Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INFANTA CAPELISTA / Camilo Castelo Branco
INFANTA CAPELISTA / Camilo Castelo Branco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INFANTA CAPELISTA

 

     Eram todos os meus interlocutores naquela noite mais ou menos republicanos.

     Havia tal que dizia acreditar na metempsicose, porque sentia dentro do seu ventre os fígados de Robespierre; e outro, que arredondava musicalmente os períodos demagogos, revelava-nos, com modéstia parelha de talento, que sentia consoar-lhe no crânio o cérebro de Mirabeau; coriscos, se o eram, todos para dentro; que do fogo que lhe faiscava da fronte não havia que recear combustão em armazém de sulfureto de carbono.

     Os outros não me lembra quem tinham dentro de si.

     Pelo que me diz respeito, recenseando longa fileira dos defuntos históricos, suspeitei que era eu a paragem actual do transmigrado Sancho Pança, por me sentir rasamente lerdo à beira daquelas pessoas trabalhadas por crudelíssimas almas de torna-viagem.

     Dizia o mais moderado dos sete que Portugal estava espiando os crimes da casa de Bragança, alfobre de vícios selvagens, de tragédias sanguinárias, de vilanazes rapacidades. E acrescentava que Nuno Álvares Pereira, o santo, havia sido um façanhudo caudilho de celerados antes de casar com uma senhora rica do Minho, que o afazendou bastantemente para poder aliar uma filha com o neto do desonrado Barbadão.

     Isto dizia o democrata, enquanto o outro do cérebro rábido e fulminativo, esmurraçando o mármore, nos certificava que era preciso decepar a hidra bragantina, sem excepção de cabeça ou cauda: - cauda, dizia ele, na picaresca hipótese de que as hidras reais em Portugal têm colmilhos devorantes em ambas as extremidades do casal nutriente.

     O meu terror foi grande. Encarei naqueles homens exterminadores, e agourei-lhes mentalmente que morreriam justiçados para bem do género humano e da casa de Bragança, onde tem luzido gente boa e católica, mormente um duque D. Constantino, que governou a Ásia, e não quis ceder por trezentos mil cruzados aos alarves da índia um dente de certo bugio que fazia milagres por arte do diabo. Esta passagem contei-a eu àqueles crocodilos, os quais, no acume da sua ignorância rebelde, me passaram unanimemente alvará de parvo em três vidas.

     À volta de uma mesa do café Martinho, em Lisboa, estavam, por 1857, seis ou sete sujeitos saturados de política. Estava eu também em princípio de «saturação», palavra pedida de empréstimo à química para bem materializar a ideia de um corpo embebido daquele cívico entusiasmo que salva as nações... nos botequins.

     Agora é de saber que todos eles, os sete regicidas, hoje em dia, vampirizam as veias dessangradas do país, pisam alcatifas do paço, e fumam charutos do sr. D. Luís, pelos quais se lhes vaporaram os fígados de Robespierre, o encéfalo de Mirabeau, e toda a mais peçonha que lhes satanizava as entranhas, tirante a do estômago que ainda é corrosiva como sempre.

     Revertendo aos assuntos debatidos naquela roda de trogloditas, cujas caras a labareda do ponche queimado azulejava terrificamente, dizia um que a devassidão do maior número de monarcas portugueses se revelava sobejamente nos filhos bastardos, e nos adulterinos e até nos incestuosos. Em confirmação da tese petulante, individuou com admirável retentiva os filhos ilegítimos de cada soberano, e não somente os abonados pela história, senão outros muitos denunciados pela tradição, e sonegados pelos historiadores em preito a insignes famílias desdouradas pela libertinagem dos reis.

     Ocasionou-se-me então o ensejo de observar que o sr. D. Miguel de Bragança, bem que malsinado de frasqueiro e muito dado a damarias, não deixara filhos reconhecidos ou sequer suspeitos; donde eu inferia que a calúnia superfluamente lhe encarecera os vícios, não lhe querendo somente imputar à descultura do espírito e aos maus companheiros da mocidade os funestos lances do seu reinado.

     Redarguiu de pronto o malsim das reais progenituras que D. Miguel podia ser tão devasso como seus avós; todavia menos fecundo que eles; e acrescentou logo, porém, que afirmava a existência de filhos do príncipe proscrito, e me desculpava da ignorância por eu ser da província, e não conhecer as entranhas tuberculosas de Lisboa e da corte.

     Estimulado por este dizer oriental e terapêutico, pedi que me dissessem quem eram os conhecidos filhos de D. Miguel.

     O sujeito, que eu interrogava particularmente, nomeou cinco ou seis pessoas de ambos os sexos, umas que eu conhecia de vista, e outras dos apelidos heráldicos de seus progenitores legais...

     Feita a resenha, um dos circunstantes ajuntou:

     - Ainda te falta uma. A infanta capelista.

     - Quem é? - acudiu o outro.

     - É verdade, a infanta capelista, a mais simpática e adorável e florida vergôntea dum tronco podre. Hei-de mostrar-lhe a você a infanta capelista - a doce criatura que faz lembrar a iriada borboleta que saiu de crisália gerada em esterquilíneo. Quer vê-la?

     - Com a mais ardente curiosidade - respondi eu.

     - Amanhã.

   

     Adentro do balcão estava sentada a costurar uma mulher, singelamente vestida, e formosa quanto a mais descompassada fantasia pudera cobiçar. Figurava vinte anos, quando muito; mas eu já ia prevenido de que ela não podia contar menos do que vinte e sete; e, se o não fosse, desde logo, em vista da sua idade aparente, refutaria a procedência que lhe davam, se queriam que ela houvesse nascido durante o reinado de D. Miguel.

     O meu amigo cortejou-a gravemente, chamando-lhe D. Maria José. Ela recebeu o cumprimento com agraciado rosto, e correspondeu à minha cortesia, depois que lhe fui apresentado como homem de letras... maiúsculas, minúsculas, cursivas, bastardinho, etc. - letras que, longe de serem interesse, seriam o desdouro de um cambista e a falência de dois bancos.

     Logo percebi que a dama capelista era mais ou menos entendida em romances, pelo benevolente sorriso com que aceitou a minha apresentação; e também de passagem observei que esta senhora, se estimava livros, não se parecia com seu pai nem com seus avós paternos: dessemelhança que não fazia implicância à majestade de sua origem.

     Não lhe vi traços mínimos de parecença com D. Miguel Maria do Patrocínio, o qual também não dava alguns de semelhança com D. João VI.

     Esta desconformidade de feições é certo que não argui suspeitas maliciosas na casa de Bragança. Se a virtude conjugal não fosse axiomática nesta raça extreme de príncipes, quem diria que os diversos filhos da imaculada senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon eram todos uns artefactos reais manufacturados por seu sereníssimo marido? Pois é fenómeno muito para reparos fisiológicos a variedade de tipos que a filha de Carlos VI desentranhou de suas régias entranhas, nas quais as graças, mediante as brisas dolorosas do Ramalhão, Queluz e Bemposta, lhes insinuaram as doces virtudes com que lá, no recôndito seio, se formaram os corações das candidíssimas filhas, como todos sabem e juram.

     Não duvidei, portanto, que D. Maria José em verdade houvesse a origem realenga que se atribuía; antes me quis parecer que o seu porte altivo sem soberba, e um certo natural nada comum, sem laivo de artifício, estavam insinuando que ali se revelava uma senhora de fidalga condição.

     - Aqui tem uma filha do sr. D. Miguel de Bragança - disse o meu amigo com mais grave e urbana seriedade do que eu esperava de tamanho republicano; e ajuntou em confirmação dos seus princípios: - Nesta honrada posição é que eu unicamente respeito os descendentes dos monarcas; no sublime abatimento do trabalho é que as pessoas nascidas para a ociosidade principesca e devoradora das nações se me afiguram regeneradas para a humanidade laboriosa, e repostas pela mão do Cristo na plana da igualdade a que ele chamou todos os filhos de Deus. Diante desta operária sinto o entusiasmo que os abjectos sentiriam, se a vissem a roçagar nos pavimentos velosos das Necessidades o manto de Princesa.

     D. Maria abaixou ligeiramente a cabeça, depois de haver relançado os olhos com suave majestade ao rosto do seu admirador, em que reluzia muito sincero entusiasmo. E eu que tinha ali entrado com ânimo indisposto para tão solene apresentação, entrei-me de involuntária sisudez e compostura como se ali estivesse uma princesa da casa de Bragança, uma neta de D. Carlota Joaquina, uma tetraneta de D. Maria de Sabóia, esposa de Pedro II, ambas de incorrupta memória.

     O pontual José Parada, no dia seguinte, levou-me à Calçada da Estrela, e aí entrámos em uma pequena loja de fazendas que chamam de capela.

     Como sou de natureza bastante monárquica, e fui criado com o bom leite do antigo amor português aos seus reis, grande foi o enleio em que me vi rosto a rosto com uma infanta.

     Com quanto decoro e cortesania eu pude, enviei a sua alteza umas tartamudas palavras tão significativas de respeitosa vassalagem como de confusão. E ela, sem se desmanchar do seu régio aprumo, proferiu estas vozes:

     - Contento-me de ser respeitada com o respeito que se deve as mulheres que vivem dignamente. Algumas vezes tenho sido alvo de zombarias por ser filha de um príncipe desgraçado; mas ainda não fui escarnecida por quem pudesse repreender os actos da minha vida. O ter nascido grande não pode desmerecer-me pela resignação com que me sujeito à humildade da minha posição.

     E, levantando-se, foi vender uma meadinha de retrós a uma mulher que lhe chamava senhora D. Mariquinhas.

     Pouco depois entrou na loja um sujeito ainda novo, asseado a primor, muito fragrante de cosméticos, e todo ele uma bonita caçoila a vaporar perfumes de mocidade.

     O meu amigo apertou-lhe a mão, chamando-lhe Epifânio Baldaque, e acotovelou-me.

     Não percebi o intento espirituoso do cotovelo de José Parada.

     O peralta encarou-me do vértice da sua importância, arregaçando a face direita para prender no olho correspondente um vidro que lhe emprestava à cara certa distinção.

     Naquele olhar preponderante o homem teve decerto a intenção de me querer dizer que era rico e filho único do conde de Baldaque, chegado, três anos antes, da América.

     Mas eu, da catadura soberba daquele Epifânio, logo adivinhei que ele era rico, feliz e tolo. Além de que também desconfiei que a infanta capelista lhe não era indiferente.

     Saímos os dois sem ter despendido no estabelecimento senão o ouro puro das nossas frases. Eu ainda quis comprar uma gravata e meia dúzia de colarinhos; mas acanhei-me de mercadejar com tamanha dama, receando desafinar da linguagem áulica e do tom da corte em que não fui de todo bajoujo.

     Contou-me depois cá fora José Parada que D. Maria José de Portugal e Bragança, a capelista, era amada, ou havia sido requestada para casamento, de homens não só abastados, mas até fidalgos da antiga e da nova raça, e até - o que mais importa – de literatos!

     - Não duvide você - prosseguiu ele, derivando do meu ar desconfiado a incredulidade com que escuto em geral todas as histórias de desprendimento quando são de ouro os ganchos com que a alma dum homem pretende acolchetar-se na alma duma mulher. - Não duvide - insistiu Parada - eu não faço romances, nem invento prodígios. Nego a existência da virtude enquanto a não palpo e lhe não sacudo bem a poeira dos preconceitos; mas, se chego a convencer-me, o sistema de duvidar não pode tanto comigo que, por amor da seita, hesito em crer que há princesas não refasteladas em almadraques de cetim, princesas que não disputam às nações pobres a enxerga dos deserdados que pedem ao sono a consolação da fome.

     Deste fraseado bem é de perceber que o meu interlocutor não erguia a mão de sobre a mais singela resposta sem esponjar dela um exórdio para discurso sedicioso.

     Não inquiri quem fossem os pretendentes da infanta, ricos e fidalgos; quanto, porém, aos concorrentes literatos desejei, por amor de classe, conhecer os meus colegas ambiciosos de se aparentarem tão afins com a família reinante. O meu amigo satisfez-me a curiosidade, nomeando um poeta de piano, um prosador de calendário, e um terceiro anfíbio que tanto na prosa como no verso se mexia vagarosamente e não voava mais alto que uma tartaruga. D. Maria de Portugal recusou as mãos destes literatos pobres assim como já tinha recusado os pés de alguns capitalistas.

     Pendia José Parada a crer que a infanta rejeitara alguns que mais ou menos a tinham inspirado amorosamente, - um ou dois poetas conjecturo eu, em razão de os conhecer, quanto uma bela alma se nos pode revelar na brochura de versos de diferentes tamanhos. Supõe, todavia, o meu amigo que D. Maria, obrigada às severas condições que o nascimento lhe impõe, morrerá solteira, salvo se um príncipe ou coisa semelhante lhe render a vassalagem do seu honesto amor.

     É o que me disse Parada, e acrescentou:

     - Um homem que morre por ela é aquele Epifânio que lá ficou na loja. Ali tem você um rapaz que possui, além da fortuna de não saber nada, a certeza de herdar mil contos do pai. A figura é correcta, não acha? São-lhe perdoadas as parvoíces que diz; tem até um auditório de rapazes inteligentes que vão aos seus jantares e lhe fazem a fineza de o não escarnecerem quando ele está presente; enfim, são tantas as senhoras ofendidas do seu desdém, que você se daria por bem-aventurado, se a última das quarenta, que ele despreza, lhe dardejasse uma seta dos olhos amorosos. Pois aí tem! A capelista repele-o com fidalga delicadeza, e ouve com supremo desprezo a apoteose dos mil contos do filho do conde de Baldaque. Não é isto, em tempos de tão infame positivismo, um caso assombroso?!

     E continuou com ênfase:

     - Quando as filhas legítimas dos condes, que têm dezoito avós aforados, se não desaforam confundindo nas veias dos filhos o seu sangue azul com a lama dos argentários escapados ao cruzeiro, não é de espantar que a obscura filha de um príncipe, pobre e chasqueada, recusa abastardar a sua estirpe real, adjudicando-se ao ouro dum plebeu? Devo repetir-lhe que desprezo o preconceito das distinções, posto que procedo de avoengos preclaros; entretanto, se os instintos fidalgos alam o espírito acima das ideias do seu tempo, eu me curvo, repassado de religiosa reverência, e compreendo então que a nobreza das índoles não é fantasmagoria obsoleta; será antes divina loucura, se de uma parte está a pobreza radiosa com a auréola do trabalho humilde, e da outra a fascinação esplêndida dos milhões.

   

     Tudo que este homem arengou me pareceu acertado, e a capelista não se me delia da ideia.

     Ao outro dia, fui lá, resolvido a derrear bastante o estilo, de feição que me não ficasse canhestro comprar nem a sua alteza desairoso vender seis pares de peúgas. Por onde a toda a luz se mostra com que inocentes e pedestres intenções eu lá fui. Com este propósito mercantil entrei; mas, feita a cortesia, não pude aparar a linguagem ao raso dum pretendente de peúgas.

     Não se pode. Um homem capaz de aconsoantar uma quintilha não sabe perguntar a uma infanta quanto quer por um barrete de dormir, nem ousará regatear-lhe uma camisola de flanela. O que logo lembra, se a infanta é bonita, e os amores lhe esvoaçam à volta da régia fronte, e a mandora dos provençais, o namorado Macias, as trovas suspiradas à barbacã do castelo, ou mais dentro, se é possível.

     Assim é que nossos décimos avós, se eram menestréis, procediam com as infantas, não contando com as portuguesas, que, tirante a filha de D. Manuel – a «Menina e moça» - as restantes princesas saíram todas muito descaroadas de poetas, de teorias e mandolins. O instrumento de cordas mais dilecto dos paços de nossos reis foi o sino, e tanto que o sr. D. João V comprou o carrilhão de Mafra, que tretroa com cento e quinze badalos, por mil e trezentos contos de réis (1 - Veja a Nota no fim - Camilo não chegou a colocá-la.) e à medida que os tímpanos reais se foram educando a par com os progressos da harmonia, o sino desmereceu, e as estridentes línguas de bronze cederam ao requebro e lascivo das melodias da guitarra, em que até ontem os barbeiros arpejavam os seus lunduns, e hoje em dia os boníssimos reis desta nossa ilha Baratária descantam uns fadinhos lúbricos, que não há aí coisa mais para ver-se, se as açafatas os sapateiam com desnalgado despejo. Isto é bom. O plebeísmo respira-se como o azoto. As latrinas reais não exalam cardamono: convença-se a gente disto.

     Segredos e vantagens das raças mestiças.

     Mas na loja da capelista não tresandava azoto: era ar de corte, como filtrado ao través de reposteiros cozidos em ouro e estofados de quinas. Pode ser que nesta ilusão fosse grande parte o notório respeito que eu consagro à realeza; mas não era menos decerto a idolatria que me rende à formosura.

     Sempre me senti venerador das infantas feias; mas das formosas, pelo molde da capelista, a minha soberba feudal se contentaria com a honra de lhes ser pajem da tocha, sumilher da cortina, secretário de seus amores epistolares com algum príncipe, meu amo e senhor, tudo seria, mas freguês de peúgas de lã de camelo, não posso.

     Como ela estivesse lendo a Nação, e cortesmente depusesse a gazeta para me atender, pedi-lhe que por minha causa não interrompesse leitura tão linimentosa para as dores do seu filial coração. D. Maria José, penhorada por estas suaves expressões, fitou-me brandamente e murmurou:

     - Mal sabe...

     - O quê, minha senhora?

     - Quantas lágrimas eu tenho chorado sobre este jornal..., lágrimas que de nada servem, que fariam até sorrir de piedosa zombaria as pessoas felizes...

     Todas as fibras sensíveis e sonoras da minha alma se desataram então em uma plangente harmonia de coisas, de que não tomei apontamentos; mas tais e tão insinuantes lhas influí no ânimo que vinguei merecer-lhe confiança e desafogo de sentimentos circunspectamente abafados.

     Esta confiança, com as visitas diárias, fez-me digno de lhe ouvir, interpoladamente, revelações que vão compendiadas no seguinte resumo, de mistura com esclarecimentos granjeados Deus sabe com que perspicácia e finura.

   

     Seu pai era o sr. D. Miguel de Bragança, rei naquele ano. Sua mãe tinha sido D. Mariana Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, senhora portuguesa, nascida em Lisboa, e filha bastarda de um fidalgo de primeira grandeza, cujo título ignoravam ambas.

     Vivera em companhia de sua mãe, rodeada de pompas, de aias, de mestres e de carícias até à idade dos quinze anos. Lembrava-se de sua mãe ter carruagem brasonada e libré, relações de grande posição na aristocracia; e, em meio desta aparente felicidade, a vira frequentemente lavada em lágrimas, que de dia para dia lhe iam queimando a formosura deslumbrante.

     Observou depois que as alfaias mais valiosas da casa desapareceram umas depós outras; que a sege foi vendida; que os convivas rarearam à mesa; que os hóspedes da noite foram também minguando, e que enfim ninguém entrava na casa desbalizada de sua mãe senão duas senhoras de baixa origem que lhe foram leais amigas até à morte.

     A morte de sua mãe não sabia ela dizer se foi natural, se violenta. Conjecturava, porém, que houvesse sido suicídio com veneno contido em um frasco de cristal que depois se encontrara vazio. Era esta hipótese robustecida pelo caso de sua mãe, na véspera do dia em que se finou, lhe haver dado um cofre de sândalo, dizendo-lhe que lhe não podia legar outro património; mas que naquela caixa encontraria títulos que a elevassem sobranceira às primeiras senhoras de Portugal.

     Ora o cofre encerrava cartas do sr. D. Miguel I, cartas que ela não mostrava por conterem coisas íntimas e segredos de estado de máximo melindre.

     Falecida D. Mariana Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, a órfã, que então vicejava uns lindos quinze anos como fácil me foi imaginar-lhes, passou para a companhia das duas mulheres, únicas pessoas que assistiram aos paroxismos de sua mãe.

     Por conselho destas, escreveu a alguns homens insignes e relações de sua casa, participando-lhes que estava órfã. Contava ela que cada palavra escrita lhe custava uma lágrima, por sentir-se abatida naquela mal dissimulada súplica de esmola. Ninguém lhe respondeu, exceptuado um agiota de raça judaica e humilde extracção que devia, não sabia ela como, a sua prosperidade à mãe, de quem havia sido escudeiro, mordomo, ou coisa assim.

     Este homem quis levá-la para sua casa; mas como ela se esquivasse a deixar as duas senhoras, o generoso agiota ofereceu-lhe uma abundante mesada, que ela aceitou para socorrer as amigas que a não podiam alimentar sem sacrifício.

     Quando chegou aos dezoito anos, D. Maria José de Bragança alcançara notáveis conhecimentos literários, sem descuidar-se doutras prendas mais caseiras e acomodadas ao seu sexo.

     Naquele ano de 1850 faleceu o caridoso rebatedor, testando à filha de D. Mariana de Portugal nove contos de reis em inscrições e uma casa modesta na calçada da Estrela.

     Longo tempo indecisa no destino que lhe quadrava, foi habitar a casinha herdada, porque, primeiro que tudo, almejava a soledade, a tristeza, o recolhimento, a leitura, o chorar sem testemunhas nem consolações impertinentes.

     Os últimos lances da vida de sua mãe e a penúria de seu proscrito pai davam-lhe horas de grande tristeza. Naquela doentia compleição havia que recear transtorno de juizo por excesso de sentimento, ou morte prematura.

     Divulgou-se a residência da infanta, que ninguém impressionou seriamente; mas não faltou curiosidade que debalde forcejou vê-la. D. Maria de Bragança ao abrir da A princesa havia nascido, em Lisboa, no ano 1832 manhã, em dias santificados, ia à missa da alva, e voltava a horas em que nenhum homem de siso sai de casa para ver a própria Semíramis. À casa da calçada da Estrela entravam apenas as duas amigas de sua mãe, conhecidas pelas Picoas, e presumidas descendentes por bastardia dos condes de Camaride; com certeza, porém, estas duas irmãs, Rosenda e Caetana, nasceram e criaram-se na casa das Picoas. onde seu pai era estribeiro e ferrador, e sua mãe ama seca. Redarguindo contra este argumento dos genealógicos de estrebaria, Rosenda e Caetana asseveravam por lho haver dito a mãe, com tal qual competência, ao que é de supor, que o pai delas não era o ferrador, mas sim um monsenhor parente da casa. Não me recordo bem se diziam monsenhor da patriarcal, se dom abade de bernardos, declaro. Neste livro, se alguma vez a verdade gretar, é involuntariamente. Assim que me pruem escrúpulos, coço-os com a rectificação. Escrever para a posteridade é assim.

     Estas duas damas, ambas prolíficas, iam com os seus meninos já taludos a casa da infanta; e uma delas, D. Rosenda Picoa, dona de hotel na travessa do Estevão Galhardo, levava consigo um filho já barbado que dizia ser literato político, e com efeito era, e chamava-se Vítor Hugo José Alves.

     Este sujeito é quem nos «cafés» andava pregoando a beleza e dotes espirituais da filha de D. Miguel, e tão a miúdo e encarecidamente o fazia que sobrava razão a desconfiar que ele, amando honestamente a infanta, queria subir pelo estribo do avô ao cavalo branco do timbre ducal das armas bragantinas, ou guindar-se ao «banco de pinchar» para não ficar estatelado sobre o banco do ferrador. E D. Rosenda, mãe deste Vítor Hugo José Alves, algumas vezes deu a perceber à princesa que as suas entranhas maternais estremeciam de júbilo quando sonhava com o himeneu de Vítor e Maria.

     É certo que a neta dos reis se nauseava quando a indiscreta estalajadeira repetia semelhante injúria, mas tanto era o seu juizo que nunca levantou a desafronta além do silêncio.

     Convém saber que Vítor Hugo José Alves, nos seus primórdios literários, quando se viu ao Chiado com o nome imortal d.o exilado francês, cuidou que era republicano desde a pia, e assanhou-se por consequência contra os monarcas. Fez versos vermelhos como sangue de javali. As suas estrofes cheiravam a gamela de fressureira. Também, nas prosas dele, as testas coroadas não eram tratadas com mais caridade que a sintaxe.

     No entanto, os críticos ordeiros, vituperando a ira republicana do rapaz, diziam que não admirava raivasse tanto contra os nobres quem era filho de um sapateiro ao qual muitos fidalgos não haviam pagado os remontes, e neto de um ferrador a quem outros fidalgos não haviam pago as ferraduras.

     Esta matraca, impressa nas gazetas, desvairou o escritor, que forçou a mãe a declarar pelos prelos que seu defunto marido não havia sido sapateiro, mas sim negociante de couros. Ninguém contestou; já por ser verdade, já porque ninguém podia desfazer na palavra da srª Picoa quanto à mercadoria do esposo. A respeito do ferrador, guardou ela judicioso silêncio em respeito ao dom abade de bernardos.

     Manteve-se o literato, não obstante, socialista e orador de assembleias populares até 1854. Neste ano, porém, aí por maio, quando as árvores florejam, e as calhandras trilam, e nas quebradas dos montes hervecidos ornejam as poesias líricas da preceptora de Balaão, achou-se Vítor Hugo José Alves invadido de amor.

     Se não amaria? Era maio português, sazão de paraíso terreal, em que a todos nos quer parecer que o sacramento do matrimónio foi inventado pelos cardeais na primavera.

     Notou-se então no país, e particularmente desde o Chiado até ao Rossio, que o Hugo da travessa do Estevão Galhardo gorjeava umas endeixas passarinheiras que ninguém creria destiladas do mesmo crânio que trovejara Némesis clangorosas de odes republicanas! Ele, o Vítor, que dissera em dois versos:

    

     Eu hei-de avassalar os reis ao génio,

     E pô-los histriões sobre um proscénio,

     E... etc.

    

     Ele, que escrevera aquilo, vinha agora ofertando a uma «Mulher Rainha» a monarquia da sua alma, como Filinto Elísio havia oferecido a sua em dois versos de um soneto salobro como infusão de chicória:

    

     Nise gentil, que até à sepultura

     Terás desta minh'alma a monarquia...

    

     Por algum tempo, o filho de Rosenda conciliou a mansidão de bardo amoriscado com as fumaças de publicista revolucionário; mas, por 1855, encontra-o a história literária e política da Europa a desviar-se notavelmente da vereda do Hugo que lhe havia de ser bússola entre o Marrare-das-sete-portas e o templo da Memória, se ele não pudesse antes trocar o nicho eterno do Panteão por um lugar de aspirante de alfândega de raia seca.

     Este génio, cujas guedelhas serpejavam revoltas, cerdosas e besuntadas como ideias que lhe espumejassem do cérebro à feição do muco esverdinhado que esvurma das fauces de um chacal, revirou-se com efeito, perguntando ao governo se era decoroso que a um filho do sr. D. João VI - a um rei vencido e êxul - se roubasse perversamente o seu património.

     «À casa do infantado, ao pão do sr. D. Miguel de Bragança, que lhes fizestes, ladrões?» bradava Vítor Hugo José Alves no seu periódico socialista.

     E acrescentava:

     «Roubastes o trono, desterrando para sempre o rei espoliado, como em encruzilhada da Calábria. Não vos bastava a usurpação de um título?

    

     «Roubastes o altar, expulsando os seus ministros mendigos. Não quisestes que sobrevivesse no cenóbio um só homem de bem que testemunhasse os vossos latrocínios!

    

     «Salteadores! à barra! aos tribunais!»

     Naquele tempo, o pudor dos ministros era mais histórico e provável que o da Lucrécia de Collatino.

     O ministério público deu a suspirada querela. Inaugurou-se o martírio do Vítor Hugo português. Condenaram-no em vinte dias de gloriosos ferros.

     É o que ele queria. Queria a hecatombe a via dolorosa da Boa Hora até ao Limoeiro, nobilitado pelo holocausto, se consubstanciar no coração da infanta. O cárcere sorria-lhe como um templo em que, velando as armas, sairia nobre e digno da princesa por quem se devotara, apostatando do Evangelho de Cabet, e do Hermenegildo do pão barato.

     Declarou-se. Ousou remeter directamente à filha de Bragança o manifesto nem sempre humilde das suas aspirações. Estabeleceu confrontos de casamentos em que a disparidade de sangue era acalcanhada pelo amor. Respigando exemplos na própria família da noiva requestada, contou a aliança do representante de um notável Miguel de Moura - látego português vibrado por mão espanhola nas costas avergoadas do Portugal moribundo - com uma neta de um duque de Bragança, o qual cobardemente trocara a coroa e alguns milhares de escravos de Castela pelo seu estúpido sossego em Vila Viçosa.

     Bem é de ver que o filho de Rosenda ousava ajoujar-se com os senhores da Azambuja, inculcando-se produto de coito danado entre o dom abade de Cister e a ama seca dos condes de Camaride, com sacrílega afronta aos ossos do ferrador.

     E mais despejada petulância foi comparar-se ele com o fidalgo gentilíssimo de quem as mais augustas e esbeltas damas de Portugal solicitavam à competência um sorriso, um relance dos olhos sonolentos, uma frase lânguida de deliciosa pachorra, e... o mais. Ele, Vítor Hugo José Alves, a ombrear com as graças plásticas da pessoa a respeito da qual um príncipe prussiano escrevera isto: ...«O marquês de Loulé, com os vestidos dos grandes de Filipe II, pareceria de certo um Buckingham, ou o benquisto de todas as rainhas galanteadoras dos tempos feudais... Esse português admiravelmente belo e verdadeiramente perigoso... tinha enlouquecido tantas cabeças femininas...» (2)

     Como quer que fosse, cerrava a missiva fazendo votos por que o mais ditoso lance de sua vida fosse o instante em que ele Alves, dobrando os joelhos às plantas do rei legítimo, pudesse exclamar:

     «Pai! e senhor!»

     Para servir-vos, braço às armas feito;

     Para cantar-vos, mente às musas dada.»...

     Para uso de muitos tolos criou Deus as mulheres formosas, e criou Camões os formosos versos.

     2 - PORTUGAL, Recordações do ano de 1842. Pelo príncipe Lichnowsky. Lisboa, 1844.

   

     A infanta D. Maria José de Bragança, bem que muitíssimo grata à coragem cívica do escritor, não entendeu que as filhas dos reis destronados devessem pagar com a moeda do matrimónio um artigo condenado que, por via de regra, os empresários das gazetas costumam pagar a razão de 800 reis a publicistas de maior polpa.

     Extremamente delicada - virtude que provavelmente lhe derivava da estirpe materna - respondeu a Vítor Hugo José Alves em termos pautados pela mais atilada prudência, mantendo-se na alteza de sua dignidade sem envilecer os brios do pretendente. Escreveu ela cordatamente que as mulheres, nascidas nas grimpas mais culminantes, estavam por isso, nas borrascas da vida, mais ao alcance dos raios da adversidade; que não podiam essas infelizes invejadas ser árbitras do seu destino, principalmente, se, como ela, tinham pai a quem a proscrição usurpadora do trono não pudera usurpar direitos sobre a alma de uma filha que o respeitava e adorava.

     Com os acicates do orgulho cravados no epigástrico, onde a ciência diz que as paixões amorosas esporriam mais, replicou o bardo absolutista. Dispensando os naturais raciocínios que desfazem prejuízos de castas, combateu as razões da infanta inculcando-lhe a procedência visigótica de seu avô, e o parentesco ainda não safado pelo atrito de dois séculos entre os duques de Bragança e os senhores de Camaride. Era medonho de parvoíce o filho de D. Rosenda Picoa!

     A princesa não replicou, retransida de espanto. Sua mãe havia-lhe dito que as duas irmãs estalajadeiras eram filhas do estribeiro dos condes de Camaride, e que Rosenda era viúva dum negociante de bezerro, que malbaratara os seus haveres no partido dos cabralistas. Era-lhe portanto espantosa notícia a do parentesco de Vítor Hugo José Alves com a casa real.

     Como Rosenda a visse pensativa, depois que leu a carta de Vítor, perguntou-lhe o que tinha, supondo que o amor motivasse aquela abstracção. A infanta respondeu com inocente reparo que Vítor lhe escrevera coisas que a faziam recear que ele tivesse a razão perturbada.

     Pediu explicações a sobressaltada mãe.

     Hesitou algum tempo a infanta; mas, obrigada pelas instâncias, mostrou a carta.

     O carão da viúva, enfiado pelo susto, ganhou cores quando viu, no conteúdo da epístola, o infundado medo de D. Maria.

     - Ai! Não se assuste, srª D. Maria José - Disse Rosenda com um sorriso de velhaco pudor. - Meu filho está muito em seu juízo. Ele diz a verdade.

     - Como? - tornou a infanta espantada - Pois a senhora D. Rosenda é parenta da casa real?

     - Sou, sim, minha senhora - volveu a filha do ferrador baixando os olhos com uma pudícia que parecia pedir misericórdia para as fragilidades da mãe. E prosseguiu, tirando dois suspiros, e rolando os olhos na direcção do céu, donde provavelmente a estava ouvindo a alma do pai:

     - Perdoai-me, minha santa mãe, se ofendo a vossa memória!

     - E, expectorando outro bafejo a modo de suspiro puxado das entranhas comovidas, continuou: - Minha mãe era galante, e foi educada em Odivelas, onde tinha já estado também minha avó, que era sobrinha de uma ama de leite que criou um filho da freira d'el-rei D. João V, que se chamava por sinal Antoninho... Não sabia destes amores do rei com a freira?

     - Ouvi contar... - respondeu a infanta um tanto pesarosa de recordar esta fraqueza de seu quarto avô.

     - Talvez não saiba uma coisa que minha bisavó contou a minha mãe... - instou D. Rosenda - e era que a freira recebia o rei na cela, e que o rei saía de lá até à portaria, debaixo do pálio com a abadessa atrás e mais a comunidade...

     - Não me conte semelhante desatino, que isso é calúnia... - acudiu a neta do fundador da igreja patriarcal de Lisboa. - Afligem-me – tornou a infanta molestamente nervosa - afligem-me essas funestas páginas da história da minha família...

     - Eram usos daquele tempo, minha senhora – observou D. Rosenda. - As freiras tinham enguiços que enfeitiçavam, dizia minha bisavó, toda a fidalguia e mais os frades, que era mesmo uma pouca vergonha, perdoe-me a expressão que não é muito civilizada. E então o sr. D. João V?! Isso era um ratão, que juntou, na Palhavã, três filhos de diferentes mulheres; mas bom pai era ele; por que dizia minha avó que os pôs todos ao serviço da Igreja, fazendo-os inquisidores, e arcebispo um deles, chamado o Flor da Murta.

     - Acabe com isso, srª D. Rosenda - interrompeu a princesa ofendida da pertinácia em cavar escândalos nas cinzas do beato criador do museu da capela de 5. Roque.

     - Pois sim, minha senhora, eu vou concluir. Como eu lhe vinha contando, minha mãe tinha sido educada em Odivelas com uma freira muito esperta que eu ainda conheci na Rua da Bombarda a viver com o pregador da casa real, o padre José Agostinho de Macedo, muito amigo do seu paizinho, Deus fale na alma a ambos.

     Minha mãe casou com um sujeito que ela imaginava cavaleiro por que o viu a cavalo na companhia de alguns fidalgos que namoravam as freiras; e só depois que casou é que soube que ele era estribeiro dos condes de Camaride.

     Ora imagine a menina a embaçadela que levou a noiva quando soube com quem estava casada, tendo rejeitado os amores de muitos fidalgos, que lhe tinham querido pôr casa e sege em Lisboa!... Enfim, não havia remédio a dar-lhe. Resignou-se com a sua sorte, e foi viver na casa das Picoas, onde estava o impostor do homem. Minha mãe fez-se amar tanto das fidalgas que até a levavam consigo a visitas, como aia e mestra dos meninos. Os senhores de casa e de fora perseguiam-na de dor de ilharga, perdoe-me a expressão que não é muito civilizada; ao mesmo tempo que o libertino do marido andava a gandaiar por touradas e pagodes, sem se importar com ela. As mulheres não são santas, não é verdade? Minha mãezinha era uma pérola, que o marido sacudia com o focinho, enquanto os fidalgos a namoravam apaixonadamente. Ai! Que santa aquela! Já as não há daquela raça! Resistiu às tentações, passante de dois anos; mas, por fim, o coração da desconsolada esposa do indigno bruto enfraqueceu e rendeu-se.

     Deteve-se D. Rosenda algum tempo recolhida na sua dor, e continuou:

     - Depois desta infeliz catástrofe, nasci eu. Meu pai era um alto dignatário eclesiástico que morreu apopléctico, quando estava a dormir, na véspera do dia em que tencionava reconhecer-me, e fazer testamento a meu favor legando-me os seus apelidos e uma herança em harmonia com o meu nascimento.

     Aqui, D. Rosenda, a malograda herdeira, limpou os olhos onde apenas espumava a humidade serosa duma oftalmia crónica, e ajuntou com suspirosas intercadências:

     - Minha pobre mãe morreu de saudades de meu pai. O homem dela morreu primeiro duma borracheira no paço de Queluz, onde foi a uma bambochata de fidalgos. Achei-me sozinha com minha irmã tidas na baixa conta de criadas de nossas primas. Esta posição não se dava com a nobreza do meu sangue. Quis ver se me admitiam como criada do paço. A mãezinha de V. Exª, que tinha então muito valimento, e nós conhecíamos de a termos visto, linda como as estrelas, a passear os leites na quinta das Galveias, pediu por nós, mas não havia lugar vago. Resolvi casar-me com o primeiro homem endinheirado que me fizesse a corte. Apareceu o meu defunto Alves, que constava ter oitenta mil cruzados em sola e dinheiro. Casei-me. Ai! Foi outro logro como o que levou minha mãe, de saudosa memória! O meu esposo, desde que os chamorros o fizeram pedreiro livre, e regedor, e lhe deram o hábito de Cristo, não quis saber mais do negócio. Entregou os armazéns aos caixeiros que nos roubaram, e, à meia volta, foi-se tudo, e aqui fiquei eu viúva na flor da idade, com o meu Vítor no berço, e ainda tive de pagar as custas dum processo por causa dumas cacetadas que meu marido dizem que dera numas eleições.

     D. Rosenda, neste agoniado lance da sua crónica, escumou os olhos com o lenço, e prosseguiu, enquanto a princesa a contemplava com enternecido semblante:

     - Poucas viúvas se portariam como eu me portei, ficando pobre e bonita sem amparo de alguém senão da srª D. Margarida Rolin, sua mãezinha que me valeu em grandes aperturas...

     - Não esteja agora a lembrar-se disso, minha senhora... - atalhou D. Maria José. - Está bom, está bom; conversemos noutra coisa, senhora.

     - Ah! - acudiu a viúva do defunto pedreiro livre - tudo isto que eu disse veio a propósito de meu filho dizer nesta carta que os seus avós são parentes da família real. Se eu sou filha de quem sou, e ele é meu filho como de facto é, ninguém pode duvidar que pergaminhos não nos faltam... assim nós tivéssemos dinheiro, não acha? Descanse, minha senhora, descanse, que meu filho não está doido nem para lá caminha; o que ele aqui escreveu é a pura verdade, e bem certa estou que foi a paixão que o obrigou a dizer isto, porque ele foi sempre republicano e nunca se lhe importou com os avós; pelo contrário, quando eu lhe contava quem era meu pai, o rapaz metia-me a ridículo, e até uma vez lhe dei uma bofetada por ele me dizer que acreditava que eu fosse fidalga por ser muito burra.

     A infanta deu visíveis sinais de enfastiada da larga prática, e assim tratou de cortar o discurso por onde Rosenda propendia a lhe propor francamente o enlace com o filho.

     Voltando despeitada a sua casa, contou ela à irmã o sucedido, e concluiu com estas acrimoniosas palavras aceradas com um perverso sorriso:

     - Ela não quer casar com Vítor... Enfeita-se para o primo Cadaval naturalmente... Ora queira Deus que eu não venha a pôr-lhe a calva à mostra... O folheto ainda ali está na gaveta...

     Ora, este folheto...

     A seu tempo.

   

     Era muito para lástimas ver aquele rapaz tão soberbo dos desaforados brasões que lhe procediam da desonra da avó! Parvoejando quimeras da sua mascavada nobreza, ferviam-lhe os miolos como no empenho que meses antes desvelara em nivelar-se com a plebe, no intento de lhe trepar aos ombros sórdidos para de lá ser visto. E aí, no atascadeiro da escumalha social, era ele mais nauseativo, porque toda a gente limpa se arreda do cerdo que sai dum esgoto sacudindo-se.

     Operou-se, todavia, notável mudança no génio e costumes de Vítor Hugo, restituído à liberdade. Os mais aristocratas fautores do grupo absolutista, acarearam-no ao seu grémio, às suas assembleias clandestinas, às suas novenas secretas, e à sua maçonaria, se tal nomenclatura quadra à ordem de S. Miguel da Ala, na qual o adepto foi armado cavaleiro, chamando-se «Fuas Roupinho» - nome de guerra.

     Entretanto, a infanta revelava-lhe candidamente sentimentos de afectiva gratidão, e folgava que ele se nobilitasse na convivência de pessoas distintas, e de amigos de seu real progenitor, os quais lhe confiavam cartas do príncipe proscrito para que a princesa as visse e com elas repontasse aurora de esperança na longa noite da sua saudade filial.

     Mas, na correnteza destes sucessos, Vítor, por muito que melindrosamente escrutasse o coração de D. Maria José, não se via lá. Sem embargo, o cavaleiro de S. Miguel da Ala, cobrando alentos, prudência e heroísmo de seu padrinho Fuas, confiara nos lances do acaso, nas transformações do tempo, na versatilidade femeal, e, enfim, nalgum imprevisto arrebatamento de amor, não raro em peitos sensíveis das infantas bragantinas.

     Outra coisa agora.

     Não é vulgar contarem romancistas de que vivem os poetas das suas novelas.

     Provavelmente, como eles os desenham mais em espírito do que em substâncias adiposa, esgalgados, na vigésima dinamização da fibrina - mais etéreos que azotados - o público incauto cuida que eles não comem, e se nutrem das brisas lusitanas, pelo mesmo sistema fisiológico das éguas portuguesas que concebiam das mesmas brisas, segundo assevera algures frei Bernardo de Brito, e eu também.

     Muitos anos há que escrevo biografias de poetas e outras pessoas fantásticas, sem descurar o capitalíssimo predicado da sua maneira de se alimentarem.

     Bem sei que vai nisto prosaísmo plebeu, e por isso me hão-de malsinar de imortalizador de bagatelas com igual razão da que apodam Camões por entremeter na vida épica de Vasco da Gama o tacanho lance de não se ter podido vender de pronto a pimenta que o herói ia negociando nas feitorias asiáticas. Ora os críticos fingem não saber que a pimenta, o cravo e a canela explicam melhor que todo o restante poema o patriotismo de D. Vasco, e que, na mesma razão explicativa, está para Vítor Hugo José Alves o bife do Mata, a dobrada do Penim, e o linguado frito da «Taverna inglesa».

     Não me dispenso, portanto, de espreitar com um olho o coração, e com o outro olho a cozinha deste sujeito, e também a guarda-roupa, desde que ele se nos estadeia vestido com apontado primor e nutrido nos mais selectos restaurantes da capital.

     Não era ele assim quando esbombardeava contra o altar e o trono. Parecia querer então inculcar que se vestia na «feira da ladra», e que, ao abismo profundo do seu desprezo das frioleiras humanas atirara os figurinos do Keill e do Catarro, juntamente com a carta constitucional, com o código do bom-tom, e com os tratadistas higiénicos, E o literato, como a princesa lhe não contradissesse a linhagem realenga nem lhe nevasse desdéns sobre o coração ardente, pediu explicações à mãe, que lhas deu, senão lisonjeiras, inofensivas do seu orgulho quanto a lavagem de cara, orelhas e dentes. Haviam-lhe dito ao sórdido que Cabet e Proudhon andavam sujos; e deveras lhe doía saber que o Vítor Hugo francês se lavava todos os dias. Este requinte de limpeza tinha para ele um fartum de burguesia imprópria do génio.

     A sua alimentação predominante era alface, espinafre e a fava em grande cópia no tempo. Rejeitava as carnes, porque o azoto era elemento infesto ao cérebro, e portanto obnóxio às funções do intelecto. Em compensação comia à tripa forra pescadinhas marmotas em razão de abundar no peixe o fósforo que é grande parte na estrutura do cerebelo.

     Afora as indicações da ciência, este regime era-lhe aconselhado por intuitos de ordem bastantemente psicológica e social. Como o seu propósito era caldear e refundir o género humano recuando-o à simplicidade dos costumes patriarcais, estudava em si mesmo o retrocesso do filletaux-trouffes à bolota crua, afrontando com selvática heroicidade os apetites, as cobiças, as fomes, as tentalizações que separam Apício de Epicuro.

     Esta luta do eu-abdómen com o eu-psique trazia-o magro e esgrouvinhado. Da cabeça revolta, onde toda a vitalidade se lhe congestionara, estourava-lhe a ideia com umas fulgurações indicativas de excesso de fósforo, extraído do goraz e do carapau. O seu rancor às praxes triviais da arte comum de falar - da retórica merceeira, como ele dizia - manifestava-o em discursos e escritos com argumentos de ódio a quem comia coisas boas. Os preceitos da gramática e os escólios da lógica - coisas crassas e sandias - asseverava ele que tinham sido ideadas por monges atoucinhados em alma e corpo pelo pingue refeitório da orelheira afeijoada.

     Além da injúria que Vítor Hugo José Alves irrogava à gramática, aos frades e às vitualhas saborosas, acrescia que ele esfuziava tempestades de frases hórridas contra as ucharias reais, inventariando as vitelas e bois que semanalmente eram espostejados nos paços, depois de haverem atravessado as ruas de Lisboa amortalhados em xairéis com as armas de Bragança, já agora única e dignamente prestadias entre o açougue e as augustas cozinhas. O disparate da censura faria rir à desgarrada os ouvintes, se a cara do orador não estivesse pregoando ao mesmo tempo quanto é para sagrados horrores a eloquência dispéptica da fome, e as fulminações acendidas pela super-abundância do fósforo. Segundo ele, da estupidez dos reis e da sanguínea lubricidade que se espoja nos tapetes reais era causa a demasia dos glóbulos rubros de sangue enriquecido pelas carnes vermelhas esmoídas nos vinhos seculares.

     Depois, na esteira destas supremas sensaborias, esbarrava na lista civil. Era então o remontar-se a raptos proféticos em toada bíblica, com assomos de Ezequiel e conclusões tanto a frisar que eu, uma vez, assim admirado quanto aterrado, lhe ouvi dizer que ele, sonhador da felicidade do povo, tinha visto uma visão de sete vacas magras escornarem sete vacas gordas, e derrubá-las. O meu terror não seria justificado, se ele não acrescentasse que as vacas magras eram a república, e as vacas gordas a monarquia.

     Tal era o díscolo nos seus dias de glória, de fome cívica, de quinzena coçada, e do fósforo dos safios e cações.

     Como se fez por fora a transfiguração que mal pode explicar-se pelo reviramento do espírito?

     A nediez da epiderme, os caracóis da cabeleira, os camafeus da abotoadura, a fantasia das gravatas que pareciam aves do Amazonas, a luneta de ouro, o bigode encalamistrado, o lemiste do fraque, a bota do Sthelpflugg, a badini de unicórnio, o galhardear das atitudes, e, sobretudo, a nutrição, - quem lhe deu tudo aquilo ao filho de Rosenda?

     O chamar-se «Fuas Roupinho», e afivelar imaginativamente a espora de cavaleiro de S. Miguel da Ala, não nos autoriza a decidir que ele, em arrancadas contra sarracenos, se apossasse cristãmente do tesouro de algum rei mouro. Conjecturar que os partidários da realeza se fintassem para arraçoarem no presépio o futuro continuador da Besta esfolada, também não é racional, atendendo à plêiade de talentos que lá reluzem com habilidade para mais.

     Então que era?!

   

     Da concentração lagrimosa passou a infanta de repente a uns transportes de alegria desacostumada, exclamando de golpe:

     - Como é bom ser rica!

     E, feita breve pausa, acrescentou já menos expansiva:

     - Rica!... não sou rica!.., mas, em comparação de meu pai, tão pobre, tão infeliz, tenho muito!

     Em seguida, escreveu a D. Rosenda Picoa, anunciando-lhe a primeira radiação de júbilo em sua vida, e a ânsia em que ficava de lhe revelar os seus anelos.

     A mãe de Vítor, lendo a carta, disse alvoroçada à irmã:

     - Tenho nora!

     - Tens nora? - exclamou Eufémia - Então diz-to? ela quer?

     - Não se explica bem; mas eu já lhe entendo o palavreado. Ouve lá, mana.

     E releu a carta, acentuando cada palavra com intimativa perspicaz para enfim interpretar complexamente que D. Maria José de Bragança se achara de salto possuída do amor que ela, em sua linguagem predilecta, chamava «anelos».

     - Essa palavra «anelos» - observou D. Eufémia arregaçando o beiço de baixo com o dedo indicador - parece-me que é isso que tu dizes, mana... Não te lembras das cartas que te escrevia aquele furriel de lanceiros quando ficaste viúva? Chamava-te «meu anelo».

     - Não era o furriel - corrigiu Rosenda - quem me chamava seu anelo era o Peixoto.

     - O capitão da carta? Tens razão... era esse... Pois dizes bem, mana, o que ela quer dizer é isso... Anelo é amor. Eu também agora me estou a recordar de não sei quem que me dizia que eu era os seus anelos;... não sei se era aquele oficial de marinha que nos deu de almoçar na barcaça dos banhos, se era o Francisquinho da rua dos Fanqueiros...

     E, reparando na melancolia da irmã, disse:

     - Estás triste, mana! Já sei o que é... Lembrei-te o Peixoto... Se eu soubesse...

     - Ai! - suspirou Rosenda pondo a mão no lado esquerdo do seio - Ainda aqui me palpita por esse ingrato! Quando o encontro, não sou senhora de mim... Se amei homem neste mundo, foi ele! Dizias-me tu, quando ele se casou, que o melhor sistema era o teu: - amar outro até esquecer aquela pessoa. Bem quis; mas vou-te agora confessar que nem o deputado Elias me fez esquecer o Peixoto.

     - Não é assim, mana! - emendou Eufémia - já depois andaste muito apaixonada pelo cónego Antunes, pois não andaste?

     - Gostei dele; mas amar com paixão foi só uma vez... Ai!... o Peixoto! O Peixoto!...

     Concentrou-se largo espaço com os olhos envidrados de lágrimas, e exclamou por fim:

     - Canalhas! O Elias, quando depois foi ministro, pedi-lhe que me arranjasse uma pensão já que o meu defunto Alves perdeu tudo na política dos Cabrais, e nada me fez o patife. O cónego Antunes, quando foi despachado bispo, pedi-lhe que falasse aos Estava um dia D. Maria José de Bragança lendo a Nação, e de súbito as lágrimas lhe torvaram os olhos. Acabava de ler a piedosa senhora uma invocação aos esmoleres amigos do príncipe desterrado, tanto mais compungente quanto o trágico articulista historiava as penúrias do filho de D. João VI, desde o dia em que o sr. D. Miguel, conforme o testemunho do visconde de Arlincourt, não tinha em Roma com que comprar o leite do seu almoço ministros na minha pretensão, e safou-me sem me dar cavaco. Corja! Que venham para cá esses pérfidos!

     Não pareça caricatura a vaidosa precaução com que a srª Picoa se resguarda ou finge acautelar-se das tentações, escarmentada por muitos casos funestos. As decepções experimentadas podem ainda aproveitar-lhe, se ela esconjurar os embelecos de um major reformado que protestou induzi-la a trair certo professor do liceu, cuja ternura não tapa os lacrimais sempre gotejantes da saudosa Rosenda quando à memória lhe avulta a ingrata imagem do capitão da carta -aquele Peixoto que lhe vampirizou o melhor sangue do coração.

     D. Rosenda não pode ainda atravessar despercebida a corrupção do século. Tem quarenta e sete anos remoçados pelas madeixas postiças que lhe enquadram o rosto besuntado de posturas. Pisa ainda com a firmeza e garbo de meneios que hoje em dia desonestam o decoro de quem os usa; mas que, naquele tempo, era o estilo das damas que haviam já florecido em 1834, e não mostravam desesperado empenho em ser citadas como exemplares de castidade. Favorecida pela magreza que, no lapso de trinta anos, desiludira os enfeitiçados da sua elegância, desde o seu defunto Alves até ao cónego, desde o lírico amador que lhe chamava «anelo» até ao major reformado que lhe chamava o osso do seu osso, D. Rosenda estofava e boleava os músculos mantendo a flexibilidade e o donaire que muitas damas ainda viçosas perderam logo que os tecidos espessos relegaram e descaíram flacidamente.

     Lisboa, como todas as capitais das nações que tem civilização, gás e ostras, encerra bastas mulheres da têmpera de Rosenda, pomos menos proibidos que sorvados, criaturas observantíssimas, mas talvez em demasia, daquele preceito colonizador com que Moisés justifica Rosenda e as outras.

     Isto de acabar cedo para o erotismo, o esfriar do sangue, o atrofiar dos nervos, é triste condão das mulheres provincianas. As que viveram cinco anos da mocidade curvadas sobre o berço dos filhos, estiraram no seio deles todo seu coração, bafejaram-lho nos beijos; o namorado brilho dos olhos desluziu-se-lhes nas lágrimas de uma noite desvelada à cabeceira da criancinha enferma; sorrisos de amor ou desdém perderam a doçura ou o agro; - já a ninguém enlouquecem de júbilo ou desesperação: é um sorrir para filhos e para Deus que lhos há-de manter e guiar. Isto é formoso e santo; mas as mães assim envelhecem cedo; as cores do rosto esmaia-lhas o gear interno; não lhes esmalta a vida uma réstia do sol da alma; não as desperta o alvoroço de sonho apaixonado, nem a esperança lhes enxuga nas pálpebras cerradas uma lágrima de saudade. Ninguém as vê, ninguém as ama; porque, na voluntária abdicação da mulher esquecida de si, e toda absorvida nas graças das vidas que estremece, há uma glacial repulsão que não deixa aquecer em peito de homem desejo impuro. Os filhos que a rodeiam, são uns como que baluartes sagrados. Primeiro amor e último, maternidade, insolação, muitas mágoas, raras alegrias, uma primavera com flores abertas e logo fenecidas sobre o túmulo; e, depois, memórias santíssimas, e a posteridade que atribui a sua honra à benção da alma digna do céu.

     Ó Lisboa, que vantagem levaria a tua civilização à das províncias, se lá houvesse duas destas mulheres além duma, que é decerto, ou decerto há-de ser a esposa do leitor?

     Acudiu pressurosa D. Rosenda ao chamamento da infanta; e, para logo mostrar à conspícua menina que lhe percebera as figuras do estilo, entrou exclamando ridentíssima:

     - Com o amor não há brincadeiras, minha senhora. Quando o coração empurra, a cabeça vai para diante. A gente por mais que faça não resiste ao que tem de ser. E mau é que nos amem; que nós, frágeis por natureza, mais hoje mais amanhã, amamos quem nos ama, não acha?

     D. Maria de Bragança, fitando os seus esplêndidos olhos na iluminada e trejeitosa fisionomia de Rosenda, quedou-se espantada sem entender nem responder. A mulher, anelada do furriel de lanceiros e do capitão da carta, atribuindo a pudor o silêncio pasmado da infanta, continuou gesticulando como criatura de baixa ralé, que não houvesse sido polida pelo deputado Elias e pelo cónego Antunes:

     - Não se acanhe, que eu sei bem o que é um coração de menina. Já por lá passei, e tomara-me eu outra vez nos meus dezoito, que eu escolheria onde eu quisesse e me fizesse conta. Eu sempre gostei dos homens sábios; mas, como amei só o meu Alves, fiquei sem saber o que é o prazer de estar uma mulher constantemente a ser adorada dum poeta.

     O meu defunto não era tolo; mas também disto de ciências e escrever nas folhas não sabia nada. E - veja o que são as coisas! - o meu Vítor Hugo saiu esperto como a menina vê, e o sabe apreciar melhor que eu! Dizia-me a este respeito o deputado Elias que foi meu hóspede (a menina bem se lembra daquele deputado...) pois dizia-me ele muito admirado do talento de Vítor que o menino havia de vir a ser em Portugal uma coisa grande. E eu, por amor disso, não me poupei a despesas; mandei-lhe ensinar tudo quanto há. Ainda bem que ele achou uma senhora que lhe soube dar a devida estimação.

     Há muitas meninas em Lisboa que namoram asnos - perdoem-me a expressão que não é muito civilizada. O que elas querem é chelpa e marido seja lá como for. São raras as que sabem apreciar a poesia e os dotes dum rapaz fino. Graças a Deus que o meu Vítor Hugo amou quem era digna dele. Cheguei ao que queria... Vou ter uma filha que me há-de dar netos muito lindos... Se não fosse ser quem é, eu não queria ainda ser avó...

     D. Rosenda cascalhava umas gargalhadas ensartadas noutras com o mais desgracioso e tolo artifício, quando a infanta perguntou serenamente:

     - Então o sr. Vítor vai casar?

     - Se vai casar! - acudiu Rosenda estupefacta - Pergunta-me isso a menina?!

     - Sim, minha senhora... Pois não me acaba de dizer que seu filho encontrou uma menina que o sabe apreciar?

     - Ora essa! - tornou a mãe do poeta avincando o sobrolho - Ou a senhora está a desfrutar-me, ou eu estou doida varrida! Pois a senhora D. Maria José não me escreveu uma carta...

     - Sim, escrevi, pedindo-lhe o favor de aqui chegar...

     - Para me contar os seus anelos...

     - É verdade, para lhe dizer que sou feliz com a certeza de que posso ser útil a meu pai que está recebendo esmolas dos portugueses que o estimam ou se envergonham de que um príncipe português mendigue o pão estrangeiro...

     - Ah! - atalhou Rosenda, prolongando a exclamação à medida do seu azedume mal disfarçado - Então a menina quer dar o seu dinheiro ao sr. D. Miguel?!

     - Com a mais ardente vontade, e com o mais íntimo contentamento. Nunca me senti feliz senão hoje. Imagino que cada pessoa deve receber dos tesouros do céu igual porção de bens da alma, de alegrias puras. A uns sorri a fortuna em gozos de cada dia, serenos, imaculados, sem comoções extraordinárias; a outros, em meio de muitos anos lutuosos que passaram, e de Outros escuríssimos que hão-de vir, abre-se-lhes o céu em torrentes de felicidades que trazem consigo em uma hora todos os júbilos de uma longa vida satisfeita.

     D. Rosenda abria a boca a ver se percebia, enquanto a infanta continuava:

     - Foi Deus comigo liberal e justiceiro, dando-me este ensejo de poder mandar a um rei sem trono, a um português sem pátria, e a um príncipe português sem um tecto nos paços dos reis seus avós, recursos que devem ter valor para o indigente que os recebe; e confio que ele os receba sem pejo porque lhos manda uma filha.

     - Então a menina - repetiu D. Rosenda em tom repreensivo e impertinente – quer dar o que tem e ficar pobre?! Que tenciona fazer depois, não me dirá? Sim... pergunta a minha curiosidade.., depois que tiver dado as suas inscrições e a sua casa para onde vai?...

     - Eu ainda lhe não expliquei o meu pensamento...

     - A srª D. Maria José tem o coração de uma pomba - prosseguiu Rosenda, desdenhando a interrupção da infanta - mas há-de dar-me licença que eu lhe diga que não tem juízo para regular a sua vida. Coração toda a gente o tem; mas cabeça... isso e raro...

     - Eu lhe respondo, senhora D. Rosenda - insistiu reportadamente a filha de D. Miguel, sofreando a rédea aos instintos soberbos que por natureza e raça lhe deviam beliscar o pundonor - A minha tenção não é mandar a meu pai tudo quanto possuo. Ele mesmo receberia com desprazer, se não rejeitasse, o benefício de uma filha que, depois da sua imprudente liberalidade, se expusesse aos aviltamentos que mareiam a pobreza, e a não deixam mostrar-se à luz a que as senhoras opulentas costumam alumiar as suas virtudes. Repito, minha senhora, não dou a meu pai tudo que tenho, mas decerto lhe darei tudo que me sobeja. Eu vivo com pouco. A minha amiga sabe que os meus alimentos e asseios não requerem grandes despesas; mas ainda que eu estivesse habituada às pomposas superfluidades da despensa e da guarda-roupa, corrigiria as minhas louças demasias, logo que eu soubesse que meu pai pedia aos homens de quem foi rei os sobejos da minha mesa e do meu toucador.

     - Mas... - atalhou D. Rosenda com ar de quem entendera.

     - Deixe-me dizer o resto, e depois ouvi-la-ei com prazer, minha senhora. Tenho esta casa, e nove contos de réis em inscrições. A casa não a dou por ora, mas dá-la-ei também, se meu pai carecer do valor dela e irei servir, se com o meu abatimento e baixeza pude obstar que o aviltem. O produto das inscrições enviar-lho, excepto a quantia precisa para eu abrir nesta casa uma pequena loja de capelista.

     - Capelista! - bradou D. Rosenda persignando-se, e exprimindo, pausadamente as palavras da cartilha - Capelista, a filha do sr. D. Miguel I! O céus, que escuto? Que dirá sua mãe no outro mundo, se a vir a pesar retrós, e a medir varas de nastro!...

     - Minha mãe, se me vir, há-de abençoar-me - respondeu placidamente a infanta - não há trabalho desonroso, nem ociosidade honrada, senhora D. Rosenda... Minha mãe!... Pois eu não sei a vida de minha infeliz mãe nos seus últimos anos? Não a conheci eu aparentemente rica? Não vi eu saírem da cocheira a carruagem e os cavalos penhorados? Não me recordarei eu já que minha mãe teve um hotel, e que nem aí, em tão obscura e humilde paragem, a desfortuna deixou de a perseguir?! Que mais brasões tem a casa de pasto que a loja de capela?

     - Faz diferença - explicou D. Rosenda em desafronta de seu hotel na travessa do Estevão Galhardo - faz muita diferença, muitíssima. A dona dum hotel está nas suas salas, no seu escritório, tem criados que a servem e dispensam de tratar cara à cara com os hóspedes, percebe? A menina bem sabe que eu nunca admiti à minha mesa, senão o deputado Elias que depois foi ministro, e o cónego Antunes que depois foi bispo. Eram dois cavalheiros que me tratavam com o maior respeito, e nunca me disseram a menor desatenção num tempo em que eu não deixava de ser galante. Ora agora, uma capelista é outra coisa. Tem de estar ao balcão à espera de quem vem. Entra um, entra outro, chalaça daqui, chalaça dacolá, faz lá ideia? E, quando se tem a cara da srª D. Maria José, imagina lá os atrevimentos que lhe hão-de dizer os rapazes, ainda que saibam que a menina é filha de quem é? Hoje em dia não se respeita senão o dinheiro... Capelista!... sabe que mais? A menina leu tanto que tresleu! Essa sua ideia faz-me lembrar assim uma pantomima de teatros em que aparecem passagens que não acontecem neste mundo. Se leu em novelas algum caso desses, mande as novelas e mais quem as inventou ao diabo. Os romances são patranhas, que perturbam as cabeças das mulheres sem prática do mundo, como me dizia o cónego Antunes. Enfim, minha senhora, o dinheiro é seu, pode atirá-lo à rua, se quiser; mas eu, para desagravar a minha consciência de escrúpulos, declaro-lhe que faz grande asneira, e perdoe a expressão que não é muito civilizada.

     E, como a infanta permanecesse, largo espaço, silenciosa, folheando distraidamente um livro, D. Rosenda coligiu que a mudez era perplexidade, e talvez uma saudável reconsideração, devida ao acerto de suas razões. Vaidosa pois do triunfo, ganhou fôlego, e prosseguiu:

     - Quer a menina fazer bem a seu pai? Dê tempo ao tempo. Arranje-se primeiro. Case com quem saiba aumentar a sua fortuna, e depois reparta do que lhe sobejar; mas de feitio que os seus filhos não fiquem a pedir, por causa de serem netos dum rei. Pois não é assim? Se a srª D. Maria der o que tem, e se puser a vender meadas de algodão, cuida que acha pessoa de bem ou teres que a queira para esposa, apesar de ser muito bonita? Não há-de faltar quem a queira; mas a felicidade que lhe há-de vir desses namoros, Deus ma desvie da porta...

     - Está bom... - cortou a infanta com enfado e sobranceria.

     - Não se zangue, menina... O que eu lhe digo é o que sua mãezinha lhe diria...

     - Não ofenda a memória de minha mãe, que foi uma desgraçada digna de respeito.

     D. Rosenda sorriu então com um tão brutal esgar de boca e olhos que fez ressumar ao rosto da princesa a raiva de se ver afrontada por um trejeitar de beiços que lhe pareceram estar cuspindo na memória de sua mãe.

     - De que se ri a senhora?! - perguntou desabridamente.

     - De que me rio? Pois a gente não há-de rir-se quando ouve despautérios? Em que ofendi eu a memória de sua mãe? É boa essa! Pelos modos, dizer eu à filha do sr. D. Miguel e da srª D. Mariana de Portugal que não se faça capelista, é ofender a memória de sua mãe! Ora, minha senhora, não nos entendemos! A menina é sábia, lê livros e casos românticos; e eu, a respeito de livros, basta-me a experiência que não é mau livro, e o mundo que não tem pouco que ler. Enfim, minha senhora, eu estou às ordens de V. Exª, e hei-de amá-la sempre como filha, tanto me faz que seja capelista como rainha. Prometi a sua mãe, quando a fui achar nas agonias da morte, que enquanto eu fosse viva, a menina não passaria precisões, e acho que as não passou. Se alguma vez a srª D. Maria José chegar à pobreza, há-de achar-me tão sincera amiga como sempre fui e sou.

     A infanta comovida e repesa da altivez com que interrogara a amiga de sua mãe e a sua gasalhosa hospedeira em anos perigosos, abraçou-a com veemência, pedindo-lhe perdão, e ao mesmo tempo protestando, entre soluços, que não deixaria de socorrer seu desvalido pai.

     - Faz bem, faz bem, menina! - obtemperava D. Rosenda sensibilizada e ao mesmo tempo previdente - Se seu pai voltasse ao trono...

     - Nunca mais! - murmurou a infanta, com os braços pendidos e as mãos enclavinhadas - Nunca mais!...

     - Porque não? - replicou a mãe do vidente, que assoprava à pira do fogo sagrado no escritório da Nação - Tenha esperanças, minha infantazinha! Meu filho diz que o sr. D. Miguel há-de vir, e que há-de ser ele mesmo quem o há-de pôr no trono.

     - O sr. Vítor é poeta - volveu ela sorrindo melancolicamente

     - Cuida que as frases inspiradas pela justiça fulminam as iniquidades dos homens. Engana-o o ardor do génio que se julga omnipotente. Os raios do talento não são como os do céu que vão direitos aos brilhantes e os pulverizam. A sociedade sabe, e a experiência mostra que os coriscos arremessados contra os poderosos apagam-se quando o resplendor do ouro deslumbra...

     - Sempre é muito esperta! - interrompeu D. Rosenda ingenuamente admirada – A gente esquece-se a ouvi-la, minha senhora! Quantas vezes o deputado Elias me disse que a menina havia de ser uma grande capacidade! O meu Vítor Hugo diz também que a srª D. Maria José, se quiser pode idear novelas. Porque não dá V. Exª à luz alguma coisa? Escreva um romance de amores...

     - De amores! - obstou, sorrindo, a infanta - Como hei-de eu escrever do que não entendo?

     - Não entende! Boa vai ela!... O amor não tem nada que entender. Quem ensinou os passarinhos a amar, não me dirá? A natureza tanto ensina os animais como a gente. A menina, se não sabe, é por que não quer.

     - Não posso, não penso nisso. O amor só entra em corações abertos: as trevas da alma não atraem raios de luz tão intensos. O amor é como o sol, que de certo não brilhará neste recinto, se eu não abrir as janelas.

     - Ore deixe lá... - redarguiu em excelente prosa a quinhoeira do lirismo do deputado Elias - A srª D. Maria José há-de pagar o tributo como as outras: senão for Sancho, será Martinho. O que a menina faz é o que eu tenho feito desde que enviuvei: não quer amar; isso lá percebo eu. Bem importunada tenho eu sido por pretendentes às segundas núpcias, tantos como a praga! Resisti e hei-de resistir porque jurei eterna fidelidade até à morte ao meu defunto Alves, apesar de ele me sacrificar à política dos Cabrais, e me deixar pobre. Lá se ele fosse esperto como o filho, ainda valia a pena deixar o negócio pela política; mas, Deus o tenha à sua vista, aquele perdeu-se por ser um toleirão. O meu Vítor saiu ao avô cá pelo meu lado, que dizem que era muito sábio o avô da casa de Camaride. Todos me dizem que o rapaz ainda pode ser ministro. Eu não engulo carapetas; mas, quando me lembro que o meu hóspede Elias chegou a ministro, sendo ele bom homem mas muito tapadinho, diga-se a verdade, não me admira nada que meu filho, cedo ou tarde, venha a subir ao governo. Se o senhor D. Miguel tornasse, a menina pedia-lhe que desse uma pasta ao meu filho, não pedia?

     - As mulheres, minha senhora, quer sejam princesas, quer sejam capelistas, não devem intrometer-se na política. Se meu pai viesse a Portugal, dir-lhe-ia ou que o sr. Vítor Hugo sofreu vinte dias de cárcere por amor dele.

     - E o mais que ele sofrerá ainda... - ampliou D. Rosenda - Acho-o tão encanzinado no partido realista, que qualquer hora estoura trovoada pior que a outra. Os fidalgos trazem-no nas palminhas, e eu vejo-me atrapalhada para o vestir com mais luxo, porque ele vai a todas as casas principais, e não me faia senão na srª marquesa de Abrantes, na srª condessa de Pombeiro, de Redondo, da Figueira, Barbacenas, Pancas, etc. E bem vê a menina que quem anda nesta roda, não se há-de ir vestir ao Nunes algibebe por dez ou doze coroas. Deus sabe com que linhas cada qual se cose...

     - Peço-lhe, minha amiga, que disponha do que é meu - disse a infanta apertando-lhe a mão.

     - Muito agradecida, minha senhora; por enquanto, cá me irei remediando. O que eu queria da minha menina para o meu apaixonado Vítor, sabe o que era? isto.

     E, apontando-lhe ao coração, trejeitava com os olhos derramados e um pender de cabeça mui langoroso - coisas que muitas vezes deviam ter inflamado vulcões no deputado Elias e no cónego Antunes.

     - Tem de mim o mais que posso dar a um irmão: grande afecto e muito reconhecimento - respondeu solene a princesa, e logo norteou a palestra noutro rumo - Ainda me falta pedir-lhe um favor, minha amiga. Queria eu que seu filho me dissesse a maneira de eu remeter a meu pai três contos de réis, que é o que posso liquidar das inscrições, tirando para mim o necessário para manter a minha lojinha de capelista.

     - Ela cá torna com a mania! Então não muda de ideia?

     - Não.

     O tom imperioso e seco da resposta fechou o debate.

     D. Rosenda ergueu-se e saiu, prometendo comunicar-lhe o que seu filho lhe dissesse quanto ao modo de remeter o dinheiro.

     No dia seguinte, a infanta, recebidas as informações, entregou a D. Rosenda os seus papéis legalizados para a venda.

   

     Naquele tempo, reinava em Portugal D. Pedro V - único monarca português que morreu honrado e sinceramente carpido.

     E aquele rei era triste, porque o sol ardente do espírito, o ardor da ciência lhe crestou o viço da juventude.

     O conde da Carreira, e outros pedagogos que usavam ainda calção e rabicho pelo menos na alma, entouriram o ânimo do príncipe com iguarias indigestas introvertendo-lhe para o viver íntimo em florescências sem aroma os gomos da mocidade que nunca desabrocharam perfumes de contentamento.

     E, porque era triste, era bom, compadecido, esquivo às vanglórias, como quem sabia que, nas nações livres e pobres, nenhumas ostentações sobredouram o manto real senão as da reportada parcimónia e abstenção de soberanias extemporâneas.

     Um regime de governo, que facultasse ao rei largas prerrogativas, demonstraria que o primogénito de D. Maria II era especulativo demais para deliberar nesta rasa missão de governar homens. O poligloto Viale inoculara-lhe ampolas académicas, uns êxtases já um tanto serôdios em glosas de mistérios dantescos, pelos quais o príncipe, absorto entre o enigma da idade média e o enigma dos mestres, revelou uma predilecção impertinente.

     Que farte sabia o previsto aluno dos pingues sábios que lhe não montaria ganância alguma o estudo da ciência de governar este mansíssimo povo, que lhe havia apedrejado o avô e roçado a injúria desbragada pelo tálamo da mãe. Nas angústias de D. Maria da Glória se lhe revelou a condição acerba de quem há-de ver os homens e os factos através do prisma dos validos. Desde o padre Marcos até ao senhor dos paços de Gualdim Pais, encadearam-se sucessos que mostraram ao meditativo príncipe o indeclinável cálice em que sua mãe lhe deixara - para saudades e exemplo - o travo de suas lágrimas.

     Por isso aquele moço não tinha as alegrias e regalos de sua idade e jerarquia.

     Ao sair do sereno ambiente do gabinete de estudo para as borrascas da vida prática, retraía-se aos braços da quimera que desferia voo a regiões sombrias da Divina Comédia ou se librava nos nevoeiros de Macpherson.

     O ar do paço tresandava às preias que os escaravelhos rolavam pelas alcatifas. Da camarilha das mulheres ainda vaporavam as caçoletas que elas haviam encontrado nas recâmaras de Queluz. Na camarilha dos homens mal podia o príncipe sincero extremar o respeito da adulação e o silêncio estúpido da sisudeza discreta. Se os mestres, preleccionando-lhe o reinado de seu tio, lhe bosquejassem o carácter dos validos que lho perverteram, o rei, nas suas salas, cuidaria achar redivivos em cada cortesão o Vadre, o barbeiro viscondizado e o Sedvem melhormente vestidos com as librés de 1857.

     Uma vez D. Pedro V, obedecendo a impulsos de boníssima índole, ordenou que as lástimas dos queixosos de iniquidades pudessem chegar à quase soledade em que se amiserava um rei. Inaugurou-se pois a celebrada caixa onde os requerimentos eram lançados. A chave desse depósito de dores, que haviam já sido acalcanhadas no peito os repulsos, era el-rei que a tinha. Confluíram a centenares os apelos da injustiça dos ministros para o simulacro do braço soberano; mas as reparações eram baldas, porque o príncipe o mais que podia dar em benefício dos queixosos era a esmola aos que lha mendigavam, e comiseração aos que se deploravam pedindo justiça, e não esmola. O alvitre do rei denotara alma egrégia; mas o infortúnio apenas vingara fazer-se conhecido no gabinete real. E mais nada. As virtudes de D. Pedro não podiam ser mais fecundantes que as do cidadão, primeiro na escala, mas não decerto o primeiro nos bens de fortuna.

     Era rei, segundo a constituição; e os acusados no seu tribunal eram os penachos, as togas, os arminhos, e os argentários a quem os ministros pediam de usurário empréstimo as mesadas da lista civil.

     Os áulicos de quem o rei se rodeava, forçado pela pragmática, com certeza nunca lhe referiam as penúrias que aureolavam com o resplendor da expiação as cãs de D. Miguel de Bragança. Não era respeito à legítima soberania, nem temor do real desagrado que os amordaçava. Eles sabiam que na alma do rei não negrejavam ódios ao irmão de seu avô, nem sequer aos adeptos do desterrado que exploravam nas franquias da carta constitucional a liberdade de injuriarem .o trono, vendendo a injúria impressa.

     Enfreava-os o receio de espertarem a liberalidade do coração dadivoso, defraudando-se desta arte do quinhão que repartiam, desbalizando o rei de suas rendas, e pondo o almoxarife à porta das galinheiras da praça e dos merceeiros insofridos a pedir-lhe que não denegassem à mesa do rei de Portugal os frangos e os paios fiados com desconfiança.

     Não obstante, D. Pedro V soube que D. Miguel, levado pela Providência aplicada aos braços da esposa que lhe tapetava de flores tardias o breve caminho da sepultura, espraiava os horizontes do seu infortúnio, cercando-se de filhos. Uma senhora, no mais vicejante dos anos, e no esplendor da beleza, imaculada, neta de reis - espectáculo que dulcifica lágrimas! - oferecia o seio para amparo da fronte de um velho expatriado e pobre! No regaço daquela dama alguns portugueses, ajoelhados não à rainha, mas ao anjo, depunham o produto das esmolas colhidas em Portugal.

     D. Pedro tinha alma para entender a virtude dos que, sem esperança de galardão, mantinham no exílio a mediania do seu príncipe. Quis igualar-se no sentimento de caridade aos que se devotavam ao homem despojado de todas as grandezas, e privado até da glória póstuma com que a história algumas vezes honra a lápida dos que resvalaram do trono à sepultura pela rampa do exílio.

     Um dia, D. Pedro chamou o fidalgo que mordomizava os seus haveres, e ordenou-lhe que enviasse, em cada mês, trezentos mil reis a seu tio. À ordem seguiu-se a encarecida recomendação do segredo. Louvou naturalmente o camarista a longanimidade do rei, e limpou os óculos marejados das lágrimas que lhe bolhavam da alma comovida. O aspecto grave e circunspecto deste fidalgo de óculos fazia lembrar o apostólico semblante do sr. conde da Ponte.

     Volvidos anos, D. Pedro V, arrobado no resplendor de uma estrela que lhe levara para Deus a luz efémera dos seus júbilos, alou-se no raio celestial, e gozou-se de lá na contemplação das lágrimas mais sinceras que ainda alguma nação chorou sobre a mortalha do seu príncipe.

     E então somente, em um secreto livrinho de lances que o rei deixara de sua vida íntima, encontraram a verba mensal dos trezentos mil réis votada a D. Miguel de Bragança.

     Ora haveis de saber que o irmão de D. Pedro IV nunca recebeu a mesada, e que dos reais contadores saíra sempre para a gaveta do camarista a quantia arbitrada e deduzida das despesas particulares do rei.

     Um periódico de Lisboa publicou ao sol do meio-dia a inaudita infâmia. Ninguém saiu a rebater a calúnia. E à ladroíce feita e impune acresceram pormenores repelentíssimos: estava uma coroa de conde exposta no pelourinho da ignomínia; mas o réu abroquelou-se com o silêncio despejado; e a indignação pública - esta quimera verdadeiramente mitológica fora dos jornais da oposição - quando viu passar o conde, quinze dias depois, cortejava-o por que o via rebalsar-se nos coxins do paço donde saíra para S. Vicente de Fora D. Pedro V.

     Posto isto, leitor atencioso e sobretudo filosófico, que se indigna daquela ira que em Lisboa corteja os ladrões reintegrados sob os reais tectos, diga-me V. Exª se, dado aquele exemplo, é de espantar que Vítor Hugo José Alves enriquecesse o seu sangue depauperado com a substância metálica dos três contos de réis que a infanta enviava a seu pai, D. Miguel de Bragança!

     E assim parece explicarem-se os melhoramentos que tão depressa se realizaram na pessoa espiritual e corpórea do filho de D. Rosenda Picoa.

     Não era talvez digno da comenda de S. Tiago da Espada o procedimento daquele escritor público, nem também me consta que ele a pedisse; todavia não se me figura irrepreensível equidade alcunhar de ladrão um sujeito porque não foi agraciado. Se não tem sido muitos os exemplos deste descuido em Portugal, as excepções não devem menoscabar os créditos de Vítor Hugo. Os réis não podem, sobraçando a cornucópia das mercês, escrutar todos os latíbulos onde se forjam malfeitorias. Não é da atribuição dos cabos de polícia enviarem a sua majestade um mapa mensal dos malandrins mais conspícuos da sua esquadra. Por via de regra, os chefes do poder não apresentam todos os dias à munificência régia pessoas de quem o leitor costuma acautelar o seu relógio, ou receia encontrar em vielas não patrulhadas.

     Quando um ministro do reino apresentava há pouco ao sr. D. Luís I, que Deus guarde, o decreto que amerceava com a coroa de visconde um proprietário de bordeis no Rio de Janeiro, seria indecoroso para o agraciado ajoujarem-no com um biltre ordinário.

     O rei, que é lido, sabia que Gatão também tinha em Roma colarejas de alquilaria de quem cobrava percentagem. Qual rei denegaria um título a Catão? E com que justiça ou sincero pudor se fechariam os áditos do paço ao tal couceiro do Brasil?

     Vem ao ponto um caso.

     Um homem que já foi duas vezes ministro, que é par do reino, diplomata e grão-cruz de três ordens, era, há vinte e dois anos, guerreiro jurado no bando da carta pura, escriba assalariado de Costa Cabral, arranjador de barcarolas no teatro de D. Fernando, e pianista nocturno nas orgias de uma celebrada Laís, que arrebanhava em sua casa as rameiras mais frandunas de Lisboa. Um dia, o literato, aceso em brios belicosos, cingiu nos rins o gládio arqui-virginal de capitão da carta. Asado o ensejo, desafivelou o cinto pulverizado do nitro da polvorada, arregaçou os canhões agaloados da fardeta, e meteu as mãos nos telónios da coisa pública, fazendo-se sub-pretor, para falar à romana, numa cidade provincial onde havia uma estalajadeira, chamada a «cara de pau». Mal diria ela, quando condimentava o escabeche dos saborosos salmões do rio Minho para o seu hóspede que a remirava com olhos cheios de cerume lagrimal, do amor, de lunetas, e de brotoeja, - mal diria ela que daquele grande feto alcoolizado se faria mais tarde um ministro da coroa!

     Ora aconteceu que o hóspede insolúvel da «cara de pau» numa das arrancadas de patuleias em que lhe foi mister fugir, enfardelou quatro peúgas e cinco pares de lunetas no bolso da quinzena, que lhe dava uns ares de sátiro hemorragíaco, e fez-se no caminho da capital, dizendo à estalajadeira que, em reféns da sua dívida, lhe deixava um baú repleto.

     Na ausência do futuro ministro, tomou-se o peso do baú, e conjecturou-se que ele continha a panóplia do capitão, e as armaduras despojadas ao inimigo insepulto no campo da batalha. Pesava como se contivesse o capacete dos primeiros Afonsos, e o montante de Lourenço Viegas, o Espadeiro.

     Decorridos meses, a credora escreveu ao bravo repatriado pedindo o seu dinheiro.

     O capitão não respondeu à primeira nem à undécima carta. Resolvida a leiloar o armamento e o espólio óptimo do guerreiro, por saber que muitos alfagemes farejavam columbrinas de Toledo apanhadas às fragueiras guerrilhas do padre Casimiro, a locandeira mandou abrir o baú na presença de testemunhas, e achou... quatro pedras que pesavam cinco arrobas, três arráteis e sete onças - pederneira genuína.

     Isto divulgou-se, gargalhou-o a imprensa, propalou-o o ódio político, chegou talvez aos «banzés» dos palafreneiros da corte, e, apesar de tamanha publicidade, o astucioso não foi condecorado. Fez-se mister que o fermento do sagacíssimo estadista levedasse por espaço de quinze anos aquela informe massa de ossos envoltos em membranas escaladas, da qual saiu o ministro, o par, o diplomata, e o conde, segundo as gazetas estão pregoando.

     Depois disto, é racional que nos espantemos se Vítor Hugo José Alves não foi condecorado?!

     É ele um genuíno e autêntico ladrão? - que espere. Mais tarde será regalardoado na proporção da inveja que lhe atabafou os méritos. Deixe o bem estreado cidadão germinar a semente que confiou ao ubérrimo torrão da sua pátria. A árvore há-de bracejar vergônteas afestoadas de grinaldas que algum dia lhe hão-de juncar a escarpa do capitólio.

     A conversão dos três contos de réis em coisas atinentes ao melhoramento físico e moral do poeta, seria acto digno de moderados elogios, se ele não precedesse de cálculos e considerações não vulgares, a consubstanciação do metal com a sua pessoa.

     Dotado de vistas penetrantes nas neblinas pardacentas da política, Vítor, estrigando-se nos correligionários, e mais ainda na eficácia dos seus próprios artigos e instintos perturbadores, previu que o príncipe proscrito seria cedo ou tarde reintegrado no trono.

     Não era base menos fundamental nos seus proféticos raciocínios o derrancamento em que as doutrinas liberais haviam degenerado, desde que a classe média corrompida gafara da sua lepra a gentalha de quem se separou pensando que o irmanar-se com os fidalgos desbragados era desencanalhar-se da ralé onde havia nascido.

     O severo sr. Alexandre Herculano no prólogo da Origem e estabelecimento da inquisição, tinha escrito umas frases biliosas de que Vítor Alves inferiu o restabelecimento do rei legítimo.

     No conceito do cavaleiro da Ala, o vidente historiador não podia iludir-se, quando vaticinava a restauração do absolutismo pelos próprios esforços da burguesia, sua triunfante inimiga, a qual, já temerosa das sanhas da plebe desafrontada do cabresto da religião, se coligaria com os reaccionários para repor na Ajuda um rei absoluto que lhe caucionasse os haveres, cortando com a espada as ambições dos proletários.

     Prenhe destes grandes palpites sociais, Vítor Hugo impôs-se o dever cívico de jurar bandeiras na vanguarda do troço mais aguerrido, meter a cabeça à brecha mais bombardeada, e lampejar clarões onde a noite dos espíritos fosse mais caliginosa - clarões de eloquência nos clubes, nos botequins, e até nas salas das Aspásias vetustas que desde 1834 anafavam as barbas de todos os Péricles, como eles vingam neste país, mais ou menos semelhantes em estética e plástica ao chorado Elias de D. Rosenda.

     À mais brilhante luz do entendimento humano se mostra que Vítor não conseguiria relacionar-se na sociedade, onde lhes cumpria fecundar com a palavra as convicções legitimistas, se se não entrajasse com o asseio e galanice que hoje em dia realçam as cláusulas do bom orador. Decerto lhe seria atravancado o acesso aos salões se na sua guarda-roupa tivesse somente a quinzena de pano-piloto com que se distinguia mediocremente na ceias do «Colete-encarnado» e com a qual se escondia na penumbra de um «café» da rua de S. Roque, aquecendo a grogues a fantasia. Tempos calamitosos eram esses em que o deputado Elias o brindava com umas botas, relançando-lhe à mãe um olhar que requeria gratidão, fidelidade, e talvez a renúncia completa às carícias do cónego Antunes!

     Vítor Hugo tinha presenciado das galerias parlamentares que os homens, em cuja testa latejava a inspiração estuosa dos Isócrates e Hortênsios, primavam na casquilhice do trajo, no adamado da penteadura, na lucidez velutosa dos bigodes. Viu que o envoltório engrandecia mais que muito as posturas esculturais da gesticulação, bem que a clâmide grega ondularia mais imponente nas omoplatas do sr. José de Morais, do que certamente as abas do fraque, um tanto canhestras para as atitudes largas e arrojadas.

     Reparou em particular o embelezado Vítor Hugo José Alves no aprumo estatuário do sr. Mendes Leal; e, conquanto o fino gosto da plástica estivesse cobiçando uma toga caída com romana majestade sobre aquela conformação de mitologia antiga, o bem posto da pessoa entre as costuras da vestimenta não prejudicava de todo os raptos da eloquência que todo o rosto lhe acendiam de fosforescências. Ia nestes efeitos, desconhecidos nos códigos de Longino e Quintiliano, o segredo da arte de vestir bem.

     Não lhe fez menor impressão o nédio sr. Arrobas, que sorria de esconso para o colete listrado do já hoje defuntíssimo sr. João Elias, nem pôde esquivar-se imaginar que o sr. Martins Ferrão, sem o primor das suas casacas e o compassado pêndulo do braço direito à competência com o pêndulo compassado do braço esquerdo, apenas conseguiria com os seus discursos retirar do mercado das farmácias o láudano, e constituir a câmara em permanente Monte das Oliveiras, onde os discípulos de Jesus dormiam de tristeza, como S. João refere. «Dormir de tristeza!» - é o mais curial e justificado sono que pôde narcotizar uma assembleia de legisladores, quando a Providência das nações não encarrega alguns deputados bem penteados e vestidos de manterem o auditório em alegres insónias, salvante o sr. Duque de Loulé para quem o próprio sr. padre António Aires seria uma amendoada.

     Destas contemplações saiu o filho de D. Rosenda Picoa bastante inquieto sobre a proveniência dos recursos precisos a quem por força, privado deles, havia de abdicar dos destinos apontados fatidicamente pelo génio.

     Se ele enviasse a D. Miguel de Bragança os três contos de reis, e assim se exonerasse de ser o motor da restauração do trono, por falta de fato digno de um restaurador, não seria isso prejudicar o país e a causa nacional, a troco de ser honrado com um homem? Que montaria mais ao proscrito - o ouro da filha, ou a restituição da coroa? E, se alguns punhados de ouro em mãos alheias lhe estavam logrando juros de pátria e coroa, não era obra para três vezes bendita essa santa ladroagem que habitava o revolucionário a acercar-se, depois, do sólio do rei restituído, com a ufania doutros bandoleiros que ele via assentados à orla do solo usurpado?

     Três contos de réis, nas algibeiras de Vítor Hugo, estavam germinando casos e transformações de magnitude incalculável, ao passo que, enviados a Brombac, seriam ingloriamente consumidos em comestíveis e outras ridiculezas de todo ponto inúteis à reivindicação da lei fundamental da sucessão monárquica, segundo as cortes de Lamego.

     Ao propósito da legislação pátria, derrogada pelo direito da força, muniu-se Vítor Hugo de copiosa livraria; mas, tanta era a confiança que ele tinha na espontaneidade original da sua argumentação, que lia quase nada, contentando-se com o substractum resumido nos escritos do padre José Agostinho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura. Um livro que ele preferia ao Punhal dos Corcundas era Les talismans de la beauté, obra até certo ponto estranha às lucubrações de um conspirador, mas conducente aos seus intuitos de coadjuvar a beldade dos actos do espírito com as composturas esmeradas do corpo.

     A limpeza da sua pessoa, longos anos suja, não se fez rápida nem superficialmente. O talento que o enfurecia com ares hidrófobos contra os banhos do dr. Nilo, impunha-lhe agora a necessidade de todas as manhãs se retouçar voluptuariamente num banho aromatizado com lait d'amande douce friccionando-se com sabonete de Thridace e de la reine des abeilles, ou crème froide mousseuse. Depois, no amanho dos espessos e lustrosos cabelos, que noutro tempo fariam recuar um javali assanhado, enfileirava os cosméticos numerados desde o Baume des violettes d'ltalie e Crèmes duchesses até à Eau redivive de Nagasaki e à Diamantine lustrale. Nesta operação capilar, em frente dum espelho de colunas ladeado de arandelas douradas, ia Vítor Hugo ensaiando as pregas da fronte, e os vincos do sobrolho, significativos de cérebro causticado pela cantárida do génio: ensaio prévio que ele imaginava contribuir bastante nos triunfos oratórios do sr. Sá Vargas.

     Envolto em robe de chambre azul-ferrete de brocatel, cingido por cordões de seda e borlas escarlates, Vítor encaracolava as favoritas do bigode, encerando-o e lustrando-o com Pommade hongroisse; depois ungia a epiderme com Crème-Pompadour, e operava o quarto lavatório da oleosa cara com água saturada de Rosée des abeilles. Finalmente, seguia-se o polimento das unhas escovadas com poudre oriental. Todo o requinte neste ponto lhe parecia malogrado, figurando-se-lhe que as suas mãos não acusavam na delgadeza a aristocracia dos Marialvas ou Vimiosos.

     Feito isto, ali se quedava largo espaço narcisando-se diante do vidro com a languidez mulheril dum Bático ou Juvêncio. Requebrava o colo em dengosas flexuras de cisne preto; e entreabria sorrisos de donzel, deixando apenas descerrar os lábios.

     Risos francos e abertos não os confiava ele sequer do seu espelho. Eram-lhe dor, desaire e violência enormes não poder rir.

     E porque não ria este homem tão alvoroçado de alegrias íntimas? Seria para simular profundeza de juízo, e cuidados de conspirador que lhe traziam os miolos amartelados? Não era isso. E que tinha os dentes lurados de cavernas cariadas e chumbadas, e as gengivas tábidas de um gluten verdoengo: - era uma podridão de caveira, um arcabouço de maxilas e vaporar terçãs.

     Tirante os dentes, o alinho complexo do poeta, examinado a vulto, recendia a olorosa elegância que lhe perfumava o ambiente, mitigando-lhe o hálito paludoso, e temperando saudavelmente o ar a favor dos circunvizinhos.

     Eu não assevero que Vítor Hugo ensaiasse com alguma felicidade, nos salões da aristocracia herdada, a influência anacreôntica dos seus dotes físicos; antes pendo a suspeitar que lá se sentisse mais a corrupção dos seus dentes que a da sua alma.

     As finas belezas das raças históricas olhavam-no de soslaio, e trocavam entre si uns trejeitos indicativos de espanto e mofa. O inculcado talento do poeta não conseguia sequer na sociedade frívola das senhoras ilustres, aquela atenção convencional e contrafeita que a sociedade burguesa dispensa às reputações literárias, sob a condição de que o poeta escreva o soneto em dia de anos, ou a necrologia nos óbitos da família.

     Dizia-se, porém, que uma marquesa, já bem esfolinhada de teias de aranha de preconceitos no tempo de D. Maria I, não o fizera esperar, como Ninon a um certo abade, o aniversário natalício dos seus anos mais que canónicos para o convencer de que a lira do bardo moderno podia, sem profanação do culto antigo, desferir endeixas acomodadas à majestade de uma catedral gótica. Também constava que o filho do Alves dos couros, morto em odor de caceteiro cabralista, cultivara aqueles amores, como quem escarda no estilo do século XVI arcaísmos para os lardear com presunção de entendido na linguagem hodierna. Queriam dizer, ou dizia ele que a marquesa, relíquia dos antigos usos do palácio, colectora de anedotas atinentes ao viver íntimo da fidalguia, e refinadamente polida de modos exclusivos da sua casta, pegava generosamente as fumigações do incenso, dando ao seu poeta uma demão de verniz do bom tom que ele decerto não dispensava para escodear as crustas de rudeza adquirida na educação, na convivência do capitão da carta, e nas ceias de fígado frito na tasca da «rua das Pretas» com os clowns do Price.

     Mas, nestes amores transitórios e meramente aceites como complemento de educação, Vítor Hugo José Alves guardava intemerata e sem mácula a poesia do seu peito. A infanta não se lhe despintava da ideia apaixonada. A conversão dos três contos em benefício da causa do proscritos era um incentivo a maior para que ele, mais ao diante, no balanço das suas contas com D. Maria José de Bragança, descontasse a verba empalmada encendrando-lhe em ternuras o ouro fino do seu amor.

     Como quer que fosse, o causídico da legitimidade ganhava entre os seus compartidários o nível dos mais esperançosos talentos da restauração. Não perdia ensejo de falar melodramaticamente. Ajeitava a ocasião de exibir os troços de discursos que compunha no seu quarto, declamando-os à tia D. Caetana Eufémia, que parecia mais acessível às descargas da electricidade da metáfora, resultado da sua diuturna familiaridade com um autor dramático, que a denominava a sua Laforet, e a beijava com delírio quando ela lhe cantava, com a mão no peito, e outra na testa, as chácaras dos seus dramas. Com os olhos vidrados de saudoso líquido, D. Eufémia, escutando as orações do sobrinho, cuidava estar ouvindo o dramaturgo que se fora deste mundo com os ouvidos ainda atroados das ovações do Salitre, e o coração alanceado de invejas roazes aos Dois Renegados do sr. Mendes Leal.

   

     Relataram-se os casos, que deviam ser sabidos, anteriores ao realizado desígnio de fazer-se capelista a infanta D. Maria José.

     Já, no começo desta história, José Parada, o meu introdutor à presença da princesa, nos referiu, mais ou menos hiperbolicamente, a concorrência de afectos à volta da galante senhora. Não foi ele decerto encarecido narrador quando nos relatou a esquivança da capelista às honestas propostas de casamento, feitas por velhos dinheirosos, por mancebos ilustrados e até por algum opulento elegante e juvenil que poderia levantar a sua aspiração aos pontos culminantes da melhor sociedade de Lisboa. Tal era aquele Epifânio, filho do conde de Baldaque, milionário que entrara em Lisboa no mesmo paquete em que viera o seu sócio e amigo Manuel Pinto da Fonseca, o homem de ouro, que as mulheres de carne denominaram o «conde de Monte-Cristo.»

     A infanta não extremava o filho único do conde entre os frequentadores da sua loja, senão pela timidez tartamuda, e uma rara infelicidade em acanhar as expressões que lhe desmentiam a galhardia das atitudes, o tom de peralvilho que lhe dava a luneta, e a dexteridade com que nos salões inculcava trato e convivência de damas.

     Nas suas conversações com D. Maria José de Bragança mediavam intercadências de silêncio que tanto podiam significar amor que absorve a palavra na contemplação, como cansaço de duas almas que elanguescem num espasmo de tédio.

     Epífânio amava naquele extremo em que a mulher impõe respeitosa adoração sem dependência do prestígio do nascimento. Pode ser que ele, desconhecendo a origem real da capelista, se houvesse em presença dela com menos resguardos, sem todavia lhe querer menos; mas, em leal verdade o dizer-se que a gentil menina era filha dum rei, e o porte soberano com que ela sem arte e genialmente justificava a fidalguia de sua condição, eram realços de mui peregrina beleza, que, em meu conceito, insinuaram no ânimo entusiasta do moço a idolatria genuflexa que se confunde com a superstição.

     O filho do conde de Baldaque, saltando do tilburi à porta da capelista, e atirando as guias ao seu jockey inglês, ia encontrar a infanta medindo metros de fita, ou expondo a uma sabia os seus lenços de ramaria amarela. A capelista correspondia-lhe graciosamente ao cumprimento, passava-lhe por cima do balcão uma cadeira, que ele recebia com ademanes de extremado reconhecimento; e, cumprido o dever de cortesia, continuava ela o seu negócio tratando os raros fregueses com semblante prazenteiro e um sorriso de paciência que ninguém, entendido em dores recalcadas no fundo da alma, poderia ver sem pena.

     Epifânio Baldaque, subtilizado pela paixão que adelgaça os temperamentos mais rudemente formados, adivinhou um dia que o sorriso da infanta em resposta a uma mulher que lhe rejeitara o torçal em termos desabridos, era a expressão irónica do infortúnio que se irritava, ou talvez a serena alegria de voluntária mártir.

     Desprendeu-se-lhe então da alma ao concentrado moço uma frase que o engrandeceu aos olhos da infanta:

     - Quantos sorrisos desses terá tido o sr. D. Miguel de Bragança! - disse ele.

     D. Maria fitou-o com os olhos já anuviados de lágrimas, e respondeu:

     - Não há comparação, sr. Baldaque. O sr. D. Miguel não pode sorrir, O que pode haver igual entre o rei e a capelista é o chorar; mas que diferença de lágrimas! Eu choro por ele, e ele chora por si mesmo. Eu vejo a tortura alheia, e compadeço-me; ele é o torturado; e essa mesma piedade, que lá chega em escassos benefícios, deve ser-lhe fel coado às feridas da sua alma. Há infelizes que se estorcem em sedes abrasadoras: os amigos querem apagar-lhes; mas dão-lhes a beber cicuta. Não sei se para esses, que perderam tudo, a mais relevante caridade seria deixá-los morrer...

     Não seria fácil a Epifânio atar as frases desprendidas e interceptadas por silêncios; mas o que ele percebeu animou-o a proferir uma expansiva bondade que soou ingratamente nos ouvidos da infanta:

     - Se eu não fosse rico, as suas palavras, minha senhora, seriam também para mim uma tortura...

     - Não me compreendeu - murmurou ela, abaixando o rosto sobre o crochet.

     - Penso que entendi - replicou Epifânio; - mas, se a magoei, desculpe-me.

     - Que entendeu? - volveu ela, sem levantar os olhos - Que eu pedia uma esmola para meu... para o sr. D. Miguel?

     - Não, minha senhora... - balbuciou o moço grandemente embaraçado.

     - Então que foi que entendeu?

     - Que V. Exª lamentava que seu pai não tivesse morrido antes de aceitar os donativos dos seus partidários.

     - Se assim é, que importa que V. Exª seja rico?

     - Tenho medo de lhe responder - disse Epifânio erguendo-se de golpe, e sacudindo com a mão os longos cabelos que lhe afogueavam a fronte.

     - Medo!... que poderá dizer-me que o assuste?...

     - Pois sim... eu preciso ser franco... preciso ser mais feliz do que sou... quero abrir-lhe a minha alma... quero...

     Susteve-se longo espaço, e maior seria a detença, se a infanta o não desfitasse com uma penetrativa interrogação que parecia recomendar-lhe suma prudência nas palavras que ia proferir.

     E prosseguiu tirando brios propriamente da necessidade que tinha de se justificar:

     - Se eu ainda lhe não disse que a adoro, é porque na sua presença todas as minhas resoluções se acovardam. Sou ainda novo; mas já conheço o mundo. Não tinha amado nunca verdadeiramente; mas já sabia as palavras com que se declaram as grandes paixões. Quando repetidas vezes aqui vim disposto a dizer-lhe que a amava, e o não fiz, deliberei escrever-lhe. A mesma timidez me embaraçava de lhe entregar as cartas. Cheguei a ter pejo de mim próprio, porque eu vi o desassombro com que certas pessoas, sem lhe faltarem ao respeito, ousavam dizer-lhe frases que me feriam o coração e ao mesmo tempo me esmagavam o amor-próprio. Restava-me ao menos, em meio das minhas amarguras, o alívio de que V. Exª, dado que não me entendesse silêncio, me não julgaria um namorador frívolo, um despensador de palavras banais. E ainda outra consolação mais lisonjeira me acudia: era ver que V. Exª, se me desprezava, não recebia com maior atenção as pessoas que a cortejavam, sabendo eu que o propósito de algumas era tão honesto quanto eu quisera que minhas irmãs, se as eu tivesse ,o merecessem.

     - Eu nunca dei ocasião a que me fizessem proposta de natureza nenhuma; - interrompeu a infanta - digo-lhe isto para que não se persuada que tenho a vaidade de haver rejeitado propostas que o mundo chama partidos vantajosos.

     - Sei isso... acudiu Epifânio, algum tanto abatido da coragem com que ia discorrendo, por inferir da interrupção assomado orgulho - sei isso... e, porque o sabia, contive-me aconselhado pelo desengano dos outros. Mas, apesar de tudo, talvez me iludisse a vaidade de me supor mais digno do que eles porque sentia por V. Exª, veneração que aos outros lhes não foi impedimento a que se declarassem. É a única distinção que me deve enobrecer aos seus olhos; pois, sendo natural que todos amassem uma senhora bela das supremas graças do semblante, do coração e do espírito, nem sempre acontece que a paixão se deixe reprimir pelo acatamento. Agora, minha senhora, já não haverá nada que me proíba de lhe revelar em poucas palavras todas as minhas meditações de seis meses; mas, se V. Exª me está escutando constrangida... se me confunde com os homens que a importunaram com palavras mais ou menos semelhantes às minhas, então diga-me que me está ouvindo por mera delicadeza...

     - Por mera delicadeza o estou ouvindo, sr. Baldaque - disse serenamente a infanta.

     - Pois bem... - tartamudeou o moço, empalidecendo - calar-me-ei... Mas – volveu ele, corridos instantes, em que o rubor sucedeu à palidez - mas V. Exª perguntou-me há pouco «que importava que eu fosse rico...?» E eu disse-lhe que tinha medo de responder. A srª D. Maria José animou-me a explicar-me; e, antes que eu chegasse à justificação, emudece-me declarando que me está ouvindo porque é delicada. Se fosse tão boa de coração quanto é melindrosa, não mo diria; antes havia de permitir que eu me desculpasse dumas palavras inocentes que lhe deram de mim conceito injusto e mau.

     - Mau conceito, não: - acudiu a infanta - pareceram-me apenas uma impertinência ou frase que não podia caber senão violentada na nossa conservação. Eu dizia-lhe que o sr. D. Miguel era infeliz; e V. Exª respondeu-me que era rico. Figurou-se-me que me considerou medianeira nas esmolas que se pedem para ele...

     - Errou, minha senhora - redarguiu Baldaque, fortalecido pela pureza nobre das suas intenções.

     - Então, seja generoso em me desculpar, e creia que por interesse e não por civilidade desejo ouvi-lo.

     Epifânio, após uma longa pau3a, em que denotou no rosto penosa inquietação do espírito, disse verdadeiramente conturbado:

     - Já não posso...

     - Não pode?! - acudiu a infanta sorrindo com ares de incrédula - Então não pode? Porquê? Isso faz-me desconfiar que...

     - Desconfiar?!

     - Sim, desconfiar que V. Exª, na sua hesitação, me dá a perceber que receia não lhe ser possível combinar o respeito, que disse ter-me, com a explicação que me ia dar da sua riqueza. Se assim é, agradeço-lhe mais o silêncio que a explicação. Deixemos no escuro o seu segredo, e esqueçamos o que houve de mais nas suas revelações. Entretanto, sr. Baldaque, não lhe direi que vou ser com V. Exª mais sincera do que foi com outras pessoas de quem me não queixo nem me orgulho. Com essas pessoas, a minha evasiva foi o silêncio, sem desdém nem menosprezo. Nunca respondi, nunca faltei à verdade. Com V. Exª não é assim. Serei verdadeira, por que vou responder ao que me disse, e talvez até ao que formou tenção de me dizer. No dia em que abri esta loja de capela, estabeleci com a sociedade as únicas relações do meu modo de vida de capelista. Eu não escolhi esta posição calculando outra melhor; não pensei puerilmente em prender admirações, de espíritos extraordinários que folgam de matizar os actos vulgares da vida com ouropéis de poesia. Esta loja com uma pobre mulher que tira daqui o seu parco sustento, não é romance, é ocupação ajustada às minhas faculdades e aos meus recursos. Eu poderia optar por encargo mais senhoril e lucrativo: poderia ensinar nos colégios as línguas que estudei, e algumas prendas que vou deixando esquecer como inúteis; poderia; mas o contacto com a sociedade assustava-me: a convivência de mestra com as discípulas privar-me-ia dos confortos de alma que esperava achar, e achei nesta vida: é a soledade, o estar sozinha o maior número das minhas horas, o desprendimento de cuidados que me forçariam a sair de mim mesma, se eu quisesse dar boa conta do meu préstimo salariado à educação de meninas. Sei que me desempenharia mal, por não poder, com este espírito que tenho egoísta da sua tristeza, prestar atenção aos sagrados deveres de quem educa.

     - Mas V. Exª - interrompeu Baldaque - Perdão!... receio ser indiscreto.., fazendo-lhe uma pergunta...

     - Queira dizer...

     - Se ouso perguntar, é porque muita gente diz que V. Exª herdou...

     - Esta casa e nove contos de réis em inscrições.

     - Nove contos de réis em inscrições... - volveu receoso o filho do capitalista - não bastam para quem tiver aspirações menos modestas que V. Exª, mas... o rendimento deles, creio eu, dispensam a srª D. Maria José de dirigir este negócio tão pouco lucrativo; e, se me permite dizer mais, bem poderia V. Exª, afastando-se completamente do contacto com a sociedade, gozar as suas horas todas de solidão, poupando-se às lágrimas que há pouco vi explicarem o seu sorriso. Peço outra vez perdão se me excedi nestas observações à sua vida íntima.

     - As observações são justas - respondeu tranquilamente a infanta; - mas eu não tenho hoje de meu senão esta casa e o valor dos objectos desta loja. A indagação de V. Exª deve satisfazer-se com saber isto, e mais nada. Se mais alguém o sabe, não tenho razão para esconder a minha pobreza duma pessoa já convencida de que eu desejo ser pobre.

     - Ó minha senhora!... nem mais palavra hei-de proferir a tal respeito...

     - A minha pobreza é voluntária, reflectida e aprazível - continuou D. Maria - Quem tiver pena de mim, usurpa a sua comiseração a quem a merece e necessita. Há pouco, me disse V. Exª que eu não dei apreço às generosas propostas de cavalheiros abastados que me pretendiam com honrosos intentos. Não dei apreço à opulência que eles me ofereciam; mas ao sentimento que os moveu a favorecer-me sou muitíssimo grata. Eu desejava que para cada mulher mal-afortunada sorrisse a ventura dos casamentos ricos; - deve ser muito cobiçada semelhante felicidade, porque eu tenho visto o espanto, e talvez o despeito, no rosto das pessoas cuja riqueza eu me dispensei de aceitar. E a mim, ao mesmo tempo, figurava-se-me indiscrição e mediania de urbanidade vir aqui alguém obrigar-me a ser indelicada para evitar exposições de afectos que só então me faziam pensar na inconveniência de ser capelista.

     A infanta sorriu, passou a mão alvíssima pela fronte, deteve nela a cabeça como quem revoca ideias fugitivas, e prosseguiu:

     - Sr. Baldaque, cheguei ao fim do que deve saber da minha própria boca. Eu escolhi esta posição. Se saísse dela, atraída por bens de fortuna, a minha alma teria pejo da sua baixa índole. Há sacrifícios, que têm glorificações íntimas e inefáveis. São dores que os pacientes não querem consoladas; são as rosetas dos cilícios que as criaturas delirantes de amor divino apertam mais quando é maior a angústia. Há penitências morais bem semelhantes às voluntárias macerações do corpo. Nem uma penitente aceitaria as supremas regalias deste mundo em troca das suas disciplinas, nem eu trocaria a minha pobre independência, nesta solitária e obscura distância de teatros e bailes, pelo brilho deslumbrante que meus olhos, cansados de chorar, não suportariam.

     - Compreendi, minha senhora - disse Epifânio Baldaque, revelando a mágoa no tremor da voz - A palavra coração nem uma só vez apareceu entre as frases glaciais com que me repele. Há poesia sublime e santa no mistério que lhe norteia a existência, minha senhora; mas nas suas estrelas, no céu das suas visões, estrela de amor não esplende nenhuma. Como poderia V. Exª compreender-me, se eu, articulando em soluços as minhas frases, seria como o infeliz que exora uma divindade de mármore, e não como a alma apaixonada que pretende radiar o seu ardor a outra alma?... As minhas revelações não podiam ser ouvidas no alto ponto dum sentimento incompreensível em que V. Exª me esconde as suas fantasias. Eu sabia que tinha posto os olhos do rosto e da alma na mulher virtuosa; mas também cuidava que as excelências do espírito não matam de esterilidade as flores do coração. Na sua idade, srª D. Maria José, há almas devastadas, que desde o positivismo baixo do descrer, vingaram, por efeitos da fé ou da graça divina, desferir nas asas da piedade altos voos, até pousarem no seio de Deus; essas, porém, sei eu que lá mesmo do céu devem chorar sobre as ilusões perdidas na terra. Sei que há almas assim perdidas e resgatadas; mas sobre as cinzas de minha mãe irei jurar que na pureza do rosto, na serenidade dos olhos, na virtuosa altivez das palavras transluz a sua vida inteira sem nódoa, sem traço negro que aí deixasse o anjo maldito do desengano. Nenhuma esperança lhe foi mentida, nenhum desejo lhe foi malogrado. V. Exª não desejou nem esperou as felicidades que esperam e desejam as mulheres na flor dos anos. Se alguma hora sentiu os estremecimentos do amor, sofreou-os com a violência da sua justa vaidade...

     - Vaidade! - atalhou a infanta - Vaidade!...

     - A palavra não é esta - acudiu Baldaque - há outra mais bem cabida, mais senhoril, mas também menos desculpável em nossos dias de luz, de expansão e de sociabilidade.

     - Diga a palavra.., não se constranja...

     - Orgulho do seu nascimento - obedeceu ele receoso.

     - Louvo-lhe a coragem, sr. Baldaque. Se disfarçasse a ideia com outra palavra, não conseguiria iludir-me. Agradeço-lhe a franqueza. Tenho orgulho, muito orgulho de ser filha do príncipe pobre, do príncipe desterrado; e talvez o não tivesse, cortejada à beira do trono de meu pai. Tenho orgulho de me ver abatida, e pesar de não ter provado das amarguras do grande infeliz. Quando ele sofreu extremas necessidades, nos primeiros anos do seu desterro, ainda eu via nas salas e guarda-roupas de minha mãe valiosas relíquias de uma opulência que havia sido dele, dele e não do estado, dele, do seu património, da casa do infantado e não das extorsões feitas a uma nação arruinada.

     Se essa opulência subsistisse àquela hora em que fiquei órfã, eu venderia até o leito de minha mãe para o socorrer, e ajoelharia à divina Providência pedindo-lhe que me deixasse ganhar o pão de cada dia, e permitisse que a miséria se abraçasse com a dignidade, e as lágrimas, se era preciso chorá-las, me não saíssem impuras do coração.

     O meu orgulho começou assim, já vê, sr. Baldaque: principiou como começa a humildade de muita gente desafortunada. Filhas de reis haverá muitas que se julgariam aviltadas pelo trabalho; e eu socorri-me do trabalho humilde para sustentar o meu orgulho de filha dum rei. A mulher que se dá a si mesma a fidalga distinção de igualar-se à plebe, reservando para si a superioridade de agradecer com um sorriso as ofensas inevitáveis nas posições humildes, não se lembra que é neta de reis para ter orgulho.

     Mas esta palavra é áspera, é negativa da virtude, soa rispidamente aos ouvidos da moral cristã. Também aos meus. Se a consciência me não dissesse que ela exprime inocentemente o conceito que de mim formo, pediria a V. Exª que antes lhe chamasse enérgica hombridade, vigor de carácter, condição excêntrica e singular, se quiser, mas defeito do coração, seria injustiça atribuir-mo. Orgulho de pobreza, sim; mas sem as irritações do orgulho plebeu; sem a cupidez infernada na alma. Tenho uma ambição, mortificante mas inofensiva, uma ânsia, que se fosse pecaminosa, as lágrimas que ela me faz chorar decerto me têm lavado a alma das suas impurezas. Esta ambição é um desvario de enfermo que se estorce no ardor da febre; mas é pior ainda;... que as minhas agonias não devem revelar-se, são profundas, abafo-as, escondo-as de todos; porque estou sozinha neste mundo; e tão desgraçada que não acharia alívio algum em confidenciá-las... Expliquei-lhe o meu orgulho -concluiu a infanta sorrindo e bebendo as lágrimas ao mesmo tempo. E, volvidos alguns segundos, como Epifânio, embevecido na contemplação daquela mulher em que duas formosuras pareciam deslumbrar-se, não proferisse um monossílabo, disse ela, amaciando a aspereza da pergunta, com a brandura do tom; - Chamou-me orgulhosa do meu nascimento, sr. Baldaque. Eu, confessei que sou; e, olhe, tenho uma qualidade mais repreensível ainda.., quer que eu lha diga?...

     - Outra virtude?...

     - Outro defeito... sou soberba.

     - Soberba...

     - Sim, disto que vê: daquele algodão, daquelas agulhas, destas farraparias que me rendem as preciosas gabas que eu preciso para sustentar a minha soberba.

     E terminou por um frouxo de riso indescritível, talvez um gemido convulso, um regolfo de lágrimas que ela retraiu ao coração.

     Neste lance, entrava uma criadinha com duas latas, de feição de marmitas, nas quais ia o jantar da infanta, comprado em uma taverna da rua de S. Bento.

     Epifânio, com olhos turvos e voz tremente, apertou a mão de D. Maria José de Braganca, murmurando estas palavras de modo que a criada as não ouvisse:

     - Eu não a mereço... mas hei-de amá-la como um escravo que eu tive me quer e ama ainda hoje. E assim como o amor do escravo me faz bem à alma, pode ser que o meu amor seja na vida de V. Exª um sentimento suave.

     E saiu.

     José Parada, e os convivas de Epifânio Baldaque e eu não duvidámos assacar ao amador da infanta os estimáveis defeitos que dão quilate superior a quem os assoalha com a invulnerável petulância da riqueza. Parada alcunhava-o de inepto, e a mim também me quis parecer que o adivinhara assim, quando o vi galhardear-se com trejeitos e garridices mal frisantes com um rapaz sisudo. Além de que, na altania do seu olhar, no sobrecenho arrogante com que mediu as minhas modestas dimensões, em fim daquele hirto e britânico aprumo da sua catadura, eu, iludido pela experiência de dezenas de exemplares de tolos que me trazem desconfiado ,conjecturei que Epifânio Baldaque não tinha dotes que pudessem enliçar o afecto da infanta senão a sua pessoa galantemente vestida, a orça do seu carro inglês, e o alarde de uns presuntivos oitocentos contos.

     Este rapaz escolheu o pior expediente para se fazer aceitar na estima dos seus conhecidos em Lisboa. Deu-lhes jantares, cuja magnificência inculcava propósito de ostentação; e, não satisfeito com a vanglória de ser rico, afectava desvanecimento em sobrelevar nos dons do espírito os seus contubernais. A reputação de tolo criaram-lhe estes. Havia na calúnia o ignóbil intuito de se arranjarem com a consciência que os acusava de parasitas. E o acordo que eles faziam com a sua dignidade mordida era imaginarem-se «desfrutadores do brasileiro».

     Pode ser que o filho do conde de Baldaque, alguma vez, ou todas as vezes que presidiu às suas ceias irritantes e escandecentes no Mata, quer inflamado pelo calor natural do seu temperamento, quer exagitado pela perfídia dos licores, se demasiasse em basófias de galã, relatando com indiscreta jactância proezas de Tenório, mais ou menos fantasmagóricas. Os seus comensais, beliscados no orgulho nacional, de mate forçoso deviam relançar-se aqueles olhares diagonais, com que o despeito convencionalmente se dá a máscara do «desfrute». Não sei até que ponto o idólatra sensato da infanta havia direito à fatuidade de feliz aventureiro em perarquias somenos da filha dum Bragança, mas tanto ou quanto aparentadas com a sua real amada. Como quer que fosse, os seus amigos apregoavam-no petisco infinitamente parvo, e as suas amigas, com o fino faro de que são prendadas as damas menos cândidas, por tal arte o haviam conceituado que todas as aventuras contadas, em estilo de roué, vinham a ser o mais desgraçadamente exactas que é possível; - desgraçadamente, digo, por que eu desejo que no seio das famílias que respeito não sejam somente conhecidas as três virtudes teologais.

     Se as entranhas daquele rapaz de vinte e seis anos estavam canceradas; se as suas vítimas lhe resvalam do seio de gelo à sepultura levadas em lágrimas torrenciais, não sei, nem o diria quando o soubesse; que este livro não é obituário. Contra o que eu me levanto, é contra a injúria de todo que José Parada lhe irrogou, e eu também, seduzido pelo cotovelo deste.

     Não fundamento esta retractação e protesto unicamente na sensibilidade, na polidez, no grave e atilado acento das suas palavras à infanta, por tanta maneira louváveis que, sendo apaixonadas, não desatremam da prudência, e podem ser postas como exemplar de colóquios de corte.

     O meu protesto cimenta-se todo em bases que não podem dar de si. É o estilo.

     Quem fala assim a língua portuguesa, quem ama com todas as partes da oração em concordância irrepreensível, poderá por inveja ou injustiça grave não ser mencionado nos «Lugares selectos»; mas tolo é que não pode ser.

     Ora agora, se amar capelistas, regiamente fantásticas com tanto siso e tão desusada reverência é hoje em dia argumento contra a sanidade intelectual de um homem que representa dois milhões, isso é outra questão que há-de ventilar-se oportunamente.

    

     Às vezes, o abatido moço saía confuso e como corrido de sua tibieza, pedindo à dignidade própria que o salvasse de tão ridícula, senão indecorosa pusilanimidade.

     Desconfiado, porém, da ineficácia do seu brio em assunto de per si rebelde a razões de orgulho, formava a só consigo venerandos juramentos de sacrificar a quimera da infanta à realidade do seu alegre viver de rapaz. Nestes protestos fazia ela entrar a sacratíssima memória de sua mãe, imagem que raramente lhe passava diante dos olhos do espírito sem lhe deixar no coração bons sentimentos e um suavíssimo ideal da felicidade humana extreme dos dissabores, do tédio e do remorso.

     Mas a querida imagem, invocada a solenizar o juramento, não lhe deparava mulher que ofuscasse a capelista. A deparar-lha, dar-se-ia o único milagre possível nestas conjunturas, milagre aliás frequente, quando as mulheres queridas não têm consigo a predestinação da infanta e o imã tresdobradamente portentoso da formosura, do talento e do espírito, sem fazer menção do mais feiticeiro filtro que há aí nisto de magia amorosa, que vem a ser a esquivança da que é adorada, um não-querer de isenta, uma delicada referência que a um tempo vos alanceia o coração e o amor-próprio.

     As conversações da infanta com Epifânio versavam sobre ocorrências políticas donde derivou a guerra civil funesta ao rei absoluto. D. Maria José, sem ousar arguir as imprudências do pai, lamentava que os seus conselheiros não fossem mais esclarecidos do que ele, cuja educação apoucada o obcecara em meio das brilhantes ideias do seu século. Discorrendo varonilmente acerca da história das lutas entre a democracia e o privilégio, concatenou os sucessos que precederam a revolução de 1820, e justificou as resultas de que seu pai devia ser a vítima, em castigo de prestar-se a representante passivo dos ambiciosos estúpidos que lhe aconselharam a transgressão do juramento feito.

     Baldaque saboreava-se não do tom proleccionador da infanta que o não tinha; mas da feminil suavidade com que ela simplificava, em claros e breves termos, passagens da história pátria, na maior parte ignoradas do brasileiro.

     O leitor, que voa em regiões diáfanas onde se não condensam vapores de história, dispensaria que a inspiradora das suas líricas lhe referisse cronologicamente os anais de D. João VI, no estilo flatulento de mestra régia bem saturada da filosofia do historiógrafo sr. Moreira de Sá, ou qualquer outro Niebuhr da sua estofa; quero até persuadir-me que o leitor anémico, e avesso a iguarias condimentosas, rejeitaria mesmamente a mulher de espíritos assaz métricos e épicos que lhe leccionasse os fastos nacionais em estâncias do sr. António José Viale, poeta voluptuoso como gôndola veneziana, vista da Ponte dos Suspiros, a balouçar-se cheia de... repolhos.

     Dou-lhe razão.

     O amor seria divindade indigna das lágrimas que se lhe choram nas aras, de algum peito, sucumbo dele, pudesse aceitar prelecções da história como flechas do seu carcaz.

     A ignorância, mais ou menos absoluta, é uma das cláusulas que nos impõe à nossa servidão o filho da deusa viciosa, cuja ilustração não poderia medir-se com a da sr. Canuto, Vénus-Urânia, se é forçoso mitificá-la, ou outra capacidade menos provada. No adro dos templos do frecheiro não demandem os filósofos eructando azias A gravidade fria e desanimadora de D. Maria José de Bragança não vingou despersuadir o filho do conde. As visitas continuaram com a mesma quotidiana assiduidade, bem que menos demoradas. Epifânio Baldaque, ao reverso do que era natural, em vez de ganhar alento e desembaraço depois que tão resolutamente se manifestara, tornou àquela timidez de colegial, vencida no ímpeto da paixão hegelianas, nem jurisperitos polvilhando a âmbula dos perfumes com o vinagrinho que lhes espirita o cérebro ressentido da cegueira da justiça. O que lá se nos depara em redor dos pagodes do deus cego é gentio a rir e a chorar, que ora se prostra suplicante, ora se espoja em desbragada alegria.

     Amores pasmódico, amor macabro, amor epiléptico. Há destas três castas de amor na zona luminosa da mulher peregrina. O espasmódico é o contemplativo; o macabro é o que salta e se estorce nas vascas voluptuosas do deleito; o epiléptico é o que escabuja debaixo da garra da perfídia. Há uma quarta espécie de amor, do qual ninguém faz livros porque é a mais analfabeta: é o amor de mercearia, o amor sebáceo e rúbido como o buril antigo o imortalizou nas cascatas, e no coração de nossas avós. Encontra-se esta relíquia dos tempos honestos no terceiro andar das famílias cujos chefes labutam nas suas tendas. Está sentado na travesseirinha do leito nupcial, brincando com os folhos e borlas azuis da almofada. Resfolega, por bochechas de cravelina, frouxos de riso à esposa, quando ela, depois de ceia, desaperta os nastros da ceroula conjugal; enquanto ele encarapuça o marido no barrete de dormir. Não temos que entender com algum desses amores nesta crónica, exceptuando o primeiro, o espasmódico Nem Stendhal criou adjectivo tanto ao ponto. Deixemo-nos de cristalizações. Espasmos, macabrismos e epilepsias - é o que há. Mais nada.

     Epifânio Baldaque estava, pois, escutando as narrativas da infanta em arroubos que sobre-excedem os de um aluno de boa fé embelezado a escutar o sr. João Félix Pereira discursando acerca de Heródoto.

     Em uma dessas tardes de inocentíssimo prazer, entrou na loja da infanta um mulato ofegante, com os olhos vidrados de lágrimas, e exclamou em sufocativas intermitências, dirigindo-se a Epifânio:

     - Menino, venha depressa a casa... venha depressa... o sr. conde...

     - Que é, Damião?! - interrompeu Epifânio - que tem meu pai?...

     - Caiu por morto, quando ia a entrar na carruagem... levei-o nos braços para casa... chamou-se o médico; mas já não respirava...

     O moço apertando a mão de D. Maria José, que balbuciava algumas palavras compassivas, saiu aceleradamente.

     Quando entrou no quarto de seu pai, as pessoas, que rodeavam o leito, não responderam à Interrogação de Epifânio. O médico apertou-lhe convulsamente a mão e saiu. O restante das pessoas eram criados, cujos aspeitos exprimiam mais espanto do que dor.

     O filho ajoelhou à beira do leito e beijou a mão do cadáver; depois, encostando a face ao ombro do pai, soluçou palavras ininteligíveis. Do outro lado do leito ajoelhou outra pessoa, com os punhos cerrados na fronte e as lágrimas a borbulharem-lhe dos olhos espavoridos no rosto do morto: era o mulato Damião.

     Digamos deste homem que se nos revela simpaticamente em frente dum filho que chora, e ao lado do velho que lhe expirou nos braços.

     Damião Ravasco era o seu nome. Gentil corporatura de mestiço. Feições levemente denunciativas da origem indiana de sua mãe. Olhos fulgurantes. Epiderme esmaiada, aquele esfumado de marfim antigo, que nas raças europeias distingue as belezas finas, o palor romântico, a vantagem do espírito sobre a riqueza do sangue.

     Damião Ravasco orçava pelos trinta e dois anos. Já sua mãe havia nascido em casa de António Ferreira Baldaque, pai do defunto conde. Ninguém lhe atribuía filiação deste ou daquele. As escravas eram muitas e fecundas todas. Porém, nos traços fisionómicos de Damião realçavam parecenças com o pai de Epifânio; e no particular afecto com que o capitalista o extremara desde a primeira infância, havia o que quer que fosse indicativo de virtude não vulgar nos progenitores dos filhos das escravas.

     António Baldaque deu azo a suspeitarem-no pai do mulato quando o mandou à escola, trajando-o com decência incompetente a um servo. Agravaram-se, porém, as desconfianças, quando, pronto em primeiras letras, o rapaz seguiu estudos superiores.

     Poucos anos antes, havia casado o negociante com a mãe de Epifânio, a qual, ciosa da consideração que o esposo liberalizava ao filho da escrava, disparou em impertinências que poderiam resultar a felicidade do mulato, se ele pendesse a engrandecer-se por letras.

     Quis o prudente esposo restabelecer a paz doméstica enviando Damião a seguir em Portugal a carreira da jurisprudência ou medicina na Universidade de Coimbra. O rapaz ouviu as ordens do padrinho, e respondeu humilde, mas com firmeza, que não queria ser doutor, nem tinha queda para estudos.

     Esta confissão não era vaidade mal rebuçada em modéstia. Em Damião Ravasco, ao passo que a esforçada musculatura se alargava com proporções agigantadas, parecia que s potências da alma lhe eram deprimidas pelo peso da matéria. Os condiscípulos não ousavam motejar-lhe a rudeza, desde que ele, em polémicas gramáticas, abusando dos preceitos mais vulgares da camaradagem literária, respondia com socos ou marradas aos argumentos dos adversários: indignidade que ainda não vimos praticada em outra parte, se não no parlamento português.

     Os professores haviam já prevenido o protector do mulato, quanto à incapacidade rebelde do estudante; apesar disso, Baldaque desejava ilustrá-lo até ao momento em que Damião em termos claros se recusou.

     Interrogado sobre o modo de vida que melhor quadrava ao seu génio, o rapaz, que então contava dezoito anos, respondeu que o seu gosto era ser boleeiro, e acrescentou que tarde ou cedo havia de sê-lo, porque ninguém fugia à sua estrela. Ou porque respeitasse a estrela de cada sujeito, ou porque receasse denunciar o que era, ou dar suspeitas mais fortes do que não era, o certo é que o negociante deu alguns contos de réis a Damião Ravasco para que ele se estabelecesse segundo a sua vontade e vocação.

     O mulato, porém, rejeitava o dinheiro dizendo, entre soluços, que não queria deixar a casa de seu padrinho; e, abraçando-se ao pequenino Epifânio, rogava-lhe debulhado em lágrimas que pedisse à mãe e ao pai o não mandassem embora.

     A esposa do submisso negociante não condescendera. Os rasteiros instintos de Damião, preferindo a cocheira à universidade, e a sela às cartas de bacharel, exacerbaram o desafecto da dama, que afiava pungentes sarcasmos contra a defunta escrava, a qual arteiramente capacitara de tal paternidade o seu senhor, usurpando direitos de progenitura a algum obscuro lacaio. Baldaque, posto que não se intitulasse francamente pai do mulato, devorava em silêncio o insulto, e deixava-se envilecer e manietar pelos mil contos que a esposa aumentara aos seus haveres.

     Não era ele todavia insensível ao espinho oculto que lhe pungia a vaidade de pai, quando diligenciava demover o afilhado do ignóbil mister de boleeiro, incitando-o a sair para Portugal, onde lhe prometia recursos com que negociar, se não quisesse outra carreira. Damião Ravasco, sofreando esforçadamente a sua paixão, cuidou que poderia conformar-se, e já parecia vencido das indirectas instâncias do padrinho. Mas, um dia, como visse anunciada a venda da carruagem e parelha do ministro francês, concorreu ao leilão, e arrematou o trem, obedecendo à espora do instinto que o não deixou reflectir na desobediência.

     Dado este passo, Damião Ravasco foi despedir-se do padrinho, que o recebeu rispidamente, improperando-lhe a baixeza das suas inclinações. O moço, possuído dos fidalgos espíritos de muitos portugueses contemporâneos, netos de Gamas, Albuquerques, Castros e outros, respondeu que a sua inclinação, não o desonrando a ele, não podia desonrar ninguém.

     A pessoa de quem Damião Ravasco se despediu com muitas lágrimas era o pequeno Epifânio. A criança pagava amorosamente os afagos do mulato, defendendo-o como podia quando a mãe o tratava com desabrimento, e fugindo dela para os carinhos do filho da preta, quando a retrincada senhora o apelidava afrontosamente o «negro».

     Começou o mulato sua vida de alquilador prosperamente, comprando carruagens, e boleando-as ele mesmo. A paixão da almofada e do pingalim não lhe consentia aristocratizar-se na sua esfera de proprietário de nove parelhas normandas e seis asseados trens. Era artista no grau culminante. Entrajava com menos alinho que os seus criados. Todo o seu deliciar-se em luzimento e galhardia de composturas eram os arreios dos cavalos e o brilhante verniz das equipagens.

     A propensão do mulato não era das que menos se prestam a irritar as sanhas das índoles brigosas. A parçaria com homens de cavalariça, de natural bulhentos, muitas vezes o pôs no gume do perigo, e outras tantas lhe deu admiráveis triunfos de pugilato, quando não era a navalha que empurrava os adversários para o hospital. A polícia, inquietada e nem sempre respeitada pelo valentão, quis prendê-lo em cumprimento duma pronúncia por crime de tentativa de morte nas pessoas de dois negros que haviam maltratado na chácara Epifânio Baldaque, por ocasião que este se comprazia em asseteá-los com frechas de alfinetes desempolgadas do arco, sob pretexto de ensaiar-se para Guilherme Teu.

     Homiziou-se Damião em Vassouras, recomendado pelo padrinho, a quem cumpria patrocinar o generoso defensor do filho.

     Este caso amoleceu a dura condição da mãe do menino, cujo prazer de frechar negros lhe seria descontado em torcegões de orelhas, se o filho da escrava não sangrasse a ferro as iras dos ofendidos. Quebrou-se, pois, a antipatia da dama, até à condescendência de permitir que o marido saísse a público em defesa do afilhado, legalizando as navalhadas como justa defesa.

     Damião Ravasco regressou absolvido, mas não emendado ao Rio de Janeiro. A impunidade alargara-lhe o fôlego das proezas. Cuidar-se-ia que a sua paixão dos quadrúpedes ia desandando noutra menos estranha à superintendência do código criminal. Quando evitasse o ensejo de provar a mão na cara dos que se lhe arrostavam, ver-se-ia à sua beira o Epifânio a quem ele obedecia docilmente; porém, como essas ocasiões eram menos que os lances em que o provocavam, ou ele se considerava provocado, raro era o dia em que Ravasco não tivesse de explicar à polícia a razão por que certos queixosos haviam perdido alguns dentes, ou, com os olhos tapados por contusões, recorriam à justiça pouco menos cega que eles.

     Neste meio tempo, faleceu a esposa do capitalista.

     O viúvo apressou a liquidação dos seus grandes bens de fortuna, com o propósito de repatriar-se, e saborear em sossego o restante da vida.

     Não queria ele trazer para Portugal o mulato, receando desgostos e sobressaltos, em tempo e terra onde lhe sorriam esperanças de remansosa tranquilidade. Tanto puderam, porém, com ele instâncias do filho, que não houve recusar-lhe a companhia do amigo.

     O conde de Baldaque, em Lisboa, ostentava opulência ajustada ao título. Damião mordomizava a cocheira, com voto deliberativo na escolha das parelhas e carruagens. A paixão recrudescera-lhe a termos de não querer outra posição em casa do padrinho.

     Quanto ao sestro das valentias, corrigira-se tanto quanto o conde podia ambicionar.

     Como não tinha inimigos em Lisboa, o mulato, absorvido no deleite de palmear e almofaçar as ancas dos seus cavalos, apenas uma ou outra vez esbofeteava os criados gelados da cavalariça para exercitar a pujança dos tendões in anima vili...

     Epifânio Baldaque, nas suas estouvices de rapaz, se precisava de um amigo que lhe antepusesse a sua vida aos lances arriscados, aventurava-se aos maiores perigos com Damião ao lado. Confidências amorosas, particularidades que ele escondia dos seus comensais, diálogos íntimos com damas de primeira plana, tudo revelava a Damião Ravasco. O mulato ria das aventuras do amo, e aconselhava-o a ser rasgado e audacioso com as fidalgas quanto ele se prezava de o ser com as moças dos vizinhos.

     Não lhe era portanto misterioso o amor de Epifânio à infanta capelista.

     E o seu modo de pensar a respeito desses amores, que tão mudado lhe traziam o pensativo menino, o saberemos logo.

     Dada em resumo a biografia de mulato, personagem de máxima importância nesta história, temos explicado aquelas lágrimas, que o filho da escrava chorava, beijando a mão fria do homem a quem nunca ousara chamar pai, posto que, no silêncio da alma, uma vez misteriosa lhe dissesse que Epifânio era seu irmão.

   

     Este nome «Epifânio» - tão pouco de galã, e mal soante em novela-vai ser expulso do livro, graças à real munificência, que havia dado o título em duas vidas ao defunto conde.

     «Conde de Baldaque» é denominação que parece predestinada a romance. Daqui por diante não nos virá aprosar o nome plebeu o lirismo duns amores de infanta.

     Amores de infanta! Não é isto exactamente. A infanta não o amava. Era para ele em rigor o que lhe disse que era.

     Distinguia-o do alto ponto donde o via em baixo, bem que no seu levantado orgulho houvesse uns brios de majestoso abatimento. Era irreconciliável o divórcio de sua fidalga pobreza com opulências provenientes de homem que intentasse ofuscá-la com esta coisa sobremaneira desprezível chamada um milhão, ou - mais execrável ainda - dois milhões.

     O conde honrou a memória de seu pai encerrando-se por espaço de quinze dias.

     Como a saudade filial lhe estivesse pedindo consolações que ninguém sabia dar-lhe, o moço desafogava em cartas enviadas à infanta, nas quais se carpia como se devesse achar alívio na condolência da mulher destinada a redobrar-lhe os perdidos afectos de pai em carícias de esposa.

     D. Maria José de Bragança respondia compassivamente às cartas, adoçando-lhe a dor com a certeza de que lha conhecia, porque também ela havia perdido sua mãe, e gemera na dupla orfandade de mulher e mulher pobre. As suas respostas, porém, se alguma vez pareciam adoçadas por sensibilidade de amiga, nunca tocavam o sentimentalismo amoroso. E tanto era o desartifício com que naturalmente se expressava que ninguém veria nas cartas dela o esforço da mulher que se disfarça, ou procura colorir com termos delicados a parcimónia de mais afectivos sentimentos.

     O conde não escondia o seu despeito de Damião Ravasco. Lia-lhe as cartas que escrevia e as respostas recebidas por intermédio dele. E o mulato, pouco dado a interpretações de frases que se afiguravam recônditas à vaidade do conde, saía-se às vezes com umas reflexões alheias do bom senso que irritavam sobre modo a delicadeza do amo.

     Por exemplo, uma vez, andando o conde a passear no seu quarto, e a dizer em vozes interrompidas por suspiros que a infanta o havia de matar ou endoidecer, Damião, tomando-lhe o passo, falou do seguinte teor:

     - Ora, meu amigo, vamos a isto. Estou farto de palavriado. Obras, obras é que se quer. Seja homem, e atenda lá ao que lhe vou dizer. Se o menino quer morrer ou perder o siso, não quero eu. A mulher há-de ser sua, tanto me importa a mim que seja infanta como capelista. Capelista é ela; isso vou eu jurá-lo, por que ainda ontem lhe comprei fazenda para camisas. Mas, se fosse infanta, e morasse no palácio real, antes de V. Exª morrer ou endoidecer, havia eu de fazer mais restolho que dez milhões de diabos para que ela fosse sua. Se eu pudesse, muito que bem; se não pudesse, quem havia de morrer primeiro que o sr. conde era eu.

     - Que fazias tu, Damião? - perguntou entre grave e risonho o conde.

     - Que fazia?

     - Sim...

     - Vamos aqui falar sério. Sente-se o sr. conde, e, se eu disser alguma parvoíce, não se enfade, que perde o tempo. Um homem é um homem, parta deste princípio, como dizia o frade que me queria ensinar lógica. Um homem não é uma mulher. As mulheres vencem com choradeiras, os homens vencem com obras: percebe o que eu quero dizer na minha? Um homem sem desembaraço... é mulher. Lá que a gente morre, quando não se desengana a puxar por si, não tem dúvida nenhuma. Há multo tempo que eu andaria às malvas, se me deixasse estar quieto a conversar com a prudência. A prudência é boa nas terras onde não há marotos...

     - Mas a que vem tudo isso, Damião? Bem se vê que o frade não conseguiu ensinar-te lógica. Então que queres tu que eu faça? Damião Ravasco soltou uns frouxos de riso seco, esfregou as mãos, deu duas palmadas nas pernas, e respondeu:

     - Se o menino me dissesse: «Damião, eu quero aquela mulher, custe o que custar» - a mulher era sua, ou eu me dava em corpo e alma ao diabo. Diga-me cá, sr. conde: como foi que se arranjou no Rio aquele negócio da francesa que estava com o chanceler? O menino contou-me que ela o não queria e o maltratara diante de outros...

     - Cala-te, que me estás irritando! - atalhou o conde - Não admito comparações entre a francesa e a infanta.

     - Mas o menino dizia da francesa o mesmo palavrório que diz da infanta - observou Damião maliciando o sorriso com a velhacaria dum prático do coração humano. - Eu fui dar com V. Exª na chácara de Petrópolis, triste, pensativo, a falar sozinho, a dar uns ais que parecia estourar de paixão de alma. Perguntei-lhe o que tinha. Disse-me que amava a francesa do chanceler, e que dava um tiro na cabeça, se a não pudesse tirar ao francês. Foi assim ou não foi?

     - Não me atormentes! - insistiu o conde, corrido talvez da confrontação que o mulato equiparava entre as duas situações análogas

     - Mas... - tornou Ravasco.

     - Já te disse que me não aflijas... Queres dizer-me que fazes à infanta o que fizeste à francesa?...

     - Sim... eu... acho que...

     - Achas que a infanta pode ser levada numa sege à traição, e calar-se depois mediante alguns centos de libras como a outra?...

     Damião sacudiu os ombros à feição de quem cinicamente presume que a distância divisória entre duas mulheres não é tamanha como os poetas a medem. O conde, todavia, assanhado pelo trejeito do mulato, ergueu-se de ímpeto, coriscou-lhe um lance de olhos humilhante, e saiu, murmurando:

     - Instintos de cocheiro... afinal.

     O insulto confrangeu a alma forte do filho da negra; mas nem leve assomo de cólera se denunciou na mudança daquele aspecto. O amor de Damião ao filho de seu padrinho era tolerante e impassível até à covardia. Beijá-lo-ia, depois da injúria, como as mães beijam os fílhinhos que as esbofeteiam.

     Não obstante, logo que o espanto e a dor cederam à reacção da dignidade, o mulato procurou o conde, e disse-lhe dissimulando a comoção:

     - O cocheiro vem despedir-se. Vou recolher-me à cavalariça de V. Exª, e sairei de lá para outra, quando souber que o sr. conde encontrou feitor que me substitua.

     Baldaque deteve-se momentos a contemplar a serenidade do mulato, que o fitava com os olhos turvos de lágrimas a desmentirem a dureza do semblante.

     Qualquer que fosse o agastamento do amador da infanta, a ofensa feita à filha dos Braganças podia menos no amor do moço que a inveterada gratidão aos extremos do mulato. Demais disso, a opinião pública do Rio de Janeiro quanto à filiação do filho da escrava não era estranha ao conde; e, mais que tudo, seu defunto pai, louvando o sisudo proceder do afilhado em Lisboa, havia dito ao filho que a sua maior pena era não ter podido elevar Damião à decente Independência que tinha projectado.

     Portanto, ainda que de si mesmo quisesse esconder as próprias suspeitas, o conde não podia esquivar-se à conjectura de que o mulato era seu irmão; e tal desconfiança, penetrante como um sobressalto de súbita evidência, lhe alvorotou o ânimo no instante em que as lágrimas de Damião, rebeldes à vontade, pareciam a um tempo queixar-se do ingrato e pedir perdão para o desvario dum doido entusiasta que, em serviço das paixões frequentes de seu amo, não distinguia a concubina dum chanceler e a filha de um rei.

     Estas e outras louváveis reflexões ponderavam no espírito do conde, quando ele, aproximando-se de Ravasco, de catadura sinistra em ar de quem ia repreendê-la, lhe abriu os braços, estreitou-o contra o peito, e disse:

     - Não finjas que me deixas, Damião, porque tu não podes, nem deves deixar-me.

     E o mulato, rindo e chorando, tartamudeava palavras convulsas, enquanto o conde prosseguia:

     - Não se deixa um rapaz de quem se é amigo desde o berço, e a quem se deu protecção em quanto ele a precisava menos do que hoje. Damião, olha que eu estou só neste mundo. Não tenho ninguém. Dos afectos que me rodearam na infância e na mocidade, vives tu só. Se me tu faltares, acuso-te de mau e ingrato, e hei-de convencer-me de que não há amizade duradoura para ti senão a dos trens... - concluiu alegremente o conde, já quando o mulato o tinha suspenso nos braços, como quem afaga no colo uma criança para desamuá-la com meiguices.

     Daí a pouco estava o conde outra vez confidenciando ao mulato o seu fatal amor à mulher que lhe não dava mais apreço às qualidades pessoais que à riqueza e ao título.

     Damião tranziu-se de assombrado quando o milionário lhe asseverou que a pobre capelista o rejeitaria, se lhe ele oferecesse a mão de esposo.

     - O menino já lho disse?! - interrogou o mulato espantado.

     - Não; disse-mo ela para me poupar ao dissabor da resposta.

     - Sr. conde - volveu o céptico - olhe que há mulheres finórias!

     - Damião! - acudiu o conde em desforço da infanta - Sinto que o teu espírito não saiba respeitar devidamente a mulher que eu escolheria para minha esposa!

     - Respeito, sim, senhor. Isto é um modo de falar. Mas eu não creio que haja senhora rica ou pobre que rejeite o sr. conde, que é moço, é bem parecido, sabe o que diz, e tem mais do que pensa. A mulher, que o não quiser, tem outro homem, ou é doida. Eu, no seu lugar, tratava de averiguar se essa infanta é o que parece, e regula bem da cabeça.

     - Damião!... és incorrigível! - bradou o conde.

     - Palavra de honra, que não sei falar com o menino! Sabe V. Exª que mais, sr. conde? Há por aí dúzias de amigos que o entendam e o enganem; eu cá por mim, sou desta laia. Digo as coisas toscamente como sei. Se a srª infanta é boa, não perde nada com a minha opinião; se não é boa, pior para ela. O que eu quero é que V. Exª não sofra, nem seja enganado. Das duas uma, como dizia o mestre de lógica: se ela o ama, case com ela; se o não ama, de que lhe serve padecer? Eu cá não queria mulher que me quisesse por compaixão.

 

                                                                                    Camilo Castelo Branco

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades