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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LAÇOS DE AMOR / Hannah Howell
LAÇOS DE AMOR / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Eric Murray era a única esperança de Bethia Drummond de salvar a própria vida e a de seu sobrinho. Para escapar da cruel perseguição de um parente ganancioso que pretendia se apossar das terras herdadas pelo menino, Bethia foi obrigada a aceitar a proteção do belo guerreiro escocês que cruzara seu caminho e que despertava nela uma atração irresistível. Porém, logo Bethia descobriria que Eric também reivindicava terras e bens de família… Uma família que, por coincidência, era forte aliada da sua. Como Bethia poderia amar um homem que ela um dia talvez tivesse de enfrentar como oponente? Mas, por outro lado, como ignorar a verdade que seu coração insistia em lhe mostrar, que aquele orgulhoso cavaleiro inspirara nela muito mais do que uma intensa paixão, que ele era a sua vida… e seu destino!

 

 

 

 

                                    Escócia, 1444

Assistindo aos dois homens suarentos jogarem terra sobre o caixão da irmã, Bethia Drummond abraçou o sobrinho James com mais força. Órfão antes do primeiro aniversário, em virtude da ganância dos parentes, o garotinho iria precisar de muito amor e muita proteção. Engolindo as lágrimas, ela lançou um ramo de flores brancas sobre a sepultura, não conseguindo acreditar que sua irmã gêmea se fora para sempre. Sorcha jazia junto do amado marido Robert, ambos sob sete palmos. Ambos vítimas da ambição desmedida da família de Robert.

Lutando para não deixar transparecer o ódio, fitou o tio do falecido cunhado, William, e seus filhos, Iain e Angus. O trio adotara o sobrenome Drummond vários anos atrás, quando William se casara com Mary, tia de Robert. Estéril, a afetuosa dama acolhera os meninos como seus, sem desconfiar do quanto lhe custaria aquele ato de bondade. A pobre senhora morrera dez meses após o casamento, de uma maneira lenta, agonizante e suspeita. Agora outros dois obstáculos às terras e às riquezas de Dunncraig tinham sido removidos definitivamente. Mas, diante do túmulo da irmã, Bethia jurou que William e seus filhos asquerosos jamais poriam as mãos em James. Faria-os pagar caro pelos crimes cometidos.

Quando os três se aproximaram, ela inspirou fundo, resistindo ao ímpeto de sair correndo. Contudo não seria sensato permitir-lhes perceber a extensão de suas desconfianças.

— Você não precisa se preocupar com o futuro do garoto, disse William numa voz gutural. Nós nos encarregaremos disso.

Num esforço supremo para disfarçar a repulsa, Bethia sorriu.

— Minha irmã me pediu para cuidar de James. Por isso vim até aqui.

— Você é muito jovem. Com certeza não desejará passar o resto da vida cuidando do filho de outra mulher.

— Criar o filho de minha irmã gêmea nunca será um fardo para mim, sir.

— Talvez não seja uma boa hora de discutirmos o assunto. Os lábios finos e ressecados de William se arreganharam num arremedo de sorriso. Você ainda está tão abalada com a morte de sua pobre irmã que não consegue raciocinar com clareza. Conversaremos depois.

— Como quiser.

Dando-lhes as costas, Bethia afastou-se aparentando uma calma que estava longe de sentir. Queria poder gritar suas suspeitas, queria enterrar uma faca no coração negro de William. Entretanto, se cedesse aos impulsos, não obteria nada exceto breve satisfação. Iain e Angus não hesitariam em vingar a morte do pai, matando-a e a James.

Derrotar William e os filhos, fazê-los pagar por seus crimes exigiria cautela e planejamento. Para tal, necessitava manter as emoções sob controle. Precisava também da ajuda de terceiros, algo impossível de conseguir num lugar como Dunncraig, onde todos viviam aterrorizados. William exercia a tirania com um prazer doentio, detalhe que Robert ou preferira não enxergar, ou nem sequer notara, devido aos longos períodos passados na corte. A ingenuidade, ou negligência, de Robert, custara a ele e à esposa suas vidas. Não permitiria que James se unisse ao casal naquela cova rasa.

— Seu pai foi um homem corajoso e honrado — Bethia falou baixinho, fechando a porta do quarto minúsculo e úmido que dividia com o garoto. Pena não ter prestado mais atenção ao que acontecia ao redor.

Depois de colocar o sonolento bebê no berço, sentou-se num banco, sentindo uma tristeza infinita invadir-lhe a alma. James herdara os maravilhosos olhos verdes de Sorcha, os mesmos cabelos ruivos e ondulados. A inveja que às vezes sentira da decantada beleza da irmã parecia-lhe agora tola e melancólica. Sim, reconhecia faltar-lhe atrativos. Tinha cabelos escuros e olhos de cores diferentes, um azul, outro verde, porém continuava viva.

Durante anos o fato de não serem gêmeas idênticas causara-lhe sofrimento porque sempre se sentira inferior. No entanto, a perfeição e o encanto de Sorcha não haviam bastado para salvá-la de um destino cruel.

Bethia agradecia aos céus por ser mais forte que a irmã, cuja inocência tornara-a presa fácil da malícia humana. Surpreendera-se quando ela lhe escrevera solicitando ajuda para cuidar de James, visto a abundância de servas capazes de cercar o herdeiro de Dunncraig de atenções. Surpreendera-se também com a estranha escolha de palavras. Na carta, Sorcha lhe pedira para “vigiar” o menino. Não para pajeá-lo, ou educá-lo. Mas para vigiá-lo. E era exatamente o que faria dali em diante.

Com a respiração suspensa, Bethia atravessou os corredores escuros e desertos. Embora soubesse se mover silenciosamente, temia que essa habilidade falhasse naquele momento crítico, pondo tudo a perder. Passara três dias pavorosos, tentando descobrir um modo de escapar do castelo às escondidas e agora, perto de alcançar seu objetivo, receava ouvir soar o alarme.

As últimas setenta e duas horas haviam sido terríveis, marcadas por suspeitas e dúvidas quanto ao sucesso do plano. A morte súbita do cachorrinho de James, pusera fim às suas indecisões. Nunca entenderia por que, depois de comer e beber o que lhe fora servido e ao sobrinho no dia do funeral sem hesitar, na manhã seguinte acordara cheia de desconfianças. Quando o cachorrinho morrera imediatamente após provar a comida, lamentara havê-lo usado como cobaia, pois sentia-se culpada. O sacrifício do animalzinho convencera-a de que as mortes de Sorcha e Robert tinham sido causadas por envenenamento, não por uma doença desconhecida e devastadora, como fora proclamado aos quatro ventos.

Enfim Bethia chegou ao lugar que procurava: uma fresta na parede atrás do estábulo. Robert não somente ignorara a presença de inimigos letais à sua volta, como o estado deteriorado de Dunncraig. Se houvesse percebido a decadência da fortaleza, não teria conservado William à frente da administração. Aliás, o que William e filhos estavam fazendo com o dinheiro do arrendamento das terras continuava sendo um mistério. Obviamente não o empregavam em melhorias do castelo por cujo controle estavam dispostos a assassinar quem cruzasse seu caminho.

Ao se espremer, com James no colo, pela fenda da muralha, algumas pedras caíram no chão, o que provocou um barulho estridente que ecoou naquela noite. Rígida, aguardou que os sentinelas se manifestassem. Como nada acontecesse, avançou cautelosa em direção da floresta, sentindo-se um pouco mais confiante em suas chances de escapar.

Rodeada pelas árvores centenárias, permitiu-se um suspiro de alívio. Claro que logo a estariam perseguindo, porém dera o primeiro passo em direção à liberdade e segurança, e isso a enchia de esperança. Um cavalo teria sido de grande auxílio, mas não se atrevera a reaver a égua que trouxera de casa. Teria sido impossível fazê-la passar pela abertura estreita na muralha. Sem um cavalo, distanciar-se de seus inimigos exigiria extenuantes caminhadas.

— Descanse agora, meu lindo rapazinho — ela murmurou, quando o bebê se mexeu na tipóia que improvisara para mantê-lo junto ao peito. Os canalhas que mataram seus pais não tardarão a experimentar do próprio veneno. E que Deus amaldiçoe todos os que tentam se enriquecer a custa de outros.

 

— Tem mesmo certeza de que deve partir e enfrentar aquelas pessoas? Balfour Murray perguntou ao seu jovem irmão de criação, Eric, quando se sentavam à mesa do grande salão de Donncoill.

Eric sorriu e piscou para a esposa de Balfour, Maldie, que acabara de lhe servir um enorme prato de comida.

— Nos últimos treze anos tentamos todos os meios para fazer valer meus direitos legais e tudo foi contestado ou ignorado. Simplesmente estou farto.

— Não sei como confrontar os tolos irá mudar alguma coisa.

— Talvez não, é uma abordagem nova para um problema antigo.

— Ainda nos resta apelar para o Rei.

— Já apelamos, embora sem muito empenho, reconheço. Creio que nosso Monarca evita tomar partido nessa disputa, preferindo manter-se neutro. Os Beaton sempre foram desprezíveis, mas nunca irritaram ou desafiaram o Rei. Os MacMillan, clã de minha mãe, também são leais à Coroa, além de excelentes guerreiros. Quanto a mim, carrego no corpo a marca hereditária dos Beaton e segundo muitos, pareço-me com a família de minha mãe. Acho que está na hora dos Beaton e MacMillan me conhecerem.

— Você acredita que os Beaton aceitarão a verdade se você mostrar-lhes o sinal de nascença que traz nas costas? — indagou Maldie.

— Não, é provável que não. Mas não custa tentar. Em relação aos MacMillan, jamais escutei algo que os difamasse, mas existe a possibilidade de haverem dado ouvidos às mentiras contadas pelos Beaton. Talvez eu possa, finalmente, ajudá-los a enxergar a verdade.

— Leve alguém com você — Balfour insistiu. É uma pena que Nigel esteja na França.

— Gisele já lhe deu três lindos filhos. Os parentes franceses estavam ansiosos para conhecer as crianças.

— Sem dúvida. Se você puder esperar até eu terminar meu trabalho aqui, poderei acompanhá-lo. Ou quem sabe Nigel terá regressado.

— Essa briga é minha. Apenas minha.

Eric precisou do resto da noite, e parte do dia seguinte, para convencer o irmão de que queria lidar com a situação sozinho. Nenhum dos dois julgava os Beaton e os MacMillan uma ameaça concreta, estando o Monarca a par da contenda. Qualquer dano causado a Eric, nas terras de um dos clãs, provocaria uma resposta real, rápida e devastadora. Contudo outros perigos rondavam um viajante solitário, e Balfour não hesitou em enumerá-los, com horripilante riqueza de detalhes.

E ainda os listava três dias depois, quando Eric selava Connor, o magnífico garanhão negro.

— Um homem para vigiar a retaguarda não faria mal — argumentou o apreensivo lorde Murray.

— Não, não faria mal — Eric admitiu, amarrando os longos cabelos com uma tira de couro. Você necessita de mais auxílio em Donncoill do que eu nesta jornada. Sei cuidar de mim. Sou capaz de me defender. Pare de se preocupar como se fosse minha mãe.

— Caso surjam problemas sérios e inesperados, instale-se numa hospedaria e mande um mensageiro pedindo ajuda. Ou volte para cá. Tornaremos a empreender a viagem juntos, quando a colheita estiver terminada.

— De acordo. Sossegue, enviarei notícias.

— É melhor enviar notícias sim, porque, se não formos informados do que está lhe acontecendo dentro de um período razoável de tempo, sairei à sua procura. Vá com Deus — Balfour murmurou, observando o irmão caçula dirigir-se aos portões.

Após um último aceno, Eric deixou a fortaleza, dominado por um misto de emoções conflitantes. Ele buscava o que pertencia-lhe por direito e irritava-o ser obrigado a implorar, a suplicar. Balfour o presenteara com um pequeno castelo e alguns hectares de terra a oeste de Donncoill. Várias vezes sentira-se inclinado a iniciar uma nova vida ali, abandonando a idéia de lutar por sua herança. Então o senso de justiça acabava prevalecendo, impelindo-o a seguir em frente.

Também havia um fato inquestionável, apesar de ignorado com freqüência. Não era um Murray de sangue. Os laços que o uniam àquela família tinham se estreitado quando Balfour se casara com Maldie, sua meia-irmã.

Legalmente, os Murray não lhe deviam nada, não tinham qualquer obrigação de prover sua subsistência. Isso fazia da recusa dos Beaton e dos MacMillan em aceitá-lo como membro dos respectivos clãs um insulto ainda maior. Por lei, tinha direito ao que pertencera à mãe e ao pai. Em seu coração, para sempre permaneceria um Murray, mas não estava certo abrir mão do que lhe fora tirado pelas mentiras dos Beaton. Se seus parentes de sangue queriam brigar por sua herança, que assim fosse. Durante treze anos, desde que descobrira a verdade sobre sua origem, esforçara-se para resolver as divergências por meios diplomáticos. Agora chegara o momento do confronto.

Em poucas horas encontrava-se diante das muralhas da fortaleza Beaton. Apesar de não se surpreender quando o impediram de entrar, o desaponto foi inevitável. Imediatamente após a morte de seu pai, o primo deste, sir Graham Beaton, se apossara do castelo e lá fincara raízes. Tão cruel e inteligente quanto o falecido primo, sir Graham mantivera os vassalos na mesma situação anterior, de penúria absoluta. E se o canalha não parecia disposto a devolver as terras roubadas de forma pacífica, teria que arrancá-lo dali à força. Enquanto se afastava, procurando ignorar as ofensas que as sentinelas lhe gritavam de seus postos, Eric decidiu rumar para a propriedade dos MacMillan. Caso o acolhessem, teria mais homens, mais poder e mais dinheiro para lutar contra o usurpador de seu legado. Sem dúvida, sir Graham sabia que ele era o legítimo herdeiro de Dubhlinn, e recusando-se sistematicamente a recebê-lo, deixava claro não pretender abdicar dos privilégios adquiridos por meios escusos. Uma aliança com os MacMillan poderia ajudá-lo a derrotar seu rival. Mais determinado do que nunca a conquistar o apoio da família da mãe, Eric embrenhou-se na floresta, convicto de não estar somente começando uma cruzada para reaver seus direitos. Chegara à hora de pôr fim ao longo reinado de terror implantado por consecutivos lordes Beaton.

 

— Mamãe?

Engolindo as lágrimas, Bethia levou a pequenina caneca de prata aos lábios do sobrinho e ajudou-o a beber água.

— Receio que, a partir de agora, eu serei sua mãe, querido — ela murmurou, acariciando os cabelos sedosos e perfumados da criança. Sei que não sou tão boa quanto aquela que os canalhas lhe roubaram, mas me esforçarei ao máximo para substituí-la dignamente.

Uma vozinha interior insistiu em sussurrar que, pelo menos, estava conseguindo manter James vivo, algo que Sorcha não fora capaz. Logo repreendeu-se por alimentar pensamento tão desleal. Nos últimos dois dias, avançando pela floresta rumo ao castelo dos pais, descobrira-se para seu pesar, nutrindo com freqüência, pensamentos negativos sobre a irmã e o cunhado. No fundo, condenava-os por haverem sido sempre fracos, cegos, egoístas. James, pobrezinho, tivera tolos inconseqüentes como pais. E a cada vez que essas coisas vinham-lhe à mente, a culpa a corroía.

— Preciso de tempo para analisar meus sentimentos — Bethia falou, oferecendo um pedaço de pão ao garotinho. Estou tão furiosa com a situação que acabo ficando irritada com seus pobres pais também. Eles não fizeram nada de errado. Sim, poderiam ter sido um pouco mais atentos ao que acontecia em Dunncraig, poderiam ter sido mais cautelosos, menos superficiais. Mas não são culpados de nada.

— Mamãe?

— Não, querido, mamãe partiu. Somos apenas nós dois agora. Talvez por isso eu esteja zangada. Sorcha deveria estar aqui. Ela era jovem, linda, cheia de vida. Não merecia acabar numa sepultura fria. Oh, se seus pais houvessem tomado às precauções necessárias, teriam se salvado. Enfurece-me pensar que desperdiçaram o futuro. Não, não está certo repreendê-los. Existe um único homem responsável pela tragédia: William. Farei com que o maldito e seus filhos odiosos ardam no fogo do inferno.

— Baba.

— Baba? O que é “baba”? Sorrindo, Bethia suspirou fundo. Não sabemos muito a respeito um do outro, não é? E infelizmente acho que só teremos tempo de nos conhecermos melhor quando chegarmos em casa. Em Dunnbea, livres de nossos perseguidores, poderemos contar com vovó e vovô para encher seus dias de alegria. Embora nenhum de nós vá ocupar o vazio deixado por seus pais, saiba que não lhe faltarão amor e cuidados. É uma bênção você ser ainda tão pequeno, pois a dor da perda será menos dura.

Bethia agradeceu aos céus por James ser uma criança de temperamento doce e sossegado, pouco dado a choros e resmungos. Mas procuraria ensinar ao filho de Sorcha o valor da prudência.

Ao reunir os pertences e se preparar para retomar a longa caminhada, ela ouviu um ruído abafado. Praguejando por entre os dentes, desembainhou a adaga e postou-se diante do menino, pronta para atacar ao menor sinal de perigo. Dois sujeitos saíram do meio das sombras.

— Vocês não levarão a criança — declarou com firmeza, rezando para que os estranhos não estivessem a serviço de William.

— Não queremos a criança — o mais alto da dupla retrucou e olhos fixos na caneca de prata que James segurava.

— Vocês não passam de ladrões vulgares.

— Bem, não somos quem você parecia estar esperando, mas tampouco nos consideramos ladrões vulgares. De fato, somos muito bons no nosso ofício e a sorte nos sorriu.

Mesmo sabendo que deveria entregar quaisquer coisas que os assaltantes quisessem, porque enfrentá-los apenas poria James em perigo, Bethia hesitava. A caneca fora um presente dos avós maternos para o neto no dia do batizado e a única herança deixada por Sorcha. Apesar da razão mandá-la agarrar o bebê e sair correndo para bem longe, o coração, ferido e sangrando opunha-se à idéia de que bandidos tocassem num objeto que pertencera à irmã morta.

— Vocês não tomarão o que é meu sem lutar — afirmou, na esperança de estar lidando com covardes.

— Vamos, moça, será que uns poucos objetos valem a sua vida, ou a do garoto?

— Não. Você deveria se perguntar se esses poucos objetos valem a sua vida e a de seu comparsa.

O som de vozes atraiu a atenção de Eric. Segurando as rédeas com firmeza, manteve o garanhão imóvel enquanto procurava detectar a direção de onde vinham os ruídos. Decidira-se por rotas menos movimentadas para chegar ao castelo dos MacMillan com a intenção de evitar encrencas. Aparentemente de nada adiantara a precaução.

Cauteloso, avançou, descartando a idéia de desmontar. Se o problema à sua frente fosse maior do que se julgava capaz de resolver sozinho, preferia ter condições de escapar o mais rápido possível.

A cena inusitada o espantou tanto, que não conseguia acreditar nos próprios olhos. Uma mulher miúda, esbelta, de cabelos escuros, armada apenas de uma adaga, encarava dois grandalhões munidos de espadas. Um menininho, com ar inocente, acompanhava a áspera troca de palavras entre os adultos.

Corajosa, Eric pensou. Tola, mas corajosa. A atitude destemida da bela morena surpreendeu os ladrões, fazendo-os hesitar. E o cavaleiro aproveitou aquele momento de indecisão para agir. Impetuoso, entrou na clareira, sorrindo ante o assombro provocado por sua inesperada aparição.

— Creio que milady deseja conservar suas posses, senhores — falou, desembainhando a espada. — E se vocês desejam conservar suas cabeças toscas sobre seus ombros covardes, sugiro que comecem a correr. Já. Muito rápido e para muito longe.

Sem esperar nova ordem, os rufiões debandaram, desaparecendo em questão de segundos. Ainda petrificada de susto, a desconhecida continuava a fitá-lo como se estivesse contemplando um fantasma.

As esposas de seus irmãos eram pequeninas, de constituição física frágil, porém suspeitava de que essa mulher fosse ainda menor que Maldie e Gisele. Cabelos castanho-escuros, compridos e ondulados. Rosto delicado, lábios tentadoramente carnudos. Sob as sobrancelhas arqueadas e cílios espessos, olhos magníficos. O esquerdo, verde. O direito, azul. Cintura fina, seios empinados. Um corpo sedutor.

Após o breve exame, Eric fitou a criança sentada na grama, indagando-se se o garotinho seria filho da intrépida dama. Mas onde estaria o pai?

Bethia ficara atônita quando o cavaleiro alto surgira do meio do nada e pusera os ladrões para correr. Nunca uma figura masculina a impressionara tanto.

Não havia outra palavra para descrevê-lo, exceto belo. Os cabelos longos, presos com uma tira de couro, caíam sobre as costas. Rosto perfeito, queixo forte, nariz reto, boca sensual. Olhos de um azul profundo, faiscantes sob as sobrancelhas escuras.

O corpo, metido em trajes sóbrios, exalava virilidade por todos os poros. Ombros largos, quadris estreitos, braços e pernas musculosos. Não era à toa que perdera o fôlego ao vê-lo. Homens daquele tipo apareciam apenas em sonhos.

Aos poucos, suspeitas insidiosas começaram a tomar forma. Insegura, ergueu a adaga. O fato de ser dono de uma beleza avassaladora, não transformava o estranho num protetor. Talvez estivesse até trabalhando para William.

— Quem é você, sir? — perguntou, áspera. As cores de seu clã, estampadas na túnica, me são desconhecidas.

— Que maneira gentil de agradecer meu auxílio.

Não se importando de haver parecido ingrata, mediante a seriedade da situação em que se achava, Bethia permaneceu serena.

— Ainda não tenho certeza de que estou salva.

— Sou sir Eric Murray, de Donncoill — ele se apresentou, inclinando a cabeça de leve.

— Não reconheço o sobrenome, ou seu lugar de origem. Portanto, você deve estar bem longe de suas terras.

— Estou à procura da família de minha mãe. E o que você está fazendo nas entranhas da floresta tendo somente uma criança e uma adaga por companhia?

— Uma pergunta razoável, suponho.

— Muito razoável.

— Estou levando meu sobrinho para casa.

A palavra sobrinho deixou Eric mais feliz do que seria natural.

— Sem uma escolta para guardá-los? Observando-o embainhar a espada e desmontar, Bethia ficou rígida. Embora não percebesse nada de ameaçador no comportamento do cavaleiro, não ousava considerá-lo um aliado. Não exporia James a riscos desnecessários.

— Não existia ninguém a quem eu confiaria à vida de meu sobrinho. Postando-se na frente do menino, ergueu o queixo, desafiadora. E isto o inclui, sir. Pelo menos no momento presente.

— Você não reconheceu meu nome, ou meu clã, milady. Não acredito que não saiba exatamente quem são seus inimigos. É óbvio que não pertenço a esse grupo.

— Ainda não.

— Já lhe disse quem sou e você não retribuiu a gentileza.

Bethia queria que aquele homem parasse de sorrir, porque o sorriso fascinante estava minando sua resolução e levando-a a crer que estava mesmo diante de seu salvador. Também receava sucumbir ao encantamento da voz grave. O estranho podia não ser um dos mercenários de William, mas sem dúvida era perigoso de muitas outras maneiras.

— Sou Bethia Drummond e este é meu sobrinho, James Drummond, herdeiro de Dunncraig.

— Dunncraig?

— Você conhece?

— Apenas sei que é um dos muitos lugares pelos quais terei que passar antes de chegar ao meu destino.

— Dependendo da trilha que você tomou, é possível que já o tenha deixado para trás.

— Estou a caminho de Bealachan, fortaleza dos MacMillan.

Conhecendo bem a família, Bethia preocupou-se. Sir Murray os estaria procurando como amigo?

— Por quê?

— São parentes de minha mãe.

— Mas você fala como se essa fosse sua primeira visita a Bealachan.

— E é. A explicação para o fato é longa e sombria. Uma história que não me animo a relatar com uma faca encostada no pescoço.

Quando os dedos esguios se fecharam ao redor de seu pulso e tiraram-lhe a adaga sem que opusesse resistência, Bethia tornou a se indagar se não estaria brincando com fogo. Tensa, viu-o sorrir para o pequeno e alegre James.

— A infância é uma bênção. Tanta inocência, tanta facilidade em confiar nos outros.

— Porque as crianças desconhecem o mal que há no mundo. Depressa, Bethia tomou o sobrinho nos braços, num gesto claramente defensivo.

Eric já não tinha dúvida de que o menino e a jovem dama fugiam de cruéis perseguidores e estava decidido a ajudá-los. Só não sabia se agia assim movido pelo dever, ou se enfeitiçado pela beleza morena.

— Por isso elas precisam de quem as proteja, milady.

— É o que estou fazendo.

— E você não acha necessário ter alguém com quem dividir a responsabilidade?

— Talvez. Porém isso não significa que eu queira sua ajuda. A proximidade daquele homem a estava enlouquecendo. A voz baixa soava como uma carícia aos seus ouvidos e os olhos azuis pareciam enxergá-la pelo avesso. Sentia-se zonza, inebriada, como se houvesse tomado litros de um vinho forte.

— Oh, pois eu penso que meu auxílio é necessário sim. Eric acariciou os cabelos ruivos do garotinho, disfarçando um sorriso quando sua mão roçou o queixo de Bethia e ela deu um passo atrás, estremecendo violentamente. Para onde vocês estão indo?

— Dunnbea.

— Mais um dos lugares pelos quais terei que passar antes de chegar ao meu destino.

— Sim.

— Os MacMillan têm alguma rixa com os Drummond?

— Não. Há anos são aliados.

— Pelo visto, milady, rumamos para a mesma direção.

— Vou tomar uma rota tortuosa. Atrasaria sua jornada.

— Não, porque também pretendo percorrer caminhos alternativos. Estou viajando sozinho e prefiro evitar problemas.

— Então é melhor milorde me deixar para trás, porque os problemas me perseguem.

Bethia não entendia sua relutância em aceitar a oferta de auxílio. De fato nunca ouvira falar dos Murray, ou de Donncoill. Isso era sinal de que se tratava de um clã respeitável, pois notícias envolvendo clãs corruptos costumavam se espalhar rapidamente. Sem dúvida, o estranho possuía várias características físicas típicas dos MacMillan, amigos de longa data de sua família. Além de acabar de salvá-la do que poderia ter sido um confronto fatal, ele não tomara nenhuma atitude ameaçadora à sua integridade ou à de James. O bom senso exigia que aceitasse o oferecimento de proteção.

— Vamos, milady, esqueça o orgulho e reconheça estar necessitada de ajuda.

— Não é apenas o orgulho que me faz vacilar, sir.

— Já não lhe provei que minhas intenções são honestas? Que não pretendo lhe causar nenhum dano?

— Sim, porém não devo levar em consideração somente minha pessoa, quando tomar certas decisões.

— Eu jamais iria ferir uma criança.

As palavras ditas num tom baixo e enérgico quase a fizeram sorrir. Insultara-o com suas reticências e suspeitas. Embora continuasse inquieta, Bethia começou a desconfiar de que hesitava não porque duvidasse da retidão do caráter de sir Murray, e sim porque o julgava perigosamente atraente. Nunca homem algum a afetara tanto e temia sucumbir a impulsos que não queria sequer imaginar.

— Nesse caso, milorde, peço-lhe por sua honra de cavaleiro, o favor de me escoltar, e ao meu sobrinho, até Dunnbea — falou afinal, enrubescendo até a raiz dos cabelos.

— Missão aceita, senhora.

— Talvez não vai ser tão fácil cumpri-la.

— Não sou um espadachim incompetente, creia-me.

— Não estou questionando sua habilidade no manejo da espada. Mas é provável que mais de um inimigo tente impedir a mim e James de alcançar nosso destino. Estamos no centro de uma disputa mortal, sir. De um lado, meu sobrinho, eu e agora você. Do outro, um canalha chamado William e seus dois filhos gananciosos, Iain e Angus, além de todos os mercenários que contratarem para nos caçar.

— Por quê?

— Porque William quer roubar o que, por direito, pertence a este menino. O infame já mandou a própria esposa para o túmulo e assassinou minha irmã e meu cunhado dias atrás. Na noite anterior à minha fuga de Dunncraig, tentou envenenar James e a mim também, para se apossar definitivamente do castelo.

Apesar da expressão serena, por dentro Eric fervia de raiva. Embora não guardasse nenhuma semelhança com os crápulas descritos por Bethia, o objetivo de sua jornada era tomar posse da herança que lhe fora negada e para tal teria que acabar empregando meios violentos. A jovem apenas começava a superar a desconfiança inicial e temia assustá-la explicando os verdadeiros motivos de sua visita aos MacMillan. Deixaria para entrar em detalhes mais tarde.

— Asseguro-lhe que uma situação como a sua não me é desconhecida. Meu irmão e a esposa percorreram metade da França tentando escapar dos homens que a queriam enforcar por um crime que ela não havia cometido. Talvez eu possa pôr em prática algumas das coisas que aprendi com aquela história.

— Por que seu irmão não está lhe fazendo companhia nesta visita aos parentes?

— Porque ele e eu temos mães diferentes. Notando o misto de confusão e curiosidade estampadas nos belos olhos incomuns, Eric sorriu. Mais uma longa história que lhe contarei depois. Teremos muito tempo para conversar durante nossa longa jornada.

— Imagino que sim. Suponho que devamos iniciar a marcha.

Quando Eric estendeu os braços para James, Bethia sentiu o coração disparar, dominada por instantânea ansiedade. Aquela era a primeira vez, desde a morte de Sorcha, que entregava o garoto a alguém. Mas se pretendia confiar a vida de ambos ao cavalheiro, precisava aprender a confiar-lhe a criança, ainda que por breves segundos.

Em silêncio, Eric observou-a recolher os pertences, não lhe passando despercebido o cuidado especial com que à caneca de prata foi guardada no alforje.

— Acho que um dos ladrões lhe fez uma pergunta razoável, milady. Valia a pena arriscar sua vida, e a de seu sobrinho, por causa desses objetos?

— Não — ela murmurou, melancólica. A razão dizia ser tolice lutar para conservar coisas materiais, mas a emoção falou mais alto. A caneca pertenceu à minha irmã gêmea, morta há uma semana. Sei que agi feito uma idiota, mas não suportei a idéia de um bandido pôr suas mãos imundas na única lembrança deixada por Sorcha para seu filho.

— Foi uma atitude compreensível. A dor da sua perda é recente.

— Não sei se algum dia serei capaz de superá-la.

— Não existe vínculo maior do que o existente entre dois seres que dividiram o mesmo útero. Contudo, a vida tem sua própria maneira de suavizar o sofrimento. A ferida vai cicatrizar, embora a saudade permaneça. Eric devolveu-lhe James e segurando-a pela cintura, colocou-os sobre a sela sem o menor esforço.

— Vamos todos cavalgar juntos? — Bethia indagou apreensiva, quando o cavaleiro se acomodou às suas costas.

— Sim.

— O peso de um homem grande mais o de duas outras pessoas não será excessivo para o animal? — Escutando-o rir, impacientou-se.

— Qual o motivo do riso?

— Diverte-me ouvi-la me chamar de homem “grande”.

— Porque você o é.

— Talvez para alguém do seu tamanho diminuto. Acredite-me, milady, não sou assim tão grande.

— E eu não sou assim tão pequena.

— Você foi a segunda a nascer, não? Segurando as rédeas, Eric induziu o cavalo a um passo cadenciado.

— Sim. Nasci muito miúda e doente. Porém cresci e fiquei mais forte.

— Oh, sim, você é uma mulher muito grande.

— Você está zombando de mim.

— Não, só brincando. Se um dia você me vir perto de meus irmãos, compreenderá exatamente como me sinto. Não é fácil ser raquítico.

— Não sou raquítica! — ela resmungou, reagindo à óbvia provocação.

Na verdade, sabia-se pequenina, entretanto lorde Murray nunca poderia ser considerado um homem baixo. Pelo contrário. Aliás, perto dele sentia-se ainda menor e estranhamente insegura.

De súbito, Bethia percebeu que os lábios masculinos roçavam seus cabelos. Nervosa, tentou afastar-se, mas os braços musculosos à sua volta a impediram de mover-se.

— Sir, o que você está fazendo? — interpelou-o, trêmula.

— Aspirando o perfume de seus cabelos. Tamanha sinceridade a desconcertou.

— Pois pode parar com isso neste instante.

— Não sei se quero parar, milady.

Mesmo reconhecendo estar agindo de forma ultrajante, Eric não conseguia resistir ao impulso de atiçá-la. Queria-a como jamais quisera mulher alguma, desejava-a com um ardor que beirava o irracional. E estava ansioso para descobrir se a afetava também. Bethia o fascinava, o inquietava, despertava seu apetite.

— É melhor se esforçar para mudar de atitude, milorde.

— Se for absolutamente necessário…

— E necessário, creia-me.

— Eu estava apenas a lisonjeando, milady.

— No momento tenho coisas mais importantes em que pensar do que nos galanteios de um homem. Acho que serei obrigada a lhe pedir que me faça outra promessa.

— Qual seria?

— Que trate com o devido respeito uma dama da minha estirpe.

— Oh, sim, sem dúvida.

Imediatamente Bethia arrependeu-se de não haver elaborado o pedido de forma mais clara e objetiva. Ficara tudo muito vago. Sir Murray nunca lhe faltaria com o respeito, nunca ignoraria a ética e os deveres de um cavaleiro, disso estava certa. Porém nada o impediria de envolvê-la numa teia de sedução. Como conseguiria permanecer imune àquele charme devastador?

Bastava vê-lo sorrir, bastava sentir o toque leve das mãos fortes, para se derreter por dentro. Sir Eric Murray a tinha salvado, e a James, de um destino incerto. Com certeza honraria o juramento de levá-los em segurança até Dunnbea.

Mas tinha medo até de pensar no que poderia acontecer entre os dois durante a jornada. Começava a se convencer de ter escapado de um perigo mortal para se expor a outro ainda maior.

 

— Sente-se, milady — Eric pediu baixinho, impelindo-a para perto da fogueira. Atenda ao menino enquanto cuido do resto.

— Eu deveria ajudá-lo.

— Pois está me ajudando. Posso erguer acampamento, alimentar o cavalo e preparar uma refeição frugal, porém farta. Mas não sei cuidar de um bebê.

Com movimentos lentos e pesados, Bethia tirou panos limpos do alforje e, delicadamente, trocou a fralda de James com movimentos lentos e pesados. Não conseguia entender a razão de tanto cansaço. Quando lorde Murray a encontrara, só estivera andando há dois dias. Então desfrutara do conforto de uma boa cavalgada. Por que se sentia assim, exausta? Esperava não cair no sono antes de ter chance de comer e esclarecer algumas coisas urgentes.

O que mais a preocupava era a rapidez com que relaxara após aceitar o gentil oferecimento de auxílio de um estranho. Bastara acomodar-se na sela para uma fadiga esquisita invadir os músculos rígidos, desde sua chegada a Dunncraig, se distendendo no instante em que os braços do cavaleiro a enlaçaram. Como não conhecia realmente sir Eric, sabia estar pisando em terreno perigoso. A beleza máscula, a voz profunda, o corpo viril a perturbavam de uma maneira insidiosa, mas não podia se permitir ceder às sensações, abandonando por completo o bom senso e a cautela. Se apenas sua vida estivesse em jogo, possivelmente se deixaria arrastar pelo turbilhão de emoções. No entanto, havia James a considerar.

Apesar de atento ao mingau que preparava, Eric sentia o olhar de Bethia o perscrutando. A jovem dama estivera muito quieta nas últimas horas, o cansaço anestesiando as suspeitas iniciais. Porém agora parecia mais alerta, sinal de que perguntas estavam a caminho. Perguntas que precisaria responder com prudência. Embora tivesse pleno direito de reclamar sua herança, receava não ser capaz de fazê-la compreender seus motivos completamente. Esperava conseguir evitar as questões mais polêmicas, pelo menos até convencê-la de que possuía um caráter correto.

Antes de contar-lhe toda a verdade, necessitava conquistar-lhe a confiança. Salvá-la daqueles ladrões não fora suficiente. Tinha que mostrar-lhe que não era um inimigo e nunca o seria.

Numa tentativa de adiar o interrogatório, tomou a iniciativa de começar a conversa, entregando-lhe uma tigela cheia de mingau de aveia.

— Você tem certeza de que este William é um assassino?

— Certeza absoluta, sir. Bethia colocou James sentado e pôs-se a alimentá-lo às colheradas. Por acaso você me julga uma desmiolada medrosa, que enxerga ameaças em cada canto?

— Não, mas assassinato é um crime sério para imputar a um homem. Um crime cuja pena é a forca.

— Sir William e seus filhos abomináveis merecem ser enforcados na árvore mais alta.

— Se são culpados do que você os acusa.

— Não é prática incomum matar para se apossar da fortuna alheia.

— De fato. A ganância é um motivo corriqueiro para crimes, como a vingança e a paixão. Mas você não falou de gargantas cortadas na calada da noite, ou de facadas nas costas. Atos assim são facilmente percebidos e condenados. Você falou de envenenamento. Um método muito mais difícil de provar. São poucos os venenos que deixam resíduos. Outros produzem sintomas que podem ser confundidos com uma doença.

— Por isso estou correndo de volta para a casa de meus pais, em busca de proteção e auxílio. O povo de Dunncraig está tão apavorado que ninguém se atreve a me ajudar, ou a James. Ninguém faria nada, mesmo se William nos trucidasse em público.

— Você disse que sua irmã e o marido morreram recentemente em circunstâncias suspeitas, e que o castelo continua sob o domínio de William?

— Sim. — Bethia tomou um pouco do mingau. Receio que Sorcha e Robert falharam por excesso de ingenuidade. Talvez, devido ao pouco tempo de casados e à chegada de James, não tenham prestado muita atenção ao que acontecia à sua volta. Imersos na própria felicidade, não notaram que suas terras estavam sendo sangradas, a fortaleza depredada e a lealdade de seus vassalos roubada. Subjugados pelo medo, o povo de Dunncraig não considerou Robert e Sorcha fortes o suficiente para livrá-los do domínio de William. Infelizmente, é possível que Robert não tenha sequer se esforçado para deter os avanços de William, ou impedir seus desmandos.

— Palavras duras.

— Muito duras — ela concordou melancólica. Às vezes os odeio por sua fraqueza moral, por sua negligência para com aqueles que deveriam guardar e defender. Se ao menos houvessem morrido com honra, eu me sentiria mais consolada.

Suavemente Eric passou um braço ao redor dos ombros delicados, alegrando-se por não ser repelido. Aos poucos Bethia começava a aceitá-lo como um aliado, como alguém capaz de ajudá-la.

— Com certeza seria mais fácil lidar com a dor. Afinal, para cada morte heróica, outras tantas não o são. Você precisa perdoá-los pela cegueira e omissão. Tomaram uma atitude e pediram-lhe que fosse em socorro do menino.

— Sim, creio que sim. No início, não entendi por que me chamaram. Quando os vi debaixo da terra é que a mensagem de Sorcha passou realmente a fazer sentido. Na carta, minha irmã encarregava-me de proteger James. Uma escolha de palavras que, a princípio, me pareceu estranha. Até eu perceber o estado das coisas em Dunncraig. Quisera que ela houvesse vivido o bastante para me contar o que a levou a suspeitar de William. Talvez então eu pudesse provar a culpa do canalha.

— Ninguém tem coragem de desafiar William e os filhos?

— Não. Já lhe disse que os aldeões estão apavorados.

— É compreensível, considerando o assassinato do senhor de Dunncraig e esposa. William não hesitaria um segundo antes de matar qualquer vassalo que ensaiasse enfrentá-lo.

— E o mais triste é que o legítimo lorde de Dunncraig é ainda uma criança, incapaz de reclamar o que lhe pertence por direito. William e os filhos pensam que eu não conseguirei reunir forças para expulsá-los do castelo.

— E conseguirá?

— Sim. Meu clã agirá rapidamente para proteger os interesses de James. Sorcha era amada e admirada. Todos ficarão furiosos, indignados com sua morte. Nossos aliados certamente se unirão à nossa causa.

— Aliados como os MacMillan?

— Sim. Esforçando-se para conter outro enorme bocejo, Bethia ofereceu um pouco de leite de cabra ao sobrinho. Quando Sorcha foi apresentada à corte, ficou claro que poderia se casar com quem quisesse, pois herdeiros dos clãs mais poderosos da Escócia se atiraram aos seus pés. Ela escolheu Robert, um primo distante de minha família. Sua grande beleza e charme continuaram atraindo amigos e aliados. Muitos, cujos corações foram conquistados por Sorcha, estarão ansiosos para vingá-la.

Enrolado numa manta, James adormeceu. Carinhosamente, Bethia o colocou sobre o cobertor estendido nas proximidades da fogueira.

— Você também deve ter conquistado muitos corações — Eric murmurou incapaz de resistir à tentação de deslizar os dedos pelos cabelos perfumados e ondulados da bela morena.

— Oh, não. Não fui apresentada à corte.

— Por quê? Estava doente na época?

— Não. Meus pais decidiram que o dinheiro disponível deveria ser inteiramente gasto para fazer Sorcha brilhar, embora todos dissessem que minha irmã brilharia mesmo vestindo trapos. Um único sorriso seu conquistava admiradores. Bethia desviou o olhar, tímida. Receio ter uma língua afiada e um temperamento forte. Diferentemente de Sorcha, não confio nas pessoas com facilidade.

O retrato que Bethia pintava da irmã “perfeita” não agradou Eric. Era óbvio que Sorcha fora a preferida dos pais, que a cobriram de mimos enquanto relegavam a outra filha às sombras.

— É espantoso uma pessoa adulta permanecer tão ingênua, tão pura de coração, tão cega diante dos problemas que a cercam. Mas tamanha santidade não a manteve viva.

Seria impressão sua, ou notara um traço de ironia embutido no comentário?

— Robert era muito semelhante à Sorcha. Bonito, confiante, encantador. É uma pena que doçura e bondade não resistam muito neste mundo duro.

— Sim. A prudência é uma virtude necessária para superarmos as dificuldades e vencermos os desafios. Se alguém quer passar pela vida sendo apenas bonito, confiante e encantador, é melhor adotar guarda-costas.

— Minha família e eu deveríamos ter pensado nisso. Enviamos duas crianças inocentes para um covil de lobos sem ninguém que as protegesse. Com James será diferente. Apesar de possuir a mesma natureza amável dos pais, vou lhe ensinar a importância de agir com cautela, de estar atento à realidade.

— Você?! Pensei que os avós iriam se encarregar de educar o garoto.

— Oh, meus pais vão amá-lo porque é parte de Sorcha, mas… — Bethia fez uma pausa, sentindo-se um pouco culpada pelo que estava a ponto de dizer. Eles tentarão criar o neto como criaram a filha, ensinando-o a cultuar a aparência acima de tudo. Não, não permitirei que James cresça incapaz de perceber que, às vezes, um sorriso esconde uma mentira ou, ainda pior, uma adaga apontada para seu coração. É possível que Bowen me ajude.

Os dedos de Eric fizeram uma pressão maior em seus cabelos e ela o fitou inquieta. Talvez fosse um bom momento de pedir-lhe para parar, porém as palavras recusavam-se a sair de sua boca. O modo como ele brincava com os fios, como ocasionalmente aspirava o perfume e os beijava, era tão reconfortante quanto perturbador. Na verdade, não queria que lorde Murray parasse mesmo sabendo não estar certo permitir-se ser tocada de maneira sedutora. Mas, se não deixasse a situação ultrapassar aquele ponto, que mal haveria?

— Quem é Bowen? — Eric indagou, ignorando a pontada de ciúme e esforçando-se para soar desinteressado. Por que o incomodara ouvi-la falar o nome de outro homem com afeição?

— Um dos mestres de armas de Dunnbea. Ele e Peter eram mercenários contratados por meu pai há dez anos, numa época em que sofríamos cercos e ataques freqüentes dos ingleses. Ambos se provaram tão valorosos que, superada a crise, permaneceram conosco. Os dois sempre foram muito pacientes comigo e eu os seguia como um cãozinho fiel. Meu primo Wallace, filho bastardo de um tio e dois anos mais velho do que eu, também vivia correndo atrás de Bowen e Peter. Nós quatro éramos muito unidos. Ao perceber que não teria mais filhos, meu pai resolveu reivindicar Wallace como herdeiro e acabei perdendo um companheiro de folguedos porque Wallace passou a ficar muito ocupado, treinando para se tornar cavaleiro e depois senhor de um castelo.

— Como você estava sendo preparada para se tornar uma dama, foi melhor assim.

— Temo não ter me saído bem porque me faltavam os requisitos necessários — ela murmurou atordoada, dando-se conta, para sua vergonha, de que recostara em sir Murray. O cansaço extremo a levara a se esquecer do decoro. Talvez tenham me incentivado a crescer muito solta, feito um menino. Talvez porque Sorcha tivesse sido sempre tão graciosa, tão linda, ninguém achou que valesse a pena tentar ensinar os modos de uma dama a uma desastrada como eu.

Eric estava certo de que Sorcha possuíra qualidades; porém, se ouvisse mais uma única palavra sobre sua “perfeição,” explodiria. Ainda não conseguia entender por que o fato de Bethia haver sido rejeitada o enfurecia tanto. Provavelmente porque também o fora. O amor e a aceitação dos Murray suavizaram o golpe, mas a mágoa de ser abandonado pela própria família deixara cicatrizes permanentes. Será que Bethia não notara como fora desprezada, ou preferira fingir nada perceber para não enfrentar a dor? Ou, ainda pior, teria ela se julgado merecedora da discriminação? A pobrezinha se acreditara mesmo inferior à estupenda Sorcha?

Tamanha falta de autoconfiança, alimentada durante anos, poderia dificultar seus planos de conquistá-la.

No íntimo, sabia estar errado tentar seduzir uma dama. Mas também sabia que os conceitos de honra e respeito não o impediriam de sucumbir à paixão. Contudo, se Bethia lhe entregasse a virgindade, não hesitaria em desposá-la. Seus irmãos o chamariam de louco por tomar tal decisão poucas horas depois de conhecê-la. Entretanto, não voltaria atrás. Seguiria o instinto sem pensar duas vezes.

— Você precisa dormir agora — ele falou baixinho, ajudando-a a levantar-se.

— Sim, estou muito cansada. Vou me preparar para a noite. Sonolenta, Bethia sumiu no meio da folhagem espessa, em direção ao riacho.

Depressa, Eric estendeu dois cobertores, perto da fogueira, sentou-se e tirou as botas.

Ao retornar ao centro da clareira, Bethia levou alguns segundos para compreender o significado do que seus olhos enxergavam. Lorde Murray pretendia que passassem a noite juntos?

— Ora, milady, por que você está me olhando como se eu fosse uma cobra pronta para dar o bote? Muito à vontade, Eric deitou-se e cruzou as mãos atrás da cabeça.

— Talvez porque você se pareça com uma no momento. Vou dormir do outro lado da fogueira.

— A fogueira é pequena e nos provera de pouco calor.

— Temos cobertores para suprir a escassez.

— Você não precisa ter medo de mim.

— Não? Por acaso você não está pensando em me convencer a agradecer seu auxílio de… uma certa maneira?

— Uma coisa que aprendi desde cedo é a respeitar o “não” de uma dama. Ele apontou o cobertor estendido. Venha descansar. Enrole-se em seu cobertor. Use-o como uma armadura, se desejar. Nós dois ficaremos mais confortáveis se dormirmos próximos. E colocaremos o bebê entre nós. O menino também necessitará sentir-se aquecido.

Não havia como discutir. James não somente sentiria menos frio se acomodado entre eles, como estaria mais protegido. Embora nervosa por dormir perto de sir Murray, a idéia não a assustava. Na verdade, não o enxergava como uma ameaça. Depois de instalar o sobrinho no meio dos dois, Bethia demorou a se aquietar, pois nenhuma posição parecia agradá-la. Por fim aconchegou-se à criança adormecida e fechou os olhos, fingindo ignorar o homem tão junto de si. Dali a segundos tornava a abri-los, incapaz de relaxar.

— Confortável agora? — perguntou-lhe Eric, sorrindo.

— Sim. Você não pode me culpar por ser cautelosa. Bethia se achava com todo o direito de revelar suas preocupações e assumir uma posição defensiva.

— Não há razão para temores. O bebê nos separa.

— James não é exatamente uma barreira.

— Não. Mas juro-lhe, milady, a palavra “não” é todo o escudo de que você precisará para me manter afastado.

— Ótimo. Porque se você está pensando que cederei aos seus avanços em troca de auxílio, aconselho-o a repensar.

— Isto nunca me passou pela cabeça. Não, não a quero em meus braços movida pela gratidão.

— Então estamos de acordo.

Tensa, Bethia viu Murray se apoiar num cotovelo e inclinar-se, ficando seus rostos separados por míseros centímetros. Mesmo certa de que cometia um erro, fitou a boca sensual.

— Sim — Eric sussurrou, envolvendo-a num olhar abrasador. Quando você vier a mim, será porque deseja partilhar minha paixão. Não quero sua gratidão, mas seu desejo.

Estremecendo, Bethia engoliu em seco. Bastara ouvi-lo dizer paixão, para que seu sangue fervesse nas veias. Prisioneira de um magnetismo do qual não conseguia escapar, permaneceu imóvel quando os lábios sensuais roçaram os seus, num beijo leve e delicioso. Ao ensaiar erguer as mãos para empurrá-lo, ele já havia se afastado.

— Por que você fez isso? — indagou num fio de voz, incapaz de esconder o assombro. Como uma carícia rápida pudera perturbá-la tanto?

— Estava apenas lhe dando boa noite.

— Da próxima vez procure usar só palavras.

— Não seria tão divertido.

Cerrando os lábios, Bethia recusou-se a reagir ao comentário, convencida de que falar qualquer coisa apenas daria àquele cavaleiro perigosamente sedutor outra chance de confundi-la ainda mais.

Era impossível sufocar as sensações devastadoras que a invadiram. Parte de si ansiava descobrir o sabor da paixão sugerida por Eric Murray. Um homem dono de uma beleza tão impressionante tinha, sem dúvida, vasta experiência sexual e seria um amante habilidoso.

De fato não se recriminava pela vontade de desvendar os segredos do sexo. Temia, sim, que seus sentimentos acabassem indo além da simples curiosidade. O beijo de sir Eric não passara de uma leve pressão em seus lábios, mas bastara para incendiá-la. Sim, ele ameaçava sua paz de espírito, roubava-lhe o sossego, porém não poderia deixá-lo porque precisava de ajuda. Rezava para que ele não a traísse, entregando-a aos inimigos. E rezava para que tivesse forças e não traísse a si mesma, caindo em seus braços.

Bethia sabia que ficar olhando o rio que seriam obrigados a atravessar não o tornaria mais raso, nem as águas menos turbulentas. Por três longos dias haviam se aventurado por matas e terrenos acidentados, sendo caçados implacavelmente por William e seus abomináveis filhos. Queria poder reunir um exército naquele exato momento e confrontar os inimigos. O medo e a necessidade constante de se esconder a estavam enlouquecendo. Ansiava sentir-se segura e poder oferecer a tranqüilidade de um lar ao sobrinho.

Um olhar rápido para o homem de pé ao seu lado inundou-a de um calor estranho. Eric Murray estava fazendo um ótimo trabalho mantendo ela e James protegidos. Mas o cavaleiro também parecia empenhado em roubar-lhe a razão.

Todas as noites ele lhe desejava bons sonhos com um beijo e acordava-a todas as manhãs com outro beijo. Até descreveria os beijos noturnos como “castos”, porém os diurnos eram pura sedução. Não passando de uma tola romântica, faltavam-lhe forças para recusá-los. Durante as cavalgadas, sir Eric sempre tinha uma palavra gentil, um gesto galante, uma carícia suave a oferecer-lhe.

Dividida entre a vontade de empurrá-lo para longe e o desejo de se entregar à paixão insidiosa, vivia tensa, irritadiça, à beira do descontrole.

— Não tenho certeza se conseguiremos cruzar o rio — disse, obrigando-se a fixar os pensamentos no problema mais urgente: fugir de seus perseguidores.

— Conseguiremos sim. — Devagar, Eric deslizou a mão pela crina do cavalo. Seria preferível continuarmos em terra firme, mas William está tão próximo que não me atrevo a deixar rastros frescos. O sensato é procurarmos outra trilha. Você sabe nadar, suponho.

— Oh, sim, muito bem. Bowen me ensinou. — Bethia esboçou um sorriso.- Na verdade, quando ele e Peter decidiram ensinar Wallace, exigi que me incluíssem nas aulas. E Bowen concordou dizendo que minha língua era tão afiada que, um dia, um homem poderia tentar me afogar.

Eric riu melancólico. Sempre que a jovem falava da infância citava apenas Bowen, Peter e Wallace. Raramente mencionava o pai e a mãe, a menos que o assunto envolvesse Sorcha. Por sorte Bethia encontrara quem a cercasse de cuidados, tarefa ignorada pelos pais. A pobre dama, sem o perceber, deixava claro que fora tratada como o primo Wallace, uma criança indesejada, relegada a segundo plano. E ainda pior, começava a crer que a maravilhosa Sorcha nunca fizera nada em favor da irmã. Uma situação que simplesmente escapava à sua compreensão.

— Vamos acabar logo com isso, milady. — Utilizando uma tira larga de pano, Eric amarrou James na sela de modo a conservá-lo firme e confortável.

— Não seria melhor um de nós carregar o menino? — indagou Bethia, erguendo a barra da saia para facilitar o movimento das pernas.

— Precisaremos de todos os nossos membros livres para lutar contra a correnteza. Connor é grande, alto, e manterá a cabeça do garotinho acima do nível da água.

— Connor saberá rumar direto para a margem oposta?

— Sim, onde nos esperará. Não tema, milady. Meu cavalo é um nadador experiente.

Com o coração apertado, Bethia observou o garanhão entrar no rio e James caindo num choro convulsivo ao sentir o choque da água fria. Inspirando fundo, ela mergulhou, e Eric seguiu-a imediatamente. Embora a temperatura da água lhe tirasse o fôlego, cerrou os dentes e pôs-se a nadar, com os olhos fixos em Connor. Nem a correnteza, nem o entulho que cobria grande parte do leito do rio, intimidaram o animal. Em questão de minutos, o imponente cavalo de guerra alcançava seu destino, e o menininho ainda estava aos gritos. Aflita para sossegá-lo, Bethia intensificou o ritmo das braçadas, esquecendo-se de tudo, exceto da necessidade de oferecer conforto e consolo à criança assustada.

Ao sair da água, exausta e ofegante, sentou-se no chão e procurou Eric, que continuava a travessia. Horrorizada, viu-o ser atingido na cabeça por um galho grosso e submergir. Ao voltar à tona, ele agarrou-se ao galho, num esforço evidente para flutuar. A menos que recuperasse a energia em breve, aquela seria uma batalha perdida. Ferido, sangrando, acabaria morrendo afogado.

Levando Connor pelas rédeas, Bethia correu pelo banco de areia, temendo perder Eric de vista enquanto tentava elaborar um plano para ajudá-lo. Uns poucos metros adiante, o galho no qual ele se ancorara ficou atolado numa espécie de barragem. Logo a força da correnteza o arrastaria rio abaixo.

Portanto precisava agir depressa, não havia um instante a perder. Sem hesitar, despiu-se, conservando a túnica fina. O peso das roupas ensopadas dificultara muito sua movimentação na primeira travessia e não ousaria repetir o erro. Tirando a corda que Eric costumava guardar no alforje, amarrou uma das pontas na sela de Connor e, segurando a outra com firmeza, entrou novamente no rio.

— Milady, sua tola, no que você está pensando? Volte para terra firme! — A voz baixa e rouca revelava crescente fraqueza.

— Estou pensando em salvar sua pele — devolveu ela, passando a corda ao redor da cintura de lorde Murray, cuja lividez alarmou-a. Tampouco a agradou o aspecto do corte na têmpora esquerda e o sangramento ininterrupto. — Agora diga-me como fazer seu cavalo nos tirar dessa encrenca.

— Basta mandá-lo puxar. Connor saberá como agir. Amparando Murray pelo tórax, Bethia, nadou contra a correnteza, esforçando-se para conservar a cabeça de ambos fora d'água enquanto procurava desvencilhar-se do traiçoeiro entulho que os cercava. Se não fosse pelo garanhão negro, jamais teriam alcançado a margem.

Rapidamente desembaraçou Eric da corda e deitou-o sobre a relva. Então apressou-se a trocar James. Depois de enxugar-se e vestir-se, apanhou o que julgava necessário e retornou para junto do ferido.

Mesmo sabendo que precisava aquecê-lo, receava despi-lo, antecipando o quanto a visão da nudez máscula iria perturbá-la. Com mãos trêmulas, livrou-o das roupas encharcadas e secou-o com uma toalha, demorando-se sobre o peito largo. O abdômen rígido a fascinava, assim como o sexo em repouso sobre uma camada de pêlos claros. As pernas longas e musculosas terminavam em pés esguios, numa perfeita harmonia de formas.

— Considerando o fato de estar enregelado até a medula dos ossos, duvido que eu tenha um aspecto muito viril — lamentou-se ele, lançando um olhar desanimado para a região das virilhas.

— Ah, não, sir. Você parece tão bem quanto o pequeno James — Bethia brincou, vestindo-o com roupas enxutas e limpas e cobrindo-o com um cobertor. Nunca imaginei que um homem podia ser tão bonitinho lá embaixo — completou, rindo ante a expressão ofendida do cavaleiro.

Eric começou a rir e parou de repente, fazendo uma careta ao sentir a cabeça latejar.

— Por Deus, mulher! Como o pequeno James? Bonitinho? Você fere minha vaidade falando assim.

— Acho que sua vaidade sobreviverá. Concentrada na tarefa, Bethia examinou o machucado na têmpora durante vários segundos. Felizmente o sangramento estancara. Por sorte não serão necessários pontos. O corte não é muito profundo.

— Enfim um pouco de misericórdia.

Com gestos precisos, ela limpou a área afetada e aplicou um ungüento, notando que, embora tivesse parado de tremer, lorde Murray continuava pálido e abatido. Nervosa, quis impedi-lo de se levantar.

— Não se preocupe tanto, milady.

— Tem certeza de que pode se mexer? — Vendo-o cambalear, correu para ampará-lo.

— O suficiente para cavalgar. Não podemos ficar aqui. Os canalhas que a perseguem, e ao menino, encontram-se muito perto. Por isso atravessamos o rio, lembra-se?

— Sim. Mas não se esqueça de que você está enfraquecido.

— Vou deixá-la segurar as rédeas.

— Será que Connor me permitirá conduzi-lo? — Indecisa Bethia fitou o imponente garanhão.

— Sim. Desde que eu esteja presente.

— Então me espere buscar James e guardar as poucas coisas que tirei do alforje.

— Faça-o. Preciso de seu auxílio para montar.

Era óbvio o desagrado de Eric por depender de uma mulher, mas Bethia fingiu não percebê-lo. Apressada, reuniu os pertences, acomodou James na tipóia e ajudou o cavaleiro a montar, não sem consideráveis dificuldades na empreitada. Afinal, tratava-se de um homem grande e musculoso, e a diferença de estatura e peso entre ambos convertia-se num obstáculo razoável à realização da tarefa.

Apesar de julgar-se ótima amazona, nunca sequer montara um cavalo de guerra antes, o que lhe causava certa ansiedade. Mal lorde Murray a enlaçou pela cintura, tomou as rédeas e induziu Connor num passo cadenciado.

— Devemos ir mais rápido, milady — alertou-a Eric, ainda sentindo muito frio.

— Não até eu conhecer esse animal um pouco melhor. Você crê que William esteja perto?

— O infame teria que estar na França para que eu o considerasse distante. Aliás, a França não seria longe o bastante.

— Sim. Seria preferível que o maldito e seus abomináveis filhos estivessem mortos e enterrados.

— Você sempre se refere àqueles dois como abomináveis filhos.

— Se você os visse uma única vez entenderia. Grandalhões, imundos, a crueldade estampada no olhar. William pensa ter um motivo sólido para assassinar as pessoas. Iain e Angus não querem, nem necessitam de motivo. Dunncraig provavelmente séria um cemitério a céu aberto, com os corpos se empilhando, se William não segurasse o par perverso com rédeas curtas. No entanto, o pai não os impede de abusar das moças impunemente. Intriga-me Sorcha jamais haver percebido o que acontecia no castelo.

Estava ficando cada vez mais difícil não emitir sua opinião, nada elogiosa, sobre o assunto. Provavelmente a tal Sorcha jamais notara o que acontecia à sua volta porque não se importava com ninguém, além de si mesma. Se não fora capaz de enxergar as injustiças cometidas contra a irmã gêmea durante anos a fio, como se sensibilizaria com o destino de uma pobre aldeã?

Todavia duvidava de que Bethia estivesse pronta para encarar a verdade sobre “aquele modelo de perfeição”. Não no momento.

Caso a desposasse, seria quase impossível não revelar o que pensava. Aos poucos ia formando, a respeito de Sorcha, a imagem de uma mulher excessivamente vaidosa, egoísta, irresponsável. Uma mulher a quem nada fora negado desde a infância e que acostumara-se a se considerar o centro do mundo, cabendo às outras pessoas servi-la e agradá-la. Receava, um dia, acabar não resistindo ao impulso de dizer a Bethia a verdade crua sobre o caráter de Sorcha Drummond. Talvez a constante batalha para não tirar-lhe, imediatamente, todas as ilusões sobre a irmã gêmea fosse a penitência a pagar por querer seduzi-la.

Cansado demais para prolongar a conversa, Eric apoiou-se nas costas de Bethia e tentou recuperar as forças. A cabeça latejava e o corpo inteiro doía por causa do incidente do rio. Também respirava com dificuldade e sentia um frio estranho, como se ainda estivesse vestindo roupas molhadas.

Após percorrerem alguns quilômetros, deu-se conta de que necessitava parar e descansar. Não se recuperaria sentado numa sela. Tinha que deitar-se, comer e dormir por várias horas. Não seria seguro acamparem enquanto William e os filhos os perseguiam porém, sem uma pausa, temia adoecer gravemente e não ter condições de se mover durante dias. Embora já não muito distantes de Dunnbea, restava-lhes uma jornada razoável pela frente. A excessiva umidade do ar prenunciava chuva e ficar ao relento nas condições em que se encontrava poderia trazer sérias conseqüências.

— Teremos que parar logo — ele obrigou-se a dizer, engolindo o orgulho que o levara a adiar a admissão de haver chegado ao limite da resistência.

— Você quer comer — Bethia ficou vermelha feito um pimentão ou atender a outras necessidades?

— Não. Envergonha-me reconhecer minha fraqueza, mas preciso repousar. Preciso me deitar perto de uma fogueira.

— É o sensato. Só não o sugeri antes porque achei que você não acataria minha proposta.

— Talvez eu a houvesse recusado assim que saímos daquele maldito rio, quando pensei que me recuperaria em questão de minutos. Agora, estaria me apegando a um orgulho estúpido. Minha cabeça lateja tanto que meu estômago chega a queimar. Não há uma única parte do meu corpo que não esteja doendo.

— Creio que seria bom James e eu descansarmos um pouco também. Confesso estar exausta. Pararemos tão logo descobrirmos um lugar adequado.

— Procure um local recluso, que não seja facilmente notado por quem estiver na estrada.

— Você quer que nos escondamos.

— Sim, tanto quanto possível. O ideal seria termos um teto qualquer sobre nossas cabeças, porque a chuva não demorará a desabar.

— Há mesmo sinais de tempestade no ar.

Somente duas horas depois Bethia descobriu algo. Ao pé de uma colina, cercada de árvores e protegida por espessa vegetação, havia uma cabana típica de pastores surpreendentemente bem conservada. As paredes de argila e o teto intacto criavam uma impressão de aconchego. Perto da pequena construção, uma fonte de água pura e um estábulo rústico onde, com certeza, o pastor costumava guardar seu rebanho durante a noite. Seria perfeito para Connor se proteger do temporal que se avizinhava.

Aquele casebre fora uma bênção de Deus, Bethia pensou, contendo o ímpeto de atiçar o garanhão numa correria desabalada. Na última hora Eric começara a arder em febre, tremores incontroláveis e o castigavam sem cessar. Se não pudesse fazê-lo descansar e mantê-lo aquecido em breve, temia que a batalha contra a febre fosse longa e difícil.

— Já chegamos? — ele indagou num murmúrio, vendo-a desmontar.

— Sim. Apenas fique na sela até eu me certificar de que o lugar está vazio e em condições habitáveis.

Bethia tinha razão, Murray pensou, com os olhos embaçados fixos na cabana. Fora um milagre deparar com um abrigo tão perfeito no meio do nada. Quem quer o tivesse construído empenhara-se em cercar-se dos pequenos confortos de um lar permanente.

Ainda extasiada com a descoberta, Bethia empurrou a pesada porta de madeira. Duas janelas minúsculas permitiam a entrada de luz suficiente para iluminar o interior da cabana. Bastou um exame rápido para certificar-se de que nenhum animal se entocara ali dentro. Uma limpeza superficial e o chão de pedra ficaria livre da fina camada de pó. Encostada numa das paredes, uma cama grande e larga cujo colchão de palha, para sua imensa alegria, não se transformara em ninho de insetos.

Entretanto, o mais surpreendente era uma lareira construída na parede oposta à cama e não no meio do casebre, conforme o costumeiro. Para completar, uma mesa e dois bancos. Sem dúvida tratava-se de um lar, não de um refúgio temporário.

Depois de colocar James na cama, ela correu para ajudar Eric.

— Ah, sir, que sorte a nossa! É um esconderijo perfeito!

— Você acha que alguém ainda mora aí? — ele indagou, maldizendo a própria fraqueza. Se não estivesse apoiando-se na jovem dama, não conseguiria dar um único passo.

— No momento não. Mas não creio que esse lugar seja apenas o abrigo provisório de um pastor. O esmero da construção revela a intenção de permanência.

— Talvez seja a cabana de caça do senhor feudal.

— Ou talvez o pastor que a construiu planeje morar aqui quando estiver muito velho para cuidar de rebanhos.

— Ou então trata-se de um refúgio, onde o dono dessas terras recebe a amante.

— Tanto trabalho para encontros amorosos ocasionais?

— Alguns homens gostam de fazer sexo rodeado de conforto, milady. Talvez a amante em questão seja uma figura notória e o perigo ronde esse relacionamento adúltero.

— Bem, não importa. Não creio que alguém vá aparecer aqui de repente. Estaremos seguros. — Preocupada com a palidez excessiva do cavaleiro, ela o obrigou a deitar-se na cama, junto de James. Você pode ficar de olho no menino durante alguns minutos, enquanto me dedico a outras tarefas?

— Sim. — Eric ensaiou um sorriso ao constatar que a criança dormia. Isso eu posso fazer.

Sem perder um segundo, Bethia correu para fora. Depois de tirar a sela de Connor, acomodou-o no estábulo pequenino, alimentou-o e voltou para o interior da cabana. Com gestos rápidos e precisos, acendeu o fogo, estendeu uma corda diante da lareira e dependurou as roupas molhadas para secar. Notando que Eric também adormecera, colocou água para ferver e saiu novamente, munida de arco e flecha. Valia a pena tentar pegar algo antes que o temporal desabasse.

O cheiro de carne assada arrancou Murray de um sono profundo. Agitado, lembrou-se de que devia estar tomando conta de James. Ao ver o garotinho dormindo numa caixa de madeira forrada com cobertores, ao lado da cama, acalmou-se.

Junto da lareira, Bethia girava um espeto devagar, absorta na tarefa.

— Coelho? — ele indagou, sem entender por que a garganta doía tanto.

Surpresa, a jovem virou-se. O cavaleiro dormira toda a tarde e parte da noite, contudo não parecia bem. A voz soava rouca e áspera. Temia não se tratar apenas de um simples resinado, como imaginara a princípio.

— Sim. O vale está cheio de caça. Gentilmente, ela o fez recostar-se no travesseiro improvisado: uma de suas túnicas “recheada” com musgo. Algum conforto o ajudaria a descansar melhor. Enquanto você roncava alegremente durante horas a fio, peguei o arco e a flecha e fui caçar.

— Você tem habilidades estranhas para uma dama da nobreza — Eric comentou, apalpando o travesseiro macio.

— Como já lhe disse, passei muito tempo obrigando Bowen, Peter e Wallace a aturar minha companhia.

— Duvido de que sua presença os tenha incomodado.

— Creio que não, embora os três se divertissem reclamando da falta de sossego. Você está com fome? — Bethia o fez beber uma caneca d'água.

— Oh, sim. O aroma do coelho é que me acordou. Apesar de um pouco zonzo, Eric levantou-se. — Choveu muito?

— Sim. A chuva parou minutos atrás, mas não tardará a recomeçar. Hei aonde você vai? — Ansiosa, ela tentou obrigá-lo a voltar para a cama.

— Posso estar enfraquecido, mas insisto em cuidar de certas necessidades sozinho, milady. Um sorriso brincalhão pontuou o comentário.

Enrubescendo, Bethia concentrou-se no preparo da refeição.

Ao retornar, Eric esforçou-se para disfarçar os tremores que o sacudiam. Não compreendia a razão da extrema fraqueza. Começava a pensar que um dia de descanso não bastaria para curá-lo do mal que o afligia. Sentando-se na cama, descobriu haver perdido a fome.

— Coma tanto quanto puder — Bethia o instruiu. É impossível recuperar-se com o estômago vazio.

— Não sei o que está acontecendo comigo — ele resmungou, alimentando-se sem vontade.

— Você foi atingido na cabeça por um galho e quase se afogou em águas geladas. Não é uma experiência da qual possa se safar com facilidade. Provavelmente apanhou um resfriado também.

— Mas você não.

— Não sofri nenhum corte na cabeça, tampouco quase me afoguei.

— Verdade.

Murray terminou a refeição e Bethia o convenceu a tomar outro copo d'água.

— Não se preocupe. Temos um estoque razoável de comida, água e lenha para o fogo. Podemos ficar até você se recuperar.

— Seus inimigos a estão procurando.

— Sim, e este é um bom esconderijo. Há uma trilha até o alto da colina, de onde se avista toda a região. Enquanto você dormia, subi até lá para me certificar de que não estávamos sendo seguidos. Descanse, não há perigo algum.

Vendo-o fechar os olhos, em vez de levar a discussão adiante, Bethia inquietou-se. Evidentemente o cavaleiro não estava bem e receava não ser capaz de ajudá-lo muito, considerando seus parcos conhecimentos sobre a arte da cura. Depois de avivar o fogo, deitou-se na cama, certa de que agia de forma escandalosa ao partilhar um leito com um homem. Porém, não existia outro lugar onde dormir. Nervosa, tocou a testa de Eric. Febre alta, conforme imaginara. Em silêncio, implorou a Deus para que ele se recuperasse. E não apenas porque necessitava de escolta para chegar a Dunnbea. A morte de Eric seria um golpe duro demais para seu coração.

 

— Ah, ainda estou vivo.

A voz baixa e rouca, tão próxima ao seu ouvido, a acordou de repente e Bethia por pouco não caiu da cama, tamanho o susto. Trêmula, virou-se e tocou-o na testa. Fresca. Um suspiro de alívio escapou-lhe dos lábios.

— Parece que sim — retrucou, procurando disfarçar a imensa alegria.

— Quantos dias fomos obrigados a atrasar a viagem por minha causa?

— Quatro. A febre custou a ceder.

— Quatro dias — ele repetiu, deslizando a mão pelos cabelos sujos e embaraçados. Precisava desesperadamente de um banho. Os inimigos estiveram à espreita?

— Não. Não vi ninguém nas redondezas. Desde que chegamos aqui não parou de chover. Com certeza, William perdeu nosso rastro. Além do mais, prezando o conforto acima de tudo, o infame não se sujeitaria a enfrentar temporais.

— Ótimo. Partiremos em breve. — Eric tentou se levantar, mas uma vertigem súbita o fez sentar-se outra vez.

— Você continua enfraquecido devido à febre alta. Tudo de que necessita agora, para recobrar as forças, é descansar e se alimentar. Dentro de um, talvez dois dias, nos poremos a caminho.

— É perigoso demais permanecermos um longo período num mesmo lugar.

— Será ainda mais perigoso você cavalgar nessas condições. Duvido que consiga se manter firme na sela.

— Você realmente sabe ferir a vaidade masculina, milady.

Ignorando a provocação, Bethia sorriu e o ajudou a caminhar até a porta, de onde Murray insistiu em seguir sozinho para atender às necessidades físicas, questão resolvida em poucos minutos. Após acomodá-lo novamente na cama, ela preparou-lhe um bom prato de mingau, mandou-o comê-lo inteiro e tornar a repousar.

No fim da tarde, depois de haver dormido horas seguidas e acordar sem febre, Eric insistiu num banho. Embora a contragosto, Bethia o deixou com dois baldes de água quente e retirou-se da cabana, juntamente com o sobrinho. Os dois aproveitaram que a chuva estiara para subir até o alto da colina e olhar horizonte.

Nada à vista. Continuavam seguros.

Sentada na grama, observando o menino brincar, Bethia inspirou o ar puro com sofreguidão, sentindo-se enfim em Paz. Os últimos quatro dias tinham sido terríveis e chegara a pensar que Eric sucumbiria à febre. Agora que o peso desse medo lhe fora tirado dos ombros, estava exausta.

O tempo gasto cercando-o de cuidados e rezando para que recuperasse a saúde obrigara-a a encarar a verdade. Amava-o. Profundamente. A intensidade do sentimento a assustava. Alguém como sir Eric Murray estava além de seu alcance. Mesmo sabendo que acabaria com o coração partido, já não havia como voltar atrás.

Enquanto estivera sentada à cabeceira da cama horas a fio, banhando a testa escaldante com um pano úmido, pensara no quanto ele demonstrara desejá-la. Embora, nunca o ouvira pronunciar uma única palavra de amor, nem falar da possibilidade de partilharem algo além de simples paixão. Aprendera, desde menina, que damas da sua classe não se deixavam seduzir antes do casamento. Mas quando o vira à beira da morte, lamentara não ter sucumbido à atração carnal.

Eric encontrava-se em franco processo de recuperação e a tentação não lhe daria trégua. Precisava decidir se iria, ou não, entregar-se. Claro que perder a virgindade significaria arruinar suas chances de casar-se um dia. Contudo, jamais lhe fora apresentado um pretendente. Após as núpcias de Sorcha, começara a desconfiar de que seus pais não tinham a menor intenção de arrumar-lhe um marido, preferindo conservá-la no castelo como encarregada das tarefas domésticas, função que sempre exercera. Uma vida de poucas alegrias e nenhuma gratidão. A vida que a esperava quando chegasse a Dunnbea.

Será que gostaria mesmo de voltar para aquela rotina solitária sem experimentar, uma só vez, a paixão nos braços de Eric?

Não! Foi a resposta que lhe veio à mente sem um segundo de hesitação. Tomando James no colo, Bethia regressou à cabana convicta de que não podia abandonar a prudência. Eric Murray pouco falava de si e parecia reticente quando o assunto girava em torno de seus planos e objetivos. Pois chegara o momento de arrancar-lhe algumas verdades, de fazê-lo explicar, por exemplo, por que enfrentava uma longa jornada sozinho. Apenas então decidiria qual atitude tomar.

Os apelos insidiosos da paixão a despertaram. Lânguida, Bethia enlaçou Eric pela nuca e deixou-se beijar, entreabrindo os lábios sob a pressão da língua imperiosa.

Durante uns poucos momentos abandonou-se inteiramente às sensações deliciosas, absorvendo o gosto da boca sensual, saboreando o prazer de ter o corpo másculo colado ao seu. Então, quando as mãos fortes cobriram seus seios e pressionaram os mamilos de uma maneira erótica, Bethia estremeceu violentamente, num misto de prazer intenso e medo. Alarmada, empurrou-o para longe e pulou da cama.

A saúde de lorde Murray com certeza melhorara muito, pensou, fitando-o sem disfarçar o espanto. Nos últimos dois dias, desde que a febre cedera, sua recuperação fora assombrosa. Se tivesse um pingo de bom senso, não teria continuado a dormir junto dele. Inspirando fundo várias vezes, tentou, em vão, acalmar-se.

— Venha. Está mais quente na cama — disse Eric, cruzando as mãos atrás da cabeça e recostando-se no travesseiro.

Quente demais, ela teve vontade de retrucar, dando um laço no decote da túnica para que nenhum centímetro de pele ficasse à mostra. Embora parecesse relaxado, o cavaleiro a devorava com o olhar. A idéia de que um homem como Eric Murray a desejava era tão embriagadora, que quase não resistiu à tentação de voltar para a cama e esquecer-se de que haveria um amanhã.

Agarrando-se a um resto de sensatez, correu para a lareira e reavivou o fogo, na esperança de reencontrar o equilíbrio executando tarefas banais. Quando o vira tão debilitado, preocupara-se tanto com a possibilidade de perdê-lo que todo o resto tornara-se secundário. Assim, não exigira explicações nem respostas para suas perguntas. Partiriam na manhã seguinte e pouco sabia sobre aquele a quem confiara sua vida e a do sobrinho.

Depois do desjejum Bethia colocou James no berço improvisado e, puxando um banco, sentou-se aos pés da cama, determinada a arrancar as informações que queria. Ou Eric falava, ou não o deixaria tocá-la nunca mais. E muito menos beijá-la!

Notando a expressão decidida do rosto delicado, Murray não teve dúvidas do que o aguardava. Enquanto se empenhara para fazê-lo recuperar a saúde, Bethia o cercara de gentilezas e cuidados, mas desconfiava de que a doce donzela tomaria uma atitude firme agora. Caso se recusasse a esclarecer algumas questões iria afastá-la de si e seria quase impossível seduzi-la.

— Creio que você sabe mais sobre mim do que qualquer pessoa fora dos limites de Dunnbea. No entanto, pouco sei a seu respeito, milorde. Não seria justo trocarmos confidencias?

— Talvez eu não tenha entrado em detalhes porque sei que você não vai gostar do que ouvir.

— Provavelmente não, mas preciso de esclarecimentos. Por que você dá a impressão de não conhecer o clã de sua mãe?

— Quando nasci meu verdadeiro pai pensou que eu fosse o fruto bastardo de uma aventura entre minha mãe e lorde Murray. Enfurecido, abandonou-me aos pés de uma colina, para morrer. Eric sorriu amargo, quando Bethia empalideceu diante da revelação. Crápula é uma boa palavra para descrever o senhor de Dubhlinn. Se o tolo houvesse dado uma boa olhada em mim, teria percebido que eu era mesmo seu filho legítimo. Você já notou a mancha em minhas costas?

— Em formato de coração?

— Sim. É algo que eu poderia ter herdado somente de lorde Beaton. Por causa dessa marca de nascença a esposa de meu irmão, Maldie, e eu descobrimos ser meio-irmãos. Ambos igualmente amaldiçoados por nosso pai. Maldie foi uma das muitas meninas bastardas rejeitadas por Beaton que, na sua ânsia de gerar um filho homem, deitou-se com uma infinidade de mulheres.

— E acabou descartando o herdeiro que tanto desejava. Como você sobreviveu?

— O mestre de armas dos Murray me encontrou e me levou para Donncoill. Imediatamente fui aceito como o filho ilegítimo do chefe do clã que, de fato, tivera um romance adúltero com minha mãe. Durante treze anos vivi feliz e despreocupado, convencido de ser um Murray. Então fui obrigado a encarar a verdade sobre minha origem trágica. Maldie, prisioneira da promessa feita à mãe moribunda, estava disposta a matar o pai para vingá-la. Minha cunhada teve uma vida dura ao lado da mãe, criatura egoísta e ressentida que, depois de tornar-se prostituta, quis arrastar a filha para o mesmo destino.

Ansiosa, Bethia puxou o banco para mais perto da cama e descansou os braços sobre o colchão.

— Por favor, diga-me que lady Maldie não cumpriu o juramento. É horrível imaginar uma mãe exigindo que a própria filha cometa esse pecado mortal. A alma de sua cunhada ficaria maculada por toda a eternidade.

— Sossegue Maldie não assassinou ninguém. Minha mãe e a parteira foram mortas por meu pai logo que nasci, porque o infame não podia suportar a idéia de ter sido traído. Por isso nunca conheci minha mãe. Aprendi o que pude sobre a família dela no decorrer dos anos e tentei entrar em contato, porém meus parentes continuaram acreditando nas mentiras de Beaton. Para eles, não passo de um bastardo Murray.

— Ainda que o fosse, continua sendo filho de sua mãe, portanto, um MacMillan. Seria natural que desejam conhecê-lo.

Mesmo sabendo que o que estava para dizer poderia afastar Bethia para sempre, Eric decidiu não recuar.

— Busco o que me pertence por direito. Sou o legítimo herdeiro de Dubhlinn, mas outro Beaton usurpou meus bens e se recusa a me entregar o que me cabe. O rei prefere não interferir na disputa, impedindo-me de pedir-lhe auxílio. Lorde Beaton insiste na minha bastardia para não ser obrigado a me ceder minha herança. Só não entendo por que isso teria importância para os MacMillan. A única coisa que me ocorre é que talvez não queiram enfurecer os Beaton.

— Você está decidido a lutar por seus direitos?

— Sim. Durante os últimos treze anos tentei resolver a questão com diplomacia, através de petições, requerimentos. Passei meses na corte discutindo o assunto com o rei, esforçando-me para chegar a um acordo com meus oponentes. Eles não se dispuseram sequer a me receber. Agora me resta confrontá-los. Vendo Bethia levantar-se, Eric enfatizou: — Não sou nenhum William, assassinando inocentes para me apossar de terras e fortuna alheias.

— Claro que não! — ela afirmou sem hesitar, caminhando até a porta. Preciso ficar um pouco sozinha para pensar.

— Compreendo.

Sim, tentava compreender o desassossego da jovem, embora tudo lhe parecesse muito claro. Era o herdeiro legítimo. Ao longo de anos procurara reaver seus direitos de maneira pacífica e ninguém lhe dera a menor atenção. Os Beaton e os MacMillan o tinham forçado a tomar uma atitude extrema.

Um ruído de James o fez virar-se para o berço. Sugando o polegar com força, o bebê adormecera. Os pais do garotinho estavam mortos e alguém o queria morto também. Sem dúvida Bethia ainda sofria os efeitos do choque causado pela tragédia e não era capaz de analisar os fatos que lhe apresentara com a necessária objetividade. Seu único consolo fora vê-la recusar-se a compará-lo a William.

Movido por uma energia súbita, Eric levantou-se e começou a arrumar a bagagem. Partiriam no dia seguinte. De fato quisera partir naquela manhã, mas Bethia o convencera a descansar mais um pouco, argumentando que seria melhor não correr o risco de uma recaída.

No fundo, imaginara que conseguiria levá-la para a cama. Em vez de atrai-la para si, afastara-a contando a verdade. Desejava-a mais do que desejara qualquer outra mulher e a intensidade desse sentimento o surpreendia. Bethia estava lutando para ordenar os pensamentos, e ele deveria imitá-la, procurando entender as próprias emoções antes de sucumbir à tentação de possuí-la.

Suspirando fundo, Bethia sentou-se na relva e contemplou a vista do alto da colina, percebendo as palavras de Eric ainda ecoarem em sua mente. Palavras que a tinham chocado tanto, que para analisá-las com clareza necessitara afastar-se da presença máscula e sedutora.

Durante alguns momentos, sob o jugo das emoções, só conseguira pensar em como o homem em quem confiara se revelara mais um caçador de terras e fortuna. Ao recusar-se a compará-lo a William, provara não haver perdido por completo a capacidade de raciocinar. Devia acalmar-se e escutar a voz da razão.

Diferentemente de William, Eric tinha direito à herança. A história que ele lhe contara havia sido sombria, terrível demais para não expressar a pura verdade. Recusava-se a considerá-lo um mentiroso. Se tivesse intenção de enganá-la, não iria contar-lhe algo sabendo que a afastaria de si.

O que mais a afligia, porém, era a idéia de Eric estar se preparando para lutar. Temia as conseqüências desse confronto. E se o matassem?

Devagar, Bethia levantou-se. Procurara a verdade e agora teria que lidar com os fatos. Afinal, as coisas não eram tão ruins assim. Eric buscava apenas o que lhe pertencia e não seria justo acusá-lo de desonestidade. Aliás, não importava muito sua opinião a respeito de nada. Ele queria levá-la para a cama sim, mas nunca falara de seus sentimentos ou da possibilidade, mesmo remota, de um futuro juntos. Provavelmente iria deixá-la em Dunnbea e continuaria em frente sem olhar para trás.

Quando começava a descer a colina, um grupo de cavaleiros chamou-lhe a atenção. Apesar da considerável distância, não foi difícil reconhecer as figuras avantajadas de William e os dois filhos. Esbaforida, Bethia correu de volta à cabana, rezando para que conseguissem escapar do vale antes de serem localizados.

Bastou vê-la agitada e ofegante para Eric saber que o período de descanso e sossego chegara ao fim.

— Quão perto estão os canalhas? — indagou, desembainhando a espada.

— Ainda bem longe e parecem não ter pressa. Duvido de que estejam seguindo nosso rastro.

— Tente apagar os vestígios de nossa presença aqui — ele a instruiu, apanhando os alforjes e saindo para selar Connor.

Aliviada por Eric haver tomado a iniciativa de arrumar a bagagem enquanto estivera ausente, Bethia esforçou-se para eliminar os sinais de que a cabana fora recentemente habitada. As cinzas na lareira permaneceriam mornas durante mais algumas horas e o cheiro de comida que impregnara o ar também demoraria um pouco a sumir. Paciência. Pedia a Deus para William não encontrar o lugar ou, caso encontrasse, que não o vistoriasse.

Dali a instantes Eric retornou, já montando Connor, e Bethia, acomodando James no colo, montou também. Logo o garanhão galopava a rédeas soltas, como se o diabo estivesse a ponto de alcançá-los.

A cavalgada se estendeu por vários quilômetros e então Eric parou. Embora soubesse ser ainda muito cedo para relaxar, Bethia confortou-se pensando que não ouvira barulhos estranhos, ou ruídos indicadores de perseguição.

— Você acha que os enganamos? — indagou apreensiva, olhando por sobre o ombro.

— Por enquanto. E uma pena eu não haver subido até o alto daquela colina, ou poderia ter calculado a distância que nos separava dos malditos. Aliás, estou surpreso que você tenha procurado minha ajuda ao vê-los — Eric a provocou, entregando-lhe o odre de água.

— Não, não está surpreso não. Depois de beber, Bethia devolveu-lhe o odre, sorrindo. Além do mais, eu precisava de uma montaria.

— Ah, e eu pensando que minha habilidade de cavaleiro e meu charme a tinham atraído de volta.

— Quanta vaidade, sir. De repente ela ficou muito séria, e o instante de descontração evaporava no ar. Na minha ingenuidade, achei que não tornaria a deparar com o canalha, alimentei a esperança de estar livre desse pesadelo.

— Você não se livrará do sujeito tão facilmente. Será seguida até Dunnbea.

— Não é possível que William esteja pensando em desafiar todo o meu clã — Bethia murmurou desanimada, ao retomarem a marcha.

— Não, creio que não. Ele provavelmente planeja capturá-la antes de sua chegada a Dunnbea. Ou então acha que será capaz de convencer os outros de que suas acusações são falsas.

— Posso não ter as provas necessárias para mandá-lo para a forca, mas minha família acreditará na minha palavra. Protegerão James a qualquer custo.

— Seus pais com certeza têm mais direitos sobre a criança do que William.

— Sim, porque William não é parente de sangue.

— Embora seja o senhor de Dunncraig.

— Por enquanto.

— E o que você fará para mudar isso? Lutará pelo que pertence a James?

Bethia engoliu em seco. Era exatamente o que aconteceria se William não devolvesse Dunncraig ao legítimo herdeiro. Mas não queria pensar nisso agora. Terras e fortuna não valiam à vida humana.

A tarde findava quando Eric abandonou a trilha que tinham estado seguido e a ajudou a desmontar.

— Aonde você está indo? — Bethia perguntou inquieta, reparando que o cavaleiro pretendia retornar à trilha e deixá-la para trás.

— Quero me certificar de que William não se encontra em nossos calcanhares. Acabamos de passar por uma colina de onde poderei ter uma visão ampla dos arredores.

— Você prefere ir sozinho?

— Sim. Inclinando-se na sela, ele a beijou de leve nos lábios. Se o maldito estiver por perto e me avistar, serei obrigado a escapar rapidamente. Minha estratégia será afastá-lo de você, conduzi-lo numa outra direção.

— Mas William pode pegá-lo!

— Então você deverá se dirigir ao castelo de seus pais. A poucos quilômetros daqui há uma aldeia e de lá até Dunnbea serão poucas horas de viagem.

Inspirando fundo, Bethia tentou controlar o medo. Apavorava-a possibilidade de ser obrigada a ir em frente sem Eric. Gostaria de impedi-lo de arriscar-se, porém o brilho determinado dos olhos azuis não deixava espaço para argumentações. Nada o demoveria da idéia de servir de isca para William.

— Quanto tempo deverei esperá-lo antes de me pôr a caminho? — ela perguntou num fio de voz, contendo as lágrimas que a ameaçavam sufocá-la.

— Se eu não voltar ao amanhecer, parta sem hesitar.

— Não o fiz recuperar-se da febre para que você seja morto por William e seus abomináveis filhos.

— Não tenho a menor intenção de deixar que aqueles idiotas me peguem.

Com o coração apertado, Bethia o viu desaparecer no meio das árvores. Sabendo que a espera seria difícil, procurou ocupar-se brincando com James. À medida que os minutos se arrastavam mais angustiada ficava, deixando-se levar por sua imaginação fértil, que pintava imagens horríveis de Eric perseguido e morto.

Se algo acontecesse ao cavaleiro, não se perdoaria jamais. Lançara-o no meio de seus problemas, transformara-o no alvo de covardes sanguinários. Como conseguiria superar a culpa quando se sentia responsável pela situação?

Depois de alimentar o sobrinho com um prato de mingau frio, que guardara para emergências, empenhou-se em fazer o que Eric lhe pedira: aguardá-lo confiante, sem entrar em pânico. Essa paz interior seria necessária, sobretudo, se ele não regressasse. Tinha que ser forte, principalmente por causa de James. Se desmoronasse, o menino não teria chance de sobrevivência. Mesmo sangrando por dentro, partiria ao amanhecer, caso Eric não aparecesse. Valer-se-ia de cada fibra de seu ser para levar o filho de Sorcha em segurança até Dunnbea.

O resfolegar de um cavalo foi à primeira coisa a penetrar a barreira de exaustão física e mental atrás da qual Bethia se refugiara. Quando o sol sumira no horizonte ela e James havia se escondido sob um arbusto espesso e desconfortável. À medida que a escuridão avançara, seu pavor aumentara. Temia pelo sobrinho, por si mesma e, especialmente, por Eric.

Não ousara acender uma fogueira receando atrair a atenção de quem se aventurasse pelas redondezas e enrolada num cobertor, passara o tempo rezando para que o cavaleiro retornasse são e salvo. Agora, ao escutar alguém aproximar-se, precisava lutar contra o impulso de sair do esconderijo e gritar o nome daquele que ansiava ver. A prudência a manteve imóvel, mantendo a adaga erguida em posição de ataque.

— Bethia? — Eric chamou baixinho.

Ele vasculhara o local onde a deixara, juntamente com o bebê, e nada pudera enxergar. Por um breve instante imaginara ter se perdido, pela primeira vez na vida. Então receara que William a houvesse descoberto e aprisionado. Mas logo afastou a possibilidade aterradora. Não tinha dúvida de que conduzira o maldito para bem longe dali.

Ruídos súbitos e abafados o impeliram a desembainhar a espada. Pasmo, observou Bethia sair do meio das sombras. Como não a notara, estando ambos tão perto? Essa mulher bela e pequenina possuía qualidades incomuns.

— Onde você estava? — ele indagou, devolvendo a espada à bainha e desmontando.

Esforçando-se para resistir ao ímpeto de se atirar nos braços viris, Bethia apontou o arbusto compacto.

— James e eu nos escondemos ali. Você está bem?

— Sim. Plantei rastros falsos para o canalha seguir, o que nos permitirá chegar a Dunnbea em segurança. No centro da clareira, Eric começou a armar uma fogueira. Você tem verdadeiro talento para encontrar bons esconderijos, milady. Mais uma habilidade aprendida com seu amigo Bowen?

— Sim. Delicadamente, Bethia retirou o sobrinho adormecido de sob a vegetação e o acomodou na caixa de madeira que Eric fizera questão de trazer da cabana. Quando ele era recém-chegado a Dunnbea e estávamos sofrendo ataques constantes e cercos demorados. Qualquer incauto surpreendido fora das muralhas corria grave perigo e, como eu costumava correr livremente pelas redondezas sem que meus pais se importassem, Bowen decidiu me ensinar a me refugiar em lugares abertos. Mais tarde mostrou-me como manejar uma adaga também.

— Pois você aprendeu bem as lições, milady. Não havia sinal da sua presença e temi que houvesse fugido ou caído prisioneira.

— O fato de James ser uma criança de natureza tranqüila ajudou muito. O silêncio absoluto é fundamental quando queremos passar despercebidos.

— Além da natureza tranqüila, seu sobrinho é um dorminhoco.

— É verdade. Embora James não costume chorar com freqüência, quando está acordado seus gritinhos de alegria podem ser ouvidos a distância. Debruçando-se sobre o berço, murmurou: — Ele vai ser um rapaz bonito quando crescer. Talvez até mais alto e mais bonito do que você, milorde.

— Então eu já estarei tão velho que não vou me importar com as comparações — Eric retrucou num tom brincalhão, fazendo-a rir.

Logo, porém, os dois assumiam uma expressão séria, sentindo-se pressionados pela urgência dos problemas.

— Você acha que William descobriu a cabana onde nos refugiamos?

— Não sei. E possível que ele estivesse apenas percorrendo a rota para Dunnbea, na esperança de avistá-la no meio do caminho. Tenho a impressão de que esse sujeito é engenhoso para envenenar as pessoas, mas duvido de que saiba lutar pelo que quer de maneira direta. Covardes agem apenas pelas costas. As poucas vezes em que o observei, e aos filhos, pareceu-me que nenhum dos três estivesse realmente procurando vestígios de nossa passagem.

— Eu só queria que isso o tornasse menos perigoso.

Eric nada respondeu, limitando-se a iniciar os preparativos da refeição frugal. Bethia tinha razão. Não importava quão questionável fossem certas habilidades de William Drummond. O canalha a queria e James mortos, o que bastava para convertê-lo num perigo concreto. A única forma de pôr fim à ameaça seria matando-o e aos filhos. Mas antes de Bethia e o sobrinho estarem seguros dentro das muralhas de Dunnbea, essa não era uma solução viável.

— Talvez eu devesse simplesmente caçar o maldito e matá-lo — ela desabafou num misto de cólera e cansaço.

Com dificuldade, Eric engoliu o resto da água sem engasgar. Bethia dava a impressão de ler seus pensamentos! Não, tratava-se apenas de uma mulher inteligente, que chegara à mesma conclusão após analisar as reduzidas opções.

— Você não pode caçá-lo, milady.

— Por que não?

— Porque é uma dama pequenina e delicada.

— Não tão pequenina, nem tão delicada.

— Pequenina demais para destruir sozinha um assassino frio e calculista. E o que você planeja para James enquanto estiver envolvida nesta caçada? Arrastá-lo consigo numa empreitada suicida?

Atônita, Bethia fitou Eric, sem entender a intensidade de sua irritação. Reconhecia não ser aquela uma idéia brilhante, mas tampouco a considerava merecedora de tão veemente crítica. O comportamento do cavaleiro a fizera lembrar-se das vezes em que apresentara algumas sugestões a Bowen, todas audaciosas e malucas na concepção do mestre de armas. Obviamente faltava aos homens a capacidade de permanecerem calmos ao examinar possíveis estratégias de ação.

— Pelo visto você não deseja discutir o assunto, sir.

— O que desejo é que você nem sequer pense a respeito.

Obstinada por natureza, Bethia ressentiu-se do tom autoritário. Que direito tinha Eric de lhe dizer o que fazer? Não; estava sendo ingrata. De livre e espontânea vontade, adotara-o como seu protetor, seu guardião. Confiara-lhe sua vida e a de James. Bem no íntimo compreendia que caçar William seria uma loucura, uma missão fadada ao fracasso antes de ser iniciada.

— Como quiser — concedeu, aceitando a tigela de mingau e o pedaço de pão que lhe eram oferecidos.

— Ah, tão mansa! — exclamou Eric, rindo. Você não é o tipo de desistir à toa.

— Como pode falar tal coisa? Por acaso não acatei sua opinião?

— Sim, depois de concluir, sozinha, não se tratar de uma idéia sensata. Presumo que você não tenha sido uma criança muito obediente, milady.

— Não, não fui. Bowen ou ria, ou se desesperava comigo. Minha mãe e meu pai costumavam afirmar que Sorcha havia herdado toda a doçura do mundo, e eu, toda a teimosia. Se pudesse, Bethia queria esquecer o desgosto e a decepção que sempre causara aos pais. Mas uma vozinha interior insistia em sussurrar que não merecera tantas palavras duras, tantas reprimendas e críticas. Será que nunca fizera nada certo, nada digno de elogios?

— Algo errado? — Eric perguntou, notando a súbita melancolia toldar a beleza das feições clássicas.

— Não. Só estou cansada. Vou até o riacho lavar os utensílios e então irei me deitar. Você precisa repousar também, sir. Não se esqueça de que dias atrás ardia em febre. Uma recaída seria perigosa.

Em silêncio, ele a observou desaparecer no meio das árvores, quase bendizendo a exaustão física que o invadira. Assim seria mais fácil deitar-se e apenas dormir.

Quando Bethia retornou para o centro do acampamento, Eric havia acabado de se retirar com a intenção de tomar um banho rápido. Pensativa, ela deitou-se sobre os cobertores finos, perguntando-se como deveria agir. Duas vezes, quando a febre o abatera e quando ele se expusera como isca para enganar William, enfrentara o medo de perdê-lo. Agora a terceira vez aproximava-se. Dentro de dois dias alcançariam Dunnbea. Eric, então, partiria para sempre.

Desejava-o. Impossível negar a verdade. Ansiava conhecer o calor dos braços fortes e expressar com o corpo o amor que não ousava declarar com palavras. Olhando para o futuro, não via muita chance de encontrar outro homem para amar, ainda que conseguisse esquecer Eric. Queria saborear a paixão.

Eric lhe dera uma amostra com beijos e carícias sedutoras. Queria mais.

Naturalmente estaria transgredindo regras, se fosse até o fim. Estaria cometendo erros nos quais preferia não pensar. Conforme o código de conduta moral no qual fora criada, sua virgindade deveria ser guardada até o casamento. Contava já com quase vinte anos, e ninguém nunca a cortejara. E duvidava de que viesse a se apaixonar por um pretendente escolhido pela família. Amava Eric e morreria amando-o.

Quando o cavaleiro retornou para junto da fogueira, estava quase decidida a entregar-se, superando os seus receios. Seria uma tola se não agarrasse, com ambas as mãos, sua única oportunidade de ser feliz. Viveria o momento sem se preocupar com as conseqüências, ou com a dor de saber que teria o coração partido quando alcançasse Dunnbea e acordasse daquele sonho impossível.

Ao deitar-se, Eric deparou com o olhar de Bethia perscrutando-o. Num impulso, enlaçou-a pela cintura e puxou-a para si, beijando-a na boca avidamente.

— Você deve estar confusa, milady — ele murmurou ofegante, afastando-se alguns centímetros. Este foi um beijo matutino.

Sorrindo, Bethia colou-se ainda mais ao corpo musculoso.

— Há tipos diferentes de beijos para diferentes ocasiões, sir? — perguntou.

— Para nós, sim.

— Então que tipo de beijo você me daria se eu lhe dissesse que ainda não estou pronta para dormir?

— Um beijo que a fizesse implorar por mais.

De repente, era como se o tempo houvesse parado e não existisse mais ninguém no mundo, exceto os dois, emaranhados numa teia de paixão carnal. Perdidos um no outro, beijaram-se e tocaram-se com uma urgência que beirava o desespero.

— Milady — disse Eric, tenso, se você pretende pôr um fim nisso seria sensato fazê-lo agora. Estamos chegando a um ponto sem retorno.

— Não estou me sentindo muito sensata hoje ela retrucou, provocante. Aliás, não me interessa a prudência.

— Envaidece-me pensar que meus beijos têm a capacidade de atordoá-la, porém é possível que você não imagine aonde isto tudo vai nos levar. Ou as conseqüências desse ato.

Eric fez menção de levantar-se, com todo aquele cavalheirismo que o impedia de se aproveitar da ingenuidade de uma donzela.

— Se você se afastar de mim, sir, serei obrigada a machucá-lo.

Bethia não podia acreditar nos próprios ouvidos. Como fora capaz de dizer uma coisa daquelas, de agarrar-se ao lorde Murray como se pretendesse imobilizá-lo, subjugá-lo? Embaraçada, soltou-o e cobriu o rosto com as mãos. Deixara claro não ser uma verdadeira dama, comportando-se como uma desatinada.

— Querida, por favor, acredite-me, não era minha intenção ofendê-la ao afastar-me. Apenas não…

De repente, para completo horror de Bethia, ele começou a rir. Sua noite de paixão não estava transcorrendo conforme planejara. Imaginara doces palavras de aceitação e encorajamento, beijos deliciosos e carícias embriagadoras. Vira-se deixando a timidez de lado para, apesar de relutante, perder a virgindade nos braços do homem amado. Em vez disso, ameaçara-o fisicamente e se tornara alvo de risadas. E ele ainda afirmara não ter tido intenção de ofendê-la. Embora mínima, existia a possibilidade de não ser julgada uma completa idiota.

— Vamos querida, admita. É uma situação engraçada — ele falou, beijando-a nos cabelos carinhosamente. Se você não estivesse envolvida, acharia divertido também. Muitas mulheres já me cortejaram, assediaram, me suplicaram, me compraram, porém…

O comentário a fez parar de recriminar-se pela falta de tato com que conduzira a situação.

— Compraram você?

— Sim. — Decidido, Eric deitou-a de costas, imprensando-a contra o chão com o próprio corpo. Ofereceram-me uma soma respeitável por meus “serviços”.

— Por acaso a dama em questão o tomou por algum aproveitador?

Ele sorriu ante o ultraje de Bethia. Indignara-a idéia de alguém tê-lo considerado um homem sem caráter, capaz de fazer sexo por dinheiro.

— Não. Apenas supôs que seus encantos não eram suficientes para me atrair e que, sem um incentivo extra, eu não retribuiria seus avanços. Foi uma oferta tentadora.

— Você não a aceitou, não é?

— Receio que sim. Era muito novo e precisava de dinheiro para me manter na corte enquanto procurava obter, por métodos pacíficos, a posse de minha herança. Mais tarde descobri que essa dama sempre fora famosa por comprar jovens cavaleiros, pagando-os muito bem para que lhe aquecessem a cama por uma ou duas noites. — Aliviado, Eric suspirou fundo quando Bethia sorriu. Somente no meio das explicações dera-se conta de que ela poderia não achar sua história tão engraçada quanto sua família achava.

— Se homens pagam por favores das mulheres, é possível existirem mulheres que se sintam no direito de agir da mesma forma.

— Talvez. Mas chega de falar disso. E uma história antiga e sórdida. Prefiro pensar em outras coisas. Eric despiu-a devagar e então parou, dando-lhe uma última oportunidade de mudar de idéia. Tem mesmo certeza, querida? Não haverá como voltar atrás.

De fato Murray não estava se referindo somente à perda da virgindade. Depois, quando a tivesse feito sua, a faria compreender que aquela posse fora definitiva. Não a permitiria desaparecer de sua vida e tornar-se mulher de outro homem.

— Pode não ser sensato, mas é o que eu quero. Contemplando-a nua, à luz do fogo, ele pensou que a beleza das formas femininas nunca lhe parecera tão resplandecente. Seios pequenos e firmes, mamilos túrgidos, cintura delgada, quadris arredondados, abdômen firme. Preso de uma excitação jamais experimentada antes, Eric receou não ser forte o suficiente para agir com a paciência necessária. Em poucos segundos despiu-se, a virilidade ereta denunciando seu ardor.

— Pele deliciosamente acetinada — murmurou, beijando-a na base do pescoço quase com reverência.

Bethia queria retribuir o elogio, mas as palavras lhe faltavam. O modo como os dedos longos e elegantes massageavam seus mamilos roubava-lhe a capacidade de elaborar pensamentos coerentes, quanto mais exprimi-los. E quando a boca sensual pôs-se a sugá-los alternadamente, gemeu baixinho e arqueou as costas, oferecendo-se sem reservas.

Fitando-a fixamente, ele deslizou uma das mãos pelo ventre aveludado, acariciou os pêlos sobre o vértice do sexo e tocou-a nas dobras de pele quente e úmida. Envergonhada com a intimidade da carícia, ela quis se afastar. Mas logo a timidez inicial se transformou em luxúria. Agarrando-se nos ombros largos, abriu-se como as pétalas de uma flor.

Atordoada de prazer, Bethia mal sentiu quando o membro rígido a invadiu, roubando-lhe a inocência. A dor repentina trouxe-a de volta à realidade.

Devagar, abriu os olhos, corando até a raiz dos cabelos. Eric permanecia imóvel e, pela expressão tensa do rosto, estava claro o quanto àquela imobilidade voluntária lhe custava.

— Acho que ainda não chegamos ao fim — ela sussurrou trêmula, enterrando as unhas nas costas largas do cavaleiro sem o perceber.

— Ah, minha querida, estamos só no começo. Lentamente, Eric começou a dança eterna e imemorial, em que as investidas ganhavam ritmo e força.

— Por favor, não me deixe — Bethia pediu num fio de voz, passando as pernas ao redor da cintura estreita como se para impedi-lo de afastar-se. Se fosse abandonada, morreria.

— Eu não poderia deixá-la agora, mesmo que William e uma horda de assassinos estivessem ao nosso redor.

Quando Bethia pensou que alguma coisa estava errada, que chegara a um nível de tensão insuportável, Eric introduziu a mão entre os corpos de ambos, pressionando-a no centro da feminilidade. Um orgasmo prolongado e violento a fez gritar alto, completamente descontrolada. No auge do prazer, Eric também atingiu o clímax, inundando-a com sua seiva.

Exaustos, saciados, abraçaram-se, sentindo a noite os cobrir com seu manto protetor.

Dominado por uma ternura infinita, Eric apoiou-se num dos cotovelos e contemplou a jovem dama, tão bela, tão doce. Aquela mulher lhe pertencia.

Não era somente uma questão de honra que o levava a querer desposá-la. Tampouco se tratava apenas de paixão carnal. No momento em que a penetrara, soubera haver encontrado sua alma gêmea. Soubera que Bethia estava destinada a ser sua, de corpo, mente e espírito, por toda a eternidade. Ao entregar-se, ela selara o destino de ambos. Perguntava-se quanto tempo ela levaria para se curvar ao inevitável e quão duramente teria que lutar para convencê-la a aceitá-lo como marido.

Aconchegando-se ao peito musculoso, sonolenta e exultante, Bethia agradeceu aos céus por haver colocado aquele homem em seu caminho. Pelo menos naquela noite e, talvez, na noite seguinte, o teria para si. Deixar-se seduzir lhe revelara toda a beleza do sexo e mostrara-lhe quão profundamente amava Eric. Quando se separassem, ao chegar a Dunnbea, a dor, o sofrimento, iria com certeza consumi-la, mas recusava-se a pensar nisso agora, recusava-se a imaginar seu futuro, solitário e estéril. No momento, segura entre os braços amorosos, sentia-se plenamente feliz pela Primeira vez na vida. E pretendia agarrar-se a essa felicidade, ainda que ilusória, tanto quanto possível.

 

— É dia de feira — Bethia murmurou, sentindo-se incomodada com a multidão barulhenta que se espremia nas ruas estreitas da aldeia.

— Sim. Acho melhor desmontarmos. Connor tem uma natureza sossegada, mas toda essa algazarra e agitação talvez acabem perturbando-o. Se eu o conduzir pelas rédeas, as chances de que surja algum problema serão menores.

Aconchegando James junto ao peito, Bethia procurou andar depressa, embora fosse difícil abrir caminho no meio de toda aquela gente.

A vila fervilhava. Vozes de comerciantes e artesãos, anunciando seus produtos aos brados, misturavam-se aos latidos, mugidos e guinchos dos animais, numa cacofonia ensurdecedora.

Quanto mais observava o movimento, mais inquieta Bethia se sentia. E se não encontrassem um quarto disponível na estalagem? E se fossem reconhecidos por alguém mal-intencionado, alguém capaz de delatá-los a William em troca de umas poucas moedas?

— Não seria melhor seguirmos para Dunnbea? — ela perguntou, aflita, apertando o passo.

— Não sei se conseguiríamos chegar antes do anoitecer.

Tratava-se de uma pequena mentira, uma mentira inofensiva. Se cavalgassem duramente, poderiam alcançar Dunnbea ainda com a luz do dia. No entanto, não estava com nenhuma pressa de devolvê-la à família. Mesmo considerando o perigo que os rondava, os inimigos podendo surpreendê-los a qualquer momento, queria mais uma noite a sós com Bethia. Precisava estreitar os laços de paixão que se formaram entre os dois, precisava enfatizar que possuíam um ao outro. Tão logo a instalasse, e a James, em Dunnbea, seria obrigado a partir para a fortaleza dos MacMillan e queria ter certeza de haver deixado para trás uma mulher que sabia, exatamente, a quem pertencia.

Pensar no motivo que o levava a procurar os MacMillan, aliados dos Drummond, causava-lhe algum desconforto. Nem mais uma palavra sobre a natureza de sua missão fora dita desde que revelara a verdade e relutava em abordar o tema outra vez. Bethia tê-lo aceitado como amante abrandava sua preocupação, porém estava longe de achar que a questão fora encerrada. Quando muito, havia esperança de vir a encontrar uma solução para o conflito entre a luta por seus direitos e a opinião dela sobre o assunto.

— Oh, não imaginei que ainda estivéssemos tão longe.

— Você nunca esteve aqui antes?

— Não. Nunca saí de Dunnbea.

— Nunca?!

— Não. Por que o espanto?

— Porque seria natural você visitar uma aldeia vizinha ao castelo num dia de feira.

— Alguém tinha que se encarregar de administrar Dunnbea na ausência de meus pais e de Sorcha.

— Depois de adulta é até compreensível. Mas você era abandonada também quando criança?

As perguntas de Eric não a estavam agradando porque a obrigavam a lembrar-se de ocasiões dolorosas, de coisas que tentara apagar da memória para não alimentar o rancor e o ressentimento. Há muito tempo secara as lágrimas, enterrara o sofrimento e obrigara-se a se conformar com seu destino.

Evidentemente sempre houvera nela algo que os pais não podiam suportar e, num esforço supremo para não decepcioná-los mais, transformara-se em filha obediente e cumpridora de suas obrigações. Aborrecia-a lorde Murray ameaçar destruir a fachada de normalidade que criara para si.

— Fui uma criança desajeitada — retrucou incapaz de disfarçar a irritação. E doente. Meus pais achavam que eu estaria mais segura em Dunnbea. Bastou um olhar rápido para constatar que sua explicação não o convencera. Preferindo não lhe dar chance de emitir comentários, continuou: — Quando fiquei mais velha, todos nós concluímos que eu seria mais útil em Dunnbea porque desde muito nova, já havia assumido os deveres domésticos de minha mãe. Ela é uma mulher delicada, que necessita de cuidados constantes.

Eric abriu a boca para dizer que tudo aquilo não passava de uma bobagem e tornou a fechá-la. Bethia não era estúpida. No fundo, reconhecia haver sido sempre rejeitada, injustiçada. Estava claro que preferira ignorar a verdade, enganando a si mesma para evitar dissabores maiores e manter a paz dentro da família. De nada adiantaria, naquele instante, pressioná-la, reabrindo antigas feridas. Contudo, para uma de suas perguntas exigiria resposta.

— Seus pais devem ter se preocupado quando você, de repente, decidiu visitar sua irmã.

— Sorcha havia me chamado. Cabia-me atendê-la.

— Eles não quiseram acompanhá-la na viagem?

— Não estavam disponíveis. Parti imediatamente, com uma pequena escolta. A guarda retornou a Dunnbea com notícias da morte de minha irmã. Meus pais devem estar arrasados, mergulhados em profunda tristeza.

— Você poderá abrandar essa dor quando lhes entregar o neto — murmurou Murray, numa fraca tentativa de oferecer-lhe consolo.

Não passou despercebido a Bethia o esforço de Eric para soar sincero e cortês. Em vez de questioná-lo, voltou à atenção para James. Pedia a Deus que seus pais o acolhessem com amor. Ambos haviam sido tão ferozmente dedicados a Sorcha, que temia não haver sobrado uma única gota de afeto para quem quer que fosse. Beijando a cabeça do sobrinho, prometeu a si mesma jamais desertá-lo.

Defronte da hospedaria, ela esperou paciente, o retorno de Eric. De súbito, a vontade de seguir viagem desaparecera substituída pelo desejo de desfrutar dos confortos de uma boa cama. Os poucos dias passados na cabana a tinham acostumado. Apesar do prazer experimentado nos braços de Eric na noite anterior, não fora agradável dormir no chão duro. Também gostaria de um banho e uma refeição decente.

— Temos um quarto? — indagou, entusiasmada.

— Sim e… — Eric beijou-a na ponta do nariz, já mandei prepararem um banho quente.

— Oh, obrigada! Você é maravilhoso! E comida?

— Encomendei muita comida. Carne, pão e vinho em quantidades suficientes para satisfazer um rei. Enquanto você estiver tomando banho, James e eu levaremos Connor para o estábulo e então sairemos para comprar suprimentos para a jornada de amanhã.

— Não há necessidade de você gastar mais dinheiro. Não será uma cavalgada longa até Dunnbea.

— De fato, não. Mas esteja certa de que comeremos até nos fartar durante a viagem.

Umas poucas palavras da esposa do estalajadeiro e Bethia constatou que a simpática senhora os considerava uma jovem família. Duvidava de que Eric houvesse mentido a respeito, apenas não se interessara em corrigir o engano.

Ao entrarem no quarto, o fogo já ardia na lareira e duas criadas terminavam de encher a tina para o banho. Antes de se retirarem, as servas lançaram olhares e sorrisos tão sugestivos para Eric que Bethia ardeu de ciúmes, embora o cavaleiro, ocupado em brincar com James, não percebesse o que se passava.

— Vou deixá-la sozinha para banhar-se, milady. Com James no colo, Murray caminhou para a porta.

— Por favor, vá. Mas não demore muito.

— Não se esqueça de trancar a porta.

— Não me esquecerei.

Sozinha, Bethia trancou a porta, despiu-se apressadamente e entrou na tina, suspirando de satisfação. Há muito tempo não desfrutava de tal luxo.

Sentindo os músculos doloridos começarem a relaxar, descobriu-se pensando no descaramento das criadas, apesar de o comportamento despudorado não a surpreender. Um homem bonito e viril como Eric devia ter tido sempre mulheres se atirando aos seus pés. O que a enfurecera fora não a haverem respeitado, ou a James, a fictícia família do cavaleiro.

Logo a presença máscula de Eric já não lhe diria respeito. Mas, pelo menos naquela noite, o teria apenas para si. O completo desinteresse que ele demonstrara pelas servas era a prova de que, no momento presente, nenhuma outra o atraía.

Sua determinação de permanecer indiferente caiu por terra duas horas depois. Terminara de se vestir e mal Eric entrara no quarto, as duas criadas apareceram, trazendo baldes de água quente e sorrindo feito tolas. Quando as desavergonhadas se ofereceram para banhá-lo bem na sua frente, a suposta esposa, Bethia, resolveu pôr um ponto final na situação. Não permitiria que sua última noite de felicidade fosse estragada por criaturas vulgares.

Ignorando o clima tenso, uma das moças estendeu a mão para a túnica de Eric, com a óbvia intenção de despi-lo.

— Se você está tão ansiosa para esfregar alguma coisa, tente isto. Furiosa, Bethia entregou-lhe várias fraldas sujas de James. Quero-as lavadas. E sem demora.

Engolindo o riso, Eric esperou as empregadas se retirarem, antes de olhar para Bethia. Vê-la no auge da fúria encheu-o de alegria. Ciúme costumava ser sinal da existência de um sentimento mais profundo.

— É sempre assim? — ela indagou, fechando a porta com força.

— Assim como, querida?

— As duas só faltaram arrancar suas roupas e jogá-lo na cama. Se eu não tivesse interferido…

— Em geral as mulheres não costumam ser tão afoitas.

— Parecia que eu nem sequer estava presente.

E isto, Eric pensou, melancólico, talvez fosse o pior de tudo. Bethia passara a vida inteira ignorada pelos pais e pela irmã, tratada como se realmente não estivesse presente. As criadas tinham sido atrevidas e situações semelhantes provavelmente voltariam a acontecer. Não estava sendo vaidoso ou arrogante.

As mulheres apenas gostavam da sua aparência.

Até que a idade avançada ou ferimentos o desfigurassem, era possível que continuassem o assediando. De algum modo precisava fazer Bethia entender que aquelas impertinências não deviam preocupá-la. Precisava fazê-la sentir-se segura de si.

— Foi apenas um comportamento grosseiro. E uma patética cegueira à minha completa indiferença. Sorrindo ele tirou a túnica e jogou-a no chão. Você não vai ficar aqui e me ajudar no banho?

A simples visão do peito nu fez o coração de Bethia disparar.

— James e eu vamos ao mercado comprar leite de cabra.

— Covarde! — Murray a provocou, rindo.

— É melhor trancar a porta, milorde. Seria terrível retornar e descobrir seu pobre corpo sendo devorado.

— Não se preocupe milady. Pretendo me guardar inteiro para você.

Saindo da pousada, ao cruzar com as duas servas, Bethia suspirou fundo. Talvez fosse mesmo melhor Eric e ela estarem à beira da separação definitiva. Enlouqueceria de ciúme. Passaria o resto da vida temendo vê-lo aceitar um daqueles convites imorais. Qualquer homem acabaria, eventualmente, sucumbindo à tentação constante. Se, por milagre, ele a desposasse, receava terminar seus dias consumida pela insegurança.

— Como se não bastasse, tenho uma imaginação fértil… — Beijando os cabelos sedosos do sobrinho, Bethia decidiu afastar as preocupações e concentrar a atenção nas necessidades do menino. Em primeiro lugar, daria um jeito de encontrar o leite de cabra que James tanto adorava.

Ao abrir a porta do quarto, Bethia sorveu o ar com sofreguidão, saboreando o delicioso aroma de carne assada e pão fresco.

— Eu estava a ponto de abrir a janela e gritar seu nome, Eric falou rindo e sentando-se à mesa diante da lareira.

— Trouxeram a refeição instantes atrás e tive medo de não conseguir esperá-la antes de me atirar sobre a comida feito um lobo esfomeado.

— Oh, nem sei por onde começar — Bethia sentou-se, acomodando James no colo. Se comermos tudo isso, Connor nunca será capaz de nos carregar até Dunnbea.

Eric cortou um pedaço de pão, picou-o em pedacinhos e colocou-o num prato para o menino. Depois serviu Bethia de uma porção generosa de carne com batatas, acompanhada de uma grossa fatia de pão. Somente então preparou um prato para si.

Durante os muitos minutos que se seguiram reinou no quarto o mais absoluto silêncio, todos os três deleitando-se com a fartura de alimentos.

Finalmente, sabendo que não poderia ingerir mais uma única migalha, Bethia levantou-se, caindo na risada diante do estado de James. Toda lambuzada de mel, a criança batia palmas de satisfação.

— Ah, que porquinho guloso você é! Vou lhe dar um banho já!

— Tem uma bacia com água quente perto da janela — mostrou lorde Murray.

Após banhar e trocar o menino, Bethia, notando-o sonolento, colocou-o no bercinho improvisado; sentiu-se, então, dominada por uma melancolia súbita. Não tardariam a alcançar Dunnbea, e James não mais seria apenas seu.

— Você não vai perdê-lo, querida. — Eric a abraçou, confortando-a.

— Logo ele estará aos cuidados de meus pais.

— Sim, mas continuará lhe pertencendo. James já a chama de mamãe.

— Sinto-me tão feliz quando o escuto me chamar assim. Mas também culpada. Eu não deveria ficar feliz quando James parece estar esquecendo minha irmã, esquecendo a verdadeira mãe.

— O garoto é novo demais para ter lembranças marcantes de Sorcha. Em especial porque passava mais tempo com a babá do que na companhia da mãe.

Apesar de o comentário incomodá-la, Bethia reconhecia a verdade.

— Sim, ele tinha uma ama-de-leite, bondosa e dedicada. Lamento ter fugido de Dunncraig sem dar à pobre mulher chance de se despedir.

— Se ela gostava mesmo de seu sobrinho, sem dúvida alegrou-se por alguém ter tido a coragem e sensatez de tentar salvá-lo.

— Imagino que sim. Pensativa, Bethia calou-se durante alguns segundos. Confesso haver me surpreendido quando soube que a ama-de-leite praticamente criava o menino. Sorcha era tão apaixonada por Robert, que não suportava separar-se dele. Seguia-o para todo lado, acompanhava-o em todas as viagens à corte, deixando o filho entregue à babá por meses a fio. Quando tudo isto terminar, pretendo convidá-la para morar em Dunnbea, onde poderá me ajudar a cuidar de James.

— Seria gentil da sua parte. Recostando-se na cabeceira da cama, Eric a chamou. Venha deitar-se, milady.

— Ainda estamos vestidos! — Um tanto relutante, ela sentou-se na beirada da cama.

— Pelo menos já tiramos nossas botas.

— Como você é educado, sir! — Quando Eric pôs-se a desfazer o laço de seu vestido, Bethia retraiu-se. — Está muito claro aqui.

— Felizmente sim. Ontem à noite eu maldizia a escuridão.

— Enquanto eu a bendizia.

— Ah, como você é bela!

Sem perceber como, Bethia descobriu-se deitada, nua em pêlo. Numa tentativa de esquecer a própria falta de exuberância, fitou Eric. Já o vira nu antes, quando o tratara da febre. Jamais se cansaria de admirá-lo. A pele bronzeada ressaltava os músculos bem torneados, num convite irresistível ao toque. Mas, ao reparar no tamanho do membro ereto, o ar lhe faltou subitamente dos pulmões. Se o houvesse visto naquele estado à luz do dia, duvidava de que o tivesse aceitado como amante. Assombrava-a a pouca dor causada pela penetração, considerando as proporções do sexo rígido.

— Espero que não seja uma visão tão horrível assim. — Sorrindo, Eric beijou-a de leve nos lábios.

— Não. Eu só estava pensando que ontem a escuridão foi minha aliada. Não posso acreditar que isto caiba em mim.

— Não é maior do que o de qualquer outro homem. E, sim, ajusta-se perfeitamente em você. Tomando a mão delicada, ele a colocou sobre sua virilidade intumescida,

E o prazer provocado pela carícia inebriou-o como um vinho possante. Você está dolorida?

— Não. Deveria estar?

— Algumas mulheres queixam-se de um desconforto prolongado após a primeira vez. Não sei muito sobre o assunto. De fato, nunca me deitei com uma virgem antes.

— Nunca?! Alguma regra sua?

— Sim. Uma regra que quebrei irremediavelmente agora.

— Sinto muito — Bethia murmurou, sem entender por que se desculpava.

— E deveria, sendo você uma tentação irresistível para qualquer homem de sangue quente nas veias. Devagar, Eric afastou a mão pequenina.

— Eu estava fazendo alguma coisa errada? Achara uma delícia tocá-lo ali e não queria romper o contato.

— Não, querida. Você estava fazendo tudo muito bem. Bem demais.

Antes que Bethia dissesse algo, ele a beijou avidamente na boca, pondo fim à conversa. Não iria reclamar dos métodos do cavaleiro. Era assim que gostaria de passar a noite, inundada, afogada no prazer que apenas Eric podia lhe dar. Essa seria sua última oportunidade de amá-lo por inteiro e não pretendia desperdiçar um minuto sequer.

Dominada por um desejo avassalador, perdida na ânsia de sorver o gosto, o cheiro de Eric, Bethia abandonou qualquer senso de modéstia, ou embaraço. Ousada, retribuiu com igual ardor os beijos, os toques. Logo estava tão excitada que tentou forçá-lo a penetrá-la. Desta vez, ouvindo-o rir baixinho, riu também, segura de que ambos partilhavam do mesmo delírio e da mesma alegria de se quererem tanto. Quando, enfim, os corpos de ambos se uniram, ela gritou de contentamento. Eric permaneceu imóvel, fitando-a fixamente.

— Você é minha. A voz urgente revelava desespero. Precisava fazê-la entender que o que os unia ia além da paixão carnal. Que não se contentaria com uma noite de sexo selvagem seguida de um adeus cordial.

— Bem, como estou esparramada debaixo de você feito um peixe no anzol, creio que não poderia contradizê-lo agora.

— Que maneira amorosa de lisonjear um homem — ele brincou, ficando então muito sério. Não, não estou me referindo apenas ao agora, enquanto estou enterrado em seu doce corpo. Você é minha, toda minha. Diga-o. Tenho que ouvi-la dizer.

Embora Bethia não compreendesse exatamente por que Eric necessitava escutá-la pronunciar aquelas palavras, resolveu atendê-lo. Talvez ele não soubesse, mas tratava-se da pura verdade. Pertencia-lhe. Pertencia-lhe agora e por toda a eternidade. Mesmo se tentasse, nunca arrancaria da pele sua marca, nunca o esqueceria, não importando o que lhe reservasse o destino. Amava-o e doía-lhe a alma não poder confessá-lo.

— Sim — murmurou, deslizando a ponta dos dedos pelo rosto másculo. Sou sua.

Nos olhos de Bethia Drummond, lorde Murray viu estampado um misto de insegurança e ansiedade. Ainda não era o momento de falar aquilo que a faria superar toda a incerteza. Não era o momento de falar sobre casamento. Se o fizesse, Bethia pensaria que agira movido pelo senso de dever, porque lhe tirara a virgindade. Precisava de tempo para levá-la a acreditar que seus sentimentos eram muito mais profundos.

Abandonando-se à paixão, Bethia perguntou-se como ele não conseguia perceber o quanto o amava, se o demonstrava em cada gesto, cada suspiro, cada beijo?

No auge do clímax, escutou-o gritar algo, mas não seu nome. Escutou-o gritar a palavra minha.

Quando jaziam nos braços um do outro, lânguidos e saciados, uma idéia lhe ocorreu subitamente. Será que Eric também se sentia inseguro às vezes? Sofreria com dúvidas semelhantes às suas? Se fosse assim, ao fim daquela noite, o teria feito esquecer todas as possíveis dúvidas. O modo como iria amá-lo até o amanhecer o convenceria de que lhe pertencia de corpo, alma e mente.

Uma lâmina fria pressionando sua garganta não era uma maneira agradável de começar o dia, Eric pensou, acordando repentinamente e passando um braço protetor ao redor de Bethia, ainda adormecida. Os inimigos os tinham encontrado e a culpa fora sua. Num misto de raiva e frustração, odiou-se por haver falhado tão completamente na missão que lhe fora confiada.

— Prima, é melhor você abrir os olhos, tanto faz o verde ou o azul, e dar uma olhada neste cafajeste antes que eu o degole — disse o rapaz alto que empunhava a espada.

Prima. Nunca essa palavra soara tão agradável aos ouvidos de Eric. Percebendo Bethia se mexer, continuou segurando-a firme para mantê-la quieta. Não queria expô-la, nua, diante dos quatro intrusos que povoavam o quarto.

Devagar, estudou os desconhecidos que o fitavam com intensa aversão. O sujeito ao lado da cama, de espada em riste, devia ser Wallace; os olhos verdes e os cabelos ruivos o caracterizavam como um Drummond. Os dois mais velhos, e de tez mais escura, seriam Peter e Bowen. Quanto ao quarto membro do grupo, não fazia idéia de quem era.

Na situação em que se achava, não estava causando uma boa primeira impressão àqueles que haviam tido um papel importante na infância solitária de Bethia.

— Eric? — ela murmurou, espreguiçando-se.

— Calma milady. Temos companhia.

Aterrorizada, Bethia abriu os olhos. Ao reconhecer Wallace, Peter, Bowen e Thomas, o pavor inicial transformou-se em embaraço. Não conseguia acreditar que fora surpreendida numa situação tão comprometedora. Reparando na espada apontada para Eric, empurrou-a para longe, praguejando baixinho.

— O que você está fazendo Wallace? Não há necessidade de ameaçar este homem!

— Pois este homem está nu, deitado ao seu lado, na cama. Por acaso, você vai me dizer que o desposou?

— Por que não esperam lá fora até nos vestirmos? Depois conversaremos.

— Você ainda não respondeu à minha pergunta, prima. O bonitão é seu marido?

— Não quero conversar sobre isso despida.

— Cinco minutos — rugiu o mais alto, os olhos castanhos e ameaçadores fixos em Eric.

— Bowen! — Bethia reclamou, irritada.

— Cinco minutos. Aguardaremos no corredor e Thomas ficará na rua, vigiando a janela.

— É melhor nos apressarmos — Bethia instruiu Eric, tão logo ficaram sozinhos. Quando Bowen diz cinco minutos, reduza para quatro.

Agitada, ela vestiu-se rapidamente, lamentando que sua última noite de amor terminasse de forma drástica. Precisava ter cuidado com suas explicações, medir cada palavra, ou acabaria metendo Eric numa enrascada.

— Eu sinto muito… — A porta foi aberta com tal estardalhaço que James pôs-se a chorar. — Oh, você acordou o menino, Bowen!

Segurando o sobrinho no colo, para sossegá-lo, plantou-se junto de Eric, agora cercado.

— Vocês não precisam fitá-lo desse jeito — protestou.

— Não? Quem é a criança? — interrogou-a Wallace.

— James, filho de Sorcha. A propósito, o que vocês estão fazendo aqui?

— Não importa. Quero saber por que você estava na cama com esse fulano.

— E eu quero saber como vocês nos encontraram.

Eric quase sorriu ante a exasperação do quarteto. Podia entendê-los. Com sua argúcia e obstinação típicas, Bethia os estava desviando da questão principal. Todavia o grandalhão chamado Bowen dava a impressão de ser tão, ou mais teimoso, que sua protegida.

— Viemos para a feira — retrucou Bowen. Resolvemos parar na estalagem para o desjejum antes de retornarmos a Dunnbea. Ouvimos uma das criadas fazer comentários sobre certos hóspedes. A moça parecia inconformada por não ter sido sequer notada pelo cavaleiro bonito, acompanhado de uma mulher pequena e magra, dona dos olhos mais esquisitos do mundo. Como poderia um homem tão lindo querer uma criatura destituída de curvas exuberantes e com olhos de cores diferentes? Ela se perguntava. Então a chamei num canto e obtive informações adicionais.

— Ótimo — Bethia resmungou por entre os dentes. Se você pretende repetir toda a conversa com a serva, seria possível omitir os insultos dirigidos a mim?

Depois de fuzilar um sorridente Wallace com o olhar, ela voltou-se para o mestre de armas.

— Vocês podiam ao menos ter batido na porta.

— Não. Se anunciássemos nossa presença você teria escapado. Afinal, treinei-a bem. Bowen fitou Eric sem disfarçar o desprezo. Só deveria tê-la ensinado a ser mais cuidadosa, a não sucumbir à lábia de homens bonitos.

— Sir Eric Murray manteve a mim e a James vivos. Creio que isso é o mais importante. Percebendo haver captado a atenção do grupo, Bethia lhes contou de suas suspeitas e de como fora obrigada a fugir de Dunncraig. Como vocês estão aqui para me levar, e ao menino, em segurança até Dunnbea, creio que podemos permitir que sir Murray retome seu caminho.

— Não — disse Wallace, virando-se para Eric. — Murray? Você tem as características físicas de um MacMillan. E há muitos sedutores naquele clã.

— Este é sir Eric Murray — Bethia insistiu sem causar qualquer impressão com seu protesto.

Muito calmo, com um sorriso nos lábios, Eric encarou os supostos adversários. Fora interessante Wallace o haver tomado por um MacMillan. Talvez seu futuro encontro com os parentes de sua mãe não se convertesse num completo desastre, conforme temera. Com certeza seria mais fácil que sua situação atual.

Não tinha dúvidas sobre o que aconteceria agora. Iriam exigir que fizesse a coisa certa em relação à Bethia. Não fora assim que imaginara esse momento, mas não se oporia. De alguma forma a faria compreender que realmente desejava-a para esposa, que não se sentia pressionado.

— Você é casado, rapaz? — interrogou-o Bowen.

— Não.

— Noivo?

— Não.

— Então se considere noivo agora. O casamento será em breve.

— Não! — Bethia reagiu, horrorizada com a idéia de Eric ser forçado a desposá-la.

— Não seja tola, menina. Você é uma moça de linhagem respeitável e era virgem.

— Não, não era — ela mentiu.

Atônito, Bowen fitou Murray, em busca de confirmação.

— Era sim — este o assegurou firme.

— Eric! — Não entendia a razão daquele comportamento. Oferecia-lhe a chance de escapar e o tolo a rejeitava!

— Não posso permitir que seu nome seja lançado na lama, milady.

Havendo Murray concordado com as bodas, marcou o fim da discussão. Em questão de minutos a escassa bagagem foi arrumada e a jornada retomada. Furiosa, Bethia logo constatou que não teria oportunidade de conversar com Eric durante a viagem. Como poderia libertá-lo do compromisso imposto se os membros de seu clã os mantinham separados?

O percurso até Dunnbea pouco contribuiu para animá-la. James e ela cavalgavam na garupa de Wallace, enquanto Bowen e Peter flanqueavam Eric. O único assunto sobre o qual a permitiam falar era o problema com William. Aliviava-a constatar que nenhum deles duvidara de sua palavra quando o acusara de homicídio. Infelizmente, porém, não se mostravam assim tão tolerantes quando tentava convencê-los a não arrastar Eric até a presença de um padre.

Ao cruzarem os portões de Dunnbea, Bethia reparou que seus pensamentos e preocupações, pela primeira vez desde que acordara abruptamente no quarto da estalagem, haviam se desviado de Eric. Iria confrontar seus pais e de repente, sentia-se insegura, temerosa de que não acreditassem no perigo a que James estava exposto. Enquanto corria para seus aposentos, ansiosa por um banho, perguntou-se, aflita, o que diriam a respeito de Eric.

— Que garotinho lindo! — exclamou Grizel, entrando apressada e deparando com James, já limpo e vestido, sentado no meio da cama.

Bethia sorriu para a criada roliça e bem-humorada. As duas poderiam ter se tornado amigas ao longo desses dez anos de convivência, se seus pais e Sorcha não a tivessem mantido sempre ocupada, do amanhecer até altas horas da noite. Grizel casara-se com Peter recentemente e, se ele a amava, com certeza tratava-se de uma boa mulher, de coração generoso. Conseguiria convencê-la a ajudá-la? Valia a pena tentar.

— Oh, não. Não farei isso! — reagiu Grizel tomando James no colo e beijando-o nos cabelos encaracolados e úmidos.

— Ainda não lhe pedi nada.

— Eu sei, porém meu Peter me avisou. Ele falou que se você começasse a me olhar de certo jeito, eu deveria dizer “não” e ser inflexível. Segundo meu marido, você é muito perigosa quando põe umas idéias na cabeça.

Bethia indagou-se se, antes de ver os pais, teria tempo de dar um puxão de orelhas em Peter.

— Para onde levaram sir Eric Murray?

— Primeiro para um rápido encontro com seus pais. Depois o colocaram na torre leste.

— Sem dúvida o trancafiaram lá.

— Sim. Oh, senhora, milorde é um homem tão bonito!

— De fato. Mas a bela aparência não o tirará daquela torre, não é?

— Não. Você tampouco fará qualquer coisa para libertá-lo. A criada devolveu James à cama e ajudou a jovem a terminar de vestir-se.

— Eles o estão forçando a se casar comigo!

— É o correto, quando uma dama é desvirginada. E não queira negar, porque meu Peter me contou como os acharam na hospedaria.

— Você conversou muito com Peter antes de correr para cá, não?

— Peter me pôs a par dos detalhes mais importantes. Sir Murray deveria imaginar que isto poderia acontecer quando a seduziu. Você é uma dama e era virgem quando o conheceu. A honra o obriga a desposá-la.

— Talvez eu não queira um homem que só irá me desposar por questão de honra.

— Considerando o que vocês dois estavam fazendo naquele quarto de hospedaria, imagino que exista algo além de honra os unindo. Não fique tão triste, menina. Milorde não está furioso, nem reclama contra sua sorte. Pelo contrário, parece bastante satisfeito. Conversou amigavelmente com Bowen e Wallace, quando o escoltaram até a torre. Não dá a impressão de estar sendo obrigado a fazer algo que não deseja.

A aparente complacência de Eric perturbou Bethia. Durante o trajeto final para Dunnbea, ele estivera sorridente e relaxado, não se comportando em nada como alguém a ponto de destruir o próprio futuro, casando-se com uma mulher que lhe fora imposta. Gostaria de uma chance de se falarem em particular, porém desconfiava de que só ficariam sozinhos após o casamento.

— Bem, como você não se mostra disposta a me ajudar…

— Não desta vez. Você foi seduzida e o cavalheiro tem que agir do modo correto, desposando-a. Milady, nunca lhe apareceu pretendentes antes e este é um homem bonito. Se as coisas fossem como deveriam ser, um marido lhe teria sido arranjado anos atrás. Creia-me, sir Murray é muito melhor do que qualquer um que viesse a ser escolhido por seus pais. Além de bonito, é jovem e obviamente, lhe proporciona alegria na cama. Nunca acreditei que seus pais a permitiriam casar-se com quem quer que fosse.

— Por quê? — perguntou Bethia, incapaz de compreender a atitude dos próprios pais.

— Porque você desempenha todas as tarefas pelas quais os dois deveriam se responsabilizar. Você é muito útil a ambos. Não sou a única em Dunnbea a pensar que seus pais planejam mantê-la solteira para que possa servi-los pelo resto da vida. E sua oportunidade de escapar desse destino, menina. É sua chance de criar sua própria família, de ter marido e filhos. Aproveite-a.

— Uma dama sensata o faria, não? Uma dama sensata não alimentaria esperanças de ser pedida em casamento por alguém que a amasse, mas se conformaria com uma união ditada pela honra. Uma dama sensata tampouco se incomodaria de se tornar esposa de um homem que costuma ser perseguido pelas outras mulheres que se comportam como cadelas no cio. — Ouvindo Grizel rir, Bethia sorriu, melancólica. Bem, nada disso importa agora, porque Eric e eu não temos muita escolha.

— Não, milady. Nenhuma. Devemos levar o bebê para que seus pais o conheçam?

— Sim. Quanto antes esclarecermos tudo, melhor. Esforçando-se para manter a calma e confiança, Bethia cruzou os vastos corredores até o salão principal. Porém, bastou avistar os pais para a insegurança prevalecer. Coube a Grizel depositar James nos braços de uma gélida lady Drummond.

À distância, Bethia observou os pais estudarem o menino como se analisassem um objeto estranho. Não fora assim que imaginara a cena. A exceção de um comentário sobre a ligeira semelhança do garoto com a adorada Sorcha, o casal demonstrou a mais completa indiferença em relação ao neto. A possibilidade de que seu sobrinho pudesse vir a ser tratado como ela e Wallace tinham sido, roubou-lhe o fôlego.

Então dois pares de olhos verdes e frios viraram-se para fitá-la, por pouco não a fazendo ceder ao impulso de dar-lhes as costas e fugir correndo dali. De súbito, sentia-se como a criança medrosa e infeliz que sempre fora. Não apenas saíra de Dunnbea como se deitara com um homem. Dera-lhes motivos de sobra para censurá-la severamente.

— Então você tomou para si o encargo de afastar o menino do próprio lar — disse lorde Drummond, tamborilando os dedos grossos nos braços da ornamentada cadeira de carvalho.

— Wallace não lhes contou sobre como James estava em perigo?

— Ele nos falou que você acreditava que o garoto estivesse em perigo. Pessoas com imaginação fértil tendem a enxergar ameaças inexistentes.

— Não se trata de imaginação fértil, pai. A comida que nos trouxeram estava envenenada e matou o cachorrinho de James. Não, isto não é uma brincadeira — Bethia obrigou-se a afirmar com firmeza, embora o coração estivesse a ponto de explodir. Jamais enfrentara os pais antes, defendendo uma idéia contrária. Mas a necessidade de proteger o sobrinho dava-lhe forças. William Drummond quer o menino morto e estou convencida de que o infame matou Sorcha e Robert.

— Claro que o faremos pagar pela morte de nossa filha, se o que você acredita for verdade.

Mas não por tentar matar James, ela pensou amarga. Bowen e Wallace não duvidavam de suas palavras e iriam manter James a salvo, ainda que seus pais se recusassem a dar-lhe ouvidos. E Eric, querendo ou não, logo faria parte de sua família. Ele testemunhara a perseguição implacável liderada por William. Não, não precisava que seus pais a compreendessem, ou acreditassem na sua história.

— Qualquer perigo que você pense existir não desculpa seu procedimento — interveio lady Drummond, cruzando as mãos roliças no colo. Você não levou em consideração a vergonha que nos faria passar ao decidir agir como urna prostituta?

— Só espero que lorde Murray seja o único homem com quem você se deitou.

O comentário do pai atingiu-a como uma bofetada. Jamais lhes dera motivo para acusá-la de devassidão. Por que a julgariam capaz de se entregar a qualquer um tão logo cruzasse os portões de Dunnbea? Começava a se perguntar se seus pais a conheciam de fato. Então, como de hábito, procurou justificá-los. Eles estavam apenas chocados e zangados com as notícias, não tinham intenção de magoá-la. Fabricar desculpas para os dois fora um velho truque do qual se valera ao longo dos anos para suavizar a dor. Agora, contudo, não estava funcionando muito bem e perguntava-se o que teria mudado.

— Errei ao me deitar com sir Eric, porém nunca me envolvi com nenhum homem antes.

— A partir de amanhã você será problema dele — devolveu-lhe a mãe, ríspida. Se insistir em conservar esses modos indecentes, seu marido terá que espancá-la até fazê-la proceder como uma dama recatada.

— Nós não merecíamos consideração? — lorde Drummond a interrogou, irado. Você tinha trabalho a executar aqui e agora não há ninguém para substituí-la. Não posso crer que criamos uma filha tão ingrata. Mas você sempre fez apenas o que a agradava. Egoísta, jamais se importou com as necessidades alheias.

— Nem um pouco parecida com sua irmã, que Deus lhe dê o descanso eterno. — Lady Drummond choramingou alto. Não, nossa Sorcha sabia como nos fazer felizes e orgulhosos. Mas a pobrezinha está morta e você continua viva. Nunca entenderei como Deus pôde levar embora nosso anjo e deixar você. É…

Um grito repentino de James interrompeu-a. Imediatamente Bethia tomou o sobrinho do colo de Grizel e aconchegou-o junto do peito, para acalmá-lo. Não era comum James gritar sem motivos. Teria a criada o induzido a agir daquela maneira?

— Tem certeza de que esse é o filho de Sorcha? — A expressão de lorde Drummond revelava desgosto. Não me lembro de nosso anjo fazendo um barulho tão horrível.

— James é filho de Sorcha. Uma criança sensível. Provavelmente percebeu a tensão reinante nesta sala e pôs-se a chorar. Bethia beijou-o nos cabelos, sabendo que distorcera a verdade. Apesar da expressão inocente de Grizel, estava convencida de que a serva usara-o para poupá-la das ofensas de que estava sendo vítima.

— De fato Sorcha nos enviou uma mensagem, avisando-nos de haver dado um herdeiro a Robert. Portanto, somos obrigados a acreditar na sua palavra.

— Você não tentaria nos impingir um bastardo seu, fazendo-o passar pelo filho de Sorcha, não é?

Bethia não podia crer que sua própria mãe cogitasse nessa possibilidade absurda. Sempre se indagara por que os pais não haviam se apressado a conhecer o neto. Agora entendia. Os dois simplesmente não estavam interessados. Tamanha era a indiferença em relação ao menino que se mostravam ansiosos para estigmatizá-lo como ilegítimo porque não o consideravam tão perfeito quanto a incomparável, a angelical Sorcha.

— James é filho de Sorcha e, se preciso, arrastarei os moradores de Dunncraig até aqui para dar testemunho da verdade.

— Não há necessidade de se dirigir à sua mãe neste tom — advertiu-a o pai, seco. Chega de falar da criança. Você se casará amanhã com sir Eric Murray. Mandei Peter buscar um padre, que a ouvirá em confissão antes da cerimônia. Rezaremos para que o pobre sacerdote possa absolvê-la de todos os seus inúmeros pecados.

Embora não tivesse sido formalmente dispensada, Bethia escapou do salão, desejando não ter que enfrentar os pais outra vez. De tudo o que os imaginara capaz de falar e fazer, jamais lhe passara pela cabeça que tratariam James com tal desprezo.

— Achei que eles o amariam como amaram sua mãe — ela falou baixinho, entrando no quarto.

— Eu pensava o mesmo — concordou Grizel, sentando-se num banco perto da lareira. James é um garotinho tão bonito, de natureza tão gentil.

— Exceto quando alguém o belisca. — Bethia sorriu ante o súbito rubor da criada.

— Eu só queria que lady Drummond fechasse a boca — suspirou Grizel, segurando o bebê no colo e cobrindo-o de carinhos para apagar a lembrança desagradável.

— É claro que foi duro escutar tudo aquilo, mas não fiquei surpresa ao constatar que meus pais me preferiam morta e enterrada em Dunncraig no lugar de Sorcha. Devo esquecer as mágoas e me concentrar em James. Vou educá-lo, protegê-lo de todo o mal.

— E quanto ao homem com quem você vai se casar? Além de uma esposa, lorde Murray acolherá uma criança que não lhe pertence?

— Posso não saber como Eric está se sentindo em relação a esse casamento forçado, porém não tenho dúvidas de que aceitará James sem hesitar, porque o ama. Sim, seremos uma família. Rogo a Deus para me conceder a graça de criar um lar onde reine a paz e a harmonia.

Eric terminava a refeição quando Bowen entrou no quarto. Recostando-se no espaldar da cadeira, sorveu o vinho devagar, de olhos fixos no homem alto e corpulento. A expressão dos olhos penetrantes deixava claro que o mestre de armas não se dera ao trabalho de ir até a torre com o único objetivo de inspecionar os confortos de sua prisão. De fato, estivera o esperando. Considerava-o a verdadeira família de Bethia, não aquelas duas pessoas frias e insensíveis que conhecera ao chegar a Dunnbea.

— Você quer a moça? — Bowen perguntou sem preâmbulos, fitando-o francamente.

— Pensei que fosse óbvio.

— Para esposa.

— Vou me casar amanhã.

— Sim, este é o plano.

— Você está aqui com outra proposta?

— Conheço Bethia desde criança. Você foi apresentado aos pais dela. O mestre de armas passou as mãos pelos cabelos longos e escuros. - Aqueles malditos sempre enxergaram apenas à linda Sorcha. A pequenina Bethia não passava de uma sombra irritante que, ocasionalmente, cruzava o caminho de ambos. A adorada Sorcha não se importava com a irmã. Wallace, Peter e eu conversamos muito e decidimos não entregá-la a um homem que, depois de esgotado o ardor da paixão, vai tratá-la como os pais a trataram a vida inteira, fazendo-a sentir-se um fardo. Pelo menos, em Dunnbea, nós três a protegeremos e a ampararemos.

— Assim vocês estão dispostos a me deixar partir se eu não me julgar capaz de cuidar de minha futura esposa como ela o merece?

— Sim.

— Vou desposá-la. Bethia é minha. Quisera ter tido tempo de fazê-la acreditar que a quero. Terei que convencê-la após o casamento.

— Você a ama?

— Não tenho certeza sobre o que sinto. Fugir de homens que tentavam matá-la e ao menino não me deu muito tempo de compreender a natureza de meus sentimentos. Tudo o que sei é que ela é minha. A primeira vez que a abracei, soube que nunca mais a permitiria escapar de mim. Estamos unidos de corpo, mente e alma. Ao tornar-se minha amante, Bethia selou o próprio destino. Apenas não se deu conta disso ainda.

Eric e Bowen sorriram um para o outro, compreendendo-se perfeitamente.

 

— Ele estará aqui num instante, menina — sossegou-a Bowen.

— Suponho que deva ter levado algum tempo para remover as correntes — ela resmungou, lançando um olhar pouco amigável para a multidão reunida no salão principal.

— Você se deitou com o cavaleiro! — Bowen retrucou, rindo.

— Isso não significa que o desejo para marido. Talvez apenas o tenha achado bonito e resolvido tomá-lo para amante.

— Suas palavras são tão verdadeiras quanto minha intenção de me recolher num mosteiro. Conheço-a muito bem. Você pode não querer admitir em voz alta, mas sei que ama lorde Murray, ou não teria se entregado. Ele é um bom homem e será ótimo marido.

Ansiosa, Bethia alisou as pregas do vestido de veludo verde. Grizel o encontrara no meio das roupas descartadas Por Sorcha e, após alguns ajustes, transformara-o num traje de rara elegância, capaz de valorizar cada centímetro de seu corpo esguio. Nunca possuíra nada tão bonito assim. Quanto aos cabelos, deixara-os soltos entremeados com fios de pérolas pequeninas. Seus pais haviam feito comentários desagradáveis sobre sua audácia em usar os cabelos como se ainda fosse uma noiva virginal, porém, pela primeira vez, ignorara a desaprovação. Eric preferia-os assim.

Um murmúrio percorreu o salão marcando a chegada de lorde Murray. Observando-o caminhar na sua direção, imponente, belo, viril, Bethia sentiu o coração disparar. Não era possível que ele estivesse feliz com aquele casamento, quando poderia ter mulheres muito mais lindas do que ela aos seus pés.

Tomando as mãos da noiva entre as suas, Eric levou-as aos lábios e beijou-as de leve, querendo apagar a melancolia e o nervosismo estampados no rosto delicado. Sabia que precisava transmitir-lhe segurança, porém não era a hora, nem o local, de demonstrar a intensidade de seus sentimentos. Lançando um rápido olhar na direção dos sogros, acomodados numa espécie de trono, comentou com Bowen:

— Eles não voltaram a falar comigo.

— Porque consideram a situação irreversível.

— O que me assombra é o total desinteresse pelo futuro da filha. Eu poderia estar levando-a para uma choupana nas montanhas.

— Meus pais não lhe ofereceram um dote? — perguntou Bethia.

— Não. E saiba que não necessito de um. Eric beijou-a na testa, esforçando-se para tranqüilizá-la.

— É galante de sua parte, mas não é questão de necessidade. O costume exige que o noivo receba um dote.

— Não se preocupe com essas tolices. Vamos, o sacerdote está nos aguardando.

— Eric… — ela sussurrou vacilante, quando começaram a caminhar.

— Você disse que era minha, lembra-se?

— Sim.

— Pois agora essa promessa será confirmada e abençoada pela Igreja.

Durante toda a cerimônia, Bethia tentou se confortar pensando que lorde Murray, apesar de não tê-la escolhido, não se mostrara nem um pouco relutante e tampouco se rebelava contra a imposição do destino. Enquanto o padre lhes dava a bênção final, rezou para que ambos não estivessem se lançando numa vida de desilusões e desencantos.

A festa transcorreu melhor do que esperara, seus pais, concentrados em degustar a lauta refeição, ignorando-a por completo. O povo de Dunnbea, parecendo genuinamente feliz com seu casamento, enchia o salão de risos. Wallace, Bowen e Peter fizeram questão de sentar à sua frente e à de Eric, para horror de lorde e lady Drummond. Nunca simples mestres de armas deveriam ocupar uma posição de destaque à mesa.

— Você não está comendo muito — Murray sussurrou, oferecendo-lhe uma fatia de maçã.

— Eu estava um pouco nervosa.

— Você está linda, querida.

— Sorcha descartou alguns vestidos e Grizel ajustou este aqui para que me servisse.

— Então existem outros?

— Sim. Quase uma dúzia. Por quê?

— Tenho condições de lhe comprar vestidos novos e o farei logo. Mas talvez você vá precisar de roupas refinadas imediatamente. Grizel pode reformar outras peças?

— Sim. Por quê?

— É provável que eu tenha que ir à corte antes de regressar a Donncoill. Deixaria para colocá-la a par de seu projeto de visitar os MacMillan numa ocasião mais oportuna.

— Corte? — Ela quase engasgou com o vinho. Não posso ir à corte!

— Claro que sim. Somos casados agora. Onde eu for você me acompanhará.

Bethia ficou em silêncio, lutando para acalmar-se. A mera idéia de freqüentar a sociedade causava-lhe pânico. Nunca fora treinada para essas coisas. Haveria regras e procedimentos a seguir, os quais ninguém se dera ao trabalho de ensiná-la. Aterrorizava-a pensar que acabaria envergonhando aquele a quem mais amava no mundo. Tinha que arranjar uma maneira de ficar para trás.

Chegando a hora de se retirarem, Eric conduziu-a até seus pais para que fossem formalmente dispensados.

— Creio que você deveria ter nos pedido permissão antes de arruinar um dos vestidos de Sorcha — lady Drummond a repreendeu ríspida.

Notando o olhar furioso do marido, Bethia apertou-lhe a mão com força numa súplica silenciosa para que não se alterasse.

— Não quis embaraçá-los, comparecendo pobremente vestida ao meu próprio casamento.

Com indisfarçável irritação, lorde Drummond fitou Murray.

— Suponho que você irá levá-la embora de Dunnbea.

— O mais breve possível, sir.

— Pois espero que não lhe falte disposição e pulso firme para transformá-la numa mulher mais obediente e respeitosa. Nunca conseguimos modificá-la. O fardo é seu daqui em diante.

— Sim, todo meu. Desejamos-lhes uma boa noite.

Eric praticamente a arrastou para fora do salão e Bethia precisou erguer a barra do vestido para não tropeçar enquanto tentava acompanhar as longas passadas. No quarto, ele trancou a porta, serviu-se de um cálice de vinho e sorveu-o até a última gota. Tensa, Bethia permaneceu imóvel, esforçando-se para descobrir o que o enfurecera tanto. Na verdade, qualquer homem obrigado a se casar tinha direito de mostrar-se enraivecido e não iria culpá-lo.

— Desculpe-me — falou baixinho, embora soubesse ser impossível desculpar-se por algo que o afetaria pelo resto da vida.

— Tenho a impressão de que você está se desculpando pelo motivo errado, milady. Murray entregou-lhe um cálice de vinho e sorriu-lhe.

— Você está zangado. E tem todo o direito. Não apenas o envolvi em meus problemas e o expus ao perigo, como o aprisionei definitivamente a mim.

— Não me sinto aprisionado, querida. Muito menos irritado com nosso casamento. Estou sim, furioso com seus pais.

— Oh. Bem, ambos poderiam ter sido um pouco mais educados com você.

— Sou o homem que seduziu a filha deles e seria natural que quisessem torcer meu pescoço. Não, o que me encheu de ódio foi o modo como a trataram. Você não imagina quão próximo estive de esmurrar seu pai. Por isso a arrastei para fora do salão.

A revelação chocou-a. Não porque Eric houvesse desejado agredir seu pai, mas porque começava a perceber em si um ressentimento, uma raiva cada vez mais difícil de sufocar. Podiam existir aspectos negativos naquele seu casamento apressado, porém chegara à conclusão de que o melhor seria partir de Dunnbea o quanto antes. Ou ver-se-ia obrigada a admitir o que sempre tentara esconder de si mesma.

— Eles ainda estão chorando a morte de Sorcha. A infelicidade os torna rudes indelicados.

Nem por um minuto Eric engoliu a explicação da esposa e o instinto lhe dizia que Bethia tampouco acreditava no que dissera. Nunca a permitiria descobrir como os pais haviam tentado expulsá-lo de Dunnbea, como tinham ficado assombrados que um homem houvesse desejado uma moça tão destituída de atrativos. Fora Bowen, Peter e Wallace que insistiram no casamento. Lorde e lady Drummond apenas mostraram-se irritadíssimos por perderem a serva responsável pela manutenção da rotina doméstica do castelo.

— Em breve você não terá mais necessidade de justificar as atitudes grosseiras de seus pais, porque estará bem longe daqui. Beijando-a nos cabelos, ele começou a despi-la.

— Quanto a James… — Bethia queria resolver a situação do sobrinho antes que a paixão a fizesse se esquecer de tudo.

— Ficará conosco. Wallace me contou a reação de seus pais ao neto e decidi que não o abandonaríamos. Se Wallace já fosse o senhor de Dunnbea, eu não me preocuparia. Mas seus pais não acreditam sequer que o menino esteja correndo perigo.

— Oh, obrigada! — Comovida, Bethia abraçou-o. Eles o trataram com tanta indiferença. Chegaram a duvidar de que fosse mesmo filho de Sorcha.

— Os infames tiveram a audácia de sugerir que James é seu filho bastardo? — Vendo-a enrubescer, Eric praguejou.

— Meus pais nunca haviam visto o filho de Sorcha antes, portanto é compreensível que não o reconhecessem. E o fato de eu ter sido pega em flagrante, na cama com você, levou-os a questionar minha moral. Só não entendo como me imaginaram capaz de esconder um filho durante quase um ano, se jamais saí de Dunnbea.

— Chega. Nem mais uma palavra.

— Eric?

— Não, você não vai continuar falando assim. Receio que se ouvir mais alguma coisa sobre o veneno que seus pais destilam e sobre como você se esforça para defendê-los, tomarei uma atitude drástica da qual nós dois nos arrependeremos depois.

A fúria estampada nos olhos azuis a fez calar-se. Parte de si sempre buscara desculpas para as atitudes dos pais, sempre quisera justificá-los. A outra parte ressentira-se, ano após ano, dos maus-tratos de que fora vítima. Aquecia-lhe a alma constatar que Eric saía em sua defesa.

Trêmula, fechou os olhos ao ficar inteiramente nua. Ainda não se sentia confortável expondo-se daquela maneira. Seu marido, no entanto, parecia apreciar a visão.

— Alegra-me você ter deixado os cabelos soltos — ele murmurou, tomando-a no colo e depositando-a na cama.

— Já não era virgem quando trocamos nossos votos, e você é o único homem com quem me deitei. Achei que não despertaria muitos comentários negativos se usasse os cabelos como se ainda fosse donzela. — Bethia suspirou fundo, dominada por uma emoção inexplicável. Tentarei ser boa esposa. Sei que você poderia ter arranjado alguém muito melhor do que eu.

Eric beijou-a na boca demoradamente, acariciando os seios empinados, com as mãos fortes.

— Ah, eu poderia ter arrumado uma esposa com dote, ou mesmo até com alguns hectares de terra — ele a provocou, enlouquecendo-a ao beijar um dos mamilos túrgidos. — Talvez uma mulher com seios maiores, quadris mais largos…

— Sim, é verdade. Então por que se deitou comigo? — ela retrucou, ardendo de ciúme.

— Porque você é minha. E porque, em toda a Escócia, eu não encontraria ninguém mais doce.

Segurando-a firme pela cintura, Eric deslizou os lábios até tocá-la no centro da feminilidade.

Chocada, Bethia enrijeceu os músculos quando o marido sugou o néctar de um lugar de seu corpo o qual nem sequer possuía um nome decente. Logo, porém, o choque se transformou em prazer insano. Alucinada de desejo, agarrou-os pelos cabelos, entregando-se às delícias produzidas pela língua ardente. Quando estava à beira do clímax, ele interrompeu a carícia e a penetrou com uma investida. Um orgasmo intenso e prolongado arrastou-os para além do tempo e espaço, numa perfeita união de corpos, mentes e almas.

— Ah, minha querida… — Eric murmurou, aconchegando-a ao peito. Não fui exatamente um celibatário ao longo da vida. Mas, acredite-me, nunca experimentei algo tão maravilhoso.

— Imagino que sua vasta experiência lhe permita esse tipo de comentário. Em vão, ela tentou não pensar nas inúmeras mulheres com as quais o marido dormira.

— Receio que sim. Sorrindo, Eric beijou-a nos cabelos sedosos, aspirando o perfume dos fios ondulados. Eu era muito ávido quando jovem. Depois me tornei mais seletivo. Não posso mentir. Conheci muitas mulheres. Queria ter chegado ao nosso leito nupcial tão puro quanto você, mas não se pode mudar o passado. Sendo um homem livre e não havendo entregado meu coração e meu nome a ninguém, apenas colhia o que as damas me ofereciam. E por causa de minha juventude desregrada, posso afirmar que o que nos une é incomparável. Sei que insisto em dizer que você é minha. Pois creia-me, esposa, eu também sou seu.

— Apenas meu? — Bethia teve coragem de perguntar, num fio de voz.

— Apenas seu. Se eu não me julgasse capaz de honrar as promessas de nosso casamento, nunca a teria desposado.

Não se tratava de um juramento de amor eterno, mas Bethia sentiu-se confortada. Se Eric valorizasse mesmo o compromisso assumido por ambos, talvez tivesse chance de conquistar-lhe o amor. Sendo a paixão mútua tão intensa e rara, conforme ele afirmara, por que não alimentar a esperança de que o amor iria florescer? Rezava para que fosse assim, pois detestaria passar o resto da vida amando um homem incapaz de retribuir esse sentimento.

— Para onde iremos agora?

— Receio que você permanecerá em Dunnbea durante mais alguns dias, embora eu preferisse levá-la embora o mais rápido possível.

— Você vai a algum lugar?

— A fortaleza MacMillan. Muitos do seu clã perguntaram-me se sou um MacMillan, devido às características físicas. Creio que é hora de me apresentar aos meus parentes.

— E irá sozinho?

— Talvez você ainda esteja sendo caçada. Duvido que William tenha desistido de seus planos macabros. E apesar de não achar que enfrentarei problemas com os MacMillan, existe a possibilidade de que me rejeitem. É mais sensato você ficar em Dunnbea até que minha situação se resolva.

— E se eles não o aceitarem?

— Ainda não sei o que farei.

— Você vai lutar pelo que lhe pertence? Percebendo a angústia da esposa, Eric segurou o rosto bonito entre as mãos e beijou-a de leve nos lábios.

— Não quero um confronto, mas não vou mentir-lhe, jurando que não lutarei pelo que é meu.

— Sei que você tem direito à sua herança, mas não consigo aceitar que as pessoas lutem e morram por dinheiro e terras.

— Não se trata somente de bens materiais. É também uma questão de honra.

— Ah, veja onde o conceito de honra o trouxe.

— Sim. Trouxe-me aqui. Suavemente, ele a acariciou entre as coxas, escutando-a suspirar de contentamento. Ah, como adoro tocá-la. Não se preocupe com o que está por vir. Prometo-lhe que procurarei resolver o impasse de maneira pacífica.

Sorrindo sedutora, Bethia pousou a mão sobre o sexo rígido. Sentindo-o estremecer ao simples contato, exultou. Possuía algum poder sobre Eric. Num gesto ousado, beijou o membro ereto, a maciez da pele impressionando-a.

— Você está tentando me enlouquecer, esposa?

— É assim que você faz comigo. Enlouquece-me de prazer. Talvez eu tenha um motivo oculto para agir desse jeito.

— Verdade? - Talvez se continuasse falando, conseguiria se controlar. O modo íntimo como Bethia o acariciava, com a língua e os lábios, era quase mais do que podia suportar. Não a imaginaria capaz de agir movida por motivos ocultos.

— Você partirá amanhã para o castelo dos MacMillan.

— Sim, é preciso. Quero encerrar esse assunto.

Quando Bethia o tomou na boca, Eric deixou escapar um gemido estrangulado.

— As mulheres pertencentes ao clã MacMillan são conhecidas por sua beleza, milorde. Não faltarão moças lindas em Bealachan.

— Tenho você.

— De fato. Só que eu conheço seu efeito devastador sobre o sexo oposto, sir Murray.

— Não vou notar mulher nenhuma.

— Sim, mas caso uma ou duas lhe chame a atenção, ou se jogue aos seus pés, pensei em lhe dar essa noite um prazer tão grande, que você não desejará ninguém mais além de mim.

Eric lutou para manter um resto de sanidade, mas já não era capaz de elaborar pensamentos coerentes, pois cada fibra de seu ser era retesada ao máximo. Então, a ponto de explodir, puxou-a pela cintura e a fez sentar-se sobre sua enorme ereção. Mexendo-se devagar, provocantemente, Bethia saboreou a nova posição, sorrindo quando o marido a agarrou pelos quadris, como se temesse vê-la flutuar no ar.

— Para uma dama ainda tão inocente, você aprende rápido — ele murmurou, vibrando de tensão.

— Começo a acreditar que existem muitas maneiras de jogar esse jogo.

— Oh, sim, e vai ser uma alegria ensiná-la as variações. Vamos querida, cavalgue seu homem.

Uma eternidade depois, impregnados do gosto e do cheiro um do outro, sentiram-se finalmente saciados. Vencida pelo cansaço, Bethia adormeceu com a cabeça apoiada no peito do marido.

Eric, apesar de drenado de toda energia, demorou a conciliar o sono. Tantos problemas os aguardavam. A ameaça constituída por William, a questão de sua herança… Embora estivesse convencido de que não seria obrigado a desafiar os MacMillan, sabia que Beaton só cederia se vencido num confronto. Precisava afastar a esposa da presença nociva dos pais e levá-la a Donncoill, para apresentá-la à sua família. E enquanto estivesse se esforçando para fazer Bethia se sentir importante, valorizada, na corte ela iria deparar com muitas mulheres de seu passado. Temia que essas aventuras juvenis acabassem assombrando seu presente.

Tentando não bocejar, Bethia permaneceu firme, observando Eric preparar-se para partir. A última coisa que desejava era que o povo de Dunnbea, testemunhando seu esgotamento, adivinhasse a noite de sexo tórrido que desfrutara com o marido. Sua vida particular não dizia respeito a ninguém.

A idéia de ficar longe de Eric a inquietava profundamente. Imaginá-lo cercado de mulheres insolentes, sequiosas de levá-lo para a cama a torturava. E se não tornasse a vê-lo nunca mais?

Sorrindo, Eric a beijou nos lábios.

— Minha esposa me deixou tão esgotado, que não sei se conseguirei cavalgar horas seguidas até Bealachan.

— Ótimo. Assim você não será capaz de cavalgar mais nada, quando chegar lá.

— Eu deveria dizer-lhe para não se preocupar, deveria repreendê-la por causa desse ciúme injustificado, mas sei que não vai adiantar. Com o tempo você entenderá que as outras mulheres não me interessam mais. Voltarei em breve, acredite-me. E não se esqueça de que você é minha esposa agora. Não mais filha, irmã, ou serva. Mas minha esposa.

Depois de um último beijo, ele montou em Connor e atravessou os portões de Dunnbea.

Ao virar-se, Bethia notou os pais a uma curta distância. Somente então as palavras do marido fizeram completo sentido. Ele quisera advertir os sogros para não ousarem maltratá-la. Refugiando-se em seu quarto, Bethia rezou para que Eric regressasse em breve. Definitivamente chegara a hora de deixar Dunnbea. Definitivamente chegara a hora de começar uma nova vida.

 

— Murray? — O vigia corpulento, instalado nos portões de Bealachan, franziu o cenho, confuso. — Tem certeza? Você parece um MacMillan.

Eric sorriu. Divertia-o tantas pessoas o questionarem e perguntava-se se não errara ficando afastado, durante anos, da família de sua mãe. Se a semelhança física era assim tão extraordinária a ponto de os Drummond, e agora os MacMillan, a perceberem, talvez houvesse bastado visitá-los uma única vez para evitar todo o tempo gasto na corte, com petições e conversas diplomáticas.

— Sim, sou sir Eric Murray. Mas confesso existir certa polêmica quanto a minha origem. Asseguro-lhe que seus senhores reconhecerão meu nome. Diga-lhes que vim sozinho e apenas desejo lhes falar.

Após incumbir outra sentinela de vigiar o estranho durante sua ausência, o sujeito alto afastou-se.

Contendo a impaciência, Eric aguardou o desenrolar dos acontecimentos. Desde que chegara à fortaleza, ninguém dera a impressão de duvidar de que possuía o sangue daquele clã. Queria ficar frente a frente com lorde MacMillan e definir a situação o mais depressa possível para voltar para junto de Bethia. Caso a conversa fosse favorável, parte de seu problema estaria resolvido, restando somente o confronto com Beaton.

Dali a minutos o vigia retornava, fazendo sinal para que o acompanhasse. Um olhar rápido pelo salão principal convenceu Eric de que seus parentes estavam longe de ser pobres e que não era falta de recursos financeiros, o que os impedia de aceitá-lo como membro da família e legítimo herdeiro de bens. Ricas tapeçarias cobriam as paredes brancas, tapetes espessos espalhavam-se pelo chão, uma profusão de arranjos de flores criando um efeito de sóbria elegância. Diante da imensa lareira de pedra, onde o fogo crepitava, sentavam-se os senhores do castelo.

Ciente de que dezenas de guardas armados não perdiam um só de seus movimentos, Eric aproximou-se do casal e inclinou a cabeça, numa saudação polida.

— Por Deus, é a imagem de minha irmã Katherine — murmurou lorde Ranald MacMillan, empalidecendo de tal modo que a esposa o segurou pelo braço, aflita.

— Sou sir Eric Murray, de Donncoill.

— Sei o seu nome. Você tem nos amolado nos últimos treze anos com cartas e petições. Desconfio de que me mentiram covardemente. E não é você o mentiroso, como sempre acreditei.

— Não, sir, não sou. Atendendo ao convite, Eric sentou-se. Imediatamente um pajem serviu-lhe vinho. — Graham Beaton se apossou de Dubhlinn e pretende manter-se no poder. Interessa-lhe que ninguém venha em meu auxílio.

— Ele afirma que você não passa de um bastardo que insiste em se proclamar filho de Katherine, que deu à luz um natimorto.

— Ah, então o infame não me rotulou de ilegítimo?

— Se fosse isto o que Beaton nos houvesse dito, nós o teríamos acolhido sem hesitar. Não seria fácil aceitar o adultério de minha irmã, mas jamais rejeitaríamos uma criança gerada por Katherine. Entretanto Beaton, enquanto vivo, e depois Graham, sempre o acusaram de impostor, mentiroso e usurpador.

— Beaton também deixou claro que não mais nos consideraria aliados e amigos se o deixássemos pôr os pés em Bealachan, emendou lady Mairi.

— E vocês jamais questionaram o porquê dessa exigência absurda? Se eu fosse mesmo um impostor, que importância teria nos encontrarmos? Se não acreditassem na minha palavra, bastaria me expulsarem.

Lorde Ranald desviou o olhar, abatido.

— Talvez tenha sido mais cômodo julgá-lo um farsante do que admitir que minha irmã houvesse tido um filho bastardo. O marido de Katherine…

— O miserável desejava um herdeiro acima de tudo e deitou-se com uma infinidade de mulheres que acabavam sempre concebendo meninas. Convencido de que eu era filho do amante da esposa, jogou-me literalmente fora.

— Jogou-o fora?

— Tão logo o cordão umbilical foi cortado, seus mercenários me abandonaram numa colina, para morrer. Então o canalha mandou executar minha mãe e a parteira. Ou as assassinou com as próprias mãos.

— Ponha-me a par de toda a história.

— É uma história sórdida.

— É o que começo a perceber.

Eric expôs tudo aquilo que tentara explicar em suas cartas e petições, notando como as revelações afetavam lorde Ranald. Evidentemente o chefe do clã MacMillan jamais enxergara o quanto o marido da irmã fora perverso. Em silêncio, lady Mairi chorava.

— Esse Graham é da mesma laia?

— Sim. O pobre povo de Dubhlinn permanece sufocado, esmagado sob seu domínio. Este é um dos motivos pelos quais não desisti de lutar pela minha herança. As pessoas de Dubhlinn merecem a chance de uma vida melhor.

— Você é o legítimo herdeiro de Beaton e um verdadeiro MacMillan. Mas ainda se autodenomina Murray.

— Creio que será sempre assim. Por treze anos acreditei-me um bastardo Murray. E mesmo depois de descobrir minha verdadeira origem, continuei me sentindo um Murray. De fato ninguém gostaria de ter Beaton como pai, mas não acho que seja apenas isso. Balfour e Nigel me criaram. Embora não tenhamos laços de sangue, somos verdadeiros irmãos. Devo-lhes minha vida.

Comovido, lorde Ranald apertou a mão de Eric.

— Você ficará conosco algum tempo? Quero que conheça suas tias, primos… Também gostaria de lhe falar sobre sua mãe.

— Casei-me recentemente, sir. Num resumo rápido, Eric contou-lhes sobre Bethia e a tentativa de assassinato de que fora vítima junto com o sobrinho.

— Os Drummond não solicitaram nossa ajuda. Ou você está até aqui para nos pedir auxílio?

— Não. Eles não se convenceram de que o neto corre perigo.

— Diferentemente de você?

— Sim. A única coisa que ainda não sei é como William passará a agir, agora que Bethia e o menino estão seguros em Dunnbea. Vocês chegaram a conhecer minha esposa?

— Nós a vimos certa vez, quando visitamos os Drummond. Pareceu-me que a família não a tratava muito gentilmente — disse lady Mairi, cautelosa. A pobrezinha trabalhava sem cessar.

— Quero afastá-la da influência perniciosa dos pais o quanto antes.

— Entendo. Mas será que você não poderia adiar sua partida por uma, duas semanas? — insistiu lorde Ranald.

Eric hesitou. Sentia saudade da mulher e preocupava-o deixá-la na companhia dos Drummond, capazes de com seu veneno, minar a incipiente autoconfiança de Bethia. Mas, após anos esforçando-se para obter a atenção dos MacMillan, não seria justo dar-lhes as costas no momento em que fora tão completamente aceito. O bom senso aconselhava-o a estreitar o relacionamento e aproveitar a oportunidade para detalhar um possível plano de ação conjunta contra Beaton.

— Ficarei aqui sete dias. Catorze no máximo. Então regressarei a Dunnbea. O genuíno entusiasmo dos tios o fez sorrir.

— Mandarei um mensageiro a Dunnbea com notícias suas para tranqüilizar sua esposa, lady Mairi apressou-se a oferecer.

Apesar do receio de que sua demora aumentasse ainda mais a insegurança de Bethia, Eric procurou se confortar lembrando-se de que, pelo menos, ela estaria segura dentro das muralhas da fortaleza.

Sentada na relva, Bethia suspirou fundo, de olhos fixos em James. O garotinho aprendera a andar e os tombos eram inevitáveis. Soltá-lo na grama macia, para que corresse à vontade, poupava-o de machucados sérios.

Sentia falta de Eric, embora entendesse por que decidira passar algum tempo com os MacMillan. Duas semanas lhe pareciam uma eternidade. Não conseguia dormir bem sem tê-lo a seu lado e em sonhos, o via sempre na companhia de belas mulheres. Temia perdê-lo.

— Chega de ficar amuada — exclamou uma alegre Grizel, sentando-se ao seu lado.

— Não estou amuada.

— Está sim. Você está com saudade de seu lindo marido, por isso o mau humor.

— Talvez. - Embaraçada, Bethia abaixou a cabeça. - Na verdade estou preocupada com as mulheres de Bealachan. Todas lindas e desejáveis…

— Ah, você é mais tola do que imaginei.

— Tem certeza de que você é mesmo uma simples serva?

— Não tente me colocar em meu lugar. Esse tom de voz não dará certo comigo. Praticamente crescemos juntas e sou casada com Peter, quase um tio seu. Menina, por que você acha que seu marido iria querer aspirar o perfume de outras flores?

Bethia riu com a comparação inusitada. Então ficou muito séria.

— Você ainda não viu como as mulheres se atiram em cima de Eric. As criadas da hospedaria quase o agarraram e o despiram diante de meus olhos.

— Não duvido. Sir Murray é um homem bonito e sensual. Algumas das moças daqui o devoraram com o olhar.

— Se você está procurando me fazer sentir melhor, saiba que fracassou por completo.

— Desculpe-me. - Sorrindo, Grizel a abraçou. - Querida, você terá que aprender a conviver com isso. É impossível cegar todas as mulheres da Escócia.

— Não seria má idéia.

— Não, você jamais poderia ser tão cruel. Eu realmente não acredito que seu marido seja o tipo capaz de cuspir nos votos matrimoniais. Você não estaria sendo injusta com sir Murray? Até que ele lhe dê provas de infidelidade, não é certo acusá-lo, nem mesmo em pensamento.

Melancólica, Bethia fitou o horizonte. Aquela insegurança a estava matando. Como superar o medo de ser abandonada a qualquer instante?

— Entendo. Eu deveria confiar em Eric até ter motivos para agir de modo contrário.

— Sim. Agora me ouça com atenção. Um homem não se importa se sua mulher sente um pouco de ciúme, mas só um pouco. Porque, ao insistir que ele sucumbirá à tentação de deitar-se com outras, você estará questionando sua honra.

— Oh, eu nunca havia analisado a situação dessa maneira.

— Tente. Se você permitir que o ciúme a domine, logo palavras ásperas e indesculpáveis sairão de sua boca. Acusá-lo freqüentemente acabará afastando-o de si. Esse tipo de desconfiança e descontrole costuma envenenar o casamento. Sei do que estou falando porque vi acontecer com meus pais.

-— Sinto muito, Grizel.

— Foi difícil testemunhar o desmoronamento da união de meus pais, mas aprendi uma lição. Embora às vezes sinta ciúme quando vejo uma moça bonita sorrindo para meu marido, observo como ele reage. Peter ignora o sorriso? Está em minha cama todas as noites? Sua paixão continua ardente? Se a resposta para essas perguntas continua sendo “sim”, consigo superar a crise. Claro que isto não me impede de querer dar uma surra na atrevida. As duas riram com prazer.

— O problema é que eu não encontraria resposta para nenhuma dessas perguntas agora. Eric está longe de mim.

— Sim, mas tem lhe enviado mensagens quase diárias.

— De fato. E sempre me chama de apelidos afetuosos em suas cartas.

— Bem, menina, se as coisas estão nesse ponto, eu não me preocuparia com as possíveis investidas das damas de Bealachan e começaria a me preparar para recompensá-lo por haver as rejeitado. Com ar decidido, Grizel levantou-se e alisou a saia. Acho melhor entrarmos. Já passou da hora da sua aula de etiqueta.

Praguejando baixinho, Bethia levantou-se também e tomou James no colo. Quando expressara seu desânimo diante da possibilidade de ir à corte, Wallace e Grizel resolveram prepará-la para o evento. Embora já não achasse que envergonharia o marido, duvidava de que seria uma experiência maravilhosa. Havia tantas regras para decorar, tantos detalhes a lembrar. Divertira-se apenas aprendendo a dançar e dificilmente teria oportunidade de pôr em prática à recém adquirida habilidade.

No meio da tarde, inquieta e nervosa, Bethia decidiu ocupar-se saindo à cata de ervas medicinais. Não se esquecera de quão impotente se sentira, enquanto Eric estivera abatido pela febre e prometera a si mesma aprender os segredos da arte da cura. Desde que chegara a Dunnbea, tornara-se a aluna dedicada da velha Helda, herborista do clã.

Seria prudente atravessar os portões da fortaleza? Segundo rumores, William mudara de tática no seu afã de apoderar-se definitivamente de Dunncraig. Por meio de petições, insistia em que o rei lhe concedesse a guarda de James. Como os documentos eram expedidos de Dunncraig, o maldito devia estar lá. Portanto, não correria nenhum risco aventurando-se para além das muralhas durante algum tempo.

Bowen discordou de imediato.

— Você não vai a lugar nenhum.

— Preciso sair um pouco, respirar ar fresco. Sinto-me confinada.

— Dentro de uma sepultura você se sentirá mais confinada ainda.

— William não se encontra sequer nas imediações de Dunnbea — respondeu.

— Como podemos ter certeza?

— Por causa das petições que estão sendo enviadas de Dunncraig.

— É o que dizem. Ainda assim, não vejo motivo para pensarmos que o crápula tenha mudado de idéia. Com certeza continua querendo-a e a James mortos.

— Sim. Por isso pedi que dois guardas armados me acompanhassem. Não sei o que William ganharia ferindo-me, e a James, agora, exceto a satisfação de destruir aqueles que arruinaram seu plano de roubar Dunncraig.

— Está bem. Dois homens armados escoltando-a e você de volta antes do pôr-do-sol.

— Não creio que vá me demorar tanto. Na ponta dos pés, ela despediu-se do mestre-de-armas com um beijo no rosto.

Longe das muralhas de Dunnbea, Bethia procurou afastar as preocupações. Pretendia aproveitar a beleza do dia ensolarado. Acomodado na sela à sua frente, James não parava de tagarelar, ainda na linguagem incompreensível dos bebês.

Avistando a estrada para Bealachan, seu coração encheu-se de saudade. Ah, como ansiava pelo regresso de Eric. Mas precisava compreender as razões daquela prolongada ausência. Desprezado pelo pai e rejeitado constantemente pelos parentes de sangue, era natural que o marido, agora acolhido pela família da mãe, desfrutasse da convivência tardia. Pelo menos os MacMillan não lhe cegariam o direito à herança.

Apesar disso, queria-o em casa não apenas por causa da saudade insuportável. Embora se esforçasse para colocar os conselhos de Grizel em prática, continuava atormentada pelo ciúme. Na verdade confiava em Eric. As mulheres que o assediavam é que não mereciam sua confiança.

— Pare com isso, sua tola! — Bethia resmungou. Eric é digno de toda confiança.

— Você disse alguma coisa, milady?

— Não, Dougal. Estava apenas conversando com meu sobrinho.

Ter uma criança por perto lhe concedia algumas vantagens, como a de não parecer idiota ao ser pega falando sozinha. Deveria ser mais cuidadosa dali em diante. O menino aprendia palavras novas todos os dias e preferia não escutá-lo repetir algo que gostaria de manter em segredo.

Chegando ao local recomendado por Helda, não foi difícil encontrar as plantas medicinais que buscava. Em pouco tempo estava com a sacola cheia e pronta para ir embora.

De súbito, gritos apavorantes cortaram o ar. Com uma flecha nas costas, Dougal caiu no chão, enquanto o outro guarda era abatido com uma flechada no peito.

Segurando James no colo, Bethia assistiu horrorizada, cerca de doze cavaleiros saírem de trás das árvores. Três deles reconheceu imediatamente. Como William e os filhos podiam estar ali, bem na sua frente, se no dia anterior seus pais haviam recebido uma carta do infame solicitando a guarda de James? Impossível percorrer a distância entre Dunncraig e Dunnbea num único dia.

Observando-o desmontar e caminhar na sua direção, deu-se conta de como todos tinham sido facilmente enganados. Em vez de permanecer instalado em Dunncraig, tentando roubar o que não lhe pertencia, William, liderando um bando de mercenários, se ocultara nos arredores de Dunnbea e esperara pela oportunidade de pôr as mãos no que queria. E ela, como uma perfeita tola, marchara para a armadilha.

— Você está louco? — Bethia o interpelou, esforçando-se desesperadamente para esconder o pavor.

— Louco? Eu? - Um sorriso debochado expôs os dentes amarelos. - Não, acho que não. Afinal, consegui atraí-la para fora das muralhas do castelo. Como prêmio extra, você ainda me trouxe o pirralho!

— Não vim até aqui para vê-lo matar dois homens bons. E com certeza não foi você quem me atraiu a este lugar.

— Sei disso. Mas sou o motivo pelo qual você se encontra onde está agora. Eu sabia que alguém do seu tipo não conseguiria viver trancafiada indefinidamente. Tudo o que precisei fazer foi despertar suspeitas sobre meu paradeiro e aguardar o momento de agir.

— Você se considera muito mais inteligente do que é. - E eu muito mais estúpida do que jamais imaginei, ela pensou desanimada.

— Oh, sou muito inteligente. Afinal, quem é o vencedor? Antes que Bethia dissesse algo, um punho a atingiu no rosto. Após um segundo de dor e medo excruciantes, a escuridão total.

 

— Bowen! Wallace gritou, entrando no estábulo. É melhor você vir comigo agora.

O mestre-de-armas seguiu o jovem lorde até o pátio, onde uma pequena multidão reunira-se ao redor de alguém. Quando, enfim, pôde aproximar-se o suficiente, deparou com Dougal estendido no chão, Grizel e a velha Helda tentando estancar o sangue que jorrava de um ferimento nas costas.

— O que aconteceu, Dougal? — ele perguntou, rezando para que o rapaz não perdesse a consciência antes de dar-lhe as respostas de que necessitava.

— Fomos atacados no bosque — Dougal murmurou, em óbvia agonia. Robbie está morto. Pensaram que eu estava morto também. William… levou milady e o menino.

— Você viu que direção tomaram?

— Oeste.

— Ótimo. — Bowen fitou as duas mulheres ao levantar-se, revelando uma expressão angustiada no olhar. Façam o máximo pelo rapaz.

— Dougal disse oeste? — Wallace indagou.

— Sim.

— Não é o rumo que os levará a Dunncraig.

— Não. Creio que o canalha pretende abandonar os corpos a uma distância segura de Dunncraig, para que não possa ser acusado de nada. Vamos, se nos mexermos depressa, talvez tenhamos uma chance de salvá-los.

— Espero que possamos encontrá-la, e ao menino, antes que sir Eric descubra o que houve.

— Tarde demais — comentou Peter, apontando o cavaleiro que acabara de cruzar os portões de Dunnbea.

 

— Onde está ela? — Eric indagou.

Muito tenso Bowen passou a mão pelos cabelos escuros.

— Acreditamos que aquele amaldiçoado a seqüestrou. Bastara cruzar os portões de Dunnbea para Eric perceber algo errado no ar. Peter, Wallace e Bowen, à frente de um grupo de cavaleiros armados reunidos no pátio, transpiravam nervosismo. Sem se dar ao trabalho de desmontar, marchara para o mestre-de-armas.

— E James?

— Levaram o menino também.

— Como em nome de Deus, William conseguiu entrar em Dunnbea?

— O maldito não pôs os pés aqui dentro. Bethia e o garoto saíram para procurar plantas medicinais, escoltados por dois guardas. Agora um dos nossos está morto e o outro, gravemente ferido. Grizel, esposa de Peter, receia pela sobrevivência de Dougal. Estamos indo caçá-los. Você vem conosco?

— Claro.

— A velha Helga e Dougal nos disseram onde devemos começar a busca, o que nos ajudará a ganhar horas preciosas.

Tão logo o cortejo deixou os limites de Dunnbea, Eric conduziu Connor para junto de Wallace.

— O que passou pela cabeça de Bethia para abandonar a segurança do castelo?

— Não creio que ela se sentisse completamente despreocupada, mas sem dúvida achou que não haveria problema aventurar-se num passeio curto com dois homens armados a protegendo. William parecera ter se recolhido a Dunncraig, de onde enviava mensagens solicitando a guarda de James. Meus tios idiotas estavam realmente considerando a possibilidade de atendê-lo, para desespero de Bethia.

— Posso entendê-la. - Preocupado, Eric observou Thomas, o batedor do grupo. — Ele é bom?

— O melhor. Alguns vizinhos costumam pedir-nos licença para usá-lo em casos difíceis de rastrear. Thomas é capaz de descobrir vestígios num talo de grama partido.

— Espero que ele encontre os rastros depressa. Bethia e James já estão em poder de William há tempo demais.

— Você acha que o infame ainda pretende matá-los?

— Oh, sim.

— Não faz sentido. Todos saberão quem é o assassino e o porquê do crime.

— William não é sagaz o suficiente para pensar assim e do alto da sua prepotência, crê que poderá inventar explicações convincentes para os “acidentes”.

— Não se angustie. Nós a encontraremos.

— Espero que sim. Estou casado há apenas duas semanas e não tenho a menor vontade de me tornar viúvo.

Ao recobrar os sentidos, duas coisas chamaram imediatamente a atenção de Bethia: o forte odor de cavalos e o choro de James. Então, as lembranças de sua captura a atingiram com uma torturante riqueza de detalhes. Cautelosa, aprumou-se na sela, lutando contra a onda de náuseas, com o olhar ansioso procurando o sobrinho. Apavorada, descobriu-o partilhando a montaria com Iain.

— Enfim acordada, hein? — William sorriu debochado.

— A cabeça dói?

— Oh, por que você simplesmente não deita e morre? -Ao tentar levantar as mãos para tocar a têmpora ferida, descobriu ter os pulsos amarrados. - Sabemos que você venceu. É criancice se vangloriar.

Notando que seu comentário destruíra o bom humor de William, Bethia sentiu-se recompensada. Preferia lidar com o canalha de sempre do que com alguém falsamente agradável.

— Tenho o direito de me vangloriar. Todos vocês, Drummond, não passam de um bando de orgulhosos e arrogantes. Acharam que eu deveria ser eternamente grato só porque adotei o sobrenome da família. Mas o nome era tudo o que estavam dispostos a me dar.

— E é mais do que você tinha quando se casou com a ingênua tia de Robert. Você e seus abomináveis filhos estavam esfarrapados e esfomeados, morando num buraco, quando a pobre senhora os acolheu.

— Dunncraig me pertence. Mereço-o.

— Por quê? Porque se julga um grande homem?

— Sou melhor do que qualquer Drummond. Onde estão os belos Robert e Sorcha agora, com toda sua arrogância e orgulho? Debaixo de sete palmos. Como você em breve estará. E o fedelho também.

Vendo William afastar-se para se reunir aos filhos, o desespero a invadiu. Embora as chances de escapar fossem nulas, especialmente porque haviam a separado de James, sabia que se perdesse a esperança estavam condenados. Se desistisse de lutar, iria para a morte como um cordeiro para o matadouro e arrastaria o sobrinho consigo.

Será que o sol demoraria muito a se pôr? Apesar de seus parcos conhecimentos sobre o assunto, presumia que não, considerando a luminosidade. Quando anoitecesse, Bowen notaria sua ausência e sairia à sua procura. Se conseguisse atrasar a marcha, o mestre-de-armas poderia alcançá-los. Sim, tratava-se de uma possibilidade improvável, mas antes se agarrar a uma pequena esperança do que sucumbir ao pânico.

Inspirando fundo, ela se esforçou para esquecer a dor de cabeça brutal. A dor anuviava seus pensamentos e precisava ter a mente clara para agir.

De repente, William ordenou uma parada. Um dos homens a arrancou da sela e soltou-lhe as mãos, entregando-lhe James como se a criança não passasse de uma mercadoria.

— Vá até o meio da clareira e ajoelhe-se — instruiu-a William.

— Você quer que eu me submeta mansamente? Você deve estar doido.

Então ela saiu correndo. Mesmo reconhecendo não haver qualquer chance de escapar, carregando James no colo e com uma dúzia de assassinos ao encalço de ambos, milagres podiam acontecer. E também estaria ganhando tempo. Tempo a favor de Bowen. Por fim, após alguns minutos de vantagem sobre seus captores, um deles surgiu à sua frente, como se saído do nada, e deu-lhe um safanão. Antes de cair, Bethia protegeu o menino com os braços, usando o próprio corpo como escudo para poupá-lo do impacto da queda.

Aterrorizado, James começou a chorar e gritar, embora não estivesse ferido. Certa de que o barulho serviria apenas para apressar a execução dos dois, ela procurou tranqüilizá-lo, beijando-o nos cabelos e sussurrando palavras carinhosas.

— Ah, quanta tolice! Onde você achava que ia? — William zombou, agarrando-a pelos cabelos e obrigando-a a ajoelhar-se.

— Talvez eu não pretendesse ir a lugar nenhum. Talvez quisesse só irritá-lo.

— Pois conseguiu. Aliás, você tem sido um espinho encravado na minha carne desde o dia em que apareceu em Dunncraig.

— Você matou Sorcha e tentou matar meu sobrinho. Esperava agradecimentos?

— Eu esperava que você fosse tão estúpida quanto sua irmã. Aquela tonta e o marido nunca suspeitaram dos meus planos. Como você descobriu? Talvez porque seja uma bruxa. Sim, com esses olhos esquisitos deve ser uma feiticeira.

Se Bethia estivesse de posse de sua adaga, a teria cravado no coração do crápula. William considerava seus esforços para impedi-lo de assassinar uma criança uma afronta, um insulto! O maldito não hesitara em trucidar todos os que haviam cruzado seu caminho porque os julgava simples obstáculos à obtenção de terras e riquezas. Como vermes insignificantes, os esmagara.

O comentário absurdo sobre seus olhos deu-lhe uma idéia. As pessoas costumam ter medo daquilo que não conseguem entender. Era ridículo imaginá-la dona de poderes sobrenaturais por causa de uma particularidade física, mas, não tendo mais nada a perder, valia a pena explorar a ignorância alheia. Fitando William fixamente, sorriu ao vê-lo dar um passo atrás.

— Não foi difícil enxergar os planos escritos na sua alma negra.

— Eu sabia! — ele exclamou num misto de triunfo e receio. -Apenas através da bruxaria você poderia ter descoberto qual refeição estava envenenada e escapado de mim.

Enfurecia-a um asno feito William haver sido capaz de assassinar Robert e Sorcha sem a menor dificuldade e estar prestes a matá-la e a James. Simplesmente não lhe parecia justo. Pedia a Deus que alguém aparecesse para resgatá-la, porque brincar de feiticeira seria uma faca de dois gumes.

Poderia acabar ardendo na fogueira, em vez de ter a garganta cortada. Afastando os pensamentos mórbidos, Bethia concentrou-se no que deveria dizer.

Movendo-se pelo bosque tão rápida e silenciosamente quanto possível, Eric e seus companheiros de Dunnbea seguiram o som do choro de James. Então, silêncio.

— O menino parou de chorar — disse sir Murray, sentindo o sangue gelar nas veias.

— Isto não significa que esteja morto, Bowen assegurou. É provável que Bethia tenha conseguido acalmá-lo.

— Eles estão poucos metros adiante, numa clareira — avisou-os Peter, retornando com as informações trazidas pelo batedor.

— Vivos? — perguntou Eric, tenso.

— Sim, embora seja óbvio que William pretenda matá-los. Bethia e o garoto estão ajoelhados no chão, com uma dúzia de homens os encarando.

Em poucas palavras, Bowen instruiu o grupo, ordenando que os dois melhores arqueiros se posicionassem na retaguarda de William. Wallace e Eric ficariam atrás de Bethia e James, para retirá-los imediatamente do centro do confronto, assim que o ataque começasse. Eric esforçou-se para encontrar conforto nas afirmativas de Bowen, de que Bethia saberia o que fazer quando o conflito fosse deflagrado. Mas, ao escutar o que ela dizia a William, angustiou-se.

— Que jogo perigoso é esse? — murmurou deitado de braços ao lado de Wallace sob a vegetação densa.

— Evidentemente William é um daqueles cretinos que consideram Bethia uma bruxa por causa dos olhos de cores diferentes. Mas não sei como minha prima usará essa tolice ao seu favor.

— Não é sensato brincar com os medos de um homem. Corre-se o risco de apressar a própria morte.

— Sei o que você planeja agora. dominando o pavor, Bethia manteve a voz baixa e firme.

— Não é difícil adivinhar. Planejo matá-la e ao fedelho, e me apoderar de Dunncraig.

— Dunncraig nunca lhe pertencerá. Você realmente pensa que meu clã, ou meu marido, acreditarão que James e eu fomos mortos por ladrões e assaltantes?

A expressão assombrada do maldito e a dos abomináveis filhos deixou claro que acertara na sua suposição. Eles sabem muito bem que você está matando todos aqueles que constituem uma ameaça à sua ambição de tornar-se lorde de Dunncraig.

— Ninguém tem provas contra mim.

— Minha palavra basta. Se você me matar, meu clã e meu marido o caçarão, e aos seus abomináveis filhos, sem tréguas. Eles vão matá-lo. Lentamente. E você bendirá a morte porque, antes do meu último suspiro, vou amaldiçoá-lo, aos seus filhos e aos que os ajudarem. Seu corpo inteiro ficará coberto de pústulas enormes e ninguém agüentará ficar ao seu lado, devido ao fedor.

— Cale essa boca imunda, feiticeira! — William urrou descontrolado.

 

— Então todo seu cabelo cairá. Depois os dentes. E dores lancinantes nas juntas o impedirão de andar.

— Faça-a calar a boca, pai! — gritou Angus, fazendo o sinal da cruz.

— Dou-lhe um aviso, mulher — William ameaçou-a, a espada em riste. Se você não parar, corto-lhe a língua fora.

— Para cada gota de sangue meu, ou de James, derramado, você conhecerá novo tormento. Suas unhas, dos pés e das mãos, escurecerão e cairão. Sua virilidade ficará torta e…

Um grito agudo cortou o ar e um homem caiu, atingido nas costas por uma flecha. Em questão de segundos reinava o caos. Agarrando James, Bethia pôs-se a correr para longe do conflito. Na direção exata de Eric e Wallace.

— Você está bem? — Ansioso, Eric, tocou-a de leve na face ferida.

— Sim — ela retrucou trêmula, agradecendo silenciosamente a Deus o milagre de haverem sido salvos no último minuto.

— Vigie-a, Wallace — Murray ordenou, marchando para a luta.

— “Sua virilidade ficará torta?” — Wallace repetiu, rindo. De onde você tirou isso?

— Pareceu-me uma daquelas pragas capazes de assustar um homem.

— Oh, sim, é uma idéia apavorante.

— Como vocês nos encontraram? — indagou, ardendo de curiosidade.

— A sorte estava conosco. Ou, talvez, com você e o menino. Dougal sobreviveu à emboscada e, mesmo gravemente ferido, conseguiu regressar a Dunnbea. Partimos sem demora.

— E Thomas, sem dúvida, encarregou-se de nos rastrear.

— Sim. Wallace acariciou os cabelos macios do bebê. A ajuda desse garotinho foi inestimável. O choro dele nos guiou até vocês.

— Tive medo de haver falhado em relação a James. De tê-lo arrastado para a morte.

— Não, prima. William enganou a todos nós. Se não pensássemos que o infame estivesse em Dunncraig, não a teríamos deixado sair de Dunnbea. Seu marido ficou furioso quando soube que não a impedimos.

Será que a reação de Eric significava a existência de algum sentimento mais profundo? Não, não se permitiria alimentar esperanças vãs. Desde o primeiro momento, ele jurara, por sua honra de cavaleiro, protegê-la e a James. E reafirmara o juramento ao desposá-la. Durante a estada em Bealachan, imaginara-a segura em Dunnbea; portanto, fora natural irritar-se quando não a encontrara.

Vendo o marido mover-se na direção de William, Bethia fechou os olhos e pôs-se a rezar, apavorada com a possibilidade de acontecer o pior. Não suportaria perdê-lo. Morreria também.

Eric praguejou quando vários mercenários se interpuseram entre ele e sua presa, como uma barreira humana. William desperdiçava a vida dos comparsas para salvar a própria pele.

— Enfrente-me e lute como homem, seu covarde imundo! — Murray gritou; engajado num duelo com o quarto oponente.

— Não pretendo morrer aqui. Aquela feiticeira provocou a morte de meus filhos e me levou a perder as terras que seriam minhas. Planejo viver o suficiente para fazê-la pagar caro.

Furioso, Eric arrancou a espada das mãos do adversário e mandou-o sumir, não se surpreendendo ao ser obedecido.

— Você mesmo provocou seu fim — ele bradou, avançando por sobre os corpos caídos.

— Dunncraig deveria me pertencer! — Montando, William saiu em disparada, indiferente a quem estivesse em seu caminho.

— Wallace!

O brado de Murray chamou a atenção do jovem cavaleiro a tempo. Vendo William aproximar-se num galope desenfreado, ele ergueu a espada, em posição de ataque.

— Saia da frente no momento em que eu gritar agora, prima.

— Virgem Santa, será que o canalha quer nos pisotear? Apertando James junto ao peito, ela pediu a Deus que lhe desse forças para protegê-lo.

— Agora! Wallace gritou, aparando o golpe mortal de William, por pouco não se desequilibrando, com o impacto das lâminas.

Mais duas vezes William tentou derrubar Wallace para atingir Bethia, e acabou rechaçado. Quando se preparava para a terceira investida, estancou. Eric e outros homens corriam para junto de Bethia. Seria impossível vencê-los sozinho, considerando que os poucos sobreviventes de seu bando haviam desertado.

— Ainda não terminamos vaca! — ele urrou possesso de ódio.

— Você perdeu William. Desista — Bethia retrucou assustada com o brilho demente dos olhos frios.

— Não. Você vai pagar pela vida de meus filhos. Você e o pirralho.

William desapareceu no meio das árvores e embora Bowen destacasse dois homens para persegui-lo, Bethia duvidava de que fossem pegá-lo. Não desta vez. Então Eric surgiu ao seu lado e, sem uma palavra, abraçou-a. Fechando os olhos, ela buscou no marido a segurança contra seus medos.

Escapara por um triz. E pior. O drama ainda não acabara. Com tantas testemunhas de sua tentativa de assassiná-la, e a menino, William não mais poderia se refugiar em Dunncraig. Tornara-se um foragido. Suas ameaças, no entanto, mereciam ser levadas a sério. O fato de haver perdido tudo, filhos, terras, dinheiro e mercenários, não o deteria. William continuaria caçando-a, não por cobiça agora. Mas por vingança.

-— O que você estava pensando para deixar Dunnbea? Interrogou-a Eric, após tomar um longo gole de vinho do odre que Wallace lhe oferecera.

— Como uma tola ingênua, acreditei que William estivesse em Dunncraig devido às mensagens enviadas aos meus pais solicitando a guarda de James.

— Nunca nos ocorreu questionar o mensageiro sobre o local de onde as cartas estavam sendo expedidas. Wallace apontou para um cadáver, cujo pescoço fora atravessado por uma flecha. Ali está ele.

— Você reconhece alguns desses mortos como residentes de Dunncraig? — Eric perguntou à esposa.

— Não. William parece ter substituído os homens leais a Robert por mercenários.

— Mercenários capazes de assassinarem inocentes covardemente. Aqueles leais a Robert jamais se prestariam a atacar outro Drummond.

— Mas existem alguns poucos em Dunncraig que não hesitariam em apoiar o usurpador, traindo o próprio clã em troca de recompensa. Não os vi aqui. Com certeza estão escondidos no castelo. Essa história ainda não terminou — Bethia falou baixinho, estremecendo.

— Bem, se alguma das pragas que você rogou surtir efeito, será fácil identificar os traidores — observou Eric, rindo. Bastará procurarmos pelos carecas e desdentados, pelos mancos de unhas enegrecidas.

— Você ouviu tudo, não?

— Desde o início até a ameaça do membro torto. Notando-a enrubescer, embaraçada, ele a abraçou. O que lhe passou pela cabeça, querida, para se arriscar tanto? Você estava pressionando aqueles sujeitos, instigando seus mais secretos temores. Os canalhas ardiam de vontade de executá-la.

— Na verdade, eu esperava fazê-los hesitar justamente por causa desses temores. Se me consideravam uma bruxa só porque não comi a tal refeição envenenada, valia a pena me aproveitar da ignorância alheia.

— Nada os teria impedido de levar as ameaças a cabo.

— Eu só conseguia pensar em ganhar tempo. Quando William me acusou de feitiçaria, tive a idéia de tentar levá-lo a crer que seria perigoso me matar. Afinal, se o crápula era idiota o suficiente para me imaginar uma bruxa, também acreditaria em meus poderes e os temeria. Bowen me mandou estar de volta em Dunnbea antes do pôr-do-sol e eu sabia que quando não me visse chegar, sairia à minha procura. Assim, restava-me ganhar tempo.

— Como plano não foi perfeito, mas serviu ao seu propósito.

— É hora de deixar esse lugar sombrio — Bowen falou, aproximando-se do pequeno grupo.

— Sim — concordou Bethia. É um lugar de ameaças e mortes.

— E feitiçaria — o mestre-de-armas completou, rindo.

Bethia suspirou fundo quando os três homens gargalharam.

— Será que vocês nunca vão esquecer isso?

— Não. — Inclinando-se, Bowen beijou-a de leve na testa. — Virilidade torta, hein? Céus foi aterrorizante!

Quando os três tornaram a cair na risada, ela decidiu ignorá-los. Que se divertissem. Era bom escutar risos, porque não durariam muito. William continuava à solta e agora queria vingança.

— Pelo menos você não levou nenhum de nossos homens à morte com suas tolices, repreendeu-a lorde Drummond.

Suspirando fundo, Bethia colocou comida no prato e sentou-se. Chegando a Dunnbea, conseguira evitar os pais durante algum tempo, sendo levada imediatamente por Eric para o quarto onde tomara um longo banho e repousara. À hora do jantar, porém, estando todos reunidos no salão principal, não fora mais possível fugir aos ataques das línguas ferinas.

Obviamente seus pais não pretendiam admitir o quanto tinham se enganado a respeito de William Drummond e preferiam arranjar motivos para culpá-la. Nem uma única vez lhe perguntaram se fora ferida no ataque.

E o mais inquietante era que também não haviam indagado sobre James. O único neto estivera sob a ponta de uma espada e os dois não se mostravam sequer abalados, como se a criança não existisse.

— Sinto muito, não obstante termos reduzido o número de nossos inimigos para um.

— E como é que ele escapou? A crítica embutida na pergunta atingia Eric, Wallace, Bowen e Peter, e isto Bethia não podia suportar. O lorde de Dunnbea não quisera abandonar a segurança da fortaleza e agora se atrevia a menosprezar os esforços de seus homens. Chocada, ela deu-se conta de que nunca, até então, ousara alimentar pensamentos dessa natureza sobre o pai. De onde saíra tanta raiva? Mas não importavam os castigos que viria a sofrer. Defenderia aqueles que tão galantemente a tinham salvado e a James.

— William usou seus mercenários como escudo — Eric retrucou seco. Tivemos que eliminá-los para avançar. Aproveitando-se da demora, o canalha fugiu.

Lorde Drummond resmungou algo incompreensível e voltou a concentrar-se na comida. Com o coração apertado, Bethia rezou para que a conversa se encerrasse ali. Seu pai não tolerava ser censurado e fora o que Eric acabara de fazer sem nenhuma sutileza.

O pouco que comera de repente começou a pesar como uma pedra em seu estômago, e a tensão reinante ameaçava sufocá-la.

— Acho que vou me retirar — comunicou ao marido, num tom de voz alto o suficiente para que os pais a ouvissem.

— Irei me reunir a você em breve.

— Por favor… — Bethia sussurrou, temendo que Eric cedesse à irritação e a situação escapasse ao controle.

— Não se aflija querida. Não perderei a calma.

— Você não apreciou o jantar? — Grizel indagou, admirada.

— Eu não poderia engolir mais nada. Meu pai não ficou satisfeito ao descobrir-se completamente errado sobre William e insiste em culpar seus homens por não o terem capturado. Eric e Wallace revidaram à crítica e o clima tornou-se irrespirável. Preferi me afastar.

— Nenhum homem, recém-chegado de uma batalha, gosta de ser criticado por alguém que não empunha uma espada há doze anos.

A rispidez de Grizel surpreendeu Bethia. Mas basto lembrar-se de que Peter era um daqueles injustamente acusados de incompetência para compreender o ressentimento Sempre estranhara por que tantos homens bons permaneciam servindo Dunnbea, suportando as reclamações constantes e infundadas de seu pai. Agora percebia a verdade. Eram homens leais a Wallace e Bowen e apenas aguardavam, pacientes, o dia em que Wallace se tornaria o novo lorde de Dunnbea.

— Tenho certeza de que meu pai não os cobriu apenas de críticas — ela murmurou, terminando de trocar-se e sentando-se diante da lareira para que Grizel escovasse seus cabelos. Como está James?

— Dormindo como um anjo. Seu marido e eu o examinamos da cabeça aos pés e não encontramos ferimentos sérios. Somente alguns arranhões.

— Graças a Deus! Ah, como alguém teria coragem de matar uma criança?

— Ganância, milady. Pura ganância. Peter e Bowen estão enfurecidos por aquela víbora ter lhes escapado das mãos.

— Eu também. De fato, sinto-me apavorada. — Bethia apertou o robe contra o corpo, numa tentativa vã de aquecer-se. Se você o escutasse me ameaçando e a James… Nunca o considerei mentalmente são. Que criatura, em seu juízo perfeito, se disporia a assassinar cinco pessoas inocentes para se apossar de terras?

— Não se angustie. Você e o garoto estão protegidos.

— Como podemos ser protegidos de um louco?

— Com homens fortes e bem armados os guardando. Quanto ao maldito, será caçado e morto. Grizel entregou-lhe um cálice de vinho. Agora fique quietinha e beba tudo antes de dormir.

Após a saída da criada, Bethia procurou se acalmar. Fora um dia terrível. Primeiro o seqüestro, então a provação à hora do jantar. No início, imaginara que seus pais acolheriam seu marido de bom grado depois do casamento, pois Eric possuía todas as qualidades para agradá-los. Além da classe e distinção naturais, era ainda mais bonito do que Robert. Mas, quanto mais pensava no assunto, mais percebia a enorme diferença entre os dois. Eric, além de belo, destacava-se como um homem decidido, de opiniões fortes. Robert, ao contrário, sempre se deixara conduzir com facilidade. Como Sorcha.

Não tinha mais dúvidas de que o momento de partir de Dunnbea chegara. Eric, James e ela recomeçariam a vida em outro lugar.

— O que vocês estão fazendo aqui? — Bowen perguntou quando Wallace e Eric entraram em seu pequeno chalé, fora das muralhas de Dunnbea. É tarde. Imaginei que depois de passar duas semanas longes, você teria algumas palavras para dizer a Bethia, sir Murray.

— Se eu a encontrar dormindo quando chegar suponho que não será difícil acordá-la. - Rindo, Eric sentou-se à mesa rústica e aceitou a cerveja que o mestre-de-armas lhe oferecia. Então, ficou muito sério. Planejo levar minha esposa até a corte do rei dentro de um, dois dias.

— E desejará uma escolta — emendou Bowen.

— Sim. Minha maior preocupação é James, que ficará em Dunnbea.

— Não se aflija pelo menino, Wallace o tranqüilizou.

— Ainda que meu tio seja um cretino, por não perceber o perigo que o neto corre, nós o vigiaremos dia e noite.

— Obrigado. Porém há mais uma coisa que eu gostaria de lhes pedir. Murray sorveu um gole de cerveja, incerto sobre como seu comentário seria recebido. Críticas vindas de um forasteiro nem sempre costumam ser bem-aceitas.

— Prefiro que lorde e lady Drummond tenham o mínimo de contato possível com James enquanto Bethia e eu estivermos viajando. O ideal seria Grizel encarregar-se de cuidar da criança.

— Assim será feito — concordou Bowen.

— Creio que lorde e lady Drummond não se oporão às atividades de Grizel, visto não se interessarem por James. Receio que nem sequer se lembrem do nome do garoto.

— No início, notando como o menino se parece com a mãe, temi que meus tios insistissem em criá-lo, mimando-o e estragando-o como fizeram com Sorcha — admitiu Wallace. Entretanto, você tem razão. Os dois não o julgam perfeito o suficiente e decidiram esquecê-lo.

— Talvez porque não queiram enfrentar a prova de que a filha angelical se deitou com um homem, Bowen observou.

— É provável que seja exatamente isso! — exclamou Eric. Bem, não importa como suas mentes estranhas funcionam desde que não envenenem James. Sabendo que vocês se encarregarão de vigiá-lo, será mais fácil convencer Bethia a me acompanhar.

— Você acha sensato partir para a corte agora?

— Seria preferível que William já estivesse morto, mas não posso desperdiçar o momento. Conto com total apoio dos MacMillan, o que pesará a meu favor quando requerer as terras de Beaton. Também confesso que, se permanecer aqui por muito mais tempo, acabarei esmurrando o rosto balofo de lorde Drummond, Eric sorriu quando os outros dois caíram na risada. Não quero brigar com meus sogros. Não quero deixar Bethia numa posição incômoda, na qual terá que escolher entre os pais e o marido. Seria duro para uma jovem recém-casada tomar partido.

— Vá para a corte. James ficará bem protegido de William e dos avós, assegurou-o Bowen. Leve Bethia para longe daqui. Irá fazer-lhe bem ausentar-se de Dunnbea.

Ao entrar no quarto, Eric sorriu ao ver a esposa cochilando diante da lareira. Silenciosamente, para não acordá-la, inclinou-se e beijou-a de leve nos cabelos.

— Oh, Eric, é você. Abrindo os olhos, Bethia conteve um bocejo.

— Hora de deitar-se, querida, antes que você caia da cadeira.

Sem resistir, ela se deixou conduzir até a cama; o sono, porém, desapareceu por completo quando o marido começou a despir-se, bastando a simples visão do corpo másculo para acender seu desejo.

Eric deitou-se, beijou-a na testa e permaneceu imóvel. Depois de duas longas semanas de ausência, Bethia esperara um pouco mais. Teria ele se saciado com as mulheres de Bealachan e agora procurava repousar? Lembrando-se de que prometera a si mesma não se entregar ao ciúme, afastou a idéia inquietante. Devagar, moveu a perna até roçá-lo na região genital. O membro ereto era prova irrefutável da paixão.

Por quê, então, Eric não tomava nenhuma iniciativa de possuí-la? Por algum motivo insistia em tratá-la com extrema gentileza, como se quisesse poupá-la de seu ardor. Por fim o óbvio ocorreu-lhe. Talvez o marido achasse que após as aventuras do dia, ela preferisse descansar. Tinha que, convencê-lo do contrário.

Quando a esposa o acariciou no abdômen, Eric cerrou os dentes, esforçando-se para ignorar o desejo avassalador. Queria-a tanto que seu corpo inteiro chegava a doer. Sabia que, num espaço de horas, a pobrezinha fora agredida, seqüestrada, ameaçada de morte. Naquele instante, mais do que tudo, necessitava dormir e recuperar-se do trauma. Não seria justo submetê-la às exigências da carne. Tentando distrair-se, resolveu discutir a viagem próxima.

— Partiremos para a corte dentro de um, dois dias.

— Tão breve?

—Sim. Os MacMillan me aceitaram completamente, acolheram-me sem reservas.

— Alegro-me por você.

— Sempre me senti feliz sendo um Murray. Nunca me faltou nada em Donncoill, cresci cercado de amor e respeito. Mas saber-me rejeitado por aqueles do meu próprio sangue era duro. Quando cruzei os portões de Bealachan e a sentinela duvidou de que eu fosse mesmo um Murray, confundindo-me com um MacMillan, compreendi que tinha errado, não os procurando mais cedo. Bastou um olhar e meu tio viu em mim a imagem da irmã morta. Contou-me que os Beaton o convenceram de que eu não passava de um bastardo oportunista e que, mediante tal informação, nem sequer leram as cartas que lhes mandei.

— Se lorde MacMillan amava mesmo a irmã, lidar com um impostor seria realmente doloroso.

— Lady MacMillan também disse que lorde Beaton deixou claro que interpretaria minha presença em Bealachan como uma afronta pessoal, um insulto à sua honra, visto não ser nenhum mentiroso.

— Manobra inteligente.

— Porém agora que os MacMillan me aceitaram, agora que acreditam na minha versão dos fatos, estão prontos para me apoiar na luta por Dubhlinn. Inclusive já enviaram uma mensagem ao rei colocando-o a par da decisão tomada. Portanto, o sensato é que eu parta para a corte o quanto antes.

Eric achou melhor não mencionar que os MacMillan haviam lhe oferecido homens e armas, caso o confronto com Beaton fosse inevitável. Bethia parecia aceitar ser direito seu tomar posse do que lhe pertencia e, possivelmente, cogitar na possibilidade de uma batalha para conquistar sua herança iria angustiá-la.

Por enquanto, falaria apenas de petições e requerimentos Se, contudo, a situação chegasse ao extremo, gostaria que a esposa compreendesse não ser somente a cobiça o motivo que o levava a empunhar a espada.

— Tenho aprendido um pouco sobre a etiqueta da corte. Assim, talvez, suporte a provação. Ouvindo-o rir, ela sorriu. Não se esqueça de que jamais freqüentei festas e possuo pouco traquejo social.

— Você se sairá muito bem. Ele inspirou fundo, preparando-se para encontrar resistência. Penso que deveríamos deixar James em Dunnbea.

— Você receia que a jornada seja perigosa?

— Nenhuma jornada é destituída de riscos e William continua livre. Vigiar James num lugar tão movimentado e confuso como a corte poderia acarretar dificuldades inesperadas. Aqui guardarão o menino noite e dia.

— É verdade. Só não me agrada entregá-lo aos cuidados de meus pais por tanto tempo. Os dois ainda não superaram o choque provocado pela morte de Sorcha e lidar com o neto deve causar-lhes um sofrimento adicional. Bethia perguntou-se se Eric revirara mesmo os olhos ou se fora só impressão. Meus pais parecem ignorar James e isso não é bom para uma criança sensível, necessitada de amor.

— Falei com Bowen e vou expor nossos receios a Grizel. Bowen e Wallace se comprometeram a proteger James e a não deixá-lo nas mãos dos avós.

— Você dá a impressão de haver pensado em todos os detalhes.

— Sim. Costumo sempre analisar todos os aspectos de uma situação quando sei que minha opinião poderá suscitar polêmicas e gerar discussão. Desse modo é possível manter uma conversa racional e não brigar por tolices.

— Ah, em especial se seu oponente for uma mulher — Bethia brincou. Imagino que você tenha tido prática de sobra em todos os seus anos de irresistível sedutor.

— Realmente aprendi observando meus irmãos e suas esposas. Estar do lado de fora nos permite enxergar com mais clareza aquilo que não dá certo. Não demorei muito a concluir que é um erro tratar mulheres inteligentes e corajosas com autoritarismo.

— Você acha que sou inteligente e corajosa? — O elogio a fez corar.

— Muito mais do que você supõe. - Delicado, Eric a acariciou no rosto. - Você enfrentou William sem medo.

— Eu estava morrendo de medo, principalmente por James.

— Sim. Mas não permitiu que o pavor a dominasse. Isso é coragem.

As palavras do marido a comoveram tanto que lágrimas vieram-lhe aos olhos. Agradecida, beijou-o nos lábios. Logo o beijo casto se transformava numa carícia devoradora.

— Chega querida. Ou não serei capaz de deixá-la descansar.

— E eu pareço estar cansada, com sono?

— Não, você parece muitíssimo acordada. Mas passou por uma experiência trágica hoje.

Estremecendo, Eric perguntou-se até quando resistiria. Ter o corpo sinuoso colado ao seu o estava enlouquecendo. Quando os dedos delicados fecharam-se ao redor de sua ereção, seu autocontrole desabou. Impossível continuar impassível, impossível não reagir diante de tamanha tentação.

— Sim. Agrediram-me, seqüestraram-me, ameaçaram-me de morte. E, ao que me consta, não tenho nenhum osso quebrado. Tampouco qualquer ferimento.

— Minha querida, depois de duas semanas dormindo sozinho, não sei se conseguirei ser muito gentil. - Surpreendia-o ainda conseguir articular palavras, quando a boca e a língua da esposa o acariciavam tão intimamente.

— Ótimo. Depois de duas semanas dormindo sozinha, também não sei se conseguirei ser gentil. E, após ver a morte de perto, talvez eu queira um pouco de selvageria para ter certeza de que estou viva.

Ela o beijou de tal forma que Eric cessou de lutar. Antes, porém, de ceder ao delírio da paixão, a fez deitar-se de costas e explorou cada centímetro da pele aveludada com as mãos e a boca, embriagando-se do gosto feminino como um homem faminto e sedento. Quando, enfim, a penetrou, manteve-se imóvel durante vários segundos.

— Eric? — Bethia o chamou baixinho, puxando-o pela nuca.

— Não se mexa querida. Só quero desfrutar um pouco do seu calor. Passei muitas noites intermináveis, muitas noites solitárias pensando nisto. - Sentindo-a pressioná-lo com os músculos internos, desistiu de resistir.

Bethia exultou no ritmo urgente das investidas. “Era exatamente o que eu precisava”, foi seu último pensamento coerente, antes de sucumbir à força de um orgasmo violento e demorado. Momentos depois Eric chegava ao clímax, inundando-a com seu sêmen.

— Você se sente viva agora, esposa? — ele perguntou num murmúrio rouco, abraçando-a, possessivo.

— Oh, sim. Você agiu bem, marido. Bethia sorriu ao escutá-lo rir.

— Você é por demais bondosa, senhora. Bocejando a contragosto, Murray apoiou a cabeça no travesseiro. - Voltando de Bealachan, fiz planos de nos amarmos a noite inteira, até a completa exaustão.

— Creio que não fugimos ao planejado.

— Sim. Mas eu não esperava me sentir esgotado após uma só vez.

— Bem, acho que não estava em seus planos ter que me resgatar antes mesmo de apear em Dunnbea.

Imagens dos acontecimentos recentes, do horror ante a possibilidade de perdê-la, reacenderam a angústia de Eric.

— Gostaria de instalá-la numa torre e cercá-la de homens armados.

— Agir assim seria quase como conceder a vitória a William.

— O que a tornaria infeliz. São esses dois motivos que me impedem de mantê-la trancafiada num local inacessível.

— É apavorante pensar que William me espreita que anseia pela minha morte. Especialmente porque o único responsável pela situação atual é ele mesmo. Não posso deixar que o medo guie meus passos. Não posso me comportar como uma covarde, escondendo-me de tudo e de todos.

— Encontraremos o canalha e o mataremos querida. Em breve, você estará livre dessa ameaça. Juro-o.

— Sinto muito, Eric.

— Por quê?

— Por arrastá-lo para meus problemas. Por obrigá-lo a matar um homem.

— Nada disso é culpa sua. Matar aquele assassino cruel será um ato de justiça. Descanse agora. Você necessitará de todas as suas energias para a viagem à corte.

Durante muito tempo, Bethia permaneceu acordada, aconchegada ao peito do marido adormecido. Embora o corpo estivesse fatigado, a mente continuava alerta. Apenas um mês atrás suas preocupações resumiam-se em manter o castelo impecavelmente limpo e conseguir servir uma refeição na qual seu pai não pusesse defeito. Agora um louco a caçava, tinha um marido e uma criança para cuidar.

A culpa de expor Eric ao perigo a consumia. Qualquer cavaleiro honrado não se furtaria ao dever, porém Eric não tinha escolha. Preso a um casamento forçado, estava duplamente comprometido. Restava-lhe rezar para que ele não pagasse caro demais por querer ajudá-la.

 

Bethia mal disfarçou o desagrado quando a criada entrou no quarto com o propósito de ajudá-la a vestir-se para o jantar. A rotina na corte não estava sendo nem um pouco excitante, consistindo, principalmente, de mexericos, recepções e comilanças. Além de uma profusão de mulheres que pareciam preferir não considerar adultério um pecado.

Devagar, sentou-se na cama, agarrando o lençol com ambas as mãos ao ser dominada por uma onda de náuseas. Desde a chegada à corte, um mês atrás, vinha sofrendo de vertigens ocasionais, os enjôos havendo se intensificado na última semana. Algo que andava comendo estava lhe atacando o estômago.

— Posso arranjar uma poção para seu problema, milady — ofereceu-se a serva, separando a saia e corpete azul-celeste.

— Uma poção?

— Sim, para livrá-la do bebê.

— Bebê? — Bethia arregalou os olhos pensando, pela primeira vez, que talvez essa fosse à explicação para sua estranha indisposição.

— Oh. Então o filho é do seu marido.

Atordoada, Bethia fitou a jovem roliça que não só lhe sugerira uma beberagem para provocar aborto, como se surpreendera com a idéia de que ela estivesse grávida do próprio marido. Indícios da imoralidade reinante na corte. Espantava-a Eric transitar por aquele meio sem se mostrar desconfortável. Porém, começava a suspeitar de que os homens não prestavam muita atenção ao que acontecia ao redor.

— Receio desapontá-la — Bethia sorriu para Jennet. - Não há razão para intrigas e segredos. O bebê é filho do meu marido. Não poderia ser de mais nenhum outro homem. Isto é, se eu estiver grávida.

— Suas regras têm vindo normalmente?

— Não. Não desde que me casei.

Balançando a cabeça, a serva a fez sentar-se num banco e pôs-se a trançar seus cabelos num estilo rebuscado, atual moda na corte.

— E você fica enjoada e sofre de vertigens todos os dias, sempre à mesma hora.

— Sim. Ao anoitecer. Ontem, durante o jantar, quase vomitei só de sentir o cheiro de ovos.

— Algumas mulheres não suportam certos cheiros e sabores quando estão prenhas.

— É cedo demais. Casei-me há pouco tempo.

— Algumas mulheres engravidam na noite de núpcias, milady.

Emocionada, Bethia pousou as mãos sobre o ventre. Sim, existia a possibilidade de que estivesse esperando um filho, mas ainda precisava de confirmação. As mudanças recentes em sua vida, a tensão constante de saber-se ameaçada de morte poderiam, sim, ter provocado alterações temporárias no ciclo menstrual. Também devia lembrar-se de que várias mulheres costumam perder seus bebês nos primeiros meses de gravidez. Seria melhor não dizer nada até certificar-se de que a criança estava firmemente implantada no útero.

— Ainda não disse nada ao meu marido.

— Ninguém ouvirá uma única palavra de minha boca, milady.

— Ótimo. Eu odiaria se rumores chegassem aos ouvidos de sir Murray antes que eu tivesse chance de lhe dar a notícia.

— E milorde é um homem tão bonito.

— Obrigada. Também penso assim. Bethia olhou-se no espelho, torcendo para não parecer tão tola quanto se sentia com aquele penteado armado.

Pronta para o jantar, dispensou a criada, desejando alguns minutos de solidão. Antes de sair do quarto tomou um gole de vinho, preparando-se para enfrentar a longa e desgastante noite.

Eric correu ao seu encontro tão logo a viu surgir no salão para conduzi-la à mesa. Desanimada, constatou que lady Catriona MacDunn acomodara-se defronte de ambos. Aquela mulher tornara-se uma chateação desde o primeiro fomento, não fazendo nenhum segredo de que pretendia arrastar Eric para a cama.

Quando lady Elizabeth MacFife sentou-se do outro lado de Eric, Bethia quase gemeu alto. Lady Elizabeth insistia em lançar olhares sedutores para seu marido, o que não só a irritava, como a lady Catriona também, como se esta tivesse direito de sentir ciúme. Ardia de vontade de esganar as duas!

Inspirando fundo, Bethia tentou acalmar-se, lembrando-se de que Eric dormia em sua cama todas as noites. E passava cada hora do dia tentando convencer o Rei a apoiá-lo em sua causa contra William e Beaton. A maneira como ele tratava as damas que o assediavam não revelava nada, exceto polida indiferença. Mas isso não as desanimava.

A refeição, conforme imaginara, foi um verdadeiro atentado aos nervos, lady Catriona e lady Elizabeth fazendo questão de interrompê-la rudemente sempre que se dirigia ao marido.

— Você se importa de retornar aos nossos aposentos sozinha, querida? — Eric indagou, terminado o jantar. Lorde Douglas está me chamando. Talvez ele tenha, finalmente, decidido me ajudar. Se for o caso, talvez eu obtenha o que desejo e então poderemos deixar esse podre lugar.

— Creio que eu gostaria mesmo de partir o quanto antes.

— Sei que tem sido difícil para você suportar esse ambiente tedioso, cheio de intrigas e maledicências.

— No entanto é aqui que você poderá obter o que de direito lhe pertence. Mas sinto falta de James.

— Eu também. Murray levantou-se e beijou-a na testa. Só não permita que nenhum desses cavalheiros lascivos a persiga.

Na sua inocência, Bethia nem sequer se dava conta de como os homens a devoraram com o olhar, atraídos por sua beleza clássica e ar ingênuo. A Eric, contudo, não escapavam as investidas masculinas e enchia-se de orgulho ao constatar que a esposa as ignorava.

Incomodava-o o comportamento acintoso de Catriona e Elizabeth, com as quais se envolvera no passado. O término da aventura, em ambos os casos, fora amigável, mas era óbvio que consideravam Bethia um estorvo, uma inconveniência a ser descartada. A última coisa de que precisava agora era amantes antigas atormentando Bethia com mentiras e insinuações grosseiras. Havia um limite para aquilo que qualquer esposa podia suportar.

Vendo Eric desaparecer na multidão, Bethia rezou para que lorde Douglas estivesse mesmo disposto a auxiliá-lo. Embora determinada a continuar ao lado do marido, desejava voltar para casa. Fartara-se da vida na corte.

Quando se preparava para retirar-se do salão, lady Elizabeth e lady Catriona a abordaram. Apesar de Eric tratá-las polida, mas friamente, suspeitava de que ele as levara para a cama anos atrás. O que houvera no passado não a incomodava, mas preferia ser poupada de ouvir detalhes sórdidos, que apenas lhe tirariam a paz e envenenariam seu casamento.

— Nós a acompanharemos até seus aposentos, lady Bethia — sugeriu Catriona, com um sorriso doce.

— É um oferecimento gentil de sua parte, mas desnecessário — Bethia retrucou, firme.

— Fazemos questão. Afinal, passaremos pelo seu quarto a caminho do nosso - Elizabeth insistiu. - A propósito, você tem que nos contar como conheceu nosso querido e belo Eric.

Suspirando resignada, Bethia contou-lhes a história que ela e o marido tinham combinado. Haviam se conhecido na estrada para Dunnbea e Eric fora convidado a se reunir à sua comitiva porque viajava sozinho.

— Tão romântico — suspirou Catriona. Eric sempre foi um homem de paixões ardentes.

— Oh, sim — Elizabeth apressou-se a concordar, com uma expressão sugestiva.

— Um amante muito disputado e bastante exigente na escolha de parceiras. Sem nenhuma sutileza, Catriona ergueu os seios avantajados lançando um olhar crítico para o peito relativamente achatado de Bethia.

— Muito exigente. Os homens sentem ciúmes das conquistas amorosas de Eric e procuram dar o troco. Suponho que você já dever ter notado como os inimigos de Eric tentam cortejá-la, num esforço para atingi-lo.

O insulto velado, contido no comentário de lady Elizabeth, não passou despercebido a Bethia.

— De fato — emendou Catriona. Poucos homens são capazes de tolerar a reputação de Eric, de amante incomparável. Sir Lesley Moreton, por exemplo, ficou furioso quando Eric começou a me cortejar. É preciso ter sempre cuidado com os ciumentos — sentenciou como quem acaba de proferir pérolas de infinita sabedoria.

— Nem me diga! O mesmo aconteceu com lorde Munroe, quando Eric decidiu fixar seus belos olhos azuis em mim.

Enojada com o rumo da conversa, Bethia desejou poder sair correndo, protestando um mal-estar súbito. Sem dúvida as duas megeras planejavam esmiuçar detalhes das respectivas aventuras amorosas com seu marido.

Num esforço supremo permaneceu calma, impassível, enquanto Catriona e Elizabeth a parabenizavam por haver capturado amante tão hábil. Desculpando-se, falsamente, por talvez a estarem escandalizando com revelações íntimas, puseram-se a pormenorizar o desempenho de Eric, exaltando a maneira galante como ele as seduzira, proporcionando-lhes prazeres inomináveis.

Ao chegar à porta do quarto, Bethia exultou de contentamento. Aquelas criaturas vulgares haviam esgotado o assunto, só faltando contar o que, exatamente, tinham feito na cama, com todas as variações possíveis do ato.

— Confesso que a invejo, lady Bethia — disse Catriona.- Como uma mulher como você conseguiu fisgar homem tão magnífico?

De repente, Bethia soube haver chegado ao limite. Suportara estranhas devassando a vida sexual de seu marido e calara-se, porque o passado de Eric não lhe dizia respeito. Mas agüentar Catriona sugerir que ela devia ter se valido de métodos suspeitos para conquistá-lo porque lhe faltavam atributos naturais estava além de suas forças. Nunca fizera nada contra aquelas mulheres e duvidava de que Eric lhes prometera casamento. Movidas por ciúmes, ou por despeito, queriam feri-la, humilhá-la. Gratuitamente a estavam tratando com requintes de crueldade e as detestava por isso.

— Segurei-o firmemente pelo membro — respondeu, com exagerada doçura. - Com certeza, as duas maiores prostitutas de toda a corte do Rei irão me entender.

Entrando no quarto, Bethia bateu a porta na cara chocada das duas. Então escutou-as afastar-se. E, apesar de não conseguir compreender o que diziam, as vozes exaltadas deixavam claro a fúria que as consumia. Agora lhes dera um motivo concreto para que a odiassem.

Depois de vestir a camisola, soltou os cabelos e deitou-se de braços na cama, enterrando a cabeça no travesseiro.

Por mais que tentasse, não podia ignorar o óbvio. Loiras, lindas e voluptuosas, era fácil imaginar Catriona e Elizabeth atraindo a atenção de Eric. Assim como era fácil sentir-se inadequada quando se comparava a ambas. Perdia não apenas no quesito aparência física. Do alto da sua inexperiência, devia deixar muito a desejar como amante.

O fato de Eric procurá-la todas as noites e amá-la com ardor não bastava para fazê-la sentir-se confiante. Afinal, recém-casados agem assim. Mas, e quando a novidade acabasse? E quando seu corpo sofresse as transformações impostas pela gravidez?

O som da porta se abrindo interrompeu o fluxo de pensamentos sombrios. Bethia ergueu a cabeça alguns centímetros e tornou a enterrá-la no travesseiro.

— Amuada, querida? — indagou Eric, parando ao lado da cama.

— Por que a pergunta? — A habilidade daquele homem em adivinhar seus humores a exasperava. Gostaria de ser mais misteriosa.

— Talvez porque você esteja tentando se sufocar com o travesseiro? — ele brincou, começando a despir-se.

— Não imaginei que você estaria de volta tão cedo.

— Lorde Douglas ofereceu-me total apoio e pude encerrar a conversa rapidamente.

— É uma notícia maravilhosa! A idéia de partir em breve permitiu-lhe demonstrar genuína alegria.

— Pobre querida! — Eric beijou-a de leve nos lábios. O que aconteceu para deixá-la assim tão chateada?

— Por que você nunca me deu flores? — Bethia interrogou-o num impulso, maldizendo-se, intimamente, por revelar as fraquezas e dúvidas que a martirizavam.

— Porque não há flores nesta época do ano e a primavera ainda está longe. Talvez eu consiga achar botões de urze, mas seria tudo. - Um olhar especulativo bastou para convencê-lo do que acontecera. -Aquelas vadias andaram a atormentando, não?

— Que modo áspero de se referir às suas amantes.

— Ex-amantes. Minha querida, você já deveria saber que um homem nem sempre gosta, ou respeita, as mulheres com quem se deita. Antes de encontrá-la, eu procurava apenas beleza e disposição. Elizabeth e Catriona encaixavam-se no perfil, além de possuírem uma vasta coleção de amantes. Acredite-me, pouco precisei cortejá-las para obter o que queria. Agora, porém, está claro que a estão usando para me atingir.

— Suponho que estejam irritadas por você ter se casado comigo, uma mulher que não lhes chega aos pés em beleza e encanto. E receio haver piorado a situação.

— O que você fez?

— Elas me acompanharam até a porta de nossos aposentos, contando histórias picantes a seu respeito. Ouvi muitas coisas calada. Então, de repente, perdi a cabeça.

— Sinto muito, querida. Quisera poder apagar meu passado.

— Não, não foi o fato de você haver dormido com outras mulheres antes de me conhecer o que me enfureceu. Afinal, era um homem livre e desimpedido na época. As duas desejavam apenas me machucar, causar problemas no nosso casamento despertando ciúmes e dúvidas em mim. Isso sim, me enlouqueceu de ódio. Receio ter dito algo que Catriona e Elizabeth acharão difícil de perdoar e agora, pensando no assunto, percebo que não fui delicada falando de você daquela maneira.

Vendo-a hesitar e enrubescer, Eric ficou curioso.

— O que você disse?

Inspirando fundo, Bethia encheu-se de coragem e repetiu o que respondera à provocação de Catriona, certa de que chocaria e desagradaria o marido. Reconhecia haver ido longe demais. Então, escutou-o rir.

— Oh, menina, você deve tê-las deixado mudas! — ele exclamou, abraçando-a.

— Pelo menos durante uns poucos segundos. Porém confesso que não experimentei nenhuma satisfação com minha resposta mal-educada.

— Não tão mal-educada e merecida. Porque não a julgavam uma oponente à altura, acharam que podiam espezinhá-la. Você está certa. Não havia necessidade de ressuscitar o passado. Elizabeth e Catriona simplesmente queriam magoá-la. Portanto, mereciam qualquer coisa que você lhes dissesse.

— Talvez. Por outro lado, elas não precisarão mais fingir que gostam de mim, o que é um alívio. Assim, não serei obrigada a aturá-las.

— Quanto ao que você falou…

— Não falei a sério. Estava só furiosa.

— Ah, que pena. Eric tomou a mão delicada e colocou-a sobre seu membro rígido. Eu tinha esperanças de que você liderasse esta noite.

Rindo, Bethia beijou-o, sabendo não haver líder ou liderado, a paixão os controlava com igual ardor e desatino. Logo atingiam o clímax, e seus medos e inseguranças foram banidos por alguns momentos. Ela adormeceu antes mesmo que seus corpos se separassem.

Inundado de ternura, Eric aconchegou a esposa junto ao peito, desejando ser capaz de poupá-la de tantos dissabores. Trouxera-a para a corte não somente porque a queria ao seu lado, mas também para afastá-la do veneno corrosivo de lady e lorde Drummond. Livrá-la das críticas constantes e ferinas dos pais lhe parecera um meio de ajudá-la a se tornar mais confiante, mais segura de si. Em vez disso, acabara atirando-a num ambiente hostil e cheio de intrigas. Claro que considerara a possibilidade de Bethia vir a cruzar com alguma de suas ex-amantes, mas não lhe ocorrera que essas criaturas tolas e superficiais representariam uma ameaça. Agora, compreendia o quanto Elizabeth e Catriona podiam colaborar para destruir a auto-estima de qualquer mulher, em especial se essa mulher ainda fosse insegura como Bethia. A pobrezinha passara uma vida inteira sendo ignorada, comparada desfavoravelmente à irmã e, quando notada, criticada sem piedade pelos pais. Com certeza fora doloroso para ela escutar mulheres lindas e arrogantes se gabarem das aventuras na cama.

Antes de adormecer, Eric prometeu silenciosamente à esposa finalizar seus assuntos na corte o mais depressa possível para levá-la embora dali. Num excesso de zelo e civilidade, permitira que a situação se arrastasse, aceitando desculpas pelos atrasos e convencendo-se de que o rei necessitava se reiterar dos fatos e analisá-los com vagar antes de tomar uma decisão definitiva sobre William Drummond e sir Graham Beaton. Pois chegara a hora de não ser tão educado, tão gentil. Queria Bethia longe de víboras como Elizabeth e Catriona antes que a peçonha delas a contaminasse definitivamente.

Bethia estendeu a mão e, em vez do peito do marido, tocou o lençol frio. Abrindo os olhos devagar, notou que mal amanhecera. Sobre o travesseiro, descobriu um bilhete, sorriu com a delicadeza e consideração do gesto. Eric desculpava-se por sair cedo e dizia-se decidido a buscar uma solução imediata para sua causa. Aliás, não conseguia entender por que o Rei hesitava, quando as provas contra William e Beaton eram contundentes. O Rei não necessitava de crápulas como aliados.

Sentando-se na cama, Bethia tocou a sineta para chamar a criada.

Depois de banhada e vestida, cogitara na possibilidade de pedir à serva para lhe levar o desjejum no quarto, porém reconsiderou. Não agiria como uma covarde. Enfrentaria as conseqüências de suas palavras impulsivas.

Ao entrar no salão, deparou com Catriona e Elizabeth. Então limitou-se a dirigir-lhe um olhar glacial, porém Catriona sorriu-lhe agradavelmente.

— Não fique com este ar desconfiado, menina. — Catriona passou-lhe um braço ao redor dos ombros, numa atitude amigável. — Você estava zangada. A culpa foi apenas nossa. Deveríamos ter tido mais cuidado com o que dizíamos.

— Isto não justifica minha indelicadeza. Como logo partiria, não custava ser generosa e parecer contrita.

— Para mostrar que tudo está perdoado, tomaremos o desjejum juntas e depois iremos à feira.

— Eu realmente não preciso comprar nada — Bethia protestou, sendo arrastada à mesa contra a vontade.

— Não seja tímida, milady. Toda mulher gosta de passear e admirar coisas bonitas. Vamos nos divertir muito.

Impotente, Bethia viu-se envolvida nos planos de Catriona. Como já a tinha ofendido seriamente no dia anterior, Preferiu ceder para não criar novos problemas. Querendo ou não, iria à cidade e procuraria esquecer a sensação de inquietude que a idéia lhe provocava.

— Catriona? Elizabeth?

Apreensiva, Bethia olhou ao redor. Nenhum rosto familiar por perto. Mas não havia motivo para nervosismo. Feiras costumam sempre atrair multidões ao centro da cidade e era fácil perder-se. Depois de pagar à artesã de quem comprara uma fita, afastou-se em busca das damas.

Sua baixa estatura, no entanto, dificultava a visão. Abrindo caminho por entre o mar de gente, marchou para a taberna, diante da qual notara um banco de madeira. Por alguns segundos hesitou, insegura se seria apropriado subir naquela coisa. Então decidiu-se, sabendo não lhe restar alternativa. Se pretendia localizar alguém, necessitava se posicionar num plano mais alto.

Após vários minutos perscrutando os arredores, avistou os enfeites exagerados e rebuscados que cobriam os cabelos de Catriona e Elizabeth. Mas por que elas estariam voltando para o castelo? Abandoná-la na feira parecia-lhe uma atitude ridícula, infantil. Ah, deveria ter esperado algo assim. Criaturas arrogantes e egoístas jamais perdoam uma ofensa.

Apesar de achar a situação irritante, Bethia concluiu que fora melhor assim. As megeras haviam passado a manhã inteira insultando-a veladamente, com a desculpa de que queriam ajudá-la a se tornar mais feminina, mais à altura do marido. Por diversas vezes estivera a ponto de perder a paciência.

— Você está bêm, milady? — perguntou-lhe uma voz às suas costas.

Virando-se, Bethia reconheceu a criada, Jennet, que a estivera servindo desde sua chegada à corte.

— Perdi minhas acompanhantes.

— Ah, aquelas duas… — Segurando-a pelo braço, Jennet a ajudou a descer do banco. Não é bom para milady ficar vagando desacompanhada pela feira. Tampouco lady Elizabeth e lady Catriona são dignas de confiança. É preciso ter cuidado com ambas.

— Começo a percebê-lo.

Eric ficaria furioso. No bilhete que deixara no quarto, avisara-o de que sairia do castelo com mais quatro pessoas, dentre elas um mestre-de-armas. Quando regressasse sozinha, o marido iria suspeitar de que mentira, ou que se perdera. Por um instante considerou a possibilidade de contar-lhe exatamente a verdade, porém descartou a idéia de imediato. De que adiantaria? Eric não poderia fazer nada a respeito e as mulheres, sem dúvida, negariam tê-la abandonado. Diria que, no meio da confusão, acabara se separando do grupo.

— Posso levá-la para o castelo agora, milady — ofereceu-se Jennet, prestativa.

— Seria mesmo mais sensato eu retornar na companhia de alguém. Mas não se apresse por minha causa. Posso esperá-la terminar suas obrigações aqui.

— Não devo demorar muito. Lorde Murray não estará à sua procura?

— Deixei um bilhete informando-o de meu paradeiro. Mas creio que retornarei aos nossos aposentos antes de meu marido. Ele tem muito trabalho a fazer.

— Comenta-se que milorde solicitou a intervenção do Rei em várias causas. Infelizmente o Rei é muito lento para tomar decisões, não importando as provas apresentadas. Às vezes acho que nosso Rei gosta de ter os grandes homens do país aos seus pés, implorando ajuda. Por isso permite que certas situações se arrastem. — Jennet calou-se de repente, temerosa de haver ido longe demais nas suas críticas. Não queria perder o emprego por causa da língua solta. Sou apenas uma simples criada. O que entendo de Monarcas?

Pois na opinião de Bethia, a moça entendia mais do que alguns homens. Com um sorriso compreensivo, mudou de assunto e pediu opinião a Jennet sobre cores e estampas de tecidos que a favoreciam. Visivelmente mais relaxada, a serva pôs-se a falar desenfreadamente enquanto abriam caminho no meio da multidão. Embora nunca houvesse dado muita importância à aparência antes, Bethia sabia que se o Rei reconhecesse Eric como o legítimo senhor de Dubhlinn, passaria a ter certas obrigações e vestir-se de acordo com a posição do marido seria uma delas.

Só esperava que ele não deparasse com Elizabeth e Catriona antes de seu regresso ao castelo. Com tantos problemas a resolver, não seria justo sobrecarregá-lo com uma preocupação extra. No momento em que se dera conta de que fora abandonada, ficara com medo, mas agora, na companhia da alegre Jennet, começava a tranqüilizar-se. Seu único inimigo real era William e seqüestrá-la, ou matá-la, naquele lugar tão cheio de gente, seria uma tarefa quase impossível.

— Não estou gostando disso — resmungou Elizabeth quando Catriona, após mandar o mestre-de-armas afastar-se, arrastou-a para um beco escuro. Ainda acho que a melhor maneira de nos vingarmos é dormindo com o marido da vadia.

— Sir Murray não está interessado — Catriona devolveu, ríspida. Talvez porque seja recém-casado e só tinha olhos para a mulherzinha insossa.

— Você só diz isso porque ele não tem cedido aos seus avanços, porque não está interessado em você.

— E muito menos em você. Considerando a natureza ardente de Eric, é um pouco estranho, não?

— Talvez ele esteja apaixonado — comentou Elizabeth, num tom enojado.

— Por aquela criatura magricela e de olhos esquisitos? Não, de jeito nenhum! É o ar de inocência o que o atrai.

— Então vamos destruir essa inocência, conforme sugeri.

— Tenho observado Bethia desde o primeiro instante em que a vi e, creia-me, não se trata do tipo que aprecie relações adúlteras. Precisaríamos caluniá-la, denegrir sua reputação, espalhar rumores sem um grama de verdade. Eric não encontraria dificuldades para identificar o amontoado de mentiras. — Cruzando os braços sobre os seios volumosos, Catriona bateu o pé no chão, num gesto de crescente impaciência. — Onde está aquele tolo?

— Bem aqui, milady.

Elizabeth estremeceu quando um homem corpulento e sujo saiu das sombras.

— Não estou gostando disso — tornou a murmurar, silenciada por uma cotovelada de Catriona.

— Estávamos quase indo embora, sir William — Catriona falou, fria. — Odeio esperar.

— Deveria aprender. A paciência é uma virtude capaz de nos proporcionar enormes recompensas, senhora. Onde está a moça?

— Sozinha, conforme prometi. Usando uma capa de ve-ludo verde e nenhum enfeite nos cabelos.

— Você se lembra do que deverá dizer, caso o marido faça perguntas?

-— Sim. Bethia insistiu em ficar na feira, para comprar renda. Seja lá qual for seu plano sir, execute-o rapidamente. Duvido que sir Murray engolirá minhas explicações.

— Não se preocupe. Precisarei apenas de alguns minutos. Observando o sujeito desaparecer, Elizabeth engoliu em seco.

— Essa história me agrada cada vez menos.

— Nunca a imaginei tão covarde, querida.

— Como você encontrou esse homem?

— Um dos meus guardas o descobriu roncando o castelo há dois dias, procurando lady Murray. Ontem, ocorreu-me como me aproveitar dessa informação.

— Acho que ele pretende causar danos a Bethia.

— Oh, espero que sim.

— Receio que possa querer matá-la.

— E daí?

— Não sei se desejo estar metida em assassinato.

— Tente acalmar seus escrúpulos lembrando-se de que logo um viúvo necessitará de conforto.

Franzindo o cenho, Eric releu o bilhete. Preocupava-o a esposa ter saído na companhia de Catriona e Elizabeth. Nem por um segundo acreditara que aquelas víboras desejassem manter um relacionamento amigável com Bethia, em especial depois de haverem sido insultadas.

Mas talvez estivesse se afligindo excessivamente. Que mal poderiam as duas causar a Bethia, além de atormentá-la com histórias de seu passado? Não gostava de imaginá-la a par dos detalhes de suas aventuras amorosas, mas se a esposa não se julgasse capaz de agüentar os comentários ofensivos, teria recusado o convite para ir à feira.

Esforçando-se para ignorar a inquietude, resolveu dirigir-se ao salão principal, onde o almoço fora servido. Bastou cruzar a soleira da porta para o apetite desaparecer. Sentadas à mesa, rindo e conversando com dois jovens cavalheiros, Catriona e Elizabeth resplandeciam.

— Senhoras — cumprimentou-as, aproximando-se. Minha esposa não está com vocês?

Por que deveria estar? — Catriona devolveu, impassível.

Porque Bethia deixou-me um bilhete dizendo que iria a feira na companhia de ambas.

— Ah, sim, é verdade. Ela foi, mas não voltou conosco.

— Por que não?

— Porque não conseguia decidir quais fitas comprar, não é mesmo, Elizabeth?

— Sim — concordou Elizabeth, sem muita convicção.

— Ninguém permaneceu ao lado de Bethia, esperando-a terminar de fazer as compras?

— Não. Teria sido necessário? — retrucou Catriona. Sua esposa insistiu para que viéssemos na frente, explicando que não tardaria a nos seguir. Ela já deve estar em seus aposentos.

— Não.

— Então receio não poder ajudá-lo, milorde.

Eric resistiu ao impulso de sacudir Catriona até arrancar-lhe toda a verdade. Mas como fazê-la entender por que era tão perigoso sua esposa ficar sozinha, sem revelar a ameaça representada por William?

Depois de se certificar de que Bethia não aparecera no quarto, Eric rumou para a feira, disposto a vasculhar a cidade até localizá-la. Existia a possibilidade de que Catriona e Elizabeth apenas houvessem pregado uma peça em Bethia, desertando-a no meio da multidão. Também existia a possibilidade de que essa brincadeira de mau gosto acabasse em tragédia.

Parada junto à entrada de um beco escuro, Bethia observava Jennet pechinchar um punhado de ervas frescas. A discussão parecia não ter fim, pois freguesa e feirante eram incapazes de chegar a um acordo sobre o preço do produto.

Quando decidiu Interferir, dedos grossos taparam-lhe a boca e a puxaram para dentro do beco e para o meio da escuridão.

— Vagabunda — rosnou William, segurando-a pelo pescoço com ambas as mãos. — Você pagará caro por tudo o que me fez perder.

— Você deve estar louco pensando que pode me matar aqui. Todos saberão quem é o culpado.

— E você acha que me importo? Seu marido está empenhado em me transformar num foragido, num homem obrigado a passar o resto da vida se escondendo. Pois que ele saiba que a matei e que tente me impedir de dar cabo com o menino.

— Então fuja e se esconda enquanto é tempo. Pelo menos conservará a própria vida. Em vão, Bethia se esforçava para não ser arrastada para longe da feira.

— Antes de ir ao encontro de meu destino, quero ter a satisfação de sabê-la morta.

— Lady Bethia? — Jennet chamou.

— Quem é essa? — perguntou William, sem diminuir a pressão em seu pescoço.

— Minha criada.

— Como se eu temesse alguma empregadinha estúpida. Sei que seu marido não está por perto. Aquelas duas mulheres me asseguraram de que ele encontra-se na corte, numa audiência com o rei. Uma serva não bastará para salvá-la.

Constatar que Catriona e Elizabeth a tinham atraído para uma armadilha fatal surpreendeu-a. Não imaginara que as houvesse ofendido tanto, a ponto de merecer a morte.

— Lady Bethia? Você está aí?

Por favor, Bethia rezou em silêncio, sentindo o ar lhe fugir dos pulmões. A idéia de morrer a apavorava sim. Porém, ainda mais doloroso, era levar consigo a criança em seu ventre.

Ao escutar o nome da esposa sendo chamado, Eric apressou o passo. Reconhecendo a criada, gritou:

— Jennet, onde está Bethia?

— Oh, sir, fico tão feliz em vê-lo! Milady estava aqui até segundos atrás. Então sumiu.

— Alguém estava com ela?

— Não. Creio que milady se aventurou para dentro do beco sozinha.

Desembainhando a espada, Eric lançou-se nas sombras, atraído por ruídos abafados. Mal avançara alguns metros, avistou-os. Não, não seria fácil arrancar a mulher das garras do predador.

— Você foi pego, William. Solte-a!

— Ah, o grande sir Murray em pessoa! Milorde chegou a tempo de me ver cortar a garganta da vadia.

— Cortarei a sua antes que o corpo de minha esposa toque o chão.

— Você me declarou um criminoso. Já sou um homem morto.

Como o maldito soubera?

— Você obteria alguma vantagem se a libertasse.

— A vantagem de me transformar num alvo fácil? — William riu. Quão idiota você me julga?

Bethia tinha plena consciência de que enquanto permanecesse junto de William, Eric pouco poderia fazer sem correr o risco de feri-la. Encorajada pela presença do marido, inspirou fundo e, reunindo um resto de forças, aplicou o golpe que lhe fora ensinado por Bowen, anos atrás.

Cerrando o punho, atingiu o brutamontes na região genital. Urrando de dor, William soltou-a instintivamente e bateu em retirada.

— Bethia? — Eric ajoelhou-se ao lado da esposa, a espada em riste.

— Vá atrás dele.

— Jennet! Venha cá e ajude milady! — ele ordenou, antes de sair ao encalço do bandido.

— Senhora! — Apavorada, a serva a apoiou pelo cotovelo, ajudando-a a levantar-se. O que lhe aconteceu?

— Ficarei bem. — A voz de Bethia não passava de um murmúrio estrangulado.

— Deus, parece que alguém tentou esganá-la.

Bethia não estranhou quando Eric reapareceu dali a minutos, revelando o insucesso em sua expressão severa. O inimigo estava se provando assustadoramente difícil de apanhar.

Sentada na cama, sorvendo a cidra quente que Jennet lhe preparara após o banho, Bethia exibia no pescoço as marcas da agressão covarde e brutal de que fora vítima.

— Não terei sossego enquanto não matar o canalha. Eric abraçou a esposa e beijou-a nos cabelos.

— Nem eu.

— Por que você ficou sozinha na feira?

Ansiava contar toda a história ao marido. Entretanto não tinha provas de que Catriona e Elizabeth estivessem por trás do ataque executado por William. Sabia apenas que a tinham abandonado propositadamente e que William mencionara o auxílio de duas mulheres. Eric não era um homem desprovido de inimigos. Alguém poderia ter desejado usá-la para atingi-lo, valendo-se de William para atingir esse objetivo. Não podia acusar Catriona e Elizabeth de participar de uma trama macabra baseando-se em meras suspeitas.

— Separei-me dos outros membros do grupo — explicou, esforçando-se para se ater o máximo possível à verdade. — Retornando para o castelo, encontrei-me com Jennet e resolvi que seria melhor voltarmos juntas.

— Catriona e Elizabeth disseram que você estava em dúvida sobre quais fitas, ou rendas, comprar e pediu-lhes para não esperá-la.

— Notando o quanto você estava aflito, com certeza temeram falar algo que o enfurecesse.

— Talvez. Embora desconfiasse de que Bethia não estava lhe contando tudo, decidiu não pressioná-la.

— Elas não podiam adivinhar que um doido tentaria me matar. Não podiam adivinhar que seria perigoso deixar-me sozinha. A propósito, você as viu no castelo e decidiu sair à minha procura?

— Sim. Aliás, admito que sua atitude intrigou-me. Não a imaginei disposta a tolerar a companhia de ambas.

— Não aceitei o convite para ir à feira por prazer. Mas achei que já havendo insultado-as, o sensato seria evitar criar problemas adicionais que acabariam o prejudicando e atrasando nossa partida.

— Partiremos em breve, querida.

— Verdade? — Pensar que logo estariam em casa a reanimava.

— Sim. Eu tinha esperanças de estarmos a caminho amanhã, porém…

— Estarei bem.

— Claro. Afinal, quase ter sido estrangulada não é motivo para preocupação.

Ignorando a pitada de ironia, Bethia prosseguiu.

— Você conseguiu o que desejava?

— Sim. William foi declarado foragido da justiça. O infame estava certo ao se considerar um homem morto. Só não entendo como já se sabia condenado, quando se trata de uma decisão recente.

— Provavelmente supôs que o rei não se negaria a atender um requerimento seu.

— É possível. Creio que o maldito deve ter andado rondando o castelo, ou não a teria localizado na feira. Estou começando a pensar em mantê-la trancada e sob a guarda de homens armados.

— E eu estou começando a aceitar essa possibilidade. E quanto às suas outras petições?

— Sou o legítimo herdeiro de Dubhlinn. Sir Granam Beaton foi legalmente intimado a me entregar a fortaleza e as terras. Se desobedecer à ordem do Rei, será proclamado criminoso. Quanto ao meu último requerimento, não quis lhe dizer nada antes porque temi que ficasse desapontada, caso me fosse negado.

— O que é?

— Fui nomeado guardião de James.

Atônita, Bethia atirou-se nos braços do marido, não conseguindo conter as lágrimas de felicidade que lhe escorriam pelas faces.

— Oh, querido, eu tinha tanto medo do que poderia acontecer a James. Procurava não pensar no assunto para não sofrer. Doía-me a alma imaginar como seria sua infância, cortava-me o coração imaginá-lo nas mãos de pessoas frias e indiferentes. Agora ele é nosso. Iremos criá-lo. Você não poderia ter me dado um presente melhor.

— Exceto, talvez, ir para casa e contar a boa notícia para seus pais?

— Sim, exceto isso — ela murmurou, entreabrindo os lábios para acolher a língua do marido.

 

— E do alto da sua arrogância você se julga mais capacitada do que nós para educar o filho de Sorcha? — lady Drummond a questionou.

Bethia engoliu uma resposta mal-educada. Chegara há Dunnbea meia hora atrás, após três dias de viagem, e tivera tempo apenas de se banhar e dar um beijo no sobrinho antes que os pais a convocassem ao solário. Não pudera sequer comunicar seu paradeiro ao marido, ocupado em descarregar a bagagem e alojar os animais.

— Eric e eu somos jovens.

— Ainda não estamos nas nossas covas.

— Sim, eu sei mãe. É que vocês criaram duas crianças. Três, se contarmos Wallace. Creio que estão num momento da vida em que merecem descansar. Um garoto vivaz e irrequieto feito James costuma ser um fardo, mesmo quando se dispõe de várias babás.

— Você não sabe nem onde irá morar — argumentou Lorde Drummond. Aquele homem nunca nos informou para onde pretende levá-la, e ao menino. Exijo que sejamos avisados sobre o destino de nosso neto antes que o carreguem daqui.

— James vai morar em Donncoill — disse Eric, entrando no solário e postando-se ao lado da esposa. É uma fortaleza poderosa, ao sul de Dunnbea, lar dos Murray. Meu irmão Balfour é o chefe do clã.

— Seu irmão? Pensei que você fosse um MacMillan. Num breve resumo, Eric explicou sua origem. Bethia não tinha dúvidas de que o marido já havia abordado o assunto antes, mas lorde Drummond costumava não dar atenção ao que considerava sem importância. Tal comportamento não deveria surpreendê-la. Seu pai sempre a tratara com desdém, recusara-se até a lhe conceder um dote, por que iria se interessar pela linhagem de seu marido?

— Então, em breve, você será o senhor de Dubhlinn? — lady Drummond perguntou ao genro, num tom ríspido.

— Sim. E educaremos James para assumir a liderança de Dunncraig.

— Pois espero que você possa cuidar das terras do garoto melhor do que cuidou das suas.

Segurando a mão de Eric, Bethia suprimiu o ímpeto de reagir à altura do insulto proferido pela mãe. Não conseguia entender por que seus pais agiam daquela maneira deplorável. Eric era um homem de inúmeras qualidades, o genro perfeito. Íntegro, bonito, forte e rico. Um aristocrata de linhagem impecável. Por meio dele, os Drummond haviam conquistado novos e importantes aliados. Mas faziam questão de tratá-lo como se não passasse de um bastardo pobretão.

— Já pedi ao meu primo, sir David MacMillan, para administrar Dunncraig até James chegar à idade de assumir a posição. A voz de Eric, baixa e controlada, revelava uma raiva surda. David não é somente parente meu, mas um dos mais antigos aliados dos Drummond. Creio que é merecedor de total confiança.

Depois de escutar mais algumas perguntas, reclamações e insultos, Bethia e Eric foram dispensados friamente.

— Sinto muito — ela murmurou confusa e envergonhada. - Não sei por que meus pais são tão descorteses. Não faz sentido.

Num esforço supremo para não perder a calma, Eric engoliu as palavras duras que ansiava dizer. Queria explicar a Bethia que os Drummond não o toleravam porque os enxergava exatamente como eram: criaturas insensíveis e prepotentes, incapazes de dedicar à filha e ao neto algum afeto. Aliás, nunca os ouvira sequer pronunciar o nome de James. Aqueles dois não o suportavam porque lhes estava tirando a serva dócil e obediente na qual haviam transformado Bethia. Se expusesse essas verdades aos olhos da esposa, se a obrigasse a contemplar os pais com objetividade, iria magoá-la ainda mais. Cabia a ela, quando estivesse pronta, vê-los sem disfarces.

— Talvez eles ainda não me perdoaram por tê-la seduzido — Eric falou, sem muita convicção. O problema era outro. Estava lhes roubando uma empregada valiosa.

— Muitos pais ficaram secretamente satisfeitos. - Bethia sorriu tímida. - Escolhi trilhar o caminho do pecado na companhia de um lorde rico e bonito para depois arrastá-lo à presença de um sacerdote. Espanta-me nenhuma outra donzela ter tentado lhe aplicar esse golpe.

— Algumas tentaram sim, mas aprendi a reconhecer os sinais de perigo antes que fosse tarde demais.

A entrarem no quarto de James, a babá retirou-se, deixando-os sozinhos com a criança.

— Alguma coisa a preocupa, querida? — perguntou Eric, balançando um sorridente James nos joelhos.

— Não. Só estava pensando em como me sinto feliz por você ter sido nomeado guardião de meu sobrinho. Sei que será um pai maravilhoso para James.

— Obrigado. Embora, na minha opinião, deveria ter sido você a escolhida como guardiã. Afinal, é irmã gêmea da mãe do garoto.

— Ainda que James não estivesse destinado a se tornar lorde de Dunncraig, nenhum Rei, ou corte, concederia a guarda de uma criança com futuro tão importante a uma simples mulher.

— Apesar de me parecer um sistema injusto, essa é a realidade. — Inspirando fundo, Eric colocou-a a par da decisão tomada. — Vamos para Donncoill.

— Compreendo. É seu lar.

— Quero partir o quanto antes. Hoje mesmo, se possível.

— É seguro viajarmos? O tempo costuma ser instável nesta época do ano.

— Até agora temos tido sorte. Temperaturas suportáveis e ausência de tempestades. Você está nervosa com a perspectiva de viver num lugar estranho?

— Claro que sim. Mas, se sobrevivi um mês na corte do Rei da Escócia, acho que posso enfrentar uns poucos Murray.

— Eles irão amá-la — Eric a assegurou, rindo. Você tem mesmo certeza sobre sair de Dunnbea? Afinal, aqui é seu lar. Durante o período em que estivermos em Donncoill, e depois de tomarmos posse de Dubhlinn, poucas serão as oportunidades de virmos a esse lugar.

Durante alguns minutos Bethia permaneceu em silêncio, absorvendo a informação. Não, não experimentava o menor pesar, ou qualquer relutância, em abraçar a nova vida. Existiam pessoas em Dunnbea das quais sentiria falta, mas essas teriam chance de visitá-la. Na verdade, quanto mais pensava no assunto, mais percebia o quanto estava louca para partir, para sentir-se livre.

— Existem pessoas de quem sentirei saudade, admitiu. Mas é só. Sou sua esposa. Onde você for, irei também. Sempre.

Comovido, Eric beijou-a de leve nos lábios. Não se tratava de nenhuma confissão de amor, mas sabê-la disposta a permanecer a seu lado o confortava. Quem sabe, com os anos, não seria capaz de despertar na esposa sentimentos mais fortes?

— Talvez essa questão de saudade das pessoas queridas possa ser resolvida logo.

Antes que Bethia tivesse chance de pedir-lhe para esclarecer o comentário, Wallace entrou no quarto informando-o de que tudo estava pronto para iniciar a caça a William. Vendo os dois homens partirem, Bethia apertou James junto do peito, dominada por uma angústia mortal. Quando aquele pesadelo teria fim?

Rígido na sela, Eric passou as mãos pelos cabelos longos, revelando no rosto uma máscara de frustração. Os sinais de que William os seguira desde a corte até Dunnbea eram evidentes; contudo, nem mesmo Thomas conseguia achar rastros que os conduzissem ao esconderijo do assassino.

— Começo a pensar que o infame pode voar — Wallace resmungou, emparelhando seu cavalo ao de Eric.

— Ou desaparecer no ar feito fumaça quando lhe convém — completou Bowen. - Thomas receia ter perdido a habilidade de rastrear. O pobre coitado está terrivelmente abatido com seu insucesso.

— Nunca imaginei que William fosse tão inteligente. Desanimado, Eric balançou a cabeça. Talvez fosse arrogância minha, mas achei que não teríamos grande dificuldade para localizá-lo e matá-lo. Com certeza, até agora, o maldito não havia demonstrado possuir tanta perícia.

— Não, Bowen concordou. Ele costumava usar veneno, a arma dos covardes, e seu sucesso devia-se mais ao fato de lidar com tolos ingênuos do que à sagacidade. Seu comportamento recente é típico de quem perdeu por completo a razão.

— Você o julga louco?

— Sim. Creio que sempre foi. É a única explicação para assassinar tantas pessoas. E, sem dúvida, a única explicação para continuar perseguindo Bethia e James. Qualquer outro homem já teria aceitado a derrota e fugido tentando salvar a própria pele.

— Ele se considera um homem morto — murmurou Eric, lembrando-se do diálogo travado no beco. Tudo o que parece desejar é carregar Bethia consigo para a morte. James já não mais ocupa o centro de suas atenções. É a destruição de Bethia que o impulsiona.

— Porque foi ela quem o impediu de concretizar seus planos, -Wallace observou. - William a culpa do fracasso.

— Nada! — queixou-se Thomas, exasperado. Descubro vestígios e então o rastro é interrompido de repente. Não consigo encontrar o maldito!

Durante alguns minutos, o grupo cavalgou em silêncio, de volta para Dunnbea. A noite estava prestes a cair e a busca seria retomada na manhã seguinte.

— Manteremos Bethia sob redobrada vigilância, Wallace sugeriu.

— Pretendo levá-la para Donncoill em breve, se o tempo continuar firme — disse Eric.

— Provavelmente William os seguirá até lá.

— Sim. Ele estará se embrenhando numa região estranha, o que dificultará sua movimentação. De qualquer maneira, preciso tirar Bethia daqui.

— Fará bem a ela se afastar de Dunnbea — Bowen comentou pensativo. - A esposa deve sempre acompanhar o marido.

— Bethia não foi educada para ir a lugar algum, não é? Diferentemente da maioria das damas, ela não foi preparada para ter a própria família e sim para continuar na casa dos pais, fazendo o trabalho que caberia à mãe.

— Sua análise é acurada, Murray — admitiu Wallace. - Desde o início, meus tios deixaram claro que Sorcha faria um ótimo casamento e Bethia permaneceria solteira para atender às necessidades dos pais. Aqueles dois nunca o perdoarão por levá-la embora.

— Oh, percebi-o desde o primeiro instante — retrucou Eric, rindo. - Talvez, longe daqui, Bethia finalmente se liberte da influência perniciosa dos pais.

— Você vai precisar de guerreiros para lutar a seu lado quando tentar conquistar Dubhlinn?

— Sim.

— Pois não lhe faltarão voluntários.

— Será que, depois de tomar posse da fortaleza, você também precisará de homens para trabalhar na reconstrução do local? — indagou Bowen, assim que o grupo chegou aos estábulos de Dunnbea.

— Sim. Quem procurar trabalho em Dubhlinn será acolhido e bem pago.

— Então Peter e eu nos uniremos a você. Sem dúvida lutaremos por sua causa, para dar a Bethia a chance de um novo lar.

— Será um prazer tê-los comigo e é desnecessário dizer o quanto Bethia ficará feliz. — Tão logo Bowen se afastou, Eric dirigiu-se a Wallace. - E qual é sua opinião sobre o assunto? Você estará perdendo dois excelentes homens.

— De fato — Wallace sorriu tristemente. - Porém Peter e Bowen jamais foram meus homens, ou homens de meu tio. Acima de tudo, são leais a Bethia. Também creio que mereçam ser bem remunerados por seu trabalho.

— Dunnbea é um feudo próspero.

— Sim. Temos uma população saudável e vivemos em paz agora, após anos de muita turbulência. Apesar disso, meu tio é conhecido por sua avareza. Bowen e Peter têm o direito de ganhar de acordo com sua habilidade e esforço.

— Além de mal pagos, não recebem sequer a gratidão do chefe desse clã.

— Por isso estou conformado de perdê-los.

— Vocês não o acharam, não é? — Bethia perguntou quando o marido entrou no quarto, embora já adivinhasse a resposta.

A expressão abatida de Eric o traíra. Enquanto ele se banhava e se trocava para o jantar, esforçou-se para animá-lo, contando as últimas traquinagens de James.

Antes de saírem para o salão, Eric tomou-a nos braços e beijou-a apaixonadamente.

— Por que o beijo?

— Um agradecimento por seu empenho em melhorar meu humor.

— Oh. Você percebeu o que eu estava fazendo, não?

— Não se sinta culpada, querida. Essa é uma grande qualidade das esposas. Incentivar seus maridos. Aliás, estou quase tentado a mandá-la conversar com Thomas. O pobre homem está se debatendo entre o orgulho ferido e a raiva.

— Como William continua escapando? Jamais pensei que ele poderia ser tão habilidoso e esperto para nos enganar durante tanto tempo.

— Tampouco eu. Bowen acha que a loucura afia seus instintos.

— Sim, é possível. Talvez devêssemos atrai-lo para uma cilada.

— Uma armadilha requer uma isca e se você planeja se oferecer como tal, esqueça.

— Poderia dar certo — ela resmungou, um pouco chateada por sua idéia ser descartada antes mesmo que a concluísse.

— E você poderia acabar morta. Creia-me, não estamos lidando com o homem que William costumava ser. Ele aparece e desaparece sem deixar vestígios. Nem Thomas é capaz de rastreá-lo. Não permitirei que você se exponha ao perigo.

Tão imersa estava Bethia no problema representado por William, que entrou no salão e acomodou-se à mesa sem dar importância às costumeiras indelicadezas dos pais. Lady Drummond não se conformou com a aparente indiferença da filha e insistiu em espezinhá-la.

— Então como se não bastasse se apossar de todos os vestidos de sua irmã e carregar nosso neto para longe daqui, você agora planeja levar alguns de nossos homens também?

— Não estou levando nenhum de seus homens para lugar algum — retrucou Bethia, sem entender a reclamação.

— Wallace gentilmente me ofereceu o auxílio de soldados de Dunnbea para a luta pela posse de Dubhlinn — Eric explicou.

Até o momento Bethia não havia se permitido pensar sobre como Eric arrancaria Dubhlinn das garras de Graham Beaton.

O Rei mandara sir Graham entregar a fortaleza ao legítimo herdeiro e, na sua ingenuidade, acreditara que o problema terminara ali. Mas se durante treze anos sir Graham ignorara os direitos de Eric, por que abriria mão de tudo sem resistir?

— Estamos no inverno. Não é uma boa época do ano para combates — disse lorde Drummond.

— Não pretendo cavalgar até os portões de Dubhlinn amanhã e exigir que sir Graham parta ou lute. - Eric sorveu um longo gole de vinho, recusando-se a deixar que o sogro o enfurecesse. - Sua filha, seu neto e eu necessitamos de uma escolta para a jornada até Donncoill. E como a primavera não tardará a chegar, acho razoável que os homens cedidos por Wallace permaneçam comigo para treinar com aqueles que serão enviados pelos MacMillan e com os soldados de meu irmão.

— Não fui consultado sobre nada disso.            

— Os Murray são nossos aliados agora e os MacMillan sempre o foram, interveio Wallace. Não pensei que houvesse motivos para recusar-lhes o pedido de auxílio nesta situação.

— Farei o máximo para evitar que seus homens sejam desperdiçados num confronto inútil, lorde Drummond — garantiu-lhe Eric. E os mandarei de volta a Dunnbea o mais depressa possível.

A expressão impenetrável da esposa desassossegou-o. Adiara a conversa sobre a batalha para não angustiá-la. Quando estivessem sozinhos, procuraria tranqüilizá-la, livrá-la de seus temores.

Bowen entrou no salão acompanhando sir David MacMillan e Bethia espantou-se com a extraordinária semelhança entre o recém-chegado e seu marido. Não era à toa que em Bealachan ninguém duvidara da verdadeira ascendência de Eric. Depois dás apresentações, a conversa sobre o combate recomeçou.

Resignada, ela tentou terminar a refeição. Nenhum dos homens ali presente parecia sedento de sangue, porém era evidente que a perspectiva de um confronto os entusiasmava. Acreditavam-se lutando pela justiça. Queria encarar a realidade assim também, mas não conseguia. Conseguia pensar apenas que os homens, inclusive aquele a quem amava, estavam prontos para arriscar suas vidas, e as vidas de outros, por um pedaço de terra.

— Talvez você devesse deixar o menino e Bethia em Dunnbea, até que tudo venha a ser resolvido — propôs lorde Drummond.

— Não — Eric retrucou firme. — Minha esposa e James me acompanharão.

Para surpresa de Bethia, seu pai não discutiu.

— Partiremos em breve? — ela perguntou baixinho.

— Sim, amanhã. Se o tempo permitir.

Bethia abriu a boca para argumentar e tornou a fechá-la. Não iria questionar o marido diante dos pais porque estava convencida de que eles se aproveitariam de qualquer pequeno desacordo para pressionar e irritar o genro. De fato não lhe importava muito a data da partida. Somente reagira ao tom autoritário usado por Eric. E espantava-a ter reagido, pois passara a vida inteira curvando-se às ordens arbitrárias dos pais.

— Bem, minha querida, se seu marido insiste em arrastá-la para o meio de seus problemas, que seja — decretou lorde Drummond. -Espero que você esteja pronta para se comportar como uma esposa digna. Está na hora de abandonar a negligência, a desobediência, e seguir seu marido.

— Negligência? — Bethia murmurou pasma. De onde seu pai tirara aquela idéia absurda? Nunca fora negligente para com seus deveres! Muito pelo contrário.

Do alto de sua prepotência, lorde Drummond prosseguiu os olhos frios fixos em sir Murray.

— Receio não termos preparado Bethia muito bem para o casamento. Jamais imaginamos que algum homem iria querê-la para esposa, sendo ela tão despreparada. Mas estamos certos de que você poderá ensiná-la o necessário para transformá-la numa esposa razoável. Lady Drummond e eu fizemos o melhor. Para nossa vergonha, não foi o suficiente.

Eric levantou-se abruptamente, puxando Bethia pelo braço.

— Acho que vocês fizeram mais que o suficiente. Partiremos ao amanhecer. Talvez os vejamos para dizer-lhes adeus.

Bethia quase precisou correr para acompanhá-lo. Algo deixara Eric furioso e suspeitava de que haviam sido os comentários a seu respeito. Ao longo dos anos, acostumara-se tanto a ouvir seus defeitos sendo enumerados pelos pais, que já não prestava atenção.

— Acho que vou arrumar a bagagem — murmurou insegura.

— Está tudo praticamente pronto. - Eric fechou a porta e tomou-a nos braços. Desculpe-me. Não estou bravo com você.

— Eu sei. Embora não compreenda a razão da sua raiva.

— O fato de você estar tão habituada a ser ofendida já não me espanta, apenas aumenta meu rancor.

— Meus pais ficaram desapontados comigo desde o dia em que nasci. Ou pelo menos desde o dia em que perceberam que eu não era igualzinha a Sorcha. Se eu tivesse dado muita atenção a esses comentários, estaria louca agora.

Segurando-a no colo, Eric colocou-a gentilmente sobre a cama.

— E eu ficarei louco se continuar aqui, engolindo os insultos que atiram na sua face. Portanto, para o bem de nossa sanidade, é melhor partirmos o quanto antes.

— Se vamos partir amanhã cedo, talvez seja melhor descansarmos — ela brincou, quando o marido pôs-se a despi-la.

— Oh, descansaremos sim, milady. Depois.

Enrolada num cobertor, James acomodado entre ela e Grizel, Bethia contemplava os homens cavalgando à frente. Nos três dias de viagem o frio intenso os castigara impiedosamente, transformando cada quilômetro percorrido numa verdadeira provação.

Ficaria feliz quando alcançassem Donncoill, e qualquer vestígio de timidez ou insegurança por encontrar a família de Eric desaparecesse durante a jornada. Sua primeira preocupação consistia em abrigar-se num lugar aquecido.

Quando a carroça parou, Bethia gemeu baixinho. Entardecia e, mais uma vez, teriam que passar a noite ao relento. As enormes fogueiras, as tendas, e a cidra quente ajudavam a espantar a friagem, porém não substituíam uma cama quentinha.

— Só mais uma noite, querida — Eric falou, aproximando-se do veículo e estendendo-lhe a mão.

— Não se preocupe. - Bethia deixou que o marido a puxasse para a sela. Connor logo estará instalado num estábulo — murmurou pensativa, deslizando os dedos pela crina negra do garanhão.

— Se tivéssemos um estábulo disponível neste momento, estaríamos disputando espaço com os animais.

— Pelo menos estamos livres da chuva. Quando me sinto inclinada a reclamar, sempre penso que podia ser pior.

—Costumo fazer o mesmo. - Enquanto os homens começavam a levantar acampamento, Eric conduziu Connor para o interior do bosque. - Ainda assim, o mais sensato teria sido adiarmos a viagem. Eu deveria ter esperado.

— Você está ansioso para voltar para casa. É natural e compreensível.

— Não vou negar que, em parte, decidi partir porque estava furioso com seus pais.

Suspirando, Bethia apoiou as costas no peito do marido, absorvendo o calor do corpo viril.

— Sim, eu sei. Meu pai é um homem difícil de conviver.

— Wallace consegue.

— Não. Wallace apenas o ignora sempre que possível. - Ela sorriu ao escutar o marido gargalhar. - E Wallace não tem que agüentar muito. Meus pais relutam em criticar excessivamente aquele que eles mesmos escolheram como herdeiro. Afinal, se Wallace resolver ir embora, quem irá liderar os homens de Dunnbea no caso de uma batalha?

Eric quase a beijou de pura satisfação. Pela primeira vez a esposa parecia disposta a analisar os pais com objetividade, e não arranjar desculpas para o comportamento abusivo de ambos. Quando os enxergasse como as criaturas mesquinhas e egoístas que realmente eram, não mais acreditaria no que os dois a tinham levado a pensar sobre si mesma, de que não passava de uma mulher insignificante, destituída de qualidades e atrativos.

— Onde estamos indo? — Bethia perguntou, reparando no quanto haviam se afastado do acampamento.

— Quero lhe mostrar Dubhlinn.

— Fica perto daqui?

— Logo depois daquelas árvores.

— É estranho podermos chegar tão perto da fortaleza inimiga sem que ninguém nos intercepte.

— Sir Gráham foi informado de que o Rei decidiu-se ao meu favor. Não ousaria me atacar numa emboscada. Não agora. Não seria sensato.

— Então sir Graham continua no castelo. - A voz de Bethia revelava desânimo.

— Sim. — Eric beijou-a no topo da cabeça. - Ele continua lá dentro. Planejo lhe dar um prazo para sair, porém não muito longo. O maldito já sugou essa terra e essa gente tempo demais.

O silêncio da esposa desapontou-o. Gostaria de receber apoio incondicional quando se preparasse para o confronto. Compreendia o ponto de vista de Bethia, segundo o qual ninguém deveria morrer por dinheiro, ou por um pedaço de chão. Mas os motivos que o levavam a lutar por Dubhlinn iam além dos bens materiais. Por isso empenhara-se em mostrar-lhe a propriedade.

A fortaleza erguia-se imponente no meio do solo estéril, numa paisagem que tinha um aspecto ainda mais desolador, devido ao frio extremo. Atrás dos portões fechados, nenhum sinal de vida.

— Você quer mesmo esse lugar? — ela indagou, estremecendo.

— Sei que a visão não é muito animadora. Fortificações raramente têm uma aparência aconchegante, em especial no inverno, quando os campos ao redor tornam-se cinzentos e desertos. Desde antes de meu nascimento, Dubhlinn tem sido um antro de abutres, que dilapidam a terra e se alimentam do suor dos aldeões.

— Você está se referindo aos sucessivos lordes Beaton?

— Sim. Receio que este lugar reflita a perfídia de seus senhores. Estive aqui uma única vez, quando meu pai me seqüestrou. Ele ainda me julgava um bastardo, mas, convencido de estar à beira da morte e não querendo entregar o comando de Dubhlinn a um primo distante, resolveu me preparar para sucedê-lo, transformando-me na sua imagem e semelhança.

— E você se opôs ao treinamento.

— Passei dias e dias na masmorra, até minha irmã Maldie ser capturada e elaborar um plano de fuga. A coisa que mais me marcou, e que ainda assombra meus sonhos, foi quando o maldito me obrigou a vê-lo torturar e matar um soldado Murray. Eu tinha somente treze anos. Nunca consegui esquecer a cena terrível. Os gritos do infeliz jamais cessaram de ecoar em minha mente.

— E você detestou Beaton mais do que nunca? — Bethia perguntou baixinho, horrorizada.

— Sim. Após testemunhar a extensão de sua crueldade, odiei descobrir que o canalha era meu verdadeiro pai.

— Você não teve medo de ser igual a ele?

— Não. No início preocupei-me um pouco. Eric deu meia-volta e rumou para uma colina próxima. Superei o pavor ao constatar que Maldie também não havia herdado o veneno da semente maligna.

— E por isso que você continua se chamando de Murray, não? Porque não suporta não usar sequer o nome daquele que o gerou.

— Sim. É uma linhagem podre. Gerações de Beaton se sucederam sem que um único lorde houvesse demonstrado possuir nobreza de caráter. Meu avô era tão depravado, que meu pai acabou o matando. Permaneço um Murray porque me sinto um verdadeiro membro dessa família.

— Então Murray você sempre será.

Do alto da colina, avistava-se a aldeia. Embora raramente houvesse saído de Dunnbea e pouco conhecesse do mundo, Bethia logo percebeu como o povoado era triste e negligenciado. Estábulos vazios, nenhum animal perambulando pelas ruas estreitas e escuras, nenhum som de vozes e risos de crianças. Poucos chalés tinham telhados inteiros! Tudo era ruína, desolação. A aldeia estava morrendo. Sir Granam sangrara-a ao longo do tempo.

— Começo a pensar que você vai ter mais problemas do que ganhos ao tomar posse de Dubhlinn — ela falou, enquanto se dirigiam ao acampamento.

— Sim, eu sei. Serão anos de trabalho árduo até que o lugar recupere a pujança.

Sentada ao redor da fogueira, tendo Grizel e James a seu lado, Bethia tomava o mingau de aveia, animando-se com a idéia de que no dia seguinte degustariam uma bela refeição. Vários homens montavam guarda, e a óbvia tensão dos músculos rígidos deixava claro que sabiam que estavam sendo observados por olhos estranhos.

— Você acha que os Beaton tentarão nos atacar? — Grizel perguntou aflita ao ver o marido se embrenhar no meio das árvores. - Eric não acredita nessa possibilidade — Bethia a tranqüilizou.

— Ah, então sir Graham simplesmente lhe entregará a fortaleza?

— Não. Não imagino que tal coisa vá acontecer. Sir Graham apenas não nos atacará aqui e agora. Sem dúvida, sabendo que o Rei decidiu-se a favor de Eric, precisa de tempo para resolver se, e como, irá lutar.

— Bem, não ficarei surpresa se acontecer um confronto — suspirou Grizel. - Nenhum homem gosta de desistir de riquezas e terras. Sir Graham pode não ter direito a nada, mas acho que só se curvará à ordem do Rei se Dubhlinn lhe for arrancado das mãos.

— E será — observou Eric, surgindo para dar um beijo de boa-noite na esposa.

— Você vai ficar de guarda? — ela perguntou, retribuindo o beijo rápido.

— Sim, durante algumas horas. Então descansarei.

Depois de trocar a fralda do sobrinho, Bethia acomodou-se na carroça juntamente com Grizel. James estava deitado entre elas sob uma pilha de cobertores. Devido à proteção oferecida pela lona, e à proximidade de uma fogueira enorme, a temperatura no interior do veículo chegava a ser agradável.

— Quase me sinto culpada por estar protegida do vento, enquanto os homens estão dormindo ao relento — disse a criada.

— Sim — concordou Bethia, puxando as cobertas até o queixo. Porém mal posso esperar até amanhã, para me deitar numa cama de verdade. Creio que não vou sequer aguardar o pôr-do-sol antes de correr para meus aposentos.

— Eu também me deitarei tão logo me mostrem uma cama. A única coisa que farei antes de dormir será acender o fogo. Não vou nem esperar por meu Peter.

— Se possível, vou arrastar minha cama para perto da lareira. As duas riram e, em seguida, Bethia inspirou fundo. Embora não esteja me queixando de sua companhia, será bom dormir com Eric a meu lado.

— Entendo. Embora sejam ruidosos e peludos, não há nada tão reconfortante quanto se aconchegar a um homem. A propósito, você está preocupada porque conhecerá a família de sir Murray?

— Um pouco. Além de estar levando problemas para eles, já lancei sobre os ombros de um membro do clã a responsabilidade de criar uma criança que não lhe pertence.

— Uma responsabilidade que sir Murray parece feliz de assumir. O modo como ele trata James deixa claro que todos receberão o menino de braços abertos.

— Creio que você tem razão. Só peço a Deus que o povo de Donncoill me receba de braços abertos também.

Dividindo a sela com Eric, Bethia, ao cruzar os portões da fortaleza, logo percebeu as diferenças gritantes entre Dubhlinn e Donncoill. Ali havia vida e calor humano em profusão. Barulhos agradáveis denunciavam as constantes atividades e um cheiro delicioso de comida fresca permeava o ar.

Assim que Eric ajudou-a a desmontar, Grizel entregou-lhe James e desapareceu no meio da multidão, sem dúvida à procura de Peter e de um lugar quente onde dormir. Seguidos de Wallace e sir David, Eric e Bethia rumaram para o interior do castelo.

Segurando a mão do marido com força, ela logo descobriu-se cercada por um grupo de pessoas sorridentes: um homem muito alto e moreno, chamado Balfour, sua bela e pequenina esposa, Maldie; um outro cavaleiro quase tão bonito quanto Eric, Nigel, e sua linda esposa grávida, Gisele. Bethia mal acabara de ser apresentada aos principais membros do clã, quando meia dúzia de criadas praticamente a arrastaram para um quarto imenso, onde foi banhada, trocada e penteada num piscar de olhos. Antes de saber o que acontecera, estava sentada defronte da lareira, com um cálice de vinho nas mãos.

— Você parece assombrada — disse Eric, rindo e beijando-a de leve nos lábios.

— Nunca vi tamanha eficiência e rapidez. Tenho a sensação de que, em questão de segundos, fomos recebidos e instalados em nossos novos aposentos. Bem, reconheço não ter muita experiência nisso. Antes de conhecê-lo, jamais havia ido a lugar nenhum.

— De fato tudo foi feito numa rapidez espantosa. Até eu mesmo estou impressionado. Mandei um dos homens à frente, avisando de nossa chegada e explicando que havíamos passado os últimos três dias e noites expostos a um frio inclemente. Imagino que meus irmãos e cunhadas tenham estabelecido como prioridade nos deixar confortáveis. Gisele, em especial, odeia o frio.

— Ah, Gisele. A grávida. Esposa de Nigel… Ela é parente de Maldie, mulher de Balfour?

— Não. A extraordinária semelhança física entre as duas causou alguns problemas, no passado. Numa certa época, Nigel se acreditou apaixonado por Maldie e passou sete anos longe de Donncoill. Então voltou, com Gisele.

— Oh, céus.

— Sim. Oh, céus.

— Este é um belo castelo. Bethia sorveu o vinho devagar, sentindo-se contente e aquecida.

— Assim será Dubhlinn.

— Sei que você possui algum dinheiro, mas será suficiente para alcançar esse padrão? - O requinte de Donncoill chamara-lhe a atenção desde o primeiro instante. Tudo ali transpirava bom gosto. Ricas tapeçarias nas paredes, tapetes espessos, prataria e belos móveis. Um modelo de refinamento.

— Não de imediato. Primeiro vou recuperar a aldeia, reconstruir os chalés, comprar sementes para o plantio, ferramentas para os artesãos e atender às demandas mais urgentes. O resto virá depois.

— Claro. Quisera que meu pai não fosse tão sovina. Você deveria ter recebido o dote ao se casar comigo. O dinheiro extra o ajudaria a enfrentar tantas despesas.

— Você me ajudará. É tudo de que preciso.

— Você contou à sua família toda a verdade sobre nós dois? Sobre como nos conhecemos?

— Sim. Aqui não há necessidade de alterar a verdade, como fizemos na corte.

— A história que inventamos nos fazia parecer um pouco mais sérios e bem comportados.

— Não tema ser criticada pelo que aconteceu conosco, pela maneira como viemos a nos casar. Creia-me, nossa história é provavelmente banal, se comparada à dos outros Murray e suas respectivas esposas.

Embora as palavras do marido não a convencessem muito, Bethia não discutiu. Aceitando a mão que ele lhe oferecia, deixou-se conduzir ao salão, onde um lauto banquete os aguardava.

Durante algum tempo, a comida se tornou o centro das atenções, com tanta gente faminta devido à longa jornada. Somente após a sobremesa os assuntos sérios começaram a ser discutidos.

Apesar da distância, Eric mantivera os irmãos bem informados sobre os acontecimentos recentes, exceto a questão de William e o problema com Beaton e Dubhlinn.

A caçada a William prosseguiria. Bethia gostaria de acreditar que logo o infame seria pego, mas receava que a situação se arrastasse. Tantos homens competentes tinham se empenhado em localizá-lo e prendê-lo e, até o momento, só houvera insucesso. Pensar em William também significava encarar o fato de que o queria morto. Embora poucos seres humanos merecessem mais a morte que aquele criminoso, a idéia de ansiar pela destruição de um semelhante a perturbava.

Quando os homens puseram-se a falar sobre uma batalha para tirar sir Graham de Dubhlinn, Bethia perdeu o resto do apetite e abandonou a maçã caramelada que estivera comendo. Embora nenhum dos presentes lhe parecesse sedento de sangue, era impossível não notar certa excitação no ar ante o provável confronto.

— Eu tentaria não escutar, se fosse você — aconselhou-a Maldie, sentando-se no lugar de Gisele que, discretamente, retirara-se para descansar. É o que costumo fazer.

— São coisas que não consigo entender, milady.

— Por favor, chame-me Maldie. Somos irmãs agora.

— Obrigada. — Bethia inspirou fundo, abatida. - Você compreende esse tipo de comportamento?

— É uma causa justa. Dubhlinn deve ser libertado, após décadas sob o jugo de lordes cruéis. Por que os homens dão à impressão de quase desejar que sir Graham os force a lutar? Não, isso não me intriga, porque esse é o temperamento masculino. Com certeza, meu marido também não entende por que fico tão animada quando ofereço um bom jantar, ou quando preparo uma nova poção. Acho que homens e mulheres estão condenados a se desentenderem de vez em quando.

— Eu não queria que eles lutassem. Não queria que pessoas morressem por um pedaço de terra.

— Eu também não. Mas a realidade é essa.

Decidindo que nem mesmo aquela mulher agradável percebia a complexidade de seus sentimentos, Bethia resolveu mudar de assunto.

— Eric me contou que você é herborista.

— Esforço-me para desempenhar a função o melhor possível. Sem querer me vangloriar, creio possuir alguns conhecimentos.

— Não é falta de modéstia reconhecer a própria capacidade. Utilizar plantas medicinais é algo que estou começando a aprender. A velha Helda, herborista em Dunnbea, me ensinou o básico e pretendo me aprofundar no assunto. Dubhlinn precisará ser reconstruído em vários aspectos, inclusive no desenvolvimento de habilidades.

— Ficarei feliz em ensinar-lhe o que sei, antes que você vá para seu novo lar.

Somente horas depois, Eric levou-a de volta para o quarto. E mesmo se esforçando para concentrar-se na conversa com Maldie, Bethia não fora capaz de ignorar, por completo, os comentários sobre a batalha. Vendo o marido despir-se, pensamentos horríveis angustiaram-na. E se ele sofresse ferimentos fatais? Como suportaria a perda? Morreria também.

— Pareceu-me que você e Maldie tinham muito que conversar. Eric deitou-se e puxou-a para si, notando imediatamente a tensão do corpo pequenino e delicado.

— Maldie vai me ensinar a utilizar ervas na preparação de remédios e ungüentos. Acho que será um conhecimento útil quando nos instalarmos em Dubhlinn.

— Ah, Dubhlinn. Querida, eu queria não ter que lutar, pois…

— Não — Bethia o interrompeu com um beijo. - Não diga nada. Já se falou o suficiente sobre Dubhlinn e sir Granam esta noite. Não partilhamos uma cama por três longos dias. Posso pensar em coisas mais agradáveis sobre as quais conversar. Você não?

— Sim. Mas logo seremos obrigados a discutir esse assunto.

Bethia beijou o marido avidamente, abandonando-se à paixão. Ansiava não se lembrar, ainda que por pouco tempo, dos horrores da guerra que se avizinhava. Embora soubesse que a realidade não tardaria a se impor, almejava alguns momentos de esquecimento.

Eric não tardou a ser subjugado por sensações incontroláveis. Apesar de perceber que, de certa forma, a esposa o estava usando e ao desejo mútuo, não se importava. Com igual ardor, retribuiu os beijos, as carícias, os toques. Naquela batalha amorosa, não havia vencidos. Ao atingir o clímax, ambos eram vitoriosos.

Feliz, drenado de toda energia, Eric deitou-se de costas e aconchegou a mulher junto do peito.

— Bem-vinda a Donncoill, Bethia Murray — murmurou, sorrindo ao ouvi-la rir baixinho.

 

— Não acho que sua esposa esteja gostando disso — Balfour comentou, observando Bethia se afastar rapidamente do campo de treinamento.

Suspirando fundo, Eric sorveu um gole de vinho do odre que a esposa lhe levara.

— Não, nem um pouco. Tentei discutir o assunto, mas Bethia é muito boa em me distrair.

Rindo, Balfour assentiu, expressando sua cumplicidade no olhar.

— Pelo menos ela não fica o censurando, ou chorando pelos cantos, pressionando-o para que mude de idéia. Mas o quê, exatamente, a desagrada?

— Sim. O que a incomoda tanto? - Nigel indagou, aproximando-se dos irmãos. — É uma causa justa.

— Bethia encara o confronto como uma disputa por terras e aflige-a saber, que pessoas lutem e morram por bens materiais — explicou Eric. Na maioria dos casos, dou-lhe razão.

— Sua esposa não aceita o fato de você haver reivindicado Dubhlinn?

— Oh, aceita sim. Ela não tem dúvidas de que sir Graham é um usurpador e que deve entregar Dubhlinn a mim, herdeiro legítimo da propriedade.

— Ah, entendo — disse Balfour, sorrindo. - E, de alguma maneira miraculosa, isto irá acontecer sem que qualquer um de nós precise desembainhar a espada.

— Sei que é uma idéia tola, e Bethia não é nenhuma tola. Apenas está pensando com o coração, e não consigo fazê-la analisar a situação racionalmente.

— Dê-lhe tempo. Deixe-a chegar à conclusão óbvia sozinha.

— Ou então certas pessoas podem ajudá-la a lidar melhor com as dificuldades — propôs Nigel, apontando para Gisele e Maldie, que conversavam animadamente no pátio.

Bethia franziu o cenho quando Maldie e Gisele entraram no quarto, após uma batida suave à porta. Colocando a costura de lado, estivera terminando uma túnica para James, levantou-se, serviu-lhes um cálice de vinho e sugeriu que se sentassem diante da lareira. Desde sua chegada a Donncoill, há um mês, aquela era a primeira vez que as cunhadas a procuravam em seus aposentos. De repente sentia-se um pouco nervosa, embora não soubesse por quê.

— Está tudo bem? — perguntou apreensiva.

— Sim — retrucou Maldie. — E não.

— Fiz alguma coisa errada?

— Por que você sempre pensa isso?

— Como assim?

— Sempre que surge algum contratempo, por menor que seja você se desculpa, como se tivesse feito algo errado.

— Aprendi que, na maioria das vezes, a culpa é minha.

— Tolice — reagiu Gisele. - Nunca a vi cometer uma falta desde sua chegada a Donncoill. Pelo contrário, você é hábil na administração da rotina doméstica, como temos tido oportunidade de observar. E é gentil com todos os que a cercam. Se por acaso pessoas tentaram fazê-la se sentir insignificante, inútil ignore-as. Porque, claramente, essas são pessoas muito estúpidas.

A intensidade de Gisele trouxe-lhe um sorriso aos lábios. Aquecia-lhe a alma ouvir alguém elogiá-la.

— Mas vocês duas estão muito sérias.

— Viemos conversar sobre Eric. Sei que não é sua intenção, porém você o tem feito infeliz.

— Não foi uma boa escolha de palavras Gisele, - Maldie a repreendeu.

— Por quê? Eric está infeliz. Não com você — Gisele se apressou a esclarecer, notando a expressão desolada de Bethia. E sim com algumas de suas idéias.

— Bethia, seu horror pela batalha iminente de algum modo o magoa — falou Maldie, tocando as mãos da cunhada num gesto amigável.

— Ele as mandou vir dizer isso a mim?

— Não. Nossos maridos nos mandaram. Talvez nós possamos ajudá-la a enxergar que a situação não é tão ruim quanto parece. Como mulheres, entendemos você pôr as emoções acima da razão. Porém Eric sente-se confuso, porque depois de colocá-la a par de toda a história, ainda não recebeu seu apoio.

— E isso o magoa?

— Ele não o disse. Apenas não gosta de vê-la tão aflita. Embora compreenda sua angústia, creio que Eric gostaria de sabê-la apoiando-o incondicionalmente.

— Eu jamais contrariaria meu marido.

— Vamos, menina, não tente brincar conosco. — Maldie sorriu-lhe, gentil. - Gisele e eu somos casadas há muito tempo. Conhecemos as dificuldades que podem surgir entre casais, quando as opiniões são divergentes. Diga-nos, exatamente, o que se passa na sua cabeça e procuraremos ajudá-la.

— Não posso gostar de ver pessoas lutando e morrendo por um pedaço de terra.

— A situação é mais complexa. Dubhlinn pertence a Eric. Ele é o legítimo herdeiro. Será a recusa de sir Graham em obedecer às ordens do Rei o que causará a batalha.

— E não será uma batalha por terras?

— De certa forma, sim. Mas os direitos de Eric não devem ser respeitados? Você viu o estado de Dubhlinn. Os últimos três lordes apenas exploraram o povo a quem juraram proteger. Aquela gente tem sido aterrorizada, surrada, subjugada pela fome.

— Sem dúvida, em sua breve passagem por Dubhlinn, você percebeu a decadência do lugar — emendou Gisele.

— Talvez você devesse enfrentar o que realmente a angustia. Talvez não seja a batalha em si, mas quem terá que lutar o que a perturba.

— Claro que não quero que Eric lute. Ou Bowen, Wallace, Peter. Nunca suportei imaginar qualquer pessoa morrendo numa simples disputa por bens materiais. Foi à ganância que custou a vida de minha irmã, de meu cunhado e da tia dele. E é essa mesma ganância que lançou um louco em meu encalço. Vocês podem me culpar por não aprovar a matança?

— Você supõe que Eric seja movido pelos mesmos interesses desse tal William? — interrogou-a Maldie.

— De jeito nenhum!

— Pois talvez seja isso o que seu marido esteja pensando no momento.

A idéia apavorou Bethia.

— Já lhe disse que não o julgo em nada semelhante a William.

— Sim, mas, às vezes, falar não é o bastante.

— Vocês estão tentando me fazer sentir culpada.

— Um pouquinho. Tudo o que lhe pedimos é para olhar para dentro de seu coração e procurar entender a verdadeira razão pela qual não gostaria de ver Eric brigando pela posse de Dubhlinn. Creio que Gisele tem razão. Creio que, acima de tudo, você teme pela vida de Eric e dos outros.

— Bem, admito que quando penso na batalha iminente não estou levando em consideração o povo de Dubhlinn. Penso principalmente em Eric, no meu primo Wallace, em Bowen e Peter. Eu não resistiria se algo lhes acontecesse, se morressem lutando por um pedaço de terra. — Bethia franziu o cenho, incomodada. — Pelo visto, Gisele acertou na análise.

— Parece-me que sim. Maldie sorriu-lhe, afetuosa. — Tenho a impressão de que não conseguimos apaziguar seus medos. Mas se você pretende continuar expressando suas preocupações, que sejam apenas em relação à segurança daqueles a quem estima.

— Então devo esconder o que sinto?

— Somente a parte que leva Eric a pensar que você condena as providências que ele será obrigado a tomar para conquistar o que lhe pertence por direito.

Bethia ficou em silêncio durante alguns minutos. O pavor de perder Eric e os outros entes queridos era, de fato, o centro das suas aflições. Os demais motivos, se examinados friamente, revelavam-se secundários.

— Todas nós estamos com medo — prosseguiu Maldie, ajudando Gisele a se levantar. Nenhuma de nós quer ver seu homem partir para a batalha porque sabemos que existe a possibilidade de que seja morto. Você não está sozinha em suas inseguranças.

Quando as cunhadas saíram do quarto, Bethia refugiou-se na cama, dominada por crescente inquietude. A última coisa que queria era ferir Eric, não o apoiando naquele momento crucial de sua vida, quando lutaria por seus direitos e pela libertação do povo de Dubhlinn das garras de um tirano.

Estivera sendo egoísta. Estivera tão absorvida em si mesma que não levara em consideração os sentimentos alheios. Chegara à hora de deixar de ser infantil e imatura. As outras mulheres de Donncoill também enfrentavam a possível perda de seus maridos, amantes, ou filhos, que partiriam para o confronto com os mercenários de sir Graham.

Cabia-lhe tentar mostrar-se tão corajosa quanto às outras. Isto não significaria ignorar seus receios, mas dominá-los para poupar quem amava. Todavia, até o último instante, rezaria para que a diplomacia vencesse, para que sir Graham entregasse Dubhlinn ao legítimo herdeiro, sem que uma única gota de sangue fosse derramada.

— Você está grávida — decretou Maldie, limpando o suor da testa de Bethia com um pano úmido.

Embaraçada, ela apenas assentiu e aceitou o cálice de cidra quente que a cunhada lhe oferecia, perguntando-se como esta reagiria ao seu pedido de discrição.

— Ainda não contei a Eric — declarou, dando graças pelo marido haver saído do quarto tão logo amanhecera.

— Foi o que imaginei. Eric nunca seria capaz de guardar tal notícia para si. O que não consigo entender é por que você está escondendo a maravilhosa novidade.

— Provavelmente devido a razões muito tolas. Eu queria ter certeza de estar mesmo grávida e certeza de que não sofreria um aborto natural, como é comum acontecer nos primeiros meses.

— Não são tolices. — Maldie sentou-se na beirada da cama. Você deve estar mais tranqüila agora.

— Enquanto estive na corte, e logo que cheguei aqui, costumava sentir enjôos, vertigens e fraqueza no início da noite. Será que alguma coisa está errada por eu ter vomitado de manhã?

— Não, duvido. Enjôos matinais acontecem com freqüência. Ou talvez você tenha comido algo ontem à noite que não lhe fez bem. Durante a gravidez, determinados alimentos são de difícil digestão. Há quanto tempo você está grávida?

— Dois meses, talvez um pouco mais. Não me lembro com absoluta certeza de quando minhas regras começaram a falhar.

— Então eu começaria a contar a partir da primeira vez que vocês se deitaram juntos. Não é incomum uma mulher engravidar ao perder a virgindade, ou logo depois.

— Então, provavelmente, estou de três meses.

— Os enjôos não tardarão a sumir. A partir do quarto mês, as náuseas desaparecem e começamos a engordar.

— É uma perspectiva animadora.

— Quando você pretende contar a Eric?

— Acho que vou esperar um pouco mais. Não sei se é algo que se deva contar a um homem praticamente na véspera da batalha. Na verdade, chegamos aqui há seis semanas e ele não notou sequer as pequenas mudanças em meu corpo causadas pela gravidez. Prefiro que meu marido não esteja tão cheio de preocupações, e tão ocupado, quando eu lhe contar.

Rindo, Maldie levantou-se.

— Sim, é uma notícia que merece ser comunicada numa hora e num lugar especiais. Muitos problemas os cercam agora. Portanto, lembre-se de que a hora e o lugar perfeitos talvez custem a chegar e seria melhor você contar-lhe antes que Eric descubra sozinho. Os homens às vezes não reagem bem quando pensam que lhes escondemos alguma coisa que julgam importante. Você, com certeza, não quer estragar o momento com uma discussão boba.

Enquanto observava a cunhada se retirar, Bethia decidiu levar o conselho em consideração. Afinal, o último conselho que lhe fora dado por Maldie e Gisele revelara-se valioso. Eric podia achar que ela não aprovava completamente a guerra, porém já não tinha dúvidas de que o apoiava na sua luta para tomar posse de Dubhlinn.

No fundo do coração, reconhecia que seu marido não tinha escolha e que não havia comparação entre suas ações e as de sir Graham, ou de William. Sir Graham era ladrão, usurpador, e precisava ser afastado do povo que arruinara.

Dentro de poucas semanas, o clima permitiria a deflagração do ataque. Sabia que não seria capaz de despedir-se de Eric com um beijo, um sorriso e votos de boa-sorte, porque sua alma estaria sangrando. Mas, pelo menos, ele partiria convicto de que acreditava na sua causa.

O tempo em Donncoill passou rápido e, para alívio de Bethia, pacificamente. Seus dias eram preenchidos brincando com as crianças, estudando as propriedades das ervas medicinais com Maldie e tentando aprender francês com Gisele.

Porém sombras pairavam no ar, minando a suave alegria. William continuava espreitando-a, às escondidas. Não havia dúvidas de que o infame os seguira até ali. Entretanto, as muitas caçadas organizadas pelos Murray tinham se mostrado infrutíferas, para angústia e frustração de Eric.

O outro problema dizia respeito ao seu casamento. A paixão mútua permanecia ardente, porém Eric não dava indícios de lhe dedicar algum sentimento mais profundo. Às vezes procurava se confortar pensando que a maioria dos casais nem sequer conhecia o prazer que desfrutava nos braços um do outro. Então, observando quão intensamente os irmãos de Eric e suas esposas se amavam a inveja a corroia. Era isso o que queria para si.

Abandonando o bordado, Bethia aproximou-se da janela. A primavera se avizinhava. Era essa a época do ano da qual mais gostava. Desta vez, contudo, o início da estação das flores não lhe trazia contentamento. Em breve, Eric partiria para enfrentar sir Graham.

Pensativa, pousou a mão sobre o ventre. Completara quatro meses de gravidez e seu marido ainda não percebera nenhuma alteração em seu corpo. Quando os movimentos da criança em seu útero se tornassem mais fortes, e perceptíveis, seria impossível disfarçar o óbvio. Durante semanas alimentara esperanças de ouvir Eric dizer-lhe alguma palavra de amor, sonhara com aquele momento romântico, em que, emocionada, confessaria amá-lo também e lhe contaria que, dentro de poucos meses, seria pai.

Por fim aceitara o fato de que precisava esquecer o romantismo. Teria, simplesmente, que informar-lhe de sua gravidez e disfarçar o seu amor.

— Vamos, anime-se, a primavera é uma estação maravilhosa — Maldie murmurou, postando-se ao seu lado.

— Sim, sempre adorei essa época do ano. Mas, desta vez, a entrada da primavera marca o início da guerra com sir Graham. Ele se recusa a sair de Dubhlinn e desafia Eric, abertamente, a tentar tirá-lo de lá.

— Os Beaton são conhecidos pela arrogância estúpida.

— É uma pena que não sejam covardes também. Que não fujam quando os Murray chegarem aos portões da fortaleza.

— A luta acontecerá querida — Maldie falou baixinho. - Por isso você parece tão triste?

— Não. Eu só estava pensando em como as coisas pouco mudaram entre mim e Eric, quando eu esperava por mais.

— Ah, você gostaria que ele a amasse tanto quanto você o ama.

— Não é o que toda mulher deseja? Porém isso não aconteceu.

— Tem certeza?

— Meu marido nunca me disse uma palavra de amor. E não ouso tentar adivinhar como ele se sente, por medo de me decepcionar e sofrer ainda mais. Alimentei sonhos românticos de como lhe daria a notícia da minha gravidez.

— Sei como são esses sonhos. Algo como Eric caindo de joelhos, confessando amá-la perdidamente e dizendo que a criança é fruto desse amor?

— Eu o deixaria ficar de pé. - Bethia e Maldie riram.

— Seus sonhos se realizarão querida. E tenha certeza de que Eric ficará felicíssimo ao descobrir que será pai.

— Sim, eu sei. Mas eu gostaria de ter o que você tem.

— Um homem alto e moreno?

— Oh, pensei que você estivesse me levando a sério.

—E estou. Compreendo-a perfeitamente. Ouça-me com atenção: continue amando seu marido. Eric sempre mencionou que gostaria de construir e de ter o tipo de relacionamento que Balfour e eu desfrutamos. Isso significa que se sente disposto a se empenhar para que tudo dê certo. Talvez já lhe dedique sentimentos mais profundos e você nem sequer o perceba. Vocês estão casados há pouco tempo e no começo nem tudo está claro. Bem, acho que não estou conseguindo fazê-la sentir-se melhor, não ê?

— Pelo contrário. Suas palavras são reconfortantes. - Maldie tomou a cunhada pelo braço e puxou-a para fora do quarto de costura.

— Vamos ver as crianças e quando nossos ouvidos estiverem a ponto de estourar devido ao barulho, iremos atrás de nossos maridos.

Bethia não resistiu. Maldie era ótima companhia e, apesar dos doze anos de diferença que as separavam, possuíam muitas coisas em comum e os laços de amizade e afeto que as uniam provavam-se cada dia mais fortes. Diferentemente do que acontecera quando saíra de Dunnbea, ficaria triste quando chegasse à hora de partir de Donncoill. Seu único consolo era a curta distância entre as duas fortalezas. Sem dúvida, Eric manteria um contato estreito com a família e as visitas seriam freqüentes.

Por uma hora brincaram com as crianças. James havia se adaptado ao novo ambiente com uma rapidez espantosa e estar cercado por um bando de meninos e meninas o estimulara a aumentar o vocabulário. Entusiasmava-a vê-lo se expressar com cada vez mais clareza. Quando se mudassem para Dubhlinn, não permitiria que o sobrinho ficasse sozinho no castelo. Iria cercá-lo de companheiros de folguedos, ainda que não fossem crianças da mesma classe social.

— Agora vamos atrás de nossos maridos — decretou Maldie, arrastando-a escada abaixo. — A propósito, como andam seus enjôos? Desapareceram?

— Não, embora as ondas de náuseas estejam mais espaçadas. Antes, eu passava mal pela manhã e à noite. Agora é só de manhã.

— Você deveria ter me dito e eu lhe prepararia uma poção para aliviá-la das crises de mal-estar.

— É verdade. Não sei como não pensei nisso antes.

— Deve estar sendo difícil esconder sua condição de Eric.

— Ele sempre se levanta antes de mim, pois tenho tido muito sono ultimamente. E um sono pesado.

Ao entrarem no pátio, Bethia inspirou fundo, quase podendo aspirar à fragrância da primavera. Não havia sido um inverno muito duro, porém alegrava-a livrar-se do frio.

De repente, uma movimentação nos portões chamou a atenção das duas damas. De olhos arregalados, Bethia assistiu a chegada de uma carruagem guardada por três homens muito altos e corpulentos. Com o coração apertado, reconheceu a voz autoritária da mulher que já dava ordens como se todos ali reunidos fossem seus empregados.

Eric, Balfour e Nigel se adiantaram para receber a visitante e Bethia precisou conter o impulso de correr e agarrar o marido. Trancá-lo no quarto lhe pareceu, subitamente, a atitude mais sensata a tomar. Praguejando, assistiu lady Catriona descer da carruagem e se atirar nos braços de Eric.

— Quem é aquela? — indagou Maldie.

— Lady Catriona, uma das ex-amantes de Eric.

— O quê, em nome de Deus, essa criatura veio fazer aqui?

— Pelo visto, Deus achou que eu necessitava de um desafio. Lady Catriona chegou com o início da primavera, trazida pela lama, para fazer o que fez na corte. Aliás, algo em que é especialista.

— E o que é?

— Fazer-me me sentir indigna e desprezível.

— Dê uma olhada nela — Gisele resmungou, apontando para o outro lado do salão.

— Nojenta — concordou Maldie, dirigindo-se em seguida para Bethia. E então? Você não vai fazer nada?

Suspirando fundo, Bethia observou Catriona derramar-se sobre Eric. Desde que a linda dama aparecera, sem ser convidada, nos portões de Donncoill, passara a ver o marido apenas na hora de dormir. Se este não estava treinando com os irmãos, ou caçando William, Catriona o perseguia sem cessar. Tal situação a lembrava amargamente do período na corte.

— O que vocês acham que eu deveria fazer? Ir até lá e dar-lhe um soco na boca? Talvez arrancar alguns de seus belos dentes?

— Eu não hesitaria em tomar essa atitude — Gisele afirmou colérica.

— É uma idéia tentadora — disse Maldie. — Mas seria faltar com as boas maneiras.

— Você acha que aquela vagabunda demonstra boas maneiras ao querer seduzir um homem bem na frente da esposa?

— Esse tipo de coisa sempre deixa Gisele furiosa, explicou Maldie a Bethia. Acho que é seu sangue francês.

— Oh, é mesmo? E permitir que uma vadia lamba seu marido como se ele fosse um doce, somente para não ser rude, parece-me um comportamento muito saxão.

— Saxão? — interpelou-a Maldie, irritada. Você está me acusando de agir como uma maldita inglesa?

— Se a carapuça lhe serve.

Quando as duas cunhadas começaram a discutir, Bethia voltou à atenção para Catriona. Maldie e Gisele discutiam com freqüência e ambas se divertiam muito com esses embates verbais, mostrando que se tratavam como verdadeiras irmãs com aquelas provocações mútuas.

Entretanto, Gisele não se enganara na sua avaliação. Embora Catriona ainda não tivesse chegado a ponto de lamber Eric, encontrava-se muito próxima disso. Sem dúvida já havia cruzado a linha que separa as boas maneiras da grosseria.

Ela procedia como se possuísse algum direito sobre Eric, ousava insinuar que os dois quase tinham sido noivos. Catriona também resolvera “esquecer” como participara do ataque perpetrado por William quando Bethia estivera na corte e assumira um ar de completa inocência.

— Ah, veja só — lamentou Gisele. — Estamos aqui brigando enquanto a pobre Bethia está com o coração despedaçado.

— De fato, tenho a impressão de que ela está um pouco confusa — murmurou Maldie.

— Exatamente — concordou Bethia. - A audácia daquela mulher está além da minha compreensão. E a insistência em insinuar que Eric estivera a ponto de pedi-la em casamento porque os laços que os uniam iam além da luxúria? Sei que são mentiras deslavadas. Que será que ela espera? Que Eric me abandone? Ou que a tome para amante? Com os nervos à flor da pele, Bethia contou-lhes sobre a provável participação de Catriona no ataque de William contra sua vida. - Agora aqui está a vigarista, esperando que eu lhe dê as boas-vindas e aja como se nada houvesse acontecido.

— Você contou a Eric o que a cretina fez? — Maldie perguntou, indignada com o relato.

— Não, porque não tenho provas.

— Você tem que lutar por seu homem, querida.

— Lutar por ele? Vocês já repararam em Catriona? E já deram uma boa olhada em mim?

— Qual o problema? Sim, a vadia é muito bonita e dona de um corpo voluptuoso. E além de participar de uma tentativa de assassinato e de, provavelmente, já ter se deitado com mais amantes do que consegue se lembrar, está se esforçando para induzir um homem a cometer adultério diante da esposa. Meu irmão não é nenhum tolo, querida. É capaz de enxergar a podridão sob um lindo rosto. Embora você saiba que pode confiar nele, não é sensato ficar apática, permitindo que aquela desqualificada proceda como bem entender. O que você acha que sua atitude diz a Eric?

— Que não me importo — reconheceu Bethia, angustiada. - E não é isso que desejo levá-lo a pensar. Mas tampouco desejo me comportar como uma megera ciumenta.

— Ninguém está aconselhando-a a agir assim — Gisele argumentou. — Non, não seria adequado. Porém você precisa fazê-lo entender, e àquela vagabunda, que se sente insultada.

— Uma pitada de ciúme não atrapalha — disse Maldie. - Creia-me, Eric estaria furioso se algum homem a estivesse assediando.

— Sim, ele pode ser um pouco possessivo. - Recordava-se de como o marido insistira em ouvi-la admitir que lhe pertencia. Suponho que não faria mal mostrar-lhe que também o sou. Está na hora de Catriona saber que não engolirei essa idiotice pacificamente.

— Talvez agora seja um bom momento de confessar que o ama — Gisele sugeriu.

— Por que você acha que amo aquele tolo? — Bethia suspirou resignada quando as cunhadas reviraram os olhos. - Oh, céus, será que todo mundo percebe como me sinto?

— Não, querida — Maldie a tranqüilizou, dando-lhe um tapinha no ombro. Eric ainda não percebeu nada.

— Acho que não seria um bom momento de falar de amor. Eric poderia imaginar que minhas palavras estavam sendo ditadas pelo ciúme, que apenas quero afastá-lo de Catriona. Se, algum dia, eu confessar que o amo, gostaria que ele acreditasse em mim, mesmo se não retribuísse o sentimento.

Durante vários minutos, as cunhadas ofereceram-lhe inúmeras sugestões sobre como arrancar Eric das garras de Catriona, algumas tão tolas e absurdas que as três constantemente caíam na risada. Por fim, Bethia decidiu apenas plantar-se ao lado do marido. Porém, que Catriona tivesse cuidado. A megera ciumenta, que queria manter sufocada, estava prestes a vir à tona.

De repente, Eric foi flanqueado pelos irmãos. Enquanto Nigel distraía a irritantemente tenaz Catriona, Balfour passou-lhe um braço ao redor dos ombros e o puxou para o lado. Só esperava não ter que ouvir um sermão sobre a santidade dos votos matrimoniais. Iria se sentir insultado porque jamais considerara a possibilidade de desrespeitá-los.

— Creio que você está numa encrenca, rapaz — advertiu-o Balfour.

— Como assim?

— Maldie e Gisele estiveram conversando com sua esposa, aconselhando-a, parece-me. Achei que devia avisá-lo. Quando aquelas duas se juntam, podem causar problemas a uma dúzia de homens. Notei que ambas gostam muito de Bethia; portanto, é óbvio que as três se entendem perfeitamente. Resultado: problemas triplicados. Bem, como sua mulher está vindo nesta direção, Nigel e eu retornaremos às nossas cadeiras.

— Com medo de que suas roupas elegantes fiquem respingadas com meu sangue?

— Na verdade, rapaz, não receio que será o seu o sangue a ser derramado.

— Covardes — Eric brincou, quando os irmãos o desertaram, apressados.

No mesmo instante Catriona o segurou pelo braço e começou a contar-lhe, com detalhes explícitos, o último caso amoroso, intenso e violento, que escandalizara a corte. Eric limitava-se a assentir com a cabeça, os olhos fixos na figura pequenina e delicada que se aproximava.

Era óbvio que ela não gostava de Catriona e nem a queria em Donncoill. Maldie e Gisele, aliás, partilhavam da mesma opinião e não disfarçavam o desagrado com a presença da hóspede indesejável. Mas por que Bethia não gostava de Catriona? Porque sentia ciúme, ou apenas porque realmente se tratava de uma criatura insuportável? Não conseguia compreender como a quisera para amante anos atrás, ainda que por um curto período de tempo.

A expressão impenetrável de Bethia não deixava transparecer o que lhe ia no íntimo. Eric sabia que emoções profundas a sacudiam por trás do sorriso sereno. Apesar de não desejar uma cena, ou discussão, constatar que fora capaz de despertar um pouco de ciúme na esposa lhe fazia bem.

— Ah, Bethia — exclamou Catriona. - Então você, enfim, abandonou a companhia daquelas velhas.

Como Catriona tinha quase a mesma idade de Maldie e Gisele, o comentário soou como uma perfeita idiotice.

— Não acho que seja sensato chamá-las assim, quando podem ouvi-la. Bethia pousou a mão no braço do marido.

— Desculpe-me. Com tantas crianças que as duas já pariram, talvez eu tenha calculado mal suas idades. Pelo menos aquela lá ainda é nova o bastante para procriar — ela completou, lançando um olhar enojado para Gisele.

Mais do que nunca, Bethia teve certeza de que Eric nunca havia pensado em se casar com Catriona. Ele amava crianças e essa fulana insensível as detestava.

— Você nunca nos disse por que resolveu visitar Donncoill, milady. - Com estudada naturalidade, Bethia recostou a cabeça, de leve, no peito do marido.

— Ouvi comentários de que Eric logo entraria em guerra com sir Graham.

— Ah, e você temeu perder o derramamento de sangue. - O coração de Bethia disparou quando Eric entrelaçou os dedos aos dela, num gesto cheio de ternura.

— Claro que não. - A expressão do rosto bonito revelava o contrário. Você acha que será uma batalha sangrenta?

— Rezo para que sir Graham parta e entregue Dubhlinn, sem que uma única espada seja desembainhada.

— Isto não acontecerá. Por que sir Graham abriria mão de terras das quais já se apossou?

— Porque é uma ordem do Rei e meu marido é o legítimo herdeiro de Dubhlinn.

— Ah, sim. — Catriona brindou Eric com um sorriso faiscante. Você será um ótimo lorde.

— Obrigado. Virando-se para a esposa: — Sobre o que você, Gisele e Maldie conversaram durante tanto tempo?

Evidentemente, Eric sabia que as três haviam falado sobre o comportamento ultrajante de Catriona, mas Bethia decidiu não lhe dar a satisfação de confirmar as suspeitas.

— Falávamos sobre procriação… e boas maneiras. Além de dentes quebrados. - Escutando o marido sufocar o riso, Bethia assumiu um ar ainda mais inocente. - Gisele estava particularmente interessada em dentes quebrados.

— Posso imaginar — emendou Eric, conhecedor do temperamento de Gisele.

— Lady Gisele teve problemas com os dentes? — indagou Catriona.

Pasma, Bethia não conseguia disfarçar o assombro. Como alguém podia ser tão obtusa? Na sua prepotência, Catriona, preferia não enxergar o quanto enfurecia as outras mulheres. Talvez ela soubesse como usar a beleza para seduzir os homens, talvez sua amoralidade a transformasse numa inimiga mortal. Porém sua estupidez parecia ilimitada.

— Não — explicou Eric, mais convicto do que nunca de que não fora a inteligência de Catriona que o atraíra para a cama. - Creio que os dentes de Gisele estão perfeitos.

— Que bom. Maus dentes costumam ser uma provação, além de horríveis. Fui abençoada com ótimos dentes.

— Sim — disse Bethia. - Quando eu estava do outro lado do salão, pude perceber a brancura de seu sorriso. Quando a luz dos candelabros iluminaram seu sorriso, seus dentes chegaram a faiscar, provocando em mim uma cegueira temporária.

— Bethia — Eric a admoestou, esforçando-se para segurar o riso.

A cortesia a impedia de insultar uma hóspede. Mesmo uma hóspede grosseira e arrogante, que ali se instalara sem ser convidada. Por isso Bethia decidiu se retirar, antes de perder por completo a paciência. Pelo menos atingira um de seus objetivos: Catriona percebera a ironia contida em seu comentário sobre “dentes faiscantes”.

No quarto, ela trocou-se e deitou-se, lutando para recuperar a calma. Não queria descontar a irritação no marido quando este aparecesse.

Dali a minutos, Eric surgiu, sorridente e bem-humorado.

— “Cegueira temporária”, hein? — ele a provocou, despindo-se e deitando-se também.

— Admito que estava à beira de perder a cabeça.

— Não posso culpá-la. Catriona é realmente insuportável. Eu devia estar cego, e surdo, quando me envolvi com aquela mulher. Não existe nada sob o exterior bonito. Nem moral, nem inteligência.

— Oh, posso pensar em dois atributos que tenham captado sua atenção.

— Ah, sim. Nós, homens, às vezes somos tolos e achamos que maiores são melhores. - Inclinando-se, Eric beijou os seios da esposa com terna reverência. - Porém maiores definitivamente não significam mais doces.

Suspirando de prazer, Bethia se entregou ao toque das mãos másculas, que viajavam por seu corpo num misto de ardor e suavidade.

Durante uma eternidade, murmúrios, suspiros, gemidos, ecoaram pelo quarto escuro. Livres de quaisquer pudores, os dois se amaram com a sofreguidão dos apaixonados, as carícias ousadas arrastando-os a num turbilhão de sensações até explodir num orgasmo devastador.

— Você sabe como esgotar seu homem, querida — Eric sussurrou exausto e feliz.

— Estranho, mas essa foi uma das sugestões de Gisele, sobre como mantê-lo fora do alcance de Catriona. Ela disse que eu deveria ocupá-lo mais na cama. - Bethia riu baixinho, saboreando o momento de cumplicidade.

— Céus, se você me ocupar um pouco mais, não conseguirei nem sequer andar.

— Foi o que eu disse a Gisele.

— E o que ela respondeu?

— Que o plano daria certo.

— Sinto muito por aquela tola da Catriona.

— Não é culpa sua que ela esteja aqui.

— Talvez não completamente, mas reconheço ter uma parcela de culpa nessa situação. Quando não passava de um rapaz inconseqüente na corte, achava que sabia quais damas deveria evitar, quais poderiam me causar problemas no futuro. Pelo visto, não percebi o verdadeiro caráter de Catriona.

— Com certeza, ela acabará indo embora quando compreender que suas investidas não a levarão a nada.

— Receio não ser assim tão paciente. Afinal, enquanto estávamos na corte, deixei claro que não me interessavam aventuras adúlteras, que eu levava o casamento a sério e não pretendia desrespeitar os votos de fidelidade. Ou Catriona é estúpida, ou vaidosa demais para não acreditar na minha palavra. As regras da etiqueta e da hospitalidade não me permitem colocá-la para fora de Donncoill simplesmente porque não a suportamos. Isto não quer dizer que eu seja obrigado a tolerar toda essa bobagem. Tenho tentado ser educado e gentil. Agora decidi que basta.

— Se você acredita que é o melhor. - Apesar de concordar com o marido, Bethia sentiu-se desassossegada. Catriona não iria tolerar a desfeita por muito tempo, antes de fazer uma cena.

— O que você disse a ele sobre mim?

Dois dias, Bethia pensou, virando-se para enfrentar uma irritadíssima Catriona. Na verdade, surpreendera-a a descarada haver agüentado, durante quarenta e oito horas, a mudança de comportamento de Eric sem reagir. Cruzando os braços, Bethia preparou-se para a cena desagradável, torcendo para que fosse rápida. Finalmente encontrara tempo de estudar o canteiro de ervas de Maldie, pois tinha a intenção de plantar um igualzinho em Dubhlinn, e preferia não desperdiçar minutos preciosos por causa do mau humor de uma vadia.

— Não sei do que você está falando.

— Eric mudou em relação a mim. Está frio, quase rude. Sei que a culpa é sua.

— Talvez ele esteja farto de ser alvo dos seus avanços indesejados.

— Indesejados? Quero que você saiba que…

— Sei de tudo — Bethia a cortou, muito calma, muito senhora de si. - Segundo sua versão dos fatos, você e Eric foram grandes amantes, ele a adorava. A paixão mútua era tão sublime que por pouco não ficaram noivos. Bem, não acho que vocês nem chegaram perto de ficar noivos. Quando Eric se casou comigo, contou-me que, até então, não pensara em entregar o coração, e oferecer seu nome, a mulher alguma. Prefiro acreditar no meu marido.

— Oh, sim, claro. Você é ingênua demais e não entende que os homens dizem qualquer coisa para conseguir o que querem.

— Obviamente algumas mulheres são assim também. Onde está seu orgulho? Ele não a quer.

Enquanto as duas mulheres discutiam, Eric aproximou-se. Ainda fora do alcance da vista de ambas, deteve-se. Fora um tolo não concluindo que Catriona culparia Bethia por sua ríspida indiferença. Parte de si queria interferir na conversa antes que Catriona dissesse algo que magoasse sua esposa. Porém o instinto lhe dizia que havia mais do que simples ciúme por trás da raiva que Bethia sentia de Catriona. Se permanecesse afastado, talvez descobrisse algo.

— Ele já me quis. Por que mudaria de idéia?

— Por que agora é um homem casado? — devolveu Bethia num tom de voz de quem tenta explicar o óbvio a uma idiota.

— Casado com você. Olhe-se no espelho. Você é magrinha, seu cabelo tem uma cor esquisita, nem castanho, nem vermelho, e seus olhos não combinam.

— Tenho ótimos dentes.

— Que homem me rejeitaria por sua causa?

— Talvez eu seja muito boa na cama. Leve, fácil de ajustar na posição ideal. Os homens apreciam isso, suponho.

— Agora você está sendo ridícula. Não, você jogou Eric contra mim contando-lhe o que aconteceu naquele dia, na feira.

— Ah, o dia que você me conduziu diretamente para as mãos do criminoso que queria me matar.

— Ele não disse que queria matá-la. Apenas desejava encontrá-la sozinha.

— Por favor, pelo menos tente ser honesta. A voz de Bethia transpirava desdenho. Você não se importava a mínima com os planos que aquele infame tinha para mim.

— Não mesmo. Ele devia ter cortado sua maldita garganta. Você me ofendeu.

De repente, Eric surgiu no meio das duas. Agora entendia por que Bethia detestava Catriona. Tão logo aquela mulher partisse, descobriria por que a esposa não lhe contara a verdade sobre o que ocorrera na feira.

— Você queria a morte de minha esposa porque estava com a vaidade ferida? — ele indagou a uma petrificada Catriona.

— Não, Eric, meu amor. Você entendeu mal.

— Entendi muito bem. Quero-a fora de Donncoill. Agora! — ordenou.

— Mas a noite não tardará a cair.

— Arrume suas coisas e parta. Agora. — Virando-se para Bethia, falou: — Precisamos conversar. No solário, daqui à uma hora.

Embora duvidasse de que o marido conseguiria expulsar Catriona de Donncoill tão depressa, Bethia rumou para o solário.

Em menos de uma hora, lá estava ele.

— Por que você não me contou do envolvimento de Catriona no incidente com William? — Eric a interrogou sem preâmbulos.

— Porque não tinha provas. Apenas suspeitas devido à maneira amigável como ela e Elizabeth estavam me tratando depois de eu as ter insultado. Além de ter sido abandonada na feira, William mencionou duas mulheres que o haviam ajudado a me localizar.

— Você deveria ter me contado.

— Talvez. Porém estávamos de partida. Presumi que nunca mais tornaria a vê-las. Eu só queria ir embora daquele lugar e temi que, se fizesse acusações, seríamos obrigados a ficar para esclarecer o incidente.

— E um argumento razoável. Mas você não deveria nunca ter guardado esse segredo de mim.

Bethia concordou, intimamente chamando-se de mentirosa. Estava guardando dois segredos do marido: sobre a criança que trazia no ventre e sobre o quanto o amava. Só esperava que ele compreendesse seus motivos, quando lhe confessasse a verdade.

— A propósito, você tem razão. Seus dentes são ótimos.

— Oh, não. — O marido escutara mais de sua discussão com Catriona do que imaginara.

— Tem outra coisa que você disse que me intrigou. Algo como “leve, fácil de ajustar na posição ideal”.

Reconhecendo o brilho nos olhos do marido, Bethia riu e correu para a porta, fingindo tentar escapar. Então ele a tomou nos braços, e o mundo foi esquecido.

 

Foi difícil, mas Bethia tentou não gritar com Eric. Não achava que estivesse pedindo muito. Queria apenas ir à aldeia com Maldie, ambas escoltadas por meia dúzia de homens armados. Enquanto observava o marido andar de um lado para o outro do quarto, perguntou-se se ele estaria sendo excessivamente protetor, ou ela uma tola, por ignorar a seriedade da ameaça representada por William.

— Você não precisa de nada — Eric argumentou. E se precisar, mande uma criada ir buscar.

— Teremos seis homens conosco! Você acredita que um louco idiota conseguiria derrotá-los e me atacar no meio dos aldeões?

Praguejando baixinho, Eric passou a mão pelos cabelos, dominado por crescente inquietude. William parecia haver tomado proporções místicas em sua mente. Embora reconhecesse ser tolice, a idéia de ver Bethia fora dos muros do castelo o apavorava. Entretanto, ela tinha razão. Se William conseguisse vencer os guardas e uma centena de aldeões, então não existia um único lugar seguro para mantê-la, nem mesmo no interior da fortaleza.

— Não gosto da idéia — concedeu, afinal. — Mas você pode ir.

Ficando na ponta dos pés, ela o beijou nos lábios.

— Obrigada, querido. Percebendo a preocupação extrema do marido, Bethia procurou tranqüiliza-lo. Não pense que não me preocupo com William. Não me esqueci de que quase fui morta duas vezes.

— E, ainda assim, quer se expor.

— Não estarei sozinha, ou desprotegida. É primavera! Em Dunnbea, antes de William assombrar nossas vidas, eu passava mais tempo nos campos nesta época do ano do que dentro de casa.

— Você quer vagar pelos campos? Falta-lhe alguma coisa aqui dentro?

— Não é isso e você sabe muito bem. Donncoill é um lugar maravilhoso e as pessoas que me cercam não poderiam ser mais gentis. No entanto, continua sendo uma prisão, se não posso nunca me aventurar além dos portões. Não posso viver com medo, é sufocante!

— Entendo. Vá, mas tenha muito cuidado.

Antes que o marido mudasse de idéia, Bethia tornou a beijá-lo e saiu correndo do quarto. Estava ansiosa para conhecer a aldeia, a qual Maldie e Gisele não cessavam de elogiar. Queria compreender a razão daquela prosperidade.

Eric se empenharia ao máximo para fazer com que Dubllinn renascesse, mas talvez precisasse de ajuda para entender como tornar o lugar atraente e útil para uma mulher.

— Então sir Murray lhe deu permissão para o passeio — disse Bowen, segurando as rédeas do cavalo e ajudando-a a montar.

— Sim. Por acaso você se ofereceu para ser um dos meus seis guardas?

— Sim. Sinceramente, não aprovo essa sua ida à aldeia, considerando os sinais de que William a ronda; apesar disso, compreendo sua necessidade de liberdade.

— Sinto-me confinada, enclausurada. É angustiante não poder ir onde quero.

— Não se aflija. O crápula não pode se esconder para sempre. Acabaremos prendendo-o.

— Entendo como você se sente querida — disse Maldie, cavalgando ao lado da cunhada. Também cresci com a liberdade de ir onde queria e, quando me tornei a esposa do lorde de Donncoill, estranhei estar sempre cercada por uma escolta. A verdade é que cresci sem amarras porque ninguém se importava comigo. Então, quando passei a viver entre pessoas que me amavam, percebi que se preocupavam comigo e por isso vigiavam meus passos, para que nada de mal me acontecesse.

Bethia limitou-se a assentir, sentindo-se sufocada pelo peso da revelação. Maldie, provavelmente, nem sequer se dera conta da importância de suas palavras. Pela primeira vez, enxergava a crua realidade. Desde que aprendera a andar, pudera vagar por onde bem entendesse, a qualquer hora do dia e da noite. Apenas Peter, Bowen, e depois Wallace, tentavam controlar suas andanças. E aquilo que acreditara ser liberdade não passara de total indiferença. Seus pais não se importavam com o que pudesse lhe acontecer, por isso não davam a mínima para seu paradeiro. Quanto a Sorcha, essa sim, fora vigiada, protegida a todo instante, como uma jóia preciosa.

As críticas constantes dos pais, sobre sua aparência e comportamento, eram um reflexo do desdenho de ambos. Esforçara-se a vida inteira para agradá-los. Pura perda de tempo. Nunca aqueles dois a tinham amado. Somente a linda e perfeita Sorcha possuíra um lugar em seus corações.

Quanto à Sorcha… Ah, como se iludira a respeito da irmã gêmea. Quisera pensar que ela a amava, mas agora, quando a venda de seus olhos fora tirada, reconhecia o óbvio. Sorcha jamais se importara com a irmã maltrapilha e de cabelos desgrenhados, enquanto ostentava suas belas roupas e uma dúzia de criadas a servia.

— Você está bem, querida? — Maldie perguntou-lhe, notando sua súbita palidez.

Como poderia estar bem, se acabara de descobrir que passara a vida inteira mentindo para si mesma? Como não desejar gritar e chorar por haver sido tão grande idiota? Os pais e a irmã não a insultaram e ignoraram por serem egoístas e descorteses, e sim porque não a suportavam por perto.

— Estou bem — mentiu, preferindo poupar a cunhada.

— Tem certeza de que não vai passar mal?

— Não. Apenas ocorreu-me um pensamento desagradável.

— Considerando sua palidez, deve ter sido um pensamento realmente muito desagradável. Quem sabe não deveríamos voltar para Donncoill? Poderíamos ir à aldeia amanhã.

— Não, estou bem. Foram apenas algumas lembranças do passado, que eu preferiria enterrar para sempre.

— Então não devo lhe perguntar nada agora?

— Não agora, quando consegui, finalmente, exorcizá-las. - Maldie ainda observava a cunhada atentamente quando entraram na aldeia, mas logo Bethia perambulava animadamente de loja em loja, encantada com a diversidade e a qualidade dos produtos oferecidos. Durante todo o tempo, os seis homens armados às seguiam como fiéis cães de guarda.

Enquanto Maldie conversava com a vendedora de cerveja, Bethia aproximou-se de Bowen, notando o quanto ele hesitava para escolher algumas fitas dentre a ampla variedade.

— Se você está pensando em levar um presente para sua esposa, acho que ela adoraria as fitas vermelhas.

— Tem certeza? Minha Moira usa sempre cores escuras, sóbrias.

— Porque em Dunnbea não havia escolha. Um tecido alegre, por exemplo, é muito mais bonito que um marrom. Com seus cabelos e olhos negros, Moira ficará bonita usando fitas vermelhas. Compre também linha vermelha, para que ela possa costurar peças novas.

— A jovem dama está certa — opinou a artesã. — Tenho carretéis de linha vermelha guardados lá dentro, se o senhor desejar.

— Então traga-os aqui, pois tenho que manter os olhos fixos em milady.

— Não se preocupe comigo — disse Bethia. Vou voltar para junto de Maldie, que continua discutindo o preço do barril de cerveja.

Enquanto abria caminho por entre a multidão, Bethia sentia o olhar de Bowen acompanhando-a. De repente, uma dor lancinante no braço. Ao colocar a mão sobre o local, sentiu uma umidade estranha. Horrorizada, viu o sangue começar a escorrer do corte. E, à sua frente, o rosto medonho de William Drummond.

Em questão de segundos, Bowen postava-se à sua frente, de espada em riste. Porém William já havia desaparecido no meio do tumulto que seguira ao ataque, caçado pela escolta e por inúmeros aldeões.

— Não creio que conseguirão apanhá-lo — Bethia murmurou, quando Bowen a carregou para um banco de madeira, defronte do chalé mais próximo. É só um arranhão — apressou-se a tranqüilizá-lo, percebendo a aflição do soldado.

— Sim — concordou Maldie, examinando o corte e limpando-o com um pano úmido que a prestativa vendedora de cerveja lhe oferecera. Será que o idiota pretendia matá-la com essa pequena espetada?

— Não. Acho que William queria que eu me virasse para que pudesse enterrar a adaga num órgão vital. Oh, céus, agora serei mesmo trancada na torre.

— Como assim?

— A última vez que aquele louco tentou me matar, Eric confessou desejar me manter trancafiada numa torre e cercada de homens armados.

— Quanta doçura.

— Doçura?

— Seu marido apenas anseia protegê-la. Mas duvido que a mantivesse confinada entre quatro paredes.

— Talvez não. Porém sei que ele só me deixará pôr os pés fora de Donncoill depois que William for morto.

— Eu deveria trancá-la na torre mais alta e cercá-la de homens armados! — gritou Eric, tirando Bethia da sela e apertando-a nos braços após o breve relato de Bowen sobre o incidente na aldeia. Virando-se para o rapaz, interrogou-o: — Você acha que vale a pena caçar o maldito agora?

— Provavelmente não. Mas creio que deveríamos tentar descobrir algum rastro, algum vestígio que nos auxilie na perseguição.

— Vá deitar-se e descansar, querida. — Eric fez sinal para que Grizel se aproximasse e instruiu-a para acompanhar a esposa até o quarto. É provável que não nos demoremos muito. Não tenho grandes esperanças de localizar o esconderijo do canalha.

Não havia nada que Bethia pudesse falar para lhe dar esperança, porque partilhava da mesma descrença. Mesmo com tantos homens o procurando, William sempre conseguia escapar. Às vezes se perguntava se não seria ele o verdadeiro feiticeiro.

Na manhã seguinte, Bethia constatou que estivera certa na sua suposição. Eric só a deixaria atravessar os portões de Donncoill após a morte de William. Paciente, escutou-o explicar por que seria transformada numa prisioneira. De fato, não era culpa do marido haverem chegado àquele extremo, contudo odiava a falta de liberdade.

Da janela do quarto, ela o observou treinar juntamente com os outros homens. Impossível negar a força física e o preparo de Eric para o combate. A idéia de vê-lo marchar para a batalha, e talvez para a morte, a agoniava.

— Eles não tardarão a partir — disse Grizel, que estivera trocando os lençóis da cama.

— Quando?

— Dentro de poucos dias. Apenas aguardam a chegada de alguns parentes de lady Maldie. Peter me contou que os Kirkcaldy estão ansiosos para enfrentar sir Graham. Foi à irmã mais velha de lorde Kirkcaldy quem acabou seduzida e abandonada por Beaton, pai de sir Eric.

— Sim. É uma triste história. Pelo menos Eric terá um exército de cavalheiros competentes o apoiando em sua investida contra sir Graham.

— Também estou aflita — Grizel murmurou, retorcendo as mãos. Passo o tempo todo tentando me lembrar de que essa é uma causa justa e procurando me convencer de que logo meu marido estará de volta, são e salvo.

— Continua sendo uma disputa por terras — sentenciou Bethia, incapaz de esconder a amargura.

— Não, não é apenas simples disputa de terras. Seu marido tem direito à herança que lhe pertence. Meu Peter luta por você e por sir Eric, mas também luta por nós dois. Peter marcha para a guerra porque, no fim do conflito, acredita que teremos uma vida melhor para oferecer aos nossos futuros filhos. Um chalé com mais de um quarto, talvez algumas moedas no bolso. Uma chance para ele, e para nosso filho, se formos abençoados com um, de se tornar mais que um soldado.

— Eu não imaginava que vocês levavam uma vida tão dura em Dunnbea.

— Dura e desesperançada, milady. Peter tem quase trinta anos e ainda não foi sagrado cavaleiro. Quando chegou a Dunnbea, na companhia de Bowen, eles arriscaram suas vidas na defesa do feudo e de sua gente em incontáveis batalhas. Sim, ambos são bastardos. Não são filhos de camponeses, mas de cavaleiros respeitados. Lorde Drummond jamais quis sagrá-los cavaleiros, mesmo reconhecendo o quanto são valorosos.

— Mas Eric não hesitará em fazê-lo.

— Sim, se os dois o servirem honradamente. — Grizel deu de ombros. - Tornar-se cavaleiro não fará de Peter, ou Bowen, homens ricos, mas os deixará orgulhosos de si mesmos. Oh, meu coração sangra só de pensar em meu homem indo para a batalha, porém não tentarei detê-lo. Não lhe negarei a chance de tentar obter o título pelo qual tanto anseia, minando-o com meus medos.

Quando Grizel saiu, Bethia deitou-se de bruços na cama e enterrou o rosto no travesseiro.

A batalha com sir Graham Beaton parecia mais complexa a cada momento. Eric lutava para recuperar o que por direito lhe pertencia. Os Murray lutariam para ajudá-lo e para livrar um povoado de um tirano. Os MacMillan lutariam por Eric, e também para fazer sir Graham pagar pelas mentiras que lhes haviam contado ao longo dos anos, mentiras que os levara a rejeitar o próprio sobrinho. Os Kirkcaldy lutariam porque um Beaton tinha desonrado uma mulher de seu clã e porque Eric era meio-irmão de outra. Os Drummond lutariam por ela, para que sir Eric se tornasse o senhor de Dubhlinn, e ela a castelã. Homens como Peter e Bowen lutariam para conquistar as honras que até então lhes foram negadas e para que suas famílias desfrutem de um futuro melhor.

Quanto mais pensava em Peter e Bowen, mais era obrigada a aceitar a dolorosa verdade sobre seus pais. Aqueles dois nunca haviam amado, ou se importado com ninguém, exceto Sorcha. Ela não passara de uma criança indesejada, da qual sempre quiseram se livrar. Isso explicava a raiva que Eric, Bowen, Wallace e Peter sentiam de lorde e lady Drummond. Como uma idiota, fora a última a enxergá-los como de fato eram.

Tão imersa estava Bethia em sua tristeza que custou a perceber a presença de alguém ao seu lado. Depressa, limpou as lágrimas com a manga do vestido.

— Seu braço está doendo? — perguntou Eric, beijando-a de leve na face.

— Não. Foi só um arranhão.

— Vim chamá-la para o almoço, querida.

— Deus! Perdi a hora! — Bethia levantou-se num pulo. Dê-me apenas um minuto para me arrumar.

Em silêncio, Eric observou-a lavar o rosto e pentear os cabelos. Queria perguntar-lhe por que estivera chorando, mas teve medo da resposta que poderia ouvir. Meia hora atrás, vira-a assistindo ao treinamento da janela e agora a surpreendia aos prantos. Com certeza isso estava relacionado ao confronto próximo.

Se Bethia ainda considerava sua causa uma mera disputa de terras, se ainda considerava sua decisão de lutar pelo que lhe pertencia errada, se acreditava que, sob seu comando, vidas estariam sendo desperdiçadas, preferia não escutá-la expor seus pensamentos. Em especial na véspera da batalha.

— Amanhã? — Chocada, Bethia sentou-se na cama e fitou o marido. Você parte para Dubhlinn amanhã?

— Sim. Ao amanhecer.

A revelação explicava muita coisa, ela concluiu ainda não refeita do assombro. Depois do almoço, o marido praticamente sumira. E quando, à hora do jantar, ele sugerira que fizessem a refeição no quarto, interpretara o gesto delicado como o desejo de ficarem sozinhos. Agora suspeitava de que ele quisera poupá-la das conversas que varriam o salão, ou impedi-la de descobrir que os Kirkcaldy haviam chegado. Sem dúvida também explicava o modo como Eric a tinha amado, com uma paixão e urgência que beiravam o desespero. Talvez ele imaginasse que a saciedade e a sonolência a impedissem de reagir com excessivo vigor à notícia.

— Querida, o que você está pensando? — Eric perguntou um pouco desconfortável diante daquele olhar.

— Estou pensando que você é um homem muito ardiloso. -Bethia precisou lançar mão de todo o autocontrole para não gritar, para não implorar, para não exigir que ele não partisse. Por mais que a horrorizasse, essa poderia ser sua última noite juntos e não queria arruiná-la com lágrimas, súplicas e recriminações.

— Querida, tenho que ir.

Ela o silenciou com um longo beijo.

— Não quero falar sobre isso.

— Você não pode simplesmente ignorar o assunto.

— Sim. Esta noite desejo apagar essa questão da minha mente.

— Não sei se será possível.

— Bem, você terá que me ajudar. Quero que você faça amor comigo até me deixar sem fôlego, até que eu caia num estupor sem precedentes. Até que, exausta e atordoada, eu possa me entregar a um sono profundo e sem sonhos.

Eric sorriu disposto a entrar no jogo. Com certeza preferia que se despedissem assim, sem lágrimas, ou discussões. As lembranças que o acompanhariam à batalha seriam mais doces.

— Quero ficar tão esgotada que me faltem forças para me levantar da cama amanhã cedo e vê-lo partir. E quando, enfim, acordar, quero sentir-me tão repleta, que dentro de mim só haja espaço para as lembranças de nossa paixão. Você pode fazer isso por mim?

— Oh, sim, creio que posso — ele murmurou, tomando-a nos braços e beijando-a avidamente.

— Onde está sua esposa?

Eric sorriu para Maldie e Balfour e então para Nigel, que acabara de se reunir ao grupo no pátio interno do castelo. Pela expressão de seus rostos, era evidente o que lhes passava pela cabeça. A ausência de Bethia significava desaprovação à batalha. Todos haviam discutido os sentimentos da jovem e simpatizado com suas angústias. Na opinião geral, ela devia ao menos se esforçar para parecer que o apoiava. Embora também sonhasse com o apoio incondicional da esposa, alegrava-o poder contar à família o motivo pelo qual ela continuava dormindo.

— Também não vejo Gisele por aqui — observou incapaz de resistir ao impulso de atiçá-los um pouquinho.

— Estando no final da gravidez, Gisele tem muito sono. — Nigel devolveu. - Eu levaria horas tentando acordá-la e atrasaria nossa partida.

— Pois minha pequena esposa também está dormindo. E nem um exército inteiro conseguiria acordá-la.

— Por acaso Bethia está grávida?

— Não, ela não me falou nada a respeito. Suponho que esteja dormindo devido à pura exaustão, após eu haver cumprido meus deveres de marido, conforme o requisitado.

Rindo, Balfour revirou os olhos.

— Então você se despediu da sua mulher da mesma maneira que muitos de nós. Não há razão para se vangloriar. - Fingindo-se decepcionado, o senhor de Donncoill virou-se para a esposa. - Você dá a impressão de estar bastante desperta, querida. Resistiu ao meu vigor?

— Suponho que Maldie não tenha lhe pedido para amá-la até o completo estupor. Notando o espanto dos irmãos, Eric prosseguiu: — Não, não estou brincando. Bethia literalmente me pediu para amá-la até deixá-la exausta, esgotada. E eu, como marido dedicado, obedeci. Claro que, antes de dormir, ela confessou estar tão extenuada que iria dormir até depois da batalha estar terminada e nós termos vencido.

— Rezemos para que você não esteja tão esgotado a ponto de não conseguir erguer a espada contra sir Graham — Nigel o provocou brincalhão, enquanto se dirigiam ao estábulo. — Talvez devêssemos sugerir uma trégua a Beaton, até você se recuperar.

Maldie beijou cada um dos irmãos, desejando-lhes boa sorte. Logo os Murray e seus aliados cruzavam os portões de Donncoill. As primeiras luzes da manhã derramavam-se sobre as montanhas imponentes e tudo ao redor recendia a paz. Era difícil imaginar que, dali a poucas horas, estariam no meio de uma batalha. À frente dos homens, Eric experimentava um misto de excitação e tristeza. A excitação devia-se à perspectiva de uma boa luta. E a tristeza à desaprovação de Bethia.

Durante a cavalgada, esforçou-se para superar a mágoa causada pela recusa da esposa em aceitar seus motivos para lutar por uma causa que julgava justa. Dubhlinn pertencia-lhe. Não se tratava de mera ganância. Cabia-lhe, como o legítimo herdeiro da fortaleza, reconduzi-la à prosperidade e devolver à aldeia a pujança que lhe fora roubada. O povo de Dubhlinn merecia ser feliz, após décadas sob o jugo de tiranos. Não era possível que Bethia não entendesse seus motivos!

Embora houvesse exposto suas razões várias vezes, ela não dava sinais de que o apoiava. E essa resistência o magoava.

— Para um homem que passou uma longa noite agradando obedientemente a esposa, até reduzi-la a um estado de completo estupor, você me parece bastante sombrio — disse Balfour, emparelhando o cavalo ao do irmão mais jovem.

— Talvez ele tenha chegado à conclusão de que não foram suas maravilhosas habilidades de amante que fizeram lady Bethia cair em sono profundo — sugeriu Nigel, mas o fato de a pobrezinha haver batido a cabeça na parede durante o exercício vigoroso.

Balfour e Nigel puseram-se a rir com prazer.

— Apenas estou um pouco triste comigo mesmo por não ter conseguido conquistar o respeito de Bethia.

— O que o leva a pensar que não lhe conquistou o respeito? — interrogou Balfour, já muito sério.

— Ela não me apoiou nesta empreitada.

— Sua esposa o condenou com palavras, ou atos?

— Não, porém…

— Jamais a vi se dirigindo a você como se não o respeitasse. Você percebeu algo que permitisse chegar a tal conclusão, Nigel?

— Não. Talvez você devesse ter conversado um pouco com sua mulher sobre esse assunto ontem à noite, Eric.

— Bem que tentei. Mas quando Bethia me pediu para amá-la até o esgotamento físico e mental, acabei me distraindo. - Eric sorriu ante as risadas dos irmãos. - O fato é que parte de mim queria saber a verdade sobre os sentimentos dela, e outra parte não queria escutar nada.

— Em minha opinião você se preocupa demais com isso — ponderou Balfour. - Bethia não desejar que essa batalha aconteça não significa que lhe falte com o respeito, ou que questione seus motivos. Maldie me contou que Bethia o considera o oposto de sir Graham e do maldito William. Aliás, de onde você tirou a idéia de que a esposa é obrigada a concordar com tudo o que o marido faz?

— Não é isso. As pessoas têm direito de ter opiniões diferentes. É que trabalhei metade da minha vida para recuperar Dubhlinn. Cada carta escrita, cada petição enviada, cada visita à corte do Rei, cada aliança conquistada, tudo foi feito pensando que o dia de hoje chegaria. Esforcei-me para resolver essa disputa de maneira pacífica, utilizei-me de todos os meios para evitar um confronto direto. Suponho que estou decepcionado porque queria que Bethia entendesse tudo isso e participasse como minha companheira, do desfecho de treze anos de trabalho.

— Talvez ela o faça, quando souber que a luta terminou e você, e todos os outros que lhe são caros, não foram mortos, ou feridos.

— Acalme-se — aconselhou-o Nigel. Concentre-se em derrotar sir Graham o mais rápido possível. Ponha de lado suas preocupações com os sentimentos de Bethia até o fim do conflito, pois ela permanecerá em Donncoill. Sua esposa pode não ter desejado que acontecesse uma batalha; porém, sem dúvida, estará aguardando-o de braços abertos. Já sir Graham o está esperando com espadas e saraivadas de flechas.

Com os olhos fixos nos arqueiros empoleirados nos parapeitos de Dubhlinn, Eric praguejou por entre os dentes. Durante toda a cavalgada até os portões da fortaleza, alimentara a secreta esperança de que sir Graham cederia pacificamente. Na última mensagem que enviara, três dias atrás, concedera ao inimigo a derradeira chance de entregar-lhe as terras, conforme a ordem do rei. Chegara mesmo a listar seus aliados! Porém, nem a evidência concreta de que vários clãs haviam se unido para enfrentá-lo fizera sir Graham agir racionalmente. Ele pretendia agarrar-se à propriedade que dilapidara até a morte.

— O crápula planeja resistir e lutar — disse Nigel, tentando avaliar a força adversária. — Não será fácil cruzar aquelas muralhas.

— Não. Mas é essencial que o façamos. Talvez, se nosso primeiro ataque for rápido e pesado, causando o máximo de estragos possíveis, alguns dos mercenários de sir Graham concluam que não vale a pena morrer por mísera recompensa financeira.

— Sim — admitiu Balfour. — E uma boa estratégia.Mas, se eu perceber que não está surtindo efeito e que nossos homens estão se expondo desnecessariamente, suspenderei o ataque.

— De acordo — Eric falou. Como o irmão, sempre rejeitara a tática de lançar soldados contra muralhas intransponíveis, transformando-os em alvos fáceis para os arqueiros, como se suas vidas não possuíssem nenhum valor.

O primeiro assalto contra as paredes de Dubhlinn revelou-se rápido e brutal, terminando sob uma chuva de flechas. Afortunadamente, poucos se feriram, ou foram mortos, pois eram bem treinados no uso dos escudos.

Eric sabia que sua recusa em desperdiçar vidas humanas parecia fraqueza aos olhos de sir Graham, mas não se arrependia de nortear suas decisões segundo seus princípios.

— Pelo visto teremos que optar por um cerco — comentou sir David, reunindo-se aos irmãos Murray. Se não podemos invadir a fortaleza, devemos aguardar que nossos adversários saiam.

— Graham Beaton está bem preparado para o ataque — Eric argumentou. Sem dúvida também deve ter se preparado para enfrentar um provável cerco.

— Com o quê? — David indagou perplexo, apontando os campos exauridos.

— A ruína de Dubhlinn é mais completa do que imaginei — resmungou Nigel. Você tem mesmo certeza de que quer esse lugar?

— Dubhlinn me pertence. — Eric tirou o elmo e passou a mão pelos cabelos ensopados de suor. — Ao rebelar-se contra a ordem do Rei, sir Graham comete o crime de traição. Portanto, é um homem morto.

— Então, talvez, você devesse alertar o rei sobre a transgressão e deixar que o exército real venha arrancar o traidor daqui.

— Ainda assim teríamos que sitiar a propriedade, para impedir que o traidor fuja antes da chegada do exército real. Já lutei no exército do rei e, creiam-me, não haverá preocupação em poupar os inocentes quando Dubhlinn for invadida. Todos serão considerados culpados, cúmplices de sir Graham, quer estejam lutando, quer estejam escondidos, acossados pelo medo.

— Nem todos estão acossados pelo medo — Bowen o informou, aproximando-se na companhia de uma mulher grisalha e roliça. Essa é a senhora Leona. Trabalhou como serva em Dubhlinn durante toda sua vida.

— Sim — assentiu a aldeã. Iniciei meu treinamento ainda menina, aos sete anos. Agora são quarenta anos dentro dessas paredes amaldiçoadas.

— Então você já estava trabalhando no castelo na época de minha mãe? — perguntou Eric.

— Se você for sir Eric, a resposta é sim. Desculpando-se por haver negligenciado as boas maneiras, ele apresentou os outros antes de retomar a conversa.

— Você presenciou todos os acontecimentos das últimas décadas?

— Sim. Não passava de uma criança quando seu pai matou seu avô. Também estava aqui quando vocês, Murray, mataram aquele canalha.

Embora houvesse sido reconhecido pelo Rei como herdeiro de Dubhlinn, Eric sabia que muitos poderiam questionar sua legitimidade. Animava-o poder contar com uma testemunha ocular dos fatos ocorridos por trás das muralhas da fortaleza. Ninguém duvidaria da palavra de Leona.

— Você considera sir William Beaton meu pai. Apenas por que o Rei me concedeu os direitos sobre essas terras?

— Não, rapaz. Meus olhos me contaram a verdade anos atrás. Fui criada de quarto de sua pobre mãe e sabia do caso dela com o velho lorde Murray. Também soube quando a aventura terminou. Não havia a menor possibilidade de que você fosse filho de lorde Murray. No dia do seu nascimento, consegui dar uma espiada em você e notei o sinal nas suas costas. A marca dos Beaton. Aquela foi à última vez que vi sua mãe viva. E só tornei a vê-lo treze anos depois, quando o seqüestraram. A camponesa fez uma pausa e secou as lágrimas. Sinto muito não ter podido salvá-lo, rapaz. Juro que tentei. Quando descobri o que estava acontecendo, procurei localizá-lo nas masmorras para libertá-lo, porém os Murray tinham chegado à minha frente. Admito que não fiz nada para corrigir o engano de seu pai a seu respeito. Deixei-o continuar imaginando-o um bastardo. Supus que você estaria mais seguro com os Murray, especialmente depois que sir William matou a esposa e a parteira. Então, quando a notícia de que você estava lutando para ser reconhecido como legítimo herdeiro de Dubhlinn se espalhou, pensei em ajudá-lo. Planejei ir à presença do Rei e dar o testemunho da verdade. Mas não pude. Sir Graham sempre soube ser um usurpador e não permitia que ninguém saísse de Dubhlinn. Qualquer um que escapasse era considerado traidor e sua família sofria as conseqüências. Testemunhei sir Graham mandar matar um homem e os dois filhos pequenos na presença da esposa porque esta havia se ausentado durante dois dias para visitar uma parenta. A mulher, no auge do desespero, cortou os próprios pulsos e deitou-se ao lado dos entes amados, para morrer também. Não tive coragem de arriscar a vida de minhas filhas e dos meus netos. Simplesmente não tive coragem. Temi que as trevas nunca mais se dissipassem do céu de Dubhlinn. Mas a notícia de que o rei decidira a seu favor, enfim, chegou aos nossos ouvidos. Alegramo-nos porque teríamos um novo lorde. Assim, esperei o momento certo. Agora, posso ajudá-lo.

A história chocara e comovera Eric de tal forma que sua voz soou baixa e rouca.

— Ajudar-me como, senhora?

— Vou levá-lo para dentro daquelas muralhas da mesma maneira que consegui sair.

— Tem certeza de que devemos confiar nela? — Nigel indagou num murmúrio, enquanto seguiam a mulher pelo bosque.

Apesar de partilhar da apreensão do irmão, Eric não pretendia recusar o auxílio. Durante horas, até o anoitecer, eles haviam traçado os planos para a invasão. Balfour, Wallace e Peter ficariam para trás, para dirigir o ataque frontal à fortaleza. Eric, Nigel e David, mais duas dúzias de homens, acompanhariam a senhora Leona. De fato, corria o risco de acabar massacrados, mas Eric escolheu guiar-se pelo instinto. E o instinto lhe dizia para confiar naquela mulher.

De súbito, a aldeã fez sinal para que parassem. Sob um tronco caído, coberto por uma vegetação espessa, havia um alçapão. Iluminando a passagem escura com uma lamparina, Leona desceu os degraus estreitos. Por um breve instante, Eric hesitou antes de se aventurar pelo túnel. Sem dúvida tratava-se de um caminho secreto, uma rota de fuga a ser utilizada em casos extremos. Sir Graham não confiava em ninguém; portanto, jamais iria revelar esse segredo a uma simples criada, a uma simples mulher.

— Onde isto vai dar?

— Nos aposentos de lorde Beaton.

Uma vez no interior dos aposentos vazios, Eric sentiu-se, mais do que nunca, convicto do sucesso. Sua primeira providência foi enviar o mais jovem dos homens de volta, com uma mensagem para Balfour. Leona deveria ser levada para Donncoill, onde permaneceria até o fim do conflito.

— Senhora, e quanto à sua família? — ele indagou, antes que a camponesa tornasse a se embrenhar no túnel. - Se descrever suas filhas e netos, talvez possamos protegê-los durante o combate.

— Já cuidei disso. No momento em que decidi ajudá-lo, tirei minhas filhas e netos de Dubhlinn por esta mesma passagem. Eles estão agora no alto da colina, escondidos no casebre úmido e sombrio de minha prima Margaret. Se nós vencermos, todos voltarão para cá. Se não, partirão, com ou sem mim.

— Uma mulher que sabe como sobreviver — observou Nigel, vendo-a ser engolida pela escuridão da passagem. Pergunto-me por que ela só resolveu fugir agora.

— Talvez porque desejasse ficar e me ajudar. Talvez porque achasse que não conseguiria ir muito longe antes que sua ausência, ou a de sua família, fosse notada. A batalha e a confusão que se seguirão à invasão, lhe dará o tempo necessário para refugiar bem longe daqui. Agora vamos abrir os portões para nossa gente.

Ao saírem dos aposentos de sir Graham e caminharem pelo castelo, o grupo de guerreiros cruzou com alguns servos, porém ninguém gritou, ou fez soar o alarme. Sir Graham, obviamente, jamais despertara amor, ou lealdade, entre seu povo. Pois logo pagaria caro pela prepotência e crueldade.

Com a atenção fixa na movimentação do lado de fora das muralhas, os mercenários de sir Graham caíram sem oferecer grande resistência, porque jamais haviam cogitado na possibilidade de um ataque ser deflagrado pela retaguarda. Uns poucos, nascidos e criados em Dubhlinn, não vacilaram em se render. Um jovem chamado Pendair, até ofereceu-se para ajudá-los a abrir os portões.

Mal os portões foram abertos, Balfour liderou o resto dos guerreiros numa investida tão rápida quanto letal. Reparando que sir Graham abandonara a luta e tentava correr para o interior do castelo, Eric se esforçou para alcançá-lo. O covarde procurava, desesperadamente, voltar para seus aposentos, e para o túnel secreto.

De súbito, o ar lhe fugiu dos pulmões. Uma figura suja subia os degraus que conduziam ao salão principal, com a evidente intenção de fugir do combate. Quando, enfim, Eric se deu conta de que aquele era William Drummond, saiu de seu estupor e pôs-se a persegui-lo, enquanto Peter e Bowen o seguiam de perto.

Um grito de frustração escapou-lhe dos lábios quando William sumiu de vista, absorvido pela pesada penumbra. Sir Graham, um espadachim hábil, interpôs-se entre ele e o sujeito que ansiava matar.

— Drummond, seu canalha covarde! — gritou Beaton, a espada em riste. — Volte aqui e lute!

— Não, você está por conta própria — William devolveu, lançando-se escadaria acima. - Você me garantiu que podia derrotar esse tolo. Era isso o que eu queria. Que você acabasse com aqueles que estão entre mim e a pequena feiticeira. Você não cumpriu o prometido. Perdeu a batalha. Pretendo fugir antes de acabar morrendo a seu lado.

Peter partiu atrás de William, enquanto Bowen permanecia vigiando a retaguarda de Eric.

Esforçando-se para ignorar a decepção e a fúria, Eric obrigou-se a focalizar a atenção em sir Graham.

Bem no fundo, sabia que perdera William novamente, sabia que Peter não conseguira pegá-lo. Restava-lhe cuidar de sir Graham agora.

— Você foi um idiota por se associar àquele louco — falou atento aos movimentos do adversário.

— Ele me assegurou que poderia fazer os Drummond se aliarem a mim, ou, no mínimo, não lutarem contra mim.

— William não exerce nenhuma influência sobre os Drummond. Suas mãos estão manchadas com o sangue de três membros daquele clã.

— Mas, ele se revelou bastante competente para atormentá-lo e, por pouco, não conseguiu matar sua esposa. O que, aliás, me teria proporcionado enorme prazer. Creio que, apesar de tudo, valeu a pena correr o risco de me associar a um maluco.

— Você deveria ter abandonado Dubhlinn enquanto teve chance.

Eric avançou, reparando na cautela com que sir Graham se movimentava, mantendo a espada muito junto do corpo.

— Dubhlinn me pertence. Sou o dono dessa fortaleza há treze anos.

— Você não é dono de nada. Apenas se apossou do que jamais lhe pertenceu.

— Essa terra é minha!

— Já que a ama tanto, vou enterrá-lo nela.

O duelo foi breve e intenso. Sir Graham era habilidoso, porém os anos entregues à bebida e à devassidão haviam lhe roubado a agilidade e a rapidez de reflexos. Quando Eric, finalmente, atravessou-lhe o coração, não experimentou nenhuma sensação de vitória. Gostaria de haver conquistado Dubhlinn sem derramar o sangue de um parente, não importando que fosse um sangue podre.

— Peter? — Eric chamou, nem um pouco surpreso ao ser informado de que William escapara. Espalhe a notícia de que sir Graham está morto e que um novo lorde assumiu o controle de Dubhlinn. Creio que a luta cessará imediatamente.

Tão logo Peter e Bowen se afastaram para cumprir a ordem, Eric avistou Nigel e Balfour caminhando na sua direção.

— Nenhum sinal de William? — indagou Nigel.

— Nenhum sinal de William ou de qualquer outra coisa.

— Pelo pouco que pude ver, este lugar está em ruínas. Você terá muito trabalho pela frente, irmão.

— Quando deparei com William, pensei que poderia resolver todos os meus problemas numa única batalha. Agora recuperei minhas terras, mas ainda terei que lutar para devolver-lhes a prosperidade. E William continuará perseguindo Bethia.

Balfour passou um braço ao redor dos ombros do irmão caçula.

— Uma batalha de cada vez, rapaz. Você venceu essa luta. Logo vencerá a outra. William pode desaparecer como um fantasma, porém não passa de um mortal comum. Portanto, pode sangrar e morrer.

— E pode ir para inferno, que é para onde planejo mandá-lo o mais depressa possível.

 

— Pare de andar de um lado para o outro, ou vou amarrá-la na cadeira — Maldie a ameaçou exasperada.

Suspirando, Bethia sentou-se. Ela, Maldie, Gisele e muitas outras mulheres estavam reunidas no salão principal, à espera dos homens. Haviam feito o mesmo no dia anterior, na vigília que se estendeu até altas horas da noite. E embora tivesse ido se deitar no início da madrugada, não fora capaz de dormir. Apenas cochilara. Agora, quando tentava tomar o desjejum, a falta de notícias dos guerreiros roubava-lhe o apetite e o sossego. Impressionava-a como as outras pareciam manter a calma. Receava que, se não ouvisse notícias de Eric em breve, começaria a arrancar os cabelos de puro desespero.

— Tem certeza de que não é mal sinal eles não haverem retornado ontem? — indagou a Maldie.

— Sim, querida, é um bom sinal.

— Quando percebi que meu desejo não seria realizado, que sir Graham não entregaria Dubhlinn pacificamente, pedi a Deus para que a batalha fosse curta.

— Existe essa possibilidade. Balfour e os irmãos são sempre muito cuidadosos com as vidas de seus comandados. Tal cautela pode prolongar uma batalha. Ou talvez eles tenham se decidido por um cerco.

— Oh, céus — Bethia gemeu baixinho. - Isto poderia durar meses. Estarei pele e ossos, então.

— Sim, poderia durar meses — concordou Maldie, num tom gentil e compreensivo. - Mas é melhor do que desperdiçar a vida de soldados lançando-os contra muralhas intransponíveis. E, pelo que Eric me contou sobre a situação de Dubhlinn, não creio que seria um cerco demorado.

— Sir Graham recusou-se a entregar Dubhlinn, apesar das ordens do próprio Rei. Não creio que alguém capaz de cuspir no rosto do rei, alguém que se arrisca a ser acusado de traição, curve-se a um cerco. Aldeões morrendo de fome não o deterão.

— Non — murmurou Gisele. Nenhum tirano se importa com o destino de seu povo.

— Porém sir Graham não suportará padecer de fome e de sede por muito tempo — argumentou Bethia. Dubhlinn é um lugar triste e pobre. Não vi um único animal nas ruas.

— O que significa que foram vendidos, ou comidos — concluiu Maldie. Eric me falou que os campos estão secos, estéreis. Não há sinal de plantio ou colheita recentes.

Bethia sorriu de repente, lançando um olhar quase acusador pára a cunhada.

— Não há necessidade de tentar me convencer de que Dubhlinn estará muito melhor livre do jugo de sir Graham. Reconheço o óbvio. Sei que Eric só fará bem àquela gente tão sofrida.

— A vida é estranha. Dubhlinn foi levada até quase a completa ruína, o clã está reduzido a um punhado de pessoas empobrecidas e aterrorizadas, cuja única chance de sobrevivência jaz nas mãos de Eric, o suposto bastardo. Os Beaton serão salvos por um homem que se recusa a usar este nome, pelo legítimo herdeiro de Dubhlinn, que foi literalmente jogado fora ao nascer. Na verdade, Eric deveria desejar arrasar aquele lugar.

— E cuspir nas cinzas — completou Gisele, levantando-se da cadeira com dificuldade. — Vou me deitar.

— Você está bem? — indagou Maldie.

— Oui. Somente não tenho dormido muito. Sei que passo a impressão contrária, mas não encontro uma posição confortável com essa barriga imensa. Então deito-me e rezo para o sono vir. Acordem-me quando Nigel chegar.

— Não. Mandarei seu marido ir acordá-la. Assim ele mesmo correrá, ou não, o risco de incomodá-la.

— Ela está bem, não está? — Bethia perguntou apreensiva, tão logo Gisele se retirou do salão.

— Sim. E seu último mês de gravidez e Gisele sente-se muito pesada, pois costuma dar à luz crianças grandes. A pobrezinha acha desconfortável sentar-se, andar, e até deitar-se. O sono entrecortado, devido à dificuldade de achar uma posição ideal, a deixa cansada. A hora do parto será um alívio.

Delicadamente, Bethia pousou a mão sobre o ventre arredondando. Notando que Maldie a observava, sorriu.

— Será que dentro de alguns meses ficarei me sentindo tão desconfortável também?

— Cada uma de nós passa por gestações diferentes, com mais ou menos enjôos, mais ou menos desconforto. Porém sempre achamos alguém com mazelas comparáveis às nossas. A propósito, querida, quando você vai contar ao seu marido?

— Ah, boa pergunta. Sei que você me avisou, mas não consegui encontrar o momento certo. Quando ele voltar — Bethia inspirou fundo, tentando controlar o medo súbito. E se Eric não retornasse? — vou lhe contar a verdade. Se esperar mais um pouco, ele acabará descobrindo sozinho, porque as mudanças do meu corpo já estão ficando evidentes.

— Vocês dois realmente irão precisar de algum tempo a sós para conversar. Sempre estiveram rodeados de parentes, ou lutando contra alguém, ou fugindo de alguém.

— Sim. Essa batalha resolverá o problema com sir Graham. Restará William. Um arrepio de pavor a percorreu de alto a baixo. A simples menção daquele nome a apavorava. É terrível admitir, mas desejo, com todas as forças, a morte de William.

— É a única maneira de livrar-se dele. Não se culpe por querer vê-lo morto. O canalha escolheu o próprio destino, ao assassinar inocentes para roubar o que não lhe pertencia.

Antes que Bethia pudesse dizer algo, um barulho crescente se espalhou pelo ar. Segundos depois, vozes excitadas reverberavam pelo pátio interno. Maldie e ela saíram às pressas do salão, seguidas das outras mulheres. Os homens haviam voltado! Com o coração a ponto de explodir, Bethia correu, desesperada para encontrar o marido. Pedia a Deus que Eric não houvesse sido seriamente ferido. Não se importaria se seu corpo perfeito passasse a ostentar uma ou duas cicatrizes. Não se importaria com nada, desde que estivesse vivo.

Nas cercanias do estábulo, Bethia foi obrigada a reduzir o passo. O caos reinava. Homens, cavalos, crianças e mulheres aflitas disputavam cada centímetro de chão. Então, Bethia viu Eric desmontar alguns metros adiante e pôs-se a correr outra vez. Agora que o sabia vivo, queria tocá-lo, certificar-se de que não sonhava.

Eric virou-se no instante exato em que a esposa o alcançava. Abrindo os braços, acolheu-a.

— Querida, você está bem? — ele indagou assustado com a intensidade dos tremores que a sacudiam. Tremores de alívio e emoção. Está tudo acabado, querida.

— Você está ferido? Afastando-se, ela o examinou com um olhar aflito, em busca de possíveis manchas de sangue. As roupas, imaculadamente limpas, a espantaram. — Você não dá a impressão de que esteve numa batalha!

— Estou ótimo, assim como os outros sobre os quais você está à beira de perguntar. Tomamos a fortaleza depois de escurecer. Fomos guiados para o interior do castelo por uma aldeã. Como só podíamos regressar a Donncoill hoje cedo, tive tempo de tomar banho e trocar de roupa. Fui obrigado a matar sir Graham.

Abraçando-o apertado, Bethia murmurou:

— Sim, imagino que ele não tenha lhe dado outra escolha.

Enlaçando-a pela cintura, Eric rumou para o castelo. Desde o primeiro instante, não percebera na expressão da esposa nada além do mais completo alívio por vê-lo são e salvo. E quando confessara haver matado sir Graham, Bethia não se abalara, considerando o incidente apenas uma necessidade desagradável. Ou ela mudara a maneira de pensar a respeito de alguns assuntos, ou simplesmente não conseguia entendê-la.

Durante o curto trajeto, Bethia parou várias vezes para fitá-lo, para acariciá-lo de leve no rosto, no braço, no peito, como se para ter certeza de que ele era de carne e osso. Será que estivera tão preocupado com os sentimentos da mulher sobre o confronto com sir Graham que deixara de enxergar o óbvio? Bethia lhe dedicava uma afeição sincera. E, sem dúvida, enfrentara horas horríveis, temendo por sua segurança.

Ao entrar no castelo, Eric estava quase convencido de que Bethia o amava. Seria maravilhoso se sua esposa o amasse. Já não teria mais que se angustiar com a possibilidade de que a paixão mútua viesse a desvanecer. Ela permaneceria ao seu lado para sempre, porque estaria presa pelo laço do amor. Então ocorreu-lhe indagar-se por que fazia tanta questão de que Bethia o amasse, por que a idéia o emocionava tanto. Tinha que compreender a natureza de seus próprios sentimentos.

— Pensei em tomar um pouco de cerveja para tirar a secura da garganta — ele falou, ao cruzarem o salão principal.

— Temos um vinho delicioso em nossos aposentos. - Como podia arder de desejo por um homem que ainda nem sequer a beijara? Pois bastava tê-lo por perto para seu sangue ferver nas veias.

— Ótimo. Talvez nos lembremos de beber. Segurando-a pela mão, Eric praticamente a arrastou escada acima.

No instante em que a porta foi fechada, estavam nos braços um do outro.

— A cama…

— Precisamos de uma? Movida por um desejo avassalador, Bethia o beijou nos lábios, enquanto tentava livrá-lo da túnica e da calça.

A nudez máscula do marido tirava-lhe o fôlego. Embora um pouco assombrada com o próprio atrevimento, decidiu ignorar o recato. Ajoelhando-se, tomou o membro rígido na boca, ficando cada vez mais excitada com os murmúrios de prazer de Eric.

Momentos depois, ele inverteu o jogo. Após despi-la, pressionou-a de costas contra a parede e ajoelhando-se à sua frente, sugou-lhe o néctar da feminilidade. Enlouquecida de prazer, Bethia chegou ao orgasmo. E ainda estremecia violentamente quando o marido a segurou no colo e a fê-la passar as pernas ao redor de sua cintura, penetrando-a. As investidas urgentes, febris, beiravam o desatino, mas Bethia exultava. Gritando o nome do marido, atingiu o clímax outra vez.

Vários minutos foram precisos para que ambos recuperassem algo que se assemelhasse à calma. Sorrindo gentilmente, Eric a carregou para a cama.

— Você está satisfeita porque não sofri nenhum dano, esposa? — ele perguntou, quando teve forças suficientes para falar.

Lânguida, Bethia o acariciou nos cabelos longos e espessos.

— Você se saiu bem, meu marido.

— Ah, você sendo tão pequenina e leve, tão fácil de ajustar na posição ideal. - Quando a mulher fingiu que ia socá-lo, Eric riu. - Minha querida, essas suas palavras foram até divertidas, mas não deixam de expressar parte da verdade.

— Por acaso, você está dizendo que gosta de mim como sou assim tão pequenina?

— Sim. Sua figura me agrada demais.

— Ótimo. Porque acho que não vou crescer mais. - Um beijo terno pontuou o comentário. — Então Dubhlinn agora nos pertence?

— Sim. Designei Bowen, Peter e mais alguns homens para lá permanecerem até nossa chegada definitiva.

— Você crê que haverá algum problema?

— Não. As poucas pessoas que ousaram sair de seus esconderijos mostraram-se felizes com a minha vitória, embora um pouco cautelosos. Após tantos anos sob o jugo de uma sucessão de Beaton cruéis, gananciosos e indiferentes às necessidades de seu povo, sei que levarei algum tempo para lhes conquistar a confiança.

Suspirando, Bethia deitou a cabeça no peito do marido.

— Mas eles aceitam o fato de que você tem o direito de reivindicar Dubhlinn e de ocupar a posição de chefe do clã e senhor da fortaleza?

— Sim. Todos conhecem minha história e sabem que o Rei me nomeou legítimo herdeiro, concedendo-me o direito às terras. - Inclinando-se, Eric beijou-a na ponta do nariz. - Uma camponesa chamada Leona, que serviu minha mãe como criada de quarto, está espalhando aos quatro ventos, dizendo para quem quiser ouvir que não sou nenhum bastardo. Parece que essa senhora viu o sinal de nascença que trago no ombro, à mesma marca que meu pai ostentava.

— Ela nunca falou nada? Nunca se manifestou a respeito? Se, desde o início, houvesse testemunhado a seu favor, você poderia ter sido poupado de tudo isso.

— Sim. E poderia ter sido criado por meu verdadeiro pai. — Eric acariciou os cabelos da esposa ao escutá-la gemer baixinho.- Leona tentou me encontrar quando descobriu que eu havia sido abandonado aos pés de uma colina para morrer. Mas, informada de que os Murray tinham me acolhido, preferiu guardar silêncio, porque supôs que eu estaria mais seguro em Donncoill. Apesar de não ter dito diretamente, também concluiu que seria melhor eu crescer longe de Dubhlinn, para não correr o risco de acabar contaminado pela podridão do lugar. Leona chegou a pensar em ir à presença do rei advogar minha causa. - Depois de explicar como sir Graham lidava com aqueles que julgava traidores, ele beijou Bethia, para apagar o horror estampado no rosto delicado.

— A aldeã estava certa. Foi melhor você ter crescido aqui. Talvez ela alimentasse esperanças de que você viesse a se tornar exatamente quem se tornou o lorde de cuja liderança Dubhlinn necessita tão desesperadamente.

As palavras da esposa o comoveram tanto que Eric beijou-a, num misto de paixão e ternura. Então, preparou-se para lhe dar a má notícia.

— William estava lá.

Por um instante, Bethia se agarrou ao marido, com o desespero de um náufrago numa tábua de salvação. Aos poucos, superou o medo, odiando William por ser capaz de incutir-lhe tamanho pavor.

— Ele conseguiu escapar de novo, não? — perguntou, embora já adivinhasse a resposta.

— Receio que sim. Vi-o preparando-se para fugir da fortaleza, sabia que o maldito ia escapar pelo mesmo túnel que usamos para entrar em Dubhlinn. Porém sir Graham estava entre mim e William. Enquanto eu era obrigado a enfrentar um inimigo, o outro desaparecia.

— Então era lá que o infame esteve escondido durante todo esse tempo. Mas por que sir Graham se associaria a William?

— Porque ele o convenceu de que poderia impedir os Drummond de se aliarem a mim na batalha. Sir Graham também disse que o fato daquele crápula nos atormentar já lhe dava satisfação suficiente.

— Nós dois temos inimigos muito estranhos. Pelo menos agora só restou o meu.

— William é meu inimigo também, querida, pois tenta feri-la. Por isto, morrerá. E mesmo desejando matá-lo com minhas próprias mãos, aceitarei que morra de qualquer jeito. Pelas mãos de terceiros, ou num acidente. Já não importa a forma, só quero tirá-lo da sua vida.

Embora fossem palavras sombrias, sobre vingança e morte, Bethia enxergou por trás delas um sentimento poderoso. Existia uma chance de que Eric realmente estivesse começando a lhe querer bem. Ajudaria bastante se pudessem se concentrar um no outro e não fossem obrigados a passar cada minuto olhando por sobre o ombro, temendo o ataque súbito de um assassino.

— Então partiremos para Dubhlinn?

— Você muda de assunto sem nenhuma sutileza — Eric brincou.

—Não há mais nada a discutir sobre William Drummond. Bethia sorriu melancólica. — Ele me quer morta, talvez ainda queira James morto. E suspeito que gostaria de vê-lo morto também. Nós o caçamos enquanto somos perseguidos. Um dia, conseguiremos matá-lo. Portanto, não há mais o que dizer sobre o assunto. Na verdade, preferiria nem pensar nisso.

— Então, a resposta é “sim”. Partiremos para Dubhlinn. Teremos muito trabalho pela frente quando lá chegarmos, querida.

— Não duvido. Lembro-me bem do estado deplorável daquelas terras quando cavalgamos pela região.

— O interior do castelo reflete essa mesma negligência e abandono.

— É uma situação triste. Se sir Graham não houvesse sido tão ganancioso, tão ambicioso, poderia ter desfrutado de todas as comodidades. Uma bela moradia, colheitas fartas e dinheiro no bolso. Em vez disso, ele preferiu encher os bolsos rapidamente sugando tudo o que aquelas terras e aquela gente podia produzir.

— Levarei alguns dias para preparar nossa bagagem. Pretendo enviar para Dubhlinn tudo aquilo que for capaz de tornar nossas vidas um pouco mais fáceis no início.

— Não se preocupe. Não preciso de muito.

— Mas seu homem sim.

— Oh? — Bethia riu, enfim relaxada. — Do quê?

— No momento, preciso de comida.

— De fato, também estou faminta. — Imitando o marido, ela levantou-se e começou a se vestir. — James partirá conosco?

— Sim. Ele ficará tão seguro em Dubhlinn quanto aqui, principalmente porque Bowen e Peter já terão fechado o túnel. Assim que tivermos certeza de que William está morto, poderemos tornar a abri-lo, se quisermos. Por enquanto, é melhor cortar qualquer acesso ao interior da fortaleza.

— Bowen e Peter foram valorosos durante a batalha, não?

— Os dois não tardarão a ser sagrados cavaleiros — Eric a tranqüilizou.

Feliz, Bethia atirou-se no pescoço do marido e beijou-a até deixá-lo sem fôlego.

— Talvez eu devesse ter adiado a decisão sobre Peter e Bowen, para cobrar-lhe outras coisinhas além de um beijo.

— Tarde demais, querido. De braços dados, os dois se dirigiram ao salão principal, fazendo planos para o futuro próximo. Acho que vou arrumar a bagagem logo depois de terminada a refeição.

— Sim. Pense em tudo o que gostaria de levar para sentir-se confortável em Dubhlinn.

— Será que não deveríamos esperar até chegarmos lá e decidir o que está faltando?

— Acredite em mim quando digo que tudo está faltando.

— Oh, então as ervas que Maldie e eu pretendemos colher amanhã serão ainda mais necessárias.

— Até parece que estamos partindo para um ataque — comentou Maldie, lançando um olhar aborrecido para a meia dúzia de homens armados que as escoltavam.

Resignada, Bethia balançou a cabeça.

— Eric é muito protetor.

— Como deve ser. Estou reclamando à toa. Na verdade, duvido que esses homens estejam muito animados com a perspectiva de nos observar colher plantas medicinais. No entanto, William continua foragido, com sede do seu sangue.

— Será que você poderia usar um linguajar menos explícito quando falar das intenções do maldito? — Bethia perguntou um tanto azeda, fazendo Grizel rir.

— Oh, desculpe-me, querida. Balfour está sempre me aconselhando a medir as palavras. Receio ser impulsiva, às vezes. Inspirando o ar perfumado, Maldie sorriu. A chegada da primavera costuma influenciar meu humor. Fico um pouco aérea, inclinada a dizer tolices e a rir sem motivo.

— Entendo-a. Pelo visto, Gisele tampouco é imune a essa estação do ano, ou não teria pensado em nos acompanhar. Imagine! Nenhum cavalo conseguiria carregá-la!

— Pobre Gisele! — concordou Maldie, rindo descontroladamente. — Ela está com uma barriga enorme! Então, abaixando a voz para que os soldados não a escutassem: — Você terá que contar a Eric em breve. Surpreende-me ele ainda não haver notado as mudanças em seu corpo. Ou não achado estranho à ausência de suas regras.

— Decidi contar-lhe quando chegarmos a Dubhlinn, nosso novo lar.

— Sim, será o cenário ideal.

— Partiremos em breve. Levei uma semana para conseguir convencer meu marido a me deixar vir colher às plantas, essenciais para o exercício da função de herborista. Aliás, Eric já mandou tanta coisa para Dubhlinn, que Donncoill corre o risco de ficar sem nada.

— Aquele lugar triste precisa de uma grande variedade de suprimentos, além de dinheiro e trabalho duro.

— Apavora-me pensar no que encontrarei no interior da fortaleza. O exterior já era tão estéril e melancólico.

— De fato. Sucessivas gerações de Beaton exauriram as terras e exploraram o povo, impondo-lhe toda sorte de privações. Maldie apontou para o bosque, alguns metros adiante. Logo atrás daquelas árvores acharemos as plantas que buscamos. Ainda é um pouco cedo, o inverno mal acabou, porém aposto que conseguiremos ervas suficientes para preparar uma infinidade de ungüentos e poções.

Ao penetrarem na mata, Bethia sentiu um arrepio súbito percorrê-la de alto a baixo. Não, não havia razão para se preocupar. Além das duas mulheres, homens armados faziam-lhe companhia. William não poderia se aproximar sem despertar a atenção de todos e ela não pretendia se expor, correndo riscos impensados. Trazia uma criança no ventre e protegeria essa nova vida com ferocidade.

Depois de desmontarem e esperarem, pacientes, os soldados vasculharem os arredores, Bethia e as outras mulheres puseram-se a colher as plantas necessárias. Nas últimas semanas, Maldie a tinha ensinado, e a Grizel, a distinguir as ervas com propriedades medicinais daquelas meramente comestíveis, ou ornamentais. Assim, cada uma delas se concentrou numa determinada área, para agilizar o trabalho.

Certa de que mantinha-se a uma distância segura do grupo e decidida a não permitir que o medo guiasse seus passos, Bethia caminhou na direção de um arbusto, com a intenção de inspecioná-lo. De repente, para seu horror, uma mão imunda saiu do meio das folhagens.

— William — ela murmurou retrocedendo, impedida de gritar pelo choque e pavor. — Não estou sozinha.

— Sim, eu sei. Duas vagabundas e meia dúzia de covardes a acompanham.

— Fuja. Você ainda pode se salvar.

— Fugir para onde? Estou condenado. Seu marido me transformou num foragido. Nenhum lugar é seguro para mim. Até sir Graham, aquele idiota, me falhou. Eu poderia viver escondido em Dubhlinn por anos a fio. Mas, quando estava começando a me instalar confortavelmente, o palerma deu um jeito de acabar morto.

— Porque, como você, Beaton tentou se apossar do que não lhe pertencia. À medida que se acalmava a voz de Bethia retornava ao normal. Mesmo se ninguém a visse conversando com um estranho, ou agindo de maneira esquisita, logo seria capaz de gritar alto e bom som.

— Dunncraig deveria pertencer a mim! Percebendo que William gritara, ela se deu conta de que a situação fugira ao controle. No instante em que os soldados de Donncoill correram para acudi-la, Bethia viu a faca nas mãos do canalha e soube que ninguém chegaria a tempo. Gritando desesperada, protegeu o ventre com as mãos enquanto o bandido atirava a adaga. A lâmina alojou-se em seu ombro direito. Vergada pela dor excruciante, caiu de joelhos. William ensaiou desembainhar a espada para atacá-la, mas um soldado se interpôs entre eles e, com um golpe certeiro e brutal, decepou-lhe a cabeça, lançando-a no ar.

— Não olhe — disse Maldie, amparando a cunhada.

— Oh, céus! Ele está morto… — Fechando os olhos,

Bethia apoiou-se em Maldie e Grizel, inundada por uma moleza súbita.

— Robbie, ponha a cabeça do crápula num saco e leve-a para Donncoill, para Eric.

— Você não acha sinistro demais?

Maldie sorriu, estudando a posição da faca ainda fincada no ombro de Bethia.

— Não, querida. Aquele assassino a perseguiu durante meses. Eric precisa se certificar de que esteja morto. E sei que meu irmão ficará desapontado por não tê-lo trucidado com as próprias mãos.

— Estou sempre desapontando Eric.

— Se você já não estivesse sentindo tanta dor, eu lhe daria um tapa por dizer tamanha bobagem.

Bethia não conteve o riso que rapidamente se transformava em gemidos de dor.

— É um ferimento sério?

— Agradeça a Deus pela lâmina não haver se alojado em seu coração, pois essa era, com certeza a intenção de William.

— Acho que ele estava farto de me caçar e não tentava mais se esconder, ou fugir. Tudo o que queria era me matar.

— É impossível compreendermos o que se passa na cabeça dos loucos. Fique firme, querida. Vou retirar a faca.

— Vai doer muito, não vai?

— Temo que sim. Se Deus for misericordioso, você desmaiará num instante.

— Será que corro o risco de perder o bebê? - Enfim Bethia tivera coragem de expressar em voz alta o medo que a acometera no momento em que William surgira no meio da folhagem.

— Se depender de mim, não.

— Ainda não contei a Eric…

Segurando o cabo da adaga com firmeza, Maldie puxou-o. Bethia abriu a boca para gritar, porém já estava inconsciente antes de emitir um único som. Mantendo-a deitada no chão, com a cabeça apoiada no colo de Grizel, Maldie dedicou-se a estancar o sangramento.

— Sir Eric ficará irritado — observou Robbie, postando-se junto das mulheres.

— Irritado? — Com movimentos rápidos e precisos, Maldie cobriu o ferimento com uma bandagem improvisada. Algo me diz que “irritado” não é uma palavra forte o suficiente. Vamos levá-la para Donncoill já, onde poderei tratar dessa ferida de maneira adequada.

Ao avistar o grupo cruzando os portões da fortaleza, Eric sentiu o sangue gelar nas veias. O cavalo de Bethia trotava sem sua amazona. No colo de Robbie, uma figura inerte. William vencera. Enlouquecido de angústia, deu um passo à frente, porém Balfour o segurou pelo ombro, num gesto tão firme quanto reconfortante. Sim, devia manter o controle das emoções até saber, exatamente, o que acontecera. Quando Robbie parou e atirou o saco ensangüentando aos seus pés, Eric começou a respirar um pouco mais aliviado.

— O canalha está morto — informou o jovem. Trouxe-lhe a cabeça dentro deste saco. Aqui está milady. Viva.

Acolhendo a esposa nos braços, Eric alegrou-se ao constatar que a ferida não fora fatal, todavia a palidez extrema do rosto delicado indicava considerável perda de sangue.

— Como William conseguiu chegar a lady Bethia? — Balfour perguntou a Robbie.

— Vistoriamos toda a área e não vimos sinal de ninguém. Então o infame apareceu do meio do nada e tentou matá-la. O maldito sequer procurou se esconder, ou fugir. Matei-o antes mesmo que pudesse desembainhar a espada para o golpe final.

— Eric, - interveio Maldie.   - Precisamos levar Bethia para o quarto. O ferimento tem que ser limpo novamente e costurado.

— Eric? — Bethia entreabriu os olhos devagar, ainda zonza de dor. - Lamento…

— E deveria mesmo lamentar-se. - Surpreendia-o ser capaz de falar com calma enquanto a carregava escada acima. - Você não deveria ter se jogado sobre a faca do idiota, querida. - Vendo-a esboçar um sorriso, sentiu-se recompensado.

— Aconteceu uma coisa engraçada. William me atacou com minha própria adaga.

— Ah, aquela que você perdeu no dia em que matamos os filhos do crápula.

— Sim. Você sabe o que mais foi engraçado?

— Você parece ter se divertido muito para alguém que quase foi morta, não?

— Bem, doeu um pouco. O esquisito é que as unhas de William estavam negras.

— Oh, céus, mulher! — Eric exclamou, rindo.

Enquanto Maldie limpava e costurava a ferida, Eric manteve-se perto da esposa, desejando poder poupá-la do sofrimento imerecido. Enfim, vendo-a acomodada confortavelmente, dormindo serena após ingerir uma poção preparada por Maldie, ele sentou-se na beirada da cama e tomou a mão fria entre as suas.

— Essa lividez me aflige — falou nervoso.

— É por causa da dor e da perda de sangue.

— Bethia vai morrer?

— Não. Porque se morrer, aquele assassino terá vencido e não permitirei que tal coisa aconteça.

As palavras confiantes da irmã aqueceram-lhe a alma. Notando o quanto Maldie estava fatigada, insistiu para que fosse comer algo e descansar.

Sozinho com a esposa, observando-a dormir, Eric, reconheceu a verdade.

Amava-a. Espantava-o haver demorado tanto para enxergar o óbvio. Apenas o amor explicava todas as suas reações desde o instante em que a conhecera, o sentimento de posse, o desejo de casar-se. Apenas o amor explicava o ódio que sentira dos pais de Bethia, por tratá-la tão mal. Apenas o amor explicava sua vontade de ouvi-la aprovar seus planos de conquistar Dubhlinn.

Agora queria, desesperadamente, uma chance de confessar seu amor. Porém, parte de si temia não ser correspondido.

No início da madrugada, Bethia ardia em febre. Eric ajudou Maldie a banhá-la com água fria e a fez beber as poções preparadas pela irmã. Enquanto a pobrezinha delirava, revelando as dores de uma infância traumática, ele a cobriu de beijos e cercou-a de palavras doces, ansiando poder transmitir-lhe segurança e paz.

Após uma longa hora de luta contra os tremores e delírios, Bethia caiu num sono profundo e tranqüilo.

Fitando Maldie, Eric descobriu-a aos prantos.

— Os pais dela são criaturas cruéis e detestáveis, não?

— Sim. Transformaram Bethia na sombra de Sorcha.

— Acho que é ainda pior. Os dois convenceram Bethia de que ela era tão destituída de valor que não merecia nem sequer viver à sombra de Sorcha. E Sorcha jamais moveu um dedo para mudar essa situação, para aliviar o sofrimento da irmã gêmea.

— De fato. Creio que Bethia está começando a aceitar a verdade sobre a família. Embora eu a julgue mais segura de si, mais forte, essas feridas da alma custarão a cicatrizar.

— Mas contar com alguém feito você ajudando-a, facilitará a cura. Vocês, homens Murray, têm certa queda por pássaros feridos, não?

— Talvez nós tenhamos apenas um bom olho para perceber o que encontraremos depois que os curativos forem removidos.

Ficando na ponta dos pés, Maldie o beijo no rosto e caminhou até a porta.

— Vou deitar-me com meu homem agora e descansar. Mande me chamar imediatamente, se houver alguma mudança no estado de Bethia. Apontando para a bandeja que Grizel trouxera mais cedo, completou: — Coma alguma coisa antes que eu seja forçada a tratá-lo como um doente também.

Na tarde do quarto dia, Eric ouviu Bethia praguejar baixinho. Nervoso, inclinou-se sobre a esposa, convencido de que a pobrezinha se debatia num outro sonho delirante. Para sua surpresa, descobriu-a com os olhos abertos e límpidos, e o frescor da testa denunciava a ausência de febre. Dominado por uma emoção intensa, conteve as lágrimas, temendo alarmá-la.

— Por que estou ensopada de suor? — Sua garganta estava tão seca, que mal conseguia falar.

— Você passou quatro dias ardendo em febre, querida.

Eric ajudou-a a beber um pouco de água.

— Oh. — Bethia recostou a cabeça no travesseiro, e o simples ato de sorver o líquido parecia tê-la enfraquecido.

— Pelo menos isso explica a dor no meu ombro. Agora me lembro de tudo. William está morto e a provação encerrada.

À medida que ficava mais desperta mais desconfortável se sentia. Queria trocar a túnica úmida por roupas limpas e precisava atender certas necessidades físicas. Porém o que desejava, acima de tudo, era conversar com Maldie. Estava aterrorizada com o que a febre poderia ter causado ao filho que trazia no ventre.

— Maldie está disponível?

— Com vergonha de mim, querida? Enquanto você esteve inconsciente, cuidei de suas…

— Aprecio seus cuidados, mas prefiro não saber detalhes embaraçosos.

Rindo, ele a beijou de leve nos lábios ressecados.

— Vou chamar Maldie e Grizel.

Quando as duas mulheres entraram no quarto, Bethia estava à beira do pânico. Não acreditava que houvesse perdido o bebê, mas não conseguia senti-lo se mexer.

— Maldie — murmurou aflita, apertando a mão da cunhada com força. — E a criança?

— Ah, então este é o motivo da sua agitação. Não se preocupe, o bebê está bem. As poucas vezes em que pude examiná-la, na ausência de Eric, percebi movimentos. Hoje mesmo, pela manhã, ele chutou forte.

— Graças a Deus! — Bethia exclamou, deixando que Maldie e Grizel a despissem e a banhassem. Eu estava apavorada.

— Considerando que os movimentos do bebê já são perceptíveis, você não poderá adiar por muito mais tempo o momento de contar a Eric.

Acomodada novamente na cama, cujos lençóis usados Grizel agora retirava do quarto, Bethia esforçou-se para engolir a canja de galinha que Maldie a convencera a tomar. Apesar da falta de apetite, tinha que se fortalecer por causa da criança.

— Coma tudo, querida. E repouse. Assim você estará mais animada para dar a notícia ao seu marido.

— Serei obrigada a fazê-lo em breve. Eu só gostaria de saber como ele se sente em relação a mim antes de contar sobre o bebê.

— Aquele homem permaneceu a seu lado noite e dia, mal se alimentando e dormindo. Não posso afirmar que ele a ama, pois, apesar de sermos irmãos, Eric nunca me confidenciou seus sentimentos íntimos. No entanto, juro-lhe, não foi somente o dever que o manteve preso a essa cadeira.

— Acho que terei que me contentar com o que ele me oferecer.

O sorriso de Maldie revelava simpatia e compreensão.

— Sei que é difícil tomarmos a iniciativa, mas acredite-me: às vezes os homens são uns verdadeiros covardes na hora de abrir o coração. A propósito, Gisele concorda comigo.

— Ah, Balfour e Nigel demoraram a declarar-se.

— Demoraram uma eternidade. Os homens são lentos para entender os próprios sentimentos. Estou ouvindo passos no corredor. Aposto que é seu marido.

Segundos depois, Eric entrava no quarto.

— Voltarei mais tarde para vê-la — disse Maldie, caminhando até a porta. - Quanto a você, irmãozinho, quero-o descansando nos aposentos adjacentes. Você precisa dormir tanto quanto Bethia.

— Maldie a fez beber uma de sua poções, não? — ele perguntou à esposa, vendo-a bocejar incontrolavelmente.

— Sim. Meu ombro doía um pouco depois que tomei banho e troquei de roupa. Mas não gosto de me sentir sonolenta, quando preferiria ficar acordada.

— Entendo. Mas, descansar lhe fará bem. - Inclinando-se, Eric a beijou de leve nos cabelos. - Tive medo de perdê-la.

— James ficou muito inquieto nesses últimos dias?

— Sim. Ele ainda é muito novo para compreender a extensão do perigo que você corria, porém sentia que algo estava errado. Trouxe-o aqui uma única vez, para convencê-lo de que eu falava a verdade. Expliquei-lhe que você estava doente e que permaneceria de cama até se recuperar. Vou trazê-lo depois, para mostrar-lhe o quanto você melhorou.

— Nunca sabemos ao certo o que uma criança pequena percebe e compreende.

— Grizel esteve junto de James todos os momentos. De fato, o menino se apegou bastante a ela.

— Pobrezinho. É um sinal do quanto à situação o assustou. Talvez James tenha entendido mais do que aconteceu aos pais, a doença estranha e a morte, do que suspeitávamos.

— Durma agora, querida. Como lhe disse, trarei o garoto para vê-la mais tarde. Antes de qualquer coisa, você precisa repousar.

— Sim, eu sei. Algumas horas de sono e serei capaz de sorrir e conversar com James para tranqüilizá-lo.

Eric acariciou o rosto delicado da esposa, sorrindo ao reparar que ela adormecera quase antes de terminar a frase.

— Quando você vai contar a Bethia?

Virando-se depressa, ele deparou com o irmão, Balfour.

— Você não bateu antes de entrar.

— Não imaginei que iria interromper algo. E tinha razão. Vocês estavam conversando sobre o menino. Portanto, torno a lhe perguntar: quando você planeja contar a ela?

— Contar o quê?

— Que a ama perdidamente?

— Você reconheceu os sintomas?

— Você sabe que sim. E Nigel também. Nós sempre o consideramos o mais inteligente de todos. Não nos desaponte adiando o inevitável, ou não querendo enxergar o óbvio. Declare-se à sua esposa.

— Talvez eu devesse esperar por algum sinal de que meus sentimentos são correspondidos.

Cruzando os braços sobre o peito largo, Balfour balançou a cabeça.

— Bethia deixou-o seduzi-la. Não existe sinal mais evidente. Sim, sei que você sempre foi capaz de seduzir qualquer mulher com pouco mais do que um simples sorriso. Sua esposa não é como aquelas tolas. Ela não se entregaria a um homem apenas porque o considerava bonito.

— É o que eu também penso, mas receio estar enganado. Agora basta. Chega de conselhos. Vou me declarar. William está morto e Dubhlinn me pertence. Nossos problemas foram resolvidos. Apenas deixe-me cuidar disso no momento e no lugar de minha escolha.

— Ah, você precisa de algum tempo para se armar de coragem.

— Também. - Os dois riram cúmplices. - É estranho como uma mulher tão pequenina pode fazer um guerreiro tremer de medo.

— Conforte-se pensando que você não é o primeiro, nem será o último, a sentir-se assim.

 

Bethia esperou até que o marido fechasse a porta ao sair do quarto e então, cautelosamente, levantou-se da cama. Nada aconteceu. Nenhuma vertigem, nenhuma crise de suor gelado, nenhuma sensação de fraqueza. Desde sua chegada a Dubhlinn, há duas semanas, todo o mal-estar sumira. Quando Grizel entrou, encontrou-a rindo sozinha.

— Você me parece de ótimo humor — comentou a serva, enchendo a tina com alguns baldes de água quente antes de começar a trocar os lençóis. Preparando alguma surpresa?

— Quatro meses! — Exultante Bethia despiu-se e sentou-se na tina.

— Ah, você está mantendo uma contagem cuidadosa.

— Claro. Porém existe a possibilidade de eu haver errado nos cálculos, porque minha barriga ainda está muito pequena.

— Quando começar a crescer, não vai parar mais.

— Acho que quatro meses é seguro.

— “Seguro”?

— Sim. Eu queria ter certeza de que não perderia o bebê. E há quinze dias não sofro de enjôos. Também sinto que os movimentos da criança estão mais fortes. Sem dúvida existe vida dentro de mim. - Com ar sonhador, Bethia pousou a mão sobre o ventre. - Logo James terá alguém com quem brincar. - Lembrando-se de todas as crianças residindo em Dubhlinn, esclareceu: — Isto é, alguém de seu próprio sangue.

— Este lugar fervilha de crianças e bebês — emendou Grizel, rindo. Quando você contará a milorde?

— Esta noite. — De repente, Bethia ficou muito séria. - Será que ele gostará da notícia?

— Você insulta seu belo marido com essas desconfianças, menina. Depois do que aconteceu na corte, como ainda pode duvidar do homem com quem se casou?

— Por acaso, você está se referindo a todas aquelas mulheres, que se atiraram aos pés de meu marido, para me fazer sentir mais segura?

— Não. O fato de que sir Eric nem sequer olhou para uma delas deveria lhe proporcionar toda a segurança necessária. Seu marido foi exposto a mais tentações durante as poucas semanas na corte do que a maioria dos homens numa vida inteira. E ele jamais saiu do seu lado, jamais a traiu.

— Sim, eu sei. Eric é honrado, possui caráter nobre e cumpre suas promessas. — Depois de secar-se e vestir-se, Bethia sentou-se na beirada da cama, intrigada com a expressão pouco amigável de Grizel. Falei algo errado novamente?

— O que a levou a pensar isso?

— A expressão de seu rosto.

— Que expressão?

— Como se você quisesse bater a cabeça na parede.

— Conversar com você às vezes costuma me dar vontade de bater uma cabeça na parede. E não a minha.

— Grizel, você já deu uma boa olhada em meu marido?- Irritava-a ninguém parecer entender as razões de suas inseguranças.

— Sim. Milorde é um dos homens mais bonitos que jamais vi. Só de olhar para ele, o coração de qualquer moça dispara.

— Exatamente. Agora olhe para mim.

— Você é bonita.

— Você é minha amiga. Talvez não me veja como os outros. Meus olhos são de cores diferentes, meus cabelos não são ruivos, nem castanhos. Sou baixa e magra. Dou a impressão de que parei de crescer antes da hora.

— É evidente que essas características fazem o sangue de milorde ferver nas veias, ou você não estaria grávida. Menina, talvez o que vou lhe dizer não a agrade, mas achei que, nos últimos meses, você houvesse aprendido a encarar a verdade. Você permitiu que seus pais e sua irmã a convencessem de que não é uma mulher atraente. Está na hora de parar de se enxergar com os olhos dessas pessoas. Seu marido a vê como uma dama extremamente desejável, de quem não consegue tirar as mãos.

— Parece que sim — Bethia admitiu, sorrindo quando Grizel pôs-se a rir. - O problema não se resume à maneira como minha família me tratou, transformando-me na sombra mal acabada de Sorcha. O erro de meus pais não me transforma numa mulher bonita. Significa apenas que não sou tão feia quanto tentaram me fazer acreditar.

— Menina, você é mais bela do que Sorcha foi, ou poderia chegar a ser. - Grizel ergueu a mão, impedindo Bethia de interrompê-la. - Não me refiro somente à beleza do corpo, ou do rosto, embora você seja fisicamente linda. Refiro-me à beleza da alma. Ninguém seguiu a belíssima Sorcha quando esta saiu de Dunnbea, não é? No entanto, duas dúzias de pessoas não vacilaram em acompanhá-la até aqui. Bowen e meu Peter, há anos instalados confortavelente em Dunnbea, não hesitaram em trazer as respectivas famílias para cá. E Wallace só não se mudou de vez porque logo será lorde de Dunnbea. Na verdade, seu primo à visita com uma freqüência impressionante. Apesar de toda sua decantada beleza, Sorcha nunca despertou tamanha lealdade.

— As pessoas a amavam.

— Amavam a casca. Além de Robert e de seus pais, cite-me uma única pessoa que houvesse dedicado amor, ou lealdade a Sorcha, depois de conhecê-la melhor. Impossível lembrar-se de um único nome além do seu, não?

— Não creio que a culpa tenha sido apenas dela — murmurou Bethia tristemente.

— Sua irmã foi criada para não ser nada além de uma bela figura. Seus pais, tolos e inconseqüentes, valorizavam somente o exterior, esquecendo-se de ensiná-la a cultivar o interior. Ninguém mostrou a Sorcha à importância de saber amar alguém além de si mesma.

— Nunca duvidei de que ela houvesse amado Robert e James.

— Tanto quanto seu egoísmo permitia. Mas a quem sua irmã recorreu quando percebeu que o filho estava em perigo? Não aos pais ou a um daqueles cavaleiros vistosos que costumavam cortejá-la. Não; Sorcha mandou chamá-la porque sabia que você seria a única capaz de proteger, de se importar com James. No fim, ela reconheceu seu valor. Por que seu marido não poderia valorizá-la também?

— Você vai acabar me fazendo chorar.

— Você está grávida. Quase qualquer coisa a faz chorar. - As duas trocaram um largo sorriso.

— Então você acha que meu marido se importa mesmo comigo?

— Infelizmente não acredito que minha opinião irá influenciá-la, porque você passou anos julgando-se destituída de qualquer valor e indigna de ser amada. Minha resposta é “sim”, creio que sir Eric lhe dedica uma afeição sincera, ou não teria se desesperado nos últimos dias, vendo-a consumida pela febre. Portanto, quando lhe contar sobre o bebê, declare-se. Confesse amá-lo. A reação dele porá um ponto final nas suas inseguranças.

— Não é fácil entregar o coração a um homem quando não sabemos se ele o deseja. Tenho medo de como vou me sentir se, ao confessar que o amo, escutar apenas um “obrigado” em resposta.

— Aposto que sir Eric dirá muito mais que um simples “obrigado”.

Bethia ainda pensava nas palavras de Grizel quando, depois de tomar o desjejum sozinha no salão principal, saiu à procura do marido. Receios, indecisões, a atormentavam sem cessar. Estava cansada de comportar-se como uma covarde.

Deparando com Bowen perto do estábulo, aproximou-se.

— Você viu Eric?

— Foi até a aldeia outra vez. Há muitos consertos urgentes a serem finalizados. É impressionante como os Beaton, gananciosos, determinados a se agarrarem a essas terras, destruíram tudo ao redor.

— Sem dúvida. Depois de certa desconfiança inicial, os aldeões estão felizes de ter um novo lorde, que cumpre o dever de ampará-los.

— Porque reconhecem um homem bom. Bowen lançou um olhar rápido para a barriga de Bethia. Quando você contará a milorde sobre a criança?

— Você sabia?!

— Menina, venho de uma família grande e tenho cinco filhos. Você apresenta todos os sinais.

— Eric nada notou.

— Bem, presumo que você tenha jeito para esconder muitas coisas, quando lhe é conveniente.

— Ele é um homem tão bonito…

— Ah, então é isso o que a preocupa, não?

— Um pouquinho. Você acha que meu marido gosta de mim?

— Não seja tola. Sir Eric a desposou.

— Você o ameaçou com a espada, lembra-se?

— Apenas momentaneamente. Depois lhe dei liberdade de partir, antes de comprometer-se. Eu não a queria presa a um homem que poderia magoá-la. Perguntei-lhe se a desejava para esposa e ele disse “sim”. Ofereci-lhe a chance de escapar de Dunnbea e ele preferiu ficar.

Quando Eric voltou da aldeia, Bethia continuava tentando entender o possível significado do que Bowen lhe contara. Compenetrada, escutou-o falar dos planos para a reconstrução da aldeia, enquanto se dirigiam ao quarto de James. Pela primeira vez, dava-se conta do quanto Eric valorizava suas opiniões a respeito de assuntos variados, e de como a tratava de igual para igual, não subestimando sua inteligência e discernimento.

Vendo-o brincar com James, suas últimas preocupações sobre como o marido reagiria à notícia de que teriam um bebê desvaneceram. Alguém capaz de amar uma criança que não gerara seria um pai maravilhoso.

Durante o resto do dia, Bethia, mais do que nunca, esteve atenta às atitudes de Eric. Reparou na freqüência com que ele a tocava, como se não suportasse a menor distância entre os dois. Notou como as crianças costumavam segui-lo, como homens e mulheres não hesitavam em requisitá-lo quando tinham algum problema a resolver.

À noite, preparando-se para dormir, sentia-se, além de estúpida, envergonhada de si mesma. Assim como seus pais, e tantas outras criaturas tolas e superficiais, enxergara apenas a beleza física de Eric. Todavia, os guerreiros que pediam conselhos sobre como aprimorar as defesas da fortaleza não o ouviam apenas porque era um homem bonito. Os camponeses que o procuravam para discutir os reparos necessários na aldeia e quaisquer outras questões referentes aos negócios não o faziam porque o achavam bonito. Toda essa gente o contemplava com os olhos do coração.

Sir Murray era um homem bom. Sua beleza física apenas refletia a beleza interior. Por isso o povo de Dubhlinn o amava e respeitava. Talvez Eric não a amasse tanto quanto o amava, mas com certeza dedicava-lhe algum afeto e considerava-a digna de confiança. Não havia no mundo um homem que merecesse ser mais amado do que Eric e chegara à hora de confessar seus sentimentos.

Em silêncio, observou-o entrar no quarto, banhar-se e deitar-se na cama, muito à vontade na sua completa nudez. Se Eric possuía algum defeito, era a total ausência de inibição. Aquela nudez a perturbava de tal forma que mal conseguia respirar. Mas precisavam conversar antes de ceder aos apelos do desejo.

— Você está me olhando fixamente, querida — ele comentou, resistindo ao impulso de tomá-la nos braços e sufocá-la de beijos.

— Talvez eu ainda não esteja acostumada a ter um homem nu em minha cama com tanta freqüência.

Eric riu, ficando muito sério, então.

— Você esteve um pouco estranha o dia inteiro.

— Estive?

— Sim. Notei-a me analisando, fitando-me como se, de repente, eu pudesse sumir no ar feito fumaça.

Não imaginara que o marido perceberia seu comportamento, porém não havia motivo para negá-lo.

— Sim. Na verdade acho que, pela primeira vez, o olhei de fato. Procurei enxergar sua alma. Antes, por alguma razão, não conseguia ir além do seu lindo rosto e belo corpo.

Intuindo que Bethia estava a ponto de revelar seus sentimentos, Eric preocupou-se. Pela primeira vez na vida descobria-se inseguro em relação a uma mulher. Mais do que tudo, queria despertar na esposa algo além da paixão carnal e tinha medo de que seu amor não fosse correspondido. Jamais se sentira tão vulnerável, tão exposto.

— Você sabe que não estou aqui apenas por causa da sua beleza, não é?

— Sim, eu sei. Ao longo dos anos, aprendi a reconhecer aqueles que se aproximam de mim somente porque me consideram belo. Acho até que, às vezes, você preferiria que eu fosse menos bonito. - Eric sorriu ante a expressão culpada da esposa. - Querida, um rosto não passa de uma massa feita de ossos e carne, que pode ser ferida, mutilada e transformada em algo muito feio. Por hora, por que não posso desfrutar do prazer de pensar que minha esposa aprecia meu rosto? Afinal, adoro olhar para o seu.

— Obrigada. Porém se nossos filhos pudessem escolher, eu gostaria que herdassem seus traços.

— Pois eu estou ansioso para ter um filho igualzinho a você.

— Talvez você não tenha que esperar muito.

Sentando-se na cama, Eric a segurou pelos ombros, dominado por uma felicidade indescritível.

— Você está grávida?

— Sim. De quase quatro meses. Logo você verá o rosto de seu filho.

— Eu deveria ter percebido — ele murmurou, livrando-a da túnica e acariciando-a na barriga com uma ternura infinita. Estou louco de vontade de amá-la.

— Não me oponho à idéia — disse Bethia, reparando que o marido vacilava.

— Tenho medo de machucar o bebê.

— Você não vai machucá-lo.

— Você é tão pequenina e delicada, querida.

— Maldie e Gisele são só um pouquinho maiores do que eu e suspeito que seus irmãos não as tenham deixado sozinhas durante esse período.

O modo como Bethia o estava segurando pela cintura, como se não pretendesse soltá-lo jamais, o fez sorrir. Agora que superara o receio de feri-la de alguma forma, ansiava amá-la. Não obstante fosse divertido continuar fingindo que hesitava apenas para provocá-la.

— Mas Maldie e Gisele não foram arrastadas de castelo em castelo, perseguidas e atacadas por um demente.

Convencida de que os protestos de Eric não passavam de encenação, ela o jogou de costas na cama e o montou.

— Eu já estava grávida quando todas essas coisas me aconteceram. Nada abalou a criança, ou ameaçou tirá-la do meu útero.

— Você poderia ter perdido o bebê quando foi ferida, quando a febre a devorou. - Bethia correra um perigo ainda maior do que imaginara. - Um aborto, nas condições em que se encontrara, poderia havê-la matado.

— Sim. E tudo foi superado. Estou ótima, gozando de perfeita saúde.

Para reforçar suas palavras, ela o beijou no abdômen rígido, deslizando a língua devagar até tocá-lo na virilidade intumescida.

Eric queria perguntar-lhe por que demorara tanto para lhe contar do bebê; porém, subjugado pelo prazer intenso, desistiu de raciocinar. Puxando-a pelos braços e erguendo-a alguns centímetros, acomodou-a sobre o membro ereto.

— Cavalgue seu homem, querida — incentivou-a, e as investidas ganhavam força e ritmo até explodirem num orgasmo simultâneo que, como uma onda impetuosa, os arrastou para a inconsciência.

Uma eternidade depois, lânguida e ainda abraçada ao marido, ela sussurrou:

— Eu te amo, Eric Murray.

Um estremecimento violento o percorreu de alto a baixo. Agarrando-a pelos braços, girou-a no ar e obrigou-a a sentar-se, fitando-a como se quisesse enxergá-la pelo avesso.

— O que você disse?

— Não tenho certeza se devo repetir, após quase ter voado pelos ares.

— Repita.

Para surpresa de Bethia, os olhos do marido revelavam um misto de insegurança e ardente esperança. Aquele homem devia dedicar-lhe alguma afeição, ou não estaria tão interessado nos seus sentimentos. Talvez ele não correspondesse ao seu amor, mas mostrava-se ansioso para ouvi-la declarar-se. Por que não atendê-lo?

— Eu te amo. - Um abraço apertado quase a impediu de respirar. - Se é assim que você vai reagir quando eu falar essas palavras, creio que as pronunciarei muito pouco, para evitar torcicolos.

Delicadamente, Eric a acariciou nos cabelos, não se espantando ao constatar que suas mãos tremiam. Nunca antes experimentara emoção tão poderosa. A notícia de que seria pai proporcionara-lhe imensa alegria, porém, não o abalara tanto quanto aquelas três palavrinhas.

— Quando você descobriu? Hoje? É por isso que me observava?

— Não. Meu coração sempre soube a verdade. Eu só tinha medo de admiti-la por causa das minhas dúvidas e temores. — Com a ponta dos dedos, Bethia traçou o contorno do rosto viril. - Oh, adoro contemplar seu lindo rosto, e hoje, finalmente, compreendi que não foi sua beleza que me conquistou, ou seu sorriso maravilhoso que me seduziu. Essa beleza exterior poderia ser destruída numa batalha amanhã e eu continuaria o amando. Reconheci-o como o amor da minha vida no dia em que você adoeceu, depois daquele acidente no rio. A possibilidade de perdê-lo me enlouqueceu.

— Por que você não se declarou antes?

— Porque não estava segura de que você desejaria me escutar.

— Às vezes você é muito tola, querida. A ternura da voz transformava a repreensão numa carícia.

— Sim, eu sei. É que sua beleza me deixa insegura. Fico me perguntando como, e por quê, um homem feito você iria me querer.

— Porque esse homem te ama.

Por um longo instante Bethia permaneceu imóvel, incapaz de confiar nos próprios ouvidos. Então, deixando escapar um gemido rouco, beijou o marido; lágrimas grossas escorriam-lhe pelas faces.

— Quando você soube? — indagou, zonza de felicidade.

— Há muito tempo. Mas só admiti para mim mesmo quando achei que você ia morrer.

— E nunca me disse uma única palavra…

— Ah, querida, temi que você não acreditasse em mim. Também percebia o quanto à decisão de lutar por minha herança a preocupava.

— Preocupava-me sim e jamais o julguei semelhante a William. Ou a sir Graham.

— Só me convenci disso quando, ao regressar da batalha, você não me condenou por haver matado sir Graham e demonstrou apoiar meus esforços de reconstruir Dubhlinn. Não sei por que silenciei. Sou um covarde. Como não sabia o que você sentia por mim, não quis abrir o coração. Se eu tivesse me declarado…

— Provavelmente eu duvidaria, porque não me sentia digna de ser amada. Logo que cheguei a Donncoill, compreendi como minha família sempre me desprezou. Mas demorei a não me culpar por ser incapaz de agradá-los. Eu precisava dar o último passo para sair da sombra de Sorcha. Precisava ter coragem para amá-lo, mesmo se você não retribuísse esse amor.

— O amor que eu lhe tenho excede ao que você tem por mim. -Percebendo que a esposa preparava-se para discordar, ele a calou com um longo beijo. - Você quer discutir sobre qual de nós ama mais o outro?

— Demoraríamos muito para chegar a uma conclusão.

— Anos. Nossa vida inteira.

— Então prometa-me seu amor, meu belo cavaleiro, assim como lhe prometo o meu.

— Vou amá-la para sempre e por toda a eternidade.

— Por toda a eternidade — Bethia repetiu baixinho, quando suas bocas se encontraram.

 

                              Natal, 1445

— James, eu realmente acho que sua prima Bega não quer que você se sente em cima dela — disse Bethia, sufocando o riso ao retirar o menininho de cima da delicada filhinha de Gisele, cuja língua afiada parecia desmentir a pouca idade.

— Bethia, creio que nossa garotinha vai ganhar desta vez — Eric a avisou.

Trocando um olhar, entre exasperado e divertido, com Gisele e Maldie, Bethia acomodou-se junto do marido. Sorcha, cinco meses mais nova do que Brett, filho de Gisele, começara a engatinhar há pouco. Nigel e Eric gostavam de fazê-los apostar corridas e incentivavam apostas, arrancando risadas dos homens e das crianças mais velhas.

Toda a família de Eric viera a Dubhlinn para as festas de fim de ano. Balfour, Maldie e os sete filhos, Nigel, Gisele e os quatro filhos. Bowen e Peter com as respectivas esposas e filhos, Wallace, sir Guy e sir David, primos de Gisele, completavam o ruidoso grupo. Seus pais não haviam respondido ao convite para se reunirem no Natal, porém a ausência de ambos não a incomodava. Essa era sua família, as pessoas a quem amava e que lhe queriam bem.

— Minha menina é ligeira! — exclamou Eric, exultando quando a filha venceu a “corrida.”.

— Ela só ganhou porque meu filho resolveu andar o último metro — argumentou Nigel. - Aliás, Brett ainda não decidiu o que prefere: andar ou engatinhar.

— Nós os faremos disputar uma corrida novamente, quando Sorcha começar a andar.

— Eric! — Bethia o repreendeu, rindo e tomando a filha nos braços.

— Estou só brincando, amor.

Percebendo que a criança estava com fome, Bethia escapuliu para o quarto. Então, no aconchego de seus aposentos, amamentou a filha, saboreando o momento de doce intimidade maternal. Durante a gravidez imaginara que, a exemplo de Gisele, daria a luz a um menino. Mas não ficara nem um pouco desapontada quando a pequena Sorcha nascera. Apesar de ter seus olhos, um azul, outro verde, ela era a imagem do pai.

— Por que você está sorrindo? — perguntou Eric, entrando no quarto e deitando-se na cama ao seu lado.

— Estava pensando que fazemos belos bebês juntos.

— Com certeza, querida. - Carinhoso, ele aspirou o perfume dos cabelos dourados e sedosos da filha.

— Sabe, eu realmente acreditava que, assim como Gisele, teria um menino.

— Não se preocupe. Você me dará um filho homem. E, se só tivermos meninas, não vou reclamar. Possuo mais sobrinhos do que consigo contar e ainda temos James para criar.

Inclinando-se, Bethia beijou-o com paixão. Embora houvesse ficado louca de felicidade por haver gerado uma criança saudável, receara decepcionar o marido não lhe dando um herdeiro. Ele, porém, reagira de maneira oposta e mostrara-se sempre transbordante de orgulho e amor pela filha.

— Por que o beijo?

— Porque te amo, e você me deu uma família maravilhosa.

— Talvez uma família grande demais — Eric retribuiu rindo, ouvindo os ruídos do salão com uma nitidez espantosa.

— Não, não grande demais. Isto é o que sempre sonhei, quando me permitia reconhecer que existia algo errado com minha família. Será uma bênção para Sorcha e James, crescer num ambiente tão alegre e afetuoso.

— Talvez, ao longo dos anos, não realizemos todos os nossos planos, mas prometo que jamais lhe faltarão o apoio de uma família e o meu amor.

— E eu prometo lhe dar tantos filhos quanto Deus nos permitir gerar.

Os dois se beijaram, a solenidade do momento interrompida por um arroto incrivelmente alto da pequena Sorcha. Rindo, Eric levantou-se, tomou a filha nos braços e marchou para o salão.

— Acho que esse arroto foi ainda mais alto do que aquele de Brett. Ah, aposto que minha menina poder vencer o filho de Nigel nesta categoria também.

— Eric! — Bethia gritou, correndo atrás do marido.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

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