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LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA / Sandra Carvalho
LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro III

LÁGRIMAS DO SOL E DA LUA 

 

Nevava no Norte do mundo. O vento assobiava uma canção tenebrosa, por entre os ramos afilados das árvores, que condicionava a marcha dos homens. Era difícil caminhar assim, com as botas enterradas até os tornozelos e o ar gélido a queimar os pulmões. Encontravam-se dentro do seu território, mas apesar de poucos ousarem penetrar na Floresta Sombria, eram necessários cuidados redobrados quando se aventuravam no exterior da proteção dos espinheiros. A escuridão das noites perpétuas de Inverno cravava as suas garras nos pensamentos dos guerreiros e ninguém tinha vontade de conversar.

Desta vez, a caçada fora boa. Dois veados adultos eram suficientes para fazer uma grande festa. E ela merecia ser presenteada com a maior festa de que o seu povo guardava memória! Fora o seu sorriso puro que lhe abraçara o espírito, no momento em que ele se lançara ao encontro da presa, e a matara com a eficácia de um vigoroso predador. Um golpe limpo no pescoço com o aço do punhal e a força dos braços, para prostrar o animal durante aquele breve instante em que a vida teima em agarrar-se ao corpo, bastara para alimentar a sua alma de caçador. Tinham sido necessários os esforços combinados de quatro homens para abater o outro veado, por sinal menor do que o seu. Contudo, a sua magistral destreza não o envaidecia. As coisas eram simplesmente assim! Ele nascera para matar. Era a sua natureza. Era o seu destino.

Delling liderava o grupo, segurando um archote numa mão e a espada na outra. Atrás dele iam Raud e Koll, com o veado ensangüentado balançando pesadamente, amarrado ao tronco que transportavam sobre os ombros. Seguia-se Villi, que avançava com dificuldade devido ao tamanho descomunal da sua carga. Helgi era o último porque, de todos, era ele quem possuía o melhor ouvido e a visão mais apurada, e não podiam correr o risco de serem surpreendidos pela retaguarda. Porém, apesar da concentração que nos mantinha mais ínfimos pormenores que o rodeavam, parte do pensamento do jovem estava com ela... Como a Natureza fora cruel ao deixá-la tão vulnerável, ao mesmo tempo em que o agraciava para além da sua condição humana! Por muitos anos que vivesse, por mais que se esforçasse, jamais conseguiria compensá-la.

Na aldeia vivia-se a azáfama normal de um fim de tarde. Os telhados de colmo das pequenas cabanas de madeira deixavam escapar o fumo das fogueiras e as pessoas atarefavam-se nos seus afazeres. As crianças salpicavam o branco monótono da neve com o colorido das roupas, brincando com os cães e as cabras, e aquecendo o ar gelado com os seus guinchos de entusiasmo. Os guerreiros que faziam a vigia saudaram os recém-chegados e elogiaram o produto da caçada. A rapaziada correu a cumprimentá-los com a sua alegria estridente, pasmando diante dos possantes veados. Os adultos não tardaram a segui-las. Delling envolveu os ombros do irmão com o seu braço, largo como uma árvore adulta, e exclamou bem alto:

— Este é o maior veado que eu já vi! — Muitos apressaram-se a concordar. — E o Helgi matou-o sozinho! Este rapaz é um talento! Um dia, havemos de vê-lo chegar com o Steinarr pendurado num tronco, a sangrar como um porco!

De entre as gargalhadas, salientou-se uma voz forte e inconfundível:

— Será que o Helgi é assim tão talentoso, ou vocês é que são uma canalha de inábeis? Com tanta comoção, dir-se-ia que tinham caçado um urso!

Delling deu um passo adiante, com os punhos cerrados e a bufar de raiva:

— Por acaso faz melhor que isso, sua peste?

— Mas é claro que sim! — ironizou Villi. — O Snari não precisa apelar à força para matar! Basta cuspir o seu veneno em cima das presas...

Num segundo, a confusão generalizara-se. Koll e Raud mal conseguiam segurar Delling, enquanto Helgi afastava Villi de Snari, gritando para se fazer ouvir:

— Basta! Parem de comportarem-se como crianças!

— Foi ele quem começou! — protestou Villi. — Covarde invejoso! Tenho uma novidade para você, Snari: Faça o que fizer, será sempre a última escolha do povo!

O outro se mantinha impassível, mirando-o com um esgar trocista. Quando falou, fez tão controlada e friamente como era habitual:

— Você e eu temos contas a ajustar! Um dia, não terá a sombra do meu primo por perto para te proteger!

— Eu não preciso que ninguém me proteja, seu miserável! Quer bater-se comigo? Avança, se é homem!

Desta vez, Snari riu abertamente:

— Eu jamais me rebaixarei à tua insignificância! Também tenho uma novidade para você, Villi: Faça o que fizer, eu serei sempre um príncipe, enquanto você não passa de escória! Um dia, o nosso povo compreenderá que, para vencer a guerra contra os viquingue, é necessário usar a inteligência, ao invés da força bruta. E quando isso acontecer, eu serei a única escolha...

— Chega, Snari! — cortou Helgi, sentindo o sangue a latejar na cabeça. — Está indo longe demais! O nosso avô ainda não morreu e você já sonha em tomar o seu lugar? Deixe-me lembrá-lo de que, para se sentar no trono Vândalo, terá de matar o meu pai, todos os seus filhos e o teu próprio pai. Quer começar por quem? Por mim?

Estas últimas palavras ecoaram no silêncio constrangedor que os envolvia. Então, uma figura graciosa abriu caminho por entre os homens, parando diante do jovem príncipe.

— Acalme-se, Helgi! — apelou suavemente. — Não se zangue com o Snari! Tenho certeza de que ele só quis dizer que o futuro rei poderá contar sempre com o apoio da sua mente brilhante. Não é verdade, querido irmão?

Pela primeira vez, o rosto de Snari acusou perturbação. Sem uma única palavra, voltou-lhes as costas e desapareceu. Helgi desejou fazer o mesmo, no instante em que a moça o enlaçou pelo pescoço e encostou os lábios aos seus. Nem a sensação do corpo feminino a estremecer de ansiedade o impeliu a erguer os braços para abraçá-la. A sua volta, multiplicaram-se os assobios e incitamentos. Delling exultava:

— Isto é que é uma bela recompensa pelo esforço de um homem!

Helgi viu a mágoa trespassar o olhar verde-tempestade da moça, quando o encarou. A sua interrogação era óbvia: Por que ele não correspondia ao seu ardor?

— Deixa de ser tímido, rapaz! — insistiu Delling, batendo amigavelmente nas costas do irmão. — Agarre-se à felicidade!

Pressionado, Helgi torceu um sorriso e inclinou-se para beijar o rosto da prima. Após um contato tênue, afastou-se rapidamente, ignorando as lágrimas que cintilavam no tempestuoso olhar verde, e as provocações dos irmãos e dos amigos. Mais uma vez, o destino que lhe fora traçado causava-lhe repúdio. Precisava chegar em casa... Sufocaria se não a abraçasse depressa!

Suspirou de alívio ao passar pela porta. O calor aconchegante da fogueira acariciou-lhe a pele e aqueceu-lhe o espírito. O cheiro das ervas que perfumavam o ar transformava em deleite o ato de respirar. Antes que pudesse livrar-se da capa manchada com o sangue do veado, Conselheiro, o possante cão-lobo que guardava o seu tesouro, saltou em seu peito e banhou-o com a língua irrequieta, ensurdecendo-o com latidos de alegria.

— Helgi? — inquiriu uma voz fresca e desejosa.

— Sim, Helga. Sou eu.

Encontrou os seus passos incertos a meio caminho e agarrou as mãos que ela lhe estendia, aninhando-a junto ao peito. Agora sim, estava em paz!

— Tem cheiro de morte, mano... Está sujo de sangue!

A censura na voz sempre meiga provocou-lhe um sorriso. Afastou-a o suficiente para olhá-la, explicando:

— Cacei um veado para a festa desta noite.

— Por quê? — protestou ela severamente. — Desgosta-me quando mata!

— Nós temos que comer, irmãzinha! — contrapôs com meiguice. — Sei que, por tua vontade, a aldeia se alimentaria de frutos e raízes, para que os animais pudessem viver em paz, mas isso é impossível!

A jovem tocou-lhe nos lábios, enquanto replicava, forçando um tom zangado:

— Está a zombar de mim!

Helgi manteve o sorriso e beijou-lhe os dedos. Uniram as faces e partilharam uma harmonia para além do entendimento humano. Era assim desde que se tinham encontrado, no ventre da mãe. Helgi nascera primeiro — um rapagão grande e gordo, com uma garganta vibrante que despertara as cabanas mais remotas da aldeia. Helga só sobrevivera graças à perícia da bisavó, que executara o parto. Durante um instante de pânico, todos pensaram que a menina havia nascido morta, porque não chorara como os outros bebês. E os sustos não terminaram aí. Depois de limpa e entregue ao pai, para que fosse aceita no seio da família, o chefe da casa verificara que a sua primeira filha mulher era cega.

Numa sociedade em que apenas os mais aptos adquiriam o direito à vida, nascer com uma imperfeição era uma sentença de morte imediata. Ainda hoje, Helgi observava, com o coração apertado, os pais abandonando os recém-nascidos defeituosos na floresta, sem bênção nem nome. Ele bem sabia que uma criança fisicamente diferente era um estorvo insuportável para a família! Queriam rapazes fortes para o trabalho e para a guerra, e as moças deviam ser perfeitas para gerarem filhos saudáveis. Contudo, todos os dias se questionava como teria sido a sua vida, se o pai houvesse seguido a tradição do povo e entregue a sua irmã gêmea aos lobos. Provavelmente teria morrido também!

Porém, antes que Vestein, filho de Bror, rei do povo vândalo, desse ouvidos às vozes que o aconselhavam a livrar-se daquele transtorno inesperado, a bisavó de Helgi declarara:

— As duas crianças viverão, porque são sagradas para mim. O rapaz será o meu guerreiro em corpo, e a moça, a minha guerreira em espírito. Quem ousar levantar um dedo contra eles, não verá o nascer de um novo dia!

A palavra da Sacerdotisa, rainha do povo vândalo, era lei. Sem hesitar, Vestein deu o seu nome à filha, e Helga cresceu ao lado de Helgi. Contudo, apesar do rosto de um ser o reflexo do rosto do outro, as diferenças não tardaram a acentuar-se. Enquanto o rapaz possuía a robustez de um carvalho, a irmã era delicada como uma flor. Enquanto ele vivia para caçar, pescar e guerrear, Helga era apaixonada pelo estudo e pela música. Enquanto os olhos incrivelmente azuis de Helgi cintilavam de alegria a cada nova conquista, os olhos da sua gêmea permaneciam mortos para o mundo.

— Você não está bem, mano! — observou Helga, alcançando facilmente a sua aura. — O que é que te perturba?

Ele suspirou, sabendo que era inútil mentir.

— Há pouco, no terreiro, a Gríma me beijou diante de toda a comunidade.

A jovem franziu a testa, replicando com estranheza:

— É normal que a tua noiva exprima o afeto que sente por ti!

— Ela é muito nova...

— A Gríma tem catorze anos! Se não fosse tão arredio, até já poderiam estar casados!

Helga tinha razão. Em breve, esta seria uma fraca desculpa para adiar a sua desventura. Deu por si a desabafar:

— A mãe da Gríma é casada com o nosso avô!

— Sim, mas a Gríma não é nossa tia, Helgi. É nossa prima...

— Eu não vou discutir contigo o que penso do fato de Bror, rei dos Vândalos, ter permitido que a sua escrava viquingue se deitasse, todos estes anos, com o seu filho mais novo!

— Não seja tão duro com a Halldora! — revidou Helga. — Ela era muito jovem quando o nosso avô a tomou para esposa, e acalentava o sonho de ser mãe...

— Sim! — desdenhou Helgi. — E como o nosso avô já não podia gerar filhos, por causa do acidente que sofreu quando era jovem, achou por bem que o tio Siguror fizesse o seu trabalho... Para mim, isso é repugnante! E o pior é que a promiscuidade se mantém até hoje, sem que ninguém a condene. Eu não entendo os privilégios de que essa escrava desfruta! Até a rainha a protege!

Afastou-se da irmã e apertou a cabeça dolorida entre as mãos. Há muito que amargava esta revolta e, agora que começara a desabafar, parecia incapaz de se deter:

— Eu jurei perante a Lua, senhora dos nossos destinos, que a minha espada não descansaria enquanto um Viquingue respirasse em cima da Terra. Agora, a própria rainha ordena-me que despose uma portadora desse sangue maldito; condena os meus filhos a carregarem essa abominável herança...

— Justifica o teu desagrado por Gríma com o fato de ela ser filha de uma escrava viquingue, mas não se esqueça de que a Halldora partilha o nosso ódio pelo seu povo. Graças às informações que nos forneceu, alcançamos vitórias importantes; conseguimos expulsar o inimigo da nossa floresta!

— A Halldora não fez isso por dedicação, mas por rancor! Aquela mulher é perversa! O Snari acredita que ela foi responsável pelo terrível acidente que vitimou a sua mãe, e eu começo a dar-lhe razão! A Halldora é capaz de tudo para conseguir o que quer!

— Isso até pode ser verdade — constatou Helga, na tentativa de aquietá-lo. — Mas a Gríma não é como a mãe! É uma menina meiga que te adora; que te ama com devoção...

— Mas eu não retribuo o seu afeto! — replicou ele, exasperado. — O amor não é algo que possa ser imposto, Helga! Além disso, não quero me casar. Sou feliz assim, vivendo para a missão de combater os Viquingues... e desfrutando do conforto dos teus braços quando regresso para casa. Você é e sempre será o meu único amor!

Helga respirou fundo, escolhendo as palavras antes de objetar:

— O nosso amor é sagrado, Helgi, mas você nunca poderá me amar da mesma maneira que um homem ama uma mulher...

— Eu não sinto falta desse amor — cortou ele, sem hesitação.

— Um dia sentirá — insistiu a jovem. — Eu tenho certeza! Quando menos esperar, verá o teu olhar refletido no olhar de uma mulher e pensará que a sua vida já não tem sentido sem o aconchego do seu corpo, a ternura do seu sorriso. Talvez não seja a Gríma... Mas vai acontecer!

Pela primeira vez, as palavras de Helga assustaram-no. Helgi afastou-se para observar a sua expressão e ordenou num tom inquieto:

— Você já viu o meu futuro... Fale-me dele!

A irmã sorriu docemente e respondeu sem se deixar perturbar:

— Eu vejo muitas coisas... Coisas que não compreendo, coisas que me recuso a aceitar, coisas que me fazem sorrir e coisas que me fazem chorar. Os meus olhos são cegos, mas, no entanto, consigo ver-te exatamente como é, através da energia que irradia de ti. Graças a esta habilidade, há muito que compreendi que ninguém é totalmente bom, nem totalmente mau. A nossa personalidade é moldada ao longo da vida, e, o que é verdade hoje, amanhã será mentira, assim como os inimigos se tornam amigos, e os amigos, inimigos.

Helgi preparava-se para lhe declarar a sua incompreensão, mas conteve-se ao ouvir a porta abrir-se. Conselheiro saltitou em redor de Olave e Ymir, os filhos mais novos do príncipe Vestein, também eles gêmeos. Os pequenos acenaram ao irmão e disseram:

— A rainha quer falar contigo, Helgi.

— Apresse-se! Ela está zangada!

Ao dirigir-se à casa da Sacerdotisa, Helgi ponderou que jamais questionara as suas decisões. Nem mesmo quando descobrira como ela preservava a sua juventude imaculada. Recordava-se bem do horror que sentira... Uma coisa era enfrentar um inimigo e estripá-lo no furor de uma batalha; outra, muito diferente, era seduzi-lo com um beijo e sugar-lhe a energia do corpo, até deixá-lo desprovido de vida e de alma. Porém, superara depressa o constrangimento. Sem apelar aos seus sortilégios de feiticeira, a rainha já teria envelhecido, talvez morrido... E essa fatalidade era inadmissível! A bisavó de Helgi era o espírito do povo vândalo... Enquanto houvesse um sopro de vida no corpo do príncipe, a sua maior alegria seria erguer a espada bem alto e gritar: «Pela glória de Aesa!»

Helgi não esperava encontrar Halldora com a rainha. A última mulher do seu avô, que era também uma amante assumida do seu tio, desafiou-o com um esgar enraivecido. Decerto fora queixar-se da indiferença de Helgi para com Gríma. Passou por ele, sem uma palavra ou um cumprimento, bamboleando o corpo sedutor, enquanto sacudia os longos cabelos onde as madeixas ruivas flamejavam.

Aesa estendeu a mão para que Helgi a beijasse, e ocultou um sorriso ao ouvi-lo declarar:

— A minha vida pertence-vos, minha rainha.

A feiticeira entrelaçou os dedos nos cabelos compridos e lisos do bisneto, castanho-acobreados como os do pai, enquanto exclamava:

— A tua frieza para com Gríma começa a suscitar comentários e desgostos! Será que o meu herdeiro favorito decidiu contrariar a minha vontade?

Este era o momento oportuno para manifestar a sua discordância. Porém, mal encarou a limpidez do olhar azul da Sacerdotisa, a firmeza de Helgi dissipou-se como poeira ao vento. Nas profundezas da sua mente surgiu uma dúvida angustiante: Estaria a bisavó a recorrer à magia para manipulá-lo? Deu por si a negar passivamente:

— Jamais! Os desejos da minha rainha são os meus desejos!

— Ainda bem! Este assunto fica encerrado! Sente-se aqui... Chamei-o à minha presença para te incumbir de uma missão fundamental para o destino do nosso povo.

Helgi obedeceu, afundando-se no conforto das almofadas de penas de ganso, espalhadas pelo chão da sala. A casa da rainha era a mais rica da aldeia. Aesa gostava de rodear-se de conforto e beleza. Sempre que os guerreiros regressavam vitoriosos de uma campanha, ela exercia o seu direito de preferência sobre o produto do saque. Ao longo das gerações, reunira um tesouro que Helgi acreditava ser inigualável.

— As minhas armas e o meu sangue estão ao seu dispor! — respondeu, ansioso por desvendar o misterioso desafio que se escondia por trás do olhar sem idade.

— Não me agrada afastá-lo de mim — começou a feiticeira —, mas só o mais bravo, fiel e inteligente dos meus guerreiros poderá levar a bom termo esta missão...

Helgi conhecia bem o passado da sua rainha. Aesa era a primeira filha de um membro do Conselho dos Seres Superiores, o Guardião da Lágrima da Lua, o qual tinha por dever proteger um cristal mágico e explorar os seus ensinamentos. A tradição ordenava que essa herança fosse confiada ao seu primogênito. Porém, como Aesa nascera mulher, o pai decidira nomear seu sucessor o segundo filho, o feiticeiro Sigarr. E, como se tamanha desconsideração não bastasse, a jovem feiticeira fora abandonada pelo noivo na véspera do casamento.

O Sacerdote Superior Hakon, guardião do cristal mágico conhecido por Lágrima do Sol, renegara o seu povo e o seu poder pelo amor de uma humana.

Aesa limpara a sua honra e punira o traidor, mas os Feiticeiros haviam-na castigado por isso, banindo-a da Ilha Sagrada, onde viviam, e usurpando o seu poder. Contudo, ela não cedera ao desespero. Decidida a repor a justiça e a vingar-se daqueles que a haviam desprezado, entrara na Floresta Sombria e aliara-se a Mottull, rei do povo vândalo. Desde esse dia que aprofundava os seus conhecimentos da Arte Obscura e, aos poucos, recuperava as habilidades que lhe haviam sido roubadas. Já estava muito forte... quase tão forte como no dia em que a sua família e o seu povo lhe tinham voltado as costas. Mas nunca recuperaria integralmente o poder, a não ser que colocasse as mãos na mais pura das magias.

Nessa tarde, Aesa contou a Helgi a história da feiticeira Aranwen, prometida de Sigarr, que, tal como Hakon, seu mestre, voltara as costas à honra para se unir a um humano. Todavia, Aranwen conseguira enganar o Conselho, enclausurando o seu poder no interior de sete pedras, que, a partir desse instante, se tornaram o tesouro mais precioso da Terra.

A grande batalha pela posse das pedras mágicas fora travada quando Helgi ainda era uma criança. Aesa combatera nas sombras, esperando conquistar o poder que lhe daria o controle do mundo. Porém, os herdeiros de Aranwen tinham derrotado a sua aliada, a feiticeira Gwendalin, num confronto que cobrira a Grande Ilha de sangue e cinzas, e cujos efeitos se haviam refletido nas Terras do Norte.

— Essa mulher agraciada pelos Seres Superiores, Catelyn, casou-se com o Primeiro Homem do rei Steinarr... que é neto do feiticeiro Hakon — repetiu Helgi, organizando as idéias na mente.

— Catelyn e Throst tiveram três filhas — concluiu Aesa. — A mais velha é a herdeira da Lágrima do Sol. Pelo menos, devo reconhecer que Hakon possui uma visão mais larga do que o meu pai. «O Que Tudo Vê» não teve pudor em entregar o seu poder a uma mulher.

— E o que aconteceu ao seu irmão, minha rainha? Onde está o feiticeiro Sigarr?

Aesa riu baixinho e afastou os cabelos dourados da face, com um gesto de apurada elegância, enquanto respondia com a voz carregada de ironia e desprezo:

— Depois de tantos anos a ruminar a estupidez, Sigarr teve um lampejo de genialidade. Quando a guerra terminou, retirou-se para um lugar onde ninguém se atreverá a afrontá-lo, nem mesmo o nosso abençoado primo Hakon, e levou consigo o filho de Gwendalin, o qual pretende nomear seu herdeiro.

— Mas, esse rapaz não pode tornar-se Guardião da Lágrima da Lua! Arkin é o herdeiro legítimo desse poder!

— Eu entendo a tua indignação e a vontade de salvaguardar os interesses do teu irmão mais velho. Todavia, mesmo que o cristal da Lua me pertencesse, Arkin seria a última opção, quando chegasse o momento de passar o meu testemunho. Ele não tem um pingo de magia no sangue, Helgi...

— Mas é o melhor guerreiro do nosso povo!

— A destreza no uso das armas é inútil nesta questão, querido. Os cristais estão carregados de vida e só uma vontade sólida, aliada a um sangue mágico, pode controlá-los. Uma mente simples, como a do teu irmão, não seria a mestra do cristal e sim a sua serva. Compreende?

Helgi confirmou com um aceno e prosseguiu gravemente:

— A avó não pretende entregar essa responsabilidade a Helga, após recuperarmos o cristal, não é? Eu sei que o seu dom é excepcional, mas ela não possui o vigor...

— Não subestime a tua irmã, Helgi! Se eu fosse Guardiã da Lágrima da Lua, teria muita dificuldade em escolher o meu herdeiro, pois, tanto você como Helga, seriam fortes candidatos a esse poder. Porém, ao contrário do que está pensando, não foi para resgatar o cristal da Lua que te chamei aqui. A tua missão é igualmente perigosa... e difícil de superar.

Helgi reteve o fôlego, deliciado com a expectativa de um gigantesco desafio às suas capacidades.

— E o que é que pode ser mais difícil do que encontrar um feiticeiro que desapareceu da face da Terra, derrotá-lo e ao seu pupilo, e recuperar um cristal que tem vontade própria?

A resposta de Aesa foi imediata:

— Reunir as sete pedras de Aranwen.

Desta vez, Helgi ficou tão perplexo que só conseguiu balbuciar:

— Mas... as pedras mágicas não estão na guarda da família da feiticeira?

— É verdade — corroborou a rainha. — Quando a guerra terminou, Catelyn e os seus irmãos decidiram preservar as pedras, para meu supremo alívio e júbilo. Cinco delas são praticamente intocáveis... Porém, a Visão revelou-me que duas se encontram vulneráveis, as quais serão o teu objetivo imediato. Os netos de Aranwen estão envelhecendo, acomodados na paz que tanta desgraça trouxe ao nosso povo. Steinarr tem um herdeiro de valor, prometido à futura Guardiã da Lágrima do Sol... Em condições normais, a união de Ivarr e Edwina tornaria o povo viquingue invencível. Contrariar essa fatalidade será a minha missão. E tu, querido Helgi, viajará aos domínios dos McGraw, no seio da Floresta Sagrada, onde a pedra violeta se encontra enterrada junto da sepultura do seu malogrado protetor. A pedra laranja será mais difícil de resgatar, pois foi confiada aos druidas e estes só saem da toca uma vez por ano, para assistirem à Festa da Renovação, celebrada simultaneamente com o Festival de Verão, na Ilha dos Sonhos...

Helgi quedou-se em silêncio, assimilando a custo o que a sua bisavó lhe solicitava. Acabou por indagar, numa voz baixa e controlada:

— A minha rainha quer que eu invada a Grande Ilha e a Ilha dos Sonhos? Isso é loucura! Quantos guerreiros serão necessários para derrotar os povos da Aliança? Nós mal conseguimos fazer frente aos Viquingues...

— Irá sozinho, Helgi. Um homem com o teu valor não necessita do apoio de nenhum exército. Com o vestuário adequado e alguns recursos, que eu providenciarei, poderá passar por viquingue. E os Viquingues não têm dificuldade em movimentar-se livremente pelos domínios Aliados. Existe apenas um pequeno pormenor que jamais deverá esquecer, pois poderá ser fatal. Mantém o testemunho da nossa linhagem longe de todos os olhares.

Helgi fixou os seus pulsos, onde a bisavó tatuara por artes mágicas, no dia em que ele nascera, o símbolo que provava a descendência sagrada da família real: o majestoso dragão, outrora guardião da magia na Terra, desafiando a Lua com um olhar de fogo. Respirou fundo, ponderando as probabilidades de sucesso. Eram mínimas... Porém, existia um forte atrativo nesta missão. Era-lhe oferecida a oportunidade de sair do Norte, de viajar, de conhecer outras terras, de se misturar com o inimigo e aprender a desvendar o seu pensamento. Se a rainha planejava enviá-lo ao encontro dos druidas, então ficaria muitos meses afastado de casa. Talvez Gríma se cansasse de esperar e aceitasse outro marido! Contudo, pensar que deixaria Helga por tanto tempo era insuportável! Abriu a boca para expressar a sua angústia, mas Aesa antecipou-se, provando-lhe que controlava minuciosamente os seus pensamentos:

— A tua irmã ficará bem. Ela também terá muito que aprender e uma missão a desempenhar na tua ausência. Esta separação os ajudará a crescer e se fortalecer. Quando voltarem a se encontrar, estarão prontos a trabalhar juntos para a glória do nosso povo. Agora vai! Convença Helga a sair de casa e a festejar o seu aniversário. Esta será a última celebração de que o nosso povo desfrutará, antes de chorar pelo seu rei, o meu único e muito amado filho.

 

De início, os sonhos eram meras cortinas de nevoeiro cintilante, macio e quente, que se movia, arrastando a minha essência num espaço sem princípio nem fim, onde o tempo não tinha significado e o silêncio era soberano. Depois chegaram os sons, como intrusos arruaceiros; estrépitos na quietude da minha inconsciência. E a claridade... Um Sol tão brilhante que causava cegueira.

Aos poucos, fui-me habituando à luminosidade e apercebendo-me das formas: mar, ondas, rochas, penhascos... gigantes negros que se estendiam até ao céu. De vez em quando zangavam-se, rugiam ensurdecedores e cuspiam fogo. Choviam pedras e cinzas, que tornavam o ar irrespirável e ocultavam o Sol. Sob a ação do calor extremo, a rocha derretia-se e deslizava até o mar, envolta em nuvens de fumaça. A água salgada recebia a dádiva da terra e devorava-a com avidez. Durante dias, o caos assolava este mundo desconhecido. Depois, os gigantes apaziguavam-se e a natureza aproveitava a efêmera calmaria para lamber as feridas.

Conheci a outra parte da minha alma muito antes de ter idade para compreender o que via, o que ouvia ou sentia. Todas as noites, sem exceção, mal minha mãe me aconchegava as cobertas ao peito, beijava a testa e murmurava palavras meigas que, acreditava ela, me protegeriam durante o sono, os meus olhos fechavam-se para a realidade do conforto da minha casa, na Ilha dos Sonhos, e abriam-se na assustadora desordem de um destino incerto. Paredes intermináveis de rocha, que o tempo ainda não tivera a capacidade de arrefecer totalmente, abriam-se para me deixar passar e fechavam-se atrás de mim. Eu avançava pelo meio delas, subindo, subindo sempre... temendo recuar, e acabar prisioneira de um abraço mortal; até encontrar a mão que se fechava na minha, e me conduzia à segurança de um entre milhares de buracos abertos na pedra negra, para onde deslizávamos e ficávamos imóveis no silêncio reconfortante.

Por vezes, havia movimento no exterior do esconderijo. Eu escutava distintamente o arranhar das garras, os latidos e rosnados de uma matilha enlouquecida... E um mal que não tinha nome nem dimensão definida. Um mal que me inspirava um terror profundo, que se refletia no corpo que me estreitava, no descompasso do pequeno coração que batia junto do meu. Então, a mais medonha das vozes ressoava pela infinidade das cavernas:

— Loki! Onde está, fedelho ingrato? Quando te apanhar, arranco-te a carne dos ossos!

Eu não me movia; nem sequer me atrevia a respirar. As lágrimas do meu companheiro de pesadelo encharcavam-me as faces, até ser impossível distinguir a qual de nós dois pertenciam. E assim foi, durante muitas estações; um contato que restabelecia, um silêncio que curava.

Os anos passaram-se e trouxeram-me o Conhecimento, a Consciência, a Vontade. Eu ainda viajava através do nevoeiro colorido, ao encontro das rochas que vomitavam fogo, mas agora sabia que, enquanto o meu corpo repousava na cama, era a minha essência, aquilo que os Homens comuns chamam de «espírito», que se libertava da prisão da carne e se aventurava no desconhecido. Descobri que o meu companheiro de todas as noites era real e possuía uma entidade distinta da minha; que se encontrava perdido num mundo hostil, prisioneiro de um feiticeiro cruel... E que o pesadelo que me assombrava, assim que o sono me arrebatava, era a sua vida.

Porém, foi só quando os meus pais me revelaram o passado da nossa família, a guerra pela posse das pedras mágicas da minha bisavó Aranwen e a colossal batalha travada contra a feiticeira Gwendalin, que eu compreendi quem era o rapaz que se escondia nos alvéolos de rocha negra e apelava desesperadamente à energia da minha essência para manter a sanidade... E a razão por que me sentia tão próxima dele como se tratasse de um irmão gêmeo!

Num instante, aquilo que eu sempre encarara como um devaneio da minha mente exausta assumiu um significado assombroso, e o segredo das minhas aventuras noturnas, minuciosamente guardado com receio de que me julgassem louca, foi relatado com pormenores e repetido diante de toda a família. Ao ouvir falar das ilhas que cuspiam fogo, num arquipélago fustigado pelo Sol quando a noite caía na nossa terra, onde o mar era tão límpido e sereno como uma poça de água deixada pela maré cheia, tio Edwin ergueu-se com as mãos na cabeça e dirigiu-se a meu pai, com a voz alterada pela emoção:

— Eu procurei meu filho por todo o mundo conhecido... E nunca me dei conta da existência de semelhante lugar! É impossível...

— Nada é impossível, Edwin McGraw — interferiu o feiticeiro Hakon da Montanha Sagrada. — Você mesmo disse que procurou teu filho pelo mundo conhecido... Mas existem muitos mundos que o Homem desconhece; terras tão distantes, que o mais veloz Drakkar Viquingue e o mais robusto navio da Grande Ilha não conseguem alcançar.

— Se isso é verdade, mestre — replicara o primo Krum —, como foi que Sigarr conseguiu chegar até lá sozinho, com um bebê nos braços?

— E como é que conseguiu ocultar-se da sua Visão? — apoiou tio Berchan.

O meu bisavô, a quem o povo nomeara «O Que Tudo Vê», ponderou um pouco antes de responder:

— O Guardião da Lágrima da Lua, sendo feiticeiro e mestre da Arte Obscura, possui recursos que estão além da força e resistência de qualquer Homem. Além disso, tem poder para iludir a minha percepção, o que, como vocês sabem, fez muitas vezes ao longo destes anos, atraindo-nos em buscas infrutíferas através do mar e por terras inóspitas. Contudo, é possível que, ao concentrar-se em enganar-me, se tenha esquecido do elo que foi estabelecido entre Edwina e Edwin, no momento da concepção. Esse elo fortaleceu-se com o passar do tempo e, hoje, Edwina está em condições de nos garantir o sucesso de uma campanha de resgate.

— Campanha de resgate? — Repetiu a minha mãe, simultaneamente desejosa e temerosa. — Mas como podemos planejar o salvamento do pequeno Edwin, se, como você disse, não existe um navio suficientemente robusto e rápido para empreender a viagem na Ilha dos Sonhos, na Grande Ilha, nem sequer no País dos Viquingues?

— Se não existe, vamos construí-lo! — decidiu meu pai. — A Ilha dos Sonhos tem a melhor madeira e os homens mais robustos e corajosos para a tarefa. Steinarr e Stefan irão ajudar-nos. Vamos buscar o teu filho, Edwin!

Pela primeira vez vi o meu tio chorar. Estreitou o cunhado e, em seguida, ergueu-me no colo e fez-me rodopiar pelo salão, gritando:

— Três vivas para a minha sobrinha preferida, que fez regressar a esperança ao meu coração!

Tive de prometer que nada diria ao meu primo, para que o pérfido feiticeiro Sigarr não arruinasse os nossos planos. Seria fácil cumprir o juramento, já que, desde que nos conhecíamos, não havíamos trocado uma palavra.

De imediato, os homens da Ilha dos Sonhos empenharam-se na construção do mais resistente e veloz dos navios. Para ajudá-los, vieram guerreiros do País dos Viquingues e da Grande Ilha. No fim, tínhamos tantos braços a cortar madeira e a trabalhar no projeto, que a minha família decidiu construir, não um barco, mas dois. Assim, se algum azar sombreasse a campanha, os homens teriam mais probabilidades de regressar para casa sãos e salvos.

Todos sabiam que os perigos desta jornada seriam colossais. Podiam deparar-se com criaturas monstruosas, ainda desconhecidas do Homem; sereias, que tentariam persuadi-los a lançar-se nas águas sem fim; rochas afiadas, que testariam a robustez dos cascos; correntes, que desafiariam a perícia dos marinheiros; gigantescas tempestades, que arrasariam num piscar de olhos o sonho da vitória e as vidas dos nossos bravos. Ainda assim, não existia homem que não desejasse fazer parte da tripulação.

Enquanto os navios ganhavam forma, os encontros com o meu primo mantiveram-se inalterados. Porém, desenvolveu-se uma ansiedade na minha respiração, um carinho no meu abraço, quando o estreitava com o propósito de ajudá-lo a recuperar a coragem para enfrentar os horrores que o esperavam para lá da segurança do nosso esconderijo. Eu nem imaginava o quanto ele sofria nas mãos do seu raptor, mas estremecia, sempre que a voz daquele que agora sabia ser um dos mais perigosos e temíveis feiticeiros bradava:

— Loki! Responda-me, criatura estúpida! Terá tempo de dormir quando morrer! Vem treinar!

Pelo que percebia, a aprendizagem do meu primo na Arte Obscura, sob a mão malévola do Guardião da Lágrima da Lua, era cada vez mais rigorosa. O mesmo sucedia comigo, na prática da Arte Luminosa, sob a orientação do Guardião da Lágrima do Sol. Isto implicava que o tempo que passávamos juntos diminuía a cada noite. Aproveitei a liberdade que os sonhos me concediam para observar a posição da Lua e das estrelas, naquela terra distante. Na posse dessas informações, o meu pai e o tio Berchan desenharam mapas, os quais guiariam os nossos guerreiros rumo ao desconhecido.

Finalmente, o grande dia chegou. «O Que Tudo Vê» despediu-se com severas recomendações acerca da necessidade de eu jamais quebrar o silêncio diante do meu primo, e de prosseguir os estudos com redobrado afinco, pois, brevemente, pretendia confiar-me a sua herança mágica e nomear-me Guardiã da Lágrima do Sol. Ele seguiria no primeiro navio, comandado pelo meu pai, e certificar-se-ia de que os guerreiros resistiriam aos rigores da longa viagem. No segundo navio, comandado por tio Stefan, tio Berchan tinha a mesma incumbência.

A minha mãe chorava compulsivamente, enquanto os barcos se afastavam. Na altura, eu era demasiado jovem e imatura para compreender o que significava para Catelyn da Ilha dos Sonhos ficar afastada do seu marido, sem a certeza de que voltaria a vê-lo. Só pensava na alegria que o meu primo sentiria quando os navios salvadores surgissem no horizonte. E no momento em que, finalmente, nós dois ficaríamos frente a frente, iluminados pela luz do dia, para que eu pudesse ver o júbilo da liberdade cintilando no seu olhar.

Certa noite, após percorrer o caminho que a minha essência conhecia de cor, não encontrei o meu primo à minha espera. Aflita, apelei à magia do meu sangue e àquele que agora sabia ser o elo que nos tornava inseparáveis, para descobri-lo. Ele já estava num dos alvéolos que acobertavam o nosso segredo. O seu corpo soluçava de desespero... e algo que, mais tarde, verifiquei ser dor. Assim que me pressentiu, envolveu-me e assimilou a minha energia com sofreguidão. O horror que o trespassava era tão extremo, que fui incapaz de reter a comoção. Acariciei-lhe o rosto com cuidado, murmurando:

— Schiu! Vai correr tudo bem! Prometo...

Só percebi que acabara de fazer uma grande asneira quando ele recuou, sobressaltado, esperneando e mal sufocando um grito. Antes que pudesse detê-lo, já acendera uma chama nos dedos e olhava-me com olhos esbugalhados:

— Quem é você? Uma assombração?

O meu primo via-me sob a forma da minha essência: luminosa, transparente, celestial... E eu via-o como um rapaz de onze anos, com brilhantes olhos verdes... os olhos da minha família materna — os olhos do seu pai! A harmonia dos seus caracóis louros era quebrada por uma madeixa de cabelo ruivo — a marca da sua mãe.

— Você fala... — insistiu ele. — Mas não é humana! E também não é um dos monstros! O que você é? Responde!

Engoli em seco, sem saber o que fazer. E se ele desatasse a gritar? A sua voz, mesmo sussurrada, acabaria por atrair Sigarr... ou os monstros a que ele se referia, e que, provavelmente, lhe haviam infligido os ferimentos profundos que lhe cobriam o peito e o ventre, ensopando de sangue o pano desbotado que lhe rodeava os quadris. Eu não podia consentir que isso acontecesse, não só porque me confrontaria com um perigo terrível, mas também porque o desgraçaria, e aos seus salvadores, que já não deviam estar longe. Decidi arriscar:

— Sou tão real como você... Só que o meu corpo repousa em outro lugar, enquanto a minha essência vem ao teu encontro para te ajudar. Tem sido assim desde o princípio...

— Eu não sabia... — interrompeu ele, mantendo a voz baixa. — Julgava que... que fazia parte de mim! Tinha medo que desaparecesse, se eu tentasse descobrir o que... isto significa! Você alivia o meu tormento...

— Não poderei continuar a fazê-lo, se não se calar! Quer que o teu mestre me descubra?

Ele abanou a cabeça, numa negação enérgica, e cerrou a mão. O fogo extinguiu-se e ficamos novamente envoltos pela obscuridade. Porém, era óbvio que algo mudara... o ar estralava em contato com a sua pele e a minha essência. Eu continuava a vê-lo, tão claramente como se o nosso esconderijo estivesse iluminado por uma fogueira.

— De onde vem? — Teimou. — Diz-me o teu nome!

Silenciei-o com a ponta dos dedos. Ele me deu uma mão e, com a outra, agarrou uma madeixa dos meus cabelos e sacudiu-a, deixando no ar um rastro brilhante. Sufocou o riso e abraçou-me, segredando-me ao ouvido:

— Juro que não voltarei a falar... Se você prometer que jamais me deixará!

O sorriso que trocamos selou o pacto, que se manteve durante as semanas seguintes. Num desses dias, o meu primo surgiu ainda mais ferido. Eu morria de vontade de lhe perguntar o que sucedia no exterior do nosso refúgio, mas tinha medo. Distinguia muitas vezes o ruído de unhas raspando a rocha e latidos estranhos, tão estridentes que dificilmente poderiam vir de cães. Nessas ocasiões, ele me abraçava com mais força, como se tencionasse proteger-me, e o seu coração disparava a galope.

Então, numa tarde em que não se vislumbrava uma nuvem no céu e o ar estava insuportavelmente quente, avistei os barcos da minha família. Encontravam-se tão perto do reduto de Sigarr que, se não ocorressem imprevistos, chegariam na manhã seguinte. O contentamento provocado por esta visão deixou-me extasiada, de tal forma que, na companhia do meu primo, dei por mim a quebrar as regras:

— O meu nome é Edwina...

Ele ergueu a cabeça, que descansava no meu ombro, e revelou todos os dentes num sorriso, antes de sussurrar em resposta:

— O meu é Loki... Mas, você já sabia...

— O teu nome não é Loki — retorqui com o coração batendo descompassadamente. — Loki é o nome que o teu mestre te deu, quando te roubou do berço e te trouxe para cá. O teu verdadeiro nome é Edwin... Tem o mesmo nome que o teu pai!

O sorriso do meu primo mirrou lentamente, até morrer com um gemido de incompreensão. Afastou-se de mim e replicou temeroso:

— O meu pai? O meu mestre não é o meu pai?

Na Ilha dos Sonhos, uma lágrima escorreu-me pelo rosto adormecido. Eu sabia que não devia continuar... mas as palavras caíam-me em cascata dos lábios:

— O teu pai é um valoroso guerreiro de uma terra distante, no Norte, chamada Grande Ilha. O teu mestre é um inimigo da nossa família, que te raptou para te transformar num guerreiro-feiticeiro e, pela tua mão, vingar-se daqueles que travaram os seus planos de dominar o mundo.

— Nossa família? O teu nome é Edwina... e o meu é Edwin? Nós somos... irmãos?

— Primos... — quase sorri ao observar a decepção no seu olhar. — Mas seremos sempre como irmãos porque, no momento em que fomos gerados, uma força divina marcou o mesmo rumo para o nosso destino.

— Foi assim que você me encontrou... — constatou ele, tão confuso e assustado como maravilhado. — É por isso que me sinto bem quando estou contigo... e mal quando está longe. — O horror acabou por vencer o encanto. — Eu fui raptado! Isso quer dizer que o meu mestre... Não! Não pode ser!

Tremia descontroladamente e fui forçada a dar-lhe a mão para reconfortá-lo. Este contato aumentou ainda mais a minha necessidade de lhe contar a verdade. E só havia uma maneira de fazê-lo compreender:

— Os nossos poderes são equivalentes, o que quer dizer que, se eu consigo trazer a minha essência até aqui, você também é capaz de deixar o teu corpo e vir comigo...

— Isso é impossível!

— Não, se recorrer à magia!

Ele continuou a negar, e a sua resistência só estimulava a minha determinação:

— Fecha os olhos... Sente a magia pulsar no teu sangue... Deixa o corpo repousar... e o espírito elevar-se.

Passo a passo, Edwin seguiu as minhas instruções. Muito mais rápido do que eu esperava, o seu corpo cedeu ao sono... e ele surgiu ao meu lado, na sua forma espiritual. Surpreendi-me ao verificar que as cores da sua essência eram distintas das minhas, mas na altura, isso pareceu-me de menos importância. Nesse instante, éramos a mais pura forma de energia... E éramos livres!

Deixamos a sua realidade para trás e, quando a alvorada chegou à Ilha dos Sonhos, Edwin já se deslumbrara com a imensidão azul do mar, com a areia branca e fina da praia, com o verde luxuriante da floresta que abraçava a Montanha da Magia... e com a visão do aglomerado de casas da comunidade governada pelo jarl Throst. Para um rapaz cuja existência estava condicionada a uma ilha vestida de sangue e luto, descobrir a fragilidade dos mantos amarelos e brancos das flores do campo era arrebatador. Ao terminar a visita, levei-o à minha casa; ao quarto onde o meu corpo se encontrava, profundamente adormecido, para que não lhe restassem dúvidas de que eu existia em carne e osso.

A mão brilhante da essência de Edwin atreveu-se a buscar uma madeixa dos meus cabelos, deixando os caracóis deslizarem por entre os dedos. Depois murmurou, com a inocência de um garoto que nada conhecia, além da negritude e da infelicidade:

— Você é a coisa mais bonita que eu vi hoje!

Envaidecida, acerquei-me dele e beijei-o no rosto. As suas faces assumiram uma cintilação escarlate. Sorri, divertida, e afirmei com uma certeza inabalável:

— Não demora, estará vivendo aqui, comigo! Tenho tanta coisa para te mostrar... tantos amigos que vai adorar conhecer...

— Mas... c... como? — gaguejou ele, com os olhos desmesuradamente abertos.

— Os nossos pais estão chegando à tua ilha, com um exército formidável! O teu mestre vai ser castigado por tudo o que te fez sofrer!

Pensei que iria vê-lo saltar de alegria. Porém, Edwin manteve-se estático, tenso... E, só a muito custo, respondeu à minha expressão intrigada, com a voz a tremer:

— Os monstros não me deixarão partir!

— Monstros? — Repeti, sem compreender. — Quais monstros?

O meu primo ia responder mas, subitamente, a sua essência perdeu a cor, tal foi o sobressalto que o acometeu.

— O meu mestre está me chamando! Tenho que ir...

— Edwin! — protestei, tentando detê-lo.

— Se não for... Se ele descobrir, nunca mais poderei vê-la.

— Eu vou contigo...

— Não! — cortou; a sua essência dissipando-se diante da minha. — É tarde...

E desapareceu, deixando-me perplexa e assustada.

Esse foi o dia mais longo da minha vida. Isolei-me em meditação, evitando falar com quem quer que fosse. Tinha medo de que a minha mãe descobrisse que eu contara os nossos planos a Edwin. E receava que ele não tivesse conseguido ocultá-los do seu mestre; inquietava-me com a sua perturbação extrema. Monstros, dissera... Estaria a referir-se aos animais que eu escutava a arranhar a rocha e a latir enraivecidos?

Quando a noite chegou, estava tão ansiosa que era incapaz de adormecer. E, sem sonhar, não tinha como ir ao encontro do meu primo! Os nossos pais já deviam ter chegado à ilha. O que estaria acontecendo? A ignorância enlouquecia-me. Acabei por levantar-me da cama às escondidas e preparar um chá com algumas das ervas especiais da minha mãe. Sob a sua influência, dormiria mais do que o normal... Mas venceria a angústia do desconhecimento.

Caí num sono brusco e profundo... e a minha essência despencou num vazio tenebroso. Tive de apelar a todas as minhas forças para encontrar o caminho que desejava... E, quando finalmente consegui, quase desfaleci de pavor.

Na praia rochosa, o meu povo aguardava com as armas em riste, os corpos ansiosos e os espíritos preparados para o ataque. Ao longo dos anos, o orgulho que sentia no meu sangue e nas minhas origens aumentava sempre que recordava esta imagem, pois tinha certeza absoluta de que nenhum outro povo se manteria firme, diante da visão grotesca do inimigo que se preparavam para enfrentar.

Eram dezenas... não, centenas de criaturas de pele vermelha, desprovidas de pêlo, que, apesar de possuírem constituição semelhante à dos Homens, jamais poderiam ser confundidas com a minha raça. Tanto avançavam sobre os pés, como galopavam de quatro, saltando de rocha em rocha e latindo com um furor de gelar a alma. As suas caudas, segmentadas como as dos ratos, estalavam como chicotes, e as garras feito lâminas cintilavam à luz do Sol. Porém, o que causava mais horror eram os seus focinhos, semelhantes aos das feras, com olhos amarelos e presas que fariam inveja a um lobo adulto... E os chifres, que ornamentavam as cabeças dos machos, redondos e pontiagudos como de touros. Estes eram os monstros de que Edwin falara... Estas eram criaturas capazes de esmagar o exército da minha família num piscar de olhos!

Uma delas destacou-se, gigantesca, aterradora. Mal acreditei nos meus ouvidos quando falou a nossa língua, com uma acentuação estranha mas perceptível e claramente ameaçadora:

— Hakon da Montanha Sagrada, o que te traz aos meus domínios?

O meu bisavô demorou algum tempo a responder:

— Fui informado de que estas ilhas acolhem o meu primo Sigarr e o jovem humano que ele raptou de uma das casas que desfrutam da minha proteção! Entregue-nos esse rapaz, Vulcan, e partiremos em paz!

A criatura emitiu um urro que pretendia ser uma gargalhada, antes de replicar:

— Mais de cem anos se passaram, desde que a tua gente determinou o meu exílio, Guardião da Lágrima do Sol! Entretanto, também fui informando... E sei que o Conselho que servia com tanta devoção te renegou. Pode reinar entre os animais que te rodeiam, mas, diante do meu povo, é um verme! Escolhi estas ilhas para minha morada e não recebo visitas! Se tem contas a ajustar com o teu primo, deve procurá-lo noutro lugar! Agora, se preza a vida, leva daqui o teu gado, antes que o seu cheiro desperte o meu apetite!

Muitas vozes se ergueram de entre os nossos guerreiros. Distingui perfeitamente a de tio Edwin, furiosa, revoltada. Ele estava disposto a dar a vida para exterminar aquelas aberrações! O meu coração parou de bater, quando o meu bisavô acenou para se fazer ouvir e declarou com uma firmeza gélida:

— Vamos embora! Aqueles que buscamos não se encontram aqui!

Choveram protestos. O tio Edwin tentou arremeter contra o monstro e o meu pai e o primo Krum foram forçados a imobilizá-lo. O tio Berchan fitava o seu mestre com uma expressão assombrada. O tio Stefan gritava para apaziguar os ânimos dos guerreiros... E eu observava-os chocada, sem acreditar, sem compreender...

— Ordena a retirada, Throst! — insistiu «O Que Tudo Vê», por entre o clamor.

— Mas a Edwina...

— A tua filha enganou-se! Faz o que te digo!

E o meu pai fez. A sua ordem calou os guerreiros. Os latidos das criaturas ecoaram, ensurdecedores, vitoriosos... Só existia uma maneira de lhes provar que eu não me enganara; que Edwin estava em algum lugar nesta prisão tenebrosa, sentindo a esperança da liberdade escapar por entre os dedos. Tinha de trazê-lo à luz do dia!

Em pânico, lancei-me ao encontro da essência do meu primo. O meu ímpeto arrebatado conduziu-me a uma pequena cela escavada na rocha, de onde se avistava a praia através de uma fresta. Edwin gritava e esmurrava a parede, desesperado na sua impotência:

— Socorro! Não me abandonem aqui! Covardes! Covardes!

Assim que sentiu a minha presença, encarou-me com o rosto banhado em lágrimas, exclamando acusadoramente:

— Mentiu-me! Disse que o meu pai era um homem corajoso! E ele vai embora! Vão todos embora...

— Edwin, perdoe-me... — tartamudeei, partilhando da sua agonia. — Eu não sei por quê...

— Ajude-me a sair! — Correu para a pedra que bloqueava a passagem, tentando inutilmente empurrá-la. — O meu mestre usou magia para movê-la, mas, talvez, se combinarmos nossas forças...

Calou-se subitamente, assolado por uma onda de energia que chegou até mim com o furor do Vento Norte. Trocamos um olhar aterrorizado. O mestre da Arte Obscura estava chegando.

— Vai... — murmurou Edwin, recuando, subitamente sereno. — Vai, antes que te descubra...

— Mas, ele acabará te matando!

— Eu farei o que for necessário para sobreviver.

— Edwin...

— Vai, Edwina! E não volte a me procurar. Eu irei até você quando for seguro.

A pedra moveu-se...

Fixei o olhar do meu primo pela última vez; um olhar inchado, cansado, decepcionado, temeroso, triste... infinitamente triste!

— Perdoe-me! Perdoe-me...

 

— Perdoe-me...

Sentei-me na cama, com os olhos esbugalhados de horror e os lábios a murmurar a súplica que, há cinco anos, repetia sem cessar. Não obstante o tempo que passara, a recordação da figura alta e franzina do Guardião da Lágrima da Lua, a surgir por trás da pedra e a investir contra mim... contra Edwin, ainda me provocava calafrios. Há muito que compreendera e aceitara as razões de «O Que Tudo Vê». Porém, ainda assim, não podia esquecer que deixara o meu primo para trás, entregue à sua sorte, depois de lhe ter prometido a liberdade.

Por mais que tentasse, não voltaria a pregar o olho. Enfiei o vestido pela cabeça e afastei a cortina de lã colorida que separava o meu quarto das outras divisões da casa. Deslizei pelo chão de madeira, silenciosa como um fantasma, carregando as botas na mão. Só as calçaria na rua, quando não corresse o risco de acordar o resto da família e os criados.

A alvorada aproximava-se rapidamente. As ruas da aldeia ainda se encontravam desertas, mas os meus sentidos apurados já distinguiam movimento no interior de algumas casas. Avancei furtivamente, encoberta pelas sombras, e corri ao encontro do abraço protetor da floresta que cobria a Montanha da Magia, com o ar frio a esbofetear-me as faces. Só existia um lugar capaz de restituir o equilíbrio ao meu espírito atormentado pelo remorso e pela incerteza.

A caminhada era longa. Quando deixei o abrigo do bosque, o Sol já se erguia no firmamento e o ar começara a aquecer. Este era o ponto mais alto da Ilha dos Sonhos; uma clareira no topo da montanha, onde as Pedras do Mundo governavam sobre a terra e o mar. Deslizei por entre os magníficos blocos de pedra, acariciando-os com devoção. Apesar de visitar freqüentemente este lugar, evitado pelos habitantes da ilha por respeito e temor, nunca cessava de maravilhar-me.

Uma majestosa pedra esbelta erguia-se na direção do céu, cintilando com as cores do arco-íris. Ao seu redor, catorze pedras polidas, de uma cor azulada que eu nunca vira em nenhum outro lugar, encontravam-se plantadas no solo, na vertical, com sete sobrepostas na horizontal, como se formassem sete portas. Todas tinham duas vezes a minha altura, e a pedra central era maior do que uma árvore adulta e podia ser avistada a grande distância, mesmo do mar. Qual seria a sua história? Que mistérios revelariam, se falassem? Este não podia ser um prodígio da natureza, mas também não existia ser humano capaz de erguer estas pedras, quanto mais de carregá-las através da floresta cerrada, e de amontoá-las com tal precisão. Seria a obra de um feiticeiro? Quando indagara junto da minha família, ninguém soubera responder-me, nem mesmo «O Que Tudo Vê».

Deixei as Pedras do Mundo para trás e avancei até à entrada da Gruta da Renovação. A abertura escavada na rocha voltada para o mar dava passagem para o interior da montanha, onde um corredor longo e descendente terminava numa galeria ampla, não muito alta, de paredes duras e estéreis, cobertas por pinturas que imortalizavam a existência dos quatro povos detentores do Poder Antigo, os quais haviam dominado o mundo após a extinção dos dragões. Nelas podiam observar-se esses seres a pairar no ar, a nadar no mar, a caminhar por entre o fogo e a viver em harmonia com as densas florestas.

Hakon trouxera-me aqui pela primeira vez, pouco depois de regressar da campanha às Terras do Fogo, para que eu compreendesse a razão por que determinara a retirada do nosso exército dos domínios daquelas abomináveis criaturas, condenando Edwin a um destino pior do que a morte. Os Feiticeiros, ou o Povo do Ar, como haviam sido chamados nos primórdios, não eram os únicos seres que dominavam a magia, explicara, apenas os mais poderosos. Em tempos, a sua vontade fora imposta sobre o Povo da Terra, o Povo da Água e o Povo do Fogo, até que a expansão humana os forçara a partir para a Ilha Sagrada — um paraíso místico, invisível ao olhar do Homem, cujas florestas luxuriantes, lagoas de águas puras e castelos de cristal eu visitava desde menina, através das recordações do meu bisavô.

Não era incomum ouvir-se falar do Povo da Terra e do Povo da Água. Os relatos de encontros com elfos e fadas, ou com tritões e sereias, tanto podiam ser deslumbrantes como aterradores, dependendo do humor e das intenções dos seres mágicos. A sua habilidade para manipular a mente dos Homens, aliada à ignorância das pessoas simples, que desconheciam a existência dos Povos Antigos, e se entregavam de coração aberto às visões estreitas da nova religião, alimentavam a fantasia popular e o temor por entes que eram tão reais e vulneráveis como nós. Quanto ao Povo do Fogo, a história era muito diferente!

Desde o início, esses seres haviam-se recusado a cumprir quaisquer regras de convivência. Viviam ao sabor dos seus desejos e da vontade de Vulcan, o seu rei. Como não podiam desafiar o poder mágico dos Feiticeiros, divertiam-se a provocar guerras com o Povo da Terra, incendiando as suas florestas. Porém, quando a sua atenção se voltara para os humanos, os Seres Superiores foram forçados a interferir, a fim de impedir a carnificina dessa raça física e intelectualmente inferior, contudo, ainda assim, inteligente. E que, como eu própria escutara naquele mal-aventurado dia, para o Povo do Fogo os Homens não passavam de animais, de gado... de alimento. Cedo, estes predadores vorazes haviam-se tornado o pior pesadelo da raça humana... Eu não tinha dúvidas de que eles eram os «demônios» que os padres cristãos tanto temiam!

O constante desrespeito das normas dos Feiticeiros, a gula e a crueldade de Vulcan, levara o Conselho dos Seres Superiores a decretar o exílio do Povo do Fogo, condenando-o a viver afastado de quaisquer outras raças. A ordem fora executada, e o meu bisavô não tornara a pensar no assunto, até vê-los surgir naquela ilha... precisamente naquela ilha!

«Vulcan deu-nos a oportunidade de partir porque sabia que, apesar de eu ter sido renegado pelo meu povo, este jamais deixaria a minha morte impune. Porém, se insistíssemos em impor a nossa vontade, o seu temor pelo castigo dos Seres Superiores teria sido esquecido... Não duvide, Edwina! Se Vulcan atacasse, nenhum guerreiro regressaria para casa! E que bem adviria dessa chacina? Edwin permaneceria prisioneiro... E a Ilha dos Sonhos, o País dos Viquingues e a Grande Ilha perderiam os seus líderes e alguns dos seus mais valorosos homens. Só o mal lucraria com este confronto! Por isso, menti e mantenho a mentira. .. E você também o fará, se tem amor ao teu pai, aos teus tios, aos teus vizinhos... Desta vez, Sigarr fez uma jogada magistral! Enquanto estiver sob a proteção de Vulcan será intocável! Lamento pelo teu primo... Mas nada podemos fazer para ajudá-lo! »

E foi assim que, aos onze anos, eu me vi confrontada com uma decisão de vida ou de morte. Se insistisse na minha convicção, tio Edwin seria capaz de regressar sozinho à ilha, ou com quantos homens conseguisse reunir em torno da sua causa. Uma vez lá, seria devorado pelos demônios... Por mais que me custasse admitir, o meu primo estava perdido de uma forma ou de outra. Não era uma questão de coragem; era uma questão de bom-senso! Esperar que Edwin sobrevivesse à barbaridade de Sigarr, era tudo o que me restava. Porém, à medida que os anos passavam, a minha esperança extinguia-se e o desespero sobrevinha. Todas as noites combatia a vontade de buscá-lo, temendo causar-lhe a morte. Ele disse que me procuraria quando fosse seguro... E eu vivia na esperança de reencontrá-lo, um dia.

Fechei os punhos e esmurrei as representações do Povo do Fogo com toda força que possuía, até sentir os ossos estalarem de agonia e a carne rasgar-se sob o impacto. Gritei até as paredes de pedra serem incapazes de suster a minha voz. Depois, deixei-me cair no chão, chorando desconsoladamente. Desejava que o meu bisavô estivesse aqui para me confortar, ou, pelo menos, para escutar o meu desabafo... Mas ele partira no início da Primavera, rumo ao Norte, dizendo que nada mais tinha para me ensinar. Eu devia amadurecer o meu poder, encontrar o meu rumo e ganhar coragem para segui-lo... E teria de fazê-lo sozinha!

Levei a mão ao bolso do vestido e ergui a Lágrima do Sol diante dos olhos. O cristal mágico, formado a partir de uma das lágrimas choradas pelo Guardião da Montanha, ao prever o fim do seu mundo, libertava uma cintilação límpida. Quem sabe, neste preciso momento, Edwin não girasse entre os seus dedos a Lágrima da Lua, e observasse maravilhado o seu brilho negro? Eu nunca vira o cristal antagonista do meu, mas a minha mãe contara-me que era igualmente perfeito, detentor de um poder de cortar a respiração. Talvez a cura para todos os nossos males residisse nestas duas pedras mágicas, que guardavam o Conhecimento Absoluto! Porém, a Lágrima do Sol ainda não me reconhecia como sua guardiã; muitas vezes, enchia-me os olhos de névoa quando buscava a sua sabedoria. A minha mãe insistia que eu devia treinar mais e confiar nas minhas capacidades... Contudo, a ausência de «O Que Tudo Vê», ao invés de fortalecer a minha determinação, só aumentara a insegurança.

— Perdoa-me — murmurei outra vez, com o olhar mergulhado no esplendor do cristal. — Gostaria que soubesse que te guardo sempre no meu pensamento! Se está me ouvindo, responde! Dá-me um sinal de que se encontra bem! Lamento tanto, Edwin... Tanto...

Sobressaltei-me quando um som estridente e longo fez vibrar as paredes da gruta. Era o clamor da trompa que anunciava a aproximação de barcos. Eu acordara tão perturbada, que nem me lembrara de que os primeiros convidados para o Festival de Verão estavam prestes a chegar. Com certeza minha mãe já se atarefava com os preparativos para a recepção. Nestes dias, a esposa do jarl não tinha descanso. Era tempo de guardar as minhas mágoas num recanto secreto da mente e correr para ajudá-la.

Todavia, antes de descer ao povoado, não resisti a espreitar o mar. Deste lado da montanha, as copas dos carvalhos adultos formavam uma manta verde que se estendia até o extenso areal, tão cerrada que parecia possível caminhar sobre ela. Ao Norte, a praia estava cortada por penhascos altivos, povoados por barulhentas aves marinhas. Escondidas entre estes, havia pequenas baías onde as focas descansavam, cobrindo a areia branca com os seus corpos gordos e pachorrentos. Porém, o verdadeiro santuário destes belos animais situava-se numa ilha vizinha, demasiado agreste para ser habitada pelo Homem.

A indescritível beleza que se estendia diante de mim seria capaz de tirar o fôlego a qualquer mortal, camponês ou guerreiro, rico ou pobre, novo ou velho. Eram muitas as pequenas ilhas que formavam o arquipélago e, até há poucos anos, os seus labirintos rochosos haviam representado uma ameaça mortal para os navios. Certos dias, com o mar calmo e a luz adequada, era possível vislumbrar os seus destroços, afundados junto dos rochedos traiçoeiros; a única recordação do tempo em que a Ilha dos Sonhos fora um território selvagem. O meu pai e a sua tripulação tinham descoberto um caminho seguro e tornado este paraíso num porto de paragem obrigatória.

Fora da rota comercial, o arquipélago escondia outra ilha habitada. A Ilha dos Penhascos surgia diante dos navios como uma muralha impenetrável de rocha, que se erguia até desafiar o céu. Do ponto alto onde me encontrava, avistava perfeitamente a mancha de vegetação que se criara dentro do vaso de pedra escura. Quando pequena, costumava imaginar que um gigante zangado pisara naquele pedaço de rocha com toda a força, e abrira um buraco no seu interior com o calcanhar que, com o tempo, se enchera de árvores. Hoje sabia que a ilha não era mais do que um velho vulcão, cujo furor se extinguira muito antes dos nativos do arquipélago o escolherem para sua morada. Mesmo num dia claro como este, era impossível distinguir algo que denunciasse a presença de vida no interior acidentado da ilha. Mas eles estavam lá!

Na primeira vez que se encontraram, os dois povos quase entraram em conflito. Os Viquingues reclamavam a terra como conquista sua. Os nativos viam-se diante de uma horda de invasores, que podiam exterminá-los até ao último homem, sem o menor esforço. E, estou convicta de que, se o meu pai não estivesse à frente da empreitada, muitas almas se teriam perdido. Porém, com a sabedoria que o levara a ser eleito Líder Supremo do povo viquingue, o jarl Throst conseguira chegar a um acordo sem que houvesse derramamento de sangue. Afinal, tudo o que os nativos desejavam era celebrar os seus rituais sagrados no topo da Montanha da Magia, junto das Pedras do Mundo, a chamada «Festa da Renovação», que coincidia com o nosso Festival de Verão. O meu pai dera-lhes a sua palavra de que ninguém os incomodaria na Ilha dos Sonhos, e que a Ilha dos Penhascos se manteria tão segura e sossegada como até então.

Com o passar dos anos, os Viquingues e os habitantes da Grande Ilha misturaram-se com o Povo dos Penhascos, no berço das Pedras do Mundo, e muitas crianças nasceram, fruto desses encontros. Alguns dos nossos homens escolheram viver na ilha dos nativos, enfeitiçados pela beleza das mulheres de pele dourada e cabelos cor de mel, e quando nos visitavam, durante a Festa da Renovação, confessavam-se muito satisfeitos. Porém, pouco mais podiam dizer. Existia um código de silêncio rígido, que rodeava a ilha de mistério, e quem pisava a sua praia ficava imediatamente preso a esse juramento.

Os druidas não eram exceção. Após a guerra com a feiticeira Gwendalin, a propagação da fé cristã ditara a perseguição dos homens sábios. Os sobreviventes tinham pedido asilo ao Sacerdote dos Penhascos, soberano do povo nativo, oferecendo o seu Conhecimento secular em troca de proteção. A anuência do Sacerdote colocara-os imediatamente sob os cuidados do jarl e a salvo das garras ferinas da intolerância.

Despedi-me do mar calmo e do céu salpicado de nuvens quase transparentes, e embrenhei-me na floresta, de volta para casa. Felizmente, o Festival de Verão viria quebrar a rotina dos meus estudos e distrair-me do remorso que morava no meu peito. Rodeada de tios e tias, primos e primas, não teria tempo para me sentir triste. Além disso, estaria com Ivarr...

Pensar no meu prometido impeliu-me a correr através das trilhas da floresta. Cortei caminho, saltando sobre as raízes das árvores com o coração acelerado, como se, na verdade, Ivarr me aguardasse no porto. Sorria como uma tola, recordando que, antes de eu nascer, o rei Steinarr já solicitara a minha mão para o seu primogênito e herdeiro. Nessa altura, a minha mãe deixara claro que essa decisão me pertenceria, quando tivesse idade para tomá-la, mas o meu pai sempre se esforçara por me despertar para as qualidades do príncipe. Nunca me atrevi a dizer-lhe que não necessitava de fazê-lo. Casar-me com o meu prometido era um sonho; um anseio que só se realizaria quando concluísse o meu treino e me tornasse Guardiã da Lágrima do Sol.

No Norte, as moças começavam a ser cortejadas aos treze anos e, aos dezesseis já tinham um ou dois filhos. Eu estava prestes a fazer dezessete e não fazia idéia de quando poderia casar-me. O que Ivarr pensava acerca disto permanecia um mistério. Nas suas escassas e breves visitas, ele mantinha-se respeitosamente distante, como se a minha missão me tornasse diferente das outras mulheres; uma flor delicada e intocável. Esse respeito fraternal, que tanto agradava aos meus pais, deixava-me insegura e desgostosa. Era, provavelmente, a única moça da minha idade que não conhecia o sabor de um beijo. Já de Ivarr, não se podia dizer o mesmo! Segundo as más-línguas, prática nos assuntos íntimos era o que não lhe faltava! Havia até quem se atrevesse a rumorejar a existência de dois ou três bastardos nas Terras do Norte; boatos que os meus pais nem se dignavam a comentar.

A perfeição do meu prometido tornava-o o solteiro mais cobiçado do reino. Como guerreiro, poucos se igualavam a ele. Como amigo, era o braço direito dos seus companheiros e a alegria de qualquer festa. Como homem, não havia mulher que não suspirasse à sua passagem, e os meus ouvidos apurados distinguiam freqüentemente comentários sussurrados que me faziam corar de embaraço. Talvez este Festival de Verão fosse o momento ideal para esclarecer as dúvidas que me atormentavam! Seria o nosso compromisso do agrado de Ivarr? Ou iria sustentá-lo apenas para agradar às nossas famílias?

 

A minha mãe corria de uma ponta à outra da casa, distribuindo ordens e certificando-se de que as tarefas eram concluídas a contento. As criadas andavam numa azáfama, satisfazendo com agrado as ordens da sua senhora. A prima Signy, tia Ingrior, tio Berchan e o primo Trygve vieram ajudar-nos. Ainda havia muito por fazer e os primeiros barcos carregados de visitantes já aportavam. O jarl e os seus homens tinham ido ao encontro de alguns amigos e só regressariam para jantar. O primo Aled acompanhara-os como de hábito.

O pai de Aled, irmão mais velho da minha mãe, dera a vida para salvar a família, durante a batalha sangrenta que opusera Aliados e Viquingues, na Enseada da Fortaleza. Melody, a sua esposa, falecera pouco depois, chorando a morte do marido na clausura de um convento. Aled crescera conosco e tornara-se o filho homem que o meu pai não tivera. Para mim, ele era um irmão sempre presente, a quem eu amava e admirava... Mas Trygve era, sem dúvida, o meu companheiro de todos os momentos.

Desde o início que Trygve partilhava o meu destino de aprendiz de magia. A sua serenidade e força de caráter tinham-me ajudado mais vezes do que eu me recordava. As nossas vidas não eram fáceis! Estar entregue aos cuidados de Hakon significava mergulhar num mundo do qual mal me atrevo a falar. Jejuar durante dias até o corpo se libertar de todas as necessidades terrenas, de toda a dor e consciência, para atingir um nível espiritual superior, não era algo que qualquer jovem almejasse. Sentir as poderosas misturas alucinógenas a queimar-nos o sangue, para chamar à nós a Visão, e, posteriormente, libertar o corpo da dependência, por um processo que implicava um tormento que fustigava a carne e o espírito, era um martírio que teríamos negado com alegria e agradecido pelo desconhecimento. Passar os dias num total isolamento, presos à disciplina do silêncio, do controle dos mais básicos sentimentos humanos, temendo que a vontade se quebrasse e que tudo o que conquistáramos se perdesse sem hipótese de retorno, não era a ambição de ninguém... Mas Trygve nunca se queixava! E eu estendia-lhe a mão e caminhava ao seu lado.

Enquanto trabalhávamos a massa para fazer o pão, o meu pensamento ainda se ocupava com Ivarr. O meu primo percebera minha ansiedade e disfarçava um sorriso. Os nossos espíritos encontravam-se tão próximos, que não havia necessidade de falarmos. Escutei a sua voz dentro da minha cabeça, suave como uma carícia:

«Não se atormente, Edwina! O Ivarr está ciente da sua sorte por te ter como prometida!»

«Sério? Acho que ele nem se lembra que eu existo!»

«Não seja tola! Como poderia dedicar-se à Arte se estivesse permanentemente ao seu lado? Além disso, Ivarr também enfrenta um treino rigoroso, que o habilitará a herdar o reino viquingue, quando o momento chegar. O que foi que te deixou insegura? Andou dando ouvidos às intrigas das invejosas?»

Senti o calor subir-me às faces e procurei disfarçar, juntando mais água à farinha e amassando fervorosamente. Mas a pergunta fluiu, sem que conseguisse reprimi-la:

«Já se apaixonou alguma vez Trygve?»

Espreitei-o de esguelha e surpreendi-me com a tristeza do seu semblante ao responder-me:

«Não, prima... E seria uma infelicidade se tal acontecesse!»

Franzi a testa, quase chocada com essa afirmação.

«Não compreendo... Porquê?»

Fomos interrompidos pelos gritos das minhas irmãs. Svana, a filha do primo Krum, tentava esfriar a discussão. As personalidades fortes das gêmeas levavam-nas a defender os seus ideais com um ardor acirrado, e a mergulhar de cabeça nestas brigas que, felizmente, eram efêmeras.

Enquanto a nossa mãe interferia para chamá-las à razão, eu observei-as com carinho. As minhas irmãs não seriam tão altas como eu, mas tinham herdado a robustez dos povos do Norte, aliada aos traços delicados dos nativos da Grande Ilha. Os seus olhos eram verdes e expressivos como os da família materna... E estavam cada dia mais bonitas, com as formas a definirem-se nas ancas e no peito. Se Thora não teimasse em vestir-se como um rapaz e em prender os cabelos escuros e encaracolados numa trança grossa, a maior parte das pessoas seria incapaz de distingui-las. Porém, enquanto Freya delirava de felicidade por ver os seus seios crescerem e formarem pequenos montes nos vestidos, Thora abominava a transformação. Enquanto Freya se dedicava aos afazeres domésticos, desejava casar e cuidar do seu marido, ter uma dezena de filhos e ser a mais hábil das curandeiras, Thora sonhava liderar um exército numa gigantesca e terminal batalha contra os Vândalos, ser a melhor guerreira de todos os tempos, comandar uma frota de navios de guerra e viajar pelo mundo, em busca de novas terras e aventuras sem fim. Que prodígio da Natureza fazia com que duas pessoas tão iguais possuíssem comportamentos tão distintos?

Esta última desavença iniciara-se por questões já nossas conhecidas. A tolerante Freya defendia que devíamos negociar a paz com os Vândalos, tal como os Viquingues e os Aliados haviam feito, evitando assim um conflito brutal onde muitos dos nossos homens perderiam a vida, deixando mulheres viúvas e filhos órfãos. Thora teimava que não havia diálogo possível; que os Vândalos eram bestas sanguinárias que só mereciam a morte. A sua intransigência assustava-me. Thora já provara a sua coragem inúmeras vezes e, pelos que amava, era capaz de arriscar a vida sem piscar os olhos. A sua lealdade era cega, e não admitia menos em troca. Eu temia que o futuro lhe reservasse muitas decepções e que a sua relutância em perdoar a empurrasse para a solidão.

Cruzei o olhar com o da minha mãe e alcancei os seus pensamentos. Freya não teria dificuldade em arranjar um marido, talvez já neste Festival de Verão. Mas Thora... Os rapazes não pensavam nela como uma mulher, e sim como uma igual. Os mais velhos divertiam-se com a sua coragem e impertinência, os da sua idade eram seus companheiros e os mais novos veneravam-na. A minha irmã não tinha o desejo de ser um rapaz. Thora era melhor do que a maioria dos rapazes! O que lhe faltava em força, compensava em destreza, rapidez e flexibilidade. Era exímia no controle da espada e ninguém, exceto o nosso pai, a vencia com o arco. Montava um cavalo como se fizesse parte dele, nadava como um peixe e conseguia manter-se tanto tempo debaixo d’água sem respirar, que chegava a assustar-nos. Mas as suas habilidades, elogiadas e acarinhadas pela comunidade, de nada lhe valeriam quando chegasse o momento de constituir família. Como filha do jarl, esperava-se que desposasse um nobre ou o herdeiro de um trono. Todavia, era óbvio que qualquer desconhecido ficaria assustado, até zangado, com as suas maneiras.

Com a sutileza habitual, Trygve iniciou um assunto que era igualmente do agrado de todos, inclusive de Thora: o Festival de Verão e as provas de iniciação dos nossos jovens, finalistas daquela que já era considerada a melhor das escolas de guerreiros — o magnífico ginásio da Ilha dos Sonhos. Em menos de um segundo, as gêmeas já conversavam e riam, como se a discussão não tivesse ocorrido.

O ginásio da Ilha dos Sonhos fora uma das muitas apostas ganhas pelo meu pai. Em tempo de paz, o jarl Throst convidara os mais hábeis guerreiros entre Viquingues e Aliados para ensinar a arte da guerra aos jovens dos dois povos. Foi a união da força e intuição Viquingue com a disciplina e perseverança dos filhos da Grande Ilha. Os resultados tinham superado as expectativas! Até o tio Edwin, que, de acordo com as más-línguas, experimentara grandes reservas acerca da cultura do Norte antes de se casar com a tia Geirny, entregara o seu filho, Darrin, aos cuidados do tio Bjorn e dos outros professores.

Este Festival de Verão seria especial para a nossa família, pois Quinn, filho do tio Stefan, ia provar o seu valor, enfrentando as provas de iniciação que lhe abririam as portas de um novo mundo, cheio de expectativas e aventuras. Durante dois dias, a par de outros jovens, Quinn exibiria a sua aptidão no manejo das armas, a perícia com que montava a cavalo e a destreza com que enfrentava o mar. Por fim, no terceiro dia, sujeitaria-se ao mais duro e importante dos testes — a Caçada — onde a sua astúcia e instinto de sobrevivência teriam de sobressair.

A Caçada era o ponto alto das provas de iniciação e o desafio que os rapazes que sonhavam tornar-se guerreiros ansiavam superar. Na noite mágica, teriam de desbravar a floresta, armados apenas com uma faca e a sua coragem. Muitas armadilhas preparadas pelos instrutores aguardavam-nos... para não falar dos perigos que o próprio bosque ocultava. Os que alcançassem a saída antes do nascer do Sol, ganhariam o privilégio de se juntar às tropas da Aliança. Porém, apesar desta conquista ser o objetivo final dos jovens, havia outra razão para o seu desejo veemente de participar na Caçada.

Desde que o povo viquingue guardava memória, era na escuridão da floresta que os deuses distinguiam os líderes dos liderados. Durante a Caçada, se a vontade divina o determinasse, uma magnífica fera viria ao encontro de um eleito e este teria de combatê-la com os recursos que possuía. Do confronto resultaria apenas um vencedor e a alma do mais forte consumiria a alma do mais fraco. Se a fera vencesse, banquetear-se-ia com o corpo do rapaz. Se o jovem vencesse, seria considerado excelente entre os demais.

Os guerreiros-lobo, assim chamados por haverem defrontado esse animal na Caçada, eram escolhidos pelos chefes dos clãs para encabeçarem a sua guarda pessoal. Num passado recente, durante as campanhas de conquista, eram eles os primeiros a saltar dos barcos, bradando o nome de Odin, o deus da guerra; os que lutavam mais ferozmente e os últimos a abandonar terra firme, depois de uma esmagadora e proveitosa vitória. Dentre estes guerreiros de excelente nobreza e vigor, o povo viquingue tinha o orgulho de distinguir dois: um, era o rei Steinarr, que durante a sua prova de iniciação combatera e derrotara um urso, concretizando uma profecia que, anos mais tarde, o colocara no trono viquingue; o outro, era o meu pai.

Throst, filho de Thorgrim, fora «caçado» pelo líder dos Lobos Cinzentos, uma criatura sagrada, guardiã das almas atormentadas. Apesar do meu pai nunca ter almejado tal sorte, voltar-lhe as costas significaria a desonra e a morte. Numa noite em que todas as forças mágicas se libertaram na Terra Antiga, o homem suplantara a fera e tornara-se um guerreiro abençoado, com a missão de unir o seu povo e liderá-lo na prodigiosa aventura que conduziria à paz, e à prosperidade de que hoje desfrutamos.

Eu tinha oito anos e Ivarr catorze, quando o meu prometido enfrentara esse desafio. Fora a primeira vez que o meu pai me levara na longa viagem até às Terras do Norte. Já se atravessava um período de relativa estabilidade e os jovens viquingues saíam das florestas com as provas de iniciação superadas, mas sem a marca da supremacia. Recordo-me de ter escutado uma conversa entre Steinarr e o meu pai, em que o rei confessava o seu temor de que nenhuma fera se manifestasse a Ivarr, o que provocaria um enfraquecimento na confiança do povo, relativamente à sua liderança e à futura soberania do filho. A resposta do meu pai fora conclusiva:

— O nosso povo reconhece o seu valor! Você nasceu para governar e o teu filho para te suceder. Ivarr regressará vitorioso.

E regressara! Eu mal contive um grito ao ver o rapaz alto e encorpado, que me habituara a respeitar e admirar como o mais forte de todos nós, a surgir da floresta, tremendo sem controle. As suas roupas estavam esfarrapadas e cobertas com o sangue proveniente dos cortes profundos, infligidos à sua carne pelas garras e dentes do fabuloso lobo que carregava nos braços. Ivarr erguera o animal acima da cabeça e exibira-o diante daqueles que um dia o aclamariam rei. Depois, as suas pernas perderam o sustento do corpo e ele tombou pesadamente, sem sentidos, com o rosto magro e pálido encostado ao focinho da divinal criatura.

Eu julgara que o Lobo Cinzento, cuja pele cobria as costas do meu pai, era a fera mais bela que caminhara em cima da Terra. Nesse dia, fui forçada a mudar de opinião. O lobo de Ivarr era igualmente possante, mas tinha o pêlo branco como a neve, tão comprido que poderia esconder facilmente a mão de um adulto. E não era apenas a sua beleza que o distinguia. O poder irradiado pelo espírito selvagem, que o príncipe assimilara, não conhecia rival. Porém, só mais tarde eu compreenderia o seu significado.

Na Ilha dos Sonhos, as provas tinham começado há poucos anos, após a conclusão do ginásio. Até então, os pais preferiam viajar com os seus filhos e submetê-los à iniciação nas Terras do Norte. Contudo, quer em solo nórdico, quer na Ilha dos Sonhos, os espíritos pareciam adormecidos. Os rapazes regressavam vitoriosos das provas, mas a aliança entre o Homem e a Besta não se concretizava. Algumas vozes, envenenadas pela inveja e pela cobiça, atreviam-se a sussurrar que a paz conquistada pelo jarl estava a enfraquecer o seu povo e que, progressivamente, o conduziria à ruína e à submissão ante os seus inimigos.

O filho varão do primo Krum provara o contrário. Na Ilha dos Sonhos, Eric fora o primeiro guerreiro a defrontar e vencer um grande lobo. No ano seguinte, Ragnar, o filho mais jovem de Sven, repetira a proeza. E, quando as línguas viperinas teimavam que a mistura mística só surgia com sangue viquingue, o meu primo Bryan, primogênito do tio Stefan, saíra vitorioso da floresta, carregando o belo animal que completaria a sua alma.

Os homens da casa regressaram com alguns chefes de clã, Viquingues e Aliados, mas não os que eu ansiava ver. Percebendo minha frustração, meu pai segredou-me que fora informado de que, tanto o rei Steinarr como tio Stefan, chegariam pela manhã. De «O Que Tudo Vê» nada se sabia. Se não voltasse a tempo de assistir às provas de iniciação, os nossos jovens ficariam bastante decepcionados!

Aos poucos, os convidados encheram o salão. Entre muitos, encontravam-se os guerreiros-lobo do meu pai com as suas mulheres e filhos, o tio Bjorn e a esposa Dalla, com as suas duas promessas de guerreiro, rechonchudos como a mãe e irrequietos como o pai, e os primos Quinn, Kyle, Rice e Darrin. Thora, amiga inseparável de Quinn, deixou-nos de imediato para se unir aos rapazes. Divertida, eu ouvi-os discutir qual seria a melhor estratégia para atrair uma fera, durante a Caçada. Thora estava convicta de que Quinn seria abençoado pelos deuses, o que alimentava ainda mais o entusiasmo do primo. Durante o jantar falou-se da situação política e dos movimentos cada vez mais agressivos dos Vândalos ao redor das fronteiras viquingues. Havia novidades inquietantes: Bror, o rei inimigo, morrera. Vestein, o seu primogênito, assumira a liderança com acirrada contestação do irmão, Siguror, um homem afeito a guerra e famoso pela sua crueldade, que acusava o mais velho de pulso fraco e falta de ambição.

— Com um pouco de sorte, talvez se matem um ao outro! — exclamou Sven, provocando a gargalhada geral.

— De pouco serviria — fez notar o jarl. — Vestein tem muitos herdeiros para lhe suceder.

Enquanto a conversa prosseguia, eu vi que minha mãe se ressentira do comentário inocente do marido. Ela nunca se perdoara por não ter gerado filhos varões.

— O Siguror não tem do que se queixar! — desdenhava Durin. — O pai não lhe entregou o trono, mas deixou-lhe uma mulher para lhe aquecer a cama...

Desta vez, foi o senhor da casa que se apressou a mudar de assunto, antes que o nome de Halldora fosse pronunciado. Não lhe era aprazível recordar que a sua perversa prima tudo fizera para separá-lo da minha mãe, inclusive, conspirar a sua morte. Nem que Arnorr, irmão mais velho de Halldora e seu inimigo declarado, a entregara a Bror para consolidar uma aliança que já causara demasiadas desgraças ao nosso povo. No fim, Halldora não se conformara em ser apenas uma entre as muitas esposas de um homem avançado na idade, ainda que rei, e não tardara a desenvolver um entusiasmo pelo filho mais novo do marido que, segundo se dizia, era intensamente correspondido.

— Ainda não conseguimos fazer nada do maldito cavalo! — respondeu o tio Bjorn à pergunta do irmão. — Parece que está possuído por maus espíritos! Hoje, o Arnald quase partiu o pescoço ao tentar montá-lo...

Bravo fora o nome escolhido para o garanhão preto que viera das terras quentes do Sul. O meu pai esperara domesticá-lo até à chegada do rei, para oferecê-lo, mas tal afigurava-se impossível. Nem os seus melhores cavaleiros haviam dobrado a vontade do magnífico animal! Bravo continuava tão selvagem como quando pisara pela primeira vez a Ilha dos Sonhos.

— Eu posso domar o cavalo, pai! — a voz exaltada de Thora sobressaiu das demais. — Deixa-me tentar!

— É verdade! — apoiou Quinn sem hesitação. — Eu já disse ao Bjorn...

— E eu já te respondi, fedelho! — interrompeu o meu tio, disfarçando um sorriso. — Isso é um trabalho para homens, não para crianças!

— Mas tio... — insistiu Thora.

— O teu tio tem razão! — a voz do nosso pai ergueu-se, num tom que não admitia protesto. — Eu conheço bem a tua habilidade, filha! Contudo, desta vez, é muito perigoso...

— Pai...

— Chega, Thora! — cortou o jarl mansamente, mas com uma frieza que indiciava perigo. — Que fique claro que eu não quero te ver perto desse cavalo!

Thora amuou, como sempre fazia quando era contrariada. Todavia, não se atreveu a replicar. E, nessa noite, ninguém voltou a mencionar o cavalo Bravo.

Depois do jantar, enquanto as mulheres limpavam os despojos da refeição, os homens mantiveram-se à mesa conversando animadamente. Um dos chefes viquingues surpreendeu-nos ao anunciar que o príncipe Magnor, filho mais novo de Steinarr, pedira ao rei para participar na Caçada da Ilha dos Sonhos. Mais do que admirado, o meu pai pareceu-me apreensivo. O olhar que trocou com a minha mãe também não me passou despercebido.

Pouco depois, Freya interpelou-me ansiosamente:

— Eu ouvi bem, Edwina? O príncipe Magnor virá competir no Festival de Verão?

O rubor das suas faces denunciava a força com que o seu coração batia. Tentei responder-lhe sem atiçar-lhe ainda mais o entusiasmo. O irmão de Ivarr só estivera na nossa ilha uma vez, havia dois anos, mas, desde então, Freya sonhava que seria escolhida para desposá-lo. Como mulher, eu entendia as suas razões. Magnor era um jovem bonito, alto e moreno como o irmão. Porém, havia algo nele que me arrepiava; uma reação instintiva e inexplicável... E acabara de descobrir que os meus pais sentiam o mesmo.

— Freya está apaixonada! — troçou Svana baixinho, para que só nós a ouvíssemos. Porém, a minha irmã ficou tão exasperada que retrucou:

— Se não se calar já, contarei ao primo Bryan que você gosta dele!

Levei a mão aos lábios para esconder o riso, mastigando uma pontinha de tristeza por não ter desfrutado desta idade de fantasias e despreocupações, em que todos os sonhos estavam ao alcance das mãos. O treino da Arte assim o determinara!

Voltei minha atenção para Thora, perfeitamente integrada no grupo dos rapazes. Eles também falavam do príncipe Magnor. Alguns dos candidatos à iniciação declaravam-se irritados com o anúncio de um adversário tão poderoso, mas Quinn encolhia os ombros. Que viesse Magnor; que viessem todos os exércitos da Aliança! A decisão dos deuses já fora tomada!

Thora aproveitou para confessar a sua frustração. Há muito que acalentava a esperança de que o nosso pai a deixasse participar nestas provas. Todavia, o jarl não se mostrava receptivo à idéia. Os rapazes, sem exceção, asseveravam a injustiça dessa decisão. As opiniões soaram tão ardentes e sinceras, que me surpreenderam. Era como se aquele pequeno grupo, que se mantinha unido desde o berço, se visse subitamente privado do seu melhor guerreiro. Ainda que de formas distintas, parecia que as minhas irmãs estavam decididas a contrariar os pais.

Mais tarde, busquei a companhia da minha mãe e da tia Ingrior. Para variar, falavam de Magnor! Há um ano, o jovem príncipe submetera-se ao duro teste de iniciação na sua terra. No entanto, apesar de ter vencido distintamente todas as provas, saíra da Floresta dos Carvalhos com as mãos vazias de orgulho. Este ano, desejava tentar a sorte na Ilha dos Sonhos. Até aí, tudo bem! Contudo, Catelyn e Ingrior tinham uma teoria preocupante: com este pedido, Magnor não pretendia apenas limpar a sua honra; queria distinguir-se de Ivarr, desbravar caminho para uma futura conquista, já que, como segundo filho do rei, o trono viquingue se encontrava fora do seu alcance.

— Não sei o que pensar... — continuou a minha mãe. — O Steinarr é um homem nobre, um líder valoroso... E o Ivarr é genuíno como o pai. Desde o dia em que conheci aquele garoto, que o estimo e admiro. Mas o Magnor... Há qualquer coisa no seu olhar... — Hesitou. — É frio como o aço, sem expressão nem sentimento! Faz-me recordar o olhar de Goldheart...

Estas palavras causaram-me um calafrio. O Conde de Goldheart fora o senhor da guerra responsável pela desgraça da casa do meu avô Garrick McGraw, e só não matara a minha mãe porque o meu pai a salvara no último instante. A resposta da tia Ingrior não se fez esperar:

— O fato de ter crescido sem mãe prejudicou o seu caráter. E a preferência do Steinarr pelo Ivarr também não ajudou! Se eles não se acautelarem, o Magnor vai causar-lhes problemas...

Bastante assustada com o rumo da conversa, forcei-me a balbuciar, apesar de incomodada por trair o segredo da minha irmã:

— A Freya gosta dele...

A minha mãe nem me deixou terminar:

— Eu já percebi! E tenho feito o possível para desviá-la desse caminho. Agora, peço-vos ajuda, principalmente a ti, filha. Consulta a Lágrima do Sol! Posso estar enganada... Talvez o Magnor seja apenas um rapaz inseguro, que procura aprovação e carinho. Porém, se assim não for, temos de proteger a nossa Freya... e a estabilidade desta terra.

O cristal transparente, que irradiava todas as cores imagináveis, flutuava diante dos meus olhos, suspenso da minha vontade. A sua superfície redonda, menor do que o punho de um homem, estava coberta de faces minúsculas, que conduziam a mundos dentro de mundos, realidades por descobrir, jogos mentais por superar, visões confusas do que podia ser o passado, o presente ou o futuro da minha gente, de outros povos, ou ainda das próprias estrelas.

Nessa noite, na privacidade do meu quarto, eu não me limitava a mergulhar no desconhecido e a esperar que a magia se manifestasse. Nessa noite, eu buscava algo concreto, a fim de satisfazer a solicitação da minha mãe e acalmar os nossos temores. Porém, como tantas vezes sucedia, a Lágrima do Sol desdenhava da minha insistência e recusava-se a responder-me. Irritada, guardei o cristal dentro do bolso da camisa de dormir, deitei-me e cobri a cabeça com a manta.

Despertei assustada, muito antes do dia nascer, com a sensação de ter ouvido a porta bater. Forcei-me a acalmar. Alguns amigos do jarl desfrutavam da sua hospitalidade e, provavelmente, um deles saíra para apreciar a brisa noturna... Ou talvez Aled tivesse resolvido ir ao estábulo. Não era a primeira vez que o meu primo se levantava da cama para verificar se os animais se encontravam bem. Apesar de ser habilidoso na arte da guerra, ele descobrira que a sua verdadeira vocação era cuidar da terra. Os homens da família tinham respeitado a sua decisão e, hoje, o meu pai não hesitava em entregar-lhe a administração da fazenda quando se ausentava. Se Aled manifestasse o desejo de desposar uma das minhas irmãs, seria, incontestavelmente, o herdeiro do jarl. Contudo, até ao momento, o meu primo mostrara-se mais interessado nas hortaliças, nos cereais e no gado, do que em namoricos.

Tornei a puxar a manta sobre a cabeça. Se despertasse, passaria o resto da noite torturada por recordações. Sentia saudades de Edwin... Era como se, no dia em que o deixara para trás, uma parte de mim se tivesse perdido. Tinham sido onze anos de partilha... onze anos de companheirismo... destroçados num único instante.

Durante algum tempo, flutuei numa dormência incômoda, incapaz de diferençar se estava acordada ou dormindo. Tinha a percepção do que me rodeava: a cortina fechada, as sombras projetadas pelo fogo da lareira nas vigas do telhado, a brisa suave que se esgueirava por entre as tábuas da parede, a mão que deslizava pelos meus caracóis, afastando-os para me descobrir o rosto... Sobressaltei-me ao sentir a presença de alguém no quarto. Lutei para mover-me, mas em vão. Estaria sonhando? Seria possível sonhar que se estava acordado; querer esboçar um gesto e o corpo desobedecer? Os misteriosos dedos teimavam em entrelaçar-se nos meus cabelos, acariciando-os suavemente... Desisti de lutar com a mente e entreguei-me à sensação de conforto que me aquecia o sangue. Pela primeira vez em muito tempo, consegui repousar em paz.

 

A trompa que nos avisava da aproximação de barcos vibrou com um toque inconfundível: a saudação ao rei viquingue!

Saltei da cama, espantada por verificar que dormira muito além do que era habitual. Vesti-me sem delonga, lavei o rosto e corri para o porto. No ancoradouro, tive de abrir caminho por entre a multidão para chegar à frente. A minha mãe estendeu-me a mão e sorriu ao observar como os meus olhos brilhavam diante do majestoso Knarr do rei Steinarr. E as boas surpresas prosseguiram! Entre os outros navios que se preparavam para aportar, encontrava-se o de tio Stefan. Do seu interior, os meus primos acenavam e gritavam. E tio Edwin estava com eles.

Como administrador do Império na Grande Ilha, marido devoto e pai extremoso de oito filhos, pouco tempo sobrava a tio Stefan para descansar e divertir-se. Porém, as suas visitas ficavam assinaladas pela boa disposição e, este ano, o Festival de Verão seria celebrado com redobrado júbilo, já que o seu segundo varão estava prestes a tornar-se homem.

A comunidade observava com carinho a reunião da nossa numerosa família. Bryan foi o primeiro a saltar do barco e a abraçar Aled, festejando o reencontro. Seguiu-se tio Stefan, que trazia ao colo Ive, o mais novo da sua prole. Assim que viu o primo, Lyonnete, a pequenina do tio Berchan, começou a debater-se nos braços do pai, ansiosa por brincar com o seu melhor amigo. Entretanto, a tia Enya ajudava a rabugenta Gwenneth a descer e mal conseguia cumprimentar a minha mãe, pois a pequenina não lhe largava a saia, choramingando amedrontada com o rebuliço. Melvin, que já crescera o suficiente para saltar para o ancoradouro sem ajuda, zombava descaradamente de Melody, a gêmea de Quinn, que tropeçara na bainha do vestido. Se Aled não a amparasse, a jovem teria caído ao mar. As suas faces transformaram-se em brasas, furiosa com o irmão, embaraçada com o acidente e envergonhada por estar nos braços do primo. Sem se aperceber do seu constrangimento, Aled tentou acalmá-la, falando-lhe ao ouvido, afagando-lhe os cabelos e sorrindo com meiguice. Só a soltou quando Quinn surgiu para abraçá-la, ralhando com os gêmeos mais novos, Kyle e Rice, que se divertiam a puxar as tranças da irmã.

Por entre esta confusão de filhos e sobrinhos, tio Stefan e tia Enya estreitaram-me contra o peito e não se cansaram de me tecer elogios, maravilhando-se com o muito que eu crescera nos últimos meses. Quando se afastaram, surpreendi-me diante de tio Edwin e comecei a tremer. Senti-me tão ridícula, que denunciei o meu incômodo. Ele torceu um sorriso e estendeu a mão para tocar-me na face, dizendo:

— Está cada dia mais parecida com o teu pai, Edwina! É um prazer rever-te!

Quem diria? A sua carícia rápida nada teve a ver com o abraço apertado com que premiou Freya, rodopiando-a no ar e cobrindo-a de beijos e elogios. Senti-me desprezada e triste, ao recordar o dia em que ele me mimara assim, e declarara que eu era a sua sobrinha favorita. Mas o passado era inalterável, por isso engoli a mágoa e voltei-me para cumprimentar tia Geirny.

A idade começava a plantar fios brancos na volumosa cabeleira da princesa viquingue. Não me era difícil recordar que ela era irmã de Steinarr, pois possuíam a mesma constituição robusta. Reparei que olhava por cima do meu ombro, buscando Thora na multidão. Até se apaixonar por Edwin, Geirny fora uma guerreira e lutara ao lado dos homens da sua família em muitas batalhas. Por essa razão, partilhava com Thora um entendimento especial. E a minha irmã amava as histórias da princesa, que era a sua tia preferida.

Onde é que Thora se enfiara? Como a minha irmã buscava sempre a companhia dos primos, eu raramente notava a sua ausência ao nosso lado. Fui invadida por um desconforto instintivo, uma visão inconsciente que me trouxe a recordação do gemido de uma porta que se fechava. Fora Thora quem eu ouvira a escapulir-se de casa, a meio da noite... O que andaria a tresloucada da minha irmã a tramar?

Enquanto a procurava, o meu olhar foi irresistivelmente atraído para a jovem que acabara de pisar o ancoradouro. Quando a gêmea de Darrin aparecia, ninguém lhe ficava indiferente. Estrid certificava-se disso! Apesar de ser mais nova do que Melody e as minhas irmãs, nada tinha em comum com as primas. Vestia-se como uma mulher adulta, usava jóias deslumbrantes, e o cabelo louro-escuro muito comprido e armado como o das damas da corte. Os seus olhos verdes piscavam incessantemente, enquanto se queixava do cansaço e do calor. E os rapazes guerreavam para lhe oferecer o seu auxílio.

Trygve observava o alvoroço com um sorriso trocista. Trocamos um olhar significativo e a sua cabeça abanou, em reprovação. Trygve e Estrid eram como um cão e um gato. Ele desdenhava da sua futilidade; ela desprezava abertamente a sua preferência pelos estudos, em detrimento das artes da guerra. Para a minha prima, um homem só era digno de respeito quando empunhava uma arma com mestria. E eu sabia muito bem quem era o alvo do seu entusiasmo!

O Knarr do rei viquingue preparava-se para aportar. Na proa, Ivarr respondia aos apelos dos amigos. Apesar de não ser tão corpulento como o seu pai, o príncipe era alto e senhor de um tronco musculoso e perfeito, com cintura marcada e pernas robustas. O seu cabelo era comprido e escuro como o de Steinarr, mas usava-o atado atrás da cabeça com uma fita de pele. A barba curta, que lhe rodeava os lábios e o queixo, conferia-lhe um aspecto irreverente. Contudo, o que mais impressionava as mulheres eram os olhos, verdes cristalinos, quase transparentes, que pareciam capazes de descortinar o mais secreto dos pensamentos.

Sempre que encarava o meu prometido, eu ficava da cor do fogo e acabava por baixar os olhos. Porém, desta vez, mantive-me firme e correspondi ao seu sorriso. O vento desmanchara-lhe os cabelos, que esvoaçavam em redor do rosto corado pelo Sol. Desafiando o ar, Lança, o mais jovem dos fieis falcões reais, símbolo da família há gerações, soltou um longo e estridente grito, preparando-se para explorar o céu da Ilha dos Sonhos em busca de comida. Ao meu lado, Estrid berrava para chamar a atenção do primo. Porém, só depois do pai e do resto da comitiva deixar o Knarr, é que Ivarr os seguiu. Atrás dele, como uma sombra, surgiu Magnor, destruindo as minhas esperanças de que tivesse mudado de idéias e permanecido nas Terras do Norte.

Eric juntou-se a nós e tomou a mãe nos braços. Svana saltou para o pescoço do irmão com um grito extasiado. Aguardei pelo abraço do meu querido primo e os seus galanteios não tardaram. Eric podia não ser tão envolvente como Ivarr, mas também era um belo homem!

Estava tão distraída, que perdi a força nas pernas ao ver-me diante de Ivarr. O contato quente dos seus lábios em minhas mãos arrepiou-me. Corei violentamente debaixo do olhar cristalino, enquanto ele sussurrava:

— Cada dia que passa está mais bonita, Edwina!

— Ivarr! — Estrid interpôs-se entre nós e beijou o primo no rosto, sem o mínimo decoro. Senti-me afrontada e trespassada pela vontade de esbofetear a pequena insolente. Todavia, a brusca oscilação no equilíbrio da energia que nos rodeava forçou-me a olhar para a entrada do porto.

Um burburinho de profundo assombro apossou-se do ar, enquanto Thora fazia uma estrondosa aparição, montada num magnífico garanhão preto que ninguém teve dificuldade em reconhecer. Porém, ao contrário do que seria esperado, Bravo mostrava-se tão obediente e manso como um pônei.

A voz excitada da minha irmã sobrepôs-se a todas as outras:

— Papai... Tio... Olhem para mim! Consegui!

Desmontou e deixou-se cair nos braços de tio Edwin, delirante de felicidade. Ainda não me recuperara do pasmo quando o meu pai trovejou:

— Thora, não a proibi de se aproximar desse cavalo?

— Apostaram que eu não seria capaz de domá-lo — replicou ela, orgulhosamente. — Ora, aqui está!

— Thora... — tornou o nosso pai, num tom que aprendêramos a respeitar. — Sven está à procura desse cavalo desde cedo.

— Então, não procurou bem! — respondeu a filha ardorosamente. — Caso o Sven não saiba, nós estamos numa ilha. O Bravo não podia ter voado...

— Chega! — cortou o jarl, vermelho de fúria. — Vai já para casa e não saia do teu quarto sem que eu te autorize! Bjorn, leva o cavalo...

Porém, tio Bjorn não conseguiu aproximar-se do garanhão, nem Sven, nem nenhum dos adultos presentes. Tanta comoção assustara Bravo, que se tornara perigoso. Relinchava em pânico e empinava-se sobre as patas traseiras, ameaçando a multidão e arriscando-se a cair no mar. Eu nem queria pensar se, por um terrível azar, alguém ficasse ferido... ou pior, devido à irreflexão da minha irmã.

— Pai! — apelou Thora aflita. — Deixe-me levá-lo para a cavalariça! Ele não tem medo de mim!

— Mantenha-se longe, Thora! — ordenou o senhor da ilha, enquanto unia os seus esforços aos dos restantes homens, para capturar Bravo com um laço improvisado.

De súbito, vindo do meu lado, um assobio suave e melódico acariciou o ar. O cavalo empinou-se mais uma vez. O assobio repetiu-se e teve o efeito desejado. O garanhão resfolegou nervosamente, mas não tornou a empinar. O povo afastou-se para deixar passar o herdeiro do trono viquingue. Falando baixo, palavras incompreensíveis para a maioria dos humanos, Ivarr aproximou-se de Bravo e segurou-lhe a cabeça, alisou-lhe a crina, o lombo... Só quando o verificou que estava calmo é que agarrou as rédeas, diante da perplexidade da assistência. A sua habilidade inata para dominar os animais nunca cessava de impressionar-nos.

— Throst — começou com convicção —, se não se importa, levarei esta beleza para casa.

O jarl assentiu, aliviado por encerrar o assunto sem maiores conseqüências. Surpreendi o olhar reprovador que o meu prometido dirigia a Thora e o esgar de desafio que ela lhe devolvia, quando se cruzaram, quais rivais demarcando território. Temi que este incidente prejudicasse o futuro da minha irmã, além do castigo que o nosso pai lhe reservava.

 

Reunir toda a família à mesa era um contentamento que raramente experimentávamos. A minha volta, cada vida tinha a sua própria história e cada olhar escondia mil pensamentos e segredos. Por trás de um sorriso, uma alegria... e uma inquietação. «O Que Tudo Vê» ensinara-me que as festas eram os acontecimentos ideais para se desenvolver e testar a nossa capacidade de observação. E, ao longo dos anos, eu aprendera a fazê-lo com uma precisão satisfatória.

As senhoras comentavam as novidades do País dos Viquingues e os mexericos que circulavam na corte do Império e na Grande Ilha. Os homens faziam planos para o futuro: o rei do Império estava satisfeito com a administração dos McGraw; nas Terras do Norte, a morte de Bror e a subida de Vestein ao trono forçariam os Vândalos a aquietarem-se durante algum tempo; na Ilha dos Sonhos, a economia prosperava... Estavam criadas condições que profetizavam um período de relativa estabilidade, que proporcionaria aos nossos guerreiros um merecido descanso, e lhes permitiria desfrutar da companhia das suas famílias e amigos. Eu escutava-os com orgulho, sentindo-me privilegiada por possuir uma mistura de sangue tão nobre. Os chefes da minha família não eram apenas líderes incontestados, respeitados e amados pelo nosso povo; eram também homens de honra, verdadeiros heróis, capazes de dar a vida por aquilo em que acreditavam.

Throst e Catelyn eram os anfitriões perfeitos, atendendo para que nada faltasse aos seus convidados. No entanto, uma parte deles encontrava-se mergulhada numa realidade privada, longe da compreensão da maioria. Nunca se afastavam, e todos os pretextos serviam para uma troca de carinhos, um beijo apaixonado e uma confissão arrebatada. Espiritualmente estavam ligados como uma só entidade, e eu acreditava que nem a morte podia separá-los. Nos meus momentos de fraqueza, almejava um amor assim. Porém, a razão avisava-me que tal nunca passaria de um sonho. A paixão dos meus pais era tão forte, que a energia chispava no ar sempre que se fixavam. Ivarr jamais me olharia como se a sua vida fosse terminar se não estivesse ao meu lado! Ainda agora absorvia-se numa discussão acerca de qual seria o primeiro passo do novo rei vândalo, completamente esquecido da minha existência. Desgostosa, pensei que seria muito mais fácil viver o amor junto de um homem que tivesse os mesmos interesses que eu... Talvez, um homem como o meu primo Trygve!

Esta divagação fez-me rir sem querer, de tão disparatada. Procurei Trygve e encontrei-o junto do Mestre Druida e da sua comitiva, que haviam chegado ao início da tarde para desfrutarem da hospitalidade do meu pai, do convívio com «O Que Tudo Vê», e para assistirem às provas de iniciação dos nossos jovens. Contudo, neste Verão, a ausência de Hakon trazia a decepção a todos os rostos. O rei Steinarr informara-nos que ele deixara a Montanha Sagrada e seguira para Norte, rumo aos domínios da rainha Lyria. Eu pouco sabia desta amiga e aliada do meu bisavô, a não ser que era uma das soberanas do Povo da Terra e que os Homens de bom-senso evitavam o seu território. A magia da Gente Bela, assim chamada pela sua extraordinária elegância e formosura, era uma perigosa mistura de Arte Luminosa e Arte Obscura, que resultava em desagradáveis surpresas para os intrusos. Era, igualmente, a mais poderosa magia curativa da Terra, o que levara a minha mãe a inquietar-se quanto à saúde do feiticeiro ancião que, com o passar dos anos, se tornava muito precária.

O tio Berchan também se encontrava no grupo dos sábios, mas era em Trygve que a atenção do Mestre Druida se concentrava, como se lhe bebesse as palavras, visivelmente impressionado pela sua inteligência. Talvez... demasiado impressionado! Fui acometida pela desconfiança de que os druidas tinham planos para o meu primo. Tencionariam convencê-lo a reunir-se a eles nas escarpas da Ilha dos Penhascos? Não podia ser! Nós éramos companheiros... Ele sabia que eu contava com o seu apoio e orientação, mesmo após o meu casamento! Não, Trygve jamais aceitaria deixar-me!

O guincho de Estrid atraiu a minha atenção. A moça tapara os lábios e arregalava os olhos, impressionada com algo que Magnor dissera. Ao seu lado, Freya fixava-a com um sorriso condescendente. De entre tantos primos e primas, só a minha irmã mais nova tinha paciência para aturar as tolices da moça sonhadora. Ao contrário de Darrin, que fora criado conosco e se tornara um jovem de valor, com objetivos definidos para o futuro, a sua gêmea crescera na Grande Ilha, com os olhos postos na corte, e a ambição de caçar um marido rico e fazer da vida uma festa ininterrupta, onde ela cintilaria como uma estrela.

Deleitado com a solicitude feminina, Magnor abanava a cabeça, exibindo com ridículo aparato a sua longa trança preta, enfeitada com fios de prata, falando alto e gesticulando excessivamente, enquanto se gabava de façanhas que fariam os deuses corarem de inveja. Para mim, tamanha presunção só podia resultar de muita insegurança e alguma mágoa! Tal como o irmão mais velho, Magnor perdera a mãe quando mal sabia andar. Porém, ao contrário do que sucedera com Ivarr, Steinarr estivera tão ocupado com a sorte do seu povo que não pudera dispensar a Magnor a atenção de que ele carecia. E isso refletia-se na sua personalidade, irritadiça e desconfiada. Todas as suas palavras, o gesto mais simples, denunciavam uma incessante competição com os demais. Não se cansava de exaltar a sua força e perícia, avisando os rivais de que o domínio da floresta lhe pertenceria, durante a Caçada. Assim que a noite mágica descesse sobre a Terra, enterraria o punhal no coração de uma fera e seria reconhecido como o melhor guerreiro de sempre! De certa forma, senti-me satisfeita por Thora estar no seu quarto, de castigo, pois, certamente, teria cuspido gargalhadas na cara do emproado jovem, que desencadeariam um constrangimento familiar.

O olhar de Steinarr também se cravara no filho mais novo, transbordando censura. Tanto o rei como o seu primogênito não necessitavam de proclamar as suas proezas. A energia emanada pela sua essência fazia com que qualquer pessoa se inclinasse em reverência. Mas, Magnor... Convenci-me de que Steinarr já o advertira de que a vaidade e a mentira não o favoreciam. Porém, era óbvio que tais recomendações haviam sido vãs.

Não obstante toda a sua nobreza, Steinarr era um homem estranho. Após a morte de Bera, a sua segunda esposa, não tornara a casar. Certa vez, eu escutara uma conversa entre o tio Berchan e a minha mãe, em que ele a aconselhava a manter-se afastada do rei viquingue. Ela respondera-lhe que Steinarr era um homem honesto e sincero, que não lhes queria mal. Eu não demorara a perceber que o rei estava apaixonado pela senhora da Ilha dos Sonhos. Aceitá-lo é que não fora fácil!

Mas o tempo revelara-me que não se tratava de uma paixão leviana, impetuosa, carnal... Steinarr amava a esposa do seu melhor amigo com tal intensidade, que as lágrimas quase o venciam de cada vez que o casal trocava um carinho. Todavia, não havia raiva no olhar cristalino... Apenas uma infinita tristeza! A sua lealdade para com o meu pai forçava-o a negar a tentação e, de certa forma, compensava-o pelo vazio que lhe magoava o peito.

Bem à minha frente, os olhos de Melody encontraram os de Aled e ambos se detiveram como que fulminados. Depois, o meu primo esboçou um sorriso tão quente que libertou vapor, enquanto as faces da jovem se transformavam num braseiro. Se eu estendesse a mão, conseguiria agarrar a energia que pairava em redor dos dois. Pensei que acabara de ver cair na terra uma semente que, em breve, se transformaria numa árvore majestosa. Melody era quatro anos mais nova do que o primo e entrara na idade de ser cortejada. A esperança que o meu pai guardava de ver Aled casado com uma das suas gêmeas acabara de ser frustrada.

Desviei o rosto, para que a minha observação não os incomodasse e, inadvertidamente, surpreendi o olhar do tio Edwin, alheado do que o rodeava, como se estivesse a ver para além de nós. O que ocupava o seu pensamento era fácil de adivinhar! Fui invadida pelo desejo de me aproximar e confortá-lo, mas sabia que a minha iniciativa não seria bem recebida. Se, em tempos, o meu tio me amara como sua filha, e acalentara a esperança de que a minha Visão resolveria o seu dramático problema, após a malograda campanha às Terras do Fogo eu transformara-me na incômoda recordação do seu fracasso, na memória sempre presente do seu filho perdido, no punhal que rasgava a ferida que ele tentava desesperadamente sarar.

Os nossos homens tinham regressado das Terras do Fogo com as mãos vazias, o espírito assombrado pela lembrança do que ficara para trás, e o corpo destroçado por uma misteriosa e terrível doença, que nem «O Que Tudo Vê» conseguira contrariar. Durante a viagem, haviam sido forçados a lançar ao mar quinze companheiros de armas. Ormarr, um dos guerreiros-lobo do meu pai, morrera pouco depois de chegar em casa, numa agonia galopante. Junto dele, cremamos mais sete amigos. Nenhum dos meus familiares foi afetado, supostamente protegidos pela magia do nosso sangue, mas o tio Edwin não voltara a ser o mesmo. De cabeça perdida, declarara-me culpada por toda aquela desgraça e afirmara que jamais tornaria a confiar no meu julgamento. A sua indignação incendiara-se ao verificar que eu não me defendia, desprovido da sensibilidade para enxergar que me encontrava prisioneira da mentira imposta por «O Que Tudo Vê». Se o meu pai não se insurgisse, nem imagino as conseqüências do seu desabafo!

A partir desse dia, nada fora igual. A dor alimentara a sua mágoa e o meu ressentimento. Eu sabia que, apesar de não ter alento para demonstrá-lo, Edwin McGraw ainda me estimava. Porém, não me esquecia das suas palavras duras e rancorosas, cuspidas na cara de uma criança atormentada pela admoestação de que a simples tentativa de repor a verdade condenaria aqueles que amava; pela consciência de que a sobrevivência da família resultara na traição e no abandono de um grande amigo... de uma parte da sua alma.

Rasgando a turbulência de sentimentos que me fustigavam, um soluço angustiado chegou-me aos ouvidos com uma clareza desmedida. Por um instante, vislumbrei Thora deitada na cama, enrolada sobre si própria, de olhos fechados, com a almofada ensopada em lágrimas. Apesar da sua irreverência, a minha irmã era a alegria desta casa e o seu sorriso vivia nos nossos corações. Eu nunca a vira tão triste, tão desencantada. O sonho de demonstrar o seu valor, competindo nas provas de iniciação, estava prestes a desvanecer-se. E, após esta oportunidade perdida, teria quinze anos e não tardaria a ser confrontada com um pretendente indesejado. O meu instinto impelia-me a ajudá-la. Só não sabia como...

— Posso perguntar-te no que é que estás a pensar?

A voz de Ivarr sobressaltou-me. A minha boca secou e o coração caiu no vazio. Forcei-me a encará-lo, respondendo com a firmeza possível:

— Pensava em Thora...

— Ah! A ladra de cavalariças! O Throst foi muito brando no castigo que lhe deu!

O meu embaraço sumiu como por encanto e a ira subiu-me até à garganta. Quando dei por mim, replicava asperamente:

— E o que queria que o meu pai fizesse? Que a espancasse?

A minha reação o fez recuar.

— Não me interprete erradamente, Edwina! Eu não quero o mal da tua irmã! Mas mantenho a opinião de que ela merecia um castigo mais severo. Desobedeceu o pai, envergonhou-o perante a comunidade e colocou em perigo quem estava no ancoradouro, além de ter arriscado a vida daquele excelente animal! E tudo por causa de uma aposta... de uma tolice!

— Não seja tão rápido a julgá-la — defendi, cada vez mais irritada. — Thora pode ser impulsiva, mas não é má! Além disso, está muito mais em causa do que uma simples aposta! Não está sendo justo, Ivarr!

Esta era a primeira vez que o enfrentava... Talvez porque nunca estivéramos juntos o tempo necessário para trocarmos opiniões! Os seus olhos faiscaram e temi tê-lo enfurecido. Mesmo assim, não fraquejei. Jamais passaria o resto da vida ao lado de um homem que ditasse sentenças sem escutar a verdade dos mais fracos, por mais bonito e poderoso que ele fosse! Porém, tão rapidamente como se crispara, a expressão de Ivarr suavizou-se, revelando-me que, apesar de não gostar de ser contrariado, o príncipe era tolerante.

— A última coisa que pretendo é ser injusto, Edwina... — declarou de mansinho. — Acredite! Está fazendo muito barulho aqui... Vamos caminhar na praia. Quero que me conte o que te apoquenta.

Olhei para a mão que Ivarr me estendia, antes de condescender. Era forte e áspera; a mão de um homem de trabalho, de um guerreiro... linda! Ele sorriu levemente e apertou-me os dedos com cuidado.

— Ivarr... — O clamor de Estrid sobressaltou-nos. — Vem contar-nos como derrotastou o lobo branco! Os rapazes precisam dos teus conselhos...

— Agora não! — replicou o príncipe com firmeza, determinado a seguir os seus planos. — Talvez mais tarde...

— Por favor, Ivarr!

— Pára de aborrecer o casal, Estrid! — intrometeu-se Trygve, que passava por nós nesse instante.

— Você é mesmo um parvo! — revidou a jovem, exasperada. — Em vez de lutar pela mulher que ama, entrega-a de mão beijada...

— Isto é demais! — cortou o meu primo, indignado. — Estou farto da tua impertinência, menina!

— Eu não sou uma menina! Sou uma mulher! E sei perfeitamente o que quero, ao contrário de alguns imbecis...

Estrid ficou a praguejar sozinha. Trygve voltou-lhe as costas e Ivarr arrastou-me para fora de casa, sem me permitir reagir. Logo, a brisa fresca da noite açoitava-me o rosto corado. Não sabia o que me perturbava mais, se a vontade de torcer o pescoço da nossa prima, se a carícia dos dedos do meu prometido. Percebendo-me nervosa, ele retorquiu:

— A Estrid é apenas uma pirralha mimada, que gosta de dar na vista e provocar confusões Não deixes que as suas tolices te irritem! Agora, conta-me... O que se passou pela cabeça da tua irmã, para fazer tamanho disparate?

Respirei fundo, sem saber o que dizer. A verdade faria com que Ivarr pensasse que Thora era tão desvairada como Estrid e muito mais perigosa!

— Só quem conhece a Thora é que pode compreendê-la — respondi cautelosamente. — Ela não é uma menina igual às outras!

— Eu sei! — volveu o príncipe como se já aguardasse por este argumento. — Lembro-me de que sempre preferiu a companhia e as brincadeiras dos rapazes. Ultimamente, tenho andado afastado da tua vida familiar, mas presto atenção às conversas e sei que a tua irmã continua desejando tornar-se guerreira, muito por culpa da tia Geirny, que lhe alimenta a fantasia. Porém, isso não justifica o que fez!

— A Thora quis impressionar o jarl — desabafei, convencendo-me de que os rodeios eram inúteis. — Pretendia provar-lhe que pode ser bem sucedida, até onde os melhores guerreiros falham, para persuadi-lo a deixá-la participar nos rituais de iniciação.

— Então, escolheu muito mal a estratégia!

— Ela conseguiu montar um cavalo, no qual ninguém era capaz de assentar um dedo, não conseguiu?

Aguardei por outro corte implacável, mas, para minha surpresa, o sorriso de Ivarr espalhou-se pelo seu olhar ao aquiescer:

— Não há dúvidas de que conseguiu...

Estávamos prestes a chegar à praia. Aqui e ali, os aldeões reuniam-se e festejavam ruidosamente. Alguns passavam por nós, tocando flauta e dançando. Sem reconhecer o príncipe, uma moça atrevida atirou-se para os seus braços e arrastou-o num rodopio saltitante. Enquanto os amigos batiam palmas, um jovem pescador saudou-me com uma vênia e ofereceu-me a mão.

O céu do fim da tarde girou por cima da minha cabeça e eu entreguei-me à euforia desta liberdade pura. O riso brotava da minha garganta como água da nascente. Deslizei de par em par, até me aninhar nos braços do meu prometido. Já não me apetecia dançar, apesar de a música alegre nos envolver. Senti a respiração pesada de Ivarr e o calor do seu corpo a trespassar o meu. Nunca tínhamos estado tão próximos! O seu rosto deslizou pelos meus cabelos, e a sua voz soou enrouquecida ao murmurar:

— Minha Edwina... Eu sou o mais abençoado dos homens! Tu és tão linda, tão perfeita...

Se ele afrouxasse a intensidade do abraço, eu cairia na areia. Atrevi-me a deitar a cabeça no seu peito, estremecendo ao confessar:

— Julguei que não te agradava...

Ivarr buscou o meu olhar, inquirindo solenemente:

— Por que está tão insegura? Esperaria tantos anos por ti, se não te quisesse? Tu não és apenas a mais inteligente das mulheres... És também a mais especial! Às vezes penso que te provoco medo... Porquê? Fala sem receio!

Se não o confrontasse agora com as dúvidas que me atormentavam, nunca mais o faria. Engoli em seco, presa no seu olhar luminoso qual borboleta atraída pela luz de uma lanterna, tremendo tanto que ameaçava desmanchar-me.

— Nós raramente estamos juntos — justifiquei-me, num sopro de coragem. — E as pessoas falam... Dizem que tu tens muitas mulheres... e filhos...

Ivarr soltou uma exclamação imperceptível e desviou o olhar. A pausa que se seguiu foi tão longa, que temi tê-lo ofendido. Expressar os meus temores em voz alta tornara-os ridículos, até para o meu discernimento. Quando me preparava para arriscar um apelo, ele voltou a encarar-me.

— Apesar de me estares prometida desde o berço, achei que devia conceder-te tempo para cresceres e treinares a tua Arte, sem te preocupares com os meus desejos e anseios. Agora, parece-me óbvio que errei! Aos teus olhos, eu não passo de um estranho...

— Isso não é verdade! — objetei sufocada. — Eu conheço o teu coração...

— Mas acreditas que te escolhi para agradar aos nossos pais, e que esta espera não me atormenta. Estás enganada, Edwina! Eu gosto de ti! O meu corpo anseia pelo teu... E só a tua inocência te impede de sabê-lo!

Havia um calor na sua voz; um fogo no seu olhar que me era desconhecido. À nossa volta, a festa prosseguia. Um casal de foliões tentou separar-nos mas, desta vez, Ivarr não cedeu. Corremos pela praia de mãos dadas e afastamo-nos do rebuliço. Dir-se-ia ser mais difícil assegurar um pouco de privacidade, do que encontrar uma bolsa cheia de prata. Quando as sombras protetoras da floresta se estenderam para o mar, Ivarr puxou-me para o abrigo das árvores. Antes que eu pudesse recuperar o fôlego, o seu rosto desceu sobre o meu até os nossos lábios se encontrarem.

Pensei que o meu coração ia rebentar. Senti-me desfalecer, presa entre o tronco da árvore e o corpo poderoso do meu prometido. Após o primeiro impulso arrebatado, apercebendo-se de que eu não sabia o que fazer, Ivarr conteve o seu ardor e moveu os lábios suavemente, numa carícia que me deixou tonta, permitindo-me respirar, enlaçá-lo pelo pescoço e receber, sem receio, a pressão do seu corpo e a ternura inquieta do seu beijo. Esqueci tudo, até que ele afundou o rosto nos meus cabelos e perguntou emocionado:

— Já acreditas no meu afeto, querida? Há muito que desejava provar os teus lábios... Mas receava assustar-te! — Buscou o meu olhar, forçando um sorriso trêmulo. — Eu prometi ao teu pai que te respeitaria até ao casamento, por isso terás de ajudar-me a ter juízo...

Um novo fôlego, e estávamos outra vez a beijar-nos. Reuni coragem para corresponder com igual entusiasmo, até ouvi-lo arquejar e senti-lo estremecer. As minhas dúvidas haviam-se dissipado. Ivarr gostava de mim... E eu amava-o!

— Edwina... Querida... — Tomou o meu rosto entre as suas mãos. — Sobre aquilo que disseste... Se tudo o que as pessoas apregoam fosse verdade, eu não sairia da cama!

Toquei-lhe nos lábios para silenciá-lo, mas Ivarr teimou:

— Eu não quero que esse assunto volte a intrometer-se entre nós! Mentir-te-ia se dissesse que nunca dormi com uma mulher... Mas dou-te a minha palavra de que todos os meus filhos serão gerados no teu ventre, meu amor.

A sinceridade de Ivarr aquecia-me o coração. Jurei a mim própria que, após o nosso casamento, eu seria a mais apaixonada e dedicada das amantes, para que ele não sentisse a necessidade de procurar outro leito.

Regressamos à praia em silêncio, caminhando vagarosamente, de mãos dadas. A noite caíra e o povo acendia fogueiras. O grupo de jovens que passara por nós continuava a tocar, a cantar e a dançar. Lembrei-me de que falávamos acerca de Thora quando fôramos interrompidos. Recordei o rosto atormentado da minha querida irmã e as palavras tombaram-me dos lábios:

— O meu pai atenderia ao teu apelo, se intercedesses por Thora... Por favor, Ivarr, pede-lhe que a deixe participar nas provas de iniciação! Ela ficaria tão feliz!

O príncipe franziu o sobrolho, surpreendido e desgostoso, antes de argumentar:

— Devias demover a tua irmã dessa loucura e não apoiá-la! Após a iniciação virá o desejo de lutar a sério, e um campo de batalha não é lugar para uma mulher! Além disso, a Thora é muito pequena e franzina. Não possui a robustez de uma guerreira!

— A Thora está a crescer! — contestei. — E tu não conheces a sua força! Nunca a viste treinar...

— Eu não posso contrariar o teu pai num assunto tão delicado! E se a tua irmã se magoar?

— Terás de pedir-lhe que não magoe ninguém! — Quedei-me diante dele, pressionando-o com o meu olhar suplicante, sentindo que devia vencer esta batalha. — Garanto-te que a Thora é melhor do que qualquer um dos rapazes que se propõem à iniciação. Se não acreditas, submete-a a uma prova!

Ivarr hesitou. Eu sabia que ele ansiava por agradar-me, principalmente agora, que estávamos tão próximos. No entanto, também tinha consciência de que lhe pedia que avançasse contra as suas convicções. Estávamos a chegar à casa do jarl quando me respondeu:

— Vou pensar.

— Mas as provas começam amanhã! — protestei, frustrada.

— Eu já disse que vou pensar...

O apelo de Eric interrompeu-nos. Quase correu ao nosso encontro, indagando:

— Onde estivestes? Procurei-vos por toda a parte... — Deteve-se, ante o meu rosto incendiado e o olhar dardejante do amigo.

— Desculpem... Eu preciso de pedir-te um favor, Ivarr!

— Fala!

— A Thora, a irmã da Edwina, é muito habilidosa no manejo das armas...

— Mas o que é isto? — atalhou o príncipe, sorrindo levemente. — Uma conspiração?

Eric ergueu as sobrancelhas e eu apressei-me a justificar:

— Acabei de pedir ao Ivarr que falasse a favor da Thora, junto do meu pai.

Ao ouvir-me, a convicção do meu primo redobrou:

— Por favor, Ivarr! O Throst não me dará ouvidos. Mas tu sabes como persuadi-lo!

O príncipe respirou fundo, afastando do rosto os cabelos que se tinham libertado da fita, antes de fixá-lo com uma expressão grave.

— Como meu guerreiro-lobo... Como meu braço direito, diz-me: A moça é suficientemente boa?

— A Thora herdou o talento do pai — declarou o outro, sem hesitar. — Se duvidas, por que não a desafias? A rapaziada está a exibir-se no salão. É uma boa oportunidade para comprovares a sua destreza. Peço-te como teu amigo, Ivarr! Dá-lhe uma oportunidade! Não podes imaginar o quanto isto significa para ela.

E, então, Ivarr contrapôs de forma surpreendente:

— Se aprecias tanto a tua prima, não será mais prudente desposá-la do que encaminhá-la para um destino incerto e perigoso?

Tive a surpresa de ver Eric corar. Todavia, a sua determinação não esmoreceu:

— É verdade que sinto um carinho especial pela Thora. E, por isso mesmo, jamais destruirei os seus sonhos. Quero vê-la feliz... Quero ganhar o seu afeto, não tomá-lo à força!

Agora que Ivarr a revelara, eu interrogava-me como a paixão de Eric pela minha irmã pudera passar-me despercebida, quando se declarava em todos os traços do rosto do meu querido primo. Os nossos pais iam delirar de satisfação! Enquanto eu jubilava com a descoberta, Ivarr soprou o ar e abraçou-nos, rendendo-se finalmente:

— A minha noiva e o meu melhor amigo perderam o juízo! Eu vou ver o que posso fazer pela vossa causa, mas não prometo nada! Se o Throst desconfiar desta combinação, há de assar-nos na fogueira!

A casa do jarl estralava de animação. Corri para os braços da minha mãe, da tia Ingrior e de Signy, desejando partilhar a minha felicidade e contar-lhes que, com um pouco de sorte e a orientação correta, em breve as nossas famílias voltariam a unir-se.

Thora fora liberada do castigo, mas mantinha-se afastada da comoção. O seu rosto bonito e travesso estava ensombrado por uma mortalha de tristeza. A minha irmã já admitira a derrota e nem reagiu quando Freya e Svana tentaram confortá-la.

A pesada mesa de madeira fora arrastada para um canto do salão, a fim de facilitar as exibições. As espadas eram mantidas dentro das bainhas para que ninguém se magoasse, mas nem por isso o entusiasmo era menor. Nesse instante, o tio Bjorn testava a perícia de Magnor. O príncipe viquingue estava mais forte do que no ano anterior e nem admitia a hipótese de falhar novamente a sua ambição.

Ivarr acomodou-se no centro da sua guarda pessoal: os três guerreiros-lobo que lhe haviam jurado fidelidade — Eric, Ragnar e Bryan. Qualquer um deles daria a vida sem hesitar pelo futuro rei, não só porque se tinham ligado a ele através de um pacto de sangue, mas também porque eram inseparáveis desde crianças. Eu sabia que o tio Stefan não ficara satisfeito com a escolha de Bryan, pois esperara que o filho o sucedesse na administração da Grande Ilha. Todavia, Bryan era demasiado aventureiro para se resignar às intrigas palacianas e aos jogos da corte. As quizilas freqüentes entre Viquingues e Vândalos eram muito mais apelativas. Talvez a idade o fizesse assentar as armas mas, por enquanto, só desejava cavalgar e velejar ao encontro da aventura, ao lado do seu príncipe e senhor.

Quinn substituiu Magnor, exibindo as habilidades de que faria uso no dia seguinte, e as exclamações de aprovação foram imediatas. Ao meu primo seguiram-se outros, determinados a distinguir-se dos demais para impressionar o jarl e o rei. Quando as emoções atingiram o rubro, Ivarr declarou:

— Todos estes jovens possuem grande valor e estão de parabéns! O ginásio é um projeto que, tenho a certeza, crescerá para além das fronteiras do País dos Viquingues e da Grande Ilha.

Ergueu-se um burburinho de aprovação e todos acrescentaram um elogio ao trabalho do meu pai. Ivarr esperou que se acalmassem para se dirigir ao jarl:

— Ouvi dizer que uma das tuas gêmeas é muito talentosa na arte da guerra! Por que é que a jovem prodígio não vem demonstrar-nos o seu engenho, Throst?

O meu pai não era tolo e podia cheirar uma armadilha como esta à distância. Contudo, fosse pela euforia do momento, fosse pelo ar angelical com que Ivarr fizera o pedido, o resultado superou as minhas expectativas:

— Thora, não ouviste o príncipe Ivarr? Aproxima-te, filha!

Temi que a minha irmã deitasse tudo a perder com uma resposta atravessada. O seu olhar desconfiado quedou-se em mim. Disfarçadamente, incentivei-a a avançar, e, embora hesitante, ela obedeceu. Parou diante do príncipe, fixando-o com um ar desafiador. Eu sabia o quanto Thora admirava o meu prometido e como almejava fazer parte da sua guarda pessoal. Porém, o desdém de Ivarr, no porto, ferira-a e enfurecera-a. Agora, ele era apenas um homem que massacrara o seu orgulho e ajudara a destroçar os seus sonhos. Surpreendi-me ao verificar que, com Ivarr, sucedia o contrário. Se para ele, até ao momento, Thora não passara de uma criança caprichosa, com um caráter retorcido, neste instante mirava-a com uma curiosidade quase ansiosa, como se desejasse e temesse, em simultâneo, descobrir a força que se ocultava naquele corpo de menina.

— O que posso fazer para vos entreter, alteza? — A voz musical e ainda infantil da minha irmã gelou-me o sangue. — Desejais que cante um dos poemas que enaltecem a vossa coragem? Ou preferis ver algo mais enérgico... umas cambalhotas e umas piruetas? Talvez possa impressionar-vos com as minhas caretas?

Um silêncio mortificante esmagou o salão. Após o primeiro impacto, aqui e além abafaram-se gargalhadas. O rosto do jarl estava da cor da fogueira. Steinarr surpreendeu-me, ao levar a mão aos lábios para esconder o riso. A expressão de Ivarr ensombrou-se, quando Thora acrescentou:

— Também posso pintar-me como os artistas nômades...

— Chega, Thora! — atalhou o nosso pai. — Pede, imediatamente, desculpas ao príncipe!

Thora enfrentou Ivarr. Olhos verdes contra olhos verdes. Dois espíritos indomáveis. Duas vontades de ferro. Convenci-me de que estava tudo perdido! Então, a minha irmã recuou:

— Perdoai-me, príncipe Ivarr! — A sua voz tremia, sem vestígios da arrogância que a dominara. — Hoje não consigo fazer mais nada, senão embaraçar a minha família... — O seu olhar desviou-se para o jarl. — Lamento, pai...

Seguiu-se um novo silêncio, em que eu temi que Thora fosse rebentar a chorar. Lancei um olhar suplicante a Ivarr e ele não me decepcionou:

— Já percebemos que o teu sentido de humor se compara à tua sutileza, jovem! Agora, queremos ver o que sabes fazer com... isto!

Pasmei ao vê-lo lançar-lhe a sua própria arma. Thora apanhou-a no ar e ficou a mirá-la, como se não acreditasse que segurava entre os dedos a espada do herdeiro do trono viquingue. O rumor de assombro da assistência declarava que poucos haviam desfrutado dessa honra. A minha frente, um olhar gélido e metálico cintilou. A raiva que fustigava Magnor fazia-o estremecer e forçava-o a esconder as mãos atrás das costas, para que não denunciassem o seu tremor.

— Muito bem... — continuou Ivarr. — Qual dos nossos talentosos futuros guerreiros se oferece para lutar com a filha do jarl?

Desta vez, o silêncio foi tão profundo que não se ouviu uma mosca. Incrédulo, Ivarr percorreu os rapazes com o olhar. Estes fixavam o chão e alternavam o peso do corpo de um pé para o outro, pouco à vontade. Noutra ocasião, teriam brigado entre si pela oportunidade de competir com Thora. Mas não nesta noite, diante dos líderes do País dos Viquingues e da Grande Ilha. Ninguém queria levar para a prova de iniciação a vergonhosa recordação de uma derrota.

— O que é que se passa aqui? — A voz do príncipe denunciava irritação. — Estou diante de um grupo de cavalheiros ou de um bando de covardes?

Com as faces em chamas, todos os rapazes deram um passo em frente. Era melhor ser derrotado numa disputa amigável, do que cair em desgraça ante o futuro rei! Contudo, foi a voz de Magnor que se diferenciou das demais:

— Eu lutarei com ela!

O meu sobressalto refletiu-se no rosto de Eric. Bryan franziu a testa e cerrou os punhos. Eu nem me atrevi a olhar para o meu pai, e calculei que a minha mãe estivesse prestes a desmaiar. Ivarr também não parecia convencido:

— Tu és mais velho e experiente, Magnor! Seria um duelo desequilibrado...

— Desequilibrado? — Cortou o outro raivosamente. — Tu deste-lhe a tua espada!

— Eu não tenho medo dele!

Todas as atenções se viraram para Thora. A minha irmã moveu-se com a elegância que lhe conhecíamos e ergueu a espada, desafiando Magnor. O rapaz empunhou a sua arma com rudeza, rosnando irado:

— Pois devias! Vais acabar a noite a beijar-me os pés, sua insolente!

Os olhos de Thora incendiaram-se quando Magnor investiu. A minha irmã não pedira por este confronto, mas regozijava-se por ter a oportunidade de dar uma lição àquele arrogante. Esqueci a postura e bradei-lhe palavras de apoio, fazendo coro com a maioria.

Thora estava em clara desvantagem, pois Magnor já possuía a compleição de um homem. Mesmo assim, defendeu-se habilmente e contra-atacou com eficácia. O pasmo do príncipe, ante a resistência de uma criatura fisicamente tão inferior, foi denunciado em algumas das suas exclamações de surpresa, mas a destreza de Thora apenas estimulou a sua fúria. O suor começava a banhar-lhes as faces, a encharcar-lhes as roupas, e o cansaço diminuía a velocidade dos embates... No entanto, a minha irmã agüentava-se firme, movendo-se com uma distinção que contrastava com a brutalidade do rival. Para mim, ela já provara mais do que podia ser-lhe exigido. Nem o tio Bjorn impunha tamanha agressividade nos seus treinos! Todavia, era óbvio que nenhum dos oponentes pretendia render-se. Esta disputa era muito séria, e, se dependesse deles, teria conseqüências graves.

Tentei chamar a atenção de Ivarr para que pusesse cobro à briga.

Porém, ele manteve-se concentrado no duelo, com os braços cruzados diante do corpo hirto e uma ruga profunda na testa. Ao meu lado, Freya gemeu horrorizada com o descontrole da sua gêmea e do rapaz por quem se enamorara. A minha mãe sustinha-se no braço da tia Ingrior, com as faces cinzentas de inquietação. Quanto ao meu pai, a sua apreensão era visível, mas o orgulho não lhe cabia no peito. Apesar de conhecer a vocação da filha, nunca a levara realmente a sério, até este momento. Junto dele, o rei viquingue sorria e falava-lhe discretamente. Apiedei-me de Magnor, ao perceber que nem o próprio pai lhe concedia os seus favores. A sua vida devia ser muito triste...

A minha piedade extinguiu-se, no instante em que o príncipe concretizou um gesto traiçoeiro, e empurrou Thora contra a pilha de escudos que tinham sido usados no treino, forçando-a a tropeçar e cair. Desprevenida, a minha irmã perdeu a arma e viu-se subjugada pelo peso do adversário, que se deitou em cima da sua barriga, encostando-lhe a espada à garganta, enquanto cuspia desdenhoso:

— Enganei-me a teu respeito! Julguei que eras mais forte...

— Pois tu nunca me enganaste! — rugiu Thora; olhos nos olhos. — És o maior dos imbecis!

O seu joelho ergueu-se, com toda a força, por entre as pernas de Magnor. O rapaz berrou em choque, paralisado pela dor. E, antes que pudesse recuperar, já ela fechara uma mão na outra e usava-as como um poderoso machado de guerra, esmagando-as no rosto.

O corpo poderoso do príncipe rebolou no chão, debaixo do murmúrio estupefato da assistência. Thora não perdeu tempo e levantou-se, cambaleando de exaustão ao encontro da espada de Ivarr. Quando a recuperou, já Magnor se dispunha a enfrentá-la; o rosto quase angelical desfigurado numa grotesca careta de ódio, enquanto a saliva se misturava com o sangue e lhe escorria pelo queixo. Perante o assombro dos demais, desembainhou a espada e livrou-se da bainha, tencionando levar o confronto até ao fim.

Lancei-me adiante, apelando por Ivarr, mas ele também já avançava, com Eric, Bryan e Ragnar ao seu lado. Todavia, foi a voz de Steinarr que gelou os presentes:

— Rapazes, parem imediatamente!

Além das respirações ofegantes e de alguns sussurros de incredulidade, nada mais se ouvia. Thora e Magnor permaneciam frente a frente, à distância de uma investida, e a lâmina da espada do príncipe flamejava, esfomeada por ação, exigindo sangue.

— Estais surdos? Pousai as armas!

Murmurei o nome da minha irmã, suplicando mentalmente que se acalmasse e obedecesse ao rei. Apesar de ela raramente se dar ao trabalho de desenvolver e treinar as habilidades místicas que herdara da nossa mãe, eu sabia que me escutava. A mágoa no seu olhar, quando me encarou, declarava a sua revolta: «Como podes pedir-me tal coisa? Esta besta cuspiu no meu orgulho...»

A espada de Ivarr caiu no chão de madeira com uma pancada surda. O olhar de Thora perdeu-se no vazio, altivo, inatingível, distanciando-a dos mortais; fria e bela como uma deusa.

— Magnor...

Ao apelo furibundo do seu pai, o príncipe cravou a espada no chão, cuspindo um palavrão que fez as mulheres protestarem e corarem. Steinarr ignorou-o e continuou:

— A Thora foi a primeira a pousar a arma... Tu serás o primeiro a estender-lhe a mão!

— Nunca!

— Não te atrevas a desobedecer-me, rapaz! — De repente, o rei parecia um gigante terrível; um enorme urso selvagem, cuja sombra seria suficiente para matar um homem. — Vós não sois inimigos! Sois aliados! Cumprimentai-vos imediatamente! Tu primeiro, Magnor!

Transpirando indignação, o príncipe avançou um passo, dois, três... O seu olhar cravou-se no de Thora, e eu tive a certeza de que juravam odiar-se até à morte. Com a lentidão de uma vida, a mão de Magnor ergueu-se, tremendo como se estivesse solta do pulso. Thora correspondeu, e o aperto das mãos soltou faíscas. No salão respirava-se fundo e aplaudia-se, mas as famílias dos rivais sabiam que este fora um corte sangrento numa relação que se desejava intocável.

Eric afastou Thora de Magnor e os braços do nosso pai envolveram-na. Com o coração apertado, vi o príncipe rebelde abandonar a casa, num ímpeto endoidecido, e Ivarr precipitar-se atrás dele, decerto temendo que fizesse alguma asneira. Senti-me culpada, não por Magnor, que se revelara rancoroso e vingativo, mas pelo incômodo que causara ao meu prometido. Por outro lado, Thora recebia mais elogios do que aqueles que podia assimilar. Diante dos convidados, não se atreveria a pedir novamente ao jarl que a deixasse competir. Porém, assim que tivessem um instante de privacidade, não hesitaria em fazê-lo.

 

Sempre que visitavam a Ilha dos Sonhos, o rei Steinarr e o tio Stefan hospedavam-se na nossa casa, e o chão enchia-se de mantas e almofadas para os menores. Com tanta gente amontoada, era quase impossível sossegar. Escutei a rabugice dos garotos, as conversas dos adultos e, por fim, o ressonar oscilante dos homens, enquanto os meus pensamentos vagueavam por um passado que continuava a ensombrar o futuro de todos nós.

Entrelacei os dedos nos anéis dourados dos meus cabelos e relembrei o estranho sonho que me subjugara, na noite anterior. Quase me atrevia a jurar que a essência do meu primo Edwin empreendera a longa viagem através do mar que separava as nossas realidades, e viera visitar-me. Todavia, a razão justificava que tudo não passara de uma dolorosa partida que a imaginação me pregara, por conta da ansiedade provocada pelas recordações... e pela vontade ardente de buscar o meu primo.

Eu tinha a certeza de que Edwin ainda estava vivo. Muitas vezes, ao longo destes anos, a percepção da sua energia sufocara-me, como uma gigantesca vaga que me envolvia e impedia de respirar. Depois desvanecia-se... Ele estava a progredir no seu treino; a fazer o que era necessário para sobreviver! Se mantivera a integridade, ou se entregara a alma ao seu mestre, era a questão vital... A interrogação que me angustiava!

Dormi pouco, e acordei com o reboliço dos jovens que saltavam das cobertas e se vestiam à pressa. Em quase todas as cabanas da Ilha dos Sonhos, a correria repetia-se. Ninguém queria chegar atrasado à praia, onde, em breve, o jarl daria permissão para que as provas de iniciação começassem. Quando o último homem da nossa casa saiu, Thora refugiou-se no seu quarto e fechou a cortina, isolando-se dos olhares piedosos das mulheres. A minha mãe seguiu-a, e eu e Freya a imitamos. Encontramos Thora sentada na cama, com a cabeça apoiada nos joelhos, chorando baixinho. Aceitou o consolo dos braços maternos e a nossa companhia. Acariciei-lhe os cabelos e murmurei, comovida pela sua prostração:

— Eu tentei, irmãzinha!

— Eu sei — respondeu ela por entre soluços.

— Não te zangues com o pai, querida! — apelou a nossa mãe, afagando-lhe a face. — Ele só quer proteger-te...

Thora desatou num berreiro incontrolável. Freya cobriu o rosto e começou a chorar também. Saltamos de surpresa quando a cortina se escancarou, revelando a figura imponente do jarl.

O que o fizera voltar atrás? A pergunta latejava-me na mente, ao vê-lo abanar a cabeça e respirar fundo, ante o sofrimento de Thora. Tentou manter uma postura severa, mas a sua máscara de frieza depressa se derreteu.

— As minhas mulheres serão a minha morte! — exclamou, tomando o rosto da gêmea mais velha entre as suas mãos. — Thora, olha para mim... O meu desejo é que tu tenhas uma vida maravilhosa! Não estarás melhor casada com um homem que te estime, a cuidar dos teus bebês, do que a dormir ao relento, cheia de fome e frio, assombrada por tudo o que deixaste para trás e pelo que há de vir adiante? A vida de um guerreiro não é fácil, meu amor!

— A Thora só quer provar que é capaz de superar o ritual de iniciação, papai! — interferiu Freya, procurando dar o sua contribuição. — Ela não vai para a guerra!

Freya era ainda muito inocente. Nós, os mais velhos, sabíamos bem o que Thora almejava.

— Diz-me, filha — insistiu o nosso pai. — Desejas realmente passar por tamanha provação?

Os olhos molhados da minha irmã iluminaram-se, ante o sinal de cedência.

— Sim, papai... — respondeu com a voz entrecortada.

A nossa mãe fechou os olhos e suspirou, quando o jarl decidiu, resignado:

— Está bem! Será como desejas!

Thora gritou e pendurou-se no seu pescoço, cobrindo-o de beijos. Num piscar de olhos estava pronta para sair. Acompanhamo-los à porta e surpreendi-me ao verificar que Ivarr os aguardava. Cumprimentou-nos com um aceno, enquanto o meu pai içava Thora para o seu cavalo. Depois, levou os dedos aos lábios e atirou-me um beijo que me fez sorrir.

Enquanto eles se afastavam, abracei a minha mãe. Ela tremia e, por pouco, não sucumbia às lágrimas.

— Não te preocupes, mamãe! — tentei sossegá-la. — O primo Eric confessou-me que sente um carinho especial pela nossa Thora. E eu acho que a mana também gosta dele! Talvez não tenhamos de esperar muito para ver esmorecer o seu entusiasmo aventureiro.

— Temo que a nossa tranqüilidade tenha chegado ao fim! — A voz da minha mãe soou enrouquecida pelo desalento. — Nós não podemos negar quem somos, Edwina! Eu e o pai tentamos e o resultado está à vista! Já conversamos muito acerca do destino da Thora... Concordamos que seria melhor deixá-la seguir o seu caminho com o nosso apoio, do que vê-la revoltada contra nós, tomando o mesmo rumo sozinha. Ainda assim, teimamos em desafiar a sorte até ao último instante, confiando que ela veria a razão; que se conformaria quando os homens partissem. Mas algo se passou, que levou o vosso pai a assumir esta decisão...

Engoli em seco e confessei:

— Eu pedi ao Ivarr que o convencesse.

A mágoa enevoou o olhar da minha mãe, mas não tardou a desvanecer-se. Catelyn da Ilha dos Sonhos pôs-se em bicos de pés para me beijar a testa, murmurando docemente:

— Aconteça o que acontecer, o importante é que nos mantenhamos unidos! A nossa força provém do amor... Nunca te esqueças disto, querida!

Apesar de assistir desde sempre aos rituais de iniciação, nunca me sentira tão ansiosa. Quem não duvidava do sucesso da nossa irmã era Freya. Ela e Svana faziam mais barulho do que a multidão que acompanhava as provas. Em todos os desafios que exigiam rapidez de raciocínio, Thora foi a vencedora. Depois, chegou a vez dos testes de destreza, e os candidatos dividiram-se em duas equipas. Thora ficou sob a liderança de Quinn, e não tardaram a provar que formavam uma dupla formidável. Os primos estavam habituados a treinar juntos e quase não necessitavam de falar para se entenderem. Inchei de orgulho ao ver a velocidade com que montaram um abrigo, e as suas armadilhas de caça receberam elogios dos mais velhos.

Ivarr encontrava-se pouco distante de mim, e Magnor mantinha-se ao seu lado, avaliando aqueles com quem competiria na Caçada, já que o mais forte do grupo seria o seu rival. Os dois irmãos haviam regressado tarde, na noite anterior, após o que eu supunha ter sido uma conversa espinhosa. Porém, os resultados afiguravam-se positivos, pois Magnor revelava-se calmo e até delicado no trato.

O sorriso de Ivarr atraiu a minha atenção para as provas. O grupo de Quinn vencera de novo e os rapazes carregavam Thora sobre os ombros. Apesar de suja, suada e despenteada, eu nunca a vira tão bonita. Os olhos brilhavam-lhe de tal forma, que não se distinguia se eram verdes ou azuis. A trança grossa desfizera-se e um manto de caracóis negros cobria-lhe as costas. O rosto impertinente enrubescia de felicidade. Thora estava a viver o seu sonho... graças a Ivarr!

À tarde, o grupo foi avaliado no seu desempenho com as armas e Thora brilhou quando pegou no arco. Sem dificuldade, foi considerada a melhor. Os amigos que rodeavam o nosso pai não se cansavam de elogiá-lo. A filha tinha a quem sair! No lançamento do dardo, Thora só foi suplantada por Quinn. O arremesso do martelo era a sua fraqueza. A arma exigia uma força que a minha irmã ainda não adquirira. Ficou em último lugar e temi que os instrutores a excluíssem. Felizmente, os meus receios não se concretizaram, e logo ela erguia destemidamente a sua espada.

Nesta prova, os instrutores faziam questão de testar os candidatos e era exigido um parecer positivo. Observei, apreensiva, a atrapalhação de um rapaz que eu considerava habilidoso. Quinn manteve-se firme... E chegou a vez de Thora. Enquanto os responsáveis decidiam quem ia julgá-la, Ivarr avançou e ninguém se atreveu a contestá-lo. Fui sacudida por um calafrio. Ter-lhe-ia o meu pai pedido que a afastasse da competição? De que outra forma se justificava a sua atitude?

Por cima das nossas cabeças, Lança soltou um pio agudo e pousou numa árvore próxima, atento aos movimentos do povo. O grito do falcão estilhaçou-me os nervos. Eu não perdoaria Ivarr, se o sonho da minha irmã se desmoronasse, depois do que ela já sofrera!

Diante do príncipe, Thora acusou perturbação. Eu sabia que era errado usar a Arte para interferir na sorte alheia, mas não podia observar impassível a angústia da minha irmãzinha. Inspirei fundo e cerrei os olhos, absorvendo a luz do Sol no meu espírito. Só queria que Thora esquecesse o medo, que não esmorecesse diante da imponência do adversário. E, aos poucos, as batidas do seu coração serenaram e a respiração acalmou-se. O seu objetivo não era vencer Ivarr! Só tinha de convencê-lo da sua destreza.

Ivarr acometeu com uma exaltação que me indignou. Thora defendeu-se, mas o impacto a fez tropeçar e cair. Ouviu-se um murmúrio de decepção... E a voz do futuro rei:

— Levanta-te, moça! Num campo de batalha não esperes que o inimigo te estenda a mão!

Thora ergueu-se de um salto, enfurecida pela provocação. Desta vez, foi ela quem atacou. E continuou a atacar... As nossas mentes estavam fundidas, mas era óbvio que a minha irmã já não necessitava de ajuda. A raiva devorara o seu temor, e Ivarr tornara-se igual a qualquer outro adversário. O príncipe defendia-se sem cansaço, mas subestimou o ardor da pequena criatura que o defrontava. Com um golpe mais aguerrido, Thora conseguiu penetrar na sua defesa.

Ivarr saltou para trás, olhando incrédulo para o sangue que lhe manchava a túnica. O clamor assombrado da multidão cresceu estridentemente... E a voz de Thora soou, fresca e irônica:

— Podemos continuar, majestade? Ou necessitais do auxílio de uma curandeira?

Eu nunca vira Ivarr zangado, e fiquei arrepiada quando ele rugiu e se lançou adiante. Fechei os olhos, incapaz de enfrentar as conseqüências da sua investida, até que os brados entusiasmados do povo me forçara a reagir. Thora estava tombada na areia, com a espada de Ivarr encostada à garganta. Porém, ao contrário do que seria esperado, no rosto do príncipe não havia vestígios de raiva ou ressentimento. Ivarr sorria. Afastou-se, embainhou a espada e estendeu-lhe a mão.

— Não sejamos inimigos no campo de batalha ou fora dele, filha do jarl da Ilha dos Sonhos. Provaste o teu valor com determinação e coragem. Tens a minha aprovação.

Thora saltou como se pudesse voar, gritando a plenos pulmões. Quinn foi o primeiro a alcançá-la. Não teve tempo de expressar a sua satisfação e já Eric a erguia nos braços. Tentei aproximar-me, mas uma voz quente deteve-me:

— Não existe um pouco de caridade no seu coração para com um homem ferido, princesa?

Voltei-me devagar ao encontro de Ivarr e, instintivamente, a minha mão procurou a sua.

— Vem... Vou cuidar de ti.

Abandonamos a confusão e entramos na aldeia quase deserta. Levei-o para a minha casa, tentando ignorar a vontade imperiosa de cair nos seus braços e de saborear os seus beijos.

— Senta-te e tira a túnica — ordenei, forçando-me a agir como uma curandeira. — Vou buscar um ungüento...

A voz morreu-me na garganta quando Ivarr me puxou contra o seu peito, murmurando junto dos meus lábios:

— O que dirá o teu noivo, quando descobrir que trouxeste para debaixo do teu teto um homem com a minha reputação?

Fiquei tão estonteada, que só me apercebi que ele estava a brincar quando começou a rir. Porém, não tive tempo de ralhar-lhe. Sem cortesias, Ivarr entorpeceu-me a razão com um beijo que me deixou as pernas bambas. Os seus lábios escorregaram-me pelas faces, acariciando cada pedaço da pele ardente, enquanto sussurrava:

— Desde ontem que não penso noutra coisa... Acho que me lançaste um feitiço!

— Espero que seja um feitiço tão forte como aquele que tu me lançaste — repliquei com um sorriso enamorado, afastando-o contrafeita. — Agora, mostra-me esse ferimento.

— Não exageres, Edwina! E um arranhão sem importância... Ainda assim, obriguei-o a despir a túnica e a deixar-me examiná-lo. O corte era fino, por baixo do peito, e parara de sangrar há muito. Com o rosto a latejar e a respiração aos soluços, tentei concentrar-me na limpeza da ferida, mas as mãos tremiam-me tanto que se tornavam imprestáveis. As tatuagens do carvalho e do falcão, que lhe adornavam o peito, símbolos da família real, ganhavam vida debaixo dos meus dedos... Subitamente, a minha atenção ficou prisioneira de três cicatrizes paralelas, situadas sobre o coração, resultantes de incisões profundas e tão perfeitas que dir-se-iam premeditadas, e não conseqüência de um ferimento de combate.

— Edwina... — apelou, ciente do meu enleio. — Não tenhas medo, querida...

Tentar sustentar o olhar verde só piorou o meu nervosismo. Ivarr colocou as minhas mãos sobre o seu peito, exatamente em cima das estranhas marcas, e eu senti o seu coração martelar-me os dedos. Perdida no devaneio, baixei o rosto ao encontro de uma promessa de beijo. Fiquei perplexa quando ele me afastou. Então, o rumor que o seu ouvido apurado já distinguira, chegou até mim. Recuei à pressa, enquanto Ivarr vestia a túnica. Tínhamos acabado de recuperar o fôlego, quando a casa se encheu de familiares e amigos. Felizmente, encontravam-se tão eufóricos que nem repararam no meu embaraço. Thora correu para os meus braços e sussurrou um agradecimento emocionado. Felicitei-a com beijos orgulhosos. A agitação que nos rodeava cessou, quando a minha irmã se dirigiu ao herdeiro do trono viquingue e o cumprimentou com uma vênia larga:

— Obrigada por tudo o que fez por mim, príncipe Ivarr! Perdoe a forma como me comportei...

— Comportaste-te como uma grande guerreira! — atalhou ele, premiando-a com um sorriso. — E podes agradecer-me, superando as provas de amanhã. Estás de parabéns, Thora! — Aceitou o corno de cerveja que Eric lhe estendia, elevando-o em saudação. — Estais todos de parabéns! A Quinn e Thora, heróis da casa do jarl! Que tenham muita sorte e honrem as suas famílias com a nobreza dos seus feitos!

Thora recusou-se a usar um vestido para a festa, mas permitiu que eu a penteasse. Lavado e escovado, o seu cabelo era tão bonito como o de Freya. A outra gêmea não necessitava de ajuda para arranjar-se. Estrid encarregava-se de lhe ensinar todos os truques. Eu preferia ver Freya com o cabelo solto e sem pintura no rosto, mas a prima garantia que esta era a última moda na corte, e a minha irmã deixava-se deslumbrar pelo esplendor do Império.

A festa arrastava-se pelas ruas da aldeia e estendia-se até à praia. Havia fartura de comida, mais bebida do que água no mar e muita música. As fogueiras ardiam com fulgor e o povo saltitava ao seu redor.

Reuni-me à minha família e escutei as histórias das façanhas dos homens, em terra e no mar. Quando a bebida começou a aquecer-lhes o sangue, muitos aventuraram-se a juntar-se ao baile. Dos meus tios, só Edwin e Geirny não se divertiam. A princesa estava indisposta e o marido acompanhou-a a casa. Julguei que Estrid fosse cuidar da mãe, mas a jovem atarefava-se com os rapazes que se enfileiravam para convidá-la para dançar. Freya e Svana também não paravam. Eric tentou convencer Thora, mas a heroína do dia preferiu continuar sentada junto dos primos, tecendo estratégias para os desafios do dia seguinte. Eu dancei com o meu pai, com os meus tios e primos. E dancei com Ivarr...

Quando regressamos ao grupo, Eric fazia uma nova tentativa para arrastar Thora para o baile. Com as faces a arder, a minha irmã manteve-se firme na recusa. Ivarr sentou-se ao lado do irmão e acirrou ainda mais as expectativas dos jovens para as provas futuras, acedendo a contar-lhes como enfrentara o lobo branco, durante a sua iniciação. Eu sabia que ele não gostava de vangloriar-se da sua vitória. Aliás, nenhum daqueles que passara pela mesma experiência o fazia, como se esse prodígio fosse algo íntimo e inconfessável.

Ivarr dizia exatamente o que os jovens queriam ouvir, mas a plena verdade da noite em que ele e a fera tinham unido as essências jamais seria revelada em público. Eu própria, só a tivera ao meu alcance uma vez. Pouco depois de Ivarr se restabelecer da luta contra o lobo, Steinarr procurara «O Que Tudo Vê», para que o significado da conquista do príncipe fosse desvendado. Eu não fora autorizada a assistir à conversa, mas fizera-o secretamente, apelando ao poder da Lágrima do Sol. Nessa reunião, onde apenas estiveram presentes os três sábios da Ilha dos Sonhos, os meus pais, o rei viquingue e o seu primogênito, o feiticeiro dera-lhes a conhecer uma das incontáveis profecias que condicionavam o destino do Homem:

«Das profundezas da Luz e da Escuridão, dois espíritos soberanos se er-guerão para decidir na Terra aquilo que não pode ser determinado no seu mundo: qual dos dois é o mais forte. Para tal, elegerão dois campeões; dois homens que serão reis nas suas terras e rivais mortais no campo de batalha. Graças à poderosa magia do seu sangue, nenhum guerreiro conseguirá suplantá-los. A única essência capaz de lhes fazer frente viverá na alma de uma mulher: a companheira que estão destinados a disputar, e em cujos braços o vencedor encontrará a recompensa pelo seu esforço... a felicidade eterna.»

Aos oito anos de idade, este enigma estava para além do meu entendimento. E, conforme crescia, comecei a recear que o Espírito da Escuridão fosse o meu primo Edwin. Porém, acabara por refutar tal idéia. Edwin não era um guerreiro letal e nenhum reino aguardava pela sua soberania. A identidade do rival do meu prometido permanecia secreta, até para «O Que Tudo Vê», o que significava que a vida de Ivarr estava constantemente ameaçada. Por isso ele treinava com tanto afinco; para se tornar o melhor entre os melhores! E eu tinha obrigação de ajudá-lo, pois seria a sua companheira; a rainha vidente do povo viquingue.

Este pensamento provocou-me um aperto no coração. Sem querer, o meu olhar caiu sobre Magnor e surpreendi o seu esgar de despeito, ao escutar a história do irmão. Pela primeira vez, acometeu-me a desconfiança de que o perigo podia viver mesmo ao lado de Ivarr. Em breve, Magnor seria um guerreiro de excelsa destreza... e qualquer reino da Terra estaria ao seu alcance. Apercebendo-se de que eu o fixava, Magnor enfrentou-me, empinando o nariz num declarado desafio. Perturbada, tomei a iniciativa de desviar o rosto. Por ora, manteria a minha suspeita em segredo... Todavia, a partir deste instante, ficaria muito atenta aos passos do jovem príncipe.

Estrid, Freya e Svana regressaram do baile, rindo alegremente. Expedito, Magnor não permitiu que Estrid se sentasse, e convidou-a para dançar. Observei a decepção da minha irmãzinha quando o príncipe passou por ela, de mãos dadas com a prima, e decidi que tinha de convencê-la a tirar Magnor da cabeça. A personalidade do meu futuro cunhado assustava-me. Se num instante era encantador, no outro era detestável, como se dentro dele vivessem duas pessoas completamente diferentes; dois inimigos de costas voltadas.

Trygve e Ivarr envolveram-se numa sóbria troca de idéias acerca do futuro da Aliança. Surpreendi-me ao constatar a atenção que o herdeiro do trono viquingue devotava às opiniões do meu primo. Eu habituara-me a pensar em Trygve como um irmão mais velho, sempre disposto a proteger-me, e nem reparara que ele se tornara um homem, com uma força e um poder admiráveis. Não era de espantar que os druidas tentassem aliciá-lo para a sua causa... Mas eu não permitiria que ninguém nos separasse!

Estrid cansara-se de mendigar a atenção de Ivarr e investia todo o seu charme em Magnor. E este não se fazia rogado! O meu olhar aguçado distinguiu que, depois de lhe sussurrar ao ouvido, os lábios do jovem príncipe deslizavam ousadamente pelo pescoço da prima, enquanto os seus dedos se cravavam como garras possessivas na cintura estreita, pressionando-a contra si de forma indecorosa. Se o tio Edwin os visse, a cabeça de Magnor estaria pouco segura em cima dos ombros!

Não muito longe, Aled e Melody pararam de dançar completamente esquecidos da música. Era evidente que ele lutava contra a vontade de beijá-la ali mesmo, diante da comunidade. Como num sonho, vi a mão da minha prima erguer-se para lhe acariciar o rosto e Aled recuar, impedindo o contato que o faria esquecer a razão. Sem demora, partiu a correr, deixando a jovem plantada no centro do baile com uma expressão perdida.

Tencionava ir ao encontro de Melody, mas detive-me ao ouvir Estrid, que acabara de sentar-se ao meu lado, afogueada de exaltação, exclamar para Magnor:

— Este bailinho é para as crianças! A verdadeira festa é celebrada no topo da Montanha da Magia, pelo Povo dos Penhascos; uma genuína tradição pagã, que os padres cristãos não conseguem silenciar.

Todos os anos, os nativos livram-se das roupas e pintam o corpo e o rosto. Depois, elegem uma donzela para incorporar a deusa de que são devotos, e esta deita-se com o sacerdote da tribo...

— Uau! — interrompeu Quinn, jocoso. — Já viram a sorte desse sacerdote?

Os rapazes desataram às gargalhadas e Darrin replicou pertinentemente:

— Como sabes tu isso, se não nos é permitido aproximar dessa festa, e aqueles que a freqüentam não revelam uma palavra acerca do que lá se passa?

Estrid mirou o irmão com desdém, retrucando:

— Os guardas do Povo dos Penhascos são desleixados! E nem todos os rapazes são meninos do papai, como vós! Tenho um amigo que iludiu a segurança e assistiu ao que vos contei!

O ar estava carregado de energia. Se Estrid pretendia reunir as atenções na sua pessoa, já triunfara. A perturbação dos mais velhos era óbvia, e Ivarr não tardou a interferir:

— E quem é esse teu corajoso amigo?

O seu tom despreocupado era uma armadilha, mas Estrid não se deixou enganar:

— Não estás à espera que eu te diga, pois não? Antes do Sol nascer, ele já teria sido castigado!

— E quando se realiza esse prodígio? — perguntou Magnor extremamente interessado.

— As fogueiras dos nativos vão acender-se na noite do Festival de Verão — respondeu Estrid com o seu sorriso mais brilhante, ignorando os demais. — Então, os selvagens começarão a cantar, a dançar e a beber sem parar, e, quando os espíritos estiverem livres da prisão dos corpos, homens e mulheres cairão uns sobre os outros, como animais no cio...

— Basta, moça! — trovejou Trygve, erguendo-se de um salto, com o rosto incandescente e os punhos cerrados. — Estás a reduzir a cultura de um povo ao ridículo. A Festa da Renovação não é o ritual de selvageria e devassidão que tu descreves! E uma cerimônia com um significado que a tua mente perversa jamais entenderá!

Fez-se silêncio entre nós e Estrid ficou sem resposta. Até eu estava pasmada, pois nunca vira Trygve tão revoltado. As palavras da jovem haviam-no tirado do sério. Era a primeira vez que eu me dava conta de que o Povo dos Penhascos lhe suscitava tamanha simpatia!

— E o que sabes tu dessa festa? — reagiu Estrid, por fim; a voz estridente sobrepondo-se ao rufar dos tambores. — Quando os nativos estiverem a festejar, tu estarás a dormir de cabeça tapada! Os rituais pagãos são para homens a sério, e não para... covardes que se escondem da própria sombra! Como te atreves a chamar-me perversa? Tu sim, és desprezível! Não sei como o tio Berchan te suporta, seu bastar...

De repente, o mundo virou-se do avesso. Um grito arrepiante chicoteou a noite e, antes que alguém recuperasse do pasmo, Thora já saltara sobre Estrid e atirara-a ao chão. Sentou-se em cima do peito da prima, com as mãos apertadas em torno do pescoço delicado e fino, vociferando:

— Pede-lhe perdão, sua besta sem sentimentos! Pede-lhe perdão, ou juro que te mato!

Eric correu a segurar Thora, enquanto Bryan ajudava Estrid a levantar-se. Ambas gritavam insultos afiados:

— Tu és igual a ele! Uma aberração! Uma mulher-homem!

— Eu vou cortar essa tua língua venenosa e atirá-la ao mar, porque nem os cães quererão comê-la!

Os rapazes pareciam incapazes de controlá-las. Mergulhados na agitação, só nos apercebemos da chegada dos chefes da família quando o tio Edwin ribombou:

— Mas, o que é que se passa aqui? Estrid, Thora... Quietas!

O olhar furioso do meu pai estava pousado na gêmea mais velha e temi que Thora sofresse as conseqüências da emotividade do seu grande coração.

— Qual de vós é que vai explicar-nos o que se passa? — insistiu o jarl, ante o silêncio geral.

— Foi só uma divergência de opiniões, tio — justificou Trygve, surpreendendo-nos. — Nada de importante!

— Isto não me parece uma coisa sem importância! — observou o tio Edwin, dardejando a filha com o olhar. — Eu sei o quanto a Estrid pode ser insolente, Trygve! Diz-me, ela fez alguma asneira?

Estrid fixava Trygve com um misto de súplica e raiva. Sabia que a sua sorte se encontrava suspensa nas mãos da vítima das suas ofensas.

— Thora... — começou o meu pai, mas Trygve não permitiu que terminasse:

— Meus senhores, voltai para a festa e esquecei este incidente! Garanto-vos que tudo não passou de uma brincadeira acalorada.

O esforço do meu primo era louvável. Apoiei-o em defesa da minha irmã e logo um coro de vozes se juntou às nossas. Apesar de indignados contra Estrid, ninguém desejava ver Thora castigada.

— Que isto não se repita! — avisou o meu pai, antes de se afastar. O tio Edwin foi mais severo:

— Estrid, vai imediatamente para casa e fica a velar o sono da tua mãe! Darrin, se a tua irmã me desobedecer, tens autorização para arrastá-la por uma orelha!

O rosto do rapaz iluminou-se com um sorriso, ao responder:

— Será um prazer!

Assim que os homens se afastaram, Estrid resolveu piorar a situação. Apontou o dedo a Thora, replicando numa voz pejada de ódio:

— Há de pagar pelo que me fizeste! Os deuses vão castigar-te...

— Toma cuidado com as pragas que rogas, Estrid — cortei bruscamente, assolada pela raiva que me transbordava do peito. — Elas podem cair na tua cabeça! Se não aniquilares a maldade que vive em ti, o teu futuro não será brilhante! Talvez os castigos que pedes para os outros já estejam no teu caminho!

Novo silêncio. De todos os rostos que nos observavam, o de Freya era o mais mortificado. Estrid estava com os olhos cheios de lágrimas, mas dispunha-se a enfrentar-me. Quando Darrin se aproximou, prestes a puxar-lhe pelas orelhas, guinchou furiosa e fugiu para casa. Contudo, ainda nos restava amansar uma fera. Thora voltou-se para Trygve, num ímpeto acusador:

— Devias ter dito a verdade! Ela merecia uma lição!

Trygve suspirou e pousou as mãos nos ombros da prima, volvendo apaziguadoramente:

— A Estrid está perdida num mundo só seu, carente de afeto. Não lhe guardes rancor, Thora! Ela precisa que a despertemos para a realidade... necessita do nosso apoio!

Eu caminhava pela praia, de mãos dadas com Ivarr, com o batuque dos tambores nas costas e o brilho das fogueiras cada vez mais distante. O meu prometido fechara-se num silêncio reflexivo e os meus próprios pensamentos também não me ajudavam a ultrapassar a inquietação. Já há alguns anos que Trygve não comemorava o Festival de Verão conosco. Em vez disso, subia ao cume da Montanha da Magia com o tio Berchan, e juntava-se às celebrações do Povo dos Penhascos. Até ao momento, eu acreditara que o fazia por lealdade ao padrasto. Contudo, a sua reação tempestuosa às afirmações de Estrid haviam-me convencido de que algo mais profundo se passava. Afinal, talvez os druidas não fossem os únicos a cobiçar o seu dom!

— Ivarr... — comecei hesitante, perturbando o silêncio onde se aninhavam as ondas. — Existe alguma ligação entre o Trygve e os nativos da Ilha dos Penhascos?

A mão do meu prometido deixou-me, para afastar do rosto os cabelos que o vento despenteava. Percebi-o incomodado ao replicar:

— Por que não fazes essa pergunta ao teu primo?

— Estou fazendo a ti!

— Por favor, Edwina... — Deteve-se, segurando-me pelos ombros. — Não insistas! Tenta compreender que, apesar da minha condição me permitir saber algumas coisas, também me prende a votos que não posso quebrar.

Eu estava cada vez mais apreensiva! Sempre confiara na lealdade de Trygve... Agora, sentia-me estrangulada por uma suspeita que, a confirmar-se, feriria gravemente a nossa amizade.

Ivarr abraçou-me com meiguice, tentando desviar a minha atenção do assunto proibido. Preparava-me para reclamar, quando me murmurou ao ouvido:

— Sei que prometi ao jarl que aguardaria que concluísses o treino da Arte para te desposar, mas nada nos impede de ficarmos noivos. Quero que o mundo saiba que me pertences e, com um compromisso formal, teremos liberdade para manifestar o nosso afeto diante da comunidade. Decidi apresentar o pedido ao teu pai durante o jantar de amanhã. O que pensas da minha intenção, Edwina? Aceitas tornar-te minha noiva?

Num ápice, esqueci as questões que me sombreavam o espírito. Eu estava a viver um sonho maravilhoso! O meu «sim» flutuou no ar, por entre beijos apaixonados. O cuidado de Ivarr, ante a minha inexperiência, emocionava-me e encorajava-me a corresponder-lhe. Sabia que nada tinha a temer, pois o meu amor jamais me desrespeitaria. Quase chorei quando sussurrou:

— Vamos ser tão felizes! Hei de oferecer-te o mundo, minha princesa...

E para que queria eu o mundo? Ivarr era tudo o que uma mulher podia desejar!

Regressamos por fim, caminhando na confidência do bosque, atentos à minha reputação. Na praia, as fogueiras flamejavam e os tambores animavam a festa. Alguns aldeões já tinham cedido à bebedeira, e dormiam a sono solto deitados na areia.

— A tua irmã Thora é uma jovem de vontade forte! — exclamou Ivarr, subitamente. — Estou curioso por ver até onde a sua teimosia a levará. As provas de amanhã serão mais duras...

— A Thora é uma excelente nadadora — apressei-me a replicar, apesar de surpreendida com o rumo dos seus pensamentos.

— Nenhuma moça nada melhor do que um rapaz!

— Falas assim porque não a conheces!

Aguardei a sua contestação, mas Ivarr tornou a remeter-se ao silêncio. Intrigada, atrevi-me a perguntar:

— Tu conhecias o interesse do Eric pela minha irmã? A sua resposta foi totalmente inesperada:

— Existem muitos videntes no Norte, mas nenhum tão sábio como aquela a quem o povo chama «A Velha do Tronco Oco». Há quem diga que não é humana... que pertence a outra raça tão antiga e nobre como os Feiticeiros; que é capaz de ler a mente e o coração de todos os seres, de aparecer e desaparecer como se feita de vento; de mudar a forma do seu corpo e transformar-se num animal...

— Eu já ouvi falar dessa vidente — interrompi, franzindo o nariz. — Ela profetizou que os três filhos do meu pai seriam reis... No entanto, o jarl só teve filhas!

— E uma delas será rainha ao meu lado! O que impede as outras de desfrutarem da mesma sorte? Quando o traidor do Arnorr tombar, e os seus aliados Vândalos com ele, Eric, herdeiro de Grim, senhor da Terra Antiga, e meu Primeiro Homem, terá um reino como é seu direito de sangue. E, segundo a vidente, a sua companheira será uma princesa guerreira. Desde o primeiro instante que o Eric acredita que essa jovem é a tua irmã. E eu começo a dar-lhe razão...

— O Eric procurou os conselhos da Velha do Tronco Oco? — questionei incrédula.

— Fui eu que decidi ir buscá-la. Esta paz que vivemos é uma ilusão... Sinto o cheiro da tormenta, prestes a abater-se sobre nós, Edwina! E receio pelo nosso povo. Os padres cristãos enchem as cabeças dos homens com histórias e promessas. Lentamente, o grande Odin cai no sono e o machado de Thor escorrega-lhe da mão. Cada vez mais, os guerreiros ambicionam por uma vida calma, um pedaço de terra para cultivar, barcos de pesca maiores, uma família numerosa... Eu partilho do sonho dos meus homens, mas vivo a agonia do pressentimento de que uma guerra sangrenta destruirá tudo aquilo que os nossos pais conquistaram.

— E a vidente confirmou os teus temores? — inquiri, assaltada por um súbito desconforto.

— Ela exprime-se por enigmas... — Hesitou, como se ponderasse o que podia revelar-me. — Os seus ossos mágicos profetizaram-me um futuro repleto de batalhas, sangue, lágrimas, decepções, traições... Porém, quando já pensava que o meu destino seria negro, afirmou que eu sou um homem abençoado, pois ao meu lado encontram-se os mais fiéis dos companheiros. Falou-me de amizades tão puras como o amor, de entrega, de devoção... E garantiu-me que a guerra findará quando o rei viquingue unir as suas armas às armas da sua rainha.

Fiquei sem ar, como se tivesse recebido um murro no estômago. Detive-me, incapaz de avançar mais um passo, e escutei a minha voz como num sonho:

— Isso quer dizer... que terás de desposar uma guerreira para conquistar a paz?

Foi a vez dele parar, segurando-me as mãos, enquanto contrapunha:

— O teu poder faz de ti uma guerreira sem rival, meu amor! Lembra-te de que nem todas as armas são de metal e couro. Tu serás a minha rainha, Edwina! Com a tua magia e a minha espada, construiremos um futuro que trará orgulho e regozijo às gerações vindouras.

Os seus lábios apossaram-se dos meus, e, aos poucos, o meu tremor desapareceu. Repousei a cabeça no seu peito e decidi que não permitiria que as profecias da velha vidente estragassem a nossa felicidade. As filhas de Throst e Catelyn eram a prova de que ela já se enganara antes! Por sua causa, a minha mãe vivera a ilusão de que daria à luz três varões, e quase morrera de desgosto quando ficara impossibilitada de gerar mais filhos, após o nascimento das gêmeas. Se os receios de Ivarr se concretizassem, enfrentá-los-íamos juntos, no devido tempo. Neste momento, já tinha muito com que me preocupar.

Apesar de ser noite avançada, os tambores ainda rufavam na praia, ecoando por toda a ilha. Na minha casa, o sono vencera os mais resistentes e o ressonar dos homens trespassava a cortina de riscas coloridas que isolava o meu quarto do exterior. Sentada na cama, com as pernas cruzadas e a Lágrima do Sol pairando diante dos olhos, deslumbrando-me com o seu arco-íris de magia, eu forçava-me a quebrar as amarras da consciência. Fora um dia cheio de revelações; nem todas agradáveis! As minhas dúvidas clamavam por respostas. E, se ninguém se dispunha a elucidar-me, eu mesma buscaria a verdade.

Há muito que a Ilha dos Penhascos se declarara aos meus olhos. A beleza luxuriante oculta pela parede de rocha sempre me extasiara. Era como se uma energia sobrenatural, proveniente do coração da própria Terra me atraísse, fazendo crescer em mim o desejo de pisar a areia cinzenta das praias nativas, de banhar-me nas suas lagoas de água cristalina, de correr descalça sobre a erva virgem dos vales inundados pelo Sol, de escalar aquelas montanhas efervescentes de vida e explorar as suas misteriosas grutas.

O meu fascínio levara-me a investigar o segredo mais bem guardado do arquipélago, dissecando olhares esquivos e palavras por proferir. As minhas conclusões tinham-me deixado tão perplexa, que achara melhor distanciar-me daquela estranha cultura e da sua magia singular. A minha missão de vida já era suficientemente complicada, para que ousasse intrometer-me onde não era chamada. Porém, esta noite, após a discussão entre Estrid e Trygve, a curiosidade renascera em mim com uma fome devoradora.

A história que a minha prima contara, apesar de distorcida pela sua ignorância, não andava longe da realidade. Todos os anos, na Ilha dos Penhascos, uma jovem virgem de distinta beleza era escolhida de entre os nativos para incorporar a deusa que o povo venerava. No auge da Festa da Renovação, essa moça era entregue ao Sacerdote dos Penhascos para que este a fecundasse, e, nos meses que se seguiam, beneficiava dos cuidados das Mães da Renovação, mulheres que haviam partilhado de igual destino. A deusa assegurava-se de que essas crianças abençoadas nasceriam varões, os chamados Filhos da Renovação, treinados desde o berço para se transformarem em guerreiros de exímia destreza. Apenas uma vez, em cada geração, a regra divina era quebrada com o nascimento de uma menina... a futura soberana do seu povo — a Sacerdotisa dos Penhascos.

A Sacerdotisa era a representante da deusa na Terra e a executora da sua vontade. Nenhuma resolução era tomada na ilha sem o seu conhecimento e a sua palavra era lei. No entanto, apesar de tratar-se de uma mulher venerada, a liberdade com que se movia era restrita, ao ponto de ser forçada a cobrir o rosto e os cabelos sempre que surgia em público, para se resguardar dos olhares dos homens, já que se acreditava que, tanto a sua magia como o poder de Visão, dependiam da sua castidade.

Ao lado da Sacerdotisa, no comando dos destinos do seu povo, o Sacerdote dos Penhascos tinha como função atender ao cumprimento das ordens da soberana. A sua única decisão autônoma era a escolha daquele que, um dia, herdaria o seu bordão. E da sapiência desta eleição dependia a sorte do Povo dos Penhascos, pois o novo Sacerdote, além de ter de ser um homem de grande Visão e poder, seria igualmente o pai da geração seguinte de Filhos da Renovação... e o pai da próxima Sacerdotisa.

Pela altura em que os Viquingues chegaram à Ilha dos Sonhos, os dois soberanos do povo nativo já eram idosos. Ao longo dos anos, os rumores que eu interceptara haviam-me revelado que um jovem estava a ser treinado para se tornar Sacerdote e que, brevemente, assumiria por completo as suas funções. Agora, com a suspeita a apunhalar-me a mente, eu orava para que as pistas que o meu instinto reunira fossem falsas.

De início, a Lágrima do Sol brincou com a minha vontade, desafiando-me a perseguir os seus desígnios, recusando-se a escutar quaisquer ordens e a abrir-me as portas do almejado conhecimento. Porém, desta vez, eu estava decidida a não me resignar. Quando a caprichosa essência do cristal tentou resistir à minha determinação, envolvi a sua energia palpitante e assimilei-a. De imediato, todas as barreiras ruíram e o universo abriu-se às minhas indagações.

No topo da Montanha da Magia, por entre as Pedras do Mundo, os nativos de pele dourada saltavam em redor das fogueiras altas, ao som do batuque estonteante dos tambores, com os corpos pintados de cores garridas e cobertos com peles de animais e penas coloridas. Aqui e além, a palidez de alguns homens denunciava a presença da minha gente, que se misturava sem pejo na ousada dança.

Envolvida pela magia do cristal, trespassei a multidão delirante e entrei na Gruta da Renovação. As paredes do corredor que mergulhava no interior da terra encontravam-se iluminadas por archotes, cuja luz envolvia a figura etérea que caminhava adiante de mim. A mulher baixa e magra estava coberta da cabeça aos pés por uma veste rica, que não revelava um fio de cabelo. A sua idade avançada era denunciada pela dificuldade com que se movia.

Entramos na galeria que testemunhava a tradição de um povo, que se renovava a cada ano com a concepção de uma nova vida. Deitados numa cama feita de flores e folhas de árvore estavam os responsáveis pelo cumprimento do ritual: uma jovem de pele dourada, formas voluptuosas e longos cabelos cor de mel... e um homem de pele clara, corpo robusto e cabelos negros encaracolados. Vacilei, recusando-me a acreditar nos meus olhos. Trygve era o novo Sacerdote do Povo dos Penhascos!

Quedei-me, suspensa na negação da descoberta. Diante de mim, a Sacerdotisa retirou um punhal do interior das vestes e golpeou a mão direita, com uma precisão adquirida após décadas de prática. Esperou que o sangue se acumulasse na ferida, antes de se inclinar por cima do corpo adormecido do Sacerdote e ungi-lo na testa com a essência da sua vida. De seguida, repetiu o gesto sobre o ventre plano da jovem nativa. Por fim, a sua voz idosa e enrouquecida pelo cansaço concluiu o ritual com uma prece à deusa. Um novo Filho da Renovação fora gerado... um filho do meu primo Trygve!

Tentei libertar-me desta Visão do passado e retomar a consciência. Porém, a Lágrima do Sol reclamava desforra pela minha imposição e exigia mostrar-me mais do que eu pedira para ver. Cativa da sua magia, fui arrastada sobre o mar e afundei-me nas entranhas da Ilha dos Penhascos. Quando recuperei o alento, encontrei-me num salão forrado de dor. Uma multidão entoava um cântico lúgubre, por entre lágrimas e gemidos de profunda tristeza, em volta de um altar adornado com peles macias e plumas vistosas, onde repousava o corpo de uma anciã que acabara de iniciar a viagem pelo mundo dos espíritos. A sua mão ossuda, que ainda conservava uma réstia de calor, foi beijada com devoção por uma figura baixa e esguia, vestida de branco, com os cabelos e o rosto encobertos por uma mantilha da mesma cor. Após essa última despedida, a nova Sacerdotisa dos Penhascos deslizou qual fantasma por entre o seu povo, e embrenhou-se num labirinto de corredores, seguida a curta distância por dois guerreiros de pele dourada.

O interior do templo da Ilha dos Penhascos era um formigueiro. Eu sentia-me tonta, só por seguir a Sacerdotisa e os Filhos da Renovação que a escoltavam. Os corredores escavados na pedra cinzenta pareciam-me todos iguais. Até as chamas que os iluminavam, implantadas em pequenos nichos da parede, davam a ilusão de tremeluzir em uníssono, projetando um exército de sombras tenebrosas que acompanhavam os nossos passos. Por fim, chegamos a uma galeria onde as portas se multiplicavam. Sem hesitação, a Sacerdotisa dirigiu-se a uma delas e entrou, deixando para trás os guerreiros que guardavam a sua privacidade, imóveis como estátuas.

A minha essência ignorou a porta fechada e penetrou no aposento. Tratava-se de um quarto modesto, com uma cama estreita e baixa e uma pequena arca de madeira para guardar os haveres. Da parede de pedra nua pendia uma lanterna, que se acendeu sem que ninguém lhe tocasse. Durante dezessete anos, este fora o refúgio de uma jovem que nascera com um destino marcado. E, esta noite, esse destino viera ao seu encontro.

O tempo flutuou no silêncio, antes de a Sacerdotisa desnudar o rosto. As mulheres do Povo dos Penhascos eram reconhecidas pela sua beleza selvagem e pura, mas a formosura desta moça fez-me suster o fôlego. A sua pele dourada contrastava com a alvura do vestido, e os cabelos castanhos estavam repletos de madeixas de ouro, que lhe caíam em cascata pelas costas, até abaixo da cintura. Os olhos cor de avelã eram poços de lágrimas... Agora, que finalmente ficara a sós, podia dar vazão ao seu desgosto.

Vê-la prostrada, a chorar, partiu-me o coração. Aproximei-me, desejando aninhá-la nos meus braços, como fazia para aplacar a tristeza das minhas irmãs. A Sacerdotisa dos Penhascos era pouco mais velha do que eu e já carregava nos ombros o destino do seu povo. Apesar de nunca nos termos encontrado, senti por ela uma empatia imediata.

Sobressaltei-me quando ergueu o rosto e fixou o meu olhar. O meu assombro refletiu-se na sua expressão, mas depressa recuperou do susto. Fui eu que voltei a surpreender-me, ao ouvi-la falar a minha língua paterna, dissipando quaisquer dúvidas quanto à extensão do seu poder:

— Tu és a Guardiã da Lágrima do Sol...

Forcei-me a recompor, e confirmei com instintivo afeto:

— O meu nome é Edwina.

— E o meu é Amora — respondeu.

As nossas mãos estenderam-se e os seus dedos entrelaçaram a minha essência cintilante. Sorrimos e partilhamos de um momento de perfeita harmonia. Depois, a magia que me sustinha começou a fraquejar... Era tempo de regressar a casa.

 

O mar, estranhamente calmo, solidarizava-se com os homens para que as provas se concluíssem sem acidentes. Até as ondas se desenrolavam timidamente, mal revolvendo a areia. Atrevi-me a pôr um pé na água e senti uma dor terrível percorrer-me os ossos até ao joelho. Estava gelada! Como podiam exigir que os garotos se atirassem para dentro dela?

Ivarr abeirou-se de mim e beijou-me a mão, deliciando-se com a minha expectativa.

— Persuadi o teu pai a deixar-te acompanhar-nos, atendendo às tuas habilidades de curandeira. E também lhe falei das minhas intenções. Receava que ele me achasse precipitado, mas aplaudiu a nossa vontade e deu-nos a sua bênção. O Throst é um homem excepcional!

— Sim! — suspirei, orgulhosa. — E eu sou tão afortunada como a minha mãe!

O olhar cristalino encheu-se de luz, ao murmurar ternamente:

— Isso é um grande elogio, meu amor! Obrigado! Juro que não te decepcionarei!

Forcei um sorriso, apesar do nó que me estrangulava a garganta. Esta não estava a ser uma manhã fácil.

O dia mal nascera quando o tio Edwin irrompera pela casa do jarl, aflito, buscando a irmã. A tia Geirny piorara e o tio Berchan e a tia Ingrior haviam esgotado os seus recursos para lhe aliviar o sofrimento. Pretendi acompanhá-los, mas a minha mãe insistira para que eu permanecesse ao lado de Thora, certificando-me de que nenhum mal se abateria sobre a nossa menina. Não tive como negá-lo. Assim, o meu confronto com Trygve também foi adiado, apesar da impaciência me exasperar. Por muito que o desejasse, não podia invadir a sua casa e bradar-lhe a minha indignação, diante da enferma e do resto da família.

Tentei esquecer a mágoa, enquanto os rapazes e Thora se alinhavam na areia branca. A alguma distância da praia, uma rocha erguia-se orgulhosamente de dentro do mar. No seu topo, as fitas coloridas, destinadas a comprovar a eficácia dos candidatos, brilhavam ao Sol. Alguns barcos de pesca circundavam o local, certificando-se de que as regras seriam cumpridas. A prova consistia em nadar até ao rochedo, trepar ao seu cume, agarrar uma fita e trazê-la de volta à mão do instrutor.

O som agudo da corneta rasgou o ar e os jovens correram pela areia. Não pude evitar um esgar de dor ao ver a minha irmã mergulhar de cabeça na água gelada. Freya enfiou o braço no meu, partilhando desse pensamento. A sua voz tremia, ao reclamar:

— Não é justo! Deviam ter dado um avanço à Thora. Ela tem mais roupa do que os rapazes... Vejam, já está em desvantagem!

Era sabido que Thora nadava muito bem; rápida como uma lança. No entanto, os adversários começavam a deixá-la para trás. Só entendi a sua fraca prestação quando Ivarr replicou:

— Não te preocupes, Freya! A tua irmã está a usar o corpo e a cabeça, enquanto os tontos dos seus companheiros se esqueceram dos miolos na praia.

Pouco depois, os rapazes já trepavam o rochedo. Na posse da fita, desceram e passaram por Thora. A minha irmã chegou à rocha, escalou-a com a destreza de um gato, atou a fita em redor do pulso e saltou do topo para a água, tão direita como um fuso.

— Magnífico! — exclamou Ivarr, voltando-se para o meu pai. — Ela vai vencer, Throst!

— Não sei — hesitou o jarl. — O Quinn leva um bom avanço... De fato, os rapazes haviam-se desgastado na rapidez da primeira parte da prova, não se lembrando de que teriam de regressar. Thora começou a ultrapassá-los, um a um. Alguns já mal tinham força para dar uma braçada e só chapinhavam. E mais um, e outro, e ainda outro... até só restar Quinn adiante de Thora. A disputa acendeu-se entre os primos à saída da água. Mas Quinn estava muito cansado e acabou por se resignar. A minha irmã foi a primeira a entregar a fita ao tio Bjorn.

O meu pai gritava mais alto do que todos nós, com a temerária filha aos ombros. Havia lágrimas de orgulho nos seus olhos. Eu apressei-me a colocar uma manta por cima dos ombros da minha irmã, e a esfregá-la para que não gelasse. Por trás de mim, Ivarr felicitou-a:

— Foste a surpresa deste Verão, Thora! Mesmo que falhes a próxima prova, estás de parabéns!

Por baixo das minhas mãos, o corpo esguio estremeceu. As faces de Thora coraram, enquanto empinava o nariz e replicava com uma convicção indiscutível:

— Eu não falharei, príncipe Ivarr!

Ele sorriu levemente, antes de retrucar:

— Eu acredito em ti!

A frota dos Drakkar da Ilha dos Sonhos rasgava a água transparente, em direção ao cemitério de barcos e à última prova do dia, na qual seria exigido aos candidatos que mergulhassem e recolhessem um punhado de areia. Este era o local escolhido, porque o fundo do mar possuía uma cor escura, singular. Assim se garantia que ninguém cederia à tentação de fazer batota e guardar um pouco de areia da praia na bolsa, para depois emergir com um falso troféu.

Como os Drakkar não possuíam lugares suficientes para todos os curiosos, as mulheres aguardavam em terra. Fora Ivarr quem convencera o jarl a deixar-me acompanhá-los. Depois do sucesso de Thora e do anúncio da intenção do príncipe de oficializar o nosso noivado, o meu pai sentia-se tão feliz, que era incapaz de negar o que quer que fosse às filhas que tanto amava.

Os caracóis negros de Thora brilhavam, soltos ao vento, com reflexos de prata e ouro, céu e fogo. Os seus olhos eram raios de Sol, cintilando de antecipação. Fazia lembrar uma criatura encantada das histórias antigas, prestes a mergulhar no mar e a desaparecer para sempre. Há muito que a minha irmã suplicava ao nosso pai que a deixasse mergulhar neste sítio, e as provas de iniciação concediam-lhe finalmente a oportunidade que sempre lhe fora negada. Desde criança que Thora fantasiava com incontáveis tesouros escondidos nos esqueletos dos barcos, apesar de alguns homens experientes já terem arriscado a sua sorte, e regressado com uma mão cheia de relatos medonhos de morte e destruição.

Os instrutores deram as últimas ordens aos candidatos, que se concentravam para o mergulho. Thora escolheu lançar-se da parte mais alta do navio. Reparei que o olhar de Magnor estava preso na sua figura esbelta, e não me surpreendi ao encontrar uma animosidade gélida na expressão do jovem príncipe.

Num instante, tudo o que restava da minha irmã e dos companheiros era um rasto de espuma. Debrucei-me sobre a amurada e comecei a vê-los; pontos negros na água tremeluzente.

Bryan tocou-me sutilmente no braço e esboçou um leve movimento com a cabeça. Na popa do Drakkar, ao lado do jarl, o rei Steinarr estava da cor da cera. Sobressaltei-me quando Ivarr murmurou friamente, confirmando que pouco ou nada lhe escapava:

— O meu pai detesta água! Quando era jovem, sofreu um acidente que quase lhe custou a vida. Deves saber isso, Edwina! Foi o teu pai quem o salvou de afogar-se.

Corei, envergonhada pela minha indiscrição. Por cima de nós, Lança soltou um dos seus longos e tenebrosos gritos, e pousou no braço do dono para descansar. Ivarr devia ter uma visão tão boa como a do seu falcão e uma audição ainda melhor!

A primeira cabeça surgiu à tona e Bryan explicou-me que se tratava de um desistente. O rapaz não tivera fôlego para atingir o fundo do mar. Outro regressou, também sem o almejado troféu. Logo a seguir, Quinn voltou vitorioso e os restantes não tardaram a imitá-lo. Mas onde estava Thora?

— A tua prima tem bom fôlego? — A pergunta de Ivarr foi dirigida a Bryan.

— O melhor da família! Agüenta tanto tempo debaixo de água, que chega a assustar-nos!

Os rapazes começavam a trepar para os barcos. Alguns estavam desgastados e tiveram de ser pescados pelos homens. O tempo continuava a passar... E de Thora, nem sinal! Só faltava ela! Ivarr libertou o seu falcão com um gesto firme, descalçou as botas e despiu a túnica.

— Eu vou mergulhar...

— Espera, Ivarr! — apelou Eric, do lado oposto. — Ela vem aí! E traz qualquer coisa brilhante...

A cabeça de Thora emergiu, arfando e tossindo. Era óbvio que se esgotara até à exaustão. Ivarr mergulhou, alcançou-a com duas braçadas e levantou-a no ar para que Eric a içasse. O meu prometido não herdara o temor do rei.

— O que foi que aconteceu, filha? — indagou o nosso pai, preocupado.

Thora estava ofegante, mas os seus olhos brilhavam ainda mais do que o cálice de ouro que segurava entre os dedos. Um silêncio pesado cobriu o Drakkar e foi a minha irmã a primeira a falar, engasgando-se, sôfrega por ar:

— Eu sabia... eu disse-te, pai... um tesouro... muito... grande...

Perante o assombro geral, Thora contou-nos que descera perto de um navio. Preparava-se para deitar a mão ao seu punhado de areia, quando vira algo a luzir dentro do casco destroçado. A abertura era tão estreita, que só lhe permitira entrar com dificuldade. Lá dentro, deparara-se com um tesouro fabuloso. Então, o fôlego traíra-a e forçara-a a regressar. Eu ignorei os sussurros incrédulos. A minha irmã nunca mentia! Além disso, segurava na mão a prova da veracidade da sua história. Ela sucedera onde outros tinham falhado porque era pequena, ágil e possuía a capacidade de ver no escuro, que as filhas da feiticeira Catelyn haviam herdado da mãe.

Do centro da euforia elevou-se a voz glacial de Magnor:

— E onde está a areia, Thora? Não me digas que descobriste um tesouro e chumbaste na iniciação!

Fez-se novo silêncio. Ao encarar o príncipe rebelde, senti um frio cortante nas entranhas. Podia jurar que o fracasso da minha irmã o cobria de júbilo.

O rosto de Thora revelava a sua inocência e ingenuidade. Olhou para o nosso pai, depois para Ivarr, de seguida para Eric...

— Eu pensei que o tesouro era mais importante...

Arnald, um dos instrutores, interrompeu-a:

— A ordem que recebeste foi clara, Thora! Tinhas de descer, recolher o testemunho e regressar. Não devias ter entrado no navio! Depois de executares a tua missão, voltarias para certificar-te...

— O meu pai não permitiria! — argumentou ela, aflita. E tinha razão.

— A Thora fez uma descoberta muito importante, que certamente trará grande felicidade ao nosso povo! — protestou Eric, sabendo que ninguém ia considerar a justificação da prima. — E justo que lhe seja concedida a oportunidade de repetir a prova!

— A Thora falhou os seus objetivos — replicou o mesmo homem, voltando-se para a minha irmã. — Sinto muito, jovem! Para te darmos outra oportunidade, teríamos de dá-la igualmente aos rapazes que, ontem e hoje, ficaram para trás! Não podemos abrir exceções...

— Se me permites, Arnald... — cortou Ivarr. — Eu acho que a Thora deve aprender com esta lição. — Fixou a minha irmã, que tiritava debaixo da manta, lutando contra as lágrimas. — Ser um bom guerreiro não é apenas agarrar uma arma e investir cegamente contra o inimigo. Há estratégias a respeitar! As vidas dos teus companheiros dependem da obediência às regras definidas. Fui claro?

— Sim, príncipe Ivarr... — O murmúrio da minha irmãzinha mal se ouviu, mas ele deu-se por satisfeito e continuou:

— Todavia, concordo com o meu Primeiro Homem quando diz que esta descoberta foi crucial. A Thora não trouxe um punhado de areia do fundo do mar, mas trouxe um cálice de ouro. Sei que nunca foram abertas exceções, mas penso que esta situação merece uma avaliação diferente. Neste barco encontram-se o líder dos Aliados e o líder dos Viquingues, pais de dois rivais da Thora, cuja posição eu defendo. Cabe-lhes decidir se esta jovem, que provou tanto talento, merece uma segunda oportunidade, já que, aos meus olhos, ela não falhou.

Eu nunca ouvira Ivarr falar assim, como se estivesse a expor um caso numa Assembléia. Ele exprimira-se com uma fluidez e inteligência que não deixavam espaço para argumentações. Thora errara, mas fizera-o por uma boa causa. Agora, Lorde Stefan McGraw e o rei Steinarr deviam decidir o seu destino. Ninguém podia contestar o apelo do herdeiro do trono viquingue.

O tio Stefan falou primeiro. Disse que, por vezes, somos colocados perante decisões que podem mudar as nossas vidas. Thora sacrificara o seu sucesso pessoal em prol da comunidade. Na sua opinião, a sobrinha devia ser recompensada e não castigada. Ignorando o olhar predador do filho mais novo, Steinarr fez um discurso ainda mais completo. Elogiou a prestação de Thora na competição e deixou claro que o objetivo do teste em causa era demonstrar a resistência à ausência de ar, coisa que ela revelara sobejamente, já que estivera debaixo de água o dobro do tempo dos restantes adversários. Não havia necessidade de repetir a prova.

— Voltarás aqui após o Festival de Verão, para nos indicares a localização exata do tesouro — decidiu. — Agora, aos remos, homens! Vamos para casa...

Pensei que Thora fosse perder a cabeça e atirar-se ao pescoço do rei. Conteve-se a custo, e viu-se rodeada pelos amigos que a felicitavam. Todos, mesmo aqueles que tinham falhado, estavam contentes por ela. Todos... à exceção de Magnor!

Avistei Trygve no ancoradouro e soube de imediato que me aguardava. Se Ivarr o alertara para a minha desconfiança, ou se ele próprio pressentira que o seu segredo fora exposto, pouco me importava. Ainda não decidira se podia perdoá-lo. Surpreendi uma troca de olhares entre Ivarr, o meu pai, o tio Stefan e Steinarr, que me deixou convicta de que todos estavam ao corrente da sua história, o que me deixou ainda mais magoada.

Ignorei a mão que o meu primo estendia para me ajudar a descer do Drakkar, e deitei-lhe um esgar de desafio. Trygve suspirou com uma prostração resignada, apelando:

— Precisamos de conversar, Edwina...

Caminhei adiante dele até à praia, num passo acelerado. Ivarr nem perguntara se podia acompanhar-nos, o que provava a existência de um conluio. Quando nos afastamos o suficiente para que ninguém nos escutasse, enfrentei-o com declarado ressentimento, para que não restassem dúvidas quanto à minha indignação:

— Como pudeste entregar-te ao Povo dos Penhascos sem me dizeres nada?

O vento do fim da tarde agitou os nossos cabelos. Trygve fixou os olhos na areia, tão triste que quase me inspirou piedade... Quase! Estava tão zangada, que me apetecia saltar sobre ele e sacudi-lo até perder as forças.

— Quando fui confrontado com essa decisão, tu eras demasiado nova para compreenderes... — começou, num tom abalado, voltando-se para o mar. — Nos últimos tempos, estive prestes a contar-te por muitas vezes... Mas a coragem sempre me falhou! Devia ter adivinhado que acabarias por descobrir e ficarias ressentida. Perdoa-me! Nunca tencionei enganar-te! É que... existem coisas tão íntimas, que não é fácil falarmos acerca delas, mesmo com aqueles que amamos.

Aos poucos, o seu desalento dissipava a minha revolta, o desejo de acusá-lo de traição, e nenhum pensamento mais agreste era suficiente rara reacender a minha raiva. O amor que nos unia era verdadeiro, tão real como o ar que nos envolvia e alimentava as nossas vidas. Recordei o que a minha mãe dissera acerca de Thora. Assim como a minha irmã, Trygve também tinha de seguir o seu rumo, por mais que a separação me custasse. E a maior prova de afeto que eu podia dar-lhe era o meu apoio, mesmo discordando da sua decisão.

— Quando partes? — perguntei, quebrando o silêncio que nos rodeava.

Ele respirou fundo e susteve o meu olhar.

— A Sacerdotisa concedeu-me tempo para concluir o treino da Arte. Disse-me que, quando o momento chegasse, eu saberia reconhecê-lo, e estaria apto a assumir a minha missão.

— A Sacerdotisa morreu na noite passada — revelei com a voz embargada.

O rosto do meu primo perdeu a cor. Susteve a respiração e cerrou os punhos, denunciando um fortíssimo abalo emocional.

— Tens... a certeza?

Confirmei com a cabeça e, por um instante, julguei que ele ia chorar. Após uma luta feroz contra a comoção, os seus lábios retorceram-se num trejeito doloroso e trêmulo.

— A morte da Sacerdotisa determina que o meu tempo de aprendizagem se esgotou. — Hesitou, forçando-se a recuperar a serenidade. — Após a Festa da Renovação, partirei com esse povo, que já é o meu, para a Ilha dos Penhascos. — Deteve o meu protesto com um gesto firme. — A nova soberana vai necessitar da minha orientação...

— A nova Sacerdotisa não precisa que ninguém lhe diga o que fazer, Trygve! — contrapus teimosamente. — Eu vi-a... Ela pode ser jovem, mas possui uma determinação de ferro!

— Tu viste-a? — indagou ele, incrédulo.

— Sim! E ela também me viu. Chama-se Amora e é muito bonita...

— Não, Edwina! — deteve-me, num tom quase assustado. — Eu não devo saber, nem sequer imaginar qual é o seu aspecto. A tradição assim o ordena!

Apeteceu-me mandar para o inferno essas malditas tradições, que tão brusca e cruelmente o afastavam de mim.

— Como foi que isto aconteceu, Trygve? Como pudeste aceitar este... modo de vida tão estranho?

Ele encolheu os ombros, sem esperar que eu o percebesse verdadeiramente.

— Eu tinha acabado de completar quinze anos... O Sacerdote dos Penhascos há muito que buscava um sucessor. Na primeira vez que falamos, não teve dúvidas quanto ao meu destino. E, depois de visitar a Ilha dos Penhascos e conhecer o seu povo, tudo se tornou claro no meu espírito.

Apesar de lhe ter sido permitido completar o seu treino, naquele mesmo Verão Trygve assumira uma nova missão de vida, vestindo a pele de Sacerdote dos Penhascos durante a Festa da Renovação. E isso queria dizer que já tinha cinco filhos!

— De início, julguei que seria fácil abstrair-me — confessou a meia-voz, ciente da minha reprovação. — Porém, o tempo provou que tal é impossível! Das mulheres com quem dormi não guardo memória. Da mesma forma que eu, elas submeteram-se à lei para o bem da comunidade. Mas as crianças... O meu coração está cada dia mais distante da Ilha dos Sonhos, Edwina. Quero ver os meus filhos a crescer! Quero abraçá-los e ensinar-lhes os meus valores! Sei que será difícil mas, a seu tempo, tenho esperança de que a minha vontade prevaleça. Se a nova Sacerdotisa estiver receptiva às minhas idéias, poderemos fazer muito para melhorar a vida na ilha, sem desprezarmos as tradições.

O entusiasmo de Trygve era uma adaga a revirar-se no meu peito. Como pudera ele, durante seis anos, conjugar duas vidas tão distintas? E como as escondera de mim?

— Compreendes agora por que não posso apaixonar-me? — concluiu sobriamente. — Se amasse uma mulher, tudo o que represento tornar-se-ia insuportável!

— Não consigo imaginar a minha vida sem ti — repliquei desconsolada.

— A tua vida também vai mudar — volveu ele, com convicção. — O teu controle sobre a Lágrima do Sol é quase perfeito. Em breve, serás a sua guardiã e rainha do povo viquingue. Todos temos uma missão a cumprir na Terra, Edwina! Eu encontrei o meu rumo, e sinto-me honrado por esta responsabilidade. A minha decisão não irá separar-nos, pois as nossas mentes estarão em sintonia. Além disso, poderás visitar-me sempre que o desejares. Nós somos irmãos de espírito! O amor que nos une é indestrutível!

Na casa do jarl preparava-se o faustoso jantar da noite, que comemorava o fim das provas que conferiam aos nossos jovens o direito de participar na Caçada... e assinalava o meu pedido oficial de casamento. Eu não podia regressar com os olhos marejados de lágrimas! Tinha de acalmar-me primeiro; ficar a sós com os meus pensamentos e atenuar a dor do meu coração.

Busquei a tranqüilidade da Floresta da Magia para serenar o espírito, sem me afastar do trilho principal. Sentei-me ao coberto de uma árvore centenária e repousei a cabeça nos joelhos. Finalmente, longe de qualquer olhar, permiti-me ceder ao choro.

Desde o dia em que perdera o meu primo Edwin, que não me sentia tão triste. Trygve era o meu melhor amigo... Por mais que repetisse que a separação fazia parte do nosso crescimento e que, cedo ou tarde, seria inevitável, saber que jamais recuperaríamos a plenitude da nossa cumplicidade doía-me para além da razão.

As minhas lágrimas tombaram no solo e cobriram as folhas secas, quais gotas de orvalho. Uma energia fresca libertou-se da terra efervescente de vida, e envolveu-me tão sutilmente que, de início, nem me apercebi do que estava a acontecer. Era uma brisa suave; um aroma delicioso... Era a mais pura das magias, que me abraçava e reconfortava.

Por um instante, senti o coração da Terra palpitar, a seiva a percorrer o tronco do carvalho, o bater das asas dos pequenos pássaros que se abrigavam sob a copa verde-escura, a imensidão azul do céu, rasgada por nuvens enxertadas de cinzento, laranja, rosa e vermelho...

Fechei os olhos e respirei fundo, inebriada por uma sensação de leveza. Nos meus pulsos, as tatuagens que testemunhavam a minha herança mágica pulsavam com vida própria. O imponente dragão despertava, estendia o tronco colossal e esticava as garras, antes do seu olhar ígneo desafiar o Sol moribundo. A Lua nascia, branca, redonda, sorridente... Senti uma inesperada exaltação percorrer-me; uma euforia que me queimou por dentro, arrepiou a pele e forçou-me a abrir os olhos. Já não me encontrava sozinha. A manifestação de um poder fenomenal arremetia contra mim, agitava os ramos das árvores e vergava os arbustos. Por cima da minha cabeça, os pássaros levantaram vôo, chilreando estridentemente. Ergui-me devagar, com o fôlego suspenso, trespassada pela estranheza de um reconhecimento que não conseguia identificar. Havia algo de familiar na onda de calor que se preparava para me cobrir...

De súbito, tão bruscamente como surgira, o prodígio desapareceu. A poucos passos, os arbustos ainda se agitavam. O ar estalava, pejado de energia. Olhei em volta, confusa. Por vezes, «O Que Tudo Vê» punha-me à prova, surgindo inesperadamente, confrontando-me com as situações mais aberrantes para observar como reagia. Porém, segundo Steinarr, o meu bisavô viajara para o Norte... E a minha mãe encontrava-se demasiado ocupada, para se distrair com brincadeiras! Além deles, não conhecia ninguém suficientemente poderoso para causar tamanha perturbação na estabilidade natural. Estava prestes a desafiar o que quer que fosse que se ocultava nas sombras a revelar-se, quando escutei as vozes.

Dois rapazes aproximavam-se, percorrendo o trilho com passadas largas. Quinn e Magnor... O meu primo dizia:

— Isto não me agrada! Sabes bem que estamos proibidos de entrar na floresta até ao início da Caçada Se nos apanharem, pensarão que andamos a tentar localizar as armadilhas... a fazer batota!

— Não sejas medroso, Quinn! — retorquiu o príncipe, com ardor. — Além disso, não podia arriscar-me a que alguém ouvisse a nossa conversa!

— Afinal, o que é que tens para me dizer que justifique tanto segredo?

— Preciso do teu apoio! Temos de impedir a Thora de participar na Caçada!

Seguiu-se um longo silêncio, em que temi que as batidas descontroladas do meu coração se tornassem audíveis. Encostei-me o mais possível contra o tronco do carvalho, para ocultar a minha presença. Eles estavam tão perto, que eu poderia cair-lhes em cima com um salto, e pregar-lhes o maior susto das suas vidas. Para o maquiavélico príncipe seria bem feito! Todavia, já que surpreendera a sua conspiração, queria escutar a conclusão da conversa.

— O que é que tu tens contra a Thora? — inquiriu Quinn, por fim, num tom gélido que me deixou aliviada.

— Abre os olhos! A tua prima é uma bajuladora! Uma trapaceira! Devia ter sido eliminada! O que mais me dói, é que foi o meu próprio sangue que conspirou contra mim! Não compreendo o protecionismo do Ivarr...

— O Ivarr não favoreceu a Thora! — atalhou Quinn, indignado. — Ela provou o seu valor! Não entendo por que estás desgostoso! Em que é que a sua vitória te prejudicou? Tu nem competiste conosco!

— Mas vou competir amanhã! Tu e eu devemos unir-nos; pedir aos nossos pais que não consintam que uma moça ridicularize as tradições!

— Faz o que quiseres, Magnor! — volveu o outro. — Porém, não contes comigo para falsear a minha prima!

— Falsear? E ela quem está a querer passar-te a perna! Por que fez questão de intrometer-se nos assuntos dos homens, precisamente este ano, senão para provar que é melhor do que tu?

Quinn soltou uma interjeição de desprezo, contrapondo:

— A mim parece-me que és tu quem está com medo de ser vencido pela Thora!

— Que disparate! — revidou Magnor, cuspindo desdém. — Nem toda esticada aquela fedelha chegaria aos meus calcanhares! Eu sou filho do guerreiro-urso, rei dos Viquingues, e a minha prestação será gloriosa! Apenas ergo a voz porque defendo a justiça!

— Então, não tens o que temer! — escarneceu Quinn, com notória impaciência. — Quanto a mim, agradeço a tua solidariedade, mas dispenso-a! Não me sentirei desonrado, se a Thora me superar. Ela não é uma moça qualquer! É a filha do meu jarl! Se, um dia, tiver de erguer a espada debaixo do seu comando, fá-lo-ei com muito orgulho!

Percebi que o meu primo voltava as costas a Magnor e regressava à aldeia. Furioso, o outro ainda vociferou:

— Vais arrepender-te disto!

— Já estou arrependido! — replicou Quinn sem se deter. — Devia saber que não valia a pena perder o meu precioso tempo com os teus disparates!

Magnor praguejou e desatou a chutar tudo o que tinha ao alcance dos pés. Ponderei dar-me a conhecer e repreendê-lo, mas resolvi em contrário. Quinn já lhe respondera à altura, provando que era um jovem honesto e leal.

O príncipe embrenhou-se na floresta, remoendo a sua fúria, desprezando as regras impostas pelos instrutores. Assustava-me pensar que Thora podia participar na Caçada, mas já quase desejava vê-la levar a sua ambição avante, para ensinar uma lição de coragem e nobreza àquele conspirador. Seria bem feito se, nesta sua intromissão clandestina, o vil traiçoeiro se deparasse com uma armadilha, e passasse a noite aprisionado num buraco, ou pendurado num laço, de focinho voltado para o chão, para que, de manhã, todos constatassem a sua transgressão!

Respirei fundo, acariciando os pulsos onde as tatuagens do Dragão do Sol jaziam inertes como se nunca se tivessem manifestado. A energia que quase incendiara o ar, antes de Magnor e Quinn aparecerem, finara por completo. Provavelmente não passara de uma distorção no equilíbrio da magia, provocada pelo descontrole das minhas emoções.

A noite invadia a floresta. Era tempo de regressar, antes que a minha ausência se tornasse motivo de estranheza e preocupação. O objetivo de serenar o espírito fora frustrado. Contudo, pelo menos secara as lágrimas e reunira alento para enfrentar o que me esperava.

A azáfama no povoado já denunciava a festa que se preparava na praia. Em todas as ruas, os archotes ardiam alegremente junto das portas enfeitadas com o brasão do clã a que a casa pertencia, orgulhosamente exposto para fazer saber que, naquele lar, um jovem estava prestes a tornar-se homem e a honrar a sua família com magníficas façanhas. Nas habitações onde não viviam aspirantes a guerreiros, as portas eram enfeitadas com flores e guizos, que tiniam à mais leve brisa, enchendo a noite de música.

Estava prestes a chegar a casa, quando uma mão se fechou sobre o meu braço e me puxou para a sombra de um beirai. Engoli um grito ao reconhecer Ivarr, e acabei a rir quando ele me roubou um beijo, antes de demandar:

— Onde estiveste, Edwina? A tua mãe pediu-me que te procurasse...

Silenciei-o com outro beijo e justifiquei:

— Depois de falar com o Trygve, fui dar um passeio. Precisava de pôr as idéias no lugar!

Já não havia censura na sua voz, apenas carinho, quando indagou:

— E a que conclusão chegaste?

Respirei fundo e descansei a cabeça no seu peito, respondendo:

— Dei-lhe o meu apoio... O que mais podia fazer? Há muito que o Trygve fez a sua escolha!

— E necessita da nossa ajuda para levá-la adiante! — asseverou Ivarr. — A missão que o teu primo abraçou não é fácil! Devemos louvar a sua coragem!

Ante estas palavras, a menor argumentação soaria a maldade. Fechei os olhos e deixei-me embalar no seu calor. Perto de Ivarr, as minhas preocupações minoravam. Surpreendi-me ao ouvi-lo anunciar, com inusitado desprazer:

— O teu pai convenceu a Thora a desistir de participar na Caçada.

Fixei-o estupefata. Ivarr exprimira-se como se desabafasse uma frustração, aborrecido, quase irritado... o que não fazia sentido!

— E isso não é uma boa notícia? — perguntei. — Tu próprio afirmaste que a ambição da Thora era um disparate!

— Eu sei! — replicou impaciente. — Mas, depois... Como posso explicar-te? Nestes dois dias, mudei de opinião. A tua irmã tem um talento extraordinário...

— E pode empregá-lo noutros projetos que não impliquem risco de morte! — atalhei com firmeza. — Eu estou muito contente com esse desenvolvimento, Ivarr! E tenho a certeza de que o resto da minha família também...

— Sim — tornou ele, com um suspiro. — Principalmente o Eric, que não perdeu tempo! Neste momento, deve estar a declarar-se à tua irmã!

— Pareces contrariado! — volvi num tom acusador. — Julguei que apoiavas o entusiasmo do Eric pela Thora!

Ivarr abriu a boca e tornou a fechá-la. A minha exprobração teve o poder de despertá-lo para a sua atitude contraditória. Passou a mão pela testa e sacudiu os ombros, sorrindo, mais para si próprio do que para mim.

— Tens razão! É só que... Começava a acreditar que a Thora podia ir longe! — Hesitou, antes de fechar a mão na minha e incitar-me a andar. — Não importa! Perdeu-se uma guerreira, mas certamente irá ganhar-se uma boa esposa, uma mãe devota e uma rainha dedicada! Depois de mim, o Eric não podia ter escolhido melhor!

O elogio soube-me a pouco, ante a sua decepção. Cheguei-me para mais perto e Ivarr rodeou-me a cintura com o braço. Contou-me que a tia Geirny melhorara, graças à dedicação da minha mãe, do tio Berchan, da tia Ingrior e do primo Krum, que não a tinham abandonado por um instante. Até se aventurara a deslocar-se para assistir ao jantar na casa do jarl, junto da família.

De fato, lá estava, ainda muito pálida, mas ostentando um sorriso caloroso. Atento ao mais leve dos seus suspiros, o tio Edwin segurava-lhe na mão, fitando-a com ar enamorado. A sua postura era sempre tão severa, que eu nunca me apercebera da intensidade do amor que devotava à princesa. Aproximei-me para cumprimentá-los, mas a minha mãe interceptou-me e arrastou-me para o meu quarto, onde a tia Ingrior e Freya já me esperavam.

A aguardar-me estava também um vestido digno de uma princesa viquingue; cor de pérola, bordado a castanho e enfeitado com uma finíssima renda azul no decote alto, nos punhos das mangas estreitas e na bainha da saia de pregas. A adorná-lo, um lindíssimo avental cor de terra, bordado a azul e pérola, com um bolso para albergar a Lágrima do Sol.

— Fui eu que o fiz para que o usasses neste dia — disse a tia Ingrior, beijando-me comovida.

Dois criados trouxeram uma tina com água perfumada e a cortina do quarto fechou-se atrás de nós. Por entre gargalhadas, as três esfregaram-me energicamente com panos macios, dos pés à cabeça, eliminando da minha pele os vestígios deste dia de emoções intensas. Quando terminaram, eu cheirava melhor do que uma flor.

Enfiei-me dentro do vestido novo, soltando exclamações maravilhadas ao verificar a perfeição com que assentava no meu corpo. A tia Ingrior era, sem dúvida, a mais habilidosa das artesãs viquingues! Freya não parava de choramingar que também queria um vestido assim, e a tia prometeu fazer-lhe um ainda mais bonito. Encontravam-se a meio da árdua tarefa de domar os meus caracóis rebeldes com os ganchos de marfim, quando a cabeça desgrenhada de Thora espreitou pela cortina, apelando ansiosamente:

— Posso entrar? Preciso da vossa ajuda!

As suas faces flamejantes revelaram-me o motivo de tamanho desassossego. O sorriso da minha mãe também denunciou o seu conhecimento. Ivarr tinha razão. Eric não perdera tempo!

Thora sentou-se na cama, ao nosso lado, e enrolou as mãos uma dúzia de vezes, antes de reunir coragem para confessar:

— O primo Eric veio falar-me... Diz que gosta de mim e que quer... quer... O Eric quer desposar-me!

Gritamos as quatro em uníssono, deliciadas. Abracei Thora, enquanto a minha mãe e a tia Ingrior trocavam um sorriso. Freya saltitava com tamanho entusiasmo, que quase caiu dentro da tina. Acabou por ajoelhar-se aos pés da sua gêmea, perguntando desejosa:

— E tu aceitaste?

Embaraçada, Thora ocultou o rosto escarlate com as mãos.

— Eu disse que ia pensar... Não esperava... O Eric gosta de mim! O homem mais maravilhoso que eu conheço gosta mesmo de mim!

— Isso quer dizer que também gostas dele? — indaguei entusiasmada.

Thora fixou-nos uma a uma, parecendo perdida.

— Não sei! Pensava no Eric como um irmão mais velho, sempre presente para livrar-me dos sarilhos. Devo-lhe muito do que aprendi! Gosto das coisas que fazemos juntos... de nadar, de pescar, de conversar... E sinto a sua falta quando acompanha o príncipe Ivarr. Isso é amor?

A nossa mãe sorriu, amimando-a nos braços.

— Se não é, querida, está muito bem encaminhado! Sabes que eu e o pai aprovamos essa união?

Thora confirmou com a cabeça.

— O Eric disse-me que já falou convosco. O que é que eu faço, mama?

— Dizes que sim, sua parva! — replicou Freya, tão excitada que não conseguia parar quieta. — Quem me dera que alguém tão especial como o primo Eric se interessasse por mim!

— Por que é que hesitas, mana? — insisti, percebendo-a dividida entre a alegria e o medo.

Thora refletiu antes de se explicar:

— Isto é novo para mim... Nunca pensei que um homem desejasse desposar-me! E, muito menos, um homem tão bom como o Eric! Todavia, ao mesmo tempo, sinto que me falta ver e fazer tanta coisa... aprender, conquistar... Sempre quis viver como a tia Geirny. Casar e ter filhos estava nos meus planos... mas não agora!

A senhora da casa segurou-lhe o queixo, incentivando-a a encará-la.

— Tu ainda és muito menina, Thora. Eu e o pai também não queremos que te cases já. Só precisamos de saber se esta proposta te agrada para que, quando surgirem outras, as rejeitemos, justificando que te encontras prometida ao teu primo.

— Seria... — Thora hesitou — como a mana e o príncipe Ivarr? A nossa mãe confirmou:

— Casarás dentro de dois ou três anos. Está bem assim?

Thora aquiesceu; o rosto resplandecendo de felicidade. A mãe beijou-lhe a testa, antes de ordenar com firmeza:

— Agora, vai arranjar-te para o jantar! Ingrior, dá-lhe uma ajuda, ou nunca mais conseguiremos sentar-nos à mesa!

— Eu também vou! — gritou Freya, correndo atrás delas. — Quero saber todos os pormenores!

Fiquei sozinha com a minha mãe, partilhando um sorriso cúmplice. As suas mãos moviam-se sobre os meus caracóis com a experiência ganha numa vida. Estava prestes a terminar, quando me confessou com um suspiro:

— Esta tarde, o Aled anunciou-nos, a mim e ao teu pai, o seu afeto pela Melody. Pediu a nossa bênção para solicitar ao tio Stefan a mão da tua prima.

Exprimi o meu encanto, mas não tardei a verificar que algo a perturbava. Temeria a reprovação do tio Stefan, que destruiria as ilusões de Aled? Tal não me parecia provável! O meu primo era um jovem de reconhecido valor e o mais velho dos herdeiros da família McGraw. Além disso, Melody ainda não tinha pretendentes, e o tio Stefan faria questão de escutá-la antes de tomar qualquer decisão. E, para mim, a noite anterior fora elucidativa quanto à preferência da jovem!

— Achas que o tio Stefan vai discordar? — inquiri.

— Ele já deu o consentimento. O Aled tem permissão para anunciar o seu compromisso com a Melody, após o teu pedido de casamento.

— E isso não é uma boa nova? — argumentei. — Ou estás triste porque o Aled não se encantou pela Freya?

A minha mãe sentou-se ao meu lado, denunciando cansaço. As suas mãos fecharam-se sobre a pedra azul que lhe pendia do pescoço, legado da sua avó, a feiticeira Aranwen, e esse gesto teve o poder de me alarmar. Entretanto, ela já respondia; o olhar verde, límpido e intenso, fulgindo de preocupação:

— Eu quero tanto ao Aled como se ele fosse meu filho! Jamais o obrigaria a casar-se contrariado. Mas, por que teve de escolher uma menina que herdou o nome da sua mãe? Isto pode parecer-te disparatado, Edwina... Todavia, sinto uma apreensão que não consigo justificar! Tu sabes que os pais do Aled viveram um amor tormentoso... Receio que o destino esteja a preparar-nos uma das suas pérfidas armadilhas, montando minuciosamente o cenário perfeito para repetir a tragédia.

Ela tinha razão. O seu temor não fazia sentido! Porém, ao longo dos anos, eu aprendera que os pressentimentos da minha mãe não deviam ser ignorados. Estendi as mãos ao encontro das suas e toquei no amuleto azul, replicando com firmeza:

— A maldição que pendia sobre os McGraw foi desfeita há muito. Tu encarregaste-te disso...

— Contudo, Aesa continua a ameaçar-nos... a ameaçar-te, Edwina! Temo por ti e por todos nós! Desejava poder dar a minha bênção aos teus primos, sem que os fantasmas do passado regressassem para assombrar-me... Mas não consigo! Sorrirei quando o compromisso de Aled e Melody for anunciado e estarei ao seu lado, lutando para que a felicidade que tanto merecem se torne realidade. No entanto, só descansarei o coração quando os mestres da Arte Obscura desaparecerem da face da Terra. Espero que o desconforto que me afligiu no instante em que escutei as intenções de Aled não passe de uma tolice... Porque, se algo de mau se concretizar, serei forçada a viver com a mágoa de nada ter feito para impedir este casamento.

O contentamento da nossa família e amigos enfeitava a casa do jarl. Ao lado do meu prometido, eu comi, bebi, dancei e cantei, esquecendo por momentos os problemas que se acumulavam à minha volta. Thora também resplandecia de alegria, os olhos verdes cintilando com o fulgor de mil sóis, deslumbrante dentro do vestido colorido que Freya a convencera a usar. Eric mantinha-se por perto, desencorajando o interesse crescente dos pretensos rivais, decidido a defender o seu território com unhas e dentes. E o mais engraçado é que a sua atitude, ao contrário do que seria esperado, parecia lisonjear Thora.

Magnor apareceu no início do jantar, quando eu já o imaginava a estrebuchar numa armadilha. Despira o seu olhar maldoso e vestira a pele do jovem encantador que fazia as moças ingênuas suspirarem de adoração. Quinn fez questão de se afastar para o lado oposto do salão, para evitar a mais tênue oportunidade de estabelecer conversa. Era óbvio que, depois do que Magnor fizera, o meu primo não mais voltaria a dar-lhe confiança.

Por fim, Ivarr atraiu a atenção dos convivas e pediu a minha mão ao jarl. Para assinalar o momento, ofereceu-me um sublime colar de prata, com os símbolos reais esculpidos: o Carvalho da sabedoria e o Falcão do poder. A jóia, que pertencera à sua mãe, possuía um valor sentimental incomensurável. Usá-la seria uma honra! Sustive o fôlego ao ouvi-lo declamar:

— Edwina, filha de Throst, Primeiro Homem de Steinarr, rei do povo viquingue e meu muito amado pai; que todos os presentes testemunhem que o meu corpo e a minha alma te pertencem. Lutarei pela tua honra, morrerei pela tua vida...

Estes votos, que eu já ouvira tantas vezes em outras cerimônias, possuíam um significado especial porque me eram destinados. Fixei o olhar cristalino de Ivarr e, com a voz a tremer de emoção, jurei-lhe fidelidade e dedicação. Pela primeira vez, o meu noivo estreitou-me e beijou-me apaixonadamente diante das nossas famílias. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, enquanto a sua voz me conduzia às estrelas:

— Amo-te, Edwina! Juro-te que não existirá casamento mais perfeito do que o nosso!

Pouco depois, o tio Stefan anunciava o noivado de Aled e Melody. E o meu pai e o primo Krum não perderam tempo e comunicaram o compromisso de Eric e Thora. A minha irmãzinha estava ao lado do seu prometido, incomodada por se ter tornado o centro das atenções. Aproximei-me para cumprimentá-los e ouvi Bryan gracejar:

— Eu jamais te perdoarei, Eric! Passaste a perna a todos nós! E agora, que faremos com os nossos corações despedaçados?

Ivarr abraçou o melhor amigo e, após uma breve troca de felicitações, voltou-se para Thora. A minha irmã estava muito nervosa. Esboçou uma vênia desastrada, exclamando sumidamente:

— Obrigada por tudo, príncipe Ivarr!

— Ivarr — corrigiu ele, segurando-lhe a mão e levando-a aos lábios. — Não há necessidade de cortesias entre nós, Thora. Afinal, vamos ser irmãos! Estou certo de que o Eric sabe a sorte que tem. Tu não és apenas uma menina bonita e inteligente. Es uma guerreira que não hesitará em pegar numa arma para defender a sua casa e a sua família... E isso, meus senhores, nos dias que vivemos, é um tesouro maior do que aquele que a nossa heroína encontrou no fundo do mar.

Thora derreteu-se com o elogio, que recebeu um aplauso geral. Brindei com entusiasmo à nossa felicidade e abracei Ivarr com força, pensando que nada podia estragar este momento.

— Já que estamos todos reunidos, eu também tenho algo para dizer...

Gelei ao ouvir Magnor chamar as atenções sobre si. Instintivamente, fixei Quinn, pensando que o príncipe se atreveria a afrontar Thora. Pelo olhar do meu primo, concluí que temia o mesmo. Todavia, a intenção de Magnor era bem distinta:

— Como vós sabeis, empreendi esta viagem até à Ilha dos Sonhos com o intuito de entrar na Floresta da Magia e buscar a minha metade espiritual. Escolher uma noiva e firmar um compromisso estava longe dos meus planos. Contudo, nestes dias de convívio com as donzelas da casa do jarl, o coração atraiçoou-me. Garanto-vos que ponderei nesta decisão, porque penso que o amor é um assunto sério, e o casamento para toda a vida, como professa a nova fé...

Eu tinha de admitir que Magnor sabia prender a assistência! Era uma surpresa e um alívio ouvi-lo falar de amor. Enquanto estivesse distraído com os atropelos do coração, não causaria outros danos. Calculei que o seu entusiasmo se dirigisse a Estrid, já que haviam passado muito tempo juntos nas últimas noites. E ela também pensava o mesmo, pois sorria e saltitava nos sapatos, enquanto ele prosseguia:

— Desde o primeiro instante, o coração não me deu tréguas... E, depois de observar a felicidade dos casais que me rodeiam, fui forçado a render-me aos meus sentimentos, convicto de que a minha escolha irá cobrir a minha família de satisfação. — Inesperadamente, voltou-se para o meu pai. — Jarl Throst, Primeiro Homem do rei Steinarr, meu adorado pai, honrai-me ao conceder-me a vossa permissão para cortejar a menina Freya.

Um simples olhar bastou para verificar que até o seu pai e o irmão tinham sido apanhados de surpresa. Colada ao chão, incapaz de respirar, li Magnor como se de um livro aberto se tratasse. Após a morte de Steinarr, Ivarr herdaria o trono do Norte e estava disposto a partilhá-lo com Eric. Na Grande Ilha, os McGraw só possuíam a força que o rei do Império lhes concedia. Porém, a Ilha dos Sonhos tinha um soberano que, apesar de prestar vassalagem ao rei viquingue, possuía autonomia de decisão. E esse poder não tinha herdeiros, já que Aled acabara de colocar-se fora da disputa, ao escolher Melody para sua esposa. Com este golpe, Magnor assegurava-se de que seria ele o sucessor do jarl.

O meu pai ficou lívido. Magnor seria o último marido que ele elegeria para a sua filha mais nova! Contudo, diplomaticamente, a situação era muito delicada.

— Expuseste a tua causa de forma original, rapaz! — começou com cautela. — Penso que a primeira coisa a fazer será escutar a opinião do teu pai. O que me dizes desta declaração, Steinarr?

A ira do rei viquingue era perceptível no seu olhar, na tensão do corpo, na forma como abria e fechava as mãos. Porém, falou com um distanciamento e um controle admiráveis:

— Confesso que, mais uma vez, o Magnor me surpreendeu! Como pai, desejava que ele tivesse partilhado os seus sentimentos comigo, antes de assumir publicamente a escolha do seu coração. Contudo, Throst, não é segredo a estima que nos une e o carinho que sinto pela tua família. As nossas casas já se encontravam unidas pelo amor dos nossos filhos mais velhos e a intenção do Magnor consolidará essa união. Nada tenho a opor.

Magnor fizera uma jogada brilhante! Eu acreditava que o rei preferisse casá-lo com Estrid, Gwenneth, ou uma das filhas do Imperador, fortalecendo assim a sua posição na Aliança, ou junto do Império. Porém, diante da família e dos amigos, Steinarr não tivera outro caminho a seguir, senão o que tomara. E o meu pai também não podia justificar uma recusa, sem causar um profundo constrangimento... Quanto à minha mãe, estava da cor da cera. Ambas sabíamos que o jarl só tinha um argumento a apresentar, que colocaria a resolução deste imbróglio nas mãos do destino. E foi o que ele fez:

— A afeição que une as nossas casas é sobejamente conhecida. Contudo, jurei que jamais imporia uma decisão tão importante como esta às minhas filhas. A Edwina e o príncipe Ivarr irão unir-se de livre vontade. E é também por sua vontade que Thora assume um compromisso com Eric, filho de Krum. A decisão do pedido do príncipe Magnor só pode ser tomada por Freya. — Voltou-se para a minha irmã. — Peço-te que reflitas com calma acerca desta proposta, filha. Lembra-te de que estás livre de qualquer imposição política ou social. A felicidade de um casal reside no amor que os une... E eu quero, acima de tudo, que tu sejas feliz!

Freya era uma menina inocente, doce e, talvez, demasiado sonhadora, que não possuía o meu desenvolvimento espiritual nem a vivência de Thora, para vislumbrar a pobreza do caráter de Magnor. Neste momento, tudo o que enxergava era a inesperada realização do mais secreto dos seus sonhos. Debaixo do olhar espantado de familiares e amigos, e do esgar colérico de Estrid; movida pela mão caprichosa daqueles que manipulam e distorcem ridiculamente o destino dos Homens, a minha irmãzinha levantou-se e respondeu de imediato:

— Há muito que o meu coração anseia por ouvir estas palavras, papai! Terei imenso prazer em aceitar a proposta do príncipe Magnor.

Os meus pais ficaram mortificados. Eu quase gritei de raiva e frustração. O incidente que testemunhara nessa tarde, na floresta, ardia-me na mente qual incêndio descontrolado. Magnor era um rapaz mesquinho, que não merecia um fio do cabelo de Freya. Porém, com este ímpeto, ela destruíra as minhas expectativas de lhe revelar a verdade... e ditara a sua sorte!

Era extraordinário como tudo se alterava num abrir e fechar de olhos! Se, na noite anterior, Thora nem se levantara da areia para dançar, hoje, não parava sentada. O vestido colorido contrastava maravilhosamente com os seus caracóis negros e as faces rosadas de felicidade. Ver os rapazes a brigarem por um rodopio nos seus braços, em torno das fogueiras, era uma novidade refrescante. Ao contrário do que se podia acreditar, Thora dançava tão graciosamente como lutava... Porém, Eric depressa se cansou de partilhar as atenções da sua prometida e começou a enxotar os rivais, provocando as gargalhadas dos amigos.

Ivarr tentava convencer-me a entrar no bailado, demasiado eufórico para reparar na minha perturbação. Declinei o seu convite uma dezena de vezes, mordendo a língua para não respingar que o seu irmão era parcialmente culpado pelo meu constrangimento. Ver Freya nos braços de Magnor, por mais satisfeita que a minha irmã pudesse estar, corroíam-me os nervos!

Estrid também estava de mau humor. Para vingar-se da desfeita de Magnor, arrastava os seus pares de dança até ele, exibindo-se descaradamente, a fim de lhe mostrar o quanto perdera por não a ter escolhido. Svana também não estava a ser bem-sucedida em atrair a atenção de Bryan, e acabou por ceder à simpatia de Quinn. Alheios aos demais, Aled e Melody dançavam de mãos dadas. Esta noite, a pedra verde suspensa do pescoço do meu primo ostentava um brilho especial... Ou talvez fosse impressão minha! Estaria a deixar-me influenciar pelos temores da minha mãe?

Muitos anos se haviam passado desde que Aesa, rainha do povo Vândalo, irmã de Sigarr e mestra da Arte Obscura, amaldiçoara os McGraw para se apoderar das sete pedras mágicas de Aranwen. No entanto, a minha mãe e os irmãos ainda empalideciam sempre que o seu nome era proferido. Por mais que o meu pai e o rei Steinarr se esforçassem por manter a hedionda feiticeira confinada ao seu reduto, no interior da Floresta Sombria, território fronteiro ao País dos Viquingues, ninguém duvidava de que, um dia, ela voltaria a atacar-nos.

A magia aprisionada dentro das pedras mágicas representava uma tentação constante para os feiticeiros renegados e exilados da Terra, pois quem a libertasse tornar-se-ia todo-poderoso. Por essa razão, a minha família estava sob permanente ameaça. No rescaldo da guerra com a feiticeira Gwendalin, o tio Stefan quisera destruir as pedras... mas votara vencido. Estas permaneceram ao cuidado dos seus herdeiros: Aled ficara com a verde, pertencente ao seu pai, o tio Edwin conservara a vermelha, o tio Berchan, a branca, o tio Stefan, a amarela, e a minha mãe, a azul. As pedras violeta e cor de laranja, dos meus falecidos tios Quinn e Fiona, encontravam-se escondidas num lugar apenas conhecido pelos seus irmãos. Nem eu me atrevia a bisbilhotar esse mistério. Uma intromissão no segredo mais bem guardado da minha família, por muito inocente que fosse, poderia ser detectada por uma criatura malévola... e resultar numa catástrofe.

Perdida nos meus pensamentos, fiquei atordoada quando Ivarr exclamou:

— A Thora é muito bonita! Depois desta noite, ninguém a confundirá com um rapaz!

A sua intenção podia estar isenta de malícia, mas a sua voz feriu-me. Fixei-o, indignada. Se elogiar a minha irmã era uma forma de me convencer a dançar, então ele ignorava por completo os desígnios do coração de uma mulher! Todavia, Ivarr parecia esquecido da minha presença; a sua atenção estava presa no par que girava diante de nós. Mal quis acreditar quando avançou, sem me dizer uma palavra, e interpelou Eric, solicitando uma dança com a prometida do amigo.

Gelada por dentro, vi Thora parada diante de Ivarr, com o rosto em fogo e o olhar no chão. Seria o seu sobressalto resultante da timidez, do embaraço, da reverência... ou de algo mais? Os meus olhos aumentavam a imagem até torná-la ofensiva: a mão de Ivarr a procurar a de Thora, os dedos fortes a fecharem-se em redor dos dela, o polegar a deslizar pela sua pele delicada... Os olhos da minha irmã a erguerem-se devagar, ao encontro dos do príncipe... e uma trovoada intensa a deflagrar entre eles. O sorriso a desvanecer-se no rosto de Ivarr. O elogio, em tom de gracejo, entalado na sua garganta. A outra mão a mover-se com uma lentidão angustiante até à cintura estreita, a apertá-la mais do que o necessário. Os lábios de Thora a entreabrirem-se, inocentes e sedutores, para libertarem a respiração descompassada, que forçava os seios pequenos e firmes a projetarem-se no decote do vestido...

— Edwina — apelou Eric pela terceira vez. — Onde estás com a cabeça, prima?

Olhei-o sem realmente o ver. Falava de Thora... A minha irmã estava nos braços do meu noivo... E, por mais que eu repetisse que não havia maldade nesta aproximação; que até seria bom se ela caísse nas boas graças do herdeiro do trono viquingue, não conseguia evitar um desconforto que raiava o insuportável. Ivarr a dançar com Thora... era pura magia!

— O teu pai falou-me em três anos... — dizia Eric. — Mas eu não suportarei esperar tanto tempo! Nem imaginas como lhe quero bem, Edwina! A Thora é uma menina tão especial...

As estrelas despenhavam-se do céu e explodiam em cima da minha cabeça. Levei a mão ao peito, de encontro ao colar que Ivarr me oferecera, e desejei que ele regressasse para junto de mim, me envolvesse nos seus braços e presenteasse com palavras de amor. A música alegre terminou e outra iniciou-se. Ivarr manteve Thora nos seus braços. Svana veio buscar o irmão para dançar e Eric também desapareceu.

Sem saber porquê, pensei em Edwin... Pensei em Trygve... E senti-me terrivelmente só. Era como se, de repente, me visse apartada de tudo; como se não pertencesse a este mundo... Como se me tivesse tornado transparente; invisível para aqueles que amava...

A pele dos meus pulsos latejou. Com o coração a chicotear-me o peito, ergui as mãos diante dos olhos e vi o Dragão do Sol a serpentear, com as garras distendidas em desafio, a bocarra escancarada e o olhar em chamas. A onda de magia tomou-me de surpresa, roubou-me o fôlego, silenciou o fragor da celebração... Por entre os meus dedos, apercebi-me de que algo se movia; algo que não estava ali há um instante; algo estranho à ilha, ao meu povo, à festa... e ainda assim, tão próximo da minha essência como se fosse um prolongamento de mim própria...

Um homem quedava-se, com as labaredas de uma fogueira por trás e os alegres dançarinos passando despreocupadamente por ele. Trajava andrajos sobre a pele bronzeada por raios de Sol que não visitavam esta parte do mundo. Os seus cabelos brilhavam sob a ação das línguas de fogo, com uma madeixa ruiva destacando-se agressivamente por entre os caracóis louros. E o seu olhar... Um olhar verde, intenso, inconfundível, cintilava num rosto que em nada negava a sua ascendência.

— Edwin... ? — arfei, estendendo a mão ao seu encontro, sentindo o meu sangue transformar-se em lava.

Ele não respondeu. Limitou-se a sorrir... Um sorriso quase sarcástico, perante as lágrimas que me saltavam dos olhos.

— Edwin... ? — repeti; a voz trêmula perdendo-se no clamor da festa, que regressava aos meus ouvidos à medida que a sua essência resplandecente se desvanecia.

E o desespero na minha voz é a última coisa de que guardo memória.

 

Na Ilha dos Sonhos, este era um dia muito especial. No santuário das Pedras do Mundo, as fogueiras do Povo dos Penhascos estenderiam os braços ao céu, até tocarem as estrelas, e os tambores nativos ecoariam como trovões. A Sul, onde a floresta virgem reinava, os jovens que haviam superado a primeira fase das provas de iniciação enfrentariam o desafio supremo. Porém, antes de responderem ao apelo selvagem, passariam o dia isolados, cumprindo um rigoroso cerimonial destinado a despertar os seus espíritos. Quando a noite mágica envolvesse a Terra, ofereceriam a vida ao deus da guerra e iniciar-se-ia a Caçada.

Mal a manhã nasceu, os rapazes da minha casa reuniram-se aos companheiros e recolheram-se para cumprir o ritual centenário. Thora despediu-se de Quinn com um nó na garganta, mantendo-se fiel à promessa que fizera ao pai. Magnor foi o primeiro a entrar no Templo da Meditação, onde os instrutores aguardavam os aspirantes a guerreiros. Ia altivo como se o esperasse um banquete da corte, com trajes ricos que contrastavam ferinamente com as vestes modestas dos restantes. A sua trança havia sido minuciosamente enfeitada com fitas vermelhas e ornamentada com anéis de prata. Fazia questão de salientar, nos menores detalhes, que era um príncipe entre a plebe.

Trygve veio falar-me antes de se dirigir à praia para receber os primeiros guerreiros do seu povo. Cerrei os dentes para não chorar, ao pensar que, na manhã seguinte, ele partiria para a Ilha dos Penhascos. Passar-se-ia muito tempo, talvez um ano inteiro, até que voltasse a vê-lo. Não conseguia conformar-me!

Também não me conformava com a alegria de Freya, ante um compromisso que só lhe traria dissabores. Eu mastigava a convicção de que Magnor nada fizera para prejudicar Thora, apenas porque ela se afastara voluntariamente do seu caminho.

Thora concordara em não participar na Caçada, sob a influência da persuasão do pai, mas não parecia em paz. Mal os seus companheiros de aventura se recolheram, desapareceu sem deixar rasto. A minha mãe quis enviar Darrin, Kyle e Rice atrás dela, mas o jarl impediu-a. Thora necessitava de tempo... e de espaço, para se conformar com as mudanças que a sua vida estava a sofrer. Retornaria assim que o seu espírito estivesse consolidado.

Apesar de toda esta agitação, eu tinha a certeza de que não existia espírito mais perturbado do que o meu! Na noite anterior desmaiara na praia, provocando a aflição da minha família. O incidente fora justificado com o cansaço e as emoções do dia, e eu deixara-os acreditar que era verdade. O que mais podia fazer? Anunciar que vira um fantasma? Talvez os meus pais acreditassem... Mas o tio Edwin ficaria possesso! E ele já tinha problemas suficientes entre mãos. Pouco depois de eu recuperar os sentidos, a tia Geirny tornara a sentir-se indisposta e tivera de ser carregada ao colo pelo marido, até à casa do jarl, onde a minha mãe possuía mais condições para assisti-la.

Eu remoera o meu tormentoso segredo, enquanto bebericara o chá quente da curandeira Catelyn, entre o conforto das cobertas da cama, sob o olhar atento e alarmado das minhas irmãs e da tia Ingrior. Recordara a noite em que sentira uma presença no quarto e acreditara estar a sonhar... E, na floresta, antes de surpreender a conversa de Magnor e Quinn, a mesma energia manifestara-se! Edwin viera ao meu encontro, como prometera! Eu só não compreendia a sua atitude reservada, quase agressiva... Ou não queria compreendê-la!

Contrariando as minhas próprias expectativas, dormira como uma pedra, e a manhã encontrara-me renovada. Fora ao encontro da minha mãe, no quarto cedido à tia Geirny, e, mal espreitara pela cortina entreaberta, a senhora da Ilha dos Sonhos levara o dedo aos lábios, pedindo silêncio. O meu tio Edwin encontrava-se sentado junto dela, segurando a mão da esposa, vestido apenas com as calças com que dormira; os pés descalços contorciam-se nervosamente sobre o tapete suave que cobria a madeira do chão.

Com a aparição do meu primo pairando na mente, quedara-me diante do seu pai, assombrada com as semelhanças. Apesar de já ter mais de quarenta anos, o corpo perfeito de Lorde Edwin McGraw não cedera à idade. A sua pele estava tatuada com desenhos de temerosas feras, que provocavam o fascínio de homens e mulheres. Usava os cabelos castanho-claros enfeitados com centenas de tranças minúsculas, que lhe caíam sobre os ombros nus. Os seus olhos possuíam o verde das folhas novas das árvores e um brilho especial e inconfundível. O seu rosto era o rosto do filho: a mesma testa alta, a mesma estrutura dos ossos das faces e do queixo, o mesmo nariz altivo, os mesmos lábios rosados...

Dera por mim a corar, ao tomar consciência de que empreendia uma observação minuciosa e despropositada. Felizmente, nenhum dos dois se apercebera da indiscrição. A sua atenção estava centrada na princesa viquingue e, ao fixá-la, o meu coração apertara-se, pois encontrei-a tão pálida que temi que estivesse morta. Suspirara de alívio ao verificar que o seu peito se movia ao sabor da respiração fraca. Então, a minha mãe levantara-se e abraçara o irmão. Quando se afastou, havia lágrimas no olhar de ambos. Nesse instante, eu percebera que Geirny não padecia de uma simples indisposição. O seu estado de saúde era grave... muito grave!

Por fim, a minha mãe agarrara-me a mão e trouxera-me para a rua. A casa começava a despertar, e era óbvio que ela não queria que alguém escutasse a nossa conversa.

Sentamo-nos nos degraus da entrada, com os dedos das mãos enlaçados, esperando que esta intimidade minorasse a nossa angústia. E Catelyn da Ilha dos Sonhos, a fortaleza onde todos nós nos abrigávamos, sucumbira a um pranto convulsivo. Eu estreitara-a nos meus braços e confortara-a, como ela me fizera tantas vezes, no passado. Só quando a percebera mais calma me atrevera a perguntar:

— Quanto tempo?

A minha mãe respirara fundo, tentando recuperar a compostura.

— Dois, talvez três meses, com sorte e a ajuda da Arte! Ela foi muito corajosa... suportou o insuportável para não nos inquietar. Agora, o seu corpo entrou em colapso. Já pouco posso fazer para ajudá-la, além de aliviar-lhe o sofrimento, que será cada dia maior! A Geirny está desesperada... Não por si, porque um guerreiro não teme a morte! Mas por tudo o que deixará para trás... Darrin é um jovem de valor e está bem orientado, mas Estrid é uma cabeça de vento. E o Edwin... O meu irmão é um homem perseguido pela desgraça. Sempre que alcança alguma felicidade, a má sorte desdenha da sua conquista. A Geirny teme que, no momento em que fechar os olhos, ele faça uma loucura. E eu não posso garantir o contrário! O Edwin sempre teve um temperamento impetuoso, imprevisível...

Minhas entranhas contorceram-se, ao recordar as palavras duras que dirigira a Estrid, na outra noite. Roída de arrependimento, confessara o sucedido à minha mãe, que me beijara com carinho e replicara:

— O teu desabafo não amaldiçoou a Estrid, querida! A vida é mesmo assim, feita de tristezas e alegrias. Há muito tempo, aprendi que devemos aproveitar cada instante da nossa existência, para que, quando a morte nos procurar, não carreguemos para o outro mundo a amargura do que deixamos por fazer.

Eu acabara a lutar contra o impulso de partilhar com ela a minha Visão de Edwin, já que aquele não era o momento certo. A minha mãe estava muito perturbada, e saber que uma das ameaças que pairava sobre o meu futuro se manifestara, não iria ajudá-la. Talvez após o almoço...

Até o último raio de Sol mergulhar no mar, aguardei por um navio que trouxesse o meu bisavô para junto daqueles que tanto o amavam. Porém, defraudando os anseios da comunidade, «O Que Tudo Vê» não apareceu para assistir ao Festival de Verão.

A minha apreensão agravava-se a cada dia. Apesar do povo acreditar que a debilidade crescente do feiticeiro venerado não passava de um truque para dissimular o seu poder diante do inimigo, tal não era verdade. A aura da Ilha Sagrada alimentava a essência dos Seres Superiores e tornava o seu envelhecimento muito lento, ao ponto de poderem observar várias gerações humanas, sem que os seus rostos ficassem vincados por uma ruga. Contudo, exilados na Terra, longe da influência mística da ilha suspensa nas nuvens, os Feiticeiros envelheciam quase tão depressa como os Homens e tornavam-se igualmente vulneráveis às doenças. Esta fora a forma que o Conselho dos Seres Superiores encontrara para se ver livre dos proscritos da sua raça.

Ao longo do tempo, já muitos feiticeiros haviam chegado ao fim da sua existência corpórea. Um deles fora a minha tia-bisavó Mairwen, irmã de Aranwen, que morrera prostrada por uma maleita humana, pouco depois da fundação da nossa colônia. Hakon sempre fora saudável... Mas, ultimamente, o menor esforço deixava-o exausto e obrigava-o a refugiar-se na Montanha Sagrada para regenerar a sua vitalidade e os seus poderes. Desta vez, a minha mãe acreditava que ele tivera de ir ainda mais longe, ao encontro da magia curativa da Gente Bela. Se a visita do meu bisavô à rainha Lyria não fora de pura cortesia, a Terra tinha sérias razões para se inquietar!

 

Enquanto os seguidores da Arte Luminosa se resignavam ao seu destino, aproveitando a passagem pela Terra para ajudar os humanos, transmitindo-lhes o Conhecimento, os servos da Arte Obscura apelavam aos mais nefandos recursos da sua magia para conservar a juventude. «O Que Tudo Vê» explicara-me o processo, que me cobrira de horror. Através da magia negra, um feiticeiro podia assimilar a vida de um humano e rejuvenescer. Quanto mais jovem fosse a vítima, mais anos o algoz ganharia. E se o sacrificado descendesse de uma linhagem de sangue mágico, como o nosso, esse poder ser-lhe-ia igualmente transmitido. Este pesadelo assumira contornos de catástrofe durante a guerra com a feiticeira Gwendalin, que roubara centenas de vidas de não-nascidos dos ventres das suas mães.

Mais uma vez, ficava provada a insensata soberba do Conselho dos Seres Superiores. A determinação, que inicialmente lhes parecera tão sagaz, acabara por condenar à morte os mestres da Arte Luminosa, permitindo simultaneamente a proliferação dos mestres da Arte Obscura. Se nada fosse feito para contrariar esta calamidade, em breve a raça humana tombaria na servidão. Na Floresta Sombria, há muito que os avanços de Aesa só eram retardados à custa do sangue do meu povo. No outro lado do mundo, o seu irmão Sigarr preparava-se para usar o meu primo Edwin como instrumento da sua vingança. E os Seres Superiores não erguiam um dedo para ajudar-nos! Os mais poderosos entes da Terra não só estavam de costas voltadas para os desertores da sua raça e os humanos, mas também em guerra com a minha família, porque a feiticeira Catelyn se recusara a entregar-me ao Conselho, quando eu ainda era um bebê de berço, para que este me treinasse para combater Edwin.

A Lua já enfeitava o céu, sorrindo desdenhosamente da minha angústia. «O Que Tudo Vê» dissera que eu devia completar o treino da Arte sozinha, e desaparecera. A minha mãe tinha tantos fardos às costas, que já mal se sustentava de pé. Eu precisava de uma orientação, mas não sabia a quem pedi-la! Ao longo do dia, interrogara-me uma miríade de vezes acerca das intenções do meu primo reaparecido, sem alcançar nenhuma conclusão. Se ele não esboçara um gesto agressivo, também não se mostrara amigável. O rapaz que segurara a minha mão e me abraçara na inospitalidade do seu mundo tornara-se homem... E eu precisava de saber se o seu nome era Edwin ou Loki! Teria Sigarr conseguido transformar o seu pupilo num abominável guerreiro-feiticeiro? Ou será que, de alguma forma, o meu primo fora capaz de preservar a pureza da sua essência?

Surpreendi a energia de Ivarr muito antes de ele se aproximar. As suas mãos repousaram suavemente nos meus ombros, enquanto inquiria numa voz sedutora:

— Andas a fugir de mim?

Decidi ficar calada, para não provocar uma discussão. Ele respirou fundo e enlaçou-me pela cintura, continuando:

— Ontem pregaste-me um grande susto! Quando te vi caída na areia...

— Eu não teria caído, se estivesses ao meu lado!

Por que raio é que dissera isto? Que um punhal cortasse a minha língua inquieta! Agora, teria de enfrentar a sua ironia pelo resto das nossas vidas!

Ivarr contornou-me devagar, eriçando-me ainda mais os nervos. Deteve-se diante de mim, exibindo os dentes perfeitos num sorriso esplendoroso.

— Estás zangada porque eu fui dançar sozinho?

— Tu não foste dançar sozinho!

Outra vez!? Mordi a língua até sentir o sabor do sangue. Ivarr já gargalhava, replicando com uma expressão deliciada:

— Tu estás com ciúmes da Thora? Não acredito! A tua irmã é uma criança! Além disso, está prometida ao meu melhor amigo!

— Eu não estou com ciúmes da Thora! — volvi, sem convicção. — Se não fosse ela, teria sido outra! Tu deixaste-me no dia do nosso noivado...

O seu beijo calou-me. Tentei afastá-lo, mas ele acabou por envolver-me ainda mais. Por fim rendi-me, tão carente de afeto que mal segurava as lágrimas. Ivarr era um homem e, como tal, não tinha sensibilidade para entender a rudeza do seu gesto. Como se me lesse os pensamentos, o meu noivo declarou com um sorriso divertido:

— Desculpa! Esqueci-me de que vós, mulheres, dais uma importância desmedida a essas tolices. Prometo que não tornará a acontecer! Por mais que me apeteça dançar, da próxima vez ficarei ao teu lado. Agora, vamos parar de discutir por ninharias! Vem... A corneta soará em breve, e o Magnor e o Quinn ficarão decepcionados, se não estivermos lá para desejar-lhes boa sorte.

A corneta troou nesse preciso instante, chamando o povo à entrada da Floresta da Magia, onde um altar fora montado para celebrar os rituais. Aceitei a mão de Ivarr e corri ao seu lado, ainda ressentida, mas com o coração mais aliviado.

 

Em redor do altar de madeira, iluminado por uma esplendorosa fogueira e enfeitado com as pedras rituais da casa do jarl, o entusiasmo da multidão que aguardava a bênção dos jovens já atingia o rubro. Atabalhoadamente, discutia-se quem venceria a Caçada e se um dos heróis da noite seria agraciado pelos favores de Odin, com a alma de uma fera. Choviam apostas, que se dividiam entre Quinn e Magnor. À boca pequena dizia-se que, este ano, os instrutores haviam sido muito exigentes. Os trilhos que os iniciados teriam de percorrer encontravam-se pejados, não só das habituais armadilhas, mas também de novas e originais ciladas, projetadas pela mente ardilosa de Bryan, o mais engenhoso guerreiro da sua geração.

O primo Krum presidiu à cerimônia. O rei Steinarr, o jarl Throst e Lorde Stefan McGraw representavam a Aliança, à qual os novos guerreiros devotariam as suas vidas. Um a um, os jovens subiram as escadas e curvaram-se diante do Sábio e dos soberanos do nosso povo. A figura imponente de Krum elevou-se diante dos olhos dos Homens, qual gigante herdeiro dos céus, assim que a magia respondeu ao seu chamamento. Possuídos por uma emoção avassaladora, os rapazes clamaram os seus votos de devoção, entregaram o seu sangue e juraram lealdade e obediência, até ao fim das suas vidas e para além da morte. Depois, foram ungidos com os óleos sagrados, para que se distinguissem dos demais, e beberam da mesma taça. A partir desse instante, a missão de um seria o encargo de todos. O belo ritual fora cumprido e Odin estava satisfeito!

Os iniciados desceram do altar e aguardaram, trêmulos e extasiados, pelo gesto que lhes permitiria entrar na floresta e concretizar o seu maior sonho. Os familiares trocaram cumprimentos e os instrutores orgulharam-se do dever cumprido... Então, no preciso instante em que o tio Bjorn levava a corneta aos lábios e os guerreiros que o rodeavam se preparavam para fazer rufar os tambores, Magnor e Quinn pegaram-se à pancada.

A briga foi tão inesperada que, de início, ninguém reagiu. Por fim, os outros rapazes tentaram separá-los e acabaram enrolados na contenda. Os instrutores tiveram de intervir, empurrando Quinn para um lado e Magnor para o outro. Tão impotente como se estivesse a viver um pesadelo, ouvi Arnald vociferar:

— Se quereis discutir a vossa honra, tereis de fazê-lo como guerreiros e não como rufias! Homens, desenhai um círculo de combate!

Não era raro que os ânimos se exaltassem antes da Caçada, já que a fúria da competição flamejava no peito dos rapazes. Todavia, eu nunca ouvira falar deste comportamento após o ritual. O que levara Quinn e Magnor a perderem a cabeça? O meu primo era incapaz de uma provocação maldosa, portanto, a ofensa só podia ter partido do príncipe. E as suas intenções eram inequívocas! Magnor sabia que só existiam dois rivais à sua altura. Thora saíra do seu caminho, mas Quinn, como filho do líder Aliado e irmão de um dos guerreiros-lobo do futuro rei, não representava uma ameaça menor... Uma ameaça que o príncipe não estava disposto a enfrentar na solidão da floresta.

A dois passos de mim, Thora surgiu de entre a multidão, berrando encorajamentos para Quinn e insultos para Magnor. Quis pedir-lhe que moderasse o seu ímpeto, mas estaquei ao verificar que o corpo da minha irmã irradiava luz, como se uma estrela nascesse no seu interior. Dentro do círculo de combate, os dois rivais provocavam-se fervorosamente. Magnor espargia um clarão escarlate, que avançava sobre a aura de Quinn e a assimilava com voracidade. Descobri-me muda, incapaz de esboçar um gesto, com o suor a escorrer-me pela testa, gelado e pegajoso, e as pernas frouxas. Então, os dois rapazes saltaram como feras; as garras esticadas de encontro à garganta do adversário, e o duelo começou.

O uso de armas não era permitido nestes confrontos. Os opositores só podiam socorrer-se da sua força, e de todas as manhas de que se lembrassem. E, nenhum deles parecia disposto a cortesias. Os golpes eram rudes, violentos e certeiros, aplicados não só para subjugar, mas com a intenção declarada de magoar, de ferir, de desfazer... Em menos de nada, encontravam-se cobertos de poeira e suor, sem fôlego. Quinn coxeava devido a um pontapé que recebera numa perna. Magnor tinha o lábio aberto e o sangue escorria-lhe pelo queixo, misturado com a espuma da sua raiva. Olhos nos olhos, já preparavam o próximo ataque.

Além de ser mais velho, o príncipe era também mais alto e encorpado. Quinn valia-se da sua agilidade para enfrentá-lo mas, uma vez prisioneiro dos braços invulgarmente fortes do adversário, pouco havia a fazer senão sofrer à mercê dos seus punhos implacáveis. Mal encontrou uma brecha na defesa do oponente, Magnor desferiu-lhe um soco no estômago e outro no rosto. O meu primo caiu de costas, por entre o clamor da multidão e o apoio frenético de Thora. Magnor tentou saltar-lhe para cima e sentar-se na sua barriga, mas Quinn rebolou a tempo, sustendo-se a cambalear. Tinha o nariz desfeito e respirava com extrema dificuldade... Para mim, era óbvio que ele fora batido. Não tarda, estaria incapacitado para entrar na floresta e perseguir o seu sonho. E era isso que Magnor desejava!

Uma rasteira traiçoeira, e Quinn voltou a comer o pó. Desta vez, o príncipe conseguiu imobilizá-lo debaixo do seu corpo possante, torcendo-lhe um braço atrás das costas e continuando a marrar contra ele, qual touro enraivecido. Li a morte no seu olhar flamejante e voltei-me para Ivarr, gritando um apelo. Contudo, foi o brado agudo e dilacerante de Quinn que gelou a assistência. Nesse instante, Ivarr precipitou-se sobre os dois, violou o círculo de combate e arrastou o irmão para longe do rival. O tio Stefan e o tio Bjorn seguiram-no, e ajoelharem-se junto do corpo inerte de Quinn, logo imitados pela minha mãe.

Mesmo à distância, verifiquei que o osso do braço direito do meu primo fora quebrado com tal violência que rasgara a carne. Agoniada, orei para que o sangue que escorria dos seus lábios lhe proviesse da boca e não do interior do corpo. Aparentemente, Quinn ia sobreviver à bestialidade de Magnor... talvez apenas porque Ivarr acorrera a tempo.

Não muito longe, na prisão dos braços do irmão, Magnor mantinha-se impassível. Havia até quem o felicitasse pela vitória! Mais uma vez, no mundo dos Homens, a violência decidia a sobrevivência e a liderança. E Magnor era um líder incontestável, que não olhava a meios para atingir os seus objetivos! Temi por Freya... E temi por Thora, de quem os olhos metálicos do perverso jovem não se desviavam por um instante.

À revelia dos adultos, Thora prostrara-se ao lado de Quinn e tocava levemente na pele macerada do seu rosto, quase irreconhecível devido à violência dos socos com que Magnor o flagelara. Também ela se apercebeu do olhar insistente do príncipe, e temi que reagisse. Todavia, prodigiosamente, ignorou-o, entrelaçando os dedos nos anéis rebeldes dos cabelos do primo, numa carícia quase desesperada. As lágrimas caíam-lhe em cascata pelo rosto sem expressão. Olhava para o interior de outro mundo, ardendo por dentro e mastigando uma raiva que eu também sentia. Porém, a sua garganta não emitia um soluço, nem sequer um gemido.

Os olhos verdes de Quinn abriam-se e fechavam-se, conforme a consciência emergia ou se desvanecia. Inesperadamente, num devaneio de lucidez, tartamudeou, cuspindo sangue:

— Perdoa-me, prima... Falhei...

— Tu não falhaste! — retorquiu a minha irmã, rouca de comoção. — Haverá outras oportunidades... Tu és um vencedor, Quinn! Tu és um vencedor...

A padiola chegou e Thora teve de se afastar. Procurou o abrigo dos meus braços, tremendo sem controle.

— Tens de te acalmar! — ordenei. — Assim, não ajudarás o Quinn!

— O Magnor fez isto de propósito... — mastigou ela, dominada pela ira.

— Eu sei — volvi. — Mas, por enquanto, não há nada que possamos fazer!

Quinn foi transportado para a nossa casa, a fim de os curandeiros avaliarem devidamente a sua condição. Não tardou que esta se enchesse de familiares e amigos, preocupados e consternados. Alguns tinham escutado o início da discussão. Magnor insinuara que Quinn partia em vantagem para a Caçada, porque conhecia a localização e a natureza das armadilhas colocadas na floresta pelo irmão. O meu primo já andava furioso com as intrigas do príncipe, e este atentado à sua honra fora a gota de água. Num impulso exaltado, desafiara Magnor... e caíra ingenuamente na sua armadilha.

O estremecimento de Thora, fez-me seguir o seu olhar. Ivarr chegara, acompanhado por Eric e Ragnar. Com uma palidez mortal, Bryan deixou o quarto onde o irmão agonizava e juntou-se aos amigos. Lá fora, uma corneta ecoava, assinalando o início da Caçada. Surpreendi-me ao constatar que Ivarr viera velar por Quinn, ao invés de acompanhar a entrada de Magnor na floresta. Talvez fosse simples diplomacia; uma tentativa de salvaguardar as boas relações das famílias, neste momento difícil... Ou talvez não!

Sem aviso, Thora soltou-se dos meus braços e correu para a rua. Apressei-me atrás dela, adivinhando que a sua natureza arrebatada a levaria a fazer uma asneira. A minha irmã quase voava na direção da floresta. Chamei-a por várias vezes e estava prestes a recorrer à magia para detê-la, quando ela parou e me afrontou, num tom selvagem que eu nunca escutara antes:

— Eu vou fazer o que tem de ser feito e tu não vais impedir-me!

Aproximei-me, olhando em redor para certificar-me de que ninguém nos escutava. O povo dividira-se entre a entrada da Floresta da Magia e a casa do jarl, por isso a rua encontrava-se deserta.

— E o que é que pretendes, Thora? Queres «caçar» o Magnor?

— Aquele monstro não vai levar a sua avante! — rugiu ela em resposta; o olhar inundado por um ódio mortal. — Quer guerra? Pois terá guerra! Eu dar-lhe-ei a fera que ele tanto deseja!

— Thora... — Pousei as mãos nos seus ombros, tentando aplacar-lhe a ira. — Deixa os homens resolverem esta questão! A briga do Quinn e do Magnor não te diz respeito...

— Estás enganada! — desabafou. — Isto aconteceu por minha culpa! Há muito tempo que eu devia ter desmascarado aquela besta! Só não o fiz para proteger a amizade das nossas famílias...

— O que é que estás a dizer? — inquiri confusa, e deixei cair o queixo quando ela esclareceu:

— Há dois anos, o Magnor veio ter comigo... Disse-me uma porção de tolices: que um dia seria rei e a sua mulher seria uma guerreira; que, assim que me vira, se apaixonara; que eu estava destinada a pertencer-lhe... Mandei-o passear! Tentou beijar-me à força, o tarado, mas foi corrido a soco e a pontapé. Desde então, não mais parou de me provocar...

Por todos os peixes do mar e aves dos céus! Abri a boca para expressar o meu choque, mas Thora continuou:

— Quando se declarou à Freya, avisei-o que lhe racharia a cabeça se se atrevesse a fazer-lhe mal. Riu-se de mim! Acusou-me de estar com ciúmes! Ciúmes da sua fronha ranhosa! — Fez uma pausa para recuperar o fôlego. — No fim ofereceu-me uma última oportunidade de me entregar a ele, o imbecil! Cuspi-lhe o meu desprezo nas ventas! Então, jurou que, quando saísse vitorioso da floresta, iria esfregar-me o seu lobo na cara... E que, se dependesse dele... este ano, nenhum McGraw participaria na Caçada...

Deteve-se, sufocada por um soluço. Abracei-a e amparei o seu choro. A situação era muito pior do que eu imaginara! Como salvar Freya e resolver este problema, sem destruir duas famílias e o povo que delas dependia? E o que fazer com Thora e a sua justificada revolta? Esta obsessão de vingança podia destruí-la! Mansamente, incentivei-a a encarar-me, replicando:

— O Magnor deve ser castigado, é verdade! Mas emboscá-lo às cegas na floresta não é a solução! Esta noite é mágica, Thora! Os espíritos estão de olhos postos em nós. Tudo o que fizermos será julgado e refletir-se-á no nosso destino. Aquele fanfarrão covarde não merece que comprometas o teu futuro por sua causa!

O olhar de Thora mudara. Havia nele uma determinação inabalável que me fez estremecer. Com a respiração suspensa, objetou:

— O Magnor não é a única razão por que quero entrar na floresta. Eu tenho sentido o apelo, mana... Há uma voz que chama o meu nome, e que não consigo silenciar. Juro que tentei! Pelos nossos pais, por Eric... Mas, ver o Quinn batido, fez-me compreender que nunca serei feliz, se negar o que mais desejo! E eu quero ser feliz, Edwina! Quero ser uma guerreira... Quero caçar!

Eu estava ciente de que a sorte de Thora se encontrava nas minhas mãos. Recordei o que a nossa mãe dissera: Era preferível que ela avançasse com o nosso apoio, do que vê-la tomar o mesmo rumo sozinha. Com o coração em debandada, declarei:

— Se queres perseguir o teu sonho, terás de agir corretamente! Fizeste uma promessa ao jarl e não a quebrarás sem lhe dar uma satisfação. Volta para casa e diz-lhe que o teu destino te aguarda na floresta.

— Ele não me dará ouvidos!

— O nosso pai ama-te! Por mais que lhe custe, terá a tua vontade em consideração!

Thora hesitou, fixando a rua que a levaria tão facilmente ao seu objetivo, sem ter de enfrentar o julgamento da família e a vontade dos pais. Por fim questionou-me, com um olhar suplicante:

— Estarás ao meu lado, Edwina?

Tornei a estreitá-la, respondendo com o coração:

— Em todos os dias da nossa vida!

A intenção de Thora dividia opiniões. Eu mantive-me ao seu lado como lhe prometera, demonstrando o meu apoio à sua causa. À nossa frente, a figura majestosa do jarl dominava o salão, sentada no seu cadeirão favorito. Nem a companhia do rei Steinarr, que se reunira a nós após a entrada de Magnor na floresta, lhe ensombrava a imponência. A minha mãe aproximou-se do marido e procurou-lhe a mão. Não havia ressentimento no olhar que me dirigiu, apenas resignação e tristeza. De todos os lados choviam alvitres. Nunca se ouvira falar na participação de uma moça numa Caçada. Porém, ninguém contestava que Thora não era uma moça qualquer!

O meu pai começara por replicar que a vingança não era razão para desafiar a vontade da floresta. Então, sem sombra de embaraço, Thora falou-lhe do chamamento que sobressaltava o seu coração, e o jarl calou-se. Há muitos anos, o filho de Thorgrim também escutara o apelo selvagem do espírito destinado a completar a sua alma, por isso compreendia sobejamente bem a inquietação da sua menina. Endurecido pela vida, o tio Edwin replicou secamente:

— Isto não é uma brincadeira, Thora! Podes ficar seriamente ferida ou até morrer!

Ainda abalado pelo que sucedera ao filho, o tio Stefan apoiou-o.

— Tu não tens de provar-nos nada, sobrinha! Conhecemos bem o teu valor! Além disso, estarias em séria desvantagem em relação aos rapazes, não só porque eles já levam avanço, mas também porque receberam uma preparação que não é adequada à sensibilidade de uma menina...

— Desculpa, Stefan, mas eu discordo!

Um silêncio profundo espalhou-se pelo salão, à interrupção de Ivarr. O meu coração espinoteou ainda mais ao ouvi-lo continuar, com uma firmeza e convicção de tirar o fôlego:

— Nestes últimos dias constatei, assim como todos vós, que a Thora está mais bem preparada para enfrentar a Caçada do que a maioria dos rapazes que entraram na floresta. Teria ela de suplicar por consentimento para seguir o seu intuito, se tivesse nascido homem? Não! O Throst seria o mais orgulhoso dos pais...

— Eu sou o mais orgulhoso dos pais, Ivarr — cortou o jarl num tom arrepiante. — A habilidade e a destreza da Thora não estão em causa...

— Então, o que está em causa, Throst? — revidou o príncipe com a mesma altivez, causando pasmo entre a assistência. — Se a Thora é incontestavelmente a melhor de entre os nossos jovens guerreiros, por que não lhe é concedido o que já lhe pertence por direito?

— Tu sabes bem o que se arrisca esta noite! A minha filha não participou no ritual! Não posso permitir que entre na floresta sem a orientação apropriada...

— Eu dar-lhe-ei a orientação de que ela necessita. Eu serei o tutor da Thora durante a Caçada, se o meu rei e o meu jarl o permitirem! E, se o destino assim o determinar, quando o dia nascer, ela tornar-se-á um dos meus lobos.

Ivarr enlouquecera! Era a única justificação! Até Thora o fitava de olhos esbugalhados!

O silêncio dera lugar a um alarido estridente. Desde parentes a amigos, todos tinham algo a dizer acerca do anúncio do herdeiro do trono viquingue. Pretenderia Ivarr recompensar a minha família pelos ferimentos graves que Magnor infligira a Quinn, colocando-o fora da competição? E que fé inexorável era esta, da qual, subitamente, Thora desfrutava? Como reagiria Magnor quando descobrisse que o irmão não só apoiava uma rival, como pretendia colocá-la sob a sua proteção? Teria Ivarr consciência do ressentimento que tal iria suscitar?

A expressão de Steinarr encontrava-se iluminada pelo orgulho. Era óbvio que aprovava a solicitude do seu primogênito. Pelo contrário, os meus tios não estavam nada convencidos. Stefan abanava energicamente a cabeça, apreensivo. Edwin resfolgava. A minha mãe parecia prestes a desmaiar... E o meu pai cerrava os olhos, esmiuçando o meu noivo, até este, há pouco altivo e resoluto, estremecer devido à força despendida para provar a sua convicção. Por fim, o jarl ergueu a voz num clamor brusco que me sobressaltou:

— Silêncio!

A balbúrdia finou a um tempo. No ar pairou uma súplica, feita numa voz clara e ainda infantil; o apelo de Thora:

— Por favor, papai! Isto é tudo o que desejo!

Eu conhecia a sinceridade desta manifestação de vontade. E temia-a pela sua força, pelo seu poder de persuasão, pela declarada pureza de sentimentos à qual era impossível voltar as costas. O olhar estrelado de Thora desviou-se do nosso pai para Ivarr, como se implorasse que o príncipe acrescentasse uma última palavra que convencesse definitivamente o jarl. Contudo, Ivarr nada mais tinha a dizer e manteve-se impassível, aguardando a decisão dos seus líderes.

A mão do meu pai deslizou sobre a da esposa, numa carícia quase imperceptível, e os seus olhos encontraram-se, num diálogo que dispensava palavras. Os lábios da minha mãe tremiam como se estivesse prestes a cair no pranto, mas ela permaneceu solene como uma deusa. «Faz o que entenderes melhor para a nossa menina. Faz o que o teu coração te ordenar, meu amor.»

Lentamente, a cabeça do jarl desviou-se na direção do rei, mas foi Steinarr quem se inclinou para murmurar-lhe, de forma que só o meu pai e aqueles que possuíam o dom de escutar para além dos sentidos, o puderam ouvir:

— Eu nunca interferi nas decisões do meu herdeiro. O Ivarr é livre para escolher aqueles que caminham ao seu lado. Se o instinto o impele na direção de Thora, eu respeito a sua escolha, por mais estranha que esta me possa parecer.

— Ela ainda é uma menina, Steinarr... — replicou o meu pai no mesmo tom, e a sua pausa soou como um protesto.

— E verdade. Mas, em breve, será uma mulher; uma guerreira na qual o Espírito da Luz deposita a sua confiança. Tu sabes que o Ivarr não se empenharia por compaixão, nem sequer por simpatia. Ele acredita que a Thora nasceu para enfrentar este desafio! E tu, meu amigo, em que é que acreditas?

O olhar do meu pai estreitou-se e a sua atenção voltou-se para Eric, que se mantinha atrás de Ivarr com uma expressão que eu ainda não decifrara. Apesar de não poder contradizer o seu senhor, não me parecia coerente que apoiasse o devaneio da sua prometida. Porém, quando o jarl lhe pediu que falasse, disse com simplicidade e clareza:

— Se essa é a vontade da Thora, é também a minha vontade! Posto isto, o meu pai quedou-se em silêncio, permitindo que o peso do mundo se fundisse com o seu espírito. Depois, endireitou os ombros e encheu o peito de ar, apelando na sua voz de comando:

— Aproxima-te, Thora.

A minha irmã obedeceu... um pé diante do outro, quase temendo cair. Como se as nossas essências se fundissem, eu senti o seu coração a latejar-me nas têmporas, qual pássaro exausto que, depois de uma violenta batalha pela sobrevivência, se prepara para enfrentar o momento do juízo final. Sim, porque se o nosso pai recusasse a sua súplica, algo feneceria dentro de Thora; algo perder-se-ia para sempre, e o espírito da minha irmãzinha não mais encontraria a paz.

O jarl inclinou-se para fixar o olhar da mais intrépida das suas filhas. Engoli em seco, ao verificar que segurava nas mãos o punhal que guardava como um tesouro, e que sempre o acompanhava nas missões importantes. Entregou-o a Thora, dizendo:

— Este punhal foi-me oferecido pelo teu avô, na noite em que entrei na floresta para provar o meu valor. Depois disso, salvou-me inúmeras vezes, preservou a vida da tua mãe e mudou a história de dois povos. Há muito que se encontra afastado dos grandes desafios. E tempo de reencontrar a velha glória nas mãos da herdeira que tanto amo e que será uma digna guardiã da sua força. Este é o momento em que te passo o meu testemunho, Thora! Que Thor guie os teus passos e Odin segure a tua mão nos instantes decisivos!

Thora aceitou o punhal com reverência, ciente da honra que lhe estava a ser concedida. Após uma pausa, para se certificar de que não sonhava, guardou-o na bainha do cinto e fechou os olhos, inspirando um fôlego de satisfação. Por fim, com a emotividade que todos lhe conhecíamos e amávamos, investiu adiante e pendurou-se no pescoço do jarl, abraçando-o com devoção, enquanto murmurava com a voz embargada:

— Obrigada, papai! Juro que não te decepcionarei!

O senhor da Ilha dos Sonhos correspondeu ao carinho da filha, sem se importar com a multidão que o rodeava, retrucando com solidez:

— Tem cuidado com as armadilhas da floresta... Lembra-te de que só te é exigido que encontres o caminho correto e regresses sã e salva. Contudo, se o que tanto desejas se concretizar, enfrenta o teu destino sem medo. Tu tens a minha força e a magia da tua mãe no sangue... Acredita, e vencerás!

Thora caiu nos braços da mãe, que a estreitou como se temesse ser esta a última vez. Apesar da senhora da Ilha dos Sonhos se revelar forte, mesmo quando aqueles que a rodeavam se debatiam com o desespero, neste instante, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Foi a filha quem as limpou, sorrindo carinhosamente ao replicar:

— Não chores, mama! Alegra-te por mim... Isto é o que eu sempre quis!

Thora pedia o impossível! A nossa mãe dedicara a sua vida a proteger-nos das manhas do destino. Agora, a sorte pregara-lhe uma rasteira que a prostrara. O controle que mantivera fechado nas suas mãos escapara-lhe por entre os dedos. E o futuro estava, mais uma vez, encoberto pelo nevoeiro da incerteza.

O salão susteve o fôlego quando o meu pai estendeu o braço a Ivarr, declarando:

— Não te falarei de jarl para príncipe, mas de homem para homem. Entreguei-te uma das minhas filhas ontem; hoje, entrego-te outra. Tens a minha inteira confiança, Ivarr, filho de Steinarr. Não me decepciones.

O herdeiro do trono viquingue envolveu o braço do meu pai e apertou-o com convicção.

— E eu respondo-te de amigo para amigo, com o coração aberto. Morrerei antes de trair a tua confiança, Throst. E matarei qualquer homem, antes que ele tenha a ousadia de fazê-lo!

Nada mais havia a acrescentar. À minha volta, formavam-se grupos que discutiam os assombrosos acontecimentos que acabávamos de presenciar. A família abeirou-se de Thora e cobriu-a de conselhos e rezas de proteção. Ivarr caminhou para a porta, seguido pelos seus lobos, e o nosso olhar encontrou-se por um instante... um breve instante, suficiente para que o meu coração estrebuchasse em agonia.

Thora não partiu sem se despedir de Quinn. O primo Krum estava junto do enfermo, que já recuperara a consciência e se inteirara das novidades, apesar do sofrimento que o atormentava. A minha irmã abeirou-se dele, exclamando com firmeza:

— Eu vou vencer, Quinn! E a minha vitória será tua!

— Não... — objetou ele, numa voz dorida e emocionada. — A vitória será tua, Thora, porque a mereces! Tu serás grande, prima, eu sempre o soube... Não te preocupes comigo! Sararei depressa e, para o ano, voltarei a competir. Tem cuidado com o Magnor... Ele conhece muitos truques e não recuará diante de nada para alcançar o que quer.

Um vigoroso aperto de mão consolidou uma amizade que se adivinhava eterna. Temendo ceder ao pranto, Thora correu ao encontro de Ivarr, Eric, Bryan e Ragnar, que a aguardavam, seguida pela multidão de familiares e amigos.

A noite estava clara e barulhenta. Há muito que as fogueiras ardiam na praia e os aldeões celebravam a magia que acalentava o ar. Do ponto mais alto da ilha, no berço das Pedras do Mundo, ecoavam os primeiros tambores, e as fogueiras do Povo dos Penhascos avistavam-se de onde nos encontrávamos, como se de um fulgurante incêndio se tratasse. Pensei em Trygve e fiquei ainda mais angustiada. Hoje, ele conhecera Amora... Sendo duas pessoas maravilhosas, decerto haviam-se entendido ao primeiro olhar e começado a tecer planos para melhorar a vida do misterioso povo que ambos amavam; planos que o afastariam definitivamente de mim.

O apelo de Thora forçou-me a regressar a uma realidade não menos aflitiva. Desejei-lhe sorte, antes de ela aceitar a mão de Ivarr e subir para a garupa do seu cavalo.

— Não permitas que a minha irmã se magoe! — supliquei, na voz mais segura que pude forjar.

Ivarr mirou-me como se visse para além de mim, e respondeu num tom que me arrepiou:

— Confia na tua irmã, Edwina! Confia na sua força, na sua determinação e coragem, como confiaste até aqui.

E partiu a galope na direção da floresta, seguido pelos seus guerreiros-lobo, levando consigo uma parte de mim que não tornaria a ser a mesma. Perto, a minha mãe murmurou, estrangulada pela comoção:

— Esta é a concretização da minha Visão... A nossa menina rodeada por quatro lobos...

— Pela manhã, cinco lobos sairão da Floresta da Magia, Pequena! — respondeu o meu pai, tão baixo que mal o escutei. — O destino da Thora já não está nas nossas mãos.

— Onde foi que falhamos, Throst?

Eu não precisava de olhar para trás para saber que os meus pais estavam abraçados e que a minha mãe sucumbia novamente às lágrimas.

— Nós não falhamos, querida... A nossa missão era prepará-la para o futuro. E a Thora está pronta para enfrentar o desafio que é a sua vida.

 

Esta noite, no salão da casa do jarl, as conversas não cessariam, ninguém pararia de comer e de beber, e esperar um instante de privacidade e sossego seria perda de tempo. A minha mãe dividia-se entre os cuidados à tia Geirny e a Quinn, auxiliada por Freya e pelos curandeiros da família. O meu pai, o rei Steinarr, o tio Edwin e o tio Stefan, juntavam-se aos seus companheiros, analisando o que já acontecera e conjeturando sobre o que ainda estava por vir.

Recolhi-me ao quarto, fechei a cortina e almejei o impossível. Libertei a Lágrima do Sol do bolso do avental e sentei-me na cama, fixando-a com o coração a martelar-me o peito. Eu até podia atingir a concentração necessária para silenciar o barulho ensurdecedor que me rodeava; esquecer os temores e dúvidas que me assombravam, e concentrar-me apenas na missão a que me propunha... Todavia, levá-la a bom termo era pura fantasia! Buscar a essência de Thora e seguir cada um dos seus passos, cada um dos seus pensamentos, cada uma das suas emoções, era um exercício extremamente difícil... e perigoso. Ao menor descuido, corria o risco de interferir nas decisões da minha irmã e alterar o rumo do seu destino. Ainda assim, o instinto impelia-me adiante. Se Thora se apercebesse da minha intromissão, seria capaz de me estrangular! Mas eu não podia ficar de braços cruzados enquanto ela enfrentava a morte! Ia fazê-lo... Se a Lágrima do Sol decidisse colaborar!

Lentamente, o cristal ergueu-se até quedar-se em frente dos meus olhos as suas faces transparentes irradiando uma infinidade de cores. A minha mente entoou o sortilégio que invocava os espíritos protetores dos meus antepassados, fluindo como um cântico... até a luz me cegar para a realidade. A surpreendente percepção de que a Lágrima do Sol não impusera a menor resistência diluiu-se, no momento em que as cores definiram formas. Diante de mim estendia-se a floresta luxuriante e misteriosa... os guerreiros-lobo e Thora.

O trilho por onde seguiam era pedregoso, sinuoso, agreste para os pés humanos. Os cavalos haviam ficado para trás, tão tranqüilos como se adormecidos. Adiante, uma lagoa... Este não era o caminho seguido pelos outros guerreiros! Esta era a vereda usada pelo Povo dos Penhascos para subir a Montanha da Magia! Aliás, estávamos tão próximo do cume, que os tambores nativos quase me ensurdeciam. Em breve, deveríamos vislumbrar o clarão das suas fogueiras...

Inesperadamente, Ivarr e os seus lobos saíram do trilho e entraram na lagoa. Progrediram sem hesitação, afastando-se da margem. Com água pela cintura, Thora enfrentou o fundo irregular e escorregadio, num equilíbrio precário, até o avanço do grupo ser bloqueado por um rochedo imponente, por onde a água que alimentava a lagoa se despenhava.

Os homens não pararam. No seu passo ligeiro, contornaram a cascata e desapareceram de vista. Quase a medo, a minha irmã seguiu-os, auxiliando-se das mãos para trepar pelas pedras polidas pela força da água., estacando estupefata ao descobrir que existia uma passagem por trás da cortina cintilante.

Após um banho inevitável, a luz da Lua Cheia revelou uma estranha caverna, cujo teto abatera há muito, talvez antes da memória do Homem, originando uma abertura que permitia ver a imensidão do céu. Os musgos, as raízes e as trepadeiras invadiam os sítios mais improváveis, forrando as paredes de verde e castanho. O chão era uma laje erguida acima do nível da água., tão polida que refletiu a chama dos archotes que se incendiavam ao seu redor. Sob o fulgor do anel de fogo, Thora reparou que um círculo fora esculpido no centro da pedra, por baixo do olhar da Lua, com símbolos que nem eu própria reconheci. Este era um lugar sagrado, sem dúvida, mas a magia aqui praticada era tão antiga, que o seu conhecimento não sobrevivera até ao presente. Talvez tivesse sido usado pelo mesmo povo que erguera as Pedras do Mundo...

Thora trepou para a laje e quedou-se confusa, ao deparar com a caverna vazia. Onde estariam os seus companheiros? Chamou-os, uma e outra vez, recebendo em resposta o eco da própria voz, misturado com o cântico do ribeiro e o batuque frenético dos tambores nativos.

Eu senti a vibração de energia muito antes dela. De repente, o ar ganhara vida e o fogo dos archotes transformara-se numa chuva de labaredas. Toda a parede da gruta parecia estar em chamas... e, por entre estas, agitavam-se sombras... Homens que nunca o poderiam ser... Animais que não o eram... Gigantes de força e poder que corriam por entre as flamas, deliciados com o seu ardor, livres... finalmente livres...

Um enorme uivo fez a caverna estremecer. Vi o sangue fugir do rosto da minha irmã quando uma criatura colossal saltou do fogo e aterrou aos seus pés. Thora cambaleou, e não conteve um grito. Caiu para trás, com os olhos escancarados num misto de terror e fascínio, diante do magnífico lobo branco que a fixava com um olhar de luz. Sacudiu a cabeça, lutando contra a ilusão que a magia da caverna lhe impunha. À sua frente, Ivarr estendia-lhe a mão para ajudá-la a levantar-se. Os pés do príncipe estavam descalços e as calças molhadas pela travessia da lagoa colavam-se ao corpo como uma segunda pele. Despira a túnica e cobrira os ombros e a cabeça com a esplendorosa pele de lobo. Os cabelos negros, caídos sobre o peito, acentuavam ainda mais a beleza das suas tatuagens. E o olhar... o olhar cristalino não era o de um homem, nem o de um animal... Era o olhar de um deus!

— Thora, filha de Throst...

Por trás dele surgiram três colossais lobos... três magníficos homens. Eric, Bryan e Ragnar, reuniam-se ao seu senhor, ostentando orgulhosamente a essência mística do seu espírito.

A minha irmã aceitou a mão de Ivarr e viu-se bruscamente de pé, prisioneira do seu olhar, tremendo tanto que parecia prestes a cair de novo. O rosto do príncipe desceu sobre ela; o nariz deslizando pelos seus cabelos, quase numa carícia, cheirando... reconhecendo...

— Estás com medo de mim, Thora?

Os dedos femininos crisparam-se sobre o punho do príncipe. De nada lhe valia mentir. Ele podia farejar as suas emoções.

— Sim...

Ivarr sorriu levemente, antes de se afastar. Sem lhe soltar a mão, expô-la aos seus companheiros, replicando numa voz enrouquecida que pouco fazia recordar a sua:

— Existem muitas sensações que nós queremos que tu experimentes esta noite, Thora... Mas o medo não é uma delas! Olha-nos, toca-nos com o teu coração e com o teu espírito... Estamos diante de ti como realmente somos... Irmãos de fogo, irmãos de vento, irmãos de terra, irmãos de sangue... E convidamos-te a rasgar a tua pele humana e a deixar entrar a fera que te aguarda na escuridão pura da floresta. Convidamos-te a juntares-te a nós, como nossa irmã, para que caminhes ao nosso lado até ao fim da tua vida! Eu estava arrepiada. Thora estava extasiada.

— Mas como... Como é que isto é possível? — perguntou, depois de ter segurado as mãos de Ragnar, Bryan e Eric, para se certificar de que eles eram reais.

— Antes de mais, terás de nos jurar pela tua vida que guardarás segredo de tudo o que vires e ouvires sobre o Altar da Terra.

Quase interferi, desejando avisar Thora de que a sua anuência daria a qualquer um deles o direito de matá-la, caso a palavra fosse quebrada. Porém, ela respondeu de imediato:

— Juro que honrarei a vossa confiança até à morte, príncipe Ivarr. Ele assentiu com a cabeça e continuou:

— A criatura que matei na minha iniciação não era um lobo vulgar, nem um lobo sagrado... Era um espírito soberano, perante o qual todos os lobos respondem, até os líderes das alcatéias. Sabes o que isso significa, Thora?

A minha irmã exprimiu a sua confusão:

— Pensava que o meu pai era o mais poderoso dos lobos...

— O teu pai recebeu a dádiva do espírito de um Lobo Cinzento, um líder de alcatéia, cujo poder só pode ser superado por um igual. Existem poucos como ele... Mas o rei-lobo, além da força de um líder de alcatéia., possuiu também a capacidade de dominar as mentes dos seus inferiores. Hierarquicamente, o Throst deve-me obediência. Contudo, nunca lhe impus servidão, nem precisarei de fazê-lo, pois conheço o seu coração e a sua lealdade. Ainda sou muito jovem... tenho bastante que aprender como homem, como guerreiro... e como Espírito da Luz. Por enquanto, devo escolher aqueles que elevarei até mim; aqueles que me serão fiéis até à morte.

Um grito estridente ecoou pela caverna. Lança sobrevoava a grande abertura voltada para o céu estrelado, mirando os homens com o seu olhar perspicaz. Por cima do falcão, o círculo redondo da Lua parecia crescer até absorver os outros pontos cintilantes, assimilando as brumas noturnas, transformando o lugar de culto numa câmara ardente.

O olhar abismado da minha irmã vagueou pelos guerreiros-lobo, compreendendo finalmente a importância de cada um deles. No fim, deteve-se em Ivarr:

— O que me espera não é uma iniciação normal, pois não? — perguntou, fustigada por uma multiplicidade de sentimentos.

— Não — respondeu ele gravemente. — No entanto, concedo-te a liberdade de escolher se queres partir e deixar a sorte ditar o teu destino; ou ficar e tornares-te minha irmã de sangue... Se o teu desejo for seguir os teus companheiros de iniciação, amanhã serás uma guerreira, tal como eles. Desfrutarás do respeito dos homens e esquecerás esta conversa... — Fez uma pausa, baixando o rosto até quase tocar o dela; a voz aprofundando-se com a intensidade das palavras. — Fica, e Odin decidirá se na sua casa tu serás uma predadora... ou uma presa! Quando abandonares a proteção do Altar da Terra, estarás por tua conta e o que fizeres será avaliado por aqueles que governam os destinos dos Homens. Falha e morrerás! Vence... e ganharás o privilégio de caminhar ao meu lado... Agora que já sabes o que eu sou, e o que tu serás se te revelares digna deste desafio, qual é a tua decisão?

Thora mal conseguia respirar. O seu coração ecoava o meu, mas a exaltação que nos dominava era oposta. Assisti, impotente na resolução de não interferir, enquanto ela se ajoelhava e beijava a mão do meu noivo, murmurando com uma devoção sem igual:

— Tudo o que desejo é servir-te, meu príncipe...

A respiração de Ivarr tornou-se ainda mais pesada. Forçou Thora a suster-se, declarando com solenidade:

— E assim será! Que Odin testemunhe o que aqui se vai passar e te receba nos seus braços, com o orgulho e o carinho de um pai. Que Thor guie os teus passos e oriente as tuas decisões com a sabedoria de um irmão mais velho... Quando a Lua fechar os olhos e o Sol abençoar a Terra, tu serás uma de nós, Thora, filha de Throst!

A sua mão deslizou até à bolsa que lhe pendia do cinto. De dentro dela retirou uma pequena bola de massa, escura e irregular, que, se não fosse pela cor, poderia ser confundida com a massa do pão. Eu conhecia sobejamente o sabor desse preparado, desagradável e amargo de início, que se adocicava com a saliva e o trabalhar dos dentes. Ainda na garganta, a mistura de ervas e cogumelos já começava a surtir efeito. Com o passar do tempo, a realidade perdia o significado e atingia-se um novo nível de consciência, onde o espírito se libertava e governava o corpo.

— Mastiga devagar — ordenou. — A magia das plantas dar-te-á força e coragem para desbravar a floresta e enfrentar os perigos que te esperam. Um lobo deve conhecer a fome antes da satisfação, a raiva antes do contentamento, a dor antes do prazer... Esta noite, Thora, tu sentirás a fome, a raiva e a dor! Esta noite, tu morrerás e voltarás a nascer, como uma parte de mim...

Os Homens recorriam àquela mistura desde que a nossa civilização existia. Os Sábios faziam-no para chamar a Visão; os guerreiros para destruir as sombras da inibição antes de uma batalha exigente... Porém, nem todos sabiam prepará-la e alguns não agüentavam a violência dos seus efeitos. Como aprendiz do Guardião da Lágrima do Sol, eu já ouvira muitas histórias de homens que tinham cedido permanentemente à loucura, depois de ingerirem a massa, e de outros que haviam tombado fulminados pouco depois de a engolirem, sacudidos por convulsões e vomitando espuma e sangue, até se renderem ao abraço gélido da morte. Eu queria confiar na experiência de Ivarr, mas o meu coração era massacrado pelo horror da incerteza... e pela evidência de que já era tarde para interferir.

Sem pensar duas vezes, a minha irmã aceitou a bola de massa, levou-a à boca, mastigou-a e engoliu-a. Durante todo o processo, os seus olhos não abandonaram os de Ivarr; a sua vida suspensa na convicção do príncipe, aguardando sem saber bem pelo quê, altiva e quase provocadora, com o rosto acariciado pelos raios do luar. Ele sorriu levemente e conduziu-a ao interior do círculo esculpido no chão. Eric, Bryan e Ragnar seguiram-nos, mantendo uma curta distância.

No centro do Altar da Terra, envoltos pelo fogo mágico e pelo troar dos tambores nativos, Ivarr pressionou os ombros de Thora para que ela se ajoelhasse aos seus pés. A minha irmã não opôs resistência mas, quando o viu desembainhar o punhal que trazia à cintura, não pôde evitar que os seus olhos o seguissem. Ivarr segurou o punho com ambas as mãos e elevou-as acima da cabeça, entoando uma ovação a Odin. A um tempo, os três guerreiros-lobo que o serviam puxaram dos seus punhais e imitaram-no. As chamas dos archotes tornaram a inquietar-se e a fechar-se sobre eles, criando a ilusão de que o círculo mágico se encontrava dentro de uma parede de fogo. O olhar de Thora foi atraído para as labaredas, dentro das quais corriam sombras... Espíritos mais antigos do que os seus antepassados... Criaturas fabulosas... Lobos!

Gritou quando uma onda de fogo lhe explodiu no ventre e subiu até à garganta, cortando-lhe a respiração. O veneno começava a surtir efeito... Pressionou o peito, como se essa fosse a única maneira de impedir o coração de rebentá-lo, e caiu aos pés de Ivarr. O olhar do príncipe, feito da mesma essência das estrelas, repousou no seu corpo pequeno e indefeso, e os seus lábios moveram-se sem cessar; a voz de trovão distorcida pelo estridor dos tambores, as palavras carregadas de significado tombando sobre ela como centelhas, incendiando-lhe o sangue, queimando-lhe a alma. E o homem transformou-se em fera, a fera em deus...

Diante do olhar extasiado da minha irmã, Ivarr, na sua personificação de divindade, baixou o punhal à altura do peito e, sem hesitação, fez um corte fino e limpo sobre a carne, por cima do coração, acrescentando outra cicatriz àquelas que já haviam suscitado a minha curiosidade. Sem que os seus rostos acusassem incerteza nem dor, os guerreiros-lobo também baixaram os seus punhais e laceraram a palma da mão direita. Eric foi o primeiro a colocar a mão sobre a ferida de Ivarr. Seguiu-se Ragnar e, por fim, Bryan. O peito do líder ficou coberto com a essência da vida dos seus servos... E, aos seus pés, Thora lutava para se manter consciente; o horror estampado no rosto denunciando a sua convicção de que ia morrer.

Ivarr, homem-fera, fera-deus, baixou-se ao seu encontro e tomou-a nos braços, forçando-a a encará-lo, enquanto ordenava:

— Não combatas as sensações... Entrega-te... Deixa-te dominar... Um lobo deve conhecer a fome antes da satisfação...

O cheiro do sangue tornava-se irresistível! O olhar enlouquecido da minha irmã cravou-se no peito de Ivarr e, como se não houvesse força capaz de detê-la, lançou-se sobre ele qual predadora faminta, colando os lábios à ferida, enterrando as unhas nas suas costas para impedi-lo de afastar-se, deliciando-se com o seu sabor...

Eu estava horrorizada e repugnada! No entanto, a expressão de Thora era de puro deleite... E Ivarr fechava os olhos e embalava-a. Estava a dar-lhe vida... Estava a dar-lhe a satisfação que prometera! Ao coro de tambores uniram-se os uivos de Eric, Bryan e Ragnar. A cabeça de Thora descaiu sobre o peito do príncipe, os lábios tingidos de vermelho, o sangue escorrendo-lhe pelo seu queixo e pescoço, o olhar extasiado... E os dedos do rei-lobo começaram a mover-se sobre a sua túnica, desapertando os cordões, afastando o tecido e revelando a pele nua e casta do peito feminino. Sem um queixume, a minha irmã aninhou-se instintivamente contra ele e, aos poucos, o calor do corpo másculo invadiu o seu; os corações batendo a compasso como se se tratassem de dois amantes deliciados.

Era a primeira vez que a minha irmã se deixava acariciar por um homem... Era a primeira vez que os seus seios se entumeciam de encontro a um peito viril... E esse peito pertencia ao meu noivo! E toda esta perversidade decorria diante do homem que lhe fora prometido, há apenas um dia! E Eric pactuava com esta depravação! O que significava isto? Estaria eu a delirar, mergulhada no mais torpe dos pesadelos?

Arrebatada pela intimidade do contacto, totalmente alienada da sua identidade, Thora buscou o olhar do seu senhor. A cor verde cristalina tornara-se luminosa, feroz... Era o rei-lobo, o Espírito da Luz, que habitava a alma do príncipe que a fixava; que a mantinha suspensa da sua magia. A voz de Ivarr soou distorcida, irreal, ao sussurrar:

— Confia em mim, Thora! Eu jamais te magoarei...

Envolta pela luz que lhe inundava a mente, embriagada pelo prazer desta proximidade proibida, ela limitou-se a suspirar, enlevada. Então, a cabeça morena do homem, enfeitada pelo focinho branco do lobo, afastou-se; todos os músculos do seu pescoço, peito e braços tensos; o olhar selvagem fixo na jovem que se rendia à sua vontade... Para, no instante seguinte, arremeter contra ela. O meu coração contraiu-se, ante a desconfiança de que ia beijá-la. Todavia, o que Ivarr fez foi imensamente pior... Ivarr mordeu Thora!

Não eram dentes humanos que dilaceravam o ombro da minha irmãzinha, rente à pele sensível do pescoço. Eram as presas afiadas de uma fera, com vigor suficiente para prostrar um veado! Porém, em vez de gritar, estrebuchar e implorar por socorro, Thora ofereceu-se em sacrifício, subjugada e submissa, até que a dor lancinante cedeu lugar a uma paz imensurável, que se espalhou pelo seu sangue e forçou os lábios a libertarem um gemido de contentamento. Se eu não estivesse a partilhar das suas emoções, jamais acreditaria!

As presas do rei-lobo libertaram o ombro de Thora e deslizaram sobre o seu pescoço, deixando um rasto de sangue por onde passavam. Olhos nos olhos e o tempo susteve o fôlego... A mão tremula da minha irmã ergueu-se, para tocar nos lábios do príncipe, encharcados com a essência da sua vida. Ele correspondeu, afastando-lhe do rosto os fios de cabelo que se libertavam da sua trança, enquanto convidava numa voz animalesca:

— Aproximem-se, irmãos! Permitam que a Thora sinta o nosso poder, a força desta união sagrada. Coloquem a vossa marca no seu corpo para que todos saibam que, esta noite, ela não será a presa de ninguém, porque nos pertence...

O primeiro a aproximar-se foi Eric. Tremendo de ansiedade, encostou os lábios à ferida que sangrava abundantemente, no ombro da sua prometida. Depois, percorreu o mesmo caminho que o seu senhor; um rasto escarlate sobre a pele branca.

No topo da Montanha da Magia e ao longo das praias da Ilha dos Sonhos, os tambores ribombavam como trovões e estremeciam o coração da Terra. Em redor do altar primitivo, as paredes de fogo estendiam-se até ao céu. Apertada entre Ivarr e Eric, Thora recebeu os lábios de Ragnar no pescoço, e depois os de Bryan. Todos beberam o seu sangue e saborearam a sua pele. Oito mãos moveram-se em carícias delicadas sobre o seu peito e costas, tocando onde nenhum homem jamais tocara, besuntando a pele jovem e inocente com o sangue do pacto. A quem pertenciam os lábios que lhe beijavam o pescoço? A quem pertenciam os dedos que lhe afagavam o ventre? A quem pertencia o peito que lhe pressionava os seios? Não importava! Há muito que Thora cedera à magia selvagem, que a assolava com uma miríade de novas e inebriantes sensações. Para onde olhava, só via os olhos luminosos das feras. O odor intenso dos seus corpos embriagava-a, e quase podia jurar que era pêlo e não pele que se movia sobre si.

Então, os homens ergueram as cabeças ao céu estrelado e, a um único tempo, enfrentaram a Lua soberana e uivaram nas suas vozes de lobo. Thora não era um lobo, por isso só podia bradar, gritar bem alto, consumida pelo ardor da loucura. E, enquanto o seu clamor se fundia com o dos lobos, a voz de Ivarr sacudia-lhe o espírito:

— Que Odin, deus da guerra e da sabedoria, te conduza à vitória. Este é o teu primeiro combate, Thora. Devora a noite sem temor e caça para mim... Caça para mim, até à morte!

Movida por uma vontade que não era a sua, a minha irmã respondeu de imediato ao apelo do rei-lobo. Com uma agilidade superior à da condição humana, deixou para trás o Altar da Terra e abandonou a caverna. Atravessou a cascata, sem que a água maculasse o sangue ritual que vestia a sua pele, e deteve-se nas rochas da margem acidentada, habituando os olhos à obscuridade, farejando o ar quente, escutando os gritos dos outros rapazes que também se aventuravam na escuridão, brandindo as armas ante um exército de inimigos invisíveis. Para muitos, este seria o fim do sonho. Para Thora era o início de uma nova vida. As certezas que eu reunira até ao momento estavam destroçadas. O equilíbrio das forças místicas fora alterado e a energia fluía em completo descontrole, concentrando-se na jovem temerária, transformando a sua aura numa estrela.

Com um impulso arrebatado, Thora lançou-se em frente e embrenhou-se na floresta. Os caminhos que se abriam aos seus pés eram exclusivos. E onde estes a levariam ninguém podia prever... Para trás ficavam o rei-lobo e a sua alcatéia, partilhando de uma harmonia para além do entendimento humano, entoando cânticos que arrepiavam a noite.

Ivarr não cantava. Ignorou a irrequieta dança dos guerreiros e sentou-se num nicho do seu covil, com os lábios apertados e os olhos flamejantes, selvagens e cegos para o mundo. Por cima deles, Lança precipitou-se sobre as árvores, no encalço da moça. O falcão seria os olhos e os ouvidos do seu senhor nesta Caçada peculiar.

Só aqueles que possuem o dom de ver no escuro conhecem a liberdade que a noite concede. A claridade não oculta segredos, ao passo que a bruma traz consigo o mistério, a magia, um desafio pleno à eficácia dos sentidos. Perante as sombras que se movem, cegas e sempre iguais, há que escutar o bater do coração da natureza para distinguir as formas reveladas pela Lua; há que separar os cheiros e identificá-los; há que sentir a energia a deslocar-se no ar e no solo, e a força que vive em tudo o que nos rodeia, emanada do interior da Terra Mãe, e que alimenta os seus filhos sem exceção.

Thora não recebera a minha instrução mística, mas assimilava tudo isto, enquanto se movia através da floresta virgem, ao ritmo dos tambores que devassavam o silêncio. A terra fervilhava de vida debaixo dos seus pés e impelia-a em frente, cada vez mais depressa. Os seus olhos viam em cinzento, branco e preto, reconheciam as formas e interpretavam-nas. Não havia indicação do trilho a seguir, mas Thora não hesitava! A fonte da vida chamava-a e ela estava preparada para responder ao apelo.

Adiante, um ramo quebrado, o chão revolvido num padrão anormal, um cheiro sobejamente conhecido pairando no ar... Alguém estivera ali antes dela e montara uma armadilha. Um enorme fosso fora escavado no trilho. Mais um passo e teria caído no abismo da derrota. Contornar o obstáculo obrigá-la-ia a sair do caminho que escolhera... Com a destreza de um gato, trepou pelo tronco irregular de um carvalho, cravando os dedos na casca quais garras afiadas, içando o corpo esbelto como se não tivesse peso, apoiando-se nos pés para obter impulso. Num piscar de olhos encontrava-se acima do alcance de qualquer homem. Esticou-se devagar, palmando a segurança do ramo seguinte, excitada pela descoberta desta nova habilidade. Encolheu o corpo e saltou, aterrando agachada sobre outro tronco. Estava habituada a trepar às árvores com os primos, mas isto era diferente. A sua natureza jazia esquecida e cedia lugar a uma criatura da floresta.

Mesmo depois de ultrapassar a armadilha, Thora não abandonou o abrigo das árvores. Descobrira que podia mover-se mais rapidamente acima do solo, sem ter de se preocupar com as ciladas dos instrutores. Aqui e além, escutava os rapazes que a haviam precedido na entrada na floresta: um caçado por um laço oculto, tão desprevenido como um rato; outro a cair na prisão de um buraco... Magnor encontrava-se perto! O odor inconfundível do seu suor, da sua ansiedade empestava o ar. Silenciosa como uma serpente, Thora avançou até ele, deslizando pelos ramos com a agilidade do vento.

O corpo alto e robusto progredia com método; os sentidos atentos à menor oscilação do ar. Quando a minha irmã se aproximou, Magnor estacou. Girou a cabeça em todas as direções, com os olhos escancarados, o nariz a farejar e o punhal pronto para desferir um golpe fatal. Thora foi forçada a admitir que o rival era um bom batedor. Ela não fizera mais bulício do que um esquilo! Contudo, ele sabia que não se encontrava sozinho.

— Quem está aí? — Rosnou ameaçador, disposto a atacar antes de ouvir a resposta. — Revela-te cobarde! Tens medo de enfrentar-me?

O olhar de Thora estreitou-se. A imagem de Quinn a ser sovado, o rosto desfeito, o osso aguçado a trespassar-lhe a carne, tomou-a de assalto como um pontapé no estômago. A vontade de descer e enfrentar Magnor abertamente, punhal contra punhal, braço contra braço, incendiava-lhe o sangue...

« Um lobo deve conhecer a raiva antes do contentamento.»

As palavras de Ivarr massacravam-lhe a mente. Thora sabia que um duelo com Magnor comprometeria irremediavelmente as suas ambições, qualquer que fosse o resultado final. O príncipe era uma tentação; uma armadilha dos espíritos malignos para desviá-la do seu destino. Uma tentação irresistível! A fúria da minha irmã aumentava a cada batida de coração; manchava-lhe a visão de vermelho... Aquele rapaz odioso merecia ser castigado! Como podia deixá-lo escapar impune, se o tinha ao alcance das suas mãos? Já que apreciava jogos de dissimulação, Magnor seria confrontado com um desafio à sua altura! Thora teria a sua vingança, sem que ninguém o soubesse, para além dos deuses!

Decidida, entreabriu os lábios e deixou escapar a imitação perfeita do pio de uma coruja. Não muito longe, um pássaro verdadeiro respondeu-lhe. Era impossível distinguir os dois sons, acompanhados pelo clamor incessante dos tambores. Magnor baixou o punhal e passou a mão pela testa, praguejando:

— Malditos pássaros! Quem me dera ter asas para matá-los a todos!

A minha irmã não tinha asas, mas não tardou a ultrapassar o príncipe. Manteve-se por cima do carreiro que ele escolhera, e deteve-se um pouco adiante, acocorada sobre uma das árvores centenárias. Este era o local ideal para uma emboscada.

Com o punhal preso nos dentes, sentou-se e entalou as pernas num tronco sólido, deixando o corpo pender de cabeça para baixo. As folhas agitaram-se e pequenos ramos quebraram-se, mas o vento e os batuques camuflaram o efeito. Silenciosa como a morte, Thora recuperou o punhal, mordeu a trança para que não pendesse, e manteve os braços cruzados diante do peito, esperando, até que o odor do inimigo se tornou tão intenso que fedia.

Magnor surgiu e apercebeu-se da sua vulnerabilidade. Deteve-se apreensivo, cheirando o ar, escutando a noite e amaldiçoando os tambores que o confundiam. A coruja tornou a piar. O vento soprou com mais força e os ramos agitaram-se sobre a sua cabeça, deixando penetrar o luar.

Thora susteve a respiração e piscou os olhos, adaptando-se rapidamente à luz. Magnor agarrou numa vara e palpou o trilho, buscando uma armadilha. Sentia um cheiro estranho no ar... Mas não o reconhecia. No instante em que voltava a sua atenção para o teto de folhas, o vento abrandou e a Lua desapareceu. Um furão passou a correr por entre as suas pernas, fazendo-o saltar e resmungar uma saraivada de pragas. Por fim, arriscou um passo adiante. Dois. Estacou por baixo de Thora e ao alcance das suas mãos. A caçadora escutou o coração da presa a açoitar-lhe o peito, mas não se compadeceu. Só a satisfação da sua raiva lhe traria o contentamento.

Subitamente, a floresta ganhou vida. Os ramos das árvores dobraram-se sobre Magnor e prenderam-lhe os cabelos. Às cegas, o príncipe desferiu golpes com o seu punhal, berrando num estridor. Dezenas de pássaros levantaram vôo, atordoados pelo alvoroço, e alguns chocaram contra ele, cobrindo-o com uma chuva de penas e folhas. Em pânico, o rapaz precipitou-se em frente, numa correria desgovernada, como se perseguido por um exército de demônios. Acima da sua cabeça, Thora agarrava-se com toda a força ao tronco da árvore; os olhos apertados e os dentes cerrados para conter os gritos que a sua garganta ansiava por libertar. A vertigem do poder efervescia na sua essência e devorava-lhe as entranhas como fogo líquido.

Aos poucos, os pássaros assustados foram pousando nas árvores mais próximas e a nuvem de pó, folhas e penas dispersou-se. Os sons agudos dos irrequietos insetos voltaram a rivalizar com os tambores dos homens, e os predadores noturnos afoitaram-se prudentemente para fora dos seus esconderijos.

Thora apoiou-se no tronco e olhou para as mãos. Numa, segurava o punhal do nosso pai... na outra, a longa trança de Magnor! A euforia ameaçou rebentar-lhe o peito. Com a mente em chamas, guardou o punhal e a trança no cinto, e trepou pela árvore, com a rapidez e o arrojo de um esquilo, imune à dor provocada pelos arranhões infligidos à sua pele delicada. Só parou quando o véu estrelado da noite a cobriu. À sua volta, a Floresta da Magia estendia-se em todas as direções, até ao mar; uma manta verde, pujante de vida, sobre a qual ela imperava. Lá longe, o clarão das fogueiras acesas na praia projetava reflexos de fogo nas águas serenas. Perto, quase ao nível da sua cabeça, as Pedras do Mundo estendiam os braços de labaredas ao céu. E o batuque dos tambores enlevava os espíritos...

Possuída por uma determinação superior à sua, Thora ergueu os braços à Lua e bradou um chamamento; um declarado desafio, que ribombou sobre a ilha como trovoada. Lança, que a seguira fielmente, pousou ao seu lado; a densa plumagem cintilando como prata e os olhos sagazes fixando-a com a imponência de uma Entidade superior. Nos pulsos da minha irmã, o Dragão do Sol despertava e esbravejava o seu poder. Dominada pela magia que lhe fluía no sangue, Thora tornou a gritar e, desta vez, obteve resposta. Um uivo assombrou as trevas e gelou as almas dos comuns mortais, que ousavam invadir a floresta nesta noite marcada pelos deuses... O apelo do seu destino!

A um tempo, Lança estendeu as majestosas asas e elevou-se no céu, reclamando o reino do ar, enquanto Thora se lançava no abismo, saltando de tronco em tronco, caindo a uma velocidade vertiginosa, até encontrar o solo. Acocorada no manto de folhas e ramos mortos, piscou os olhos para se habituar à ausência de luz, esforçando-se por controlar a respiração. Aos poucos, o discernimento também regressava. Verificou com surpresa que este não era o mesmo trilho que a trouxera até ali... A sua conclusão foi sustentada pelo cântico resultante da carícia de água sobre pedras. Um ribeiro estava próximo... Menos mal! A experiência ensinara-lhe que, sempre que perdia o rumo, devia seguir um curso de água, pois este acabaria por conduzi-la ao mar e à aldeia.

Ergueu-se devagar, sentindo-se subitamente tonta. Algo caiu do seu cinto... A trança de Magnor. Recuperou-a e ensaiou um passo cambaleante. Que vertigem era esta, que lhe dificultava os movimentos? Forçou a mente a romper a cortina de névoa que ameaçava prostrá-la, e correu ao encontro do ribeiro... Porém, a meio caminho teve de deter-se. A trança do príncipe teimava em ficar para trás! Prendeu-a ao cinto mais uma vez. Só podia ser ilusão... Mas ia jurar que o cordão de cabelo negro, enfeitado com seda vermelha e anéis de prata, se tornava cada vez mais pesado! Ou estaria ela a perder as forças?

Ao chegar ao seu objetivo, Thora estacou, confusa. Não se recordava deste lugar. O ribeiro era largo mas pouco profundo, ladeado por pequenas pedras polidas e brilhantes. Uma pedra, suficientemente grande para suster dois adultos, repousava no centro do curso de água, forçando-o a dividir-se em seu redor. A areia da margem era escura... Até as árvores pareciam diferentes, incrivelmente esguias, e a luminosidade mais pálida! Ergueu os olhos ao céu e sofreu um sobressalto. A Lua e todas as estrelas haviam mudado de posição! Era como se tivesse adormecido na Ilha dos Sonhos e despertado noutro lugar! Porém, o rufar dos tambores persistia...

— Estou a delirar! — murmurou entre dentes. — É o efeito da mistura de ervas...

Ajoelhou-se na margem e lavou o rosto energicamente. Depois, bebeu a água cristalina com sofreguidão. Estava fresca e poucos goles chegaram para saciar a sede que a atormentava. Respirou fundo, sentindo a energia fluir pelo seu ser. Então, a trança de Magnor caiu ao ribeiro... Com uma exclamação de impaciência, Thora agarrou-a, antes que a corrente a arrastasse, e atou-a ao cinto com um nó, para se certificar de que não voltaria a desprender-se. Tornou a molhar as faces e arrepiou-se com a brisa gélida que, subitamente, lhe vergastava a pele. Pôs-se em pé de um salto, com o coração aos pinotes. Não se encontrava sozinha!

Eram três, seis, nove, doze... Instintivamente, Thora desembainhou o punhal. De onde saíra esta alcatéia? E como pudera ela não sentir o cheiro forte dos lobos, que agora empestava o ar, até estar completamente cercada? Por que não os ouvira aproximar-se?

As respostas surgiram-lhe na mente, ao ritmo das perguntas. Este não era o solo da Ilha dos Sonhos... Este era solo sagrado, onde ela não passava de uma transgressora! E os lobos diante de si não eram predadores de coelhos, caçadores de cabras e ovelhas, os troféus que os jovens guerreiros ambicionavam. Eram Lobos Cinzentos, criaturas sagradas, guardadores de almas atormentadas... Fora o líder desta alcatéia que ela desafiara, na copa da árvore, quando libertara a sua essência e esquecera a razão. Porém, ao invés de chegar diante dele pura e digna, preparada para a batalha, Thora maculara o seu espírito ao deixar-se dominar pela ira, pela ânsia de vingança que a desviara da sua verdadeira missão. Os deuses tinham-lhe enviado sinais, tentado desprovê-la da trança de Magnor... Mas ela teimara em conservá-la! E a cegueira dos sentidos fora o seu castigo. Agora, a menor possibilidade de vitória encontrava-se comprometida. Ivarr concedera-lhe uma honra sem igual e ela desperdiçara-a... Traíra a confiança do rei-lobo. Defraudará as expectativas do jarl e de toda a comunidade. Magnor sairia da floresta sem glória, mas desfrutaria do prazer de gargalhar diante do seu corpo destroçado. Aos Homens, só era concedida uma oportunidade de tocar a magnitude divina... E Thora arruinara a sua!

A minha irmã apertou o punhal do nosso pai, até os nós dos dedos perderem a cor. Além do jarl, desconhecia outro homem que houvesse enfrentado um Lobo Cinzento e sobrevivido para relatar o feito. Porém, apesar de não possuir a força e a destreza do progenitor, Thora jamais negociaria a sua vida. Era uma guerreira e morreria como uma guerreira!

A alcatéia afastou-se para deixar passar o líder: um animal fabuloso, maior do que os seus semelhantes, com o pêlo prateado cintilando intensamente à luz da Lua. Um único salto bastou para que se posicionasse no centro da pedra que dividia o ribeiro. Os seus olhos amarelos ganharam um fulgor humano à medida que enfrentavam os de Thora, e o focinho distorceu-se, até alcançar um esgar equivalente a um sorriso de desdém. E, nesse instante em que o vento susteve o fôlego, a minha irmã apercebeu-se de que a criatura era uma fêmea.

Em uníssono, os lobos começaram a rosnar. Num lugar incerto do céu, Lança soltou um grito de aviso, enquanto a voz de Ivarr ribombava por entre o estrondear dos tambores de festa... tambores de guerra... tambores de morte...

« Um Lobo deve conhecer a dor antes do prazer.»

Thora preparou-se para o inevitável; a lâmina do punhal refletindo o luar, qual raio aprisionado na sua mão. A serenidade do seu rosto, ante tamanha ameaça, deixava-me perplexa. Quando a dor chegasse, ela recebê-la-ia sem contestação.

«Caça para mim... Caça para mim, até à morte!»

Onde estava Ivarr? Por que não socorria a minha irmã? Fora ele o mentor desta temeridade! Se não viesse ajudá-la, Thora estaria condenada! Tentei manifestar-me; intervir provocando um clarão que assustasse as feras... Porém, descobri-me a esbracejar e a clamar no vazio. A minha energia esgotava-se a uma velocidade assombrosa, devorada pela magia que brotava da Terra, com o manifesto propósito de impedir a minha interferência.

Os lobos apertaram o cerco e a líder da alcatéia investiu. Bradei, impotente para contrariar o recuo da minha essência enfraquecida, e fui sugada através da floresta, debaixo do batuque enlouquecido dos tambores. Um esplêndido lobo branco passou por mim numa corrida desenfreada, seguido por três companheiros menores mas igualmente determinados. Depois, a noite cobriu-se de vermelho. Sangue... Sangue por toda a parte! O sangue da minha irmãzinha...

O meu último pensamento foi para Thora, antes do turbilhão de desespero e dor me consumir a consciência, e a escuridão engolir o mundo.

 

Anos de treino haviam-me ensinado a dominar as emoções, a permanecer fria e racional ante situações de extremo horror. Porém, nem o mais insensível dos seres pode quedar-se impassível ao sentir um pedaço de si fenecer. Por isso, eu gritava o nome da minha irmã, enquanto me esforçava por recuperar o controle dos sentidos.

Na minha mente esvoaçavam imagens dispersas, anuviadas, quase incompreensíveis: Thora rebolando por entre as pedras e a lama do ribeiro, partilhando um abraço mortal com a colossal loba prateada; os dentes da criatura ferrados no seu ombro, lutando para arrancar a marca do rei-lobo; o punhal que o jarl confiara à sua herdeira guerreira profundamente enterrado no pêlo da fera; Thora prostrada, exausta, ferida, agonizando esmagada sob o possante animal; a água límpida do ribeiro tingida de vermelho; o uivo ensurdecedor e doloroso de uma alcatéia; os gritos agudos de um falcão de guarda; a chegada tempestiva de um homem-lobo...

O Sol já nascera quando consegui suster-me nas pernas e deixar a cama. Sabia que Thora estava viva, mas ignorava por quanto tempo resistiria aos ferimentos que a loba lhe infligira. Há muito que o meu pai partira, decidido a quebrar as regras. Invadiria a floresta e resgataria a sua menina, nem que, para salvar o seu corpo e libertar o seu espírito, tivesse de enfrentar mil Lobos Cinzentos! A minha mãe ficara para trás, mergulhada numa angústia profunda. A partir do momento em que eu começara a gritar, o alarido que animava a casa do jarl cedera lugar a um silêncio opressivo. Para piorar a situação, Freya sentira-se indisposta e desmaiara. O elo que a unia à sua gêmea, forçara-a a partilhar o sofrimento que eu testemunhara. Perante tamanha comoção, o medo enraizara-se nos presentes, desde guerreiros a criados. Se Thora perecesse, a nossa comunidade jamais seria a mesma.

Retive o fôlego quando a porta de casa se abriu. Apoiada na tia Ingrior, vi o meu pai entrar de mãos vazias. A minha mãe correu ao seu encontro, e as pernas quase a traíram quando Ivarr surgiu, carregando Thora nos braços. No entanto, uma batida de coração foi suficiente para que pusesse cobro ao alarido e distribuísse tarefas. Ordenou que Ivarr pousasse Thora na cama que partilhava com Freya e enxotou os curiosos. Quando a cortina do quarto das gêmeas se fechou, só eu, a tia Ingrior, a minha mãe e Ivarr nos encontrávamos no interior. O choro de Freya estremecia as fundações da casa e, com muito carinho, o jarl convenceu-a a acalmar-se para não perturbar a irmã.

Thora jazia, inconsciente, com a capa do nosso pai a cobrir-lhe o peito, respirando com extrema dificuldade. O vermelho do tecido estava empapado em sangue... Sangue que também cobria o tronco nu de Ivarr e as suas calças. Algum provinha do ritual que haviam celebrado, mas a maior parte pertencia à jovem guerreira. Engoli em seco quando a minha mãe afastou a capa. Era um prodígio como Thora ainda vivia! Porém, diante de ferimentos tão graves, e atendendo ao sangue que já perdera e continuava a perder, pouco podia ser feito...

Subitamente, a minha irmã abriu os olhos. A sua mão estendeu-se na direção de Ivarr, como se não nos visse, e a sua voz débil e gorgolejante arrastou-se:

— Foi... tudo... em vão... A alma... dela... morrerá... comigo...

— Tu não morrerás! — rugiu Ivarr prontamente, possuído de uma certeza tão sólida como o coração da ilha. — Eu não permitirei!

— Não... me... deixes...

— Tu caçaste para mim, Thora! A partir de hoje, somos irmãos de sangue e caminharemos lado a lado, até ao fim das nossas vidas. — O olhar cristalino voltou-se para a minha mãe, ansioso. — Catelyn...

— O que é que estás disposto a fazer pela minha filha, Ivarr? — cortou a senhora da Ilha dos Sonhos, sem permitir que ele expressasse o que tinha em mente.

— Eu darei a minha vida pela Thora — respondeu o príncipe, sem hesitação.

— E talvez tenhas de o fazer! — replicou ela, com uma severidade que me arrepiou.

— Eu posso salvá-la, Catelyn! — tornou Ivarr. — Mas preciso da tua ajuda...

Falavam como se eu não estivesse presente... ou como se fosse uma estranha, que não merecesse uma justificação. Fiquei ainda mais magoada quando a minha mãe nos pediu, a mim e à tia Ingrior, que saíssemos. Thora tombara num delírio febril e agonizante... Detive-me junto da cortina, reunindo coragem para contrapor que talvez pudesse ser útil. Afinal, possuía o conhecimento da Lágrima do Sol... Porém, quando Ivarr segurou a mão da minha irmã, uma brisa fresca surgiu do nada e despenteou-me os cabelos. Senti o cheiro da terra molhada, após uma chuva abençoada; de folhas novas e verdejantes... de pêlo, garras e presas... de lobos! Então, compreendi que, afinal, não era da minha magia que Thora necessitava.

A praia era um santuário; o lugar perfeito para repousar o corpo e sarar o espírito. Ainda me sentia muito fraca, devido à energia que despendera no encalço de Thora, durante grande parte da noite. Porém, se o meu corpo estava cansado, o meu espírito definhava! A minha irmãzinha estava a morrer... Se Ivarr não conseguisse salvá-la, eu jamais o perdoaria! E, mesmo que o milagre se desse, e o rei-lobo devolvesse a vitalidade à sua serva, como poderia eu esquecer o que presenciara naquela maldita caverna?

Sentada na areia molhada, repousei a cabeça nos joelhos, lutando contra as lágrimas. Surpreendi-me ao verificar que não estava só, e cedi ao pranto quando os braços de Trygve me envolveram, vazando a dor que a minha alma já não tinha alento para comportar. Permiti que me embalasse e deitei a cabeça no seu peito, soluçando ao ouvi-lo murmurar:

— Não te preocupes, Edwina! A Thora vai ficar bem...

Ele viera agora da minha casa e já tomara conhecimento da tragédia. Mas, afinal... O que é que Trygve ainda estava a fazer aqui? Não deveria ter partido para a Ilha dos Penhascos, nessa madrugada, com o seu povo e Amora? Talvez tivesse ouvido falar do que acontecera à minha irmã e decidisse ficar mais uns dias! O fato é que estava ao meu lado e eu sentia-me infinitamente grata por isso. Neste momento, o ombro do meu primo era a jangada que me ajudaria a atravessar este mar de loucura.

Um dia passou... dois, três...

Enquanto a comunidade regressava lenta e penosamente às suas ocupações diárias, os barcos dos convidados e visitantes partiam do porto, deixando para trás os grandes navios do rei Steinarr do povo viquingue e de Lorde Stefan McGraw. Na casa do jarl da Ilha dos Sonhos, ninguém conseguia descansar desde a noite do Festival de Verão.

A tia Geirny era forçada a longos períodos de inatividade e o marido mantinha-se ao seu lado, bebendo cada uma das suas palavras, suspenso do seu sorriso. Ambos sabiam que o fim do seu amor estava próximo e queriam desfrutar de cada instante que lhes era concedido.

Completamente alheada da debilidade da sua mãe, Estrid continuava a importunar-nos com mesquinharias. O fato de Magnor ter escolhido cortejar Freya deixara-a furiosa. Não voltara a pavonear-se diante do príncipe, mas não perdia uma oportunidade de cuspir o seu despeito sobre a minha irmã, pouco se importando com a sua fragilidade.

Freya estava inconsolável. O sofrimento de Thora era o seu desespero. Apesar de a família tentar animá-la, ela isolava-se e chorava até perder as forças. A única pessoa que tolerava ao seu lado era Magnor, o que me irritava para além da razão! Todavia, neste momento, nada podia fazer para desmascarar a perversidade do príncipe, sem agravar ainda mais o sofrimento da minha irmã. Por isso, mordi a língua e acatei o ar inocente do seu prometido.

Magnor acabara a Caçada humilhado pelo destino e frustrado em todas as suas ambições. Na manhã seguinte, os instrutores haviam-no encontrado prisioneiro de uma das muitas armadilhas espalhadas pela floresta. Todavia, em vez de admitir a derrota, ele tornara a escolher o ardiloso caminho da mentira. E eu tinha de admitir que imaginação não lhe faltava!

Magnor jurava que fora desviado do trilho certo por uma deusa, que descreveu como uma mulher tão formosa que nenhum homem lhe resistiria; loura como o Sol, com pele alva e olhar de céu. Essa criatura atraíra-o com o seu cântico celestial e forçara-o a cair na armadilha. Quando o tivera à sua mercê, cortara-lhe a trança, justificando que precisava dos fios de cabelo de um jovem formoso, corajoso e poderoso, para realizar os seus feitiços. Depois, desaparecera tão misteriosamente como surgira.

A história do príncipe não foi contestada. A vaidade e a estima que Magnor devotava aos seus longos cabelos negros era do conhecimento geral. Ninguém acreditava que ele tivesse tido coragem de cortar a adorada trança para justificar a falha na Caçada. Deceparia uma mão antes disso! — alguém exclamara. E a descrição da deusa deixara os guerreiros extasiados. Um imbecil expressara mesmo a intenção de se embrenhar na floresta para buscá-la! Não havia desonra na derrota de Magnor, pois fora ludibriado por uma criatura encantada... E eu não tinha como provar que ele estava a mentir com todos os dentes da boca, porque Thora não trouxera a maldita trança consigo. Certamente perdera-a nas águas ensangüentadas do ribeiro sagrado.

Steinarr não se mostrara impressionado com a experiência do filho, revelando que conhecia bem a sua prole. Contudo, o seu coração de pai também lhe impunha restrições. E como, nesse momento, Magnor era a última prioridade na casa do jarl, a sua manha escapou incólume. O fato de se te abeirado de Quinn para lhe pedir desculpa pelo seu arrebatamento, também ajudara! Eu mal acreditara, quando ouvira o jovem tirano prometer que, assim que o meu primo estivesse curado, o convidaria para caçar veados na Floresta dos Carvalhos, como dois bons amigos. Sem dúvida que Magnor era muito, muito inteligente! Só me restava engolir em seco e aguardar que voltasse a fazer asneira para, então, lhe cair em cima.

Quinn continuava preso à cama. Apesar de a sua vida não correr perigo, as costelas partidas causavam-lhe tantas dores que mal se podia mexer sem abafar um queixume. Bryan não saía de perto do irmão, animando-o com a descrição das suas aventuras. E, diante do guerreiro-lobo que coloria os seus sonhos, Svana esmerava-se nas habilidades de curandeira e acariciava as nossas almas com a sua voz maravilhosa, sempre que cantava até Quinn adormecer.

Thora mantinha-se inconsciente, mas a velocidade com que sarava era impressionante. Aqueles que a haviam julgado perdida, quando Ivarr a resgatara da floresta, atreviam-se a esperar o melhor. A marca do rei-lobo não só lhe salvara a vida como lhe conferira uma robustez extraordinária, que lhe permitira prostrar a Loba Prateada e vencer a morte, contra todas as previsões. Assim que se concluísse a união do seu espírito com o espírito da Criatura Sagrada, a minha irmã despertaria para uma nova vida... como uma guerreira excepcional!

A feiticeira Catelyn não desviava o olhar da gêmea mais velha por um instante, atenta ao mais débil dos seus movimentos. E a acompanhá-la estava Ivarr, imóvel como uma estátua, recusando-se a comer, privando-se do sono, mal piscando os olhos, que se fixavam em Thora com uma determinação férrea. Ao observar o ardor com que as suas mãos envolviam a dela, fui forçada a admitir que a minha irmã se encontrava mais dependente de Ivarr do que uma árvore da luz do Sol.

Como seu senhor, ele tinha o poder de lhe transmitir a sua vitalidade e curá-la. E o empenho do meu noivo assustava-me, quase tanto como o ressentimento e a raiva que me revolviam as entranhas, de cada vez que era assaltada pelas recordações do ritual que transformara Thora num lobo da sua alcatéia.

A minha insegurança começou a notar-se nos pequenos gestos. E se a maior parte dos que me rodeavam ignoraram gentilmente o meu azedume, Estrid deparou-se com a oportunidade ideal para me ferir com a sua língua viperina. A pequena insolente mostrou-se apreensiva e atenciosa com a condição de Thora, mas não tardou a insinuar que Ivarr parecia demasiado preocupado. Chegou ao cúmulo de me aconselhar a tomar cuidado com esta súbita proximidade! Dar-lhe uma bofetada teria aplacado a minha ira, mas não mudaria o fato de que eu assistia impotente à ruína dos meus sonhos. Aos olhos de Ivarr-homem, Thora tornara-se uma guerreira poderosa, merecedora de respeito e admiração. Aos olhos de Ivarr-lobo, Thora era uma fêmea, um espírito capaz de desafiar o seu... e de completá-lo! O amor que eu devotava à minha irmãzinha era inquestionável. Porém, no que respeitava a Ivarr, homem ou lobo, eu já não sabia o que pensar.

Encontrei Trygve na praia com o olhar perdido no horizonte, distraído da beleza do sol-pôr. Nos últimos dias, ele mantivera-se ao meu lado, como se o atenuar da minha dor o alentasse a esquecer a sua. Porque era inquestionável que o meu primo sofria desmesuradamente! E eu não podia continuar a desconhecer a razão! A luta pela sobrevivência de Thora estava ganha. Era tempo de me debruçar sobre os outros problemas que, em paralelo, me roubavam o sono.

Sentei-me ao seu lado e procurei-lhe a mão. Os olhos verdes encheram-se de lágrimas, mas não se desviaram do infinito. Fixei-o insistentemente, disparando a pergunta que eu sabia ser a chave do enigma:

— Por que não viajaste para a Ilha dos Penhascos com o teu povo, Trygve?

As lágrimas escorreram-lhe pelas faces e os seus lábios distorceram-se num sorriso amargo. Durante algum tempo guardou silêncio, mas a necessidade de desabafar acabou por vencer:

— Eu não posso continuar a ser o Sacerdote dos Penhascos — murmurou numa voz consumida pelo desgosto. — A noite mágica pode ter sido abençoada para alguns... mas foi maldita para mim e para o meu povo! Que a deusa tenha piedade de nós! Profanei a tradição, Edwina! Por minha causa, o ritual da Renovação não foi cumprido...

Trygve provou, mais uma vez, que era um homem de coragem, ao partilhar comigo o seu tormento. No dia em que o destino se divertira a brincar com as nossas vidas, ele recebera a Sacerdotisa dos Penhascos na praia e conduzira-a ao topo da Montanha da Magia, como ordenavam os costumes. Enquanto o seu povo preparava os ritos mágicos, os Sacerdotes haviam-se recolhido na Gruta da Renovação, para invocarem os espíritos dos antepassados nativos e buscarem a benção da deusa. Não demorara para que constatassem o muito que tinham em comum.

Durante a noite, Trygve regressara à gruta, onde uma jovem o aguardava para se sujeitar ao ritual de Renovação. Porém, apesar de não ser estranho ao ato, sentira-se diferente, embriagado pela magia que brotava do coração da Terra. Após o dever cumprido, a moça adormecera como ditava a lei... mas o Sacerdote fora incapaz de alcançar o esquecimento. Com o corpo e a mente em sobressalto, ouvira a Sacerdotisa entrar. Por entre as pestanas, vira a sua figura pequena e graciosa, coberta de branco, lacerar a mão com o punhal... e deter-se diante dele, com a respiração suspensa. Quando, por fim, ela se ajoelhara ao seu lado e lhe tocara na testa, para recolher no sangue a sabedoria que iria depositar no ventre da Mãe da Renovação, e que seria herdada pela criança que fora concebida na cerimônia, Trygve abrira os olhos, contrariando a vontade imposta ao longo de séculos.

O meu primo não necessitou de se alongar nos pormenores. A sua mente, aberta à minha, permitiu-me reviver, fôlego a fôlego, o instante em que a sua mão envolvera a mão de Amora, impedindo-a de apartar-se... o momento em que lhe afastara o véu do rosto, revelando a perfeição que jamais poderia ser contemplada pelo olhar de um homem. Frente a frente, quebrando todas as regras, Trygve e Amora haviam-se fixado, num silêncio carregado de significado e sentimento. A mão do meu primo deslizara pela face da Sacerdotisa, numa carícia trêmula, enquanto o seu corpo pleno de masculinidade se erguia ao encontro do dela. Prisioneira do fascínio, Amora entrelaçara os dedos nos caracóis negros do Sacerdote e aguardara... aguardara pelo que jamais poderia ser, enquanto Trygve gemia angustiado:

— Senhora minha, este é o mais maravilhoso dos sonhos... e o mais terrível dos pesadelos! Como pode o meu coração jubilar de felicidade, ao mesmo tempo que me condena...

E Amora cortara-lhe a voz com um beijo ardente; um beijo a que Trygve correspondera com todo o vigor. Estava prestes a enlouquecer e a puxá-la para o seu lado, quando a Sacerdotisa recuperara o discernimento e se afastara, correndo para fora da gruta... sem completar o ritual.

— Existe uma profecia na Ilha dos Penhascos... — concluiu ele, tão transtornado que mal conseguia respirar. — Uma profecia que fala de um varão sem marca, responsável pela destruição do seu povo. Desde que há memória, os Sacerdotes unem esforços para evitar a calamidade. Agora, deitei tudo a perder! Por minha causa, a mão da Sacerdotisa não tocou no ventre da mulher que concebeu... Essa criança nascerá sem a bênção do sangue! O meu filho... O meu filho está amaldiçoado!

Franzi o sobrolho, em manifesta discordância. Até podia aceitar que um Homem comum dissesse uma tolice destas, mas não alguém com a preparação de Trygve! O seu desespero... a sua culpa deturpavam-lhe o raciocínio. E eu tinha a obrigação de sacudi-lo até despertá-lo!

— Estás a deixar-te perturbar pelas emoções — repliquei. — Uma profecia não é uma verdade indiscutível! Nós aprendemos que a sorte pode ser contrariada. Além disso, se acreditas que a criança gerada nessa noite vos trará problemas, não será prudente vigiá-la?

— Eu não posso ir para a Ilha dos Penhascos, Edwina!

— E por que não?

— Porque me apaixonei pela única mulher que me é proibida! — revidou ele, impaciente. — Não compreendes? Agora que vi o rosto de Amora, que conheci o sabor dos seus lábios, ser-me-á impossível viver ao seu lado sem desejá-la!

— E como viverá ela, julgando que lhe voltaste as costas? Que se tornou indigna aos teus olhos? Permitirás que carregue sozinha esse fardo, diante do vosso povo? Tu não foste educado segundo as crenças dos nativos e, ainda assim, empalideces quando mencionas a tal profecia. Já imaginaste a agonia de Amora? A lei proíbe-vos de se deitarem... mas não vos proíbe de estar juntos, de se acarinharem e amarem. Se a deusa vos pregou esta partida, deve ter os seus motivos! Tu juraste que mudarias para melhor a vida do Povo dos Penhascos, primo! Assume a tua missão! De outra forma, jamais te perdoarás... e jamais conhecerás a felicidade!

Trygve quedou-se em silêncio, observando o mar a acariciar a areia branca e a revolver as conchas de cores delicadas. Eu enterrei os pés na suavidade úmida e respirei fundo, convicta de que tocara no seu coração. Por cima de nós, uma gaivota soltou um grito agudo, antes de juntar-se às companheiras que passeavam a curta distância, debicando a areia em busca de um petisco. Um grupo de focas aproximou-se da praia, rasgando as ondas com os corpos escuros e roliços, chapinhando e libertando sons que podiam ser gargalhadas de satisfação. Se Thora estivesse conosco, não hesitaria em mergulhar para brincar com elas...

— Recordas-te da tarde em que a Thora saiu do mar montada na carapaça de uma tartaruga? — perguntou Trygve, comprovando o nosso elo.

— A minha mãe ia morrendo de susto!

— E da vez que jura ter visto o Povo da Água a rondar a ilha?

— Se ela o afirma, é porque é verdade — retorqui com firmeza. — A Thora nunca mente!

A mão de Trygve apertou a minha, enquanto buscava o meu olhar.

— Ficarás bem?

Sorri francamente, sentindo um peso abandonar-me o peito.

— Se precisar de ajuda, prometo que acorrerei sem demora à Ilha dos Penhascos, para buscar o meu primo Sacerdote!

— Serás sempre bem-vinda... Mas toma cuidado com os Sentinelas!

— E achas que umas lagartixas enfezadas poderão impedir-me de te ver?

Trygve correspondeu ao meu sorriso e estreitou-me nos braços.

— Não, Edwina! Tu és uma força da natureza! Nada nem ninguém te pode deter!

 

O olhar verde cristalino de Ivarr foi a primeira coisa que Thora encontrou, ao despertar para a sua nova vida. Eu estava junto deles e senti um chicote de energia estalar no ar. O meu noivo afastou-se para permitir que a família se abeirasse da pequena heroína, mas manteve -se por perto, continuando a fixá-la como se já não soubesse fazer outra coisa. Foi só quando Eric a estreitou nos braços, que ele finalmente reagiu, abandonando a casa. O meu primeiro impulso foi segui-lo, mas estaquei, prisioneira do orgulho. Mesmo que a suspeita que me angustiava se confirmasse, o que podia fazer? Berrar o meu ultraje? Humilhar-me? Nem pensar! Por muito que gostasse de Ivarr, jamais o faria!

Seria impossível manter Thora na cama por mais do que um ou dois dias, já que não tinha nenhum osso partido e a maior parte das feridas resultantes da luta com a loba estavam a sarar bem. Em alguns sítios, onde as garras e as presas da criatura lhe haviam dilacerado a carne, as cicatrizes jamais desapareceriam. Porém, ao contrário de qualquer outra mulher, que choraria de desgosto e vergonha, e as esconderia para o resto da vida, Thora exibi-las-ia com orgulho, pois eram o testemunho da sua conquista.

A marca das presas do rei-lobo brilhava no seu ombro, rente ao pescoço, como se imposta por um ferro em brasa. Nos últimos dias, eu estivera atenta e verificara que Eric, Bryan e Ragnar partilhavam dessa cicatriz cerimonial. Tinha de habituar-me à idéia de que, agora, Thora pertencia à sua alcatéia, e estava sujeita às decisões soberanas do Espírito da Luz. Não obstante, se Ivarr desenvolvera um afeto mais profundo pela minha irmã, era melhor que o assumisse de uma vez! Eu preferia ficar sozinha, e dedicar-me de corpo e alma à minha Arte, e à missão de Guardiã da Lágrima do Sol, a casar-me com um homem que desejava outra mulher.

O meu noivo não dormiu em casa, mas ninguém comentou a sua ausência e eu fingi não me importar. Durante a noite, Thora delirou, febril, agitando os braços como se pretendesse esmurrar um inimigo invisível... e gritando pelo rei-lobo. Eric estava conosco e apercebeu-se do meu choque. Nada apreensivo, declarou:

— Não te preocupes, Edwina! A Thora recuperará em breve!

Instintivamente, revidei num tom tão áspero que me surpreendeu:

— Não te incomoda que a tua noiva clame por outro homem?

Eric estreitou o olhar, sem alcançar a origem do meu azedume.

— E por que deveria? A Thora chama pelo nosso líder, porque só ele pode aliviar a sua dor.

Pura lealdade canina! Voltei-lhe as costas, mordendo a língua para evitar dizer algo de que me arrependesse. O meu problema não era com Eric! Era com Ivarr! E ele não podia fugir eternamente! Mais tarde ou mais cedo, teria de prestar-me contas por ter envolvido a minha irmã na imoralidade à qual ousava chamar ritual.

Trygve estava prestes a saltar para a canoa que o levaria à Ilha dos Penhascos, quando Ivarr surgiu na praia montado no garanhão Bravo, que se vergava à sua autoridade. O herdeiro do trono viquingue desmontou e estreitou o meu primo, desejando-lhe sorte para a nova vida que escolhera.

Pouco depois, vi Trygve partir e tive de cerrar os dentes para não chorar. Era irônico pensar que, depois da sua intenção me ter causado tanta revolta, fora eu quem acabara por empurrá-lo rumo à aventura que o aguardava, por saber que ele só seria feliz junto de Amora e do Povo dos Penhascos. Recuei quando a mão de Ivarr cobriu a minha, mas ele relevou-me a inquietação, acreditando que esta se devia ao abalo do momento, e liberou-me para confortar a tia Ingrior.

Em casa, o meu noivo abeirou-se mais uma vez de Thora. No entanto, o seu trato estava diferente, sem um pingo de emoção. Mal solicitou a minha companhia, declarei assanhada:

— Temos de conversar! A sós!

Surpreendido com a minha irritabilidade, limitou-se a responder:

— Está bem! Vamos até à praia?

Caminhei adiante dele e só parei à beira-mar. O rosto másculo denunciava cansaço, mas o carinho no seu olhar não se alterara.

— O que é que se passa contigo, querida? Não estás bem...?

— Como é que queres que eu esteja bem, Ivarr?

Ele ergueu as sobrancelhas e encolheu os ombros, demonstrando-se surpreendido.

— Não percebo o que te apoquenta! É o Trygve? A Thora?

— Na verdade, és tu! — volvi agressivamente.

A sua expressão carregou-se e a voz denunciou irritação ao retorquir:

— Antes de continuares com esse ataque de fúria, importas-te de me explicar o que foi que eu te fiz?

— Eu presenciei o teu ritual! — respondi, sem paciência para desperdiçar palavras. — Vi tudo o que fizeste e ouvi tudo o que disseste naquela caverna. Queres que esteja feliz? E nem tentes convencer-me de que o que aconteceu foi «exigência da cerimônia», porque eu não sou parva! Tu aproveitaste-te da inocência da Thora...

— Basta, Edwina!

O seu grito deixou-me muda e a tremer. Quedamo-nos em silêncio, medindo forças com o olhar. As acusações martelavam-me a língua, mas Ivarr antecipou-se, objetando num tom perigosamente baixo e enrouquecido:

— Quem te deu o direito de te intrometeres nos meus assuntos? O ritual que presenciaste é sagrado... e secreto! A tua bisbilhotice foi ofensiva, e só te perdôo porque sei que estavas preocupada com a sorte da tua irmã...

— E desde quando a Thora é um assunto teu? — cortei, fervendo de raiva.

— Não foste tu que me suplicaste que a pusesse à prova? — contrapôs, mordaz. — Brincar com o destino é arriscado, Edwina... Que te sirva de lição! Eu não sonhava que as coisas evoluiriam desta forma! Contudo, alegro-me que assim tenha sido. Se presenciaste o ritual, sabes que a tua irmã decidiu livremente e brilhou na sua conquista. Devias dar-te por satisfeita...

— Satisfeita por te ver despir a Thora e devorá-la viva?

Ivarr sacudiu a cabeça e praguejou:

— Enlouqueceste? Com os conhecimentos que possuis, devias compreender melhor do que ninguém a solenidade e a seriedade desse ritual! A minha magia é diferente da tua, mais física, mais aguerrida... E é essa magia que me une aos meus lobos. A tua irmã é especial, direi mesmo, única... E provou-o! Aquela cerimônia tornou-nos irmãos de sangue... O teu ciúme é ridículo!

— Ridículo? — repeti, frustrada por ser incapaz de simular frieza. — É óbvio que a Thora não é apenas mais um lobo na tua alcatéia! Ela é uma fêmea... O par do rei-lobo! Vós desenvolvestes uma ligação especial; um sentimento muito mais forte do que aquele que partilhas com o Eric, o Bryan, o Ragnar...

«E comigo!» — Pensei, mas não me atrevi a afirmá-lo. Contudo, Ivarr ficou subitamente sombrio, como se eu o tivesse atingido pela primeira vez. Esperei que rejeitasse a minha teoria... Almejei que me estreitasse nos seus braços e jurasse que eu era a única mulher que ele desejava. Porém, a sua voz soou gélida quando volveu:

— A Thora é mais forte do que eles, por isso eleva-se até mim. Mas a nossa ligação é espiritual! O Eric é o meu melhor amigo... — Deteve-se abruptamente, como se decidisse que não tinha de me justificar a sua lealdade. — Como futura Guardiã da Lágrima do Sol, a tua percepção da realidade é muito deficiente! Se te deixas dominar por sentimentos tão mesquinhos, talvez «O Que Tudo Vê» deva procurar outro aprendiz...

— E talvez tu devas procurar outra noiva!

Cerrei os dentes, sem acreditar no que dissera. Senti os olhos encherem-se de lágrimas, e os joelhos quase cederem sob o peso do corpo. Tive vontade de saltar para os seus braços e pedir-lhe desculpa, mas o orgulho venceu. Mantive-me altiva, aguardando por um veredicto que decerto seria implacável e definitivo.

Ivarr estava lívido e respirava com dificuldade. Mil e um sentimentos cruzaram-lhe o olhar, mas a sua expressão não degelou. Após uma eternidade, acabou por mastigar:

— Vou perdoar-te, porque sei que estás cansada e perturbada. Mas fica ciente de uma coisa... Só me casarei com uma mulher que me devote o amor e a confiança que eu mereço!

Fiquei a vê-lo afastar-se, incapaz de reagir, envenenada pela certeza de que esta discussão determinara o fim do meu noivado. Depois, sentei-me na areia e chorei, enquanto as ondas recuavam e a praia se enchia de ruidosas gaivotas, que desdenhavam da minha amargura.

 

Catelyn era mãe, amiga, cúmplice e confidente, curandeira do corpo e do espírito. Sempre adivinhava quando uma das suas meninas necessitava de ajuda, sem que tivéssemos de pedi-la. Por isso, não me surpreendi quando espreitou pela cortina do meu quarto e avançou até à cama, sentando-se ao meu lado. Há muito que eu parara de chorar, mas ainda tinha os olhos inchados, por isso declinara o jantar. Não queria que Ivarr me visse nesta prostração!

— Queres contar-me o que se passa? — perguntou-me, sem exigência. Se eu me recusasse a falar, ficaria ao meu lado apenas para me confortar. Mas eu precisava de desabafar... e, mais do que tudo, ansiava pelos seus conselhos.

— Eu discuti com o Ivarr — confessei, ainda que cautelosa. — Receio... que ele esteja a apaixonar-se pela Thora.

— E disseste-lhe isso?

Senti o coração mirrar, ao constatar que a minha mãe não acusava surpresa.

— Disse-lhe coisas muito piores! — volvi a custo. — Oh, mama... É verdade, não é? O que é que eu faço?

Ela ponderou, antes de continuar:

— Por enquanto, o elo que se estabeleceu entre o Ivarr e a Thora não representa uma ameaça para ti... As emoções intensas que vós experimentastes durante o Festival de Verão estão a afetar o vosso julgamento. Todavia, combater o fogo com fogo é um erro, filha! Se amas o Ivarr, tens de ser paciente e tolerante... Deves aceitar a sua natureza, e ajudá-lo a superar as incertezas!

Agora eu estava intrigada!

— Tu sabes... Sabes o que se passou na floresta?

— A minha Visão diminuiu quando os Feiticeiros me castigaram, mas continuo a ver e a ouvir o suficiente — prosseguiu ela serenamente. — As forças divinas concederam ao Ivarr um poder extraordinário, selvagem e perturbador. Antes da tua irmã, o rei-lobo iniciou três companheiros... Pelo seu senhor, qualquer um deles morrerá com um sorriso nos lábios. Porém, no que respeita a Thora, esse elo é ainda mais profundo... mas não deixa de ser místico! Tu és a noiva do Ivarr e serás a sua mulher... No entanto, para que a vossa união seja perfeita, terás de amar o Espírito da Luz, para além do príncipe e do homem! Achas que és capaz, Edwina?

Não sabia o que responder. E isso, só por si, era tremendamente grave! Se eu amasse Ivarr, devia dispor-me a aceitar a criatura mágica que vivia na sua alma, sem contestação... Porém, a simples lembrança do rei-lobo a cravar os dentes no ombro de Thora causava-me calafrios. De momento, não estava preparada para enfrentar este dilema. Aproveitei a oportunidade para falar de outra questão tormentosa... Um segredo que já não suportava guardar:

— O primo Edwin procurou-me na véspera do Festival de Verão, sob a forma da sua essência... Cresceu... Tornou-se um homem...

Num piscar de olhos, as cores abandonaram as faces da senhora da casa. Os seus dedos apertaram a pedra azul de Aranwen, enquanto me interpelava com uma inquietação crescente:

— Ele disse-te alguma coisa? Quais são os seus planos?

— Não... — tartamudeei, insegura. — Ele... simplesmente revelou-se!

— Foi por sua causa que tu desmaiaste?

Confirmei e a repreensão não se fez esperar:

— Devias ter-me contado de imediato, filha! Tens noção do perigo que enfrentaste? De certeza que o Sigarr distorceu a personalidade desse rapaz, nestes últimos anos. A forma provocadora como se manifestou é a prova de que já não podes confiar nele! Promete que me contarás se tornar a procurar-te! E jura que não tomaras a iniciativa de buscá-lo!

Eu não esperava uma reação tão violenta! É certo que antecipara alguma apreensão... Mas a minha mãe estava em pânico! Aquiesci a tudo para sossegá-la. Todavia, ela não se tranqüilizou:

— Viste se ostentava alguma tatuagem? Um dragão desenhado no peito...

— Não... Por favor, acalma-te, mama! Se o Edwin me quisesse mal, teria permanecido oculto até completar o seu treino. Então, atacar-me-ia de surpresa...

— E quem te garante que o seu treino já não terminou? Mantém-te alerta, Edwina! O Guardião da Lágrima da Lua é um mestre de manipulação. Se o seu pupilo possuir metade da sua habilidade, pode pretender tocar o teu coração, para depois te destruir! Não te esqueças de que, para além dos ensinamentos daquele feiticeiro maldito, ele também guarda o ressentimento pelo abandono. Nem sou capaz de imaginar com que aleivosias a sua mente foi moldada!

 

Acordei a meio da noite com uma carícia no cabelo. Abri os olhos, esperando encontrar a minha mãe, mas o quarto estava vazio. Ao meu lado, Freya dormia profundamente. Decerto sonhara! Fechei os olhos, sentindo-me cansada. Felizmente, faltava muito para o dia nascer...

A sensação repetiu-se. Apelei a toda a vontade para me manter inerte. A energia que se manifestava era fenomenal... Libertei a mente e consegui vê-lo, alto e poderoso como um guerreiro bem treinado; o esplendor do seu olhar, de um verde extraordinário, contrastava com a cor dourada da sua pele. Os dedos brilhantes da sua essência entrelaçavam-se nos meus caracóis, afagavam-nos... Para depois deslizarem sobre a minha face...

Levantei-me bruscamente e Edwin afastou-se. Antes que pudesse esboçar um gesto, já ele desaparecera. Porém, desta vez, não iria deixá-lo partir sem uma explicação! Saltei da cama e corri para a rua, descalça e em camisa de noite, disposta a alinhar no seu jogo.

O rasto da sua energia guiou-me até à praia. Deixei para trás a luz dos archotes que iluminavam a aldeia e caminhei até ao mar, debaixo do olhar atento das estrelas. A noite estava fria e a areia gelava-me os pés. A presença de Edwin era muito forte... mas eu não conseguia vê-lo, nem mesmo apelando às minhas habilidades.

— Edwin... — chamei baixinho, temendo que a minha voz ecoasse no silêncio que embalava o povoado e despertasse a atenção dos guardas de vigia. — Onde estás? Deixa-te de brincadeiras...

Ele surgiu tão bruscamente que me sobressaltou. Recuei dois passos e, sem querer, entrei na água. A onda que se enrolava na areia abriu caminho por entre as minhas pernas e molhou-me a barra da camisa. Estava gelada! Mal contive um grito, sobressaltada, assustada... e ainda assim, tomada por uma felicidade tão grande que não me cabia no peito. Edwin soltou uma gargalhada, numa voz semelhante à do seu pai. Estendeu os braços e puxou-me ao encontro da sua forma espiritual, resgatando-me ao mar. Não resisti, e no instante em que nos tocamos houve um reconhecimento, uma fusão de energia que me roubou o fôlego. O frio desapareceu como por encanto... Estar nos braços de Edwin era como chegar a casa, depois de um dia de trabalho duro; como beber uma malga de leite quente com mel, após uma noite ao relento...

— Senti tanto a tua falta... — A sua voz entrou em mim e envolveu-me o coração. Apertei-o nos braços como se fosse real, e desatei a chorar, incapaz de me controlar, incapaz de parar de tremer, incapaz de lhe responder. A minha mãe estava enganada! O meu amigo voltara! Desejei que este momento durasse para sempre, mas o tempo corria contra nós. Tinha tanto para lhe perguntar... tanto para lhe dizer...

— Como é que estás? — inquiri, sem saber por onde começar. Ele permitiu que me afastasse o suficiente para encará-lo, antes de responder:

— Sobrevivi...

— Não se passou um dia, um instante, que não pensasse em ti! — exclamei. E era verdade!

Desta vez, ele limitou-se a mirar-me, subitamente sério. Antes que eu pudesse formular outra pergunta, apelou:

— Preciso da tua ajuda, Edwina! Em breve, o meu mestre irá pôr-me à prova. Já o tem feito, ao longo dos anos... Porém, desta vez, se falhar morrerei. Virás em meu auxílio, quando te chamar?

Estremeci sem querer, assaltada pela gravidade dos avisos da minha mãe. Ele apercebeu-se e retrocedeu, quebrando o nosso elo; os braços pendendo ao longo do corpo e uma expressão magoada, quase rancorosa, no rosto cintilante.

— Não confias em mim! — replicou secamente. — Tens medo de que eu esteja a preparar-te uma armadilha... Devia ter adivinhado que reagirias assim! Por mais bofetadas que a vida me dê, acabo sempre por esquecer-me que estou sozinho... que ninguém se importa...

— Edwin...

— Esquece que me viste!

— Edwin!

Consegui detê-lo quando a sua energia já se desvanecia. A minha veemência foi tal, que alcancei a sua mente; assimilei a tristeza que lhe esmagava a alma, que lhe rasgava o coração.

— Eu irei, Edwin! — murmurei, ciente de que estava a quebrar a promessa que fizera à minha mãe, mas remetendo esse fato para um lugar inóspito da consciência.

Os seus braços voltaram a estreitar-me. Aos poucos, a raiva que o fustigava serenou e o seu calor tornou a envolver-me, livre de ressentimentos, delicioso...

— Como saberei...? — Comecei, mas ele interrompeu-me:

— Saberás! Tenho de ir... Já me arrisquei demais! Se o meu mestre sonhar que te procurei, arranca-me o coração!

Eu não possuía argumentos para contrariá-lo. Por tudo o que já me fora contado acerca do feiticeiro Sigarr, o temor do meu primo tinha fundamento. Vi-o desaparecer, sentindo-me subitamente gelada, desamparada e exausta. Apertei os braços em torno do peito, apressando-me no regresso a casa. Se alguém me apanhasse na rua, a meio da noite, toda molhada e coberta por areia, teria de inventar uma boa história para me justificar. Estava tão concentrada em esgueirar-me pelas sombras, correndo e arfando, esquiva como uma vulgar ladra, que nem distingui o vulto que emergia da escuridão, do lado oposto da rua, e deitava a mão à porta da casa do jarl, ao mesmo tempo que eu.

Estaquei diante de Magnor e o rosto do rapaz refletiu o meu susto. Porém, recuperou mais depressa e sorriu maliciosamente, mirando-me de alto a baixo com declarado desprezo. Enquanto eu ainda engolia em seco, ponderando se devia ou não explicar-me, ele entrou e fechou-me a porta na cara. Segui-o em silêncio e dirigi-me rapidamente ao meu quarto, sacudindo a areia dos pés e entrando na cama com cautela, para que Freya não despertasse e sentisse a umidade das minhas vestes, que o vento não tivera tempo de secar.

Ao reviver na mente tudo o que acabara de me acontecer, uma pergunta menor sobreveio. Para onde se escapulira Magnor, a coberto da escuridão? Depois do encontro com Edwin e do seu apelo perturbador, inquietar-me com os ardis do jovem príncipe era quase ridículo! Todavia, a dúvida permanecia... e o instinto avisava-me que a resolução desse mistério era crucial.

 

Foi o jarl da Ilha dos Sonhos quem entregou à sua filha a pele da loba que ela derrotara na Caçada. Discursou diante de parentes e de amigos, enaltecendo as habilidades da nova guerreira do povo viquingue, e exibindo com orgulho o troféu de caça. Se alguém questionara que Thora combatera um animal sagrado, as suspeitas desvaneceram-se após a observação da fabulosa pele. A Loba Prateada tinha quase o dobro do tamanho de um lobo comum, o seu pêlo era de um tom metálico e as suas presas cintilavam como aguçadas lâminas de marfim.

Todos admiraram o majestoso animal e congratularam a heroína do Verão. Envaidecida, Thora só se engasgou quando lhe solicitaram que partilhasse o relato da sua aventura. Porém, Ivarr acorreu em seu socorro, contornando a situação com uma perícia que satisfez os mais distraídos e conformou os mais exigentes. Era sabido que a mística de uma união sagrada devia permanecer intocada. O assunto não tardou a ser esquecido, enquanto os planos para o futuro da minha irmã eram traçados.

Com uma resignação azeda, ouvi Ivarr pedir o consentimento do jarl para que Thora o acompanhasse no regresso ao País dos Viquingues. A facilidade com que o obteve deixou-me perplexa. Esperara que os meus pais resistissem a deixar a filha partir. Contudo, ambos sorriam e presenteavam-na com o seu apoio incondicional.

Abandonei a casa a meio da festa, desencantada. Precisava de silêncio, de respirar ar leve, para pôr os pensamentos no devido lugar. Subir a montanha ao encontro das Pedras do Mundo seria o ideal, mas não podia ausentar-me por tanto tempo, sem que a minha falta fosse notada. Resolvi sentar-me na quietude do celeiro, onde pouco mais ouviria do que o eco das vozes e da música, misturado com o balido dos animais do estábulo vizinho. Um momento acalentada pela magia da Lágrima do Sol chegaria para restabelecer as minhas energias.

A porta estava entreaberta. Detive-me antes de empurrá-la, ao ser confrontada com o eco de uma gargalhada que me eriçou os cabelos. Magnor... E não se encontrava sozinho! Ao riso irritante do príncipe sobrepôs-se o de Freya, fresco e deleitado. Rangi os dentes, fulminada pela vontade de irromper pelo celeiro e estragar-lhes o arranjinho. Contudo, a razão avisava-me que, se perdesse a cabeça, acabaria por virar Freya contra mim.

Ao alvoroço seguiu-se o silêncio. Atrevi-me a espreitar e fiquei petrificada com o cenário revelado pela luz da lanterna. Magnor encostara a minha irmã a um dos pilares de madeira e presenteava-a com beijos leves no rosto, seguindo um trilho que o conduziria aos seus lábios; as mãos reclamando a posse da sua cintura sem o menor pudor.

Recuei, engolindo um grito. O que é que aquele energúmeno julgava que estava a fazer? A namorar — volvia uma voz irritante, que me relembrava que Freya estava prometida a Magnor. Eu tinha de fazer alguma coisa! Não podia continuar a assistir impassível à ruína da minha irmãzinha!

Sem aviso, a porta escancarou-se. Freya saiu a correr na direção de casa, rindo como uma criança travessa, tão eufórica que nem me viu. Ocultei-me nas sombras e aguardei que Magnor a seguisse, fervendo por dentro; a raiva crescendo no meu ventre e subindo até à garganta como uma bola de fogo prestes a incinerar aquele miserável abusador.

Ele demorou-se no interior, desfrutando da exaltação da sua conquista. Quando enfrentou a noite, ostentava um sorriso vitorioso. Dei-me a conhecer, apelando o seu nome. Magnor estacou, hesitante, contrariado por ter sido apanhado desprevenido. Porém, quando me encarou, o seu esgar era uma mistura nada amistosa de troça e desafio.

— Estimada cunhada... Devo concluir que te cansaste das bruxarias e decidiste tornar-te espiã?

— Poupa-me à tua má educação! — volvi rispidamente. — Não tenho tempo nem paciência para aturar os teus impropérios!

As suas gargalhadas provocavam-me calafrios! Como é que um rapazola tão ignóbil tinha o poder de me tirar do sério? Caminhou ao meu encontro e aproximou-se perigosamente, sorrindo zombeteiro, e fixando-me sem piscar.

— Minha querida Edwina... Muito me ferem as tuas palavras! O que fiz para merecer tamanho ressentimento? Por acaso, a tua irritabilidade deve-se ao recente esfriamento do afeto do meu irmão? Já todos reparamos que, por causa de uma fedelha grosseira, o Ivarr tem negligenciado a sua bela e ardente noiva...

— Estou a avisar-te, Magnor...

— Se bem que, esta noite, parecias satisfeita! Quem foi que te consolou? Algum pescador...?

A minha mão estalou na face do insolente, antes que eu sequer pensasse em agredi-lo. Ele cambaleou com o impacto, mas não desmanchou o sorriso.

— Vou perdoar-te esta ofensa, para te prova que estou solidário com o teu sofrimento. Não te inquietes, Edwina! O meu venerado irmão há de honrar a sua palavra e desposar-te, apesar do seu corpo queimar de desejo pela Thora...

— Tu não passas de um reles ordinário, Magnor! — atalhei com uma frieza glacial. — Envergonhas a tua família a cada sopro que respiras!

— A nossa família, distinta cunhada — frisou, nada incomodado com a ofensa. — Porque, ainda que o meu irmão te despreze, a família do rei irá unir-se à família do jarl...

— Só se eu não puder evitá-lo! — repliquei irada. — A Freya não é tola! Em breve, perceberá que tu não passas de um mentiroso, de um trapaceiro sem escrúpulos...

— Essa é a tua opinião! — revidou ele, tão descontraído como se eu tivesse acabado de lhe tecer o maior dos elogios. — A Freya pensa de outra maneira! Ama-me perdidamente... E tu não podes fazer nada contra isso!

Cerrei os lábios para conter um vômito de insultos. Jogar pelas regras deste verme peçonhento seria um erro fatal. Sustive o seu olhar com firmeza, rosnando ferozmente:

— Se te resta alguma decência, um pingo de dignidade, procura o meu pai e desfaz esse compromisso ridículo. Desgraça a vida da minha irmã, e perseguir-te-ei para além da morte!

— Não me faças borrar as calças com medo das tuas ameaças, excelentíssima cunhada, ou teremos de concluir a nossa conversa no meio de um cheiro pouco agradável!

— És desprezível!

— E tu uma frustrada! Vai rebolar na areia e deixa-me em paz! Fiquei pregada ao chão, enquanto ele se afastava; as suas vis gargalhadas açoitando-me os ouvidos. No fim, Magnor tirara-me do sério e eu acabara por não descobrir o que ele andara a tramar na noite anterior. Raios, como odiava aquele imbecil! Tinha de impedi-lo de se casar com a minha irmã, custasse o que custasse.

A noite ia avançada quando as mulheres da casa começaram a recolher-se. Os homens ficaram à mesa, partilhando os seus feitos e dissabores por entre gargalhadas e canções regadas com cornos de cerveja fresca.

Acompanhei Thora ao quarto e desejei-lhe boa sorte para o seu futuro como guerreira. Freya já dormia, apesar da algazarra do salão. Era pouco provável que despertasse, mas achamos por bem sussurrar.

— Tu não concordas com a minha decisão, pois não, mana? — perguntou-me ela, com uma expressão que denunciava tristeza. — Achas que estou errada?

— Não sei! — respondi com sinceridade. — Por vezes penso que sim... Outras, que não... O tempo o dirá! Vive o momento, irmãzinha! Não estás feliz?

— Tanto que nem consigo colocá-lo em palavras!

Nada havia a acrescentar. Despedi-me e dirigi-me ao quarto onde Quinn repousava. O meu primo estava acordado e fez-me sinal, pedindo que falasse baixo. Svana adormecera sentada no chão, com a cabeça sobre a cama, e ele acariciava-lhe os longos cabelos que se espalhavam pela coberta, com um ar embevecido.

— É melhor despertá-la! — fiz-lhe notar.

— Eu sei — respondeu-me com um suspiro. — Mas ainda não tive coragem... Ela é tão bonita! Nem me importo de suportar as dores, só para desfrutar do prazer da sua companhia!

Quinn era sempre tão sincero, que a sua afirmação não me surpreendeu. Porém, senti-me na obrigação de alertá-lo, antes que o brilho do seu olhar se aprofundasse.

— A Svana gosta do Bryan...

— Eu sei! — atalhou, estendendo-me a mão sã. — Não te preocupes, prima. Conheço o chão onde piso. A Svana jamais olharia para um rapaz como eu... especialmente agora, que estou nesta desgraça!

— Tu vais recuperar...

— Não, não vou! — objetou com uma segurança comovente. — Pelo menos, não mais serei como era! A tia Catelyn fez o possível... Mas é óbvio que não voltarei a erguer uma espada com a firmeza de outrora. Os meus dias de guerreiro terminaram, Edwina! E o que me surpreende é que isso pouco me importa! Estive a conversar com o meu pai... Posso fazer muito pelo nosso povo fora do campo de batalha. Quando deixar esta cama, hei de tornar-me um grande homem!

Apertei-lhe a mão e repliquei:

— Tu já és um grande homem, Quinn! Tenho a certeza de que irás superar todas as dificuldades que te surgirem ao longo da vida e que realizarás tudo a que te propuseres.

Ele correspondeu ao meu aperto e respirou fundo. Depois, sacudiu Svana levemente, até que ela abriu os olhos.

— Já é muito tarde para voltares para casa — disse-lhe eu. — Podes dormir comigo, se quiseres!

Svana espreguiçou-se, murmurando sonada:

— Obrigada, Edwina, mas a prima Catelyn já me preparou uma cama ao lado da Estrid.

— Se eu fosse a ti, aceitava a oferta da Edwina! — retorquiu Quinn em tom de aviso. — Não é seguro dormir com uma serpente!

Não contive o riso e Svana acompanhou-me. Despedimo-nos, para que Quinn pudesse descansar. Depois, ela dirigiu-se ao fundo da casa, onde os mais novos dormiam, e eu atravessei o salão, até ao meu quarto. Na mesa, os festejos alongavam-se. Surpreendi o olhar de Ivarr e apressei-me a fechar a cortina, para escapar à sua observação. O dia fora difícil e tudo o que eu almejava era uma noite sem sonhos.

Troquei de roupa e deitei-me, rebolando a Lágrima do Sol entre os dedos. Pensei no meu primo Edwin e estremeci. Talvez devesse contar à minha mãe... Não! Ela proibir-me-ia de ajudá-lo! E eu não podia voltar-lhe as costas outra vez! No entanto, tinha medo...

Sobressaltei-me quando a cortina se afastou e Ivarr entrou no quarto. Sentei-me na cama, sem acreditar que ele se atrevera a invadir a minha privacidade, nas barbas do meu pai. Ivarr acomodou-se ao meu lado e enlaçou-me as mãos, murmurando:

— Vamos fazer as pazes, Edwina! A nossa briga não tem sentido!

E beijou-me. Não recuei, mesmo quando senti o sabor da bebida na sua saliva. Esta aproximação era tão inesperada como bem-vinda. Depois de tantos dias de indiferença, e das palavras azedas que havíamos trocado, Ivarr decidira sarar as feridas da nossa relação. Quando nos detivemos, segurei-lhe no rosto e confrontei-o:

— Ainda me amas?

Ele sorriu, contrapondo serenamente:

— Estaria aqui se não te amasse, tolinha?

— E a Thora...? — insisti, porque não podia deixar de fazê-lo. Ivarr embalou-me e não quebrou o nosso abraço ao replicar:

— A Thora será a minha companheira no campo de batalha... Mas tu serás a minha companheira de todos os dias, até que a morte reclame o meu corpo. Confia em mim, Edwina!

E eu confiei, jurando a mim própria que não voltaria a sentir-me insegura. A minha irmã estava noiva de Eric e Ivarr declarava-me o seu amor sem preconceitos. Exigir mais era maldade.

Se não conhecesse Freya, diria que me evitava. Tive de me impor para conseguir falar-lhe a sós. Quando lhe declarei que o filho mais novo do rei Steinarr não era o homem certo para ela, a sua resposta foi surpreendente:

— O Magnor avisou-me que tu tentarias voltar-me contra ele. Por que o detestas, mana? Ele não é mau! É apenas... diferente dos outros rapazes; mais ambicioso... e mais inteligente! Não fazes idéia de como se sente infeliz e solitário, órfão de mãe, esquecido pelo pai, constantemente repreendido pelo irmão... Se, por vezes, exagera é para chamar a atenção! De que te queixas, afinal? Não foi o Quinn que o desafiou? Que culpa tem ele de ser mais forte? Além disso, teve a nobreza de lhe pedir desculpa, quando não tinha de fazê-lo. Eu amo o Magnor, Edwina! E se a minha felicidade não te alegra, é porque não gostas de mim!

Mais tarde, vim a saber que a senhora da casa não tivera melhor sorte ao abordar esta questão. Magnor sabia muito bem o que fazia! Planejava os seus passos com uma antecedência assustadora e executava-os com uma frialdade brutal. Só me restava esperar que a distância arrefecesse o entusiasmo de Freya e lhe abrisse os olhos para a personalidade retorcida do seu prometido.

Ainda não recuperara do confronto com Freya quando Thora me procurou. Na privacidade do meu quarto, libertei uma exclamação de horror ao ver a trança de Magnor nas suas mãos. Com a sua candura habitual, Thora justificou:

— Aquele aleivoso mentiu-vos, Edwina! Não existe nenhuma deusa na floresta. Fui eu que lhe cortei a trança! Julguei que a perdera durante a luta com a loba... Mas o Ivarr encontrou-a e guardou-a até agora. Esta noite, vou desmascarar o Magnor! Exibirei diante das nossas famílias a prova da sua falsidade!

O meu sangue gelou. A atitude de Ivarr revelava um desamor pelo irmão que me chocava. Qual fora a sua intenção, ao colocar nas mãos da explosiva Thora aquela maldita trança, qual troféu de caça ou perigoso instrumento de vingança, ao invés de destruí-la como o mais básico bom senso ordenaria?

— Não vais fazer nada disso! — repliquei com firmeza, segurando-a pelos ombros e prendendo o seu olhar. — Esta disputa já foi longe demais! Arriscar a amizade das nossas famílias e a paz construída com tanto esforço e sacrifício por causa de um fanfarrão é uma estupidez imperdoável! Além disso, se o Magnor exigir um duelo de honra não poderás recusar porque és uma guerreira. Acreditas que irás vencê-lo, nesse estado de fraqueza?

— Eu não tenho medo...

— Isto não é um teste de coragem! — objetei, aliviada por vê-la vacilar. — E um teste de inteligência... E tu estás prestes a chumbá-lo! És ingênua ao ponto de pensar que o Ivarr agiu inocentemente? O teu treino começou, Thora! O rei-lobo irá observar-te e julgar-te em todos os momentos. Para te provares digna da sua alcatéia, não terás apenas de sobreviver apelando à destreza e à força! Terás de impressioná-lo com a tua capacidade de adaptação diante dos desafios que te coloca, de raciocinar com frieza e clareza, ponderar quando deves avançar e recuar... Uma decisão errada, um impulso irrefletido pode significar uma morte inglória! Aprende a controlar o teu ardor, mana, ou não viverás o suficiente para servir o rei viquingue.

Deixei a minha irmã a engolir a percepção de que estivera a um passo de precipitar-se numa armadilha e parti no encalço de Ivarr. O que tinha para lhe dizer não podia esperar! Estava tão furiosa, que não vi nada nem ninguém ao atravessar o povoado. Encontrei-o no porto, orientando os homens que carregavam o Knarr com os produtos da Ilha dos Sonhos, tão cobiçados pelos habitantes do País dos Viquingues. Apesar do reboliço que o rodeava, não hesitou em seguir-me quando exigi falar-lhe.

Só me detive quando pisei a última tábua do ancoradouro. O dia estava quente e poucas nuvens adornavam o azul claro do céu. O mar cintilava com os reflexos do Sol e as pequenas ondas brincavam com as rochas pontiagudas, que se projetavam fora de água como lanças. Os gritos das gaivotas que sobrevoavam os barcos de pesca, dispersos em redor da ilha, alimentavam ainda mais a minha revolta, e o cheiro forte da maresia, misturado com o odor das algas, regenerava o meu espírito e fortalecia-me a convicção.

— O que pretendes, Ivarr? — ataquei sem pestanejar. — O rei-lobo é tão egoísta na perseguição dos seus interesses, que não se importa de provocar um banho de sangue no seio das nossas famílias?

Ele cruzou os braços sobre o peito, e inquiriu impaciente:

— Posso saber do que me acusas desta vez?

— Não sejas cínico! — revidei inflamada. — Por que entregaste a trança do Magnor à Thora?

— Porque a trança lhe pertence. A caçadora tem direito à sua presa.

— Pára de dizer tolices! O Magnor é teu irmão...

— E a Thora é minha protegida. O Magnor só lhe ganhará respeito quando se convencer de que ela lhe é superior!

— O Magnor não respeita aqueles que lhe são superiores! Guarda-lhes rancor! O que tu fizeste só fomentará ainda mais o ódio daqueles dois. E se a Thora decidir afrontá-lo? Quando as suas armas rasgarem o ar, ficarás do lado da tua protegida ou do teu único irmão?

— A Thora não fará isso! — contrapôs Ivarr com uma firmeza desconcertante.

— Tu não a conheces! — atalhei furibunda. — O ritual de sangue não te tornou senhor da sua vontade. A Thora é indomável! E o teu irmão é perigoso... Se tens um pingo de discernimento, faz com que se mantenham afastados!

O olhar cristalino do meu noivo flamejou. A sua pose conservou-se inabalável, mas a voz denunciou a raiva que a minha contestação provocara:

— Eu sei o que estou a fazer, Edwina! É melhor que te convenças de que a tua irmã está sob a minha responsabilidade... E eu não admitirei que continues a questionar-me!

A vontade de refutar era tamanha, que as palavras se atabalhoaram na minha garganta, dando um nó que me estrangulou. Sem fôlego, vi-o afastar-se na direção do Knarr, de regresso ao trabalho, como se o meu alerta não tivesse peso. Por entre os gritos aguerridos das gaivotas, escutei o ressentimento na minha própria voz como um mau presságio:

— Tu estás convencido de que sabes tudo, rei-lobo... Mas não sabes nada! Não conheces o coração da Thora... E, de certeza, não conheces o meu!

Uma onda mais bravia rebentou contra o ancoradouro e salpicou-me o vestido. Encarei o mar; a minha condição humana desvanecendo-se na sua essência selvagem. Sentia-me cada vez mais sozinha; mais distanciada das vidas dos que me rodeavam, como se o meu poder tivesse deixado subitamente de exercer qualquer efeito sobre eles. De que me servia herdar a magia do meu bisavô, tornar-me Guardiã da Lágrima do Sol, se ninguém me dava ouvidos? «O Que Tudo Vê» era respeitado e temido... Eu era escarnecida e ignorada!

Tal corno ficara decidido, assim que a minha mãe determinou que Thora estava fora de perigo, um Drakkar fez-se ao mar rumo ao cemitério de barcos. Lá dentro seguiam o jarl, o rei Steinarr, Lorde Stefan, o príncipe Ivarr e os seus guerreiros-lobo, e alguns homens escolhidos de entre os melhores mergulhadores da Ilha dos Sonhos. Transportavam as ferramentas adequadas para abrir um buraco no casco do navio afundado, que lhes permitiria o acesso ao tesouro que a minha irmã encontrara. Seria uma tarefa morosa e árdua, mas o seu entusiasmo era veemente. Antes da luz do dia finar, já tínhamos a confirmação da descoberta de uma riqueza de valor incalculável.

Com a última questão que ficara pendente do Festival de Verão resolvida, o tio Stefan e o rei Steinarr anunciaram a sua partida. Ambos tinham responsabilidades prementes nas suas terras que não podiam ser descuidadas, e esta longa permanência na Ilha dos Sonhos decerto resultara em intricados problemas por solucionar.

A tia Enya manifestou a vontade de ficar conosco para cuidar de Quinn, mas o filho declinou com firmeza. Os irmãos pequeninos necessitavam da atenção da mãe, mais do que ele. Além disso, estava a recuperar bem e, em breve, poderia recomeçar os estudos. Era sua intenção viajar para a Grande Ilha, assim que a saúde lho permitisse, e unir-se à missão diplomática do pai.

A minha mãe e os irmãos acordaram em entregar a Aled a sua parte na herança da família. A Casa Grande da Floresta Sagrada da Grande Ilha pertencia-lhe por direito de sangue, já que ele era o primogênito da segunda geração de herdeiros de Lorde Garrick McGraw. Desde a guerra contra a feiticeira, que a vasta propriedade e a comunidade dela dependente vivam sob o governo conjunto do tio Edwin e do tio Stefan. Porém, o tio Edwin declinava a hipótese de regressar definitivamente à casa que acolhera a sua juventude conturbada, e o tio Stefan preferia habitar junto ao mar, na Enseada da Fortaleza. Era opinião unânime que um McGraw devia fixar-se no território e dedicar-lhe todo o seu tempo e energia... um McGraw que não sofresse com as recordações que assombravam o lugar.

Aled recebeu a notícia com um entusiasmo que mal lhe cabia no peito. Estava ansioso por assumir essa honra! Viajaria de imediato para a Grande Ilha e começaria a preparar a Casa Grande para acolher a sua esposa, no fim da Primavera. A idéia também agradava a Melody, cujos olhos cintilavam sempre que imaginava o seu futuro ao lado do primo.

Ivarr tratava-me com relativa frieza desde a nossa discussão no porto. Decerto, aguardava por um pedido de desculpa que jamais receberia. Se a razão estava do meu lado, não era eu quem tinha de ceder! Pelo menos, Thora escutara-me e mantivera-se afastada de Magnor. Quando a questionara acerca do destino da trança, limitara-se a sorrir. Esperei que tivesse tido a sensatez de livrar-se dela, queimando-a na fogueira ou lançando-a ao mar.

Nesse momento, toda a paixão da jovem guerreira era devotada ao cavalo Bravo. O presente do jarl ao rei viquingue acabara por tornar-se simbólico, pois, prudentemente, Steinarr entregara-o à guarda do seu primogênito. Por sua vez, Ivarr não hesitara em oferecê-lo à sua nova protegida, elogiando-a diante da comunidade. Exultante, Thora montara Bravo e galopara pela praia até a perdermos de vista, consolidando a amizade com aquele espírito selvagem que seria seu companheiro para a vida.

A tia Geirny viu-se confrontada com a decisão de permanecer na Ilha dos Sonhos ou de partir para o País dos Viquingues. Com toda a sinceridade, a minha mãe afirmara que era improvável que ela resistisse aos rigores da viagem, o suficiente para vislumbrar os belos fiordes da sua pátria. A princesa estava tentada a arriscar... Porém, as súplicas do marido fizeram-na reconsiderar. Cada novo dia que ela testemunhasse seria uma vitória para ambos. Além disso, Darrin não podia deixar a Ilha dos Sonhos, pois entrara no seu último ano de treinos antes da iniciação, e Estrid detestava o frio do Norte. Na Ilha dos Sonhos, a família ficaria unida e desfrutaria do tempo que lhe restava... Eu quedei-me, perplexa e revoltada, quando Estrid desatou a chorar, desesperada ante a resolução dos pais:

— Vós não podeis fazer-me isto! — bradara. — Não tendes o direito de me obrigar a ficar nesta ilha pavorosa, onde não há nada para fazer, a atrofiar as idéias como uma camponesa!

— Estrid... — mastigara o pai, rubro de fúria. — Sabes que a tua mãe está doente...

— Mas eu não estou! Só porque ela está a morrer eu tenho de morrer também?

A mão de Lorde Edwin McGraw projetara-se com o ímpeto de um escudo de guerra, contra a face da filha. Estrid voou cinco ou seis passos, antes de se esborrachar no chão e rebolar contra a parede. O jarl correu a imobilizar o cunhado, enquanto a minha mãe gritava, horrorizada. A tia Enya foi ao encontro de Estrid, ostentando uma expressão simultaneamente indignada e piedosa. O tio Edwin clamava:

— Tu não és digna de ser filha da tua mãe, sua egoísta...

— Edwin... — apelava o meu pai, apoiado pelo tio Stefan. — Não digas nada de que te possas arrepender! Vem... Deixa a cabeça esfriar...

— Eu não quero ser vossa filha! — chiava Estrid, sem que a tia conseguisse silenciá-la. — Quero ser filha do tio Stefan...

A custo, Edwin McGraw foi empurrado para o quarto dos meus pais. Ali ficou, agarrado à mão com que esbofeteara a sua carne. Fora a primeira vez que agredira um filho, mas, apesar de ninguém contestar que Estrid merecera a punição, o meu tio parecia encarar o incidente como uma maldição do passado... A memória do dia em que ele próprio fora renegado pelo pai, tratado como um estranho na sua casa, como um invasor na sua terra, voltava para atormentá-lo.

A casa tombou num silêncio opressivo. Nada se ouvia senão o pranto de Estrid... e o choro sofrido da sua mãe. Eu dirigi-me ao quarto para confortar a tia Geirny e verifiquei que Thora e Freya já lá se encontravam, oferecendo-lhe o carinho que a filha lhe negava. Nessa noite, a própria Geirny concedeu permissão a Estrid para acompanhar os tios no regresso à Grande Ilha. A pequena tirana cobriu a mãe de beijos e jurou-lhe amor eterno. A sua alegria enojou-me. Até Magnor a fixava com um sorriso zombeteiro!

A tristeza que obscurecia o olhar do tio Edwin revelava que jamais esqueceria a desfeita da filha. Nesse dia, Estrid quebrara os laços que os uniam... E, o pior de tudo, é que não se revelava incomodada com a perda!

Acordei a meio da noite coberta de suor, com a pele a arder e o coração em debandada no peito. A Lágrima do Sol pulsava diante dos meus olhos; cegava-me com a sua luz. Tentei afastá-la e o seu fulgor queimou-me os dedos. Quis erguer-me e não consegui. Libertei um grito mudo... E, só então compreendi que não estava acordada, nem a dormir. No vazio que separava os dois estados de consciência, uma força atraía-me irresistivelmente. Deixei-me levar, abandonando o corpo na segurança da cama, rumando a um destino incerto e perigoso, disposta a cumprir a minha promessa. Devia ter contado à minha mãe... Mas, agora era tarde para arrependimentos!

O apelo de Edwin conduziu-me à sua essência. Senti-o receber-me e assimilar-me; o alívio no seu espírito misturando-se com o tormento que o fustigava... e que eu me oferecera para partilhar; uma dor tão forte que carregava a certeza da morte, o reconhecimento de que ele agüentara até ao limite da sua resistência, antes de ser forçado a rogar por ajuda. O meu braço e o meu peito pareciam esmagados. A boca estava inundada pelo sabor agreste do sangue. Os olhos só distinguiam escuridão... Não conseguia mover-me. Não conseguia respirar... Longe, muito longe, uma voz agressiva ordenava:

— Levanta-te! Levanta-te, criatura néscia! Seu miserável exemplar da raça humana...

Aos poucos, a voz aproximava-se e era possível reconhecer outros sons... um tumulto de uivos e grunhidos que jamais poderiam ser humanos. Abri os olhos com um esforço descomunal; as trevas cedendo lugar à névoa. Conforme os pontos brilhantes se dispersavam, as imagens surgiram, num rodopio irreal que me trazia o vomito à boca. Eu estava na realidade de Edwin... No inferno privado do Guardião da Lágrima da Lua.

O chão que acolhia o meu corpo era uma ilha de pedra negra, irregular, tão candente que o seu contacto seria fatal para um Homem comum. A sua volta, um mar de flamas brotava do coração da Terra e erguia-se em jactos de lava fulgurante, que pereciam e renasciam a cada fôlego. As paredes negras da caverna subiam e afunilavam-se até ao infinito. Empoleiradas nos seus nichos encontravam-se criaturas de pele vermelha, focinho de fera e cornos de boi... o Povo do Fogo, os servos de Sigarr.

No exterior do anel ardente, o mestre da Arte Obscura praguejava, incentivando o pupilo a reagir. Ao seu lado, Vulcan observava impassível a vantagem do campeão do seu povo. O demônio que Edwin enfrentava era quase tão possante como o seu rei. Porém, o confronto com o humano não estava a ser tão rápido e simples como ele acreditara. O último embate, que quase matara o meu primo, também o prostrara. Erguia-se agora, com dificuldade, sacudindo os cornos pontiagudos e espumando abundantemente por entre as presas vorazes, que mal lhe permitiam fechar os lábios. A sua coxa animalesca, larga como um tronco, apresentava um lanho profundo que sangrava aos borbotões; um líquido negro e espesso, que encharcava a pedra ao seu redor. Mirava-me com olhos amarelos e assombrados... Conseguiria ver-me?

O meu sobressalto forçou-me a erguer uma mão. Quase gritei de horror ao verificar que era feita de carne e osso... mas grande e forte; uma mão de homem... A mão de Edwin! Não havia dúvida! No pulso grosso encontrava-se tatuado o Dragão da Lua, com um pormenor e perfeição resultantes da mais pura magia. Perdida na confusão que me turvava a consciência, olhei para o meu peito dorido e observei horrorizada o sangue a escorrer até ao ventre, encharcando as calças... Este sangue... Este corpo não era o meu! Este corpo pertencia a Edwin! Mas, onde é que ele estava? Era a minha mente que comandava os seus movimentos. Ele... desaparecera!

«Edwin!» — apelei desesperada. Diante de mim, o monstro preparava-se para atacar... E eu não sabia como defender-me! Se recorresse à magia, arriscava-me a que Sigarr me reconhecesse. E isso seria pior do que enfrentar mil demônios!

«Edwin!» — tornei, em pânico, os olhos voltando-se para o Guardião da Lágrima da Lua, que berrava furibundo perante a inação do seu pupilo.

«Vieste...» — A voz do meu primo surgiu do nada, dentro da cabeça que partilhávamos. Estava fraca e prostrada... Mas encontrava-se ali!

«Edwin, o que é que eu faço?»

«Tenta... ganhar tempo... Até eu... recuperar... a energia...»

O demônio investiu contra mim... contra nós... contra Edwin... Raios! Eu estava tão confusa que não conseguia pensar com clareza! Contudo, a dor provocada pelo embate da mão descomunal provou-me que, nesse momento, pouco importava a quem pertencia o corpo que eu habitava. Rolei pela pedra, sentindo todos os ossos estremecerem. Gritei, mas foi o brado de Edwin que ecoou pela caverna, quando as garras da criatura lhe dilaceraram as costas... Voltei a rolar e fiquei diante dele, estendida no chão. A sua manápula arremeteu contra a minha garganta; cinco lanças mortais... E eu fiz o que o instinto me ordenou: afastei-a com uma mão e esbofeteei o focinho da besta com o outra.

O ser do fogo ficou tão abismado com o novo estilo de combate do adversário, que se deteve. Aproveitei a sua distração para lhe dar um enérgico pontapé no meio das pernas e empurrá-lo para longe. Observar a técnica de Thora para prostrar os adversários mais robustos acabava por revelar-se útil. Levantei-me com relativa facilidade, atendendo ao sangue que perdia, e comecei a correr em círculos, ouvindo a criatura bufar atrás de mim, derrapando sempre que eu mudava de direção, urrando frustrada quando as suas unhas arranhavam a pedra, em vez de me rasgarem a carne.

Eu sempre fora boa neste jogo. Em pequena, adorava brincar à apanhada e dera muita luta aos rapazes que pensavam que uma menina gorducha era a presa mais fácil. Já não era menina nem gorducha, e este corpo não era meu... Mas o resultado era satisfatório! Pelo menos, ainda estava inteira, graças à agilidade de Edwin e ao ferimento do ser do fogo, que o forçava a arrojar a perna. Nos nichos das paredes da caverna, a aberrante assistência pulava e soltava latidos que podiam ser confundidos com gargalhadas. Vulcan retorcia-se, denunciando incompreensão. E Sigarr berrava:

— Enlouqueceste, seu imprestável? Foi isso que eu te ensinei? Fará imediatamente!

Quando a mão do mestre da Arte Obscura se agitou, soube que estava perdida. O ar à minha frente solidificou, e eu tropecei e caí desamparada. No instante seguinte, as garras do demônio ferravam-se nos meus ombros e sacudiam-me, arremessando-me de encontro ao mar de fogo. Desta vez, não tive opção senão socorrer-me da magia. Estendi as mãos na direção da pedra e apelei às forças da Terra para que me puxassem para baixo. Despenhei-me dolorosamente e bati com a cabeça no chão. Pequenas estrelas cintilantes toldaram-me a vista. Perigosamente perto, a lava borbulhava...

«Edwin! »

Não obtive resposta. Com o coração a chicotear-me o peito dorido fui forçada a encarar o meu algoz. Pela segunda vez, ele recuou o braço, com as garras distendidas para ganhar impulso. Decapitar-me seria uma obsessão, ou uma imposição do confronto? De súbito, deteve-se... Tentei compreender como é que ainda estava viva e, então, vi o reflexo dos meus olhos no seu olhar espelhado, alternando de verde para azul, de azul para verde... enquanto a essência de Edwin despertava, ainda fraca... mas ganhando vigor a cada fôlego.

Apercebi-me da incredulidade do monstro... do seu choque... O meu segredo fora exposto! Deitou a cabeça para trás; as chamas fulgindo nos seus cornos, e rugiu com a ênfase de um grande predador. Depois, lançou as garras contra o meu pescoço, decidido a pôr fim à luta... Porém, a mão do opositor voltou a detê-lo... E, desta vez, não era a minha vontade que a comandava!

O corpo de Edwin contraiu-se e os seus pés fincaram-se na barriga da grotesca criatura, empurrando-a para longe, enquanto a sua essência abraçava a minha e a sua mente desdenhava:

«Lutas como uma moça!»

«Eu sou uma moça!» — repliquei zangada.

«Não! Tu és a Guardiã da Lágrima do Sol!»

Não houve tempo para mais divagações. Um clarão intenso, tão rápido como o pensamento, abateu-se sobre nós. Eu vi-o... Mas foi Edwin quem reagiu. O seu corpo rebolou pelo chão e tornou a erguer-se com a agilidade de um felino. No sítio onde, há um instante, nos detivéramos, a pedra fumegava. Tal como Edwin, o demônio necessitara de algum tempo para recuperar a energia que gastara no primeiro confronto. E, pelos vistos, já se recompusera!

«Ficarás comigo?» — perguntou o meu primo, num tom exigente.

Respondi-lhe, mais com o coração do que com a razão:

«Tu não estás sozinho, Edwin! Viveremos ou morreremos... mas unidos, como o destino decidiu no instante em que fomos gerados.»

Compreendi que ele apenas aguardava pelo meu assentimento. O seu corpo moveu-se como o vento, seguindo um padrão completamente distinto da minha corrida destrambelhada de há pouco, saltando e rebolando para escapar ao fogo que se projetava do focinho da besta, até encontrar o que buscava... a sua faca de osso, que jazia esquecida, coberta pelas cinzas que se libertavam da pedra.

Com a arma ajustada à sua mão, aguardamos pela inevitável investida do demônio. Este arranhava o chão com as garras, qual touro bravo prestes a acometer com a morte no olhar, espalhando estilhaços de pedra em seu redor. A respiração de Edwin serenou, até tornar-se imperceptível e, quando a criatura atacou, esquivamo-nos dos seus cornos afiados com uma velocidade impressionante, saltando sobre o seu corpo possante, como se nós próprios não tivéssemos peso. Enquanto rodopiávamos no ar, o braço do meu primo esboçou um gesto subtil mas preciso, que arrancou um uivo de dor ao inimigo. Aterramos na pedra e os seus joelhos dobraram-se para executar rapidamente um novo salto, se necessário. Mas a criatura manteve-se imóvel no sítio onde caíra, rosnando, espumando pela boca, com uma mão a cobrir o peito e o sangue preto escapando-se por entre os dedos escarlates, pingando das suas garras assim como gotejava da nossa faca.

«Vou precisar da tua magia agora, Edwina!»

Nem tive tempo de anuir. Os olhos da besta adquiriram um brilho fulgurante, mais intenso do que o Sol, e a sua boca escancarou-se num urro demolidor. Antecipando o seu ataque, Edwin cruzou os braços em frente do rosto, formando um escudo de energia que nos protegeu do vômito de fogo. As labaredas cobriram-nos e aqueceram insuportavelmente o ar, enquanto os latidos incrédulos das criaturas ressoavam como cometas desafinadas. A minha magia fluiu pela essência do meu primo, misturou-se com o seu sangue e redobrou a eficácia do escudo. Enquanto o seu corpo destro se movia incólume por baixo da cortina de fogo, eu concentrava-me em repelir as chamas. Se fraquejasse, ambos pereceríamos. A confiança que nos unia era absoluta. E, apesar de me sentir quase a desfalecer, a convicção de Edwin alentava-me a suportar o tormento, para além das forças que julgava possuir.

Finalmente, a criatura começou a engasgar-se. O seu fogo extinguiu-se, deixando um rasto de fumo no ar. Os olhos amarelos tornaram a fixar-nos, denunciando mais uma vez a combinação secreta daqueles que todos imaginavam estar condenados a viver no ódio. Porém, antes que o demônio pudesse delatar-nos, a faca de Edwin moveu-se com uma ferocidade mortal, rasgando a garganta animalesca até ao osso.

Os latidos do Povo do Fogo só foram superados pelo grito vitorioso do Guardião da Lágrima da Lua. Edwin superara o mais duro dos testes e provara a sua supremacia sobre a raça que servia o feiticeiro. Diante de nós, o corpo gigantesco do inimigo ruía, qual árvore prostrada pelo machado afiado do lenhador; a sua agonia afogando-se numa poça de sangue negro.

«Deixa-me agora, Edwina! Vai, antes que o meu mestre se aproxime...»

O meu protesto feneceu, ao ver pelos olhos de Edwin que Sigarr criava uma ponte de ar sobre a lava, para chegar junto do seu pupilo em segurança. Eu nunca o observara de tão perto... Nunca sentira tão declaradamente a extensão do seu poder. O mestre da Arte Obscura movia-se com uma elegância celestial e parecia mais jovem do que o meu pai... tão jovem quanto eu!

«Se ele te descobrir, vai matar-nos, aos dois!»

Este não era o momento de discutir. Exausta e temerosa, permiti que a essência de Edwin me empurrasse para o vazio nebuloso que nos separava. Porém, antes que o último elo se quebrasse, ainda vislumbrei de relance o olhar do feiticeiro, azul puro como o do meu pai... como o meu, mas infinitamente mais sabedor, infinitamente mais gélido... cruel, impiedoso, implacável...

 

Thora disse-nos adeus com uma lágrima no canto do olho, contudo ansiosa por partir à descoberta de novas e excitantes aventuras. Eric exultava com a expectativa de passar os próximos meses na companhia da sua prometida, treinando-a para enfrentar os desafios que o futuro ocultava. Bryan e Ragnar impacientavam-se, curiosos por saber o que os Vândalos tinham feito na ausência dos líderes do povo viquingue, desejosos de colocar as suas armas bem cuidadas em ação. E Ivarr hesitava em subir para o Knarr, apertando as minhas mãos entre as suas como se temesse soltá-las e perder-me para sempre.

— Os últimos dias foram difíceis... — disse gravemente. — Mas quero que saibas que o que sinto por ti não mudou! Prometo que voltarei em breve... E trarei o Magnor para visitar a Freya.

Cerrei os dentes para me impedir de replicar que seria melhor se Magnor ficasse no Norte. Correspondi ao abraço do meu noivo, mas limitei-me a sorrir constrangida, quando me sussurrou palavras de amor ao ouvido. A recordação da sua arrogância ainda me magoava. Ivarr tinha uma personalidade forte e uma opinião soberana, que não admitia objeção. E contestá-lo fora o que eu mais fizera nos últimos dias! Sem dúvida, o nosso noivado começara mal! Talvez o distanciamento que íamos enfrentar nas próximas semanas, ou meses, fosse benéfico para assentar as idéias e firmar decisões! Cada vez mais, a questão que a minha mãe colocara me atormentava. Amar Ivarr era fácil, já que o estimava como amigo e admirava como homem. Porém, amar o rei-lobo era outra conversa! Eu não conhecia o Espírito da Luz... Nem sabia se desejava conhecê-lo!

Por cima de nós, Lança despediu-se com um dos seus gritos tenebrosos, e voou ao encontro do braço que o dono lhe estendia. Guardei na memória a imagem de Ivarr, junto do leme do barco, tão imponente como o seu pai, e engoli a emoção quando o Knarr começou a afastar-se do porto; os remos rasgando furiosamente a água até os homens içarem a fabulosa vela quadrada. Ao meu lado, Freya chorava agarrada à nossa mãe. Ela e Thora nunca se haviam apartado... E esta separação não era apenas física. A partir de hoje, as gêmeas seguiriam vidas diferentes, destinos quase antagônicos. A culpa abateu-se sobre mim, qual machado de guerra. Se eu não tivesse apoiado a obsessão de Thora, contra a vontade de todos; se não tivesse suplicado a Ivarr que apelasse ao jarl, ela estaria a preparar o seu casamento com Eric. E eu estaria a desfrutar da felicidade concedida pela ignorância, sem incertezas quanto ao meu futuro.

Pouco depois, o barco do tio Stefan também partia, com as velas ondulando ao sabor do vento. Melody acenava-nos, abraçada a Aled, sorrindo esplendorosamente. Estrid voltou as costas à família e foi acomodar-se à sombra, enxotando Gwenneth para que esta não a importunasse. Melvin obtivera o consentimento dos pais para iniciar o seu treino na escola de guerreiros da Ilha dos Sonhos, por isso ficava conosco. A tia Enya atirava-lhe beijos, com os olhos chorosos. Não lhe era fácil separar-se de mais um filho. Reparei que a minha mãe fixava Aled e Melody com um ar apreensivo. O passado trágico do seu irmão mais velho ocupava-lhe o pensamento. Embora não tivesse voltado a mencioná-lo, eu sabia que a união dos sobrinhos não era do seu agrado.

 

Por fim regressamos a casa, pretendendo retomar a rotina diária, ainda que soubéssemos que tal era impossível. O tio Edwin e a tia Geirny conversavam alegremente, recordando histórias do seu passado aventureiro. Nenhum deles se deslocara ao porto para se despedir da filha... E a sua ausência em nada perturbara Estrid!

Freya isolou-se no quarto que partilhara com a sua gêmea. Fui atrás dela e a minha mãe seguiu-me. Passamos algum tempo abraçadas, em silêncio, já que as palavras cortariam como adagas. Sem a presença irrequieta de Thora, sem o som vibrante da sua voz jovial, a casa parecia vazia. Ela mal partira e a saudade já nos consumia!

A minha mãe não se opôs a que eu saísse depois do almoço, ao encontro das Pedras do Mundo. Provavelmente acreditava que o fazia para aplacar a dor causada pela partida dos nossos entes queridos. E eu não podia contar-lhe a verdade! Não tinha coragem para lhe dizer que lhe mentira, que lhe desobedecera, que pretendia continuar a enganá-la... Pois, se assim não fosse, ela proibir-me-ia de me encontrar com Edwin.

A caminhada até ao topo da Montanha da Magia pareceu-me interminável. No lugar sagrado, o solo pisoteado e enegrecido pelas fogueiras ainda denunciava a celebração dos rituais nativos. Sobre o mar formava-se uma névoa densa e colorida que avançava rapidamente ao encontro do arquipélago. Ao longe, um relâmpago rasgou o céu, mas não se ouviu o estouro do trovão. Inspirei o ar com força e esfreguei os braços, arrepiada. Agora, que chegara o momento pelo qual ansiava desde que despertara, o medo prendia-me os movimentos.

Apertei a Lágrima do Sol entre as mãos e ergui-a diante dos olhos, teimando na minha convicção. Edwin precisava de mim... Deixá-lo para trás, ferido e à mercê dos caprichos do seu mestre, fora terrível. E despertar na segurança da cama, sem poder regressar à Ilha do Fogo; ter de esconder este segredo da minha família, enquanto o tempo se arrastava, sem meio de saber o que acontecera ao meu primo, quase me enlouquecera. Há muito que não me aventurava ao encontro da sua essência... Pelo que pudera constatar ele estava muito forte; talvez mais forte do que eu! Sabia que o perigo era tremendo. Se Edwin entregara a sua alma ao lado obscuro da Arte, este podia ser o meu fim! Contudo, tinha de arriscar. O meu coração assim o ordenava!

Invoquei a magia e esta inundou-me com uma ferocidade que me cortou o fôlego. O cristal do Sol resplandeceu e, através da sua luz, vi o nevoeiro colorido, que há um instante se deslocava no mar, rodear as Pedras do Mundo e baixar sobre mim... E o meu grito perdeu-se no vazio, quando a realidade se desvaneceu.

Despenhei-me num remoinho brumoso. Experimentei a confusão, o medo, o abandono... uma raiva e um ódio desmedidos. Assimilei o frio glacial e o calor vulcânico, num único momento de indescritível dor. E, então, vi-o diante de mim, à distância de um gesto, também ele agonizando, possuído pela febre, banhado em suor e sangue e fustigado por violentas convulsões.

«Edwin...»

O seu corpo jazia num dos inúmeros alvéolos escavados no corpo da montanha vulcânica, deitado sobre a pedra nua, sem o simples conforto de uma manta, vestido com as mesmas calças esfarrapadas com que combatera o demônio. O seu olhar revelou-se, brilhante, delirante, enlouquecido, ao mesmo tempo que a sua voz se arrastava... o último suspiro de um condenado:

«Não devias ter vindo...»

Deslizei para o seu lado e toquei-lhe no peito, confirmando os meus piores temores. As feridas profundas, infligidas pelas garras peçonhentas, haviam infectado, cheiravam mal e brevemente estariam para além de qualquer cura. Sacudi-o para forçá-lo a reagir:

«Edwin, tens de ir ao encontro do teu mestre! Precisas de ajuda para sarar...»

«O meu mestre diz... que eu tenho de aprender... a sarar sozinho....»

O amargor na sua voz deixou-me a tremer. Sigarr era um monstro! Eu tinha a certeza de que nem o mais vil dos demônios permitiria que um dos seus penasse desta forma atroz!

«Isto é inconcebível! Vais morrer...»

«Não... Eu sararei... muito lentamente... Sofrerei, mas sararei... Aprender a suportar a dor... faz parte do meu treino.»

Eu estava chocada. Não era possível que Edwin se sujeitasse a tamanha provação!

«Tu não podes resignar-te à loucura desse tirano!»

«Será que devo sentar-me na praia... à espera que o meu corajoso pai... venha salvar-me? »

Engoli em seco, percebendo que esta conversa não seria fácil.

«O teu pai nada podia fazer, Edwin! Os nossos guerreiros vinham preparados para combater Sigarr, não o Povo do Fogo... Vulcan tê-los-ia morto a todos!»

Ele não hesitou em desabafar o rancor que o azedava:

«Como podes ter a certeza, se nem tentaram? Eu não era... suficientemente valioso para justificar uma guerra! De certeza... que se empenharam muito mais... para matar a minha mãe!»

Quedei-me petrificada, sem saber como reagir; o que argumentar. O olhar verde desdenhou da minha comoção, enquanto ele prosseguia:

«Vai-te embora, Edwina! Continua o teu treino... E eu continuarei o meu! Quando tivermos de medir forças... sentir-me-ei desgostoso se não me deres luta!»

Estremeci, gelada, horrorizada, contundida...

«Tu não estás a falar a sério! Não serias capaz...»

«De te matar? Não sejas ingênua...! Não sobrevivi, todos estes anos, a ser um bom menino! Farei o que for preciso... para subsistir! E, se a tua cabeça for o preço...»

«Estás a mentir!» — cortei, incapaz de escutá-lo. — «Se a nossa amizade não tivesse valor, não me terias procurado...»

«Só o fiz... para vencer o duelo... A verdade, é que me servi de ti!»

«Mentes! Por que te esforças tanto para me magoar, Edwin?»

«O meu nome é Loki!» — A sua voz ribombou na minha mente, com uma energia renovada. — «Se esse nome que usas alguma vez foi meu, deixou de o ser no dia em que a tua mãe matou a minha; em que o meu próprio sangue me abandonou... Desaparece da minha frente, antes que te entregue ao meu mestre! Sigarr pode ser implacável, mas é o meu pai... o meu verdadeiro pai! Graças a ele, sou muito mais do que um simples homem!»

«Graças a ti!» — repliquei. — «O poder vive em ti! O Sigarr só está a usar-te...»

«E quem te garante que não é o inverso? Quem disse que eu não desejo tudo aquilo que o meu mestre tem para me oferecer? Quando o meu treino findar, serei Guardião da Lágrima da Lua, servo fiel da Arte Obscura... e o mundo estará ao alcance das minhas mãos! O mundo.... e o poder que vive dentro de ti!»

Senti como se o coração me fosse arrancado do peito e espezinhado debaixo de uma bota ensopada em lama, diante dos meus olhos. Porém, em vez de lhe cuspir na cara e lhe voltar as costas, dei por mim a enfrentá-lo, com a plenitude da ira que me assolava:

«Se queres o meu poder, Edwin, por que não aproveitas e o reclamas de uma vez? Para quê esperar, se eu estou diante de ti, crédula, indefesa...»

«Não me provoques, Rainha do Sol!»

A resposta fluiu do meu coração:

«Tu nunca me causarás dano, Rei da Lua! Não foi para isso que nascemos! Por mais que o teu mestre te corrompa, a pureza da tua essência acabará por sobrevir...»

Sem aviso, Edwin, que eu acreditara prestes a desfalecer, saltou sobre mim com um ímpeto sanguinário. Descobri-me subjugada pelo seu peso, à mercê das mãos poderosas que me estrangulavam, com os alertas de «O Que Tudo Vê» a vergastarem-me a mente: tudo o que a minha essência sofresse, refletir-se-ia no corpo. Neste momento, na Ilha dos Sonhos, eu não passava de uma concha vazia. Se Edwin destruísse a minha forma espiritual, eu pereceria. Ainda assim, enfrentava-o, olhos nos olhos, respondendo à sua agressividade com o conforto da minha energia curativa, que se espalhava pelo seu sangue e lhe aliviava o tormento. Por baixo dos meus dedos, as suas feridas purgavam o veneno do Ser do Fogo...

«Para, maldita!» — rugiu, fustigado por um temporal de emoções contraditórias. — «Pára, ou beberei a tua essência até saciar a minha sede de vingança!»

Não lhe obedeci... E ele reagiu com uma ferocidade que deixaria o seu mestre orgulhoso. A sua boca cobriu a minha sem nenhuma delicadeza e o poder destruidor da Arte Obscura trespassou cada partícula do meu ser, envolvendo-as, sugando-as, assimilando-as... O sangue escorria pelos seus lábios; brotava dos meus lábios e encharcava as ervas que amparavam a minha cabeça, no topo da Montanha da Magia, tal a sua avidez. Nunca, em momento algum, tentei resistir-lhe. Entreguei-me voluntariamente, quase feliz por morrer às suas mãos...

No momento em que o meu coração forçava desesperadamente uma última batida, Edwin parou; o seu coração ameaçando rebentar-lhe o peito, o seu corpo revigorado, sem vestígios de feridas, sem réstia de cansaço. Os seus lábios recuaram e o olhar verde fixou-se na vítima, demasiado fraca para lhe falar, para sequer lhe devolver o olhar... Então, o meu primo libertou um rugido enlouquecido e tornou a apoderar-se dos meus lábios, devolvendo tudo o que subtraíra: as minhas memórias, o meu poder, a minha vida... e entregando-me abnegadamente as suas recordações, a força da sua magia, a sua essência na forma mais elementar... Até que, também eu, tive de gritar, assolada, extasiada...

Quedamo-nos em silêncio, ofegantes e trêmulos, com os corações a baterem no mesmo ritmo; as testas unidas e os lábios encostados. Abri os olhos e surpreendi o olhar de Edwin cheio de água. A sua mão moveu-se lentamente até aos meus cabelos, enrolando os dedos nos caracóis dourados. Uma a uma, as suas lágrimas banharam a face ruborizada da minha essência. Incapaz de conter-me, enlacei-o pelo pescoço e busquei os seus lábios... para um beijo.

De início, Edwin não correspondeu... porque não sabia o que fazer! Este era o seu primeiro beijo! Porém, o instinto depressa superou a timidez. Verifiquei que o seu sabor, o seu toque, a emoção... tudo nele era diferente de Ivarr, mais genuíno, mais intenso. E, como se isso não bastasse, havia algo mais... Magia! Senti o negrume da sua essência trespassar-me e lancei-me ao seu encontro, sem temor, qual facho de luz rasgando a escuridão num rodopio vertiginoso... Ele, uma névoa escura e brilhante; eu, uma névoa clara e cintilante, misturando-se e fundindo-se, até ser impossível dissociar uma da outra, ardendo com a pulsação das estrelas... Pura harmonia! Pura perfeição! Plena satisfação...

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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