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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INVASÃO
INVASÃO

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

QUEM visse aquela estranha configuração cintilante pela primeira vez, por certo teria a impressão de se encontrar diante de uma obra abstracionista das mais bizarras, difícil de interpretar. Realmente, aquela projeção tridimensional era uma obra-prima, não de um artista visionário, mas sim da tecnologia terrana, e o homem, que a contemplava neste instante, sabia o que representava: era a reprodução fiel da gigantesca esfera espacial que constituía o domínio de Terra. Uma esfera, cujo diâmetro media 900 parsec, ou seja, novecentas vezes 3,086 x 1013 quilômetros.

Quadripartida e subdividida em dez zonas esféricas por finíssimas linhas luminosas, a projeção apresentava uma impressionante profusão de detalhes. Minúsculos pontinhos tremeluzentes caracterizavam as estrelas que se situavam no interior dessa esfera, e que representavam praticamente todos os tipos assinalados no diagrama Hertzsprung-Russell, desde as estrelas anãs do tipo espectral O às supergigantes do tipo MO. A magnitude absoluta visual dessas estrelas abrangia toda a gama de -6 a + 14, enquanto seu brilho, medido em unidades de luminosidade, não passava de 0,001 para as mais fracas, atingindo o valor 10 mil para as mais brilhantes.

 

 

 

 

Mas não eram apenas as reproduções das estrelas que compunham aquela estonteante projeção: nela se encontravam também todos os planetas, planetóides e luas, bem como os demais satélites, fossem naturais ou artificiais.

E exatamente sobre a linha, que demarcava a fronteira entre as terceira e quarta zonas de distância, destacava-se um conjunto de dezoito pontos rutilantes. Representavam os fortes de bloqueio recentemente postos em serviço, os primeiros de uma série, que faria parte do novo sistema defensivo de Terra. Seu armamento consistia em um número não revelado de projetores Overkill, que dispunham de um suprimento ilimitado de energia, pois cada forte possuía sua própria pilha geradora. Inteiramente robotizados, esses fortes eram controlados por uma guarnição estacionada no planeta vizinho de Gordon. Cliff McLane despregou os olhos daquela fascinante configuração e virou-se para o marechal Wamsler, plantado feito um buda negro por trás da enorme mesa de trabalho.

— Já se decidiu, marechal? — perguntou laconicamente.

— Acha que é tão fácil assim? — retrucou Wamsler, franzindo a testa.

— Acho que sim. A não ser que o senhor queira complicar as coisas — disse Cliff, impassível.

Wamsler ergueu as mãos num gesto de impaciência.

— Mas isso não pode continuar assim! Volta e meia o senhor me aparece aqui com um pedido dos mais estapafúrdios, e depois fica surpreso e indignado quando eu me recuso a atendê-lo. Afinal, McLane, tem que se compenetrar que foi removido para a Patrulha Espacial a fim de cumprir uma punição, e não para gozar não sei quantas regalias. E ponto final.

Um mês havia decorrido desde o regresso feliz da Orion daquela angustiante aventura no planeta Mura, a colônia penal de Terra. O curto período de férias tinha chegado ao fim na noite anterior, e agora McLane e sua tripulação aguardavam ordens para empreender uma nova missão.

— Até hoje não manifestei qualquer desejo extravagante, marechal — respondeu Cliff. — Mas se a Suprema Comissão Espacial é de opinião que eu só sirvo para realizar tarefas que qualquer cadete resolve de olhos fechados, então talvez seja melhor apresentar minhas despedidas!

Wamsler enfureceu-se; ultimamente vinha demonstrando uma ligeira propensão a ter acessos de ira.

— O que quer dizer isso, McLane? — esbravejou. — Está insinuando que pretende quitar o serviço?

McLane ficou calado.

— Que maravilha! — trovejou o marechal. — Basta que algo não seja do seu inteiro agrado... e pronto! Sua única reação consiste em mandar tudo às favas! É, o senhor é mesmo o protótipo do comandante cônscio das suas responsabilidades!

Friamente, Cliff respondeu:

— Sabe muito bem que não sou homem de fugir da raia. E nos últimos tempos houve no mínimo seis ocasiões em que pude demonstrar meu senso de responsabilidade.

Wamsler encarou Cliff com ar sombrio.

— Agora trate de sossegar, McLane!

Faltam apenas dois anos para se ver livre de mim. Aí vai reassumir seu posto nas Formações Espaciais Rápidas e pode voltar a praticar seus desatinos prediletos, pouco me importa. Porém, enquanto estiver sob o meu comando, vai ter que se controlar.

McLane respirou profundamente, preparando-se para dar uma resposta apropriada. Mas nem chegou a abrir a boca.

Atrás dele a barreira eletrônica se extinguiu, e Spring-Brauner entrou no gabinete em desabalada carreira.

— Que pressa é essa? — quis saber Wamsler.

— Marechal... chamado de socorro da Tau! Parece que lá está havendo o diabo... Sintonize a freqüência da Estação Avançada IV... é ela que está retransmitindo os chamados!

Wamsler já havia ligado o videofone após as primeiras palavras do ajudante-de-ordens. A tela apresentava uma imagem totalmente distorcida, e dos alto-falantes emanavam apenas frases truncadas.

— Cruzador Tau do Serviço de Segurança Galático chamando Suprema Comissão Espacial e Formações de Reconhecimento; comandante Lindley falando. A todas as estações avançadas: peço confirmar recepção do nosso chamado de socorro!

Um violento estalo seguiu-se a essas palavras. McLane estremeceu. A voz de Lindley denotava o pavor de que estava possuído.

— Estação Avançada IV chamando Tau: estamos ouvindo; pode falar, comandante!

Lindley devia ter ouvido aquela indistinta voz feminina, pois imediatamente gritou:

— Capacidade de navegação afetada... acentuadas perdas de energia... estamos...

Uma nova interferência cortou o resto da frase.

— EA IV... ainda consegue me ouvir? Nossa posição é aproximadamente Três /Leste 203. Distância a Gordon cerca de vinte unidades astronômicas. Estamos...

Desta vez houve uma sucessão de interferências. A voz de Lindley como que afundou naquela cacofonia de estalos e crepita-ções. Só se percebia que alguém estava falando, mas era impossível decifrar uma única palavra daquela mensagem. Wamsler estava de pé, olhos fitos nas estrias que tremeluziam na tela. Depois virou-se para McLane.

— A Tau! — disse com voz abafada. — Sabe quem se encontra a bordo dessa nave? O coronel Villa e oito oficiais do seu estado-maior! Praticamente toda a chefia do Serviço de Segurança Galático!

— O coronel Villa?!

McLane estava visivelmente abalado.

— Nem quero pensar no que vai acontecer se Villa morrer! — disse Wamsler em meio àquela barulheira.

— ...não há a menor esperança. Jamais enfrentei... — gritou Lindley.

McLane tentou visualizar a situação que devia reinar a bordo da Tau.

Conhecia o universo como ninguém, mas não conseguia conceber que uma nave moderna pudesse resistir tão pouco a uma tempestade cósmica... ou fosse lá o que fosse.

 

A iluminação da cabine tremeluziu durante alguns instantes, depois se apagou. Segundos mais tarde, acendeu-se outra vez. O comandante Lindley estava sentado diante da mesa de comando, firmemente amarrado à sua poltrona. Atrás dele, em pé e com os dedos cravados no espaldar da cadeira, encontrava-se o coronel Villa. O medo se estampava no semblante dos dois homens.

— ...jamais enfrentei uma tempestade de radiação de tamanha intensidade. Nunca na vida vi coisa igual — gritou Lindley. — Lançamos mão de tudo que nos sobrou de energia, mas não conseguimos nos afastar nem um milímetro. Duvido que possamos sair daqui com vida!

Com voz enérgica, Villa disse:

— Isso não é uma tempestade de radiação, Lindley!

— Então o que é? — perguntou o comandante, gritando.

— São ondas gravitacionais alternantes; mudam de polaridade constantemente.

A nave rangia e gemia, e violentas descargas estalavam a toda hora na casa de máquinas. A Tau bamboleava desamparada através do espaço normal. A esta altura, Lindley havia esgotado todos os conhecimentos adquiridos na sua longa carreira. Virou-se para Villa e constatou:

— Só nos resta um último recurso: temos que nos transferir imediatamente para as Lancets!

— O quê? — perguntou Villa, mais que admirado. — Isso significa a morte certa para todos nós!

Lindley apontou para o teto e contestou a afirmação de Villa:

— Morte certa é o que nos espera se permanecermos a bordo da Tau. E acho bom andar ligeiro, porque daqui a pouco os sistemas de ignição das naves auxiliares também vão deixar de funcionar. É a nossa última chance de abandonarmos essa nave sãos e salvos.

Virou-se para o astronavegador e perguntou:

— A que distância estamos de Gordon?

A resposta demorou, pois todos os sistemas de bordo já estavam funcionando com deficiência por falta de corrente apropriada.

— Mais ou menos dezoito unidades astronômicas. Estamos sendo impelidos em direção a Gordon, mas não pelos nossos propulsores!

— Obrigado! — disse Lindley, em tom decidido. — Aprontar naves auxiliares! Vamos tentar chegar a Gordon!

Soltou-se dos cintos de segurança, mas Villa não deixou que se levantasse, pressionando-lhe os ombros firmemente com as duas mãos. Surpreso, ouviu Villa dizer:

— Eu só arredo o pé dessa nave depois que o senhor tenha comunicado a existência desses campos alternantes de força. Pode ser uma informação da mais alta importância para Terra!

Lindley ergueu a cabeça e fitou os olhos implacáveis daquele homem que, daqui a algumas semanas, completaria sessenta e um anos de idade.

— Coronel! — disse o comandante. — Seja razoável, não temos um segundo a perder!

Villa sacudiu a cabeça em silêncio.

— Precisamos abandonar a Tau imediatamente, coronel! — exortou o comandante, com voz rouca.

— Nós não somos importantes! — decidiu Villa. — Terra tem que ser inteirada desse fenômeno! É perfeitamente concebível que esteja relacionado com um novo golpe dos extraterranos. Portanto, tente mais uma vez emitir a mensagem hiper-radiofônica para a Suprema Comissão e para Wamsler!

Furioso, Lindley respondeu:

— Das duas, uma: ou o senhor possui um sistema nervoso fora de série, ou então não entendeu o perigo que corremos. Vá lá...

Fez um sinal inequívoco para o telegrafista. Tudo indicava que os transmissores voltaram a funcionar razoavelmente, pois Villa começou a falar.

 

Reconheceram imediatamente a voz daquela moça na Estação Avançada IV:

— Conseguiram restabelecer o contato. A recepção está bem mais nítida agora!

Realmente, a qualidade do som era outra, embora a imagem continuasse defeituosa. Só por um breve instante, Wamsler conseguiu reconhecer a figura de Villa, postado diante das lentes e microfones daquela nave malfadada.

— Aqui fala o coronel Villa a bordo da Tau. Estou chamando Wamsler: na minha opinião não fomos atingidos por uma tempestade de radiação, e sim, por campos antigravitacionais que envolveram a Tau. Desconfio que se trata de campos artificiais. Entendeu?

Villa falava de maneira rápida e precisa. Não fazia uma única pausa que não fosse estritamente necessária. Mesmo em meio à catástrofe, esse homem mantinha a cabeça fria.

— Atenção, que isto é de importância fundamental! Repito: não se trata de uma tempestade de radiação. O fenômeno que ocorre assemelha-se em tudo ao que McLane teve ensejo de constatar durante aquela missão em MZ-4. Naquela ocasião, sofreu os efeitos de campos gravitacionais alternantes. É o que está acontecendo com a Tau agora. É mais do que provável que isso faça parte de uma nova maquinação dos extraterranos. Vamos tentar alcançar Gordon a bordo das Lancets, embora nossas chances sejam mínimas.

Uma nova interferência — e depois a ligação com a Tau foi cortada de vez. Do alto-falante ressoavam apenas as vozes das estações retransmissoras, que imediatamente tentaram restabelecer contato com aquela nave perdida no espaço.

Por fim, Wamsler desligou o videofone e o gabinete ficou mergulhado no mais profundo silêncio. Os três homens entreolharam-se, calados. Três homens de índole inteiramente diferente mas que, no momento, compartilhavam os mesmos receios, as mesmas preocupações, relegando a segundo plano suas habituais divergências pessoais diante da gravidade dos acontecimentos. Imaginavam o que essa troca de mensagens radiofônicas poderia vir a significar, e isso os atormentava. Wamsler foi o primeiro a se refazer do choque que a revelação de Villa havia causado.

— O que é que ainda está fazendo aqui, Spring-Brauner? — perguntou, a meia voz.

— Aguardando suas ordens, marechal! — respondeu o ajudante-de-ordens.

Apesar de saber que provavelmente seria inútil, Wamsler disse:

— Então, ande logo! Procure estabelecer contato com Gordon. Diga-lhes para mandar uma nave ao encontro de Villa. Precisamos saber o que se passou lá!

Spring-Brauner sacudiu a cabeça.

— Já falamos com Gordon. Fizeram o chamado rotineiro poucos minutos antes da mensagem hiper-radiofônica de Villa.

— E o que foi que disseram? — berrou Wamsler.

— Não repararam nada. Nem tempestade de radiação, nem tampouco campos de gravitação artificial.

Wamsler apoiou-se no tampo da mesa e disse, com voz alta e categórica:

— Isso simplesmente não pode ser!

— Não estou em condições de opinar, marechal — defendeu-se Spring-Brauner. — Fato é que aquela mensagem não contém uma única palavra que pudesse ser relacionada com um acontecimento fora do comum.

— A Tau cai no meio desse campo maluco, e Gordon não percebe nada! Isso é impossível! Vamos! Preciso falar com Gordon custe o que custar. E depois me ligue com a Suprema Comissão Espacial; quero convencer esses cavalheiros a convocar uma sessão extraordinária e nomear uma comissão de inquérito!

Spring-Brauner deixou o gabinete com passos quase trôpegos, profundamente ferido na sua dignidade. Nem reparou o olhar pensativo com que Cliff o contemplava.

— Marechal... uma pergunta — disse McLane, baixinho. — O que é que Villa queria lá em Três/Leste 203?

— Não sei! — respondeu o marechal, monossilabicamente.

— Sempre pensei que o lugar do chefe do Serviço Secreto fosse atrás da mesa de trabalho, e não a bordo de uma nave.

— Nem sempre! — contestou Wamsler.

— E neste caso específico?

— Se uma ocorrência fora do comum assim o exigir, Villa leva os seus colaboradores e realiza as investigações in loco!

McLane apoiou-se na mesa e observou o anel rutilante dos fortes de bloqueio; um pouco mais à direita, um pontinho luminoso marcava a posição do sol de Gordon, a mais de cento e trinta e cinco parsec.

— E o que foi que esse caso apresentou de tão especial?

— Tenho pra mim que jamais vamos saber — respondeu Wamsler, irritado. Parecia que seus pensamentos estavam divagando por outras paragens, outras épocas. Era óbvio que a presença do comandante o incomodava. — Villa só costuma mostrar as cartas quando tem certeza absoluta.

— Pode ser que desta vez não tenha chance de virar carta alguma — observou Cliff, em tom céptico.

Wamsler plantou-se diante de McLane e cravou um olhar contundente nos olhos do comandante.

— Muito bem. Eu agora vou falar com o chefão. E o senhor, major McLane, vai se mandar e decolar imediatamente!

Cliff sufocou uma resposta malcriada e manteve-se calado.

— Momentinho! — disse Wamsler, pensativo. — ...espere: Villa não mencionou seu nome naquela mensagem?

— Mencionou, sim. Porque se lembrou que eu também já me vi às voltas com campos gravitacionais desse tipo... Está recordado, marechal? Foi logo durante a primeira missão que realizei para sua corporação. Lá em MZ-4... A Orion VII também não conseguiu resistir àquele fenômeno.

— Estou lembrado, sim! — Wamsler refletiu durante alguns instantes e depois disse, mudando de idéia: — Então pode adiar a partida, mas fique onde possa ser encontrado a qualquer hora.

— Que beleza! — disse Cliff, aliviado.

— Pode ser que a Comissão queira uma declaração sua ou um parecer técnico.

— Será um prazer ilustrar os distintos cavalheiros — asseverou Cliff com total irreverência.

Consultou o relógio: eram quase vinte horas; portanto, depois de conferenciar com sua tripulação, ainda teria tempo suficiente para saborear um copo ou dois no Cassino Starlight. Saiu do gabinete junto com Wamsler e se despediu.

Era cedo ainda; as inúmeras salas abertas do enorme centro de diversões encontravam-se praticamente vazias. Poucos minutos atrás, Cliff havia topado com Tamara Jagellovsk num dos corredores do sistema submarino da Base 104. Convidou-a para um drinque e agora os dois eram os únicos fregueses no bar que dava para o imenso terraço. A música era suave, pois os alto-falantes ainda não precisavam vencer a cortina de ruídos produzida por centenas de freqüentadores.

Os cubinhos de gelo derretiam lentamente nos copos.

— Estou surpresa — disse Tamara. — Afinal, o senhor nunca morreu de amores pelo Serviço Secreto!

Cliff arreganhou os dentes. Estava perfeitamente lembrado daquela revelação de Wamsler, pouco tempo atrás: Tamara havia pedido exoneração do cargo que exercia a bordo da Orion. Secamente, McLane respondeu:

— Com uma exceção!

Vendo que Tamara ignorou a insinuação, Cliff resolveu não tocar mais no assunto.

— Todos nós vamos sentir muito a falta de Villa — observou Tamara, acompanhando o contorno do copo com o indicador. — Foi um ótimo chefe.

Cliff limitou-se a acenar. Até agora continuavam sem notícias. A estação de controle em Gordon nada havia constatado: nem tempestades de radiação, nem outra ocorrência qualquer. E também não tinha conseguido localizar as Lancets...

— Ainda não consigo entender essa dura realidade — prosseguiu Tamara. — Villa foi um homem fabuloso.

— O que mais me fascinava — respondeu Cliff — era o bom senso desse homem. Possuía infinitamente mais que muitos desses... bem, esse lugar não é dos mais apropriados para citar nomes. Jamais vou me esquecer da coragem que teve de autorizar minha partida para Chroma, numa época em que a divisa da Suprema Comissão Espacial era apenas uma: a guerra!

— Pare de falar em Chroma — disse Tamara apressadamente. — É um tema que eu não gosto de abordar nem um pouquinho.

Cliff entendeu e prosseguiu:

— Com toda a frieza de raciocínio, ou talvez até por isso mesmo, Villa foi um idealista como poucos, um dos últimos pacifistas desta era. Faço votos que seu sucessor não caia no outro extremo. Claro que já devem estar cogitando de um nome, se bem que Villa ainda não foi oficialmente dado como desaparecido.

— Está tentando arrancar de mim alguma informação? — perguntou Tamara, sorrindo.

Cliff sacudiu a cabeça e murmurou:

— Nem pense uma coisa dessas! Jamais vou querer algo seu que não esteja disposta a me dar de livre e espontânea vontade! Afinal, já não sou mais um cadete e sim um comandante circunspecto, se bem que removido em caráter punitivo e condenado a realizar missões ridículas.

— Parece que está se superestimando, McLane. Ainda bem que não sou obrigada a externar minha opinião a seu respeito — Tamara riu.

— Pelas luas de Mercúrio! — disse Cliff. — Faça-me o grande favor e continue assim. Caladinha. Mas, se não me engano, estávamos falando do sucessor de Villa, não foi?

— Decididamente, hoje não é seu dia de sorte — respondeu Tamara. — Estão fazendo tanto mistério em torno desse nome, que ninguém sabe de coisa alguma. Nem mesmo eu.

— Estou um bocado inseguro — disse Cliff, baixinho.

— Com relação a Villa? — perguntou Tamara rapidamente.

Cliff sacudiu a cabeça e esvaziou o copo de um só gole.

— Não, não é isso; é difícil definir o que estou sentindo, mas posso garantir que é uma sensação nada agradável. Essa ocorrência na terceira zona de distancia não é normal e, com toda a certeza, não pode ser atribuída a causas naturais. Desconfio que seja apenas o prenuncio de certas coisas que vão nos dar o que fazer. E muito.

Tamara empertigou-se na poltrona.

— Suspeita de uma trama dos extraterranos?

— É perfeitamente possível — respondeu Cliff. — Sei que não sou um sujeito dos mais inteligentes, mas tenho um faro infalível para coisas desse gênero. Acredito piamente que vamos ter aborrecimentos. Aos montes.

— Não posso contestar o que afirma — respondeu Tamara. — Na verdade, não me preocupei muito com esse aspecto da coisa.

— Mas deveria se preocupar com isso. Afinal, voa na minha nave e vive as mesmas aventuras!

Cliff ergueu a mão e pediu mais um drinque. Depois virou-se lentamente. Alguém estava à sua procura...

 

A ORDENANÇA, uma moça cujos encantos eram realçados pelo uniforme justo, atravessava o cassino ainda meio vazio, olhando atentamente para todos os lados. Os funcionários nas ante-salas dos diversos gabinetes já sabiam onde procurar Cliff McLane: se não estivesse no seu bangalô ou na casa de Hasso, infalivelmente o encontraria no cassino. Como agora. A moça descobriu Cliff e apressou os passos. Aproximou-se com um sorriso, que decididamente não constava do regulamento de serviço, e disse:

— Major McLane, trago uma ordem do marechal Wamsler. É só para o senhor!

Tamara examinou a ordenança de alto a baixo e depois deu um sorriso desdenhoso. Cliff reparou o detalhe com o rabo dos olhos. Apanhou a folha de plástico perfurado da mão da moça e pôs-se a ler a mensagem em silêncio.

— Obrigado, queridinha — disse ele, notando com satisfação que seu charme ainda surtia efeito. A jovem olhou para Cliff com uma expressão de enlevo e admiração, fez uma continência desnecessária e retirou-se.

— Que boa notícia essa menina me trouxe! — exclamou Cliff, encarando Tamara: — Villa está vivo!

— O quê?

Tamara arregalou os olhos, surpresa e contente ao mesmo tempo. E depois desatou a rir, como se todos os seus receios tivessem perdido a razão de ser de uma hora para a outra. Mas nenhum dos dois podia imaginar que, nesse meio tempo, a situação se tinha tornado bem mais crítica.

— O que diz a mensagem, Cliff?

— Villa e seus colaboradores conseguiram chegar a Gordon, mas Lindley e sua tripulação continuam desaparecidos.

Claro que Tamara estava informada dos pormenores, pois conhecia o teor das mensagens que o chefe do Serviço Secreto havia enviado pouco antes de abandonar a Tau.

— Villa encontra-se agora a bordo da Zephyr; deve estar de volta à Base 104 daqui a dois dias. Fui convocado a participar de uma sessão da Suprema Comissão Espacial.

— Alegro-me com sua convocação, Cliff; muita coisa boa pode resultar disso!

— Espero que resultem coisas boas para todos nós! — respondeu Cliff, não sem um traço de ironia.

— Como assim?

— Se me convocaram, é porque meu cartaz aumentou, disso eu não tenho dúvida. E se levarem isso na devida conta, vão parar de nos aporrinhar com missões idiotas. Como, por exemplo, catar espórios no espaço, e coisas assim.

— Faço votos que não sofra uma bruta decepção! Por falar nisso: é o senhor quem vai pagar a despesa, ou pensou que o convite fosse meu? — perguntou a agente do SSG com sarcasmo.

— Pode deixar, que eu pago! — respondeu Cliff.

— Que bom. Quando vai ser realizada a sessão?

— Daqui a... — Cliff consultou o relógio — ...cinqüenta e duas horas. Receio que vai ser uma sessão noturna.

— Então divirta-se.

— Obrigado.

 

Apenas as mais altas autoridades da Suprema Comissão Espacial compareceram à reunião, acompanhadas de alguns funcionários e cientistas graduados. O reduzido número de participantes justificou a escolha da pequena sala de conferências para local dos debates, que normalmente eram conduzidos no plenário.

Wamsler, Villa, McLane, Sir Arthur, o Dr. Schiller e os demais convocados acomodaram-se em torno da mesa alongada, coberta de documentos, blocos de apontamento, copos e canetas magnéticas. Sir Arthur abriu a sessão, dirigindo-se a Villa num tom surpreendentemente cordial:

— Coronel Villa, faltam-me as palavras apropriadas para exprimir o nosso imenso contentamento pelo seu feliz regresso.

Wamsler procurou ocultar seu alívio por trás de um resmungo irritado:

— Já tínhamos perdido toda e qualquer esperança!

Todos notaram algo de diferente no semblante de Villa. Seria aquele ar descansado e sereno? Ou a expressão bem-humorada daquele olhar, normalmente tão duro e inflexível? Fosse o que fosse, algo havia mudado nesse homem. Villa respondeu:

— Também não sei explicar como eu e meus colaboradores conseguimos chegar vivos a Gordon. Considero um verdadeiro milagre que essas frágeis Lancets tenham resistido àquela tempestade de radiação.

Sorriu, os olhos divagando pela sala. Tempestade de Radiação? McLane ficou pasmo. Ele mesmo tinha ouvido Villa falar em ondas gravitacionais, e estava perfeitamente lembrado do tom de pânico que dominava as vozes de Villa e Lindley naquele instante.

— O senhor disse: tempestade de radiação? — perguntou Wamsler, espantado.

— Foi o que eu disse — respondeu Villa.

Sir Arthur sacudiu a cabeça grisalha e observou, hesitante:

— Mas na sua última mensagem de bordo da Tau o senhor se referiu a forças...

Wamsler resolveu ajudar Sir Arthur e completou, aflito:

— ...pois foi; o senhor se referiu a campos antigravitacionais alternantes. Além disso, externou sua convicção de que aquele fenômeno só poderia ser atribuído à ação de alguma potência inimiga.

Aquele sorriso de superioridade todos conheciam.

— É — respondeu Villa, lentamente — eu me lembro. Quer dizer: é claro que não nego ter insinuado qualquer coisa nesse sentido. Noto, porém, que minhas recordações daqueles momentos terríveis são bastante falhas. Eu hoje já não sei mais o que ou possa ter dito naquela ocasião.

O Dr. Schiller levantou-se e fez um gesto que abrangia todos os presentes.

— Não há a menor dúvida — disse tentando justificar a contradição nas declarações de Villa — que aquela catástrofe deixou o coronel Henryk Villa severamente traumatizado. Esses lapsos de memória são um sintoma característico do violento choque emocional que o coronel sofreu.

Schiller sentou-se novamente, certo de ter elucidado um ponto duvidoso naquela discussão. Sir Arthur achou que a observação do cientista devia ser levada a sério e disse a Villa:

— Sei que não devíamos importuná-lo com tantas perguntas, coronel, mas há de compreender a nossa grande preocupação.

Villa acenou, concordando:

— O que gostaria de saber, Sir Arthur?

— Foi precisamente o teor da sua última mensagem hiper-radiofônica de bordo da Tau que nos deixou profundamente inquietados.

Villa deu um leve sorriso e respondeu, piscando:

— Quanto a isso, posso tranqüilizá-los, meus senhores! Provavelmente, naqueles momentos de perigo mortal, devo ter visto fantasmas; e foi isso que me levou a admitir uma possível ação dos extraterranos. Alarmei-os sem necessidade. Peço que me perdoem!

McLane suspeitava da veracidade dessa declaração. Por que razão, ele mesmo não era capaz de dizer. Só sabia que havia algo de errado nessa história. A bordo da Tau, Villa havia feito uma afirmativa enfática e hoje, três dias depois, a negava de modo solene, alegando ainda que era totalmente descabida.

— Não precisa se desculpar, Villa! — disse Wamsler.

— Obrigado, marechal — respondeu Villa secamente. Alguns dos presentes deram uma ligeira risada. — Se eu tivesse o sangue-frio do major McLane, talvez não teria assustado os senhores à toa!

Cliff não riu; permaneceu encolhido na poltrona, cada vez mais desconfiado.

O Dr. Schiller resolveu reforçar sua argumentação anterior:

— Justamente um cérebro tão versátil como o do coronel Villa, e não vai aí qualquer elogio barato, pois é mera constatação científica, pode chegar a ver fantasmas em momentos de grande tensão. O próprio coronel empregou essa expressão popular ainda há pouco, com muito acerto. Mais precisamente, trata-se de um determinado tipo de alucinações forçadas que, por sua vez, distorcem o quadro das externações objetivas.

McLane contemplou Schiller com um sorriso exageradamente amável e perguntou:

— Se interpretei direito o que acabou de expor, o senhor está passando um atestado de primitivismo ao meu cérebro, é isso?

— Como pode dizer uma coisa dessas, major! — respondeu o cientista, enrubescendo. — Não estou lhe atribuindo coisa alguma. Creio que minha exemplificação foi bastante clara: quanto maior for a sofisticação de uma máquina, tanto maior será também a sua susceptibilidade de apresentar perturbações. Talvez o senhor mesmo não seja tão impassível como tenta aparentar!

— Talvez! — respondeu Cliff, exibindo um ar sonhador. Ergueu a mão.

— Sim, McLane, o que é? — disse Sir Arthur.

— Posso fazer uma pergunta, apesar da minha inteligência estacionaria?

— Pois não!

— Na mensagem que enviou de bordo da Tau, o coronel Villa não deixou margem a dúvidas quanto ao que considerava a verdadeira causa daquele fenômeno. Agora, porém, muda radicalmente de opinião e atribui as declarações feitas ao fato de "ter visto fantasmas". A meu ver, as explicações e observações iniciais, agora desmentidas, continuam inteiramente válidas, e seria uma temeridade de nossa parte não levá-las na devida consideração. E por quê? Porque retratam fielmente o que se passou com a minha velha Orion VII lá em MZ-4, quando fui atacado pelos extraterranos. O coronel Villa reconheceu isso prontamente; prova disto é o destaque que procurou dar a essa constatação na última parte da sua mensagem. Não há dúvida de que a Tau e a Orion VII tiveram de enfrentar os mesmos problemas. Lembro-me vivamente daquelas descargas violentas, da inexplicável perda de energia, da impossibilidade de manobrar a nave — e só não tive de abandoná-la porque ainda me encontrava a uma distancia suficientemente grande do inimigo, o que me permitiu tocar em retirada.

O coronel Villa estava ficando impaciente com esse longo histórico, e interrompeu McLane:

— Pediu para fazer uma pergunta, major, e não um discurso!

— Então quer me explicar por que agora tem tanta certeza de que a Tau sofreu apenas os efeitos de uma tempestade de radiação? — perguntou Cliff.

Seguiu-se uma pausa embaraçosa, carregada de tensão. Por fim, Villa respondeu:

— Nesse meio tempo chegou a confirmação de Gordon. Não registraram nada além de uma tempestade de radiação de proporções perfeitamente normais. Parece que suas informações estão algo superadas, major.

McLane sacudiu a cabeça, irritado.

— A tempestade observada por Gordon pode muito bem ter sido originada por aqueles campos antigravitacionais. Além disso, será tão descabido assim vislumbrar nisso tudo uma interferência deliberada que o impedisse de alcançar o objetivo da sua missão?

No íntimo, McLane não pôde deixar de admirar a serenidade do coronel Villa.

— Somente os meus assessores mais diretos conhecem o objetivo dessa missão. Ninguém mais. E muito menos os extraterranos, aos quais o senhor parece atribuir capacidades videntes, major.

McLane não se perturbou com a risada geral. Sir Arthur se levantou e declarou, categoricamente:

— Muito bem. Chega de discussões. Não vejo razão para formular novas perguntas. Isso se aplica também ao senhor, major McLane!

— Mas...

— Coronel Villa, nós todos desejamos que se restabeleça completamente e que possa tirar o máximo proveito do seu merecido repouso!

Villa esboçou um sorriso reservado e declarou:

— Infelizmente, não posso pensar em descansar. Há tantos assuntos pendentes que não vou ter muito repouso durante os próximos dias.

McLane lançou um olhar furtivo para o rosto impassível de Villa. Que assuntos seriam esses? Problemas rotineiros, acumulados durante a ausência do chefe do SSG? Ou estariam relacionados com essa misteriosa missão, da qual nada se sabia? Essa missão... novas dúvidas se aninharam nos pensamentos de McLane que, na realidade, não tinha com que justificar sua crescente desconfiança. Seria incapaz de dizer o porquê, mas simplesmente não acreditava mais em Villa.

Despediu-se de maneira um tanto brusca dos membros da comissão, que estavam começando a se retirar da sala de conferências. Villa os seguiu, sem sequer olhar para McLane; essa desconsideração propositada irritou Cliff. Porém não teria tempo para pensar numa forma de revidá-la, pois o marechal Wamsler se aproximou e disse em tom quase ameaçador:

— É de lascar! Não perde mesmo uma única oportunidade para se tornar impopular, McLane! Contestou as declarações do coronel Villa, ignorou as explicações científicas do Dr. Schiller... enfim, excedeu-se, mais uma vez! Agora, só falta me dizer que chegou a uma conclusão!

— Cheguei, sim, marechal! Cheguei à conclusão que preciso reformular urgentemente umas tantas concepções. Pois até poucos minutos atrás, eu nutria a doce ilusão de que uma comissão de inquérito tivesse a finalidade única de investigar alguma coisa.

— Foi exatamente isso que a comissão fez!

— Ah, foi? Confesso que desconhecia essa maneira de conduzir uma investigação. Estou vendo que é verdade: quanto mais se vive, mais se aprende!

— Mas não é o seu caso, McLane; infelizmente nunca vai aprender coisa alguma! — respondeu Wamsler enfurecido. — Sua presença aqui tornou-se desnecessária. Portanto, nada mais o impede de empreender seu vôo de inspeção conforme as instruções recebidas. Vai decolar amanhã de manhã.

Por alguns segundos, McLane baixou a cabeça.

— Gostaria de ouvir sua opinião, marechal... — começou, algo vacilante.

— A respeito de quê? — falou Wamsler, desconfiado.

— ...a respeito de uma idéia que acaba de me ocorrer: que tal se, em vez de realizar esse vôo de inspeção, eu desse um pulo a Gordon, para dar uma espiada no setor espacial, no qual ocorreu a catástrofe da Tau? É bem possível que eu encontre uma pista de Lindley.

Wamsler começou a berrar feito um possesso e parecia querer agredir McLane com os punhos cerrados.

— Vá para o diabo com suas idéias! Trate de cumprir as ordens recebidas e tire esse caso da Tau da cabeça!

Virou-se bruscamente e saiu da sala sem se despedir. Cliff estava mais do que furioso; sabia que alguém trapaceava nesse jogo. Mas quem? Wamsler? Era tudo, menos bobo; contudo não possuía aquele sentido apurado para as coisas que ocorriam no espaço; além disso, não era um sujeito desconfiado.

Sir Arthur? Nem de leve. Podia ser um bom jurista, mas como administrador era uma negação. Sem o secretário do lado, Sir Arthur se sentia tão desamparado como uma tartaruga virada de costas.

Talvez o Dr. Schiller? Esse era cientista e acreditava piamente nas suas teses, que defendia com unhas e dentes. Não, não havia nada de suspeito que pudesse ser atribuído a esse homem. Certo, era um pouco limitado, como quase todos os especialistas, mas isso não constituía motivo para desconfiança.

Portanto: só podia ser Villa. O coronel Henryk Villa. Um homem que não deixava transparecer o que pensava; um homem inteligente e ardiloso, velho e calejado. E que sabia torcer as coisas a seu favor... Cliff não conseguia entender como aquela flagrante contradição havia escapado a Wamsler: primeiro, Villa obriga Lindley a enviar uma mensagem urgente, comunicando uma forte suspeita; três dias depois, tenta convencer ele, Cliff, que essa suspeita nunca existiu.

Tempestade de radiação ou perturbações gravitacionais? Cliff nem sabia para que paragens sua nova missão o levaria; as ordens específicas só eram entregues minutos antes da decolagem. Caso passasse perto do local do acidente, assumiria a responsabilidade de se desviar da rota para vasculhar aquele setor espacial. Claro que era preciso obter o consentimento de Tamara. Mas Cliff julgava que não teria maiores problemas em consegui-lo diante da importância dessa investigação.

Cliff retirou-se lentamente da sala de conferências vazia, deu um aceno distraído para os ajudantes na ante-sala e desapareceu no labirinto das galerias subterrâneas. Meia hora mais tarde estava novamente no cassino, sorvendo café. Seu estado de ânimo era o pior possível.

 

ONZE horas da noite. Cassino Starlight... Música, tilintar de copos, conversas, risadas. A mesma animação sempre àquela hora e os mesmos freqüentadores: funcionários das repartições, empregados dos escritórios, tripulações da frota e da Patrulha Espacial; em resumo: havia representantes de todos os ramos de atividade da Base 104. Como sempre a essa hora, os diversos pavimentes do enorme estabelecimento apresentavam-se superlotados. Mario de Monti e Helga Legrelle estavam atravessando a apinhada pista de danças, abrindo caminho por entre os pares que mal conseguiam sair do lugar. Os dois pareciam estar muito bem-humorados.

— Estão lá, do outro lado! — gritou Helga a plenos pulmões, a fim de sobrepujar o volume dos alto-falantes, que reproduziam o último sucesso de Tomas Peter: "Cores de um sol variável". Helga havia descoberto Cliff, que estava sentado a uma mesa em companhia de Hasso e Atan. O rosto de Cliff denotava que seu ânimo já tinha atingido o zero absoluto. Mario e Helga pararam diante da mesa.

Cliff os recebeu com um resmungo:

— Pensei que vocês não viessem mais. Sabem que horas são?

Impertinente, Helga retorquiu:

— Se está interessado nisso, sugiro que consulte seu relógio, comandante!

— O que foi que aconteceu, para vocês se atrasarem tanto? — quis saber Cliff.

— Ué... o que pode ter acontecido? O mesmo de sempre, bolas!

Mario exibiu um ar presunçoso e disse:

— Lamento muito, minha filha!

— Não tenho a impressão que você esteja lamentando alguma coisa — respondeu Hasso. — A julgar pela sua cara radiante...

— O que significa isso? — perguntou Atan, balançando o copo vazio. — Você ouviu isso, Cliff?

Cliff ergueu a cabeça ligeiramente e fitou Atan sem entender nada.

— Fomos a uma festinha — explicou Helga. — Conhecemos uma porção de gente encantadora.

— Claro — disse Hasso, secamente. — Nessas festas todos são uns amores!

— Bem, e daí? — perguntou Atan, curioso.

— A noite inteira esse nosso herói aí — disse Helga, apontando para Mario que estava começando a fechar a cara — procurou obstinadamente despertar o interesse de uma jovem dama pelas suas capacidades arrebatadoras.

— Naturalmente, essa jovem dama era você — disse Hasso, rindo.

— Aí é que você se engana! — respondeu Helga prontamente.

Mario tinha finalmente conseguido atrair a atenção de um garçom, e pediu um café.

— Quer parar de fazer suspense, sim? — disse ele, aborrecido. — Do jeito que você está contando essa história, todo mundo acha que ela tem um desfecho sensacional. Não decepcione os nossos amigos, Helga!

— Eu achei o fim da história ótimo! — respondeu Helga, rindo a valer. — É que, depois de prestar atenção durante meia hora, a jovem dama disse: "Mas o que é isso, tenente? Afinal, o senhor podia ser meu pai!"

Desta vez, Cliff participou da gargalhada geral. Só Mario permaneceu impassível, limitando-se a dizer:

— Muito engraçadinho, Helga!

Todos se viraram quando Cliff apontou para o salão: Tamara estava se aproximando da mesa.

— Ué?! — disse Hasso.

O tom de surpresa era justificado: Tamara não trajava o macacão de bordo, e sim o uniforme de serviço, que lhe assentava melhor do que qualquer outro.

— Vejam só, com que roupa a nossa governanta comparece para o embarque! — exclamou Cliff, apertando a mão de Tamara. — Seu macacão por acaso está na lavanderia, camarada Jagellovsk?

— Não está, não. Acontece que não vou precisar dele — respondeu a agente do SSG e enfiou a mão no bolso do jaquetão.

— O que quer dizer isso? — perguntou Cliff. — Daqui a cinqüenta minutos vamos ter que encerrar essa sessão solene. Mario, este drinque é o último, entendeu?

Mario acenou, contrariado; por ele, continuaria a beber até o último momento.

Tamara entregou uma folha de plástico a Cliff e disse:

— O caso é que não vamos mais partir. Acabo de sair do gabinete de Villa.

Cliff leu o texto em silêncio e depois se dirigiu à tripulação:

— Ordem do SSG. A permissão para a decolagem foi cancelada. O próprio Serviço de Segurança Galáctico vai se encarregar dessa missão. Até parece que temos naves sobrando por ai.

Mario acariciou seu copo.

— Viva o SSG! — exclamou, em tom fervoroso.

Hasso virou-se para Tamara e perguntou:

— Isso significa que fomos liberados do serviço? Que estamos de folga?

— Evidentemente!

— Mas isso é ótimo! — disse Mario, agitado. — Aquela jovem, que vê em mim o seu pai, provavelmente ainda está naquela festinha, não acha, Helga?

Helga concordou.

— Podemos realmente cair fora, Cliff? — perguntou Mario.

— Por mim, podem — respondeu o comandante. — O coronel Villa deve saber o que está fazendo. Só espero que tenha combinado tudo isso com Wamsler, senão vai haver um barulho dos diabos. Estou ficando cada vez mais desconfiado.

Pelo visto, a decisão de Villa correspondia plenamente aos desejos da tripulação. Cada qual pagou sua conta e se despediu dos demais. Mario evidenciava uma pressa mais do que suspeita. Tamara sentou-se ao lado de Cliff.

— Mano e sua concepção de lazer! — comentou Cliff. — Coitado! Parece que levou mais um bolo do tamanho da lua de Netuno!

Tamara acenou.

— E o senhor, comandante?

— Se pensa que vou lhe revelar a quantidade e o tamanho dos bolos que venho colecionando nesses últimos anos, está enganada. Provavelmente anexaria isso à minha ficha no SSG, para deleite de Villa.

Tamara soltou uma risada.

— O que eu quis saber, era se pretende ficar aqui.

— Enquanto houver café, fico — asseverou Cliff. — Vai ficar também?

Tamara encolheu os ombros, num gesto de indecisão.

— Posso lhe fazer uma pergunta confidencial, porém impessoal? — indagou Cliff. — Diga-me uma coisa... desde quando o Serviço de Segurança Galático realiza os vôos de rotina da Patrulha Espacial? Não acha também que isso é um bocado estranho, minha cara senhora tenente?

Tamara respondeu laconicamente:

— Villa deve ter lá suas razões para isso.

McLane refletiu durante alguns instantes. Não podia provar coisa alguma, e por isso às vezes ficava na dúvida se sua desconfiança de Villa era justificada ou não.

Mas os últimos acontecimentos vieram a reforçar a suspeita. Cliff estava mais desconfiado do que nunca. Pensativo, disse:

— Com certeza. Só que eu gostaria de saber que razões são essas.

Tamara fez um gesto indistinto com a mão. Cliff prosseguiu:

— Amanhã de manhã, aliás, daqui a pouco, nós íamos partir para inspecionar os satélites retransmissores no setor Três/Leste 202. Gordon fica no setor contíguo, está lembrada? Pois é; e lá aconteceu alguma coisa que Villa ocultou de todos nós.

— Mais um fruto da sua imaginação, comandante? — perguntou Tamara.

— Talvez — respondeu Cliff. — Pena que faz tão pouco uso da sua.

Tamara chegou mais para perto:

— Na sua opinião, o que é que Villa está ocultando de nós?

— Aquilo que realmente se passou lá.

— Mas que motivos pode ter Villa para silenciar sobre o ocorrido?

Antes que Cliff pudesse revelar a Tamara de que suspeitava, a conversa foi interrompida. McLane conhecia o coronel Mulligan, esse homem baixo e corpulento, de seus quarenta anos, que se tinha aproximado da mesa meio cambaleante e agora se apoiava pesadamente no espaldar de uma poltrona. Estava visivelmente bêbado.

— Olá, seu velho pirata do espaço! Quer tomar um trago comigo, Cliff?

Cliff olhou irritado para Mulligan e depois disse, com acentuada formalidade:

— Antes de mais nada, permita-me fazer as apresentações: coronel Mulligan, tenente Tamara Jagellosvk.

— SSG? — perguntou Mulligan, fitando o distintivo na farda de Tamara.

Sem ser convidado, largou-se numa das poltronas que gemeu sob a ação daquela carga repentina. Voltou a olhar para o emblema e disse, mal-humorado:

— É do Serviço de Segurança, é? Nesse caso eu seria um hipócrita se dissesse: "Muito prazer em conhecê-la!"

Sufocou um arroto e confirmou, murmurando:

— Prazer uma ova! Cliff franziu a testa:

— Que grosseria é essa, coronel? Essa senhora lhe fez alguma coisa?

— Ela, não; mas aquele bando de ingratos do qual faz parte!

Essa observação despertou o interesse de McLane, que limitou-se a dizer: "Ah, foi?" Sabia que, nesse estado, Mulligan dispensaria maiores estímulos para contar a história de sua vida.

— Pensa por acaso...? — Mulligan matutou por alguns segundos e depois prosseguiu:

— Pensa por acaso que estou tomando esse porre sem ter uma razão para isso? Há dez anos que venho servindo na supervisão das bases... sempre leal, sempre correto. Trabalhei que nem um louco, lutei, me arrebentei...

— Nota-se, coronel! — confirmou Tamara polidamente.

— Bem; não quero parecer ingrato. Três anos atrás fui promovido, assumindo a chefia geral de todas as instalações.

McLane deu um sorriso irônico:

— Sem dúvida isso é uma razão muito forte para se aborrecer!

— E agora fui demitido, sem mais nem menos.

— O quê?

A surpresa imobilizou McLane na poltrona. Não era possível que Mulligan fosse exonerado de um cargo tão importante sem razão alguma.

— Pois é. Me chutaram. Sem qualquer motivo. De uma hora para a outra.

— Quando foi demitido e por quem? — perguntou Cliff, em tom incisivo.

— Recebi a comunicação oficial há duas horas atrás. Sabe qual foi a causa que alegaram? Medidas de segurança do SSG! A partir daquele momento, o Serviço de Segurança Galático assumiria a vigilância das naves de combate de grande porte.

— Estou começando a entender! — disse Cliff, quase sussurrando.

— Isso me dói demais, comandante, pode crer! — asseverou Mulligan.

Levantou-se abruptamente, fez uma pose de mesura para Tamara e se retirou com passos arrastados. Tamara e Cliff entreolharam-se em silêncio. A suspeita aumentava. As reflexões de Cliff já seguiam uma determinada linha de raciocínio. Tamara, porém, só sabia que coisas inexplicáveis estavam se avolumando com uma rapidez assustadora. Cliff dirigiu-se a ela:

— Isso também é fruto da minha imaginação? Há algo de errado com Villa, desde que ele voltou de Gordon.

Tamara ainda se mostrava relutante.

— Ora bolas — disse ela, mal-humorada — está tentando transformar tudo isso numa história de pavor, daquelas de arrepiar os cabelos!

— Não estou inventando história alguma, estou apenas somando os fatos: primeiro, Villa nega aqueles acontecimentos lá em Gordon, e depois assume o controle da Vigilância Espacial e das bases das naves de combate.

— Isso deixaria de ser enigmático, se conhecêssemos os motivos que o levaram a adotar essas medidas — comentou Tamara.

— Acontece que não conhecemos esses motivos; estou muito curioso em saber qual vai ser o próximo passo de Villa.

Tamara recostou-se e contemplou Cliff com aquele seu olhar céptico.

— Os passos de Villa deviam conduzir a um objetivo claramente reconhecível. Eu ainda não descobri o que possa ser. Qual é o propósito de Villa, na sua opinião?

Cliff meditou durante alguns instantes, e depois disse baixinho:

— Pode parecer absurdo, mas tudo me leva a crer que Villa está planejando um golpe.

Tamara cutucou repetidamente a testa com o indicador, naquele gesto de significado bem conhecido, e disse:

— Deve ter ficado maluco, Cliff! McLane levantou-se e chamou o garçom.

— Proponho abandonar esse pandemônio — disse ele. — Prefiro expor meu raciocínio sem público. Me acompanha?

Tamara ergueu-se lentamente e perguntou:

— Para onde?

McLane deu um sorriso fraco.

— Para o meu modesto alojamento — respondeu.

 

— Algo aconteceu em Gordon que desnorteou Villa completamente — disse McLane enquanto acendia alguns refletores na espaçosa sala de estar.

— Como chegou a essa conclusão? — perguntou Tamara, acomodando-se numa das enormes poltronas.

Cliff colocou um cassete no toca-fita e disse:

— Preste atenção: Villa afasta Mulligan da vigilância das bases, quando quatro dias antes ainda se manifestou em termos elogiosos a respeito da competência e da confiabilidade desse homem. Eu mesmo ouvi ele dizer isso, lá no gabinete de Wamsler.

Tamara apontou para o armário do bar.

— Será que não tem outro assunto hoje de noite, comandante? — perguntou em tom de censura.

— Desculpe — respondeu Cliff. — Quer tomar alguma coisa?

— Quero, sim. Algo bem forte, mas sem gelo, por favor.

Cliff abriu a porta do bar e retirou dois copos e uma garrafa, colocando-os sobre a mesa de centro.

— Quanto tempo acha que vamos ficar sem ter o que fazer? Tem alguma idéia do que possam estar reservando para a infeliz da Orion VIII?

O copo estava pela metade e Tamara sorveu um gole minúsculo. Recostou-se novamente e disse:

— Não tenho, não.

— E a minha prezada camarada Jagellovsk vai fazer o que nesse meio tempo? — perguntou McLane. — Não lhe arrumaram uma nova tarefa?

— Não!... Quer dizer... claro que eu tenho uma tarefa a cumprir, e essa o senhor conhece muito bem.

Cliff ergueu as sobrancelhas.

— Eu conheço a sua tarefa...?

— Fui destacada para servir a bordo da Orion, com a função específica de coibir através de medidas disciplinares qualquer transgressão de disposições regulamentares por parte do comandante Cliff McLane!

Com um sorriso, que não tinha nada de irônico, Cliff respondeu:

— Governanta!

Tamara fez uma careta aborrecida.

— Isso não quer dizer que não existam também governantas jovens e encantadoras — Cliff apressou-se em afirmar. — Mas quer me parecer que ultimamente já não está tão satisfeita como no início. É uma tarefa fatigante, não é?

— Realmente, me enganei. Nunca imaginei que essa... essa atividade... pudesse vir a ser tão exaustiva. Acha que tenho sido severa demais?

— Consegui me defender — disse Cliff.

Beberam em silêncio, envoltos na escuridão, da qual os poucos refletores acesos destacavam apenas alguns quadros e um círculo luminoso no centro da mesa. As estrelas cintilavam no pequeno trecho do céu australiano que a abertura no teto da sala desvendava. Cliff sentia que, dentro em pouco, teria de tomar alguma decisão de largo alcance. A cada hora que passava, os acontecimentos relacionados com Villa tornavam-se mais significativos e misteriosos. Cliff possuía um sexto sentido para perigos ocultos, e agora esse sentido estava mais desperto do que nunca.

E Tamara? Qual seria o resultado final dessa luta silenciosa e encarniçada, que já durava um ano? Nenhum dos dois estava disposto a ceder, e se esforçavam ao máximo para saírem vitoriosos de toda e qualquer discussão, por mais irrelevante que fosse. Poderia haver relacionamento mais disparatado do que esse? Trocavam insultos e beijos; brigavam por um nada, mas invariavelmente voltavam a fazer as pazes; sentiam falta um do outro, porém, quando estavam juntos, não perdiam o menor ensejo para mutuamente agredirem-se com ironia e a contundência dos seus argumentos. Esse estado de coisas não podia perdurar eternamente. Mas qual seria a melhor solução? Uma vez, Tamara havia entregado os pontos; isso Cliff soube de Wamsler. Contudo, a inflexibilidade de Villa... Villa!

— Tamara... — disse Cliff, baixinho.

Esse parecia ser o tom de voz que Tamara ansiava ouvir neste momento. Olhou para ele com olhos brilhantes.

— Sim, Cliff?

— Precisa me ajudar! — pediu McLane, pensativo.

— Mas é claro! Ajudar em quê?

— Tenho que falar com Villa. Não agora, porque as decolagens previstas para essa noite já foram todas realizadas. Gostaria de falar com ele amanhã de manhã.

Não era bem isso que Tamara havia esperado.

— E o que quer discutir com Villa? — perguntou, baixinho, esforçando-se para não deixar transparecer sua decepção. McLane mordia os lábios.

— Vou pedir a ele uma autorização especial do SSG. Para realizar um vôo a Gordon.

— Para que quer essa autorização? — perguntou Tamara, surpresa.

— Pretendo tirar uma dúvida: se Villa me conceder a permissão, então quem andou vendo fantasmas fui eu; caso contrário, continuo desconfiando dele.

Tamara colocou o copo na mesa e perguntou:

— Isso provaria o quê?

Cliff inclinou-se ligeiramente para a frente e disse em tom sério:

— Tamara, nunca fiz alarde de ser um sujeito excepcionalmente inteligente. Mas uma coisa eu tenho: um faro apurado para certas coisas. No momento, não posso adiantar mais nada; ainda preciso de uma porção de fatos.

Ligeiramente impaciente, Tamara respondeu:

— Está bem.

— Quer dizer que vai me ajudar? — perguntou Cliff. — Merece mais um gole por causa disso. Posso encher seu copo?

— Pode. E para a tranqüilidade da sua alma, amanhã vou perguntar a Villa se ele tem tempo para ouvir o major McLane. Aviso-o em seguida. De acordo?

— Claro! E se eu me lembrar de algo bem original, vou demonstrar minha gratidão por meio de um presentinho extravagante. A propósito...

— Deseja mais alguma coisa?

— Infelizmente, sim. Já que vai estar no escritório central do SSG, podia me fazer mais um favorzinho, uma coisinha de nada.

— Qual seja?

— Podia bisbilhotar um pouco. Talvez consiga descobrir o que Villa foi fazer nas vizinhanças de Gordon. Afinal, esse vôo deve ter sido registrado e documentado como todos os outros, ou não?

Tamara sacudiu a cabeça.

— Agora ficou biruta de vez, Cliff. Sabe o que está me pedindo?

Cliff acenou:

— Desgraçadamente, sei. Por isso mesmo não estou pedindo, estou suplicando. Sei que ambos corremos um risco sério, mas não é em proveito próprio.

Tamara consultou o relógio.

— Está ficando tarde — observou e levantou-se.

O pesado veículo de Cliff parou diante da entrada do enorme prédio residencial, no qual Tamara ocupava um pequeno apartamento no centésimo décimo primeiro andar. Cliff recostou-se no assento anatômico e desligou as turbinas.

— Quer dizer que amanhã vai pedir a Villa que reserve uns quinze minutos para mim?

— Foi o que prometi, não foi? — respondeu Tamara lentamente. Parecia cansada, e seu rosto denotava um certo desalento. Fez menção de agarrar o trinco da porta.

— Um momento! — disse Cliff, rapidamente, e abriu a porta do seu lado. — Fique ao menos com a ilusão de que foi levada em casa por um comandante um tanto versado nas formalidades sociais.

Desceu do carro e abriu a outra porta. Estendeu a mão e puxou Tamara para fora do assento. Ela acenou e disse:

— Obrigada pela carona, comandante!

— É meia-noite — respondeu ele secamente. — Durma bem!

— Igualmente — retrucou Tamara. — Vou fazer força para não sonhar com Cliff McLane.

— Caso não consiga dormir logo, recomendo ler algumas páginas do livro de Hammersmith: "A Psicologia dos Cosmonautas". Talvez depois disso possa me compreender um pouquinho melhor. E também as minhas motivações.

— Dificilmente — finalizou Tamara.

Dirigiu-se com passos rápidos ao saguão muito iluminado e chamou o elevador. Cliff ligou as turbinas, virou o carro e disparou em meio a uma barulheira infernal.

Sem sono, Tamara caminhava pela pequena sala, lembrando-se de uma certa cela de prisão, lá em Chroma... Mais tarde, abriu a cortina e pegou aquele livro grosso que servia de suporte a algumas das obras de Pieter-Paul Ibsen.

Ficou lendo "A Psicologia dos Cosmonautas" até às duas da manhã; depois desistiu. Para ela, McLane continuava um enigma. Um enigma sem chave.

 

SERVIÇO de Segurança Galático Gabinete Villa. Esta inscrição constava da pequena placa metálica, afixada à direita da barreira eletrônica.

— Mas é claro — disse Villa, examinando Tamara, cujo rosto apresentava as marcas de uma noite mal dormida. — Sempre tenho tempo para gente como McLane.

— Ele manda agradecer de antemão — respondeu Tamara. — Ele...

— Sabe o que é que ele quer? — perguntou o coronel Henryk Villa. Percebeu o olhar atento de Tamara e deu um breve sorriso.

— Prefiro que ele mesmo diga isso ao senhor — respondeu Tamara. — Mas pelo que pude observar, estava encarando o assunto com muita seriedade.

Villa acenou, concordando.

— Se é assim, não tenho dúvidas de que se trata de algo muito importante.

— McLane estava bastante nervoso quando me pediu para marcar uma audiência com o senhor.

— McLane é um homem competente — disse Villa, olhando de relance para a tela de um videofone, cujo som estava desligado. — Não acha que tenho razão?

Cravou o olhar nos olhos de Tamara.

— Acho que... sim — respondeu ela, algo vacilante. Tinha suas próprias concepções a respeito da competência de McLane.

— Me desculpe — disse Villa em tom coloquial — mas isso não me soou muito convincente.

— É questão de interpretação — respondeu Tamara, enigmaticamente.

— É curioso; eu sempre pensei que a senhora o tivesse na mais alta consideração. Também na esfera privada. E em especial depois daquele dia, em que me pediu para ser transferida da Orion.

Quem respondeu foi a mulher, não a agente do SSG:

— Gostaria que não envolvesse meus sentimentos particulares nessa conversa. Não têm nada a ver com o assunto em pauta.

Villa parecia não ligar para o tom gélido dessa repreensão e prosseguiu, com estranha obstinação:

— Contudo, eu acredito que a senhora sacrificaria tudo por McLane, se a situação assim o exigisse.

— Nem tudo...

— E vice-versa. Por que está tentando iludir-se e a mim também?

Tamara olhou espantada para seu chefe. Realmente, este homem havia passado por uma transformação, pois nunca antes tinha demonstrado o menor interesse pelos sentimentos dos seus subordinados que, para ele, não passavam de peças inertes, manipuladas de acordo com sua conveniência.

— Bem — prosseguiu Villa, ainda naquele tom conciso e irônico — vamos deixar isso de lado, por ora. Deseja mais alguma coisa, minha filha? — com movimentos nervosos, começou a arrumar a papelada que cobria todo o tampo da mesa.

— Não — respondeu Tamara, laconicamente. — Isso é tudo, Villa.

— Então está bem; vou mandar avisar McLane.

Tamara despediu-se e atravessou a moldura da barreira eletrônica que se ergueu novamente atrás dela: uma armadilha mortal para todos que tentassem penetrar ali e não ostentassem a plaqueta de identificação especial. Um pormenor distinguia essa plaqueta das comuns: trazia indelevelmente gravado no seu material o código que permitia extinguir a barreira eletrônica. Usar esta plaqueta era um privilégio que Villa havia concedido apenas a umas poucas pessoas, em que depositava a mais irrestrita confiança. Tamara era uma dessas pessoas.

Tamara saiu da ante-sala e começou a estudar os letreiros afixados por cima das portas que davam para o largo corredor. A primeira porta: Informações. Nesta sala eram arquivados, sob forma de microfilmes, os registros completos de todas as ocorrências que fossem da competência do Serviço de Segurança. Os incontáveis classificadores e carretéis eram controlados por um computador, que compilava as informações desejadas, fornecendo ao interessado folhas de plástico perfuradas em código.

A segunda porta: Distribuição de Tarefas. Aqui se encontrava o cadastro geral de todas as pessoas que, direta ou indiretamente, trabalhavam para o SSG. Além do nome, representado por um número codificado, cada uma das inúmeras fichas fornecia indicações referentes às datas, aos locais e à natureza da missão do respectivo agente. Tamara sabia que também o seu nome estava registrado ali, seguido, fazia um ano, da palavra Orion e de uma descrição detalhada de sua tarefa específica. Cautelosamente, aproximou-se da porta seguinte.

A terceira porta: Ocorrências anormais. Tamara parou e decidiu-se numa fração de segundos. Primeiro, certificou-se de que não havia mais ninguém naquele trecho do corredor. Depois retirou um minúsculo cartão perfurado do punho da jaqueta e o inseriu na fenda do dispositivo de bloqueio. Lenta e silenciosamente a pesada porta blindada se abriu, e Tamara penetrou rapidamente no interior daquela sala inundada pelos incessantes tique-taques de inúmeros aparelhos de comunicação.

Ao longo das paredes havia vários armários de aço, encimados por telas de projeção, todas elas numeradas. Tamara constatou que a numeração não era seguida, portanto, devia obedecer à ordem cronológica. Dirigiu-se ao último armário na fila da esquerda, aquele que ostentava o número mais elevado, e ativou o aparelho, recorrendo mais uma vez ao diminuto cartão perfurado. Imediatamente a tela se aclarou e um leve zumbido emanou do interior do armário, sinal de que o carretel do microfilme estava começando a girar. Lentamente, as combinações alfanuméricas passaram diante dos olhos de Tamara, da direita para a esquerda. O agrupamento dos diversos símbolos era característico do Código Vermelho, reservado as informações ultra-secretas. Tamara sabia ler esse código fluentemente e ficou apavorada com o que estava lendo.

Acompanhou as notícias com expectativa crescente.

Por fim, apareceu o nome que vinha aguardando.

Gordon. Em poucos segundos, Tamara inteirou-se do que realmente tinha ocorrido nas vizinhanças do planeta Gordon e também da causa daquela ocorrência. Villa havia urdido um plano diabólico, e o único homem que vinha desconfiando disso era McLane. Cliff sabia que Villa estava ocultando algo. Mas que fosse isso, que a tela revelava, o próprio comandante não teria ousado imaginar. O que Villa pretendia, era... A porta blindada abriu-se silenciosamente. Villa entrou na sala, acompanhado de dois agentes do SSG, armados. Durante alguns segundos ficou olhando para as costas de Tamara; depois pigarreou discretamente. Tamara girou nos calcanhares.

— Interessante, não é mesmo, tenente? Tamara estarreceu de pavor. Villa prosseguiu:

— Seu amiguinho McLane vai ficar um bocado satisfeito com a senhora.

Soltou uma daquelas suas risadas rápidas e secas. Somente algo muito portentoso poderia abalar a serenidade desse homem, isso era óbvio.

— Quer dizer — emendou — ele ficaria um bocado satisfeito, pois é claro que a senhora não vai ter qualquer oportunidade de lhe revelar a sua espantosa descoberta.

Fez um gesto rápido com a mão direita. Imediatamente os dois agentes ladearam Tamara, ameaçando-a com os projetores. Tamara já tinha recuperado o auto controle e agora fitava, fixo, o rosto de Villa, que retribuiu o olhar sem denotar qualquer emoção.

— Coronel Villa — disse Tamara, vagarosamente — peço que me perdoe. Reconheço que abusei das minhas atribuições.

— De forma alguma, tenente Jagellovsk! Até que lhe fico muito grato! — Villa sorriu.

— Mas não consigo entender...

— Agiu inteiramente de acordo com os meus planos, meus interesses. Eu sempre afirmei que recompensava conhecer e saber avaliar corretamente os pensamentos dos subordinados.

Tamara não entendia mais nada. Villa não tinha reagido da maneira costumeira. Tamara sabia que não devia ter feito o que fez, e por isso estava preparada para receber uma severa repreensão. E agora, em vez de ser admoestada, acabava de receber a asseveração de que tinha agido corretamente. Resolveu manter-se calada.

— Ou acredita realmente que poderia ter entrado nesta sala, se eu não o quisesse?

— O que me levou a fazer isso — disse Tamara, tentando escusar-se mais uma vez — foi... foi pura curiosidade, mais nada.

Villa acenou sombriamente.

— Claro! A curiosidade de McLane! — respondeu, com sarcasmo.

— McLane não tem nada a ver com essa história! — afirmou Tamara, num tom nada convincente.

— Pare de dizer asneiras! Claro que foi McLane quem instigou a senhora a bancar a bisbilhoteira. E eu deixei que o fizesse pois precisava saber o que McLane estava querendo descobrir.

— Coronel, posso lhe assegurar... — começou Tamara, mas Villa cortou-lhe a palavra com um gesto brusco da mão.

— McLane é um sujeito astuto. Está exatamente na pista certa, mas vou enganá-lo. Afinal, já estou nessa ocupação há bastante tempo.

Sorriu para Tamara e depois disse, em tom gélido:

— Podem levá-la!

Os dois agentes, que haviam assistido a esse diálogo em silêncio, agarraram Tamara pelos braços e a empurraram em direção à saída. Villa os seguiu, e segundos depois a pesada porta blindada estava novamente fechada...

 

Às vezes, McLane tinha a impressão de que pelo menos metade do mundo era constituído por escritórios. E principalmente por escritórios iguais a esse, no qual se encontrava no momento: uma sala não muito ampla, mas provida de uma mesa de trabalho de tamanho descomunal, que separava McLane do homem do qual precisava obter uma informação.

Desta feita, não se tratava do gabinete de Wamsler, e muito menos do de Villa: Cliff estava conversando com o professor Sherkoff. Pelo fato de conhecer esse homem já há bastante tempo, McLane não tinha encontrado maiores dificuldades para conseguir essa audiência com o atarefadíssimo professor. E pela mesma razão McLane julgava que podia discutir abertamente o problema que o afligia. Quando terminou de fazer sua exposição, Sherkoff disse, calmamente:

— Ainda não entendi onde pretende chegar, comandante McLane!

Cliff soltou uma risada curta e sarcástica.

— Isso nem eu mesmo sei, professor. Minha pergunta é puramente teórica: acha possível que um homem, no qual depositamos a nossa mais irrestrita confiança, possa ter sido influenciado por... por... uma força estranha ou uma potência desconhecida?... é difícil encontrar o termo exato.

Algo reservado, Sherkoff perguntou:

— Está pensando numa influenciação por hipnose ou talvez telenose?

Cliff mudou de posição na poltrona e sacudiu a cabeça.

— Não; tem que ser um outro tipo de influenciação; afinal, assistimos a um caso de telenose e conhecemos os resultados, os efeitos. Mas agora a coisa é outra. Exteriormente, o homem continua o mesmo, não mostra a menor modificação. Porém, interiormente torna-se um outro indivíduo; sua estrutura mental passa por uma transformação radical.

— Quer dizer que assim acaba adquirindo uma personalidade nova?

— É mais ou menos isso. Sua maneira de pensar e de sentir, sua vontade e seu raciocínio, tudo isso é mudado em função de novas concepções, de novos objetivos. Um homem desses transforma-se num inimigo. Não devido à influência temporária de raios telenóticos. A transformação é mais profunda, mais ampla; modifica as características básicas, abrangendo toda a personalidade. Não sei formular isso melhor, professor; deu para entender?

Sherkoff refletiu durante alguns instantes; depois disse, pesando as palavras:

— Tem razão, major, não é fácil sintetizar um problema tão complexo em poucas palavras. De imediato, só posso responder o seguinte, em linguagem bem popular: a modificação total e permanente da personalidade de um homem equivale, por assim dizer, à reprogramação do seu cérebro e, por conseguinte, da sua inteligência. E reprogramar a mente humana é uma façanha que, para nós, por enquanto não passa de um sonho. Sabemos apenas que envolve um processo infinitamente complicado, que pode durar meses ou, quem sabe?, anos!

— Acaba de definir o grau de evolução atingido pela nossa neurocirurgia ou psicocinética, professor — disse Cliff, em tom apreensivo. — Acha possível que outras criaturas já possuam os meios tecnológicos necessários para modificar seres humanos?

Sherkoff empertigou-se na poltrona e lançou um olhar alarmado para Cliff.

— Não está se referindo aos extraterranos, está?

— Até hoje, são os únicos seres vivos que chegamos a conhecer — respondeu McLane. — Aliás, conhecer é força de expressão, pois só tivemos alguns encontros com eles, nada agradáveis por sinal. Receio que eles já dominam esse processo de mudar a mente humana. Ou então vão chegar lá mais depressa que nós, bem mais depressa.

Sherkoff permaneceu céptico.

— Nem com toda sua tecnologia superior vão conseguir isso, se não tiverem um homem em seu poder. E até agora não soubemos de caso algum em que um ser humano lhes tivesse servido de cobaia.

McLane lembrou-se de alguns incidentes não elucidados e disse:

— Talvez foram bem sucedidos numa tentativa da qual não temos a menor noção. Pois, em várias ocasiões, testaram seus inventos em todos os seres humanos por eles aprisionados. Foi isso que aconteceu lá em MZ-4, e depois naquele caso dos raios telenóticos que subjugaram o meu engenheiro de bordo e o agente de segurança; e agora... bem, professor, a esta altura já não sei dizer se estou sofrendo de uma desconfiança doentia ou não.

— Fale à vontade! — incentivou Sherkoff. — Isso fica entre nós dois.

Cliff começou a mexer no rádio de pulso e disse, pausadamente:

— Toda a minha desconfiança se baseia no seguinte: Villa e praticamente toda a chefia do SSG se encontram a bordo da Tau, realizando sei lá eu que missão secreta no cubo espacial Três/Leste 203. E de repente parece que o cosmos inteiro desaba em cima da Tau. O próprio Villa descreve a situação como catastrófica e, logo em seguida, cai em contradição. Milagrosamente, Villa e seu pessoal conseguem sobreviver à calamidade: esse é um dos pontos que me causa espécie, pois pela descrição inicial que fez do fenômeno, não podia escapar com vida. Ou então, ainda não aprendi a julgar as coisas em vinte anos de navegação espacial.

"Fato é que Villa consegue regressar, mas não pode e não quer revelar o que realmente se passou durante os dias que permaneceu no espaço. Tenta, porém, convencer todos nós que não houve catástrofe alguma, apenas uma tempestade de radiação inofensiva; uma daquelas que qualquer nave auxiliar enfrentaria sem maiores problemas. Se isso fosse verdade, a Tau nada teria sofrido."

— Estou acompanhando seu raciocínio — disse Sherkoff. — Prossiga.

— Assisti a última fase da catástrofe através da radiofonia hiperespacial — explicou McLane, em tom sombrio. — Não há a menor dúvida de que se tratava de campos gravitacionais produzidos pelos extraterranos. Pelo que sabemos, só eles estão em condições de gerar campos alternantes de tal intensidade. A Tau estava em apuros e Villa tentou escapar para Gordon a bordo de uma Lancet.

— Ainda não vejo nada de extraordinário — comentou Sherkoff.

— Foi justamente isso que me causou espanto. Nesse inferno, uma Lancet teria estourado como uma bolha de sabão.

— Quer dizer que o senhor acredita que... — começou Sherkoff, franzindo as sobrancelhas.

— É, eu acredito que os estranhos pararam de gerar aqueles campos energéticos assim que as Lancets estavam a caminho de Gordon. Não tinham a menor intenção de matar Villa; queriam-no vivo, assim como o estado-maior. Esses homens ocupam postos-chave na administração de Terra; imagine o que representam para quem não está familiarizado com o que se passa na esfera espacial terrana.

Sherkoff colocou as mãos espalmadas sobre a mesa e disse, em tom exortativo:

— Pense bem, McLane! Isso não pode ser! Nesse caso, os estranhos já deviam saber o tempo todo que Villa se encontrava a bordo da Tau!

Cliff esforçou-se para emprestar um certo quê de superioridade ao seu sorriso.

— Há inúmeras maneiras pelas quais podem ter atraído Villa para o cubo espacial Três/Leste 203. Talvez emitiram sinais radiofônicos truncados que lhe despertaram a curiosidade. No momento, isso não me preocupa muito, porque em breve vou ficar sabendo tudo a respeito da misteriosa missão da Tau. Tenho lá minhas fontes.

Cliff confiava na habilidade de Tamara; com um pouco de sorte...

Sherkoff deu um breve sorriso.

— Creio que entendi o suficiente, Cliff McLane. Só que omitiu um detalhe importante na sua argumentação.

— Qual seria?

— Se houver um pingo de verdade nesse seu pesadelo, isso significaria que os extraterranos já fincaram pé em Gordon. Pense bem na terceira zona de distância, Cliff!

— De todas as dificuldades, essa é a menor. MZ-4 já esteve uma vez em poder deles. E mais tarde conseguiram levar um planeta em chamas para a zona Zero, portanto, para a vizinhança imediata de Terra. Esqueceu-se disso, professor? E nós desconfiávamos de alguma coisa? Não fomos descobrir tudo isso praticamente no último segundo, bafejados por uma sorte inacreditável?

Cliff estava a ponto de desanimar. E não era para menos: em todas as audiências anteriores, sua história havia sido recebida com indisfarçado cepticismo e total falta de imaginação. Após tantas decepções, restava uma última esperança: o professor Sherkoff. Como cientista que lidava com a mente humana, certamente mostraria um pouco mais de compreensão e não negaria o apoio que McLane tanto almejava. Parecia, porém, que Cliff enganara-se mais uma vez. Desesperadamente procurou por um argumento que pudesse abalar a descrença de Sherkoff.

— Mas se os estranhos realmente se alojaram em Gordon, a essa altura isso já devia ser mais do que notório, não acha?

— Não necessariamente. As mensagens de rotina das estações controladoras podem perfeitamente ter sido forjadas ou manipuladas; tanto quanto as declarações de Villa.

Cliff respirou profundamente, aguardando pela resposta.

— Não há nada de suspeito nos comunicados de Gordon. Tudo é inteiramente normal: a redação do texto, o código empregado, a hora da emissão, etc. Até a respeito da catástrofe da Tau souberam dizer alguma coisa.

— Certo. Porém, nesse meio tempo, os operadores de Gordon já podiam ter sido transformados. Quer dizer, a guarnição passou a ser constituída por gente, de cujos cérebros os estranhos se assenhorearam. Foi o que fizeram com Villa.

O professor não quis comprometer-se e sugeriu:

— Não acha mais simples abordar esse assunto com Wamsler? Tenho certeza de que vai lhe prestar ouvidos. E como ele o aprecia muito, provavelmente vai mostrar-se menos céptico do que eu.

Cliff fez um gesto resignado com a mão.

— Minha suspeita é tão monstruosa que meus superiores me internariam num sanatório sem titubear, talvez até no seu, professor.

Sherkoff começou a rir baixinho, mas parou imediatamente quando viu o rosto de Cliff.

— Se me permite uma observação sincera, McLane...

— Pois não — respondeu Cliff. Já sabia mais ou menos o que Sherkoff ia dizer.

— Eu também acredito que o senhor está vendo fantasmas. Alguns dias de repouso num sanatório não lhe fariam mal algum. Não pense que com isso eu quero afirmar que tenha ficado biruta...

— Mas?! — perguntou Cliff, admirado.

— ...mas apenas que está à beira de um colapso nervoso.

Cliff já ia responder, quando ouviu o zunido do rádio de pulso. Sherkoff assustou-se, pois não estava habituado a esse ruído. Cliff apertou o botão de recepção.

— Escritório central do SSG chamando major McLane!

McLane e Sherkoff entreolharam-se, surpresos.

— Major McLane falando — disse Cliff, baixinho e desconfiado.

Cliff estranhou aquela voz, e ainda mais o tom em que falava. Afinal, esse sujeito não estava se dirigindo a um subordinado de Villa.

— Estou falando com o major McLane em pessoa? — insistiu a voz.

— Está.

— O coronel Villa aguarda o senhor às dezoito e trinta em ponto. Desligo.

Um ligeiro estalo, e o minúsculo aparelho emudeceu. O comandante consultou o relógio: ainda faltavam mais de trinta minutos para a audiência.

— O que quer de Villa?

Cliff levantou-se e deu de ombros.

— Talvez ele mesmo me revele o que estou tentando descobrir. Grato pelas suas valiosas explicações, professor Sherkoff!

O cientista deu um sorriso meio reservado.

— Foi um prazer poder ajudá-lo, major — respondeu, sem qualquer traço de ironia.

 

— DEZOITO horas e vinte e nove minutos:

Sem a menor discrição, McLane pôs-se a examinar a agenda eletrônica na mesa do ajudante do coronel. Seu nome estava anotado ao lado do número 18.30. Olhou para o rosto pouco expressivo daquele homem e perguntou:

— Foi o senhor quem me chamou ainda há pouco?

— Fui eu, sim.

— Podia ter feito isso em tom menos ríspido! — observou McLane, aborrecido.

— Não temos tempo para gentilezas — foi a resposta.

— Sabe muito bem, McLane — começou Villa, interrompendo aquele diálogo — que suas idéias sempre encontraram a maior receptividade de minha parte.

— Não é por outra razão que pedi para falar com o senhor, coronel.

— Mas o quê, por todos os planetas, pretende fazer em Gordon?

— Pretendo examinar a região onde se deu o acidente com a Tau. Preciso ter certeza de que o senhor e o comandante Lindley realmente não se enganaram quanto à natureza daquele fenômeno que causou a catástrofe.

Villa exibiu um sorriso malicioso.

— Entendo. Ainda está se remoendo com aquela derrota que sofreu outro dia, na reunião da Suprema Comissão Espacial, é isso?

— É mais ou menos isso, sim — respondeu Cliff, de modo agressivo. Nem de longe imaginaria que Villa fosse reagir desta maneira. — O senhor compreende: a vaidade ofendida do especialista!

— Quer dizer que continua acreditando que essa catástrofe deve ser atribuída à ação dos extraterranos?

Cliff mediu as palavras cuidadosamente. De forma alguma deixaria transparecer a suspeita que vinha nutrindo.

— Não acredito em nada — respondeu. — Estou me referindo a uma possibilidade que persiste, e isso me preocupa. A única coisa que quero é certificar-me de que essa possibilidade pode ser eliminada.

Villa soltou uma breve risada e apontou para a esquerda.

— Por que não fala com Wamsler? Cliff fez que não.

— O marechal Wamsler me expulsa do gabinete antes que eu tenha terminado de proferir a palavra Gordon!

Villa dirigiu um olhar penetrante a Cliff e disse:

— Assumo uma responsabilidade muito grande se lhe conceder uma autorização especial do SSG. Sabe que depois vou ter que justificar essa permissão perante a Suprema Comissão Espacial?

— Isso não deve ser difícil para o senhor, coronel; afinal a Comissão sempre confiou plenamente no seu discernimento!

Uma pausa seguiu-se às palavras de Cliff. Instantes depois Villa teria que tomar uma decisão; McLane permaneceu na expectativa, os nervos tensos, sem no entanto dar mostras da sua impaciência e curiosidade. E, neste momento, McLane estava realmente curioso em saber até que ponto chegaria a audácia de Villa; pois, se o chefe do SSG autorizasse o vôo a Gordon, correria um grave risco: McLane poderia descobrir a verdadeira causa daquele acidente. Mas também podia ser que Villa estivesse tão seguro de si, que nem sequer admitia tal possibilidade e deixasse McLane partir sem maiores receios; afinal, não imaginava que Cliff nutria uma terrível suspeita. McLane desistiu de conjeturar; não tinha chegado à conclusão alguma quanto à decisão presumível de Villa. Por sua vez, Cliff não sabia que, desde a prisão de Tamara, ele não passava de uma minúscula pedrinha no complicado mosaico de Villa... Villa rompeu o silêncio:

— É, não vejo motivo para...

— Para quê? — perguntou Cliff, baixinho.

— Não vejo motivo para indeferir seu pedido; por mim, pode decolar. Trate dos preparativos e deixe o resto comigo.

McLane mal conseguiu ocultar sua surpresa. Estendeu a mão a Villa.

— Obrigado, coronel Villa! Muito obrigado!

Villa acenou levemente com a cabeça e sem denotar qualquer emoção murmurou, pensativo:

— Só para raciocinar: vamos supor que o senhor tenha razão e que, portanto, os extraterranos infestam aquela região entre Gordon e os dois fortes de bloqueio. Nesse caso, realmente podem ter sido eles que provocaram o acidente com a Tau. Eu digo "podem", porque continuo incrédulo; mas se foram mesmo eles, pode estar certo de que vão fazer a mesma coisa com a Orion. E eu pergunto: acha que vai conseguir escapar de um inferno daqueles?

McLane encolheu os ombros e respondeu:

— Não sei; mas esse é um risco que vou ter que correr. Afinal, lá em MZ-4 consegui me safar daquelas torrentes energéticas.

Villa sacudiu a cabeça, enquanto fazia um apontamento.

— Não posso arcar com essa responsabilidade — disse em tom decidido.

Cliff viu a sua esperança derreter-se como gelo ao sol. Mas Villa não tencionava revogar sua decisão.

— Para prevenir esse perigo, pode mandar equipar a Orion com um neutralizador de campos de força; diga a eles que isso é uma ordem pessoal minha!

Cliff admirou-se pela segunda vez em poucos minutos.

— Mas isso é formidável, coronel! — exclamou; depois lembrou-se de um pormenor: — Só que isso vai levar dias...

— Não vai levar dias, não — interrompeu Villa, rapidamente. — Recentemente, Kranz descobriu um processo inteiramente novo que, dentro em breve, vai beneficiar toda frota. Conhece Kranz, não conhece?

— O engenheiro-chefe? Só de nome — respondeu Cliff. — Dizem que é uma capacidade.

— Atualmente, Kranz é a maior autoridade em gravitação artificial. Vai acompanhá-lo, para poder testar sua instalação revolucionária. Faz alguma objeção a isso?

— Claro que não! — respondeu Cliff. — E mais uma vez obrigado, coronel!

— Não seja por isso.

Villa recostou-se e olhou, como que por acaso, para uma folha que jazia em meio à papelada espalhada na mesa.

— Ora, já ia me esquecendo... — disse Villa. — Durante essa missão não vai poder contar com a agradável companhia do seu oficial de segurança.

Cliff empertigou-se, espantado.

— O quê?

Villa respondeu com um sorriso cordial e franco:

— É isso mesmo. A partir de hoje Tamara vai freqüentar um curso de especialização, que já devia ter concluído há muito tempo. Eu não podia imaginar que o senhor fosse me solicitar uma autorização de vôo.

— Claro que não. O senhor disse: curso de especialização?

— Ouviu direito, McLane.

— Que espécie de curso é esse? — quis saber Cliff. — Tamara é altamente capaz, e nunca me pareceu que precisasse ampliar seus conhecimentos. É verdade que às vezes deixava meus nervos em frangalhos, mas sempre soube tomar decisões acertadas.

Villa permitiu-se dar um sorriso compreensivo.

— Essa moça está para ser promovida desde a época em que a destacamos para acompanhá-lo, McLane. Há mais de um ano, portanto. E Tamara não pode ser promovida enquanto não for aprovada ao final desse curso, que se destina a iniciá-la nos segredos da nossa administração. Ela mesma pediu para ser inscrita.

— Ela bem que merece essa promoção

— disse Cliff. — Só que vai ficar mais presunçosa ainda.

— Parece que não gosta muito de mulheres presunçosas, comandante?

— Sou louco por mulheres vaidosas, convencidas e coisa e tal — contestou Cliff.

— Mas não a bordo de um cruzador. Por que será que Tamara não me contou nada a respeito desse curso?

Villa encolheu os ombros, indicando que também não sabia.

— Vai ver que lhe está guardando rancor — sugeriu, com um traço da sua velha ironia.

— Pode ser — disse Cliff, pensativo. — Com ela, a gente nunca sabe a quantas anda.

Villa suspirou.

Mulheres! — disse ele num tom que, desde os primórdios da sociedade humana, era empregado pelos habitantes masculinos deste planeta quando não conseguiam deslindar os pequenos segredos do sexo oposto.

Villa deu a audiência por encerrada. Os dois homens se despediram e Cliff retirou-se do gabinete. Claro que não podia notar o sorriso enigmático e satisfeito do chefe do Serviço de Segurança Galático.

 

Nove horas da manhã. Estava tudo pronto para a decolagem da Orion VIII. A sereia soou pela última vez, e as turmas de serviço começaram a abandonar o campo de pouso nos seus pequenos carros. Lentamente a parte metálica do elevador central foi recolhida ao bojo da nave. Os feixes luminosos dos holofotes mudaram de cor. Uma voz impessoal veio dos alto-falantes do intercomunicador de bordo:

— Base 104 para cruzador espacial rápido Orion VIII. O equipamento suplementar foi instalado, testado e aceito. Está liberado para decolar às nove horas e cinco minutos. .

Seis pessoas se encontravam na cabine de comando, e a tripulação não ficou pouco surpresa ao notar a ausência de Tamara.

Helga, que tinha feito uma aposta com Mario a respeito de uma possível ligação entre Cliff e Tamara, olhou de soslaio para o chefe; mas Cliff ostentava sua habitual expressão insondável.

— Obrigado, base! — respondeu o comandante e acionou a partida automática. Kranz estava em pé por trás de Cliff, observando atentamente os símbolos que apareciam na grande tela central. Eram sinais em código, relacionados com a operação decolagem, e que Cliff conhecia de cor e salteado.

— É melhor o senhor se sentar em algum lugar — disse McLane. — E amarre-se; basta que o gerador antigravitacional falhe durante um segundo para...

Kranz sorriu; confiava plenamente no perfeito funcionamento daquele dispositivo automático: afinal, o aparelho era invenção sua. O computador iniciou a contagem regressiva. Cliff olhou ao redor e acenou para Hasso na tela do videofone:

— Vamos embora, Hasso!

O engenheiro de bordo acelerou os propulsores.

— ...quatro... três... dois... um... zero...!

O silvo das máquinas aumentou. O anteparo energético ergueu-se lentamente, originando um gigantesco remoinho no Golfo de Carpentaria; enormes massas de água retrocediam cada vez mais, até formarem um poço, cujas paredes líquidas se uniram ao cilindro de aço da Base 104. A Orion VIII decolara.

Mantendo a posição horizontal, lançou-se vertiginosamente. Atravessando aquele turbilhão contido, segundos depois já se encontrava a mil metros de altura. Cliff sustou o movimento ascensional ligeiramente e fez a nave seguir um curso ao longo da costa leste do grande continente. Um curso pouco comum.

Cooktown ficou para trás, desaparecendo em direção norte; depois Maryborough, Brisbane e Sidney. O cruzador espacial passou entre a ilha de Tasmânia e a Nova Zelândia, dirigindo-se às regiões antárticas. Mais à frente despontaram as ilhas Macquarie, minúsculas interrupções na imensidão azul do oceano. Logo sumiram na distância e em seu lugar apareceu a gigantesca placa da Antártida, semi-encoberta por espessas camadas de nuvens. A Orion sobrevoou Terra Victoria percorrendo o ramo ascendente de uma parábola, e quando se encontrava exatamente por cima do pólo sul, Cliff lançou a nave verticalmente para cima, rumo ao espaço livre.

Coordenadas: Três /Leste 203.

Sessenta minutos mais tarde, Cliff transferiu os controles para o piloto automático. Recostou-se e começou a examinar seu hóspede. Kranz devia ter uns cinqüenta anos de idade. As fortes entradas, que se estendiam para além das têmporas, até que combinavam com o crânio alongado; o que destoava eram os olhos negros, irrequietos demais; pareciam querer se inteirar de tudo ao mesmo tempo. Por cima de uma suéter feita de fios metálicos, trajava uma jaqueta de corte folgado, provida de um enorme fecho magnético no cinto.

"A primeira impressão não é má", pensou Cliff.

Imaginava que com Kranz poderia discutir certos assuntos de maneira calma e racional. Além do mais tratava-se de um homem que gozava da confiança do coronel Villa. Cliff errou três vezes, mas isso ele não sabia.

Kranz era homem de Villa, mas num sentido bem diferente, muito mais perigoso. E, neste preciso instante, Villa estava conduzindo uma conversa que revelava tudo...

 

Serviço de Segurança Galático: Gabinete Villa. Hora: Dez e quinze. Villa tinha passado por uma transformação estarrecedora.

Apesar da sua índole calma, nunca deixava de irradiar uma certa vivacidade, e todos conheciam e temiam a mordacidade das suas observações e respostas. Mas agora dava a impressão de ser apenas uma máquina humana, um autômato frio, que sabia fazer apenas uma única coisa: funcionar.

— É de fundamental importância! — disse, com voz gélida e dura. Dirigia-se a um grupo de homens que, sem uma única exceção, pertenciam ao seu estado-maior. A seguir, explicou: — A partir de Cosmos menos cento e oitenta e seis todas as ligações radiofônicas externas devem passar pelos nossos postos de controle.

Um dos colaboradores ergueu a mão, colocando os dedos da outra sobre o relógio de pulso.

— Quando será iniciada a operação Cosmos?

— Daqui a setenta horas — respondeu Villa.

— Início... Cosmos... daqui a... setenta horas — alguém repetiu, obviamente fazendo um apontamento.

— Esse prazo tem que ser rigorosamente observado. Posso contar com isso? — perguntou Villa, em tom incisivo.

— Perfeitamente, coronel! Villa prosseguiu:

— A Cosmos menos cem, será efetivado o bloqueio de todas as bases das naves de grande porte.

Mais uma vez, alguém anotou a instrução, repetindo em voz alta:

— Bloqueio... bases... a Cosmos... menos cem.

Villa dirigiu-se ao colaborador que se encontrava junto ao transmissor hiper-radiofônico:

— Depois ordene a todos os postos da cadeia de alarma que enviem seus comunicados pelos canais radiofônicos normais. Preciso ter certeza absoluta de que os sistemas de radar não retransmitam os impulsos de aproximação.

O colaborador olhou de relance para o transmissor e deu um breve aceno.

— A Cosmos menos cento e sessenta e cinco, deverá ser emitida uma ordem alfa para todas as formações em operação no espaço.

— Qual o teor da ordem?

— Retornem imediatamente à base mais próxima. Sem qualquer demora.

— Entendido.

Villa levantou-se e disse, em voz alta:

— Repito: a partir desse segundo está em execução o plano Cosmos. A operação principal será iniciada daqui a exatamente setenta horas. As ações preparatórias, que acabei de definir, serão realizadas com uma antecedência de cento e oitenta e seis, cento e sessenta e cinco, e cem minutos, respectivamente. Se tudo correr conforme as previsões, a operação deverá estar concluída a Cosmos mais duzentos minutos.

Os homens de Villa acenaram em silêncio, conferindo os dados com suas anotações. Um relógio invisível, mas fatal, começou a tiquetaquear. Setenta horas... o que aconteceria daqui a setenta horas?

 

A Orion VIII continuava a varrer pelo hiperespaço, controlada pelo piloto automático. Após uma farta refeição, a tripulação tinha-se recolhido aos camarotes, com exceção de Hasso que ficou de vigia: uma medida regulamentar, mas a rigor perfeitamente dispensável. Agora, vinte e quatro horas depois da decolagem, estavam todos novamente reunidos na cabine de comando.

— Sou muito grato ao coronel Villa — disse Kranz a Cliff — por me ter proporcionado a oportunidade de testar meu novo sistema antigravitacional justamente durante uma missão da Orion. Por favor, não me interprete mal. Não quis dizer com isso que estou ansiando por enfrentar algum perigo, só por causa desse teste.

Cliff soltou uma risada.

— Sossegue o pito, Kranz. Já afirmou isso não sei quantas vezes desde que partimos. E, afinal, já estamos voando há mais de vinte e quatro horas sem registrar a menor anormalidade. Dormiu bem?

— Maravilhosamente — respondeu Kranz. — O termo é esse, sem exagero algum. Há muito tempo que não tive um sono tão repousante. Foi uma coisa tão boa que merece ser ressaltada.

— Espero — observou Hasso enquanto abria a porta do elevador — que as coisas continuem boas assim. Caso tenhamos de enfrentar um inferno como aquele da Tau, seu invento vai ter que funcionar muito bem, senão acabaremos sendo vítimas da navegação espacial. E me considero muito moço para exercer o papel de herói do cosmos.

Todos riram, apesar de não terem o menor motivo. Mas isso apenas um entre eles sabia.

 

A ORION VIII retornou ao espaço normal a vinte e uma unidades astronômicas do planeta Gordon, aproximadamente sessenta e sete horas após a decolagem. Cliff havia acelerado a nave com valores acima dos normais, conseguindo reduzir o tempo de vôo previsto em cerca de cinco horas. Todos já se encontravam nos seus postos. A voz de Atan Shubashi veio dos alto-falantes do intercomunicador de bordo: — Cliff! Algo está se passando à nossa frente. As telas de radar acusam impulsos de ressonância originados por objetos móveis.

Cliff desafivelou o cinto de segurança e dirigiu-se à mesa de Atan. Observou longamente as telas; por fim, disse:

— Realmente, algo se mexe lá na frente; seja o que for, está a uma distância incrível, quase além do alcance dos instrumentos.

Cliff tinha razão: os impulsos eram pouco nítidos e bastante distorcidos.

— Objetos estranhos? — perguntou Helga, lá da mesa do transmissor.

— Ainda não sei; não dá para distinguir coisa alguma — respondeu Cliff.

— Vamos em direção a eles? — perguntou a voz de Hasso do videofone.

— Um momento! — começou Kranz. — A sua tarefa não é...

Cliff lançou um olhar irônico para o engenheiro e disse, em tom calmo:

— Pode deixar, que eu me encarrego de dar as ordens nessa nave, Kranz. Afinal, a responsabilidade é minha, não sua.

— Está bem — resmungou o afamado inventor.

Cliff virou-se novamente para Atan e pediu:

— Sei que vai ser difícil, mas quero uma boa ampliação desses impulsos.

O astronavegador limitou-se a acenar.

— Parece que tenho mais sorte que Atan! — exclamou Helga. — Escutem só isso aí!

Girou o botão de um amplificador. Em quatro tons diferentes, os alto-falantes emitiram sinais radiofônicos truncados, que a tripulação já conhecia.

— Grupos ternários! — gritou Cliff através da barulheira.

Helga reduziu o volume. A voz de Hasso ressoou alta pela cabine de comando:

— Cliff, isso está ficando perigoso! Lembre-se de MZ-4!

McLane agarrou o microfone do intercomunicador de bordo:

— Do comandante para todos: pelo visto, trata-se dos extraterranos. Significa que conseguiram romper a cadeia de alarme do planeta. Helga! Preciso enviar uma mensagem hiper-radiofônica para F.R.E.T. Urgente!

Helga tinha imaginado qual seria a ordem de Cliff, e já estava tratando de estabelecer a ligação. Conseguiu completá-la. Mas seu interlocutor não pertencia às Formações de Reconhecimento Espacial Terranas.

 

Praticamente no mesmo instante: Serviço de Segurança Galático — Gabinete Villa:

— Tome nota desta mensagem e depois transmita-a imediatamente no código Cosmos; está pronto?

Villa falava rapidamente no microfone; seu rosto denotava concentração.

— Estou — veio a resposta. — Pode dizer.

— Foi iniciada a contagem regressiva Cosmos menos duzentos. As formações invasoras serão abastecidas com energia a partir de Cosmos menos cento e cinqüenta através do sistema de raios-pilotos de Gordon. Fim da mensagem.

O ajudante na ante-sala repetiu:

— ...abastecidas... a partir de Cosmos menos cento e cinqüenta... raios-pilotos de Gordon...

INVASÃO! Um membro do estado-maior de Villa entrou no gabinete e parou diante da mesa.

— O que é? — perguntou o chefe do serviço secreto terrano, rispidamente.

— Entrou um chamado hiper-radiofônico da Orion VIII McLane diz que tem uma mensagem urgente para F.R.E.T.

— Vamos saber já o que ele quer — disse Villa.

Apertou uma tecla e a tela de um grande videofone se aclarou; tratava-se, porém, de um aparelho provido de uma tecla especial, que Villa não havia calcado. E assim, enquanto Villa podia ver e ouvir McLane, o videofone a bordo da Orion permanecia sem som e imagem.

— Orion chamando F.R.E.T.. Tenho algo a comunicar. É urgente. Noto que meu chamado está sendo retransmitido, mas não consigo completar a ligação. Está me ouvindo, F.R.E.T.?

A um sinal de Villa, um dos colaboradores girou o videofone de tal maneira que Villa não poderia ser visto. Depois postou-se diante da tela e Villa apertou a tecla especial, fornecendo som e imagem a Cliff.

— O que foi que aconteceu, comandante? — perguntou o agente do SSG.

Cliff arregalou os olhos, espantado.

— Por todos os fantasmas do espaço, afinal com quem é que eu estou falando?

Ríspido, o agente respondeu:

— Exatamente com quem o senhor deveria falar, comandante McLane...

Na cabine de comando da Orion, um Cliff McLane incrédulo e surpreso fitou o grande "S" no peito do seu interlocutor, cuja imagem aparecia na tela do videofone, mas que, na realidade, se encontrava separado de Cliff por uma distância superior a cento e trinta e cinco parsec.

— Pois eu acho que não; vejo que o senhor pertence ao Serviço de Segurança, e o que eu preciso é uma ligação urgente com o gabinete do marechal Wamsler!

Possuído por uma calma inabalável, o agente de Villa respondeu:

— Sinto muito, comandante, mas no momento as comunicações hiper-radiofônicas entre a Estação Avançada IV e F.R.E.T. estão sofrendo interferências fortíssimas. Para remediar a situação, nós do SSG nos prontificamos a retransmitir todos os chamados através da Estação Avançada III. Pelo que entendi, o senhor tem algo de importante a comunicar?

McLane acenou e disse, em tom grave:

— Se tenho!

— Então, pode falar; já liguei o gravador.

— Constatamos a presença de objetos voadores desconhecidos no cubo espacial Três/Leste 203 e captamos sinais radiofônicos indecifráveis. Os objetos estranhos encontram-se além da cadeia de alarme e seguem um curso dirigido inequivocamente para o centro da nossa esfera espacial.

O homem na tela respondeu:

— Obrigado. Isso não constitui novidade para nós; tanto assim, que já tomamos todas as contramedidas cabíveis.

McLane deu um suspiro de alívio.

— Ainda bem; agora só quero ver a reação deles. O marechal Wamsler está a par de tudo isso?

A resposta veio na hora. Os homens de Villa sabiam perfeitamente o que tinham a fazer.

— Claro que está! Mantenha seu curso atual e aguarde novas instruções, comandante!

Bem que McLane tentou descobrir o que estava se passando por trás daquele homem, mas era impossível distinguir alguma coisa naquele fundo inteiramente negro, do qual se destacava apenas a imagem do seu interlocutor.

— Se eu mantiver esse curso vou interceptar a trajetória daqueles objetos em ângulo agudo; já pensou nisso?

— Já calculamos isso — respondeu o agente de Villa. — Não tem importância.

Cliff começou a ficar irritado com as respostas displicentes daquele homem, e gritou:

— Pelo visto sabem de tudo, mas até agora não se dignaram de me prestar uma única informação precisa. Já descobriram por acaso que, com toda a probabilidade, se trata de uma nova diabrura dos extraterranos?

— No momento, não posso afirmar nada — disse o agente do SSG. Ergueu a mão, acrescentou: — Obrigado, comandante! — e cortou a ligação.

Perplexo, McLane dirigiu-se à tripulação, falando no microfone do intercomunicador:

— Vocês entendem uma coisa dessas? F.R.E.T. simplesmente não consegue receber chamados diretos! É a primeira vez que isso acontece!

— Após alguns segundos, Shubashi rompeu o silêncio, perguntando:

Afinal, quem era aquele paspalho? Cliff encolheu os ombros.

— Eu lá sei?

Enquanto a Orion se deslocava lentamente em direção ao planeta Gordon, os sinais ternários dos estranhos tornaram-se cada vez mais débeis até que, por fim, se extinguiram.

— Cliff! — avisou Atan, de repente. — Aqueles ecos sumiram da tela do radar; mas a última coisa que eu vi foi que o curso deles apontava diretamente para Terra. Quanto a isso, não há a menor dúvida!

— Ainda bem que Terra está ciente disso — respondeu Cliff, baixinho. — Ao menos isso aquele sujeito deixou bem claro.

A Orion continuou a voar para Gordon... e ninguém a impediu.

 

— As bases avançadas não param de solicitar informações urgentes — disse um membro do alto escalão do SSG a seu chefe. Villa arregalou os olhos.

— A respeito de quê?

— Querem saber o que significa a presença daqueles objetos estranhos.

Villa levou apenas alguns segundos para formular uma resposta.

— Diga-lhes que a Suprema Comissão Espacial e o Governo foram inteirados desse fato, e que já adotamos todas as contramedidas necessárias.

— Entendido.

Um verdadeiro burburinho reinava no gabinete, normalmente tão tranqüilo. Mas Villa parecia não se incomodar com esse movimento inusitado. Trabalhava com uma serenidade impressionante, recebendo comunicados, despachando mensageiros, emitindo ordens e discutindo pormenores com os colaboradores mais chegados. Ele e seu pequeno grupo de conspiradores conseguiram envolver os colegas nesse torvelinho fatídico.

— É só mantê-los nessa roda-viva por mais cento e vinte minutos, assim ganharemos a parada! — asseverou Villa friamente.

Nesse instante, Tamara entrou no gabinete, conduzida por um dos conspiradores e um guarda do SSG, que não desviava a arma das costas da prisioneira. Pararam diante da mesa de Villa.

— Por que me prendeu aqui? — perguntou Tamara, furiosa.

O sorriso de Villa permaneceu afável.

— Tenho uma ótima razão para isso — respondeu, a meia voz, enquanto Tamara olhava rapidamente ao redor.

— Não acha que está na hora de me dizer qual é o seu jogo?

A pergunta era audaciosa, mas Villa apenas fingiu-se espantado.

— Pois eu pensei que já soubesse. Tamara sacudiu a cabeça, tentando ignorar aquela arma nas suas costas.

— Ora, ora! — disse Villa, com um sorriso sarcástico. — Não me faça de bobo. Tenho certeza de que McLane, seu amiguinho do coração, lhe explicou direitinho por que achava tão importante que a senhora bancasse a espiã na central do SSG!

Tamara convenceu-se de que não fazia mais sentido continuar a fingir. Resolveu falar sem rodeios:

— Então é verdade, mesmo? O senhor está tramando uma intentona, uma revolução?

Villa não se abalou com essa acusação frontal. Permaneceu sereno e tranqüilo, como se estivesse participando de nada mais sério do que de um jogo de guerra em escala cósmica. Apenas o ar presunçoso que exibia fazia de Villa um homem diferente daquele que Tamara conhecia. O chefe do SSG refletiu durante alguns segundos e depois respondeu:

— Intentona? Revolução? Acha que sou homem para perder meu tempo com coisas tão corriqueiras? Esses termos não definem nem de longe as reformas transcendentais que pretendo realizar.

Subitamente, a tela de um dos numerosos videofones se aclarou. Villa olhou atentamente para o aparelho.

— Posto de controle Dois/Leste 897 informa: vanguarda das formações invasoras chegou aos cubos espaciais do canal de invasão. Tudo transcorreu conforme planos. Nenhuma obstrução por parte de formações ou bases terranas. Apenas os fortes de bloqueio parecem permanecer intactos.

Villa disse, em direção à tela:

— Ótimo. Até Cosmos menos cento e sessenta e cinco, deverá estar concluído o agrupamento das formações principais nos setores de prontidão. Preparar interferência nas cadeias de radar.

A tela se apagou. Agora Tamara tinha ouvido o que estava procurando descobrir o tempo todo. Amaldiçoou a si mesma por ter acreditado tão pouco nos pressentimentos de Cliff. Pôs-se a refletir desesperadamente, à procura de uma possibilidade de poder intervir. Mas era preciso manter a calma. Aquela arma nas suas costas impedia qualquer ação brusca ou irrefletida. Um único gesto impensado e Tamara cairia morta, pois Villa não teria o menor escrúpulo em mandar matá-la ali mesmo. Assim como não teve escrúpulo algum em organizar e dirigir uma invasão dos extraterranos. Mesmo que agora alguém ainda desse pela terrível verdade, pouca diferença deveria fazer, pois a esta altura dos acontecimentos já era mais do que duvidoso que Terra pudesse oferecer uma resistência eficaz. E McLane? Onde estaria McLane?

— Coronel Villa! — exclamou Tamara. — Será que ouvi direito? O senhor está ultimando os preparativos para uma invasão? Mas isso é uma loucura!

Villa sentiu-se desafiado e respondeu, algo irritado:

— Esse é o recurso simplista da grande massa: tachar de loucura tudo aquilo que as suas inteligências medíocres não alcançam.

— Mas... — começou Tamara.

Villa cortou-lhe a palavra com um gesto da mão.

— Não disponho de tempo para discussões prolongadas. Agora preste bem atenção: tenho certeza de que daqui a pouco vai entrar um novo chamado de McLane. Quer ele queira ou não, o chamado vai nos chegar, pois captamos toda a radiofonia hiperespacial.

— Mas ele chamará Wamsler... — murmurou Tamara, baixinho; mesmo assim Villa ouviu a observação e respondeu, friamente:

— Duvido que o consiga; há vinte e quatro horas controlamos todas as comunicações radiofônicas, bem como a maioria das linhas diretas às diversas bases. Censuramos tudo e só retransmitimos as mensagens rotineiras, inofensivas.

Num acesso de raiva impotente, Tamara exclamou:

— Seu... seu desertor!

Villa ignorou o insulto e prosseguiu:

— Portanto, quando McLane voltar a chamar, a senhora vai falar com ele. E eu agora vou lhe dizer exatamente o que vai comunicar ao seu amiguinho. E esse arma nas suas costas certamente vai impedi-la de cometer algum ato irrefletido.

Agora Tamara estava entendendo tudo. Entre Terra e Gordon estendia-se um raio linear, que abasteceria as naves invasoras com energia, ao mesmo tempo que lhes serviria de raio-piloto. Devia haver uma quantidade enorme daquelas naves e, uma vez que se encontrassem no hiperespaço, seguindo o rumo certo, não mais poderiam ser detidas. Não tardariam a aparecer em massa no sistema e Villa estava em condições de imobilizar as frotas terranas. Tamara percebeu que o ponto nevrálgico da operação já não era Villa... agora, chamava-se Gordon. E McLane pairava a quinze unidades astronômicas de Gordon. E não sabia de nada...

 

No momento, Helga Legrelle e Atan Shubashi eram as pessoas mais importantes a bordo. Tudo tinha acontecido de repente.

A Orion VIII encontrava-se a quinze unidades astronômicas de Gordon quando, de uma hora para a outra, as telas de radar de Atan se povoaram de impulsos que afluíam de todas as direções, como pequenos insetos que convergem para um foco luminoso. E dos receptores de Helga emanavam os grupos ternários daqueles sinais ininteligíveis. O estado de alerta total reinava na cabine de comando.

— Eles vêm de três direções e se agrupam nas proximidades do sol do planeta! — gritou Atan. — São centenas, Cliff!

— Portanto, a instalação de radar em Gordon, que devíamos controlar, ou pifou ou já foi ocupada pelos estranhos. Helga...

Hasso e Mario acompanhavam a conversa que "estalava" nos alto-falantes de bordo. Kranz ficou reduzido a uma figura sem importância. Estava em pé, ao lado da sua poltrona, a mão displicentemente apoiada no cabo da arma, observando as manipulações rápidas da tripulação e as agulhas nos mostradores dos instrumentos.

— ...mensagem hiper-radiofônica para Wamsler! Insista, Helga! Tenho de falar com Wamsler, custe o que custar!

— Está bem — respondeu Helga. Atan externou suas dúvidas:

— É pura perda de tempo, Cliff! Não adianta; não conseguimos passar da Estação Avançada III!

Cliff permaneceu inflexível.

— Mesmo assim, tente novamente. Quando voltarmos, vou saber direitinho o que se passou por lá. Estou vendo que minha desconfiança foi mais do que acertada!

Helga e Atan trataram de operar seus aparelhos. McLane dirigiu-se lentamente ao transmissor; de repente parou e com dois passos rápidos e inesperados postou-se atrás de Kranz, arrancando-lhe a arma do bolso embutido.

— O quê...? — exclamou o engenheiro. Cliff mostrou os dentes, num riso cínico.

— Queira aceitar as minhas desculpas. Mas, por via das dúvidas, a sua arma vai ficar comigo, meu caro. É que já houve gente demais a bordo da Orion apontando uma HM-4 para mim.

Num gesto de indiferença, Kranz deu de ombros e resmungou:

— Para mim, tanto faz como fez.

— Para mim, nem tanto — disse Cliff, ainda rindo. — Faça de conta que me entregou a arma de livre e espontânea vontade. E não me leve a mal. É uma mera medida de precaução. Tenho certeza de que o coronel Villa não o destacou para nos acompanhar apenas por motivos humanitários.

Kranz mordeu os lábios e disse, mostrando-se aborrecido:

— Mas isso é simplesmente ridículo!

— Tanto melhor — respondeu Cliff. — Em todo caso, seguro morreu de velho.

Enquanto isso, Helga já tinha conseguido estabelecer a ligação radiofônica e agora começou a ler o início da mensagem. Para precaver-se contra uma possível falha do microfone principal, havia acoplado toda a bateria de que o transmissor dispunha; assim, tinha certeza de que seu chamado seria ouvido:

— Orion chamando F.R.E.T... Orion chamando Wamsler...

 

Serviço de Segurança Galático — Gabinete Villa. Estava amanhecendo nesta parte de Terra. Captada na superfície do continente por um jogo de prismas e espelhos, a luz do dia penetrava através dos enormes vidros no teto, emprestando um brilho estranho aos objetos. Esse detalhe só hoje Tamara notou. Inteiramente lúcida, apesar da exaltação de que era possuída, gritou:

— Pode me matar, coronel Villa!

— Não gostaria de fazê-lo — interrompeu-a Villa, com um sorriso.

— Mas não pode me obrigar a dar ordens a McLane, com as quais eu não concordo!

Enquanto vociferava, Tamara descobriu o que estava procurando. Os auxiliares de Villa haviam instalado um extenso painel na borda dianteira da mesa do chefe do SSG. As numerosas teclas permitiam estabelecer a comunicação audiovisual entre esse centro de operações e qualquer uma das repartições espalhadas pela base submarina. Aquela tecla, por exemplo, Tamara reparou, destinava-se a interligar em circuito fechado somente os gabinetes dos altos dignitários e respectivas ante-salas.

— Em primeiro lugar, posso obrigá-la — explicava Villa nesse instante com uma certeza tranqüila — e em segundo lugar, quem vai dar ordens a McLane sou eu. E garanto que vai cumpri-las.

Durante alguns segundos, Tamara desviou o pensamento daquela arma nas suas costas, concentrando-se em avaliar a chance que teria de apertar aquela tecla sem que ninguém a percebesse.

— Acredita mesmo que ele vai cumprir as suas ordens, coronel? — disse, fingindo-se surpresa. — Pensei que conhecesse McLane melhor!

Um dos colaboradores de Villa entrou no gabinete e comunicou:

— Mensagem hiper-radiofônica da Orion para Wamsler.

Villa exibiu um sorriso autoconfiante.

— Transfira a ligação para cá. Mas antes fale com ele. Primeiro quero saber até que ponto esse comandante está informado das coisas.

O ajudante liberou o canal.

— Aqui fala o comandante McLane a bordo da Orion VIII. Estou chamando o marechal Wamsler!

O homem de Villa permaneceu postado diante das lentes e disse:

— Pode falar, comandante!

— Quero falar com o marechal Wamsler, e com mais ninguém! — berrou McLane.

— Já lhe expliquei antes que somos forçados a retransmitir os chamados através de um outro canal, comandante!

McLane não aceitou a observação.

— Pode me contar quantas lorotas quiser — respondeu em tom incisivo — mas fique certo de uma coisa: vou começar a agir por conta própria, se não estiver falando com o marechal Wamsler dentro de três segundos!

Villa postou-se por trás de Tamara, que sentiu a pressão da arma aumentar.

Em tom baixo e brutal, Villa disse a Tamara:

— Mostre-se a ele, senão o projetor vai começar a funcionar!

Tamara avançou dois passos, aproximando cautelosamente a mão daquela tecla. Encontrava-se agora ao lado do primeiro locutor, diretamente defronte das lentes do videofone, e fitava o rosto de McLane. Villa anunciou-se, dizendo em voz alta:

— Olá, McLane!

— Já o reconheci, coronel! — respondeu McLane.

— Ótimo! Sou eu mesmo. E tenho uma pequena surpresa para o senhor, comandante!

McLane acenou sombriamente e apontou para Villa.

— Se algum dia voltarmos a nos encontrar, coronel, vou retribuir a gentileza; também tenho uma surpresa e tanto para o senhor, pode acreditar!

— É uma pena — respondeu o chefe do SSG — que não estamos nos defrontando pessoalmente. Como já deve ter reparado, à minha frente encontra-se seu oficial de segurança, tenente Jagellovsk. E eu juro que essa moça vai morrer aqui e agora, se o senhor nâo cumprir à risca as minhas instruções. Entendeu isso?

McLane observava aquela cena em silêncio. Parecia que estava assistindo a um filme de terceira categoria na televisão: o chefe do Serviço de Segurança planejava um golpe que poderia aniquilar Terra. Villa acenou levemente com a cabeça. O guarda pressionou a espinha de Tamara com a ponta aguçada do projetor. Tamara foi impelida para diante, em direção ao videofone. Soltou um grito leve e ao mesmo tempo calcou aquela tecla.

— Tamara! — gritou McLane.

Tamara agarrou-se à mesa e disse, baixinho:

— Sim, McLane?

Silêncio...

A tripulação rodeava a poltrona de Cliff, com exceção de Hasso, cuja imagem aparecia nos fundos. E todos olhavam, estarrecidos, para aquele quadro na tela: Tamara em primeiro plano, de olhos arregalados. Por trás dela, Villa. Controlado e sereno, porém cônscio do seu triunfo. A seu lado, de arma na mão, estava o guarda carrancudo. E ambos tinham uma expressão que só poderia ser chamada de impiedosa.

 

No mesmo segundo: Formação de Reconhecimento Espacial de Terra — F.R.E.T: Ante-sala do gabinete Wamsler.

Uma ordenança feminina e Michael Spring-Brauner estavam discutindo alguns aspectos do relacionamento humano. Concordaram plenamente em que a maioria das ligações não fazia o menor sentido, além de ser passageira. Chegaram a essa conclusão porque uma colega de ambos, que não julgavam capaz disso, tinha-se apaixonado perdidamente por um oficial da frota.

De repente, empertigaram-se e estacaram no meio do diálogo. A tela do videofone à sua frente se aclarou; os alto-falantes estalaram. Ouviram a voz de uma mulher e, uma fração de segundos mais tarde, reconheceram Tamara Jagellovsk.

— Estava mais do que certo, McLane — disse Tamara em voz alta. — Mas agora é tarde demais. O coronel Villa venceu: a invasão já foi iniciada. E trata-se realmente dos extraterranos!

Tamara soltou um grito. Spring-Brauner viu McLane retorcer a boca. Ao mesmo tempo, ouviram novo grito de Tamara. Parecia que o eco se multiplicava nas paredes da ante-sala. A ordenança e Spring-Brauner entreolharam-se em silêncio. Spring-Brauner levantou-se rapidamente e estendeu a mão para o teclado do videofone; pretendia entrar na conversa. Mas a ordenança agarrou-o pela manga, dando-lhe a entender, por meio de um gesto, que era preferível continuar apenas ouvindo. Observaram a tela:

Os dois homens afastaram Tamara brutalmente do microfone. A voz gélida de Villa fez-se ouvir:

— McLane! Acaba de ver e ouvir que não estou blefando! A vida de Tamara Jagellovsk está nas suas mãos. Você vai fazer o que eu mandar?

McLane perguntou com voz embargada:

— O que quer que eu faça? Villa:

— Onde está Kranz?

— Está aqui, na cabine de comando — respondeu o major.

Com um movimento rápido e preciso Spring-Brauner apertou um botão. Um possante gravador começou a funcionar, registrando as impressões ópticas e o som. Essa fita poderia se tornar uma inestimável prova material. A voz de Villa ordenou:

— Quero Kranz junto ao transmissor hiper-radiofônico!

McLane fez um gesto por cima do ombro e pouco depois Kranz estava a seu lado, diante das lentes.

— Kranz falando, coronel! — disse calmamente. — Fui desarmado de surpresa.

Villa manteve-se impassível.

— Evidentemente eu tinha contado com isso. McLane! Preste bem atenção: vou lhe dar exatamente sessenta segundos para se decidir. No máximo daqui a um minuto Kranz vai me comunicar que assumiu o comando da Orion, que está novamente de posse da arma e que todos a bordo vão obedecer às suas instruções. Caso contrário, Tamara morre. Está bem claro isso?

McLane olhou rapidamente para Kranz. Todos sabiam que, com a arma na mão, Cliff poderia obrigar Kranz a dizer o que ele, Cliff, queria.

— Sim, está — respondeu Cliff. — Está bem claro.

"Nada está claro", pensou. Villa soltou uma breve risada.

— E é óbvio que Kranz vai emitir seu comunicado no código Cosmos, um código que o senhor, comandante, felizmente nâo entende. Portanto, abstenha-se de qualquer tentativa de chantagem. Eu perceberia isso num instante. Como já disse, tem sessenta segundos para se decidir. A partir desse momento.

Enquanto os segundos se passavam, os guardas colocaram Tamara junto à parede, de costas para o gabinete. Ordenaram-lhe, baixinho, que não se mexesse, as armas continuariam apontadas para ela. Pelo visto, McLane era um homem muito importante... o único adversário em potencial de Villa nesses minutos iniciais da invasão. Villa anunciou:

— Faltam cinqüenta segundos.

Não se conteve e acrescentou cinicamente:

— ...e não se esqueça de um pormenor, McLane. Nós aqui continuamos a empregar a velha e boa HM-4. Deve estar lembrado das possibilidades que esta beleza de arma oferece...

Ao menos uma coisa ficou evidenciada durante esses parcos sessenta segundos: o coleguismo que a tripulação sentia por Tamara e a vontade de lhe oferecer uma ajuda imediata desvaneceram-se por completo. Helga, Mario, Atan, Hasso e Cliff McLane... todos temiam pela vida daquela moça. Nenhum deles subestimava Villa; não nutriam a menor dúvida que o chefe do SSG não vacilaria em transformar sua ameaça em brutal realidade. Kranz exibiu um sorriso confiante.

— Só mais trinta segundos... — avisou Villa, com indisfarçada ironia.

 

A ordenança e Spring-Brauner sentiam-se por demais atônitos para poderem alcançar o verdadeiro significado daquilo que estavam ouvindo. Por isso, não tomaram qualquer iniciativa e continuaram a prestar atenção naquele diálogo encarniçado entre McLane e Villa.

— É inacreditável! — sussurrou Spring-Brauner. — Será que tudo isso não passa de uma peça bem encenada?

— Acha mesmo? — indagou incrédula a ordenança. — Não havia nem um pouco de encenação na violência com que trataram Tamara!

— Então não entendo como podemos estar assistindo a esse drama! Não faz o menor sentido! Ou não considera também de uma estupidez imperdoável divulgar tranqüilamente um plano secreto de tal alcance?

— Tamara deve ter conseguido estabelecer a ligação direta SSG—F.R.E.T. Lembre-se que aqui embaixo mantemos comunicação por circuito fechado. Tenho certeza de que Tamara conhece as chaves ou teclas correspondentes.

Spring-Brauner afastou os últimos receios e tomou uma decisão que, mais tarde, viria a cobri-lo de honrarias.

— Vamos! — ordenou. — Avise Wamsler e a Comissão Espacial! E o governo também!

A moça fitou Spring-Brauner durante um segundo e depois dirigiu-se à porta.

— ...vinte segundos, McLane! — a voz de Villa era contundente.

— Envie mensageiros! — gritou Spring-Brauner. — Sei que é mais demorado, mas por outro lado é mais seguro. Villa deve estar controlando todas as linhas!

A ordenança saiu na disparada.

— ...só tem quinze segundos, McLane!

 

Encontravam-se todos na cabine de comando, inclusive Hasso, que subira da casa de máquinas logo após ter ouvido a primeira troca de palavras entre o comandante e Villa. Cliff encarou a tripulação; na mão, balançava a arma de Kranz.

— Não fiquem parados aí como as estátuas de Chroma! — berrou McLane, exaltado. — Digam logo o que eu devo fazer!

A voz sarcástica de Villa veio dos alto-falantes:

— Só mais dez segundos, McLane! Parecia sentir um prazer diabólico nesse jogo mórbido. Hasso dirigiu o olhar para Cliff, mas o comandante não percebeu que a expressão do seu velho amigo era tremendamente séria.

— Não posso decidir isso sozinho! — gritou Cliff, desesperado.

— Faltam apenas sete segundos! Com voz calma e objetiva, Hasso disse:

— Cliff, devolva a arma a Kranz! Mario de Monti titubeou e secundou a sugestão de Hasso:

— Isso mesmo, Cliff, devolva a arma! Com o rosto denotando o mais profundo desespero, Cliff perguntou:

— Vocês sabem o que isso significa? Helga olhava ora para Villa ora para

McLane; por fim, disse, resignada:

— Seja cavalheiro ao menos uma vez na vida, chefe!

— ...exatamente quatro segundos... McLane deu-se por vencido e entregou a arma a Kranz.

— Até que enfim! — exclamou o engenheiro.

Imediatamente apontou o projetor para Atan e com um movimento rápido arrancou a arma que o pequeno astronavegador trazia oculta no bolso da jaqueta de bordo. Depois deu um aceno de satisfação; agora dominava a tripulação com duas armas mortíferas.

— E eu crente que ele não tinha notado que eu estava armado!

Ninguém ligou para o suspiro de Atan, que não escondia sua profunda decepção.

— Coronel Villa... aqui fala Kranz. Algol-vesta-inter-Cosmos U maiúsculo: índigo!

Villa aproximou a cabeça dos microfones e respondeu, rápida e concisamente:

— Confirmo: índigo... Desligo.

Porém, por uma razão que mais tarde ninguém conseguiria explicar, a ligação não foi cortada. Enquanto a Orion prosseguia em baixa velocidade rumo a Gordon — umas doze unidades astronômicas a separavam ainda do planeta — Villa continuava a emitir suas ordens rápidas e precisas em Terra.

— Muito bem — disse ele, virando-se para seus auxiliares. — Já cuidamos de McLane. Agora, o controle-Cosmos, por favor!

Imediatamente uma voz fez-se ouvir de um dos numerosos alto-falantes:

— Cosmos menos cento e sessenta e cinco. A totalidade dos grupamentos invasores já se encontra nos setores de prontidão. Não houve qualquer obstrução por parte de formações ou bases terranas. Villa consultou o relógio.

— Cosmos menos cento e sessenta e três: início da fase de imersão no canal de invasão!

— Entendido. Desligo.

Um dos homens do SSG apontou para Tamara, que continuava postada imóvel rente à parede.

— E aquela lá? Vamos liquidá-la? Villa refletiu por alguns instantes; depois decidiu.

— Não há pressa; prefiro esperar até Cosmos menos cinqüenta. Pode ser que ainda venhamos a precisar dela, principalmente se F.R.E.T por um acaso descobrir a nossa trama. Ela é muito conhecida lá. Podem levá-la.

Dois agentes do SSG levaram Tamara de volta à pequena cela.

Terra estava indefesa, pois ignorava por completo o que poderia acontecer, graças à eficiência do bloqueio das comunicações e das inúmeras outras medidas de segurança que Villa havia adotado. E assim Terra não poderia suspeitar que a esta altura centenas de naves estavam reunidas além do planeta Gordon. Naves estranhas. Iguais àquelas que McLane e sua tripulação haviam capturado em MZ-4... No momento em que irrompesse do hiperespaço, essa frota dominaria o sistema terrano.

As naves dos estranhos começaram a se agrupar de seis em seis, formando esquadrilhas com aspecto de cunha. Uma após outra, as formações se puseram em movimento, acelerando incessantemente. Cliff observava a manobra atentamente nas telas de radar de Atan, e começou a imaginar como a invasão se processaria.

O ponto-chave da operação era Gordon. Entre este planeta e Terra, passando entre dois dos fortes de bloqueio fora de combate, estendia-se um raio. Um verdadeiro raio-piloto que atravessava o hiperespaço. E assim que a última nave tivesse mergulhado nesse meio misterioso, Terra estaria perdida. A partir daquele momento, nada mais poderia deter a invasão. Os estranhos continuavam a formar suas esquadrilhas. E a Orion VIII se arrastava em direção a Gordon.

Apesar da situação desesperadora, Wamsler teve que sorrir; há muitos anos que a Sala de Reunião da Suprema Comissão Espacial não tinha sido palco de tamanha balbúrdia. Era tanta gente a entrar e sair correndo da sala que não houve outro jeito senão desligar temporariamente a barreira eletrônica. Esse ato contrariava frontalmente as disposições de segurança. Os homens mais importantes estavam todos presentes, convocados pelos mensageiros que Spring-Brauner e a ordenança haviam despachado: Sir Arthur... Kublai-Krim... Wamsler... Von Wennerstein... e outros mais. Providências imediatas não tardaram a surtir efeito e, assim, grande parte das comunicações já estava restabelecida, passando por linhas e canais que seguramente não eram controladas pelos censores do SSG.

— Meu pessoal — disse Wamsler, apontando para Spring-Brauner, que mudou de cor — conseguiu captar uma conversa mantida no escritório central do SSG; como, eu não sei. Mas sei que a palestra ouvida justifica os maiores receios. Villa ficou maluco. Está dirigindo uma invasão pelos extraterranos!

Sir Arthur exigiu em voz alta:

— O governo tem quê nos conceder plenos poderes!

Wamsler estava a ponto de entrar em ebulição. Sem a anuência do governo, a Suprema Comissão Espacial continua de mãos atadas. Sem poder agir... numa hora dessas!

— Isso escapa à minha compreensão! — prosseguiu Von Wennerstein. — Como é que a coisa pôde chegar a tal ponto? E diante dos nossos olhos, meu senhores!

Wamsler sentiu que a acusação velada era dirigida a ele, e tratou de se defender:

— Alguém de sã consciência poderia imaginar que o homem encarregado de zelar pela nossa segurança faria exatamente o contrário? Que em vez de zelar por ela, a torpedearia?

Kublai-Krim resolveu agir com rapidez. Deu algumas ordens a três dos seus oficiais, que rodearam a sua poltrona.

— Isolem imediatamente todo o complexo do SSG. Levantem todas as barreiras. Depois empreguem os Vago-irradiadores e tomem as entradas de assalto! Temos que pegar Villa de surpresa!

Chamou um outro oficial e disse:

— Todas as forças armadas espaciais disponíveis devem se dirigir imediatamente para o campo de operações. As medidas de segurança previstas no plano Delta entram em vigor a partir desse momento; sei que a relação é extensa, mesmo assim quero que seja irradiada na íntegra. E fica proibida a divulgação de notícias!

Os oficiais bateram continência e saíram na disparada. Chegaram tarde demais. Por uma questão de segundos: Villa estava emitindo uma ordem no seu gabinete:

— Cosmos menos cem. Bloquear as bases espaciais. Façam explodir as câmaras de compressão.

Bastava provocar uma interrupção de alguns segundos. Chaves foram desligadas por controle remoto, cortando por cinco segundos o abastecimento de energia dos enormes anteparos protetores. Com violência inconcebível as águas do oceano lançaram-se verticalmente para o fundo da Base 104, onde uma nave espacial estava em vias de decolar. Felizmente todas as eclusas estavam fechadas, com exceção de uma, pela qual, nesse momento, passava um comboio de carros robotizados. A água destruiu todos os holofotes e arrastou novamente para baixo a nave que já tinha se desprendido do piso da base. A torrente lançou-se estrondosamente pela eclusa aberta, levou os carros de roldão e inundou boa parte dos corredores e galerias. O dispositivo de segurança da eclusa entrou em funcionamento: girou lentamente as comportas externas até conseguir fechá-las. A torrente continuou a varrer as cavernas submarinas, devastando ou danificando um sem-número de recintos. Houve feridos mas, como por um milagre, nenhum morto.

A nave espacial possuía impulso suficiente e duas horas mais tarde apareceu na superfície, onde ficou boiando até ser rebocada para a margem. E agora as possantes bombas do sistema de drenagem começaram a funcionar... Em meio do caos Villa emitia mais uma ordem do seu gabinete:

— Mensagem hiper-radiofônica a todas as formações em operação! Retornem imediatamente a Terra. Esta é uma ordem alfa do Serviço de Segurança Galático!

Ao mesmo tempo:

O marechal Wamsler estava plantado que nem uma rocha diante de um gigantesco videofone e berrava a plenos pulmões:

— Das Formações de Reconhecimento Espacial para todas as unidades! Atenção! Este aviso torna sem efeito todas as ordens recebidas até o momento!

Não era difícil para Wamsler imaginar que ordens Villa deveria ter dado às unidades em operação no espaço. Continuou a berrar:

— Alarme alfa! Numerosas esquadrilhas dos extraterranos dirigem-se neste instante para Terra. Ordeno a imediata partida das Formações de Combate Pesadas para Gordon... cubo espacial Três/Leste 203. Repito: Partida imediata...

Ao mesmo tempo:

Sir Arthur encontrava-se no seu gabinete, do qual a água já estava começando a se escoar. A ligação audiovisual com a sede do governo continuava intacta, se bem que a imagem era algo deficiente, com fortes estrias atravessando a tela.

— Aqui fala a Suprema Comissão Espacial — disse Sir Arthur, agitado e quase sem fôlego. — Cumpre-me informar ao governo o seguinte: os agentes de Villa e, portanto, os estranhos, destruíram ou desligaram os anteparos protetores de numerosas bases submarinas. As bases encontram-se completamente inundadas. Porém os trabalhos de limpeza já foram iniciados. A frota invasora prossegue ao longo de uma reta matematicamente exata, e está se aproximando do cubo espacial Dois/Leste 897, ou seja, do cubo vizinho ao de Gordon. A invasão parece inevitável. As possibilidades de oferecer resistência são diminutas. Proponho negociar com os extraterranos... Ao mesmo tempo:

— Do governo para a Comissão Espacial e demais autoridades que participam desta conversa em circuito fechado: quem negociar ou pretender negociar com os estranhos responderá pelo seu ato perante uma corte marcial. O inimigo deverá ser combatido por todos os meios disponíveis!

Von Wennerstein acenou sombriamente para Sir Arthur, que ele reconheceu num dos seus numerosos monitores, e cortou a ligação.

Ao mesmo tempo:

Wamsler continuava a berrar na sua instalação:

— Do Reconhecimento Espacial Terrano para todos: Atenção! O SSG capta e desvia para outros canais todas as mensagens hiper-radiofônicas, bem como as mensagens normais enviadas pelas naves em operação no espaço através da cadeia de estações retransmissoras. Em virtude disso, é totalmente inútil tentar enviar comunicados através das Estações Avançadas ou bases próximas de Terra. O mesmo se aplica as ligações audiovisuais...

Ao mesmo tempo:

Uma irradiação errante tinha-se infiltrado nos intricados sistemas direcionais e agora emanava dos alto-falantes em todas as salas da administração. Tratava-se de um programa de entretenimento, irradiado por uma nave de passageiros, que emitia na mesma onda.

— Minhas senhoras, meus senhores — disse uma voz distante — olhem pelas escotilhas da direita, por favor. Lá podem observar o sol Albatroz e seu planeta Flash, que é inabitável. Reparem também as arestas externas da nave espacial. Já estão se incandescendo; daqui a instantes a nave vai pegar fogo. Agora, se olharem pelas escotilhas da esquerda vão reconhecer a lua rochosa Monar, o satélite do planeta Flash. O diâmetro dessa lua não chega à metade do da lua terrana. Aquela pequena mancha iluminada, pouco abaixo da lua, é uma nave auxiliar. A tripulação passou para bordo dessa nave auxiliar para se salvar do holocausto iminente. Aqui fala o automático... aqui fala o automático... aqui fala...

Alguém conseguiu eliminar essa interferência indevida...

As tropas de assalto, fortemente armadas, afluíram de todos os lados e cercaram rapidamente o complexo do SSG. Agora puseram-se a aguardar, tensos, pela ordem de atacar; e antes que Villa pudesse desconfiar de alguma coisa, o sinal combinado soou nos pequenos rádios de pulso.

 

NUMA ação fulminante e bem coordenada, as tropas de Kublai-Krim derrubaram as portas e irromperam em massa pelos corredores e salas do vasto complexo. Quase não houve troca de tiros; tomados inteiramente de surpresa, os homens de Villa não tiveram tempo de esboçar qualquer reação e foram dominados em questão de segundos. Com as armas engatilhadas, três ou quatro oficiais se aproximaram de Villa, que permanecia sentado tranqüilamente por trás da sua mesa de trabalho.

Com um movimento rápido um dos oficiais arrancou o cabo alimentador do sistema de comunicações.

— Levaram um bocado de tempo, meus senhores! — disse Villa, encarando os oficiais. — Só que chegaram tarde demais. A operação está em pleno curso e não pode mais ser sustada. Dentro das próximas quarenta e oito horas, Terra finalmente estará nas mãos de seres inteligentes.

Um dos oficiais apontou para aquela tecla que Tamara havia conseguido calcar.

— Se esses seres não forem bem mais inteligentes que o senhor, coronel — observou em tom desdenhoso — não temos com que nos preocupar.

— Vamos logo! — disse um deles, impaciente.

Villa levantou-se e saiu do seu gabinete escoltado: como prisioneiro.

Enquanto isso, comandos de busca vasculhavam todos os recintos do SSG, detendo suspeitos. Descobriram a cela na qual Tamara havia sido trancafiada, e a libertaram. Terra encontrava-se novamente nas mãos de homens "normais". Mas a invasão estava em andamento...

 

Empunhando apenas uma das armas e postado no centro da cabine de comando, Kranz vigiava atentamente os membros da tripulação que, a uma ordem sua, tinham voltado aos seus lugares habituais. Hasso encontrava-se na casa de máquinas, cuidando dos propulsores, mas sua imagem aparecia na tela do videofone, permanentemente ligado.

— Uma coisa eu não entendo, Kranz! — disse Mario de Monti, lá da unidade de entrada do computador.

— Uma só? — perguntou Kranz, erguendo as sobrancelhas.

— Por que não nos liquida de uma vez e entrega a direção da nave ao piloto automático? Não acha que é uma tarefa extenuante demais para um homem de sua idade vigiar constantemente cinco pessoas? Pessoas jovens e ativas?

Kranz deu um sorriso afável.

— Se continuarem a se comportar de maneira tão exemplar, não vejo qualquer problema. Além do mais, não posso matá-los porque estão sendo esperados em Gordon.

Cliff ficou mais atento. Kranz prosseguiu:

— O pessoal em Gordon foi muito bem informado por Villa.

— Que pessoal é esse? — perguntou Cliff, espantado.

— Daqui a pouco vai ficar sabendo — respondeu Kranz.

— Os extraterranos... os estranhos? — insistiu Cliff.

Essa idéia deixou-o extremamente intranqüilizado, se bem que podia muito bem imaginar que, a esta altura, a estação de controle em Gordon não devia mais ser guarnecida por seres humanos.

Kranz acenou ligeiro e disse:

— De qualquer forma, trata-se de seres inteligentes tremendamente interessados na sua instalação Overkill e no meu campo gravitacional. E é o senhor quem vai mostrar a eles como tudo isso funciona, comandante!

Cliff sacudiu a cabeça e retrucou, furioso:

— Não conte comigo! Prefiro morrer a fazer isso!

Kranz contemplou o comandante com um olhar de reprovação.

— Calma, major, calma — disse, pausadamente. — A primeira coisa que vai fazer em Gordon é dormir. Vai ter um sono longo, profundo... E depois, quando acordar, vai estar com uma visão inteiramente diferente das coisas.

McLane reconheceu que Villa não lhes tinha deixado a menor chance.

— Querem nos transformar — disse a meia voz, como que a falar para si mesmo. Mas a tripulação não perdia uma só palavra. — Querem fazer com a gente o que fizeram com Villa!

— Não vai doer nem um pouco — asseverou Kranz.

Cliff levantou-se e, ignorando a arma que lhe estava apontada, plantou-se diante de Kranz.

— Cometeu um grave erro — disse em tom contundente. — Não nos devia ter revelado isso. Porque agora vamos arriscar tudo!

Avançou ameaçadoramente para Kranz. Atan e Mario aproximaram-se por trás, prontos a saltar sobre o inventor no momento exato. Rapidamente Kranz encostou o dedo no botão de contato do transmissor hiper-radiofônico.

— Mais um só passo... — avisou, baixinho — e eu dou o sinal combinado a Villa. Tamara Jagellovsk vai passar por momentos desagradáveis!

Os três homens pararam de avançar. A muito custo, dominaram a raiva impotente que os possuía, pois sabiam que não podiam se defender, não podiam intervir; se perdessem a cabeça, Tamara arcaria com as conseqüências... Cliff sentou-se novamente diante dos controles.

— E só esperar! — disse por entre os dentes. — É só ter mais um pouco de paciência! Ainda estamos longe de Gordon, e em dado momento o senhor vai cometer um erro!

Ao mesmo tempo, sem que Cliff tivesse mexido numa única chave, os ruídos distantes dos propulsores tornaram-se irregulares. Um zumbido grave transformou-se num silvo agudo. Kranz alarmou-se.

— O que é isso? — perguntou.

Cliff examinou os controles e viu imediatamente que a irregularidade só poderia ter sido provocada por Hasso, que devia estar engendrando alguma artimanha.

Apontou para um mostrador e disse:

— A propulsão está recebendo pouca energia!

— Besteira! — gritou Kranz. — Casa de máquinas!

O rosto de Hasso apareceu na tela de um dos videofones.

— Da casa de máquinas para o comandante: os transformadores III e V estão falhando; o que devo fazer?

Cliff não teve tempo de responder.

— Que quer dizer isso: "estão falhando?" — perguntou Kranz, desconfiado. Não acreditava numa só palavra do que Hasso estava dizendo. Hasso ergueu o olhar para o teto e respondeu com uma expressão de infinita paciência:

— Deseja uma descrição detalhada de um transformador? Juntamente com o respectivo manual de instruções? Explica direitinho como o bicho funciona e também as causas pelas quais pode vir a falhar, como agora, meu caro engenheiro! Afinal, como especialista, o senhor deveria saber tudo isso melhor do que eu!

Kranz virou-se para Cliff e vociferou:

— Ordene a esse homem que conserte imediatamente o defeito constatado!

Cliff acenou e disse calmamente a Hasso:

— Ordeno-lhe, Hasso, que conserte imediatamente o defeito constatado. Foi o que o nosso chefe pediu.

Impassível, Hasso respondeu:

— Claro, comandante. Isso significa, porém, que vou ter que reduzir, e muito, a velocidade. Só posso substituir as peças defeituosas se eu desligar os dois blocos do circuito.

Furioso, Kranz sussurrou:

— Ouça, McLane... isso é sabotagem! — a mão que empunhava a arma tremia de leve. Cliff começou a rir.

— Isso, que o senhor está cometendo aqui, é muito pior que sabotagem! Não posso fazer nada. Parece que aqueles troços estão estragados mesmo. Em todos os vôos perdemos parte dos transformadores. Parece que são imprevisíveis; ora um se derrete, ora um outro vaza óleo, e coisa e tal.

Kranz pôs-se a observar a imagem de Hasso e, num gesto instintivo e desnecessário, apontou a arma para a tela.

— Sigbjörnson, não tente me blefar! Se a Orion não readquirir velocidade em três tempos vou ser obrigado a decidir qual dos membros da tripulação é o menos importante a bordo. Fui suficientemente claro? A calma de Hasso era impressionante.

— Já que não acredita no que digo — respondeu firmemente — por que não vem para cá e tira a dúvida? Aliás, bem que poderia me ajudar. Juntos, consertaríamos esse negócio em pouco tempo!

Kranz olhou rapidamente ao redor; só viu rostos sem a menor expressão. O risco era grande demais: Kranz resolveu acreditar em Hasso.

— Acha mesmo que sou tão burro assim? — perguntou em tom meio empolado. — Trate de trabalhar. E ande ligeiro!

Mais uma vez os ruídos das máquinas cessaram por alguns segundos, para em seguida voltar. Cliff notou que a Orion estava outra vez perdendo velocidade. Provavelmente Hasso tinha resolvido manipular também os frenadores agregados...

 

Kublai-Krim largou o punho cerrado na mesa, assustando alguns dos participantes da reunião. Os últimos comunicados já eram bem menos contraditórios; a situação estava-se tornando mais clara.

— Mas como vou rechaçar um ataque em massa, se o grosso da formação não pode decolar?

Claro que ficou sem resposta. Sir Arthur arriscou uma pergunta:

— Quantos dos seus cruzadores se encontram no espaço?

Kublai-Krim fez um gesto displicente com a mão.

— Apenas a força de segurança usual, ou seja, um oitavo da frota de cruzadores. Um número pequeno, diante da magnitude dessa invasão.

O diálogo foi bruscamente interrompido por uma voz agitada que emanava de um dos alto-falantes:

— A frota invasora acaba de mergulhar no hiperespaço. Os fortes de bloqueio permanecem inativos. Algumas naves equipadas com Overkill encontram-se no local, infligindo pesadas perdas ao inimigo. Mas a frota não se desvia do rumo!

O ambiente na sala de reuniões da Suprema Comissão Espacial era o mais sombrio possível. Os homens sabiam que a existência de Terra estava em jogo, mas já não dispunham mais do poder para sustar a evolução dos acontecimentos.

— Eles dispõem de um número inconcebível de naves — disse Kublai-Krim, com voz abafada. — Poderíamos destruir a metade, que ainda sobraria uma quantidade suficiente para aniquilar o nosso sistema.

Von Wennerstein resolveu fazer uma sugestão:

— Não se poderia forçar esse tal de Villa a dar certas ordens...?

Wamsler soltou uma risada irônica; mexeu com os ombros e respondeu, quase gritando:

— Villa não pode ser forçado a fazer coisa alguma! Sofreu um forte abalo em suas faculdades mentais, tanto assim que já foi internado na clinica Sherkoff.

Wamsler reforçou a observação, batendo na testa larga num gesto significativo.

Nesse instante, Tamara Jagellovsk entrou na sala com passos rápidos e apresentou-se a Kublai-Krim, que a cumprimentou com um ligeiro aceno da cabeça.

— General, conseguimos decifrar parte do código de que Villa se utilizou para dirigir a invasão.

Surpreso, Kublai-Krim ergueu-se da poltrona.

— Sim? E daí?

— Descobrimos que os estranhos só tiveram de resolver um único problema: como abastecer as naves com energia suficiente para poderem percorrer o enorme trajeto que os separava de Terra. Por isso se reuniram nas imediações de Gordon, e Gordon os faz seguir ao longo de um raio que os abastece continuamente. É lógico que esse raio é ao mesmo tempo um raio-piloto, pois na sua outra extremidade se encontra Terra.

Wamsler exclamou:

— Isso explica por que não se desviam quando são atacados!

— Em outras palavras — disse Von Wennerstein vagarosamente — só poderemos rechaçar a invasão se conseguirmos destruir Gordon. E aí aqueles dois fortes de bloqueio vão finalmente começar a atirar.

Kublai-Krim continuou céptico.

— Quer me revelar, marechal, como pretende destruir Gordon? Villa cuidou de que não houvesse uma única unidade nossa nos cubos espaciais daquela região.

Antes que Wamsler pudesse dar uma resposta, Sir Arthur perguntou a Kublai-Krim:

— O senhor disse que ainda temos algumas formações em operação no espaço. Qual delas está em condições de alcançar Gordon a tempo?

A resposta liquidou com as últimas esperanças de Sir Arthur:

— Nenhuma delas. Todas as formações acataram a última ordem alfa de Villa e retornaram às bases. É claro que as despachamos imediatamente para Gordon, embora soubéssemos que a perda de tempo era irrecuperável.

Tamara fitou seriamente o rosto de Wamsler.

— Só McLane ainda poderia alcançar Gordon a tempo. Acontece que quem controla a Orion não é McLane, e sim Kranz. É de lascar!

Wamsler aproximou-se um pouco mais do grupo.

— Há uma hora que estamos tentando estabelecer contato com a Orion. Os raios rastreadores já a localizaram, mas a nave não responde aos nossos insistentes chamados. Deve ter ocorrido alguma pane!

 

A nove unidades astronômicas de Gordon... O sinal luminoso na mesa de Helga Legrelle não parava de piscar, indicando que alguém estava tentando sem cessar estabelecer contato hiper-radiofônico com a Orion. Helga estendeu lentamente a mão em direção à pequena chave do receptor Na cabine de comando reinava o mais completo silêncio. Kranz não se sentia nada bem naquele ambiente hostil, carregado de ódio e desprezo pela tripulação. O problema de Kranz era conseguir levar a Orion a Gordon, por mais adversas que fossem as condições a bordo.

Percebeu o gesto furtivo de Helga. Girou o pulso ligeiramente e apertou o disparador. O finíssimo raio atingiu a pequena alavanca, a milímetros da mão de Helga. Um trecho do painel de instrumentos desfez-se numa chuva de fagulhas. Helga recolheu a mão com um grito de dor.

— Não fique nervosa, minha senhora! — advertiu Kranz. — Senão quem fica nervoso sou eu, e isso poderia lhe acarretar conseqüências nada agradáveis!

Com desprezo, McLane perguntou:

— Acha mesmo, Kranz, que ainda tem alguma chance?

Imperturbável, o engenheiro respondeu:

— Ao menos sei que o senhor não tem nenhuma, major!

McLane apontou para a lâmpada piscante na mesa de Helga.

— Alguém esta tentando com insistência falar com a Orion, Kranz!

— É possível! — respondeu Kranz, aparentemente desinteressado.

— Quem seria? E por quê? Pois além de Villa, ninguém na Comissão Espacial tinha a menor noção da nossa partida.

Kranz deu um sorriso malicioso.

— Felizmente... — murmurou, examinando a arma.

McLane insistiu no assunto.

— Portanto, só se pode tratar de Villa. Ou então já desarticularam a conspiração e agora a Comissão Espacial está tentando entrar em contato conosco.

— Por que não desiste, McLane? — perguntou Kranz, recostando-se na escora predileta de Tamara. — Seus truques são muito grosseiros. Ninguém vai descobrir o complô de Villa. O plano é perfeito!

— Que beleza! — comentou Cliff, erguendo-se cautelosamente, para poder olhar por cima do ombro de Atan. O espetáculo apresentado pelas telas permanecia inalterado, estarrecedor: incontáveis naves inimigas continuavam a se agrupar de seis em seis, para em seguida desaparecerem do campo de visão, mantendo a mesma direção... E a Orion ainda se encontrava a nove unidades astronômicas de Gordon...

 

Reconhecimento Espacial Terrano Gabinete Wamsler:

Tamara e o marechal observavam, em silêncio, a enorme projeção da esfera espacial. Inúmeros sinais luminosos piscavam, mostrando as diversas fases da invasão. Todos se acendiam e apagavam perigosamente perto do centro daquela esfera... A voz, que veio do alto-falante, interrompeu os pensamentos:

— Formações invasoras continuam a atravessar a fronteira entre as terceira e quarta zonas de distância. Vanguarda a menos de vinte e quatro horas de Terra.

Uma outra voz fez-se ouvir:

— Orion VIII não responde. Tamara disse, baixinho:

— Precisamos fazer alguma coisa! Cansado e deprimido, Wamsler perguntou:

— Quer me revelar o que poderíamos fazer?

Spring-Brauner entrou no gabinete.

— A Hydra II sob o comando de Van Dyke está se dirigindo para Gordon. Ainda pode chegar a tempo.

Wamsler nem se mexeu.

— Não creio; na minha opinião, Van Dyke vai alcançar Gordon tarde demais.

Spring-Brauner sacudiu a cabeça e observou:

— De qualquer maneira, a Hydra vai chegar a Gordon antes da Orion, marechal!

— Desde quando a Hydra é mais veloz que a Orion? — perguntou Wamsler, surpreso.

— Não é isso, marechal; fato é que o supercruzador está se deslocando com velocidade muito reduzida.

Uma revelação surpreendente para Tamara e Wamsler. Tamara refletiu durante alguns segundos, analisando uma idéia que lhe tinha ocorrido. Perguntou:

— Nesse caso, a Hydra poderia alcançar McLane, não poderia?

Wamsler deu um aceno afirmativo.

— Poderia, sim. Mas para quê? Acha que Kranz vai se esconder de susto na casa de máquinas quando a Hydra se aproximar da Orion?

— Duvido — respondeu Tamara secamente. — Kranz não vai se esconder logo na toca de Hasso. Não, marechal, sugiro que o senhor dê ordem à Hydra para atacar a Orion!

— Ficou maluca? — exclamou Wamsler.

— Se a Orion for atacada, McLane talvez tenha uma chance de dominar Kranz. É claro que Kranz vai tentar repelir o ataque, e para isso ele precisa de McLane, entende? Precisa de McLane e aí perde o controle sobre ele. Não vejo o que mais poderíamos tentar!

Wamsler decidiu-se na hora.

— Vamos! — disse a Spring-Brauner. — Estabeleça contato hiper-radiofônico com a Orion.

O ajudante-de-ordens saiu na disparada.

 

Hasso Sigbjörnson trabalhava com o requinte de um especialista, que conhecia todo parafuso, toda conexão na intrincada instalação da casa das máquinas. Provocou mais uma descarga violenta, que reverberou pela.nave inteira. Riu de satisfação ao constatar que a Orion se tornava ainda mais lenta.

— Quanto tempo ainda vai levar com esse maldito conserto? — gritou Kranz da tela do videofone.

Hasso tinha mergulhado as mãos no recipiente de óleo usado; negras e sujas, exibiu-as a Kranz.

— Tentei mais uma vez imprimir aceleração máxima aos propulsores, mas o senhor mesmo ouviu o que aconteceu: a tentativa fracassou!

Kranz estava ficando impaciente:

— Não acredito mais nas suas alegações! Pare de protelar e conserte este negócio imediatamente!

Com uma calma irritante, Hasso respondeu:

— Se não acredita mais em mim, por que não pergunta a McLane se eu estou realmente protelando o conserto? Melhor ainda: por que não vem para cá e me ajuda a examinar o esquema do circuito?

Na cabine de comando, McLane estava raciocinando febrilmente.

Kranz aguardou alguns instantes e depois quis saber:

— O senhor não diz nada, major? McLane nem se virou ao responder:

— Sabe muito bem que Hasso não está mentindo.

A arma de Kranz continuava apontada para McLane.

— Vou ter certeza disso no momento em que eu liquidar um dos senhores, e a Orion continuar a voar a meia velocidade, ou menos ainda.

McLane levantou-se tranqüilamente. Postou-se diante da boca da arma e disse, em tom de desafio:

— E então? O que é que ainda está esperando?

A tripulação olhou estarrecida para Kranz e McLane. Seguiu-se uma pausa carregada de tensão. A voz agitada de Atan rompeu o silêncio:

— Vigilância espacial acusa eco de radar. Objeto voador desconhecido; deve ter retornado neste instante do hiperespaço; desenvolve uma velocidade dos diabos e vem em nossa direção.

A Hydra II aproximava-se da Orion num ângulo arrojado. Em questão de segundos, Atan constatou que se tratava de uma nave terrana: os impulsos recebidos eram inconfundíveis. Mas a arma de Kranz continuava a dominar o ambiente, impedindo qualquer iniciativa. Enquanto a Orion rastejava em direção a Gordon, aquela nave espacial desconhecida consumia a distância que a separava do cruzador de McLane.

— Quem será? — perguntou Cliff, olhando fixamente para a tela.

Atan não sabia o que responder; limitou-se a dar de ombros. A expectativa crescia.

 

DURANTE aquela manhã, o mundo continuava mergulhado num clima de tensão e medo, mas aos poucos as autoridades terranas conseguiram eliminar os vestígios da tremenda confusão que Villa e seu punhado de conspiradores haviam criado. Enquanto as possantes bombas drenavam as águas que tinham inundado e devastado as bases submarinas, a invasão prosseguia...

Numa sucessão aparentemente interminável, as naves inimigas continuavam a desaparecer no hiperespaço, guiadas e abastecidas por aquele raio-piloto, rico em energia, que Gordon ainda emitia. E os dois fortes de bloqueio da terceira zona de distância permaneciam inoperantes, dominados pelo invasor...

Foi pura sorte a Hydra ter escapado à catástrofe. Lydia van Dyke, general das Formações Espaciais Rápidas, estava empreendendo um vôo rotineiro de inspeção; alarmada com as notícias estarrecedoras, mudou de curso e agora se dirigia a toda pressa para Gordon. Nas telas do cruzador rápido, aparecia um único sinal: Orion VIII.

— Comandante para máquinas: Já atingimos a velocidade máxima? — perguntou Lydia, observando os ecos cintilantes na tela central.

— Pode perguntar quantas vezes quiser, general... lançamos mão de todas as reservas. Mais veloz do que isso é impossível!

— Comandante para astronavegador: Distância da Orion a Gordon?

— Pouco menos de nove unidades astronômicas.

— E da Hydra à Orion?

— Doze UA.

Lydia acenou e disse:

— Comandante a posto de combate!

O subcomandante estava alerta e respondeu imediatamente:

— Sim, general?

— Iniciamos o ataque à Orion à distância de cento e quarenta e nove. Sabe o que tem a fazer?

— Perfeitamente! — respondeu o subcomandante.

— De forma alguma a capacidade de manobrar da Orion deve ser afetada!

Durante essa conversa a Hydra consumia distâncias enormes, solicitando dos propulsores o máximo. Se a Orion fizesse o mesmo, seria mais veloz; só que não estava empregando a potência plena dos motores, graças à eficiente sabotagem de Hasso.

 

— É uma nave de combate da classe Orion! — anunciou Atan, agitado. — Encontra-se a menos de onze unidades astronômicas de nós!

Voltou a observar as telas de radar e, alguns minutos mais tarde, comunicou:

— Reduziu a distância a dez UA. O impulso do núcleo está se tornando cada vez mais nítido... Cliff!

Kranz levantou-se. Sua expressão era da mais profunda desconfiança, aliada à agressividade.

— Aquela nave é a Hydra!

Kranz virou-se para Cliff, erguendo a arma.

— Diga a Sigbjörnson para acelerar! Cliff abriu as mãos e disse:

— Por quais motivos? Quer que a Orion se desfaça em mil pedaços? Quem sabe o que a Hydra quer?

Kranz olhou rapidamente ao redor, depois pôs-se a observar a tela e resmungou:

— Ninguém entrará aqui. Isso eu garanto!

A cada minuto que se passava, o impulso nas telas tornava-se maior. Via-se claramente que a Hydra estava lançando mão de todas as reservas, aproximando-se cada vez mais da Orion. Cliff estranhou a trajetória que a nave de Lydia seguia, mas subitamente reconheceu que era a mesma que as naves de combate percorriam quando iniciavam um ataque a um objeto lento: aproximavam-se da vítima num ângulo bem agudo, disparavam e depois lançavam-se vertiginosamente para o alto. Uma vaga suspeita formou-se em sua mente; não a externou, porém: quanto menos Kranz soubesse, melhor. Uma crepitação atravessou a Orion seguida de um leve abalo... Mario observou as escalas de alguns instrumentos e depois disse, em voz grave:

— Cliff... a Hydra está nos atacando. Estamos ao alcance dos seus lançadores de energia!

Kranz virou-se rapidamente, lançando um olhar céptico para o subcomandante.

— Isso não pode ser! — contestou obstinadamente. — Não é possível que sejam atacados pelo seu próprio pessoal!

Impassível McLane respondeu:

— É o senhor que está sendo atacado, Kranz. Com certeza Van Dyke imagina que nós estamos mortos e que o senhor assumiu o controle da Orion.

A crepitação intensificou-se; todos a bordo, que conheciam o efeito dos projetores laser terranos, sabiam o que isto significava.

— Trate de revidar esse ataque! — gritou Kranz, furioso.

A insegurança do engenheiro causava satisfação a Cliff.

— Como? — perguntou, laconicamente.

— Não interessa como! Quero que se defenda!

Cliff fez um sinal a Mario, esperando que o subcomandante o interpretasse corretamente. Sem que Cliff e Kranz o percebessem, a porta do elevador se abriu, e Hasso entrou na cabine de comando. No mesmo instante, um tremendo abalo sacudiu a nave.

— Já que o cavalheiro insiste — disse Cliff, indiferente — vamos fazer-lhe a vontade. Mario, vá para o posto de combate!

— Entendido!

Hasso e Mario trocaram um rápido olhar, e enquanto a nave estremecia sob o impacto de um novo abalo, Hasso projetou-se como um raio sobre Kranz, agarrando-o pelo braço. Kranz foi lançado para a direita, na direção de Cliff, que já o esperava de punho cerrado.

Mario foi mais rápido... Com um golpe certeiro arrebatou a arma da mão de Kranz e arrancou a outra do bolso do engenheiro. Cliff virou-se e dirigiu-se aos pulos à mesa de Helga, que já estava ajustando os controles do receptor. Cliff agarrou o microfone e berrou:

— Orion chamando Hydra!

— Aqui fala a Hydra...

— General Van Dyke? McLane falando... ainda estamos vivos. E gostaríamos de continuar vivos por mais algum tempo, se isso lhe convier. Entendeu?

— Van Dyke falando! McLane? Está tudo em ordem?

Hasso reparou que a situação na cabine de comando tinha se transformado a favor da tripulação da Orion. Deu um aceno de satisfação e pegou o elevador, voltando à casa de máquinas.

— Está sim, general! — respondeu Cliff rapidamente.

— Ainda está em condições de manobrar? — quis saber Lydia.

— Tecnicamente, sim; fisicamente, nem tanto. Vamos precisar de alguns minutos para acalmar os nervos fustigados.

— Certo. Onde está esse Kranz?

— Aqui, a meu lado, meio deprimido ao que parece. Aquele seu ataque simulado foi fora de série. Descobri a sua intenção pelo ângulo de aproximação.

A voz de Lydia assumiu um tom impessoal quando disse:

— Agora ouça, Cliff. Acelere o quanto puder e destrua a estação de controle em Gordon com o Overkill. Infelizmente não disponho de um projetor desse a bordo. Esta é uma ordem do governo terrano!

Cliff fez um sinal a Mario que se sentou diante dos controles; claro que a conversa era ouvida em todos os recantos da nave. Na casa de máquinas, Hasso já tinha reacionado os propulsores e agora aumentava gradativamente o suprimento de energia, acelerando a Orion com valores acima dos normais.

— O governo terrano ainda existe? — quis saber Cliff, que reparou na expressão satisfeita de Mario que a nave estava rapidamente adquirindo a velocidade máxima.

— Por enquanto ainda existe — respondeu Lydia secamente — mas vai deixar de existir daqui a pouco, se continuar a fazer perguntas desnecessárias.

— Entendido. Vou me limitar a cumprir as ordens recebidas!

Helga cortou a ligação. Mario levantou-se rapidamente da poltrona do comandante, cedendo-a a Cliff, que assumiu os controles. A expressão de Kranz denotava o quanto estava desolado por ter perdido este round. Cliff virou-se para o cúmplice de Villa e disse:

— Veja só: um milagre tecnológico! O otimismo da tripulação está contagiando as máquinas!

O silvo dos propulsores aumentava constantemente.

— Hasso, quando vamos atingir a velocidade máxima?

O rosto orgulhoso do engenheiro de bordo apareceu na tela do videofone:

— Daqui a um minuto, Cliff!

— Portanto, a minha desconfiança era mais do que justificada! — comentou Kranz, baixinho.

Cliff riu abertamente.

— Sujeito inteligente está aí! Nada lhe escapa!

Verificou o curso e disse:

— Comandante para astronavegador: Distância da Orion a Gordon?

— Oito vírgula cinco unidades astronômicas.

— Obrigado. De agora em diante, informe a distancia sem ser solicitado!

— Entendido! — resmungou Atan, enquanto ajustava sua aparelhagem.

A Orion parecia devorar os milhões de quilômetros que a separavam do planeta. Percorrendo uma trajetória retilínea e devendo atingir a velocidade da luz dentro de mais alguns instantes, não demoraria a alcançar o alvo. Mario trocou algumas palavras rápidas com Cliff e em seguida desceu para aprontar o projetor Overkill.

 

Mais uma vez Spring-Brauner interrompeu a conversa que Wamsler e Tamara conduziam em voz baixa. Com o rosto banhado de suor, gaguejou, agitado:

— Comunicado da Hydra: A Orion está se aproximando de Gordon. Praticamente já está voando à velocidade da luz. Recebeu ordem para destruir a estação de controle.

Wamsler acenou.

— Quando devem aparecer as primeiras naves inimigas?

— Daqui a vinte e duas horas!

— A que distancia de Gordon se encontra a Orion? — perguntou o marechal.

Uma voz respondeu dos alto-falantes:

— A cinco unidades astronômicas. Tamara fez um rápido cálculo mental.

Independente dela, Wamsler chegou à mesma conclusão e observou, amargurado:

— É um verdadeiro jogo de azar! Entre o pólo norte de Gordon e Terra estendia-se um raio invisível, um raio que não só guiava mas também fornecia energia. Atravessava, em linha reta, tanto o espaço normal quanto o hiperespaço, e terminava no centro do sistema terrano. E há duas horas, incontáveis naves dos estranhos voavam ao longo desse raio com um único objetivo: subjugar Terra. Se esse raio fosse decepado, estas perderiam a orientação e ficariam sem abastecimento de energia propulsora. E uma nave, que se encontra no hiperespaço e fica desprovida de energia, está irremediavelmente perdida.

Um número cada vez maior de naves terranas decolava das bases apressadamente recuperadas. Agruparam-se em formações maciças naquele ponto, no qual as naves inimigas mergulhavam no hiperespaço, e disparavam sem cessar os projetores Overkill. Neste instante, os alto-falantes no gabinete de Wamsler anunciaram:

— Mais duas das nossas naves foram destruídas pelo fogo do inimigo.

Ao mesmo tempo, a tela de um videofone se aclarou, apresentando a imagem de uma ordenança feminina.

— O que há? — perguntou Wamsler.

— O general Kublai-Krim deseja falar com o senhor — respondeu a moça — no circuito fechado.

— Pode ligar — disse Wamsler.

Assim que Kublai-Krim viu o rosto de Wamsler, gritou:

— Como é que estão as coisas, marechal?

Wamsler balançou a cabeça. Nada havia mudado; a situação permanecia extremamente crítica. Só havia uma única esperança: a Orion de McLane; uma esperança diminuta.

— Não muito boas, general! — respondeu Wamsler.

— Será que a Orion ainda consegue chegar a tempo? — quis saber Kublai-Krim.

— Se existir a mais remota possibilidade, McLane consegue resolver o caso!

— Pode traduzir isso em termos um pouco mais concretos? — insistiu Krim.

Wamsler apanhou uma fita de plástico, examinou-a por um instante e informou:

— McLane encontra-se a meia unidade astronômica de Gordon.

Kublai-Krim hesitou durante alguns segundos, depois disse, pensativo:

— É muito bom, mesmo, esse McLane. Aliás, quem foi que teve a idéia idiota de mandar removê-lo em caráter punitivo?

Wamsler riu descaradamente para as lentes do videofone e resumiu sua resposta a duas palavras:

— O senhor!

Furioso, Kublai-Krim cortou a ligação. Wamsler continuou a rir e olhou para Tamara. A agente do SSG estava analisando as chances, mas neste instante a tragédia se consumava lá fora, no cosmos.

 

— Atenção! Estou captando impulsos nítidos! O eco é da estação de controle!

O aviso súbito de Atan reverberou nos ouvidos da tripulação. Cliff, que controlava atentamente o vertiginoso vôo de aproximação da Orion, desviou o olhar para a tela central, na qual a imagem captada por Atan crescia a cada segundo.

Um planeta árido e desolado; no pólo, uma instalação circular, cujo marco característico era uma enorme antena parabólica. E eram as nervuras luminescentes dessa antena que emitiam aquele raio misterioso.

— Ligue o contato de ressonância — disse Cliff. — Qual é a distância?

— Quarenta e nove milhões de quilômetros.

Cliff acenou e checou rapidamente os instrumentos. Depois perguntou, em voz alta:

— Está tudo claro?

— Tudo claro — respondeu Mario. — Alvo enquadrado.

— Distância: trinta e nove milhões de quilômetros — anunciou Atan, com a voz de um prático a sondar a profundidade de um rio.

— Das máquinas para comandante: máquinas em perfeitas condições. Abastecimento energético do Overkill assegurado. A contagem já foi iniciada?

— Ainda não.

Atan começou a contar mecanicamente, como um computador; só que não anunciava as distâncias em unidades de tempo, e sim em milhões de quilômetros:

— Trinta e seis... trinta e três...

A cada aviso, a Orion tinha percorrido mais um milhão de quilômetros... Cliff avaliou rapidamente qual seria a distancia mais vantajosa e depois calcou um botão.

— Atenção! — gritou no microfone. — Contagem iniciada! Overkill menos trinta segundos!

Pretendia empregar o projetor Overkill a uma distancia de um milhão de quilômetros. Isto proporcionaria tempo suficiente a Mario para uma pontaria perfeita, reduzindo a um mínimo a possibilidade de não destruir o alvo. Cliff avisou:

— Overkill menos vinte e cinco segundos!

A cabeça de Mario acenou na tela do videofone.

— Estou pronto, Cliff!

— Vou liberar a energia para o Overkill daqui a vinte e um segundos! — disse a voz de Hasso da outra tela.

— Certo, Hasso!

Cliff aumentou o volume do contador automático e a voz impessoal, metálica, do computador, passou a assumir a contagem regressiva:

— ...dez... nove... oito...

A Orion prosseguia na sua trajetória retilínea exatamente para o pólo do planeta. A manobra aproximava-se do momento crítico, e exigia uma sincronização perfeita: até o instante previsto para o disparo do OVerkill, a nave não poderia se desviar daquela reta, sob pena de não destruir o alvo; por outro lado, para pôr-se a salvo e não se espatifar contra o próprio alvo, teria que iniciar o movimento ascensional no máximo dois segundos após o disparo.

A Hydra II seguia na "esteira" da Orion, acompanhando o ataque de McLane através dos registros dos instrumentos. Lydia van Dyke mostrava-se agora calma e equilibrada; sabia que, se Cliff não conseguisse varrer aquela base dos estranhos do mapa, ninguém mais o conseguiria.

— ...quatro... três... dois... um...

— Zero!! — exclamou Cliff.

Desligou o piloto automático e agarrou os manches do controle manual, assumindo pessoalmente o ajuste final do ângulo de aproximação. Era um gesto puramente instintivo, como num reflexo condicionado, mas invariavelmente Cliff agia assim nos momentos decisivos.

Mario ativou o projetor Overkill. Silenciosamente e sem qualquer descarga energética visível, o feixe de raios incidiu sobre a superfície do planeta. Em menos de dois segundos, nada mais restava da estação de controle; em seu lugar, havia apenas uma profunda cratera na crosta do planeta. Cliff puxou as alavancas e a Orion lançou-se para o alto, descrevendo o ramo ascendente de uma parábola.

Mario enxugou o suor da testa e tratou de recolher o projetor. As telas mostravam o que se passava em Gordon. Inicialmente, só se via aquela cratera de forma elíptica, de uns vinte quilômetros de profundidade; nada havia entre as suas paredes lisas; apenas uma fina névoa pairava acima daquela abertura na crosta planetária. Segundos mais tarde, o magma do núcleo liquefeito rompeu o fundo da cratera e o vulcão artificial entrou em violenta erupção, lançando um inferno de fogo, fumaça e fragmentos de rocha pela abertura. O planeta parecia se desfazer em mil pedaços.

Os alto-falantes estalaram.

— Aqui fala a Hydra. Ótimo trabalho, McLane!

— Obrigado! — respondeu Cliff, tranqüilamente.

— Agora voltamos juntos para Terra — disse Lydia van Dyke. — Aliás, devemos ter oportunidade de ver aqueles dois fortes em pleno funcionamento.

— Entendido! — confirmou Cliff. Mario retornou à cabine de comando, dirigindo-se, sem perda de tempo, à unidade de entrada do computador.

— Curso para Terra, se não me engano? — perguntou, laconicamente.

— Acertou mais uma vez, tenente De Monti! — respondeu Cliff.

Ainda não viam nada, mas imaginavam o que estava acontecendo, ou iria acontecer dali a poucos instantes. As naves inimigas continuavam a se reunir nas imediações da nuvem incandescente que agora envolvia Gordon. No momento em que mais uma esquadrilha mergulhou no canal de invasão, a formação se desfez: as naves já não recebiam qualquer orientação nem tampouco energia propulsora.

Antes que o inimigo pudesse reagir, McLane e Lydia van Dyke já estavam tão distantes que não mais fazia sentido tentar persegui-los. E agora, libertados do controle por Gordon, os dois fortes na fronteira entre Três e Quatro entraram em ação, lançando uma mortífera cortina de fogo sobre a frota dos invasores. Como o canal de invasão se encontrava entre os dois fortes, as naves inimigas tiveram que enfrentar um fogo cruzado dos projetores Overkill, do qual poucas escapavam. E as frotas táticas estavam chegando ao local, vindas de todos os quadrantes do domínio espacial terrano; as gigantescas naves de combate irrompiam em número cada vez maior do hiperespaço e se lançavam imediatamente ao ataque.

Os extraterranos se defendiam desesperadamente, mas já não dispunham de duas coisas essenciais: da direção que deveriam seguir, e do abastecimento de energia. E assim todas as naves inimigas que se encontravam no hiperespaço voavam às cegas. Muitas se chocaram, explodindo, sem que isso fosse notado pelas estações de controle no espaço normal. Outras, lançadas para fora do estonteante contínuo riemanniano do hiperespaço, eram imediatamente caçadas e destruídas pelos vigilantes cruzadores terranos. Parecia que McLane, mais uma vez, tinha conseguido salvar Terra.

Ninguém havia notado a ausência de Mario, que agora retornava à cabine de comando, exibindo uma garrafa na mão erguida. Obviamente, tinha suas idéias próprias a respeito do parágrafo que proibia o consumo de álcool durante as missões, pois a garrafa apresentava todas as características de fazer parte integrante da farmácia de bordo. Só que o cheiro, que emanava do gargalo aberto, não era nem de iodo, nem de lysol, e sim, inconfundivelmente, de vodca, vodca pura e cara. Como que a se desculpar, Mario observou:

— A rigor, eu queria proporcionar uma alegria meio ambígua à camarada Jagellovsk. Mas... bem, na hora do aperto, cosmonautas se satisfazem também com vodca. Ou será que tem que ser uísque o tempo todo?

Cliff agachou-se e retirou um copo da caixa de ferramentas, presa no pé da sua mesa. Como por encanto, mais copos foram surgindo dos esconderijos mais improváveis.

— Ótima idéia! — comentou Cliff. Ao se levantar reparou Kranz que mais parecia uma peça de equipamento abandonada no meio da sala.

— Reconhece que Villa perdeu a parada?

Kranz acenou, em silêncio.

— Dê um copo a ele, Helga! — pediu Cliff. Serviu-se de um gole generoso e depois, em tom quase tristonho:

— Vocês parecem acreditar que tudo acabou, não é? — fez uma pausa para deixar aumentar a expectativa e pôs-se a examinar calmamente os instrumentos do piloto automático que conduzia a nave em direção ao hiperespaço.

Depois prosseguiu:

— Pois estão redondamente enganados! Partimos sem pedir licença a Wamsler. É claro que isso vai nos dar aborrecimentos. Acresçam a isso o estado de ânimo dos nossos superiores: não deve ser dos melhores. Além disso, ninguém sabe o que aconteceu com Tamara... vão por mim: o verdadeiro inferno vai começar, assim que pousarmos!

Olhou para os rostos ao seu redor e notou que sua alocução não tinha surtido o menor efeito.

E no entanto Cliff tinha toda a razão...

 

TRÊS dias e meio após a inundação, o plenário da Suprema Comissão Espacial ainda apresentava os vestígios da devastação que havia sofrido. O ar estava saturado de umidade e do cheiro de água salgada, lama e algas, mesclado ao forte odor de condutores queimados e tinta fresca. Mas as principais instalações já tinham sido recuperadas e funcionavam satisfatoriamente. Alguém com conhecimentos de arte e história poderia imaginar estar assistindo a uma daquelas antigas óperas clássicas: os sobreviventes da ação dramática estavam todos reunidos para o grande final.

Sir Arthur torcia nervosamente as pontas do seu bigode grisalho, enquanto Kublai-Krim se esforçava por fazer jus ao seu nome, tentando assumir a atitude de um potentado mongol. Já Wamsler, plantado na sua poltrona, era o buda negro de sempre.

Von Wennerstein acompanhava as exposições com um ar sereno e complacente, enquanto Lydia van Dyke estudava atentamente as expressões da tripulação da Orion. Além dessas figuras exponenciais, alguns oficiais e funcionários também participavam da reunião.

Os presentes ocupavam duas filas de poltronas, dispostas em frente à grande mesa, por trás da qual se encontrava o professor Sherkoff, analisando os acontecimentos dos últimos dias.

— Creio ser desnecessário ressaltar que essas informações são estritamente confidenciais, e delas só deverão tomar conhecimento apenas as pessoas ligadas ao ocorrido. Mesmo a esta altura, ainda estouraria o pânico, se divulgássemos esses fatos, pois cada qual viria no outro um "influenciado". Seria praticamente impossível convencer a opinião pública que estamos em condições de controlar rigorosamente o pequeno círculo dos afetados, que compreende a guarnição de Gordon e Villa e seus auxiliares.

— E também o engenheiro Kranz! — lembrou McLane.

— Certo — concordou Sherkoff. — Todas essas pessoas já foram internadas e estão sendo submetidas a um tratamento intensivo.

— Para mim, não são doentes e sim, criminosos! — disse Kublai-Krim, em tom ameaçador.

Sherkoff deu um sorriso complacente.

— Criminosos involuntários, senhoras e senhores! Afinal, não cometeram atos volitivos, conscientes; agiram sob influenciação. Se os senhores tivessem tido a má sorte de caírem vivos nas mãos dos extraterranos, teriam passado pela mesma experiência. Seus cérebros e, portanto, sua inteligência, teriam sido reprogramados, como um computador. E hoje todos os senhores teriam uma nova e estranha vontade: a vontade de entregar Terra e seu sistema a uma potência extraterrestre.

— Tem alguma idéia de como se processou essa "reprogramação", professor? — perguntou Von Wennerstein, o porta-voz do governo.

Sherkoff acenou de leve.

— Tenho, sim. Mas não mais do que uma idéia. Estamos trabalhando noite e dia numa série de testes. Precisamos reconstruir esse processo passo a passo e com extrema cautela. Não há outro caminho para tentar anular os efeitos dessa influenciação.

— Há esperanças — quis saber Sir Arthur — de que Villa e os outros afetados possam voltar a ser homens normais?

— Temos essa esperança, sim. Não vai ser nada fácil e deverá levar muito tempo, mas vamos lançar mão de todos os nossos recursos — respondeu Sherkoff.

Tamara Jagellovsk levantou a mão.

— Uma pergunta. O senhor afirma que o cérebro de Villa foi reprogramado por um processo semelhante ao que empregamos para reprogramar um computador, certo?

— Foi o que eu disse.

— Nesse caso — prosseguiu Tamara — Villa e os outros, inclusive Kranz, deveriam ter funcionado como robôs. Mas isso não corresponde aos fatos. Conheço Villa há anos, e reparei bem que tudo que ele fazia, o afetava emocionalmente. Seu comportamento era o de um homem que tem uma missão a cumprir.

O professor Sherkoff deu um sorriso vago e explicou:

— Observou bem esse detalhe. É claro que os extraterranos não modificaram apenas a parte puramente mecânica do cérebro de Villa. Modificaram também a sua inteligência ou, para ser mais preciso, sua alma. Implantaram-lhe um sonho fantástico, grandioso. O sonho de um império intergaláctico, do qual ele, Villa, seria o governador terrano.

E Sherkoff acrescentou, baixinho:

— Espero que possamos aprender algumas lições desses acontecimentos. Mais alguma pergunta?

— Tenho, sim — disse o marechal Wamsler. — Afinal, o que vai ser de Villa? Será que pode reassumir seu cargo, após um certo período de recuperação?

Sherkoff sacudiu a cabeça.

— Vai ter que se acostumar com a idéia de que Villa está fora de cogitações como chefe do Serviço de Segurança Galático. Além disso, não deve esquecer, marechal, que sempre haverá uma certa desconfiança em relação a Villa.

Wamsler acenou; era exatamente isso que ele queria saber.

— Se não houver mais perguntas, dou por encerrada minha exposição — disse Sherkoff. — É claro que os presentes e o governo serão mantidos a par dos resultados das nossas investigações. Muito obrigado.

Aos grupos, trocando impressões, os participantes da reunião dirigiram-se lentamente à saída. Em meio ao murmúrio ouviu-se a voz de Wamsler:

— Peço à tripulação da Orion que permaneça mais alguns instantes.

McLane trocou olhares significativos com seu pessoal.

— Esse sujeito sempre guarda suas surpresas para a última hora! — disse Hasso, em voz alta. — Que será que ele bolou agora?

— Você ainda pergunta? — resmungou Mario de Monti. — Você acha que Wamsler esqueceu que partimos para Gordon sem a permissão dele? Vou me dar por feliz se ele se limitar a nos passar uma carraspana daquelas. Só que eu pressinto coisas piores!

— Besteira! — comentou Atan Shubashi, alisando o cabelo ralo.

Wamsler estava se aproximando e McLane ordenou, baixinho:

— Fiquem quietos, agora!

Lydia vinha empertigada ao lado de Wamsler. Ambos estavam de cara amarrada e não era possível adivinhar que revelações desagradáveis fariam aos seus subordinados.

— Olhem a postura, amigos! — sussurrou Cliff.

A tripulação da Orion enfileirou-se, em posição de sentido. Inesperadamente e para espanto de todos, Tamara postou-se ao lado de Helga. Num tom ominoso, Wamsler perguntou:

— Não tem nada a me dizer, McLane? Cliff permaneceu sério e respondeu rapidamente:

— Não que eu saiba, marechal! Wamsler e Lydia entreolharam-se, surpresos. O marechal entrelaçou as mãos nas costas e começou a balançar nos calcanhares. Encarou o comandante e disse, em tom baixo e ameaçador:

— Ah, é? Nesse caso eu vou ter que lhe contar umas tantas coisas...

Havia algo de irreal nessa cena.

— A sua partida para Gordon sem permissão expressa de minha parte foi um ato claro e insofismável de insubordinação, McLane!

— Eu apenas tentei modificar uma situação desesperadora, marechal — disse Cliff. — Pode me punir por isso, mas deixe a minha tripulação em paz!

O rosto de Wamsler não denotava qualquer emoção.

— Insubordinação! — prosseguiu em tom solene. — Uma insubordinação, sem a qual nós todos provavelmente estaríamos mortos agora, ou reprogramados! Nem é bom pensar nisso! Homem, o senhor tem uma sorte descomunal! Mais uma vez o senhor tinha razão. E isto o salvou da expulsão desonrosa da Frota Espacial. Sabe que esta é a pena para atos de insubordinação, não sabe?

Com o rosto petrificado, Cliff respondeu:

— Faça o que tem que fazer. Se o governo acha que pode jogar pela janela o dinheiro que gastou com minha instrução...

Wamsler examinava Cliff de alto a baixo, como se estivesse diante de um quadro raro. Deixou passar alguns segundos antes de responder. Sabia que essa pausa aumentaria o efeito dramático da revelação que estava para fazer.

Coronel McLane — disse e viu nos olhos de Cliff que este estava começando a entender — coronel McLane... hoje é o seu último dia a serviço da Patrulha Espacial. Sua remoção em caráter punitivo fica revogada.

— Viva! — gritou Atan e deu um pulo para a frente.

— Não me interrompa! — advertiu Wamsler. — Acaba me atrapalhando!

Prosseguiu:

— A partir deste momento, o senhor e a sua tripulação voltam a pertencer às Formações Espaciais Rápidas. Se quiser me revelar onde pretende comemorar o acontecimento, terei muito prazer em comparecer para um gole ou dois.

Aproximou-se e trocou um forte aperto de mão com Cliff, que mal podia falar.

— Obrigado — murmurou.

Em uníssono, Mario, Atan e Hasso exclamaram:

— Vamos festejar no Cassino Starlight!

Agora cabia a Lydia van Dyke dizer algumas palavras. Oficialmente, McLane havia sido reincorporado às formações que ela comandava, e era visível o contentamento que este fato lhe causava.

— O seu novo serviço, McLane — disse Lydia com aquela sua voz áspera — vai começar com uma licença especial de três meses, às expensas do governo. Claro que a licença é concedida a toda a tripulação, inclusive miss Tamara Jagellovsk. Por ora é só!

E apertou a mão de todos. Contemplou McLane com um sorriso suave e acrescentou, baixinho:

— Espero encontrá-lo mais tarde, talvez em caráter mais privado.

McLane falou em nome da tripulação:

— Evidentemente, a senhora é a nossa convidada especial

Mario de Monti, o subcomandante da Orion VIII, rompeu o silêncio, que se seguiu, com uma observação sobre a qual a tripulação ainda iria discutir durante muito tempo.

— Permite uma pergunta, general Van Dyke? Cada um de nós pode escolher livremente o lugar onde pretende passar as férias?

Lydia vacilou um pouco, mas depois chegou à conclusão que uma licença especial incluía também desejos especiais. Respondeu:

— Certamente, De Monti.

Mario externou o seu desejo num tom, que só podia ser designado por "suplicante".

— Neste caso eu gostaria de ir para Chroma... por favor. Não me incomodo de dirigir uma nave para lá, para manter os custos da viagem dentro de limites razoáveis.

Wamsler foi o primeiro a estourar na gargalhada; Lydia esperou pacientemente que se acalmassem e depois respondeu:

— Vou verificar, mas se não me engano, parece que uma nave de carreira deve partir para Chroma nos próximos dias.

— Obrigado — murmurou Mario. — Obrigado, general!

Não havia mais nada a dizer. De agora em diante cada qual teria que arcar com as conseqüências da sua decisão pessoal. Lentamente, os membros da tripulação se retiraram do plenário da Suprema Comissão Espacial.

Hasso e Mario foram os primeiros a sair, seguidos de Helga e Atan.

Lydia e Wamsler ainda lançaram um rápido olhar para Cliff e Tamara, e depois se retiraram sem proferir palavra.

De repente, sentia-se o efeito do silêncio. A enorme sala, na qual não havia mais ninguém além do comandante e da agente do SSG, ainda cheirava a água do mar e material de limpeza. As poltronas encontravam-se espalhadas desordenadamente e alguém havia esquecido alguns documentos em cima da mesa. Cliff podia ouvir o relógio por cima da porta, e as batidas do seu coração. Por um acaso, ele e Tamara encontravam-se exatamente no meio da sala. Por fim, Tamara rompeu o silêncio que os envolvia. Cliff estremeceu. "A hora da decisão", pensou.

— Pois é — disse Tamara.

McLane olhou para aqueles olhos verdes e irônicos.

— Sim? — murmurou, baixinho.

— Bem, então... meus parabéns pela promoção, coronel!

— Obrigado, camarada Jagellovsk! — respondeu Cliff, inseguro. Em outras situações perigosas se sentiria bem mais à vontade do que agora. "Mas", pensou desesperado, "a situação mais perigosa de todas ocorre quando um homem da minha idade madura descobre que tem um coração." — Muito obrigado!

— Fiquei muito contente — disse Tamara, algo vacilante. — Vai poder voltar à sua velha unidade, às Formações Espaciais Rápidas!

— É — respondeu Cliff, não menos hesitante. — Isso é bom... muito bom... para nós todos.

Tamara encolheu os ombros.

— Não sei, não. Até agora eu não tenho a menor noção do que pretendem fazer comigo.

Cliff gelou de susto.

— Como assim? — perguntou. Tamara abriu os braços, num gesto de profunda desolação, e respondeu:

— Ninguém sabe, onde vou servir agora!

— Mas, então não vai ficar com a gente?

Tamara sacudiu a cabeça, visivelmente triste.

— Droga! — exclamou Cliff; ia soltar um palavrão, mas controlou-se a tempo.

 

Ao lado deles, cintilava a gigantesca projeção da esfera espacial controlada por Terra.

— Mas é claro que não vou ficar com vocês, Cliff— disse Tamara, caminhando em direção daquela projeção. — Afinal somente enquanto durasse a sua punição é que eu deveria exercer o papel de "governanta" da Orion.

Desalentado, Cliff respondeu:

— É... é verdade. Mas eu não consigo conceber que não vai mais estar a bordo como um fantasma ameaçador.

Sorriu. Lembrou-se do lugar predileto de Tamara na cabine de comando. Lá do alto daquela escora, entre mesa e teto, ela costumava soltar as suas observações mordazes e incômodas. Durante os próximos anos Cliff ficaria privado de tudo isso. Sentiria falta daqueles acirrados duelos verbais. Tamara esforçava-se, isso Cliff notou, para não deixar o diálogo descambar para o lado do falso sentimentalismo.

— Bem, todas as coisas chegam ao seu fim — disse ela.

— Uma verdade incontestável! — murmurou Cliff.

Encontrava-se agora ao lado dela, diante daquela projeção tridimensional. Estava nervoso. E isso acontecia raramente; sabia que essas recordações só estavam servindo para protelar a despedida inevitável o mais que pudessem.

— Chroma! — disse Tamara. Cliff enrubesceu.

— Será que precisa abordar logo esse tema? — perguntou, em tom um pouco mais alto. — Sabe muito bem o quanto é embaraçoso para mim!

O sorriso de Tamara já era um pouco menos inseguro.

— E aquele incidente em Mura, a colônia penal! Por todas as nebulosas, a raiva que eu tinha de você naquela ocasião, McLane!

Cliff retrucou imediatamente:

— Cale-se! Raiva sinto eu quando me lembro do seu interminável namoro com aquele escritor! Em primeiro lugar, a encenação era da pior qualidade; e em segundo, aquele sujeito não era o homem certo para Tamara Jagellovsk. A propósito...

— Sim, o quê? — perguntou Tamara, evidenciando um súbito interesse.

— Ele me enviou a coleção completa das suas obras, todas com dedicatória pessoal. Explicou na carta que estava trabalhando numa série de histórias baseadas nas aventuras fantásticas da Orion. Disse, ainda, que havia encontrado farto material nos arquivos de Wamsler.

Tamara sacudiu a cabeça, indignada.

— Que coisa horrível! Já pensou aparecer encadernado em linho e com descrições detalhadas da nossa vida emocional meio confusa?

— Espero que esses livros vendam bem — disse Cliff, encolhendo os ombros. — Porque assim desaparecem rapidamente das livrarias. Já estou me vendo em cenas deprimentes.

— É o que acontece quando se salva a vida de um poeta — respondeu Tamara. — Mas voltando a falar em Chroma... tive ganas de estrangulá-lo, Cliff! Os olhares ardentes que andou trocando com aquela "generalíssima"... olhe, eram dignos de serem encenados num palco!

— Afinal — disse Cliff e chegou mais para perto — naquela ocasião eu tive que salvar Terra. Portanto, tudo era justificado. Mas, como me recordo muito bem, naquela mesma ocasião a senhora, você, me beijou!

O olhar ardente daqueles olhos verdes envergonharia a generalíssima de Chroma... Tamara disse, baixinho:

— Eu pensei que você já tivesse esquecido isso!

McLane abraçou Tamara e a beijou, com calma e carinho. Foi quase um beijo fraternal.

— Vou procurar Van Dyke — prometeu, sem se dar conta do que estava prometendo. — Vou dizer a ela que vou me desligar da frota. Não quero perder a minha governanta.

Tamara sacudiu a cabeça.

— Você só sabe raciocinar em termos de serviço... Será que você não precisa de uma governanta na vida particular?

O segundo beijo já foi bem mais demorado e de fraternal não tinha nada. Alguns segundos se passaram e o silêncio voltou a reinar na grande sala. De repente... A tela do videofone se aclarou, mostrando o rosto de Helga Legrelle em primeiro plano. Mario de Monti aparecia nos fundos. Helga sorria, mas o olhar com que contemplava o par surpreendido denotava raiva.

— Obrigada, Cliff — disse. — Isso foi o suficiente.

Cliff e Tamara se separaram numa fração de segundos. Resfolegando, olharam para a tela. Indignado, McLane gritou:

— Helga! Que brincadeira de mau gosto é essa?

A voz de Helga veio dos alto-falantes do videofone, e denotava uma indisfarçada satisfação.

— Trata-se de uma pequena aposta que eu fiz com Mario — explicou. — É que o nosso especialista em corações femininos afirmou que vocês dois não teriam coragem de se beijar no plenário da Suprema Comissão Espacial!

Cliff refez-se rapidamente do susto. Fez um gesto displicente com a mão e murmurou:

— Nada é perigoso demais para um verdadeiro cosmonauta. Isso você já deveria ter aprendido, garota!

Helga acenou.

— Muito obrigada, Cliff. Acabei de ganhar dez garrafas de champanha!

A tela se apagou. Durante alguns segundos, Cliff e Tamara trocaram um olhar silencioso; depois começaram a rir. De mãos dadas, atravessaram a moldura da barreira eletrônica desligada... noventa dias de férias os esperavam. Férias pagas...

 

Muita gente havia participado, de uma maneira ou de outra, dos acontecimentos relacionados com a fracassada tentativa de invasão. Mas as opiniões eram divididas. Uns afirmavam que a ameaça fora eliminada de vez, enquanto outros achavam que muitas providências teriam de ser tomadas antes que se pudesse considerar o perigo afastado em definitivo. Prevaleceu a opinião desses últimos.

E assim, várias medidas foram adotadas. Medidas secretas. Tão secretas que apenas um punhado de participantes diretos sabia do que se tratava. Nada se comentava, nada era anotado... os documentos desapareciam dos cofres. Nem mesmo McLane ou Tamara foram inteirados.

Novecentos parsec, ou seja, dois mil e novecentos e trinta e quatro anos-luz — este era o diâmetro da esfera espacial que constituía o domínio terrano. E aproximadamente cem mil anos-luz media o diâmetro da galáxia, na qual um planeta denominado Terra girava em torno do seu sol. A esfera espacial terrana não passava de uma coisa insignificante, de forma esférica, cujo conteúdo permanecia parcialmente desconhecido — como a história dos últimos tempos havia demonstrado de maneira inequívoca.

Em conseqüência das resoluções tomadas, duas importantes missões foram iniciadas. A população do mundo as ignorava por completo.

O objetivo da primeira missão era rechaçar as naves remanescentes do inimigo para a região situada além da décima zona de distância. Cabia à frota tática de Kublai-Krim realizar essa tarefa. Assim que as bases devastadas foram recuperadas, a frota partiu sob o comando de Lydia van Dyke, dirigindo-se para o cubo espacial Três/Leste 203, onde os escombros de Gordon vagavam pelo cosmos, em meio às desnorteadas naves dos extraterranos. A frota dispunha agora de uma ligação radiofônica à prova de interferências indébitas, e todas as comunicações convergiam para a central montada no gabinete de Wamsler. A enorme mesa de trabalho do marechal estava praticamente circundada de videofones e modelos reduzidos das projeções dos cubos espaciais situados em torno de Três/Leste 203. Havia apenas três homens no gabinete: Wamsler, Kublai-Krim e Spring-Brauner.

Refeito de uma breve crise depressiva, Kublai-Krim exercia novamente o seu cargo de comandante-em-chefe das Forças Armadas Espaciais. E Spring-Brauner, o ajudante-de-ordens de Wamsler, tivera ensejo de demonstrar que não possuía apenas uma boa aparência, mas também inteligência e bom senso. Foi perfeita a maneira como organizou e dirigiu a ação fulminante que resultou na ocupação da sede do SSG e no aprisionamento de Villa.

Um rosto conhecido apareceu em uma das telas.

— Sim, o que é? — perguntou Wamsler.

— Mulligan falando, marechal — disse o homem troncudo.

Após a queda de Villa, Mulligan havia sido promovido e imediatamente reempossado nas suas funções de responsável pelas bases da frota de Kublai-Krim.

— O segundo grupamento está pronto. Mando decolar?

— Ainda não, Mulligan — respondeu Kublai-Krim. — Preferimos esperar mais um pouco.

Lydia van Dyke acompanhava a conversa e sorriu, concordando.

— Quantas naves contaram até agora? — perguntou Krim.

No cubo espacial Três/Leste 203, centenas de naves inimigas estavam travando um encarniçado combate com vinte e quatro cruzeiros espaciais pesados, equipados com Overkill.

— Neste momento, portanto duzentas horas após Cosmos, a situação é aproximadamente a seguinte — disse Lydia, consultando um bloco de apontamentos. — As naves, que mergulharam no hiperespaço, ainda não apareceram.

Kublai-Krim tomou nota dessa informação. Convinha despachar naves com equipamento especial, para caçar os estranhos no hiperespaço. Mas isso não era premente. Mais importante, no momento, era apressar o conserto das naus de combate que haviam sofrido avarias durante a inundação das bases. E o número de naves recuperadas aumentava a cada hora que se passava.

— Prossiga, por favor! — pediu Wamsler.

— Parte das naves encontra-se em plena fuga. Afastam-se no espaço normal, em direção ao braço de Perseu.

Preocupado, Kublai-Krim perguntou:

— E a Galaxis?

Lydia deu um breve aceno.

— Está a caminho do seu objetivo! Contamos cerca de trezentas naves inimigas aqui, nas vizinhanças do sol. Pelo que podemos observar, parece tratar-se de naves robotizadas ou teleguiadas. Só uma ou outra oferece resistência. Acha que devíamos capturar uma delas?

Kublai-Krim e Wamsler trocaram um rápido olhar; depois Krim deu um aceno afirmativo.

— Ordem de F.R.E.T.: tente apoderar-se de uma das naves dos estranhos. Se reagir, destrua-a imediatamente.

— Obrigada! — respondeu Lydia van Dyke. — Entendido!

Os discos terranos lançaram-se ao ataque numa larga frente.

Incessantemente os homens nos postos de combate liberavam a terrível energia dos projetores Overkill. Não raro, atingiam duas naves inimigas ao mesmo tempo; simplesmente se dissolviam. E as naves terranas atacavam e voltavam, atacavam e voltavam, sempre voando em perfeita formação. E após cada ataque aumentava a certeza de que havia apenas dois tipos de naves inimigas: por um lado, as naves robotizadas ou teleguiadas, cujos mecanismos de comando falhavam sem uma única exceção. Talvez os postos de controle não estivessem devidamente guarnecidos, ou então já lhes faltava energia para as manobras. E por outro lado, as naves que ainda estavam em condições de se locomoverem livremente.

Analisando os fatos, os comandantes chegaram à conclusão de que as naves robotizadas já não representavam mais qualquer perigo. Além disso, as repetidas medições efetuadas pelos astronavegadores revelaram que a atração do sol era de tal intensidade que se encarregaria de limpar aquela região espacial de todos os fragmentos de Gordon bem como das naves inimigas avariadas. Os comandantes resolveram aguardar novas ordens.

— Como viram — disse Lydia na tela do videofone — a situação modificou-se radicalmente. Chegou a hora de tentar capturar uma nave inimiga.

Os três homens no gabinete de Wamsler tiveram a atenção desviada para uma outra tela, que apresentava a imagem de radar da região em torno do sol de Gordon. Pululavam os ecos das naves estranhas. Um pouco mais abaixo, apareciam os impulsos das esquadrilhas terranas. E neste instante, três discos saíram de formação, acelerando incessantemente.

A cena mudou, mostrando, agora, o interior de uma das naves: a tripulação envergava os trajes espaciais e estava fortemente armada. Só não havia ainda colocado os capacetes... Descrevendo uma curva, as três naves lançaram-se em direção a uma das libélulas de aço, que se encontrava separada das demais. Numa rápida manobra de envolvimento, os três discos cercaram o estranho que pairava imóvel no espaço.

Os projetores Overkill apontavam ameaçadoramente para a nave inimiga. Os comandantes ativaram o sistema de observação externo, e as possantes lentes começaram a examinar cada centímetro quadrado daquele corpo metálico. Não descobriram nada, além de pequenas saliências semi-esféricas, que literalmente cobriam a fuselagem e as asas da nave inimiga. Agora, uma suspeita transformou-se em certeza: aquela estranha nave não possuía entrada. Não se via nada que indicasse a existência de uma eclusa; nada em que alguém pudesse se agarrar quando tentasse penetrar no interior desse corpo. Uma ordem indistinta veio de um dos alto-falantes:

— Eles vão tentar queimar uma abertura no casco — disse Spring-Brauner, agitado. — Com os raios laser!

Cinco câmaras focalizavam, agora, aspectos da região em torno do sol de Gordon. As naves inimigas desapareciam ou eram destruídas.

O telegrafista da primeira nave lançou mão da ampliação máxima das suas lentes e voltou a examinar o casco daquela esfera. No gabinete de Wamsler, ouvia-se a conversa conduzida em voz baixa entre as tripulações das três naves que cercavam o inimigo.

— Não consigo reconhecer nada!

— Vamos enviar um homem para lá, com propulsor agregado e holofote portátil!

— Certo, pode deixar, eu mesmo vou!

— Está bem! Levem-no para a eclusa! A expectativa fustigava os nervos dos três homens no gabinete de Wamsler. Segundos depois a tela mostrou um novo quadro. Um vulto desprendeu-se de uma das naves. Impulsionado por uma minúscula chama, aproximava-se com movimentos lentos da nave imóvel dos estranhos.

Em seguida, um raio ofuscante incidiu sobre o casco da nave inimiga, cortando uma abertura de três metros de diâmetro. Como que em câmara lenta, a peça metálica afastou-se, girando lentamente, enquanto aquele vulto desapareceu no interior da nave estranha. O telegrafista conectou a intercomunicação de bordo ao canal que transmitiria a conversa a Terra. A descrição daquele homem que agora se encontrava a bordo de uma nave espacial do inimigo era acompanhada no gabinete de Wamsler.

— Estou atravessando um corredor — disse ele. — Aqui dentro há gravitação artificial; talvez 0,5g. O corredor é curvo, e não tem mais que dois metros de altura...

— Algum sinal de seres inteligentes, Mike?

— Até agora, nada. Estou prosseguindo... só vejo peças estranhas, ligadas por cabos grossos nas mais variadas cores... não há iluminação, só a luz do meu holofote...

— Portanto, trata-se de uma nave robotizada! — suspirou Wamsler. — E um troço desses nos fez tremer de medo!

— Robô ou não — sentenciou Kublai-Krim — para o canhão não faz a menor diferença, em que acerta.

— Encontro-me agora numa sala circular... repleta de máquinas desconhecidas, sistemas de lentes e não sei mais o quê... mas ainda não vi nada daqueles seres que nos foram descritos... vou ter que voltar... o corredor termina nessa sala.

Esta era a prova. O oficial nada tinha encontrado. Somente leves traços de uma atmosfera rarefeita, e um pouco de calor, provavelmente gerado pela aparelhagem, e que talvez fosse importante para o funcionamento do controle remoto.

Mas nenhum vestígio daqueles seres... daqueles extraterranos que podiam subsistir em atmosfera desprovida de oxigênio ou mesmo no espaço livre. E cujos corpos eram feitos de uma substância leitosa transparente, permeada de veios negros, pulsantes, de espessura variável...

Wamsler fez um sinal para Spring-Brauner. O ajudante aproximou-se de um dos microfones especiais e disse:

— Aqui fala o gabinete Wamsler. Chamo o general Van Dyke!

Lydia respondeu imediatamente.

— Acompanhei a ação. Quais são as ordens?

— Ative seus campos gravitacionais e jogue essa sucata no sol! — respondeu Kublai-Krim, com voz dura. — Alguma notícia da Galaxis?

— Está seguindo o curso previsto.

— ótimo! Agora certifique-se de que não há outras naves além dessas robotizadas. Se não houver, dê ordem de cessar fogo. Confiamos na senhora, general Van Dyke!

Da tela do videofone, Lydia olhou para Wamsler, Krim e Brauner.

— Entendido! — respondeu. Três das telas se apagaram.

— E agora... Galaxis! — disse Kublai-Krim. — A primeira e última tentativa!

Só duas telas ainda estavam acesas e eram controladas de bordo da Galaxis.

 

ANOS mais tarde, Wamsler ainda acordaria banhado de suor, quando se lembrasse daquelas operações. Afora uma ou outra anotação dos homens que estavam a par dessas missões ultra-sigilosas, todos os demais dados e registros haviam sido destruídos, inclusive aqueles fornecidos pela Central de Computação.

As tripulações das naves, que participaram daqueles combates na vizinhança do sol, mantinham o mais estrito silêncio, obrigados a isso por uma reformulação do juramento de serviço. Qualquer pedacinho de plástico, do qual constasse o nome de um objetivo ou a data e a hora de alguma ação, era imediatamente incinerado. Ninguém sabia, o que se tinha passado. E nunca mais alguém chegou a rever uma das naves que tinham sumido no hiperespaço entre Gordon e Terra. Nenhuma informação foi fornecida à imprensa, e os noticiários da televisão não se referiam àquelas ações com uma única palavra. Era como se a invasão jamais houvesse sido tentada. Calculou-se em três mil o número das naves invasoras. E nenhuma dessas três mil naves inimigas tinha alcançado Terra.

 

A Galaxis. Era tripulada por dez dos melhores homens da frota, escolhidos a dedo. Após extensivos testes, decidiu-se entregar o comando a Freder Auckland, um oficial-instrutor da Academia Espacial que, junto com uma inteligência rara, possuía a necessária dose de audácia, aliada a um raciocínio frio e lógico. Ele e seus nove comandados sabiam perfeitamente o que estava em jogo. Mas a hora ainda não tinha chegado.

— Se esses caras soubessem como estamos suando de nervosos — gemeu Wamsler no seu bem protegido gabinete — teriam pena de nós.

Uma das duas telas retransmitia, através da estação satélite Quatro/Leste, a imagem daquele trecho do cosmos que as lentes da Galaxis conseguiam captar.

O reluzente disco voava a uma velocidade ligeiramente inferior à da luz, dirigindo-se ao braço de Perseu, aquela conhecida ramificação da Via Láctea. À frente, muito longe ainda, mas perfeitamente reconhecíveis na tela do astronavegador, quarenta e três naves inimigas varriam pelo espaço a toda velocidade. Kublai-Krim observou:

— Essas não são robotizadas, Wamsler!

— Comandante para astronavegadores — disse Auckland. — Distância?

— Dez unidades astronômicas.

— Está se reduzindo ou se mantém constante?

— Nossa velocidade é superior à deles em vinte e cinco por cento!

— Comandante para telegrafista: Ligue a fita!

Colaborando com as autoridades espaciais, os especialistas do Serviço de Segurança haviam gravado uma fita, utilizando os sinais radiofônicos dos extraterranos.

"O legado de Villa", pensou Auckland, amargurado, "talvez agora possa nos ajudar."

A fita transmitia o pedido de estabelecer contato. Os sinais seriam emitidos na freqüência habitual dos estranhos, e a mensagem repetida a cada minuto.

— Entendido! Já vou ligar!

A fita começou a passar pelas cabeças magnéticas. Possantes amplificadores transformavam aqueles estranhos grupos ternários em fortes impulsos, que as antenas direcionais irradiavam para a naves dos extraterranos. Para quem aguardava uma resposta, um minuto representava uma eternidade. Um segundo gravador se achava acoplado ao pequeno computador, em cuja memória haviam sido armazenadas todas as traduções disponíveis. A Galaxis continuava a se aproximar dos estranhos.

— Distância?

— Oito unidades astronômicas, comandante!

— Comandante para postos de combate: alvo enquadrado?

Os homens nos postos de combate prendiam a respiração, aguardando um sinal. O cosmos estava silente. Nada de grupos ternários característicos.

— Repita a mensagem! — ordenou Auckland.

O telegrafista girou um botão, e mais uma vez os estranhos impulsos eram irradiados pelo espaço com uma potência de emissão fantástica. Não era possível que os receptores nas naves inimigas não tivessem captado o texto da mensagem dos terranos.

— Queremos estabelecer contato com vocês... queremos negociar... não desejamos a luta... queremos contato com vocês...

Silêncio. Auckland explodiu.

— Droga maldita! Não respondem!

— Infelizmente, é verdade, comandante! — disse o telegrafista.

— Distancia: três unidades astronômicas! — informou o astronavegador.

Agora já era possível reconhecer os ecos na tela central sem ampliação.

— Muito estranho. A vontade que eu tenho é empregar logo os projetores. Mas vamos continuar a irradiar a mensagem enquanto pudermos — disse Auckland.

A Galaxis continuava no encalço dos extraterranos.

— Distância: uma unidade astronômica! — avisou o astronavegador. — A primeira nave mergulhou no hiperespaço... depois, a segunda.

Os propulsores trabalhavam a plena potência, conseguindo acelerar a gigantesca nave mais um pouco. Os geradores gravitacionais zumbiam ominosamente, e cada vez que um dos homens fazia um movimento, pequenas centelhas pareciam saltar das arestas e protuberâncias das instalações. Pouco a pouco a Galaxis reduzia a distância e finalmente emparelhou com uma das naves inimigas.

— Acender holofotes! — ordenou Auckland.

Na face lateral da nave, um dos possantes faróis de pouso se acendeu, dirigindo o seu feixe de luz sobre a proa da nave dos estranhos, que distava poucos quilômetros.

— Ligue a fita mais uma vez!

Uma fita especial ligava e desligava o holofote a intervalos que correspondiam aos da comunicação radiofônica. Claro-escuro-claro-escuro...

— Nada! — avisou um dos homens que guarneciam os projetores Overkill.

Lado a lado, as duas naves varriam pelo espaço em direção às estrelas. Incessantemente o holofote se acendia e apagava; sua potência luminosa era de alguns milhares de lúmens... Nada.

Nenhuma resposta; nenhuma reação.

— As outras naves estão se lançando no hiperespaço! — comunicou o astronavegador, mais que agitado.

Eco após eco desaparecia das telas. A comunicação nas bases previstas só era possível no espaço normal.

— Impulsos!

O grito do telegrafista ecoou pela nave. Durante alguns segundos, os homens da Galaxis ouviram estridentes grupos ternários, emitidos em vários tons. Depois... silêncio.

— Acabou-se! — disse o astronavegador, cansado.

— Mensagem para F.R.E.T., marechal Wamsler: perseguimos as naves até que desapareceram no hiperespaço uns dez segundos atrás. Estamos tentando decifrar a única resposta que obtivemos. Fim da mensagem.

— Obrigado — disse a voz difusa de Wamsler da tela. — Fico aguardando a tradução. Depois volte o mais depressa que puder para a Base 104. Entendido?

— Entendido! — respondeu Auckland calmamente.

O computador matraqueava incessantemente, traduzindo a mensagem radiofônica da quadragésima terceira nave dos extra terranos... a última.

— Qual foi a resposta?

A resposta da máquina era uma longa fita de plástico, cheia de perfurações.

— Tem certeza, marechal, que quer ouvir a resposta? — perguntou o comandante Auckland e encarou em cheio Wamsler.

— Claro que quero! — berrou Wamsler. Auckland leu a resposta. Sua tripulação ouvia com tanta atenção quanto os três homens no gabinete do chefe das Formações de Reconhecimento Espacial Terranas.

— Não queremos contato... nós odiamos vocês... não queremos contato... nós...

Auckland levantou o olhar.

— Era isso, marechal!

Wamsler baixou a cabeça. Após alguns instantes, disse, visivelmente contrariado:

— Então foi essa a resposta deles. Talvez um dia voltem...

O rosto de Kublai-Krim apareceu na tela.

— Obrigado, Auckland — disse ele. — Programe o curso rumo a Terra e mergulhe no hiperespaço. A operação está encerrada.

Auckland deu um aceno com a cabeça. A voz metálica do computador contava:

— ...três... dois... um... zero.

À contagem de "zero", a Galaxis desapareceu no hiperespaço. Graças às suas máquinas ultrapossantes só levou trinta e três horas para voltar. Pousou na Base 104 sob o maior sigilo. Nenhum dos homens revelou o destino e o objetivo da missão, da qual participara. Mas Terra não conseguiu se livrar do medo de que um dia os invasores não voltariam...

E se realmente um dia voltassem, não se limitariam a ocupar satélites retransmissores... a dirigir planetas em chamas para o centro do sistema... a transformar homens em escravos com auxílio de raios telenóticos... a iniciar uma invasão.

O que fariam? Que diabruras poderiam conceber? Ninguém o sabia.

 

 

                                                                                                    Hanns Kneifel

 

 

 

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