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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VASO QUEBRADO / Rex Stout
O VASO QUEBRADO / Rex Stout

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VASO QUEBRADO

 

Naquela bisonha noite de março, as frias correntes de ar provocavam traiçoeiros redemoinhos nos cantos dos bastidores do Carnegie Hall, as mesmas lufadas gélidas que em noites idas tinham obrigado um transpirado Paderewski, Heifetz ou Chaliapin a se dirigir para os camarins em apressada corrida; as mesmas lufadas gélidas que tinham forçado as aias de uma Melba ou de uma Sembrich a montar uma vigilante guarda à porta do palco com uma pele de arminho preparada para colocarem sobre os ombros nus das suas senhoras. Claro que isso acontecia no intervalo ou no final das atuações; mas eram oito e quinze e ainda não tinha acontecido nada sobre o grande palco nu que pudesse obrigar um homem forte a transpirar. Mas quem acha que um virtuoso do violino não é um homem forte devia experimentar tocar ”Devil’s Trill”, pois assim perceberia que são necessários músculos de aço.

No entanto, mandava a verdade que se dissesse que Jan Tusar, que devia subir ao palco dentro de quinze minutos armado apenas de arco e violino para provar que merecia pisar o mesmo palco que Ysaie e Krister tinham pisado, não parecia nada forte naquele momento. Tinha acabado de deixar o camarim e se encontrava junto à porta de acesso ao palco, com uma mão apoiada na ombreira enquanto com a outra segurava o braço do violino logo abaixo das cravelhas. Mesmo com o seu metro e noventa parecia um rapazinho assustado, com o rosto lívido e os olhos arregalados, e o lábio inferior puxado para dentro pelo aperto dos dentes. Da dúzia de pessoas espalhadas à sua volta, apenas o homem vestido de bombeiro que se encontrava literalmente encostado à parede mais distante não olhava para ele, parecendo indubitável que tinha aprendido que na última meia hora antes de uma apresentação qualquer artista se tornava tão imprevisível como um cavalo de corrida diante de uma barreira e que não havia nada a fazer quanto a isso.

 

Entre as restantes pessoas, que se encontrava em diferentes lugares e a diferentes distâncias do violinista, se notava um movimento geral de aproximação de imediato refreado, sendo a única exceção constituída por uma mulher de certa idade que apertava uma estola de zibelina em volta da garganta com os dedos ossudos. Mas um homem se interpôs rapidamente no seu caminho e a mulher desistiu da sua intenção, não sem antes dirigir um olhar azedo às costas largas que se tinham intrometido entre ela e o assustado rapaz. Os enormes olhos de Jan Tusar se fixaram no rosto do homem, mas o rapaz não disse nada. O homem colocou uma mão branca e papuda sobre o ombro do violinista.

 

—        Volte para dentro e se sente, disse de forma persuasiva.

 

A sua voz tinha um tom grave e um toque de aspereza que o evidente desejo de se mostrar simpático e tranquilizador não conseguiam disfarçar. Era da altura de Tusar, mas muito mais pesado, e tinha mais do dobro da idade do músico; teria cinquenta e poucos anos. Mostrava-se bem alimentado, vestido de forma bastante elegante e era evidente que detinha uma boa posição na esfera social a que pertencia, qualquer que essa pudesse ser. O toque da sua mão era ao mesmo tempo suave, mas firme.

 

—        Assim não vamos a lado nenhum, Jan. Sente-se e se acalme até chamarem...

—        Tenho as mãos frias, se queixou Tusar. Havia um terror mal controlado no seu olhar e na sua voz. — Não vão aquecer. Tenho os dedos rígidos... Que horas são?

—        Oito e quinze. Tens de...

—        Onde está a Mrs. Pomfret?

—        Foi para casa. Pediu ao Henry que a levasse para casa. Não devias ter...

—        Deixe-me em paz! Eu estou bem. Mas preferia que ela... Quem é aquele homem que está ali com o Diego?

—        Com o Diego Zorilla? O homem se voltou para olhar. — Não faço ideia.

—        Ele me trespassou com o olhar! O que é aquilo no bolso dele? A voz de Tusar tinha um tom ao mesmo tempo petulante e ofendido. — Vir para um concerto com os bolsos cheios! Diego! Venha aqui, está bem?

 

Diego se aproximou rapidamente. Era um homem robusto, um pouco mais velho que Tusar e não tão alto como este, de pele morena e olhos e cabelo pretos.

 

—        Olá Jan! Exclamou alegremente. — Que Orfeu conduza o teu arco!

—        Obrigado, Diego. Quem é o seu acompanhante? Quero conhecê-lo.

—        Ora essa, é um amigo... Nós não...

—        Quero conhecê-lo.

 

Diego se voltou, chamou o amigo com um sinal de dedos e este atravessou a sala para se juntar a eles. Era um homem de peso e estatura medianos, com pouco mais de trinta anos, e não havia nada de invulgar na sua aparência para além do olhar penetrante e da forma ligeira e ágil como se movia.

 

—        Porque olhou para mim daquela maneira? Perguntou Tusar antes que o amigo de Diego Zorilla tivesse oportunidade de chegar junto deste. — O que tem no bolso?

—        Este é o meu amigo, disse Diego num tom cortante. — É verdade que estás bastante nervoso, Jan, mas não és mais nenhuma criança. Apresento-o ao meu amigo Tecumseh Fox. Mr. Jan Tusar. Diego apresentou também o homem mais velho, que continuava junto do violinista. — Mr. Adolph Koch. A sua voz endureceu de novo. — Decerto que o nome de Mr. Fox lhe é familiar. É uma das pessoas que, a meu pedido, contribuíram para adquirir...

—        Por favor, interrompeu Fox de forma rápida e peremptória.

—        Oh! A exclamação de Tusar foi acompanhada por um franzir de cenho irritado enquanto olhava para o violino que tinha na mão, quase como se tivesse esquecido a existência do mesmo. — Este... O senhor ajudou... De súbito, a sua expressão e o seu tom de voz se alteraram por completo; se mostrou encantadoramente envergonhado e contrito. — Lamento... Lamento imenso...

—        Esqueça, respondeu Fox de forma abrupta, sem deixar de sorrir. — Diego não devia ter tocado no assunto e, seja como for, também não devia ter me arrastado para aqui. Os meus modos pecam por defeito. Tenho o hábito de olhar fixamente para as pessoas. Peço-lhe que me desculpe. Isto... Bateu no pacote que provocava a protuberância no seu bolso, — É um maço de cigarros. Outro mau hábito.

—        Um maço? O jovem sufocou um risinho. Um maço inteiro? Acabou por soltar uma gargalhada que mais parecia um guincho, de tão nervosa e aguda que soou. — Ouviu isto, Mr. Koch? Tem um maço inteiro no bolso! É a coisa mais engraçada... Ainda é pior que o senhor... Cada vez mais alto e mais agudo, o riso do rapaz perfurou o ar.

 

Sentiram um movimento e uma agitação generalizados ao mesmo tempo em que soavam algumas exclamações de choque. Um homem de aspecto aparentemente sombrio e agourento que se encontrava a uma dezena de passos do pequeno grupo avançou rapidamente para Adolph Koch, a quem agarrou por um cotovelo, e lhe murmurou qualquer coisa ao ouvido. Aproximaram-se mais pessoas, incluindo a mulher da zibelina, que deu um encontrão em Tecumseh Fox; este se retirou de imediato para o lugar que antes ocupava junto à passagem para o palco, de onde ficou observando o que acontecia. Não demorou em ter a companhia do seu amigo Diego Zorilla, que abanava a cabeça ao mesmo tempo em que murmurava qualquer coisa com ar sombrio. Fox falou ao ouvido de Zorilla, para não ser forçado a gritar de forma a se fazer ouvir sobre aquela babel confusa e meio histérica.

 

—        Dizes que isto é o prelúdio convencional de um recital de violino?

—        Não há nada de convencional no que está acontecendo aqui, respondeu o outro num grunhido selvagem. — Eu sei do que falo, Também tentei a minha sorte. Ergueu a mão esquerda. A mão em que o dedo médio e o anelar eram apenas dois cotos cortados abaixo do primeiro nó. — Antes de isto acontecer, arrematou.

—        Sim, mas...

—        Nem mais nem meio mais. Daqui a duas horas o Jan pode ser elevado aos píncaros ou mergulhar na lama, quem sabe se para nunca mais se levantar.

—        Isso eu compreendo, mas quem raio são os outros? Porque é que ninguém...? Quem é aquele que não sai de ao pé do esqueleto com a zibelina?

—        É o Félix Beck, professor e mentor do Jan.

—        E a moça bonita com os braços apertados em volta do corpo e que parece assustada de morte?

—        Chama-se Dora Mowbray e é a acompanhante do Jan. É natural que esteja assustada. O pai dela era o meu manager, e também do Jan... Você sabe quem era ele. Lawton Mowbray, que caiu da janela do escritório há alguns meses e se esborrachou de encontro à calçada. O jovem que está tentando afastar os outros se chama Perry Durham e é filho de Mrs. Pomfret. Irene Durham Pomfret. Você a conhece. Ele é fruto do seu primeiro casamento.

—        Onde ela está?

—        Não faço ideia, respondeu Diego com um encolher de ombros. — Talvez na primeira fila do camarote dela. Estava esperando encontrá-la aqui.

—        Quem...? Por amor de Deus, quem são aqueles dois que acabaram de sair do camarim? Também estavam lá dentro!

—        Você sabe quem é ela.

—        Não sei de nada.

—        Olha com atenção. Decerto vai ir ao cinema.

—        Raramente. Ela é atriz?

—        Claro que sim. É Hebe Heath. Não conheço o jovem que está com ela. Olha como ela cai sobre o Jan, e repara como Koch a observa. Fox parecia desagradado.

—        Alguém com um mínimo de bom senso devia pôr um fim àquilo. Vamos para os nossos lugares. Diego assentiu.

—        Está quase na hora, disse. Os seus olhos negros procuraram a figura de Jan Tusar, que se encontrava ainda à porta do camarim, rodeado de confusão e clamores. — A caminhada até ao palco é uma coisa terrível para um rapaz, sentindo os dedos quentes e húmidos sobre as cordas, ou frios e secos, o que é ainda pior. Vamos, Fox, por aqui.

 

Quando chegaram aos seus lugares, na coxia da décima fila do vasto auditório, e depois de tirar o chapéu e o casaco, Diego se manteve de pé por um instante enquanto observava a casa. A sala estava apinhada de gente, com os últimos lugares livres sendo ocupados por alguns retardatários, coisa que Diego sabia não ter qualquer importância; qualquer manager competente que tivesse a seu cargo uma estreia no Carnegie Hall saberia como resolver a situação. Além do mais, havia sempre que contar com Mrs. Pomfret, para não falar noutras pessoas de extrema competência que se esforçavam por iluminar o caminho dos jovens artistas até à fama e à fortuna. Observando os rostos presentes na sala, especialmente nos camarotes por cima de si, Diego chegou à conclusão que tinham feito um bom trabalho por Jan Tusar. Por outro lado, qualquer contribuição por parte de Mrs. Pomfret já teria chegado ao seu fim, uma vez que esta não se encontrava em lugar visível. Diego se sentou e falou para Fox.

 

—        Mistério. Um caso para você resolver, lhe segredou ao ouvido. — Não vejo Mrs. Pomfret em lado nenhum. Ela costuma ficar no camarote FF, mas o camarote está vazio.

 

Fox assentiu com um gesto ausente e continuou olhando para o programa. Dora Mowbray ao piano. Introdução e Rondo Capricioso, Op. 28, de Saint-Saens. Pastoral e Scherzo, Op. 8, de Lalo. Voltou a página. Notas ao programa, da autoria de Philip Turner. Tinha realmente que controlar o hábito de comprar coisas nas ocasiões mais inoportunas e entupir os bolsos com elas; por outro lado, se queria levar um maço de Dixie’s para Crocker, que não fumava outra marca, por que motivo não havia de fazê-lo? Olhou para o relógio de pulso. Oito e quarenta. Era um dos números prediletos de Sarasate, que o incluía regularmente nas suas atuações, e ele executava-o com uma vivacidade e um encanto... As luzes se apagaram lentamente e uma agitação expectante percorreu o público antes de todos se remeterem ao mais completo silêncio. A porta do lado esquerdo se abriu para dar passagem a uma jovem de vestido cor de alperce que se encaminhou para o piano. Ouviram-se palmas dispersas a que a jovem não prestou a menor atenção. Tinha o rosto tão pálido que mais parecia um vago borrão em contraste com o vestido cor de alperce. Fox achou ridículo que ninguém tivesse tido o suficiente expediente para maquiar a moça.

 

Estava admirando o delicado conjunto formado pelas sobrancelhas, pelo nariz e pelo queixo da jovem que pôde ver de perfil enquanto esta se inclinava sobre o piano, quando a porta se abriu de novo e uma explosão de aplausos saudou o herói da noite. Jan Tusar avançou com passos rígidos, mas nem por isso destituídos de graciosidade até pouco mais do meio do enorme palco, fez uma vênia para agradecer os aplausos, ainda que sem sorrir, fez uma segunda vênia, esperou um instante e, antes que estes tivessem cessado por completo, voltou a cabeça para olhar para Dora Mowbray. As mãos da jovem se moveram, se ouviu um primeiro acorde de piano, e Tusar ergueu o violino que tinha junto à cintura e apoiou-o entre o queixo e o ombro.

 

Fox olhou de esguelha para a mão esquerda de Diego, a mão em que faltavam dois dedos, que se cravou de forma convulsiva no seu pulso direito no preciso instante em que o arco de Tusar arrancou as primeiras notas da abertura que, de acordo com o programa, era ”um adorável andante”. Não aconteceu nada. Por outras palavras, não se deu nenhuma explosão. O público escutou os sons melodiosos e harmônicos produzidos pelo violino e pelo piano em educado silêncio, apenas interrompido aqui e ali por algum normal pigarrear e pelo restolhar dos programas.

 

Para Tecumseh Fox, que nunca tinha assistido a um concerto, a música não lhe pareceu nada desagradável, antes mesmo razoavelmente agradável, mas à medida que o número que foi aproximando do fim notou uma certa sensação de mal-estar à sua volta. Decerto que a rigidez inflexível e silenciosa de Diego era uma demonstração exagerada de boas maneiras; mas se perguntou por que o homenzinho sentado à sua direita abanava a cabeça daquela maneira. No entanto, quando o som vindo do palco cessou e Tusar ficou muito quieto, com uma expressão sombria e abatida no rosto pálido, sendo evidente que os aplausos com que público o brindou não passavam de uma formalidade envergonhada e vazia de entusiasmo, Fox se inclinou para o companheiro e perguntou num murmúrio:

 

—        O que aconteceu? Ele tocou a peça errada? Diego abanou a cabeça e não disse nada, mas Fox ouviu a mulher sentada à sua frente murmurar para o companheiro:

—        Não compreendo. Nunca ouvi nada tão fraco. Se continuar assim será um crime não o interromper...

 

No palco, Tusar fez um sinal de cabeça a Dora Mowbray e os dois deram início ao segundo número. Ao ouvir a música, Fox sentiu o mesmo que antes. No entanto, passados alguns minutos, notou um evidente aumento do ruído produzido pelo público. Começou a se sentir pouco à vontade e notou que tinha as pernas mal cruzadas e que precisava mudar de posição. O homenzinho à sua direita se mostrava bastante nervoso, a ponto de ter deixado cair o programa no chão. Os aplausos foram ainda mais formais no final da peça de Lalo. Fox evitou olhar para Diego; limitou-se a cruzar as pernas ao contrário e a rezar para que o número que antecedia o intervalo, Obertass, de Wieniawski, segundo o programa, fosse breve. E foi.

 

Assim como os aplausos do público, mas Tusar lhes prestou ainda menos atenção que antes. Com uma expressão fechada no rosto pálido, olhou em frente por um instante e, em seguida, rodou sobre os calcanhares e abandonou o palco. O zumbido de vozes que se ergueu do público deu expressão à agitação que todos sentiam. Com o rosto ainda mais pálido que o de Tusar, Dora Mowbray permaneceu mais algum tempo sentada ao piano e, depois, se levantou de um salto, correu para a porta por onde o violinista saíra e também desapareceu por ela.

 

—        Vamos, grunhiu Diego, se dobrando para apanhar o chapéu e o casaco. Fox imitou-o e seguiu-o ao longo da coxia. — Preciso de uma bebida, grunhiu de novo Diego quando chegaram ao átrio.

 

Como Fox esboçasse um gesto de assentimento, indicou o caminho para a rua e os dois se dirigiram a um bar. Fox saboreou um uísque com soda em pequenos goles ao mesmo tempo em que observava como o espanhol despachava dois duplos de seguida. Pela expressão do amigo, calculou que não estivesse com grande disposição para conversas. Na verdade, ele próprio se sentia um pouco embaraçado e não saberia o que dizer. Um ano antes, e a pedido de Diego, tinha contribuído com mil dólares para a aquisição de um violino para um jovem virtuoso que, de acordo com Diego, era ou podia vir a ser um novo Sarasate; e o espanhol levara-o ali naquela noite para testemunhar um triunfo em que ele próprio sentia ser de alguma forma seu. Por isso se mostrava não apenas embaraçado, como algo irritado.

 

Fox se lembrou de que tinha começado por recusar o convite. Não entendia nada de música. E não sentia que tivesse o direito de reclamar uma parte do triunfo de outra pessoa. Continuou a saborear o uísque com soda enquanto o companheiro olhava com expressão sombria para a prateleira cheia de garrafas que se encontrava do outro lado do balcão. De súbito, Diego se voltou para ele.

 

—        Não faz ideia do que aconteceu ali dentro. Não é? Fox pousou o copo vazio e respondeu:

—        Não.

—        Eu também não.

—        Calculo que estava tão assustado que não foi capaz de se controlar, opinou Fox, fazendo um esforço para não se mostrar aborrecido. — Pelo menos assim parecia. Diego abanou a cabeça.

—        Não, acredito que não foi nada disso. Ele utilizou os dedos de forma correta. Não compreendo. Era o tom. Morto! Absolutamente morto! Aquele violino devia cantar! E ele se esforçou.... Demonstrou ser possuidor de enorme coragem. Ele lutou até ao fim! Mas não ouviu? Podia perfeitamente ser um instrumento adquirido numa loja de penhores. Sinto-me um pouco como quando isto aconteceu. Mostrou a mão onde faltavam dois dedos. — Se não se importar, vou dar uma volta e talvez beber um pouco. Não quero conversar.

—        E o Tusar? Perguntou Fox.

—        Não faço ideia.

—        Irá continuar?

—        Não sei. Digo e repito que não compreendo.

—        Eu também, mas gostava de compreender. Eu achei que soou bem, mas você me diz que não. Vamos voltar e falar com ele. E dar uma vista de olhos no violino.

—        Não vai servir de nada. É o fim por agora. Metade do público já foi para casa. Seja como for, ele não pode se esforçar mais. Diego estremeceu. — Eu não queria passar por isto outra vez nem que me pagassem.

 

Mas Fox insistiu e enfatizou a necessidade de saírem rapidamente se queriam ir aos bastidores antes do final do intervalo. Pagou as bebidas e saiu à toda a pressa, acompanhado pelo relutante espanhol. Quando atravessaram uma das extremidades do corredor para se dirigirem para o canto do mesmo viram as pessoas que desciam os degraus da entrada, de chapéus postos e casacos vestidos, obviamente sem intenção de voltarem.

 

Não encontraram ninguém junto à porta de acesso ao palco, o que teria causado estranheza se estivessem em condições de reparar em tamanha irregularidade. Subiram os degraus, atravessaram um corredor, viraram uma ou duas esquinas, atravessaram uma grande sala atravancada com coisas tão diversas como bandeiras e cavaletes de serrador, e abriram uma porta. Antes ali estava uma dúzia de pessoas; agora eram o dobro. E se antes se vivia uma atmosfera de tensa e nervosa expectativa, o olhar atento e abrangente de Fox informou-o de que a sensação tinha sido substituída por um horror incrédulo e chocado. Os únicos rostos cuja expressão não transmitia tal impressão pertenciam aos dois polícias fardados que se encontravam de costas para a parede, um de cada lado da porta dos camarins, que por sua vez se encontrava fechada. A pessoa mais próxima de Fox e Diego era Adolph Koch, sentado numa cadeira de madeira e tão elegante como sempre, apesar de respirar pela boca aberta. Diego olhou-o de frente e perguntou:

 

—        O que aconteceu?

—        O quê? Koch levantou a cabeça para ele. — Oh. Foi o Jan. Suicidou-se. Matou-se.

 

Um dos policiais se aproximou rapidamente.

 

—        Como é que os senhores entraram aqui? Quis saber. — Não tem um policial lá fora? Diego se voltou para encarar o agente da autoridade, mas foi incapaz de pronunciar uma palavra.

—        Não há problema, respondeu Fox. — Entramos pela porta do palco. Somos da casa.

—        De qual casa?

—        São amigos de Mr. Tusar, explicou Koch, ao que o policial fez um gesto de assentimento e não os importunou mais.

 

Diego continuava a olhar fixamente para a porta dos camarins, com o rosto contorcido numa expressão semelhante à de alguém que tenta levantar um peso demasiado pesado para as suas forças. Fox se retirou para um canto e observou a cena. Fê-lo ao mesmo tempo por hábito e por instinto. Em tempos, considerara essa predisposição como um defeito do seu organismo, mas uma longa e por vezes dolorosa experiência tinha-o obrigado a se habituar. Eventos e situações que provocavam o derramamento de sangue de outras pessoas, ou que o faziam gelar nas veias dessas, se limitavam a transformá-lo num instrumento preciso de registro e avaliação. Quer lhe agradasse ou não, isso constituía uma necessidade da sua função em face da tragédia, ao passo que outros podiam se lamentar, procurar o consolo de alguém ou simplesmente ceder.

 

Tanto quanto lhe era dado ver, nenhum dos presentes tinha cedido. Estavam ali em pares ou em pequenos grupos, olhando fixa e silenciosamente para a porta dos camarins, ou murmurando algumas palavras entre si. Uma mulher se esforçava para conter um risinho nervoso enquanto um homem e outra mulher a seguravam por ambos os braços e lhe diziam que se calasse. Félix Beck, o professor de Jan Tusar andava de um lado para o outro enquanto arrepelava os cabelos com ambas as mãos. Tendo conseguido recuperar a fala. Diego Zorilla conversava com Adolph Koch. Hebe Heath não se encontrava em local visível, mas o jovem que saíra dos camarins na sua companhia, o mesmo que Diego não reconhecera, se encontrava do outro lado da sala, de mãos enfiadas nos bolsos. E Fox notou que o jovem também parecia se achar um instrumento de registro e avaliação. Depois, Fox franziu o cenho, se moveu de forma involuntária e parou de novo; o seu olhar se fixou na figura de Dora Mowbray. Estava sentada numa cadeira junto à parede do lado contrário e o seu rosto, onde o tom pálido dera lugar a um cinzento doentio, parecia absolutamente inexpressivo e não demonstrava qualquer sinal de ouvir as palavras que Perry Durham lhe dirigia, curvado sobre ela para lhe falar ansiosamente ao ouvido. Todos se voltaram quando a porta se abriu para dar entrada a três homens. Não estavam fardados, mas a forma como tinham entrado dizia tudo a seu respeito.

 

—        Aqui, Capitão, chamou um dos polícias.

 

O primeiro dos três homens olhou rapidamente à sua volta, atravessou a sala de modo igualmente rápido, parou e se voltou. O seu aspecto e a sua atitude demonstravam claramente que se encontrava ali em serviço, mas os seus modos não eram agressivos. Quando falou, fê-lo sem elevar o tom de voz, que era afável quase ao ponto de parecer um pedido de desculpas.

 

—        Se não se importam, explicou, — Poupar-nos-iam bastante tempo se dessem os seus nomes e endereços a estes homens. Por favor, evitem a confusão.

 

Deu meia volta e abriu a porta dos camarins, que só se fechou depois de um dos polícias entrar também. Os outros dois homens pegaram nos respectivos lápis e blocos de notas e deram início à sua tarefa. A chegada das autoridades competentes parecia ter tido o efeito de absorver parte do choque e da tensão generalizada que se faziam sentir; as pessoas começaram a se mexer e os murmúrios transformaram-se em palavras audíveis. Fox se manteve no seu canto. Foi nesse mesmo lugar que acabou por ser abordado por um dos homens de bloco de notas.

 

—        O seu nome, por favor?

—        Tecumseh Fox.

—        Como é que se soletra...? Fox soletrou o seu nome e repetiu-o:

—        Tecumseh Fox, de Brewster, Nova Iorque.

—        Profissão, por favor?

—        Detetive particular.

—        Hum? O homem ergueu o olhar. — Oh. Claro. Você é o tal. Acabou de escrever. — Está aqui a serviço?

—        Não. Era a minha noite de folga. O homem grunhiu qualquer coisa antes de fazer a mais espantosa das afirmações.

—        Você parece um jogador de xadrez, disse em tom despreocupado, antes de se afastar.

 

Fox se encaminhou discretamente para o outro lado da sala, até chegar junto do jovem que Diego não reconhecera. Conseguiu se aproximar o suficiente para saber que se chamava Theodore Gill e que trabalhava como agente publicitário. Quando o homem do bloco de notas se afastou, o jovem se voltou de repente, enfrentou o olhar de Fox com um sorriso divertido e perguntou:

 

—        Entendeu bem? Theodore Gill. Os meus amigos me tratam por Ted.

 

Um pouco surpreendido, Fox lhe devolveu o sorriso. Reparou que os olhos do outro eram mais acinzentados do que azuis, e que o cabelo era mais castanho-claro do que louro. Enquanto o observava, explicou:

 

—        Julgava que o conhecia, mas parece que eu estava enganado. Chamo-me Fox. O outro fez um gesto de assentimento.

—        Sim, eu sei. Sou obrigado a conhecer tudo e todos, por causa da minha profissão. Deus me valha. O que é que lhe parece pior...? Ah, aí vem o pessoal dos Homicídios. Conseguiram chegar primeiro que o médico... Não, ele também já chegou. Olhe para aquilo. Nós somos a necessidade universal do mundo moderno. Refiro-me aos policiais publicitários, nos quais me incluo. Ninguém seria capaz de viver sem nós, e alguns pobres diabos nem sequer seriam capazes de morrer. A propósito, me pareceu ouvi-lo dizer que tinha entrado pela porta do palco...

—        Foi precisamente o que eu disse.

—        Por acaso não viu por aí uma deslumbrante visão capaz de cortar a respiração de qualquer um? Momentaneamente loura?

—        Se está se referindo a Hebe Heath, a resposta é não. Perdeu-a?

—        Espero que não. Ela estava aqui, mas não está mais.

—        Você é o... Hum...

—        O seu arauto mais inflamado. Ela é minha cliente. Se alguma vez precisar... Mas isso pode e deve esperar. Eis que tem início o terceiro ato.

 

O capitão tinha saído do camarim e fechado a porta atrás de si. Tinha tirado o chapéu e o casaco. O seu olhar varreu a sala de forma deliberada, de modo a abrangera todos os presentes, e os seus modos eram mais agressivos que antes; mas, quando falou, mais que hostil ou ameaçadora, a sua voz soou grave e informativa.

 

—        Mr. Jan Tusar morreu em consequência de uma bala que entrou pela boca e saiu pela parte superior do crânio. Neste momento, a conclusão oficial é a de que ele cometeu suicídio, e não existe motivo para pensar que possa vir a ser alterada. Ele deixou uma breve carta e o capitão ergueu a mão para mostrar um pedaço de papel, — Dirigida “Aos meus amigos que acreditaram em mim”. Não irei lê-la agora. A caligrafia vai ser verificada por peritos, mas gostaria que pudesse ser previamente verificada por alguns dos presentes que possa estar familiarizado com a caligrafia de Tusar. Será que alguém pode fazer isso, por favor? Seguiram-se algumas trocas de olhares, movimentos, hesitações e murmúrios.

—        Eu posso, acabou por responder uma voz, se sobrepondo à ligeira confusão que o pedido do oficial gerara.

—        Obrigado. Como se chama?

—        Félix Beck.

 

O homem avançou na direção do capitão. Abriu a boca sem que daí resultasse qualquer som, mas acabou conseguindo falar tão alto que parecia querer ditar um fato importante para a imortalidade.

 

—        Sou o professor de Tusar. Há anos.

—        Ótimo. O capitão lhe entregou o pedaço de papel. — Essa é a caligrafia do seu aluno?

 

Beck pegou no pedaço de papel e observou-o no mais completo silêncio, que contrastava com as vozes abafadas e com os sons de movimento que se ouviam do outro lado da porta fechada dos camarins. Passou as costas da mão pelos olhos e olhou de novo para o papel, movendo os lábios à medida que lia as palavras nele escritas. Em seguida, olhou para os rostos à sua volta e disse em voz baixa e trêmula:

 

—        Sabem o que ele nos diz? Abanou o papel na direção dos que o rodeavam. — Eu sou um deles, não sou? Um dos amigos que acreditaram nele? Pergunto-vos! Sabiam... Duas lágrimas rolaram pelo seu rosto e foi incapaz de continuar.

—        Mr. Beck! Disse o capitão num tom duro. — Eu lhe fiz uma pergunta. Essa é a caligrafia de Tusar? Estendeu a mão para recuperar o pedaço de papel. Beck assentiu, limpou os olhos e gritou:

—        Sim! Claro que sim!

—        Obrigado. O capitão guardou o papel no bolso. — Agora, vou fazer algumas perguntas complementares e não os incomodarei mais. Algum de vocês se encontrava nesta sala quando Tusar saiu do palco e entrou nos camarins? Félix Beck falou de novo.

—        Eu estava, disse.

—        Viu-o entrar nos camarins?

—        Vi. A voz de Beck soava mais controlada. — Estava na sala de escuta, lá fora, mas vim para cá depois da peça de Lalo. Não consegui... Vim embora. Entrei nos camarins e voltei a sair, e foi nessa altura que ele passou por mim e entrou.

—        O que foi fazer nos camarins?

—        Queria ver o estojo do violino.

—        Porquê?

—        Porque queria vê-lo. Acho que ele não estava tocando o violino dele. A afirmação foi seguida por um murmúrio e por certa agitação, e Beck olhou em volta, desafiador. — Acho que não era o violino dele! O capitão tinha uma expressão carregada.

—        Porquê? Perguntou.

—        Por causa do som. Santo Deus, eu tenho ouvido para notar, não?

—        Quer dizer que não soava bem? O violino de Tusar era especialmente bom?

—        É um Stradivarius. Não apenas um Stradivarius, mas um Oksmann. Parece-lhe suficiente?

—        Não faço ideia. Tusar não tinha o violino com ele quando voltou do palco?

—        Claro que tinha. Mas não parou. Eu falei com ele, mas não me respondeu. Continuou a andar, sem olhar para mim, entrou nos camarins e fechou a porta. Eu abri um pouco a porta e tentei falar com ele, mas gritou para que não entrasse. Achei que seria melhor deixá-lo sozinho por um instante, e foi então que chegaram Miss Mowbray, Mr. Koch, Mr. Durham e depois os outros...

—        Quando entrou nos camarins para ver o estojo do violino, encontrou alguém lá? Beck olhou-o fixamente.

—        Alguém... Claro que não!

—        Viu alguma arma lá dentro?

—        Não vi arma nenhuma. Mas estava no sobretudo dele... Pelo menos era onde costumava estar. Desde que tocamos num concerto beneficente a favor da Tchecoslováquia e tendo recebida cartas ameaçadoras, ele andava sempre armado. Eu lhe disse que era uma tolice, mas ele preferia assim.

—        Compreendo. O capitão esboçou um gesto de assentimento. — Portanto, a arma era dele. Disse que Miss Mowbray foi a primeira a aparecer, depois de Tusar. Quem é ela?

—        É a acompanhante de Tusar...

—        Esta é Miss Dora Mowbray, ecoou uma voz dura — E está mais do que na hora de ser levada daqui. Ela não se encontra em condições de responder a um monte de perguntas desnecessárias.

 

O jovem que falara era atraente, de olhos e cabelos escuros, tão elegante como Adolph Koch no seu terno de gala, e consideravelmente mais esbelto e atlético do que este, tinha uma mão sobre as costas da cadeira em que Dora Mowbray se encontrava sentada. O tom da sua voz, apesar de não ser exatamente de superioridade, dava a entender que dispunha de tempo para discutir e se sentia capaz de ensinar o ”Pai Nosso” ao vigário. Tal como alguns dos presentes, o capitão voltou o olhar para ele.

 

—        Diga-me o seu nome, por favor? Perguntou.

—        Chamo-me Perry Durham. Não há necessidade de interrogar Miss Mowbray. Ela já desmaiou uma vez. Ela e eu vimos o Jan se suicidar.

—        Oh. Os senhores viram?

—        Vimos, como a maioria dos presentes poderá confirmar. Quando voltei a esta sala, Miss Mowbray e Mr. Koch já se encontravam aqui, e pouco depois muitos outros chegaram. Criara-se certo zunzum, com toda a gente se perguntando o que acontecera com Jan. Duas ou três pessoas até tentaram entrar nos camarins, mas ele gritou para que não o fizessem. Por fim, quando o intervalo estava quase se esgotando, Beck e Koch decidiram que Miss Mowbray devia entrar, mas eu achei que ele podia atirar alguma coisa nela e acompanhei-a. Estava diante do espelho, com a pistola na mão. Eu mantive a calma e pedi a Miss Mowbray para fechar a porta, o que ela fez. Comecei a falar com o Jan e a me aproximar dele, mas ainda me encontrava a uns três metros quando enfiou o cano da arma na boca e puxou o gatilho.

—        Bem. O capitão respirou fundo. — Como tive oportunidade de dizer, Mr. Durham, eu já chegara à conclusão que Mr. Tusar se suicidara. Nunca ouvi falar de um homem que abrisse a boca para que outra pessoa enfiasse lá uma arma e apontasse de baixo para cima. Claro que a sua explicação é mais que suficiente, mas por uma questão de formalidade tenho de fazer uma pergunta a Miss Mowbray. Aconteceu tudo como Mr. Durham descreveu Miss Mowbray?

 

Sem olhar para o oficial, sem sequer levantar a cabeça ou o olhar fosse para quem fosse a moça assentiu.

 

—        Lamento, insistiu o capitão, — Mas podemos dar o assunto por encerrado se as coisas ficarem bem claras. Estava presente, com Mr. Durham, quando Tusar se matou?

—        Estava, murmurou a jovem. Depois ergueu a cabeça, o seu olhar enfrentou o do capitão e a sua voz soou surpreendentemente forte. — Enquanto... Enquanto estávamos ali... Como o Perry disse. Eu estava mais longe que ele, me controlando... Tentando não gritar. Quando levantou a arma, o Perry saltou sobre ele, mas não... Não foi capaz...

—        Ele foi demasiado rápido, concluiu Durham de forma sintética. — Ou eu fui demasiado lento. Ele caiu e eu tropecei e caí também. Quando me levantei vi que Miss Mowbray tinha recuado até à porta e que era o peso do seu corpo que impedia o esforço de alguém para abrir a mesma. Não pensei que se encontrasse uma multidão acotovelada do outro lado da porta, mas não sabia o que fazer. Foi por isso que a afastei da porta, e abri, permitindo que entrassem. O capitão resmungou qualquer coisa. Esfregou o queixo, olhou lentamente para os rostos à sua volta e resmungou de novo.

—        Muito bem, disse. — Não vejo necessidade de incomodar ninguém. Temos os seus nomes, para o caso de ser necessário, mas não acho que venha a ser preciso. Parece que um dos guardas telefonou à irmã de Tusar. Ela já chegou? Várias cabeças abanaram em sinal de negação. — Seria uma boa ideia se dois de vocês, que sejam amigos dela, esperassem-na aqui, continuou o capitão. — Os outros podem ir embora. A menos que alguém tenha alguma coisa a acrescentar ao que foi dito. Os seus olhos percorreram de novo o grupo de pessoas à sua volta.

—        Só uma coisinha, troou uma voz, quando parecia que o silêncio seria a única resposta. Era Adolph Koch, que tinha se levantado da cadeira onde estivera sentado e se encontrava de pé no meio da sala. O olhar do capitão pousou na larga figura do outro.

—        E o que é senhor?

—        Saber onde foi parar a outra carta.

—        A outra?

—        O senhor disse que Tusar deixou uma carta dirigida aos amigos que acreditaram nele. Mas, pouco depois de ouvirmos o tiro, vários de nós entraram nos camarins e, apesar de se ter gerado uma considerável confusão, ouvi Mr. Gill dizer “aqui está a carta que ele deixou”. Ao que Miss Mowbray respondeu dizendo “Há duas cartas”, tendo Mr. Gill retorquido “Não, há apenas uma”. E Miss Mowbray insistiu, dizendo: “São duas, eu as vi juntas”. Koch suspirou. — Suponho que não deve ter importância, mas seria melhor procurar a outra carta antes de ir embora...

 

O capitão olhou-o com ar carrancudo e desagradado; a intromissão de uma desagradável complicação, como era uma carta desaparecida, num caso claro de suicídio, era perfeitamente indesejável. Dirigiu-se a Dora Mowbray num tom mais agressivo do que utilizara antes.

 

—        Isso é verdade? A moça disse que havia duas cartas de suicídio? Ela assentiu com um pesado movimento de cabeça.

—        Acho que sim. Julguei ter visto duas... Mas claro que estava errada. Vi-as quando estive no camarim, quando o Jan tinha a arma na mão e o Perry tentava se aproximar dele. Foi apenas uma impressão... Deve ter sido uma impressão errada, porque o Perry diz que só encontrou uma carta de suicídio. Oh, isso é importante? O capitão se aproximou rapidamente da jovem.

—        Então, não está preparada para afirmar com toda a certeza de que viu duas cartas de suicídio?

—        Oh, não... Devia ser apenas uma...

—        O senhor viu apenas uma, Mr. Durham?

—        Com certeza. O jovem dirigiu um olhar de poucos amigos a Adolph Koch. O homem mais velho ignorou o olhar e se dirigiu à moça, com quem falou em tom cético:

—        A moça tem muito bons olhos. Olhou para o capitão. — Parecem-me realmente reprovável que fossem duas as cartas de suicídio e que alguém tenha pegado uma delas.

—        Como se chama? Perguntou o capitão de mau humor.

—        Adolph Koch. Fabricante de vestidos e ternos. Admirador das artes.

—        Faz mesmo questão disto? Acredita realmente que vou pedir a estas senhoras e senhores que me autorizem a revistar as suas pessoas?

—        De modo algum. Koch parecia imperturbável. —        Nem sequer permitiria que me revistasse. Mencionei o fato apenas porque perguntou se alguém tinha alguma coisa a acrescentar.

—        Muito bem. E tem mais alguma coisa a acrescentar?

—        Não.

—        Mais alguém? A expressão do rosto do capitão não convidava a novos contributos, mas alguém resolveu o contrário. Uma voz de barítono perguntou educadamente:

—        Posso fazer uma sugestão?

—        Esse senhor se chama Tecumseh Fox, capitão acrescentou outra voz, vinda do fundo do grupo.

—        Estava aqui apenas como espectador, acrescentou Fox rapidamente. — Antes de nos mandar embora, me permita sugerir que pode ser uma boa ideia deixar Mr. Beck observar atentamente o violino. Por causa das dúvidas que levantou quanto à sua autenticidade.

—        Com certeza. Claro que não tinha me esquecido disso...

—        Antes de irmos embora, se não se importar.

—        Pode identificar o violino de Tusar? Perguntou o capitão a Felix Beck.

—        Naturalmente, respondeu Beck, como se lhe tivessem perguntado se seria capaz de identificar o seu próprio rosto no espelho.

—        Todos os outros, se não se importam, esperem mais um instante, disse o capitão, antes de entrar nos camarins, fechando a porta atrás de si.

 

Os sons abafados que vinham do seu interior deixaram de se ouvir; apenas se ouviam vozes, mas não se distinguiam palavras; e depois o capitão reapareceu. Fechou a porta e se voltou para confrontar o grupo; a expressão do seu rosto era consideravelmente mais carregada de que quando Koch levantara a questão das cartas de suicídio. Perscrutou as pessoas que o rodeavam durante um longo e silencioso instante e quando falou fê-lo num tom de seco desagrado.

 

—        Não existe violino nenhum ali, informou.

 

Em resposta obteve uma série de exclamações, engasgos e movimento de espanto. Felix Beck saltou na direção da porta dos camarins, mas um dos homens que antes tinha andado de bloco de notas na mão agarrou-o por um braço e deteve-o. Meia dúzia de pessoas afirmaram que não era possível, que tinham visto o violino, e o capitão, de mão erguida, se esforçava para restaurar a ordem quando um elemento exterior se juntou à confusão. A porta mais distante do local onde o grupo se encontrava abriu para dar passagem a uma mulher. Tinha o casaco de pele de marta aberto, os olhos negros que pareciam não ver ninguém eram um mar de agitação em contraste com o rosto pálido e tinha os lábios vermelhos entreabertos pela respiração ofegante. Correu pelo corredor que o grupo abriu ao vê-la até ser detida pelo capitão, que lhe bloqueou o caminho. Adolph Koch avançou para ela, falando-lhe de forma ríspida:

 

—        Garda! Não devia... A mulher cravou os dedos nos braços do capitão.

—        O meu irmão! Jan! Onde é que ele... Tecumseh Fox se retirou calmamente para o canto que antes já ocupara.

 

—        Discordo, disse Diego Zorilla de modo convicto. — Discordo totalmente. Era a coisa mais sensata que Jan poderia fazer. Eu próprio devia ter feito isso quando perdi os dedos. Quanto ao violino, não acredito. Se tivesse ocorrido alguma substituição, estou certo que Jan teria notado. Bebeu um gole, pousou o copo e abanou a cabeça. — Não, foi pura e simplesmente roubado. Agora, como e por quem...

—        É verdade, você pode me elucidar a esse respeito, sugeriu Fox.

 

Estavam sentados a uma mesa do Ulsterman’s Bar, depois de terem abandonado o Carnegie Hall por volta da meia-noite. As últimas duas horas tinham sido improdutivas em termos de resultados, exceto esse de que o violino de Jan Tusar não se encontrava em lugar onde pudesse ser encontrado. Parecia não haver dúvida que o violino se encontrava nos camarins imediatamente depois de Tusar ter se suicidado. Todos tinham negado ter levado ou sequer mexido no instrumento, mas todos admitiram sem problemas que no meio de toda a agitação e emoção que se seguiram o violino pudesse ter sido levado sem que ninguém reparasse. Uma cuidadosa investigação tinha levado à conclusão de que apenas três pessoas tinham abandonado o local antes da chegada do capitão: uma certa Mrs. Briscoe, um tal Mr. Tillingsley e Miss Hebe Heath. Tinham sido dadas instruções a vários guardas para que os interrogassem, ao que todos tinham negado qualquer conhecimento da existência do violino. Era do conhecimento geral que os sobretudos dos homens ou os casacos das mulheres presentes podiam ter facilmente servido para ocultar o violino, da mesma forma que qualquer uma daquelas pessoas se podia ter ausentado durante alguns minutos sem que ninguém notasse, mas uma busca a todo o edifício revelou-se infrutífera.

 

Sentados na confortável esplanada do Ulsterman’s, Diego explicou a Fox quem eram as três pessoas que tinham saído antes da chegada da polícia. Mrs. Briscoe era a mulher a quem Fox tinha chamado esqueleto de zibelina, e estava longe de ser o que se podia considerar uma ladra de violinos; Mr. Tillingsley era o diretor da Manhattan Symphony Orchestra, e se encontrava igualmente acima de qualquer suspeita; por fim, apesar de ser uma estrela de cinema e, como tal, passível de estar sujeita a processos de lógica e razão diferentes dos habituais, parecia improvável que Hebe Heath tivesse roubado um violino para cuja aquisição contribuíra com a considerável quantia de dois mil e quinhentos dólares.

 

—        Ela também é uma apreciadora das artes? Perguntou Fox.

—        Ela era uma admiradora de Jan Tusar, respondeu Diego num tom especial. — O Jan era uma figura deveras romântica. Era realmente romântico... Como provou esta noite. Ao contrário de mim. Eu sou um realista. Quando fiquei com os dedos esmagados no acidente e tiveram de ser amputados, levando o melhor de mim, acha que terminei o serviço? Eu não. Aceitei a sua hospitalidade, a sua caridade, e passei meses na sua casa de campo, porque um realista precisa comer. Tomemos mais uma bebida? E agora faço os arranjos para a Metropolitan Broadcasting Company.

—         E são muitas as pessoas que os ouvem. De qualquer modo, você está bem. Fale-me dos outros. Diego assim fez.

 

Era sabido, segundo disse, que Tusar tinha alimentado a ideia de casar com Dora Mowbray, mas esta não fizera nada para encorajá-lo, ao que se juntara a feroz oposição do pai da jovem. Quando, meses mais tarde, Lawton Mowbray caíra da janela do seu escritório para a morte, correram rumores de que Jan Tusar o tinha enviado na sua última jornada como forma de remover um obstáculo no seu caminho para o amor verdadeiro; no entanto, explicou Diego, isso não passara de veneno vertido por más línguas, uma vez que Jan não era assim tão romântico. Passado algum tempo, Dora aceitara voltar a atuar como acompanhante de Jan; inicialmente porque este insistira que de outra forma seria incapaz de tocar, e depois porque ela necessitava do dinheiro. É que, apesar de ser um agente de sucesso, Lawton Mowbray tinha gasto mais do que ganhara e a filha herdara apenas um monte de dívidas e algumas memórias agradáveis. Fox notou que o jovem Mr. Durham parecia estar envolvido com Miss Mowbray.

 

Diego fungou e disse que esperava que assim não fosse. Perry Durham não passava de um macaquinho arrogante, incapaz de dar o devido valor a uma criatura tão adorável como Dora. Chamou-lhe a sua ”pequena Dora” porque quando a conhecera, seis anos antes, a moça tinha apenas catorze anos e pernas tão finas como as de uma bezerra recém-nascida. Mesmo agora, achava que lhe faltava certa rotundidade de formas para o gosto de um espanhol, mas não restavam dúvidas de que era absolutamente adorável, e era mesmo capaz de tocar boa música. Quanto a Perry, achava que swing era música, o que, a julgar pelo tom de voz de Diego, era tudo. Manter as boas relações com a mãe rica, Irene Durham Pomfret, madrinha de músicos suficientes para pôr de pé um Festival de Belém, era o único motivo porque alguma vez pusera os pés no Carnegie Hall. A irmã de Jan, Garda, fazia mais o seu gênero que Dora Mowbray. Eles eram?...

 

Não, pelo menos que Diego soubesse. A morena e tempestuosa Garda, como o próprio Fox tivera oportunidade de observar, exibia no rosto e movimentos todos os traços de uma autêntica sedutora, mas se os utilizava para tal fim fazia-o de uma forma bastante discreta. Na verdade, era algo misteriosa. Em princípio, trabalhava num emprego qualquer de vagos contornos, relacionado com o mundo da moda, mas se o salário que recebia era suficiente para pagar as roupas que vestia, o apartamento em que vivia e o carro em que se fazia transportar, decerto que se tratava de um super-emprego. Fox disse que ela gostava do irmão.

 

Disso não havia dúvida, concordou Diego; mas as relações entre os dois tinham arrefecido nos últimos tempos. Ainda na véspera Jan tinha lhe dito que a irmã estava tão zangada com ele que não iria ao recital do Carnegie Hall, mas não lhe revelara o motivo de tão grande zanga. Cheio de remorsos, Diego acrescentou que nos últimos meses não tinha mantido com Jan uma relação tão próxima como antes, e isso fora errado da sua parte e a culpa era dele, Diego, que sentira inveja do amigo. Uma realidade que Diego admitiu depois de seis ou sete bebidas. Jan estava se preparando para o evento mais importante da sua carreira, que com toda a certeza seria um triunfo glorioso, e isso ultrapassara os limites do que Diego conseguia suportar. Tinha negligenciado o seu jovem amigo no momento em que este mais precisara, e nunca se perdoaria por isso. Agora seria obrigado a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para compensar esse fato. Vingaria a desprezível traição que mergulhara Jan num falso e fatal desespero e o levara a acabar com a própria vida. Iria descobrir, e o seu amigo Fox ajudá-lo-ia, quem tinha substituído uma caixa de biscoitos com pega pelo violino de Jan e o levara depois de cumprido o seu propósito. Iria...

 

Minutos mais tarde afirmou que se tivesse ocorrido alguma substituição seria impossível que Jan não tivesse reparado. Fox sorriu para o amigo.

 

—        Não pode querer as duas coisas ao mesmo tempo, Diego. Ainda há pouco disse...

—        E depois? Diego respondeu ao sorriso de Fox com uma expressão sombria e triste. — De qualquer maneira, eu tinha razão. Está muito bem dizer que o Jan não podia ter sido enganado quanto ao violino, mas foi. E eu vou descobrir quem o fez. Agora estou bêbedo, mas amanhã não estarei, e é precisamente isso que vou fazer.

—        Nesse caso, boa sorte. Fox olhou para o relógio. — Lamento não estar aqui para ajudar, mas vou apanhar um trem para Louisville. Não devo demorar mais de dois dias, pelo que é provável que lhe telefone na quinta-feira de manhã, para saber como está se saindo.

 

 

Mas, uma vez chegado a Louisville, uma súbita e inesperada epidemia de dores de estômago numa coudelaria de cavalos de corrida, entre os quais se contava um vencedor de Derby, obrigou Fox a se demorar mais um dia do que esperava. Assim, só regressou a Nova Iorque na sexta e não na quinta-feira, às duas da tarde e não às oito da manhã, e ao aeroporto de La Guardia em vez da estação da Pennsylvania. No entanto, não precisou telefonar a Diego Zorilla para saber como o amigo estava se saindo no seu projeto de expiação e vingança, porque tinha feito uma ligação de longa distância na quinta-feira e já sabia. Além do mais, tinha recebido informações e um pedido que o obrigara a mastigar apressadamente o almoço no restaurante do aeroporto, apanhar o metrô para Manhattan e um táxi que o levou a um endereço na Park Avenue.

 

Calculou que os traços evidentes da fadiga que sentia após três dias e três noites extenuantes, os bolsos abarrotados de pacotes, presentes para os Trimble e outros do Zoo, nome por que era carinhosamente conhecida a sua casa de campo, e a mala coçada que levava consigo, tivessem causado uma considerável dose de apreensão no mordomo impecável que abriu a porta e o conduziu a uma espaçosa sala de espera, depois de ter subido de elevador até ao vigésimo andar do edifício. Mas o mordomo não parecia absolutamente impressionado, e Fox deduziu que os serviçais de Irene Durham Pomfret estavam habituados a aparições de outros mundos. O mordomo se encontrava cortesmente junto dele enquanto um segundo homem, igualmente cortês, cuidava da mala, do casaco e do chapéu de Fox, quando uma mulher surgiu de uma passagem em arco e se aproximou, dizendo enquanto caminhava:

 

—        Como está? Não tenho criadas. Não gosto delas. Só tenho homens ao meu serviço. Já tive criadas, mas estavam sempre adoecendo. O senhor é Fox? Tecumseh Fox? O Diego falou imenso de si. O senhor foi muito amável com ele na altura do seu infortúnio. Vamos para ali...

 

Fox disfarçou com valentia uma série de sucessivos choques. A enorme sala ricamente mobilada tinha constituído um deles. Sabia qualquer coisa a respeito de vasos chineses devido à relação dos mesmos com um caso em que trabalhara, e havia dois espécimes deles e raros em cima de uma mesa; pendurado na parede atrás dos vasos, podia se ver uma cópia a cores do ”Vaso Quebrado”, de Greuzer! Claro que não tinha como saber que aquele fora o quadro preferido de James Garfield Durham, o muito sentimental primeiro marido de Mrs. Pomfret, da mesma forma que não podia saber que Mrs. Pomfret era capaz do mais completo desprezo pelos cânones das convenções e gosto quando estavam em jogo os seus sentimentos pessoais, apesar de um olhar mais atento poder facilmente vislumbrar esta última parte.

 

A sua aparição tinha constituído o segundo choque. Não evidenciava qualquer traço da insolência ao mesmo tempo insensível e frágil que a sua reputação de mulher Mecenas o levara a esperar. Tinha uma figura generosa, um olhar penetrante, mas agradável, uma boca de lábios carnudos e cheios de vida, e a sua pele jovem, tendo em conta que, para ter um filho como Perry, a sua idade devia se situar entre os quarenta e os cinquenta anos representava uma cobertura da carne que Rubens teria sentido prazer em apreciar. Fox sentiu esse prazer.

 

A vasta câmara para onde a mulher o conduziu, onde os dois pianos de cauda não passavam de coisas menores, tinha um aspecto avassalador sem ser irritante. Ela parou junto de um tapete Zendjan de valor incalculável e chamou, numa voz em que a afeição terna se misturava na perfeição com uma nota de comando que exigia resposta imediata:

 

—        Henry! Um homem se levantou de uma cadeira e se aproximou. — O meu marido, apresentou-o Mrs. Pomfret. Fox ficou espantado por ela conseguir dizer aquilo com a mesma naturalidade com que qualquer outra pessoa teria dito “Este é o meu cão” ou “Esta é a minha sinfonia preferida” sem ofender o orgulho masculino do homem. — O senhor Tecumseh Fox. Uma coisa é certa, se eu fosse sua mulher e me aparecesse com uma barba dessas... Espantado, Fox largou a mão de Henry Pomfret e tentou se defender de forma desajeitada.

—        Tive de correr para apanhar um avião e não tive tempo de me barbear e, além disso, não sou casado. Olhou em volta e constatou que, tanto quanto lhe era dado ver, não havia mais ninguém na sala além de uma moça e de um jovem sentados num divã. — Se bem compreendi... O Diego me disse que lhe telefonou e contou que tinha convidado para sua casa todos os que...

—        Foi o que fiz, mas o Adolph Koch mandou dizer que não poderia estar presente antes das dezesseis horas, e o senhor estava num avião, o que não permitiu que o Diego o avisasse, da mesma forma que a minha secretária não conseguiu falar com Dora ou Mr. Gill... Conhece-os? Calculo que não.

 

Conduziu-o até ao divã e os outros dois se levantaram. Quando Mrs. Pomfret pronunciou os seus nomes, Fox reparou como Dora começou a estender a mão e depois hesitou, o que o fez estender a sua para apertá-la, e descobrir que o aperto de mão da moça era tímido, mas firme. As linhas do seu rosto eram mais insípidas do que se recordava, mas considerando que a moça tinha passado por grave processo de depressão, se sentiu tentado a concordar com a observação de Diego, que a considerara adorável. Apertou a mão a Ted Gill, que tinha o ar ausente e levemente ressentido de alguém que tinha sido interrompido a meio de uma tarefa agradável e importante.

 

—        Ele parece-se com um tenor norueguês que conheci em Genebra, em 1926, e que cantava com o pomo de Adão, observou Mrs. Pomfret.

—        Não sou eu, respondeu Henry Pomfret com uma gargalhada. — Provavelmente, ela me acha parecido com um crocodilo que viu no Egito em 1928. Ela estava falando de si, Gill.

—        Um crocodilo vesgo, retorquiu a mulher com terna malícia. — Como se chamava o tenor norueguês? Creio que era Wells, não era? Um homem de meia idade, de cenho franzido e olhar preocupado se aproximou.

—        Telefone para si, Mrs. Pomfret. É Mr. Barbinini.

—        Oh, meu Deus, andou outra vez à luta! Exclamou Mrs. Pomfret, correndo para o telefone.

—        Aceitam uma bebida? Ofereceu o marido. Dora?

—        Não, obrigada.

 

Gill também declinou a oferta, mas Fox admitiu que caísse bem uma bebida. Parecia, contudo, que não havia bebidas disponíveis naquela sala e àquela hora; por isso, Fox foi levado para fora da mesma, tendo sido conduzido através de uma sala não tão larga e de um corredor, ao fundo do qual viraram antes de chegarem a uma pequena e confortável sala com cadeiras de pele, um rádio, livros... Pomfret se dirigiu a um combinado de garrafeira e geladeira e procurou aquilo de que precisavam. Olhando em volta, Fox viu um Lang Yao genuíno numa prateleira de canto e um grande e fundo vaso sobre a mesa encostada à parede. Atrás dele, Pomfret lhe perguntou se gostava de vasos.

 

—        Gosto deste, respondeu Fox.

—        Não admira, disse Pomfret num tom orgulhoso. — É um Hsuan Te.

—        Parece que gosta mesmo de vasos.

—        Adoro-os.

 

Fox olhou-o de relance e viu que o seu rosto, tal como o tom de voz, exibia uma sinceridade inquestionável. Pomfret tinha um rosto apelativo, pouco atraente à primeira vista, com a sua boca larga em desarmonia com o nariz demasiado adunco, e com os olhos cinzentos e inquietos demasiado pequenos por baixo das sobrancelhas hirsutas.

 

—        Não se encontra vaso mais fino que esse em lado nenhum. Pomfret lhe entregou a bebida. — Tenho um quase tão bom no quarto de vestir da minha esposa. Se quiser, mostro-o antes de ir embora, assim como alguns outros. Soltou uma gargalhada algo despropositada. — Creio que um dos motivos porque tenho tanto orgulho neles é o fato de serem as únicas coisas que me pertencem neste mundo. Claro que foi o dinheiro da minha esposa que os comprou, até porque nunca tive nenhum, mas são meus. Fox bebeu um gole de uísque com soda.

—        Como? Têm policiais seus à procura dos vasos, ou é você mesmo que os escolhe?

—        Nem uma coisa nem outra. Desisti. A minha esposa não gosta de coisas fechadas em armários; gosta de vê-las espalhadas um pouco por todo o lado. Quanto a isso, concordo com ela, mas há cerca de um ano um desastrado derrubou um Ming de cinco cores, o mais belo que alguma vez já vi e que se despedaçou em vinte pedaços. Acredite que chorei. Não cheguei ao ponto de soluçar, mas verti lágrimas por ele. Aquilo me aniquilou. Desisti. Era tão belo, e eu me sinto responsável... Pomfret bebeu um gole, olhou para o copo de cenho franzido e concluiu: — Depois, tive uma outra perda no Outono passado. Um Wan Li retangular, preto. Eu lhe mostro. Pousou o copo, retirou um álbum de uma prateleira e procurou a página. — Aqui está uma fotografia a cores. Era absolutamente único, a joia de qualquer coleção. Vê o esmalte amarelo-dourado? E o verde e branco? Mas a fotografia não faz metade da justiça que merece. Fox observou atentamente a imagem.

—        Também se partiu? Perguntou.

—        Não. Foi roubado. Desapareceu certo dia, quando... Ora, não quero aborrecê-lo com isto. Educadamente, Fox lhe assegurou que não era aborrecimento nenhuma. Foi então que se ouviu uma pancada na porta e, em resposta ao convite de Pomfret, Perry Durham entrou.

—        São ordens, disse num tom crispado. — Estou só verificando. Está aqui toda a gente menos o Koch, e a mãe queria saber onde estavam. Aproximou-se de Fox e lhe estendeu a mão. — Olá, sou Perry Durham, como deve se recordar da outra noite. Olhou para o copo meio vazio de Fox e acrescentou: — É uma ideia.

—        Quer um? Ofereceu Pomfret, segundo Fox sem demasiada cordialidade.

—        Quero, se houver Bourbon.

—        Não há Bourbon. Lamento. Só uísque. Escocês, irlandês, maltado...

—        Vou ver se encontro um pouco de Bourbon. O macaquinho arrogante, segundo Diego, se voltou depois de abrir a porta para sair. — Mostrando os vasos da mãe para Mr. Fox? E os florins e os ducados dela? A porta se fechou atrás do rapaz.

 

Fox notou o leve rubor que tomou conta do rosto de Mr. Pomfret. Aparentemente, a emoção provocada pelas palavras do jovem era demasiado forte para ser disfarçada com palavras e Fox, embaraçado, tentou ajudá-lo.

 

—        Estranho, observou em tom ligeiro. — Florins e ducados? Fez girar o copo com a bebida. — E também dinares e guinéus?

—        Ele estava se referindo a uma pequena coleção de moedas que fiz, respondeu Pomfret, pouco à vontade. — Comecei a fazê-la como forma de consolação por ter abandonado os vasos. Não se quebram se as deixarmos cair, e mesmo que assim fosse não seria razão para chorar.

—        Moedas antigas? Gostaria de lhes dar uma vista de olhos. Pomfret parecia consideravelmente menos entusiasmado com as moedas do que com os vasos enquanto motivo de orgulhosa exibição.

—        O senhor é numismata? Falou em dinares.

 

Fox respondeu que não, que ”dinar” não passava, para ele, de uma palavra exótica, e que seria realmente interessante ver um exemplar dessas moedas, se houvesse algum na pequena coleção. Pomfret lhe disse que achava que deviam se reunir aos outros, mas que, de fato, possuía um dinar dos Fatímidas; tirou um porta-chaves do bolso e escolheu uma, com a qual abriu a porta de um armário para deixar a descoberto uma série de prateleiras que suportavam gavetas baixas. A que retirou do armário estava dividida em pequenos compartimentos forrados de veludo, em cada um dos quais repousava uma moeda. Pomfret apontou para uma delas.

 

—        É aquela. Não está em muito boas condições. Esta é muito mais rara e refinada. É um dinheiro de Luís I. Aquela é uma peça do chapéu de Jaime V, da Escócia. Essa? Uma velha moeda de ouro britânica... Entre!

 

Era Diego Zorilla. Entrou na sala, cravou os seus olhos negros nos presentes, deu um aperto de mão formal a Pomfret que contrastou com o cumprimento caloroso a Fox, e explicou que tinham pedido que os fosse buscar. Pomfret colocou a gaveta no seu lugar e fechou o armário. Fox engoliu o que restava da sua bebida.

 

—        Para a catedral? Perguntou Pomfret.

—        Não, eles estão na biblioteca.

 

Quando chegaram lá, Fox teve a sensação que a sala em questão tinha menos direito a ostentar o velho e digno título de ”biblioteca” do que qualquer outra que já tivesse visto. Podiam se ver alguns livros, mas se encontravam perdidos na confusão indiscriminada. Havia ali filas de instrumentos de aspecto antigo, uma enorme harpa, bustos de compositores esculpidos em bronze e mármore, um mapa-múndi quadrado com três metros de lado em que tinham sido pintadas linhas pretas em todas as direções... Sem qualquer sentido aparente. Também ali estavam pessoas, sentadas de ambos os lados da comprida mesa retangular que conferia ao aposento o aspecto de uma sala de reuniões da direção de alguma empresa. Irene Durham Pomfret estava sentada à cabeceira da mesa. Wells, o secretário de aspecto perturbado, estava sentado à sua direita. A mulher interrompeu a conversa com Adolph Koch, que estava sentado à sua esquerda, apenas o tempo suficiente para dar uma ordem aos três recém-chegados sem sequer olhar para eles.

 

—        Sentem-se! Comandou.

—        Jogaram fora o molde depois de fazerem-na murmurou Diego para Fox. — Certa vez, numa reunião da direção da Metropolitan Symphony, atirou com o livro de atas em Daniel Cullen e lhe ordenou que saísse.

—        Não há motivo para que... Eu não pertenço realmente... Tentava se justificar Pomfret.

—        Sente-se, disse Mrs. Pomfret.

 

O marido assim fez, tendo descoberto um lugar entre o enteado, Perry, e Hebe Heath. Felix Beck estava sentado do outro lado de Miss Heath. Além de Fox e Diego, do lado oposto da mesa se encontravam Dora Mowbray, Ted Gill e Garda Tusar, assim como Adolph Koch, este junto à quina da mesa. Ouviam-se conversas em voz baixa. Mrs. Pomfret deu por terminado o diálogo com Koch, bateu com os nós dos dedos no tampo da mesa e as conversas cessaram. Falou com a autoridade simples e informal de uma presidente experiente.

 

—        Convidei-os a virem aqui hoje por dois motivos. Primeiro, porque acho que têm o direito de ler a nota que Jan deixou quando... Na segunda-feira à noite. Ou de ouvirem lê-la. Por minha sugestão, a polícia impediu que fosse publicada, e a carta foi entregue a mim. Dê-me, Wells. O secretário retirou um pedaço de papel da pasta que tinha diante de si e entregou-o. — Está escrita, continuou Mrs. Pomfret, — Numa folha rasgada de um bloco de recados telefônicos que havia nos camarins, e diz o seguinte:

 

A todos os meus amigos que acreditaram em mim. Desiludi-os e não tenho coragem para tentar de novo. Servi-me de toda a minha coragem durante aquela hora terrível. Aquele som horrível... Tentei de todo o coração fazer com que soasse bem, mas não consegui. Dora, eu não quero que diga que poderia fazê-lo soar bem se quisesse, mas compreenderá... De qualquer modo, perdoa-me. Perdoem-me todos. Na verdade não vou me matar, porque já estou morto. Deixo o meu violino àqueles a quem pertence realmente, aqueles que me ofereceram, pois não o mereço. Não tenho mais nada para deixar a alguém. Jan.

 

Lágrimas caíram pelo rosto de Mrs. Pomfret quando terminou a leitura em voz trêmula. Diego grunhiu algo imperceptível. Felix Beck gemeu e Dora Mowbray enterrou o rosto nas mãos.

 

—        Quero esse papel! Exclamou Garda Tusar num tom agudo. — Quero o papel! É meu!

 

Servindo-se de um lenço para secar as lágrimas, Mrs. Pomfret ignorou-a.

 

—        Quero esse papel e tenho intenção de tê-lo! O meu irmão... Foi a última coisa que fez e eu tenho direito a ele...

—        Não, respondeu Mrs. Pomfret de modo cortante. — Pode falar comigo sobre isto mais tarde. Serviu-se novamente do lenço. — A única pessoa mencionada nesta nota é Dora e, se quiser, pode reclamá-la para si.

—        Mas eu...

—        Já chega Garda... Surpreende-me que não chore. Não sou capaz de ler estas palavras sem chorar. Achei que tinham o direito de conhecer o conteúdo desta nota, mas estou certa que todos concordarão que não deve ser levada a público, especialmente a referência a Dora. É um assunto... Muito... Íntimo. Muito bem... A lista, Wells. O secretário lhe entregou outro papel. — Isto, continuou Mrs. Pomfret, — É uma lista dos que contribuíram para o fundo de aquisição do violino. E recitou:

 

Lawton Mowbray                 1.500

Tecumseh Fox                               2.000

Hebe Heath                          2.500

Adolph Koch                        10.000

Irene Durham Pomfret                   20.000

 

—        O que perfaz um total de trinta e seis mil dólares e, como sabem, só foi possível adquirir um Stradivarius Oksmann a um preço tão barato por um feliz acaso.

—        Não compreendo... Começou Adolph Koch.

—        Por favor, Mr. Koch, quando eu terminar... Nenhum de vocês contribuiu para este fundo. Convidei Dora porque o nome dela é mencionado na nota, e também como representante dos interesses do pai. Se, após a discussão, decidirmos vender o violino, estou certa que podemos reaver o que pagamos por ele, e devolver a quantia oferecida por cada um dos que contribuíram para a sua aquisição, os mil e quinhentos dólares serão uma grande ajuda para Dora, que é demasiado orgulhosa e tola para aceitar os favores dos amigos. Convidei Garda porque é irmã de Jan, Felix porque era o professor dele, e o Diego porque era amigo de Jan e porque foi responsável pela contribuição de Mr. Fox. Mr. Gill veio em representação de Miss Heath, que disse que não poderia estar presente, mas que parece mudou de ideias.

—        A reunião urgente que tinha com importantes...

—        Compreendo Miss Heath. De súbito, havia vinagre na voz de Mrs. Pomfret. — Há algumas coisas que gostaria de lhe dizer, mas que não posso por esta ser a minha casa. Limito-me apenas a sugerir... Seria um alívio se deixasse a sua parte nesta discussão a cargo de Mr. Gill. No entanto, antes de darmos início a qualquer discussão, devo vos pôr a par de uma surpreendente...

—        Que discussão? Quis saber Adolph Koch. — O que há para discutir? Se estiver se referindo ao violino, de que serve discuti-lo quando não sabemos onde se encontra?

—        Mas sabemos. Está aqui. Chegou esta manhã pelo correio, dirigido a mim.

 

Todos olharam para ela, exceto Tecumseh Fox. Os seus olhos se moveram de modo a abranger as reações do resto dos presentes. Constatou diferentes graus de surpresa, de interesse e de choque perante aquela notícia inesperada; e Hebe Heath, sentada do outro lado da mesa, diretamente diante dele, com a boca dramaticamente tapada pelas costas da mão, cravou os olhos arregalados de incredulidade na anfitriã.

 

—        Não! Arfou. — Quer dizer... O violino de Jan...

—        Quero dizer o que disse, cortou Mrs. Pomfret.

—        Isto é interessante, murmurou Koch.

—        Está dizendo que o violino se encontra aqui? Rugiu Diego. — Vamos vê-lo.

—        Wells, disse Mrs. Pomfret.

 

O secretário desapareceu por trás de um biombo e reapareceu com uma embalagem postal de papelão com cerca de um metro de comprimento, que colocou em cima da mesa, diante de Mrs. Pomfret. Esta abriu as bandas da caixa e enfiou uma mão no interior da mesma. Fox quase derrubou a cadeira quando saltou na direção da dona da casa.

 

—        Espere! Exclamou. — Se fosse a senhora, não o tocava.

 

Estava ao lado dela quando falou, e se anotou do brilho dos seus olhos quando o encarou.

 

—        Está se referindo a impressões digitais, disse Mrs. Pomfret, no tom de alguém a quem devam fazer a vontade. — Não há impressões digitais no violino. Pedi ao comissário da polícia que enviasse um perito... Confidencialmente, claro. Ele queria levar o violino, mas eu não deixei.

 

Gentil e cuidadosamente, ergueu a mão que tinha mergulhado no leito de papel de enchimento no interior da caixa, com os olhos cravados no que a sua mão segurava.

 

—        É um violino, afirmou Koch secamente. — Mas como sabemos que é o do Jan?

—        Esse é mais um motivo porque convidei o Felix. Felix poderia por...

 

Beck, que já se encontrava junto dela, estendeu ambas as mãos para o violino como uma mulher estenderia as mãos para um bebê. Fox recuou um passo e observou os rostos dos presentes; os outros observaram Beck.

 

—        Visto assim, parece o violino dele, disse Adolph Koch para si mesmo, ainda assim de forma audível. Era o único que não se tinha levantado da cadeira em que estava sentado.

 

Mrs. Pomfret fora a primeira a se levantar, para meter a mão dentro da caixa. Os outros esticavam os pescoços para verem, exceção feita a Perry Durham, que estava tão perto que não precisava fazê-lo, e Hebe Heath que, com o peito subindo e descendo de forma descompassada, tinha uma mão sobre a garganta como se quisesse estrangular uma ansiedade intolerável. Durante três longos minutos, Felix Beck se esqueceu deles. O seu olhar atento e perscrutador percorreu cada centímetro do belo instrumento castanho avermelhado, com a sua patina antiga que ora brilhava ora se tornava baça de acordo com o ângulo de incidência da luz à medida que lhe ia dando voltas. Em seguida, apertou-o nos braços, olhou para Mrs. Pomfret e assentiu.

 

—        Então? Perguntaram várias vozes em coro.

—        É o Stradivarius Oksmann, disse Beck. Seguiram-se alguns ruídos ao momento de completo silêncio que se fez sentir.

—        Deixe-me olhar para ele, disse Perry Durham, estendendo a mão. Mas Felix Beck continuou abraçado ao violino.

—        Afinal sempre há alguma coisa que discutir, murmurou Adolph Koch.

 

Hebe Heath caiu molemente na cadeira. Henry Pomfret fazia que sim com a cabeça como alguém que tivesse visto as suas conjecturas confirmadas. Dora Mowbray voltou a se sentar, de forma pouco firme, e Ted Gill seguiu o seu exemplo, senão mesmo os modos, e lhe disse qualquer coisa ao ouvido. Mrs. Pomfret pegou no violino pelo braço, junto às cravelhas, e devolveu-o ao ninho de papel de enchimento.

 

—        Podemos nos sentar, disse, esperando depois que todos voltassem a se sentar nos seus lugares. — Penso que todos concordam que antes de considerarmos a questão do que devemos fazer com ele, há uma ou duas coisas que precisam de ser discutidas.

—        Como, por exemplo, disse Diego Zorilla de modo determinado, — Se foi com ele que o Jan tocou na noite de segunda-feira.

—        E quem o enviou por correio, acrescentou Ted Gill. Mrs. Pomfret assentiu à última afirmação.

—        Creio que essa seria a primeira coisa a fazer, mas creio que há algo a considerar ainda antes disso. A polícia se sente inclinada a se interessar por este... Desenvolvimento. O homem que veio aqui esta manhã não queria apenas levar o violino, mas também a caixa e o papel de enchimento. A meu pedido, o Comissário Hombert instruiu-o amavelmente a não dar grande importância ao assunto. Afinal de contas, não está em causa nenhum crime... Isto é, o Jan fê-lo de sua livre vontade; se o pobre rapaz...

—        Não fez nada! Aquela exclamação feroz partira da irmã de Jan. — Não acredito! O Jan não se matou! E todos aqui sabem que não! Alguns de vocês, pelo menos!

—        É uma tola, Garda. Perry Durham lhe dirigiu um olhar furioso do outro lado da mesa. — Eu estava lá, e vi. E a Dora também estava...

—        A Dora! Gritou Garda com desprezo. — Estão ambos mentindo! Se não fossem os truques dela... A mão de Mrs. Pomfret estalou sobre o tampo da mesa.

—        Basta! Disse num tom que não admitia contestação. — Henry me avisou que causarias problemas se viesse...

—        E assim farei! Os olhos negros de Garda refulgiam e a sua voz tremia de resolução. — Você não conseguirá me calar! Só porque é a Irene Durham Pomfret! Você diz que não houve crime... Mas houve! O Jan foi morto. O meu irmão foi assassinado!

 

Perry Durham bufou de modo trocista. A mãe do jovem endireitou os ombros como quem se prepara para assumir o controle de uma situação infeliz, mas foi impedida por outra voz.

 

—        Ela tem razão. Dora Mowbray, com os dedos entrelaçados de forma selvática sobre a mesa à sua frente, movia a cabeça de um lado para o outro, como se tentasse decidir a quem dizer o que tinha para dizer. — Garda tem razão. Jan foi assassinado. Fui eu que o matei.

 

A cadeira de Garda Tusar caiu para trás quando esta se pôs de pé de um salto, mas isso foi tudo o que conseguiu, uma vez que os seus braços ficaram presos no abraço poderoso de Diego Zorilla. Os sons produzidos pelos outros foram abafados pela voz de Perry Durham que, fitando Dora com olhos que pareciam querer lhe saltar do rosto, gritou do outro lado da mesa:

 

—        Pelo amor de Deus, endoideceu?

—        Não, não endoideci, respondeu Dora, olhando para a mãe do rapaz e não para ele. A sua voz soou com dificuldade, mas, ainda assim, com determinação. — Não sabia que seria assim, mas fui eu. Deve ter sido. Quando o violino desapareceu, julguei que tivesse sido isso... Mas, agora, claro que não foi...

—        Só um instante, Miss Mowbray. Sentado à sua esquerda, Tecumseh Fox falou para o perfil da moça.

—        Está dizendo que matou Tusar? A jovem voltou a cabeça para ele.

—        Que eu...?

—        Que disparou a arma. Que puxou o gatilho.

—        Ora... Como poderia? Foi ele. Foi Jan.

—        Nesse caso, do que é que está falando? Perguntou Mrs. Pomfret, impaciente.

—        Estou dizendo, Dora encarou-a de novo, — Que acho que matei Jan. Se parecer melodramática, acreditem que não é minha intenção. E sabe Deus que não queria que ele morresse... Nem sequer queria magoá-lo... Apesar de tê-lo feito antes... Quando julguei que tinha matado o meu pai...

—        Cabra! Atirou Garda por entre os rostos de Diego e Fox. — Foi você quem começou essa mentira suja.

—        Garda! O tom de Mrs. Pomfret não era tão elevado como o de Garda, mas a sua voz prevaleceu. — Vai parar com isso já! Ou se comporta, ou terei que pedir que saia, e qualquer homem presente teria todo o prazer em arrastá-la daqui para fora se chegarmos a esse ponto. Isto é uma vergonha!

—        Quer que eu...? Perguntou Diego.

—        Não. Sentem-na na cadeira dela... E então, Dora?

—        Não a censuro, disse Dora. Respirou fundo antes de continuar. — Não que eu seja uma cabra, ou que tenha começado qualquer mentira. Nunca disse a ninguém que achava que Jan tivesse matado o meu pai, mas pensei que sim durante algum tempo. Eu era... Alguns de vocês sabem como eu era... Eu adorava o meu pai... E nunca gostei do Jan da forma que ele achava que devia. E pensei em magoá-lo da única maneira que podia. A moça fez uma nova pausa para respirar fundo. — É uma maldade pensar nisso, eu sei que sim, mas tendo o meu pai morrido daquela maneira... A senhora mesmo disse, Mrs. Pomfret, eu fiquei fora de mim. Pensei em trabalhar de novo com o Jan, em realizar o grande concerto com ele e, em seguida, desgraçá-lo... Sem que mais ninguém soubesse além do Jan, claro. Podia tê-lo feito. Julguei que seria capaz, mas depois de termos ensaiado algumas vezes descobri que não conseguiria... Quero com isso dizer que seria incapaz de me obrigar a fazê-lo... E, de qualquer maneira, já não tinha tanta certeza de ter razão quanto à forma como o meu pai morrera. Acho que era a minha cabeça tentando voltar ao normal.

—        Isso foi tudo, menos uma boa ideia, minha pequena Dora, grunhiu Diego.

—        Eu sei Diego. Mas não demorei a pô-la de parte. De qualquer modo, julgava que sim... Não, tinha a certeza. E Jan insistia para que eu trabalhasse com ele. E chegamos àquela noite, e claro que notei que algo estava errado assim que ele tocou os primeiros acordes, e receei que a culpa fosse minha, que, inconscientemente, estivesse fazendo aquilo que em tempos tinha planejado fazer. Quis chamá-lo, me levantar e correr dali para fora, fazer alguma coisa, qualquer coisa, mas não fui capaz. Nunca me esforcei tanto, acreditem! Oh, não acreditam em mim? Nunca me esforcei tanto... E os meus dedos estavam tão rígidos como os do meu pai, e saiu tudo mal... Foi horrível, horrível...

—        Que disparate, cortou Felix Beck bruscamente. — Não aconteceu nada de errado com o piano. Não concorda Diego?

—        Não ouvi o piano. Mas teria notado se houvesse algo muito errado.

—        Mas houve, insistiu Dora, desconsolada. — Teve de haver! Para levar Jan a sufocar o violino, para matar o som daquela maneira? Eu sabia que devia ter sido eu, e quando o vi... Quando... Quando vi...

—        Bolas! Exclamou Mrs. Pomfret de forma enérgica. Fox lhe dirigiu um olhar espantado; os outros, habituados à sua expressão de impaciência favorita, se limitaram a olhar para ela de relance. — Dora, minha querida, continuou a dona da casa, — O seu sentimento de culpa é uma coisa fantástica. Garda, as suas suspeitas não passam de perfeitos disparates de extremo mau gosto, pelo que seria desejável que parasse de fazer figuras ridículas. Temos uma decisão séria para tomar.

 

Com a reunião de novo controlada, Mrs. Pomfret se permitiu um instante para aclarar a garganta.

 

—        Como eu dizia, prosseguiu, — A polícia está consciente de que não foi cometido qualquer crime, exceto, talvez, um roubo. E uma vez que o violino foi devolvido intacto não vão investigar a menos que isso seja pedido. Por isso cabe a nós decidir o que fazer. Podemos fazer o que entendermos com o violino e não tocarmos mais no assunto, ou... Garda fique calada!... Ou podemos decidir que se realize uma investigação de forma a responder às questões colocadas por Diego e por Mr. Gill que, é claro, nós todos também colocamos. Sou da opinião que, apesar de todos os aborrecimentos que daí possa resultar, devemos uma investigação a Jan, a nós próprios e à música. Apertou os lábios e depois acrescentou: — Pessoalmente, acho que me é devida uma investigação para descobrir o canalha impertinente que me enviou o embrulho.

—        Uma investigação conduzida por quem? Perguntou Koch, franzindo o sobrolho.

—        Pela polícia, respondeu Garda Tusar enfaticamente.

—        Oh, não! Disse Dora Mowbray antes de tapar a boca com a mão.

—        Parece, começou Hebe Heath, — Que seria terrivelmente revoltante...

 

Um olhar duro e dominante de Ted Gill obrigou-a a se calar. Mas antes que alguém tivesse a oportunidade de dizer mais alguma, a atriz insistiu:

 

—        Mas, Ted, eu tenho a certeza de que Mr. Koch concordaria, porque ainda ontem ele disse... Lembra-se Dolphie, quando lhe perguntei por que é que ninguém...

—        Hebe! Era Ted Gill. — Nós estamos fora deste assunto.

—        Muito bem, Ted, respondeu Hebe com ares de dignidade ofendida.

—        Creio, disse Koch de modo suave e composto, mas com um rubor que denunciava o contrário nas bochechas gordas. — Que isso depende inteiramente de quem fizer a investigação.

—        Sou da mesma opinião, concordou Mrs. Pomfret. — Felizmente um de vocês, um dos atuais donos do violino, é um investigador treinado e hábil. Mr. Fox o senhor gostaria de realizar a investigação?

—        Ele? Escarneceu Garda de forma explosiva. — Um de vocês? Ignorando-a, Mrs. Pomfret observou o que lhe pareceu ser a expressão relutante de Fox.

—        Claro que não espero que o faça sem ser pago para tal, acrescentou. — Eu própria lhe pagarei. Fox abanou a cabeça.

—        Não haverá qualquer conta a pagar. Olhou em volta. — Se não houver qualquer objeção por parte dos donos do violino... Miss Mowbray? Dora encarou-o e assentiu. — Quer que descubra o que aconteceu?

—        Quero... Com certeza.

—        Mr. Koch?

—        Com certeza que sim. É uma excelente ideia. O meu conhecimento da sua reputação é algo vago...

—        Eu pago os meus impostos. Miss Heath?

—        Oh, sim! A atriz empregou um tom entusiástico na resposta e os seus olhos magníficos pareceram se derreter com o olhar de Fox. — Por favor!

—        Muito bem. Fox se voltou para Mrs. Pomfret. — É evidente que compreendem que tudo o que descobrir será reportado a todos. Sinto, como a senhora disse quando nos convidou para vir aqui hoje, que devemos a nossa consideração a Miss Tusar, a Mr. Beck e ao Diego. Assim como ao seu esposo e ao seu filho, naturalmente.

—        Obrigado! Disse Perry Durham com exagerada expressão de gratidão. — Cheguei a recear que fosse me deixar de fora. Quando e como começamos?

 

Fox já se levantara. Dirigiu-se para a cabeceira da mesa, se colocou entre Mrs. Pomfret e o secretário desta, e reclamou a posse do embrulho lhe colocando a mão em cima.

 

—        Guardou o papel de embrulho onde estava escrito o endereço? Perguntou. — E o barbante?

—        Wells, disse Mrs. Pomfret.

 

O secretário desapareceu atrás do biombo e, passado um instante, reapareceu e entregou a Fox uma espessa folha de papel pardo e um bonito pedaço de barbante. Fox guardou o barbante no bolso e perguntou:

 

—        Foi entregue esta manhã? Wells fez que sim com a cabeça.

—        Por volta das nove horas, esclareceu.

—        Quem abriu o embrulho?

—        Eu. Sou eu que abro todos os embrulhos. Quando vi o que tinha dentro, informei imediatamente Mrs. Pomfret. Como é evidente, não somos peritos, mas ambos calculamos que se tratava do Stradivarius. Ela mandou que o fechasse no escritório e telefonou ao comissário de polícia.

—        E ele mandou um homem para procurar impressões digitais, sem que este tivesse encontrado fosse o que fosse.

—        Correto. Ele disse que não havia impressões digitais em lado algum, exceto na parte exterior do papel de embrulho. E eram minhas e de Mrs. Pomfret.

—        Bem, lá se vai uma possibilidade. Fox pegou na caixa e colocou-a debaixo do braço. — Gostaria de saber se há alguma sala para onde possa levar o violino para um exame prévio.

—        Deixamo-lo aqui com ele. Mrs. Pomfret se levantou. — Penso que todos gostariam de tomar uma bebida. Sei que eu gostaria. Deu alguns passos e chamou: — Garda eu quero falar consigo. Henry, por favor... Henry! Miss Heath é capaz de se levantar sozinha. Por favor, diga ao Stevens...

 

Afastaram-se das cadeiras onde estavam sentados e deram início a um êxodo generalizado. Depois de o deixarem a sós, Fox se dedicou a examinar a prova que tinha diante de si sem evidenciar qualquer dilatação das narinas ou outra reação perceptível comum a um investigador empenhado. Quem o visse, seria capaz de suspeitar que metade da sua mente estivesse ocupada com outra coisa. Não porque tivesse se descuidado fosse do que fosse; inspecionou o violino, o rolo de barbante e todos os lados da caixa com grande cuidado e, em seguida, removeu um por um os pedaços de papel que tinham sido utilizados para embrulhar o instrumento. Aparentemente, não se verificou qualquer revelação, uma vez que os seus olhos não brilharam com a luz da descoberta, mas isso não impediu um fulgor de interesse quando desdobrou a folha de papel de embrulho e se inclinou para ler melhor o endereço nele impresso à tinta.

 

—        Pode ser que isto ajude a simplificar as coisas, murmurou ao mesmo tempo em que se endireitava.

 

Depois de tomar nota do carimbo dos correios, do posto de Columbus Circle, tornou a dobrar o papel, encheu de novo a caixa e, depois de colocar as abas da mesma na posição devida, ficou olhando para cada uma das cadeiras vazias enquanto tamborilava com os dedos no tampo da mesa, como se quisesse submeter os seus anteriores ocupantes a um prolongado cálculo e escrutínio. A porta se abriu para dar entrada a Perry Durham. Olhou para a caixa fechada e para Fox com ar de surpresa.

 

—        Então? Ainda não começou a investigação?

—        Claro que sim; e já terminei. Trabalho depressa.

—        Quem é que enviou a encomenda? Eu?

—        Isso mesmo. O barbante tem o cheiro do seu perfume.

—        Ora bolas! Nós, criminosos, nos esquecemos sempre de alguma coisa, não é verdade? O jovem caminhou até à extremidade da mesa onde Fox se encontrava. — A mãe quer falar consigo, ou talvez seja a Garda; seja como for, a mãe o chama. Está na sala amarela, do outro lado da sala de recepção. Pediu-me que guarde isto enquanto estiver ausente, mas se tiver alguma objeção pode...

—        Uma vez que foi a sua mãe que o mandou, eu corro o risco. É nessa sala que estão servindo as bebidas?

—        Sim, mas não se anime. Vai precisar de toda a capacidade do seu cérebro...

 

Fox se dirigiu para a porta, que abriu antes de sair para o corredor e, já fora da sala, fechou-a atrás de si. A entrada para a sala de recepção ficava a vinte passos ao longo do corredor, e Fox deu dez passos bruscos, pisando com força o tapete espesso e, em seguida, súbita e abruptamente, deu meia volta e voltou em bicos de pés até a porta que tinha acabado de fechar, junto da qual se ajoelhou de forma a poder espiar pela fechadura. Um olhar foi o suficiente; num único impulso, abriu a porta de par em par e ficou de pé no limiar da mesma. As abas da caixa estavam abertas, o papel de enchimento estava espalhado por cima da mesa e Perry Durham, com uma expressão mista de raiva e espanto no rosto, se encontrava ao pé do biombo com o violino nas mãos.

 

—        Maldito seja, disse Perry entre dentes.

—        E você?

 

Fox avançou sem pressa. Quando chegou à cabeceira mais distante da mesa, logo perto de Perry, o jovem recuou um passo, segurando o violino com firmeza, o corpo tenso em sinal de resistência, o rosto pálido e desafiador.

 

—        Descontraia-se, disse Fox secamente. Me entregue o violino. Perry recuou outro passo.

—        Ouça…

—        Sou surdo. Talvez ouça o que tem para dizer quando o violino estiver de volta onde pertence.

 

Era evidente que Perry não tinha qualquer intenção de devolver o instrumento ao local a que pertencia. Estava disposto a lutar. Podia se ler na expressão dos seus olhos, uma expressão que durou dez segundos, o tempo que o rapaz enfrentou o olhar firme e imperturbável de Fox. Depois cedeu...

 

—        Não podemos lutar, disse o rapaz. — Podíamos danificá-lo. O senhor não ia querer danificar um violino como este.

—        Estou disposto a correr o risco, se tentar sair daqui. Posso ficar aqui o tempo que quiser.

Os dois pares de olhos chocaram de novo e, de súbito, Perry estendeu o violino e Fox pegou nele.

—        Muito bem, disse Fox. — Já consigo ouvir melhor e se quiser fazer o favor de explicar... Perry soltou uma gargalhada curta e desagradável.

—        E que tal se fosse para o inferno? Se ao menos isto não tivesse acontecido aqui se ao menos... Encolheu os ombros. — Vou afogar as mágoas no Bourbon. Saiu apressadamente da sala, desaparecendo de vista sem se dar ao trabalho de fechar a porta atrás de si.

 

Fox colocou o violino de novo no lugar, tendo o cuidado de colocar o papel de enchimento por cima do mesmo e fechou de novo a caixa, que meteu debaixo do braço antes de sair da sala para atravessar a recepção, onde um homem lhe indicou o caminho para a sala amarela; aí reencontrou a anfitriã e os restantes convidados. Um simples olhar foi suficiente para ver que estavam todos ali, exceto Hebe Heath e Ted Gill, em conversas mais ou menos animadas. Dirigiu-se ao local onde se encontravam Mrs. Pomfret e Garda Tusar.

 

—        Desculpe. Deseja falar comigo?

—        Eu? A dona da casa pareceu não perceber ao que se referia. — Oh, o meu filho sugeriu... Estávamos tentando convencer Garda a ser razoável... E ele pensou que o senhor podia ser mais eficaz que nós...

—        Terei todo o prazer em tentar, mas não agora. Desviando o olhar para enfrentar os olhos negros de Garda e não viu neles grande promessa de razoabilidade, apesar de não lhes faltarem outros atributos que podiam ser admirados e correspondidos por qualquer pessoa com inclinação para tal.

—        Quer que o Wells o guarde de novo? Perguntou Mrs. Pomfret depois de reparar na caixa que Fox tinha debaixo do braço.

—        Não, obrigado.

 

Fox se voltou. As conversas tinham cessado e a sua pessoa era o alvo dos olhares de todos os presentes. Wells e Felix Beck se encontravam num dos cantos da sala, Henry Pomfret e Dora estavam sentados num sofá próximo, e Diego e Adolph Koch estavam de pé no meio da sala. Encostado a uma janela, com um copo de bebida na mão, Perry Durham retribuiu o olhar de Fox com frieza.

 

—        Vou-me embora, anunciou Fox, — E levo o violino comigo. Tomarei boa conta dele. Assim que tiver alguma coisa digna de ser comunicada, estejam certos que o farei. Se precisar falar com alguém em particular, o que é provável que aconteça, entrarei em contato com a pessoa em causa por intermédio de Wells. Preparou-se para sair.

—        Tem o violino aí dentro? Perguntou Koch.

—        Tenho.

—        Não acha que estaria mais seguro...

—        Acho, disse Fox da porta, — Que estará mais seguro comigo do que... Noutro lado qualquer.

 

—        Entendeu-me mal, disse Ted Gill com seriedade.

—        A sério que sim. Eu não me tenho em conta de um valentão.

 

Estava sentado num banco em estilo Império de pernas esculpidas, com as costas voltadas para um piano de cauda próprio para concerto. Era sábado à tarde. O piano ocupava uma boa quarta parte do espaço de um apartamento único e sem elevador, no terceiro andar de um edifício de tijolo dos Sixties, no lado oriental da Avenida Lexington. A mobília restante parecia igualmente deslocada. Mas quando, após o falecimento do pai viúvo, uma moça descobre que tudo o que possui neste mundo é o recheio do seu próprio quarto do rico apartamento do progenitor na Rua 57, que mais ela pode fazer? Quanto ao piano, constituía uma necessidade para Dora Mowbray, uma vez que lhe seria impossível sobreviver sem o mesmo para dar aulas a rapazes e moças. Sentada numa cadeira aonde Caruso em tempos idos se sentara com ela ao colo, quando era apenas um bebê de três meses, Dora corou, o que não lhe retirou a mínima graciosidade. Tal como o breve franzir de sobrolho com que pretendeu conferir ao seu olhar a mesma seriedade do jovem com quem conversava.

 

—        Claro que é, disse em tom alegre. — Não é que eu não admire uma boa demonstração de bravura, mas você exagera. Porque é que não carrega um badalo? O rubor se espalhou pelo rosto da jovem. — Por favor, não olhe assim para mim!

—        Não estou olhando para si, estou apenas contemplando-a. Já sentado à beira do banco, Ted se aproximou mais uma polegada. — Ouça, posso perfeitamente lhe confessar uma coisa. Foi um absurdo tentar enganá-la. Eu queria vir... Precisava vê-la... E não podia... O rapaz mal conseguia articular a palavra. — Raios partam, resmungou desgostoso, — Quando falo com você nem sequer consigo conjugar uma frase com sujeito e predicado! Pode pensar que se quisesse vê-la tudo o que tinha de fazer era lhe telefonar e dizer que queria vê-la!

—        Sim, pois era, concordou Dora. — Porque é que não o fez?

—        Porque tinha receio de que não me deixasse vir! Você não só tem um efeito engraçado na minha gramática, como ainda me transformou num covarde! Oh, não, eu tinha de pensar numa desculpa elaborada! O que seria compreensível se eu quisesse vir até aqui apenas porque gosto de olhar para si, de ouvi-la, de estar perto de si... De repente, o rapaz ficou ainda mais vermelho que Dora. Sentou-se mais para trás e disse em tom resoluto: — Mas tinha de vê-la porque precisava lhe dizer uma coisa. Fui eu que mandei o violino a Mrs. Pomfret. Dora ficou boquiaberta. — Fui eu, repetiu Ted com firmeza. — Embrulhei, enderecei e enviei.

—        Santo Deus, disse Dora em voz tênue.

—        Quase confessei o fato ontem à tarde, em casa de Mrs. Pomfret, mas decidi não o fazer. Porque duvido que sirva de alguma coisa que qualquer deles saiba; mas é isso mesmo que quero lhe perguntar. Farei o que me disser para fazer. Se achar que devo lhes dizer, eu digo.

—        Mas eu não compreendo. O rubor tinha desaparecido das faces de Dora, sendo substituído por uma palidez evidente. — Se aquele é o violino do Jan, então foi você que o levou...

—        Não fui não. Mas noto agora que também tenho de lhe contar. Pensei que talvez...

—        Não tem que me contar seja o que for. O lábio inferior de Dora começou a tremer e a moça prendeu-o entre os dentes.

—        Acha que não? Ted começou a se levantar, mas deixou-se cair de novo sobre o banco, parecendo não saber o que fazer. — Por tudo o que é mais sagrado, não fique assim. Foi como a vi pela primeira vez na noite daquela segunda-feira... Não sei brava e bela... Assim. Eu me julgava um adulto, pelo menos assim devia ser, já que tenho trinta anos, mas não sei, quando olho para si... Ouça, eu vim aqui para lhe contar algo espacífico... Quero dizer, algo específico... Ouviu-se uma campainha. Ted se calou. — Era uma campainha de porta, disse o jovem ao final.

—        Sim, corroborou Dora. — Era a minha campainha. A moça não se mexeu. — Não sei quem possa ser...

—        Quem for há de ir embora. O tom de Ted era implorante. — Porque é que não deixamos que quem quer que seja vá embora? A campainha tocou de novo.

—        Oh! Esqueci! Dora pôs-se de pé de um salto. — Mr. Fox! Ele me telefonou, para dizer que precisava falar consigo e que não conseguia encontrá-lo. Perguntou-me se sabia por onde andava... E eu lhe disse que viria hoje... E ele me perguntou se podia passar por aqui e eu disse que sim...

—        Aquela ave, disse Ted sombriamente. Olhou para a moça, implorante. — Ele pode ir embora, como qualquer outra pessoa. Dora abanou a cabeça.

—        Não posso fazer isso. Ele foi amável comigo. Dirigiu-se para um botão na parede. — De qualquer maneira, ele sabe que estamos... Que estou aqui...

—        Espere um pouco. Ted se aproximou dela e encarou-a de perto. — Escute. Engoliu em seco. — O que lhe disse acerca do violino... Não estou certo que eles precisem saber. Seria, hum, embaraçoso. Pode fazer o favor de não dizer nada a Fox? Por favor?

 

A campainha tocou novamente. O olhar interrogador de Dora encontrou o suplicante de Ted.

 

—        Por favor, ele pediu. — Vim aqui para lhe contar e pretendo fazê-lo; depois, farei tudo o que achar que devo fazer.

 

Dora concordou algo incerta, e se afastou dele para apertar o botão que abria a porta do corredor. Não demorou a ouvir a voz de Ted atrás de si:

 

—        É verdade, é mesmo ele. Só ele subiria as escadas assim. Santo Deus, como é ágil.

 

Dora não sabia que era à forma como apertara a mão a Tecumseh Fox no primeiro encontro dos dois, no dia anterior, em casa de Mrs. Pomfret, que devia o fato de este ter sido amável com ela, pelo que era impossível haver algum artifício na forma como repetiu o cumprimento. A oferta impulsiva e amigável da sua mão cessou abruptamente a meio caminho, como se não tivesse a certeza de que o detetive era bem-vindo. Fox, já preparado para algo do gênero, estendeu a mão a tempo de apanhar a da moça. Ted Gill, que se tinha retirado para o interior da casa, não se tornou visível senão quando os outros dois entraram; retribuiu a saudação com um grunhido pouco civilizado, observou com expressão sombria como este tirava o chapéu e o casaco e, quando Dora fez o mesmo, se sentou com firmeza no banco do piano. Falou com a pressa de quem queria se ver livre de alguma coisa.

 

—        Miss Mowbray diz que lhe telefonou, dizendo que andava à minha procura. Posso ajudá-lo em alguma coisa?

—        Sim, se não se importar. Fox retirou alguns papéis do bolso, procurou entre eles e retirou um, que desdobrou e leu. — Achei que podia lhe poupar o tempo de escrever, se tivesse isto preparado para você assinar quando o visse. Estendeu-lhe o papel e Ted pegou nele.

 

Dora e Fox observaram-no enquanto lia. Ergueu as sobrancelhas assim que olhou pela primeira vez para o papel, sobrancelhas essas que não tardou a franzir de espanto. Entreabriu os lábios, mas fechou-os de imediato. Acabou por olhar para Fox, absolutamente estupefato, e em seguida entregou o papel a Dora.

 

—        Leia isso, por favor, pediu lamentosamente.

 

A jovem ergueu o olhar para ele, depois para Fox, e acabou por olhar para o papel, que dizia:

 

Eu, Theodore Gill, declaro e afirmo:

Que na tarde de quinta-feira, 7 de Março de 1940, Hebe Heath admitiu perante mim que, na noite da segunda-feira anterior, tinha tirado o violino de Jan Tusar dos camarins deste no Carnegie Hall, tendo-o levado para os seus aposentos no Hotel Churchill, acrescentando que o violino se encontrava ainda em sua posse. Também me disse que o tinha trancado na arca, onde guarda as suas roupas desde a noite de segunda-feira até ao momento daquela conversa; Que a aconselhei a devolver de imediato o violino aos seus proprietários (um grupo de cinco pessoas do qual ela faz parte). Que ela pediu a minha ajuda. Que procurei uma caixa, papel de embrulho, papel de enchimento e barbante, embrulhei o violino, enderecei o embrulho a Mrs. Irene Durham Pomfret, e o coloquei no correio. Que o violino que Miss Heath retirou da sua arca, na minha presença, é o violino que enviei para Mrs. Pomfret, e que tenho a firme convicção de que se trata do mesmo que tirou dos camarins de Tusar na noite de segunda-feira.

 

—        Compreendo, disse Dora. Parecia haver uma nota de tensão na sua voz. — Naturalmente, deseja proteger Miss Heath...

—        Nada feito, interrompeu Ted de forma incisiva. — Oh, não. As coisas já estão ruins como estão, e quanto a isso não há qualquer mal-entendido. Naturalmente, gostaria de estrangular Miss Heath, mas um agente publicitário capaz de ceder aos seus impulsos naturais não demoraria cinco minutos a ser preso. Um dos meus colegas de Hollywood... Encolheu os ombros e se voltou para Fox. — Você parece ser realmente estupendo. Como é que consegue? Fox brindou-o com um sorriso.

—        Vai assinar? Perguntou.

—        Assino se me disser como conseguiu descobrir.

—        Não se tratou de nada demasiado complicado. Ainda menos estupendo. Miss Heath partiu sozinha e às pressas naquela noite, e usava um casaco que podia facilmente esconder o violino. Segundo, nunca vi nada mais absurdamente teatral que a atuação dela, ontem, quando Mrs. Pomfret anunciou que tinha recebido o violino pelo correio, as costas da mão tapando a boca, e os olhos quase a saltarem das órbitas enquanto ela arfava. A mais pura essência do fingimento. Terceiro, a palavra IRENE no destinatário do embrulho. Você começou a desenhar um B e emendou-o para um N. É possível que estivesse pensando em Hebe.

—        Estava, de fato, pensando nela, admitiu Ted de modo sombrio.

—        Não duvido. Claro que isso não era conclusivo, mas era o suficiente para me levar a fazer um telefonema a Miss Heath e passar uma hora na sua companhia... Devo dizer que foi uma das horas mais singulares de toda a minha experiência. É possível que saiba me esclarecer. Qual das duas é ela? Uma mulher mais sutil que uma serpente, ou uma mulher algo destituída de miolos?

—        Eu posso esclarecê-lo, respondeu Ted com toda a ênfase do mundo.

—        Por favor, faça-o.

—        Isto fica entre nós os dois e Miss Mowbray.

—        Com certeza.

—        Muito bem. É difícil encontrar palavras para defini-la. Ela é estúpida para além de todas as manifestações conhecidas de estupidez. Para além do mais selvático sonho de estupidificação. Burra o suficiente para chupar o palito em vez do sorvete. Burra o suficiente para pegar no violino e fugir com ele sem qualquer outro motivo além do fato de ter dedos para pegar nele e um casaco de arminho para escondê-lo. Fox tinha uma expressão carregada ao falar.

—        Isso custa um bocadinho a crer, disse. — Essa última parte. Eu sou um pouco parcial no que toca a motivos.

—        O senhor passou somente uma hora na companhia dela, protestou Ted. — Qual é a origem de todos os motivos? O coração. Muito bem, vamos admitir que ela tenha um. O que é necessário para que um motivo tenha como resultado uma ação? A transferência por meio de um centro nervoso a que é dado o nome de cérebro. Que tal?

—        É possível, condescendeu Fox, ainda que não de todo convencido. — De qualquer maneira, podemos ficar assim por agora. Pode me entregar o papel, Miss Mowbray? Obrigado. Pegou na caneta que tinha no bolso e ofereceu ambos a Ted. O jovem estendeu a folha de papel sobre o piano e assinou por baixo da declaração, de forma tão ilegível quanto possível; soprou para secar a tinta e entregou o documento a Fox. — Muito agradecido. Fox guardou o papel no bolso. — Mais uma coisinha. Importa-se de me dizer o que o senhor e Miss Heath estavam fazendo nos camarins de Tusar na segunda-feira à noite? Quero dizer, antes do concerto.

—        Porque é que não perguntou a ela?

—        Eu perguntei. Ela disse qualquer coisa a respeito da música ser sublime. A pronúncia dela...

—        Eu conheço a pronúncia dela. Fomos pedir a Tusar que tirasse uma fotografia com Miss Heath, com ela segurando no violino, mas ele recusou. Miss Heath começou a se exaltar e Tusar abandonou os camarins. Fox assentiu.

—        Eu vi, disse. Voltou-se para Dora. — Posso lhe perguntar Miss Mowbray, se Tusar ensaiou consigo na segunda-feira à tarde? Dora abanou a cabeça.

—        À tarde não. Estive no estúdio dele da parte da manhã, onde ensaiámos três vezes a peça de Saint-Saens, mas não as outras. Vim embora quando passava um pouco do meio-dia e não voltei a vê-lo senão à noite, no teatro.

—        Porque é que ensaiaram três vezes? Não soava bem?

—        Eu achei que sim, mas o Jan não parecia satisfeito, especialmente com a parte do animate após a introdução e com os últimos oito compassos antes do início do allegro. Ele disse que estava tocando depressa de mais...

—        Mas não havia problemas com o violino? Com o tom? Não soava como naquela noite?

—        Santo Deus, não. À noite foi terrível. Foi terrível desde o início... Mas o senhor ouviu...

—        Sim, eu ouvi. Fox se levantou e pegou no casaco. — Vou andando. Muito obrigado. Dora avançou para abrir a porta.

—        Era o violino do Jan, e não havia problema... E é tudo.

—        Tudo, não, Miss Mowbray. Fox enfiou o braço livre na manga do casaco. — Eu já respondi às perguntas que me colocaram, mas me surgiu uma outra, e receio que seja bem mais desagradável que as primeiras.

—        Mais desagradável? A moça vacilou.

—        Sim. Vai receber um telefonema de Mrs. Pomfret, a lhe pedir que vá até a casa dela amanhã, às duas da tarde. Você também, Gill. Entretanto, podem começar a pensar se levar um homem ao suicídio não pode se considerar um homicídio. É uma pergunta interessante.

 

A tendência do animal homem para seguir um padrão, por mais recente que este possa ser, ficou ilustrada no domingo à tarde, na biblioteca de Mrs. Pomfret. As doze pessoas presentes tinham se reunido e sentado àquela mesma mesa apenas uma vez, mas, quando percorreu com o olhar as filas de lugares de ambos os lados da mesa, Mrs. Pomfret reparou que todos ocupavam as mesmas cadeiras em que tinham se sentado na reunião anterior. Adolph Koch estava sentado à sua esquerda, em seguida Ted Gill, Dora Mowbray, Tecumseh Fox, Diego Zorilla e Garda Tusar; à sua direita estava Wells, em seguida o seu marido e filho, Hebe Heath e Felix Beck. A reunião tinha começado um pouco mais tarde que o previsto, uma vez que Fox não conseguira chegar antes das duas e quinze. O que devia ter sido intencional, uma vez que tinha o hábito de chegar no horário. Depois de olhar para todos com olhar régio, Mrs. Pomfret anunciou que Mr. Fox tinha um relatório a apresentar e fez sinal a este para que começasse. Fox tirou um papel do bolso e disse:

 

—        Esta é uma declaração assinada ontem por Mr. Theodore Gill. E leu-a em voz alta.

 

As reações foram variadas e, em dois casos, espetaculares. Perry Durham explodiu numa sonora gargalhada e Hebe Heath, depois de olhar altivamente para Fox enquanto este lia o documento, cobriu o rosto com as duas belas mãos e gemeu. Ted Gill lhe lançou um olhar furioso do outro lado da mesa, e os olhos de Garda pareciam punhais incandescentes; sentado à esquerda da atriz, Henry Pomfret se moveu de forma a aumentar a distância que separava os dois.

 

—        Claro que só podia ser coisa de mulher, murmurou um atônito Diego Zorilla, — Mas logo desta? Afinal o que aconteceu? Perguntou se dirigindo a Fox. — Tinha o diabo no corpo?

—        Você! Explodiu Felix Beck assim que conseguiu recuperar a fala. — Eu o avisei! Avisei várias vezes Jan a seu respeito...

—        Isto é uma bobagem, cortou Adolph Koch. — Para começar, gostaria de saber por que motivo Mr. Gill assinou tão extraordinário...

—        Não é bobagem nenhuma! Interrompeu Garda.

—        Ela é Nazi!

—        Santo Deus, murmurou Ted Gill, estupefato.

—        Você, Garda, respondeu Koch em tom cáustico, — É uma imbecil.

—        Eu é que sou imbecil? O tom de Garda era ao mesmo tempo amargo, sarcástico e triunfante. — Acha que não passo de uma imbecil, não é assim? Foi você que o disse. Abriu a bolsa com um gesto brusco, vasculhou o interior da mesma com dedos apressados e retirou um envelope. — Recebi isto hoje. Leia e me diga o que pensa agora.

 

Diego, que se encontrava perto dela, estendeu a mão para pegar no envelope, mas ela desviou a mão e ofereceu-o a Fox. Fox pegou no envelope, olhou para o endereço e para o carimbo dos correios e retirou de lá de dentro um pedaço de papel que examinou de ambos os lados.

 

—        Não apresenta cumprimentos, disse. — Foi escrito à mão, com caneta de tinta permanente... A propósito, não foi escrito pela mesma mão que escreveu no embrulho enviado a Mrs. Pomfret. Eis o que diz:

 

Quem tentar prejudicar o Reich sofrerá o que o seu irmão sofreu. Heil Hitler!

 

—        Há uma suástica por baixo da assinatura. Diz que recebeu isto hoje, Miss Tusar?

—        Sim. Esta manhã, em correio especial.

—        Eu reparei que se trata de correio especial. Posso guardá-lo?

—        Vou entregá-lo à polícia.

—        Claro, como queira. Mas gostaria de discutir isso consigo mais tarde...

—        Discuta agora, disse Koch de modo grosseiro.

—        É ridículo. A ideia de Miss Heath ser nazista... O que diz a isto, Mr. Gill?

—        Nada. Estou petrificado.

—        É absurdo. E a suástica não prova que os nazis sejam os responsáveis pela morte de Jan; podem estar simplesmente a se aproveitar de um infortúnio com o qual não tiveram nada a ver.

—        Seja como for, se intrometeu Mrs. Pomfret, — Uma vez que Garda insiste em entregar o envelope à polícia, não há nada que possamos fazer. Mas julgo que a declaração assinada por Mr. Gill nos dá direito a pedir uma explicação a Miss Heath. Com que propósito ela retirou o violino dos camarins e o manteve escondido durante dois dias? Ted Gill grunhiu.

—        Isso pode esperar, disse Fox. — Qualquer um de vocês pode fazer essa pergunta a Miss Heath, mais tarde, se achar que vale a pena. Mr. Gill é de opinião que, ao ver o violino ali exposto, ela cedeu a um impulso irracional e irresistível.

—        Não acredito, disse Mrs. Pomfret num tom destituído de emoção.

—        Muito bem, permitam que dê uma sugestão que pode resolver dois mistérios de uma vez, sugeriu Perry Durham. — Duvido que ela seja nazista. Mas, e se for cleptomaníaca? Dirigiu um sorriso trocista ao padrasto. — Ela estava presente no dia em que roubaram o seu vaso Wan Li, não estava? Aposto que foi ela que o levou, talvez para começar uma coleção própria. Depois roubou o violino para começar outra coleção...

—        A senhora aprova o tipo de humor do seu filho? Perguntou Koch em tom ácido a Mrs. Pomfret. A dona da casa enfrentou o olhar do outro e respondeu:

—        Não encaro o que ele disse como humor, Mr. Koch. Apesar de poder ser essa a intenção do meu filho. Tive a mesma ideia, muito a sério. Deve se lembrar de que, quando o vaso desapareceu, o senhor mesmo disse, ainda que de brincadeira, que devia tê-lo roubado porque era o único entre os presentes capaz de apreciar o seu valor e beleza. No entanto, o meu marido e eu suspeitamos imediatamente de Miss Heath, apesar de termos mantido natural silêncio, uma vez que não havia provas. Agora, ao menos, podemos dizer o que pensamos? Não concorda Henry?

—        Calculo que sim. Pomfret parecia pouco à vontade. — Se ao menos servisse de alguma coisa. Se ao menos recuperássemos o vaso...

—        Pode ser que cheguemos a tal resultado. O olhar cortante de Mrs. Pomfret se cravou em Fox. — Pode fazer o favor de nos dizer como chegou à conclusão de que Miss Heath tinha roubado o violino?

—        Não, respondeu Fox de modo brusco. — Não agora, pelo menos, porque tenho algo mais importante para dizer. Nós investigamos o que aconteceu ao violino depois de Tusar o utilizar, na noite de segunda-feira. Mas a pergunta que se coloca é: o que aconteceu antes dele usá-lo? A sua voz tinha um tom diferente, um alerta mordaz que fez com que todos os olhos se cravassem nele. — Ou, se quiserem, continuou, — Quem o fez? Porque eu sei o que aconteceu. A dada altura, entre meio-dia e oito da noite, alguém colocou uma grande quantidade de verniz por um dos ff que permitem a saída de som e abanou o violino para espalhar esse mesmo verniz sobre a parte interior das costas. Ouviram-se exclamações de incredulidade e espanto.

—        Deus todo poderoso, disse Felix Beck. — Mas isso... Ninguém... Calou-se, atônito.

—        Descobri isso quando fiz incidir a luz de uma pequena lanterna através de um dos f. Só consegui ver uma parte do interior, pelo que não sei se o verniz se espalhou por todo o interior do violino, mas é provável que sim. Raspei um pouco com uma vareta de madeira e verifiquei que não secou ainda completamente, o que indica que foi lá posto há pouco tempo. Consultei um perito...

—        Onde está? Perguntou Koch.

—        Como disse, no interior...

—        Não, eu estou a me referindo ao violino. Onde está o violino?

—        No meu cofre, no banco. Dou-lhe a minha palavra que o verniz está lá. E o perito me disse que o violino pode estar arruinado para sempre. Pode ser aberto e o verniz removido, mas é possível que tenha se entranhado o suficiente nas fibras da madeira para alterar o tom, mesmo que se proceda a tal limpeza. Também me disse que uma camada espessa de verniz no interior das costas ou do bojo é capaz de destruir a ressonância e o brilho de um violino de qualidade, e que qualquer pessoa familiarizada com instrumentos musicais perceberia isso.

 

Olhou em volta, detendo o olhar penetrante um pouco em cada rosto. Quando olhou para Hebe Heath, a atriz achou que era altura de contribuir com uma cena ridícula que, em circunstâncias mais favoráveis, podia ter arrebatado o público presente; colocou as mãos sobre o peito e exclamou, num tom que se pretendia vazio e assustador:

 

—        Verniz!

 

Mas ninguém pareceu ouvi-la. Cada um dos presentes enfrentou à sua vez e maneira o desafio silencioso de Fox. Este quebrou o silêncio para dizer:

 

—        Agora já sabem o que aconteceu, e se nota que não os agradou. Não os censuro por isso. Acredito que Miss Tusar considera isto uma confirmação das suas suspeitas de que o irmão foi assassinado. É possível. Legalmente, talvez não. Quem quer que lhe tenha arruinado o violino podia ter como única intenção humilhá-lo e desgraçá-lo. Mesmo que alguém fosse capaz de calcular que, na sua perturbação, Tusar cometeria suicídio, seria muito difícil, para não dizer impossível, provar que esse cálculo existiria e que conduziria a um homicídio premeditado. Por isso é pouco provável que alguém pague pela vida de Tusar com a própria vida. Mas esse alguém vai ter de pagar de alguma forma. Quando me sentei no auditório na segunda-feira à noite e olhei para o rosto de Tusar, não fazia ideia do que estava se passando, mas sei que, apesar de ter lidado profissionalmente com muitos tipos de crime, incluindo o de assassínio, nunca vi nada condenável e diabólico como isto.

—        Esse seu tom tem como objetivo censurar a nossa ausência de moral? Perguntou Koch em tom cáustico. — Garanto-lhe que não coloquei verniz no violino do Jan. Ouviram-se murmúrios de aprovação.

—        Censura é coisa que não me diz respeito, respondeu Fox em tom cortante, — Mas os fatos sim. Já não estou apresentando um relatório amigável a um grupo do qual faço parte. Vou fazer imediatamente uma de duas coisas: ou interrogo cada um de vocês em particular e exaustivamente, ou responderão...

—        Bolas! Cortou enfática, Mrs. Pomfret. — Não há dúvida que temos de decidir o que fazer, mas se julga que vai transformar a minha casa numa delegacia de polícia...

—        É essa a alternativa, Mrs. Pomfret. A polícia ou eu. Mas, vou começar pelo seu filho. Quando me deixaram aqui sozinho, no outro dia, ele veio ter comigo e me disse que a senhora queria me falar. Ele ficou aqui quando saí, mas eu voltei atrás, espreitei pelo buraco da fechadura e vi que ele tinha aberto a caixa e tirado o violino. Se tivesse visto a cara dele quando entrei e ouvido o que eu ouvi, teria notado, como eu notei, que ele não estava apenas admirando o instrumento.

 

Todos os olhares se cravaram em Perry Durham. Mrs. Pomfret dirigiu um olhar carregado de descrença para Fox, abriu a boca como que para dizer alguma coisa, mas tornou a fechá-la. Em seguida, se voltou para o filho e perguntou com toda a calma:

 

—        O que vem a ser isto, Perry?

—        Nada, mamãe. O jovem estendeu a mão por trás de Wells para tocar nas costas da mão da mãe. — A mamãe sabe como eu sou; estou sempre tramando alguma. Ia deixar uma pista para ele. Fox abanou a cabeça.

—        Vai ter de fazer muito melhor que isso, antes de terminarmos, avisou. Pôs-se de pé. — Se o resto dos presentes fizer o favor de me deixar só com Mr. Durham... Uma vez que é domingo à tarde, não creio que tenham compromissos importantes. Se tiverem, e necessitarem de sair antes de eu poder falar convosco, gostaria que essa mesma conversa pudesse ter lugar o mais cedo possível. Quando terminar o que tenho a fazer aqui, posso ou não ter de prestar contas à polícia. Depende.

 

De modo hesitante, entre trocas de olhares e murmúrios, os outros começaram a se levantar das cadeiras. Koch se dirigiu a Fox:

 

—        Disse que o verniz foi colocado no violino entre o meio-dia e oito da noite de segunda-feira. Como é que sabe?

—        Porque o tom estava certo quando Tusar terminou o ensaio com Miss Mowbray, ao meio-dia.

—        Como justifica o fato de assumir que foi um de nós?

—        Eu não assumo nada. A não ser que é um ponto de partida, nada mais.

 

A maior parte dos presentes tinha começado a se dirigir para a porta, mas estavam fazendo tempo para saírem. Mrs. Pomfret tinha avançado para enfrentar Fox:

 

—        Quero trocar algumas palavras com o meu filho. Mando-o de volta assim que tivermos terminado. Esse seu procedimento despótico... Presumo que tenha consciência de que a sua ameaça de ir à polícia constitui uma violação grosseira da nossa confiança na sua discrição.

—        Não vejo as coisas da mesma forma. Fox enfrentou o olhar de Irene Pomfret. E estava falando a sério. — Quero interrogar o seu filho imediatamente.

—        Também eu. E pretendo fazê-lo. Mr. Fox, aconselho-o...

—        Interrogue-me a mim primeiro, intercedeu Henry Pomfret, que se encontrava atrás da esposa. Isto é, se eu estiver incluído...

—        Lindo menino... Cacarejou Perry Durham.

 —       Vamos, Perry. Pomfret deu o braço ao filho.

—        Mas, mamãe, eu garanto que...

—        Você vem comigo. Henry, eu aprovo a sua sugestão. Fique aqui com Mr. Fox. Se ele desejar revistar a casa à procura de latas de verniz, não o impeça.

 

Saiu de braço dado com o filho. Os restantes elementos do grupo já tinham saído. Quando se encontrou do outro lado da porta aberta, Perry meteu o rosto sobre a banda da mesma e brindou os dois que ficavam com uma careta trocista. Henry Pomfret se sentou na cadeira antes ocupada por Diego Zorilla. Fox olhou para ele com ar carregado durante o instante de silêncio que se seguiu e, em seguida, disse:

 

—        A vontade que tenho de usar o telefone. Pomfret fez um gesto de assentimento.

—        Era o que eu faria, se estivesse no seu lugar admitiu. — Mas espero que não o faça, apressou-se a acrescentar. — É natural que se sinta aborrecido com o fato de a minha esposa ter levado Perry daquela maneira, mas é o jeito que ela tem de fazer as coisas. Ela o chamou despótico, mas não nota que ela própria o é. Não é capaz de evitar. Ela tinha fortuna antes de se casar com Durham, e ficou dez vezes mais rica depois da morte dele, e o senhor sabe o que o dinheiro pode fazer às pessoas, mesmo às melhores, e não duvide que ela é uma das melhores.

 

Fox voltou uma cadeira, se sentou com o queixo apoiado sobre o polegar e olhou interrogativamente para o marido da dona da casa. O rosto que via irritava-o. No entanto, não havia nada especialmente desagradável na tola tentativa da natureza para compor feições humanas a partir daquela boca larga, do nariz adunco, dos pequenos olhos cinzentos e das fartas sobrancelhas. Sentir-se-ia irritado não pelo que via, mas sim pelo que sabia? Por saber que aquele homem vivia às custas do dinheiro da mulher? A suspeita de estar permitindo que um preconceito adulterasse a avaliação que fazia do outro, ainda por cima quando se tratava de um preconceito tão vulgar, deixou-o ainda mais irritado. Pôs de parte a avaliação do outro e perguntou abruptamente:

 

—        Porque que o senhor e a sua esposa vieram embora antes do início do concerto, na noite de segunda-feira? Pomfret piscou os olhos, surpreso. Depois sorriu de uma forma estranha.

—        Bem, respondeu, — Eu vim embora porque ela me pediu que a trouxesse para casa.

—        Por que motivo ela quis vir para casa? Não estava lá par assistir ao concerto?

—        Sim. Essa era a intenção dela. Pomfret se recostou na cadeira e cruzou os braços. — Sabe, está me colocando numa posição delicada. Não há dúvida que o mais correto é dizer que para saber por que a minha mulher veio embora antes do concerto o melhor que tem a fazer é perguntar a ela, mas o mais provável era que o mandasse para o inferno. O que o levaria a dar importância demasiada a um fato absolutamente trivial. Por outro lado, se eu lhe disser e ela descobrir que fui eu... Encolheu os ombros. Parece-me que esse é um mal menor. Foi uma retirada estratégica. Por causa da Guerra Briscoe-Pomfret.

—        Da guerra?

—        Santo Deus, nunca ouviu falar nisso? Pomfret estava espantado. — Por outro lado, o senhor não vive nas trincheiras, ao contrário de mim. Mrs. Briscoe tem menos dinheiro, comparativamente à minha esposa, o que faz com que adopte uma tática de guerrilha. Ataca de surpresa. No ano passado, por exemplo, quase raptou Glissinger, o pianista. Ainda não há muito tempo coagiu o Jan a prometer tocar num musical para ela. A minha mulher dissuadiu-o. Na segunda-feira à noite, nos camarins, ele lhe atirou bruscamente que tinha reconsiderado e que ia manter a promessa. Não havia tempo para iniciar o contra-ataque quando faltava tão pouco tempo para o início do concerto, pelo que ela se limitou a voltar para casa. A verdade é que ela ficou muito aborrecida por isso, apesar de ser incapaz de admiti-lo. Acha que o fato de ter vindo embora do concerto pode ter sido responsável pela forma como ele tocou, tal como a Dora julgava que a culpa podia ser dela. Agora o senhor vem dizer que se tratou de algo mais deliberado... E muito mais condenável. Sabe Deus como concordo, se as coisas aconteceram realmente como calcula.

—        Que mais poderia ter acontecido?

—        Não faço ideia. Pomfret pareceu pouco à vontade e hesitou. — O senhor tem experiência neste tipo de coisas e eu não. Mas afirmou que o verniz foi colocado no violino entre o meio-dia e as oito da noite de segunda-feira, e eu não entendo como pode ter a certeza disso.

—        Quer dizer que pode ter sido feito depois do concerto? Durante os dois dias em que o violino se encontrou na posse de Miss Hebe Heath?

—        Bem... Não se pode dizer que seja impossível, não é?

—        Eu posso afirmar que é uma tolice, disse Fox secamente. — Se o verniz não tivesse sido colocado dentro do violino antes de segunda-feira à noite, então o que havia de errado com ele? Porque é que não tocou como devia? Se lhe agrada pensar que Miss Heath colocou o verniz no violino, porque é que não pensa que pode tê-lo feito antes do concerto, e não depois? Pomfret corou.

—        Não me agrada especialmente pensar que foi Miss Heath, disse. — Se o que a minha esposa disse a respeito do meu vaso o levou a pensar que posso estar de má vontade em relação a Miss Heath, asseguro que está enganado. Nunca considerei provável que tivesse sido ela a levar o vaso.

—        A sua esposa disse que os dois sempre suspeitaram dela.

—        A minha esposa suspeitou. Não sou responsável pela interpretação que ela fez da minha incapacidade para acudir em defesa de Miss Heath. O mais puro senso comum manda que um homem não defenda uma bela jovem das suspeitas da sua esposa. Fox pensou no assunto e não tardou a encontrar uma resposta à altura.

—        Eu não sou casado, disse. Se encarasse o fato como motivo de desgosto, o seu tom em nada o denunciava. —Disse-me que, quando estavam com ele nos camarins, continuou, — Tusar disse qualquer coisa à sua esposa com modos bruscos. Teve lugar alguma cena?

—        Eu não lhe chamaria uma cena. Não. Mas se notava certa tensão. Jan sempre foi uma pessoa nervosa, mas nunca o tinha visto tão perturbado. A minha mulher sabia o que aquele concerto significava para ele e tentou acalmá-lo.

—        Quanto tempo estiveram lá?

—        Oh, uns dez minutos. Talvez quinze. -

—        Estava mais alguém com vocês?

—        Sim. O Perry entrou conosco, mas a mãe lhe disse para ir procurar Dora. O Beck foi com ele. Mrs. Briscoe estava lá. É uma perfeita tola, e foi o fato de ter mencionado o musical dela que fez o Jan dizer o que disse à minha esposa.

—        Ela deixou os camarins antes de si?

—        Não me... Pomfret pensou um instante. — Sim, eu me recordo que ela saiu com Koch e nos deixou ali. Ou melhor, o Koch levou-a dali. O Koch já estava lá quando chegamos.

—        Esteve mais alguém lá enquanto vocês permaneceram ali?

—        O Perry, o Beck, Mrs. Briscoe, o Koch.

—        Mais alguém?

—        Acho que não. Estou certo que não. Miss Heath e o outro tipo, Gill, entraram no momento em que saíamos.

—        Onde estava o violino?

—        O violino? Não me recordo... Pomfret fez um esforço de memória acompanhado por um franzir de cenho e por um suspiro. — Oh, compreendo, disse. O senhor acha que a coisa pode ter sido feita ali mesmo, nos camarins. Suponho que seja possível. Havia muita gente por ali, mas claro que ninguém prestou nenhuma atenção específica ao violino. Devia estar lá, mas não me lembro de tê-lo visto.

—        Pouco depois de saírem, Tusar apareceu à porta dos camarins com ele na mão.

—        Bem, não o tinha na mão enquanto estive lá dentro. Tenho a certeza que teria reparado se ele o tivesse na mão.

—        Quando foi a última vez que viu Tusar, antes daquela noite no teatro?

—        Vi-o na segunda-feira à tarde. Fox ergueu as sobrancelhas.

—        Viu?

—        Sim. Pomfret se contorceu na cadeira e deixou escapar uma pequena gargalhada embaraçada. — Bom, se seguir a lei das probabilidades vai me eleger como suspeito de ter colocado o verniz no violino, ou à minha esposa, porque ambos tivemos duas oportunidades para fazê-lo. Mas acontece que não vi o violino em nenhuma das duas. Fomos à matinê do Garden, assistir a um bailado sobre patins, e passámos pelo estúdio do Jan pouco depois das cinco, para convidá-lo a tomar chá conosco.

—        Ele aceitou?

—        Não chegamos a fazer o convite. Diego e Koch estavam lá, e a minha mulher não gosta especialmente de Koch. Devemos ter ficado lá cerca de um quarto de hora, e depois... O que foi isto?

 

Pomfret ficou muito rígido na cadeira, à escuta com ouvido atento, até que se voltou de novo para Fox.

 

—        Pareceu um grito de mulher. É possível que alguém tenha entornado uma bebida por cima de Miss Heath. Mas Pomfret já estava de pé. — Não foi Miss Heath... Parece que...

 

Ouviu-se uma espécie de rugido à distância, do outro lado da porta, um grito urgente e retumbante, na voz de baixo de Diego Zorilla:

 

—        Fox! Fox!

 

Fox saltou na direção da porta, abriu-a prontamente e saiu para o corredor. Viu como Diego corria na sua direção, com uma expressão que não podia ter sido provocada por nenhuma bebida entornada por cima de Hebe. O espanhol parou junto do amigo.

 

—        O que aconteceu? Perguntou Fox.

—        É o bom e velho Cara de Pedra, rugiu Diego. — Esqueça a minha agitação. Peço que me desculpe. Acho que está morto. Apontou com um polegar por cima do ombro. — Ali atrás. Importa-se de ir ver?

 

Quando Fox avançou, Henry Pomfret passou por ele correndo; quando o detetive atravessou o corredor e a sala de recepção e entrou na sala amarela, Pomfret já se encontrava junto da esposa, com um braço em torno dos ombros desta, enquanto Irene Pomfret se apoiava na mesa enquanto falava para o bocal de um telefone esmaltado amarelo, num tom mais cavo e assustador do que qualquer Hebe Heath seria capaz de produzir:

 

—        ... O Doutor Corbett, imediatamente...

 

Ouviam-se outras vozes, o barulho provocado pela agitação generalizada e pelos criados correndo... Fox abriu caminho por entre o amontoado de convidados e se ajoelhou junto de uma figura prostrada e imóvel que se encontrava caída no solo.

 

A polícia, ultrajada e inquisidora, não demorou a chegar. O telefonema para a 19a Delegacia teve lugar as quinze e trinta e seis. O primeiro carro chegou as quinze e quarenta, e o segundo as quinze e quarenta e dois. Um minuto depois, chegaram um tenente e dois policiais da delegacia; os três entraram no edifício, mas os dois policiais não tardaram a sair de novo para a calçada e a se juntar a um colega fardado que tinha se envolvido numa acesa discussão com uma mulher de casaco de peles, sentada ao volante de um carro preto estacionado numa curva a vinte metros da porta do número 3070.

 

Com gestos enérgicos, um dos policiais fez dispersar a pequena multidão de curiosos que, entretanto, se juntara e o outro, depois de uma curta contribuição na discussão, subiu para o topo do carro preto e se ajoelhou para inspecionar um amassado perto do centro do mesmo. Curvou-se para cheirar a marca, se endireitou e ordenou:

 

—        Vai buscar um mata-borrão!

—        Vai você! Retorquiu o colega, do passeio. — Eu estou recolhendo os pedaços de vidro. E, de fato, estava.

 

As quinze e quarenta e nove, um carro carregado de reforços à civil fez a sua aparição. Um deles retomou a discussão com a mulher do casaco de peles; um segundo trepou para o topo do carro preto para analisar o problema ali existente; os restantes se dedicaram a procurar mais pedaços de vidro e a enxotar os curiosos.

 

A limusine que tentou se aproximar do edifício foi obrigada a parar e alguma distância do número 3070, e, ainda que vestidas com casacos de pele de marta, foram impiedosamente obrigadas a percorrer uma distância extra de trinta passos sem nada que as protegesse na eventualidade de começar a chover. Às quatro da tarde, outro carro da polícia parou junto à curva e um agente com um saco de plástico preto na mão se apressou a sair do mesmo e a entrar no edifício. Oito minutos depois das quatro chegou mais um carro, que despejou mais um grupo de cinco homens equipados com toda uma variedade de aparelhos. Por fim, as quatro e dez, chegou o próprio comandante de todos aqueles homens. Seguido por dois subordinados, desceu do carro no meio da rua, atravessou a mesma e interpelou um dos seus homens, que se encontrava junto do carro preto.

 

—        O que vem a ser isto?

—        Atiraram uma garrafa de uísque de uma das janelas lá de cima, Inspetor. Atingiu o teto deste carro e quebrou. Reunimos todos os pedaços que conseguimos encontrar, e também recolhemos um pouco do líquido com um absorvente medicinal...

—        Muito bem, suspendam tudo até eu dar uma olhada lá em cima. Peça desculpas à senhora...

—        Sim, senhor, eu já pedi. Ela diz que vai participar de mim e que vai apresentar queixa ao presidente da câmara, processar a cidade...

 

Mas o Inspetor Damon, da Delegacia de Homicídios, já não estava ouvindo. Homem desengonçado, com o queixo de um pugilista e o olhar mortiço de um poeta pessimista, ao entrar no átrio e ao se dirigir para os elevadores, não parecia sentir o ultraje que representava saber que a lei tinha sido chacoteada, mas a verdade é que se sentia deveras ofendido pelo fato. Habituado que estava ao crime, e disposto a considerá-lo um elemento necessário na composição da cena metropolitana, ao fim de vinte anos de serviço na força policial de Nova Iorque continuava a ser afrontado pela sua intromissão insolente e imprópria em círculos a que não pertencia. Por isso, quando entrou na sala de recepção ricamente mobilada dos Pomfret e aceitou a oferta de um agente fardado para guardar o seu casaco, não era apenas um agente da lei no cumprimento do seu dever, mas também um homem com um desgosto pessoal. Olhou com uma expressão carregada para o homem que se aproximou vindo da sua direita e perguntou de mau humor:

 

—        Onde está Craig?

 

Depois de ser conduzido a uma sala ampla com as paredes forradas com painéis amarelos combinando com a mobília amarela, que atravessou até ao lado contrário, parou e olhou carrancudo e silenciosamente para a figura estendida no chão. O homem que se encontrava ajoelhado junto da figura virou o pescoço para olhar para ele, saudou-o com um gesto de cabeça, guardou uma série de utensílios na maleta preta que tinha ao seu lado e se levantou. O

Inspetor se voltou para outro homem, que tinha saído do grupo que se encontrava no meio da sala, e perguntou:

 

—        Então? O Sargento Craig também dava a sensação de achar que o crime tinha o seu lugar próprio e que não pertencia ali.

—        É tão mau como parece, Inspetor, disse de modo sombrio. — Morte imediata. O nome da vítima é Perry Durham, filho de Mrs. Pomfret. Bebeu uísque na companhia das oito pessoas que se encontravam com ele nesta sala, caiu ao chão, sofreu convulsões e morreu. Não disse uma palavra, nada. O médico diz que se trata de envenenamento com cianeto.

—        Eu disse que tudo indicava nesse sentido, protestou o homem da maleta preta. — Não vou...

—        Obrigado, agradeceu Damon com sarcasmo.

 

O Inspetor se ajoelhou ao lado da figura caída no chão, se apoiou nas duas mãos e desceu o rosto até a ponta do nariz quase tocando nos lábios que há pouco ainda pertenciam a Perry Durham e cheirou-os. Depois de cheirá-los uma segunda vez, se endireitou, ficou de pé desajeitadamente e começou a esfregar os joelhos por força do hábito, mas desistiu quando notou que não era necessário. Voltou-se para Craig e perguntou:

 

—        Quem raio se lembrou de atirar uma garrafa de uísque por uma janela?

—        Não faço ideia, senhor, só chegámos há alguns minutos. O Tenente Wade, da Décima Nona...

—        Estou aqui, Inspetor, disse um homem que entrou na sala. Avançou para Damon com passo vivo. — Cheguei as quinze e quarenta e três. Teve morte imediata. Já estavam aqui quatro homens da patrulha quando cheguei. Disseram-me que tinham atirado uma garrafa de uísque de uma janela...

—        Quem é que a atirou?

—        Não sei. Estavam dez pessoas aqui que podiam ter jogado, sem contar com três ou quatro criados, e tudo o que sei foi o que Tecumseh Fox me contou...

—        Fox! Como raio ele apareceu aqui?

—        Ele não apareceu aqui; já estava.

—        Onde é que ele está?

—        Está lá atrás. Na sala a que chamam biblioteca. Levei-os todos daqui para fora, identifiquei-os e pedi os respectivos endereços. O Tenente estendeu uma folha de papel. — Foi o melhor que consegui, além de ter ficado com o copo de onde o Durham bebeu antes de cair redondo no chão. Entreguei-o ao Sargento Craig.

 

Damon deu uma vista de olhos à lista de nomes que tinha na mão, olhou de novo para o outro, grunhiu qualquer coisa e se voltou para o sargento.

 

—        Muito bem, ao trabalho, ordenou. — Quero detalhes. Quero ver tudo o que encontraram em seus bolsos. Assim que tiverem fotografias, levem-nas para a delegacia para um primeiro exame. Descubram qualquer coisa que possa ter contido o veneno... Tanto pode ter sido utilizado líquido como pó. Cheirem tudo à procura de cianeto e não se esqueçam de que o pó só cheira quando molhado. Eles acham que têm qualquer coisa lá em baixo, num absorvente medicinal. Levem-no para o laboratório juntamente com os pedaços da garrafa que eles recolheram e com o copo de onde ele bebeu. Mantenham dois homens à porta. Doutor, eu gostaria que aprontasse o relatório post mortem o mais depressa que for possível.

—        Num domingo à tarde, respondeu o médico sem grande entusiasmo.

—        Claro, também é domingo para mim. Muito bem, Tenente, me indique onde fica a biblioteca e por amor de Deus deixe desses ares de quem acha que esse tipo foi assassinado para ter uma oportunidade de ver o seu nome no jornal.

—        Por aqui, Inspetor, disse o Tenente em tom digno.

 

O Inspetor Damon parou do outro lado da porta da biblioteca, olhou em volta, suspirou e olhou de novo ao seu redor. Quinze rostos tinham se voltado para ele assim que entrara e, apesar do pouco que ainda sabia acerca daquele caso, teve a noção que, por trás de um daqueles pares de olhos se encontrava um cérebro que tentava desesperadamente reunir toda a sua astúcia e coragem para se defender de um perigo mortal. Era essa a forma como alguns assassinos se comportavam quando confrontados com o perigo mortal que ele representava e que fazia com que o inspetor tivesse em elevada conta o equipamento mental de homens e mulheres; continuava conseguindo se surpreender quando uma culpa que devia ser por demais evidente conseguia se esconder em silêncio na minúscula prisão do cérebro humano...

 

—        Mrs. Pomfret, disse o Tenente Wade. A mulher se aproximou e Damon avançou para cumprimentá-la.

—        Sou o Inspetor Damon, disse em voz rouca, se sentindo bastante desajeitado. As normais extravagâncias do desgosto não lhe eram desconhecidas e sabia lidar com elas na perfeição, mas os olhos daquela mulher deixavam-no embaraçado. Eram secos, diretos, penetrantes e destituídos de emoção.

 

Ela falou calmamente, com um cuidadoso espaçamento entre as palavras, como se fosse necessário respirar antes de pronunciar cada uma delas.

 

—        Estes polícias não fizeram nada. Disseram que tinham de esperar por si. O meu filho morreu. O meu único filho. A minha única criança. O que é que o senhor vai fazer?

—        Ora... Titubeou Damon. — Eu sei como se sente, Mrs. Pomfret...

—        O senhor não sabe como me sinto. Irene Pomfret cerrou os lábios depois de proferir aquela frase e o seu queixo tremeu. Voltou-se e fez um gesto largo com a mão. — Estas pessoas estavam em minha casa, eram minhas convidadas, e uma delas matou o meu filho. Olhou para Adolph Koch. — Você. Depois para Hebe Heath. — Você. Para Garda Tusar. — Você. Para Felix Beck... Damon se colocou- à frente dela.

—        Ouça Mrs. Pomfret, cortou abruptamente, — A senhora perguntou o que eu iria fazer. Primeiro vou descobrir o que aconteceu e como aconteceu. Não posso fazer a verdade saltar de uma caixa com um simples estalar de dedos. Tudo o que sei é que o seu filho bebeu alguma coisa e morreu. Isso será...

—        Ele gritou. O queixo de Mrs. Pomfret tremeu de novo. — Ele chamou por mim. Começou a se dirigir para mim, com o rosto... Estacou, caiu, se pôs de joelhos e voltou a cair... Calou-se.

—        Posso pedir a outra pessoa que me conte o que aconteceu, sugeriu Damon. — Não quero...

—        Não. Prefiro ser eu a lhe contar. Estávamos todos aqui, exceto o meu marido e este homem. Estendeu um dedo na direção da pessoa em causa. —Tecumseh Fox. Estendeu o dedo para apontar uma segunda pessoa. — Este é o meu marido. De novo o dedo apontado para alguém. — Esta é Dora Mowbray.

 

Repetiu o gesto enquanto acabava de apresentar cada uma das pessoas que se encontravam ali, dizendo os seus nomes em alto e bom som, com precisão, deixando de fora apenas os quatro homens de uniforme: dois polícias e dois criados.

 

—        Estávamos todos nesta sala, explicou, — Até o momento em que deixámos Mr. Fox a sós com o meu marido e nos retiramos para a sala amarela. Fica na parte da frente, do outro lado da sala de recepção...

—        Acabei de vir de lá.

—        Então, o senhor... O senhor viu-o...

—        Sim, eu vi. Deve compreender Mrs. Pomfret; que será necessário... Que o corpo terá de ser levado para que possa ser examinado...

—        Levado? Daqui?

—        Sim. Já dei ordem...

—        Não quero que façam isso!

—        Naturalmente que não. No entanto, a senhora me perguntou o que ia fazer, sendo que essa é uma das coisas que fazemos, e será feita. Por mais doloroso que... Mrs. Pomfret!

 

A dona da casa se dirigiu para a porta. Um dos dois detetives que tinha entrado com Damon se encontrava junto da mesma, encostado ao puxador; ela lhe ordenou que se afastasse com um gesto, mas o homem permaneceu exatamente no mesmo lugar.

 

—        A senhora não pode entrar aí, Mrs. Pomfret! Exclamou o inspetor. Ela deu meia volta e Damon pôde ver de novo aquele olhar.

—        Faço questão de estar presente quando levarem o corpo do meu filho, disse Irene Pomfret. Damon cedeu.

—        Está bem, disse para o homem que se encontrava encostado à porta, — Acompanhe-a e avise Craig.

 

O homem assentiu e abriu a porta. Quando o viu fechá-la atrás de si, Damon deu meia volta e observou os que o rodeavam. Mesmo excluindo os dois polícias, o detetive e os dois criados, eram demasiados... Dirigiu um olhar carregado a Tecumseh e perguntou:

 

—        Então não estava presente quando aconteceu? Sentado a uma quina da mesa, Fox abanou a cabeça.

—        Estava aqui com Mr. Pomfret. Quando cheguei lá, o Durham já estava morto. Os olhos do inspetor se fixaram num jovem que se encontrava de pé atrás da cadeira de Fox, com as mãos enterradas nos bolsos.

—        O senhor se chama Theodore Gill? Perguntou.

—        Sim, confirmou Ted.

—        Onde estava o senhor? Ted humedeceu os lábios e engoliu em seco.

—        Estava lá dentro. Bebendo um uísque com soda e conversando com Miss Mowbray e Mr. Beck.

—        Onde estava Durham?

—        Não sei. Quero dizer, não reparei. Ele estivera conversando com a mãe, mas parece que tinha se afastado dela para se servir de uma bebida. Quando me dei conta, ele fez um som como o de alguém sufocando e gritou; Estava junto do armário das bebidas. Deu alguns passos cambaleantes e caiu por terra; ainda se pôs de joelhos e voltou a cair, tal como disse Mrs. Pomfret. A primeira pessoa a chegar junto dele foi Mr. Zorilla.

—        Eu já estava ao pé dele, disse Zorilla do outro lado da sala, com a sua voz grave de baixo. Damon olhou para ele. — Estava servindo dois uísques com soda, para Miss Heath e para mim, quando Perry se aproximou para se servir de uma bebida. Eu estava mesmo ao lado dele quando se serviu e bebeu.

—        Ele se serviu da mesma garrafa que o senhor?

—        Não, eu me servi de uma garrafa de uísque e ele sempre bebia Bourbon.

—        Ele se serviu da mesma garrafa de soda que o senhor?

—        Ele não se serviu dela. Bebeu o Bourbon puro, de um só trago. Costumava fazer isso, com água para diluir.

—        Miss Heath estava na área das bebidas consigo?

—        Nesse momento não. Eu tinha ido buscar uma bebida para mim, ela estava começando a misturar uma, e eu me ofereci para fazer; ela procurou uma cadeira e se sentou.

—        O que o senhor fazia quando o Durham tomou a bebida dele?

—        Eu tinha apanhado os dois copos e estava à procura de um lugar para pousá-los de novo, e ir fechar uma janela. Alguém tinha aberto uma janela da sala, a cortina estava esvoaçando e Mrs. Pomfret me pediu que a fechasse. Nunca cheguei a fechá-la. Enquanto pousava os copos, reparei que o Perry tinha uma expressão estranha quando engoliu a bebida, ou logo após, e emitiu uma espécie de ruído estrangulado. Creio que não se passaram mais de três segundos até ele gritar, ficar com o rosto contorcido e entrar em convulsões. Se for aquela bebida, a rapidez do efeito é incrível...

—        Porque é que diz “Se foi àquela bebida”? Ele tinha tomado mais alguma antes dessa? Diego abanou a cabeça em sinal de negação.

—        Que eu saiba, não, respondeu. — Tenho certeza que não. Ele estivera conversando com a mãe, no sofá ao fundo da sala.

—        Então o copo em que ele serviu a bebida estava limpo? Ainda não tinha sido usado?

—        Não sei. Suponho que não. Havia uma boa variedade deles em cima do carrinho do bar.

—        E o senhor já estava preparando um uísque com soda quando ele veio se servir da bebida dele?

—        Estava.

—        Mesmo de frente para ele, e a observá-lo?

—        A observá-lo? Por que motivo eu haveria de querer observá-lo?

—        Bom, o senhor estava mesmo ao pé dele. Se ele tivesse tirado alguma coisa de um frasco, caixa ou envelope para colocar na bebida, o senhor teria visto. Não é verdade?

—        Sim, é verdade. Diego piscou os olhos e torceu os lábios de modo estranho. — E Deus sabe como gostaria de dizer que o tinha visto. Mas não vi.

—        Porque motivo gostaria de dizer que tinha visto?

—        Parece que a resposta à sua pergunta é óbvia. Apesar de não gostar especialmente do Perry Durham, não encararia o seu suicídio como uma coisa agradável. Mas teria sido muito mais agradável do que aquilo que parece ter acontecido. Diego olhou lentamente em volta. — Foi um de nós. E eu me incluo no grupo. Enfrentou o olhar do inspetor. — Eu não estava ”observando-o”, como o senhor disse. Mas, a menos que o tenha feito com mão muito ágil, ele não colocou nada no copo para além da bebida.

—        E essa ele serviu-a da garrafa de Bourbon que se encontrava no bar?

—        Sim.

 

Damon se voltou para os dois criados, que se encontravam lado a lado junto à parede mais distante.

 

—        Algum dos senhores trouxe aquele bar até aqui?

—        Sim, senhor, respondeu um deles. — Eu trouxe.         O homem pareceu espantado com o volume da sua própria voz e repetiu a resposta quatro tons mais abaixo. — Eu trouxe, senhor.

—        Como se chama?

—        Schaeffer, senhor.

—        Quando é que o trouxe até aqui?

—        Quando Mrs. Pomfret me disse para fazê-lo. Ela tocou...

—        Estas pessoas já se encontravam aqui?

—        Sim, senhor. O homem olhou em volta. —Isto é, a maior parte delas.

—        E você trouxe o carrinho de bar até aqui já com as garrafas e os copos em cima?

—        Sim, senhor, assim como o gelo e os aperitivos...

—        Incluindo o Bourbon?

—        Sim, senhor. Temos sempre Bourbon Blue Grass, porque é o único que Mr. Perry Durham bebe. Peço desculpas.

—        Por quê?

—        Queria dizer que era o único que Mr. Perry Durham bebia.

—        Oh. Que quantidade de bebida havia na garrafa de Bourbon? Faz ideia?

—        Sim, senhor. Schaeffer se permitiu um sorriso de satisfação. — Estava pensando nisso mesmo. Estava à espera que me fizesse essa pergunta. A garrafa de Bourbon Blue Grass se encontrava com pouco menos de metade.

—        Como é que sabe? Bebeu da garrafa?

—        Não, senhor. Quando abastecemos o bar, se alguma garrafa estiver a menos da metade nós acrescentamos outra. Mas recordo de achar que o Bourbon era suficiente, uma vez que mais ninguém bebia senão Mr. Durham.

—        Como é que sabe que mais ninguém bebia?

—        Era do conhecimento geral, senhor. Das pessoas da casa. De todos. Todos sabiam que Mr. Durham não bebia mais nada. A maior parte das pessoas bebe uísque escocês, irlandês ou maltado. Chama-se a isso dedução, senhor.

—        Uma ova. O inspetor corou. Uma das suas fraquezas residia no fato de não lidar bem com criados do sexo masculino. Voltou-se para Diego Zorilla. — O senhor bebeu do mesmo Bourbon? Diego fez que não com a cabeça.

—        Como lhe disse, eu bebo uísque escocês.

—        Algum de vocês? Damon olhou em volta. — Algum de vocês bebeu Bourbon? O senhor, Mr. Koch?

—        Não. Adolph Koch estava sentado do outro lado da sala, junto ao enorme biombo, ao lado de Garda Tusar. Parecia ter a garganta obstruída e pigarreou antes de falar de novo. — Eu tomei gim e aperitivos.

—        Foi ao bar e se serviu?

—        Sim.

—        E você, Miss Tusar? O que bebeu?

—        Vermute tinto, respondeu Garda pronta e rapidamente. — Fui ao bar com Mr. Koch e me servi.

—        Miss Mowbray?

—        Tomei um copo de xerez. A voz de Dora mais parecia um guincho e a moça aclarou-a. — Servi um para mim e outro para Mrs. Pomfret, e levei o dela.

—        Mr. Beck?

—        Eu não bebo! Declarou Beck de modo explosivo. Estava sentado numa cadeira com as costas voltadas para a mesa, e esfregou os joelhos com as palmas das mãos. — Eu fui até àquele... Bar, se quer chamá-lo assim... Servi-me de um copo de água com suco de limão e bebi!

—        Mr. Gill, o que havia no seu copo?

—        Malte, respondeu Ted de forma sucinta.

—        E você, Miss Heath? Mr. Zorilla afirma que bebeu uísque com soda. Não bebeu Bourbon? Hebe não respondeu. A voz de Felix Beck, onde se lia um tom acusador, impediu-a.

—        Com certeza que não! Ela sabia! Pegou na garrafa e atirou-a pela janela!

 

Hebe Heath enclavinhou as mãos sobre o peito e levantou o queixo para enfrentar o inspetor com um olhar de desafio nos olhos azuis. Adolph Koch começou a se levantar da cadeira, murmurou qualquer coisa e voltou a se sentar. Ted Gill atravessou a sala, colocou a mão sobre as costas da cadeira de Hebe e ali ficou como seu protetor, suspirando pesadamente. Damon suportou o glorioso desafio dos incomparáveis olhos de Hebe e, em seguida, avançou um passo na direção da atriz e perguntou:

 

—        Então?

—        Então... Murmurou a atriz.

—        Atirou a garrafa pela janela? A jovem fez que sim com a cabeça. — Atirou? Novo gesto afirmativo de cabeça. — Por quê? As mãos de Hebe libertaram o peito e se estenderam num apelo na direção do inspetor.

—        Oh, foi um impulso incontrolante! Lamentou-se suavemente.

 

Tecumseh Fox ficou rígido no seu lugar e desviou o olhar da figura da atriz. Os outros a olharam com mudo fascínio, um olhar que desviaram para Henry Pomfret quando este emitiu um ruído, um riso abafado, espasmódico e trêmulo. Pomfret olhou em volta, desconcertado, e se desculpou em tom pungente, sem falar com ninguém em particular:

 

—        Perdão. Em seguida mordeu o lábio inferior. Ted Gill se dirigiu a Damon num tom paciente e determinado.

—        Ela quer dizer incontrolável. Miss Heath é uma pessoa sensível e excitável. Emocionalmente instável. E impetuosa, mercurial e galvânica. É uma artista...

—        Eu não lhe pedi uma análise de carácter, cortou Damon. — Nem a si. Perguntei porque é que atirou a garrafa pela janela.

—        E eu estou dizendo. Está tratando com uma pessoa extraordinária. Sempre que se sente tomada por um desejo irresistível de fazer alguma coisa, ela faz. É uma espécie de transe. Depois passa. Ela nem sequer se lembra de ter pegado na garrafa e de tê-la atirado...

—        Acabou de admitir que o fez! Resmungou Damon.

—        Admitiu porque três de nós viram o que fez e... Falaram-lhe no assunto. Miss Mowbray, Mr. Beck e eu. No momento em que o fez Mrs. Pomfret estava ajoelhada ao lado do filho, Koch e Miss Tusar estavam inclinados sobre ela, e Zorilla tinha ido procurar Fox. Eu estava junto de Miss Mowbray e disse que alguém devia fechar a garrafa de que ele tinha bebido, mas que não sabia qual era, e ela disse que ele só bebia Bourbon. Estendi a mão para a garrafa, mas Miss Heath agarrou-a primeiro e fez um dos seus... Fez um gesto, um gesto dramático, e atirou-a pela janela. Disse-o a Fox quando ele chegou, e também o disse ao primeiro policial que apareceu. Mas, pela expressão do rosto dela, uma expressão de serena exaltação, eu sei que ela não tinha consciência do que estava fazendo...

—        Bah! Exclamou Felix Beck, saltando da cadeira e tremendo de indignação. — Uma artista! Não sabia o que estava fazendo? Ah! Ela é uma Circe. Uma bruxa malvada! Primeiro Jan, e eu tinha-o avisado a respeito dela, e agora isto...

—        Oh, cale-se! Cortou Ted. — As coisas já são más o suficiente sem que se ponha aí a ganir...

—        Calem-se os dois, ordenou Damon com voz cortante. Voltou-se para Hebe. — Falo consigo mais tarde, Miss Heath, mas agora tenho de lhe perguntar se Mr. Gill está certo no que diz? A moça faz coisas de que depois se esquece?

—        Oh, deixou escapar a atriz.

—        Então, o que me responde?

—        Não sei. Tinha as mãos adoráveis apertadas de encontro ao corpo. — Oh, não faço ideia!

—        Sente-se tomada por desejos irresistíveis de fazer uma coisa e faz essa coisa? Sentiu-se tomada por um desejo irresistível de colocar qualquer coisa dentro daquela garrafa de Bourbon?

—        De colocar... Hebe olhou para o inspetor. Libertou as mãos e a tensão pareceu lhe desaparecer dos músculos do rosto. — Colocar qualquer coisa na garrafa? Perguntou incrédula, num tom de voz que até então não utilizara. — Não seja tolo!

 

Damon resmungou qualquer coisa e olhou para ela em silêncio. Coçou a parte de trás do pescoço e continuou a olhar para ela.

 

—        Posso sugerir... Começou Tecumseh Fox.

—        Não, cortou Damon. Os seus olhos varreram os rostos à sua volta, lentamente, da esquerda para a direita. — É meu dever informá-los, disse em tom de desagrado, — Que se presume que Perry Durham foi assassinado. Vou ter de conversar com cada um em particular antes de autorizar a deixar esta casa, e isso vai demorar bastante. Pode me ceder uma sala, Mr. Pomfret?

—        Com certeza. A minha esposa... Pomfret hesitou. — Mas, com certeza. Ou podemos ir para outra sala, e o senhor pode se servir desta.

—        Esta serve perfeitamente. O senhor e a sua esposa podem ir para onde quiserem sem saírem da casa. Mas quero os restantes juntos na mesma sala, com policiais presentes. Dadas às circunstâncias, tenho o direito de obrigá-los a obedecer a esta disposição, mas agradeceria se colaborassem. Peço que considerem a possibilidade do assassino de Perry Durham se encontrar entre vocês. Se não gostam da ideia, se consolem com o fato de que também não me agrada. Entretanto, quero esclarecer uma coisa. Se havia veneno naquela garrafa, pode ter sido colocado ali desde a última vez que alguém bebeu da mesma. Não foi necessariamente posto nesta tarde. Mas é possível que sim. Se tiver sido, é possível que o invólucro do veneno se encontre ainda por aí, a menos que tenha sido atirado pela janela, tal como a garrafa. A sala está sendo revistada, e a casa também será. Cada um será interrogado sobre os seus movimentos. Mas existe a possibilidade de o invólucro estar escondido na pessoa de um de vocês. Penso que seria uma boa ideia que todos dessem permissão para serem revistados. Acho que devem concordar com isso. Posso fazer com que esteja aqui uma mulher policial dentro de cinco minutos, para revistar as senhoras.

 

Os outros se encolheram. Olharam uns para os outros, depois para o inspetor, e por fim desviaram o olhar. Se o assassino se encontrava entre eles, não tinha qualquer razão para recear se expor sendo o único a mostrar relutância perante aquela sugestão, uma vez que relutância e desagrado era o que se lia na expressão de todos, exceto Tecumseh Fox.

 

—        É uma belíssima ideia, disse para Damon. — É sensato. Apesar de ser provável que se revele uma futilidade.

—        É uma indignidade, protestou Felix Beck.

—        E terrivelmente revoltante, acrescentou Hebe.

 

A porta se abriu e todos os olhares se voltaram para lá. Entrou um homem que se dirigiu a Damon do outro lado da sala:

 

—        O Craig chama-o, Inspetor.

 

Damon assentiu e saiu. Ato contínuo, todos pareceram decidir que tinham os músculos presos e resolveram mudar de posição, tanto nas cadeiras em que estavam sentados como nos lugares onde se mantinham de pé. Começaram a se ouvirem comentários e conversas em voz baixa. Adolph Koch Perguntou a Fox se podiam ser legalmente obrigados a se submeterem a uma revista, ao que Fox respondeu que não. Ted Gill disse que podiam muito bem se submeter. Felix Beck cruzou os braços e se pôs a andar de um lado para o outro. Um polícia bocejou. Schaeffer, que tinha ido até o bar, expôs qualquer coisa ao colega em voz baixa. Tecumseh Fox se inclinou para trás e olhou fixamente para o teto; ainda se encontrava nessa posição cinco minutos depois, quando a porta se abriu e o inspetor voltou a entrar. Caminhou até à cabeceira da grande mesa, que era uma espécie de centro geográfico daquela assembleia, segurando um objeto na mão de forma a que todos pudessem vê-lo.

 

—        Algum de vocês reconhece isto?

—        Com certeza, respondeu Henry Pomfret. — É a minha taça de incenso Ju Chou. Por favor, não a deixe cair!

—        Não se preocupe que não deixo. A grande mão de Damon segurava a pequena e bela taça de tons vermelhos e verde-pérola de forma adequada. — Há quanto tempo está na prateleira daquela sala?

—        Há muito tempo. Uns dois anos.

—        Usam-na para colocar coisas dentro? Como um cinzeiro?

—        Que eu tenha conhecimento, não. Por vezes, há um idiota que apaga um cigarro aí dentro.

—        Bom, desta vez não se tratou de um cigarro. Havia um tom de sombria satisfação na voz do inspetor.

 

Colocou a taça em cima da mesa e, recorrendo apenas ao indicador e ao polegar, retirou uma bola de papel amassado do interior da mesma; exibiu-a como um ilusionista exibe uma moeda que fez aparecer do ar. Desta vez foi isto.

 

—        Não vou abri-la. Um dos meus homens já o fez, parcialmente. É um pedaço de papel de embrulho vulgar, com partículas de pó branco agarradas a ele. Ele humedeceu uma parte e cheira a cianeto. O que me leva a retirar o meu pedido de autorização para serem revistados. Seguiu-se alguma agitação, a que se sobrepôs um silêncio mortal. Um silêncio quebrado por Henry Pomfret.

—        Cristo, murmurou incrédulo. — Na taça de incenso. Então...

—        Então o quê, Mr. Pomfret?

—        Nada. Pomfret abanou a cabeça em descrença. — Nada.

—        O fato disto ter sido encontrado na taça lhe sugere alguma coisa!

—        Não! Nada! Damon olhou para ele fixamente e insistiu: — Talvez se recorde que viu alguém se dirigir à taça e colocar qualquer coisa no seu interior.

—        Não! Não me recorda nada. Apenas ia dizer que isto faz com que... Com que tenha sido um dos presentes. Se tivesse visto alguém colocar alguma coisa nessa taça, teria tirado o que quer que fosse que a pessoa tivesse colocado; é o que faço sempre. De qualquer maneira, eu não estava lá; estava aqui com Mr. Fox.

—        Mas podia ter visto alguma coisa antes disso, durante a tarde, contrapôs Fox. Olhou para o inspetor.

—        Há pouco, ia sugerir que talvez tivesse ficado com a impressão errada do que disse Schaeffer. Ele disse que tinha abastecido o bar quando Mrs. Pomfret tocou para lhe dizer que o fizesse. Quando estas pessoas, a maioria delas, como ele mesmo disse, já se encontravam na sala. Mas isso não foi na altura que nos deixaram aqui, a mim e a Mr. Pomfret, para irem para a sala amarela; foi ainda antes de virmos para esta sala. Eu cheguei as duas e quinze e o carrinho de bar já estava lá, e toda a gente estava presente na altura. Voltou-se para Pomfret. — Sendo assim, o senhor podia ter visto alguém colocar alguma coisa dentro da taça, não podia?

—        Calculo que sim, respondeu Pomfret com voz rouca. — Mas não vi.

—        Eu vi, disse uma voz. Todos se apressaram a olhar para Garda Tusar.

—        Quem? Quis saber Damon.

 

Ignorando-o, Garda se levantou da cadeira onde estivera sentada até então, ao lado de Adolph Koch e junto ao grande biombo, e se aproximou da cabeceira da mesa. Aparentemente, a sua intenção era encarar alguém, e assim fez. A pessoa em causa era Dora Mowbray. Os olhos negros de Garda refulgiram quando olhou para a pianista, e a jovem levantou a cabeça e enfrentou o olhar.

 

—        Foi você, acusou Garda. — Eu a vi. Aproximou-se da prateleira...

 

Seguiram-se movimentos simultâneos e universais; era como se os sistemas nervosos daquelas pessoas muito bem educadas tivessem atingido o limite da tensão que eram capazes de absorver e não aguentassem mais. Felix Beck rosnou qualquer coisa, Hebe pareceu perder o fôlego, Diego se levantou de forma tão precipitada que derrubou a cadeira... Mas as reações mais violentas foram as de Ted Gill e de Henry Pomfret. Ted percorreu de um salto a distância que o separava de Garda, agarrou-a violentamente por um braço e obrigou-a a se voltar; ela perdeu o equilíbrio, caiu de encontro à mesa e provocou a queda da taça de incenso no chão; Pomfret gritou e saltou na direção da taça, que tentou agarrar sem conseguir, deu meia volta e esmagou o punho de encontro ao queixo de Ted; o detetive e os policiais se apressaram a imobilizar Pomfret, Ted e Garda.

 

—        Para trás! Ordenou Damon secamente. Dirigiu um olhar furioso a Pomfret. — Que raio foi isso?

—        Lamento, disse Pomfret.

 

Mas não tinha o ar de lamentar fosse o que fosse. Arquejava. Curvou-se para apanhar a taça, que estava intacta. Os olhos de Ted pareciam adagas prestes a perfurar Garda.

 

—        Gostaria de lhe devolver este murro com juros, disse entre dentes. — Não sei o que tem contra Miss Mowbray, mas se continuar com esses delírios...

—        Ted! Era a voz de Dora. A moça chegou junto dele e colocou uma mão sobre o seu braço. — Por favor! Ela não está delirando. Eu coloquei o papel na taça. Ted ficou olhando para ela de boca aberta. O inspetor se voltou para Dora e inquiriu:

—        Você?

—        Sim. Seguiu-se um silêncio atônito.

—        Por Deus, grunhiu Diego. — Minha pequena Dora...

—        Não, Diego. Dora abanou a cabeça. — A sua pequena Dora não colocou veneno no uísque do Perry. Os lábios lhe tremeram e, em seguida, se curvaram de uma fúria súbita e o seu rosto ficou vermelho. — Olhem para vocês! Todos! Os seus rostos! Vocês acreditam... Que porque eu... Oh, se o meu pai aqui estivesse! É tudo tão hediondo... Desde que ele morreu...

—        Estou aqui! Disse Ted. Sem deixar de olhar para ela, Damon disse secamente:

—        Quanto a ter colocado o papel na taça...

—        Fui eu que o pus lá. Dora enfrentou o olhar do inspetor. — Já disse que fui eu. Estava na minha bolsa.

—        Quem é que o colocou na sua bolsa?

—        Não tenho ideia. Encontrei-o quando saímos da sala amarela para virmos para aqui. Pegou na bolsa castanha que se encontrava em cima da sua cadeira, levantou-a diante dos olhos do inspetor e indicou um compartimento exterior, feito com uma dobra suplementar do tecido. — Estava aqui. Notei o alto, enfiei a mão e tateei-o com os dedos para ver o que era. Não faço ideia de onde possa ter vindo. Não me pareceu mais nada além de um pedaço de papel amassado, e coloquei-o na taça quando passamos por ela.

—        Está dizendo que alguém o colocou aí enquanto a bolsa estava na sua mão.

—        Não. Eu não disse isso. Deixei a bolsa num sofá da sala amarela quando o Perry... Quando fui até ao outro lado da sala com Mr. Durham.

—        E foi quando voltou a pegar na bolsa que reparou no alto provocado pelo papel?

—        Foi.

—        Quanto tempo a bolsa esteve em cima do sofá?

—        Bem, esteve... Quinze ou vinte minutos.

—        Porque é que foi até ao outro lado da sala com Durham?

—        Porque ele disse que queria conversar comigo.

—        Sobre o quê?

—        Sobre... Uma coisa... Um assunto pessoal.

—        Estava noiva de Perry Durham?

—        Isso não é da sua conta. Mas não estava. O inspetor emitiu um som semelhante a um grunhido.

—        Decerto ficaria surpreendida se soubesse o que a polícia considera ser da sua conta num caso de homicídio, disse secamente. — E o que não conseguimos de uma maneira, conseguimos de outra. Se for possível. Estava apaixonada por Durham?

—        Santo Deus, não!

—        Odiava-o?

—        Não.

—        Era sua amiga íntima?

—        Não. Dora franziu o cenho. — Conhecia-o desde sempre. A mãe dele e o meu pai eram amigos.

—        Gostaria de saber sobre o que ele queria falar consigo, esta tarde. Se recusar me dizer do que se trata, não pode me censurar se...

—        Eu não vou me recusar. Queria saber da outra nota de suicídio deixada pelo Jan. Queria saber se a tinha visto... Se eu tinha lido alguma parte da mesma.

—        Nota de suicídio? Quem é Jan?

—        Jan Tusar, intrometeu-se Tecumseh Fox. — Suicidou-se... Deu um tiro na cabeça... Na noite de segunda-feira passada, no Carnegie Hall. Acho que vai ter de meter mais essa carta no seu baralho, e eu posso lhe poupar muito tempo nessa parte. Os seus olhos enfrentaram os dos outros. — Estou certo de que compreenderão que a questão de ir ou não à polícia por causa da história do violino já não se coloca. A polícia está aqui. Inspetor se quiser limar arestas, sugiro que se reúna comigo e com um homem com um bloco de notas... A propósito, Miss Tusar, uma vez que a polícia está aqui, que me diz daquela coisa que estava guardando para eles? Pode, perfeitamente, entregá-la agora. Não pode querer melhor que o chefe da Delegacia de Homicídios.

 

Garda, que tinha se deixado cair sobre uma cadeira ao lado de Diego, abriu a bolsa, retirou o envelope e entregou-o a Damon. O inspetor colocou olhar de relance para o endereço e, em seguida, retirou o papel que se encontrava no interior do envelope e leu:

 

Quem tentar prejudicar o Reich sofrerá o que o seu irmão sofreu. Heil Hitler!

 

—        Meu Deus, murmurou desagradado. — Quem esperaria uma coisa destas? Olhou para Garda com espanto. — Então, você era casada com Tusar? E o Durham era seu irmão? Garda olhou para ele fixamente.

—        Não, disse Fox, impaciente, — O violinista era irmão dela. Isso é apenas uma pequena parte da história que estou lhe oferecendo de mão beijada. A menos que se sinta com vontade de começar do zero...

—        Obrigado, aceito. Gosto de pechinchas. Damon se dirigiu ao grupo. — Há pouco pedi que colaborassem ficando juntos na mesma sala. Agora, depois de termos descoberto aquele papel na taça, assim como outras coisas, ordeno que o façam. Vou começar por Fox, e vocês serão notificados quando estiver pronto para falar com cada um. Ryder leve um homem consigo e não saiam do pé deles. Mr. Pomfret quer fazer o favor de conduzi-los a uma sala onde possam se sentar? E, Ryder, chame o Kossoy e fale para trazer um bloco de notas; além disso diga ao Craig que quero falar com ele.

 

—        Eu não chamaria uma pechincha, disse o inspetor Damon num tom da mais completa aversão. — Parece a maior confusão que já vi em toda a minha vida.

 

Estava sentado à cabeceira da grande mesa, com Fox à sua direita e o Detetive Kossoy, de cenho franzido enquanto se concentrava no bloco de notas, à sua esquerda. Estavam ali há cerca de uma hora. Poucas tinham sido as interrupções, entre as quais se contava um telefonema do laboratório para dizer que tinha sido encontrada uma elevada percentagem de cianeto de potássio no uísque recolhido no teto do carro preto com o absorvente medicinal, assim como outro telefonema, desta feita do médico legista assistente, para dizer que também tinha encontrado cianeto; mas Fox tinha falado a maior parte do tempo. Estava tudo apontado no bloco de notas de Kossoy, tudo o que Fox tinha visto e ouvido. Até tinha entregado ao inspetor um envelope que continha o pedaço de verniz que tinha conseguido raspar do violino. Fox se levantou para esticar as pernas, voltou a se sentar e disse:

 

—        Pode ser uma confusão, mas não deixa de ser uma pechincha. Há pessoas que pagariam bom dinheiro por um relatório como o que acabei de lhe apresentar. Damon assentiu. Olhou de esguelha para Fox.

—        Há uma coisa que se esqueceu de mencionar. Onde é que você entra?

—        Eu não entro. Não em termos profissionais. Fox sorriu para os olhos mortiços para o queixo de pugilista do outro. — Sério que me pode riscar do mapa. Não escondi nada. Isto é, no que diz respeito aos fatos. Claro que posso ter uma dedução ou outra, como diria Schaeffer...

—        Claro. Porque raio é que um homem grande e forte como ele não arranja um emprego a sério? Que deduções, por exemplo?

—        As deduções custam muito mais que os relatórios.

—        Julguei que tinha dito que não tomava parte nisto. O que é que pretende?

—        Nada. Para ser franco, o senhor é perfeitamente bem-vindo neste caso, Inspetor, incluindo na parte do assassinato, ainda que não legalmente, continua a ser assassinato, de Jan Tusar. Não se esqueça desse componente, porque é uma parte do seu problema. Estava tentando descobrir o que tinha acontecido, quando a solução me caiu nas mãos. Foi muito inteligente. Demasiado hábil e subtil. Matar um homem entornando verniz num violino! Consegue imaginar a mente capaz de imaginar uma coisa assim? Espero que consiga. É obrigado a fazê-lo, se quiser apanhar o assassino de Perry Durham.

—        Acha que existe uma ligação entre os dois crimes. Acha que Durham sabia qualquer coisa sobre o verniz no violino, e descobriu-o perante o assassino quando disse que o apanhara mexendo no violino quando o julgou ausente. Foi por isso que ele foi assassinado. Damon resmungou qualquer coisa. — Pode ser que tenha razão, mas se acha que essa dedução é suficiente...

—        Oh, não é nada de que me possa gabar, admitiu Fox. — Mas o mesmo não se pode dizer deste truquezinho engraçado. Tirou um bloco de notas do bolso e destapou a caneta. — Vejam. Quando os outros se inclinaram para ver, fez dois desenhos no bloco.

—        Belo truque, disse Damon em tom sarcástico. — Acha que pode aprender a fazê-lo, Kossoy? Ignorando-o, Fox pediu:

—        Deixe ver o que Miss Tusar lhe entregou. Pegou no envelope que Damon lhe estendeu, retirou a folha de papel que se encontrava no seu interior e colocou-a em cima da mesa, ao lado do bloco de notas. — Muito bem. Qual das suásticas que desenhei condiz com a da carta Nazista? Claro que notou a diferença.

—        Com certeza. A da esquerda.

—        Correto. E esse é o desenho tradicional da cruz suástica, um desenho que os chineses utilizaram durante séculos como símbolo de sorte. Mas quando Hitler passou a usá-la como marca registada, cometeu um erro ou alterou deliberadamente o desenho; de qualquer modo, a suástica nazista é igual à minha suástica da direita. Nenhum nazista desenharia uma suástica como a da esquerda, portanto, não foi nenhum nazista que enviou a carta a Miss Tusar. É uma falsificação.

—        Raios me partam, murmurou Kossoy. — Posso ficar com isso?

 

Fox arrancou a folha de papel do bloco de notas e entregou-a; depois colocou a carta dentro do envelope e entregou-o a Damon.

 

—        Isso, observou, — Constitui uma pequena ajuda. Ao menos não vai perder tempo tentando estabelecer a ligação de um deles com Berlim ou com o Reich. Só espero que este não seja o único erro cometido pelo assassino. Damon olhou para ele com expressão carrancuda.

—        Você me ouviu dizer à Central para colocar vinte homens em alerta e a dar uma especial atenção à questão nazista.

—        É verdade, admitiu Fox, — E senti inveja de si. Por ter um exército assim pronto a atuar!

—        Tem mais algum truque engraçado para nos mostrar?

—        Bom... Fox pensou um pouco. — Funcionam melhor com um intervalo de tempo entre eles. Claro que vai ouvir um monte de mentiras, como é hábito, mas sou da opinião que não vai ouvir nenhuma de Miss Mowbray. Seria capaz de mentir numa emergência, é natural, qualquer pessoa o faria, mas duvido que tenha alguma coisa sobre o que mentir, e acredito na história que contou sobre o papel com o veneno. Diego Zorilla é meu amigo. Isso não basta para convencê-lo que ele não envenenou o Durham, mas é suficiente para mim... Até notícia em contrário. Penso que qualquer um dos outros dá um bom suspeito, exceto Mrs. Pomfret, mas nem por ela ponho as mãos no fogo.

—        Eu conheço as tabelas de multiplicação. Eu estava falando de truques. Fox abanou a cabeça.

—        Não tenho mais nada para si. Se fosse trabalhar neste caso, coisa que não vou fazer, graças a Deus, começaria do zero. Guardou o bloco e a caneta nos respectivos bolsos, puxou a cadeira para trás e se levantou.

—        Aonde vai? Perguntou Damon.

—        Depende. Se me der o meu passaporte, vou para casa. Caso contrário, acho que terei de me juntar... O inspetor resfolegou incrédulo.

—        Está mesmo se vendo que gostaria de ir para casa. E deixa o caso pendurado? Se bem o conheço, isso é coisa que nunca faria. E eu o conheço bem. Se o mandar lá para dentro, para ao pé daquela gente... Você fica aqui. Sente-se. Ali, ao lado do Kossoy. Fox sorriu para o inspetor.

—        Mas não assumo qualquer compromisso. Para o caso de me ocorrer mais algum truque.

—        Eu também não. Damon se voltou para um homem fardado que se encontrava sentado ao pé da porta. — Peça a Mrs. Pomfret que venha aqui.

 

Passavam poucos minutos das sete da tarde quando Mrs. Pomfret entrou na biblioteca. Passavam alguns minutos da meia-noite quando o ajudante de cozinha, o último a ser interrogado, saiu. Quando a porta se fechou atrás deste, o Inspetor Damon soltou uma leva dos mais impressionantes palavrões imagináveis numa espécie de murmúrio cansado; os seus olhos, raiados de sangue devido à fadiga, fixaram com repugnância selvagem os dois blocos de notas cheios de rabiscos, da primeira à última página, que se encontravam diante do Detetive Kossoy.

 

—        Enfim, suspirou Fox, — Os sanduíches de peru defumado estavam bons.

—        Foi uma dessas pessoas que envenenou o homem, rosnou Damon.

 

O que não era uma conclusão particularmente animadora depois de seis horas de trabalho, mas era o que tinham conseguido. Nenhum dos inquiridos fora capaz de lhes fornecer uma conjectura sequer passível de desmascarar alguém capaz de alimentar o desejo de matar Perry Durham. Ainda que muitos deles tivessem diferentes graus de desagrado relativamente à sua pessoa. Apesar de ter ficado estabelecido que o veneno fora colocado no uísque durante a primeira reunião de todos na sala amarela, e não depois de voltarem da biblioteca, não tinha sido possível eliminar qualquer das pessoas que constavam da lista de suspeitos, ninguém tinha a certeza de que algum dos outros não tivesse se aproximado do bar. Por outro lado, ninguém admitira ter observado qualquer ação suspeita por parte de qualquer um dos outros, como pegar na garrafa de Bourbon, ou se demorar demasiado junto ao bar, ou denunciar agitação e tensão. Em suma, se alguém tinha visto algo que pudesse conduzir a mais breve das acusações, não o revelara durante o interrogatório. Até Garda admitiu que não vira nada de furtivo ou dissimulado nos gestos de Dora quando esta deixara o papel na taça; tinha pura e simplesmente se aproximado da prateleira e colocado a bola de papel para dentro da taça.

 

Três deles, Koch, Dora e Henry Pomfret, tinham a certeza de que Perry não tinha bebido antes de trocarem a sala amarela pela biblioteca, deixando assim em aberto a questão de saber quando o Bourbon tinha sido envenenado. Nem sequer era certo, apesar de ser altamente provável, que o envenenamento tivesse tido lugar na sala amarela. Os criados afirmaram que o

Bourbon tinha sido guardado, juntamente com outras bebidas, num armário aberto da copa; e Schaeffer declarou que tinha montado o carrinho de bar na referida copa, conduzindo-o depois para a sala amarela. A pergunta de quando teria sido servida a última bebida da garrafa de Bourbon também ficou sem resposta; ninguém sabia ao certo.

 

A única ação conhecida e reconhecida que poderia ao menos constituir um ponto de partida para algo mais concreto, parecia não ter passado de uma incrível e fantástica bizarria; quando entrou na biblioteca para ser interrogada, Hebe já tinha se esquecido por completo de que tinha atirado a garrafa pela janela. Foi isso que a atriz afirmou. O interrogatório dela acabou com Damon olhando, sem fala, para aqueles olhos gloriosos, o que obrigou Fox a uma intervenção piedosa, pedindo a um policial que a levasse.

 

O Comissário de Polícia foi a casa dos Pomfret, onde permaneceu uma hora antes de ir embora. O Procurador chegou por volta das nove da noite e partiu à meia-noite. Foram recebidos relatórios mais detalhados, oriundos do laboratório e da morgue; o Sargento Craig e a sua equipe de peritos terminaram o seu trabalho e partiram; as mandíbulas famintas da comunicação social foram alimentadas com um suculento osso; foram mandados policiais com uma chave ao apartamento de Perry, na Rua 51, para examinarem os seus papéis e pertences em busca de uma possível pista; o Capitão da polícia que tinha investigado o suicídio de Tusar foi arrancado da cama e chamado ao gabinete do Procurador.

 

Ainda assim, a melhor conclusão que se tirou foi a que a garganta cansada do Inspetor Damon grunhiu quando faltavam vinte minutos para a uma da manhã:

 

—        Foi uma daquelas pessoas que envenenou o homem. Fox se levantou da cadeira onde estivera sentado e compôs as roupas.

—        Bom, se ainda acha que não quero ir para casa, aconselho-o a pôr-me à prova, disse. — Para dizer a verdade, estou pronto para fazer a minha imitação de cidadão indignado. Quer assistir?

 

Damon abanou a cabeça, esfregou os olhos com os dedos, piscou para a taça de incenso enquanto tentava focar de novo a visão e se levantou.

 

—        Muito bem, disse, desagradado. — Recolha os seus blocos de notas, Kossoy. Acho que não há aqui mais nada que nos interesse. Avançou para a porta e disse ao agente fardado: — Mostre-me onde eles estão.

 

Fox seguiu-os quando atravessaram o corredor e a sala de recepção, até entrarem na vasta câmara a que Pomfret chamara “A Catedral”. Naquela ocasião, melhor seria se tivesse chamado de mausoléu, ou mesmo outro termo mais lúgubre. Até os dois polícias que se encontravam de guarda, um em cada extremidade da sala, pareciam ter cedido ao penetrante miasma de melancolia. Sete rostos alterados, pois os Pomfret não se encontravam ali, se voltaram para a porta quando o inspetor entrou. Koch de uma cadeira próxima da ocupada por Hebe Heath, Diego desde a janela do lado oposto àquele em que se encontrava Felix Beck, Dora do divã onde estava estendida, Ted Gill debaixo do candeeiro junto do qual se tinha sentado a ler o jornal, e Garda de um banco defronte de um dos pianos. Koch começou a dizer qualquer coisa, mas Damon levantou a mão.

 

—        Vamos embora, anunciou secamente. — Os senhores estão livres para seguirem as suas vidas. Posso precisar de falar com um ou com todos vocês pela manhã, e espero encontrá-los nos endereços que me forneceram. Nenhum pode deixar a cidade. Se as senhoras quiserem ser escoltadas até a casa... O jornal de Ted caiu ao chão quando este se pôs de pé.

—        Eu levo Miss Mowbray a casa, disse em tom agressivo, aproximando-se do divã. — Se me permitir, acrescentou. A moça se sentou e protestou debilmente:

—        Não é necessário...

—        E eu? Perguntou tragicamente Hebe Heath. Desamparada e com os cabelos em desalinho, estava mais atraente que nunca. — Oh, Ted!

—        Se me der esse prazer, Miss Heath, disse Adolph Koch, inclinando-se para ela com uma graça social absolutamente notável naquelas circunstâncias.

—        E você, Miss Tusar? Perguntou Damon.

—        Eu levo, se ofereceu Diego Zorilla com voz rouca e nenhuma graça social.

—        Não leva, não senhor, respondeu Garda. — Apesar de remelentos, os olhos dela ainda conseguiam refulgir. — Eu apanho um táxi... Diego encolheu os ombros e se voltou para Fox:

—        Vem comigo? Pelo amor de Deus, vamos sair daqui, e se dirigiu para a porta principal.

 

Fox seguiu-o. Na sala de recepção, um criado entregou os respectivos pertences, enquanto um homem de terno os observava. Tiveram de esperar que Damon os autorizasse a sair. O ascensorista ignorou todas as regras do decoro e da disciplina e não parou de observá-los durante toda a descida. O pessoal de serviço noturno ao átrio também os observou, tal como os membros do pequeno grupo que se encontrava debaixo do toldo do passeio: o porteiro, dois policiais e dois ou três jovens. Um deles saltou sobre Fox como uma ave de rapina.

 

—        Ouça Mr. Fox, tenho estado à sua espera, e isto está pedindo um artigo de duas colunas com intertítulos... Foi preciso percorrer um quarteirão a passo rápido e recorrer a palavras mais ríspidas para o enxotarem.

—        Tenho as luvas no bolso do lado direito, resmungou Diego. — E eu guardo-as sempre no bolso do lado esquerdo.

—        Claro, disse Fox, — Eles não deixam passar nada. O meu carro ficou na esquina da Rua 69. Quer carona?

—        Quero uma bebida.

—        Nas últimas horas não teve mais nada para fazer a não ser beber.

—        Não fui capaz, não ali. Bebi um uísque mínimo, e mesmo assim estive à beira de vomitá-lo. E ainda não satisfiz o estômago. Que diz de irmos a minha casa comer um sanduíche?

—        Posso dizer o que quer saber numa única frase. A polícia sabe tanto quem matou o Durham como você.

 

Mas Diego protestou, dizendo que aquilo não era tudo o que queria. Explicou que queria a companhia do amigo enquanto tomava uma bebida e saboreava um sanduíche. E apesar de alegar que tinha noventa quilômetros para percorrer e que precisava dormir oito horas de modo a estar em forma para podar videiras logo pela manhã, Fox acabou por ceder. Foram no carro do detetive, tendo parado numa loja de conveniência para comprarem os sanduíches. Chegaram à casa de Diego, na Rua 54, num prédio antigo com fachada de pedra. Subiram dois lances de escadas antes de chegarem ao apartamento do espanhol. Apesar da velha mobília poligenista, a sala de estar de tamanho médio era confortável e algo atraente. Diego fez as honras com um floreado espanhol, guardando depois o chapéu e o casaco de Fox num armário.

 

—        Vou servir o banquete, anunciou. — Quer um pouco de soda para acompanhar o uísque?

—        Por acaso não tens café?

—        Claro. Sou eu que o faço para o café da manhã. Dê-me dez minutos.

—        Fantástico. Seria capaz de transformar qualquer mulher numa boa esposa. Onde posso lavar as mãos?

—        Do outro lado daquela porta.

 

Fox se dirigiu para o lavabo. Atrás da porta fechada, se permitiu o luxo de um prolongado bocejo, seguido por uma careta de insatisfação. Queria podar as vinhas na manhã seguinte, mas gostaria de desfrutar da realização de um tal trabalho, de saboreá-lo, e conhecia demasiado bem o modo de funcionamento da sua mente para saber que nas atuais circunstâncias não sentiria qualquer prazer em se debater com esporos e com varas de suporte de vinhas. Mesmo naquele instante, quando se sentia, ou devia sentir, sonolento, só um enorme esforço de vontade o impedia de mergulhar no fascinante problema que constituíam os processos cerebrais de Hebe Heath.

 

Lavou as mãos e o rosto e procurou uma toalha. Não viu nenhuma no toalheiro nem no gancho da porta. Descobriu uma porta menor do seu lado esquerdo e abriu-a, deixando a descoberto uma série de prateleiras repletas de toalhas e de outros objetos. Pegou numa toalha turca, que preferia às mais macias, enxugou o rosto e, enquanto limpava as mãos, deu uma vista de olhos aos artigos que se encontravam nas prateleiras. No entanto, apesar de ter cedido a um impulso de curiosidade ociosa, e mesmo com a sua capacidade treinada de observação, só a sua visão extraordinariamente apurada lhe permitiu divisar um objeto que de outra forma não teria reparado, uma vez que a penumbra imperava no interior do armário. Mas viu o objeto, ou a parte superior do mesmo, atrás de uma pilha de toalhas. Olhou para ele e, por fim, estendeu a mão para puxá-lo para a luz.

 

Examinou-o sob a luz do lavabo, com uma expressão cada vez mais carregada. Atentou no brilho negro e puro, nas delicadas decorações em esmalte branco do fundo. Nos dragões e flores amarelo douradas que ornamentavam o meio, intercaladas com ramos e folhas verdes. O formato estranho, mesmo único, pois Pomfret tinha dito “único”. Não havia dúvida possível. Era o vaso retangular preto Wan Li de Pomfret, o mesmo de que este lhe mostrara uma fotografia e que Mrs. Pomfret acreditava ter sido roubado por Hebe Heath.

 

Fox voltou a colocar o vaso no armário, fechou a porta, se voltou para o lavatório e lavou de novo as mãos. Precisava pensar um pouco, decidir como pegar no vaso. Na verdade, não tinha vontade nenhuma de segurá-lo; de saber como foi parar ao armário de Diego. Pegar nele não tinha nada a ver com podar vinhas. Mas seria ridículo esperar que um animal que descende do macaco não se sentisse tentado a mexer numa coisa como aquela. Fox cobriu as duas mãos com a toalha e retirou o vaso do armário. Abriu a porta do banheiro, saiu para a sala e perguntou:

 

—        Hei, Diego, onde é que arranjou isto?

—        O quê? Diego espetou a cabeça para fora da quitinete, do outro lado da sala. — Onde é que arranjei o quê? Oh...

 

Viu o vaso. Uma expressão rígida lhe cobriu o rosto. Ficou imóvel por um instante e, em seguida, atravessou a sala.

 

—        É um achado, disse Fox, entusiástico. — Onde o arranjou?

—        Isso? Perguntou Diego roucamente. — Ora... Não faço ideia. Alguém me deu. Começou a estender a mão para o vaso, mas acabou por deixá-la cair. — Porquê, vale alguma coisa?

—        Claro!. Não sou nenhum perito, mas julgo que se trata de um Ming do séc. XVI. Quanto quer por ele?

—        Oh, eu... Como é que o viu? Andava a procura de aspirinas?

—        Não, de uma toalha. Não tinha nenhuma no toalheiro. A sério que gostaria de comprá-lo.

—        Claro que gostaria. Diego riu de forma pouco convincente. —Ainda estou para ver o que é que não queres comprar. Mas eu... Hum... Quero dizer, detestaria enganá-lo. Duvido que valha grande coisa... Não vejo como possa valer. Como é que o viu?... Está escuro ali dentro...

—        Tenho olhos de gato. Vi o brilho do esmalte verde e dourado. Fox pousou o vaso em cima de uma mesa. — Avisa-me se decidir vendê-lo. Este cheiro é de café, não é?

 

 

Meia hora depois, quando Fox partiu, não tinham voltado a fazer mais nenhuma referência ao vaso. Levando em conta os eventos do dia, seria de esperar que os sanduíches e o café não representassem exatamente o equivalente a uma festa, mas Diego se mostrou tão azedo e sombrio que quase valia a pena perguntar por que tinha pedido ao amigo que lhe fizesse companhia.

 

Por esse motivo, e enquanto guiava de regresso a casa por entre os torvelinhos fantasmagóricos da neblina noturna que o obrigava a não ultrapassar os sessenta quilômetros por hora, Fox tinha mais uma coisa com que se preocupar. Era absolutamente certo que Diego sabia que o vaso guardado no armário do seu banheiro era a propriedade roubada de Henry Pomfret, de cuja coleção fora a peça mais valiosa. Era quase certo que Diego não tinha roubado o vaso; na eventualidade de ter sido o espanhol a roubá-lo, era praticamente certo que o fez por um motivo mais complexo e romântico que a simples aquisição de um objeto de valor. Porque era impossível enquadrar o Diego que conhecia em tamanho lugar comum de vulgaridade.

 

Durante uma semana inteira, esse e outros enigmas mais ou menos persistentes ocuparam o cérebro de Fox de forma constante, sem que este tivesse descoberto uma solução vidente para qualquer deles. Durante sete dias, podou videiras, construiu estufas, removeu as camadas de palha húmida que tinham protegido as raízes recém-plantadas dos rigores do Inverno, reparou vedações, ajudou uma vaca a parir e executou um cento de outras tarefas que costumava deixar ao cuidado de Sam Trimble ou de qualquer convidado do Zoo que se sentisse na obrigação de pagar assim pela hospitalidade.

 

Aproximava-se a festa anual da Primavera. Foi interrompido uma vez, na terça-feira, quando recebeu um telefonema de Nova Iorque requisitando a sua presença no gabinete do Procurador, do que não resultou qualquer esclarecimento para nenhuma das partes. E ocupou as noites lendo jornais. No entanto, e apesar das dúzias de artigos publicados ao longo da semana sobre o crime Durham e a sua relação com o espetacular suicídio de Jan Tusar, todos os enigmas permaneceram intactos. A imprensa acabara por saber do verniz no violino e isso acontecera por meio de comunicado oficial, o que constituiu uma verdadeira mina. A Gazette até levou à primeira página uma fotografia que afirmava ser do próprio violino em causa, com uma seta em forma de adaga apontando para a abertura em f por onde o verniz fora colocado, o que não deixava de constituir um extraordinário feito jornalístico, tendo em conta que o violino permanecia guardado no mesmo cofre de banco onde Fox o depositara.

 

Na quarta-feira os cabeçalhos foram ocupados por um número paralelo ao caso, uma divagação concebida, planejada e executada por Hebe Heath. Como Fox teve oportunidade de verificar ao ler os jornais, um número que tinha todas as características do gênio peculiar da atriz: simplicidade, desconexão pura e uma imbecilidade imaculada. A atriz tinha se metido num avião para a Cidade do México, onde acabara por conseguir chegar; posteriormente instada a regressar, por meio de telegrama, tinha se recusado a fazê-lo. Ainda se encontrava lá na quinta-feira, dia em que Mr. Theodore Gill partiu para buscá-la. Na sexta-feira continuavam os dois na Cidade do México e, ao que tudo indicava, sem qualquer intenção de voltar. No sábado a Gazette crucificou a polícia por ter deixado Gill escapar tendo este recorrido a tal subterfúgio; mas os jornais de domingo noticiaram que o agente conseguira trazer de volta a atriz.

 

Hebe deu entrevistas. Explicou que tinha fugido de Nova Iorque para escapar a toda àquela exposição. (Segundo Fox, era precisamente aí que residia a sua obra prima). A atriz tivera duas boas razões para escolher a Cidade do México. Em primeiro lugar, nunca estivera ali antes, em segundo, o primeiro voo com partida de Nova Iorque tinha como destino aquela cidade. Hebe Heath não tinha o menor desejo de fugir à responsabilidade de colaborar com o processo de investigação; fazer tal coisa, declarou, seria absolutamente revoltante... Fox recortou a entrevista concedida pela atriz ao Times e guardou-a no seu álbum pessoal.

 

Recebeu um telefonema de Mrs. Pomfret na manhã de segunda-feira. A voz da mulher tinha um tom arrastado como nunca ouvira; na verdade, quase não a reconhecera ao telefone. Irene Pomfret pediu que a visitasse assim que fosse possível. O detetive respondeu que estaria em casa dela às duas da tarde. Chegou exatamente à hora marcada e foi conduzido a um canto da recepção e entrou num elevador particular que o levou ao segundo andar do duplex, onde foi depois conduzido por um corredor que ia dar a uma divisão mais feminina nos seus aromas e decorações do que alguma vez esperara em Irene Pomfret, seria uma sala de estar ou um quarto de vestir; calculou que se tratasse da segunda hipótese. As cortinas estavam corridas, mas mesmo à média luz era possível verificar que o rosto de Mrs. Pomfret se encontrava tão alterado como a sua voz. Os olhos habitualmente alegres e sagazes pareciam esferas vítreas por baixo das pálpebras raiadas de vermelho, e a pele que Rubens teria admirado tinha perdido o lustro e ganhara uma cor de chumbo.

 

—        Estou esgotada, disse. Era uma explicação, não um pedido de simpatia ou de compreensão. — Fico tonta só de me levantar. Sente-se naquela cadeira, que é a mais confortável. Barbeou-se há pouco tempo. Fox lhe dirigiu um sorriso.

—        Devia ter me visto esta manhã.

—        Ainda bem que não vi. Quero que descubra quem assassinou o meu filho. Fox apertou os lábios.

—        Bem, Mrs. Pomfret...

—        Alguém tem de fazê-lo. Já se passou mais de uma semana. Oito dias. Não quero que pense que sou uma velha vingativa.

—        Neste momento, calculo que aquilo que eu penso não deve ter especial importância.

—        Pois bem, está enganado. É importante. Pegou num lenço e enxugou os olhos. — Não estou chorando. Mas tenho os olhos inflamados. Sempre reprovei as pessoas vingativas, e não me agradaria que alguém pudesse pensar que sou uma delas. Mas o senhor deve ser capaz de perceber a razão deste meu pedido. O meu filho morreu aqui, em minha casa, diante dos meus olhos. Assassinado por uma daquelas pessoas. É razoável esperar que me arraste assim indefinidamente, talvez para sempre, sem saber quem o fez? Alguns deles eram meus amigos! Pedi ao meu advogado que o investigasse.

—        Não faz mal. Já fui investigado antes.

—        Calculo que sim. Ele me informou que gosta de demonstrar a sua superioridade, mas é confiável. Não gostaria de ter nenhum manhoso de fama duvidosa cuidando do caso. Ele também se deparou com um boato acerca de você ter morto dois homens por causa de algo que aconteceu com uma jovem. Fox se sentiu gelar. Ficou rígido por um instante e, em seguida, se levantou.

—        Se o que lhe interessa são rumores... Disse friamente. Preparou-se para sair. Uma exclamação nas suas costas não o impediu de se dirigir para a porta; mas antes que conseguisse agarrar o puxador sentiu o braço agarrado por dedos dotados de uma força surpreendente. Parou.

—        Isto é absurdo! O tom era exigente, e não apologético. — Acha que eu sabia que o assunto o melindrava tanto? Limitei-me a falar nisso sem pensar! Eu digo as coisas sem pensar...

—        É um mau hábito, Mrs. Pomfret. Por favor, largue o meu braço.

 

Ela lhe soltou o braço e deixou a mão cair ao longo do corpo; olhou para Fox sem vacilar perante a frieza do olhar deste.

—        Não vá embora, ela pediu. — Peço-lhe que me desculpe. Acho que é realmente um mau hábito. Preciso de si. Tenho esta mania de fazer os meus próprios julgamentos das pessoas. Disse ao meu advogado que queria contratá-lo e foi ele que decidiu investigá-lo. Eu não tinha qualquer necessidade de fazê-lo. Claro que quando o Diego me falou da sua contribuição para o fundo para a aquisição do violino pensei que o tivesse feito com o objetivo de entrar para o meu círculo de relações, mas quando declinou o meu convite para a festa de apresentação entendi de imediato que não era assim. Mas não vai declinar desta proposta. Não o permitirei. A polícia não conseguiu nada. Ou são burros de todo ou encontraram um adversário muito mais inteligente. Cambaleou um pouco, mas não tardou a se recompor. — Não me aguento dois minutos de pé, continuou. — Não consigo dormir e me recuso a tomar seja o que for. Isto me atingiu... De uma forma cruel... Pode me dar o braço, por favor?

 

Fox se colocou ao lado dela e permitiu que Irene Pomfret se apoiasse no seu cotovelo até voltar a se sentar na cadeira que antes ocupara. Era de crer que estivesse realmente destroçada, decerto que sim, uma vez que utilizara por duas vezes a expressão ”velha” para se referir a si mesma, algo que seria impensável dez dias antes. Além do mais, era certo e sabido que quando eram atingidos por alguma tragédia, os egoístas eram sempre profundamente atingidos.

 

—        Sente-se, convidou Mrs. Pomfret. — Posso lhe pedir desculpas de novo, se desejar. Não consigo alterar os meus hábitos, nem mesmo agora. Espere. Antes de se sentar guarde o cheque está debaixo daquele vaso, em cima da mesa. É um sinal. Se não for suficiente, diga.

—        Não há qualquer pressa quanto a isso. Fox se sentou. — Tem a certeza que pretende me contratar para fazer este trabalho, Mrs. Pomfret?

—        Claro que tenho. Não faço seja o que for a menos que tenha a certeza que quero fazê-lo. Porque é que não havia de ter a certeza?

—        Porque, como disse, algumas daquelas pessoas são suas amigas. Na verdade, a senhora disse “eram”. Se aceitar o trabalho é para ir até ao fim. E se, por exemplo, tiver sido Dora Mowbray?

—        Dora? Não foi ela.

—        Pode ter sido. Ou o seu marido, ou o Diego. Peço-lhe que pense seriamente no assunto. O que está em causa não é um vaso roubado ou o verniz num violino; é um crime premeditado. Se eu, contratado por si, obtiver alguma prova da culpa de alguém, posso lhe garantir que não apresentarei essa prova unicamente a si. Uma daquelas pessoas será julgada, condenada e executada. Por mim, não vejo qualquer problema nisso. E a senhora?

—        Executada, repetiu Irene Pomfret asperamente. — Executada... Fox assentiu.

—        É essa a pena num caso destes, acrescentou.

—        O meu filho morreu. Em agonia. Comigo acompanhando. Não foi assim?

—        Foi.

—        Nesse caso...

—        Muito bem. Por favor, conte o que lhe disse no domingo à tarde. Quando eu queria interrogá-lo acerca do violino e a senhora insistiu em falar com ele primeiro. Mrs. Pomfret piscou os olhos avermelhados.

—        O senhor estava presente quando o inspetor me fez essa mesma pergunta, e ouviu a minha resposta. Ele não me disse nada.

—        Eu me lembro. A senhora disse que ele se riu para si e que a sossegou, lhe dizendo que ao tirar o violino da caixa tivera como única intenção me pregar uma peça. Mas agora não está falando com a polícia; está falando com o homem que contratou e, acredite, o seu filho não pegou no violino por brincadeira. Não havia nada de engraçado no que ele fez. E eu gostaria de saber exatamente o que ele lhe disse quando o interrogou a esse respeito.

 

Uma hora depois, Fox ainda não tinha ido embora e Mrs. Pomfret continuava sentada na sua cadeira, de ombros caídos, respondendo às perguntas do detetive. Uma hora mais tarde, Irene Pomfret já estava reclinada numa chaise longue, de olhos fechados, com Fox sentado ao seu lado, ainda lhe fazendo perguntas. Eram quase cinco da tarde quando o detetive deixou o apartamento. Levava consigo várias coisas que não tinha à chegada, entre as quais se contavam:


NO BOLSO, OBJETOS:

Um cheque no valor de cinco mil dólares.

A chave do apartamento de Perry Durham, na Rua 51.

Uma carta endereçada “A quem possa interessar”, assinada por Mrs. Pomfret.

 

NA MEMÓRIA; AFIRMAÇÕES DE MRS. POMFRET:

Suspeitava que Perry tivesse mantido uma relação com Garda Tusar, por causa dos comentários que Jan fizera a esse respeito; mas a lembrança que tinha desses comentários era vaga.

Garda tinha rompido o noivado com Diego Zorilla depois do acidente que lhe provocara a perda dos dois dedos e lhe arruinara a carreira, e Diego continuava perdidamente apaixonado por ela.

O vaso Wan Li tinha sido roubado durante a festa que dera para a apresentação do violino oferecido a Jan.

Hebe Heath devia estar na cadeia.

Se Hebe Heath não era a autora do roubo do vaso, o ladrão tinha de ser Adolph Koch, que o teria levado para a sua coleção particular, “muito inferior à do meu marido”.

Koch era um porco e um libertino.

 

NA MENTE; CONCLUSÕES A QUE CHEGARA:

Mrs. Pomfret sentia um afeto genuíno por Perry e lamentava a perda do filho, mas era o ultraje ao seu ego, ver o filho assassinado de forma abominável e impudente diante dos seus olhos, era intolerável e devia ser vingado.

A hostilidade implacável de Mrs. Pomfret em relação a Hebe Heath era a reação convencional de qualquer esposa tão velha (mais velha?) que o marido perante a presença de alguém como a atriz.

Mrs. Pomfret queria que Perry casasse com Dora Mowbray.

 

A maior parte dos novos dados, como Fox teve oportunidade de refletir enquanto procurava uma cabina telefônica, não eram desinteressantes enquanto material acessório para um estudioso do comportamento humano, mas pouco ou nada pareciam contribuir para responder às perguntas sobre quem tinha assassinado Perry Durham e conduzido Jan Tusar ao suicídio. Pior, a única linha de investigação que lhe sugeria era a que lhe resultava mais penosa; mas tinha aceitado o caso. Ligou para o número do apartamento de Diego, mas o espanhol não atendeu. Tentou os estúdios da Metropolitan Broadcasting Company e encontrou-o lá. Diego se mostrou rude e pouco civilizado ao telefone; disse que estava ocupado com uma pauta que lhe tomaria ainda mais algum tempo. Apesar de se mostrar incomodado, concordou se encontrar com Fox no seu apartamento às seis da tarde. Fox desligou, olhou para o auscultador com uma expressão carregada, discou um novo número e, dessa vez, teve mais sorte. Voltou para o carro e conduziu até à sede da Delegacia de Homicídios, na Vigésima Rua, pediu para falar com o Inspetor Damon e foi recebido de imediato.

 

Qualquer um que se sentisse curioso em relação ao ponto em que se encontrava realmente a investigação policial do crime Durham precisaria apenas assistir à reação do Inspetor Damon ao receber Tecumseh Fox. Levantou-se e deu a volta à mesa para cumprimentar o seu visitante e lhe apertou a mão como se de um amigo se tratasse. Fox lhe sorriu.

 

—        Meu caro, as coisas estão assim tão ruins?

—        Aqui está sempre tudo mal. Damon lhe indicou uma cadeira. — A única coisa que temos é a certeza de que lidamos com um crime. Tem alguma coisa em mente?

—        Não. Tenho atravessado um bloqueio mental. Lamento se o levei a pensar que podia ser o seu Papai Noel. Como vai a investigação do caso Durham?

—        Muito bem. Quem quer saber?

—        Eu e a pessoa que me contratou. Tenho um trabalho em mãos. Fox tirou um envelope do bolso e extraiu uma folha de papel que entregou ao inspetor. — Julgo que vai gostar de saber que, ao menos, consegui convencer Mrs. Pomfret a não despedi-lo.

 

Damon pegou na pequena folha de papel e lhe deu uma rápida vista de olhos. Devolveu-a, resmungou qualquer coisa e olhou para Fox com uma expressão sombria.

 

—        Quando resolver o caso Durham, disse em tom sarcástico, — Pode ficar com um esfaqueamento que teve lugar no Harlem.

—        Obrigado. Entro em contato consigo amanhã. Fui encarregado de uma missão por Mrs. Pomfret há apenas uma hora. Não se trata de calar ou encobrir seja quem for; ela quer descobrir quem matou o filho dela. Apenas isso. Se já sabe quem foi, eu lhe digo e vou para casa. Sabe quem foi?

—        Há uma banca de jornais na esquina. Fox franziu o cenho.

—        Está bem. Mas não me parece que isso seja muito profundo. Alguma vez lhe causei problemas? Quando tive a sorte de desvendar o caso Coromander, por acaso...

—        Vai precisar de muita sorte para desvendar este, meu rapaz.

—        Então, ainda não encontrou a mínima pista?

—        Não. Sei tanto quem matou o Durham como sabia quando entrei naquela casa, fez ontem uma semana. Os jornais dizem que a coisa está sendo abafada, mas não é verdade. Trata-se simplesmente de um caso em que o culpado tem muita sorte ou é muito esperto. Tentamos tudo. Não preciso de lhe dizer o que fizemos. Você conhece os nossos procedimentos.

—        Pensei que talvez já tivesse alinhavado, mas que lhe faltassem provas.

—        Provas? O tom de Damon era amargo. — Que diabo, nem sequer chegámos à fase das suposições.

—        Dispõe de alguns minutos para falar sobre o caso?

—        Eu nunca tenho tempo para nada, mas podemos falar sobre isso.

 

Na circunstância, ”alguns minutos” foram quase uma hora. No entanto, quando deixou as instalações da Delegacia e se meteu no carro para se dirigir à zona residencial da cidade, faltava quinze para as seis, tudo o que Fox tinha conseguido era mais material interessante para qualquer estudioso da espécie humana. Tinha memorizado os pontos mais importantes e interessantes.

 

Adolph Koch: Empresário solteirão de posses consideráveis, ele tinha 52 anos e gozava de boa reputação. Generoso na ajuda a pintores, escritores e músicos. Também era generoso com jovens mulheres. Quid pro quo. Tusar estaria no seu caminho... Para Hebe Heath? Durham teria conhecimento? Não tinha outro motivo.

 

Ted Gill: Agente publicitário de sucesso, ele tinha 30 anos e boa reputação. Preso em 1938, acusado de agressão por um produtor de teatro, tendo sido absolvido. Zangado por Tusar se ter recusado a tirar uma fotografia consigo e com Hebe? Inconsistente. Mais nenhum motivo.

 

Garda Tusar: Chegara aos estados Unidos em 1933, na companhia do irmão. Mentira sobre o emprego, uma vez que estava desempregada há três anos. Levava uma vida dispendiosa. Gastava pelo menos dez mil dólares por ano. Seria Perry Durham a sua fonte de rendimento?  Impossível verificar. Gostava do irmão, mas tinha se aborrecido com ele recentemente. Não tinha motivos para matá-lo. Ou a Durham. Evasiva, traiçoeira e inteligente.

 

Dora Mowbray: Pianista, 20 anos de idade. Dava aulas para ganhar o próprio sustento desde a morte do pai. Achara que o pai tinha sido assassinado, e era possível que pensasse ainda assim. Afirmava que Tusar tinha deixado duas notas de suicídio. O seu motivo para matar Tusar seria vingar a morte do pai. O motivo para matar Durham seria o medo de uma eventual denúncia (o que era aplicável a todos).

 

Mrs. Pomfret: 45 anos. Dona de uma enorme fortuna. Era possível que desejasse arruinar Tusar por causa da discussão entre os dois, mas não teria feito mal a Perry. Pródiga ao dar dinheiro ao filho.

 

Felix Beck: Conceituado professor de violino. 61 anos, casado, dois filhos, boa reputação e situação financeira razoável. Apostava em corridas de cavalos. Nenhum motivo.

 

Henry Pomfret: Antigo funcionário dos serviços diplomáticos dos Estados Unidos, se casara com Mrs. Pomfret (então Durham) em Roma, em 1932. 41 anos. Cadastro limpo. Sem rendimentos próprios. Não gostava de Perry e o sentimento era mútuo (possível motivo?). Inconsistente. Não havia indicação de que Perry constituísse uma verdadeira ameaça. Sem motivo para matar Tusar. Não tinha hábitos de gastador, aparentemente por ter pouco para gastar. Costumava ganhar partidas de bridge no Dummy Club.

 

Hebe Heath: Nascida Mabel Dagget, em Columbus, Ohio, em 1915. Casara com um advogado de Los Angeles em 1936, de quem se divorciara em 1938. Cabeça de vento. Presa em Santa Barbara, em 1938, por entrar com o carro por um posto de correios. Presa em Chicago, em 1939, por partir o nariz de um homem com uma raquete de tênis. Perseguia Jan Tusar desde Agosto de 1939. Motivo para matar Tusar: despeito, ressentimento, desejo de humilhá-lo. Sofreria de alguma patologia? O Dr. Unwin observara-a sem conseguir chegar a um diagnóstico concreto.

 

Diego Zorilla: Antigo violinista e concertista de topo, perdera os dedos num acidente que lhe arruinara a carreira. 34 anos. Ganhava cento e cinquenta dólares por semana como arranjador da Metropolitan Broadcasting Company. Boa reputação. Abandonado por Garda Tusar em 1935. Velho amigo de Tusar. Alimentaria uma inveja amarga? Teria motivos para matar Durham se ainda estivesse apaixonado por Garda Tusar e Durham mantivesse uma relação com ela.

 

Quanto ao resto, apenas uma desencorajadora sucessão de negativas. Não havia qualquer pista quanto a uma compra do cianeto de potássio. Não tinham sido encontradas impressões digitais no papel de embrulho do veneno nem nos fragmentos da garrafa de uísque recolhidos na rua, exceto as de Schaeffer e de Perry Durham. Não havia rasto de qualquer compra de verniz, nem evidência da sua posse. A vigilância de quatro dias a que foram submetidos todos os envolvidos também não produziu resultados significativos, e teve de ser abandonada na sequência dos vigorosos protestos de Adolph Koch e Henry Pomfret. Não havia qualquer indício de desígnios, desejos, intrigas ou motivos ocultos... Nada, nada...

 

Fox começava a pensar que ia realmente precisar de muita sorte e, por esse motivo, não entoou o seu grito de batalha preferido enquanto se perdia no trânsito em direção à zona residencial da cidade. Acontece que a sorte estava do seu lado. Fox até podia lhe chamar sorte, ainda que aquilo que realmente o salvou tenha sido uma prudência inata, um alerta ínfimo comunicado pelos seus nervos uma fração de segundo antes do que seria normal num homem comum. Depois de chegar ao edifício onde ficava a casa de Diego exatamente às seis em ponto, constatou que não precisava tocar à campainha, uma vez que a porta se encontrava aberta de forma a permitir o acesso a uma pequena ótica no rés-do-chão. O que não era nada de especial. Mas depois de subir os dois lances de escadas até ao apartamento de Diego descobriu algo que era. A porta não só não estava fechada, como estava mesmo aberta alguns centímetros, e o seu olhar atento e treinado descobriu rapidamente as pontas soltas da madeira estilhaçada da ombreira na zona da fechadura, o que sugeria que a porta tinha sido arrombada. Com uma expressão preocupada, apertou um botão e ouviu uma campainha tocar no interior da casa... Mas nada mais. Carregou mais uma vez no botão, de novo sem obter resposta.

 

—        Hei, Diego! Chamou. Silêncio.

 

Ergueu a mão para abrir a porta; e foi aí que a sorte, ou a sua prudência inata, interveio. Não podia sacar da pistola, uma vez que estava desarmado; mas a mais elementar precaução não faria mal a ninguém. Encostou-se à parede do lado direito da porta, junto às dobradiças, estendeu a mão para o painel de madeira mais próximo e empurrou.

 

Apesar da sua prudência, o que aconteceu a seguir espantou-o de tão inesperado. Ouviu-se um ruído metálico, um som semelhante ao de um chuveiro e outro ruído, como o de alguma coisa caindo ao chão. Fox se encontrava a metro e meio da porta... A distância de um bom salto para o lado. Recuou mais metro e meio quando um odor pungente lhe inundou as narinas, e estava olhando com expressão ao mesmo tempo furiosa e incrédula para o pequeno tacho de esmalte que tinha rolado para o corredor quando ouviu uma voz atrás de si:

 

—        Olá, desculpe o atraso. Era a voz de baixo de Diego. — Estive... Hei, a porta está aberta? O que é que... Fox agarrou-o por um braço.

—        Tem calma. É melhor esperarmos um pouco.

—        Que raio... Fox puxou-o para trás.

—        Não vai acreditar. Eu não acreditava se não tivesse visto. Creio que já se passaram cinco mil anos desde a primeira vez que uma criança colocou uma tigela com água de forma a que esta caísse em cima da cabeça do avô quando ele abrisse a porta. Só que desta vez não usaram água. Ou era ácido prússico ou nitrobenzeno e, se for este último, quanto menos o respirarmos melhor nos sentiremos. Cheguei aqui há quatro minutos. A porta tinha sido arrombada e estava ligeiramente aberta. Depois de tocar e chamar por você sem obter resposta, empurrei-a com toda a cautela e aquele tacho caiu, entornando o suficiente para matar um cavalo, se lhe caísse em cima. Diego olhou para ele fixamente.

—        Matar? Repetiu.

—        Sim. No caso de se tratar de nitrobenzeno. É tão mortal como uma rajada de metralhadora, e penetra numa pessoa mais ou menos com a mesma velocidade. Diego olhou para o tacho caído no chão, para as manchas húmidas de ambos os lados da ombreira da porta, e disse com voz rouca:

—        Vou entrar para ver se...

—        Está bem, se tiver boas solas nos sapatos, se não pisar nas poças e se mantiver em movimento. Para não ser apanhado pelos odores. Não toque no tacho. Não toque em nada próximo da porta.

 

Diego obedeceu. Evitou as manchas húmidas e parou apenas quando chegou ao meio da sala de estar. Fox entrou logo a seguir e se dirigiu para as janelas do outro lado da sala, que abriu de par em par. Quando se voltou para Diego, viu que o amigo olhava em volta com expressão carrancuda.

 

—        Esteve alguém aqui, observou.

—        Dadas às circunstâncias, respondeu Fox secamente, — isso não é grande novidade.

—        Mas olhe para aquelas prateleiras.

 

Fox já as tinha visto quando atravessara a sala. Metade dos livros estava caída no chão. Havia mais coisas fora do lugar. Duas gavetas de um móvel estavam abertas e Diego avançou para elas. Fox foi ao banheiro, abriu a porta do armário e inspecionou as prateleiras. Voltou à sala e viu que Diego tinha se deixado cair sobre uma cadeira, com o rosto coberto por uma pesada sombra. O espanhol mordeu o lábio inferior com os dentes brancos.

 

—        O vaso do outro dia, disse Fox. — Não está no mesmo lugar. Guardou-o noutro lugar? Diego não respondeu.  —Não seja tolo. Fox parecia exasperado. — Eu sei que se trata do Wan Li roubado de Pomfret. Soube o que era assim que o vi.  Diego olhou de novo para ele.

—        Como?

—        Tinha visto uma fotografia, e entendo um pouco de cerâmica. Guardou-o noutro lugar?

—        Sim. Guardei-o... Diego calou-se. Continuou passado um instante. — Que diabo. Desapareceu. Coloquei-o naquele armário de cima e fechei o vidro, mas alguém o arrombou e o vaso desapareceu.

—        Muito bem. Fox se dirigiu para uma cadeira que se encontrava perto da janela e se sentou. — Compreendo.  Começou a trautear ”O Desfile dos Soldados de Chumbo” em voz baixa.

—        Cale-se! Gritou Diego.

—        Desculpe. Bem, se foi. O vaso. E se tivesse chegado aqui antes de mim e tivesse aberto a porta como é o seu hábito, também tinha ido. Ou estaria a caminho. Portanto, salvei a sua vida. Isso lhe diz alguma coisa? A propósito, quer que eu chame a polícia ou você chama?

—        Do que está falando? Que motivos eu tenho para chamar a polícia?

—        Meu senhor, disse Fox humildemente. — De assalto? De grande roubo? De tentativa de assassinato?

 

Diego deixou cair a cabeça de tal modo que o queixo tocou no peito. Meteu as mãos entre os joelhos e esfregou as palmas uma na outra, para cima e para baixo. Fox esperou. Diego abanou a cabeça sem a levantar.

 

—        Não acredito no que disse. Aquilo não pode matar um homem.

—        Essa é uma resposta que só a polícia poderá dar.

—        Eles não seriam... Não quero ver a polícia metida nisto. Diego levantou a cabeça. — Esta casa é minha, não é verdade? A casa que foi assaltada é minha, não é? E era eu quem devia ter aberto a porta, não era?

—        Presumo que sim. O tom de Fox tornou-se mais duro. — Mas não tenho a certeza. Você sabia que eu vinha às seis horas. Sabia disso desde quinze para as cinco. Teve muito tempo para vir até aqui preparar tudo, na eventualidade de eu ter descoberto o vaso e de recear que eu pudesse me tornar um problema sério.

 

Diego olhou fixamente para ele, incapaz de dizer uma palavra. Tudo o que conseguiu foi encontrar forças para dizer uma única palavra, em si absolutamente impronunciável, num tom de descrença e de profundo escárnio. Fox enfrentou o olhar do espanhol e disse, calmamente:

 

—        As coisas se encontram neste pé, Diego. Exatamente neste pé. Vocês são oito, e um de vocês é uma serpente fingidora e um assassino. Muito perigoso. E muito astuto. Uma pessoa imaginativa. O verniz no violino de Tusar é das coisas mais inteligentes com que já me deparei até hoje. Duvido que tenha sido você, mas, no caso de assim ser, estou de olho e apanho-o assim que der oportunidade para tal. Para que saiba, estou ao serviço de Mrs. Pomfret. E, se não foi você, tenho algumas perguntas a que quero que responda. Primeiro, ainda está apaixonado por Garda Tusar? Segundo, o que é que sabe a respeito de uma possível relação dela com quaisquer outros homens, incluindo Perry Durham? Terceiro, onde é que conseguiu aquele vaso? Quarto, quem é que quer matá-lo, e porquê? Vamos começar pela mais simples. Onde é que arranjou o vaso?

—        Ninguém quer me matar! Exclamou Diego num tom áspero.

—        Nesse caso, voltemos à alternativa. Porque é que tentou me matar?

 

Diego abriu a boca e voltou a fechá-la sem ter articulado uma palavra. Olhou para Fox em silêncio, assim como para a gaveta ainda aberta e para a porta escancarada, em cuja ombreira eram perfeitamente visíveis as marcas do arrombamento. Respirou fundo de uma forma espasmódica que lhe fez estremecer o torso e, em seguida, cravou de novo os olhos em Fox.

 

—        Muito bem, disse, — Chame a polícia. Eu sei que você sabia que se tratava do vaso do Pomfret. Eu sabia que era por isso que queria falar comigo hoje, para me pedir explicações. A única explicação que podia dar era admitir que fui eu que o roubei, coisa em que não tinha qualquer interesse. Por isso... Como disse, preparei tudo. Deveria imaginar que não ia cair numa armadilha tão tola como esta.

—        Então, poucos minutos depois de eu ter entrado, correu até aqui em cima para se certificar de que tinha funcionado.

—        Sim, eu... Para ver se você... Para me certificar que...

—        Não há dúvida de que é o campeão da bobagem, Diego.

—        Eu sei que sim. A começar pelo fato de ter roubado o vaso...

—        Claro. Foi uma tolice. E agora foste responsabilizado, ou vai ser, quando a polícia chegar.  Onde é que arranjou o nitrobenzeno? Vai ter que fazer prova disso, claro. E o tacho? Não esteve no escritório desde a hora do meu telefonema até ao momento em que veio para cá? Porque tinha de arrombar a porta, ao invés de se servir da sua própria chave? O mesmo se aplica ao armário. E o que fez com o vaso? Podia continuar durante uma hora. O policial mais idiota do mundo rir-se-ia na sua cara.

—        Eles que o façam, disse Diego teimosamente.

—        Santo Deus, protestou Fox em tom desiludido.

—        Não quer me fazer acreditar que espera realmente que alguém engula essa história!

—        Aquilo em que quero que acredite, respondeu o espanhol, enfrentando o olhar de Fox sem vacilar, — É que se chamar a polícia esta é a única história que vão ouvir da minha boca. O rosto de Diego se contorceu numa careta involuntária, descobrindo as gengivas e os dentes brancos. — O mesmo se aplica a qualquer outra pessoa. Incluindo você. Se quiser investigar um crime, por mim tudo bem; tenho tanta vontade de que o faça quanto você, mas não aqui. Eu não sou um assassino. Maldito seja! O que têm os meus sentimentos pela Garda a ver com um crime? Ou com aquele maldito vaso? Diego se calou; o queixo do espanhol tremeu; ergueu a mão e deixou-a cair novamente. — Desculpe Fox, disse com estranha e desajeitada cortesia. — Você acha que me salvou a vida. Obrigado. É tudo o que tenho para dizer. Seja a quem for. Apontou com o dedo. — Há ali um telefone.

 

Fox olhou para ele, para a boca retorcida, para os olhos semicerrados, meio fechados para esconder a ferida mortal no seu orgulho, esperança ou auto-respeito que, em desespero, o levara acometer a ignomínia de se declarar falsamente como ladrão. Era manifestamente inútil tentar insistir ou convencê-lo por meio de lisonja, da mesma forma que era inútil discutir com ele para lhe arrancar fosse o que fosse. Talvez outro dia, mas não naquele. Diego mexeu as mãos e Fox viu que fazia círculos com as pontas dos dedos médios e indicador da mão direita sobre os cotos da mão esquerda. Fox nunca o vira fazer aquilo; na verdade, ninguém vira; Diego nunca se permitira fazer aquilo sem ser a sós. Fox se levantou, avançou até à mesa e arrancou um pedaço de uma folha de jornal, foi até ao corredor e usou o pedaço de papel para pegar no tacho, que colocou em cima da mesa quando voltou, antes de ir buscar o chapéu que tinha deixado em cima do móvel. Parou em frente de Diego, que olhou para ele e de novo para o chão.

 

—        Não toque no tacho sem proteger os dedos avisou Fox. — Aquela coisa é pegajosa. Uma única gota já constitui um perigo. Para a pele. Não é coisa que mate ninguém, mas era capaz de deixá-lo gravemente doente. Calce luvas de borracha, molhe um pano com álcool de limpeza e lava o chão, a porta e as madeiras. Limpa o tacho com álcool antes de jogá-lo fora, a menos que queira guardá-lo como recordação. Não pode trancar a porta porque a fechadura está arruinada.

 Alguém tentou matá-lo e pode tentar de novo. Não sejas tolo.

—        A polícia, disse Diego. — Não estou à espera... Não estou pedindo qualquer favor. Estou perfeitamente disposto...

—        A polícia está ocupada com um esfaqueamento no Harlem, disse Fox rudemente antes de sair.

 

Desceu as escadas e saiu para a rua.

 

Num pequeno restaurante da Rua 54, a oeste da Lexington, Fox ponderou a situação enquanto saboreava umas excelentes ostras, a que se seguiram uma boa dose de fígado macio de vitela, acompanhado por batatas lionesas e brócolis que apenas a cor distinguia de algas marinhas. Depois de comer as ostras, se dirigiu à cabina telefônica e ligou para Dora Mowbray, mas ninguém atendeu. Tentou outro número a meio do fígado, o número do apartamento de Garda Tusar na Avenida Madison, mas o resultado foi o mesmo. Tentou ainda outro número antes de colocar açúcar no café, o da residência de Adolph Koch, na Rua 12, e a voz suave da criada informou-o de que Mr. Koch não se encontrava em casa.

 

Nenhuma dessas desilusões pôs fim a qualquer ideia brilhante. Não tinha ideias brilhantes. Não fazia sentido percorrer os mesmos caminhos, fossem eles quais fossem, já percorridos pelos homens do Inspetor Damon, como, por exemplo, a questão dos rendimentos de Garda Tusar. Esse era o tipo de coisas que entusiasmava uma equipe de detetives, e Damon havia percebido perfeitamente as possibilidades que a questão lhe oferecia quanto à abertura de uma fresta por onde pudesse ver a luz, mas não tinha conseguido nada. Procurou saber se Garda costumava ser uma visita frequente, discreta ou indiscreta, em casa de Koch, Diego ou Perry Durham; se algum deles, ou qualquer outro homem, teria gozado de hospitalidade recorrente no apartamento dela; ou se costumava ser hóspede ou anfitriã de algum homem. Todas essas possibilidades tinham sido exploradas pelos homens de Damon com persistente e elaborada profundidade, mas a misteriosa opulência de Garda permanecera um mistério. A inevitável conjectura oficial apontava no sentido de estar fazendo chantagem com alguém, o que era certamente plausível, mas também quanto a isso continuava a existir uma dolorosa e persistente falta de provas.

 

O mesmo acontecia com todas as restantes linhas de inquérito tradicionais. Em teimoso desespero, Damon tinha mesmo metido o nariz no caso da morte de Lawrence Mowbray, que ocorrera quatro meses antes, mas nem por essa via encontrara fosse o que fosse. Encontrando-se sozinho no seu gabinete, no vigésimo andar de um edifício da Rua 48, às cinco e trinta e sete da tarde do dia 29 de Novembro, Mowbray tinha caído de uma janela, uma queda de vinte e cinco metros de altura, e se esmagara de encontro a calçada. Investigações de rotina revelavam que Jan Tusar entrara no edifício dois ou três minutos mais tarde e entrado num elevador para o vigésimo andar, onde tinha uma reunião com Mowbray, e esse era o único ponto de todo o registro que poderia ter algum significado, e não tinha nada a ver com o problema atual.

 

Enquanto olhava com ar carregado para a xícara de café que acabava de pousar, Fox decidiu que não valia a pena malhar em chapa fria. Do que precisava era de uma inspiração súbita, e o problema é que não lhe ocorria nenhuma. Tudo o que podia fazer era continuar a meter o nariz aqui e ali e esperar que lhe surgisse alguma ideia, e um bom lugar para meter o nariz era o apartamento de Perry Durham na Rua 51, do qual tinha a chave. O apartamento até tinha uma cama que podia muito bem vir a usar. Pagou a conta, se dirigiu mais uma vez à cabina telefônica, pediu o número Brewster 8000 e, passado um instante, ouviu uma voz familiar.

 

—        Mrs. Trimble? É Fox. Por favor, avise Pokorny que o jogo de bilhar fica sem efeito porque eu não vou para casa esta noite. E diga ao Sam para não mexer nos morangos sem eu lhes dar uma vista de olhos. Espero estar aí amanhã à noite. Está tudo bem?

—        Está tudo ótimo. Mrs. Trimble tinha a boca demasiado próxima do bocal e falava demasiado alto, como era hábito nela. — Mr. Crocker machucou uma perna, mas é coisa pouca, Nasceram dois porquinhos. E recebemos um telegrama.

—        Um telegrama? De Boston?

—        Não é de Boston. É um telegrama de Nova Iorque. Espere um pouco, que vou apanhá-lo. O Sam tomou nota. Seguiu-se um silêncio e de novo a voz de Mrs. Trimble. — É de uma mulher; pelo menos está assinado por uma Dora Mowbray. D O...

—        Eu sei de quem se trata. O que diz o telegrama?

—        Diz: “Telegrama recebido. Chego pelo trem de Brewster às 08h48min, conforme pedido.” Fox perdeu o fôlego.

—        Leia de novo, pediu.  A mulher repetiu o conteúdo do telegrama.

—        A que horas chegou o telegrama?

—        O Sam anotou a hora aqui ao lado. Às sete e quinze.

—        Não desligue. Fox pousou o auscultador na prateleira, procurou entre os papéis que tinha no bolso, descobriu um horário e percorreu uma coluna do mesmo com os olhos. Viu as horas no relógio de pulso, pegou no auscultador e disse: — Obrigado, Mrs. Trimble. Adeus.

 

E saiu disparado da cabina. Agarrou no chapéu e no casaco e correu para a rua, evitando por pouco a colisão com dois garçons espantados. Por sorte tinha encontrado um lugar para estacionar mesmo diante da porta do restaurante, o que lhe permitiu correr diretamente para o carro, se sentar ao volante a toda a pressa, ligar o motor arrancar a toda a velocidade.

 

Como todos os minutos eram preciosos para atravessar a cidade, a autoestrada West Side era a sua única esperança, pelo que entrou pela Rua 57 e se dirigiu para aquela via. Não podia fazer grande coisa quanto aos semáforos e às filas de trânsito comuns a todas as avenidas; o Wethersill não podia andar mais que qualquer carripana velha; em vez de se preocupar com isso, começou a fazer cálculos. Tinha memorizado uma parte da coluna do horário.

 

Bedford Hills 8:23

Katonah 8:27

Golden’s Bridge 8:32

Purdy’s 8:37

Croton Falls 8:41

Brewster. 8:48

 

Quando chegou à Oitava Avenida, o relógio do painel de instrumentos marcava 7:55. Assim sendo, as estações de Bedford Hills e Katonah estavam fora de questão. Golden’s Bridge oferecia poucas possibilidades. Purdy’s era possível. Em Croton Falis, sim, com sorte poderia chegar a tempo. Até mesmo a Brewster, mas a ideia não lhe agradava. Queria apanhar o trem e descobrir a moça antes que a composição chegasse à estação de Brewster. Decerto que a pessoa que a fizera entrar no trem, enviando um telegrama em nome de Tecumseh Fox, teria engendrado um estratagema para se livrar de Dora quando o trem chegasse a Brewster. Era possível apanhar o trem em Purdy’s.

 

Nona Avenida... Décima... Décima Primeira... Virou para o acesso, entrou na autoestrada e apertou o acelerador. O único problema era a polícia, e esse era um problema de resolução simples. Como era do conhecimento de qualquer motorista, havia duas maneiras de evitar problemas com polícia: conduzir devagar o suficiente para não ser mandado parar, ou conduzir tão depressa que não lhes permitisse apanhar o infrator. A segunda alternativa não era aplicável à autoestrada West Side, uma vez que bastava um telefonema para as cabines da ponte Henry Hudson para que fosse apanhado. Por isso, Fox cerrou os dentes e não ultrapassou os noventa quilômetros por hora, se desviando de forma suave e experiente dos motoristas que seguiam nos convencionais setenta. Um quilômetro depois das cabinas de portagem a velocidade limite era de cento e trinta. Calculou que fosse o suficiente; mesmo a essa velocidade, os pneus chiavam o seu protesto a cada curva e descida da avenida, devido ao esforço que lhes impunha. A cada curva Fox concentrava toda a sua atenção nos dedos que seguravam o volante; nas raras retas, se permitia um breve olhar pelo espelho retrovisor.

 

A tabuleta que assinalava os limites da cidade ficou para trás e o detetive se encontrou na Avenida Saw Mill River. Aumentou a velocidade para cento e cinquenta e, com os pneus chiando, o carro atacou uma acentuada subida como uma gaivota que experimenta as suas asas. O relógio de Fox marcava oito e dezenove quando passou por Crestwood. Ainda era possível apanhar o trem em Purdy’s, o que fazia com que tivesse de seguir pela Estrada 3 a partir do retorno de Hawthorne. Mas não o fez. Nem o policial nem a curva de retorno estavam preparados para aceitar fosse o que fosse a acima dos setenta e cinco quilômetros por hora, o que o levou a levantar o pé do acelerador; em seguida, de forma súbita e enquanto se aproximava, carregou de novo no acelerador e cravou o dedo polegar sobre a buzina, mantendo-o ali. A luz dos faróis tinha revelado o policial que, em vez de se encontrar na cabine da polícia como era hábito, se encontrava no meio da estrada abanando ambos os braços. Fox cerrou os dentes, agarrou o volante com força, continuou apertando a buzina, acelerou e apontou para o policial. O desamparado policial saltou para o lado esquerdo e Fox desviou para a direita. Em seguida voltou tudo à esquerda por forma a atacar o retorno, sentiu o carro rodar apenas sobre duas rodas em consequência da manobra, ouviu os pneus chiarem, mas se apoiou de novo nas quatro rodas e entrou pela Bronx River Parkway Extension.

 

Claro que ia haver mais telefonemas, provavelmente para State Barracks, perto de Pleasantville, e não demoraria três minutos até a avenida se tornar demasiado perigosa para Fox. Por isso abandonou-a passados dois minutos, entrando por uma esburacada estrada de campo à sua direita. Calculou que o levaria diretamente a Armonk, mas a estrada não seguia diretamente para lado nenhum; chegando a uma bifurcação teve de adivinhar o caminho a seguir e continuar aos solavancos para um lado e para o outro durante mais quatro quilômetros; por fim, teve de perguntar o caminho para a Estrada 22 a um rapaz. Quando conseguiu encontrá-la, tinha perdido qualquer esperança de chegar a Purdy’s a tempo de apanhar o trem.

 

A estrada de curvas apertadas requeria bastante atenção, e o detetive deu tudo de si ao volante do veículo. Perto de Bedford Hills, só fugindo para a relva e passando rasante a um poste conseguiu evitar o carro que saíra de um parque de estacionamento. Chegou a Katonah quando o seu relógio marcava 08h35min; o trem tinha partido oito minutos antes. Em Golden’s Bridge tinha reduzido o atraso para cinco minutos. Atravessou Purdy’s a toda a velocidade às 8:39, aliviou um pouco o pé sobre o acelerador, perdeu tração numa rua em descida, meteu uma roda na vala, voltou milagrosamente à estrada e ouvi o apito do trem para Croton Falis. Um minuto depois, saiu da estrada e desceu a encosta que conduzia à estação de Croton Falls a toda a velocidade e parou o carro com uma freada brusca; saltou, correu em direção ao trem, se agarrou ao corrimão do degrau do último carro e saltou para bordo. Sentia uma certeza doentia de que estava fazendo figura de bobo; com certeza que, de uma forma ou de outra, a jovem já teria sido apanhada. Se assim fosse...

 

Abriu a porta do carro e entrou. Era o carro dos fumantes e estava quase vazio, uma vez que o trem estava chegando ao final da viajem, e nenhum dos sete ou oito passageiros visíveis era mulher. Havia três mulheres no carro seguinte, mas lhe bastou olhar para as suas nucas, única parte visível das mesmas, para perceber que não eram quem procurava; mesmo assim, ao atravessar o corredor foi voltando a cabeça para olhar de relance para os seus rostos. Só tinha mais duas oportunidades. Só precisou da primeira. Viu-a mal deu três passos no interior do carro seguinte. Parou e observou-a, se agarrando a um banco quando o trem se inclinou ao dobrar uma curva. Era ela. Encontrava-se de perfil, com a cabeça voltada para olhar para o seu companheiro de viajem, que estava falando com ela. Fox avançou pelo corredor; não repararam nele, nem mesmo quando parou ao lado do banco imediatamente atrás do dela. Ficou olhando para eles com uma expressão carregada. Conseguia mesmo ver a luz suave que brilhava nos olhos de Dora, que continuavam a não reparar nele; e ouvia o murmúrio beatífico da voz de Ted Gill, que lhe devolvia o olhar... Fox estava tão perto dos dois que podia tocá-los... Numa extremidade do trem, o guarda-freio gritou:

 

—        Brewster!

—        Oh, ele disse Brewster, observou Dora.

 

Ted assentiu e suspirou de uma forma que indicava que tinha se esquecido de respirar, desviou o olhar do dela, se levantou para pegar nos casacos, notou a vigilância de Fox, voltou a cabeça para este e disse com toda a calma e naturalidade:

 

—        Olá. Dora olhou para o detetive por cima das costas do banco.

—        Valha-me São Pedro, disse.

—        Vamos descer em Brewster, anunciou Ted, ao mesmo tempo em que lidava com o casaco de Dora como se fosse feito de penas de anjo e pó de estrelas.

—        Correto, disse Fox sombriamente. — Já chegamos. Despache-se para pegar as suas coisas.

 

O trem rolou lentamente pela estação e se imobilizou com uma freada brusca. Fox seguiu os dois ao longo do corredor e desceu os degraus do carro atrás deles. Soprava um vento forte e alguns flocos de neve dançavam por entre os globos dos candeeiros que iluminavam a plataforma; Ted apressou Dora a entrar na estação. Fox foi retido um instante por um homem que queria cumprimentá-lo, e quando se juntou ao casal ouviu Ted dizer para Dora:

 

—        Este é o primeiro lugar a que viemos juntos. Brewster. Mas não será o último. É uma estaçãozinha agradável. Muito simpática.

—        Então? Perguntou Fox. Dora lhe sorriu.

—        Oh, sim, disse Ted em tom afável, se apercebendo- da presença de Fox. — Acho que lhe devo uma explicação. Recebeu o telegrama!

—        Recebi. Em resposta a outro que eu teria enviado a Miss Mowbray.

—        Exatamente. Só que fui eu que enviei esse telegrama. Foi uma feliz coincidência estar no mesmo trem que nós. Sabe, calculei que ela não fosse enviar nenhum telegrama em resposta, que iria apenas apanhar o trem que lhe tinha dito para apanhar, uma vez que se tratava de algo muito urgente...

—        E assinou com o meu nome.

—        Escrevi-o no telegrama, sim. Tive de fazê-lo. Achei que nem sequer viria a saber, e assim teria sido se ela não tivesse enviado outro em resposta. O problema é que ela não queria me ver. Não me deixava falar com ela. Devolveu uma carta que lhe escrevi. Interpretou mal a minha ida à Cidade do México para ir buscar Hebe. Eu sabia... Bem, não sabia, mas tinha esperança... Que se conseguisse apanhá-la num lugar como um trem... Sabe, ela achava que eu era um miserável...

—        Não achava nada, negou Dora. — Eu pensava apenas...

—        Desculpem, cortou Fox secamente. — Tiveram hora e meia para isso. Duvido que as suas mentes se encontrem em condições de lidar com a interferência de estranhos, mas não foi uma feliz coincidência eu ter sido avisado sobre o telegrama e ter percorrido o caminho entre a 57a Avenida a Croton Falis em quarenta e quatro minutos. O policial da rotunda de Hawthorne só está vivo porque não demorou mais uma fração de segundo para pular para o lado quando o meu carro avançou sobre ele; corri esse risco. Passei por um carro que vinha saindo de um parque de estacionamento por menos de dez centímetros, e eu vinha a cento e cinquenta.

—        Céus, disse Ted alegremente, — Ainda bem que não o acertou!

—        Gostaria de ter estado consigo, disse Dora. Sempre quis andar de carro a essa velocidade, só uma vez e para experimentar.

—        A sério? Perguntou Ted em tom reprovador. Gostaria de estar com ele, não gostaria?

—        Bem... Os olhos dos dois se encontraram e nunca mais se desviaram. — Gostaria de ter uma irmã gêmea que tivesse estado com ele.

 

Era evidente que eram um caso perdido; os seus cérebros tinham as funções completamente suspensas. Encontravam-se ditosamente incapazes de compreender porque razão a notícia do telegrama levara Fox a arriscar a vida e a transformar o carro numa ameaça mortal ao longo de setenta e cinco quilômetros de autoestrada e vias secundárias; a questão nem sequer lhes ocorreu.

 

—        O que vão fazer agora? Perguntou o detetive.

—        Oh, há um trem que pode nos levar de volta às dez e meia, respondeu Ted. Vamos dar uma volta, ou passear por aí...

—        Boa ideia. Deem um longo passeio. Pode ser que se percam e morram de fome.

 

Desmoralizado, Fox se dirigiu para a porta que dava para a rua, encontrou o seu amigo Joe Prisco, o taxista, e lhe pediu que o levasse de volta a Croton Falls. Quando chegaram, uma breve inspeção do Wethersill não revelou outras marcas da batalha além do para-choque traseiro arranhado no lugar onde raspara no poste.

 

—        Devias ter mais cuidado, admoestou-o Joe.

—        Sim, vou ter mais cuidado, concordou Fox.

 

A caminho de Nova Iorque, saiu da Estrada 3 e seguiu para leste até apanhar a Hutchinson River Parkway. Assim não passaria perto do retorno de Hawthorne. Enquanto seguia pacatamente a setenta e cinco quilômetros por hora, tentou acalmar um pouco os nervos, mas, no entanto, estes não lhe obedeceram. Estavam preparados para uma explosão de energia e, afinal, tinham saído para um passeio pelo campo. Faltava quinze para as onze quando, depois de ter guardado o carro numa garagem, chegou a Rua 51 onde Perry Durham tinha o seu apartamento. Aí encontrou uma nova irritação na forma do azedo e desconfiado porteiro que, não satisfeito com o fato de Fox possuir a chave e uma carta assinada por Mrs. Pomfret, insistiu que tinha de entrar em contato com a polícia; uma vez que o assunto tinha de ser reportado ao Inspetor Damon, e como este não se encontrava de serviço, foi necessário telefonar para a sua casa. A barreira final acabou por ser ultrapassada e Fox foi levado de elevador até ao sexto andar e conduzido a uma porta. Abriu-a com a chave que tinha em seu poder, entrou no apartamento, encontrou os interruptores e acendeu as luzes; e ficou olhando à sua volta no mais completo espanto.

 

—        Calculo, murmurou em tom sarcástico, — Que tenha sido Ted Gill à procura do recibo do telegrama.

 

Havia um telefone em cima da mesa do lado contrário àquele em que se encontrava. Desviou-se dos obstáculos até chegar ao telefone, verificou que estava ligado e pediu que ligassem para um número. Passado algum tempo, ouviu uma saudação do outro lado da linha.

 

—        Inspetor Damon? É Tecumseh Fox. Desculpe incomodá-lo mais uma vez, mas quem quer que tenha revolvido o apartamento do Durham se esqueceu de colocar de novo as coisas no lugar. Nunca vi uma confusão tão grande. Há livros e toda uma série de outras coisas espalhadas pelo chão, almofadas rasgadas... O quê? Não. Não faço ideia. Acabo de entrar. Com certeza. Está bem.

 

Ficou olhando para aquela confusão indescritível. Era ali que tinha decidido passar a noite, depois de uma hora ou duas de descomprometida inspeção. Uma pena, uma de entre milhares caídas das almofadas rasgadas, se colou à bainha das calças. Fox pegou nela e soprou-a para o ar. Não havia sinal de uma cama. Dirigiu-se a uma porta aberta, entrou e descobriu uma cama, apesar da mesma não se encontrar em condições que convidassem ao repouso. As cobertas estavam espalhadas um pouco por toda a parte e o colchão estava no meio do chão, com a cobertura arrancada e interior espalhado em todas as direções. Voltou para a sala onde estivera antes e procedeu a uma primeira inspeção, olhando para tudo sem tocar em nada. Gostaria de ter pegado na cópia de Na Ásia, que se encontrava no cimo de uma pilha de livros, com as folhas amarrotadas, mas se proibiu de fazê-lo. Encontrou títulos como As Vinhas da Ira, O Vermelho e o Negro e The Mason Wasps... Aparentemente, os gostos de Durham eram variados... Madame Récamier, Nem Armas Nem Armadura, Catálogo Thomas Bissell de Moedas Antigas, n.º 38... Franziu o sobrolho ao olhar para aquele último livro, resmungou qualquer coisa e se curvou para apanhá-lo.

 

Desfolhou-o e descobriu que não passava daquilo que a capa indicava: um catálogo de moedas antigas e raras, com fotografias de algumas e os preços de muitas. Coenwulf da Bretanha, séc. IX. Moeda bizantina de Adônicos II. A Grande Mogul Jahangir... Meia hora depois, quando o Sargento Craig chegou com homens e material, Fox ainda estava as voltas com o catálogo, lendo sobre moedas antigas e raras. Cumprimentou o sargento e lhe desejou sorte, disse que iriam encontrar as suas impressões digitais no catálogo e no telefone, e deixou-os entregues à sua laboriosa, e provavelmente infrutífera, tarefa. Tinha pensado em parar na recepção com a finalidade de fazer algumas perguntas sobre as últimas visitas que Durham recebera no seu apartamento, mas reparou que dois policiais à paisana se tinham antecipado e tinham encurralado o acidulado porteiro a um canto enquanto apertavam com ele. Por isso, acabou por sair do edifício, percorreu a distância de seis quarteirões que o separava do Hotel Sherman, e pediu um quarto.

 

Na manhã seguinte decidiu quais seriam os seus próximos movimentos, todos óbvios e desinspirados, sem que nenhum deles se mostrasse particularmente atraente. Entendeu, ainda que algo contrariado, que devia começar pelo menos óbvio de todos. Segundo o relatório esquemático que Damon lhe apresentara na tarde anterior, o elo mais fraco da cadeia oficial de negativas, era precisamente a vida particular de Adolph Koch, com especial incidência nas visitas que recebia de mulheres parecidas com Garda Tusar. E, depois de ter falado com a criada ao telefone, tendo aproveitado para avaliá-la pela voz, Fox decidiu testar a solidez desse elo. Claro que era desejável não chegar antes de Koch sair para o escritório, pelo que se dirigiu primeiro à zona residencial da cidade a fim de fazer uma breve visita a Mrs. Pomfret, da qual não resultou nada de novo a não ser que, tanto quanto ela sabia, o seu filho Perry não colecionava moedas antigas e raras, nem alguma vez mostrara interesse em tal.

 

No entanto, apesar de já passar das dez da manhã quando chegou à casa de Koch na Rua 12, ainda era demasiado cedo. O grande e digno negro que lhe abriu a porta informou-o, para sua grande contrariedade, de que Mr. Koch se encontrava em casa; e, depois de lhe pedir que esperasse, voltou passado pouco tempo e conduziu-o a uma porta ao fundo da casa e convidou-o a entrar com uma vênia. Koch pousou qualquer coisa em cima da mesa e avançou para cumprimentá-lo. Enquanto trocavam cumprimentos, Fox ouviu uma campainha de telefone.

 

—        Maldição, disse Koch. — Desculpe.

 

Dirigiu-se para o telefone que se encontrava na outra ponta da mesa e atendeu, fazendo sinal para indicar uma cadeira a Fox. O detetive se sentou e olhou em volta, como qualquer pessoa costuma fazer enquanto espera pelo fim de um telefonema que não é da sua conta. Era uma sala de aspecto sólido e atraente, algo pobre em termos de cor, com cadeiras confortáveis e bonitos tapetes, um grande armário com peças de cerâmica de um dos lados e duas paredes cobertas de livros... Quando iam a caminho da quarta parede da sala, os olhos de Fox pararam e se concentraram num determinado ponto. O lugar ocupado pelo objeto que Koch tinha colocado em cima da mesa quando ele entrara. E o objeto, sim, os seus olhos lhe diziam que não havia engano possível, era o vaso Wan Li preto e retangular que tinha visto pela última vez atrás de uma pilha de toalhas no banheiro de Diego.

 

Fox olhou noutra direção, na esperança de não ser denunciado por qualquer brilho dos seus olhos. Koch acabou a conversa telefônica, afastou o aparelho e se deixou cair numa cadeira.

 

—        Era de esperar que os meus negócios pudessem passar sem mim durante uma hora ou duas, observou de mau humor. — Mas a culpa é minha, que os deixo depender de mim em tudo. Por isso, quando não chego às nove e meia em ponto... Encolheu os ombros. — Em que posso ajudá-lo?

—        Ando à pesca. Fox sorriu para o empresário. — Mrs. Pomfret ficou impaciente e me contratou para descobrir quem matou o filho dela.

—        Ah. É o gênero de coisa que ela seria capaz de fazer, sim, concordou Koch.

—        E eu estou vendo se fisgo alguma coisa. Koch ergueu as sobrancelhas.

—        De mim?

—        De qualquer pessoa. Não sou esquisito.

—        Então, a polícia não fez grandes progressos?

—        Nada de especialmente notável. Fox cruzou as pernas. — A propósito, estava falando dos seus negócios... Sei que confecciona roupas de senhora... Também fabrica os tecidos? Tenho comigo um carta de Mrs. Pomfret, que posso mostrar, em que ela pede colaboração...

—        Não é necessário. Koch afastou a intenção do detetive com um aceno de mão. — Por muito que tentasse, não conseguiria ser tão inconveniente como a polícia. Nem tão desastrado, espero. Andaram perguntando aos meus criados quem são as pessoas que convido para minha casa. Sorriu. — Sim, nós produzimos os nossos próprios tecidos. Isso tem algum significado sinistro? O olhar de Koch parecia revelar certo divertimento.

—        Não chamaria sinistro. São vocês que tingem os tecidos?

—        Com certeza.

—        Com anilina?

—        Claro. Toda a gente faz o mesmo. Koch franziu levemente o sobrolho. — Creio que sei aonde quer chegar, mas não percebo com que objetivo. Se isso é uma forma subtil de chegar ao nitrobenzeno, posso lhe dizer que temos vários galões e que cheira a ácido prússico, mas por outro lado foi isso que colocaram no uísque do Perry. Não é assim?

—        Com certeza. Eu lhe disse que ando à pesca. Por acaso sabe que quando o nitrobenzeno é colocado por cima de uma pessoa, mesmo que seja só na roupa, pode matar?

—        Eu não sei ”por acaso”. Eu sei que sim. Qualquer pessoa que tinja com anilina tem de saber. Koch franziu o sobrolho de forma acentuada. — Que raio vem a ser isto?

—        Nada. Provavelmente não é nada de importante. Apenas um detetive intrometido fazendo perguntas estranhas. Isto é, naturalmente lhe parecerá um mistério que...

—        Pode ter a certeza que assim é. Sempre de cenho carregado, Koch se levantou e se colocou ao lado da mesa. — E por falar em mistérios, aqui tem mais um. Pegou no vaso. — Olhe para isto!

 

Fox assim fez, sem demonstrar um interesse excessivo na peça.

 

—        É bonito, admitiu. — O que é que tem?

—        Bonito? Koch olhou fixamente para o detetive, resfolegou e acariciou a borda do vaso. — Calculo que possa haver pessoas inteligentes que o chamem ”bonito”. Recorda-se da conversa do outro dia, em casa de Mrs. Pomfret, acerca de um vaso, de um Wan Li retangular que tinha sido roubado da coleção do Henry? É este vaso!

—        A sério? Fox abriu a boca enquanto olhava para ele. — Interessante. Onde é que o conseguiu? Koch voltou a colocar o vaso em cima da mesa com toda a gentileza e resmungou:

—        Aí reside o mistério. Foi entregue em minha casa esta manhã, pelo correio. Quando eu estava de saída para o escritório. Invejei essa peça cada vez que a vi em casa dos Pomfret, por isso tente imaginar... Quando o Williams o trouxe e me mostrou... Ele já tinha aberto o embrulho... Fox fez que sim com a cabeça.

—        Sim, posso imaginar. Especialmente, se levar em conta tão peculiares circunstâncias. O que vai fazer com ele?

—        Devolvê-lo ao proprietário, que raio! Telefonei-lhe pouco antes de o senhor chegar, e vou levá-lo agora. Se o mantivesse aqui durante vinte e quatro horas, a tentação... Mas o senhor não compreende. O senhor o chamou de ”bonito”.

—        Peço-lhe que me desculpe, disse Fox humildemente. — Este jogo das embalagens postais está se tornando um pouco monótono, acrescentou no mesmo tom.  — Uma vez que diz que se trata de um mistério, suponho que não faz ideia de quem possa tê-lo mandado.

—        Não.

—        Vinha dirigido a si?

—        Com certeza. Esta casa é minha. Koch apontou para os artigos que se encontravam em cima de uma cadeira, junto à parede: papel de embrulho castanho e uma pequena caixa de papelão resistente que já tinha servido para guardar latas de tomate Dixie Brand. — Veio dentro daquilo.

—        Posso lhe dar uma vista de olhos?

 

Fox se dirigiu para a cadeira. Verificou que não era necessário abrir a folha de papel de embrulho para confirmar o endereço, uma vez que a folha tinha sido cuidadosamente dobrada de forma a que pudesse ver uma pequena etiqueta impressa no centro da superfície visível, assim como o carimbo dos correios. Ao pegar na folha de papel de embrulho para examiná-la mais de perto, notou que a etiqueta não era impressa, mas dispendiosa e elegantemente gravada, com o nome e o endereço de Koch. Voltou-se para o dono da casa e ergueu as sobrancelhas numa interrogação. Koch fez um gesto de assentimento.

 

—        Um sacana corajoso, não acha? O seu tom era suave e divertido. — Isso foi recortado de um dos meus envelopes pessoais e colado aí. Mas isso não constitui grande ajuda, uma vez que sou pródigo a distribuir os meus envelopes e papéis timbrados. Ainda na semana passada mandei mil convites para uma exposição de Frank Mitchell... Um jovem pintor que me interessa. Olhou para o relógio que tinha no pulso. — Sabe, tenho de chegar ao escritório antes do meio-dia, e quero ver a cara do Pomfret quando lhe entregar esta coisa. Se quiser me fazer mais perguntas misteriosas, porque não vem comigo? A menos que prefira ficar aqui, tentando arrancar mais dos meus criados do que a polícia conseguiu.

 

Seria o sorriso de Koch irônico, de desafio, ou um sinal de simples urbanidade de um homem civilizado que tolerava um incômodo imerecido? Fox não sabia; mas, fosse como fosse, lhe parecia duvidoso que a criadagem tivesse alguma revelação guardada de propósito para ele. Aceitou o convite para acompanhar Koch até à zona residencial da cidade.

 

Durante a viagem de vinte minutos, ficou com a sensação de que Koch também não teria qualquer revelação a fazer. Não foi capaz de acrescentar nada àquilo que tinha dito à polícia e ao Procurador. A opinião que tivera de Perry Durham era a de que se tratava de um jovem presunçoso e de cabeça no ar, mas simpatizava com Mrs. Pomfret e, segundo dizia, estava disposto a se submeter a sérios incômodos se com isso pudesse de alguma forma ajudar a resolver a situação em que se encontrava. Gostaria de saber por que raio Fox lhe perguntara pelo nitrobenzeno; gostaria também de saber quem teria enviado o vaso, e porquê a ele; na verdade, dissera, se encontrava em muito melhor posição para fazer perguntas do que para respondê-las.

 

O efeito causado em casa dos Pomfret, como ficou registrado não apenas no rosto do marido mas também no da mulher, deve ter ido ao encontro das suas melhores expectativas quando, depois de uma breve troca de palavras de cortesia e circunstância, lhes mostrou o vaso. Pomfret olhou para ele durante cinco segundos com uma incredulidade espantada e, em seguida, abriu a boca de orelha a orelha num sorriso de indisfarçável deleite e estendeu as mãos ansiosas para o vaso. Mrs. Pomfret, que tinha as pálpebras ainda mais vermelhas e inchadas, a pele mais emaciada e os ombros mais caídos que antes, colocou um olhar penetrante e desconfiado a Koch antes de olhar de modo igualmente penetrante, mas sem desconfiança, para Fox.

 

—        É o Wan Li, não é? Perguntou Koch. Em êxtase, Pomfret gaguejou uma resposta afirmativa. Koch fez uma vênia a Mrs. Pomfret.

—        Não fui capaz de resistir ao prazer de entregar o vaso pessoalmente, explicou. — Agora, tenho de correr para o escritório. Mr. Fox explicará tudo.

 

Fez uma nova vênia e foi embora. Pomfret nem sequer o viu partir. Inspecionava com amor e cuidado todos os lados do seu tesouro milagrosamente devolvido; e apesar de ser provável que tivesse ouvido a descrição que Fox fez das circunstâncias em que o vaso fora devolvido, nem por isso parou de examiná-lo por um instante que fosse. Pelo contrário, Mrs. Pomfret só tinha olhos e ouvidos para Fox e, quando este terminou as explicações, perguntou de forma abrupta:

 

—        Muito bem, o que acha disto? Fox encolheu os ombros e levantou as mãos com as palmas voltadas para ela. — Bolas, disse ela num tom ao mesmo tempo escarninho e fatigado. — Não há dúvida que aquela criatura, Hebe, o roubou e que ele o tirou e o remeteu por correio a si mesmo. Ou então foi ele que o roubou, mas se assustou... Acenou quase sem força. — Agora, isso não interessa. Apontou para o vaso nas mãos do marido. — Agora odeio aquela coisa. Odeio tudo nesta casa. Tenho ódio a tudo. Tenho ódio da vida. Pomfret se apressou a pousar o vaso e a lhe passar um braço pelos ombros.

—        Então, Irene, disse gentilmente, — Sabe muito bem que isso é um pensamento mórbido e...

 

Os lábios de Irene Pomfret se transformaram numa linha fina, a sua mão procurou a do marido e lhe apertou os dedos até ele se encolher. Fox se levantou, disse que lhes comunicaria tudo que valesse a pena comunicar, e saiu.

 

Aquilo era um pesadelo caótico e sem sentido. Enquanto percorria a avenida de norte para sul como quem sabe perfeitamente para onde se dirige, o que não era o seu caso, Fox pensou que aquele era o tipo de pesadelo que Hebe Heath teria. Nada conduzia a lado nenhum; nada possuía qualquer relação aparente com o que quer que fosse. O catálogo de moedas no apartamento de Durham, por exemplo. Ou o fato de Durham ter pegado no violino no dia da sua morte. Porquê? Tomando como certo que sabia que o verniz se encontrava no interior do violino, era quase impossível que pensasse que podia raspá-lo. E o maldito vaso; estaria ou não ligado à morte de Perry Durham e, se assim fosse, de que modo? Seria razoável supor que as suspeitas de Mrs. Pomfret tinham fundamento, e que o roubo do vaso tinha sido mais uma proeza da surpreendente e inimaginável Hebe Heath? Mas, nesse caso, como teria ido parar no armário de Diego, e porque é que Diego?...

 

Enfiou-se bruscamente numa tabacaria, procurou a cabine telefônica e ligou para os estúdios da MBC. Depois de uma breve troca de palavras com a pessoa que atendeu e de uma curta espera, ouviu a voz de baixo de Diego.

 

—        Diego? É o Fox, disse.

—        Oh. Olá. Como tens passado?

—        Bem, obrigado. Quer almoçar comigo?

—        Hum... Lamento. Hum... Tenho um compromisso.

—        Então fica para mais tarde, para as cinco, ou para quando der mais jeito. Tomamos uma bebida? E pode jantar comigo?

—        O que quer?

—        Quero conversar contigo.

—        Acerca daquele... Assunto?

—        Sim. Desse e de outros...

—        Não. A resposta de Diego foi seca. — Não quero falar nisso, nem agora nem em outra ocasião. É a minha decisão final.

—        Mas, Diego, não me parece que tenha notado... A linha caiu.

 

Fox ficou olhando para o auscultador silencioso com um espanto descrente. Diego, o espanhol cortês, o Diego da singular formalidade de modos, tinha desligado o telefone na cara! Assim só faltava acreditar que o amigo era capaz de colocar veneno no uísque de alguém... Devolveu o auscultador ao suporte com lenta relutância, ficou um instante olhando carrancudo e pensativamente para o telefone, se levantou bruscamente com uma expressão de firme decisão, se encaminhou para o passeio e voltou para oeste na primeira esquina, em direção à Avenida Madison.

 

Já na Madison, percorreu meio quarteirão em direção à baixa, entrou no átrio algo berrante de um apart-hotel, se dirigiu para o elevador e entrou. Enfrentou o olhar inquiridor do ascensorista e lhe disse em tom casual:

 

—        Nono andar, por favor.

 

Mas as coisas não eram assim tão simples. O ascensorista lhe perguntou educadamente, mas sem rodeios, quem desejava visitar; meio verificando se que aquela tentativa de limar arestas era absolutamente desnecessária, uma vez que quando ligou para o apartamento de Garda Tusar dizendo que Mr. Fox desejava falar com ela, o jovem da recepção recebeu instruções no sentido de mandá-lo subir. Fox observou discretamente os rostos com que se cruzava, sabendo de antemão que quando interrogados pela polícia a respeito de Miss Tusar, todos os membros do pessoal, do gerente para baixo, tinham evidenciado uma leal reticência para falar dos hábitos, movimentos e amigos da sua inquilina, ou tinham demonstrado uma surpreendente ignorância dos mesmos. Observou igualmente a expressão severa e imperturbável da criada vestida a rigor que abriu a porta da Suíte D do nono andar. O nome o endereço da serviçal, Frida Jurgens, 909, Rua 83 Este, estavam anotados no bloco que tinha no bolso, um dos vários que pedira na véspera ao Inspetor Damon; bastou-lhe um olhar para o seu ar geométrico e obstinado para perceber porque razão dera tão parca contribuição para o processo. Recebeu o chapéu e o casaco de Fox com uma eficiência destituída de graça e conduziu-o ao interior do apartamento. Garda avançou ao encontro de Fox com a mão estendida para cumprimentá-lo, um sorriso escondido ao canto da boca e um olhar direto dos olhos negros, onde dessa vez não ardia qualquer fogo.

 

—        Demorou muito a aparecer, disse a jovem com falsa petulância. — Aquela cadeira é melhor. Recorda-se de ter dito a Mrs. Pomfret que ia tentar me convencer a ser razoável? Isso foi há mais de uma semana. Garda se sentou e estremeceu delicadamente. — Parece que já aconteceu há um ano. Não concorda?

 

Fox se sentou na cadeira que ela lhe indicara e respondeu afirmativamente. Percebeu que ela pretendia ser amável e encantadora, o que era capaz de fazer sem grande esforço. A cadeira era de fato confortável, a sala não estava demasiado quente e era arejada, e a decoração era de bom gosto e nada excessiva...

 

—        Não sei se conseguirei persuadi-la a ser razoável,     disse Fox, — Mas gostaria de persuadi-la a ser franca. O vaso Wan Li de Henry Pomfret está de novo em sua posse. Um breve pestanejar velou os olhos negros de Garda Tusar por um instante que, em seguida, os cravou de novo na figura do detetive.

—        O vaso? Está se referindo ao vaso roubado?

—        Exatamente, a esse mesmo.

—        Está de novo na posse dele? Quer dizer que conseguiu recuperá-lo? Que bom! A exclamação foi efusiva. — Onde foi que o encontrou?

—        Obrigado pelo elogio. Fox sorriu para a sua anfitriã. — Mas não é merecido. Mr. Koch devolveu-o esta manhã.

—        O quê? Garda parecia atónita. — Koch!... Como é que ele... Meu Deus, Koch? Foi ele quem o roubou? Era com ele que estava este tempo todo?

—        Segundo o próprio, não, respondeu Fox secamente. — Recuperou-o da mesma maneira que Mrs. Pomfret recuperou o violino: por encomenda postal. Esta manhã. Ele passou cerca de uma hora a admirá-lo e, em seguida, devolveu-o ao seu legítimo proprietário. Pomfret ficou deliciado.

—        E o Koch não sabe quem lhe mandou o vaso?

—        Não.

—        E ninguém... Nesse caso, recuperaram o vaso, mas não sabem quem o roubou.

—        Tem toda a razão. Não sabem quem o roubou. Mas eu acho que sei. Acho que foi você quem o roubou.

 

Garda abriu desmesuradamente os olhos para encará-lo. Ardeu neles uma breve chama e, em seguida, a jovem rompeu numa gargalhada. Não se tratava de um risinho afetado ou de um riso forçado, mas sim de uma sentida e genuína gargalhada. A jovem se controlou, inclinou para diante, fez um beicinho sensual a Fox e disse em tom de provocadora zombaria:

 

—        Conte outra! Oh, por favor, conte outra! Fox abanou a cabeça em sinal de negação.

—        É tudo o que tenho para lhe contar, Miss Tusar. Permite que me alongue um pouco mais sobre o assunto?

—        Permito, com a condição de continuar com a graçola. Garda tinha recuperado a sobriedade. — É a primeira vez que rio desde... Desde há muito tempo.

—        Duvido que venha a achar graça ao que tenho para lhe dizer. Também é complicado. Começa com uma pergunta a que a polícia tem tentado responder, e que é a de saber de onde provêm o seu rendimento. O Inspetor Damon afirma que gasta mais de dez mil dólares por ano, provavelmente bastante mais, mas que não tem nenhuma fonte visível de rendimentos e que se recusa a revelar a origem dos mesmos.

—        Que motivo eu tenho para fazê-lo? Não é da conta deles. Nem da sua.

—        Até pode ser verdade. Mas é esse o problema de uma investigação criminal; há que explorar cada toca até descobrir aquela em que o coelho se escondeu, e é frequente isso representar um inconveniente para os espectadores inocentes. Calculo que saiba que a polícia testou a teoria de que é financiada por alguém... Hum...

—        Não tente poupar a minha sensibilidade, cortou Garda num tom duro. — Claro que sei. Até tentaram arrancar respostas da minha criada.

—        Claro. O que é que esperava? Pertence ao grupo de figuras centrais num caso de homicídio, e esconde alguma coisa. Uma vez que não revela a sua fonte de rendimentos, eles concluem que estes devem ser de origem criminosa, infame ou ambas. A teoria de que lhe falei... Eles não foram capazes de reunir provas para sustentar essa teoria, o que os levou a tentar uma nova. A teoria de que está chantageando alguém.

—        Eles!... Os olhos de Garda refulgiram. — Eles não se atreveriam! Imperturbável, Fox fez que sim com a cabeça.

—        É nessa teoria que estão trabalhando neste momento. Duvido que cheguem a qualquer conclusão. A minha teoria é de que você é uma bandida. Acho que roubou o vaso do Pomfret.

—        Isso teve graça da primeira vez...

—        Não era essa a minha intenção. Por favor. Permita que exponha a minha teoria. A moça é bonita e inteligente, provavelmente destituída de escrúpulos, e tem acesso a lugares onde existe toda a espécie de objetos pequenos e portáteis de valor considerável. Não teria qualquer dificuldade em conseguir mais de dez mil dólares por ano com a venda dos mesmos. Você roubou o vaso do Pomfret, consciente de que vale bastante dinheiro, mas teve de ficar com ele, porque descobriu que teria dificuldades para se desfazer dele de forma segura. Por favor, Miss Tusar, pode pelo menos me deixar concluir. O Diego, que está apaixonado por si, e de quem tinha sido íntima, sabia como... Ganha o seu dinheiro. Suspeitava, ou sabia até, que tinha roubado o vaso, acusou-a de ser a autora do roubo, e quis obrigá-la a devolvê-lo. Pode até ter ameaçado denunciá-la mas, se realmente o fez, isso não passou de um blefe, já que o Diego é demasiado cavalheiresco para expor um bandido que afinal é uma mulher. Não há dúvida que a intenção dele era devolver o vaso a Pomfret, mas, sendo ele uma criatura simples, totalmente destituído dos recursos de um intriguista...

—        Basta! Os olhos de Garda pareciam querer fulminá-lo. — Se está à espera que fique calmamente sentada ouvindo esse amontoado de mentiras...

—        Mas não são mentiras, Miss Tusar. Não é mentira que o Diego estava com o vaso. Eu o vi na casa dele. Os lábios de Garda se abriram e Fox conseguiu ouvir o ar sendo sorvido por entre os mesmos. Não havia fogo nos olhos dela; em vez disso, receio. Semicerrou as pálpebras, lhe permitindo ver perfeitamente a linha negra das pestanas.

—        Eu não... Começou. Mas se calou logo em seguida.

—        Eu vi o vaso Wan Li no armário do Diego, disse Fox pacientemente. — Garanto-lhe que o que estou dizendo não é mentira. Como ele saiu do armário dele para ir parar no interior de uma encomenda postal já é outra conversa. Tenho diversas teorias em relação a isso, mas me parece que podem esperar. A pergunta que se coloca é a seguinte: onde é que o Diego obteve o vaso? Eu estou convencido que foi você que o deu. Não vejo de que outra forma possa se justificar o comportamento dele perante mim. Foi assim, não foi Miss Tusar? Foi você que lhe deu o vaso.

 

Garda abanou a cabeça, mas, aparentemente, aquilo não se tratava de uma simples negativa, pois levantou um canto da boca num gesto de desdém meio indignado e meio divertido.

 

—        Está falando sério? Está realmente a me perguntar se sou uma vulgar ladra, assim sem mais nem menos? E se fosse? Está à espera que eu... Sabe que mais? — Os olhos dela bailaram diante dele. — Tenho vontade de lhe dizer que sim só para ouvir o que teria para me dizer em seguida... Calou-se abruptamente, a sua expressão mudou completamente e quase lhe cuspiu em cima quando disse: — O senhor é um completo idiota!

 

Fox suspirou, olhou para ela com ar sombrio e não disse nada.

 

—        E o seu Diego também! Exclamou Garda asperamente. — Por falar no Diego! Ele é seu amigo, não é? E era ele que tinha o vaso. Porque é que não lhe pergunta onde o obteve? Isso já seria diferente, se o trouxesse até aqui e ele fosse capaz de mentir e dizer que eu lhe tinha entregue o vaso...

—        Cale-se! Gritou Fox. Ato contínuo, Garda sorriu para ele.

—        Ah, disse suavemente, — Não gosta...

—        Eu mandei-a se calar. Fox estava de pé, inclinado sobre ela, com os músculos do pescoço a latejarem. — Se o Diego dissesse que tinha lhe entregado o vaso o chamava de mentiroso, não é assim? Você pode ou não ser uma ladra vulgar, e sou forçado a admitir que não tenha como prová-lo, mas a verdade é que não passa de uma vulgar ratazana!

 

Garda se levantou da cadeira e ele lhe colocou a mão sobre o ombro e empurrou-a de novo para lá; Garda lhe sorriu.

 

—        Teria todo o prazer em apagar esse sorriso do seu rosto, disse Fox num tom mais calmo, mas nem por isso menos sério. — Se não fosse pelo Diego, era o que faria. Eu gosto do Diego. Até se poderia dizer que o adoro, se não tivesse deixado de adorar fosse quem fosse de uns anos para cá. Fui contratado por Mrs. Pomfret para investigar o assassinato do filho dela. Quando aceitei o trabalho, nem por um instante me passou pela cabeça que o Diego fosse capaz de envenenar um homem, mas depois disso fiquei sabendo da paixão louca que nutre por si, Deus lhe valha, e da questão do vaso. Ele se recusa a me contar seja o que for a respeito do vaso. Perguntei-lhe por ele porque se não tiver nada a ver com a morte de Perry Durham posso continuar tratando daquilo para o que fui contratado e esquecer toda esta maldita história.

 

Fez mais força com a mão sobre o ombro de Garda, até os seus dedos sentirem os ossos sobre a pele macia.

 

—        Pare com esses risinhos! Continuo a não acreditar que o Diego tenha envenenado Durham, mas é possível. Ele seria capaz de tudo para protegê-la. Se o que me disser acerca do vaso apontar para a possibilidade de ter sido ele, eu estou fora dessa história. Se a polícia o apanhar, paciência. Espero que não. Eu não o farei. Pode acreditar no que lhe digo. É por isso que tenho de saber a verdade a respeito do vaso. Pare de rir! Se ainda lhe resta um pouco de juízo...

—        Frida! Frida!

 

Fox se endireitou e cruzou os braços. Ouviram-se passos algo apressados, mas não precipitados, do outro lado da porta e a criada olhou para eles do limiar da mesma, com a sua expressão fleumática e geométrica perfeitamente composta.

 

—        Telefone para a recepção, ordenou Garda com uma voz que não tinha recuperado totalmente a firmeza, e avise Mr. Thorn de que está aqui um homem a me importunar. Ou... Espere um pouco... Vá buscar o chapéu e o casaco de Mr. Fox. — Os seus olhos pareciam perfurar Fox. — O que prefere?

—        Está cometendo um erro. Talvez um erro fatal. Sendo assim, vou avante com a investigação. Os olhos dos dois se cruzaram. Frio e duro, o dele; abrasador, desafiador e cheio de desprezo, o dela.

—        O chapéu e o casaco, Frida, ordenou Garda.

—        Quem semeia colhe, disse Fox com velada ferocidade antes de sair.

 

Vista do exterior, apesar de não exatamente com mau aspecto, a velha casa da Rua 83 Este tinha um ar sombrio e sujo; vista do interior, continuava a ter um aspecto sombrio, mas não se podia dizer que estivesse suja. Pelo contrário, era extremamente limpa. Às nove e meia daquela noite de terça-feira, o corredor inferior e a sala de jantar estavam impregnados de um forte odor de porco com creme. Na cozinha, esse odor derivava não só do fogão como da boca de Frida Jurgens, o que seria de esperar, dado ter acabado de comer quatro postas de carne guarnecidas. Normalmente ficava satisfeita com o que comia no apartamento da patroa, mas às terças-feiras, dia em que a sua tia Hilda preparava os seus Schweinsfillets mit sauer Sahne, guardava sempre bastante espaço para mais.

 

Pousou os talheres e arrotou de puro prazer; estava de tão bom humor que não esboçou o mínimo sinal de protesto e afastou de imediato a cadeira para se levantar quando uma voz a chamou do outro lado da casa. Na sala de jantar, a sua tia Hilda tinha acendido a luz e se encolhia defensivamente diante do homem que se encontrava de pé com um enorme livro debaixo do braço. O homem tinha um aspecto ao mesmo tempo cômico e maléfico; o primeiro se devia principalmente ao cabelo liso, penteado com risco ao meio e preso com brilhantina, e aos enormes óculos de armação preta; o segundo, à cicatriz lívida e imperfeita que lhe cobria a face direita desde a maçã do rosto até ao canto da boca. Tinha pousado o chapéu num dos cantos da mesa da sala.

 

—        É o homem do censo, sussurrou a Tia Hilda para Frida, em tom de aviso.

—        Censo decenal dos Estados Unidos, disse o homem severamente, num tom que a deformação dos lábios, causada pela cicatriz, tornava indescritivelmente sardônico.

—        O censo? Inquiriu Frida. — Já? No jornal e na rádio diziam que começaria no dia dois de Abril.

—        Isto, disse o homem desdenhosamente, — São os preliminares. A rádio explicou.

—        Não ouvi. Mas assim, à noite?

—        Bom, o homem deu um olhar desagradável. — Se quer que eu apresente queixa ao administrador do bairro...

—        Vamos, vamos, disse a Tia Hilda ansiosamente. A Tia Hilda era constitucionalmente ansiosa. — Queixar-se de nós? Vamos, vamos. Voltou-se para Frida e despejou uma torrente de palavras em alemão, recebendo também algumas em troca. Por fim, disse ao homem: — A minha sobrinha fala melhor inglês do que eu, e saiu apressadamente da sala.

 

Frida puxou duas cadeiras, se sentou numa delas, cruzou as mãos no colo e disse sem qualquer expressão:

 

—        Chamo-me Frida Jurgens. Sou cidadã naturalizada...

—        Espere um minuto, por favor. O homem se sentou, abriu o livro e inclinou-o num ângulo que mantinha as páginas fora do alcance da visão dela. — Primeiro, quem é o chefe desta família?

 

Quinze minutos depois, Frida revelava leves, mas inconfundíveis sinais de tensão. Tinha respondido a perguntas relativas a duas tias, quatro primos e um irmão que conduzia um táxi, e a responsabilidade era pesada; a verdade é que existia na vizinhança uma suspeita generalizada de que o censo era um tipo qualquer de truque da polícia, do qual se podiam esperar consequências terríveis. O problema eram os dois primos, que Frida sabia pertencerem a uma certa organização... Sentia a testa húmida, mas não se atrevia a limpá-la, de modo que, quando o censor acabou a parte relativa aos outros e começou a fazer perguntas sobre ela, o alívio que sentiu foi tão grande que nem reparou que os Estados Unidos pareciam ter uma curiosidade particularmente ampliada no seu caso particular. Onde era o seu emprego atual, há quanto tempo estava lá, qual a natureza dos seus deveres, quantas pessoas viviam na casa, quer de forma permanente quer ocasional, quantas refeições esperavam que preparasse, quais eram os seus horários, quanto tempo tinha de folga?...

 

Disse-lhe que tinha muito tempo de folga, mas quanto, ao resto dependia. O agente de recenseamento declarou, com uma expressão insatisfeita, que isso era demasiado vago para os objetivos do censo de emprego. Dependia de quê?

 

—        Depende dela, lhe disse Frida. — Não come muitas vezes em casa. Quando não o faz, saio as sete, e às vezes antes. Mas outras vezes ela me diz para sair as duas, talvez, ou até mesmo de manhã, e para não voltar nesse dia. Portanto o tempo de folga é bom.

—        Com que frequência isso acontece?

—        Bastante. Talvez um dia por semana, talvez três dias por semana.

—        Certos dias? Às terças-feiras, por exemplo?

—        Oh, não, não em dias específicos. Apenas alguns dias.

—        Há quanto tempo isso é assim?

—        Desde que trabalho lá. Há mais de um ano.

—        Quando foi a última vez que aconteceu? Frida franziu a testa.

—        Eu não minto, disse, em tom ressentido.

—        Claro que não. Por que havia de mentir? Quando foi a última vez?

—        Foi na sexta-feira. Na sexta-feira passada.

—        Talvez Miss Tusar a deixe sair porque tenciona ir ela própria a algum lado. Porque tenciona estar fora e, portanto, não precisa de si.

—        Talvez. Ela não diz!

—        Ela sai, ou faz preparativos para sair, antes de a senhora vir embora?

—        Não.

—        Avisa-a antecipadamente? Por exemplo, no dia anterior?

—        Não. Geralmente acontece de repente. Pouco depois de Mr. Fish telefonar.

—        Fish? O homem do censo soltou uma pequena risada sociável. — Sempre achei graça nesse nome. Conheço um indivíduo chamado Fish, um homem gordo e baixo com duplo queixo. Mas não me parece que seja ele que telefona a Miss Tusar. Será? Gordo e baixo, com duplo queixo?

—        Não sei. Nunca o vi. Atendo o telefone e ele diz para eu dizer a Miss Tusar que Mr. Fish quer falar com ela, e eu lhe digo.

—        E, pouco depois, ela lhe diz que pode tirar o resto do dia de folga.

—        Sim, senhor.

—        Este mundo é muito engraçado.

 

Frida concordou com um aceno. O homem do censo lhe fez mais algumas perguntas, mais como amigo do que como inquisidor, fechou o livro, se levantou, pegou no chapéu e partiu. Lá fora, caminhou até à esquina, entrou num Bar & Grill, procurou um telefone, discou um número e disse:

 

—        Inspetor Damon? Tecumseh Fox. Notícias lamentáveis. Os empregados do átrio e do elevador dos Apartamentos Bolton têm andado a mentir. Um homem que pode ou não se chamar Fish tem telefonado a Miss Tusar uma, duas ou mesmo três vezes por semana, de há mais de um ano até agora. Diria que a situação requer persuasão. Que tal reuni-los? Certo. Estarei aí dentro de aproximadamente meia hora.

 

Passava bastante da meia-noite e a atmosfera da Sala Nove na cave da delegacia da polícia estava impregnada de tabaco e mau humor. Uma dúzia de homens de diversas idades, aparências e condições emocionais estava sentada numa fila de cadeiras de madeira, numa das extremidades da grande sala. Quatro ou cinco polícias à paisana estavam também espalhados pela sala, sentados ou de pé. O Inspetor Damon tinha o traseiro apoiado na beira de uma mesa de madeira e parecia taciturno. Tecumseh Fox, cujo cabelo já não era liso e oleoso e cuja cicatriz e óculos tinham desaparecido, se encontrava junto do refrigerador de água a um canto, bebendo um copo.

 

A persuasão, que tinha sido por vezes enérgica embora nunca violenta, fora completamente improdutiva. O gerente, o subgerente, os porteiros, os empregados do vestíbulo, os homens do elevador, afirmavam todos que nunca tinham visto nem ouvido falar de um Mr. Fish, que Miss Tusar não tinha nenhum visitante habitual ou mesmo frequente, homem ou mulher, que não lhes passaria pela cabeça esconder ou ocultar provas à polícia e que queriam ir para casa. Aquilo já se prolongava havia mais de duas horas. Damon se aproximou do canto onde Fox se encontrava.

 

—        É melhor deixá-los ir embora, murmurou desalentado. — Estão todos mentindo. Ou a criada inventou Mr. Fish ou Miss Tusar adiava os preparativos para sair até depois de a criada ir embora. Escolha. Fox abanou a cabeça.

—        Esqueceu-se de uma hipótese. Já que eles estão aqui, bem podemos experimentá-la. Talvez estejam todos dizendo a verdade, para variar, incluindo a criada. Quando é que um Fish não é um Fish? Damon resmungou:

—        Quer dizer que ele deu outro nome e fingiu estar visitando outra pessoa? Mas nós já...

—        Não. Quem é que podia entrar sempre que quisesse e subir de elevador, sem ter sequer de dar o nome?

—        Não estou... Oh! Damon refletiu por um instante. — Estou entendendo. E se ele telefonasse do interior a ligação teria de passar pela telefonista...

—        Duvido. Ele não faria isso. Telefonaria de outro lado qualquer. Se pensar que vale a pena o esforço, temos de começar por cima e trabalhar até embaixo.

—        Não é esforço nenhum, disse Damon sarcasticamente.

 

Regressou para junto da mesa, se sentou, e apontou o olhar para um homem bem vestido, de aspecto cansado, que estava ficando prematuramente calvo.

 

—        Mr. Warren, receio que não terminamos ainda. Quero fazer algumas perguntas sobre os seus inquilinos. Quantos têm?

—        Noventa e três, respondeu o gerente sem hesitação.

—        Quantos no décimo segundo andar? É o último, não é?

—        Sim. Oito.

—        Quais são os seus nomes e quem são eles?

—        Bom, começando pelo lado sul, Mr. e Mrs. Raymond Bellows. Mr. Bellows tem um escritório imobiliário...

 

Um polícia à paisana estava sentado na ponta da mesa com um bloco de notas e, passado mais de uma hora, tinha um volumoso registro dos ocupantes dos últimos cinco andares dos Apartamentos Bolton, mas não parecia haver entre eles qualquer candidato provável ao papel que estavam tentando atribuir, embora três ou quatro tivessem sido reservados para investigações posteriores. Tal como qualquer busca de uma pepita num monte de algo que pode não ser outra coisa senão areia, era uma tarefa monótona e cansativa, e a maioria dos presentes se sentia entediada e meio adormecida quando Tecumseh Fox subitamente exclamou:

 

—        Ah!

—        Ah, o quê? Perguntou Damon em tom azedo.

—        Esse nome. Mrs. Piscus.

—        O que tem?

—        Piscus é latim para Fish.

—        Não me diga. Damon se voltou de novo para o gerente. — Como é ela?

 

Mr. Warren lhes forneceu os detalhes. Mrs. Harriet Piscus tinha alugado o apartamento 7D, constituído por duas pequenas peças e um banheiro, em Janeiro de 1939. Vivia algures fora da cidade, o gerente não sabia onde, e utilizava o apartamento apenas durante as suas viagens à Nova Iorque, que eram frequentes, aparecia em média duas vezes por semana. Nenhum dos empregados sabia nada sobre a sua família ou o seu passado. Nunca trazia convidados para o apartamento e nunca recebia visitas. Nunca se atrasava no pagamento do aluguel, o que fazia em dinheiro, era generosa com as gorjetas, e extremamente reservada. Era larga de estatura, tímida de feitio e antiquada na indumentária, e a sua voz era uma espécie de falsete trêmulo. Quanto ao rosto, era difícil dizer, porque usava sempre um véu espesso. Como um véu de luto. Entre o pessoal, havia a presunção romântica de que a inquilina do 7D vinha quando queria estar a sós com a sua dor.

 

Quando fora a última vez que estivera no apartamento? A resposta àquela pergunta provocou alguma discussão mas, por fim, um porteiro, um empregado do vestíbulo e um operador de elevador concordaram que tinha sido na última sexta-feira. Fox murmurou qualquer coisa para Damon, e, depois de o inspetor responder também com um murmúrio, se voltou de novo para o gerente.

 

—        Vamos até lá, dar uma vista de olhos no 7D.

—        Agora?

—        Agora.

 

Warren protestou, foi informado de que só poderiam conseguir um mandato de busca na manhã seguinte, pediram que não os obrigasse a tal atraso, e acabou por consentir com alguma relutância. A Sala Nove foi abandonada, com o seu odor de tabaco e ar viciado, e saíram todos para a noite, onde respiraram o ar limpo e encheram três carros da polícia. A viagem até às Seventies demorou menos de dez minutos através das ruas desertas. O pessoal recebeu instruções para esperar no átrio, e apenas o gerente acompanhou Damon, Fox e dois detetives até ao 7D.

 

O lago não continha qualquer peixe. Uma vez que o apartamento fora arrendado já mobilado, havia mobília no interior do mesmo, mas era tudo. Os guarda-roupas e armários estavam vazios; não havia sequer uma escova de dentes no armário do banheiro. Depois de uma inspeção rápida mas minuciosa, durante a qual maçanetas de portas e puxadores de gavetas foram tocados apenas com luvas, o gerente declarou que todos os artigos que se encontravam no apartamento eram propriedade dos seus patrões. Damon lançou um olhar carrancudo a um dos detetives.

 

—        Mexam-se. Fox e eu vamos descer e fazer as perguntas ridículas.

 

No gabinete do gerente, ao fundo do átrio, o pessoal foi novamente reunido e detido, mas não conseguiram obter mais nenhum dado novo sobre Mrs. Harriet Piscus. Nenhum deles a vira alguma vez sem o véu. Nenhum desconfiara de que pudesse ser um homem, embora admitissem agora ser perfeitamente possível caminhava como um homem e tinha pés grandes. Chegava sempre de táxi... Nunca telefonava do apartamento nem recebia chamadas... Nunca chegava correio para ela nem eram entregues encomendas... Pouco depois de a assembleia ser dissolvida, os detetives desceram e informaram:

 

—        Nada de nada. Nem uma migalha. Nem uma única impressão digital em nada, em lado nenhum.

—        Desapareceu, resmungou Fox.

—        E agora, disse Damon amargamente, — A polícia vai investigar. Vamos procurar os taxistas que a recolheram em frente da Biblioteca Pública. Fantástico. Depois de perder uma noite de sono, o que é que eu sei que não soubesse antes? Que Piscus quer dizer peixe.

—        Oh, eu sei mais do que isso, declarou Fox. Muito mais. Por exemplo, que os peixes têm guelras. Como em Ted Gill1 . Ou que Dolphie ou Dolphin2 é um diminutivo comum para homens chamados Adolph, e um golfinho é um peixe...

—        Raios, disse Damon, e saiu intempestivamente.

 

Durante três dias, cem detetives se arrastaram ou correram de um lado para o outro, conforme as suas diversas naturezas ditavam, numa busca persistente e desesperada por uma pista que os conduzisse a Mr. Fish, ou antes, a Mrs. Harriet Piscus. Encontraram indícios, mas não o seu rastro. Desenterraram uma dúzia de taxistas que tinham recolhido uma pessoa vestida de mulher, com um véu de luto, e a tinham conduzido até aos Apartamentos Bolton. As corridas tinham todas começado no centro da cidade, principalmente, segundo parecia, perto de entradas do metrô. Todos os esforços para encontrar pistas anteriores tinham falhado.

 

Outro indício tinha sido descoberto na Rua 51 onde Fox estivera na segunda-feira à noite, à espera de ocupar uma cama, para acabar por descobrir que o apartamento de Perry Durham tinha sido visitado por um furacão. Nessa tarde de segunda-feira, o elevador tivera um passageiro que coincidia com a descrição; o operador lembrava-se porque o passageiro saíra no terceiro andar, onde uma pequena sala de exposições estava exibindo gravuras de corridas, e ele achara estranho que uma mulher de luto andasse atrás de quadros de cavalos de corrida. Teria sido mais simples subir pelas escadas do terceiro até ao sexto andar, embora ainda ficasse por resolver o detalhe da entrada no apartamento de Durham.

 

O terceiro e último indício, embora fosse um beco sem saída como os outros, era o mais significativo pelo menos para Tecumseh Fox, quando o Inspetor Damon lhe falou sobre ele. Com uma paciência obstinada e inesgotável, um esquadrão fora destacado para verificar as vendas recentes de cianeto de potássio, e descobrira que na segunda-feira de manhã um empregado da

Dickson’s, a farmácia na Segunda Avenida, tinha vendido quinhentos centímetros cúbicos de óleo de mirbane a uma mulher grande com voz aguda que usava um véu de luto. Damon ficara meio fora de si.

 

—        Era ela, declarou com uma convicção sombria. — Não me diga que não era!

—        Ele, corrigiu Fox.

—        Está bem, ele! E ele comprou-o, e ele é um assassino e ele vai usá-lo! Sabe muito bem o que é o óleo de mirbane, é nitrobenzeno, e é tão mortífero que basta colocar uma colher cheia sobre a pele...

 

Fox fingiu ouvir um recital sobre as propriedades do nitrobenzeno e as preocupações do inspetor relativamente ao uso que Fish-Piscus tencionava fazer desse frasco em particular. Não partilhava das mesmas apreensões, uma vez que calculava que a totalidade dos quinhentos centímetros cúbicos do produto devia ter sido gasta na armadilha a que escapara por tão pouco quando abrira a porta da casa de Diego Zorilla, na segunda-feira à tarde. Mas controlou o impulso de aliviar o espírito do inspetor, pois sabia não haver nenhuma técnica policial, subtil ou brutal, que conseguisse soltar a língua de Diego. No entanto, estava a começar a parecer-lhe que Diego era a sua única esperança. Fox deixara Mr. Fish entregue à polícia porque esse era precisamente o tipo de coisa que os métodos e equipamentos policiais podiam tratar muito melhor do que qualquer esperteza particular; e eles tinham falhado, o que era espantoso. Se Fish-Piscus era um homem e um assassino, era o mais sortudo ou o mais astuto da longa lista que Fox já conhecera.

 

E o Inspetor Damon, quase em pânico ao saber que Piscus, presumivelmente com a sua aparência própria e desconhecida, se armara recentemente com uma garrafa de nitrobenzeno, perdera a cabeça. Na noite anterior, sexta-feira, fora ter com Garda Tusar e abrira o seu jogo com um ataque direto. Garda lhe dissera, sorridente, que recebia telefonemas de muitas pessoas, mas nenhum, tanto quanto se lembrava, de alguém chamado Fish; Frida estava sempre entendendo mal os nomes; certamente que ela não era legal ou moralmente obrigada a justificar o seu hábito de dar de vez em quando uma tarde de folga à criada; nunca vira Mrs. Harriet Piscus nem ouvira falar dela. Mantinha pouco contato com os outros inquilinos.

 

Em conversa com Fox, Damon tinha confessado que o ataque frontal fora um erro. Apesar de terem montado vigilância sobre Garda, Fish-Piscus podia ser avisado, e certamente que o seria. Mais valia abandonar a vigília que era mantida no interior e no exterior dos Apartamentos Bolton. Inútil era também, agora, continuar a seguir Beck, Pomfret, Zorilla, Gill e Koch, na esperança que estes os conduzissem a algum quarto mobilado numa rua secundária, onde se poderiam metamorfosear em Mrs. Harriet Piscus.

 

Damon chegara mesmo a confessar, se não uma derrota, pelo menos um impasse. Durante os três dias de caça intensiva e implacável a Fish-Piscus, os outros ângulos não tinham sido negligenciados. Tinham pressionado Koch ao máximo relativamente à jarra, Hebe Heath relativamente ao violino e à garrafa de uísque, e Dora quanto à segunda carta que Jan Tusar deixara ou não; tinham pressionado toda a gente em relação a tudo, incluindo Mrs. Pomfret relativamente à vida privada do seu filho. A imprensa estava a se tornar sarcástica e o Comissário da Polícia demasiado brusco; e Irene Durham Pomfret tinha uma reunião com o Presidente da Câmara às dez da manhã, juntamente com o Procurador Público.

 

E Damon estava acendendo cigarros uns a seguir aos outros e a esmagá-los meio fumados. Isso era mais significativo do que qualquer confissão verbal. Fox só o vira fazer o mesmo uma vez, durante o caso Hatcher, quatro anos antes, e esse caso ainda estava por resolver. Assim, decidiu Fox enquanto conduzia em direção à zona residencial da cidade, a única esperança residia em Diego. Ou fazia mais uma tentativa com Diego, ou continuava a marcar passo como fizera nos últimos três dias, à espera que a polícia encontrasse Fish-Piscus, e Fox já estava farto disso. Mas a tentativa com Diego tinha de ser adiada. Quando chegou ao edifício onde o amigo morava, na Rua 54, Fox subiu dois lances de escadas, descobriu que tinha sido colocada uma nova fechadura na porta, tocou à campainha meia dúzia de vezes e não obteve resposta. Sentou-se no degrau de cima durante uma hora, desistiu, regressou ao carro, voltou para casa e foi para a cama.

 

Sábado de manhã, se levantou às seis horas e já se encontrava a caminho da cidade antes das sete, e exatamente às oito horas colocou o polegar sobre o botão da campainha do apartamento de Diego. Ouviu-a tocar no interior e um momento depois uma voz áspera:

 

—        Quem é?

—        Fox. Uma longa pausa, e depois:

—        O que quer?

—        Quero falar contigo, e vou falar.

 

Outra pausa, seguida de passos, e a porta se abriu. Diego estava de pijama. Tinha sido arrancado da cama e era evidente que não retribuía o desejo de conversar do seu visitante, mas a delicadeza estava no sangue. Abriu a porta para Fox entrar, fechou-a e apontou para uma cadeira.

 

—        Desculpe a desarrumação, disse em tom grave e apologético. — Cheguei tarde em casa. Bêbado. Está um gelo aqui dentro. Foi fechar uma janela, voltou e se sentou.  — Fui indelicado contigo ao telefone. Lamento, mas vou ter de continuar a ser indelicado.

—        Não me importo, Fox sorriu. — Tenho esperança de convencê-lo a mudar de atitude. Sei quem matou Jan Tusar e Perry Durham. Diego, de olhos congestionados e abatido na cadeira, pestanejou. Endireitou-se e pestanejou de novo.

—        O diabo é que sabe, disse, em voz baixa.

—        Sei, sim. Mas não posso provar.

—        Não precisa provar a mim. Obviamente, Diego não tencionava se deixar assustar; pretendia permanecer imperturbável e cauteloso; mas, involuntariamente, pronunciou um nome. — Koch, disse, em voz quase inaudível, ficando imediatamente irritado por a palavra ter escapado. Fechou a boca e lançou um olhar irado a Fox. Fox abanou a cabeça.

—        Não vou dizer. Por enquanto. Mas garanto que sei quem foi. Também garanto que, se continuar a se armar em cavalheiro, só vai piorar as coisas. Diego soltou uma exclamação seca.

—        Cavalheiro?

—        Bom, chame do que quiser. Miss Tusar não roubou o vaso, embora tenha dito que sim. Nem tentou matá-lo recorrendo àquela armadilha. Mas não há a menor hipótese de consegui-la manter fora disto. Estou sendo franco consigo, Diego. A polícia ainda não chegou às mesmas conclusões que eu, em parte porque não fui franco com eles...

—        Pode ser. Por acaso pedi...

—        Não. Foste e continua a ser um cavalheiro espanhol. Não estou troçando de você, nem sequer estou recordando que a senhora em questão não o merece e, de qualquer modo, sabe disso tão bem como eu. Estou apenas dizendo que é inútil, e que as coisas serão muito mais fáceis, até para ela, se me contar tudo agora e me deixar tratar do assunto. Para não falar no perigo de poder ser acusado como cúmplice... Embora imagine que esse argumento não tenha grande efeito. Um perigo ainda maior é o de ela vir a ser acusada de cúmplice se a situação não for tratada da maneira certa. É isso que pretende? Diego rosnou.

 

Fox se inclinou para frente.

 

—        Use a cabeça, Diego. Raios, olhe para as coisas com olhos de enxergar. Como é que o vaso veio parar na sua posse? Foi ela que deu para guardar?

—        Já disse que teria de continuar a ser indelicado, disse Diego em voz baixa.

—        E eu digo que sei quem é o assassino. E você está protegendo-o.

—        Não.

—        Mas está!

—        Não. Eu não estou protegendo nenhum assassino. Roubei aquela jarra da casa de Pomfret, você a viu no meu armário e alguém esteve aqui e levou-a. É tudo. Diego abriu as mãos, um gesto que raramente usava desde o acidente que lhe levara os dedos. — Por que não me deixa em paz? Vá, conte à polícia. Não me importo, mas você... Um bom amigo como você... É muito difícil e doloroso...

—        É melhor não dizer que preparou aquela armadilha com o nitrobenzeno para mim. A polícia já descobriu quem a comprou.

—        Obrigado. De qualquer modo, isso seria um disparate.

—        E é tudo? Não sente curiosidade em saber quem a comprou? Quem tentou matá-lo?

—        Não sinto curiosidade em saber nada. Absolutamente nada neste mundo.

 

Fox olhou para ele. Tinha ido até a casa do amigo na firme intenção de perder horas, o dia inteiro se necessário fosse, num esforço para convencer Diego a falar, mas aquele rosto empedernido com os olhos injetados de sangue lhe dizia que seria um dia desperdiçado.

 

—        Muito bem, disse, pegando no chapéu. — Antes de ir embora, há mais uma coisa. Há cerca de um ano, alguém partiu um dos vasos de Pomfret. Um Ming de cinco cores. Não tem nada a ver com aquele que você... Ah... Roubou. Este foi quebrado. Sabe alguma coisa sobre o assunto? Diego fitou-o de olhos semicerrados.

—        Se sei alguma coisa? Não fui eu que o quebrou, se é isso que quer dizer.

—        Sabe quem foi?

—        Não.

—        Já tinha ouvido falar nisso?  Diego acenou afirmativamente.

—        Estava presente quando aconteceu.

—        Quando foi?

—        Como disse, foi há cerca de um ano. Há mais de um ano. Mrs. Pomfret deu um musical em honra de um pianista chamado Glissinger e a casa estava apinhada, como de costume.

—        Quem descobriu que o vaso estava partido?

—        Não sei. Já tinha saído. Só uma semana depois é que soube o que tinha acontecido. O Pomfret ainda estava inconsolável. Não queria comprar mais cerâmica.

—        Sabia quem o tinha quebrado?

—        Não me lembro, não estava particularmente interessado, mas acho que não. Se eu soube, me esqueci, ou não me disseram.

—        Sabe onde é que ele guardava o vaso? Em que sala?

—        Não. Diego estava de testa franzida. — Se isto é algum tipo de rodeio...

—        É um grande rodeio, não há dúvida. Fox se levantou. — Muito agradecido. Desculpe tê-lo arrancado da cama. Eu aviso se a polícia vier. Adeus.

 

Já na rua, procurou um telefone e deu vários telefonemas. Depois voltou ao carro e se dirigiu à parte baixa. Cinco horas depois, às duas da tarde, subiu os degraus que davam acesso ao vestíbulo de uma moradia nas East Sixties, onde vivia Dora Mowbray. Começava a lhe parecer que a sua busca de informação sobre o vaso partido iria se revelar tão estéril como todas as outras linhas de investigação, tanto suas como da polícia.

 

Adolph Koch conseguira lhe fornecer uma informação para os registros: que o Ming de cinco cores, um dos melhores exemplares existentes, era guardado num armário baixo perto de um canto da sala amarela; mas era tudo, embora ele tivesse estado presente no musical.

 

De Hebe Heath, que envergava um vestido de noite azul e o recebeu reclinada num divã da sua suíte no Churchill, não conseguira nada exceto uma olhadela ao cenário, uma vez que ela estava em Hollywood na altura do musical.

 

Felix Beck avançara com a suspeita de que teria sido Garda Tusar a quebrar o vaso, porque a vira com ele na mão, mas fora forçado a admitir que se tratasse apenas de uma suspeita.

 

Em casa dos Pomfrets, descobriu que o senhor e a senhora tinham ambos saído, e nem o mordomo nem o secretário podiam acrescentar nada aos escassos fatos que Fox já possuía. Na verdade, Wells arriscou uma alusão velada a Mrs. Briscoe, mas Fox fez de conta que não tinha ouvido.

 

Se Mrs. Briscoe ou qualquer outra pessoa de fora tinham quebrado aquele vaso, mais valiam devolver os cinco mil dólares a Mrs. Pomfret e ir para casa. Entrou no vestíbulo e apertou o botão com o nome Mowbray.

 

Sentada no banco do piano, Dora franziu a testa, hesitou, e disse:

 

—        É uma piada. Fox sentiu um formigamento na altura do estômago.

—        Onde é que está a piada?

 —       Ora... Foi há tanto tempo... E agora vêm me fazer perguntas sobre o assunto. Porquê essa pergunta agora?

—        Estou curioso. Alguma coisa despertou a minha curiosidade. Fox cruzou as pernas e sorriu. — Mas não era a isso que se referia quando disse que era uma piada. Referia-se a outra coisa. Onde é que está a piada? Dora devolveu o sorriso, mas abanou a cabeça.

—        Era só isso que eu queria dizer.

—        Não, não era. Queria dizer que havia algo estranho em relação ao vaso partido, não à minha pergunta. Vamos, vamos. Não foi isso?

—        Bem... Sim.

—        Muito bem. O quê?

—        Não posso lhe dizer.

—        Por que não?

—        Porque foi uma das promessas que fiz ao meu pai. Não precisa dizer que é uma tolice, eu sei que é... Mas quebrei algumas promessas que fiz ao papai enquanto ele era vivo, coisas pequenas... E desde que ele morreu... Quero mantê-las...

—        Foi o seu pai que partiu o vaso?

—        Oh, não!

—        A promessa que fez está relacionada com ele? Quer dizer, foi para protegê-lo de alguma coisa vergonhosa ou desonrosa...

—        Deus do céu, não!

—        Refletiria algum descrédito na sua...

—        Não, não é nada disso. Dora gesticulou com impaciência. — Já lhe disse que é uma bobagem, mas não vou quebrar nenhuma das promessas que lhe fiz, só isso.

—        Bom Fox se recostou. — Está bem. Dois homens foram assassinados, provavelmente três, mas o assassino ficará em liberdade porque você não quer quebrar uma promessa que fez ao seu pai.

—        O assassino? Dora olhou para ele de olhos arregalados. — Isso é ridículo!

—        Não, não é.

 —       Mas é!

 —       Já lhe disse que não é, e eu sei muito mais sobre o assunto do que você. Eu já sabia que havia algo esquisito em relação àquele vaso partido antes de lhe vir fazer esta pergunta, caso contrário não teria vindo. Estou sendo sincero consigo Miss Mowbray. Se mantiver a promessa que fez ao seu pai, estará protegendo um assassino.

—        Mas não tem nada a ver com um homicídio!

—        Garanto-lhe que tem.

—        É um absurdo!

—        Não. Fox se inclinou para ela. — Ouça. Use um pouco de bom senso. Diga-me o que é. Se não for aquilo que eu penso que pode ser, esquecerei tudo. Se for aquilo de que desconfio, não vai querer que eu me esquecesse. Certo?

—        Não, admitiu Dora com relutância. — Não se...

—        Com certeza que não. Aqui está o que eu já sei: Certa tarde de Dezembro, sessenta ou setenta pessoas foram convidadas para um musical em casa de Mrs. Pomfret. Que teve lugar no salão. Durante um intervalo foram servidas bebidas na sala amarela e, depois do programa, se seguiu uma refeição leve. O vaso Ming de cinco cores se encontrava num armário baixo a um canto da sala amarela. Depois de alguns, talvez depois de todos os convidados partirem... Especificamente, Diego, Beck e Adolph Koch já tinham partido... Descobriu-se que o vaso estava partido. Correto?

—        Sim, admitiu Dora. — Mas alguns dos convidados ainda estavam lá. Eu estava.

—        Quantos?

—        Apenas alguns. Dez ou doze.

—        Lembra-se de quem eram?

—        Bem... Dora franziu os lábios. — Mrs. Briscoe. Glissinger. Barbinini. E Elaine Hart, sei que estava lá porque ela estava na outra ponta da sala, com Perry, quando ele encontrou o vaso...

—        Perry Durham! Foi ele que fez a descoberta?

—        Sim. Estávamos em volta da lareira quando ouvimos Perry soltar um forte assobio na outra ponta da sala e chamar Mr. Pomfret. Depois Mr. Pomfret gritou pela mulher, e fomos todos ver o que acontecia, e ali estava o vaso caído no chão, desfeito numa dúzia de pedaços.

—        E? ...

—        É tudo. Mr. Pomfret parecia capaz de começar a chorar a qualquer momento, e não conseguia falar, por isso Mrs. Pomfret nos perguntou se sabíamos alguma coisa sobre o assunto, e nós respondemos que não e saímos.

—        Mas onde está a piada em tudo isso? Fox tinha a testa franzida. — O que foi que considerou engraçado?

—        A coisa engraçada não aconteceu lá.

—        Onde aconteceu?

—        Em casa. Depois. O papai tinha saído antes de o programa terminar porque tinha um compromisso e, mais tarde, quando chegou a casa para jantar, antes de eu mencionar o que acontecera, ele disse que calculava que Pomfret tinha mandado chamar a polícia por causa do vaso. Perguntei-lhe como sabia o que acontecera, e ele disse que antes de sair tencionara passar pela sala amarela para ir buscar uma bebida, pela porta que dava para o salão, mas quando estava prestes a entrar viu o reflexo de Pomfret no espelho grande do outro lado. Parou ao ver a expressão no rosto de Pomfret e viu que ele tinha na mão um pedaço do vaso Ming, e como não queria se atrasar ao ser apanhado na confusão que sabia que Pomfret ia armar, saiu.

—        Pomfret não o viu.

—        Aparentemente, não.  Fox tinha um brilho nos olhos.

—        Então o vaso partido foi encontrado duas vezes, por pessoas diferentes. Dora acenou afirmativamente.

—        Era o que parecia. Eu disse ao papai que devia estar enganado, porque Pomfret não tinha dito absolutamente nada sobre o assunto e estava conversando muito calmo e naturalmente conosco quando Perry o chamou, e sem dúvida que ficou surpreendido e chocado quando viu o vaso, mas o papai disse que tinha a certeza de que vira o pedaço do vaso com o dragão amarelo na mão de Pomfret. Mais tarde me pediu que lhe prometesse que nunca falaria no assunto a ninguém, e assim fiz. Ele disse que já tínhamos confusão que chegasse nas nossas vidas sem termos de nos meter nas vidas dos outros. Dora mordeu o lábio. — Era um homem muito sábio e muito, muito bondoso. Nunca gostou de Mr. Pomfret.

—        Ele tinha alguma teoria para justificar este assunto em particular?

—        Acho que não. Se tivesse, nunca me disse.

—        Alguma vez voltou a mencionar o vaso?

—        Que me lembre, não. Tenho a certeza que não.

—        Presumivelmente, Pomfret estava sozinho na sala amarela quando o seu pai o viu?

—        Presumivelmente. O programa estava em andamento.

—        Quanto tempo se passou desde então até ao momento em que Perry Durham descobriu a jarra?

—        Oh... Dora refletiu um instante. — Meia hora, talvez um pouco mais.

—        Bem. Fox se recostou, franziu a testa e puxou o lóbulo da orelha. — Suponho que é mais do que eu tinha o direito de esperar, mas certamente que não é grande coisa em termos de provas, principalmente tendo em conta que o seu pai já... Partiu.

—        Disse, recordou Dora, — Que se não fosse aquilo que pensava...

—        Mas é. Ela parecia cética.

—        É o que pensava que poderia ser?

—        Exatamente. Não os detalhes, mas as implicações. Foi a primeira cena de uma comédia que mais tarde se transformou numa tragédia terrível. Sei que foi terrível porque vi o rosto de Jan Tusar quando estava tentando tirar música daquele violino, naquela noite. Um estremecimento percorreu o corpo de Dora.

—        Tento esquecer isso. Quando consigo.

—        Eu não, disse Fox em tom severo. Levantou-se abruptamente. — Por enquanto, tem de aceitar a minha palavra em como não se arrependerá de ter quebrado a promessa que fez ao seu pai. Se fez mais alguma, guarde-a. Mas provavelmente terei de lhe pedir que repita, tal como me contou, na presença de outros. Se o fizer, será em circunstâncias que a convencerão de que tal é necessário. Entretanto, por amor de Deus não fale disso a mais ninguém. Três homicídios e uma tentativa de um quarto são mais do que suficientes. Dora olhou para ele.

—        Três?  Fox acenou afirmativamente.

—        O seu pai. Estou começando a pensar que a única coisa errada com as suas suspeitas acerca da sua morte era o fato de recaírem sobre o homem errado.

 

Às duas da tarde de sábado, Irene Durham Pomfret se sentou de novo na sua biblioteca, à cabeceira da grande mesa onde diretores de orquestras, de hospitais e de sociedades comerciais tantas e tantas vezes tinham se reunido. O seu aspecto convidava à interrogação sobre se aquela reunião seria conduzida com a sua habitual autoridade e destreza, ou mesmo se seria capaz de conduzi-la de todo. Duas semanas antes Irene Pomfret era uma mulher bela e cheia de vitalidade, tão competente e feliz com a vida como qualquer outra mulher com um filho de vinte e poucos anos; agora nem sequer um farrapo respeitável conseguia ser. Não lhe restava qualquer força física ou anímica. Tinha os ombros caídos, toda ela parecia encolhida, e os seus olhos mortiços e emoldurados pelas pálpebras inchadas e raiadas de vermelho sugeriam que não existia outra solução que não fechá-los para sempre.

 

As outras pessoas à mesa estavam sentadas exatamente como nas duas ocasiões anteriores, com uma única diferença evidente: Tecumseh Fox estava sentado na cadeira antes ocupada por Perry Durham. Sentado à esquerda de Fox, entre este e Mrs. Pomfret estava Wells, o secretário. Henry Pomfret, Hebe Heath e Felix Beck estavam sentados à sua direita. Do outro lado da mesa estavam Koch, Ted Gill, Dora, Diego e Garda Tusar. Mrs. Pomfret olhou em volta quase sem ver.

 

—        Quero que saibam exatamente por que motivo se encontram aqui, disse num tom que nenhuma direção ou conselho de administração alguma vez ouvira. — Mr. Fox me disse ontem que a polícia exige que lhes entregue o violino, para servir de prova. Parecem incapazes de obter mais alguma prova seja do que for e, por isso, querem esta. Disse-lhe que lhes entregasse o violino. Ele levantou objeções. Apontou o estojo do violino que se encontrava em cima da mesa, diante de Fox. O lábio inferior lhe tremeu e ela fez um esforço evidente para se controlar, acabando por desistir. —          Ele vai dizer o porquê, acrescentou de forma quase inaudível.

 

Os olhares do resto dos presentes se desviaram com evidente alívio do rosto dela para o de Fox, o que resultava numa visão muito menos inquietante. Fox olhou em volta.

 

—        Talvez tenha sido um excesso de precaução, admitiu. Abriu o estojo e retirou de lá o violino, que colocou em cima da mesa. — Mas me sentia responsável por este instrumento perante vocês e queria me ver livre dessa responsabilidade. Como tive oportunidade de dizer à polícia, mantive-o à minha guarda apenas na qualidade de agente. Estou aqui para dizer que, a partir de agora, o considero devolvido ao coletivo dos seus donos. Podem entregá-lo voluntariamente à polícia ou obrigá-los a dar início ao necessário processo legal.

—        Posso vê-lo? Perguntou Felix Beck com brusquidão.

—        Com certeza.

 

Fox lhe entregou o violino, fazendo-o passar diretamente diante de Henry Pomfret e de Hebe. Beck pegou no instrumento e examinou-o, passou as pontas dos dedos sobre a curvatura do bojo e, de súbito, tocou a corda do Mi. O som agudo e lamentoso ecoou sobre o leito de nervos excitados de todos os que se encontravam de ambos os lados da mesa. Dora estremeceu e se encolheu; Diego resmungou; Mrs. Pomfret apertou o lenço de encontro aos lábios.

 

—        Não faça isso! Ordenou Garda Tusar em tom impertinente.

—        Perdão, se desculpou Beck, pousando o violino. Adolph Koch olhou para Fox e aclarou a garganta.

—        Se a polícia quer o violino como prova, pode levá-lo, não pode? Perguntou.

—        No caso de querermos ficar com ele, não necessariamente, Mr. Koch. Este instrumento é valioso, é frágil e é nosso. Podemos contestar a sua requisição. Koch encolheu os ombros.

—        Parece que podia ter feito melhor do que nos reunir todos aqui desta maneira. Especialmente porque, dadas as circunstâncias, se trata de uma violência para Mrs. Pomfret. Não bastava ter telefonado a Miss Heath, a Miss Mowbray e a mim?

—        Claro que sim. Fox devolveu o olhar do outro sem sorrir. — Mas surgiram algumas complicações. Preciso dizer mais uma coisa antes que possam tomar uma decisão inteligente acerca do violino. Tenho de contar quem matou Jan Tusar e Perry Durham.

—        Nesse caso, observou Koch sarcasticamente, — Podia ter esperado até estar preparado para fazê-lo.

—        E foi o que fiz, respondeu o detetive. — Já estou preparado para fazê-lo.

 

Observaram-se gestos de espanto, se ouviram engasgos e exclamações, e dez pares de olhos se fixaram na figura de Fox. Hebe Heath cravou os dedos na manga do casaco de Felix Beck e este se libertou com um esticão. Mrs. Pomfret ficou muito direita e rígida.

 

—        As coisas se passaram assim, começou Fox de forma casual. — Eu tive... Bem, vamos lhe chamar de uma forte suspeita... Da identidade do assassino há cinco dias atrás. Na terça-feira à noite, mais concretamente. E ontem à tarde fiquei sabendo uma coisa que confirmou essa suspeita. Mas não tinha provas, e continuo a não ter. Por isso, como disse, de forma a que possam decidir de forma inteligente o que fazer com o violino, vou simplesmente contar o que sei. Claro que um de vós já sabe o que vou dizer.

—        Um de nós, murmurou Diego ferozmente. Os olhos avermelhados de Mrs. Pomfret estavam cravados na figura de Fox.

—        Um de nós? Arquejou Dora. Koch cruzou os braços.

—        Aí está o que eu chamo uma bela atuação, disse. — A atuação de um verdadeiro charlatão...

—        Não me parece, protestou Fox humildemente. — Parece ser a única coisa sensata a fazer. Afinal de contas, esse homem a quem todos nós apertamos a mão é um assassino, uma pessoa astuta e perigosa e, mesmo que isso não possa ser provado perante um júri, me parece que têm o direito de conhecer a verdade. Penso que Miss Tusar, em particular, deve saber a verdade. De certo modo, ela foi enganada de uma forma mais completa e impiedosa que qualquer um dos outros. Se alguém tinha razões para esperar honestidade da parte dele, esse alguém era ela, mas o seu irmão foi uma das vítimas, e ela adorava o irmão. Não é verdade, Miss Tusar? Não adorava o seu irmão Jan?

—        Sim, é verdade, respondeu Garda com voz cortante. — E se for capaz de me dizer...

—        É o que pretendo fazer. Ele levou o seu irmão a cometer suicídio. Quando o truque foi descoberto, receou que pudesse suspeitar dele e lhe mandou aquela carta assinada com uma suástica. Não foi um nazista que lhe enviou aquela carta.

—        Como sabe que não?

—        Porque a suástica estava mal desenhada. Estava desenhada no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, e não no sentido dos mesmos. Garda franziu os lábios.

—        Era uma suástica, insistiu. — Talvez tenha ido buscar essa ideia da minha criada.

—        Não. Tudo o que consegui arrancar da sua criada foram notícias de Mr. Fish. O que me leva ao centro da questão. Mr. Fish matou o seu irmão.

—        É mentira...

 

O protesto foi o resultado de um impulso súbito que controlou de imediato. Mas a jovem não cedeu ao pânico; ergueu o queixo e o seu olhar flamejante pareceu trespassar Fox.

 

—        Estava convencido, continuou Fox calmamente, — Que tinha negado conhecer Mr. Fish.

—        Pois neguei! E nego! Eu quis dizer apenas... Que tudo o que diz é mentira!

—        Quem raio é Mr. Fish? Perguntou Diego com brusquidão. — Você disse que era um de nós.

—        É verdade. Fox olhou em volta. — Parece-me que a história de Mr. Fish é um bom ponto de partida tão bom como qualquer outro para o que tenho a explicar. É um amigo de Miss Tusar que visita o seu apartamento com frequência. Ou visitava. Só que quando chega ao apartamento já não é Mr. Fish, e sim Mrs. Harriet Piscus... Por favor, Miss Tusar! Isso não lhe serve de nada. Se começar uma discussão, ponho-a lá fora e continuo com a minha história. Se a difamar, pode me pedir contas depois.

—        Devíamos todos lhe pedir contas, protestou Koch enfaticamente. — O senhor disse que se tratava de um de nós. E agora esse Fish transforma-se em Mrs. Piscus... Sou forçado a repetir que se trata de uma atuação espantosa.

—        Deixem-no continuar, ordenou Mrs. Pomfret num tom novamente autoritário. — Continue Mr. Fox.

—        Muito bem, prosseguiu Fox. — Posso desde já esclarecer esta aparente contradição. Mr. Fish é um de vocês. Foi excessivamente cuidadoso ao cobrir o rastro das suas visitas a Miss Tusar. Telefona-lhe antecipadamente, provavelmente de uma cabine telefônica, para lhe dar tempo de dispensar a criada e ficar sozinha em casa. Depois se enfia algures, provavelmente nalguma sala com mobília, apesar da polícia não ter sido capaz de descobrir, e sai de lá na personagem de uma mulher com um véu de luto lhe cobrindo o rosto. Em seguida apanha o metrô e um táxi que o deixa à porta dos Apartamentos Bolton, onde, sob o nome falso de Mrs.

Harriet Piscus, alugou uma suíte em Janeiro de 1939. Aí, apanha o elevador para o sétimo andar e sobe a pé dois lances de escadas até chegar ao apartamento de Miss Tusar. Parecem precauções demasiadas, mas pode ser que isso ainda venha a salvá-lo de ser condenado por homicídio. Apesar, claro, de não ter sido esse o motivo porque se deu a tanto trabalho; ele planeava manter as visitas que fazia a Garda Tusar em segredo.

 

Ouviu-se um ruído produzido pela garganta de Diego Zorilla. Fox olhou para o amigo.

 

—        Lamento Diego. Pode sair, se assim desejar, mas não pode fazer mais nada... Continuando com Mr. Fish. Ele adora coisas belas e é um conhecedor apaixonado de cerâmica. Também adora Miss Tusar. Tirou um vaso retangular preto Wan Li do lugar a que pertencia nesta casa e levou-o para o apartamento de Miss Tusar, onde o deixou. Queria ver os dois em casa dela sempre que ele também estivesse ali. Ele...

—        Mentiroso! Cortou Garda Tusar.

—        Não, eu não sou mentiroso, continuou Fox. — Admito que os próximos detalhes não passam de conjecturas. Mas as coisas aconteceram de fato, talvez não exatamente desta maneira. Miss Tusar mantinha o vaso escondido sempre que Mr. Fish se encontrava ausente, com medo que alguma das suas visitas o reconhecesse como o vaso roubado de Mr. Pomfret. No entanto, um descuido permitiu que o vaso se encontrasse à vista, certo dia, quando Diego lhe fez uma visita. Diego concluiu que Miss Tusar tinha roubado o vaso. Mesmo antes desse acontecimento, é provável que tenha concluído que ela mantinha a sua vida de luxo graças a uma série de pequenos roubos, porque precisava satisfazer a sua curiosidade em relação à origem dos rendimentos dela e, por mais desagradável que essa conclusão lhe pudesse parecer, sempre era menos desagradável que as alternativas possíveis...

—        Maldito seja! Diego se levantou. — Vem comigo, raios o partam!

—        Não posso Diego. Agora não. Podia ter evitado isto, meu velho... Então, Diego se apropriou do vaso. Às claras, naturalmente, diante de Miss Tusar, uma vez que não tem nada de ladrão. A sua intenção era arranjar maneira de devolvê-lo a Pomfret, mas foi adiando a devolução até ser tarde demais. Garda teve de contar a Mr. Fish o que tinha acontecido ao vaso, e isso fê-lo entrar em pânico, porque já tinha outros e mais vitais segredos além da sua amizade secreta com Miss Tusar. Dois segredos. Tinha cometido dois homicídios. Já nem sequer confiava em Miss Tusar, pelo menos não completamente; e se ela tivesse contado a Diego como o vaso fora parar em sua casa? Ele arrombou o apartamento de Diego e lhe tirou o vaso, mas antes de partir montou uma armadilha para matá-lo que só falhou porque eu cheguei ao apartamento um pouco antes do Diego. Mr. Fish tinha agora como único desejo devolver o vaso a Pomfret, e assim fez, recorrendo a um estratagema e enviando o vaso a Koch, sabendo de antemão que Koch o reconheceria e o entregaria a Pomfret. A segunda-feira passada foi um dia agitado para Mr. Fish. Na tarde desse mesmo dia, foi ao apartamento de Perry Durham e revistou-o de cima abaixo, mais parecendo que por ali tinha passado um ciclone. Não sei o que procurava, mas calculo que se tratasse da segunda nota de suicídio deixada por Jan Tusar na mesa do seu camarim antes de cometer suicídio. Miss Mowbray achava que tinha visto duas notas, mas Perry Durham afirmava que só havia uma. Era apenas natural inferir que Durham tinha se apropriado de uma delas e a escondera, presumivelmente na sua pessoa. Se eu era capaz de tal raciocínio, decerto que Mr. Fish também era. Além disso, é provável que para ele já não se tratasse de uma questão de raciocínio. É indubitável que Durham lhe disse que tinha a carta de suicídio em seu poder, e é mesmo possível que tenha lhe mostrado. Durham era um jovem tolo e precipitado. Sabia que estava lidando com um rato encurralado. E um rato encurralado é um animal perigoso, especialmente depois de ter confrontado Mr. Fish com o conteúdo daquela carta... Ainda que não o conhecesse por Mr. Fish...

—        Nem nós, disse Henry Pomfret. — Se é que o conhecemos de todo. Mas claro que a expectativa por si criada é bem-vinda... Se é que faz parte do seu número... Fox sorriu para ele, ainda que de uma forma quase imperceptível.

—        Porquê? Perguntou suavemente. — Começa a ser demais para si? Pomfret tentou lhe devolver o sorriso, mas não conseguiu mais que um arremedo.

—        Demais? Perguntou. Fox assentiu.

—        A expectativa, digo eu. É natural que se sinta curioso... Por exemplo, sobre o que despertou em mim a forte suspeita de terça-feira à noite. Vou aliviá-lo desse fardo. Foram quatro coisas, nenhuma delas convincente só por si, mas que combinadas constituem um belíssimo argumento. Primeiro, Pomfret é o nome de um peixe, um peixe espinhoso cor de fuligem e piscus quer dizer peixe. Segundo, quando escolhem um pseudônimo, a maioria das pessoas sente uma tendência irresistível para escolher um com as suas próprias iniciais; e as iniciais de Harriet Piscus são as mesmas de Henry Pomfret. Em terceiro lugar, o vaso retangular preto Wan

Li tinha ido parar no apartamento de Miss Tusar; e se não tivesse sido roubado? Em quarto lugar, e de longe o melhor de todos os argumentos, Mr. Fish tinha tomado precauções incrivelmente elaboradas para manter o segredo da sua amizade com Garda Tusar, pelo que ver esse segredo descoberto deve ter constituído um verdadeiro desastre para ele. Posto isto, achei que tudo apontava numa única direção. E estava certo, não estava, Mrs. Pomfret? Não foi sensato da parte do seu marido fazer tudo o que estava ao seu alcance para impedi-la de saber que Miss Tusar era sua amante?

 

Ninguém se moveu; ninguém disse palavra; e Mrs. Pomfret, de novo muito direita e com o olhar fixo na figura que se encontrava do seu lado direito e atrás de Fox, parecia uma estátua de gelo. O rosto de Pomfret se abriu num riso escarninho, um riso indignado e bem sucedido perante aquela calúnia absurda; no entanto, ao sentir outro olhar cravado em si, um olhar que o trespassava até ao âmago, se sentiu inexoravelmente impelido a pôr de parte o sorriso de escárnio e desviar o olhar de Fox para enfrentar o da esposa. Fê-lo da maneira certa; aceitou o desafio e retorquiu como pôde.

 

—        Não, Irene, disse com voz rouca, mas firme. — Não.

 

O último “Não” foi acompanhado de um movimento, mas não de Pomfret. A fúria acumulada por Garda Tusar, demasiada para se expressar em palavras, tinha resultado em súbita e impetuosa ação, e a jovem foi rápida como um raio. Estendeu a mão com toda a velocidade e agarrou no braço do violino, que se encontrava em cima da mesa, entre ela e Beck. E, antes que Beck ou Diego tivessem tido tempo de fazer fosse o que fosse para impedi-la, o frágil e inestimável violino voou pelos ares. Aparentemente, Garda tinha apontado para Fox, mas o instrumento passou muito por cima da cabeça deste, se esmagou de encontro à quina afiada de um armário de aço e caiu no chão. Beck saltou da cadeira para ir atrás do violino. Mas Fox chegou primeiro e apanhou-o do chão.

 

—        Bom Deus das alturas, disse Diego. O espanhol agarrou Garda por um braço e obrigou-a a se sentar.

 

Fox segurou o violino nas mãos. O bonito bojo estava desfeito em vários fragmentos, o que permitia olhar para o interior do mesmo, para a parte interior do fundo; e, por mais estranho que pudesse parecer num momento como aquele, era precisamente isso que o detetive estava fazendo. Continuou a inspeção durante alguns segundos, ignorando os puxões de Beck na manga do seu casaco, até que Adolph Koch gritou:

 

—        Raios partam, está à espera de alguma deixa?

—        Isto altera completamente a situação, respondeu Fox. — Eu admiti que não tivesse provas. Se Miss Tusar tivesse ficado quieta, duvido que alguma vez viéssemos a descobrir alguma. A minha ideia era convencê-la e obter dela... Prova suficiente. Mas ela me entregou- a prova de que precisava de outra maneira. Bateu no bojo desfeito do violino. — Está aqui. Está aqui dentro.

 

Pomfret descobriu os dentes. O seu rosto estava lívido. Irene Pomfret estendeu uma mão na direção do violino e disse com modo brusco:

 

—        Deixe-me ver isso. Fox abanou a cabeça.

—        Vai ter de esperar mais um pouco, disse sombriamente. — Vou ter a satisfação de esclarecer tudo diante do seu marido. Voltou-se na cadeira, de forma a poder encarar Pomfret, mas manteve um braço sobre o violino. — Há pouco, eu disse que soube algo ontem à tarde que me fez ter a certeza de que você era o assassino. O que soube foi aquilo de que já suspeitava: que tinha quebrado o seu vaso Ming de cinco cores. Fê-lo de propósito...

—        Não, cortou uma voz. — Não acredito no que disse. Pode até ter provas de que ele é um assassino, mas ele nunca quebraria o Ming de forma deliberada. É perfeitamente impossível.

—        Foi ele que o quebrou. Fox não desviou o olhar de Pomfret. — Quebrou-o porque precisava de uma desculpa convincente para deixar de colecionar cerâmica. A sua esposa entende bastante de cerâmica; não tanto como você, calculo, mas bastante. Queria começar a colecionar moedas. Porque podia facilmente fingir que pagara dois mil dólares por um dinar Fatímida, apesar do seu custo não ultrapassar os trezentos ou quatrocentos dólares. E a sua esposa lhe dava o dinheiro para a sua coleção de moedas, como antes lhe dava dinheiro para a coleção de vasos. Dessa forma podia extorquir... Não faço ideia... Uns vinte mil dólares por ano; fosse como fosse, a quantia era a bastante para servir o seu propósito. Foi por isso que quebrou o Ming.

—        É mentira. Pomfret humedeceu os lábios. Aguentou firmemente o olhar de Fox, o que, de qualquer modo, devia ser bastante mais fácil que aguentar o olhar da esposa. — É uma maldita mentira. Conseguiu esboçar um sorriso. — Por Deus, você há de pagar por isto! Esse truque... Prova... Evidente... Apontou o violino. — Fingir que existem provas... Onde não podem existir...

—        Já chego a essa parte. Fox fixou o olhar no de Pomfret. — Primeiro, mais umas coisinhas. Você quebrou o Ming. Foi visto na sala amarela com um pedaço do vaso na mão, mais de meia hora antes de Perry Durham descobrir.

—        Por quem?

—        Por Lawrence Mowbray.

—        Ele morreu.

—        Sim, é verdade. Calculo que o episódio do vaso o tenha deixado desconfiado. Pode até ter sido inteligente o suficiente para perceber o motivo. De alguma forma, que desconheço, as suas suspeitas se confirmaram e ele tomou conhecimento da sua relação com Miss Tusar. A sua esposa era uma velha e querida amiga dele. Ele exigiu que fosse franco com ela e ameaçou lhe contar se você não o fizesse. E você foi ao escritório dele sem que ninguém o visse, atingiu-o na cabeça e atirou-o da janela.

—        Calculo que também possa provar isso.

—        Não, não posso. Isto são maioritariamente conjecturas, mas eu queria dizer com Miss Mowbray ouvindo...

—        Dora! Pomfret esticou uma mão sobre a mesa. — Não acredita?...

 

A moça não olhou para ele. Apertou os lábios e enclavinhou as mãos uma na outra sem desviar o olhar de Fox.

 

—        Isso foi no Inverno passado, disse Fox. — Sentiu-se seguro. Mas, na verdade, você é uma curiosa mistura de inteligência e estupidez. É possível um homem esconder, e esconder para sempre, uma ação isolada, mas uma atividade indefinidamente continuada acaba por ser descoberta mais tarde ou mais cedo. Mowbray descobriu a sua relação com Garda Tusar, mais recentemente, Jan Tusar também descobriu. Não sei quando nem como; não duvido que Miss Tusar nos esclarecerá quanto a isso. Antes do dia em que o senhor se apresentará a um juiz, é provável que ela nos conte tudo isso e muito mais, para evitar ser julgada enquanto cúmplice. Pode até acontecer que Jan tenha visto o vaso no apartamento da irmã, como Diego viu mais tarde... O seu vaso, que você mesmo tinha levado para lá. Seja como for, ele ficou sabendo; e, além de não gostar de si, ele se sentia em grande dívida perante a sua esposa. Jan Tusar confrontou-o com o que sabia e lhe deu um ultimato: ou terminava a relação com a irmã dele, ou ele contava à sua esposa. Você enfrentou a ameaça com a capacidade de cálculo de um demônio e a astúcia de uma serpente; poucas horas antes do grande concerto da vida dele, colocou verniz em seu violino. Você conhecia o carácter e o temperamento de Jan; sabia que, vítima do desespero, podia chegar ao ponto de cometer suicídio; e foi o que ele fez.

—        Não, disse Henry Pomfret. A sua voz soou grossa. — Não! E, em seguida, cometeu um erro estúpido e irremediável. Voltou a cabeça para se dirigir a alguém que não era a esposa; alguém que se encontrava longe desta. — Garda! Gritou. Garda, não fui eu! Mrs. Pomfret se levantou e ficou muito direita. A sua voz tinha um timbre metálico quando falou.

—        O senhor afirma que tem provas. Fox assentiu.

—        Só um instante, pediu. Encarou de novo Pomfret. — Portanto, mais uma vez, como acontecera com Lawrence Mowbray, julgou que estava salvo; só que desta vez surgiram complicações. O desaparecimento do violino deve tê-lo preocupado quase até ao desespero e apesar de eu ter esclarecido essa situação, para grande satisfação sua, ao mesmo tempo lhe arranjei uma nova preocupação quando descobri o verniz. O seu receio não foi de que pudessem acusá-lo do crime, mas sim de que Miss Tusar pudesse desconfiar de si, e tentou evitar isso lhe enviando aquela carta com o objetivo de desviar as atenções... Miss Tusar! Por favor! Diego! Segure-a! Diego fez o que o amigo lhe pedia. —        Mas o trem estava em marcha e não havia mais como pará-lo, continuou Fox. — Já com outras preocupações a miná-lo, deve ter ficado à beira do desespero quando Perry Durham lhe disse que Jan tinha realmente deixado uma segunda nota, que essa nota era dirigida à sua esposa, que nela era revelado o segredo da sua relação com Garda Tusar, e que essa nota se encontrava em seu poder. Que mais ele pode lhe ter dito? Acredito que lhe tenha dito o mesmo que Mowbray e Jan. Exigiu-lhe que rompesse a relação que mantinha com Garda. Perry sabia que a mãe era relativamente feliz consigo, e se preocupava o suficiente com ela para não querer estragar a sua felicidade, pelo que em vez de mostrar a carta a ela preferiu dar uma oportunidade a si. Claro que ele não sabia que você era um assassino. Prometeu-lhe que ia romper a relação com Garda e ele, insensatamente, acreditou em si. Como disse, ele não sabia que você era um assassino, mas, mesmo assim, foi estúpido da parte dele beber um uísque servido de uma garrafa a que você tinha acesso a qualquer altura, e que sabia ser a marca que ele bebia sempre.

—        Sabe muito bem que, por vezes, eu bebo Bourbon! Protestou Adolph Koch com ressentimento, olhando para Pomfret. Hebe Heath riu histericamente.

—        Assim, com o Perry morto, continuou Fox, — Estava de novo salvo. Mas os eventos se sucediam e os seus nervos começaram a fraquejar. Havia a questão do vaso Wan Li. É evidente que Garda tinha lhe contado que Diego o levara, e você perdeu a calma e a astúcia que demonstrara até então. Transformou-se mais uma vez em Harriet Piscus, apenas o tempo suficiente para comprar um pouco de nitrobenzeno. Ter arrombado o apartamento de Diego para recuperar o vaso e lhe montar aquela armadilha, mais que arriscado, foi idiota. Não vou lhe demonstrar agora porquê; descubra por si. Por algum motivo não funcionou. Havia ainda a questão da segunda nota de suicídio deixada por Jan. Era uma questão vital. Conseguiu uma chave do apartamento de Perry, quando Mrs. Pomfret me deu uma, reparei que havia uma cópia, subiu por intermédio de um subterfúgio, como Mrs. Piscus, e efetuou uma busca frenética sem encontrar a nota.

—        O meu filho me disse que não havia mais nota nenhuma, disse Mrs. Pomfret. — Me disse que havia apenas uma nota. Que Dora se tinha enganado. O meu filho nunca me mentiu.

—        Mentiu-lhe dessa vez, Mrs. Pomfret. Foi uma mentira inocente. Fox manteve o olhar fixo em Pomfret. — A existência dessa nota deve tê-lo preocupado. Sei que preocupou a mim. Depois de Perry ter agarrado o violino quando o deixei sozinho com ele, no dia em que morreu, me ocorreu que a carta pudesse estar no interior do instrumento. Se um simples olhar para o conteúdo da nota, quando entrou no camarim de Tusar na noite em que ele se suicidou, o levou a querer escondê-la, e se não a escondeu na sua pessoa, podia facilmente tê-la deixado cair por uma das aberturas em f sem que tivesse sido possível recuperá-la mais tarde devido ao desaparecimento do violino. Eu abanei o violino e não havia nada solto no seu interior. Até espreitei através das aberturas com o auxílio de uma lanterna, e foi assim que descobri o verniz; mas a carta não estava à vista. A camada de verniz era tão espessa que estava ainda pegajosa passadas seis ou sete horas, e a carta caiu sobre o fundo do violino e ficou ali colada. Por isso não se mexeu quando abanei o violino, e não foi possível vê-la através da abertura em f. Ainda está aqui dentro.

—        Está... Está... O rosto de Pomfret foi percorrido por um espasmo. — Está... E não conseguiu dizer mais nada.  Fox fez um gesto de assentimento.

—        Está agarrada ao verniz. O seu tom se tornou mais duro. — É a vingança de Jan. E foi a irmã dele, Garda, quem a revelou. Diz o seguinte:

 

“Para I.D.P. Adeus. A minha morte, desta maneira, é uma fealdade que não merece. Outra, é a relação do seu marido com a minha irmã. Impeça-os. Devo-lhe isto. Adeus. Jan.”

 

Garda deixou cair a cabeça sobre a mesa e o seu corpo estremeceu com os soluços.

 

—        Me entregue isso, disse Pomfret com voz consternada e terrível.

 

Fox cometeu o erro de voltar a cabeça na direção de Garda, e quando o fez Pomfret saltou. Atirou-se contra Fox e conseguiu derrubá-lo da cadeira e agarrar o violino. Mas não foi o único a se mover e, do outro lado de Pomfret, alguém saltou pelo ar como um grande felino salta sobre uma presa. Pomfret soltou o violino e caiu no chão, aos pés de Fox, com Hebe Heath em cima dele. Depois Fox saltou sobre ele... E Felix Beck... E Adolph Koch... No meio da confusão. Fox levantou a cabeça e deu com Wells, o secretário, abraçado ao violino. Wells falou pela primeira vez, com voz trêmula:

 

—        Consegui a ligação telefônica, senhor.

—        Obrigado, agradeceu Fox. — Peça para ligarem para a Delegacia...

 

                                                                                            Rex Stout  

 

                      

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