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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARGARIDA DESFOLHADA / Berthe Bernage
MARGARIDA DESFOLHADA / Berthe Bernage

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- PODE já servir-se o almoço ou espera-se que o Senhor volte? - inquiriu Corentina, hostil a qualquer atraso no decorrer dos hábitos da casa.

- Continue à espera - respondeu Susana.

- As pequenas estão com fome. Elas não ganham nada em esperar e o meu assado ainda menos.

Descontente, Corentina tornou a fechar, com uma pancada seca, a porta dessa vasta cozinha bretã, donde se escapara o odor quente de excelentes manjares.

Susana foi encostar-se à janela da sala, onde estava posta a mesa aguardando os cinco Lê Fort.

- Eu queria que minhas filhas fossem felizes - murmurou ela. -Deve ser tão bom ser-se feliz!

Uma espécie de bem-estar se erguia dos jardins, de mistura com o seu perfume, despertando aquele pesar, aquele desejo no coração de Susana, que recebia esses aromas, enquànto o seu olhar se estendia para lá dos canteiros floridos de primaveras e das árvores de folhas tenras, ainda enroladas. Não gostava do seu jardim; achava-o tão apertado. Sempre lhe parecera excessivamente pequeno: mesmo quando rapariga, ardente, embora de aspecto sensato, aparentemente semelhante a todas as outras raparigas bem educadas, mas cuja personalidade se abafava. E, naquele dia, como em todos os dias do passado, o seu olhar ultrapassava o jardim. Este, situado nas traseiras da casa, na parte alta da vila, que conservava, austera e pardacenta, restos de muralhas, dominava um extenso vale, atravessado por um rio. Em dias claros, raros na Bretanha, a vista prolongava-se até à costa, no dizer de certas pessoas. O mar, porém, ficava invisível, e a paisagem, por muito bela que fosse, parecera sempre restrita a Susana.

Mas ela nunca dissera nada a ninguém. Quem a compreenderia Aceitara a sua vida, na vilazinha. Tinha aceitado tudo, até, mesmo, renunciar ao amor. E agora, na sua plenitude de mulher feita, censurava-se por esta passividade. Não tivera coragem.

Porque seu pai, o Dr. Quéré, queria um sucessor. E o jovem Lê Fort convinha-lhe: médico de valor, perfeitamente honesto, com uma grande distinção de espírito e de figura. Não seria possível ter qualquer hesitação. Jerónimo Lê Fort desposaria Susana, a única filha que ele tinha para casar, visto que a mais velha, Clara, se fizera religiosa, e ficaria com a clientela, a habitação familiar, situada no abrigo das muralhas, o círculo das relações provincianas - tudo.

 

 

 

 

Susana sabia bem que não a deixariam casar com Francisco, o marinheiro, esse Francisco que ela amava desde a infância e que também a amava. E numa das suas viagens, ela havia aceitado Jerónimo Lê Fort. Ou esse, ou outro...

Mas Jerónimo Lê Fort, perfeito no exercício da sua profissão, nunca testemunhara amor a sua mulher.

- Por que não havia ele de amar-me? Foi porque não lhe dei filhos? Porque o meu caracter o desiludiu? Se ele fosse mais afectuoso, talvez eu tivesse esquecido Francisco. O seu temperamento tem-se tornado impossível. Todos os homens farão cenas assim? Cenas a frio, o que há de pior.

E Susana repetiu, estendendo os formosos braços torneados:

- Queria que as minhas filhas fossem felizes. Mais felizes do que eu.

Deixando de contemplar esse jardim, cheio dum forte perfume de lilás, - por mais singular que pareça, os perfumes evocam coisas de outrora-, foi direita ao piano. E tocou, no grande salão mobilado como no tempo de sua mãe. Tocou, para se tornar ela própria, Susana. Para se evadir nesse mundo da música, um mundo à parte, onde Jerónimo não podia encontrá-la. Livre e só! Uma mulher casada, nunca mais é livre e só. Mas há a música.

Não pôde gozá-la por muito tempo.

Reconheceu o ruído do carro a trepar pela encosta. Bem depressa as suas mãos abandonaram o teclado. Jerónimo gostava de que as filhas tocassem, mas não ela. Teria ciúmes?

Ele entrou, alto, seco, já um pouco curvado e grisalho.

- Sirvam a comida depressa. É dia delconsulta. Onde estão as pequenas?

Uma campainhada fez descer as três raparigas. Margarida - a Rainha-Margarida, como lhe chamavam-, toda da linhagem paterna, nas feições e no porte, mas com os mesmos olhos grandes e apaixonados da mãe. Rosa Teresa, roliça, rosada e jovial. Maria Violeta, de rosto muito fino, de olhos azulados e pensativos; com dezasseis anos parecia ainda uma criança, com os cabelos escuros soltos pelas costas, como o pai queria. Só a ela Jerónimo manifestava interesse. Podia ser que ele também o tivesse pelas outras.

- Trabalhaste muito esta manhã, minha filha

Ela disse que sim e depôs-lhe um beijo na fronte descarnada. Depois, a família pôs-se a comer, depressa, contando as novidades da terra. O telefone retiniu várias vezes.

- Duas visitas a fazer no campo, esta tarde

- disse o médico, quando as filhas se retiraram depois de terem servido o café. - Que vida! Estou na última. Já reparaste nisto, Susana?

- Sim, meu pobre Jerónimo, bem vejo que andas muito cansado.

- Mais do que tu supões. Tenho absoluta falta de um assistente. Ajudava-me, eu ia-o formando conforme os meus princípios e, pouco a pouco, ia-me substituindo. Se não, vai tudo por água abaixo e a clientela vai parar toda a esse ignorante do Dr. Robin. E és capaz de avaliar o que é um desastre desses? Não, acho eu. Pensas como mulher. Mas a decisão está tomada. Já que da nossa feliz união - e ele riu-se duramente - não nasceram filhos, é preciso casar uma das filhas com um rapaz que eu possa iniciar no ofício tal como ele é aqui, - esperando que eu lhe ceda, como teu pai já fez, a clientela, e a casa.

- Oh! Jerónimo, a casa também

- Evidentemente. Está preparada para as consultas, para os exames e diversos tratamentos. Depois podemos retirar-nos para a outra casa, onde tua mãe acabou os seus dias.

- É tão triste, essa casa!

- Minha cara amiga, se achas triste podes ir viver para outro lado, assim que as tuas filhas se casem. Em todo o caso, vais ficar ao corrente das minhas intenções: casar a mais velha com um médico que não seja um imbecil. Para esse fim, pus-me já em contacto com o afilhado de um dos meus antigos professores. E previno-te de que ele vem cá almoçar no domingo.

Susana teve um sobressalto de contrariedade.

- No domingo? Já? Só à última hora é que nos prevines, Jerónimo!

- Mas não és capaz de organizar uma refeição

- Sabes muito bem que o que me preocupa é outra coisa. A pequena nem sequer foi consultada. Sabemos se ela tem vontade de se casar já? Se quer casar com um médico e esse rapaz lhe agradará?

Irônico, ele pôs-se a dar pancadinhas com o cigarro no cinzeiro.

- E eu, agradei a Susana Quéré? Ela tinha vontade de casar com um médico?

Ela sustentou-lhe o olhar.

- Susana Quéré deseja para sua filha um destino melhor que o que ela teve.

- Mas o que é que te tem faltado?

- Ser amada - respondeu lentamente.

Ele deixou, então, de brincar com palavras agressivas.

- Quantas coisas eu podia responder! disse com certa doçura.

E olhando para aquele belo rosto de mulher, ainda tão contornado e tão fresco, acrescentou:

- Deixemo-nos de discussões estéreis... Tenho de arranjar um substituto. Parece-me que Paulo Rigaud tem sérias qualidades para isso. Portanto, no domingo apresenta-se cá. Quero que ela apareça o melhor possível. Repara tu em tudo: no vestido, no penteado e até na disposição de espírito, se puderes.

- E se esse rapaz não lhe agradar As raparigas de hoje não consentem que os pais lhe imponham um marido.

- As raparigas modernas não são românticas como... tu foste. com certeza que ela há-de querer casar-se,

Sim, com certeza, porque a vida em Plémeur não é nada interessante para as raparigas. Uma vez saídas do colégio, que podem fazer aqui

- Evidentemente, nós moramos num buraco, mas eu é que nada posso fazer. Tu, que és cristã fervorosa, é que deves pensar que foi o Céu que nos escolheu este sítio para vivermos e que temos de conformar-nos.

- Ou então mudarmo-nos. Creio que Margarida, inteligente e brilhante, não gosta nada da província.

- Isso é secundário. Se calhar sonhavas com outra coisa na tua juventude?

- Confesso que sim - disse ela, excitada. É por isso que eu não quero que minha filha esteja de antemão destinada a satisfazer as ambições do pai, como me aconteceu a mim.

Apesar de ter a pele cor de cera, ele fez-se intensamente vermelho.

- Tenho, então, de contar com a tua oposição Que espírito quimérico!

Depois, fazendo um esforço para dominar-se:

- Faço mal em me irritar. É uma coisa que me prejudica muito. Mais vale dizer-te toda a verdade. Ando mais do que estafado: estou doente.

Um silêncio, que ela não se atreveu a interromper... No andar de cima alguém cantava.

- É a Rainha-Margarida; podes observar que ela não se aborrece assim tanto... Pois consultei-me em Rennes. O coração não está grande coisa. Se continuo a fazer esta vida de canseira, a trabalhar dia e noite, não vou além de um ano. Portanto, tenho de tomar uma resolução, e rápida.

Tornou-se mordente e hostil.

- Desta vez, compreendeste? É claro que a minha morte não te afligiria muito. Eu sei: atabafo-te, gelo-te. Reconheço, como médico, que temos naturezas muito diferentes para constituir o que se chama um bom matrimônio. Mas, além da questão sentimental, há o interesse dos doentes e da região. Mais ainda... tenho uma descoberta que porá fim a muitos males. Depois, há as pequenas: vinte anos, dezoito e dezasseis... É muito nova!

Ela pensava, sem ousar dizer-lho: "Apesar de tudo, amo o. E disse apenas:

- Jerónimo! Meu pobre Jerónimo!

É tão doce, uma voz de mulher! Ele ergueu os ombros, para sacudir aquela emoção, que não queria sentir.

- Até logo. Reflecte. Não digas nada à pequena. Tem um gênio assomadiço e podia irritar-se... A campainha, outra vez. São consultas para umas poucas de horas. Previne-te, que eu posso precisar de ajuda para qualquer injecção ou tratamento.

Assim que ele desapareceu, as três raparigas voltaram.

- Até logo, mama - disse Maria Violeta. - Esta tarde há curso de corte nas irmãzinhas.

- Estás a fazer algum vestido bonito, ao menos? - perguntou Rosa Teresa.

Oh! vestidos bonitos... Eu ando sempre assim vestida, é muito mais prático. Há por aqui tão pouca gente.

Foi-se embora. E Rosa Teresa, vendo-se ao espelho declarou:

- Que criança! Eu, então, gosto tanto de vestidos bonitos, mesmo que não se veja ninguém!... A propósito, encontrei a Maria Ângela. Parece que o irmão regressa do Congo, mas com a tenção de tornar a partir breve.

- É pena. Um bom camarada que se perdeu. Era um rapaz gentil - disse Margarida.

- Há ainda o sétimo Abran.

- Oh! todos eles batem as asas. Já o Hervé é oficial da marinha. Ivone e Joelle, assim que acabarem os estudos em Rennes, vão também para longe. Deixa que raparigas espertas como elas não ficam cá. Isso é bom para nós.

- És tonta! - declarou Rosa Teresa. - Exageras tudo. Sempre desejastes aquilo que não tens. Até mesmo em pequena. Tu própria hás-de fazer a tua infelicidade.

- Olha, mais vale um infortúnio que se veja, do que uma felicidade pequerruchinha, raquítica, como aquela com que hás-de contentar-te.

- Um infortúnio que se veja! Ó mama, estás a ouvir isto?

Sim, Susana estava a ouvir. Enquanto ia fazendo um lindo bordado de que as filhas se riam (para que serviria aquilo? Mais valia que fizesse "tricot"), ela procurava registar o verdadeiro som das almas, para além das palavras, que nunca traduzem o essencial. Que tolice, a declaração da Rainha-Margarida! Mas já as três irmãs falavam de tênis.

- No domingo há desafio. Era bem bom que Miguel Abran chegasse a tempo de tomar parte nele

- No domingo? Calha mal-interveio Susana.

- O pai convidou uma pessoa para almoçar. Se vocês saírem ele fica descontente.

- Mas essa pessoa que vem cá almoçar não vai cá ficar toda a tarde, acho eu, E quem é que vem É pessoa conhecida?

- Não.

Rosa Teresa bateu as palmas.

- Achei! achei! Quem vem cá almoçar é um moço casadouro. Confessa lá, mama!

- Não posso dizer nada.

- Ora, adivinha-se. Mana Margarida, prppara o teu vestido mais lindo.

- Há-de ser mas é o mais feio. Só queria ser feia que nem uma noite de trovões para ele te preferir, o tal rapaz casadouro.

- Tu estás parva O papá é o senhor absoluto. De resto, uma rapariga não se casa antes dos vinte anos e eu ainda só tenho dezoito. Além disso, nas famílias de gente-de-bem, a filha mais nova só se casa depois da mais velha. Quantas vezes ele o tem dito! E o senhor nosso pai não é pessoa que ceda.

A Rainha-Margarida, que rira ao princípio, tomou aquele ar voluntarioso, que tanto acentuava a sua semelhança com o pai e lhe valera o cognome familiar de "Rainha"

- Está percebido. No domingo traz-se aqui um moço capaz de vir a tornar-se o sucessor do Dr. Lê Fort. Mas a filha tem de ser vendida com a clientela. Que ele me agrade ou não, isso é absolutamente secundário. Mas eu é que declaro desde já que, se ele me desagradar, tanto no físico como no moral, não haverá nada que me faça aceitá-lo. Mais depressa me ia juntar à tia Clara no convento. Não sou obrigada a sacrificar-me pela clínica do papá.

Susana respondeu-lhe:

- Compreendo e aprovo-te. Mas não te exaltes antes do tempo. A questão não pode ser encarada só por um lado. Teu pai está cansado, muito cansado, mesmo. Precisa de um assistente. Portanto... Mas ele está a tocar. Chama-me, decerto, para alguma injecção.

- Eu podia muito bem dá-la. Tenho os diplomas precisos. Mas o papá não quer. Ai! Ai! Há sempre coisas que o papá não quer!

Assim que Susana se afastou, Rosa Teresa disse à irmã:

- Mas afinal tens vontade de te casares És tão original!

- És muito curiosa! - respondeu a Rainha-Margarida, avara do segredo dos seus pensamentos.

- Olha, eu tenho.

- E eu também! - confessou a mais velha. - A vida de rapariga é agradável quando a organizam como os Abran: estudos prolongados e, depois, trabalho profissional, camaradas, divertimentos. De contrário, cria-se bolor, e tem-se o direito de esperar que o casamento nos traga vitalidade. Tudo, porém, depende do marido. Se nem sequer tivermos o direito de o escolhermos nós próprias...

- Escuta, pode ser que o rapaz de domingo seja simpático. com que vestido te vais apresentar?

Susana voltou quando falavam de vestidos. Também ela assim falara de vestidos, com a mãe, na altura em que Jerónimo Lê Fort foi recebido em sua casa; se bem que ele nada lhe tivesse agradado, ela fez a diligência de parecer bonita, a esse mancebo cortês e frio, cujo olhar, habituado a fazer diagnósticos, pousava nela com tanta acuidade. Garridice feminina? Esperança de ser amada, até mesmo de ser feliz? Francisco, o marinheiro, tinha palavras encantadoras para elogiar cada um dos seus vestidos. Jerónimo, porém, observava e calava-se. Aquilo gelava-a... Meu Deus! era uma decepção assim que estava a preparar-se para aquela formosa Rainha-Margarida

- Acho que devias aparecer com o vestido cor de tília - disse ela, - Fica-te muito bem.

E enquanto esperava que o médico tornasse a chamá-la, retomou o trabalho, aquele pano de cetim em que a sua agulha ia bordando rosas e do qual as pequenas lhe diziam:

- Mama, que vais tu fazer disso? Talvez nada. Mas era bonito.

 

O sol nascente projectava nas lajes da igreja as colorações chamejantes do vitral, um lindo vitral que resplandecia gloriosamente à luz da manhã.

Margarida, Maria Violeta e a mãe rezavam por detrás do pilar. A sua prece, porém, tinha revérberos coloridos, como o vitral. A de Maria Violeta era inundada de amor, Margarida levava a essa missa dominical uma fé mais intelectual do que acendrada e Susana ia com o pensamento agitado por recordações, inquietações e cuidados. Outrora, rezava como Maria Violeta e sentia-se feliz ao pé do Senhor.

Ao sair da missa foi com as suas preocupações para as lojas, fazer compras, visto que o tal rapaz ia almoçar; e as filhas reuniram-se no largo, aos Abran, isto é, somente a uma parte dos Abran, duas raparigas e um rapaz.

- E Rosa Teresa? - perguntou Maria Ângela. - Sempre preguiçosa...

Ela pode lá deixar a cama! - disse Margarida. - Não está para maçadas. Sabes que esta tarde, naturalmente, não podemos ir ao tênis?

- Essa agora! Então porquê? Olha que se conta absolutamente com vocês.

- Mas julgas que lá em casa fazemos o que queremos? O papá preveniu-nos simplesmente de que ia lá "uma pessoa almoçar", como é costume dele. É um convidado de vulto, podes crer.

- Deixa-me rir! Um professor da Faculdade, não?

- Qual! um doutorzinho de meia tijela. Nem sequer tem consultório.

- Mas então!

- Tu não percebes nada. É um candidato à sucessão do papá.

- E à mão da Rainha-Margarida. E tu vais aceitá-lo assim, sem mais nem menos, sem sequer o teres visto?

- Ah! não! isso não é para mim, não sirvo para cordeirinho. Mas vai ser duro de roer, ir contra a vontade do pai. É uma pedra dura, o papá.

João Maria e Aliette Abran, ele com doze e ela com onze anos, escutavam com esse interesse apaixonado que as histórias de amor e de casamentos, histórias de pessoas crescidas, enfim, despertam nos adolescentes.

Maria Violeta, de braço dado com a irmã, mostrava o rosto contraído. A actual situação preocupava-a muito. O papá estava doente; e se precisasse absolutamente de auxílio Podia ser que o convidado lhe parecesse talhado para isso. E Margarida havia de escangalhar tudo com a sua recusa

"Se eu fosse mais velha - pensava ela na sua ignorância da vida - aceitava logo só para aliviar o papá. Parecia tão cansado, ontem à noite!"

Maria Violeta não se interessava nada por casamentos nem por amores, por essas histórias de pessoas crescidas, que faziam brilhar de curiosidade os olhos de João Maria - chamado pelos outros "Coração Selvagem" - e de Aliette, a quem chamavam "Saguim". Adorava o pai que, de resto, lho retribuía, sem querer demonstrá-lo. com os seus longos cabelos negros e brilhantes, os seus olhos glaucos e as feições delicadas e miúdas, assemelhava-se imenso a Gisela, a irmãzita dele, cuja morte tanto lhe pertubara o coração de adolescente. com o pretexto de que Maria Violeta era fraca ("eu sou médico, sei o que lhe convém"), não quisera metê-la no internato, em Rennes, como às irmãs. Ela fizera, pois, toda a sua educação em casa: cursos por correspondência, explicações com vários professores, e essa vida, afastada das outras crianças, deixara-lhe uma frescura, uma simplicidade muito especiais; "menina antiga", chamavam-lhe as irmãs, que eram muito modernas, pelo menos nos gostos, e que se divertiam com aquela candura. Jerónimo Lê Fort, então, enternecia-se com o encanto de Maria Violeta. Tentava ocultar esse enternecimento, porque queria passar por duro aos olhos de todos. Ele bem afivelava a máscara, mas os olhos da pequena viam por detrás da máscara. E ela pensava: "Amamo-nos os dois. "

Os Abran, que moravam lá em baixo, fora da pequena vila alcandorada na sua colina, pararam em frente da casa das suas amigas: a "Casa de Cima", como eles diziam. O médico estava a tirar o carro para fora. Maria Violeta correu ao seu encontro.

- Vais-te já embora, papá? Vais longe?

- Sim estou com pressa, porque quero estar de volta antes do comboio chegar. Margarida, lembro-te que há-de vir comigo um jovem colega. Ajuda tua mãe a preparar o almoço; já sabes que a Corentina e essa preguiçosa da Rosa Teresa só lá para o meio-dia é que voltam da missa.

E dirigindo-se aos Abran:

- Não contem muito com as suas amigas para o tênis; naturalmente almoçamos tarde.

Pôs o carro em marcha e afastou-se, atraindo o olhar de Maria Violeta, que o seguiu até longe. Quando ela deixou de o ver, suspirou, sem prestar atenção às sugestões de João Maria, que propunha a Margarida levar o convidado para o tênis.

- Mais valia do que ficar a fazer roda no salão...

Separaram-se. Os Abran muito alegres; estavam sempre contentes. As Lê Fort pensativas: a Rainha-Margarida por causa do rapaz que ia chegar; Maria Violeta por causa da palidez do pai. "Se ele adoecesse no caminho. "

Em casa, Corentina resmungava, como era costume. Pelo menos assim o disse Rosa Teresa, que envergava um longo penteador cor-de-rosa, com os cabelos louros em desordem.

- Até que enfim, lá chegaram A Corentina já estava a falar num almoço às metades. Oh! uns são rabugentos, outros são tristes... Juro que não hei-de casar senão com um homem alegre e que não hei-de ter uma criada velha e rezingona.

- Talvez nem tenhas criada.

- Tanto melhor; é da maneira que eu faço o que me apetecer em minha casa. Para que havemos de apoquentar-nos assim? A vida é simples e vocês todos é que a tornam numa coisa complicada. Pois é claro... o papá, a Margarida, a Maria Violeta, a Corentina. Só a mama é que conserva a serenidade.

- Resta saber o que vai dentro dela - observou Margarida. - Não é mama?

- Cá dentro? Há com certeza uma grande vontade de bom-senso e de calma. E o desejo de os fazer todos muito felizes... apesar de tudo.

As palavras "apesar de tudo" foram ditas tão baixo, que só Maria Violeta as ouviu. As mais velhas altercavam as duas, enquanto barravam de manteiga as fatias de pão.

- Tu fazes isto...

- Não, isso fazes tu...

- Eu é que não hei-de fazer tudo; porque é que te levantas tão tarde?

Susana fez o programa: desde a ementa à mesa e à louça, até à chávena de café.

- E a seguir mama? Fica-se a cabecear nas poltronas Eu queria levá-lo para o tênis. O tênis revela muito bem a personalidade das pessoas.

- Faz-se o que o teu pai resolver. Mas esse rapaz não deve gostar de tênis.

- É provável! Estou a vê-lo já, feio, mal vestido, gorducho, desagradável. Já sabes que se o modelo for este não o quero para marido. Não há ninguém que me obrigue.

Ria-se. E estava tão radiosa de mocidade, que Susana disse num transporte:

- Não, decerto que ninguém te obriga. Só casarás com um rapaz que mereça o teu amor.

- És muito gentil, mama. Vais defender-me?

- Mas porque imaginas tu esse Paulo Rigaud cheio de todos os defeitos

- Paulo Rigaud, Paulo Rigaud-repetiu Rosa Teresa zombeteira. - Lá o nome não é nada bonito, minha pobre pequena. Paulo Rigaud...

- Cala-te! Lá como ele se chama não interessa, o que interessa é que eu não seja um zero. Não estou para casar-me de qualquer maneira. Os Abran é que têm sorte.

- Achas? Não são nada ricos.

- Mas fazem o que lhes agrada. A Ivone vai ser assistente social, a Joelle há-de ser advogada ou jornalista. O Miguel regressa à África com uma mulher a seu gosto. A Maria Ângela vai casar com um agricultor e os três pequenos vão seguir também a sua idéia. Nós, então, uma vez saídas do internato, voltámos para casa, à espera de um marido.

- Então o que é que querias fazer?

- Estudar medicina.

- Ah isso é custoso... Antes casar...

- Isso depende de saber com quem, Vamos lá, mamS, queres que faça um prato em honra de Paulo Rigaud para lhe mostrar as minhas habilidades de dona de casa?

- Paulo Rigaud... Paulo Rigaud... - trauteou Rosa Teresa. - Faz-te linda, minha moça casadoura.

- Oh! se ele se "embeiçasse" por ti!

- Isso é que é impossível. O papá não quer que eu case primeiro. Já prevenido, o Paulo Rigaud nem sequer voltará os olhos para a minha insignificante pessoa.

- Talvez seja assim melhor - disse Maria Violeta. - A Rosa Teresa está sempre satisfeita com as pessoas e com as coisas.

- Eu tenho caracter - declarou Margarida.

- Vá, saiam da mesa. Há que fazer para se preparar tudo e receber a visita dignamente.

- Paulo Rigaud, Paulo Rigaud... Canta tu também, Maria Violeta. O papá não está cá; podemos troçar do seu candidato.

Maria Violeta, porém, encolheu os ombros.

- Ó mama, que parvas!

Então, as irmãs apuparam a "menina antiga".

À hora do comboio, a Rainha-Margarida foi pôr o vestido cor de tília. Sorriu-se para o espelho, porque o vestido ficava-lhe bem, mas fez uma careta que se destinava a Paulo Rigaud. E depois, voltando a pôr-se séria, com uma gravidade que lhe envelhecia o rosto de contornos harmoniosos, de um tom cálido e de boca redonda e vermelha, murmurou quase as mesmas palavras que sua mãe pronunciava na véspera:

- Ser feliz! Deve ser maravilhoso, ser-se feliz...

O passado - a vontade de rir com as irmãs. O futuro, secretamente, atemorizava-a, quer fosse ao pé de Paulo Rigaud, quer de qualquer outro.

Quando Jerónimo apresentou o seu convidado às quatro mulheres, todas o acharam feio, verdadeiramente feio. No decorrer da refeição a conversa limitou-se aos dois homens. Elas ouviam - e Corentina, que servia à mesa, ouvia também. Iria, ao menos, descobrir-se uma bela inteligência, uma personalidade simpática? Falava muito dele próprio: dos seus estudos, dos seus diplomas, das suas protecções.

"Presunção e água benta... - pensava Corentina.

Falava também de dinheiro, com desenfado e competência.

Susana reparou

"Para ele a carreira médica é um negócio como qualquer outro".

"E o casamento é um negócio-dizia Margarida para si. - Nem uma palavra me dirige!"

Não obstante, acabou por se virar para ela. E através dos óculos que ele usava sem elegância, ela recebeu o embate de um olhar mole, carregado, que lhe desagradou; disse-lhe quaisquer palavras convencionais sobre o encanto de viver numa vila, perto duma cidade importante. E a conversa profissional recomeçou entre os dois médicos.

"Observou-me o suficiente para dizer consigo: -Isto não vai mal de todo com a pequena. A coisa vai em bom caminho. - Mas não cante vitória tão cedo. "

E, recordando-se da sugestão de João Maria Abran, resolveu observar também fora de casa esse rapaz que à primeira vista lhe desagradava. E ao servir-lhe o café, perguntou se jogava bem o tênis.

- Temos hoje um encontro. Quer vir connosco

- Jogo muito mal e não estou treinado. Mas acompanho-as de bom grado, se o doutor mo permite.

- Levo-os a todos no carro ao campo de tênis-disse Jerónimo Lê Fort, a quem a proposta da filha pareceu de bom augúrio. -E depois torno a trazê-lo para aqui para passarmos mais um bocado juntos, antes de vir o comboio.

As raparigas foram vestir-se de branco. E Rigaud sentiu-se tocado pela graça robusta da sua noiva em perspectiva.

"Uma bela rapariga, a transbordar de saúde. Decididamente tudo está bem encaminhado. "

Mas, entre as partidas de tênis em que Margarida jogou e jogava com maestria-, ela submeteu-o a um interrogatório, que teve tanto de hábil como de apertado. Tudo passou nele: as suas idéias, os seus gostos, os seus projectos. E tudo lhe desagradou.

"Um arranjista. Nada de ideal. Alma vulgar, pequena. "

Quanto mais ela o fazia falar, mais ele se sentia à vontade e mais a sua mediocridade intrínseca se evidenciava.

Ora a rapariga estava esplêndida de beleza. Quando corria atrás das bolas, as suas pernas altas levavam-na com tanta leveza, os gestos do seu braço redondo e dourado do sol eram tão exactos, os seus cabelos bastos e brilhantes tinham reflexos tão quentes, que os outros jogadores e jogadoras a admiravam.

E, como eles, Paulo Rigaud.

"É justamente a mulher de que preciso. Ela ganhou. Vendo-a tão radiante - ela amava a luta, Jerónimo julgou o seu projecto bem encaminhado. Tanto melhor. Sentia o coração tão cansado; a Primavera, sem dúvida... Assim que Paulo Rigaud partiu, não se falou mais dele. As jovens tinham muito que dizer acerca do tênis, dos seus parceiros, do campo em flor. "O cuco já voltou. Susana escutava.

À noite, porém, Jerónimo convidou a Rainha-Margarida a ir ao seu gabinete. Ela foi, de cabeça levantada, embora tivesse medo, como no tempo em que era menina e obstinada e ele a chamava para ouvir uma reprimenda severa, em que cada palavra fustigava como um açoite.

- Senta-te - disse ele - e vamos conversar tranqüilamente. Apresentei-te hoje um rapaz de valor, estimado pelos seus superiores e disposto a ser meu assistente durante algum tempo e a tomar, em seguida, a minha clientela. A sua família, de Nantes, é simples, mas muito honrada. Saudável. Conduta irrepreensível. Católico sincero. Tu agradaste-lhe muito, o que não me admira. Não te peço que sejas tão afirmativa já esta noite mas que me digas que te prestas de boa vontade a um novo encontro... Então! respondes

Ela sacudiu a cabeça.

- Papá, é inútil estar com rodeios. Ele não me agrada absolutamente nada. Não quero voltar a vê-lo.

A palidez dele tornou-se esverdeada.

- Explica-te. Que tens tu a censurar nesse mancebo?

- Primeiro, isto: é demasiadamente feio.

- Questão secundária!

- Não, papá; gosto do que é bonito e acho Paulo Rigaud medonho. Malfeito, cor doentia, olhos inexpressivos, boca grossa. Sem nenhuma elegância. Nem sequer distinto.

- E que mais? Não lhe hás-de negar, pelo menos, qualidades intelectuais.

- Papá... Seja qual for a sua inteligência profissional, a sua ciência, não é um espírito culto, como tu... E depois, tem idéias mesquinhas, princípios morais sem elevação. Não é mau, sem dúvida, mas duma vulgaridade de alma que eu não poderia suportar. Católico sincero? Não vive a sua religião; conserva-a por rotina.

Jerónimo Lê Fort ergueu-se.

- Estás a disparatar. A tua mãe deu-te volta à cabeça.

- Para que acusar a mama? Ela não me disse nada. Nem era preciso. Falo como uma rapariga capaz de ajuizar por si mesmo.

- Hás-de tornar a vê-lo. Tu deves, tu tens de te casar.

- Mas não com ele.

Ele pôs-se a andar dum lado para o outro e a falar rápido, com os dentes cerrados.

- Tu não compreendes a situação. Eu estou doente, ameaçado duma morte próxima, se continuar nesta vida de cão. Tenho de assegurar a minha substituição. Há tantos interesses em jogo: os vossos... os dos doentes... investigações científicas quase concluídas e para as quais vou ter precisão de ajuda dum jovem... Não sou um pai desnaturado. Desejo ver-te feliz, Rainha-Margarida, mas a vida não é um romance. Acreditas no amor apaixonado entre marido e mulher? É uma ilusão. Forma-se equipa. Criam-se filhos. Conformam-se com os caprichos um do outro, e assim a vida passa... Que respondes tu

- Que nunca poderia formar equipa com ele.

- Oh! que cabeça de burro! Mas não quero entregar-me a palavras violentas.

Respirou longamente.

- Ouve... nunca fui um pai muito meigo, confesso. Neste momento, porém, falo ao coração de minha filha: tem compaixão da minha fadiga, da angústia que me aperta o peito. Dentro de pouco tempo não poderei continuar a trabalhar. Preciso de auxílio e depressa. E, no entanto, o que é que eu te proponho? - um casamento honroso, que há-de assegurar-te o futuro.

- Um futuro sem amor? Mas é horrível! exclamou ela, vencida pelas lágrimas, ela que raramente chorava. - Viver com esse homem, de dia e de noite, toda a vida! Ser sua mulher, enfim. Papá, por meu turno também te digo: tem compaixão de mim! Não me recuso a casar-me, a fazer um casamento de conveniência, embora tenha sonhado outra coisa.

- Amas alguém

- Ninguém. Mas gostava de escolher. Renuncio a isso. Apresenta-me outro médico. Aquele, não.

Ele procurou acalmar-se.

- Dou-te alguns dias para reflectires. Conto que no decurso da semana me digas que Paulo Rigaud pode voltar no domingo... Estás a ouvir-me - continuou com violência. - E não estejas a chorar como uma parva. Repito-te que a vida não é um romance.

- E, no entanto, só se vive uma vez. E eu quero viver. Viver!

Um silêncio pesado, cheio de coisas inexprimidas, caiu entre os dois. Por fim, ele disse, passando a mão pela testa:

- Não tinha necessidade desta cena. Já não temos nada mais a dizer. Se és uma filha com coração, já compreendeste... Não te esqueças de que o título de filha mais velha cria deveres. Ela subiu depressa para o seu quarto, a fugir da mãe e das irmãs.

"Uma filha com coração! É precisamente por eu ter coração que não quero deixar-me comprar com a clientela. "

Abriu a janela. Era uma noite doce, perfumada de lilás.

 

UMA nuvem sombreou a sala onde se realizava o curso de costura. O granizo tamborilou nas vidraças, E o vento, vindo do lado do mar, arremessou-se contra a casa. Todas as cabeças se levantaram. Mas a de Maria Violeta não tornou a baixar-se para o trabalho.

- Maria Violeta-disse a irmã Apolínea-, alinhave a sua bainha.

- Sim, minha irmã - respondeu ela docimente.

E pelo tecido passou compridas linhas. Porém, aquilo de aprender a fazer vestidos era-lhe indiferente! Ela vestia-se sempre da mesma maneira, de um modo que agradava ao pai, mas que não agradava à mãe, que considerava demasiadamente infantil, com as suas blusas de seda branca muito simples, que deixavam à vontade os braços e o pescoço. Para que servia dar lições de corte e de costura se a sua maneira de vestir era sempre a mesma e se essa uniformidade lhe parecia tão cômoda. Nesse dia, um pensamento lhe perseguia o espírito: "com este tempo medonho e o papá na charneca, com tanto vento. Deve custar muito a guiar. Que canseira... Meu Deus! Se ele morrer ao volante... "

Pensamento horrível. Às escondidas, tinha consultado alguns livros de medicina, que não faltavam em casa. E, sabendo que o mal de que o pai sofria era de natureza cardíaca, espiava-lhe as menores indisposições e, na sua ignorância, ia atribuindo-as às afecções mais diversas. Esta inquietação contínua arrebatava-Lhe a alegria. As mais velhas não duvidavam de que o ar sério da "menina antiga" era tristeza e que a irmã sofria de qualquer "mal de amor". Mas nem ousavam dizê-lo. Naquela casa era-se tão pouco expansivo, que Maria Violeta receava tornar-se notada, "Haviam de fazer troça de mim... Ficava com cara de parva. Como era aquilo feito, que a mama, alegre e boa, se mostrava tão fria para o marido? E porque falava o papá tão secamente com sua mulher? Os pais, ninguém os compreende. Não, na verdade, ninguém...

- Maria Violeta - tornou a dizer a irmã Apolínea-, que grandes pontos os seus! Para a costura é preciso ter gosto.

"Mas para que estou a fazer isto?" - pensava a pequena.

Ela só gostava de ler. Era a literata da família, como a Rainha-Margarida era a desportista de inclinações científicas, como Rosa Teresa adorava o mundanismo e Susana a música. A sua educação, muito especial, deixara - lhe folgas. E fora das lições, tinha aprendido muitas coisas. Ninguém duvidava, mesmo, de que ela tivesse ido tão longe que adquirisse o gosto das meditações filosóficas.

"Oh! os teus alfarrábios... - diziam as irmãs, trocistas. E a mãe não gostava de vê-la a ler horas seguidas. "Isso cansa-te. Maria Violeta crescera ao lado de sua mãe, sem esta lhe penetrar a personalidade: conheciam-se muito mal, apesar de estarem tão perto uma da outra.

Só a tia Clara, no seu Carmelo, tinha a intuição do valor dessa rapariguinha silenciosa. Entregar-se-ia toda a Deus? Seria preferível, sem dúvida. No mundo, quem tem uma sensibilidade assim, sofre muito. A religiosa, às vezes, solicitava-lhe as confidências. Não... Maria Violeta não se revela senão pelo olhar emotivo dos seus olhos claros, de pestanas escuras. Recalca os seus sonhos e as suas tristezas de criança, recalca a sua confusão perante o mal-entendido que separa seu pai e sua mãe; e recalca esse temor que anda a atenazá-la há alguns meses: ele está muito doente. Irá morrer?

É que jamais um pai foi tão amado por sua filha. Ele sabia-o, mas sem ter tempo de analisar aquela doçura que se apoderava dele quando abraçava Maria Violeta. Pensava que era uma recordação da pequena morta de outrora. A pequena morta estava ali, entre Jerónimo e Maria Violeta. À sua sombra, aquela afeição não se expandia inteiramente. "E há-de morrer sem saber quanto eu o amo?" Tinha lido e relido as palavras desiludidas de Pascal, que diz: "O homem vive e morre completamente só"; conhecia os versos de Sully Prudhomme sobre as estrelas, que parecem perto e que estão tão distantes: tal como as almas. Procurara nas diversas filosofias a explicação dessa estranha impotência que domina os humanos e os impede de se reunirem. Mas as filosofias só põem o problema, sem o resolverem. Então tornara-se ardentemente piedosa. Em Deus, sentia-se, enfim, compreendida, escutada e o seu amor era aceito. O Cristo dissera: "Permanecei no meu amor. Era maravilhoso...

Mas seu pai não tinha fé. Outro tormento, a acrescentar ao primeiro. Ah! como se pode sofrer com dezasseis anos, com "tudo o que é preciso para ser-se feliz", como dizia Corentina, testemunha da vida daquela família, que ela servia a resmungar, mas com um apego selvagem.

Ora Corentina estava descontente naquela semana.

"Não teve mesmo sorte nenhuma, o rapaz que veio no domingo. Para uma rapariga como a Rainha-Margarida! E ele não tem a gentileza de tantos outros moços. De Miguel Abran, por exemplo. É o marido que convinha a uma das pequenas. Mas porque é que havia de se lhe meter na cabeça fazer-se médico de pretos Pois não há cá doentes para tratar? E não há tanto bem a fazer para um bom cristão? Hoje em dia o mundo está doido. Metem-se em aventuras, quando podiam encontrar, mesmo à mão, uma esposa, trabalho e felicidade, com todas as garantias! Tenho na idéia que ela nem liga nenhuma ao senhor de domingo! E faz muito bem. O pai pode, se quiser, trazer-lhe um doutor melhor do que aquilo. É o que não falta para aí. Não há mais falta deles do que de doentes, por nosso mal! Tornará ele a vir no próximo domingo"

Margarida estava bem decidida a recusar-se a vê-lo outra vez.

"Ela tem cabeça de teimosa - observava Susana. - E Jerónimo também. Qual deles cederá? E terei eu o direito de animá-la contra o pai?"

Hesitante, sem discernir perfeitamente o seu dever, teve um repente:

"Se eu pedisse conselho a Joana Abran É uma mulher tão sensata, que soube ser pai e mãe ao mesmo tempo. "

Joana Abran, alguns anos mais velha que Susana, mais simples de nascimento e de espírito menos culto, possuía algo que não se adquire - o bom-senso - e um sentimento maternal despido de todo o egoísmo.

"Ela vale bem mais do que eu", pensava Susana, enquanto ia descendo para "O Fetal", onde Joana, viúva há dez anos, educara tão bem os seus filhos. "Ela vê sempre qual é o caminho e segue-o. Ela amava imenso o marido; a sua coragem, quando ele morreu, foi magnífica. Sente-se que ela quer continuá-lo e daí lhe vem esta força. Se eu tivesse amado como ela amou, seria mais forte, sem dúvida. Quando se ama... tudo se transforma. "

Joana estava a coser à máquina. Fez parar a linha e sorriu, com aquele sorriso aberto, que lhe remoçava o rosto envelhecido.

- Que novidades há, Susana?

Susana, então, contou-lhe tudo. E Joana escutava, enquanto punha um forro.

- A minha opinião? - disse ela, por fim. - Margarida não deve negar-se a um novo encontro. A primeira impressão não é sempre boa. E o pai está no direito de censurá-la se ela recusa um partido sem o ter examinado a fundo. E por outro lado, Susana, o doutor pode torná-la a si um pouco responsável por isso. Seria aborrecido.

- Todavia, Joana, compreendendo tão bem como compreende as diferentes inclinações dos seus filhos, decerto não procuraria impor-lhes um casamento contrário aos seus desejos.

- Não. Mas obrigava-os a reflectir.

Joana gostava de falar dos filhos. A grande novidade era o próximo regresso de Miguel.

- Ah! mas não vamos tê-lo cá muito tempo. No Outono volta para a África para "estabelecer-se por sua conta. Vai custar muito. Quando tornaremos a vê-lo? Para o avô, sobretudo, é muito incerto tornar a vê-lo.

Susana voltou a subir a ladeira para sua casa mais aliviada. E achou bonito o caminho cheio de giestas em flor.

A Rainha-Margarida começou por se irritar, declarando que não queria que Paulo Rigaud tornasse a vir. E por fim, ao ouvir a mãe dizer que repelir uma proposta sem a ter estudado era uma maneira de agir ininteligente, exclamou:

- Pois então que venha, que venha! Mas com uma condição: iremos passear num grupo de jovens. Nada de entrevistas no salão.

Chamaram os Abran. Maria Ângela e Joelle juntaram-se a Rosa Teresa e a Maria Violeta. E o bando juvenil partiu para a charneca, onde o ar era tão bom. Margarida e Paulo seguiam atrás, fazendo esforços para encontrarem qualquer coisa que dizer um ao outro. Quando conseguiam enfim agarrar um assunto próprio para desenvolver, as suas idéias divergiam. No regresso, ela declarou:

- Creio que meu pai o estima muito e que seria feliz se lhe confiasse a sua clientela. com isto, porém, misturou um projecto de casamento de nós dois. Mas digo-lhe muito simplesmente: creio que não fomos feitos para nos entendermos.

Ele tentou discutir, assaz desajeitadamente.

- Nada de pressas. Tornemos a ver-nos de novo. Acho que deve reflectir. Você agrada-me muito.

Porém, ao vê-lo e ao ouvi-lo, ela julgava-o sem indulgência. A noite, o pai não lhe perguntou nada. Como médico sabia muito bem que as emoções à noite são prejudiciais e acautelava-se consigo mesmo. No dia seguinte, chamado cedo para um parto, esteve fora muito tempo e vinha esgotado quando voltou, deixando a conversa para mais tarde ainda.

- Queres que fale em teu lugar, Margarida?

- perguntou Susana, que temia um choque entre os dois e pensava melancòlicamente: "Antes quero ser eu a sofrer do que a pequena, se o Jerónimo for duro de mais. "

Mas a rapariga, com a sua personalidade muito moderna, recusou-se a ocultar-se por detrás da mãe.

- Sei perfeitamente o que hei-de dizer. E se o papá se zangar é justo que ele se volte contra mim e não contra ti, que não és responsável por coisa alguma.

- Eu podia ter-te levado a ceder ao desejo de teu pai.

- Não era o teu dever de mãe... Mas não tenhas remorsos, minha pobre mama - juntou ela rindo-, tu recomendaste-me que vestisse o meu vestido cor de tília.

Porém, não houve cena. Nada mais do que a troca de umas perguntas breves e de respostas igualmente claras.

- Tomaste uma decisão?

- Recuso.

- Por que motivos?

- Tudo me desagrada nele. A sua fealdade física. A sua vulgaridade moral.

Sem dúvida o próprio Lê Fort já medira aquela personalidade acanhada. Não protestou.

- Está liquidada a questão. Não falaremos mais nisso. vou tentar lutar completamente só contra.

Ele estava a pensar. "Contra a morte. "

- Papá, o teu sucessor não tem precisão de ser meu marido.

- Mas é o que eu quero. Já que, infelizmente, não tive filhos, quero que seja um dos meus a tomar o meu lugar.

- Devias ter-me posto a estudar medicina

- ousou dizer a Rainha-Margarida, dando liberdade a uma ideia-sonho sempre recalcada nela.

- Já eu te ajudava.

- Estás louca Uma mulher...

E nesta palavra ele pôs tal desdém, que a Rainha-Margarida ripostou:

- As mulheres são tão inteligentes como os homens.

- Mas não têm a mesma resistência corporal.

- Se tu soubesses como eu gostava!

- E porque não o disseste? Tinhas continuado os teus estudos depois da Cruz Vermelha.

- Não sei - confessou ela. - Cá em casa nunca ninguém se atreve a dizer nada.

- Por causa deste meu feitio arisco? Minhas pobres pequenas... Enfim, a questão de Rigaud está resolvida. Tua mãe vai ficar contente... essa romântica.

Margarida foi-se embora, livre da sua angústia, mas descontente. Na verdade, o pai carecia de ajuda: aquele corpo magro, aquela cara enrugada E porque se queixava ele sempre da mulher Romântica... A mama nunca lia romances e cumpria admiràvelmente os seus deveres de dona de casa. O que havia, pois, entre eles

Foi à procura da mãe e encontrou-a só, no quarto. Encostada à janela - o seu lugar preferido- Susana voltou para a jovem um rosto singularmente iluminado por uma chama interior. A Rainha-Margarida ficou tão impressionada que nem ousou falar antes de ouvir o som da voz materna, para saber se era uma voz tranqüila ou perturbada. A mama estaria a chorar? Não, a voz veio doce, lenta, bela.

- Estava à tua espera. Então, minha querida, como se passou tudo?

- Perfeitamente bem. O papá foi muito gentil. Desta vez creio que me compreendeu. Já estou livre disto! Devia estar doida de alegria. Mas, vê lá o disparate! Sinto-me mal. Porque será, mama

- Naturalmente porque tomaste a primeira decisão importante da tua vida. Depois, pensa na verdadeira decepção de teu pai, no seu esgotamento físico.

A rapariga aproximou-se da mãe.

- Mama, acreditas na felicidade, tu Responde, mas não como se responde a uma garota, para nos livrarmos das suas perguntas maçadoras; sim como uma mulher que fala a outra mulher.

Susana fechou os olhos, para concentrar o pensamento. Ao abri-los, não olhou para a filha, mas para a paisagem que se avistava lá em baixo.

- Acredito. Mas não na felicidade feita. Depende menos dos acontecimentos e das pessoas do que nós mesmos. É preciso fazer-se uma "alma de felicidade", minha querida.

- E de que maneira?

- Não sei ainda - confessou ela. - Ando à procura. Procuro às apalpadelas, mas apaixonadamente. Deves lembrar-te da promessa do Evangelho: "Procurai e achareis". Ora eu espero achar, já que tanto tenho procurado.

- E eu, mama, terei uma "alma de felicidade"?

- Para quê falar do futuro? Para ti a vida está já encetada. Portanto, começa desde agora a trabalhar em ti mesma para... (ela procurava as palavras) para estares pronta, compreendes quando a felicidade, vinda de fora, se apresentar.

Contra sua vontade, Susana pensava: "A felicidade ou a dor". Tudo era incerteza... Mas não lho disse. Era tão jovem, tão esbelta, tão formosa, aquela filha! Porque evocar possibilidades infelizes ante uma vida que principiava com aquela centelha

A porta, porém, entreabriu-se.

- Pode-se entrar?

E Rosa Teresa apareceu. Também ela perguntou

- Como se passou a coisa?

- Muito bem. Já não tornaremos a vê-lo.

- Não houve drama, não

- Não. O papá estava extraordinariamente calmo.

Em suma, o Rigaud, que ele estimava como médico, não lhe agradava como genro. Aquele rapaz metido na família? Não, é claro.

- Que alívio! A vida é bela. Tra-lá-lá! E Rosa Teresa pôs-se a dançar.

- Basta! - gritou a irmã. -És uma estúpida. Tudo isto não tem graça nenhuma.

A dança parou logo.

- Estão ambas com uma cara! Decididamente renuncio a compreender as pessoas desta casa: levam tudo para o trágico.

- E tu, então, levas tudo à ligeira. Começo a crer que tinhas feito bem em casar com Rigaud.

- Isso é que não! Quero um marido que seja um rapaz bonito.

- É secundário - disse Susana.

- Bem podes falar disso, mama. Casaste com um homem admirável. Distinto, traços clássicos... Repito, quero casar com um que seja bem parecido.

- E que não leve as coisas para o trágico, não é?

- Evidentemente.

E vendo-se ao espelho

- Não gosto deste penteado. Na próxima vez em que for a Rennes, modifico isto tudo.

- Rosa Teresa, tu nem sequer te preocupas em saber se teu pai ficou contrariado, se está cansado... -censurou a mãe.

Corou, porque tinha bom coração.

- É verdade, pobre papá! Uma grande decepção! Mas ele há-de encontrar alguém melhor.

E acrescentou, como Corentina:

- Que pena o Miguel Abran ir estabelecer-se em África! Ele é que convinha.

- Como sabes tu? Nós já não o conhecemos. Há dez anos que nunca mais o vimos: o colégio, o serviço militar, a faculdade, África. Em dez anos, um rapaz muda muito.

- Ele era gentil, quando brincávamos com ele no "Fetal". Deve continuar a sê-lo. Não é bonito, decerto; os Abran são feios. A parte Joelle.

- Feios Eles são altos, bem feitos, de fisionomias expressivas. Só queria saber se ele ainda é louro ou se pertence aos Abran de cabelos escuros.

- Havemos de sabê-lo em breve. Vem passear comigo, Rainha-Margarida. Está um tempo maravilhoso. Vamos apanhar ramos de espinheiro para encher a casa de flores.

- Não, espinheiro não. É branco. É sinal de noivado. Antes ameixoeira brava, que é duma cor-de-rosa tão bonita. Tu não vens, mama

Lá foram, de braço dado, muito amigas, com os sapatos a marcarem o mesmo ritmo na estrada. Mas nada diziam uma à outra. Margarida pensava com força, com rapidez. O futuro? Desejava-o e temia-o, ao mesmo tempo.

- Quem soubesse! -suspirou ela.

- O quê - perguntou a irmã. - Quem soubesse, o quê?

- Nada - respondeu ela.

E a palavra caiu, aquele negativo, em que se mesclavam tantas coisas. Ao voltarem, vinham com os braços carregados de longos ramos floridos.

 

FINALMENTE, o trepidar do comboio pelo vale! Em casa dos Abran todos estavam à escuta. Miguel tinha escrito, ao chegar a França: "Não vá ninguém esperar-me à estação, para a felicidade não se dispersar pelo caminho. Quero gozar a felicidade toda em casa, duma vez só. "

Um original, Miguel! Que pena! É tão divertido, ir à estação. Enfim, reboaram gritos:

- Já o vi! Lá vem ele!

As quatro irmãs e os dois irmãos pequenos precipitaram-se para a escada. As raparigas tinham achado engraçado vestirem-se de maneira parecida. Ele seria capaz de as distinguir umas das outras?... Em três anos, muda-se muito. Ivone, Joelle e Maria Ângela eram já umas raparigas.

Cá de longe, viam-no a avançar, muito alto, com as malas na mão. Por seu turno, a Senhora Abran e o avô saíram também de casa.

- Põe-te à frente, mama-disse Ivone. - Tu é que deves ser a primeira a ser abraçada.

Chegando ao pinheiro grande, Miguel largou as malas e deitou a correr. Galgou as escadas, levantou a mãe no ar, abraçou-a como se quisesse sufocá-la. Ela dava gritinhos de felicidade. Tanta falta que lhe fizera aquele filho e tanto que ela se inquietara por ele!

Por fim pô-la no chão e recuou para vê-la melhor:

- Tu rejuvenesceste, mama!

Não era bem verdade. Achava-a mais curvada e mais enrugada. Só os olhos eram moços, fulgurantes de amor. A mama, porém, endireitou-se, contente. E ele ficou satisfeito.

- E o avô? Sempre rijo, hem

- Crivado de reumatismo, meu rapaz. Ora cá te temos outra vez! É a valer?

Ele não respondeu. Solicitado por todos os lados pelas raparigas, ele nem sabia para quem havia de virar-se.

- Primeiro eu, dá-me um abraço!

- Não, eu primeiro!

- Quem sou eu? Adivinha!

- Vocês, então, querem fazer-me rabiar e troçar dos meus erros de diagnóstico? Não estou assim tão parvo! Tenham paciência, que eu não quero abraçá-las às cegas, sem chamar cada uma pelo seu nome... Nariz comprido, ar grave, cabelos repuxados: Ivone. Cara rosada, cabeleira de ouro: Joelle. Faces redondas e vermelhas como maçãs, olhos azuis, cheios de espanto: Maria Ângela. Carinha de macaco, nariz arrebitado, cabelos em desalinho: Aliette. E aqui está o João Maria e o Gildas.

- Bravo! Achas as tuas irmãs muito lindas, não é verdade

- Mas que descaramento! Tenho os olhos habituados às carapinhas negras das pretas e mal suporto o brilho das cabeleiras da Joelle, da Maria Ângela e dos dois pequenos.

- Mas com certeza que somos muito mais bonitos que os teus pretinhos - disse Gildas.

- Olha que os há bem interessantes, meu velho.

- Está visto - suspirou João Maria -, só gosta dos negros.

- Se calhar deixou lá o coração... - aventou Joelle. -Vais ter netos cor de chocolate, mama.

- Todos vocês só dizem tolices - declarou Joana Abran. - Miguel, tu deves ter fome, depois de uma noite de comboio. E ontem à noite, onde é que jantaste? Tens ali o teu pequeno almoço.

Quando chegou em frente da mesa de jantar, ele teve um sorriso de garoto feliz.

- A minha chávena azul! A minha antiga chávena! Não ma quebraram. Foram muito gentis, obrigado.

- Agradece antes à mama. Ela é que a guardou no alto de um armário, para ninguém servir-se dela.

- E este rico café com leite, Leite da quinta, não é? E esta manteiga...

Naquele momento a porta do relógio abriu-se para deixar sair um cuco, a anunciar as horas. Sempre em movimento, as feições de Miguel contraíram-se.

- O cuco. Sinto-me na infância. Isto de ouvir o cuco do "Fetal" deixa-me estonteado. E digam-me, o cuco verdadeiro já voltou?

"Sempre o mesmo" - pensou a mãe, mas sem ceder ao enternecimento.

Não era dada a ternuras. Pelo contrário, repreendeu-o como se ele fosse criança:

Despacha-te com o almoço, em vez de estares para aí a sonhar! Daqui a pouco o leite cria peles e tu detestas isso.

- Tens razão, já me tinha esquecido... Mas lá, esqueci-me de tantas coisas...

As quatro irmãs contemplavam-no com uma amizade jubilosa. João Maria, de pé, no vão da janela, contemplava-o. Gildas, empoleirado numa mesa, contemplava-o também. O avô, enterrado no seu grande cadeirão, olhava para ele. E nas suas idas e vindas a mãe não deixava de olhá-lo. Ele sentia o fogo de todos aqueles olhos ardentes, que examinavam o viajante.

- Tenho vergonha de estar a comer sozinho - disse ele.

João Maria, então, estendeu a mão para uma fatia de pão com doce.

- Por caridade fraternal, compreendes, não é, meu velho?

- Tu estás sempre esfomeado. O Gildas, então, é ao contrário; ainda se faz rogado?

- Oh! ele é um maçador à mesa. Só gosta de bolos.

- Por isso é que eu o vejo tão magro como um rato pelado... Mas dêem-me novidades cá de casa, da terra, de toda a gente, de tudo.

- Tu é que devias falar, contar as tuas viagens.

- Mais tarde, meus filhos. Estou fatigado e tenho vontade de me esquecer de África. Estejam descansados, que, quando eu começar a falar, nunca mais acabo. E tenho muitas fotografias. Mas hoje sou eu a ouvir. Quem toma a palavra? Tu, Joelle, advogada e jornalista em perspectiva.

Ela ergueu-se, contente.

- com todo o gosto. Aqui todos são felizes, não há nada a contar. A Ivone, de nariz comprido e grave, está a preparar-se para ser assistente social e não fala senão disso e só isso é que lhe interessa.

- Não é verdade. No tênis sou eu a mais forte de vocês todos.

- Maria Ângela, aluna brilhante dos cursos domésticos das irmãzinhas, ocupa-se da alimentação da família. Isto porque é bom, aquilo porque é detestável. Tudo depende da disposição de "Sua Excelência".

- E que difíceis de contentar que eles são! Uns depenicam, outros devoram! Felizmente a Ivone, a Joelle, o João Maria e a Aliette estão em Rennes a maior parte do tempo. A mama, o avô, Gildas e eu, cá nos arranjamos. Mas com os outros, nunca se chega ao fim.

- A Aliette - reatou Joelle - é o desespero do internato. As suas notas de trabalho são espantosas, as de disciplina uma verdadeira vergonha. É um demônio.

- A irmã Superiora disse no outro dia à mama, a julgar que eu não a ouvia: "São umas naturezas privilegiadas".

- O João Maria, esse não aprende nada no colégio.

E o Gildas só quer o mimo da mama. Mal o contrariam, põe-se logo a choramingar.

- Tu esqueces-te é de falar do seu estado de saúde - observou Ivone. - Pobre miúdo! tossiu todo o Inverno. Um especialista de crianças disse que o clima bretão não lhe convém nada e que precisava um ano de montanha.

Miguel lembrou-se de que o pai falecera pouco depois do nascimento do pequeno Gildas e olhou para ele atentamente: bonito, mas magro, curvado, de uma cor transparente. Sobre aquela criança havia sempre uma ameaça.

- E de ti mesmo o que dizes, cachopa eloqüente?

- Eu, querido irmão, para ver-te mais depressa, renunciei a uma linda viagem, organizada por um grupo de estudantes. Estou a preparar-me para duas licenciaturas: direito e letras, escrevo nalguns jornais locais e exercito-me na reportagem. Quero fazer-me depressa. Depois vou para a África ter contigo... Do Hervé há excelentes notícias. Está navegando no mar das Antilhas. Um azar, ter dois irmãos cavaleiros de aventuras. Eu acho que tu devias deixar a África.

- Não contes com isso. E a mama? E o avô?

- A mama - disse João Maria - anda aí sempre pela casa como um ratinho, e cose, faz "tricot", limpa e brune e entende-se que nunca está cansada. O avô lê o jornal, relê Cícero e Bossuet, entretém-se com as palavras cruzadas, fuma o seu cachimbo e dá sábios conselhos à vizinhança - que nem sempre os segue. E nós também não, confesso-o.

Miguel, tendo bebido até à última gota a sua chávena azul, suspirou.

- Como isto é bom! A propósito de vizinhança, que é feito dos nossos antigos amigos? Os Lê Fort, por exemplo? Como vão as Lê Fort, com nomes de flores

- Aborrecem-se. O pai não quis que elas continuassem os estudos nem que tivessem uma profissão. E contudo, a Margarida e a Maria Violeta são muito inteligentes. A Rosa Teresa é menos. Actualmente há lá um caso de sensação, porque Margarida - a Rainha-Margarida, como todos lhe chamam - se recusou a casar com um rupaz que agradava ao doutor como assistente e sucessor.

- Conheço o contrato: toma-se a clientela e mais a filha. Era bom para mim! Eu hei-de casar com quem me agradar e hei-de estabelecer-me onde eu quiser, hei-de fazer o que me apetecer num país novo, livre dos preconceitos e da rotina.

- Miguel, Miguel! - disse o avô. - Não te gabes tanto! Quem pode ter a certeza de fazer o que quiser?

- Eu Eu, sim Sou jovem, dinâmico e estou resolvido a abrir caminho com a mulher que eu escolher livremente, não por ela ter como pai um senhor mais ou menos importante, mas desde que aceite partir e partilhar comigo os riscos e os benefícios da minha vida de colonial. E agora, Gildas, meu pretinho branco, queres mostrar-me a divisão onde vou dormir? you ficar só ou na tua companhia e na do João Maria Passado três anos, o meu lugar já deve estar ocupado.

- Pois é claro que vais ficar sozinho-disse Joana vivamente. - Preparei-te o quarto da torre.

- Oh! dali vejo toda a paisagem Mas creio que nunca mais lá dormiu ninguém depois...

- Depois da morte do vosso pai - proferiu ela com serenidade. - Mas esse quarto tem de servir, e serve muito bem para os filhos.

- Obrigado, mama. Anda, Gigi, vamos lá acima à torre. Não pegues nas malas. Ainda tens os braços pequenos de mais. O João ajuda-me. Foi uma sorte ter chegado nas férias do Pentecostes e encontrá-los todos em casa!

Chegados lá acima, Miguel mandou embora os irmãos, que se foram decepcionados e vexados por não se abrirem logo as malas, que deviam encerrar tantas coisas curiosas nos seus flancos pintalgados de etiquetas com nomes exóticos. Na sua alma de rapaz, Miguel experimentava uma emoção singular. O espelho apresentava-lhe a imagem dum homem feito, que não era nada do Miguel que partira do "Fetal" três anos antes. É certo que estava mais trigueiro, mas o olhar também já não era o mesmo. O ar que vinha pela janela aberta não tinha o mesmo sabor que lá em África. E a paisagem desdobrava-se em tonalidades tão finas! Céu bretão, um pouco velado, e vastas terras cultivadas, onde, sobre o verde loução, se erguia o ramalhete das macieiras contorcidas pelo vento... Como as irmãs estavam lindas A própria surpresa não o deixara dizer a nenhuma: "Mas que bonita que te fizeste!" É que cada uma das três mais velhas ostentava já seus encantos de mulher. Quanto à mama, com o seu pequeno carrapito, em que se mesclavam todos os tons do cinzento, as costas já abauladas, e cara sem frescura, onde o único sinal de mocidade que ficara era o brilho azul do olhar, parecia ainda mais carregada de cuidados do que antes. E o avô? Era certo que havia minguado e que lhe faltavam dentes. Era engraçado tornar a ver as pessoas depois de uns anos de separação. Elas já não são bem as mesmas, com certeza, nem por fora, nem por dentro.

". Mas eu, ainda serei bem o mesmo Não... menos crédulo, mais inconstante, mais interesseiro. O contacto com os negros, o clima ardente, o "deixa-te ir" de certos coloniais, o rompimento com todos os hábitos: tudo isto modifica a pouco e pouco a maneira de ver e de sentir. Creio que já não era capaz de tornar a aclimatar-me à França. De resto, não há precisão disso. vou descansar em nossa casa - que bem que sabe! - e examinar as possibilidades daquele casamento de que o administrador colonial me falou, - uma prima dele, nova e bonita, que não tem medo de partir. É um caso sério, este do casamento... E, no entanto, eu não quero voltar para lá sozinho... "

Foi andando em volta do quarto. Por toda a parte havia recordações de seu pai. E a fotografia dele. Olhou demoradamente para aquela imagem - imagem de um homem de trabalho, bem desempenado.

"A Ivone é parecida com ele. Uma rapariga forte. Talvez a melhor de nós todos. "

No fundo, como a casa era simpática... Desde a entrada da porta, aquele olor que logo despertara o passado. Olor de quê? Maçãs e alfazema. E aqui um pobre resto persistente de cheiro a tabaco. O pai fumava muito. Abriu as gavetas. "Se eu desembrulhasse as minhas coisas Depois, bocejou. Aquela noite de comboio... A cama estava apetitosa... Decididamente ia fazer uma soneca. Contanto que os pequenos não desatassem a fazer um barulho infernal! Mas a mama, que pensava em tudo, bem sabia fazê-los calar. E assim Miguel, lá no quarto alto, onde flutuava a doce recordação do pai, se deixou adormecer.

Cá em baixo, todos se afanavam em dar àquele dia um caracter de festa. As raparigas preparavam os manjares favoritos do viajante. Os rapazes enfeitavam a casa de flores. O avô foi pôr a gravata mais bonita. A mãe, um pouco estafada, andava por todos os lados. Ah! como faz bem estar contente! As preocupações pesam em cheio nos ombros duma pobre viúva. Os filhos, até aqui, eram ainda muito novos para ajudá-la a suportá-las. E o avô, tão forte e tão sensato, tornara-se velho. Mas nunca falava dessas preocupações senão a Deus, com a fé sólida e simples da sua alma de bretã. E depois, ao domingo, na campa do marido, a quem dizia: "Aconselha-me. Ajuda-nos".

Porque, ficar só, com oito filhos, era excessivo para uma mulher. Os dois filhos mais velhos não tinham querido continuar a exploração das terras: a medicina e a marinha eram vocações imperiosas, que o pai previa e admitia. E João Maria, teria o gosto da terra Por enquanto levantava-se contra tudo o que lhe exigiam e parecia endurecer por gosto os seus dons intelectuais. E Gildas, tão frágil?... Um genro agricultor, sim, era preciso um. Mas não se podia contar senão com Maria Ângela para um casamento desse gênero. Nem Ivone, nem Joelle, decerto, iam aceitar viver no campo.

Agora, porém, era acabar com todas as preocupações! Agora, era não ter dores decabeça, nem sentir as costas a curvarem-se nem o espírito a atormentar-se. Miguel estava ali. Que dia tão desejado? Joana lembrou-se do filho pródigo do Evangelho, a quem o pai, embora ele tivesse pecado, cumulou (de homenagens. Miguel, porém, em nada pecara-a não ser naquilo mesmo em que cada um de nós peca todos os dias - Miguel conservara o seu olhar puro.

Dispondo os pratos mais bonitos da casa sobre a pesada toalha adamascada, ela pensava no marido, esse homem tão amado, que lhe dissera antes de morrer:

- Joana, entrego-tos. Sei o que tu vales.

Hás-de levar tudo a bom termo, os pequenos e as coisas.

"Se tu cá estivesses para veres o Miguel voltar... - murmurou ela.

E depois foi vestir o vestido de foulard preto, com pintas brancas. O seu vestido dos domingos, com um "papo" de renda. Um desses vestidos que nunca estão à moda, mas que também nunca estão fora dela e que contentam as almas simples.

 

POR mais que Miguel dissesse aos outros e a si próprio: "Eu sou um colonial", continuava bem um rapaz da sua terra.

Quantas vezes, na África deslumbradora e escaldante, ele se comportara como na sua Bretanha de céu pálido e caminhos umbrosos sob castanheiros

Uma paisagem, sobretudo, lhe passava pelos olhos nessas pesadas noites de insónia, em que zumbiam hordas desesperadoras de mosquitos ávidos de sangue: certo outeiro com estevas róseas, dominado por uma alta cruz de granito, de onde se descobriam longes de cambiantes azuladas por cima do rio. Porque via ele aquele sítio e não outro Não faltavam eles em volta do "Fetal". Ali, porém, ele sentira outrora os primeiros impulsos da sua adolescência.

Sim, estava-se no fim das férias grandes. Era um dia de Setembro, em que o vento do equinócio vergava os juncos duros e emaranhava os cabelos dos dois irmãos: Miguel e Hervé, um pouco mais novo do que ele. Tinham subido o monte a correr, para se divertirem até se estafarem e depois, chegados lá acima, com os joelhos arranhados pelas silvas, tinham dito coisas várias, enquanto cravavam os dentes moços em maçãs ainda verdes.

- Daqui, meu velho - declarara Hervé limpando os joelhos com um lenço todo sujo - vê-se até bem longe. Isto dá uma vontade furiosa de abalar. vou ser marinheiro.

- É bonito. Eu é que não posso, por causa dos olhos. E depois, detesto as matemáticas.

- Tu Riscado de antemão. Tu vais ser agricultor, como o papá.

- Nunca! Os campos e os animais enfastiam-me. E depois, eu também tenho vontade de viajar. Ou julgas que és só tu... Só o que me agrada é ser médico.

- Uma idéia absurda. O que me aborrecia, aturar doentes! Mas se isso te agradasse, fazias-te médico das colônias. Nunca pensaste nisso, pateta

- Sim, já pensei. Mas julgas que o Pai e a Mãe queriam

- Mas os nossos pais não são "botas-deelástico". Uma vez ouvi o papá dizer que nos deixaria escolher livremente a nossa carreira. As pequenas não têm mais remédio que é casar com sujeitos que saiam duma escola agrícola, se o João Maria for tão vagabundo como nós... Eia, mas que cara! Aposto que não és capaz de te despegares daqui.

Miguel, vexado, atirou-lhe com uma maçã. Bateram-se um bocado, mas depois, tornados novamente amigos, conversaram. Falaram muito tempo, francamente, como é costume entre rapazes, quando ninguém os ouve nem vem meter palavra de ponderação entre a corrente forte das expressões ambiciosas e ingênuas, magnlficamente juvenis. Disseram enormes palermices, tolices profundas: eram ainda crianças, e já homens.

Hervé, mais resoluto, acabou por dicidir o mais velho "a fazer qualquer coisa que se visse" ou que, pelo menos, assim lhe parecia. Veio o entardecer, trazendo consigo os dourados e as púrpuras de um poente de Outono.

- Vai fazer-se tarde para jantar. Vamos para casa, depressa.

Precipitaram-se pela colina abaixo atirando gritos selvagens, para se refazerem da emoção de uma conversa tão grave. Chegaram à mesa depois da sopa e, segundo a lei do "Fetal", ficaram sem sobremesa. Isso, porém, pouco lhes importou tinham comido tantas maçãs: E tinham escolhido o seu caminho. Para eles, estavam de posse de um segredo magnífico.

Mais tarde tiveram de revelá-lo: era necessário para orientar os seus estudos. O pai consentiu que os seus filhos mais velhos abandonassem a terra, porque o seu sentimento paternal era muito elevado. Resolveu, pois, que Miguel fosse para a Faculdade de Medicina e que Hervé fizesse os preparatórios de Marinha. Não previa, porém, que a sua vida seria tão breve. Os seus pulmões já estavam combalidos. Um resfriamento durante a ceifa fez despertar o mal. E pouco depois do nascimento de Gildas falecia, pedindo à mulher que tivesse confiança e respeitasse a vocação dos filhos.

Foi assim que Hervé se fez oficial de marinha e Miguel partiu para o Congo como médico. Três duros anos se tinham passado, mais duros do que ele esperava; todavia contava voltar para lá, depois de passar uma temporada com a família: a França parecia-lhe estreita, fatigada. Queria, porém, voltar casado. Precisava de uma esposa e de filhos para a sua vida se desenrolar conforme as suas ambições e os seus desejos.

Esperanças. Sonhos. Entretanto, ele não esquecia o outeiro. E, enquanto o navio o reconduzia à Europa, projectava ir lá em peregrinação, para reencontrar a sua alma de criança. E a de Hervé também. E para tornar a viver essa tarde de Setembro, que tanto representara na continuação dos anos.

Foi esse o seu primeiro passeio. Porém, foi absolutamente só, a despeito das súplicas dos três pequenos; manteve-se inflexível. Então, João Maria e Aliette declararam que ele não era gentil e Gildas chorou, despeitado.

"Tanto pior, logo os consolarei com bombons africanos. "

E saiu. Recordava a paisagem no Outono: folhas de ouro e céu afogueado. Agora era a Primavera do Pentecostes, radiosamente florida. Que erva de um verde tão fresco! E como os pássaros da França trilavam bem! Subiu pelo caminho de outrora, por entre fetos. Como outrora sentou-se no soco da cruz. Olhou como outrora. Pensou em pessoas, em coisas... "Hervé, o papá... A mulher que há-de ser minha esposa... Os meus "miúdos"... A nossa casa... Imaginava-a muito clarinha e bonita, com criados negros, indolentes e dóceis. Uma vida livre e vasta. Teria, porém, a doçura da vida nestas paragens

"Tolice, o amor da pátria rói-te o coração. O Hervé disse-me naquele dia, com o seu sorriso ao canto da boca: "Sempre quero ver isso, tu não és capaz de te despegar-". "Pois sim, parvo! Despeguei-me, tal tal como tu. E todavia... continuo a sentir-me aqui pegado. Se ficar muito tempo no "Fetal", nunca mais tenho coragem de partir. "

Satisfeito com a sua peregrinação, desceu a colina. Não da mesma maneira como então fizera, claro. Oh! que louca carreira aquela dos dois rapazes!

"Como a gente muda! Eis-me a caminho de ine converter em pai de família. Tenho de ir a Paris, ver a tal rapariga. Isabel. Um lindo nome... "

Quando ele tornou a entrar, Aliette e João Maria recomeçaram a segui-lo por todos os lados e a enchê-lo de perguntas.

- Mas que aborrecidos que vocês são! exclamou ele, no fundo encantado.

- Se calhar gostavas mais que amuássemos, como o Gildas - Vexaste-o terrivelmente, por recusares-lhe a companhia.

- Ah! o senhor é assim susceptível

- Sobretudo é muito sensível -interveio Joana, tomando a defesa do seu benjamimMuito sensível, mesmo. Por causa do seu estado de saúde: tu, como médico, deves compreendê-lo. E os outros transtornam-no.

- Minha pobre mama, entre irmãos e irmãs há sempre questões. Eu e o Hervé demos pontapés e socos um no outro! Estou a ver que estragas o Gildas.

- Não gosto de o ver chorar.

- Não te reconheço, mama! Tu, que nos criastes com tanta firmeza e sensatez.

Ela afastou-se.

- É pequeno. É doente. Não tem pai. Foi o último que me nasceu; não podes compreender.

Sim, Miguel compreendia. Ajudara bastantes mulheres negras a dar à luz e conhecia a força do amor maternal. Novamente assaltado por recordações de África, pôs-se a contar histórias de pretinhos. E Gildas, saindo do canto em que se metera, persuadido de que era o ser mais infeliz do mundo, aproximou-se daquele irmão que sabia contar tão bem, daquele irmão gentil e brusco ao mesmo tempo, daquele irmão que ia tornar a partir.

Olhos grandes e pensativos, erguidos para Miguel, olhos de menino da França. Dentro em pouco Miguel atraía a si o pequeno e Gildas instalava-se-lhe nos joelhos; estavam ambos contentes. E Joana estava contente também, por vê-los amigos, o seu filho mais velho e o mais novo de todos.

- Conta mais, conta mais! - dizia Gildas.

Mas Joelle entrou.

- Gostas de dançar

- Pois gosto. Fazes tenção de dar um baile em minha honra?

- Em casa dos Goulven, casa-se amanhã uma filha. Estamos todos convidados para a boda: missa, jantar e baile.

- Os Goulven? Os Goulven?...

- Não te lembras? Aqueles que têm a herdade ao pé da ribeira e da azenha. São quatro filhos e duas filhas. É a mais velha, a Maria Josefa, que se casa. Vem à boda. Havemos de divertir-nos.

- Não conheço ninguém.

- Vais ter um êxito louco. Em todo o caso, hás-de conhecer as Lê Fort.

- São bonitas

- A Margarida é mesmo formosa: alta, distinta. É desportista; tênis, natação, desportos náuticos. Rosa Teresa, fresca e gentil, apaixonada pelos vestidos. Maria Violeta tem ainda o ar de uma menina, mas acho que' lhe fica bem. Tem uns olhos encantadores. Nunca se vê porque é muito tímida, arisca, mesmo. As mais velhas é que são ladinas e mexidas e mais seriam se os pais lhes dessem mais liberdade. Um pai nada indulgente.

- Antigamente, em casa dos Lê Fort comiam-se uns coscorões famosos. O doutor, com a sua distinção, contribuiu, talvez, para eu ter vontade de ser médico. E achava a senhora Lê Fort muito bonita. Gostava que a mama fosse tão fina como ela: Mas as "finuras" e tu, mamazinha, puseram-se de mal - acrescentou ele, rindo.

O avô interveio.

- Não brinques com a tua mãe. Poucas mulheres há que se comparem com ela.

- Estamos de acordo, avô. Mas...

- Qual mas! O marido amava-a, tal como ela é, assim simples, e os filhos também devem achá-la perfeita. Só desejo que encontres uma noiva que se pareça com ela. Escolhe bem. Não quero que o nome de Abran passe para uma boneca.

- O avô não tem confiança nenhuma no meu bom-senso...

O avô tirou os óculos e olhou para ele.

- Ainda não pude medir-to.

Sob aquele olhar de um azul de aço, Miguel sentiu-se intimidado como o escolar de outrora.

A prima do administrador colonial cairia na boa graça deste homem exigente?

"O que vale é que havemos de viver longe deles! - pensou. - Enfim, o Hervé é que tinha razão: mais vale a gente despegar-se, "

No dia seguinte, Joana, do alto da escada, via os seus quatro filhos mais velhos partirem para o casamento em casa dos Goulven. No andamento rápido das bicicletas, os vestidos claros das raparigas e o fato branco de Miguel, afastaram-se por entre os campos.

"Vai estar um lindo dia. E eles vão divertir-se. Se uma das pequenas encontrasse um rapaz que lhe agradasse! Os vestidos ficam-lhes bem. Elas são engraçadas. Queria casar as filhas e que elas tivessem maridos tão bons como o meu. "

As Lê Fort foram de carro, levadas pelo pai. Quando as viram, as Abran exclamaram: "Vêm muito chiques!" - mas sem inveja. Sabiam bem que a habilidade de Maria Ângela, que fazia os vestidos de todas, não se igualava ao talento da modista de Rennes. A Rainha-Margarida e Rosa Teresa ficaram contentes com o cumprimento: saíam pouco e os vestidos bonitos nunca tinham ocasião de serem notados. A mãe, por sua vez, ia tão bem como as filhas.

"Melhor, mesmo-pensava Miguel, habituado a apreciar a graça feminina. - A Sr. a Lê Fort tem não sei quê que falta às duas mais velhas. Quanto à mais novinha, que engraçada é! Mulher e criança, ao mesmo tempo, com uns vestidos que seriam ridículos noutra pessoa, mas que a ela a fazem parecer um retrato antigo. "

Durante a missa, perguntava a si próprio onde e quando se casaria também. E como seria a noiva. Aquela, se bem que gentil, era um pouco vermelha de mais: o gênero de Maria Ângela, em suma. Ia deixar o campo e rejubilava, parecia, por ir ser parisiense. Mais uma que queria "despegar-se"... Mas teria razão? Quanto ao noivo, parecia um definhado ao pé dos quatro belos jovens Goulven. E os Goulven, ficariam na região?

Um grande almoço, muito alegre, no campo. Por entre as raparigas, notavam-se as Lê Fort e as Abran. As Lê Fort, porém, afastavam-se mais. Maria Ângela, essa parecia plenamente no seu elemento. Uma verdadeira bretã. E toda a gente fazia a Miguel perguntas sobre a África.

"Afinal sou o alvo das atracções. Nunca devia ter vindo. É aborrecido. "

E, no entanto, que vontade ele tinha de dançar, de dançar em terra bretã, com moças da região! Meu Deus! que bonito, as macieiras em flor!

Os músicos principiaram. Quem havia de convidar primeiro? As Lê Fort, por ordem de idade. Margarida dançava muito bem. O tratamento por tu, da infância, veio com naturalidade.

- Lembras-te - disse-lhe ele - de quando fazíamos quadros vivos, no celeiro, nos dias de chuva Tu querias sempre ser a rainha, com o pretexto de que já te chamavam Rainha-Margarida!

Rosa Teresa dançava com menos perfeição, mas também com leveza. Disse-lhe igualmente:

- Lembras-te? Não te recordas daqueles desafios de "croquet" em que fazias trapaças com todo o descaramento

À Maria Violeta é que ele não podia dizer: "Lembras-te?" Era pequena de mais para tomar parte nas brincadeiras do grupo. E tímida de mais, também. Mesmo agora, ele ainda hesitava em convidá-la.

- Queres dançar, Maria Violeta? Ou preferes ser arisca, como antigamente

Ela corou.

- Gosto muito de dançar.

- Então, vamos.

Foi um espanto. Maria Violeta convertia-se noutra rapariga enquanto dançava. O seu corpo leve seguia a música com um sentido admirável do ritmo. O seu trajo antiquado e os seus longos caracóis, davam à sua silhueta um tipo inusitado e encantador. Olhavam muito para eles, porque Miguel também dançava muito bem e o seu fato branco de colonial fazia-o destacar de todos os rapazes, vestidos de escuro.

E Miguel, depois de ter dançado com Maria Violeta, achava pesadas todas as raparigas.

À noite, o jantar foi alegre e ruidoso em casa dos Abran. Miguel, que se divertira muito, fazia mil perguntas sobre as pessoas da terra. E para Joana, era um prazer ouvir os filhos rirem.

Também o Dr. Lê Fort fazia perguntas, sobretudo a respeito de Miguel.

- Está muito bem que se vá para a África

- disse ele. - Mas os franceses, tal como as populações negras, têm precisão de bons médicos. Além disso, esse rapaz agüentará o clima? O pai morreu novo. Para viver nas colônias é preciso uma vida bem regrada, sóbria e muito moderada. E ele será capaz de ser tão prudente?

- A mim deu-me a impressão de uma criança grande - disse'Susana. - Não é nada o gênero da irmã, a Ivone, tão sensata.

- Essa é digna de toda a estima - declarou o doutor, que a vira já trabalhar. - É uma rapariga séria, inteligente, que há-de triunfar no seu trabalho social.

"Cá para mim, a Ivone aborrece-me - pensou Rosa Teresa. - É perfeita de mais: Não tem a gentileza de Miguel. É um sucessor como o papá precisava. E o marido sonhado pela Margarida. Mas o estúpido quer tornar a ir-se embora. "

"Há-de partir outra vez - pensava também a Rainha-Margarida. - Que diferença entre Paulo Rigaud e ele! Eu tinha dito logo que sim. A vida é estúpida. "

Sentia-se triste até às lágrimas. Que desgraça, ser a filha mais velha, numas condições daquelas! Depois de Paulo Rigaud, o pai havia de levar outros "moços de valor". Por fim, teria de aceitar um.

Não e não! A sua mocidade bradava "não!"

À noite deixou-se ficar longo tempo à janela. O campo cheirava bem, Um luar intenso e pálido banhava o jardim. Lá em baixo, cantava um rouxinol. Sentia-se tão jovem, tão viçosa, pronta a amar! E havia de entregar o seu corpo, a sua alma, àquele a cujo respeito o pai dissesse:

"Aqui está o meu sucessor. E o teu marido, Margarida. Careço de ajuda. Decide-te. "

As irmãs dormiam já, cansadas de dançar. Susana via o marido a dormir. Ouvia-o dormir. Aquele homem, com o coração fatigado, viveria ainda muito tempo? Era seu marido, o pai de suas filhas. Ela teria amado quem soubesse amá-la...

 

MIGUEL fumava e ouvia rádio. Regalava-se metido na poltrona, aquela boa poltrona velha, acolhedora, cômoda.

- Estás sentado na poltrona do teu avô disse-lhe a mãe, que andava de um lado para o outro, sempre em actividade.

- Mas se ele não está cá, o que é que tem isso?

Ela não insistiu. Mas no "Fetal" respeitava-se tanto a velha poltrona, que pouco a pouco se moldara ao corpo do avô, que ela não gostava nada de ver Miguel instalar-se ali. Sobretudo um Miguel sem ter nada que fazer. A tal rádio, com as suas canções sentimentais, parecia-lhe que amolecia aquele rapaz de pernas compridas, estendido na grande cadeira estofada, coberta de um tecido já gasto.

- Tu podias ir regar as ervilhas e os morangueiros, para poupar trabalho ao avô - sugeriu ela. - com este tempo assim pesado, vai chegar fatigado.

- Mas onde é que ele foi, desde manhã

- Foi à quinta de Queven. Há uma questão por causa do telhado da granja. O teu avô, tão justo e tão ponderado, há-de levar tudo pelo melhor.

- É admirável, o avô! Naquela idade e conserva ainda tanta actividade de espírito.

- Bem o podes dizer! O que ele me tem ajudado na minha viuvez! Vocês devem-lhe muito. Sem os seus conselhos, como é que eu tinha explorado as propriedades e criado oito filhos Oito filhos...

Ela tinha parado, de mãos nas algibeiras do avental, para olhar esse passado duro. Miguel ergueu-se um pouco.

- Mama, tu diminuis-te. Tu sabes lindamente desenvencilhar-te de embaraços.

- Mas sozinha, não - repetiu ela. - Principalmente em questões de dinheiro. E então que os meus filhos mais velhos tudo fizeram para se meterem em aventuras! Que grandes doidos, o Hervé e tu! Não se está cá muito melhor?

Isto, porém, não era uma censura. E Miguel respondeu:

- Tu soubeste compreender-nos, mama! E isso não se esquece mais. Olha, um dia vais ver-me ao Congo.

- Bem gostaria - concordou ela. -Mas nem pensar nisso! As viagens são muito caras!

- Quando eu tiver feito fortuna, pago-te as passagens. Ou uma viagem de avião; é melhor. Tenho a certeza de que hás-de sentir-te muito bem de avião.

Ela riu-se.

- Isso é verdade, tenho aprendido a sentir-me bem em toda a parte. Mas quando eu chegar a acabar de educar os filhos - Gigi ainda só tem dez anos, vê lá tu! - já sou velha de mais para andar a correr mundo. Aqui nasci e aqui morrerei. Tenho um lugar no cemitério à minha espera.

- Sem nunca teres visto nada, minha pobre mama.

- E a Suíça? - protestou ela, de olhos brilhantes. - Foi lá que fizemos a nossa viagem de núpcias. Que belas recordações! Teu pai teimou em fazê-la, apesar de os pais repetirem: "Não é razoável, isso. Comprem antes coisas úteis, com esse dinheiro... Porque estás a rir-te

- Porque todas as gerações repetem o mesmo estribilho. Naturalmente também falarei assim aos meus filhos, se eles quiserem ir ao planeta Marte em viagem de núpcias.

- Mas teu pai não cedeu: "Se não fazemos já a viagem, nunca mais a faremos. Era bem verdade... Todo o tempo com filhos... Olha, aí soam os passos do teu avô. Sai da poltrona, preguiçoso!

- Sim, mama - respondeu ele, numa voz de rapazinho ajuizado.

- Impostor! - murmurou ela, deixando-se abraçar. - E pensar que é preciso ver-te partir outra vez...

O Sr. Abran entrou logo em seguida e deixou-se cair pesadamente na sua poltrona.

- Isso vai mal? - perguntou Miguel.

- É o doutor ou o neto que fala

- São os dois.

- Pois respondo: para um velho de setenta e cinco anos isto vai muito bem, doutor. E acrescento: isto vai assim, assim, Miguel. Aborrecimentos.

- Graves?

Miguel não gostava de aborrecimentos. Muito psicólogo, o Sr. Abran sabia-o.

- A tua vontade é que eu não tos conte, não é? Vai lá tomar o teu banho no rio, meu rapaz. Fico mais sossegado para conversar com tua mãe, que nunca fugiu dos aborrecimentos. Que idade tens tu, realmente

- Vinte e sete anos, avô.

- Já! com vinte e sete anos já teu pai tinha três filhos.

- Daqui a pouco hei-de tê-los também. Começo a ter um grande desejo de me casar.

- Lembra-te do que te disse: escolhe bem; não juntes uma segunda asneira à primeira.

- E a primeira qual foi?

- Foi ires-te embora - respondeu nitidamente o Sr. Abran. -Podias fazer a tua carreira em França e ajudar tua mãe, tu, o filho mais velho. Se eu morrer, ela fica para aí sozinha, com as filhas, que ainda não têm nada na vida e com os garotos. De resto, não se tratava de fazeres-te agricultor já que tu não gostas.

- Mas, ó avô, o pai nunca me disse para ficar.

- E a tua mãe também não, depois da morte do pai. Mas dentro de ti não houve nenhuma voz que to dissesse?

Miguel reflectiu um momento:

- Não, francamente. Só ouvi uma voz que me disse: "Parte. "

O velho perscrutou o rosto do jovem e viu que era sincero.

- Vai, vai tomar o teu banho. Havemos de tornar a falar disto. Diverte-te. Tens muito tempo de ter preocupações!

Enquanto descia em grandes passadas para a ribeira, Miguel pensava que era bem verdade: as preocupações vêm sempre. Antes de tudo, era preciso gozar a juventude, a força que sentia em si mesmo, a beleza do mundo... Oh! aquela frescura duma manhã da Bretanha, a graça leve dos fetos, aquelas rosinhas nas sebes, aquelas borboletas! Tudo, enfim! Quer nas dimensões, quer na cor, tudo aquilo contentava tão bem a alma de um moço francês!... Lá em África, tudo era desmedido, ardente... Não se tinha a alma tão alegre. É possível que, uma vez casado, esse vazio da alma desaparecesse... com uma mulher bonita e, jovial, cheia de vivacidade e com filhos, com muitos filhos. De toda a maneira tinha de "despegar-se dali", como dizia antigamente esse endurecido Hervé com desprezo, e isso custava-lhe um esforço enorme... Miguel não era como o irmão, que só via o fim das coisas e mais nada. Ele via tudo o mais.

Para dissipar o mal-estar que sentia - que estupidez de mal-estar! - pôs-se a cantar pelo caminho. Era uma canção negra. Mas não, aquilo não se quadrava nada com a Bretanha. Folheou as suas recordações. Aquela canção de Botrel, ficava bem... Começou com uma bela voz juvenil:

Quando nós dois éramos pequeninos, Meninos duma terra pequenina...

Aqui, atrapalhou-se. Já não sabia como havia de chegar ao fim da estrofe:

Da pontinha da unhita rosada, Do dedinho da tua mãozinha.

Então pôs-se a assobiar as notas. E depois recomeçou, tornando a procurar.

- Foi-se! - gritou ele.

Uma outra voz, porém, pegou na canção. Uma voz de mulher. E Margarida apareceu no seu vestido claro.

- Obrigado - disse Miguel. - Já estava irritado de procurar os versos do meio. Sabes a canção toda

- Pois sei. Eu não me esqueço das canções bretãs para aprender melodias negras.

- Então hás-de cantar-ma de fio a pavio!

- Pois sim. Onde é que vais? Vais tomar banho? Eu venho agora de lá... A água está maravilhosa.

- Que engraçado, se nadássemos juntos, como antigamente! O que nós zaragateávamos! Se voltasses para a água

- E porque não? Vai continuando o teu caminho, que eu já lá vou.

Ele fazia grandes crawls quando ela tornou a aparecer, alta e musculada, no maillot escuro. com os belos braços lançados para a frente, juntou-se a ele no meio do rio.

- Nadas muito bem! - disse ele com admiração. - Tens estilo. E és, também, uma boa raquete.

- Adoro todos os desportos. Ainda bem que os há!

- A vida, aqui neste buraco, não é grande coisa, pois não?

- Não. Sobretudo com um pai sempre taciturno. E severo, na questão dos prazeres. Mas quer que pratiquemos desportos. Do ponto de vista de saúde, compreendes? Por isso eu aproveito. Sinto-me tão presa...

- Quando te casares, logo te libertas dessa austeridade.

- Quando eu me casar? Falas bem, meu velho!

- Então que tem isso? Queres ficar solteira?

- Acho que é muito melhor do que casar, quer queira quer não, com o pretendente que meu pai arranjar para lhe tomar conta da clientela. Se tu visses o personagem desagradável com quem ele queria que eu casasse! Disse logo que não.

- Já ouvi falar nisso. Fez-se um drama, não?

- Evidentemente. Mas o próximo candidato, naturalmente, também não é melhor.

- Pobre rapariga!... Olha, possivelmente foste feita para viver em terras novas, como eu. Queres casar comigo? Abalávamos juntos.

Ele ria. Mas ela gritou-lhe:

- Não digas palermices!... Sabes muito bem que estou destinada a ser mulher do médico principal da região.

Separaram-se, nadando cada um em sentido contrário. Depois, tornaram a aproximar-se. E Miguel disse:

- A Rosa Teresa é que podia casar com o sucessor. Tem um feitio mais acomodatício do que tu.

- Sim, ela ri-se de tudo... Mas é muito nova e o papá quer que as coisas se decidam rápido. Ele acha que está muito doente. Além disso, declarou e jurou que não havia de casar a segunda filha antes da primeira, nem a terceira antes da segunda.

- Oh!... A Maria Violeta, por enquanto, é uma garota. Mas que idéias tão velhas, tudo isso! Como as pessoas, noutro tempo, eram tão acanhadinhas!

- Nem todas. Os teus pais, por exemplo, deixarem vocês fazerem o que queriam.

Miguel não respondeu; lembrava-se das palavras do avô. Deixou-se ficar à tona de água, de costas, abandonando-se à delícia daquela água verdinha e clara. A Rainha-Margarida saiu da água e gritou-lhe da margem:

- Continua a divertir-te! Eu tenho de voltar para casa. Hoje é dia de consulta. Além disso, lá em casa almoça-se à hora exacta.

Ele ergueu a cabeça e admirou-a, toda a escorrer água. Se a tal rapariga de que lhe tinham falado tivesse a figura desta... Por sua vez, gritou:

- Podia dar um giro de barco, um destes dias. A Rosa Teresa vinha também...

Ela sentiu um pequeno aperto no coração: porque havia ele de falar na Rosa Teresa?

Enquanto ia subindo para casa pensava com melancolia que aquele camarada havia de ir-se embora e casar lá longe. Porém, sacudindo com a mão os cabelos emaranhados, murmurou:

- De toda a maneira, não hei-de pôr-me a gostar dele! Seria a coisa mais idiota que pudesse imaginar-se...

E pegou na canção de Botre], começada por Miguel. Era, porém, uma canção de amor, com lindas recordações da infância. Por isso disse a si mesma: "Basta. Isto assim não te serve de nada".

Herdara do pai a decisão e o espírito de análise, e da mãe o coração ardente. Uma mistura bastante singular! De igual maneira fora buscar ao pai os traços nítidos do rosto, o queixo voluntarioso, a figura decidida, e à mãe o olhar, o belo corpo de membros alongados e o brilho da tez, em que sobressaía o fruto vermelho dos lábios. Haviam-se assim reunido na filha mais velha os caracteres das duas famílias: era bem da raça dos Lê Fort, mas era também da dos Quéré.

Rosa Teresa assemelhava-se à tia Clara na fisionomia e na figura, na alma, porém, não se parecia nada. A atitude extrema da tia, que se tornara carmelita, surpreendia-a tanto como a independência de Margarida, que ousara opor-se ao pai, como a sensibilidade de Maria Violeta, a menina dos cabelos compridos, dos olhos tristes e de coração inquieto.

Miguel, reanimado pelo banho, voltou lentamente para o "Fetal". O sol já ia alto, mas os castanheiros projectavam uma sombra verde e doce. Os seus olhos rejubilavam com aquela harmonia discreta e, no entanto, poderia esquecer-se o glorioso sol de África Não... Depois, a vida, ali, era demasiadamente trabalhosa para os médicos, e para as mulheres também. Lá, cada um era de si mesmo. Ninguém se matava a trabalhar.

Quando chegou a casa, Gildas anunciou-lhe:

- Há cartas para ti. Uma é do Congo. com um lindo selo. Dás-mo?

Sem o ouvir, Miguel abriu o envelope. Gildas insistia, como todas as crianças, que nunca se cansam de repetir o mesmo:

- Guardas-mo

- Basta, migalho! - acabou ele por gritar. O "migalho" deu-se por satisfeito e espalhou

os belindres, vigiando pelo canto do olho o irmão e o selo cobiçado. A carta parecia muito interessante... Caiu dela um cartãozinho. Gildas julgou que fazia bem em apanhá-lo. E um "oh!" de espanto lhe arredondou a boca: era a fotografia de uma rapariga.

- É a tua namorada? - inquiriu ele.

- És doidinho! - gritou Miguel. - Dá cá isso

E como Gildas, muito susceptível, não admitia que lhe chamassem doido, atirou a fotografia para o meio da casa. Isto valeu-lhe uma bofetada, que o levou a desfazer-se em pranto, e o pranto suscitou a intervenção do avô. Miguel pegou nas suas preciosas coisas e foi-se embora, clamando:

- Nunca se pode estar descansado! Subiu a escada a quatro e quatro e bateu com a porta do quarto. E o Sr. Abran explicou o incidente à nora, que fora atraída pelo barulho:

- Muito nervoso está este rapaz. com certeza que anda aqui história de amor.

- E isto inquieta-me - respondeu Joana. - O que estará para vir, meu Deus!

- Já lhe falou do que nos preocupa?

- Ainda não, pai. Estou à espera duma ocasião favorável. E faço mal em esperar. Ando a pedir a Deus a coragem necessária... e as palavras.

- Minha pobre Joana! - disse ele, olhando com compaixão para aquela nora, que ele amava.

Durante este tempo, Miguel lia e relia a carta que trazia o tal selo bonito. Trazia-lhe pormenores muito interessantes a respeito de Isabel, a prima do administrador colonial. Er além disso, a fotografia dela. Como era natural, atribuíam-lhe todas as qualidades: enérgica, inteligente, habituada à vida dos países quentes, mulher da sua casa e costumada ao trato do mundo. Ele examinou a fotografia minuciosamente. Fisionomia agradável, mas vulgar. Engraçada. Bem vestida... Tudo aquilo, porém, sem caracter. "As raparigas daqui são melhores", pensou ele. E a silhueta alta de Margarida, moldada na lã do maillot, pôs-se à frente da de Isabel. Um corpo admirável. Um belo rosto inteligente. Que pena!

Acendeu um cigarro e pôs-se a cismar até ouvir a campainha tocar para o almoço. Oh! aquele toque de campainha! Não podia ouvi-lo sem um enternecimento absurdo. Recordava-Lhe tantas coisas! Toda a infância. Tornava a ver-se garoto, a correr para a mesa com as mãos sujas. Pensou em Gildas e na disputa que eclodira entre os dois.

"É um "miúdo" frágil, hipersensível. E eu sou um bruto, por lhe ter batido. "

Foi direito ao irmãozito, que o via avançar de rosto contraído. E, gentilmente, com aquela gentileza que ele sabia pôr em todas as coisas, ergueu nos braços aquele corpo leve, muito leve, mesmo, para os dez anos:

- Meu velho, apresento-te as minhas humildes desculpas. Tornei-me selvagem, sabes? Olha, meu pequeno, perdoa ao selvagem grande. Dá-lhe o beijo da paz.

- com uma condição - disse o pequeno. - Dás-me o selo sem cortares o envelope.

- E a essa oferta ajunto mais meia dúzia de selos bonitos - respondeu o "selvagem". - E no primeiro dia em que chover, arranjamos a tua colecção juntos.

O beijo da paz selou o pacto. E o avô, que estava deveras encantado, pensou

"Seja como for, é um bom moço. É claro que não tem o valor do pai. Mas uma mulher inteligente pode fazer dele qualquer coisa. Sim, uma mulher inteligente... "

 

Que bem se está contigo, Senhor! -mur murou Joana Abran, com o rosto entre as mãos. - O que fazem as pessoas que não te têm? Como é que elas podem ver com clareza? Onde vão buscar a coragem Mais uma vez te confio tudo. E tos confio todos. "

Para cada um dos filhos tinha um cuidado qualquer: pela sua saúde, pelo seu trabalho ou pela sua alma. E os oito nomes, por ordem de idades, foram ditos baixinho pela mãe. No primeiro e no último, demorou-se mais: Miguel, numa encruzilhada, e Gildas, tão débil, preocupavam em extremo o seu pensamento e o seu coração.

"Todavia tenho de resolver-me a falar ao Miguel. É cobardia estar sempre a deixar para o dia seguinte. O tempo vai-se passando. Mas ele próprio é que devia falar-me. Então ele não imagina a despesa que representa a sua instalação no Congo? Uma criança, uma verdadeira criança... E, no entanto, é o mais velho. Ele é que devia substituir o pai. "

Ao ofertório da missa, fez tudo para que os seus cuidados fossem tomados e levados com a oferta. E com eles, os cuidados dos seus filhos, porque ela sabia bem que nenhum coração juvenil é verdadeiramente feliz e que seja qual for a forma dessa infelicidade - inquietação, revolta, devaneio romântico ou um grande amor, pesar ou desejo - rapazes ou raparigas, têm sempre dores. Miguel, Ivone e Maria Ângela que, como ela, tinham vindo àquela primeira missa dominical, pensariam em oferecer as suas A sua presença significava fervor religioso ou o simples desejo de "estarem tranqüilos" o resto da manhã? Não o sabia... Todos aqueles corações jovens se tinham fechado tão depressa! Já só podia ler no de Gildas.

Um raio de luz cor de violeta coou-se pelo belo vitral do nascente. Levantando a cabeça, viu-o com alegria. Na sua vida cheia de trabalhos e canseiras, a riqueza dos vitrais era um manancial extraordinário de poesia, de que ninguém suspeitava, nem sequer ela mesmo, essa alma simples.

Ao fundo da igreja, de pé, Miguel rezava também, à sua maneira. Naquela manhã, tinha uma coisa a pedir: "A mama que diga que sim. "

Por detrás do grande pilar de granito, Ivone falava a Deus das misérias que socorria toda a semana: "Isto não devia desgostar-me, Deus meu... No entanto, todas essas histórias tristes, essas maneiras de viver, esses vícios... Em nossa casa é tudo tão limpo. Nunca supus que houvesse tanto mal no mundo. Se o soubesse... mas não se pode voltar atrás. E mesmo que o tivesse sabido, de toda à maneira era isto mesmo que eu tinha escolhido. "

Maria Ângela, na mesma fila da mãe, visto que não era tão independente como os outros, não podia deixar de pensar nas refeições daquele domingo que principiava: "Nove pessoas à mesa. Tenho de comprar uma boa peça de carne. Em saindo da igreja, passo pelo talho. E o que vou eu arranjar para a sobremesa? O JoSo e a Aliette não comem a seu gosto lá no colégio; ao domingo querem coisas boas. "

O sol continuava a rodar e agora era um raio cor de fogo que se projectava em Joana Abran e na sua prece.

Ao sair, procuraram as Lê Fort. Porém, só Susana lá estava.

- As pequenas ainda estão a dormir-disse ela. - Eu é que não fechei os olhos toda a noite. Vieram chamar meu marido e só às cinco horas é que ele voltou. Fico tão sobressaltada quando ele não está... Depois, àquela hora, já nem valia a pena tornar a adormecer.

- As mulheres dos médicos são dignas de pena - disse Miguel. - Dentro em pouco também eu não deixo dormir a minha mulher.

- A geração nova é mais filosófica do que a minha, Miguel. Mesmo assim, desejo-te uma carreira feliz.

Maria Ângela estava já no talho.

- Queres o meu braço, mama? - ofereceu Miguel. - Pareces tão fatigada, esta manhã.

- O teu braço? Não, filho. Por enquanto não me considero uma ruína.

Endireitou-se e num passo rápido desceu para o "Fetal". Sentia-se cansada, mas não o confessava nunca, censurando o gosto que alguns dos filhos, principalmente Miguel e Joelle, tinham pelas poltronas, pelas cadeiras de lona e pelos cigarros, que fumavam a cismar. Maria Ângela, sim, era uma rapariga activa e corajosa. Ivone, também, mas não para a lida da casa. Quanto a João Maria e Aliette, eram bons para porem tudo em desordem e armarem brigas. Dois demônios!

O domingo era um dia magnífico para Joana, porque Ivone, Joelle, João Maria e Aliette vinham de Rennes para o passarem no "Fetal". Gostava de ver a casa cheia. Era, porém, um dia fatigante. "Tanta gente para dar de comer!... -como dizia Maria Ângela. "E tanto barulho" pensava o Sr. Abran sem o dizer.

Aliette, sobretudo, tinha a voz aguda, e as disputas entre ela e João, pareciam fazer parte, para os dois garotos, dos prazeres do domingo. Prazeres, porém, que desgostavam profundamente a sua amiga Maria Violeta, quando os presenciava, porque tinha uma aversão inata por todas as discórdias.

- É excitante! - assegurava-lhe Aliette, com os olhos brilhantes.

Mas Maria Violeta renunciava a compreender. - Fazem-te mal e tu fazes mal também. E gostas disso

- Ora! qual mal!... Então não é um prazer ver o adversário furioso?

- Tu não tens espírito desportivo - volvia-Lhe desdenhosamente João Maria. - Só gostas é dos teus alfarrábios!

Bem entendido, naquele domingo estalaram também as querelas entre os dois jovens personagens, cada um acusando o outro de lhe haver surripiado o pente ou as luvas. À hora marcada, porém, sob a guarda do avô, foram para a missa cantada, assim como Joelle e Gildas.

- Finalmente, um pouco de paz! - exclamou Miguel. - Ivone, vem comigo para o rio.

- Contanto que tu remes sempre. Doem-me as costas de trabalhar toda a semana e tu não tens nada que fazer.

- Perdão, minha querida, escrevi diversas cartas.

- Cartas de amor?

Ele encolheu os ombros e pôs-se a assobiar, enquanto desciam o caminho. Uma vez na barca, Ivone declarou:

- Não te julgues obrigado a falar. O silêncio é tão repousante... E em Rennes nunca tenho mais silêncio do que aqui.

Ele olhou-a: o seu rosto, de linhas regulares, estava muito pálido.

- Tens a cara de uma pessoa estafada. E porque é que puxas os cabelos para trás? Isso envelhece-te.

- Mas tu pensas que eu tenho tempo para perder no cabeleireiro? E depois, é muito maçador, as permanentes, as "raíses" e tudo o mais...

- Avarenta!

Ele pôs-se a remar. Ivone abandonou-se deliciosamente. Era tão pura, aquela paisagem!... Tinha tanta sede de pureza, como de silêncio.

Miguel, porém, não esteve muito tempo sem falar. Reatou a conversa pegando na mesma palavra com que a terminara:

- Em boa verdade creio que tu és um pouco avarenta. Nunca trazes vestidos bonitos, como a Joelle. Esse gênero austero afugenta os rapazes casadouros.

- Estás parvo! Julgas que ando a pensar no casamento?

- Mas então no que pensas tu

- No meu trabalho. Nas pessoas que visito. Nas questões sociais.

- Mas não há nada que te obrigue a essa austeridade nos dias de folga.

- Há, sim, meu velho: há o dinheiro.

- Mas tu ganhas.

- De acordo. Mas em casa há crianças.

- Todavia, Ivone, nós não somos pobres. com essas terras todas...

- Mas imaginas que o que elas rendem dá para se gastar sem conta nem medida? Os nossos estudos custaram caros e ainda não acabaram. Gildas passou dois Invernos na montanha. E naturalmente tem de voltar para lá outra vez... Tudo o que posso dizer-te é que ajudo a mama e que ela precisa bastante. Vocês, os rapazes, não dão por nada.

Ele sacudiu os ombros desdenhosamente e não falaram mais. Quando Miguel tentava recomeçar, aquela rapariga alta e morena limitava-se a responder sim ou não, ou não respondia mesmo nada. Por isso ele acabou por resignar-se ao silêncio. Mas o silêncio parecia-Lhe em desacordo com a alegria daquela manhã clara e achava a irmã enfadonha.

- Chega a barca aos nenúfares - disse Ivone, enfim. - Quero um.

Ele puxou um com o remo e ela segurou entre os dedos a corola acetinada, de pé comprido e vermelho.

- É parecido contigo - observou Miguel. É uma flor branca e fria como tu.

- Como sabes tu se eu estou fria ou se estou a arder?... Que descaramento!

Ela gostava dos nenúfares por causa da sua pureza, mas Miguel não compreenderia: Miguel pensava nas flores exóticas; esperava que Isabel fosse uma flor exótica.

Caminhando de novo pela estrada, disse à irmã:

- Queria falar com a mama. Trata de afastar os pequenos.

- Está descansado. Não se vêem o resto do dia. Querem aproveitar o tênis, antes de os grandes irem para lá. E quando os outros chegam, ficam a ver.

- Mas eu faço parte dos grandes e tenho tenção de ir jogar. As Lê Fort devem ir, não é verdade A Rainha-Margarida joga admiràvelmente bem.

- Ela faz tudo bem - respondeu Ivone. Essa rapariga é dotada de qualidades superiores. Foi uma pena o pai não a ter deixado prosseguir os estudos. Ela queria cursar medicina. Mas ele é um pai à moda antiga. Não vê nas filhas senão meninas para casar, como diziam antigamente.

- E para casar à vontade dele, não à delas.

- Isso é facto. Pensar que ele queria que a Margarida casasse com um rapaz tão pouco simpático!

- E o próximo candidato, naturalmente, também não será melhor. Espero que ela saiba resistir mais uma vez.

- Quem sabe? O pai está doente.

- Não está tão mal como isso! - replicou Miguel desdenhosamente. - À força de tratarem doentes, os médicos velhos acabam por imaginar que têm todas as doenças. Mas neste momento não se trata dele nem das filhas. Trata-se de encaminhar as coisas para eu ver a mama sozinha depois do almoço. Gigi, decerto, não vai ao tênis. Vai agarrar-se a ela.

- Não! vou jogar o loto com ele. Conta comigo.

O almoço foi alegre. com Joelle, Miguel estava sempre com veia e ambos puxavam pela língua um ao outro espirituosamente. com os olhos brilhantes de prazer, Aliette escutava a conversa dos mais velhos, invejando aqueles entes privilegiados, que haviam visto tantas coisas e sabiam tantas histórias. Depois, Joelle era bonita e Alliete desejava ardentemente tornar-se bonita. Mesmo, aquilo de lhe chamarem "saguim" acabava por ser vexatório!

Maria Ângela cuidava do serviço e reclamava a colaboração dos outros.

- Mexam-se também! Não têm vergonha de me deixarem fazer tudo sozinha? Tu, João, o que queres é comer. Ajuda-me.

Mas João Maria estava de mau humor. Todas as semanas trazia um boletim escolar deplorável e tinha de suportar as censuras do avô. Tal situação não era nada agradável! Tanto mais que o avô, mesmo sem se zangar, tinha a arte de encontrar palavras severas. Era impossível o garoto não pensar para si mesmo: "Que fãstio!"

Bem entendido, Aliette e ele escapuliram-se para o tênis. Joelle pegou num romance e foi para o jardim. Ivone instalou-se ao pé de Gildas, que tinha de deitar-se depois das refeições, para ver se engordava, sem o conseguir nunca.

- Vamos jogar o loto, Gigi? Mas se perderes não amues?

E a mãe subiu para o quarto, dizendo que ia fazer contas.

- Gasta-se tanto!

Pouco depois, Miguel batia-lhe à porta.

- És tu, Miguel? Espera lá uns minutos; estou aqui a fazer uma soma.

Chegara em boa altura. Olhou para o lápis, a correr de algarismo em algarismo, até lançar o total ao fim de cada coluna. Depois, recomeçava a sua marcha em sentido inverso. Por fim, Joana murmurou: "Está certo. E pousando o lápis, voltou-se para Miguel:

- Que confusão, as tais contas!

- E imagina tu, minha pobre mamãzinha, que ainda quero propor-te mais. Ouve.

Joana sentiu o coração bater com mais força.

- Sabes quais são os meus projectos actuais: casar-me e depois partir para o Congo, onde me estabelecerei definitivamente. A terra agrada-me e a carreira médica, lá, é muito interessante. Mas, comprendes, um médico moderno, para se estabelecer, precisa de fundos. Não penso em comprar uma clientela, mas em lançar-me numa terra onde não haja médico. Por isso, é claro, preciso de instalação completa, aparelhos, etc. Por outro lado, o casamento custa caro. Por tudo isto, venho pedir-te o favor de me adiantares dinheiro.

- Já recebeste a parte que te pertencia de teu pai.

- Uma bagatela, mama. com aquilo não se podia fazer nada. Foi por isso que pensei que estarias de acordo em adiantar-me dinheiro.

E mencionou uma soma elevada, que fez a mãe estremecer, apesar do domínio que ela tinha em si própria.

- Mas tu tens a noção do que é esta conta?

- Ao câmbio actual do franco, mama, não é muito grande.

- Mas onde queres tu que eu vá buscá-la

- Isso não sei... Há terras... herdades... Joana hesitou. Depois, com voz lenta:

- Estão várias hipotecadas. Na quinta para onde o teu avô foi depois de tu chegares, é preciso fazer grandes melhoramentos. O telhado do "Fetal" tem de ser reparado: tu próprio me disseste que chove no teu quarto. Os estudos das crianças são caros. Gildas passou dois Invernos na montanha e tem de ir para lá outra vez. Em resumo, meu pobre Miguel, não estou em condições de te adiantar nem a décima parte do que tu pedes.

- Mas, ó mama, é inteiramente preciso estabelecer-me! Já é tempo, na minha idade.

- Mas não podes fazê-lo noutras condições?

- Não. A minha vocação é ir para longe! O papá é que o tinha compreendido bem.

- Teu pai recomendou-me que respeitasse a vocação dos meus filhos, não -me pediu que os prejudicasse em proveito de um só. Repito-te que não posso.

- Então tens dirigido mal os negócios?

- Creio que não. Mas quando uma mulher fica só com oito filhos, vê-se obrigada a recorrer a assalariados para explorar as propriedades. E o rendimento diminuiu extraordinariamente. Se um de vocês tem assumido a direcção do patrimônio, decerto estaríamos hoje mais ricos. E estou a ver com mágoa o João Maria, com quem eu contava para o futuro, a adquirir hábitos de indisciplina e de preguiça.

- As pequenas hão-de casar com agricultores.

- Assim o espero. Mas já não é um Abran a dirigir as coisas. Ah! Sem o teu avô, talvez o "Fetal" não se tivesse salvado.

Ele procurou enternecê-la:

- Mama, peço-te...

Embora sofresse, ela resistiu:

- Miguel, para que hás-de tu pedir? As contas estão aí. É impossível conceder-te o que dizes que é necessário para te estabeleceres.

Ele sentiu a cólera invadi-lo:

- Queres dizer que tenho a vida estragada!

- Não. Estabelece-a sobre um plano mais modesto.

- Raciocínios bolorentos! Fazer as coisas à justa, mesquinhas... Estiolar-se... Gostavas de que eu fosse médico aqui, neste buraco

- E porque não?

- Ah! mama, não me faças irritar! E depois, tentando acalmar-se:

- Peço-te que reflictas, que fales com o avô, que consultes o teu notário... Em todo o caso, informo-te de que conto ir a Paris, onde you ter uma entrevista matrimonial. Oh! não estejas com medo, é uma rapariga digna e que não tem medo de ir para longe, que não tem medo de viver, como disse não sei quem.

A mãe olhou-o demoradamente, suavemente, com um rosto em que a expressão variava a cada instante.

"No fundo, é um fraco. Pedro não tem, então, um filho que o iguale? Ou que se lhe assemelhe, ao menos "

Levantou-se, para ele compreender que a conversa terminara.

- Então vais reflectir, mama?

- Dentro de alguns dias dou-te a resposta definitiva. Mas para que vais tu já a Paris ver essa rapariga, se tu não podes casar com ela?

- A entrevista está marcada. E se ela me agradar, caso com ela. E partiremos os dois. Talvez para o fim do mundo... sem a tua ajuda. Oh!... mama, não esperava isso de ti! Ao ficar só, Joana murmurou: "Que difícil, saber onde está o dever!"

 

SUSANA Lê Fort fora passar o dia a Renne" com Rosa Teresa. Cada uma delas sentia lá o seu prazer. Para a mãe ainda tão nova, como para a filha, era idêntica a satisfação que sentiam em frente das montras de modas, porque a vida austera que Susana levava na sua moradia conservara-lhe bem viva toda a feminilidade. Mas, em contrapartida, Rosa Teresa pouco se interessava pelas vitrinas das livrarias, que exerciam tal atracção em Susana, que em frente de cada uma abrandava o passo e parava.

Rosa Teresa acabou por impacientar-se:

- Oh! mama, deixa lá os alfarrábios... Assim não chegamos a ter tempo de fazer as compras. Olha, vou deixar-te. Depois encontramo-nos no jardim, no lugar do costume.

Susana experimentou um alívio extraordinário ao ver-se sozinha, livre e desconhecida na grande cidade. Só... Que estranha opressão lhe causava a presença do marido! Reconhecia-lhe o valor, mas jamais se habituara a viver com um homem tão frio, tão fechado. Ah! se ela tivesse casado com Francisco!...

Censurava, porém, a si própria aquele "se" como se fosse uma traição a Jerónimo, que tinha a certeza-nunca a atraiçoara, nem mesmo em pensamento. Há vinte anos que Susana arrastava o seu pesar. Francisco guardaria assim a recordação dela, ao lado dessa Clotilde insignificante com quem casara? Saber-se que há pessoas que nasceram para viverem juntas e que têm de passar a vida com outras! O desejo ardente da felicidade recalcara-se em Susana. Porém, estava lá. E perante as manifestações de vida intelectual, artística, elegante, como a capital bretã apresentava, esse desejo de felicidade tentava erguer-se, crescer para qualquer coisa. Mas o quê? Não sabia. Para tudo. E o que experimentava era a um tempo maravilhoso e dilacerante.

Resistiu à tentação de comprar coisas inúteis e encantadoras, que ela cobiçava, mas comprou livros.

"Os meus companheiros de solidão... E posso eu falar de solidão, quando somos cinco lá em casa? Mas a Rosa Teresa é superficial e os outros são profundos, não se entregam... Quanto ao Jerónimo... é certo que os nossos corpos se uniram, porque ele queria filhos, mas as nossas almas, nunca. Que só!... "

Um tanto à aventura, Susana vagueou muito tempo, sob aquele céu bretão, que se mantinha pálido, apesar de se estar na estação das rosas. De repente avistou Miguel.

- Então também estás em Rennes, Miguel? com certeza tens bastantes compras a fazer, depois de dois anos de vida africana.

- Lá encontramos tudo o que se queira respondeu ele fatigadamente.

- Tens um ar de cansado, de aborrecido...

- Pior do que isso, minha senhora... Encontro-me numa situação impossível.

Esta má disposição do rapaz interessou-a, a ela, que não tivera rapazes e teve pena dele. A boca de Miguel, finamente desenhada, vincara-se numa prega dura, que num rosto masculino salta logo à observação das mulheres, e os olhos, geralmente alegres, mostravam descontentamento. Viu o "homem" naquela criança grande, que se converteria em um caracter difícil se a vida o transtornasse muito. Outrora, talvez Jerónimo tivesse sido encantador, como Miguel... Urgia ir em socorro do verdadeiro Miguel, para não o deixar cair no outro, no Miguel áspero e envelhecido.

- Se encontrássemos um canto sossegado para conversar, contavas-me isso, Miguel. Tenho de encontrar-me com Rosa Teresa no Thabor, mas...

- Oh! com a Rosa Teresa, não! Ela é muito diferente da senhora. Olhe, ali há um salão de chá.

Depois de se instalarem numa mesinha com um ramo de flores da estação, Susana perguntou

- Então, meu pequeno, o que é que te corre mal?

- Os meus projectos foram todos a terra.

Sabe que eu quero tornar a partir e que quero ir casado. Mas, tanto para me estabelecer, como para casar, preciso de fundos. Pensava que a família mos desse, mas não: não há nada a fazer. A mama mostrou-se aborrecida. Quis saber o que havia a este respeito e passei pelo nosso notário, aqui, a dois passos. Pois confirmou o que a mama disse! Actualmente não há nenhumas disponibilidades. Se insisto, arruíno-os a todos. Ora isto faz-me confusão. A terra é de boa produção. Mas parece que a mama teve de pedir empréstimos para os nossos estudos, para a doença do Gigi, para reparações nas herdades, arruinadas depois da guerra, etc.

- Então não acreditas em tua mãe, Miguel?

- Na verdade, não. Escandaliza-a, isto? Mas, quando uma mãe vê um filho a querer ir para longe, está disposta a ajudá-lo, como faria se ele lhe ficasse debaixo das saias. Por isso é que eu fui ter com o Sr. Delorme. Mas ele disse-me: "Arranje as coisas doutro modo. Não peça nada a sua mãe. Senão, ela tem de vender terras em más condições, o que vai empobrecer muito a família. Aí está Não sei o que hei-de fazer. Pedir um empréstimo? Mas a quem?

- Mesmo um empréstimo - pronunciou ela

- é uma coisa muito séria.

- Isso é, tem perigos; mas na minha idade gosta-se do perigo. E, sabe uma coisa? sou querido como médico. Parece que tenho "faro", sobretudo para diagnósticos, e os doentes têm confiança em mim. Pelo menos os negros. com os brancos ainda não experimentei.

Pouco a pouco ele ia-se abrindo.

- Dê-me um conselho, minha senhora. Deve compreender que eu quero partir, mas casado. Há um projecto que me agrada. Mas, sem dinheiro, é inútil pensar nisso. E não se ponha por princípio do lado dos pais, suplico-lhe.

- vou reflectir, Miguel. Mas permite-me um conselho no gênero daqueles que os pais costumam dar: nunca encaraste a possibilidade de ficar para ajudares tua mãe?

- Não, porquê? Hervé e eu sempre dissemos que queríamos ir para longe e ninguém nos fez objecções.

- Mas era num tempo melhor. Enfim, cada um tem de seguir o seu caminho. Eu lastimo que o teu te leve para tão longe. A França também precisa de bons médicos e tu abandona-la...

- É um país já muito velho.

- Pois tu contribuirás para o remoçar.

- É uma vida monótona.

Ela não protestou mais e soltou um suspiro. Ele olhava-lhe para a mão, onde, ao lado da aliança, brilhava um lindo diamante. Era uma mão nervosa e fina, uma mão que pouco trabalhara, notava ele como médico, uma mão que ficara perfeitamente juvenil. E a alma, também teria ficado jovem O seu "faro" deu-lhe, de súbito, uma viva curiosidade por aquela mulher que, até então, enfileirara sempre entre aquelas cuja história, sempre muito simples, tem o seu epílogo no dia do casamento. Ela conservava uma personalidade admirável, Susana Lê Fort. Sim, chamava-se Susana. Da mão, o seu olhar subiu para o rosto fresco, arredondado. Os olhos? patéticos. A boca? pequena e redonda, um pouquinho saliente, rápida a entreabrir-se num sorriso, enquanto os olhos permaneciam tristes. Uma linda mulher. Não era de admirar que as filhas fossem tão bem parecidas.

- Rosa Teresa anda a correr as lojas, não A Rainha-Margarida, não veio?

- Nunca podemos sair todas juntas. O doutor precisa de ter uma de nós à sua disposição.

- Como está ele actualmente?

- Melhor. Mas tem o coração seriamente doente. Ele sabe-o e, no entanto, não quer descansar.

- Maria Violeta cresceu muito. Mas tem sempre o ar duma criança, duma menina doutros tempos.

- Maria Violeta é muito sensível - suspirou Susana. - Se soubesses como ela se inquieta à menor coisa!

- Devia tomar a Aliette por modelo. Não há nada que a apoquente... Inteligente, ladina, engraçada, toda a gente gosta dela. E é já tão mulher! Mas não é nada amiga de ler, como a Maria Violeta.

- Maria Violeta lê de mais... O tempo passa, Miguel. Queres vir comigo ao Thabor, para nos juntarmos a Rosa?

- Não. Ela era capaz de me irritar. Rindo-se desta franqueza, Susana dirigiu-se

para o lindo jardim. Rosa Teresa, sempre tão passiva, agastou-se quando soube que a mãe lanchara com Miguel.

- Porque não esperaram por mim? Era um divertimento para mim. Vê-se tão pouco, o Miguel.

Amuada, declarou que não encontrara nada nas lojas, que os sapatos a magoavam, que se aborrecera mortalmente de esperar pela mãe, e recusou o lanche que ela lhe oferecia.

- Decididamente - proferiu Susana, para a fazer rir - toda a gente hoje está rabugenta. Miguel estava detestável.

- Mas porquê? Conta... Alguma história de casamento?

- Não. Aborrecimentos de dinheiro.

- Ora! Se é só isso... -declarou a pequena, que nunca conhecera tais cuidados.

E por fim concordou em ir tomar um gelado na melhor pastelaria, o que ela estava morta por aceitar.

De resto, em Rosa Teresa as impressões, geralmente, eram superficiais.

Como era de (sperar Margarida encheu-as de perguntas quando regressaram a casa.

- Não pensem que hoje tive alguma coisa que me distraísse... Felizmente, o papá precisou de mim várias vezes. Ah! Se eu tivesse estudado medicina!

- E tu, Maria Violeta, o que fizeste

- Li muito. Oh! tu trouxeste-me livros, mama! Obrigada!

Abraçou-se à mãe e deixou-se ficar. Estava-se tão bem, encostada ao seu ombro! O vestido da mama era de seda macia e cheirava tão bem... Levantando os olhos, a pequena via a face arredondada e fresca da mãe e um olhar cheio de amor a corresponder ao seu.

"A mama é bonita. A mama é boa. Porque é que o papá é tão áspero a falar-lhe?... E porque é que eu gosto mais do papá que da mama? Talvez faça mal. Talvez não devesse... Mas ele está doente. E não parece feliz... "

Durante este tempo, Rosa Teresa dizia à Rainha-Margarida:

- Adivinha lá com quem foi que a mama tomou chá

- com Miguel? Encontrei-o esta manhã; ia a Rennes. Também lanchastes com ele?

- Isso sim A mama guardou-o todo para ela, em lugar de ir procurar-me. Não é bonito.

- Tinhas, então, vontade de comer bolos?

- Estúpida! Eu depois tive bolos e, até, um gelado. Mas do que eu gostava era de lanchar com ele.

- com ele... com ele, minha querida... - trauteou Margarida.

- Ah! tu começas a irritar-me!... -gritou Rosa Teresa.

Então Maria Violeta, sempre aconchegada à mãe, suplicou:

- Não se zanguem, por favor

- Ela tem razão - interveio Susana. - Calem-se! É ridículo altercarem assim. Nunca vi Rosa Teresa tão nervosa.

Rosa, porém, recuperara já a sua tendência descuidosa.

- As zangas distraem! Já que não se pode dizer mais nada! A Maria Violeta vê dramas em tudo, quando afinal não há nada. A vida é uma coisa lisa, perfeitamente igual.

- Bastante estúpida, em suma - continuou a Rainha-Margarida, em tom sonhador. - Nasce-se, vive-se e morre-se na mesma terra. Não se dão nunca acontecimentos. Por mim queria... queria que isto mudasse.

- Cala-te! - exclamou Maria Violeta. - Cala-te! Quando se muda, vêm desgostos. Eu, então, queria que as coisas ficassem como estão, muito tempo, muito, sempre...

Corentina escutava à entrada da porta.

- Tem muita razão. Não é preciso as coisas mudarem - declarou ela. - As mais velhas fazem muito mal em bulir no futuro. Quando se lhe toca, vinga-se.

Maria Violeta olhou para a mãe. Nos seus olhos havia angústia. Susana, então, disse com firmeza:

- Não, Corentina, não se vinga. Não pode: está nas mãos deDeus. Deixemo-lo entregue ao seu dono. Só Ele dispõe do futuro.

- Seja assim - murmurou a bretã. - O jantar está pronto.

 

NO "Fetal" formara-se o grande grupo do domingo, que era a maior alegria da mãe. Miguel, porém, faltava.

- Ele tem a sorte de passar o domingo em Paris suspirou Joelle. -Encontrei-o ontem na Avenida da Estação. Ia bem bonito, realmente... E eu também estou bonita - acrescentou com desfaçatez. - Como acham o meu vestido

Cada um deu o seu parecer.

- É de um verde muito vivo, medonho para o meu gosto - disse Maria Ângela. - Mas com a tua cabeleira tyura, fica-te bem.

- O que não é nada cômodo para vestir notou Ivone. - Quando tu passas na rua, com certeza que todos olham para trás.

- Tanto melhor - respondeu ela rindo e mostrando os belos dentes.

- Por mim, acho que te faz mais gorda sugeriu maliciosamente Aliette.

- Que horror! E tu João Maria, qual é a tua opinião

- A mesma de Aliette: faz-te mais gorda.

- Mama! mama! é verdade Diz-me, tu que és o bom-senso e a verdade.

A Sr. a Abran examinou o conjunto, com seriedade e bondade. Na realidade, o vestido realçava as formas perfeitas de Joelle, alta e desenvolta. Que formosa rapariga!

- Favorece-te, Joelle. É a minha opinião. Não gosto dele, mas fica-te bem.

Naquele dia Joelle estava resplandecente de mocidade e de alegria.

- A Ivone, essa conserva-se fiel à saia azul-marinho e à blusa branca. Eu aborrecia-me de trazer sempre a mesma andaina

- Se julgas que tenho dinheiro para comprar vestidos ou tempo para fazê-los, desengana-te, minha querida.

- Eu própria é que fiz o meu vestido, mesmo sem ter tempo, à noite. No Verão não é preciso dormir. E para comprar o pano suprimi alguns alimentos. Não te parece que não é necessário comer tantas coisas todos os dias

- Tu és doida, hás-de acabar por arruinar a saúde-respondeu Ivone, encolhendo os ombros.

- Ó sábia assistente social, cala-te! Tu não podes compreender. Estás fora da vida.

- Não, não! Estou plenamente dentro da vida! - ripostou a rapariga. - Por isso distingo as coisas essenciais. Antes quero ter saúde do que ser elegante.

- A Ivone é que tem razão - disse Joana Abran. - Se continuas a privar-te do sono e da alimentação, não chegas ao fim dos estudos.

- Ora! mesmo com "sés"! - replicou Joelle.

- Sabes que estou crente em que me saí bem no exame da licenciatura? Mais dois certificados e está tudo acabado.

- E depois que vais tu fazer? - perguntou Aliette.

- És muito curiosa, pequena.

Joana ia pensando, enquanto a via e a ouvia:

"Esta criança gosta de alguém. É uma coisa que se vê, sente-se. com certeza que nos traz algum intelectual, Então, ninguém tomará conta da exploração das propriedades E o Miguel não deixa de procurar um meio de obter capital... Foi a Paris para se encontrar com a tal rapariga. Se ela lhe agradar, a sua impaciência de partir vai aumentar. Que hei-de fazer? O avô aconselha-me a esperar sem precipitar nada. Em seu entender, Miguel é inconstante e pode muito bem mudar de idéia. Não gosto de ouvir dizer que Miguel é inconstante. O pai era tão forte, tão sensato, tão pacífico. Só na Ivone é que encontro essas qualidades reunidas. Hervé é ao mesmo tempo sonhador e cabeçudo. Joelle. tem uma inteligência superior, como o meu Pedro, mas tão fantasista! A Maria Ângela é uma boa pequena, mas sem grande personalidade. O João... não se sabe ainda. Escapa-me. Era preciso haver uma mão de homem que o dirigisse; pode vir a ser alguém ou virar-se para o mal, indisciplinado como ele é. E Aliette? está numa idade ingrata. E o meu pequeno Gildas, tão sensível, tão frágil! Verdadeiramente só posso contar com Ivone.

Como de costume, Maria Ângela pusera todo o cuidado no almoço do domingo. Maria Ângela concebia a existência duma forma muito simples: fazer bem tudo o que tivesse de fazer-se. De resto, considerava este ideal singelo e banal em comparação com os projectos de suas irmãs para o futuro. Não lhe via a grandeza e este esquecimento de si mesma dava-lhe grande encanto. Além disso julgava-se feia: "Tenho o nariz arrebitado, as faces como maçãs e os olhos pequenos... O conjunto, porém, era tão fresco, tão moço... Maria Ângela levava alegria a toda a parte. E a mãe pensava:

"Ela é que devia casar com um agricultor. Mas ela nunca sai, nunca se encontra com nenhum rapaz. "

Naquele domingo estava mais graciosa do que nunca, com o seu vestido de pano azul.

À sobremesa, o ambiente tornou-se borrascoso, porque o avô pediu explicações acerca das más notas de João Maria.

- Isso é que eu não sei. O professor tomou-me de ponta. É injusto.

- Os bons alunos não são tomados de ponta. Vê o teu irmãozito; apesar das suas faltas de saúde, está entre os bons alunos.

- Oh! Gigi é um verdadeiro "pastel"! Eu não consigo estar quieto nem deixar de fazer tropelias...

- Assim é que se fica um inútil.

- Vou-me embora... como os mais velhos.

- Mas tu serás capaz de entrar na Escola Naval ou na Faculdade de Medicina como os mais velhos Para se chegar a ser oficial de marinha ou médico, tem de se trabalhar.

- Há outras profissões sem ser essas.

- Todas querem trabalho. Olha que eu não quero ver um aventureiro entre os Abran! E é esse caminho que tu estás a tomar.

João Maria reprimia as lágrimas. Joelle, então, que não gostava de dramas familiares, encaminhou a conversa para Miguel:

- A propósito, que foi Miguel fazer a Paris? Silêncio.

"Bem - pensou ela -, já vi que fiz asneira. Falemos noutra coisa. "

- Margarida e Rosa Teresa irão ao tênis? Não haverá outra entrevista matrimonial em perspectiva?

E puseram-se a discutir o direito que rapazes e raparigas têm de escolher a esposa ou o marido e o rlever de os guiar que cabe aos pais.

"Óptimo! - disse consigo João Maria. - Já ninguém pensa em mim. Irrita-me que se preocupem comigo. Concordo que o pouco que faço é terrivelmente mal, mas se eu não gosto de trabalhar... Só há uma coisa que me há-de agradar mais tarde: é explorar as propriedades. E para trabalhar a terra não há precisão de saber ler grandes coisas. Os cfamponeses saem-se bem do assunto mesmo sem diplomas. Mas os pais têm destas idéias patuscas... "

João Maria estava naquela idade em que os rapazes, sentindo despertar as suas idéias e sensações, julgam descobrir o mundo. A mãe, absorvida por demasiados cuidados, não via o trabalho que se operava, isolada e perigosamente, na alma de seu filho. Além disso, compreendia melhor as filhas do que os filhos. Para ela, a adolescência dum rapaz mantinha-se desconhecida. E a adolescência do avô ia já muito longe: já não se lembrava dela. Era um pai que faltava a João Maria. Ou um irmão mais velho... Mas os irmãos mais velhos tinham-se ido embora.

Joelle gostava muito da Rainha-Margarida. As suas inteligências eram do mesmo quilate; a de Joelle, mais literária, mais cintilante; a de Margarida, mais profunda e com mais raciocínio. À tarde, depois de terem jogado o tênis, saíram do campo.

- Anda para a beira da água - propôs Joelle. - Vamos para aquele sítio onde não aparece ninguém.

Os dois vestidos brancos desceram o caminho. Duas belas raparigas da mesma estatura, uma de um louro brilhante, a outra muito trigueira. Iam de braço dado e falavam de vestidos, de filmes, de livros, de tudo, enfim, que agrada às raparigas.

- Vamos sentar-nos acolá.

Cuidadosa, Joelle estendeu um chailenochão e ofereceu metade à amiga.

- Compreendes, um vestido mais a lavar... tem importância, na nossa casa. Maria Ângela é que se encarrega disso... Não, ela não diz nada. Mesmo quando tem muito que fazer. É uma boa rapariga. Eu que não era capaz de suportar aquela vida. E tu

- Eu, eu... -disse Margarida, retalhando uma erva -, supões que escolhi a vida que levo? Que vazia! E julgas que you escolher a minha vida de mulher? Está traçada de antemão: casarei com um médico de quem não hei-de gostar. É claro que há-de ser um rapaz inteligente, que saiba pensar, como se diz. Havemos de morar na casa em que nasci. Teremos quatro ou cinco filhos. Hei-de vê-lo absorvido pela clientela e não hei-de ser mais feliz do que a mama.

- Mas tua mãe não é feliz

- É claro que não, minha ingênua. A mama é uma mulher ardente, que precisa de expandir-se com alegria. E tem um marido triste, severo, doente. E que não a ama.

- Tu estás doida

- Digo-te eu, que não a ama.

- Mas por que? Ela é bonita, inteligente, artista; toda a gente gosta dela.

- Não sei. E comigo há-de ser coisa parecida. Hão-de dizer: "A jovem Sr. a X... deve ser muito feliz. E hão-de enganar-se. Mas eu terei a mesma virtude da mama? Joelle, eu nunca poderei passar sem a felicidade. Eu hei-de querer... hei-de querer que me amem.

Um silêncio... Pôs-se a desfolhar um malfflequer, nervosamente, e os lábios tremiam-lhe.

- Olha! - exclamou ela -, quando não havia pétala nenhuma em volta deste coração amarelo, o malmequer disse: "Nada. Não serei amada. Tu verás... tu verás.

Desatou a soluçar. Joelle via às vezes chorar as suas colegas estudantes. Sabia que chorar faz bem, mas que se não devem fazer perguntas ociosas. Aguardou, portanto, e, depois, gentilmente

- Minha pobre querida! Tens a certeza disso?

A Rainha-Margarida fez "sim" com a cabeça. As palavras ficaram-lhe na garganta. Depois estendeu-se na erva.

- Quero cá saber do vestido! Eu mesmo o lavo depois. Sim, Joelle, tenho a certeza de que o amo. Agora tenho a certeza,

"Mas quem - perguntava Joelle entre si. E em voz alta:

- E então isso dá-te vontade de chorar?

- Sim, porque tenho a certeza de que ele não me ama.

- Mas porque julgas tu isso? -interrogou Joelle, absolutamente ao acaso. - Ele disse-to?

- Sabes bem que ele foi a Paris... ver uma rapariga... para a levar para o Congo. Como é que tu não sabias Pois olha que ele disse-mo, o teu irmão. Até acrescentou: "Reza para que tudo se resolva bem. Rezar por tal coisa? Ah! os homens não têm coração

Joelle estava atordoada. Nunca pensara que Margarida pudesse enamorar-se de Miguel. Na sua opinião, Margarida tinha muito mais valor. E depois, que loucura deixar crescer aquele sentimento por um rapaz que estava resolvido a expatriar-se

- Então não pudeste evitar de amá-lo? perguntou ela ingenuamente. - Ou segurar isso a tempo?

- Tu és, maluca! naturalmente julgas que se puder evita de amar.

- Mas, se ele se vai embora e tu deves desposar o sucessor do teu pai, que esperas?

- Nada... a não ser que ele me amasse também e por minha causa deixasse de ir para o Congo e tomasse conta da clientela do papá. Sim, Joelle, tenho esperado loucamente por isso. Rezei por isso. Mas as minhas preces e a minha esperança desmoronaram-se, inúteis. Tanto mais que ele foi a Paris ver uma rapariga livre, que pode partir com ele.

- Se ele te pedisse ias com ele

- com ele? Nem que fosse para o fim do mundo! Mas há o papá...

- Escuta, minha cachopinha. Miguel é muito, muito boa gente. Mas há muitos rapazes que o suplantam.

- Tu não compreendes. Tenho visto a mama unida a um homem superior... temos de reconhecê-lo, mas frio, triste, e isso deu-me uma vontade louca de evasão. Quero um marido jovem, ouve bem, verdadeiramente jovem, moderno, alegre, meigo, um pouco garoto ainda, e fantasista. Não é preciso que a cara dele tenha traços nobres, como a do papá. O gênero de Miguel agrada-me infinitamente: o sorriso espiritual naquela boca grande e fina, aqueles olhos em que se vêem passar tantas impressões, aquela leveza... quando ele joga o tênis, quando nada... é admirável. E eu queria um marido desportista, um homem que goste de ar livre, e a maior parte dos médicos cheira por força a baíio, a farmácia. Ah! quando comparo o Miguel com o Paulo Rigaud...

- Tu exageras; nem todos os médicos são desse modelo.

- Nesse caso são casmurros, secos... Não há muitos médicos como o Miguel, não.

- Que sabes tu disso? Já saístes alguma vez do teu buraco

- Má! Estava a contar contigo para...

- Para defender a tua causa com a minha eloqüência? Mas é uma causa perdida de antemão.

- Mas porquê? Dizem que o amor é mais forte que tudo.

Levantara-se e passara o braço por cima dos ombros da amiga.

- Ó querida, se tu puderes hás-de fazer qualquer coisa, tenho a certeza. Só a ti é que confiei o segredo do meu amor. À mama não digo. Havia de me incomodar, porque estamos sempre juntas. Além disso, para que servia falar-lhe das minhas preocupações? A Rosa Teresa, também não. Creio que...

Parou. Joelle acabou a frase tranqüilamente:

- Ela tem uma inclinaçãozita por Miguel? Isso não te dê cuidado. A Rosa é superficial, variável como uma pena ao vento. Depressa lhe passará o sentimento. Mas tu, minha pobre Guida, tu és concentrada. Por isso estás tão presa, infelizmente. Prometo-te que you reflectir e ver se posso ajudar-te. Mas ele quer partir e tu não podes. Por isso...

A Rainha-Margarida enxugou os olhos, pôs pó na cara e esforçou-se por parecer alegre:

- Agora falemos de ti. Em que alturas vai isso

- Estamos noivos. Ninguém o sabe. Casamos quando ele fizer o seu concurso de magistratura. Vamos esperar até lá. E uma vez casados, somos pobres, é certo, mas temos amor. E isso é que conta. Ele é muito culto e tem grande elevação moral; vai ajudar-me a caminhar. E tudo se abre em mim. Sinto-me feliz, feliz... Gostas do vestido verde que eu trazia esta manhã? Foi ele que escolheu a cor. Mas estou a contar-te coisas que te fazem triste, naturalmente...

- Não-disse Margarida-, a tua felicidade é como sol que me envolve e me aquece, compreendes?

Tornaram a subir para o burgo, com as sandáliasbrancas no mesmo passo saltitante pelo caminho em que os castanheiros prolongavam a sua sombra.

- Quando é que Miguel volta? - perguntou Margarida.

- Não sei. Se as entrevistas forem bem sucedidas, talvez se demore. Se não forem, imagino que aproveitará as distracções de Paris para dissipar o seu mau humor, Meu irmão não é santo; não tenhas ilusões.

- Nem espero isso. Eu também não sou santa. Sou uma rapariga voluntariosa, violenta, desejosa de gozar a vida. Se casássemos os dois, eu havia de tentar caminhar com ele, como tu com? - com Gui? -respondeu ela alegremente. - É um lindo nome, não é? Um nome jovem. E ele tem um ar tão juvenil.

- Conta lá... É alto? Delgado? Louro ou moreno

Falar de Gui era o melhor que podiam solicitar a Joelle. De repente a Rainha-Margarida parou, de olhar concentrado.

- Quero amar como tu amas. Quero ser amada como tu és amada. E tanto pior para tudo o mais.

Ainda vou ser fisgado pelo avô! Se ele apanhasse esta lição de matemática... Oh! estas linhas imaginárias, estes X, estes Z, que tanto me irritam!"

Assim ia pensando João Maria a caminho do "Fetal", naquele sábado à tarde. O caderno da semana levava ainda piores notas que as da semana anterior. Experimenta camuflá-las. - aconselhara um camarada sem escrúpulos.

- Estás a enfastiar-me.

- Só se gostas mais de ouvir os sermões do velho!

- Não fales assim de meu avô. É alguém de respeito. E faz bem em sacudir-me; está no seu papel.

Pois sim; o pior é que o avô sacudia rijo. Tinha dessas palavras cheias de verdade, duras, que vergastam um moço. Reprimem-se as lágrimas, apertam-se os punhos. Naquele momento prométe-se mudar sinceramente. Mas depois, uma vez no colégio - que estopada! - torna-se a trabalhar o menos possível, porque se está aborrecido, porque se atabafa, porque no campo está um lindo tempo, porque as searas estão maduras e o pobre moço ali fechado...

E a cena prevista não faltou. O Sr. Abran estendeu a mão implacável para o caderno e examinou os números um por um. Santo Deus não havia um que não estivesse truncado. Olhou o rapaz nos olhos e perguntou-lhe: "Estás satisfeito contigo?" e admoestou-o pela sua indolência, pelo seu egoísmo, pela sua estupidez.

- Não -penses tu que vais viver dos rendimentos. Vocês são oito. A tua mãe tem-se estafado para dar-lhes tudo o que é preciso. Os teus estudos são caros. Sabes tu quantas notas de mil francos espatifas todos os anos, para no fim seres um mau estudante

- Ó avô - acabou ele por dizer - tirem-me do colégio, é só o que eu peço.

- E o que vais tu fazer

- vou trabalhar no campo. É disso que eu gosto.

- Sim, para cultivar a terra e cuidar duma vaca, não é preciso ter grandes estudos. Um homem inteligente e corajoso dá sempre conta do recado. Mas para dirigir uma exploração em grande escala é preciso aprender muitas coisas. Até matemática, meu rapaz. Para exercer as funções de chefe é necessário ter o cérebro de um chefe. E a terra ainda é pior do que as pessoas não obedece aos mandriões nem aos descuidados. No final de contas tu hás-de ser um falhado.

Na criança erguia-se uma voz em protesto. A vontade dele era gritar:

- Não, não, avô!

Porém, o caderno de notas exibia-se em cima da mesa com afirmações tão más...

- Teu pai teria vergonha de ti - prosseguiu o Sr. Abrai. - Amanhã não andas de barco.

Uns olhos azuis e súplices se ergueram para ele. Os mesmos olhos do pai. Mas o avô não cedeu. - Entendeste-me E agora vai-te daqui, meu inútil.

Era um castigo rigoroso. Naquele tempo era tão bom andar no rio! João Maria subiu os degraus a quatro e quatro, entrou no quarto, atirou ao acaso com a mala dos livros, enfiou um fato velho, calçou as alpargatas, bateu com a porta e tornou a correr pela escada abaixo,

Mas em baixo aguardava-o um pequeno vulto coroado de cabelos brancos: era a mãe.

- Então vais mesmo sem me dares um abraço, meu "Coração Selvagem"!

João gostava daquele apelido, que os irmãos e as irmã lhe tinham posto. Quando a mama se servia dele era porque não estava muito zangada. No entanto ela falou-lhe das notas.

- Mas tu vais ficar toda a vida uma criança? Então não há maneira de compreenderes nada da vida?

- O colégio não é a vida.

- Mas é nos bancos da escola que cada um se prepara.

- Não, é ao ar livre.

- Depois de terem estudado nas escolas, João Maria. A terra, essa terra que tanto amas, não é amanhada a seu tempo O teu espírito também precisa de ser trabalhado, enquanto és novo, tem de ser semeado, regado. Sem isso, não pode haver colheita.

- Pois sim, mama.

A mãe sentiu-o fremente, ansioso de partir, enquanto os seus braços o estreitaram.

- Agora vai lá. Mas reflecte. O teu futuro inquieta-me, porque não tens o sentido do dever.

De alpargatas anda-se mais depressa. Corre-se, voa-se. Ah! O quintal, a estrada, as macieiras, as giestas, o trigo verde! Tudo, sim, tudo! Depois, os animais. As aves que passam. Os sapos. As borboletas. As abelhas. As libélulas. Que lindo que é o campo! Como é que se pode viver em cidades? João Maria só queria ser já crescido, ser livre, ter mais um diploma, talvez, visto que é preciso diplomas, como os pais dizem, e instalar-se ali, vigiando as ervas que crescem, os frutos que se avermelham, o trigo que aloura, misturar-se com os rapazes do campo, comer à vontade, sem o leite ser acrescentado com água e a manteiga servida aos bocadinhos. Tinha de esperar ainda tantos anos! Talvez dez, com o serviço militar Que horror! Nunca se devia obrigar um rapaz a andar às voltas com o latim, o grego e a álgebra quando ele os detesta e ama tanto a terra!

Coração Selvagem prosseguiu o seu caminho, percorrendo todo aquele local familiar, que ele conhecia tão bem, com todos os seus campos, os seus bosques, as suas veredas. Cantava, assobiava. Um prisioneiro em fuga.

De repente ouviu assobiar a mesma música. E na estrada apareceu uma rapariguinha aos saltos.

- Ó João! Que fazes por aí?

O Saguim, ou seja Aliette, respondeu

- Ando a passear, como tu, Coração Selvagem. Vinhas tão carrancudo no comboio! Certamente ainda trazias notas abomináveis. E o avô apanhou-te. Deu-te alguma bofetada? ou açoites no "fofo"

- Não, só houve palavras. O que é pior. E a mama também. Eu não posso fazer nada. E ninguém compreende isto. Os trabalhos da escola enfastiam-me. É por isso que enquanto estudo estou sempre a pensar noutra coisa.

- Mas em quê?

- Em tudo que se passa aqui. Gostava de cá estar, Queria andar a trabalhar com os caseiros. Só esse trabalho é que me agrada. Mas tu também não és capaz de compreender-me. És uma rapariga ilustrada. Hás de vir a ser uma sabichona.

Ela pòs-se a dançar na estrada, com a saíta curta a fazer roda.

- Esta semana fui a primeira em tudo.

- Menos no comportamento, não?

- Oh! lá isso... Mas no resto, ninguém me levou a palma. A Cristiana, aquela grande, estava furiosa. E a Paulinha também... Sabes quem é a Paulinha, não sabes

- Não me fales dessas raparigas. Vê lá se eu te falo dos rapazes da minha classe?

- E olha que isso entretinha-me bastante. Há-os lá bem engraçados. Olha, Patrick, que te dá goma elástica, Raimundo, todo chique...

- Que rapariga que tu és!... Viste Miguel, quando chegaste a casa? Eu pus-me a fugir, com medo de ouvir outro sermão.

- Não, não vi Miguel. Ele é como tu, arisco. Por isso fujo dele. Só vi a Maria Ângela, que estava a preparar uma torta.

- Uma torta de quê?

- De morangos. E depois vi o Gigi. Olha, sabes o que o Gigi me contou Ele ouve tudo o que dizem as pessoas crescidas. Naturalmente pensam: "Ele não dá atenção, ainda é muito pequeno. Pois meu velho, regista tudo. E em seguida, conta-me... Diz lá, onde é que vais agora

- vou a casa do tio Mateus, ver os porquinhos que acabaram de nascer.

- E eu vou também. São muito engraçados, os leitõezínhos. Pelo caminho digo-te o que o Gigi me contou.

- Tolices, com certeza.

- Não são, não. Trata-se de Miguel. O senhor quer voltar para o Congo e ficar lá. Naturalmente é coisa para custar um preço doido, dez mil, cem mil...

- Oh! nem vale a pena falar em números. Em se tratando de dinheiro as raparigas fazem sempre trapalhada.

- Enfim, é coisa para custar muito caro. Ele quer, então, que a mama lhe dê dinheiro, muito dinheiro. E ela não o tem. Por isso vão vender-se terras, muitas terras.

- Tens a certeza de isso tudo? O Gigi compreendeu mal, decerto.

- O Jigi é muito esperto. Nunca percebe as coisas mal. Ele até disse: "Coitado do João, que tanto gosto tem dessas coisas! Se vendem nem que síja só um canteiro de couves, até fica doente!" "E tem mesmo de se vender, disse a mama, para dar ao Miguel o que ele pede... A mama ainda disse: "Não posso fazer isso sem o consentimento dos outros filhos... Mas cá estamos nós perto dos porquinhos. Já se ouve a porca-mãe a grunhir.

E, toda contente, a garota tornou a dançar ao sol.

João Maria, apaixonadamente interessado pela prosperidade da família suína, observou um por um os recém-nascidos, fez ao caseiro perguntas inteligentes e acedeu, assim como Aliette, a tomar uma caneca de cidra. E o tio Mateus, antes de beber a sua, exclamou:

- Mesmo assim, para um garoto da sua idade, o menino percebe disto a valer. Vai dar um bom proprietário, mais tarde. Acho que esse encargo vai ficar para si, visto que os mais velhos abalaram cá da terra e o mais novinho não é muito forte.

Muito lisonjeado, João Maria foi conversando de assuntos rurais. E falaram das colheitas e do preço do trigo. Aliette, que se aborrecia com aquilo, acabou por levantar-se.

Obrigada pela cidra, tio Mateus. Nós vamos agora continuar o nosso passeio.

Uma vez na estrada, o irmão agastou-se:

- Porque é que saístes antes de eu fazer sinal?

- Porque estavam a falar de coisas enfadonhas. Além disso, quando um homem e uma mulher fazem uma visita juntos, a mulher é que se despede primeiro. Foi o que nos ensinaram no convento. Ora aí está!

Ela começou a puxar-lhe pela língua. Ele chamou-lhe Saguim. Deram uns sopapos um no outro e de repente Saguim bradou-lhe:

- Vai-te à fava! - e, desatando a correr, desapareceu.

Quando deixou de vê-la, João Maria sentiu-se muito só. E triste. Que peso era aquele que ele sentia no coração

"Ah! sim, as histórias que Aliette contou. Eu nem quero crer, mas nem ela nem Gigi, são parvos ou mentirosos. Os adultos não desconfiam, sequer. Vender a terra? O avô tem dito tantas vezes: "Tudo, menos isso. A terra é sagrada. Sobretudo a que tem estado sempre na mão da família. Ora se vendem a terra, em que hei-de eu trabalhar? O tio Mateus disse bem "O menino é que vai ser o patrão. As minhas irmãs podem muito bem casar com sujeitos diplomados duma escola agrícola. Tomam conta de tudo e depois dizem-me a mim "Muda de ofício, meu velho. Ou então: Põe-te a andar, como os teus irmãos! O que não faltam são países novos para cultivar. Mas o país de cá é que eu amo. Detesto as fotografias que o Miguel nos mostra. E não quero viver com negros. Sou bretão; cá é que quero ficar. "

Na sua frente abria-se agora um prado, salpicado de florinhas. Avançou pelo tapete verdejante e deitou-se nele, por entre malmequeres brancos e botões de ouro. Mordia a erva e rebolava-se nela. E depois, como ninguém o via, chorou. Oh! as palavras duras, atiradas pelo avô! Mandrião, egoísta, inútil. Falhado.

"Lá em casa não me compreendem. Não, eu não sou egoísta, eu gosto de todos, do avô, da mama, do Miguel, do Hervé, das pequenas, de Gildas. Também não sou mandrião; quando dou uma ajuda ao tio Mateus ou a outro, para o feno, na ceifa ou nas batata todos dizem "É corajoso, o garoto!" Inútil, Mas o tio Mateus acha que eu tenho inclinação para a terra e para os animais. Um falhado... oh! isto é o pior! Falhar na vida é horrível. Mas eu quero ter uma vida bonita. Quando os Padres, lá no colégio, nos contam a história de um rapaz bom, o meu coração bate mais depressa. Eles não sabem. Há lá um que me disse um dia: "Se você quiser, Abran, há-de tornar-se alguém. Quando é que se decide? Se me arrancam da terra, nunca. Não quero ser empregado de escritório, preceptor ou qualquer coisa desse gênero. Quero ficar na nossa casa. E o Miguel vai fazer vender coisas. Detesto-o!"

- Hu-hu! - despediu uma voz alegre.

"Bolas! Já me viram. "

Era Ivone, com a sua saia azul-marinho e a sua blusa branca, com os cabelos discretamente enrolados em torno da cabeça e o seu ar sério e bom. Sentou-se no chão ao lado do irmão.

- Poeta ou amuado, Coração Selvagem O sítio é bem bonito para inspirar um poeta. Mas tu estavas com o nariz metido na erva e por isso julgo que não admiravas as belezas da Natureza. Tu estás mal-encarado. O que é que te irrita

- Não quero dizer. Deixa-me em paz!

- Isso é contigo. vou fazer malha. Nunca tenho tempo para isso...

João Maria tinha-se virado e olhava para o céu. Corriam nele umas nuvenzinhas encantadoras, com o centro cor de malva. Pensava nas descrições do céu africano feitas por Miguel: um azul vivo, incrível. Amachucou uma erva entre os dentes. "Clic, clic", faziam as longas agulhas de Ivone a morder a lã.

- Para quem estás tu a fazer isso - perguntou ele com voz enfadada.

- Para uma velhinha que não pode fazer nada.

- Deve ser aborrecida, a profissão de assistente social. Sempre a ocupar-se com os outros...

Ela riu-se. O riso de Ivone era o mais bonito da família.

- Grande palerma, não há como isto. Vê lá como o meu trabalho me faz alegre e tu, que não fazes esforço nenhum, és infeliz, andas rabugento e aborrecido. Pensa um pouco nos outros e verás como ficas com outra disposição.

- Não quero sermões, hem? Já ouvi o sermão semanal do avô.

- E castigou-te, ainda por cima?

- Pois claro. Amanhã não ando de barco.

- Pobre pequeno! O Miguel vai justamente amanhã. Podia levar-te para longe.

Ele endireitou-se.

- Oh! não me fales no Miguel.

- É esse o ponto nevrálgico?

- O Miguel é um egoísta! Encheu-me de desgosto. Sabes o que ele está preparando? Muito simplesmente a venda duma parte da propriedade. Esse caro doutor tem precisão de capitais para se estabelecer principescamente entre os negros. Quer extorquir dinheiro à mama e, como ela não o tem, vai acabar por resolver-se a retalhar as terras.

Ela abandonou as agulhas.

- Quem te deu essas informações?

- A Aliette. Foi Gildas quem lhas contou. Ele ouviu o que diziam. A mama chegou mesmo a declarar que para vender precisava do consentimento dos outros filhos.

Ivone escutava, com toda a atenção.

- Talvez Gildas tenha entendido mal, ou tenha exagerado. Em todo o caso, penso que uma alperação dessas apresenta inúmeras dificuldades. Acalma-te, Coração Selvagem. Não é digno de um rapaz como tu perder a coragem perante uma simples possibilidade, nem de amuar, furioso, de nariz metido na erva.

- Mas eu gosto do sabor da erva e do seu cheiro.

- Sim, tu és um lavradorzinho, um bretão "puro sangue". Tanto melhor. Dois vagabundos na família já chegam. Ama a terra, Coração Selvagem. Mas tu não a amas como deve ser. Tens de preparar-te para servi-la bem. Se tu fosses estúpido, ainda se desculpava essa abominável preguiça. Mas eu tenho-te na conta de um rapaz muito inteligente.

- É verdade

- É verdade, sim. E olha que eu aprendi a conhecer o valor das pessoas. Tu estás a ponto de estragar a vida estupidamente.

- Os estudos enfastiam-me.

- Escuta, eu também era assim. Não fazia nada na escola, enquanto que a Joelle ganhava os prêmios todos. Joelle, como Aliette, é uma intelectual. Mas tu, não. E eu também não.

- Tu Então fizeste tantos exames...

- Porque... Olha, porque o papá morreu. Eu tinha a tua idade. Compreendi, percebes? Será preciso morrer alguém para tu compreenderes

Ela enrolou o "tricot", enfiou-lhe as agulhas, levantou-se e sacudiu a saia azul-marinho.

- Vamos embora, Coração Selvagem. Não percas a cabeça. As terras ainda não estão vendidas. O que importa, neste momento, é que tu te modifiques.

 

AFUNDADO num canto da carruagem, Miguel contemplava melancòlicamente a paisagem que desfilava através da vidraça do grande comboio que o trazia de Paris, onde passara alguns dias.

Estava-se em pleno Verão. As encostas estavam rubras de papoulas e as searas lourejavam já.

A França era um belo país! Miguel não podia deixar de admirar o que ele queria desprezar. A sua estadia em Paris só lhe trouxera decepções. O pai da sua noiva em perspectiva, muito simpático, declarara-lhe que não daria dote à filha, mas sim uma renda e que, por conseqüência, Miguel não devia contar senão consigo mesmo para se instalar. Muito cortêsmente avaliara com ele o capital que era preciso empregar. Em conclusão:

- Se a minha filha lhe agrada, arranje lá as suas coisas.

Ela agradava-lhe, sem dúvida. Chique, uma fisionomia engraçada. Banal a conversar. Que diferença entre ela e Ivone, Joelle e Margarida! Porém, parecia enérgica e alegre e queria casar-se nas colônias, onde passara parte da mocidade. "A vida é mais vasta" - repetia ela. Evidentemente...

"Em todo o caso isto não simplifica o meu assunto. Que partido hei-de tomar? E eu que voltei à França cheio de certeza, persuadido de que tudo se arranjaria a meu contento... vou tornar a falar com eles, mas o avô intimida-me, o que é idiota na minha idade, e incomoda-me ver a mama tomar aqueles ares de galinha a defender a capoeira com os pintos que ainda tem no ninho.

Sentia-se aborrecido. Todos os jornais que comprara eram estúpidos. Os seus companheiros de jornada dormiam com aquela expressão de beatitude particular aos que viajam de comboio. Se ele dormisse, também Não o conseguiria nunca, com tantos pensamentos a entrechocarem-se-lhe na cabeça.

Assim mesmo, que lindos e frescos eram os campos da França! E naquelas casinhas as pessoas deviam passar dias tranqüilos e felizes. Porém, tranqüilidade e felicidade poderão andar a par? Outrora Hervé ria-se dos "moluscos", cujo ideal se chama tranqüilidade. Para ser feliz, Hervé queria que o mar o embalasse e o levasse para outras paragens. Outras terras... tranqüilo... feliz... palavras cujas sílabas se contavam com o ritmo do comboio, tornando-se uma obsessão irritante. Miguel pôs-se então a procurar as palavras cruzadas. Não há nada que melhor faça passar o tempo numa viagem e esquecer preocupações.

E foi com muito boa disposição que chegou ao "Fetal", a velha morada familiar. Como sempre acontecia ao dia da semana, em casa só estavam Maria Ângela e Gildas. Um Gildas lânguido e febril, que trazia a mãe atormentada. Miguel disse ao pequeno:

- Olha, Gigi, quem tem um irmão médico, aproveita-o. vou já observar-te.

Aqueles olhos tão grandes, tão expressivos - grandes de mais para a magreza do rosto contemplaram Miguel.

- Bem gostava eu, se quisesses ser amável.

- Então eu não sou sempre amável, migalho.

- Não. Há dias em que és mais do que amável e outros em que aborreces toda a gente. Contigo, Uinguém sabe às quantas anda.

- Está bem, vou ser mais do que amável. À cautela, vais ficar na cama.

Junto dos negros, tão ingênuos e infantis, Miguel adquirira qualidades preciosas para inspirar confiança aos doentes que examinava. A sua superficialidade habitual dava, então, lugar a uma atenção grave e quase apaixonada. suas mãos, tão leves, apalparam o corpo leve do irmãozito. Auscultou-lhe o coração, os pulmões, fez-lhe perguntas inteligentes. O seu olhar agudo e penetrante parecia ver para além das aparências. Depois de acabar, abraçou a criança.

- Não há nada escangalhado, Gigi. O que tens é de engordar. Dorme. Amanhã já estás melhor.

Quando ele voltou para ao pé do grupo formado pelo avô, a mãe e a irmã, todos soltaram a mesma palavra:

- E então?

- O estado geral é que eu acho mal. Deve haver gânglios no pulmão. Assim que acabar aquela constipação é preciso fazer uma radiografia. Se o meu diagnóstico se confirmar, ele tem de ir para a montanha, mama.

- Ah! - murmurou Joana tristemente - o pai já estava tão doente quando ele nasceu! Que ameaça!

- Tomando precauções há-de fortificar-se. Depois de eu partir quem é que o tem tratado? Lê Fort

- Poucas vezes. O Dr. Lê Fort está sempre tão ocupado que a gente até tem medo de incomodá-lo.

- Mas nós, os médicos, fomos feitos para isso, mama.

O Sr. Abran, com as pálpebras semicerradas, observava o neto.

"Diabo de rapaz. Quando exerce a sua profissão, já não é o mesmo. O que há nele de descuidado e de instável, desaparece. Uma bela consciência profissional, em suma. Joana tem pena que ele não se tenha feito agricultor: tinha sido uma manobra em falso. A sua vocação para a medicina é inegável. Quanto à sua vocação de colonial... é outro assunto. Hervé tem grande parte da responsabilidade disso: deu-lhe volta à cabeça. "

- Felizmente - disse então o avô, - tu já estás connosco e podes acompanhar a doença do teu irmãozito.

- Não é por muito tempo! - suspirou a mãe.

- Ah! se eu o visse confiado aos seus cuidados, tranquüizava-me...

- Quando contas tornar a partir? -inquiriu Maria Ângela.

- Não sei nada - respondeu ele secamente. Já não era o mesmo.

"Que rapaz tão variável! - pensou o Senhor Abran. - Não é um Miguel, são três ou quatro. "

Eram horas de irem para a mesa. Miguel falou de Paris, brilhantemente, como só ele sabia fazê-lo. Das suas preocupações pessoais não se falou absolutamente nada. Todavia, Maria Ângela ardia no desejo de saber alguma coisa. Foi vão, porém. Depois do jantar, Miguel voltou ao pé do irmãozinho, deu uma volta pelo quintal para ver se os pêssegos já estavam maduros, comeu alguns com verdadeiro prazer e declarou que ia deitar-se.

- Que pensa disto, pai? - perguntou a Senhora Abran assim que ele subiu para o quarto.

- Não quis falar em nada.

- É porque as coisas não lhe correm à medida dos seus desejos. Não o viu chegar com a cara dos dias maus? Ficou mais macio ao cuidar do pequeno, mas continuou preocupado, nervoso. Amanhã diga-lhe o que pode propor-lhe.

Era muito simples, o que ele propôs no dia seguinte, na presença do avô. Fornecer-lhe uma parte do capital necessário à sua instalação, contanto que os irmãos e as irmãs concordassem, porque as terras que tinha de vender pertenciam-lhe a ela, mãe, e faziam parte da herança que caberia em partilha aos oito filhos depois da sua morte. Por ocasião das partilhas Miguel deveria restituir esse dinheiro aos outros herdeiros. Entretanto, porém, as terras seriam vendidas.

- As terras... -repetiu ele. - O patrimônio da família.

- Tu disseste-me - e o raciocínio é defensável- que é na mocidade que há precisão de dinheiro, para se começar a vida. Ofereço-te essa possibilidade.

- E os outros? As quatro pequenas para casar, os estudos de João Maria, a saúde de Gildas? E as necessidades de Hervé, se ele também quiser casar-se? Deixa-me reflectir.

- Em Paris o que te disseram, Miguel?

- Que a pequena receberá uma renda e não um capital e que, por conseguinte, devia contar só comigo para me estabelecer. Esse senhor demonstrou-me que os meus cálculos ficaram abaixo da realidade. É necessário uma soma. considerável.

- Mas não poderias voltar para o mesmo lugar onde estiveste?

- Minha pobre mama! não compreendeste que estive a substituir um médico doente que foi obrigado a passar dois anos em França?

Agora já está restabelecido. Voltou a tomar conta das suas instalações, da sua clientela e eu tenho de criar tudo de novo, pelo meu próprio esforço.

- Mas tu não nos tinhas exposto claramente essa situação - disse o Sr. Abran. - Um pouco de confiança entre os filhos e pais facilita a vida familiar e ajuda a tomar resoluções acertadas. Porque hão-de vocês encerrar-se num mutismo quase hostil, quando só os amamos e queremos o vosso bem

Miguel teve um assomo de irritação.

- Porque temos medo que nos façam aborrecer e desistir. É por isso. Não se melindre com o que eu estou a dizer, avô, mas afirmo-lhe que, se os mais velhos criassem um ambiente de confiança, os jovens não se escondiam em si mesmos. im, bem sei que cá em casa sempre consentiam os nossos gostos e respeitaram a nossa vocação. Mas a geração já não é a mesma. No nosso círculo a vida é vazia. Os novos estão muito afastados dos mais velhos. Muito afastados, mesmo, para se reunirem com facilidade. Talvez pense que nós não sofremos...

- E nós, então... -disse Joana pausadamente. - Trazer um filho dentro de nós durante nove mêses, dar-lhe tudo o que temos em nós e, depois vê-lo tornar-se tão estranho, - poderás supor o que isso faz sofrer uma mãe?

Ele contemplou-a, tão simples e boa.

- Sim, mama, perdoa! Mas nós somos todos assim. Terão de educar doutro modo a nova geração... vou dar uma volta. Faz exactamente o que prescrevi para o pequeno. E não te apoquentes. É apenas uma constipação. Dentro de dois ou três dias pode voltar para a escola.

Inclinando o corpo alto, pousou um beijo na fronte envelhecida da mãe.

- Mama - proferiu ele. E desapareceu.

- Ah! se ele pudesse cá ficar! suspirou Joana, sem que o avô lhe respondesse.

Miguel pôs-se a deambular.

Uma vez mais, dirigiu-se para a cruz no alto do outeiro. Fora lá que Hervé lhe dissera uma vez: "Despega-te!" A cruz, - um daqueles sítios elevados em que se ouvem melhor os chamamentos. Foi subindo, por entre os fetos e os castanheiros. A erva era de esmeralda e brilhava no caminho fundo.

"Uma rapariga fazia aqui um lindo ramo. - pensou ele, perante aquela floração de pequeninas corolas, que punham na verdura as suas manchas de ouro e de brancura.

E ele, que havia estudado a flora africana, se não se preocupava com ramos, interessava-se, no entanto, pelas flores. Ajoelhou-se, para examinar uma gramínea, tão fina. Uma formosa borboleta pousara numa haste oscilante; Miguel contemplou-a, sustendo a respiração. Que tonalidades! E que doce era viver naquele estreito vale da França

Porém, furtou-se depressa a este encantamento. Não era para enternecer-se que ele ali fora, mas sim para recuperar o seu ardor e a sua fé no porvir. com passo rápido, trepou até ao fim da vereda, que se tornava íngreme e pedregosa. Uma vez lá no alto, respirou amplamente. Que vastidão! Mas uma vastidão em que se agrupava tudo o que um olhar de homem pode amar: uma ribeira lenta e sinuosa, bosques que punham uma mancha sombria na palidez azulada da distância que se desvanecia; um céu lindo, em que flutuavam algumas nuvens, que não faziam sombra, e um vento leve, apenas o bastante para vivificar o ambiente sem lhe perturbar a paz.

Esquadrinhando o passado, sentou-se, como no dia seguinte ao seu regresso, no mesmo sítio em que estivera com Hervé. Queria tornar a encontrar o Miguel de outrora, os seus sonhos e as suas hesitações. Queria que os seus vinte e sete anos de hoje se justapusessem aos seus treze anos de então. Era ainda o mesmo rapaz, sequioso de aventuras? O que lhe tinham ensinado aqueles anos, os primeiros anos da sua vida de homem? Procurava. Procurava, não como filósofo, porque ele nada tinha de filósofo, mas como homem de ciência. Analisou-se.

Profissionalmente, os seus princípios pareciam satisfatórios. Aprendera a sua profissão. Sabia, por experiência viva, como se encontra o mal, como se conquista a confiança do enfermo, como se pode insuflar-lhe vitalidade, como se chega a curá-lo, graças tanto à misteriosa influência de uma vontade humana sobre outra vontade humana como à acção dos remédios.

"Eu tenho diagnóstico; os médicos não o têm todos no mesmo grau. E tenho fluido, com isto, chega-se a fazer alguma coisa. Mas nem o melhor pode realizar-se a si mesmo... "

Recordava-se com perplexidade da breve entrevista que tivera em Paris com um dos seus antigos professores.

"Mas por que há-de obstinar-se em ser colonial Tem saúde para isso? E a sua personalidade estará em harmonia com essa vida tão especial? Pertence a uma família provinciana, não é verdade Então faça-se médico de província. Há lá possibilidades interessantes para um rapaz trabalhador. "

Interessantes... Palavra de homem experiente, de homem prático, que pensa no lado financeiro de uma situação. Miguel sonhara outra coisa, que não era o dinheiro. Partir... Fechou os olhos, e imaginou que Hervé, aquele diabo do Hervé, estava ali, direito, seco, com os seus olhos de um azul espesso, os seus cabelos ruivos à escovinha, e lhe dizia uma vez mais: "Sai deste buraco! Faz como eu!" Evocou porém, igualmente, a família. A mãe, carregada de cuidados, o avô, com a saúde a fraquejar, Ivone, Joelle, Maria Ângela, Aliette, que haviam de casar, sem dúvida, o insuportável João Maria, a quem fazia imensa falta uma direcção masculina, mais nova que a do avô. E Gildas, com o seu corpito magro, de olhos circundados de bistre, orelhas transparentes e sensibilidade doentia.

O próprio Hervé apareceu também, cauteloso. Pouco afável, aquele irmão mais novo. Se Miguel quisesse para si uma boa parte dos bens da família, com certeza que ele havia de ter que dizer.

"Ora bolas! Não quero pensar mais na família. O que preciso é de ouvir o que se diz cá dentro de mim. A rapariga que vi em Paris compreenderá o que há dentro de mim? Não me parece. Creio que ela tem mais iniciativa do que intuição. É mais enérgica do que sensível. Será a mulher que me convém Ela não me desagrada, mas eu não a teria escolhido. Eis tudo".

Quando ele tornou a entrar, com o olhar matizado por todos os pensamentos que lhe haviam atravessado a alma, o Sr. Abran, que trabalhava na horta, endireitou-se e disse-lhe:

- Pela tua cara, vejo que deste um bom passeio. Pois é claro, meu rapaz, vê-se logo na tua cara!

- O avô é perspicaz.

Sou velho. Tenho observado muito. Tenho pensado muito. Envelhecer, para alguma coisa há-de servir. Pelo menos pode servir para os outros. Mas, vocês não querem saber da experiência dos mais velhos.

Enquanto ele manejava a enxada, Miguel teve um movimento brusco:

- Pois justamente queria servir-me da sua experiência. Diga-me, avô, eu estarei bem talhado para a vida que escolhi

Ele parou e apoiou-se à enxada:

- Tu nasceste para médico, isso é verdade, e hás-de ser alguém na medicina. Já desconfiava disso há muito e agora tenho a certeza.

- Obrigado, avô.

- Espera lá. Estarás talhado para ir para as colônias? Na minha idéia, é um erro. É uma vida magnífica e compreendo que ela te tenha seduzido. Mas nem o teu corpo, nem a tua alma foram talhados para isso. És bretão e lá nessas terras tão quentes bem cedo hás-de sentir a nostalgia do céu da nossa terra. Sugestionável como és, hás-de ganhar certos hábitos de indolência, o gosto da bebida e dos prazeres duvidosos. Hás-de ir mudando a pouco e pouco. E hás-de voltar aqui envelhecido antes do tempo, doente, desgostoso, com a tua vida estragada. Isto é a minha opinião. Talvez eu raciocine como septuagenário, mas conheço-te melhor do que pensas.

Abanou a cabeça.

- E eu conheço... conheço o que há dentro do homem, meu pobre garoto.

 

A campina dorme o grande sono de Verão. As casas dormem. Tocam à campainha do "Fetal". O avô acorda imediatamente. Naquela idade o sono é leve. Vê as horas e admira-se: é quase meia-noite. Tocam novamente, com insistência. O ancião levanta-se e vai à janela.

- Quem é?

Margarida Lê Fort. O papá está com uma crise. O seu colega foi chamado ao campo, para um parto, e já não volta esta noite. A mama pede ao Miguel que venha.

Falava depressa:

- Vim de bicicleta.

- Sozinha

- Sim. Miguel que venha também na sua bicicleta. O papá está sufocado. É medonho!

Em breve Miguel pedalava ao lado dela, na noite escura, uma noite sem lua.

- Não tivestes medo, sozinha pela estrada?

- Mas julgas que em semelhantes momentos pensamos em nós? A minha única idéia era chegar o mais cedo possível.

- Explica-me o que se passou. Assim vamos ganhando tempo.

Com muita clareza e palavras exactas, ela fez-lhe a história da crise, que, aliás, já não era a primeira.

- Já vi o que é preciso fazer. vou dar-lhe já uma injecção. Tu logo me dizes onde é que ele tem os medicamentos.

- Achas que podemos pô-lo bom, Miguel? A mama diz que ele nunca teve uma crise tão forte.

- Quem é que tem tratado dele O seu colega, o Dr. Robin Não deve estar a par de nenhum método moderno. E depois, Robin hesita sempre. Por nada deste mundo eu queria que ele fosse o médico da minha família... Não vamos muito depressa

- Oh! não, bem sabes que sou boa em bicicleta.

- Assim como no tênis. És uma excelente raqueta! E na água... Uma verdadeira desportista, realmente.

Ele falava para distraí-la. E por um pouco, ela olvidou a sua aflição. Rodar assim, na noite, ao lado de Miguel, teria sido maravilhoso. Mesmo assim, ainda ficava uma parte desse prazer. E a noite cheirava tão bem... Nada mais lhe estaria reservado do que migalhas de ventura.

Seguiu Miguel até ao leito onde Jerónimo Lê Fort asfixiava.

- Estou ao corrente de tudo - disse ele a Susana. - Margarida expôs-me perfeitamente a situação.

Deu algumas ordens, breves, precisas. Depois, inclinou-se para o doente, que murmurou:

- Oh! Miguel... Ainda bem! Eu sofro... sofro...

Com voz doce e firme, Miguel animou-o, prometendo-lhe alívios. E o rosto crispado pela angústia readquiriu um pouco de serenidade. Miguel, então, voltou-se para as quatro mulheres.

- A Sr. a Lê Fort e tu, Margarida, ficam aqui; vou precisar de ajuda. Tu, Rosa Teresa, leva Maria Violeta. É forte de mais para ela ver o pai sofrer.

- Deixa-me cá ficar! - suplicou a pequena.

- Eu não choro!

- Não, vai-te embora, minha filha. Eu sei que és corajosa, mas há gente de mais no quarto. E o teu papá sofre por te ver sofrer. Não é verdade, doutor? Ele aquiesceu, com um sinal de cabeça. Então Maria Violeta estreitou a mão do pai e partiu. A Rainha-Margarida pensava:

"com que delicadeza ele disse: "Minha filha... Como ele sabe ser gentil, este Miguel!"

Miguel esteve em casa dos Lê Fort até de madrugada. Noite horrível em que tantas vezes Susana e Margarida julgaram que o fim tinha chegado. Miguel, porém, repetia numa voz que lhes dava confiança:

- Eu ajudo-o.

Pouco a pouco, a respiração retomou o seu ritmo normal, os membros distenderam-se e, pela manhã, o doente adormeceu.

- Está salvo! - disse Miguel alegremente, saindo do quarto com Margarida.

- Anda tomar alguma coisa, café bem quente. Tu já não podes mais, meu pobre Miguel.

Como ele tinha o rosto desfeito! Mas ela via nele uma beleza de que ninguém se apercebia e que lho tornava ainda mais querido: a beleza que dão a ciência e a consagração.

O jovem médico deixou-se cair numa poltrona.

- Sabes que cheguei a ter medo? É preciso que ele não tenha mais crises como esta. Como é que ele costuma tratar-se? Naturalmente nem se trata, que é o que nós, os médicos, costumamos fazer. Ele precisava de ser observado muitas vezes, de fazer um regime, de trabalhar menos. Quem o tem auscultado

- Ninguém, bem sabes - respondeu ela tristemente.

- Teu pai, de facto, não é muito acessível...

- A mama não consegue absolutamente nada dele. Eu também não. Sou muito parecida com ele e oponho-lhe resistência... Mas que parva que eu sou! À Maria Violeta ele cede, com certeza.

- Essa é uma criança.

- Lembra-te de que ela tem dezassete anos. E depois, criança ou não, o papá é louco por ela.

- Pois seja assim. Encarrega-se Maria Violeta de o fazer tomar as medidas razoáveis. É preciso que ele vá a Rennes consultar-se, por que o velho Robin é perfeitamente incapaz de dirigir um tratamento tão delicado. Está muito velhote e desactualizado. Que bom, o teu café! Isto faz bem. Depois hei-de mandar-to de África. É uma especialidade. Toma tu também. Esta noite terrível passada em claro e a corrida que fizeste de bicicleta... Paraste bem o golpe. És uma rapariga valente, Rainha-Margarida.

Estava tão pálida, que pôde corar um pouco sem que ele desse por isso. De resto, ele nem pensava em olhar para ela.

- Vamos lá - disse ele-, volto para o "Fetal". Lá para o fim da tarde torno a vir. E não se inquietem, o perigo imediato já passou.

- Imediato? Então...

- Então, deves compreender que depois de um acidente desta natureza devem estar prevenidos. Enfim, eu cá estou.

- Não é por muito tempo - murmurou ela. Ele teve um gesto vago.

- Sabe-se lá! Vai descansar, Margarida. Vigia teu pai e, ao mesmo tempo, a tua irmãzita. É uma hipersensível, a Maria Violeta.

- Já viste isso?

- Não valia a pena ser-se médico se nem se notassem os diversos temperamentos das pessoas. Aqui em casa, a mais forte és tu. Sim, tu és sólida. Por isso conto contigo para cuidar do meu doente e conto com Maria Violeta para o fazer razoável.

Parecia muito contente por dizer "o meu doente". E, com efeito, partiu quebrantado de fadiga, mas com aquela plenitude interior que vem do exercício normal da vocação e com aquela alegria magnífica do êxito que recompensa o esforço generoso.

A mãe já fora à escada imensas vezes para ver quando ele vinha. Ao ouvir o ranger da cancela, o avô veio também.

- Está livre de perigo! -anunciou Miguel, erguendo os olhos para esses dois rostos inquietos. - Foi difícil. Aquele homem esgota-se. Se ele não toma precauções, fica-se na primeira vez que volte a estar assim. Ufa que já não posso mais, mama!

Disse isto como antigamente, quando era rapazinho. Joana sentiu-se comovida. Ofereceu-Lhe tudo o que pudesse reconfortá-lo.

- Não preciso de nada, obrigado. Margarida deu-me café. Ela foi admirável. As outras? A Rosa Teresa mandei-a embora, porque não fazia outra coisa senão andar às voltas pelo quarto. E a mais novita, também a mandei embora. Era preciso cuidar também daquela garota. Se a vissem... era a imagem do desespero.

- Ela adora o pai.

- Sim, e talvez seja a única... É um homem duro. Mas é um grande valor... Agora vou ver se durmo alguma coisa. E depois de um bom banho no rio fico rijo outra vez. É, sim, a Rainha-Margarida é realmente uma rapariga admirável... Não façam o almoço muito cedo. Prometi ir ver o meu doente.

Quando ele desapareceu, o Sr. Abran pôs-se a dar piparotes no jornal.

- Joana! - disse ele.

- Meu pai

- Uma rapariga admirável: ouviu?

- Ouvi, sim. Ah! se Deus quisesse ouvir as minhas orações!

Porque, todos os dias, ela apresentava ao Senhor o mesmo desejo. A bem dizer, ela estava sempre na presença divina, mesmo quando executava as suas obrigações domésticas. E essas obrigações caseiras ficavam sempre bem feitas. De igual modo a sua prece, mesmo sem palavras.

Levado pela paixão da sua profissão, Miguel passou a ir, desde então, duas vezes por dia a casa dos Lê Fort. Além dos laços de amizade que existiam entre as duas famílias, havia ali um caso particularmente interessante, um caso pouco vulgar que atingira um doente que estava em condições de analisar cientificamente as suas menores perturbações. Até àquela ocasião, Miguel, absorvido pelas doenças dos países quentes, não prestara grande atenção aos fenómlios cardíacos: era uma ocasião preciosa de adquirir experiência. Por outro lado, Jerónimo Lê Fort sentia diariamente maior confiança no seu jovem colega. E, facto estranho: aquele coração seco experimentava por Miguel um sentimento de amizade, ao mesmo tempo que o considerava um médico de futuro. Pediu-lhe que, por alguns dias, tratasse dos doentes que ele tinha de visitar e de receber. Miguel agradou a todos os clientes pela sua afabilidade e pela segurança do diagnóstico. E depois, Miguel era da região. Por fim, Lê Fort decidiu-se a dar-lhe parte das suas investigações acerca de um novo medicamento e o mancebo interessou-se pelo caso com uma certa paixão.

Um dia chegou uma carta de Paris, perguntando-lhe se reunira os fundos necessários para a sua instalação em África e se, por conseguinte, podia prosseguir os projectos de casamento esboçados. Hesitou um dia inteiro, esteve com um péssimo humor e, à noite, acabou por responder que, naquelas condições, tinha de renunciar a estabelecer-se. Uma vez a carta expedida, sentiu uma singular impressão de alívio. No dia seguinte brincou com Gildas como se fossem ambos da mesma idade. O seu belo riso juvenil encheu de alegria todo o "Fetal". E não tornou a falar no Congo; de resto, lá em casa ninguém mais falou nisso.

Chegou, enfim, o dia, em que Lê Fort pôde retomar a sua actividade. Quando Miguel lho consentiu, agradeceu-lhe calorosamente.

- Sem a sua intervenção, eu já não era deste mundo, Miguel. E actualmente sei bem que já não posso durar muito. Mas, antes de assegurar a minha substituição, de estabelecer na região um médico competente e de casar, pelo menos, a minha filha mais velha, seria uma catástrofe. Nestes dias de repouso, reflecti muito, Abran. Observei o seu merecimento. Diga-me, meu caro, sempre tenciona ir para o Congo

- A falar francamente, de momento não posso pensar nisso. O senhor sabe quanto custa uma instalação médica moderna, sobre tudo nessas terras novas, em que o médico tem de fazer tudo e tudo tem de ter com ele. É por isso que eu procuro uma resolução qualquer que me facilite a partida.

- Talvez eu seja indiscreto; mas não haveria aí um projecto de casamento em conjunto com o projecto da sua ida?

- De facto, havia, mas gorou. O pai não queria contribuir para a minha instalação profissional.

- E a rapariga agradava-lhe

- Bastante. Não tomei nenhum compromisso.

- Então, olhe, Miguel, eu não sou homem de frases. E apresento-lhe a questão com clareza. Se me responder que não, não tornamos a falar mais nisso e ficaremos amigos como dantes. Miguel, minha filha Margarida tem grandes qualidades. Por que não há-de vir a ser seu marido, meu colaborador e meu sucessor?

Naquele rosto moço, todo movimento, o médico viu perpassar um jogo de expressões, que se substituíam umas às outras.

- Honra-me imenso com as suas palavras, doutor. Obrigado... Ainda não renunciei à vida colonial.

- Mas eu sei que está agarrado a essa idéia só por amor-próprio, meu pobre amigo. A idéia de voltrar atrás humilha-o.

- Até certo ponto, isso é verdade - confessou ele. - Mas, por outro lado, não sei quais são os sentimentos de Margarida.

- Eu já os adivinhei. A pequena gosta de si.

- Com a maior franqueza, nunca pensei que ela pudesse vir a tornar-se minha mulher. Tenho-lhe muita amizade, acho-a linda, inteligente, dotada duma personalidade forte. E depois... e depois... é tudo.

- E o que quer você mais - perguntou ele, encolhendo os ombros. Uma quimera, um amor romanesco? Você aprecia Margarida pelo que ela vale, ela tem por si uma terna inclinação. As irmãs consideram-no como um irmão e a mãe há-de-lhe dar o afecto que teria pelo filho que nos foi negado. As duas famílias estão já ligadas por uma amizade centenária. Parece-me, portanto, que se encontram reunidas todas as condições para ter felicidade - isso a que chamam felicidade. Quanto à questão profissional, não podia achar melhor solução. Já tomou contacto com isto aqui. Na questão médica, partilhamos as mesmas idéias. Aqui na região, conhecem-no e estimam-no. E com toda a esperança acrescento que nós dois, juntos, podíamos levar a cabo as investigações científicas que empreendi sozinho. Neste capítulo, a colaboração de um espírito jovem seria simplesmente preciosa.

Miguel calava-se, enervado, perturbado, sentindo-se atraído e repelido a um tempo por esta proposta inesperada.

- Dê-me tempo para reflectir. É tudo tão contrário ao que eu tinha idealizado...

Lê Fort teve o seu riso seco, motejador.

- Sim, trocar a grande África pela terrazinha natal, a aventura pela monotonia, é uma idéia que oprime a sua mocidade. Mas, acredite-me: toda a vida tem sempre vida. Você pode obter aqui um desenvolvimento tão amplo para o seu valor humano e profissional, como obteria nessas terras distantes. E sempre está na sua terra. De resto, não me parece que esteja talhado para a vida colonial,

- O senhor fala como o meu avô.

- Sinto-me satisfeito por estar de acordo com esse homem sensato. Além disso, Miguel, a sua mãe tem sobre ela uma carga pesada e filhos ainda muito novos. Terá, na verdade, o direito de deixá-la assim

Miguel baixou a cabeça.

- Tudo o que me está dizendo, já eu o disse a mim próprio. Mas estou ainda hesitante. É que fiz tantos projectos e idealizei tantas coisas para a África... E confesso que hesito também por causa de... Margarida. Ela ficaria contente com a amizade muito sincera, é certo, que eu poderia oferecer-lhe em lugar do amor absoluto que uma rapariga como ela tanto merece de todas as maneiras?

Creio que ela tem amor por dois - volveu-lhe" médico, batendo-lhe no ombro. - Não há pressa nenhuma. Pense. Peça conselho. Mas você... sabe tão bem como eu - ajuntou ele, pesando todas as palavras - que daqui em diante a minha vida será breve. E antes de morrer queria que a minha substituição ficasse arrumada... E queria que a descoberta em que estou trabalhando ficasse entregue em mãos jovens. Faça-me este favor, para eu poder deixar em paz este mundo onde... onde nunca fui feliz - acrescentou ele, mais baixo. - Até breve, Miguel.

Miguel guardou para si o que lhe disse então. Mas perdeu a sua jovialidade. E no "Fetal" todos se inquietavam. Andaria ele novamente a pensar em partir? Só Gildas exprimia a sua ansiedade, repetindo várias vezes, depois que o irmão mais velho o auscultara e o palpara com as suas mãos longas e doces: "Não te vás embora!" E Miguel respondia: "Parvinho! ", mas sem agastamento.

E por isso, Gigi, tão susceptível, não se ofendia com esse epíteto. Gostava tanto de Miguel! E Miguel, às vezes, perguntava a si mesmo se teria coragem para separar-se do irmãozito.

Aquele mutismo durou vários dias. O Verão atravessava agora uma fase chuvosa. Sob o céu baixo, sentia-se tristeza. Miguel não ia tomar banho por achar a água muito fria. Margarida, pelo contrário, continuava a ir. Mas voltava decepcionada, com as lágrimas a toldarem-lhe os olhos. Já lá não via Miguel. E ela amava-o tanto!

Finalmente veio o sábado e com ele Joelle, a sua amiga. Joelle verificou que Miguel estava num feixe de nervos. com certa astúcia, confiou-lhe o segredo do seu amor por Guy.

- Mas não fales disto à família. Só há uma pessoa a quem eu contei a minha história: a Rainha-Margarida.

- Porque é que contaste a Margarida? perguntou ele com voz de espanto.

- Porque somos muito amigas. E porque... há alguém que a pobre rapariga gostava que a amasse também.

- Quem é esse "alguém"? Joelle deu uma gargalhada.

- És tu, grande parvo! Pois ainda não viste nada? Ela está doida por ti.

- Estás a inventar. Tens uma imaginação desregrada.

- Como é que os rapazes podem ser tão tolos! Disse-mo ela, a chorar. Que é preciso mais?

- Tu nem sabes a importância do que estás a afirmar, Joelle... Imagina que...

- Conta lá a tua história. Mas primeiro dá-me um cigarro.

Estavam ao fundo do jardim, num sítio a que chamavam "sala verde", tão bela era ali a verdura. Miguel estendeu um cigarro à irmã, tirou outro para si, acendeu-os e contou toda a conversa que tivera com o Dr. Lê Fort. Joelle tinha uma qualidade assaz rara: sabia muito bem ouvir.

- Olha, meu querido Miguel, a coisa parece -me tão clara como o dia. Desposar uma rapariga encantadora, encontrar uma clientela já feita e trabalhos científicos apaixonantes e ficar ao pé da mama, é verdadeiramente providencial. Porque é que hesitas

- Por escrúpulo... por lealdade. Tenho receio de não gostar tanto dela, como ela merece. É necessário que não se repita com ela o destino conjugal da mãe, que merecia ser amada e não o foi.

Joelle reflectiu.

- Escuta-disse ela, por fim-é uma rapariga de valor... Mas além disso é formosa, ardente. Depressa estarás tão apaixonado como ela.

- O exemplo dos pais assusta-me. A Sr. a Lê Fort também era ardente e bela.

- Mas tu não és seco como o doutor. E depois, talvez haja uma causa de desentendimento entre eles. Não passes estupidamente ao lado da felicidade. Uma felicidade normal, harmoniosa, em que hás-de encontrar tudo.

- Mas sem viagem, nem aventura...

- Ora! Todos os anos vocês podem dar por aí uma volta e deixar as crianças entregues às avós. Quando é que tens de dar a resposta ao doutor

- Quando eu quiser. Ele está à espera, com impaciência, devo dizê-lo, o que não é nada bom para um coração que está gasto.

- Tem piedade desse coração... e dum outro coração ainda jovem. Fala em primeiro lugar com a Rainha-Margarida. Espera aí, que eu vou à procura dela. Não vou longe; ela está no tênis. Vai lendo, enquanto esperas por mim.

Ele não conseguiu ler. Dentro em pouco, apareceu o vestido branco. Margarida chegou, com a cor do rosto mais viva.

- Tenho calor-disse ela, levando a mão às faces. - Parece que tens vontade de ir para o rio e, que a Joelle te deixou. Eu, é claro, terei muito prazer em remar contigo. O tempo está a levantar. O campo há-de estar bonito, lavado pela chuva. Queres vir?

Foram os dois, falando de coisas insignificantes. Chegados à beira do rio sorriram-se, num acordo tácito.

- Quem pega nos remos? - perguntou ela.

E os seus formosos braços torneados deram um impulso à barca.

É bonito ver uma rapariga num barco. Ele disse-lho. E ela ficou contente e simultaneamente um pouco triste. "Uma rapariga... Então não importa qual? Ela não deixou transparecer a sua decepção, mas, naquele dia, havia entre eles intuições muito subtis. Miguel sentiu que ela aguardava outra coisa:

- O branco fica-te bem, Rainha-Margarida.

Era quase uma parvoíce. Não obstante, causou-lhe alegria. Atirou a cabeça para trás e os cabelos brilhantes adejaram. E entre os lábios, vermelhos como frutos, os seus dentes jovens luziram.

- Como está hoje teu pai?... - indagou ele.

- Está nervoso, o que nos aborrece. Parece inquieto, agitado. Porquê? Devido ao estado do coração Que pensas a este respeito, tu, que o trataste? Deves saber.

Miguel encheu-se de coragem.

- De facto sei porque é que ele está nervoso... Não é só a sua saúde que está em jogo... Não. Está à espera, sabes tu?

- À espera?... Mas de quê?

- Que eu lhe diga se quero ou não substituí-lo.

Um grito:

- Tu, Miguel!

- Sim. Mas pede-me ainda outra coisa, Rainha-Margarida... Uma coisa que tem de se resolver entre nós dois.

Ela tornou-se de púrpura:

- Se tu queres ser meu marido? Que sonho, Miguel, que sonho! Então gostas de mim?

- Amo-te-respondeu ele, sentindo que era verdade.

Verdade como todas as coisas simples que os rodeavam, aquela água verde, a folhagem, o vasto céu lavado pelas chuvas, a sua juventude.

- Oh! Miguel! - murmurou ela, deixando cair as lágrimas. - Amo-te há tanto tempo!

Foi, assim, sulcando o rio, que Miguel se tornou noivo da Rainha-Margarida.

 

QUE alegria em casa dos Lê Fort depois dos esponsais de Margarida! O doutor ria-se, por vezes, o que não o viam fazer há já anos, e falava com a mulher com bastante amabilidade.

Corentina com a sua alma inata de velha criada, rejubilava com a agitação e o movimento que todos os casamentos ocasionam. Estudava já manjares suculentos para o banquete de núpcias. Havia de se falar dele por muito tempo por toda a terra.

Rosa Teresa, embora tivesse sentido um pouco de ciúme com a notícia do noivado de sua

irmã com esse encantador Miguel, depressa se consolara. Parecia que nesta rapariga nenhum sentimento se radicava em profundidade. No que ela pensava, sobretudo, era nas toilettes do cortejo nupcial.

Quanto a; Maria Violeta, era precisamente como uma planta que se endireita e reverdece depois duma chuva benéfica e doce. Ver o pai satisfeito com o seu mais caro desejo e julgá-lo curado, fazia-a duas vezes feliz. Tinha sofrido tanto! Meu Deus quanto se pode sofrer!

Susana, então, sentia em si uma grande paz. O casamento de Margarida era um caso tão grave! Que situação trágica seria se aquela rapariga voluntariosa e apaixonada, impedida de seguir a atracção do seu coração - fosse ela qual fosse - tivesse de entregar-se, juntamente com a clientela, a um homem que ela não houvesse escolhido! E, no caso de ela recusar, a saúde, a vida de Jerónimo em perigo... Susana respirava agora à vontade. Estas tréguas pareciam-lhe extraordinárias. Como ela as gozava! Como ela gozava tudo! O Verão ia avançado, a procissão de 15 de Agosto fizera flutuar musselinas e cânticos por entre a neve fragrante do trigo mourisco em flor. "Casamo-los em Outubro, antes de virem os frios. Margarida faria uma noiva formosíssima. Casar-se-ia na mesma igreja em que a mãe se casara, mas plenamente ditosa, enquanto que a noiva de outrora fazia por convencer-se de que era feliz, sentindo-se pouco à vontade ao lado daquele rapaz alto, de figura elegante e rosto inteligente e fino. Todos diziam: "Que lindo par!" Sim, era o que os outros diziam. Mas eles não sabiam. O que sabem os outros alguma vez?

O casamento de amor de sua filha era uma compensação. Bendizia a Deus, na sua alma inclinada ao louvor e tantas vezes privada de motivos de gratidão. Sentia-se rejuvenescer. O seu sorriso encantador reaparecera-lhe no rosto, que a vida tranqüila da província conservara contornado e fresco. Ela vivia com a alma da filha.

Também a Sr. a Abran dizia para Miguel, a rir-se:

- As duas mamas dos noivos vão parecer bem diferentes. Embora eu não tenha muitos anos mais que Susana Lê Fort, podia passar por mãe dela.

- Porque tu não tens garridice nenhuma, minha pobre mama. Vestes uns vestidos que parecem uns sacos. E o teu penteado! Um carrapitinho feito à pressa, e pronto! Mas exijo que vás bonita ao meu casamento.

- Conta comigo - prometia Joelle. - Já tenho tudo combinado. Costureira, modista e cabeleireiro estão prontos à primeira voz. Deixa estar que as Abran hão-de fazer tão boa figura como as Lê Fort.

Em casa dos Abran todos se sentiam loucamente contentes. Era o primeiro que se casava E tinham a sorte de ele ficar na terra.

- Os teus selvagens vão passar bem sem os teus cuidados-dizia João Maria, que lhe guardava certo ressentimento.

Ele nem sequer pensava nos selvagens. Perante ele abria-se um destino tão agradável! A colaboração com seu futuro sogro trazia-lhe satisfações múltiplas. Tinha muito que aprender com a escola dum homem daquele valor. Em troca, Jerónimo Lê Fort modernizava certos pontos de vista no contacto com um colega moço. Unindo as luzes de ambos, estudavam um método adequado à remodelação do tratamento de certas enfermidades. Eis porque, sob o olhar feliz de Maria Violeta, Lê Fort se expandia, enquanto que Miguel sentia a sua personalidade engrandecer-se.

Quantos conciliábulos entre a "Casa de Cima" e a "Casa de Baixo" (como era costume dizerem), para organizar o cortejo, a cerimônia religiosa, o jantar, e o baile, de tarde!

Ivone, tradicionalmente grave, declarara:

- Que disparate, tanta complicação! Eu, se me casasse, ia de saia e casaco.

- Naturalmente azul-marinho! - gritou o coro das raparigas.

Joelle, que não achava nada suficientemente bonito para a amiga e para o irmão, era menos exigente para si própria.

- Tudo isso custa um "dinheirão". Mas eu hei-de arranjar meio de fazer sensação sem gastar muito. A minha gaforina, de que vocês fazem troça, serve-me de toucado de ouro refulgente. com um vestido branco, por mais simples que seja, é de um efeito real, minhas filhas!

Maria Ângela tinha poucas pretensões:

- Eu, só o que peço é um bom marido.

Aliette, porém, declarou com ardor que queria um casamento de "ir tudo abaixo" e uma cauda imensa no vestido.

- Vale bem a pena, para quem tem uma carinha de saguim, como tu! - disse João Maria, que sabia que era bonito.

- Nunca ouviste falar de feias bonitas, meu velho? Pois fica sabendo que, apesar da minha carinha de saguim, bem sei o que hei-de fazer por ser uma dessas.

Fizeram-se obras na "Casa de Cima" para dar ao novo lar uma independência completa. Miguel tinha bom gosto. Tudo quanto escolhia, agradava à noiva. E Susana comparava esta habitação clara com aquela em que ela tivera de instalar-se quando casara. Tanto que ela gostava de uma divisão, ao menos, fosse modificada a seu gosto: Luís XVI, seda lavrada de rosinhas... Um sonho que nunca se realizara, como tantos outros; a sua vida decorrera entre uma decoração Luís XIII, solene e sombria. Mas as coisas Imdas que se preparavam para a filha, encantavam-na. Ela própria gozava todos os matizes duma ventura juvenil e ardente, que em vão desejara para si mesma.

Cheia da alegria de viver que o amor lhe proporcionava, Margarida sentia satisfação em tudo. A maior era encontrar-se com Miguel na ribeira. Que inebriamento, nadar no mesmo rítimo, experimentar, entre o céu e a água, a mesma sensação de vigor e de mocidade! Quando se punham ao desafio, a Rainha-Margarida vencia. - Muitas vezes desprendiam a barca, metiam-se nela e afastavam-se pelo rio, até ao sítio em que ele se comprime entre rochedos abruptos. Depois, mergulhavam de novo.

- Nunca supus que uma rapariga pudesse nadar tanto - dizia Miguel. - É preciso que sejas robusta!

E ela ajuntava, com toda a simplicidade:

- Havemos de ter filhos lindos.

Tanto um como o outro, desejavam uma família grande.

Entre as alegrias do seu noivado, ela dava grande valor à oferta do seu anel de prometida. Miguel consagrara a parte mais importante do dinheiro ganho no Congo à compra desse formoso penhor. Para que era preciso economizar dali em diante? O seu futuro apresentava-se-lhe sem dificuldades. De resto, Miguel não era nada econômico. E o diamante ficava tão bem naquela mão trigueira, mas de linhas puras, onde ele o via brilhar, encantado por ouvir a noiva repetir

- Gosto tanto do meu anel, Miguel! Olha para estes revérberos!

- Gostas de "bonitos", como as crianças respondia ele, com ar travesso.

Depois pegava-lhe na mão e estreitava-lha até Margarida murmurar qualquer palavra de ternura.

Os seus jovens colegas tinham-lhe inveja.

"Tens sorte em tudo" - diziam-lhe alguns.

- "Uma clientela já feita e uma linda esposa. Bem tolo eras em ir apanhar uma doença do fígado lá em África. Outros criticavam-no: "Abran preferiu a vidinha burguesa à beleza arriscada duma carreira em terras novas. Amimado pelas duas famílias, vai fazer-se um enfatuado!"

De Hervé, tinham vindo algumas linhas, um tanto irônicas:

"Os meus melhores cumprimentos. Que sejas feliz! Afinal eu sempre te predisse que não saberias "despegar-te". Não poderei assistir a essas comoventes bodas bretãs. Do mar das Antilhas, me associarei à ventura das duas famílias, cujo anseio mais respeitável se encontra assim realizado: conservar os pintainhos no ninho. "

Bastante vexado, recusara-se a mostrar a carta à mãe, que ficou muito desapontada. Tinha tanta pena de Hervé estar ausente no dia do casamento! Quando e como se casaria também aquele original?... Desejava em segredo que ele casasse com Rosa Teresa, tão linda como a irmã e de um caracter encantador. Uma personalidade como a da Rainha-Margarida não se dava com a de Hervé. com Rosa Teresa, porém, era tão fácil viver-se!

"Não lhe darei parte desta idéia; era o suficiente para ele se desviar. Mas quando ele vir o irmão feliz... "

E aquele "menino diabólico" andava sempre nas suas preces de mama. Nunca ela rezara tanto. E Susana, também não. E as orações de Susana, todas em acção de graças, floresciam como uma roseira.

Naquele dia estava um tempo lindo, depois das primeiras chuvas do Outono, que acordava nos bosques o odor da terra molhada, dos cogumelos e da madressilva. E as estevas deviam estar todas floridas. Margarida pegou na bicicleta, resolvida a não voltar senão depois do pôr-do-sol, magnífico naquela estação do ano.

- Devo regressar tarde, mama. Se Miguel vier retém-no para o jantar. Ainda hoje não nos vimos.

- Leva a tua camisola de desporto... Não hás-de ir correr de bicicleta com uma blusa levezinha, ó imprudente!

- Oh! mama, já que tu queres... Nunca tenho frio. Vou-me já.

Fez um gesto gracioso com o braço para dizer adeus e afastou-se. Debruçada na janela, Susana seguiu longo tempo com os olhos, pelas curvas da estrada, aquele ponto rápido.

Que vitalidade! Que necessidade de espaço e de movimento! Se houver dois dias de chuva, já ela sufoca. Meu Deus! Que seria desta pequena, casada com um Paulo Rigaud? Havia de sentir-se muito mais contrariada ainda do que eu, porque, embora eu esteja unida a um homem tão frio, posso, ao menos, admirar o seu valor. Pobre Jerónimo! Se ele tivesse querido, podíamos ter sido felizes, apesar de tudo... Agora é muito tarde! Não haverá um segredo para sermos venturosos, mesmo sem felicidade humana? Clara dizia-mo antes de entrar no convento e repetiu-mo depois. Mas uma monja ignora a vida. De resto, cada um é que tem de descobrir a vida. Depois de Margarida estar noiva parece-me que já adiantei alguma coisa na descoberta. "

Foi sentar-se ao piano e aí teve a impressão estranha de que ia dar-se um passo decisivo nessa descoberta. Aonde a levaria aquilo Os dedos vaguearam pelo teclado, mas teve medo da tristeza de Chopin e pediu à claridade de Mozart que a conduzisse para fora das brumas... Mozart parecia-lhe extremamente simples, simples como a água clara de Joana Abran, a outra mãe. Por isso recorreu a si mesma e improvisou fazia-o às vezes, quando sabia que estava só em casa.

Não estava só, porém. Jerónimo entrou sem ruído, a ouvi-la.

"Que paixão!... -murmurou ele. - Onde vai ela buscar isto?"

E pensou, de repente, como seria bom repousar a cabeça fatigada no seio dulcíssimo de sua mulher. Mas repeliu logo esta idéia e abriu a porta bruscamente.

- Ah Jerónimo, és tu...

- Venho incomodar-te. Desculpa-me a indiscrição. Mas queria pedir-te que atrasasses a hora do jantar. Tenho de ir reunir-me a Miguel bastante longe daqui. Voltamos juntos e vem jantar connosco, bem entendido.

- Está bem, Jerónimo - respondeu ela, voltando para aquele rosto magro e impassível o seu rosto arredondado, em que os olhos e os lábios tinham uma expressão indefinível, sem bem sabermos se iam sorrir ou chorar.

Um raio de sol punha reflexos dourados nos seus cabelos castanhos. Sua mulher... Oh! se ela houvesse feito um gesto, talvez ele, realmente, tivesse reclinado a cabeça naquele seio tão doce, em que ele pensava, e que a seda do vestido devia tornar ainda mais doce. Mas ela ficara direita, com as mãos pousadas no teclado, como se tivesse pressa de continuar a tocar. Então, ele disse secamente:

- Continua a entreter-te ao piano. O que desejo é que isso não te impeça de ouvir o telefone. É possível que me chamem; tenho alguns casos sérios.

De novo sozinha, ela abandonou a música. Quebrara-se o encanto. Foi pegar no seu trabalho de agulha. O dia declinava. As filhas mais novas entraram. Maria Violeta abriu um livro e Rosa Teresa ocupou-se da mesa do jantar.

- Miguel janta cá, não é verdade? Mas onde está Margarida a esta hora?

- Foi dar um passeio de bicicleta. Certamente volta antes de Miguel chegar com teu pai, no carro.

Quando os dois médicos vieram, Miguel procurou logo a noiva.

- Onde foi ela

- Para o lado do bosque. Creio que ela queria colher estevas. com certeza deixa-se lá ficar até ao pôr-do-sol, que vai ser magnífico. Olha...

Com efeito, lá no alto estendiam-se nuvens de ouro e de coral. Em breve tudo se converteu em púrpura e, depois, extinguiu-se. O aposento escureceu. Miguel foi espreitar à janela. Ninguém. Jerónimo impacientou-se.

- Sirvam o jantar sem esperar por ela. Podem muito bem chamar-me esta noite.

Miguel fez um sinal a Susana, que ela compreendeu era preciso não o contrariar nem forçá-lo a tomar a refeição à pressa. Sentaram-se, pois, à mesa, com um lugar vago. Miguel enervava-se.

- É costume ela ser tão exacta - disse ele.

- Tenho vontade de ir ao seu encontro. Pode ter-se-lhe furado um pneu sem ela conseguir consertá-lo.

Maria Violeta suspirou:

- Não gosto nada de que falte alguém. Corentina resmungou, enquanto mudava os pratos:

- Vem tanto vento do mar... E a noite já aí está.

Sim, a noite caíra e o vento soprava em volta da casa, íazia vergar os ramos das árvores e bater os postigos.

- É uma tempestade do equinócio - disse Susana. - O pôr-do-sol pressagiava vento. Que cores admiráveis!

Ninguém lhe respondeu. E, no silêncio, a campainha do telefone retiniu.

- Dão licença? - ofereceu-se Miguel, levantando-se.

Ouviam-se, então, algumas palavras, porque a sua voz era sonora e ele não parecia pensar em moderá-la, como os médicos têm o cuidado de fazer.

- O quê? Como? onde? Não façam nada sem o médico chegar.

- Aí temos nós um desastre - pronunciou Jerónimo. - E eu que já guardei o carro.

Miguel voltou à sala. Vinha lívido.

- É preciso ir buscar Margarida.

Aconteceu-lhe um pequeno desastre. Não sei exactamente o que é... O doutor fica. Eu vou sozinho. Não há precisão de serem dois.

Susana compreendeu: era grave e ele queria poupar o pai a uma emoção. Este porém, erguera-se:

- Está louco, Miguel?... Então minha filha precisa de socorro e eu não vou. Vem tu também, Susana. Rosa Teresa e Corentina preparam a cama e água fervida. Vamos sem perder um instante.

- Eu levo o estojo de socorro-disse Miguel, cujas mãos tremiam.

- E eu, um cobertor e uma almofada-acrescentou Susana.

Partiram a toda a velocidade na direcção indicada pela voz longínqua, que transmitira a Miguel a terrível mensagem

"A bicicleta foi colhida por um camião. A Senhora perdeu muito sangue. Continua sem sentidos. Encontraram-se no saco dela alguns papéis que permitiram identificá-la. "

Corentina e as duas pequenas ouviram, em silêncio, o carro afastar-se. Quando já nada se ouvia, a velha disse solenemente:

- Bem me parecia que estava para vir uma desgraça. Via-se no céu, todo vermelho; era um céu de sangue.

- Cale-se, mulher, cale-se! - ordenou Rosa Teresa. - Não vê que está a afligir esta pobre criança

E Rosa Teresa teve de amparar nos braços Maria Violeta.

 

MIGUEL só entrava agora no "Fetal" para dormir. E nem todas as noites. Lê Fort e ele partiam entre si os cuidados com a clientela e com a pobre sinistrada, que eles haviam trazido esfacelada e banhada em sangue. Julgavam, então, a morte iminente. Mas os seus esforços tinham vencido a morte. Quantos perigos terríveis a combater! O esgotamento da hemorragia, as possibilidades de tétano, a gangrena, a dilaceação de tecidos internos...

Margarida primeiro sem consciência e, em seguida presa do o delírio, não reconhecia ninguém e precisava de ser velada de noite e de dia. Eram três dedicados a essa tarefa: o pai, a mãe e o noivo. Ao domingo juntava-se-lhes Ivone, hábil enfermeira. Susana podia, assim, repousar um pouco. Repousar corporalmente, porque o espírito não tinha descanso.

Em que estado sairia daquele desastre a linda Rainha-Margarida?... As feridas do rosto deviam ser horrorosas, visto que não deixavam a mãe assistir a esses tratamentos delicados e atrozmente dolorosos. E o corpo, aquele corpo jovem e formoso, recuperaria a sua graça, a sua flexibilidade Tantas fracturas, tantos esfacelamentos...

Tinha deixado de trabalhar nos vestidos.

Quando Miguel chegou a casa, numa tarde dos fins de Outubro - uma tarde triste e pardacenta-, a casa pareceu-lhe um oásis, sem cheirar a farmácia, sem gemidos, sem caras preocupadas. O avô lia o seu jornal ao pé de um brilhante lume de lenha (o primeiro daquela estação) e a mama consertava meias. Maria Ângela punha a mesa. Gildas lia. Veio até ele um cheiro quente a sopa bem fervida. Teve vergonha de achar a atmosfera agradável.

Logo que ele chegou, toda aquela colmeia tranqüila se movimentou:

- Vem para ao pé do lume! Descansa. E então, que novidades há

- A febre baixa todos os dias. Já vai falando.

- E compreende o que lhe sucedeu

- Absolutamente nada. Nem tão-pouco sabe como está.

Não insistiram mais. Gildas estava a mais para falarem em coisas tão tristes. Cearam. Miguel perdia a pouco e pouco aquela expressão de angústia que lhe crispava as feições. Fino conversador, o Sr. Abran soube encontrar assuntos para conversarem, capazes de fazerem desviar a atenção; e as duas mulheres haviam preparado a refeição segundo todas as preferências do Miguel de outrora. Sem mesmo analisar a qualidade do que lhe serviam, experimentava um bem-estar animal.

Assim que o mais novinho se deitou, Joana encaminhou subtilmente a conversa para o assunto que a todos preocupava. E então, o desespero, por tanto tempo contido, explodiu:

- Ela não morre, disso já nós não temos dúvidas. Tem tanta vitalidade! Mas em que condições vai viver a pobre pequena!... Desfigurada... Um dos lados da cara está completamente irreconhecível.

- com certeza que a cirurgia estética tem recursos para isso, Miguel.

- Sim, para se conseguir que ela não fique um monstro. Mais não poderão fazer. Soluçava, com a cabeça entre as mãos.

- E depois... vai ficar marreca. Não sei se mesmo com um aparelho a coluna vertebral tornará a endireitar-se; tem lesões graves. O professor Floquet veio hoje de Rennes. Os seus prognósticos foram sombrios. Disse-nos sem rodeios o que nem o pai nem eu tínhamos previsto ainda: "Se ela se casar, o que não é de desejar (são palavras dele) não pode ter filhos. Tem que orientar a sua vida noutro sentido. Ele não sabia que estávamos para casar. Não pude conter um grito: "Mas ela é a minha noiva! íamos casar breve. Ele olhou para mim e fez um gesto de impotência; depois, disse-me, com a voz um pouco mais doce: "Tenha coragem, meu pobre rapaz. Que significa isto, avô, "tenha coragem"? Quando um homem fala assim a outro homem, o que quer ele dar-lhe a entender

- Que esse homem tem dois caminhos a seguir: ou ser fiél ao seu compromisso e casar assim mesmo - e para isso é preciso realmente ter coragem: ou então quebrar os laços, que ainda não passam duma promessa, e abandonar a noiva - o que também seria difícil. Tens de escolher.

- Nunca abandonarei Margarida. Hei-de tratar dela, hei-de ampará-la, hei-de consolá-la e amá-la.

- Sim, meu filho - disse Joana-, tens grandes deveres com a pobre criança. Mas não estejas a rasgar o coração antes do tempo. Esperemos... Sabes, melhor do que eu, os milagres que a medicina e a cirurgia modernas podem fazer. Pode ser que ao fim de um ano Margarida possa tornar a fazer uma vida normal e a ter um aspecto normal.

- Há-de ter sempre uma vida deficiente. E um aspecto normal, nunca mais! E o resto, a maternidade.

- Miguel, - proferiu o avô, - sé forte! Um homem digno desse nome luta até ao último limite do possível, sobretudo quando tem a ciência ao seu serviço. E tu és cristão.

- Não o sou bastante, avô.

- Pois faz-te. Se Margarida sentir que tens confiança na medicina e em Deus para ela se curar, ela mesma terá confiança e a sua cura será mais segura.

- O meu espírito, o meu coração, todo o meu ser, faz por ter essa confiança. Mas, como médico, vejo a realidade. Desfigurada e inválida, é o futuro dessa rapariga admirável. Uma provação tão grande, porquê? Que injustiça!... Mama, tu que rezas tanto, poderás explicar-me isto?

Lentamente, Joana respondeu:

- Não procuremos compreender. Aceitemos. E imploremos forças para aceitar sem revolta.

- É impossível. Como queres tu que ela aceite, a infeliz pequena? Mas tu compreendes Formosa, robusta, feliz, em vésperas de casar-se com o rapaz que ama, e depois ver-se feita em bocados Ah! que horror! que horror! É de endoidecer. É por isso que nunca a abandonarei.

- Como se deu o desastre?

- O motorista do camião deve ter bebido, com certeza. O inquérito é que há-de revelar as responsabilidades que ele tem. Mas para que serve condenarem-no?... Margarida já não

Mais recupera, a saúde, a beleza, a felicidade... Farei o impossível para ela ser feliz da

mesma maneira. É no que vou empenhar-me daqui em diante. Sofreremos juntos; um arremedo de felicidade! Boa-noite, avô. Boa-noite, mama. vou para a cama. Já não posso mais. Tinha feito melhor se tivesse ficado em África!

Quando os passos dele se extinguiram na escada, Joana voltou-se para o sogro lavada em lágrimas:

- Pai, esta vida de renúncia, ao lado de uma inválida, vai ser superior a ele, meu pobre filho. O que pensa

- Respondo-lhe a si o que lhe respondi logo a ele: esperemos.

- Mas esperar o quê, avô - interrogou Maria Ângela, que também estava a chorar. - Miguel parece estar certo do que diz: desfigurada e inválida.

- Deus não anda tão depressa como a nossa impaciência, Maria Ângela. Deixemos a mão de Deus marcar cada um dos dias que hão-de vir. Podem dar-se muitas coisas, tanto de ordem material, como de ordem moral.

- Se ele a abandonar, é uma vergonha! exclamou a rapariga.

- Não é preciso isso... Um Abran mantém a sua palavra. Que triste caso, na verdade! Minha pobre Joana, que estava tão contente com este casamento!

- A mama é uma santa; conforma-se a tudo. Eu não posso. Mas a vida, é isto? Sofrer, sempre, e ver sofrer? Não haverá maneira de ser-se feliz? Mas então o que se há-de fazer para se viver?

- Eu tenho vivido - disse Joana. - E apesar dos sofrimentos, tenho conhecido a felicidade. Tenho-a, ainda, por intermédio de vocês todos e da intimidade com Deus. Em vez de te revoltares, reza. Reza por teu irmão e pela tua amiga,

- Isso não vale de nada, rezar.

- Serve sempre. Mais tarde é que se vê. Não é verdade, pai

- Sim, mais tarde é que se vê. No fim da minha vida é que estou a compreender muitas coisas que me pareciam enigmas.

Muito lentamente, Margarida ia recuperando um pouco as forças. Sempre estendida, imóvel, a cabeça e a cara envoltas em ligaduras, sentia-se, no entanto, reviver. E que doce era saber que Miguel se debruçava sobre o seu leito várias vezes ao dia! Adorava deixar-se tratar por ele. Abandonava-se, como uma criança, entre as suas mãos longas e hábeis. E todas as vezes que ela perguntava: "Então o que é que eu tenho partido?" ele respondia-lhe com palavras inteligentes, cujo sentido preciso o seu intelécto fatigado não procurava investigar. Por todo o corpo ela sentia dores, afinal... Teve dificuldade em lembrar-se do desastre. Mas por fim, um dia, brutalmente, veio-lhe uma recordação

- Estou a lembrar-me agora! O lenço do pescoço tinha-me voado e dei meia volta para o apanhar. Na estrada vinha um camião... Oh! que horror!

- Não penses mais nisso, minha querida!

- aconselhou Miguel. - Para que serve?

- Estou contente por me ter lembrado. Podiam acusar o motorista do camião. Sobretudo é preciso que não o incomodem por causa disto. A falta foi minha...

- Tens a certeza disso? Sendo assim, vais dar a felicidade ao pobre rapaz. Estava acusado de ter bebido de mais e, certamente, ia ser condenado.

- Que injustiça! Não quero injustiças, Miguel.

- És tão boa, minha querida!

Mas, fatigada, ela já fechara, não "os olhos", mas o único olho que estava fora das ligaduras. O outro? Não se sabia se continuaria a ver.

Passaram-se semanas. As feridas foram fechando e as fracturas iam-se reduzindo. Um dia, Margarida falou em levantar-se e pediu um espelho.

- Devo estar bonita, eu

É claro que não lhe deram espelho nenhum. E impuseram-lhe a mesma imobilidade, de costas. Por fim, a sua natureza ardente despertou.

- Isto já é de mais! Quero que me digam porque é que tenho de estar imóvel. Há alguma coisa na coluna vertebral? Responda-me, papá! Tenho o direito de saber.

- Está bem! Sim, tens uma vértebra lesada.

- Então é preciso um colete de gesso.

- És bem filha de médico.

- E a minha cara Quero ver-me.

- É inútil. Bem sabes que essas cicatrizes vão desaparecendo a pouco e pouco.

- Ou nunca, não é?

- Fazem-se operações.

- Estou então reduzida a isso - gemeu ela. - Antes morrer... Miguel, quero que Miguel venha!

Como era costume, Miguel veio pela tarde.

- Miguel, tu amas-me?

- Amo-te, sim!

- Então responde-me, não como a uma criança, mas como se responde a uma mulher

- e eu devia ser já tua mulher: voltarei a ser como era antigamente? Absolutamente a mesma coisa

- Temos esperança disso, minha filha. Há tantos métodos novos depois da guerra. E na América os especialistas destes casos têm trabalhado muito.

- Mentes muito mal, Miguel! Estou horrível, não é assim? já apalpei com os dedos. A face esfacelada, uma cruz numa fonte, o olho direito encovado, a testa deformada. E tenho os dentes partidos, os meus dentes, que eram o meu (orgulho! E as costas, quanto tempo levarão a endireitar-se, Miguel? Não mintas. O que me espera é um aparelho de gesso.

- Sim, minha querida. Por algum tempo.

- E ainda há seguramente outra coisa. O papá parece muito preocupado quando me apalpa. Miguel, tu não podes mais amar esta rapariga.

Ele ajoelhara-se e estreitava entre as suas Aquela pobre mão com dois dedos esfacelados.

- Hei-de amar-te sempre. Casaremos quando tu quiseres. Vais ser minha mulher ainda antes de poderes levantar-te. Tratarei de ti com todo o cuidado, minha linda margarida! Hás-de tornar a florir e havemos de ser felizes!

- Obrigada! - suspirou ela. - É maravilhoso sentir o teu amor. Torna a dizer-mo. Diz-me isso, que é como uma história linda, que se conta a uma criancinha para adormecê-la. Um conto de fadas!

- Amo-te, Margarida. Manda-me vir aqui o oficial do Registo e o Sr. Cura. Por cima da tua cama estende-se o vestido de noiva, o teu lindo vestido de cetim branco. O quarto vai estar cheio de flores, de lilases, de rosas. Estamos no Inverno... mas mesmo assim havemos de arranjar flores. O Sr. Cura dirá a missa. Comungamos os dois juntos, como tu desejas. Eu meterei a aliança no teu dedo. E ficaremos unidos para sempre... Rainha-Margarida, minha flor querida...

Mas deteve-se. "Está a dormir... - murmurou.

Saiu sem fazer barulho. Ela, porém, não dormia. Pensava com a mesma lucidez que tinha antes e lutava contra a sedução desse belo conto. Uma linda margarida, dissera ele... Mas, ainda o era

No dia seguinte disse ao pai que desejava que o professor Floquet a examinasse de novo. Ele ficou um pouco admirado. Porém, sentia-se já tão extenuado daquela luta contra a morte, que acabou por achar preferível ouvir uma vez mais a opinião de um mestre. Floquet veio. Ela quis ficar só com ele. Exigiu.

- Já não sou nenhuma criança, papá. Deixou-se interrogar, examinar, palpar. E ele

admirava-lhe a inteligência, a calma. Mas, bruscamente, ela disse-lhe:

- Doutor, todo o ente humano tem direito à verdade, não é assim? Não tenha medo, quando é preciso tenho coragem e a incerteza para mim

é pior do que tudo. Voltarei a ter a cara como eu tinha se me fizerem um enxerto? Não responde. Já compreendi: vou ficar desfigurada.

- Não, minha filha. Mas é claro que não vai ficar exactamente a mesma.

- Outra pergunta: e poderei tornar a ter uma vida activa, praticar desportos?

- Oh não seja tão ambiciosa!

- Poderei ter, ao menos, uma vida simplesmente normal?

- com muita parcimônia.

- E as minhas costas tornarão a endireitar-se?

Um gesto vago: só depois do aparelho de gesso o saberiam.

Ela pegou na mão do sábio:

- Agora vou fazer-lhe uma pergunta muito importante. Ainda sou uma mulher normal, que possa vir a ter filhos

- Nem todas as mulheres podem ser mães, minha filha.

A mão crispou-se-lhe, apertando a do médico.

- Sonhar com o casamento, será preparar a desventura de um homem, não é verdade?

- Oh! não diga palavras tão grandes! A desventura... Mas o que é a felicidade ou infelicidade

- Torna a esquivar-se, doutor. Ouça. Sabe que sou noiva de Miguel Abran. Terei eu o direito de lhe impor tais sacrifícios? O senhor conhece-o; julga-o capaz de suportar toda a vida uma mulher defeituosa?

- Foi Abran que a escolheu, verdadeiramente, num sentimento espontâneo? Ou a idéia deste casamento veio de fora, de quem o rodeava

- Reflecti em tudo isso. Miguel não me escolheu; o papá é que lhe ofereceu a filha e a clientela. Está a compreender Ele aceitou tudo. Em seguida, amou-me, isso é certo. Oh! sim, nós amámo-nos. Mas ele não pensava em casar comigo antes de meu pai lhe falar nisso. Sei que ele não volta com a palavra atrás. Mas eu quero desobrigá-lo. Tenho razão, não é verdade?

Ele ficou silencioso e por fim disse:

- Tem um grande coração!

- Obrigada, doutor! Vá ter com meus pais. E nem uma palavra da nossa conversa: o segredo profissional.

Tentou sorrir, heroicamente. Pobre sorriso, arrepanhado entre cicatrizes, que o mestre achou o sorriso mais lindo que ele jamais vira num rosto de mulher

 

A decisão de Margarida estava tomada: libertaria Miguel do seu compromisso. Mas era preciso habituar-se a isso tudo: à sua invalidade, à sua lealdade, à sua renúncia ao amor.

Em primeiro lugar toda a sua energia tinha de concentrar-se neste ponto: renunciar ao amor. Depois se veria... Era terrível! Sentia uma crispação de dor por saber que Miguel jamais a abandonaria voluntariamente e que, no entanto ela devia desligar da sua, aquela vida jovem e saldável. Porém, não encontrava ainda segurança bastante nas suas forças físicas para dar o golpe que tanto mal iria causar aos dois. E não queria ajuda. "Não quero ajuda nenhuma, Estas coisas fazemo-las inteiramente sós" - pensava ela, a um tempo desesperada e orgulhosa. - "E depois haviam de comover-se, de querer consolar-me... Não!"

Não obstante, um dia a mãe encontrou-a banhada em lágrimas.

- O que tens? Sofres mais? Queres que te dê uma injecção? Ou preferes que Miguel tá dê esta tarde

- Miguel, sim. Ele que venha cá assim que voltar.

A mãe deu-lhe um medicamento a beber, com tanta delicadeza e carinho, que ela se enterneceu e balbuciou numa voz de criança:

- Mama!

Ao ouvi-la, Susana não pôde reprimir um desafogo maternal.

- Minha pequenina, minha querida, minha linda!

- Tua linda Oh! mama, tu dizes isso como antes. No entanto eu já o não sou; já não sou a tua linda...

- Para mim hás-de sê-lo sempre! Miguel veio mais tarde; trazia bombons e

flores.

- És muito gentil, Miguel. Não é preciso amimar-me assim.

- Nunca te amimo bastante.

A pronúncia da Rainha-Margarida estava um pouco alterada. Mas ele ainda não o notara àquele ponto. E como a cicatriz da face era feia! Beijou-lhe a outra face, sem prazer; e acusando-se daquela relutância, tornou a beijá-la. Ela suspirou. E repetiu:

- És muito gentil!

Ele deu-lhe a injecção e, como era costume, instalou-se perto da cama para conversar.

- Tu és o meu jornal, Miguel. Que novidades há esta tarde?

- Aqui tens uma bastante surpreendente.

João Maria, que se tinha tornado tão bom aluno no fim do ano lectivo, começou outra vez a não dar nada. O avô está furioso. E vê lá tu que a Ivone, tão sensata e trabalhadora, defende-o. "Deixem-no lá sossegado. O garoto está atravessando uma crise. Eu compreendo. Isso há-de passar... Outro acontecimento: Joelle participou-nos que está noiva. O rapaz é estudante de Direito, como ela. E não pensam em casar antes de cada um ter a sua situação definida. Por isso vão esperar. Ela vai levá-lo lá no domingo, para o conhecermos. "Quero que toda a família conheça Gui e o adopte", disse ela.

- Gui, chama-se Gui... um nome bonito. Ela mostrou-se feliz

- Muito. Para dizer a verdade, eu já desconfiava daquele pequeno romance. E tu?

- Ela já me tinha falado nisso. Contávamos muitas coisas uma à outra. Antes...

- Agora és tu e eu que contamos coisas um ao outro, não é verdade?

Ela sorriu tristemente.

- Que posso eu contar-te...

- Que me amas. Que te sentes melhor... Que vais deixar-te levar a Rennes e que vais sair da clínica perfeitamente bem.

- Cala-te... oh! cala-te... Julgas-me completamente estúpida? Noutros tempos folheei bastantes livros de Medicina - sonhava estudar Medicina - e li o suficiente para saber que sairei da clínica em estado de andar, mas toda deformada e corcunda. E que a cirurgia estética não me impedirá de ser medonha.

Medonha, estás a ouvir? Se não houvesse a mama e depois... e depois Maria Violeta, recusava-me a esses tratamentos, a essas operações. Deixava-me morrer. Mas há a mama e há Maria Violeta...

- Tens então muito amor a essa irmãzita?

- Tenho. Nem sei porquê. Tão pura, tão suave... E depois, faz-lhe tanto mal ver sofrer os outros. Quem dera morrer... mas não se morre assim, facilmente. No fundo, sou forte. Posso viver até muito velha. Por isso tenho de fugir o mais possível da dependência, da invalidez... Sabes que também pensei no suicídio, Mas creio que as nossas mães têm rezado tanto, que o têm impedido. A tia Clara também, lá no convento. E Maria Violeta...

- E eu também - murmurou Miguel. - Mas eu não passo de um pobre homem.

- Miguel... quero dizer-te uma coisa... Esquece-me... já não posso ser tua mulher. E peço-te que estejas algum tempo sem vir. O papá e a mama tratam de mim.

Por sua vez ele gritou, então:

- Cala-te!

Mas de nada lhe valeu suplicar, protestar a sua fidelidade, o seu amor. Não obteve dela mais do que esta palavra: esquece-me! Sentia-a ainda tão fraca, que não teve coragem de prolongar esta cena, dolorosa. E retirou-se depois de um demorado beijo naquela pobre boca deformada. Ah! como Margarida desejara aquele beijo! O último...

Manteve-se sozinha uma hora, para lhe saborear a recordação. Julgavam que ela tinha adormecido. Mas acabou por chamar a mãe.

- Está tudo acabado, mama. Desliguei-o da sua palavra.

- E ele acedeu? Oh! pensei que tivesse mais coração.

- Protestou, é claro... Disse que nada tinha mudado. Mas eu é que já não quero. Não quero que alguém case comigo por compaixão. E eu não tenho o direito de impedi-lo de ter uma vida normal, de ter filhos... Não quero vê-lo mais. Tu e o papá chegam para tratar de mim.

- Tu procedeste por impulso... Recuso-me a crer que isso seja definitivo. Vejamos, Rainha-Margarida, tu adoras esse rapaz. E ele ama-te.

- Vês tu? não empregas a mesma palavra... Sim, ele ama-me. Mas depressa isso lhe passará! No Evangelho há uma parábola que fala da semente incapaz de lançar raízes e que os pássaros destroem. O amor de Miguel é assim. Não tem muitas raízes. E virão as aves... Uma ave.

Susana preferia as lágrimas. Mas Margarida repetia no mesmo tom:

- Não tem raíz. Um pássaro. É isto mesmo. Meu Deus! como se daria a notícia ao pai

A própria Margarida pensava nisso, porque murmurou:

- Para o papá vai ser duro... Tu não lhe digas nada... Irritava-se... Eu falo-lhe nisso. Boa-noite, mama, queria dormir. Nós nem pensámos na injecção, como deves compreender.

Miguel chegou transtornado ao "Fetal".

- Margarida está louca. Declarou-me que o nosso casamento está desfeito. Não posso aceitar semelhante coisa. Se a aceitasse seria um miserável. Mais do que nunca, tenho o dever de casar com ela. Quem, senão eu, poderá consolá-la, protegê-la, fazer o impossível para curá-la?

- Meus pobres filhos! meus pobres filhos!

- repetia a mãe. - Foi ela mesma que to disse? Conta-nos essa entrevista, que deve ter sido bem triste.

Quando ele terminou a narrativa, o Sr. Abran reflectiu alguns instantes e depois disse:

- Não desmanches nada. Já que ela não quer tornar a ver-te, sujeita-te ao seu desejo. Mas escreve-lhe e diz-lhe que, para ti, nada se modificou, que o teu amor se mantém fiel e que apenas esperas uma palavra dela para voltares. Vai já escrever isto. Gildas leva a carta.

- Obrigado, avô. Ah! que derrocada!

Subiu ao quarto, para redigir a difícil missiva. Quando ficaram sós, o avô e a mãe olharam um para o outro:

- Este casamento tornou-se impossível. E a pobre pequena compreendeu-o. Que magnífica coragem! - disse Joana.

- Sim, Margarida era uma rapariga de valor. O corpo está destroçado, mas, a auma continua inteira. Creio que ela há-de reagir e que mesmo assim há-de encontrar meio de viver plenamente. Pobre criança, tão linda e despojada assim. Uma margarida desfolhada... Joana continuou:

- Olhe, pai, eu mal me atrevo a exprimir o meu pensamento. Mas talvez o pai tenha o mesmo.

- Sim, e eu não tenho medo de dizê-lo às claras. Nada de hipocrisias. Como a Joana, pergunto a mim mesmo se daqui em diante Miguel -poderá ser, ainda, o colaborador e o sucessor de Lê Fort. Isto criou uma situação impossível.

- E temos outra vez a perspectiva da partida. Todas as questões angustiosas vão aparecer novamente, pai... E havemos de deixá-lo partir sem dinheiro Ele já gastou muito com o casamento. Só o anel, aquele anel tão lindo!

- Lá ficou perdido, esmagado na estrada, com certeza. Margarida ainda não sabe, pois não?

- Pois não. Disseram-lhe que o anel estava torto e que o tinham levado para o joalheiro... Pai, que partido havemos nós de tomar?

- Aguardar a reacção do Dr. Lê Fort. Parecia tão preso a Miguel... Estão a falar de Miguel?... indagou Maria Ângela, entrando no aposento com um desabrimento que não lhe era habitual. - O que há mais

- Margarida desobrigou-o da sua promessa de casamento.

- E ele aceitou? Ah! aí está o que se chama amor! Sim, nos romances, no cinema, o amor é uma coisa bonita, poética. Mas na vida... Que feia coisa, a vida, mama.

- Não fales assim. com as suas alegrias e as suas tristezas, a vida é bela. Mesmo quando se chora, há beleza.

- E quando faltamos à nossa palavra? Quando se deixa a mulher que se ama, com o pretexto de ela ter perdido a beleza

- Teu irmão não deixou Margarida. Ela é que entende, e com razão, que já não pode casar-se.

- Ora... Casa-se, casa-se... A alma é que importa.

- E o corpo também, minha filha. É do corpo da mulher que depende toda a raça.

Ajoelhando-se em frente do lume, Maria Ângela disse:

- Tenho frio, estou com frio, de repente. E não falaram mais naquilo.

Mas na "Casa de Cima" falavam. A Rainha-Margarida, sem frases, anunciara ao pai:

- Desobriguei Miguel da sua palavra. Tem de deixar de me considerar sua noiva. Já não posso casar-me.

Ah! como ele receava aquele impulso da vontade da filha! Miguel, sabia ele bem que não recuava, mas previa já a reacção de Margarida. Tentou demonstrar-lhe que tomava uma decisão prematura, irreflectida, que o seu estado de saúde iria melhorar, que entre noivos que se amam há elos muito fortes para se quebrarem assim. Disse-lhe, também, que ia desesperar Miguel.

- Como tu mentes mal, papá! Como o senhor mente mal, doutor! Sabe muito bem que a minha vida está despedaçada.

- Mas é uma loucura dizer isso. Afianço-te que é uma loucura.

- Ouve, papá, já fiz o sacrifício. Não o tornes mais cruel com as tuas considerações, que não servem absolutamente para nada.

- Mas ele resigna-se a isso? É indigno!

- E o que há-de ele fazer? Mandei-o embora.

- Deve sofrer atrozmente.

- Pois sim, mas não há-de sofrer sempre.

- Disse ela com lentidão. - Vamos, papá ele amava-me, mas não como eu o amava a ele. Creio que há um sempre que ama mais do que o outro. Aqui era eu. Eis tudo... E agora peço-te, papá, que não fiques doente por causa djisto.

Lê Fort saiu do quarto como um ébrio. Todo o dia se mostrou rude com os doentes. Encontrou Miguel junto de um moribundo e falou-lhe de maneira glacial.

À tarde, porém, Miguel foi ter com ele.

- Doutor, julgo que já conhece a nova situação. Margarida rompeu com tudo. Eu continuo a considerar-me seu noivo. Porque espero que ela se arrependa desta decisão, tomada num momento de desespero.

A voz de Lê Fort era cortante e o olhar duro:

- Conheço minha filha. Não se arrependerá da resolução que tomou e que eu, como médico só posso aprovar. Esqueça-a. Dê outro rumo a sua vida. Não temos o direito de aceitar-lhe o sacrifício de ficar ligado a uma inválida.

- Não posso tentar vê-la?

- Proíbo-lho. Esta convalescente precisa de calma.

E, com esforço, acrescentou:

- Obrigado por tê-la feito feliz durante alguns meses. Não sei qual foi o poeta que disse: "Uma recordação de ventura é, talvez, sobre a terra, mais verdade que a própria ventura. Talvez, de facto. Quem, de nós, conheceu a ventura muito tempo?

Queria dizer ainda outra coisa. Começou:

- Pela minha parte...

E depois, estacou. Estendeu a mão ao mancebo.

- Tornaremos a falar de tudo isto, meu pobre amigo. Não tenho forças para continuar esta tarde uma conversa tão penosa.

Depois do jantar disse à mulher:

- Margarida deu-te parte da sua resolução, não é verdade? Convém dizer tudo às irmãs. Ela desmanchou o casamento. Atitude dolorosa, mas digna dela. A Rainha-Margarida tem altivez de mais para aceitar a substituição do amor pela piedade.

- No entanto... -começou Rosa Teresa com voz trêmula - Miguel deveria ter.

- Não te preocupes em julgá-lo. Adimira é a força de alma de tua irmã.

Maria Violeta estava calada. Olhava para o pai. Como ele estava nervoso! Quase não comera nada durante o jantar.

Telefonaram. Um caso urgente. Todos os sintomas de uma hérnia estrangulada. Era preciso o médico imediatamente. Talvez, até, fosse preciso transportar o doente a Rennes. Jerónimo sentiu que no estado de tensão em que se encontrava naquela tarde não podia conduzir o carro com tal responsabilidade. Então, disse secamente:

- Quem quer descer ao "Fetal" e pedir a Abran que vá encontrar-se comigo em casa dos Touchard? Eles nem sequer têm telefone, estes Abran!

- Eu vou lá, papá! - exclamou Rosa Teresa. - Na minha bicicleta chego lá num instante.

- Papá - suplicou Maria Violeta -, se tu me levasses a casa dos Touchard

- Estás louca

- Podes precisar de ajuda, enquanto esperas que Miguel chegue. E a mama não pode deixar Margarida, bem sabes.

Nos olhos cor de malva havia um pedido intenso. Ah! aquela pequena!... E depois, se ele a levasse? Ela sabia guiar um pouco,

- Pois vem, se quiseres. Se tivermos de levar o doente a Rennes venho pôr-te aqui antes de lá voltarmos.

- A Rennes, esta noite? -disse Susana com espanto.

- Tenho receio. É uma hérnia estrangulada.

- Deixa Miguel ir lá sozinho, Jerónimo. Estás tão fatigado...

- Não... Touchard é meu cliente. E é preciso que me habitue a cumprir, eu próprio, as minhas obrigações. Vamos lá, anda, pequena! Susana ficou admirada de ele levar a filha. Era preciso sentir-se pouco seguro de si mesmo naquela noite!

- Está a começar a nevar - anunciou Corentina. - E Rosa Teresa quis ir de bicicleta! Tape-se, Maria Violeta. Isto não é tempo para si.

E para quem podia ser aquele tempo. Susana ficou só com os seus pensamentos. Moía e remoía naquelas palavras pronunciadas pelo marido com uma espécie de solenidade: "É preciso que me habitue a cumprir, eu próprio, as minhas obrigações. Então... terminara a colaboração de Miguel? a sua substituição? Se Miguel já não podia, evidentemente, ir ali a casa como íntimo, não podia continuar a ser o sócio de Jerónimo e a tomar a clientela a pouco e pouco? Jerónimo continuaria a obstinar-se em querer que o seu gabinete médico ficasse na família. Ia, então, recomeçar-se tudo? Tornaria a aparecer outro Paulo Rigaud? As lindas instalações preparadas para Miguel e Margarida seriam para Rosa Teresa e um outro qualquer? Que sofrimentos... para qualquer lado que se voltasse!... Meu Deus... E tê-los fora de casa com um tempo daqueles!

Rosa Teresa, voltou, enfim, com os cabelos polvilhados de neve. Atirou-se para uma poltrona.

- Felizmente encontrei-o em casa. Foi logo de seguida. Disse que não deixa o papá ir sozinho a Rennes. Foi muito amável... Todos eles têm um ar tão triste... Não, não tenho frio. A Sr. a Abran íez-me tomar uma coisa quente. Como irá acabar tudo isto, mama O papá não pode passar sem Miguel. No entanto, Miguel vai-se embora, decerto. O papá vai esgotar-se dum modo terrível... Escuta, mama.

Susana ergueu os olhos para a filha, admirada de não ouvir o tom superficial que ela costumava ter.

- Mama, olha que eu não quero que me falem em casar com Miguel em lugar de Margarida. Não importa que eu seja uma rapariga vulgar, sem personalidade; recuso-me a atraiçoar assim a pobre da mais velha. Confesso que tive uma certa inclinação por Miguel. Mas asseguro-te que nada ficou, depois de eles estarem noivos. E tenho um medo horrível de que isto se meta na cabeça do papá. Diz-me, vais ajudar-me a defender-me? Defenderás Margarida? Ela chegou a saber que eu gostava de Miguel: são coisas que se adivinham entre irmãs. Julgo, mesmo, que ela chegou a ter ciúmes e que perguntava qual de nós ele preferiria. De resto, penso que ele também casaria comigo se eu fosse a mais velha. Mas, quando ele descobriu Margarida, nunca mais contei com tal coisa. Por isso estou bem desprendida dele, juro-te. Ela é que podia imaginar que eu lho invejava e que a sua desgraça faz a minha felicidade... Mama, tenho todo o jeito duma rapariga insignificante, mas de tempos a tempos - como direi? - tenho um impulsozinho que me guia. Pois bem esta noite, ao jantar, senti que nada, nem ninguém, me faria trair minha irmã.

- Nem se pensará em tal coisa, minha querida!

- Verás que hão-de pensar - respondeu ela, sublinhando cada palavra. - Talvez tu mesma me supliques que tome o lugar de Margarida.

- Nunca!

- Pobre mama! E se o papá quiser e pedir e cair doente, que dirás tu o que farás? Qual sacrificarás o teu marido ou a tua filha

Mas a porta abriu-se e Maria Violeta, muito encapuzada, trouxe uma corrente de ar frio com um travo de neve.

- Vão a Rennes. Miguel é que vai a guiar.

 

DEZEMBRO e os seus tons pardacentos aproximavam o ano do seu termo. No "Fetal", como em toda a parte e como sempre, preparavam-se os presentes do Natal. "Mesmo assim é preciso festejar o Natal", pensava Joana, atenta a todas as alegrias e a todas as penas dos corações jovens.

Durante longos serões, sob a luz da lâmpada, enquanto o vento do Inverno sacudia a casa, Maria Ângela, tão habilidosa, fizera um trabalho bonito para cada um dos irmãos. E a mama comprara pequenas coisas, que ela sabia que cobiçavam.

Sim, a "Casa de Baixo" festejaria o Natal, mas sem a "Casa de Cima". Já não era possível haver reuniões, aquelas reuniões que tinham previsto tão jubilosas, em torno dos jovens esposos. Quando se encontravam, é claro que se falavam. Todos os domingos, Ivone subia lá, para ir ver Margarida, mais como enfermeira que como amiga, para proporcionar um pouco de descanso à família. Joelle e Maria Ângela nem se atreviam a ir lá; dali em diante a amizade não podia expandir-se, com aquele pensamento entre as amigas de infância: Miguel. E conquanto Ivone não se parecesse com Miguel, Margarida surpreendia-lhe no rosto expressões do irmão; e sofria, mas procurava-as.

Miguel ficara à disposição do Dr. Lê Fort quando este tinha excesso de doentes: aquela gripe, por exemplo, que precisava de injecções... Porém, chamava-o cada vez menos. E Miguel sofria com isso, porque se prendera à personalidade elevada e forte do colega. Sofria, porque ele continuava a estudar o problema médico em que ambos tinham trabalhado tanto. E sofria por ver naquele afrouxamento progressivo dos liames profissionais o sinal de que tinha de ir fazer a sua carreira noutro lado. Além disso, continuar ali, com todas aquelas recordações dolorosas dos dias felizes, contra as quais se debatia a toda a hora, não era possível.

Por isso o problema de África se apresentava de novo sob os seus dois aspectos: a instalação material e o casamento. Vou pedir um empréstimo... E depois de lá ter uma situação firme, pensarei em casar-me... se me resolver a isso. Jamais mulher alguma poderá ser para mim o que era Margarida. "

Nada o consolava de se ver separado de Margarida. Sem ela, não se sentia completo.

Aguardando as férias do Natal, Joana arranjara os quartos dos filhos com um sentido exacto das necessidades, dos gostos e manias de cada um deles. Aqui livros, ali um candeeiro a iluminar bem. E em todos os aposentos um grande ramo com o que o Inverno oferecia para adorno: azevinho e agárico. Diz-se que dão felicidade, e bastante precisão havia de tornar a encontrar felicidade. Miguel andava tão acabrunhado! Felizmente Joelle, Coração Selvagem e Saguim estavam sempre prontos a dizer tolices, a traquinar e a rir. Que bom seria, ouvir rir!

Saguim e Coração Selvagem foram os primeiros a chegar. Combinavam sempre encontrar-se na estação de Rennes, porque achavam mais engraçado virem juntos. Saguim, como sempre, trazia óptimas notas do trabalho escolar, mas lamentáveis quanto a disciplina. Coração Selvagem merecera notas excelentes no início do semestre, que depois se tornaram más.

- Mas porquê? - inquiriu Aliette, curiosa.

- Não sei - respondeu o rapaz, sem procurar analisar-se.

Porém, suspeitava bem dos motivos daquela curva ascendente e depois descendente. A conversa com Ivone, no prado, originara a subida: "O que vais fazer é estragar estüpidamente a tua vida" estas palavras sensatas da irmã mais velha tinham penetrado fundo naquele coração de treze anos, a um tempo absurdo e rico de possibilidades. Amar a terra duma forma conveniente, tornando-se um homem de valor: ideal sedutor. Mas quando o casamento do irmão se desmanchou, os receios anteriores tornaram a vir: "Miguel há-de querer dinheiro e a mama vai vender as terras. Então, cedeu de novo à preguiça: "Nem vale a pena trabalhar, desde que a propriedade se torne pequena. Mas não explicou isto: uma rapariga podia compreendê-lo?

O comboio vinha a transbordar de estudantes, rapazes e raparigas, de juvenis pensionistas vindos dos internatos para passarem as festas com a família. Todos eles radiantes! E assim que saíram da estação João Maria, sabendo que a irmã reparava em tudo, indagou:

- Viste as mais velhas?

- Vi Joelle. Antes de subir para a carruagem abraçou um rapaz.

- É o "mais-que-tudo". Se a mama soubesse!

- Diz é que ela talvez já esteja noiva. Ela vai a muitos bailes. Os moços acham-na muito bonita: as minhas colegas ouvem os irmãos falar dela.

- E a Ivone

- A Ivone não agrada aos rapazes, com o seu nariz comprido e aquele ar muito sério. E não dança. Não, não, ela não vinha no comboio. Pensas que deixou já o trabalho? Há-de chegar no último comboio da noite.

- Achas que haverá presentes bonitos? Com essas histórias de Miguel e da Rainha-Margarida...

- És doido! A mama não tem feitio para nos deixar sem presentes lá porque houve desgraça.

Tagarelavam, tagarelavam... Joelle, que não tagarelava, passou-lhes adiante e chegou a casa muito antes deles. Trazia um gorro de veludo verde sobre a cabeleira dourada, que lhe ficava encantadoramente - ela sabia-o.

- Como estão todos? Vamos ter um Natal bom ou não?

- Espero que sim, Jo: o pinheiro está preparado- respondeu a Sr. a Abran. - O Gildas é que me inquieta. Está com tosse e não tem apetite.

- E o que diz Miguel a isso?

- Parece que Miguel não se preocupa com tal coisa. O pobre rapaz anda tão nervoso, que nem me atrevo a insistir.

- Mesmo assim, ele exagera, mama. Margarida é mais para lamentar do que ele.

- Evidentemente... mas há a questão da carreira.

Joelle espreguiçou-se.

- Mais tarde falaremos nisso. Estou com fome. A Maria Ângela arranjará uma ceia boa para a meia-noite? Sim, julgo que vão festejar a meia-noite, apesar do infortúnio de Miguel.

- Sim, porque o pobre pequeno nem estará em casa. Não quer ver festejar o Natal. Vai para Saint-Malo. Tenho pena, mas compreendo-o.

- Então, mama, se vamos fazer a meia-noite... queria cá trazer alguém... Não te ponhas amuada. Ficava tão contente por te apresentar hoje mesmo... Basta ligar o telefone e ele vem no último comboio. Hás-de ter maneira de acomodá-lo, aqui ou noutro sítio.

- Mas de quem se trata, afinal?

- Do meu noivo, mama.

- Joelle! E nunca me disseste nada?

- Digo-te agora. Está descansada, é um belo rapaz. É licenciado em Direito e está a preparar-se para a magistratura. A família é como a nossa. Vai agradar-te. E ao avô também.

Ouviu pacientemente alguns sermões sobre a independência. E só respondia: "Sim, mama. Sim, avô. Depois, pôs-se a rir, com um riso comunicativo e trinado.

- Vocês estão a ralhar-me... Mas, no entanto, abracem-me. Sinto-me tão feliz!

Abraçaram-na. E ela correu a telefonar.

- Será a felicidade que volta? - perguntou a mãe pensativamente. - Ou serão mais tormentos? Estas raparigas de agora. que independência!...

- Joelle é sensata - respondeu o velho. - Duvido de que ela tenha escolhido mal. Tenha confiança, Joana; a felicidade é possível; e esta confiança atrai-a. Olhe, lá vêm os pequenos. Joelle já chegou há tanto tempo e vocês só agora é que vêm. Andaram a cabular, ou quê?

- Não, avô. Viemos a conversar. E quando Saguim fala, deixa de andar para gesticular. Um verdadeiro polichinelo.

Saguim dançava de alegria ao mostrar o seu caderno do trimestre.

- A primeira em tudo.

- Menos em juízo.

- Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo

- respondeu ela sem o menor acanhamento. - E depois, há lá uma professora que... uma professora que...

- Sim, naturalmente a culpa é das professoras. E tu, João Maria, porque é que são estes altos e baixos

- Talvez ele esteja cansado-sugeriu Joana, indulgente.

Mas o rapaz fez "não" com a cabeça. Não "ria mostrar-se fatigado. Joelle voltou, radiante.

- Ele vem, mama, obrigada!

Os pequenos olharam um para o outro. Ele quem O rapaz de óculos Falar dele era o mesmo que fazer mexericos: uma baixeza absolutamente proibida no clã dos Abran. Mas Aliette não pôde segurar a língua:

- Eu vi-te na estação, sabes? Joelle corou e pôs-se a rir.

- Saguim, foste bem apelidada; tu vês tudo. Mas não sabes tudo Anda cá, que vou arranjar-te o cabelo. Oh! este penteado de pensionista! Tens mesmo um ar de macaquinho. Vamos... um pouco de graça nestes lindos cabelos escuros. Mama, dá-me uma fita cor-de-rosa; rosa é a sua cor. Já estás bonita. Dá cá um beijo. Pronto, vamos dançar. Eu sou o cavalheiro e tu és a dama. Canta, João Maria!

João tinha uma linda voz aguda. Pôs-se a cantar. E foi num círculo de jubilosa alegria que apareceu a figura alta de Miguel, com os olhos baços e um traço de amargura na boca. Tudo parou imediatamente.

- Oh! continuem. Não sou nenhum extintor. Mama, tenho de ir ao outro lado do rio ver um velhote que só quer ser tratado por mim.

Mandou-me chamar. Podias dar-me já o jantar, depressa? Não, com todos, não. Demorava muito. Aí num canto, mesmo na cozinha, seja onde for. Café bem forte. Levo a mala. Não venho dormir cá.

Joana introduziu na mala algumas provisões e o presente de Natal. Não era a rica mala comprada para a viagem de núpcias, mas a velha mala castanha, manchada de branco, de ferragens já a enferrujarem, de que ele se servia quando estudante. Ela acompanhou o filho até à estrada.

- Miguel, passas o Natal sozinho. Diz... não vais faltar à missa Ficarias muito mais infeliz.

Ele deixou-se beijar; e depois, pousando a mala no chão, apertou a mãe entre os braços.

- Infeliz, mama; sou, sim. Reza por mim.

Tornou a pegar na mala e, em longas passadas, afastou-se. Por muito tempo, ela olhou a estrada, onde a forma do filho diminuía. Por muito tempo... entretanto, estava frio e o vento levantava-lhe as madeixas grisalhas.

Quando ela voltou, o avô fingiu que estava a ler.

- Chegue-se ao fogo, Joana. E sirvam o jantar depressa. Despachem-se a pôr a mesa, pequenasl

- E Gigi? - perguntou Joelle. - Ainda não o vi.

- Ainda hoje não comeu. Não sei se quer alguma coisa. Vou procurá-lo, Aliette.

Dum golpe de vista, Joelle achou-o fatigado.

- Miguel há-de tê-lo examinado antes de partir, não?

- Não. Estava com pressa. O seu doente, da outra banda do rio, sofre tanto! Miguel é bom e não quis fazê-lo esperar.

- Gigi vai pôr-se ao meu lado e comerá. Mas Gigi não meteu comida na boca três

vezes seguidas.

- Ivone logo te faz obedecer - anunciou Joelle. -Sabes bem que é quase como um médico. E tem um segredo para fazer-se obedecer.

- Não a mim - cantarolou Aliette.

- Tu não obedeces a ninguém - disse Gildas, enfadado.

- Então, aquela garota considerada feia teve um sorriso fresco, que a fez bonita.

- Hoje vou obedecer, Gigi, porque é Natal. Natal! O vocábulo soava como uma música

de inocência. Todos os corações, novos ou velhos, rejubilavam, cada um à sua maneira, mesmo que um mal o afligisse, como o de Joana, que vira seu filho fugir da festa da família. Joana, porém, conhecia o segredo duma alegria mais alta.

Essa alegria, experimentou-a ela durante a missa da meia-noite. De rosto oculto nas mãos, para não lhe verem as lágrimas, encontrava, no entanto, bastantes motivos de ventura. É que jamais ela deixara de amar esse Emanuel; menina ainda, contemplava a sua cândida imagem na manjedoura e amava-O. Já mulher, esposa e jovem, sentia o marido pensar como ela e amar o mesmo Cristo. Amavam-No juntos.

Depois de viúva, descobrira esses horizontes de misticismo e continuava a amá-Lo, profundamente, simplesmente. E agora, que se alteravam e desmoronavam tantas coisas, que havia guerras, ruínas e conflitos sociais, só aquilo existia, só aquilo ficara: o amor de Deus, que se fizera como nós. Ah! quem dera que os filhos O amassem sempre! Miguel, porém, à força de sofrer ia a perder a fé. Que fazia ele àquela hora em Saint-Malo?

Junto de Joelle, um rapaz alto seguia o ofício divino linha por linha, num missal. Tinha todas as atitudes de um verdadeiro crente. Joana desejava para as outras filhas a mesma união de almas. E para Hervé também, o filho distante, de que tão pouco se sabia.

A consoada fez-se sem barulho. Gildas faltava no círculo familiar. com aquela tosse persistente não fora possível levá-lo. Ivone chegara muito tarde e ficara ao pé dele durante a missa do galo.

- Não o acho nada bem, mama - disse ela.

- Entendo que ele devia ir para a montanha.

- Não tenho podido... Houve muitas despesas por causa do casamento.

Ivone, então, agastou-se.

- Eu faria velas e dava injecções, para te ajudar.

- E eu dava explicações - disse Joelle. Gui recomendou um preventório, para onde

fora um dos seus irmãos. Em resumo, naquela noite, que é dedicada à infância, todos se preocupavam com o mais pequeno da casa.

Mas em casa dos Lê Fort, não havia um "mais pequeno" e cada qual sofria duramente. -Vai à missa do galo, mama, vai com Maria Violeta-dissera Rosa Teresa. - Vocês dão-lhe mais apreço do que eu. E eu fico a tomar conta de Margarida.

É verdade, Susana e Maria Violeta, almas mais -acessíveis, sentiam a alegria do Natal de outra maneira muito diferente. Rosa Teresa gostava de um Natal esplendoroso: música linda na igreja, uma consoada alegre, vestidos bonitos. Porém, rezar à meia-noite ou pela manhã, pouco lhe importava realmente.

Margarida não sentia vontade de dormir e a irmã foi ler para ela ouvir. Mas tudo lhe desagradava ou a entristecia. Rosa Teresa acabou por calar-se e ir trabalhar numa obra de lã. Margarida observava-a.

- Tu és bonita, - murmurou ela. - Mais bonita do que eu julgava.

O olhar dela incomodava. Desajeitadamente, Rosa Teresa respondeu:

- Menos bonita do que tu. A irmã teve um riso amargo.

- Que tolice! Oh! não te desculpes, pobre pequena. Tu nem sabes o que é conveniente dizer ou deixar de dizer ao pé duma desgraçada

como eu.

Um silêncio. E depois:

- Como é natural, gostavas de casar-te, não é verdade

Novo suplício para Rosa Teresa, que se pôs a contar as malhas em voz alta:

- Sete, oito, nove.

- Não te faças parva... Responde francamente gostavas de casar-te

- Ouve... Sim... Não tenho vocação religiosa, como a tia Clara. Por isso...

- Podiam tornar a chamar Paulo Rigaud. O que dizes

- Para que serve falar nisso, Margarida? É Natal. Queres que te leia o ofício da missa do galo? Ou preferes que te cante uma velha canção bretã do Natal

- Não. Deixa-me pensar. E responde-me. Tens visto Miguel de vez em quando?

- Raramente. Vem saber o que o papá quer e mais nada.

- Que aspecto tem ele?

- Triste, mal disposto. Não fala.

- Torna a ir para o Congo?

- Como queres tu que eu saiba

- Pelas irmãs.

- Vejo-as tão pouco! Maria Ângela está sempre com pressa quando a encontro. Damos os bons-dias, à pressa. Pergunta-me como estás. Eu peço-lhe notícias de Gildas. E depois separamo-nos. E pronto.

- Gostava de saber se ele tenciona ir-se embora. Hás-de fazer a pergunta a uma das raparigas. Prometes?

- Prometo. Não te mexas. O que será que te dá prazer esta noite

- Uma coisa estúpida. Gostava que fosses ao armário procurar o nosso presèpiozinho de outros tempos e que o pusesses ali, no meio da cômoda.

Muito contente por dar-lhe, enfim, prazer, Rosa Teresa foi logo dispor, no seu cenário ingênuo, os pequenos personagens que lhes haviam encantado a infância.

- Agora, vai deitar-te. Acende a lamparina. Sim, sim, eu vou dormir.

Para dizer a verdade, a Rainha-Margarida, direita no seu colete de gesso, não queria adormecer. Queria contemplar o presépio e, assim, recuar no tempo e ter a ilusão de ser ainda menina, uma menina como as outras.

Mas os sonhos estunteantes e belos, os entusiasmos infantis é que ela não tornava a achar. Espoliada, a sua alma estava seca e vazia como uma flor morta. E, bem escondida no fundo dessa alma vazia, percebeu o despertar dum sentimento de ódio contra Rosa Teresa e a sua juventude.

 

MIGUEL aguardava uma resposta de África. Tinha escrito a um amigo prospector que tinha no Congo.

"Vê o que poderei fazer. Nas tuas deslocações por aí não desçobrirás um médico cansado que precise de quem o ajude? Os meus projectos de me estabelecer em França ruíram tristemente. Quero afastar-me da Bretanha e da recordação das minhas esperanças frustradas. "

De resto, continuava a auxiliar Lê Fort. A estação ia rigorosa: muitas gripes rebeldes. E ir, a qualquer hora e com qualquer tempo, visitar doentes pelo campo, ultrapassava as possibilidades daquele homem fatigado. "Não obstante, quando eu cá não estiver... - dizia Miguel consigo. E Lê Fort dizia igualmente de si para si: "Isto não pode continuar. Uma vida impossível. Mas todas as vezes que a mulher lhe falava na necessidade de arranjar quem o substituísse, mandava-a calar com violência. "Não preciso de ninguém!"

No fundo sentia-se desesperado.

Porque Miguel representava exactamente o que ele desejava. Na segurança do diagnóstico, julgava-o, mesmo, superior a ele. Depois, se Miguel se retirasse, os trabalhos científicos, feitos em comum e cujo fim seria a descoberta de um remédio contra certas formas de poliomielite, tinham de acabar, porque ele sabia bem que as forças já não lhe permitiam cuidar dessas investigações e da clientela ao mesmo tempo. Além disso, Miguel era intuitivo. "Não é como eu, que não crio nada e só me baseio em factos concretos... E em todas as descobertas há uma parcela de intuição. "

Margarida estava cada vez melhor. Era tão robusta e tão saudável, que reagia duma forma que surpreendia o pai. Havia toda a esperança de que ela pudesse retomar alguma actividade, quando lhe tirassem o envolvimento de gesso. Mas ia ficar defeituosa, decerto, feia e incapaz de ser mãe. Ela sabia-o e deixava-se dominar por estes pensamentos. E já não podia suportar muito tempo a presença de Rosa Teresa.

Porque Rosa Teresa era... sim! era uma rapariga bonita, cheia de saúde. Não tinha feições regulares, como "eu tinha antes", mas tinha uma tez encantadora, olhos de um lindo castanho dourado com pestanas compridas e a boca, pequena e redonda, sempre aberta num sorriso espiritual, deixava aparecer uns dentes muito brancos e certos.

Oh! os dentes de Rosa Teresa... E a língua de Margarida a roçar em pedaços de dentes partidos! Que desgraça... Rosa Teresa, contornada e roliça, trazia uma blusa de malha que lhe moldava as formas, ainda muito juvenis, mas perfeitas e que denunciavam já o pleno desabrochar da mulher. Ela havia de casar, havia de ter filhos... "Oh! nunca poderei suportá-lo. Vou-me embora. O papá afirma-me que poderei readquirir uma certa actividade. Não quero ser testemunha da

felicidade de Rosa Teresa. Casada com quem? Com Miguel, talvez. Quando éramos pequenas

Quando brincávamos juntas, apossava-se sempre daquilo de que eu gostava. E Corentina dizia: "Dê-lhe a sua boneca, menina; ela é mais pequena. Um princípio injusto... E se agora me dissessem: Dê-lhe o seu noivo"? Desconfio dela. Desconfio do papá. Desconfio de Miguel. Desconfio de toda a gente. Em que sorvedouro de maldade caí! Já nem sei rezar...

Susana, que adivinhava confusamente estes pensamentos, quisera ardentemente que ela desabafasse. Mas quando ela aconselhava: "Não tenhas idéias tristes, não, querida?" a Rainha-Margarida respondia: "Cor-de-rosa não podem ser, mama. Dizia-o, porém, gentilmente, no tom de outrora. Porque ela não queria confessar sentimentos tão maus, não queria dar-lhes expressão ou forma. E bem digna era de que a lamentassem.

Só a presença duma pessoa a apaziguava: a de Maria Violeta. Tão simples, sem ser bonita, com os olhos excessivamente grandes para a cara miudinha, os cabelos compridos ainda penteados à menina. Uma criança, no aspecto. Não havia nada tão calmante como vê-la, ali, perto do leito. Desprendia-se dela um fluido que curava.

Margarida começara a chamar-lhe Mi-Violeta e este diminutivo agradava às duas.

Mi-Violeta tinha idéias, cuidados encantadores. Era vê-la entrar com flores nas mãos...

- Já campainhas brancas? Onde as achaste, Mi-Violeta

- Ali, no bosquezinho. Pensei que gostasses delas.

- Gosto, sim. Faz um raminho, com as flores bem juntas, senão as campainhas morrem.

Podia ser que tivessem frio, ou se aborrecessem de estar sós.

- Estás toda de cor-de-rosa. Lá fora faz bom tempo Conta.

- Está muito bom. Já não é Inverno. Sente-se palpitar a seiva. Os pássaros começam a cantar. O Sol já vai mais alto.

- Ainda não há violetas? A tua flor... Não, Margarida. As primeiras que eu arranjar são para ti.

- Tudo o que encontras bonito é para mim. És um amor. Põe as campainhas dentro de água. E vai ler-me um bocadinho. És tu quem lê melhor.

- A mama lê muito melhor.

- Mas a sua voz não me acalma, como a tua. E Maria Violeta lia. E a Rainha-Margarida

serenava.

Entre as crianças tratadas por Miguel, havia um caso de poliomielite particularmente grave: era o único filho que restava aos pais, a quem a meningite arrebatara um após outro os bebês mal tratados e vítimas duma hereditariedade alcoólica. Tinham podido criar até ao sete anos a pequena Maria e afinal, atacada por um mal terrível, ia partir, como os outros.

- É preciso salvá-la, Abran - dissera o Dr. Lê Fort. - Assim nós consigamos curá-la com o remédio que temos estudado e cuja fórmula já quase possuímos...

Quase... ainda não estava tudo concluído. E Lê Fort hesitava nas manipulações, nos ensaios. Era indispensável que Miguel tomasse a direcção do tratamento. Ora Lê Fort sentia Miguel dividido, repartido. Como homem de ciência, apaixonado pelo caso médico e enternecido como rapaz sensível. E, entretanto, o espírito atraído para algures. Para quê Para a África, sem dúvida. Se ele partisse, desabaria tudo. Evidentemente, o doutor acharia outro assistente. Evidentemente, Rosa Teresa estava em idade de se casar. Mas esse assistente, o tal marido de Rosa Teresa, não podia ser precisamente como Miguel, um continuador, um verdadeiro "sucessor" do pensamento, da obra do médico. E depois, ver um outro par juvenil tomar o lugar tão jubilosamente preparado para Margarida e Miguel... Que sofrimento!

Aguardando o resultado da fórmula em estudo, era Miguel quem lutava por salvar a pequena Maria. E com que paixão lutava! Ele queria salvar essa criança, que tinha um pálido sorriso quando ele se debruçava sobre o seu corpo seme-paralisado. E os pais punham toda a sua confiança no "doutor moço".

Um dia recebeu uma carta de África. Aparecera um lugar. Era preciso resolver-se depressa, ir de avião.

"Estão à sua espera. O médico já tem idade e quer vender a clientela. Tem capital "

Sempre a mesma questão: capital... Aquela coisa das notas do banco a entremeter-se nas preocupações científicas, nos sonhos e nos pesares do coração Miguel sofria e sofria cada vez mais. A sua superficialidade, a sua negligência, o seu egoísmo, haviam cedido o passo, pouco a pouco, a um desejo de vida mais alta, de amor, de abnegação.

E para partir era preciso ter notas do banco! A quem falar no caso? À mama? Ao avô? Às irmãs, Ivone era assisada, E depois, tinha de prevenir Lê Fort desta nova perspectiva de partida. O estado da pequena Maria justamente melhorara um pouco. A aplicação do tratamento parecia estar quase no ponto desejado. Depois de algumas horas de estudos complementares, Lê Fort poderia dispensar Miguel.

Solicitou, pois, essa troca de impressões e disse:

- Na verdade as nossas investigações estão quase concluídas. E a sua saúde, doutor, está restabelecida; não acha que podia dispensar-me?

- Dispensá-lo? No estado em que estou? Em pleno estudo duma questão da qual dependem tantas vidas? E dispensá-lo porquê, Abran?

- O senhor sabe bem que o meu lugar já não é aqui. Uma situação tão delicada não pode continuar. Tenho de desaparecer, para deixar a outro a honra e a ventura de ser seu colaborador. Está nisso a minha dignidade pessoal, o meu futuro de médico, a cura de Margarida, comprometida ou atrasada pelas idas e vindas em sua casa daquele com quem ela devia casar. Torno a dizer-lhe: se ela concordar, estou pronto a unir a minha vida à dela. Eu a tratarei, eu a amarei, eu farei tudo para torná-la feliz.

- Você está louco. Sabe muito bem como ficou essa pobre criança. Ela não se arrepende da decisão que tomou e que eu aprovo. Mas eu não posso... não, eu não posso separar-me de si. Compreenda, meu filho. Eu estou estragado. Daqui a pouco estou incapaz de exercer clínica... ou estou no cemitério. E não quero Deixar o meu cargo a um estranho.

- Não faltam médicos jovens de valor. E Rosa Teresa está em idade de casar.

- Mas esse que viesse não teria o meu método, não seria daqui da região. Depois, os meus trabalhos não estão terminados. Vai abandonar a Mariazinha É coisa para meses, talvez para anos, a cura dela. E só você pode observar o efeito das injecções. Só você pode fazer com que o meu nome, juntamente com o seu, fique ligado a essa nova medicação. E se você se for embora, Abran, vai ruir tudo. Numerosas vidas dependem de si, unido ao velho Lê Fort. Fique cá, meu filho, fique!

Miguel sentia-se perturbado ante aquele desespero de homem, de doente grave, e sabia que a menor emoção podia ser-lhe fatal. Entretanto, deveria ele sacrificar toda a sua carreira para ficar numa casa onde, fatalmente, o seu lugar tinha de ser tomado por outro?

- Perdoe-me, doutor. Peço-lhe simplesmente que examine as razões que lhe expus. Não precipitemos nada. Creio que a doentinha está em bom caminho e que a sua ciência é muito superior ao meu fraco saber.

- Não! Tenho a experiência. E você tem essa espécie de gênio chamada intuição... E depois tu estás novo, Miguel, e eu estou velho. Tu acreditas na vida e eu já não acredito. Tu trazes em ti o signo da felicidade, do êxito. A mim, tudo me traiu. Não tive filhos. A minha filha mais velha, a mais bela, tornou-se uma desgraçada. A minha saúde perdeu-se antes da idade. E minha mulher... nunca me amou.

Desfaleceu. Miguel segurou-o a tempo. Uma síncope, Ele sabia o que devia fazer naquele caso. Mas o doente levou muito tempo a recuperar os sentidos. Por fim, Lê Fort abriu os olhos.

- Meu pobre pequeno, que medo lhe meti!

- Vou procurar a Sr. a Lê Fort.

- Não. Ainda não. Dê-me de beber. Não se vá embora. Vou descansar uns instantes.

Miguel contemplava-o, deitado, tão comprido, a cara tão encovada, tão branca.

"Não vai longe. Que hei-de fazer? Onde está o dever? Hei-de perguntar ao avô. "

O avô, com o seu bom-senso apurado e robusto, parecia-lhe o único guia que podia indicar-lhe o caminho. Pela primeira vez, Miguel apercebeu-se dos seus limites, admitiu a ignorância dos novos e apreciou a experiência que o tempo dava àqueles a quem ele, com os seus camaradas, chamava desdenhosamente "os velhos". O próprio Lê Fort já se enfileirava entre os velhos. E que idade tinha ele Cinluenta anos, apenas... Sim, mas o coração estava arruinado. Arruinado em conseqüência duma escarlatina contraída em contacto com doentes, alguns anos antes. Nada de hereditário para as filhas, senão Margarida não teria resistido.

Margarida, a Rainha-Margarida... uma fotografia, ali, representava-a vestida de branco, no tênis. Era a própria imagem da mocidade e da alegria.

- Miguel - murmurou Jerónimo. - Ouça... O que vou pedir-lhe é grave. Peço-lho em meu nome, em nome da minha família, em nome da pequena Maria... de todas as pequenas Marias. Silêncio. Miguel estava muito direito, com o coração a bater-lhe mais forte.

- Miguel, case com Rosa Teresa!

- Ah! doutor! tudo o que quiser, menos isso. Como fazer um mal tão grande a Margarida, que veria o seu lugar ocupado, que veria nascer filhos que deviam ser os seus, fundar-se um lar onde devia estar o seu? Recuso-me a isso, como se recusaria todo o homem de honra.

- Case com Rosa Teresa, Miguel... Não me responda já. E agora chame minha mulher e vá-se embora. Vá reflectir. A pequena também reflectirá. E tenho a certeza de que ambos compreenderão. E Margarida há-de compreender também. Ela é duma inteligência superior. E forte: se eu tivesse tido um filho com o seu caracter... Vá, Miguel. Tome lá o meu canhenho. Faça esta visita, e mais esta, e esta... Estou incapaz de sair.

A pequena Maria esperava por ele na sua habitação humilde.

- O Sr. Doutor demorou-se e ela já estava a enervar-se - disse o pai. - Sem o senhor, o que seria de nós? O Dr. Lê Fort é muito sabedor, mas no senhor há mais qualquer coisa. A garota tem confiança. E nós, também. Ah! se o senhor a curasse...

Depois de ter examinado e tratado aquele corpito, Miguel sorriu à criança:

- Tu estás muito melhor, Maria. Se tiveres juizinho, dentro de oito dias já podes andar.

- Dentro de oito dias! - exclamou a mãe,

- As vizinhas diziam: "A tua petiza nunca mais anda. E vai ficar pateta. Mas ela já recuperou a esperteza que tinha. Sr. Dr. Abran, o que poderemos nós fazer por si

- Tratar bem dela, educá-la bem, para que digam mais tarde: "Que lindo pedaço de rapariga! Salvaram-na os médicos, era ela pequena. "

O pai ouvia-o, o rosto duro crispado por um pensamento diferente. Passou a mão pela testa.

- Sr. Doutor, a mulher tem razão. Não somos ingratos... Mas diga... então não pode fazer também um milagre pela sua noiva?

- Desgraçadamente não! Ninguém pode remediar o mal feito por um desastre daqueles.

- Seja como for, que grande infelicidade! Dela é que se podia dizer: "Que lindo pedaço de rapariga!"

Miguel cortou a conversa. Ouvir falar de Margarida, era-lhe insuportável. E a súplica do Dr. Lê Fort, lancinante, veio-lhe à lembrança: ( "'se com Rosa Teresa!"

Não e não! Não casaria com Rosa Teresa. De resto ele não gostava dela. Nunca, mesmo, ele poderia amar essa rapariga superficial depois de ter descoberto a personalidade de Margarida. Se casasse com ela, cometeria uma dupla falta: trair a sua noiva e casar sem ter amor.

Na "Casa de Cima" o debate doloroso prosseguia, mas entre os esposos. Jerónimo dissera à mulher:

- Abran quer partir. Esta notícia deitou-me abaixo. Foi a causa desta crise. Não posso suportar a idéia da sua partida. É o desabar de tudo. Os meus dias estão contados e eu tenho de garantir quem me substitua. E o meu substituto terá de ser um membro da família. É preciso que Abran case com Rosa Teresa.

- Não penses nisso, meu pobre amigo. Rosa Teresa tomar o lugar da irmã? Falaste-lhe nisso?

- Falei. Ele recusou, como eu previa. Mas não considero a recusa definitiva. O amor da profissão retém-no... a paixão da descoberta... e tornou a tomar gosto pela terra onde é tão querido. Como é natural, é preciso obter o consentimento de Rosa Teresa. Peço-te, por isso, que fales com tua filha e lhe digas que ela deve casar com Miguel.

- As minhas filhas são muito unidas. Rosa Teresa tem coração. Não acederá nunca a dar esse desgosto à irmã.

- Se ela tem coração, há-de ter pena do pai. Conto contigo, Susana. Se estivesse menos fatigado, eu próprio trataria do caso. Mas estou exausto de forças... Oh! vejo-te a testa franzida.

- Jerónimo-murmurou Susana - estás enganado a respeito dos meus sentimentos.

Ele teve uma espécie de soluço.

- Não te peço fervor para este marido que nunca amaste.

- Jerónimo! -repetiu ela, a chorar.

- Só te peço uma compreensão exacta dos interesses da família. Os mesmos que continuámos a garantir quando nos casámos, tu e eu. A tua família... A qual, decerto, sacrificaste a inclinação do teu coração... Talvez concordes que a Rosa, por seu turno, "pegue no círio", como se diz... É o suficiente. Não me respondas já. Estou muito cansado. Mas tu és bastante inteligente para resolver a situação.

Ela não ousou dizer: "Amo-te. Mas, inclinando-se para ele, beijou-lhe a fronte. E ele suspirou profundamente.

 

NA atmosfera pesada que oprimia o "Fetal" desde o infortúnio que separara Miguel de Margarida, passou uma aragem de felicidade o regresso de Hervé. Um domingo de manhã, viram chegar, no seu passo balanceado, o pequeno oficial de marinha. Desembarcava sempre assim, sem prevenir ninguém: preguiça de escrever, satisfação por surpreender a família. Percebeu logo que a família estava triste.

- Oh! que caras de catástrofe... Sim, bem sei o que sucedeu. Lamento a pobre rapariga de todo o coração. E lamento Miguel. Mas ele tem de viver, mama. Onde está Miguel?

- Anda a visitar doentes. Ainda está a substituir o Dr. Lê Fort. Mas não é por muito tempo. Quer tornar a partir.

- Para a África? No entanto ele tinha desistido com facilidade.

- E a perspectiva dessa nova separação é tão dolorosa para nós! E complicada dependem disso muitas questões de ordem material. Chegaste mesmo a tempo para dares a tua opinião.

Mal-humorado, João Maria fazia bolinhas de pão.

- Pára lá com isso! - ordenou o avô. -Lembra-te dos anos sem pão. E olha que é preciso trabalhar duramente a terra para que ela o dê.

Um clarão se desprendeu dos olhos da criança na direcção do velho.

A Sr. a Abran prosseguiu na sua exposição:

- E isto não é tudo. O Dr. Lê Fort está muito doente; daqui a pouco não pode trabalhar e agarra-se a Miguel. De cada vez que o pobre rapaz fala em deixar o país, cai num estado violento.

- Não faltam médicos novos para o substituírem. E se ele quer que o médico também seja seu genro, é casar a segunda filha.

- A coisa é mais complicada do que julgas

- suspirou Joana. - Depois te explicaremos.

"Saguim" e "Coração Selvagem" trocaram um olhar que significava:

"Quando cá não estivermos! É sempre a mesma coisa. "

Hervé tinha uma percepção de primeira ordem para captar os sentimentos ocultos. Adivinhou o descontentamento dos pequenos e pronunciou tranqüilamente:

- Pode-se muito bem falar na frente destes. Já não são nenhuns bebês.

"Que rico irmão!" - pensaram os dois. O avô, porém, declarou:

- Isto não é com eles. Ao café logo te pomos ao corrente da situação.

Depois da excelente sobremesa preparada à pressa por Maria Ângela, conforme o gosto do marinheiro, convidaram João Maria, Aliette e Gildas a darem um passeio pelo quintal.

- Não contas histórias engraçadas enquanto lá estivermos? -suplicou Gildas.

- Prometido... Tem uma expressão triste - notou Hervé quando o irmãozito partiu. - Não era conveniente que ele passasse o Inverno na montanha?

- Não pensámos nisso a tempo. Miguel encarregou-se de arranjar uma "pousada" de crianças, mas depois teve mais preocupações... Resumindo, o pequeno ficou cá. E o pior é que anda sempre constipado.

- Vale bem a pena ter um irmão médico... Enfim, contem-me lá o motivo desse ar tristonho. Eu nem te reconheço, mama.

- Fale, pai - pediu Joana.

- O Dr. Lê Fort quer levar Miguel a casar com Rosa Teresa. Ele recusa-se. E ela recusa-se também, com toda a energia. E por isso o seu estado de saúde está cada vez pior. Além disso é um verdadeiro caso de consciência para Miguel, tanto mais que ambos empreenderam investigações médicas importantes, que ainda não estão concluídas. E se Miguel partir, o fruto desse longo trabalho vai perder-se.

- com efeito, é para preocupar bastante, sobretudo com um rapaz complicado como o meu caro irmão. No seu lugar, eu veria logo o que tinha a fazer.

- Então que farias?

- Nada sei ainda, mama. Não vi nem Miguel, nem Lê Fort, nem as filhas.

- Fazes tenção de ir ver as filhas

- Certamente. Margarida merece bem que lhe dêem um testemunho de amizade. E queria ver, também, de que "massa" é feita Rosa Teresa. Olha, vou lá hoje mesmo.

- Mas não vais antes de falar com Miguel, não?

- Pelo contrário, prefiro ir antes.

- Mas ainda há outra questão, Hervé. Para se estabelecer, Miguel tem precisão de dinheiro. Então... por isso... eu tenho de vender terras. O que pensas

- Oh! estas questões de dinheiro! - suspirou Ivone.

- Tu estás sempre a divagar - ripostou Joelle. - No entanto é justo retalhar o patrimônio a favor de um só?

- Tu então vê-se bem que estudaste Direito. Hervé, enquanto as ouvia, ia fumando o seu

cachimbo. Depois, declarou:

- Pela minha parte, neste momento não penso absolutamente nada. Tenho de conhecer o ambiente da "Casa de Cima". E vocês não discutam, raparigas! Parece que tu estás noiva, Jó. E tu, Ivone, quando é a tua vez?

- Talvez nunca. E tu

- Oh! eu... eu sou um vagabundo, um selvagem.

Ele voltou pensativo, depois da sua visita à "Casa de Cima". Miguel já lá estava, tomando uma refeição que era ao mesmo tempo almoço, lanche e jantar. Hervé achou-o mudado. Nada restava do garoto que deixara. Era um homem. Um homem que sofrera. E pediu-lhe:

- Leva-me ao teu quarto. Parece que a mama te deu o da torre? Um favor, meu velho.

Subiram juntos. O olhar de Hervé percorreu o aposento. Quantas recordações! Aquilo apertou-lhe a garganta. Todo o passado... o pai rnorto, ainda tão novo... e Miguel, ali, hesitante, amuado. Sentaram-se.

- Ouve, meu velho - disse o marinheiro. - Ao princípio julguei que fosses um covarde e que devias casar com Margarida assim mesmo. Mas agora compreendo. Falei com a mãe - uma mulher que teria sido admirável com um marido que à fizesse feliz. E via-a, a "ela". Tu não podes. Serias infeliz e ela também. A questão sentimental tem de pôr-se de parte. Quanto a Lê Fort, está gasto, não é? Lamento-o. Porque ele quer - e com razão - garantir um sucessor e quer que esse sucessor seja seu genro. Só num homem como tu encontra o que ele quer. Vocês já trabalharam juntos. Deixa-te uma descoberta médica quase terminada, que depois é só explorar... Não podes deixar essa descoberta. Faz-te genro dele. Casa com Rosa Teresa.

- Ela não quer e eu também não.

- Mas porque? Embirração?

- Não quero, por que não gosto dela. E ela, naturalmente, sente o mesmo.

- Ouve lá, ela pareceu-me uma rapariga sem grande personalidade, mas tu não deves desagradar-lhe. Porque tu és um moço simpático, sem favor. O único, o verdadeiro obstáculo, é Margarida, entre vocês os dois. Não pude aperceber-me dos sentimentos dela para com a irmã. Mas o que creio é que ela tem uma alma bastante grande para compreender e para ceder o seu lugar, mesmo que sofra.

- Não quero que ela sofra ainda mais.

- Sim, a pobre rapariga havia de sofrer. Mas não imagines que se pode viver sem sofrer... Seja como for, o que era preciso era deixar Lê Fort morrer em paz. E tu sabes que a morte, por mais que se diga, é a grande questão, a coisa mais séria. O resto... puf!

- Como estás modificado, Hervé! Custo a reconhecer-te, tu, que te rias de tudo. Como foi isso arranjado

- Ora! um caso de coração, como sucede a tantos rapazes... Vi o fundo da vida, à maneira dum mergulhador que vê o fundo do mar. Sai-se de lá com idéias totalmente diferentes.

- E mesmo assim pensas em casar-te?

- Não sei. Precisava duma mulher... olha, do gênero de Margarida: bela, forte, inteligente. Mas ela não seria para mim; depois, a Rainha-Margarida já não existe. A flor murchou, partiu-se.

- É verdade, a mama diz que é uma margarida desfolhada.

- Pois é.

Separaram-se. Hervé tornou a sair. Também ele queria tornar a ver o cruzeiro.

"Outrora a paisagem parecia-me imensa. E afinal, como é pequena! Recordo-me. Aqui, tivemos, eu e Miguel, uma conversa de garotos, que já o não eram. Censurei-o por ele não saber "despegar-se". Ele tentou. Mas depois desistiu. Agora quer tantar de novo. É um erro! Foi feito para ficar à sombra do campanário. Como havemos de mantê-lo cá Pobre rapaz! Na verdade não teve sorte. O caso está mal. E para a mama, é uma catástrofe, vender as terras! Não haverá, então, um que aqui fique, para explorar as propriedades Se temos de esperar pelos pequenos a mama acaba por envelhecer, com tantos esforços. Uma mãe envelhece depressa. A Sr. a Lê Fort éque não. Conserva-se bonita. Mas a mama é sem elegâncias! Não gosto, porém, de vê-la a fazer-se uma boa aldeã. Pobre mãe... Tem graça, isto de voltar à terra e sentir nostalgia, Miguel tem razão: eu envelheci. De regresso a casa, encontrou Maria Ângela.

- De onde vens

- Venho das vésperas e vou buscar manteiga.

- Como o "Capuchinho Vermelho". Ficavas muito bem numa herdade. Olha! porque é esse risino

- Porque... ora! porque posso muito bem vir a ser lavradeira, um dia.

- Conta lá! Adoro histórias de amor. Estás a fazer-te corada? Fica-te bem. Cora lá mais um bocadinho!

- Que endiabrado! rapaz maçador... Lembras-te de Alain Goulven? Gosto muito dele.

- Os Goulven da quinta grande, ao lado da azenha, É um bando de filhos. Qual é

- O terceiro. Conhecemo-nos desde o princípio e se tu soubesses como ele é engraçado! Temos absolutamente as mesmas idéias. Sai este Verão da escola agrícola. E ele disse-me: "Se tu quiseres, Maria Ângela, casávamo-nos. "

- Óptimo. Casem-se. Nada os impede. Ela teve um gesto de desânimo.

- Sim... os outros... Miguel, sobretudo. Actualmente nem me atrevo a falar em casamento. E depois, deixar a casa... A mama está cansada.

- Traz para cá o teu Alain. O pai dele não precisa lá dos filhos todos. Ele cuidará das terras. A mama até fica aliviada.

- Parece-te

Ela erguia para ele a carita vermelha. Ele riu-se:

- Olha, tu até tens cabeça de lavradeira. Digo-to eu. E eu adivinho... Lembras-te, quando éramos pequenos, vocês andavam sempre a dizer: "Hervé adivinha tudo. E isso irritava-os.

- És capaz de adivinhar como vai acabar o caso do pobre Miguel?

- Ainda não. Noutro tempo enganei-me com Miguel. Disse-lhe: "Despega-te da terra. Mas ele não foi feito para se desarreigar: seca-se. Tem as raízes na terra natal. Assim como tu. E como o João, hem O garoto está a reagir como um palerma perante estes episódios de família. Deve estar com medo que se desfaçam do menor campo de batatas por causa de Miguel. De resto, faziam tolice... Bem, a coisa há-de resolver-se. Há quase sempre um meio de sair do naufrágio. Mas quem perde a cabeça afoga-se!

Quando voltou ao Fetal", pôs-se a jogar às cartas com os pequenos, contou histórias de Martinica e tirou da mala presentes para cada um deles. Resumindo, trouxe novamente um ambiente de confiança ao "Fetal" entristecido. E quando Miguel voltou, por seu turno, sentiu uma onda de ventura envolver-lhe o cansaço.

- Aqui está-se bem - disse ele.

- Porque eu estou cá, meu velho. Trabalhaste muito?

O rosto de Miguel suavizou-se e, falando mais para os outros do que para Hervé, articulou.

- A Mariazinha faz progressos espantosos. Teve de explicar quem era a Mariazinha.

- E tu queres abandoná-la? interromper as investigações que podem salvar outros "miúdos"? Olha, tu estás louco... Por agora, deixa-te aqui ficar. Vamos tomar chá com o rum que eu trouxe. Chega-se a imaginar que o tempo não passou e que ainda se está com treze anos, como "Coração Selvagem".

- Lembras-te do meu nome?

- Eu é que to pus. Que queres tu fazer mais tarde? - indagou ele, no intuito de observar a reacção do rapaz.

- Tratar da terra - volveu ele rispidamente.

- Nada mais.

- Então tens de trabalhar, para poderes mandar.

- Dizes como Ivone.

- E como a Maria Ângela, decerto. A família está ao facto do que me contaste há bocado, Maria Ângela.

- Oh! cala-te, falador, indiscreto! - exclamou a rapariga.

- Para que são esses mistérios? Dá-me licença de falar. Julgo que vão ficar todos contentíssimos.

- EntSo, fala.

- Ora bem! A Maria Ângela queria casar com Alain Goulven e fazer-se lavradeira com ele.

- Mas é verdade? - exclamou a mãe. -Que felicidade É um belo moço, e bom. E há-de ajudar-me a dirigir o "Fetal". Porque é que não o dizias, minha filha?

- Por causa de Miguel - respondeu Hervé tranqüilamente. - Sim, estou a fazer uma enfiada de indiscrições, de propósito. Vocês estãotodos emparedados no seu silêncio, nos seus escrúpulos. Eu trago comigo o ar do largo, para varrer tudo isso.

João Maria atirou-se ao pescoço da irmã:

- Maria Ângela... Alain gostará de ter-me com ele

- Gosta, se tu estudares como ele próprio estudou.

- Estou muito contente! Estou muito contente! Vamos dançar, "Saguim".

Hervé olhava para eles, pensativo.

"Pobres miúdos", é a mocidade! Fui novo, como eles. E Miguel também. Para mim, creio que esse espírito da infância se acabou. Miguel deve tornar a encontrá-lo. No espírito é um homem de ciência, mas no coração é uma criança, um fraco. Que loucura ter troçado dele noutro tempo e tê-lo impelido a partir!"

Na "Casa de Cima" a atmosfera era tormentosa, e ficara ainda um pouco mais perturbada depois da visita de Hervé. Conforme a sua promessa, Susana perguntara a Rosa Teresa se não se habituaria à idéia de vir a casar com Miguel. Mas a pobre Susana era um mau advogado, porque julgava de antemão a causa perdida. E Rosa Teresa, de ordinário tão passiva, mostrava essa teimosia invencível que todos os despreocupados têm de vez em quando.

- Não o amo. Quando ele regressou, achei-o engênuo. Gostava quê ele me desse atenção. Quando ele se tornou noivo de Margarida fiquei um tanto desiludida, mas isso não durou muito. Agora está muito grave, enfadonho, absorvido pela medicina. Se eu tiver de casar com um médico, quero um rapaz mais expansivo, mais mundano. Tu dizes que depois de casado ele se faria expansivo outra vez. Não, ele não se esquece de minha irmã. E eu não quero que haja uma recordação dessas entre mim e meu marido.

E como a mãe insistisse, ela exaltou-se:

- Então tu não vês, mama, que a pobre rapariga tem ciúmes Tem ciúmes por eu ser nova e normal e não ser feia. Ela vigia-me. Sim, espia todas as minhas acções e todos os meus gestos, para saber se eu não procuro substituí-la como mulher, para casar com Miguel. Nunca ela mo perdoaria. Seria para ela uma causa de rancor, de revolta, até ao fim da sua vida. E eu não quero fazer-lhe um mal tão grande. Não quero que minha irmã me odeie! Susana acabou por dizer:

- Tens razão. Mas teu pai está tão empenhado neste casamento. Nem sei como se há-de informá-lo de que tu recusas definitivamente.

Acalmada Rosa Teresa pôs-se a chorar.

- Pobre mama... nem sempre ele é amável contigo. Não te metas mais nisto. Vou escrever-lhe e digo-lhe o que decidi. Acha a carta na secretária e lê-a tranqüilamente, sem poder descarregar a cólera em ninguém.

De facto ela pôs um bilhete em cima da secretária, a grande secretária profissional onde, como única nota de suavidade, se erguia o retrato da irmãzinha que Jerónimo tanto amara. A sua recusa era simples, respeitosa e clara e terminava por estas palavras:

"Peço-te, papá, que consideres a minha decisão definitiva e bem reflectida; Miguel e eu não nos amamos e Margarida continua a amá-lo. Recuso-me a ocupar o lugar de minha irmã. "

Quando ele desceu, de manhã, para preparar o seu trabalho daquele dia, deparou com a carta. Leu-a e releu-a. Pôs-se a olhar para a frente, numa expressão apalermada. Depois, foi tomado por um espasmo. Ainda se arrastou até à sua poltrona. Foi aí que, uma hora depois, Susana o encontrou, sem sentidos.

Foi indispensável chamar Miguel, que lhe prestou os primeiros cuidados e se preocupou em substituir Lê Fort junto dos doentes mais graves. Procurou o caderno de apontamentos. E, ao ver uma carta aberta na secretária, pensou tratar-se duma mensagem de ordem profissional. E então, leu a declaração firmada por Rosa Teresa e ficou cheio de consternação. Via que o pobre Lê Fort não aceitara a sua própria recusa e que perseguira Rosa Teresa com as suas instâncias. A derrocada final dum projecto perseguido com um empenho ansioso, próprio de certos enfermos, arrastara-o a uma crise, mais grave do que as precedentes.

"Felizmente Hervé está cá - murmurou ele.

- Senão eu enlouquecia. "

Rosa Teresa chamou-o:

- Anda cá. Tenho de dizer-te uma coisa. A culpa é minha, Miguel. Se tu soubesses... - Sei.

- E, no entanto, nós não podemos casar-nos.

- Não, Rosa Teresa. O casamento é demasiadamente grande e santo para se fazer à força.

- E julgas que ele vai morrer?

- Vou tentar salvá-lo uma vez mais.

- Ouve, vai ao pé de Margarida. Ela queixa-se muito das costas, esta manhã. É preciso tratar dela.

- Mas ela não me quer ver mais...

- Mas tu dizes-lhe... dizes-lhe... porque é que o papá está doente. Julgo que, depois, ela há-de concordar em ver-te. Ela imaginava que nós íamos casar, percebes? Quando souber que nós recusámos, será menos infeliz. Já chega a infelicidade do papá.

Ele olhou para a rapariga e viu-lhe o semblante transtornado.

- Queres abraçar-me? - disse ela. - Abraça-me, como se fosse tua irmãzinha...

Maria Violeta lera também a carta. E, de pé, com as mãos postas, repetia incessantemente:

"Isto vai matá-lo. Isto vai matá-lo. "

 

- Salva-o, Miguel! - suplicava Maria Violeta. Era comovente vê-la, os cabelos escuros a emoldurarem-lhe o rosto delgado, de olhos claros.

- Farei o impossível, minha filha. Vou tentar todos os tratamentos adequados a sustar a crise.

- Tu és um homem de ciência, Miguel. Inventa qualquer coisa, não deixes o papá morrer!

- Conserva a calma, Maria Violeta. Sabes que os doentes sentem um certo bem-estar quando aqueles que os tratam se mantêm calmos. Teu pai e tua irmã amam-te. Proporciona-lhes paz. E olha que só tu podes dar-lhes.

- Só eu? E por que? A mama e Rosa Teresa

sabem tratá-los muito melhor do que eu.

- Mas é que tu és uma almazinha de amor. Quando tu seguras a mão do teu papá na tua, ele sossega.

Era verdade. Enquanto que a presença de Susana parecia enervá-lo. Uma noite chamou a mulher.

- Susana, ainda pensas nele?

- Em quem, Jerónimo?

- No tal Francisco. Eu sei bem que o teu coração veio cheio dele para ao pé de mim. Tens sido minha mulher, mas não pelo coração. O casamento não te fez amar-me. Nunca me amaste.

Sem a ouvir, ele continuou, o cérebro fatigado perseguindo a mesma idéia:

- Eu desejei-te, eu amei-te. Podíamos ter sido felizes. Mas eu sentia que "outro" estava aí. Toda a nossa vida aí esteve, entre mim e ti.

Ela chorava.

- Jerónimo, para que havemos de regressar a um passado distante? Sabes bem que nunca mais tornei a vê-lo. Tu é que és o meu marido, o meu único afecto. Ah se tu tivesses querido, se tivesses sido mais doce, tinha te amado tanto. Eu admirava-te, Jerónimo.

Ele prosseguiu:

- Encontrei uma carta dele... escrita durante o nosso noivado... Ele escreveu "Jamais nos olvidaremos, Susana. Tu não olvidaste. Não te possuí. Ninguém me amou. Sim, a minha irmãzita, outrora. E a minha pequena Maria Violeta. Onde está ela? Quero ver Maria Violeta.

A mãe foi acordá-la. Ela veio, alta e frágil, no seu robe cor-de-rosa. Pegou na mão do pai, que abriu os olhos, fitou-a e disse:

- És tu... Ouve. É preciso que Miguel não se vá embora. A Mariazinha não está curada. E os outros, os outros todos...

- Ele está cá, papá. Está a fazer as tuas vezes, bem sabes.

- Mas quer ir-se embora. Porque é que a Rosa Teresa se recusa a casar com ele? Diz à Rosa Teresa...

E depois calou-se, esgotado por tantas palavras. Maria Violeta sentou-se ao pé da cama, a pensar, a orar, a esforçar-se por envolver o pai naquela paz que, segundo Miguel, emanava da sua presença. E Susana também pensava e orava, mas dolorosamente.

Afinal, Jerónimo não se enganava. Ela casara-se, com uma pena apaixonada de Francisco, e jamais o esquecera.

"Ah! que crime contra o indivíduo e contra a liberdade, negar-se o direito a uma rapariga de casar com aquele a quem ama e de uni-la a quem ela nunca amará com aquele amor verdadeiro que ele tem o direito de esperar dela. E quer-se constranger Rosa Teresa ao mesmo? As raparigas de agora sabem defender-se. Porém, se a recusa dela fizer com que o pai morra desesperado? Como saber onde está o dever?"

Volvia e revolvia o problema no seu espírito, sem lhe encontrar resolução. E voltava à sua própria história:

"Se Jerónimo me tivesse mostrado amor, tinha-me conquistado e teria esquecido o passado. Mas ele foi sempre tão frio! Nunca teve um impulso, uma palavra meiga. Sempre tantas palavras duras! Foi o que estragou a minha vida... Tanto eu desejei a felicidade! Talvez a desejasse de mais. Da felicidade dos outros e da elevação do meu espírito é que eu devia ter cuidado, principalmente... "

Uma chuva forte martelava o telhado e jorrava pelos vidros. Chuva de fim de Inverno, boa para a terra, à espera da Primavera. Mas cuja monotonia aumentava a tristeza daquelas que, nessa noite, se mantinham acordadas ao pé daquele doente em estado grave.

Pela manhã, como de costume, Miguel veio observar Lê Fort e organizar o trabalho daquele dia. Achou o doutor muito fraco. O coração cedia cada vez mais. Quando ele disse a Susana, suavemente, que seria bom chamar o padre, ela nem queria crer.

- O fim tão perto, Miguel? Ele já tem estado tão mal tantas vezes... Além disso não sei se ele quererá receber o Sr. Cura. Ele não ia nunca à igreja. Enfim, se achas que podemos fazer uma tentativa...

- Eu previno-o quando passar por lá. É o nosso dever.

Antes de voltar ao "Fetal", para almoçar, Miguel foi a casa da pequena Maria. Que consolação, ver a vida a triunfar naquele pobre lar, enquanto que em casa dos Lê Fort triunfava a morte... A criança brincava na cama, só com uma mão, porque a outra conservava-se num aparelho; mas tinha o rosto sorridente e sereno.

- Esta manhã bebi o leite todo - anunciou ela.

- Estava à sua espera para contar-lhe isto, - disse a mãe. -Estava sempre a dizer: "Quando será que vem hoje o meu querido médico? Quando?"

- E eu também estava à sua espera, Senhor Doutor - disse o pai gravemente. - Não se vá embora sem eu falar consigo. Olha, mulher, leva o Sr. Doutor para a casa de entrada quando ele acabar de ver a pequena, e deixa-nos sós.

Quando os dois homens ficaram sozinhos, o camponês tirou um saquinho da algibeira:

- Isto é seu? É sim, pertence-lhe. Quis ser desonesto, ladrão... Mas agora não posso mais. Vou dizer-lhe tudo. No dia seguinte àquela desgraça que aconteceu à menina, passei de manhãzinha cedo pela estrada, com a nossa vaca. De repente vi qualquer coisa a luzir, nessa manhã havia sol. E aquilo a luzir, a luzir. Abaixei-me e apanhei um anel de senhora, o rico anel que o senhor lhe tinha dado. Somos pobres. Queria comprar uma bicicleta com motor. Por isso... guardei o anel e disse: um dia, Vou a Nantes, onde ninguém me conhece, e vendo-o. Mas não me decidi logo a isso. Depois, a Maria caiu doente e o senhor tratou-a tão bem, que ela está curada. Se ela tivesse morrido, eu eudoidecia: é a única que nos resta. Sr. Doutor, tenho tido vergonha, isto abafava-me. O senhor, tão bom e eu, um ladrão. Aqui está o seu anel; é em nome da Mariazinha. Não sei se vai entregá-lo à menina: dizem que ela já não casa; mas essa jóia é sua e deve ter custado bem bom dinheiro. Agora tem de me perdoar. Há momentos destes, em que se descarrila.

Miguel, perturbado, tornou a subir o caminho. com que alegria Margarida teria metido no dedo aquele anel, que ele ali levava, enrolado num trapo! Tantas vezes ela o contemplara, admirando-lhe as fulgurações! "O Senhor tornará a vendê-lo" - dissera-lhe o homem. Impossível. E, não obstante, Margarida jamais concordaria em trazê-lo outra vez.

"O avô me dará conselho - pensou ele. Ou talvez antes Hervé. O avô raciocina à antiga, enquanto que Hervé tem um pensamento novo. "

Porém, quando chegou a casa, a mãe disse-Lhe que fosse depressa lá acima: Lê Fort estava muito mal. Recusara os sacramentos.

Rosa Teresa recebeu-o a soluçar:

- Ele chama por ti, Miguel. Está sempre a dizer que é a tua partida que o mata. E que não pode morrer em paz se não lhe prometeres que ficas. No entanto, eu não posso mentir e prometer-lhe que caso contigo Margarida havia de sofrer toda a vida por isso. E ela... ela há-de viver.

Separou-se dela e foi para ao pé do enfermo, "jue recomeçou no mesmo lamento:

- Fique! E case com ela!

Conseguiu acalmá-lo temporariamente e foi ter com Margarida, que não podia estar sem cuidados. Maria Violeta encontrava-se à sua cabeceira. Quando ele acabou de tratá-la, Maria Violeta fitou Miguel. No seu rosto infantil havia o olhar duma mulher. A sua mão fina pegou na mão da irmã.

- Miguel... -articulou ela. A sua voz tremia.

- Miguel, é preciso que o papá vá em paz e em estado de graça. Ele recusou os sacramentos e repele a mama. Só me ouve a mim. Por isso... casa comigo, Miguel!

A mão de Margarida estreitou a sua.

- Casa comigo. Ainda não sou mais que uma menina grande. Ela terá menos pena, se for eu a casar contigo. Porque tu nunca tinhas pensado nisto, compreendes? e eu também não. E depois, eu sou para ela a sua irmãzinha, a sua irmãzinha pequena...

A Rainha-Margarida estendeu a outra mão, a mutilada, e pegou na mão de Miguel, para uni-la à da pequena.

- Casa com ela, Miguel. E vão depressa dar a notícia ao papá. Vão os dois juntos. Sim, deixem-me só. Gosto mais.

Repetia incessantemente as palavras que uma vez dissera à mãe:

"Não tem raízes, Uma ave do céu levará tudo. Uma ave... "

Era a irmãzinha, a ave...

Miguel e Maria Violeta entraram no quarto e ajoelharam-se junto do leito onde o pai estava estendido, tão pálido, que dir-se-ia já morto.

- Papá! -disse Maria Violeta.

Ele não respondeu. Chegou tarde de mais? Ela osculou-lhe a fronte amarelecida. As pálpebras soergueram-se. Olhou para a filha e depois para Miguel.

- Papá, queres abençoar-nos. Casarei com Miguel. Prometemos casar um com o outro ao pé de Margarida.

Uma Jeve cor lhe animou as faces.

- É verdade? Não estás a mentir?

- Juro-lhe, Doutor - pronunciou Miguel. - Se estiver de acordo em dar-ma por esposa, casamos e eu ficarei aqui sempre.

O doente agitou-se:

- Mas ela não tem anel. É preciso um anel...

- repetia, com a obstinação dos doentes em estado grave.

Miguel, então, tirou do bolso o terrível farrapo e o diamante apareceu, resplandecente. Maria Violeta fez um movimento de recuo: o anel dela... Estendeu, porém, o dedo. O anel era muito grande para aquele dedo ainda tão fino. Mesmo assim, não caiu.

- Noivos, noivos... -repetia Jerónimo. - A terceira é a primeira a casar-se... Vais ser feliz com ela, Miguel, com esta menina.

- É preciso abençoar-nos, Doutor - disse Miguel com voz trêmula.

- Eu? Não estou em condições de fazê-lo. O Sr. Prior que venha. E em seguida... abençoo-os, meus filhos.

Enquanto aquela auma se reconciliava com o Senhor, Susana levava consigo Maria Violeta e Miguel.

- Obrigada? Oh! obrigada!

Rosa Teresa tinha desaparecido. Em segredo, não teria ela pena de perder Miguel

- Mama - disse Maria Violeta, com a cabeça no ombro da mãe -, pus o anel para fazer a vontade ao papá. Mas não quero ficar com ele. É de Margarida. De onde é que ele veio, Miguel?

- Restituiu-mo alguém, cujo nome não posso revelar. Sim, havemos de entregá-lo a Margarida. Mas, por agora, conserva-o. Por causa dele.

Chamada pelo padre, Susana foi a primeira a entrar no quarto. Jerónimo disse-lhe docemente:

- Perdão, Susana! Não soube fazer-te feliz. Amava-te tanto! Amava-te de mais. Tinha ciúmes duma sombra.

Por sua vez, ela pediu-lhe perdão:

- Tão-pouco eu soube fazer-te feliz. No entanto, amava-te. Amo-te, Jerónimo. E havemos de amar-nos por toda a eternidade.

- Dá-me um beijo.

Foi aquele o seu verdadeiro beijo de amor.

Ele pareceu melhor uma vez mais. Abençoou os noivos. Recomendou os seus doentes a Miguel e quis ver Margarida. Trouxeram-na numa cadeira de repouso.

- Minha pobre filha! É preciso não te entregares ao desgosto. É preciso viver. Estás a ouvir? Viver!

Para não o contrariar, ela disse que sim, mas o seu coração sangrava. Depois de ela estar novamente na cama, Miguel apresentou-lhe o anel.

- O teu anel. Encontraram-no. Guarda-o, em recordação dos dias felizes.

Ela olhou e, asperamente, repeliu a jóia:

- Em recordação? Estás louco! Quero esquecer tudo. Tira-me isso daqui, Miguel!

À noite, Jeróni Lê Fort morreu, depois de ouvir Miguel dizer-lhe:

- A sua obra há-de prosseguir.

E ele murmurou essa palavra desejada, que toda a vida lhe queimara o coração:

- Meu filho...

Morreu, com a mão na de Susana. a paz desceu sobre o seu rosto.

 

PARA maior ventura de Joana Abran, a Páscoa veio reunir de novo no "Fetal" todos os seus filhos. Todos, até mesmo Hervé. Bem passageira era essa alegria: uns após outros, todos iriam a caminho da vida. Quem ficaria com ela? Os dois pequenos. E Maria Ângela, sem dúvida. Miguel, porém, estaria lá em cima.

Hervé trouxera para casa um fluido vivificador, uma espécie de vento do largo, carregado de odores juvenis. Conversando com ele, o avô tornava a encontrar toda a sua energia. E Gildas tornava-se menos débil. Ditoso efeito do regresso do marinheiro.

"Mas, no fundo, Hervé não é alegre - pensava. - Tem apenas a aparência. Esse rapaz deve sofrer. Ele é que não diz. "

E ela teve saudade do tempo em que o seu menino vinha, todo em lágrimas, agarrar-se-lhe aos joelhos e contar-lhe qualquer mágoa.

Naquele dia, Hervé anunciou

- Apetece-me andar de barco.

- Comigo! - gritaram os mais pequenos. Mas ele disse, no seu tom breve e seco de capitão a bordo do seu navio:

- Só a Ivone, se ela quiser largar aquele calhamaço apaixonante. Os outros não têm falta de distracções.

De facto, Gui viera passar o dia com a sua formosa Joelle. Maria Ângela montara na sua bicicleta para ir ter com Alain. "Coração Selvagem" e "Saguim" tinham sempre magníficas idéias de reserva para fazerem disparates durante as férias e aquelas eram as férias da Páscoa, as mais divertidas do ano. Restava Gigi:

- Tu és muito pequeno - disse João Maria, quando ele pediu que o deixasse brincar com eles, depois de Hervé se ter recusado a levá-lo. Como era natural, pôs-se a chorar. Joana, então, pôs na cabeça um chapéu qualquer e estendeu a mão ao menino amargurado.

- Também eles me deixaram a mim. Vamos I passear os dois, queres

Se ele queria! Ter a mama só para ele! E para a mãe, que prazer ouvir tagarelar o seu menino, de coração ainda confiante!

Os dois mais velhos foram, pois, direitos ao rio. Ivone era mais alta que Hervé. Andava muito com os seus sapatos rasos. Hervé pôs-se a assobiar e ela irritou-se:

- Cala-te lá! Não me deixas ouvir os passarinhos.

- Oh! minha querida, os passarinhos... Não te conhecia essa alma poética.

- Olha, meu velho, quando ouvimos todo o dia coisas desagradáveis, temos uma necessidade louca de poesia.

- É possível. Mas também, para que escolheste tu essa profissão?

- Porque... sim...

- Uma resposta bem feminina. Vamos, salta para bordo! Que tranqüilos vamos estar ambos, entre o céu e a água! Sem os outros.

- Então os outros incomodam-te? No entanto, há quanto tempo não os vias!

- Por vezes incomodam-me. Todos os marinheiros, no fundo, têm o seu quê de selvagem. Não te julgues obrigada ao cavaco. Não há nada tão estúpido como isso, de trocar palavras, que não significam nada. Tanto tu, como eu, conhecemos bastante a vida e "as suas vaidades", como diz a velha canção, para não termos prazer em estar calados.

Ivone não desejava outra coisa. E o silêncio das suas vozes deixava o campo livre à voz da Primavera. O cuco fazia ouvir o seu chamamento em toda a volta.

Foi o rapaz quem falou primeiro.

- Um dia lindo para os namorados. Jo e Gui, os nossos intelectuais. Maria Ângela e Alain, fazendeiros. Miguel e a menina lá de cima. Todos conjugam o verbo amar.

- E tu não tens inveja? Vir ter com a mulher e com os filhos depois de cada viagem, há-de ser engraçado.

- Que mulher? Não me agrada nenhuma.

- Sabes qual é a idéia da mama? Casares com Rosa Teresa.

- Casamento escrito no Céu, não? A nossa pobre mama pode renunciar a tal sonho. Não me caso com Rosa Teresa. Se um dia tiver de casar, há-de ser com uma mulher... Olha, só te digo isto: com um valor de primeira ordem. Rosa Teresa é graciosa, mas é um valor de segunda ordem. A Rainha-Margarida, sim. - é alguém. Ah! dói vê-la naquele estado. Uma rapariga como ela, formosa, desportista, inteli- gente - é caso para cair no desespero. Mas ela é valente.

- No fundo, talvez ela se sinta desesperada. Mas o fundo de si mesmo, quem o mostra?

- Creio que ela há-de reagir. De que maneira? Em que condições? Mistério. Não é nada feita para o papel de tia dedicada a mimar os filhos da irmã e do que foi o noivo dela.

- Sim, parece-me impossível. Pobre rapariga. Vê como o prado está lindo.

Ele abrandou o andamento, para deslizar ao longo da margem, onde tantas florinhas brancas e alouradas cintilavam entre a verdura nova. Ele achava a Bretanha muito linda. Todas as vezes que a deixava, era um despedaçamento. Todavia, ele é que escolhera aquela vida: partir, partir sempre...

- Ivone, - perguntou ele, - gostavas de sair daqui, como eu? Há necessidade de enfermeiras e de assistentes sociais na França de além-mar.

- Não duvido. Mas na metrópole, também.

- A metrópole... Esta rapariga fala como um livro. Se não é indiscrição, gostava bem de saber quando é que tu casas! As duas mais novas vão casar primeiro do que tu.

- Nestas coisas não há vez. Casar-me? Noutro tempo tive vontade.

- Noutro tempo? Então já te julgas velha?

- Seja como for, tive «outro tempo». E um rapaz de quem gostei muito. Sim, também tive um sonho, como Joelle com Gui.

- E depois? Deixou-te?

- Morreu. Morreu na Indochina. Era médico militar.

Um silêncio... Ela prosseguiu, com a voz

um pouco mudada:

- Não fales nisto lá em casa. Não há precisão de saberem. A mamã afligia-se e os outros tinham pena. Prefiro suportar isto sozinha. É este desgosto e depois... outras coisas mais: a imoralidade, a miséria, o sofrimento, tudo isso em que me ocupo na minha profissão, deu-me uma ideia, talvez exagerada, do lugar apavorante que o mal tem no mundo. Ora eu quero lutar contra isso tudo. Perguntas-me se as terras distantes me atraem. Certamente que aí deve haver muito trabalho a fazer. Mas aqui, entre nós, Hervé, também há.

Ele fitou-a, medindo a rapariga com o seu olhar azul.

- Irmã de caridade?

- Não. Farei o meu trabalho onde estou e tal como sou. com o meu eterno trajo azul-marinho, de que as pequenas se riem, e o cabelo repuxado. E o meu coração totalmente dado. Talvez eu volte para o "Fetal" quando a mama tiver mais idade e o avô tiver desaparecido com tudo o que ele representa de força e de bom-senso. Peço ao Miguel que faça um dispensário, um centro de obras sociais em que eu me ocupe. Se eu me casasse, já não pertencia inteiramente às pessoas que precisam de auxílio. É necessário que possam agarrar-se a mim, servir-se de mim, sem eu ter de dizer: "Desculpem-me, tenho meu marido à minha espera... os meus filhos, que voltaram da escola... o jantar a preparar. É necessário que as pessoas vejam as minhas mãos estendidas para elas, mas vazias, de qualquer outra coisa. Percebes

- E se um dia tens pena... do resto?

- Tanto pior. Temos sempre pena de qualquer coisa. Mesmo assim, penso que hei-de viver a minha vida plenamente. Não te parece?

- Julgo que sim, minha assisada irmã, a mais assisada das Abran... Olha, estavas a falar de Miguel, ao o vês tu lá em baixo, com a noiva? Vêm de mãos dadas, como se fossem "miúdos". Aposto que vão subir ao Cruzeiro. Tem graça... é um sítio onde se pensa melhor do que em qualquer outro. Acho graça à pequena, com os seus grandes olhos levantados para ele. Que belos olhos! Vai fazer-se extremamente linda. Ainda não se habituou à idéia de ser noiva. Miguel intimida-a. Que adorável mulherzinha!

- Valor de segunda ordem, como Rosa Teresa, ou de primeira, como Margarida?

- De primeira ordem, tenho a certeza. Pois tu não vês? É ainda uma garota e que força de vontade não lhe foi precisa para se atrever a dizer a Miguel: "Casa comigo!"

- Fê-lo por amor ao pai.

- Na verdade, é sempre por amor que se faz tudo o que é belo.

Não voltaram a falar. O silêncio palpitava cheio de pensamentos, que, sem se exprimirem, iam de um para o outro, ambos ainda tão novos e já tão criteriosos.

No quarto de Margarida, Susana fazia "tricot". A lã era negra. Dali em diante seria assim, visto que estava viúva. Viúva, sensação nova, desconhecida. E eis que agora, olhando para trás, para o seu passado de esposa, reconhecia que amara Jerónimo, ao mesmo tempo que o temia porém, tão pouco teria bastado para deixar de temê-lo e abrir-se com ele, inteiramente... E ele amara-a... Que mal-entendido! Era, então, preciso morrermos, para nos descobrirmos?

Enquanto Susana fazia malha, Margarida entretinha-se com palavras cruzadas. Um álibi para o pensamento. Trabalho que ela impunha ao espírito.

"Trabalho estéril-pensava ela, tristemente.

- Doravante só farei coisas inúteis "

Pediu a colaboração da mãe:

- Mama, dizes-me uma letra do alfabeto grego

Tinha agora um modo mais infantil de dizer "mama", que Susana adorava ouvir.

- O teu trabalho vai muito adiantado. Cojito já poder fazer malha daqui a pouco. Hásde comprar-me lã. E arranjas-me o modelo.

Pequenos indícios do interesse a despertar. Continuaram a falar de malhas. Mas o propósito- como acontece tantas vezes - ia mais longe do que as palavras trocadas. Por que, naquela tarde primaveril e naquele tempo de aleluias, uma e outra sentiam necessidade de viver. E as inflexões das suas vozes, ora lentas, ora vivas, modulavam-se sobre sentimentos inexprimidos.

Em cima da mesa viam-se pervincas. Margarida notou que tinham o mesmo tom dos olhos de Maria Violeta, tão grandes e franjados de negro.

- Nós vamos hoje procurar violetas-anunciara a pequena.

"Nós... Doravante seria sempre "nós". com que ternura parecia que ela amava Miguel! Mas ainda timidamente: uma menina que se aproximava nos bicos dos pés dum jardim muito lindo.

A campainha do telefone retiniu. Susana desceu à pressa e depois voltou para junto a filha.

- Chamam Miguel para ir ver um doente. Mas agora quando é que eles voltam? com uma tarde tão linda, quem sabe se eles não ficam no "Fetal" para lanchar? Como hei-de prevenir? É aborrecido não haver telefone no "Fetal"! Vou pedir ao pequeno do vizinho para dar lá uma saltada. a pegar no trabalho, Margarida disse lentamente:

- Este estado de coisas não é nada conveniente. O doutor tanto está cá em cima, como está lá em baixo. E sem telefone lá em baixo. E o tempo que se perde para lá chegar! O serviço médico, assim, nunca pode ser regular.

Susana notara já todos aqueles inconvenientes.

- Isto não pode continuar-prosseguiu Margarida. - Mama... é preciso casá-los.

- De luto carregado, não, minha querida!

- Mas porquê ? Realizava-se o maior anseio do papá. Não há necessidade de fazer festa. Maria Violeta é tão simples! Decerto não se importa com isso. Miguel também não. Desde que ela tenha o seu vestido branco...

Porém, o principal obstáculo não era o luto. Era a própria Margarida. Como lho faria compreender ?

- Queríamos esperar que estivesses mais forte.

- Sim,.. para melhor suportar o golpe? De facto, não quero assistir ao casamento nem à instalação deles aqui. Não aguentaria. Tenho feito muitos esforços, mas este iria muito além do que eu posso. Mamã, responde-me: a questão do dinheiro não nos incomoda, não é assim? Portanto, quero ir-me embora; quero ir para uma clínica e ficar lá até que eu possa tornar a fazer uma vida mais ou menos normal. Manda vir o especialista de Rennes. Ele dirá se eu já estou em estado de viajar, como penso. É claro, como doente grave. E com uma enfermeira que me acompanhe até ao fim... Porque não há-de ser Ivone? Gosto muito de Ivone.

- E depois quando voltas, minha querida? A resposta foi breve e dita em voz baixa:

- Nunca mais.

- Oh! minha filhinha...

- Tens de compreender-me, mama. Foi sem ciúme, sem amargor, que cedi a minha felicidade a Maria Violeta. Fi-lo pelo papá, por Miguel, pelos doentes. Sei, também, com que espírito a minha irmãzinha o compreendeu. Mas ver-me substituída na vida que devia ser minha... Impossível! Doutra maneira e longe daqui, farei por dar sentido à minha desditosa vida. Pronto... É só isto. Agora chega à janela e vê se eles já lá vêm.

Susana debruçou-se para o vale, por onde perpassava uma aragem primaveril. Avistou-os, subindo o caminho. Maria Violeta vinha toda de preto, mas no seu vestido de luto trazia uma grande rosa branca. E quando ficaram mais perto, Susana viu violetas na mão de Miguel.

- Estão a chamar por ti, Miguel! - gritou ela da janela.

À pressa, ele subiu ao quarto e Susana disse-lhe a visita que tinha a fazer. Miguel suspirou

- Sair, outra vez... Quer dar-me a maleta? Deixei a minha lá em casa.

Susana foi buscar um estojo médico. E Margarida chamou-o:

- Miguel! Tu, Maria Violeta, fica. Um minuto, é só um minuto. Disse à mama que isto assim não pode continuar, este vaivém entre a "Casa de Cima" e a "Casa de Baixo". É preciso casarem-se. O tempo de publicar os banhos e de fazer o vestido branco.

- Margarida! Logo a seguir à morte do papá!

- Pelo contrário. Sabes como ele desejava o casamento de Miguel.

A pequena inclinou-se para a irmã e beijou-Lhe a cara cheia de cicatrizes.

- Mas tu

- Oh! eu... -respondeu ela, tentando sorrir. Chorava, porém, ao mesmo tempo.

- Vamos, minha pequenina, não se pensa em mim, mas na continuação da obra do papá.

- O papá... -repetiu Maria Violeta. - O papá...

No limiar da porta, Susana viu Miguel ajoelhar-se e beijar a mão em que ele devia ter posto a aliança. E ele partiu ao encontro dos doentes, esses doentes a quem ele queria cada vez mais, como médico e como homem. Susana não entrou. Silenciosas, as duas irmãs abraçavam-se. Por fim, a que fora a Rainha-Margarida pela sua beleza saudável, chamou a mãe:

- Mama, vai amanhã a Rennes, tratar do vestido de casamento.

Maria Violeta fugiu, então. Não queria que a irmã a ouvisse soluçar.

Deixara as violetas em cima da cama. A jovem aconchegou-as à cara.

- Este perfume de Primavera... Mama, começo outra vez a amar as flores. E é necessário que te entregues novamente à música.

A voz tremia-lhe ainda, mas a boca sorria melhor.

Seria quimera? Seria uma luz que vinha do alto Ao ver sua filha tão generosa e tão altiva, Susana sentiu uma grande esperança no seu coração de mãe. Era tão viva a seiva que palpitava na linda margarida desfolhada, que ela despedaçara-se, de facto, mas seria ainda capaz de reflorir.

 

 

                                                                  Berthe Bernage

 

 

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