aceite a realidade... A simples menção do nome de Floyd Vance fê-lo vir ao telefone e aquilo que eu lhe disse fê-lo se dar ao incômodo de vir até minha casa. Pff... Raios, o senhor não está bem...! Era digno de se ver como, mesmo encurralado daquela forma, o olhar de Jarrett, ainda assim, continuava a se revelar gélido e inflexível.

—        Você está mentindo em relação a McCray, sentenciou. — É ele que está por detrás de tudo isto e lhe paga!

—        Não. Só os idiotas inventam desculpas esfarrapadas.  A minha única preocupação é o interesse da minha cliente, Miss Amy Denovo, a filha de Elinor Denovo.

—        O que pretende de mim? Dinheiro? Quanto?

—        Nada, a não ser que responda às perguntas que quero lhe fazer. Pretendo obter informações sobre o fato pelo qual a minha cliente contratou os meus serviços, nada mais... A propósito, o meu compromisso para com ela tem os seus limites. Concordei unicamente em descobrir quem é, ou fora, o seu pai. Portanto, tenho apenas a obrigação de lhe revelar apenas isso. Asseguro-lhe que tudo o resto que o senhor disser não será divulgado seja a quem for, tanto pela minha parte como pela de Mr. Goodwin.

 

Wolfe fez uma pausa, inclinou a cabeça e, depois, continuou:

 

—        O senhor falou em chantagem. Na realidade, estou mostrando mais consideração pelo senhor do que aquela que merece. Um cidadão que possui informações vitais em relação a um crime deve fornecê-las à Polícia. Eu podia tê-lo feito, ontem, e me poupar a todo este trabalho. Porque é certo e seguro que a Polícia, no decurso da sua investigação, estabeleceria a identidade do pai de Amy Denovo, a minha obrigação para com ela terminaria e eu receberia os meus honorários. Se me dei a todo este incômodo desnecessário, foi apenas para satisfazer a minha autoestima, porque prefiro obter essa informação, em primeira mão, pelos meus próprios meios. Não quero que o senhor me agradeça por isso, nem estou à espera que o faça.

—        Nem eu faria tal coisa! Jarrett ergueu a cabeça e, com um pontapé, afastou o banquinho. Tudo indicava que o comprimido já surtira o efeito desejado. — Sim, porque, mesmo que eu responda às suas perguntas, você receberá os seus honorários, e, depois informará a Polícia!

—        Não. Já lhe disse que, com exceção da identidade do pai de Amy Denovo, nada do que o senhor me revelar será transmitido a terceiros, quer por mim quer por Mr. Goodwin. Se, para se sentir mais tranquilo, a minha palavra de honra não lhe basta, então, veio até aqui para nada.

 

Jarrett estava reagindo visivelmente. Tenho de confessar que fiquei satisfeito por vê-lo reagir, depois de me lembrar das duas vezes em que eu estivera com o homem e ele se mostrara impassível. Contudo, agora, tinha os músculos do rosto contraídos e cerrara os punhos.

 

—        Floyd Vance é o pai de Amy Denovo, declarou, por fim.

—        Tal como eu já calculava, replicou Wolfe. — Mas como o sabe?

—        Sei, porque... É do meu conhecimento pessoal. Não foi para obter essa informação que você diz ter sido contratado?

—        Sim, mas eu também lhe disse que queria obter respostas satisfatórias às minhas outras perguntas... Comecemos pelo princípio: na primavera de 1944, Carlotta Vaughn deixou de estar ao seu serviço e foi trabalhar para Floyd Vance. Porquê?

—        Reservo-me o direito de não divulgar certos pormenores, só para satisfazer a sua curiosidade.

—        Pff... Mr. Jarrett, o senhor é um homem de bom senso e, ainda há pouco, afirmou que não estava doente. Sendo assim, agora que confessou ter conhecimento de um fato essencial, se reservar o direito de não querer divulgar mais pormenores, é uma perfeita estupidez. Cabe a mim, e não ao senhor, decidir o que é importante ou não. Esta conversa não é agradável para nenhum de nós: portanto, que seja o mais breve possível. Porque foi que Carlotta Vaughn deixou de estar ao seu serviço e foi trabalhar para Floyd Vance?

 

Os músculos do rosto de Jarrett já não se mostravam contraídos. Ergueu a cabeça e fitou Wolfe, com os seus olhos gélidos.

 

—        Porque eu pedi, respondeu, — E continuei a lhe pagar. Carlotta era uma profissional competente e julguei que ela conseguiria dar um empurrão ao negócio dele, convertendo-o num homem decente. Ele nunca soube que fui eu que a enviei, porque nada sabe acerca de mim. Os meus contatos com ele ou acerca dele nunca foram diretos. Cometi um grande erro ao enviar Carlotta Vaughn para ajudá-lo. Só soube o que tinha acontecido, em setembro de 1944, quando retornei do estrangeiro. Ele tinha-a seduzido e Carlotta estava grávida. Nessa altura, ela já havia recuperado algum bom senso. Mas assim, ainda ficou com ele durante mais um mês, por pura teimosia, na esperança de transformar um idiota num homem responsável. Mas era uma tarefa impossível, mesmo para ela. Assim, Carlotta deixou-o e desapareceu. Eu me senti responsável por ela, e como nunca fugi às minhas responsabilidades, tentei de tudo para localizá-la, mas isso demorou vários meses. Só em março de 1945 soube que ela tinha mudado de nome. Mais uma vez, consegui uma maneira de ficar ao corrente do que acontecera com ela, e lhe enviei um cheque, pouco após o nascimento da criança. Nunca mais falei com ela nem voltei a vê-la, desde outubro de 1944. Bem, creio estar lhe fornecendo pormenores que tornam desnecessário me fazer mais perguntas. Não tenho conhecimento de quaisquer contatos que Carlotta possa ter tido com Vance, depois de outubro de 1944. Se ele a matou, desconheço por completo qual foi o motivo. Nunca mais o vi, nem... Jarrett se deteve.

—        Floyd Vance sabe que o senhor é o pai dele? Perguntou Wolfe. Jarrett não estremeceu, porque já esperava aquela pergunta.

—        Creio já ter respondido a isso, quando disse que ele nada sabe acerca de mim. E, pelo que vejo, você não se limita a pressupor que ele é meu filho. Chegou a essa conclusão porque não consegue pensar noutra hipótese que justifique o fato de eu ter chamado a mim a responsabilidade pelo infortúnio de Carlotta Vaughn. Negá-lo, não me serviria de nada, porque você não acreditaria em mim, e já estou farto de tudo isto. O nome da mãe dele era Florence Vance. Tinha vinte anos, e eu, vinte e três, em 1914. Era empregada num restaurante, em Boston. Morreu, cinco dias depois de dar à luz. Não; Floyd Vance não sabe que eu sou o pai dele. E, agora, se tem alguma pergunta pertinente para me fazer, diga.

—        Oh, poderia lhe fazer muitas perguntas, retorquiu Wolfe, — Mas o senhor esclareceu os pontos essenciais. Seria apenas para satisfazer a minha curiosidade que poderia desejar saber como foi que o senhor, há duas semanas atrás, fez chegar a Floyd Vance a informação de que eu andava à procura do pai de Amy Denovo, mas não vou insistir nisso. Se o senhor tivesse dito a Mr. Goodwin, quando ele foi visitá-lo, da primeira vez, o que acaba de me dizer, é muito provável que Floyd Vance nunca tivesse sido identificado como sendo o assassino de Elinor Denovo. Por outro lado, o problema de Amy Denovo teria ficado resolvido e ela não teria de me pagar duas semanas de intensa investigação. Mr. Jarrett, o senhor afirmou, ainda há pouco, que nunca foge às suas responsabilidades. Ora, é claramente responsável pelo tormento por que passou a minha cliente e pelas despesas que ela vai ter de suportar. Se me enviar um cheque em pagamento dos meus honorários, não só devolverei o adiantamento que a minha cliente fez, como não lhe cobrarei um só cêntimo. Se o senhor decidir fazê-lo, a quantia é de cinquenta mil dólares. Mas isso é consigo... Seja qual for a sua resolução, me ajudará a conhecer melhor o meu semelhante. Archie, é difícil para uma pessoa se levantar da poltrona. Talvez Mr. Jarrett vá precisar do seu braço.

 

Mas não precisou. Quando avancei para Cyrus M. Jarrett e lhe ofereci o meu braço, me ignorou. Calcou os pés no chão, virou o tronco e conseguiu se levantar. O comprimido azul devia ter surtido o efeito desejado. Gostaria de dizer algo a favor de Cyrus M. Jarrett: é um homem que não perde tempo nem fala em vão. Nenhum dos homens que conheci, ao longo da minha carreira, teria acatado o comentário presunçoso de Wolfe. Era a terceira vez que eu via Cyrus M. Jarrett sair abruptamente. Só que, das duas vezes anteriores, fora ele que tivera a última palavra. Quando saiu do escritório, o seu passo parecia mais firme. Atravessei o átrio de entrada, à frente dele, para ir abrir a porta. Quando a transpôs, o motorista abriu a porta do Heron e,  depois, avançou para o patrão. Jarrett meneou a cabeça e desceu os degraus, sozinho, e o motorista não se ofereceu para ajudá-lo, quando entrou no carro. Era evidente que já conhecia os sinais que o seu patrão lhe transmitia. Fechei a porta, me dirigi ao nicho, entrei e exclamei:

 

—        Espero que tenha ouvido tudo, porque não podemos repeti-lo a ninguém.

 

Saul fez deslizar a portinhola que ocultava o buraco. Amy, ao descer do banco, tropeçou e se desequilibrou. Peguei-lhe pelo braço, e ela, muito cortesmente, murmurou:

 

—        Obrigada. Parecia algo pálida.

—        Não tem de quê, repliquei. — Conseguiu ouvir tudo?

—        Sim, mas não... Posso ir embora, agora?

—        Claro que pode. Mas não quer que eu ou Saul a acompanhemos até em casa?

—        Não, obrigada. Não quero falar, agora... Não... Não seria capaz. Quando eu... Telefono-lhe. Contudo, já decidi uma coisa. A minha mãe me deu o nome de Amy Denovo e é assim que continuarei a me chamar.

—        Ainda bem.

—        Não preciso ir falar com Mr. Wolfe, agora, não é? É que não...

—        Claro que não. Provavelmente, neste momento, ele está refastelado na poltrona, lendo um livro sobre a Alemanha. Telefone-me, sempre que quiser.

—        Obrigada, agradeceu Amy, mais uma vez, mas foi interceptada por Saul, que tinha acabado de sair da cozinha.

—        Os seus sapatos...

—        Obrigada, murmurou, cortesmente, Amy, pela terceira vez. Depois, apoiou a mão esquerda no meu braço, enquanto calçava os sapatos com a mão direita.

—        Não é preciso me acompanhar à porta... Dito isto, se afastou.

 

Quando a porta se fechou atrás dela, Saul se virou para mim.

 

—        Ela aguentou muito bem. Não me paguem pelo dia de hoje. Não é preciso.

 

O objetivo desta última nota é para ajudá-los a conhecer melhor o seu semelhante. Cyrus M. Jarrett enviou, pelo correio, um cheque pessoal, no valor de cinquenta mil dólares, em 26 de Janeiro, três dias depois do tribunal condenar Floyd Vance por homicídio qualificado.

 

                                                                                            Rex Stout  

 

                      

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