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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA - p.2 / Sandra Carvalho
LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA - p.2 / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro III / Parte II

LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA 

 

O Outono instalou-se na Ilha dos Sonhos. Os nossos invernos não eram muito rigorosos, mas o meu pai, sempre previdente, não permitia que o ritmo de trabalho nas quintas diminuísse antes das primeiras neves cobrirem o solo. No porto, os barcos chegavam e partiam sem cessar, carregados de preciosos produtos que mantinham os comerciantes numa roda viva. Estes eram dias de prosperidade.

Na taberna do povoado, as conversas repetiam-se, noite após noite. O tesouro descoberto pela filha guerreira do jarl era tão grande, que não fora possível resgatá-lo por completo do navio afundado, antes do Verão terminar. Os mergulhadores regressariam ao local no fim da Primavera, quando o mar o permitisse. Porém, dizia-se que o que fora reunido era a riqueza de um reino. Uns opinavam que o rei Steinarr devia aproveitá-la para expandir os seus domínios, outros alvitravam que seria prudente usá-la para fomentar uma campanha aniquiladora contra os Vândalos, antes que estes decidissem despertar da estranha e nada tranqüilizadora letargia em que viviam, desde que Vestein subira ao trono.

É claro que os Vândalos não eram os únicos inimigos com que os Viquingues tinham de se preocupar! Apesar de a Floresta Sombria estar aparentemente adormecida, no Norte, os salteadores proliferavam às centenas, cobiçando acerrimamente o poderio de Steinarr. Eram homens ferozes, fruto da mistura de raças antigas e aguerridas, que pouco respeito devotavam à vida. Quando atacavam não faziam prisioneiros. Depois de saqueadas, as aldeias eram queimadas e todos os seus habitantes chacinados, inclusive as crianças. Após vários assaltos cujas descrições eram suficientes para causar pesadelos, Ivarr decidira assumir o comando da defesa das fronteiras atacadas. Por essa razão, eu não o via desde o Festival de Verão.

As notícias que nos chegavam de Thora também não me deixavam sossegar. Apesar de o meu pai nos garantir que ela estava a ser treinada na fortaleza de Steinarr, e que recebera a promessa de que a filha não participaria em nenhuma ofensiva enquanto não estivesse devidamente preparada, havia quem jurasse já a ter visto a erguer as armas ao lado do príncipe herdeiro. As proezas da Loba Prateada começavam a ser alvo das cantigas dos Skald e da representação aparatosa dos artistas ambulantes que nos visitavam.

Freya ainda não se recompusera da partida da sua gêmea, apesar dos nossos esforços para animá-la. A saudade levara-a a dedicar-se à sua habilidade curativa e a maravilhar-nos com os seus progressos. A nossa mãe já lhe confiava o atendimento às maleitas mais simples da comunidade, sem que a sua orientação fosse necessária. Quando não estava a velar pelos nossos aldeões, Freya distraía-se a cuidar do seu jardim, onde plantara os ingredientes de que se socorria para elaborar os ungüentos, poções e chás, que tantos tormentos aliviavam. Orgulhosa, a senhora da Ilha dos Sonhos incentivava a filha mais nova a seguir os passos da nossa avó Edwina, que, antes da intromissão assassina da feiticeira Gwendalin, descobrira a cura para algumas das doenças que prostravam o Homem.

Infelizmente, não havia remédio para o mal de que a tia Geirny padecia. A sua saúde deteriorara-se de tal forma, que só a custo abandonava o leito. Junto dela encontrava-se o tio Edwin, revelando um carinho e uma dedicação impressionantes, e Darrin, que corria para junto da mãe nos intervalos dos treinos, a fim de lhe contar todos os detalhes do seu dia e vê-la sorrir envaidecida ante os seus progressos.

As mazelas de Quinn haviam sarado, mas, confirmando os nossos temores, as suas proezas de guerreiro jamais seriam louvadas. A sua mão direita estava incapaz de pegar numa espada e a esquerda desprovera-se da vontade de fazê-lo. Svana passava muito tempo junto dele, incentivando-o a exercitar a mão aleijada, para que não perdesse por completo o controle dos movimentos. Apesar de sabê-lo grato, eu imaginava o quanto o seu orgulho o atormentava. O meu primo sonhava com as atenções de Svana, mas por motivos bem diferentes...

O treino da Arte ocupava os meus dias com um rigor obsessivo. A mente ganhara a batalha contra o coração, e ajudava-me a manter fiel à resolução de não voltar a procurar Edwin. Eu fizera tudo o que estava ao meu alcance para chamá-lo à razão... Muito mais do que devia! A sua determinação de tornar-se servo da magia negra colocava-nos em lados opostos do campo de batalha. E, se era verdade que ele não fora capaz de me matar, também era um fato que não contradissera as suas intenções. O seu silêncio só podia significar que o apelo sedutor da Arte Obscura fora mais forte do que quaisquer laços de sangue ou de amizade. Eu tinha de aprender a pensar nele como um inimigo... um adversário terrível! Porém, a lembrança das emoções despertas pelo nosso beijo ainda me roubava o sono, ou forçava-me a acordar sobressaltada e coberta de suor. Que loucura era esta, que me turvava o discernimento? Tinha de livrar-me dela, antes que comprometesse irremediavelmente o meu futuro.

Os meses passavam, e «O Que Tudo Vê» sem dar notícias. Os in-formadores do meu pai garantiam-lhe que o feiticeiro continuava a desfrutar da hospitalidade da rainha Lyria, mas a sua inação inquietava-nos. Então, certa noite, a minha mãe teve uma Visão, tão real e assustadora como as que haviam ensombrado a sua juventude; um presságio de sangue e morte, impossível de ignorar: Sob a face sorridente e vitoriosa da Lua, Hakon jazia afogado no seu próprio sangue. Ao seu redor, centenas de árvores consumiam-se em labaredas gigantescas, libertando gritos aterradores; brados humanos... E, do centro deste flagelo, uma figura graciosa elevava-se, de braços estendidos numa saudação à rainha da noite; uma mulher alta e escultural, com olhos e cabelos flamejantes... um fantasma do passado, que acreditáramos para sempre desaparecido.

— A Lua estava viva — garantia a minha mãe por entre lágrimas, diante da família que se reunira para escutá-la. — Era Aesa, eu tenho a certeza!

— O Povo da Terra acredita que, sempre que um deles fenece, o seu espírito escolhe uma árvore para habitar — começou o meu pai cautelosamente. — Isso pode explicar por que as árvores do teu sonho gritavam como homens... Mas não explica a presença de Gwendalin, Pequena! A feiticeira está morta! Eu próprio me assegurei de que as suas cinzas jamais veriam um raio de Sol...

— Não sei explicar a minha Visão! — atalhou a esposa, com um ardor arrepiante. — Só sei que Aesa se prepara para atacar «O Que Tudo Vê» e o povo que o acolhe. Temos de avisá-los, Throst!

Após um instante de ponderação, o jarl decidiu:

— Eu viajarei para o Norte... Não será fácil convencer Steinarr a enviar um exército para a floresta de Lyria. Os domínios do Povo da Terra são terreno sagrado, que nem os Vândalos se atrevem a trespassar... Pelo menos, não se atreviam, até ao momento!

— Eu acompanho-te! — declarou a minha mãe, de imediato. — A magia que me resta ainda pode ser muito útil a «O Que Tudo Vê»...

— Se tu fores, a Geirny morrerá! — A afirmação do tio Edwin mal se ouviu, mas deslizou entre nós como um sopro final. Ele tinha razão. Era a energia curativa de Catelyn que sustinha a princesa. A tia Ingrior e o tio Berchan não possuíam poder suficiente para mantê-la viva, até ao seu regresso. Comovida, dei um passo em frente e exclamei:

— Vou eu, mama! Afinal, sou a herdeira do Guardião da Lágrima do Sol... Mais tarde ou mais cedo, terei de enfrentar o meu destino!

Os meus pais entreolharam-se e aguardei por uma fervorosa contestação. Todavia, tal como sucedera com Thora, eles engoliram em seco e suspiraram, resignados, compreendendo que já era tempo de eu deixar o ninho e aventurar-me a voar.

— Eu também vou, Throst — determinou o primo Krum. — Será como nos velhos tempos!

O meu pai sorriu, e apertou-lhe os ombros com um entusiasmo desejoso.

— Tens a certeza? Não tinhas resolvido dedicar-te à tua vocação de Sacerdote?

— Posso fazer ambas as coisas. Além disso, não confio a tua vida a nenhum outro curandeiro!

Abraçaram-se com veemência, recordando um passado doloroso, quando Sigarr os separara para se certificar de que o meu pai pereceria, vítima de um ferimento grave... infligido por Edwin McGraw!

O meu tio abeirou-se deles, replicando com uma ironia sorridente:

— O Throst não precisa de curandeiros. O único homem capaz de lhe fazer frente irá servi-lo com alegria e devoção, até ao dia da sua morte.

O jarl fixou-o afetuosamente, sacudindo-o para acentuar a seriedade do momento.

— Muito do que me é precioso fica à tua guarda, Edwin! O Berchan ajudará a Catelyn a suportar a minha ausência, mas tu serás responsável pela sua segurança e pela proteção da Ilha dos Sonhos e da nossa gente.

— Podes contar comigo, meu irmão — asseverou o cunhado, comovido pela sua confiança. — Juro que encontrarás no regresso a casa a harmonia que te rodeia na despedida!

 

Eu nunca pudera dar-me ao luxo de ser medrosa. Viver sob a influência da magia do cristal do Sol forçara-me a enfrentar os meus temores, e a aprender a solucionar os mais intrincados enigmas. As viagens até ao País dos Viquingues nunca eram monótonas e sempre que um percalço agitava a tripulação e, principalmente, a embarcação, eu sentia-me satisfeita por ter a oportunidade de colocar era prática a minha Arte. Viajar na minha companhia deixava os homens bem-dispostos. Sabiam que eu era a garantia de uma jornada mais rápida e sem sobressaltos.

Ao contrário do que alguns pensavam, a primogênita do jarl da Ilha dos Sonhos não era uma menina mimada, que se refugiava num mundo estranho, e evitava a realidade e o contacto com a gente simples. Os que me conheciam já não hesitavam em pedir-me ajuda para cuidar de um ferimento ou de uma queimadura, coser uma peça de roupa que se rasgara, fazer um chá para alegrar a tripulação, ou livrar-me sem esforço da água que invadia o Knarr; trabalho que, sem o auxílio da magia, teria de ser executado ininterruptamente por vários homens.

Agora, os nossos barcos eram mais robustos e fáceis de manobrar, do que na época em que a fortuna unira os destinos dos meus pais. O fato de terem sido fundadas novas aldeias, com bons portos, ao longo do percurso que separava a Ilha dos Sonhos das Terras do Norte, também ajudava a manter elevada a moral dos marinheiros. Era sempre agradável ancorar e pisar solo firme, tomar um banho quente e beber algumas cervejas, fechar os olhos dentro de lençóis lavados; ao invés de dormir numa rede no porão, ou ao relento no convés, ao sabor das ondas, encharcados até aos ossos e rodeados de escuridão. Todavia, desta vez, o meu pai tinha pressa de chegar ao País dos Viquingues. A única ocasião em que descansamos verdadeiramente foi quando aportamos numa aldeia piscatória, onde um velho amigo do jarl nos abriu as portas da sua casa, não se poupando a esforços para que sobrasse comida e divertimento aos nossos homens.

O chefe viquingue era um homem colossal, mais alto do que o meu pai, com uma grande barba branca que ainda guardava alguns fios dourados, separada em duas tranças que lhe caíam por cima da enorme pança. Os seus cabelos entrançados enfeitavam-lhe o rosto bolachudo e corado, sempre sorridente. Mal nos sentamos à sua mesa, numa casa quase tão grande como a minha, fomos rodeados por jovens escravas, que nos serviram cerveja fresca e peixe que saltara do mar para as brasas da fogueira.

Ignorando os protestos condescendentes e bem-humorados do meu pai, o anfitrião fez questão de me contar, por entre gargalhadas de satisfação, que, há muitos anos, a minha mãe também se hospedara na sua casa. Fora num dos seus quartos que, pela primeira vez, Throst recebera um banho daquela que, um dia, seria a eleita do seu coração e a mulher mais amada do nosso povo. Só se calou quando o jarl ameaçou cortar-lhe as tranças da barba, mas pouco ficara por dizer. Com um sorriso nos lábios, pedi permissão para me retirar e deixei-os a reviver as aventuras da sua juventude, cada uma mais divertida do que a anterior, com os cornos de beber sempre cheios, ao som da música alegre da flauta do primo Krum.

Assim que a aproximação do Knarr do jarl se tornou visível, as trompas de boas-vindas ecoaram pela Terra dos Carvalhos, morada do rei Steinarr. Quando encostamos ao ancoradouro, uma comitiva esperava-nos com uma ansiedade festiva. Era sempre um prazer receber Throst, filho de Thorgrim, na sua pátria.

Mal o meu pai pisou terra firme, Thora abraçou-o e beijou-o com um entusiasmo ardoroso, clamando sem embaraço o quanto havia sentido a sua falta. Contudo, foi só quando me viu que as lágrimas a suplantaram. Estreitou-me até me roubar o fôlego, murmurando emocionada:

— Minha mana... Minha querida mana!

Eu só me apetecia devorá-la com beijos, doente de saudades. Talvez por não a ver há bastante tempo, Thora parecia-me diferente, mais crescida... Apesar de trajar como os restantes guerreiros, com calças e uma túnica de lã, ninguém questionaria a sua feminilidade. Porém, era o seu novo penteado que mais despertava a atenção. Agora, Thora usava o cabelo enfeitado com minúsculas e longas tranças, como as do tio Edwin, que lhe caíam indômitas sobre os ombros. Estava muito, muito bonita!

Ao nosso lado, Steinarr cumprimentava o jarl com o afeto de um irmão. Depois, beijou-me a mão, saudando na sua voz inconfundível:

— Sê bem-vinda, minha filha! Muito me alegra a tua visita. Que estes sejam dias de festa, para nós e para o nosso povo.

Decerto que o meu pai iria contar-lhe que esta não era uma simples visita... Mas não diante da multidão que nos cercava. Forcei um sorriso e retribuí a gentileza com uma vênia. Então, Ivarr surgiu e as minhas pernas bambolearam. Apertou-me as mãos e beijou-me a testa, recordando-me de como era bom desfrutar da sua companhia. Os meus primos também não se pouparam em carinhos, e Ragnar, sempre galanteador, dedicou-me um poema feito nesse instante, que suscitou aplausos. Por fim, Ivarr apresentou-me o novo guerreiro-lobo que o acompanhava; um rapaz alto e robusto, que aparentava ser mais velho do que era na realidade, com um sorriso largo e sincero, que iluminava um olhar verde, cristalino e cativante:

— Este é o meu primo Ketill, o último lobo da minha alcatéia. Tive de empreender uma luta sem tréguas, para convencer o meu pai a prescindir dos seus serviços!

Eu já ouvira falar do jovem prodígio, filho de um dos irmãos de Steinarr. Quando Ketill matara o seu lobo nas provas de iniciação, o rei integrara-o na sua guarda pessoal, pretendendo rejuvenescê-la. Porém, Ivarr nunca desistira de solicitar a serventia do primo. Finalmente, a vitória sorrira-lhe.

— Encantado por conhecê-la, menina! — exclamou o rapaz, curvando-se com a habilidade de um cortesão e pousando os lábios quentes na minha mão. — Imaginava que fosse bela... Mas as deusas coram de vergonha perante tamanha formosura!

Recuei atrapalhada, temendo que, apesar de sorrir, Ivarr considerasse ofensivo o exagero da lisonja. Balbuciei um cumprimento de ocasião e repreendi-me pelo rubor que se apossara das minhas faces. Suspirei de alívio quando a atenção de Ketill foi requisitada pelo meu pai.

Montamos nos cavalos que nos aguardavam, e preparamo-nos para deixar o porto. Thora e o garanhão Bravo eram um regalo para a vista. Caminhei ao seu lado, numa égua dócil, escutando o relato das suas últimas proezas. À nossa frente, o rei inteirava o jarl dos movimentos inimigos. Tanto os mercenários do Norte como os Vândalos andavam calmos. As escaramuças nas fronteiras eram rapidamente sanadas. A guarda avançada estava sempre alerta e o povo sentia-se seguro. Franzi o sobrolho, intrigada. Quem estaria enganado, Steinarr ou a minha mãe?

O clima do Norte era muito mais agreste do que o da Ilha dos Sonhos. Ao nosso redor, um nevoeiro gélido passeava-se pelos caminhos e aninhava-se entre os troncos das árvores esguias. Trouxera roupas quentes, sabendo o que me esperava, mas não conseguia evitar que os meus dentes batessem e os olhos lacrimejassem. Sentia o nariz congelado e era-me difícil respirar. Pelo contrário, Thora parecia indiferente ao rigor da estação e tagarelava sem parar, confortável dentro da sua roupa simples. Nem sequer se dera ao incômodo de pôr uma capa sobre os ombros. Se a nossa mãe a visse, tão desagasalhada, teria um achaque nervoso.

Aqui, a luminosidade também era diferente daquela à qual eu estava habituada. No Outono, as manhãs mais pareciam um fim de tarde e, no resto do dia, experimentava-se uma obscuridade noturna. Foi através dessa luz difusa que vislumbrei a fortaleza do rei Steinarr, erguendo-se orgulhosamente sobre o penhasco. Por tradição, os Viquingues não eram um povo que se pudesse envaidecer dos seus castelos suntuosos. Para além dos rigores do clima e do relevo, a sua vivência não lhes concedia tempo para aventuras arquitetônicas. Aliás, sempre me parecera que, até à nova era que o meu pai iniciara, o lema era mais conquistar, dominar e explorar, do que propriamente construir. A mão-de-obra estava ocupada com a sobrevivência e a defesa do território de cada clã. Porém, agora que Steinarr unira os clãs sob o seu domínio e proteção, tornara-se imprescindível a existência de um lugar onde o povo se pudesse abrigar, se alguma adversidade o ameaçasse.

O castelo do rei viquingue fora construído de forma a repelir um ataque violento, por terra ou por mar, e o seu aspecto sólido e austero não deixava dúvidas quanto à sua eficácia. A localização tornava quase impossível a aproximação de uma máquina de guerra e qualquer exército que se atrevesse a desafiar a supremacia de Steinarr teria de percorrer um longo e penoso trilho, debaixo de uma chuva de aço, suficiente para reduzir a sua força a metade.

Assim que passamos os monumentais portões, vi-me diante de uma comunidade bem organizada; homens, mulheres e crianças, que desfrutavam de um fim de tarde calmo e deixavam os seus afazeres para saudar o rei e as visitas. Enquanto os petizes acorriam para cuidar dos cavalos, tive a confirmação de que Thora se sentia em casa e era acarinhada por todos. Foi ela quem me acompanhou através do castelo, ao quarto que me fora destinado. Abriu a porta com um gesto teatral e declarou com um sorriso expectante:

— O príncipe Ivarr deu ordens para que nada faltasse à sua noiva, quando viesses visitá-lo.

Deixei o queixo pender ao deparar-me com um quarto de sonho. Diante de mim estava a maior cama que eu já vira; um roupeiro e uma arca, suficientemente grandes para guardar a roupa de uma família numerosa; uma lareira forrada com uma pedra rosada, que me era desconhecida, e uma portada que dava acesso a uma varanda, com vista para o mar, encoberta por pesadas cortinas bordadas com fios de ouro, iguais à manta que cobria a cama. Belos tapetes de motivos alegres, sobre os quais seria um prazer caminhar descalça, forravam o chão de pedra. As paredes encontravam-se enfeitadas com duas tapeçarias. Uma ilustrava o Dragão do Sol, símbolo mágico da minha família; a outra, o brasão da casa real: o carvalho e o falcão.

Antes que eu recuperasse a voz, dois homens trouxeram uma tina com água quente. Atrás deles vieram duas criadas que a temperaram e perfumaram com óleos de banho e pétalas de flores. Depois, tencionaram ajudar-me a despir, mas eu agradeci e escusei-as. As minhas roupas eram simples; não carecia de auxílio para desapertá-las. Além disso, preferia cuidar da minha própria higiene. Thora observava-me, divertida. Também ela dispensava estes privilégios, que a nossa condição proporcionava. Catelyn ensinara-nos a não depender de ninguém. Está claro que certas pessoas, como Estrid, jamais compreenderiam tal opção.

— Vou deixar-te à vontade. Voltarei daqui a pouco para me certificar de que não te perdes!

Abstive-me de lhe confessar a razão da nossa visita. Era o jarl quem devia tratar desse assunto. A aguerrida Thora seria capaz de provocar um tumulto no castelo, ainda antes de o rei tomar conhecimento da Visão da minha mãe. Por enquanto, restava-me descansar. Se a feiticeira Catelyn estivesse correta, esperavam-nos dias complicados. Afundei-me na água perfumada, agradecida pelo calor da lareira e pelo conforto envolvente. Prescindiria de bom-grado do jantar, para poder deitar-me de imediato no colchão de penas e esquecer todos os problemas.

O salão do castelo era quatro vezes maior do que o da casa do meu pai, e parecia pequeno para todos aqueles que desejavam saudar o jarl da Ilha dos Sonhos. Uma mesa comprida e larga dominava o espaço, e sobre ela encontravam-se as mais deliciosas iguarias. As cozinheiras do rei tinham enfrentado o desafio de preparar um banquete de um momento para o outro, e haviam-se desvencilhado muito bem! O cheiro da carne que assava nos espetos e do pão acabado de cozer fazia nascer água nas bocas mais exigentes. Porém, ninguém se atrevia a começar a comer antes de o rei Steinarr ocupar o seu lugar.

Guiada por Thora, rompi caminho por entre a multidão, recebendo e distribuindo cumprimentos, admirando as formidáveis paredes de pedra, iluminadas por tochas flamejantes, onde se destacavam pesadas tapeçarias e troféus de guerra, que faziam o orgulho da família de Steinarr há gerações. O rei tinha uma sala para guardar exclusivamente os troféus de caça, mas, neste momento, um fora exposto para deleite dos convidados. Tive dificuldade em aproximar-me, tantos eram os curiosos. Quando consegui, fui percorrida por um frêmito de horror. Os meus olhos encheram-se de lágrimas diante da cabeça de um animal que devia ter sido soberano no seu território. Era semelhante aos tigres do Norte, mas muito mais possante. A sua bocarra escancarada revelava presas maiores do que os meus dedos, detentoras de força suficiente para cortar um homem ao meio com uma única dentada. O seu pêlo possuía riscas pretas como as dos tigres comuns, porém, não era amarelo, mas branco como a neve. Esta era a criatura mais bela que eu já vira... Quem tivera coragem de lhe extinguir a vida decerto não tinha coração!

Enquanto eu estrebuchava na minha angústia, Thora mal se sustinha de tanto entusiasmo. Pela sua voz vibrante de orgulho, fiquei a saber que o animal fora abatido no início da Primavera, numa caçada organizada pelo rei. E quem o prostrara fora Ivarr!

— Dois deuses de guerra não se teriam batido tão feroz e dignamente! — declarou Eric, surgindo ao nosso lado. — Foi um dia que jamais esquecerei!

— Quem me dera ter estado convosco! — afirmou Thora, corada de excitação, como se imaginasse a luta do seu senhor com o fabuloso tigre branco.

— Haverá outras oportunidades! — replicou o seu prometido, enlaçando-me a mão com um sorriso enlevado.

Por trás de nós, choviam exclamações de espanto e maravilha. Seria eu a única pessoa presente no salão que entendia que privar a Mãe Natureza deste majestoso ser, para exibi-lo numa parede, não era um ato de se admirar e sim um tenebroso testemunho de vaidade?

— Já viste o que a louca da tua irmã fez ao cabelo, Edwina? — Ragnar aproximou-se, provocando Thora com uma gargalhada. — Mais parece uma selvagem dos países quentes do Sul!

Voltei as costas ao tigre branco, grata pelo oportunidade de me distrair da minha indignação.

— Pois eu acho que lhe fica muito bem! — contestei.

Ragnar saltou para trás, fugindo de Thora que tentava acertar-lhe com um soco, e embateu em Ivarr, Bryan e Ketill, que se juntavam a nós a tempo de escutar a conversa. Sucumbiram ao riso, enquanto Thora esboçava uma careta pouco lisonjeira.

— Pois, eu concordo com a Edwina! — replicou Eric.

— E eu também! — intrometeu-se Bryan, com um sorriso galanteador. — A Loba Prateada está cada dia mais bonita! Para azar da nossa garra guerreira, em breve não teremos de combater, pois os inimigos tombarão derrubados pelo encanto dos seus lindos olhos. — Deu um encontrão amigável a Eric. — Ainda não acredito que caíste na conversa deste parvo, Thora! Já pensaste em mandá-lo passear, e em aceitares a corte de um homem a sério... como eu?

Eric devolveu-lhe a investida, replicando alegremente:

— Tira daí a idéia! A Thora é uma mulher de bom gosto! Além disso, a nossa união está escrita nas estrelas...

Calou-se, respeitoso, pois o rei chegara ao salão acompanhado pelo jarl. As suas expressões graves denunciaram aos meus olhos que Steinarr já tomara conhecimento da Visão da minha mãe. Esperei que solicitasse a atenção dos seus homens e os avisasse de que deveriam preparar-se para entrar em combate. Todavia, ao invés, deu ordem para que os músicos começassem a tocar e o jantar fosse servido. De imediato, a mesa encheu-se com os chefes dos clãs viquingue e os generais do exército do rei. Os restantes convidados espalharam-se em animados grupos, enchendo as malgas com o saboroso guisado de coelho, ou deitando a mão a uma perna de cabrito assado. Dois escravos pousaram um suculento veado diante de Steinarr e do seu convidado de honra, sentado à sua direita. Fiquei pasmada ao ouvir o meu pai gargalhar com um comentário do amigo. Ter-se-ia esquecido de que «O Que Tudo Vê» corria perigo de morte?

— Vem comer, filha! — apelou. — O que é que se passa contigo? Estás pálida!

— A minha nora está a definhar de fome! — gracejou Steinarr. — Aproxima-te, Edwina! Senta-te aqui, à minha esquerda!

Eu pretendia ficar perto do meu pai, para falar-lhe, mas Steinarr voltou a insistir e não tive como declinar o convite. Respirei fundo, forçando-me a controlar os nervos. O meu pai sabia o que fazia... O meu pai não permitiria que atacassem «O Que Tudo Vê»...

Ivarr e os seus lobos também ocupavam um lugar na mesa, e foi com surpresa que constatei que o rei solicitara que Thora se sentasse perto dele. A predileção de Steinarr pela minha irmã foi-se tornando óbvia, ao longo da noite. Quando não estava a trocar impressões com o jarl, dedicava-se a enaltecer a destreza da mais jovem dos seus guerreiros. Não pude evitar questionar-me até que ponto essa afeição seria influenciada pela semelhança de Thora com Catelyn.

Estávamos a meio do jantar quando Magnor chegou, acompanhado por um grupo de rapazes, de tal forma barulhentos que se tornavam incômodos, mesmo entre o jubiloso frenesi. O príncipe agia como se a festa fosse sua, desfrutando da idolatria dos idiotas que o rodeavam, e divertindo-se a provocar os mais velhos. O seu alvo favorito era Ketill. Motivava-o o fato de o primo ser um guerreiro-lobo, ao passo que ele falhava sucessivamente nessa ambição. Contudo, Ketill ignorava-o com uma frieza admirável, como se Magnor não fosse digno da sua atenção.

Tentei distrair-me, comer um pouco, sorrir quando uma piada era contada, apreciar a música... Estava prestes a desistir, quando a conversa de Ketill atraiu a minha curiosidade. Na maior parte dos assuntos, as nossas opiniões coincidiam, o que me incentivou a partilhar idéias. Mal me habituei à intensidade do seu olhar verde, comecei a achá-lo muito inteligente e simpático.

A recepção incluiu cantorias, danças e exibições aguerridas das habilidades bélicas, que atingiram o auge quando o príncipe herdeiro desafiou o seu Primeiro Homem para um duelo. Ver Ivarr e Eric a digladiar-se, mesmo que num combate amigável, causou-me um desconforto brutal. E desenganou-se quem pensou que o subordinado não oporia resistência à supremacia do seu senhor! Ivarr teve de suar muito para desarmar Eric. Porém, quando finalmente o venceu, abraçou-o com um carinho fraternal, que arrancou aplausos da assistência. Fora uma boa luta!

Steinarr convidou o filho mais novo a exibir-se de seguida, deixando ao seu critério a escolha do oponente. Depois de tudo o que já ouvira, acreditei que Ketill seria o desafiado. E era evidente que o jovem pensava o mesmo, pois já fechava os dedos sobre o punho da espada. Todavia, Magnor planeava algo diferente:

— Muito se tem exultado, nesta noite e não só, o engenho da filha do jarl Throst da Ilha dos Sonhos, meu futuro genro. No último Festival de Verão, Thora tornou-se uma referência para aqueles que aspiram ser guerreiros, ao prostrar uma fera durante a Caçada. Na ausência de outro rival com a minha idade, experiência e destreza, é sobre ela que recai a minha escolha. De guerreiro para guerreiro, desafio aquela a quem chamais Loba Prateada a dar um passo em frente, e provar a sua aptidão, num combate de recompensa.

O clamor tornou-se quase insuportável. Durante anos, os combates de recompensa haviam sido usados para adquirir algo que não se podia negociar ou obter furtivamente, já que o vencedor tinha o direito de reclamar o prêmio sem contestação. Apesar de o desafiado poder recusar, para um guerreiro, virar as costas a um duelo, era uma desonra. Os convivas entreolhavam-se, confusos. O que possuía Thora que Magnor cobiçava? Conhecedor do caráter do filho, Steinarr fez a pergunta à cautela, e a resposta foi inesperada:

— A recompensa que pretendo é a pele da Loba Prateada.

O rei foi forçado a ordenar silêncio, pois a multidão bradava, tal a necessidade de manifestar o seu pasmo. A minha irmã estava rubra de fúria e Ivarr teve de segurar-lhe o braço para impedi-la de arremeter contra Magnor, antes que as condições do duelo fossem definidas. O meu olhar perscrutou o ardiloso príncipe. Para que queria ele o troféu de Thora? Decerto não planejava usá-lo! Esse ato não lhe traria prestígio; pelo contrário, cobri-lo-ia de ridículo! Mais uma vez, Steinarr deu vida aos meus pensamentos:

— Não preferes tentar a tua sorte numa futura Caçada, Magnor? O que te propões não te trará vantagem. Podes usar a pele da Loba Prateada, mas o seu espírito jamais te assistirá...

— Eu não pretendo cobrir-me com aquela pele ridícula, meu pai — contrapôs o insolente. — Quero destruí-la! Queimá-la na fogueira e gargalhar diante das suas cinzas! Como é que vai ser, Thora? A grande guerreira está com medo de enfrentar-me?

Thora tentou libertar-se de Ivarr. Desta feita, foi o meu noivo que replicou, bem alto e sem esconder a reprovação:

— O que estás a fazer é vergonhoso, irmão!

— Talvez não seja apenas a tua serva que treme diante do meu desafio! — desdenhou o outro. — O que se passa, afinal? O todo-poderoso Ivarr do povo viquingue não confia na aptidão de um dos seus guardas de elite?

Ivarr puxou bruscamente o corpo de Thora contra o seu, murmurando-lhe algo ao ouvido que a fez vacilar e parar de debater-se. Depois soltou-a, revidando:

— Eu confio a minha vida a qualquer um dos meus lobos...

— Quando se trata da Thora, caro irmão, não é a tua vida que está em causa... É aquilo que tens dificuldade em guardar dentro das calças, sempre que estás junto de uma mulher! E quantas senhoras que, neste preciso momento, se escondem por trás do seu rubor virtuoso, poderiam confirmá-lo? A minha questão não é contigo, Ivarr! A minha questão é contra essa ladra — apontou para a minha irmã —, que nada fez durante o último ano senão enganar e seduzir, para usurpar o que me pertencia por direito!

O meu pai levantou-se e eu temi o pior. O rei seguiu-o e deteve-o com uma expressão suplicante, enquanto apelava:

— Perdoa o meu filho, Throst! O Magnor é jovem e inconseqüente. Cuidarei para que seja castigado...

— Senhor, meu rei... — A voz de Thora sobrepôs-se à confusão, tinindo de raiva. — Devo admitir que tenho em minha posse algo que pertence ao príncipe Magnor.

O salão susteve o fôlego. Sem hesitar, Thora levantou a túnica e desatou com dedos destros o cinto que lhe adornava as calças... E antes que alguém pudesse esboçar um gesto, atirou-o à cara do horrorizado príncipe.

Para a maioria, a enorme trança de cabelo negro, ornamentada com uma fita vermelha e anéis de prata, não possuía um significado compreensível. Porém, aqueles que a reconheceram manifestaram o seu agastamento. Nessa noite, os Skald já haviam cantado a história da voluptuosa deusa da Floresta da Magia, que atraíra o príncipe para uma armadilha, impedindo-o de terminar a Caçada. Magnor alimentara o embuste durante meses! Agora, até os amigos lhe exigiam explicações. E a única coisa que ele tinha alento para balbuciar era:

— Não... Isso não é meu...

Porém, mal interiorizou que fora ludibriado por Thora, a sua língua soltou-se e enveredou por caminhos tortuosos:

— Sua traidora! Cabra nojenta! Filha de uma cadela vadia! Rameira...

Desembainhou a espada e, num piscar de olhos, arremeteu contra a minha irmã com a morte no olhar. Contudo, mais rápido do que Thora, Ivarr amparou o golpe e prostrou o irmão com um soco. Magnor caiu e escorregou pela pedra do chão. Ainda não recuperara o suficiente para levantar-se, já dois guerreiros o suspendiam pelos braços e arrastavam para fora do salão, por ordem do próprio rei.

As noites no Norte eram longas, mas esta estendia-se até à eternidade! Na minha cama, Thora adormecera finalmente, após um pranto convulsivo onde a raiva, a frustração, o desprezo e a repulsa quase a haviam ensandecido. Eu explicara-lhe que o interesse que Magnor demonstrara por ela se transformara em obsessão e, por fim, em ódio. Porém, não tinha a certeza de que esta fosse a verdadeira justificação para a atitude tresloucada do príncipe.

Após a sua explosão de insultos, Magnor fora conduzido à prisão do forte, onde permaneceria até o pai decidir libertá-lo. Steinarr reparara-se diante de Throst, e prometera-lhe que, em breve, o filho mais novo lhe apresentaria um pedido de desculpas. Atendendo à longa e verdadeira amizade que os unia, o meu pai aceitara o rogo, ajudando o rei a serenar os ânimos dos convidados e a salvar a festa, para que o assunto pudesse ser, senão esquecido, pelo menos desvalorizado. Era necessário evitar um escândalo que ferisse as relações entre os clãs.

Thora mantivera-se altiva, apesar de tudo. Com o olhar em chamas, Ivarr resgatara a trança do irmão e lançara-a para um dos braseiros. Se o tivesse feito quando devia, esta confusão teria sido evitada! Ele apercebeu-se do meu olhar crítico e voltou-me as costas, desgostoso. Eric quis amparar a prometida, mas ela afastou-o com uma brusquidão despropositada, e caiu nos meus braços. Trouxe-a para o meu quarto e falei-lhe com cuidado, até que admitiu:

— Eu agi muito mal! Por várias vezes, estive prestes a deitar fora aquela maldita trança, mas acabei por guardá-la, pensando que o Magnor merecia uma lição. Agora que obtive a tão almejada vingança, não alcancei glória, nem sequer satisfação. Sinto-me angustiada! Arrependida... Provoquei uma guerra entre pai e filho... entre irmãos! O rei e Ivarr vão zangar-se comigo, talvez castigar-me... E se o Ivarr decidir que eu já não mereço a sua confiança? E se quiser mandar-me para casa?

Confortei-a o melhor que sabia, ignorando o desalento do meu próprio coração. Sentia-me exausta, mas não conseguia fechar os olhos. O fantasma da infidelidade de Ivarr voltava para assombrar-me, reavivado pelo veneno de Magnor. Eu não pudera deixar de reparar nos rostos corados e na súbita perda do fôlego de algumas senhoras que se pretendiam respeitáveis, após a acusação cuspida para o ar. Num passado longínquo ou recente, Ivarr desfrutara dos seus favores!

Incapaz de manter-me na cama, deslizei para fora das cobertas, vesti o robe e abandonei o quarto. Precisava do meu pai, do seu carinho, da sua orientação... e, principalmente, de saber por que razão o rei ignorara a Visão da minha mãe. Abri a porta do quarto do jarl de supetão, sem sequer me lembrar de bater, e estaquei ao verificar que ele não se encontrava só. Acomodados ao seu lado, diante da lareira, fumando folhas de cheiro doce, estavam Steinarr e Ivarr.

— Peço desculpa — murmurei embaraçada. — Não pretendia interromper. ..

— Junta-te a nós, filha — convidou-me com um gesto acolhedor. — Esta conversa também te diz respeito.

Avancei até eles e sentei-me no tapete macio. O olhar insistente de Ivarr provocou-me um rubor desconfortável. Steinarr sorriu, por entre o fumo que se elevava da folha que lhe pendia dos lábios. Senti-me aliviada quando o meu pai quebrou o silêncio, perguntando:

— Como está a Thora?

— Deixei-a a dormir... — Fixei o olhar em Ivarr, antes de prosseguir. — Ela está arrependida de ter guardado a trança... E ainda mais de tê-la usado contra o Magnor. A Thora não é vingativa, nem maldosa!

— Eu sei, Edwina — volveu o príncipe, com uma calma que me devolveu a esperança.

— Vais castigá-la? — insisti, sem ocultar a ansiedade.

Ivarr levou a sua folha aos lábios e inspirou profundamente, antes de responder:

— Vou falar-lhe... Contudo, não vejo motivos para puni-la. Seria injusto se não admitisse parte da culpa pelo que aconteceu. Tu bem que me avisaste! — Deteve-se, sorrindo ao constatar a meu espanto ante tal admissão. — A Thora tem muito que aprender... Mas eu também! Se quero mantê-la ao meu lado, devo perceber, de uma vez por todas, que não posso esperar que reaja como um dos rapazes... Porque ela é diferente! E é nessa diferença que reside a sua força, a sua magia.

— Esta noite, todos aprendemos alguma coisa! — declarou o rei.

— Eu tenho sido muito condescendente com o Magnor, confiando que o tempo e a experiência lhe trouxessem maturidade. Porém, não posso permitir que a árvore continue a crescer torta, ou jamais recuperará o porte correto! Dois ou três dias à sombra hão de vergar a sua arrogância. Não admito insurrectos debaixo do meu teto!

Eu duvidava que o cativeiro fosse a solução adequada para corrigir a personalidade retorcida do jovem príncipe. Porém, agora que tivera a confirmação de que a minha irmãzinha não sofreria pela sua insurgência, o destino de Magnor pouco me interessava. Viera ao encontro do meu pai para indagar da decisão do rei, quanto à sorte do meu bisavô, e, já que o destino me proporcionara a oportunidade de confrontar Steinarr diretamente, não pretendia desperdiçá-la:

— Calculo que o meu pai já contou a vossa alteza sobre a Visão da minha mãe, a qual revelou que «O Que Tudo Vê» se encontra em perigo...

— Edwina... — atalhou o jarl, num tom admoestador.

— Deixa-a exprimir-se livremente, Throst — replicou Steinarr. — Serei muito infeliz, no dia em que uma mulher da minha casa se sentir constrangida ao falar comigo. — Estendeu-me a folha onde acabara de enrolar as minúsculas ervas doces, e não tive como recusá-la. — Antes de mais, Edwina, devo explicar-te que, desde que o meu povo guarda memória, os seres humanos evitam o território da rainha Lyria. O próprio «O Que Tudo Vê» recomendou-me que, se eu tivesse necessidade de lhe falar, lhe enviasse a mensagem por um dos meus falcões. Conheço bem o poder de Visão da tua mãe e jamais ousaria questioná-lo... Mas a sua premonição coloca-me numa posição delicada! A Catelyn viu que «O Que Tudo Vê» seria atacado por Aesa... mas não viu onde, nem quando! — Ergueu a mão para conter o meu protesto. — Sei que vais argumentar com as árvores que bradavam como homens... E eu estou tentado a concordar! No entanto, reunir um exército e marchar rumo à Floresta de Lyria, ainda que este se mantenha na fronteira, aguardando por um sinal da ameaça que a tua mãe profetizou, será entendido como uma declaração de guerra.

Engoli em seco, com o coração acelerado. Eu até entendia a sua justificação... mas não podia aceitá-la! O fumo doce que consumia o ar começava a perturbar-me, a libertar os meus sentidos da influência da razão. Olhava para Steinarr e não via um rei com um poder ameaçador... Via um homem marcado pelo destino e pela infelicidade, que sempre remetera os seus desejos ao esquecimento, para satisfazer as necessidades do nosso povo. E, mais uma vez, pesava sobre a sua cabeça uma decisão de vida ou de morte. Era certo que arriscar um conflito com o Povo da Terra era loucura... Mas também não podíamos abandonar «O Que Tudo Vê»!

— Está a dizer-me que não pretende fazer nada? — inquiri audaciosamente.

— O rei já ordenou que os chefes de clã reunissem os seus generais e ficassem atentos ao nosso apelo — contrapôs o meu pai. — Por enquanto, querida, pouco mais há a fazer.

— Para além do poder mágico, próprio da sua raça, o Povo da Terra não desconhece a arte da guerra — continuou Steinarr. — Os Vândalos terão de ponderar bem a sua estratégia de ataque! E nós devemos aguardar que «O Que Tudo Vê» se aperceba dos seus planos e nos envie um sinal. Pouco mais de dois dias separam-nos dos domínios de Lyria. A rainha tem meios para resistir até à nossa chegada...

— E se o meu bisavô estiver incapaz de solicitar ajuda? — contestei, enfrentando o olhar cristalino sem temor.

— Como assim? — revidou o rei.

— A magia de «O Que Tudo Vê» está a extinguir-se... — Eu nem sequer sabia por que dissera isto. Inesperadamente, o olhar verde de Steinarr cedera lugar a uma floresta luxuriante, prenhe de vida, de energia... de encanto. A tênue claridade matinal ainda mal penetrava pelas copas das árvores, mas era suficiente para iluminar o caminho de uma centena de guerreiros duros, de aspecto atemorizador, que se moviam com a agilidade e a discrição de espectros. A espiá-los, ocultos entre os ramos cerrados, encontravam-se homens altos e esguios, de uma perfeição e fragilidade quase feminina. — Não! — gritei, assolada pelo horror. — Ides morrer todos!

— Edwina...

Era a voz do meu pai... ou a voz de «O Que Tudo Vê» que me chamava? Os homens belos movimentaram-se sobre os ramos, preparando os seus arcos para o ataque. Contudo, antes que a primeira flecha fosse disparada, o guerreiro que liderava os Vândalos deitou a mão à flauta que lhe pendia do pescoço e soprou-a... Não se escutou um som. No entanto, os homens que se ocultavam nas árvores começaram a cair como folhas secas, sangrando abundantemente dos ouvidos...

— Não!

— Edwina!

Encarei o meu pai, sem compreender por que ele se encontrava na floresta... Então, a realidade sobrepôs-se à Visão e desvendou o quarto do castelo, o fogo esperto da lareira e o assombro do rei e do seu primogênito.

— Edwina... — tornou o meu pai. — O que foi, querida? De repente começaste a estrebuchar; a gritar coisas sem sentido...

O meu rosto estava encharcado... em lágrimas, e não só! Levei as mãos aos ouvidos, sentindo-me tonta e indisposta. Os três homens soltaram uma exclamação de surpresa quando as revelei, cobertas de sangue.

— Está a acontecer... — murmurei, buscando o olhar do jarl, terrivelmente assustada. — Não chegaremos a tempo!

Ivarr levantou-se, tão depressa que me sobressaltou.

— Pai, a Edwina tem razão! Temos de avançar rápido, ou só nos restará cremar os mortos!

Seguiu-se uma pausa, dominada por um silêncio atemorizador. Steinarr fitou o meu pai, que lhe manifestou o seu apoio com um gesto resoluto. Por fim, voltou-se para o seu herdeiro:

— Vai adiante com os teus lobos e deixa marcas que possamos seguir... Mas não corras riscos antes de nós chegarmos!

— Não! — gritei, mas a minha voz soou rouca e distorcida como se embriagada. — Não podes... levar a Thora para... o meio... daquele.... pesadelo...

Cada uma das minhas pestanas pesava mais do que uma saca de cereais. Fechei os olhos, com o corpo a desfalecer nos braços do meu pai... E a escuridão cobriu-me e arrancou-me à realidade.

 

O rei Steinarr decidiu que as trompas de guerra não seriam sopradas. Assim, os nossos movimentos passariam despercebidos ante os espiões inimigos. Todavia, a sua ordem voou de boca em boca com uma rapidez impressionante. Mal a manhã nascera, o pátio enchia-se de homens armados até aos dentes, envergando escudos sólidos e algumas armaduras de couro e ferro. O passar dos anos e o contacto com outros povos havia aperfeiçoado os métodos de defesa do exército viquingue, que agora podia contar com mais artifícios para sua proteção do que a temida e lendária coragem, que os levara, no passado, a correr cegamente ao encontro do aço dos seus opositores.

Trajei-me da mesma forma que os homens, e Steinarr ofereceu-me uma cota de malha. Aceitei guardar um punhal na bainha da bota e uma espada curta no cinto, mas nada mais. De qualquer forma, não tinha intenção de usá-los. Mesmo que um inimigo rompesse a nossa defesa e chegasse até mim, eu possuía outros recursos para neutralizá-lo.

Enquanto os líderes davam as últimas instruções aos seus guerreiros, acariciei a Lágrima do Sol, que repousava dentro da bolsa que me pendia da cintura. Fechei os olhos, sustive o fôlego e lancei a mente ao encontro de Thora. Quase no mesmo instante, fui invadida pela sua ansiedade. A força da cavaleira fundia-se com o poder bravio da sua montada, o vento glacial chicoteava-lhe o rosto, a umidade colava-se à pele... A exaltação do perigo embriagava-lhe os sentidos.

Eu ainda estava inconsciente quando Ivarr deixara o castelo com os seus lobos. Entristecia-me não me ter despedido da minha irmã, não lhe ter desejado boa sorte e aconselhado cautela. Ao despertar, zangara-me com o meu pai, por ele ter consentido que ela alinhasse numa missão tão arriscada. Com muita paciência e carinho, o jarl replicara:

— Não posso dizer que estou satisfeito com a escolha da Thora, mas devo respeitá-la. A tua irmã é uma boa guerreira! Confia nas suas capacidades... como eu confio nas tuas!

Na verdade, eu não podia queixar-me de falta de confiança. Neste momento, o rei do povo viquingue mobilizava o seu exército apoiando-se no meu julgamento. Steinarr nem questionara o fato de eu ter sido acometida pela Visão no preciso instante em que tentava fazer valer a minha vontade. A fé que depositava nas mulheres da família do jarl era digna de admiração!

Montei na égua dócil que já conhecia e coloquei-me ao lado do meu pai. Nunca cavalgara com um exército e receava não ser capaz de acompanhar o ritmo dos guerreiros. O rei deu a ordem de partida e o chão pedregoso estremeceu debaixo dos cascos dos cavalos e das botas dos homens. Quando começava a bater o queixo, devido ao frio cortante que se enroscava no vento, a Lágrima do Sol pulsou como um coração de encontro à minha barriga, espalhando calor pelo meu corpo. Senti-me um pouco mais confortável e forcei-me a ignorar as nuvens negras que cobriam o céu. «O Que Tudo Vê» morreria se o auxílio não chegasse a tempo. Eu estava determinada a ser tão dura como o mais feroz dos guerreiros. Não permitiria que a coluna se atrasasse por minha causa!

A noite já tombara, mas Ivarr e os seus lobos continuavam a avançar. A Terra dos Carvalhos ficara para trás e, diante deles, estendia-se o bosque que precedia a Serra Rochosa. Estavam habituados a caçar, por isso a bruma não os incomodava. Carregavam um único archote, cuja luz era dividida pelos cinco homens e suas montadas. Thora e Bravo não necessitavam de claridade para se manter no trilho e se desviar dos ramos aguçados das árvores.

Um relâmpago tingiu de vermelho o negrume do céu. A escuridão regressou, mas o silêncio foi profanado pelo clamor do trovão. Por trás de Thora, Eric resmungou:

— Só cá faltava uma tempestade para nos atrasar!

— Enquanto não chover... — começou Ragnar, mas deteve-se ao sentir os primeiros pingos de água a molhar-lhe o nariz.

— Estavas a dizer alguma coisa? — ironizou Bryan; a sua voz abafada por um novo trovão.

— Maldição! — praguejou o outro. — Detesto combater debaixo de chuva!

— Já pensaste no que dirás a Lyria, se a Edwina estiver enganada, Ivarr? — perguntou Ketill, que seguia cautelosamente o primo através do carreiro íngreme. — A rainha pode encarar o nosso ingresso nos seus domínios como um desafio à sua autoridade!

— Se bem conheço a Edwina, neste preciso momento essa Lyria está a rezar para que o nosso exército chegue — revidou Thora.

— Custa-me a acreditar que tudo isto tenha acontecido debaixo do nosso nariz, sem que nos apercebêssemos — resmungou Ragnar.

— A Edwina sabe o que diz! — defendeu-me Eric. — Tê-la-ia «O Que Tudo Vê» escolhido para sua herdeira, se não possuísse o poder da Visão?

Thora apoiou-o, justificando com clareza:

— A Edwina possuiu uma habilidade ainda mais impressionante do que a vidência. A sua essência é capaz de viajar ao encontro de amigos e de inimigos; fundir-se na mente dos que lhe são próximos e, através dessa união, interferir nos acontecimentos, como se os presenciasse. Agora mesmo, ela está a observar-vos com os meus olhos e a escutar a nossa conversa...

— Isso é arrepiante! — exclamou Ketill. — A Thora está a falar a sério, Ivarr? A tua noiva está aqui, conosco?

Ivarr olhou por cima do ombro e incitou o seu cavalo a apressar-se, volvendo:

— Para teu bem, aprende que tudo é possível, quando se trata das mulheres desta família! Agora, chega de conversa! Estamos a perder tempo!

Céus, como eu odiava o frio! Se não fosse a proteção da Lágrima do Sol já teria morrido gelada. Estava encharcada até aos ossos e sentia-me desconfortável e dorida, prestes a desmaiar devido ao cansaço provocado pelo dia e meio de viagem. Desde que saíramos do castelo, mal tínhamos parado para comer e dormir.

A trovoada concedeu-nos uma trégua, mas a chuva continuou a cair. Saímos da Floresta dos Carvalhos para debaixo do negrume da noite. Diante de nós estendia-se a Serra Rochosa, com os seus carreiros lamacentos ladeados por rochas pouco estáveis, algumas das quais terminavam em precipícios mortais. Seria loucura prosseguir nestas condições, por isso, o rei e o jarl acordaram em montar acampamento. Eu nem imaginava como Ivarr e os seus lobos haviam avançado a cavalo pelos trilhos inundados da serra traiçoeira, sem se magoarem.

A nossa direita, estendia-se uma floresta sinistra e quase impenetrável — a Floresta Sombria, covil do povo vândalo. A mera proximidade do reduto da Senhora da Lua encheu-me de calafrios. O jarl apercebeu-se do meu incomodo e atraiu-me para o aconchego dos seus braços. A tenda de pele que trouxera tornou-se o mais acolhedor dos refúgios. Assim que me aninhei no seu peito e senti a carícia dos seus lábios na minha testa, entreguei-me ao sono.

Durante um tempo indefinido flutuei num mar de tranqüilidade. Então, subitamente, fui acometida por uma indisposição frustrante. A minha cabeça rodopiou e a boca desfez-se em água. Queria acordar e não conseguia. Tinha a distinta percepção dos braços do meu pai a ampararem-me... Não! Não eram os braços do meu pai! Eu estava rodeava pela escuridão opressiva da floresta e Ivarr murmurava-me suavemente ao ouvido:

— Respira fundo, Thora... A primeira vez é difícil, até para o mais duro dos guerreiros.

A minha irmã acabara de vomitar, e as emoções violentas que a trespassavam forçavam-na a tremer sem parar. Os seus olhos ergueram-se, toldados pelas lágrimas, e revelaram-me a barbárie que a prostrara.

Ivarr e os seus lobos tinham chegado ao local onde a floresta testemunhara uma terrível batalha. Duas raças distintas haviam medido forças: o Homem e o Povo da Terra. Apesar da chuva que tombara entretanto, o solo ensopara tanto sangue que se mantinha vermelho. Os cadáveres dos guerreiros humanos encontravam-se cuidadosamente empilhados e o fogo fora usado para lhes abrir caminho até ao seu deus... Porém, os sucessivos aguaceiros haviam extinguido as chamas e deixado os corpos meio carbonizados, meio chamuscados, meio intactos: cinza, osso, carne e líquidos pútridos, por entre pedaços de roupa esfarrapada e suja e alguns objetos de metal. Por sua vez, os cadáveres do Povo da Terra haviam sido empalados em lanças e estripados, para que diante de cada corpo se formasse uma poça de sangue, vísceras e fezes. Muitos tinham braços e pernas amputados, abandonados ao seu redor numa mistura mórbida. Nenhum fora poupado à decapitação. As suas cabeças pendiam dos ramos das árvores, suspensas pelos longos cabelos, voltadas para a pilha de adversários para que, dessa forma, os seus espíritos condenados ao tormento eterno presenciassem a salvação daqueles que haviam perecido às suas mãos, quando o fogo libertador os consumisse.

No fim, a natureza não poupara vencidos nem vencedores. A chegada dos nossos guerreiros afugentara as criaturas da floresta, que se haviam banqueteado com as carnes e os fluídos dos cadáveres. Apesar do ar gélido impedir a decomposição rápida, o fedor da morte empestava o ar, de tal forma que se tornava difícil respirar sem sucumbir aos vômitos.

Eric ajoelhou-se junto de Ivarr, que ainda sustinha Thora, mostrando-lhe o amuleto que resgatara à pilha de corpos. Na chapa de metal estava entalhado um corvo com um ramo de espinheiro no bico.

— Vândalos — confirmou.

— A guarda avançada de Lyria surpreendeu-os — concluiu Ivarr. — Presumo que a Gente Bela conseguiu organizar a defesa da sua cidade... De outra forma, esses cães danados não teriam perdido tanto tempo aqui!

— Há rastos adiante — informou Bryan. — Um exército abriu caminho através da floresta... Talvez uma força comparável à que nos segue.

— Uma ofensiva deste vulto contraria o método de ação dos Vândalos — observou Ketill. — Eles sempre preferiram desgastar o inimigo com pequenas escaramuças...

— Estão atrás de qualquer coisa — inferiu Ivarr. — E dispuseram-se a alcançá-la a todo o custo. Não sei se Lyria possui condições para repelir um ataque desta envergadura!

— Mas, como podem os Vândalos vencer a Gente Bela? — questionou Ragnar, confuso. — Não são estes uma casta de Feiticeiros? E têm «O Que Tudo Vê» do seu lado...

— A magia do Povo da Terra não é uma magia guerreira — replicou Ivarr, gravemente. — «O Que Tudo Vê» está velho e débil... E os Vândalos desfrutam da proteção e da liderança de Aesa, que se fortalece a cada dia com as almas que devora... Temo que cheguemos demasiado tarde!

Eu não sabia definir em que parte o pesadelo se confundira com a Visão... O rei e o jarl escutaram-me com o sobrolho franzido, mas não me questionaram. De imediato, os guerreiros receberam ordens para prosseguir a marcha. O dia estava prestes a nascer, mas os raios de Sol seriam impotentes para trespassar o manto de nuvens que ocultava o céu. Adivinhava-se outra tormenta.

Iniciamos a travessia penosa da serra, avançando dois passos e escorregando um na direção oposta. Felizmente, parara de chover durante a noite e a água já só corria a fio por entre as pedras traiçoeiras. Ainda assim, muitos guerreiros altivos e pomposos acabaram com a cara enterrada na lama, engolindo o orgulho debaixo das gargalhadas dos companheiros.

A Floresta Sombria era um mar de verde ondulante, que se fundia com o tenebroso céu de cinza. Avistei os domínios do Povo da Terra do topo da garupa da minha égua. A floresta de Lyria estava envolta num tapete de nevoeiro tão denso, que mal nos permitia ver as copas das árvores. Os guerreiros acotovelaram-se, questionando-se acerca do fenômeno. Seria fruto de um sortilégio da Gente Bela, para se resguardar dos seus inimigos? O que aconteceria quando a bruma nos envolvesse nas suas garras geladas? Havia quem jurasse que um nevoeiro como aquele já sugara a vida de verdadeiros gigantes! Steinarr teve de se insurgir contra a imaginação galopante de alguns homens, para serenar os ânimos. Eu observava atônita o que a superstição, conjugada com o cansaço, podia fazer com bravos que, em condições normais, não hesitariam em saltar para a frente de um touro enfurecido.

A descida da serra foi muito complicada. O meu pai dominava a sua montada com firmeza; os olhos semicerrados fixos adiante, como se visse e escutasse mais além do que os companheiros. Decerto, este era o último lugar onde desejava que as suas filhas estivessem. Steinarr também devia encontrar-se prisioneiro de pensamentos obscuros, pois a sua expressão ensombrava-se a cada passo. Os homens haviam mergulhado num silêncio lúgubre, interrompido por um palavrão ocasional sempre que alguém escorregava.

Quando chegamos ao vale, eu já mal continha a impaciência. A chuva recomeçou a cair nesse instante, e a imensa nuvem de nevoeiro principiou a desvanecer-se. Esquecidos da crendice que há pouco os cobrira de suores frios, os guerreiros ergueram as armas e exultaram ante a expectativa de uma boa batalha. Se da bruma surgisse uma criatura grotesca e minaz, tê-la-iam enfrentado com um sorriso nos lábios.

Não tardamos a encontrar os cavalos dos nossos batedores a pastar no campo. O comportamento dos animais dos Homens tornava-se instável quando pisavam terreno sagrado, e Ivarr certamente decidira que se ocultariam melhor se avançassem a pé. Apoiado no mesmo raciocínio, o meu pai pediu-me que desmontasse, e todos aqueles que seguiam a cavalo imitaram-me. Os animais estavam bem treinados e aguardariam pelo nosso regresso, a não ser que alguma fera os espantasse.

A chuva cessou como por encanto, quando entramos na Floresta de Lyria. Sobre as nossas cabeças, as copas das árvores entrelaçavam os ramos e impediam a passagem da débil luz da manhã. Steinarr deu permissão para que se acendessem archotes. Era possível saborear no ar uma energia de tormenta. Mal nos atrevíamos a respirar na malignidade do silêncio absoluto que nos envolvia. Não me recordava de alguma vez ter presenciado esta total ausência de som no mundo dos vivos. Simplesmente, não era natural que os insetos não assobiassem, que os roedores não chiassem, que as feras não rugissem, que os pássaros não piassem... que o vento não silvasse ao chicotear as folhas das árvores. A chuva tornara o solo mole, por isso nenhum ramo estalava por baixo das nossas botas. Crescia em mim a necessidade de gritar e romper este vazio. A angústia massacrava-me a cada passo. As sombras bailavam ao nosso redor e era difícil manter os fachos a arder. Cerrei os olhos, temendo ser acometida pela visão dos espíritos da floresta a alimentarem-se do medo dos Homens. O meu instinto avisava-me que nos encontrávamos perto de um pico de energia. Encostada ao meu ventre, a Lágrima do Sol aqueceu, até o seu fulgor se tornar quase insuportável. O murmúrio do meu pai, praticamente inaudível em qualquer outra ocasião, ressoou-me aos ouvidos:

— Mantém os olhos no chão, querida. É escusado que presencies este horror...

Por que é que quando recebemos um conselho o nosso primeiro instinto é contrariá-lo? O fedor da morte cortou-me a respiração, e não tardei a deparar-me com o apavorante cenário do meu pesadelo. O passar do tempo só agravara a abominação. A pilha de cadáveres mal ardida, em medrada putrefação, fermentava pestilência. Ao evitar a visão dos corpos mutilados do Povo da Terra, deparei-me com as suas cabeças agitando-se à vontade do vento, quais terrificantes frutos maduros e sumarentos. À distância do meu braço, o rosto eternamente atormentado de um jovem; a pele cinzenta luzidia ante o fogo; os lábios negros escancarados, revelando dentes ofensivamente brancos e perfeitos; os olhos revirados nas cavidades; os cabelos louros, tingidos pela morte, emaranhados nos ramos de uma árvore, deixando a descoberto as orelhas ensangüentadas... De súbito, sob a minha horrorizada observação, os seus olhos ganharam vida e a boca moveu-se num sussurro impossível; numa última súplica de plena agonia:

— Salva o meu povo, Rainha do Sol...

Gritei. Gritei até sentir que a garganta se fendia, e continuei a gritar. Dominada pelo pânico, corri às cegas, embrenhando-me no desconhecido. Atrás, o meu pai apelava e os guerreiros comiam lama no meu encalço. Mas eu não parava...

Perdi a noção do tempo. Perdi a noção de tudo o que não fosse o calor da Lágrima do Sol, que me instigava adiante. Na minha mente materializava-se uma Visão medonha. «O Que Tudo Vê» de joelhos, apoiado no seu bastão num equilíbrio precário, a sua energia consumindo-se a cada fôlego — a energia que alimentava o escudo de luz que cercava uma cidade suspensa das árvores. No topo de uma torre que se erguia entre dois troncos centenários, uma mulher de cabelos negros, pele branca e incríveis olhos azuis escuros, chorava. A sua figura alta e esguia ameaçava ruir, qual coluna de gelo fino exposta ao Sol abrasador. Também o seu vigor fraquejava., e o nosso desespero fundia-se, acendendo o seu assombro ao reconhecer-me.

— Vieste, Rainha do Sol... Posso ter esperança, mais uma vez!

Ao seu esplendor sobrepôs-se o negrume da floresta. Aguardando na obscuridade, um exército de magníficos guerreiros iniciou o incitamento de uma fúria secular, prontos para acometer contra a cidade e esmagar tudo o que respirasse, assim que a magia do Guardião da Lágrima do Sol cedesse. Em frenesi, bateram com os pés e os escudos, ergueram as armas ao céu e clamaram com um ímpeto selvagem. O silêncio estava irremediavelmente profanado.

Um guerreiro fabuloso destacou-se dos demais. Era tão possante como Steinarr e a sua firmeza sombria refletia-se nos traços fortes do rosto, no azul intenso do olhar. Não precisei de buscar a verdade nos seus pulsos... Não necessitei de ver as tatuagens do Dragão da Lua, para reconhecer que no seu corpo pulsava o sangue da minha família paterna. Este homem era muito mais do que um Vândalo... Era um descendente de Aesa! Então, inesperadamente, deparei com outra força entrançada na sua essência; magia da mais rica — a proteção de uma feiticeira. Contudo, havia algo de errado nesta associação! No instante em que as nossas energias se defrontaram, eu deveria ter sido implacavelmente repelida... Porém, tal não sucedeu! Existia uma fraqueza na sua perversidade; uma luz que teimava em romper a obscuridade da sua magia... uma curiosidade que, se me atrevesse a um devaneio ingênuo, acreditaria tratar-se de inocência. A mulher que protegia o líder inimigo não era Aesa!

A minha corrida alucinada foi brutalmente interrompida por um esticão que me derrubou. Uma mão forte amordaçou os meus berros, mas só parei de debater-me quando a minha mente aceitou o reconhecimento de Ivarr. O regresso da sanidade veio com a percepção de que acabara de cometer um erro imperdoável. Denunciara a nossa presença aos Vândalos! Continuavam a escutar-se gritos e batuques, o chão estremecia sob o compasso dos pés... só que estes galopavam na nossa direção.

Atordoada, vi Ivarr desembainhar a espada. Eric e Ketill surgiram ao seu lado, saídos do nada. Bryan abandonou as sombras, um pouco adiante. Não muito longe vislumbrei Ragnar... E Thora acabara de me segurar no braço.

— Vem — apelou com uma urgência que não ousei contestar. — Eu ajudo-te a subir a uma árvore.

Thora parecia um esquilo, saltando de tronco em tronco sem hesitação. Mas o que mais me impressionou foi a força com que me içou, amparando o meu corpo avantajado com a mesma facilidade com que um homem o faria. Já muitas vezes eu elogiara o vigor da minha irmã, mas nunca o experimentara. A habilidade de Thora facilmente se tornaria fatal para um inimigo, que jamais adivinharia o potencial que a sua aparência frágil escondia.

Quando se certificou de que eu estava segura, ordenou autoritariamente:

— Aconteça o que acontecer, não saias daqui!

E deixou-se cair, tal como eu a vira fazer no seu ritual de iniciação, enrolando braços e pernas nos ramos durante a queda, até atingir o solo sem um arranhão, de joelhos flexionados e espada desembainhada. Ao seu lado, Ivarr e Eric miravam-na, orgulhosos. Depois, os seus rostos ensombraram-se com a concentração.

Um Vândalo irrompeu de entre as árvores e foi de encontro à espada do príncipe viquingue. Mal o seu corpo tombara, já Ivarr se debatia com outro inimigo. Eric evitava os espigões de um escudo lançado à sua cabeça, enquanto atacava as pernas do adversário. Ketill desviara-se de uma lâmina mortal e amputava o braço do agressor sem contemplações. Bryan e Ragnar haviam unido as costas e enfrentavam três gigantes, quatro, cinco... Um homem com o dobro do tamanho de Thora investiu contra ela de espada em riste. A minha irmã desviou-se; a lâmina rasgou o ar e enterrou-se no chão lamacento. Ao perceber que o rapazote que o desafiava era, afinal, uma moça, o Vândalo desatou às gargalhadas. Recuou na sua intenção de feri-la, tentando acertar-lhe com um soco que, julgava ele, a deixaria inconsciente e a tornaria na prenda ideal para o desfrute do seu líder. Quando o punhal de Thora lhe rasgou a garganta, o seu olhar acusou incompreensão. Amparou as golfadas do seu próprio sangue com as mãos, mas não teve tempo para pensar na morte, pois o aço da Loba Prateada trespassou-lhe o coração.

Senti a comoção da minha irmã explodir-me no peito, mas a vida que se extinguia aos seus pés não a transtornou. Cruzou o punhal e a espada para se defender do ataque de mais um inimigo, aproveitando um desequilíbrio do homem para chutá-lo na barriga, enquanto lhe dilacerava a pele fina do pescoço com uma lâmina rubra de sangue. E, sem hesitações nem remorsos, a Loba Prateada escolheu a próxima presa...

O meu pai saltou para o centro da ação com um urro aterrador. Seguiu-se Steinarr e os nossos guerreiros. Os dois exércitos encontravam-se e digladiavam-se com um fervor incendiado pelo ódio que os opunha desde o início dos tempos. Por baixo de mim, agitava-se um tapete feito de carne, sangue e suor. A confusão era tamanha que se tornava quase impossível distinguir Viquingues de Vândalos. Por entre a luz dos archotes, que eram utilizados como armas ou largados no solo pelos que tombavam, vi a cabeça loura do meu pai movendo-se com uma exaltação feroz. As lâminas chocavam e libertavam faíscas em todas as direções. O estrondo dos escudos, do metal e da madeira que se partia, misturava-se com os rangidos dos ossos quebrados, com os gritos de dor e de raiva... A morte sorria e esfregava as mãos.

Comecei a ficar tonta; a vista a turvar-me. Fechei os olhos, contendo o vômito a custo. Quase de imediato, fui invadida pela Visão do líder vândalo a soprar na sua flauta amaldiçoada. O som, que os ouvidos eram incapazes de escutar, começou a corroer a energia protetora do escudo, a abrir buracos na defesa da cidade. Ignorando o grosso do seu exército que se batia com o nosso, o general de Aesa persistia no seu objetivo... e estava prestes a alcançá-lo.

— Edwina...

— Avô...?

«O Que Tudo Vê» usava os últimos recursos, para que o apelo da sua mente chegasse até mim. Deixei-me abraçar pelo seu poder e entreguei-lhe a minha vitalidade, a fim de sustentar o escudo que protegia o reduto da Gente Bela. Contudo, alimentar a sua essência era insuficiente. A força mágica que movia o inimigo não recuava diante da vontade do feiticeiro ancião. Eu tinha de fazer alguma coisa. Eu, e não Hakon! O destino desafiava-me a decidir entre a vitória e o fracasso.

Retirei a Lágrima do Sol da bolsa e envolvi-a nas mãos, assimilando o seu calor, que aumentava com o pulsar do meu coração. Toquei na consciência do meu mestre e suplantei-a, atingindo um nível de poder que me permitiu reconhecer cada partícula que formava o escudo de energia que detinha o avanço dos Vândalos. A voz da flauta do herdeiro de Aesa era agora ensurdecedora; magia negra que se transformava em som e destruía como fogo... a mesma energia sombria que enfrentara no dia em que fundira a minha essência com a de Edwin! Aquele dia que tentava desesperadamente apagar da memória...

Ouvi-me gritar, sem saber se o fazia com o corpo ou a mente. A tenebrosa música quedou-se, suspensa no ar, enquanto o brilho fulgurante da Arte Luminosa trespassava o olhar azul do Vândalo, a força do seu sangue, e compelia a sua protetora a estremecer. Não, esta feiticeira não era Aesa! Era uma jovem, pouco mais velha do que eu... e a sua essência, apesar de servir o mal, ainda conservava vestígios de pureza, tal como a de Edwin. Eu tinha de esvaziá-la do seu poder antes que ela consumisse o meu. Concentração total... Determinação absoluta. .. A aprendiz da Arte Obscura não era rival para a futura Guardiã da Lágrima do Sol!

Fixei-me na sua candura e alimentei-a, limpando-lhe a alma, sentindo-a fraquejar a cada fôlego. Parte dela relaxava e entregava-se ao conforto da luz... A outra, clamava por socorro, ciente de que eu podia destruí-la... e ao guerreiro que partilhava a magia do seu sangue. Todavia, a sua súplica não obtinha resposta. Teria Aesa abandonado a pupila? Ou já fora derrotada por «O Que Tudo Vê», nesta guerra de vontades?

Eu estava perto... Cada vez mais perto... A jovem gritou e as suas defesas ruíram. Por um momento, vi-a de relance, alta e magra, com longos cabelos castanhos acobreados e olhos... brancos? Sim, a minha adversária era cega!

Nesse instante, capturei o seu espírito; um pássaro indefeso nas minhas mãos. Bastar-me-ia fechar os dedos para destruí-la sem cansaço... E, se a destruísse, o chefe vândalo que dependia dela também pereceria! Esta sangrenta batalha terminaria de imediato, e muitas vidas seriam poupadas. Um simples gesto para acabar com o pesadelo... Porém, fui incapaz de concretizá-lo. Recuei bruscamente e abandonei-a ao esquecimento.

O colossal guerreiro berrou como se a sua alma tivesse sido arrancada, enquanto a flauta amaldiçoada se desfazia nas suas mãos, numa miríade de grãos de pó que o vento se encarregou de dispersar. Tombou de joelhos, rosnando a sua frustração. Diante dos seus olhos, o escudo de energia que protegia a sua presa recompunha-se. A cidade do Povo da Terra estava a salvo da sua intenção destruidora... Porém, o seu ódio clamava por vingança! E a cabeça do rei viquingue encontrava-se à distância de uma batalha, onde ele possuía uma incontestável vantagem.

Ergueu-se com um salto e ordenou aos seus homens que o seguissem. O pavor quebrou-me a concentração. Regressei dolorosamente à minha consciência. A Lágrima do Sol caiu-me das mãos e precipitou-se no vazio, enquanto me esforçava por me segurar ao tronco e evitar uma queda fatal. No solo, os Viquingues tinham dominado os seus inimigos, à custa de muitas vidas. Pisquei os olhos, enevoados e lacrimosos, buscando aqueles que me eram queridos. Os corpos tombados causavam-me um horror profundo. Nunca me vira tão perto da morte... E o pesadelo estava longe de findar!

— Vândalos... — bradei, na esperança de que alguém me escutasse. — Vêm aí mais Vândalos!

— Edwina, agüenta-te!

As lágrimas de alívio escorreram-me pelo rosto, ao reconhecer a voz do meu pai. De entre a confusão, Ivarr também se precipitava em meu auxílio. Agarrei-me ao tronco, tremendo sem controle. Já conseguia ver com clareza. Thora tinha a roupa encharcada em sangue, mas a sua agilidade revelava que este não lhe pertencia. Krum e Eric tentavam minorar a agonia dos companheiros prostrados, improvisando garrotes para impedir que as hemorragias se tornassem fatais. Steinarr ajudava um dos seus lobos a erguer-se. O homem fora ferido numa perna e sangrava abundantemente. Ketill amparava Ragnar, que recebera uma pancada esmagadora na cabeça. Bryan... Bryan foi o primeiro a receber a segunda vaga de destruição que se abateu sobre nós.

De repente, estavam por todo o lado, superiores em número e em força. O meu pai batia-se com dois, ainda longe da árvore de onde eu pendia, num equilíbrio precário. Ivarr também não podia valer-me, pois fora derrubado pelas costas e só escapara à lâmina do inimigo graças à sua prodigiosa velocidade. Thora deteve-se ao seu lado e Eric e Ketill juntaram-se, repelindo as espadas dos Vândalos que se multiplicavam em redor do seu senhor. Steinarr empurrava diante de si um enxame de guerreiros... Não era à toa que lhe chamavam «guerreiro-urso»!

Porém, depressa concluí que a luta do meu povo era inglória. Os Vândalos pareciam animados por uma resistência sobrenatural; empunhavam as armas sem cansaço e os seus ferimentos não os impediam de continuar a combater. Um a um, vi tombar homens do rei e do jarl, trespassados por espadas, por lanças compridas, por poderosos machados de guerra... Uma dessas terríveis armas foi arremessada com tal mestria e velocidade, que pregou o crânio da vítima ao tronco da árvore que me sustinha. O guerreiro morto habitava na Ilha dos Sonhos e comia com freqüência à nossa mesa. Tinha quatro filhos, ainda pequenos, e um quinto a caminho... que nunca conheceria o pai. O seu algoz fora o líder inimigo, que ceifava vidas com um prazer exultante. Os seus olhos ávidos inquietavam-se, buscando vorazmente o almejado prêmio... Steinarr!

Senhor do tempo, trespassou mais um viquingue com a sua espada e aproximou-se da árvore para recuperar o machado. A sua expressão enlouquecida iluminou-se num sorriso, ao puxar pela arma e sentir o sangue do guerreiro espirrar-lhe para o rosto. A visão foi tão atroz que me provocou um gemido... um lamento que dificilmente seria audível no silêncio de uma noite solitária. Todavia, o Vândalo escutou-o por entre o fulgor da batalha. Os seus olhos ergueram-se ao meu encontro e relampejaram vitoriosos. Sem a mais leve hesitação, rodou o machado sobre o pulso, uma e outra vez. Tive a certeza de que a minha vida chegara ao fim...

— Nem nos teus sonhos, sua besta!

Pasmei ao ouvir o berro de Thora e ainda mais ao vê-la cair sobre as costas do gigante, cravando-lhe o punhal entre as costelas. O líder vândalo rugiu e o machado escapou-lhe da mão, enterrando-se no tronco que me amparava, a um palmo da minha testa. Sem o menor esforço, levou a mão atrás das costas e agarrou a minha irmã pela túnica, arremessando-a por cima da cabeça. Thora estatelou-se aparatosamente no solo e já não se moveu. Sem delonga, o colosso arrancou o punhal da carne, e preparava-se para arremessá-lo contra a guerreira inanimada, quando o rei-lobo lhe bloqueou o caminho. Os dois líderes mediram forças com o olhar e eu percebi que já não era a primeira vez que se enfrentavam.

— Ivarr... — A voz do vândalo era profunda e aterradora. — Isto é bom demais para ser verdade! Quando o Sol nascer, a corja viquingue acordará sem soberanos...

— Ainda não me mataste, Arkin!

— Não? Então, por que é que estou a ver a tua cabeça pendurada na sala da minha rainha, entre a do teu pai e a do teu jarl}

As espadas dos dois guerreiros encontraram-se no ar e soltaram labaredas. Abracei o tronco, gelada de horror, assaltada pela recordação das inúmeras vezes que já ouvira o nome deste homem: Arkin, primogênito do rei Vestein, herdeiro do trono Vândalo, considerado o melhor guerreiro do seu povo... E eu tivera-o à minha mercê e nada fizera!

Mais possante do que Ivarr, o príncipe vândalo atacava com uma rapidez letal. Afligi-me ao constatar que o meu noivo apenas se defendia. O vândalo estava descansado e bufava rancor, ao passo que o viquingue mal dormia há três dias, pouco comera desde que partira de casa, fizera uma caminhada extenuante e já carregava no corpo a fadiga de uma batalha. Todavia, ao observá-los, apercebi-me de algo que Ivarr não hesitava em usar em sua vantagem. Arkin possuía uma força bestial, mas não apelava à imaginação. Um adversário mais fraco seria incapaz de lhe fazer frente. Porém, diante de um homem fisicamente equivalente, o ataque do príncipe vândalo tornava-se previsível, quase repetitivo.

Ivarr neutralizou finalmente o vigor da espada inimiga, e não perdeu tempo, socando-o no rosto até deixá-lo atordoado. A disputa poderia ter terminado aí, com um golpe rápido que enviaria o vândalo ao encontro do seu deus. Contudo, não muito longe, um grito destacou-se de entre os demais. Todos os guerreiros se detiveram com a respiração suspensa. Steinarr acabara de ser ferido... E, pelo que me era possível vislumbrar do meu periclitante mirante, tratava-se de um ferimento mortal.

Clamando desesperado, Ivarr voltou as costas a Arkin e correu ao encontro do pai. Steinarr fora encurralado por três guerreiros. Dois jaziam aos seus pés... mas o terceiro preparava-se para decapitá-lo. O rei tombara sobre os joelhos, exausto. O punho da arma com que o inimigo o trespassara sobressaía grosseiramente do seu ventre, sobre a túnica de lã ensopada em sangue. A lâmina do Vândalo rasgou o ar... mas foi interceptada por outra lâmina. O meu pai movera-se tão depressa que eu nem o vira aproximar-se. Com um gesto poderoso, forçou o guerreiro a recuar e ajudou Steinarr a erguer-se, protegendo-o com o seu corpo dos ataques dos inimigos que choviam sobre eles, dispostos a tudo para matar o soberano viquingue.

Uma gargalhada hilariante aprisionou a minha atenção. Após a última acometida de Ivarr, o herdeiro de Aesa tombara com o nariz em cima da Lágrima do Sol... E agora exibia-a, com uma expressão triunfante, obviamente conhecedor da sua importância.

Eu não podia continuar pendurada na árvore, a observar aqueles que amava a serem abatidos como animais, aguardando que a minha vez chegasse! Tinha de fazer alguma coisa! Mas as minhas energias tinham-se esgotado na defesa da cidade de Lyria. Sentia-me exausta, enjoada, tonta... Ainda assim, teimei em estender a mão ao encontro do cristal, murmurando um débil chamamento. Para meu alívio, a Lágrima do Sol obedeceu-me prontamente, libertando-se dos dedos do Vândalo e voando até à mim. Desprovido do seu troféu, o colosso fixou-me com um olhar assassino, bufando de raiva. O punhal de Thora encontrava-se à distância de um passo. Arkin baixou-se para agarrá-lo... mas deteve-se, petrificado, quando uma seta lhe assobiou ao ouvido e se cravou no solo, a um palmo da sua mão.

De início não compreendi o que estava a suceder. Por todo o lado, os Vândalos caíam, prostrados por flechas. Depois, vislumbrei o movimento quase imperceptível dos arqueiros que se aproximavam, servindo-se das árvores para ocultar o seu progresso, invisíveis aos olhos dos guerreiros. Agora que a sua cidade já não corria perigo, o Povo da Terra vinha em nosso auxílio.

Por baixo de mim, Arkin apossara-se do punhal de Thora e preparava-se para arremessá-lo. Com a respiração suspensa, observei o seu braço a recuar para ganhar impulso, impotente para contrariá-lo. A Lágrima do Sol adormecera na minha mão, satisfeita por regressar ao seu abrigo, ignorando o meu pavor. Dei por mim a gritar pelo meu pai, como se tal fosse suficiente para me salvar. No entanto, não foi o jarl quem respondeu ao apelo. De entre a amálgama de guerreiros que resistiam, um destacou-se numa corrida vertiginosa, bradando o meu nome. Fixei Ketill como se estivesse a ver um fantasma, e Arkin não se conteve de seguir o meu olhar. Sem lhe dar tempo para uma última prece, a espada do jovem prodígio rasgou o ar, e a cabeça do líder vândalo voou de cima dos seus ombros. Foi este o último horror que presenciei, antes de perder os sentidos.

 

À primeira vista, julguei que a beleza imaculada da rainha do Povo da Terra resultasse de uma exibição do seu poder. Ninguém podia ser assim tão perfeito! Porém, não tardei a reconhecer que a formosura de Lyria era genuína. Os seus cabelos compridos e lisos, pretos como a mais cerrada das noites, estavam enfeitados com fios de seda das sete cores do arco-íris. O azul-escuro penetrante dos seus olhos tornava-se límpido quando me fixava. A sua pele era alva e delicada; o seu corpo um hino de sensualidade. Usava um vestido de lã, onde os mais díspares tons de verde se entrançavam, e movia-se com uma elegância majestosa.

— É um prazer conhecer-te, Edwina — A sua voz maviosa repousava no ar, antes de deslizar pela pele numa carícia suave. — «O Que Tudo Vê» elogiou a tua habilidade com tal veemência, que acreditei estar diante da descrição orgulhosa de um avô dedicado. Porém, hoje demonstraste que és digna desses louvores e de muitos mais. Devo-te a minha vida, a vida do meu povo e a sobrevivência desta terra. Tens a minha eterna gratidão.

Balbuciei surpreendida, impedindo-a de se ajoelhar diante de mim. Apesar de estarmos sós, a sua homenagem incomodava-me. Eu nada fizera de extraordinário! E a certeza de que poderia ter evitado muitas mortes, se não me tivesse apiedado da herdeira de Aesa, massacrava-me o espírito. Dei por mim a dizer-lhe exatamente isso; algo que nem confessara ao meu pai.

— Fizeste o que a consciência te ordenou — replicou ela, apaziguadora. — Tudo tem a sua razão de ser! Um dia entenderás o porquê dessa decisão. Seja como for, não menosprezes o teu feito. Afinal, adivinhaste que precisávamos de ajuda, mobilizaste um exército e...

— Na verdade — interrompi —, foi à minha mãe que acorreu a revelação de que vós estáveis em perigo. E foi o meu pai quem convenceu o rei Steinarr a empreender esta viagem...

— Está bem! — atalhou ela, sorrindo. — Mas tu subjugaste a herdeira da Senhora da Lua. Se essa jovem não fosse excepcionalmente forte, Aesa não lhe teria confiado o seu propósito, quando sentiu que o vigor lhe faltava. Nem eu, nem «O Que Tudo Vê» possuíamos reservas de energia suficientes para derrotá-la. Se não fosse por ti, a minha cidade teria sido arrasada, e é isso que me importa, Rainha do Sol! Agora, apesar de saber que estás cansada, necessito de apelar novamente ao teu poder, para libertar o rei viquingue das garras da morte.

O meu coração espinoteou, ao mesmo tempo que as palavras me saltavam dos lábios:

— É possível salvar Steinarr? Mas o meu pai disse...

— O rei está para além do alcance da cura humana... mas acalento a esperança de que não seja tarde para trazê-lo de volta à vida, recorrendo à minha magia. Infelizmente, sinto-me demasiado fraca para assegurar o sucesso, e «O Que Tudo Vê» continua inconsciente. Resta-me aguardar a tua compreensão. Steinarr é um grande homem e ainda tem muito que fazer pela sua terra e pelo seu povo. Ajudar-me-ás, Edwina?

Há pouco, quando despertara acalentada pela última réstia de energia do meu bisavô, suspirara de alívio ao verificar que sobrevivera à queda da árvore com pouco mais do que umas equimoses. Porém, descobrir que a vitória nos pertencera e que o Povo da Terra se encontrava a salvo, fora um pequeno conforto, ensombrado pela lembrança de uma devastação sangrenta; dezenas de vidas perdidas no aço gélido da crueldade inimiga. A minha família estava bem, mas muitos amigos tinham perecido. E a confirmação de que o nosso soberano agonizava às portas da morte, cobrira-me de desespero. Agora, Lyria devolvia-me a esperança... Não era uma certeza, mas, ainda assim, era tudo o que restava a Steinarr e ao povo viquingue.

O quarto que acolhia o rei era igual àquele onde eu acordara, pequeno mas agradável. Uma portada deixava entrar a luz e o ar fresco da manhã. As trepadeiras enfeitavam as paredes de madeira e o seu aroma perfumava o ambiente. A cama onde Steinarr repousava era composta de uma mistura de troncos, raízes e folhas entrançadas, surpreendentemente confortável. A manta que o cobria era de lã simples, sem ornamentos; um recorte de branco no centro do verde e castanho que me rodeava, grosseiramente manchado de vermelho. O sangue vencia as barreiras impostas pelos curandeiros e teimava em abandonar o corpo do guerreiro-urso. O seu palor era testemunho da tragédia anunciada.

Todos os curandeiros haviam sido dispensados e só Ivarr e jarl se encontravam no quarto. Debaixo do olhar perdido do primogênito de Steinarr, Lyria avançou até ao leito e tocou na testa do moribundo. A sua expressão enevoou-se e um suspiro libertou-se dos seus lábios.

— Devo pedir-lhes que saiam — dirigiu-se aos dois homens com firmeza. — Por favor...

— Eu não deixarei o meu pai! — insurgiu-se o príncipe, demasiado alto, intensamente sofrido. — Quero estar ao seu lado até ao último instante!

— Acalma-te, Ivarr — apelou o meu pai, segurando-lhe no braço antes de se voltar para Lyria. — O que tendes em mente, senhora? Se a vossa magia ainda pode fazer algo pelo meu rei, rogo-vos que tenteis! Se o salvardes, serei vosso escravo até ao fim dos meus dias!

Lyria sorriu tristemente, acenando com a cabeça em aprovação.

— És um homem de fé, filho de Thorgrim. E o melhor amigo que alguém pode desejar! Decerto sabes que o Steinarr te aprecia com igual dedicação. E esses sentimentos não morrem quando o corpo fenece. Existem outros mundos, outras vidas... E a vossa amizade estender-se-á para lá desta existência. — Depois, fixou Ivarr. — O restabelecimento do teu pai é o maior desafio com que a minha magia curativa já se deparou. Não posso garantir que conseguirei salvá-lo... Mas gostaria de tentar, pela dívida de gratidão que tenho para convosco, e pela admiração que lhe devoto.

O meu coração contraiu-se ao ver o príncipe esconder o rosto e soluçar. O jarl pousou a mão no seu ombro, exclamando gravemente:

— O teu pai não tem nada a perder, Ivarr! Vem... Choraremos dentro em pouco, se essa for a vontade de Odin. Agora, é tempo de orar para que a magia da rainha concretize um milagre.

Ainda relutante, Ivarr deixou-se conduzir para fora do quarto. Fiquei junto de Lyria, sem adivinhar o que ela pretendia de mim. A rainha tornou a pousar os dedos sobre a testa suada do enfermo, enquanto murmurava:

— Sei que me estás a ouvir, guerreiro-urso. Conheço a tua ansiedade, o teu desespero... Sempre lutaste pela justiça, e a tua integridade fez de ti o homem que és hoje, amado pelos amigos e respeitado pelos inimigos. Não desistas de lutar...

Eu duvidava que Steinarr pudesse escutá-la. Todavia, o seu espírito atormentado devia agradecer-lhe a intenção. O rei respirava com extrema dificuldade. A espada trespassara-lhe o ventre, no sentido ascendente, e só falhara o coração por um triz. O suor formava-lhe uma poça sobre a garganta e escorria-lhe pelo peito nu. Os seus lábios tornavam-se roxos por baixo da barba escura, e o cabelo negro, espalhado pela coberta, evidenciava-lhe ainda mais a palidez da pele. A sua expressão crispada revelava que a passagem não era pacífica. Steinarr não estava preparado para morrer. Contudo, eu temia que esta decisão já não fosse sua... nem nossa!

— Há muitos anos, a minha mãe resgatou o meu pai à morte... — comecei hesitante, tentando antever o que Lyria planeava.

— Eu não possuo a habilidade da Catelyn — respondeu-me ela, como se ainda ponderasse as suas opções. — A magia do meu povo é diferente da dos Seres Superiores. Os Feiticeiros têm uma relação mais profunda com o espírito... Nós somos essencialmente ligados à terra, à regeneração, à vida... É por isso que nada posso fazer sem ti. Ainda que eu sarasse o corpo de Steinarr, a dor resultante do processo enviaria a sua alma para além do meu alcance. O que te peço, Edwina, é que absorvas o sofrimento do rei e o suportes com bravura. Se um de nós fraquejar, estará tudo perdido.

Assenti com a cabeça. Pelo menos, já sabia o que fazer! Envolvi a Lágrima do Sol com uma mão e pousei a outra na testa de Steinarr. De imediato, a sua dor entrou em mim como uma lança danada, aguda e perfurante, direta ao coração. Arquejei em sobressalto e tive de apelar a todo o controle para não me afastar. A voz de Lyria pareceu-me vir de muito longe:

— O que estás a sentir é insignificante, comparado com o que te espera. Tens a certeza de que queres continuar?

Steinarr era meu rei, o pai do meu noivo, um irmão de coração do jarl... mas era, sobretudo, um bom homem. Abandoná-lo seria imperdoável!

— Ficarei... até ao fim!

— Muito bem! O sortilégio que vais testemunhar é um segredo dos soberanos do Povo da Terra. Nunca foi aplicado a um humano, nem presenciado por olhos estranhos aos do meu povo. Hoje, vou romper com a tradição e esperar que os meus antepassados me perdoem. Tenho o dever de te avisar que serás confrontada com o lado obscuro da Arte. No entanto, asseguro-te que nada tens a recear, já que a minha essência está preparada para combater a sua perversão.

Engoli a vontade de lhe dizer que não seria a primeira vez que me deparava com a Arte Obscura. Este não era o momento para confidências. Em vez disso, respondi de coração aberto:

— Eu confio em si...

Lyria respirou fundo e inclinou-se em reverência. As suas mãos afastaram a manta que cobria Steinarr e libertaram-no das ataduras ensangüentadas. Observei a ferida mortal pela primeira vez. O que estava à vista era um corte simples, da largura da lâmina da espada. Então, a rainha arrancou alguns fios do seu cabelo e dispô-los, um a um, sobre o peito e o ventre do guerreiro, entoando palavras de uma língua que só o Povo da Terra conhecia. Escutei-a fascinada, arrepiada até à alma, vendo os longos fios negros ganharem vida e formarem um padrão na pele de Steinarr: um cordão central com inúmeras ramificações. A rainha abriu os braços, com os cabelos esvoaçando em redor do corpo esbelto, quais serpentes irrequietas, e continuou:

— O Sol dá-nos vida...

Os olhos azuis-escuros transformaram-se em estrelas, e todo o quarto foi consumido pela sua luz intensa.

— A água alimenta-nos...

Os fios de cabelo liquidificaram-se sobre Steinarr, como se um rio poderoso com inúmeros e vigorosos afluentes corresse pelo seu corpo.

— Tu és terra...

A pele do rei converteu-se num solo fértil, pujante de vida, ante o meu olhar estonteado.

— Eu sou árvore...

E os braços elegantes de Lyria tornaram-se troncos jovens... Todo o seu corpo era agora uma amálgama de caules e ramos; os seus cabelos, folhas verdejantes. Mal segurei um grito quando vi os seus dedos, sob a forma de raízes, desaparecerem dentro da terra úmida que outrora fora a carne de Steinarr.

— Que o meu sangue seja seiva, seja alimento, seja vida...

A dor fulminou-me como um raio. Gritei sem escutar um som; todos os sentidos preenchidos pelo terrível suplício que fustigava Steinarr, enquanto as raízes da rainha absorviam o sangue que se espalhara pelo interior do seu corpo, limpando-o, para, no fim, o remendar pacientemente, como a mais hábil das tecedeiras.

Eu estava consciente do que se passava, mas escolhi fechar os olhos. Tinha de concentrar-me na dor. Esta tortura era minha! Desejava-a! Assimilava-a, para que Steinarr pudesse respirar livremente, para que o seu coração não parasse de bater devido ao choque. Esta era a prova de que a Arte Obscura podia ser utilizada para praticar o bem! Pensei em Edwin... E, por um instante, vi-o sentado, com a Lágrima da Lua pairando à sua frente... o olhar verde faiscando, no momento em que as nossas consciências se tocavam, e ele se apercebia da minha agonia. Depois, o mundo escureceu e a imagem do meu primo desvaneceu-se.

Estava frio... Tanto frio! O tormento era insuportável... Eu estava a enlouquecer!

Mergulhei num rio de sangue. Escancarei os olhos, lutando para respirar. Por baixo dos meus dedos, a pele de Steinarr aquecia, ganhava cor, pulsava ao sabor da vida que Lyria lhe entregava abnegadamente. A rainha da Gente Bela já mal se sustinha nas pernas. O corpo de Steinarr exigia sangue para compensar aquele que perdera. E ela cedia; os seus pulsos lenhosos ainda enterrados no ventre lamacento do rei; terra, água e madeira confundindo-se com pele, carne e ossos. A magia de Lyria enfraquecia com a sua essência. O rei viquingue ainda não se livrara da morte; a rainha do Povo da Terra definhava. Mais uma batida de coração e morreríamos os três!

A Lágrima do Sol latejava... Horrorizei-me ao vê-la pulsar com um brilho negro. Antes que pudesse sequer questionar-me, Edwin surgiu diante de mim. O quarto, Steinarr e Lyria tinham desaparecido... Éramos só nós os dois, perdidos no infinito nevoeiro cintilante das nossas magias. Desta vez, a sua vontade superava a minha. Incapaz de resistir, vi-me aprisionada no vigor dos seus braços; os seus dedos enterrados nos meus cabelos, impedindo o menor movimento, enquanto me fixava e declarava:

— Vais morrer, Rainha do Sol... Mas não hoje! Vais morrer... Mas às minhas mãos!

Os seus lábios desceram sobre os meus e senti-me rebentar de dentro para fora. Edwin estava mais forte do que eu o recordava; desfrutava plenamente do poder que a Arte Obscura lhe conferia... E era essa energia que entrava em mim, percorria-me e extravasava para Steinarr e Lyria. Eu estava ciente da presença dos meus protegidos, mas Edwin era todo o meu ser; a sua pujança, o seu ardor, o calor abrasador do seu beijo, o mel da sua saliva... Ivarr nunca me beijara assim! Ivarr nunca me fizera sentir tão viva; disposta a renegar tudo para que esta sensação jamais findasse...

 

Saí do sono com um vagar repousado e abri os olhos com uma languidez descontraída. Onde estava eu? Nos domínios do Povo da Terra... Viéramos socorrer o meu bisavô. Havíamos travado uma cruenta batalha e Steinarr fora ferido de morte. A rainha Lyria pedira-me ajuda para salvá-lo e realizara um ritual sinistro... E depois? Desmaiara outra vez? Sim... Contudo, antes, Edwin intrometera-se... A Lágrima do Sol! Onde estava o meu cristal?

Suspirei de alívio ao encontrá-lo ao meu lado, sem mácula. Mas de Steinarr e de Lyria não havia sinal. Eu estava no mesmo quarto que me acolhera após a batalha. Além da cama, havia uma arca onde repousava um jarro e uma vasilha de barro, e nada mais. Ainda assim, as trepadeiras que pendiam das paredes formavam padrões tão belos como as mais ricas das tapeçarias.

O meu pai chegou nesse instante e serviu-me água fresca, que bebi sequiosa. Aconchegada nos seus braços, alegrei-me com a confirmação de que Steinarr estava fora de perigo. Tal como eu, Lyria repousava, prostrada pela exaustão. O jarl não me interrogou acerca do ritual que salvara o amigo. A sua experiência ensinara-lhe que, quando havia magia envolvida, a ignorância era uma benção para os Homens. Porém, Thora ainda não aprendera essa lição. Após certificar-se de que eu estava bem, quis saber tudo acerca da nova história que coloria o imaginário dos nossos guerreiros. Estes diziam que a rainha do Povo da Terra ressuscitara o rei viquingue com a minha ajuda, e fantasiavam acerca de rituais extraordinários... mas nenhum tão incrível como o que fora celebrado.

Decidi guardar silêncio, por respeito a Lyria e ao seu povo, e Thora foi forçada a resignar-se. Ajudou-me a trocar de roupa, fazendo-me rir com as suas brincadeiras, e depois acompanhou-me ao exterior, de regresso à realidade misteriosa e fascinante da Gente Bela.

A cidade de Lyria fora implantada no coração da densa floresta, e mantivera-se guardada da curiosidade e da violência do Homem, até ao presente. As suas habitações situavam-se em torres, erguidas entre as árvores, unidas por passadeiras e pontes de madeira e corda, que formavam teias intrincadas. Por toda a parte, era possível observar arqueiros de vigia. Depois do que acontecera, ninguém desejava ser surpreendido por um novo ataque.

Tal como em qualquer outra sociedade organizada, o Povo da Terra dividia-se em classes sociais e praticava diversos ofícios. De entre eles distinguiam-se excelentes artesãos. O trabalho do ferro, assim como a olaria e a carpintaria, eram artes que maravilhavam os mais exigentes. Cada família possuía o seu brasão, e tinha orgulho em esculpi-lo, desenhá-lo ou bordá-lo em tudo o que lhe passava pelas mãos, com um esmero apaixonado. O seu dia-a-dia não divergia muito da rotina das vulgares comunidades humanas. Porém, era óbvio que desfrutavam de uma serenidade e harmonia que os Homens não tinham capacidade para alcançar.

O sustento, tiravam-no da terra. A Gente Bela não comia carne nem peixe, pois acreditava que todas as criaturas que sangravam possuíam um espírito. Mais tarde, Lyria explicou-me que, se um peixe fosse morto, ou uma ave, ou um animal, o seu espírito perseguiria o pescador ou o caçador até que este também perecesse e, só então, encontraria o merecido descanso. Era uma idéia assustadora! Pensei na carne suculenta e nos peixes gordos que já haviam passado pelos meus dentes e achei melhor não aprofundar o assunto. Já tinha questões suficientes para me roubarem o sono, sem imaginar que carregava uma miríade de espíritos às costas.

Os nossos anfitriões possuíam uma natureza divertida. A gratidão e a curiosidade tornavam-nos acolhedores. As mulheres do Povo da Terra deleitavam o olhar dos nossos guerreiros. E, quanto a elas, Ketill acabou por se tornar o centro das atenções, já que era jovem, forte, belo e sem compromisso assumido... Para além de se ter tornado o herói da última batalha, ao deitar por terra o príncipe herdeiro do trono vândalo.

Ivarr não abandonara a cabeceira do pai. A rigidez do seu semblante revelou-me que o medo ainda insistia em atormentá-lo. Assim que entrei no quarto, veio ao meu encontro e beijou-me as mãos.

— Noiva amada... Não tenho palavras para te expressar-te a minha gratidão!

Conduziu-me até ao rei, que respirava pausadamente, debaixo do olhar atento do seu curandeiro e do primo Krum. Para além de uma ligeira febre, parecia restabelecido. Um leve rubor coloria-lhe as faces e os seus lábios haviam recuperado o tom rosado. O corpo não guardava vestígios de suor ou de sangue, e as ligaduras que lhe envolviam os ferimentos encontravam-se impecavelmente limpas.

— Estou convicto de que o rei despertará com o raiar da manhã — declarou Krum com um sorriso. — Fizeste um excelente trabalho, Edwina!

Ia reafirmar que o mérito não era meu, quando a porta se abriu para dar passagem a uma das jovens servas de Lyria.

— A rainha deseja falar-lhe, menina Edwina — anunciou. Segui-a através da espiral de corredores ascendentes, até ao quarto de Lyria. A rainha estava rodeada pelas suas irmãs, que a ajudavam a arranjar-se. Dispensou-as e abraçou-me com uma estima correspondida. Depois, levou-me até à sua varanda, onde inspirei com satisfação o ar fresco da noite. Por toda a cidade acendiam-se lanternas, que cintilavam como pirilampos sob as copas das árvores. A torre da soberana era muito alta e permitia-nos ver o céu, onde as estrelas espreitavam por entre as nuvens. Estremeci sem querer, quando o vento nos despenteou, e ela me cobriu com a sua capa, dizendo:

— Toma! Ofereço-te em sinal de reconhecimento! Debaixo dela, não voltarás a sentir frio.

Agradeci, tomada por uma estranha comoção. Apesar de aparentemente nada ter de extraordinário, a capa de lã aqueceu-me de imediato e transmitiu-me um conforto, que me levou a reconhecer a sua magia. Quedamo-nos em silêncio, apreciando a beleza que nos rodeava. Então, Lyria começou pausadamente:

— Antes de mais, quero que saibas que poderás contar sempre com o meu apoio, ao longo das nossas vidas.

Sustive o fôlego, alarmada. Vinham aí sarilhos! Confirmando o meu temor, ela continuou:

— Houve um momento, durante o ritual, em que as nossas forças se esgotavam e o rei exigia mais... Então, outra energia surgiu entre nós, fresca, poderosa...

— Eu posso explicar... — atalhei, sem saber muito bem o que dizer a seguir.

— Tu não tens de justificar-te! — replicou Lyria. — Não, diante de mim! A intervenção dessa força salvou-nos e eu sou grata por isso! Porém, o carinho que sinto por ti impele-me a advertir-te. Não podes hesitar entre dois destinos... Tens de tomar rapidamente uma decisão e respeitá-la, ou acabarás por perder a vida! Se o teu coração deseja manter-se no caminho que a tua família desbravou para a tua felicidade, deves cortar os laços que te unem ao passado. De outra forma, quando o momento da verdade chegar, não reunirás coragem para concretizar o que tem de ser feito... E morrerás! Estás a compreender-me, Edwina?

Fixei a noite e apertei o corrimão da varanda até os nós dos dedos ficarem brancos. O meu coração mais parecia um cavalo selvagem, aos pinotes dentro do peito.

— Por outro lado — prosseguiu ela, sem aguardar resposta —, se o teu coração se conserva fiel ao apelo do espírito, não podes consentir que seja a sorte a ditar o teu rumo! No instante em que a alma desse rapaz se perder para o inimigo, não haverá salvação para o vosso amor...

— Eu amo o Ivarr! — objetei ardorosamente, bem alto... como se necessitasse de me convencer! Depois, desatei a chorar e, sem sequer pensar, deixei-me cair nos braços de Lyria.

Ela afagou-me os cabelos e respirou fundo, antes de volver:

— Eu acredito! Tu aprendeste a amar o príncipe, ao longo destes anos em que acreditaste que o teu futuro era ao seu lado. Todavia, o outro amor nasceu contigo... nasceu convosco; faz parte das forças que movem o Universo... faz parte de cada partícula do vosso ser! É por isso que ele acorre em teu auxílio, mesmo contra a sua vontade! E é por isso que ainda existe esperança de salvá-lo... — Segurou-me o rosto e prendeu-me o olhar assustado. — Pensa bem... Olha para dentro de ti e escolhe a batalha que desejas travar; por qual desses destinos é que estás disposta a dar a vida? Porque, quando essa opção estiver feita, saberás qual é o teu verdadeiro amor!

 

Eu estava habituada a ver as mulheres corarem diante do rei viquingue. Porém, o rubor na pele alva de Lyria era tão violento que se tornava constrangedor. Ela bem que tentava manter a voz limpa, os gestos firmes... Afinal, não era uma simples rainha; era uma portadora de sangue antigo, e Steinarr, ainda que rei, não passava de um Homem! Todavia, falhava vergonhosamente na intenção de disfarçar o seu abalo. A novidade era observar o sempre confiante guerreiro-urso a ter uma atitude semelhante. Seria pela consciência de que aquela mulher lhe salvara a vida? Gratidão, ou algo mais? Deslumbramento... pura e irresistível atração!

Desviei o olhar, censurado-me pela indiscrição, e concentrei-me no assunto que agitava os ânimos em redor da mesa de reuniões da rainha do Povo da Terra. Lyria fazia-se acompanhar pelos seus conselheiros. A representar os viquingues estavam Steinarr, Ivarr e o meu pai. Eu sentava-me ao lado de «O Que Tudo Vê», que escutava as opiniões do grupo em silêncio. Debatia-se o motivo que levara Aesa e os Vândalos a invadirem os domínios de um povo neutro, e o modo como o seu exército passara despercebido ao controle do rei viquingue.

A Gente Bela possuía resposta para a última questão. Os Vândalos tinham evitado o território de Steinarr atravessando os Pântanos Nebulosos, uma região povoada pelo medo e pela morte, que fazia fronteira com a Floresta de Lyria e a Floresta Sombria. Desta forma, tinham penetrado no solo da Gente Bela sem ser detectados, surpreendendo a guarda avançada da cidade, que apenas tivera tempo de fazer soar o alarme, antes de perecer às mãos do príncipe Arkin. Quanto às razões que os moviam, atrevi-me a indagar se poderia tratar-se das pedras mágicas da feiticeira Aranwen, que Aesa tanto cobiçava. Porém, o meu pai negara, respondendo simplesmente:

— As pedras mágicas não se encontram aqui.

No fim, foi a Visão da minha mãe que lançou luz sobre o objetivo dos Vândalos. Quando o meu pai repetiu o que Catelyn dissera, «O Que Tudo Vê» soltou um gemido que silenciou a sala. Com todas as atenções centradas na sua figura gasta, o feiticeiro voltou-se para a rainha do Povo da Terra e afirmou:

— Aesa veio em busca de Gwendalin!

A expressão grave dos conselheiros da rainha contrastou com a confusão que vincava o semblante dos viquingues. Foi Steinarr quem deu voz à nossa interrogação:

— Dizei-me uma coisa... Essa feiticeira não está morta? Se bem me recordo, tudo o que resta dela é um monte de cinzas...

— Que estão guardadas dentro de um pote de ferro, aqui, na cidade da rainha Lyria — completou «O Que Tudo Vê» com uma gravidade que me arrepiou. — Quando a missão de garantir a segurança do pote me foi confiada, tive de decidir onde guardá-lo. A Montanha Sagrada estava fora de questão, pois nada ímpio pode pisar o seu solo, e mantê-lo junto dos Homens seria um erro fatal. Só me restou recorrer à minha querida amiga Lyria e ao seu povo. — Fez uma pausa para recuperar o fôlego, acusando o cansaço provocado pelo discurso. — O mal que vivia em Gwendalin não foi extinto com a sua morte. Ao longo dos anos, a magia obscura impregnada na sua essência foi-se libertando e ganhou forma, como se de uma Entidade real se tratasse. E essa força destruidora que está encarcerada no pote... e que Aesa persegue.

Seguiu-se um silêncio pesado, marcado pelo horror da revelação. Lyria empalidecera e nem recuperou o rubor quando Steinarr exclamou, inclinando-se em reverência:

— Estou a ver que lhe devo muito mais do que a minha vida, senhora!

A rainha abanou a longa cabeleira negra, replicando com equidade:

— Toda a Terra sofrerá, se esse mal for libertado! Eu só cumpri o meu dever, com a colaboração do meu povo. — Fixou o olhar em «O Que Tudo Vê», obviamente angustiada. — Acredita que ela possa ter intenção de...?

A pergunta ficou suspensa, inacabada, como se Lyria receasse dar-lhe forma ao concluí-la. No entanto, o meu bisavô compreendeu-a, pois respondeu prontamente:

— Que os céus nos guardem de tamanha aberração... Contudo, quando se trata de Aesa, tudo é possível!

— Estais a falar do quê? — replicou Steinarr com o sobrolho franzido.

— De algo que jamais poderá concretizar-se — volveu o feiticeiro, sem demonstrar vontade de esclarecê-lo.

Um dos conselheiros de Lyria fez a sua intervenção. Era um homem esbelto, de porte altivo, com longos cabelos negros entrançados e penetrantes olhos cinzentos, que nos fora apresentado como sendo o comandante supremo do exército da Gente Bela.

— Muitas vidas foram salvas, graças à preservação deste segredo... Porém, a nossa paz terminou! Aesa não descansará enquanto não conseguir o que quer! E nós não temos condições para sustentar outra batalha. Os nossos arqueiros estão preparados para se defender de intrusos; não de um exército de assassinos sequiosos por sangue! Esse pote não pode continuar à nossa guarda, minha rainha!

— É verdade! — concordou o jarl. — Não é justo que o vosso povo se sacrifique por nós!

— De maneira nenhuma — apoiou o rei viquingue. — Assim que recuperar as forças, regressaremos ao meu castelo e levaremos esse maldito pote conosco. Eu próprio velarei pela sua segurança, nem que tenha de dormir em cima dele, com os dois olhos abertos.

Com a lentidão imposta pela fraqueza que, cada vez mais, eu acreditava ser conseqüência de uma doença, «O Que Tudo Vê» volveu:

— As tuas intenções são nobres, mas vãs, Steinarr! Nem mesmo Throst ou Catelyn, que possuem sangue misto, resistiriam à subversão do pote. Gwendalin odiava os humanos, e toda a sua aprendizagem perseguiu a destruição da vossa raça. Esse ódio permanece na sua essência e só alguém de puro sangue antigo pode sustentar tal provação... Ou a minha herdeira, uma vez que o seu treino esteja concluído.

— Isso está fora de questão — contestou Ivarr, determinado. — Mesmo que o poder da Edwina se desenvolvesse o suficiente para anular a influência maligna, ela estaria condenada a viver longe de nós e da própria Montanha Sagrada.

— Não podemos apelar à ajuda de outro soberano do seu povo, alteza? — Perguntou o jarl, mas foi Hakon quem contrapôs:

— Já existem demasiadas consciências a par deste segredo! Nem todos os soberanos do Povo da Terra são leais como a rainha Lyria. Alguns vender-se-iam a Aesa sem perder o sono, se ela lhes prometesse poder e riqueza.

— Então, estamos de mãos atadas? — Inquiri, olhando em redor à espera que alguém apontasse uma solução milagrosa.

— Vamos refletir — determinou Lyria sensatamente. — Talvez o passar dos dias nos traga uma boa idéia. E não te inquietes com a nossa segurança, meu dedicado Cyrus. Enquanto o rei viquingue estiver conosco, nada temos a recear.

Havia um tom de gracejo na sua voz; um misto de provocação e sedução que fez com que Steinarr erguesse uma sobrancelha e esboçasse um sorriso. De novo corada, a rainha apressou-se a introduzir o assunto seguinte. Nós éramos convidados na sua casa, mas o exército viquingue tivera de instalar-se em abrigos e tendas, pelas ruas da cidade. Apesar de haver um bom entendimento entre as duas raças, Lyria pedia que Steinarr se mantivesse atento, e se certificasse de que os seus homens não ofendiam os costumes do Povo da Terra. Tal incluía não caçar na floresta, não pescar nos ribeiros, nem sequer apanhar ovos. O rei garantiu que o guerreiro que desrespeitasse a hospitalidade da Gente Bela seria banido do País dos Viquingues. Eu tinha dificuldade em acreditar que a nossa passagem pelos domínios de Lyria decorresse sem acidentes. Aquilo a que Steinarr se propunha era o mesmo que soltar uma alcatéia no meio de um galinheiro, e esperar que os lobos se sentassem a contar as penas das galinhas e dos gansos.

Foi igualmente proferida uma palavra para os heróis tombados na batalha. No dia anterior, assim que Steinarr conseguira suster-se, havíamos prestado a última homenagem aos nossos mortos. Debaixo da tempestade de relâmpagos que fustigava a cidade, várias piras funerárias tinham libertado os espíritos dos guerreiros do povo viquingue e da Gente Bela. A cerimônia fora triste, mas gloriosa. Ninguém questionava que era uma honra morrer por uma causa nobre. As cinzas dos nossos homens seriam posteriormente entregues às respectivas famílias, para que se celebrassem os rituais de despedida, onde se devolveria à natureza o que restava do corpo, para que o círculo da sua existência humana se completasse.

Finalmente, a rainha comunicou que tomara providências para que, ao cair da noite, se realizasse um banquete no centro da cidade, a fim de comemorar a vitória sobre o exército vândalo e o restabelecimento do rei viquingue. A notícia foi recebida com gratidão e entusiasmo. Agora que a febre da batalha começava a dissipar-se, os guerreiros necessitavam de descansar o corpo e distrair o espírito. Além disso, era uma excelente oportunidade para as duas raças se misturarem, trocarem experiências e desenvolverem amizades, que evitariam confrontos no futuro.

A noite estava aprazível, como se o Povo da Terra tivesse encomendado a calmaria para a festa. Cada casa da cidade cozinhara a sua especialidade e deixara-a sobre uma grande mesa, montada propositadamente no centro da praça, para que todos pudéssemos apreciá-la. Sob a luz brincalhona das lanternas, admirei as iguarias confeccionadas com legumes, raízes e cogumelos, frutos e nozes, pão, mel, leite e vinho. Habituada a ver a comida saltar dos caldeirões ou dos espetos para dentro das malgas ou dos tabuleiros, pasmei ao verificar que a Gente Bela dedicava à comida a atenção devida a uma escultura, transformando cada travessa numa obra de arte. Era uma pena que Freya não estivesse conosco, para se deliciar com esta maravilha!

Alertados por Steinarr, os nossos guerreiros não ergueram a voz para perguntar onde estava a verdadeira comida. Em vez disso, olhavam desconsolados para a mesa; perdida a esperança de ferrar os dentes num veado gordo ou numa cabra suculenta. Aqueles homens enormes estavam há tantos dias alimentados com verduras e leite, que pareciam prestes a bradar de desespero.

A boa educação ordenava que fosse Steinarr o primeiro a aproximar-se da mesa. Ainda um pouco combalido, o rei viquingue aceitou a malga que a rainha da Gente Bela lhe preparara, misturando um pouco de cada alimento, e começou a comer com um sorriso no rosto. De imediato, o povo de Lyria rodeou a mesa, conversando alegremente e incentivando os hóspedes a aventurarem-se. Eu provei e fiquei agradada, mas muitos dos meus companheiros lutavam contra a vontade de cuspir para o chão, e só resistiam porque repousava sobre eles o olhar expectante das donzelas de pele alva. Ketill era o único que também parecia apreciar a novidade. Com uma risada cúmplice, o jarl segredou-me que estava ansioso por regressar a casa e devorar dois caldeirões do guisado da minha mãe. A saudade no seu olhar era tão intensa, que me impeliu a abraçá-lo.

Os jovens guerreiros da Gente Bela multiplicavam-se em redor de Thora, exigindo tanto da sua atenção, que mal lhe permitiam comer.

Quem não estava a gostar deste acolhimento afetuoso era Eric e, por várias vezes, Ivarr teve de sacudi-lo e chamá-lo à razão. Nos últimos dias, mal tínhamos posto a vista em cima da minha irmã. Sem sombra de timidez ou de insegurança, ela misturava-se com os arqueiros do Povo da Terra e surpreendia-os com as suas habilidades. Não tardou a convencê-los a partilharem os seus conhecimentos e a divulgarem alguns segredos da sua Arte. Se a nossa visita se prolongasse, dentro em breve nem o meu pai a venceria no manejo do arco! Tal como Ivarr, tentei sossegar Eric, garantindo-lhe que Thora só se importava com os ensinamentos que podia obter dos nossos anfitriões. Quanto a eles, provavelmente achavam graça a esta moça diferente, talentosa e irrequieta. Era ridículo acreditar que desenvolveriam outro tipo de interesse. Eram homens de sangue antigo! Não lhes passaria pela cabeça enfraquecer a sua prole, desposando uma humana!

A festa arrastou-se pela noite dentro. O vinho forte da Gente Bela recebeu a aprovação geral, e teve o condão de soltar línguas e liquidar inibições, de tal forma que achei prudente colar-me a Thora, para que a sua alegria não fosse interpretada como ousadia. Porém, tornou-se impossível mantê-la quieta por muito tempo. Mal o baile começou, a minha irmã revelou-se uma aluna aplicada das jubilosas danças do Povo da Terra.

Eric foi conduzido ao acampamento por Bryan, tão ébrio que mal se agüentava nas pernas. Ragnar acompanhou-os, ainda um pouco combalido devido à pancada que recebera na cabeça. Ivarr e Ketill conversavam, de olhos postos nas jovens que se exibiam no baile. Vi Thora saltitar na sua direção e senti um aperto no peito. Ivarr também pensou que seria o eleito da Loba Prateada, pois abriu um grande sorriso... que esmoreceu no instante em que ela estendeu as mãos a Ketill. O jovem guerreiro-lobo acenou ao primo e deitou-lhe a língua de fora. Ivarr desatou a rir, como se troçasse de si mesmo. Subitamente, fixou-me, alertado pela intensidade do meu olhar. Tentei disfarçar o embaraço, mas, em menos de nada, ele encontrava-se ao meu lado, rodeando-me sugestivamente a cintura.

— Presumo que não queiras dançar... Vamos para um lugar mais sossegado?

Não me apetecia estar com Ivarr. Ainda não esquecera as nossas divergências, e as últimas insinuações de Magnor tinham reavivado as brasas da minha mágoa. Vê-lo, ainda há pouco, a admirar as donzelas da Gente Bela, também não ajudara... E, depois do que acontecera com Thora, só me apetecia voltar-lhe as costas! Se a minha irmã o tivesse escolhido, ao invés de Ketill, ele nem se recordaria da minha existência... Acrescia a tudo isto o meu próprio dilema. A conversa que tivera com Lyria queimava-me a mente e as entranhas; por vezes até me cortava a respiração. Por mais que me esforçasse para evitá-lo, Edwin invadia-me o pensamento, provocando-me uma angústia tão forte que me instigava a gritar.

— Sinto-me muito cansada — desculpei-me, sem ter de mentir. — É melhor ir deitar-me...

— Então, eu acompanho-te!

Caminhamos em silêncio até ao palácio. A escadaria que conduzia ao meu aposento nunca me parecera tão árdua... Quase suspirei de alívio quando cheguei ao destino. Encarei Ivarr, tencionando despedir-me, mas, para minha surpresa, ele introduziu-se no quarto e fechou a porta atrás de si. Sem delonga, tomou-me nos braços e beijou-me com uma paixão inflamada pelo vinho. Tentei corresponder-lhe... em vão! Na minha mente, a imagem de Edwin estalava como bolhas de lava. A culpa e a desilusão misturavam-se impiedosamente, de tal forma insuportáveis, que acabei por desviar o rosto. Apesar de me perceber pouco receptiva aos seus avanços, Ivarr insistiu, murmurando-me ao ouvido.

— Ver o meu pai ferido de morte... Ver-te cair daquela árvore, sem poder valer-te, fez-me ponderar seriamente na precariedade da vida. De que é que estamos à espera, Edwina? O teu treino continuará indefinidamente e eu não sei em quantas mais batalhas a sorte me favorecerá. Vamos casar agora! Quero ensinar-te a arte do amor. Quero ver o teu ventre a crescer e...

— Por favor, Ivarr... — cortei com uma brusquidão despropositada. — Não é o momento certo para discutirmos esse assunto!

O silêncio caiu entre nós como a derrocada de um glacial. Os braços de Ivarr abriram-se e eu recuei, engolindo em seco. O seu rosto denunciava incredulidade ante a minha frieza. Após um instante de profundo constrangimento, esboçou uma vênia carregada de ironia, e saiu sem olhar para trás; sem uma palavra de despedida.

Atirei-me para cima da cama, sentindo-me miserável. Onde é que eu estava com a cabeça? Não! Essa era uma pergunta à qual não queria responder! Fechei os olhos, contristada. Se, ao menos conseguisse dormir! O tempo arrastou-se, exasperando-me. Então, escutei vozes no exterior. Alguém abandonara o reboliço da festa e passeava na privacidade das pontes suspensas. Levantei-me ao reconhecer a voz de Lyria. Ela atenderia ao meu desabafo sem me julgar. Corri para a portada que conduzia à varanda, mas detive-me ao ouvi-la questionar:

— És sempre assim, tão lisonjeiro para com as mulheres?

O meu queixo caiu ao surpreender a voz de Steinarr:

— Sou um velho respeitável... A lisonja fica-me bem! Além disso, é uma forma de apreciar uma jovem bonita e inteligente, como a minha rainha, sem que o meu encantamento seja ofensivo.

— Tu não és velho, Steinarr! — replicou ela. — E eu não sou tão jovem que me ofenda com o encantamento de um homem. Presumo que estava prestes a fazer cem anos quando tu nasceste!

O rei não conteve uma gargalhada, que soou como música através da noite.

— É verdade! Às vezes esqueço-me de que estou diante de uma mulher de sangue antigo. De qualquer forma, a nossa diferença de idades não altera o fato de que a minha rainha continuará jovem e bela, muito depois de a terra ter consumido a minha carne.

Nenhum deles fazia idéia de que estava a ser espiado. E, por mais que a consciência me ordenasse recuar, não consegui mover-me. Inclusive, apelei à Arte para me ocultar da percepção de Lyria, quando passaram diante da minha portada.

— O meu poder assusta-te, Steinarr? — perguntou ela, subitamente.

O rei contrapôs sem hesitação:

— Não. Se a minha rainha desejasse o meu mal, não me teria salvo a vida.

— O meu nome é Lyria...

— Eu sei, senhora!

— Então por que não paras...?

— Porque existem limites que não devem ser ultrapassados. Se eu me esquecer que a minha rainha está muito para além do meu alcance, podemos ficar ambos assustados!

Foi a vez dela rir e, pela primeira vez, denunciou nervosismo:

— Tens medo de te enamorares de mim, se disseres o meu nome?

— Digamos que não estou disposto a correr esse risco!

— Porque estás apaixonado por outra mulher?

O rei concedeu-se uma longa pausa, e só depois aquiesceu:

— Sim, porque estou apaixonado por outra mulher.

Levei as mãos aos lábios, horrorizada com a minha bisbilhotice. Eles já se afastavam, mas voltaram a quedar-se.

— E essa mulher merece o teu amor? — insistiu Lyria.

— Todo o meu amor e admiração.

— Então, por que não está ao teu lado?

— Porque o seu lugar é ao lado de outro homem.

— E que homem pode ensombrar o rei do povo viquingue?

Steinarr ficou mudo... O que era extraordinário para alguém que costumava ter as respostas na ponta da língua!

— O homem a quem o rei do povo viquingue quer como a um irmão... — respondeu por fim. — Arrancaria o meu coração do peito e esmagá-lo-ia debaixo das botas, antes de fazer algo que pudesse feri-lo.

Então, Lyria murmurou o nome da minha mãe, enquanto tudo se esclarecia na sua mente. Ato contínuo, Steinarr tentou escapar à sua influência:

— Rogo-lhe que esqueça o que eu disse...

— Tu és um homem nobre... És um homem bom e mereces ser feliz!

— E quem lhe disse que não sou feliz?

— Ninguém pode ser feliz aprazendo-se com as migalhas da satisfação alheia! Não achas que já é tempo de te libertares desse fascínio?

— Um homem não escolhe quem ama, senhora! — A voz de Steinarr soou exaltada. — Se a decisão fosse minha, jamais teria cedido a este sentimento! Os deuses são testemunhas da minha luta para sufocá-lo. Por acaso a minha rainha conhece a cura para tamanho suplício? Se existir tal remédio, tomá-lo-ei de um só trago...

O silêncio que se seguiu deixou-me agoniada de curiosidade. Incapaz de conter-me, deixei a mente fluir através da noite e deparei com Lyria suspensa do pescoço de Steinarr, beijando-o com um ímpeto ardente. Após o embate da surpresa, ele estreitou-a e correspondeu com uma intensidade avassaladora. Quando se detiveram para recuperar o fôlego, Lyria escondeu o rosto no seu peito, enquanto o guerreiro-urso exclamava numa voz rouca, quase imperceptível:

— Agora, estou assustado!

Sem coragem para encará-lo, ela retorquiu:

— Queres que te assuste de verdade? Eu amo-te, Steinarr! Amo-te desde que te vi pela primeira vez, na Floresta dos Carvalhos, na noite em que derrotaste o teu urso. Eu estava lá, a treinar a minha Arte, quando o teu destino se cumpriu... E nunca te esqueci! Chorei no dia do teu casamento... E jurei a mim própria que não voltaria a devotar-te um só pensamento! Anos mais tarde, soube que a tua mulher tinha morrido. Porém, já era rainha e não podia seguir-te. Agora, tu vieste até mim... Não me arrependo de ter desrespeitado as regras dos meus antepassados para te salvar! O que importa é que estás aqui... No fundo, sou tão tola como tu, porque vivo para a ilusão de que este momento se prolongará...

Steinarr cortou-lhe o desabafo com um beijo. Por entre suspiros de enlevo, Lyria suplicou apaixonadamente:

— Dá-me o teu amor, meu rei... Dá-me o teu amor, nem que seja por uma única noite...

Esquecido da sua fraqueza, Steinarr carregou-a até ao quarto com uma urgência fervorosa. Pisquei os olhos e regressei à minha realidade; o rosto iluminado por um sorriso. A rainha do Povo da Terra e o rei do povo viquingue... Uma união que se afigurava perfeita! Deitei-me, com o coração em debandada e o rosto em fogo. O que eu fizera fora muito feio, mas valera a pena! Acabara de testemunhar o nascimento de uma grande paixão!

Levantei-me cedo, na intenção de falar ao meu pai, antes que os seus compromissos impedissem a nossa privacidade. Na noite anterior, ele reunira-se com «O Que Tudo Vê» e eu queria saber quais as conclusões dessa conversa. Inquietava-me a saúde do meu mestre e angustiava-me a sua inércia no que se referia ao meu treino. Se achava que eu estava preparada, por que não me submetia ao julgamento do Guardião da Montanha? Além disso, Aesa também assombrava o meu espírito. Que fim é que a mestra da Arte Obscura pretendia dar às cinzas de Gwendalin? E o que é que nós podíamos fazer para proteger o Povo da Terra da sua ambição assassina?

A festa terminara tarde e os corredores do palácio ainda se encontravam desertos. Recordando-me da última vez que irrompera pelo quarto do meu pai sem me fazer anunciar, levantei a mão para bater à porta. Contudo, detive-me ao ouvir distintamente a voz de Steinarr:

— Ela quer casar-se comigo, Throst!

Seguiu-se um longo silêncio, que me deixou sem fôlego. Apercebendo-me de que estava a surpreender a conclusão da história que se iniciara na noite anterior, apelei à minha habilidade para aguçar os sentidos. Por fim, o meu pai respondeu, cauteloso:

— Essa aliança fortaleceria os dois reinos e resolveria muitos problemas! Se decidires abdicar, tenho a certeza de que o Ivarr está preparado para dirigir os destinos do nosso povo.

— Isso é loucura! — replicou o outro, arquejante. — Eu mal a conheço...

— Mas ela conhece-te bem! — contrapôs o jarl, em tom de gracejo. — E, pelo que me contaste, a idéia não te desagrada!

— Nós fizemos amor durante toda a noite! Toda a noite, Throst! Tinha-me esquecido de como é bom satisfazer uma mulher! Julgava que já não era possível, na minha idade... No entanto, a paixão não é tudo! Lyria é muito bela, inteligente, fogosa... E eu sou um homem que já perdeu o esplendor da juventude. Quantos anos o seu entusiasmo duraria...?

— Decerto que a rainha está ciente da tua humanidade, Steinarr! Se, mesmo sabendo que te sobreviverá em muitos anos, ela deseja desfrutar da tua companhia, é porque te ama verdadeiramente. A questão de estar de olho no teu reino nem sequer se coloca, pois concedeu-te liberdade para o entregares ao teu primogênito. Se Lyria não fosse uma mulher de coração puro, «O Que Tudo Vê» não estaria ao seu lado. O que te atormenta, meu amigo? O destino do nosso povo? Ivarr será um bom rei! E, durante os primeiros tempos, poderás orientá-lo... Fala comigo, Steinarr! Receias a reação do teu filho? Eu tenho a certeza de que ele ficará mais satisfeito se for coroado no dia do teu casamento, do que no dia do teu funeral!

— O meu problema não é o Ivarr, nem o nosso reino! O meu problema... Que as serpentes do submundo me atormentem por toda a eternidade, Throst! Tu sabes perfeitamente qual é o meu problema, mesmo que o ignores para preservar a nossa amizade!

Levei as mãos aos lábios, mal contendo um grito. Steinarr acabara de dizer o que jamais poderia ser dito! O silêncio que engoliu o quarto foi quebrado pelos soluços angustiados do rei. Eu encostei a testa à porta e fechei os olhos. A minha mente trespassou a madeira e revelou-me Steinarr, prostrado sobre um banco, com a cabeça enterrada nas mãos. O meu pai aproximou-me e apertou-lhe os ombros, reconfortando-o:

— Tu carregas esse fardo há demasiado tempo... Pára de te atormentar! Eu não ignoro os teus sentimentos, Steinarr... Respeito-os! Admiro-te pela contenção; pela tua lealdade para comigo... e para com a Catelyn. Nós também te amamos, querido irmão... E, porque te amamos, queremos que sejas tão feliz como nós...

— E se eu só souber ser feliz ao vosso lado, desfrutando da vossa amizade, do vosso carinho? — tornou o rei, enlaçando as mãos do meu pai entre as suas. — Quando a Bera morreu, jurei que não voltaria a casar-me... Será justo para Lyria desposar um homem cujo coração jamais lhe pertencerá?

— Não podes ter a certeza disso! Por vezes, o amor nasce da paixão...

Sobressaltei-me ao ouvir passos ao fundo do corredor. O palácio começava a despertar. Afastei-me imediatamente da porta e corri de regresso ao meu quarto. A conversa com o meu pai teria de ficar para outra altura. Neste momento, o jarl já tinha muito com que se ocupar. A confissão do rei viquingue levaria qualquer outro homem a desembainhar a espada. Porém, a amizade que os unia era sincera. O destino dos Viquingues e do Povo da Terra estava a ser decidido naquele quarto... Eu esperava que Steinarr tivesse a sagacidade de escutar os conselhos do meu pai, pela felicidade de Lyria... e para seu próprio bem!

 

Na noite que antecedeu o adeus aos domínios da Gente Bela, «O Que Tudo Vê» chamou-me à sala de reuniões de Lyria. Aguardava-me apoiado no seu majestoso bordão, com a expressão exausta que insistia em acompanhar todos os seus passos. Franzi o sobrolho ao ver um pote de ferro pousado sobre a mesa. O instinto avisou-me de que era ali que se encontravam aprisionados os restos mortais da abominável feiticeira, que quase destruíra tudo o que me era querido. A presença de tal ameaça, durante a nossa conversa, não augurava nada de bom.

«O Que Tudo Vê» não perdeu tempo com rodeios. Após umas palavras de apreço, a voz da sua mente ecoou dentro da minha, para que mais ninguém escutasse o que tinha para me dizer:

«A minha missão de Guardião está prestes a findar. Sinto-me velho e cansado, sem ânimo para as duras batalhas que se avizinham. Lyria fez-me um convite tentador e tenciono aceitá-lo. Viverei o resto dos meus dias aqui, junto do seu povo, em harmonia com a natureza e a Arte. A Montanha Sagrada anseia pelo vigor da juventude. Serás bem recebida no berço da magia da Terra, quando sentires o apelo. Até lá, querida neta, é importante que treines com redobrado empenho, para reclamares o poder do dragão.»

Sacudi a cabeça, confusa, e desferi as perguntas óbvias:

«O que é que ainda me falta aprender, se dizeis que nada mais tendes para ensinar-me? Todos os anos que já treinei não são suficientes?»

«Aproxima-te, criança.»

Fixei o pote das cinzas de Gwendalin, inquieta e desconfiada. Não tinha vontade de chegar perto daquela aberração. Contudo, era exatamente isso que o meu mestre pretendia. Segurou-me as mãos e guiou-as até ao pote, para que apreendesse a textura dos desenhos que o decoravam e o tornavam belo e inofensivo, ante um olhar desconhecedor.

De início, nada senti, além da frieza característica do ferro. Depois, o pote começou a aquecer, como se repousasse em cima de um braseiro. O calor entrou-me na carne, até se tornar insuportável. Tentei recuar, mas «O Que Tudo Vê» não permitiu. Forcei-me a resistir à dor e concluí que o ferro se mantinha frio por baixo dos meus dedos. Era o que existia no seu interior que pulsava e me magoava os sentidos. A minha percepção foi toldada por uma nuvem de fumo, pincelada de pontos negros detentores de uma energia voraz, que me empurravam para um redemoinho de perdição, no centro do qual dois olhos de fogo me aguardavam...

Só escutei os meus próprios gritos quando «O Que Tudo Vê» me puxou contra o seu corpo. Demorei a recuperar o fôlego, enquanto ele me apoiava e transmitia energia curativa.

«Esta é a essência primordial da arte maldita. Enquanto não fores capaz de enfrentá-la, estarás vulnerável diante daquele que nasceste para combater. Ser Guardiã é uma grande responsabilidade, minha neta! Metade do poder do dragão já se perdeu para o lado negro. Não podemos permitir que o inimigo arrebate também a tua alma!»

Apesar de combalida, dei por mim a contestar:

«O feiticeiro Sigarr colocou o poder da Lágrima da Lua ao serviço da Arte Obscura, mas...»

O que estava eu a dizer? Sustive-me bruscamente, mas foi em vão. Não havia como ludibriar «O Que Tudo Vê»! De imediato, ele completou num tom reprovador:

«Mas o seu aprendiz pode trazê-lo de volta à luz?» — Respirou fundo e abriu os braços, num gesto de desamparo. — «As tuas ilusões são a tua fraqueza, Edwina! Convence-te de uma vez que esse rapaz não é apenas o herdeiro de Sigarr; é igualmente o legatário da maldade encarcerada neste pote. O filho de Gwendalin jamais renegará ao poder da Arte Obscura... nem mesmo que surja uma voz na sua consciência, despertando-o para o seu erro; nem mesmo sabendo que está a ser manipulado pelo seu mestre... Nem mesmo por amor!»

Senti-me desfalecer. Os meus olhos encheram-se de lágrimas e nem tive força para me afastar quando Hakon me abraçou, afagando a minha mente:

«Ivarr é um bom homem... Será um grande rei; ainda maior do que o seu pai, se nenhuma força maligna o atormentar. Deves proteger o seu espírito, para o bem do nosso povo! Não feches o coração ao amor que acalentas desde menina, por causa de uma fantasia condenada ao fracasso. O Edwin nasceu mau, viverá ao serviço dessa perversidade, e só tu poderás conceder-lhe a paz, através da morte. Lamento se estou a ser cruel, mas esta ê a verdade! Se baixares a guarda, ele irá enganar-te, seduzir-te e perder-te! E tempo de saberes que há décadas que Sigarr persegue a concretização de uma profecia, que dita que o filho varão do Rei da Lua e da Rainha do Sol terá o poder de fundir a magia dos cristais do dragão e apoderar-se do Conhecimento Absoluto. O futuro Guardião da Lágrima da Lua tudo fará para destruir a futura Guardiã da Lágrima do Sol, para que nenhuma magia na Terra possa ensombrar a sua... Todavia, antes assegurar-se-á de que o seu filho será um deus.»

Empalideci e vi tudo tremido. O meu bisavô ajudou-me a sentar e eu não protestei. Respirava com dificuldade, como se o ar se recusasse a alimentar-me os pulmões. «O Que Tudo Vê» não me revelara uma profecia... Proclamara uma maldição! A minha cabeça latejava, prestes a explodir:

«Mas... Isso não faz sentido! Que proveito tiraria Sigarr dessa criança, se já nem sequer seria ele o Guardião da Lágrima da Lua? A menos que...»

A dedução era demasiado grotesca, mas o meu bisavô fez questão de expressá-la:

«A menos que ele pretenda reclamar o controle da vontade do cristal! O desaparecimento de Edwin fará com que a magia da Lágrima da Lua regresse à essência de Sigarr. Através da Arte Obscura, ele descobriu como viver eternamente... E abdicar do que conquistou não está nos seus planos! Terá de matar para obter o que almeja, por isso os herdeiros que acolhe não possuem o seu sangue. Primeiro Gunnulf; agora Edwin... Se a maior das atrocidades se concretizar, e tu caíres nas mãos do teu primo, Sigarr matá-lo-á mal o vosso filho nasça, de modo a recuperar o seu poder.»

As lágrimas tombaram pelas minhas faces. Este era o fim do sonho que eu não me atrevera a sonhar. Este era o princípio do mais terrível dos pesadelos... e eu seria forçada a vivê-lo! Dei por mim a concluir:

«Quer pela minha mão, quer pela mão de Sigarr, o Edwin está condenado à morte...»

«O Que Tudo Vê» segurou-me no rosto e declarou carinhosamente:

«Tu foste mais longe do que qualquer ente de sangue misto jamais sonhou, Edwina, e continuarás a evoluir. E importante que superes esta batalha e te concentres na tua missão de Guardiã. A condição humana condena-te a uma vida breve, e é improvável que eu viva o suficiente para treinar o teu primogênito. Tenho o dever de te alertar para a necessidade imperiosa de manter o poder da Lágrima do Sol na Terra. Se a tua descendência falhar e eu já não for vivo para designar um herdeiro, a magia do cristal regressará ao meu pai... que não hesitará em entregá-la ao meu irmão, que se manterá jovem na Ilha Sagrada por várias gerações de Homens. E esse poder nas mãos de u?n Sacerdote do Conselho Superior, que ambiciona tornar-se Mestre Supremo, e acalenta um profundo desprezo pela humanidade e pelas outras raças de sangue antigo, será mais temível do que uma aliança entre mestres da Arte Obscura.»

A rainha do Povo da Terra e o rei viquingue conversaram longamente e consolidaram uma aliança: Lyria e «O Que Tudo Vê» guardariam o execrável pote e Steinarr comprometia-se a acorrer em seu auxílio sempre que necessário. Uma força Viquingue permaneceria nos limites da cidade, para prevenir um possível ataque Vândalo; as casas desta nova comunidade já começavam a ganhar forma. E nós regressaríamos ao forte, escoltados pelos guerreiros do meu pai.

Por enquanto, o próprio «O Que Tudo Vê» concordava que estas medidas eram suficientes para desencorajar um novo assalto de Aesa. Além disso, nos próximos tempos, o reino vândalo teria um príncipe herdeiro para chorar e, quando o ódio os instigasse a atacar, Steinarr seria o alvo da sua vingança.

Na despedida, a rainha manteve-se altiva e digna, apesar de os seus olhos denunciarem a dor de que o seu coração padecia. O rei estava sombrio como eu nunca o vira. Quando beijou a mão de Lyria e encontrou o seu olhar, pensei que ia retroceder na decisão de partir. Porém, a teimosia venceu! Mesmo sabendo que a minha mãe jamais lhe pertenceria, Steinarr contentava-se em manter-se ao seu lado e em partilhar das alegrias da nossa família.

Um último incidente marcou o dia. Três arqueiros do Povo da Terra pediram permissão ao jarl para cortejar Thora. Ketill e Bryan tiveram de segurar Eric para impedi-lo de desafiar os jovens para um duelo de honra. No fim, quem se zangou foi a minha irmã, que declarou estar farta dos galanteios masculinos. Será que os homens só pensavam em namoricos? O que ela queria era aprender coisas novas, viajar, guerrear...! O ardor da sua indignação foi tão veemente que temi ouvi-la renunciar ao compromisso com Eric.

Eu disse adeus a Lyria com pesar. Ela convidou-me a regressar em breve, mas ambas sabíamos que tal era impossível. Eu devia treinar de dia e de noite, se queria tornar-me Guardiã. Quando sentisse o apelo de que «O Que Tudo Vê» falara, teria de estar à altura do desafio, ou o mal prevaleceria e a Terra estaria condenada.

A viagem de regresso ao forte viquingue foi tormentosa. Estava um frio de gelar as idéias e, por várias vezes, tivemos de caminhar fustigados pela neve. Ivarr e os seus lobos seguiam à frente, como já era hábito, certificando-se da segurança dos trilhos. O meu noivo tratava-me com indiferença, desde a noite do banquete de Lyria. E, apesar de «O Que Tudo Vê» me garantir que o futuro da Terra dependia da nossa união, eu nada fizera para me aproximar.

Ao chegar ao seu castelo, Steinarr deparou-se com um tremendo embaraço. Saíra tão apressadamente que se esquecera de dar instruções para liberar Magnor do castigo. Como a sua vontade era soberana, ninguém se atrevera a atender às súplicas do príncipe, e este permanecera encarcerado nos calabouços, dormindo sobre o chão de pedra, comendo a parca ração dos prisioneiros e tendo de fazer as necessidades a dois palmos do sítio onde deitava a cabeça. Até eu me apiedei do pobre diabo!

O rei ficou muito perturbado. Como pudera esquecer-se do seu próprio filho? O pior era que, devido às circunstâncias que haviam justificado a punição, Steinarr não podia desculpar-se, ou arriscar-se-ia a subtrair a sua autoridade. Manter a cabeça erguida e a firmeza na voz, ao chamar Magnor à sua presença, era a única saída. Porém, se não fosse igualmente capaz de minorar os males resultantes deste embaraço, demonstrando-lhe o seu carinho de pai, poderia ter de enfrentar um ódio que os dividiria para sempre.

Mais tarde, o rei contou ao jarl que a conversa fora muito mais pacífica do que almejara. Magnor afirmara que já era um homem e que o castigo lhe servira de emenda. Agora, só pedia que lhe fosse concedida alguma responsabilidade, para provar o seu valor. A sua intenção era juntar-se às tropas que asseguravam a proteção da fronteira com a Floresta Sombria, onde aprenderia a viver apartado dos confortos da sua condição de herdeiro real. Agradado, Steinarr assentira e, ainda nesse dia, após ter-se inclinado humildemente diante do jarl, a fim de se retratar pela sua insolência, Magnor abandonou o forte sem alaridos. Eu não acreditava na sua súbita regeneração, mas mantive a boca fechada, para não errar num julgamento precipitado.

O meu pai anunciou que partiríamos dentro de dois dias. A estação fria começava a alterar o estado do mar e, dentro em breve, seria impossível viajar. Eu sabia que o jarl manifestara a vontade de permanecer no País dos Viquingues, com o primo Krum, mas o rei discordara, alegando que possuía homens suficientes para fazer frente aos Vândalos, e que a Ilha dos Sonhos necessitava da orientação do seu senhor. Além disso, a minha mãe devia estar em cuidados... E a tranqüilidade de Catelyn era algo que nenhum dos dois desejava descurar. Havíamos sofrido tantas baixas na batalha, que Steinarr teve de oferecer os serviços de alguns dos seus homens, para que os nossos barcos pudessem fazer-se ao mar. Tentar convencer Thora a acompanhar-nos foi inútil. A minha irmã ansiava por exercitar os novos e elaborados truques que aprendera com o Povo da Terra, e tudo o resto parecia enfadá-la. Movia-se pelo pátio de treinos qual peixe na água, rodeada não só por jovens guerreiros, mas também por veteranos curiosos. Os lobos da sua alcatéia acotovelavam-se e trocavam sorrisos pejados de orgulho. Por mais que me doesse, tinha de admitir que o lugar de Thora era ao seu lado.

Os trilhos da Montanha Sagrada revelavam-se exclusivamente àqueles que possuíam magia no sangue... ou assim eu acreditara, até ver a minha escolta, composta pelo rei-lobo e a sua alcatéia, continuar adiante, sem a menor desconfiança do que se encontrava à frente do seu nariz. Ivarr, Ketill e Ragnar não possuíam sangue feiticeiro, mas o mesmo não podia dizer-se de Eric e Bryan. No entanto, nenhum deles acusou ter visto a passagem. Apenas Thora se deteve, perguntando-me se eu desejava a sua companhia. Declinei com um suspiro nervoso, tentando superar o temor. Tinha de fazer isto sozinha!

A infame profecia que «O Que Tudo Vê» desvendara, tirava-me o sono e punha-me a cabeça a andar à roda. O Rei da Lua, a Rainha do Sol... e um filho amaldiçoado! Não admirava que a minha família fizesse tanta questão de que eu me casasse com Ivarr! A nossa união não representava apenas a convicção de que o aprendiz de Sigarr seria derrotado. Era também a garantia de que o futuro algoz do mundo não seria gerado no meu ventre.

Abandonei a coluna e encorajei a égua a enveredar pelo caminho mágico. De imediato, senti que entrava noutro mundo: o vento acalmou e o ar aqueceu, colando-se à pele qual manto de conforto. A claridade aumentou; uma luz serena brotava do solo e subia até ao céu, brincando com as espirais de nevoeiro colorido que surgiam do nada para me dar as boas-vindas.

 

A viagem até ao cume foi feita num sopro de tempo. O nevoeiro, que me maravilhava, susteve o meu corpo quando desmontei. Envolta pela bruma, a Pedra do Tempo cintilava como se um universo de estrelas pulsasse dentro dela, exercendo uma atração irresistível. Aproximei-me devagar e, a cada passo, a Lágrima do Sol manifestava-se; a sua magia banhando-me como água de uma cascata divina. Sem hesitar, repousei as mãos sobre a Pedra do Tempo, murmurando uma prece carregada de emoção:

— Senhora da Sabedoria, vós que conheceis o meu coração, o meu pensamento, a minha ansiedade, o meu desespero, mostrai-me o caminho da verdade. Desvendai-me os intentos do Guardião da Lágrima da Lua para que possa combatê-lo... — As lágrimas subiram-me aos olhos, ao recordar-me de Edwin. Se ainda houvesse uma possibilidade... a menor esperança de salvá-lo, agarrar-me-ia a ela com todo o meu ardor. Uma dúvida estrebuchava num canto recôndito do meu espírito, apesar dos avisos de «O Que Tudo Vê». Ter-me-ia Lyria despertado para a profundidade dos meus sentimentos por Edwin, se existisse unicamente dor e morte no nosso destino?

— A vós confio o meu corpo — continuei. — A vós entrego a minha essência. Conduzi esta serva até ao futuro, e trazei-a de volta, na segurança dos vossos trilhos de luz...

Foi como se uma mão gigante descesse sobre mim, me envolvesse a mente com garras vorazes e a arrancasse de dentro do corpo, arremessando-a a uma velocidade vertiginosa para o interior de um redemoinho de energia primitiva, onde as partículas mais elementares do universo se agrupavam, assumindo formas e cores. Depois, experimentei uma queda brutal, de encontro a um negrume pastoso, que me envolveu e assimilou, desintegrando a minha essência... até que, dorida, me surpreendi no interior de uma gruta vulcânica; a gruta onde ajudara Edwin a derrotar o campeão do Povo do Fogo.

Mais uma vez, os latidos e uivos faziam estremecer as paredes escarpadas. Por toda a parte, a rocha ganhava vida, animada pelas criaturas que surgiam dos nichos para desfrutar do espetáculo. No interior do anel de lava, a pedra ritual flutuava desregrada, empurrada pelos dedos de fogo. Cravadas no seu centro, duas colunas finas erguiam-se grotescamente, aprisionando por meio de correntes de pura energia as mãos e os pés de uma mulher, que se agitava, gritando desesperada, fustigada por um horror profundo... E essa mulher era eu!

Tudo era real: o intenso cheiro a enxofre, o clamor ensurdecedor dos demônios... a minha visão enevoada pelas lágrimas. A direita, um homem alto, vestido de negro e escarlate, observava-me com olhos glaciares e um sorriso cruel. O rosto jovem e odiosamente belo de Sigarr denunciava júbilo; a profunda exaltação que o percorria. O que mais ambicionava estava prestes a concretizar-se. Este era o seu momento de glória!

A um gesto do feiticeiro, Edwin avançou decidido; o corpo vestido com o brilho da Arte Obscura, o rosto desfigurado por uma crueldade funesta. Ainda assim, quando os nossos olhos se encontraram, o meu coração encheu-se de esperança, de ansiedade... de uma profunda tristeza. A sua mente invadiu-me a consciência, antes de os nossos lábios se unirem... E, por mais que eu soubesse que devia concentrar-me em destruí-lo, não fui capaz. Com as lágrimas a escorrerem pelo rosto, compreendi que o amava, que a minha vida lhe pertencia... Pertencera-lhe desde sempre! E era a sua e a minha vida que pulsava no interior do meu ventre. Eu estava grávida!

«Mata-a!» — ribombou a voz crua e gélida do mestre da arte maldita.

Debati-me fracamente, e o meu coração tentou alcançar o de Edwin, num derradeiro esforço de preservação. Todavia, dentro do seu peito só encontrei uma pedra. As suas gargalhadas ecoaram, enquanto a sua essência absorvia a minha, gota a gota, drenando-me o vigor, sorvendo o meu poder, assimilando a minha vida...

Mal senti a dor aguda que me rasgou de alto a baixo. Ouvi o choro do meu filho, vindo de muito longe, e o mundo desmoronou-se dentro de si mesmo. As forças que me dominavam expulsaram-me do meu corpo... da carcaça mutilada que pendia das correntes de luz, enquanto o seu sangue alagava o chão. Triunfante, Edwin elevou o nosso bebê no ar; a faca de osso com que me estripara caindo aos meus pés. Todavia, o seu sorriso depressa se transformou num trejeito de choque e dor. Rodou sobre si próprio para encarar o Guardião da Lágrima da Lua, fixando incrédulo o punhal ensangüentado com que este lhe trespassara as costas.

Com o olhar em chamas, Sigarr reclamou a criança, no instante em que o corpo robusto do seu pupilo ruía sobre o sangue que inundava o chão. Os latidos dos demônios elevaram-se a um delírio frenético, quando se precipitaram ao encontro dos cadáveres, e se banquetearam com a nossa carne...

— Não! — berrou o meu espírito terrificado. — Nós não podemos acabar assim... Tem de existir outro futuro!

O pesadelo desvaneceu-se, e as formas e cores regressaram à névoa primitiva. Provenientes do seu âmago, uma miríade de vozes repetia alternadamente, em ecos melodiosos:

«Outro futuro...

Um futuro para aqueles que sonham... Outro futuro...

Um futuro para aqueles que amam... Outro futuro...

Um futuro para aqueles que lutam...

E, para aqueles que não sonham, não amam e não lutam, não existe futuro. ..»

Decorria o último jantar desta nossa aventura no País dos Viquingues, mas eu sentia-me incapaz de engolir uma gota de água. Não muito longe, Ivarr mirava-me de soslaio, revelando incompreensão ante o meu comportamento. Até Thora falhava na tentativa de me fazer sorrir! Ela pressentia que as revelações da Pedra do Tempo não tinham sido boas. Aliás, nenhum dos seus companheiros deixara de reparar no meu estado lastimável, quando me reunira ao grupo. Porém, apesar da surpresa e da inquietação, ninguém se atrevera a questionar-me e, mesmo que o fizessem, não obteriam resposta.

Foi com alívio que recebi a permissão do meu pai para me recolher ao quarto. Ainda não tivera oportunidade de chorar... Ainda não tivera tempo de assimilar as horrendas revelações que me destroçavam a alma. O que pode alguém fazer, quando descobre que está condenado à morte, e que o seu carrasco será... um amigo de quem se gosta verdadeiramente? Não havia futuro, nem para mim, nem para Edwin... Sigarr ia vencer!

Porém, à medida que a noite avançava, o negrume que me envenenava o espírito começou a dissipar-se, soprado pela influência restauradora da Lágrima do Sol. Na minha mente despertava uma voz que ganhava ânimo à medida que teimava:

«Por que estás tão abalada? A Pedra do Tempo apenas te desvendou o perigo, para o qual «O Que Tudo Vê» já te alertara! O Edwin está perdido! Mantém-te longe dele e tudo se resolverá! O Ivarr proteger-te-á... O Ivarr não permitirá que te levem para aquela ilha maldita e te ponham um filho no ventre! O Ivarr cuidará de ti...»

Movida por uma vontade soberana, saí da cama e caminhei até à varanda. A música e os cânticos da festa de despedida que o rei oferecera ao jarl ainda alegravam o castelo. O meu coração apertou-se, ao ver Ivarr no pátio, sentado na fonte de pedra onde os animais iam beber. Esta era uma oportunidade excelente para lhe pedir desculpa e justificar-me. Talvez não houvesse outra!

Pus a capa que Lyria me oferecera sobre os ombros, e desci cautelosamente, evitando os guardas de vigia, a fim de resguardar a minha reputação. Avancei ao coberto das sombras e aproximei-me da fonte. Ia dar-me a conhecer, quando me apercebi de que Ivarr já não se encontrava sozinho. Estava com uma mulher... Estava com Thora!

— Se teimas em estar calado, é contigo! — replicava a minha irmã.

— Mas eu vou ficar a fazer-te companhia...

— Pára de me importunar — atalhou ele, num tom que soava mais meigo do que aborrecido. — Já há muito tempo que as crianças deviam estar na cama!

— Que prodígio! — desdenhou ela, ignorando a provocação.

— Afinal o senhor fala!

— Tu és insuportável, moça! — De novo o tom carinhoso.

— E tu és o homem mais obstinado que eu conheço! O que foi que aconteceu, Ivarr? Zangaste-te com a minha irmã? Jamais hei de entender como é que duas pessoas tão apaixonadas podem andar sempre amuadas! Queres que fale com a Edwina...?

— Quero que te cales, pela lança do poderoso Odin, antes que te arranque a língua, sua metediça! — Desta vez a sua voz acusava impaciência. Thora espetara a unha na ferida. — Se queres ficar, fica! Mas fica calada!

Esperei que ela se rebelasse, o insultasse e lhe voltasse as costas. Contudo, permaneceu sentada... e em silêncio! Um silêncio tão profundo, tão ofendido, que foi Ivarr quem acabou por ceder e recuar:

— Thora... Thora, desculpa! Eu... eu estou confuso, irritado... — A sua mão estendeu-se até à dela. — Perdoas-me?

A minha irmã mirou-o de esguelha, resmungando:

— Vou meditar nessa possibilidade, mas em silêncio...

Ivarr riu baixinho e abanou a cabeça. Os seus cabelos, já desgrenhados, libertaram-se da fita de pele e caíram-lhe sobre o rosto.

— Por que é que eu nunca estou aborrecido ao teu lado? — perguntou ternamente. — Tu tens o poder... Tens o dom de me fazer sentir bem! Gostava de conseguir falar com a Edwina, com a mesma facilidade com que falo contigo. Ela é tão complicada, tão fechada, tão misteriosa...

— E não é isso que te encanta?

De onde me ocultava, vi os olhos de Ivarr cintilarem quando encarou Thora.

— Sim — confirmou, acalentando-me o coração. — De certa forma... Mas, na cidade de Lyria, a Edwina magoou-me muito! Eu disse-lhe que desejava desposá-la assim que regressássemos... E ela repeliu-me com desprezo, quase com rancor!

Paralisada de assombro, ouvi-o divulgar esta confidência da nossa intimidade. A minha irmã ponderou, antes de volver:

— Isso não faz sentido! A Edwina ama-te! Desde menina que suspira por ti, ansiosa pelo dia do vosso casamento!

Agora, não sabia se estava mais zangada com um ou com o outro!

— Desde o Festival de Verão que eu e a tua irmã não paramos de discutir — continuou Ivarr. — Ela espreitou a tua iniciação... Estou convicto de que o fez apenas para te proteger, mas, desde então, ressente-se do nosso elo... Acha-o... excessivamente carnal, mesmo ofensivo. Custa-lhe a acreditar que o que nos une é magia... e não algo mais.

O sobressalto de Thora era evidente. Como é que Ivarr tivera coragem de insinuar que eu amargava de ciúmes sempre que os via juntos? A voz da minha irmã tremia, quando contrapôs:

— Ela devia compreender! Nós não podemos lutar contra a nossa natureza!

O príncipe respirou fundo, fixando a sua protegida e apertando-lhe ainda mais a mão, ao corroborar:

— Não, Thora... Não podemos...

Uma estranha energia flutuava ao seu redor... Seria novamente produto da minha imaginação? Thora parecia ser-lhe alheia, pois ergueu-se com a habitual desenvoltura e afirmou:

— Eu vou falar com a Edwina! Ela não pode pensar...

— Não quero que faças isso — objetou Ivarr, seguindo-a. — Eu já lhe expliquei tudo o que havia para explicar! Se a Edwina não entende, se não confia em mim, é porque não me ama... Vai dormir, Thora! — Ergueu um dedo para impedir o seu protesto. — E uma ordem!

O aposento de Ivarr nada tinha de principesco. Era um quarto simples, com uma lareira, uma cama estreita, uma arca e uma vasilha com água. As paredes estavam nuas e os tapetes que forravam o chão eram o único vestígio de conforto. O fogo que a escrava acendera, ao preparar-lhe a cama, em breve finaria. Eu terminava de atiçar as brasas com o ferro, quando Ivarr surgiu. Ao deparar comigo, deteve-se boquiaberto e demonstrou inquietação:

— Estás bem, Edwina?

Tombei nos seus braços e cedi ao pranto. Era eu a responsável pelo esfriamento do nosso afeto. Há quanto tempo não lhe oferecia um beijo? Há quanto tempo não lhe dava a mão?

— Edwina...

— Perdoa-me, Ivarr — atalhei, buscando o seu olhar. — Não tenho sido uma boa noiva... Nem sequer uma boa amiga! Mas amo-te! Amo-te de verdade...

Ele interrompeu a minha consumição com um beijo, e eu entreguei-me ao seu carinho sem restrições. Deliciei-me com o sabor da sua saliva, e não permiti que se afastasse para recuperar o fôlego. Estava sequiosa, sôfrega, como se necessitasse do seu ardor para viver. Entrelacei os dedos na suavidade dos seus cabelos e derreti-me quando Ivarr aprofundou o beijo, inundada por sensações maravilhosas, algumas quase dolorosas, que exigiam a atenção das suas mãos. E ele sabia exatamente onde tocar para transformar a dor em prazer!

— Edwina... — arfou roucamente. — Temos de parar...

— Não!

Uma ínfima parte da minha mente rebelava-se contra tamanho desvario. A outra, obrigava-me a insinuar-me contra o seu corpo, de forma instintiva mas eficaz. Se, esta noite, Ivarr plantasse a sua semente no meu ventre, o fantasma da profecia seria definitivamente afastado. Ele gemeu alto e devorou-me os lábios, enquanto as mãos destras se aventuravam por baixo da capa de lã, afagando-me os seios sobre o tecido da camisa de noite. Afastei-lhe a túnica até alcançar a pele nua e quente do seu tronco, onde os músculos palpitavam por baixo dos meus dedos. As cicatrizes do ritual de sangue, que o unia aos seus lobos, capturaram-me a atenção. Eram cinco... Mais uma do que quando Thora fora iniciada! A última testemunhava a sua ligação a Ketill.

— Existem mil e uma coisas que posso ensinar-te, querida — murmurou Ivarr, forçando uma pausa para me prender o olhar. — Mas sem pressa... — Roçou os lábios nos meus, com uma meiguice enlouquecedora. — Desejo-te virgem no dia do nosso casamento... Quero que a prova da tua virtude seja exibida com orgulho diante do nosso povo, para que ninguém duvide da tua perfeição. Porém, até lá, podemos descobrir o prazer, sem que a tua pureza seja maculada. — Sorriu, ao deparar-se com a minha incompreensão. — Este será o nosso segredo, minha princesa... Prometo-te que, quando nos casarmos, o nosso amor será maior do que alguma vez sonhamos, porque nos conheceremos tão bem, que não existirá pudor nem embaraço... só deleite!

A capa que me cobria caiu no chão com uma pancada seca. Não tive tempo de interpretar o que Ivarr dissera, porque ele já me segurava ao colo e deitava na cama. Despiu a túnica com um gesto decidido, e deslizou com cuidado sobre o meu corpo. A visão do seu olhar cristalino, iluminado pelo fogo da lareira e adornado pelos cabelos negros, que caíam sobre os ombros largos e o peito vigoroso, embriagava-me os sentidos. A força do seu desejo era um ferro em brasa contra a minha barriga. Fechei os olhos e recebi os seus beijos com uma paixão crescente, acariciando-o como sabia, até que as suas mãos me encorajaram a desbravar um caminho que eu jamais ousaria percorrer sozinha.

— Toca-me, Edwina... — sussurrou num tom desesperado. — Toca-me ou morrerei...

Obedeci, simultaneamente receosa e excitada, enquanto os seus dedos desfaziam os cordões da minha camisa, afastando o tecido e apossando-se dos seios. Afagou-os com uma perícia extasiante, para depois beijá-los com o mesmo entusiasmo que dedicava aos meus lábios. Gemi alto, arqueando-me ao encontro da sua boca, implorando por mais...

O estrondo atingiu-me qual pancada na cabeça. A porta do quarto abrira-se de rompante e uma voz aflita clamava:

— Ivarr, a Edwina não está no quar...

Despertei para a realidade, com o coração prestes a rebentar. Sobre mim, o corpo de Ivarr ficou tenso, como se trespassado por uma lança. Os seus dedos enterraram-se nas cobertas, enquanto se engasgava com a própria respiração. Deparei com o seu rosto crispado, o seu olhar cerrado e os lábios apertados, antes de me atrever a encarar a minha irmã.

As flamas da lareira não se comparavam com a violência do rubor de Thora; ao choque no seu olhar, por me encontrar deitada quase nua na cama de Ivarr, totalmente entregue...

— De., desculpem... — gaguejou. — Eu... Eu não imaginava... Perdoem-me!

Desapareceu tão abruptamente como chegara, ignorando o meu apelo. Ivarr sentou-se na cama e cobriu o rosto com as mãos. O seu abandono deixou-me gelada. Compus a camisa de noite, debaixo de um silêncio enervante, aguardando que ele me puxasse para os seus braços e murmurasse uma palavra de conforto. Todavia, o olhar do meu noivo estava prisioneiro da porta que ficara aberta, completamente atordoado. Nem tentou deter-me, quando pus a capa!

— Desculpa, Edwina — declarou por fim, numa voz sumida. — Decerto a Thora foi procurar-te e, como não te encontrou, veio alertar-me... Mas não te preocupes! Ela guardará segredo...

— Não existe nenhum segredo, Ivarr! — repliquei, quase friamente. — Não se passou nada!

Ele ergueu-se devagar e abraçou-me. O calor dos seus lábios contra a minha testa quase me fez chorar.

— Tens razão... — assentiu. — Não se passou nada...

Havia carinho nos seus gestos, mas o desejo apagara-se. Recuei, sem vontade de encará-lo e surpreender os dilemas que se ocultavam por trás da cortina verde, murmurando:

— É melhor irmos dormir...

— Sim... — concordou, denunciando alívio. — Vamos dormir... A voz faltou-lhe, toldada pela insegurança que tentava a todo o custo disfarçar. Deixei-o para trás, sem resposta, e dirigi-me ao meu quarto, açoitada por mil e um pensamentos funestos. Eu fora até Ivarr, disposta a entregar-me, porque o amava... ou para me libertar da ameaça da profecia? E, se ele me desejasse realmente, teria mostrado tantas reservas em consumar o nosso amor? Pior; teria permitido que a aparição de Thora o desmotivasse por completo, e o empurrasse para aquela angústia deplorável? Talvez fosse melhor não insistir nestas perguntas... Pelo menos, enquanto a cabeça estivesse em brasa!

Despedi-me do País dos Viquingues com a mente carregada de dúvidas. Da amurada do Knarr, observei o porto a ficar para trás, assim como uma dezena de rostos que me eram queridos, ciente de que só tornaria a vê-los quando o gelo que vagueava pelo mar derretesse e as ondas gigantescas de Inverno serenassem o seu ímpeto.

O rei Steinarr preparava-se para enfrentar as represálias dos Vândalos e já dera ordens para fortalecer as fronteiras, enviando mais guerreiros para se unirem à guarda avançada e ao príncipe Magnor. Sendo um líder indispensável na estratégia militar do nosso povo, Ivarr não teria mãos a medir durante a estação gelada. Eu só esperava que as forças divinas o guardassem, e aos seus lobos, de todos os perigos.

O meu adeus a Thora foi estranho, quase constrangedor. Ela esquivara-se a escutar as minhas justificações, replicando que a vida amorosa do herdeiro do trono viquingue e da sua noiva não lhe dizia respeito. Desejava a minha felicidade e tinha a certeza de que Ivarr saberia provê-la. Parecia-me... ressentida! O desabafo do seu senhor impelira-a a acreditar que eu a considerava uma ameaça.

O jarl assumiu a sua posição ao leme do Knarr, com uma expressão sombria. Era óbvio que deixar o seu rei e a sua pátria sob a ameaça de uma guerra o estraçalhava por dentro. E o fato de uma das suas filhas se encontrar destacada para a frente de batalha também lhe feria o espírito. Se Steinarr não tivesse expressado, com absoluta firmeza, a vontade de vê-lo regressar à Ilha dos Sonhos, o meu pai jamais teria embarcado. Porém, agora, só lhe restava certificar-se de que a longa viagem que tínhamos pela frente decorreria sem acidentes. O vento soprava com uma ferocidade gélida e incitava as ondas a açoitarem a robustez do casco. O céu estava negro, tenebroso, e as nuvens sólidas pareciam prestes a esmagar-nos. A natureza não pretendia facilitar-nos a vida!

Os remadores começaram a cantar para enganar o esforço e os restantes marinheiros dividiram-se pelas suas tarefas. Era tempo de deixar a amurada, antes que ficasse encharcada até aos ossos, ou um solavanco mais enérgico me desequilibrasse e atirasse ao mar. Por si só, esta viagem já prometia ser suficientemente turbulenta, sem que eu causasse problemas ao jarl.

O capitão fez questão de aportar todas as noites, para evitar as tempestades sucessivas e permitir que a tripulação descansasse. Desta forma, levaríamos o dobro do tempo a chegar a casa, mas era melhor do que naufragar por imprudência ou teimosia. Tal como previra, a viagem estava a ser tremendamente perigosa. Todos suspirávamos de alívio sempre que avistávamos um ancoradouro, e a única refeição de que desfrutávamos no dia era celebrada com prazer.

A maior parte dos homens dormia dentro do Knarr. Não obstante os meus protestos, o jarl insistia para que eu pernoitasse em casa de algum conhecido, ou em alugar-me um quarto numa estalagem. Alegar que preferia ficar no barco, ao seu lado, era inútil.

Foi num porto supostamente amigo que o impensável aconteceu. Encontrava-me alojada no primeiro andar de um albergue apreciado pelo nosso povo. O quarto era minúsculo, mas confortável, com uma janela voltada para a cidade que jamais fechava os olhos, animada pelo ritmo da chegada e partida dos navios de comércio. A cama era uma tábua suspensa da parede, suficientemente grande para acolher um homem robusto. O colchão de palha estava limpo, assim como as mantas quentes, de cores garridas. Uma lamparina de óleo iluminava as paredes de madeira, marcadas por centenas de cortes infligidos pelos punhais que os guerreiros arremessavam para seu divertimento, enquanto não cediam ao sono.

A vigília era um mal do qual eu não padecia. Estava tão cansada que adormeci assim que me enrosquei nas cobertas. Dormi um sono reparador, com sonhos povoados de névoa cintilante, que brincava em meu redor, acalentava o corpo e sarava o espírito. A consciência regressou devagar, com a percepção dos dedos que se enrolavam nos meus caracóis... Ergui-me bruscamente, mas uma mão cobriu-me os olhos; uma mão feita de energia, porém tão real, que eu distinguia a sua textura... e a sua frieza.

— Não olhes para mim... — A voz do meu primo Edwin soou, débil e magoada. — Não quero que me vejas... assim...

Eu não necessitava de afastar-lhe a mão para que a sua imagem me enchesse a mente. Vislumbrei-o sentado na beira da cama, tremendo em completo desamparo, com a pele febril...

— Edwin...

— O Edwin morreu... — murmurou, deixando o braço cair como se não tivesse ossos. — O Loki matou-o... Hoje... Hoje fiz algo terrível... Algo que jamais terá perdão, nesta vida ou em qualquer outra que me seja permitida viver...

Toquei-lhe no rosto, intrigada e temerosa de que ele se afastasse... Mas fui eu que recuei, com uma exclamação assustada. Apesar de corada e a suar, a essência de Edwin estava gelada!

— Já não existe calor neste mundo para mim, Rainha do Sol! — declarou. — Hoje, entreguei a minha alma às trevas... Voltei as costas à humanidade. .. Fiz um pacto com a morte...

Bruscamente, segurou-me no rosto e atraiu-me ao seu encontro. O meu grito ecoou dentro da sua boca... E essa foi a derradeira percepção real, antes de a minha mente ser invadida pela visão de uma tempestade que se propagava com uma fúria selvagem, sem um pingo de beleza ou harmonia... Avassaladora. Sobrenatural.

O céu sangrava, o mar sangrava e, sobre as ondas de desespero, um navio girava e contorcia-se, sem esperança; as velas rasgadas, os mastros despedaçados, a carga varrida borda fora pela força da água. O estrépito da madeira a partir-se sobrepunha-se ao estouro dos trovões, enquanto as vagas arremessavam o precário abrigo de vidas contra os aguçados rochedos que cercavam a Ilha do Fogo. Sem respirar, distingui dois homens na praia de pedras negras. Sigarr, mestre da Arte Obscura e Guardião da Lágrima da Lua, mais parecia um gigante, tal a intensidade do seu fulgor. Porém, não era ele quem atraía os marinheiros indefesos para uma morte atroz. Era o seu pupilo!

As recordações de Edwin devoravam-me os pensamentos, enchiam-me de pavor. Vi o barco esmagar-se contra os rochedos; a madeira a vergar-se com a fragilidade de caules verdes. Os náufragos bradavam, colhidos pelas ondas; os corpos oscilando sem rumo, emergindo e submergindo, lutando para permanecer à superfície e evitar as rochas cortantes que os relâmpagos tinham orgulho em exibir. A sua única salvação seria vencer a barreira mortal e alcançar a praia... Os mais afortunados conseguiram, rastejando exaustos; os gemidos de dor e desalento abafados pelo estridor da trovoada. Então, outro clamor sobrepôs-se aos trovões: os latidos de uma matilha em êxtase... A um tempo, o Povo do Fogo saltou do seu esconderijo e precipitou-se contra os marinheiros, que se entreolhavam aterrados; os rostos da cor da cinza denunciando que esta era a concretização do mais bárbaro dos pesadelos.

Os demônios cercaram os humanos e separaram-nos, como gado para abate. Os mais velhos foram de imediato arrastados para o interior do emaranhado de grutas. Alguns receberam a graça do esquecimento, antes de conhecerem o seu destino atroz. Contudo, os mais resistentes sentiram as presas afiadas das hediondas criaturas a cravar-se nas suas gargantas; a carne a rasgar-se dos ossos, os membros a separar-se dos corpos, enquanto eram devorados vivos. Os seus gritos de indescritível suplício soavam aos ouvidos do feiticeiro maldito como música... aos ouvidos de Loki... aos meus ouvidos...

— Não!

Apartei-me de Edwin lutando para respirar, suplicando pelo fim do tormento. Perdi as forças e caí nos seus braços, quase desmaiada de horror, pensando que, por mais que treinasse, jamais estaria preparada para enfrentar tamanha execração. O frio da essência do meu primo envolvia-me... Porém, ao entrançar-se no calor da minha magia, a sua malignidade serenava...

— Tu não mataste — constatei esperançada, buscando o seu olhar. — Tu não assimilaste vida!

— Mas fá-lo-ei da próxima vez — replicou, com inabalável convicção. — E inevitável! Desejo-o intensamente, Edwina! E uma fome que já não consigo ignorar... Uma necessidade que me queima por dentro... A herança da minha mãe!

 

Deixei a cabeça pender até as nossas testas se encostarem. Isto estava tudo errado! Jazia abraçada ao homem que o destino marcara para me matar... No entanto, não era Loki, o monstruoso pupilo de Sigarr, nomeado à semelhança do deus viquingue da mentira e da dissimulação, do caos e da destruição, que me estreitava... Era Edwin, meu primo, meu amigo... meu companheiro para toda a eternidade.

— Por que é que vieste? — perguntei esgotada.

Senti o seu abalo; o dilema que o destruía... a batalha do bem contra o mal, o esforço para dominar o instinto predador e apelar:

— Tens de me matar, Edwina, antes que seja tarde! Aprisiona a minha essência com a tua magia e o meu corpo perecerá...

— Não estás a falar a sério!

—Juro-te que estou! Mata-me, enquanto ainda conservo uma réstia de razão... Porque, se não o fizeres, destruir-te-ei no futuro, sem nenhum remorso!

Fixei-o, o azul dos meus olhos misturando-se com o verde dos seus. Havia uma sinceridade brutal em cada uma das palavras de Edwin.

— Tens de lutar... — comecei, mas ele atalhou de imediato, exasperado:

— Eu já lutei de mais! As minhas forças esgotam-se... O meu poder cresce a cada dia e devora-me a consciência. Vou ceder! E vou gostar! Esta é a última vez que...

Um estouro sacudiu as fundações da estalagem e cortou-lhe a voz. Seguiu-se um silêncio profundo e atemorizador. Num instante, os sons da noite haviam finado. Na rua, os cães já não ladravam, os cavalos já não batiam com os cascos, os bêbados já não entoavam os seus cânticos em aceso entusiasmo... o vento já não soprava!

— Edwin... — murmurei assustada, e, não acabara de pronunciar o seu nome, quando surpreendi a onda de energia que se elevava, devorando a noite na nossa direção.

— Estou a sentir... — arfou ele, em resposta. — É uma essência tão poderosa como a do meu mestre!

Então, o fragor repetiu-se: uma pancada que estremeceu o albergue. Depois, um silvo, como o gemido do vento ao esgueirar-se por uma fresta apertada; um assobio fantasmagórico que enunciava o meu nome.

— Aesa... — constatei, tão aterrada que me quedei, incapaz de esboçar um gesto.

— Tens de sair daqui! — Edwin sacudiu-me, forçando-me a reagir. — A janela... Corre ao encontro do teu pai! Eu posso detê-la por algum tempo... Ela não se atreverá a fazer mal ao protegido do Guardião da Lágrima da Lua! Vai!

O fogo da lamparina definhava, até que, por fim, se extinguiu. A tranca da porta de madeira começou a deslizar, arredada por uma mão invisível. Na bolsa, junto do meu ventre, a Lágrima do Sol pulsava em agonia. Incitada por Edwin, abri a janela e encarei a noite. A Lua rompera as nuvens densas e reinava, sorridente. As ruas, sempre movimentadas, encontravam-se desertas, e os archotes que as iluminavam apagavam-se à velocidade do pensamento. Trepei para o parapeito, disposta a saltar para a escuridão. Então, a minha visão noturna revelou-me os lobos.

Estaquei petrificada. Eram dezenas! Seria impossível escapar-lhes com vida! Surgiam de todas as esquinas, silenciosos, malignos; o pêlo negro eriçado e os olhos vermelhos ardentes. Corriam pelas ruas e sobre os telhados, suando, salivando e espumando por entre presas aguçadas como lâminas. E, enquanto eu preparava um grito de horror, um deles lançou-se contra mim e empurrou-me para dentro do quarto.

Caí desamparada, debatendo-me, tentando afastar a bocarra e as garras letais. A mão de Edwin fechou-se no pêlo da fera e arremessou-a pelo ar, como se não passasse de um cachorrinho. O monstro embateu na parede e estatelou-se no chão, ganindo desorientado. A tranca da porta soltou-se com um som mórbido. Decidido, o meu primo mergulhou sobre mim e eu recebi a sua essência sem oposição, assimilei-a e tornei-a minha. Éramos novamente um, como no dia em que havíamos combatido o campeão dos demônios. Só que, desta vez, o corpo pertencia-me e era a sua energia que corria no meu sangue, a sua consciência que latejava na minha mente. E ordenava:

«Não deixes que ela se aperceba da nossa união! A sua ignorância ê a nossa vantagem!»

Num instante, esta batalha deixara de ser minha e passara a ser nossa. Se Aesa me matasse, Edwin também pereceria. Era certo que, ainda há pouco, ele não revelara apreço pela vida! Contudo, à medida que os nossos corações se uniam num só ritmo, eu reunia a certeza de que, apesar de viver dentro dele, a Arte Obscura jamais governaria a sua vontade!

— Edwina, a filha de Throst e Catelyn... Finalmente encontramo-nos, princesinha abençoada!

Aesa avançou, envolta numa aura vermelha e negra. O vestido preto que a cobria revelava formas menos generosas do que as minhas, mas os nossos cabelos possuíam a mesma cor dourada, e os nossos olhos, o mesmo azul. Ou assim ela pretendia fazer-me acreditar, já que toda esta aparição resultava de uma demonstração de poderio mágico, destinada a intimidar-me.

— A nossa semelhança surpreende-te, querida? — perguntou, inclinando-se para me tocar no queixo. — Alegra-te por saber que a humanidade não contaminou a tua beleza! Pelo contrário, a união do sangue impuro de Hakon e Aranwen gerou frutos deliciosos, que os homens darão a vida para provar!

Afastei-lhe a mão com uma palmada e pus-me de pé, disposta a enfrentá-la. Porém, não dera um passo e já o lobo que Edwin prostrara investia contra mim. Repeli-o, socorrendo-me da magia, mas outro tomou o seu lugar, e outro e outro... Eu estava esmagada debaixo de feras grotescas e mal conseguia respirar...

— És tão patética, moça! — desdenhou Aesa com profundo desprezo. — Para trás!

Os lobos recuaram, ganindo, e a mestra da Arte Obscura ocupou o seu lugar. Agarrou-me pelos ombros e atirou-me contra a parede. Colou o corpo ao meu e prendeu-me os pulsos debaixo do aperto das suas mãos gélidas. Em menos de nada, era só olhos... azul... vermelho e negro! E uma voz que purgava ódio:

— A minha casa chora por tua culpa, miserável! Eu planeava matar-te, mas, depois do que fizeste, a morte seria o menor dos castigos... E tu mereces sofrer! Tu mereces desfrutar de uma longa e penosa existência! Pelo poder da Arte Obscura, juro-te que, por cada lágrima derramada sobre o meu sangue, jorrarão mil e uma lágrimas sobre o sangue de Hakon e Aranwen! Estação após estação, o teu poder renascerá em mim, até que a loucura te devore! Esta será a tua maldição... E o meu deleite!

Os lábios da feiticeira apossaram-se dos meus; a energia maligna rasgando impiedosamente as minhas defesas e banqueteando-se com o meu horror. Ouvi-me gritar, longe, muito longe... O meu sangue era um rio, onde o fogo e o gelo se misturavam. A minha carne ardia e derretia-se... E Aesa banhava-se nessa agonia, sugando vorazmente a minha essência, consumindo-me gota a gota... Até encontrar o que se ocultava por baixo!

Sem aviso, a essência latente de Edwin despertou, causando uma descarga de energia mais poderosa do que um raio, que me devolveu o vigor. Os meus braços fecharam-se em redor da bruxa, e comecei a corresponder ao seu ímpeto mortal. Num instante, a predadora Aesa tornou-se a presa. Com uma determinação alimentada pelo instinto de sobrevivência, extraí do seu corpo o poder que ela me usurpara e continuei... A essência da magia negra invadiu-me e incendiou-me. Ter-me-ia consumido, se Edwin não me ensinasse como controlar o fogo. Um pouco mais... Só um pouco mais...

A feiticeira recuou com um guincho arrepiante, fixando-me com uma estranheza quase atemorizada. Através do elo que ainda unia as nossas consciências, alcancei o seu assombro. Como era possível que a Arte Obscura habitasse em mim? Como podiam duas forças antagônicas conviver dentro do mesmo ser? Que espécie de criatura era eu? Fora um erro não me matar, enquanto me tivera à sua mercê! Agora hesitava, receosa de que eu possuísse recursos para lhe replicar. Temi que voltasse à carga e denunciasse o meu segredo. Se descobrisse que era Edwin quem me sustinha, matar-nos-ia sem contemplações... Porém, com um rugido furibundo, Aesa chamou a si os lobos danados e desapareceu num piscar de olhos.

Fiquei sozinha, afundada num silêncio esmagador, sentindo a energia do meu primo latejar dentro de mim, com um vigor que denunciava a sua superioridade. Percebi-me completamente esgotada, no instante em que as nossas essências se apartaram. Se Edwin desejava molestar-me, era esta a sua oportunidade! Eu desfalecia, indefesa...

Os seus braços ampararam a minha queda. Fechei os olhos e respirei fundo, embalada por uma sensação de leveza e conforto. Murmurei o nome do meu primo, até a voz fenecer... E a carícia dos seus dedos nos meus cabelos acompanhou-me no mergulho à inconsciência.

 

— Lágrima do Sol... Lágrima da Lua... Tu já serviste as duas, mama. Qual delas é a mais forte?

Catelyn da Ilha dos Sonhos esboçou um sorriso triste e segurou no cristal do Sol, que repousava no meu colo, acariciando-o com devoção.

— São ambas poderosas, cada uma à sua maneira — respondeu. — Eu controlei a Lágrima da Lua com maior dificuldade, porque a sua magia estava cativa da Arte Obscura.

— Mas a Arte Obscura não tem forçosamente de servir o mal — observei. — A rainha Lyria invocou-a para salvar o rei Steinarr.

A minha mãe recostou-se na cama, ao meu lado, suspirando profundamente.

— Tanto a Arte Luminosa como a Arte Obscura são como espadas, querida. Podem ser usadas para construir... ou para destruir. E a essência de quem empunha a espada que determina se a magia servirá o bem ou o mal! Um seguidor da magia branca que tome o gosto pela conquista, depressa se transformará num tirano, e perderá a noção do que é certo e do que é errado. A partir desse instante, matará e destruirá para sua glória, sem se importar com as cinzas que deixa para trás. A intenção do teu coração é muito mais importante do que a magia que invocas! A Arte Obscura é perigosa, porque deturpa a nossa mente, os nossos sentimentos, os nossos objetivos... Contudo, manipulada por alguém de vontade forte e coração puro, como a rainha do Povo da Terra, pode ser milagrosa!

Engoli em seco, pensando que o meu primo Edwin possuía, sem dúvida, uma vontade inabalável... mas estava longe de ter um coração puro. O Guardião da Lágrima da Lua semeara-lhe o ódio na mente e o desejo de vingança no sangue. E a sua perversidade afigurava-se prestes a dar frutos. Eu sempre ouvira dizer que, uma vez que a alma caía no domínio das trevas, não havia esperança de resgatá-la. Para meu extremo desgosto, tudo indicava que, em breve, teria oportunidade de comprová-lo!

A recordação daquela maldita noite, na estalagem, ainda me paralisava de horror. A débil luz da manhã trespassara as tábuas da parede e forçara-me a abrir os olhos para uma realidade ambígua. A cama estava desalinhada, a lamparina apagada... mas o quarto encontrava-se deserto, sem vestígios do assalto de Aesa. A janela estava fechada e a porta trancada por dentro. Os guardas que o meu pai sempre deixava de vigia juravam que nada se passara. Talvez tivessem adormecido por pouco tempo... Mas decerto acordariam se algum tumulto se verificasse! Alarmado pela minha aflição, o jarl indagara na cidade. Contudo, ninguém vira um lobo negro e nenhum incidente perturbara a normal animação das tabernas.

No corpo, eu também não apresentava sinais de agressão. O único fato digno de referência fora o aparecimento das minhas regras uma semana antes do previsto, o que não significava nada, já que nos dias anteriores estivera sujeita a intensas oscilações emocionais, que podiam ter originado tal disfunção. O sangue e o suor, que ensopavam a minha camisa de noite e as cobertas, nada mais revelavam do que uma noite mal dormida. Porém, eu teimava em tudo o que vira e ouvira! Não sonhara! Não estava louca! Edwin procurara-me para serenar o tormento da sua alma e me suplicar que o afastasse do seu... do nosso destino! A nossa conversa ficara a meio porque Aesa me atacara! Fora a descoberta da essência do meu primo que a forçara a recuar. Só não sabia se ela tivera tempo de concretizar a maldição que apregoara!

Ante a ausência de testemunhas, ou do mais leve indício que confirmasse o meu terrífico relato, o jarl concluíra que eu padecia da influência de um pesadelo. Angustiada e desgostosa, guardara a minha convicção e, mal chegara a casa, correra para os braços da minha mãe, esperando que a sua sabedoria me apoiasse, e que a sua magia me libertasse do fantasma da maldição da feiticeira.

Ao ouvir que eu lhe desobedecera e voltara a encontrar-me com Edwin, a senhora da Ilha dos Sonhos ficara demasiado assustada para se zangar. Investigara exaustivamente a minha essência, em busca de um rasto da corrupção de Aesa... E, quando nada encontrara, confrontara-me com questões para as quais eu não possuía resposta:

 

Depois de tudo o que já acontecera, seria crível que Edwin me procurasse para me oferecer a sua vida? Não achava demasiada coincidência que Aesa tivesse escolhido justamente aquela noite... o instante em que ele estava ao meu lado, para me atacar? Desistiria a mestra da Arte Obscura tão facilmente da sua vingança? Acresciam a estas perguntas aquelas que intrigavam o jarl. Como fora possível que o cenário que eu descrevera — a escuridão, o silêncio, os lobos danados — perturbasse a vivência de uma cidade, sem que ninguém o testificasse?

Com cuidado e carinho, a feiticeira Catelyn opinara que era possível que Edwin não me tivesse buscado para apaziguar a sua dor... mas para manipular a minha mente! E se tudo o que eu vivera não passara de um jogo de dissimulação; de mais uma prova que ele tivera de superar, para demonstrar o seu valor a Sigarr? A minha mãe acreditava que Aesa nunca estivera naquela cidade do Norte, naquele quarto do albergue, sobre o meu corpo, cuspindo uma maldição... Edwin pervertera as minhas recordações e plantara esse pesadelo no meu espírito, para me fazer acreditar que lhe devia a minha vida; para restabelecer a minha confiança na sua benignidade; para que, no futuro, o recebesse de coração aberto... e caísse na sua armadilha!

No fim, essa justificação era pior do que a mais abominável das maldições. Significava que Edwin estava para além de qualquer salvação; que a profecia da Pedra do Tempo, que concretizava a minha morte e o nascimento de uma criança que iria destruir o mundo, pesava sobre a minha cabeça. Eu não podia aceitá-la! Todavia, quanto mais refletia, mais sentido lhe atribuía.

— Como é que te sentes? — perguntou a minha mãe, alcançando os meus pensamentos. — Tens tido pesadelos?

Sentia-me bem e os meus sonhos eram pacíficos. Porém, o medo desassossegava-me. Com o passar dos dias, a minha convicção ruía como um castelo de areia derrubado pela subida da maré. Os avisos de «O Que Tudo Vê» assombravam-me. Era inegável que Edwin estava mais forte do que eu. Se o nosso confronto fosse inevitável, a minha vitória era quase uma ilusão! A única possibilidade de lhe fazer frente era tornar-me Guardiã da Lágrima do Sol. Por isso, empenhava-me no treino da Arte, até o cansaço me prostrar... Mas, ainda assim, parecia que as forças que comandavam o universo não me reconheciam apta a assumir a missão do meu bisavô. Acrescia o fato de eu ser o primeiro ente de sangue misto a aspirar a uma honra que só fora concedida a Feiticeiros... e a primeira mulher a ousar desafiar a vontade imposta pelo Conselho dos Seres Superiores, desde que os cristais mágicos habitavam a Terra.

Partilhei estas inseguranças com a minha mãe, que me abraçou, aquietando-me:

— O Edwin só está em vantagem porque a tua essência não perturba o seu equilíbrio. Contudo, uma vez que aprendas a enfrentar o poder nefando da Arte Obscura, a Montanha Sagrada chamar-te-á para servi-la e o teu primo deixará de ser uma ameaça. E, quanto aos Feiticeiros, não te preocupes, querida! Tu possuis a sua magia e o espírito do Homem, reunidos no teu sangue! Esse é o teu trunfo! Por mais que os Seres Superiores apregoem que se afastaram dos humanos por desprezo, a verdade é que os temem; receiam o seu gênio, a sua perseverança, a sua coragem e, principalmente, a sua entrega apaixonada às causas que defendem. Quiseram levar-te para a Ilha Sagrada quando ainda eras bebe, porque reconheceram o teu potencial. Tu és excelsa, Edwina; a prova viva de que a supremacia dos Feiticeiros na Terra terminou!

A medida que as semanas passavam, a prática da Arte, mais do que um prazer ou uma necessidade, tornou-se uma obsessão. Sabia que os meus pais e tutores se inquietavam. Até o tio Berchan, tão exigente no que respeitava ao meu desempenho, me aconselhava a descansar. Contudo, eu não podia! O silêncio de Edwin fortalecia as suspeitas da minha mãe. Por isso, tinha de treinar, treinar, treinar muito! Mesmo que o assalto ao albergue tivesse sido imposto à minha mente, Aesa era uma ameaça real e podia atacar a qualquer instante... E eu devia estar apta a defender aqueles que amava! Certos dias, a simples recordação do nome da mestra da Arte Obscura desgastava-me o espírito; via a sua sombra em todos os cantos, ouvia os seus sussurros ameaçadores no silvo do vento, no estridor da trovoada que fustigava incansavelmente a Ilha dos Sonhos, nas pancadas da chuva que testavam a resistência dos telhados das casas da comunidade, no rugido do mar bravio que anunciava a chegada do Inverno...

Enquanto a minha mãe se esforçava por contrariar a debilidade crescente da tia Geirny, Freya assumia a organização da casa e revelava-se mais responsável, mais adulta. Foi com alívio que observei a sua expressão horrorizada, ao ouvir o jarl contar os últimos despautérios de Magnor. O distanciamento do príncipe rebelde parecia estar a arrefecer o entusiasmo da minha irmã e a aclarar-lhe as idéias. A partir daí, não voltou a mencionar o nome do seu prometido. Eu reunia coragem para confrontá-la novamente com a certeza de que esse compromisso só lhe traria infelicidade, quando a questão sofreu uma reviravolta inesperada.

Freya tinha pavor às tempestades. A companhia da sua corajosa gêmea sempre a ajudara a superar o medo... Porém, Thora encontrava-se demasiado longe para abraçá-la e garantir-lhe que o fogo dos céus jamais a magoaria. Numa noite tormentosa, os gritos da minha irmãzinha despertaram a casa. Acorri ao seu quarto e encontrei-a sentada na cama, pálida e trêmula. Enfiei-me dentro das suas cobertas e estreitei-a junto do meu peito. Um instante depois, chegava a nossa mãe, perguntando inquieta:

— Estás bem, querida? — O som da sua voz foi abafado pelo estouro de um trovão.

Freya escondeu o rosto no meu pescoço, gemendo angustiada. A nossa mãe sentou-se na cama e acariciou-lhe os cabelos, sussurrando com carinho:

— Não tenhas medo... Nós ficaremos contigo até a tormenta se afastar.

Porém, o vendaval que assolava a ilha não pretendia renunciar à sua fúria. Ainda assim, Freya tranqüilizou-se. Julgava-a adormecida, quando confessou inesperadamente:

— Eu tive um pesadelo... com o Magnor...

Fixei a minha mãe, surpreendida. Freya voltou a refugiar-se no silêncio e tencionei estimulá-la a continuar, mas a senhora da casa deteve-me. Pouco depois, a minha irmã prosseguia por sua iniciativa:

— Sonhei que o Magnor estava com uma moça... uma camponesa que ele seduzia com palavras doces, enquanto a convencia a segui-lo para o interior da floresta. Estava frio... tanto frio! E a escuridão era medonha! Mas ela sorria, deliciada com a promessa de um beijo... — Fez uma pausa, como se as recordações a ferissem. — Por fim, chegaram a uma clareira inundada por uma luz pálida e gélida. As árvores pareciam esqueletos e a neve sufocava toda a vida... No entanto, a moça estava tão feliz, tão apaixonada, que nada mais lhe importava a não ser o Magnor... Então, uma sombra monstruosa desceu dos céus. Era um pássaro... um pássaro gigante, de penas negras e escarlates, e olhos de gelo, que se lançou sobre a moça... E devorou-a! O monstro devorou-a, enquanto o Magnor se contorcia, rindo às gargalhadas...

A voz faltou-lhe, vencida pelos soluços. Embalei-a com carinho, amenizando o seu horror com energia curativa, enquanto trocava um olhar de incompreensão com a minha mãe. Nenhuma de nós fazia idéia do que o pesadelo... ou a Visão de Freya significava. E não tivemos tempo para nos deitar a adivinhar, porque ela já apelava, sacudida pelo pranto:

— Eu estava enganada! O Magnor é mau... Eu não quero casar-me com ele! Por favor, ajuda-me, mama!

Sustive o fôlego, abismada. O pássaro negro e escarlate podia ser um monstro, mas eu estava tentada a agradecer-lhe por ter despertado Freya! A minha mãe pensou algo semelhante, pois agarrou-se energicamente a esta oportunidade, declarando com firmeza:

— Sossega, meu amor! Tu não és obrigada a desposar o Magnor! Amanhã, falaremos com o pai...

— O papai vai zangar-se! — afligiu-se a nossa menina. — Ele não queria que eu aceitasse a corte do príncipe. Bem sei que desgostei toda a família ao dizer que sim...

— Nós desejamos o melhor para ti, Freya! O teu pai ficará tão satisfeito como eu, por saber que finalmente compreendeste que esse rapaz não te fará feliz!

— Mas, o rei...

— Não te preocupes... O pai e eu resolveremos tudo!

— E o pássaro? — insistiu, angustiada. — Esse monstro existe de verdade?

Fui eu que respondi, decidida a serenar-lhe o ânimo:

— Decerto que não! Foi apenas uma forma que a tua mente encontrou de te revelar a verdadeira natureza do Magnor. De te mostrar que, qualquer mulher que o siga, está condenada à desgraça.

Lá fora, a trovoada afastava-se, mas o aguaceiro castigava implacavelmente o telhado. Fui percorrida por um calafrio, quando a minha irmãzinha exclamou, desalentada:

— Perdoem-me... Eu sou uma decepção!

— Que tolice! — objetou a nossa mãe, buscando o seu olhar. — Não quero que repitas isso!

— É verdade! — desabafou Freya. — O papai é um guerreiro abençoado, a mama é uma feiticeira, a Edwina será Guardiã da Lágrima do Sol, a Thora é a Loba Prateada... e eu só trago desonra à família!

A vida é feita de momentos decisivos... instantes que alteram o rumo da história; um gesto capaz de mudar milhares de destinos. Experimentei um desses prodígios, ao ver a feiticeira Catelyn retirar a pedra mágica de Aranwen do seu pescoço e colocá-la ao pescoço da filha mais nova. Se bem me recordava, ela só se separara do amuleto uma vez, para salvar o meu pai.

— A Edwina e a Thora têm missões importantes... — começou, emocionada. — Mas a missão que te confio é tão crucial como a das tuas irmãs! A pedra azul equilibrará a tua essência e indicar-te-á um rumo... — Deteve-se ante o olhar extasiado da filha, que parara de respirar tal o sobressalto. — Porém, deves certificar-te de que ela jamais cairá nas mãos dos mestres do mal. Terás de defendê-la com o teu sangue!

Por que é que eu não me sentia contente por Freya? A decisão da nossa mãe era coerente. Afinal, eu herdara a Lágrima do Sol e Thora, o punhal do líder da alcatéia, ao passo que Freya nada tinha! Um objetivo, um encargo, ajudá-la-ia a crescer e a ganhar confiança. No entanto, ser portadora de uma das pedras mágicas de Aranwen significava estar debaixo do olho de Aesa!

— Guardar a pedra azul acarreta um enorme perigo, mama... — fiz notar, cautelosamente.

— Há muito que tomo isso em consideração — volveu ela, com sobriedade. — Quando vós nascestes, desejei resguardar-vos de todos os perigos... Contudo, os anos demonstraram-me que não podemos voltar as costas ao nosso sangue e àqueles que dependem de nós. Vós tendes personalidades e aptidões distintas, que vos tornam únicas. E cada uma terá de provar o seu valor no futuro, quer isso me agrade ou não. Por tal, é meu dever preparar-vos para as batalhas que se avizinham. A Freya começa a ser fustigada por Visões... Deve aprender a interpretá-las, para o seu próprio bem! A pedra vai fortalecer-lhe o corpo e o espírito. Além disso, eu estarei ao seu lado para guiá-la...

— E eu não te decepcionarei, mama! — asseverou a minha irmã, apertando o amuleto entre as mãos. — Farei com que te orgulhes de mim!

Suspirei resignada. A minha mãe tinha razão! Freya devia compreender a importância do seu sangue, enquanto nós podíamos orientá-la. Era melhor que sentisse a responsabilidade que advinha de ser guardiã de uma pedra mágica, antes que o destino lhe pregasse uma partida.

Do País dos Viquingues chegavam novas de pequenas escaramuças; nada de relevante, atendendo à tensão latente. Os Vândalos permaneciam recolhidos na Floresta Sombria, protegidos dentro do anel de espinheiros mágicos que rodeava a sua comunidade, e que se revelava impossível de transpor, mesmo sob a influência do fogo. Se preparavam uma represália, faziam-no em silêncio. Até os mercenários do Norte tinham recuado para as suas terras geladas, e o seu aliado Arnorr, primo do meu pai e declarado inimigo da Aliança, se mantinha afastado das nossas fronteiras! Pouco a pouco, o rei Steinarr permitia que os seus generais descansassem e o povo baixasse a guarda.

O Festival de Inverno foi celebrado com descontração e alegria. Na Ilha dos Sonhos as culturas da gente do Norte e do povo da Grande Ilha estavam cada ano mais fundidas mas, no País dos Viquingues, os rituais mantinham-se intocados, não obstante os protestos dos padres cristãos, que se esforçavam por converter aqueles a quem chamavam «Bárbaros» à sua fé. A benção dos guerreiros e dos seus barcos era feita por um nobre ou pelo próprio rei, que oferecia as melhores cabeças de gado em sacrifício a Odin, o onipotente deus da guerra e da sabedoria. O povo era ungido com o sangue da cerimônia e corria para o mar para ver o mais velho Drakkar da frota arder, como símbolo de renovação.

Na Ilha dos Sonhos não se queimavam barcos. A frota era recente e o jarl preferia incentivar o restauro, a ver boa madeira afundar-se em chamas. O primo Krum presidiu a uma cerimônia que deixaria «O Que Tudo Vê» orgulhoso; sacrificou uma cabra, evocou o deus dos seus antepassados e abençoou o povo. Depois, os guerreiros dirigiram-se ao porto e lançaram os archotes sobre uma jangada construída e enfeitada propositadamente para a ocasião.

Enquanto observava o esqueleto flamejante, verifiquei que alguns homens dirigiam as suas preces a Odin, ao mesmo tempo que outros esboçavam o sinal da cruz sobre o peito. A religião confundia a mente dos Homens e o cristianismo assimilava lentamente a fé antiga. O convívio das crenças era cada dia mais difícil, devido à intransigência dos padres da nova fé, que ameaçavam a alma da gente simples com as duras penas do inferno, se não renegassem definitivamente ao feroz Odin, ao protetor Thor, à lasciva Freya e a todos os deuses que os acompanhavam desde que havia memória.

Quinn abandonou finalmente o bordão onde se amparava, conformado com o fato de o seu futuro como guerreiro estar encerrado. Após as celebrações de Inverno, antes de o mar tornar quase impossível a navegação, despediu-se de nós e acompanhou o tio Stefan até à Grande Ilha, onde aprenderia uma forma diferente de vencer batalhas; a usar os gestos como escudo e as palavras como armas mortíferas.

 

Por essa altura, Aled e Melody também passaram alguns dias conosco. O meu primo descreveu-me com entusiasmo a forma calorosa como os habitantes da Aldeia do Lago o tinham recebido. Já todos o reconheciam como o senhor da Floresta Sagrada, e não lhe tinham faltado braços para concretizar as alterações que desejava fazer na Casa Grande e na propriedade circundante. Por seu lado, a minha prima aprendia com fervoroso interesse como gerir uma herdade, e ocupava-se do seu enxoval, tecendo mantas e bordando lençóis e toalhas, com a ajuda das mulheres da sua casa. Sempre que os noivos trocavam um olhar, tornava-se óbvio que mal podiam esperar pelo fim da Primavera, quando o casamento lhes permitiria consumar o seu amor. Eu sentia-me feliz por eles, aliviada por ver que a sorte favorecia alguns de nós, e quase temerosa de que as sombras que obscureciam a minha existência corrompessem a sua ventura.

Freya revelava-se mais calma e segura. Se tal resultava da vivência, ou da influência da pedra azul da feiticeira Aranwen, era impossível dizer. Os meus tios não haviam acolhido bem a decisão da irmã, mas tiveram de conformar-se. Tanto Edwin como Berchan McGraw encaravam as pedras mágicas como parte indissociável do seu ser; uma responsabilidade assumida até à morte. Não compreendiam que, ao invés de se libertar do fardo, Catelyn tornara-o ainda mais pesado ao confiá-lo à filha mais nova, multiplicando os seus cuidados e temores. Mas eu entendia as razões da minha mãe e confiava no seu julgamento. Afinal, os resultados estavam à vista! As habilidades de Freya desenvolviam-se a cada dia. A sua perícia e ousadia na exploração da arte curativa tinham levado à descoberta de um remédio que permitia à tia Geirny longos períodos de descanso, sem consciência das dores agudas que a torturavam.

Darrin aproveitava a menor pausa nos treinos para estar junto da mãe e esforçava-se por sorrir e alentá-la com palavras de esperança, apesar da voz lhe sair por vezes entrecortada pela emoção. Era tão diferente de Estrid, que nem se dignara a deixar o luxo da sua existência despreocupada da Grande Ilha, para ver aquela que lhe dera vida, talvez pela última vez! A tia Enya garantia que ela estava a sofrer muito... Pois as suas lágrimas não me comoviam! Seria melhor que parasse de se lastimar e viesse segurar na mão da mãe, oferecer-lhe um sorriso e um beijo. Mas era certamente mais fácil chorar a sua desventura no meio de lençóis de cetim, entre uma e outra festa, do que observar a debilidade crescente da princesa viquingue. Estrid era um monstro de egoísmo... E não havia mais nada a dizer!

 

O Inverno arrastou-se penosamente. Os dias passavam-se em sobressalto, devido ao sofrimento da nossa hóspede. A vida da tia Geirny chegava ao fim. A sua perseverança, coragem e alegria de viver, haviam-na sustido para além do que nos atrevêramos a esperar. Mas as suas forças atingiam o limite. A mulher robusta e altiva, que promovera tanto respeito e admiração, desaparecera. A parte o seu olhar, que se mantinha vivaz, Geirny era uma sombra, consumida peia doença e envelhecida pela dor... dor que todos partilhávamos, ao vê-la definhar a cada instante, impotentes para ajudá-la. Sempre que a amparava nos meus braços, as lágrimas subiam-me aos olhos e tinha de lutar veementemente para contê-las. A princesa estava tão magra, que era possível sentir cada um dos seus ossos, por baixo dos nossos dedos.

Numa tarde chuvosa, enquanto a família se reunia em redor da sua cama, Geirny apertou debilmente a mão do marido e murmurou na sua voz cansada:

— Recordas-te de como eu era bonita?

O tio Edwin levou a mão da esposa aos lábios e beijou-a com carinho.

— Tu continuas linda, meu amor! Para mim, serás sempre a mais perfeita das mulheres!

— Travamos boas lutas... Eu adorava medir forças contigo!

— Tu és uma grande guerreira!

— Fui... e orgulho-me do que conquistei! Mas o meu maior prêmio foi o teu coração!

— Eu perdi tanto tempo... Devia ter-te pedido em casamento na noite em que me desafiaste para um duelo, no forte da Enseada da Fortaleza.

Geirny esboçou um sorriso saudoso.

— Deixaste-me tão furiosa naquela noite, Edwin McGraw! Tinha quase tanta vontade de te beijar como de te sovar!

Ninguém foi capaz de segurar o riso, apesar de poucos saberem do que eles estavam a falar.

— A Thora será melhor guerreira do que eu! — continuou Geirny. — Quero que lhe digam que a amo como se fosse minha filha e que, mesmo na outra vida, estarei de olho nela, orgulhosa das suas conquistas.

Começamos a entreolhar-nos, alarmados. O tio Edwin replicou de imediato:

— O Inverno está a findar e, não tarda, a Thora virá visitar-te. Nessa altura, poderás dizer-lhe tudo o que quiseres!

— Meu querido... — objetou a princesa, condescendente.

— Estes não são dias de ilusão! Sei que vivi muito para além do tempo que os deuses decidiram conceder-me, graças à bondade e à dedicação da Catelyn e de todos vós! — Estendeu a outra mão ao encontro da minha mãe. — Porém, é chegado o momento em que a vida só me reserva sofrimento e decadência... E eu não quero ver mais lágrimas nos teus olhos, meu amado! Desejo guardar na memória o teu sorriso, o teu olhar de admiração, o teu ardor apaixonado... E quero que me recordes como eu era, antes de... Quero que...

— Geirny... — atalhou o marido numa súplica, mas ela insistiu:

— Quero que continues a viver... Vive por mim... Para que eu possa ver o nascer de cada dia através dos teus olhos; para que eu sinta a alegria de testemunhar a felicidade dos nossos filhos, o sorriso dos nossos netos. Guia o nosso Darrin... Perdoa a nossa Estrid... E não desistas do nosso Edwin! Nunca desistas do nosso Edwin!

— Pára, Geirny... — soluçou o meu tio, puxando-a para os seus braços, debaixo do nosso olhar chocado. — Pára... Por favor, saiam! Deixem-nos sós!

Fui a última a conseguir mover-se, e só abandonei o quarto porque a minha mãe me conduziu para o exterior. Sentia-me revoltada! Onde estava a justiça divina, apregoada por todas a religiões, que ditava que o mal era castigado e o bem recompensado? Que mal fizera Geirny para sofrer desta maneira atroz? Ela, que dedicara a juventude a defender o seu povo, a socorrer os enfermos, a confortar os moribundos; que salvara o meu tio do desespero e o apoiara na busca pelo filho perdido, negligenciando o seu próprio conforto e necessidades?

— Edwina... — A minha mãe tentou confortar-me, apesar de também estar arrasada. — Vem... Pedi à Ingrior que preparasse um chá, para nos dar alento...

A família reuniu-se à mesa a beber chá, pois nada mais podia fazer. O silêncio que envolvia a casa era tenebroso. Vindo do quarto de Geirny, o choro sumido do tio Edwin dilacerava-nos o coração. Evitávamos o olhar uns dos outros, para contermos as lágrimas. Visivelmente perturbado, o meu pai murmurou:

— Talvez eu devesse ir buscar o Steinarr...

— O mar está cheio de gelo, Throst! — replicou o primo Krum.

— Seria loucura...

— O Dragão dos Mares é robusto! Tenho a certeza de que...

— Throst... — cortou a minha mãe, apertando-lhe a mão. Nada mais disse, mas abanou a cabeça numa negação, cujo significado compreendemos. Por muito boa vontade que o jarl tivesse, Steinarr jamais chegaria a tempo.

O dia nasceu ensolarado e a casa despertou com um novo alento. A tia Geirny estava bem-disposta e até se atreveu a levantar da cama, apoiada pelo marido, para cobrir Darrin de beijos antes de ele.partir para o ginásio.

O almoço foi quase festivo. Há muito que Geirny não se atrevia a sentar à mesa, e vê-la comer conosco, rindo e partilhando as suas aventuras de menina, foi um alívio para os nossos corações. À tarde, pediu que o marido a levasse a ver o mar. O meu pai apressou-se a solicitar uma padiola aos criados, para que a transportassem até à praia. Ao atravessarmos a aldeia, todas as portas se abriram para saudar a mais querida das princesas viquingues.

Diante do gigante azul, agitado pelo vigor do Inverno, Geirny inspirou fundo e apreciou o momento, em silêncio. A luz que nos rodeava era quente e sadia; um verdadeiro prodígio nesta altura do ano! Tive esperança de que se estivesse a produzir um milagre. Afinal, no dia anterior, a minha tia quase se despedira de nós, e hoje despertara com um ânimo excelente. Há semanas que eu não a via tão bem!

Os homens partiram para os seus afazeres, à exceção do tio Edwin. Aos poucos, retomamos a conversa, apreciando o calor ameno do Sol, o céu de intenso azul salpicado de nuvens suaves, as ondas brincalhonas que agitavam o mar, o canto estridente das aves marinhas...

— Freya, querida — apelou a princesa, estendendo a mão à minha irmã. — Ainda não tive oportunidade de apoiar a tua iniciativa de terminar o namoro com o Magnor. Ele é filho do mais amado dos meus irmãos... mas não é o homem certo para ti! Tu mereces um companheiro de vontade forte, que aprecie a tua serenidade e te dê o devido valor! O Magnor é, e sempre será, uma criança mimada e caprichosa. Nunca saberá respeitar uma mulher!

A minha mãe mordeu o lábio, abstendo-se de concordar, pois, neste momento, as críticas eram vãs. Tal como esperávamos, o jarl recebera com satisfação a decisão de Freya. Apenas o provável descontentamento de Steinarr causava alguns receios. Todavia, os meus pais estavam dispostos a enfrentá-lo, pela felicidade da sua menina.

— Eu só espero que o rei partilhe da sua opinião, tia — respondeu Freya, estremecendo.

— O meu irmão não é intransigente! — replicou a princesa.

— Até poderá questionar as tuas razões, mas respeitará a tua vontade. O Magnor é muito jovem! Decerto não perderá o sono quando lhe disserem que terá de escolher outra noiva!

De regresso a casa, Geirny quis descansar um pouco. Assim que o tio Edwin pousou o seu corpo frágil na cama, ela pediu-lhe:

— Meu amor, lembras-te do vestido que usei na noite do Festival de Verão?

— E claro! — volveu ele, com os olhos a brilhar. — Estavas tão bonita...

— Quero que vás buscá-lo a casa do Berchan, para que eu possa usá-lo durante o jantar.

O meu tio olhou de soslaio para as mulheres que se encontravam no quarto, confuso:

— Por que não pedes a uma criada que to traga? Não quero deixar-te por um instante...

— Eu não vou fugir! — gracejou ela, sorrindo carinhosamente.

— Vai, por favor! Quero recebê-lo dos teus braços, como se fosse uma prenda... Mas antes, dá-me um beijo!

O meu tio inclinou-se para lhe beijar a testa, as faces e os lábios, com uma ternura que me provocou um nó na garganta. Havia algo de errado no pedido de Geirny... A minha mãe tinha os olhos postos no chão. Freya ajeitava as cobertas em redor da princesa, sem se aperceber de nada. E a tia Ingrior oferecia-se para acompanhar o tio Edwin, desencorajando a sua hesitação.

Mal eles saíram, Geirny foi assolada por um ataque de tosse. O seu rosto contorceu-se num trejeito de dor, que só acalmou quando as mãos da minha mãe repousaram no seu peito. A voz oprimida arrastou-se, em agonia:

— O efeito do remédio... está a terminar...

A minha mãe confirmou com a cabeça, ordenando:

— Freya, vai buscar mais!

A minha irmã obedeceu prontamente, enquanto a princesa se esforçava por recuperar o fôlego, assimilando a energia curativa da sua curandeira. Assim que reuniu alento, replicou:

— Chega de remédios, Catelyn...

Estacamos as duas, fixando-a com um ar incrédulo.

— Sabes o que acontecerá... — começou a senhora da casa.

— Sei — cortou Geirny, com uma firmeza que me gelou. — Sem o remédio e a tua energia curativa, não resistirei. — Estendeu as mãos à cunhada, sorrindo tristemente. — Agradeço-te por tudo o que me deste, pelo teu cuidado, pela tua amizade... mas é tempo de me deixares partir! Sou uma guerreira! Continuar presa a esta cama, vendo a piedade e a angústia daqueles que amo, é um destino pior do que a morte! Não chores, querida... sorri! Travei muitas batalhas ao longo da vida... Agora, desejo descansar!

Tapei a boca, horrorizada. A doença consumia o corpo da minha tia e só a intervenção da feiticeira Catelyn a mantinha viva. Isto já sucedera em outras ocasiões, mas a minha mãe conseguira sustentá-la, o suficiente para que a morte se cansasse de esperar e procurasse outra vítima. Contudo, desta vez, a própria princesa negava a nossa ajuda.

— Geirny... — suplicou a minha mãe, tentando contrariá-la na sua determinação.

— Por favor, Catelyn! — atalhou a cunhada, irredutível. — Por favor...

Pensei escutar o batuque estrondoso de um tambor... ou seria o meu coração? A curandeira quedou-se; o olhar preso na sua grande amiga, como se mantivessem uma conversa silenciosa. Então, com uma lentidão dolente, as suas mãos abandonaram o peito frágil e envolveram as mãos trêmulas que a buscavam. Aos poucos, a energia que deslizava do seu corpo para o de Geirny extinguiu-se. De imediato, a princesa recomeçou a tossir, a sufocar... Perante o meu olhar apavorado, os seus vômitos sucederam-se, até que o sangue lhe saltou dos lábios, espesso e negro. Desejei fugir desta visão de extrema agonia, mas a minha tia agarrou-me o braço, com um apelo engasgado:

— Edwina... Traz... o Edwin... para casa... para o pai...

A minha mãe estreitou o corpo de Geirny contra o seu, amenizando-lhe a dor nos instantes finais. Incapaz de observar tamanho suplício, abandonei o quarto, cega por um aguaceiro de lágrimas. Freya veio ao meu encontro e abraçou-me, chorando compulsivamente. O tio Berchan acorreu a ajudar a irmã. O resto da casa dividia-se entre o choque e o pranto... Mas foi só quando a porta da casa se abriu e o tio Edwin entrou a correr, que as forças me falharam. Atrás dele, vinha a tia Ingrior com o vestido que Geirny solicitara... não para usar no jantar, mas na viagem que a conduziria aos seus antepassados. O pedido não fora mais do que um pretexto para afastar o marido da sua cabeceira, para que não presenciasse o seu fim.

— Não! — bradava o tio Edwin, enrouquecido pelo desespero. — Não! Não! Não!

O tio Berchan tentou convencê-lo a retroceder, mas não teve força para suplantar a vontade do irmão. Acabou por ser violentamente empurrado e, desequilibrado, arrastou a cortina do quarto na queda. A tragédia ficou exposta ao olhar de todos: Lorde Edwin McGraw arrancando a esposa morta dos braços da minha mãe e apertando-a contra o peito, acariciando o rosto marcado pelo martírio, beijando sofregamente os lábios ainda molhados de sangue... e vociferando como um possesso:

— Não! Não! Porquê?

Caiu sobre o corpo da amada, chorando, gritando o seu nome, suplicando-lhe que voltasse, que não o deixasse só. De súbito, sem que nada o fizesse prever, ergueu-se num ímpeto enlouquecido e deitou as mãos ao pescoço, arrancando o fio de onde pendia a pedra vermelha de Aranwen, e arremessando-o contra a parede. Depois, urrando como um animal ferido, desembainhou a espada e acometeu contra a mesa, onde as criadas tinham servido o jantar. Após derrubar tudo o que se encontrava sobre ela, desferiu golpes brutais na madeira, como se enfrentasse o mais feroz dos inimigos. As farpas voaram em todas as direções... E a lâmina continuou a golpear, a esquartejar, sem que ninguém se atrevesse a aproximar para tentar chamá-lo à razão. Alucinado como estava, seria capaz de cortar um homem pelo meio, sem sequer se aperceber. Sustive a respiração, ao ver o jarl irromper pela casa e agarrar o cunhado pelas costas, arrastando-o para longe da mesa desfeita. O tio Edwin resistiu, surdo aos seus apelos, mas foi prostrado e deixou cair a espada, que Krum se apressou a afastar do seu alcance.

O meu pai imobilizou o cunhado debaixo de si. Todavia, Edwin já não lutava. Pelo contrário, estreitava-o com uma desesperação insana, carpindo:

— Porquê? Porquê, Throst? Eu amava-a! Amava-a tanto!

— Eu sei, meu irmão... — volveu o jarl-, apertando-lhe a cabeça contra o peito.

— Quero morrer! — clamou o meu tio; o rosto encharcado por lágrimas, ranho e baba, manchado pelo sangue da esposa e desfigurado pela loucura. — Quero ir para onde o meu amor for! Não posso deixá-la sozinha! Ela precisa de mim! Geirny... Geirny...

Fechei os ouvidos e voltei o rosto. Determinada, ajudei Freya a alcançar o seu quarto, já que ela mal se sustinha nas pernas, e ordenei-lhe que ficasse na cama, até os ânimos se acalmarem. Darrin chegara e gritava pela mãe. Lembrei-me de Thora. Felizmente, a minha irmã não estava conosco... ou seria capaz de perder a razão como o tio Edwin! Quando tomasse conhecimento da tragédia, ela ia sofrer... mas com a atenuante da distância e do desconhecimento dos pormenores.

Inspirei um fôlego de coragem e regressei ao salão. Darrin necessitava de apoio e a minha mãe de ajuda. Releguei para os confins da mente a última vontade expressa da minha tia. Se ousasse enfrentar as implicações do seu pedido, seria eu quem enlouqueceria!

O jarl ordenou que o segundo melhor Drakkar da sua frota fosse enfeitado e ungido com óleos perfumados. A princesa Geirny do País dos Viquingues teria um funeral digno de uma rainha!

Eu ainda não vivera o suficiente para testemunhar uma cerimônia desta magnitude. Aliás, não havia memória de que, alguma vez, tal ritual tivesse sido praticado fora dos domínios viquingues. Esta honra estava reservada aos mais ricos e poderosos; chefes de clã ou grandes guerreiros, que os seus senhores desejassem distinguir com uma suntuosa homenagem. Os corpos dos Homens simples eram queimados em piras, para que o seu espírito se libertasse rapidamente e empreendesse a viagem ao encontro do seu deus. Depois, as cinzas eram enterradas em solo sagrado e o lugar assinalado por uma pedra gravada com Runas protetoras.

Segundo o povo, o último a desfrutar deste tributo fora o cruel chefe viquingue Gunnulf, filho de Arngrim. Sob as ordens do seu irmão Arnorr, um Drakkar fora arrastado até ao coração da Aldeia de Grim e transformado numa imponente pira funerária, em redor da qual se haviam clamado palavras de revolta e incitado ódios contra o homem que o matara — o Líder Supremo, o meu pai. O que poucos sabiam é que, na verdade, quem matara Gunnulf fora a minha mãe, após ter sido violentamente abusada pelo sanguinário pupilo de Sigarr. A morte de Gunnulf desencadeara a guerra que terminaria com a vitória do Steinarr, a criação do reino viquingue e a aliança com os clãs da Grande Ilha. No entanto, Arnorr não se rendera... e ainda hoje alimentava a recordação do dia em que o corpo do irmão mais velho fora engolido pelas chamas.

O corpo de Geirny não seria queimado em terra, já que a Ilha dos Sonhos não era a sua pátria. Além disso, a princesa guerreira sempre manifestara a vontade de que as suas cinzas fossem entregues à imensidão do mar, que tantas alegrias lhe trouxera. Por isso, o meu pai nem hesitara na forma como o ritual fúnebre devia ser celebrado.

Ajudei as mulheres a transportar belas sedas e peles, jóias e arte-fatos, para o Drakkar. Geirny não trouxera muitos pertences consigo, apenas aqueles que julgara suficientes para desfrutar do Festival de Verão, e os amigos ficaram satisfeitos por contribuir. Freya encarregou-se da comida e da cerveja, que a nossa tia tanto apreciava. O jarl escolheu de entre o seu melhor gado aquele que acompanharia a cunhada, e o primo Krum sacrificou-o. Alguns dos nossos guerreiros tinham combatido ao lado da princesa, na sua juventude, e fizeram questão de entregar-lhe os seus escudos, espadas, machados e punhais. Tudo isto foi colocado dentro do barco, debaixo de um silêncio repleto de respeito e pesar.

A minha mãe e a tia Ingrior aprontaram a irmã do rei para a sua última aventura. Lavaram o corpo frágil, perfumaram-no e vestiram-no, segundo a sua própria vontade. Os longos cabelos negros foram enfeitados com flores e fios de prata, assim como o pescoço e os pulsos. Agora, que as aflições da morte a haviam abandonado, a expressão da minha tia encontrava-se serena. Durante todo este tempo, ela preparara-se para empreender a viagem... Nós é que não estávamos preparados para vê-la partir, e enfrentar o vazio da sua ausência.

A noite começava a cair quando o corpo da princesa foi transportado para o Drakkar, seguido por um cortejo onde as emoções finalmente se libertaram. Geirny fora uma mulher que honrara o nosso povo com a sua coragem, generosidade e amizade. Ninguém conseguia ficar indiferente à sua morte! Ensurdecida pelo pranto dos que me rodeavam, apertei a Lágrima do Sol entre os dedos e pedi-lhe que guiasse a princesa com a sua luz, para que esta derradeira viagem fosse rápida e desprovida de percalços.

Deitada sobre peles de animais e coberta por uma manta bordada a fio de ouro, a princesa viquingue recebeu o último beijo do guerreiro que viera de um país distante, através do mar, para encher o seu coração de amor, tal como uma vidente da sua aldeia profetizara. As lágrimas regressaram aos meus olhos, ao ver o tio Edwin retirar do pulso a bracelete que ela lhe oferecera no dia do seu casamento, e encaixá-la entre os dedos frios, declarando:

— Tu Salvaste-me das trevas e encheste o meu coração de alegria. Agora que partes, minha vida, levas o contentamento contigo, levas o calor e a luz... Sem ti, volto a estar vazio... Sem ti, estou outra vez perdido... Espera por mim, Geirny! Prometo que não me demorarei, meu amor.

Apesar de eu saber que o meu tio era um homem de arrebata-mentos, as suas palavras arrepiaram-me. A minha mãe sentiu algo semelhante, pois fixou o meu pai, apreensiva. O jarl respondeu-lhe com um gesto, recomendando-lhe que se acalmasse. Dentro do Drakkar, Lorde Edwin McGraw cobriu o rosto da esposa com a manta e colocou a espada com que ela combatera sobre o seu peito. Depois, saltou para o ancoradouro e desatou a corda que prendia o barco. O vento soprava forte e a maré estava de feição. De imediato, a corrente fechou os seus dedos de água no casco do navio e empurrou-o em direção ao mar alto.

Ao meu redor, os tambores rufavam, as mulheres choravam e os homens erguiam as vozes num louvor a Odin. Geirny, princesa e guerreira, esposa e mãe, companheira e amiga, em breve estaria junto do pai dos deuses, estendendo-nos a sua mão protetora sempre que dela necessitássemos. No auge do cântico, o jarl da Ilha dos Sonhos, Primeiro Homem do rei Steinarr, deu um passo em frente, distinguindo-se dos demais, e empunhou o arco. Krum encostou um archote à ponta da flecha e pegou-lhe fogo. No instante seguinte, a seta rasgava o ar com uma precisão certeira; um raio de luz na escuridão da noite, que encontrou o seu objetivo e o incendiou prontamente.

Em menos de nada, as labaredas lambiam a imponente vela quadrada do majestoso Drakkar, devorando o mastro, sufocando o convés... e libertando o espírito da princesa Geirny do povo viquingue, em nuvens de fumo que ascendiam ao céu. Logo, o mar engoliria os despojos do ritual e o ciclo renovar-se-ia... Nos nossos corações ficava a saudade.

 

Os dias que se seguiram ao funeral da tia Geirny foram muito tristes. A nossa casa parecia vazia e, por vezes, só o choro do tio Edwin perturbava o silêncio. A pedra vermelha da feiticeira Aranwen regressara ao seu pescoço pela sua própria mão, como se não pudesse viver sem ela... como se a amasse tanto como a odiava.

A minha mãe tentou, por várias vezes, falar-me acerca do apelo da minha tia, mas eu encontrei sempre um meio de lhe escapar. Não me apetecia encarar o seu olhar assustado, as suas súplicas para que ignorasse aquela última vontade. A sorte do meu primo Edwin não estava resolvida na minha mente, nem no meu coração. Por mais que tentasse convencer-me de que a sua alma se perdera, a tentação de tomar a iniciativa de buscá-lo aumentava a cada instante, até quase me endoidecer. E só o fato de temer que essa aventura fosse a última, me impedia de arriscar a viagem da essência até à Ilha do Fogo.

Não tardou que a Primavera avisasse o Inverno de que pretendia acomodar-se. Em bandos barulhentos, as primeiras aves migratórias apressaram-se a definir os seus territórios. Os nossos pastores assobiavam alegremente, enquanto conduziam o gado para fora dos estábulos e na direção dos campos, onde a erva começava a desabrochar. Os barcos de pesca atreviam-se a enfrentar o mar. E as rotas de comércio restabeleciam-se.

Da Grande Ilha chegavam-nos novidades interessantes. Quinn estava a sair-se muito bem no seu novo projeto de vida. Os nossos in-formadores relatavam que o rei do Império, de visita à colônia, o tinha agraciado com a sua simpatia e enaltecido a sua sagacidade. Havia até quem insinuasse que nascera uma amizade especial entre o meu primo e Isobelle, a mais jovem das princesas imperiais. Quem não gostou de ouvir isto foi Svana, que se recolheu no quarto de Freya a chorar. Apesar de tudo, reafirmei a minha admiração pela nobreza do caráter de Quinn, que preferia voltar as costas ao amor, a arriscar um conflito com o irmão.

O tio Edwin passara as últimas semanas na sombra do meu pai, dedicando-se sem cansaço ao trabalho, para esquecer o que perdera. Assim que o mar se tornou navegável, reuniu um grupo de guerreiros e embarcou rumo ao Norte, para comunicar a triste notícia da morte da sua esposa ao rei viquingue. Steinarr ia sofrer um grande desgosto, pois Geirny fora a sua irmã preferida. Quanto a Thora, eu nem queria imaginar o seu choque!

Sempre que eu fazia uma pausa no treino da Arte, Freya buscava a minha companhia. Tínhamo-nos tornado inseparáveis e as nossas conversas recaíam inevitavelmente sobre Thora. Teria a sua destreza guerreira aumentado durante a estação fria? Como estaria a relacionar-se com o rei-lobo e a sua alcatéia? Esta pergunta suscitava um milhar de outras questões, que não me atrevia a proferir em voz alta. Ivarr era mais um assunto que a minha mente e o meu coração teimavam em manter pendente.

De momento, a minha prioridade era aprender a superar as tenebrosas armadilhas da Arte Obscura. E, uma vez ultrapassado o abalo espiritual, a tarefa afigurava-se exeqüível. Eu jamais seria a presa indefesa que a Pedra do Tempo profetizara! Não tombaria, vítima da ingenuidade! Em breve tornar-me-ia Guardiã da Lágrima do Sol, e nenhum feiticeiro maldito ditaria o meu destino.

Trygve chegou numa manhã radiosa, a tempo de se sentar conosco à mesa e apreciar o pão ainda quente, barrado com queijo e mel, e o leite acabado de ordenhar. A sua visita deixou-me tão feliz, que mal conseguia falar. Freya fez questão de lhe contar tudo o que acontecera na sua ausência, pairando sem cessar, arrancando sorrisos ao resto da família. Ter Trygve de volta, ainda que para uma curta visita, enchia os nossos corações de alegria!

Os laços de sangue que uniam o meu primo ao padrasto encontravam-se declarados na sua fisionomia, de tal forma que, quem desconhecesse a complicada história da nossa família, jamais concluiria que Trygve não era realmente filho do tio Berchan. Os cabelos negros e a barba comprida tornavam-no tão respeitável que já ninguém se atrevia a contestar o seu lugar entre os adultos. As suas vestes eram as tradicionalmente usadas pelo Sacerdote da Ilha dos Penhascos: calças largas e túnica de cor verde, cobertas por uma capa castanha. Do pescoço pendiam-lhe uma infinidade de colares feitos de pedras e conchas, cada um com significado próprio, que eu esperava ter oportunidade de aprender.

Em casa, Trygve falou discretamente da sua vivência na ilha vizinha. Os rituais do Povo dos Penhascos eram secretos e, à parte estes, os nativos desfrutavam de uma existência igual à de qualquer outra comunidade. Foi só ao fim da tarde, quando nos encontrávamos sozinhos, observando o Sol a descer no horizonte como fizéramos tantas vezes no passado, que ele me revelou a verdadeira razão da sua visita.

— O meu filho já nasceu, Edwina... E trouxe a marca, como temíamos!

Inerte e muda, vi-o cobrir o rosto com as mãos e suspirar, buscando alento para prosseguir:

— Fiquei desesperado... Felizmente, a Amora é mais corajosa do que eu, e não perdeu a esperança. Dia e noite, tem buscado um modo de contrariar a maldição... E, agora, encontrou-o! Não sei o que tem em mente... Mas diz que precisa da tua ajuda para concretizá-lo. Estou aqui para te pedir que me acompanhes amanhã, e aceites a hospitalidade da Ilha dos Penhascos por alguns dias. Virás comigo, Edwina?

Fixei o olhar atormentado do meu primo e enlacei as suas mãos, replicando:

— E claro que sim! A minha habilidade e a magia da Lágrima do Sol estão ao serviço do vosso povo. Sossega, Trygve! Se essa maldição for uma ameaça real, necessitarás de serenidade para contrariá-la. Confia no poder de Visão da tua Sacerdotisa! Se a Amora disse que existe uma solução é porque recebeu a revelação de um futuro favorável. Vamos unir esforços e lutar por ele!

Freya deleitava-se com a beleza do cardume que se separava para fugir aos remos da canoa. Os peixes eram do tamanho do meu braço, e as suas escamas prateadas refletiam a luz do Sol, e coloriam a água cristalina. A minha irmã soltou uma exclamação de pesar, quando estes se embrenharam na floresta de algas castanhas que estávamos a atravessar, e desapareceram de vista.

Trygve falou-lhe acerca das propriedades curativas dessas algas e da forma como o seu povo as utilizava. Freya escutou-o com uma atenção ardente, rebolando a pedra azul de Aranwen entre os dedos, como a nossa mãe fizera antes dela. Convencer o primo a deixá-la acompanhar-nos fora fácil. Trygve impressionara-se com os seus progressos na arte de curar e concordara que seria proveitoso, tanto para ela como para o Povo dos Penhascos, a partilha de conhecimentos. Os meus temores de que, diante de Magnor, a convicção da minha irmã se reduzisse a pó, começavam a desvanecer-se. Freya estava cada dia mais segura dos seus desejos e objetivos. Seria a melhor curandeira de que a Terra guardava memória e, se algum homem cobiçasse o seu coração, teria de lhe provar que o merecia.

O aroma da Primavera misturava-se com o cheiro forte do mar e tornava-se inebriante. As aves marinhas saudavam-nos com os seus gritos estridentes, antes de pousarem nas rochas que se erguiam acima da água. Os caranguejos recolhiam-se nos buracos úmidos, mas poucos eram suficientemente rápidos para evitar os bicos afiados como lanças. Observar o espetáculo que a prodigiosa natureza nos oferecia, ajudava-me a controlar a ansiedade. Mal podia acreditar que me encontrava a caminho da Ilha dos Penhascos, não para desvendar os seus fascinantes segredos e maravilhas, como há muito ambicionava, mas para envolver-me em mais um problema espinhoso. Se existisse realmente uma maldição, e Trygve e Amora não estivessem apenas a ser manipulados pela sugestão da sua culpa, o povo nativo podia ter os dias contados.

A medida que avançávamos, quase jurava que o labirinto rochoso se desviava da canoa! Seria devido à mestria do barqueiro? Não me parecia! Há muito que a Lágrima do Sol me revelara mundos em que as rochas se animavam por magia; em que a natureza iludia o Homem para satisfazer uma vontade maior. Os relatos de um rochedo que brotava inesperadamente do mar, para afundar um navio, ou de um desfiladeiro que se fechava como um punho, encarcerando vidas no seu aperto, não me causavam espanto.

Por fim, entramos numa gruta e a claridade do Sol esmoreceu. Distingui perfeitamente os contornos pontiagudos ao nosso redor, mas o barqueiro continuou, com a desenvoltura de quem conhecia o caminho de olhos vendados. Havia tantos corredores entrecruzados, cavernas que se abriam para outras cavernas que se tornava impossível fixar pontos de referência. O cheiro a sal e a algas secas e em decomposição era tão intenso que dificultava a respiração. De vez em quando, o teto de pedra forrado de musgos deixava passar a luz, e era possível admirar as terríveis garras de rocha, que se estendiam para o frágil casco. Apesar da ondulação ser praticamente nula, um palmo de distração causaria estragos irremediáveis.

Freya gritou assustada, ao deparar-se com um par de olhos luminescentes. Avistamos mais lanternas vivas, enquanto Trygve explicava num sussurro que estes eram os lendários «Sentinelas»: criaturas semelhantes a lagartos, mas muito maiores, que podiam viver dentro e fora de água. Os nativos chamavam-lhes assim, pois, apesar de normalmente se alimentarem de peixes e pequenos animais, como ratos e pássaros, também não se faziam rogados quando um intruso se atrevia a profanar os seus domínios, e terminava a viagem a chapinhar no mar. Apesar de raramente atacarem os ilhéus, eram bestas enérgicas e agressivas. A inércia com que nos fixavam era enganadora. Nem protestamos quando Trygve ordenou que nos mantivéssemos afastadas.

Partilhei do alívio da minha irmã quando deixamos para trás as grutas sombrias e os seus atemorizadores guardas. O Sol cegou-nos por um instante, e o retorno da visão forçou-nos a suster o fôlego. O barco deslizava agora por uma lagoa de águas serenas, que espelhavam o céu. A nossa frente encontrava-se uma praia de areia fina e escura, que terminava numa floresta densa, aparentemente selvagem, que se estendia até tocar as nuvens.

Trygve puxou de um pequeno apito de osso, colocou-o entre os lábios e soprou-o. Um som semelhante ao grito de uma ave gigante profanou a leveza do ar. De imediato, ouviram-se vozes, risos, passos em corrida... E os nativos da Ilha dos Penhascos surgiram como por magia, encarapitados nos rochedos e enchendo a praia. Uma comitiva liderada por uma figura delicada, totalmente coberta por vestes brancas, veio ao nosso encontro. Reconheci o olhar cor de avelã de Amora cintilando por entre a tira de tecido que pouco revelava da sua pele dourada. Ela estava aliviada por confirmar que eu aceitara o seu convite. E o calor da sua recepção estendia-se pelo povo que assistia ao nosso desembarque.

— Sê bem-vinda, Edwina, herdeira do Guardião da Lágrima do Sol. Que a minha terra te reconheça e estime a tua nobreza, e que o meu povo te ame e admire como minha igual. Esta é a vontade da Sacerdotisa!

Os nossos dedos enlaçaram-se e o reconhecimento espiritual foi imediato. Num fôlego, viajamos até à Ilha dos Sonhos e pairamos sobre as Pedras do Mundo; a magia do nosso sangue fundindo-se e flamejando. Era inegável que o nosso futuro estava entrançado, e que a nossa empatia seria eterna.

O Povo dos Penhascos celebrava rituais antes de fazer quase tudo. O seu modo de vida era semelhante ao dos druidas e, talvez por isso, tivessem aceite dar guarida aos homens sábios. Dentro do «formigueiro» escavado na parede rochosa da floresta, onde as classes superiores da comunidade se moviam, as regras de convivência eram cumpridas com severidade e cada tarefa desempenhada com uma dedicação impressionante.

A cerimônia da partilha de água, que nos tornou, a mim e a Freya, verdadeiras filhas da ilha, celebrada na manhã que sucedeu a nossa chegada, foi inesquecível. Sobre um altar de pedras sagradas, juramos jamais revelar ao mundo os segredos dos nativos. O meu vestido branco, exatamente igual ao da Sacerdotisa para testemunhar a nossa união espiritual, esvoaçava ao sabor do vento primaveril. Pela primeira vez vi a realidade através de uma abertura estreita de tecido, e a minha admiração por Amora consolidou-se. Ela tinha forçosamente de ser uma mulher muito corajosa e determinada, para suportar tantas regras e proibições.

Mais descontraída, Freya cintilava beleza dentro de um vestido comprido, de um verde singelo que evidenciava o seu olhar e o azul da pedra mágica. Os cabelos negros caíam-lhe sobre as costas e absorviam os raios do Sol, libertando-os generosamente em tons de prata. A sua pele branca contrastava com a das mulheres que a rodeavam, e tornava-a única, exótica, tão bonita como a nossa mãe na sua idade. O ar da ilha estava a fazer-lhe muito bem!

Proferidos os votos e concluídos os rituais, o Povo dos Penhascos presenteou-nos com uma festa. Comemos os deliciosos frutos da terra e bebemos os mais puros néctares, enquanto observávamos os movimentos delicados das donzelas, pairando como borboletas ao som de músicas celestiais. Depois, os tambores rufaram e os jovens guerreiros exibiram as suas danças, que mais não eram do que uma forma disfarçada de luta. Verdadeiramente impressionante!

Para o fim do dia, os Sacerdotes reservavam-nos uma surpresa. As lágrimas quase me saltaram dos olhos ao ver Trygve dançar com Amora: ele, um colosso de força e beleza; ela uma criatura pequena e delicada, detentora de uma graça que nem as vestes compactas tinham o poder de ocultar. Executaram movimentos leves, mas rápidos, plenos de sentimento, com o olhar preso e a respiração suspensa; o corpo de Trygve mal se abeirando da sua soberana. Ela era a andorinha. Ele era o falcão. Ouviram-se exclamações de sobressalto quando o frágil pássaro caiu nas garras do predador. Os braços de Trygve fecharam-se finalmente sobre o corpo de Amora e o seu rosto mergulhou no tecido fino que encobria o pescoço da sua amada. A dança findara e a multidão aplaudia emocionada, quase horrorizada. Todavia, eu sabia o quanto Trygve e Amora estavam felizes por se poderem tocar... mesmo que só por um breve instante.

Freya estava fascinada com este mundo novo. As anciãs curandeiras do templo não tardaram a adotá-la, deliciadas pelo interesse apaixonado da talentosa jovem que, segundo elas, possuía mãos mágicas. Deixei a minha irmã entregue à sua tarefa predileta, e acompanhei Amora através do labirinto de corredores, preparando-me para enfrentar o que me aguardava.

A mais jovem das Mães da Renovação estava a amamentar o filho, quando entramos no seu aposento. Uma simples troca de olhares bastou para que me apercebesse da tensão que latejava entre a serva e a soberana. Sibina nem tentou disfarçar o seu desagrado quando Amora lhe pediu que nos deixasse a sós com o bebê. Estaria ressentida pelo fato de a Sacerdotisa ter introduzido uma estranha no seu seio, que a afastava tão inoportunamente do filho? Ou seria algo mais? Uma desconfiança... Não! A ansiedade estimulava-me a imaginação!

Quando já temia que Amora tivesse de transformar o pedido numa ordem, Sibina obedeceu, ostentando uma expressão de rancoroso desafio.

Eu já tivera oportunidade de conhecer alguns dos filhos de Trygve e experimentara uma forte comoção; o carinho do reconhecimento do sangue. Assim que segurei neste bebê ao colo, fui percorrida por um estremecimento incômodo. Sem necessitar das instruções de Amora, os meus dedos afastaram a manta macia que cobria o corpinho frágil. Perturbada, verifiquei que na pele dourada do seu peito, sobre o coração, se encontrava uma mancha púrpura, com uma forma estranha... indefinida.

— Isto não significa nada, Amora! — forcei-me a manifestar. Mas sabia que não era verdade. E ela também, por isso escusou-se a responder.

Embalei o meu primo até adormecê-lo. Não me deixaria vencer pelo incômodo ímpeto de rejeição. As forças malignas que se divertiam a brincar com a adversidade humana não se satisfariam à minha conta! Sempre em silêncio, Amora esperou que eu deitasse o menino no berço para autorizar a mãe a entrar. Sibina irrompeu pelo quarto e tomou o filho nos braços, esmagando-o contra o peito, enquanto me fixava com aversão e desconfiança. Apercebi-me de que estivera a chorar. Certamente pressentia que o filho era diferente... e temia pela sua sorte. A minha presença ali só confirmava os seus receios. Julgaria que eu fizera algum mal ao bebe?

— O teu filho é meu primo, Sibina — disse a meia-voz, numa tentativa frustrada de sossegá-la. — Será um belo homem; um guerreiro forte e orgulhoso...

Desisti, ao constatar que estava a assustá-la ainda mais. Sentia-me cansada, à beira do desfalecimento, e não tinha razões para tal. Por todas as serpentes marinhas, eu não podia reagir assim! Tinha de ajudar Amora; dar-lhe alento e coragem para lutar...

Após outra caminhada pelos corredores do templo, a Sacerdotisa convidou-me a entrar no seu quarto. O espaço era maior e mais cômodo do que aquele que eu observara na minha Visão, mas igualmente simples. Uma cama para dormir, uma arca para guardar os haveres, um altar de meditação e um banco comprido para que as visitas se sentassem, era tudo o que importava relatar. Não havia tapetes nem tapeçarias para alegrar o ambiente. O único objeto que atraía o olhar era a jarra que enfeitava a arca, onde um magnífico ramo de flores garridas nos deslumbrava com a sua beleza. Ao ver-me atraída pela explosão de cor, Amora murmurou, enquanto se libertava finalmente do véu:

— Todos os dias, o Trygve faz um ramo diferente, mais perfeito do que o anterior, para que as crianças mo ofereçam. Esta foi a maneira que encontrou de me declarar o seu amor, sem que o nosso povo nos condene.

Já não eram só as flores que davam vida ao quarto... A perfeição do rosto de Amora faria o deleite de qualquer artista! A sua aura resplandecia, e nem a tristeza e a apreensão que os seus olhos denunciavam ofuscavam esse brilho.

— O que te vou mostrar nunca foi visto por ninguém, além das Sacerdotisas, minhas antecessoras — continuou decidida. — Faço-o para que compreendas que não possuo alternativa... Que a minha decisão nada tem de leviano, lascivo ou egoísta...

Enquanto falava, dirigiu-se ao altar e empurrou algumas das pedras que o forravam, respeitando uma ordem definida. Ante o meu pasmo, a parede ganhou vida e deslizou para dentro e para o lado, pondo a descoberto o interior da montanha e uma escadaria íngreme e estreita, que mergulhava na escuridão.

— A minha Sacerdotisa revelou-me este caminho, no dia em que a sua morte lhe foi anunciada. Segue-me sem medo, Edwina. Estava escrito que os teus passos te conduziriam até aqui.

Pus um pé no primeiro degrau e, de imediato, o corredor encheu-se de luz até perder de vista; os braseiros incendiando-se uns após os outros, inflamados por uma mão invisível. Verifiquei que a parede estava coberta de desenhos, tão realistas que pareciam mover-se debaixo do meu olhar.

— Durante séculos — prosseguiu Amora —, as Sacerdotisas dos Penhascos apelaram à magia da Gruta das Vozes Ancestrais, por respostas às questões que as atormentavam. O que estás a ver são as instruções que receberam; as decisões que determinaram o destino do meu povo.

Antes que me apercebesse, a escadaria terminou numa fabulosa sala, que me arrebatou com a sua magia. O teto encontrava-se muito acima das nossas cabeças e os desenhos preenchiam as paredes. Aparentemente, as Sacerdotisas tinham enfrentado muitos dilemas no passado!

Estaquei diante do chão argiloso, vermelho inconstante, repleto de veios, que dir-se-ia apenas esperar pelo peso de um pé para se quebrar como gelo fino e nos engolir. Porém, Amora encorajou-me a avançar até ao centro da gruta, onde uma formação de cristais da cor do sangue brotava miraculosamente do barro e se erguia orgulhosa até à altura da sua cabeça.

— Este é o Esteio das Almas — explicou-me. — De cada vez que uma Sacerdotisa morre, um novo cristal nasce, perpetuando a sua essência. Um dia, quando o meu corpo descansar, também eu farei parte da magia que alimenta a ilha e poderei colaborar na orientação da minha sucessora.

Amora sorria, como se antecipasse com alegria o fenômeno que descrevera. Depois, ficou subitamente séria, fixando-me com uma expressão grave. Após um silêncio breve e arrepiante, iniciou a justificação das razões que a haviam levado a divulgar este templo secreto:

— O castigo do Conselho dos Seres Superiores, infligido aos meus antepassados, não se limitou àquelas criaturas grotescas que guardam a passagem e que condicionam a nossa liberdade. Os Feiticeiros lançaram uma maldição sobre a ilha, que se inicia com o nascimento de uma criança marcada por um ritual imperfeito, e termina com a morte da terra pelo que eles chamam «o fogo purificador». Desde a Festa da Renovação que eu estudo os testemunhos que as veneradas Sacerdotisas me deixaram. No passado, já dois rapazes nasceram com a marca... Um, perdeu-se nos túneis da passagem e foi devorado pelos Sentinelas. O outro, caiu de um penhasco quando ainda era criança. Prefiro não pensar que as minhas antecessoras intervieram nesses acontecimentos. Eu jamais remediaria o meu erro usurpando uma vida! Sabendo isso, elas indicaram-me outro caminho; um caminho perigoso e sem garantias de sucesso... Mas que se tornou a única esperança!

Segui a direção apontada pelos seus dedos até à última seqüência desenhada. O meu coração quase parou ao reconhecer a boneca que era eu a visitar a ilha, a representação fiel da Lágrima do Sol e, mais adiante, a antecipação da Festa da Renovação deste Verão... e uma imagem da gruta onde, no ritual de fertilidade, o Sacerdote tomaria para si, não uma Mãe da Renovação, mas duas!

Senti-me gelar por dentro ao apreender o significado da adivinhação. O meu choque profundo só me permitiu balbuciar:

— Não podes fazer isso! Estarás a quebrar as regras... a pôr em causa o equilíbrio...

— Que equilíbrio? — replicou ela, numa voz exausta. — O caos instalou-se no momento em que o Trygve e eu nos olhámos... Eu nunca ambicionei ser Sacerdotisa, mas curvei-me ao destino que me foi traçado no berço, por amor ao meu povo. Agora, a maldição paira sobre nós, e não me restam opções! As vozes das minhas antepassadas falaram e este foi o resultado. Trouxe-te aqui para que o visses com os teus próprios olhos, porque sabia que, de outra forma, não conseguiria convencer-te. Por favor, Edwina! Eu preciso da tua ajuda! Se não alterar o futuro, o meu povo está condenado.

Não podíamos deixar a Ilha dos Penhascos sem visitar os seus santuários selvagens de incomparável beleza. Amora guiou-nos nessa expedição, desvendando as histórias que se enraizavam em cada um desses lugares, ao longo dos séculos. Nos bosques cerrados, nas grutas profundas, junto da turbulenta lagoa de água salgada e das serenas lagoas de água doce, senti estreitarem-se os laços espirituais que me prendiam a esta terra prenhe de magia.

Amora levou-nos à aldeia dos druidas, onde fomos calorosamente recebidas. Após as habituais saudações, convidaram-nos a partilhar da refeição da tarde, o que aceitámos com satisfação, pois a longa jornada nos engraçados cavalos nativos nos abrira o apetite. Enquanto desfrutávamos da fruta fresca e sumarenta, e do pão com mel, o Mestre Druida requestou a ajuda da minha Arte. Pediu a um dos homens que o serviam que buscasse o mais novo habitante da comunidade, enquanto nos contava a insólita história desse rapaz.

Em pleno Inverno, quando ninguém se aventurava a desafiar o mar, um jovem naufragara na ilha. Tinham-no encontrado tombado nas rochas, moribundo, com feridas profundas provocadas por uma luta feroz com os Sentinelas. Sobrevivera por um triz, graças à compleição forte, que poucas dúvidas deixava quanto à sua origem guerreira. Contudo, ao recuperar a consciência, não soubera dizer de onde vinha, nem como se chamava. A magia dos druidas revelara-se ineficaz para lhe resgatar a memória, por isso, o ancião solicitava-me que apelasse à Lágrima do Sol para esse efeito. O calor na sua voz denunciava a estima que devotava ao desconhecido, que se integrara perfeitamente na comunidade e não se cansava de espantá-los com a sua destreza, força... e habilidades místicas.

— O seu sangue é tão forte que só pode ser produto de uma mistura de raças — declarou o Mestre. — Confesso que, de início, isso nos assustou. Existem muitos descendentes de feiticeiros renegados espalhados por este mundo... e nunca sabemos se estamos a deparar-nos com um servo do bem ou do mal. Porém, a sua súplica para ficar con-nosco comoveu-me e, aos poucos, a bondade da sua alma conquistou-nos. Mesmo que o seu passado tenha sido atribulado, estou tão convicto da sua nobreza, que lhe dei a oportunidade de começar uma vida nova ao nosso lado. Contudo, desejo saber de onde veio... Não por ele! Mas pelo que poderá eventualmente segui-lo... Um homem que se aventura no mar, durante o Inverno, ou é louco, ou empreende uma fuga desesperada.

O sábio ancião deteve-se à chegada do seu servo. Todavia, as novas desgostaram-no. O seu protegido deixara a aldeia de manhã, para colher ingredientes curativos, e ainda não regressara. Encolheu os ombros e suspirou resignado:

— Sendo assim, terei de aguardar por outra oportunidade.

— No Festival de Verão, quando o senhor tornar a agraciar a casa do jarl com a sua visita, faremos gosto em receber esse rapaz — respondi-lhe. — E a magia da Lágrima do Sol estará ao vosso serviço.

Despedimo-nos da aldeia druida e dos seus admiráveis habitantes, pois a caminhada de regresso ainda seria longa. Enquanto nos quedáramos sob a hospitalidade dos sábios, o céu cobrira-se de nuvens negras e o ar enchera-se de humidade. Não tardaria a chover.

 

Os cavalos da Ilha dos Penhascos eram os mais pequenos que eu já vira; porém robustos, mansos e obedientes. O pêlo das suas patas era comprido e os focinhos pareciam sorrir. Amora explicou-me que a deusa não os talhara para heróicas jornadas; antes para ajudar o Homem no trabalho doméstico, e conduzi-lo de forma segura através da ilha. Freya não partilhava da paixão da sua gêmea pela arte de cavalgar e a proximidade da tempestade ainda a inquietava mais. Seguia os dois Filhos da Renovação que lideravam a coluna, impaciente por sair do bosque. Ouvi-a resmungar quando as primeiras gotas de água caíram do céu. Atrás de nós, as donzelas que acompanhavam a Sacerdotisa abafavam o riso. Montar debaixo de chuva seria uma novidade divertida! Os dois guerreiros que fechavam a comitiva também tagarelavam alto, mas o brilho esplendoroso do primeiro relâmpago silenciou-os.

Paramos sobressaltados, quando o trovão ecoou sobre as nossas cabeças. Os cavalos agitaram-se inquietos e um dos guerreiros teve de sossegar a montada de Freya, que estava quase tão receosa quanto a sua cavaleira. A noite desceu sobre o bosque qual mortalha e, num instante, a confusão instalou-se. As moças gritaram apavoradas, envoltas pela escuridão e fustigadas pelo violento aguaceiro. Os Filhos da Renovação tentavam inutilmente acender os archotes, enquanto apelavam à calma e para que nos mantivéssemos juntas. Ao meu lado, Freya agarrava-se à pedra azul e as lágrimas de medo cintilavam-lhe no olhar.

A luz fulgurante de um novo raio rasgou o céu e projectou sombras ao nosso redor. Parei de respirar, arrepiada até à alma. O olhar confuso de Amora denunciava que também ela pressentia que algo estava errado. Os cavalos agiam como se estivessem cercados por um inimigo feroz, oculto na bruma. O clarão desvaneceu-se e o negrume cego voltou, acompanhado de um estrondo descomunal que amordaçou os guinchos das jovens e me ensurdeceu.

— Edwina...

O apelo de Freya soou-me indistinto. A minha irmã estava aterrada e o seu pavor forçou-me a reagir. Pisquei os olhos para habituá-los à obscuridade, e o que vi gelou-me o sangue: uma sombra, mais negra do que as trevas que nos rodeavam, deslizava pela floresta a uma velocidade vertiginosa... e a sua essência letal era energia pura. Nesse espaço de tempo em que o coração se recusou a bater, a voz de «O Que Tudo Vê» estralejou-me na mente qual trompa de guerra: «Das profundezas da Luz e da Escuridão, dois espíritos soberanos erguer-se-ão para decidir na Terra aquilo que não pode ser determinado no seu mundo...»

E ouvi-me murmurar, enrouquecida pelo medo:

— O Lobo Negro está aqui...

Ao meu lado, Amora retorquiu com a voz a tremer:

— Não existem lobos na ilha...

Então, o céu tornou a iluminar-se. O clarão mais brilhante que eu já vira precipitou-se contra nós, rápido como o pensamento, incandescente... terminal. O relâmpago fulminou uma árvore por trás de Freya e o seu cavalo espinoteou e relinchou assustado, lançando-se numa corrida desnorteada pelo meio da escuridão. Enquanto as moças bradavam em pânico, desmontando tão depressa que escorregavam, e os guerreiros tentavam restabelecer a ordem, afastando-as da árvore em chamas, apressei-me a seguir a minha irmã, gritando o seu nome com o coração na garganta.

A perseguição levou-me para fora do bosque, onde o terreno era rochoso e escorregadio. Vi o mar estender-se diante dos meus olhos, a Ilha dos Sonhos como um gigante que rasgava a água, o céu devastado por rios de fogo, o cavalo de Freya galopando desembestado... e o precipício.

— Freya...

Que poderia ter feito? Alguma coisa, decerto! Mas nada fiz... Fiquei parada no tempo, a ouvir o meu próprio grito estender-se para além do infinito, enquanto o cavalo enlouquecido se empinava diante do abismo e a minha irmãzinha caía... e desaparecia.

— Freya!

Saltei do cavalo como se não tivesse ossos, e corri aos trambolhões até onde o penhasco interceptava o mar. Os meus olhos revelaram as vagas que se desfaziam contra os rochedos, lá muito em baixo. Os picos das pedras, aguçados como espadas, erguiam-se ameaçadores... E procurei o corpo trespassado da minha irmã em cada um deles, até que a percepção de movimento, logo abaixo do terreno onde me encontrava, me atraiu a atenção.

Ainda vi o suficiente para concluir que, durante a queda, Freya conseguira segurar-se a um arbusto, e ficara a pairar, num equilíbrio precário, pouco acima dos braços da morte. Nesse instante, alguém a resgatava, içando-a para o nicho onde se encontrava. Outro relâmpago iluminou a noite e eu distingui que era um homem quem amparava o seu choro. Estava vestido como os sábios e os seus cabelos flamejavam. O alívio que senti foi tão extremo que perdi a força nas pernas e caí de joelhos. Fiquei a olhar para a minha pequenina, envolta pelo abraço protetor do desconhecido, enquanto a chuva lavava as minha lágrimas.

— Que a deusa seja louvada! — exclamou um dos Filhos da Renovação. — É um milagre!

Esse guerreiro começou a descer cuidadosamente o penhasco, por um caminho quase imperceptível, e outro não tardou a segui-lo. Apesar de tudo, Freya parecia-me surpreendentemente calma. Amora deteve-se ao meu lado, soluçando de alívio, enquanto agradecia à sua divindade.

Aos poucos, a chuva e o vento serenavam e a tormenta afastava-se da ilha. O estridor do mar bravio impediu-me de escutar a conversa que os irmãos de Amora mantinham com o salvador de Freya. Este entregou-a aos seus cuidados, e afastou-se pelo carreiro íngreme e apertado, na direção oposta, de regresso à sua aldeia.

— Era a este rapaz que o Mestre Druida se referia — disse Amora, confirmando as minhas suspeitas. — Foi a deusa que guiou os seus passos até aqui, para que salvasse a tua irmã.

Não me atrevia a discutir esta teoria! Quais eram as possibilidades de encontrar uma explicação para o que acabara de acontecer? Só podia realmente ter sido uma vontade divina que colocara o misterioso jovem neste lugar, a tempo de livrar Freya de uma morte atroz!

— Edwina...

Recebi a minha irmã nos braços e esmaguei-a contra o peito. Freya ainda tremia, mas já respirava sem sobressalto. Amora perguntava:

— Por que não veio o herói ao nosso encontro?

— O rapaz é esquisito — replicou um dos guerreiros. — Recusou os nossos agradecimentos, alegando que tinha de regressar rapidamente a casa, senão seria castigado. Ofereci-lhe o meu cavalo, mas nem sequer me respondeu...

— Parecia assustado com a nossa presença! — apoiou o companheiro.

— É pena — lamentou a Sacerdotisa. — Gostaria de lhe agradecer e de recompensá-lo! Terei de fazê-lo depois... Agora, vamos para casa. Precisamos de descansar... Tu principalmente, querida Freya! Consegues andar?

A minha irmã aquiesceu, apesar de exausta. Ninguém tinha vontade de regressar ao bosque, mas não havia outro caminho. Freya estava dorida e foi muito difícil convencê-la a montar. De archotes acesos, avançamos lentamente pelo terreno enlameado. Por várias vezes, lancei a mente através da floresta, tentando encontrar vestígios da poderosa essência que tanto me assustara, mas foi inútil. Ter-me-ia deixado influenciar pelo medo? Talvez... Esta noite não me atrevia a proclamar nenhuma convicção!

 

Freya estava muito calada. Sentei-me ao seu lado na cama e comecei a desembaraçar-lhe os caracóis, com as pontas dos dedos e infinita paciência. A minha irmã levou as mãos ao peito e acariciou a pedra azul, perguntando com a ansiedade a distorcer-lhe a voz:

— Crês que seja possível... saber que um homem nos está destinado, após um único olhar?

Detive-me confusa, sem compreender de imediato ao que ela se referia.

— Estás a falar do rapaz que te salvou? — perguntei, quase por instinto.

Freya voltou-se lentamente para me encarar; os olhos fulgindo como estrelas.

— Hoje senti o que nunca tinha sentido, Edwina... Um choque pelo corpo, as pernas sem força para me suster, o coração quase a rebentar, o sangue em fogo...

— Quase morreste! — interrompi, tentando chamá-la à razão. — O que estás a descrever é perfeitamente normal, depois do susto que apanhaste! E é natural que te sintas... ligada ao teu salvador. Mas não comeces a imaginar coisas! Tu nem o viste bem!

— Estás enganada...

— Era noite cerrada, Freya!

— Os seus olhos são lindos — replicou ela, crispada. — Tão azuis que o céu e o mar amareleceriam de inveja. E os seus cabelos são castanhos, com reflexos acobreados. E tão alto que eu mais parecia uma criança nos seus braços... e tão forte, tão forte, Edwina! Como podes dizer que não o vi bem, se recordo cada traço do seu rosto, como se o conhecesse desde o dia em que nasci?

— Acalma-te, mana! — teimei, assustada pelo seu ardor. — Estás perturbada...

— Não, não estou! — A minha irmã afastou-se, indignada.

— Olhas-me como se eu fosse uma criança tonta e nem prestas atenção ao que te digo! O que senti foi diferente; tão especial que não consigo esquecer... Cresce a cada instante e quase me rebenta o peito!

Fechei os olhos e cerrei os dentes, lutando contra a vontade de sacudi-la para lhe pôr as idéias no lugar. Contrariá-la só serviria para que se enrolasse ainda mais em argumentos disparatados.

— Está bem! — exclamei, resignada. — Amanhã temos de regressar, ou os nossos pais ficarão em cuidado. Porém, quando os druidas visitarem a nossa casa, no Festival de Verão, poderemos comprovar se esse rapaz é realmente especial. O jarl ficará feliz por conhecê-lo e recompensá-lo... E, se o teu pressentimento se verificar correto, dar-te-ei o meu apoio!

Freya amuou, percebendo que eu só condescendera para pôr fim à conversa. Enfiou-se na cama e voltou-me as costas. Suspirei, frustrada. Por que é que a minha irmã tinha de ser tão impetuosa nas suas paixões? Primeiro Magnor, que se revelara uma peste... Agora, um perfeito desconhecido, até para aqueles que o abrigavam. Na sua cabeça, Freya já transformara o aprendiz de druida num príncipe encantado! Ora, príncipe não era, certamente, e se fruía de alguns encantos, a educação não se encontrava entre eles, já que nem se detivera para nos cumprimentar. Talvez a luz da manhã clareasse as idéias da minha irmã! Se assim não fosse, estaríamos novamente cora problemas.

Freya já dormia há muito, mas eu não conseguia tranqüilizar-me o suficiente para me render ao sono. A energia obscura que nos surpreendera nessa tarde podia ter sido arrastada pela tempestade... ou encontrar-se escondida na ilha. Amora prometera-me que ficaria atenta. Se o fenômeno se repetisse, iria interceptá-lo e destruí-lo... Ou assim esperávamos!

Recordar a manifestação do que eu julgara ser o Espírito da Escuridão trouxe-me à memória o Espírito da Luz. Ivarr, o rei-lobo, passara o Inverno no Norte, rodeado pela sua alcatéia, preparando-se para enfrentar o seu destino. No fim, também ele vivia assombrado por uma profecia. E tinha razão quando me acusava de incompreensão e egoísmo! Sempre que estávamos juntos, eu só batalhava nas minhas necessidades, nos meus dilemas, sem me lembrar que ele também possuía os seus... e que fazia o melhor que sabia e podia para superá-los.

Acariciei a Lágrima do Sol entre os dedos e senti-me subitamente entorpecida. Permiti-me navegar na doce sensação de leveza, acreditando que finalmente o sono me vencera. Porém, quando o grande javali saiu dos arbustos, quedando-se diante do meu olhar, soube instintivamente que não estava a sonhar. Ao meu lado, Thora agachava-se entre as ervas, invisível e silenciosa. O vento soprava a seu favor, ocultando da presa o odor da caçadora... o cheiro dos lobos!

O olhar da minha irmã desviou-se do animal e fixou-se em Ivarr. Ele avaliava o momento certo para atacar. O javali ainda se encontrava longe. Um pouco de paciência garantiria o sucesso. Encarou-a subitamente, deixando-a desconcertada... e a sua mão moveu-se sem hesitação, capturando a dela. Só então reparei que a mão que Thora usava para empunhar o punhal estava enfaixada e suja de sangue. Em silêncio, o príncipe agitou os dedos, exigindo-lhe que o imitasse. Pelos vistos, o corte fora profundo e queria certificar-se de que ela não perdera os movimentos. Thora resistiu um pouco, mas, quando o olhar do seu senhor escureceu, acabou por se resignar. Estava tudo bem! — declarou-lhe sem gastar palavras; o rosto expressivo coberto de lama e suor. A loba ansiava pelo frenesi da caçada!

Um movimento, do lado oposto àquele onde se encontravam, fez o javali deter-se e farejar o ar. No instante seguinte, Ketill e Ragnar saltavam do seu esconderijo e o possante animal precipitava-se numa corrida desenfreada... na direção do rei-lobo e da loba prateada.

Abri os olhos com um grito mudo: o coração a ribombar e o suor a escorrer-me pelas frontes. Nas minhas mãos, a Lágrima do Sol continuava a pulsar, como se houvesse mais por revelar. Mas eu não queria ver... Recusava-me a ser fustigada pela dolorosa confirmação de que eu era, e sempre seria, uma intrusa no território de Ivarr. Por mais que me esforçasse, jamais alcançaria o entendimento de que ele e Thora desfrutavam. As suas essências reconheciam-se e fundiam-se na perfeição... A mesma perfeição que eu já experimentara... ao lado de outro homem!

— Traz o Edwin para casa...

Fixei os olhos na Lágrima do Sol. Como apagar esta vontade que me queimava por dentro? Desejava ver o meu primo com tanta veemência que os meus sentidos agonizavam! Arriscar a vida... Buscar estupidamente a morte, era aquilo a que me propunha! A minha mãe avisara-me. «O Que Tudo Vê» admoestara-me. A Pedra do Tempo confirmara a perversão... E, ainda assim, eu insistia! Não era esta indefinição uma morte lenta e angustiante? Eu precisava de Edwin! Mais do que de comer ou de beber! Mais do que de respirar! Eu tinha que salvá-lo!

Da decisão à ação foi um piscar de olhos. De repente, a magia fluiu através da minha essência como a mais vigorosa das cascatas. Ouvi-me gritar... mas o som soou-me estranho, selvagem. Acolhi a razão e deparei com uma praia de pedras negras, repleta de pedaços de madeira partida; os destroços de um majestoso navio de carga, desviado da sua rota pelo sortilégio de um mestre da Arte Obscura. O céu do fim da tarde estava rubro e o ar ainda guardava os vestígios da tormenta que assolara a ilha. As ondas recuavam, deixando para trás formas humanas inertes... deliciosas fontes de energia!

 

A necessidade de vida ardia em mim como um incêndio descontrolado. Lancei-me em frente com uma voracidade letal. Um homem rastejava para fora de água, cuspindo areia e sal, lutando para respirar. Agarrou-se aos braços poderosos que o resgatavam do mar, com o alívio estampado no rosto... alívio que se converteu em terror quando a fera o prostrou.

A noite tingiu-se de vermelho, enquanto a vida jorrava dos lábios escancarados do náufrago, num grito que se afundava na minha garganta, e se misturava com a minha essência, saciando-me a sede. Que sensação gloriosa! Eu estava embriagada de poder! O mundo vergava-se aos meus pés... As estrelas encontravam-se ao alcance das mãos... E eu queria mais!

Não... Não!!!

Estrebuchei, prisioneira da mente de Edwin, rejeitando esta realidade abominável. Apanhado desprevenido pelo fluxo da minha consciência, ele empurrou o cadáver para longe, enquanto aquela vida que suplicara a sua ajuda lhe latejava no sangue, lhe elevava os sentidos. A curta distância, o Guardião da Lágrima da Lua alimentava-se da mesma forma grotesca, distraído das emoções que assolavam o seu aprendiz.

Edwin deixou-se cair para trás; os músculos tensos, os dedos enterrados nas pedras da praia, a respiração suspensa, os dentes cerrados, os olhos escancarados ao agonizante céu... Ele necessitava de se libertar de mim... e eu dele! Nunca as nossas energias se haviam incompatibilizado tão violentamente. A rejeição, o asco que me revolvia, eliminava os últimos vestígios do êxtase que, por instantes, o sublimara. Era doloroso... era insuportável!

Forcei-me a recuar, dilacerada por um horror que não conhecia limites... E despertei no pequeno quarto que partilhava com Freya, na Ilha dos Penhascos, sentada no chão, afogada em lágrimas, com o cristal do Sol pressionado contra o peito. Na cama, a minha irmã resmungava e voltava-se para o outro lado, profundamente adormecida.

Não consegui mover-me. Sentia-me gelada de medo, prostrada pela negação. Os meus maiores temores tinham-se concretizado. A Arte Obscura devorara a alma de Edwin... Eu confiara nele... Acreditara na sua resistência... Mas fora em vão!

O corpo de Amora tremia, quando me abraçou na despedida. Na sua mente, tal como na minha, estava a certeza de que tudo seria diferente quando nos tornássemos a ver.

— A sobrevivência do meu povo depende de ti — murmurou gravemente.

— Terás o que pretendes — respondi. E subi para a canoa, evitando o olhar de Trygve.

Tínhamos ponderado contar-lhe a intenção da Sacerdotisa, mas acabáramos por recuar. Trygve tinha fé nas suas adivinhações e concordaria que esta era a única forma de salvar o seu povo... Todavia, a espera, a ansiedade e o temor acabariam por deixá-lo doente. Após a Festa da Renovação, ele lutaria ao lado da sua soberana, mas, até lá, desfrutaria do conforto da ignorância.

A canoa deslizou agilmente através das águas serenas. Tal como eu, Trygve tinha os olhos postos na praia, enquanto o barqueiro remava ao encontro do tenebroso labirinto de grutas. Surpreendi o olhar de Freya voltado para os penhascos, na direção da aldeia dos druidas. Pobre irmãzinha! O que esperava, afinal? Provavelmente, o seu salvador já nem se recordava da moça que tão abruptamente o havia desviado da monotonia da sua existência...

Subitamente, o rosto de Freya iluminou-se. Não disse uma palavra, mas o seu sorriso forçou-me a um segundo olhar. Sustendo-se ousadamente sobre as perigosas rochas, encontrava-se um homem de vestes cinzentas e cabelos escuros, com reflexos de cobre, que se agitavam ao vento como uma bandeira. Senti o coração acelerar. Seria coincidência? Ou o aprendiz de druida viera realmente despedir-se da minha irmã?

A obscuridade envolveu-nos e os corredores de pedras pontiagudas cercaram-nos. O archote da proa iluminou os olhos esquivos e ameaçadores dos Sentinelas. Audazes, aproximaram-se o suficiente para que as escamas dos seus corpos luzissem, e as línguas bifurcadas se revelassem, por entre os dentes aguçados, silvando em desafio. Não teríamos salvação, se os ferozes animais decidissem arremeter contra a canoa.

— Acalma-te, Edwina — apelou Trygve, ante a minha inquietação. — Estais seguras ao meu lado.

Eu desejava acreditar que isso era verdade! Fixei Freya, e pasmei ao verificá-la tranqüila. O sorriso com que brindara a aparição do seu salvador ainda lhe enfeitava os lábios. Fui percorrida por um calafrio, que antecedeu o pressentimento de novos ventos de tormenta, anunciados pelo esplendor de uma bandeira acobreada.

 

As notícias do País dos Viquingues chegavam-nos espaçadas no tempo, à medida que os dias aqueciam e permitiam as rotas marítimas de comércio. A chegada do tio Edwin ao Norte coincidira com o início das já esperadas hostilidades de Arnorr e dos seus mercenários. Após um Inverno rigoroso, os assassinos que combatiam sob as ordens do primo do meu pai ambicionavam deitar as garras ao pão das nossas famílias, satisfazer a sua crueldade com o sangue dos nossos homens e a luxúria com a carne das nossas mulheres. Sem hesitação, o meu tio desembainhara a espada e unira-se ao exército viquingue.

Os viajantes descreviam Lorde Edwin McGraw como um deus da guerra, que saltava para os braços da morte sem sombra de temor. Sempre que as proezas do irmão eram reafirmadas, a minha mãe murmurava uma prece protetora. Parecia óbvio que ele buscava com ansiedade a lâmina capaz de pôr fim à sua vida. E, até que o braço digno de empunhá-la o surpreendesse, o meu tio continuaria a arrasar sem piedade as hostes inimigas.

As façanhas do príncipe Ivarr também mereciam destaque. Ele e os seus lobos tinham dispersado um bando de mercenários dez vezes superior em número. A mesa do jarl, choviam elogios à guerreira da casa. A habilidade de Thora para se movimentar acima do solo, na proteção das árvores, confundia os inimigos, e a sua destreza no uso do arco já determinara muitas vitórias.

No que se referia a Magnor, as notícias eram desconcertantes. Na estação fria, o príncipe rebelde ganhara o respeito dos companheiros, ao salvá-los do abraço mortal de um rio traiçoeiro, durante a travessia. Este ato heróico valera-lhe uma promoção. Agora, Magnor era um dos líderes encarregados de assegurar que os Vândalos não se aventuravam para além dos limites da Floresta Sombria. O rei Steinarr acedera a deixá-lo explorar a terra de ninguém que estabelecia a divisão entre os domínios da rainha Lyria e o território da rainha Aesa. Os Pântanos Nebulosos encontravam-se repletos de armadilhas e assombrados por lendas de arrepiar. Dizia-se que quem pisava a sua lama respirava o seu ar pútrido e se deixava envolver na sua bruma não mais regressava. Estava para além da minha compreensão as razões por que Magnor, um jovem requintado e ambicioso, se propusera a tão árduo trabalho.

Freya não se deixava impressionar pelas descrições de bravura do príncipe. O pesadelo que lhe abrira os olhos para a má índole do seu prometido ainda a atormentava. Além disso, encontrara outros motivos de interesse. Por várias vezes, surpreendi-a a interrogar o tio Berchan acerca do modo de vida dos homens sábios. Apesar de não ter voltado a falar acerca do aprendiz do Mestre Druida, era óbvio que não o esquecera. Freya já se imaginava a viver na Ilha dos Penhascos, ao lado do seu salvador, dedicando a sua existência ao estudo da arte curativa. Eu só esperava que ela não estivesse prestes a sofrer mais uma desilusão.

O Verão foi-se aproximando, assim como a data marcada para o casamento de Aled e Melody. Temi que os conflitos no Norte impedissem os meus primos e o tio Edwin de comparecerem à cerimônia, o que deixaria os noivos muito decepcionados. Porém, dois dias antes da nossa partida para a Grande Ilha, o majestoso Knarr do rei viquingue atracou no porto, trazendo Steinarr, Edwin McGraw, Thora e Bryan.

A minha busca ansiosa por Ivarr entre os guerreiros foi malograda. Mais tarde, quando o rei apresentou os seus cumprimentos ao jarl, explicou que entregara o destino do reino ao primogênito, durante a sua ausência. Para Ivarr tal era uma grande honra e uma responsabilidade ainda maior. Eric, Ketill e Ragnar tinham permanecido ao seu lado. Eric solicitara que o seu carinho fosse transmitido a Aled, pois não pudera deixar o seu senhor num momento tão crítico. Quanto a Magnor, não possuía afinidade com os noivos, por isso a sua ausência não seria notada. Freya até ficou aliviada por não ter de encará-lo. Já lhe bastava enfrentar o soberano viquingue!

O meu pai passou muito tempo reunido com Steinarr, longe dos olhos e ouvidos da casa e da comunidade. Mais tarde, soube que o rei expressara a sua gratidão pela forma honrosa como o jarl celebrara os rituais fúnebres da sua irmã preferida. O desaparecimento tão prematuro da tia Geirny ainda feria os nossos corações e, por vezes, a saudade forçava-nos a suster o fôlego.

Outro assunto delicado, que tivera de ficar esclarecido, fora o término do compromisso de Freya e Magnor. Steinarr começara por indignar-se, mas o meu pai sabia usar as palavras e acabara por convencê-lo de que, sem amor, o casamento estaria condenado ao fracasso. No fim, o que importava era a felicidade dos dois jovens. Magnor não teria dificuldade em encontrar outra noiva que lhe despertasse o interesse... Quem sabe, uma princesa de um reino vizinho, o que colocaria maior peso político nas mãos do rei viquingue?

O meu pai entregou a administração da Ilha dos Sonhos ao tio Bjorn e a nossa família fez-se ao mar, rumo à Grande Ilha. Freya e Svana mal dormiam, agitadas pelo entusiasmo. Sempre que tinha oportunidade, a minha prima aproximava-se de Bryan, mas o guerreiro-lobo estava mais interessado em cuidar do treino de Thora. Ergueu um alvo de madeira no convés, que serviu para praticar o arremesso de punhais. Ainda tentei a minha sorte, sem recorrer à Arte, mas acabei por desistir, depois de quase ter cortado uma orelha ao primo Krum. Era melhor limitar-me a fazer aquilo que realmente sabia!

Enquanto observávamos Thora e Bryan a acertarem no alvo com uma precisão letal, Svana desabafou a sua frustração. Bryan agia como se ela fosse invisível! Quinn era incomparavelmente mais carinhoso e compreensivo! Talvez tivesse escolhido o irmão errado... Será que ainda ia a tempo de recuperar o seu afeto? Freya opinava que sim. A princesa do império devia ser uma franga enfezada e enfadonha, cheia de melindres, incapaz de competir com a beleza e a simpatia de Svana!

Por que tinha o amor de ser tão complicado? Por vezes, pairava diante do nosso nariz, mas só nos apercebíamos da sua existência quando o perdíamos. Noutras, estava tão longe do nosso alcance que era necessário consumir lágrimas, suor e sangue na sua conquista. E, em algumas circunstâncias, não havia lágrimas, suor e sangue suficientes... Não! Este não era um bom pensamento! Concentrei-me no treino de Thora... A minha irmã já estava a vencer Bryan! Quem ainda se atrevia a duvidar que ela nascera para ser guerreira, ou era tolo, ou cego!

A Enseada da Fortaleza transformara-se num dos portos mais prósperos da Grande Ilha. Sofrera um desenvolvimento tão súbito e extraordinário, que, segundo a minha mãe, só o forte onde o tio Stefan morava se mantinha inalterado. Não foi fácil imaginar o passado da terra — uma vasta planície verdejante, salpicada por modestas casas de madeira pertencentes a pacatos pescadores — por entre o burburinho das carroças, a confusão da multidão que se atropelava na sua marcha apressada, e os gritos das vendedeiras, que apregoavam os seus produtos.

O tio Stefan veio receber-nos e fez-se acompanhar por uma escolta. Muitos comerciantes tentaram alcançar-nos e impingir-nos adornos, tecidos e caixas contendo as coisas mais estranhas, mas foram afastados pelos guardas. Uma jovem andrajosa, ostentando uma gravidez avançada, estendia a mão e suplicava tão aflitivamente que me comoveu. Antes que o guarda pudesse detê-la, a minha mãe retirou dos cabelos o gancho que lhe prendia os caracóis negros e entregou-lho. A jovem prostrou-se de joelhos, chorando agradecida. A jóia fora um presente do jarl e era bastante valiosa. Se ela a vendesse a um comerciante honesto, compraria mantimentos para se suster durante várias semanas.

— Não devias ter feito isso, Cat! — advertiu o tio Stefan com brandura. — A palavra vai espalhar-se e logo terás todos os mendigos da cidade a bater-te à porta.

— Se as pessoas não tivessem fome, não mendigariam — volveu a irmã ríspida. — Tu és o senhor desta gente, Stefan! Como é que podes permitir que uma moça pouco mais velha do que a Melody viva na rua, com um filho no ventre, esmolando um naco de pão?

O tio Stefan suspirou, replicando num tom desalentado:

— Olha à tua volta, Cat! Os tempos mudaram! Este desenvolvimento notável teve o seu preço! Muitas pessoas acorreram à Enseada da Fortaleza, vindas dos cantos mais remotos do Império, buscando uma nova vida. De início tudo correu bem, pois havia trabalho suficiente para todos. Porém, com o passar do tempo, as oportunidades foram escasseando. A guerra também não está a ajudar... O comércio com o Norte está praticamente parado e as famílias guardam a pouca prata que possuem, antevendo o pior.

A minha mãe mordeu o lábio e não respondeu. Talvez pensasse que, se o senhor da terra fosse o tio Edwin, não existiriam pedintes nas ruas. Contudo, essa interpretação também não era pacífica! Quem conhecia Edwin McGraw sabia que, aquele que se recusasse a obedecer-lhe, e dedicasse o seu tempo a mandriar, não teria um final feliz.

— Eu não gostava de viver aqui! — murmurou Freya, acariciando a sua pedra mágica. — Esta confusão aflige-me!

— E onde queres tu viver, mana? — Provoquei carinhosamente, tentando distraí-la. — Numa ilha misteriosa, na harmonia de uma aldeia druida... nos braços de um aprendiz de sábio?

Freya corou violentamente e mudou de assunto:

— Corno será que está a Estrid? A morte da tia Geirny deve tê-la deixado destroçada!

Destroçada? A desalmada Estrid provavelmente sacudira os ombros ao tomar conhecimento da tragédia. De quem teria herdado tão colossal egoísmo e ambição? Do nosso avô Garrick McGraw, afirmara certa vez a minha mãe, num amargo desabafo.

Deixamos os caminhos poeirentos do porto e começamos a subir a estrada de pedra que conduzia ao forte. O estandarte dos McGraw ondulava orgulhosamente ao sabor do vento, a par da bandeira do Império. Os guerreiros que guardavam o sólido portão de madeira afastaram as armas e saudaram o seu senhor e os convidados. Mesmo da entrada, pude constatar que não éramos as únicas visitas. Por todo o lado, soldados vestidos com as cores do rei do Império misturavam-se com os nossos homens. Foi como entrar em outro mundo.

Melody estava simplesmente radiosa. A proximidade da sua união com Aled fazia-a levitar. A tia Enya já partira, rumo à Casa Grande da Floresta Sagrada, a fim de ultimar os pormenores para o casamento, que seria celebrado por um padre cristão, a pedido da noiva.

Num piscar de olhos, apreendi que a nova religião se entranhara nas vidas daqueles que me rodeavam. Até Quinn ostentava urna cruz sobre o peito! A razão da sua recente conversão era óbvia. Para onde quer que ele fosse, Isobelle, a filha mais nova do rei do Império, seguia-o como uma sombra.

Nada impressionada, até bastante crispada, a minha mãe foi apresentada à comitiva que o rei do Império enviara para representá-lo no casamento do primogênito dos herdeiros da família McGraw. A encabeçá-la estava o seu sucessor em pessoa, o príncipe John, que cumprimentou a esposa do jarl da Ilha dos Sonhos com um entusiasmo fulgurante:

— Finalmente tenho oportunidade de conhecê-la, senhora! As descrições que já ouvi da sua incomparável beleza não lhe fazem justiça!

— A lisonja é escusada, jovem! — replicou a minha mãe, com uma severidade depreciativa.

— De todo! — contrapôs ele, sorrindo zombeteiro. — A história não mente! A sua formosura foi responsável pelas recentes mudanças que a nossa sociedade sofreu. Se os seus magníficos olhos verdes não tivessem seduzido um chefe barba... viquingue, hoje seríamos parentes!

Felizmente, Steinarr e o meu pai tinham-se afastado. Ainda assim, temi que a minha mãe perdesse a cabeça e esbofeteasse o futuro rei do Império. Ele estava a desafiá-la com um descaramento grosseiro! Tal tornou-se inquestionável, quando insistiu:

— Certamente reconhecerá no meu rosto os traços do meu distinto e saudoso primo Oliver, Conde de Goldheart, de quem se encontrava noiva antes de ser brutalmente arrancada do seio da sua família. Garantem-me que a nossa semelhança é impressionante!

— Deveras impressionante! — quase cuspiu a senhora da Ilha dos Sonhos. — No entanto, é lamentável que essa história tenha chegado ao seu conhecimento de forma distorcida e dolosa.

— Se assim é — revidou ele, sem hesitação —, guardo a esperança de que, nos próximos dias, possa dedicar algum do seu precioso tempo a clarificar as minhas enleadas idéias.

Providencialmente, o meu pai regressou antes que a esposa deixasse escapar o agravo que lhe martelava os dentes. De imediato, o garboso príncipe se apressou a buscar outra companhia.

Mais tarde, quando nos reunimos no salão, após uma breve passagem pelos quartos para nos refrescarmos, Isobelle dirigiu-se respeitosamente à minha mãe, com uma firmeza admirável:

— Suplico-lhe que releve a indelicadeza do meu irmão, Senhora Catelyn! Ele é um imbecil que se julga dono da razão. Deus permita que o meu pai viva por muitos e bons anos, pois, quando fechar os olhos, John arruinará os seus feitos. — Fez uma pausa para respirar fundo, colocando as mãos sobre o peito. — Eu sou uma defensora da paz... como a senhora! Resta-me esperar que a maturidade ilumine o espírito do meu irmão, para o bem do nosso povo.

A princesa era da idade de Freya, mas mais baixa e franzina. O seu aspecto infantil tornava o seu discurso impressionante. O rosto simples denunciava uma inteligência notável e os seus modos suaves eram de uma simplicidade refrescante. Contrariando Svana, tive de admitir que era impossível não simpatizar com ela.

— Estou a ver que maturidade é o que não te falta, Isobelle! — declarou a minha mãe, sorrindo rendida.

A jovem correspondeu com um gesto de agradecimento.

— Ser a última filha, de entre uma descendência numerosa, permitiu-me crescer em relativa liberdade, senhora. Observei e aprendi mais sobre o mundo que me rodeia do que as minhas irmãs, que cedo foram destinadas a fazer bons casamentos para servir a coroa.

— E que destino é que o teu pai te reservou, Isobelle? — indagou a minha mãe, curiosa.

A moça não disfarçou um sorriso, respondendo candidamente:

— O rei acha que sou demasiado inteligente para me casar. Na sua opinião, nenhum nobre no seu perfeito juízo aceitará desposar uma mulher que interfira constantemente nos seus assuntos. E também não me é permitida a união com um plebeu! Logo, o meu destino mais provável era um convento...

— Era? — atalhou a minha mãe, divertida ante o rubor da princesa. — O rei mudou de idéias?

A jovem hesitou, antes de balbuciar com o olhar preso no chão:

— Talvez exista um nobre... que não se importe de escutar as minhas opiniões, e não se aborreça com as minhas perguntas.

Nós sabíamos a quem ela se referia! Svana estava corada de fúria e fixou a minha mãe com ressentimento, ao ouvi-la declarar:

— És uma boa menina, Isobelle, e serás uma excelente mulher, se mantiveres o espírito aberto e não te deixares contagiar pelo ódio que empesta o mundo. Não guardarei rancor ao teu povo, por causa da insolência do teu irmão, se é isso que temes. Vem, senta-te aqui conosco e fala-nos um pouco mais acerca de ti e da tua terra... Já deves saber que não morro de amores pelo Império! Mas, depois de te escutar, talvez mude de idéias.

Estrid só se dignou a aparecer a meio da tarde, trajando um vestido cor-de-rosa garrido, enfeitado com um enorme laço branco. Sobre a pele alva do seu peito, revelada pelo decote generoso, cintilava um colar de pedras brilhantes, que arrancou exclamações de admiração aos presentes e a curiosidade profissional da tia Ingrior. Se derramara uma lágrima pela mãe, esta secara há muito. Espalhafatosa como sempre, gargalhava alto quando o príncipe John gracejava, e tudo fazia para desfrutar da sua atenção. Pobre pateta! A sua futilidade raiava o ridículo!

Darrin mal dirigiu a palavra à irmã. Profundamente abalado pela morte da mãe, ressentia-se da insensibilidade da sua gêmea e preferia manter-se ao nosso lado, escutando como o rei do Império requisitara os serviços de Quinn, ao verificar os seus conhecimentos sobre as estrelas, as marés, o crescimento das plantas e o desenvolvimento dos animais. Orgulhoso, o tio Stefan declarou que o soberano já mal dava um passo sem recolher o parecer do filho, e que, em breve, ele tornar-se-ia um dos mais prestigiados conselheiros reais. O príncipe John não o contradisse.

A cumplicidade de Quinn e Isobelle tornou-se evidente durante o jantar. O receio de que a princesa se estivesse a aproveitar do seu entusiasmo para escapar à clausura do convento dissipou-se, ao ver o carinho com que lhe procurava a mão e resplandecia debaixo do seu olhar. As limitações físicas de Quinn, ainda bastante perceptíveis, não a incomodavam... Porém, o sobrolho franzido do príncipe John não era de bom agouro.

Resolvemos deitar-nos cedo, pois, no dia seguinte, teríamos de empreender a dura viagem até à Casa Grande, atravessando os sinuosos caminhos da Floresta Sagrada. Eu estava ansiosa por rever Aled e verificar as alterações a que ele sujeitara a casa dos nossos avós. Apesar de não a visitar há muito, ainda guardava a recordação dos seus belíssimos jardins, onde, em criança, dançara por entre as flores. Depois, à medida que as minhas habilidades se haviam desenvolvido, a quinta deixara de ser apelativa. Cada recanto falava-me de sangue, traição e morte. Nunca me atrevera a afirmar que a propriedade do avô McGraw estava amaldiçoada, mas sabia que a minha mãe possuía essa convicção.

A Floresta Sagrada abria-se diante de nós; uma cortina de mistérios tenebrosos e perigos ilimitados. A viagem alongava-se devido ao andamento das carroças, que transportavam as senhoras e as donzelas, assim como os seus haveres e as criadas.

O tio Stefan seguia adiante com o tio Edwin, o meu pai e o rei Steinarr. Logo atrás, Thora e Bryan destacavam-se dos outros guerreiros, devido à energia mística que os rodeava. A minha mãe, que insistira em montar a cavalo, parecia cada vez mais apreensiva, ante a proximidade do casamento dos sobrinhos, como se a aura da Grande Ilha tivesse reavivado os seus temores. Ao seu lado, o tio Berchan mostrava-se tenso, e a presença do herdeiro do Império e da sua guarda mantinha-o em alerta. Na carroça onde eu seguia, Quinn e Isobelle conversavam animadamente, pouco incomodados pelos pequenos atrasos que desesperavam Melody. A sua proximidade exasperava Svana, que não parava de resmungar. Freya desistiu de tentar alegrá-la e aninhou-se contra o meu peito. Eu só desejava chegar ao acampamento onde passaríamos a noite, e escapar à jactância do príncipe John, que forçava o seu garanhão a seguir ao nosso lado, alimentando as fantasias enfadonhas de Estrid.

A luz esmorecia, ao alcançarmos o local onde o tio Quinn fora assassinado pelos servos de Gwendalin. O Conde de Goldheart não participara nessa perfídia, por isso os seus parentes não se sentiram consternados quando os McGraw se detiveram para homenagear o irmão. Inclusive, o príncipe John desmontou e prestou as condolências à família, com aparente sinceridade.

Era noite fechada quando chegamos ao acampamento que o tio Stefan mandara preparar antecipadamente. Ao longo dos anos, a solitária cabana já servira de abrigo a caçadores, soldados e viajantes. Tinha muitas histórias para contar... nem todas boas! As donzelas suspiraram de alívio, rendidas ao cansaço. No churrasco rodopiava a carcaça de um magnífico veado. Depois de nos instalarmos, a sua carne foi cortada e distribuída. Homens e mulheres separaram-se em grupos. Do nosso lado, improvisaram-se jogos e cantorias. Eu não estava com vontade de brincar e, assim que pude, recolhi-me na cabana. No caminho, o meu olhar cruzou-se com o de John e ele esboçou um sorriso escarninho, forçando uma vênia.

Deitei-me junto dos pequeninos, que já ressonavam por entre as mantas espalhadas pelo chão, e tapei a cabeça como se isso me protegesse do barulho da rua. Quase gritei sobressaltada, quando uma mão me sacudiu. Os meus olhos arregalaram-se de espanto ao deparar com Estrid.

— Preciso da tua ajuda, Edwina! — apelou. — O meu futuro depende de ti!

Franzi o sobrolho, alarmada. Em que sarilhos é que esta irresponsável se metera?

— Decerto já reparaste no meu interesse pelo príncipe John — continuou prontamente. — Ele ainda não escolheu uma noiva... E eu sinto que gosta de mim! Quero que lhe lances um feitiço, para que seja eu a sua eleita!

Fiquei sem palavras. Estrid era completamente maluca! Como era possível que ponderasse passar o resto da vida ao lado daquele homem intragável? De novo, o apelo da riqueza sobrepunha-se à mais básica razão! Reuni o que restava da minha paciência e repliquei:

— Se o príncipe gosta de ti, não necessitas de sortilégios para conquistá-lo!

— Não posso arriscar-me! — revidou, com uma audácia de pasmar. — Tenho de ser eu a cuidar do meu futuro, já que o meu pai é um homem que não se interessa pelo seu legado, nem se importa com o destino dos filhos.

— Não fales assim! — protestei, indignada.

— Estou a dizer alguma mentira? Se o meu pai fosse um homem a sério, jamais teria permitido que o tio Stefan usurpasse o seu lugar na administração da Grande Ilha. Agora, Lorde Edwin seria o favorito do rei e eu não teria de mendigar o que me pertence por direito! Se me descuido, ainda vejo a idiota da Gwenneth tornar-se rainha do Império.

Teria Estrid sido trocada no berço? Esta criatura não podia ser filha de Edwin e Geirny... irmã gêmea de Darrin! Se eu continuasse a ouvir os seus vitupérios, acabaria por lhe arrancar a língua! O melhor era despachá-la, com a convicção de que obtivera o que pretendia.

— Vou ver o que posso fazer — respondi, mordendo a fúria.

— Agora, deixa-me dormir!

— Não te irás arrepender, Edwina! — exclamou ela com ardor.

— Quando me tornar rainha, hei de recompensar-te para além das tuas expectativas!

Saiu rapidamente, em busca do seu príncipe. Eu voltei a deitar-me, tão irritada que nem conseguia fechar os olhos. Bem que Estrid merecia um marido como John, para aprender o real valor da vida! Se lhe desse o que ela almejava, estaria a fazer um favor à humanidade, pois juntaria dois entes perversos, e evitaria a desgraça dos supostos inocentes que, eventualmente, eles acabariam por desposar! Recordei a tia Geirny e senti-me culpada pelos meus pensamentos. Que Estrid acreditasse que contava com o meu apoio, se isso bastava para que não me importunasse! Todavia, não contribuiria para a sua infelicidade!

Rever Aled emocionou-me. O contentamento do meu primo era contagioso. Fez questão de guiar a família na visita à Casa Grande, salientando os pormenores de restauro e decoração, que executara com um preceito apaixonado. Tudo fora cuidado ao mínimo detalhe, e os mais velhos elogiaram unanimemente o seu esforço.

Mais tarde, passeei com a minha mãe pelo jardim e tentei contrariar os seus pressentimentos nefastos. O que podia ameaçar a felicidade de Aled e Melody? A Grande Ilha vivia em paz e desfrutava da proteção do Império e do povo viquingue. O meu primo não era um guerreiro, por isso a sua vida não corria perigo. Melody era uma jovem forte, com saúde para criar uma dezena de filhos. Além disso, estaríamos atentas e, ao menor sinal de perigo, acudiríamos em seu auxílio. A minha mãe admitiu que eu tinha razão. No entanto, apesar de tentar disfarçar, era evidente que a inquietação não a abandonava.

Ao cair da noite dirigi-me ao cemitério da família. Após certificar-me de que me encontrava sozinha, revelei a Lágrima do Sol e libertei a sua magia. A reconfortante certeza de que os espíritos descansavam em paz foi contrariada por uma estranha sensação de vazio, que me apertou o coração. Alguma coisa afetara o equilíbrio deste lugar sagrado! O que poderia ter sido?

Ajoelhei-me e enterrei os dedos na terra. Num piscar de olhos, o meu sangue aqueceu e a energia fluiu-me dos dedos, espalhando-se em todas as direções, perscrutando a noite em busca de respostas. Quando regressou, trazia uma miríade de informações... mas nenhuma que se pudesse relacionar com o desconforto que me perturbara. Talvez eu estivesse enganada! Talvez... Ou a verdade fora habilmente dissimulada!

O tempo passou-se a correr, e a manhã que antecedia a tão esperada união nasceu resplandecente de Sol. Tanto a casa como o jardim se enchiam de risos, e todas as mãos eram poucas para decorar o altar com as mais belas flores da Primavera, ou ajudar na cozinha, onde a azáfama se confundia com loucura. Aled e Melody namoravam-se à distância, sonhando com o dia seguinte. As senhoras da família acompanhavam cada passo da noiva, para que nada lhe faltasse e os pequenos pormenores ficassem a seu gosto.

A tia Enya recebia os convidados que não paravam de chegar. Os lordes e as esposas demonstravam interesse em conhecer-me, e solicitavam constantemente a minha atenção. Ser filha do jarl Throst, e a anunciada rainha do povo viquingue, atraía a curiosidade e revelava-se desastroso para o meu equilíbrio espiritual. Ouvir os pequenos grupos que se espalhavam pela casa a pairar acerca da vida alheia, e a opinar sobre tudo o que não lhes dizia respeito, forçou-me a procurar a quietude do bosque, na tentativa de recuperar a tranqüilidade.

O ribeiro que alimentava o Lago Encantado proporcionava o ambiente ideal para meditar. Guardando com orgulho a margem sinuosa, a Pedra dos Sábios continuava a ser um altar mágico, apesar de já ter sido conspurcada pelos servos do mal. Sentei-me sobre ela, com as pernas cruzadas e os braços estendidos aos raios de Sol. As recordações deste lugar caíam sobre mim como gotas de orvalho. Fechava os olhos e via claramente Edwina McGraw e os seus filhos, nadando com satisfação e alegrando a floresta com as suas gargalhadas. Como tinham sido felizes, antes da sombra funesta dos mestres da Arte Obscura lhes ter destroçado as vidas!

Uma oscilação brusca na harmonia que me rodeava provocou-me um calafrio. Abri os olhos e saltei para o chão, a tempo de surpreender o intruso que surgia de entre as árvores, silencioso como a morte. O príncipe John sorriu levemente e aproximou-se sem delonga.

— Menina Edwina... Que alegria encontrá-la aqui!

— Lamento decepcioná-lo — retorqui desagradada —, mas já estou de partida!

O seu sorriso alargou-se, ao desdenhar:

— Vejo que o seu espírito nada fica a dever ao da senhora sua mãe!

— A sua inteligência é de louvar, alteza! — volvi no mesmo tom.

— Agradeço o elogio! — ironizou, deliciado com o duelo de palavras. — Infelizmente, não posso retribuir a gentileza, pois não a conheço o suficiente para alvitrar!

Estacou diante de mim, tão perto que a sua respiração me queimou o rosto. Seria prudente recuar, mas deixá-lo-ia convicto de que a proximidade me intimidava. Além disso, a Pedra dos Sábios não me permitiria afastar o suficiente para lhe escapar, por isso mantive-me altiva, tentando provar-lhe que a sua soberba me era indiferente, apesar da vontade veemente de empurrá-lo.

— Antes assim! — respondi com uma mordacidade pungente. — A minha companhia depressa o enfadaria! Agora, por favor, não se incomode por minha causa! Continue o seu passeio...

— Eu não estava a passear.

— Ai, não?

— Devo confessar-lhe que este encontro não foi acidental. Eu segui-a até aqui e diverti-me a observá-la.

O homem era louco! Pois, se queria guerra, iria tê-la! Enfrentei os olhos cinzentos, cortantes como lâminas, sem réstia de paciência:

— Os seus gracejos deixam muito a desejar! Todavia, ele continuou, ignorando-me:

— Um passarinho contou-me que a Edwina desfruta de certas e determinadas... Como dizê-lo...? Habilidades! Eu esperava vê-la em ação! É verdade que possui uma genuína lágrima de dragão e que é dela que extrai o poder para as suas... magias?

Maldita Estrid! Como se atrevera a denunciar um segredo de família a um desconhecido? Principalmente, quando este era o herdeiro de um Império que se orgulhava de queimar na praça pública qualquer pessoa que se suspeitasse fruir do mais ínfimo conhecimento da Arte? Mas John enganava-se, se julgava que ia desconcertar-me!

— Não sei do que está a falar! — volvi. — Quem lhe disse isso deve ter as idéias perturbadas!

— Espero que sim! — revidou ele, sem se desviar um palmo. — Seria uma pena ver uma jovem tão bonita a arder numa fogueira!

— Está a ameaçar-me?

— De maneira nenhuma! Eu só ameaço as bruxas... E, visto que já esclarecemos que a Edwina não é uma dessas criaturas malditas, que transformam os homens de Deus em seres dementes, nada tem a recear! Além disso, seria incorreto afrontar a filha de um aliado! Para quê provocar uma guerra com os bárbaros, se podemos conquistá-los sem gastar recursos, confiando unicamente na palavra do Senhor?

Isto era o cúmulo! Este homem afrontava-me, escarnecia abertamente do acordo de paz firmado pelos nossos soberanos e desconsiderava o meu povo!

— Eu não sou obrigada a escutar os seus despautérios! Saia imediatamente da minha frente, ou farei com que se arrependa...

— O arrependimento é um conceito que desconheço — atalhou, minaz. — Infelizmente, estou condicionado pelo dever. Se o meu pai não tivesse assinado aquele maldito Tratado, esta seria a caçada mais estimulante da minha vida... — Fez tenção de acariciar um dos cachos do meu cabelo. — Talvez, um dia, tenhamos oportunidade de medir forças, Guardiã da Lágrima do Sol!

— Não se atreva a tocar-me! — Enfrentei-o com um ímpeto que o deteve. O seu sorriso rasgou-se ao provocar, sem no entanto forçar o contacto:

— Tamanha agressividade não é digna de uma senhora! Todavia, o que mais se pode esperar de uma feiticeira de sangue bárbaro?

A sua irritante proximidade revelava-se, afinal, uma vantagem! Só tive de erguer um joelho com toda a força, para me certificar de que existia vida entre as suas pernas. A técnica de Thora era infalível e revelava-se preciosíssima, neste momento em que apelar à Arte estava fora de questão. O herdeiro do Império perdeu o fôlego e a pose, totalmente desprevenido. Os seus olhos retorceram-se para o interior do nariz e as suas faces tornaram-se escarlates. Empurrei-o e ele caiu como um espantalho derrubado pelo vento. Não esperei para contabilizar os seus gemidos e pragas. Corri de regresso a casa, atenta a um ataque traiçoeiro, socorrendo-me da magia para ocultar os trilhos por onde me movia. O energúmeno ficou para trás, remoendo a humilhação, mas a guerra fora declarada!

Tinha de contar este incidente à minha mãe, sem demora, para nossa proteção. Ela ajudar-me-ia a decidir se devia cortar Estrid às postas... ou simplesmente torcer-lhe o pescoço! A minha prima não se declarara apenas fútil e estulta, mas também indigna de confiança! Restava-me questionar se John era realmente perigoso, ou apenas um grosseiro gabarola. De qualquer forma, não pretendia quedar-me perto dele o suficiente para me arriscar a descobrir a verdade.

No jantar dessa noite falou-se de estratégias militares e de guerra; temas pouco adequados à ocasião festiva. Incomodadas, as senhoras não se coibiram de protestar. A exceção foi Thora que, satisfeita, defendia as suas opiniões com a segurança de um guerreiro experiente. O rei Steinarr incentivava-a, enquanto o jarl sorria envaidecido. Até o príncipe John parecia impressionado com o seu discernimento.

Ensombrada pela inteligência da prima, Estrid tentou menosprezá-la, opinando que Thora se parecia cada vez mais com um homem, devido aos músculos que lhe modelavam o corpo. Porém, ninguém prestou atenção à sua maledicência e tudo o que conseguiu foi ser repreendida pelo pai.

Após tomar conhecimento do que se passara junto ao ribeiro, a minha mãe mantinha um olhar atento sobre John. As suas ameaças haviam sido claras e deviam ser consideradas. Afinal, o príncipe era o herdeiro de um vasto Império, detentor de uma influência impressionante e provido de um exército poderoso! Apesar disso, Catelyn decidiu não alertar o jarl, pelo menos por enquanto. Talvez, como Isobelle dissera, a maturidade concedesse a John maior ponderação e um juízo mais acertado. De momento, era escusado incentivar inimizades, já que todas as decisões do Império eram tomadas pelo rei. O seu primogênito pouco mais fazia do que cacarejar alto dentro da capoeira.

Após o jantar organizaram-se várias brincadeiras, nas quais todos podíamos participar. Apaixonada pelos jogos de tabuleiro, Thora conseguiu derrotar adversários mais velhos e, alegadamente, mais habilidosos. Até John, que parecia levar o jogo a sério, se rendeu à destreza da adversária e, ao contrário do que seria esperado, não se irritou quando, ao fim de muito tempo e desgaste mental, foi forçado a admitir a derrota. Por fim, quando já ninguém se atrevia a desafiá-la, Bryan sentou-se diante da prima e acabou por vencê-la, com relativa facilidade.

Enquanto Bryan festejava a vitória, Svana deixou-nos perplexos, ao saltar intempestivamente para o seu pescoço, beijando-o nos lábios.

Estonteado, ele não soube como reagir... E viu-se assimilado pelo entusiasmo da moça. Felizmente, os pais de ambos acharam graça ao arrebatamento de Svana e não a repreenderam. Porém, eu tinha a certeza de que ela nada ganhara ao forçar esta situação! Bryan foi delicado, recordando-se de que estava diante de uma jovem que, para além de lhe merecer todo o respeito, era irmã de Eric, mas passou o resto da noite a evitar a sua companhia. Quanto a Quinn, que os observara com uma expressão taciturna, não teve tempo para sentir ciúmes, pois Isobelle apressou-se a absorver a sua atenção.

Já era tarde quando o Padre Esteban fez a sua aparição. Ao primeiro olhar apercebi-me de que o homem que celebraria o casamento no dia seguinte era diferente de todos aqueles que eu já vira defender a nova fé. Arrepiava-me só de partilhar a mesma sala com aquela figura alta e esguia como uma tábua, de olhar negro e perfurante, rosto cadavérico e crânio rapado. O tio Stefan confidenciou-nos que fora ele quem educara o príncipe do Império, e que a sua anuência em casar Aled e Melody devia ser considerada uma honra, pois tratava-se do mais influente conselheiro do rei, a quem se atribuía a concretização de assombrosos milagres, em nome do Senhor.

Milagres... Pois sim! Uma troca de olhares com Catelyn da Ilha dos Sonhos foi suficiente para confirmar as minhas suspeitas. Esteban podia vestir-se como o mais distinto padre cristão e carregar uma cruz ao pescoço, mas no seu corpo corria o sangue de um feiticeiro... talvez tão ou mais poderoso do que «O Que Tudo Vê». De repente, a caça às bruxas liderada pelo Império assumia o desígnio de uma obsessiva supressão de rivalidade.

Melody caminhou devagar sobre a passadeira vermelha, que saía da Casa Grande e atravessava o jardim, até ao altar feito de flores brancas e amarelas, que perfumavam o ar com um aroma exótico. O seu rosto corado cintilava à luz forte da manhã, enfeitado pelos cabelos cor de mel, que lhe cobriam os ombros nus com uma simplicidade encantadora. No topo da cabeça usava uma tiara de pedras brilhantes, igual ao colar que lhe ornamentava o peito; jóias de valor inestimável, que arrancaram suspiros de deslumbramento às convidadas. O vestido de renda branca imaculada concedia ao seu corpo de menina-mulher um aspecto celestial. Melody não parecia uma deusa... parecia um anjo.

Os olhos do tio Stefan cintilavam de alegria, enquanto caminhava de braço dado com a filha. Ele próprio poderia ser confundido com um rei, tal a sua distinção. As suas vestes suntuosas exibiam orgulhosamente o verde e o vermelho, as cores da família McGraw, e, no manto que lhe adornava as costas, foram bordados com esmero os símbolos do clã.

Atrás deles, os meus primos mais novos empenhavam-se na árdua tarefa de não pisar o vestido da noiva. Estrid e Svana iam lado a lado; a vaidade de uma contrastando com a simplicidade da outra. Diante do príncipe John, Estrid empertigou-se, de tal forma que os seios quase lhe saltaram por cima do decote. Debalde, pois os olhos do herdeiro do Império estavam presos nas duas jovens que a seguiam... nas minhas irmãs... em Thora!

Contrastando com a sua gêmea risonha, de porte delicado e andar etéreo, Thora parecia uma condenada a caminho da forca. Durante as provas dos vestidos destinados às donzelas que acompanhariam a noiva, a Loba Prateada encarara o seu como um inimigo mortal. Há pouco, não fora fácil convencê-la a enfiar-se dentro do corpete bordado a amarelo, e da pesada saia rodada, e fora ainda mais difícil conseguir que saísse de casa e se revelasse ao mundo. A cicatriz no seu pescoço, que eu sabia ser a marca de posse do rei-lobo, horrorizara muitas senhoras. Por essa razão, além da noiva, Thora era a única a trazer o cabelo solto sobre os ombros, em vez de enrolado no topo da cabeça. As tatuagens mágicas que nos enfeitavam os pulsos haviam sido habilmente escondidas debaixo de adornos, para que nenhum defensor da nova fé se sentisse afrontado. Este casamento era um caldeirão que misturava culturas e crenças, e que, a todo o momento, podia ferver e entornar. A minha mãe achara melhor não desafiar a sorte.

Eu encerrava o cortejo, quase tão desconfortável como Thora. O vestido não me incomodava, mas os olhares, os sussurros e os dedos estendidos, provocavam-me comichão na pele. Todos esperavam que o meu casamento fosse o próximo a realizar-se. A minha idade e o fato de Ivarr não estar presente, suscitavam comentários maldosos, que talvez fossem evitados se as linguareiras soubessem que eu podia escutá-las. O melhor era ignorá-las... ignorar tudo, até que a cerimônia terminasse.

No altar, o meu primo Aled aguardava a noiva, trêmulo e ofegante. Os seus dedos estrangulavam fervorosamente a pedra verde que lhe cintilava ao pescoço. Cambaleou de emoção quando o tio Stefan lhe entregou a mão de Melody. Beijou-lhe castamente os dedos, suplantado pelo encanto, e ela correspondeu com um sorriso repleto de maravilhosas esperanças. O amor expresso no seu olhar tocou o coração dos convivas e originou um silêncio comovido.

O Padre Esteban abençoou os presentes e deu início à cerimônia. As suas palavras eram de tal forma envolventes e ardorosas, que, se eu não conhecesse a história antiga, a força do meu sangue e do seu, dificilmente resistiria ao apelo de tão sólida convicção. Porém, a experiência levava-me a questionar o quanto desta sugestão era sinceridade, pureza e fé... e o quanto era magia, embuste, a sedução dos espíritos mais fracos para uma causa privada, que pouco ou nada tinha a ver com o significado da cruz que lhe ornamentava as vestes.

Os noivos fizeram os seus votos debaixo de um límpido céu azul, à sombra de um altar florido e embalados pelo canto suave dos pássaros, que os saudavam, voando ao seu redor. Tudo estava perfeito... Tão perfeito... À exceção do olhar inquieto da minha mãe, da crispação das suas mãos e da tensão do seu corpo, amparado pelos braços do meu pai, que tentava serenar a sua agitação.

Já como marido e mulher, Aled e Melody receberam as felicitações dos convidados e conduziram-nos às mesas do banquete. A uma ordem do tio Stefan, os músicos começaram a tocar melodias populares no Império, em honra de John e da sua comitiva. Surpreendi-me quando o Padre Esteban se despediu dos anfitriões e do seu pupilo, partindo com uma pequena escolta rumo à Enseada da Fortaleza, onde tomaria o barco de regresso ao Império. O Senhor chamava-o para executar outras importantes missões em Seu nome.

Durante a festa, John mostrou-se cortês, apesar de se recusar a participar no baile. O meu olhar atento apanhou-o a aproximar-se disfarçadamente de Thora, ainda que sem tentar abordá-la. As minhas irmãs não paravam de dançar, constantemente solicitadas pelos rapazes. Thora já perdera a inibição, e o seu vestido acabara por se torna um aliado. Pasmei ao constatar o quanto se divertia a deixar os jovens pelo beicinho, para depois os abandonar. Se Eric estivesse presente, ficaria possesso! A sua beleza singular e a sua personalidade ardente tornavam-na a donzela mais requisitada, o que deixava Estrid para lá de furiosa.

Não resisti a aproximar-me de John. Detive-me atrás dele e rugi ao seu ouvido:

— Escolha outra vítima! A minha irmã Thora é comprometida e, mesmo que não fosse, eu jamais permitiria que caísse nas suas garras!

O príncipe voltou-se lentamente e encarou-me com o olhar em chamas. O seu tom tresandava a rancor quando contrapôs:

— Na minha cama só se deitam senhoras... Os meus interesses não contemplam selvagens! Esse é o gosto de Ivarr do povo viquingue! Segundo ouço dizer, é ao seu noivo que a menina Edwina deve recordar que a sua irmã é comprometida!

Perdi a voz. Tamanho aleive só podia ter origem na boca venenosa de Estrid! Antes que eu recuperasse do choque, John continuou:

— Ou talvez isso não a incomode! A devassidão dos vossos costumes bárbaros permite-vos compartilhar a mesma cama, não é verdade?

Eu queria esbofeteá-lo. Dilacerar aquele rosto, triturar aquele sorriso, reduzir a execrável criatura a pó... Engoli em seco e repliquei, rouca de raiva:

— As suas opiniões são-me indiferentes! Eu sei o que vejo e, desde o primeiro instante, o senhor não tirou os olhos da minha irmã...

— Estou a imaginá-la na praça principal do Império — replicou o miserável, num sussurro íntimo, baixando o rosto ao encontro do meu. — A Thora está atada a uma fogueira; as línguas de fogo lambem-lhe os seios alvos... E tu também lá estás, só que tudo o que resta do teu corpo voluptuoso são cinzas...

— O senhor é um monstro! — cuspi, recuando bruscamente.

— Eu devia...

— Gritar pelo papai? — Provocou-me com um sorriso ferino.

— Contar-lhe o que eu disse e transformar o casamento dos teus primos num campo de batalha? Provocar uma guerra entre o poderoso Império e a corja bárbara? Não terás coragem para tanto! Mas não te preocupes, Guardiã da Lágrima do Sol! O nosso momento há de chegar!

Nunca contei aos meus pais a totalidade do meu confronto com o herdeiro do Império. Se o fizesse, a guerra seria inevitável e não traria o menor benefício para o meu povo. A Throst e a Catelyn bastava saber que John era um homem perturbado e perigoso, de quem se podia esperar as piores atrocidades. Se uma tragédia o colocasse à frente dos destinos do seu povo e contra nós, então tomaria uma providência. No fim, talvez não fosse necessário... Talvez, numa das suas tresloucadas aventuras, alguém fizesse um favor à humanidade e lhe colocasse sete palmos de terra sobre os ossos. Era esperar para ver! Como ele próprio dissera, um dia o nosso momento haveria de chegar... se Edwin não me matasse primeiro!

O príncipe John partiu na manhã seguinte ao casamento, logo após o pequeno-almoço, acompanhado pela sua comitiva, Isobelle, Quinn... e Estrid. Apesar dos dissabores que sofrera nos últimos dias, a minha atoleimada prima não se dera por vencida e pedira a Isobelle que a levasse consigo para a corte. O tio Edwin começara por se opor com firmeza. O entusiasmo da filha pelo herdeiro do Império não lhe passara despercebido, e achava conveniente evitar-lhe mais desilusões. Então, Estrid berrara para quem a quisera ouvir que o pai a odiava e desejava desgraçá-la. Furioso e contundido, o tio Edwin replicara-lhe que ela colheria no futuro o dobro daquilo que semeava no presente... e deixara-a seguir o rumo que tanto almejava. Se alguém se inquietou com o destino de Estrid, não se manifestou.

Dois dias depois, foi a nossa vez de dizermos adeus. A separação seria curta porque o Festival de Verão voltaria a reunir a família na Ilha dos Sonhos. Viajamos até à Enseada da Fortaleza quase em silêncio, cada um remoendo os seus próprios pensamentos. O rei Steinarr estava ansioso por regressar ao País dos Viquingues, e verificar se os ímpetos de Arnorr e dos seus mercenários haviam sido subjugados. Thora e Bryan partilhavam da sua apreensão, desejosos de reencontrar o seu senhor. O tio Edwin sofria com a crueldade de Estrid. A minha mãe continuava a ser fustigada por maus pressentimentos, que não tinha como justificar. Freya sonhava acordada com o seu aprendiz de druida. Svana escondia o choro, triste com a separação de Quinn, e decepcionada com o distanciamento imposto por Bryan... E eu começava a sentir o peso da proximidade da Festa da Renovação, onde teria de apelar à minha Arte para que o plano da Sacerdotisa tivesse sucesso.

 

As festividades de Verão seriam menos grandiosas do que as do ano anterior, já que não podíamos contar com a presença do rei Steinarr e da sua família como nossos convidados. No Norte, os conflitos estavam sanados, mas Arnorr escapara mais uma vez impune à justiça do soberano viquingue. No entanto, o seu exército de mercenários sofrera baixas consideráveis e levaria bastante tempo para se recompor. Persegui-los para lhes impor uma derrota definitiva era impraticável. As terras do gelo eterno encontravam-se repletas de grutas, onde os nossos inimigos conseguiriam esconder-se e emboscar até ao último guerreiro do nosso exército, sem a menor dificuldade.

Enquanto Arnorr recuava para lamber as feridas e alimentar o seu rancor, o rei Steinarr ordenava a reconstrução das aldeias atacadas. Muitas casas haviam ardido debaixo da fúria assassina dos mercenários, mas poucas vidas se tinham perdido, graças à pronta intervenção de Ivarr. Agora, os nossos guerreiros usavam os seus machados de guerra para derrubar árvores, e a sua força e destreza para erguer novas habitações para os desalojados. Os dias amenos eram uma mercê efêmera e, quando o frio regressasse, nenhum viquingue deveria estar sem abrigo.

Talvez por pressentir que a sua família se decompunha, o tio Edwin decidira permanecer na Ilha dos Sonhos, após o casamento de Aled e Melody, quando o Knarr do rei Steinarr partira rumo ao Norte. Darrin preparava-se para enfrentar a iniciação e estava radiante por desfrutar da companhia e dos conselhos do pai, desejoso de enobrecê-lo e homenagear a memória da sua mãe, terminando vitoriosamente a Caçada.

 

Os druidas da Ilha dos Penhascos eram aguardados com expectativa na casa do jarl. Porém, quando os homens sábios fizeram a sua visita de cortesia, não trouxeram boas notícias. O Mestre encontrava-se enfermo há vários dias, devido a uma soltura fulminante que o prostrara e enfraquecera de tal forma que perdera o andar e delirara com febre. As dores nas entranhas haviam-se alastrado aos ossos e à cabeça, ao ponto de a comunidade temer pela sua vida. Contudo, graças à Deusa Mãe, já estava a recuperar, apesar de não se sentir suficientemente forte para viajar até à Ilha dos Sonhos e assistir aos rituais. Ficara na aldeia, com um grupo de Irmãos que velavam pela sua recuperação, mas enviava saudações e a sua benção.

Ao escutar as novas, Freya empalidecera. Num instante, a esperança de rever o protegido do Mestre Druida fora destruída. A sua fuga para o quarto não me passou despercebida, por isso desculpei-me e corri no seu encalço. Encontrei-a deitada na cama, com a cabeça debaixo da almofada, soluçando com tal desespero que dir-se-ia ter recebido a mais ruim das notícias. Tomei-a nos braços e embalei-a pacientemente, segredando:

— Haverá outras oportunidades de te encontrares com esse rapaz, Freya! Não chores...

— Eu tinha a certeza de que ele viria! — cortou a minha irmã, enrouquecida pelo pranto.

— O fato de ter decidido permanecer ao lado do Mestre Druida, cuidando da sua enfermidade ao invés de participar nas festas, só revela uma boa índole. Não te esqueças de que ele possui uma dívida de gratidão para com os sábios...

— Mas estava previsto que nós nos encontraríamos! — insistiu ela, angustiada. — Eu vi-o nos meus sonhos!

O seu corpo tremia, tal a comoção. Pressionava a pedra mágica contra o peito, como se a sua vida dependesse dela. O olhar verde suplicava por uma palavra de conforto. Respirei fundo, acariciando-lhe o rosto na tentativa de serená-la.

— Sê paciente! Esse rapaz escolheu a vida de recolhimento dos druidas, e vive numa ilha de onde poucos entram e saem. Não vai desvanecer-se no ar! Para o ano tornará aqui... Até lá, terás tempo para ponderar no que estás a sentir. Recorda-te do que aconteceu com o Magnor...

— Tu não podes compará-lo ao Magnor! — cortou indignada.

— Não, não posso! — aquiesci, mantendo a calma. — O Magnor é filho do rei Steinarr, cresceu conosco e, mesmo assim, conseguiu desiludir-nos. O que sabes tu acerca desse homem, além de que tem olhos bonitos? Por favor, Freya... Sossega o teu coração!

— Se ele fosse mau, os druidas não o teriam abrigado! — protestou, mas era perceptível que a sua convicção fraquejava.

— Os druidas não são deuses, para lerem o coração dos Homens — repliquei. — Pensa bem na vida que desejas, no que sonhaste conquistar... Sê prudente, irmãzinha! Os pretendentes não te faltarão, se escolheres outro rumo...

Era véspera da noite mágica e os McGraw reuniam-se no salão da casa do jarl, brindando alegremente à saúde e ao sucesso dos seus filhos. O tio Edwin parecia ter esquecido a existência de Estrid e falava exclusivamente de Darrin, que se distinguira nas provas de iniciação e seria, decerto, o herói da Caçada.

O tio Berchan chamava a atenção dos irmãos para as travessuras da sua pequena Lyonnete e de Ive. Apesar da tenra idade, a arte pulsava vigorosamente nos dois primos, deixando antever um futuro prodigioso. Era cada vez mais difícil separá-los e as mulheres já gracejavam, profetizando a realização de outro casamento dentro da família.

O tio Stefan só tinha razões para se orgulhar da sua prole. Bryan era um dos guerreiros de confiança do herdeiro do trono viquingue, Quinn conquistava um lugar na corte do rei do Império, Melody desposara o filho do seu querido e saudoso irmão Aled, Kyle e Rice preparavam-se para superar as provas de iniciação do ano seguinte, Melvin já dava sinais de que também iria tornar-se um grande guerreiro, Gwenneth era uma menina linda e Ive revelava habilidades místicas.

Por fim, Catelyn McGraw não tinha filhos para elogiar... mas tinha três filhas, que não trocaria pelo mais excelso dos varões. O calor na sua voz, quando se referia ao meu futuro como rainha vidente do povo viquingue, provocava-me um nó na garganta. A cada dia, crescia em mim o medo de decepcioná-la... de frustrar as expectativas dos que me amavam. A minha habilidade pulsava, mais forte do que nunca, mas eu continuava surda ao apelo que me revelaria que era tempo de tornar-me Guardiã da Lágrima do Sol. Quanto a Ivarr, o nosso distanciamento cobria-me de reservas. Não tinha a certeza de amá-lo... e duvidava da intensidade dos sentimentos que ele me devotava. Por vezes, era assaltada por pesadelos que mostravam o meu noivo nos braços de outras mulheres... Mas, o que mais me incomodava era algo que eu própria testemunhara: a forma como ele olhara para Thora, na noite em que ela nos surpreendera no seu quarto.

 

A destreza da minha irmã guerreira continuava a impressionar-nos. Talvez devido ao fato de ser uma jovem mulher apaixonada pela arte da guerra, era-lhe concedido um destaque especial, sempre que alguma façanha do exército viquingue chegava ao conhecimento da Ilha dos Sonhos. Thora tornara-se a fonte de inspiração dos nossos Skalde já era difícil escutar um poema ou uma música que não a mencionasse.

Quanto a Freya, a visita à Ilha dos Penhascos abrira-lhe novos horizontes de pesquisa na arte curativa. Sem demora, plantara no seu jardim as sementes que as anciãs da casa da Sacerdotisa lhe haviam oferecido, e extasiava-se ante o nascimento dos primeiros rebentos. Eu só esperava que o seu entusiasmo obsessivo pelo aprendiz do Mestre Druida não a desviasse do bom caminho.

Depois do jantar, os candidatos a guerreiro não se pouparam a esforços para impressionar os mais velhos. Recordei os acontecimentos do ano anterior com as entranhas retorcidas. Por mais que me custasse a admitir, Ivarr tinha razão. Grande parte das mudanças ocorridas nas nossas vidas haviam sido da minha responsabilidade. Se eu não o tivesse alertado para o talento de Thora, hoje, tudo seria diferente... Se para melhor ou pior, não havia forma de sabê-lo!

Ao descansar a cabeça na almofada, lembrei-me do meu primo Edwin. Fora há um ano que ele se manifestara para me pedir ajuda... Eu não voltara a saber dele, depois daquela maldita noite, em que todas as minhas ilusões se tinham desfeito. Vê-lo alimentar a sua magia com vidas humanas; senti-lo rejeitar violentamente a minha energia, fora quanto bastara para confirmar a inevitabilidade do nosso confronto. Só esperava que Lyria estivesse enganada... Diante de Edwin, um instante de indecisão seria fatal. Não podia hesitar no que tinha de ser feito, por mais que isso me custasse... pois a alternativa era a morte.

Assim que os primeiros raios de Sol espreitaram no horizonte, as canoas fizeram-se ao mar na Ilha dos Penhascos, rumo à Ilha Mãe. Como a tradição ordenava, o Sacerdote foi o primeiro a pisar a areia e a cumprir os rituais de reconhecimento da terra. Depois, recebeu as boas-vindas do líder dos colonizadores, que por artes do destino era seu tio, e cumprimentou-me com um aceno de cabeça, antes de assumir o seu lugar no cortejo que se dirigia ao topo da Montanha da Magia.

Enquanto as cometas festivas soavam, o remorso mutilou-me a consciência. E se Amora estivesse enganada?

A Sacerdotisa seria a última a chegar à praia, mas os Filhos da Renovação que a precediam iriam rodeá-la e impedir qualquer contato com o nosso povo. Por essa razão, no dia anterior eu visitara as Pedras do Mundo e deixara o que ela me solicitara no esconderijo combinado. Não era confortante pensar que a vida da minha amiga dependia da eficácia do pó que repousava dentro da pequena bolsa de couro: um eficaz preparado de plantas que, uma vez em contacto com o fogo, libertaria um fumo que atordoaria os sentidos daqueles que o respirassem. Amora esperava que, no meio do frenesi ritual, o seu povo esquecesse a existência dos soberanos, o que lhe daria tempo para concretizar o seu intento. Se falhasse, as conseqüências podiam incluir a morte por traição.

No resguardo da Gruta das Vozes Ancestrais, o plano da Sacerdotisa fizera sentido. Contudo, longe dessa influência mágica, com o Sol da manhã sobre os olhos e a brisa fresca a acariciar-me a pele, a ousadia anunciava-se loucura! Havia tanta coisa que podia correr mal, desde a quantidade de ervas usadas, até ao efeito que provocariam em cada pessoa, passando pelo tempo de eficácia e os vestígios que deixariam no corpo e na mente dos afetados. Eu devia ter-me esforçado para demover Amora! Porém, era tarde para recuar... Talvez o amadurecimento da idéia lhe tivesse revelado a sua imprudência!

Esta esperança manteve-me firme na praia, enquanto a canoa enfeitada com conchas e flores que transportava a Sacerdotisa se aproximava. Impossibilitada de lhe falar com a mente, não fosse alguém interceptar a conversa, observei impotente a sua chegada, a forma apaixonada como se ajoelhava e aguardava que os seus súbditos a banhassem com a areia branca. Os olhos cor de avelã sobressaíram da alvura das suas vestes e acariciaram-me o espírito com uma brevidade insuspeita, mas suficiente para que ela se apercebesse do meu temor.

«Confia em mim, Edwina...»

O que mais podia fazer? Vi Amora caminhar até Trygve e aceitar a mão que ele lhe estendia. No passado, este gesto teria sido questionado e censurado pelos anciãos do seu povo. Contudo, Amora e Trygve haviam contrariado a separação imposta pelas regras, e provado que o contacto e interação de ambos podia ser proveitoso para a comunidade. A amizade dos Sacerdotes dos Penhascos era agora aceite sem contestação. Porém, aquilo que ambos desejavam jamais o seria, pois cortava cerce o pilar que sustentava a civilização nativa. Amora preparava-se para desafiar o destino com um arrojo mais ameaçador do que qualquer maldição que pudesse pairar sobre eles. Tentava corrigir um erro, com outro muito maior...

 

O crepúsculo chegou, trazendo o esplendor das fogueiras e o rufar dos tambores. Com o entusiasmo à flor da pele, os jovens viquingues embrenharam-se na floresta para provarem a sua destreza guerreira, e no berço das Pedras do Mundo deu-se início à Festa da Renovação. Os tambores do Povo dos Penhascos rivalizaram com os nossos e o seu fogo desafiou os céus, homenageando os antepassados e suplicando a sua bênção, prosperidade e fertilidade para os seus filhos.

Eu acomodei-me na tranqüilidade do meu quarto, com o resplendor da Lágrima do Sol dispersando-se em redor, decidida a rasgar o véu do angustiante desconhecimento. Uma chuva de prata dissipou a realidade e os pés da minha essência deslizaram sobre os trilhos do destino que me propusera alterar. Nessa noite, o futuro de um povo dependia da coragem de uma jovem Sacerdotisa, cuja vida, por sua vez, repousava nas minhas mãos.

Oculta pela magia do cristal, penetrei no terreno sagrado, qual fantasma de tempos remotos. O ar encontrava-se impregnado por uma energia mística, que assumia formas concretas à minha passagem. Os espíritos das Sacerdotisas que haviam antecedido Amora miravam-me com curiosidade aguçada, mas mantiveram a distância. Tal como elas, eu era uma observadora.

O topo da montanha efervescia. Os nativos haviam-se livrado das vestes usuais e exibiam os corpos pintados com cores ardentes, e cobertos com exíguos pedaços de pele, enfeitados com folhas e penas. Homens e mulheres agitavam-se ao som dos tambores, numa dança frenética, sem um pingo de harmonia, cujo objetivo final era a sedução de um parceiro. O Povo dos Penhascos acreditava que aqueles que plantassem a sua semente durante a Festa da Renovação viveriam o resto da sua existência sob a bênção da deusa. Por essa razão, a concepção era evitada ao longo do ano, e os instintos sufocados, para que explodissem com todo o seu fulgor no auge do ritual primitivo.

Dentro do aro protetor das Pedras do Mundo, a Sacerdotisa e a sua corte aguardavam que o Sacerdote e a jovem escolhida para se tornar Mãe da Renovação consolidassem a tradição. Amora era a única mulher que se ocultava por trás de vestes rigorosas. Dissimulada no cinto que lhe cingia a cintura, estava uma pequena bolsa de couro, que a sua mão acariciava com um nervosismo crescente. Se não tomasse cuidado, os anciãos acabariam por descobrir o seu segredo. De todos os presentes, apenas ela se apercebeu da minha chegada. O seu olhar convicto declarou-me que não fazia tenção de desistir.

O momento da verdade chegou. Amora avançou um pé e o seu corpo vacilou. Porém, o passo seguinte revelou firmeza. Enquanto caminhava por entre a multidão delirante, as suas mãos moveram-se ao encontro da bolsa e atiraram-na para uma das fogueiras. O seu gesto foi tão rápido, tão subtil, que apenas eu e os espíritos das suas ancestrais o surpreendemos.

Em menos de nada, a mistura começou a reagir com o fogo, libertando-se nas alegres nuvens de fumo que brincavam em redor dos nativos, sem um odor que pudesse alertá-los para a armadilha. Ao meu lado, as figuras etéreas abriram os braços e estenderam-nos ao céu. De imediato, o vento despertou e agarrou no vapor mágico, alimentando-o, forçando-o a colar-se à pele de todos os que participavam na Festa da Renovação. Se as antepassadas de Amora a ajudavam a concretizar o seu plano, os meus temores eram infundados!

Sem vestígio de incerteza, a Sacerdotisa entrou na gruta. Lá dentro, o Sacerdote e a Mãe da Renovação jaziam adormecidos... A jovem que acabara de entregar a sua virgindade a Trygve permaneceria mergulhada no doce mundo dos sonhos. Mas o meu primo despertaria... E seria confrontado com a decisão mais difícil que já alguma vez tomara.

No exterior, o transe nativo provocado pelas substâncias rituais e acelerado pelo fumo mágico, depressa se transformou em êxtase. Quando o Sol nascesse e desfizesse o encantamento, os olhos cansados abrir-se-iam para uma realidade indistinta e ninguém questionaria onde a Sacerdotisa passara a noite. Para o Povo dos Penhascos, esta seria apenas mais uma Festa da Renovação. Não haveria desconfianças, remorsos ou contrições. O segredo de Amora e Trygve estaria a salvo... pelo menos, até que o ventre da Sacerdotisa começasse a crescer. Mas Amora garantira-me que eu não devia preocupar-me com esse pormenor, pois sabia como ocultar a gravidez do conhecimento do seu povo.

Era tempo de eu partir...

Inesperadamente, uma figura graciosa atravessou-se no meu caminho. O manto de caracóis negros que lhe tombava sobre as costas era inconfundível. Freya movia-se hesitante e trêmula, com os braços cruzados, apertados em frente do peito como se tencionasse proteger-se de algo. Os seus pés arrastavam-se, os joelhos tremiam-lhe... Mas que raio estava ela a fazer aqui?

Tentei inutilmente atrair-lhe a atenção. A energia que já gastara deixara-me demasiado fraca para apelar à sua mente. Assustada, olhei em volta, buscando ajuda nos espíritos das Sacerdotisas. Porém, um a um, estes desvaneciam-se no nevoeiro... deixavam-me só!

Freya vagueava num passo indeciso, por entre os corpos ondulantes, assustada ao constatar que a dança nativa se transformava num ritual de acasalamento cada vez mais explícito. Os tambores exaltavam-se. A razão era devorada pelo efeito do pó que a pele absorvia e se transformava em veneno para a mente, assim que entrava em contato com o sangue. Eu precisava de tirar a minha irmã daqui...

Então, senti-o, tão vivo e poderoso como se manifestara na Ilha dos Penhascos. A magia da noite alimentava a sua essência; tornava-o um gigante entre as divindades. Movia-se como o vento, suave, cálido... ocultando uma força arrasadora, que podia deflagrar a qualquer instante! O Espírito da Escuridão estava na Ilha dos Sonhos... Na floresta... Não! Entre os nativos! Era um deles!

A minha irmã também se apercebia da oscilação de energia. A sua expressão denunciava pasmo... choque, ao ver os corpos quase nus, pintados e suados, buscarem as sombras da floresta. Recordava-se das palavras de Estrid, que comparara o Povo dos Penhascos a animais no cio, e concluía que fora um erro subir a montanha. Recuava... Sim, por todas as bênçãos sagradas! Freya decidia voltar para casa...

Uma nuvem de fumo mágico apanhou-a desprevenida e forçou-a a deter-se. Do interior desta surgiu um homem... Um colosso com corpo de guerreiro, que jamais poderia confundir-se com um nativo. Apesar disso, a sua pele branca estava pintada de vermelho e amarelo, e a sua nudez encoberta com um pedaço de pele, de onde pendiam penas de cores maravilhosas. O seu pescoço, pulsos e tornozelos também se encontravam enfeitados com tiras de pele. Poderia ser um viquingue... Mas os cabelos castanhos acobreados que lhe caíam soltos sobre os ombros, e o olhar azul que faria inveja ao céu e ao mar, revelaram-me a verdade. Este era o aprendiz do Mestre Druida... O homem que a minha irmã acreditava estar-lhe destinado!

A exaltação de Freya mal lhe permitia respirar. As mãos de ambos entrelaçaram-se a meio caminho e o olhar fascinado da minha irmã perdeu-se no olhar ardente do desconhecido... um olhar tão familiar, que me arrepiou cada pêlo do corpo.

— Eu sabia que virias... — arquejou ela, prejudicando o meu raciocínio.

O homem atraiu-a para mais perto, e pousou as mãos frágeis sobre o seu peito, respondendo numa voz grave, que soou irresistível por entre o rufar dos tambores:

— E como podia deixar de vir... se o meu coração ficou nas tuas mãos?

— E o meu nas tuas... Salvaste-me a vida!

O aprendiz de druida... ou o guerreiro — eu já não sabia o que pensar — susteve o tremor da minha irmã, amparando-a nos seus braços e replicando:

— Não! Foste tu que me salvaste... Deste-me uma razão para viver!

E beijou-a! Beijou-a com tamanha paixão que dir-se-ia que a sua essência começava e acabava nela. Por instantes, o fumo mágico encobriu-os e perdi-os de vista. Afligi-me ao verificar que não era o sortilégio que se adensava... mas o meu poder que se extinguia. Estava a ser forçada a recuar; a deixar para trás a minha ingênua irmã, entregue à vontade de um estranho, num ambiente de loucura e embriaguez, de lascívia e esquecimento... Freya encontrava-se prisioneira da teia que eu ajudara a tecer!

Observei impotente quando os dois correram de mãos dadas para a privacidade da floresta. O ar estava vivo. As árvores cantavam. O solo libertava vapor. As estrelas estendiam os seus braços de luz sobre eles e conduziam-nos ao encontro de uma cascata... até à gruta onde Ivarr iniciara Thora. Sobre o Altar da Terra, vi o aprendiz de druida na sua forma real: meio homem, meio lobo; uma essência pejada com um poder imensurável... um poder negro, estalante... O Espírito da Escuridão!

— Freya...

Ela não me ouviu! Encontrava-se prisioneira de um encantamento divino, fascinada pelo azul-fogo do olhar daquele ser prodigioso, pela sua beleza selvagem, pela energia que irradiava do seu corpo e a atraía com a força da Terra. Horrorizada, vi os dedos deste rei-lobo moverem-se sobre as vestes da minha irmã, encharcadas pela água purificadora da cascata... E, em menos de nada, sem ter esboçado um gesto para detê-lo, Freya estava nua nos seus braços; os cabelos molhados cobrindo-lhe as costas e os seios pequenos e firmes — pêlo negro e brilhante sobre seda branca imaculada... e o magnificente brilho azul da pedra de uma feiticeira.

A criatura rutilava com o fulgor da sua magia; o olhar bravio amansado pela visão da beleza. O negrume da sua aura atenuou-se, consumido pela luz que crescia e pulsava, vinda do interior do seu corpo... Luz que me cegou, no instante em que o Altar da Terra os recebeu como amantes. Gritei subjugada, sentindo a energia que se libertava do solo e do ar trespassar-me e consumir-me. E, no centro desse ardor, havia tristeza, remorso, um poder que clamava para se libertar, mas que eu sabia devastador, pérfido... a sua alma... a minha alma!

Caí desamparada no remoinho da consciência do rei-lobo, das suas recordações. Já não estava no Altar da Terra, nem na Montanha da Magia, nem sequer na Ilha dos Sonhos... Diante de mim, estendia-se uma floresta luxuriante, tão cerrada que mal se via o céu. Eu estava cansado, sentia-me desfeito no corpo e na mente... Mas não havia como voltar atrás. Fizera uma promessa! Jurara sobre o meu sangue, diante da minha rainha...

O cavalo protestava, inquieto. Pressentia a aproximação dos lobos. As suas sombras ferozes calavam as saudáveis melodias da floresta e o seu cheiro empestava o ar. Cerrei os dentes e forcei a montada a obedecer-me. Não podia pensar... Se pensasse, não seria capaz!

Saí da floresta e encarei a imensidão de um lago e um céu de tormenta. As nuvens negras deixavam entrever uma Lua incrivelmente redonda. Ela estava a observar-me. Sentia o seu olhar como dedos a deslizar-me pela pele, risonho, satisfeito... Eu era o seu orgulho! Eu fazia o que tinha de ser feito sem questioná-la!

A moça surgiu a correr de dentro do bosque. O luar iluminou o seu rosto simples e inocente, marcado pelo horror da profanação que acabara de executar. Nas suas mãos, o meu troféu... A pureza da sua alma permitira-lhe escavar o terreno sagrado e roubar a caixa, sem que os espíritos guardiões do cemitério a molestassem. Fizera-o por amor... Fizera-o por mim...

Não desmontei. De que me servia alimentar-lhe as ilusões? Tinha de ser rápido. Abri a caixa, debaixo do seu olhar ansioso, e o brilho violeta da pedra mágica ofuscou a luz da Lua. A vitória era minha! Por um instante, a euforia substituiu-se à razão. A camponesa sorria, declarava-me o seu amor, estendia-me os braços... Então, o primeiro lobo saltou de entre as árvores, seguido de outro e de outro... os olhos de fogo iluminando o pêlo preto e eriçado, e o vômito pútrido que se lhes escapava por entre as presas. A moça gritou, aterrada... mas era tarde!

Forcei o cavalo a regressar à floresta. Tinha um longo caminho pela frente, de volta ao mar, até uma ilha repleta de mistérios e a outro desafio ainda mais complexo. O primeiro trovão sufocou os gritos da aldeã e os rugidos das bestas. Eu nada podia fazer por ela! Condenara-a à morte no instante em que a escolhera para enganar a magia protetora dos McGraw. Então, por que me era tão difícil voltar-lhe as costas? Tinha de esquecer o que ficava para trás! Tudo o que importava era a minha promessa... A missão que eu tinha de completar... Pela glória de Aesa!

— Edwina...

O apelo repercutiu-se dentro da minha cabeça, causando uma dor lancinante. Ia jurar que era a voz de Freya... Mas não podia ser! Ela encontrava-se prisioneira do Espírito da Escuridão...

— Edwina, acorda... Preciso de te falar!

Forcei-me a abrir os olhos e deparei com a minha irmãzinha, sã e salva. O alívio foi tal, que a envolvi nos meus braços e a apertei até lhe cortar a respiração. Por um instante, tive esperança de que tudo não tivesse passado de um sonho mau. Então, senti a sua roupa molhada... E o meu mundo despenhou-se! Afastei-a o suficiente para encará-la, perguntando ansiosa:

— Estás bem? Conseguiste fugir-lhe? Ele não te magoou...?

O seu olhar verde acusou o choque, ante a evidência do meu conhecimento.

— Como... Como é que sabes...?

— Vamos chamar o pai — decidi; a mente a fervilhar. — Talvez não seja tarde para apanhá-lo!

— Apanhá-lo?

— Não podemos permitir que esse monstro escape...

— Monstro? — A minha irmã empurrou-me, profundamente indignada. — O Helgi tinha razão! Eu não devia ter voltado...

— O quê? — Senti um baque no peito. — Freya...

— Vou partir com ele! — anunciou com uma determinação férrea. — Só vim despedir-me de ti e pedir-te que explicasses o que se passou aos nossos pais... Mas já vi que foi um erro! Adeus, Edwina...

— Freya... — gaguejei, estupefata. — Se deres mais um passo, gritarei pelo pai...

— Não podes fazer isso! — volveu ela, suplicando-me que baixasse a voz. — Tens de me deixar ir! O Helgi está à minha espera..

— Endoideceste? — repliquei, agarrando-lhe no braço. — Tu não sabes quem é esse homem...

— Solta-me! — revidou, irritada e frustrada. — O que é que me vais dizer? Que ele é um Vândalo? — A minha expressão deve ter denunciado pasmo, pois ela exclamou, triunfante: — Sim, o Helgi contou-me! E também me disse que ninguém compreenderá o nosso amor! — Levou a mão ao pescoço e puxou pelo fio que se ocultava dentro do vestido, de onde pendia... um amuleto de metal, com a representação de um corvo que segurava um ramo de espinheiro no bico.

— O Helgi não me enganou, como tu estás a pensar... Eu sei que ele faz parte de um povo que é nosso inimigo! Mas nós pertencemos um ao outro... Tens de entender e ajudar-me! Lembra-te que sucedeu o mesmo com o papai e a mama...

Ela falava... mas eu já não escutava. Os meus olhos colavam-se ao símbolo odioso que Freya segurava na mão... Isto só podia ser um pesadelo!

— Onde está a pedra azul da nossa mãe? — inquiri, com a voz a tremer.

— A pedra agora é minha, Edwina! — contrapôs num tom de desafio. — E eu troquei-a com o Helgi, como garantia de que regressaria à praia...

Abanei a cabeça, sentindo-me despencar num abismo.

— Quer dizer que... ele já tem duas pedras?

— Duas pedras? Do que é que estás a falar?

Freya estava cega de ilusões! Pelo menos, o monstro não a matara, como à outra jovem que, tão ingenuamente como ela, lhe entregara o coração. Prossegui, sufocada pela comoção:

— Esse homem disse-te que pertencia ao povo vândalo... Todavia, contou-te que no seu corpo corre o sangue maligno da feiticeira Aesa?

— Freya negou com a cabeça, mas eu não me detive. — E que, antes de naufragar na Ilha dos Penhascos, esteve na Grande Ilha e roubou a pedra violeta, que pertenceu ao nosso tio Quinn?

— Isso não é verdade...

— Para chegar à pedra serviu-se de uma aldeã... E, depois, entregou-a à morte!

— Como podes saber isso? — objetou ela, rouca de angústia.

— Estás a inventar essa mentira terrível para me demover...

Uma corneta de alarme troou na praia e, de imediato, a casa despertou. Freya tentou escapar-me, mas consegui segurá-la a tempo. Ela debateu-se, socando e esperneando, mas eu era mais alta e mais forte. O meu coração encolheu ao ouvi-la rosnar, descontrolada:

— Voltei porque te amava, mas agora odeio-te! Odeio-te, traidora!

Engoli em seco, replicando:

— Eu posso viver com o teu ódio, Freya... Mas não posso viver sem ti!

E fiz aquilo que jamais pensara ter de fazer: usei a magia contra alguém que amava. O meu olhar devassou o da minha irmã e apossei-me da sua mente. Por um instante, vi o Espírito da Escuridão pelos seus olhos... E fui inundada por um calor fulgurante! Arquejei, assombrada. Freya não se enganara... Esta noite, ela recebera e dera amor... Como era possível?

Freya tombou inanimada nos meus braços. Deitei-a na cama e sentei-me ao seu lado, cobrindo o rosto com as mãos. Tinha de contar esta tragédia aos meus pais, mas os nervos paralisavam-me. Do outro lado da cortina que ocultava o quarto ecoavam gritos. Um mensageiro do Mestre Druida vinha alertar os McGraw de que a pedra mágica cor de laranja, que lhe fora confiada, desaparecera... assim como o jovem que ele tomara para seu aprendiz.

A minha cabeça ameaçou rebentar. Ergui-me e entrei no salão aos tropeções, clamando pela minha mãe. Necessitava da sua força, da sua energia curativa... Ela acorreu em meu auxílio, aflita. O meu pai mirava-me, confuso e assustado, sem saber se devia acudir-me, ou ao apelo do mensageiro do Mestre. Já nos braços da minha mãe, consegui balbuciar:

— O ladrão ainda está na ilha, papai... Procura-o junto ao mar... Mas, se tens amor às tuas filhas, não o mates... Nem permitas que nenhum dos teus homens lhe cause dano!

Anoitecia na Ilha dos Sonhos, quando o meu pai deu por terminada a busca. Talvez o ladrão das pedras mágicas ainda estivesse escondido nas grutas da praia... mas era pouco provável. Mesmo que eu acreditasse que ele tencionara levar Freya consigo, quer fosse acometido por um deslumbramento divino, ou apenas pretendesse atirá-la borda fora quando atingisse o mar alto, para limpar o seu rasto como fizera até agora, assim que as cometas dos druidas tinham soado, certamente percebera-se descoberto e iniciara a fuga.

Os homens da minha família estavam cansados e furiosos. Um único rapazote chegara para destruir a segurança orgulhosamente conquistada durante anos. Mas a história era muito pior do que eles imaginavam! Reconstruir os passos daquele que concluímos ser um príncipe vândalo só foi possível depois de alguma discussão e muita ponderação.

Segundo Aled, numa noite do último Outono, uma jovem da Aldeia do Lago desaparecera sem deixar rasto. A sua mãe, uma viúva que trabalhava na cozinha da Casa Grande, convencera-se de que ela fugira com o guerreiro que andava a rondar-lhe a porta: um rapaz possante, com um intenso olhar azul e cabelos acobreados, que chegara à Grande Ilha a bordo de um navio de mercadorias, e que depressa arranjara trabalho na ferraria da aldeia. Movida pela vergonha, dissera às vizinhas que a filha fora viver com um parente para a corte do Império, e expulsara o ferreiro da sua casa, quando este lhe perguntara se sabia do paradeiro do ajudante. Infelizmente, o destino da moça nada tivera de romântico!

Com a pedra violeta em seu poder, o bisneto de Aesa viajara ao encontro da pedra laranja. Entrar na Ilha dos Penhascos como um intruso era praticamente impossível... e ele dispusera-se a pagar o preço. Os sábios haviam-no encontrado tão maltratado que nem questionaram a sua perda de memória. Dia após dia, Helgi ganhara a confiança e o carinho do Mestre Druida, aguardando pela oportunidade de obter o que desejava. Então, inesperadamente, uma jovem caíra do céu nos seus braços... e ele vira que tinha possibilidades de deitar a mão a uma terceira pedra mágica.

A recente maleita do Mestre Druida resultara de um envenenamento alimentar. O seu pupilo certificara-se de que o ancião ficaria na Ilha dos Penhascos, enquanto o resto da comunidade viria para a Ilha Mãe. Sem oposição, drogara os poucos sábios que o acompanhavam e apossara-se da pedra cor de laranja. Depois, viajara até à Ilha dos Sonhos e procurara a guardiã da pedra azul. Encontrara-a na praia, descuidada, festejando com o seu povo...

— A última coisa de que a Freya se recorda — concluí, mentindo com quantos dentes tinha na boca — é desse homem lhe ter oferecido um corno de cerveja. Drogou-a para roubá-la, tal como fez com os sábios! Quando despertou e se viu sem a pedra, a mana correu a pedir-me ajuda. Estava a contar-me que fora vítima de um assalto, quando o alarme soou...

Sustive a respiração, esperando que Freya gritasse a qualquer momento que as coisas não se tinham passado assim. Porém, após conhecer o percurso do seu príncipe desencantado, ela limitava-se a fixar-me com um olhar ferido, tão infeliz que me cortava o coração, enquanto escutava os desabafos revoltosos que incendiavam o ar.

No instante em que o furto da pedra azul fora anunciado, o tio Berchan erguera a voz contra a minha mãe. Segundo ele, Catelyn nunca levara a sério a responsabilidade de proteger as pedras mágicas. Como é que pudera entregar uma missão tão importante a uma criança, que pouco ou nada sabia de magia? A minha mãe não o deixara sem resposta. Afinal, ele e o tio Edwin é que a tinham convencido a conservar as pedras na Terra! Por vontade do tio Stefan, elas já teriam sido destruídas há muito, e a sua ameaça eliminada! Curiosamente, quem eu esperava que reagisse pior, nem abriu a boca. O tio Edwin parecia desnorteado. Talvez se interrogasse sobre o que mais poderia suceder para trazer o caos à sua vida? Sempre prático, o tio Stefan já indagava acerca do que podia ser feito para remediar este mal. O meu pai ponderou em voz alta:

— O vândalo está sozinho... Se saiu da ilha, fez numa canoa ou num barco de pesca. Não pode ter ido longe! E provável que conte com o auxílio da sua gente, a partir deste momento... O meu palpite é que, algures, um navio o aguarda para conduzi-lo ao Norte. Se assim for, o Dragão dos Mares poderá alcançá-los sem dificuldade! Partirei de manhã...

— Partiremos todos! — declarou o tio Edwin, sobressaltando-me com a sua súbita determinação. — Se a bruxa do Norte recomeçou a caça às nossas pedras, devemos permanecer unidos, pois, separados, seremos alvos fáceis. Além disso, se não apanharmos esse espertalhão no mar, teremos de apelar ao Steinarr... Mais do que nunca, será necessário descobrir uma forma de invadir o reduto dos Vândalos. As pedras têm de regressar ao nosso poder!

Pouco mais havia a acrescentar. Era inútil distribuir culpas, e o tio Berchan acabou por admiti-lo e desculpar-se perante a minha mãe e Freya. De imediato, iniciaram-se os preparativos para a campanha. Se queríamos partir assim que o dia nascesse, todos os instantes eram preciosos.

Esta seria uma viagem rápida, desconfortável e perigosa. Um Drakkar, ainda que possante como o Dragão dos Mares, não possuía o porão espaçoso de um Knarr, que nos permitia descansar e escapar à azáfama do convés. Tanto eu como a minha mãe sabíamos o que nos esperava... mas o meu pai inquietava-se por Freya. No entanto, quando a minha irmã anunciou que pretendia acompanhar-nos, não se opôs. Throst e Catelyn haviam compreendido que eu distorcera os fatos para protegê-la... E o resto, não lhes custava a adivinhar. O meu apelo, antes do jarl partir em busca do ladrão das pedras, aliado à prostração de Freya, pouco deixava à imaginação.

Melody também se recusou a ficar para trás. Estava tão inquieta que tememos pela sua integridade. Segundo ela, Aled devia regressar à Grande Ilha e confiar a sorte das batalhas aos guerreiros. A convicção do tio Edwin, que merecera o apoio dos irmãos, de que os portadores do legado de Aranwen deviam permanecer unidos, não a convencia. Chegou, inclusive, a suplicar ao marido que renunciasse à pedra verde, deixando-o muito transtornado. A solução foi anuir a que viesse conosco. Como o Drakkar do jarl seria aquele que entraria em combate, na eventualidade de uma batalha no mar, ficou decidido que Freya e Melody viajariam no navio do tio Stefan, que nos seguiria de perto.

Pensei em procurar a minha irmã antes de me deitar. Contudo, ela antecipou-se:

— Posso dormir contigo esta noite?

Aninhou-se no meu corpo como se eu fosse um abrigo. Buscava algo para lhe dizer que pudesse confortá-la, quando ela murmurou:

— Obrigada, mana... Obrigada por tudo!

— Freya...

— Depois das coisas horríveis que eu te disse, tu ainda mentiste para me proteger... Se não fosse por ti, teria morrido de vergonha! Sinto muito... Como é que pude deixar-me enganar desta maneira? Sou mesmo estúpida; um embaraço para a nossa família...

— Isso não é verdade! — objetei com firmeza. — Esse rapaz deve ter um poder de persuasão fenomenal, para ter conseguido enganar o Mestre Druida. Não te sintas diminuída só porque seguiste o teu coração!

Calei-me antes de denunciar as dúvidas que me fustigavam. Uma palavra irrefletida reavivaria as esperanças de Freya... E tal não podia acontecer! Era estranho, mas eu ainda não sabia o que pensar acerca da conduta do príncipe vândalo. Helgi deixara a Floresta Sombria com um propósito funesto e mantivera-se fiel à sua missão até ao fim, era verdade! Mas era igualmente verdade que, durante a minha Visão, eu tocara na sua mente e me apercebera do seu desconforto, perante o que fizera para cumprir a vontade de Aesa. Acrescia o fato de, na Ilha dos Penhascos, o Mestre Druida ainda não se ter conformado com a traição do aprendiz. Juraria sobre a sua vida pela boa índole do rapaz... E Helgi teria de ser estúpido para entregar nas mãos de Freya o seu amuleto, a prova da sua identidade, quando podia escapar impune com as três pedras mágicas!

Pensar que, por um capricho do destino, o príncipe vândalo se enamorara da minha irmã, era uma idiotice desmesurada... Mas afigurava-se a única justificação consistente! No entanto, esse amor era impossível, e não só porque ele era nosso inimigo! Helgi era um mentiroso, um ladrão, um assassino... e bisneto de Aesa! Se um dos homens da minha família o apanhasse ao alcance da espada, não hesitaria em tirar-lhe a vida! E essa realidade era incontestável! Por isso, tinha de ajudar Freya a esquecê-lo, ou arriscava-me a condená-la à morte. Devia lembrar-me de que, se os laços que nos uniam não fossem tão fortes, a minha irmã já estaria fora do nosso alcance, para sempre perdida.

— É horrível, Edwina... — confessou num sussurro, por entre lágrimas. — Apesar das barbaridades que ele fez, não consigo deixar de amá-lo. E não voltarei a amar outro homem...

— Não digas isso! Tens uma vida inteira pela frente...

Freya fechou-se no silêncio, revelando-se determinada. Não insisti. Estava provado que o coração só lhe pregava partidas, por isso era melhor que o deixasse adormecido por uns tempos! Porém, havia um assunto que não podia ser adiado:

— Freya.. — hesitei, ante a gravidade do que estava prestes a trazer à luz. — Aquilo que se passou na gruta...

— Não quero falar disso! — cortou, num tom alarmado.

— Mas é necessário, querida... — repliquei apaziguadoramente. — Há alguma possibilidade de... de teres concebido?

Ela afundou a cabeça no meu peito e cedeu ao pranto. Estreitei-a e cobri-lhe a testa de beijos, acariciando-lhe os cabelos com ternura. A sua resposta era escusada e eu não voltaria a demandá-la. Uma vez bastava para alertá-la. Freya era uma boa curandeira... Sabia o que devia fazer.

Deixei a Ilha dos Sonhos para trás, com um sentimento de perda dolorosa. O vulto imponente da Ilha dos Penhascos depressa se desvaneceu, e a angústia que me torcia as entranhas aumentou. O que acontecera a Amora? Tinha a certeza de que ninguém descobrira o seu segredo, ou não teriam sido apenas as cometas dos druidas a troar nessa manhã! A confusão gerada pela fuga do príncipe vândalo gorara a minha intenção de procurar Trygve, antes de ele embarcar de regresso à ilha, impedindo-me de me justificar e pedir-lhe desculpa por ter agido sem o seu consentimento, assim como de indagar das conseqüências do plano da Sacerdotisa.

— Queres contar-me o que te apoquenta, querida?

A voz da minha mãe sobressaltou-me. Inspirei profundamente, antes de replicar:

— Eu gostaria, mama... Mas não posso partilhar algo que não me pertence!

A sua mão buscou a minha e apertou-a com carinho. Quedamo-nos em silêncio, ouvindo as ordens do jarl e os grunhidos de esforço dos homens, ao içarem a majestosa vela vermelha.

— Eu sei que depositas grandes esperanças em mim... — murmurei, num desabafo. — E tudo farei para concluir a minha missão com sucesso! Porém, não posso negar que anseio pela tranqüilidade de uma vida sem sobressaltos...

— E há de conquistá-la! — garantiu-me ela, com firmeza. — Contudo, até lá, recorda-te de que não estás sozinha na tua demanda. A nossa família tem os seus momentos de incerteza e revolta... Mas, quando o dever chama, ficamos mais unidos do que nunca! Foi assim desde o início... Será assim até ao fim!

A nossa volta fechava-se uma imensidão de azul e branco: céu e nuvens, mar e espuma. As velas garridas dos três barcos desafiavam a harmonia selvagem da natureza, enquanto os seus cascos rasgavam impetuosamente as águas. Nós não possuíamos o equilíbrio dos marinheiros, por isso fomos forçadas a sentar-nos à proa. Deitei a cabeça no ombro da minha mãe e permiti que o vento me acariciasse o rosto, enquanto as ondas nos cobriam de salpicos gelados. O cheiro forte da maresia misturava-se com o odor do suor dos homens. O Sol brilhava alto no céu... A esta velocidade, e com um pouco de sorte, não tardaríamos a apanhar o príncipe vândalo. Senti um calafrio ao imaginar o que isso significava.

A voz poderosa de Sven iniciou uma canção alegre que os homens acompanharam de imediato. Contava a história de uma menina de cabelos negros e brilhantes olhos verdes, que desafiara o sortilégio de um feiticeiro perverso, acalmando a fúria da tempestade que este criara, para salvar a vida dos guerreiros que com ela viajavam. A menina estendeu os braços a Thor — cantou Sven — e segurou nas mãos o raio azul, fogo do deus trovão. O feitiço foi desfeito e a luz da esperança resplandeceu para o povo viquingue. O meu pai escutou em silêncio, com as mãos fechadas sobre o leme; todos os músculos tensos. O seu olhar estava preso no da minha mãe e a esposa correspondia ao seu ardor. Este era mais um daqueles momentos, que eu tanto admirava, em que o mundo desaparecia para Throst e Catelyn, e tudo o que persistia era o encantamento do seu amor.

O dia passou-se em permanente sobressalto. Avistamos vários barcos, mas nenhum com a nossa rota. Quando a obscuridade venceu a batalha com a luz, impôs-se o desalento. Nem as fogueiras do acampamento, montado numa praia hospitaleira, eram suficientes para aquecer o espírito dos homens. O tio Edwin estava tão irritado que se isolou. Darrin, apesar de acusar o cansaço da primeira viagem, reuniu alento para confortá-lo. Era uma satisfação ver pai e filho juntos... Contudo, nessa noite, nada mais havia a celebrar.

 

Assim que tomou conhecimento das últimas desventuras da minha família, o rei Steinarr prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance para nos ajudar. De imediato, foram enviados mensageiros à cidade de Lyria, solicitando com urgência a presença de «O Que Tudo Vê» no castelo viquingue. Só ele podia elucidar-nos quanto ao rumo a seguir.

Apesar das providências tomadas e do apoio do rei, a minha mãe estava muito nervosa. Recuperar o legado dos McGraw parecia-lhe cada vez mais difícil, pois tudo indiciava que as pedras mágicas já teriam penetrado no labirinto espinhoso da Floresta Sombria. O herdeiro de Aesa fora demasiado rápido, até para o Dragão dos Mares. O navio que usara na sua fuga acabara por cair nas mãos do jarl, num porto de comércio do Norte, mas o príncipe vândalo escapara-se por entre os nossos dedos, misturando-se com a multidão e aproveitando a confusão para desaparecer sem deixar rasto.

Pela janela do meu quarto, observei as sombras da noite cobrirem o pátio do castelo, as casas, as ruas que, aos poucos, ficavam desertas, a terra e o mar. Ivarr e os seus lobos encontravam-se ausentes, numa fronteira longínqua do reino, e demorariam alguns dias para regressar. O mesmo se passava com Magnor, o que deixou Freya aliviada. Receava que o príncipe se insurgisse contra ela, por ter ousado terminar o seu compromisso. Sentia-se cansada e sem alento para discussões. O anúncio de que Helgi estivera a um passo de ser apanhado, quase a fizera desmaiar. A minha irmã enfrentava um dilema cruel. Por um lado, queria que as pedras fossem recuperadas e o ladrão castigado... Por outro, temia pela sorte do homem que o seu coração teimava em acolher.

 

Esta espera angustiava-me... Mesmo que Hakon tivesse deixado os domínios do Povo da Terra mal recebera o recado do rei viquingue, só chegaria amanhã, ao fim do dia. E eu temia que algo de grave sucedesse até lá! O ar encontrava-se pejado de energia latente, que ameaçava despertar numa explosão sem precedentes. Começara a senti-lo no vento, no instante em que o Dragão dos Mares se fizera, ao ancoradouro da Terra dos Carvalhos, como se uma força ancestral e superior tivesse despertado, e sussurrasse o meu nome. Não compreendia o que isto queria dizer... mas não agourava nada de bom!

Apesar de não me apetecer jantar, desci para evitar que os ânimos se deteriorassem ainda mais. Saber que, neste momento, Aesa gargalhava ante a nossa inércia forçada, exasperava os homens para além da razão. Mil e uma propostas para invadir a Floresta Sombria e destruir a muralha de espinheiros foram colocadas sobre a mesa, mas todas já haviam sido experimentadas no passado, com resultados nulos ou desastrosos para a nossa gente.

— No último ano, o meu filho Magnor dedicou-se a espiar os Vândalos — pronunciou-se o rei. — Fez prisioneiros e interrogou-os, explorou território selvagem e desenhou mapas... Mandei chamá-lo para que partilhe a sua experiência conosco e nos diga se existe alguma possibilidade de ludibriar as defesas mágicas, que nos tenha escapado. Com os seus conhecimentos do terreno e a sabedoria de «O Que Tudo Vê», haveremos de descobrir uma solução para este enigma.

Cerrei os dentes para me impedir de soprar de desprezo. Se a nossa salvação dependia de Magnor, era melhor apressarmos a morte para evitarmos o martírio! Seria Steinarr tão ingênuo que confiasse na competência e boa índole do filho mais novo? Felizmente, «O Que Tudo Vê» não permitiria que o príncipe fizesse nenhum disparate.

Sentada à minha frente, Melody encontrava-se alheada das conversas. Olhava para as travessas de comida como se temesse que estas fossem atacá-la. As suas faces estavam lívidas... e os vômitos não tardaram a fustigá-la. Antes que eu pudesse esboçar um movimento de auxílio, já a minha mãe estreitava o seu corpo franzino. Murmurou-lhe algo ao ouvido e Melody confirmou, abrindo um largo sorriso.

— Estás indisposta, meu amor? — perguntou Aled, sempre atento à esposa. — Tia Catelyn, o que é que a Melody tem?

A minha mãe sorriu carinhosamente e incentivou a sobrinha:

— Queres ser tu a contar a boa nova ao teu marido, querida?

As faces da minha prima ganharam cor, incendiadas pelo embaraço.

— Nós... — sussurrou quase imperceptivelmente, olhando em redor como se desejasse que mais ninguém a escutasse. — Nós vamos ter um filho, Aled!

O meu primo gritou tão alto que sobressaltou o salão. Alguns homens levantaram-se com a mão no punho das espadas, buscando sinais de um invasor. Sem se preocupar com as boas maneiras, Aled saltou por cima da mesa, derrubando tudo o que se encontrava no caminho, até apertar Melody nos braços, bradando extasiado:

— Vou ser pai! Eu vou ser pai!

A consternação que marcava o jantar cedeu lugar a aplausos e felicitações. Por momentos, Aesa e os seus Vândalos foram esquecidos, e o jovem casal tornou-se o centro das atenções. Todos partilhávamos da sua alegria. O anúncio da chegada de uma criança só podia ser um sinal de boa ventura. O tio Stefan estava especialmente eufórico. Este seria o seu primeiro neto!

Apenas eu me apercebi de que uma figura magra e encurvada pela idade entrara no salão, movendo-se com a ajuda de um maravilhoso bordão de madeira negra, trabalhado pelos mais habilidosos artífices da raça Superior. Parecia uma manifestação divina; o branco das vestes, da pele e dos cabelos compridos irradiando uma luz que cegava o olhar humano. Atrás de «O Que Tudo Vê» vinham dois guerreiros do povo de Lyria e os mensageiros do meu pai. Como era possível que já estivessem aqui?

O feiticeiro bateu com o bordão no chão de pedra, e o eco estrondeou, sobrepondo-se ao vozeirão dos homens. Todos os olhares se fixaram nos recém-chegados e ergueu-se um coro de reverência. Steinarr foi o primeiro a avançar, curvando-se num cumprimento respeitoso:

— Se bem-vindo à minha casa, venerável! A tua presença é um conforto para os nossos espíritos.

— É um prazer rever-te, rei-urso — respondeu «O Que Tudo Vê», num tom cortês. — Saúdo-te, e saúdo a tua casa e os teus convidados.

— Como conseguistes chegar tão rápido? — indagou o jarl, dando voz à minha interrogação.

— Sabia que vos encontráveis a caminho — esclareceu o avô. — Por isso, iniciei a minha jornada há dias.

— Então, Sabeis que três das pedras mágicas foram roubadas? — interferiu a minha mãe.

— Sim — assentiu o feiticeiro. — Todavia, essa contrariedade, apesar de grave, terá de aguardar o meu regresso.

— Regresso? — repetiu o rei com estranheza. — Mas, se acabaste de chegar...

«O Que Tudo Vê» colocou a mão enrugada sobre o ombro de Steinarr.

— Escuta-me, rei-urso! A minha chama extingue-se a cada instante que passa, e nenhum homem, Viquingue ou Aliado, pode contrariar os sortilégios dos mestres da Arte Obscura. Só existe uma forma de deter o progresso das trevas... — Encarou-me subitamente e estendeu-me a mão. — Edwina, herdeira do meu sangue, chegou o momento de subires a Montanha Sagrada e abraçares o teu destino, diante da Pedra do Tempo!

O chão fugiu-me debaixo dos pés. Muitas vezes, ao longo da minha ainda curta existência, imaginara o que sentiria ao enfrentar esta situação. Porém, agora surpreendia-me aterrada... Por que é que o coração me dizia que algo estava errado?

— Avô... — murmurei, abrindo a mente para que ele assimilasse as minhas dúvidas e temores. A sua resposta foi pronta:

«As forças do mal evoluíram mais céleres do que o previsto. Quando a Lua governar o céu nas Terras do Fogo, Sigarr entregará a alma do seu pupilo às trevas. Se o destino de Edwin for cumprido antes do teu, jamais conseguirás superá-lo. Não receies! A tua essência de Guardiã está desperta. Vem, Rainha do Sol! As rodas do tempo giram contra nós...»

Era noite cerrada. Porém, as copas das árvores da Montanha Sagrada resguardavam a luz irradiada pelo solo, criando um ambiente mágico e exclusivo. A brisa quente e úmida colava-se à pele e eliminava os vestígios de cansaço do meu corpo. Os cavalos avançavam por entre um nevoeiro cintilante; um rio de cores dispersas que se misturavam e fundiam à nossa passagem.

Uma alcatéia seguia-nos de perto — os guardiões das almas atormentadas, que esperavam a redenção para alcançarem o almejado descanso. Os mestres da Arte Luminosa podiam contar com o apoio destas criaturas sagradas, da mesma forma que os mestres da Arte Obscura se serviam das almas danadas. Porém, pelo que eu constatava, também aqui o equilíbrio da magia fora afetado nos últimos anos. A alcatéia de Lobos Negros não parava de crescer, enquanto a de Lobos Cinzentos se extinguia pouco a pouco. O mal enraizava-se na Terra, e aqueles que possuíam o poder de combatê-lo eram cada vez menos... e mais fracos.

A medida que avançava, os meus temores dissipavam-se. «O Que Tudo Vê» dissera que a minha essência de Guardiã despertara, e eu devia confiar no seu julgamento. Custara-me deixar o castelo para trás e a minha mãe lavada em lágrimas de inquietação... Mas o meu destino não podia esperar! Edwin estava prestes a tornar-se um mestre da Arte Obscura e eu tinha de superá-lo em excelência. Falhar não era opção!

Saímos do bosque e deparamos com a visão deslumbrante da Pedra do Tempo, iluminada pelo fogo que brotava da terra, flamejando com a energia das estrelas que alimentava o seu cerne. Aceitei a ajuda de «O Que Tudo Vê» para desmontar e apertei a sua mão. O nevoeiro colorido envolveu-nos e conduziu-nos à Pedra do Tempo. A magia latejava-me no sangue e a voz do meu mestre refrescava-me o espírito, alimentava-me a coragem:

«Nós somos Ar, somos Fogo, somos Terra e somos Água. Temos as estrelas como berço e o universo como casa. Sabemos o porquê do que foi e o rumo do que ainda há de ser. O passado não nos guarda segredos. O futuro pertencenos. Este é o legado do Dragão — o Conhecimento Absoluto que vive na magia da Lágrima do Sol...»

A Lágrima do Sol estava nas minhas mãos, não transparente, mas escarlate; uma bola de fogo vivo, um pedaço de uma estrela. E pulsava como um coração em sobressalto. A energia que ela emanava espalhava-se pelos meus braços, pelo tronco, até me envolver por completo. Era capaz de sentir cada osso do meu corpo, cada músculo, cada gota de sangue até à mais ínfima partícula. Eu era Ar, Fogo, Terra e Água. Eu era poder!

«No dia em que nasceste, escolhi-te para continuares a minha missão, Edwina, filha de Throst; minha carne e meu sangue. Que o Dragão da Montanha saiba que tu és a Guardiã da Lágrima do Sol; senhora do seu saber e da sua vontade; a mais sábia de entre os sábios...»

As palavras de «O Que Tudo Vê» diluíam-se com o distanciamento da realidade. O meu ser fragmentava-se numa miríade de partículas de energia pura e viajava pelo tempo e pelo espaço, sobre as estrelas e para além delas, rumo ao infinito. O meu grito preenchia o universo. Era tudo... Era nada... Era, simplesmente. Toda eu existia sem forma. Força e poder. Vida e morte. Bem e mal. O destino vergava-se diante da minha vontade...

— Rainha do Sol...

O apelo repetiu-se, num eco que se propagou indefinidamente. Não precisei de buscar Aqueles que me interpelavam. Eles encontravam-se dentro e fora de mim. Existiam e governavam. Continuaram:

— Vens até nós incompleta! Sem o teu par, nada temos para te oferecer. Volta e recupera o que perdeste. São necessários dois para fazer um...

De súbito, as vozes calaram-se e a luz dissipou-se. Caí num vazio gélido, gritando desamparada, subitamente consciente do meu corpo mortal. O ar rasgava-me a pele e a mente contraía-se em desespero. Onde estava? De onde viera? Para onde ia? Quem era eu, afinal ?

«Edwina, filha de Throst e Catelyn...»

Caminhos cruzavam-se à minha frente. Para onde me dirigir? Qual deles escolher?

— Avô! — clamei em agonia; a vida precipitando-se diante dos meus olhos como um raio. O coração que batia ao mesmo ritmo do meu distanciava-se cada vez mais. As nossas essências apartavam-se... Um ser rasgava-se em dois.

— Não!

Prendi o fôlego, estreitei os olhos e cerrei os dentes. Estava a ser posta à prova, como tantas vezes antes. Não cederia sem lutar! Era Edwina... E seria Guardiã da Lágrima do Sol!

Este pensamento devolveu-me a lucidez. O meu corpo deteve-se e a razão sobreveio. Encontrei-me sobre a Montanha Sagrada, pairando por cima da Pedra do Tempo. Os dedos sedosos e convidativos das labaredas mágicas que a envolviam escondiam um pico afiado como uma espada gigante, disposta a trespassar aqueles que não fossem dignos de servi-la. Eu escapara à morte por um triz!

Nas minhas costas, o ar ganhou vida, oscilando num frenesi de energia. Voltei-me lentamente, preparada para enfrentar o Guardião. O vento provocado pelo bater das asas da colossal criatura quase me arrancou os cabelos. Fixei o seu olhar estrelado, sem temor. Ele estava encarcerado entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, ao passo que eu era real e dominava a Lágrima do Sol, um dos cristais que o prendiam à existência concreta. Não seria eu quem se inclinaria perante ele! Seria ele a dobrar-se diante de mim!

O dragão escancarou a bocarra num urro de arrepiar. O seu olhar penetrou no meu, e as nossas essências chocaram-se e fundiram-se, para depois se separarem e recuperarem a forma original: ele, um deus de poder e conhecimento; eu, uma mulher... metade humana, metade feiticeira. Foi tudo tão rápido que mal tive tempo de recobrar o fôlego. Nas minhas mãos, a Lágrima do Sol retomava o seu brilho celestial; o mesmo brilho que fulgia no olhar do Guardião, quando a sua voz me troou na mente:

«Reconheço-te vitoriosa, Edwina, filha de Throst! Aqueles que governam os destinos do universo determinaram que o Poder e o Saber da Lágrima do

Sol servirão a tua vontade. Contudo, lembra-te de que existe um preço a pagar pelo Conhecimento... E um dia, regressarei para reclamar o que me pertence! »

Sentia-me cansada... tão, tão cansada! Todo o meu ser clamava em agonia, ordenando-me que regressasse ao corpo e mergulhasse na doce inconsciência. Era assim que a magia funcionava. Depois de despender tão grande quantidade de energia, era crucial repousar. Porém, quando o dragão se desvanecera, não fora a satisfação da vitória que acabara de alcançar, a honra e a responsabilidade de me ter tornado Guardiã da Lágrima do Sol, que me ocupara a mente. Fora Edwin... e a terrível certeza de que passaria o resto dos meus dias ferida, rasgada, incompleta, se a nossa separação se concretizasse.

Jamais esqueceria o terror vincado no semblante de «O Que Tudo Vê», ao compreender o que eu tencionava fazer. Fechara-me aos seus apelos, e ignorara o desespero com que ele apertara as mãos inertes e geladas do meu corpo inanimado. Se cedesse à tentação de quedar-me para inspirar um simples fôlego, acabaria por vingar-me à exaustão, e Sigarr venceria.

A minha essência viajou até à ilha maldita, concentrando as últimas forças na busca pela energia vital de Edwin. Quando a encontrei, deixei-me cair, qual bola aos trambolhões por uma encosta. No País dos Viquingues, o dia estava prestes a nascer, o que significava que, nas Terras do Fogo, a noite se acomodava. Tive a ligeira percepção de luz dispersa, fogo vivo e escaldante, brotando da terra como água... e gritos; uma terrível algazarra de latidos e uivos. Depois, esmaguei-me no solo.

O cheiro a enxofre e o calor insuportável atingiram-me de imediato. Nem sequer tinha defesas para contrariar a ação dos Elementos sobre o meu ser espiritual. Entreabri os olhos devagar, esforçando-me por ver através do fumo que me cercava. Estava no exterior das grutas, ao ar livre... rodeada por um silêncio esmagador. Teria delirado ao julgar-me prostrada no centro de uma assuada? Só podia esperar que sim, porque de outra forma...

— Sê bem-vinda aos meus domínios, Edwina, filha de Throst e Catelyn, herdeira de Hakon, meu querido primo... e de Aranwen, minha saudosa noiva! Por que demoraste tanto?

Reconheceria esta voz na agitação do pior dos pesadelos... E este era o meu maior pesadelo! Inerte e totalmente vulnerável, senti o chão escapar-se e a minha essência a ser capturada, como se de um corpo sólido se tratasse. Poucos seres tinham poder para tal... Mas Sigarr era um deles! Ignorou a guincharia que recomeçara e forçou-me a encará-la, apertando-me o rosto com dedos de aço. O seu olhar azul trespassou-me, e a energia nele contida percorreu-me da cabeça aos pés, devorando a ínfima réstia de alento que o pânico me restituíra. Atrás de mim, gerava-se um tumulto. O rosto do feiticeiro resplandeceu com um sorriso de puro deleite, mas o seu desprezo era declarado quando exclamou:

— Moça, tu és ainda mais néscia do que a tua mãe! Abruptamente, expôs-me aos olhos da multidão. Estávamos num dos pontos mais altos da ilha e os demônios espalhavam-se por toda a parte: espezinhavam a terra ardida, saltavam de rocha em rocha e latiam num frenesi tresloucado, enquanto sacudiam as cabeças para exibir os cornos afiados e chicoteavam o solo com as caudas. Vulcan, o seu soberano, marcava posição ao lado de Sigarr... E Edwin encontrava-se diante de mim, apesar da razão que me restava se negar a reconhecê-lo.

O corpo do meu primo, desprovido de vestes, estava coberto por uma papa feita de cinza e de uma substância espessa e vermelha... inequivocamente sangue! Do pescoço pendia-lhe uma mistura repugnante de fios adornados com ossos humanos. Os seus dedos fechavam-se no cabo de um punhal, cuja lâmina brilhava à mercê das chamas das fogueiras. E ele fixava-me como se não acreditasse nos seus olhos; a boca escancarada num misto de choque e horror.

A dois passos, um rapaz estrebuchava, acorrentado de mãos e pés a duas colunas de rocha fina, esculpidas com símbolos que prenunciavam desgraça. Teria a idade de Darrin, se tanto! Devia tratar-se de um náufrago, vítima dos sortilégios dos dois caçadores de almas, como tantos outros, e preservado para a ocasião. Também estava nu, e a sua pele alva contrastava com o preto e vermelho da noite, da rocha, do mar e das chamas. Os seus gritos perdiam-se por entre a restante loucura. Suplicava-me por ajuda... Como se eu estivesse em condições de provê-la!

— Contemplai a nova senhora da Lágrima do Sol! — declamou Sigarr para os seus vassalos. — Fizeste um excelente trabalho, Loki! A donzela mal enfrentou o Guardião da Montanha e já acorre em teu auxílio. Porém, tenho uma novidade para ti, Guardiã! O Loki não precisa de ser salvo! Ao meu lado, viverá uma eternidade de glória! — Baixou a voz e encostou os lábios ao meu ouvido, lascivamente, divertindo-se com o meu tremor. — Acreditaste que era possível invadir a minha casa e roubar o que me pertence, debaixo do meu nariz, ignara criatura? A tua presença aqui foi planeada desde o primeiro dia! E, este momento, antecipado e ardentemente desejado! Agora, chamarei o teu corpo, e, ao meu lado, assistirás a um verdadeiro ritual de iniciação.

Os demônios aplaudiam em êxtase. Vulcan continuava impassível, mas o seu olhar ferino e desconfiado não abandonava Edwin, como se aguardasse por uma reação à minha presença. Também eu esperava... mas por um milagre! Nem tudo podia ter sido mentira! A nossa amizade... O elo que nos tornava indivisíveis... Apesar do aviso da Pedra do Tempo, e de saber que a sua alma ruía na direção das trevas, eu viera ao encontro do meu primo, movida por uma confiança cega... por um sentimento tão poderoso que me manipulava a vontade! Amor... Sim, amor!

«Edwin...»

Os seus lábios cerraram-se, acusando perturbação. Sem duvidar por um instante da lealdade do pupilo, Sigarr prosseguiu, num sussurro tormentoso e rude:

— Queres antever o espetáculo que preparei em tua honra, Rainha do Sol? Quando a Lua reinar sobre nós, Loki beberá o sangue inocente e pejado de vida deste rapaz, diretamente do coração. Depois, a sua essência abrir-se-á à Arte Obscura... E será como um verdadeiro mestre de magia negra que enfrentará o Guardião da Montanha, e herdará o meu poder! Por fim, o Rei da Lua reclamará o teu corpo e plantará a sua semente no teu ventre! Não foi isso que sempre desejaste; estar nos seus braços, desfrutar do seu ardor? Esta noite, a herdeira daqueles que me traíram conceberá um genuíno servo da Arte Obscura! Um deus que governará a Terra... de acordo com a minha determinação, tal como o seu pai!

A perplexidade no olhar de Edwin revelava o desconhecimento da última parte do plano do feiticeiro. O seu peito oscilava, ao sabor da respiração descompassada, enquanto os dedos se crispavam sobre o punhal. Apesar de ambicionar o poder que lhe era oferecido, ele ignorava a Profecia do Filho do Dragão... assim como a intenção de Sigarr de me aprisionar e concretizar a sua vingança. Sabia que, como Rei da Lua e Rainha do Sol, mais tarde ou mais cedo teríamos de nos confrontar... mas nunca lhe passara pela cabeça que seria desta forma!

— Edwin... — apelei, em busca de um vestígio de luz na sua alma torturada. — Sigarr jamais abdicará do seu poder... Quando tiver o que almeja, matar-nos-á aos dois!

O feiticeiro gargalhou, deleitado com o meu desespero. Sem aguardar por uma resposta, puxou-me ao encontro do seu olhar glacial e rugiu:

— Estás pronta para enfrentar o teu destino, Guardiã?

Eu teria gritado se tivesse força, quando o poder execrável do mestre da Arte Obscura agitou cada partícula da minha essência. Deitado indefeso na sombra da Pedra do Tempo, o meu corpo fragmentava-se sob a influência de um dos mais poderosos sortilégios malignos. Na Ilha do Fogo, o meu ser ganhava consistência e perdia o brilho da indefinição espiritual. E a dor daí resultante era indescritível!

Então, inesperadamente, o processo começou a reverter-se. Na Montanha Sagrada, «O Que Tudo Vê» socorria-se de um contra-feitiço para me salvar. Tentei ignorar o sofrimento pungente que paralisava o próprio pensamento e concentrar-me nessa energia limpa. Era, porém, uma batalha perdida! O vigor de Hakon tornara-se inferior ao de Sigarr, no instante em que me transmitira o seu poder de Guardião. E eu, fraca como estava, nem conseguia estalar os dedos.

— Solta-a... — tartamudeou Edwin, num sussurro engasgado. O tempo deteve-se; a minha sorte suspensa nesse frágil fio de voz.

Vulcan rugiu, exibindo as presas fenomenais e, de imediato, os demônios interromperam as danças alucinadas. Sigarr hesitou, encarando o seu protegido com um esgar incrédulo. O choro do jovem que estava prestes a ser sacrificado era o único som que perturbava os ruídos da noite.

— Solta-a, imediatamente! — repetiu Edwin com maior convicção, apontando o punhal ao rei dos demônios e ao seu mentor. — Serei teu escravo por toda a eternidade, mestre... mas terás de libertá-la, já!

— Eu avisei-te de que ele acabaria por te atraiçoar, Sigarr — rosnou Vulcan, distendendo as garras lameliformes. A pele escarlate do seu rosto bestial, enrugada por centenas de anos de maldade, assumiu uma tonalidade negra. Os olhos chamejaram e as narinas libertaram vapor. Preparava-se para atacar.

— Como te atreves a afrontar-me? — mastigou o feiticeiro, num tom pejado de ameaça.

O meu primo endireitou os ombros e manteve-se irredutível:

— A liberdade da Edwina é o meu preço para continuar ao teu lado. O corpo de Sigarr ficou tenso. Bufou de desprezo, tremendo de raiva. A minha satisfação de ver Edwin insurgir-se contra o seu odioso mestre desapareceu, no instante em que um calor insuportável me fulminou. O meu coração falhou uma batida, duas, três, quatro...

— A tua vida pertence-me, néscio aprendiz! — troou o feiticeiro. — Se queres conservá-la, apressa-te a celebrar o ritual! Depois, tu próprio chamarás o corpo desta imprestável e cumprirás a minha vontade, enquanto decido se mereces que releve a tua insurreição! De outra forma, a Rainha do Sol morrerá de imediato... E tu serás a minha dádiva a Vulcan!

Na Montanha Sagrada, o meu corpo convulsionava debaixo das mãos de Hakon. Na Ilha do Fogo, à mercê de Sigarr, a minha essência extinguia-se pouco a pouco. Com o olhar preso no meu, Edwin arquejava de aflição. Decidiu-se a avançar para o rapaz, que se debatia apavorado, e preparou-se para desferir um golpe certeiro, enquanto murmurava:

— Isto é o melhor que posso fazer por ti! — E espetou-lhe o punhal no peito... Só que, em vez de lhe expor o coração, como o funesto ritual determinava, empurrou a lâmina até perfurá-lo.

O grito do jovem mal se formou na garganta. O seu corpo franzino pendeu sem vida, suspenso das correntes, sangrando abundantemente. Edwin recuperou a arma e voltou-se para nos encarar. Algo mudara nele, num piscar de olhos. Seguro e altivo, bradou num tom que fez a ilha estremecer:

— Eu desafio-te, Guardião! Exijo um duelo pela posse da Lágrima da Lua e pela vida da Rainha do Sol. — Exibiu a tatuagem que lhe rodeava o pulso, onde o dragão se movia ao encontro da Lua, animado pela magia do seu sangue. — Tu próprio me escolheste e marcaste para teu sucessor! Agora, reclamo esse direito aos olhos do Guardião da Montanha!

Julguei que era o fim! Porém, para assombro do meu agonizante ser, o ardor que me queimava finou e o mestre da Arte Obscura libertou-me. Tombei aos seus pés qual folha seca, e, após um fôlego dorido, o meu coração recomeçou a bater. Ouvi Sigarr volver-se, com o escárnio a distorcer-lhe a voz, demasiado orgulhoso para recusar tamanha afronta à sua autoridade:

— Se pretendias usurpar-me o poder, vil traidor, devias ter tido a inteligência de concluir o ritual. Como Sacerdote da Arte Obscura, talvez pudesses sonhar com a vitória! Assim, preso à tua reles humanidade, serás esmagado como um verme...

— Quem sabe se a Lágrima da Lua não está cansada de pactuar com as trevas? — cortou Edwin, assumindo uma posição de defesa, com o punhal ensangüentado em riste. — Talvez abrace esta oportunidade de servir um novo mestre!

O feiticeiro gargalhou asperamente, ante a descoberta de que Edwin não lhe pertencia. Restava-lhe esquecer os anos que investira na sua preparação, e eliminar a ameaça que ele constituía. E, para que tal se verificasse, os rituais tinham de ser respeitados; ninguém podia interferir numa disputa de honra! Com um gesto simples, incendiou um círculo mágico em nosso redor, isolando-nos dos demônios que latiam enlouquecidos. Depois, retirou o cristal da Lua do esconderijo das suas vestes e permitiu que este levitasse, atiçando o pupilo:

— Contempla-o uma última vez, fedelho insolente! Quando acabarmos, lamentarás amargamente o tempo que me fizeste perder! Sempre foste uma decepção... Se a tua mãe aqui estivesse, matar-te-ia com as suas próprias mãos!

Edwin investiu adiante com um grito irado. Sem se perturbar, Sigarr deteve o seu avanço, criando uma barreira de energia contra a qual o aprendiz chocou, caindo para trás. Debaixo dele, a rocha fendeu-se e vomitou fogo, forçando-o a um salto prodigioso para se pôr a salvo. Ainda assim, ficou com as costas seriamente queimadas, em carne viva... mas, apesar do seu rosto se distorcer num esgar de dor, o meu primo não soltou um queixume.

Assumindo um sorriso mordaz, Sigarr puxou pelo cinto que lhe cingia as vestes e este, nas suas mãos, ganhou vida sob a forma de um chicote de energia. A ostentosa arma estalou no chão, soltando faíscas ao provocar o rival. Edwin estendeu a mão e o punhal que perdera voou ao seu encontro. Desta vez, manteve-se alerta... E o ataque do feiticeiro não se fez esperar!

O chicote rasgou o ar e o meu primo desviou-se, rebolando sobre o chão que se liquefazia. Outro ataque obrigou-o a saltar, mas, mal tocara o solo, já o cinto de luz lhe flagelava as pernas, desequilibrando-o. Desta vez, caiu sobre o peito e o seu grito de dor rasgou-me a alma. Só a sua extraordinária concentração lhe permitiu levantar-se. Tinha a pele em chaga... Contudo, não se deu por vencido! Mal pude acreditar na sua resistência, quando uniu as mãos com um berro aguerrido, deixando um vapor gélido suspenso entre elas, ao afastá-las. E, antes que Sigarr deslindasse o seu intento, tombou de joelhos e enterrou os dedos nas fendas ardentes.

A terra começou a tremer. O círculo de fogo ameaçou apagar-se, quando a lava solidificou bruscamente e o solo congelou em redor de Edwin. No exterior, os demônios guinchavam assustados. O frio chegou até mim como uma bênção... Mas Sigarr não se deixou impressionar! Com a mestria de séculos de prática, fustigou novamente o pupilo, enrolando a ponta do chicote no seu pescoço. Depois, esticou-o com veemência, derrubando Edwin e arrojando-o pelo chão, até o sangue das feridas abertas na sua carne massacrada ocultar o brilho gélido da rocha.

Sufocado, o meu primo tentou evitar o estrangulamento, afrouxando o aperto com os dedos. O seu martírio estava para além da imaginação... E tudo por minha causa! Tinha de fazer alguma coisa... Mas o quê, se não me restava um pingo de energia?

Então, a luz irradiada pela Lágrima da Lua, suspensa sobre as nossas cabeças, atraiu o meu olhar. A sua arrebatadora essência recordou-me a conversa que tivera com a minha mãe. Se não estivesse ao serviço da Arte Obscura, a Lágrima da Lua seria tão benévola como a Lágrima do Sol. Afinal, tinham em comum a inocência do Conhecimento! A forma como os Guardiões as manipulavam é que definia a natureza da sua magia. E se Edwin estivesse certo? E se a Lágrima da Lua desejasse um novo mestre; alguém que lhe devolvesse a pureza primordial?

«Edwin... O cristal! Reclama o cristal!»

O meu primo continuava a estrebuchar na ponta do chicote de Sigarr, banhado no seu próprio sangue. Temi que não escutasse o meu débil apelo... Porém, de imediato, o seu braço elevou-se na direção da Lágrima da Lua, num chamamento silencioso mas pleno de convicção.

E o inimaginável aconteceu! O cristal que se mantivera a pairar, observando impassível a disputa dos dois rivais, voou até à mão de Edwin e aninhou-se entre os seus dedos, como se estivesse destinado a pertencer-lhe. Perante tamanha audácia, Sigarr praguejou e tentou atrair o pupilo para si, puxando pelo chicote. Qual não foi a sua surpresa quando este se partiu... O sortilégio estava desfeito e Edwin finalmente livre!

— Louco! — rugiu o feiticeiro, estendendo o braço para reivindicar a sua herança de sangue. — Não podes superar o meu poder!

Edwin levantara-se e, na sua mão, a Lágrima da Lua libertava centelhas de luz. Disposto a provar que os dias de glória do mestre da Arte Obscura tinham terminado, abriu os dedos e entregou ao cristal a escolha do seu senhor. Apesar dos esforços de Sigarr, que lhe cobriam a testa de suor, este não se moveu.

— Não é possível — tartamudeou a abominável criatura. — Eu sou o Guardião da Lágrima da Lua! Ela vai obedecer-me!

O seu desespero assumiu proporções descomunais, ao verificar a derrota. Mirou-me de esguelha, com os dentes cerrados... E, subitamente, arremeteu contra mim, berrando:

— Vulcan!

Edwin saltou sobre o feiticeiro e interceptou-o. Tombaram no chão, enrolados num ardor enraivecido, cientes de que tudo, inclusive a sobrevivência, dependia do resultado deste confronto. No exterior do círculo, os demônios respondiam ao apelo do seu senhor e tentavam atravessar as chamas, mas a magia ritual repelia-os. Habituados a ter o fogo como aliado, as criaturas não compreendiam por que o seu ataque falhava e insistiam, determinadas bramindo enraivecidas sempre que forças invisíveis as catapultavam para longe.

Praticamente em cima de mim, Vulcan marrava a barreira mágica com os fabulosos cornos, provocando distorções no seu equilíbrio. Arrastei-me para o centro do círculo, buscando uma segurança que sabia vã, e deparei com a Lágrima da Lua, que caíra da mão de Edwin no fulgor da contenda, brilhando como uma estrela negra. A dois passos, mestre e aprendiz sovavam-se violentamente. Sigarr já sangrava do sobrolho e do lábio, mas enterrara as unhas nas queimaduras de Edwin como se pretendesse separar-lhe a carne dos ossos. As pernas de ambos entrelaçavam-se num abraço mortal. A rocha do solo, exposta a diferenças de temperatura extremas, quebrava-se sob os seus corpos e originava estilhaços afiados como lanças. Temi que a esperança estivesse perdida quando Sigarr encontrou o punhal de Edwin entre os pedregulhos, e o forçou contra a sua garganta, disposto a degolá-lo. A mão do meu primo opôs alguma resistência, mas era óbvio que a robustez centenária do feiticeiro acabaria por levar a melhor. O que fazer? O que fazer?

Estendi a mão ao encontro da Lágrima da Lua, receosa, convicta de que os meus dedos atravessariam a sua solidez, demasiado fracos para interagir com algo real. Porém, não só consegui agarrar o cristal, como este aceitou a minha essência, abraçou-a e reconfortou-a, de tal forma, que me senti de imediato mais forte.

Pus-me de pé, disposta a tudo para ajudar Edwin. A lâmina do punhal pressionava a sua pele e um fio de sangue escorria do corte... Não me bastava ser rápida. Tinha de ser eficaz! Uma hesitação, um passo em falso, e o meu primo morreria. A Lágrima da Lua guiava-me, pulsando entre os meus dedos, cada vez maior, cada vez mais pesada; a arma perfeita!

Elevei o braço e baixei-o com um ímpeto arrebatado, atingindo Sigarr nas frontes. A violência do impacto foi tal que o seu corpo voou de cima de Edwin, prostrou-se no chão e ali ficou estendido, sem se mover, sem soltar um gemido. O sangue jorrava da sua testa aberta, ensopava os longos cabelos dourados e espalhava-se sobre a pedra. Do lado de fora do círculo, os demônios detiveram as investidas e quedaram-se confusos e assustados, buscando a orientação do seu rei. Por entre o aterrador silêncio que consumia o ar, Vulcan deitou a cabeça para trás e soltou um urro que devorou a noite.

— Edwina...

Acorri ao apelo de Edwin e ajudei-o a suster-se. Desejei aninhar-me verdadeiramente nos seus braços e apaziguar o seu tormento. Os meus olhos não vertiam lágrimas, mas eu chorava quando as suas mãos envolveram a essência do meu rosto. Entreguei-me ao seu beijo sem remorsos, pois reconhecia que não podia existir outro homem na minha vida. Eu amava Edwin, com todas as forças do meu corpo e do meu espírito! Recordei as palavras de Lyria e senti-me enlevar. Este era o destino pelo qual estava disposta a dar a vida!

A algazarra dos demônios trouxe-nos de volta à realidade. Sigarr estava morto, mas uma ameaça não menos terrível aguardava-nos para lá do círculo mágico.

— Não temas, Rainha do Sol! — murmurou o meu primo solenemente. — Em breve estaremos em casa!

Sem mais delongas, tomou a Lágrima da Lua das minhas mãos. Afastei-me alarmada, ao verificar que o cristal pulsava vigorosamente, mudando de cor, de tamanho e de forma, à medida que sugava energia da terra, do mar, do próprio céu... e a transferia para o corpo do seu Guardião. Diante dos meus olhos, Edwin assumiu uma cintilação negra e as suas feridas começaram a sarar. Então, da mesma forma assombrosa como absorvera o poder, ele libertou-o de uma só vez, numa onda fulminante de luz, que me acariciou como uma brisa de Verão, mas assolou o círculo ritual e arremessou as grotescas criaturas pelo ar.

O esplendor mágico perdurou, transformando a noite em dia, iluminando o mar até perder de vista e o céu estrelado, onde a Lua ainda imperava. Quando se desvaneceu, constatei que a maior parte dos demônios tinha desaparecido; alguns jaziam no chão, inanimados ou mortos. As colunas de pedra onde o infeliz rapaz fora sacrificado encontravam-se vazias, talvez porque os monstros já tivessem dividido os despojos do cadáver. O anel de fogo onde se desenrolara o combate apagara-se. E o corpo de Sigarr desaparecera, resgatado por Vulcan.

Edwin caiu de joelhos, exausto. Quedei-me ao seu lado e busquei o olhar incrivelmente verde. Acabara de testemunhar o quanto o poder da Arte Obscura, aliado à magia da Lágrima da Lua, era perigoso. Porém, desta vez, a habilidade de extorquir a energia das coisas vivas ou inanimadas fora usada para uma boa causa. E tinha a certeza de que assim também seria no futuro, pois o novo guardião do cristal era um homem de coração puro.

— Temos de ir — arfou, tentando coordenar a respiração. — Vulcan e os seus servos fugiram... mas voltarão! Preciso de encontrar um lugar seguro para descansar; para reunir forças para fugir desta ilha maldita... E tu tens de recuperar a energia necessária para regressares ao teu corpo. O que fizeste foi muito perigoso, Rainha do Sol... E fizeste-o por mim...

Calou-se, com a voz embargada pela emoção. A tênue luz da Lua, verifiquei que o seu corpo estava coberto por manchas vermelhas; cicatrizes que o tempo acabaria por sarar. A energia que assimilara fora tão poderosa que lhe regenerara o cabelo queimado! Apreciei-o com olhos de mulher e cedi a um sorriso, acariciando-lhe o rosto com os dedos brilhantes da minha essência, enquanto replicava:

— O que tu fizeste também foi fantástico! És um homem livre, Rei da Lua!

Ele silenciou-me com um toque dos seus lábios, sussurrando ternamente:

— Só serei livre quando te tiver realmente nos braços, sem que nada nem ninguém nos possa separar! — Fez uma pausa e prendeu-me o olhar. — Esperarás por mim, Edwina? Renunciarás ao teu príncipe... e serás minha?

Foi a minha vez de calá-lo com um beijo.

— Eu sou tua desde o instante em que fomos gerados... E serei tua até morrer!

Os primeiros raios de Sol atreviam-se no firmamento, mas Edwin não ousava parar. A sua vontade era forte, ao ponto da exaustão prostrá-lo e ele continuar a arrastar-se, rumo ao mar. No segredo de uma das grutas da ilha encontravam-se alguns barcos pequenos. Estes eram a sua única esperança de fuga, mas tinha de alcançá-los, antes que o ódio dos demônios superasse o medo. Vulcan também era um ser mágico e sabia que, após tão extraordinário esforço, o poder da Lágrima da Lua enfraquecera e o corpo do seu guardião ansiava por repouso.

— Edwina... — murmurou a custo, com os olhos a fecharem-se, cambaleando sobre as rochas, escorregando, caindo e voltando a erguer-se, para cair mais uma vez. — Diz ao meu pai... que não lhe guardo rancor... A minha mãe era má... como Sigarr... Tinha... de ser detida...

— Tu mesmo lhe dirás isso — retorqui. — Não fales! Poupa as tuas forças...

— Volta para casa... — insistiu pela milésima vez. — Não é bom... manter a essência... tanto tempo... longe do corpo...

— Eu estou bem! — teimei. — Além disso, o meu corpo está seguro.

— Edwina...

— Chiu!

Já não faltava muito. A entrada da gruta ficaria visível assim que contornássemos o sinistro rochedo que se erguia adiante. Estávamos a atravessar uma escarpa perigosa, e um pé em falso resultaria numa queda fatal. Ele tinha de ser cuidadoso...

De súbito, os latidos tornaram-se audíveis. Edwin susteve a respiração e comprimiu os seus lábios. A sua concentração extinguiu-se e o corpo cedeu, rebolando pelo declive repleto de formações cortantes como espadas, até se deter, estranhamente retorcido, numa pequena plataforma açoitada pelas ondas da maré alta. Pairei até ele, muda de horror, mas suspirei de alívio ao ouvi-lo gemer. Pelo menos estava vivo!

— Edwin, levanta-te! — supliquei. — Ainda tens tempo...

Os seus olhos fixaram-me, marejados de lágrimas. Uma simples inspeção bastou para concluir que não iria a lugar nenhum. Tinha as pernas partidas... Numa delas, o osso espreitava pela carne, agressivamente branco contra o vermelho do sangue que jorrava em repuxo.

— Edwin...

Um urro ecoou sobre as nossas cabeças. No topo da escarpa, Vulcan anunciava a sua vitória. Atrás dele, o exército de demônios rosnava, prestes a precipitar-se contra a presa indefesa.

— Leva o cristal contigo... — murmurou Edwin, em agonia. — Guarda-o... Não permitas... que o Vulcan lhe deite a mão...

Eu não acreditava no que estava a ouvir! Ele não podia desistir!

— Edwin — apelei desesperada —, talvez o cristal ainda tenha energia...

— A Lágrima da Lua está apagada... como eu... — Abandonou-a sobre a pedra e começou a arrastar-se até ao precipício. — Mas, nenhum de nós... cairá nas garras dos monstros...

— Edwin...

Vulcan e as suas bestas desciam a escarpa a uma velocidade vertiginosa, usando as unhas afiadas para se equilibrarem, e saltando de uma forma que desafiava as leis naturais. Edwin estava à beira do abismo e eu não sabia o que fazer para detê-lo. Mesmo com o corpo são, ser-lhe-ia difícil sobreviver a uma queda nestas água infestadas de rochedos letais.

— Edwin...

— Voltaremos a encontrar-nos, Rainha do Sol...

E desapareceu, deixando um rasto de sangue atrás de si.

Gritei, apavorada. Voei adiante e enfrentei o vazio, sem me lembrar de que talvez ainda estivesse demasiado fraca para fazê-lo. Perscrutei a superfície ondulada do mar, em busca de um sinal do meu amado... Contudo, o seu corpo não emergiu uma única vez.

Os olhos da minha essência ferida voltaram-se para o penhasco. Vulcan estava prestes a fincar as unhas na Lágrima da Lua. Sem pensar, arremeti adiante e agarrei o cristal um instante antes dele. O vento provocado pelas suas garras fustigou-me os cabelos, mas escapei-lhe por um triz. Os demônios não podiam voar e latiam de frustração ao ver-me pairar, longe do seu alcance. Vulcan inclinava-se na beira do precipício, uivando e fumegando, enlouquecido pela raiva.

Por trás de mim, o Sol fazia uma aparição triunfal e o seu vigor era alimento para a minha magia. Com a Lágrima da Lua segura, encarei o rei do Povo do Fogo e gargalhei ante os seus urros. Sentia-me tão desfeita por dentro que a minha dor extravasava num ódio descomunal, que jamais pensara experimentar. Não era a razão que dominava os meus atos e sim o mais primitivo dos instintos. Clamei:

— Eu sou Edwina, Guardiã da Lágrima do Sol! Recorda-te do meu nome por toda a eternidade!

E libertei a magia sob a forma de raios, que chocaram contra a rocha e a fragmentaram em milhares de pedregulhos. Alguns demônios pereceram, fulminados pela luz alva. Outros, escorregaram às cambalhotas pela escarpa e tombaram no mar. A derrocada apanhou Vulcan desprevenido. O seu corpo colossal arriscou um salto para a segurança de uma plataforma vizinha, mas foi colhido por uma pedra aguçada, que o arrastou para o vazio, no instante em que a onda recuava. Foi com retorcido prazer que observei o rei das bestas, esmagado contra os rochedos, a ficar submerso pela água que se divertia a brincar com os seus cornos.

Depois, senti-me fraca... Pensar que podia perder a Lágrima da Lua no regresso à Montanha Sagrada nem me permitiu um último olhar para o mar, onde parte de mim encontrara finalmente o merecido descanso, após uma existência atormentada, cativa das profundezas ardentes do inferno.

 

— Edwin...!

Incontáveis vezes, durante os dias que se seguiram, despertei do delírio febril apenas para gritar o nome do meu amado. «O Que Tudo Vê» e a minha mãe não saíram do meu lado, atentos ao menor sinal de consciência. A preocupação vincada nos seus rostos acompanhava-me nos longos períodos de esquecimento, quando o meu ser deambulava pelo vazio da privação de sentidos. Aos poucos, o meu corpo recuperava do esforço a que eu o submetera e que quase me esgotara... Mas a minha mente devaneava, perdida numa absoluta negação da realidade. Edwin prometera que nos voltaríamos a encontrar! Aguardava-me... em algum lugar do mundo! Não morrera! Eu haveria de salvá-lo... Tinha de salvá-lo, ou a minha vida perderia o sentido!

Então, num desses momentos de estranho alheamento, «O Que Tudo Vê» segurou-me as mãos e falou-me com carinho:

«Devo deixar-te agora, querida neta! A jornada que me espera ainda é longa, e anseio pelo conforto do fim da viagem. A minha missão foi cumprida... Cabe-te a ti continuar a demanda pela justiça! Aprende a cada novo dia com satisfação, pois só o Saber te conduzirá à vitória. Protege a Lágrima da Lua, até que alguém digno da herança do dragão venha reclamá-la. Defende Lyria sem hesitações, pois no seu legado está o futuro do nosso povo. E não feches os olhos à esperança e o coração ao amor, Edwina... Um dia, quando menos esperares, encontrarás a felicidade que te está reservada.»

Beijou-me a testa e partiu, sem me permitir reclamar da sua decisão. O sono subjugava-me e era impossível manter os olhos abertos. Sonhei que deslizava sob as ondas do mar... E, à minha volta, bailavam formas que não podiam ser peixes nem homens, agitando os corpos compridos e elegantes, da cor da prata, ao som de hinos melodiosos que convidavam a nunca mais voltar a casa. Mas eu tinha que regressar... A minha família precisava de mim!

Inspirei o ar fresco com crescente satisfação. O odor ameno do Verão era um bálsamo! Havia flores novas na jarra. Os pássaros cantavam por baixo da janela do quarto. A luz delicada da manhã convidava-me a abrir os olhos. Uma mão forte e decidida acariciava a minha, suplicando por uma reação... O meu pai? Não...

— Edwin!

Sentei-me na cama, com os olhos bem abertos e os braços estendidos, ofegante de esperança e antecipação. O olhar cristalino que me aguardava escureceu, pejado de emoções contraditórias. Recuei ao reconhecer Ivarr, com um gemido de angústia a escapar-me da garganta. As lágrimas escorreram-me pelas faces, à medida que a memória regressava, acre e cruel. Perante a rejeição instintiva, o meu noivo limitou-se a murmurar numa voz sumida:

— Vou chamar a tua mãe. Voltarei quando estiveres mais calma.

A minha mãe entrou sozinha, e eu senti-me grata pela privacidade do reencontro. Abracei-a e chorei compulsivamente, até nada restar na minha alma além de um imenso vazio que jamais poderia ser suprimido.

— O Edwin morreu... — sussurrei por fim, descansando a cabeça no seu peito.

Surpreendi-me ao verificar que ela nada sabia acerca da tragédia. Pelo visto, «O Que Tudo Vê» resolvera entregar-me a decisão de revelar, ou não, a verdade. Comecei cautelosamente, mas descobri que era impossível calar-me. Partilhar a dor com a minha mãe tornava-a um pouco mais suportável. No fim, Catelyn respirou fundo e embalou-me, escolhendo as palavras antes de se pronunciar:

— Não te culpes, querida! Fizeste... até mais do que podias! Talvez devesse ralhar-te pela tua insensatez, mas não o farei. Compreendo o teu desespero. Também já arrisquei tudo por amor...

— Mas venceste! — atalhei com amargor. — E eu não fui capaz...

— Tu libertaste uma alma da escravidão e mostraste-lhe a felicidade! Guarda com carinho a lembrança da nobreza e da coragem de Edwin. Ele sacrificou-se para que o poder da Lágrima da Lua não voltasse a aterrorizar o mundo. Essa é a vossa vitória!

— A Lágrima da Lua...

Só agora recordava a batalha sem tréguas que travara contra a fraqueza para conseguir transportá-la até à Montanha Sagrada. Se não fosse a ajuda de «O Que Tudo Vê», ter-me-ia perdido no caminho. A imagem do cristal da Lua ao lado do cristal do Sol, debaixo da proteção da Pedra do Tempo, onde o meu corpo inanimado repousava junto da figura etérea do meu bisavô, parecia-me irreal; um produto da imaginação extenuada.

— Sossega, Edwina — aquietou-me a minha mãe. — A Lágrima da Lua encontra-se em segurança na Montanha Sagrada, longe do alcance da perversa ambição dos mestres da Arte Obscura.

— Mas o cristal foi-me confiado! — contestei sem entender.

— Por que escondê-lo, se o Sigarr já não pode reclamá-lo...? — Detive-me, sentindo os ossos gelarem dentro da carne, ao assimilar a desconfiança da minha mãe. — É impossível! Esse hediondo feiticeiro não pode estar vivo! Eu matei-o com as minhas próprias mãos...

— A morte do Edwin tem como conseqüência a imediata transição do seu poder para o anterior guardião — relembrou ela, com uma indulgência paciente. — Se o Sigarr também estivesse morto, o seu pai já teria descido da Ilha Sagrada para reclamar o que lhe pertence.

— Então... — gemi sufocada. — Foi tudo em vão...

— Não! — contrapôs a minha mãe. — O Edwin morreu livre... E, sem o apoio da magia do cristal, os poderes de Sigarr estão debilitados. Além disso, tu és a Guardiã da Lágrima do Sol! Neste momento, a vantagem pertence-te!

Eu não me sentia em vantagem... nem sequer sabia se desejava continuar a lutar. Tivera de perder Edwin para admitir que o amava. Agora, jamais seria feliz... E nem tinha tempo para chorar a minha perda! Enquanto eu agonizava, Aesa consolidava as suas defesas.

— «O Que Tudo Vê» não devia ter regressado à cidade de Lyria — desabafei, frustrada. — Como conseguiremos definir uma estratégia para combater os Vândalos e recuperar as pedras mágicas, sem a sua orientação?

A minha mãe fixou-me em silêncio; o sobrolho franzido, a respiração pesada... De imediato, percebi que algo acontecera... Algo terrível, que me escapara.

— Mama... — comecei suplicante. — O que é que se passa? O tempo arrastou-se... até ela indagar:

— O que te leva a pensar que «O Que Tudo Vê» voltou para os domínios da rainha Lyria?

— Ele despediu-se de mim esta noite — respondi, inquieta. — Disse que ia fazer uma viagem longa e... — detive-me, acometida por uma desconfiança tão terrível que nem me atrevi a exprimi-la em voz alta. A minha mãe suspirou e apertou-me as mãos, prosseguindo num tom comovido:

— Eu não descansei a partir do momento em que partistes para a Montanha Sagrada. A vossa demora desesperou-me... Por fim, decidi seguir-vos, e o teu pai acompanhou-me. Todavia, o que encontramos... — Fez uma pausa para recuperar a voz que se sumira. — Tu jazias inanimada, entre os cristais... E «O Que Tudo Vê»...

— Não... — gemi, negando com a cabeça.

— O teu pai levou o seu corpo para a gruta que o acolheu durante os anos de exclusão — continuou ela a custo. — E uma das passagens secretas da montanha abriu-se diante deles...

— Não é possível! — cortei, recusando-me a acreditar. — «O Que Tudo Vê» esteve sempre ao meu lado, aqui no quarto, velando pela minha recuperação! Só partiu esta noite... — Detive-me, sufocada, e sucumbi ao pranto. A minha mãe tornou a acalentar-me, replicando:

— O espírito do teu bisavô acompanhou-te, querida... O seu corpo repousa na Montanha.

— Foi por minha culpa... — balbuciei horrorizada. — Se não tivesse seguido Edwin... «O Que Tudo Vê» esgotou-se para me salvar! Eu matei-o!

— Não digas isso, Edwina! — objetou a minha mãe com severidade. — O teu bisavô ficaria muito zangado e magoado se te ouvisse! Eu não compreendia como a Lágrima da Lua regressara à Montanha... Mas, agora que me explicaste, admito que fizestes o que era devido. «O Que Tudo Vê» deu a vida por uma boa causa, e partiu satisfeito, com a garantia de que a sua missão será bem defendida!

Não tive alento para lhe responder. Todas as justificações me soavam vãs. Por que é que o destino se divertia a privar-me das pessoas que mais amava? Numa só noite perdera o meu mestre... e o meu amor. Ante tamanho desgosto, pensar que a Lágrima da Lua se encontrava na Montanha era um conforto ínfimo. Se não tivesse seguido o coração, «O Que Tudo Vê» estaria vivo... e Edwin também! Nesse instante de supremo desespero, jurei solenemente que nunca mais me deixaria cegar pelos sentimentos; jamais voltaria a tomar uma decisão que não fosse cuidadosamente ponderada! E agora? O que seria de mim sem a orientação do meu mentor?

 

A minha mãe encarregou-se de revelar o que acontecera na Montanha, mantendo privada a natureza dos meus sentimentos por Edwin. Aos poucos, fui recebendo a visita daqueles que me eram queridos e de todos escutei palavras de conforto e encorajamento. O tio Berchan foi o mais frio... Apesar de não o declarar, era evidente que me culpava pela morte do nosso mestre. No fim, foi Edwin McGraw quem voltou a surpreender-me. Fiz questão de falar-lhe a sós e entregar-lhe a mensagem que o seu primogênito me confiara. O meu tio escutou-me com atenção e acabamos abraçados; as nossas lágrimas declarando-nos aliados no sofrimento.

Essa noite foi passada em família. Os meus pais mimaram-me, Thora distraiu-me com o relato das suas últimas peripécias e Freya forçou uma centena de sorrisos tristes. O olhar da minha mãe denunciou que também ela se inquietava pela mais nova das gêmeas. Porém, este não era o momento certo para aflorar o assunto.

Dentro da proteção dos braços do meu pai, fui acometida por uma determinação obstinada. Ia recuperar as pedras mágicas! Ia enfrentar Aesa e destruí-la! E, quando a mestra da Arte Obscura jazesse aos meus pés, o seu esquivo irmão não perderia pela demora! Eu já não era apenas Edwina... Era a Guardiã da Lágrima do Sol! Tinha orgulho no meu sangue, na minha herança, na educação dos meus pais... e na amizade... no amor que, apesar de já não poder concretizar nesta vida, me acompanharia até à morte.

«Voltaremos a encontrar-nos, Rainha do Sol...»

Freya adormeceu na minha cama e acabou por quedar-se, quando os nossos pais e Thora se despediram. Acariciei-lhe os caracóis negros e ela aninhou-se contra o meu peito. Desejei ter poder para sarar as feridas do seu coração... E as chagas do meu! Que a Lágrima do Sol me desse forças para superar os intermináveis desafios que o futuro nos reservava! Talvez, se me dedicasse de corpo e alma à minha missão, conseguisse esquecer o amor que perdera...

Tornei a sonhar que nadava debaixo do mar. Ao meu redor, criaturas como nunca vira convidavam-me para dançar... Este era o Povo da Água: nem peixes, nem homens; elegantes e belos... Como é que eu podia estar tão envolvida numa realidade que me era desconhecida? Nada sabia acerca destes entes de sangue antigo, a não ser que eram mestres de ilusão, detentores de uma magia extremamente perigosa! As histórias de homens que se atiravam ao mar e se afogavam com um sorriso nos lábios, deslumbrados pelo canto das sereias, sempre me tinham causado arrepios. No fundo, o Povo da Água não devia ser muito diferente do Povo do Fogo, já que também se divertiam a matar sem nenhuma justificação!

Forcei-me a renegar à dança e a apagar da mente a estonteante melodia. Se, por alguma razão, o Povo da Água tencionava comunicar comigo, era melhor que o declarasse de uma vez! Eu não podia perder tempo a decifrar enigmas!

A manhã encontrou-me mais forte. Saí da cama e tomei banho sem ajuda. Todavia, como ainda não me restabelecera o suficiente para descer, a minha mãe deu instruções para que me trouxessem o pequeno-almoço ao quarto. Ajeitou-me as almofadas por trás das costas, enquanto Freya me estendia uma manta sobre as pernas. Ficamos boquiabertas quando Ivarr entrou, carregando um tabuleiro com pão quente, queijo, fruta e leite. Num piscar de olhos, elas deixaram-nos sós. Sem acusar embaraço, Ivarr sentou-se ao meu lado e perguntou:

— Como é que te sentes?

Parecia-me cansado, preocupado... triste! Estivera comigo no dia anterior, quando eu delirava... Devia ter-lhe sido penoso ouvir-me bradar por outro homem! Decerto ponderara e decidira quebrar o nosso compromisso. De qualquer forma, a ruptura seria inevitável! Agora, sabia que não o amava... Era justo que Ivarr seguisse outro rumo e buscasse a sua felicidade. Deixá-lo-ia falar, expressar a indignação... Assim, salvaria o seu orgulho e talvez ele anuísse em preservar a nossa amizade, que me era imensuravelmente preciosa.

— Ainda estou um pouco combalida — respondi, por fim. — Gastei todos os meus recursos...

— Quase morreste, Edwina! — atalhou, reprovador. — Foste muito imprudente! O que seria do nosso povo sem ti? E que faria eu, se te perdesse?

O meu queixo pendeu. A sua atitude não era coerente!

— Toma... — Estendeu-me um pedaço de pão barrado com queijo. — Quero que te recuperes depressa... Preciso de ti ao meu lado!

Quase me engasguei, tal o espanto. O seu olhar cintilava de uma forma estranha...

— Ivarr... Tens de saber que eu e o Edwin...

— O que é que há para saber? — cortou abruptamente. — Tu encontraste o teu primo e salvaste-o da influência de Sigarr, mas ele acabou por perecer. Sinto muito, querida! Conheço bem a dor de perder um amigo... Farei tudo o que estiver ao meu alcance para te ajudar a superá-la.

Eu estava cada vez mais confusa.

— O Edwin não era apenas um amigo — repliquei. — Nós...

— Também não era um amante, pois não? — interrompeu, sem me permitir acrescentar uma palavra. — Eu sei que estás perturbada; que mil e uma emoções se debatem na tua cabeça! Neste momento, tudo te parece demasiado intenso e insuportável... — Afastou o tabuleiro e segurou-me o queixo, aproximando o rosto. — Eu amo-te, Edwina! Não permitirei que mergulhes numa consumição sem retorno. O teu primo morreu com honra e a sua memória permanecerá para sempre no teu coração. Mas tu estás viva... E a nossa luta vai continuar! — Inclinou-se e beijou-me a face. — Agora, descansa. Voltarei mais tarde.

E saiu, deixando-me atordoada.

 

Aled e Melody irradiavam felicidade, ao contar-me que já tinham escolhido o nome para o filho. Se nascesse menino, seria Aled, como o pai e o avô. Se fosse menina, chamar-se-ia Aranwen. A minha mãe aprovou a decisão do casal. Mais animada do que no dia anterior, Freya aconselhou a prima a comer bastante e a beber muito leite, para que, quando o bebê nascesse, as suas maminhas estivessem cheias para alimentá-lo. Deitada ao meu lado, Thora observava-nos com um ar enfadado, tentando inutilmente mudar o rumo da conversa.

Quando Ivarr chegou, todos se despediram à exceção da Loba Prateada, que expressou bem alto o seu aborrecimento:

— Mas que palermas! Será que só sabem falar de bebês?

— Não gostas de crianças, Thora? — perguntou Ivarr, disfarçando um sorriso antes de se sentar aos pés da cama.

— Gosto! Mas o que é que existe de tão especial no fato de ter uma? Todas as mulheres as têm! Além disso, a barriga da Melody ainda nem começou a crescer!

— Quando estiveres prestes a ser mama, compreenderás o entusiasmo da tua prima! — retrucou o príncipe, piscando-me um olho.

— Eu? — gritou Thora, para lá de horrorizada. — Jamais! Uma guerreira não pode perder tempo com cueiros!

Ergui uma sobrancelha, surpreendida.

— Não disseste que ter filhos era um dos teus desejos, quando aceitaste namorar o Eric?

A minha irmã sacudiu os ombros, irritada com a observação.

— Isso foi antes de a Loba Prateada me ter escolhido para acolher o seu espírito! Agora, o meu futuro está nos campos de batalha e sobre as águas do mar.

— E o que é que o Eric pensa disso? — Foi a vez de Ivarr indagar, subitamente sério.

— O Eric gosta de mim como sou! — respingou Thora, saltando da cama. — Se desejasse uma parideira teria escolhido outra noiva! Por acaso, quando estás com a minha irmã, pensas em enchê-la de filhos?

A pergunta tinha a clara intenção de forçá-lo a recuar... e não podia ter sido feita em pior altura! Porém, com uma tranqüilidade admirável, Ivarr prendeu-me o olhar e respondeu:

— Sim, entre outras coisas...

A sua expressão era adorável; carinhosa, mas com uma pitada de malícia, como se não pudesse esperar para me amimar entre os seus braços. Senti-me corar e mal percebi quando a porta se fechou atrás de Thora. Estava cativa do olhar cristalino...

Quando a mão de Ivarr envolveu a minha, sustive a custo o impulso de recolhê-la. Ele iniciou uma conversa descontraída, que contemplava os mais variados assuntos: Fizera um belo dia de Sol, que desanuviara o espírito dos homens; o trabalho nas quintas fora produtivo e os barcos tinham regressado da faina carregados de peixe... Aos poucos, o meu constrangimento foi-se atenuando e dei por mim a participar. Fiquei a saber que o povo se inquietara com o anúncio da morte de «O Que Tudo Vê». Porém, agora que a nova do meu rápido restabelecimento passava de boca em boca, os viquingues aguardavam com impaciência a minha primeira aparição em público, como Guardiã da Lágrima do Sol.

Com uma perícia estonteante, Ivarr provou-me que o nosso povo me estimava e ansiava pela minha orientação, sem que eu sentisse a pressão da responsabilidade. Por outras palavras, se eu recuasse no compromisso que assumira de tornar-me sua esposa e princesa herdeira do trono viquingue, provocaria uma instabilidade grave numa sociedade já de si agitada.

A minha mãe regressou com uma malga de caldo de carne e Ivarr despediu-se com um beijo na testa. O seu propósito de abalar a minha resolução fora atingido. Observei-o enquanto se dirigia para a porta; o corpo alto e poderoso movendo-se com uma firmeza máscula, exalando virilidade. Era verdade que continuava a atrair-me... Aliás, não acreditava que nenhuma mulher conseguisse ficar-lhe indiferente! E era um bom amigo, um homem excelso e um líder nato. Mas não era por ele que o meu coração clamava!

— Queres contar-me o que se passa, querida? — questionou a minha mãe, intrigada.

Levei a malga aos lábios, uma e outra vez, saboreando o caldo rico e delicioso que ela cozinhava melhor do que ninguém, enquanto reunia coragem para confessar:

— Quis terminar o meu compromisso com o Ivarr. Tentei dizer-lhe que já não o amo... Mas ele não me deu ouvidos!

— Já não o amas? — repetiu a minha mãe, franzindo o sobrolho. — Ainda agora os teus olhos declaravam o contrário!

Escondi as faces escarlates por trás da malga, bebendo com tanta sofreguidão que me engasguei. Sem se incomodar com o meu embaraço, ela prosseguiu:

— Sabes que existem muitas formas de amor, Edwina! Pensa bem antes de tomares uma decisão, para que não te arrependas mais tarde.

 

Nessa noite acordei a suar, dominada por uma ansiedade asfixiante. Ao meu lado, a Lágrima do Sol cintilava e convidava-me a um mergulho na sua sabedoria. A minha energia regressara, tão poderosa que me roubava o fôlego. Era a primeira vez que sentia a plena influência da magia que resultava da assunção da minha herança de sangue. Para trás, ficava um sonho que se tornava familiar: um universo liquefeito, perfurado por raios de luz, onde se moviam os elegantes corpos prateados do Povo da Água; os seus cânticos fluidos, ausentes de palavras concretas... E a essência de Edwin, tão fraca que era impossível distinguir se finava... ou se ressuscitava!

Na minha mente desperta, formavam-se questões que se impunham com veemência. E se Edwin tivesse sobrevivido, ao invés de Sigarr, como a minha mãe pensava? E se estes sonhos que teimavam em perturbar o meu repouso, noite após noite, fossem conseqüência da restauração do nosso elo?

Tremendo de antecipação, fundi-me com a essência do cristal e entreguei-lhe as minhas recordações, pedindo-lhe que as concretizasse na imensidão da existência física. De início, nada aconteceu... Então, quando a decepção já se tornava insuportável, descobri-me coberta pelas ondas do mar. Oscilava e rodopiava, aprazivelmente leve, rodeada pelos corpos cor de prata do Povo da Água, ao sabor das suas vozes treinadas para embriagar os sentidos dos Homens.

«Vieste dançar conosco, Rainha do Sol?»

A criatura que me interpelava era uma fêmea. Eu não a confundiria com uma mulher, mas muitos marinheiros já haviam cometido esse erro fatal. O seu corpo, de aparência quase humana, exibia uma pele tão lisa que cintilava; os seios generosos balançavam, acariciados pela corrente; as pernas, longas e robustas, terminavam em pés largos como barbatanas, que se agitavam de modo harmonioso... e os dedos das mãos, ligados por uma membrana fina, estendiam-se ao meu encontro.

Recuei instintivamente, desafiando a sua vontade. Ela não era bela... antes, estranha! A sua cabeça encontrava-se coberta por longos fios esverdeados, grossos como cordas de navios e com a textura das algas. O seu rosto era dominado por um olhar negro, vazio de sentimentos, e por lábios carnudos, que ocultavam dentes aguçados. Ao aperceber-se do meu repúdio, o seu semblante modificou-se num piscar de olhos, e diante de mim surgiu uma deusa de formosura, com deslumbrantes cabelos louros, gloriosos olhos azuis, nariz arrebitado e lábios perfeitos. A sua pele tornou-se tão branca como a minha... e as formas que a identificavam como mulher evidenciaram-se, rosadas e sedutoras.

«Dança comigo, Rainha do Sol...»

Pisquei os olhos, combatendo a sua magia. O Povo da Água cercou-me com a ilusão dos seus belos corpos, ousando sufocar-me com carícias, enquanto tentavam arrastar-me para as profundezas. Sem cerimônias, sobrecarreguei a água com energia e obriguei-os a afastarem-se. A criatura que me abordara assumiu o seu aspecto original, libertando um guincho irado. Enfrentei-a com manifesta antipatia, fulgindo de impaciência:

«Não estou aqui para brincar! Procuro um homem... Onde está o Rei da Lua? »

A um gesto seu, as criaturas dispersaram-se a uma velocidade assombrosa. Busquei a essência de Edwin, mas não obtive resposta. Então, ela volveu com declarada aversão:

«O Rei da Lua está conosco! Ele dança! Ele canta! Vai-te embora e não voltes, Rainha do Sol! Aquele que buscas pertence-nos... Jamais regressará ao teu mundo!»

Rápida como um raio, seguiu os companheiros e abandonou-me no silêncio da obscuridade. Não tornei a apelar por Edwin. A resposta da criatura fora esclarecedora... e definitiva.

Os homens fortes da minha família, o rei do povo viquingue e os seus conselheiros reuniam-se em redor da grande mesa do salão. O assunto em causa era grave e urgia uma resolução. As escravas aguardavam, com os jarros cheios de cerveja e hidromel apoiados na cintura, mas ninguém se lembrava de solicitar os seus serviços. A voz de Steinarr ergueu-se, pondo fim ao reboliço inconclusivo que começava a incendiar os ânimos e a prenunciar discussões:

— E verdade que, até hoje, a Floresta Sombria resistiu aos nossos avanços! No entanto, talvez a sua inexpugnabilidade esteja prestes a findar. Como Sabeis, incumbi o meu filho mais novo de espiar o inimigo e descobrir uma falha nas suas defesas. O Magnor fez progressos admiráveis nas suas explorações, e acredita que tem a solução para o nosso problema. O seu plano, apesar de arrojado, é o melhor que já ouvi! Todavia, antes de decidir, gostaria de escutar a vossa opinião. Por isso, pedi-lhe que viesse expor-vos as suas idéias.

— O Magnor descobriu uma falha nas defesas dos Vândalos? — questionou o meu pai, incrédulo.

— Pode apostar a sua vida, jarl Throst!

Todas as atenções se voltaram para Magnor, que fazia uma entrada estrondosa no salão. Até eu sustive o fôlego, atônita. Os seus cabelos, novamente compridos, caíam soltos sobre a magnífica capa que lhe cobria os ombros largos. Preso debaixo do braço, trazia um rolo de pele que atraiu a curiosidade geral. Vestia-se de vermelho sangue, com uma elegância que diminuía qualquer um dos presentes. A sua beleza irreverente rivalizava com a de Ivarr, assim como a sua robustez. Para um rapaz que ainda se encontrava a crescer, o seu desenvolvimento era impressionante... e, se atendesse ao pouco tempo que se passara desde a última vez que o vira, quase juraria que contrariava a natureza humana! Magnor estava mais parecido com o pai do que o irmão! E tinha consciência disso, pois a sua postura era majestosa.

— Meu rei... meu pai! — Abeirou-se de Steinarr, inclinou-se reverentemente sobre um joelho e beijou-lhe a mão. — Vim assim que me chamaste!

O rei instruiu-o para que expusesse o seu plano. Magnor estendeu a pele de cabra em cima da mesa e revelou um mapa pormenorizado, que ele próprio desenhara. Indicava o País dos Viquingues, a Serra Rochosa, a Floresta de Lyria, a Floresta Sombria, os Pântanos Nebulosos, as terras gélidas onde os mercenários do Norte se refugiavam e até o mar! Eu não conhecia o terreno, para avaliar o seu trabalho, mas os homens pareciam impressionados.

— Até agora — começou —, os Pântanos Nebulosos foram considerados território de ninguém, solo proibido, cheio de mistérios e perigos terríveis, onde nenhum Viquingue se atreve a pisar. Os Vândalos têm aproveitado os nossos temores para atravessá-los impunemente e, através deles, comunicarem com os mercenários de Arnorr...

Os Pântanos Nebulosos separavam, a Norte, a Floresta Sombria dos domínios do Povo da Terra e constituíam, só por si, uma proteção natural. A partir do território da rainha Lyria, nossa aliada, Magnor planeava conquistar os pântanos; segundo ele, a única entrada no reduto de Aesa que não se encontrava protegida pela magia mortal da barreira de espinhos. A sua segurança e a fluidez com que se exprimia, deixou-me desconcertada. Era certo que sempre fora habilidoso no discurso, mas a sua voz adquirira um timbre de liderança, ao qual ninguém ficava indiferente. Thora era a exceção. A sua expressão declarava a impaciência de alguém forçado a escutar os maiores desconchavos. Sacudiu a cabeça com profundo desprezo quando o príncipe finalizou:

— Bastará uma palavra tua, meu pai, e conduzirei os nossos homens na batalha mais gloriosa de que o povo viquingue tem memória!

O salão quedou-se num silêncio profundo... que o jarl desfez, contrapondo cepticamente:

— E quem nos garante que esse solo maldito não esconde armadilhas tão abomináveis como a barreira de espinhos? Aesa é a feiticeira mais malévola que caminha sobre a Terra. Alguém com o seu poder não se distrai! Deve ter uma razão para descuidar a guarda dessa fronteira!

— Dizem que aí mora o seu exército de almas danadas — sustentou o primo Krum —, criaturas que se assemelham a lobos, mas superiores em tamanho e força, que se alimentam de carne humana...

— Então — desdenhou Magnor —, se ainda não morreram à fome, morrerão em breve, já que, até há pouco, nenhum homem teve bravura para desafiar a lenda! — Abriu os braços num gesto ostentoso, elevando a voz com um fulgor que me eriçou os pêlos do pescoço. — Pois eu desafiei-a! Eu atravessei os Pântanos Nebulosos e não vi nenhum lobo, nenhuma criatura danada! E garanto-vos que, se olharmos para onde assentamos os pés, as armadilhas da natureza não nos podem deter. Estou ciente de que sou um simples guerreiro, cuja juventude e coragem pouco pesa ante a experiência e sabedoria dos chefes de clã que servem o rei viquingue. — Fixou o olhar no meu pai, em declarado desafio. — Mas não sou louco para pretender liderar o meu povo numa batalha perdida! E minha convicção de que a vitória nesta guerra está ao nosso alcance! Esqueçamos os temores do passado e avancemos contra a Floresta Sombria! Acabemos de vez com a praga dos Vândalos! Quando a lâmina da minha espada trespassar a rainha feiticeira, veremos se o seu sangue não é igual ao meu!

Ecoaram gritos de entusiasmo; estalaram aplausos. Um chefe viquingue deu um passo à frente, com as faces a arder por baixo da barba grisalha, agitando os punhos e bradando:

— A rainha feiticeira não me mete medo! Vamos desbravar esses pântanos! Se algum monstro surgir no nosso caminho, havemos de assá-lo e comê-lo!

Seguiu-se um clamor de apoio. Já se desembainhavam espadas e ensaiavam movimentos de agressão. A advertência do jarl fora esquecida, ante a convicção do príncipe. Thora estava furiosa. Fitava o pai com uma insistência aguerrida, exigindo-lhe que tornasse a apelar ao bom senso. E foi para o Líder Supremo do seu povo que o rei se voltou primeiro, solicitando:

— Diz-me, Throst... Agora que conheces a proeza do Magnor, ainda achas que é um erro ousar a travessia dos pântanos?

A algazarra cessou abruptamente. Ninguém queria perder uma palavra do jarl. O meu pai hesitou por um instante, antes de responder:

— É mais fácil um homem passar despercebido em casa alheia, do que um exército, Steinarr! Os Vândalos provaram-nos isso! Continuo a pensar que esta campanha é uma... temeridade que nos pode sair muito cara. No entanto, não possuo alternativa ao plano do teu filho... E algo tem de ser feito! Se estiveres disposto a investir nesta aventura, eu e os meus homens acompanhar-te-emos, como sempre.

Steinarr sorriu, assentindo com a cabeça.

— Obrigado, companheiro — agradeceu solenemente. — E tu, cunhado? Qual é a tua opinião?

O cenho do tio Edwin causava respeito. Contudo, a sua voz soou calma e ponderada:

— A minha família tem de recuperar as pedras mágicas, Steinarr! Talvez esta seja a nossa oportunidade de esmagarmos os Vândalos... e de nos livramos de Aesa!

— Stefan? — prosseguiu Steinarr.

— Eu partilho da opinião do jarl — declarou o meu tio. — Não me parece que atravessar os Pântanos Nebulosos seja sensato. Todavia, na ausência de opções, somos forçados a arriscar-nos.

— Eysteinn? — Foi a vez do rei pedir conselho ao mais experiente dos seus guerreiros-lobo.

— Prefiro enfrentar um exército de almas danadas, a consentir que se espalhe entre os nossos inimigos a informação de que bastou um único homem para vencer impunemente as defesas da Grande Ilha e da Ilha dos Sonhos.

E continuaram, um após outro, exprimindo consensos similares. O entendimento de que um mau plano era melhor do que nenhum plano recolhia a unanimidade. Depois, ainda havia aqueles entusiastas fervorosos do perigo, que morriam de tédio se não tivessem uma lâmina encostada à garganta, que ovacionavam a idéia de Magnor. O príncipe sorria, triunfante, prestes a rebentar de vaidade. Afinal, não era todos os dias que um rapaz da sua idade conseguia mobilizar um exército!

Aguardei que Steinarr me perguntasse o que pensava. A magia voltara a latejar no meu sangue, mas a Visão ainda estava um pouco enevoada, por isso não podia prever com exatidão qual seria o futuro desta aventura. Não obstante, o meu parecer seria negativo. Tinha de haver uma maneira de forçar Aesa a sair do seu covil, que não implicasse o risco de tantas vidas!

Esperei e esperei, inutilmente. Quando Steinarr anunciou a sua decisão final de apoiar o intento de Magnor, fui invadida por uma profunda indignação. O rei viquingue jamais se atreveria a ignorar a opinião de «O Que Tudo Vê»! Então, por que descurava a minha? Não era eu a herdeira da sabedoria da Lágrima do Sol? Sim, resmungava a minha mente ressentida. Mas era também uma jovem mulher, que teria de dar muitas provas do seu talento, antes de merecer alguma consideração por parte dos homens que decidiam o destino do nosso povo!

Ivarr e os seus lobos partiram de imediato, em direção à cidade de Lyria, para avisar a rainha dos nossos planos. Sendo ela uma aliada do povo viquingue, Steinarr esperava a sua colaboração no ataque, e que disponibilizasse alojamento para o nosso exército e alguns arqueiros.

Nós seguimo-los no dia seguinte, após uma extraordinária mobilização de homens e armas. Freya e Melody ficaram no castelo, tão inquietas que mal se sustinham de pé na despedida. A minha prima tivera uma discussão violenta com o marido, revoltando-se contra a sua teimosia em acompanhar-nos. Se Aled não era um guerreiro, por que insistia em pegar numa arma? No entanto, eu compreendia a obstinação do meu primo. Ele deixava a mulher grávida para trás, pranteando em desespero, porque o seu orgulho lhe exigia que se provasse digno da herança mágica da nossa família. Já a agonia de Freya se devia a uma causa secreta. Procurara-me durante a noite para suplicar:

— Não permitas que o Helgi tombe... Pelo amor que me tens, não deixes que o matem!

O seu pedido parecera-me estranho, para dizer o mínimo. Perguntei-lhe se fora acometida por alguma Visão do futuro, mas ela negara. Só tinha um pressentimento terrível acerca desta batalha. E eu não podia argumentar, pois sentia o mesmo!

Avançávamos em grupos. Magnor ia à frente, por isso devia estar a chegar à cidade de Lyria. Durante a minha estadia no castelo, o príncipe evitara-me como se eu fosse portadora de uma doença contagiosa e mortal. Justificá-lo com os nossos confrontos passados era tolice. Agora, que ganhara o apoio do rei e do seu povo, o Magnor que eu conhecia não resistiria a cantar vitória. Só encontrava uma explicação para o seu comportamento esquivo. Ele estava a esconder alguma coisa e receava que eu o desmascarasse! Mas o quê? Atrever-se-ia a preparar uma armadilha ao meu pai, para se vingar por ter sido afastado de Freya? Parecia-me incrível que Magnor tivesse aceite tão benevolamente o termo do compromisso, que nem procurasse a minha irmã para ultrajá-la! Eu tinha de estar alerta! Esta cedência do rei viquingue à estratégia do seu filho mais novo afigurava-se uma falha grosseira na impecabilidade do seu julgamento.

O meu pai abeirou-se de mim e da minha mãe, certificando-se de que nos encontrávamos bem. Em breve, sairíamos do bosque e enfrentaríamos a Serra Rochosa. Para mim, a travessia desses trilhos estreitos e traiçoeiros representava a parte mais dura da jornada. Pasmei ao verificar o quanto a paisagem mudara para acolher o Verão. As rochas estéreis encontravam-se rodeadas por um manto de flores viçosas, que convidavam a uma paragem para admirá-las. Os vermelhos garridos e os brancos acetinados salpicavam o verde e o amarelo predominantes, numa explosão de cor que regalava o olhar. O cheiro a vida era estonteante.

Enquanto avançávamos, bandos de pássaros cruzavam o céu, desaparecendo no interior da Floresta de Lyria. Para lá da muralha de árvores altas, escondiam-se os terrenos pantanosos que ocultavam perigos insondáveis. A vegetação era tão densa que tornava impossível distinguir onde findavam os domínios da rainha da Gente Bela e começava o território da mestra da Arte Obscura. Enquanto perscrutava a Floresta Sombria com o olhar, recordei o apelo dorido de Freya: «Pelo amor que me tens, não permitas que o matem! »

— Como é que um lugar tão bonito pode esconder tanta maldade? — desabafou a minha mãe.

Fui incapaz de lhe responder. Cada passo que encurtava a distância que nos separava da cidade de Lyria me deixava mais angustiada.

A satisfação de estar prestes a reencontrar a rainha diluía-se ao imaginar o que nos aguardava no coração dos Pântanos Nebulosos. As pedras mágicas tinham de ser recuperadas — repetia para me convencer de que era imprescindível travar esta batalha... Mas as cometas de aviso do meu instinto troavam em alarme.

As surpresas começaram no preciso momento em que entramos na cidade. Lyria veio receber-nos pela mão de um nobre do seu povo. Eu lembrava-me de vê-lo no seu palácio, durante a nossa última visita. Chamava-se Cyrus e, para além de comandante supremo do exército da Gente Bela... tornara-se marido da rainha! O estado avançado da gravidez de Lyria indicava que mal aguardara que Steinarr regressasse ao País dos Viquingues para casar-se.

A soberana do Povo da Terra cumprimentou-me com carinho. Porém, diante da minha mãe, o seu sorriso tornou-se forçado e o olhar revelou desconforto, apesar da amabilidade ao exclamar:

— Finalmente tenho o prazer de conhecer a ilustre Catelyn da Ilha dos Sonhos! Sê bem-vinda ao meu reino e à minha casa! Espero que a hospitalidade do meu povo te agrade, e que nasça entre nós uma amizade tão grande como a que devoto à tua filha Edwina.

Steinarr observava a recepção ao nosso grupo com uma expressão carrancuda. Na verdade, nunca o vira tão descontrolado! Incapaz de domar as emoções que o assolavam, afastou-se com tamanha impetuosidade que deixou um rasto de poeira atrás de si. Ignorando-o, Lyria concluiu com uma afabilidade sincera:

— Descansai, enquanto podeis! Devo cuidar de alguns pormenores relacionados com o alojamento dos vossos homens e a defesa das minhas terras durante a batalha, mas estarei convosco ao jantar, para que possamos conversar com serenidade. Até lá, as minhas irmãs proverão tudo aquilo de que necessitais.

Cyrus segurou na mão da sua senhora, como se de uma pluma delicada se tratasse, e escoltou-a nos seus afazeres. As irmãs de Lyria indicaram o ribeiro onde os soldados podiam banhar-se e depois conduziram-nos aos nossos quartos, no palácio.

Agradeci por me ser permitido repousar no aposento que já me era familiar. As jovens trouxeram-me água e deixaram-me só. Mal lavara a cara quando a voz do rei viquingue ecoou exaltada, vinda do quarto dos meus pais:

— A sua cama ainda guardava o meu cheiro, quando ele lá se deitou!

De imediato, apurei o ouvido, a tempo de escutar o apelo do jarl:

— Acalma-te, Steinarr...

— E como queres que me acalme? Ela disse que me amava, que me queria para o resto da vida... e, mal voltei as costas, já rebolava nos braços desse... desse fulano, que mais parece uma donzela de perna esguia do que um guerreiro!

À porta do meu quarto abriu-se e deu passagem à minha mãe. A sua expressão denunciava perplexidade, mas nada disse quando se sentou ao meu lado. Apesar de se ter afastado para permitir que o rei falasse em privado com o meu pai, também ela tinha curiosidade em saber o desfecho desta história. A perturbação do rei viquingue era surpreendente! Parecia que Steinarr só se apercebera do quanto desejava Lyria no instante em que constatara que a perdera.

— Tu não lhe deste esperanças! — O meu pai tentava chamá-lo à razão. — Provavelmente ela foi forçada pelos seus conselheiros a dar este passo! Uma rainha tem de gerar descendência...

— Raios me partam, Throst! Raios a partam! Eu ter-lhe-ia dado quantos pirralhos ela desejasse!

— Tem tento! Arrefece a raiva, ou acabarás por fazer uma loucura da qual te arrependerás! A Lyria é uma mulher livre! Tu rejeitaste a sua proposta; ela seguiu outro rumo...

— Aquele sujeito não é homem suficiente para ela!

— Eu não a ouvi queixar-se! O que é que tu queres, afinal? Declarar-lhe guerra? Trespassar o pai do seu filho com a tua espada, para lhe provar que és mais homem do que aquele que ela escolheu? Se a amavas, por que não cedeste...

— Eu não a amava! Eu não a amo!

— Então, porquê esse rancor, Steinarr?

Silêncio... tão súbito e profundo que os ruídos da floresta se tornaram audíveis. Depois, uma porta bateu com um estrondo que estremeceu o palácio. E o jarl ficou sem resposta.

O tio Edwin chegou ao fim da tarde, quando já era impossível considerar a possibilidade de avançar. Ivarr e os seus lobos tinham acompanhado Magnor no reconhecimento da fronteira do Pântano Nebuloso, e ainda não haviam regressado. Os nossos homens necessitavam de uma boa noite de sono, antes de se submeter à dura travessia do terreno hostil. Ainda assim, Steinarr estava tão ansioso por deixar os domínios de Lyria que teimou em conduzir os seus guerreiros até ao limite da floresta, onde montou acampamento, sob o pretexto de aguardar o regresso dos filhos. O meu pai permaneceu na cidade, decidido a desfrutar de uma última noite tranqüila ao lado da esposa. Na penumbra do meu quarto, conseguia ouvi-los sussurrar:

— Tenho um pressentimento ruim acerca desta batalha... — queixava-se ela.

— Tu dizes sempre isso antes de eu pegar na espada, Pequena! — replicava ele, com ternura.

— Desta vez é diferente... O Steinarr não está a pensar com clareza!

— Confesso que o plano do Magnor também não me agrada, mas o que posso fazer?

— Pelo menos, convence o Steinarr a deixar-nos ficar ao vosso lado! Sem mim e a Edwina para deter a Aesa, vós sereis pasto para os Vândalos! Isto não é uma brincadeira, Throst! Eu quero que tu vejas os teus netos a crescer!

O meu pai riu alto.

— Tens uma maneira de expor as tuas convicções, que me deixa arrepiado! Vem, chega-te para mais perto! Preciso do teu calor...

Era tempo de parar de bisbilhotar a intimidade dos meus pais. Respirei fundo e enfiei a cabeça debaixo da almofada. A cada instante, sentia a minha magia aumentar... na mesma proporção da tristeza! Fechava os olhos e deparava com o rosto de Edwin, retorcido pela dor; o seu olhar agonizante, a voz atormentada: «Voltaremos a encontrar-nos, Rainha do Sol...»

As pancadas suaves na porta fizeram-me sentar na cama. Quem poderia ser? Deixei a mente fluir e encontrei Ivarr. Sabendo que ele passara o dia a explorar os pântanos, corri ao seu encontro, indagando apreensiva:

— Aconteceu alguma coisa? A Thora está bem?

Ele deslizou para o interior do quarto, sem se incomodar em pedir permissão.

— E por que não haveria de estar? — ‘replicou. — Não confias em mim para tomar conta da tua irmã?

A pergunta tinha uma entoação irônica que decidi ignorar. Avancei até à lanterna e acendi-a. A luz tremeluzente e quente revelou um homem belo, cujo rosto denunciava cansaço. Trajava roupas do povo de Lyria, que começavam a ficar encharcadas devido à água que lhe pingava dos cabelos.

— Estiveste a tomar banho? — perguntei, incrédula.

— Não querias que viesse ao teu encontro a cheirar como um bode, pois não? — inquiriu com um sorriso largo, avançando um passo... seguido de outro. — Depois deste dia terrível, precisava de te ver, Edwina! De te abraçar... de te beijar...

Abraçou-me e beijou-me, antes que eu pensasse em recuar. E, no instante em que me ocorria afastá-lo, já os seus lábios repousavam junto do meu ouvido, murmurando:

— Os Pântanos Nebulosos são um sítio medonho; uma paisagem tirada do mais funesto pesadelo. A cada passo ousado, a tristeza esmaga-nos, consome a nossa força, apodera-se da vontade até desistirmos de andar, de pensar, de respirar, de viver... Já enfrentei muitas batalhas; tantos perigos que me é impossível recordá-los a todos... Mas nunca tinha experimentado um horror tão profundo, um desespero tão agreste como o que senti nesse lugar! Porém, quando menos esperava, lá estava, tal e qual como o Magnor dissera: a Floresta Sombria...

Eu retivera o fôlego, suspensa da sua descrição. Quase podia ver as copas das árvores vivazes, balançando ao sabor do vento, livres da influência dos terrenos pantanosos.

— E o anel de espinhos? — interroguei ansiosa.

— Não existe... O Magnor tem razão! A Aesa não admite que alguém tenha coragem de atravessar aquela terra odiosa, por isso não desperdiça a sua magia na proteção dessa fronteira. Estamos perante uma oportunidade única...

— E os lobos danados? — atalhei impaciente.

— A minha sensibilidade não detectou nenhum — respondeu ele, afastando-se o suficiente para me prender o olhar. — O impacto com a desolação do pântano é tão intenso que provoca alucinações nos homens. O único perigo real que podemos enfrentar é o nevoeiro, que oculta as areias movediças.

O seu entusiasmo quase me contagiava. Quase... Fui percorrida por um calafrio que me paralisou, ao ouvi-lo sussurrar:

— Amanhã será um dia decisivo para o nosso povo. Quero que saibas que, aconteça o que acontecer, amo-te e amar-te-ei sempre, nesta vida... ou para além dela!

— Não fales assim! — repreendi-o, aflita. — Parece que estás a despedir-te...

— Chorarias por mim, se eu morresse, Edwina?

— Pára, Ivarr! Pára!

Eu já chorava, apesar de tê-lo a salvo nos meus braços. Sem querer, estava suspensa em bicos de pés, correspondendo ao seu beijo. No fim, Ivarr conseguira o seu intento — provara que não me era indiferente! Envolta no seu calor, eu já nem raciocinava. O meu corpo correspondia às suas carícias e a minha cabeça girava como se estivesse à deriva num mar turbulento. A sua voz chegou até mim, por entre a trovoada de emoções:

— Se estivesse seguro do dia de amanhã, faria amor contigo durante toda a noite! Desejo-te tanto, meu amor...

Soltou-me tão bruscamente que quase caí, devido à fraqueza das pernas. Quando recuperei a razão, já ele abria a porta. Dei por mim a suplicar:

— Ivarr, não vás...

O rei-lobo deteve-se; o olhar em chamas ao encarar-me. A sua voz soou rouca, selvagem:

— Pede-me para ficar após a batalha, e nunca mais te deixarei! E saiu.

 

A primeira vez que contemplei a vastidão pútrida dos Pântanos Nebulosos, senti a pele arrepiar-se com a vontade premente de fugir daquele ambiente opressor. Diante de nós abria-se uma extensão de terreno incerto, onde o solo úmido desaparecia debaixo de incontáveis lagoas de águas negra. Cheirava tão mal que era quase impossível respirar. As rochas que se revelavam à vista estavam cobertas por musgos castanhos, que as tornavam escorregadias e pouco fiáveis. Em tempos, as árvores tinham proliferado, mas a podridão da água acabara por sufocá-las. Os seus esqueletos erguiam-se como gigantes, pretos e ameaçadores, estrangulados por trepadeiras de um avermelhado hostil, cujos ramos pendiam quais tentáculos sangrentos de um monstro ferido de morte. O nevoeiro que dava nome ao pântano reproduzia-se por toda a parte, em nuvens compactas que encobriam a paisagem desolada. Era frio, ardia na pele e fazia os olhos lacrimejarem. Se havia vida neste túmulo alagado, para além dos irritantes insetos, encontrava-se bem escondida.

Liderando a coluna de guerreiros, o rei viquingue e o jarl acompanhavam os passos de Magnor, de Ivarr e dos seus lobos, que já conheciam o terreno. O tio Edwin e o tio Berchan também se encontravam na primeira linha. Eu, a minha mãe e Aled seguíamos no último grupo, comandado pelo tio Stefan. A alegação de que a minha presença na frente era imprescindível, fora vã. Ficara perplexa quando Steinarr replicara:

— Não arriscarei as vossas vidas, sem ter a certeza de que tal é estritamente necessário. O futuro do nosso povo depende de ti, Edwina... Não só porque és a Guardiã da Lágrima do Sol, mas também porque serás a herdeira do meu trono e a mãe dos meus netos!

Neste ponto, a minha mãe interferira:

«Edwina... Não vale a pena perder tempo e energias a discutir com os homens! Deixa-os acreditar que tem tudo controlado! Quando o momento chegar, farás o que tem de ser feito... No fim, eles ainda te agradecerão, e respeitarão o teu julgamento no futuro.»

A senhora da Ilha dos Sonhos aprendera a contornar as situações, de modo a obter o que desejava sem se desgastar. Eu não possuía a sua experiência e irritava-me ver complicado aquilo que, já por si, era difícil. Orgulhei-me de Thora, ao entender por que defendia acirradamente o seu lugar na alcatéia de Ivarr. No dia em que baixasse a guarda, os outros pensariam que ela necessitava de tratamento especial, só porque era mulher, e não mais se imporia como a guerreira excepcional que era. Só esperava que ninguém tivesse de morrer para que o rei do povo viquingue reconhecesse que o meu poder era fundamental para derrotar Aesa!

Apesar da solicitação de Steinarr, Cyrus recusara-nos o apoio dos seus arqueiros, alegando que a habilidade destes se revelaria inútil na bruma nebulosa. Além disso, o exército da Gente Bela teria de garantir a segurança da cidade, na eventualidade de um contra-ataque Vândalo. Segundo o comandante supremo, a permissão para instalarmos a nossa base nos seus domínios honrava o acordo de cooperação estabelecido pela rainha. Não podíamos exigir-lhes mais.

Os homens tentavam avançar silenciosamente, pisando onde o companheiro da frente pisava, como se este truque lhes garantisse que o terreno não cederia debaixo dos seus pés. Dei a mão à minha mãe, ajudando-a a progredir no sinistro lamaçal. As nossas botas afundavam-se no solo, quase até aos tornozelos. Comecei a imitar a estratégia dos guerreiros. Pelo menos, desta forma, evitava o cansaço de libertar os pés da prisão da lama a cada passo. Se fosse Inverno, avançaríamos muito mais depressa, pois tudo o que nos rodeava se encontraria gelado. Porém, o resgate das pedras mágicas não podia esperar pela estação fria!

Por mais que tentássemos não fazer barulho, passávamos tão despercebidos como braseiros na escuridão. Por vezes, os guerreiros escorregavam e ouvia-se praguejar. Ao palavrão seguia-se um coro de silvos, demandando silêncio. As espadas batiam contra os escudos e a pancada do metal ressoava por uma eternidade. Andar dentro de água era ainda pior, pois as mentes já perturbadas dos homens impeliam-nos a chapinhar em desespero, sempre que as botas deslizavam em falso ou algo impossível de identificar se enrolava nas suas pernas.

Quando me vi confrontada com uma lagoa, tive de apelar a toda a minha coragem para dar o próximo passo. Apertei a mão da minha mãe com força, cerrando os dentes para não gritar. Tudo se decompunha à nossa volta, e o cheiro a podre era cada vez mais intenso e insuportável. A água estava tépida, contrastando com o frio exterior. Pisei uma coisa mole que me fez escorregar e foi a minha vez de violar o silêncio. Caí para a frente e, na tentativa de amparar-me, a minha mãe também perdeu o equilíbrio. Mergulhamos no líquido pestilento, e a única coisa que me passou pela cabeça foi fechar os olhos e a boca, enquanto me debatia com um exército de limos e raízes, que me prendiam as pernas e os braços. Fui salva por uma mão de aço e encarei com profunda gratidão o rosto preocupado do tio Stefan. Aled já puxara a tia para a segurança dos seus braços, mas ela não desfrutara da minha sorte; engolira água e vomitava compulsivamente. Mal tivera tempo de se recompor, já o irmão esticava o braço, ordenando que seguíssemos em frente.

Continuei abraçada à minha mãe, com redobrado cuidado. Ela era a mais baixa de todos nós e a água negra já lhe chegava ao peito. Como estaria a comportar-se Thora? De certeza que não mergulhara desastradamente e arrastara um companheiro na queda! Temi que a inclinação do terreno fizesse a minha mãe perder o pé, mas suspirei de alívio ao ver que os guerreiros que iam adiante começavam a emergir. Forcei as pernas a combater a prisão das raízes submersas e iniciei a subida íngreme.

Caminhávamos aos ziguezagues, para evitar o solo movediço. Não muito longe, um homem precipitou-se para fora do trilho, tentando encurtar a distância, e acabou por pisar uma dessas armadilhas naturais. Num piscar de olhos, o seu corpo foi sugado. Quanto mais ele se debatia, mais voraz a terra se tornava. Dispunha-me a apelar à magia para salvá-lo, quando três guerreiros deram as mãos e fizeram uma corrente humana para alcançá-lo. Depois, empregaram toda a sua força para arrancá-lo à lama, que já o devorara até ao pescoço.

Onde se escondera o Sol? Era impossível que já estivesse a anoitecer... No entanto, a bruma envolvia-nos; o nevoeiro era tão cerrado, à nossa volta e sobre as nossas cabeças, que ocultava o céu e eliminava qualquer possibilidade de orientação. Não fazia idéia do tempo que se passara desde que deixáramos os domínios de Lyria. Sentia-me exausta e tive de recorrer à Lágrima do Sol para restabelecer-me. A minha mãe também se socorreu das suas habilidades mágicas para recuperar a energia. Nós não possuíamos a preparação dos guerreiros e a dura jornada deixava-nos mazelas, no corpo e no espírito.

Voltamos a atravessar charcos, a percorrer trilhos quase inexistentes; água e lama, lama, lama e mais água... Já não deveríamos ter chegado ao destino que Magnor jurava ser tão acessível? Lama... Nevoeiro, tão denso que era possível segurá-lo entre os dedos. O ar solidificava e cortava a respiração. Aqui e além, um homem caía inanimado. Parei, sentindo a energia mística trespassar-me como um raio. Já não via Aled... já não via ninguém para além da minha mãe que se encontrava ao meu lado. A névoa engolia-nos, separava-nos... Meti a mão dentro da bolsa que trazia atada ao cinto e descobri a Lágrima do Sol. O cristal pulsou, libertando uma luz intensa que conquistou a bruma. Vislumbrei alguns dos guerreiros que nos acompanhavam. Também eles se haviam detido, cegos pelo manto sombrio que descera sobre nós. E, do lado de fora do trilho, outras sombras... homens... Dezenas de guerreiros! Não estávamos sozinhos...

— É uma cilada — murmurou a minha mãe, dando vida aos meus pensamentos. — Stefan! — gritou, voltando-se na direção onde julgava encontrar-se o irmão. — Faz soar o alarme! Tira os nossos homens daqui!

Diante dos meus olhos, a névoa moveu-se e assumiu a forma de uma mulher. O seu rosto jovem e belo, recordado em mil pesadelos, sorriu... Então, o brado de alarme da minha mãe transformou-se num gemido de dor. Vi-a cair de joelhos, com a cabeça apertada entre as mãos, e tentei protegê-la com o corpo, esboçando um movimento defensivo... Porém, a essência de Aesa desaparecera tão bruscamente como surgira.

O tio Stefan irrompeu de dentro do nevoeiro e amparou a irmã. Ao longe, ecoou uma corneta. As vozes dos homens ergueram-se, seguidas pelo troar do ferro dos escudos e das espadas. Os guerreiros que nos acompanhavam responderam à ordem do meu tio e formaram uma barreira defensiva em nosso redor... Mas parecíamos peixes dentro da rede de um pescador!

— Mama.. — afligi-me ao constar que os seus olhos estavam banhados em lágrimas, fixos no vazio, enquanto gaguejava:

— As pedras! Ela atraiu-nos aqui para se apoderar das nossas pedras...

— Cat, acalma-te! — suplicou o tio Stefan, percebendo-a desfalecer. — Onde está o Aled? Aled!

O meu primo não respondeu. Engoli o medo e lancei a mente ao seu encontro, esperando vislumbrá-lo entre a amálgama de guerreiros que nos rodeava. O meu sangue gelou ao verificar que Aled não estava conosco. Surpreendi-o, correndo às cegas por entre as cortinas de nevoeiro espesso. Respirava com dificuldade... Suava devido ao esforço e ao pavor que o impedia de raciocinar. Atrás dele moviam-se criaturas grandes como pôneis, condicionando a sua fuga, mantendo-o num determinado trilho. O meu primo escorregava e caía... mas os gigantes de pêlo negro não o atacavam. Aguardavam que se levantasse e reiniciasse a fuga... em direção a um objetivo escolhido por eles!

Não havia tempo para explicações. Empurrei os guerreiros que tentavam manter-me dentro do círculo protetor de escudos, e ignorei os apelos do tio Stefan e da minha mãe. Investi em frente, com a Lágrima do Sol iluminando o caminho, dispersando a névoa, projetando um raio de luz sobre os trilhos seguros. O toque de alarme das cornetas provinha de todas as direções. O estrondo do ferro que se chocava ecoava-me aos ouvidos. Os guerreiros viquingues enfrentavam os inimigos que brotavam da névoa, clamando com um ímpeto selvagem. Eu estava a atravessar o coração da batalha...

À minha frente, um homem do rei Steinarr foi sugado pelas areias movediças. Outro quis socorrê-lo, mas acabou trespassado pela lâmina de um Vândalo. O servo da feiticeira arremeteu contra mim, com a espada a pingar sangue... Murmurei um sortilégio e as suas roupas incendiaram-se. Os berros do colosso misturaram-se com a confusão, mas não me detive para verificar o seu fim. Continuei a correr, chamando por Aled. Tinha de alcançá-lo!

O estridor da contenda começou a esmorecer, à medida que eu desbravava terreno. Mais dois inimigos que tentaram barrar-me o caminho foram obrigados a mergulhar na água fétida, para extinguir as chamas que lhes consumiam o corpo. Depois de descobrir que esta era a maneira mais rápida e eficaz de me defender, não perdi tempo a engendrar outra. Antes de chegar ao fim do trilho, já criara um exército de fogueiras vivas. Entrei num labirinto de esqueletos de árvores e estaquei horrorizada, ao ver Aled cercado por uma alcatéia de lobos negros. Os olhos vermelhos das grotescas criaturas rasgavam as trevas como brasas, e o vômito pútrido escapava-lhes por entre as presas descomunais. O meu primo detinha-se, petrificado; o olhar revelando um terror irracional...

— Aled, não te mexas... — supliquei com a voz a tremer. — Vou tirar-te daí...

Só não sabia como! A magia que protegia os lobos negros era a mesma que sustinha o maldito anel de espinheiros que guardava a mestra da Arte Obscura. Além do fogo não ter nenhum efeito sobre eles, eram detentores de uma força extraordinária e insensíveis à dor. Podia apelar à imaginação para afastar alguns... mas não conseguiria livrar-me de todos, a tempo de resgatar um osso do corpo de Aled!

De súbito, um guerreiro rasgou o nevoeiro, rugindo corajosamente e brandindo a sua arma. Os fios de prata que lhe enfeitavam os cabelos negros mais pareciam lágrimas de estrelas, e as vestes vermelhas tornavam-no sublime. Magnor abriu caminho por entre a alcatéia, ameaçando as criaturas com o vigor da sua espada. E, surpreendentemente, estas pareciam recear a sua ferocidade! Alguns, feridos pelo aço do príncipe, desertaram a ganir. A maioria mantinha a postura agressiva, mas teve de recuar ante tamanha determinação. Eu recebi a sua ordem, boquiaberta:

— Atrai os lobos, Edwina! Leva-os para longe daqui, para que eu possa escoltar o Aled em segurança até aos nossos pais.

Movida pela sua firmeza, usei a magia contra as criaturas mais próximas. Gritei em desafio, tão alto quanto fui capaz, e agitei o ar ao seu redor, erguendo-as do chão, para depois arremessá-las para longe. Deu resultado! Acirrados pelo clamor e pela manifestação de poder, os lobos reagiram à provocação, arremetendo contra mim. Era tempo de fugir...

Corri desembestada, seguindo as indicações da luz que a Lágrima do Sol projetava no solo. As sombras negras perseguiam-me, ultrapassavam-me, cercavam-me... Sem se aperceber da minha demanda, um guerreiro do tio Stefan deteve-me à força, segurando-me no braço.

— Venha, menina! — apelou. — O seu tio...

Um vulto descomunal derrubou-nos. Rebolei, desamparada, e bati com a cabeça numa pedra. Vi a bruma descer sobre mim... Não podia desmaiar! Os rugidos, que se distinguiam das vozes dos homens e do estridor das armas, forçaram-me a manter os olhos abertos. Voltei-me e deparei com o olhar de fogo de um lobo, que fincava as garras no peito do guerreiro prostrado. O infeliz fixava o vazio, com a boca escancarada num grito de horror que nunca chegara a ouvir-se. A carne da sua garganta dilacerada pendia das presas vorazes do monstro e o sangue flutuava sobre a umidade da terra.

A Lágrima do Sol, que escorregara da minha mão, jazia à distância de um braço. Estiquei-o devagar, enquanto o lobo baixava o focinho e rosnava, ameaçador. Outro monstro revelava-se por trás dele. Eram cinco... Eram dez... Que os céus me acudissem! Os meus dedos fecharam-se sobre o cristal... E as feras atacaram.

A energia brotou do meu peito e espalhou-se como uma onda gigante. As criaturas danadas foram colhidas pela vaga, e varridas para uma distância que me permitiu voltar a suster-me. Reiniciei a fuga sem hesitação. No lugar onde estivera o meu pescoço, há menos de um fôlego, encontravam-se as presas de um lobo. Apelei a todas as forças, absorvendo o vigor da Lágrima do Sol. Atrás de mim, os monstros devoravam terreno. A deslocação do ar denunciava os seus ataques e eu repelia-os como podia, lançando-os sobre as areias movediças. As armadilhas do terreno tornavam-se as minhas melhores aliadas. As criaturas podiam ser imunes ao fogo e à magia, mas não possuíam asas para escapar à fome mortal da lama devoradora.

O terreno era cada vez mais irregular e, mesmo com a ajuda da Lágrima do Sol, por vezes tinha de arriscar saltos prodigiosos. Os esqueletos das árvores barravam-me o caminho, açoitando-me com os ramos moribundos. O solo alagado forçava-me a escorregar e reduzia a minha exígua vantagem. Desequilibrada, busquei o apoio das trepadeiras, mas estas desfizeram-se sob os dedos, vertendo um suco escarlate. Gritei quando o chão desapareceu debaixo dos meus pés. Voei e caí no vazio; a Lágrima do Sol escapando-me da mão.

Fui engolida por um líquido tépido e viscoso, que me cegou e sufocou. Esbracejei aflita e consegui regressar à superfície. O horror de imaginar que eu própria fora vítima das areias movediças, foi superado pelo alívio de me encontrar dentro de uma lagoa. Porém, o consolo foi breve... Do céu, choviam lobos negros que, desprevenidos, partilhavam da minha sorte. Os mais atentos deslizavam pela encosta e aguardavam-me na margem. Estava cercada!

Por trás de mim, os lobos moviam-se com desembaraço. Eu tinha de nadar, pois a água era profunda. Mas nadar para onde? Pressenti uma oscilação de energia assustadoramente familiar. Só depois o vi aproximar-se, correndo com uma elegância desconcertante... Nunca observara o Espírito da Escuridão de perto, mas reconheci-o de imediato: o corpo alto e robusto, os cabelos castanhos acobreados, os olhos capazes de paralisar a vontade... Agora estava perdida!

Helgi, herdeiro de Aesa e antagonista de Ivarr, deteve-se na margem, ao lado da Lágrima do Sol que brilhava como um facho entre as pedras. Os lobos negros rodearam-no com uma postura submissa. Os seus dedos fortes fecharam-se no punho da espada e o metal cintilou na obscuridade. O olhar azul encontrou o meu, enquanto o seu apelo arrepiava a noite:

— Sai da água!

E começou a desferir golpes contra os escravos da sua rainha! A cabeça decapitada de um lobo mergulhou na lagoa. Um uivo horripilante desdobrou-se, no instante em que a espada do príncipe vândalo trespassava o coração de outra criatura... E a sua voz tornou a ecoar:

— És surda? Sai da água!

Forcei-me a nadar, ao sentir o bafo de um monstro no meu pescoço. Diante de mim, o negrume viscoso tingia-se de escarlate. Esbracejei freneticamente, com as criaturas no meu encalço. Em terra, Helgi prostrara o último lobo. Afinal, os seres danados podiam ser mortos, desde que atingidos na cabeça ou no coração. O príncipe dera bom uso ao seu conhecimento! Agora, corria para a lagoa e estendia-me as mãos. Sangrava de uma ferida num braço, mas não parecia incomodado. Agarrou-me pelos pulsos e içou-me para a margem, ordenando:

— Usa o teu poder para mantê-los na água!

Fixei-o assombrada, tentando compreender as razões que o moviam.

— Não és capaz? — indagou impaciente.

Um lobo alcançara solo firme e preparava-se para saltar sobre nós. Mergulhei as mãos na lagoa e sustive o fôlego. A magia libertou-se e a água começou a arrefecer, a solidificar... Neste momento, o sortilégio que Edwin usara para transformar a lava em rocha, quando enfrentara Sigarr, era tudo o que me ocorria.

O lobo uivou, com as patas presas no gelo, as presas distendidas a um palmo do meu rosto. Ouvi o assobio da lâmina da espada e cerrei os olhos, assolada pela náusea. O rosnado da criatura cessou abruptamente, mas foi substituído pelos ganidos ensurdecedores dos seus companheiros. Helgi passou por mim e caminhou confiante sobre o gelo. Atrevi-me a abrir os olhos e vi-o matar os lobos paralisados pela água congelada, um a um, sem a mínima piedade.

Libertei as mãos e ergui-me a custo, recuperando a Lágrima do Sol. Sentia-me exausta e confusa, temerosa do que enfrentaria a seguir. Se Helgi fora enviado por Aesa para me assassinar ou fazer prisioneira, por que matara aqueles que, supostamente, eram seus aliados?

Ele embainhava a espada e aproximava-se. Possuía a estatura de Ivarr e era igualmente perturbador.

— Helgi... — atrevi-me a confrontá-lo, mas perdi o fôlego, ao vê-lo franzir o sobrolho. Quedou-se diante de mim, surpreendido por escutar o seu nome. Recuei instintivamente e ele exprobrou:

— Ter-me-ia dado a tanto trabalho, se pretendesse fazer-te mal?

Era inútil tentar esconder o quanto a sua presença me intimidava!

— Porquê...? — tartamudeei.

O príncipe respirou fundo, como se também lhe fosse difícil justificar-se.

— Porque a minha irmã me pediu — respondeu finalmente. — Tu poupaste-lhe a vida quando a defrontaste... A dívida está paga!

De imediato, soube a quem ele se referia. A imagem da jovem aprendiz da Arte Obscura, que eu combatera durante a batalha pelo controle da cidade de Lyria, pairava na minha mente. Na verdade, só a comoção dos últimos instantes me impedira de relacioná-los, já que eram extraordinariamente parecidos.

— Obrigada... — murmurei, sentindo-me estranha, constrangida. Esta era a situação mais insólita com que já fora confrontada!

Helgi engoliu em seco, tão perturbado como eu. Sustive a respiração quando levou a mão ao pescoço e puxou pelo fio de onde pendia a pedra azul da minha bisavó feiticeira. Apertou-a entre os dedos, volvendo:

— Queres agradecer-me? Então, diz à tua irmã que esperei até ao último instante...

Os seus olhos brilhavam e a voz denunciava comoção. Tencionei reclamar a pedra, mas descobri-me sem vontade. O amuleto regressou ao peito de Helgi... E talvez, neste momento, esse fosse o seu lugar! Afinal, o príncipe vândalo conservara o presente de Freya, mesmo sabendo o quanto este representava para as ambições da sua rainha! Como se isso não fosse insurreição suficiente, acabara de salvar-me a vida, matando uma alcatéia de lobos danados! Sim, sem dúvida, a magia da pedra aquecia o seu coração!

— O que é que a tua rainha fará, se descobrir... ?

— Não te preocupes comigo! — Atalhou num tom cortante, antes de começar a recolher os cadáveres dos lobos. Atirou-os para a água que descongelava, e que acabaria por ocultar o testemunho da sua traição. — O que aqui se passou não nos torna amigos! Segue o teu caminho, sem olhar para trás... Da próxima vez que nos encontrarmos, não haverá dívidas para saldar!

Era uma ameaça velada... E foi plenamente entendida! Assenti com a cabeça e comecei a trepar pela ladeira para regressar ao trilho. Estava prestes a chegar ao topo, quando Helgi gritou um apelo. Busquei-o lá em baixo; um vulto na escuridão, e gelei ao ouvi-lo clamar:

— Avisa o homem que matou o meu irmão Arkin que a sua vida me pertence!

Sem mais, fundiu-se com as trevas.

Percorri os trilhos nebulosos do pântano, numa corrida desvairada. Tinha de certificar-me de que Aled se encontrava a salvo. A mestra da Arte Obscura percebera que o meu primo era o mais vulnerável dos portadores das pedras mágicas e centrara nele a sua atenção. O primeiro ataque falhara, mas a bruxa não desistiria... Esta certeza causou-me um mal-estar brutal, ao trazer-me à memória os presságios funestos da minha mãe.

Os sons da disputa feriram-me os ouvidos. A névoa mantinha-se cerrada, repleta de sombras. Os Vândalos firmavam a sua vantagem e os lobos danados banqueteavam-se com o sangue do meu povo. Aesa saboreava a vitória, na segurança da sua fortaleza inexorável, mas a sua essência perscrutava os pântanos qual corvo gigante; um predador voraz, feito de uma energia que pulsava em tons de negro e escarlate, que se alimentava da nossa desgraça. O rumo desta batalha tinha de ser alterado! A magia só podia ser combatida com magia, e era para isso que eu aqui estava!

Elevei a Lágrima do Sol ao céu. As nuvens separaram-se e um feixe de luz desceu até mim, acompanhado de um vento possante, que se espalhou pelo campo de batalha, dissipando o nevoeiro, revelando o terreno e os inimigos aos olhos dos guerreiros do meu povo. Por um instante, os homens detiveram-se, surpreendidos pela claridade do fim da tarde. Depois, reagiram com redobrada exaltação.

De imediato, senti os efeitos da minha interferência. O desgaste de energia foi tal que o corpo desfaleceu e a cabeça rodopiou. Fixei o cinzento do céu, prostrada e sem alento. Então, um brado rouco sobrepôs-se aos demais, e um raio precipitou-se na direção dos meus olhos. Outro raio rasgou o ar, em sentido contrário... As espadas embateram e soltaram faíscas. Antes que eu recuperasse a plena consciência, a voz de Thora sacudiu-me os sentidos:

— Levanta-te, Edwina! Tu és capaz!

Apoiei-me na minha irmã, a tempo de ver Ivarr subjugar o vândalo que me atacara. Ao seu lado, Eric acabara de trespassar um inimigo e Ragnar chutava um adversário com o dobro do seu tamanho, que Bryan acabou por derrubar. Ketill gritava afogueado, ocupado com dois guerreiros que o empurravam para as areias movediças. Os companheiros acorreram em seu auxílio, à exceção de Ivarr e Thora, que me forçavam a ficar de pé e me arrastavam sobre o trilho.

Aos poucos, as pernas começaram a obedecer-me. Com o discernimento que me restava, apelei à atenção de Ivarr:

— Temos de encontrar o Aled! A Aesa está atrás dele...

— A bruxa está atrás do Aled? — repetiu o rei-lobo, incrédulo.

— Ele e o Magnor foram ao encontro do meu pai... — continuei esperançada; mas ninguém sabia do seu paradeiro.

— O rei e o jarl estão além...

Olhei na direção que Eric apontava e vi o meu pai surgir por entre os esqueletos das árvores. As armadilhas do terreno e a névoa traiçoeira tinham separado os homens. Porém, a fronteira vulnerável da Floresta Sombria, a que Magnor se referira, não podia estar longe, pois os Vândalos multiplicavam-se como vespas diante dos nossos guerreiros. Suspirei de alívio ao verificar que a minha mãe também ali se encontrava. Ela e o tio Berchan uniam as costas e apelavam à magia para afastar os inimigos. Contudo, Aled e Magnor tinham desaparecido.

— Vamos procurá-los — decidiu Ivarr. — Thora, ajuda a Edwina...

Eu já recuperara o suficiente para acompanhá-los. Progredimos rapidamente, graças à experiência ganha e à habilidade inata de Bryan para farejar o perigo. Ele sabia pela cor da terra onde era seguro pisar e evitava os terrenos alagados. Não tive de interferir para ajudá-los a repelir os Vândalos. Ivarr e os seus lobos como que adivinhavam as intenções dos adversários. Antes que estes desferissem um golpe mais arrojado, já se afundavam na lama.

Cambaleamos, totalmente desprevenidos, quando o solo se agitou com uma violência arrasadora. Por toda a parte, ecoaram exclamações de surpresa e temor. Estatelei-me no chão e Thora seguiu-me. Ergui a cabeça e pisquei os olhos, tentando contrariar a névoa que me cegava. Horrorizada, constatei que não havia nada de errado com a minha visão. O nevoeiro maligno é que regressara com redobrada densidade!

O grito de Ragnar ecoou pela bruma. Depois o de Eric... E o de Ketill...

Thora já aguardava de espada em riste. Ao seu lado, sustive a respiração, sentindo uma energia colossal investir contra nós. A minha irmã nem teve tempo de mover os lábios. Um braço de névoa colheu-a e arremessou-a para longe... E, sem aviso, Aesa caiu em cima de mim; não em espírito, mas em carne e osso! O seu ímpeto prostrou-me. As mãos como garras apertaram-me o pescoço, enquanto o seu olhar me invadia a mente e gelava o sangue.

— Tu não devias estar aqui! — silvou numa voz desprovida de harmonia. — Como foi que escapaste aos meus lobos, sua miserável?

Por baixo do meu corpo, o solo alterava-se, umedecia, assimilava-me. A minha pele ardia, como se milhares de presas ávidas me mastigassem. Deste caldo fétido, onde eu submergia, nasciam raízes robustas e traiçoeiras que deslizavam sobre mim, tecendo nós que me puxavam para o interior da terra. Tinha a mente bloqueada por um horror descomunal. Não conseguia pensar, não conseguia respirar... Já nem sequer conseguia ver a odiosa feiticeira, pois a lama cobria-me por completo! E continuava a afundar-me...

A gargalhada de Aesa ecoou-me na mente. O aperto dos tentáculos malditos lacerava-me a carne e ameaçava quebrar-me os ossos. Tinha de reagir, ou este lugar danado acabaria por me devorar!

A bruxa não desistia de me estrangular. Lutei para soltar um braço da prisão das raízes e alcançar a Lágrima do Sol, mas o aperto era demasiado intenso... Então, a magia do cristal latejou de encontro ao meu ventre, recordando-me de que eu já não era uma simples aprendiz que dependia da sua vontade. Eu era a Guardiã, e o seu poder fazia parte de mim! Concentrei-me nesse palpitar; nesse coração que era o meu... E o ar invadiu-me os pulmões. De imediato, o vigor regressou-me aos membros, permitindo-me quebrar as hostis raízes. Um grito aguerrido soltou-se da garganta, enquanto a Arte Luminosa brotava do meu cerne e inundava de luz tudo o que nos rodeava, projetando-me para o ar e arrastando a minha algoz nesse vôo desordenado. Este era o momento da verdade; o momento para o qual «O Que Tudo Vê» me treinara.

Caímos em terra firme, atordoadas e ofegantes, enlaçadas num abraço mortal. Recuperei a visão e apercebi-me do choque da feiticeira, ao verificar que o esforço para dissipar o nevoeiro não me esgotara. A Lágrima do Sol restaurava a minha essência à velocidade do pensamento!

Rebolamos pelo solo podre e acabei por suplantá-la, subjugando-a com o meu corpo. Sem hesitação ou temor, mergulhei no olhar gélido e devassei a sua essência, tal como Aesa fizera centenas de vezes no passado às suas desafortunadas vítimas. O brado de assombro da hedionda criatura ecoou-me na mente como música. Ela não podia crer que, para combatê-la, eu recorria ao mais nefando dos seus sortilégios! Como é que uma serva da Arte Luminosa se atrevia...? Apesar da sua longa permanência na Terra, Aesa ainda tinha muito que aprender acerca do Homem... E ainda mais acerca de mim! Mas, o seu tempo terminara!

Fustigada por uma perplexidade temerosa, a mestra da Arte Obscura tentou contrariar o meu ataque, apelando à negridão do seu execrável poder. Contudo, eu assimilei-o com uma determinação férrea, rejeitei a sua malignidade e transformei-o em luz... Luz, luz e mais luz! Um clarão fulgurante que inundou a alma da feiticeira, obrigando-a a debater-se em agonia. Para um ser que vivia há décadas na perversidade das trevas, enfrentar o mais puro dos esplendores era um tormento insuportável! Permiti que se apartasse, deliciada com os seus gritos de horror; vitoriosa ao constatar que o brilho negro da sua aura se adulterara e mais parecia um arco-íris.

Enlouquecida de dor, Aesa rastejou pela lama, esbracejando ao acaso, enxotando a energia luminosa que a corroia. E eu segui-a, embriagada de poder. A magia da Lágrima do Sol pulsava dentro de mim e extasiava-me. Nenhum desafio estava para além do meu alcance! Sem sequer pensar, desembainhei o punhal e agarrei nos longos cabelos de ouro da mestra da Arte Obscura, puxando-os ao meu encontro para lhe expor o pescoço. Esta seria uma morte que não me pesaria na consciência!

— Liberta-a, Edwina! Ou o Aled morrerá!

Não acreditei nos meus ouvidos... Mas fui forçada a acreditar nos meus olhos! Magnor quedava-se a poucos passos, com o meu primo prostrado aos seus pés. Aled tinha a roupa tingida de vermelho-vida e mal mantinha os olhos abertos. O sangue que lhe escorria da boca não vaticinava nada de bom... E a espada do príncipe estava encostada à sua garganta!

— Magnor... — gaguejei. — Mas o que é que...

— Eu tentei convencê-lo a dar-me a pedra — atalhou o jovem rebelde, numa voz de arrepiar. — Contudo, o camponês quis armar-se em herói!

— Enlouqueceste? — bradei, assolada pelo desespero e pela ira.

— Ao contrário, minha querida! — rosnou ele. — Nunca estive tão sóbrio! Ninguém me deu crédito, quando disse que tinha encontrado uma deusa durante a Caçada... A rainha Aesa é a minha deusa! Ela dá-me o devido valor!

— Tu preparaste-nos uma armadilha... — constatei, ofegante.

— Não! O meu adorado pai ditou a sua sentença quando me deixou a apodrecer no calabouço do castelo! No mesmo dia em que me libertou, aceitei a proposta que a minha deusa me fizera! E, desde esse instante, sou um homem feliz!

A bruxa estrebuchou contra a lâmina do meu punhal, mas eu imobilizei-a. Magnor perdera o tino! E as conseqüências da sua loucura seriam devastadoras, para dizer o mínimo! Por isso a rejeição da minha irmã não o incomodara! A sua alma já se havia submetido ao domínio da mestra da Arte Obscura! A única que estivera perto da verdade fora Freya... Ela testemunhara, nos seus sonhos, a servidão traiçoeira do príncipe... Mas eu jamais poderia supor tal aleivosia, mesmo quando, ainda há pouco, a essência de Aesa se manifestara sob a forma de um corvo gigante, emplumado de negro e escarlate, devorando essências tal como no pesadelo da minha irmã. Agora, essa distração sair-me-ia muito cara!

— O teu tempo está a acabar, Edwina! — rugiu Magnor com veemência, e pressionou a espada contra o pescoço suado de Aled. De imediato, o sangue começou a escorrer pela lâmina. O meu primo estava tão esmorecido que não libertou um queixume.

— Não! — gritei, aflita... E empurrei Aesa para longe de mim. Um movimento ao meu lado revelou-me a presença de Ivarr, de

Eric e de Bryan. A sua chegada passara-me despercebida... mas era óbvio que haviam escutado o suficiente. Nem podia imaginar o que Ivarr estava a sentir! Thora surgiu nesse instante e tencionou atacar Magnor. Eric segurou-a com firmeza e as pragas da Loba Prateada acossaram o nevoeiro.

Por toda a parte troavam pés em corrida. Os Vândalos acercavam-se de Magnor, e um guerreiro destacou-se dos demais. Pela segunda vez, neste dia abominável, o azul intenso do olhar de Helgi cortou-me a respiração. A sua animosidade exacerbou-se ao fixar Ivarr... O ar carregou-se de energia e estralou. O Espírito da Luz e o Espírito da Escuridão encontravam-se finalmente: dois homens poderosos, dois líderes incontestáveis... dois inimigos mortais!

O tempo transformou-se em algo vago, irreal, no instante em que os braços do príncipe vândalo envolveram a sua rainha e a carregaram para o interior da proteção da barreira dos seus homens. Com um sorriso vitorioso, Magnor chutou o corpo inanimado de Aled... E, sem mais contemplações, juntou-se aos Vândalos na debandada de regresso à Floresta Sombria.

Por trás de mim, os Viquingues acudiam aos brados de Thora... Ivarr uivou de dor e ódio, e correu no encalço do irmão, apoiado pelos nossos guerreiros. Eu acudi a Aled. Neste momento, salvar o meu primo era a única coisa que me importava!

Ajoelhei-me ao lado do corpo moribundo, e coloquei uma mão sobre a sua testa e a outra no seu peito, enchendo-o de energia curativa. O contacto foi suficiente para confirmar o pior. Aled respirava com dificuldade e o seu coração finava, em agonia. Apesar de nenhuma das feridas infligidas pela espada de Magnor ser mortal, a brutalidade dos seus pontapés e socos rebentara o meu primo por dentro. Era demasiado tarde para salvá-lo... Ainda assim, o vigor que eu lhe transmitia permitiu-lhe abrir os olhos e gorgolejar, engasgado pelo vômito de sangue:

— Edwina... Diz à Melody... que eu a amo... Que amo... o nosso filho...

As lágrimas rolaram-me pelo rosto. Eu era a culpada da desgraça de Aled, pois confiara a sua vida a Magnor. Por que não interpretara devidamente as Visões de Freya? Por que não dera ouvidos aos pressentimentos da minha mãe? Tivera todas as pistas diante do nariz e avançara às cegas, distraída com os meus problemas. Como ousava pretender tornar-me tão boa vidente como «O Que Tudo Vê», quando me permitia falhar desta forma grosseira?

Uma mão repousou ternamente no meu ombro. Assimilei a energia reconfortante da feiticeira Catelyn e usei-a para amenizar a dor do meu primo. Os nossos guerreiros perseguiam os inimigos, dispostos a invadir a Floresta Sombria. Porém, algo me dizia que a história de Magnor não passara de um engodo, e que a única entrada no reduto Vândalo, que ele jurara segura, também fazia parte da armadilha. Infelizmente, muitos dos nossos homens dariam a vida para confirmá-lo.

O tio Berchan chegou nesse momento, e colocou a mão sobre a minha, em cima da testa do sobrinho, enquanto as palavras suaves da minha mãe lhe apaziguavam o tormento emocional. Aled fechou os olhos e a sua respiração serenou, à medida que as dores abrandavam e a consciência se desvanecia. Quase imperceptivelmente, o meu tio buscou o amuleto de Aranwen no seu pescoço e confirmou os nossos temores. A pedra verde desaparecera!

Fui acometida pela vontade premente de gritar até que a Terra se fendesse, de me revoltar contra a injustiça desta vida perdida; tanta juventude... tanto futuro desperdiçado! Pela segunda vez, falhara a proteger alguém que amava! Edwin morrera... E Aled finaria num instante, diante dos meus olhos, sem que a minha habilidade pudesse auxiliá-lo...

Sustive o fôlego, sentindo o coração acelerar e o sangue aquecer. A minha magia não podia curar Aled, mas a magia de Lyria podia! E eu conhecia o sortilégio, os gestos, as palavras... até tinha junto de mim a minha mãe e o tio Berchan, que podiam ajudar-me a concretizar um milagre!

— Aled — gemi, trêmula e ansiosa. — Tu não vais morrer...

O olhos do meu primo reviravam-se e o seu corpo convulsionava. Ante a incredulidade dos presentes, rasguei-lhe a túnica e pousei as mãos no seu ventre, reconhecendo a sua essência. Depois, arranquei alguns fios dos meus cabelos e dispu-los sobre o peito suado e ensangüentado, enquanto os meus lábios se moviam por instinto, dando vida a palavras que jamais imaginara proferir. Apesar de apreensiva, a minha mãe consentiu na nossa união e disponibilizou a sua energia. Porém, não era suficiente! Apelei ao tio Berchan... E deparei com o seu olhar horrorizado. Ele afastou-se, sacudindo a cabeça.

— O que é que estás a fazer, Edwina?

— A tentar salvar a vida do Aled... — volvi, com a voz estrangulada.

— E pretendes fazê-lo invocando os espíritos malignos da Arte Obscura? — objetou o meu tio, transtornado. — Conspurcando a tua essência? Conspurcando a nossa essência e profanando um juramento sagrado? Tu és a Guardiã da Lágrima do Sol! O que te propões é uma traição a «O Que Tudo Vê»!

— A magia que a Edwina pretende usar já me resgatou à morte! — Steinarr aproximou-se e apertou o meu ombro, encorajando-me a manter a resolução. — Algum de vós acha que a minha essência está conspurcada? — O silêncio absoluto foi a resposta. — Quando se trata de salvar vidas, nenhum recurso deve ser desprezado! Os nossos olhos já presenciaram demasiadas desgraças para um só dia!

A traição do filho mais novo destroçara-o... A batalha terminara e o rescaldo era desastroso. Pela primeira vez, o rei viquingue sentia o sabor acre do engano, da humilhação... da derrota. Perdera um filho e dezenas de excelentes guerreiros. E nenhum dos nossos objetivos fora alcançado! Os Vândalos haviam tornado à sua fortaleza espinhosa. .. e acrescentado outra pedra mágica aos troféus da rainha Aesa.

— Faz o que tem de ser feito, filha — apoiou o jarl com firmeza, antes de ordenar aos homens: — Comecem a cuidar dos feridos e a reunir os mortos, para que possamos regressar a casa.

— Eu preciso de ajuda — confessei. — A nossa energia não é suficiente...

— Eu posso assisti-las! — O primo Krum avançou um passo; lúcido, apesar de sangrar de um corte profundo na testa. — O Aled é como se fosse meu filho... Diz-me, o que devo fazer?

Recordar que Melody aguardava que o marido chegasse ao castelo, são e salvo; que lhe falasse junto do ventre e a abraçasse, deu-me ânimo para reiniciar o sortilégio. Enquanto os meus dedos se afundavam na carne de Aled e o remendavam por dentro, ponderei que os tempos estavam a mudar. A fronteira entre o bem e o mal tornava-se cada vez mais difusa... Ou, talvez, eu fosse realmente indigna da herança de «O Que Tudo Vê»!

O fato é que, ao aperceber-se de que a sua ajuda era imprescindível, o tio Berchan acabou por sufocar o preconceito contra a Arte Obscura, e uniu a sua energia à nossa, para salvar o sobrinho. Nessa noite, na desolação dos Pântanos Nebulosos, Aled McGraw abriu os olhos para uma nova vida. E eu ganhei o respeito do meu povo como Guardiã da Lágrima do Sol.

O salão de Lyria recebeu os nossos feridos, e os curandeiros da Gente Bela deram-nos uma preciosa ajuda, permitindo-nos descansar. Assim que fiquei a sós com a rainha, ajoelhei-me aos seus pés, pedindo-lhe perdão por ter apelado sem consentimento à magia dos seus antepassados. Temia que ela me acusasse de abusar da sua confiança e se enfurecesse. Lyria, porém, apertou-me as mãos e ajudou-me a erguer, replicando:

— Como posso repreender-te por seguires o teu coração? Confesso que, quando partilhei esse sortilégio contigo, jamais me ocorreu que tomasses a iniciativa de repeti-lo! Foi nobre da tua parte, Edwina... Mas foi igualmente imprudente! Se falhasses, o teu primo Aled teria perecido e arrastado todos vós para a morte, pois os vossos espíritos quedar-se-iam aprisionados no seu corpo. — Fez uma pausa para me permitir assimilar esta informação. — Além disso, devo lembrar-te que a Arte Obscura não se deixa utilizar impunemente. De cada vez que a invocares, ela tocará na tua essência e apossar-se-á de um pedaço da tua luz. Mesmo eu, como rainha do Povo da Terra, devo ponderar nas vantagens da concretização desse feitiço, pois, apesar de salvar vidas também pode destruí-las, e as conseqüências do seu abuso são terríveis...

— Quer dizer que não devo voltar a socorrer-me dessa magia, mesmo que em causa esteja a vida de alguém que amo? — Apesar de tudo, a sua advertência revoltava-me.

— Assim é! — respondeu a rainha, indulgente. — A não ser que estejas disposta a arriscar a pureza da tua essência... ou até a vida! De qualquer forma, estás de parabéns! Sei que derrotaste a feiticeira Aesa num confronto direto e salvaste o orgulho do teu povo. Lamento que o resultado da batalha vos tenha sido desfavorável, mas tenho a certeza de que o rei Steinarr, o jarl Throst e a Guardiã da Lágrima do Sol saberão contornar esta vicissitude.

Eu não possuía um pingo da sua convicção. Por mais que apelasse à imaginação, não extraía nenhum proveito desta campanha. No fim, até os meus piores receios se tinham confirmado! A corrida desenfreada dos nossos homens, em perseguição aos Vândalos e ao traiçoeiro Magnor, através daquele que se julgara ser o único acesso seguro ao reduto da rainha feiticeira, fora violentamente interrompida pelo encerramento do anel de espinheiros. Os arbustos mágicos haviam-se desenvolvido à velocidade de um relâmpago, aprisionando vidas no emaranhado mortal. O rei-lobo e a sua alcatéia conseguiram recuar, mas com graves mazelas. Ivarr distribuíra a sua energia pelos companheiros, durante a viagem de regresso, mas tombara de exaustão à entrada da cidade de Lyria. Agora, os cinco guerreiros reuniam-se à volta do seu senhor, velando-lhe o sono com devoção.

Lyria acompanhou-me ao salão, e deteve-se junto do príncipe viquingue e dos seus lobos, certificando-se de que se encontravam bem e de que todas as suas necessidades eram atendidas. Pouco depois, foi a vez do rei Steinarr vir indagar da condição do filho. O soberano perdera o porte nobre e atemorizador. Parecia uma sombra de si mesmo, abatido pelo cansaço e pelo desgosto. Passara a maior parte do dia reunido com o jarl, os meus tios e os chefes dos clãs viquingues, e ainda não tivera tempo para extravasar a sua mágoa.

A visão desgastada do rei fez Lyria estremecer, de tal forma, que as batidas do seu coração me troaram aos ouvidos. Desviou o olhar para ocultar o seu abalo e apressou-se para fora do salão. Quase tive de correr para acompanhá-la.

— Vós ainda o amais... — constatei, preocupada.

— Por favor, Edwina! — atalhou com um gesto impaciente. — O Steinarr fez a sua escolha e eu fiz a minha... Não há como voltar atrás!

Encolhi os ombros, numa aflição confusa:

— Mas ele também...

— Nós decidimos seguir caminhos diferentes, que jamais se voltarão a cruzar! Não digas mais nada, suplico-te... Desculpa-me. Preciso de ficar só.

E partiu, abandonando-me na escuridão. Passei a mão pela testa, suspirando dolorosamente. Tinha a sensação que pisava sobre gelo fino e tudo ruía à minha volta. Necessitava de uma boa noite de sono. Sim, quando a manhã nascesse, a vida não me pareceria tão complicada, e o meu futuro tão amargo e vazio.

Subi para o meu quarto, decidida a cair na cama sem gastar mais um pensamento. Todavia, ao passar diante do aposento dos meus pais, a voz do tio Berchan petrificou-me.

— Tendes que manter um olhar atento sobre a Edwina! — Obstinava-se. — Tu sabes como é difícil resistir ao apelo da Arte Obscura, após experimentar o seu poder, Cat...

— Os teus temores são ridículos, Berchan — replicou o jarl, num tom que revelava crispação. — A Edwina não pode ser penalizada por ter tido a coragem de desafiar as regras para salvar o primo! Preferias que o Aled tivesse morrido?

— Não é isso que está em causa! Se apelarmos à magia maldita para combater os mestres da Arte Obscura, o que é que nos distingue deles?

— Tudo! — contrapôs a minha mãe, também impaciente. — Não é a magia que faz o feiticeiro e sim o contrário! Nós confiamos na nossa filha!

— Deveras? Sabias que a Edwina possuía esse conhecimento? Não, nenhum de vós sabia! E quem foi que a ensinou? O desafortunado filho do Edwin... e da feiticeira Gwendalin? O que mais terá ela aprendido, nesses encontros clandestinos? Até que ponto a sua essência já não estará dominada pela vontade da magia negra?

— Tu não és senhor da razão, Berchan McGraw! — rugiu o jarl. — Eu conheço a minha filha! A Edwina seria incapaz de uma má ação! Talvez tenha guardado segredo precisamente por temer um julgamento intolerante...

— Estás a chamar-me intolerante?

— O rigor com que governas a tua vida cega-te, cunhado! Esta discussão é inútil! Se não partilhas do nosso orgulho pela Edwina, lamento por ti!

— Lamentarás muito mais, quando fores obrigado a dar-me razão...

Rodei nos calcanhares e fugi, trespassada até ao osso pelas palavras do meu tio; tão magoada que achava que jamais poderia perdoar-lhe. Berchan McGraw fora o mais exigente dos meus mestres, por isso devia conhecer a força da minha vontade! Contudo, um pequeno desvio de comportamento chegara para assustá-lo; para que me retirasse a sua confiança. Pior ainda, atrevia-se a alvitrar presságios sinistros acerca do meu futuro! Só faltara profetizar que me tornaria tão abominável como Aesa!

No salão, os gemidos de dor interrompiam o silêncio. As chamas das lamparinas eram apenas as suficientes para permitir o trabalho dos curandeiros. Caminhei por entre os feridos, até ao canto onde Ivarr, Thora e os seus companheiros repousavam. Precisava de sentir-me acarinhada; de ouvir palavras suaves e reconfortantes...

Detive-me ao ver que a alcatéia do rei-lobo se havia aninhado ao lado do seu senhor, aos seus pés, junto da sua cabeça... e adormecido, como cachorrinhos recém-nascidos no aconchego do corpo da mãe. Esta estranha intimidade incomodava-me. Será que, para onde quer que me virasse, me sentiria deslocada?

Preparava-me para partir quando Ivarr abriu os olhos. Franziu o sobrolho ao deparar com as minhas lágrimas, e estendeu-me a mão, convidando-me a aproximar. Hesitei. A pilha de corpos quentes encaixava-se irmãmente, como se o calor e o cheiro dos demais os ajudassem a recuperar as forças. As minhas reservas acabaram suplantadas pela carência de afeto. Tentei avançar sem pisá-los, mas foi impossível. Ouviu-se resmungar e olhos sonados espreitaram a intrusa. A incredulidade cedeu lugar a sorrisos, quando Ivarr ordenou:

— Dêem espaço à nossa convidada.

Ajeitei-me e, de imediato, fui envolvida por braços e pernas, sem saber ao certo a quem pertenciam. Fiquei tensa, até que a cabeça de Thora se aninhou no meu ventre e Ivarr me estreitou com carinho, murmurando:

— Está tudo bem, meu amor... Nós vamos cuidar de ti... Comecei a chorar sem controle e, um a um, eles despertaram e mimaram-me. Aos poucos, o embaraço causado pela proximidade foi desaparecendo. Ninguém questionou o motivo do meu pranto, pois era evidente que eu não desejava confessá-lo. Pela primeira vez, senti a energia de Ivarr aflorar a minha, quase a medo... e não resisti. Estava tão cansada... E tão quente, tão confortável, tão protegida...

Adormeci sem me aperceber. Flutuei num vazio indolente... até me surpreender numa caverna inundada de luz, cujas paredes brilhavam como se cobertas por miríades de pedras preciosas. Do chão e do teto pendiam estruturas alongadas e irregulares; estátuas sem forma definida, cintilantes e úmidas. Ao fundo, uma nascente brotava do cerne da rocha e mergulhava num lago de água transparente, onde se destacava uma ilha de pedra escura e lisa. Uma névoa colorida libertava-se da água e envolvia-me, cálida e molhada, perfumada com o cheiro da terra virgem, convidando-me a aproximar.

Incapaz de resistir, avancei languidamente, até a água me envolver os pés descalços e me acariciar com as suas bolhas mornas. Dentro do meu peito rufava um tambor. O meu corpo ardia de antecipação e a respiração engasgava-se. Sabia que não me encontrava sozinha...

E ele veio até mim, silencioso como uma sombra. O seu reflexo indistinto enfeitava a superfície da água; alto e forte... poderoso como um guerreiro excelso, sereno como um Sábio. E eu não o temia. Nem mesmo quando me abraçou pelas costas, repousando o rosto nos meus cabelos e as mãos sobre o meu ventre. O seu odor másculo inundou-me as narinas e eu inspirei-o com a ansiedade de uma fêmea no cio, fustigada por uma fome que me contorcia as entranhas; que queimava como fogo vivo. As minhas mãos fecharam-se nas suas e os nossos dedos entrelaçaram-se. Nos nossos pulsos, os dragões mágicos ganhavam vida e fundiam-se num só, voando em torno do Sol e da Lua; um círculo de poder que envolvia o mundo...

— Amo-te, Rainha do Sol... Amo-te desde o dia em que nasci...

Deitei a cabeça no seu peito e desejei que este momento de perfeição jamais findasse. Sentia-me completa, mergulhada num prazer que não conhecia limites... Um prazer que persistiu com o retorno da consciência.

Despertei lentamente, recusando-me a abandonar o sonho. Uma voz quente murmurava-me palavras ternas ao ouvido. Não era Edwin... Mas o meu coração reconhecia-o e aceitava-o. Recebi os lábios de Ivarr e correspondi ao seu ardor, envolta no aconchego de uma magia... diferente de tudo o que já experimentara! Era como se cada um dos corpos que me abraçava me pertencesse... A sensação era arrebatadora!

— Amo-te, Edwina... — sussurrou Ivarr, acariciando-me o rosto com a barba crescida, fazendo-me arfar de emoção. — Vamos parar de lutar contra o que ambos desejamos... Já não há razão para vivermos separados. Casa-te comigo...

Como podia casar-me com Ivarr se amava Edwin? Porém, naquele momento de enleio, vi-me forçada a admitir que, ainda que de uma maneira diferente, também amava Ivarr. A nossa união não seria perfeita... No entanto, o mundo abria-se diante de nós, repleto de desafios emocionantes. Um dia, ele seria rei... Um grande rei! E eu podia fazer muito pela sua causa, pelo nosso povo...

— Edwina...

Edwin morrera... Continuar a viver, prosseguir a nossa luta, defender o seu legado, honraria a sua memória. E Ivarr compreendia os meus sentimentos. Dar-me-ia tempo... dar-me-ia espaço para reaprender a sorrir.

— Edwina...

Esta noite eu assimilara a essência da sua magia. Esta provinha do coração da Terra; era física, selvagem, pura... Eu não estava só nos braços de rei-lobo. Estava nos braços dos seus irmãos de sangue... E sentia-me em casa.

— Eu serei tua mulher, Ivarr — respondi, por fim. — E tu serás o protetor da minha missão.

— Com todo o gosto! — volveu ele sem hesitar, por entre os uivos festivos dos nossos guerreiros-lobo.

 

Os meus pais e o rei Steinarr receberam com júbilo a notícia de que eu e Ivarr decidíramos casar. A comunicação do herdeiro do trono viquingue foi sucedida de uma celebração que elevou a moral abatida dos nossos homens. Foi com alguma perplexidade que constatei que a rainha Lyria me fixava apreensiva. Quando a questionei, ela disfarçou e desejou-me felicidades. Não obstante, refutou o convite para comparecer na cerimônia. O estado avançado da sua gravidez tornava a viagem muito arriscada. Além disso, não podia esquecer-me de que ela era, agora que «O Que Tudo Vê» já não se encontrava entre nós, a principal responsável pela guarda do pote de cinzas de Gwendalin. A vigilância desse mal não podia ser descuidada, ou arriscávamo-nos a um desastre ainda maior do que a perda para o inimigo de quatro das pedras mágicas da feiticeira Aranwen. Contudo, eu seria sempre bem-vinda, quando quisesse visitá-la!

Steinarr deixou a cidade de Lyria sem olhar para trás e o seu procedimento para com Cyrus, na despedida, foi quase insultuoso. O rei viquingue não esquecia que o rei da Gente Bela lhe negara o seu apoio no ataque ao reduto de Aesa... nem que dormia todas as noites nos braços da mulher que ele desejava. A aliança entre os nossos povos mantinha-se porque Lyria era uma soberana de palavra... e tinha bom coração. Ao seu «até breve» cordial, Steinarr respondeu com um olhar de fogo e um «adeus» de gelo. Era evidente que não tencionava regressar.

Ao contrário do que eu pensara, Lyria e a minha mãe não ficaram amigas. No entendimento da rainha da Gente Bela, a esposa do jarl Throst era responsável pela infelicidade e insatisfação do rei viquingue. Apesar de ser apaixonada pelo marido e nunca ter dado esperanças a Steinarr, a senhora da Ilha dos Sonhos também não desencorajara a sua atenção e o seu fascínio. Se a minha mãe se justificasse, dizendo que o fazia por complacência, quase por piedade, Lyria contraporia, replicando que tal só podia ser explicado como vaidade e egoísmo. Assim, as conversas foram evitadas e ganhou a diplomacia. Ambas entendiam que era inútil discutir por causa de um homem que não fazia parte do futuro de nenhuma delas.

A sorte de Magnor intrigava-me. Que destino aguardaria o príncipe rebelde no interior da muralha de espinheiros? Mesmo que, um dia, a sua loucura finasse e decidisse regressar a casa, o pai jamais o receberia. A última vez que alguém se atrevera a mencionar o seu nome, Steinarr replicara que não tinha nem nunca tivera outro filho, para além de Ivarr.

Muitas vezes, nos últimos dias, as manifestações de gratidão de Aled tinham-me trazido lágrimas aos olhos. Era certo que, de início, o meu primo se sentira inconformado e revoltado por ter permitido que a herança do seu pai tombasse nas mãos do inimigo. Todavia, era um homem sensato, e acabara por concordar que a preservação da sua vida era o mais importante. No instante em que regressámos ao castelo viquingue, e Melody caiu nos braços do marido, chorando de alegria, senti-me recompensada pela minha decisão! Pouco me importavam os juízos de valor do tio Berchan! Se Lyria não me condenara por ter recorrido ao mais secreto dos sortilégios do seu povo, quem era ele para fazê-lo?

Freya esperava-me com uma ansiedade que mal lhe permitia respirar. Estava uma lástima, magra como eu nunca a vira, cheia de olheiras e com um esgar enlouquecido. Mal me deixou abraçá-la, já apelava angustiada:

— Diz-me a verdade, Edwina! Ele está vivo?

Sosseguei-lhe o coração, mas não acrescentei nem mais uma palavra. Necessitava de ponderar muito bem se devia contar-lhe o meu segredo. Seria melhor para todos que Freya esquecesse de vez o príncipe vândalo e superasse o seu desgosto. Porém, a avaliar pelo seu aspecto, tal não seria fácil!

Ivarr fez questão de que o nosso casamento fosse celebrado no castelo viquingue. Eu teria preferido casar-me na quietude da Ilha dos Sonhos, mas não podia esquecer-me de que estava a desposar o futuro soberano de uma nação poderosa. Os convidados estrangeiros deviam prestar homenagem ao rei e ao seu sucessor dentro dos seus domínios.

Além disso, os nossos guerreiros regressavam derrotados e humilhados de uma batalha, e era importante restituir a confiança ao povo. A minha dedicação jamais poderia ser questionada. A Ilha dos Sonhos fazia parte do meu passado. O País dos Viquingues era o meu futuro.

A rapidez com que a cerimônia foi organizada deixou-me assustada. Mais parecia que Ivarr receava que eu me arrependesse e voltasse com a palavra atrás. E, de fato, muitas vezes me interroguei se estava a fazer o que era devido e, em algumas delas, estive perto de lhe suplicar que cancelasse tudo. Porém, sempre que ele surgia diante de mim, perdia a coragem e acabava por aninhar-me nos seus braços, novamente convencida de que este era o único caminho a seguir. Afinal, estava a cumprir a vontade da minha família, de «O Que Tudo Vê» e do nosso povo!

O jarl despediu-se e regressou à Ilha dos Sonhos, acompanhado por Berchan e Stefan McGraw. Havia muito que fazer em pouco tempo. O rei do Império tinha de ser avisado, assim como os senhores da guerra da Grande Ilha, os soberanos do Povo dos Penhascos, os druidas e o resto da minha família. Aled e Melody também partiram, desculpando-se por não poderem atender ao casamento. A minha prima estava constantemente indisposta e a sua gravidez adivinhava-se complicada. Se não voltasse imediatamente para casa, dificilmente conseguiria viajar mais tarde. E, depois de escutar as aventuras de Aled na batalha dos Pântanos Nebulosos, desfrutar da segurança da sua vida pacata era tudo o que Melody desejava!

A minha mãe e Freya ficaram comigo, para me dar o seu apoio. O tio Edwin também aceitou a hospitalidade de Steinarr, decidido a descansar um pouco. O seu rosto perfeito denunciava os primeiros sinais de envelhecimento; as rugas vincadas nos cantos dos olhos, que haviam surgido no dia em que a morte do seu primogênito fora confirmada, teimavam em acentuar-se.

Em paralelo com o casamento, o rei viquingue reorganizava a sua defesa, cuidava do restabelecimento do seu exército e mantinha-se alerta, não fosse Aesa ou Arnorr aproveitar este momento difícil para atacar de surpresa. As fronteiras do País dos Viquingues foram fortalecidas e um reforço de guerreiros enviado para a cidade de Lyria. Nas aldeias viviam-se dias de grande tensão. Ao desaparecimento súbito de «O Que Tudo Vê», juntara-se o desaire da campanha contra Aesa e o anúncio da traição do príncipe Magnor. O casamento do herdeiro do trono com a nova Guardiã da Lágrima do Sol seria um bálsamo para o ânimo do povo.

Demorei algum tempo a reunir coragem para subir a Montanha Sagrada, mas acabei por fazê-lo, apesar dos protestos de Ivarr. Fiquei aliviada por constatar que a Pedra do Tempo não repelia a minha essência. Ao contrário do que o tio Berchan profetizara, ter recorrido à Arte Obscura para salvar Aled não me tornara maldita!

Reconfortada, entrei na gruta que, durante muitos anos, fora a morada de «O Que Tudo Vê». As suas paredes encontravam-se repletas de desenhos que contavam a história das Lágrimas do Sol e da Lua. Os livros de pele, onde o meu bisavô descrevera a sua vida, estavam arrumados... Cedi ao choro por um instante, mas forcei-me a recuperar o controle. O meu mestre ficaria zangado, se me visse prostrada pelo desgosto. Algures, no coração da Montanha, o seu corpo mortal repousava... Mas o seu espírito estaria sempre comigo, protegendo-me e orientando-me.

Uma alteração no equilíbrio da energia fez-me levantar a cabeça. Na parede da gruta formara-se uma abertura, como uma janela, e, dentro dela, cintilava a Lágrima da Lua. Avancei ao seu encontro, fascinada. Acariciei-a entre os dedos e ponderei levá-la comigo. Contudo, a razão sobreveio. Não possuía recursos para proteger ambos os cristais... E a Lágrima da Lua pertencia à Montanha Sagrada! Voltaria, de vez em quando, para admirá-la; para, através do seu esplendor, recordar e homenagear a coragem de Edwin.

Saí para debaixo do céu do fim da tarde, estrangulada pela comoção. Quedei-me diante da Pedra do Tempo e supliquei com a voz embargada:

— Diz-me se estou no caminho certo! Serei Guardiã da Lágrima do Sol e princesa do País dos Viquingues... Servir-te-ei, e ao meu povo, com sabedoria e justiça. Combaterei, sem piedade, os que deturpam a magia para alimentar uma perversa ambição. Do meu ventre, não nascerá o filho do dragão, mas o herdeiro do trono viquingue... E este o novo rumo que me destinaste?

Não obtive resposta.

No centro do pátio, Thora brandia a sua espada com uma postura ameaçadora. Ao seu redor encontravam-se cinco guerreiros-lobo; os machos da sua alcatéia. Bryan foi o primeiro a atacar e ela repeliu-o sem hesitação. Seguiu-se Ragnar, que acabou por escorregar e cair prostrado por um pontapé. Eric aproximou-se, com um sorriso melado e orgulhoso que depressa finou, ao compreender que a sua prometida estava a levar o treino muito a sério. Aliás, se a lâmina da Loba Prateada não se encontrasse envolvida pela bainha de pele, o nosso primo teria ficado seriamente ferido. Eric acabou por recuar, levando a mão ao ombro com uma expressão magoada. De certeza que, no dia seguinte, teria uma nódoa negra para lhe recordar o incidente.

Ketill preparava-se para investir, mas Ivarr deteve-o. Era para o rei-lobo que a minha irmã olhava, num desafio incendiado por uma raiva que ninguém compreendia. O príncipe fez-lhe a vontade e enfrentou-a. As duas espadas chocaram no ar, depois rente ao chão, a meio do corpo e, de novo, ao nível da cabeça. Ivarr prendeu a posição da adversária, aproximou o rosto e fixou o seu olhar flamejante, mastigando irritado:

— Nós estamos a brincar contigo, moça! Não sejas estúpida...

— Não me chames moça! — gritou Thora e, sem que o príncipe o previsse, projetou a cabeça adiante com toda a força, libertando-se do bloqueio da sua espada.

Ivarr deu um salto para trás, gemendo de dor. A cabeçada de Thora rebentara-lhe o nariz. O meu noivo olhou para a mão com que limpara o sangue, e depois para a sua subordinada, rugindo impaciente:

— Agora foste longe de mais!

— Queres lutar ou chorar?

— Vou arrancar-te o couro, moça!

— Pára de me chamar moça!

As espadas de Ivarr e Thora voltaram a embater e, desta vez, ele apelou à força para desequilibrá-la. Ela caiu desamparada, mas rebolou pelo chão, antes que o rei-lobo pudesse alcançá-la. Aproveitou-se da posição e ergueu os pés, atingindo-o numa perna. Ivarr tombou sobre o joelho e teve de executar um movimento hábil com a sua espada para conter o ataque da jovem, que entretanto já se levantara. Confiante, Thora tentou prostrá-lo novamente, mas aproximou-se demasiado. O príncipe conteve a sua investida e agarrou-a pelo braço. Sem contemplações, apertou-lhe o pulso com tamanha brusquidão que a minha irmã largou a espada, guinchando de dor. Depois, arrastou-a até ao chão e encostou-lhe a arma ao pescoço.

— O que é que queres provar? — rugiu irado. — Parece-me que não estás interessada em aprender o que temos para te ensinar! — A Loba Prateada tentou desviar a espada da garganta, mas o seu senhor não permitiu. — Se queres brigar como um reles desordeiro, vais levar o troco. A partir de hoje, nenhum de nós pensará duas vezes antes de replicar às tuas agressões.

— Ivarr... — apelei apreensiva, percebendo-os descontrolados.

— Estás a magoá-la!

O rei-lobo recuou, permitindo que a sua protegida se erguesse. Thora desatou a correr para fora do pátio, com os olhos cheios de lágrimas. Eric tencionou segui-la, mas o esgar furibundo do seu senhor demoveu-o. Eu lancei-me no encalço da minha irmã, sem entender por que transformara ela o treino num conflito de honra.

Thora deteve-se atrás do tronco de uma árvore, soluçando agarrada ao pulso. Aproximei-me devagar, adivinhando que ela rejeitaria a mais leve palavra de conforto.

— Vai-te embora! — vociferou, antes de eu abrir a boca. — Deixa-me em paz!

— Eu só quero... — Estendi a mão para tentar observar-lhe o pulso, mas ela desviou-se, bradando num pranto esganiçado:

— Não preciso da ajuda de ninguém! Sou capaz de me defender sozinha!

— Eu sei isso, Thora — repliquei pacientemente, sem forçar nova aproximação. — Mas tens de respeitar os outros, se queres ser respeitada! Eles estavam a brincar...

— Eu estou farta de brincadeiras! — volveu, dando largas à sua indignação. — Já não sou uma criança! Mas ninguém me leva a sério...

— Thora... — Sobressaltei-me ao ouvir Ivarr por trás de mim.

— Vem cá!

— Não!

— Thora!

A minha irmã baixou a cabeça ante o tom imperioso, qual cão repreendido pelo dono, e deu um passo em frente. O seu senhor encontrou-a a meio caminho e continuou:

— Mostra-me o pulso.

Engoli em seco ao ver Thora submeter-se; a indignação substituída pela dor. Ponderei intervir, mas algo me deteve. Os dedos de Ivarr acariciavam as marcas vermelhas na pele da sua protegida, enquanto murmurava:

— Desculpa... Excedi-me... Fizeste-me perder a cabeça!

— Eu mereci — retorquiu a minha irmã, numa voz sumida. — Esqueci-me de que sou a mais fraca, a menos importante...

— Sabes que isso não é verdade! — objectou ele, franzindo o sobrolho.

— Não faz mal! — contrapôs ela; o corpo franzino tremendo tanto que mal se sustinha. — Um dia, serei mais forte e hábil do que qualquer um de vós!

A arrogância de Thora tirou-me o fôlego. Receei que Ivarr tornasse a irritar-se... Todavia, pasmei ao vê-lo segurar-lhe no queixo, obri-gando-a a encontrar o seu olhar, enquanto inquiria:

— E que farás, então? Matar-me?

Thora quis responder-lhe, mas não foi capaz. Com o coração apertado, vi-a cair nos braços do meu noivo, estreitando-o como se a sua vida dependesse dele. E talvez dependesse! A energia proveniente daquele abraço era fenomenal! Decidi que não queria observá-los; nem sequer escutar o resto da conversa. Mais uma vez, sentia-me uma intrusa ante a harmonia partilhada por eles.

Eric ainda não se movera. O seu olhar magoado fixou-me, ensombrado por uma interrogação que eu não desejava decifrar. Algumas coisas jamais deviam ser mencionadas. Ivarr escolhera-me para sua esposa, jurava que me amava... E eu tinha de confiar nele, ou a minha existência perderia o sentido.

Freya não estava bem... Isso era inquestionável! Porém, recusava-se a admiti-lo. Envolveu-se nos preparativos do meu casamento, com um entusiasmo obsessivo. Confiei-lhe a maior parte das decisões, desejando agradá-la. Assim, passávamos mais tempo juntas e eu podia mantê-la debaixo de olho. A sua magreza preocupava-me seriamente, e as olheiras profundas que lhe deformavam o rosto revelavam que há muito não desfrutava de um sono reparador.

Então, nas vésperas da cerimônia, irrompeu pelo meu quarto, sufocada pelo choro. Apertou-me com ferocidade e sacudiu-me, enquanto arquejava acusadoramente:

— Mentiste-me! O Helgi está morto!

Foi difícil conseguir que se acalmasse o suficiente para me escutar:

— Freya... O Helgi está vivo! Juro-te! Eu... eu estive com ele!

— O quê?

Suspirei, contrafeita. Tinha evitado esta conversa, por temer as conseqüências que dela adviriam.

— Ele... Ele salvou-me a vida! Eu sei que isto não faz sentido, mas é verdade! Porém, terás de aquietar-te, se desejas ouvir o resto!

Servi-lhe um chá para lhe serenar o espírito. Nos últimos dias, só o preparado de ervas me ajudava a adormecer. Talvez fosse pela crescente proximidade do casamento... O fato é que estava muito nervosa! E, para piorar a minha condição, o pesadelo que me colocava no meio do mar, rodeada pelo Povo da Água e os seus inebriantes cânticos, repetia-se quase todas as noites, forçando-me a recordar que o corpo de Edwin jazia nas profundezas do azul infinito. Pelo menos, Freya podia desabafar comigo! Eu tinha de chorar sozinha...

— O Helgi tem uma irmã gêmea, que serve Aesa com a mesma devoção com que eu servia «O Que Tudo Vê» — comecei lentamente, para obrigá-la a beber o chá. — Durante o primeiro ataque dos Vândalos à cidade da rainha Lyria, deparei-me com a oportunidade de destruir a sua mente... E, ainda hoje, não consigo justificar por que não o fiz! Seja como for, essa moça resolveu saldar a dívida que tinha para comigo, e enviou o irmão para me proteger do ataque dos lobos negros. O Helgi lutou e sangrou por mim, Freya... Mais tarde, quando prostrei Aesa, foi ele quem a resgatou e a levou para o interior da Floresta Sombria. Por isso, posso garantir-te que não morreu!

Freya respirava com dificuldade. As lágrimas caíam-lhe em cascata pelo rosto, ao balbuciar:

— Eu sonhei... Sonhei que a Thora o tinha matado! No fim, já não sabia se era a Thora ou eu quem segurava a espada... Acho... Acho que estou a enlouquecer!

Embalei-a nos meus braços e aguardei pela questão inevitável. Esta ecoou, ansiosa e dorida, antes que eu decidisse o que devia responder:

— Ele... Ele perguntou por mim?

Eu conhecia o sofrimento da minha irmã, pois também amara e perdera. A consciência ordenou-me que confessasse:

— Pediu-me que te dissesse que esperou por ti até o alarme soar... Ainda mantém a pedra mágica da nossa bisavó ao peito...

Foi com surpresa que vi Freya puxar pelo amuleto de Helgi, oculto pelo decote alto das suas vestes, e encostá-lo aos lábios, enquanto soluçava. Julgara que, por esta altura, ela já se teria livrado daquele testemunho do seu desvario. Quando a sua cabeça pendeu, esgotada pelo pranto, acariciei-lhe os caracóis negros, sussurrando:

— Tens de reagir, mana! Tens de superar o desgosto... avançar e esquecer! Não podes manter-te presa ao passado! Já estás doente...

— Eu não estou doente, Edwina... Estou grávida...

O meu sangue gelou e o coração parou de bater. Como...? Como é que era possível?

— Eu sei que devia ter bebido o chá para evitar conceber — continuou, desviando o olhar ante o meu choque. — Mas não fui capaz! Cada vez que tentava... pensava que era impossível que uma única vez tivesse sido suficiente. E, se fosse, eu estaria a matar uma parte de mim... uma parte de nós! Eu amo o Helgi, Edwina! Sou tão desgraçada que o amo perdidamente, mesmo sabendo quem ele é; tudo o que fez...

O silêncio envolveu-nos por uma eternidade. Havia tanta coisa que queria dizer-lhe... Contudo, sentia-me incapaz de falar. Por fim, foi ela quem apelou, numa voz que mal se escutava, mas que depressa cresceu em convicção:

— Ajuda-me, Edwina! Eu quero esta criança... Porém, morrerei de vergonha se alguém souber que é minha! Mal tenho comido, para evitar que a barriga me cresça. Tens de me valer! Tens de me mandar para um sítio onde ninguém me conheça, até que o bebê nasça! Depois, dirás que é filho de uma das tuas criadas e que desejas educá-lo... Eu virei viver contigo, para ficar ao seu lado.

— E como te sentirás a ver o teu filho crescer, acreditando que não tem pai nem mãe? — retorqui, horripilada com a idéia.

— Que opção me resta? — insistiu ela, apavorada. — Queres que diga aos nossos pais que me deitei com o herdeiro da bruxa maldita? Com o ladrão das pedras mágicas? Com um assassino...?

— Freya... — atalhei, fixando o seu olhar. — Ninguém precisa de saber quem é o pai do teu filho! Dirás a verdade; que ele é fruto do ritual de Renovação do Povo dos Penhascos. Viverás a tua gravidez com tranqüilidade e criarás essa criança com orgulho! Se a desejas, tens de assumi-la! Eu apoiar-te-ei a cada passo! Juro por tudo o que me é sagrado que nada vos faltará!

A minha irmã susteve a respiração, atordoada. O fato de não refutar de imediato encheu-me de esperança. A custo, replicou:

— E que dirão os nossos pais, quando descobrirem que eu me perdi? Vão odiar-me! Vão repudiar-me! Não suportarei isso!

— Tu seguiste o teu coração... — objectei, convicta. — Não co-meteste nenhum crime! Os nossos pais amam-te... Hão-de compreender! Tal como tu própria disseste, eles também eram inimigos quando se apaixonaram!

— Mas a história dos nossos pais teve um final feliz! — contrapôs Freya, e recomeçou a chorar. — A minha, jamais terá...

— O final feliz da tua história está aqui! — argumentei, acariciando o seu ventre. — E esta vida que cresce dentro de ti! Este coração que te amará acima de tudo e de todos! Não tenhas medo, irmãzinha... No dia em que segurares o teu filho nos braços, o resto perderá importância!

Sempre ouvi enunciar que a felicidade que se experimenta no dia do casamento só é suplantada quando os filhos nascem. E eu estava satisfeita; rodeada pela família, pelos amigos e por muitos desconhecidos que desejavam simplesmente manifestar o seu apreço.

Steinarr e os meus pais prepararam uma cerimônia grandiosa, financiada pelo tesouro que Thora encontrara no navio afundado ao largo da Ilha dos Sonhos. Pretendiam mostrar aos nossos inimigos que a derrota sofrida nos Pântanos Nebulosos não nos abalara, e, simultaneamente, desencorajar o ímpeto de algum rival ganancioso.

O rei do Império compareceu pessoalmente, acompanhado pela sua rainha, o segundo filho varão e a princesa Isobelle. John encontrava-se em viagem e não pudera honrar-nos com a sua presença. Tive de me esforçar para não denunciar a satisfação. Quinn e Estrid vinham na comitiva, mas, enquanto o meu primo se alegrou por me rever, ela cumprimentou-me com indiferença, como se fôssemos duas estranhas.

Estrid e Isobelle haviam-se tornado inseparáveis. A rainha do Império aproveitou a oportunidade para elogiar a minha prima diante do tio Edwin e pedir o seu consentimento para que a jovem se mantivesse na corte, como dama de companhia da princesa. Uma amiga tão educada e prendada seria uma excelente influência para Isobelle. Ao meu lado, Thora murmurou num tom escarninho:

— A serpente cobriu-se com as penas do rouxinol e convenceu os tolos de que é capaz de voar! Pobre princesa... Quando menos esperar, será devorada viva!

Era óbvio que Estrid estava a servir-se da generosidade de Isobelle para se quedar na corte... e apertar o cerco em torno de John. Pois eu desejava-lhe boa sorte!

Os druidas da Ilha dos Penhascos e Trygve também fizeram questão de nos cumprimentar. Diante do meu primo, esqueci as formalidades e corri para os seus braços. Mais tarde, quando ficámos sós, desfiz-me em justificações, temendo que a minha interferência nos rituais de Renovação tivesse ferido a nossa amizade. Trygve respirou fundo, antes de responder:

— Aquela noite mudou a minha vida... as vidas de todos nós, para sempre! Não mentirei, dizendo que aceitei de ânimo leve o que aconteceu. Porém, a Amora explicou-me que essa era a única forma de salvar o nosso povo. E contou-me que a apoiaste... Por isso devo agradecer-te, Edwina!

Fiquei aliviada por saber que Amora se encontrava bem. Tal como sucedia com Freya, o seu ventre ainda não arredondara... mas, logo que a natureza impusesse a sua vontade, a Sacerdotisa dos Penhascos partiria para um retiro na montanha, de onde só regressaria quando o seu segredo estivesse a salvo. A crença de que o seu poder de vidência se extinguiria no momento em que perdesse a virgindade, provara-se falsa. Aparentemente, tal convicção fora enraizada na cultura do Povo dos Penhascos para impedir que a soberana quebrasse as regras. Pelo que Trygve testemunhava, Amora continuava sábia... e decidida!

— Nós ponderámos — prosseguiu num tom grave. — E concordámos que o nosso filho não poderá viver connosco, pelo menos, durante os primeiros anos. Necessitará de uma educação especial, que nós não temos condições de prover, sem denunciar a verdade. Por isso, mais uma vez, apelamos ao teu auxílio. Cuidarás do meu filho, até que o seu regresso à Ilha dos Penhascos seja seguro?

O seu pedido era irrecusável. Sentia-me responsável por aquela criança, pois ajudara a criar as condições para que ela fosse gerada. E tinha a certeza de que Ivarr também não se importaria, após tomar conhecimento dos sentimentos que uniam Trygve e Amora.

Aproveitei para lhe confidenciar que Freya também estava grávida, e que o seu filho fora gerado sob a influência da Festa da Renovação. Trygve empalideceu, tartamudeando assustado:

— Ela foi... forçada por um homem do meu povo?

— Não! — apressei-me a tranquilizá-lo. — A Freya não foi forçada. No entanto, não quer revelar a identidade do pai da criança e devemos respeitar a sua vontade. Acredita que é para o melhor!

— Tu sabes quem ele é! — constatou o meu primo, provando que me conhecia bem. — Contudo, imagino que tens razões para pactuar com o silêncio da tua irmã, por isso não te vou questionar. Ela já contou aos vossos pais? Eles devem ter ficado possessos!

Na verdade, Throst e Catelyn haviam reagido melhor do que eu esperara! Jamais esqueceria a sua expressão assustada, quando nós os buscáramos no quarto, a meio da noite. Eu mantivera-me atrás da minha irmã, com as mãos sobre os seus ombros. Freya desabafara, por entre lágrimas e soluços, e suplicara por compreensão. O caminho que escolhera era nobre... mas terrivelmente árduo.

O meu pai ficara lívido, lutando contra os sentimentos contraditórios que lhe martelavam o peito. A minha mãe guardara silêncio, estendendo os braços a Freya e acolhendo-a no seu carinho. Nesse instante, tive a certeza de que eles já suspeitavam da verdade... e que a sua dedução fora ainda mais longe. Quando a minha irmã se negara a dizer com quem estivera, o jarl contestara, rouco de emoção:

— Eu compreendo as tuas razões, filha... Mas suplico-te que confies em nós! Não quero ser responsável pela morte do pai do meu neto, num campo de batalha!

— O teu pai tem razão, querida — insistira a nossa mãe. — Nós devemos saber a verdade, para que possamos acautelar uma desgraça. O rapaz que te salvou a vida, na Ilha dos Penhascos, e que depois te roubou a pedra...

— O seu nome é Helgi — atalhou Freya, com os olhos cerrados e a respiração aos borbotões. — E ele não me roubou a pedra; eu ofereci-lha... como prova do meu amor...

E recomeçara a chorar, aguardando por uma condenação. Aí, eu julgara prudente interferir, e partilhara com os nossos pais o que sabia acerca do bisneto de Aesa. Sentia-me tentada a acreditar que Helgi e a sua irmã não eram escravos da vontade da rainha feiticeira... e que essa independência lhes permitia distinguir o bem e o mal. Contudo, temia ficar prisioneira dessa ilusão e descobrir, num momento crucial, que tudo não passara de outro jogo mental; de mais uma armadilha da maquiavélica bruxa. Afinal, depois de solicitar ao irmão que me salvasse, a herdeira de Aesa tornara a erguer o nevoeiro, para cegar os nossos guerreiros e favorecer o ataque da mestra da Arte Obscura! E ainda havia a profecia que opunha Helgi a Ivarr, e que os forçava a disputar a mesma mulher... Por mais que desafiasse o raciocínio, nada fazia sentido!

A manhã desse dia surpreendera-nos abraçados, e embalados na voz doce da minha mãe:

— Foi preciso muita coragem para assumires a tua gravidez, Freya, e ainda mais para nos revelares a verdade. Agradecemos a tua confiança! Sei que estás assustada e a sofrer pelo destino do teu filho e pelo vosso futuro... Mas, não temas! O teu bebê fará parte de nós, tal como tu fazes! Aconteça o que acontecer, nunca se esqueçam de que somos uma família e que nos amamos acima de qualquer dificuldade.

Eram estas as palavras que me acudiam à memória, no instante em que subi para o altar erguido no pátio do castelo, e fiquei diante do rei viquingue, que fizera questão de presidir à cerimônia, e de Ivarr. Senti-me estupidamente nervosa e tentei concentrar-me no sorriso do meu noivo. Ele prendera os cabelos com uma fita dourada, que contrastava com a pele de lobo que lhe cobria os ombros e o branco imaculado das suas roupas, bordadas a ouro com os símbolos da casa real. Era um homem belo. Era um homem poderoso. Era um homem bom. O que mais é que eu podia desejar? As lágrimas subiram-me aos olhos quando me perdi no verde cristalino, que fixava com admiração as formas generosas do meu corpo, dentro do vestido que condizia com o seu, costurado e bordado de dia e de noite, durante semanas, pelas melhores artesãs viquingues. Os meus cabelos pendiam em cachos sobre o peito e pelas costas, até à cintura. Ao pescoço usava o colar que ele me oferecera, na noite do nosso noivado. Nunca me sentira tão bonita... Nunca me sentira tão insegura!

Ivarr proferiu os seus votos numa voz clara, sem hesitações. Quando chegou a minha vez, a língua colou-se-me ao céu da boca. Suspendi o fôlego e corri o olhar por aqueles que se encontravam mais próximos. Os meus pais sorriam, de mãos dadas e dedos entrelaçados. Os guerreiros-lobo de Ivarr observavam-nos com um ar divertido, à ex-cepção de Eric, que mirava Thora com uma expressão triste, e da própria Thora, que fixava o vazio com uma postura rígida. Trygve acenou-me, visivelmente satisfeito. Freya e a tia Ingrior choravam de emoção. O tio Berchan franzia o sobrolho, estranhando a minha pausa. O tio Stefan acariciava a cabeça da tia Enya, que repousava no seu peito. E o rosto melancólico do tio Edwin recordava-me o que eu tentava desesperadamente esquecer...

— Edwina...

O apelo de Ivarr sacudiu-me. Encarei-o, em pânico. Diante de nós, o semblante de Steinarr endurecia. A família do rei já sussurrava: «O que é que se passa com a noiva?» Senti a cabeça a rodar e o chão a oscilar debaixo dos pés. Só os braços de Ivarr me impediram de cair. Lutei para me manter consciente, enquanto alguém gritava para que me trouxessem água.

Água... Água nas minhas frontes; água na minha garganta; um universo de água... Eu estava submersa, mas respirava. À minha volta moviam-se criaturas prateadas... E cantavam... E dançavam...

— Edwina? Querida...

Encontrei o olhar de Ivarr e fui incapaz de conter o pranto. Abracei-o e desejei que tudo o que nos rodeava se desvanecesse. Sem querer, o meu olhar quedou-se em Estrid. A minha prima cobrira os lábios com as mãos, para que ninguém se apercebesse do seu riso de troça. Forcei-me a engolir mais um pouco de água, amparada pelo meu noivo. As nossas famílias tinham gasto uma fortuna nesta festa, e eu mal me sustinha de pé! O que é que os convidados iam pensar?

— Vamos concluir a cerimônia, meu pai — murmurou Ivarr, em tom de súplica. — A Edwina está indisposta e precisa de descansar.

Temendo que eu lhe desmaiasse nos braços, enfiou-me a bracelete ritual no pulso e aguardou que as minhas mãos reunissem alento para imitá-lo. Steinarr correspondeu ao seu apelo e declarou-nos casados. Antes que eu recuperasse o discernimento, já era princesa e herdeira do trono viquingue... E tinha a sensação de que um fiorde se desmoronara sobre a minha cabeça.

— Consegues andar? — perguntou o meu marido, mas não aguardou pela resposta. Pegou-me ao colo e carregou-me para o interior do castelo.

Eu era alta e pesada, mas ele não acusava o esforço, mesmo quando subia a íngreme escadaria. A minha mãe, a tia Ingrior e Freya corriam atrás de nós. Abriram a porta do quarto para lhe permitir a passagem e ajudaram-no a deitar-me na cama que, brevemente, seria o nosso leito.

— Vai atender aos convidados, Ivarr — disse-lhe a minha mãe, tentando apaziguar a sua inquietação. — Nós cuidaremos da Edwina. Não te preocupes! Este abalo foi provocado pelo cansaço. Vai... Vai!

Assim que a porta se fechou, Freya e a tia Ingrior libertaram-me do vestido e do espartilho, que me cortavam a respiração. A minha mãe preparou-me um chá, que sorvi com declarado alívio, enquanto ela remexia as brasas da lareira, entregando às chamas a mistura de ervas curativas que sempre trazia consigo. Em menos de nada, o aroma reconfortante e a bebida morna começaram a surtir efeito. Era-me quase impossível manter os olhos abertos.

— Eu tenho de voltar para a festa, mama... — murmurei sem convicção.

— Amanhã darás aos teus convidados toda a atenção que desejas — contrapôs ela, com firmeza. — Agora, descansa!

— Eu não quero...

Adormeci antes de terminar o raciocínio.

Acordei já a noite caíra. A minha mãe estava sentada ao meu lado; o seu sorriso benévolo oscilando à luz inquieta da lareira.

— Como te sentes?

Prodigiosamente, liberta do cansaço e com a mente limpa. Levei as mãos ao rosto corado, enquanto as recordações me fustigavam.

— Que vergonha! — murmurei. — Nem fui capaz de dizer os meus votos... O Ivarr jamais me perdoará!

— Tens a vida toda para lhe declarar os teus votos — retorquiu a minha mãe. — Não te sintas envergonhada pelo que aconteceu, querida! Há meses que vives pressionada por fortes emoções. Esta cerimônia foi a gota de água...

Enquanto ela falava, experimentei pôr-me de pé. Não estava tonta e até sentia fome.

— Vou buscar uma merenda — anunciou. — Volta para a cama, Edwina! A noite está fria e tu só tens esse robe em cima da pele.

Não obstante o seu conselho, mantive-me onde estava. No pátio, a música vibrava, por entre as gargalhadas dos convivas. Os archotes iluminavam as faces alegres dos foliões. Procurei rostos familiares e encontrei Eric e Thora. O que quer que fosse que andava a atormentar a minha irmã, desde a batalha nos Pântanos Nebulosos, parecia sanado.

A porta abriu-se e aguardei por Freya ou pela tia Ingrior. O coração subiu-me até à garganta e caiu no vazio, quando me depararei com Ivarr. Ele avançou ao meu encontro, devagar, como se temesse assustar-me. Ainda não trocara de roupa e o seu olhar demonstrava apreensão.

— Estás bem, Edwina?

— Sim — respondi, permitindo que me enlaçasse. — Desculpa! Envergonhei-te...

— Não sejas tola — revidou, tomando o meu rosto entre as mãos e beijando-me a testa. — Assustaste-me... Fico feliz por te ver restabelecida!

Fixei o seu olhar, inquirindo ansiosamente:

— O teu pai está zangado? Ele negou com a cabeça.

— É claro que não! Mas muitos convidados interrogam-se acerca da tua indisposição. Julgam que nós... — Hesitou, escolhendo as palavras. — Pensam que já estás grávida!

Senti-me corar e partilhei do seu sorriso. Ivarr estreitou-me com mais força e afundou o rosto nos meus cabelos, murmurando:

— E eu estou ansioso por transformar essa suposição numa realidade!

As suas mãos deslizaram pelas minhas costas, arrastando o tecido macio. Arrepiei-me, subitamente consciente da minha nudez. Tentei recuar um passo, mas ele não permitiu. A sua voz soou rouca e trêmula, junto do meu ouvido:

— Quando te vi subir para o altar, pensei no prazer que sentiria ao despojar-te daquele vestido. Parece que me preparaste uma surpresa ainda mais excitante, meu amor! Há anos que sonho com este momento...

— Ivarr... — Fugi do seu beijo, mal coordenando a respiração. — A minha mãe está a chegar!

Nesse preciso instante, a porta abriu-se e a senhora da Ilha dos Sonhos entrou, trazendo um tabuleiro com pão quente, um jarro de leite e um pote de mel. Recuei atrapalhada, recompondo o robe, enquanto Ivarr se voltava para a janela a fim de ocultar o rubor das faces. A minha mãe ignorou o nosso desconforto e disse simplesmente:

— Tenta comer, Edwina... Precisas de restaurar as forças! Não permitas que ela fique acordada até tarde, Ivarr. O dia de amanhã será igualmente cansativo. — Abeirou-se de mim e pôs-se em bicos de pés para me beijar o rosto. — Desejo-te uma boa noite e toda a felicidade deste mundo, meu amor. — Depois voltou-se para Ivarr e beijou-o também, exclamando com autoridade: — Cuida bem da minha menina, filho de Steinarr, senão terás de prestar-me contas!

— Cuidarei, Catelyn — respondeu o príncipe, sorrindo afetuosamente. — Obrigado por tudo!

Mordi o lábio quando a porta se fechou. Já não sentia fome... De repente, o enorme quarto pareceu mirrar. Apeteceu-me fugir, correr atrás da minha mãe e esconder-me na sua cama, debaixo das cobertas, onde Ivarr jamais me iria buscar...

— Vem, Edwina. O pão está quente! Olha o mel a derreter-se... Sentei-me na cama, ao seu lado, sorrindo nervosamente quando me deu o pão à boca, como se eu fosse uma criança. O mel escorreu pelos seus dedos e caiu-me no colo. Soltei um grito e mal contive uma gargalhada, ao ver que Ivarr também se lambuzara ao morder o pão. Sem pensar, ergui a mão para lhe limpar a barba rala que lhe ornava o queixo. Só percebi que caíra numa armadilha, quando ele me segurou o pulso e levou os dedos aos seus lábios, beijando-os um a um, mergulhando-os na boca e sugando-os.

O meu coração ameaçou rebentar. Já nem sabia como respirar! A língua de Ivarr movia-se em torno dos meus dedos, quente e úmida, provocando-me sensações deliciosas, que o tempo e a distância que eu lhe impusera já me haviam feito esquecer.

— Ivarr...

Outro pedaço de pão carregado de mel impediu o meu protesto. Desta vez, foi o meu rosto que ficou repleto com a calda doce, e não tive dúvidas quanto ao que ia acontecer. Num piscar de olhos, o tabuleiro desapareceu do colo de Ivarr, as suas mãos atraíram-me e os lábios colaram-se à minha face; a língua deslizando em círculos suaves pela pele ardente, pelo queixo, sobre os lábios...

Gemi alto quando mergulhei no seu beijo. Sem mais delongas surpreendi-me deitada na cama, o corpo do meu marido aninhando-se no meu, as mãos hábeis desapertando o robe e afastando-o lentamente. Percebi que me contemplava, mas mantive os olhos fechados, dividida entre a exaltação e o pudor.

— És tão linda, meu amor! — murmurou roucamente. — Tão pura...

Procurou-me os lábios e encontrou-os, ansiosos. Sobressaltei-me, ante a reação ardente do meu corpo ao seu toque. Ivarr riu baixinho, replicando com manifesto contentamento:

— Não receies, Edwina! Relaxa e aprecia o prazer que tenho para te dar.

A sua boca moveu-se sobre o meu pescoço e prosseguiu a descida, detendo-se no peito, explorando, brincando, ao mesmo tempo que as suas mãos me deslizavam pelo ventre, invadindo lugares que nunca tinham sido tocados. Tentei escapar mais uma vez, mas as suas carícias gentis provocaram-me um choque de calor. Reagi como se trespassada por um raio; gritei e arqueei-me, enlouquecida pela sensação. Já não pensava em afastá-lo...

A doce tortura prolongou-se até eu acreditar que ia desmaiar. Então, Ivarr voltou a erguer-se e segurou-me o queixo, apelando:

— Olha para mim, amor! Quero que saibas o quanto te quero... Começou a despir-se devagar; primeiro a túnica, que, ao passar-lhe pela cabeça, fez com que os cabelos se soltassem da fita e lhe enfeitassem o rosto; depois, o cordão das calças... As botas caíram no chão com uma pancada seca e, de seguida, vi pela primeira vez o corpo do meu marido, iluminado pelas chamas da lareira.

— Toca-me, Edwina... — implorou. — Mostra-me que me desejas tanto quanto eu te desejo...

Atrevi-me a acariciar-lhe o peito, os músculos firmes das costas, e tomei a iniciativa de buscar os seus lábios. Afundei-me num beijo repleto de paixão e abri-me ao seu corpo, suplicando silenciosamente que pusesse fim à minha loucura. A firmeza da sua intrusão não me incomodou. Estava disposta a receber tudo o que ele tinha para me oferecer. Porém, a dor não tardou, intensa, paralisante, crescendo até se tornar insuportável.

— Ivarr...

Ele quedou-se, completamente imóvel. A sua voz chegou até mim, deturpada por uma névoa de sensações contraditórias: dor e prazer, satisfação e temor:

— Respira devagar, querida... Assim...

Obedeci, quase a medo, mas, graças à sua perícia e paciência, em breve esqueci que me sentia quebrada pelo meio. Descontraí-me sem sequer me aperceber e, quando Ivarr recomeçou a mover-se, a dor foi substituída por outra sensação igualmente intensa, porém, oposta — uma exaltação profunda; fogo vivo dentro de mim...

Clamei, arrebatada. Sem controle da vontade, enterrei os dedos nos seus cabelos e puxei-o ao meu encontro, forçando-o a beijar-me. Sentia-me poderosa, dominadora, a mais perfeita das fêmeas. A minha mente delirava, assaltada por focos de luz que me deturpavam a razão. Nos meus ouvidos ecoavam cânticos sublimes. Já não sabia onde estava... Podia estar na cama... Ou podia estar no mar... As ondas que me envolviam amparavam o frenesi do meu corpo, convidavam o meu homem a enlouquecer comigo. Abri os olhos e encontrei o olhar verde profundo, que me acompanhava desde o instante em que fora gerada. Os cabelos aprisionados nos meus dedos eram louros, enfeitados por uma madeixa cor de fogo, cor de sangue, cor de vida... A minha vida nas suas mãos! Era perfeito! Tão perfeito como a sensação que crescia no meu ventre. Avassaladora... Destrutiva... Explosiva!

— Amo-te — bradei com todas as forças, perdida num vendaval de prazer interminável. — Amo-te, Edwin... Amo-te!

Fechei os olhos exausta, satisfeita... extasiada. Aos poucos, fui recuperando a consciência e apercebendo-me do peso do corpo que ainda me subjugava... ao mesmo tempo que a realidade me esbofe-teava as faces! Em que ponto deste desvario eu me deixara iludir pela saudade? Os cabelos que se escapavam dos meus dedos eram negros! O olhar verde cristalino do homem que me seduzira com maestria, que me iniciara no amor com tanto carinho, estava perturbado por uma mágoa; por uma revolta impossível de apaziguar. E este homem era o meu marido... e eu acabara de apunhalar impiedosamente o seu coração!

— Ivarr...

— Afinal, ainda te recordas do meu nome! — replicou num tom azedo, afastando-se com um ímpeto quase violento.

— Ivarr...

— Lamento se não sou o homem que desejas — cortou abruptamente, enfiando-se à pressa dentro das calças. — Mas sou o homem com quem te casaste! O Edwin está morto e tu estás condenada a passar o resto da tua vida ao meu lado!

— Ivarr, espera! Ivarr...

A porta do quarto fechou-se na minha cara, com um estrondo demolidor. Deixei-me tombar na cama e cruzei os braços sobre o peito. Estava tanto frio... Envolvi-me nas cobertas, mas continuei a tremer. Talvez o calor que existia neste mundo já não fosse suficiente para degelar a minha alma! Eu amava Edwin... Amá-lo-ia até morrer! Mas Ivarr não merecia o que eu lhe fizera, ainda que inconscientemente. O afeto que lhe dedicava podia não ser tão puro, tão irracional como o que nutria por Edwin... Contudo, também era forte, belo, essencial! Tinha de arranjar uma maneira de obter o seu perdão! Tinha de fazê-lo entender... Todavia, como convencê-lo de que passar a vida ao seu lado não seria uma condenação, depois do que sucedera?

Segui-lo de imediato era inútil. Ivarr estava tão revoltado, que acabaria por se zangar ainda mais. Esperar que o tempo apaziguasse a sua ira era a única solução...

E tempo, pelo visto, era o que não me faltava, agora que a solidão se abatia sobre mim.

 

O reflexo tremeluzente das chamas da fogueira que iluminava a cabana incidia sobre a jovem sentada nas almofadas de penas de ganso, e realçava a sua longa cabeleira lisa, castanho-acobreada, conferindo a ilusão de que um rio de fogo corria sobre os seus ombros e lhe desaguava no colo, cobrindo o vestido simples, de um amarelo desmaiado, que não fazia justiça à sua beleza.

A luz do dia nunca penetrara no mundo de Helga, mas ela não se queixava. Dizia que os olhos da sua essência distinguiam mais longe do que uma visão apurada. Ainda assim, Helgi iria de boa vontade até ao fim do mundo e enfrentaria a mais sanguinária das bestas, se o seu sacrifício concedesse vida aos olhos da irmã. Recostou-se ao seu lado, em cima das almofadas que forravam o chão, observando os dedos finos e delicados da sua gêmea a deslizarem pelas cordas da harpa, com uma mestria inigualável, enquanto a música lhe acariciava os ouvidos e confortava o espírito. Permitiu-se descontrair por um instante... Apenas por um instante...

Estes eram tempos perigosos. As convicções que haviam sido embutidas na mente dos dois irmãos, desde o dia do nascimento, eram agora questionadas por ambos, talvez não da mesma forma ou pelas mesmas razões... mas, de qualquer modo, a simples denúncia da mais tênue incerteza podia custar-lhes a vida.

Conselheiro deitou o focinho cinzento e branco no colo de Helgi, mirando-o com os melosos olhos azuis-claros, suplicando por carícias. O guerreiro sorriu e aquiesceu, afagando o pêlo macio do robusto cão-lobo que jamais abandonava Helga. Por alguma estranha razão, o canto triste da harpa trouxe-lhe à memória a aventura que ele tentava esquecer; confrontou-o com o olhar aterrado de uma moça prestes a enfrentar a morte nas presas dos lobos negros, com as palavras afáveis de um ancião druida... e com o carinho da menina que se tornara mulher nos seus braços: a jovem de magníficos caracóis negros e olhos cor de floresta, chamada Freya, tal como a deusa viquingue da magia... e do amor. Deu por si a acariciar o amuleto que escondia meticulosamente dentro da túnica. O calor da pedra azul encheu-lhe o coração e roubou-lhe o fôlego. O que é que estava a passar-se consigo? Sempre se orgulhara da sua temeridade, da sua frieza... e, agora, mais parecia um pirralho choramingas!

Largou a pedra bruscamente, enterrando-a debaixo das vestes, ao mesmo tempo que afastava o cão. Foi acometido pela vontade imperiosa de ordenar à irmã que parasse de tocar. Porém, como se tivesse escutado os seus pensamentos, Helga deteve-se, fixando-o com o olhar vazio e murmurando numa voz que denunciava temor:

— Tens de ir, Helgi! A rainha já te chamou há muito...

— Eu sei — atalhou ele. — Mas não me apetece vê-la... Não consigo encará-la! Eu sou um traidor, Helga!

— Não digas tolices! Tu regressaste a casa como um herói; cumpriste os teus objetivos...

— Não! — mastigou o neto de Aesa, como se desdenhasse de si próprio. — Não cumpri... Tu não imaginas como foi difícil abandonar aquela moça na Grande Ilha, à mercê dos lobos! Por mais que repita que era uma viquingue, a consciência atormenta-me... E devia ter morto os druidas! Tinha ordens para não deixar testemunhas... Mas, como podia cortar a garganta de um velho indefeso, que me recolheu moribundo e me tratou como um filho? Fui contaminado pelo inimigo, Helga! Tornei-me fraco! Já não sou digno da confiança da rainha. Não sou digno do meu nome...

— Tu és um homem nobre! — contrapôs a irmã com firmeza. — Por que teimas em envergonhar-te da grandeza do teu coração? Achas que é fraqueza lamentar a desgraça de uma inocente? Será errado poupar a vida de um amigo...? Será crime amar e suspirar de paixão?

Helgi enrubesceu violentamente, tamanho foi o sobressalto. Porém, a sua voz manteve-se fria ao replicar:

— Do que é que estás a falar?

— Estou a falar do amuleto que carregas ao pescoço — revidou ela implacavelmente. — Não te assustes, Helgi! A magia da pedra mistura-se com a tua essência com tal perfeição que acredito que seja impossível, até para a rainha, perceber que um dos tesouros que tanto almeja, talvez o mais importante de entre todos, se encontra debaixo do seu nariz. Eu apenas o surpreendi devido à excelência da nossa proximidade... Mas, comigo, o teu segredo está seguro!

A declaração da irmã não aplacou o seu sobressalto. Era certo que Helga morreria antes de pensar denunciá-lo... Porém, o simples conhecimento desta transgressão podia ser perigoso para ambos.

— Eu vou entregar a pedra à rainha — garantiu, determinado. — Só não o fiz ainda porque...

Quedou-se sufocado, sem que lhe ocorresse outra justificação além da verdade. A pedra em questão não fora roubada! Fora-lhe oferecida; colocada sobre o seu coração como prova de amor... E, esse momento fora mágico, impossível de apagar da mente: o instante em que vira o seu reflexo no olhar de uma mulher, tal como Helga profetizara. A comoção fechou-lhe a garganta e impediu-o de continuar. Mas a irmã não lhe deu tréguas:

— Nós fomos criados dentro de uma fortaleza de espinhos, a acreditar que, do outro lado, só existe maldade e ódio. Eu sempre soube que não era assim... E, agora, tu também sabes! A rainha separou-nos durante meses para nos forçar a fazer coisas horríveis! Por sua causa, o Arkin está morto...

— Quem matou o nosso irmão foi um dos guerreiros-lobo de Ivarr — protestou Helgi, pondo-se de pé com um salto; a voz reanimada pelo rancor. — E, por isso, da próxima vez que os defrontar, matá-los-ei a todos! Se realmente tinhas uma dívida para com os Viquingues, ela foi liquidada nos Pântanos Nebulosos! Não quero voltar a ouvir-te defender esses assassinos, Helga! Temos de permanecer unidos para travar essa peste que se espalha pelo Norte. Foi para isso que nascemos! Agora mesmo, vou colocar esta pedra nas mãos da rainha e declarar-me disposto a partir em busca das outras três, assim que ela o determinar.

O sorriso condescendente de Helga ainda lhe incendiou mais o ânimo. A irmã ia ver como ele se livraria dos remorsos que ultimamente o atormentavam! Helgi era um guerreiro vândalo, e lutaria pelas suas convicções até à morte! Não seria uma bruxa de olhos verdes que lhe daria a volta à cabeça! A pedra que pulsava de encontro à sua pele não significava nada... Era uma simples conquista, assim como Freya fora!

Correu desembestado até à cabana da rainha, ignorando o olhar curioso de Delling e Raud, que se encontravam no terreiro a treinar os jovens guerreiros, sob a luz dos archotes que iluminavam a noite.

No preciso instante em que ia empurrar a porta da casa da Sacerdotisa, para se fazer anunciar, esta abriu-se. Snari surgiu diante dele, com um sorriso rasgado de orelha a orelha e um brilho malicioso no olhar. Helgi era mais alto e encorpado do que o primo, mas este não se desviou e acabou por lhe dar um encontrão ao passar, ostentando uma expressão de desafio. Se o jovem guerreiro não estivesse tão apressado, tê-lo-ia obrigado a deter-se e a desculpar-se. Quem julgava aquele arrogante que era? Desde que Helgi regressara, que Snari lhe dirigia ares de superioridade. Um dia destes, arriscava-se a levar um murro que o faria cuspir os dentes!

A rainha estava sentada no seu cadeirão preferido, enrolando os dedos no fio que lhe pendia do pescoço e onde se encontravam penduradas as duas pedras mágicas que ele roubara, e a outra, que o traidor viquingue trouxera para pagar o seu asilo. Helgi ainda não compreendera por que Aesa não matara aquele imbecil, mal se apoderara da pedra verde. Ele próprio teria tido prazer em trespassá-lo com a sua espada, pois, além de se tratar de um inimigo, era também um rapaz insolente, reles e desleal, que não merecia o menor respeito. Porém, por razões que desconhecia, a Sacerdotisa dera guarida ao príncipe viquingue e mantinha-o por perto, qual animal de estimação. Se o objectivo era usá-lo para pressionar Steinarr, a estratégia adivinhava-se condenada ao fracasso. Além de o rei viquingue não acusar transtorno por ter sofrido uma pesada derrota em combate e uma machadada moral, também agia como se o filho mais novo não existisse!

Quando Helgi se preparava para cumprimentá-la, Aesa antecipou-se, mastigando com ironia:

— Obrigada por me agraciares com a tua presença, Helgi!

O joelho do jovem enviou-lhe uma dor aguda, ao tocar no chão. O sangue latejou-lhe na cabeça e teve de se apoiar numa mão para não cair. A sua testa cobriu-se de suor e os pingos tombaram diante do seu olhar incrédulo. A bisavó apelava à feitiçaria para castigá-lo, não havia dúvidas! Sentiu um aperto na garganta, como se esta estivesse a ser esmagada pela pata de um urso. Só a muito custo conseguiu arquejar:

— Suplico o seu perdão, minha rainha! A música de Helga fez-me perder a noção do tempo!

Seguiu-se um silêncio, profanado pelo troar do coração do guerreiro. Teria a bisavó descoberto que fora ele quem salvara a Guardiã da Lágrima do Sol dos lobos negros? Conheceria a sua fraqueza... Saberia que guardava a pedra azul? A sua mente convulsionava, sob o poder da feiticeira. Porém, era evidente que, por mais que se esforçasse, Aesa era incapaz de lhe descortinar os pensamentos. Helgi reunia coragem para confessar o seu segredo, quando ela o libertou da influência do malefício, com uma brusquidão que o fez vacilar.

— Levanta-te, Helgi! — ordenou secamente. — Tencionava atribuir-te outra missão, mas, como chegaste atrasado, confiei-a ao Snari. Na tua ausência, o teu primo revelou-se muito útil à nossa causa, provou-se digno da minha confiança e deu-me bastantes motivos de orgulho. É um rapaz determinado, que não se distrai... com cantigas! Talvez devesses passar algum tempo ao seu lado, para reaprenderes as regras que a distância parece ter apagado da tua mente!

A mão que Helgi erguia para descobrir a pedra azul deteve-se a meio caminho. A confissão que quase lhe tombava dos lábios foi engolida à pressa. Ao invés de recompensá-lo por tudo o que fizera nos últimos meses, a rainha humilhava-o, menosprezando-o diante do primo... só porque ele não saltara no exato momento em que ela batera as palmas! A sua indignação ruborizou-lhe as faces e incendiou-lhe o olhar. Satisfeita por confirmar que o orgulho do bisneto fora reduzido a cinzas, Aesa dispensou-o com um gesto indiferente:

— Podes retirar-te! Não quero que os assuntos do reino prejudiquem a tua diversão!

Helgi cerrou os dentes, mas conteve-se de protestar. Respirou fundo e apertou os punhos... Dispusera-se a submeter-se ao julgamento da bisavó, mas, ante tamanha arrogância e ingratidão, mudara de idéias. Aesa farejara algo de errado na sua postura e tentara extorquir-lhe a verdade, submetendo-o a sortilégios para lhe mostrar quem mandava. Pois teria de se esforçar mais! Empinou o nariz e enfrentou-a, com uma ousadia desconcertante, inquirindo impaciente:

— Quando poderei partir em busca do assassino do meu irmão?

Os olhos azuis celestes da feiticeira chisparam ao replicar:

— Se tivesses vindo quando te chamei, saberias que o rei Steinarr e o jarl Throst acabaram de celebrar o casamento dos seus primogênitos com uma festa suntuosa. Até o rei do Império esteve presente! Nestas condições é imprudente atacá-los. As feras estão feridas e a rugir bem alto. A derrota que lhes infligimos vai mantê-los alerta durante algum tempo. Devemos aguardar que se distraiam...

— Aguardar? — insurgiu-se Helgi, mastigando a revolta. — Aguardar pelo quê? Eu entrei no território do inimigo, comi à sua mesa, dormi na sua cama, sem que desconfiassem que estavam a ser roubados...

— Farás o que eu mandar! — cortou a rainha, num tom que gelou o bisneto. — Desde quando é que discutes as minhas ordens? Tu regressaste vitorioso da missão que te confiei e foste aclamado pelo nosso povo... Será que o triunfo te subiu à cabeça? O teu comportamento esquivo e insurgente dos últimos dias é inaceitável! És um grande guerreiro, Helgi... Mas deve-o a mim! Se eu desconfiar que tu ou a tua irmã se desviaram um passo do destino que eu vos tracei, certifico-me de que se arrependerão de ter nascido!

Helgi engoliu em seco. Era óbvio que a rainha estava furiosa por não ser capaz de esmiuçar a sua mente. Se, de início, voltara atrás na intenção de lhe confessar os seus segredos, por raiva e mágoa, agora, o temor consolidava essa decisão. Aesa jamais poderia descobrir a verdade... Não por ele, que não temia o mais atroz dos castigos, mas por Helga. Se a rainha retirasse a confiança à sua jovem e inocente irmã, o que seria dela? Por isso acatou, saudou-a submissamente e partiu como lhe fora ordenado. Ao atravessar o terreiro, remoendo uma fúria primária, quase explosiva, as palavras de Helga ribombavam-lhe na mente como trovões: «A rainha separou-nos durante meses para nos obrigar a fazer coisas terríveis...»

Aesa fixou a porta que se fechava atrás do seu guerreiro sagrado com o sobrolho franzido. Nos últimos meses, Helga começara a questioná-la quanto às suas ações, às suas razões; a irritá-la e a desagradá-la profundamente. Agora, Helgi regressara tão insurrecto quanto a irmã. Os gêmeos estavam a entrar numa idade perigosa; a idade em que o cheiro da independência era irresistível. Fora um erro separá-los! A única maneira de serená-los era mantê-los juntos, já que a essência de um equilibrava a essência do outro... Juntos e debaixo de olho! Eles estavam a esconder-lhe algo! E ela ia descobrir o que era, a bem ou a mal!

Os seus dedos rebuscaram novamente o cordão de onde pendiam as três pedras mágicas que conquistara. Se a abelhuda da neta de Hakon não se tivesse intrometido, o poder de Aranwen já estaria em suas mãos e os inimigos prostrados aos seu pés. Não obstante, acalentava a convicção de que tal era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, a vitória seria sua!

— Minha deusa, minha amada... Volta para a cama!

A mestra da Arte Obscura não conteve um sorriso ao escutar o apelo. Aquele jovem príncipe era insaciável! E ela tinha todo o prazer em alimentá-lo... Sim, nesse momento, a pressa era inimiga da perfeição. No fim de tantas atribulações, bem que merecia uma pequena recompensa! Além disso, não tinha do que se queixar! Para além da vitória na batalha dos Pântanos Nebulosos, ainda se apoderara de um brinquedo novo, de sangue ardente, que a manteria distraída e satisfeita... Até chegar a altura ideal para concretizar um novo ataque!

 

                                                                                            Sandra Carvalho  

 

                      

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