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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JURAMENTO DE AMOR / Hannah Howell
JURAMENTO DE AMOR / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

                          Escócia, 1456 - Tentação Proibida!

Quando era menina, Elspeth socorreu um cavaleiro ferido, e se apaixonou por ele. Os caminhos de ambos voltam a se cruzar anos mais tarde, quando ele a salva de um pretendente indesejado. O coração de Elspeth ainda suspira por Cormac, mas ele está noivo de outra, uma mulher implacável que o domina sem piedade. Agora Elspeth precisa lutar contra todos os obstáculos para conquistar o homem que ama e viver uma grande paixão! Cormac se surpreende com a intensidade de sua reação ao beijo de Elspeth Murray, resistindo à tentação. Dividido entre a promessa feita a uma mulher e o crescente desejo que sente por outra, ele vive atormentado, sem ter noção de como é manipulado pela noiva e da armadilha mortal que esta lhe prepara. Elspeth está desesperada para salvá-lo, mas quando Cormac compreender a verdade será tarde demais para que possam alcançar juntos a felicidade?

 

 

 

 

     - Cabeça de prego!

     - Cocô de cachorro!

     Cormac Armstrong quase riu quando as vozes infantis, cheias de raiva, retardaram seu lento e resignado mergulho rumo à inconsciência. Parecia uma piada cruel do destino que ele se esvaísse em sangue em plena juventude, ao som agudo de berros de crianças a se insultarem. Os gritos despertaram a lembrança de todas as vezes em que brigara com seus irmãos, trazendo a percepção dolorosa de que nunca mais os veria novamente.

     - Você é horroroso!

     - Ah, é? Ora, eu acho você horrível e estúpido!

      O baque de um soco foi logo seguido pelos gritos raivosos de crianças lutando. Mais vozes infantis vibraram no ar frio e úmido, como se houvesse uma verdadeira horda de pirralhos do outro lado da moita em que Cormac se escondera. Rezou para que ninguém se aproximasse e se envolvesse em seus terríveis problemas. Num piscar de olhos, viu suas preces não serem atendidas.

     Imensos olhos verdes e uma cascata ondulada de cabelos negros foram a primeira coisa que ele viu quando uma garota miúda e esguia se ajoelhou a seu lado. Cormac desejou com todas as forças que ela estivesse bem longe dali. Não acreditava que seus inimigos ainda seguissem sua trilha, mas poderia estar enganado, e aquela criatura delicada seria brutalmente atacada por eles, talvez até mesmo fosse morta ou molestada.

     - Vá embora, menina - disse, num murmúrio rouco e trêmulo. - Leve seus companheiros e fuja deste lugar. Depressa.

     - Você está sangrando! - ela exclamou, depois de examiná-lo.

     As pálpebras de Cormac abriram-se ligeiramente quando a menina começou a passar a mãozinha macia em sua testa. Aquela voz era surpreendentemente profunda, quase sensual para uma garota tão miúda, ele pensou. Mais voz de uma moça.

     - Sim - Cormac concordou -, e logo estarei morto, o que não é coisa que esses olhos bonitos devam ver.

     - Não, você não vai morrer. Minha mãe pode curar quase qualquer ferimento, sabe? Sou Elspeth. Elspeth Murray.

     - E eu sou Cormac Armstrong. Você não deve contar nada a sua mãe sobre mim.

     - Precisa dela para fazer o sangue parar.

     - Menina, estou sangrando porque alguém quer de todas as formas me matar.

     - Por quê?

     - Dizem que sou um assassino.

     - E você é?

     - Não!

     - Então minha mãe pode ajudá-lo.

     Cormac gostaria que a menina fosse buscar a mãe para cuidar de seus ferimentos. Não queria morrer. E, principalmente, não queria morrer por um crime que não cometera. Tinha de limpar aquela mancha de seu nome. Era tudo tão injusto, pensou, e, então, sorriu. Percebeu que parecia, ele mesmo, uma verdadeira criança.

     - Ah, pobrezinho - a garota murmurou. - Está sofrendo. Precisa ficar quieto. Vou dizer aos moleques para se calarem.

     Antes que ele pudesse protestar, ela se levantou e foi até a beira do mato.

     - Podem calar essas bocas, vocês todos! - Elspeth gritou, num tom surpreendentemente autoritário e forte. - Há um pobre homem sangrando aqui e ele precisa de sossego. Payton use essas suas pernas finas e corra. Encontre Donald ou meu pai. Traga alguém, pois esse moço tem de ser ajudado.

     Quando ela voltou para seu lado, Cormac murmurou:

     - Sou um homem caçado.

     Praguejou baixinho ao ver as outras crianças começarem a se aproximar por entre as moitas.

     - Quantos anos você tem? - Elspeth perguntou ao começar, de novo, a passar a mão de leve nele.

     - Dezessete - Cormac respondeu.

     - Eu faço nove hoje. É por isso que tantos Murray estão reunidos aqui.

     - Por que ele está sangrando, Elspeth?

     - Porque há alguns poucos buracos enormes nele, Avery. - Elspeth sorriu quanto a outras crianças caíram na risada.

     - Estou vendo isso. Mas como ele se machucou?

     - Alguém quer matá-lo por causa de um assassinato que ele não cometeu.

     - Menina - Cormac relanceou os olhos para as onze belas crianças, e depois os cravou em Elspeth -, eu disse que era inocente, mas você não pode ter certeza se eu falei a verdade ou não.

     - Mas você falou - Elspeth retrucou, com firmeza.

     - Ninguém pode mentir para Elspeth - disse um menino alto e magro, agachado à esquerda de Cormac. - Eu sou Ewan, irmão dela, e só posso lhe dizer que isso é uma coisa muito complicada.

     Cormac quase riu, mas fixou o olhar no garoto, que parecia um pouco mais velho que Elspeth.

     - Então, sua irmã também sabe que eu sou um problema... um problema perigoso, e que ela deveria me abandonar à minha própria sorte. Você todos deveriam correr para casa antes que o perigo chegue a seus portões.

     - Ewan, por que você e os outros meninos não vão arranjar alguma coisa para fazer uma maça? - disse Elspeth. - Ah, e antes que vá fazer o que eu lhe disse, pode me dar aquele odre de vinho que pegou de Donald.

     - Eu nunca... - o moleque começou a protestar.

       Então resmungou e entregou o odre a Elspeth, antes de se afastar com os outros meninos.

     - Não há mal nenhum em beber um pouco de vinho, menina - Cormac disse.

     - Estou pensando que isso será mais útil a você. Ewan pode experimentar um outro dia.

     Elspeth enfiou um braço esguio em torno dos ombros de Cormac e o ajudou a se erguer o suficiente para tomar um gole. Ele engasgou ao engolir a bebida. Vinho não queimava daquele jeito ao descer pela garganta nem espalhava tanta quentura por seu corpo.

     - Avery, vá buscar um pouco de água - Elspeth ordenou. Depois, assim que o primo se afastou, ela olhou para as duas meninas que restavam. - Bega, Morna, uma de vocês vai me dar o saiote para que eu possa enfaixar os ferimentos deste moço. Para falar a verdade, vou precisar de um bom pedaço do saiote de vocês duas.

     - Por que não usa o seu? - resmungou a garotinha de cabelos louros. - Vou levar bronca.

     - Não por ajudar a salvar uma pessoa da morte, Bega.

     Enquanto as duas garotinhas lutavam para rasgar seus saiotes, Cormac olhou para Elspeth.

     - Menina, isso não é tarefa para uma menina tão pequena.

     - Bem, não será divertido, mas não temos certeza de quanto tempo Payton vai levar para trazer ajuda, de modo que é melhor pararmos com essa hemorragia, se conseguirmos. Minha mãe é curandeira. Eu sei umas poucas coisas. Tome mais uns goles de vinho.

     - Isso não é vinho - ele murmurou, e, em seguida, tomou outro gole. Elspeth sorriu e Cormac pensou um tanto atordoado, que ela se tornaria uma bela mulher quando crescesse.

     - Sei disso. E todo mundo também. Donald esconde no odre o destilado que ele faz.

     - Se você está com o odre de Donald, então ele não pode estar muito longe. Não, nem alguém deixaria um bando de crianças correndo por aí sem ninguém para olhar. Então, menina, onde está Donald?

     - Ah, bem... Fugimos da sua guarda. Sim, creio que nos comportamos mal, pois saímos de Donncoill faz bastante tempo e meu pai pode estar procurando por nós. Isso quer dizer que logo o pobre do Donald vai ouvir o que tem pavor de escutar.

    

         - Onde estão eles, Donald?

     Donald estremeceu e tentou se mostrar confiante diante do senhor de Donncoill, que o interrogava aos berros. Balfour parecia prestes a surrá-lo até deixá-lo sem sentidos, e seus irmãos, Nigel e Eric, davam a impressão de estarem ansiosos para segurá-lo enquanto Balfour o arrebentava. Donald desejou ardentemente não ter perdido o odre junto com as crianças, pois poderia tomar um belo gole para encorajá-lo naquele momento.

     - Não sei - retrucou, e recuou depressa diante da fúria palpável dos irmãos Murray. - Estavam comigo num momento e sumiram no outro. Estou procurando por eles faz quase uma hora.

     - Nossas crianças estão fora da sua vista faz uma hora?

       Antes que Donald pudesse pensar em alguma resposta, o pequeno Payton surgiu correndo e agarrou o pai, Nigel, pelo braço.

     - Precisa vir comigo agora, papai!

     Nigel segurou o filho pelos ombros magros.

     - Aconteceu alguma coisa com as crianças?

     - Não, estão todas bem. - O menino relanceou os olhos para Donald. - Desculpe por fugirmos do senhor.

     - Não se preocupe com isso agora, filho. Onde estão os outros? - Nigel perguntou.

     - Vou lhe mostrar. - Payton enveredou para o caminho até onde Elspeth e as outras crianças se encontravam. - Elspeth achou um homem sangrando e me mandou buscar ajuda.

     Nigel trocou um olhar rápido com seus dois irmãos, que franziram a testa. Havia muitas razões para um homem estar ferido naquele canto remoto das terras dos Murray. Poucas delas eram boas. Nigel fez o filho apressar-se enquanto Donald pegava as rédeas dos cavalos e os seguia logo atrás.

    

     - Desculpe por ter machucado você, Cormac - disse Elspeth ao umedecer um pedaço de pano e limpar o suor do rosto do ferido -, mas acho que aliviei o sangramento um pouquinho.

     - É, fez um belo trabalho, menina - ele se esforçou para responder.

     - Minha mãe terá de costurar os ferimentos do lado do corpo e da sua perna.

     - Menina, não posso lhe agradecer o bastante, mas será que não deveria me ouvir e ir embora? Não tenho certeza de ter me livrado dos homens que estão me caçando, e seria muito triste, para mim, ver você ferida se eles chegarem aqui e me encontrarem. Iriam machucá-la e às outras crianças.

     - Avery, Morna e Bega estão de vigia.

     - Você é uma menina teimosa.

     - Já levei bronca por isso uma vez ou duas. Mas você precisa de ajuda...

     - Sou caçado...

     - Minha tia Gisele, a mãe de Avery, foi caçada também, e nós a ajudamos. Foi acusada de um assassinato também, de modo que sabemos que o fato de alguém dizer e tentar fazer com que pague por um crime não significa que seja verdade.

     Antes que Cormac pudesse retrucar, Avery surgiu a seu lado e anunciou:

     - Nossos pais estão chegando!

     O menino mal terminara de falar quando Cormac deparou com três homens de feições duras, bem armados. Num gesto instintivo, levou a mão à espada só para descobrir que ela sumira. Sem querer, sorriu quando o menino que chegara com os homens entregou sua espada a um sujeito alto, de olhos cor de âmbar. E sua pequena salvadora pegou a faca que havia dentro de sua bota e entregou-a ao homem alto, de ombros largos, de cabelos e olhos castanhos; depois, voltou-se gentilmente para limpar seu rosto.

     Balfour Murray olhou para a filha.

     - Você fugiu do pobre Donald.

     - Sim, é verdade - ela respondeu e estendeu o odre a Donald, que resmungava.

     - Sabe que não deveria fazer isso.

     - Sei, mas acho que de vez em quanto à desobediência me domina.

     - Bem, da próxima vez que a desobediência começar a dominá-la, tente se lembrar de que isso merecerá uma dura punição. - Balfour olhou ao redor, vendo apenas as quatro meninas. - Onde está o resto?

     '- Fazendo uma maça para o moço - Elspeth informou.

     - Espera que eu o leve para Donncoill?

     - E claro.

     - Está atravancando minhas terras com gente quebrada e manca, menina.

     - Ele não é manco, está só sangrando.

     Balfour encarou o jovem de quem sua filha cuidava com tanto carinho. Os cabelos fartos, de um castanho-avermelhado e os olhos de um azul-claro faziam uma combinação espantosa. As feições do rapaz eram bem-talhadas e sem marcas. O corpo era longo e enxuto, de linhas juvenis, mas guardava a promessa de que ele se tornaria um homem forte. Se aparência valia para alguma coisa, Balfour suspeitava de que todos iriam tratar o rapaz prontamente como amigo e dar-lhe as boas-vindas. Elspeth tinha apenas nove anos, mas Balfour não podia deixar de imaginar se, no presente momento, a filha não agia movida por algo mais que sua tendência costumeira de amparar todas as criaturas feridas. Impelido pela própria bondade, Balfour se sentiu inclinado a ajudá-lo sem perguntas, mas obrigou-se a ser cauteloso.

     - Sou sir Balfour Murray, lorde de Donncoill, e estes são meus irmãos, sir Nigel e sir Eric. - Apontou primeiro para o homem à sua esquerda e depois para o da direita. - Quem é você, rapaz, e por que está assim sangrando, nesta parte distante de minhas terras?

     - Sou Cormac Armstrong, senhor, e foi onde caí quando tentei chegar até meus parentes, ao sul - respondeu Cormac.

     - Onde está seu cavalo?

     - Saiu vagando por aí quando desmaiei e caí de seu lombo.

     - Quem o feriu e por quê?

     - Estou sendo caçado pelos parentes de um homem a quem fui acusado de matar. - Cormac suspirou ao ver os três recém-chegados o encararem, com desconfiança.

     - Fez isso?

     - Não.

     - E por que eu deveria acreditar em você?

     - Só posso lhe dar minha palavra de honra. Sou inocente.

     - Os meninos estão aqui com uma maça - anunciou Nigel.

     - Bem, melhor ver que seja resistente - disse Balfour. - Pode ser que arrastemos o rapaz até Donncoill. - Olhou de novo para Cormac. - A quem é acusado de matar?

     - Um dos Douglas.

     Cormac não ficou surpreso ao ver tanto Balfour como Eric recuarem, alarmados.

     - Um dos Douglas, hein? Tem forças para contar a história?

     - Vou tentar. Eu namorava uma moça. Mas a família dela resolveu casá-la com um dos Douglas. Tinha mais terra e dinheiro a oferecer. Eu não aceitei bem a perda. Soltei a língua e falei da minha raiva, e, claro, do meu ciúme. Então, quando o homem apareceu morto, com a garganta cortada, seis meses depois do casamento, todos os olhos se voltaram para mim. Eu não fiz isso, mas não tinha provas de que estava em algum outro lugar quando ele foi morto, nem alguém que afastasse a suspeita de mim. Portanto fugi, e estou fugindo desde então. Por dois longos meses.

     - É uma escolha difícil que me dá rapaz. Creio em você e me arrisco a enraivecer o poderoso clã dos Douglas ao mantê-lo vivo? Ou o deixo morrer, quem sabe entregando-o aos Douglas, embora você possa ser inocente? Pede para que eu arrisque muito, tendo como garantia nada mais que a sua palavra.

     - Ele não está pedindo. Eu estou - disse Elspeth. - E o senhor tem outra coisa a pesar em favor dele, papai.

     - Ora, e o que é?

     - Desde o momento em que o encontrei, ele está tentando me fazer ir embora, deixá-lo à própria sorte. Não parou de me avisar que poderia ser um problema.

     - Mas você é uma menina teimosa.

     - Sim, sou.

     Balfour sorriu para a filha, e então se adiantou e parou aos pés de Cormac.

     - Venha, Eric. Dê uma ajuda. Vamos colocar este tolo na maça e puxaremos sua carcaça furada até minha Maldie, para que ela possa costurá-lo.

     - Tem certeza disso, Balfour? - perguntou Eric ao se aproximar para ajudar a carregar Cormac.

     - Não de todo, mas que assassino, que homem caçado recusa uma oferta de ajuda porque receia que uma menininha idiota seja machucada?

     - Não sou idiota - Elspeth resmungou ao seguir o pai.

       Eric e Balfour trocaram um breve sorriso; então, Eric respondeu:

     - Nenhum, que eu saiba. Sim, sinto o mesmo que você. Só rezo para que possamos ter este rapaz curado e longe de Donncoill antes que o clã dos Douglas saiba o que fizemos. Parece covardia, sei disso, mas...

     - É, ponha "mas" nisso. Ele não é parente, não é nem amigo ou filho de um amigo.

     Balfour olhou para Cormac enquanto ele e Eric o acomodavam na maça.

     - Você será tratado e deixado com forças outra vez, rapaz, se Deus quiser; mas, depois, deve seguir seu próprio caminho. Compreende? - declarou, enquanto estudava o rosto do ferido, cinzento e molhado de suor.

     - Sim, não perdi a consciência ainda - Cormac respondeu.

     - Ótimo. Viu as riquezas que tenho de proteger. - Balfour relanceou os olhos para as crianças. - Nós, Murray, nada mais somos que um pequeno clã. Mesmo que pudéssemos convocar todos os nossos aliados, ainda seríamos poucos demais para atrair a ira do clã dos Douglas sobre nossas cabeças. - Balfour fez um sinal a Donald para amarrar a maça ao seu cavalo. - Você cutucou um inimigo muito poderoso.

     - Ora, bem, sempre acreditei que a gente deveria se esforçar para ser o melhor em todas as coisas - Cormac murmurou com um leve sorriso e, então, perdeu a consciência.

     - Ele não morreu, morreu? - Elspeth perguntou, numa voz baixa e trêmula, ao tocar a face pálida de Cormac.

     - Não. - Balfour ergueu a filha no colo e, depois que Donald e seus irmãos colocaram as crianças menores nos cavalos, pegou a própria montaria pelas rédeas e começou a caminhar de volta a Donncoill. - O pobre rapaz só desfaleceu. Creio que vai ficar bem.

     - E quando ele ficar forte vai mandá-lo embora?

     - Seria ótimo erguer minha espada e defender seu pobre rapazinho ensangüentado, pois tenho certeza de que está sendo perseguido por engano, mas o custo seria muito alto. Poderia até nos colocar contra o nosso rei.

     - Sei disso. - Elspeth enlaçou o pescoço do pai com os braços esguios e o beijou na face. - O senhor deve escolher entre todos nós e um rapaz que não conhece e com quem não tem nenhum laço. E acho que é melhor que ele vá embora sozinho. É o único que sabe onde procurar a verdade que o libertará.

    

         Cormac parou nos degraus do castelo de Donncoill enquanto seu cavalo selado lhe era trazido. Os Murray o tinham curado e abrigado durante dois meses até ele recobrar as forças. E sentiu uma profunda relutância em partir, e não apenas por causa do que teria de enfrentar: o problema com os Douglas outra vez. É que não conseguia se recordar de ter ficado algum dia num lugar mais animado e mais alegre. Ele e os irmãos eram chegados, e ele nunca fora tão feliz, nem em seu próprio lar.

     Num gesto involuntário, aprumou a espinha. Não poderia se esconder em Donncoill. Tinha de limpar seu nome. Voltou-se para fitar lady Maldie, inclinou-se num gesto gentil e depois pegou aquelas mãos delicadas na sua para beijar os dedos. Contudo, enquanto se endireitava para dizer adeus e agradecer-lhe mais uma vez por seus cuidados, uma mãozinha um pouco suja alcançou seu rosto.

     - Elspeth, meu amor - disse Maldie, lutando contra um sorriso -, você nunca deve exigir que um homem lhe beije a mão. E acho que deveria pensar em lavar um pouquinho essa sujeira primeiro.

     - Ela voltará - Balfour disse ao abraçar a esposa pelos ombros delicados e olhar para Elspeth, que se afastava correndo. - Terá de fingir que quer cortejá-la.

     - Não me importo. Eu não seria nada, a não ser comida para os abutres, se ela não tivesse me encontrado. Na verdade, nunca entendi como conseguiu. - Cormac acariciou, distraído, o cão de Elspeth, de um olho só, quando o animal cheio de cicatrizes sentou-se a seus pés.

     - Nossa Elspeth tem um verdadeiro dom para encontrar criaturas feridas e com problemas - Maldie declarou.

     Cormac sorriu.

     - E espera que a senhora cuide de todas elas.

     - Sim - respondeu Maldie, com uma risada. - Ah, aí vem ela - Maldie mordeu o lábio para impedir-se de rir, mostrando as mãos lavadas.

     Elspeth postou-se na frente de Cormac e estendeu a mão. Ainda estava um pouco suja, com manchas pelo rosto e pelo vestido, mas a mão que esticara para ele fora tão esfregada que até se avermelhara. Cormac tomou a mãozinha esticada na sua e roçou os lábios pelos nós dos dedos. Depois de reiterar sua gratidão, afastou-se, preparando-se para a batalha de limpar seu nome.

     Balfour ergueu a filha no colo e beijou-a na face.

     - É um rapaz forte. Vai ficar bem.

     - É, mas estou triste porque acho que gastará muito tempo nessa batalha.

    

                                    Escócia - Dez anos depois

     - Meu pai vai persegui-lo. Sim, e meus tios, meu. primos e todos os homens do meu clã. Sairão atrás de você como uma alcatéia de lobos famintos e furiosos e irão estraçalhá-lo e reduzi-lo em pedaços sangrentos. E eu cuspirei no seu corpo destroçado antes de me afastar e deixá-lo para as aves carniceiras.

     Sir Cormac Armstrong parou tão abruptamente diante da pesada porta dos aposentos privativos de sir Colin MacRae que seus músculos se enrijeceram. Não fora a ameaça feita aos berros, mas a voz de quem falava. Aquela voz rouca, de um tom quase profundo demais para uma mulher, despertara uma antiga lembrança - uma de quase dez anos passados, uma que ele julgara ter afastado por completo da mente.

     Não havia nenhuma razão para aquela menininha dos Murray se encontrar no castelo de sir Colin. A garotinha que lhe salvara a vida devia ainda continuar protegida e cuidada em Donncoill. Sua memória estava lhe pregando peças. E como sir Colin teria conseguido pôr as mãos em cima dela? E por quê?

     - Bem, sabemos que pelo menos um de seus primos desgraçados não estará nos importunando outra vez - resmungou sir Colin. - Aquele belo rapaz impertinente que cavalgava com você certamente está alimentando os abutres enquanto conversamos.

     - Não, Payton não está morto.

     Tamanha era a dor, mesclada a uma esperança fervorosa que soara naquelas poucas palavras que Cormac não pôde deixar de senti-la, e praguejou. Era difícil se lembrar, depois de tantos anos, mas o nome Payton pareceu-lhe familiar. O nome e aquela voz - uma voz que trouxe de volta uma recordação muito clara de uma mãozinha bem lavada, erguida para um beijo - finalmente fizeram Cormac se mexer. Não tinha certeza do que faria, mas precisava saber o que estava acontecendo. Não era, evidentemente, uma visita amistosa, e poderia significar que a garotinha dos Murray corria perigo.

     Havia sido Cormac quem trouxera a jovem prima Mary a Donncoill para casar-se com John, o sobrinho de sir Colin. Não gostava de sir Colin, não confiava naquele homem. Fora quase o único a se opor, pois não queria sua família vinculada pelo casamento a um homem de quem sabia muito pouco.

     Depois de se assegurar de que ninguém poderia vê-lo, Cormac esgueirou-se para dentro do quarto próximo ao de sir Colin. Nenhum guarda se postava a porta de ligação entre os dois aposentos. Ou sir Colin era muito arrogante para pensar que alguém ousaria espioná-lo, ou simplesmente não se importava com isso. Cormac comprimiu-se contra a parede perto da porta e entreabriu-a. Relanceou os olhos pelo quarto em que se encontrava, anotando mentalmente diversos lugares onde poderia se esconder no caso de alguém perceber que a porta estava entreaberta. Uma coisa aprendera, e aprendera bem, nos dois longos anos de fuga da ira do clã dos Douglas: como se esconder, usar as sombras e a mais mísera cobertura para desaparecer da vista. Respirou fundo para reunir forças e espiou para dentro do quarto.

     - Ora, aquele rapaz inexperiente não tem mais importância! - Sir Colin exclamou ríspido.

     - Inexperiente? - O escárnio naquela voz rouca fez Cormac se encolher. - Mesmo o mais imberbe entre meus irmãos e primos tem mais mulheres do que o senhor alguma vez terá.

     Quando sir Colin saltou de sua pesada cadeira de carvalho e avançou na direção de quem o provocava, Cormac teve de cerrar os punhos para não fazer nada impulsivo. Para seu alívio, o homem parou bem na frente da moça miúda, de mãos erguidas, mas não desferiu o soco que tão obviamente ansiava por desfechar. E Cormac percebeu que teria perdido todo controle se sir Colin atingisse a criatura delicada que o encarava com tanta calma.

     Não havia como negar. Era difícil acreditar, mas era Elspeth Murray que se encontrava ali, nos aposentos de sir Colin, sozinha e distante da segurança de Donncoill. Cormac não tinha certeza de se sentir feliz em ver confirmada sua impressão de tantos anos antes: que Elspeth se tornara uma mulher linda a ponto de perturbar.

     Os cabelos fartos, a cair desordenados pelas costas em ondas pesadas, paravam de um jeito provocante na altura das coxas. As mãos estavam amarradas às costas e, apesar do fato, Cormac foi obrigado a sorrir. Aquelas mãos não pareciam maiores do que eram no dia em que ela o encontrara no chão, sangrando, nas terras do pai. A compleição do corpo era quase tão delicada e tão esguia como o daquela menina e, contudo, tinha uma sensualidade feminina tamanha que despertou um fogo em suas entranhas. O jeito com que os braços se retesavam para trás destacava claramente o formato perfeito dos seios bem formados. A cintura era fina e tentadora, e os quadris delgados se arredondavam graciosamente. O rosto de Elspeth ainda parecia iluminado pelos grandes olhos de um verde brilhante. Havia uma inocência infantil na face delicada. Os cílios longos e espessos a contornar os olhos expressivos, e a boca de carnadura suave indicavam a mulher que se tornara. Era um monumento de contradições de atiçar o sangue. Ela estava tão perto da porta que Cormac poderia esticar a mão e tocá-la. E ele se surpreendeu ao ver quanto era difícil lutar contra tal impulso.

     Então, Elspeth falou. E, naquela voz rica, profunda, rouca, todos os vestígios da criança, todos os sinais de inocência se desfizeram. Ela tornara-se uma criatura sensual e tentadora, desde a cabeleira selvagem à solta aos pequenos pés calçados com botas. Cormac sentiu uma pontada aguda de desejo. Atingiu-o tão forte e tão depressa como um soco no estômago. Qualquer homem que a visse ou a ouvisse falar teria de ser contido para não derrubar os pesados portões de Donncoill para se apoderar dela. Sir Colin possivelmente sucumbira àquela atração.

     - O quê? Hesita em esmurrar uma moça? - A bela voz cheia de desprezo de Elspeth provocou o furioso sir Colin. - Eu julgava que nada que você fizesse poderia me surpreender, mas talvez estivesse errada.

     - Você pede para ser surrada - sir Colin retrucou, revelando no leve tremor da voz o esforço que fazia para se controlar.

   - E, no entanto, você fica aí, como um monte de esterco fedorento.

     A tensão enrijeceu Cormac quando Colin agarrou com a mão enorme o pescoço longo e delicado e, numa voz gelada, sir Colin resmungou:

     - Então, é esse o seu jogo, não é? Tenta me cutucar até me deixar cego de raiva? Não, minha bela cadelinha de olhos verdes, não é você quem tem a vara de cutucar aqui.

     Três dos cinco homens no aposento soltaram uma risada.

     - Pretende me violentar, não é? É bom ter certeza, quando espetar esse triste pedacinho de carne em mim, de que está disposto a ter o último cio. No momento em que me tocar, estará desgraçado.

     A mão de sir Colin se apertou na garganta de Elspeth. Cormac agarrou a espada, embora soubesse que seria loucura interferir. Elspeth não emitiu nenhum som, não se moveu nem um milímetro, porém manteve o olhar cravado com firmeza no rosto afogueado de sir Colin. E Cormac teve de admirar aquela coragem. Que tolice insana continuar a zombar do homem como ela fazia. Não conseguia compreender o que Elspeth pensava ganhar, a não ser uma morte rápida. Quando Cormac decidiu que teria de interferir, não obstante fossem mínimas as chances de sucesso, sir Colin finalmente a soltou. Elspeth arquejou apenas uma vez e cambaleou ligeiramente, embora devesse estar sofrendo e aflita por falta de ar.

     - Quero apenas deitar-me com minha mulher - disse sir Colin.

     - Eu já o recusei - ela retrucou, mostrando na voz uma certa debilidade. - Discutir mais uma vez o assunto seria enfadonho.

     - Ninguém me recusa.

     - Eu recusei e o recusarei.

     - Você não tem mais o direito de opinar nessa questão. - Ele fez um sinal aos dois homens que a ladeavam. - Prendam-na na torre oeste. - Sir Colin esfregou a ponta dos dedos grosseiros sobre a boca carnuda de Elspeth, e mal conseguiu deixá-los, fora de alcance, antes que ela os abocanhasse. - Tenho um quarto especialmente preparado para você. Em breve, vai aprender a se mostrar bastante humilde.

     Cormac puxou devagar a porta até fechá-la. Um momento depois, estava no corredor outra vez, usando as sombras lançadas pelas tochas para seguir Elspeth e os guardas. Só uma vez alguém olhou para trás, e foi Elspeth. Fitou as sombras antes de ser puxada para a frente pelos guardas. Cormac não julgou que ela o tivesse enxergado, mas, se tivesse, era evidente que nada diria. Seguiu o grupo até a porta do quarto da torre, a imaginar algum plano que pudesse dar certo.

    

     Elspeth tropeçou quando um dos guardas a empurrou com rudeza para dentro do quarto, mas se firmou bem depressa. Engoliu o suspiro de alívio quando o outro guarda cortou a corda que lhe prendia os pulsos. Depois, lutou contra o impulso de esfregá-los. Não iria dar mostras de quanto doíam conforme o sangue começava a fluir novamente. Mas, assim que a porta se fechou atrás dos dois homens, e ela ouviu o ferrolho correr, começou a friccionar os pulsos doloridos e esfolados, enquanto fazia uma rápida, mas atenta inspeção pelo cômodo.

     - Parece que o único caminho para fora deste quarto é eu sucumbir ao pecado de me atirar da janela para dar um fim à minha pobre vida - Elspeth murmurou ao sentar-se na enorme cama que dominava o aposento. Franziu a testa, saltou e afundou no colchão. O desgraçado pretende ficar confortável enquanto me desonra.

     Cansada, aflita de preocupação quanto ao destino de Payton, e abatida de medo, Elspeth enrodilhou-se sobre a cama. Por apenas um instante lutou contra a vontade de chorar, sem querer se entregar à fraqueza. Então, conforme as lágrimas começaram a escorrer, ela deu de ombros. Estava sozinha e chorar para aliviar um pouco seu sofrimento poderia ajudá-la a manter as forças, sobretudo para mais tarde.

     Depois de um longo choro, Elspeth jogou-se de costas e olhou para o teto. Sentia-se esvaída de energia, como se algum médico tivesse colocado sanguessugas por todo seu corpo - sanguessugas que sugavam toda a emoção em vez de sangue. Iria levar algum tempo até que recobrasse as forças e a sagacidade, duas coisas de que precisaria muito nos dias futuros.

     Pensou em Payton e sentiu que iria chorar outra vez, se é que lhe sobrara alguma lágrima. A última visão que tivera do primo fora o daquele corpo ensangüentado a jazer ao lado dos guarda-costas que os haviam acompanhado. Elspeth precisara só de um olhar para saber que os dois guardas estavam mortos, mas não podia ter certeza quanto a Payton. Não queria ter certeza. Queria agarrar-se à esperança de que ele ainda estava vivo, apesar dessa esperança ser tão pouca. Mesmo que sua mente lhe dissesse que não era responsável por isso, ela sabia que nunca seria capaz de se livrar da culpa que sentia, pois fora seu pretendente rejeitado que provocara aquela tragédia. Era absurdamente injusto que as lembranças horríveis e os pesadelos que sofrera por três longos anos pudessem finalmente ser afastados pela visão da morte de seu primo: um velho pesadelo substituído por um novo.

     Elspeth fechou os olhos. Precisaria descansar para ser capaz de suportar o que estava por vir. Embora não duvidasse que sua família viria procurá-la, em peso, também sabia que poderiam não chegar a tempo de salvá-la daquilo que siri Colin pretendia. Teria de dar conta disso sozinha.

     Então, ouviu um leve ruído à porta. Ou alguém lhe trazia algo de comer e beber, ou algum pobre tolo fora mandado para ver se ainda se encontrava ali. Não se virou. Estava cansada demais e muito abatida para fazer alguma coisa. Na verdade, sentia-se quase tão exausta para até mesmo abrir os olhos. Então, alguém lhe tocou o braço. O cansaço de repente desapareceu com o pânico, embora não sentisse nenhuma ameaça real da pessoa que agora ela sabia que estava de pé ao lado da cama.

     Elspeth abriu os olhos só o suficiente para ver o visitante através do véu dos cílios ainda úmidos. Era um belo homem. O corpo alto e musculoso se inclinava sobre ela de um jeito estranhamente protetor. O rosto era bem-talhado, com uma testa larga e alta, malares salientes, um nariz reto, um belo queixo firme, uma boca bem-feita. Facilmente deixaria uma moça sem fôlego. A tez suave, quase pálida e delicada demais para um homem causaria inveja a muitas mulheres. Os olhos, contudo, era o que verdadeiramente prendia a atenção. Sob as sobrancelhas arqueadas e contornadas de cílios longos e espessos, eram do azul rico da água limpa e profunda - uma cor que ela nunca vira, a não ser uma vez antes, na vida. Eram olhos que haviam permeado muitos de seus sonhos de moça.

     - Cormac - Elspeth murmurou, com um sorriso breve diante do jeito com que ele, surpreso, arregalou os belos olhos.

   - Você se lembra de mim? - Cormac perguntou baixinho, um pouco abalado pelo olhar caloroso daqueles olhos verdes e pelo sorriso doce e provocante com que ela o brindava.

     - Ah, você não se lembrou de mim. Estou desolada.

     Ele endireitou-se. Elspeth era ainda mais linda de perto, e, por um momento, enquanto fitava aqueles enormes olhos sonolentos, Cormac foi tomado por um impulso avassalador de enfiar-se naquela cama com ela. O jeito com que havia murmurado seu nome naquela voz profunda e sensual tocou-o profundamente, despertando de uma forma violenta e imediata, desejos mantidos fortemente sob controle. A sensação perdurava, enquanto ele se esforçava para esfriar o sangue que fervia.

     - Sim, eu me lembro de você - disse. - Está um pouquinho maior e com uma língua mais ferina, mas com certeza é Elspeth, minha pequena salvadora de tantos anos passados.

     Ela sentou-se lentamente e depois se ajoelhou na cama, a encará-lo. Alguns daqueles sonhos que tivera com ele, e nada próprio de donzelas, se amontoavam em sua mente, e Elspeth teve de lutar para expulsá-los. Cormac viera resgatá-la.

     - E você veio ser meu salvador agora? - perguntou.

     - Sim.

     Ela sorriu e decidiu transformar pelo menos um pequeno sonho em realidade. Cormac haveria de imaginar que seu ato havia sido uma mera expressão impulsiva de alívio gratidão. Inclinou-se e o beijou. Seus lábios eram tão macios; e tão deliciosos como Elspeth sempre imaginara.

     Cormac estremeceu ligeiramente, e ela também. O corpo másculo se retesou, e Elspeth experimentou uma dor reativa no ventre. Sentiu o seu calor, podia quase captar o odor do: desejo. Cormac agarrou-a pelos ombros, e lhe deu um beijo ardente. E ela prontamente entreabriu os lábios para sentir uma língua quente e ávida. Enquanto Cormac acariciava sua boca por dentro, Elspeth sentiu como se ele tocasse sua própria alma. Queria puxá-lo para a cama, ansiava por enrodilhar-se naquele corpo enxuto. Mas assim que tais idéias passaram por sua mente turvada de paixão, sentiu que Cormac começava a se afastar. Elspeth lutou contra o impulso de agarrar-se a ele, de impedir que recuasse.

     Cormac sacudiu a cabeça numa tentativa de clarear mente. Não era fácil esfriar o desejo ao olhar para aqueles olhos verdes, pois tinha certeza de ver a paixão ali. Lutou com todas as forças para se recordar com firmeza que Elspeth era uma mulher de nascimento nobre, uma a quem devia a vida, e ele não era um homem livre. Tinha vindo para resgatá-la, não para se apossar dela.

     - Por quê? - Cormac perguntou.

     - Por que não? - ela contestou. - Você é casado?

     - Não, mas...

     Elspeth não quis ouvir o resto.

     __Foi um ato impulsivo, fruto da minha alegria em vê-lo vivo e aqui. Sei que meus parentes logo virão me procurar, mas a ajuda poderia chegar muito tarde.

     - E se não andarmos depressa, meu auxílio também poderá ser inútil.

     - Tem um plano, não é, meu belo cavaleiro? - Ela anotou mentalmente o fato de que ele ainda não a soltara, mas deslizava as mãos de dedos longos por seus braços, numa carícia lenta, porém significativa.

     - Tenho. Por isso me custou quase uma hora para vir buscá-la.

     -Uma hora? - murmurou Elspeth, incapaz de esconder a surpresa.

   -Tive de cuidar de alguns assuntos que facilitarão nossa fuga, arranjar suprimentos para a viagem, antes de poder vir até aqui.

     - Não era minha intenção criticá-lo, sir Cormac. Só fiquei um tanto desapontada comigo ao perceber que passei esse tempo todo lamentando minha sorte. Nunca pensei em mim mesma como uma criatura tão fraca. - Franziu a testa quando ele riu. - Você acha meu desespero engraçado?

     - Não, simplesmente ri da sua constatação. - Tomou-a pela mão e ergueu-a da cama. - Você nunca foi fraca. Nem quando era uma menininha de nove anos.

     Elspeth enrubesceu de prazer com o comentário, mesmo que fosse feito num tom de brincadeira.

     - Qual é seu plano?

     - Enrole-se neste manto e vamos sair daqui. - Estendeu-lhe um longo e pesado manto de lã que colocara sobre a cama antes de tentar acordá-la.

     - Esse é o seu plano? - ela perguntou, espantada, ao colocar o manto.

     - O simples é com freqüência o melhor - Cormac retrucou ao abrir a porta e empurrar o guarda inconsciente para dentro.

     Elspeth ficou a observar enquanto ele amarrava e amordaçava o homem, e depois o enfiava na cama, puxando as cobertas por cima para que só um pouco dos cabelos negros do guarda aparecessem entre os lençóis.

     - Não creio que isso irá enganá-los por um longo tempo.

     - O tempo suficiente para fugirmos destas muralhas.

     - Está falando realmente sério em sair andando comigo daqui?

     Cormac colocou o capuz da capa sobre a cabeça de Elspeth, puxando-o para a frente até que lhe cobrisse os cabelos, e lhe sombreasse o rosto.

     - Se alguém perguntar o que estou fazendo, direi simplesmente que estou levando minha prima Mary para um; passeio.

     - Tem mesmo uma prima chamada Mary?

     - Sim, e ela se encontra aqui. Está noiva de John, sobrinho de sir Colin. Eu a trouxe para o casamento. Mary está em seus aposentos e só desce para as refeições no grande salão. A próxima ainda vai demorar muitas horas, portanto esse ardil deve funcionar.

     Depois de Cormac conduzi-la para fora do quarto, fechar e trancar a porta, Elspeth perguntou:

     - Não seria melhor nos esgueirarmos pelas sombras? Talvez você conheça um refúgio para nos escondermos.

     - Seria melhor, mas então não poderíamos pegar meu cavalo.

     Ela ia dizer alguma coisa, porém calou-se. Aquele plano era frágil, com chances de fracasso, mas não havia alternativa. Cormac tinha razão ao julgar que seria melhor pegar uma montaria. Não iriam muito longe a pé.

     - Vamos pegar o cavalo de sua prima ou o meu?

     - Minha prima não tem cavalo. - Cormac sorriu. - É uma moça tímida e não cavalgaria sozinha. Viaja só num coche ou compartilhando a sela com outra pessoa. Todos aqui sabem disso também. Se eu colocasse Mary num cavalo, isso despertaria suspeitas. Receio que tenhamos de cavalgar os dois numa sela.

     - Cavalgar é melhor que caminhar. Mais rápido.

     - Sim, e agora preciso pedir que você fique calada.

     - Sua prima também não fala?

     Cormac esboçou um sorriso.

     - Não muito, embora ela e John pareçam ter muita coisa a dizer um ao outro quando não estão tentando se esconder de sir Colin. Não, acho que você deve ficar em silêncio por causa da sua voz.

     - Há algo errado com a minha voz?

     -É muito... característica - ele explicou, mas notou pela expressão de Elspeth que ela não compreendera. - Confie em mim - disse, e puxou o capuz para lhe cobrir mais a face.

     Elspeth concordou e reprimiu a vontade de conversar com Entrelaçou os dedos nos de Cormac, saboreando o prazer daquele ato simples de lhe segurar a mão enquanto seguiam pelos corredores de Donncoill. Era a única coisa boa naquela caminhada pelo castelo, pensou, virando-se várias vezes, tensa de preocupação de que um grito de alerta ecoas-se a qualquer momento. Andar até os estábulos pelo pátio lotado de gente fez seu estômago revirar. Ficou parada nas sombras perto da porta enquanto Cormac pegava seu cavalo. E espantou-se com o jeito calmo com que ele conversava com os homens, como se não tivesse nada a esconder. Era óbvio que desenvolvera algumas habilidades interessantes desde que o vira pela última vez.

     Cormac acomodou-a na sela e depois montou atrás, ainda a se comportar de uma forma descontraída. Elspeth lutou contra o ímpeto de socá-lo e lhe dizer que se apressasse. Quando, finalmente, deixaram o pátio, aconchegou-se a ele, frouxa de alívio. Não estavam a salvo ainda, poderiam não estar seguros por algum tempo, mas pelo menos não se encontravam debaixo do olhar de sir Colin.

     - Para onde iremos agora? - ela perguntou.

     Com uma sensação muito boa por estar tão próxima de Cormac, aconchegou-se contra o peito largo.

     - Já que sir Colin há de esperar que você tente voltar a Donncoill, creio que continuaremos na direção que eu planejava tomar depois do casamento.

     - Sir Colin poderia imaginar que você também tentaria me levar de volta ao meu clã.

     - Claro, ou aos meus parentes, que vivem ao sul e a oeste daqui. Portanto, isso dá a ele dois ou três caminhos para nos procurar. E não tem idéia do meu verdadeiro destino. Eu ia ficar para o casamento de minha prima e depois partir, mas não disse a ninguém aonde iria, nem mesmo para Mary.

     - É uma boa idéia. No entanto, como voltarei para os meus parentes? É onde estarei em segurança, não é? E como parar sir Colin, fazê-lo pagar pelo meu rapto, pelo assassinato de dois Murray e por ferir Payton?

     Cormac percebeu que Elspeth ainda se recusava a considerar a possibilidade de o primo estar morto.

     O clã dos Murray continuava ainda profundamente ligado, era óbvio. Talvez fosse melhor se ela encarasse a verdade nua e crua de que o primo ou estava morto ou logo estaria, já que o frio e a perda de sangue terminariam aquilo que sir Colin começara. Porém não teve coragem de lhe roubar as esperanças.

     - A Corte do rei fica muito próxima de onde eu devo ir. Podemos encontrar alguém lá que possa levar notícias suas ao seu clã. Se precisarmos, poderemos deixá-la sob a própria guarda do rei. Seu clã nada fez para se indispor contra o nosso soberano, não é?

     - Não. Na verdade, isso é quase tão bom como ir direto para meu pai.

     - Vai nos custar quase uma quinzena, uma vez que teremos de viajar devagar para poupar as forças da montaria, e a sorte nos faltar e sir Colin farejar o nosso rastro, pode levar mais tempo. Vai agüentar uma jornada tão longa e tão dura? - Ele a encarou, muito sério, enquanto estudava a mulher delicada que mantinha entre os braços.

     - Oh, claro, sou mais forte do que pareço.

     Elspeth suspirou quando Cormac não deu resposta, sua vida era tão forte que ela quase podia senti-la. Sabia que era pequena e delicada de aparência, mas realmente era forte. Sir Cormac Armstrong teria de aprender que não se devem fazer julgamentos com base apenas na aparência de uma pessoa.

     Ao relancear os olhos para as mãos fortes a segurar as rédeas, Elspeth se pegou novamente a imaginar se ele estava noivo e apaixonado por alguém. Precisava de alguma informação, tinha de saber se era livre. Quando parassem para passar a noite, ela jurou que ia descobrir. Depois, decidiria o que fazer. Se Cormac fosse casado ou noivo, as próximas semanas seriam um tormento. Elspeth teria de esconder ou até mesmo sufocar todos os sentimentos que nutria por ele. Mas, se Cormac fosse livre, haveria uma quinzena para tentar fazê-lo se apaixonar por ela. Isso também talvez fosse torturante, capaz de destroçar seu coração e seu orgulho. O destino fora bom o bastante para lhe dar algum tempo com o homem a quem adorava havia tantos anos, mas era óbvio; que a sorte também resolvera fazê-la pagar caro por essa dádiva. Só lhe restava rezar para ganhar o prêmio.

    

     - Quatro maridos?

     Enquanto falava, Elspeth olhou para Cormac por sobre o ombro. Custara algum esforço, mas finalmente arrancara dele o nome de uma mulher: Isabel. E sentiu o coração partir-se quando Cormac lhe contou do amor que sentia por aquela pessoa, do laço profundo que partilhavam. Depois, conforme contava mais e mais coisas, a mágoa de Elspeth começou a se transformar em espanto e, por fim, em raiva. De Isabel e até um pouco de Cormac, por sua cega adoração. Os quatro maridos de Isabel eram um assunto que ele obviamente não queria discutir, mas Elspeth estava determinada a lhe extrair cada pedaço de informação que pudesse.

     - Sim - Cormac quase grunhiu, enquanto fazia uma fogueira.

     - Quatro maridos mortos

     - Sim.

     - Casada quatro vezes. Quatro vezes viúva.

     - Sim.

     - E casamentos tão curtos... - ela murmurou ao se aproximar e sentar ao lado do fogo, diante dele. - Com que bando de desafortunados ela se casou!

     Cormac ergueu os olhos do mingau que cozinhava para fitá-la de cara feia. Sabia o que Elspeth estava pensando. Outros também pensavam a mesma coisa. Quatro maridos e todos mortos, de modo estranho e rápido, o mais longo sobrevivente nem mesmo completara dois anos de casamento. Para sua vergonha, até ele se pegara às vezes cheio de dúvidas, mas logo expulsava a desconfiança para longe. Isabel precisava de simpatia e apoio, não de suspeitas.

     - Sim, todos fracos ou tolos imprudentes! - Cormac esbravejou e estendeu a Elspeth um pedaço de pão.

     "Ou tão cegos como você", ela pensou ao morder um bocado.

     - Algum filho?

     -Não.

     Então, quatro maridos fracos ou imprudentes e, obviamente, estéreis. A menos que ela seja infértil. - Elspeth desejou de todo coração que fosse o caso. Sementes ruins de uma tal mulher poderiam facilmente tornar-se tão imprestáveis como a mãe.

     Cormac sempre estranhara que Isabel nunca tivesse engravidado, mas não estava disposto a admitir o fato. Queria que Elspeth calasse a boca. Muitos acusavam Isabel e o chamavam de idiota por não enxergar a verdade. Elspeth seguia o mesmo caminho, passo a passo, de maneira gentil, porém insistente, a lhe arrancar respostas a cada avanço penoso. Fazia com que revivesse todas as suas dúvidas. Detestou-a por isso.

     - Quem sabe? - resmungou.

     - Bem, sem filhos por herdeiros, ela deve ser agora uma mulher bastante rica. A fortuna pode ser um enorme conforto.

     Havia, definitivamente, um toque de sarcasmo na voz de Elspeth, mas Cormac esforçou-se por ignorá-lo ao lhe estender uma porção de mingau e um pouco de queijo.

     - Ela não é pobre nem desprovida de terras, embora não ficasse com tudo.

     Elspeth pegou a tigela de madeira rústica com o mingau.

     - Sem dúvida havia outros homens na família do finado marido que ficaram com um bocado. Terras, principalmente.

     - Mas querem tudo. Espalharam mentiras horríveis sobre Isabel, tentando fazer uma triste tragédia parecer um crime.

     - Compreendo. Diga-me, afinal acharam o assassino do homem que você foi acusado de matar?

     - Assim que eu soube que estava livre da perseguição, não pensei mais nisso. Devem ter encontrado, ou eu ainda j estaria fugindo.

     - Ou morto. Então, Isabel deve ter provado a sua inocência.

     Elspeth o observava atentamente conforme falava. E suspirou sem querer quando Cormac foi incapaz de sustentar seu olhar. Era triste. E de dar raiva. Desde o início, Cormac se recusara a enxergar a verdade sobre a tal Isabel. Era evidente que ela nada fizera para ajudá-lo, e, no entanto ele achava razões para explicar aquela traição. Não seria fácil abrir-lhe os olhos. Ou procurava ignorar a verdade, ou arranjara desculpas. Isabel era uma santa para Cormac, uma bela vítima, uma alma torturada, usada pelos parentes para enriquecerem.

     O que a intrigava era como Isabel mantinha Cormac tão ligado a ela. Ele era um belo homem e devia ser um amante muito bom. Não obstante, o que Isabel fazia para manter Cormac em seus calcanhares por dez longos anos? Parecia indicar alguma forma distorcida de fidelidade ou amor, e Elspeth duvidava que Isabel o amasse.

     Descobriria mais tarde, decidiu irritada. O que importava agora era que ela amava e desejava um homem que estava escravizado, de coração e alma, por outra mulher. Não tinha a menor idéia do que poderia fazer a respeito. Porém Cormac a desejava. Não havia dúvidas quanto a isso. Sentira seu desejo, provara-o. Mas tal anseio não significava muita coisa. Homens sentiam desejo com facilidade, e algumas vezes momentaneamente.

     Ainda assim, ponderou, ao ajudá-lo a arrumar as coisas depois da modesta refeição, poderia usar aquele desejo. Cormac tinha algumas dúvidas a respeito de sua amada Isabel, era evidente. Havia sido seu primeiro amor, talvez a primeira mulher com que se deitara, e nenhuma outra quebrara aquele vínculo. E talvez ele nunca desse a alguém a chance de tentar.

     Bem, pensou Elspeth, enquanto arrumava uma cama, ela sempre gostara de um verdadeiro desafio. E não tinha outra opção, de qualquer forma. Seu corpo o queria, assim como seu coração. Seria um pecado nem mesmo tentar, embora pudesse quebrar algumas regras ao agir assim.

     Não, pensou ao se deitar, não iria conquistar aquele homem com palavras doces, olhares tímidos e um flerte contido. Teria de ser ousada e colocar de lado todas as regras e hesitações. Para romper o vínculo que o prendia a Isabel, Elspeth teria de se dar a ele por inteiro. Era um jogo assustador, pois, se perdesse, destroçaria o próprio orgulho, jogaria fora a castidade e exporia seu coração a uma mágoa profunda, talvez eterna. Mas, por outro lado, pensou no que teria se ganhasse o jogo, e sorriu.

     - Por que está sorrindo? - Cormac perguntou ao se encolher sob a manta.

     O jogo da sedução seria difícil se ele nunca se aproximasse além de meio metro, Elspeth pensou ao responder:

     - Não era um sorriso. Era uma expressão ligeiramente divertida.

     Ele soltou uma risada.

     - E o que pode ser divertido?

     Já que não poderia lhe contar a verdade, Elspeth deu de ombros.

     - Estou livre.

     - Por enquanto.

     - Está preocupado que sir Colin venha atrás de nós?

     - Um pouco. Temos uma boa chance de fugir dele, mas prefiro manter a cautela. Aprendi o valor disso enquanto me escondia dos Douglas, tantos anos atrás.

     - Não gosto da idéia de ter de olhar constantemente por sobre o ombro.

     - Não é uma boa maneira de seguir pela vida, confesso, mas pelo menos se fica vivo. Afinal, se você sempre olhar para suas costas, será muito difícil alguém lhe enterrar uma faca nelas.

     - Ora, que belo pensamento para enfrentar a noite.

     Cormac riu.

     - Desculpe. Não deixe que isso perturbe seus sonhos - emendou, num tom bem mais sério. - Eu nunca deixei.

     - Com os Douglas querendo pôr fim à sua vida, fico a imaginar como você conseguia dormir - disse Elspeth, e estremeceu ao pensamento do perigo que ele correra por tanto tempo.

     - Bem, não dormi muito até quase completar vinte e um anos. Estava tão acostumado a fugir que custou um pouco relaxar, depois que descobriram que eu era inocente.

     Cormac surpreendeu-se ao se ver falando tão livremente sobre o medo horrível que sentira enquanto era caçado; então imaginou que era a suave intimidade da noite que o ajudava a ser tão franco.

     - Descanse agora, Elspeth. Devemos seguir caminho de novo com a alvorada.

     Elspeth resmungou algo indistinto em concordância. Estava cansada, mas o sono não chegava. Tinha muita coisa na cabeça. Queria seduzir Cormac, porém aquela noite não era uma boa ocasião para isso. Ela não era mais a criança que ele conhecera havia tanto tempo, e Cormac também não era aquele belo rapaz perseguido que roubara seu coração de menina. O instante lhe dizia que ele era seu par, seu amor, mas Elspeth duvidava que Cormac sentisse o mesmo. E já que era uma donzela, precisava de um pouco de tempo para aceitar a decisão de jogar com a própria castidade.

     Cormac forçou-se a se virar de costas para a forma esbelta encolhida sob a manta a alguns passos de distância. Nunca antes se sentira tão fortemente tentado por uma mulher que não fosse Isabel. Para seu espanto, percebeu que fazia anos, desde que Isabel despertara nele os instintos, que ninguém o provocava de um modo tão rápido e intenso como Elspeth. Poderia ser a falta de sexo, disse a si mesmo. Fazia tempo que não se deitava com uma mulher.

   Resmungou baixinho. As poucas vezes em que fraquejara, simplesmente havia se deitado com a mulher que o perturbara e pronto. Mas não poderia agir assim com Elspeth. Devia muito a ela e aos Murray para tratá-la com tamanha leviandade.

     Era solidão, pensou ao fechar os olhos e buscar o amparo calmante do sono. Quando estava longe de Isabel, a solidão o destroçava. Ela mandara chamá-lo, dias antes. E ao se apressar, ansioso para estar com ela, também sentia o medo lhe retorcer as entranhas. Havia acontecido antes. Passara uma noite ou duas nos braços de Isabel antes que a casassem com outro. Dessa vez, ele ganharia a disputa, jurou, e finalmente a teria só para si. Então, não se perturbaria com a visão de uma beldade de cabelos negros revoltos e de reluzentes olhos verdes.

    

     Payton riu e Elspeth riu com ele. Ao se virar para falar com Robert, um dos guardas de seu tio Nigel, ela arquejou. As feições rudes do homem estavam contorcidas numa mistura de dor e surpresa. O sangue lhe escorria da boca e o homem escorregou do cavalo. Elspeth voltou-se para Payton e gritou quando uma flecha enterrou-se nas costas do primo, arrancando-o da sela para se estatelar no chão. Ela apressou-se em desmontar, mal consciente do grito de morte do outro guarda e do som de cavalos aproximando-se depressa. Precisava chegar até Payton. Ele estava imóvel, o rosto virado para a terra, a mancha escura de sangue a se espalhar rapidamente pelas costas de sua camisa. Quando se viu agarrada por trás e jogada de barriga para baixo, atravessada numa sela, Elspeth gritou, tomada de fúria.

     - Não, seus desgraçados, eu preciso ajudar Payton! - Lutou contra as mãos que tentavam imobilizá-la.

     - Elspeth, calma, calma.

     - Payton! Preciso ajudar Payton! - Ela começou a chorar. - Sangue, há tanto sangue...

     - Psiu, Elspeth. Calma, calma. É só um sonho, uma lembrança ruim a roubar a tranqüilidade do sono.

     Aos poucos, ela se acalmou ao perceber que as mãos que sentia a acariciá-la, a sossegá-la, não a empurravam com rudeza para baixo. Nem havia cavalo algum sob seu corpo. A voz profunda que a arrancara daquele horror era gentil, amistosa, não a voz dura e provocante que lhe dissera que seu primo estava morto, que era comida para os abutres. Passou-se um momento antes que Elspeth tivesse consciência de onde se encontrava e de quem a segurava. Mas hesitou em revelar que despertara.

     Era bom demais estar deitada ali, envolvida pelos braços fortes de Cormac. Embora a lembrança de Payton imóvel no chão, ensopado de sangue, dilacerasse seu coração, as lágrimas começaram a cessar. Elspeth podia sentir a simpatia de Cormac, o impulso de acalmar o sofrimento e a tristeza que a destroçavam. Então esboçou um sorriso. Podia sentir também o desejo que o invadia. Cormac estava ali, imbuído de sentimentos nobres, lutando para se manter controlado. Elspeth esfregou a face contra a garganta de Cormac, e sentiu que o desejo crescia mais forte dentro dele.

     Cormac fechou os olhos e respirou fundo para se fortalecer quando sentiu Elspeth aconchegar-se mais. A sensação daquelas curvas suaves contra seu corpo fazia seu sangue queimar nas veias, tornando quase impossível manter o controle. Fora um erro chegar tão perto e, no entanto, não poderia ignorar a angústia em que ela se debatia no sonho.

     - Está melhor? - Cormac perguntou.

     - Sim. - Elspeth passou os braços ao redor dele, puxando-o para mais perto, ao perceber que Cormac iria se afastar.

     - Você e Payton eram chegados? - ele perguntou, rezando para que a conversa afastasse seus pensamentos das fantasias eróticas que enchiam sua mente.

     - Éramos sim. Recuso-me a crer que esteja morto. - Elspeth suspirou. - Eu preferiria ter meu velho pesadelo de volta a continuar a ver Payton cair com uma flechada nas costas.

     - Existia outro sonho que a afligia?

     - Sim, com outra prima. - Ela estremeceu, e Cormac a abraçou com mais força. - Sorcha, filha de meu tio Eric. Três anos antes, ela e eu fomos capturadas por um inimigo de meu tio. Esse homem e dois de seus servos surraram Sorcha e a estupraram. E me obrigaram a ver. Era para eu ter o mesmo destino, mas fomos resgatadas por Eric, por meu pai e por meu tio Nigel. Quando tio Eric viu o que os homens tinham feito com Sorcha, sua vingança foi rápida e brutal.

     - O que aconteceu com Sorcha?

     - Foi para um convento. Creio que logo fará os votos.

     - Ela realmente seguiu uma vocação ou está se escondendo?

     - Sempre foi mais devota que o resto de nós. Ficamos todos tristes quando Sorcha nos deixou, embora esteja perto de Donncoill e a visitemos sempre. É fácil perceber que ela está feliz. Seja pela vocação ou porque se sente segura ou ambas as coisas, quem pode dizer com certeza? Os pais dela aceitaram o fato. Estão contentes que Sorcha esteja viva e que as sombras do horror a abandonaram.

     - Mas não abandonaram você, não é?

     - Não. Não, até agora.

     - Sempre que penso em Donncoill, lembro-me apenas de paz e felicidade. É triste saber que mesmo um refúgio assim possa ser abalado pela tragédia. E mais triste é saber que você foi testemunha de tudo isso.

     Resistiu ao impulso de beijá-la nos cabelos e murmurou:

     - Rezo, para o seu bem, que seu primo Payton seja abençoado, que sobreviva de alguma forma.

     - Obrigada. Se algum homem pode superar tal infortúnio, esse é Payton.

     - Agora que você se acalmou um pouco, vou me deita na minha cama.

     Elspeth agarrou-o com um pouco mais de força, impedindo que Cormac se movesse. Precisava mantê-lo próximo. O medo depois de um pesadelo serviria bem como motivo.

     Embora se sentisse um pouco culpada por usar os sentimentos de simpatia de Cormac daquela maneira, Elspeth concluiu que a batalha na qual iria se engajar precisava de um pequeno subterfúgio. Mesmo que não conquistasse o coração de Cormac, poderia afrouxar a chocante influência de Isabel sobre ele, e isso só poderia ser para o melhor.

     - Não poderia ficar aqui perto? - ela perguntou, com um ligeiro tremor na voz.

     Cormac poderia, mas não deveria, e não tinha coragem de dizer por quê.

     - Não seria conveniente - ele resmungou desgostoso com uma desculpa tão esfarrapada.

     - Creio que o senso de conveniência se perdeu no momento em que lorde Colin me arrancou do meu cavalo. É que tenho medo que o pesadelo volte...

     - O que acontece quando tem um pesadelo em casa?

     - Alguém fica comigo. Tenho uma cama bem grande

     Cormac não queria saber. As imagens que já se formavam em sua mente de uma sensual Elspeth deitada nua, numa cama grande, a lhe estender os braços, a comprimi-lo entre as macias coxas brancas... Sacudiu a cabeça, tentando se agarrar a algum outro pensamento, qualquer pensamento que não incluísse uma tentadora Elspeth desnuda, desejosa. O problema era que não havia como recusar tal pedido. Ela vira o primo e dois guardas serem assassinados, tinha sido seqüestrada, ameaçada de estupro e trancada num quarto da torre. Não era de surpreender que tivesse medo de ficar sozinha. Devia estar acostumada a se ver rodeada pelos entes queridos, gente a quem poderia recorrer se precisasse. Agora, tinha apenas a ele, e Cormac não conseguia manter a mente longe das calças.

     Aquela moça lhe salvara a vida, recordou a si mesmo com firmeza. Além disso, ele pertencia à outra, estava a caminho de encontrar-se com ela e, se Deus quisesse, finalmente a desposaria. Ambas as coisas deveriam bastar para controlar sua luxúria desvairada. Era um homem adulto. Tinha de ser capaz de se deitar ao lado de Elspeth e não suar de desejo.

     - Está bem, ficarei aqui perto. Deixe-me pegar minha manta - Cormac disse, esperando que sua relutância não fosse evidente na voz.

     Ele estava tenso quando se acomodou ao lado de Elspeth. Poderia não ser fácil seduzir um homem tão decidido a se controlar. Ela virou-se de lado, de costas para Cormac, depois estendeu a mão para trás. Agarrou a dele e passou-lhe o braço em torno da cintura. Cormac estava tão rígido que era como tentar aconchegar-se a uma rocha, Elspeth pensou, com um ligeiro sorriso. A resistência, contudo, só comprovava quanto era intenso o desejo que ele sentia. E isso lhe dava esperanças.

     - Obrigada, Cormac - disse, levando o próprio corpo para trás até se comprimir contra ele. - Sinto-me segura agora.

     - É o mínimo que eu posso fazer.

     Elspeth mordeu o lábio para não rir. Cormac falava como se estivesse engasgado com alguma coisa. E a parte do corpo dele que se encostava em suas nádegas dizia que era o desejo que lhe estrangulava a voz. Ela fechou os olhos e esperou que as imagens que Cormac visualizava fossem tão vividas e avassaladoras quanto às dela. Afinal, se ia dormir ansiosa e insatisfeita, era justo que ele dormisse também.

     - Bom sono, Cormac - disse, num murmúrio.

     Ele praguejou. Aquela voz suave e rouca era como uma carícia. Não julgara que seu corpo pudesse reagir com mais desejo do que já reagia, e não gostou de perceber que estava errado. Aquela criatura era perigosa, mais ainda porque parecia não saber disso. E o surpreendia que Balfour Murray tivesse deixado a filha sair das muralhas protetoras de Donncoill; então, pensou que talvez um pai não enxergasse que a filha era uma tentação tão grande para um homem.

     - Bom sono para você também, Elspeth - murmurou.

     Sentindo o desejo de Cormac como sentia, ela pensou que seus sonhos não seriam serenos, mas certamente interessantes.

   Ele percebeu que Elspeth relaxava e mergulhava no sono. Tentou se afastar, mas ela o acompanhou com o corpo colado ao seu, aconchegando-se ainda mais. Suas nádegas roliças roçavam-lhe a virilha latejante, e Cormac estremeceu.

     Numa vila que ficava apenas a um dia de distância, havia uma criada de taverna que sempre concedia seus favores a um homem por alguns trocados. Ele nunca correspondera a seus sorrisos antes, mas talvez devesse fazer isso agora. Poderia saciar uma necessidade insatisfeita e resistir melhor a uma tentação como Elspeth.

     O que o preocupava era que, mesmo pensar em Isabel tão perto e à sua espera, não acalmava seu ardor. Nem conseguia mentalizar uma imagem clara de sua amada. Elspeth estava ali, a interferir, até que as feições de Isabel desapareciam completamente. Isabel era a mulher que ele amava e respeitava por quase metade de sua vida. Não deveria ser tão facilmente expulsa de seus pensamentos por uma garota de olhos verdes e corpo delgado, mesmo que tivesse uma voz que poderia derreter uma pedra.

     Elspeth remexeu-se outra vez contra Cormac de um jeito lento e sugestivo. Ele gemeu e, depois, suspirou. Seria uma longa noite. Se continuasse a se comportar como um cavalheiro, se mantivesse as mãos longe de Elspeth, merecia ser santificado.

    

     Um calor espalhou-se pelo corpo de Elspeth e ela despertou. Lábios macios roçavam os seus de um jeito tentador. Não precisou abrir os olhos, nem mesmo acordar, para saber quem a abraçava, quem a beijava. Assustou-a um pouco tomar consciência de que Cormac já fosse tão parte dela, mas aceitou o fato. Murmurou o nome dele e o enlaçou pelo pescoço.

     - Está tão acostumada a ser beijada ao acordar, meu anjinho, que isso não a assusta? - Cormac perguntou ao lhe mordicar de leve o lábio inferior.

     Era uma pergunta insultante, porém Elspeth não poderia contar que o conhecia pelo cheiro, por sentir o seu desejo ou pelo fato de que seu coração o reclamava como companheiro. Ele a julgaria louca ou que quisesse prendê-lo numa armadilha, e fugiria depressa na direção oposta. Os homens, ela descobrira bem jovem, não eram muito bons em aceitar, discutir ou compreender sentimentos.

     - Eu sabia que era você. - Elspeth enfiou os dedos nos cabelos fartos e comprimiu o corpo ainda mais contra o de Cormac. - Afinal, dormi com você a meu lado.

     - Alguém poderia ter cortado minha garganta de noite e tomado meu lugar.

     - Creio que eu teria percebido.

     Ele sorriu de leve e, em seguida, a beijou. E um beijo levou a outro mais profundo. Cormac disse a si mesmo que os beijos não queriam dizer nada, não passavam de prazeres inconseqüentes, roubados com facilidade e facilmente esquecidos. Era evidente que Elspeth sentia o mesmo.

     Isso não explicava como ela o fazia se sentir, contudo. Seu sangue latejava nas veias. E ele queria enterrar-se dentro dela e ficar lá. Nunca um beijo o excitara de um modo tão rápido e tão violento. Ali morava o perigo, pensou, mas não possuía a força de vontade para se afastar. Precisava de Elspeth e não conseguia se convencer de que era por causa de uma longa abstinência.

     Elspeth agarrou-se a Cormac, saboreando o desejo crescente que o dominava e se deixando envolver por igual paixão. Inclinou a cabeça para trás ao primeiro toque daqueles lábios ardentes em sua garganta. Em parte, amedrontou-se com a força das emoções que fluíam entre ambos, mas sufocou esse medo. Era aquilo o que queria, do que precisava o que seu coração pedia antes mesmo que ela tivesse idade para compreender.

     Quando sentiu a palma calejada e quente cobrir seu seio, deu-se conta de que Cormac conseguira quase despi-la sem que ela percebesse. Nenhum homem a tocara assim, e Elspeth achou a sensação estranha e prazerosa. Um arrepio tão violento a percorreu que ela se encolheu, empurrando-o. E viu que, com o gesto, quebrara o encanto que os envolvia. Lamentou intimamente.

     Cormac afastou-se e se levantou. Suas mãos tremiam e o sexo pulsava de ansiedade. Olhou por sobre o ombro para Elspeth, enquanto ela calmamente fechava o corpete que ele abrira.

     - Meu Deus! - Cormac resmungou. - O que você fez comigo?

     - Eu? - Elspeth se levantou e se pôs a enrolar as mantas. - Creio que estava dormindo quando tudo isso começou.

     Não iria deixar que ele a culpasse pela loucura que os dominara, nem arranjar qualquer outra desculpa. Cormac a desejava. Negar, como ele poderia escusar-se, como obviamente queria, ou tentar ignorar o fato, tudo isso não funcionaria.

     - Desculpe-me. - Cormac correu os dedos pelos cabelos enquanto tentava clarear os pensamentos. - Você é uma moça decente, uma donzela e uma mulher a quem devo muito. Seria muito errado de minha parte tentar tirar vantagem da nossa situação.

     - Você se preocupa demais. Ouviu-me gritar em protesto?

     - Deveria.

     Elspeth deu de ombros e começou a acender a fogueira.

     - Talvez. E posso ser uma donzela e decente, mas não sou nenhuma criança. Tenho quase vinte anos, passei da idade de me casar. Creio que tenho juízo suficiente para cuidar da minha própria castidade.

     -Você não pareceu muito preocupada com isso.

     - Que falta de tato a sua apontar o fato.

     - Não a compreendo. - Cormac franziu a testa e coçou o queixo. - E o que quer dizer com posso ser uma donzela?

     - Foi apenas uma escolha infeliz de palavras. Por que está tão aborrecido?

     Ele sentiu-se perturbado.

     - Porque não sou livre para namorar.

     - Namorar? - Elspeth murmurou, pensando por um breve instante em bater com o pequeno caldeirão de ferro na cabeça de Cormac. - E como não é livre? Você disse que não estava noivo e nem era casado. Portanto é um homem sem compromisso.

     - Posso não ser nem casado nem noivo, mas sou comprometido com Isabel, eu lhe disse. Fizemos um juramento quando eu era um rapazinho, e ela, um ano mais nova. Esses laços ainda nos unem.

     - Que tocante... E honrado.

     Elspeth decidiu que era tempo de se afastar de Cormac, antes que perdesse a paciência. Estendeu-lhe o caldeirão e saiu pisando duro para o abrigo das árvores. Um tempinho para acalmar-se era do que precisava. Podia ainda sentir os beijos, as carícias, e precisava se livrar das emoções que pulsavam em seu íntimo.

     Depois de cuidar das necessidades pessoais e se lavar na água gelada do riacho que corria por entre as árvores, Elspeth sentiu-se melhor. Recuperou o bom senso. Era desapontador descobrir que Cormac não seria conquistado facilmente. Um osso duro de roer pensou, sobretudo porque fizera algum tipo de jura para aquela desgraçada Isabel e era homem muito honrado para quebrar a promessa. Bem, ela faria um juramento também: empenharia tudo em seu poder para obrigá-lo a cometer perjúrio.

    

     Cormac estremeceu quando a água gelada que ele esfregou pelo rosto escorreu para dentro da camisa. Não era tão bom como um banho frio, mas tirava um pouco da dolorosa sofreguidão que o dominava. Ainda um pouco aturdido, rumou para a fogueira a fim de fazer mingau para matar a fome. Mas continuou a se remoer em pensamentos.

     Não entendia o que acabara de acontecer, embora não fosse de todo fiel a Isabel. Na verdade, havia cedido a ocasionais tentações com mulheres com quem se deitara durante os ataques de ciúme a cada casamento de Isabel. Ou nas poucas vezes em que a necessidade se tornara grande demais para ser ignorada. Em nenhum daqueles breves interlúdios, entretanto, havia perdido o controle ou sentido qualquer sentimento de culpa. Nem se lembrara de Isabel até Elspeth se encolher e o fazer recobrar o juízo.

     Era pura loucura, pensou. Só com o som de sua voz, Elspeth deixava-o excitado. Sentia ainda a doçura daqueles lábios e não conseguia parar de imaginar se o resto dela era tão doce assim. A palma de sua mão formigava com a sensação do seio sedoso, roliço, do bico duro, provocante.

     Era a vida celibatária que vinha levando, pensou. A solução seria simples. Iriam parar na próxima vila para comprar uns poucos suprimentos, e ele encontraria aquela criada da taverna, a levaria para a cama e arrancaria aquela insanidade do sangue. Depois, poderiam continuar a viagem como pessoas sensatas.

     Havia apenas um senão em seu plano. Como escapar para aliviar-se, sem que Elspeth adivinhasse o que ele estaria fazendo? Então, viu-a sair do bosque. Respirou fundo. Sua única preocupação era entregá-la a salvo nas mãos da família.

     - Você poderia pelo menos fingir bom humor! - Elspeth exclamou ao se sentar ao lado do fogo e pegar um pedaço de pão e queijo, enquanto esperava que o mingau acabasse de cozinhar.

     - Não costumo começar a manhã tentando violentar donzelas a quem devo muito - ele resmungou. - Peço desculpas se pareço perturbado com o meu próprio comportamento.

     - Cormac, tenho sete irmãos e mais primos que qualquer pessoa sensata haveria de querer. Acha realmente que poderia me violentar sem encontrar resistência?

     - Sou muito maior e mais forte que você.

     - Como a maioria dos homens, motivo pelo qual meus irmãos me ensinaram cada ponto fraco que eles têm. Se não fossem tantos os homens que atacaram Sorcha e a mim, e nem a tivessem agarrado e me distraído, eu poderia ter me livrado daquele horror. Infelizmente, ninguém nunca ensinou a Sorcha o que me ensinaram.

     - Você não fez nada contra mim.

     - Não fiz, não é? - ela murmurou, num tom calmo, encarando-o.

     Elspeth viu exatamente quando Cormac compreendeu o significado por trás de suas palavras. A expressão que fez era um misto intrigante de desejo, choque e susto. Depois, Pareceu zangado. Percebeu que ele a desejava, mas não queria. O choque era fácil de adivinhar, pois ela duvidava que muitas virgens bem-nascidas mostrassem desejo por ele com tanta franqueza. Quanto à raiva, Elspeth não tinha certeza. Será que sua ousadia o aborrecia, ou Cormac estava zangado porque ela deixara claro que não faria nada para impedi-lo de resistir à tentação?

     - Você é maluca.

     - Não pensei que honestidade tivesse descido no conceito das pessoas para o grau de insanidade.

     - Coma.

     Elspeth pegou o mingau que ele lhe estendeu, decidida a não provocá-lo. A raiva poderia lhe dar a força de que Cormac precisava. E ela já deixara bem claro o que pretendia! Bastava. Por enquanto.

     Terminaram de comer em silêncio. Juntos, ergueram acampamento. Quando o silêncio continuou a reinar depois que Cormac a colocou no cavalo e montou, Elspeth viu que era óbvio que ele estava emburrado. Definitivamente, Cormac seria um osso duro de roer.

    

     - Será que esse homem pensa que sou estúpida? - Elspeth resmungou ao olhar de cara feia para a hospedaria em que Cormac desaparecera. Enquanto compravam alguns mantimentos, ele dera um jeito de falar em particular com um dos comerciantes. Levara o sujeito para longe o bastante para impedir que ela ouvisse o que diziam. Tudo que Elspeth conseguira escutar fora as palavras taverna, Annie e garota esperta. Isso e o olhar divertido e denunciador do comerciante disseram a Elspeth mais do que ela realmente gostaria de saber. Cormac ia procurar uma prostituta.

   Aquilo a magoou e depois a enraiveceu. A simples idéia de Cormac beijando e tocando outra mulher fez suas entranhas se retorcerem de ciúme. Sentiu uma vontade louca de cometer alguma violência. Lá estava ela, pronta, disposta e capacitada, ou, pelo menos, logo aprenderia se Cormac lhe desse a chance. E ele ia procurar outra.

     Por um momento pensou em entrar na taverna. Porém ouviu o ruído que vinha lá de dentro. O lugar estava cheio de homens, alguns já encharcados de bebida, e ela se veria com problemas até o pescoço antes mesmo de encontrar Cormac.

     Então, lembrou-se de que devia haver uma porta para a cozinha, nos fundos. Poderia entrar sem ser vista e localizar Cormac. Quem sabe se deixando-o constrangido ou envergonhado, ele não desistiria da idéia de procurar se saciar nos braços de outra mulher? Apavorou-se ao pensar que teria de sofrer com isso em cada taverna em que se hospedaria dali até a Corte do rei.

     Elspeth suspirou e seguiu para os fundos da taverna. Ao contornar o prédio, chocou-se com uma mulher que corria do quintal na direção da mesma porta. Elspeth mediu-a de cima a baixo e não teve dúvidas.

     - Você é Annie? - perguntou ao bloquear-lhe o caminho para a porta.

     - Sou. Eu a conheço? - Os olhos azuis de Annie se estreitaram e ela afastou uma mecha de cabelos loiros do rosto bonito. - Não posso ficar aqui e conversar. O velho Georgie me disse que um belo cavalheiro está me esperando.

     - Eu sei. Se você atender, ninguém mais vai querer sua companhia outra vez.

     Elspeth sentiu uma pontada de culpa quando a ameaça surtiu efeito. A mulher empalideceu, arregalou os olhos e se encolheu de medo.

     - Você é a esposa dele? - Annie olhou ao redor, procurando um jeito de fugir.

     - Pretendo ser. Ele quer se deitar com você porque me deseja e sente que seria desonroso deitar-se com uma donzela.

     - Tive alguns desses. - Annie sorriu com tristeza. - Quando ficam loucos de excitação e fecham os olhos, eles chamam o nome daquela que realmente desejam.

     - Isso é horrível. - Elspeth meneou a cabeça. - Os homens podem se comportar como porcos é incrível. Meu primo Payton...

     - Payton? Não é sir Payton Murray, filho de sir Nigel e lady Gisele?

     - Conhece meu primo?

     - Oh, ele nunca esteve comigo... - O suspiro de Annie foi pesado de tristeza; então, ela se alegrou. - Mas você poderia me contar algumas coisas sobre ele, um cavaleiro tão bonito e tão gentil. Não poderia?

     - Ora, é claro, talvez - resmungou Elspeth, surpresa ao ver Payton ser tratado com termos tão reverentes.

     - Espere, vou pegou cerveja para nós. Podemos sentar naquele banco lá.

     Logo Annie reapareceu com uma travessa com pão e queijo e duas canecas de cerveja. Elspeth meneou a cabeça e a seguiu até o banco. Quisera impedir Cormac e era engraçado ver como conseguira.

     - Dei uma espiada no seu homem - Annie disse ao se sentar. - Entendo por que você é tão possessiva.

     Depois de tomar um gole de cerveja, Elspeth admitiu.

     - Preciso ser. Ele está resistindo e só tenho uma quinzena para conquistá-lo. Cormac acha que está apaixonado por uma tal de Isabel. Ela não merece o amor dele.

     - Lady Isabel Douglas? - Annie resmungou um palavrão quando Elspeth fez que sim com a cabeça. - Quando a gente vê uma mulher como aquela, fica pensando como alguém tem coragem de me chamar de vagabunda.

     - Psiu, fale baixo. Como sabe tanta coisa?

     - A taverna e a hospedaria ficam numa estrada muito movimentada que vai para a Corte do rei. Eu escuto muita coisa, pois fico de ouvidos atentos. Nunca se sabe quando uma informação pode me servir. Já ganhei uma moeda ou duas por isso. Prefiro engordar minha bolsa desse jeito e assim ter liberdade de escolher o homem com quem me deito.

     - Acho que você tem um patrão muito compreensivo.

     - Oh, ele não é meu patrão. O velho George é meu primo. Um pedacinho de tudo isto é meu, sabe? - Então, ficou séria. - E sir Payton? Ouvi um boato horrível de que ele pode estar morto.

     Elspeth tomou um grande gole de cerveja para acalmar a inquietação que sentiu ao saber que os boatos da morte de Payton já se espalhavam.

     - Não creio que ele esteja, mas o vi caído com uma flecha nas costas.

     - Oh, aquele rapaz tão lindo ser morto por um ataque covarde por trás...

     Elspeth franziu a testa.

     - Como é que meu primo é tão conhecido e falam tão bem dele?

     - É um homem muito, mas muito bonito. E há uma doçura, uma gentileza nele que cativa. Na verdade, raramente se deita como moças como eu, mas não nos trata mal também. Se você se prostitui para dar de comer a seus filhos, sir Payton tem a mão aberta e generosa.

     Annie fez uma careta e começou a coçar o braço.

     - O que a incomoda? - perguntou Elspeth ao pegar a mão dela e levantar-lhe a manga do vestido. - Que coceira feia. Está pelo corpo todo?

     - Só nos braços e um pouquinho no peito. Vem e some. Não é nada.

     Elspeth examinou a erupção atentamente, enquanto colocava a bolsa sobre o banco.

     - Não pegou isso de ninguém?

     - Não. Como eu disse, escolho meus homens com muito cuidado. E isso costumava me incomodar quando eu era criança também, quando eu nem conhecia os homens.

     - Ah... - Elspeth pegou um ungüento. - É alguma coisa que você está comendo ou tocando que seu corpo rejeita. Fique atenta para tudo que acontece quando surge ou, melhor, um pouquinho antes. Agora, vou lhe contar uma história sobre Payton enquanto preparo um ungüento para essas suas coceiras. - Com um sorriso, Elspeth começou a relatar umas poucas histórias engraçadas que envolviam seu primo.

     Foi quando ela espalhava um pouco do ungüento nos braços de Annie que percebeu Cormac observando-a. Estava parado à porta dos fundos, com uma expressão de raiva, e as mãos na cintura. E Elspeth ficou a imaginar se ele teria a audácia de tentar realizar seus planos. Quase desejou desafiá-lo a tentar. Estava ansiosa para confrontá-lo. Voltou a atenção para Annie. Insistiu que a outra observasse a reação principalmente a alimentos que sabia fazerem mal a muitas outras pessoas.

    

     Cormac praguejou e enfiou os dedos nos cabelos ao ver Elspeth conversando amistosamente com a mulher que ele pretendia usar. Ficara bebendo cerveja e procurando se convencer de que era aquilo que queria e precisava. Uma rápida olhadela para a moça loira, de formas cheias, o havia encorajado. Sentiu que não teria problemas em se deitar com ela. Mas a mulher tinha sumido, e a paciência de Cormac se esgotara. Não poderia deixar Elspeth esperando por horas. E havia decidido procurar pela criada. Nunca lhe passaria pela cabeça que a encontraria conversando com a própria Elspeth. Teve vontade de gritar e bater a cabeça contra a parede.

     Por um breve momento, Cormac pensou em ir até lá, agarrar a apetitosa Annie e arrastá-la para um quarto. Seria uma lição para uma mulher que se achava no direito de interferir em assuntos de homem, pois tinha certeza de que havia o dedo de Elspeth naquilo.

     Suspirou e se encostou na parede. Sentira-se constrangido só de deixá-la esperar do lado de fora da taverna com a desculpa de tomar uma cerveja, dizendo que aquele não era lugar para uma moça decente. Ela, óbvio, não tinha acreditado em uma palavra que lhe dissera. E ele não estava disposto a discutir o direito de se deitar com a criada.

     Endireitou-se. Haveria outras criadas pelo caminho. Agora, que raciocinava com clareza, reconhecia que fora descuidado em deixar Elspeth sozinha. Não havia sinal de sir Colin, mas isso não queria dizer que o homem não os perseguisse. E Cormac duvidava sinceramente que o desgraçado fosse desistir.

     - Podemos ir? - perguntou, com um olhar de relance para a erupção no braço da criada que Elspeth tratava. E se arrepiou. Será que Elspeth o salvara de ser contagiado por alguma doença?

     - Acabou de beber a sua cerveja? - Elspeth perguntou com doçura. Em seguida, colocou o pote de ungüento na mão de Annie e pegou o resto de suas coisas.

     - Sim - respondeu Cormac, sem acreditar naquele ar de doce inocência.

     - Bem, estou pronta, se você estiver - ela disse, mas Cormac já se afastava. - Hum, ele não será uma companhia alegre por algum tempo - murmurou, e depois sorriu quando Annie caiu na risada.

     - É verdade, mas não acho que já tenha visto algum homem ficar tão tenso ou cobiçar tanto uma moça como ele.

     - Terá que superar o emburramento primeiro. Contarei aos meus parentes que olhos e ouvidos espertos você tem, Annie, e acho que você verá algum deles em breve.

     - Mande sir Payton.

     - Elspeth! - berrou Cormac.

     Embora resmungasse algo sobre homens autoritários, Elspeth apressou-se em segui-lo. Tinha conseguido o que queria. Se tivesse de sumir com cada mulher menos virtuosa para garantir a fidelidade do amado até que ele enxergasse a verdade, ela o faria. Isabel era um obstáculo e tanto a vencer. E Elspeth não precisava de nenhum outro empecilho.

    

     Elspeth revirou os olhos quando Cormac, de cara fechada, saiu para caçar. Por dois dias vinha suportando seu mau humor e estava cansada disso. Acordava de manhã nos braços dele, sentindo o calor e o desejo entre os dois quase a cegá-los. Cormac a beijava e corria as mãos por seu corpo todo, trêmulo de paixão. Então, se Elspeth se mexia, era o suficiente para fazê-lo sacudir a cabeça como se para clarear os pensamentos; depois, se afastava com uma pressa insultante. E ficava o mais longe possível pelo resto do dia. Era de admirar que concordasse em dormir ao lado dela por causa dos pesadelos.

     Aquilo não poderia continuar por muito tempo, Elspeth resmungou no íntimo, enquanto pegava um pedaço de sabão da bolsa. Tudo que ela precisava fazer era tentar controlar as próprias reações diante das carícias, pelo menos até que não houvesse nenhuma chance de voltar atrás. Era sua virgindade que o fazia recuar e Elspeth estava começando a pensar se teria de encontrar alguém para livrá-la dessa condição. Ou isso, ou enlouqueceria.

     O riacho ao lado do qual tinham acampado se retorcia entre as charnecas e a floresta em sua lenta jornada até a próxima aldeia. Elspeth encontrou um local abrigado para aliviar as necessidades, de onde teria uma visão de qualquer perigo que se aproximasse. A água devia estar muito fria, mas ela precisava urgentemente de um banho, e também lavar algumas roupas.

     Depois de um olhar em torno para se assegurar que estava sozinha, despiu-se. O sol de fim de verão estava agradável, mas bastou que colocasse um dedo na água para saber que aquilo não seria prazeroso. Elspeth pegou o sabão e uma das meias para usar como esfregão e enfiou-se na água. Seus dentes começaram a bater de frio.

     Assim que terminou, usou as roupas para enxugar os cabelos. Friccionou o corpo para reativar a circulação. Enfiou-se na camisola e se ajoelhou à margem do riacho para lavar as outras peças.

     Chegariam a outro vilarejo no dia seguinte, Elspeth pensou, com um resmungo. Haveria uma hospedaria ou uma taverna e outra criada desejosa que teria de afastar de Cormac. Aquilo estava se tornando um jogo estranho. Elspeth sabia que Cormac percebera aquilo que ela estava fazendo. E não tocava no assunto.

     Era também um jogo que magoava. Lá estava ela, calorosa e acolhedora, ansiosa para compartilhar sua paixão e, no entanto, ele continuava a rejeitá-la. O maior medo de Elspeth era que Cormac se entregasse com paixão a outra mulher antes que ela tivesse até mesmo uma chance de experimentá-la.

    

     Cormac olhou ao redor do acampamento e jogou os dois coelhos que caçara no chão. Elspeth desaparecera. E sua sacola sumira também.

     Será que finalmente resolvera ir embora, decidida a se cuidar por conta própria? Não a culparia por isso. Viajar com um homem que tentava seduzi-la toda manhã, depois a tratava com rispidez ou à ignorava o dia todo devia deixá-la louca. Ele estava enlouquecendo. Parecia um animal descontrolado no cio. Uma criada de taverna, uma leiteira, uma viúva... Qualquer mulher serviria.

     Nada disso importava, contudo. Pelo menos, não era tão importante quanto o fato de que sir Colin estava atrás de Elspeth. E disposto a matar para pôr as mãos em cima dela. No momento em que sir Colin conseguisse desposá-la e possuí-la contra a vontade de Elspeth, os Murray reuniriam homens e armas. Poderiam já estar fazendo isso. A família e seus aliados estariam todos em perigo. Poderiam morrer na luta para resgatá-la e vingá-la, tal como os homens que sir Colin assassinara. Por tudo que devia a Elspeth e à família, tinha de fazer o possível a seu alcance para impedir que isso acontecesse. O que queria dizer manter Elspeth a salvo e por perto, até que sir Colin desistisse ou morresse.

     Mentalmente verificou se todas as suas armas estavam onde deveriam estar, enquanto localizava o rastro de Elspeth e o seguia para dentro da floresta. Não tinha certeza do que fazer. Era provável que um pedido de desculpa por seu comportamento pudesse ajudar, mas não seria fácil. O que diria? Que normalmente não se deixava levar pelos instintos? Que não costumava agir como um porco no cio? Nem querer que uma moça decente esperasse do lado de fora da porta enquanto ele se aliviava com qualquer mulher?

     Além disso, Elspeth estava aprontando alguma coisa com mulheres disponíveis. Será que as ameaçava? Talvez ela também lhe devesse pedir desculpas. Por mais que Cormac agisse errado, Elspeth não tinha o direito de interferir.

     Quando, finalmente, a avistou de longe, Cormac estacou. Respirou fundo para acalmar um instintivo acesso de raiva. Ora essa, estava preocupado, e ela se aquecia ao sol na margem do riacho. Um olhar rápido para as roupas penduradas com cuidado nos galhos o informou que Elspeth não tivera intenção de fugir, e sim lavar as roupas. Aborreceu-se por haver ficado em pânico. Não havia motivo.

     Ao se aproximar, todas as suas boas intenções lhe fugiram da mente. Elspeth encontrava-se deitada de costas, seus cabelos estavam espalhados para secar ao sol. O corpo delicado estava coberto apenas com uma fina veste de linho que chegava até os joelhos. E apesar de seus esforços para se controlar, o olhar de Cormac correu dos seios roliços até a cintura fina. Cravou os olhos na sombra tênue entre as longas pernas esculturais. Até os pezinhos eram bonitos, ele pensou, aturdido, ao se aproximar. Ajoelhou-se ao lado dela.

     Elspeth abriu os olhos lentamente e sorriu ao fitá-lo. E Cormac percebeu que atingira o limite de suas forças.

     - Você parece uma bela ninfa que saiu das profundezas geladas do rio para honrar o sol com a sua presença.

     O coração de Elspeth vacilou diante do elogio perturbador.

     - Isso mal passa de um regato.

     Cormac sorriu, soltou o cinto da espada e depois arrancou as botas.

     - Vai fazer pouco da primeira frase poética que este homem aqui declamou?

     - Não - murmurou Elspeth. Rezou para que ele não lhe desse outra aula da torturante arte de lhe despertar os sentidos, para depois deixá-la insatisfeita. - Era disso que se tratava?

     - Acho que você pode fazer com que este homem entoe palavras tão lindas como qualquer menestrel.

     Beijou-a. Elspeth enlaçou-o pelo pescoço, pensando se poderia retê-lo até que ultrapassassem os limites da razão. O beijo foi lento e profundo e, no entanto, havia um toque de desespero nele.

     - Minha linda Elspeth - Cormac murmurou -, você deveria me empurrar.

     - Por quê? Você sempre dá um jeito de se afastar por conta própria.

     - Não, não desta vez.

     - Tem certeza?

     Cormac debruçou-se sobre ela conforme puxava-lhe a veste pelos ombros e a descia até a cintura. A visão dos seios fartos e dos bicos rosados quase o fez perder o fôlego. A pele de Elspeth era macia, de um creme sem manchas, e ele correu a língua pelos próprios lábios, antecipando o prazer de saboreá-la. Quando Cormac fechou as palmas em torno dos seios e roçou os polegares pelos bicos contraídos, ela estremeceu, seus olhos se toldaram de desejo.

     - Oh, sim, minha tentação de olhos verdes. Desta vez só você pode me parar.

     Ao ver o jeito faminto com que ele a fitava, enquanto continuava a provocar os bicos sensíveis com os dedos, Elspeth enterrou os dedos pelos cabelos de Cormac e puxou-o para mais perto.

     - Então, desta vez não haverá interrupção.

     Cormac gemeu e correu a língua pelo bico rosado. O suave arquejo de prazer de Elspeth o excitou ainda mais.

     Ao ter o mamilo sugado, ela gritou e agarrou-se a ele. E a resposta apaixonada o fez imaginar se teria forças para se controlar.

     Elspeth estava aflita por tocá-lo, livrá-lo das roupas que lhe escondiam a carne de suas mãos e lábios. Cormac afastou-se para ajudá-la.

     Com tantos homens na família, o corpo masculino não era desconhecido de Elspeth. Quando Cormac livrou-se do resto das roupas, ela o examinou com olhos arregalados de admiração. Ele era todo músculos, de compleição enxuta e rija. Os ombros largos, o estômago liso e duro, os quadris esbeltos, as pernas longas e bem torneadas. A pele era macia e brilhava com uma tonalidade cremosa, saudável, de um dourado claro. Uma seta de pêlos castanho-avermelhados começava logo abaixo do umbigo, florescia em torno dos dotes másculos realmente impressionantes e escurecia de leve as pernas fortes. Não era de admirar que Isabel se grudasse nele com tanta tenacidade, Elspeth pensou.

     - Você é tão bonito!

     - Você, criatura extraordinária, é que é linda.

     Ao fitar aquela beleza esguia exposta à sua vista, Cormac quase se lançou sobre ela, como cada músculo de seu corpo exigia. A cintura era tão fina que ele poderia abarcá-la com as mãos. Os quadris tinham contornos delicados. As pernas eram longas. A textura da pele era sedosa até a ponta dos dedos dos pezinhos encantadores. Cormac sentiu as mãos tremerem ligeiramente ao tocar de leve o pequeno V de caracóis negros que recobria o ninho secreto entre as coxas de Elspeth.

     Com gestos lentos, desceu o corpo sobre o dela e sentiu o mesmo calafrio que a sacudiu quando as carnes se tocaram. Uma sensação deliciosa o envolveu.

     Conforme os beijos e as carícias se tornavam mais ousadas, Elspeth começou a tremer e arquear-se de excitação.

     - Cormac - ela murmurou a voz rouca de ansiedade -, meu corpo todo lateja.

     - Sim, meu anjo, é assim mesmo - ele resmungou, a mordiscá-la na base do pescoço.

     - Então, por que está esperando? - Elspeth sentia o ventre se contrair com as carícias cada vez mais íntimas.

     - Você precisa estar pronta. É a sua primeira vez.

     Ela arquejou ao sentir um arrepio e uma onda de calor incendiar-lhe as entranhas.

     - O que mais preciso sentir para estar pronta? - gemeu.

     Então, de repente, onda após onda de um prazer intenso a entorpeceu. Elspeth agarrou-se a Cormac, a se contorcer. Arquejou quando ele passou suas pernas em torno da cintura. Tentou recuperar o senso e concentrar-se naquilo que estava prestes a acontecer. Cravou os olhos nos dele. E viu paixão e um desejo que não compreendeu de todo.

     - Agora, minha donzela, você está pronta - Cormac murmurou e enterrou-se dentro de Elspeth, arrancando o véu da castidade antes que pudesse se arrepender.

     Algo o espicaçou no fundo da mente, mas ele não lhe deu atenção. Ouviu o arquejo de dor, sentiu o corpo de Elspeth se encolher. E precisou de cada grama da força de vontade para não se mover. Fitou-a, e assustou-se ao perceber que estava pálida e com lágrimas nos olhos. A prova da dor que lhe causara o ajudou a recuperar o controle.

     - Eu a machuquei?

     - Não muito - ela disse, respirando fundo e esforçando-se para relaxar.

     Doera mais do que Elspeth esperava, mas não iria admitir. Cormac a penetrara com força, dilacerando de uma só investida o véu da castidade. Mas ela não iria reclamar. Forçara a situação. O que achava curioso era o olhar de espanto e depois a confusão que passara pelo semblante de Cormac ao perceber a dor que havia lhe provocado. Era como se nunca tivesse se deitado com uma virgem antes.

     Elspeth lutou para relaxar, sabendo que era a maneira mais certa de aliviar o desconforto que sentia. Os beijos suaves que lhe cobriam os seios ajudaram a despertar seu desejo de novo. Com um suspiro longo, ela começou a saborear a maneira com que seus corpos se uniam. Correu as mãos pelas costas de Cormac.

     - A dor passou - disse ao lhe acariciar as nádegas duras, e sentindo que ele estremecia.

     - Que bom.

     O ritmo ancestral tomou conta de ambos. E a percepção de que duas pessoas não poderiam estar fisicamente mais próximas do que daquela maneira só aumentou o prazer profundo de Elspeth. Então, o êxtase os arrebatou a alturas inimagináveis. Cormac gritou o nome dela naquele momento em que a semente da vida jorrava dentro de Elspeth.

     Uma brisa fria açoitou suas costas nuas. E Cormac recuperou o bom senso. Ao abandonar a intimidade do abraço que os unia, lutou para esconder a crescente aflição que o invadiu. Iria magoar Elspeth. Ela não merecia. Deu-lhe um beijo nos lábios, rasgou um pedaço do casaco e foi molhá-lo no riacho.

     Depois de se lavar, Cormac voltou para o lado de Elspeth. Ignorando seu rubor e os tímidos protestos, limpou-a também. Aquela vozinha que ouvira ao roubar a inocência de Elspeth retornou e exigiu ser ouvida. Não tinha havido nenhum obstáculo a ultrapassar quando se deitara pela primeira vez com Isabel, nenhum sangue em suas coxas ou nas dela. Isabel havia gemido baixinho, mas Cormac agora sabia que não passara de fingimento. Isabel tinha jurado que era virgem, que se entregava a ele por amor, dava-lhe um presente que o marido não merecia. Mentira. Ela o fitara dentro dos olhos e mentira. Havia existido alguém antes dele.

     Incapaz de saber o que sentia ou pensava diante de tal revelação, Cormac expulsou tudo da mente e sorriu para Elspeth. Ela era virgem. E precisava de toda sua atenção e habilidade para passar por aquele momento estranho sem constrangimento ou confusão ou sentimentos feridos. E sem promessas que ele não pudesse honrar.

     - Venha, meu anjo, está ficando muito frio - disse ao lhe estender as roupas e começar a se vestir também.

     - Sim, está mesmo - Elspeth murmurou.

     Alguma coisa mudara, pensou ao observar Cormac atentamente, enquanto se vestiam.

     Por um momento, havia ficado deitado em seus braços, saciado e contente, e Elspeth não tivera dúvida de quanto ele estava feliz. Então, se retraíra. Tinha agora uma máscara de polidez. Fazia o possível para que se vestissem depressa e voltassem ao acampamento.

     Uma parte de Elspeth sentiu vontade de gritar. Tinha certeza de que Cormac unira-se a ela em corpo e espírito. Haviam escalado as alucinantes alturas da paixão. Mas aquela barreira que ele agora erguera entre os dois a fazia duvidar. Ela não pedira nenhuma jura ou palavras de amor, embora ansiasse por ouvi-las. Porém a magoava aquela fria atitude gentil com que ele a tratava agora.

     Não foi fácil, mas Elspeth sufocou as emoções conturbadas. Afivelou no rosto uma expressão de calma, enquanto recolhia as roupas limpas e acompanhava Cormac de volta ao acampamento. O modo mais rápido de perdê-lo agora seria forçar demais. Ela sabia que precisava ser paciente e compreensiva. Teria até mesmo de engolir um pouco do orgulho. Também sabia que isso, provavelmente, seria uma das coisas mais difíceis que já fizera.

    

     Cormac franziu a testa, intrigado, olhando para as formas esguias de Elspeth enroladas na manta, enquanto alimentava o fogo. Ela não tinha feito nenhuma exigência nem se derramara em lágrimas ou o forçara a conversar sobre o que havia acontecido entre eles. Ele deveria estar contente, mas não estava. Elspeth acabara de perder a castidade na margem de um riacho para um homem que não pronunciara uma palavra de amor nem prometera casamento. Ela agia como se estivesse acostumada a ter um amante. Tudo aquilo era confuso.

     A paixão que compartilhara com ela também o deixava preocupado. Tinha sido a melhor, a mais doce, a mais violenta que Cormac jamais conhecera. Melhor daquela que sempre desfrutara com Isabel. E isso não apenas o afligia, o assustava também. Pior, ainda não havia curado seu desejo por Elspeth. Embora houvesse se saciado completamente poucas horas antes, ardia de vontade de possuí-la de novo.

     A culpa também o aguilhoava. Culpa por haver traído Isabel, por desfrutar a união carnal com Elspeth, e por desejá-la mais e mais, até não conseguir nem andar. E culpa por tirar a pureza de Elspeth, quando sabia que não poderia lhe oferecer nada mais que um breve caso inconseqüente. O pior era a culpa que sentia por perder o controle a ponto de derramar seu sêmen dentro dela, algo que raramente fizera com Isabel. Tinha a sensação assustadora de que, se fizesse amor com Elspeth outra vez, a mesma coisa iria acontecer. Parecia uma loucura, e Cormac não sabia o que fazer.

     Ao se aproximar da cama rústica, pensou em dormir separado de Elspeth. Suspirou, pois não poderia agir assim. Ela ainda sofria com os pesadelos, ainda precisava do conforto de alguém por perto. Agora que haviam feito amor, não existia mais nenhuma razão para se manter afastado. E se tentasse dormir longe de Elspeth, sabia que iria ferir seus sentimentos.

     Quando Cormac se enfiou na cama, ela se virou e aninhou-se contra ele. O corpo de Cormac enrijeceu no mesmo instante de desejo, e ele praguejou no íntimo. Poderia tentar achar desculpas para um momento insensato de paixão cega, mas se continuasse a possuí-la, estaria prometendo mais do que tinha a dar, mesmo sem dizer uma palavra.

     Elspeth se remexeu e correu a mão delicada pelo peito másculo. Cormac segurou-a pelo pulso e impediu-a de continuar. Havia uma boa razão, uma que não a insultaria ou a magoaria. Nem indicaria sua própria perturbação.

     - Não, mocinha - disse, e roçou um beijo em sua testa. - Você precisa se refazer.

     - Realmente, está um pouquinho sensível - ela concordou. - Você se arrependeu, não é?

     Cormac suspirou e enfiou os dedos pelos cabelos de Elspeth, enquanto procurava uma forma de ser honesto, porém gentil.

     - Não, porque foi com você. Eu a desejava e foi a coisa mais doce que já provei. Porém não deveria nunca ter cedido aos meus impulsos. Não posso lhe dar mais nada, além disso.

     - Não creio ter pedido mais.

     - Deveria. Uma moça decente como você deveria ter guardado esse presente para seu marido.

     - Tenho quase vinte anos e não encontrei nenhum homem que eu quisesse para marido ou amante. Você me incendeia. Embora diga que não pode me dar mais do que um breve caso de amor, acho que esperei tempo suficiente e talvez eu tenha resolvido me apossar daquilo que quero.

     - Para uma moça como você, tal impetuosidade pode causar conseqüências sérias.

     - O problema é meu, não seu.

     - Elspeth...

     Ela roçou os lábios nos dele, obrigando-o a calar-se.

     - Chega. Aceite o fato e expulse a culpa, pois não é sua. Sou uma mulher adulta, não uma criança que você precise proteger ou decidir por ela. Deixe as coisas correrem, Cormac. Falar demais nos fará dizer coisas que nenhum de nós quer ouvir. - Elspeth se aconchegou nos braços dele. - Descanse. Isso é o que eu pretendo fazer.

     Cormac olhou para as estrelas e desejou poder enxergar as coisas com tanta clareza. Elspeth lhe oferecia paixão sem amarras, e ele ansiava por aceitar. No entanto o instinto lhe dizia que não era assim tão simples.

    

     Assim que a porta se fechou atrás de Cormac, Elspeth olhou ao redor do quarto em busca de algo que pudesse arremessar contra a parede. Quando dormira nos braços dele na noite anterior, pensara ter resolvido tudo. Cormac não precisava saber que ela havia mentido ao lhe oferecer paixão sem exigências. Contudo, ao abrir os olhos de manhã, encontrara-o com uma armadura emocional intransponível. Tinha decidido proteger-se dela mesmo e das próprias paixões. Fora gentil, cortês e distante. E agora, o golpe fatal: havia alugado quartos separados na hospedaria.

     Não ganharia nada arremessando coisas pelo quarto. Frustrada, Elspeth jogou-se na cama. Agora que perdera a castidade, Cormac não precisaria mais reprimir seus desejos. E por meio da paixão que partilhassem, ela chegaria até seu coração e quebraria o controle de Isabel sobre ele. Isso, porém, seria impossível se Cormac pretendesse bancar o cavalheiro.

     Uma batida na porta fez Elspeth se recordar de que pedira um banho. Mandou as criadas entrarem e esperou que enchessem a tina. No instante em que trancou a porta, assim que elas saíram, arrancou as roupas. Fazia tempo que não desfrutava o luxo de um bom banho. Suspirou de prazer ao deslizar o corpo para dentro da água quente, sentindo o cheiro suave das ervas que espalhara e a envolviam numa sensação agradável. Nada como um longo banho quente para ajudar alguém a pensar. Encontraria uma solução para seu problema com Cormac, antes que a água esfriasse.

    

     Cormac afundou na água quente do banho e rezou para que isso ajudasse a acalmar a tensão em seu corpo. Uma das criadas que havia trazido a água lhe dera um belo sorriso convidativo, que ele não retribuiu. Sabia que não encontraria alívio nos braços de outra mulher. Sua libido se fixara firmemente em Elspeth. E naquele momento arrebatador de paixão indescritível que haviam partilhado.

     - O que vai acontecer quando eu me encontrar com Isabel? - perguntou-se e depois sorriu. Agora, dera de falar sozinho. - Ora, que bobagem. Tudo ficará bem quando eu vir Isabel outra vez.

     Começou a esfregar-se. Decidira não se permitir voltar aos braços de Elspeth. Infelizmente, a lembrança daquele imenso prazer fazia sua decisão fraquejar. Ela queria ser sua amante, entregar-se à paixão livremente, e nada pedia. Era uma tentação quase impossível de resistir. Tinha sido difícil agir como um cavalheiro, com aquele corpo comprimido contra o seu o dia todo, enquanto cavalgavam.

     - Preciso de outro cavalo.

     Pensou no dinheiro minguado de sua bolsa. Não estava em condições de comprar uma montaria, pelo menos tão boa quanto a sua. Mas um segundo cavalo era algo prático. Elspeth era miúda, porém, mesmo assim, seu peso cansava o animal. E razões de ordem prática evitariam que ela adivinhasse o motivo de ele querer uma segunda montaria. Afinal, se sentisse aquele corpo roçar contra o seu mais uma vez, a jogaria de costas no chão antes que Elspeth pudesse piscar.

     Cormac apressou-se em terminar o banho. Se tivesse sorte, poderia comprar um cavalo decente sem esvaziar a bolsa. E voltar a tempo de encontrar Elspeth para o jantar. Se ainda tivesse dinheiro para pagar a refeição.

    

     Elspeth franziu a testa ao cheirar o pequeno frasco que a vendedora lhe estendeu. Era agradável, um suave perfume de lavanda, um que ela sempre preferira. Havia perdido quase tudo no rapto.

     - É muito forte, milady? - perguntou a mulher.

     - Não, é maravilhoso. O meu predileto, na verdade. - Elspeth sorriu. - Eu tinha pensado em experimentar algo diferente, algo que um homem pudesse achar atraente.

     - Quer sabonete também?

     Elspeth contou um pouco nervosa, o dinheiro para as compras, e sorriu quando viu que a mulher a examinava atentamente.

     - O que foi?

     - Bem, eu tenho algo que talvez lhe interesse.

     - Não tenha medo de me ofender. Estou em meio a uma feroz batalha pelo coração de um homem. Usarei qualquer arma. - Arquejou de prazer quando a mulher estendeu sobre a mesa uma bela camisola de dormir. - É... deslumbrante!

     Os olhos de Elspeth se arregalaram ao deslizar os dedos pelo tecido macio e perceber como era fino e delicado. Não escondia quase nada. A maior parte do corpete era feita de uma renda fina, bordada nos lugares certos para esconder os bicos dos seios, e o resto quase diáfano. As únicas coisas que prendiam a camisola ao corpo eram as fitas delicadas no alto de cada manga. Um traje sensual. Elspeth não tinha certeza de se atrever a usá-lo. Ou se o dinheiro que lhe restava era suficiente para comprá-lo.

     - Uma bela arma, realmente! Mas pode ser muito cara para mim. - Assustou-se quando a mulher disse o preço. - Talvez eu possa ajudá-la de alguma forma e a senhora me faria um abatimento. Sou curandeira, aprendi muito com minha mãe, lady Maldie Murray.

     - Oh, ouvi falar muito dela. E eu tenho mesmo um problema com minhas mãos. - A mulher estendeu-as para que Elspeth olhasse. - Doem demais e isso atrapalha meu trabalho.

     Elspeth colocou a bolsa de ervas sobre a mesa e procurou por um certo ungüento que, com toda certeza, ajudaria.

     - Isso não tem cura, senhora, mas a dor pode ser aliviada. Evite que as mãos fiquem frias e tente não deixá-las úmidas quando a temperatura cair. - Estendeu o pequeno pote de ungüento. - Esfregue isto quando a dor começar, mas não exagere na quantidade. - Pegou um pedaço de pergaminho e um bastão de carvão apontado com faca e escreveu a receita para o ungüento. - Assim poderá fazer mais quando precisar. Melhor copiar com tinta para a escrita não borrar. Sabe ler?

     A mulher admitiu ter conhecimento suficiente para ler as receitas dos perfumes e sabões. Quando Elspeth saiu da pequena loja, comprara a camisola por metade do preço e havia conseguido umas poucas dicas daquilo que os homens gostavam. Era romântico, pensou.

     Perto da hospedaria, seu caminho foi bloqueado por três grandalhões que a encaravam de um jeito que fez seu sangue enregelar.

     - Se me derem licença, por favor, senhores - ela disse educadamente, tentando dar a volta e vendo que os homens não a deixariam passar.

     - Bela moça, você - disse o mais moreno dos três.

     - Muito obrigada, é muito gentil. Agora, se puder me deixar passar...

     - E sozinha.

     - Meu marido, sir Cormac, me espera na hospedaria.

     - Ah, é? Nenhum homem deixaria uma moça tão bonita e com uma voz dessas andar por aí sem companhia.

     Elspeth sabia que não tinha chance contra três homens corpulentos como aqueles, se a atacassem, mas poderia atrapalhá-los até aparecer ajuda. Ia gritar fazer um barulhão, na esperança de que alguém surgisse. Não tinha certeza se Cormac se encontrava na hospedaria; portanto, não poderia contar com ele.

     Aconteceu depressa demais para que Elspeth pudesse reagir. Dois dos três homens lançaram-se sobre ela. O terceiro, que franzira a testa diante da citação de um cavaleiro, hesitou e depois fugiu. Elspeth se pôs a gritar até que o moreno lhe tampou a boca com a mão imunda. Embora lutasse ferozmente, Elspeth ia sendo arrastada para um beco.

     Então, de repente, foi largada tão bruscamente que acabou esparramada no chão. Ao se levantar, viu várias pessoas olhando a cena. Mas ninguém se movera para ajudá-la. Depois de encará-las com um olhar de puro desgosto, voltou-se para deparar com Cormac postado entre ela e os atacantes, apontando a espada para a barriga do moreno. Cormac parecia furioso, e os homens, apavorados. Elspeth esperou tensa, para ver o que aconteceria.

     Cormac cravou os olhos nos dois sujeitos. Quando os avistara a arrastar Elspeth, que esperneava e lutava furiosamente, havia ficado cego de raiva. Ao sacar a espada, seu único pensamento fora matá-los. Era tão evidente sua fúria que, ao vê-lo, os velhacos soltaram Elspeth no mesmo instante. Não conseguiram fugir, contudo, e ele os encurralara no fundo do beco. Ao ver que Elspeth não estava machucada, sua raiva diminuiu. Covardes! Homens que forçavam mulheres mereciam a morte. Mas Cormac não tinha coragem de matá-los enquanto estavam lá, tremendo.

     - Está machucada, Elspeth? - perguntou.

     - Não, estou bem, Cormac.

     - Pegue os punhais deles - Comprimiu a ponta da espada na barriga do moreno. - Não tentem nada, nenhum de vocês - berrou -, pois posso estripá-los num piscar de olhos.

     A voz de Cormac era tão gelada que até mesmo Elspeth estremeceu. Apressou-se a recolher os punhais.

     - Pronto Cormac.

     - Sumam seus covardes, tão medrosos que se urinaram de medo. E prestem atenção: não quero pôr meus olhos em vocês de novo.

     Elspeth espantou-se ao ver como os homens corriam. E soltou um grito de susto quando Cormac a agarrou pelo braço com rudeza e começou a puxá-la pelo beco. Toda aquela raiva que vira no rosto dele se voltara contra ela.

     - Não posso acreditar que você foi idiota o suficiente para sair andando por aí por conta própria! - Cormac esbravejou.

     - Não estava escuro ainda e eu fiquei nos limites da vila - Elspeth protestou. - Só fui comprar umas coisinhas. Então, aqueles três cretinos me encurralaram, falando bobagens, dizendo que uma moça tão bonita e com a minha voz não deveria ter permissão de andar sozinha. Pode me dizer que voz é essa que eu tenho que me impede de sair? E você? Como se atreve a gritar comigo?

     Cormac parou ao entrar na taverna. Elspeth tinha boas razões para estar zangada. E não merecia sua fúria. Não fizera nada errado. Simplesmente não entendia como sua beleza e sua voz sensual afetavam os homens. E não era algo que ele pudesse explicar facilmente, além disso.

     Decidiu usar um argumento convincente para fazê-la compreender o perigo de sair sozinha.

     - E se fossem homens de sir Colin?

     Elspeth ficou consternada. Havia se esquecido completamente daquela ameaça.

     - Não pensei nisso.

     - Ainda não vi nenhum sinal do patife, mas sei que ele está procurando por você. Matou para pegá-la uma vez, e não existe nada que ele não faça para tê-la de volta.

     Olhou para os poucos homens na taverna e fechou a cara quando os viu de olhos cravados em Elspeth.

     - Espere aqui. - Depois de endereçar aos fregueses da taverna um olhar fulminante como aviso para que ficassem longe de Elspeth, Cormac saiu à procura do estalajadeiro.

     Não poderia deixá-la sozinha nem separar-se daquela tentação. Teria de protegê-la. Dos outros ou de si mesmo? Sentiu-se dividido. Avisou o hospedeiro que ficariam num só quarto, ele e a esposa. Excitava-o a perspectiva de dividir uma cama com Elspeth, de compartilhar aquela gloriosa paixão que os incendiava, mas o aborrecia a própria fraqueza. Afinal, estaria saciando o corpo com ela, enquanto guardava tudo mais para outra. Elspeth merecia muito mais.

     Só quando viu Cormac trazer os pertences do outro aposento, é que Elspeth compreendeu o que acontecera. Não ficariam mais em quartos separados. Lavou-se e arrumou-se para o jantar que logo partilhariam, lutando para esconder o contentamento. Ele não estaria tão aborrecido se tivesse certeza de que poderia resistir a ela.

     Durante o jantar, Cormac respondeu tão laconicamente às tentativas de Elspeth de conversar que ela desistiu, por fim. A noite poderia não ser tão maravilhosa como esperava. Aquele mau humor pavoroso não parecia nada promissor.

     Elspeth pediu licença e subiu para o quarto que iriam dividir. Lavou-se, vestiu a camisola sensual e perfumou-se com o novo perfume em todos os pontos que julgou apropriado. Então, o instinto lhe disse para não se mostrar tão atrevida. Pegou um lençol e enrolou-se. E rezou para que Cormac não ficasse na taverna bebendo até se embriagar.

     Depois, encolheu-se numa cadeira perto do pequeno fogareiro e esperou.

     Quando Cormac finalmente apareceu, não estava nem bêbado nem mal-humorado. Só aborrecido que ela ainda estivesse acordada. Sentou-se na beira da cama e tirou as botas.

     - Parece que alguém morreu - disse Elspeth ao se levantar da cadeira. Parou na frente dele.

     - Acho que não sou o homem honrado que pensei que fosse - Cormac murmurou, encarando-a. - Deixei a luxúria me dominar. Deitei-me com uma donzela e, Deus do céu, quero me deitar de novo. Mas eu não sou livre. Vou ao encontro da mulher a quem estou ligado faz dez anos. Quero cumprir a promessa que fiz um dia e me casar com ela. - Hesitou, depois correu os dedos pelos cabelos.

     Elspeth tinha vontade de gritar que Cormac abrisse os olhos e enxergasse realmente quem era a mulher pela qual desperdiçava a vida.

     - Como eu lhe disse antes, você se preocupa demais.

     - Meu anjo, eu a quero. Não creio que exista uma parte de mim que não arda por você. E agora que sei o que podemos partilhar essa fome só fica mais forte. Não é direito. Isso precisa acabar Elspeth. E me envergonho de confessar, mas estou ansioso para continuar a errar.

     - Ah, meu pobre Cormac, você adora se atormentar. Já lhe disse, eu o desejo. Prefiro pensar nisso que compartilhamos como uma coisa prazerosa. Se acha que está me usando, então... ótimo, use-me. - Ela soltou o lençol.

     Cormac viu o lençol escorregar pelo corpo de Elspeth e amontoar-se no chão a seus pés. Percorreu-a por inteiro com os olhos e respirou fundo de tão perturbado. A camisola que ela usava era tão fina que ele podia ver o contorno do corpo esguio, embora a renda presa estrategicamente em certas áreas íntimas quase as escondesse.

     Elspeth sorriu. Um sorriso sensual e convidativo que fez ferver o sangue de Cormac.

     - Onde arranjou isso? - ele perguntou ao arrancar o casaco e a camisa.

     - Numa lojinha na cidade. Gosta?

     - É a própria criação do demônio, feita para tentar um homem até fazê-lo cometer o pecado da luxúria.

     - Espero que sim, pois paguei um preço alto por isso.

     - Mocinha danada - ele murmurou, com a voz trêmula de riso, ao terminar de arrancar as roupas.

     O jeito com que Elspeth o fitou fez Cormac sentir-se ao mesmo tempo tonto de desejo e cheio de vaidade. Ela não tentava esconder quanto apreciava vê-lo nu, quanto gostava de cada parte de seu corpo, o que o enchia ainda mais de orgulho. Diferente do olhar de Isabel, avaliador, como se o comparasse com alguém. O pensamento o perturbou. Mas a visão de Elspeth logo absorveu toda sua atenção. Não podia lhe oferecer nenhum futuro. Contudo, pelo tempo que ficassem juntos, seria só dela, de corpo e alma.

     - Nos meus sonhos mais loucos, você nunca chegou perto de se equiparar à beleza que realmente é - Elspeth murmurou ao tocá-lo num gesto ousado.

     - Tinha sonhos loucos comigo? - Cormac cerrou os punhos, lutando para se controlar e desfrutar aquela carícia por um instante.

     - Oh, é claro. Você era meu cavaleiro. Eu o encontrei ferido, sendo caçado por homens que o queriam morto por um crime que não cometeu. Já era um rapaz bonito na época. E depois você beijou minha mão na despedida. - Deu um passo à frente para que pudesse acariciá-lo mais, deliciada com o prazer que Cormac encontrava em seu toque. - No começo eram sonhos infantis e meigos, de resgates heróicos, mas depois eu cresci e aprendi alguma coisa sobre homens e mulheres. Então, os sonhos não eram mais meigos, mas ardentes. Muito, muito ardentes.

     A suave voz rouca acariciava Cormac quase tanto quanto aqueles dedos longos. Pensar em ser o homem dos sonhos de Elspeth durante anos era uma idéia excitante. E poderia também significar que não tinha sido simplesmente desejo que a empurrara para seus braços, que os sentimentos que ela nutria eram bem mais profundos do que admitia. Isso explicaria muita coisa. Mas não seria justo de sua parte ter um caso breve com ela e depois dispensá-la quando se reunisse a Isabel.

     Com as mãos trêmulas, Cormac desatou os laços das fitas nas mangas da camisola e viu o tecido diáfano deslizar até o chão. Segurando-a pelos ombros, lutou para controlar a paixão e saborear o prazer que Elspeth lhe dava. Por fim, sabendo que não conseguiria suportar mais, ergueu-a e quase a jogou sobre a cama.

    

     Custou para Cormac recuperar a razão e se lembrar de quanto havia sido voraz aquele ato de amor. Com cuidado, ergueu-se nos cotovelos para fitar Elspeth. O leve sorriso na face enrubescida era de pura satisfação. Nunca vira uma mulher tão deslumbrante.

     - Machuquei você? - sentiu-se compelido a indagar-

     - Não - ela murmurou, com um sorriso. - Mas a cabeceira da cama era um pouquinho dura.

     Cormac caiu na gargalhada. Libertou-se da intimidade daquele abraço. Deitou-se de costas e puxou-a para que ficasse sobre ele.

     Elspeth sentiu que Cormac a queria outra vez e seus olhos se arregalaram.

     - De novo?

     - Ah, meu anjo, agora que começamos este caso, quero que seja o mais louco, o mais apaixonado que jamais existiu capaz de exaurir todas as nossas energias.

    

     Enquanto esperava que Cormac terminasse de acomodar os cavalos nas baias, Elspeth perambulou até as portas do estábulo malcheiroso para respirar um pouco de ar fresco. Ficara preocupada ao descobrir que ele tinha lhe arranjado um cavalo, mas dissera a si mesma para não ser tola. Era fácil ver o motivo. E ela não poderia colocar a vida de ambos em perigo porque gostava de ficar perto de Cormac.

     Um gemido estranho, cheio de dor e medo, chamou sua atenção. Elspeth saiu pela porta e olhou ao redor. Ouviu o ruído de novo e escutou risadas. Sem pensar duas vezes, saiu correndo na direção de um beco que saía da rua enlameada.

     O que viu a deixou chocada, diante de tamanha crueldade. Quatro garotos haviam encurralado um gato no fundo do beco, entre o açougue e uma pequena loja de velas. Revezavam-se em cutucar o animal com varas pontiagudas, rindo de prazer com os miados de dor. O pêlo cinzento estava todo manchado de sangue. Torturavam o bicho até a morte e achando graça na valente luta do animal para continuar vivo. Elspeth se acercou do garoto mais próximo, deu-lhe um sonoro tapa na orelha e pegou a vara que ele deixou cair. Então, encarou os quatro meninos que, embora mais jovens que ela, eram um bocado maiores.

     - Que homens são vocês para torturar um animalzinho até a morte? - ela indagou, com ar de escárnio.

     - É só um gato - resmungou aquele que Elspeth agredira. Ele a encarava com um olhar furioso, enquanto esfregava o ouvido, que zunia.

     - E menor que você e estava encurralado. É apenas um gato e vocês são quatro. Isso é covardia, tortura cruel, e vocês deveriam ter vergonha de si mesmos.

     - Ele é seu? - perguntou o menor dos garotos, que jogara a vara de lado.

     - Não, mas isso não quer dizer que vou deixar que continuem com essa brincadeira doentia.

     - E acha que pode nos impedir? - perguntou o maior deles. - Somos quatro e você não é lá essas coisas, dona.

     A arrogância do garoto fez Elspeth ter vontade de esbofeteá-lo. O jeito caçoísta com que dissera a palavra dona e o desdém em sua voz mostrava ter uma opinião pouco lisonjeira sobre as mulheres. Elspeth imaginou que o pai dele, se é que tinha um, era um porco estúpido. O jeito com que os outros três garotos olhavam para o rapaz deixava claro que o consideravam o líder do grupo. O que a fez ter mais vontade ainda de colocá-lo no devido lugar, pois iria corromper os outros.

     Tenho sete irmãos e um bando enorme de primos! - exclamou, mantendo a voz ríspida e cravando o olhar com firmeza no rapaz. - Você não me assusta, garoto. Qualquer homem que precise de outros três só para encurralar e maltratar um gatinho nada mais é que um verme, um covarde que precisa da dor dos mais fracos e menores para se sentir grande.

     - Sua cadela! - um dos garotos esbravejou e investiu contra Elspeth.

     Ela deixou-o avançar, e só quando o rapaz chegou perto, desviou-se de lado. Ele tropeçou ao passar e Elspeth o chutou no traseiro. O moleque esparramou-se no chão, e a vara escapou-lhe da mão. Aos berros, começou a xingar com palavrões medonhos. Elspeth, mais que depressa, chutou o pedaço de pau para fora do alcance. Livrou-se também da vara que segurava. Quando o rapaz se levantou, ela o encarou de punhos fechados, pronta para a briga. Ele pareceu surpreso por um instante. Depois, cuspiu no chão com ar de escárnio. Não poderia saber que Elspeth aprendera a brigar desde pequena.

     - Você deve ser maluca - o moleque caçoou, erguendo os punhos. - E logo não será tão bonita.

     Elspeth sorriu. Sabia como ficar longe daqueles punhos. E também não tinha escrúpulos em trapacear.

     O garoto brandiu o punho, alheio aos protestos dos amigos. Mas Elspeth desviou-se e o atingiu com força no estômago. Os amigos recuaram mudos. O rapaz praguejou e investiu de novo. Ela deu-lhe um soco de baixo para cima e acertou-o no nariz. Ele urrou de dor e levou a mão ao rosto. O nariz sangrava. Elspeth aproximou-se, agarrou-o pelo mindinho e começou a torcer o dedo para trás. Por um breve instante, teve medo de que ele agüentasse firme até que o dedo quebrasse; então, o moleque não cedeu e ela o empurrou de joelhos. Num gesto rápido, ele tentou agarrá-la com a outra mão. Mas Elspeth prendeu-lhe o dedo mínimo daquela mão também. O garoto ficou imóvel. Ela percebeu que o pequeno arruaceiro estava completamente à sua mercê. Tudo que precisava fazer agora era encontrar as palavras certas para dizer, que enfiassem algum juízo na cabeça do moleque.

   - Necessita de ajuda, meu anjo? - perguntou uma voz bastante familiar.

     Cormac tinha visto Elspeth desaparecer da frente do estábulo. Depois de acertar as contas com o dono, apressara-se a ir atrás dela. Ao sair pela porta, tudo que viu foi um pedaço de saia desaparecendo num beco do outro lado da rua. Aquela impulsividade acabaria por matá-la, Cormac pensou zangado. Olhou de um lado para outro para ver se não cairiam em alguma armadilha no beco. Depois, correu.

     Cormac chegou a tempo de vê-la chutar o traseiro do garoto mais velho. Embora ficasse nas sombras, estava pronto para entrar em ação caso precisasse. Quando Elspeth ergueu os punhos para lutar, achou que o moleque tinha razão: ela era louca. Damas de alta estirpe não se metiam em brigas de rua.

     Ao se aproximar com a intenção de impedir aquela estupidez, o rapaz desferiu o primeiro soco. Cormac estacou impressionado pela forma com que Elspeth se desviou. Alguém a instruíra bem. Ela era pequena e delicada, mas muito boa em se esquivar e atacar com rapidez e força, antes de sair fora do alcance do oponente outra vez. Então, ele viu o modo como Elspeth obrigava o valentão a ficar de joelhos.

     "E tudo por um gato", pensou, com um olhar para o animal. Só Elspeth poderia achar que valia a pena brigar por esse motivo. Cormac saiu das sombras e quase sorriu quando os amigos do valentão o avistaram. Pareciam apavorados. E uma coisa o espantou. O gato não fugira. Ficara deitado ali, a observar Elspeth com os grandes olhos amarelados. E quando ela obrigou o garoto a se ajoelhar, Cormac poderia jurar que o gato sorrira. Que bobagem. E decidiu falar com ela, para que soubesse que ele estava ali.

     Elspeth sufocou um resmungo quando viu Cormac parado atrás dela, mas fez um esforço para agir como se nada tivesse acontecido de incomum.

     - Não, obrigada, sir Cormac. Creio que tenho tudo sob controle. - Voltou-se para o moleque: - Você é uma criatura perversa. Não sei se tem juízo suficiente para compreender o que digo, mas tente me ouvir. Esse tipo de comportamento não o recomenda em nada. Você se amesquinha quando maltrata os mais fracos e os menores. Lembre-se dos velhos e sábios ditados: Faça amigos, não inimigos, e viverá uma vida longa. É mais fácil pegar moscas com mel do que com vinagre. Honra perdida é para sempre. Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você.

     - Chega! - o moleque gritou.

     - Se criar fama de valentão, se conquistar espaço por atormentar os fracos, vai se lamentar muito. Será constantemente desafiado, e um dia alguém maior e mais forte o fará pagar por todas as crueldades. - Soltou o garoto e o observou cambalear. - Assim que for derrotado por alguém mais forte, mais rápido, mais cruel que você, nenhum daqueles que o reverenciavam virá em sua defesa. Agora, suma antes que eu pense em algumas outras coisas para deixá-lo surdo.

     Correu para o gato. Cormac estava ali, iria protegê-la. Com suaves murmúrios, Elspeth aproximou-se do animal ferido. Parecia de certa forma estranho que tivesse ficado ali, aparentemente sem medo, e a observasse. Rezou para que a calma aceitação não fosse porque estava tão perto da morte que não tinha mais forças para lutar.

     Cormac ficou de olho nos garotos até que teve certeza de que haviam sumido e não pretendiam se vingar. Depois, virou-se para observar Elspeth.

     - Você não deveria chegar perto do bicho. Ele pode estar louco de dor e a machucar.

     - É só um gato - ela retrucou, mantendo a voz baixa e calma enquanto estendia a mão, palma para cima, para que o animal a olhasse e cheirasse. - Ele pode me arranhar, mas não me matar. Não como um cão poderia.

     - Esse bicho é quase tão grande como um cachorro. Talvez eu devesse pôr um fim ao sofrimento do infeliz.

     O gato lambeu os dedos de Elspeth e depois enfiou a cabeça sob a palma para que ela lhe cocasse as orelhas feridas. Elspeth tirou um pano da bolsa de ervas e enrolou-o em volta do animal, antes de pegá-lo no colo.

     - Ah, meu pobre e triste bichinho. Calma. Eu vou cuidar das suas feridas - murmurou.

     - Elspeth, por favor, diga que não pretende ficar com esse bicho. - Cormac suspirou quando ela o encarou coro espanto. - Não passa de um gato, Elspeth!

     - Ele gosta de mim. Tenho de levá-lo a algum lugar onde possa limpá-lo e cuidar dos ferimentos. O pobre bichinho tem dezenas deles. Vamos ficar na hospedaria?

     - Sim, mandei o garoto do estábulo nos reservar um quarto. - Cormac suspirou conformado e puxou-a para fora do beco. - Não podemos ficar aqui.

     No momento em que entraram na hospedaria, Cormac foi reconhecido por dois homens. Elspeth sentiu que ele ficou tenso. O gato também pareceu nervoso e aconchegou-se a ela.

     Um loiro alto deu uma tapa nas costas de Cormac.

     - Cormac, que bom ver você, velho amigo!

     - É mesmo - concordou o outro, mais gordo, mais baixo e bem mais moreno. - Achamos que o veríamos na Corte. - Depois de apertar vigorosamente a mão de Cormac, voltou-se e sorriu para Elspeth. - Apresente-nos, Cormac.

     Ele estava contente em ver os amigos. Eram bons homens. Lutara ao lado de sir Owen MacDunn e sir Paul MacLennon várias vezes. Não estava feliz, contudo, em apresentá-los a Elspeth. Eles a fitavam com demasiado interesse. Com relutância, Cormac fez as apresentações.

     - Não sabia que estava casado, Cormac - disse sir Owen.

     - Ou noivo - disse sir Paul, que estendeu a mão para afagar o gato, mas arregalou os olhos quando o animal bufou e arrepiou-se todo.

     - Ele não está nem uma coisa nem outra - Elspeth disse.

     Enrubesceu. Era melhor dizer a verdade, pelo menos para impedir Cormac de ser franco e desagradável.

     - Viajamos juntos para a Corte.

     Viu que os homens pareciam surpresos e desapontados.

     - Esperem aqui - Cormac disse a eles. - Vou providenciar os quartos, Elspeth.

     - Ele ainda corre atrás daquela maldita vagabunda... Isabel? - esbravejou Paul, quando Cormac se afastou.

     Espantada com a raiva expressa na voz do homem, Elspeth respondeu:

     - Receio que sim. Embora, no momento, eu tenha conseguido diminuir um pouco a pressa de Cormac.

     - Você acredita que ela seja simplesmente azarada e explorada pela família? - perguntou Owen.

     - Creio que ela é uma assassina de coração de pedra que enterrou quatro infortunados maridos, e brinca com Cormac como uma criança mimada e vaidosa - declarou Elspeth. - Creio que poderia ter impedido que os Douglas fossem ao encalço de Cormac, dez anos antes, mas não quis se preocupar com isso, ou, quem sabe, até mesmo usou o fato para se proteger.

     - Ah, então você conhece essa mulher - resmungou Owen. Sorriu quando Elspeth soltou uma risada. Depois suspirou. - Pensei, quando nós o vimos com você, uma moça bem-nascida... - Calou-se de repente e corou ao perceber que não poderia continuar sem dizer algo indelicado, talvez insultante.

     - Cormac explicará por que estou aqui, viajando sozinha com ele. Quanto ao resto, peço que sejam indulgentes com os meus pecados. Pretendo afastá-lo de Isabel, mas tenho pouco tempo para conseguir. Virtude e modéstia casta não são o que derrotarão aquela mulher ou romperão seu domínio. Essa é uma batalha feroz, e rezo para que vejam meus atos como táticas ou armas necessárias numa guerra. - Esperou um pouco tensa, pela reação dos homens, e soltou um profundo suspiro de alívio quando ambos sorriram.

     - Moça esperta - murmurou Owen. - Acha que pode vencer?

     - Creio que sim, mas é difícil afirmar - disse Elspeth. - Enfraqueci o controle de Isabel sobre Cormac. Disso tenho certeza. Mas ela o domina faz dez anos ou mais. Suas garras se enterraram fundo. As poucas semanas que tenho podem não ser suficientes para arrancá-las.

     - Se ele não a escolher, milady, merece se afundar numa vidinha miserável.

     - Se não me escolher, deixo que vocês se encarreguem disso.

     Cormac fechou o cenho quando voltou e viu os amigos rindo animadamente com Elspeth.

     - Um rapaz a espera nas escadas para lhe mostrar nosso quarto - disse para Elspeth. - Acha que pode dar um jeito nesse gato para que ele se cuide sozinho de novo?

     - Ah, sim, posso curá-lo - ela afirmou, recusando-se a responder à sugestão de que deveria soltar o bichinho. - Nós nos veremos no jantar? - perguntou aos dois amigos de Cormac, e, quando ambos concordaram, despediu-se e se retirou para encontrar o quarto.

     - Acho que ela pensa em conservar aquele gato, Cormac - Paul comentou.

     - Também acho - disse Cormac, com um suspiro resignado.

     - E o que há de errado nisso?

     Enquanto Cormac os levara para uma das mesas e pedia cerveja, contou-lhes toda a história. E relaxou um pouco ao perceber que os amigos se divertiam e pareciam encantados com as atitudes de Elspeth.

     - Você deveria se casar com essa moça - Owen disse, com sua habitual franqueza. - Irá desonrá-la, caso contrário.

     - Creio que exigiria bem mais do que eu poderia fazer para manchar a honra de Elspeth - Cormac declarou, cautelosamente. - E não posso desposá-la, embora ela, com certeza, seria uma esposa maravilhosa. Não sou livre. - Ignorou os palavrões resmungados dos amigos. - Deixei isso tudo muito claro para Elspeth, mas ela diz que não importa.

     - E você acredita. Acha que uma dama, que guarda a castidade por quase vinte anos, irá renunciar a ela pelo belo sorriso de um homem que anda atrás de outra mulher, só por causa de um simples impulso sexual?

     - Não - Cormac admitiu relutante, embora custasse um pouquinho para eu assimilar essa verdade. Estava confuso demais para pensar com clareza. - E não sou o vilão aqui, na realidade. É verdade, sou um fraco, fraco demais para resistir à tentação, mas fui penosamente tentado. Ela pode parecer um anjo de doçura, porém é uma moça determinada quando decide que quer alguma coisa. - Enrubesceu um pouco diante do olhar divertido dos amigos. - Digam-me: se uma moça como essa se oferecesse livremente a vocês, sem fazer exigências ou pedir promessas, quanto tempo acham que iriam agüentar?

     - Um piscar de olhos - respondeu Owen, e Paul concordou.

     - Bem, precisamos lhe contar por que estávamos à sua procura: para lhe dar um aviso - emendou Paul. - E agora sabemos a razão.

     - Um aviso? Sobre o quê?

     - Um certo sir Colin está em seus calcanhares. Procura por você e pela moça. Diz que você a raptou e que ela é noiva dele.

     - É mentira. Como eu disse, Elspeth se recusou a desposá-lo, e ele a raptou para tentar forçá-la a aceitar.

     Paul assentiu.

     - Julgávamos que deveria existir uma boa razão para isso.

     - Achei que tínhamos nos livrado daquele homem, que ele não seria capaz de adivinhar nosso rumo. Havia muitas opções.

     - Bem, reclamou que custou achar o rastro de vocês. Mas está no encalço de ambos agora, e você e Elspeth são o tipo de gente da qual a maioria das pessoas se recorda muito bem.

     Cormac praguejou, terminou a cerveja e pediu mais outra.

     - É hora de começar a fugir e seguir uma trilha sinuosa. Vai me custar dias, mas poucas pessoas nos verão. Isso talvez os retarde. - Olhou para as escadas. - Elspeth ficará desapontada. Surpresa também. Não acho que acredite ou compreenda quanto aquele homem a quer.

     - Não, não creio que ela saiba - murmurou Owen, e Cormac teve a distinta sensação de que o amigo não estava se referindo a sir Colin.

    

     Elspeth acariciou o gato, que acabara de lamber o creme com que o tinha alimentado. Liquidara também com um pequeno prato de restos de frango. Era evidente que estava faminto. E merecia uma boa refeição, depois de deixar que ela o limpasse de toda a lama e sangue do espesso pêlo cinzento e que cuidasse de seus ferimentos. Embora miasse e se encolhesse todo, de desgosto, também permitira que Elspeth o esfregasse com uma loção de ervas para livrá-lo das pulgas.

     Elspeth ainda não sabia com certeza por que se sentia tão compelida a manter o gato. Ele não era bonito. Tinha a cara larga, era grande, cheio de cicatrizes, mas parecia existir um vínculo estranho entre eles. Cormac não ficaria nada contente.

     - Vou chamá-lo de Barrento - disse, e riu quando o gato a encarou com um ligeiro ar de enfado. - Se tem algum outro que prefere, é melhor dizer agora.

     Barrento começou a limpar o focinho.

     - Bem, preciso deixá-lo - disse Elspeth ao lavar a tigela e enchê-la de água. - Aqui está a caixa de areia que a criada trouxe para você. Precisa sarar logo para poder sair e fazer suas necessidades. Logo estaremos viajando de novo, e você não precisará de nenhuma caixa. - Olhou para o gato com ar pensativo. - Espero que goste de viajar.

     O animal a seguiu até a cama saltou e acomodou-se confortavelmente aos pés das cobertas.

     - Aproveite enquanto pode. Quando Cormac e eu entrarmos debaixo dos lençóis, não haverá um lugar sossegado para você dormir. - Afagou Barrento e depois saiu para se juntar a Cormac e aos amigos.

     Era reconfortante saber que os amigos de Cormac não enxergavam Isabel com a mesma cegueira com que ele a via. Embora seu próprio comportamento não fosse o de uma moça decente, os dois homens pareciam bastante dispostos a passar por cima disso, se fosse para tirar o amigo das garras de Isabel. Elspeth tinha de admirar a fidelidade de Cormac, o jeito com que se agarrava à sua crença em Isabel, quando era evidente que ninguém que a conhecia gostava ou confiava naquela mulher. Parecia teimosia. Quanto mais a atacavam, mais ele saía em defesa da infeliz.

     Quando se aproximou da mesa onde Cormac e os amigos haviam se sentado, todos se voltaram para fitá-la. Algo nas expressões dos homens provocou um calafrio em sua espinha. Pareciam sérios demais e um pouco constrangidos. Elspeth apressou-se em sentar-se na cadeira que Cormac puxou. Então, tomou-lhe a mão, quando ele se acomodou a seu lado.

     - O que há de errado? - perguntou.

     - Ora, meu anjo, por que está pensando que há algo errado? - Cormac sabia que teria de contar a ela sobre sir Colin, mas relutava em fazê-lo.

     - É a sensação que tive quando cheguei.

     - Ah... Falando em sensação, como está o gato?

     O fato de Cormac tentar distraí-la e mudar de assunto deixou Elspeth ainda mais nervosa. Mas a criada trazia a comida para a mesa naquele momento, e ela resolveu esperar um pouco.

     - Está ótimo. Vou chamá-lo de Barrento.

     - Não acho que ele precise de um nome para perambular pelas ruas desta vila.

     Elspeth fingiu não escutar a insinuação, quase uma ordem sutil, para que deixasse o gato para trás.

     - Eu o limpei, cuidei de todas as feridas e o alimentei com creme e restos de frango. Passei uma loção de ervas para livrá-lo das pulgas. Está cheiroso... Deixei-o dormindo na cama.

     - Você não vai se livrar dele, vai?

     Elspeth o encarou com um sorriso quase de desculpas.

     - Não. Não posso.

     - Talvez precisemos viajar num ritmo rápido e por caminhos ruins.

     - Acho que ele ficará bem acomodado num alforje. É um animal muito dócil.

     - Aquele bicho sabe o que encontrou! - exclamou Owen. - Tem um bom olho para um coração mole.

     Elspeth riu baixinho.

     - Ele se deixou lavar e cuidar de um jeito muito doce para um gato. Acho que sabia que seria tratado muito bem depois. - Virou-se para Cormac no momento em que a criada afastou-se da mesa. - Agora, diga-me, o que há de errado?

     - Tem certeza de que não quer esperar até comermos. - Cormac perguntou. F

     - Com essa relutância, começo a ficar muito nervosa, E a comida não me fará bem.

     - Sir Colin encontrou o nosso rastro.

     Elspeth assustou-se. E não apenas com a persistência de sir Colin. A viagem, daquele momento em diante, seria dura e apressada, tal como Cormac insinuara. Como ter um caso de amor ou tentar conquistar o coração de Cormac e, ao mesmo tempo, fugir para manter a própria vida? Além disso, a vida de Cormac também estava em jogo.

     - Quem sabe seja hora de seguirmos caminhos separados - disse baixinho.

     - Não seja idiota!

     Cormac e os amigos começaram a discutir o que precisava ser feito para manter Elspeth fora das garras de sir Colin. Tinham abraçado sua causa, Elspeth pensou, e não seriam dissuadidos. Não queria que ninguém arriscasse a vida por ela, mas sabia que nenhum daqueles homens lhe daria ouvidos. Só poderia prometer a si mesma que faria tudo que pudesse para manter Cormac a salvo. Se tivesse de escolher entre a vida dele e ter de permitir que a levassem de volta para sir Colin, escolheria a última opção sem hesitar.

    

     - Não posso crer que algum amigo meu seja tão cego - resmungou Paul ao se sentar perto da fogueira.

     Elspeth suspirou. Acariciou Barrento, com ar distraído. Os dois homens tinham acabado de trocar palavras duras, e Elspeth suspeitava de que a conversa ríspida tinha a ver com ela ou com Isabel. Ou com ambas.

     Fazia três dias que os amigos de Cormac cavalgavam com eles. Era bom ter uma proteção adicional de espadachins experimentados. A maioria do tempo, os dois eram uma companhia agradável. Porém não havia sinal de sir Colin ou de seus homens. E Elspeth começou a pensar que seria melhor se Owen e Paul se fossem. Ela e Cormac não tinham privacidade, nenhum momento sozinhos. Ambos sofriam com a falta de intimidade e não era de admirar que os ânimos se mostrassem tão exaltados.

     O pior era que Owen e Paul mencionavam Isabel a toda hora. Elspeth sabia que eles tinham boas intenções, que estavam tentando ajudar a mudar a cabeça de Cormac, mas aquela interferência parecia desastrosa. Cada vez que falavam mal dela, Cormac insistia em julgar que a criatura era perseguida. Na verdade, fazê-lo lembrar-se de Isabel não ajudava em nada. Afinal, era para o lado dela que ele corria quando deparara com Elspeth e aquela confusão com sir Colin.

   - Paul - Elspeth começou, com um olhar para Owen a fim de certificar-se de que ele ouviria também -, sabe que cada vez que menospreza Isabel, você fortalece a necessidade de Cormac de protegê-la, não sabe? - Sorriu com tristeza ao vê-lo concordar. - É óbvio que uma porção de gente tentou conversar com Cormac, fazê-lo ver quem é essa mulher realmente, e não funcionou, não é verdade? Para ser sincera, creio que é essa teimosia que mantém o jogo vivo. Não existe nada mais certo para fazer uma pessoa teimosa se agarrar firmemente a uma idéia, não importa quanto possa ser estúpida, do que todos lhe dizerem que é tolice ou que é errada. Reconheço os sintomas. Sou conhecida por sofrer de teimosia de vez em quando. E, além disso, claro, é preciso se recordar que ele é homem. - Ignorou o jeito com que Paul e Owen a encararam. - E a maioria dos homens prefere cortar o dedão direito a admitir que esteja errada.

     Owen soltou uma risada.

     - Ora, não é assim.

     - Ah, é. Mesmo quando um homem sabe que está errado, continua firme até imaginar um jeito de mudar de postura sem admitir que errou. - Elspeth sorriu quando os dois caíram na gargalhada, embora tentassem argumentar.

     - Ora, moça, pensei que estivesse tentando fazer Cormac enxergar que está enganado - disse Paul.

     - Eu nunca lhe diria isso na cara. Não, a menos que não houvesse nada a ganhar em ficar calada. Meu plano é fazê-lo não desejar mais Isabel. Acho mais fácil convencê-lo a renunciar a uma velha promessa do que admitir que se enganou.

   - Não está preocupada com o fato de, se Cormac chegar à Corte e Isabel estiver livre, ele querer se casar com ela, como jurou fazer?

     Só a menção de tal possibilidade foi como uma punhalada no coração de Elspeth, que, porém, manteve a calma.

     - Um pouquinho, mas não creio que isso vá acontecer. - Ergueu a mão para impedir os protestos de Owen. - Oh, ele pode muito bem pedi-la em casamento, mas Isabel não vai aceitar. Creio que existe algum prêmio a ser conquistado no final dessa sucessão macabra de maridos mortos, e Cormac não é aquele que lhe dará a recompensa que ela procura.

     - Puxa - murmurou Owen -, nunca pensei nisso. E é algo que ter a ver com os Douglas, pois Isabel continua a se casar com os homens da família.

     - O que acha que ela está fazendo?

     - Penso que só quer dinheiro. Ou é maluca.

     - Se Isabel fosse maluca, penso que Cormac estaria morto agora, pois suas vítimas são todos homens que tiveram intimidade com ela. Isso não importa no momento, contudo. Quero que você tome mais cuidado e não mencione essa mulher, por favor. É um obstáculo bastante difícil assim como está. É melhor que Cormac pense nela o mínimo possível.

     - Bastante justo - concordou Owen, e Paul também aquiesceu. Owen olhou para Elspeth com um ar inquieto quando ela se levantou e estendeu o gato adormecido para ele. - Espero que não pense em colocar essa coisa no meu colo.

     - Barrento não é uma coisa. Precisa ficar aquecido. - Sorriu ao ouvir o gato ronronar. - E ele gosta de você.

     - Ótimo. Agora minha vida tem uma finalidade.

     Elspeth riu do gracejo e beijou sir Owen na face. Depois, saiu à procura de Cormac. Não podia deixar espaço para Isabel nos pensamentos dele, sobretudo agora que não podia ocupar o lugar dela nos braços de Cormac. Tinha pouco tempo para cavar um nicho no coração e na mente dele, e não poderia desperdiçar nem um momento sequer.

     Encontrou-o não muito longe do acampamento, apoiado contra uma árvore torta, a esquadrinhar as charnecas. Era evidente que a ouvira se aproximar, pois estendeu a mão para trás sem nem mesmo se virar. Elspeth segurou-a e então deixou escapar um pequeno grito de surpresa quando ele a puxou depressa para seus braços.

     - Pensei em vir e ver onde estava curtindo o mau humor.

     Cormac fitou-a, esboçando um sorriso ao deparar com a expressão maliciosa de Elspeth.

     - Danada. Não estou de mau humor.

     - Claro que não.

     - Só preferi vir até aqui a ter de socar um amigo no nariz. Ninguém veio com você?

     - Não, Paul sabe, é claro, como proteger o nariz. E quando vim à sua procura, Barrento ainda estava um pouco sonolento e eu o coloquei no colo de Owen. - Sorriu quando Cormac caiu na risada. - Barrento gosta de Owen.

     - Owen deve se sentir um felizardo.

     Elspeth aconchegou-se contra ele. Era nela que Cormac pensava agora, desejando-a com tanta intensidade que não conseguia se controlar.

     - Maldito sir Colin! - ele exclamou rouco, ao deslizar as mãos pelas costas de Elspeth e puxá-la contra o próprio peito.

     - Ele não está aqui agora - ela murmurou, ficando na ponta dos pés para beijá-lo sob o queixo.

     - É verdade - Cormac disse ao comprimir-se contra Elspeth e imaginar por que se torturava assim.

     - E nem seus amigos.

     Cormac encarou-a. Os olhos dela estavam iluminados pelo mesmo desejo que o fazia arder em chamas. A paixão que Elspeth despertava nele era uma loucura a lhe incendiar o sangue. Antes, bastavam alguns minutos para saciar-se com qualquer mulher, salvo Isabel. Com Elspeth, cada vez que fazia amor, sua necessidade parecia aumentar. Três dias sem tocá-la tinham sido pura tortura.

     Olhou ao redor. Estavam completamente sozinhos. Não havia sinal de perigo, embora ele estivesse tão perturbado pelo desejo que não se surpreenderia se isso lhe ofuscasse a visão. Fitou Elspeth no momento em que ela corria a língua pelos lábios. Com um gemido, beijou-a.

     A paixão explodiu entre os dois. As mãos de Cormac estavam em toda parte, e Elspeth tentava febrilmente corresponder a cada carícia. Rezou para que ninguém aparecesse. Estavam esfaimados demais um pelo outro, tresloucados de necessidade e incapazes de ser cautelosos.

     Muito tempo depois, quando o tremor do êxtase deu lugar a um prazer langoroso e a respiração de ambos voltou ao compasso normal, Cormac beijou-a suavemente.

     - Você leva um homem à loucura, meu anjo - disse baixinho.

     - É uma loucura deliciosa - Elspeth murmurou, e enrubesceu ao arrumar as saias.

     Ao vê-la tão vermelha e com um toque de nervosismo nos movimentos, Cormac ajeitou depressa as calças. E segurou as mãos agitadas de Elspeth que fechavam o corpete. Esperou que ela o encarasse. E sorriu quando finalmente o fitou por sob os cílios espessos.

     - Não fizemos nada a lamentar, fizemos? - ele perguntou, e lhe deu um beijo na ponta do nariz.

     - É que às vezes acho minha própria falta de inibição um pouquinho desconcertante - Elspeth retrucou, num tom constrangido. - Quero dizer, fazer... isso em plena luz do dia.

     - Pensei que tivesse gostado.

     - Oh, sim - ela admitiu incapaz de fitá-lo. - É que você estava vendo tudo de mim... Acho que custa um tempo para eu me acostumar.

     - Gosto de olhar para você. É muito bonita. - Beijou-a com sofreguidão renovada. - Molhada. Quente. Deliciosa.

     Elspeth enrubesceu violentamente de novo, também excitada por aquelas palavras. Fitou-o, pensando em repreendê-lo pelo atrevimento de suas palavras. Naquele momento, porém, por sobre o ombro de Cormac, viu algo que a fez enrijecer de pavor. Cinco homens armados se aproximavam depressa pelas charnecas. Piscou, na vã esperança de que a visão desaparecesse, mas isso não aconteceu.

     - Deus do céu! - Elspeth gritou de horror. Apontou para os homens, que chegavam mais perto a cada passo. - Olhe lá! São homens de sir Colin?

     - É provável! - Cormac exclamou, alarmado. Sacou a espada, agarrou a mão de Elspeth com a mão livre e começou a correr de volta para o acampamento. - Mas isso não interessa muito agora.

     Elspeth sabia que ele estava com a razão. Tudo que importava era que os cinco homens se aproximavam rapidamente e as espadas empunhadas mostravam suas intenções mortais. Cormac não teria chance, sem a ajuda de Paul e Owen, ao enfrentar um ataque.

     Ela virou-se para ter certeza de que os homens continuavam se aproximando. Estavam tão perto que podia ver que suavam. Nenhum gritava, gesticulava ou mesmo dava ordens para que parassem. E isso fazia com que parecessem ainda mais perigosos.

     - Owen! Paul! Em guarda, estamos sendo atacados! - Cormac se pôs a berrar para os amigos, e um dos homens em seus calcanhares soltou um horrível palavrão.

     Elspeth quase engasgou de pavor quando uma enorme faca enterrou-se numa árvore logo adiante dos dois, à esquerda. Era a prova terrível de que seus problemas tinham colocado Cormac e também os amigos em perigo mortal. E ela sabia que aqueles homens não lhe dariam chance de se render para salvar a vida de quem a protegia. Que. Deus os ajudasse.

     Ao entrarem correndo no acampamento, Elspeth viu que Owen e Paul estavam prontos para se defrontar com quem os seguiam. Cormac a empurrou para longe, dizendo que ficasse quieta e fora do caminho. Nem era preciso pedir. O retinir agudo das espadas que ecoou assim que o combate iniciou a fez se encolher de pavor. Agachou-se no canto mais distante e enfiou-se cautelosamente sob os arbustos com uma faca na mão. Barrento escondeu-se atrás de suas costas. Cormac e os amigos formaram um pequeno círculo, a defender-se com espadas e punhais contra os homens que os rodeavam.

     Um grito ecoou. Um dos atacantes cambaleou para trás e caiu no chão a poucos passos de distância. Elspeth sentiu que a náusea lhe subia pela garganta. Rezou para que o talho no tórax o matasse depressa. O corte na barriga o faria agonizar durante horas, num sofrimento doloroso. Quando ele não emitiu mais nenhum som e parou de se mover, Elspeth fez uma prece pela alma do infeliz e voltou a atenção para a luta.

     Cormac e os amigos não estavam incólumes, mas ela não viu nos ferimentos nenhum motivo para preocupação. Outro dos atacantes caiu e os três restantes recuaram. Um estalar sutil nos arbustos atrás dela lhe chamou a atenção, mas Elspeth não se voltou. Devia ser o gato, pensou, e arquejou quando Paul foi atingido no braço, num talho raso.

     No momento em que Cormac matou o homem com quem se defrontava, Elspeth sentiu que era agarrada por trás. Mesmo com o susto, teve a prudência suficiente para esconder a faca no bolso entre as dobras da saia. O homem passou os braços em torno dela, ergueu-a do chão e deu uns poucos passos na direção daqueles que se enfrentavam.

     - Melhor parar agora! - berrou.

     No momento em o homem falava, Paul matou mais um oponente. O único atacante que restara cambaleou na direção do homem que a agarrara. Elspeth viu os olhares de aflição nos rostos de Cormac, Owen e Paul, e percebeu quando se transformaram em expressões de fúria. Pelo menos não restara gente suficiente para matar Cormac e seus amigos. Os dois que agora a prendiam haveriam de querer apenas fugir, e a única coisa que precisavam fazer para impedir uma possível perseguição era roubar os cavalos. Sabendo disso, ela poderia encarar a situação com uma calma resignação. Bem... nem tanto. Desferiu um chute na canela do captor e adorou ouvir os palavrões de dor.

     - Pare com isso, sua cadelinha! - o homem esbravejou.

     - Solte-me! - Elspeth dobrou os cotovelos e enterrou-os nas costelas no homem.

     - Estou avisando! - ele grunhiu ao aumentar a pressão em torno dela até fazê-la gemer de dor.

     - Não pode me matar. Sir Colin não iria gostar.

     - Não, isso não, mas posso fazê-la dormir um sono profundo.

     Era verdade. Nada teria a ganhar ao se debater daquele jeito. Pelo menos confirmara que aqueles atacantes eram gente de sir Colin. Era incompreensível para ela que quatro homens morressem para que sir Colin a possuísse. Ele, era evidente, não tinha nenhum respeito pela vida. Seria uma pura tortura que um homem assim a tocasse.

     - Deixe a moça - ordenou Cormac, lutando para controlar a raiva que sentia ao ver Elspeth ser agarrada tão rudemente pelo servo de sir Colin.

     - Depois de tudo que me custou pegá-la? - O homem soltou uma gargalhada cheia de escárnio e raiva. - Não.

   -Sir Colin quer a cadelinha. E você, morto! Mas terá de esperar por isso.

     - Se a entregar para aquele desgraçado, vou caçá-lo e o abaterei como um animal. Você não terá um momento de paz até estar sob a ponta da minha espada. Será meu objetivo.

     - Ah, é? E se eu não levar a moça de volta para sir Colin, vou conhecer essa paz ainda mais depressa na ponta da.espada dele.

     - Com o seu ato imbecil, você estará semeando uma longa e mortal hostilidade entre clãs.

     - Dou esta cadela a sir Colin, pego meu dinheiro e vou embora. Pouco me importa o que diz, rapaz. Você perdeu. Aceite isso.

     Cormac praguejou involuntariamente. O homem era um mercenário; gente assim não devia lealdade a ninguém. Tudo que uma rixa sangrenta entre clãs poderia significar eram mais oportunidades para ganhar dinheiro com a espada. Não importava que a captura de Elspeth custasse a vida de quatro homens. Isso só queria dizer que sua parcela da recompensa seria maior. E nada, a não ser a morte, o faria libertá-la.

    - Agora - continuou o assaltante -, você e seus amigos vão jogar as armas fora. Will vai recolhê-las, e depois levaremos seus cavalos.

     - Não os mate! - Elspeth exclamou, esperando que as palavras soassem mais como uma ordem do que uma súplica.

     - Ora, moça, embora sir Colin deseje ver o seu namoradinho morto e estripado, não se ofereceu para pagar por isso.

     Ao jogar suas armas no chão, enquanto seus amigos faziam o mesmo, Cormac tentou pensar em alguma maneira de impedir que o homem levasse embora Elspeth, os cavalos e as armas. Demoraria tempo antes que pusesse caçá-los. Tempo suficiente para sir Colin maltratar Elspeth e prendê-la em seu castelo, onde seria impossível resgatá-la uma segunda vez. Ao ver o mesmo pensamento nos olhos apavorados de Elspeth, Cormac sentiu um impulso de implorar a ela que o perdoasse.

     Will avançou para pegar as armas, mas algo caiu da árvore diretamente sobre o chefe dos mercenários e aterrissou em sua cabeça. Custou um segundo antes que Cormac percebesse tratar-se de Barrento. O bandido gritou quando o gato enterrou as unhas em seus olhos. Elspeth foi empurrada e caiu, tendo a sensatez de rastejar para longe. Cormac atirou-se ao chão para recuperar a espada.

     Ainda aturdida e sem saber o que acontecera, Elspeth virou-se para ver o que fizera o bandido gritar. Não conseguia acreditar que a massa sibilante de pêlos cinzentos, que metia os dentes e arranhava a cabeça do homem, era seu gato. O sangue escorria pelo rosto do bandido.

     Mas Elspeth logo gritou de pavor quando o assaltante finalmente conseguiu arrancar Barrento de sua cabeça e, ignorando o modo com que as garras agudas e QS dentes afiados rasgavam suas mãos e braços, arremessou-o longe. Se Cormac não estivesse no caminho, lutando com o tal de Will, Elspeth sabia que teria corrido em socorro do gato, que agora jazia largado no lado oposto do acampamento.

     Rezou para que Cormac derrotasse o bandido e que Barrento estivesse apenas desmaiado.

     Enquanto Owen e Paul recolhiam suas armas, Cormac abateu Will com um golpe rápido da espada. Então, os três se voltaram para o homem que mantivera Elspeth prisioneira. Cormac sabia que o sangue no rosto do bandido resultava dos arranhões e mordidas do gato. Acontecera algo a um ou a ambos os olhos. Contudo, quando o mercenário sacou a espada, Cormac praguejou. Não queria lutar com um homem que provavelmente não enxergava direito.

     - Desista, criatura! - exclamou, quando o mercenário passou a manga da camisa pelo rosto, na vã tentativa de limpar o sangue.

     - Está morto? - o homem perguntou. - Aquele animal infernal está morto?

     - O gato? Ele não vai saltar de novo em você, se é isso que o preocupa. Acho que deveria pensar mais nas três espadas à sua frente.

     O mercenário os encarou por um instante tenso, e Cormac ficou a imaginar se ele esperava que sua visão se aclarasse. Então, de repente, arremessou a espada e a adaga sobre eles. Cormac e os amigos esquivaram-se das armas, que se enterraram no chão bem onde Cormac estivera momentos antes. O gesto desconcertou os três, e o homem não perdeu tempo: saiu correndo e desapareceu nas sombras das árvores.

     - Devemos ir atrás dele? - perguntou Owen.

     - Não. - Cormac limpou o sangue da espada no gibão de Will e embainhou-a. Sentia-se enojado pelo rumo que a luxúria de sir Colin por Elspeth tomara. - Acabou.

     - Ele pode ir até sir Colin e colocá-lo na nossa trilha.

     - É possível, mas o sujeito está sangrando, desarmado e, acredito, a pé. Portanto não chegará tão depressa. - Olhou para os amigos e esboçou um sorriso enviesado. - E nenhum de nós está em condição de caçar um homem.

     - Sim, é verdade. - Owen examinou o corte em seu lado direito.

     - Meu Deus, Owen, isso quase o estripou - resmungou Paul, e o amigo meneou a cabeça. - Melhor pedir a Elspeth para dar uma olhada nisso.

     Cormac virou-se para onde vira Elspeth, mas ela não se encontrava mais lá. Então, viu-a correr pelo acampamento até se aproximar do corpo de Barrento. Os dois amigos seguiram-lhe o olhar e suspiraram.

     Eram soldados enrijecidos em campos de batalha. Tinham acabado de matar cinco homens. Cada um deles sangrava de vários ferimentos de pouca gravidade. Contudo, todos hesitavam agora, receosos de encarar uma mulher miúda, de grandes olhos verdes, que estava prestes a descobrir que seu gato feioso morrera. Cormac respirou fundo para reunir coragem e seguiu na direção de Elspeth, ciente de que os amigos o acompanhavam.

     Elspeth ajoelhou-se ao lado de Barrento. Era impossível dizer se estava respirando, mas isso não significava que estivesse morto. Não via nenhum sangue, nada rasgado ou quebrado. Depois de fechar os punhos tensos por um momento, ela estendeu a mão, hesitante. Sentiu que os três homens se reuniam às suas costas, percebeu o ar tenso e precavido, e ficou emocionada com a preocupação deles, mesmo que fosse mais por ela do que pelo gato. Respirou fundo.

     Temendo que o corpo sob sua mão estivesse frio ao toque, acariciou o animal.

    

   Barrento ronronou.

     Elspeth sentiu as lágrimas arderem em seus olhos enquanto examinava detidamente o bicho em busca de qualquer ferimento. Os três pesados suspiros de alívio às suas costas quase a fizeram sorrir. E agradeceu os três rudes afagos na cabeça antes que os homens se afastassem. Quando Barrento ergueu-se nos pés e esticou-se todo, desequilibrando-se um pouquinho, ela sentou-se no chão e pegou-o no colo.

     Ao afagar o gato, quando procurava ainda algum ferimento mais sério, ela observou que Cormac e os amigos arrastavam os cadáveres para fora do acampamento. Cinco mortos. Elspeth não conseguia compreender uma coisa assim. Por que sir Colin mandaria homens para matar ou serem mortos apenas para levá-la para a cama? Não encontraria prazer na posse, pois ela não o queria e deixara isso bem claro. E o homem deveria saber que ela passaria cada minuto de sua vida lutando para se livrar dele.

     Quando Cormac e os amigos se sentaram em torno da fogueira, Elspeth se deu conta de que eles tinham ferimentos que precisavam de cuidados. Acomodou Barrento sobre uma manta que Owen estendeu depressa. Depois, pegou a sacola de ervas. E pelo que pareceram horas, limpou as feridas, pequenas, que precisavam apenas de um ungüento, e maiores, que exigiam uns poucos pontos. Ao terminar, cansada e deprimida, voltou a pegar Barrento no colo e sentou-se perto de Cormac.

     - O gato está machucado? - Cormac perguntou ao ver a tristeza nos olhos dela.

     - Oh, não. - Elspeth afagou Barrento, que ronronou suavemente. - Está apenas cansado.

     Cormac riu, assim como Paul e Owen.

     - Nunca pensei que um gato tentasse proteger alguém - disse Owen.

     - Bem, não é costume deles e não estão preparados para isso, não acha? Não são como cães-de-guarda. Mas Barrento é diferente. Eu soube assim que o vi.

     Por um tempo, enquanto comiam uma refeição simples, conversaram sobre vários assuntos, sobretudo relacionados à infância. Cormac pouco falou. E Elspeth ficou a imaginar se a infância dele fora tão sem graça ou se ele era um daqueles homens que achavam difícil falar com liberdade de coisas pessoais. Esperava que fosse isso, pois detestava pensar que tivesse passado uma infância triste.

     - Acho que precisamos mandar avisar sua família agora, Elspeth! - Cormac exclamou abruptamente.

     - Seria maravilhoso que soubessem como estou e... - ela respirou fundo e tomou coragem - descobrir como está Payton. Sir Payton Murray - esclareceu para Owen e Paul, quando eles franziram a testa. - Meu primo.

     - Sir Payton, é claro - resmungou Owen. - O belo e corajoso cavaleiro que faz até mesmo mulheres sensatas e puras desmaiar de saudade.

     - O que quer dizer?

     Owen enrubesceu ao perceber que fizera um comentário sarcástico sobre o parente de Elspeth, um que poderia ter morrido ao tentar protegê-la.

     - Bem, sir Payton Murray é muito admirado. Não o conheço pessoalmente, só o vi apenas de passagem, mas muitos falam bem dele. Até os menestréis fazem cantigas a seu respeito.

     - Sobre Payton? - Elspeth riu. - Bem, ele é bonito, mas como não seria? Seus pais são bonitos. E Payton tem um coração muito bom. Mas é meu primo. Cresceu comigo. Eu o vi todo desengonçado e cheio de espinhas. Presenciei quando ele, meus irmãos e meus primos queriam ver quem conseguiria arrotar mais alto e por mais tempo. Oh, e com disputas com outros ruídos piores que tenho vergonha de dizer. E o vi na idade em que ele tinha gloriosos acessos de raiva, tanto que a mãe precisava esfriar-lhe a cabeça com um balde d'água. É difícil pensar que o rapaz que se gabava de escrever o nome na neve melhor que meu irmão Connor pudesse ser cantado por algum menestrel. - Enrubesceu quando todos os três homens sorriram, pois sabiam que a molecada fazia isso ao urinar na neve. - Sim, principalmente quando a disputa dos dois tolos era beber cerveja até ficarem embriagados. - Elspeth estremeceu ao se recordar de repente, com clareza, da última visão de Payton.

     Cormac tomou-lhe a mão na sua ao adivinhar o que Elspeth pensava.

     - Como você me disse uma vez, se alguém pode esquivar-se da má sorte, esse alguém é ele.

     - Sim, tem razão.

     - E creio mesmo que é melhor mandarmos notícia aos seus parentes. Owen e Paul podem ir e contar a eles dos seus problemas. Também podem dizer para onde você vai, de modo que alguém possa procurá-la.

     Aquilo a magoou, mas Elspeth disse a si mesma, com firmeza, que não era o momento para se preocupar com o fato de que Cormac ainda não via futuro para ambos.

     - Considerando o que acabou de acontecer, você acha prudente mandar embora dois espadachins experimentados?

     - Realmente, Cormac - disse Paul -, eu estava pensando a mesma coisa.

     - Decidi que Elspeth e eu devemos voltar a seguir pela estrada principal até a Corte. Nesta época do ano, muita gente viaja, ou para uma visita à Corte ou para vender mercadorias à multidão que se reúne lá. Um ataque como aquele que sofremos durante o dia seria impossível. Na verdade, creio que me enganei em pensar que caminhos e trilhas sinuosas eram uma rota melhor. Mesmo com vocês dois ao nosso lado - Cormac sorriu para os amigos, agradecendo em silêncio pela ajuda -, estamos muito sozinhos.

     - Nenhum dos parentes de Elspeth poderá alcançá-los e ajudar até que terminem a viagem.

     - Não, mas podem nos encontrar na Corte. Se sir Colin não tiver desistido ou morrido até então, Elspeth precisará de toda a ajuda que possa ter. Todos sabemos com que facilidade um lorde e seus homens podem se esgueirar pela multidão na Corte real. E se não chegarmos lá, os Murray estarão prontos e armados para irem em auxílio de Elspeth.

     - Bem, isso não parece mais perigoso que o plano que seguimos até agora. Estou surpreso que você ainda não tenha mandado notícias aos parentes dela.

     - Não encontrei ninguém em quem confiar. A mensagem poderia facilmente ser interceptada por sir Colin, que viria direto sobre nós.

     Elspeth levantou-se, cansada e ainda aborrecida com a menção alegre de Cormac à separação de ambos em breve.

     - Tenho certeza que você não precisa de mim para resolver isso. Vou dormir.

     - Mas, meu anjo, concorda com o meu plano? - perguntou Cormac.

     - Nunca fui caçada antes. Você, já. Deixo por sua conta.

     Elspeth afastou-se um pouco para um momento de privacidade e, depois, voltou e estendeu a cama rústica a uma curta distância dos homens. Enquanto se enrolava em uma manta e se acomodava de costas para eles, podia ouvir os murmúrios. Falavam dos planos, e isso a acalmou. Pouco depois, sentiu que Barrento se recostava contra suas costas, e o ronronar do gato, somado ao calor do contato a fizeram relaxar.

     A imensa fraqueza que sentia a ajudaria a dormir. Seu coração estava por demais pesado, era como uma pedra fria no peito. Homens tinham morrido porque um ser lascivo a desejava e a perseguia e não conseguia aceitar um não. E ela se sentia culpada, imaginando com tristeza se poderia ter feito alguma coisa, qualquer coisa, para impedir que tudo aquilo acontecesse.

     E depois, havia Cormac, o amor de sua vida, sua alma, seu coração, seu par. O homem que conseguia perceber quando ela se lembrara do destino que recaíra sobre Payton e oferecer um toque de conforto e palavras de encorajamento. O homem que fazia amor como se estivesse esfaimado por ela e não pudesse sobreviver outro instante sem senti-la nos braços. O homem que falara com tamanha calma em separar-se dela assim que chegassem à Corte do rei.

     Uns poucos dias mais eram tudo que lhe restava com Cormac. Seria o suficiente? Sabia, no fundo do coração, que o tocara de alguma forma, com uma confiança que se recusava a ser abalada. Mas era evidente que ainda não o conquistara a ponto de libertá-lo do domínio de Isabel. Ah, como Elspeth detestava aquela mulher! Seria mais prudente preocupar-se um pouquinho menos com o que Cormac planejava fazer quando chegassem à Corte e um pouco mais com o que ela própria poderia fazer. Sentia o gosto amargo do ciúme, mas sabia que era principalmente fúria o que nutria por lady Isabel Douglas.

     A mulher seguia displicente, destruindo uma vida atrás da outra, e Elspeth sabia que, se tivesse a mínima chance, Isabel alegremente destruiria a dela também.

     Forçando-se a respirar lenta e profundamente, Elspeth procurou acalmar-se, clarear a mente e livrar-se de toda preocupação e perguntas que não tinham respostas fáceis. Se deixasse os pensamentos seguirem pela trilha em que iam, ficaria triste, nervosa e zangada. E essas não eram emoções apropriadas para seduzir um homem. E só tinha poucos dias para promover tal milagre. Precisaria de uma mente lúcida e muito repouso para conduzir a batalha final pelo homem a quem amava.

    

     Assim que terminou a minguada refeição matinal, Elspeth manteve os olhos atentos em Paul e Owen. Andavam com certa dificuldade, mas, depois de examinar os ferimentos à luz do dia, sentiu que poderiam cavalgar e ir ao encontro da sua família sem um risco sério à saúde. Quando Cormac afastou-se dos amigos para um momento de privacidade, ela apressou-se a falar com os homens. Sorriu com o jeito de Owen, que começou a afagar Barrento.

     - Elspeth, se por acaso este rapazinho tiver uma cria - Owen murmurou e enrubesceu ligeiramente -, e um que seja tão feio quanto ele...

     - Farei com que você o receba assim que esteja desmamado - ela prometeu, e depois lhe entregou um pequeno anel de prata, lindamente entalhado. - Mostre isto aos meus parentes para que saibam com certeza que você os procurou com o meu conhecimento e bênçãos.

     - Acha que pode ser necessário?

     - Não sabemos o que ouviram ou o que lhe contaram. Podem estar muito cautelosos no momento, sobretudo se Payton... - Calou-se, ainda incapaz de verbalizar a possibilidade da morte do primo.

     Owen bateu em seu ombro num gesto afetuoso, ainda que desajeitado, tentando acalmá-la e procurando lhe transmitir conforto.

     - Devemos dizer alguma coisa sobre Cormac e você? Podem fazer algumas perguntas constrangedoras.

     - Podem, e embora eu não devesse pedir que mentissem, gostaria que eles soubessem de Cormac por mim. Se eu ganhar o jogo, então todos poderemos celebrar o fato de que finalmente escolhi um companheiro, algo que penso que eles começam a recear que eu nunca faça. Se eu perder... - Deu de ombros -, bem, o que dizer a eles será nada menos que a verdade, de qualquer forma. É melhor vocês ficarem longe dessa confusão.

     Paul adiantou-se e beijou-a na face.

     - Você vai ganhar Elspeth. O que oferece ao tapado do Cormac é bem mais do que Isabel tem ou terá algum dia para dar. Quero crer que nosso amigo enxergará isso. Seja paciente, se ele custar um pouco a ver por si mesmo.

     - Rezo para que tenha razão, mas, como você mesmo diz, seu amigo pode ser um bocado tapado.

     Cormac tentou não sentir ciúme quando voltou e encontrou os amigos conversando alegremente com Elspeth. Riam de algo que parecia muito engraçado. Não tinha pretensões quanto a Elspeth, não poderia. Estava ligado por um juramento e uma história comprida e atribulada com aquela mulher. Com uma sensação de culpa, admitiu a si mesmo que realmente não tinha o direito de compartilhar qualquer coisa com Elspeth, mas continuaria a fazê-lo enquanto pudesse. Depois que o tempo deles juntos tivesse terminado, contudo, ela estaria livre para pertencer a outro. Elspeth não era mulher que devesse ficar sozinha. Owen e Paul eram bons homens e era óbvio que gostavam de Elspeth. Talvez um deles pudesse lhe dar o que ela precisava e merecia.

     A idéia mal se formara em sua mente, e Cormac sentiu uma pontada de raiva e negação no mais íntimo de seu ser. Não poderia suportar o pensamento de Elspeth partilhar alguma coisa com outro homem. Se ela se casasse com Owen ou Paul, ele teria de vê-la com qualquer um dos amigos que ela escolhesse. E isso seria intolerável, percebeu enraivecido com o próprio sentimento egoísta de posse. Não poderia ficar com Elspeth, mas era dolorosamente evidente que não queria que ninguém mais a tivesse também. Por sorte, assim que ela fosse embora, talvez o tempo e a distância o libertassem daquele sentimento possessivo.

     - Vocês dois, tomem cuidado - disse ao apertar a mão dos amigos antes que montassem. Fez um esforço para não puxar Elspeth de lado, quando ela deu um beijo de despedida na face de cada um deles.

     - Tomaremos - retrucou Owen -, embora sejam vocês dois que correm mais perigo. Tem certeza desse seu plano, Cormac?

     - Não, mas é a nossa única opção. Sir Colin vai levar algum tempo para se recuperar dessa derrota. A menos que tenha uma guarnição inteira na retaguarda, a perda de cinco homens vai lhe custar caro. O fato de aqueles sujeitos serem mercenários me faz pensar que o homem deixou a maioria do clã guardando suas terras, caso os Murray batam em seus portões. E existe ainda a chance de que demore antes que saiba o que aconteceu aqui. Tempo suficiente para eu e Elspeth chegarmos à Corte. É lá que mora o perigo, se sir Colin persistir, pois haverá uma multidão de gente faminta por uma moeda ou duas e disposta a fazer qualquer coisa para obtê-la. Ele pode inclusive ter alguma influência sobre o rei e fazê-lo acreditar nessa história de uma noiva raptada. Portanto tragam-me alguns Murray.

     - Confie em nós - disse Paul, e ele e Owen esporearam os cavalos.

     Logo desapareciam na bruma da manhã.

     - Eles estarão a salvo, não é? - perguntou Elspeth.

     Cormac virou-se para fitá-la.

     - São experientes na luta e bastante hábeis em fugir e se esconder quando a sorte se torna adversa. Além disso, sir Colin não está interessado neles.

     - Não, só em mim. - Elspeth estremeceu e aconchegou-se contra Cormac, quando ele a puxou junto ao peito. - Não posso compreender isso, no importa quanto eu tente. É loucura, eu creio.

     - Sir Colin a quer. Talvez acredite que a ame ou ache que você é do que ele precisa para satisfazer algum sonho.

     - Nunca demonstrou uma paixão profunda quando me cortejava. Não, não é nenhuma paixão. É outro sentimento, que nasceu quando eu disse "não".

     - Meu anjo, existem homens que julgam um "não" um desafio muito grande, alguns que o vêem como um grave insulto e até mesmo alguns que o acham um estímulo para uma paixão profunda. E quem sabe ele seja apenas um pouquinho louco.

     - Muito louco.

     Elspeth sentiu que Cormac se comprimia contra seu corpo, a prova rija do desejo a forçar seu ventre, numa mistura estranha de necessidade e desejo quase inconsciente. Era agradável saber que ele não conseguia se impedir de desejá-la, que a vontade de tê-la já fazia parte de seu ser e que não era preciso nenhuma intenção consciente para despertá-la. E seria muito mais agradável se essa necessidade e esse desejo morassem num lugar um pouco mais acima, ela pensou com ironia.

     - Estamos sós - Cormac murmurou.

     Elspeth o encarou e viu que a mensagem do corpo chegara aos olhos dele.

     - Barrento está aqui.

     - Barrento é um gato esperto. Vai entender que é hora de ir caçar um pouco.

     Cormac começou a caminhar, puxando Elspeth junto. Ela riu quando tropeçou e ele a ergueu no colo como se fosse uma pena.

     - Não deveríamos deixar logo este lugar?

    - É provável - Cormac murmurou ao parar ao lado do leito rústico. - Mas ainda é cedo e o próximo local em que iremos parar para passar a noite fica a um dia de viagem daqui.

     - Eu estava pensando na ameaça de sir Colin - Elspeth disse quando ele a pôs de pé e começou a despi-la.

     - Mesmo ele não seria tão cruel de nos negar uma hora ou duas de prazer.

     - Uma hora ou duas?

     Cormac jogou a última das peças de roupa de lado e percorreu Elspeth com os olhos.

     - Bem, meu anjo, talvez não tanto tempo.

     Elspeth sentiu que ficava vermelha de vergonha, mas não tentou se esconder do olhar de Cormac. Mas ele percebeu que ela cerrava os punhos de lado e sorriu de leve. Vê-la o provocava tão violentamente como tocá-la ou prová-la. Elspeth era sedosa, de uma perfeição desde o pescoço esguio até os pés delicados. Olhar para ela naquela nudez gloriosa, e saber que logo teria toda aquela perfeição só para si somente antecipava a ansiedade que o dominava.

     Cormac respirou fundo para se controlar enquanto se livrara das roupas. Seu desejo era sempre forte, mas pensar que logo ela iria embora, que encontraria outro, tornava seu ímpeto mais agudo. Sentia uma necessidade de saciar-se dela, de recolher tantas doces lembranças que pudesse. Pela primeira vez desde que prometera se dar a Isabel, aquele juramento lhe pesava e lamentava sua incapacidade em quebrá-lo.

     Deitou Elspeth gentilmente sobre as mantas e se debruçou em cima dela. Queria saborear cada centímetro daquele corpo delicado. Queria beijá-la por toda parte.

     Elspeth gemeu de prazer quando a boca ávida de Cormac fechou-se sobre os bicos de seus seios. E enterrou os dedos nos cabelos fartos, murmurando-lhe o nome.

     - Ah, meu anjo - ele gemeu -, você não está me ajudando. Quero ir bem devagar.

     - Sei disso. Só não tenho certeza de que posso suportar.

     O prazer e a volúpia tomaram conta dos dois. E o desejo cego os levou numa escalada crescente de sensações até que explodiram juntos, num êxtase convulsivo.

     Muito tempo depois, quando teve forças para erguer o braço e correr a mão pelo corpo sedoso de Elspeth, Cormac se deu conta de algo importante: seu pesar por ter de deixá-la começava a sobrepujar sua culpa. Não queria desistir de Elspeth, mas precisava. Ele assumira um compromisso com outra, e tudo que Elspeth poderia ser era sua amante. E isso a destruiria, destruiria tudo que haviam compartilhado. Não poderia tratá-la com tanto desrespeito. Nem agir da mesma forma com Isabel.

     - Acho que é melhor concentrarmos nossas mentes no problema de fugir de sir Colin - Cormac disse, e beijou Elspeth com doçura, antes de romper a intimidade do abraço.

     Ela sentou-se e recolheu suas roupas.

     - A menção desse homem é como um balde de água fria. Tira todo o calor do amor.

   - Mas é melhor do que arriscar que o estúpido ponha as mãos em você.

     Elspeth estremeceu diante da simples idéia de tal possibilidade e apressou-se em se vestir. Em questão de pouco tempo, tinham levantado acampamento e feito o melhor que podiam para limpar todos os vestígios de presença humana ali. Barrento voltou lambendo o focinho, indicando que encontrara o que comer.

     Cormac olhou para o gato, que Elspeth acomodara calmamente no alforje da sela.

     - Parece que ele nasceu para isso - comentou e meneou a cabeça.

     - Talvez tenha viajado com alguém e se perdido de alguma forma - disse Elspeth ao se erguer para a sela e arrumar as saias. -Notei que Barrento não precisa de nenhum treinamento, e acho que é ensinado.

     - Ou talvez tenha juízo suficiente para fazer o que precisa para ficar ao seu lado.

     Elspeth riu baixinho e afagou a cabeça do gato.

     - Isso também é uma possibilidade. E, agora, é um herói. Um bravo mocinho que arriscou o próprio pescoço para me salvar.

     Cormac estendeu a mão pelo espaço que separava os cavalos e cocou a cabeça de Barrento.

     - É um bicho esperto que sabe como se fazer indispensável.

     Assim que ele colocou o cavalo num trote suave, Elspeth o seguiu. Sentia uma ligeira urgência em ir embora. O ataque da noite anterior quase custara a vida de Cormac e dos amigos, e sua liberdade. Elspeth não queria ir para a Corte do rei porque Isabel estava lá.

     Contudo, isso daria, a ela e a Cormac, um pouco de segurança. Era uma escolha entre o risco de perder Cormac para Isabel ou vê-lo morrer pelas mãos de sir Colin. E a última opção, Elspeth pensou com tristeza, não era admissível. Seria bem melhor perdê-lo para Isabel do que para sempre nos braços frios da morte.

    

     - Viva?

     Owen e Paul encararam os três senhores e tentaram não tremer. Estavam cansados, famintos e sujos, mas não tinham intenção de relembrar a sir Balfour Murray as regras da hospitalidade até terem respondido satisfatoriamente às suas perguntas. Embora ele dissesse aquela palavra em tom baixo, pareceu que cortava a atmosfera tensa do grande salão de Donncoill como um berro de fúria. Seus irmãos, sir Nigel e sir Eric, não pareciam menos ameaçadores. E nem Owen ou Paul tinham coragem de olhar para a mãe de Elspeth, lady Maldie, ou para as tias, Gisele e Bethia. Tinham a sensação de que aquelas mulheres se revelariam mais perigosas que os próprios maridos.

     - Sim, Elspeth está viva - confirmou Owen, e apressou-se a mostrar o pequeno anel que ela lhe dera. - Mandou isto por nosso intermédio. Disse que comprovaria que ela sabe que viríamos procurá-los e que aprova. - Quase recuou quando sir Balfour avançou para arrancar o anel de sua mão.

     - Balfour! - exclamou lady Maldie, que parecia tanto com Elspeth que Owen se espantou.

     Sir Balfour aproximou-se da esposa e envolveu-a nos braços, dizendo com voz rouca:

     - Nossa menina está viva, Maldie.

     - Isso quer dizer que não poderemos matar aquele desgraçado de sir Colin? - perguntou Nigel; seus olhos cor de âmbar faiscavam de raiva.

     - Oh, não! - exclamou Balfour. - Só quer dizer que temos a chance de trazer Elspeth em segurança para casa antes de matarmos o homem.

     - Bem, enquanto você decide como, quando e de que maneira liquidaremos aquele amaldiçoado - disse lady Maldie ao se soltar dos braços do marido -, nós, mulheres, cuidaremos desses pobres rapazes.

     - Tenho uma porção de perguntas para fazer a eles - protestou Balfour, enquanto sua esposa, Gisele e Bethia conduziam Owen e Paul para fora do grande salão.

     - Pode perguntar depois que tiverem tomado banho, descansado um pouco e comido alguma coisa.

    

     Era hora do jantar quando Paul e Owen se sentiram em condições de enfrentar o rigoroso interrogatório que sabiam que os Murray fariam a eles. Owen sorriu quando foram conduzidos diretamente para a cabeceira da mesa, onde os esperavam os três lordes, as esposas, sir Payton e o irmão de Elspeth, Connor.

     - Minha esposa me relatou o pouco que você contou sobre minha filha depois do banho e de comer - Balfour disse ao fixar um olhar sério em Owen. - Em resumo, Elspeth está viva, sir Colin ainda está em seu encalço, sir Cormac a salvou, e os dois estão a caminho da Corte do rei.

     - Sim, senhor.

     Ao ver que os donos da casa se serviam Owen também fez seu prato, satisfeito com a quantidade e a qualidade da comida, embora não soubesse se iria relaxar para apreciá-la.

     - Ela e Cormac estão a salvo até que sir Colin fareje a direção que tomaram. Houve um ataque violento e custou a vida de cinco mercenários de sir Colin. Foi quando Cormac resolveu seguir pelas estradas mais movimentadas e nos mandou informá-los para onde ele e Elspeth iriam. Cormac acha que, se sir Colin persistir, e se o próprio Cormac não tiver a chance de matá-lo, Elspeth poderá correr perigo mesmo na Corte.

     - E você sabe como sir Colin justifica o fato de raptar minha menina e depois sair a caçá-la por aí?

     - Está dizendo a todos que quiserem ouvir que Elspeth é sua noiva e que Cormac a raptou.

     Balfour soltou um palavrão.

     - E nenhum Murray está por perto para contestar essa vil mentira.

     - O jovem Cormac tem uma habilidade incrível para ser acusado de crimes que não cometeu! - exclamou lady Maldie.

     - Realmente, senhora - confirmou Owen. - E ele também sabe que, se sir Colin chegar ao rei, pode murmurar essa mentira nos ouvidos do nosso soberano e ser levado a sério. Creio que essa pode ser outra razão pela qual Cormac concluiu que será mais importante agora tentar falar com os parentes de Elspeth. - Ao perceber que os Murray pareciam não imaginar o que acontecia entre Cormac e Elspeth, Owen sentiu-se mais à vontade.

     - Irei buscar Elspeth! - exclamou Payton.

     - Não - gritou sua mãe, Gisele. - Você mal sarou do seu ferimento.

     Era evidente que o rapaz sentia necessidade de redimir-se, pois Elspeth fora raptada quando estava aos seus cuidados. Depois de muita discussão durante o jantar, ficou decidido que sir Payton e um pequeno contingente partiriam no dia seguinte, ao alvorecer, para a Corte. Owen não ficou surpreso quando Payton abordou-os do lado de fora do quarto que lhes fora destinado.

     - Há coisas que vocês não contaram aos mais velhos - disse Payton, cruzando os braços sobre o peito, com os olhos fixos nos dois homens.

     - Creio que demos aos seus parentes todas as informações necessárias - retrucou Owen.

     - Sim, tudo que era necessário, mas não a plena verdade.

     - Acha que menti?

     - Ora, não falei de mentiras. Falo de coisas omitidas, verdades não contadas. - Payton esboçou um sorriso. - Elspeth e eu sempre fomos próximos. Sei bem como minha prima se sente a respeito de Cormac... E o que ela pode resolver fazer com uma oportunidade perfeita para realizar um sonho. Infelizmente, também sei que o seu belo cavaleiro não é um homem livre, que aquela vagabunda chamada lady Isabel Douglas o mantém preso na mãozinha assassina. Gostaria de um indício daquilo com que posso deparar quando reencontrar Elspeth.

     Owen e Paul se entreolharam por um momento, antes que Paul dissesse:

     - Esperamos que Cormac salve Elspeth de sir Colin, e que o desgraçado desse sujeito esteja morto. E também esperamos que você descubra que Elspeth salvou o nosso amigo.

    

     - Barrento aonde você vai? - gritou Elspeth, quando o gato saltou de repente do alforje.

     Cormac puxou as rédeas e emparelhou a montaria com a de Elspeth, assim que ela ia desmontar.

     - Talvez precise fazer as necessidades.

     - Oh... - Elspeth hesitou, a olhar na direção em que o gato sumira. Então, meneou a cabeça. - Não, tem alguma coisa errada. Meu instinto me diz para segui-lo.

     Com um suspiro de resignação, Cormac desmontou ao ver Elspeth ir atrás do gato.

     - Animal estúpido! - ele resmungou, e foi amarrar os cavalos. - É provável que tenha visto algo que pareceu comida, e agora me vejo obrigado a segui-los nessa missão ridícula. Elspeth não pode sair por aí sozinha.

     Apressou-se a alcançá-la. Cormac julgara que ela houvesse finalmente compreendido esse perigo. Quando se aproximou e a viu ajoelhada ao lado de alguma coisa no chão, rezou para que não estivesse prestes a recolher outro pobre animal pelo caminho.

     Elspeth avistou Barrento sentado ao lado do que parecia um monte de trapos. Franziu a testa diante do jeito com que o gato cravava o olhar naquele embrulho; então, percebeu que dos trapos saía um bracinho roliço que se agitava, e se ouvia um balbucio alegre. Custou um instante antes que ela pudesse se livrar do espanto, mas, por fim, aproximou-se para espiar. E viu o bebê. Relanceou os olhos ao redor. Não havia nada além dos trapos que envolviam a criança. A única outra pessoa por perto era o homem de cara feia que marchava direto em sua direção.

   - Oh, pobre coisinha - Elspeth murmurou ao tirar a criança do embrulho e examiná-la. Não havia nenhum sinal de ferimento. - Foi abandonada, não foi? - Depois de enrolar de novo a criança, pegou-a no colo.

     - Oh, essa não, um bebê! - exclamou Cormac aproximando-se.

     - Alguém o deixou aqui - disse Elspeth, indignada a ponto de tremer sua voz. - Largou o pobre menininho como se não passasse de um monte de palha sem serventia.

     - Por que está me olhando assim? - ele indagou.

     - Estou esperando você me dizer que sou uma tola, nada mais que uma idiota. Que ninguém largaria este pobre bebê aqui.

     Cormac suspirou e enfiou os dedos nos cabelos. Elspeth parecia chocada e magoada. O choque ele poderia compreender facilmente, mas não a mágoa. Era como se aquele ato terrível a atingisse no coração. Como se estivesse sentindo toda a dor da rejeição que o bebê, naquela idade, não poderia sentir por si mesmo.

     - Quem sabe a mãe ou o pai se afastaram apenas por um momento. - Era uma tentativa patética para disfarçar a triste verdade, mas Cormac sentiu-se estranhamente orgulhoso de si próprio quando Elspeth abriu um largo sorriso de gratidão e lhe beijou a face.

     - Você é muito meigo, Cormac - ela murmurou, e então ficou séria outra vez. - Mas agora que o meu espanto passou, sei a verdade. Alguém abandonou o bebê, deixou-o aqui para morrer. Que crueldade!

     - Estranho um garoto ser abandonado. Isso acontece com freqüência com meninas, se a família tem muitas bocas para alimentar - Cormac comentou. E soltou um suspiro de pesar. - Elspeth, não podemos levar o bebê conosco.

     - Ora, não podemos é deixar o menininho aqui!

     - Oh, eu não estou dizendo que faríamos isso. O problema é que estamos fugindo de um assassino. Pode não ser seguro para o bebê. Ele não é um gato que você pode enfiar num alforje... e que consegue se virar sozinho.

     - É óbvio que o bebê vem daquela vila. - Elspeth apontou para um pequeno ajuntamento de casas logo além do pé do outeiro em que ela e Cormac estavam.

     - Acho que é mesmo. Um bastardo, talvez. O segredo de alguma moça.

     - Este bebê não é um recém-nascido, Cormac. Realmente, uma moça pode esconder o fato de que está carregando o bastardo de algum homem, mas é quase impossível esconder a criança depois que nasce. Bebês são criaturas barulhentas. - Olhou de novo para a vila. - Alguém lá saberá de onde vem esta criança. Se isso não ajudar em nada, certamente alguém ficará com um moleque saudável.

     Cormac ficou aliviado de ouvi-la falar em encontrar um lar para a criança.

     - Tem certeza de que é saudável?

     - Claro, olhei debaixo dos trapos. O menino é perfeito. Corpulento, de uma cor saudável e de bom gênio, eu creio. Oh, e tem uma linda marca de nascença na barriguinha roliça. Parece uma estrela.

     Ao fitar os brilhantes olhos negros do bebê, Cormac começou a se sentir inquieto. Um menino saudável e bem alimentado não poderia ter sido abandonado. Por mais injusto que fosse, filhos homens eram considerados de maior valor que meninas. Elspeth estava certa em pensar que alguém ficaria com o garoto e, no entanto, por que ninguém fizera isso ainda?

     Procurando ocultar a dúvida repentina, Cormac ajudou Elspeth a voltar até os cavalos. Segurou o bebê enquanto ela acomodava o gato no alforje e, depois, montava. Ao lhe entregar a criança, teve a inquietante sensação de que a comitiva acabara de ganhar uma criança completamente indefesa e exigente.

     Depois que entraram na vila, a princípio todos pareciam bastante amistosos. Então, a pessoa que os cumprimentou viu a criança que ela segurava e ficou muda e cautelosa. Todos olhavam para Elspeth como se ela tivesse cometido algum pecado grave ao trazer o menininho para aquela vila pacífica. Era como se tivessem medo do bebê indefeso que Elspeth segurava, embora isso não fizesse nenhum sentido. Quem, com algum juízo, teria receio de uma criancinha?

     Enquanto Cormac colocava os cavalos no estábulo, Elspeth saiu para descobrir quem dera à luz o bebê. Sabia que não teria coragem de devolver a criança aos braços da mulher que abandonara o próprio filho, mas queria perguntar a ela por que fizera uma coisa tão chocante. Depois que várias pessoas se afastaram bruscamente antes que pudesse falar com elas, Elspeth cercou uma mulher de meia-idade.

     - Não se atreva a se afastar de mim - ela disse com firmeza, cortando a tentativa da senhora em dar a volta. - Só quero fazer algumas perguntas; e a senhora pode fugir depois, como se eu estivesse coberta de pragas.

     - Bem, o que espera ao trazer essa cria do demônio para cá? - exclamou a mulher, e fez depressa o sinal-da-cruz quando viu que o bebê a fitava.

     - Cria do demônio? Que bobagem é essa? É só um bebezinho, e eu estou à procura da mãe.

     - A mãe do bebê foi enforcada, e depois queimada como bruxa faz poucos dias.

     - Deus do céu! - murmurou Elspeth. - Então, foi algum de vocês que abandonou a criança para morrer?

     - Sim. Não podemos manter um bebê assim aqui. Ele carrega a marca do diabo!

     - Aquela estrelinha na barriga?

     A mulher concordou.

     - É a marca do demo. A mãe se uniu ao maligno. Ora, claro, ela tentou afirmar que era um lorde que seguia para ver o rei. Quis nos fazer acreditar que ele a seduziu e a deixou grávida... Ela, que sempre foi insensata e de língua ferina e não tinha moral alguma. Quando isso apareceu, de cabelos e olhos negros, todos soubemos a verdade. A mãe era tão loira como uma loira pode ser e, no entanto, olhe para a coisa que expulsou do ventre. Negra como Satã. E beijada pelo demônio. Ninguém na vila quis atrair a praga para si ficando com uma criança gerada pelo mal. Assim, nós a colocamos na colina.

     - Para morrer. Vocês deixaram um bebezinho numa colina para morrer, para ser devorado por animais ou morrer de fome ou de frio.

     - Deixamos a cria de Satã aos cuidados dele, ou do julgamento de Deus.

     Elspeth queria bater na mulher.

     - Vá embora!

     - Como é? Você é que exigiu que eu parasse aqui, perto desse diabinho, e arriscasse a marcar minha alma, só para responder a algumas perguntas. Agora, grita comigo e me manda embora...

     - Sim, e se a senhora tem algum farrapo de juízo nessa cabeça, o que eu duvido, sumirá bem depressa!

     Não foi surpresa para Elspeth que a mulher ficasse pálida e parecesse assustada. Sua voz soara tão dura e fria, áspera de raiva, que ela própria estremecera. Apertou o bebê contra o peito e acariciou os cachos negros, enquanto observava a mulher se afastar depressa. Elspeth sentia-se desprezada e a tolice supersticiosa que saíra da boca daquela criatura havia a deixado enojada. Agradeceu a Deus que a criança fosse pequena demais para compreender qualquer daquelas palavras odiosas.

     Sempre havia quem acreditasse em bruxas. Por causa da habilidade de cura, sua mãe e ela mesma tinham provocado não poucos murmúrios. Mas Elspeth jamais se confrontara com uma crença assim tão profunda antes, o tipo de credulidade que fizesse as pessoas matarem brutalmente um dos seus ou colocar um bebezinho numa colina para morrer. Sentiu que tremia inteira com a força da raiva e da indignação. Era impossível deixar aquela criança na vila. Cormac teria de compreender.

    

     Cormac viu quando a mulher mais velha praticamente saiu correndo para longe de Elspeth. Franziu a testa. Era difícil acreditar que alguém de rosto tão meigo e corpo delicado pudesse fazer ou dizer alguma coisa que apavorasse uma senhora daquele jeito. No entanto era evidente que Elspeth conseguira.

     Assim que chegou mais perto, notou que Elspeth estava extremamente nervosa. Ao se aproximar, viu que ela tremia. Preocupado, passou-lhe o braço pelo ombro e fitou o rosto muito pálido. Então, Cormac percebeu que Elspeth estava furiosa. E ainda segurava a criança.

     - Não descobriu quem é a mãe? - perguntou.

     - Oh, já sei quem é depois que obriguei alguém a falar comigo.

     - Eu vi. E pareceu evidente que a conversa não foi agradável.

     - É provável que seja uma das pessoas que acenderam a fogueira debaixo da mulher que procurávamos. Parece que a mãe do menino foi julgada, condenada e queimada como bruxa faz alguns dias. Espero que tenham sido misericordiosos e enforcado a mulher primeiro. E depois abandonaram o bebê para morrer.

     - Meu Deus! - exclamou Cormac, chocado. Olhou para a criança. - O que os fez pensar que a mãe do menino era uma bruxa?

     - Ah, uma porção de coisas. Devia ser bonita, pelo jeito com que aquela mulher maldosa a descreveu. Muito loira. Parece que tinha o pecado de uma língua ferina também. Afirmou que foi seduzida e abandonada grávida por um jovem lorde que passou por aqui a caminho da Corte do rei, mas sempre foi insensata e imoral, então as mulheres direitas da vila não acreditaram nisso. Depois, teve essa criança morena com essa marca de nascença. Era a prova de que havia se unido ao demônio. Tinha de morrer para que as boas mulheres desta vila pudessem continuar a ser boas. E assim que a bruxa estava morta, a cria do demônio foi colocada na colina para que também morresse. Na minha estupidez, eu trouxe este grande mal de volta para a vila. E ameacei as almas puras dos moradores deste lugar.

     Cormac estendeu a mão e afagou de leve os cachos negros da criança.

     - Então, diante disso, eu concluo que acrescentamos outro perdido ao nosso grupo.

     - Mesmo que alguém o quisesse, não posso deixá-lo aqui, Cormac. Não posso.

     - Claro que não. Venha, consegui um quarto para nós na hospedaria.

     - Podem não nos deixar entrar, carregando todo esse mal em potencial, de medo que o leite azede no jarro.

     - Com o humor que você está, duvido que se atrevam a nos recusar - Cormac resmungou ao pegá-la pelo braço e rumar para a hospedaria.

     Embora o estalajadeiro, a esposa e as criadas não os impedissem de entrar, faziam o sinal-da-cruz sempre que chegavam perto da criança. Elspeth teve de morder a língua para não ameaçá-los. Quando se acomodaram no quarto alugado, Elspeth alimentou a criança com um pouco de mingau e leite de cabra de uma rnamadeira feita de bexiga de ovelha que uma criada apavorada lhes trouxera. Depois, cuidou das necessidades da criança para tentar acalmar-se, e não apenas porque seu humor poderia perturbar o bebê. Sua raiva era tão grande que fazia sua cabeça latejar e o estômago revirar. Não havia ninguém em quem descontá-la.

     Cormac sentou-se diante de uma pequena lareira, a beber sua cerveja e a observar Elspeth atentamente. Aquele problema a aborrecera muitíssimo. Não achava que era porque Elspeth sempre havia sido tão protegida que não percebesse que tais injustiças aconteciam. Suspeitava que saber da morte da mãe da criança e da tentativa de matar o filho tinha algo a ver com ela e a mãe serem curandeiras. Podiam ter enfrentado tal tipo de ameaça alguma vez, o que acrescentaria um toque pessoal e assustador àquela triste história. Felizmente, Elspeth e a mãe não haviam sofrido de uma forma fatal por tais preconceitos e superstições.

     Olhou para a criança de novo. A mãe afirmara que o pai era um jovem lorde a caminho da Corte do rei. Embora isso pudesse incluir centenas de homens, Cormac duvidava que houvesse muitos morenos.

     Com relutância, ele decidiu que iria reunir todos os fatos importantes sobre a história da criança, obter uma descrição melhor e mais detalhada da época da concepção e da mãe. Afinal, junto com as feições morenas do bebê, seria o suficiente. Se o pai estivesse vivo, ele poderia eventualmente achar o homem. Se não, Cormac pensou ao ver Elspeth ninar a criança, murmurando palavras doces, o pequeno encontrara um refúgio seguro e amoroso.

     - A mulher disse o nome do menino? - Cormac perguntou.

     - Não.

     - E fácil descobrir. - Ele terminou a cerveja e se levantou. - E ainda há tempo para fazer isso.

     - Talvez não devêssemos remexer o assunto, relembrar a essa gente que o bebê ainda está vivo e aqui, conosco.

     - Meu anjo, acha realmente que aquela mulher idiota que você ameaçou está escondida debaixo da cama, quieta e tremendo de medo? Talvez esteja tremendo, mas jamais calada.

     - E quem disse que eu a ameacei?

     - Sua expressão. Ah, você, com esse rostinho tão meigo... - Soltou uma gargalhada quando Elspeth o fitou furiosa. - Descanse um pouco. Vou sair e fazer algumas perguntas por aí. - Beijou-a na testa. - Você está um pouco pálida.

     - Acho que estou - Elspeth murmurou ao se acomodar na cama, colocando o bebê a seu lado. Barrento enrolou-se do outro lado da criança. - Foi a raiva. Tão grande que me deu dor de cabeça. Parece que as minhas entranhas se reviraram. Cada palavra maldosa que aquela mulher horrível disse só fez crescer a sensação. Queria arrancar a língua dela por dizer as coisas que disse sobre um bebezinho.

     - Que feroz defensora dos mais fracos é você, meu amor. Estranho o modo como Barrento encontrou a criança e como parece bastante ligado a ela.

     - Bem, creio que já tivemos provas suficientes de que Barrento não é como a maioria dos gatos.

     - Realmente. - Cormac afastou algumas mechas de cabelo do rosto de Elspeth e beijou-a com ternura outra vez. - Descanse. - Piscou para ela. - Vai precisar, pois pretendo tirar vantagem de tê-la numa cama decente outra vez.

     - Eis uma idéia para adoçar os meus sonhos. Por que quer saber a respeito da criança?

     - Precisamos descobrir nome do menino e também se foi batizado. E quero o nome e uma descrição melhor da mãe. A época do nascimento seria útil, pois daria uma noção mais exata da concepção, de quando o pai passou pela região.

     - Acha que deveria fazer uma busca pelo pai?

     - Não uma busca intensa. O garoto tem um lar, não tem?

     - Sim - Elspeth murmurou, acariciando os cabelos fartos da criança.

     - Mas o pequeno já sofreu bastante. O bom é que é muito novo para entender. Tem um pai, contudo, e pode ser um bom homem. Pode até haver uma boa razão para que não tenha voltado aqui. Tudo que eu procuro é a verdade, e se depararmos com um homem que poderia ser o pai do garoto, então decidiremos se contaremos a história a ele.

     Elspeth concordou.

     - Compreendo. E o menino, quando crescer, pode querer procurá-lo por si mesmo. Então, deveremos ter algo para ajudá-lo a encontrar os rastros do homem. Meu tio Eric foi deixado numa colina para morrer logo após ter nascido, e tinha treze anos quando soube toda a verdade sobre seu nascimento. Era adulto na ocasião em se reencontrou com os parentes da mãe. - Elspeth esboçou um sorriso diante do espanto de Cormac. - Sim, ele não tem o sangue da família, mas foi criado como um Murray até que a verdade fosse descoberta. E preferiu continuar um Murray. Este menino será um Murray também. E a menos que escolha outra coisa, pode continuar sendo um. Vá, então. Descansarei, pois também quero me aproveitar de você numa cama.

     Cormac riu e beijou-a antes de sair. Elspeth suspirou e fechou os olhos. E ficou a imaginar se Cormac estava ciente de quantas vezes dissera nós ao se referir a procurar o pai da criança. Ela não queria se deixar embalar pela esperança. Poderia ser apenas um mero modo de falar. Também poderia significar, contudo, que uma parte de Cormac já via e aceitava os dois como um casal, vislumbrando um futuro para eles a despeito de lady Isabel. Se fosse verdade, Elspeth rezou para que essa parte de Cormac se apressasse e tomasse posse dele por inteiro, pois Isabel não estava muito longe.

     Afagou as costas da criança enquanto esperava que o sono a dominasse. Seria ótimo se o pequeno tivesse um pai em algum lugar que o recebesse com carinho, que o amasse e cuidasse para que tivesse uma vida boa. Também sabia que isso raramente acontecia a um bastardo. Ficara feliz que Cormac não tivesse sugerido uma busca rápida pelo homem. A pressa poderia resultar em erros e mal-entendidos. Se, em algum momento nos anos à frente, o pai do menino fosse encontrado, Elspeth queria ter certeza de que era um bom homem antes de lhe confiar a vida daquela criança.

     Assim que começou a mergulhar no sono, Elspeth sentiu que era observada. Foi uma sensação tão forte que a deixou sobressaltada e plenamente consciente, com uma dolorosa aflição do peito. Abriu os olhos devagar e, pela primeira vez em sua vida, quase desmaiou. Parado ali, ao lado da cama, a sorrir friamente, estava sir Colin MacRae.

    

     Cormac compreendia a raiva de Elspeth ainda mais agora, depois que falara com algumas pessoas. Ouvir tais atrocidades serem ditas contra uma criança de apenas poucos meses fazia a náusea subir-lhe pela garganta. Anne Seaton era o nome da mãe do bebê e, obviamente, não se esforçara muito para conquistar o amor e a admiração das pessoas da vila. Bela e vaidosa era evidente que se deitara com os maridos de muitas mulheres. Havia um ou dois idiotas que acreditavam que fosse uma bruxa, que realmente pensavam que um bebê moreno nascido de uma mãe tão loira só podia ser prova do mal. Mas, na verdade, a maioria das pessoas tinha decidido que aquela era uma boa maneira de livrar-se de alguém de quem não gostavam.

     Cormac suspeitava de que, na ocasião em que amarraram a mulher à fogueira, grande parte dos moradores da vila havia começado a acreditar na conversa de feitiçaria. Exaltados pelo medo e o ódio, tentaram livrar a vila da criança também. Certamente, não iriam se contradizer agora, não depois de matarem a mulher. Queimar uma bruxa era aplicar a justiça sagrada. Porém matar uma mulher que era indesejável assassiná-la daquela maneira brutal só porque não mantinha as pernas ou a boca fechadas, não era. A morte de Anne fora um erro, mas, pelo menos, tinha uma explicação.

     Não havia, contudo, argumento que justificasse a tentativa de eliminar uma criancinha. O jovem padre dera seu aval para a morte de Anne, e Cormac tinha uma forte suspeita de que fizera isso porque o estúpido sentia-se atraído por ela. No entanto, não parecia de acordo com o que fizeram com a criança. Infelizmente, era um covarde e não tinha coragem para enfrentar os moradores da vila.

     Só uma pessoa vira o jovem lorde que Anne afirmara ser o pai do bebê. Dissera ao padre ter notado, lá pelos lados da cabana em que ela morava, um homem tão moreno como a criança, alto, robusto, de aspecto muito ameaçador. Era um beberrão, e Cormac duvidava que ele confirmasse o fato. Andava ainda mais embriagado, angustiado pela culpa, pois se encontrava longe da vila quando Anne fora acusada e depois morta. E sua esposa havia sido uma dentre aquelas que gritavam mais alto pelo sangue da infeliz.

     Ao entrar na hospedaria, Cormac franziu a testa. Um barulho enorme vinha do alto das escadas, e uma pequena multidão de curiosos se reunia ao pé dos degraus. Ao se recordar de como todos se sentiam sobre o órfão que Elspeth resgatara, Cormac receou que o barulho viesse de seu quarto. Empurrou as pessoas e subiu as escadas.

     - O que está acontecendo aqui? - indagou ao ver o estalajadeiro, a esposa e as duas criadas paradas à porta aberta do quarto de Elspeth.

     - Dorcas veio alimentar o bebê - disse o hospedeiro -, e aquele animal não a deixou tocá-lo.

     Cormac olhou de relance para a criada, que choramingava, passando a mão sobre um braço bastante arranhado.

     - Por que ela viria cuidar do bebê?

     - Ele estava chorando e parece que sua esposa o abandonou.

   Um calafrio correu pela espinha de Cormac. Com um empurrão, afastou o homem e entrou no quarto. Barrento estava sobre a cama, perto da criança que chorava. Tinha o pêlo eriçado, as orelhas machucadas inclinadas para frente, e rosnava os dentes arreganhados. E não havia sinal de Elspeth.

     Por apenas um instante, Cormac temeu que o dono da hospedaria tivesse razão, que Elspeth o abandonara. Então, meneou a cabeça, expulsando aquele pensamento ilógico e ridículo. Elspeth jamais deixaria para trás a criança ou o gato. Suas coisas ainda se encontravam no quarto. Havia um banquinho caído de pernas para cima. A janela estava escancarada. Cormac correu até lá. Olhou para baixo, mas não viu nada. Fechou a janela. Uma certeza o invadiu: enquanto ele estivera fora, sir Colin tinha raptado Elspeth.

     - Alguém viu quem levou minha mulher? Ou estavam todos tentando proteger as pobres almas para perceber que ela estava sendo raptada?

     Cormac aproximou-se cautelosamente de Barrento.

     - Não vimos ninguém! - esbravejou o estalajadeiro, e a esposa sacudiu a cabeça em concordância. - Ela o deixou.

     - Não, foi levada. - Com afagos suaves, Cormac finalmente conseguiu acalmar o gato. - Elspeth jamais abandonaria a criança ou o seu bicho de estimação. Mesmo que eu esteja enganado a esse respeito, ela nunca deixaria todos os seus pertences para trás. Há sinais de uma pequena luta. Dorcas, você estava pronta para cuidar da criança?

     - Sim, senhor - a criada respondeu -, mas o gato não me deixou chegar perto dela.

     - Ele vai deixar. Estava assustado com o que aconteceu aqui. Venha, Dorcas.

     - O gato não gosta de mim, senhor.

     - Agora ele está calmo e eu a apresentarei para que veja que você não fará mal algum à criança.

     Levou alguns instantes para Cormac conseguir convencer Dorcas a alisar o pêlo de Barrento. Estava ansioso para sair atrás de Elspeth, mas sabia que precisava tratar da criança primeiro. Depois de algumas tentativas, conseguiu que Dorcas chegasse até o bebê. E a criada se acalmou quando Barrento se sentou e ficou a observá-la. O menininho parou de chorar.

     - Você não tem medo deste enorme e monstruoso demônio, tem? - Cormac perguntou a Dorcas quando a criada começou a trocar as fraldas da criança.

     - É só um bebezinho - ela retrucou, lançando um olhar nervoso para as três pessoas que espiavam da soleira da porta. - Foi horrível o que tentaram fazer com ele, mas eu fui muito covarde para impedir ou tentar ajudá-lo.

     - Não havia muito que uma moça pudesse fazer contra tanta gente gritando por sangue. Quando o bebê começou a chorar?

     - Uma hora atrás, talvez menos.

     - Então, foi quando Elspeth foi levada. Quero que você tome conta do bebê.

     - O senhor não vai dar o fora e deixar essa cria do demônio aqui! - exclamou o hospedeiro, a última palavra a soar num guincho agudo quando Cormac q. agarrou pelo frente do casaco e o ergueu do chão.

     - Estou cheio dessa conversa estúpida. Ele é só um bebê! - Soltou o homem tão de repente que o sujeito cambaleou e chocou-se contra a esposa, quase a derrubando pela escada. - Dorcas ficará aqui e tocará conta do menino. Se alguma coisa acontecer com ele, eu lhe arrancarei as tripas!

     - E se o senhor não voltar? - o estalajadeiro perguntou, embora num tom bem mais respeitoso. - Não ficaremos com ele.

     - Eu não pensaria em dá-lo a você ou em deixá-lo neste manicômio. - Jogou umas poucas moedas sobre a mesinha ao lado da cama. Por sorte havia engolido o orgulho e pedira um pequeno empréstimo a Owen. - Se nem eu ou minha esposa retornarmos, mande o gato e o bebê para sir Balfour Murray e lady Maldie, em Donncoill. Diga-lhes que Elspeth gostaria que a criança fosse adotada. - Avançou, empurrando os três para trás no corredor, e fechou a porta do quarto. - Tenho certeza de que vocês têm serviço a fazer. Não são necessários aqui. Aconselho que cuidem para que Dorcas tenha tudo de que precisar.

     No momento em que os três se foram, Cormac correu para fora da hospedaria e foi examinar o chão debaixo da janela de Elspeth. Era fácil ver que ela fora levada do quarto por aquele caminho. Não conseguiu divisar nenhuma marca dos pés de Elspeth, mas as pegadas que se afastavam da janela eram mais fundas que aquelas que conduziam até ali, e isso indicava que quem se afastava carregava algo, e esse algo era provavelmente Elspeth. Cormac apressou-se em pegar o cavalo, rezando para que sir Colin continuasse a deixar uma trilha clara. E que a luz do dia que findava durasse o suficiente para que ele pudesse seguir o desgraçado até onde acamparia para passar a noite.

    

     - Não posso acreditar que você ameaçou uma criancinha! - Elspeth exclamou quando sir Colin a arrancou do cavalo e a empurrou para dentro de uma pequena cabana. - E um gato!

     No que ela não podia realmente acreditar era que, depois da fuga, da luta e das mortes, sir Colin simplesmente tivesse entrado em seu quarto pela janela e a raptado. E Elspeth, paralisada pelo choque, nada fizera além de arquejar quando ele ameaçara o bebê e o gato com a faca. Aquilo havia lhe dado tempo para desferir um soco em seu queixo, que a fizera perder a consciência. Ela tornara as coisas muito fáceis para sir Colin, Elspeth pensou, irritada, ao esfregar a mandíbula dolorida.

     - Funcionou. Você está aqui - ele retrucou com frieza, ao acender o fogo numa pequena lareira.

   - Cormac virá atrás de mim! - ela exclamou, num tom mais confiante do que se sentia.

     - Que venha. Estou louco para matar o desgraçado.

     - Por que está fazendo isso?

     - Você é minha. - Colin encarou-a com fúria. - Ninguém me diz não. Achou realmente que eu iria me retirar com o rabo entre as pernas feito um cão açoitado, sem me vingar desse insulto?

     - Que insulto? Você me pediu em casamento. Eu disse não, e com muita educação e gentileza, se me recordo.

     - E quem você pensa que é para me dizer não? Tem quase vinte anos e ainda não se casou. Vem de um clã muito pequeno. Possui um dote insignificante. Sua mãe não passa de uma filha de uma vagabunda. Eu lhe concedi uma grande honra pedindo que fosse minha esposa.

     - Não fale de minha mãe desse jeito ou vou lhe arrancar as tripas como o porco que você é!

     Elspeth não se surpreendeu quando seu insulto valeu uma bofetada brutal que a fez cair de costas. Sempre sentira a crueldade latente naquele homem. Seria prudente conter a língua, mas duvidava que pudesse conseguir. Era difícil acreditar que todos aqueles acontecimentos horríveis e tantas mortes fossem por causa de alguém vaidoso demais para aceitar um não. E Colin proferira todos aqueles insultos sobre ela e sua família. Por que a pedira em casamento? Por que a queria como esposa?

     Naquela altura, Cormac já teria descoberto seu desaparecimento, Elspeth pensou. Esperava que ele não julgasse que ela o abandonara que soubesse que havia sido raptada. E por quem. A questão era: Cormac viria atrás dela? E, se viesse, sir Colin teria deixado um rastro claro para ser seguido? Disse a si mesma para não ser idiota. Cormac faria o melhor para salvá-la. Tinha jurado mantê-la a salvo. Infelizmente, Elspeth sabia muito bem com quanta tenacidade ele se agarrava a um juramento. Só lhe restava rezar para que, ao honrar sua promessa, não acabasse morto.

     - Suponho que o jovem Cormac a tomou - disse sir Colin, num tom quase agradável. - Embora pareça passar a vida correndo atrás da daquela vagabunda de lady Isabel, você seria uma coisinha muito apetitosa a que ele pudesse resistir. Então, tirou sua virgindade?

     A despeito do tom amistoso daquela voz, o instinto avisou Elspeth de que a verdade deixaria o homem enraivecido. Havia uma espécie de expectativa em torno da pergunta. Sir Colin controlava a fúria com rédeas curtas.

     Elspeth retrucou com arrogância:

     - Não creio que seja uma pergunta adequada para um cavaleiro fazer a uma dama.

     Sir Colin esboçou um sorriso, mas seus olhos continuaram frios e duros.

     - Você consegue saber o que uma pessoa pensa ou sente, não é? Essa é uma das razões pelas quais a quero. Uma habilidade assim seria inestimável para um homem em busca do poder, como eu.

   Elspeth protestou:

     - Eu capto apenas a sensação de emoções fortes numa pessoa. E muita gente também conseguiria se prestasse atenção.

     - Que importa que seja um dom ou apenas um bom olho para um tique denunciador? Você pode ver agora mesmo que eu estou muito zangado.

     - Isso não exige nenhum dom especial. Você quase fede de tanta raiva.

     Elspeth praguejou quando o sorriso de zombaria no rosto de sir Colin demonstrou que suas palavras confirmavam aquilo em que ele acreditava. De certa forma, Colin tinha razão. Ela conseguia sentir muitas coisas a respeito das pessoas. Raramente alguém conseguia lhe mentir. Elspeth captava de uma forma estranha os sentimentos dos outros, ainda que bem escondidos. Mas não podia permitir que sir Colin distorcesse esse seu dom para seus próprios desmandos.

     - E por que acha que estou zangado? - ele indagou, num tom quase casual. - Seria possível que fosse porque minha noiva simplesmente saiu fornicando pelo caminho com sir Cormac Armstrong? Um Armstrong, meu amor? - Meneou a cabeça. - Patifes e ladrões, o bando todo. E esse Armstrong em especial deve ser o mais infeliz dessa corja triste. Ora, ele está tão enrabichado por lady Isabel que duvido que consiga ficar excitado por outra mulher.

     - Oh, você é ultrajante!

     Era evidente que sir Colin não estava acreditando em sua pose de indignada inocência, mas Elspeth concluiu que era tarde demais para mudar o jogo.

     - Você tentou testá-lo, não tentou? Afinal, sir Cormac é o bravo cavaleiro de seus sonhos de donzela. O belo rapaz a deixava ansiosa, no escuro da noite, e toda excitada.

     - Estou abismada com a sua absoluta falta de boas maneiras.

     O que realmente deixou Elspeth abismada era que sir Colin conhecia até mesmo seu pequeno segredo: que ela ansiara por Cormac durante anos. Muito poucas pessoas sabiam daqueles sonhos. Havia alguma língua solta em Donncoill, era óbvio, um ponto fraco que Colin tinha descoberto e usado para arrancar todo tipo de informação. Tão logo pudesse, avisaria a família. E já que aquele era um de seus segredos mais bem guardados, era provável que o informante fosse alguém próximo, o que a deixou ao mesmo tempo triste e zangada.

     - Formaremos um belo par, você e eu. - Sir Colin aproximou-se de Elspeth. - Você tem uma cabeça esperta. Só precisarei lhe ensinar umas poucas coisinhas.

     Ela tentou ficar longe do alcance dele, sem parecer que estivesse fugindo.

     - Oh, sim, coisas como mentir, matar, roubar e sorrir com doçura enquanto enterro uma faca entre as costelas de um homem.

     - Isso. E creio que você provará ser muito competente.

     A resposta calma ao insulto deixou Elspeth tão estarrecida que ela tropeçou num banquinho. Colin estava sobre Elspeth num instante. Era bem mais esperto do que ela julgara que fosse. Vira como Elspeth havia tentado usar contra ele a tendência a se entregar a uma ira cega, e a envolvera naquela rede, virando o jogo.

     Ela caiu no chão com um baque tão forte que perdeu o fôlego. A despeito disso, lutou para impedir que sir Colin a imobilizasse completamente. E lutou mais ainda contra o desalento de saber que poderia apenas detê-lo, não vencê-lo.

     - Saia de cima de mim, seu porco! - esbravejou, recusando-se a deixá-lo saber que estava com medo.

     - Você vai me dar o que vem dando a Armstrong - ele retrucou, e a estapeou com força quando Elspeth tentou livrar a mão e socá-lo na cabeça. - Não vai fugir de mim desta vez; portanto, por que não se deita e desfruta?

     - Desfrutar de um estupro? Você é louco. Se fizer isso, haverá tantos tentando matá-lo que não encontrará um buraco fundo o bastante onde se esconder em toda a Escócia. Sim, e eu estarei na vanguarda dessa fileira.

     Enquanto o xingava e ameaçava, Elspeth lutava com toda sua força. Cada truque que usava, contudo, só dava certo em parte. Enfiou a perna entre as dele e ergueu o joelho, mas Colin se desviou a tempo, e o golpe acertou a coxa, não a virilha. Então, ela conseguiu livrar uma das mãos e tentou lhe enterrar os dedos nos olhos, mas ele virou a cabeça, e Elspeth apenas lhe arranhou o rosto. Era evidente que sir Colin não era um iniciante na prática de violentar mulheres. E Elspeth começou a duvidar que houvesse algum artifício que eleja não conhecesse, que não antecipasse e conseguisse evitar.

     Ela concentrou-se em lutar para ignorar o fato de que Colin lhe arrancava as vestes.

     - Cormac vai cortá-lo em pedacinhos e alimentar os abutres com os seus restos!

     - Cormac não chegará nem a dez metros deste lugar. Há quatro homens à espera lá fora, loucos para matá-lo. - Ele finalmente abriu-lhe o corpete, deixando apenas uma veste fina a lhe proteger os seios. - Ah, que beleza que são! Vou montar em você com gosto.

     Quando se inclinou para os seios de Elspeth, por um breve momento aproximou a cabeça da dela, e Elspeth tirou vantagem do fato. Bateu o crânio contra a testa de Colin com toda a força. Ele soltou um urro e afrouxou o aperto o suficiente para que ela o empurrasse. Tonta com a pancada, que sentira tanto quanto sir Colin, ela não conseguiu ficar de pé. E gritou ao sentir que ele a agarrava pelas saias, rasgando-as.

     Apoiada nas costas, Elspeth chutou-lhe o rosto, derrubando-o. Conseguiu levantar-se, mas só deu uns poucos passos antes que Colin a jogasse no chão novamente. Cansada e atordoada, dessa vez foi incapaz de impedi-lo de comprimi-la sob o próprio corpo. O sorriso de triunfo de sir Colin dizia que ele sabia que vencera.

     Havia ainda uma pequena chance de escapar, Elspeth disse a si mesma, para conter a onda de desespero que inundou seu coração e mente. Mas, quando ela tentou mudar de posição, ele a esbofeteou com força. Continuou a arrancar suas saias e as anáguas. Elspeth se debateu, e sir Colin a esmurrou de novo. Foi então que se deu conta de que ele pretendia deixá-la atordoada até que fosse tarde demais para se proteger.

     Começou a orar. Pediu para ter mais uma chance de escapar. Rezou para que, se fracassasse em evitar a violação de sir Colin, isso não a magoasse demais, não a deixasse tão marcada na mente e no coração que se tornasse frígida ao simples toque de um homem. Rezou para que sir Colin tivesse mentido a respeito dos quatro homens, do lado de fora, à espera para matar Cormac.

    

     Cormac olhou para a pequena cabana ao se agachar entre os arbustos. Seguira a trilha de sir Colin tão atento que quase havia cavalgado direto para a porta. O som alto de um espirro o alertara, dando-lhe tempo para puxar as rédeas do cavalo e subir até um ponto abrigado, fora da vista.

     Embora estivesse desesperado para correr até lá e salvar Elspeth, Cormac obrigou-se a esperar. Sir Colin percorrera apenas pouco mais de um quilômetro para longe da vila. E Cormac tinha a penosa sensação de que parara ali porque não conseguia mais esperar para se apossar de sua vítima. A idéia de aquele verme tocando Elspeth ameaçou descontrolá-lo. Cormac queria fazer alguma coisa, algo além de ficar agachado nas sombras, a observar os quatro homens armados que se postavam entre ele e Elspeth. Recordou-se que uma pressa cega poderia liquidá-lo e deixar sua amada à mercê de sir Colin.

     Ficou tenso quando um dos homens entrou no bosque logo à sua esquerda. Silenciosamente, Cormac foi atrás. E surpreendeu o sujeito a urinar ao pé de uma árvore. Com passos furtivos, aproximou-se e tapou-lhe a boca com uma das mãos enquanto com a outra lhe enterrava a faca entre as costelas. Ao baixar o corpo para o chão, sentiu uma espécie de desgosto. Mas aprendera, fazia tempo, que às vezes matar era necessário. O homem não teria hesitado em fazer o mesmo, pensou. Por umas poucas moedas, dispuseram-se a montar guarda para que um desgraçado violentasse uma mulher.

     Ao voltar para o esconderijo, Cormac esperou por outra chance. Três guardas continuavam a postos. Seria inútil confrontá-los. Se um deles fosse idiota o suficiente para sair atrás do companheiro, seria o bastante. De dois, ele poderia dar conta.

     A espera pareceu-lhe infinita. Então, depois de uma breve conversa, outro homem embrenhou-se na mata. Cormac o pegou quando o sujeito se inclinava sobre o corpo do companheiro. Matou-o sem fazer ruído e deixou o cadáver perto do outro.

     Conforme seguia furtivamente para a cabana, aproveitando as sombras do fim da tarde, empunhou a faca e a espada. Embora nunca tivesse pensado em agradecer por todos aqueles anos fugindo dos Douglas, tinha de admitir que aprendera um bocado. As duras lições de sobrevivência provavam-se valiosas naquele momento. Sabia como matar de forma rápida e silenciosa.

     Quando se aproximou da cabana, viu que os dois homens restantes discutiam o que poderia ter acontecido aos outros e tentavam imaginar como se proteger melhor. Cormac quase sorriu. Os guardas iriam facilitar as coisas para ele.

     Respirou fundo e partiu na direção da cabana em passos rápidos. No momento em que os homens o viram, Cormac arremessou a faca, que atingiu um deles na garganta. O outro ergueu a espada, pronto para a luta. Cormac praguejou quando o tinido das armas ecoou. Aquele não seria um enfrentamento silencioso. Tudo que poderia esperar era que fosse rápido o suficiente para que, mesmo que sir Colin fosse alertado pelo barulho, não tivesse tempo para fugir ou usar Elspeth para se defender.

    

     - Ah, então acordou de novo. Ótimo.

     Elspeth pestanejou e encarou sir Colin, que parecia desfocado. Estava tonta de dor e não tinha certeza de quando ou por que perdera a consciência.

     Sua mente clareou depressa ao perceber que não se encontrava mais no chão e que não conseguia mover as pernas ou os braços. Um calafrio percorreu-a ao se olhar. Estava amarrada pelos pulsos e tornozelos nos quatro postes de uma cama grande. O que a horrorizou mais, no entanto, foi se ver completamente nua. Não teria nenhuma chance de escapar. Encontrava-se indefesa, presa ali, como em algum antigo sacrifício humano. Sir Colin não iria desacordá-la de novo, pois pretendia que estivesse completamente consciente diante de toda a degradação a que a submeteria.

     Elspeth encolheu-se quando ele estendeu a mão e tocou-lhe a curva de um seio. Mas não daria ao homem a satisfação de saber de seu pavor. Encarou-o com profundo desprezo.

     - Indefesa e nua e ainda assim tenta me agredir com o olhar - disse sir Colin, com um brilho divertido na expressão. - Criaremos belos filhos, homens dignos de governar a Escócia.

     - Creio que já existe um rei no trono e uma dinastia constituída.

     - Com o nascimento do nosso primeiro filho, começarei a destruí-la. Sabe de quem é esta casa?

     Elspeth custou a entender a mudança tão repentina de assunto.

     - Não. Deveria saber?

     - Você pegou o filho da bruxa, não pegou? - Sir Colin sentou-se na beira da cama e começou a arrancar as botas.

     - Você não pode ser o lorde que a seduziu e a deixou grávida. Não é moreno.

     - Não, não a engravidei - ele retrucou, com uma risada. - Disse que foi seduzida, é? O povo da vila provavelmente a matou só por ela ter contado tamanha mentira e, pior, pensando que fossem idiotas para acreditar. Não, aquela lá nasceu prostituta. A maioria dos homens da região e aqueles que viajavam para a Corte sabiam tudo sobre ela. - Olhou pelo interior da pequena cabana com aprovação, enquanto desamarrava o gibão pesado. - Era bonita o bastante para conseguir o melhor para si.

     - Mas não o suficiente para um daqueles que desfrutaram seus favores impedir sua morte.

     - Claro que não. Era uma vagabunda e de temperamento ruim. Talvez não fosse bruxa, mas certamente mereceu a forca. Acha que aquele diabinho de olhos negros foi o único bebê que ela gerou? Não, ela não queria filhos, mas era fértil demais, a danada. Abortava assim que descobria que estava grávida. Quando era tarde para fazer isso com segurança, dava à luz e se livrava do filho depois. Matou uns dois, talvez mais. Estão enterrados atrás desta bela cabana, junto com um ou outro homem que a deixou zangada. Não, eu não sou o pai - disse, com uma gargalhada, respondendo à pergunta que Elspeth não conseguira formular. - Minha priminha era uma mulher difícil.

     - Claro, eu deveria saber disso, já que são tão parecidos. Que conversa interessante a nossa. Poderia parecer que somos velhos amigos. Por que não me desamarra e eu irei buscar uma cerveja?

     Sir Colin soltou uma risada e puxou o laço das calças. Então, de repente, ficou tenso.

     - O que foi isso?

     Elspeth ouviu também. O som distinto do retinir de espadas quebrara a paz do lado de fora da cabana. Algo estava acontecendo. Uma discussão entre os guardas? Ela preferiu pensar que era Cormac. Riu baixinho quando sir Colin tropeçou nas próprias calças e puxou-as para cima, enquanto tentava pegar a espada, ao mesmo tempo em que a porta da cabana era aberta com um chute tão forte que estalou.

     - Ah, sir Colin, receio que a morte tenha entrado para buscá-lo.

    

     A imagem que chegou aos olhos de Cormac, quando abriu a porta da cabana, quase o fez rugir de fúria. O que o impediu de agir cegamente e como louco, pondo em risco a si mesmo e a Elspeth, foi a própria Elspeth. Suas palavras cheias de alegria quase o fizeram rir. Ela estava nua, amarrada a uma cama e coberta de hematomas, mas, mesmo assim, brincava com um sorriso.

     - Não sei quem é mais louco, moça, se você ou eu! - Cormac exclamou, e dirigiu a atenção a sir Colin, vendo, com alívio, que o homem estava quase todo vestido.

     - Ora, você, é claro, pois eu não saio chutando as portas das pessoas - Elspeth respondeu aliviada por vê-lo vivo e pronto a acabar com a insanidade de sir Colin. - Não creio que possa cortar minhas amarras, já que tem de lutar com esse idiota.

     - Você tem a língua muito ferina para alguém amarrado a uma cama - murmurou sir Colin e depois sorriu, quase com simpatia, para Cormac. - Lindo corpo a moça tem. E pele macia. Machuca com muita facilidade, contudo. Ah, mas tem um gosto tão bom... Como mel na língua.

     Não era difícil adivinhar o jogo de sir Colin. Cormac lutou contra a fúria. Lutar exigia a cabeça fria, lógica. Um pouco de emoção para dar incentivo era aceitável. Precaução e cuidado eram também uma boa coisa. Raiva, não. Raiva causava descuido, cegava, roubava a perícia de um homem.

     Cormac sabia disso tudo, e repetiu a si mesmo sem cessar. Não ajudou muito. Cada palavra venenosa vinda da boca de sir Colin alimentava seu ódio. A simples idéia de que ele vira a beleza de Elspeth em toda a plenitude o fazia ansiar por matar aquele homem. Pensar que pudesse tê-la tocado, provado aquela pele macia, o sacudia com o ímpeto de retalhá-lo em pedacinhos.

     Elspeth podia ver a luta em que Cormac se empenhava. A raiva estava vencendo, e era exatamente isso que sir Colin queria. Ela precisava de alguma forma, eliminar o poder do veneno de sir Colin, quebrar o encanto que ele lançara com tamanha esperteza.

     - Ora, cale a boca, sir Colin! - Elspeth exclamou, num tom irritado. - Fica se gabando de falsas conquistas como um rapazinho que ejacula nos lençóis ao encarar a primeira mulher.

     O olhar de espanto na face de sir Colin quase fez Cormac soltar uma gargalhada. Ainda sentia raiva, mas as palavras cruas e duras de Elspeth tinham trazido de volta seu bom senso. Ela não se salvaria se ele fosse morto ao ceder à virulência do ciúme. Ali estava a chance de pôr um fim à ameaça, e Cormac não podia fracassar.

     Sir Colin investiu e Cormac bloqueou o golpe. E depois se empenhou na luta. Num dado instante, conseguiu aproximar-se da cama e cortar as cordas que prendiam um dos pulsos de Elspeth. Esperava que, assim, ela pudesse se libertar sozinha. Pressionou sir Colin até que o encurralou num canto.

     Ignorando as dores no corpo, Elspeth esforçou-se para soltar as cordas do outro pulso. O tinir das espadas, os resmungos e pragas dos homens eram um pano de fundo preocupante enquanto, lentamente, ela soltava os nós. Suas pernas e braços latejavam, os hematomas doíam, e os pulsos e tornozelos formigavam esfolados pela fricção das cordas apertadas, mas Elspeth ignorou tudo isso. Quando se viu livre, por fim, pegou a veste no chão, onde sir Colin a jogara, e enfiou-se nela. Olhou para os dois homens e pensou se haveria algo, qualquer coisa que pudesse fazer para ajudar Cormac.

     Tapou a boca com a mão para sufocar um grito quando a espada de sir Colin rasgou o braço direito de Cormac. Era um corte raso que ia do ombro ao cotovelo, mas sangrava muito. Elspeth sabia que a perda de sangue poderia enfraquecer um homem. E lhe roubar a força do braço da espada, dando a sir Colin uma vantagem fatal.

     Cormac passou a espada para a mão esquerda e continuou lutando sem parecer perder a perícia. Mas ainda sangrava muito.

     Então, Elspeth arregalou os olhos quando viu o que temia: um ligeiro passo em falso, Cormac e perdeu a elegância letal com que lutara até então. Sir Colin também notou, pois sorriu. Antes que ela pudesse fazer alguma coisa para ajudar, sir Colin atingiu-o na perna. Elspeth abafou um grito de pavor quando Cormac tropeçou e caiu. Sir Colin investiu ansioso para desferir o golpe fatal, mas Cormac rolou para longe. Colin praguejou e atacou de novo. Julgava o adversário derrotado, assim, deitado de lado, lutando para rastejar e se afastar do perigo. Ergueu a espada. Um erro. Cormac agiu tão depressa que até Elspeth arquejou. Virou-se e, num único e ágil movimento, enterrou fundo a espada no peito exposto de sir Colin.

     Elspeth sentiu que tudo se imobilizava, até sua capacidade de respirar. Por um horripilante momento, sir Colin ficou parado, a espada ainda erguida em posição de ataque, a olhar com incredulidade para a lâmina que lhe transpassava o peito. Então, sua arma caiu e ele desabou no chão. Cormac mal conseguiu livrar a própria espada antes de se desviar da queda do corpo de sir Colin.

     - Cormac! - Elspeth gritou, vendo-o cair de costas no chão.

     Ajoelhou-se perto dele, e Cormac agarrou-lhe a mão. Embora tonto e fraco pela perda de sangue, e consciente da dor lancinante dos ferimentos, estava interessado apenas em uma coisa. Tudo o mais poderia esperar até que ouvisse a confirmação dos próprios lábios de Elspeth.

     - Cheguei tarde demais?

     - Não - ela murmurou. - Eu me debati como um salmão fisgado, e sir Colin não fez mais do que me estapear um pouco. Foi bastante desagradável, mas irei me recobrar. Depois, ele exagerou no soco. O meu desmaio não lhe agradou. Queria me humilhar, estando eu plenamente consciente.

     - Graças a Deus! - Cormac fechou os olhos. - Acho que preciso descansar um pouco.

     - Consegue chegar até a cama?

     - Ajude-me. - Ele sufocou um gemido quando Elspeth o ajudou a ficar de pé.

     Cambaleando um pouco, ela o levou até a cama.

     - Agora, descanse que eu vou cuidar destes ferimentos.

     Só quando abriu os olhos e viu Elspeth enrolando um pano de linho em torno do ferimento limpo e costurado em sua perna, é que Cormac se deu conta de que havia desmaiado. Percebeu que estava nu e limpo e também tinha uma atadura no braço. Era evidente que ficara sem sentidos por um longo tempo. Um olhar rápido pelo quarto revelou o corpo de sir Colin coberto por um lençol.

     - Ah, ótimo - murmurou. - Ganhei.

     Ao cobri-lo com uma manta, Elspeth meneou a cabeça.

     - Fiquei muito preocupada ao tentar estancar a sua hemorragia, Cormac. Você quase se esvaiu em sangue.

     Ele esboçou um sorriso e ergueu a mão esquerda para afagar o rosto machucado de Elspeth.

     - Lutou muito, não é, meu anjo?

     - Claro. - Ela suspirou ao sentar-se na beira da cama. - Eu sabia que não poderia vencer, mas lutei. E sir Colin me bateu com força. Quando recobrei a consciência, percebi que ele havia tirado vantagem disso. E ao me ver amarrada e nua - Elspeth estremeceu -, senti-me tão indefesa... Embora soubesse que teria de me resignar a ser violentada, conseguia manter a calma por estar lutando. Isso ajudava, não sei por quê. Se ele me estuprasse quando eu estava sem poder me defender, acho que isso me destruiria.

     - Talvez lutar até o amargo fim fizesse com que você não sentisse que havia perdido de todo a honra, Elspeth. Sir Colin revelou o motivo de tudo isso?

     - Foi porque eu o recusei. Achou que me concedia a maior das honras pedindo que fosse sua esposa, e eu o rejeitei. Disse que eu era uma opção medíocre, e que o sacrifício que fez ao pensar em se casar comigo merecia minha humilde gratidão. Minha recusa foi um insulto insuportável. E ele também achava que eu tinha algum dom especial.

     - Um dom?

     - Sim. - Ela sorriu. - De fato, eu sou capaz de captar o que as pessoas sentem. Com sir Colin, pude sentir a crueldade latente, embora ele falasse com gentileza e sorrisse com doçura. É difícil explicar.

     - Sei o que quer dizer. Sente mais do que sabe sobre as pessoas. Ou vê. Ou fareja. O que importa? Você consegue enxergar além das máscaras. É um belo dom.

     - Oh, realmente. Um dom herdado de minha mãe, que diz que o meu é mais apurado que o dela. Ajudou minha família a escapar de uma ou duas armadilhas. E às vezes me ajuda no trabalho de cura, pois eu posso sentir onde a dor se localiza. Infelizmente, capto também quando uma pessoa ou um animal está morrendo. Há uma expressão no olhar, um cheiro, uma sensação na pele, algo que me diz isso, que mesmo que a pessoa lute com tudo que tem, não pode ganhar. Logo morre. Tentei não permitir que muitas pessoas soubessem desse fato. Mas sir Colin tinha conhecimento da maior parte do que posso fazer e queria isso para si, a fim de conquistar poder e riqueza.

     Cormac lutou para sentar-se, mas Elspeth o empurrou para baixo, e ele se admirou com a facilidade com que ela conseguiu.

     - Devemos voltar para a vila. Deixei lá todos os nossos pertences, o bebê e o gato. E o seu cavalo.

     - A que distância estamos de lá? - Elspeth perguntou ao se levantar para preparar um sonífero.

     - Um quilômetro e meio, talvez menos. Fiquei muito surpreso que sir Colin parasse tão perto.

     - Então, irei até lá e pegarei tudo.

     - Não, não podemos ficar aqui. A menos que... Será que sir Colin matou a pobre alma que vivia nesta choupana?

     - Não, foram os moradores da vila. Esta é a casa da mulher que eles consideravam bruxa.

     - O nome dela era Anne Seaton. Então, agora pertence ao bebê.

     - Sim, e nós a usaremos até que você esteja forte o bastante para viajar. - Elspeth passou o braço pelos ombros de Cormac e ajudou-o a sentar-se para beber o chá que ela fizera. - A mulher era prima de sir Colin MacRae.

     - O sangue não mente. Anne não era uma boa pessoa, embora não merecesse a morte que teve.

     - Sir Colin contou que existem corpos enterrados por aqui. A mulher abortou alguns fetos e, se não conseguia, matava os bebês logo que nasciam. Sir Colin insinuou que há um ou dois homens sepultados também. Por alguma razão ela quis que aquele bebê vivesse. Beba isto.

     - O que é essa coisa horrível?

     - Algo para aliviar a dor.

     Cormac bebeu, fazendo caretas com o gosto amargo.

     - Ela manteve o bebê vivo para atormentar o pai. Não o batizou porque, como disse ao padre, muitas vezes os bebês morrem, e Anne queria que o pai soubesse que o filho tinha morrido sem nome e sem a absolvição dos pecados. Elspeth, que o ajeitava na cama, estremeceu a ouvir essas palavras.

     - Nossa não era mesmo uma boa mulher.

     - Vai contar aos moradores da vila?

     - Detesto dar a eles motivo para pensar que o que fizeram foi justo, mas vou ter de contar. Se há um ou dois homens enterrados atrás desta cabana, pode haver uma família preocupada, ansiosa para saber qual foi o destino dessa pessoa.

     Cormac começou a se sentir atordoado.

     - Este chá não é para a dor, certo?

     - Não, vai fazer você dormir um pouquinho - Elspeth informou, sorrindo quando ele deixou cair a cabeça, já mergulhado no sono. Então, ela se apressou em se vestir.

     Ao procurar pelo cavalo de Cormac, encontrou os corpos dos outros guardas e suspirou. Seus problemas tinham manchado as mãos de Cormac de muito sangue. Tentou consolar-se por saber que fora em defesa própria, uma luta pela vida e pela honra. Os homens eram mercenários da pior espécie que só se importavam com dinheiro.

     A jornada até a vila exigiu toda a sua coragem. Era fim de tarde, e Elspeth teve de lutar contra a impressão de ver o perigo em qualquer sombra. Ao entrar na hospedaria, sorriu ao ver os olhares de espanto do dono e da esposa. Sabia que estava horrível com o vestido rasgado e o rosto coberto de hematomas, mas acertou a conta com calma e foi recolher suas coisas, o bebê e Barrento.

     - Oh, senhora! -gritou Dorcas quando Elspeth entrou no quarto. - O que aconteceu e onde está seu lindo marido?

     - É uma longa e atribulada história, Dorcas. Fui raptada, e sir Cormac me resgatou. Está ferido e, portanto, preciso pegar nossas coisas, o bebê e o gato. - Barrento exigiu sua atenção com um miado alto. - Você é um bom gato - disse e coçou-lhe a cabeça. - Tentou proteger o bebê, não é?

     - Ele fez isso. - Dorcas mostrou os arranhões no braço. - Até de mim.

     - Sinto muito.

     - Não, o gato não queria me fazer mal, e seu marido o acalmou depressa.

     - Você é uma boa alma por ter cuidado do bebê.

     - É só um bebezinho, não é? Moreno como o próprio diabo, é verdade, mas apenas uma criancinha. Foi errado o que fizeram.

     - Para o bebê, foi. Começo a pensar que a mãe merecia ser enforcada. É pena que a justiça tenha sido feita pelas razões erradas. Poderia ir buscar o padre, Dorcas? Tenho algumas coisas para contar a ele.

     Quando Dorcas voltou com o jovem padre, Elspeth já havia arrumado a bagagem e estava pronta para partir. E ao contar a ele o que soubera sobre Anne Seaton e tudo que acontecera com ela e Cormac, receou que o padre desmaiasse. O pobre sacerdote jamais pensara que fosse obrigado a lidar com coisas tão horríveis numa vila tão pequena. Disse a Elspeth que iria até a cabana pela manhã com alguns homens. Ela, então, pediu-lhe que batizasse a criança, a quem deu o nome de Alan, indicando os primos Payton e Sorcha como padrinhos. Depois de agradecer a Dorcas, deu ao padre algum dinheiro e seguiu de volta para a cabana, com a escuridão a cobrir quase tudo.

     - Onde esteve? - indagou Cormac, quanto Elspeth cambaleou para dentro, carregando Alan e o gato.

     Ele conseguira sentar-se e tentava sair da cama.

     - Você não dormiu por muito tempo, afinal. - Ela pôs Barrento no chão e entregou o bebê a Cormac. - Deixe-me pegar nossas coisas e os cavalos, antes que comece a brigar comigo.

     Tonto e fraco, Cormac teve medo de derrubar a criança. Deitou-se de costas com cuidado e acomodou o bebê contra o peito. Quando Barrento saltou para a cama, ele sorriu. Era estranho, mas, apesar da dor dos ferimentos, Cormac se sentia feliz, como se tudo agora estivesse como deveria ser e ele pudesse descansar.

     Assim que Elspeth acabou de trazer as coisas, de cuidar dos cavalos, de acomodar Alan na cama e de verificar os ferimentos de Cormac, despiu-se e enfiou-se na cama. Não havia um centímetro em seu corpo que não doesse. Apesar disso, ela estava contente, pois os hematomas roxos e as marcas feias das cordas não eram ferimentos que precisassem de maiores cuidados. Tomou a mão de Cormac e contou-lhe tudo que havia feito enquanto estivera na vila.

     - Alan. Um bonito nome - concordou Cormac ao abraçá-la pelo ombro e puxá-la para si. - Pobre menina... Está exausta. - Beijou-a no alto da cabeça. - E pobre de mim. Eu tinha tantos planos amorosos para esta noite...

     Elspeth riu e depois bocejou.

     - Eu também. Mesmo que não estivesse toda dolorida, estou cansada demais para isso.

     - E eu começaria a sangrar em cima de você.

     Ela beijou-lhe o peito e depois esfregou a face contra a pele quente, aliviada pelo fato de Cormac estar vivo e ao seu lado.

     - Acabou...

     Cormac apoiou o queixo nos cabelos de Elspeth.

     - Você está segura, agora.

     - Acha que os parentes do clã de sir Colin ou o seu herdeiro buscarão vingança?

     - Não. O herdeiro é o rapaz com quem, a esta altura, minha prima Mary está casada. Ele me pareceu um moço sensato. E não acho que o clã vá chorar muito sobre o túmulo de sir Colin. Não é segredo o que ele fez com você e o que ainda pretendia fazer. Descanse meu anjo. Receio que tenha muito trabalho amanhã, pois acho que não serei de muita ajuda.

     - Você poderia dar as explicações aos homens que o padre mandar.

     - É justo. Vai contar a Alan sobre a mãe quando ele tiver idade?

     Elspeth suspirou.

     - Não sei. Não é uma história que alguém queira saber a respeito da própria mãe. Por outro lado, todo mundo aqui sabe a verdade, então o que se ganharia em escondê-la? Acho que estou muito cansada para pensar nisso agora. Bom sono, Cormac.

     - Bom sono, meu anjo.

     Cormac sorriu ao ver como Elspeth adormeceu depressa em seus braços. Então, encarou-a, pensativo. Sua vida se tornara muito complicada desde que a havia encontrado. Uma parte dele desejava desistir da jura e fugir com Elspeth. Mal conseguia se recordar das emoções que o tinham levado a se comprometer com Isabel, anos antes. Contudo não poderia renegar o juramento. Seus pais haviam feito de tudo para manchar o nome da família. Jogavam, se prostituíam, procriavam e abandonavam os filhos, tinham levado sua gente praticamente à miséria, e eram conhecidos como mentirosos e trapaceiros. Cormac decidira havia muito tempo que mostraria ao mundo que nem toda a família dele era tão desonrada, e fizera o melhor para que seus irmãos compreendessem o valor de honrar a palavra empenhada. Dera sua palavra a Isabel, jurara amá-la e honrá-la. Manteria o juramento. Não poderia decepcionar Isabel. Não poderia decepcionar a si próprio. Embora no momento estivesse profundamente confuso a respeito de seus sentimentos, estava seguro de uma coisa: fizera uma promessa e a cumpriria.

    

     Levou mais de um dia para tudo fosse resolvido. Às vezes Elspeth sentia um impulso extremo de pedir a todos para que fossem embora, porém sabia que os crimes de Anne Seaton precisavam ser confirmados, e também a história que ela e Cormac contaram de como sir Colin e seus guarda-costas haviam morrido. Os corpos de dois homens e de três bebês foram encontrados enterrados na horta de Anne. O coração de Elspeth se condoeu por eles, mas, sobretudo pelo pobre Alan. Precisaria saber a verdade sobre a mãe algum dia, e seria uma verdade dura de aceitar. Ela teria de assegurar que o menino fosse profundamente amado. Isso suavizaria o golpe e faria Alan compreender que os pecados da mãe eram só dela, que ele não tinha culpa e nenhuma mancha a carregar por isso.

     Os homens do senhor do feudo providenciaram os papéis necessários para mostrar que a cabana e as terras agora pertenciam a Alan. Não era muito, porém mais do que a maioria dos bastardos possuía. Elspeth tentou conseguir o nome do pai, mas não obteve nenhuma nova informação. Os servos do lorde se recusaram a lhe contar quem comprara a cabana e a terra para Anne Seaton, pois era um assunto confidencial. Elspeth comprometeu-se a dizer que se o lorde julgasse que poderia lhe fornecer o nome, mandaria a informação para Donncoill. Depois de tudo regularizado, Elspeth não tinha intenção de deixar que qualquer um adotasse Alan, a menos que ela aprovasse e tivesse certeza de que o menino seria amado.

     Cinco dias se passaram antes que Elspeth e Cormac finalmente se vissem sozinhos outra vez. Embora não tivessem feito amor, ela sentia que estavam mais próximos do que antes. E Elspeth finalmente começara a conhecer Cormac melhor e saber de seu passado. Apesar de o nome de Isabel surgir ocasionalmente na conversa, parecia apenas uma parte de um conto, mencionado às pressas e logo esquecido.

     No sexto dia, quando Elspeth voltou com a água que havia ido buscar e encontrou Cormac vestido e de pé, percebeu que o tempo que ambos tinham passado na cabana chegara ao fim. Cormac ainda estava sem firmeza, mas Elspeth percebeu que ele insistiria que tinha forças suficientes para viajar os derradeiros quilômetros até a Corte do rei e, conseqüentemente, até Isabel.

     Ela tentou se convencer de que Cormac estava com pressa porque era lá que dissera à sua família para encontrá-la. Mas não adiantou. Não acreditava em si mesma. Nutrira esperanças de que ele pudesse ficar na cabana até estar bem o suficiente para fazerem amor pelo menos uma vez mais antes de confrontar o problema com Isabel, porém era evidente que isso não iria acontecer.

     - Você vai cair de cara no chão! - Elspeth exclamou ao colocar o balde de água sobre a mesa.

     - Não estou tão fraco assim. - Cormac sorriu e sentou-se na cama. - Posso montar. Não temos muito a percorrer.

     - Por que não esperar mais um dia? Ou dois? Esse ferimento na sua perna foi profundo, e você perdeu muito sangue. Está certo, recuperou um pouco da sua força, mas se tentar cavalgar agora, pode facilmente pôr tudo a perder.

     - Então descansarei quando chegar lá. - Cormac suspirou e passou os dedos pelos cabelos. - Paul e Owen já devem ter entregado a nossa mensagem à sua família. E o seu pessoal pode estar procurando por você. Se não estivermos na Corte, como dissemos que estaríamos eles podem partir para as terras de sir Colin, sedentos de sangue. Se chegarem e não a encontrarem, o conflito que nós evitamos pode começar antes do tempo. Você não quer isso, quer?

     - Não, claro que não. Então, partiremos pela manhã?

     - Sim. Às primeiras luzes.

     Quando se enfiou na cama ao lado de Cormac, naquela noite, Elspeth agarrou-se a ele e lutou para controlar as lágrimas. Amava-o tanto que não podia acreditar que não fosse correspondida. Uma paixão tão forte como a que compartilhavam tinha de nascer do amor. Rezou para que fosse suficiente para afastá-lo de Isabel, pelo menos.

     Em todas as conversas, Elspeth soubera uma coisa bastante perturbadora: os pais de Cormac eram pouco mais que imprestáveis ladrões e mentirosos. Sentiu pena dele e dos irmãos, desprezados e envergonhados pela má fama da família. Mas o que a preocupava era que Cormac parecia achar que o fardo de restaurar a honra da família repousava em seus ombros largos.

     Cormac se afligia tanto com a honradez que nem mesmo considerava a possibilidade de quebrar um juramento. Não era apenas sua própria integridade que ele precisava desesperadamente preservar, mas a de seus irmãos. Seus pais tinham feito do nome do clã uma piada, e Cormac estava cegamente determinado a mudar esse conceito. Para ele, qualquer vacilo significava trilhar o mesmo caminho dos pais, coisa que jamais faria. Não havia cinza para Cormac, apenas preto e branco. Ou a palavra era mantida e, em conseqüência, a honra, ou negavam-se ambos.

     O que significava, Elspeth pensou, ao lutar contra a vontade de chorar, que a promessa por ele feita a Isabel era tão firme como se tivesse sido gravada em pedra.

    

     - Eu lhe disse que era bobagem subir no lombo de um cavalo tão cedo! - Elspeth esbravejou ao ajudar um pálido e suado Cormac a se deitar na cama.

     Mal tinham conseguido chegar à hospedaria. A cada metro dos últimos três quilômetros, ela receava que Cormac caísse do cavalo.

     - Pode não ser a coisa mais ajuizada que já fiz - concordou ele, com um débil sorriso, enquanto Elspeth lhe tirava as roupas. - Pode me chamar a atenção alto e bom som, meu anjo. Creio que sou homem suficiente para agüentar.

     Ela apenas meneou a cabeça enquanto trocava as ataduras, limpava e passava ungüento nos ferimentos, antes de cobri-los de novo com tiras limpas de linho. Os olhos de Cormac estavam fechados quando Elspeth acabou, porém a cor na face pálida melhorara. Cobriu-o com as mantas, aborrecida com a teimosia que ele demonstrava. Contudo sentia-se profundamente aliviada de que Cormac não tivesse causado a si próprio qualquer problema mais sério.

     Elspeth voltou a atenção para as necessidades do pequeno Alan. Mas não deixou de pensar nas razões que haviam levado Cormac a arriscar a saúde para prosseguir na viagem. Alegara que era para ela se encontrar com a família, para assegurar que os Murray não entrassem em choque com o clã de sir Colin.

     Elspeth, porém, sabia que ela o retardara na pressa de atender ao chamado de Isabel. E o fizera hesitar, mas não tinha certeza de que o impediria de voltar para aquela mulher.

     Quando Cormac dormiu depois da refeição que a criada trouxe, Elspeth se permitiu um banho demorado, o que a deixou feliz, embora se sentisse um pouco abandonada. Ao se enfiar na cama ao lado dele, ouviu-o murmurar seu nome, em meio ao sono; em seguida, Cormac passou o braço em torno dela e puxou-a contra o peito.

     "Ele me procura em seus sonhos", Elspeth pensou, e tentou encontrar algum lampejo de esperança na idéia.

    

     Cormac pestanejou quando a luz do sol feriu seus olhos. Custou um momento para se ajustar à claridade e, ao olhar ao redor, reconheceu a hospedaria em que ficara tantas vezes antes, distante apenas poucos quilômetros da Corte. Elspeth trajava um belo vestido verde e acabara de trançar os cabelos. Alan resmungava no berço, que fora trazido da cabana, a brincar com os dedinhos do pé. Barrento se esparramara de costas ao sol, aos pés da cama, com um ar preguiçoso. Cormac sorriu. Era um grupinho estranho, cuja visão o enchia de contentamento.

     - Ah, finalmente você acordou! - Elspeth exclamou, com um sorriso, ao se aproximar da cama.

     - Não, deixe-me tentar me sentar sem ajuda. - Cormac sentiu várias pontadas de dor, porém estava mais forte que nos outros dias. - Por quanto tempo eu dormi?

     - Bem, caiu no sono logo que chegamos. Depois, acordou ontem, para comer, e um criado o ajudou nas suas necessidades. E, em seguida, dormiu a noite inteira. Estamos na metade de nosso segundo dia aqui.

   - Deus do céu! - Ele meneou a cabeça. - Não é de admirar que eu esteja morrendo de fome.

     - O rapaz deve aparecer logo com a comida, e, se você quiser, pedirei que o ajude a se lavar um pouco.

     - Ah, seria ótimo. - Cormac franziu a testa quando Elspeth prendeu a capa nos ombros. -- Aonde vai?

     - Para a Corte. É o melhor lugar para dar notícias aos meus parentes, não acha?

     - Oh, claro. - Cormac aborreceu-se por sentir, no íntimo, que ela o abandonava e parecia ansiosa demais para deixá-lo. - Seria melhor falar com alguém que conheça a sua família. Um parente talvez. - Preocupou-se ao imaginar Elspeth a vagar sozinha entre todos aqueles cortesões lascivos. - Quem sabe você deva esperar até que eu possa acompanhá-la.

     Ela riu baixinho e o beijou na face.

     - Estarei bem. Se quiser, o rapaz pode olhar Alan, apesar de que o bebê logo vai adormecer, e eu não pretendo me demorar.

     Assim que Elspeth saiu, o filho do hospedeiro, Robbie, entrou carregando uma grande bandeja de comida. Cormac pôs de lado as preocupações enquanto cuidava das necessidades pessoais, enchia o estômago vazio e depois se entregava a um banho vigoroso como alguém poderia ter, sem uma banheira. Sentiu-se ligeiramente cansado depois de toda essa atividade, e isso lhe agradou. Um sono longo e ininterrupto fora, obviamente, tudo de que ele precisava. Com a ajuda de Robbie, andou em torno do quarto algumas vezes até que percebeu que se apoiava no rapaz mais do que deveria.

     Voltou para a cama exausto, porém contente. Levaria uns poucos dias mais antes que pudesse andar mais longe e recuperar as forças. Estava se curando com uma rapidez aceitável. Depois de um curto descanso, percebeu que uma coisa certamente recobrara. Fazia tempo desde que ele e Elspeth tinham feito amor, e ansiava por ela. Seu braço estava praticamente cicatrizado. Era a perna que causava mais desconforto, mas, mesmo assim, Cormac sorriu. Elspeth teria de fazer a maior parte do esforço.

     Quando Robbie ia sair, Cormac olhou para os cabelos loiros do rapaz e, de repente, recordou-se do motivo pelo qual viera até aquele lugar. Isabel. Suspirou e pediu ao jovem que lhe trouxesse uma pena, tinta e uma folha de pergaminho. Em questão de momentos, escrevia um curto bilhete para Isabel, e mandou o Robbie entregá-lo. Em seguida, deitou-se, fitou o teto e imaginou por que se sentia como se estivesse traindo Elspeth.

    

     Elspeth tinha uma expressão fechada ao abrir caminho pela multidão que parecia estar em toda parte no pátio do castelo, pelos corredores e aposentos da Corte do rei. Logo quando começou a pensar que perdia seu tempo, que não haveria ninguém naquele bando de pedintes bem vestidos que pudesse levar uma mensagem, avistou seu primo adotivo, James Drummond. Ela atravessou a multidão e soltou um suspiro de alívio quando conseguiu alcançá-lo assim que ele ia se afastar com dois outros homens.

     - James! - Elspeth gritou, correu e o agarrou pelo braço.

     - Deus do céu, Elspeth! - Ele riu, abraçou-a e a beijou em cada face. - Ouvi umas histórias horríveis sobre você... tão preocupantes que eu estava de partida para Donncoill a fim de saber o que havia de errado. - Olhou para os dois companheiros. - Talvez nos encontremos mais tarde, rapazes.

     Depois que os dois homens se afastaram, Elspeth olhou para o belo primo e esboçou um sorriso.

     - Não me apresentou aos seus amigos, James. - Seu sorriso alargou-se quando ele enrubesceu e pareceu um pouco constrangido. - Libertinos?

     James suspirou e concordou.

     -Bons amigos, e eu confiaria neles para proteger minhas costas numa briga.

     - Mas não tem certeza de que confiaria neles perto de qualquer das moças da família. - Elspeth riu quando James concordou com relutância. Então, tomou coragem e ficou séria. Por fim, perguntou: - Tem alguma notícia de Payton?

     - Bem, ouvi uns murmúrios de que estava morto, o que fez muitas mulheres chorar, mas não acreditei.

     - Não quero acreditar também, porém o vi caído com uma flechada. - Elspeth fez a James um breve relato de seus problemas com sir Colin e recebeu em troca um abraço de conforto.

     - Todos sabem que estou aqui, Elspeth. Se Payton estivesse morto ou ainda desaparecido, eu teria ouvido falar alguma coisa.

     - Você não sabia nada sobre mim.

     - Ah, bem, suspeito que seja porque, embora possam pensar que ainda esteja com sir Colin, sabem que está viva. Eu seria avisado se Payton estivesse morto ou se houvesse uma caçada para encontrá-lo.

     - Tem toda a razão. Se Payton tivesse sido morto ou ainda se encontrasse desaparecido, nossa família não deixaria você aqui se divertindo com os seus amigos libertinos.

     - Libertinagem pode ser um trabalho duro, moça - James retrucou, com uma risada, e Elspeth o olhou com cara de desgosto. - Agora, preciso encontrar um lugar para você ficar.

     - Eu tenho um quarto, James - ela disse, e esperou que ele deduzisse o resto.

     - Elspeth, você não pode dividir um quarto numa hospedaria com aquele homem - observou James, num tom baixo, e observando as pessoas ao redor para ter certeza de que ninguém os ouvia. - Sabe o que vão pensar.

     - Sim, eu sei. - Ela deu de ombros, e seu olhar foi atraído para uma loira voluptuosa que a encarava com demasiada intensidade. - Não me importo. Ficarei com Cormac.

     James a fitou por um longo instante; então, praguejou.

     - É o tal, não é?

     Elspeth sorriu um pouco triste, ao concordar.

     - É.

     - Bem... dizem que está profundamente envolvido com uma mulher. Faz anos, só Deus sabe por quê.

     - Sei disso. Lady Isabel Douglas, viúva de quatro maridos. Ligou-se a ela por um juramento quando ainda era um rapaz, mas tolice da juventude ou não, Cormac acredita piamente em manter uma promessa. - Elspeth meneou a cabeça. - Compreendo... e o bom senso me diz para ficar distante dessa confusão.

     - Mas não teve nenhum bom senso.

     - Oh, sim, tive, porém o ignorei. Eu o amo. Acho que o amo desde que era criança. Esse pode ser a maior e a mais idiota confusão em que me meti, mas tenho de tentar. Pode entender isso, James?

     - Sim, posso entender. Qualquer homem seria tolo de deixá-la de lado por uma mulher como lady Isabel, mas, querida, penso realmente que você pode ter entregado seu coração a um tolo.

     - Bem, há umas poucas coisas que aprendi desde que isso começou e que, se as soubesse desde o início, me fariam hesitar. - Então, meneou a cabeça. - Não, mesmo assim eu teria me arriscado. - Então, Elspeth viu o jovem Robbie, da hospedaria, aproximar-se da loira belíssima e lhe entregar um pergaminho. - Quem é aquela mulher? Aquela loira com o rapaz claro do lado?

     - Ora, é a famosa lady Isabel. Elspeth, você está doente? Ficou pálida...

     Realmente, Elspeth se sentia doente. Sabia, no fundo do coração, que Cormac enviara uma mensagem a Isabel. Ele não desistira daquela mulher. Tomara que procurasse encontrar-se com Isabel para pôr um fim àquele caso longo e complicado, pensou Elspeth, mas não ousava alimentar tal esperança.

     - Acho que estou apenas cansada. - Beijou a face de James e podia afirmar, pelo olhar de simpatia nos olhos do primo, que ele sabia exatamente o que a afligia. - Tenho certeza de que iremos nos ver de novo enquanto ambos estivermos por aqui. Apenas faça a família saber que tudo está bem, se alguém chegar e o encontrar.

     - De acordo. Elspeth tome cuidado. Isabel não é mulher com quem deve cruzar espadas. Muita gente acredita que ela matou pelo menos um, se não todos os maridos. É uma vadia, mas uma vagabunda esperta. Deitou-se com praticamente todo homem poderoso da Corte e não hesita em usá-los em proveito próprio. Isabel pode destruir você.

     - Eu sei. E, na verdade, Isabel poderia ser capaz de dar ordens ao próprio rei e, ainda assim, isso não importa. Ela só precisa fazer uma coisa.

     - Ah, deitar-se com o seu belo cavaleiro.

     - Bem, sim, isso também pode ser. - A simples idéia de Isabel e Cormac unidos num abraço apaixonado fez a náusea subir pela garganta de Elspeth. - Na verdade, eu estava pensando que tudo que ela precisa fazer é prender Cormac ao seu juramento. - Elspeth viu Robbie ir embora. - Eu o verei mais tarde, James. Não se preocupe comigo.

     - É mais fácil falar do que fazer - ele resmungou ao olhar Elspeth se afastar, percebendo quanto lady Isabel a observava atentamente.

    

     Elspeth desabou contra a parede fria da estalagem e tentou controlar as emoções tumultuadas. Tinha alcançado Robbie, e já que ninguém pedira segredo, o rapaz lhe contara que Cormac realmente havia mandado um bilhete a Isabel, e o que esta dissera em resposta. Sem se fazer de rogado, ele tinha desfiado um rosário de fofocas a respeito da mulher. E Elspeth pensou na cegueira de Cormac. Quando até mesmo rapazes imberbes sabiam quem era Isabel, já estava na hora de ele prestar atenção. Embora Robbie não tivesse idéia do que Cormac escrevera, a resposta de Isabel havia sido o bastante para dar a Elspeth uma boa idéia. Cormac contara a Isabel que se encontrava ali, tinha atendido ao seu chamado e estava pronto para encontrar-se com ela. E Isabel lhe dissera que ele não deveria procurá-la; ela o mandaria buscar. Umas poucas moedas foram suficientes para fazer Robbie jurar que não contaria a Cormac sobre a conversa que Elspeth e ele tinham tido.

     Elspeth lutou para sufocar a mágoa e a raiva. Ainda existia uma chance de ganhar a batalha. O instinto lhe dizia que Isabel nunca deixaria Cormac livre, mas ele poderia estar preparado para terminar aquele longo relacionamento. Apesar das crenças que ele nutria, será que realmente se agarraria a uma jura que lhe proporcionara tão pouco depois de dez longos anos?

     Elspeth endireitou-se e respirou fundo para reunir coragem. Ainda tinha uma chance. Até que Cormac optasse por Isabel, era tolice desistir. Bobagem julgar que uma troca de recados significasse que ela perdera a parada. Elspeth empinou o queixo e rumou para a porta da hospedaria. Teria uma noite, talvez mais, para deixar sua marca. Mesmo que estivesse prestes a ser dispensada por causa de uma antiga amante e de um velho juramento, não desperdiçaria o pouco tempo que lhe restava com Cormac. Isabel não estava na cama com ele ainda, e Elspeth planejava ocupá-la completamente.

     Quando entrou no quarto, encontrou Cormac a fitar o teto, de cara fechada. O recado de Isabel obviamente não lhe agradara. Ótimo. Talvez, em sua arrogância, a mulher tivesse dado um passo em falso. Qualquer homem se sentiria humilhado em ser chamado e depois mandado esperar. Elspeth não alimentaria esperanças, viveria o rnomento.

     Cormac viu quando Elspeth tirou o manto e depois se aproximou do berço do pequeno Alan, que dormia. Agora, que fizera contato com Isabel, conseguia enxergar o caminho mais claramente. Elspeth era como a febre em seu sangue, mas Isabel era a mulher que ele amava fazia dez anos. Nutria sentimentos por Elspeth, não poderia negar. Estava, sem dúvida, enrabichado pela garota, mas isso não poderia fazê-lo quebrar sua palavra. No entanto, ainda que tudo parecesse tão racional, pouco adiantava para acalmar sua repentina inquietude.

     Assim que Elspeth lhe contou sobre o encontro com o primo James, na Corte, Cormac se tranqüilizou. O resto do dia transcorreu entre conversas agradáveis, brincadeiras com Alan e uma excelente refeição. Mas quando Elspeth acomodou o bebê no berço, Cormac sentiu suas incertezas retornarem. Percebia-se à beira de um precipício, com um vento perigosamente forte a empurrá-lo pelas costas.

     Acabara de arranjar um encontro com a mulher com quem estava envolvido por dez anos, uma mulher livre agora e com quem havia jurado se casar. Contudo, ao observar Elspeth se despir, percebeu que continuava com o plano de se permitir uma longa noite cheia de luxúria com ela. Recordou-se que Elspeth tinha se enfiado em sua cama, sem pedir promessas. Ela compartilhava a paixão que o devorava e nunca o pressionara por algo mais. E Elspeth também sabia tudo a respeito de Isabel e da jura que ele fizera. Apesar de se lembrar de tudo isso, quando Elspeth deslizou para o seu lado e ele a tomou nos braços, teve a sensação pavorosa de estar traindo alguém. Quem? Isabel, porque sentia tamanho desejo por Elspeth e já pensara em romper o voto por causa desse desejo? Ou Elspeth, porque se deitava com ela, embora soubesse que logo teria de abandoná-la?

     - Parece preocupado, Cormac - Elspeth murmurou ao se aconchegar, sentindo o calor do corpo dele.

     - Eu? Ora, talvez seja porque estou ardendo de desejo, mas não creio que tenha força ou capacidade de saciar essa fome - ele resmungou, deslizando as mãos pelas costas de Elspeth e acariciando-lhe as nádegas firmes.

     Ela o tocou no ventre liso, a sorrir com o jeito que Cormac estremecia ao contato. Ao escorregar a mão mais para baixo, encontrou-o rijo e ereto, a ansiar por ela. Quase preguiçosamente, acariciou-o, e adorou ouvi-lo descrever em murmúrios o prazer que sentia o jeito com que a respiração de Cormac se tornava arquejante, as batidas do coração a se acelerarem.

     Não duvidava do desejo de Cormac. O último lance do jogo seria usar essa paixão em toda sua plenitude, deleitar-se nela e forçá-lo a fazer o mesmo. Iria deixá-lo tão saciado, tão cheio de lembranças tórridas e deliciosas que ele nunca se livraria dela, não importava quanto se afastasse.

     Cormac gemeu quando Elspeth começou a lhe cobrir o ventre com beijos suaves e afagos provocantes com a língua. Ele enterrou os dedos nos cabelos fartos de Elspeth e afastou-os para que pudesse desfrutar aquela deliciosa visão. Não conseguia pensar em nada que lhe tivesse proporcionado tanto prazer na vida, e lutou para se controlar e aproveitar por quanto mais tempo pudesse.

     Ambos gemeram de prazer quando Elspeth se sentou sobre o membro rijo e lentamente deixou que se enterrasse dentro dela. Cormac segurou-a pelo pescoço e puxou-a para baixo. Beijou-a, um beijo longo, lento, que revelava toda a sua ânsia.

     Deslizou as mãos até os quadris e incitou-a a se mover. Elspeth sorriu.

     - Quer me levar â loucura, meu anjo?

     - Sim, talvez eu queira. - Ela lhe acariciou o peito largo e contorceu o corpo devagar. - É sempre tão rápido. Eu quero que demore mais. Quero sentir.

     - Sentir o quê, amor?

     Elspeth fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, os cabelos longos a roçarem nas coxas de Cormac. Havia uma expressão de prazer no rosto dela, um ar inocente de satisfação, ainda que com um toque de sensualidade que quase foi suficiente para levá-lo ao clímax.

     - Sentir você dentro de mim - Elspeth murmurou. - Sentir como me preenche.

     A rouquidão aveludada daquela voz só fez aumentar o desejo desesperado de Cormac por Elspeth. Não ficou surpreso ao ouvir a própria voz tremer quando disse:

   - Elspeth, meu doce anjo, se você quer que cheguemos juntos ao fim desta viagem, é melhor se mexer. Agora.

     Ela obedeceu. A princípio, num movimento lento e gracioso, enquanto ambos lutavam para controlar o êxtase. Então, a avidez os consumiu. E numa cavalgada enlouquecida, chegaram juntos ao auge.

     Elspeth desabou nos braços de Cormac.

     - Ah, meu amor, vai acabar comigo antes do tempo - murmurou Cormac ao beijá-la na testa. - Creio que deve repensar quantas vezes poderemos aproveitar esta dança na noite de hoje.

     - Ah, é? E quanto vezes está planejando dançar?

     - Quinze. - Ele riu diante do olhar de espanto, e então a beijou quando Elspeth o encarou, com os olhos faiscantes.

     - Não conseguiremos andar por um mês - ela resmungou e escorregou para fora da cama. - Acho que seis no máximo.

     Cormac soltou uma risada. Observou Elspeth inclinar-se para pegar um pano numa bacia de água do lado da cama. Quando ela se virou para ele, Cormac pegou-a pela cintura e puxou-a para mais perto. Enxugaram as marchas da paixão entre carícias.

     Aquela era uma noite para ficar na lembrança, tanto para Cormac como para ela, Elspeth pensou. Não havia espaço para timidez ou hesitação. Era uma batalha pelo coração de um homem. Ao fechar os olhos, ela se entregou completamente a Cormac, corpo, alma, espírito.

     Cochilaram e fizeram amor várias vezes. E Elspeth se surpreendeu em como os dois pareciam crianças gulosas a se fartar de doces. E sentiu que havia em Cormac o mesmo desespero que a consumia. A alvorada já se anunciava no céu quando atingiram as alturas novamente, juntos. E Elspeth desabou na cama, certa de que não conseguiria mais mexer um dedo.

     - Como está a sua perna? - ela perguntou, e bocejou ao se enrodilhar ao lado dele.

     - A da esquerda está ótima. A direita dói um pouquinho. A do meio precisará de muleta.

     Elspeth riu e se esfregou preguiçosamente em Cormac.

     - Sem-vergonha. Você não pode me culpar. Eu dormia placidamente quando você acordou para me seduzir.

     - Seduzir, é? Gosto de ouvir isso. - Ele soltou um longo bocejo e murmurou:

     - Alan está resmungando.

     Ao ouvir o suave ruído engrolado que vinha do berço de Alan, Elspeth sorriu e fechou os olhos.

     - Ótimo. Ele ficará cantarolando por algum tempinho, vai dormir mais uma ou duas horas e depois despertar outra vez. Tenho tempo para um cochilo.

     - Consegue dormir com isso?

     - É um ruído agradável.

     - Talvez ele queira alguma atenção.

     - Sim, mas se eu lhe der atenção, Alan vai esperar por isso toda manhã a esta hora.

     - Ah, então ignore-o. - Cormac sorriu ao ouvir a risada feliz de Elspeth. - Descanse então, meu anjo. Prometo parar de seduzi-la. Na verdade, não creio que eu tenha força para mais nada agora.

     Umas poucas horas mais tarde, Cormac acordou com o ruído dos resmungos de Alan, que sugava os dedinhos. E, ao mesmo tempo, com a sensação deliciosa dos dedos e da língua de Elspeth. Agarrou-a pelos quadris e virou-a para que pudesse lhe devolver o prazer.

     Muitos minutos depois, Elspeth sorriu ao sair da cama e deixar Cormac largado e adormecido. Lavou-se e vestiu-se, pois o ar estava frio. Enquanto alimentava o bebê, ficou a olhar Cormac no sono. Sentia-se estranhamente orgulhosa de havê-lo deixado completamente exausto, ainda que um pouco constrangida pelas coisas que fizera para conseguir isso.

     Expulsou as dúvidas. Se ele não se lembrasse com satisfação da noite que haviam passado juntos e nem se recordasse da paixão que compartilharam, não merecia outra como aquela. Ela dera o melhor de si, pensou, e desfrutara cada minuto desvairado de tudo aquilo.

     Agora, considerou que ao acomodar Alan de volta no berço, era hora de deixar Cormac sozinho. Depois de algumas das coisas que fizera e permitira que ele fizesse Elspeth não tinha certeza se poderia encará-lo. Um tempo longe para acalmar-se e aceitar o próprio comportamento seria o melhor. A coisa mais importante, contudo, era dar a Cormac espaço e tempo para pensar sozinho. Ao sair do quarto com a intenção de encontrar algo para comer, Elspeth rezou para que, fosse o que fosse que Cormac pensasse isso o conduzisse pelo caminho que ela desejava e precisava que ele tomasse.

    

     Embora seu corpo ainda doesse, Elspeth sorriu ao sair da hospedaria. Eram dores agradáveis, do amor louco que partilhara com Cormac, e ela saboreou as lembranças que despertavam.

     Tinha certeza de que finalmente chegara ao coração de Cormac, que, por fim, acendera bem mais que seus instintos primitivos. Com certeza, nenhum homem poderia dizer palavras tão inebriantes a uma mulher ou fazer amor com ela com tamanha doçura, a menos que a amasse. As três palavrinhas que Elspeth ansiava ouvir logo viriam. Cormac só precisava de tempo para pensar sobre tudo que acontecera e encarar a verdade. E, se fosse preciso, ela ficaria fora o dia inteiro, para dar a ele esse tempo.

     - Então, você está viva - resmungou uma voz grave às suas costas.

     Elspeth soltou um grito de pavor e fez meia-volta. Então, gritou de alegria ao ver quem estava ali.

     - Payton! Graças a Deus! - Jogou-se nos braços do primo e cobriu-lhe o rosto de beijos. - Tive medo que aqueles homens horríveis o tivessem matado.

     - Foi por pouco, menina. Mataram mesmo aqueles dois rapazes que seguiam conosco. E eu sangraria até a morte, mas fui encontrado por um pastor, que cuidou de mim e mandou avisar o pessoal em Donncoill. - Payton olhou ao redor, tomou Elspeth pelo braço e puxou-a até um banco em frente à taverna. - Sir Colin a machucou?

     - Não. Não teve tempo, pois Cormac me resgatou - respondeu Elspeth, entrelaçando os dedos de Payton nos seus, quase receosa de acreditar que ele estivesse realmente ali, ainda um pouco pálido, porém vivo e bem.

     - Foi isso que os amigos de Cormac nos contaram. Mas por que ele a trouxe aqui? Por que não foi até nós?

     - Cormac achou que este era o caminho mais curto e mais seguro a seguir. E era o destino dele quando me encontrou.

     - Ah, para ver a bela Isabel.

     Havia um tom duro, quase de escárnio na voz do primo, e Elspeth franziu a testa.

     - Você a conhece?

     - Um pouco.

     O jeito com que Payton proferiu aquela palavra, sem encarar Elspeth, disse tudo.

     - Você se deitou com ela?

     - Uma vez.

     - Só uma?

     - Foi o suficiente. - Payton suspirou e passou os dedos pelos cabelos dourados. - Não sei como explicar isso a você, menina. Ela devora um homem. Não creio que eu estivesse suficientemente atento para ver, mas havia uma expressão nos olhos de Isabel que destruía todo o prazer. Nunca acreditei em tais criaturas, mas se existe mesmo um demônio rubrico, ela é um deles.

     - Ah, pobre Cormac - Elspeth murmurou.

     - Como pode sentir pena daquele tolo? O jeito com que fala o nome dele me diz que você nutre por Cormac algum sentimento especial. Mas como pode ter piedade de alguém que anda atrás de uma prostituta feito Isabel?

     - Como não teria? E não é piedade, apenas simpatia. Sim, gosto dele. Gosto não, eu amo o pobre tolo cego. Acho que Cormac deve me amar também, mas ainda não consegue enxergar isso. Dez anos de lealdade a Isabel o tornaram cego para tudo o mais. E fez um juramento a ela. Levaria muito tempo para explicar, mas creia, poderia custar mais do que posso fazer ou dar para que Cormac quebre um juramento. Acho que consegui com que enxergasse a verdade, porém não tenho certeza de que quero testar o fato. Infelizmente, não acredito que haja mais tempo para jogar esse jogo. Creio que acabo de ver aquele demônio a se esgueirar para a hospedaria onde deixei Cormac, acamado e desprotegido. - Elspeth levantou-se depressa. - Na verdade, aquela feiticeira de coração de pedra não deveria aparecer. Disse que mandaria buscá-lo, não que viria encontrá-lo.

     - Você a conheceu? - Payton perguntou ao ver o ondular dos quadris de Isabel, que se dirigia à hospedaria.

     - Sim. - Elspeth o cutucou no braço diante daquele sorriso de malícia.

     - Não faz mal olhar o belo, menina - ele retrucou. E ficou sério outra vez. - Ela a vê como uma ameaça.

     - A mim? - Elspeth achou graça, pois a seus olhos, Isabel era tudo que os homens desejavam.

     - Sim, você. - Payton sorriu e beijou-a na face. - É uma bela mulher, Elspeth.

     - Mas ela...

     - Ela é bonita do jeito que os poetas e os menestréis cantam. Isso não altera o fato de que você também é linda. E Isabel é muito feia por dentro, menina. E sabe disso. E também percebe que a sua beleza vai até o íntimo.

     - Cormac não foi completamente fiel a ela durante os últimos dez anos.

     - Ora, Elspeth, você não é nenhuma vadia de taverna ou uma prostituta comum. É alguém com quem ele poderia se casar, alguém que poderia se apossar do coração que aquela vagabunda mantém preso no punho por tanto tempo. Isabel vai apertar essas garras, relembrá-lo do amor que Cormac jurou ter por ela.

     - Oh... E recordá-lo de seu juramento. Isso é preocupante - Elspeth murmurou, enquanto a mente e o coração lhe diziam para se apressar, correr para a hospedaria e tentar impedir o que Isabel estava prestes a fazer.

     - Esperarei por você.

     Elspeth suspirou nada surpresa de que Payton tivesse adivinhado seus pensamentos, porém sem saber se deveria ceder a seus impulsos.

     - Não sei se é prudente ir até lá. Posso ficar tentada a fazê-lo quebrar o juramento, e isso de nada me serviria. E não quero ser a força de que Cormac precisa, mesmo que ele procure alguma para combater o feitiço de Isabel.

     - E por que não? O homem deu a ela dez anos da sua vida. Enquanto nós, rapazes, nos esbaldávamos nos campos da luxúria, Cormac andava atrás de Isabel, acreditando que fosse uma pobre mártir da ganância dos parentes. Só porque ele continua nesse caminho não significa que ainda goste da trilha pela qual enveredou, não quer dizer que não tenha dúvidas, que o vínculo não se enfraqueceu ou mesmo se quebrou. Ninguém gosta de pensar que desperdiçou dez anos, que em troca de todo o sacrifício e sofrimento não possui nada além do que possuía no início da provação.

     - Vamos dizer que Cormac finalmente pensou em alguma forma de quebrar o juramento e manter a honra. Tudo que você acabou de dizer daria a ele a força de que precisa para dispensar Isabel?

     - Sim e não. Cormac pode querer dispensá-la, mas, se o fizer, terá de admitir que jogou fora dez longos anos. Ele pode bem precisar de um forte empurrão para fazer isso. Vá, menina. Deixe que Cormac veja o que pode ter. Se vale a pena o que tem em comparação ao que continua buscando.

     - Eu não queria ver e ouvir como perdi o jogo - Elspeth murmurou.

     - Por que deu a ele tudo que uma moça pode dar a um homem?

     - Como sabe disso? - Elspeth espantou-se que Payton desconfiasse que ela não fosse mais casta.

   - Sei como você pensa menina, pois somos muito parecidos. Você quer aquele homem; um homem que se sente ligado a outra. Acho que você encarou o problema de Isabel, reuniu o conhecimento que podia e viu a vagabunda pelo que ela é de fato. Já que não havia necessidade de respeitar o vínculo que os unia, você decidiu virar a sorte para o seu lado. E como fazer isso, como agarrar e prender um homem que acredita estar apaixonado por outra? Dando-lhe tudo, mantendo-o por perto e satisfeito, penetrando em seu sangue e em seu coração, alimentando seu desejo até que também lhe pertença.

     - Pensa que é muito esperto, não é? - Elspeth resmungou.

     - Bem, sim, eu sou. - Payton enfrentou aquele olhar de desgosto com um sorriso largo. - É isso o que eu faria menina. Tentaria obrigar minha amante a enxergar apenas meu rosto, a ansiar somente pelo meu contato. Se ela vacilasse, sem se decidir, eu haveria de querer ter certeza de que a deixaria com desejo e felicidade no coração e na mente para que, se eu fosse embora, minha lembrança se recusasse a abandoná-la. Sim, e talvez a mudança que procurei na minha amante começasse assim que eu me fosse.

     - Eu sou covarde, Payton.

     Ele riu baixinho e a abraçou.

     - Não, apenas está relutante em se magoar. Só um tolo não hesitaria em ter o coração partido. E você não é tola. Eu gostaria de assegurar que não haverá sofrimento, mas não vi você e aquele idiota juntos. Não posso julgar. Tudo que posso fazer é lhe dizer para endireitar esse corpo e encarar o desafio. Coloque-se na frente de Cormac para lhe recordar que agora ele tem uma escolha. Se for estúpido demais, se não enxergar que um juramento feito a uma prostituta não vale a pena ser mantido, estarei aqui, menina, pronto para levá-la para casa.

     Elspeth o encarou muito séria.

     - Mas você não irá falar com Cormac se ele comprovar ser um idiota.

     - Não posso?

     - Não, não pode. Tudo isso é responsabilidade minha. Vi o que queria e procurei conseguir. Se levei um tapa na mão, o problema é meu. Nem parei para pensar quando percebi que era algo bem maior do que lutar contra outra mulher, que havia essa confusão de juras e honra e a necessidade de Cormac de limpar a mancha que seus pais lançaram sobre o nome da família. Não preciso que meus parentes saiam correndo para reparar, com punhos ou espadas, algum insulto imaginário. A decisão foi só minha. Na verdade, o camarada foi muito difícil de seduzir.

     Elspeth esboçou um sorriso quando Payton soltou uma gargalhada.

     - Um cavalheiro, hein?

     - Muito cavalheiro e reprimido com a idéia de tudo que me devia e aos Murray.

     - Mas você superou tudo isso.

     - Sim. - Elspeth enrubesceu um pouco. - Descobri que o que minha mãe me disse era verdade. Sou como ela. Senti o que Cormac sentia. Sabia que ele me desejava. Foi estranho e um pouco chocante quando Cormac me beijou pela primeira vez.

     - Sempre imaginei que verdade haveria nisso - murmurou Payton, a fitá-la com interesse. - Receio que tenha menosprezado certas coisas. Achava que tudo estava carregado de fantasia, de imaginação romântica.

     Elspeth concordou.

     - Eu também. E fiquei muito constrangida ao ouvir minha mãe falar de tais coisas. Mas juro a você, Payton, é a verdade. Senti o desejo de Cormac. Alimentei o meu próprio entrelaçado ao dele e, creio de alguma forma, que Cormac sentiu o mesmo. É muito difícil explicar, pois não tenho certeza de ter entendido.

     - Pode ter origem no mesmo dom que a faz saber quando alguém mente.

     - Ah, sim, algum dom estranho. Explicaria muita coisa.

     - Então, deveria estar mais segura de si, mais capaz de confrontar Cormac, pois pode saber o que ele sente.

     - Sinto o desejo, a ternura, até mesmo a afeição. Mas também a confusão, a dúvida. E o sofrimento. Sei que o fiz feliz, que se não fosse por Isabel e um juramento feito, ele seria meu sem se questionar. Mas existe Isabel e um juramento, e os conflitos que despertei com relação a essa mulher e à própria honra de Cormac o deixaram muito infeliz. Receio que ele não tenha tido tempo suficiente para resolver o que quer e o que realmente precisa. Mas você tem razão. Devo enfrentar isso. - Elspeth respirou fundo. - O momento da verdade chegou para mim e não posso me esconder dele.

     - Rezo para que encontre a verdade que deseja. - Payton beijou-a na face.

     - Eu também, mas fique preparado para deixar este lugar. Se eu descobrir que Cormac ainda está enredado na teia de Isabel, que não pode nem mesmo pensar que haja um jeito de cortar o elo forte de sua promessa da juventude, não quero ficar aqui.

     - Nem lutar por ele?

     - Fiz isso desde que fugi das garras de sir Colin. Se tudo não foi o suficiente para que pelo menos Cormac hesite em voltar para Isabel, então não posso ficar ao lado dele. - Elspeth começou a andar em direção à hospedaria. - Só peço que, se Cormac escolher se prender àquela vagabunda, eu possa controlar a mágoa e a raiva para ir embora com algum resquício de dignidade.

    

     - Isabel! - Cormac exclamou surpreso, quando a mulher esgueirou-se silenciosamente no quarto. - Você disse que mandaria me buscar.

     Ergueu-se para uma posição sentada e se recostou contra os travesseiros. A caminhada que acabara de fazer podia ter fortalecido suas pernas, mas, no momento, o deixara tão fraco como um bebê, e Cormac maldisse o momento ruim daquela visita. Teria preferido encará-la com a mente clara e firmeza nos pés. Percebeu que também queria que ela não tivesse vindo procurá-lo no quarto que compartilhava com Elspeth. O que o intrigou era que não se sentia constrangido que Isabel o visse deitado na cama que ele dividia com a amante e, por outro lado, tinha a impressão de estar traindo Elspeth, de alguma maneira.

     - Não consegui esperar para vê-lo, meu amor querido - Isabel disse ao correr para o lado da cama e tomar a mão de Cormac nas suas.

     - Não? Foi você que disse que eu deveria esperar para encontrá-la.

     Isabel ficou tensa quando ouviu o barulho distinto de uma criança balbuciando. Seu olhar desviou-se para o cesto e para o bebê, que brincava alegre, com os pezinhos. Ela sorriu com desgosto diante da visão da criança e também do enorme gato cinza sentado perto do berço. O animal parecia observá-la com o que Isabel sentiu ser uma expressão séria e maldosa nos olhos amarelados.

     - Seus? - ela perguntou.

     - Oh, não. Elspeth os recolheu. O bebê foi abandonado para morrer, e o gato estava sendo torturado por um bando de moleques.

     Isabel estudou Cormac com os olhos estreitados, numa inspeção atenta. As coisas estavam piores do que imaginara. Ele ainda não a tinha beijado. Nem mesmo tentara. E não havia nada, em seu olhar, daquela fome desesperada a que ela se acostumara. A cadela Murray, obviamente, o havia mantido muito satisfeito. Diante disso, deveria fazer uma cena de raiva ciumenta, ou se mostrar magoada e chorosa? Ou apenas fingir que a fulaninha nem mesmo existia?

     Decidiu exibir a raiva primeiro. Se Cormac reagisse mal, sempre poderia recorrer às lágrimas depois, fingindo que a raiva nascera do sofrimento. Ele sempre fraquejava ao vê-la chorar. Quando tentava acalmá-la, Isabel o conduzia na direção que queria. No momento, essa direção era quanto mais longe possível da magricela Elspeth Murray. Tentaria conseguir isso sem revelar seu segredo, mas, se fosse forçada, tinha uma arma poderosa para usar, algo que certamente atrairia Cormac para seu lado e o manteria ali.

     Cormac era seu. Ele a enxergava como uma vítima meiga e inocente, usada pela família e pelos maridos. Isabel achava ambas as coisas divertidas e encantadoras. Cormac, além disso, era bonito, jovem, forte e viril. Talvez um pouco viril demais, pensou, pois ela tivera de se livrar por três vezes de filhos gerados por ele. Cormac era sua criação e a única constante real em sua vida. Dava-lhe amor, mais fidelidade que qualquer outro, respeito e cortesia, e Isabel sabia que não merecia nenhuma dessas coisas. Não tinha, porém, intenção alguma de perder tudo isso, e certamente não para alguma mulherzinha de um clã cuja única fama parecia ser a capacidade para procriar.

     - Tem medo que a sua amante nos pegue juntos? - perguntou a voz a assumir um tom agudo de irritação.

     - Isabel! - Cormac exclamou, aborrecido.

     Calou-se para controlar uma forte sensação de ressentimento, pois sabia agora que Isabel não era virgem quando tinham ficado juntos pela primeira vez. Depois, ela se deitara com quatro maridos e, se os boatos eram verdadeiros, com alguns amantes também. Não tinha o direito de condená-lo, sobretudo quando viviam mais separados que juntos.

     Então, Cormac procurou ser compreensivo como antes. Isabel não escolhera nenhum dos maridos, e ele não tinha prova de que tivera amantes. As situações aflitivas que os dois haviam sofrido não eram por culpa dela. Contudo, de repente, percebeu que não iria permitir que falasse mal de Elspeth, nem que menosprezasse aquilo que ele e Elspeth compartilhavam. Era hora, quem sabe, de Isabel corresponder um pouquinho com a imensa compreensão que Cormac sempre lhe demonstrara.

     - Elspeth não é assunto seu - ele retrucou, com frieza, mas lhe afagou o dorso da mão numa carícia para suavizar a dureza da voz.

     - Como pode dizer isso, meu amor?

     Cormac deu de ombros.

     - Duvido que eu consiga fazê-la entender. Elspeth salvou minha vida não uma vez, mas duas. Devo a ela e ao seu clã mais do que poderei pagar. Elspeth e eu somos amigos. - Ficou um pouco surpreso ao se dar conta de que falava sério, do fundo do coração. - É tudo o que você precisa saber.

     Amigos? Isabel pensou. Tinha a sensação de que Cormac nunca a chamaria de amiga. Isso queria dizer que Elspeth já conquistara uma parte de Cormac que ela mesma jamais conseguira alcançar, e isso a enraiveceu. Percebeu que ele escapava para longe de seu controle. Podia sentir ouvir na frieza da voz. Aumentou convulsivamente a pressão dos dedos na mão de Cormac, ignorando o modo como ele a encarou.

     - Sinto muito - Isabel murmurou. - Receio que a presença dela a seu lado tenha se apossado da minha mente. Desde que a vi, tive medo de que pudesse afastá-lo de mim. Foi por isso que eu pedi que você esperasse, a princípio. Não passava de ciúme.

     A evidente infelicidade de Isabel espicaçou a culpa de Cormac, embora não de maneira tão forte nem tão rápida como sentira outras vezes antes. Aquela era a mulher com quem se comprometera a mulher com quem poderia estar casado em breve. Não deveriam existir segredos entre ambos e, no entanto, ele não sentia nem vontade de se confessar nem de pedir desculpas.

     Abraçou-a, passando o braço em torno dos ombros de Isabel quando ela se sentou na cama, e apertou-a gentilmente contra o peito. Embora fizesse quase um ano que não a tocava, não sentiu o menor lampejo de desejo. Disse a si mesmo que era porque Isabel estava triste, precisava de consolo, não de sedução, mas não acreditou nos próprios argumentos.

     - Não tem motivo para ter ciúme - Cormac mentiu outra coisa que era a primeira vez que fazia com Isabel, mas que não o deixou constrangido como deveria.

     - Eu não suportaria perdê-lo, Cormac. Sei que não tenho o direito de me apegar a você. Deveria liberá-lo daquele juramento que fizemos quando não passávamos de duas crianças. Por egoísmo, eu não o fiz, e o forço a ficar sozinho. É que preciso tanto de você... Você é a única coisa boa na minha triste vida, minha única fonte de alegria. Sem o seu amor para me manter forte, eu simplesmente murcharia e morreria. Mas não devo condená-lo a compartilhar meu infortúnio.

     As palavras foram pronunciadas numa voz suave e trêmula. Cormac sabia que deveria jurar devoção no mesmo instante, repetir sua promessa e depois fazer amor com Isabel. Contudo, de repente, sentiu-se como se estivesse representando um papel estranho numa peça mórbida de teatro. Tinha amadurecido e mudado; Isabel também amadurecera e mudara, maridos e amantes entravam e saíam de cena e, no entanto, tudo continuava na mesma. Isabel se lastimava pelo egoísmo e sugeria deixá-lo livre, e ele assegurava que queria apenas estar ao lado dela. No momento, Cormac não sentia nenhuma inclinação para dizer sua fala, e isso, ao mesmo tempo, o espantou e afligiu.

     Por dez longos anos, havia pronunciado fielmente as palavras que agora Isabel esperava. Deveriam sair com facilidade e, contudo, permaneciam bloqueadas dentro dele. Sentia raiva diante daquela exigência. Não provara sua devoção repetidas vezes durante os últimos dez anos? Não estava ali, depois de correr de novo atrás dela? E apesar do lugar de Elspeth agora em sua vida, Cormac não tinha mandado avisar Isabel que havia chegado e não aceitara humildemente a exigência de esperar até ser chamado? O que aquela mulher poderia querer?

     Alguma coisa estava profundamente errada. Algo mudara. Cormac não percebia em si aquela avidez que o devorava sempre que via Isabel. Não conseguia nem mesmo achar que a falta de impulso sexual fosse apenas por ter estado nos braços de Elspeth fazia apenas horas. Uma vozinha em sua cabeça o avisava para observar mais atentamente, para abrir os olhos e ver que estava livre de Isabel, sugerindo que existiam meios de quebrar a promessa e manter a honra, mas Cormac a sufocou.

     Recusava-se a aceitar que desperdiçara dez anos de sua vida, ou, bem pior, que representara o papel de tolo fiel por aquele tempo todo. Não queria pensar que se prendera erroneamente a uma jura que não poderia quebrar, mas que sempre lamentara. Estava cansado, era isso, pensou, depois de ter se saciado plenamente nos braços macios de Elspeth. Logo todos os antigos sentimentos que Isabel sempre despertara nele voltariam. Tudo ficaria bem de novo. Só precisava esperar um pouco.

     - Cormac? - Isabel pressionou ao vê-lo mudo e pensativo.

     Beijou-lhe o lóbulo da orelha, algo que sabia ser do agrado dele. E ficou espantada quando o sentiu tenso sob o toque de seus lábios. Não se afastou, mas ela o percebeu retrair-se de alguma forma. As coisas estavam piores, bem piores do que Isabel pensava. Então, ela ouviu um ligeiro ruído perto da porta, o suave farfalhar de uma saia pelo chão. Poderia ser uma criada, mas o instinto lhe disse que era Elspeth Murray. Isabel poderia ter problemas em atrair Cormac de volta, mas conseguiria com o tempo. Seria bem mais rápido se a pequena Elspeth Murray sumisse da vida dele. E isso era algo que Isabel sentia que poderia conseguir. Tudo que precisava era de uns poucos minutos, antes que Cormac visse que Elspeth voltara. Comprimiu as mãos nas faces dele e puxou-lhe a boca para junto da sua, escondendo a fúria que sentia quando Cormac foi lento em lhe retribuir o beijo.

     - Ah, Cormac, meu amor - disse alto o bastante para se fazer ouvir pela pessoa perto da porta -, como tenho saudade de você! - Continuou a prendê-lo pelo rosto, obrigando-o a encará-la, embora percebesse que o olhar dele se desviava. - Ainda existe um fogo entre nós.

     Cormac não sentia nada, mas, mesmo assim, declarou:

     - Sim, Isabel. Sempre houve.

     Não era uma completa mentira, pois assim que se sentisse mais descansado, tinha certeza de que aquele fogo voltaria.

     Ao perceber que iria ser difícil arrancar uma confissão ardente de Cormac naquele momento, Isabel esforçou-se para levar o assunto na direção que queria. Se fizesse as perguntas certas ou arrancasse as palavras corretas, elas poderiam facilmente soar ardentes e cheias de amor. Cormac, na verdade, nunca declarara que seu coração era dela e só dela, mas Isabel sentia-se segura de que poderia fazê-lo dizer algo muito próximo disso.

     - Depois de tantos anos, de tantas noites compartilhadas, com certeza você não me deixará de lado como um osso descarnado, não é?

     - Não, claro que não! - Cormac exclamou, irritado por ter de lembrá-la de que não era homem de quebrar a palavra dada.

     - Oh, você me fez tão feliz! Eu estava com tanto medo, Cormac.

     - Não precisa ter medo, doçura - ele murmurou ao lhe afagar os cabelos. - Estou aqui, como sempre estive para você. Tal como prometi.

     - Posso confiar no seu amor, não posso?

     - Naturalmente.

     - Estou tão contente que tenha vindo me ver outra vez, meu amor! - Isabel exclamou ao roçar os lábios nos dele. - Creio que existe esperança para nós dois desta vez, que finalmente poderemos ficar juntos como sempre desejamos. Não está feliz?

     - Claro Isabel. Como não estaria? Não é o que procurei durante dez longos anos? - Então, por que se sentia tão encurralado? Cormac perguntou a si mesmo. E não encontrou resposta. - Acho que você deveria ir embora antes que sejamos descobertos.

     - Oh, não se preocupe - Isabel respondeu. - Estou cansada de esconder o que sinto por você, o que nós sentimos um pelo outro. É hora de nos agarrarmos àquilo pelo qual ansiamos e de deixarmos de lado toda compostura e medo do perigo. Deveríamos proclamar nosso amor do mar do Norte ao Tamisa.

     Cormac mal conseguiu deixar de berrar: Por Deus, não! Deveria estar extasiado por Isabel, finalmente, ter coragem de proclamar seu amor, mas tudo o que conseguia pensar era que Elspeth poderia ouvir e ficar magoada. Um pensamento incômodo cruzou-lhe a mente. Algo estranho estava acontecendo e ele precisava desesperadamente ficar sozinho para descobrir o que era.

     - Fico feliz, Isabel, e muitas vezes desejei que pudéssemos fazer isso. Contudo, creio que um pouco de cautela seria prudente agora - disse com suavidade. Então, percebeu que ela parecia estar à beira das lágrimas, e beijou-a depressa. - Somos mais velhos agora, mais sábios para nos permitirmos tal impulsividade, ações tão apressadas. Vamos manter um pouco de discrição.

     - Ah, você precisa falar com a sua vagabunda. Compreendo e vou esperar. Mas não por muito tempo, meu amor.

     Antes que Cormac pudesse repreendê-la pelas palavras ríspidas a respeito de Elspeth, uma voz rouca, familiar, que lhe provocou calafrios, resmungou:

     - Por que esperar? Vamos esclarecer a questão aqui e agora.

     E Cormac sentiu como se algo dentro dele precisasse gritar alto, de pânico e frustração.

    

     Elspeth julgou que fosse desmaiar. A dor latejava pelo seu corpo a cada batida do coração. E ela não tinha certeza do que provocava mais sofrimento: a visão de Cormac e Isabel abraçados, ou as palavras dele, que soavam como o sino da morte para todas suas esperanças e sonhos. Perdera o jogo.

     - Elspeth - Cormac começou ao se livrar da mão de Isabel, mas não conseguiu pensar em nada para dizer. - Quanto tempo faz que está aí?

     - O suficiente - ela respondeu.

     A expressão tensa e a palidez do rosto de Elspeth mostravam que ela ouvira tudo que ele e Isabel tinham dito um ao outro. Teve ganas de correr para o lado de Elspeth e proclamar aos berros que tudo era mentira, tentar retirar cada palavra que pronunciara. Qualquer coisa que afastasse o olhar de dor daqueles belos olhos. Não poderia fazer isso com Isabel, no entanto. Ela não merecia ser magoada, tanto quanto Elspeth não merecia. E agora, ele não tinha mais certeza se havia mentido para Isabel. Precisava de tempo para analisar o próprio coração e ver se não estava se entregando à luxúria.

     - Elspeth, precisamos conversar! - exclamou, olhando de relance para Isabel, quando esta se levantou.

     - Não creio que tenhamos alguma coisa a dizer um ao outro - retrucou Elspeth.

     - Claro que você tem menina - disse Isabel, alisando o vestido, a sugerir com o gesto que ela e Cormac tinham sido ardentes a ponto de deixá-la amarrotado. - Sairei para que possam conversar. Roçou a boca nos lábios de Cormac. - Mande notícias mais tarde, meu amor. Quando estiver livre. Depois, poderemos nos encontrar de novo.

     Não foi fácil, mas Elspeth resistiu à tentação de derrubar Isabel quando a mulher passou a seu lado, exibindo uma expressão presunçosa de triunfo nas feições perfeitas. Isabel vencera. Ambas sabiam disso. Não era preciso se vangloriar.

     E o que Isabel ganhara? Elspeth pensou ao voltar os olhos para Cormac. A raiva brotou do fundo de seu coração, expulsando a mágoa por um breve momento. E Elspeth apegou-se àquele sentimento. Cormac era um cego, um tolo. Ela estava disposta a lhe entregar tudo que qualquer homem poderia desejar e, no entanto, Cormac se agarrava a uma mulher que fazia dele apenas um brinquedo. Prendia-se a um juramento por senso de honra, e Isabel usava isso para mantê-lo cativo. Elspeth pensou em quando se tornara também uma tola. Era a única explicação para haver tentado com tamanho empenho conquistar um homem que não conseguia enxergar além de um rosto bonito; por amar um homem que provavelmente ainda acreditaria que Isabel fosse uma doce vítima, mesmo se a surpreendesse sobre o cadáver do marido, com um punhal ensangüentado na mão muito branca. E era essa cegueira que o levava a honrar uma promessa a uma mulher que não sabia o que significava honradez.

     Cormac maldisse a própria fraqueza ao jogar as pernas para o lado da cama e descobrir que não conseguiria ficar de pé sem se desequilibrar. Não deveria ter se esforçado tanto ao caminhar depois de extenuar-se durante uma noite tão maravilhosa. Seria melhor se pudesse se firmar, mover-se depressa e, se necessário, segurar Elspeth com firmeza. Em vez disso, iria depender da força das palavras e não confiava na própria habilidade de acalmar a fúria de Elspeth.

     Elspeth começou a recolher seus pertences.

     - O que está fazendo? - ele perguntou.

     - Indo embora - ela respondeu, ao jogar as poucas posses dentro da sacola que trouxera.

     - Precisamos conversar Elspeth.

     - Sobre o quê?

     - Sobre o que viu ou ouviu aqui.

     - Vi e ouvi dois velhos amantes renovando seu caso de amor. Vi que você não pode quebrar um juramento, não importa que idade tenha e quantas coisas mudaram para ambos. O que mais eu deveria ver?

     Cormac passou os dedos pelos cabelos.

     - Eu não estava renovando o caso com Isabel.

     -Não? - Elspeth jogou a última de suas coisas na bolsa, e depois a amarrou com toda força, como se visualizasse os laços a passarem pelo pescoço de Cormac. - Ela enfiou a língua na sua boca porque estava feliz que você lhe dissesse adeus, não foi?

    - Você sabia que eu vinha para cá me encontrar com ela.

     - Sim, eu sabia. É óbvio que sou uma grande idiota por pensar que o que aconteceu entre nós poderia provocar uma pequena mudança em seus planos. Bem, parece que a sua querida tem razão e é hora de dizer adeus à sua vagabunda.

     - Isabel foi indelicada.

     - Não se desculpe por ela. Sim, Isabel se expressou sem nenhuma delicadeza, mas não tentou dizer que não falava sério. Disse o que quis.

     - Ela não teria se expressado com tanta crueldade se soubesse que você poderia ouvir.

     Elspeth pensou como um homem inteligente podia ser tão estúpido.

     - Isabel sabia que eu escutaria, pois sabia que eu estava parada ali. - Acomodou Alan na faixa de apoio, que passou pelo pescoço, e depois empurrou Barrento para dentro da cesta.

     - Não... - Cormac calou-se quando ela o encarou com desdém. - Elspeth, você precisa tentar compreender. Estou comprometido com Isabel. Ela tem uma vida muito dura e infeliz. Precisa de mim.

     Tudo aconteceu antes que Elspeth conseguisse recuperar o controle de si mesma. Atingiu-o com a bolsa duas vezes. Por um momento, ficou horrorizada por ter batido num homem ferido. Então, Cormac se endireitou, esfregou a cabeça e a encarou de cenho fechado. Quando Elspeth viu que na verdade não o machucara, teve um impulso de bater de novo. Queria magoá-lo, se não emocionalmente, pelo menos no físico. Mas bastava. Era hora de partir. Ao ver negado o costumeiro alívio, a violência que Elspeth sentia abriu caminho através das palavras iradas com que ela o agrediu:

     - Sim, pobrezinha da atormentada Isabel - caçoou. - Ótimo. Corra para ela como tem feito por tanto tempo, e me xingue, se posso ver o que você ganhou por seus dez anos de martírio. A maioria dos homens teria considerado o juramento sem efeito depois do primeiro casamento, quanto mais depois do quarto.

     - Casamentos que foram forçados. Não foi culpa dela que tenhamos nos separado tantas vezes. Sinto muito se você acha que eu a usei injustamente.

     - Claro que usou.

     - Bem, não vi você chorando! - Cormac esbravejou furioso consigo mesmo por fazer tal confusão, e com Elspeth, pelas palavras cortantes que o machucavam até as entranhas.

     - Não estou me referindo a toda a luxúria a que nos entregamos. A injustiça vem do fato de você nem uma vez considerar a possibilidade de mudar de rumo. Nunca tentou ter de mim mais do que satisfação carnal ou me dar mais do que isso. Não fui nada além de um par de coxas abertas e convenientes, e você nunca me deu a chance de ser algo mais.

     - Nunca pensei que quisesse ser mais - ele murmurou, e percebeu que não era de todo verdade.

     - Então; é ainda mais tolo do que pensei que fosse. Ou um mentiroso. - Elspeth sabia que o sorriso que o próprio sorriso não passava de um feio torcer dos lábios, ao ver que Cormac enrubescia. - Sim, por um tempo eu acreditei realmente que era tão tola como você. Saí à caça de algo que nunca poderia ter. Meu único consolo é que, diferentemente de você, tenho juízo para ver que desperdicei apenas o meu tempo.

     Cormac levantou-se e estendeu-lhe a mão.

     - Fique mais um pouco, Elspeth, pelo menos para recuperar a calma.

     - Não me toque! - ela gritou, afastando a mão dele com uma tapa. - Ficar? Creio que não. Não tenho estômago para observar você tentar resolver o que fazer comigo enquanto sai no rastro de Isabel. Você pode não achar, mas eu tenho algum orgulho. Não permitirei que pise em mim mais do que já pisou. Sei que eu disse que não precisava me fazer promessas, mas isso não quer dizer que não deva me respeitar também. Você fez sua escolha.

     - Não pode esperar que um homem ponha de lado dez anos com uma mulher em um dia ou dois. Não, não quando existe um compromisso assumido.

     - Não? Eu o amo! Dei-lhe tudo que uma mulher pode dar a um homem Joguei meu orgulho, minha castidade e meu coração a seus pés! E estava ansiosa para lhe dar o quer que quisesse, bastava você pedir! - A raiva de Elspeth cresceu conforme ela falava, e seu sofrimento começou lentamente a se libertar dos laços tensos em que o prendera, adicionando uma suave agonia ao tom de sua voz. - Mas não creio que você saiba o que é o amor... Eu nunca o deixaria. Teria de ser arrastada, amarrada e amordaçada para ficar de pé diante do altar com outro homem. Eu estaria a seu lado enquanto você fugia dos Douglas e não teria deixado pedra sobre pedra até encontrar o verdadeiro assassino. Eu teria gritado sua inocência aos brados de um canto da Escócia a outro. O amor é assim. Não é ir docilmente de um marido para outro, nem convocá-lo apenas quando os problemas fervem.

     Respirou fundo. E o encarou de queixo erguido.

     - Ótimo. Você escolheu a cama em que quer se deitar. Terá sua preciosa honra intocada. Por mais que eu esteja magoada e enraivecida, rezo para que estejamos todos errados a respeito de Isabel, que ela seja realmente a pobre e doce madona que você pensa que ela é. Mas creio que encontrará uma cama de pedras. Quem sabe vá pensar em mim, em tudo que lhe ofereci e em tudo que tratou de forma tão insensível e jogou fora. Pois o que jogou fora está descartado, e precisará de muito mais do que você tem a oferecer para recolher isso de novo. Sim, preste bem atenção, meu belo namorado; se você se decidir a meu favor depois que eu for embora, será preciso muito mais que lindos sorrisos e palavras bonitas para me fazer querer me arriscar a essa agonia pela segunda vez. Se resolver que sou eu quem você quer, terá de rastejar tal como rastejou por Isabel por dez longos anos desperdiçados.

     Elspeth percebeu que Cormac parecia estupefato, de olhos arregalados e de rosto pálido. Ela meneou a cabeça e saiu, fechando a porta atrás de si. Esforçando-se para ficar calma, deixou a hospedaria. Não se surpreendeu ao encontrar Isabel à sua espera do lado de fora.

     - Não foi muito longe - Elspeth disse, tentando ocultar o profundo desdém pela mulher.

     - Só queria ter certeza de que era você que iria bem longe! - exclamou Isabel, com um sorriso de deboche.

     - Gosta de se vangloriar quando vence, não é? Isso destoa da boa educação.

     Isabel empertigou-se toda e a encarou com raiva.

     - Sim, eu venci. E estou feliz que você tenha o bom senso de enxergar isso e vá embora. Algumas mulheres podem tentar lutar pelo homem que desejam.

     - E acha que não fiz isso? Lutei muito, na verdade. Mesmo assim, é difícil superar dez anos de escravidão. Dez anos de se acreditar apaixonado por uma mulher que realmente nunca existiu. Dez anos honrando uma jura que ele nunca deveria ter feito, em primeiro lugar. Sim, pode rir. Você conquistou o direito de continuar a brincar com o pobre tolo cego. Por quanto tempo? Joga um jogo mórbido e arriscado, senhora. Cormac é o único que julga que você não passa de uma pobre moça forçada a se dobrar à vontade da família gananciosa. No momento, creio que esse maldito senso de honra é tudo que o prende a você. Os parentes dele a enxergam como aquilo que é. E também os amigos. E a maioria das pessoas. Você não conseguiu esconder o que é diante dos outros e, um dia, não poderá esconder diante de Cormac também.

     - E acha que ele, então, irá correndo atrás de você?

     Elspeth deu de ombros.

     - Pode ser. Não importa. Cormac fugirá de você, e é melhor esperar que ele faça isso. Afinal, Cormac pode resolver fazê-la pagar por suas trapaças, e eu, com certeza, não a invejo por ter de encarar um homem que sabe que você fez dele um completo tolo pela maior parte da vida.

     - Cormac me ama. Sempre me amou. Você não conseguiu tirar isso dele, não é?

     - Quem sabe? Embora eu creia que você já está imaginando se existe nele ainda amor ou simplesmente um homem incapaz de quebrar sua palavra. Apesar de parecer que Cormac a escolheu, eu não desaparecerei completamente como você gostaria. Não, senhora, estou no sangue dele, em suas lembranças e num pedacinho de seu coração. Oh, sim, sei bem que ele vai se recordar de mim. E você nunca terá certeza quando a minha lembrança se intrometerá, qual a razão, e se ele a estará comparando comigo.

     A risada de Isabel foi breve e gelada.

     - E você acha que pode ganhar em tal comparação?

     - Claro, eu dei a Cormac a única coisa que você nunca teve a única coisa que não pode dar a ninguém.

     - Se pensa que Cormac e eu temos uma relação casta, então é realmente uma tola.

     - Não falo de paixão, senhora, mas de amor. Eu o amei completamente, sem exigências, sem restrições. Ele sabe que o amei, pois eu lhe disse. E eis onde você fracassará em me vencer, pois nunca o amou. Por dez anos cuspiu num presente que muitas mulheres matariam para ter. Abusou da honra e do amor de Cormac. E é por isso que a desprezo e sempre a desprezarei. É por isso que acredito que você é ainda mais tola que o pobre Cormac.

     Elspeth podia ver, pela expressão fria e sarcástica de Isabel, que a mulher simplesmente não conseguira compreender o que ela dizia.

     - Um belo discurso - Isabel revelou todo o seu desdém nos olhos azuis -, mas creio que você estava de saída, não estava?

     - Sim, Payton espera por mim. Acho que conhece meu primo, sir Payton Murray.

     Era, sem dúvida, um pouco de mesquinharia de sua parte, mas Elspeth ficou deliciada com o jeito com que os olhos de Isabel se arregalaram, e a mulher empalideceu. Isabel distribuía seus favores tão indiscriminadamente que Elspeth estava surpresa de que Cormac não ficasse surdo com os murmúrios de quanto ela era prostituta. Porém, pensou com tristeza, era provável que ele os ignorasse ou negasse, como fazia com tudo que dizia respeito a Isabel. Então se deu conta de que aquela mulher realmente não tinha nenhum princípio moral.

     - Payton vai ficar na Corte? - Isabel perguntou, e depois dirigiu a Elspeth um olhar malicioso. - Ele é um excelente amante.

     - Puxa Isabel, se não começar a manter as coxas fechadas, não haverá um homem na Escócia a quem Cormac possa olhar nos olhos.

     Elspeth se afastou, fingindo não ouvir o palavrão murmurado por Isabel. Perder para aquela mulher a deixava doente, mas esforçou-se por andar de cabeça erguida, orgulhosa. Embora não pudesse ocultar o fato diante do olhar experiente de Isabel, queria deixar a impressão de que Elspeth Murray não sofreria por muito tempo.

     Quando ela se aproximou de Payton, o primo se levantou, olhou-a longamente e depois a envolveu nos braços. Elspeth não se esquivou do abraço, mas só se permitiu aceitar um pouco de todo aquele conforto. Mais um pouco e iria chorar tão alto como um bebê desmamado.

     - Estou pronta para voltar a Donncoill - murmurou ao se afastar.

     Com um olhar para os dois acompanhantes, Payton sorriu.

     - Não deveria me surpreender que você voltasse com um ou dois abandonados. - Acariciou os cachos escuros do bebê e depois coçou o pescoço do gato.

     - Alguém deixou o bebê na beira da estrada para morrer e ninguém na vila mais próxima o queria. Eu lhe dei o nome de Alan. O gato estava sendo torturado horrivelmente por alguns moleques maldosos. E não fugiu depois que o peguei e curei seus ferimentos. O nome dele é Barrento. - Elspeth sorriu ao acariciar a cabeça do gato, que ronronou alto.

     - Vai deixar o tolo, então?

     - Sim, ele fez sua escolha.

     - E você não quer ficar e tentar fazê-lo mudar de idéia?

     - Não. Fiz tudo que sabia e nada funcionou. A menos que Cormac veja que Isabel usa sua honra contra ele, continuará preso a esse compromisso.

     -Acha que Cormac vai se arrepender da escolha e procurar por você?

     Elspeth deu de ombros. Payton ajudou-a a prender os alforjes na sela da montaria.

     - Eu não lhe disse que iria esperar.

     - Foi sensato.

     Ela montou, depois suspirou e olhou para o primo.

     - Receio que não tenha conseguido controlar meu temperamento. Disse coisas a Cormac... - Elspeth meneou a cabeça. - Disse que eu poderia pensar em aceitá-lo de volta se ele rastejasse para mim como rastejou para Isabel por dez longos anos. - Não se surpreendeu quando Payton se encolheu. - Não creio que Cormac veja alguma promessa ou boas-vindas nisso, você não acha?

     - Não, menina. Bem, vamos voltar a Donncoill. Talvez algum tempo, alguma distância... - ele murmurou e deu-lhe uma tapinha na perna. Em seguida, saiu para reunir seus homens.

     Cavalgaram por poucas horas antes de acampar para a noite. Era um grupo quieto e sombrio aquele que partilhou o pão, o queijo e o vinho em torno de uma pequena fogueira. Elspeth suspeitou que fosse a responsável pelo humor dos homens, mas não tinha idéia de como dar um jeito nisso. Custava-lhe toda a força de vontade impedir-se de cair num choro inconsolável.

     Cuidar de Alan ajudou um pouco, embora até o menino estivesse quieto de uma forma incomum. Barrento desaparecera para caçar a própria comida. Voltou logo, assim que Alan dormiu, e se enrolou perto do cesto da criança. Elspeth ajudou a limpar tudo depois da refeição e estendeu a manta de dormir perto da de Payton. Rezou para que o sono viesse logo.

     Não veio. Tudo que ela queria era chorar. Gritar de dor e pesar. Seu peito doía, apertado. Sua garganta parecia fechada, e Elspeth mal conseguia respirar. Não poderia se entregar a tais emoções na frente dos homens. Iria constrangê-los. Também tinha medo de que, se começasse se soltasse a tristeza, iria se debulhar em lágrimas e se lamentar pelo caminho todo até Donncoill.

     - Ninguém vai recriminá-la se você chorar, Elspeth - disse Payton.

     - Sei disso, mas não vou me permitir.

     - Porque não vale a pena?

     - Bem, talvez não valha. Deus do céu, como condenar um homem por desejar honrar seu juramento?

     Payton estendeu a mão, passou o braço pela cintura de Elspeth e puxou-a para mais perto. Ela estava tensa como a corda de um arco e isso o preocupou. Elspeth era uma mulher que expunha livremente suas emoções, sem nada esconder. Aquele controle era incomum. Ele maldisse o destino que a reunira a Cormac.

     - Você é jovem, Elspeth. Vai se curar.

     Palavras desgastadas e não muito reconfortantes, mas ainda verdadeiras.

     - Eu sei. Acho que nunca amarei ninguém como amei a ele. É estranho, pois embora eu esteja muito zangada e muito ferida, ainda sinto pena de Cormac. E me descubro esperando que ele encontre um pouco de felicidade, que não pague muito caro por escolher a honra em vez de mim. Até pensei se não deveria voltar e salvá-lo de Isabel... - Soltou uma risada nervosa. - Que criatura birrenta eu sou. Quero magoá-lo como ele me magoou, mas não desejo que seja magoado por outra pessoa.

     - Compreensível. Você o ama. Nunca estive apaixonado, mas creio que isso passará, que você irá se curar. Acho que o amor é uma emoção que deve ser correspondida, cultivada, ou morrerá. - Hesitou um momento e depois pigarreou. - E se Cormac a deixou... grávida, Elspeth?

     Ela sentiu o peito apertar-se de medo e esperança. Se estivesse carregando o filho de Cormac, isso causaria tantos problemas que fazia sua cabeça girar só de pensar neles. Iria magoar e desapontar a família, pelo menos por algum tempo. Não tinha medo de perder o amor dos pais e dos parentes, pois sabia que amariam o filho que ela trouxesse ao mundo. Cormac, contudo, teria de evitar todos os de seu clã, como evitara os Douglas durante anos, Elspeth pensou. Poderia convencê-los a não o matarem ou ferirem gravemente, porém suspeitava que encontrariam outros meios de tomar a vida dele um inferno.

     A alegria e a esperança nasciam da idéia de que teria uma parte de Cormac para amar. Haveria tristeza também. Um filho lhe daria alguém a quem dedicar o amor sem esperança, mas também impediria que se esquecesse completamente de Cormac. As lembranças despertariam cada vez que olhasse o filho que haviam gerado juntos. Só podia esperar que essas recordações fossem mais doces que dolorosas.

     - Não sei se estou grávida. Se estiver... Bem, será alegre e triste, mas eu darei um jeito.

     - Também acabará com toda as chances de você se casar com alguém.

     - Acho que seria assim, de qualquer forma. - Elspeth sentiu os olhos cheios de lágrimas e tentou lutar contra elas. - Eu sabia o que poderia perder quando resolvi me entregar a Cormac e tentar fazer com que ele me amasse. Eu não tinha escolha. Acho que o amei desde a primeira vez que o vi, embora fosse uma criança. Senti que Cormac era a minha outra metade, mas tive a certeza da primeira vez que os lábios dele tocaram os meus. Na minha arrogância, ou talvez na minha estupidez, pensei que Cormac soubesse também. Tudo que fiz foi para fazê-lo olhar bem de perto para enxergar. - Começou a chorar baixinho e resolveu que poderia ser bom aliviar um pouco o pesar que a oprimia. - Eu poderia tê-lo feito muito feliz, Payton.

     O primo apertou-a com ternura e beijou os cabelos dela.

     - Sim, menina, poderia, e acho que o fato de Cormac ter jogado fora esse presente precioso por uma vagabunda como Isabel é, na verdade, o que faz dele um tolo.

     - Eles devem ter fornicado a noite inteira! - Isabel esbravejou. - O quarto fedia a sexo.

    

     Sir Kenneth Douglas observou a amante andar pelo quarto com um ligeiro interesse. Ergueu-se e sentou-se, meio esparramado na cama.

     - Um cheiro que lhe é muito familiar.

     Isabel o fuzilou com os olhos. No momento, estava indiferente à visão do corpo nu e claramente excitado do amante. Desde o primeiro casamento de Isabel com o primo de Kenneth, os dois haviam se ligado fortemente pelo sexo e pelo sangue em suas mãos. Nenhum deles era fiel ao outro, cada um a tomar amantes quando lhes comprazia, embora, de uma maneira estranha, fossem tão unidos como se fossem casados. O esquema de se tomarem ricos e poderosos por intermédio dos maridos de Isabel os mantinha juntos, assim como a violenta e insaciável lascívia de um pelo outro.

     Kenneth era o único homem que Isabel nunca pudera controlar. Com seus cabelos negros, olhos escuros e pele morena, parecia mais um espanhol que um escocês. Também tinha um jeito duro, frio e perigoso, todas as características que faziam o pulso de Isabel se acelerar. Para seu absoluto desgosto, a maneira com que ele a relembrava constantemente daquilo que ela era, depreciando-a com insultos ditos num tom macio, também a excitava.

     - Bem, a ameaça que ela representava se foi agora - disse Isabel. - Não foi tão difícil de expulsá-la.

     - Tem certeza?

     - Observei quando Elspeth partiu com sir Payton, carregando a cesta, um pirralho e um gato monstruoso. Ela foi embora.

     - Em corpo, talvez, mas... e em espírito? - Kenneth deu de ombros. - Levará um tempo até que você possa ter certeza de que a lembrança de Elspeth não ficou gravada em Cormac. Se acontecer isso, ele pode não ser mais o tolo complacente e amoroso que tem sido até agora. Ela pode ter lhe aberto os olhos.

     - E você acha que isso o tornaria perigoso?

     - Cormac sabe muito sobre você, Isabel. Demais. Até agora, sua devoção cega, sua crença de que você é uma pobre inocente enganada, e seu estranho apego a um voto que muitos homens teriam deixado de lado muito tempo atrás, o impediram de ver tudo com clareza. Se enxergar a grande maravilha que você é - resmungou, num tom tão sarcástico e ferino que fez Isabel franzir a testa -, ele pode começar a pensar mais atentamente em tudo que viu, e não ser tão cego que não compreenda a importância disso.

     Isabel suspirou com uma pesar passageiro e depois se sentou na cama.

     - Você quer se livrar dele. - Estendeu a mão e fechou os dedos longos e esguios em torno do membro rijo.

     - A menos que Cormac nos force a agir mais cedo do que gostaríamos, esperaremos até podermos fazer bom uso dele. Cormac pode morrer protegendo você. Isso agradaria à almazinha cavalheiresca do bobalhão.

     - Não quero falar disso agora. - Isabel inclinou-se na direção do sexo de Kenneth.

     - Está com pena? Vai sentir falta do idiota?

     Kenneth não era o único que podia lhe dirigir um suave insulto ou provocação.

     - Ele tem algumas excelentes qualidades - Apertou ligeiramente o sexo ereto - de que sentirei muita saudade.

     De certa forma, Isabel falava a verdade, mas ronronou com prazer vitorioso quando o amante aceitou o desafio que ela lhe lançara.

    

     Cormac resmungou um palavrão e se levantou. Durante três dias, dormir tinha sido impossível. Por três dias, toda vez que fechava os olhos, via o olhar de Elspeth, ouvia o sofrimento em sua voz, recordava-se de cada palavra que ela havia dito.

     Por três dias torturantes, ele pouco fizera a não ser pensar e tentar desesperadamente se convencer de que não era o tolo como Elspeth o chamara. Hora após hora, a se escoarem lentamente, Cormac lutara para ignorar o vazio que sentia o sofrimento causado pela dúvida. As únicas coisas que se tornavam mais fortes eram seu corpo e a sensação de que cometera o maior erro de sua vida quando não impedira Elspeth de deixá-lo.

     Parou ao lado da janela e olhou para a rua, esperando que o quarto dia começasse. As noites passavam em branco para ele. Transcorriam em horas de pensamentos errantes, improdutivos, confusos. Nas poucas vezes em que havia conseguido cochilar, esse alívio terminara cruelmente ao acordar num estado deplorável, suado de desejo, só para se descobrir agarrado a um travesseiro, um travesseiro que ainda conservava o cheiro suave de lavanda, o aroma de Elspeth. Depois, tivera de combater aquela sensação avassaladora de perda e vazio mais uma vez. Julgava que sentia a falta até daquele maldito gato.

     Ainda mais preocupante que seus sentimentos confusos era a completa falta de notícias ou sinal da mulher que lhe provocava todo aquele caos emocional. Isabel tinha aparecido, fizera aquela cena de ciúme, jurara amor por ele e, depois, fora embora. Apesar de continuar em estado de choque devido à discussão dolorosa com Elspeth, Cormac havia mandado avisar Isabel que sua amante partira. Isabel respondera com um completo silêncio.

     Que ela o ignorasse depois de ter conseguido o que desejava só aumentava a dúvida que o atormentava. Cormac não queria pensar que Isabel o tinha usado e enganado durante dez anos, mas a idéia penetrara em seu coração e mente como veneno no sangue. E se o amor por ela não fosse mais que um hábito doentio? E se Isabel usara seu senso de honra e as juras de um jovem louco de amor para prendê-lo como escravo? Será que era cego para o que ela fazia? Cada boato e acusação que ouvia a respeito da libertinagem de Isabel o torturava agora. Será que ela nunca o amara realmente? Deveria estar ali para ajudá-lo, para afastar as dúvidas e aliviar o estranho vazio em que Elspeth o havia lançado.

     Cormac precisava de respostas e não as encontraria preso e sozinho no quarto, com apenas os próprios pensamentos confusos por companhia. Esmurrou a parede, quase abençoando a dor latejante na mão. Basta! exclamou para si mesmo. Não iria ficar sentado como um cãozinho de colo à espera que a dona lhe oferecesse bocados de afeição.

     O tempo que custou para se lavar e se vestir não diminuiu sua determinação em ver Isabel. Nem o tempo que levou para comer alguma coisa no desjejum. Fez a manhã passar um pouco mais depressa e já fazia horas que o dia tinha nascido quando ele partiu para procurar Isabel. Pela primeira vez não estava preocupado que alguém o visse atrás dela, nem em quebrar a promessa de esperar até que ela o chamasse ou aparecesse.

     Quando entrou no castelo, contudo, e seguiu para os aposentos de Isabel, Cormac sentiu-se inquieto. Ela pertencia, devido aos casamentos, ao poderoso clã dos Douglas. Não se tratava de um clã qualquer para se afrontar, ele sabia bem. Isso, no entanto, não parecia ter nada a ver com aquele repentino desassossego, e Cormac ficou intrigado. Algum instinto lhe dizia que não deveria continuar com aquilo, que não iria gostar dos resultados, mas ele expulsou a hesitação. Depois de dez anos, Isabel lhe devia algo, pelo menos umas poucas respostas honestas.

     O que encontrou do lado de fora dos aposentos de Isabel o fez vacilar. Quatro homens se postavam ali, de expressões fechadas. Dois tinham os ouvidos encostados na porta, enquanto os outros montavam guarda. Cormac sentiu o estômago contrair-se de tensão e uma pontada de medo ao perceber que eram todos Douglas. Nenhum deles, porém, fez um movimento para ameaçá-lo ou impedir que se aproximasse.

     - Então, Armstrong, veio atrás dela agora, não é? - resmungou um homem alto, de ombros largos, a voz baixa para que só Cormac ouvisse.

     - Sim, vim falar com Isabel - ele respondeu. - O que estão fazendo aqui?

     - Estamos ouvindo uma conversa muito interessante, ou assim promete ser quando começar de novo. Quer se juntar anos?

     - Você sabe quem eu sou, mas não reconheço nenhum de vocês - Cormac disse ao se aproximar da porta.

     - Sou sir Ranald - declarou o homem alto. - Aquele com o ouvido grudado na porta é meu irmão James. O da direita é Ian, e o da esquerda é Wallace. Todos Douglas. - Sorriu com frieza. - Fiquei noivo da sua amante.

   Cormac encarou o homem com uma sensação aguda de ter sido traído. Isabel nada dissera sobre um novo casamento e, no entanto, deveria saber disso no instante mesmo em que o lembrava da promessa que ele lhe fizera. De novo, ela o atraía para o seu lado, embora não estivesse livre para agir assim. Dessa vez, Cormac não foi invadido pelo sofrimento e pelo pesar, mas apenas por uma fúria glacial.

     - Quando ficou noivo? - ele perguntou.

     - Faz uma quinzena - informou Ranald.

     Ali estava a prova de que Isabel realmente sabia o que havia sido arranjado quando o procurara.

     - Parabéns.

     - Ora, o que foi que eu fiz para que me cumprimente por essa maldição?

     - Está prestes a se casar com uma mulher muito bonita e muito rica. Acha que isso é uma maldição?

     - Quando essa mulher enterrou quatro dos meus parentes, acho que sim. - Ranald olhou para James, que continuava de ouvido colado à porta. - Estão acabando?

     - Em breve, a julgar pelo barulho - resmungou James.

     - Quando eles gritarem de satisfação abra a porta bem devagar. Teremos de ficar no maior silêncio para podermos ouvir com mais clareza o que disserem. - Ranald olhou para Cormac. - Ah, você pensava que ela era fiel?

     Cormac pensava, a não ser durante os breves casamentos, mas preferia cortar a ponta da língua a admitir isso àquele homem de olhos frios.

     - Tudo isso é para provar a infidelidade dela para que você possa romper o noivado?

     - Espero ganhar bem mais que isso, mas se não ouvirmos tudo que desejamos... Sim, ficaria satisfeito por enquanto.

     Com relutância, Cormac aproximou-se da porta e encostou o ouvido contra a madeira. A porta não era de carvalho, mas de uma madeira mais leve, e os sons abafados que ouvia eram fáceis de reconhecer. Involuntariamente, ele recuou. Isabel encontrava-se lá dentro, desfrutando de uma união carnal cheia de luxúria. Afastou-se da porta e franziu a testa, imaginando por que não sentia nenhum lampejo de ciúme. Deveria querer derrubar a porta a chutes para ver com os próprios olhos que Isabel nada mais era que uma prostituta, como tantos a chamavam. Em vez disso, seu desejo era esperar para ver os Douglas jogarem seu jogo até o fim. As únicas emoções que sentia eram uma irritação aguda e um profundo desapontamento consigo mesmo e com Isabel.

     - Pode ser a criada - Cormac sentiu-se compelido a dizer, e apenas deu de ombros quando os quatro homens o encararam como se ele fosse completamente insano.

     - Isso me desapontaria, mas sei exatamente quem está fornicando com todo esse barulho por trás desta porta, felizmente bem fina: minha noiva e meu primo Kenneth. Temos mantido os olhos nos dois desde que chegaram à Corte e bem antes disso. Creio que o casalzinho tem um longo caso como amantes e muitas outras coisas mais.

     Antes que Cormac pudesse perguntar a Ranald exatamente o que mais, James fez sinal para que todos ficassem em silêncio. Os últimos gritos ressoaram através da porta, agora entreaberta. Cormac sentiu que enrubescia sob o olhar firme de sir Ranald, ao reconhecer a voz de Isabel. Ela lhe garantira ser ele o único a fazer com que gritasse assim. Mentira. Quantas outras mentiras lhe contara?

     - Ah, Kenneth, meu amor, você fica cada vez melhor - disse Isabel.

     - Suas habilidades melhoraram também, minha querida. - Kenneth sentou-se na beira da cama. - É de admirar, considerando seu gosto por rapazes.

     - Cormac não é um rapaz. É só alguns anos mais jovem que você.

     - Já que é provável que tenha se deitado com poucas mulheres além de você, eu o considero um rapaz.

     Embora aquilo fosse muito constrangedor, Cormac não se afastou. A verdade valia uma pequena humilhação. Todas as suas outras emoções estavam enterradas debaixo de uma necessidade profunda, torturante, de descobrir quem era Isabel realmente.

     - Ensinei a Cormac tudo que eu sei - disse ela.

     - Ah, bem, então ele deve ser um memorável garanhão - resmungou Kenneth.

     - Está com ciúme, amor?

   - De um brinquedo da sua infância que você não quer jogar fora? Acho que não.

     Cormac recuou o desconforto a aumentar com os olhares de simpatia dos quatro homens. Merecia que o fitassem com piedade. Se soubessem do que ele desistira por causa daquela mulher, provavelmente chorariam de dó.

     - Se não tem ciúme de Cormac, por que permitiu que ele fosse acusado da morte do meu primeiro marido?

     - Ora, ele estava lá e era fácil fazer com que parecesse culpado. Queria que eu colocasse os parentes no nosso rastro?

     - Não, claro que não. Eles deram pouco descanso a Cormac até que você lhes entregou o pobre do Donald... - A risada de Isabel soou suave, embora fria. - E pensar que aquele tolo julgou que poderia nos lograr nos manobrar através dos nossos segredos. Mereceu a forca só por isso. Onde estão as minhas meias?

     - Joguei-as perto da parede.

     - Ah, estou vendo. Ainda acredita que o sacrifico de Donald funcionou para acabar com as suspeitas?

     - Faz quase dez anos, amor, e ninguém olhou para o nosso lado. Tudo deu certo. Não se preocupe com isso. Se sente necessidade de se remoer e se abalar, preocupe-se com os outros três idiotas com quem se casou. Alguns ainda ficam intrigados com aquelas mortes. Acho que erramos em tentar fazer que parecessem acidentes - Kenneth murmurou. - É mais fácil, já que põe um ponto final em tudo, se houver alguém para pendurar na forca pela morte. A sede de vingança é saciada e as pessoas logo esquecem.

     - Há algo de sábio no que disse. Mesmo assim, precisa ser Cormac de novo?

     - Sentindo um pouco de ternura pelo bobalhão? - caçoou Kenneth, com um tom de ameaça e raiva na voz fria.

     - Mesmo depois que ele a deixou de lado por aquela mocinha dos Murray?

     - Cormac não me deixou de lado! - esbravejou Isabel.

     - Eu estou aqui e ela, não, certo?

     - Não está? Acho que você sabe como eu sei que ela permanece na cabeça dele. Você perdeu o controle, amor. Cormac continua com você porque se comprometeu a isso, e você pode confiar que cumprirá a palavra com tanta certeza como sabe que a palavra dos pais dele não serviria para nada. Aceite a verdade e o perigo que existe. Você brincou com aquela marionete por tempo demais. Os cordões se esgarçaram. Não se romperam com aquela moça, mas podem arrebentar com a próxima. Pelo que sabemos, Cormac começa a pensar que errou em preferir você à mocinha dos Murray. Fracos como estão, os cordões vão se partir a qualquer momento. E o nosso plano não tem espaço para sentimentalismos.

     - Não é sentimentalismo - resmungou Isabel - Estou cansada de me deitar com esses molengas só para você encher os bolsos de dinheiro e ganhar terras. Acho que enterrei maridos demais. E isso traz todos os olhares sobre mim. Mas não sou a única com as mãos manchadas com o sangue e quatro homens. Você está tão ensopado como eu, e, no entanto, é a mim que vigiam de quem suspeitam.

     - É melhor assim. Não sou uma bela mulher que pode tirar o juízo de um homem com palavras doces e a boca com gosto de mel - disse Kenneth, com um toque de sarcasmo na voz. - Você é bem mais capaz de afastar-lhes as suspeitas e seduzi-los do que eu. E esse será o último.

     - Tem certeza?

     - Sim. Enquanto você chora sobre o túmulo do pobre primo Ranald, eu serei indicado como o senhor de suas terras. Ele é o último a se postar entre mim e tudo que eu cobiço.

     - Exceto o pai dele.

     - Um velho que morrerá assim que o filho se for.

     - E você não vai mudar de idéia de culpar Cormac pela morte de Ranald?

     - Não.

     - Se é assim, por quanto tempo devo ficar casada desta vez?

     - Não muito. O primo Ranald pode se mostrar um homem muito imprudente. Tenho certeza de que pensaremos num jeito adequado de acabar com a vida dele quando você se cansar. Talvez até se divirta. Dizem que é um amante experiente.

     - Eu não saberia dizer. Ele não mostrou nenhuma inclinação para tirar vantagem do nosso noivado.

     - Pobre Isabel... Um homem que pode resistir aos seus muitos encantos. Que maravilha! Bem, venha cá e deixe-me aliviar sua vaidade ferida.

     - Acabamos de nos vestir - protestou Isabel.

     - Tudo que você precisa fazer é abrir minhas calças.

     Cormac viu o sinal rápido de Ranald, impedindo seus parentes de interromperem os amantes. Custou um momento para que enxergasse a vantagem de deixar Isabel e Kenneth se entregarem de novo à luxúria. Kenneth certamente seria surpreendido em desvantagem, incapaz de reagir para se defender. E os dois também seriam pegos em flagrante com a interrupção, sem poder negar que eram amantes. Já que Isabel estava noiva, era quase adultério. Sir Ranald poderia matar ambos por esse motivo.

     Cormac sentia-se entorpecido. Todos estavam certos a respeito de Isabel. Era uma assassina, uma vagabunda trapaceira. Ele havia perdido dez longos anos de sua vida por ela. E perdera Elspeth. Surpreendeu-se que seus amigos e familiares tivessem continuado leais a um completo idiota como ele. Cormac sabia o que Kenneth pedira a Isabel. E ela cumpriria a tarefa com habilidade e prazer. Não era algo que ele desejasse ver, mas se forçaria a presenciar tudo até o amargo fim.

     - E lhe dar prazer irá aliviar minha vaidade ferida? - Isabel indagou.

     - Eu a conheço bem, amor. Adora ter um homem à sua mercê. Aqui estou disposto a ser tentado e torturado por sua boca experiente. Escravize-me. Isso, garota. Vê o que faz com um homem? Faça um banquete comigo - murmurou.

     - Um banquete? Isso é muito melhor.

     Os gemidos de Kenneth indicaram a Cormac e aos Douglas que o casal estava agora completamente ocupado. Assim que James abriu a porta, Cormac entrou ao lado de Ranald. A cena com que seus olhos depararam não lhe causou nenhum sofrimento verdadeiro, apenas desgosto. Kenneth estava esparramado numa cadeira, a cabeça caída para trás, os olhos fechados. Isabel, ajoelhada entre as pernas fortes do amante, dava-lhe prazer com uma gula ruidosa. Se Cormac ainda duvidava que Isabel fosse um pouco melhor que uma prostituta vulgar, viu que bastaria recordar-se daquele quadro para pôr um ponto final àquela loucura.

     Os quatro Douglas circundaram o casal, em silêncio. Cormac postou-se perto de sir Ranald quando este colocou a ponta da espada na garganta de Kenneth. Ao mesmo tempo, James agarrou os cabelos de Isabel e arrastou-a para longe do amante. O ruído que ela fez ao soltar Kenneth só aumentou a sordidez da cena. A expressão nos rostos dos amantes, uma mistura de horror, culpa e medo, proporcionou uma pequena satisfação a Cormac.

     - Parece surpreso, primo - resmungou sir Ranald. - Acho que o prazer o deixou surdo à nossa chegada.

     - Você mataria um parente por causa dessa vagabunda?! - Kenneth exclamou.

     Depois de lançar um olhar cheio de ódio ao amante, Isabel voltou-se com um ar inocente e suplicante para sir Ranald.

     - Ele me seduziu, sir Ranald. Foi apenas um momento de fraqueza... Ele usou meu sentimento de culpa para me forçar a continuar sua amante.

     - Realmente, nós ouvimos seus ardentes protestos - disse Ranald. - E vimos com que força ele a obrigou a se ajoelhar. Suponho que a sua boca estivesse muito cheia para chamar por ajuda. - Sorriu friamente quando Isabel enrubesceu, a uma vermelhidão do rosto revelou fúria em vez de vergonha ou constrangimento. - Ah, puxa, como o meu coração está partido!

     - Chega de piadas, primo! - exclamou Kenneth. - Deixe-me sair para que possa dar o jeito que quiser nessa mulher. Você não pode querer matar um homem por tomar aquilo que lhe é oferecido livremente e com todo ardor, não é mesmo? Não é como se eu tivesse deflorado sua noiva virgem. Você conhece os boatos sobre ela. As mesmas conversas que o deixaram relutante em aceitar o noivado. Bem, eu lhe dei uma boa e sonora razão para rompê-lo. Até seu pai, que pressionou pelo compromisso, não o culpará se você escorraçar a vagabunda depois disso.

     - É verdade, mas ele me esfolaria vivo se eu permitisse que o assassino dos nossos parentes saísse livre.

     - Acha mesmo que ela matou os maridos?

     O ar de surpresa e horror no rosto bonito de Kenneth deixou Cormac atônito pela perfeição. Sabia que não deveria ficar surpreso. Uma vez descobertos, Isabel e Kenneth se voltariam um contra o outro. Aqueles dois eram gentalha da mesma laia. Tinham assassinado quatro homens inocentes pelo motivo mais vil: cobiça. E calmamente planejavam matar outro e culpar Cormac pelo feito. Kenneth permitira que a sedução de Isabel o conduzisse ao perigo. Se tivesse tido força para resistir àquela tentação, seria um homem livre agora, livre para continuar eliminando os parentes que se postavam no caminho daquilo que cobiçava. Mas o sucesso continuado do plano o tornara arrogante demais para ser cauteloso.

     - Ah, primo, você é um ótimo ator - murmurou sir Ranald. - Parece tão inocente, com a virilidade exposta para todos verem, ainda molhada das tenras atenções da minha noiva.

     Uma leve camada de suor porejou a testa de Kenneth, a única coisa que revelava sua crescente agitação.

     - Ela não passa de uma prostituta.

     - Isso ela é, e não vou querer que pense que sou tão idiota a ponto de fazer correr o sangue de um Douglas por causa de uma cadela infiel. Não, não o verei morto por ela.

     - Então por que continua com a espada na minha garganta?

     - Apenas penso nas minhas opções. Mato você agora? Ou o levo ao nosso soberano e o deixo decidir como fazê-lo pagar pelas mortes de quatro de nós, Douglas?

     - Não sei o que quer dizer com isso.

     - Acha realmente que acabamos de chegar? Não, primo. Já estávamos aqui quando você começou a primeira rodada de fornicação. - Meneou a cabeça e viu Isabel e Kenneth tornarem-se mortalmente pálidos.

     - Ninguém lhe dará ouvidos! - Kenneth exclamou, com um leve tremor na voz a denunciar seu medo. - Pensarão que você diz mentiras nascidas do ciúme.

     - Creio que não. Tenho quatro outras testemunhas das suas confissões. E das dela.

     - Quatro? - Isabel olhou para os Douglas e depois para Cormac, com os olhos azuis suplicantes. - Você me trairia, meu amor?

     Cormac viu aqueles belos olhos se encherem de lágrimas. A expressão de Isabel revelava profundo pesar e sofrimento. Era uma artista tão perfeita como Kenneth, ele se deu conta. E ficou a imaginar se alguma coisa que Isabel havia feito ou dito era verdadeira.

     - Sim, Isabel, eu proclamaria ao mundo a feia verdade sobre você.

     - Como pode dizer uma coisa dessas depois de tudo que significamos um para o outro, de tudo que suportamos juntos?

     - Juntos? Eu suportei como o tolo sem discernimento que sou. Você nada mais fez que manter outro garanhão no seu estábulo. - Cormac meneou a cabeça. - Quatro mortes, Isabel? Quatro assassinatos? E para quê? Por dinheiro e terras? Você tinha tanto. Não, Isabel, eu estava cego demais por causa da beleza e da minha luxúria para saber, mas não existe nada entre nós. Sentia-me desesperado para provar que era honrado e me agarrava a um juramento feito na juventude imatura, um juramento que eu deveria ter considerado extinto pelo menos quando você se casou pela segunda vez. Honra... Não posso acreditar que desperdicei minha honra com uma vagabunda como você.

     Respirou fundo, a encará-la como se a enxergasse pela primeira vez.

     - Pare de chorar! - esbravejou. - Não me deixarei mais enganar pelos seus artifícios. Não, sobretudo quando acabei de testemunhar a volúpia com que se deliciava com outro homem. E também acabei de escutar o que você e o seu amante planejavam: outra morte. E de como lançariam a culpa sobre mim.

     A expressão de Isabel mudou rapidamente de tristeza para fúria. Estreitou os olhos.

     - Está zangado porque me culpa por ter perdido aquela cadelinha Murray.

     - Você tem culpa, mas eu também - Cormac murmurou, num tom duro. E emendou: - Se quiser manter as feições bonitas, nunca mais fale de Elspeth desse jeito. Você não merece nem mesmo pronunciar o nome dela. Eu posso ter uma desculpa, de ter sido tolo e me deixado escravizar por um rosto bonito e a experiência de uma prostituta. Você não tem nenhuma!

     - Esses homens vão me querer morta!

     Cormac sentiu uma pontada dolorosa de verdadeira tristeza ao pensamento. Aquela mulher fazia parte de sua vida, estivera ligada a cada movimento que ele fizera nos últimos dez anos. Apesar das mentiras e traições, não era fácil pensar em sua morte. Forçou-se a desviar os olhos, a lembrar-se de que Isabel era culpada pelo assassinato de quatro homens, cinco, se incluído o infeliz Donald, a quem haviam se referido com tanto sarcasmo. E poderiam ser seis, pois ela não pretendia fazer nada para impedir o amante de matar o primo. E sete, quando Kenneth lançasse Cormac aos lobos.

     - Como você estava disposta a me ver morto uma vez. Sim, e outra vez agora, depois que matasse sir Ranald.

     - É melhor pensar melhor, Cormac! - Isabel exclamou num tom ríspido. - Você está cometendo um erro ao virar as costas para mim agora.

     Ele a encarou com surpresa.

     - Está me ameaçando?

     - Apenas estou lhe dizendo que terá muito a perder se me deixar de lado e nas mãos desses homens.

     - Não faz sentido o que diz mulher. Já perdi muito por sua causa. Que mais de mal pode fazer a mim?

     - Cale a boca dessa cadela, James! - ordenou sir Ranald. - Essa brincadeira está se tornando cansativa.

     - Cormac, é melhor me escutar - começou Isabel, mas, apesar de ela se debater, James logo a amordaçou e amarrou.

     Sir Ranald, que estivera ocupado ajudando os outros dois a amarrar sir Kenneth, olhou para Cormac.

     - Ela apenas tenta fazer de você um joguete um pouco mais. A cadela já sente a dor da corda no belo pescoço e busca se salvar.

     - Sei disso - disse Cormac, e depois sorriu. - Mesmo assim, é difícil romper um velho hábito. Posso precisar de um pouquinho de tempo para aceitar que aquilo em que acreditei por tantos anos era tudo mentira e que a verdade é essa feiúra.

     - Vai ficar para prestar testemunho?

     - Sim. Acha realmente que precisará disso?

     - Talvez. Existem os que ainda não sabem da verdade, e Kenneth tem alguns poucos aliados poderosos. Não sei se são leais, se tentarão salvá-lo ou se irão agora de afastar, receosos de ser envolvidos nisso tudo. E Isabel também conta com aliados. Ela sempre soube quais homens levar para a cama a fim de tirar mais vantagens. Por outro lado, alguns deles podem estar mais dispostos a vê-la enforcada por fazê-los de tolos.

     - Se considerarmos como os dois se voltaram depressa um contra o outro, pode-se descobrir qual deles está mais ansioso para relevar as perfídias do parceiro - declarou Cormac.

     - É verdade. Bem, você não precisa ficar aqui e testemunhar o interrogatório. Eles estarão bem presos, e mandarei avisar se precisar de você; ou se tudo acabou, e o seu depoimento não for necessário. Poderá ir embora e, talvez, em busca da mocinha dos Murray.

     - Você conhece Elspeth? - Cormac perguntou, com alguma surpresa.

     - Um pouquinho. Ela e a mãe foram ao castelo de meu pai para ajudar quando uma enfermidade nos atacou violentamente. Muito habilidosa em curar, tal como a mãe. E muito bonita. Pertence a um clã pequeno, porém rico, e não sem influência quando decidem usá-la. Seria um bom casamento. Estranho Elspeth não ter lhe contado que o primo dela e Isabel eram tão... íntimos.

     - Quer dizer sir Payton?

     - Sim. Um belo rapaz. Corajoso e honrado. - Sir Ranald riu baixinho e meneou a cabeça. - Quando ele soube que eu iria desposar Isabel, veio me procurar. Enfrentou-me calmamente e me disse o que julgava ser a verdade sobre minha noiva. Acertou perto da mosca o rapaz. Também me contou que havia se deitado com ela uma vez.

     - Realmente corajoso. - Então, também o jovem Payton desfrutara de Isabel, pensou Cormac, e sacudiu a cabeça de desgosto. - Elspeth não disse nada, ou porque não sabia ou não pensou que eu lhe desse ouvidos.

     - Mas ouviria agora?

     - Claro, porém receio que seja tarde demais para me fazer algum bem - Cormac declarou. Não se referia a nenhuma confissão sobre Payton, mas à própria situação. E a tristeza e o arrependimento pesavam em cada palavra.

    

     - Está tentando secar cada barrica da cidade?

     Cormac pestanejou ao reconhecer a voz, mesmo em seu torpor de bêbado. Ergueu os olhos da caneca de cerveja para a qual estivera olhando sem enxergar, e deparou com seu irmão William. Piscou de novo, tentando focar a imagem. E pensou que horas seriam. Voltara para a hospedaria depois do desastre nos aposentos de Isabel e então resolvera embebedar-se. Tivera sucesso. Estava bastante embriagado, na verdade, mas ainda não alcançara aquela embrutecida alienação que procurava. A chegada do irmão e alguns poucos membros da família não era de todo bem-vinda, mas pelo menos significava que teria ajuda para achar a cama.

   - Olá, Will, e olá para você também, Alaister. - Cumprimentou o outro irmão com a cabeça e depois apertou os olhos. - Àqueles outros são os primos Malcolm e David?

     - Sim, seu idiota encharcado de álcool! - exclamou William, enquanto ele e os outros se sentavam à mesa e faziam um sinal à criada para que trouxesse outra jarra de cerveja e quatro canecas. - Estamos procurando por você faz mais de quinze dias.

     - Ah, é? E por quê?

     - Bem, é provável que esteja muito bêbado para compreender, mas nossos pais estão mortos.

     - Finalmente se mataram?

     - Não. Ladrões o fizeram. Estavam viajando para casa depois de passar uma semana de devassidão com seus amigos, e a carruagem deles foi assaltada. Ainda bêbados, resolveram lutar para salvar umas poucas moedas e foram mortos. O velho Patrick e o filho viram tudo. Eles foram prudentes e se renderam. Levaram os corpos para que os enterrássemos.

     Cormac percebeu que, debaixo do oceano de cerveja que havia consumido, luzia um lampejo de tristeza. Seus pais tinham sido bons em fazer filhos, mas pouco ou nada se importavam com a prole. Também não gostavam muito um do outro, e viviam a encher os corredores do castelo com gritos zangados, recriminações e insultos. As únicas coisas que compartilhavam eram beber até ficar entorpecidos e se deitar com outros, tantos quantos fosse possível. Metade dos que Cormac chamava de primos eram na verdade meios-irmãos, bastardos gerados e esquecidos por sua mãe e seu pai. Não obstante, tinham lhe dado a vida e, só por essa razão, Cormac lhes devia um pouco de comiseração. Apenas estava bêbado demais para fazer isso no momento.

     - Você é o lorde de Aigballa agora, Cormac - Alaister disse, revelando uma sombria preocupação em seus olhos castanho-esverdeados.

     - Deus, sou mesmo - Cormac resmungou, e depois tomou um longo gole de cerveja.

     - Por isso, precisa voltar para casa.

     - Não posso. Tenho de ficar para ver Isabel enforcada. - Sorriu quando todos os quatro se engasgaram com a cerveja, e depois esperou que parassem de tossir. - Sou testemunha.

     - Do quê? - indagou William, ainda rouco com a tosse.

     - Da perfídia daquela mulher. - Cormac teve a sensação de que o esquecimento que buscara o envolvia rapidamente. - Confissão feita diante de mim e quatro dos Douglas. Nós a ouvimos dos lábios dela. Vimos também. Não parecia tão bonita fazendo sexo devasso com sir Kenneth. Não sei o que me aborrece mais; que tenha me logrado que eu fosse tão idiota, que ela tenha cuspido na minha honra por tanto tempo e eu não soubesse, ou que todos vocês podem dizer agora que me avisaram. - Não conseguia manter os olhos abertos. - Ah, Elspeth, meu anjo, eu sinto tanto... - murmurou e caiu de cara na mesa.

     William recuou quando a cabeça de Cormac chocou-se contra a madeira com um baque surdo.

     - Teremos de carregar o idiota para a cama.

     - O que o fez beber desse jeito? - perguntou Alaister.

     - Cormac raramente faz isso.

     - Algo a ver com Isabel, os Douglas e uma tal chamada Elspeth. Acho que o pobre tolo finalmente viu Isabel como ela é de fato. Enquanto isso, a verdade terá de esperar até que a cabeça dele clareie. E, a julgar pelo tanto que bebeu, isso pode levar alguns dias.

     - Não acho que seja um bom sinal que, ao enxergar a verdade sobre aquela prostituta, Cormac tenha bebido tanto assim.

     - O que faria se acabasse de descobrir que desperdiçou dez anos da sua vida com uma cadela assassina? - William meneou a cabeça quando o irmão mais novo e os três primos sorriram. - Estou pensando que não é só isso. Não, meu instinto me diz que foi essa Elspeth que provocou esse pileque. Bem, não adianta querer adivinhar. Vamos levá-lo para a cama e rezar para que, pela manhã, acorde em condições de conversar.

     Cormac continuou perfeitamente imóvel e imaginou se poderia, ou conseguiria abrir os olhos. Sentia em cada músculo e nos próprios ossos os efeitos da imensa quantidade de álcool que bebera. O problema era que precisava aliviar a bexiga, e tão desesperado estava que até isso era doloroso. O que significava que teria de se mexer e, embora sua experiência com bebida fosse quase nenhuma, sabia que o ato lhe custaria caro.

     - Precisa do penico? - perguntou uma voz familiar.

     Ao entreabrir as pálpebras bem devagar, Cormac sentiu a luz do quarto penetrar em seu cérebro como uma agulha.

     - É você, Will?

     - Sim. Deixe-me ajudar a sentá-lo. Alaister foi lhe arranjar um remédio.

     Quando Will o ajudou a se sentar, Cormac abriu os olhos um pouco mais. Foi uma luta fazer o que precisava, pois sua cabeça latejava e seu estômago parecia revirado. Resmungando um obrigado a Will, soltou o corpo sobre a cama. Um momento depois se viu erguido pela metade, e alguém o fez beber uma coisa de gosto detestável. Quando o deitaram de novo, sentiu que colocavam um pano frio e molhado em sua testa.

     - Você estará melhor em uma ou duas horas - disse Will - e, então, vamos conversar.

     Custou quase três horas para Cormac abrir os olhos de novo e ser capaz de fazer alguma coisa além de gemer de dor. Olhou para os irmãos e os primos e espantou-se com a paciência que mostravam. Não se lembrava de muita coisa desde o momento em que deixara Isabel.

     - Ouvi alguém dizer que nossos pais estão mortos? - indagou.

     - Sim - respondeu Will. - Ladrões os mataram, e você é o nosso novo lorde. Coma um pedaço de pão - disse ao colocar uma fatia de pão fresco na mão de Cormac. - Ele vai chupar o álcool do seu corpo e ajudar você a recuperar o juízo.

     - Eu disse alguma coisa a noite passada? Algo que os deixou interessados? - Cormac começou a comer o pão devagar, meio enjoado.

     - Contou que precisava ficar aqui para ver Isabel ser enforcada. Admito que despertou um pouco a minha curiosidade.

     - Ah, isso... - Cormac continuou a comer enquanto contava tudo que havia ouvido e visto. - Sir Ranald está com Isabel e o amante agora, e é certo que serão julgados rapidamente e enforcados.

     - Então, por que você tem de ficar aqui?

     - Sempre existe a chance de precisarem de outra testemunha, uma que não seja um Douglas, pelo menos.

     - E você seria essa testemunha, sabendo que as suas palavras mandarão Isabel para o patíbulo?

     - Não faça esse ar tão preocupado, Will - Cormac disse ao irmão e, com um olhar de relance, incluiu os outros parentes no comentário. - Sim, sinto um pouco de pena. Ela matou ou ajudou a matar cinco homens e se dispôs, por duas vezes, a deixar que eu fosse enforcado por esses crimes. Mesmo que sentisse algo mais, ainda estaria pronto para ser testemunha da culpa de Isabel. A honra o exige.

     - Honra foi uma das coisas que enfiaram você nessa confusão - resmungou Will, e depois cruzou os braços sobre o peito largo. Estudou Cormac atentamente por um instante. - Você está curado.

     - Maneira estranha de colocar as coisas.

     - Não. - Alaister meneou a cabeça, os cabelos cor de bronze a dançar sobre seus ombros. - Ele tem razão. Aquela mulher era como uma doença em você.

     Cormac esboçou um sorriso para o irmão mais novo, geralmente muito sério.

     - Sim, talvez fosse. Mas eu fiz um juramento, e a minha necessidade de honrá-lo também se tornou de certa forma uma enfermidade que me cegou. Agarrei-me à promessa e ignorei tudo o mais.

     - Achei que estaria mais abalado do que na verdade está.

     - Eu também, mas parece que a cura já tinha começado quando soube de toda a horrível verdade. Só fui lento demais para reconhecê-la. E se tivesse aberto os olhos ao que havia ao meu redor, teria me libertado da minha promessa muito tempo atrás.

     - Devemos crer, então, que esteve se embebedando para comemorar? - perguntou William.

     Antes que Cormac pudesse responder ao comentário sarcástico de William, Alaister indagou:

     - Quem é Elspeth?

     - A cura - Cormac respondeu baixinho, e tentou se servir de um copo de água. William apressou-se a fazer isso. - Foi estranho. Elspeth fez as mesmas perguntas que vocês fizeram, muitas das mesmas acusações e, no entanto, despertou minhas dúvidas. De alguma forma, impeliu-me rumo à verdade que eu lutei tanto para ignorar.

     - Onde está ela? Gostaria de conhecer a moça que finalmente quebrou o feitiço de Isabel sobre você.

     - Foi embora. - Cormac não se surpreendeu quando a verdade o machucou? - Eu ainda estava tentando entender o que havia mudado, quando fui colocado contra a parede. Tive de fazer uma escolha. E optei por me agarrar àquela jura antiga, à minha honra, sem me dar conta de que a desperdiçava com alguém como Isabel.

     Alaister praguejou, fazendo com que os outros o encarassem, surpresos.

     - Você escolheu Isabel...

     - Na verdade, eu não tinha cabeça para fazer realmente uma escolha, mas Elspeth julgou que sim. Pior, não fiz nada para impedi-la. Como poderia? Ainda me sentia comprometido. Provavelmente, ela deve ter voltado para Donncoill maldizendo o dia em que me conheceu.

     - Donncoill? - Alaister franziu a testa; em seguida, arregalou os olhos. - Aquela Elspeth? A moça dos Murray? A menina que salvou a sua vida dez anos atrás? Por Deus, Cormac, não me diga que você a seduziu!

     - Sim, é essa mesma Elspeth, e eu não a seduzi. Ela me seduziu. - Cormac viu o olhar de escárnio e incredulidade nas expressões dos parentes. - Eu não diria que se esforçou muito para conseguir, mas eu tentei me comportar como um homem honrado, e ela não me deixou. - Deu de ombros. - É difícil de explicar.

     - Por que não tenta? - resmungou William.

     Cormac ia dizer ao irmão que o assunto não era da sua conta; mas então suspirou. De muitas maneiras, dizia respeito aos irmãos. Se Elspeth quisesse, poderia causar uma porção de problemas a Cormac e a toda a família. Havia também a questão de uma dívida de honra. Já que os Murray tinham lhe salvado a vida, Cormac e seus parentes sempre haviam procurado recompensá-los de alguma forma. A honra de todo o pequeno clã estaria em risco se alguém julgasse que ele insultara os Murray por intermédio de Elspeth. Coisas assim provocavam rixas longas e sangrentas. Embora Cormac não acreditasse que Elspeth fosse o tipo de mulher para causar um problema desse porte, não conseguia esquecer o olhar de sofrimento e fúria no rosto dela.

     - Contarei toda a triste confusão em que me meti, enquanto me visto - disse, por fim, ao se levantar da cama.

     Embora contido em alguns aspectos, Cormac foi honesto com os parentes. Contou-lhes tudo, desde o momento em que encontrara sir Colin a manter Elspeth contra a vontade no castelo, até o dia em que ela havia ido embora. Foi doloroso, mas ele relatou cada palavra e ato daquele dia fatídico. E se deu conta de que esperava que os irmãos e primos não ouvissem a mesma entonação forte de epílogo nas palavras de Elspeth, que ele notara.

     - Você fez uma maldita atrapalhada de tudo isso, não fez? - perguntou William, meneando a cabeça.

     - O amor não morre num piscar de olhos - retrucou David, fitando Cormac com seus olhos sombrios.

     - Você só tem dezesseis anos. O que sabe sobre o amor? - William esbravejou.

     - A amor não morre assim depressa. Não é preciso ficar velho ou ter experiência para saber disso. Ela disse que o ama.

     - Amava - Cormac corrigiu. - Um dia. Não agora.

     - Acho que foi apenas a raiva falando. Bem, a menos que você a julgue um tipo volúvel.

     - Não, não Elspeth.

     .- Então, conquiste-a.

     .- Pensei que tivesse conquistado - retrucou Cormac ao se lembrar com clareza da paixão que haviam desfrutado tão avidamente.

     - Não, você se deitou com ela quando viajava ao encontro de outra mulher. E aposto que nunca considerou seriamente a possibilidade de quebrar a promessa feita a Isabel, mesmo que desejasse. Minha irmã diz que amor e paixão são coisas diferentes. E que uma mulher que pensa que a paixão de um homem vai muito além do sexo é uma tola. Elspeth é uma tola?

   - Não. - Cormac surpreendeu-se com a sabedoria que o jovem David demonstrava. - Pode pensar que é, contudo. Eu a magoei muito. Segundo o seu ponto vista, Elspeth me deu tudo e eu rejeitei. Ela sabia o que Isabel era, e deve ter sido difícil para Elspeth que eu me afastasse dela para honrar um juramento feito a uma prostituta.

     - E a mágoa ficará se você a deixar pensando que foi apenas paixão que ela extraiu de você. Conquiste-a. Deixe-a saber, que significa mais do que um ninho quente para o seu passarinho. O que tem a perder?

     Antes que Cormac pudesse responder, ouviu-se uma batida dura na porta. Malcolm abriu-a e deparou com um rapaz. Quando Cormac reconheceu as roupas com que Isabel vestia os criados, ficou tenso. Será que aquela mulher realmente acreditava que depois que tudo que ele soubera, poderia atraí-lo de volta à sua teia?

     - Trago um recado de lady Isabel - o rapaz murmurou.

     Então, deu um passo para trás quando os quatro parentes de Cormac o encararam com hostilidade.

     - O que é? - Cormac perguntou.

   - Minha senhora pede que o senhor vá falar com ela. Disse que tem algo que precisa lhe contar um segredo que guarda faz anos. Deve me acompanhar. Eu sei aonde a levaram.

     Todos os quatro parentes protestaram com veemência, mas Cormac os calou com um gesto da mão. Havia algumas vantagens em ser lorde, pensou.

     - Ela não disse sobre o que quer me falar?

     - Não, senhor. Apenas que o senhor precisa vir comigo. Se não vier, se arrependerá pelo resto de seus dias.

     - Espere por mim ao pé da escada.

     No momento em que a porta se fechou atrás do mensageiro, William exclamou:

     - Não pode ter a intenção de ir procurá-la!

     - Tenho. Eu sabia que ela procuraria me convencer a ajudá-la pela última vez, fazendo voltar meu senso de honra contra mim mesmo novamente. Não vai funcionar. Juro acabou. E saber que mulher trapaceira Isabel é tão profundamente enterrada em complôs assassinos, pode servir para jogar o jogo dela, se eu tiver estômago para tanto. Se Isabel ainda pensa que eu não passo de um tolo estupidificado, que aquela velha jura ainda a protege pode me dar mais provas para usar contra ela.

     - É verdade, e acho que você está um bocado curioso também - disse Will.

     Cormac sorriu.

     - Estou. Você não estaria se alguém lhe dissesse para prestar atenção ao que tem a lhe dizer, ou se arrependeria pelo resto de seus dias?

    

     Assim que acompanhou o jovem pajem para as entranhas do calabouço, Cormac começou a sentir-se inquieto. Algo de estranho o incomodava. Depois de dez anos a procurar Isabel, tomado de ansiosa expectativa e luxúria, via agora qualquer encontro com ela como uma ameaça. O fato de que os Douglas a tivessem trancado num lugar tão sombrio só aumentava aquela sensação.

     Os mesmos dois homens que guardavam a porta dos aposentos quando ele, Ranald e James tinham ouvido a confissão de Isabel, agora guardavam a cela. Era evidente que sir Ranald só confiava em seus próprios comandados. Cormac parou na frente das grades e examinou as novas acomodações, enquanto Isabel se levantava da cama para se aproximar com estudada cautela. Embora fosse fria, úmida e iluminada apenas por uma tocha, a cela era a mais confortável que ele já vira. A cama estreita estava coberta com peles macias e travesseiros. Tapeçarias pendiam das paredes; uma fora pendurada para esconder o vaso sanitário. E havia tapetes no chão. O local estava muito limpo, assim como Isabel. Era evidente que recebera permissão para se banhar e trocar de roupas. Cormac suspeitava que recebesse visitas regulares das criadas. Tal cortesia e o tratamento generoso certamente tinham feito com que ela confiasse que poderia escapar da Justiça se usasse o plano certo. Isabel pensou Cormac, não iria aceitar sua sorte até o amargo fim. Simplesmente não conseguia conceber que, dessa vez, não poderia mentir ou seduzir para se safar dos problemas.

     - Cormac, meu amor, tive medo de que não viesse - ela murmurou ao se aproximar das grades, franzindo a testa quando ele entrelaçou as mãos às costas para que Isabel não pudesse agarrá-las.

     - Se não fosse por mais nada, Isabel, você espicaçou a minha curiosidade - Cormac disse ao ver que não tinha ânimo para nem mesmo fingir que se importava. - O que você acha que eu preciso ouvir?

     - Está tão frio comigo - ela reclamou, numa voz insegura. - Como pode esquecer tão depressa tudo que significamos um para o outro?

     - É difícil recordar muito mais além de saber que você tentava resolver como me mandaria enforcar por outro assassinato que iria cometer. Esse tipo de coisa tende a esfriar o ardor de um homem. - Cormac esboçou um sorriso quando os guardas reprimiram o riso.

     - Sir Kenneth me forçou a fazer essas coisas. - Ela se calou diante do olhar de profundo desprezo de Cormac. - Então, você se pôs do lado de sir Ranald. Nunca pensei que me faltaria, Cormac. Deixou que o voltassem contra mim com aquelas mentiras.

     - Você fez isso por si mesma. Eu apenas ouvi as suas próprias palavras e observei como usava com habilidade seus talentos de prostituta. - Se ela pudesse se libertar, Cormac julgou ao ver como Isabel agarrava as grades, lhe arrancaria os olhos.

     - Não importa o que você pensa. Ainda vai me ajudar.

     - Creio que não.

     - Ora, acho que sim. Isto é, se quiser ver seu filho vivo.

     Cormac mal se deu conta dos palavrões resmungados pelos guardas quando encarou Isabel. Um sorriso lento e maldoso curvou-lhe a boca carnuda, e Cormac teve ganas de arrancá-lo a tapas. Custou alguns instantes antes que conseguisse frear as emoções confusas que o assaltaram depois de ouvir aquelas palavras.

     Um filho? Com Isabel? Era algo impossível de aceitar. E por que, se ela lhe dera um filho, ele nunca o vira ou soubera de sua existência? Percebeu que fizera a pergunta em voz alta quando Isabel soltou uma risada.

     - Achou que levaria o pequeno bastardo comigo quando me casei ou quando viajava? Deus, eu tentei livrar-me dele no momento em que percebi que a sua semente tinha germinado no meu ventre, mas, diferentemente dos outros, não consegui expulsá-lo. Então, carrego esse fardo faz quase sete anos.

     Aquelas palavras enregelaram Cormac até os ossos.

     - Então, deveria ter me contado! - ele exclamou. - Creio que estava viúva então. Poderíamos ter nos casado. Ou eu ficaria com o bebê e o criaria.

     - Sei disso, mas decidi que ele poderia ser útil em algum momento. Como agora! - ela exclamou alegremente. - Portanto, você me ajuda e eu lhe darei o menino. Ele não está longe daqui.

     - Não, certamente não está - resmungou sir Ranald ao se aproximar da cela. - Ah, minha doce noiva, realmente me espanta que ninguém tenha ainda torcido seu belo pescoço. Mas logo iremos resolver esse problema.

     - Vá embora, Ranald! - Isabel esbravejou. - Estou tentando conversar com Cormac.

     - Está tentando chantagear o pobre homem com algo que você sabe que todo homem deseja. Suspeitei que faria isso.

     - Que esperto...

     - Sou mesmo, um homem muito esperto. Não sabia que despertou minhas suspeitas de ter matado meus parentes durante anos? Comecei a observá-la bem de perto, muito atentamente, anos atrás. - Ele sorriu ao puxar um menino magro de trás das costas, e ao ver Isabel empalidecer, a expressão dela se transformar numa mescla de fúria e medo. - Christopher, conheça seu pai. - Sem tirar os olhos de Isabel, Ranald empurrou o menino para Cormac. - Armstrong, este é seu filho, Christopher.

     - Você não tinha o direito de pegar o menino e arrastá-lo até aqui! - berrou Isabel.

     - Creio que acabei de fazer isso.

     - E como sabe que o menino é meu? Talvez eu esteja mentindo para Cormac.

     - Tenho certeza de que disse um bocado de mentiras a ele, mas este menino é seu filho. Acha que poderia escondê-lo pela vida inteira? Sim, você não tem muito a ver com o garoto, mas se esforçou para visitá-lo de vez em quando para ver se ainda vivia. A velha ama está pronta para falar comigo. Você não inspira muita lealdade nos seus criados, sabe disso. E, minha senhora, só é preciso ver o menino uma vez para saber de quem é o fruto que você gerou.

     Cormac prestou pouca atenção à discussão entre Ranald e Isabel. Estava concentrado no menino, que o fitava tão intensamente como ele julgava que o encarava também. Olhos muito parecidos com os seus e cabelos semelhantes aos de seu irmão Alaister proclamavam o parentesco. Parecia haver pouco de Isabel na criança. Um toque na boca e, Cormac avaliou uma influência mais forte na perfeição delicada das feições.

     - Olá, Christopher - ele disse baixinho, aturdido pela onda de emoções que lutava para controlar.

     - Olá, senhor - o menino respondeu. - É verdade que é meu pai?

     - Sim, sou. Você foi uma pequena surpresa para mim.

     - Sei disso, senhor. Lady Isabel não lhe contou sobre mim, portanto como poderia saber que eu nasci? Agnes, a ama, disse que lady Isabel estava me guardando escondido até que julgasse que poderia precisar apertar as suas correntes de novo. E diz que eu deveria esperar até que o senhor soubesse que eu estava vivo e ver o que faria, para depois eu resolver se era um bom homem ou não.

     - Espero que você me veja com bons olhos. Quantos anos tem, rapazinho?

     - Farei sete daqui a um mês.

     Cormac respirou fundo para expulsar a fúria que ardia em seu íntimo. Todos aqueles anos, e Isabel nunca mencionara a criança. Ele tinha deixado de ver o crescimento do menino, seu primeiro sorriso, de ouvi-lo proferir as primeiras palavras. E Isabel lhe roubara outra coisa ainda. Cormac se deu conta de que, se não fosse embora, passaria as mãos por aquelas grades, agarraria o pescoço de Isabel e acabaria com a necessidade de um carrasco.

     - Gostaria de vir comigo, Christopher? De ficar comigo?

     - Posso levar a ama Agnes?

     - Se ela quiser ir junto, claro que sim, embora eu creia que você esteja um pouquinho velho para ter uma babá. Mas ela será bem-vinda.

     Christopher relanceou os olhos, nervoso, para a mãe.

     - Lady Isabel também vem?

     - Não. - Cormac percebeu que seria difícil explicar a situação para a criança. - Não acho que veremos sua mãe de novo, portanto é melhor despedir-se agora. - Arqueou as sobrancelhas quando o garoto relaxou visivelmente, pegou com timidez na mão de Cormac e, depois, olhou para Isabel.

     - Adeus, lady Isabel - disse, e fez uma leve mesura. - Vou morar com meu pai agora.

     - Não! - gritou Isabel. - Você não concordou em me ajudar, Cormac. Olhe para o menino. Eu lhe dei um belo filho. Você me deve isso. Maldito seja! Faça alguma coisa! Como pode voltar às costas para mim, afastar-se e deixar a mãe de seu filho ser enforcada?

     - Não lhe devo nada - Cormac retrucou -, salvo a promessa de que cuidarei de Christopher. - Relanceou os olhos para a criança, que parecia não se afetar com os berros de Isabel. Então, voltou-se para fitá-la. - Sugiro que pare de arquitetar planos para fugir da Justiça e chame um padre. - Cormac fez um gesto de despedida aos Douglas e se afastou.

    

     - Meu Deus, ainda não posso crer que você tem um filho - William resmungou ao se sentar na cama de Christopher, perto de Cormac, e observar os três parentes tentarem ensinar o menino a jogar dados. - No entanto não há dúvida de que o garoto é seu. Aquela velha viu isso também, embora duvidasse que Isabel fosse capaz de saber com certeza quem era o pai da criança.

     Cormac sorriu ao pensar na velha Agnes, a babá corpulenta de meia-idade. Ela não hesitara em concordar em ir para onde quer que Christopher fosse. Depois de um longo olhar de exame, havia convidado Cormac e seus parentes a entrarem na pequena cabana onde Isabel a instalara. Embora a ama medisse cada palavra sempre que Christopher estava perto, deixara muito claro que julgava Isabel inadequada como mãe. Pela completa falta de interesse pelo menino, convinha que este ficasse com o pai. Agnes era como a verdadeira mãe de Christopher, e Cormac ficou contente que os dois não tivessem de ser separados.

     - É uma vergonha que Isabel o fizesse nascer um bastardo - comentou William.

     - Sim, mas providenciarei para arranjar isso assim que eu possa.

     - Pensou naquilo que David lhe disse quando o mensageiro foi buscá-lo a mando daquela safada? Vai conquistar sua Elspeth?

     - Pensei muito, mas como farei agora? Tenho um filho com a própria mulher que se interpôs entre nós.

     - Elspeth não é aquela que lutou para salvar um gato feio e maltratado? A mesma moça que pegou uma criança que ninguém queria? Você acha realmente que ela faltaria ao menino porque nasceu de Isabel? Se for assim, é melhor que você a esqueça.

     - Você nem conhece Elspeth.

     - Não preciso. Ela o libertou de Isabel. E você foi um pouco lento para aceitar sua liberdade, insistindo naquela questão de honra e no seu juramento. Só por isso estou disposto a beijar os pés dessa moça.

     - Ah, tenho vontade de me arriscar só para ver uma cena dessas. Farei de tudo para conquistá-la.

    

     Isabel foi presa pela morte de todos os maridos dela. Elspeth encarou Payton, espantada por ouvir que alguém tivesse não apenas partilhado suas suspeitas, mas entrado em ação. Afundou-se na cadeira oposta à do primo, na cabeceira da mesa, no grande salão. Corriam boatos sobre aquela mulher desde a morte do primeiro marido, mas poucos tinham suspeitado que ela fosse responsável pelo desenlace de todos eles. Elspeth franziu a testa. Payton voltara à Corte logo depois de havê-la deixado em casa, mas agora que pensava nisso, percebia que ele ficara lá só o tempo necessário para saber das notícias. Embora fosse agradável saber que Isabel poderia finalmente pagar por seus crimes, Elspeth julgava que havia mais para contar. E que esse "mais" era dramático, se fizera Payton retornar quase imediatamente para informá-la.

     - Quem a prendeu? - ela perguntou, enquanto um pajem servia o vinho.

     - Sir Ranald Douglas, o noivo - Payton respondeu, e depois saboreou um longo gole da bebida.

     - Ela ia se casar outra vez?

     - Sim. E ele, também, era para morrer. Parece que Isabel sempre teve outro Douglas como amante desde o início. Dizem que ela e sir Kenneth foram eliminando pacientemente todos que se interpunham entre ele e as terras das quais o sujeito desejava ser senhor. Sir Ranald era o último. Um noivo relutante.

     - Evidente... Mas Isabel ainda poderia atraí-lo com os seus encantos.

     - Não. Conversei com Ranald quando o noivado foi celebrado. É um bom homem. Um pouco duro, mas ágil de raciocínio. E honrado. Contei a ele umas poucas verdades cruas sobre a noiva, inclusive o fato de que eu também havia sido amante de Isabel uma vez.

     - Payton, ele poderia tê-lo matado! - Elspeth exclamou.

     - Poderia, mas eu tinha certeza de que nem tentaria. Estava interessado em tudo que lhe contei e me assegurou que não era sua intenção desposar Isabel. Disse que sabia exatamente quem era aquela mulher, que a observava de perto desde que o segundo marido tinha morrido. Estava reunindo todas as informações que podia e senti que finalmente havia descoberto a verdade. E é evidente que conseguiu.

     - Fico imaginando o que aconteceu para dar condições a ele de agir contra Isabel - disse Elspeth.

     - Parece que sir Ranald e uns outros estavam com os ouvidos grudados na porta naquele exato momento.

     - E a ouviram confessar?

     - Sim, assim como tiveram a prova de que sir Kenneth era seu amante, que o casal tinha planejado tudo juntos, que sir Ranald teria o mesmo fim que os outros maridos... e que já haviam escolhido o homem a quem culpar pelo feito.

     O jeito com que Payton a observava fez o sangue de Elspeth enregelar. Não era difícil adivinhar quem era o pobre tolo escolhido para ser acusado de mais um crime de Isabel. Só pensar no nome de Cormac era suficiente para fazer Elspeth se encolher. Nos dez dias desde que o deixara, ela havia chorado até se sentir ressecada por dentro, tinha amaldiçoado Cormac e seu senso de honra, ansiara por ele, xingara-o novamente e depois tinha tentado atirar-se ao trabalho até cair de exaustão. Seus pais a seguiam com os olhos, de modo que Elspeth sabia que logo teria de lhes contar o que havia de errado e responder a algumas perguntas. E ela temia aquela inevitável conversa.

     E agora, justamente quando tinha conseguido mergulhar num estado quase perfeito de entorpecimento mental, Payton retornava da Corte com notícias que traziam todo o sofrimento e a confusão de volta. Isabel poderia pagar por seus crimes, e Cormac estava prestes a ter o coração partido. O fato de se preocupar com ele enfureceu Elspeth. Uma parte de seu íntimo começou a indagar se Cormac voltaria para ela quando Isabel se fosse, quando o juramento fosse anulado pela morte, e Elspeth quase gritou. Não queria pensar que era tão idiota assim.

     - Cormac soube disso? - ela perguntou, detestando-se pela fraqueza que a compelia a querer saber.

     - Ele estava lá.

     - Oh, meu Deus! - Elspeth ficou chocada. E teve de lutar para controlar o impulso de ir em busca de Cormac, tentar ajudá-lo a superar o que devia ter sido uma revelação devastadora. - Sabe o que ele fez ou está fazendo?

     - Cormac ficou na Corte para o caso de ser chamado como testemunha. Já que sir Ranald demonstrava não querer Isabel como noiva, e como as outras testemunhas são todos parentes dele, isso pode ser necessário. Sir Ranald deseja que ela e sir Kenneth sejam justiçados na ponta de uma corda. E trabalha para reunir todos que têm qualquer conhecimento dos crimes de Isabel ou de Kenneth, não importa a relevância. Acho que também pretende deixar claro que Isabel e o amante não serão executados apenas porque aborreceram um Douglas. Quer que não haja dúvida sobre a culpa dos dois.

     - O fato de ele não se valer do poder dos Douglas demonstra que é um homem honesto e justo.

     - E um que sabe como sobreviver. As coisas andam fervendo, mocinha. Os Douglas se tornaram cada vez mais poderosos e bem mais arrogantes. Logo haverá derramamento de sangue, terras perdidas e conquistadas e uma mudança no poder. Sir Ranald pretende sobreviver a isso, com terras e poder intactos. Acho que tem cabeça para conseguir. Veremos. E quanto a Cormac?

     Payton lançou o nome sem aviso, e Elspeth não conseguiu ocultar a própria reação. Que coisa triste, pensou, quando a simples menção do nome de alguém provocava tanto sofrimento dentro dela, fazendo-a encolher-se como se uma lança a transpassasse.

     Precisava trabalhar mais arduamente para enterrar o sentimento que nutria por sir Cormac Armstrong. Poderia levar anos, mas ela estava determinava a sepultar esse amor de si até a hora em que desaparecesse.

     - O que tem ele? - Elspeth retrucou. - Finalmente viu quem é Isabel, e isso é bom. Agora, está livre... livre para o que quiser fazer com os sentimentos que tem por ela e livre daquele maldito juramento. Nada mais importa.

     - Ah, Elspeth, você acredita mesmo nisso?

     - Eu devo. - Ela suspirou, resignada com o fato de que teria de conversar sobre Cormac. Rezou para não chorar. - Eu joguei e perdi. Não sobrou ânimo para tentar outra vez. Talvez eu tenha me tornado covarde. Cormac me magoou mais do que eu poderia imaginar quando ele escolheu Isabel... Não quero passar por isso outra vez.

     - Cormac é um tolo.

     - Sim, é. - Elspeth esboçou um sorriso, com o coração acelerado pela corrente de emoções desenfreadas. - Mas talvez eu seja mais tola ainda por pensar que poderia dar um fim a dez anos de devoção cega com apenas umas poucas semanas de amor sincero e honesto; que de alguma forma poderia ser aquela que o faria ver que havia como quebrar a promessa e mesmo assim manter a honra.

   - E se ele vier atrás de você?

     - Não sei. Debaixo do meu sofrimento, estou muito zangada e, peço-lhe, não desperte esperança no meu coração.

     - Elspeth - o pai a chamou quando ele e a mãe entraram no grande salão -, chegou um mensageiro que lhe trouxe alguma coisa.

     - Você não contou a eles, contou? - Payton murmurou ao observar os tios se aproximarem.

     - Não - disse Elspeth -, mas creio que o meu período de graça acabou. - Sorriu para o pai. - Quem me mandaria alguma coisa? - perguntou ao pegar um pequeno pacote enrolado num brilhante tecido de seda.

     - Não sei - Balfour respondeu e sentou-se à cabeceira da mesa a observar a filha com atenção. - O rapaz que trouxe não soube dizer. Ele espera por uma resposta.

     Elspeth não se surpreendeu ao ver as próprias mãos tremerem ao abrir o pacote. No momento em que o pegara, havia sentido a presença de Cormac tão forte que não se espantaria se ele entrasse no salão. Um broche preso num pequeno pedaço de pergaminho apareceu lindo, de prata pesada, decorado com granadas de um vermelho sangue. Embaixo, numa letra larga e masculina, estavam as palavras:

     "Perdoe-me. Cormac"

     A beira de um colapso emocional, Elspeth sentiu que o pai e a mãe olhavam para o broche, o bilhete e, em seguida, para ela.

     - Perdoá-lo pelo quê? - Balfour indagou.

     - Nada de grande importância - Elspeth respondeu ao se levantar, desesperada para se retirar, precisando de um pouco de privacidade para recompor-se.

     - O rapaz espera uma resposta.

     - Diga que agradeço.

     Ela se afastou, lutando para não sair correndo.

     - Nada mais?

     - Só isso, nada mais.

     No momento em que a filha saiu, Balfour olhou para Payton.

     - Alguma coisa está acabando com essa menina.

     - Sim - concordou Maldie ao sentar do lado oposto de Payton e fitá-lo com um olhar firme. - Isso já foi longe demais. O que aconteceu entre ela e Armstrong?

     - E por que ele pede perdão? - Balfour emendou.

     Payton suspirou e passou os dedos pelos cabelos.

     - Não é meu direito lhes contar. Devem perguntar a Elspeth.

     - Oh, eu pretendo fazer isso! - Balfour exclamou. - Só gostaria de uma pequena pista do atoleiro em que vou pisar. Cormac a magoou?

     - Sim, mas Elspeth não deixará que o puna por isso. Bem, pelo menos não permitirá que o mate. E, na verdade, ele não merece morrer. De muitas maneiras, Elspeth provocou tudo isso. Jogou. Perdeu. Ou assim acredita.

     - Você pensa diferente? - perguntou Maldie, enquanto afagava o pulso do marido numa tentativa de lhe acalmar o temperamento esquentado. - Acha que tudo ficará bem no fim?

     - Acho - respondeu Payton -, embora Elspeth esteja certa em dizer que seria cruel despertar qualquer esperança em seu coração. Na verdade, não creio que ela tenha perdido o jogo. Simplesmente o prêmio que procurava não veio tão depressa como pensou que viesse. Por outro lado, não tenho certeza se entendi como Elspeth possa ter perdido, mesmo que por pouco. É uma situação muito complicada.

     - Óbvio - resmungou Balfour -, pois você me deixou mais confuso do que eu estava quando começou a falar.

     Maldie levantou-se, agarrou a mão de Balfour e o fez levantar também.

     - Vamos conversar com Elspeth. Vá dormir Payton. Está parecendo um fantasma - disse e piscou para o sobrinho.

     Balfour acompanhou a esposa para fora do salão e parou quando viu o jovem mensageiro, ainda esperando.

     - A moça mandou agradecer. - Com um gesto afirmativo diante da testa franzida do rapaz, emendou: - Sim, é um enigma, mas é tudo que ela disse. Portanto leve àquele idiota outro recado. Diga que ele quebrou algo precioso para mim e, se não consertar isso logo, eu o farei pagar na mesma moeda.

     - Balfour! - Maldie protestou, fitando o marido de cara feia.

     Ele deu de ombros e continuou a segui-la.

     - Isso fará que o fulano saiba que a sua idiotice não é um segredo guardado apenas entre ele e Elspeth.

     - Não sabemos ainda se é idiotice dele.

     - Bem, logo saberemos - Balfour retrucou ao rumar para o quarto da filha em passos tão rápidos que Maldie teve de correr para acompanhá-lo.

     Elspeth sentou-se na cama e ficou a olhar o broche que ainda tinha nas mãos. Barrento encolheu-se a seu lado, esfregando-se em suas coxas como se soubesse que ela precisava de conforto. Elspeth o acariciou de volta, e ele ronronou satisfeito. Ela sabia que os pais logo chegariam e queria acalmar-se para responder a todas as perguntas que certamente lhe fariam.

     Perdoe-me, Cormac escrevera. Pelo quê? Por magoá-la? Por não a querer mais? Por não saber o que queria? Por desperdiçar sua honra com uma mulher que não a merecia e ser tão cego a ponto de não ver isso? Talvez por não ter força para resistir à paixão que partilhavam. Havia muitas possibilidades e poucas lhe davam alguma esperança. Será que Cormac viria em seguida ao presente que enviara? No momento, Elspeth nem tinha certeza se queria isso. Nutrira o anseio de que a escolhesse em vez de Isabel porque a queria mais, a amava mais. Não desejava que se voltasse para ela porque Isabel estava morta, enforcada por seus crimes, e para sempre fora do alcance dele. Ou porque, agora que aquela com quem se comprometera se fora, se sentisse livre para correr para os braços de Elspeth com a preciosa honra intacta. O orgulho de Elspeth se rebelava a essa idéia, e também o seu coração. Saber que não passava da segunda opção seria um veneno a matar lentamente seu espírito. Acabaria por odiá-lo, poderia até mesmo vir a detestar-se.

     Depois de uma seca batida na porta, seus pais entraram. Balfour fechou a porta, recostou-se contra ela e cruzou os braços no peito. Havia raiva a endurecer os belos olhos e Elspeth percebeu que ele já adivinhava alguns de seus segredos. Contudo havia simpatia também. Quando sua mãe sentou-se a seu lado na cama e lhe tomou as mãos, Elspeth rezou para ter forças para resistir. Era uma mulher madura agora e devia ser capaz de não desabar no choro no ombro de seus pais. Aliviaria sua dor, mas não a curaria.

     - Elspeth, por dez longos dias temos visto você lutar para não desabar - a mãe começou. - Não podemos ficar parados só olhando. Diga-nos o que a machucou tanto. Deixe-nos ajudá-la.

     - Ah, mamãe, receio que não tenha um ungüento que cure esta ferida - murmurou Elspeth. - Acho que um coração destroçado sangrará até nada mais restar, e nenhuma pomada ou atadura mudará isso.

     - Então, eu estava certo! - exclamou Balfour, a voz áspera de raiva. - O safado a usou e depois a jogou fora. - Franziu a testa quando a esposa e a filha o encararam, zangadas, os olhos verdes de ambas a faiscar de irritação.

     - Você poderia falar com mais delicadeza, meu marido - Maldie o repreendeu.

     - É mesmo - concordou Elspeth -, e não desse jeito.

     - Você quer dizer que ele não a levou para a cama? - o pai perguntou com rudeza.

     Elspeth sentiu o rosto queimar.

     - Sinto muito desapontar tanto vocês, mas, é verdade, não sou mais uma donzela. Porém é injusto dizer que a culpa é de Cormac. Ele não tirou minha inocência. Eu a dei a ele. Compreendam, eu o amei desde o dia em que o encontrei ferido nas terras de Donncoill.

     - Uma fantasia de criança.

     - Sim, era na época. Mas cresceu comigo, amadureceu comigo. Quando Cormac foi me resgatar das mãos de sir Colin, eu o fitei e soube que era meu companheiro. - Olhou para a mãe e quase sorriu. - Eu deveria ter prestado mais atenção, mamãe. Você estava certa. Eu o beijei minutos depois de vê-lo. - Relanceou o olhar para a expressão zangada do pai. - Foi um beijo que roubei, pensando que sempre poderia usar a desculpa de um ato impulsivo movido pela gratidão. E, sim, mamãe, experimentei a paixão com ele. O desejo de Cormac alimentou o meu e creio realmente que o meu alimentou o dele. Foi então que percebi por que Cormac havia permanecido na minha mente e no meu coração por tanto tempo, e decidi que eu o teria para mim.

     - Não poderia fazer isso sem se deitar com ele?

     - Não, papai. Você sabe que, embora eu crescesse apaixonada por ele, Cormac morria de amores por lady Isabel Douglas. Estava comprometido com ela quando apareceu sangrando nas nossas terras. - Elspeth viu a ruga no rosto do pai se aprofundar, e perguntou: - Conhece a mulher?

     - Só de vista e pelos boatos. Uma bela vagabunda que enterrou quatro maridos.

     - Bem, parece que logo será enforcada por essas mortes, junto com o amante que arquitetou o plano com ela. Não, não foi Cormac - Elspeth apressou-se a dizer, quando viu a expressão de alarme no rosto dos pais. - Ele agora sabe que tudo de ruim que falavam sobre ela era verdade. Foi um dos que testemunharam a confissão de Isabel. E, além disso, ouviu quando ela e o amante planejavam como iriam se livrar do próximo marido e depois fazer Cormac ser enforcado pelo assassinato. Payton pode contar tudo a vocês.

     - Então o rapaz está livre para vir procurá-la - disse Maldie.

     - Está? - Elspeth meneou a cabeça e sustentou o olhar da mãe. - E se papai viesse procurá-la porque a mulher que ele realmente desejava estivesse morta? Porque o juramento que havia feito a ela terminou na corda do carrasco, e não por sua própria vontade?

     Elspeth sacudiu a cabeça quando a mãe pestanejou; então, continuou a lhes contar tudo que acontecera desde o momento em que Cormac tinha entrado no quarto da torre no castelo de sir Colin, com cuidado para não mencionar quantas vezes ou com que ardor ela e Cormac tinham desfrutado a paixão um pelo outro.

     - Você disse a ele que teria de rastejar?! - Maldie exclamou, revelando, em sua voz insegura, uma mistura de riso e espanto.

     Balfour soltou uma risada.

     - Essa é a minha menina.

     Maldie meneou a cabeça.

     - Não tem graça, Balfour.

     - Não? Ora, o sofrimento de Elspeth não é nada engraçado, mas o jeito com que o deixou tem um toque de humor, puxa! - Olhou para a filha. - Com essas palavras, você salvou o orgulho que julgou ter malbaratado minha pequena. Não creio que tenha perdido esse orgulho, mas sei que custará um pouco até acreditar nisso. E ainda não estou certo da razão por que sentiu que devia lhe entregar sua castidade.

     - Pai, Cormac estava, ou acreditava que estava apaixonado por outra mulher! - Elspeth exclamou. - Por dez longos anos ele a amou, acreditou que fosse uma pobre moça abusada e manobrada pelos parentes, permaneceu ao lado dela, sentia-se ligado pela honra e por um juramento, e correu para o lado de Isabel cada vez que ela o chamava. Era quase absolutamente fiel, a despeito de saber que Isabel compartilhava a cama dos maridos.

     - E a de quase todo homem que apareceu na Corte do rei.

     - Sim, mas Cormac não sabia disso. Havia se apaixonado e se comprometido, julgando ter sido o primeiro homem de Isabel, e meus irmãos me mostraram como as paixões ardentes e outros sentimentos são nessa idade. Isabel teceu uma teia em torno dele, enredando-o. E ela fez tudo para mantê-lo preso. Qualquer vacilo, e o relembrava do juramento. Sabia quanto Cormac queria e precisava manter a palavra e a honra. Não se combatem dez anos de cega devoção com sorrisos, palavras doces ou olhares tímidos. Eu tinha de dar tudo a ele e mais ainda. Sinto muito se fiz o senhor perder a fé em mim.

     - Não, menina, isso nunca. Você estava lutando uma batalha contra uma adversária mais velha e mais experiente, mas sem nenhum escrúpulo ou moral. Teve de usar todas as armas que possuía. Eu compreendo. Posso lamentar que uma das armas que você escolheu tenha sido a sua virgindade, mas entendo realmente. Estou apenas mortificado porque pagou um preço alto e agora está aqui sozinha e magoada, talvez pelo fato de fazer essa concessão a um homem estúpido demais para saber o valor do que estava recebendo. E lamento também por você não me deixar matá-lo.

     Embora houvesse uma ponta de raiva naquelas últimas palavras, Elspeth sabia que o pai não queria realmente matar Cormac. Ao lhe contar a história com a honestidade que a modéstia permitia, conseguira dissipar a fúria assassina contra Cormac.

     Conversaram um pouco mais, porém não havia muito mais a dizer sobre o assunto. Elspeth percebeu que os pais tentavam não lhe dar nem mesmo o mais leve vislumbre de esperança. Quando, finalmente, saíram, ela jogou-se de costas na cama, a fitar o teto, com Barrento enrodilhado confortavelmente a seu lado.

     Sentia-se, de uma certa forma, bem melhor agora que a verdade fora exposta. Por outro lado, acabrunhava-se porque havia outra verdade possível que guardara para si. A época de sua menstruação passara sem que o fluxo descesse. Era muito cedo para ter certeza, mas poderia estar carregando o filho de Cormac. Se estivesse, nada, nem mesmo o lembrete de que ela escolhera aquele caminho por vontade própria aliviaria a ira de seu pai.

     Depois de despachar o mensageiro, Cormac afundou-se na cadeira perto da lareira e suspirou.

     - Elspeth vai me fazer batalhar.

     William estendeu um copo de vinho ao irmão e depois se sentou na cadeira oposta.

     - E você vai?

     - Preciso. - Cormac tomou um longo gole de vinho. - Mesmo assim, algo além de um simples "obrigado" teria me ajudado a decidir como lutar por ela. O rapaz disse que Elspeth saiu depressa do salão logo após o pai lhe entregar o meu presente, e depois subiu correndo as escadas, como se o próprio demônio a perseguisse. Pelo menos reagiu de alguma forma, mas foi com raiva e confusão ou...

     - Se fosse comigo, eu me preocuparia mais com o recado que o pai dela lhe mandou.

     - Oh, bem, prefiro não pensar nisso.

     - Imagino que coisa preciosa sua seja essa que ele quer cortar.

     Cormac endereçou ao irmão um olhar de desgosto.

     - Não se finja de bobo. Isso não cai bem em você. Só penso por que ele ainda não apareceu à minha porta, de espada na mão, pronto para me arrancar...

     - Será que a filha pediu que não fizesse isso? - William indagou. - Não, acho que não adiantaria.

     - Adiantaria naquela família. O pai de Elspeth pelo menos leva em consideração a vontade dos filhos. Talvez seja um bom sinal. Se ela me odiasse, pediria que o pai acabasse comigo.

     - Suponho que sim. - William sorriu para Christopher, quando o menino aproximou-se da cadeira do pai. - Como vai, garoto?

     - Muito bem, tio Will - respondeu o menino; em seguida, encarou Cormac. - Sua namorada gostou do presente?

     - Disse obrigado - respondeu Cormac, a desarrumar os cabelos do garoto.

     - Vou conhecê-la? Vai se casar com ela?

     - Não sei ainda. Elspeth está muito brava comigo.

     - Se formos vê-la, acha que ela gostará de mim?

     Cormac hesitou por um momento. Reviu Elspeth quando criança, recusando-se a deixá-lo ferido e sozinho. E visualizou-a a avançar sobre os meninos da vila que atormentavam aquele gato, e depois, a cuidar com ternura do animal. Viu o espanto, a raiva e a aflição ao encontrar o pequeno Alan abandonado e deixado para morrer, e tais emoções apenas aumentadas quando ninguém da vila quisera ficar com a criança. E assim, ela a adotara. Olhou para Christopher e sorriu.

     - Sim, Elspeth gostará de você, Christopher. Não tenho duvido quanto a isso. É comigo que precisamos fazer com que ela seja gentil.

     - Lady Isabel irá conosco?

     O menino fez a pergunta de um jeito tenso, de olhos arregalados, sem sorrir. E de novo Cormac teve a prova silenciosa de que Isabel não tinha nenhum laço afetivo com aquela criança. Christopher temia a mãe, e Cormac imaginava o que ela fizera ao menino nas poucas vezes em que estivera com ele. Era bom que Christopher não sentisse saudade nem amor pela mãe, que Agnes lhe desse tudo de que precisava, pois a verdade sobre a mulher que o gerara poderia machucá-lo demais.

     - Não. Eu lhe disse filho, você nunca mais vai vê-la. - Já que se tornava mais evidente a cada dia que lady Isabel pagaria no patíbulo por seus crimes, Cormac resolveu tocar no assunto. - Receio que ela tenha cometido erros muito sérios, e que precise pagar por eles. É por isso que você não a verá de novo. A menos, claro, que queira visitá-la.

     - Não - Christopher retrucou apressado. - Não, senhor. Lady Isabel nunca gostou de mim. A ama Agnes me contou que não era culpa minha, que não havia nada de errado comigo. Disse que algumas pessoas não têm coração muito grande, não sabem gostar dos outros, só de si próprias. Lady Isabel é assim. Sua nova namorada tem um coração grande?

     - Ah, sim, um coração enorme. Só preciso fazê-la me deixar entrar dentro dele outra vez.

     - Vai conseguir senhor. A ama Agnes disse que o senhor não é muito ruim para um homem. Que saberá dizer o que deve para consertar as coisas.

     Conforme os dias passavam, Cormac julgou que deveria perguntar à ama Agnes o que fazer. Elspeth continuava a receber seus presentes e mensagens com fria cortesia, na melhor das hipóteses, ou com uma áspera recusa, na pior. A tentativa de Cormac conquistá-la parecia ser um total fracasso. Mais parentes chegaram, e ele começou a pensar que quando fosse atrás de Elspeth, teria de carregar a família inteira junto.

     Apesar dos protestos dos irmãos e parentes, Cormac compareceu ao enforcamento. Algum dia o filho poderia perguntar pela mãe e ele queria poder lhe contar a verdade. Era também pelo bem de Christopher que providenciou o funeral, quando ficou evidente que os parentes de Isabel não o fariam. Sozinho ao lado do túmulo, Cormac fitou a terra remexida e pensou em como Isabel pudera fazê-lo de tolo por tanto tempo. Ao se voltar para ir embora, surpreendeu-se ao encontrar o irmão.

     - Voltaremos para casa ou iremos para Donncoill? - Will perguntou.

     Cormac suspirou.

     - Elspeth não me pediu para procurá-la.

     - Também não disse que não fosse.

     - É verdade. Tem razão, preciso vê-la. Pelo menos para que me diga o que terei de fazer para conquistá-la de novo. Gostaria de evitar essa situação. Parece que ela falou sério naquele dia... - Sorriu quando William praguejou. - Sei que você não gostaria que eu me rebaixasse assim.

     - Quer que eu o encoraje a se humilhar? Esse problema com Isabel não lhe ensinou nada?

     - Oh, ensinou muito. Ensinou que, se uma mulher como Elspeth quer algum sinal, não importa quão humilhante seja, eu seria realmente um louco se não mostrasse isso a ela.

     - Isso vai doer - Cormac disse baixinho, percorrendo a trilha rochosa que conduzia aos portões de Donncoill.

     Suspirou ao observar o castelo onde Elspeth se escondia dele. Nos últimos dois meses, mesmo depois de ajudar a condenar Isabel e o amante à força, Cormac havia continuado a cortejar Elspeth com bilhetes e presentes, cautelosamente a princípio, e depois com crescente freqüência. Mas recebera de volta apenas breves agradecimentos pelos mimos e pelas vibrantes palavras de amor. Alguns tinham sido devolvidos como coisas que não deveriam ser mandadas a uma conhecida. Aquilo o havia magoado e ferido. Elspeth jogara em sua cara as palavras que ele próprio dissera.

     Essa seria sua última tentativa. Cormac tinha esperado até o derradeiro minuto que não tivesse de chegar a tanto, que as belas palavras e os presentes fossem suficientes. Deveria adivinhar que não seria assim. Elspeth era orgulhosa, e ele pisara nesse orgulho. Se alguém podia compreender como ela se sentira, esse alguém era Cormac. Ele teria que dar a Elspeth tudo e mais um pouco do que dera a Isabel. Seria preciso um grande gesto para conquistá-la de volta.

    - Tem certeza de que quer fazer isso? - seu irmão perguntou pela centésima vez.

     Ao olhar para Christopher, para Agnes e para os seis irmãos e sete primos que viajavam na comitiva, Cormac esboçou um sorriso.

     -Não, mas preciso. - Olhou para Payton, que segurava as rédeas da montaria que Cormac comprara para Elspeth, outro presente que ela havia recusado educadamente. - Sim, eu devo.

     - Julguei que estivesse farto de jogar seu orgulho aos pés de uma mulher.

     - Realmente, mais do que farto. Contudo, diferentemente de Isabel, foi Elspeth quem jogou seu orgulho aos meus pés, e eu, estúpido demais, não vi o precioso presente que era. Assim, desta vez, devo retribuir da mesma forma. Só rezo para que ela não me faça rastejar por muito tempo; que, embora eu a tenha maltratado, Elspeth ainda sinta afeição por mim.

     Payton olhou para Christopher, que encarava o pai com olhos preocupados.

     - Teria sido prudente contar a Elspeth a respeito do garoto que vai colocar diante dela.

     - Pensei que seria melhor fazer isso frente a frente - Cormac explicou. - As mulheres podem pensar que um filho é prova dos sentimentos profundos entre os dois que o geraram. Quero que Elspeth olhe nos meus olhos e veja que não é verdade. Acho que, se ela olhar para o menino, não o confundirá com Isabel nem vá detestá-lo só por ser filho de quem é.

     - Agora que me fez pensar, acho que realmente é a maneira mais prudente.

     - Não fique surpreso. Eu tenho uns lampejos de bom senso de vez em quando. - Cormac sorriu quando Payton soltou uma risada. - Surpreso fiquei por nenhum de vocês ter ido atrás de mim.

     - Foi tentador, a princípio, mas depois que ficou claro que estava procurando conquistar minha prima, os ânimos se acalmaram. - Payton olhou para o castelo. - Bem, pelo menos os homens sossegaram. Vai mesmo fazer isso? - perguntou encarando Cormac.

     - Sim, acho que devo.

     - Não acredito que Elspeth vá obrigá-lo a se rebaixar assim. Não é próprio dela ser tão mesquinha, tão implacável.

     - Alguma vez se apaixonou Payton? Deu a alguém tudo que tinha e recebeu tudo de volta na cara?

     - Não - Payton respondeu. - Foi o que você fez?

     - Dá vontade de me matar, não?

     - Realmente, você agiu assim?

     - É o que Elspeth diz que eu fiz. E quem poderia julgar melhor do que ela? E quem saberia melhor do que eu como isso dói? Não gostaria de me humilhar. Mas, quando me recordo do vazio que restou dentro de mim desde que Elspeth foi embora... A raiva passará, a humilhação desaparecerá, porém eu sei que, se não a tiver de volta, o vazio ficará comigo pelo resto dos meus dias.

     - Bem, então, vá em frente! - esbravejou Will. - E ignore se eu chorar de vergonha com tudo isso.

     - É bom para um homem ter o apoio da família - resmungou Payton, e sorriu quando Cormac soltou uma gargalhada. - Se servir como consolo, quando minha tia vir o que você está fazendo, mesmo se Elspeth hesitar, não permitirá que continue. Pelo menos, você terá a chance de se encontrar com minha prima e conversar com ela.

     - Sim, isso ajuda um pouco - disse Cormac.

     Custou-lhe cada grama de força de vontade para seguir pela trilha apoiado nas mãos e nos joelhos. Precisou obrigar o orgulho à submissão e fechar os olhos para o fato de que tanta gente se juntava a fim de observar a cena deprimente. Cormac rezou para que Payton tivesse razão em dizer que não permitiram que continuasse por muito tempo. Estava disposto a fazer o gesto, mas não tinha certeza de quanto tempo seu orgulho suportaria tamanho golpe. Certo ou errado, como seria quando ele e Elspeth se defrontassem com outro obstáculo para superar?

     - Ela devolveu o cavalo a Cormac - disse Maldie ao marido, quando entrou no quarto.

     - Isso é uma pena. Era um belo animal - murmurou Balfour, a olhar pela janela para um grande grupo de pessoas junto aos portões.

     Maldie aproximou-se e franziu a testa.

     - Elspeth sabe que ele está lá fora, mas não diz nada. É teimosa como ela só. Entendo sua mágoa e zanga, mas nossa filha precisa relevar alguma coisa, ou vai prejudicar a si mesma por causa da vingança.

     - É cedo para acabar com o jogo, amor. Realmente, acho que Elspeth não deveria deixá-lo ir embora, mas como ele não mostra sinal de fazer isso, deixe estar. A menina parece estar cautelosa e precisa respirar fundo para clarear a cabeça. Não acho que ela julgasse que Cormac viria até aqui.

     - Elspeth não se permitiu nem ao menos pensar nisso. - Maldie franziu a testa com ar de espanto. - O que ele está fazendo agora? - indagou.

     Balfour soltou um palavrão de surpresa, e caiu na gargalhada.

     - Está rastejando!

     - Oh, não! Não, não, não! - Maldie dirigiu-se à porta. - Isso não pode acontecer. Elspeth irá até lá agora, mesmo que eu tenha de arrastá-la pelos cabelos.

     - Tem certeza de que deve interferir?

     - Claro! Primeiro, porque Elspeth não pode ver esse espetáculo do seu quarto. Segundo, se isso for muito além de um gesto, vai se infiltrar no íntimo do rapaz como um veneno. Elspeth também sofrerá, pois creio que nunca desejou que ele se humilhasse dessa forma.

     - Que pena. - Balfour resmungou quando sua esposa saiu correndo do quarto. - É provável que ele não fique de quatros o tempo suficiente para sujar as belas calças. - Ia sair atrás de Maldie, mas voltou à janela. - Você ganhou menina - disse, satisfeito, esfregando as mãos.

     Elspeth olhou pela décima vez para o curto bilhete que viera junto com o cavalo.

     Eu vim por você, meu coração. Cormac

     "Que arrogância!", ela pensou, embora o coração traiçoeiro disparasse de expectativa. Ele estava perto. Dissera que a queria. Por que, Elspeth perguntou-se, não corria para fora para envolvê-lo nos braços?

     - Porque estou apavorada - admitiu em voz alta, e desgostosa consigo mesma.

     Durante dois longos meses, vivera num verdadeiro inferno. Quando não estava entorpecida de cansaço, era assolada pelo sofrimento. Mil vezes se pegava a imaginar o que poderia ter feito para que Cormac a amasse. O bom senso lhe dizia que fizera tudo que deveria, mas as emoções não correspondiam ao bom senso.

     Ele a magoara. Em parte por sua própria culpa. Havia esperado demais naquele pouco tempo. A verdade não diminuía a dor, no entanto. Em nenhum dos bilhetes Cormac dizia que a amava. Pedia perdão, chamava-a de querida e de anjo, falava de sua necessidade e desejo por ela, e a cortejava das maneiras mais ternas. Se nunca houvesse existido uma Isabel, Elspeth teria superado a mágoa. Mesmo que Cormac tivesse começado a cortejá-la antes que Isabel fosse executada, continuava a imaginar se era apenas uma segunda opção na vida dele. Afinal, soubera da verdade sobre Isabel antes de começar a lhe enviar presentes e bilhetes de amor. Não tinha abandonado aquela mulher para ir à sua procura.

     Quando a porta do quarto se abriu num repente, Elspeth olhou para a mãe, assustada.

     - Aconteceu alguma coisa?

     - Você virá comigo, Elspeth Murray! - Maldie exclamou ao agarrar a filha pela mão e arrastá-la para fora do quarto. - Há uma coisa que precisa ver. Rezo para que não me desaponte com a sua reação quando deparar com a cena.

     Elspeth apressou o passo para acompanhar a mãe, que praticamente corria pelo corredor. Ao entrarem no quarto dos pais, viu Balfour parado diante da janela com um sorriso disfarçado. Um instante depois, sua mãe a empurrava para a mesma janela.

   - Olhe lá, filha - Maldie ordenou, apontando para os portões.

     A princípio, Elspeth não entendeu para onde deveria olhar. Então, ela divisou o homem que rastejava pela trilha que conduzia aos portões. Elspeth se agarrou à beirada da janela, incapaz de crer nos próprios olhos. Depois, ficou horrorizada com o que estava acontecendo. Apesar de todas as palavras zangadas que dissera, quando ela e Cormac tinham se separado, aquilo não era o que desejava. Com um grito de negação, ergueu as saias e saiu correndo, indiferente a tudo e a todos, a não ser à necessidade de alcançar Cormac o mais depressa possível.

     - Achei que era isso o que nossa filha faria - disse Maldie, revelando em sua voz, toda a satisfação que sentia. Tomou o marido pelo braço. - Vamos?

     - Acho melhor isso acabar logo - declarou Balfour ao acompanhar a esposa até os portões do castelo num passo preguiçoso.

     - Não creio que Elspeth pretendesse que Cormac se humilhasse assim.

     - É provável que não. Por que acha que ela hesita em aceitá-lo?

     - Medo, meu amor. Foi magoada profundamente. Que mulher deseja sofrer assim de novo? Sim, ele a cortejou; no entanto, por mais que dissesse belas palavras e mandasse lindos presentes, nunca disse o que Elspeth precisava ouvir para acalmar o temor.

     - Então as- coisas ainda não estão acertadas completamente.

     - Não, mas logo estarão.

     - Tem certeza?

     - Balfour, o homem está de rastros diante dos parentes, da nossa família, dos guardas e de quem quer que esteja perto. O que acha? - Maldie sorriu quando o marido beijou-lhe o rosto.

     - Acho que você ficará muito ocupada pelos próximos dias, planejando um casamento.

     - Aquela é a sua Elspeth?

     Diante da pergunta do irmão, Cormac levantou-se e se sentou nos calcanhares. Olhou para os portões e conteve a respiração ao ver Elspeth. Os longos cabelos negros caíam soltos, a dançar em torno dela como uma nuvem tempestuosa. Tinha as saias erguidas até os joelhos enquanto corria em sua direção.

     - Sim, é a minha Elspeth - ele murmurou tomado de ansiedade.

     - Continue rastejando - o irmão falou, e o empurrou com rudeza para baixo.

     Cormac tentou se erguer para dizer a Will o que pensava dele, quando Elspeth o alcançou. Então, conforme ela o agarrava pelos braços, Cormac viu que Elspeth estava chorando, e sentiu o coração se apertar de pavor. Lágrimas não eram o sinal que ele esperava.

     Ela o puxou pelo braço, tentando levantá-lo.

     - Não faça isso - disse, não conseguindo conter as lágrimas. - Por favor, não faça isso. Sinto muito. Eu estava zangada demais.

     Ao perceber que Elspeth chorava por ele, Cormac puxou-a para baixo até fazê-la se ajoelhar no chão, a seu lado. E sorriu quando ela, ainda aos prantos, limpou com gestos nervosos a sujeira das mãos dele. Quando começou a fazer o mesmo em suas calças, Cormac tomou-lhe a mão na sua. Estava tão esfaimado por ela que o menor toque em sua perna havia sido quase o bastante para que perdesse o controle. Um gemido lhe escapou quando Elspeth atirou-se contra seu peito e passou os braços em torno de sua cintura.

     - Sinto muito - ela resmungou, ainda chorando baixinho. - Nunca pretendi que fizesse isso, na verdade. Juro que não.

     Cormac pousou as mãos nas faces úmidas e ergueu o rosto de Elspeth até fitá-la dentro dos olhos. Roçou-lhe um beijo leve na boca.

     - Não deveria estar se desculpando comigo, meu anjo. Um pouquinho de humilhação não me matará, embora e fique feliz que não tenha me deixado ir muito longe. Essas pedras são muito duras para os joelhos de um homem. Beijou-a outra vez quando ela sorriu. - Para vê-la sorrir de novo, eu rastejaria em cima do fogo.

     Elspeth estendeu a mão e lhe afagou o rosto.

     - Isabel? - perguntou, embora só pronunciar o nome da mulher a sufocasse.

     - Foi mandada com o amante para o patíbulo. E, se estiver procurando pelo fantasma dela nos meus olhos, não o encontrará. Juro percebi o meu erro quando a porta se fechou atrás de você. Mas custou um pouco para este idiota aclarar a mente turbada por dez anos de mentiras. O que descobri só confirmou e esclareceu o que eu sentia.

     Um resmungo lhe escapou no instante em que uma mão forte o agarrou pelo braço e o ergueu de pé. Cormac viu de relance quando Elspeth caía de costas e se esparramava no chão. Ao ser solto, ele percebeu que o homem que o erguera era o pai dela. E compreendeu.

     - Muito bom ver você, rapaz! - exclamou Balfour. - Estou contente que tenha trazido alguns dos parentes para o casamento.

     - Pai - protestou Elspeth quando um jovem apressou-se a ajudá-la a se levantar e se apresentou como Dougal, irmão de Cormac. - Ele não me pediu para desposá-lo.

     - Não? Interrompi você muito cedo?

     A voz era calma, quase amistosa, e o sorriso, tranqüilo, caloroso, acolhedor. Nos olhos, contudo, estava a dura ordem. Balfour Murray podia não ter saído à caça de Cormac, mas agora que este se encontrava ali, ele o prenderia até que se casasse com Elspeth. E já que era exatamente o que Cormac desejava fazer, apenas sorriu e concordou.

     - Meu anjo, quer se casar comigo? - perguntou, e reprimiu um sorriso quando ela afastou os cabelos desalinhados do rosto e olhou feio para o sorridente pai.

     - Pai, não permitirei que o senhor o force! - Elspeth exclamou, embora pensasse que Cormac parecia feliz para um homem obrigado a fazer o que não queria.

     - Não estou forçando ninguém - retrucou Balfour. - E quem é que manda aqui, hein? - Olhou para Cormac. - A moça aceita. Apresente-me os seus parentes.

     - Papai! - Quando a mãe se postou a seu lado e começou a lhe limpar as saias, Elspeth esbravejou: - Não pode impedi-lo?

     - Qualquer outro pai teria matado o rapaz ou o arrastado até o padre, dois meses antes - disse Maldie ao inclinar a cabeça num cumprimento a cada novo Armstrong que lhe apresentavam. - Um belo bando, esses Armstrong.

     - Não quero que o obriguem a se casar comigo - Elspeth murmurou.

     - Menina, acha que o homem rastejou até os nossos portões só para dizer que era ótimo vê-la outra vez?

     Antes que Elspeth pudesse responder ao comentário sarcástico, Cormac empurrou um menino e uma mulher mais velha até a frente dela. Um olhar foi tudo de que Elspeth precisou para saber que aquele garoto era filho de Cormac. Ele dissera que não havia fantasmas, que Isabel se fora, mas tinha mentido. O fantasma estava ali, materializado nas feições perfeitas do filho que Isabel dera a Cormac.

     - Este é meu filho, Christopher, e sua ama, Agnes - Cormac disse, sem se surpreender ao ouvir o palavrão abafado de sir Balfour e o arquejo de lady Maldie.

     Não foi fácil, mas, recusando-se a fazer uma criança inocente pagar pelo pecado dos pais, Elspeth cumprimentou o menino e depois Agnes com toda a gentileza e cortesia que conseguiu. Agnes lhe endereçou um sorriso de aprovação, mas os olhos cinzentos examinavam com atenção o rosto de Elspeth e os de sua família. Christopher se mostrou educado, um tanto tímido, e de boas maneiras, o que permitiu que Elspeth controlasse suas emoções. Empertigou o corpo e encarou Cormac, feliz ao perceber que ele tinha o bom senso de parecer inquieto.

     - Christopher e eu ainda estamos nos conhecendo - disse Cormac ao sustentar o olhar de Elspeth.

     - Sim - emendou Christopher. - Papai me conheceu faz dois meses. Eu morava com a ama Agnes até então.

     "Deus o abençoe, Christopher", Cormac pensou ao observar que parte da raiva abandonava Elspeth e que as feições dos membros da família se tranqüilizavam um pouco. Assim que o menino não estivesse por perto, ele poderia explicar a Elspeth tudo que precisava para afastar qualquer idéia errada.

     - Venha, garoto. Vamos para o castelo. - Agnes olhou para Maldie, curvou-se numa mesura e acrescentou: - Se for adequado, senhora.

     - Naturalmente - murmurou Maldie. - Vamos entrar, todos vocês. Devem querer se refrescar, descansar, comer alguma coisa. Estarei com vocês num minuto.

     No momento em que Agnes, Christopher e os outros se afastaram, Elspeth perguntou:

     - Isabel?

     - Sim. Ela o manteve escondido de mim durante sete anos. Se você se lembra, uma vez conversamos sobre a possível infertilidade dela. Bem, não era infértil. Pelo que disse, Christopher está aqui simplesmente porque Isabel não conseguiu se livrar dele como havia feito com os outros. - Sacudiu a cabeça quando Elspeth e a mãe arquejaram de horror. - Não tive coragem de perguntar se algum dos outros era meu também.

     - Então, quando ela soube que ia morrer, finalmente lhe contou sobre a criança? - perguntou Elspeth.

     - Não, acho que iria para o túmulo com esse segredo, mas pensou que poderia fazer bom uso do menino. Disse que o daria para mim se eu a ajudasse a ficar livre. E se eu não a ajudasse, nunca veria meu filho vivo. Deus me ajude, eu poderia ter feito isso só para ficar com o garoto, mesmo pensando que ela estava mentindo outra vez.

     - Mas não fez - murmurou Elspeth.

     - Fui salvo dessa escolha por sir Ranald. Ele espreitava Isabel desde a morte do segundo marido, e sabia sobre a criança. No momento em que foi capturada, creio que Ranald suspeitou de que ela tentaria usar o garoto e o trouxe para mim. - Embora visse que Elspeth não estava mais zangada, Cormac não tinha certeza do que ela pensava ou sentia, e não quis perguntar enquanto os familiares estivessem ali.

     - Venha-disse Maldie ao enfiar o braço no de Cormac. - Vamos nos reunir aos outros.

     - Christopher sabe a verdade sobre Isabel? - perguntou Elspeth.

     - Tanto quanto uma criança pode saber. Ele a chamava de lady Isabel e pareceu feliz de poder ficar comigo e nunca mais ver a mãe. Tanto Agnes como eu lhe dissemos que ela está morta. Contamos que pagou por seus crimes, nada mais. Algumas vezes Christopher a menciona nas preces para dormir, porém quase nunca fala dela. Para ele, sua mãe é Agnes, e lady Isabel, a mulher que o deixava muito infeliz durante as raras visitas.

     - Que tristeza... Graças a Deus ele tinha Agnes - disse Maldie.

     Enquanto a mãe perguntava coisas sobre o menino, Elspeth tentou decifrar como se sentia a respeito de tudo aquilo.

     Não tinha raiva ou desgosto pelo garoto, sabia que não haveria problema em amá-lo como toda criança merece e precisa. O que não sabia com certeza era como Cormac encarava a situação. Considerando o que sempre sentira por Isabel, seria um elo muito forte a ligá-los, mesmo depois da morte dela. Contudo, parecia haver apenas raiva e desgosto nele, nada mais. Era difícil acreditar que mudara tanto com relação àquela mulher.

     Elspeth sabia que logo estaria casada com Cormac. Seu pai queria, e Cormac parecia querer também. Ela estava feliz e, ao mesmo tempo, temerosa. Desposaria o pai de seu filho, companheiro de seu coração e alma, o homem que a fazia arder de desejo só com um olhar. Não haveria mais noites solitárias, nem saudade de seu contato ou do som de sua voz. O medo que a invadia derivava do fato de que Cormac não a havia escolhido em lugar de Isabel, só a procurara depois que a mulher tinha sido executada. Apesar dos presentes, das palavras doces e do gesto de humilhação nos portões de Donncoill, Elspeth não sabia o que se passava no coração de Cormac. Precisavam conversar.

     Quando o jantar terminou, Elspeth percebeu que não teria oportunidade de conversar reservadamente com Cormac até depois de se casarem. O enlace seria realizado em três dias, e ela suspeitava que sua família não daria tréguas nem espaço aos dois. Todos se mostravam amistosos e alegres, mas Elspeth via que sempre havia um ou mais dos homens da família perto de Cormac.

     - Não deixarão vocês dois a um passo um do outro, até se ajoelharem diante do padre - William, o irmão de Cormac, lhe disse ao se encostar na parede, à direita de Elspeth.

     - Em três dias ele será todo seu! - Dougal exclamou o outro irmão, ao se postar à esquerda. - Não é muito tempo.

     - Talvez eu queira conversar em particular com o homem que meu pai está arrastando para o altar - Elspeth retrucou de cara feia, diante do olhar divertido dos dois irmãos.

     - Ora, moça - disse William -, nosso irmão parece muito aborrecido com isso? Por que acha que ele veio até aqui?

     - Não é o porquê da chegada que me preocupa. Talvez seja o quando.

     - O quando?

     - Sim, depois da morte de Isabel.

     - Ah... então é isso - William murmurou ao vê-la se afastar.

     - Acha que deveríamos avisar Cormac? - perguntou Dougal.

     - Avisar nosso irmão, o idiota que deixou essa linda moça sair da sua cama? Nosso irmão que, em três dias, estará entre os lençóis com uma criatura que, nas palavras dele, tem uma voz que derrete pedra? Nosso irmão que se deleitou com o amor e a paixão dessa pequena só murmurando algumas palavras doces? - Olhou para Dougal e arqueou a sobrancelha.

     - Tem razão. O safado já tem uma sorte danada. Deixe que descubra por si mesmo.

     Cormac viu Elspeth sair do salão e suspirou. O pai dela estava disposto, era evidente, a perdoar e esquecer. Deveria ser grato. A família o recebera de braços abertos. Considerando tudo que ele fizera, tinha muita sorte. Em três dias estaria casado com Elspeth; poderia amá-la e abraçá-la a noite inteira. Entraria na capela e ficaria de joelhos, agradecendo a Deus por isso. Contudo, a família, toda cheia de sorrisos e amizade, tinha a evidente intenção de mantê-los completamente separados em cada hora, minuto e segundo até o casamento. Seriam três longos dias...

    

     - Aonde pensa que vai, mocinha?

     Elspeth soltou um grito de susto e tropeçou ao ouvir a voz da mãe.

     - Estava com um pouquinho de fome - Elspeth murmurou, sentindo-se como uma criança pega fazendo uma travessura.

     - Ah... entendo. Deve ser a ansiedade pelo casamento que a fez se confundir assim.

     - Como?

     - Não percebeu que está indo na direção errada? - Maldie meneou a cabeça quando a filha enrubesceu; então, agarrou Elspeth pelo braço e levou-a para seus aposentos.

     - Tenho um pouco de comida aqui.

     - Eu só queria conversar com Cormac - Elspeth murmurou, quando a mãe a arrastou para a saleta ao lado do quarto e a fez sentar-se. - Não acha que ele e eu deveríamos conversar um pouco antes de ficarmos diante de um padre? - perguntou, a olhar para os pães, queijos, frutas e tortas sobre a mesa.

     - Quer dizer... contar-lhe a respeito do filho que você está esperando? - perguntou Maldie.

     Elspeth engasgou com a torta que mordiscava. Sua mãe deu-lhe uma tapa nas costas e um copo de vinho.

     - Faz quanto tempo que a senhora sabe disso? - finalmente Elspeth perguntou.

     - Adivinhei logo depois que você chegou em casa. Soube com certeza poucas semanas depois. Elspeth acha que eu não saberia?

     - Na verdade, não pensei nisso muitas vezes, a não ser ao perceber que as menstruações não chegavam. Fiquei nervosa, sem saber como contar à senhora e ao papai, e o que iria acontecer. Depois, se eu não conseguia pensar em Cormac, não poderia deixar meus pensamentos se fixarem na criança também, poderia?

     - Claro que não. Bem, ia dizer a Cormac sobre a criança?

     - Não, só queria conversar com ele. Talvez pudesse aliviar minhas preocupações. Não tenho certeza se Isabel desapareceu mesmo das nossas vidas.

     - Por causa do garoto?

     - Em parte. Se eu posso ver a mãe nele, Cormac também pode. E não sei se deveria me preocupar com isso ou não.

     - A criatura tratou a criança muito mal, e creio que Cormac sabe disso. Uma coisa que pareceu tê-lo abalado foi Isabel reclamar de não ter conseguido se livrar do pequeno como os outros. Não acredito que ela tenha batido nele ou ferido fisicamente. Mas fez de tudo para que se sentisse mal-amado, não-desejado e talvez indigno de amor. O menino vai precisar de muito carinho.

     - Está dizendo que eu deveria deixar de lado minhas próprias preocupações pelo bem de Christopher?

     - Isso mesmo. Uma união infeliz fará mal ao garoto. Você se casará amanhã, não importa quanto resmungue. Seu pai está irredutível e Cormac parece concordar. Além disso, está grávida do filho dele. E Cormac trouxe o filho para que você o conhecesse e deseja evidentemente que os três sejam uma família. E há ainda o pequeno Alan a considerar. Mais importante que tudo, você ama esse homem e, se for parecida comigo, como acho que é nunca amará ninguém mais tão completa, profunda ou apaixonadamente como ama Cormac. Não jogue fora tudo isso porque tem medo de uma morta ou de um juramento de um rapaz de dezesseis anos.

     Elspeth viu que a mãe deixara clara sua posição. E as palavras finais a fizeram se sentir tola e fraca.

     Continuaram a conversar por algum tempo mais sobre o casamento no dia seguinte. Depois, Maldie acompanhou-a de volta ao quarto e deixou-a lá, com um beijo na face.

     As palavras da mãe ainda ressoavam na cabeça de Elspeth pela manhã, quando entrou no berçário para ver o pequeno Alan e Christopher, pois, com a chegada da família para o casamento, aquilo estaria um caos, com tantas crianças.

     Christopher estava sentado no chão, brincando com Alan. Empilhava blocos que o outro derrubava, aos gritos e risadas. Christopher se afeiçoara a Alan bem depressa, e Elspeth ficou a imaginar se ele sentia algum vínculo com a criança, tão cruelmente abandonada.

     - Ele gosta mesmo disso - Ela murmurou quando Alan derrubou outra pilha de blocos, a agitar os bracinhos, com uma risada feliz.

     - É um bebê bonzinho - Christopher disse, tocando com timidez os cabelos de Alan. - A mãe não tinha muito coração, como a minha. Direi que não foi culpa dele quando Alan crescer. Ele vai morar conosco, não é?

     - Claro, é o que eu desejo. Penso que seu pai irá permitir.

     - Oh, sim. - Christopher abriu um sorriso largo. - Ele me contou tudo sobre Alan. E que sentia saudade do bebê quase tanto como da senhora. Sentia falta de acordar e ouvir o bebê chupando o dedo do pé e balbuciando coisas para o gato. Barrento também é um gato muito bom - Christopher emendou, olhando para o bicho, que se esparramara perto do cercado de Alan, a observar tudo atentamente.

     Tomada por uma mescla de felicidade e confusão diante do que Christopher dissera com relação à Cormac, Elspeth respirou fundo.

     - Realmente, é um gato muito bom. Agora, rapazinho - encarou o menino nos olhos -, vim saber se você concorda que eu me case com seu pai. - Pelo canto dos olhos, viu o gesto de aprovação de Agnes, e Elspeth ficou a imaginar por que aquilo a inundava de tamanha alegria.

     - Sim, lady Elspeth - Christopher respondeu de um modo solene. - Perguntei a meu pai se a senhora tinha coração, e ele me disse que tem um enorme. E posso ver que meu pai tem razão. Papai também me disse que tem esperanças de que a senhora o deixe entrar no seu coração de novo.

     - Aqui entre nós, rapazinho, eu nunca o tirei lá de dentro. Só fiquei um pouco zangada e... vou ser sincera: ele ainda tem algumas coisas a me explicar.

     - A senhora quer saber se está no coração dele também.

     - Isso, meu lindo, é o que eu quero. Ou, pelo menos, saber se não há alguém ainda espreitando por lá, Elspeth pensou.

     Por mais algum tempo, ela brincou com as crianças; então, levantou-se para sair. Agnes acompanhou-a até o corredor. Era evidente que queria dizer alguma coisa longe dos pequenos.

     - Sir Cormac é um bom homem, senhora - Agnes murmurou. - No momento em que o segredo daquela ca... de lady Isabel foi descoberto, ele assumiu os cuidados do menino. Sir Cormac e um bando de belos homens foram até a minha cabana e isso fez muito bem ao meu garoto, tanto que nem sei dizer. Finalmente, Christopher se sentiu aceito. Aqueles rapagões o trataram como um parente, brincando, provocando-o e dizendo coisas que até tive que tapar as orelhas.

     Elspeth mordeu o lábio para reprimir um sorriso.

     - O que estou tentando dizer, senhora, é que o menino precisa de aceitação, de um verdadeiro lar.

     - Não vejo nenhum problema nisso - Elspeth assegurou.

     - Eu sei, e a abençôo por isso. E é bom que fique com o bebê. Christopher se afeiçoou a ele.

     - Oh, é fácil de ver. Existe um laço entre eles, não é? Ambos foram abandonados e tinham mães desnaturadas que os queriam mortos.

     - Bem, é melhor a senhora se preparar para o casamento. Eu disse tudo que pretendia dizer. Só queria lhe agradecer por dar um lar ao pobre menino.

     Elspeth beijou a velha babá.

     - Ah, Agnes, Christopher sempre teve um lar porque Deus o abençoou e lhe deu você como anjo da guarda.

     No momento em que Elspeth entrou em seu quarto, foi cercada pelas primas Avery, Bega e Gillyanne, a irmã Morna e várias criadas. Embora protestasse, foi ignorada. Elas a despiram esfregaram-na no banho, lavaram-lhe os cabelos. Depois a vestiram e escovaram a cabeleira até que secasse, e enfeitaram as trancas com fitas verdes. Quando acabaram e Elspeth ficou sozinha apenas com Avery e Gillyanne, ela estava exausta, mas teve de admitir que se sentia linda. O verde do vestido a valorizava. Julgando-se um pouco vaidosa, enrubesceu.

     - Bem, vamos lá acabar com tudo isso.

     Seguiram pelos corredores e, do alto da escada, olharam para o grande salão lotado. Elspeth o percorreu com os olhos à procura de Cormac. Ele estava de pé ao lado de seu pai, conversando com o jovem padre. Elspeth sentiu o ventre se contrair ao vê-lo vestido com calças pretas e casaco preto e prateado. A rodeá-lo, vários irmãos e o pequeno Christopher, com a capa xadrez escocesa e camisa branca. Seu pai também estava muito elegante, em traje de gala, e ela sorriu ao se recordar de quantas vezes a mãe fracassara em conseguir que ele se vestisse a rigor. Ao lado de seu pai, estavam seus irmãos Connor, Ewan e Liam, todos lindos. Uma visão para permanecer para sempre na mente de uma moça.

     Ao perceber que Elspeth o fitava, Cormac se virou. Encarou-a intensamente, como se tentasse adivinhar o que ela sentia. Com um esforço, Elspeth reuniu coragem. Ela e Cormac tinham alguns assuntos pendentes. E isso não se resolveria se ela o deixasse atordoá-la com sorrisos e olhares ardorosos. Mesmo que as respostas não lhe agradassem, Elspeth estava decidida a não entrar num casamento com perguntas não verbalizadas, explicações não dadas e dúvidas não esclarecidas.

     Caminhou diretamente para Cormac. Precisava de seu amor e não sabia se o tinha ou se alguma vez teria. Quando pensara que havia chegado ao coração dele, Cormac tinha se voltado para Isabel. Não poderia suportar isso uma segunda vez.

     - Está com um ar muito solene, moça! - Cormac exclamou.

     - Casamento é um assunto solene - Elspeth respondeu rispidamente. Olhou para o pai. - Sobretudo quando um dos nubentes não teve a chance de dizer sim ou não.

     Balfour cruzou as mãos às costas e olhou para o teto.

     - É um pouco tarde para reclamar.

     - Se eu pudesse ter conversado com um certo pai a sós por um momento, nos últimos três dias, não teria de esperar até agora.

     Balfour encarou o padre, que parecia nervoso.

     - Vamos com isso.

   - Bem... - o padre pigarreou - as partes precisam estar de acordo.

     Quando o pai e Cormac se voltaram para ela, Elspeth cruzou os braços e começou a cantarolar. Ouviu os homens praguejarem, a mãe e as tias gemerem numa mistura de divertimento e susto, e, atrás, as primas a sufocarem as risadinhas.

     - Isso não tem graça nenhuma, menina! - esbravejou Balfour. - Você fará o que foi combinado. - Como a filha continuou cantarolando, Balfour enfiou os dedos pelos cabelos grisalhos. - A criatura é tão teimosa como a mãe.

     Quando a esposa não fez nada além de observar Elspeth com um meio sorriso, Balfour perguntou:

     - Não vai ajudar?

     - Você criou o problema. Agora dê um jeito.

     - Sir Balfour, posso? - Cormac perguntou, fazendo uma ligeira mesura.

     - Acha que consegue que minha filha seja razoável?

     O plano de Cormac era fazer Elspeth perder a cabeça, pelo menos até que estivessem casados, mas não poderia dizer isso.

     - Vale tentar.

     - Bem, faça o melhor.

     - Oh, eu pretendo.

     Cormac puxou Elspeth para seus braços. O cantarolar transformou-se num grito sufocado quando ele lhe cobriu a boca com a sua. Cormac percebeu vagamente os gritos de aprovação dos homens e os arquejos das mulheres, mas sua atenção estava fixada na mulher que estava em seus braços. O corpo de Elspeth mantinha-se rígido, os lábios fechados com força, e Cormac receou que tivesse matado toda a paixão dentro dela. Então, Elspeth deixou escapar um suspiro. Um tremor percorreu Cormac, e encontrou eco em Elspeth quando ele insinuou a língua por entre os lábios dela, agora receptivos. Beijou-a longa e avidamente, só parando ao ficarem ambos sem fôlego.

     Cormac encarou Elspeth. E quando ela abriu aqueles maravilhosos olhos verdes, ele quase soltou um gemido. Ali estava o olhar de que sentia uma desesperada saudade. Por um momento, ficou emocionado demais para se mexer. Então, beijou-a no lóbulo da orelha.

     - Diga-lhe sim, meu anjo - murmurou ao ouvir o padre, cutucado por Balfour, perguntar novamente se Elspeth estava ali por livre e espontânea vontade.

     - Para quem, Cormac? - ela indagou, agarrada a ele.

     - Para o padre. Diga sim, amor. - Deslizou a língua para dentro do ouvido de Elspeth.

     - Ah... ah... sim - ela murmurou, e ficou imaginando por que ouvia risadas.

     Cutucado outra vez por Balfour, o padre começou a ler os sacramentos. Cormac continuou a abraçar a cintura de Elspeth, fazendo-a se ajoelhar a seu lado. Finalmente, o sacerdote os declarou marido e mulher. Cormac levantou-se e puxou Elspeth, envolveu-a nos braços e beijou-a com sofreguidão. Depois, afastou-se um pouco e sorriu quando Gillyanne lhes trouxe as taças de vinho para que bebessem juntos, em celebração.

     - Ah, minha bela lady Armstrong, nenhum homem poderia ter uma esposa mais linda! - Cormac exclamou, e esperou tenso, que ela se desse conta da afirmação.

     Elspeth pestanejou e, em seguida, olhou ao redor. Embora tivesse uma vaga consciência de onde se encontrava, pouco mais era claro, a não ser a sensação dos beijos de Cormac a lhe queimar as entranhas. Então, com um resmungo, afastou-se de repente.

     - Muito esperto sir Cormac! - ela exclamou, plantou as mãos nos quadris e o encarou.

     Elspeth estava furiosa. Não apenas Cormac usara a paixão que nutria por ele contra ela própria, como deixara que a família toda visse.

     - Ora, Elspeth-Cormac disse ao vê-la apertar os olhos.

     - Basta, está feito. Não faz sentido discutir o assunto.

     Ele franziu a testa. Aquela aceitação repentina parecia um logro.

   - Muito gentil de sua parte.

     - Obrigada. E agora, é hora da festa. Uma longa festa! - Elspeth exclamou, e enfiou o braço no da prima mais próxima. - Com tanta comida e bebida e todas as diversões planejadas, pode durar até o amanhecer.

     Cormac praguejou intimamente ao ver Elspeth se afastar. Ao receber um tapa nas costas, ele virou-se e deparou com sir Balfour, sorridente.

     - Ela agora é sua, rapaz! - exclamou Balfour, e riu baixinho.

     - Pensei que os pais não gostassem de entregar as filha para outro homem - disse Cormac.

     - Tive dois meses para me acostumar com a idéia.

     - Achou que eu viria procurá-la?

     - A maioria das vezes, sim. Estou casado com alguém muito parecido com Elspeth. Deixei minha Maldie se afastar de mim porque fui um idiota. E me custou tanto tempo ir atrás dela quanto custou para você. Achei que não tinha mais chance.

     Cormac concordou.

     - Mesmo assim, seria melhor se tudo estivesse bem e acertado entre mim e Elspeth.

     - Pode não ser tão ruim como pensa. Afinal, ela se casou, e o jeito com que você lhe arrancou o "sim" conta muito.

     - Elspeth não queria realmente se casar comigo.

     - Rapaz, é óbvio que você não a conhece tão bem como deveria. Se a minha pequena Elspeth não quisesse, haveria uma guerra para fazê-la se ajoelhar diante daquele padre. E a maioria das mulheres e alguns dos rapazes se poriam ao lado dela. Agora, vou lhe contar algo que pode ajudar.

     Connor, irmão de Elspeth, se aproximou e disse:

     - Corra Cormac! Meu pai vai lhe dar conselhos sobre mulheres. Ai! - O rapaz gritou quando sir Balfour lhe deu uma cotovelada no estômago.

     - Eu falo como alguém que já trilhou o caminho mais traiçoeiro que existe para um homem: o casamento. Elspeth é como a mãe e, se meus irmãos não mentiram, as tias são a mesma coisa. Se você tiver alguma confissão a lhe fazer, leve-a para a cama primeiro e a ame com ardor. Quando ela o encarar com aquele olhar que faz suas entranhas se encolherem, conte tudo.

    - Bem, não tenho nenhuma confissão a fazer - disse Cormac -, só algumas explicações a dar.

     - Também funciona.

     - Estranho conselho para um pai.

     Balfour deu de ombros.

     - Como eu disse, tive tempo para me acostumar com o fato de que a minha menina se tornou uma mulher.

     - Bem, é um bom conselho, e receio que se passem muitas horas antes que eu possa pô-ló em prática.

     - Você está casado agora. Ninguém poderá tirá-la de seus braços.

     Balfour riu quando os olhos de Cormac se arregalaram. Em seguida, saiu em passos firmes na direção da esposa.

     - O sol ainda nem se pôs-resmungou Elspeth ao olhar pela janela.

     Estava no quarto nupcial e bem mais cedo do que pretendia. Por algum tempo, Avery e Gillyanne, junto com suas irmãs e outras primas, tinham impedido que fosse encurralada por Cormac. Então, de repente, Elspeth se vira ao lado das tias. Cormac não havia perdido tempo. A próxima coisa que Elspeth percebera era que se encontrava no quarto, cheiroso e decorado para a noite de núpcias. Tinha sido despida, banhada, perfumada e vestida numa camisola cuja única finalidade era seduzir.

     Como se Cormac precisasse de incentivo, ela pensou. Metade do problema em tentar resistir era que podia captar o desejo de Cormac cada vez que chegava perto dele. E era ainda mais poderoso quando ele a tocava, o que o safado fazia toda vez que podia. Não tentara arrebatá-la com beijos vorazes, pois não era necessário. Depois de um curto espaço de tempo, era Elspeth que estava louca para subir ao quarto para a noite de núpcias. Que constrangedor!

     O ruído da porta se abrindo e se fechando chamou sua atenção. Elspeth virou-se para encarar o homem que agora era seu marido. Cormac parecia inseguro, até mesmo contrito. E a única coisa entre ela e aquela carne quente era um roupão amarrado de um jeito frouxo. O modo com que ele a fitava e os olhos azuis toldados de desejo faziam seu sangue ferver. Antes de mais nada, Elspeth queria conversar, mas não seria fácil controlar toda a fome que a consumia. Ela apressou-se em encher duas taças de vinho.

     Cormac olhou para Elspeth e sentiu um baque no peito. A camisola fina de seda que ela usava era de um tom suave de rosa e tão transparente que todas as curvas se revelavam. Estava presa, do pescoço até a barra, com delicados laços. Seria fácil desfazê-los, deixar à vista as formas que ele ansiava por beijar. Quando Elspeth lhe estendeu uma taça de vinho, ele fitou a bebida sem ver, tão atordoado de volúpia que teve de parar para pensar no que fazer.

   - Acho que precisamos conversar - disse ela.

     Então, tomou um gole de vinho para esconder o desejo evidente em sua voz.

     - Sei disso - Cormac entornou a bebida, colocou a taça sobre a mesa e tocou Elspeth nos braços.

     - Isso não é conversar - ela falou.

     - Mocinha, sei muito bem que há uma porção de coisas que devemos dizer um ao outro, que eu preciso explicar.

     Numa vã tentativa de esfriar o calor causado pela proximidade dele, Elspeth bebeu o resto do vinho. Não adiantou. A cada carícia em suas costas, queria se encostar mais em Cormac.

     - Então comece a falar - murmurou.

     - Não posso. - Ele a beijou de leve na face. - Ah, meu anjo, estou louco por você! Meu desejo é tão forte que não consigo pensar em outra coisa, só em tê-la inteirinha. Duvido que eu seja capaz de saber meu próprio nome.

     - Não podemos fazer de conta que não há nada de errado entre nós - Elspeth protestou, mas não conseguiu impedi-lo de soltar os laços da camisola.

     Cormac a desnudou, continuando a acariciá-la cada vez com mais ousadia, até que Elspeth gemeu e estremeceu. Tomou-a então nos braços e carregou-a para a cama. Arrancou o roupão.

     Muito mais tarde, Cormac recobrou o senso. O jeito com que Elspeth esfregava os pés em suas pernas não permitia que pensasse claramente. Então, fitou-a dentro dos olhos. O verde ainda estava escuro de paixão. Elspeth o olhava como se ele fosse o que existia de mais importante para ela no mundo. Sir Balfour tinha razão. Aquele olhar remexia com as entranhas de um homem. E Cormac teve de admitir que seu maior medo era nunca mais ver aquela expressão em Elspeth.

     - Meu anjo, você é o sonho de todo homem - ele murmurou, a roçar-lhe um suave beijo nos lábios. - Eu soube disso quando você estava comigo e depois que me deixou.

     Elspeth não tentou se afastar dos braços de Cormac. Se ele fosse honesto, ela o teria ao alcance da mão. Se não, poderia aproveitar a proximidade um pouco mais, antes que a mágoa e a raiva os afastassem.

     - Você não foi atrás de mim. Não me impediu de ir embora.

     - Bem, receio que não tivesse condições, mesmo que quisesse. Depois de fazer amor durante a noite toda, algo para acabar com a força de um homem, eu passei a manhã caminhando. Acho que tudo ajudou a esgotar minhas forças. Naquele momento, eu mal conseguia atravessar o quarto. Estava fraco como um recém-nascido.

     - Oh... - Então, aquele beijo havia sido tudo que ele e Isabel tinham partilhado, embora aquela mulher tentasse passar outra impressão. - Pensei que fosse por outras razões que não o seu estado de fraqueza.

     - Se eu não estivesse tão fraco e tão confuso, nunca teria deixado que você fosse embora. Queria que ficasse comigo.

     - Por isso - Elspeth murmurou ao apontar os corpos ainda entrelaçados. - Queria ficar comigo por causa disso.

     - Acreditaria se eu dissesse que não? Que homem não se agarraria a algo tão bom como o que nós dois partilhamos? Desde o começo eu sabia que era melhor do que jamais tinha sido que ninguém provocaria em mim o que você provoca. - Sorriu de leve e beijou o biquinho que Elspeth fazia, ao adivinhar o que ela pensava. - Sim, eu sabia que era o melhor sexo que eu já havia feito e aquilo me perturbava profundamente. Como poderia ser, perguntava-me, se eu...

     Elspeth quase riu do jeito consternado de Cormac.

     - Não, não pare. Estamos casados. Não há como voltar atrás. Você pode dizer coisas que eu não queira ou goste de ouvir, mas passei dois longos meses cheia de perguntas para as quais não tinha resposta. Não quero passar o resto dos meus dias assim.

     Cormac respirou fundo e prosseguiu:

     - Como poderia aquilo que nós dois partilhávamos ser melhor se eu achava que amava Isabel? E não posso descrever com me senti quando me dei conta de que ela não era a inocente virgem que havia afirmado ser. Aquela foi a primeira mentira que descobri. E, como sempre, tentei ignorá-la.

     - Você amou aquela mulher durante dez anos, Cormac.

     - Fui um brinquedo por dez anos, o cachorrinho que só enxergava a beleza de Isabel. Um idiota preocupado em não quebrar um juramento da juventude, em não manchar a honra, que nunca olhou de perto para ver que a mulher a quem honrava não era digna disso.

     Havia muita raiva por trás daquelas palavras. Era direito de Cormac, mas Elspeth imaginou qual era a verdadeira causa. A ira de um homem feito de bobo ou a dor de um coração traído?

     - Muitos homens foram enganados por Isabel, cegados pela beleza dela e pela luxúria - Elspeth murmurou, observando-o atentamente.

     - Por tanto tempo como eu? - Cormac sorriu com desgosto. - Bem, havia o amante, sir Kenneth, mas é difícil dizer quem usava quem. Pelo menos ele via Isabel pelo que ela era e como um meio para chegar aonde queria.

     - O que os levou para o patíbulo.

     - É verdade. O que estou tentando dizer é que, depois de tudo que você e eu fizemos juntos, simplesmente conversar ou fazer amor, fiquei cheio de dúvidas, confuso, perdido. Às vezes eu a culpava pelo meu estado. Então, culpava a mim mesmo. Meu erro foi nunca ter parado para culpar Isabel. - Resmungou um palavrão e levantou-se a fim de pegar mais vinho.

     - Se quiser continuar conversando, Cormac, ou se vista, ou volte para debaixo das cobertas - Elspeth reclamou.

     Ele sorriu ao colocar uma taça de vinho para Elspeth na mesinha-de-cabeceira; depois, entrou sob as cobertas.

     - Assanhada com a minha beleza, mocinha? Puxa, precisa aprender a se controlar...

     - Controlar, é? - Elspeth sentou-se e apanhou seu vinho. - Que tal se eu sair pelo quarto a me exibir toda nua?

     - Oh, por favor, meu anjo! - Cormac exclamou, com voz de riso. - Faça isso. Estou louco para ser testado.

     - Não estamos conversando?

     - É que quando fui pegar o vinho, tive uma idéia. - Ignorou o beliscão que ela lhe deu. - Tenho consciência dos erros que cometi, mas não sei o que a preocupa. Talvez seja mais fácil se eu perguntar o que você quer saber.

     - Por que você escolheu Isabel? - Elspeth murmurou, num tom ríspido. - Depois de tudo que compartilhamos, por que nem mesmo hesitou?

     - Ah, eu hesitei, sim, meu amor. - Abraçou-a e puxou-a contra o peito. - Durante todo o tempo em que Isabel ficou naquele quarto, eu estava num tal estado de confusão que duvido que soubesse quem era. Parecia uma peça, uma representação, e eu era um ator repetindo o texto... as mesmas palavras que havia dito vezes e mais vezes. Falei tudo que Isabel precisava ouvir para que fosse embora. Eu queria que ela sumisse porque tinha medo que você voltasse e nos visse juntos. E porque eu sentia que tudo estava errado, muito errado, e precisava pensar.

     - E então, eu cheguei.

     - Foi. Mesmo quando Isabel saiu e você começou a falar, as palavras que a minha boca murmurava eram as de costume. "Isabel tem uma vida triste. Isabel precisa de mim. Fiz um juramento e devo honrá-lo." Percebi nos últimos meses que fui bem treinado. Ela me pegou quando eu era jovem e inocente quanto às mulheres e fixou aquela imagem da juventude na minha mente desde então.

     Tomou Elspeth nos braços.

     - Eu não sentia mais nada por Isabel, mas não compreendia o que estava acontecendo, o que havia mudado e por quê. Precisava vê-la e depois pensar com calma sobre tudo o que havia acontecido até aquele encontro por tanto tempo esperado. Necessitava de um tempo para me dar conta de que tudo aquilo que eu tinha imaginado por tantos anos não era mais verdade. Pela primeira vez desde que jurei que nunca faltaria com a minha palavra, que mostraria ao mundo que nem todos os Armstrong eram como meus pais, eu me vi imaginando como ficar livre daquele juramento. Queria esbofetear Isabel por insultar você. Estava irritado com as exigências dela e desejava que fosse embora por inúmeras razões. Ora, por mais idiota que eu fosse, sabia que havia algo profundamente errado.

     - Eu gostaria que você tivesse resolvido tudo isso antes de ouvir a confissão de Isabel, e que tivesse me procurado antes que ela fosse enforcada.

     - Gostaria de ter podido, meu anjo. Juro, eu já estava enxergando a verdade, já via com clareza tudo que havia se passado entre mim e Isabel, e me sentia encurralado por aquele maldito juramento. Depois que você foi embora, fiquei zangado pela confusão que Isabel tinha feito para depois desaparecer, mas eu ansiava por você. Deitado sozinho naquela cama, eu não pensava em Isabel, pensava em você. Até me dei conta de que eu e você fizemos amor mais vezes durante o pouco tempo que passamos juntos do que havia feito com ela ao longo de todos aqueles anos. Quando ouvi o diálogo de Isabel com sir Kenneth Douglas, percebi que tudo havia acabado. Não tinha sobrado nada. Não senti ciúme de sir Kenneth. Só raiva e desgosto quando ouvi Isabel e o amante falarem dos assassinatos que haviam cometido e daqueles que planejavam. Nem posso descrever como me senti quando soube que ela havia escondido meu filho de mim e tentava usar o menino para me dobrar.

     - É um garoto muito bom - Elspeth murmurou, passando a mão pelo peito largo de Cormac.

     - Vejo uma alusão aos traços de Isabel no rosto de Christopher, mas isso não me incomoda.

     - Eu estava um pouco preocupada com isso - Elspeth confessou. - E não tenha medo de que vá culpá-lo pelos erros da mãe.

     Cormac segurou-lhe o rosto entre as mãos e fitou-a com ternura.

     - Meu único medo ao trazê-lo para você foi que pudesse enxergá-lo como uma prova de algum elo ainda existente entre mim e Isabel. Não existe nenhum. Desde o momento em que olhei em seus olhos no castelo de sir Colin. Perdoe-me por ser tão cego ao que existia no meu próprio coração, por ter medo de admitir que estava errado e que havia feito papel de tolo por tanto tempo. Eu a magoei por causa de uma mulher que não era digna de limpar seus chinelos.

     Abraçou-a com imenso amor.

     - Você me deu tanto, Elspeth. E eu me alimentei de você como um bebê esfomeado, e não dei nada em troca. Você me devolveu a vida - Cormac murmurou, e pousou um beijo reverente na mão de Elspeth.

     - Aquele velho débito foi bem pago - ela murmurou, comovida até as lágrimas pela ternura e suavidade do gesto.

   - Não me refiro ao tempo em que me encontrou sangrando nas terras de seu pai. Você me salvou de Isabel. Mostrou-me o que significa o amor e revelou a feiúra da minha relação com aquela mulher. Ela foi para o patíbulo, mas, na verdade, estava morta para mim antes que eu presenciasse a sua execução.

     - Você a viu morrer? - Elspeth arrepiou-se ao pensar na cena.

     - Quis assistir pelo bem de Christopher. Algum dia ele pode me perguntar sobre a mãe. E quando ficou evidente que todos os parentes a haviam abandonado, providenciei o funeral. Fui testemunha contra ela também. Por isso, não pude procurar você, Elspeth, por tanto tempo. Precisava encerrar o assunto de uma vez por todas.

     - Foi melhor assim.

     - Diga-me, meu coração: destruí tudo que você sentia por mim?

     - Não - respondeu Elspeth. - As palavras que eu proferi naquele dia foram fruto da raiva e do sofrimento. Eu tentei matar o meu amor por você. Você se instalou no fundo do meu coração e da minha alma, Cormac Armstrong. Não consegui arrancá-lo. Sim, eu ainda o amo.

     Cormac abraçou-a com força, com uma sensação de alívio que o fez estremecer.

     - Ah, querida, eu estava com tanto medo de ter feito mais do que você pudesse perdoar, de ter matado seu amor e que você nunca mais pudesse corresponder ao meu.

     - Você me ama? - Elspeth indagou hesitante. Empurrou-o para fitá-lo nos olhos.

     - Claro. Eu lhe disse.

     - Você nunca, nem uma vez, disse que me amava.

     - O que acha que todos aquele bilhetes diziam?

     - Não diziam que me amava. Se não acredita, eu lhes mostrarei todos. - Pelo canto dos olhos, viu que ele sorria. - Por que está com essa cara de riso?

     - Você guardou os meus bilhetes.

     - Pensei que poderia usar os versos para os meus rabiscos. - O tom de ironia tirou o sorriso do rosto de Cormac, mas Elspeth viu que os olhos dele ainda sorriam. - Acredite, nenhum deles diz: Eu amo você, Elspeth.

     Cormac puxou-a e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha.

     - Eu expus meu coração naqueles bilhetes. Achei que você veria tudo isso neles, mesmo que eu não fosse direto. - Beijou-a, para em seguida dizer, alto e claro: - Eu amo você, lady Elspeth Armstrong.

     - Preciso lhe contar uma coisa - ela declarou.

     Cormac sentiu uma pontada de inquietação. Elspeth parecia nervosa. Será que havia buscado consolo nos braços de outro homem? Afinal, ele a desiludira, e ela era uma mulher ardente. Só de pensar nisso, sentiu o ciúme, a raiva e a mágoa explodir em seu peito. Precisava ser compreensivo, embora fosse a coisa mais difícil que já fizera na vida. Era melhor que Elspeth não dissesse o nome do amante, nem se tinha alguma afeição pelo homem. Ele o mataria sem hesitação. E não seria um bom começo para um casamento.

     - Você está com um ar muito feroz, Cormac - Elspeth murmurou assustada com a expressão dura do rosto do marido. - Não é um segredo feio.

     - Não ligue. É que eu tinha tantos segredos, nenhum deles bom, que só a sugestão de alguma coisa me perturba.

     - Eu não guardo segredos, Cormac, e não tenho intenção de fazer isso com você.

     - Elspeth, fale logo de uma vez!

     Ela pestanejou de surpresa com o tom ríspido, e depois admitiu que estava enrolando um pouco. Então, respirou fundo e, num tom tão calmo como pôde, disse:

     - Estou grávida de quase três meses. De seu filho.

     Quando toda a tensão deixou o corpo de Cormac e ele se jogou de costas, rindo baixinho, Elspeth franziu a testa.

     - Não é essa a reação que eu esperava. Pensei que ficaria contente.

     - Oh, meu anjo, eu estou, mas se soubesse o que imaginei... - Deu uma risada e meneou a cabeça.

     - E o que imaginou?

     - Que você tivesse arranjado um amante enquanto estávamos separados.

     Cormac ouviu o arquejo de indignação e agarrou Elspeth antes que ela saísse zangada da cama. Resmungou com os murros que ela lhe deu até que conseguiu segurá-la com firmeza. Aquela reação só o alegrava. Ali estava uma mulher que obviamente prezava a fidelidade, encarando-a como uma questão de honra.

     - Como pôde pensar isso de mim? - Elspeth perguntou ofendida e magoada.

     - Não pelas razões horríveis que está pensando. Eu a magoei, e você se sentiu posta de lado por causa de outra. Elspeth, você é uma mulher cheia de paixão. Tive medo que pudesse buscar algum conforto com alguém. E eu estava dizendo a mim mesmo que não tinha o direito de julgá-la e que seria compreensivo.

     Elspeth esboçou um sorriso.

     - E funcionou?

     Cormac suspirou.

     - Não. Eu mataria o homem se soubesse quem era.

     Ela o beijou de leve.

     - Em algumas noites, quando a saudade era grande demais, fiquei pensando em como suavizá-la...

     - Conheço esse sentimento. Eu o suportei muito, muito sozinho.

     - E o nosso bebê?

     - Estou tão feliz que nem sei o que dizer meu anjo.

     - Já disse tudo.

     - Sua mãe sabe?

     - Sim, e acha que tudo vai correr bem.

     Cormac fechou os olhos e apertou-a contra o peito.

     - Eu amo você, Elspeth.

     - E eu amo você, Cormac Armstrong. - Beijou-o com todo o carinho e depois murmurou: - Você não disse alguma coisa sobre me distrair até que nenhum de nós pudesse andar?

     Cormac soltou uma gargalhada e jogou-a de costas na cama.

 

     -Empurre. Vamos. Força!

     Elspeth ergueu do travesseiro a cabeça ensopada de suor e encarou a mãe.

     - Estou empurrando!

     - Posso ver a cabeça! - Agnes exclamou, e bateu no joelho de Elspeth. - Está quase saindo.

     Elspeth ouvia as vozes como um ruído distante. Então, de repente, uma dor lancinante a transpassou. E ela soltou um grito agudo.

     Só quando a dor passou é que Elspeth começou a se dar conta de tudo ao redor e de si própria. Seu corpo doía, mas ela percebeu que tudo acabara. Então, em meio ao silêncio e ao medo que a invadiu, ouviu um vagido de criança.

     - Meu bebê?

     - Agnes já vai trazê-lo - disse sua mãe. - Sorcha e eu vamos limpar você agora.

     - Mas...

     - Você esperou nove meses, pode esperar alguns minutos até que os dois estejam arrumados.

     Elspeth resignou-se a esperar. E logo começou a se sentir melhor. Sua mãe e Sorcha trocaram as roupas de cama com rapidez e eficiência. Depois a banharam, amarraram-lhe os cabelos e a vestiram com uma camisola limpa e aconchegante. Elspeth tinha a impressão de ser ela mesma um bebê. Quando se acomodou nos travesseiros, trouxeram a criança e a colocaram em seus braços.

     - Dez dedinhos nas mãos, dez dedinhos nos pés, e nenhum... - Os olhos de Elspeth se arregalaram. - É uma menina!

     - Sim, uma menina! - exclamou Agnes, sem esconder a alegria. - Uma linda menina de cabelos pretos.

     Elspeth sorriu para Agnes.

     - Nós sabemos que você rezou por uma menina durante esses meses. Melhor ir buscar Cormac.

     -Deixe-me levar a menina-pediu Agnes. - Sir Cormac a trará de volta. Se eu não a mostrar a todos, virão aqui em bando dar uma espiada.

     Cormac ficou tenso ao ver Agnes entrar no salão. Saltara de pé ao ouvir o grito de Elspeth, que havia ecoado pelos corredores, mas seus irmãos o tinham obrigado a ficar sentado. Desde aquele momento, só houvera silêncio, e cada minuto havia se escoado dolorosamente, sem notícias. Quando Agnes se aproximou, ele disse a si mesmo que a ama não parecia triste, e lhe perguntou:

     - Como está Elspeth?

     - Muito bem - respondeu a ama. - Só cansada. Foi feita para lhe dar muitos filhos.

     - Ouvi o grito.

     - O senhor também gritaria se expulsasse isto aqui do corpo. - Agnes desembrulhou devagar a criança e a estendeu para Cormac. - Vê? Um bocado de cabelo preto, dez dedinhos nas mãos e nos pés, e nenhum penduricalho!

     - Uma menina. Temos uma menina...

     Cormac tocou a penugem macia da cabeça do bebê com um dedo trêmulo e, depois, viu a criança desaparecer no círculo dos três irmãos em torno de Agnes.

     - Agnes, posso ver Elspeth agora?

     - Claro. Leve a pequenina de volta para a mãe - disse a ama ao se afastar dos rapazes e empurrar Cormac para a porta. - Sua esposa teve um parto fácil e parece ser muito fértil. Porém muitos filhos não fazem bem para nenhuma mulher. Sei de algumas formas para a família não ficar muito grande, se achar que devo me intrometer.

     Cormac beijou a testa da ama.

     - Lady Maldie também sabe. Conversou conosco. Eu quero filhos, mas preciso de Elspeth. Ela é a minha vida. Não arriscarei minha vida num parto. - Olhou para o bebezinho que segurava. - Tem certeza de que não vou deixá-la cair?

     - Claro, vá, antes que sua esposa durma. E conte a novidade a Christopher e ao pequeno Alan.

     Elspeth piscou ao sentir a cama balançar. Percebeu que dormira e abriu os olhos devagar. Cormac estava a seu lado. Quando ele sorriu e colocou a filha em seus braços. Elspeth sentiu que Cormac não se importava que não tivesse lhe dado um varão.

     - Agnes está transbordante de alegria - ele murmurou, e beijou-a de leve. - E minhas irmãs também. E você, meu amor, como está se sentindo? - Passou o braço pelos ombros da esposa e puxou-a para mais perto.

     - Muito cansada e um pouco dolorida. Mas valeu a pena.

     - Fiquei desesperado no salão, rezando. Queria estar ao seu lado, para ajudar de alguma forma.

     - Fico contente que tenha ficado longe. O parto é uma confusão, faz uma sujeira danada. E, ah... tive vontade de chamá-lo de um monte de nomes feios. - Elspeth riu com Cormac.

     - Por falar em nomes, como vamos chamá-la? Keira ou Ilsabeth?

     - Ilsabeth.

     Cormac beijou o rostinho do bebê.

     - Bem-vinda Ilsabeth Armstrong.

     - A família deve estar celebrando lá embaixo. Pode ir se reunir a eles. Eu não me importo.

     - Ficarei para celebrar com você.

     - Acho que logo não vai fazer nada além de me ver dormir.

     Cormac segurou-a pelo queixo e beijou-a com ternura.

     - É tudo de que eu preciso. Cada vez que a vejo, cada vez que a escuto, cada vez que a toco, é uma festa para mim. Você é meu coração, minha alma, o próprio ar de que preciso para viver. Eu a amo, Elspeth Armstrong, meu anjo de olhos verdes. Eu a amarei até não ser mais que pó no chão.

     - E eu juro que o amo, Cormac. E amarei por muito mais tempo.

     - Isso é um desafio?

     - Creio que é. Pode encarar?

     - Com todo o meu coração, anjo. Com todo o meu coração.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

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