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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARGARIDA VOLTA A FLORIR / Berthe Bernage
MARGARIDA VOLTA A FLORIR / Berthe Bernage

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ao longo dos cais, de árvores despojadas de folhas, o Sena deslizava, lento e glauco, esfriado de pequenas vagas sem reflexos. Protegida do frio por um casaco de peles, Margarida encostou-se à ponte, À bruma do inverno envolvia num fino véu acinzentado a massa da catedral e a sua ilha, esfumando-lhe as torres e dando à paisagem familiar uma aparência de sonho.

Para lá da água soaram horas, vindas de Notre-Dame. Ela contou as badaladas: "Quatro horas. Só quatro horas? Julguei que fosse mais tarde. Estou sempre a julgar que é mais tarde. Como o tempo se arrasta! "

Olhou para o poente, onde havia um pouco de claridade pálida, e os seus olhos desceram até lá abaixo, ao Paris novo, que a Torre Eiffel domina. São mais alegres, esses bairros modernos, em incessante transformação. Porém, como ela preferia, a esses bairros novos, os bairros velhos como aquele, os velhos bairros ricos de história da França, que eram a alma da grande cidade, onde ela se refugiara, assim como outros vão para o deserto ou para o convento após qualquer desdita excepcional, que perturba todas as reservas de coragem e torna intoleráveis os lugares onde, em plena felicidade e em plena juventude, essa desdita nos fustigou!

Coxa e desfigurada depois de um terrível desastre de viação e ao mesmo tempo desapossada dos seus direitos de noiva venturosa, Margarida, de cabeça baixa, quisera mergulhar no burburinho da multidão parisiense, para aí viver independente e ignorada, sem que os habitantes da sua vilazinha bretã pudessem ver passar, dia após dia, a que fora a formosa Margarida - a Rainha-Margarida, como todos lhe chamavam - hoje tão feia; sem que os olhares curiosos pudessem comparar esse emurchecimento lento da rapariga que não seria esposa nem mãe, com o desabrochar pleno de Rosa Teresa e Maria Violeta, suas irmãs, que estavam casadas e bem casadas.

 

 

 

 

Instalara-se, pois, em Paris, apesar das instâncias da mãe e das irmãs, e arranjara trabalho, depois de prolongados meses de imobilidade imposta ao seu corpo esfacelado e de um enxerto que disfarçara um pouco - bem pouco! - os defeitos medonhos causados pelos ferimentos na face. Fizera a sua convalescença na Cote d'Azur, onde o sol cura tantas doenças e dissipa tantos pensamentos tristes. Aí recuperara as forças rapidamente, mas a luz fascinante daquele sol parecia brutal para aquela rapariga nascida sob o pálido céu da Bretanha. E a alegria que por toda a parte irrompia ainda mais lhe fazia sentir a sua desgraça: a vegetação, os frutos, as flores, as palavras e o temperamento dos habitantes, tudo trasbordava de vida, de cor, enquanto ela via a sua vida apagada logo na sua juventude, extintas as cores da sua personalidade, outrora tão brilhantes.

Deixar-se ficar sempre ali? Não. Mas então ir para onde, depois de o sol da Provença ter dourado e fortificado os seus pobres membros... a mão mutilada... a perna mais curta? Voltar para a Bretanha? Para ver a sua irmãzita Maria Violeta tornada mulher de Miguel em seu lugar, dirigindo a casa que ela devia governar, possuindo o amor de Miguel? Nunca!

Era certo que não duvidava deles. Maria Violeta, tão delicada, empregara todos os recursos da sua sensibilidade e da sua inteligência para tornar a situação suportável. E a mãe - essa extraordinária Susana, que se mantinha incrivelmente jovem, mesmo depois da viuvez -"rodeara de cuidados a filha espoliada. Margarida, porém, não tinha a certeza de que, dentro de si, estivesse morto o seu amor por Miguel. Oh! vê-lo casado com outra...

Depois, altiva como era - alma valorosa, que à maneira de tantas orgulhosas sabia converter a adversidade numa fonte de qualidades elevadas - Margarida recusava-se a recuar para o segundo plano no círculo da família. E como suportar os olhares compassivos que todos volvem para os que têm o corpo ou a alma em chaga, a piedade, enfim, a dependência? Livre, ela queria ficar livre. E só. Para sofrer a seu modo, profunda e desdenhosamente. Só, mas no meio da multidão, para se escapar de si mesmo. Por isso decidira viver em Paris, onde o número torna mais seguro o apagamento de cada um. A família e as amigas repetiam: "Ao menos fica em Rennes. Ou em Nantes. Ao pé de nós. "

Não. Paris atraía-a, tal como o Oceano atrai, com a sua imensidão, o seu mistério, o seu canto, cuja alegria mal sabemos se ele canta, se chora e que, por vezes, se eleva e ruge, para depois cair numa paz ainda mais significativa do que a doutro lugar. Nos três meses que passara na cama e na cadeira de cura, Margarida tivera tempo de ler muito, de ler para além das palavras e de pensar em seguida, de ampliar e tirar conclusões, e, em seu entender, nesse grande sussurro de Paris havia muitos suspiros e prantos, aos quais os seus poderiam misturar-se sem que ninguém desse por esse contributo. Uma gota de água mais no Oceano!

Somente queria que o seu trabalho se fundisse, também, no trabalho da multidão. Recuperara forças bastantes para se entregar a uma ocupação, tanto ela temia o tédio, o aborrecimento triste e estúpido que culmina no desespero. De resto, desejava tornar-se economicamente independente, pois sabia que a parte que lhe coubesse na herança não chegaria para assegurar-lhe a existência desafogada a que a sua educação a costumara. Faria com que a mãe e as irmãs a ajudassem? Decerto que não. Enfim, ela sentia estranhamente que na sua inteligência, na sua vontade, havia recursos desprezados até então. E o seu coração? Nem pensava nele. Estava morto, supunha.

Filha de um médico, munida de um diploma hospitalar e de numerosos conhecimentos científicos, obtidos com apaixonado interesse - na rica e moderna biblioteca de seu pai, encontrou, depois de completar a sua formação profissional, um lugar de secretária no consultório de um camarada de internato do pai, que se tornara grande especialista em Paris. Era um trabalho que dia a dia lhe interessava cada vez mais. Ainda mais, mesmo, do que a sua impassibilidade aparente lhe permitia confessar. A arrumação metódica de fichas médicas, as relações com a clientela, tudo, enfim, lhe restituía a atmosfera da casa de seus pais, que teria sido, também, a atmosfera da sua própria casa, depois de tornar-se M Miguel Abran, mulher do jovem médico e homem de ciência seu amigo de infância, se...

Breves e alanceantes recordações despertaram nela, perante a paisagem parisiense, cuja melancolia a envolvia... e lembrou-se do último passeio que dera de bicicleta, naquela tarde de Outono, a tarde da sua infelicidade.

- Vou apanhar estevas, mama, e ver o pôr do Sol lá para cima da charneca.

Que belos, aqueles traços de ouro e de coral, espalhados pelo céu, que não chegavam a desvanecer-se! Contemplava a tela deslumbradora do céu, enquanto pedalava, com um grande ramo de estevas a florir-lhe o guiador. Pensava em Miguel, no seu casamento, já próximo, no seu vestido de noiva, na viagem pela Itália. Bruscamente, embateu. Uma dor atroz fez-lhe perder os sentidos. Depois foi o despertar num corpo inerte. A verdade entrevista a pouco e pouco, arrancada aos bocados aos que a cercavam e que tão mal sabiam mentir: ela, jovem, robusta, ardente, amada, - ia ficar desfigurada, inutilizada, incapaz de ser mãe. Iria ligar um destino miserável ao de Miguel? Proibia-lho a sua consciência. E dissera a Miguel, transtornado e dolorido, que se recusava a aceitar-lhe a abdicação:

- Desobrigo-te da tua palavra. Esquece-te de mim.

Foi então que Maria Violeta, a sua irmãzita mais nova, num rasgo de amor filial, se ofereceu para casar com Miguel: o pai, agonizante, não podia partir em paz, sem a certeza de que Miguel seria seu genro, seu sucessor e continuador dos importantes trabalhos científicos que ambos haviam empreendido.

- Miguel, casa comigo... - dissera a pequena.

E o Dr. Lê Fort, tranqüilizado, expirara, reconciliado com Deus - e com Susana, sua esposa.

Havia já dois anos; tinham passado depressa! Como passa um curso de água, que jamais volta à nascente. Acinzentadas e airosas, as gaivotas, repelidas do mar pelas últimas tempestades, vagueavam sobre o Sena. Voavam perfeitamente, com as suas grandes asas feitas para a imensidão: "À minha alma já não tem asas. "

De repente viu um braço encostar-se ao parapeito, junto do seu, e ouviu murmurar umas palavras atrevidas, dessas que se dizem às mulheres bonitas. Que idiota! Virou-se bruscamente e o homem viu-lhe "o outro lado"... a metade do rosto, à qual nem a cirurgia mais hábil pudera restituir a beleza e que ficara sulcada, violácea, arrepanhada. Ele recuou. E afastou-se, rapidamente.

Envolvendo-se friorentamente no casaco, cuja pelúcia farta fizera sobressair-lhe a graça do "lado bom" da cara, Margarida partiu também.

"O abafo disfarça. Não notou a deformação que tenho nas costas... Se ele me visse andar... coxa!"

No entanto, habituada já a estas pequenas afrontas, suportava-as.

Saíra, no seu passo desigual, que ela se esforçava por tornar harmonioso - quantas vezes se lembrava de Luísa de Ia Vallière, que coxeava e encantara Luís XIV! - a fim de ir buscar umas radiografias, e agora regressava à pressa, um pouco embaraçada com a sua longa demora na travessia do rio. O Dr. Bernardo Laugier, porém, não diria nada. Era muito bom para ela, interessava-se pelo seu estado de saúde e queria que ela saísse todos os dias. Muitas vezes, mesmo, os seus pequenos olhos verde-escuros pousavam o seu olhar penetrante na jovem secretária, como se ela fosse uma doente que pedisse um diagnóstico, cuidados, medicamentos, uma injecção, um golpe de bisturi ou irradiações eléctricas. Margarida, porém, nada esperava. Ele é que parecia andar à espreita de qualquer coisa... De resto, mesmo sem ela se aperceber disso, ele ajudava-a singularmente a reentrar na vida. Ele nunca a lamentara e, no entanto, amparava-a. Mas fazia-o com elevação, sem dizer nada.

Depois de enfiar a bata branca, que acusava a deformação do corpo, outrora tão perfeito, ela levou-lhe as chapas, que os dois se puseram a estudar juntos.

- Só pergunto a mim mesmo porque é que a Margarida não cursou medicina - disse ele, encolhendo os ombros.

- Eu bem quis. Mas meu pai não queria que nós saíssemos de casa, nem mesmo para fazer o ano lectivo em Rennes.

- Foi pena. Tinha em si óptimas condições, minha filha.

E ele pensava: "Tinha condições para tudo. Para o casamento, também. E para a maternidade. Uma rapariga tão linda e tão inteligente! O noivo deixou-a, parece. Mas eu estou em crer antes que foi ela, na sua altivez, que quis romper com o compromisso. Foi uma tolice ele casar com a irmã. Compreendo bem que Margarida tenha fugido... Ele era seu noivo... depois tornou-se um "ás"; as suas descobertas, empreendidas com Lê Fort, puseram-no em relevo. Não obstante, continua a ser médico de província. Imagino o que uma mulher como esta Margarida teria feito dele, o impulso que lhe daria, como lhe aumentaria o valor... Dizem que a pequena, a mulher dele... mas diz-se tanta coisa... De resto, nada tenho com isso. Apenas faço uma pergunta. Que irá esta fazer da sua vida? com tudo o que recalcou em si!"

O dia continuou, aparentemente semelhante aos outros. Mas para uma viva inteligência, nada é semelhante ao que é precedente, nem ao que há-de seguir-se. Os clientes sucediam-se e, pelas receitas pelos certificados de Segurança Social, pelo total dos vencimentos, Margarida adivinhava as coisas ocultas. Este anseio humano, que procurava, conhecer a natureza do mal e curá-lo, acabou por imprimir o seu selo no coração e no espírito atento da rapariga. E conquanto a secretária do Dr. Bernardo Laugier fosse triste, as pessoas viam-lhe, por vezes, um sorriso, É claro que esse sorriso não podia iluminar-lhe senão uma das faces e só brilhava completamente num dos olhos, porque o outro estava semiescondido pela pálpebra. Mesmo assim agradava, e inspirava muito mais confiança do que a enfermeira, uma lourinha seca, de gestos hábeis, mas fisionomia dura.

"Que pena - pensava o doutor com freqüência - que a Lê Fort tenha a mão aleijada e não tenha o diploma de enfermeira! Faria arranjo a nós ambos. "

Mesmo no vestíbulo, porém, a Lê Fort lhe "fazia arranjo". E, no entanto, ela não procurava ser agradável ou útil: acabava por sê-lo inconscientemente. "Sou feia, devo desagradar às pessoas". Este pensamento inibia-a. Mas então como é que lhe faziam breves e comoventes confidências? Onde encontrava ela palavras que animavam? Ela própria se admirava disto.

Acabava, justamente, de incutir coragem a uma senhora nova, quase em lágrimas, quando o telefone se ouviu.

- Está lá... Sim, V. Ex. a ficará satisfeitíssimo com o Dr. Bernardo Laugier. Para um encontro? Não, o senhor pergunta por Margarida Lê Fort?

Sou eu própria. Da parte de quem? Do capitão Abran... Oh! tu, Hervé? Então estás de passagem por Paris? Sim, sim, tinha muito gosto em ver-te. No restaurante... almoçarmos juntos amanhã, domingo, no restaurante? Ficarei encantada. Diz-me onde havemos de encontrar-nos... Até amanhã!

Hervé, o oficial de marinha irmão de Miguel e das suas amigas Àbrans... Pela primeira vez ia ver em Paris alguém da sua terra... Nunca imaginara que isso lhe desse tanto prazer. Ao menos sabia como havia de empregar o seu domingo. Almoçar com Hervé. Falar com um membro do círculo da família e dos amigos. Deixar de ser, por um dia, aquilo que ela mesmo quisera ser - uma desconhecida, uma anônima. Foi depressa que ela voltou para sua casa - a "sua casa", que era um quarto sublocado em casa de uma senhora de idade, de poucos rendimentos. Lamentou não ter tido tempo de passar pelo cabeleireiro. Hervé iria achá-la muito feia? Era certo que ele ainda não a vira depois de retomar a sua vida normal. A última vez fora em Menton, ainda ela estava deitada e não tinha feito ainda a última operação estética que, decerto, a deixara menos feia.

- Que importa, apesar de tudo? - murmurou ela, sentando-se em frente do espelho, para corrigir as ondas dos seus formosos cabelos. Mas, estúpidamente, a canção da Margarida do Fausto envolveu-a de súbito.

- Ah! rio-me de me ver tão bela neste espelho. És tu, Margarida, és tu?"

Então, escondeu a pobre cara entre as mãos e não teve já vontade de ver Hervé Abran.

No dia seguinte de manhã, com o rosto retocado com arte e um chapelinho que lhe sombreava o "outro lado", envolta no seu belo casaco de abafar, tinha um aspecto agradável quando apareceu a Hervé, que receava um tanto este encontro. Tinha-o impressionado muito a infelicidade acontecida a Margarida e não compreendia que o irmão houvesse aceitado a rotura do casamento.

- Àquele rapaz é um fraco. Se fosse eu tinha mantido a minha palavra até ao fim. Ele deixou-a... e com a Maria Violeta nem sequer teve filhos. Que singular casamento... Só para contentar um moribundo. Sempre quero ver como é aquilo, agora quando lá for passar a minha licença.

Arranjou-se cuidadosamente, ele também, para o almoço no restaurante. Queria tratar Margarida com toda a delicadeza, com todas as atenções e gentilezas que é costume dispensar a uma mulher bonita e ditosa.

A mesa estava florida. E mandou vir um almoço requintado.

- Deixa-me fazer o que eu quiser. Não há nada que seja bom de mais para almoçar contigo. Depois, sabe-se lá quando é que eu volto a Paris? Vou passar alguns dias na nossa terra, na Bretanha. E depois... o Extremo Oriente...

- Oh! vais para tão longe, Hervé!

- Mesmo assim, acho que não vais lastimar-me. São ossos do ofício. Ainda que não voltasse, não deixava ninguém atrás de mim.

- Ninguém? Então e a tua mãe? o teu avô, as tuas irmãs e os teus irmãos? E depois... as tuas amigas, nós, enfim.

- " Vamos lá, não te ponhas com devaneios homamos, Sabes que te acho muito bem depois da última operação? Está um trabalho perfeito.

- Verdade?

- É verdade, sim. Sobretudo quando sorris. Oh! O teu sorriso, Margarida! É o mesmo de tua mãe.

- A mama está sempre bonita, Não, não tornei mais a vê-la depois de deixar a Cote d'Azur. Sabes bem que não quero tornar a ir lá a casa.

- Fazes mal. Tu, tão corajosa? Mesmo por que não podes estar toda a vida sem lá ir, não achas? Tens de deitar o obstáculo abaixo.

- É claro que me chamam. Pela Páscoa vão baptizar a menina da Rosa Teresa. Ela quer que eu lá vá e quer, até, que seja a madrinha. Madrinha, não! E para lá ir? Creio bem que não me decido.

"- Conheces o marido?

"- Não, Sei que é um industrial de Nantes. Pessoa muito gentil, julgo; e rico, tem tudo o que ela quer.

- Tens de ir ao baptizado. É preciso tomares à vida, minha filha. Eu, se um dia me visse aleijado, sem uma perna ou sem um braço, juro-te que não me deixava abater. Quando perdemos qualquer coisa, aferramo-nos ao que nos fica.

- E o que tenho eu, Hervé? Nada.

- Estás convencida disso? E a tua inteligência?

A tua personalidade, a tua cultura intelectual? O teu gosto pela música...

- Mas nada disso enche o coração.

- O coração... o coração... a tua família quer-te da mesma maneira. Além disso, ninguém sabe o que está para acontecer. Tu és nova. Pode dar-se qualquer coisa, até ao passar na rua... Diz-me lá... Sou muito indiscreto, mas se quiseres, não respondas. Entre nós deve haver à-vontade. Diz-me lá! ainda tens fé... a tua religião?

Ela não hesitou:

- Já não posso. Deixei de saber rezar.

- É pena. Mas tomaras a saber. O avô é um sábio e diz ele que à medida que se envelhece se vê desenrolar o que ele chama o fio providencial e que cada um acaba por compreender toda a história da sua vida. Queria pedir-te que rezasses por mim. Achas que vale a pena?

- Não, tu é que tens de rezar por mim.

- Entendido... Ouve, aborrece-te almoçar com música? A orquestra é boa.

- Adoro a música... Mas... a música faz lembrar muitas coisas... Olha, Hervé, depois do meu desastre nunca mais me tinha sentido tão perto da Margarida doutrora.

- És muito gentil por mo dizeres - murmurou ele, pegando-lhe na mão e beijando-lha.

Depois, para repelir o enternecimento que se apossava deles, contou algumas histórias, como todos os Abrans sabiam contá-las. Por momentos, a sua voz alegre teve as mesmas inflexões da voz de Miguel. Sem que se parecessem, havia entre os dois irmãos esse misterioso ar de família. Ao lado de Hervé havia mais fantasia. E mais energia, também. Era um verdadeiro marinheiro. Margarida, a Rainha-Margarida, riu, pela primeira vez, e confessou que aquele era um bom almoço.

- A propósito, como é que te alimentas? Estou mesmo a ver: de manhã um copo de café com leite num café; ao meio-dia, uma refeição a galope numa cantina feminina; à noite, uma fatia de presunto no teu quarto.

- Estás a exagerar. Trato-me melhor do que isso, porque a minha saúde tem necessidade duma alimentação reconfortante.

- Fumas? - perguntou ele, oferecendo-lhe cigarros.

Ela hesitou:

- Quando estou só. Porque... isso ainda me faz mais feia.

Como é que uma rapariga inteligente pode dizer tolices! Vamos lá, fuma! Acredita que o fazes com a mesma graça de antigamente. Olha, para estarmos mais tempo juntos queres ir ao concerto, ao teatro ou ao cinema?

- Então vem tu antes a casa da "minha velhota". Pôs a sala à minha disposição, porque ela nunca recebe ninguém. É uma velhota, compreendes? agarrada ao passado e que quer continuar a manter a sua casa, mesmo grande.

- A gente agarra-se sempre a qualquer coisa, é claro.

- Foi o meu patrão que me aconselhou a alugar-lhe um quarto. Sim, o meu patrão é muito amável.

- Onde é que moras? Nem sequer sei a tua direcção.

- É pertinho do parque Monceau. Sim, fica muito longe do meu emprego. Mas é tão lindo, o parque Monceau... Para uma camponesa, como eu, é impossível viver sem paisagem.

A velha dama desapareceu discretamente, depois de Margarida lhe ter apresentado o capitão Abran, cunhado de sua irmã (o que dava às suas relações um aspecto mais respeitável, pensou o mancebo maliciosamente), e eles continuaram a cavaquear na sala, outrora bonita, mas agora desbotada e atravancada de "bibelots", cada um dos quais tinha, sem dúvida, a sua história sentimental.

Não acabavam ambos de desfiar recordações, de falar da Bretanha. Em breve, porém, Hervé deixou de falar e de ouvir. Levantou-se e pôs-se a passear de um lado para o outro. E, bruscamente, articulou:

- Margarida, casa comigo. Não estou louco, não, Terás o nome de esposa... E hás-de saber que podes contar comigo, com o meu coração. Gosto muito de ti.

- Pois sim, gostas muito. Mas não gostas com amor, meu tonto. Tu não podes querer-me com amor. Além disso, não quero enfeiar-lhe a vida, pobre amigo! Olha, eu sei o que pensas.

- Então, diz.

- Tu pensas isto: "Miguel não a devia ter deixado. E eu gostava que um Abran reparasse a falta de outro Abran. "

Fizera-se muito pálida e gritava, quase:

- Mas a culpa não foi dele, percebes? Eu é que não quis ser mulher dele. Para mim, ou tudo ou nada. Compreendeste agora?

Ele foi direito a ela e beijou-lhe a testa, as faces, os olhos, todo aquele pobre rosto afeado, e disse:

- Se fosse eu, tinha-te amado com todo o amor. E nunca te tinha deixado.

Enquanto cantava uma ária marítima, Hervé ia-se vestindo para ir à caça. Era um fato do pai, já falecido, cuidadosamente conservado pela mãe, que dizia de ano para ano: "Serve para os rapazes". Esses rapazes eram quatro: Miguel e Hervé, homens feitos, um médico e outro oficial de marinha; e depois João Maria e Gildas, ainda crianças.

Mas, presentemente, nada faltava a Miguel, o mais velho: a sua clientela não cessava de aumentar na região e a sua nomeada espalhava-se pelo mundo médico. De resto, não lhe sobejava tempo para ir à caça. E foi por isso que Hervé, hóspede de passagem no "Fetal", envergou o fato do pai.

- O papá era muito mais alto do que eu reparou ele, ao enfiar as mangas da blusa canadiana. - Eu sou da pequena raça bretã, como a mãe.

Tamborilaram na porta. Adivinhou logo de quem era a mão que batia: era João Maria, com certeza. - Tu, outra vez? Ora deixa-me em paz!

- Oh! Hervé, leva-me contigo! Podias ser amável... Eu não os maço, Gostava tanto, tanto, de ir com vocês! Miguel é raro caçar. Além disso, sai sempre de casa, lá de cima, e não me avisa. E, depois, a gente nunca sabe quando é que ele está bem disposto, nem quando está de maus humores... Não se está à vontade com ele.

- E achas, então, que se está à vontade comigo, velhinho? Ora aí está; é a primeira vez que me dirigem esse cumprimento.

- Está-se, pois, porque não tens complicações no "miolo". Olha, prefiro cem vezes um bom sopapo da tua mão, a uma palavra seca como as que o Miguel, às vezes, diz com aquela boca... de médico. O sopapo custa cinco minutos e faz raiva; mas depois não se pensa mais nisso. Mas a palavra seca chega sempre ao sítio onde a gente tem o seu orgulho, vai até onde pode fazer mal, vexar, provar, enfim, que se é idiota... Deixa-me ir contigo, Hervé! Eu levo a bolsa de caça.

- Oh! grandíssimo "sarna"! Vais se a mama deixar.

- Deixa, com certeza. com vocês ambos! És um rico irmão. Vou armar-me e equipar-me, com o que eu tenho. Não é nada que preste, garanto-te. O Miguel é que vai pôr-te a um canto, vais ver. É o tipo acabado do "caçador francês", o Sr. Dr. Abran!

A porta tornou a fechar-se ruidosamente e fez desaparecer o rapaz aos olhos do irmão. Então, um conciliábulo se ouviu na escada, de onde Aliette, uma mocinha apelidada de "Saguim" pelos mais velhos, estava a espreitar João Maria, o irmão de quem ela era inseparável. Passavam todo o tempo a discutir, mas adoravam-se.

- Ele vai levar-te? - cochichou Aliette. - Felizardo. Os rapazes têm sempre tudo. Que vou eu fazer este domingo todo, sem ti?

- Podes jogar às damas com o avô. Ou aos soldadinhos, com o Gildas. Ou então vais fazer exercícios de piano. Olha, também podes ir arranjar o teu armário, que está bem precisado. Tens a conta do dinheiro que me deves para fazer.

- Não há mais nada? E enquanto "Sua Excelência" anda a correr pelo campo atrás dos perdigotos, fico eu aqui a aborrecer-me entre quatro paredes, não é? Muito obrigada. Pego mas é na tua bicicleta e ponho-me ao fresco.

- Tenho uma idéia: vai lá acima fazer uma visita à tua "cunhadinha" - disse ele em tom solene e com um olhar malicioso.

- À minha cunhada? Mas quem? Ah! a Maria Violeta? É impossível admitir que ela seja mulher de Miguel e que se chame Sr. Abran, como a mama! A Sr. a Abran! Tem sempre um ar de menina. Tu verás que daqui a pouco já eu pareço mais velha que ela...

- Deixa-me mas é passar, em vez de estares com frioleiras. Só tu, barras a escada toda.

Breves azedumes esses, que terminavam sempre com risos, os risos felizes dos treze e dos catorze anos...

- Estes doidos vão acordar o avô! - murmurou a Sr. a Abran. Ele, porém, dormia profundamente no "seu cadeirão", aquele cadeirão que, de ano para ano, se moldava um pouco mais à forma do corpo do ancião.

Em breve se ouviu descer um automóvel a toda a velocidade - e Miguel saiu dele, muito "caçador francês", efectivamente, desde o chapéu de feltro até às polainas.

- Magnífico! - exclamou Hervé. - Vira-te lá, para eu poder ver-te por todos os lados. Os outros até vão julgar que eu sou o teu couteiro... Previno-te de que o garoto vai, com o teu consentimento, bem entendido.

- O João? Vai estorvar-nos... Enfim, se tu lho prometeste, que venha. Não ocupa muito espaço no carro.

O garoto, que escutara atrás da porta, sem confiar nas mudanças de disposição de Miguel, apareceu todo contente.

- Não vou estorvá-los, não. Pelo contrário. Tenho faro para a caça como um cão, E conheço tudo por aí tão bem! Não há aí palmo de terra que eu não tenha já explorado. Sei onde há tocas, onde são os covis das lebres, tudo. Tu verás que vou ser-lhes duma utilidade formidável,

- Vai tu adiante, ao lado de Miguel - disse Hervé.

- Podes ir já utilizando o teu golpe de vista formidável. Eu, velho pacato, vou muito bem aqui atrás, com os cães. Estejam quietos, bichos!

Joana Abran apareceu, trazendo um cabaz.

- Vocês podem ter fome, meus filhos. Vai aqui comida para os três.

- Obrigado, mama, és tão boa! - disse Miguel, num tom simples e meigo, que surpreendeu Hervé.

E o comprido corpo de Miguel inclinou-se e ergueu nos braços a mãe, muito pequena para poder despedir-se dele com um beijo em cada face.

"É agora mais afectuoso do que antes - pensou Joana contente e ao mesmo tempo preocupada. - Dá a impressão de que tem fome de amar e de ser amado. No entanto a mulher é tão doce, tão bonita... E a sogra é tão afável no convívio. É muito diferente de mim, mais nova e agradável do que eu!"

Joana julgava sempre os outros muito melhores do que ela.

Largaram. Ao fundo do carro, Hervé sonhava com a sua próxima partida. Em breve estaria de novo no mar, a vogar para o Extremo Oriente, sempre agitado. Tornaria ele a ver a terra bretã? A bem pouco, na verdade, a vida se resume neste século. Maquinalmente, acariciava a cabeça dum belo cão, que soltava uns sons abafados de ventura ao sentir a mão de um dos seus jovens donos, que adorava.

A frente, João Maria, a quem chamavam "Coração Selvagem" - no que ele tinha a maior satisfação - contemplava com um olhar atento a paisagem, à qual o prendia um amor duma força incrível. Mesmo despojada pelo inverno, essa paisagem parecia-lhe bela, porque os seus traços se lhe conservavam na rotina. "Nunca, nunca poderei, mais tarde, viver noutro sítio. E dizer que ainda tenho de criar bolor tantos anos por detrás das Paredes do colégio!"

Quanto a Miguel, com as mãos hábeis e maleáveis entregues à direcção do volante, esquecera tudo: os doentes e as suas tristes histórias, os trabalhos científicos e esgotantes. Olvidava, também, as secretas decepções da sua vida sentimental. Sentia-se um jovem forte e livre, lançado na bela aventura que é a caça para aqueles que gostam dela; e recordava-se das perigosas caçadas em África, na perseguição de caça grossa.

Numa curva da estrada, ele, que conduzia de um modo sempre igual, forçou a velocidade e o carro deu um salto. Os outros dois rapazes compreenderam: fora ali... Era impossível esquecer esse lugar e essa tarde de Outono, em que Corentina, a velha criada, dissera: "Sinto aproximar-se uma desgraça". Essa tarde, em que a formosa Rainha-Margarida, que levava um braçado de estevas, fora atropelada, esfarrapada, dilacerada. Todas as vezes que algum membro da família, fosse ele Abran ou Lê Fort, passava ali, erguia-se a trágica recordação. E cada um sofria à sua maneira, consoante a sua sensibilidade. "De que modo reagiu Miguel?" - interrogava-se Hervé. E tornava a ver Margarida, tal como lhe aparecera na semana passada, encostada à pequena mesa florida do restaurante, com a cara ainda bonita, desde que não se lhe visse o "outro lado". Outrora, a cara toda era bonita. Que frescor tinha a Margarida, presentemente desfolhada?... Agora, depois de se ter aproximado dela, apresentava a si mesmo essa fórmula poética, que ao começo lhe fizera encolher os ombros: "Uma idéia de mulher...".

Quando os três irmãos saíram do carro, rodeados pelos jubilosos latidos dos cães, João Maria demonstrou, com efeito, as suas virtudes de guia: no domingo precedente não andara ele a assinalar de antemão o rasto da caça, esperando, desejando, aquela oportunidade? Hervé atirava bem com a velha espingarda do pai. Muito melhor que Miguel.

- Estou "ferrugento". -verificou este, um tanto despeitado. "- Não tenho tempo para dar atenção aos desportos...

Os desportos... De novo a imagem de Margarida, que tanto os praticara, deslizou por entre eles. Margarida, de fato de banho, a nadar, comprida, bela, flexível; Margarida, de vestido branco, a atirar as bolas, no tênis, com o seu braço torneado, firme, dourado pelo sol. Margarida, a Rainha-Margarida, via-se em toda a parte. Lá ia, na sua bicicleta, os cabelos e a saia a esvoaçar ao vento... Miguel enervou-se.

- Toma, João, pega na minha espingarda. E se vires caça, atira.

Foi um faisão que o olhar expedito do rapaz descobriu e que o seu tiro abateu. Vermelho de orgulho, pôs o animal, quente e mole, dentro do bornal.

- Ofereço as penas às pequenas. Dão para as quatro.

O ar estava frio. À neblina espessava-se. Miguel consultou o relógio.

- São horas de voltar. Tenho ainda dois doentes para ver.

- Primeiro vem a casa tomar qualquer coisa quente.

- Não é razoável... Ah! tanto piorl Mesmo assim, vou. O que não posso é demorar-me.

A sala bem fechada. Chamas altas a dançar na lareira. O avô a jogar ao dominó com o pequeno Gildas, que, excessivamente sensível, se recusou a ver o faisão.

- Porque o mataste?

Aliette, essa, acariciava a bela plumagem dourada. Maria Ângela e o marido, Pedro Goulven, tinham vindo da sua herdade merendar com a família. O filhinho pairava no berço que criara os Abrans todos. Fez-se um círculo em volta das xícaras fumegantes. E Miguel sentia-se perfeitamente à vontade, muito contente. Quando lhe acontecia dizer "a casa", referia-se sempre àquela, ao "Fetal", e nunca à sua, lá em cima, mais bonita, no entanto, e muito mais confortável. "Para ele, "a casa" é sempre o "Fetal" - notou Hervé, que não cessava de observar o mais velho. - "Que curioso estado de espírito! Depois de viver há já dois anos na sua casa e com a Maria Violeta, que é um mimo, não tem ar de quem esteja moralmente instalado. Se ele tivesse casado com essa boneca da Rosa Teresa, a outra irmã, ainda eu compreendia que ele se tivesse adaptado mal ao casamento e à nova morada. Mas, em suma, Maria Violeta vale bem Margarida. É certo que o amor não é coisa em que se mande. No entanto, ele é que tinha "escolhido" Margarida? Não... ele hesitou bastante e ao princípio não tinha grande entusiasmo... Mas, então... Há coisas que não consigo entender".

De resto, Miguel não se demorou no bem-esta" da "casa". Deu conselhos à mãe, para tratar do pequeno Gildas, sempre enfermiço; fez algumas perguntas, muito vagas, aos esposos Goulven, visto que nada entendia de agricultura. Abraçou o avô e a mãe. E partiu. Fez-se uma pausa de silêncio no círculo da família. Todos se sentiam perplexos perante esse Miguel, a quem "tudo corria bem" e que perdera a descuidosa alegria dos rapazes novos. Seria a profissão? O contacto diário com a miséria de corpos humanos a desfazerem-se, a corromperem-se pouco a pouco e que, em geral, quando recorrem ao médico já é tarde? Tinha saudades da África? Ou - o que seria mais grave tinha saudades de Margarida?

Assim que João Maria e Gildas foram brincar para outro lado, Maria Ângela, que tinha o costume de dizer sem rodeios o que pensava, foi a primeira a fazer a pergunta, que os outros revolviam no espírito sem ousarem formular:

- Acham que ele tenha aspecto de ser feliz? Eu não. Começo a crer que ele está a deixar-se abater pelo pesar do que poderia ter sido a sua vida com Margarida.

Hervé contradisse-a logo:

- Miguel não é rapaz para se entregar a um desgosto eterno.

- Além disso - observou o velho Sr. Abran

- ele nunca tinha pensado em casar com ela, antes de o pai lhe propor esse casamento. Primeiro foi um casamento de raciocínio que, depois, se transformou num casamento de amor. Mas sou da opinião de Hervé: Miguel não me parece feito para se agarrar ao passado,

- Então como se explica o aspecto dele? Há qualquer coisa que não lhe "enche as medidas", avô - disse Maria Ângela. - Até me admira que o avô, tão perspicaz, ainda não tenha descoberto o que é.

- Paciência, minha filha. Vou observando. E hei-de acabar por descobrir onde está o mal.

- E se não tem remédio?

"- Há sempre qualquer remédio para os nossos males, Maria Ângela.

- Que gente esta tão complicada! - suspirou a jovem, reclinando a cabeça no ombro do marido.

- Nós dois vemos a vida de um modo tão simples, não é verdade, Pedro? Amamo-nos e temos um lindo rapazinho. Que mais é preciso?

- Repara que teu irmão ainda não tem "um lindo rapazinho". Será por isso a sua tristeza?

- Pode ser. Mas porque há-de ele desanimar já? Maria Violeta parece tão nova para ser mama... Tem mais o ar de uma menina.

- Isso... o aspecto não quer dizer nada murmurou Hervé.

E, a espreguiçar-se:

- Tu tens toda a razão, Maria Ângela, em ver as coisas duma maneira simples. Pedro pode considerar-se um rapaz feliz por ter uma mulher como tu. Agora dá-me cá o pequeno um bocado. Sou doido por este garoto, muito louro, todo cor-de-rosa. O meu primeiro sobrinho! E conto ter muitos outros, ha?

Encantado por lhe darem atenção, o pequeno Domingos mostrava os seus mais belos sorrisos, agarrava o cabelo do tio aos punhados, saltava-lhe nos joelhos e, na sua linguagem de bebê, prodigalizou-lhe as exclamações mais calorosas. Joana olhava para os dois.

- Ó Hervé, quem gosta tanto de meninos casa-se, para os ter seus, em lugar de se contentar em ser tio.

Ele fez um trejeito de amuo:

- Mulher nenhuma me agrada o suficiente. Além disso, na minha profissão, os esposos estão tantas vezes separados! Por isso, é estar livre o mais possível, mama. Nunca sabemos se voltamos. Para deixar viúva e órfãos! Não vale a pena.

- As vezes é o marinheiro que enviuva objectou o avô. - Tu generalizas muito as coisas. Soube há pouco, precisamente, que o capitão Kermadec perdeu a mulher há alguns meses.

- O capitão Kermadec? Lembro-me muito bem

- disse Joana. - Francisco de Kermadec, um rapaz alto e bonito, que aparecia em todas as festas, no tempo da minha primeira juventude. Depois entrou para a Escola Naval e casou bastante tarde com uma rapariga de Lorient, chamada Clotilde. Não tiveram filhos. Ora então a Clotilde morreu, ainda tão nova... Não era bonita nem saudável. Foi um casamento que espantou toda a gente, Ele, então, era tão bem parecido!

- Ora! -exclamou Maria Ângela. -Ela, naturalmente, tinha dinheiro... -Começou a juntar as roupas do menino, os biberões, etc. Depois pegou na criança, que se pôs a pairrar, encantada por saber que depressa iria para a rua, assim que percebeu que iam pôr-lhe a capa.

Logo que os Goulvens saíram, o avô deixou-se adormecer. Hervé, então, acercou-se da mãe.

- Mama, ainda não pude falar-te com sossego. Escuta...

Ela tirou os óculos e olhou para o marinheiro.

- Tenho pensado muito em Margarida. Anda a trabalhar e, materialmente, não tem a vida mal organizada. É muito corajosa e o patrão tem grande estima por ela. Mas faz horror pensar que ela vai envelhecer assim, sozinha, a endurecer cada vez mais. Porque tem-se endurecido, sabes? Tornou-se céptica, já não é religiosa. Pode muito bem acabar por ficar como o pai. É isso que é preciso evitar-se, mama.

- Meu pobre pequeno! E o que podemos nós fazer?

- Vê lá... Propus-lhe casar com ela. Não te espantes! Se ela devia usar o nome de Abran, é justo que ela o use e que, já que meu irmão a deixou, recupere o seu lugar dentro da família. Recusou, como é natural. E eu não insisti, por causa das circunstâncias. Vou partir para um país em guerra. Tornarei a voltar? Acho que o melhor é não deixar cá mais uma viúva.

- Cala-te, Hervé! Não fales assim. Cortas-me o coração!

- Pobre mama! Mesmo sem o dizeres estás sempre a pensar que eu posso não voltar... Deixa-me dizer-to francamente! Sou como a Maria Ângela: detesto as precauções oratórias. Pode ser que com outras mães sejam necessárias. Mas tu, mama, tu és digna da verdade, vamos lá! Portanto, encaremos as coisas de frente! É claro que espero regressar, mas, em todo o caso, vão passar dois anos, pelo menos, e ninguém pode assegurar que eu volte. E o que te peço é isto: que adoptes Margarida.

- Adoptá-la? Mas ela tem a mãe!

- A Sr. a Lê Fort não é uma mãe como tu. Não. Manteve-se muito nova, muito pessoal; a vida não cavou nela sulcos profundos o suficiente para uma filha infeliz encontrar refúgio nela. Sé tu o seu refúgio, mama!

- Eu, meu filho? Uma pobre mulher como eu, tão simples... Não me compares com Susana Lê Fort, tão culta, tão fina, que conhece a arte, a literatura, os usos da sociedade, tudo, enfim!

- Dás-me vontade de rir, com os usos... Então as boas maneiras é que valem alguma coisa, ao lado do coração? Tu e tua filha Ivone não querem saber das práticas mundanas da vida. E, no entanto, são mulheres superiores.

- Estás a dizer asneiras, filho! E a zombar de mim. Eu, uma mulher superior...

Levantou-se da cadeira, descontente. Ele obrigou-a a sentar-se outra vez, e, pegando-lhe na mão, beijou-lha respeitosamente e disse:

- Nunca zombarei de ti, minha mãe. Sei quanto vales. E peço-te, sinceramente, que adoptes Margarida.

- Ela nunca vem à Bretanha; não posso fazer-Lhe nada.

- Cedo ou tarde, há-de vir.

- Que coisa! Gostarás tu dela, Hervé?

- Gostar dela, com amor, não. Pobre rapariga! Não se pode querer-lhe com amor. Mas tenho-lhe uma grande amizade, E eu queria "- olha, emprego a fórmula que não sei quem inventou depois do desastre que a esfacelou como uma flor que fosse pisada - queria que a "margarida reflorisse". Para uma mulher, o trabalho não basta.

- Mas para tua irmã Ivone, basta.

- Ah! a Ivone vê outra coisa além da tarefa a cumprir e do dinheiro a ganhar. Entregou-se de alma e coração. Seria preciso que o coração de Margarida se entregasse também. Quem há-de ajudá-la? Nada sei, mama. Mas ama-a, a ela, como tu nos amas, a nós.

- Já que estamos a falar sem disfarces, responde-me, Hervé: se ela fosse tua noiva, em vez de ser de Miguel, que terias tu feito ao ver a desgraça física em que ela ficou?

- Tinha casado com ela - disse ele sem um instante de hesitação. - Não censuro Miguel de maneira alguma. Conduziu-se de uma forma normal e honesta. Mas pode-se ultrapassar essa bitola.

- Fazer de herói... -murmurou ela. -És parecido com o teu pai.

- Nada pode orgulhar-me mais do que parecer-me com o papá... Então está combinado, mama? Quando ela voltar à Bretanha velarás por essa rapariga... que eu talvez tivesse amado, se não tivesse experimentado... grandes decepções, que me tornaram incapaz de amar... e se eu tivesse escolhido uma profissão menos perigosa.

Ela ergueu para aquele filho os olhos, que, no seu rosto coberto de rugas fundas, se tinham mantido de um azul tão fresco.

- Está prometido. E vou rezar por ela. Pobre criança! Vou rezar por que a margarida refloresça. Creio que só Deus poderá fazer esse milagre.

 

Com os cotovelos apoiados sobre a mesa e a cabeça entre as mãos, Maria Violeta, mulher de Miguel Abran, lia, enquanto esperava que o marido voltasse, para irem jantar.

O casamento em nada lhe alterara o aspecto. O rosto comprido, de olhos claros, conservava os seus contornos infantis e aquela delicadeza da pele finamente matizada que, em geral, não dura muito. Trazia, como antigamente, uma blusa branca, que lhe deixava livre o pescoço delgado.

Esperava pela refeição, na preparação da qual em nada participara: Susana, sua mãe, dera as ordens e Corentina, na cozinha, executara-as perfeitamente, sempre a rabujar. Nunca Maria Violeta sabia o que havia para comer; de resto, era-lhe indiferente. Sem apetite, sem desejos, sem gosto, a sua vida era ténue como a de um pássaro. Na verdade, ela nem tinha o ar de uma dona de casa, nem o de uma jovem esposa; e, todavia, ia quase em dois anos que se casara.

Sentiria ela o facto de ser esposa? Ou conservara-se uma criança? Sua irmã Margarida, que devia ocupar o seu lugar... o pai desaparecido no mistério do além... esses dois seres ausentes, antes de se retirarem, não teriam posto uma barreira entre a criança de ontem e a mulher?

Era ao anoitecer. Um anoitecer de fim de inverno, com um véu pardo sobre a charneca bretã, pela qual rodava o carro de Miguel. Filha e esposa de médicos, nunca Maria Violeta, no entanto, se habituara a esses regressos tardios. Pouco lhe importava jantar tarde. Mas senti-lo a "ele", a toda a velocidade e só, pelo campo escuro, a isso é que ela não pudera costumar-se, nem mesmo no tempo do pai, esse pai amado apaixonadamente, que ela sabia já cansado e doente. Agora o mesmo pensamento de inquietação seguia pela estrada Miguel, seu marido, novo e saudável. Sim, o pensamento transformava-se no mesmo cuidado; o coração, porém, batia com igual amor?

A matéria do livro que ela estava a ler era pesada e austera. Dura, mesmo. Um texto que não se penetrava sem o esforço de um trabalhador através da gleba. E a terra daquele espírito jovem e rico recebia as idéias para fazê-las suas com uma intensidade que ninguém suspeitaria existir nessa jovem de aspecto pueril. Mas quem conhecia a verdadeira Maria Violeta? Talvez seu pai, outrora; talvez Margarida com quem ela, em horas trágicas, firmara um pacto: "Uma vez que tu já não queres casar com Miguel e que o papá vai morrer cheio de desespero se Miguel não entrar na família, casarei eu com ele".

Sim, entre as duas filhas de Jerónimo Lê Fort, em plena dor, estabelecera-se uma via de comunicação de alma para alma. E para unir as almas, nenhum liame há tão forte como a dor. Porém, nunca mais tinham visto Margarida. Escrevia muito raramente, sempre pouco. Parecia já semienvolta na bruma em que, pouco a pouco, os mortos desaparecem. E talvez fosse melhor.

Susana apareceu, sempre fresca e bela. O preto ficava-lhe bem. E os anos igualmente lhe ficavam bem, porque a encorpavam mais sem a tornarem pesada. com ela, entrou um perfume subtil.

- Miguel está a demorar-se muito. Naturalmente temos de ir para a mesa sem ele.

- Oh! não, mama! Quando janta sozinho come muito depressa, como o papá fazia. Esperemos por ele.

Ao contrário de muitas pessoas, que uma vez entregues à campa os seus entes queridos nunca mais lhes pronunciam o nome, guardando ferozmente para elas a dor e as recordações, Maria Violeta proferia com muita freqüência palavras como estas: "O papá. Como o papá. Os clientes do papá. Os livros do papá. O automóvel do papá". Susana verificava cada vez mais a presença contínua do desaparecido. Espantava-a aquela constância e invejava-a... Porque, pela sua parte - e isto humilhava-a, como se fosse um pecado, - evitava as recordações de Jerónimo. Não obstante, ela amara-o... Fora-lhe fiel. Entre eles, porém, quantas cenas desagradáveis...

- O que é que tu estás a ler? - inquiriu Susana, inclinando sobre o livro o busto forte. - Oh! Mas tu metes-te em coisas muito difíceis, querida. A falar a verdade, compreendes alguma coisa disso?

- Só gosto de livros destes. Os romances ou me irritam, ou me fazem chorar.

- Não és como Rosa Teresa! Os romances que a tua irmã lia! Recordas-te? Havia-os por todos os lados.

- Agora, com a menina, já não deve ler tanto. Embora seja a ama quem trata de Annick... Afinal, o baptizado sempre será na Páscoa? Acreditas que Margarida venha?

- Isso... é que eu não sei, minha filha. Ela nunca mais quis cá voltar, depois de...

Calaram-se ambas. Maria Violeta marcou a página do livro com um bilhete-postal enviado por Margarida: "Feliz aniversário". Que fórmula breve! No entanto, Maria Violeta olhava com curiosidade amiudadamente para essa vista dos Campos Elísios subindo em direcção ao Arco do Triunfo. "Chegarei um dia a conhecer Paris? Gostarei de Paris?" Susana pegou no "tricot"; fazia malha bem e depressa, mas a filha, não. Detestara sempre os trabalhos manuais, apesar de todos os cursos práticos que fizera com as Irmãzinhas. Além disso para quem faria "tricot"? Não tinha nenhum filho. A pequena Annick tinha o necessário e o supérfluo. Podia, talvez, fazer um "pull-over" para Miguel, mas Susana, sogra cuidadosa e atenta, já se encarregara disso. Nesse caso...

Maria Violeta olhava para as mãos vazias, muito compridas, muito brancas... - mãos que não, trabalhavam e que traziam o anel nupcial, simplesmente. E o outro, o anel de noivado, desse estranho noivado de luto? Era-Lhe penoso apossar-se dele - o anel que Margarida adorara e perdera, que recuperara e que entregara, com o noivo, à sua irmãzita mais nova. O formoso diamante brilhava muito mais tempo no estojo que no seu dedo; só o punha nos dias em que era forçoso usá-lo. Que pensariam os outros se a juvenil esposa do Dr. Àbran não mostrasse qualquer coisa de preço? Por andar sempre tão simples já se murmurava:

- Sempre vestida da mesma maneira. Anda como uma menina, sem se preocupar com a moda. Margarida era muito mais feminina. Esta não faz honra nenhuma ao marido. No entanto ele há-de ganhar bom dinheiro. Pode muito bem comprar-lhe vestidos!

Ao mesmo tempo sentiam curiosidade a respeito de Margarida: "Como estará ela agora? Terão conseguido "consertar" a pobre rapariga? Um grande trabalho de cirurgia! Decerto não deixou de ficar desfigurada e aleijada".

As agulhas continuavam a dar estalinhos. As páginas do livro iam passando... Por fim, ouviu-se o barulho do carro. Era preciso esperar, ainda, que Miguel fizesse desaparecer da roupa e das mãos o que lembrasse doença. Esperaram-no bastante tempo e quando apareceu entrou com ele um perfume de homem elegante e cuidado. Foi ter com Maria Violeta, dobrou o corpo alto para a doce Criaturinha e beijou-a na fronte.

- Boa-noite, minha filha.

"Diz "minha filha", como o papá" - observava ela. Depois levantou para ele os olhos azulados:

- Não estás muito cansado, não?

Esta pergunta não usava ela antes fazer ao pai; não era à mãe que pertencia? Resolvia, então, a questão sozinha, limitando-se a olhar bem para ele... para esse pai, que ela tanto amava. Miguel, não tinha ainda traços de excesso de trabalho. Mas notava-se-lhe fadiga e faltava-lhe qualquer coisa que tirava a tranqüilidade quando se olhava para ele.

No fundo, então, nunca as pessoas são felizes? No coração de Maria Violeta, a vida chorava.

Por isso deixava a mãe falar e a mãe falava bem e de boa vontade. Além disso, sentada ao meio da mesa, em frente do dono da casa, não se sentia, no entanto, a dona da casa. Não, Susana é que era a dona da casa, com o seu vestido preto, que tão bem lhe ficava, os seus cabelos ondeados, o seu sorriso, a sua desenvoltura, as suas reflexões de mulher experiente e graciosa. "O meu lugar, verdadeiramente, era ao fim da mesa, no lugar das crianças... como no tempo do papá".

Miguel fez honra ao jantar, que era excelente. O seu apetite e o seu gosto pela boa cozinha tinham-lhe valido a alta estima de Corentina. "O defunto Senhor não dava a menor atenção ao que comia, nem ao que bebia". E Corentina já reparara, também, que a Senhora - a Senhora, para ela, era sempre Susana - tinha mais idéias para variar as ementas do que no tempo do Senhor. "Sente-se livre, como as mulheres gostam. No final, agora quem manda é ela. O Sr. Miguel pensa nos clientes e nas suas descobertas. A pequena... Enquanto levava os pratos vazios para a cozinha, Corentina abanou a cabeça; não estava contente

Com a pequena,

"Não tem os modos duma senhora. Sempre às voltas com os livros. E não são livros de amor, como os que lia Rosa Teresa. Se ao menos tivesse um menino... Mas o menino foi para a irmã, que não o desejava tanto. E a pequena, tão sisuda, tão doce, dava uma boa mãe. Talvez melhor do que esposa. Era bom que eu não fosse velha e que não tivesse já visto tanta gente, tantas coisas, lares bons e lares maus... "

Toda a vez que podia, Miguel gostava de repousar um pouco depois do jantar. Iam para o pequeno salão, mobilado ao gosto de Margarida e de Miguel. Maria Violeta não gostava dele. Ela teria escolhido tonalidades mais suaves, móveis de linhas mais simples. Susana, pelo contrário, felicitava-se a cada passo, por ter desaparecido, enfim, o sombrio mobiliário Luís XIII, que tivera de conservar ao casar com o sucessor do pai. Miguel ofereceu um cigarro à sogra; e, meio trocista, estendeu a cigarreira à mulher, prevendo que a "pequena" recusaria. Pediu licença para ler o jornal. E disse às duas mulheres que uma nova alteração política lhe prendia a atenção. Ficou espantado! Maria Violeta conhecia já essa alteração política e falava dela com segurança, sustentando, além disso, uma opinião inteiramente diferente da de Miguel, Este teve um sorriso leve e gentil:

- Mas então... onde está a "menina", onde está?

Por detrás da folha desdobrada, não viu o súbito rubor que subiu ao rosto branco da esposa. Mas Susana notou-o.

"Que susceptível, a Maria Violeta!" - pensou,

Ela, porém, mudando o rumo da conversa, fez uma pergunta inteligente a propósito dos trabalhos de laboratório de Miguel, que o apaixonavam. Ele respondeu:

- Estou cheio de trabalho. Não há maneira de me ocupar deles. A não ser que deixe os doentes...

- Oh! não vais fazer isso, Miguel! Foi o papá que tos legou, os doentes.

Ele encolheu os ombros.

- Também me legou o laboratório. Só vejo uma forma de levar as duas coisas por diante ao mesmo tempo: é arranjar uma colaboradora. Se ao menos Ivone tivesse escolhido este ramo, em vez de se estafar no serviço social...

- E ela não poderia pôr-se agora a isso?

- Pois não, minha filha! Falas de coisas que não entendes. São indispensáveis estudos especiais. Especiais, compreendes? Naturalmente vou ser obrigado a mandar vir uma rapariga com preparação. Mas isso levanta problemas; o primeiro é o do seu alojamento. Depois pode ser uma pessoa insuportável, pretensiosa, indiscreta, pouco competente...

O seu rosto expressivo crispou-se. Pensava em Margarida, já ao corrente de muitas questões da medicina, que bem depressa teria completado os seus conhecimentos e o ajudaria... Maria Violeta pensaria o mesmo também? Baixou os olhos e os compridos cílios bateram-lhe nas faces que se tinham feito muito pálidas. Susana comprimiu o cigarro de encontro ao cinzeiro e tornou a pegar nas agulhas de fazer malha.

- É bonito, mãe - disse Miguel - vê-la trabalhar assim para o seu genro. Tantas malhas que há, numa camisola de homem!

Ela sorriu-lhe, com o seu lindo sorriso, que lhe punha covinhas na cara.

- Gosto muito do meu genro!... Olha, Miguel, antes de meteres uma auxiliar no laboratólrio, pensa bem. Não tens medo de alterar o ritmo à tua vida?

- Porquê? Não passará duma simples auxiliar. Vem a horas fixas e não tem nada que se intrometer na família. Vou pedir a Ivone que me arranje uma. Não tenciono admiti-la senão depois da Páscoa, depois do baptizado... É verdade, o baptizado vai dar-lhe grande trabalho, com certeza. Como é que vai "arrumar" aqui tanta gente?

- Não deve ser muita gente. A madrinha sou eu. É o padrinho, a Rosa Teresa, o marido e a menina.

- Esquece-se da ama. Esse bebê de luxo não vai viajar sem ama, decerto!

Mesmo que venha a ama.

Mas Susana perguntava a si mesmo: "Margarida virá também? Se vier, onde hei-de instalá-la Para sofrer menos ao encontrar tudo o que lhe lembra o passado? Gostava bem que ela viesse, a Pobre querida! mas ao mesmo tempo tenho medo".

Enrolou o trabalho e espetou nele as agulhas.

"É tarde, meus filhos. Despeço-me de vocês".

Beijou Maria Violeta e estendeu a mão a Miguel. Os dois esposos ficaram sozinhos, no silêncio "- um silêncio que parecia pesado, Miguel então levantou-se e procurou no aparelho de rádio qualquer coisa que lhe agradasse. Canções alegres e magoadas se entrechocaram, sucedendo-se umas às outras. Maria Violeta detestava esses embates musicais. De resto, a música, em vez de encantá-la, a maior parte das vezes fazia-a sofrer estranhamente, dando-lhe a impressão de que a sua personalidade se encontrava desdobrada, a um tempo simples e infantil, complexa e apaixonada, uma personalidade de mulher jovem, com um longo vestido de noite, onde havia diamantes.

O que Miguel escolheu, por fim, uma música russa, agitou-lhe a sensibilidade, Mas era impossível dizer: "Não! Isso não!" Porque era magnificamente linda. Extremamente linda. E rejeitar uma música por ser extremamente bela, não seria mostrar-se ainda mais infantil? A mulher jovem, de longo vestido de noite, que nela sofria, calou-se, aceitou, ouviu.

Quando as notas derradeiras se extinguiram, Miguel dirigiu-se para o receptor.

- Queres que desligue?

- Como quiseres.

Compreendeu. Na sua profissão estava habituado a dar às palavras o seu verdadeiro sentido. Deu volta ao interruptor. Fez-se silêncio e Miguel acendeu novo cigarro.

- Miguel - disse de repente a voz de menina.

- Ouve uma coisa.

- O que há, minha filha? - perguntou ele um pouco surpreendido.

Que iria ela anunciar-lhe? Uma esperança de maternidade, talvez.

- Miguel - repetiu a voz, um pouco trêmula. - Não te zangues, não?

- Zangar-me, eu? Mas porquê? Nunca me zango contigo. Diz depressa. Sinplesmente... Não estás doente, pois não?

Aproximou-se dela, pegou-lhe na mão, gentilmente. Oh! sim, ele era gentil.

- Apetece-te alguma coisa? Uma viagem, por exemplo. Queres ir a Paris?

- Não sei o que quero. Mas... sinto-me aborrecida... É isso.

- Sentes-te aborrecida? Não é possível! Uma criaturinha tão razoável?

Sentiu uma vontade enorme de gritar: "Não sou nada razoável!" Mas sempre tinham repetido aquilo: "Margarida é voluntariosa. Rosa Teresa, frívola. Maria Violeta tímida e razoável". Rótulos postos uma vez para sempre.

Ela continuou:

- Reconheço que é idiota sentir-me aborrecida. Tenho tudo o que é preciso para ser feliz. Vocês poupam-me ao mais pequeno cuidado. Até de mais... A mama dirige a casa muito bem. Corentina faz o trabalho igualmente muito bem - e eu não tenho nada que fazer. Detesto fazer malha - não tenho culpa disso! e coser, também, embora no curso de habilitação doméstica fizessem tudo para despertar-me o gosto pela costura. A Irmã dizia muitas vezes: "Repare no trabalho que está a fazer, Maria Violeta, em vez de sonhar". Mesmo assim, esses cursos preenchiam os dias. Depois... havia o papá.

- Sim - repetiu ele - havia o teu papá.

- Havia, também, as minhas irmãs. Agora, encontro-me no vácuo. Oh! tu compreendes, Miguel, amo-te muito, mas...

Ele ouvia, de lábios apertados.

- Mas não sei no que hei-de empregar o tempo. Tinha pensado...

- Tinhas pensado o quê?

- Que podia ajudar-te um pouco nas visitas que fazes, nas tuas contas, na tua papelada. Mas a mama faz tudo isso tão bem... muito melhor do que eu o faria, porque estava habituada com o papá... Os dias parecem-me grandes, estúpidos, sempre iguais. Leio muito. Mas ler assim, sozinha, sem direcção, sem finalidade, é fatigante. Eu queria... vais achar isto estúpido.

Ele calava-se. Aguardava, desconcertado. E o coração da jovem esposa batia com força, ao pé daquele rapaz hirto.

- Queria continuar os meus estudos, inscrever-me na Faculdade de Rennes e seguir lá os cursos. Mas responde, Miguel. Diz que não, mas diz qualquer coisa!

Ele pôs-se a andar de um lado para o outro, com as mãos nas algibeiras.

- Tu julgas-me um tirano, minha filha? És absolutamente livre para organizar a tua vida conforme o teu gosto, uma vez que a casa não te basta. Nem teu marido... - ajuntou ele por entre dentes.

- Ouve. Sei que tua mãe sofreu exigências do marido.

- Não digas mal do papá!

- Não tenhas medo, eu admirava-o em extremo. Mas tua mãe sofreu. Não quero que esse caso se repita. Inscreve-te na Faculdade... mas o ano lectivo vai muito adiantado. Segue todos os cursos que te agradarem. Posso saber que matérias te interessam de preferência?

- A filosofia - replicou ela. - E a sociologia. - Francamente, não é nada divertido... Estás

a devanear! Tu, tão nova, tão criança... Dedica-te antes à poesia, à arte, mas a essas coisas tão abstractas, não. Mas tu estás a falar sério, realmente?

Agarrara-a pelos ombros e olhava-a com bondade. Ela fez com a cabeça um sinal afirmativo, mas nem um som lhe saiu da garganta. Não queria chorar.

- Olha bem para mim. Assim. Mas tu estás a chorar! Minha pobre querida! Estava a falar do lar de teus pais, mas eu também não sei fazer-te feliz... Maria Violeta, minha filha!

Ela sentiu-se ardentemente impelida para os lábios sensíveis e atraentes de seu marido, para aquele coração másculo. Mas as palavras que lhe ouviu foram as mesmas: "Minha pobre filha!" Para ele, não era mais do que aquilo: uma menina com quem ele casara, porque tinha de casar com uma das filhas de Lê Fort. Ela afastou-se, então:

- Desculpa-me. Sou estúpida. Foi a música, sabes?

- Foi a música... - repetiu ele, tirando as mãos daqueles ombros suaves, vestidos de seda branca, - Pois seja, minha querida! Já que é essa a tua vontade, vai a Rennes estudar filosofia. O que desejo é que ela não te torne árida, nem faça de ti uma "sábia". Já é muito tarde. Vai dei- tar-te, Maria Violeta. Eu ainda tenho trabalho no laboratório... Isso sim! Não podes ajudar-me. Boa-noite! E não se chora mais!

Subiu para o grande quarto, mobilado ao gosto de Miguel e de Margarida. Não se sentia ali feliz. Era já muito tarde, quando ele veio deitar-se, sem fazer barulho, a julgar que ela estava a dormir. Ele, por sua vez, adormeceu depressa. Maria Violeta, porém, agitada pelos seus pensamentos, esteve longo tempo acordada, na noite.

 

Nos dois extremos da casa enorme, duas mulheres preparam em silêncio a refeição da noite, uma refeição ligeira que hão-de comer sozinhas. E o que se come só, não tem o mesmo sabor. A Sr. a Delarue, a locatária da casa onde Margarida alugara um quarto, saboreara já refeições confortáveis e tranqüilas, durante as quais uma criada servia manjares variados e bem cozinhados ao Senhor e à Senhora. O "Senhor" já não existia; a criada era muito cara. Por isso a Senhora mesmo prepara o jantar no fogão de gás com o que ela compra, sem grande critério. Põe a toalha na grande mesa-redonda, que daria para um vasto círculo de família ou de amigos. Os pratos são de bela faiança, rachada já à força de anos de serviço, e o pesado talher é de prata lavrada. Ali irá sentar-se, baixinha e curvada, porque, quando ninguém a vê, deixa o corpo à vontade. Na sua frente, a cadeira do companheiro, que jamais tornará a comer. "Não sou capaz de me resolver a comer na cozinha"; idéia a que ela se agarra firmemente, na previsão de que algum dia acabará por ceder,

como esta e mais esta amiga velha, que adoptaram essa simplificação, dizendo: "Na cozinha tenho mais calor. E dá-me menos trabalho". A Sr. Delarue teima ainda em "manter-se". Mas a resistência abranda de dia para dia. É claro que ninguém saberia que ela passara a comer na cozinha. Mas saberia ela própria. Tinha de manter-se... O que tem de fazer é pôr mais um xaile.

Lá adiante, ao fundo do grande corredor, tornado inútil naquela casa feita para uma intensa actividade doméstica, abria-se o quarto da hóspeda. Esse quarto, porém, em nada se parecia já com o que a Sr. a Delarue preparara para ela. Margarida não pudera suportar o aspecto nem o cheiro desse quarto onde, antes dela, tinham dormido desconhecidos; depois do desastre que sofrera, ficara extremamente sensível a tudo o que representasse empobrecimento, fealdade, deterioração. Despojada da felicidade, queria à sua volta coisas desprovidas de tudo o que forma as recordações de alegria ou de tristeza de toda a vida humana. Depois, alguma vez teriam aberto de par em par aquela janela? Criada no campo, segundo princípios científicos de higiene, e submetida, recentemente, a curas de ar e de sol durante a sua convalescença, aquela atmosfera envelhecida e confinada era-lhe insuportável. "Nunca ali poderei viver!" pensara ela ao princípio. A sua força de vida, porém, era tão intensa e a sua inteligência tão clara, que depressa discerniu o que podia modificar. E ao comprar uns metros de tecido ou um quadro, lembrava-se, num sofrimento contínuo, dos gostos de Miguel, quando os dois andavam a preparar o seu lar. Por isso teve o cuidado de escolher outras cores e outros estilos: era preciso não haver semelhanças. E em breve se sentiu em "sua casa", quando a Sr. a Delarue concordou em levar para outro sítio o que a estorvava e lhe desagradava. Rolos de tapetes, almofadas, "bibelots", quadrinhos inúmeros, foram parar a outro quarto - mas não estariam todos eles convertidos em casas de arrecadação? - juntar-se a outros farrapos duma existência de mulher, que se agarrava a esses bens inúteis, tal como se agarrava à grande casa em que vivia.

Enquanto a velha dama solitária comia o seu jantar medíocre na grande mesa chamada "da sala de jantar", a jovem, não menos solitária, dispunha as suas coisas do jantar numa mesinha rodante. Todos os objectos eram novos e sem defeito. Só as pratas, que trouxera da Bretanha, já tinham anos. Quanto à comida, cozinhada no fogão eléctrico, reduzia-se ao mínimo. Margarida nunca tinha fome. O que mais a interessava, além da qualidade dos alimentos muito simples, era o embelezamento do ambiente.

Naquela tarde, estava a terminar a refeição com fruta excelente. Gostara sempre de fruta. A terra bretã oferecia-a em profusão e as pequenas Lê Forts colhiam-na à vontade. "Faz bem às crianças" dizia o pai. No decorrer da sua convalescença, no Sul, o que ela comera de laranjas, figos, bananas! Ia a cortar uma maçã, que nada tinha do sabor das maçãs da Bretanha, quando a Sr. a Delarue lhe bateu à porta. E a cabeça grisalha e frisada apareceu: "Minha querida menina (não se considerava cortês se o adjectivo "querida" não precedesse a palavra "menina", apesar de Margarida não lhe ser "querida", visto que lhe fazia impressão e a intimidava e não lograva habituar-se ao aspecto daquela cara cicatrizada), minha querida menina, tem ali uma visita: sua mãe. Quer recebê-la no salão? Está lá à sua espera".

Margarida exclamou: "A mama! Oh! ela que entre... "

E correu pelo comprido corredor sombrio, tão depressa quanto podia com a sua claudicação. Avistou a mãe, de pé, no velho salão desbotado. A Sr. a Delarue de boa vontade teria prolongado a conversa com aquela senhora que lhe parecia "muito distinta", mas Margarida arrastou a mãe consigo, enquanto ela agradecia a dona da casa o bom acolhimento dispensado. E a Sr. a Delarue voltou a ficar na sua solidão.

Foi com certa emoção que a Sr. a Lê Fort entrou naquele quarto, que ela ainda não conhecia" e que era o quadro da nova vida de sua filha.

- É bonito, o teu quarto. Não se parece nada com o resto da casa. Estou a ver que desmanchaste tudo. Mas tu estás a jantar, minha querida. Acaba de comer, peço-te... esse jantarinho de crianças.

- Afianço-te que me alimento muito bem. Não tenho vontade de adoecer... Oh! trouxeste-me maçãs... maçãs da nossa casa. Que ricas! As que se compram em Paris nunca são tão boas. E são tão bonitas! Como brilham!

- Tua irmã esfregou-as, para ficarem mais brilhantes - explicou Susana, satisfeita com aquela explosão de contentamento que ela nunca esperara, sobretudo por um pormenor tão insignificante. Também te trago coscorões e uma empada de caça que a Corentina fez.

Pelo rosto de Margarida passou uma sombra. Uma empada de caça? Miguel andara a caçar, decerto. com a voz alterada, perguntou à mãe se já ceara.

- Pois claro. Logo que saí da estação de Montparnasse. Fica longe, o plaino de Monceau e eu não me entendo muito bem em Paris. Cheguei um pouco tarde, mas vou demorar-me alguns dias, porque tenho assuntos a tratar.

"A mama diz isto num tom singular... "-pensou a jovem, que indagou:

- Mas não é nada de aborrecido, não?

- Não... São uns trabalhos de teu pai que Miguel quer editar e pediu-me que tratasse disso. Ele não tem tempo de vir.

- Evidentemente.

Porque havia de falar-se já de Miguel? Fez um esforço:

- Mas não está muito sobrecarregado de trabalho, não?

- Se está! Muitas gripes, como é costume neste tempo. Eu ajudo-o o mais que posso na parte administrativa, que presentemente tanto complica a vida dos médicos.

Novo esforço, que arranha a garganta:

- Mas porque é que a Maria Violeta não o ajuda?

- Ela é tão nova e tem tão pouca prática... e não está a par de nada. Eu costumei-me a essa papelada no tempo de teu pai e faço por poupar a tua irmãzita a essas maçadas.

Margarida, aturdida com o relato desta situação familiar, perguntou no que se ocupava Maria Violeta.

- Sempre com o nariz em cima dos livros. E cada vez mais.

- E que gênero de livros?

- Nada menos que filosofia, minha querida. E imagina tu que mostrou desejo de ir cursar na Faculdade. De maneira que vai a Rennes várias vezes por semana. Que tonta de rapariga, não é verdade?

- E mostra-se alegre? Mais expansiva?

- Olha, nem sei... nunca foi desse gênero. Gentil. Um tanto na lua... Para encontrar alegria é ir a casa de Rosa Teresa. Ali sim, a vida é feliz. Uma boa situação, instalação luxuosa, dois carros, pessoal, recepções, viagens...

- E um bebê... Mas o marido, como é que tu o achas?

- Um belo rapaz. Lembras-te de que Rosa Teresa sempre disse que queria um marido alegre, jovem, que não fosse complicado... em resumo, o oposto de vosso pobre pai. É absolutamente feliz.

Um silêncio. Susana tinha qualquer coisa a dizer e não se resolvia. E, no entanto, tinha vindo a Paris para dizê-lo... Lembrou-se de outra coisa, também difícil de apresentar àquela rapariga, ferozmente na defensiva.

- Sabes? Está decidido baptizar a menina pela Páscoa, em nossa casa. E todos nós, minha querida, gostávamos muito de que estivesses connosco. Todos te pedimos que vás, mas a Rosa Teresa pede-to com muito empenho.

Margarida nunca procurava desculpas. Olhou a mãe de frente. Poi esta que baixou os olhos; não podia suportar sem emoção aquele olhar "de frente" que lhe mostrava Os dois lados do rosto desigual.

Mama, é melhor não contarem comigo. Não espero ter coragem para já.

- No entanto, filhinha, não hás-de ficar indefinidamente afastada de nós todos. Parece-me e acredita que to digo com tanto respeito como ternura! - que, desde que voltes a casa a primeira vez, te custará menos a recomeçar a vida de família.

- É possível. Não sei. Dêem tempo ao tempo

- não para reflectir, porque isto não é um caso de reflexão, mas para tentar habituar a minha sensibilidade a essa idéia. Todavia, ignoro absolutamente se ela poderá habituar-se a tal. É sofrer de mais... não, não, não quero! Estás a compreender-me? Diz!

- Sim, minha querida - tão corajosa e tão amada por todos!

Todos: uma palavra a mais. Porque Miguel fazia parte desse bloco, - todos. Endireitou-se:

- Não se fala mais nisto. Dá-me, antes, notícias da nossa terra.

Susana pôs-se a falar de uns e de outros, a falar muito, de mais, mesmo. "Há outra coisa, há qualquer outra coisa... Era já tarde. Sua mãe iria sozinha, já de noite, para um hotel?

- O hotel onde estou não é longe. Deram-me uma direcção aqui no bairro e fui lá deixar a mala. Não te inquietes. Olha, querida... eu queria confiar-te esta noite uma preocupação inteiramente pessoal. És a minha filha mais velha e as provações têm-te amadurecido o caracter; e, entre aqueles que estão à minha volta, não sei a quem hei-de pedir conselho. Lê esta carta, Margarida! Lê atentamente. Sem preconceito, suplico-te! - Tirou da malinha uma folha de papel, onde se encontravam algumas linhas, traçadas por uma letra de homem, bonita e firme:

"Minha querida Susana... "

Estava simplesmente assinado: "Francisco".

"... Minha querida Susana, dois anos passaram já sobre a sua viuvez, Eu também estou só. Houve circunstâncias - ou antes, vontades de valor discutível - que nos separaram quando éramos novos e nos amávamos. Jamais se desvaneceu em mim a sua recordação. Julgo ter sido para a minha pobre Clotilde o que se chama um bom marido. Ela desapareceu. Porque não havemos de unir as nossas vidas? Reformado depois de ter sido ferido na guerra, estabeleci residência em Vannes. A minha casa chama por si, Susana - Susana da minha juventude, para se tornar a minha Susana para sempre.

"com respeito e ternura, beija-lhe a mão

Francisco de Kermadec. "

Margarida havia empalidecido, o que lhe cinzelava a vermelho as cicatrizes. Baixinho, murmurou:

- Tu... tu também o amavas, mama? E, no entanto, casaste com o papá.

A mãe teve uma hesitação, antes de responder:

- Teu avô era médico. Quis um genro que o substituísse... compreendes?

A jovem esboçou um sorriso breve, doloroso:

- Sim, comigo passou-se o mesmo, também. Houve Paulo Rigaud... E, depois, Miguel,

"Irá chorar? - perguntava Susana a si mesma.

- Mais valia, Oh! que riso! que riso!"

- Minha filha - continuou ela - agora é de mim que se trata, Nas terras pequenas tudo se sabe e teu pai veio a saber que Francisco e eu nos tínhamos amado, e sofreu por isso, até ao último dia, atormentado por um ciúme terrível. No entanto, nós nunca mais tornámos a ver-nos, mas ele tinha ciúmes do passado. Não faltarei aos meus deveres para com a memória de meu marido se eu casar com aquele por causa de quem ele sofreu tanto? Vês tu como a nossa vida conjugal, que assim mesmo podia ter sido feliz, foi envenenada pelas dúvidas de meu marido?

- Era então por isso que havia tantas questões? Rosa Teresa e eu só perguntávamos porquê. Pobre papá!

Não dizia "pobre mama!" Por isso as lágrimas saltaram dos olhos de Susana:

- Aí está o que eu receava. Não admitirias que eu voltasse atrás. Aos teus olhos, o caminho está impedido.

A filha deixou-a chorar. Que consolação poderia aliviar aquela alma numa senda barrada, efectivamente, por um morto? Ela disse, porém: "Pobre mama!" e foi uma mitigação. Susana enxugou as lágrimas, que desciam livremente pelo seu belo rosto, arredondado e liso, sem se deterem em qualquer ruga.

- Margarida, peço-te que tornes a reflectir. Pensa em teu pai. Pensa também em mim, ao lado de um marido de um valor excepcional, mas sem nunca ter conhecido uma felicidade normal, nem sequer a paz. Será, realmente, uma falta, o ir acabar os meus dias com um companheiro muito bom?

- Isso é que tu não sabes, se ele é bom! exclamou a rapariga. - A gente muda, com os anos. Endurece-se. Deixaste um garoto e vais encontrar um velho.

- Eu sei - disse pausadamente Susana - eu sei que se conserva o mesmo que era.

- Ah! então vocês correspondiam-se sem o papá saber?

- Nunca! Mas, às vezes, as pessoas humildes dão-nos as indicações mais seguras. Corentina é prima duma tal Aglaé, que já no tempo da mulher lhe cuidava da casa e agora, depois de ele se ter reformado, voltou lá para casa. Diz que ele continua a ser bom, sensato, altruísta, amigo da arte, de jardinagem e de poesia. De tempos a tempos, Aglaé vai a Plémeur, onde tem a família. Diz Corentina que ela costuma dizer: "Homens como aquele já não há".

- Minha pobre mama! - ciciou Margarida.

O teu sonho é ir para ao pé dele, não é? Então vá Afinal de contas, tens direito a ser um pouco feliz e a fazer alguém feliz.

- E não virás a censurar-me, tu, a minha filha mais velha?

Silêncio. O coração de Susana batia mais depressa. Por fim, a resposta veio, lenta e triste:

- Não, nunca te censurarei! Presentemente sei, como sabem os velhos, que não podemos nunca censurar os outros. Dizer que compreendo, é outra coisa. Parece-me que não se pode amar duas vezes. Eu, por mim, nunca poderia. Tu fóste mulher de Jerónimo Lê Fort, uma personalidade de valor. Li há dias, numa revista médica, um artigo sobre ele... Diz, amaste-o, apesar de tudo?

- Amei-o, sim. E sem aquelas suspeitas contínuas, se não fosse a sua dureza, teria esquecido o meu romance de rapariga. Foi Jerónimo que me impediu de esquecer e me tornou incapaz de ser a esposa meiga e ardente de que ele tanto carecia, o pobrezito... Então, admites a possibilidade de eu vir a unir-me a Francisco? Obrigada! Entretanto, o problema não está resolvido. Porque tu não és filha única. De Rosa Teresa não espero nenhuma dificuldade, é claro. Mas...

- Mas há Maria Violeta! Ela nunca há-de aceitar a idéia de ver o papá substituído, mama,

- Tens o mesmo receio que eu. Esse pensamento atormenta-me. O que vale é que Maria Violeta é ainda uma criança,

- Uma criança? Isso é que nada no-lo prova, mama. com certeza que ela não diz agora o que pensa, mais do que antigamente.

- É uma criança, sim. O próprio Miguel só a trata por "filha".

- Oh! à mulher!

- Mulher-criança, se quiseres. Há exemplos desses nos romances: David CopperfieW, por exemplo.

- Os romances não são a realidade. E já não vivemos no tempo das mulheres-crianças, mesmo numa cidadezinha provinciana. Além disso, criança ou não, Maria Violeta tinha uma afeição apaixonada pelo papá, uma admiração total, votava-lhe uma espécie de culto, um culto exigente. Há-de recusar-se a ver o seu lugar ocupado, não há-de querer que tu deixes o seu nome e a sua casa para ires partilhar a vida de outro. Vai ser um drama, mama.

- Bem o prevejo. Por isso é que eu preciso de auxílio. Olha, Margarida, hesitei muito antes de vir pedir-te esse auxílio, a ti, que tanto tens sofrido. Perdoa-me! É certo que há nisto qualquer coisa de anormal... e de cruel. Mas tua irmã sempre teve confiança nas tuas opiniões. Pensei na intervenção da tua tia religiosa, mas Maria Violeta diz logo que num convento não se está em condi- ções de compreender estes problemas tão humanos. Por isso te pergunto, minha querida, cheia de medo, se te prontificarias a falar nisto a Maria Violeta. Vai à nossa casa, peço-te! Vai assistir ao baptizado da pequenina Annick.

Novo silêncio. Deram onze horas. E Susana ergueu-se:

- Que tarde! Tenho de ir para o hotel. Amanhã tornamos a ver-nos. Podemos almoçar juntas, queres? Só te peço que indiques um restaurante a esta provinciana. E a hora a que devo ir ter contigo,

Quando ficou tudo combinado, Margarida fitou a mãe:

- Pedes-me conselho mas, no teu coração, tudo está resolvido... És sempre linda. Estás nova... Olha, mama, se a vida te acena, segue o caminho que ela te indica!

- Obrigada! - murmurou ela com um sorriso comovente. - Mas há as minhas filhas... Não irei encontrar Maria Violeta atravessada no caminho? Como hei-de afastá-la, a essa pequena de olhos patéticos? E não irei eu também encontrar Miguel a barrar-me o caminho, se ele fizer causa comum com ela, por respeito pela memória de teu pai e para desviar da mulher um desgosto tão grande?

Outra vez Miguel... Pensamentos confusos, sem forma, sem encadeamento, agitaram-se no espírito de Margarida. Pensamentos? ou intuições da sensibilidade impressionada pelas confidências maternas?

- Já respondeste à carta?

- Não, queria ver-te primeiro. Mesmo a carta não é de há muito: repara na data. Vim, logo de seguida, ter com a minha filha mais velha. Até amanhã! Só falámos de mim; e tu tens muitas coisas para me contar, não é verdade?

Quando ficou só, Margarida pôs as mãos, e ela, que já não queria rezar, olhou para o crucifixo:

- Mais um fardo às minhas costas! Trazia o meu, já tão pesado! uma cruz como a vossa... Agora veio a mama, que traz os fardos de toda a família. Estou então já tão velha, tão despojada, tão amachucada, que até minha própria mãe me toma por confidente e conselheira e me traz tudo isto? Tudo isto que é deles, da mama, do seu Francisco, de Maria Violeta, de Miguel, do papá, sempre presente! E é em cima de mim que põem toda esta carga? "És tão sensata!" - disse a mama. Ah! que bem caro isso se paga, o bom senso!

Do crucifixo vinham ondas, que a envolviam: "Se quisesses, seríamos dois a levar o teu fardo e o deles!"

Mas ela não queria. As mãos cicatrizadas cobriram o rosto cheio de cicatrizes, e submergiu-se na sua solidão.

 

PASSARAM-SE alguns dias. com a ausência de Susana, tão viva, Maria Violeta achava a casa triste.

- Tua mãe escreveu-te? perguntou Miguel uma noite, reconhecendo a letra do sobrescrito que viera no último correio, -Anuncia-te o seu regresso, decerto?

- Não, o que me admira algum tanto. Naturalmente é Margarida que a faz demorar-se.

- Que te conta ela?

- Fala, sobretudo, de Margarida, que foi encontrar de boa saúde, agradàvelmente instalada e interessada no trabalho que tem.

- Bernardo Laugier é boa pessoa. com aquele patrão, não há aborrecimentos.

- A mama também fala muito de Paris, onde parece que tudo a encanta.

- Oh! as mulheres! - chasqueou o mancebo.

- São todas o mesmo. Também gostavas de ir a Paris, tu, minha bretãzinha, que nunca saíste da terra natal?

Ela corou - e corava tão facilmente, que lhe causava desespero.

- Sim, gostava de conhecer Paris e de tornar a ver minha irmã.

- Tua irmã talvez venha ao baptizado. Mas se isso te dá prazer, vai até Paris.

- Sozinha? Ficava desnorteada. A mama é diferente. Lá sabe desembaraçar-se naqueles bairros, nas linhas do "metropolitano", nos autocarros, nas lojas. Eu perdia-me.

Ela sentira pesar àquelas palavras: "se isso te dá prazer". É assim que se fala às crianças. Porém, a sua confissão: "Eu perdia-me", mais radicara em Miguel, sem dúvida, a convicção de que sua mulher era perfeitamente uma criança, porque teve um sorriso zombeteiro.

- Perdias-te... Mas que grande palerma! Maria Violeta julgou bom guardar só para si as últimas informações da carta da mãe. Era, de resto, a página mais interessante.

"A Sr. a Delarue, em casa de quem está a morar tua irmã, é já velhota e é o que se chama uma "senhora de bem", no gênero convencional. Margarida mantém-se muito à parte: "Só o que quero é que ela não me estorve e me deixe arranjar o quarto cá ao meu gosto; nada mais lhe peço". Ontem à tarde estava eu à espera que tua irmã viesse; demorou-se mais que o costume e a Sr. a Delarue foi fazer-me companhia. Foi por delicadeza? Por curiosidade? Levou-me para um salão poeirento e fez-me perguntas hábeis a respeito de Margarida e do desastre dela. Relacionada com pessoas que eu conheci no princípio de casada, já sabia mais do que seria preciso. Margarida deseja firmemente: guardar silêncio a propósito das suas provações. Mas como pode evitar-se que outros dêem novidades? Por fim, tomou um ar confidencial e disse-me que tem um primo, já duma certa idade, que cegou na guerra e que estaria muito disposto a casar com Margarida, de quem ela já lhe fez a descrição (pobre pequena!) e o elogio e cujo timbre de voz ele já apreciou, o que é muito importante para os cegos. "A senhora compreende, para ele pouca importância teria o aspecto de sua esposa; quanto aos filhos, não tem empenho em tê-los, porque acha que seria um fraco chefe de família". Em resumo, a Sr. Delarue, como tantas velhas alcoviteiras, arquitectou um pequeno romance e chegou a acrescentar: "O novo lar poderia instalar-se aqui, numa parte da casa, que é vastíssima para mim - mas eu não a deixarei nunca". Tudo isto, como vês, é ao mesmo tempo ridículo, triste, bastante quimérico e talvez razoável, no final das contas. Que pensas tu disto, sinceramente? Eu hesito em falar a Margarida no assunto. A Sr. a Delarue é que está muito interessada na sua idéia e receio que ela própria a exponha a tua irmã, o que seria desastroso. "

Maria Violeta foi perseguida por esta carta todo o dia, - um lento dia fusco em que ela não foi a Rennes, entendendo que as suas obrigações de dona de casa deviam retê-la em Plémeur na ausência da mãe. Nunca ela pensara que Margarida pudesse vir a casar,

- Ela não é rapariga para renúncias, nem para meios termos. Evidentemente que é magnífico casar com um cego, desde que se goste dele. Mas aceitar o casamento com ele só porque ele não pode ver que a mulher é feia... E ele, casar com Margarida desfigurada por não poder casar-se nas mesmas condições dos outros homens... É impossível que ela, altiva como é, admita uma coisa dessas! Ou então... ela já não é a Rainha-Margarida e ultrapassou os limites do desespero. Sim, só indo além do desespero terá caído na apatia que aceita seja o que for. Margarida, minha pobre querida!

Maria Violeta sofria cruelmente, de cada vez que pensava naquela que deveria estar ali, no seu lugar, como esposa, formosa e feliz.

Nos dias em que a "Senhora" esteve ausente, deu-se o facto curioso de Corentina se mostrar amável e atenciosa para com a jovem dona da casa, que tanto receara que ela a tratasse como uma nulidade. É claro que a velha bretã só fazia o que lhe dava na cabeça; mas não era assim também com Susana? E Maria Violeta, que tão bem se apercebia das menores ondas de simpatia ou de hostilidade, admirava-se de sentir mesmo uma espécie de contentamento em Corentina. Quando esta, por exemplo, lhe perguntava se a vitela se assava ou se cozia com cenouras, as cenouras estavam já raspadas, e a pequena bem o sabia. O tom da pergunta, porém, era tão amável! Ela, por sua vez, acompanhava a resposta: "com cenouras, Corentina", com um daqueles deliciosos sorrisos que eram o encanto do pai, antigamente. Depois, Corentina murmurava qualquer coisa em bretão. Mas Maria Violeta não sabia bretão.

"Porque será que a mama não vem?" - perguntava a jovem a si mesma, atribuindo o prolongamento daquela ausência à solicitude da mãe por Margarida. "Mas, de toda a maneira ela não a vê, porque Margarida está no trabalho". Seria por gostar da vida parisiense? "A mama gosta dos estabelecimentos bonitos, dos concertos, das exposições de arte, mas andar a ver tudo isso sozinha... Maria Violeta não podia imaginar a verdadeira razão daquela demorada estadia em Paris: lá, Susana era uma desconhecida, perdida entre milhões de pessoas que ela nunca vira, enquanto que na Bretanha não teria liberdade nenhuma para os encontros com o amigo de outrora, que fora propositadamente a Paris.

Ele suplicara-lhe que consentisse em tornarem a ver-se. E, sem saber ainda que resposta daria ao desejo que ele manifestara de se unirem na sua viuvez, ela não pudera resistir ao apelo; e fora ter com ele. Francisco... todas as recordações da mocidade recalcadas no fundo do coração durante vinte e cinco anos e que ela para sempre julgara sem domínio sobre si, todas essas recordações surgiram com uma nitidez "e um frescor inauditos. No entanto ele estava muito modificado, após os duros embates da guerra e do cativeiro, de onde saíra em tal estado que não pudera continuar a sua carreira de oficial da marinha. Mas a expressão dos seus olhos cor de mar, o sorriso dos seus lábios, a graça dos seus modos, eram ainda os mesmos. Francisco de Kermadec continuava a sef digno de que Susana o amasse.

Ele não se cansava de contemplá-la, naquele salão de chá onde os dois provincianos, filhos da Bretanha, tinham marcado o seu encontro.

- Está sempre a mesma - disse ele. - Por que milagre continua tão nova, Susana?

- A calma da província, Francisco. Pouca fadiga, em suma.

Ele pensava: "Os lábios é que têm aquele vinco que há na boca das mulheres que sofreram e que pouco riram. Oh! torná-la feliz, agora... fazê-la feliz!"

E pronunciou:

- Fale-me de suas filhas.

Porém, mesmo disso, era difícil falar. Uma rapariga tem pressa de confiar tudo ao homem amado: os seus sonhos, as suas recordações, as suas mágoas, as suas alegrias. Mas o casamento, a maternidade, não são coisas pessoais: há neles o marido, o pai, E ele estava presente, sempre. Nada podia contar-se sem os seus gestos, as suas palavras a acompanharem a narrativa, a ilustrarem o texto como uma estampa negra. Jerónimo? mas ele encontrava-se associado a tudo e continuava a estar. E talvez, mesmo desaparecido, continuasse a ser, duma forma inexorável, para além da morte, o dono do destino daquela mulher viva. Porque as filhas deles aceitariam o facto de que outro tomasse o seu lugar? Oh! com Rosa Teresa, tudo iria por si mesmo. Mas a sombria Margarida mostrara-se pouco favorável e quanto a Maria Violeta, a filha querida de Jerónimo... não, não, ela não. admitiria que a mãe tornasse a casar!

Os olhos de Susana encheram-se de lágrimas

- Não tenhamos ilusões, meu pobre Francisco! Temos de renunciar a esse projecto. Faria sofrer muito as pequenas.

- Mas a mais velha deixou a casa e não volta. E as outras estão casadas. Portanto?

- Oh! as outras... a segunda, que está muito bem casada, tem um caracter muito simples, não me inquieta nada. É a terceira, a Maria Violeta. Adorava o pai.

- Tem um excelente marido, não é verdade? É feliz?

Susana vacilou e baixou os olhos.

- Nem sei. Imagine que não sei nada. Pergunto a mim própria se os dois estão verdadeiramente unidos ou não. Maria Violeta tem uma personalidade muito particular, bastante desnorteante, mesmo. Em muitos aspectos, é uma criança. E o marido trata-a como criança.

- Justamente pode ser esse o seu erro.

- Começo a perguntá-lo a mim mesma... Ela é uma criança, isso é. E, no entanto, está apaixonada pela filosofia. Os cursos que ela está a fazer em Rennes, os livros que lê, os trabalhos que faz, tudo, enfim, vai muito além do que eu poderia fazer.

Fez-se um silêncio, entre os dois, preenchido pela melancolia duma valsa executada pela orquestra cigana.

- Gosta tanto da música como gostava?. - perguntou o capitão. - Ainda toca?

Nunca mais toquei depois da morte de meu marido. Não me atrevi. Porque não sei se Maria Violeta toleraria?

- Maria Violeta... Maria Violeta... - repetiu ele, pensativo. - Mas a Susana precisa de música. Ela não compreende isso? Diz-me que ela é gentil, delicada, que se esquece de si, para pensar nos outros...

- Sim, mas... há o pai. Asseguro-lhe que para aquela pequena ele está sempre presente.

- E essa presença é-lhe grata, pobre Susana? Ela não respondeu.

- Ouça - continuou ele. - Quando se vem a Paris e se tem uma alma de artista, tem de se ouvir música, música boa. Vamos ambos ao concerto. Amanhã. Quer, Susana querida?

Foram. E a "Susana querida", perturbada pela audição duma obra amada entre todas, sentiu que renunciar a Francisco seria ainda mais duro que da primeira vez. Nos anos da mocidade, o sofrimento é mais violento, mas é mais profundo e sem esperança quando se chega ao outono do destino. Na obscuridade da sala, ele pegou-lhe na mão. E ela não a retirou.

Margarida estava admirada de a mãe não lhe ter consagrado aquela noite, como as precedentes. Mas depois compreendeu: "Francisco" viera ter com ela a Paris. Como eles se tinham amado! Como ainda se amavam! Era inútil ter ilusões: "A mama torna a casar. Vai esquecer o papá. Vai deixar-nos, a nós três. Pobre papá! um homem daquele valor... "

Toda a noite, os seus pensamentos a mantiveram acordada. Pensamentos de revolta, ao princípio:

"Vinte anos casada, não lhe chegaram. Eu, que não tenho nada, nada... Ela, então, não amou o marido?"

O espírito, porém, adquire uma estranha lucidez durante a noite. Pouco a pouco, foi-se lembrando de mil pormenores da vida "lá de casa", aos quais ela, menina turbulenta e, depois, rapariga entusiasta e desportista, não ligara atenção. A cara glacial que o pai tinha sempre, salvo com Maria Violeta, para quem as suas feições se iluminavam. Aquelas palavras secas, irônicas, contundentes, por vezes, com que feria a mãe sem razão. Aquela melancolia da mãe, tão pouco de acordo com a sua jovialidade natural... À parte Maria Violeta, as pequenas Lê Fort temiam o pai. E ele não parecia ser feliz. Não parecia ser mais feliz do que a mãe. Por isso não era nada de admirar que esta fosse, de novo, atraída para o seu amigo da mocidade. Afinal, mesmo casada, ela nunca o esquecera. O pai suspeitava-o. Era essa a razão da sua frieza e da sua dureza para com a mãe, bonita e boa. A mãe dissera: "Nunca mais tornámos a ver-nos". Pode, pois, ter-se ciúmes do passado? E duvidar indefinidamente duma mulher fiel?

"Mas até eu - confessou ela - até eu estou agarrada ao passado. Talvez Maria Violeta o adivinhe e sofra por isso. Não está bem unida a Miguel: imaginará ela que ele se lembra de mim tem pena? Mas ele será capaz de ter sentimentos sobre mim para sempre? Um fraco, no fundo, e inconstante. Deve ter-me esquecido. Que complicado, destrinçar o que pensa toda aquela gente e ver para onde vão! À mama está à espera de que eu a anime na sua decisão. Estou resolvida a não o fazer. Eu gostava do papá. Para ele morrer em paz, prestei-me a um sacrifício dilacerante. Não quero ter-me sacrificado para nada. A mama que se deixe estar viúva. Não estou eu pior do que se fosse viúva? ".

A mãe e a filha encontraram-se no restaurante para almoçar. Susana estava nervosa. Margarida observava-a.

- Saíste ontem à noite? - perguntou. - Passaste uma noite interessante?

- Sim. Quis ouvir Chopin. E havia um recital muito perto daqui, na sala Pleyel. Mas não te pedi que me acompanhasses,

- E fizeste bem. Não consigo já suportar Chopin. Tu consegues? Essa música faz sangrar todas as feridas.

Susana não respondeu. Ia comendo,

- Recebi carta de lá de casa - acabou por dizer. - Corentina trata Maria Violeta como verdadeira dona da casa.

- " É o que ela é, na realidade, e o que deveria ser! - exclamou precipitadamente Margarida. Afligiram-na as suas próprias palavras e acrescentou:

- Isso não é comigo, mama. É absolutamente natural que tu continues a manter o bem-estar da casa.

Mas a mãe vacilara. Esqueceu-se da fruta que estava no seu prato e parecia descobrir algo novo.

- Achas, então, que eu devia deixar à tua irmã a direcção da casa?

- Já te disse que isso não é comigo. Creio que as coisas estão muito bem, assim como as arranjaram. Mas não posso deixar de perguntar a mim mesma, se o gosto dela pelos estudos filosóficos, que me parece um pouco extraordinário, não será causado pela falta de ocupação. Talvez ela ande aborrecida. Porque, afinal, no que é que ela se ocupa?

Ligeira hesitação, antes de acrescentar:

- Ajuda Miguel nos dias de consulta? É ela que trata do expediente! Faz as contas?

- Não. Não faz nada disso. Miguel considera-a como uma criança e não lhe pede colaboração nenhuma. Eu faço o que posso, Mas o laboratório absorve-o imenso e está a precisar seriamente de ser ajudado. É por isso que pensa em procurar uma operadora.

- Uma estranha lá em casa? Maria Violeta aceitará isso?

- É claro que sim. Aceita tudo. É muito dócil. Margarida falara com tal rapidez, que a mãe

devia ter-se admirado. Mas esta, de olhar vago, seguia outra idéia.

- Em suma, achas-me de mais lá em casa?

- Mas não, mama! Que estás tu a imaginar? Ambos te amam muito e precisam de ti. Então não acabas a sobremesa? Hoje não tens apetite. Vou mandar vir o café, que já se vai fazendo tarde.

Susana acendeu um cigarro e fumou nervosamente. Depois ajudou Margarida, cujos movimentos eram sempre difíceis, a vestir o pesado casaco de peles e disse:

- Volta esta noite o mais depressa possível, para fazermos um grande serão. Eu levo o que for preciso para fazer uma ceiazinha para nós duas e poderemos tagarelar sossegadamente. Bom-dia, minha querida.

Beijou-lhe o lado feio da cara, o que ninguém fazia.

"A mama deve estar muito perturbada, para se ter esquecido."

A própria Margarida estava perturbada: não gostava de situações obscuras. E ao retomar contacto com a família, via muitos recantos de sombra. E justamente se ela tanto lutara para se couraçar contra o sofrimento! - lastimava encontrar-se de novo envolvida na vida dos que lhe pertenciam.

"Já tinha adquirido uma indiferença calmante e agora forçam-me a pensar nos outros, Quando a mama se for embora tenho de arranjar maneira de me esquecer de todas essas historietas. "

Margarida não suspeitava de que jamais lhe seria possível esquecer-se. No parque Monceau, que todas as manhãs atravessava para ir tomar o "metropolitano", reparou que havia uma poalha de Primavera. Os troncos continuavam despidos, mas num canto abrigado uma forsítia tinha florido. E os seus cachos, de um amarelo vivo, sobressaíam estranhamente naquela decoração cinzenta e negra. A rapariga, que assistira a tantas Primaveras bretãs, que enchiam de flores as sebes e os matagais, estremeceu ante aquele despertar da Primavera parisiense. Depois da sua desdita, julgava detestar a Primavera, E nestes anos evitara ver-lhe as manifestações. Então, por que razão se deteve naquela manhã? Na sua alma endurecida tinha-se agitado qualquer coisa. Ao anoitecer, quando passou novamente perto do arbusto, parou: havia mais flores ainda.

A mãe aguardava-a à porta, munida de um grande saco.

- Não queria chegar antes de ti e ter de aturar a verbosidade da dona da casa. Sabes? trouxe um monte de coisas boas.

Cearam na mesinha, posta com uma linda toalha cor-de-rosa.

- Escolheste de tudo o que eu gosto - notou Margarida,

- Para quê falar do passado? No entanto, é do que tu gostas, não é assim?

- Não sei. Gostarei ainda de alguma coisa? De cabeça inclinada, mostrava à mãe o "lado bom". Susana pensou: "Ainda é bonita. Além disso, se casasse com o cego... Mas não ousava falar-Lhe do cego. Sem dúvida que haviam de apresentar-se ocasiões de encontros, suscitadas por a Sr. a Delarue. E afinal de contas não seria melhor a pobre criança casar-se?

De momento, porém, Susana tinha outra coisa' a dizer. A sua voz tremeu:

- Minha filha, já reflectiste na nossa conversa do outro dia?

- Não posso ajudar-te - decidiu Margarida, rígida. - Não me compete.

Susana csfarelava pão, nervosamente. Na mão, não trazia outra jóia além da aliança. Margarida não tirava os olhos daquele anel de ouro, que o pai, outrora, metera no dedo da sua bela noiva, dizendo-lhe: "Dou-lhe este anel como penhor da fé que lhe jurei". Quando alguém torna a casar-se, o que faz do primeiro anel? Sim, o que faz dele?

Por fim, a mulher que trazia o anel de ouro ergueu os olhos para a filha nascida do seu matrimônio, a primogênita:

- Lembras-te do que te contei? Ele está à espera da minha resposta.

- E porque hesitas tu, minha pobre mãe? Por nossa causa? Por causa do papá? Precisas ver os teus sentimentos com clareza. E ninguém pode fazê-lo por ti.

- Julgas-me severamente-'murmurou Susana. - Oh! eu avalio bem o que há de doloroso para ti em ver tua mãe fazer tais projectos. Perdoa-me! E tenta compreender, peço-te.

Um longo silêncio. com os cotovelos encostados à mesa - oh! aquele anel de ouro no seu dedo!

- Susana chorava, talvez. Porque é que a visão do arbusto do parque Monceau, a florescer depois do inverno, tão fresco, tão moço, perseguia Margarida? Às vidas humanas terão, talvez, também um remoçamento depois dos seus invernos?

"A mama está nova, ainda. E bela. O tom da sua pele conserva-se delicadamente rosado, os cabelos continuam brilhantes, o talhe esbelto. Quando sorri, os olhos e os lábios dão-lhe uma linda animação a cara. "

Sim, aquela mãe estava nova. Mais nova do que a filha aleijada, diminuída, sem possibilidades de amor nem de maternidade, e triste até ao fundo da alma.

A forsítia florescia, a forsítia estava a florir:

"Porque não havia de dar-se o mesmo com a mama?" Seria preciso quebrar aquelas corolas frágeis, a abrirem-se, com um grande "não", seco e sublinhado por um riso desdenhoso? Tinha de dizer, por exemplo: "Esse projecto é insensato. E ofensivo para a memória de nosso pai. Nenhuma de nós três consentiria em vê-lo substituído. Como podes tu, sequer, sonhar com isso?"

A forsítia, a forsítia...

Margarida pousou a mão aleijada - uma mão informe - na mão fina e comprida da mãe. Que contraste!

- Vamos, mama, não te faças infeliz! tudo isso me surpreendeu e me emocionou. Mas quero, sinceramente, tentar compreender. Hei-de compreender melhor que... as outras, certamente.

- Obrigada, querida. Não está nada resolvido.

- Mas no teu coração está.

- Afianço-te que não queria prender-me a esse pensamento antes de falar com minhas filhas.

- As tuas filhas... Do lado de Rosa Teresa não há nada a temer; não complica nada. Gostava do papá, é certo, mas creio que há-de compreender. Há, somente...

- Maria Violeta - suspirou Susana, repetindo uma vez mais as palavras que a perseguiam dia e noite.

 

CONTENTE por a mãe ter regressado, enfim, de Paris, Maria Violeta contemplava-a tal como as crianças: com uma simplicidade e uma fixidez incomodativas. Susana corou, e a jovem sentiu-se indiscreta.

- Acho-te tão bem, mama! Paris deu-te um ar novo. É que não pareces nada a mesma. Sabes que rejuvenesceste?

Era exactamente a opinião de Corentina, ao examinar a Senhora. Chapéu novo, uma malinha à moda; mas havia ainda outra coisa. Às vezes dá-se isso, nas viúvas. Corentina passou a receber, novamente, as ordens de Susana, mas com cara de poucos amigos.

- Está ainda mais rabugenta do que estava. Na verdade não tiveste dificuldades durante a minha ausência?

- Nenhumas. Pelo contrário, foi sempre muito gentil. É claro que só fazia o que entendia. Mas julgo que contigo não é diferente.

- Pois não! - concordou Susana com um sorriso.

Que lindo sorriso! Outrora Margarida tinha aquele mesmo sorriso, mais jovem e também mais voluntarioso. "O meu sorriso é triste" - dizia Maria Violeta consigo, em frente do espelho, sem ver que a doçura, a pureza do seu rosto faziam desse sorriso uma coisa encantadora. Mas depois da morte do pai, quase não sorria. Miguel nunca estava. E à noite, lia o jornal...

A primeira vez que uma voz lhe disse em Rennes, ao sair da Faculdade: "Que linda rapariga! ", ficou espantada. E sentiu-se indignada quando palavras mais inflamadas a alfinetaram e um transeunte, insinuante e adulador, atrasou o passo para segui-la. Vinha dos estudos, com o espírito pleno de pensamentos, alguns dos quais a desconcertavam. Que contraste! Cair assim na realidade, e numa realidade brutal, perturbava-a, sobretudo depois do curso de literatura, em que fora lida com arte uma página de alta categoria. Que desafogo em toda ela, que agitação! Lá em casa, porém, aquilo não se dava. Lá, voltava a tomar a sua atitude de adolescente. A mãe dirigia a cozinha, assegurava a administração dos assuntos médicos e o papel da Sr. a Abran reduzia-se a nada, a tal ponto que às vezes perguntava a si mesmo se era, realmente, a Sr. a Abran, a esposa do médico conhecido em toda a parte, a mulher do jovem cientista, a dona da casa. Em Rennes chamavam-lhe "menina", como antigamente. Mas antigamente havia o pai apaixonadamente amado, havia as irmãs. Era, de facto, "menina", não havia Miguel, seu marido.

Ao retomar as suas ocupações habituais, Susana continuava o seu sonho. Irrealizável, talvez, por causa daquela pequena, que não transigiria.

Quando a mãe e a filha tinham ventilado a questão do cego, candidato ao casamento proposto pela Sr. a Delarue, Maria Violeta mostrara-se categórica.

- Repara, mama! Um casamento por piedade ou por um caso de cansaço, não é para a envergadura de Margarida.

A envergadura! Como aquela criança usava grandes palavras! Seria influência da filosofia? Outrora exprimia-se com tanta simplicidade!

E Maria Violeta acrescentara logo:

- Não posso compreender nunca que alguém espere que o amor e a felicidade possam começar outra vez.

- Falas assim, porque és ainda muito nova e não conheces a vida.

- Parece-te que a mocidade influa ou não no âmago da questão? Tudo depende... como dizer? das exigências da alma. E a alma de Margarida é da mais alta qualidade.

"Assim - pensou tristemente Susana - se eu "começar outra vez" vai considerar a alma da mãe de qualidade medíocre. "

Mas o seu sonho andava com ela por toda a parte: Francisco tornara-se o companheiro dos anos de declínio; Francisco tinha um feitio encantador e um coração afectuoso; Francisco era simples, não tinha alterações de caracter; e Francisco confessara que apesar de ter sido um bom marido para Clotilde, fiel e atencioso, nunca a amara. Susana não conhecera Clotilde, o que deveria contribuir, talvez, para não se sentir incomodada por essa morta, como por vezes acontece as mortas incomodarem as segundas esposas. Clotilde... algo que não evocaria mais do que a sombra de alguém que Susana sabia que fora magra, amarelenta, enfermiça, de nariz comprido e fino e olhos de míope: absolutamente ao invés dela em tudo. Assim Susana ia acalentando o seu sonho: uma casa em Vannes, onde ela seria a verdadeira dona e senhora. Uma vida só entre os dois... ela e Francisco; relações com gente da marinha, sempre tão interessantes, Uma vida em que ela não se sentiria hostilizada sem cessar, sempre contrariada, como acontecia ao lado do pobre Jerónimo, tão grande na sua inteligência e no seu saber, que era, talvez, grande em demasia para Susana.

O seu sonho acompanhava-a, mas as recordações também. Ia freqüentemente à campa do marido, esperando ingenuamente um sinal, qualquer coisa que a encorajasse a tornar a casar-se. Mas o cemitério era sempre triste com a sua floresta de cruzes de granito. O carneiro da família estava sempre florido. Sem dúvida graças aos cuidados de Maria Violeta, que nada mais tinha para dar ao pai além de flores: e era o que lhe dava. Flores e preces. Eram inúmeras as missas de Requiem por Jerónimo Lê Fort anunciadas ao domingo, na prática antes da missa.

Susana regressou cansada e sobrecarregada da sua primeira visita ao cemitério depois de ter vindo

de Paris. A sua alma não se coadunava com a tristeza dos sepulcros. Meu Deus! Como ela sentia um desejo ardente de viver, de reviver!

"Na minha idade! É absurdo, anormal. Já não devo pensar em viver para mim, mas para minhas filhas. Ficando ao pé de Maria Violeta, tão nova e inexperiente, cumpro o meu dever. "

No entanto não estava bem certa de ser esse o seu dever, conquanto fosse bem preciso auxiliar a pobre pequena a singrar pela existência, da qual ainda ignorava tudo. E Miguel, sobrecarregado de trabalho, tinha precisão de auxílio, também.

Um elemento estranho, porém, entrou em casa: uma operadora, Mireille Sicard, uma loura jovem, que habitava em Rennes e que achava muito natural ir todos os dias a Plémeur na sua bicicleta motorizada. Veio em trajo masculino, o que lhe dava a aparência dum rapazito, Envergada a bata branca, porém, convertia-se em mulher, uma mulher de rosto inteligente, de olhar directo e gestos hábeis. Miguel reconheceu logo nela uma competência.

- Maria Violeta - disse ele uma noite, à hora em que Susana, discretamente, deixava os filhos sozinhos no salão - creio que esta rapariga vai secundar-me perfeitamente. Não tenho tempo para me ocupar com as dosagens, nem para cuidar dos aparelhos. Ela pode, também, aliviar tua mãe da sujeição irritante do telefone e duma parte da papelada.

Maria Violeta não respondeu nada.

- Agrada-te a rapariga? - perguntou Miguel.

- Como mulher, não. Acho-a... como dizer, muito masculina, muito decidida, bastante invasora. Ele ficou aborrecido:

- Ouve, minha querida, ela tem de ter iniciativa. É isso que eu espero e não passividade. Que faria eu com uma rapariga mole e parva? Ou com uma tímida?

- Tens razão - disse ela calmamente. - Tens de me desculpar, Miguel. Eu é que sou uma parva. Não sei nada.

Miguel sentiu a tristeza que havia naquelas palavras. E ele era bom. Deitou fora o cigarro, levantou-se, tomou a mulher entre os braços e levou-a para o canapé, para estar ao seu lado. Maria Violeta deitou a cabeça no ombro do marido. Que bom, meu Deus! que bom estar assim! Acariciando-lhe os cabelos sedosos, ele também achava que era bom... Podia ser tão bom... Mas pelo espírito de cada um deles cruzava a mesma idéia.

"Não foi por amor que ele casou comigo... que ela casou comigo... Maria Violeta sacrificou-se para o pai ter uma morte tranqüila, e o pai continua a ser o único afecto deste coração, que nunca poderá ser o duma namorada... Miguel aceitou-me por causa do papá, dos doentes, da ciência. Só amou minha irmã. Há-de lembrá-la sempre. "

Um imaginava: "Ela é minha mulher. Mas tão pouco mulher... uma criança. "

E ela conjecturava: "Ele é meu marido. Mas só vê em mim uma rapariguinha insignificante. "

E ambos sofriam. Tão perto, e tão distantes.

Por fim Miguel suspirou, e afastou-se um pouco. "Acabou-se" - disse Maria Violeta para si. E já ele perguntava:

- Parece-te que Margarida se decidirá a vir ao baptizado da pequenita?

Ele pensava, portanto, em Margarida?... Ela respondeu no mesmo tom:

- A mama não o afirmou. Entretanto, Rosa Teresa parece ter muito empenho nisso... Oxalá que ela não traga a ama!

- Podes ter a certeza de que a traz.

- Mas para quê?

- Para fazer "figura". E para não ter o trabalho de cuidar da filha.

- Oh! Miguel, poderá uma mãe deixar outra mulher tratar do seu filho, do seu primeiro filho?

Ele adivinhou o grande desejo daquele coração: a maternidade. E sentiu-se admirado: a sua mulherzinha não tinha nada o aspecto duma mãe de família. Além disso, suportaria ela bem essa prova? E o seu acentuado pendor para os estudos filosóficos não lhe alteraria o instinto maternal? Continuaram a falar de Rosa Teresa e de Rogério Ternier, seu marido.

- É um rapaz simpático, na verdade - opinou Miguel. - E já que tua irmã queria ter uma vida à larga, fez bem em casar com ele. É feliz.

- Mas é tolice precisar de tanta coisa... Para mim, parece-me que uma só deve bastar: amar alguém.

Ele não perguntou: Alguém, quem? Um marido?... Um filho? Um pai? Alguém... Alguém a quem se ame o bastante para se fazer um sacrifício por ele e dizer a um rapaz, a quem não se quer com amor: "Miguel, casa comigo... Ela só amara o pai. Era ele, Lê Fort, esse alguém. Miguel suspirou, e desviou-se logo.

- É tarde. Vai deitar-te, minha querida.

- Não estejas muito tempo a pé. Já que a menina Sicard te poupa tanto trabalho!

- Sim, aquilo que faz é bem feito, - respondeu ele, espreguiçando-se. - Eu depois subo sem fazer barulho. Tua mãe deve estar a dormir.

Dormir? Susana pensava intensamente de mais para estar já a dormir. O livro que ela tentara ler, para mudar o curso dos seus pensamentos, estava em cima da cama. Nessa noite perguntava a si mesma. - e jamais tivera tal preocupação:

"Que dirão eles lá em baixo, quando ficam sozinhos? Francisco perguntou-me: "Seu genro Abran é bom marido?" Porque fez ele esta pergunta? Miguel merece toda a confiança: é sério, é fiel e trata Maria Violeta com toda a doçura e gentileza. "

Não chegou ao ponto de perguntar: "Ela será a mulher de que ele precisava?" Além disso, depressa voltou à sua própria história e fez projectos para a organização da sua vida com Francisco, Tal como se estivesse certa de ir casar com Francisco. Depois, o desânimo veio alternar com os sonhos: "Maria Violeta disse: "Não se pode amar duas vezes. Não se começa outra vez". Por isso, se ela recomeçasse, Maria Violeta não iria soluçar para o cemitério? E soluçar ao ponto de perder toda a sua confiança na mãe? Talvez pior: os espíritos dados à filosofia gostam de generalizar.

Não perderia, também, toda a sua confiança na fidelidade humana, no amor? Não se tornaria ela seca e desiludida, como Jerónimo? ". E pela segunda vez Susana teria levado uma alma a cair no cepticismo: primeiro o pai, e depois a filha.

- "Vou escrever a Francisco e dizer-lhe que renuncio a casar com ele, que é esse o meu dever.

E seria o seu dever desesperar outra alma, a alma de um homem tão fiel? Revolvendo tais problemas, era verdadeiramente impossível adormecer! E o vento que se atirava com força à velha casa bretã, silvando, impelindo, arrancando telhas do telhado, o vento que vinha do mar agitado pela aproximação da Primavera, formava perfeitamente a orquestra que convinha para acompanhar o queixume que se elevava do coração de Susana, ao encontrar em si o mesmo amor após vinte e cinco anos, e ao perguntar se não era seu dever repeli-lo, Mas desta vez pela sua vontade. Outrora, fora a vontade dos pais que decidira por ela: "Hás-de casar com um médico e não com um marinheiro", Agora era por causa das filhas: uma, espoliada do seu frescor e da saúde, que sofreria imenso por ver a mãe, casada e feliz, enquanto que nenhum homem quereria casar com ela; e a outra, apaixonadamente presa ao culto pelo pai e que não suportaria que outro tomasse o "seu lugar". Então nunca se é livre? Tem de contar-se com os outros a tal ponto? Susana tinha uma alma cristã. E dizia: "Consentirei? Ofereço-o em sacrifício. Pela felicidade de minhas filhas. Não é certo que o meu dever é ser mãe?"

No dia seguinte, a primeira missa celebrada era "pelo descanso da alma" de Jerónimo Lê Fort. E Susana nunca deixava de associar-se ao acto de piedade da filha. Rezava muito, a fim de poder ver claro naquela curva difícil. A Sr. a Abran fora lá acima, como todas as manhãs, e o pequeno Gildas ajudava à missa, antes de ir para a escola. Susana conhecia o ardente desejo da sua amiga Joana: ter um filho padre e que fosse aquele. Mas a preparação para a vida de padre é ainda mais difícil que para outra qualquer. Aliviada, em parte, de preocupações econômicas, visto que os filhos mais velhos já estavam colocados e que o genro a ajudava a gerir a exploração agrícola, Joana Abran tinha grandes preocupações como educadora: João Maria e Aliette, em plena crise de adolescência, desorientavam-na e inquietavam-na. E aquele pequeno, tão débil, tão sensível, poderia chegar ao sacerdócio? Sim, Joana precisava bem de rezar, E a essência da sua prece produzia uma profunda impressão em Susana Lê Fort, menos absorvida pelo Ser Único necessário do que por ela mesma.

"Maria Violeta tem um rosto de anjo e Joana Abran uma expressão de santa. Eu, não passo duma pobre mulher. Ah! se Jerónimo se tivesse mostrado mais doce, mais amante, teria olvidado Francisco para amá-lo, para ser toda dele. Como é que podem produzir-se mal-entendidos entre pessoas unidas por laços tão fortes?"

"Requiescat in pace" - disse o padre.

Em paz, sim, Jerónimo de alma atormentada!

Mas o novo casamento de tua mulher não te arrebatará a paz? Ou julgarás duma forma diferente? Se os mortos pudessem falar! Na Bretanha, as pessoas acreditam que as almas dos mortos voltam. Enganam-se, senão a alma de Jerónimo voltaria para ao pé de Maria Violeta.

No adro da igreja, Maria Violeta beijou a sogra.

- Venham as duas tomar o café com leite lá em casa - propôs esta.

Susana recusou.

- Tenho de ir para casa, para abrir o correio de Miguel. Bem sabe que sou eu a secretária dele,

Joana Abran guardou silêncio um instante. Depois dirigiu-se expressamente à jovem:

- Miguel está satisfeito com a sua assistente? E ela agrada-te, Maria Violeta?

- Conheço-a muito pouco, mãe. O seu tipo e os seus modos desnorteiam-me um pouco. Mas Miguel diz que ela tem uma sólida bagagem de conhecimentos e aprecia o seu modo de trabalhar. Ela ajuda-o realmente e ele tinha precisão... Então, mama, vais-te embora sem mim?

Para descer a encosta, Joana deu o braço a Maria Violeta. "Que bom, apoiarmo-nos num braço jovem!" - disse ela.

Gostava muito da nora, que sempre conhecera e que achava encantadora. Porém, parecia-lhe que Margarida estava mais indicada para ser a mulher de Miguel. Pessoa simples, inquietava-se com os estudos filosóficos empreendidos por a pequena, E ela desejava tanto que nascesse um filho, o primeiro Abran da nova geração! visto que Hervé se obstinava em se manter solteirão.

Pelo caminho, Maria Violeta, que nunca se cansava de admirar a paisagem, ia reparando nas tonalidades cinzentas e róseas dessa manhã de Março, mas sem o comunicar àquela que se lhe apoiava no braço, que tinha o espírito repleto de sonhos e anseios pelos filhos: Ivone, apaixonada pelo auxílio a prestar à reabilitação das mulheres saídas da prisão; Joêlle, que, como o marido, trabalhava como secretária de um jurisconsulto; Maria Ângela, tão satisfeita, na sua herdade; Hervé, por mares longínquos; João Maria e Aliette, cujo espírito de independência dava tanto cuidado.

- Qualquer dia mandam Aliette embora do internato. Estou à espera disso. E o que havemos nós de fazer? Ela não faz caso de ninguém.

A casa sabia bem, depois daquela marcha pela manhã fria. A um canto do fogão, o café mantinha-se quente e cheirava bem. As duas mulheres - qualquer delas a Sr. a Abran - comeram na grande cozinha de cobres reluzentes, Foi mesmo Joana que pôs manteiga no pão de sua nora, que nunca tinha fome. Se bem que não aprovasse a idéia de ela voltar aos estudos - uma mulher casada tem muito mais que fazer "-, quis saber como eles iam. Mas Maria Violeta só em termos muito vagos podia responder; a sogra nunca abrira um livro de filosofia. "Alma pelo destino, não por livros feita", como a mãe de Lamartine. O avô Abran, que viera ouvir a conversa, declarou abertamente que havia muita mentira em tudo aquilo e que as preocupações do espírito feminino deviam ser a casa, o marido e os filhos.

Os filhos... Joana percebeu que aquelas palavras faziam mal à jovem. E, então, disse amàvelmente:

- Não esqueçamos, pai, que a Ivone e a Joelle também foram bem longe nos estudos. E, mesmo assim, ficaram bem femininas.

- É certo. Mas deixem-me preferir o gênero, da Maria Ângela, lá na sua quinta tão agradável, com o excelente rapaz que é o marido e o seu menino. E agora, a propósito de trabalhos de mulheres, diz-me lá o que pensas dessa famosa operadora. Na verdade dá-te prazer vê-la lá em casa? Agrada-te?

- Decerto que não - respondeu Maria Violeta, com uma vivacidade que surpreendeu os outros.

- Serei eu que não sou bastante moderna? Mas acho-lhe uns modos tão atrevidos, indiscretos... Parece que está em casa dela. Evidentemente, que para Miguel é agradável poder contar com uma pessoa ao facto daquilo tudo e capaz de tomar iniciativas. Mas...

- Vamos lá, minha filha. Explica-nos o que vai mal.

- Parece que, para ela, eu e a mama estamos a mais... E fala connosco como se fôssemos umas estúpidas... É isto o que eu sinto confusamente. Gostava que o avô a conhecesse, para me dar a sua opinião sobre ela. Pode ser que eu me engane. Não convivi nunca com raparigas.

- Eu não posso ir lá acima, a vossa casa, bem sabes. Manda-a tu cá, um dia, trazer-me um medicamento da parte de Miguel. Na sua bicicleta motorizada depressa cá chega. E tu, não pensaste ainda em montar num "cavalinho" daqueles?

- Oh! Nem Miguel queria! E eu tinha um medo terrível. Sabe que, depois do desastre de Margarida, nem de bicicleta eu era capaz de andar. É ridículo ter medo, não é? Mas a lembrança de minha irmã não me larga.

- Não te larga nunca? -perguntou o Sr. Abran lentamente, tirando os óculos para observar directamente aquele rosto juvenil.

- Nunca - respondeu Maria Violeta. - Nunca,

E a palavra, duas vezes pronunciada, caiu, pesada, entre eles.

Lá em cima, Mireille e a Sr. a Lê Fort tinham-se encontrado em frente da casa. Ouvindo o ruído do motor, Susana esperava já ver a jovem operadora. Mireille era muito graciosa, baixita, esbelta. O trajo desportivo modelava-lhe as formas. E o tom da pele avivado pelo ar livre, o olhar inteligente, o queixo voluntarioso, davam uma certa beleza àquela fisionomia, cujos traços, de resto, eram bastante vulgares.

- O doutor já se foi embora? - perguntou ela. - Trago-lhe as radiografias.

Quais radiografias? Susana não estava ao facto do que se passava. Todavia, como anteriormente tinha respondido ao telefone, lembrou-se de que se tratava de uma fractura complicada.

- E a radiografia é boa? - indagou ela.

O pobre homem não tem nada de gravidade, nada de maior?

Mireille fitou-a e a sua estatura baixa obrigou-a a levantar os olhos para encontrar os daquela formosa criatura que era a Sr. a Lê Fort, o que lhe tornou o olhar mais agudo e impertinente.

- Oh! minha senhora! Segredo profissional.

E entrou em casa com vivacidade e desdém. O doutor preparava-se para partir. Retirou-se com Mireille para o seu gabinete, examinou as radiografias rapidamente, deu algumas ordens e depois foi buscar o carro à garagem. com as mãos no volante, perguntou à sogra:

- Maria Violeta já terá ido para Rennes?

- Não. Tua mãe levou-a para almoçar no "Fetal". Não tens nenhuma recomendação a fazer-me a respeito dos doentes? Hoje não saio.

- Oh! está lá a menina Sicard. Felizmente a mãe já está livre de muitas maçadas. Agora pode tocar o tempo que lhe apetecer - acrescentou num tom um tanto zombeteiro. - A campainha do telefone não irá interromper os devaneios de Chopin, E Maria Violeta pode filosofar à vontade... Até logo, mama!

Susana ficou no limiar da porta até o carro desaparecer. Evidentemente, a sua presença não era já indispensável junto do médico... Mas junto da jovem dona de casa, perdida nas nuvens?

 

A passagem de Susana por Paris modificara qualquer coisa na vida de Margarida. Ficara um perfume no quarto, um perfume quente e persistente, muito diferente do perfume delicado, grato a Margarida. Havia, porém, muito mais do que o perfume: a recordação de todas as palavras trocadas, as notícias trazidas, as mil ocorrências da vida bretã, rudimente posta de lado e que, de novo, se desenrolava como num filme.

Sim, receber a mãe, ouvir falar das pessoas da terra, ouvir aquela voz, sensível, cheia de cambiantes, a pronunciar os nomes familiares em vez de os ver traçados em papel de carta, que tão poucas informações verdadeiras traz fora uma emoção profunda. Margarida admirava-se de passar e repassar pelo seu espírito, com tanto interesse, o que lhe fora contado a respeito de cada um.

"É esquisito, como eu os amo ainda, a todos. E como eu amo a Bretanha. Aqui sou uma estranha, sem laços que me liguem a ninguém, sem passado, sem casa. E, no entanto, não quero voltar para lá. Prendia-me e era à dor que eu me prenderia. Não quero sofrer. Quero a paz. E bem cara a tenho pago!"

Em seguida, porém, encolheu os ombros: "Pobre rapariga! a paz! É a isto, a esta revolta surda, que chamas paz?"

Com efeito, tinha reflectido em demasia para se lograr a si própria. Mas é duro julgarmo-nos sem ilusões aos vinte anos. E, apesar de tudo, ela tinha-as.

O parque Monceau mostrava-lhe todos os dias novos ramos em flor e ela perguntava a si mesma como é que aqueles troncos secos, negros e torcidos podiam rejuvenescer assim, enquanto que ela continuava... o quê? Velha, aos vinte anos! - seria preciso dizê-lo? Ressequida? Má? Mas está-lo-ia, de facto? Nesse caso, então, o que era aquele impulso de vida que subia das profundezas do seu ser, e aquela doçura, às vezes, que a enlouquecia? Seria a Primavera? Mas se ela já não tinha esperança...

Uma noite, ficou admirada de encontrar anémonas em cima da mesa. Mal escolhidas, porém, os tons vermelhos dumas chocavam com os tons violetas de outras. Sem dúvida uma atenção gentil da sua locatária. Estava a dispô-las numa jarra mas uma jarra dela, porque as da Sr. a Delarue, altas e complicadas de ornatos à 1900, tinham sido relegadas para um armário - quando bateram três pancadinhas na porta.

Apercebeu o topete grisalho e frisado e o nariz comprido da velha senhora. E ouviu-lhe a voz açucarada, que a irritava.

- Querida menina, como me ofereceram flores, quis repartir consigo. A gente precisa de flores, não é? Sobretudo quando a Primavera volta! - suspirou a velhota, que nunca se consolava. - Oh! não tem de que agradecer-me! Essas anémonas foram-me oferecidas pelo meu jovem amigo Estêvão Rollin, sabe? aquele cego da guerra, que a acha muito simpática.

"Há qualquer coisa por trás disto - pensou Margarida. - Realmente, a mama não me falou muito timidamente na possibilidade de eu me casar? E também disse: "A Sr. a Delarue interessa-se muito por ti... pelo teu futuro. Por isso, quando a vês, mostra-te um pouco mais gentil". Ora estas flores... "

A visitante prosseguiu:

- Decerto correspondo ao desejo do Sr. Rollin, dando-lhe o prazer de apreciar, também, essas flores.

Margarida enervou-se. Era impossível ter ilusões: a Sr. a Delarue acariciava projectos matrimoniais! Que aborrecidas são as velhas quando têm a mania de ser casamenteiras! Porque se metia esta em tal assunto?

- Ele ainda cá está. E nós dois ficaríamos muito satisfeitos em passar alguns momentos consigo. Ora tenha a bondade de chegar ao salão. Vai dar-nos o prazer de tomar uma chávena de chá. As pessoas do meu tempo não estão familiarizadas com aperitivos.

Margarida apresentou três ou quatro motivos para declinar o convite. Mas a sua hospedeira mostrou um ar tão humilhado, que ela não teve coragem de ser descortês. Resignou-se, pois, e pensou: "Sou estúpida. Rosa Teresa mandava-o logo passear com um sorriso tão bonito que ainda lhe chamavam encantadora".

No salão esperava-a um perfeito rapaz, mas de rosto apagado. Via-se que o fato que trazia não fora escolhido por ele, nem verificara se lhe assentava bem. Ergueu-se ao ouvir o passo ligeiramente hesitante da rapariga, que ele sabia que coxeava, e o bater amiudado dos saltos altos da Sr. a Delarue, que precedia o coxear. Não era preciso anunciar a menina Margarida Lê Fort. Os que não vêem, reconhecem as pessoas quando elas se aproximam. O facto de a jovem ter anuído em ir já lhe proporcionava muita satisfação. Apertou sem hesitar a mão que ela estendia ao mesmo tempo que dizia com bastante frieza:

- Obrigada por aquelas lindas flores que a Sr. Delarue teve a amabilidade de repartir comigo.

O ramo inteiro é que ele determinara oferecer-Lhe, mas a Sr. a Delarue, contente por poder ter flores sem desembolsar dinheiro, entendeu por bem partilhar essa homenagem. Que atitude' cheia de reticências tinha aquela rapariga! Uma orgulhosa e uma utopista... Imaginaria ela, assim desfigurada e deformada, vir a fazer um casamento normal? Por outro lado, para o espírito convencionalista da Sr. a Delarue, o ser mulher de um cego representava uma vida incontestàvelmente heróica, mas sempre doce e bela. Por alguns contos e romances que lera, pensava que ela própria, na sua mocidade, teria sentido orgulho e ventura em praticar

semelhante abnegação, embora ela não fosse positivamente abnegada e não pudesse desempenhar esse delicado papel sem sofrer e fazer sofrer. Teria a jovem Lê Fort as qualidades requeridas? Não lho perguntara. Na sua opinião, uma rapariga desfigurada devia considerar-se muito feliz por casar com um rapaz que não visse a sua desgraça.

Propositadamente, deixou Margarida servir o chá de Estêvão, temperá-lo, colocar-lhe a chávena o mais comodamente possível, guiar-lhe os gestos incertos. Na verdade, a jovem estava a sair-se muito bem; era bom sinal. Principiaram a conversar - uma conversa banal ao último ponto, porque a dona da casa era perfeitamente banal! Em breve Estêvão Rollin apresentou idéias mais pessoais, mas acanhadas e Margarida brilhou sem esforço, longe como estava da banalidade essa filha de Jerónimo Lê Fort.

Contentíssimo, o cego foi reunir-se a um amigo, que o aguardava em baixo, no seu automóvel. Esperava ter produzido boa impressão. Estava tão cansado da sua solidão e desejava tanto uma presença feminina! À noite, ao arrumar com exactidão cada peça do seu vestuário no sítio em que as suas mãos a encontrassem logo que as tacteasse, recordou a sonoridade harmoniosa daquela voz de mulher moça, uma voz em que, por momentos, se produziam umas quebrazinhas imperceptíveis; lembrou-se da suavidade daquela mão passando pela sua (seria a mão que lhe diziam estar mutilada?), do atrito macio da seda do seu vestido, do aroma fresco que se exalava dela a cada movimento, e das palavras que ela pronunciara e que revelavam a maturidade do seu espírito. Fez projectos. Afagou sonhos, como pode fazê-lo um homem daquela idade que não tem alegria. Ansiou pela alegria. Reviver! Acender-se uma luz no negrume da sua noite! Margarida - um lindo nome! Uma linda flor de Outono. Há-as de todas as cores. E pôs-se a imaginar a gama de cores dum jardim.

Voltou a casa da Sr. Delarue. Mas nunca lá encontrava Margarida. De propósito ela entrava mais tarde, demorava-se no parque Monceau, onde não se cansava de ouvir os melros jubilosos pela chegada da Primavera, Por fim, cansado dessas visitas enganosas, ele pediu-lhe expressamente para tornar a falar-lhe. Sozinha, Como negar-se? Mais valia desfazer o sonho do pobre homem antes de se agarrar mais a ele.

Ele pôs-se a falar depressa, com a garganta apertada: "Menina Margarida, pedi-lhe o favor de conversarmos a sós, porque tenho de apresentar-lhe um pedido. Talvez entreveja o motivo. Nós ambos já sofremos. À vida feriu-nos aos dois; não poderíamos unir os nossos destinos e ampararam-nos mutuamente? Tenho uma pensão de mutilado grave e ainda trabalho alguma coisa. A vida que lhe ofereço é austera, mas não é miserável. Para ela é preciso, sobretudo, abnegação, mas eu sei que a menina é boa, que se interessa com doçura e inteligência pelos doentes do Dr. Bernardo Laugier...

A voz do pobre rapaz tremia. Ela sentiu piedade por ele. Mas a piedade - que lhe enchia o rosto duma suavidade que ele não podia ver arrisca-se a levar a confusão ao sentido do dever. Jamais amaria Estêvão Rollin. E para aceitar a idéia do casamento, era preciso que ela amasse, o que era impossível naquele caso. Por isso respondeu:

- Sensibiliza-me muito o seu pedido. Mas não quero casar-me. Desfigurada, coxa... considero-me como um destroço.

- Sou-o eu muito mais.

- Não. A si só lhe falta a vista. O senhor ficou como era. Mas eu, não. Além disso, nunca poderei ter filhos.

- Não os desejo. Como posso educá-los?

- A minha vida foi esfarrapada. Estava em vésperas de casar e por me ver inutilizada recusei-me a casar com o rapaz que eu amava e vi-o casar-se com minha irmã. Nunca mais poderei esquecer este amor dos meus vinte anos!

- E porque há-de esquecê-lo? Respeitarei as suas recordações.

- Mas não sou daquelas que podem amar duas vezes...

- Não se ama da mesma maneira. Há a estima, a confiança, a amizade firme e terna.

Estima, confiança, amizade... No espírito de Margarida chocavam-se violentamente outras palavras, igualmente sedutoras: a dedicação, a vida com um companheiro... a satisfação de ser uma mulher casada, como as irmãs. Sim; mas não haveria amor. Jamais haveria amor. Paixão. A entrega total de si mesma. Ela, porém, falou docemente, como quem fala a uma criança - e, no entanto, aquele homem, de rosto apagado, era alto e forte, com os cabelos já a grisalhar.

- Não posso, meu pobre amigo, não posso! Tenho um coração muito exigente e um passado de amor emocionante de mais. Seríamos os dois infelizes. Tenho a certeza de que outra mulher saberá apreciar as suas qualidades e proporcionar-Lhe um lar. Não pense mais em mim. Ouça, sabe que me chamo Margarida, não é verdade?

- Oh! sei. Um nome muito bonito. Um nome de jardim... -murmurou ele, sonhando com um jardim, cujos canteiros jamais podia ver.

- As flores quebram-se. Na altura em que sucedeu a minha infelicidade, sei que me chamaram "margarida desfolhada". com flores desfolhadas não se fazem ramos.

Silêncio. Ela sofria, por fazê-lo sofrer, e admirava-se. "Então já não sou insensível?" De rosto crispado e mãos estendidas para a frente, essas mãos que nos cegos substituem os olhos, ele disse, por fim:

- Margarida... A menina é uma grande alma... fresca... tem uma voz de ouro. Não se considere destruída! A sua mocidade não morreu.

- Estou destruída, sim, no meu desgraçado corpo e na minha alma, ainda mais - o que é pior...

Novo silêncio. Foi ela que tornou a falar:

- Nada mais temos a dizer. Não procure mais tornar a... a encontrar-me.

- Ia a dizer "ver-me"...

- Perdãol Deixe-me continuar o meu caminho sozinha. Eu posso fazê-lo. O senhor não pode. Procure uma companhia que seja forte para ampará-lo e capaz de lhe dar alegria. Eu não a tenho para mim própria, - como poderia dá-la?

Ele ergueu-se, então, e inspirado por essa estranha intuição que aqueles que não vêem as coisas exteriores têm para as interiores, pronunciou pausadamente:

- Respeitarei a sua resolução. Mas permita-me que lhe diga o que sinto com uma intensidade que a mim próprio me espanta: tem, ainda, em si, felicidade para dar. A margarida tornará a florir.

- Oh! porque fala assim?

- Porque os cegos, às vezes, são videntes... Adeus, Margarida.

Ela acompanhou-o até à rua. Bem depressa um transeunte se ofereceu para guiar o homem da bengala branca por entre o caudal de veículos que, ao anoitecer, regressavam do centro de Paris para o lado ocidental. Seguiu-o com os olhos muito tempo; e subiu para o seu quarto perturbada, sofrendo por ter desfeito essa esperança, admirada por ainda saber sofrer por causa de outrem, trazendo consigo, como semente caída na terra, aquele aviso desconcertante, sobretudo por vir de um estranho à sua vida, ao seu meio, ao seu coração: "Tem, ainda, em si, felicidade para dar. A margarida tornará a florir".

Que idéia! Não diz um provérbio japonês que "a flor caída não volta para o ramo"?

Entrou no seu quarto, esse quarto a que se habituara, mas que naquela noite não lhe parecia capaz de lhe dar a impressão da "sua casa". Iria viver sempre assim, sob tecto alheio e com móveis alheios? Oh a "Casa de Cima", como os Abrans diziam, a casa da sua infância, destinada a tornar-se a "sua casa"! A casa que ela tanto prazer tivera em organizar, em renovar, durante o seu noivado, retirando-lhe tudo o que era velho e fora de moda... Lembrava-se das palavras alegres de Miguel, tão contente, também, por preparar uma habitação bonita. Eles os dois é que tinham escolhido tudo. E, agora, era outra a dona da casa. Maria Violeta era a "senhora do médico", como as pessoas diziam; chamava-se a Sr. a Abran e recebia visitas no salão Luís XVI... Mas, de facto, Maria Violeta, tão arisca, recebia visitas? Em todo o caso, Maria Violeta deitava-se no leito vasto, sob o edredão cor-de-rosa... Oh! Basta de evocações!

- Não continuo neste quarto - decidiu Margarida. - Quero ter o meu mundo. A Sr. a Delarue vigia-me, aborrece-me, e vai arranjar-me outros casamentos, decerto. Nunca mais terei liberdade e, já que não tenho mais nada, ao menos que tenha isso.

Preparou a ceia, irritada com a mesquinhez dos próprios gestos, com que ia do fogão eléctrico para a jardineira, onde o seu prato e o seu talher só dificilmente conseguiam caber. Lá em Plémeur... era a grande cozinha de cobres faiscantes, com a faiança bretã, as idas e vindas metódicas de Corentina e o cheiro apetecível que subia das panelas. E as refeições em família: o pai e a mãe, Rosa Teresa, Maria Violeta... Todo um mundo desaparecido; a mãe queria ir para outro sítio, Rosa Teresa tinha ido com o marido, o pai estava morto, e Maria Violeta...

- Ó Mariazinha Violeta... doce, simples, inocente e bonita... Como eu gostaria de amar-te sem pensamentos reservados, e ver-te feliz com um marido que não fosse Miguel! Mas é com Miguel... E nem sei mesmo se és feliz.

Três pancadas na porta: ela outra vez A cabeça grisalha avançou: "Aqui tem o seu jornal da Bretanha". Aquele jornal chegava todos os dias de manhã e Margarida encontrava-o em cima da mesa. com certeza que a Sr. a Delarue o guardara, para ter pretexto para entrar e saber assim o que se passara entre Margarida Lê Fort e Estêvão Rollin.

"O melhor é dizer-lho já" - pensou Margarida. - Minha senhora - começou ela - na sua ausência recebi a visita do Sr. Rollin. Certamente sabe do que se trata. Pediu-me que casasse com ele.

- Ah permita-me que a felicite, minha filha!

- Não vale a pena. Declinei o pedido. Separámo-nos em excelentes condições. Mas a minha resolução é irrevogável. Ele compreendeu muito bem. E agradeço-lhe muito que não me fale mais nisso.

- Ah! que egoísta é a mocidade actual! exclamou a dama. - Há-de vir a arrepender-se, decerto, de se ter recusado a unir a sua sorte à de um rapaz como aquele. Boa-noite, menina.

- Já não me chamou "minha filha" - reparou Margarida. - E lá me levou o jornal da Bretanha debaixo do braço.

 

O domingo era alegre em casa dos Abrans. A mãe desejara sempre que o domingo fosse um dia de satisfação, apesar das preocupações e desgostos, que abundavam depois da morte do pai. Os seis filhos mais velhos já os educara todos, sozinha, consentindo e ajudando as suas vocações; Miguel, o mais velho de todos, quisera estabelecer-se em África, como médico; Hervé era oficial da marinha; Ivone era assistente social; Joélle estudara direito e as despesas com os estudos tinham sido muitas. Esperara pelo casamento feliz de Maria Ângela, boa dona de casa, pouco dada a estudos. Os três últimos, via-os crescer em condições difíceis. João Maria e Aliette, tão independentes em casa e tão fantasistas na escola, e o pequeno Gildas, de saúde tão frágil. Administrar as propriedades nestes duros anos do após-guerra, fora um fardo pesado nos seus ombros. É certo que o bom-senso do sogro a ajudara muito, mas ele já tinha idade e os filhos não tinham a sua vida organizada.

Todavia, desta mulher, acabrunhada de responsabilidades e deveres, desprendia-se uma irradiação de simpatia. No âmago do seu ser, ela era só paz. E o velho Sr. Abran queria muito à nora: "Não há muitas como ela".

João Maria, o "Coração Selvagem" e Aliette, o "Saguim", como lhes chamavam, estavam em colégios internos, em Rennes, mas passavam os domingos todos no "Fetal". João Maria só lá, em casa da família, é que se sentia bem, no meio dos campos e dos prados pertencentes aos Abrans. Tinha a paixão da terra e o que fazia no colégio era apenas levado pela ambição de, mais tarde, poder administrar melhor o patrimônio. Sua irmã Ivone explicara-lhe bem isso: "Olha, meu filho, quanto mais valor humano tu adquirires, mais tu o darás à terra". Houvera, porém, um momento bem duro, na altura em que o grande egoísta do Miguel quisera estabelecer-se em África e pedira dinheiro à mãe, uma grande porção de dinheiro, que a obrigava a vender terras. No fundo do seu coração de adolescente - um verdadeiro coração selvagem - João nunca perdoara verdadeiramente a Miguel. Ficara lá qualquer coisa... Qualquer coisa que se manifestava de tempos a tempos numa palavra violenta, numa observação fustigante. E Aliette, sua inseparável, dizia-lhe:

- Anda lá, bretão cabeçudo! Não esqueces nada. Mas essa história da África e do consultório médico para montar e do casamento com a tal Cristiana toda chique, já lá vai. Deixou-se ficar cá em Plémeur, encontrou clientela já feita... e uma esposa.

- Pois sim, já lá vai. Mas a verdade é que ele fez o pedido, sem querer saber de nós todos.

- Olha, meu velho, se fôssemos a tomar conta de tudo e a ter raiva às pessoas, dávamos em malucos.

- Tu não compreendes nada. As mulheres não têm "miolo".

- Talvez eu tenha mais do que tu. Não o gasto é com pensamentos desses, velhos e estafados.

- Então no que é que pensas?

- No futuro! - atirou ela, radiante.

Ele esteve quase para admirar aquela rapariga. Um sábado, porém, chegou resmungão, mal disposto.

- Tu não tens a cara do costume, João notou logo a mãe. - Dói-te alguma coisa?

Disse que não. Não queria estar doente. Não o deixariam correr pelo campo. Mas Aliette via tudo e desde a partida de Rennes que reparara na indisposição do irmão. E não levou muito tempo para conseguir que ele confessasse que a garganta "lhe ardia como fogo",

- Agora vais dizer à mama?

- Estás doido! O que nós dizemos um ao outro não se conta a ninguém. Não te esqueças do que combinámos, do nosso pacto solene feito na gruta, à beira do Vilaine.

- Não. Picámos o braço com um alfinete e assinámos com o nosso sangue. Para sempre.

- O pior é se tu estás doente a valer. E se morresses sem ninguém te tratar, era horrível.

- Também, não se morre assim, medricas Mas como a voz lhe desapareceu, não pôde dissimular por muito tempo a doença da garganta. A Sr. a Abran declarou-lhe:

- Vais meter-te na cama, cachopo, e Miguel há-de vir cá ver-te.

Raiva. Desespero. João Maria tem mesmo a certeza de que Miguel vai atrapalhar-lhe tudo e proibi-lo de sair, a falar-lhe num tom autoritário, que o rapaz, todo independente, não pode supor-; tar. De Hervé, o irmão marinheiro, aceitava tudo: ordens, repreensões, sopapos, Mas aquele, que quisera retalhar o patrimônio dos Abrans, parecia-lhe que perdera o direito de dar ordens, João Maria negou-se a ir para a cama e foi agachar-se ao pé do fogo, onde o avô o observava, perguntando a si mesmo o que haveria naquele bestunto de pequeno bretão. Afastaram Gildas, para quem era de temer todo o contágio, E Aliette? Nem valia a pena. Eram inseparáveis e já tinham estado bem perto um do outro, na sua irreprimível cavaqueira. Mas foi Aliette que montou numa bicicleta e foi lá acima dar o alarme ao irmão médico.

Maria Violeta, muito linda no seu mimoso roupão branco, é que a recebeu. Estava a preparar fatias de pão para Miguel, cobrindo-os com uma espessa camada de manteiga, conforme o costume bretão.

- Estrago-o com mimos? Não. Ele é que está sempre com tanta pressa, que engole qualquer coisa. Ele já desce, para almoçar, e tu depois lhe explicas o que sente o João... Sim, vamos os dois à missa cantada.

- Eu vou também. Acho aquilo muito grande. Tu preferes a primeira missa, não é verdade?

- Prefiro, sim, mas não por causa do tempo que leva: é bonito, o desenrolar da liturgia. Mas na missa grande, há muita gente. É preciso ir-se endomingado. As pessoas olham umas para as outras. E à saída há as conversas, que me aborrecem.

- Rosa Teresa gostava tanto dessas reuniões no largo! Lembras-te? E a tua mama também gostava.

- A mama é muito sociável. Interessa-se pelas histórias que se contam. Eu não.

- Tu preferes os teus alfarrábios. Diz lá, isso da filosofia é engraçado? Eu ainda não sei se escolherei isso ou as matemáticas. Mas aí está Miguel. Bom-dia, velhinho!

- "Saguim"? Que vens tu cá fazer a esta hora? É o avô que está doente?

- Não. É o João. Está muito doente da garganta, tão doente que não pode dizer uma palavra.

- É da maneira que ele está calado! Que temperatura tem ele?

- Naturalmente julgas que ele deixava tirar a temperatura! Aquele garoto não faz caso de ninguém!

- E tu, de quem fazes caso? De ninguém? não é?... Olha, Maria Violeta, as tuas fatias estão excelentes, mas não tenho tempo de saborear tudo isto. Ter de ir lá abaixo ao "Fetal", transtorna-me os planos todos. Vai sozinha para a missa, que eu lá vou ter quando puder. Tenho doentes graves a visitar.

- Mas vais lá? Que vestido é que eu hei-de vestir?

Ele sorriu-lhe, gentil e zombeteiro.

- Veste o verde. Que docilidade! Tenho a certeza de que a Aliette não pede a opinião de quem. quer que seja para despendurar um vestido doarmário.

- Mas eu não tenho marido. Acho que todas gostam de que o marido tenha orgulho em mostrar a esposa. Se não fosse isso, não valia a pena casar. Era o mesmo que ficar solteira, como a Ivone, e vestir-se...

- Sempre com uma saia azul-marinho e uma blusa branca... -disseram a uma só voz o irmão e a irmã, recordando o interminável motivo de gracejos com que serrazinavam Ivone, sempre vestida da mesma maneira.

Aliette pedalou depressa pela ladeira abaixo.

- Miguel vem daqui a bocado! - anunciou ela,

- Que estopada! - resmungou João Maria. Esse "figurão" que não me enfastie com os seus ares importantes!

- Basta! - ordenou o avô secamente. - É um bom médico e o filho mais velho da família.

O Sr, Àbran inquietava-se com aquela persistente animosidade do garoto contra o irmão.

Miguel entrou, bonito, bem vestido, de cabelos já a grisalhar. Deitou um olhar penetrante ao João" Maria.

- Para a cama, sem demora, - ordenou ele. Enquanto a mãe levava para a cama o doente recalcitrante, Miguel fez algumas perguntas ao avô acerca do seu estado de saúde. Como o rosto dele era inteligente e bom, no exercício das suas funções! Inspirava, por isso, uma doce confiança ao ancião, cheio de prudência e bom senso, confiança que diminuía muito quando Miguel falava e agia como simples homem. Porque o homem não lhe parecia à altura do médico.

- Já podes vir - disse Joana. - Queres que fique ou que os deixe ambos sós?

- Só nós dois. Prefiro isso.

João Maria viu-o aproximar-se com um olhar desconfiado.

"Do que ele pode estar certo é que não lhe digo nada. Primeiro, não estou doente. E depois, irrita-me. "

Miguel, por sua vez, suspeitava das intenções do moço cabeçudo. Junto dos doentes tinha o dom de adivinhar-lhes os pensamentos secretos. E, em seguida, sabia obter o que queria. E conduziu tudo com tal habilidade, que o rapazito esqueceu os seus velhos rancores, deixou-se examinar, palpar, interrogar, confessou as estúpidas imprudências que fizera e que lhe tinham valido o mal na garganta e acabou por rir, num riso sem timbre. E a mão de Miguel, que em tempos passados lhe atirara mais de um sopapo, pareceu-lhe uma coisa maravilhosa: maleável, suave, calmante. Uma mão que dava vontade de agarrar e dizer: - Cura-me!

- Estou muito doente? - perguntou ele.

- Não. Não há nada de cuidado.

- E deixas-me na cama. Então hoje não posso passear?

- Nem amanhã, nem nos dias seguintes. Nem podes ir para o colégio; tens de ficar em casa.

- Oh! e na sexta-feira há lição de matemática, Miguel!

- Bravo! é bonito, esse cuidado com as lições! Então isso agora vai bem?

- Vai, sim - fez ele com a cabeça,

- Muito bem! Vamos tratar de pôr-te em termos até sexta-feira. O que é preciso é teres juízo. Amanhã volto cá. Não deixes Gigi entrar no quarto. Creio que é inútil proibir Aliette de entrar: não faz caso de nada. Além disso, o que tens não é contagioso.

- Então o que é que eu tenho? Queria saber.

- É uma laringite de todo o tamanho. Não é grave, quando a gente se trata. Não vais arreliar a mama? Prometes?

- Prometo.

Os dois irmãos separaram-se contentes um com o outro. E Joana ficou radiante quando soube que o mal era benigno:

- Estava com medo da difteria.

O avô também ficou contente, mas de outra maneira - ao descobrir no rosto de Miguel a suavidade da irradiação curativa.

Aliette, evidentemente, não deixou que lhe proibissem a entrada no quarto.

- Miguel permitiu-me a entrada. De resto, eu nunca apanho as doenças. Além disso, o pobre "Coração Selvagem" havia de aborrecer-se muito.

Para dizer a verdade, o rapaz dormiu muito e a petulante Aliette declarou que "dormir assim era idiota. Aquilo embrutecia".

Pela tarde, o doente sentou-se na cama; e, por um desses caprichos, próprios das laringites, a voz voltou-lhe. Por isso os dois irmãos tagarelaram. Tinham sempre tanto que dizer um ao outro.

- Foi amável, o Miguel? - inquiriu Aliette.

- Muito. Quando a gente está doente, nem se reconhece.

- Porquê? Como nunca estive doente, nunca fui tratada por ele. Explica lá.

- É isto. É costume ele ter uma porção de defeitos.

- E tu também, confessa!

- De acordo. Mas os meus são defeitos de garoto, que ainda não entraram na pele, enquanto que ele tem defeitos de homem. É egoísta, vaidoso, um pouco pretensioso.

- És um maldizente!

- Entre nós dois não há maledicência. E olha, acho que este nosso irmão tem muita sorte.

- É verdade... Caiu-lhe tudo do céu: um consultório médico completamente instalado, clientela feita, as descobertas do Dr. Lê Fort e uma mulher pasmosa. Tens razão, ainda não tinha pensado nisso: tudo lhe tem corrido bem.

Ficaram a divagar. Os pensamentos cavalgam rápidos no espírito dos adolescentes, sucedendo-se uns aos outros.

- Falta-lhes uma coisa - murmurou um. Não têm filhos. E ele queria muitos.

- Disseste que ele tem "uma mulher pasmosa".

- Sim, a mais bonita das Lê Forts, na opinião de Joêlle, que percebe disso. E a Ivone diz que é a melhor.

- Mas tu achas que eles sejam felizes? Verdadeiramente felizes?l

- Olha, tu tens a mesma idéia que eu. Há ali qualquer coisa que não vai bem. O quê? Isso é que eu não sei. Naturalmente é preciso a gente ter mais idade para compreender. Lá no internato falam-nos muitas vezes do casamento, e eu chego à conclusão de que a coisa nem sempre é agradável. O amor, a lua-de-mel, a felicidade conjugal... gente vê essas palavras lá nos livros. E vivê-las?

- Ouve, Joêlle é feliz. Maria Ângela também.

- Têm o ar de ser felizes, meu velho...

- Em todo o caso, tenho a certeza de que Maria Ângela é feliz.

- Porque é uma boa rapariga, muito simples. Mas Maria Violeta... Serás capaz de imaginar todas as complicações que se enrodilham nela? No fundo, ninguém a conhece. E o marido, naturalmente, também não sabe mais que nós. Por isso...

Por isso... a voz enrouqueceu-se de novo. E a tagarela, um pouco atrapalhada por ter feito o irmão falar tanto, deu-lhe leite a beber e desceu para "dar novidades à família". A mãe e o avô mostraram-se muito aborrecidos por acharem que se demorara de mais no quarto do doente.

"Agora vai tomar ar!" Mas, justamente, ela não tinha a mínima vontade de o fazer e a menina Aliette só fazia o que lhe apetecia. Houve discussão, rabugice e ordem formal de sair com o irmão mais novo. E lá foi, revoltada.

- Andas muito depressa - gemeu Gildas. As tuas pernas são maiores do que as minhas.

Ela sentiu pena. Além disso, depressa mudava de disposição de espírito. Pegou na mãozita do pequeno, enluvada de lã.

- Pobre Gigi! Conta-me lá coisas. As tuas coisas lá na escola vão bem? Queres ir para o colégio, como o João Maria?

- Não. Não quero deixar a mama.

- Não quero deixar a mama... -repetiu ela, no mesmo tom.

Depois lembrou-se de que ele se melindrava facilmente e calou-se.

- Mas tu não hás-de ficar toda a vida ao pé da mama. Já não hás-de estar muito mais tempo na escola; e se não continuares a estudar, para que serves tu?

Os olhos da criança tiveram um olhar lindo,

- A mama... mais tarde há-de ir para a minha casa.

- Se a tua mulher quiser.

- Eu não hei-de ter mulher.

- Olha, se calhar queres ficar solteirão como Hervé? Dois na família, é muito. Comigo é que não há o perigo de eu ficar solteirona. Já chega a Ivone. Sempre tens umas idéias muito patuscas, Gigi...

O pequeno guardava nele o seu segredo, o grande segredo partilhado com a mãe: o sacerdócio; a vida de padre da província, com a mãe no governo da casa, a participar de todas as suas obras. Mas os outros não tinham precisão de saber. Nenhum dos outros. Podiam dizer-lhe: "Tu não tens saúde para isso... nunca saberás bastante latim... Tolices, visto que Deus o queria.

O ar sabia a Primavera. As crianças pararam e colheram violetas, - para a mama.

Não foi, porém, à mãe que as deram, Duas senhoras, com casacos de pele, avançavam pela estrada.

- A Sr. a Lê Fort e Maria Violeta. Que bonitas que vêm!

Correram ao encontro delas. A filha apoiava-se ao braço da mãe. A mãe era bonita e a filha encantadora.

- Como vai o João esta tarde?

- Está melhor. Mas o Miguel amarrou-o à cama e eu tenho de voltar sozinha para Rennes. É aborrecido. Olha, Maria Violeta, achámos violetas; são as primeiras. Queres?

- Quero, sim! - exclamou a jovem, com os olhos claros cheios de luz. - A Primavera, já... Que bem que cheiram!

- Acho-as parecidas contigo - disse Gildas. Um sorriso encantador iluminou o rosto juvenil e pensativo.

- Parece-te isso, por eu ter o nome delas. Olhem, venham a nossa casa lanchar connosco, se a mãe não fica inquieta.

- Ela mandou-nos estar bastante tempo fora de casa, para o João ter sossego. Tu, Gildas, não estás cansado? Tens vontade de ir à "Casa de Cima"?

Gildas tinha por Maria Violeta uma espécie de culto. Em comparação com as irmãs, Ivone, Joêlle, Maria Ângela e Aliette, de personalidade viva e ruidosa, Maria Violeta parecia-lhe duma essência toda delicadeza. E achava-a mais bonita do que tudo no mundo. Nos seus devaneios de criança piedosa, chegava à conclusão de que a Virgem Santa devia parecer-se com Maria Violeta. Que feliz era Miguel por ter uma mulher assim. É que ele ainda não adivinhara, como Aliette e João, a incerteza dessa felicidade.

A "Casa de Cima"! Elegante, confortável, muito diferente da dos Abrans, que ficara sempre à antiga. Por toda a parte havia um calor suave; os móveis eram de estilo; e cheirava bem. Menos quando se aproximavam das instalações clínicas, de onde se exalava o cheiro inevitável dos desinfectantes.

Aliette, então, considerava a Sr. Lê Fort mais bonita que Maria Violeta e pressentia nela a verdadeira dona da casa. E tal observação inspirava-Lhe um secreto desdém por aquela jovem esposa incapaz de dirigir a sua própria casa.

Notou, também, que nunca a Sr. a Lê Fort apresentara um tal aspecto de graça e plenitude: "Remoçou, que engraçado Só a mama tem já um ar de velha... "

Assim as duas crianças contemplavam mãe e filha, com a ingênua admiração que cada uma delas lhes inspirava, e Susana e Maria Violeta sentiam-no, secretamente lisonjeadas, e tudo faziam para amimá-los, ao irmão e à irmã de Miguel.

Este chegou como um pé-de-vento, deu um beijo à pressa na testa da mulher, inquiriu do estado de João Maria e falou com a sogra das visitas que tinha a fazer, do correio que havia de seguir no dia imediato e das ordens a dar à sua assistente, se ele partisse antes de ela chegar.

Aliette estava estupefacta. Porque não fazia ele aquelas recomendações à mulher? Maria Violeta seria, então, uma "papa-açorda"? Naturalmente entregava-se toda aos seus estudos de filosofia. Que estupidez! Era melhor que ela tratasse dos assuntos de Miguel. Os seus olhos vivos iam de Miguel para Susana e Maria Violeta e o médico sentiu-se incomodado,

- Estás mais saguim do que nunca. Que olhos! Estás a olhar para nós três como se não nos tivesses visto nunca.

- Nunca se olha bastante para as pessoas replicou Aliette, procurando palavras que eram maiores do que ela, maiores do que a sua experiência humana, a correr ao encontro dum pensamento ainda hesitante. - A gente julga conhecer as pessoas e depois é que vê que não as conhece em nada.

Maria Violeta, com os cotovelos apoiados na mesa, ouvia, admirada. Onde iria Aliette buscar aquelas idéias? Miguel, porém, encolheu os ombros. Não compreendia as raparigas daquela idade e a irmã irritava-o. Tirou um bolo e foi-se embora; aparecera apenas.

- É sempre assim - disse Maria Violeta às crianças. - Entra e sai.

Foi com tristeza que ela pronunciou estas palavras.

 

SIM, era sempre a mesma coisa. Maria Violeta evocava inúmeras recordações da vida de seus pais e verificava o mesmo: "Também eles, o papá e a mama, apenas se viam. As mulheres dos médicos têm de resignar-se todas a estarem sós a maior parte das vezes. E Miguel mostra-se muito afável nos momentos em que está em casa".

Maria Violeta repetia com obstinação esta fórmula: "Miguel mostra-se muito afável. Sim, muito afável. Mas era um marido "muito afável" que o seu coração, que ignorava os meios termos, desejava, ou um marido que fosse verdadeiramente marido, companheiro com quem tudo se partilha, um homem apaixonado, ardente, confiante?"

Apaixonado Miguel tinha-o sido alguma vez? Ardente, confiante? Ela não sabia como se comporta um homem ardente, confiante. E por isso ignorava a vida. Ele dizia: "Minha filha... Mariazinha Violeta". Entretinha-se a levantar-lhe os cabelos, como se brincasse com uma criança. E nunca lhe contava nada, nunca.

Às vezes perguntava-lhe qualquer coisa. E ele encerrava-se por detrás da lei do segredo profissional, que ela, filha de médico, sabia ser sagrada - e calava-se. Ou então, encolhendo os ombros, Miguel respondia-lhe, sempre "afàvelmente": "Não compreendes nada disso".

Era, pois, assim tão nula? Não obstante, no curso de filosofia discutiam-se assuntos elevados e difíceis e era sem esforço que ela seguia os raciocínios do professor, ultrapassando por vezes, mesmo, as suas conclusões. Não lhe parecia mais complicado compartilhar as preocupações de um médico. Se ele a iniciasse um pouco, depressa ela se adaptaria, tornando-se, assim, verdadeiramente a sua mulher, em vez de continuar a ser a "sua filhinha". Outrora, ser a "filhinha" de seu pai era uma alegria normal, profunda, doce. Mas ser a "filhinha" de seu marido? Era uma humilhação, um desgosto. E a mãe não suspeitava do seu sofrinento. Sua mãe... o que a trazia assim absorvida? Porquê aquela luz nova no seu rosto, aquela tonalidade de renovada frescura? Junto dela de bom grado Maria Violeta tomaria a atitude duma criança que se deixa guiar e amimar, sem nada dizer. Susana era a sogra e ela não ousava falar-Lhe do genro: o seu orgulho de esposa embargava-lhe as confidências. Antes lhe apetecia murmurar "mama!" de certa maneira e deixar repousar um pouco a cabeça num daqueles ombros bem contornados e macios, num abandono que a consolava...

"Mas consolava-te de quê, pobre louca? – dizia ela, então. - Tens tudo o que pode desejar-se. Pensa em Margarida, que te vendeu a sua felicidade em troca do descanso eterno do papá. Margarida já nada tem. Que daria ela para estar no teu lugar? Sem dúvida... mas se Margarida se encontrasse neste lugar, tudo se passaria de outro modo. Ela estava à sua altura e ele queria-lhe com amor. E se tu não chegares a fazer com que ele te tenha amor, ele buscará esse amor noutro lado. Os homens precisam muito de amor. E eu não me atrevo, não sei... Minha irmã está sempre entre mim e Miguel. "

Todavia, ela era linda, a jovem Maria Violeta. Mas Miguel, por demais acostumado à sua graça encantadora, já não dava atenção a esse encanto. Era, também, inteligente: os professores admiravam-se de encontrar esse dom da filosofia num espírito tão jovem. Mas, para Miguel, a filosofia não passava de um palavrório inútil. Concordara em que ela a estudasse com a mesma indulgência um pouco zombeteira com que teria visto uma brincadeira de crianças. Para ele, entre aquilo e um castelo de areia não havia diferença alguma. À noite, costumava perguntar, para ser "gentil": "Então? Para que regiões nebulosas te arrastou hoje o grande professor?" E nem mesmo ouvia as suas explicações que, recalcadas, se tornavam cada vez mais confusas, breves, tolas, enfim: "Ela não compreende nada daquilo" - pensava ele, sem o dizer, mas a sorrir, com um sorriso que exasperava. E ela fugia de casa e ia cada vez mais a Rennes, enquanto a mãe, perplexa, perguntava a si mesmo: "Se ela está sempre fora de casa, quem me substituirá, no caso de eu tornar a casar-me?"

Quem? Mireille, a operadora.

Porque Mireille, inteligente, competente, desembaraçada, soubera tornar-se indispensável. De resto, sem pensamento reservado; conhecia a sua profissão, gostava dela e trabalhar com Miguel era particularmente interessante e proveitoso para essa rapariga. Ao ir para Plémeur, julgara ir fazer um estágio passageiro junto de um modesto médico de província; depressa, porém, compreendera o valor dele. E de simples assistente transformou-se em colaboradora intuitiva, inspirando iniciativas, sugerindo aperfeiçoamentos. Miguel sentia-se compreendido, amparado. Ela não tinha nunca um atraso, um esquecimento, um engano. Punha no exercício das suas funções uma consciência profissional sem quebras. Ele, por sua vez, achava maravilhoso poder entregar-lhe inúmeras preocupações, dessas preocupações que embaraçam a vida dos médicos, E era-lhe agradável ver um rosto jovem e inteligente.

"E pensar que Ivone queria mandar-me uma assistente de cinqüenta anos. Nem pensar nisso. Para trabalhar é preciso estarmos com pessoas da mesma idade e avançarmos juntos."

Todas as manhãs, pontualmente, fosse qual fosse o tempo que estivesse, a lourinha chegava na sua bicicleta motorizada. E todas as tardes voltava para Rennes. Certa tarde de temporal, Susana disse que era desumano deixá-la meter-se, assim, à estrada. "O melhor é ela jantar conosco, não é verdade, Maria Violeta?" À mesa, a rapariga mostrou-se brilhante, com espírito, enquanto que a jovem dona da casa se calava e se apagava. Quando, à noite, passada a borrasca, Mireille partiu, ia pensando:

"Como é que este rapaz pôde casar com uma rapariga tão insignificante? É verdade que eu conheço a história: tratava-se de segurar a clientela de Lê Fort e a filha mais velha é que primeiro esteve noiva de Abran. Depois foi esse estúpido desastre que a inutilizou e a fez feia e ele deixou-a para casar com a mais nova. Não ganhou nada com a troca. Esta não é feia, mas é magra e de aspecto triste e a mais velha parece que era formosa. Não sabe dizer três palavras. Um casamento de conveniência; não é um casamento feliz. É pena, que ele merecia coisa melhor. E parece-me que esta garota é incapaz de apreciar-lhe o valor. Mas, vamos lá, que eu tenho mais que fazer do que ocupar-me com a vida conjugal do meu patrão... "

Assim, quanto mais tempo se passava, mais Susana e Maria Violeta se emparedavam no seu silêncio. A mãe não se atrevia a falar de Francisco de Kermadec à filha, e esta não queria falar de Miguel à mãe. E Miguel, persuadido de que a "pequena" se sentia perfeitamente feliz - era tão cômodo crê-lo! - consolava-se da insuficiência da sua própria felicidade entregando-se cada vez mais às apaixonantes investigações científicas principiadas com o Dr. Lê Fort. Mireille dava a essas investigações um auxílio eficaz, ao passo que a sogra o aliviava da parte administrativa.

E Maria Violeta, aos olhos de todos, continuava a ser uma criança, sem que nem a mãe, nem o marido, se apercebessem de que nessa criança havia uma mulher encerrada. Uma mulher que, com todo o seu ser apaixonado, desabrochava para a plenitude do amor.

Na Faculdade tomavam-na por uma rapariga solteira por causa da sua aparência juvenil e porque poucas mulheres casadas freqüentavam esses cursos com assiduidade. Ninguém ousava falar-lhe parecia extremamente reservada, não se metia nas conversas dos outros e só com um sorriso ou palavras breves respondia às tentativas que rapazes e raparigas faziam para meterem conversa. Bem depressa a classificaram: "Uma original"... um "bicho do mato"...

No entanto, fora atentamente observada já por Martinho Brunoy, um dos professores, espantado pela maturidade do espírito dessa aluna tão nova. Sabia que era casada, sabia o seu nome, conhecia a sua situação e pensava: "Não é feliz no lar. Senão, por que razão uma jovem rica, bem casada, se entregaria tão assiduamente a estudos austeros? Onde é que isto a levará? Nunca terá precisão de ganhar a vida. E parece-me que o marido não deve estar muito satisfeito por ela vir a Rennes tantas vezes. "

Mas ele não era o único a reparar na graça e na melancolia da juvenil estudante. Um companheiro de estudos, Rémy Portei, achava-a extraordinariamente sedutora. Uma rapariga com quem seria agradável sair, conversar, dançar. Devia 134

dançar admiràvelmente bem, flexível como era, os próprios passos tinham a cadência e a harmonia de um bailado. O facto de não se vestir como toda a gente emprestava-lhe um realce espantoso, dava-Lhe uma distinção de raça que a fazia sobressair no meio das outras, mortas por seguir a moda. "Gostava de me relacionar com ela. Mas como é que hei-de aproximar-me? Tem aquele arzinho altivo... "

Um dia leu o nome dela numa cópia: Maria Violeta Abran. Era filho de um funcionário do Estado, mas de outra região, e ignorava tudo a respeito dos Abrans. Fixou, sobretudo, o nome de Maria Violeta, que se adaptava perfeitamente à encantadora estudante. Arranjou maneira de ficar ao pé dela e pediu um esclarecimento; outro dia, a caneta dela não tinha tinta e ele emprestou-lhe a sua. Seguiu-a de longe e soube que ia sempre no comboio, para uma estação perto. Era cada vez mais misteriosa, aquela Maria Violeta; reparara que num dos seus dedos finíssimos, o quarto, trazia uma aliança de casamento. Pensou muito no caso, Era casada, sem dúvida, mas tinha a liberdade de ir e vir e de fazer o que queria. Seduzia-o a idéia de travar relações com uma rapariga que saísse da banalidade e que o desviasse das ligações breves e falazes costumadas num rapaz de moral tíbia, como ele. Era nas suas idéias, principalmente, que essa tibieza ressaltava. Para ele não havia distinção entre o bem e o mal. Satisfazer os seus desejos, viver intensamente, ignorando sempre onde a verdade se encontra - eis no que consistia a sua filosofia pessoal, que não podia levá-lo mais adiante. Não obstante, havia procurado - mas procurara sem pôr o egoísmo de parte. E aquela deliciosa Maria Violeta atraía, talvez, o que nele havia de melhor. Se ela quisesse, que relações agradáveis podiam terl Mas iria, ela mesma, ensarilhar-se com escrúpulos vãos? Em todo o caso, ela parecia triste; ele a faria expandir-se.

Maria Violeta não lhe dava a menor atenção, o que o humilhava. Todavia ele julgava-se capaz de agradar. Como verdadeira estudante, porém, ela deixava-se levar apaixonadamente pelas aulas Bebia as palavras dos professores e tudo absorvia, avidamente. Que reacção podiam produzir certas teorias naquela mocidade? Algumas eram bastante rígidas e demolidoras de muitas crenças. Teria argumentos para opor-lhes? "Não a julgo apetrechada com uma bagagem religiosa muito sólida. A simples fé bretã, decerto mais tradicional que reflectida".

Entretanto, o professor Martinho Brunoy sobressaltava-se. "No seu conjunto, o nosso ensino pode perturbar um espírito moço. Se lhe tiram a fé, como reagirá ela contra a melancolia que transparece nos seus olhos? É o vácuo; ficará no vácuo. E anda aí um camarada a rondá-la, bastante atrevido. Mas o marido será um ingênuo ou um indiferente, para deixar uma mulher tão nova, tão bonita, e tão inexperiente, passar a maior parte do tempo fora de casa? Que faz ela entre as aulas certos dias? Onde vai?" Martinho Brunoy sentia pesar sobre a Faculdade uma verdadeira responsabilidade a propósito dessa graciosa criaturinha que se chamava a Sr. a Abran.

Por felicidade havia Ivone. Maria Violeta ia muitas vezes reunir-se com a cunhada no "Lar" das Assistentes Sociais ou num "Lar" feminino. E a sensata Ivone, com uma palavra simples e directa, sabia reconduzir à verdade o espírito perturbado de Maria Violeta. Discutiam as duas. Ivone admirava-se de certas teorias e, não tendo argumentos bastante fortes para mostrar o caracter falso dessas teorias, lamentava-se, desolada: "Se eu fosse mais culta, mais eloqüente!"

Mal sabia ela que, ainda que nada dissesse, só a sua presença tudo iluminava, só por si, ela restabelecia em torno de Maria Violeta o ambiente que rodeara a infância de ambas. A pequena, porém, não confiava a Ivone mais do que confiara à mãe a respeito das suas decepções conjugais: "Dessas não se fala. Mesmo, amo muito Miguel".

Entretanto Ivone foi chamada a Paris para um congresso de assistentes sociais.

- Podias vir comigo - propôs ela. - Ias ver tua irmã.

Maria Violeta hesitou:

- Gostava de ver Margarida, é certo. Não a vejo desde que ela partiu... Mas Paris faz-me medo. E não queria deixar as minhas aulas.

- E para que te servem elas, minha filha? Deixa-me falar-te francamente: estás a meter na cabeça um chorrilho de idéias falsas.

- A que chamas tu idéias falsas? com certeza que de filosofia não entendes nada...

- Mas tenho senso bastante, embora não tenha seguido os estudos filosóficos, para pensar que não estás moralmente couraçada o suficiente para receber todas as opiniões a granel. Tu aceitas as coisas mesmo sem as examinares, não é verdade? Arriscas-te, assim, a ir por caminho errado e a estragar a tua vida... Não chores! Não te peço confidências. Mas a minha profissão é. que me põe em condições de adivinhar muitas coisas. Porque não estás tu mais tempo em tua casa?

- Porque me aborreço. Não tenho nada que fazer. A mama é que dirige a casa como no tempo do papá e ela é que é a secretária de Miguel. E a assistente que ele lá tem, faz o resto.

- Ora aí está uma coisa bem organizada! Mas tu és ou não a dona da casa? Portanto, põe-te tu a mandar e não queiras saber das manias e das rabugices da Corentina.

- Corentina foi muito amável na ausência da mama.

- Mas porquê? Tua mãe não é despótica.

- Dír-se-ia - como explicar? - que ela se agarra à casa desesperadamente.

- Que esquisito! Não é bem o seu gênero... E a papelada administrativa, porque não cuidas tu disso?

- Pelo mesmo. A mama é que toma conta dela.

- Não percebo nada. Lá o trabalho de Mireille é diferente, é um trabalho especial. Sem estudos prévios não podias ajudar teu marido, Mas o telefone, as visitas, as contas, pertencem-te. Deita mão de isso tudo, peço-te.

Pensativa, Maria Violeta murmurou:

- Repito-te, a mama está agarrada a tudo. E receio desgostá-la. Há ali um mistério. Depois de ter ido a Paris, a mama já não é a mesma.

- Explica-me lá no que é que ela não é a mesma.

- Tornou-se mais nova, mais bonita. Não achas? Quando toca piano, dá-lhe uma expressão tão doce... Mas anda nervosa, impaciente, por vezes, como alguém obcecado por uma preocupação. Em certos dias, dá-me a impressão de que quer falar comigo, confiar-me qualquer coisa, e que não se decide.

Ivone escutava, com as sobrancelhas franzidas pela atenção. E, rapidamente, formou uma opinião:

"A Sr. a Lê Fort pensa em tornar a casar-se. Que golpe para Maria Violeta, que adorava o pai! Por isso hesita em falar e redobra de zelo pela casa, para provar aos outros e a si mesma que é a melhor das mães. Pois que poderá ser? Hei-de perguntar ao avô. "

Maria Violeta, que esperava da cunhada uma opinião clara, ficou desiludida. Ivone apenas disse:

- Sabes que entre teus pais, infelizmente, havia desinteligências. A personalidade de tua mãe estava mais ou menos oprimida e toma, agora, uma espécie de expansão. Não é um caso excepcional. Mas voltemos ao que te diz respeito, minha querida. Ao que te levarão os teus estudos?

- A nada. Sem me bacharelar, não posso chegar à licenciatura. Assim, estou a trabalhar no vácuo... Se ao menos eu tivesse um filho, Ivone!

Serei nova de mais... não serei suficientemente mulher para ter um filho?... o filho que Miguel teria com minha irmã...

- Esse filho há-de vir, minha querida. E então deixarás de pensar na filosofia. Lembras-te daquelas palavras de Hamlet...

- Sim. "Há mais coisas no céu e na terra que na vossa filosofia nem se sonham". Sei como isso é verdade, Ivone. Mas é preciso alcançar essas coisas, prendê-las. E escorregam-me todas das mãos...

Bruscamente - de propósito - Ivone perguntou:

- Não há flitts? Maria Violeta corou.

- Não, Ivone. É certo que há um estudante que tem feito umas tentativas, mas mantenho-o a distância.

Ivone pensou: "A distância, com estes olhos patéticos l" - mas disse apenas:

- E os professores? Que atitude têm eles para ti?

- Oh! muito reservada. Menos Martinho Brunoy, mas esse, de certo modo, é paternal. Parece que quer proteger-me.

- Tem uma excelente reputação como professor e como homem. Tem idéias sãs. Mas põe-te em guarda contra certas teorias, que derrubam tudo e não põem nada no seu lugar... Mais uma pergunta, mas responde se quiseres: em que condições estás tu com a assistente de Miguel?

Maria Violeta animou-se: "Tem ciúmes?" perguntou Ivone a si própria.

- Mireille? Considera-me parva. E eu acho-a odiosamente açambarcadora. O doutor para aqui, o doutor para ali... Dá a sua opinião para tudo e quando ela não está Miguel parece completamente desamparado. E admiras-te, então, de eu me aborrecer em casa? e de vir a Rennes? Entre a mama e o Miguel, o meu lugar é o duma criança insignificante e sensata, a quem se poupam trabalhos e cuidados. É possível - o que sei eu? nada sei, afinal -, é possível que haja mais coisas no céu e na terra que na filosofia. Mas quando não achamos mais nada, a filosofia consola.

- Não, as idéias não consolam. Nunca consolaram ninguém. Só o amor consola...

- E és tu que dizes isso?

- Eu, sim, que não sou esposa, nem mãe, mas, que assim mesmo, pus o amor na minha vida. O amor dessa gente pobre e doente, quer moral, quer espiritualmente, anemizada tanto no corpo como na alma. E eu amo-os, Maria Violeta, quer eles me amem ou não. De cada um deles procuro obter as suas possibilidades mais elevadas. Muitas vezes fracasso. Mas sabe-se alguma vez se é um fracasso? Por um instante só que se tenha feito entrever a verdade, a pureza - e seremos ditosos. A semente lançada germinará, nem que seja à beira da campa. E tu, Maria Violeta, que tens uma alma tão rica e um coração cheio de amor, não te deixes ressequir por idéias abstractas. Tu tens necessidade de dar, de entregar-te, para seres verdadeiramente tu mesma.

Ela abriu as mãos, para mostrá-las vazias:

- Dar a quem? Dar o quê?

- Uma mulher casada fazer perguntas dessas. Olha, meu irmão é um idiota.

Separaram-se as duas. Ivone regressava à pressa ao seu trabalho e Maria Violeta à Faculdade. Martinho Brunoy, que ia dirigir a aula, viu-a entrar e disse a si mesmo: "A mulher-criança traz o rosto comovido. Porquê? Que vento passou? Sopro vivificante? Perturbador?... O tal rapaz observa-a, espreita-a... Oh! como eu queria que o que eu vou dizer a atraísse para pensamentos elevados... Projectava apresentar uma tese nova, muito interessante, mas perigosa. Esta delicada Sr. a Àbran saberá seguir até ao fim a demonstração que conduz à verdade? Temo que ela fique no plano em que se destrói, sem se elevar até ao plano onde se reconstrói. É tão nova... Não está ainda batida pelas lutas do espírito. Qual é o meu dever? Dirigir a aula para todos os alunos, ou só para ela?"

Soube dirigi-la para todos os alunos, mas dizendo palavras só para ela.

 

Na solidão do seu quarto, Susana relia, uma vez mais, essa carta respeitosa e terna, que lhe pedia que tomasse, enfim, uma decisão. Não se cansava de pesar cada um dos seus termos, até à assinatura: "Seu, Francisco",

Dizia ele: "Visto que a Susana me ama e que eu a amo, não esperemos mais. Os anos passam, Susana. Mas ainda temos tempo de ser um casal feliz. Suplico-lhe que marque a data do nosso casamento".

Ela gostava da sua letra alta e apoiada, tão diferente da letra ilegível da maior parte dos médicos, cujo pensamento anda muito depressa para a pena. Gostava das palavras que ele empregava, simples, directas. Sim, gostava de tudo quanto era de Francisco; o amor atraía-a de novo, apaixonadamente, para o homem dos seus sonhos de rapariga. E desta vez ninguém tinha o direito de separá-los. Margarida - cujo coração dolorido merecia respeito - parecia admitir que uma viúva refizesse a sua vida. Rosa Teresa era descuidosa de mais para julgar a mãe. Restava a mais nova, ferozmente agarrada ao culto de Jerónimo. "Nunca terei coragem de lho dizer eu própria. É ridículo ser tímida perante a própria filha... Se eu falasse primeiro a Miguel? Um homem tem vistas menos estreitas. Mas ela pode melindrar-se por eu não me dirigir a ela directamente. E Miguel saberá apresentar-lhe a questão com bastante delicadeza? Maria Violeta... afinal não a conheço muito bem e parece-me que os estudos a afastam de nós. Vou continuar a esperar para dar-lhe parte dos meus projectos. Primeiro pedirei conselho a Francisco. Preciso de vê-lo com sossego".

Resolveu, pois, ir passar alguns dias a Lorient. "Os nossos encontros em Rennes são demasiadamente rápidos, conheço muita gente e podíamos encontrar Maria Violeta, o que seria uma catástrofe".

Preparou essa pequena viagem com alegria, escolhendo os vestidos que lhe ficavam melhor. "O preto não me fica mal, louvado seja Deus!" E disse a Maria Violeta:

- Minha querida, tenho de ir a Lorient tratar de um assunto. Demoro-me uns dois ou três dias. Não te aborreces por isso? Posso contar contigo para me substituíres junto de Miguel? Caso contrário, não posso ausentar-me.

- Tenho as minhas aulas, mama. Depois, sabes bem que não estou ao facto de nada. Na ocasião em que foste a Paris, não ia eu tanto a Rennes, nem as coisas aqui eram tão complicadas, no próprio dizer de Miguel.

- Eu explico-te tudo antes de partir. Quanto às tuas aulas, parece-me que podes faltar a algumas sem grande prejuízo.

- Terei pena... Mas é secundário, evidentemente. Do que tenho mais medo é de me atrapalhar com os papéis das contas, o que irá tornar mais pesada a vida de Miguel.

- Se te vires em dificuldades, Mireille pode ajudar-te.

- Isso não, mama! - replicou a jovem num tom que surpreendeu a mãe. - Além disso o trabalho dela chega-lhe, e sobra, para lhe empatar o tempo. Mesmo sozinha, cá me hei-de entender. E se eu fizer enganos, tanto pior... É preciso ajudar-te a preparar a tua mala? Quando é que vais? Se Miguel não precisar do carro, levo-te à estação. E antes de te ires embora, dá as tuas ordens a Corentina.

- Para quê? Estás cá tu. E tu é que és a dona da casa.

- Eu? Nesta casa não passo de ser a "menina". Um sorriso trêmulo brilhou-lhe no rosto, mas a mãe, absorvida pela sua própria história, não reparou como esse sorriso estava perto das lágrimas, e disse em tom de gracejo:

- Pois claro que tu és a "nossa menina", uma menina encantadora. Mas é preciso que aprendas a ser mulher, sabes? E ganhar a tua personalidade de mulher.

Oh a mama iria dissertar sobre o papel das mulheres e a sua personalidade? Não, isso sim? A mama era incapaz de compreender o conflito que se estabelecera em todo o ser, corpo e alma, da "menina encantadora".

- Então vai lá a Lorient, mama, e deixa-te ficar o tempo que quiseres. Julgo que gostas muito dessa cidade renovada, tão moderna e tão branca. Eu, por mim, prefiro a minha velha Bretanha pardacenta.

- Não conheces outra coisa, minha pobre filha! Penso que te sentirias muito bem nas terras cheias de sol. Quando Miguel puder fazer umas férias, têm de ir ambos à Cote d'Azur.

- Ah! - exclamou Maria Violeta. - Aí deve haver sol de mais para mim.

Susana partiu para Lorient toda fremente. Maria Violeta admirava-se daquela animação e pensava:

"Talvez ela ande aborrecida. A vida é austera no campo, todo o ano. A mama teve sempre necessidade de movimento e de distracção. "

À rapariga viu o comboio afastar-se, tal como se fosse para uma grande viagem. Ignorava, porém, que essa viagem era mais importante que outra qualquer: sua mãe ia ao encontro do seu novo destino. Ao almoço Miguel interrogou-a acerca dessa viagem e ela respondeu:

- Não, a mama não me contou o que ia fazer a Lorient, mas parecia muito contente. Tem lá relações dos seus tempos de rapariga, creio eu.

- E na sua ausência achas que poderás ajudar-nos, como ela nos ajuda, a mim e a Mireille?

Lá vinha o nome de Mireille...

- Julgo saber tirar-me de apuros. Talvez eu não seja tão parva como pensam.

- Parva? Tu és, até, inteligente de mais, minha pequena filósofa. Mas, justamente, tu pairas acima das dificuldades materiais. É por isso que esse gênero de trabalho vai irritar-te e aborrecer-te. E eu gostava muito de evitar-te isso, de poupar-te todo o esforço.

Ela olhava para o marido, com os cotovelos apoiados à mesa.

- Então o ideal da vida é libertarmo-nos de todo o esforço?

- Depende das pessoas. Uma sensitiva como tu...

O rosto fino crispou-se:

- O professor dizia-nos ontem que a gente converte-se naquilo em que quer, fortemente, converter-se: a personalidade adapta-se.

- Uma notação filosófica muito justa... e médica também.

- Então - perguntou ela, esforçando-se por rir - a "menina" poderá tornar-se numa verdadeira mulher?

- Nada de pressas. Não mudes a correr. A tua graça diminuía.

- A graça... contas isso como um verdadeiro valor humano?

Ele ergueu-se, rodeou-a com os braços e beijou-lhe a testa lisa e branca:

- Sim, quando se trata da tua. Não te ponhas a ser parecida com toda a gente.

Por alguns instantes, de pálpebras cerradas, ela deixou a cabeça repousar encostada a ele. Ouvia bater o coração de seu marido. Seu marido... Sentia-se feliz, assim. De súbito, porém, pensou que aquele era o lugar de Margarida: "Não passo duma substituta. Nunca ele me há-de amar a mim, como a amaria a ela - como a sua mulher".

Ele acariciava os formosos cabelos escuros. Ela respirava um pouco mais depressa. Oh! porque havia ele de dizer:

- Minha pobre "mulherzinha", a querer imitar as pessoas crescidas!

Ela desprendeu-se-lhe dos braços.

- Estás a escangalhar-me o cabelo, Miguel,

- Então fazes-te vaidosa?

Sem responder, ela mergulhou o seu olhar no do marido. E foram os olhos dele que se perturbaram. Desconhecia aquele olhar em Maria Violeta. E ela, por sua vez, não sabia que pusera nesse olhar uma paixão quase desesperada.

Sem saber definir o incômodo que sentia, Miguel foi para o seu laboratório, onde Mireille acabava de chegar, depois da refeição rápida que todos os dias tomava no hotel do largo, o que fazia a admiração de muitas pessoas: "Porque será que ela não almoça com eles?"

Chamadas do telefone... Correio a classificar. De sobrolhos franzidos, Maria Violeta diligenciava compreender as perguntas feitas e encontrar a resposta precisa. A mãe, habituada havia muito a ajudar um médico, deixara-lhe indicações exactas e ela ia cumprindo bem. Por outro lado, Corentina mostrava-se atenciosa e de bom humor quando a consultava acerca das comidas.

- Como da primeira vez em que a mama esteve ausente, parece contente por se dirigir a mim. No entanto, está muito agarrada à mama, que ela acha justa e boa e muito entendida como dona de casa. E isto de seguir a direcção daquela a quem todos aqui consideram como uma "menina", deveria irritá-la.

À noite, Miguel verificou o que ela fizera. Achou tudo bem, menos a cópia duma receita escrita por ele duma forma muito pouco legível, como era costume - para a qual a doente pedia uma explicação. Maria Violeta enganara-se. Ele mostrou-lhe a folha de papel com irritação.

- É aborrecido! Isso pode prejudicar-me.

- E achas que a doente sofreu com isto?

- Felizmente não pode ter-lhe feito mal. Mas tenho de rectificar e, para um médico, nunca é agradável reconhecer um erro. Perguntasses a Mireille, que diabo! Tenho-te dito em todos os tons: "Se te vires embaraçada e não tiveres a certeza de qualquer coisa, vai ter com Mireille". É uma profissional, que se encontra em condições de interpretar coisas que estão totalmente fora do que tu conheces.

Parecia tomado de cólera. Maria Violeta jamais pudera suportar os embates da cólera. E desfez-se em lágrimas. Ele abrandou, então, e tornou-se gentil. Consolou-a, mas como quem consola uma criança que fez uma maldade, o que, no fundo, a agastava, ao mesmo tempo que a fazia lamentar intensamente o facto de não ter podido dominar o seu desgosto e reter as lágrimas.

- Vamos, minha sensitiva, não falemos mais nisto. Mireille ainda não se foi embora. Vai montar na bicicleta e num instante chega a casa dessa gente, que não mora muito longe, por felicidade.

- Então vais dizer a Mireille que me enganei! Oh!

- Pois é claro. Ela está ao corrente de tudo, mete isto na cabeça,

- E se eu mesma lá fosse?

- Não. Era ridículo. Mireille é que está cá para isso.

Ele foi-se embora, dar as suas instruções à rapariga, enquanto Maria Violeta dizia consigo, tristemente:

"Agora ela vai pensar: mas que parvinha. E, Miguel, decerto, calcula o que ela pensa. E quando ela pensa assim tem um ar mais insolente!"

Felizmente o jantar estava óptimo. Miguel, um pouco confuso por ter ralhado com a mulher, sentiu-se contente por poder felicitá-la como dona de casa. Ela ia para replicar-lhe: "Todo o mérito pertence a Corentina!" - quando viu a velha bretã pôr um dedo nos lábios, enquanto a cabeça, ornada com a touca branca, fazia: "Não! Não!" Singular aviso! Obedeceu-lhe e respondeu a Miguel:

- Estou satisfeita por ter escolhido aquilo que te agrada.

A cara "ferrugenta", então, perdeu as rugas todas e Corentina voltou para a "sua" cozinha, onde bastante se esforçara para que o jantar parecesse melhor ao "Senhor" do que aqueles que a "Senhora" mandara e para que o mérito fosse para a "pequena". "Ela é que devia ser a Senhora e é que devia mandar. Não compreendo, isto de a mãe não lhe ceder o lugar como é justo".

Nos três dias em que a "Senhora" esteve ausente, Corentina fez tudo quanto podia e Miguel admirava as capacidades de sua mulher para o governo da casa. E enquanto retirava os pratos a que ele fizera honras, Corentina pensava: "Sempre é isto que ganha".

Mas no que respeitava à sua participação na actividade médica, a pobre Maria Violeta não tinha a menor ajuda; problemas mínimos, mas completamente novos para ela, apresentaram-se-lhe várias vezes. A cabeça andava-lhe à roda e murmurava: "A mama devia ter-me posto a par disto".

Parecia-lhe tão penoso ir pedir conselhos a Mirelle. Não obstante, teve de resolver-se a isso; e o tom, ao mesmo tempo desdenhoso e autoritário da assistente, melindrava-a profundamente. Da segunda vez em que Maria Violeta lhe expôs uma dúvida, declarou:

- Deixe-me ficar esses papéis. Isso é muito complicado para quem não percebe. E eu depressa dou conta disso.

Maria Violeta, porém, recusou:

- Já tem bastante trabalho. E afinal era só uma palavra que estava a fazer-me confusão, A indicação que acaba de me dar é o suficiente para eu compreender o resto.

Sim, naquele documento era só uma palavra que lhe faltava. Mas pouco depois, enquanto Miguel estava na consulta, via-se ela a braços com uma dificuldade insolúvel. Era preciso decidir-se a ir outra vez lá abaixo, que remédio! Pôs-se à espreita, a ver quando saía o último doente, no intuito de ir ter com Miguel: se ele a repelisse, tanto pior. Foi bater à porta do consultório. Não lhe responderam. Então abriu a porta de mansinho. E a voz de Mireille, aguda e decidida, vinda da pequena divisão onde se faziam os exames, chegou-lhe aos ouvidos:

- Ah! meu querido Miguel, isto hoje foi uma avalancha!

"Meu querido Miguel"... assim ela se atrevia a chamá-lo pelo nome... E ele respondeu:

- E tive a tua ajuda, felizmente.

Pálida como uma morta, Maria Violeta tornou a fechar a porta sem ruído e arrastou-se para a cozinha, onde sabia que acharia socorro.

- Nossa Senhora! A menina vai perder os sentidos! - bradou Corentina. - Pobre cordeirinha! Tenho de deitá-la já!

Tomou-a nos braços robustos, estendeu-a num diva e prodigalizou-lhe cuidados a que já estava costumada: já quando Maria Violeta era criança lhe sucediam acidentes semelhantes. Em breve os olhos tornaram a abrir-se, mas o corpo tremia todo.

- Então, minha linda, isso vai melhor, minha pomba?

Ah! como aquela Corentina, rabugenta e cabeçuda, sabia ser como uma amiga, quase maternal.

Violeta sentia-se bem com a sua mão gelada naquela mão grande e morna.

- Que estúpida coisa, Corentina! Não sei o que isto foi.

- Nada. Uma "tontura de cabeça". Já tinha isso antigamente - disse Corentina, que adivinhava que a "tontura de cabeça" tinha a sua origem no "Senhor".

- Não é preciso falar nisto ao Sr. Doutor, Corentina. Não quero.

- Mas ele dava-lhe qualquer coisa para isso passar.

- Não preciso de nada. Tratou-me tão bem, Corentina... Obrigada!

Pôs-se a chorar.

- Chore, chore, minha cordeirinha! O chorar alivia. Daqui a pouco já se põe de pé. E eu não digo nada ao "Senhor". É um segredo entre nós duas.

Maria Violeta sentou-se, enxugou as lágrimas e fez por sorrir.

- Dê-me um beijo, Corentina.

- Sim, menina, já que a sua mama não está cá. Corentina sabia dar um beijo muito bem. Nem

toda a gente sabe.

- Ouça - continuou ela - vá lá acima depressa, lave a cara e ponha pó, para fazer bom parecer, como dizia Rosa Teresa, enquanto fazia misturas com as suas caixinhas de vermelho e cor-de-rosa. A menina não as tem, mas no quarto da sua mama há. Se não quer que o Senhor veja que chorou, arranje-se bem. Olhe que um doutor é esperto para adivinhar as coisas.

Maria Violeta sentou-se em frente do lindo toucador da mãe e desvaneceu os vestígios das lágrimas.

Porém, os que estavam no seu coração não se desvaneceram.

Corentina, enquanto descascava batatas, ia rezando o terço pela "pequena". A pequena não queria rezar. O sofrimento, que atingira vivamente aquela sensibilidade, esbarrava, no espírito da jovem, com uma barreira que se elevara a pouco e pouco, sem ela reagir. Maria Violeta perdia a fé e já nada podia suster-lha.

Foi direita ao retrato do pai, que Susana quisera no seu quarto de viúva, apesar de esse rosto severo e frio a constranger. Aquele retrato, porém, era querido para Maria Violeta: um clarão de doçura, talvez visível só para ela, se desprendia desse olhar fixo para sempre.

- Papá - murmurou ela. - Papá! Só tu no mundo me amaste verdadeiramente. E foi por eu tanto te amar, também, que casei com Miguel para morreres em paz. Mas ele aceitou-me por caridade. O que o enchia de cuidado era a tua substituição, não era Maria Violeta. Ele nunca deixou de lamentar a perda de Margarida. E satisfaço-o tão pouco, que se compensa com Mireille. Mas eu não quero "sociedades", assim como tu não quererias. Vou-me embora, papá. Ele continuará com a casa, a clientela, as descobertas, tudo, enfim, quanto ele queria, quando se casou. Gostar de mim, gosta, mas não me tem amor, não me ama como sua mulher, como eu quero ser amada. Vou-me embora.

Tornou a descer, aparentemente tranqüila e bastante senhora de si para ir apresentar ao marido o tal caso difícil.

- Porque não vieste logo ter comigo por causa disto?

- Porque estavas com qualquer pessoa e pensei que esta carta ainda pudesse ir no correio da noite.

- you dá-la a Mireille para a meter no correio em Rennes.

Mireille... Sempre esse nome que a impressionava... Corentina trouxe o chá, como era costume depois da consulta. Mas nesse dia Maria Violeta não pensara, sequer, em prepará-lo. E com que esmero o preparara a velha bretã!

- Pensas em tudo - disse Miguel, que continuava a ser gentil. - Que boa dona de casa. Hei-de felicitar tua mãe... Mas tu não comes nada? Estás doente?

- Não. Não tenho fome nenhuma,

- Mas o trabalho que tu fazes agora fatiga-te, consome-te, minha pobre filha. Estou ansioso por que tua mãe volte para te veres livre destes assuntos médicos e poderes tornar às tuas aulas.

Ela desviou a conversa:

- Aqui tens as chamadas telefônicas que recebi.

- O que aí vai de visitas para fazer! E distantes... Tem Mireille de fazer a revisão do correio e expedi-lo. Se te sentes cansada não me esperes para o jantar. Até logo!

Beijou-a, mas ela não lhe retribuiu o beijo.

"Ele nem deu por isso... "

Corentina entrou logo que ele saiu.

- O Senhor disse que volta tarde. Vá-se deitar, minha queridinha. Eu levo-lhe à cama uma ceiazinha muito leve. Sim, sim, faça caso do que diz a Corentina. Ela viu-a de pequenina e a menina era a adorada do falecido Senhor. Amanhã já isso vai melhor.

Corentina pensava, porém: "Não vai nada melhor. Por culpa daquela rapariga, com certeza".

Ela detestava "aquela rapariga". Fiel cão de guarda da casa há vinte anos, sentia, por instinto, qualquer ameaça que a rondasse e que pusesse em perigo a paz, a segurança e a dignidade da casa. Adivinhara o desacordo profundo que separara os esposos Lê Fort e agora suspeitava de que um outro desacordo ia aparecer entre os jovens esposos.

"Ah! se fosse Margarida que tivesse casado com este rapaz, saberia melhor tomar conta dele. Era uma mulher. Esta casou-se muito cedo, o marido não a tem tomado a sério e ela não compreendeu com a rapidez necessária como se prende um homem. Mas a Mireille, essa percebe da coisa e pode muito bem levar-lho. A pequena deve ter suspeitado de qualquer coisa e por isso ela se foi abaixo, a pobre inocente! É uma pena a mãe não estar cá. À dizer a verdade, a mãe parece que traz uma idéia qualquer na cabeça. Qualquer dia já se sabe. E o que dirá a pequena, se é o que eu imagino? Virgem Santa! Ela que adorava o pai! Vê-lo substituído vai ser um golpe tremendo para ela. Sim, eu sei bem com quem é que a Senhora foi encontrar-se em Lorient. O antigo romance torna a começar. Porque ela, noutros tempos, teve um romance - conta a gente daqui. "

Com efeito, o doutor regressou tarde e jantou só, atentamente observado por Corentina.

"No entanto ele não tem o ar dum marido que engana a mulher. Mas a Mireille deve andar de roda dele. "

Miguel encontrou Maria Violeta na cama, aparentemente calma, a ler uma carta de sua irmã Rosa Teresa. Estendeu-a ao marido, que lhe passou a vista por cima.

- Então sempre baptizam a pequenita na Páscoa e aqui? Receber tanta gente vai ser um grande esforço para ti.

Deixou de comentar as novidades, porque a jovem disse em seguida:

- Espero que Margarida se resolva a vir.

O nome de Margarida nunca o deixava indiferente. Todavia ele não tornara a vê-la, depois de ela ter partido para o Sul. Como iria achá-la, no corpo e na alma? Ele temia tornar a vê-la; receava as saudades que iriam despertar-se e perturbar a sua tranqüilidade actual. Porque ele amara-a; não a escolhera, é certo, mas amara-a apaixonadamente, totalmente, depois de resolver-se o noivado. Margarida! Era bela, forte, radiosa de vida. Era desportista, activa, jovial. E maravilhosamente amorosa.

Enquanto dobrava a carta que exalava o perfume de Rosa Teresa, contemplou o vulto deitado no leito espaçoso - esse leito comprado ao gosto de Margarida e ao seu gosto, em perfeito acordo. O leito de núpcias de Margarida...

Via ali apenas uma forma delgada e fina, dando um pequeno relevo à coberta. No travesseiro um rosto gracioso, mas pálido, no meio dos cabelos espalhados em caracóis infantis. Uns braços franzinos saíam das roupas finas - e Margarida tinha lindos braços redondos, musculados pelo desporto e dourados pelo sol. Uma verdadeira menina, naquela cama de esposa... "E, no entanto, é minha mulher - cogitava ele. - Sim, deliciosa, a pequena Maria Violeta. Mas... não é com amor que lhe quero".

- Ainda tenho de ir trabalhar - disse ele, suspirando. Esse suspiro, porém, não era motivado pelo trabalho. - Boa-noite. Trata de adormecer depressa.

Um beijo rápido. Ela fechou os olhos, como se tivesse adormecido! E Miguel desceu, para se entregar àquilo que, na realidade, era a sua vida: a sua profissão, as investigações científicas, o êxito, o renome.

Maria Violeta, a sua esposa, não era mais do que um agradável ornamento duma existência austera, a graciosa companheira de índole propícia. Sim, "deliciosa", a pequena Maria Violeta.

Numa poltrona, ao pé da secretária, estava um par de luvas de mulher. De quem eram? Olhou-as bem: "São de Mireille, Maria Violeta não tem as mãos tão grandes". Entreteve-se, por um instante, a esticar-lhes os dedos. Depois, encolhendo os ombros, tornou a atirá-las para a poltrona. Quando Mireille não estava presente, não lhe interessava nada.

Lá em cima, sem poder dormir, Maria Violeta, pensava.

 

MAU grado as instâncias da família, Margarida sentia-se resolvida a recusar o convite que lhe tinham feito para ir a Plémeur assistir ao baptizado da pequenina Ànnick, filha de Rosa Teresa. Nunca mais lá voltara depois do desastre.

"Os olhos curiosos estarão todos à procura de ver se eu estou muito desfigurada, mais baixa... Não poderei suportá-lo! Miguel há-de sentir-se incomodado com a minha presença. E talvez maguaria Violeta também... Eu sentirei saudades da casa, da terra. Decididamente, não vou ao baptizado. Além disso, um baptizado... traz sempre tantas saudades... "

O Dr. Bernardo Laugier, seu patrão, quando soube daquela resolução, reprovou-lha abertamente.

- Faz mal. Vá retemperar-se no meio da família em vez de viver como um bicho de mato,

Ela apanhou no ar a expressão "bicho de mato":

- Um bicho de mato, efectivamente, que sonha com uma cabana muito sua, só para si. Olhe, doutor, eu não posso continuar em casa da Sr. Delarue. Sinto que anda a vigiar-me e que me tem rancor por ter feito gorar os seus projectos de casamento. Perto dela, abafo. Pode ser que seja a mais amável das velhas, mas viver à margem dessa existência gasta e murcha, estorva-me, impede-me de tornar a ser eu mesma... a supor que eu possa voltar a ser eu mesma. Oh se eu encontrasse um quartinho só para mim, ainda que fosse pequeno, mas onde eu me sentisse verdadeiramente livre!

- Vá lá à Bretanha, espírito independente. E quando voltar procuraremos o tal "buraquito".

- E mesmo que eu não vá à Bretanha, procura-o?

Ele olhou para ela profundamente.

- Recusando-se a ir lá, priva injustamente sua irmã e toda a família dum contentamento. E prejudica-se a si mesma, com toda a certeza. Pode parecer-lhe duro tomar essa resolução, mas talvez lhe seja muito salutar. E, depois, livra-se dessa vizinhança que lhe parece um entrave, e experimentará o desafogo e a expansão de que precisa. É esta a minha opinião. Faça dela o que quiser.

- O desafogo e a expansãol - repetiu ela, com um riso breve. - Para mim, uma semimorta?

Ele pôs-lhe a mão no ombro:

- Para si, -rica de vida. É assim tão criança, para ignorar que em certas plantas a seiva se renova com mais intensidade depois de as folhas caírem?

Margarida pensou nos arbustos do parque Monceau. Mas, sacudindo a cabeça, disse:

- As feridas deixadas em mim pelas folhas que caíram são demasiadamente profundas. Sou uma planta já sem seiva.

As palavras do grande psicólogo perseguiam-na. Ah! Se não fosse o medo de tornar a ver Miguel... - e Miguel feliz, com outra...

Continuava na sua obstinação, quando chegou uma carta da mãe.

"Peço-te muito que venhas. Compreendo bem - que receies voltar à Bretanha e ao contacto da vida familiar. Todavia, não te faria bem? Tarde ou cedo, terás de resolver-te a isso. E a isto acrescento: vem, por Rosa Teresa, que deseja muito a tua presença no baptizado da filha. Vem também por mim, Margarida. Já te pus ao facto do comovedor pedido que me foi feito. Creio que, mesmo sem me aprovares, me compreendeste. Passei alguns dias perto dele. Estamos plenamente de acordo e ele insta comigo para eu ser sua mulher. Eu, porém, não ouso falar no assunto a tua irmã mais nova, que tão intransigente é no seu amor filial. Tu, minha querida, estou certa, é que saberias convencê-la, apresentar-lhe argumentos justos e fazer-lhe admitir a idéia de que podemos casar de novo sem esquecer o companheiro da nossa mocidade...

"Acho Maria Violeta demasiadamente sonhadora. É caso para perguntar se a filosofia lhe será salutar. Imagina que ela afasta-se das práticas religiosas, quando ela era tão fervorosa! Lê livros muito singulares. Evidentemente, está atravessando uma crise moral. Em tais condições, como há-de ela ouvir-me? Aceita o encargo de pô-la ao corrente de tudo, peço-te! Entre irmãs é mais fácil. Não recuses a tua mãe este favor que te peço! Tantas provas te têm amadurecido o caracter, que me atrevo a contar contigo, embora com remorsos, minha querida. Mas o capitão será um grande amigo teu. "

Lentamente, Margarida tornou a dobrar a carta. Fincou os cotovelos na mesa, esquecida da hora e do lugar, espantada de que alguém solicitasse a sua assistência (ela, a quem toda a gente lastimara!), de que lhe pedissem um gesto eficaz para auxiliar outrem. Para auxiliar a mãe...

"A mama não foi feliz no casamento. Como há-de ela ter coragem de renunciar a esta felicidade de Outono que se lhe oferece? E nós, as filhas, teremos o direito de pôr o papá - um morto - pela frente, a barrar-lhe o caminho? Ela tem razão: só eu posso convencer Maria Violeta. Poderei recusar-me? É uma covardia, uma crueldade. Antigamente eu não era covarde, nem cruel. E - coisa curiosa! - depois do encontro com o cego sinto-me modificada, abrandada. Já posso tornar a pensar na família, na casa, sem desgosto, nem revolta. "

E respondeu à mãe: "Eu vou. E falarei".

Susana sentiu-se leve e jovial e pôde preparar com alegria uma bela festa para o primeiro bebê da família. Maria Violeta ajudou-a. Tinha o coração distante, mas Susana não o percebeu. Sentia-se tão jovem, que deixava a esperança arrebatá-la como uma noiva de vinte anos.

"Está mais nova que a menina" – pensava Corentina. E Miguel, reparando, também, no rejuvenescimento da sogra, admirava-se de, pelo contrário, ver sua mulher reservada e triste. Estaria doente? Aquela criança voltaria à neurastenia? Acusava os filósofos de alterarem o equilíbrio dos cérebros femininos. Mas não se acusava a si próprio: tratava Mireille como camarada, ou mesmo um pouco mais... Era coisa, porém, que aos seus olhos não tinha gravidade. Além disso, Maria Violeta devia saber que a familiaridade entre o patrão uma assistente é, muitas vezes, calorosa. Mireille era muito feminina, e engraçada também.

Ora Maria Violeta, com o espírito em tensão, xeparava em tudo e tirava conclusões exageradas. E sofria cada vez mais.

"Partir... o que eu queria era partir, com o pretexto de ir encontrar-me com Margarida em Paris e de ir algumas vezes à Sorbonne antes de acabar-se o trimestre. Mas Margarida vem cá pela Páscoa, E não posso deixar a mama e Corentina prepararem sozinhas a festa do baptizado. "

Estes obstáculos aos seus projectos exasperavam-na. Então, por reacção, pôs-se a seguir os cursos mais tendenciosos da Faculdade, adoptando - sem saber fazer a devida objeção as teorias expostas e que um espírito mais amadurecido não aceitaria à toa. Assim se ia desviando, a largos passos, da senda que a jovem Maria Violeta trilhara até então.

E porque havia ela de continuar isolada, com desdém, dos outros estudantes? Rémy Portei, que andava à sua volta, encontrou maneira de aproximar-se dela num dia de mau tempo, em que um aguaceiro a forçou a refugiar-se numa pastelaria. Ele entrou com o mesmo pretexto e apresentou-se:

- Rémy Portei. Ela ficou calada, mas ele reparara na aliança que ela trazia, no dedo. Já casada! Não era feliz, decerto. Perguntou-lhe se ela tencionava diplomar-se para o professorado, como ele. E ficou admirado de ouvi-la responder que nem bacharel era ainda.

Tornaram a encontrar-se; Maria Violeta não. via nisso mal algum; as relações com o jovem distraíam-na. Nas aulas, passaram a ficar ao pé um do outro. Permutaram as suas notas, trocaram livros. Maria Violeta sentia-se menos triste.

Martinho Brunoy é que estava cada vez mais inquieto. "A pequena faz mal. Queria que ela se acautelasse com esse rapaz de reputação duvidosa. Mas depois parece que eu próprio ando a requestá-la. Como é que uma mulher tão nova, tão distinta e tão reservada se fez tão independente? Eu não tenho maneira de ajudá-la senão com o que puder ensinar-lhe, tentando dar-lhe um sentido justo dos valores intelectuais e morais. Mas é pouco, é remoto. E nós, os mestres, temos de manter-nos afastados dos nossos discípulos, impotentes para segurá-los quando alguma força os impele para um caminho errado!"

Martinho Brunoy era um cristão sincero e orava sempre antes de começar o seu curso. Foi numa vibração intensa que rezou ao levar perante Deus a frágil Sr.a Abran de olhos pensativos; e em seguida foi para ela que falou, com uma misteriosa intuição das palavras que ela precisava de ouvir. Mas, na verdade, ouviria ela essas palavras? Gravar-se-iam na sua inteligência e na sua sensibilidade? Ou seriam essas palavras levadas para outro lado, por qualquer vento ignoto?

Ela ouvia-as e procurava recolhê-las. Mas também ouvia outras. E todas essas palavras opostas se debatiam, ferindo o coração, novo em demasia para suportar-lhes o assalto. Partir... deixar Miguel... Uma mulher tem o direito de separar-se do marido que não a ama como um marido ama a esposa. Iria para Paris, como fizera Margarida, para afastar-se também de Miguel; depois reataria os seus estudos incompletos; dentro de alguns anos teria uma situação independente e Miguel, de posse de tudo o que podia desejar profissionalmente, faria o que entendesse, livre daquela rapariguinha com quem casara por «descargo de consciência».

Martinho Brunoy procurava ardentemente um pretexto que lhe permitisse pôr Maria Violeta Abran de sobreaviso contra Rémy Portei. "Ela anda com ele com toda a inocência, mas ele não. Ele pensa em divertir-se com ela - e compromete-a".

O professor experimentou falar com Portei, que lhe respondeu com polida insolência e se tornou mais assíduo do que nunca junto de Maria Violeta. Por fim, Martinho Brunoy viu um dia a sua aluna acompanhada por uma assistente social, mais velha do que ela. Foi um raio de luz: o Dr. Abran tinha irmãs; uma delas matriculara-se na Faculdade de Direito. Não teria outra que fosse assistente social? Informou-se discretamente e o que ouviu a respeito de Ivone Abran foi tão favorável, que resolveu fazê-la intervir.

Ivone foi chamada ao gabinete do professor, mas não se admirou muito por isso. Estava habituada a fazer inquéritos de toda a ordem e mais de uma personalidade de Rennes recorrera à sua experiência, ao seu tacto, à sua incansável dedicação. Supôs que Martinho Brunoy quisesse apontar-lhe qualquer estudante, rapaz ou rapariga, que estivesse na miséria; não seria o primeiro caso. A menos que se tratasse de qualquer aflição de ordem moral. Robusta e senhora de si, essa rapariga estava preparada para tudo, menos para ouvir falar da sua jovem cunhada e amiga. Martinho Brunoy fê-lo em termos justos e delicados, dando a compreender a estima em que tinha Maria Violeta, a par da sua inquietação por vê-la assim requestada por um moço que não era de confiança.

- O que me inquieta ainda mais é que me parece que esta rapariga está sob a influência de um dos meus colegas, de idéias muito avançadas; o último trabalho, escrito por ela, denotava a perda da fé. E digo "a perda", porque sei como a sua família e a dela estão presas aos princípios religiosos. Privada desses elementos, que formaram e alimentaram a sua personalidade, o que irá ampará-la? Ela é um desses espíritos muito complexos, prontos a adoptar, quase simultaneamente, idéias absolutamente opostas.

Ivone ouvia-o, desolada:

- A fé está profundamente arreigada na nossa família. Como havíamos de supor que a mulher de meu irmão, tão doce e tão dócil na aparência, estava a desviar-se dela? Eu devia ter dado mais importância aos reparos de um dos meus irmãozitos, uma criança muito observadora, que me disse ultimamente: "Maria Violeta não comunga nunca". "Que sabes tu disso? - respondi-lhe eu, impressionada por essa observação. - Tu não vais a todas as missas". Então ele acrescentou: "Em todo o caso eu vejo-a na missa cantada, no seu banco, ao lado de Miguel. Mas não reza". Reconheço que este pequeno é muito intuitivo. Além disso admira Maria Violeta apaixonadamente. Agora arrependo-me de não lhe ter dado atenção. O que hei-de fazer, Sr. Professor?

- Antes de mais nada é afastar o tal rapaz do seu caminho. No sábado de manhã saem juntos do meu curso. Saia-lhes ao encontro, dirija-se à Sr. a Abran e leve-a para almoçar consigo, se estiver livre do seu serviço social, e diga-lhe que o seu camarada não merece confiança. Folgazão, céptico e bom falador, depressa lhe abalará o equilíbrio. Não há tempo a perder. Esta jovem atravessa uma crise de ordem intelectual e talvez, também, de ordem moral. Os meus ensinamentos não podem chegar para dar-lhe estabilidade. Faço o mais que posso, mas a senhora sabe tão bem como eu que o nosso poder sobre outrem tem limites muito apertados. A senhora é amiga dela, é irmã... Ainda uma palavra - mas receio ser indiscreto e peço-lhe, simplesmente, que reflicta nesta pergunta: por que motivo uma senhora tão nova, bonita, bem casada, se afasta de casa? O casamento teria sido para ela uma decepção?

Ivone, inteiramente desconcertada, ficou silenciosa alguns instantes. Andava à procura... Na família, todos estavam habituados a considerar o casal perfeitamente feliz. No fundo, não era lógico que ela fosse a Rennes tantas vezes.

- Naturalmente ela sente-se aborrecida... penso eu. Desejava muito ter filhos. E enquanto está à espera deles, não tem em que ocupar-se... No entanto foi criada na nossa vila e não parece desejar ir morar para outro lado. Tem uma vida oca, é só isso.

- Mas então o cuidado da casa, o auxílio inteligente que desse ao marido, como médico, não podiam preencher esse vazio?

- Diz bem... mas a mãe vive com eles e conservou a direcção da casa. Quanto ao marido... meu irmão é um homem de saber, muito preocupado com pesquisas de laboratório. Ao mesmo tempo anda estafado com a rude actividade de um médico de província e teve de contratar uma assistente. A situação é esta: a Sr. a Lê Fort é a dona da casa e é quem tem o encargo da escrita e das contas do consultório, e quem toma conta das comunicações telefônicas, enquanto uma empregada de laboratório, ainda nova, ajuda meu irmão nos seus trabalhos,

- E então ao que fica a minha aluna reduzida no meio disso tudo? O marido ainda não viu que ela é dotada duma inteligência superior? Ainda não, sem dúvida. Senão não a deixaria nesse vazio... Minha senhora, creio que nós ambos nos entendemos. Só a senhora pode reparar o mal já feito e impedir que ele se agrave. Corte de vez a camaradagem que achei necessário apontar-lhe.

Em seguida... uma assistente social deve saber encontrar a maneira de rectificar uma situação falsa e de levar essa jovem a ocupar o lugar que ela merece.

Ivone saiu de lá perturbada: "É isso, preocupamo-nos com os estranhos e abandonamos os nossos... Eu devia ter sido mais previdente, em lugar de adoptar a opinião tranquilizadora de toda a família: "Miguel e Maria Violeta? Têm tudo o que querem. São felizes". Só Gildas é que descobriu que havia qualquer coisa que ia mal. Mas o avô, como é que o avô não viu nada?"

Sim, o avô tinha visto, mas ele só falava do que via depois de fazer o seu juízo. Considerava inútil e perigoso fazer notar a evolução de Maria Violeta ao clã familiar. Só um estava de acordo com o ancião para se inquietar e rezar: Gildas, o mais novo de todos.

Porque Gildas tinha a clarividência de certos seres muito puros e um sentido sobrenatural que lhe substituía a experiência. O rapazinho enfermiço, susceptível e tímido, transformava-se pouco a pouco num apaixonado pela causa do Cristo. Queria ser padre e, enquanto esperava por isso, queria ajudar os outros com as suas preces e com esses "pequenos sacrifícios" encantadores, cujo segredo as crianças generosas possuem. Joana Abran seguia com emoção os seus progressos espirituais, tão rápidos. Quanto a Aliette e a João Maria, sentiam-se admirados com aquilo, troçavam um pouco e não faziam a menor tentativa para seguir o irmãozito na sua via de generosidade, uma generosidade cuja amplitude eles nem mesmo podiam apreciar, na sua irrequietude descuidosa de garotos sedentos de viver, bem distantes da idéia de sacrifício.

O desabrochar para o alto da alma de Gildas tivera um nítido ponto de partida: datava da morte do Dr. Lê Fort. A pedido da mãe, orara muito para que o doutor morresse reconciliado com Deus. E - na expressão da sua linguagem ingênua "oferecera coisas". Que coisas? Nunca ninguém o soube, nem mesmo a mãe. Mas o doutor morrera religiosamente e Gildas, então, com todo o ardor, agradeceu a Deus e buscou o coração do Cristo... E ele, o menino que "oferecera coisas", foi aceito, recebido, abençoado e ouviu o chamamento para o sacerdócio. Desde então, vivia, na aparência, como todos os rapazinhos, mas, interiormente, como um pequeno santo.

Mas bem pequeno era ainda, esse pequeno santo, para suportar os cuidados de todos aqueles por quem rezava e oferecia. A mama, assoberbada de trabalho, nem sempre tinha tempo para ouvi-lo. Felizmente havia uma pessoa que podia e sabia ouvi-lo: o avô. Tinham adquirido o costume de confiar um ao outro as suas observações e as suas impressões enquanto a mãe lavava e arrumava a louça, depois das refeições. Foi assim que o velho Sr. Abran, que já não saía, soube por Gildas que Maria Violeta abandonava os seus hábitos religiosos e parecia triste. E, sorrindo, para disfarçarem a emoção profunda que sentiam, empreenderam ambos uma cruzada de orações. Ambos, sim: o velho, de corpo alquebrado, mas rico de experiência adquirida bem caro, e o menino, frágil de corpo, mas de alma magnificamente generosa. "Por Maria Violeta" - era a divisa. E para lá de Maria Violeta, o Sr. Abran via Miguel, porque sabia como os homens são e quais são as suas fraquezas.

Maria Violeta nem mesmo suspeitava de que em torno dela, que procurava evadir-se do círculo da família e das tradições, se entrelaçavam essas preces, Gildas gostava tanto dela, da mulher de Miguel, tão suave e tão bonita! Desejava tanto que ela encontrasse, de novo, o seu riso de outrora, fresco e musical! E antigamente ela jogava às escondidas com ele, como se fosse uma menina. Todavia, já não era uma menina, era uma damazinha encantadora.

No domingo seguinte Ivone chegou, decidida a falar com o avô. "Numa ocasião em que a mama não estiver; é inútil estar a apoquentá-la". Era curioso verificar-se que, por mais velho e doente que o avô estivesse, ninguém pensava em poupá-lo aos cuidados; pelo contrário, traziam-lhos todos. Há pessoas assim, que têm os ombros feitos para agüentar com os fardos dos outros... e Gildas, apesar da sua fragilidade, preparava-se para enfileirar entre esses carregadores de fardos.

Ivone expôs-lhe a situação em que Maria Violeta se encontrava e o plano sugerido por Martinho Brunoy.

- Resta saber se Maria Violeta me dará atenção. Não chegaremos tarde de mais por não termos visto logo as coisas?

- Tarde de mais? Não - disse o avô - porque ela sofre. É o costume e a indiferença que perdem as pessoas. Fala à pequena, com doçura e energia; com a tua profissão, sabes como hás-de fazer. Faz com que ela te fale de Miguel. Tenho a impressão de que parecem de perfeito acordo, mas que não estão. Escuta... Vamos entregá-los ambos a Gildas.

- A Gildas? - fez Ivone, abrindo uns grandes olhos de espanto.

- Sim, não julgues que estou maluco. Entregamos os dois a Gildas, para ele rezar. Num caso destes é preciso rezar muito.

 

ERA um facto consumado: o comboio levava Margarida para a Bretanha.

Bem instalada num canto da carruagem, experimentava aquela lassidão de corpo e de espírito que é costume sentir-se nas viagens que se empreendem sem prazer. Nada mais tinha a fazer que deixar-se levar. No cais da estação de Montparnasse, onde se trocavam tantas palavras e gestos de adeus e tantas recomendações, pareceu-lhe triste partir sem a assistência de ninguém, sem uma mão que acenasse à portinhola: uma mulher sozinha, era toda a extensão da palavra. No entanto, ia ao encontro duma família. Tinha uma família, aumentada ainda pela família Abran, que lhe oferecia esse quase parentesco das amizades antigas e profundas.

Tantas pessoas e tantas coisas que a esperavam Assim que o comboio mergulhou nos campos, em que a Primavera verdejava timidamente ainda, os pensamentos surgiram-lhe numa aluvião. Em Paris, deixava poucas coisas que a prendessem: o patrão, inteligente e benévolo, alguns clientes habituados a ela e por quem ela se interessava, o parque Monceau, em pleno fluxo de seiva e onde os melros assobiavam jovialmente, os grandes concertos em que ela se afundava completamente no sonho... O patrão concedera generosamente quinze dias de licença. "A enfermeira substitui-a nestes dias. É claro que isto é maneira de dizer: separa-as um abismo e eu terei de ouvir as queixas dos doentes, privados do seu acolhimento. Mas eu próprio também vou ausentar-me pela Páscoa. Portanto, demore-se na Bretanha sem escrúpulos. Vai fazer-Lhe bem, Margarida".

Era um belo patrão. Gostava de trabalhar com ele, como outrora gostava de ter trabalhado com o pai. Fora uma sorte ter encontrado aquele emprego. As pequenas maldades e invejas da enfermeira não a incomodavam; recebia-as com desdém, como sempre fora a sua reacção perante as coisas mesquinhas. "Vá lá, orgulhosa!" - dizia-Lhe antes Rosa Teresa, não sem razão, reconhecia ela. Esse mesmo orgulho, porém, não fora a sua força após o desabamento da sua ventura? Era ao orgulho que ela se agarrava, como a flor cortada que um arame sustenta artificialmente no ramo. E felicitava-se por ser orgulhosa. De contrário, o desmoronamento da sua personalidade não se teria seguido ao desmoronamento da felicidade? "Consegui resistir. E continuarei a resistir. Não quero que em Plémeur me lamentem e me julguem diminuída".

Levava lindos vestidos, que dissimulavam com arte a sua desventura. Ia admiràvelmente penteada.

E num instituto de beleza tinham-lhe aconselhado o pó e a pintura que devia usar para melhor dissimular o defeito.

Recordações, muitas recordações desfilando ao longo dos carris, contadas pelo ritmo das rodas... O cego e o seu pedido de casamento, que nela havia provocado um despertar tão estranho da sua sensibilidade. A Sr. a Delarue e as suas mesquinharias, as suas perguntazinhas e o seu despeito por esbarrar com uma Margarida distante e reservada, A casa a cheirar a coisas velhas e gastas. "Queria fugir daquela atmosfera malsã e triste. Queria viver com móveis meus. Queria ver-me livre daqueles retratos fora da moda de pessoas mortas há muito, cujo nome ignoro, que me seguem com o olhar em qualquer ponto do quarto onde eu me encontre e que parecem censurar-me por estar em casa deles". Evocou a visita da mãe, a um tempo inquieta e na expansão plena de todas as suas possibilidades, ainda bela, duma beleza de Outono, que torna certas mulheres tão atraentes. "Pobre mama, tão desejosa de unir-se ao herói de romance da sua juventude! Que encargo ela me deu! Fazer com que Maria Violeta chegue a admitir que o papá pode ser substituído... Consegui-lo-ei? E no caso de a pequena se opor, a mama saltará por cima disso? Casarão mesmo contra a vontade das filhas? E depois não será infeliz toda a vida por as ter magoado e afligido a tal ponto?"

Chartres passa... as vastas planícies da Beauce, à espera dos trigos, e a catedral dominando as casas baixas... Lavai a subir, em degraus, pela colina... A paisagem vai-se tornando mais severa; sente-se já a Bretanha. Oh como Rennes está próxima! É em Rennes que vão esperá-la, de automóvel. Quem irá? Miguel? Maria Violeta? A mama vai também, sem dúvida. O coração bate-lhe; aproxima-se do espelho mural da carruagem e põe um pouco de pó, aviva o vermelho dos lábios, põe, com todo o cuidado, o chapelinho bonito. A primeira impressão tem muita importância, quando as pessoas tornam a encontrar-se depois duma longa separação. Não quer que se diga: "Como ela está mudada... envelhecida... feia!" A mãe viu-a recentemente, mas quanto às irmãs passaram já anos. Maria Violeta está casada: que aspecto terá dado o casamento a essa criança? Terá ainda os olhos sonhadores e os cabelos compridos soltos em ondas pelo colo branco? E Miguel? Ah! era preciso tornar a vê-lo e parecer muito natural. Beijá-la-ia? Um beijo de irmão... e outrora eram beijos apaixonados que ele lhe dava. Beijava-a na face que ficara intacta e bonita, e na outra, que já ninguém beija, também... e na boca, agora deformada... na testa, atravessada por uma cicatriz... Miguel beijá-la-ia? Poderia fazê-lo, recordando-se da beleza sadia da que fora sua noiva?

O comboio abranda a marcha... ela reúne a bagagem... Um carregador ajuda-a a descer, pega na mala grande, de couro macio, e acompanha-a até à saída. O homem vai muito depressa e Margarida já não pode andar com aquele desembaraço; então ele não vê? Não, ele vê-a nova, bem vestida; uma aleijada não veste com tanta elegância. Degraus a descer, um corredor subterrâneo, degraus a subir... Todos andam com rapidez, cheios de pressa de se encontrarem com aqueles a quem amam e que espreitam a sua chegada, examinando os viajantes um a um.

Margarida só queria poder demorar esse momento. Quem estaria a aguardá-la, de olhar fito no caudal humano que ia saindo? A mãe? Maria Violeta? Miguel?

Avistou a mãe, mais alta que a maioria das pessoas. E a mãe fez-lhe sinal com a mão, a chamá-la: "Por aqui!" Atrás dela, um rosto delgado, de olhos patéticos: Maria Violeta. Mas como aquele oval infantil se modificou! E os olhos cor de violeta têm um círculo. Mas sempre linda, apesar de tudo, a sua irmãzinha, já diferente. Louvado seja Deus! Miguel não veio.

- Mama! Maria Violeta!

Pegam nas malas, pagam ao carregador. A mãe leva-a para o automóvel. Um belo carro novo, todo brilhante. Maria Violeta senta-se ao volante.

- Então agora gostas de conduzir? Antigamente isso não te agradava nada.

- Era tonta-respondeu Maria Violeta, atenta ao caminho.

- O teu penteado e os teus vestidos são sempre muito à tua maneira - observou Margarida, para dizer alguma coisa. - Tens razão. Fica-te bem, assim.

- Tu, então, vens toda chique! - replicou a mais nova. - Uma verdadeira parisiense. Eu continuo a ser uma selvagem. A nossa pobre mama não conseguiu nunca inculcar em mim o sentido da moda.

Vam-se trocando frases ocas, tolas, que em geral acompanham sempre os regressos, depois de uma longa ausência. A viagem foi boa? O comboio vinha muito cheio? Almoçaste bem no vagão-restaurante? Como vai o tempo por cá? Coisas que nada querem dizer e que apenas servem para disfarçar o vazio à espera de frases verdadeiras.

Além disso, Margarida não tinha vontade de falar. Olhava. Pensava. Sentia. As recordações assaltaram-na durante todo o caminho, tantas vezes percorrido na sua infância e na sua juventude. Tanto que ela gostava de passear! Aproximam-se de Plémeur. Está perto uma encruzilhada, terrivelmente receada. Era ali que ela ia, nessa tarde de Outono em que o poente era de ouro e púrpura, com um ramo de estevas no guiador da bicicleta e uma canção bretã na boca fresca. Observou as mãos de Violeta, no volante, aquelas mãos finas, calçadas em luvas de couro... Maria Violeta fez uma mudança rápida de direcção, que aumentava o caminho. Também ela pensava sempre naquilo? E a mama pensava nisso, também, sem dúvida, porque se pôs a falar nervosamente, muito depressa, para dizer coisas que não significavam nada.

A "Casa de Baixo", a casa dos Abrans: é impossível não passar-lhe em frente. Olha, é a hora da saída da escola. Nota-se um rapazito sossegado, entre a nuvem dos garotos que gritam e correm.

- Não é Gildas? - inquiriu ela. - Que crescido e que forte!

- Miguel trata dele muito bem - disse Susana.

- Fez nele uma cura admirável.

Era a primeira vez que se falava no nome de Miguel. "Talvez a mama o tivesse feito de propósito para eu me habituar a ouvi-lo".

Gildas parara para ver afastar-se o automóvel guiado pela sua querida Maria Violeta. E quando disse em casa: "Vi chegar Margarida", a mãe observou: "Pobre pequena! O regresso a casa deve emocioná-la muito!" O avô não disse nada. Fechou os olhos, para que a sua alma ficasse bem no silêncio. Gildas fazia também o mesmo, muitas vezes. Os outros não sabiam porquê. João Maria e Aliette troçavam dele: "És um macaquinho de imitação. Estás a imitar o avô". Mas ele não respondia; não era preciso. Eles não compreenderiam. A própria mãe perguntava: "Porque fazes tu isso? Doem-te os olhos?" Se ele pudesse, responderia: "Procuro Alguém que vem ter comigo". Mas não, esse Alguém prefere que se fique só com Ele, sem se revelar o belo segredo da presença divina.

Enquanto isto se passava, o carro diminuiu o andamento para subir a encosta. Já havia árvores em flor...

- Quando chega Rosa Teresa, mama?

- Na quinta-feira. O baptizado faz-se no Domingo de Páscoa. Um dia bem escolhido, não é?

- Muito bem-respondeu Margarida, enquanto pensava: "Para mim é o mesmo".

A rua, com as suas velhas casas... as lojas, a igreja de belos vitrais azuis - a igreja do seu baptizado, da sua primeira comunhão, do seu noivado e onde deveriam celebrar-se as núpcias... Acolá a Casa, de sólido granito. Tinham pintado de novo as madeiras das janelas. Muito leve, Maria Violeta apeou-se, abriu a porta para ajudá-la a descer - Obrigada! Não é preciso! - e depois ajudou a mãe, que deu o braço a Margarida: "Entra, minha querida!"

Oh! o cheiro da sua casa, aquele cheiro inalterável, indefinível, em que se mistura o odor da cera e o perfume de Susana. Tudo rebrilha, desde a entrada: o chão, os móveis, os cobres. À porta da cozinha, Corentina aparece, aureolada pela sua touca mais bonita. Tem uma cara de cerimônia, mas Margarida vai direita a ela e abraça-a:

- Corentina, é sempre a mesma. Que contente eu estou por tornar a vê-la!

- E eu também, menina.

Tinha os olhos molhados. Fez, também, as perguntas tradicionais a respeito da viagem. Porém, o seu coração fiel dizia outras palavras, baixinho, todo agitado pela emoção de tornar a ver, de pé, quase igual a toda a gente, aquela que saíra de casa deitada numa maça, levada por dois homens, sob a vigilância da menina Ivone. Quase igual a todos. Mas sem estar, na verdade, igual. E para encontrar ocupado o lugar que lhe pertencia.

Corentina preparara a merenda.

- Lembra-se, então, de tudo aquilo de que eu gosto? Que bom, tomar chá nas lindas chávenas cá de casa!

- Não quebrei nenhuma - anunciou a bretã orgulhosamente. - Vai encontrar tudo o que havia antes.

Depois de guardar o carro, Maria Violeta voltou para ao pé delas. Margarida achava que ela perdera um pouco a graça que tinha, mas que continuava bonita, mais bonita, mesmo, porque o rosto adquirira-lhe uma expressão - como defini-la? patética. Os seus gestos, a sua maneira de falar, não eram já infantis. A própria voz, aquela voz argêntea que tanto encantava o pai, tinha entonações diferentes. A menina da casa convertera-se numa mulher. Fora Miguel que a fizera mulher... Iriam falar de Miguel? Deveria ser ela a primeira a falar dele? Pedir notícias dele? Mas as palavras não lhe saem da garganta. A mama é que resolveu a questão. Viu as horas e disse:

- Miguel não tarda aí.

Mas por que razão era ela e não Maria Violeta que estava ao corrente do que se referia a Miguel?

Maria Violeta apenas tocou nas guloseimas preparadas por Corentina.

- Tu comes tanto como antigamente - notou Margarida.

- Ela? -interveio Susana. -É um pisco. Creio que ela cada vez tem menos apetite. Miguel diz que lhe falta mudar de ares.

- Só há um que me fazia bem: é o ar de Paris.

- Tu? - admirou-se Margarida. - Recusaste sempre a ir a Paris.

- Mas agora tenho vontade de ir... Além disso, tu estás lá - ajuntou ela.

- Havemos de tratar disso. Espero arranjar outra habitação. Sinto-me asfixiar em casa da Sr. a Delarue, no meio de todas aquelas velharias, e ela própria me irrita. O meu patrão já me prometeu arranjar-me outra coisa. E logo que eu esteja instalada à minha vontade, mando-te ir, Maria Violeta. E estás lá o tempo que tu quiseres.

- Obrigada! És tão gentil!

Uma tinta rósea se espalhara sobre aquele rostinho pálido. Parecia verdadeiramente satisfeita. A mãe, porém, enervara-se. "Se Maria Violeta fizer uma ausência prolongada, como posso eu ir-me embora? Quem é que trata de tudo? Decididamente, os meus pobres projetos estão muito comprometidos ".

Mas as três mulheres apuraram o ouvido: o ruído de um motor. Miguel regressava... Cada uma delas sentiu-se emocionada, de maneiras muito diferentes, mas, no entanto, quase no mesmo grau de emoção. Como iria dar-se o primeiro encontro daqueles que tanto se tinham amado? Qual seria a atitude de Miguel Abran, ex-noivo de Margarida, esposo de Maria Violeta, dona daquela casa?

Primeiramente ele foi ao seu gabinete - naturalmente! pensou Maria Violeta com amargura; e a expectativa enervante prolongou-se num silêncio que ninguém pensava em disfarçar com palavras. com que força as duas irmãs sentiam bater o coração!

Por fim, sentiram aproximar-se uns passos de homem e Miguel apareceu aos olhos de Margarida. Era o Miguel querido dos seus dias de noiva, e ao mesmo tempo não era ele. O corpo engrossara-lhe um tanto, enquanto os traços do rosto tinham endurecido mais. Tinha já uma ruga na testa. Percebia-se perfeitamente que ia a caminho da maturidade.

Margarida fez um esforço para sair da poltrona em que estava e ir ao seu encontro. Ele teve um momento de hesitação, breve, mas patético; e depois, simplesmente, fraternalmente, beijou-a. Na fronte... e tão ligeiro foi esse beijo, que ela mal o sentiu. Informou-se - ele, também - das condições em que ela fizera a viagem, afirmou que toda a família se regozijava por a ter consigo durante algum tempo e fez o elogio do Dr. Bernardo Laugier. E depois... não acharam mais nada para dizer.

Virando-se, então para a sogra, Miguel fez as perguntas habituais: o telefone, as cartas, os papéis administrativos. De espírito alerta. Margarida, um pouco indignada, pensava: "Decididamente não é Maria Violeta que desempenha as funções de secretária. Está relegada para segundo plano. Já o suspeitava, sem pensar que era a este ponto. Mas, afinal, no que pensa a mama? E Miguel? Ela tem de aborrecer-se terrivelmente. Não é nada de admirar que ela tenha recomeçado os estudos e que vá a Rennes tantas vezes. Eu, no seu lugar... "

Era-lhe, porém, muito doloroso imaginar o que teria feito em "seu lugar". O lugar que devia ser o seu. Assim, pois, da sua herança de morta-viva, Maria Violeta não recebera tudo. Recebera o mais querido, o nome, a casa. Mas autoridade, nenhuma. E amor, teria?

"É impossível amar-se duas vezes como ele me amou. E esta garota não deve saber amar como eu amava. À união deles, de certa maneira, talvez seja feliz; ignoro-o ainda. Mas a felicidade deles, se existe, não tem, com certeza, semelhança alguma com a que nós já gozávamos como noivos, enquanto aguardávamos as expansões do casamento. "

Não ousava regozijar-se com aquilo. E, no entanto...

À mesa, tornou a ver que era Susana que mandava. Mas sem o menor tom autoritário; o genro e a sogra pareciam achar aquilo absolutamente normaf; um e outro falavam a Maria Violeta com uma bondade atenciosa, como se falassem a uma criança sensata.

Margarida, porém, surpreendeu um estranho olhar da irmã cravado em Miguel, que estava a falar com Susana de assuntos profissionais; e esse olhar não era, de maneira alguma, o duma simples criança sensata. Um instante depois, o rosto juvenil retomara a suavidade do costume; mas, desde então, Margarida teve a certeza: a pequena sofria. E Miguel não a compreendia.

Era extraordinário! Um mês antes ela teria experimentado uma espécie de alegria maldosa: se Maria Violeta não a substituíra completamente, tanto melhor! Mas, então, o que se tinha passado nela para que a sua sensibilidade a fizesse vibrar de piedade pela irmã desditosa? Fora a visita do cego que fizera estalar a camada de gelo? Ou fora a florescência do parque Monceau que estimulara a seiva a circular? "A margarida tornara a florir". Porque falara assim esse rapaz, cujas propostas tão leais ela repelira? Terão uma visão misteriosa do mundo interior aqueles que não vêem o mundo exterior? A alma de Margarida aguardava, sem dúvida, as palavras pronunciadas nessa tarde por Estêvão Rollin. Algo havia nela que essas palavras tinham libertado. E apesar de se defender ferozmente contra todas as formas de enternecimento, ela sentia o enternecimento a derramar-se em ondas pelas regiões ressequidas da alma. Ah a Casa, aquele cheiro da Casa!...

- Preparámos-te o teu quarto antigo - disse Maria Violeta. - Se já não te sentes cansada queres que vamos lá acima?

Susana erguera-se também para acompanhá-la. Margarida, porém, deteve-a.

- Deixa-te estar tranqüila, mama. Maria Violeta ajuda-me a acomodar-me.

No fundo, Susana não fazia grande empenho em acompanhar aquela filha, cujas reacções temia. E depois, como ela dizia desastradamente, - ficara-Lhe "trabalho de Miguel por fazer", fórmula que desagradou bastante a Margarida, Maria Violeta subiu a escada à frente da irmã. "Por delicadeza, decerto. Se subisse atrás de mim via-me arrastar a perna e supõe, naturalmente, que eu ficaria aborrecida por isso".

- Aqui está o teu quarto - anunciou Maria Violeta com meiguice. - Fiz umas pequenas modificações para ele ficar mais confortável. Só desejo que tu te sintas bem nele e que fiques cá muito tempo.

A voz tremia-lhe um pouco. Tinha uma vontade enorme de se agarrar àquela irmã espoliada da sua beleza e da sua felicidade, felicidade que ela parecia ter-lhe arrebatado. Não ousava, porém, fazê-lo: as cartas de Margarida eram tão breves, tão secas...

Mas, a mais velha, depois de ter dado uma volta pelo quarto e de ter voltado a ver tudo o que a fizera ditosa e, em seguida, desventurada, em lugar de esperar compaixão por ela, a despojada, teve compaixão da irmã mais nova, cumulada, aparentemente, de todos os bens que a mocidade pode almejar. Não foi, porém, sem esforço; todavia, conseguiu fazê-lo e foi a primeira a ir ao encontro de Maria Violeta e a estender-lhe os braços, deitando no seu ombro aquela cabecinha adorável.

- Minha querida irmã! - suspirou Maria Violeta.

E foi tudo. Estiveram assim longo tempo enlaçadas, de almas ainda mais perto que os corpos, se bem, que afinal, cada uma dessas almas ignorasse o que se passava na outra. Depois, Margarida dirigiu-se para a janela e abriu-a, para inundar os olhos da paisagem. O pálido céu bretão nacarava-se de tons róseos com a aproximação da noite primaveril. Via-se até bem longe. Os troncos das árvores polvilhavam-se de um verde levezinho. Um passarinho cantava. Nada mudara. Mas nesse imutável cenário, tinham-se passado tragédias.

Debruçou-se mais na janela, admirada de ouvir o ruído dum motor ligeiro, em frente da casa, pronto a arrancar. Uma rapariga em trajo masculino montou na bicicleta e partiu, os cabelos louros ao vento. Maria Violeta, que fora para junto da irmã e lhe passara um braço em torno da cintura, recuou.

- Quem é aquela? - indagou Margarida.

- É a menina Sicard, a assistente de Miguel

- respondeu-lhe a irmã secamente.

"Por este lado vamos mal!" - pensou a mais velha. Mas já Violeta se oferecia para ajudá-la:

- Deixa-me desmanchar-te a mala. Depois desta viagem deves estar cansada.

- Mas eu é que não tenho confiança em ti. Já sabes que tenho cá as minhas manias. Sei lá se és capaz de arrumar-me tudo à minha vontade...

Maria Violeta recuperou o seu riso de outrora, aquele riso que lhe descobria os dentes pequeninos e encantadores.

- Mas tu julgas que me esqueci das manias das minhas irmãs? Rosa Teresa e tu tinham sempre uma caterva de coisas e consideravam-me, então, uma selvagem, porque eu nunca tinha nada.

- Rosa Teresa, que se tornou uma mulher chique, deve ter agora muitas outras exigências.

- Nem me fales nisso! - suspirou Maria Violeta, empoleirada, como antigamente, no braço duma poltrona. - Até me faz medo. E vai trazer a ama. Estás a perceber? Como vamos nós contentar essa gente? Rogério, o marido dela, não é exigente, creio eu. Um rapaz muito amável. Mas Rosa Teresa e a amai Tu, que és uma parisiense, é que nos vais valer, não é verdade?

E pôs-se a tagarelar com tanta alegria, que Margarida pensou: "Devo ter-me enganado. Não se modificou. A sua situação anormal não a faz sofrer. É sempre a mesma Maria Violeta. Mas espera-a um rude golpe quando eu a puser ao corrente dos projectos da mama. Pobre pequena!"

Outra vez o mesmo enternecimento: "Mas o que é isto? Que tenho eu? "

Fez-se rígida. Maria Violeta sentiu-o e, repentinamente intimidada pela irmã, disse:

- Agora deixo-te sozinha. Quando o jantar estiver na mesa, venho chamar-te.

E Margarida ficou só no seu quarto, onde a sua juventude tanto sonhara e tanto sofrera. Em cima da cômoda, uma fotografia do pai contemplava-a. "Papá! "-murmurou ela. E pôs-se a chorar.

 

MARGARIDA e Maria Violeta observavam-se mutuamente. Era impossível deixarem de fazê-lo. E cada uma delas pensava: "Acho que não há mal nenhum nisso, preciso de saber... Observavam-se ambas a propósito do mesmo ser: Miguel.

"Lembrará ele sempre minha irmã? - perguntava a si mesmo a jovem esposa. Era nisso que consistia o seu tormento oculto. - As suas saudades terão despertado depois de ela estar a viver connosco? É certo que está feia, mas quem sabe se já assim, marcada, ela não lhe parece ainda mais atraente? Em todo o caso, ele há-de recordar-se de que ela era formosa, forte, alegre e há-de compará-la com a pálida Maria Violeta, a "rapariguinha" que ele não tomou nunca a sério. "

E a outra interrogava de si para si: "Maria Violeta será feliz? Fui má e cheguei a temê-lo. Mas presentemente, não... Queria que ela fosse feliz. Mas tenho medo de que eles nunca se tenham unido nem compreendido, apesar de serem marido e mulher. E, depois, há a história da mama.

Como hei-de eu tocar nesse assunto à pequena? Se ela fosse bastante feliz, sofreria muito menos com esse atentado ao culto que votou ao papá. Mas tenho a certeza de que este coração desamparado cada vez se agarra mais àquele que ela amou e chorou com tanta paixão... "

Margarida foi timidamente interrogada pela mãe:

- Já falaste a tua irmã? Esperas persuadi-la de que eu não cometo falta nenhuma?

Ao que Margarida respondeu:

- Hei-de falar-lhe depois do baptizado. Neste momento não convém haver complicações. Todos nós precisamos de calma para receber Rosa Teresa e fazer a festa do bebê.

- Tens razão... Mas depois não nos vais deixar logo... Senão, o que vai ser de mim, sozinha com essa criança perturbada pela notícia e, talvez, revoltada?

- Mama, porque hás-de dizer sempre: "essa criança"? Maria Violeta é uma mulher. E aqui esquecem-se muito disso. É desesperador para ela.

- Achas? Mas a nós parece-nos bem poupá-la a cuidados, amimá-la, proporcionar-lhe uma vida muito suave.

- Nós, quem?

- Quem há-de ser? Eu e o marido. Reparaste como ele lhe fala gentilmente, quase paternalmente.

- É ridículo, ora aí está - declarou Margarida com dureza. - Não compreendes mesmo nada desta situação, minha pobre mama. E isso admira-me.

Bastante melindrada, Susana agastou-se:

- Compreendo-a até muito bem. Sofri mais de vinte anos as dolorosas reacções de teu pai e acho que o bem mais desejável para uma mulher é ser tratada com doçura e bondade.

- Ah! se isso é um elemento de felicidade, penso que temos o direito de esperar outros do seu jovem marido. Mas, evidentemente, tu podes dizer-me que não percebo nada disto!

Vendo-a quase a chorar, Susana tornou-se mais doce.

- Perdoa-me, minha pobre querida! Andamos todos enervados. Salvo Maria Violeta, que conserva a sua adorável serenidade. Bem vês que não lhe falta nenhum elemento de felicidade, como tu dizes, tu, que tão bem falas.

Margarida desviou a conversa. Então, a mãe, absorvida pelo seu romance de Outono, não reparava nas alterações de fisionomia da pequena? Aquele olhar que se tornava distante e triste, aqueles lábios que se apertavam? "Não lhe falta nada": - fórmula que teria valor para uma criança cheia de brinquedos e guloseimas. A verdade era que, para eles, Maria Violeta continuava a ser uma criança.

"Não torno a falar neste assunto. É inútil. De resto não faltam temas para conversar. "

Na tranqüila "Casa de Cima" tudo estava em confusão.

- O que aí vai para receber Rosa Teresa! resmungava Corentina. - Ora estai Não parece que vai chegar cá uma princesa? Princesa pelo dinheiro, aí está! Porque pelo coração talvez não valha as outras duas. Eu, então, acho isso bonito, vê-las darem-se bem. Podiam ter ciúmes uma da outra. No fundo, talvez tenham, cada uma perguntando a si mesma se ele terá esquecido a primeira noiva. Mas, se assim é, não se vê; são raparigas que sabem conter-se... Eu estava a julgar que Margarida já não era amável. Diziam tanta coisa... que ela estava revoltada contra a sua infelicidade, que não queria ver ninguém, e não sei que mais... a família... que tinha abandonado a religião... Lá a religião não se sabe; o que está no coração não se vê e o bom Deus não julga como as pessoas. Mas a pequena também parece que está a perder a religião, quando ela era tão piedosa, quase um anjo. Vai sempre à missa - se não fosse faria escândalo -, mas já não toma a sagrada comunhão. Também não se sabe o que há dentro daquele coração. Eu desconfio muito do que há. Mas a mãe não vê nada... Isto de ser-se ao mesmo tempo mãe, sogra, avó e namorada, é difícil, pois então! Por mim, entendo que o tempo dela já passou. Mas em Lorient tem o namorado à espera... Quando é que será o casamento? Ele já mandou arranjar a casa. Pobre senhor, lá debaixo da terra! Mesmo assim, tão depressa substituído... Mas isto de sonhar já chega; vamos lá brunir tudo para a princesa Rosa Teresa. Só o que dá prazer é pensar que vai haver um bebê no berço das pequenas. Mas eu gostava mais que fosse de Maria Violeta. Pobre pequena, há-de fazer-lhe pena ver em casa uma criança que não é dela!

Um carro grande e rutilante. Rosa Teresa sai dele, tão fresca como dantes. Atrás dela sai a ama, segurando um pequeno volume branco: Annick adormecida. O marido, Rogério Ternier, que conduzia o carro, é o último a aparecer. Que jovem parece aquele rapaz tão alto! Tiram as magníficas malas da caixa porta-bagagens. Mas todos querem ver Annick, e a ama, autoritária e rápida, leva-a para dentro de casa, dando tempo, apenas, para se debruçarem sobre o pequenino rosto, onde uns olhos azuis e espantados despertam.

- É preciso pô-la de enxuto. São horas do biberão.

Dá ordens a Corentina, julgando que a touca que lhe vê faz dela "a criada". Mas, cuidado! Corentina não gosta nada de ser mandada, sobretudo por uma rapariga. E desapareceu, murmurando:

- Essas damas que se entendam todas. Como era natural, foi Susana quem tomou a iniciativa de guiar a imperiosa ama para o quarto que lhe fora destinado e ao qual se dera todo o conforto que era possível numa casa tão velha. A ama inspecciona tudo com o olhar desdenhoso e reclamou duas ou três coisas que lhe eram precisas e que Susana se apressa a levar-lhe, com um desejo louco de ver despir a neta. Mas a ama despede-a polidamente:

- Já não preciso de mais nada. Obrigada, minha senhora.

- Leva-a lá para baixo quando ela tiver tomado o biberão?

- A não ser que ela adormeça.

A ama espera que a avó se retire para começar a tratar da criança e Susana, um pouco triste, vai ter com os outros.

- A tua ama é um verdadeiro dragão, Rosa Teresa.

- É uma boa rapariga, afianço-te. E muito cuidadosa, muito competente. É muito rigorosa, é claro, e isso, às vezes, arrelia Rogério. Mas pode-se, com toda a confiança, deixar a menina à sua responsabilidade - o que é muito agradável, podes crer.

- Não sentes vontade de tratar dela tu mesma? Dá tanta alegria à mãe ver todos os dias os progressos de um bebê!

- Oh! nem eu sabia! Annick definhava-se... Além disso nós saímos muito e havia de me ser difícil cuidar dela com regularidade. Era preciso deixar o Rogério sair sem mim, do que ele não gosta nada. Não é assim, Rogério?

Rogério beijou a mulher, pediu-lhe um beijo e disse:

- Sabes bem que não gosto de nada sem ti. "Um casal feliz - pensou Margarida, sentindo uma espécie de angústia ante aquela felicidade jovem. - Rosa Teresa está num desabrochamento completo e nunca pareceu tão bonita. Ela sempre disse: "Para meu marido quero um rapaz novo, alegre, sem complicações e que ganhe muito dinheiro".

E tem tudo... Até já tem um filho. Pois, tem tudo. E eu não tenho nada. E a Maria Violeta creio que falta o essencial".

Entretanto, Rosa Teresa perguntava à irmã mais nova:

- Naturalmente, viemos impedir-te de seguir os teus cursos em Rennes, não? Parece que te embrenhaste pela filosofia, Maria Violeta, anh?

- As férias da Páscoa começaram e agora não há aulas.

- Que idéia, essa, da filosofia! Isso, para mim, só me maçava! Mas tu foste sempre considerada a intelectual da família. Eu, a jovial, dada às alegrias do mundo, e Margarida...

Calou-se. Iria a dizer, como outrora, a "desportista"? Era fútil mas boa rapariga e procurou remediar a frase:

- Margarida, afinal, é, também, uma intelectual. Mas no gênero do papá. Agrada-te o teu trabalho com o médico parisiense? Parece que é uma excelente pessoa.

Margarida deu alguns pormenores, que nada interessaram a irmã. Depressa esta passou a interjogá-la sobre a vida parisiense, que devia ser agradabilíssima. A resposta, porém, espantou-a.

- Ó pequena, mas tu imaginas que tenho tempo para andar em todas essas diversões que enumeras? De resto, a maior parte dos parisienses são, como eu, pessoas que trabalham muito e se divertem pouco. Aqui, na província, ninguém o imagina. Paris é uma cidade laboriosa e séria, sob uma aparência frívola. É preciso habitar lá para saber o que vale a sua vida profunda, a sua vida intelectual e espiritual. Da vida familiar não me atrevo a falar: quando se vive...

- Em casa de uma velhota, não é? Mas então tu não podes sair de lá?

- Estou a tratar disso; ela aborrece-me e não gosto da casa. Mas não é fácil encontrar-se alojamento. Entretanto, tornei o quarto o menos feio que pude, o que escandalizou a dona da casa. Além disso não nos entendemos muito bem. Ah! aí está a pequenita!

De facto, a ama chegava, trazendo um adorável bebê louro, com um vestido branco finíssimo.

- Vestimos-lhe sempre um vestido - explicou Rosa Teresa. - Esses fatinhos de malha, como todos os meninos trazem, são banalíssimos! A ama é perfeitamente da minha opinião e veste-lhe, de bom grado, toda a roupa interior necessária.

A cabecinha loura parecia ainda mais pequena e mais bonita emergindo daquela nuvem fresca de musselina. Sem poder conter-se - um bebê, lá em casa! - Corentina escapulira-se para o salão atrás da ama, com o pretexto de levar um resguardo para proteger as saias.

- Pode alguma das senhoras querer pegar na menina ao colo.

- É escusado! - declarou a ama. - A criança está bem arranjada. E agora posso tomar o meu chá?

Sem responder, Corentina mirou-a de alto a baixo desdenhosamente e pensou: "Esta conta ter criadas às ordens!"

- Corentina - disse Susana - prepara o chá para a ama na sala de jantar. E quem terá a alegria de pegar em Annick?

Mas os seus braços estenderam-se logo, enquanto que Margarida e Maria Violeta não esboçaram um gesto nem disseram: "Eu!" Tanto uma como outra temiam a emoção que o contacto daquele corpinho leve, que exalava um aroma fresco de bebê bem tratado, lhes imprimiria na carne e na alma. Duas mulheres sem filhos... Olhavam de longe, com cobiça. "Eu não devia cá ter vindo"

- dizia Margarida ferozmente, de si para si.

Miguel, quando entrou, olhou para a pequenina criatura como conhecedor. E, como conhecedor, admirou e felicitou. E talvez, também, simplesmente como homem desejoso de ser pai. Teve-a um bom bocado nos braços, sorrindo para aquela carinha curiosa e fazendo-a sorrir com espanto. E depois perguntou:

- Quem é que lhe pega?

Foi Susana, mais uma vez, feliz, esquecida, por alguns instantes, de que já não reservava todo o seu amor para as filhas e para os netos. A avó acabava de acordar em si.

Os cunhados aproximaram-se para conversar, mas sem saberem bem sobre o quê. Encontravam-se num plano muito diferente: Rogério, desportista e homem de negócios; Miguel, médico e homem de ciência. O seu modo de vida, as suas preocupações habituais, as suas ambições, assemelhavam-se bem pouco. E a sua vida conjugal também. Projectavam passeios para aqueles dias de férias, porque estavam na tarde de Sexta-Feira Santa e Rogério fechara a fábrica.

Horas de fervor intenso para quem reza. Joana Àbran e o pequeno Gildas tudo haviam levado aos pés da cruz.

À criança ia descobrindo novos aspectos do mistério divino e ia tendo uma consciência mais nítida das misérias do mundo. Falava dessas coisas com o avô e este, desejoso de moderar uma sensibilidade viva de mais para as forças daquele corpo, esforçava-se por mostrar-lhe, também, os motivos de esperança. E o rapazinho escutava, recolhia os ecos reveladores do amor do Cristo e das almas, o cuidado da justiça que, mau grado todas as baixezas e crueldades, conferia aos tempos modernos uma nobreza inteiramente nova. Mas nessa chamada "Semana Santa", o grande objecto das suas preocupações era Maria Violeta - Maria Violeta, que já não rezava.

- Ó avô, quando eu a vejo na missa, sentada no seu banco, afianço-lhe que não reza. Lê as palavras do livro só por causa das aparências... Levanta-se e ajoelha-se, como toda a gente, mas para ela é o mesmo. Julga que ela vai fazer a sua comunhão de Páscoa? E porque terá ela aquele ar tão triste? Miguel é muito atencioso com ela e a mãe também. Será por não ter ainda um bebê?

Como responder àquele pequeno inquieto? A tristeza de Maria Violeta tinha, sem dúvida, causas incompreensíveis para a sua alma de criança. "Rezemos por ela" - nada mais podia dizer. Quando o Sr. Abran via o seu neto mais velho, tentava levá-lo a fazer confidências: Miguel, porém, falava da mulher sempre com afecto, sem nunca fazer a menor crítica. Nem mesmo a respeito dos seus cursos de filosofia; e, no entanto, o Sr. Abran pensava que isso pudesse aborrecer Miguel. Não. "É uma coisa que a distrai e que lhe dá ocupação. A vida, metida num buraco, não é nada interessante para uma rapariga tão nova". Aquela indiferença não lhe parecia normal. Por outro lado, o nome de Mireille era bastas vezes pronunciado.

Essa rapariga, porém, desagradava muito ao avô.

"Não é o que se diz bonita, mas ainda é pior. É muito inteligente, mas dura. É ave de arribação. Muito capaz de tomar o lugar da esposa que, pouco a pouco, recua na sombra. E em meu entender a mãe é uma insensata por conservar a direcção da casa; priva, assim, Maria Violeta do papel que de direito lhe pertence. Gostava de conversar com Margarida sossegadamente e de saber como julga ela a maneira de proceder da mãe. Mas como se há-de falar-lhe de Maria Violeta? Deve ser um assunto muito doloroso para a pobre rapariga. "

Sábado de Aleluia. A angústia de Sexta-Feira de Paixão atenua-se. João Maria e Aliette chegam em gozo de férias. Ao entrar, de novo, na posse dos campos, "Coração Selvagem" parece um louco. Os ramos estão polvilhados de um verde tênue.

A terra cheira bem. Os ribeiros correm depressa e os melros cantam com força, continuamente. Ele escapa-se sozinho para os campos; os outros incomodá-lo-iam para se inebriar com o ar da sua Bretanha. E Aliette passa os seus vestidos em revista: como se vestirá para ir ao baptizado? Que desespero, que raiva ela cresceu, engrossou. Não consegue vestir o seu vestido encarnado, de que ela gostava tanto. Estava a chorar, revoltada, quando a mãe lhe declarou, com uma placidez exasperante:

- Leva a tua saia cinzenta, de pregas, e a blusa branca. Não é preciso inventar dificuldades.

- Mas as dificuldades existem! Rosa Teresa há-de ir chique como tudo. A Sr. a Lê Fort, também. E tu não vês que as pessoas miram por todos os lados as raparigas da minha idade? Eu já estou a ouvir daqui: "Já se fez mais bonitinha? com quem é que ela se parece? Oh! que mal-enjorcada! É um pau de virar tripas". Ou então é ao contrário: "Olha, está a fazer-se engraçada, a garota. Mudou duma maneira espantosa. Já se dá ares de rapariga". Eu bem sei que sou feia, bastantes vezes os outros mo têm dito. "Saguim" para aqui, "Saguim" para acolá, mas, mesmo assim, posso ter "chique", "sex-appeal".

- Proíbo-te de pronunciar essa palavra!

- Toda a gente a diz.

- Mas nós não somos "toda a gente"; somos pessoas de boa casta. Por acaso ouves as tuas irmãs ou a tua cunhada falar assim?

- Oh! a minha cunhada... Maria Violeta é uma freirinha. Quanto às minhas irmãs, não ouves as conversas delas. Ivone tem de falar a linguagem das pessoas com quem convive.

- Pois eu julgo, pelo contrário, que ela as ensina a falar melhor.

- E Joêlle é uma finória. A minha pena é ela não vir... Tem falta de dinheiro, a pobre rapariga. Sabes quem é o padrinho?

- É o sócio do Sr. Ternier. Um senhor que já não é novo e que não dará nenhuma atenção a uma "mulherzinha" como tu.

- Vamos lá! Os convidados todos vão acharme uma "mal-amanhada"... Pois, "mal-amanhada", Não compreendes isto, mama? Mas tu também foste nova. Foi assim há tanto tempo?...

Enxugou as lágrimas, mas sem se resignar. E, numa necessidade de fazer confidências, deu parte do seu desgosto a Gildas. Ele era muito amável e havia de compreender, enquanto que esse terrível "Coração Selvagem" a meteria a ridículo. Gildas ouviu atentamente os queixumes da irmã e a descrição do deplorável vestuário que ela tinha de levar.

- Se eu estivesse no teu lugar - disse ele e se fosse uma rapariga garrida...

- Que farias tu?

- Pedia um vestido emprestado para esse dia. A quem? À Maria Violeta. Tem muitos e nunca os veste. E vocês têm pouco mais ou menos o mesmo corpo.

- Oh! mas ela, naturalmente, não quer... E Miguel também não deve querer.

- Miguel? Não quer saber disso. Vai à "Casa de Cima". Queres que vá contigo? Talvez a gente veja o bebê.

- Óptimo. Anda, meu velho. És um verdadeiro irmão, sim senhor!

Chegaram lá de mãos dadas.

- Corentina, nós queríamos falar a Maria Violeta.

- Está a ajudar-me na cozinha. Pode ser que os receba lá.

Os dois consultaram-se com o olhar:

- Não, antes no quarto dela. É para nos mostrar coisas. E o bebê, Corentina, poderá ver-se?

A velha bretã pôs as mãos nas ancas:

- O bebê? Pobre anjo! Tem lá um dragão a tomar conta dele: a ama. - E, mais baixo, acrescentou: - Dois dragões cá em casa.

Isto despertou a curiosidade de Aliette:

- Qual é o outro dragão, Corentina?

- É a Mireille, menina, que todas as manhãs aí chega com um barulho doido na sua máquina do diabo. Mas não se fala mais nisto. À Sr. a Abran vai recebê-los onde quiser. Venham para a cozinha.

Com toda a paciência e delicadeza, Maria Violeta enfeitava um enorme bolo de rum com frutas cristalizadas.

- Quem é que gosta de frutas cristalizadas?

- perguntou ela, sorrindo, às crianças.

- Eu adoro-as - respondeu Aliette. - E Gildas, também, mas ele é bem-educado de mais para o dizer. Mas talvez tu não tenhas que cheguem.

Oh uma cereja, se fazes favor! Para o pequeno, uma casca de laranja. É do que nós dois gostamos. Quando acabares, peço-te uma coisa. Gildas disse-me que eu podia pedir-te. Se tu não quiseres, tanto pior... Mesmo assim, a gente gostará de ti. Mas eu you ficar medonha e desesperada. Maria Violeta lambeu as pontas dos dedos.

- Já acabei. Diz lá o que queres, cachopa.

- Ouve. Contava com o meu vestido vermelho estampado para o baptizado. Mas não é possível. Está muito curto e muito estreito. E eu não tenho outro. A mama, que acha tudo muito simples, diz-me que vista a minha saia cinzenta de pregas e uma blusa branca. Estás a perceber isto? Até parece que vou ficar com o uniforme de lá do colégio...

- Pois claro - concordou Maria Violeta. - Mas bem sabes que tua mãe não quer saber da elegância para nada. O pior é que essas histórias, na tua idade, são muito aborrecidas. Faz-se uma coisa muito simples: empresto-te um vestido! Vestidos tenho eu, sabes? Minha mãe obriga-me a ir à modista dela. Mas quando os vestidos estão prontos, Miguel faz uma careta e diz: "Afinal, vestida à tua moda ficas melhor". Amanhã vou

vestir um fato azul-pervinca, que me fica bem, parece... Anda comigo ver os outros vestidos.

Experimentas a ver qual te fica melhor e levas aquele que te agradar. Ninguém cá os conhece.

Já sabes que vivo como uma selvagem.

Gildas olhava-a com admiração. Que gentil ela era, cheia de alegria com aquele pedido.

- Também posso ir lá acima? - perguntou ele.

- Pois claro. Dás a tua opinião. Na escada, Aliette disse baixinho:

- O bebê? Gostávamos tanto de ver o bebê! Se o dragão não estiver lá...

- Vejo que Corentina já os informou. Ouçam: a ama deve estar a tomar banho. Podemos ir muito devagarinho ao pé de Annick.

Meteram-se no quarto como conspiradores. Annick brincava com um cão de borracha e sorriu ao ver as crianças.

- Que pequenina que ela é! - exclamou Aliette maravilhada. - Que grandes olhos azuis... e as mãos... que lindas mãozinhas!

Gildas, porém, ficou calado: depois de ter olhado para a criança, pôs-se a observar Maria Violeta.

Muito direita, com os braços caídos, ficara com uma expressão triste. - "O que lhe falta é um menino" - pensou o rapazinho. Pegou na mão da jovem e beijou-lha.

- Querido! - murmurou Maria Violeta, acariciando a fronte do pequeno e pousando nela a mão por um momento. - Agora, venham ao meu quarto.

- Antes de o dragão sair da água - disse gaiatamente Aliette, que não reparara em nada.

Apareceram os vestidos e todos foram experimentados. E chegou-se à conclusão de que o cor-de-rosa velho era o que ficava melhor ao tom moreno de Aliette. Encantada, a pequena viu-se ao espelho e ficou admirada de ver nele a figura de uma rapariguinha. Depois, agarrou Gil-" das e pôs-se a dançar. Bruscamente, parou:

- Não pedi licença à mama. Oh! Maria Violeta, ela não vai deixar.

- Deixa, sim. Vou dar-te uma carta, a dizer que fico muito triste se não levas amanhã o meu vestido.

Os dois foram-se embora, muito felizes, com o vestido numa mala. E Maria Violeta voltou para a cozinha.

Os vestidos, os vestidos... podia ser que eles a interessassem se Miguel tivesse olhado para eles. Mas se ele se contentava com o vestuário simplório adoptado por Maria Violeta quando era menina, para que lhe servia arranjar-se de outro modo? Amanhã, com certeza que ele gostava, mesmo por amor-próprio, de ver a mulher elegante. Por isso ela levaria o fato azul-pervinca; o chapelinho todo de flores, o colar de pérolas, a sua linda pulseira de ouro e o anel de noivado... Pobre de sil O anel destinado a Margarida e que tão pesado lhe parecia quando o punha. Sim, naquele Domingo de Páscoa havia de adornar-se e fazer-se bonita. Toda a gente da região devia estar cheia de curiosidade para ver "os vestidos".

Domingo de Páscoa... Os sinos puseram-se a anunciá-lo. Maria Violeta endireitou-se. Misturada na festa da família, ficaria fora da festa do espírito. - Pela primeira vez, não faria a comunhão da Páscoa.

"Já não creio. Comungar seria mentir. Mas Miguel vai comungar. Vai admirar-se da minha abstenção... Não, talvez pense que eu comunguei na Quinta-Feira Santa, em que não teve tempo de ir à igreja. E a mama nem reparou nisso. Ninguém reparou. "

 

Vestidos brancos... todos... - pensava Margarida, vendo o bebê aparecer no seu longo vestido de musselina finamente bordado, o vestido que ela própria e depois Rosa Teresa e Maria Violeta tinham levado no dia do seu baptizado, realizado naquela mesma igreja, festejado na mesma casa.

"O vestido de baptizado... o vestido da primeira comunhão... o vestido de noiva... Eu apenas vesti os dois primeiros. O terceiro já estava preparado. Tão lindo! Nunca perguntei à mama o que tinham feito dele. Qualquer paramento para a igreja, sem dúvida. As minhas irmãs tiveram os três vestidos. Elas conhecem tudo o que se relaciona com o destino das mulheres. Pelo menos Rosa Teresa; Maria Violeta não sabe ainda o que é a maternidade. Sabê-lo-á alguma vez? Não quero mais ver Annick; faz-me muito mal. "

Houve o grande almoço tradicional, demorado, animado. Miguel mostrou-se um conversador brilhante e Maria Violeta uma dona de casa cheia de autoridade e de graça, o que fez a admiração de Margarida: "Se ela quiser sabe muito bem ocupar o seu lugar".

O que ela ignorava é que naquela mesma manhã Miguel dera a sua mulher instruções bem claras.

- Peço-te que faças hoje um esforço para desempenhar, realmente, o teu papel.

- Qual papel?

- O de dona de casa. Geralmente ofuscas-te na presença de tua mãe que, na verdade, é admirável a dirigir Corentina e a auxiliar-me. Tanto ela, como eu, fazemos tudo para te poupar a trabalhos e deixar-te continuar os estudos que te interessam. Casaste-te tão noval Mas, na presença de Rosa Teresa, do marido e do padrinho, é preciso dar a impressão de que quem manda cá em casa é a Sr. a Abran e não a Sr. a Lê Fort. Peço-te que tomes conta do que estou a dizer-te. Começa por vestir-te bem... que vestido levas tu?

- Preparei o fato azul-pervinca.

- O fato azul-pervinca... Espera lá, a ver se me lembro... Vi-o alguma vez? Creio que não.

Sim, ele tinha-o visto...

- Esse tom deve ficar-te bem. Põe um bocadinho de cor nas faces, sim? Claro, muito discreta, por causa do teu tipo. Pede a Rosa Teresa, que sabe disso bem, que te arranje. Ainda outra recomendação: fala, não deixes os outros falarem no teu lugar.

- Mas eu não sei dizer nada...

- Oh! que bicho do mato incorrigível! Então não és tu a mais inteligente da família? - "À parte Margarida", pensou ele.

E ela pensou-o também. Outrora admirava tanto a inteligência de sua irmã mais velha, que fazia estudos tão brilhantes.

- Está prometido? - perguntou Miguel.

- Prometido - respondeu ela.

Oh! se ao pedir-lhe essa promessa ele a tivesse beijado, ao menos! Mas não, estava a compor a gravata,

Ela, porém, prometeu. E o seu brio ajudou-a a vencer a sua timidez: Maria Violeta presidiu à reunião com uma desenvoltura e uma graça que espantaram toda a família, habituada à sua reserva e ao seu apagamento. Foi muito admirada pelo pai e pelo padrinho de Annick, que a viam pela primeira vez. Rosa Teresa falara ao marido na sua irmãzita mais nova com bastante afabilidade, mas com uma certa condescendência, e Rogério Ternier descobrira nela, com espanto, uma mulher encantadora.

"Ela deve estar a dominar-se extraordinariamente para conseguir chegar a isto" - pensava Margarida, um tanto perturbada com o novo aspecto tomado pela sua "substituta". - "Como não há-de Miguel adorar a mulher? Pobre Margarida! Ele nem deve lembrar-se de ti! Evidentemente eu estaria perfeitamente à altura dos meus deveres, mas não teria esta originalidade, esta frescura que tornam Maria Violeta tão sedutora. "

E sentiu-se triste. Mais viva do que nunca, sangrou nela a ferida que tanto a fazia sofrer todas as vezes que punha em contraste o que era com o que deveria ter sido. E, coisa curiosa: quando a alma lhe sofria mais, todas as cicatrizes do seu corpo despertavam. Reumatismo localizado? Hipersensibilidade nervosa? Os médicos não tinham encontrado nenhuma explicação certa, nem nenhum remédio. E naquele Domingo de Páscoa, sob o seu elegante vestido. Margarida era apenas um pobre ser cheio de dores.

"Rosa Teresa é uma mãe feliz. Maria Violeta, uma jovem encantadora. A mama é uma namorada, a quem um coração fiel continua aguardando. E eu? Eu? Miséria... "

Ela apenas ousava sorrir quando as frases trocadas provocavam o sorriso, porque isso lhe repuxava os músculos da cara deformada para sempre.

Páscoa... os repiques festivos voam de campanário em campanário. As giestas estão em flor. Ouve-se o cuco a distrair-se com o seu brado jovial. Annick vai receber o baptismo. Annick dos olhos azuis - a pequenina Annicfc, primeiro neto da família Lê Fort. Annick - tão linda na sua inocência, na sua fragilidade infantil!

Nos seus últimos esplendores de mulher, Susana é bela. Todos fazem a mesma pergunta no seu íntimo: "Como se mantém ela ainda tão fresca? Alguém dirá que é já avó? Rejuvenesceu".

Há duas pessoas que sabem porque é que ela rejuvenesceu: Margarida, depositária do seu segredo de amor, e Corentina, que observa, que adivinha e que, além disso, tem as suas informações, fornecidas pela amiga de Lorient: "Hoje um baptizado e dentro de pouco tempo um segundo casamento. E ainda não há muito que foi o luto. Pobre "senhor"! Depressa o substituíram".

No pórtico da igreja, por entre as estátuas dos velhos santos bretões, aguardavam todos os Abrans, à excepção do avô e de Joêlle, que não pudera ir por ter de ficar com o marido. Ivone estava também, igualmente portadora de um segredo, - o da evolução de Maria Violeta, a quem ainda não pudera falar livremente.

"Esta pequena é mais forte do que eu supunha. Afivelou uma máscara de serenidade. Parece a pessoa mais feliz do mundo. E linda! Miguel será capaz de não ver como ela está sedutora? Que estúpido rapaz!"

Gildas, que era menino do coro, envergava orgulhosamente a pequena veste vermelha e a sobrepeliz. Aliette parecia já uma graciosa rapariga com o vestido de Maria Violeta. Mas quantas peripécias antes de se ter preparado! Apesar da carta justificativa do empréstimo, Joana Abran, com bastante dureza, recusara-se, ao princípio, a permitir que ela o vestisse. Lágrimas e revolta da pequena, palavras arrogantes, portas atiradas - e a rapariga arremessou-se para cima da cama a soluçar: "Deixa! que eu viro as costas à família assim que puder! E não vou ao baptizado. Nem à força me arrastam para lá!"

Muito emocionada com aquela rebelião da "garota, Joana foi contar o caso ao avô. Ele pediu a carta da Maria Violeta. Leu-a e releu-a e depois, estendendo-a à nora, deu o seu parecer:

- Acho que não tem razão, Joana. Na verdade Aliette pode vestir por um dia o vestido oferecido em termos tão delicados.

- Não gosto de que os meus filhos aceitem muitas coisas que venham lá da "Casa de Cima".

- Isso é uma altivez exagerada. Maria Violeta é nossa filha.

- Se Aliette começa já com tanta garridice vai ser uma maçada.

- Ora! Naquela idade a garridice é natural, Acha a revolta mais salutar? Não esteja à espera de que essa garota se curve à obediência passiva: "A mama disse isto, e eu sujeito-me". Afinal está a negar-lhe uma coisa razoável e compreendo bem que ela se revolte contra a sua decisão. O desapontamento que ela está sofrendo! E as desilusões nos adolescentes são de uma violência terrível, Joana,

- Tinha alguma precisão de ir mendigar lá acima?

- É claro que mais valia que ela a tivesse consultado antes. Nesse ponto não lhe dou razão.

- Mama... - disse a voz de Gildas - eu é que lhe dei essa idéia. Ficou tão contente! E Maria Violeta também. Riam-se ambas em frente do espelho. E agora vão ficar ambas desgostosas. Desgostosas no Domingo de Páscoa... Um desgosto na Páscoa... Não, mama, é preciso não lhes fazer isso.

Rodeou o pescoço da mãe com o seu bracinhomagro. E àquele não sabia Joana recusar nada.

- Vamos lá, estão todos contra mim... Vai dizer a tua irmã que pode vestir-se.

E Aliette depressa esqueceu o seu desgosto.

"Em Plémeur há um. grande baptizado" - dizem as pessoas, ouvindo os três sinos a tocar. Susana é a madrinha; na Bretanha seguem-se as tradições. Leva com respeito e ternura o pequenino ser, que a alvura do vestido e da peliça parecem tornar mais comprido. Susana recorda o baptizado de suas filhas, com nomes de flores. "Uma fantasia de minha mulher" - dizia Jerónimo Lê Fort. Margarida conserva uma lembrança vaga do baptizado de Maria Violeta. Joana Abran evoca os oito baptismos dos seus filhos, o último já depois da morte do pai. Suspira de satisfação: sente-se entre gente boa, no meio de verdadeiros cristãos. Ignora que Margarida, revoltada contra a sua desventura, repeliu Deus do seu caminho e que Maria Violeta O perdeu no meio dos ensinos tendenciosos ou mal assimilados por um espírito demasiadamente moço. Nem Margarida, nem Maria Violeta cumpriram os seus deveres pascais. E Rosa Teresa, assim como o marido, se continuam sinceramente presos à fé, é de uma forma bastante convencional. Cristãos verdadeiros? Ela, Ivone, sua outra filha Maria Ângefa e o marido e o fervoroso Gildas. Os outros, flutuam. João Maria e Aliette já têm problemas, sem lhes procurarem a solução onde podiam encontrá-la. E Susana Lê Fort pensa muito mais no amor humano que no amor divino.

A bela cerimônia vai seguindo os seus ritos. Gildas desempenha o seu papel com orgulho e pensa no dia em que será ele, já padre, quem hã-de baptizar. Oh a travessa da pequenita faz caretas por causa do sal! É preciso não chorar, Annick. O baptismo é magnífico. Tornar-se alvo perante Deus, ser adoptado por Ele, prometer conservar-se fiel a Jesus Cristo para sempre! Sempre... essa palavra descerra ante o rapazinho perspectivas que fazem um pouco de vertigens.

Depois de ter estado a olhar para Annick, levanta os olhos para a "sua" Maria Violeta. Como ela parece triste. Não, não é bem triste; gelada, hirta, uma estátua, com lábios apertados e olhos duros, que nunca ninguém lhe vira. Voltou a cabeça, como se não fizesse parte da cerimônia. Os longos cílios de Gildas batem com rapidez sobre a palidez das faces. Sente um desgosto em si. porque sabe que Maria Violeta tem um desgosto com ela. Um desses desgostos das pessoas crescidas, muito complicados, que a ninguém se confiam.

Quando ela se desviou, para dar lugar ao padrinho, o pequeno avistou Margarida, que ficara atrás de todos. E, então, viu outra coisa. Uma lágrima redonda, lenta, a descer em cada face da rapariga. Lágrimas de pessoa crescida, também. As das crianças aparecem muito mais depressa e em grande quantidade. Naquele rosto há duas somente, parecidas com as pérolas do colar de Maria Violeta, que Gildas lhe vê pela primeira vez. Margarida chorava por causa do seu desastre, com certeza, e por não ter marido, nem um bebê.

Caso estranho, porém: as lágrimas de Margarida não fazem tristeza.

Não, as lágrimas de Margarida não eram tristes. Tinham brotado duma fonte liberta. Porque era Páscoa, a festa da Vida. Porque era a Primavera bretã. Porque ela tornava a entrar na família, após uns anos de exílio feroz. Porque... oh! meu Deus, por causa de todas essas palavras que o padre proferira, essas perguntas formuladas por ele, essas promessas feitas como resposta, tomando o compromisso de conduzir para a eternidade a pequena Annick vestida de branco o vestido que lhe mandam levar, sem mácula, no dia do Julgamento! Por causa daquela água, que faz da filha de Rosa Teresa uma nova criatura. Nascera, segundo a carne, havia pouco tempo; agora, era um outro nascimento. Renascia "pela água e o Espírito Santo"; em seu nome foram feitas promessas imensas, que ela renovará pessoalmente. Quando nos lábios, habituados a chupar leite, lhe puseram o sal, o padre rogou que a pequenina serva de Deus "não tivesse de sofrer fome muito tempo e se saciasse de alimentos divinos".

E Margarida tinha fome, por recusar os alimentos divinos.

O vestido branco, o vestido ornado de preguinhas, de rendas valencianas, de grinaldas bordadas... fora o vestido de baptizado de Margarida naquele mesmo lugar. Mas que fizera ela do seu vestido branco no decurso dos últimos anos? Esfarrapara-o. Que fizera ela do seu privilégio de pertencer ao Cristo? Rejeitara-o. E vivera no deserto, sem afecto de espécie alguma - nem humano, nem divino. Oh! se houvesse possibilidade de renascer uma vez mais? "Tal como o cervo sedento suspira pela água das fontes, assim a minha alma suspira por Ti, meu Deus. À minha alma está seca, a minha alma tem sede". Que feliz, a pequenina Annick, a quem o baptismo abriu as fontes da água viva.

Feliz? "Porque não hei-de eu tornar às fontes da água viva? Porque não hei-de eu pôr-me a reviver? Oh! reviver mutilada, desfigurada?" Sim, talvez... A ciência não pôde curar todas as feridas, desvanecer todas as cicatrizes. Mas há outras ciências além da medicina e da cirurgia, há outras feridas e outras cicatrizes além das da carne e dos ossos. Há... a graça. No catecismo falava-se assim. E curaria as chagas da alma. E, então, poderia de novo esperar, avançar, cantar... Sim, cantar, porque não?

Que estupidez! versos de Chantecler a misturarem-se com as palavras litúrgicas, versos que evocavam "o grito para a luz".

"De tudo o que quiser cantar, deixar o luto. Reviver, tornar a ser útil. "

- Eu queria reviver. Queria tornar a ser útil.

- Vem - respondeu, de dentro, uma voz. Vem, eu te restabelecerei.

Foi então que nas faces de Margarida - a face que ficara bela e lisa e a outra, a que estava sulcada, devastada - o menino do coro viu rolar duas lágrimas semelhantes às pérolas do colar de Maria Violeta.

Foi, porém, a única" pessoa que as notou; e sem poder adivinhar - pequeno como era – que enquanto Ànnick nascia para a vida da graça, uma ressurreição se operava nesse dia da Ressurreição: Margarida voltava a viver.

As ressurreições da alma não se vêem logo. Nem a própria pessoa se apercebe do que se passa. Primeiro experimenta-se uma grande fadiga. E Margarida teve de fazer um grande esforço sobre si mesma para ajudar a mãe e a irmã a fazer as honras do lanche oferecido aos amigos - habitantes da vila, proprietários dos arredores, colegas de Miguel. Nessa recepção, Maria Violeta continuou a ser admirável de afabilidade, de atenção pelo bem-estar de cada um. Miguel rejubilava e, no entanto, sentia-se perplexo: mas então ela não era tímida? E como lhe ficava bem o lindo fato que vestira! Além disso a situação era muito delicada para ele, porque a curiosidade dos convidados estava atenta: que atitude podia ele ter, colocado entre a mulher e a cunhada, a sua noiva de outrora? E a própria Margarida, tanto tempo ausente, como se comportaria? Em geral acharam-na menos feia do que esperavam, como todos disseram; e ela falava com uns e com outros de uma forma absolutamente natural. Ouviram-na tratar Miguel por tu... Em resumo, nada de anormal se notou na atmosfera da casa: lanche copioso, abundância de flores, elegância e amabilidade das senhoras; acharam o jovem papá de Ànnick um rapaz encantador e o doutor um verdadeiro homem do mundo.

À noite trocaram-se impressões entre os convidados: "Apesar de tudo, Margarida não parece muito mal. - Oh não reparou naquele olho meio fechado, naquele lábio deformado? - E as costas? Não viu que estão tortas? Os vestidos bem feitos escondem muita coisa! - E, depois, ficou corcunda. Nunca mais se casa. Pobre rapariga! Deve ser triste ver a irmã no lugar dela. - Admirável, hoje, a mimosa Maria Violeta. Um chiquismo, um à-vontade... Nem se reconhecia. - Ela há-de ter medo de que o marido a compare com a enfermeira, uma rapariga sem peias, parece. - E a Sr. a Lê Fort, que parece tão nova? Parece irmã das filhas. Eu acho-a melhor do que antes. - Porque está à vontade, minha querida. Ouvi dizer que o marido lhe fazia cenas. - Ficou livre. Quem sabe se tornará a casar? - Oh! mesmo com aquela idade! E já avó.

Atrasado pela recepção, Miguel teve de ir visitar doentes, naquela noite. "Regresso tarde". Fatigadas, as mulheres deitaram-se cedo, cada qual entregue à obsessão duma idéia antes de adormecer.

- Eu estava chique - observava Rosa Teresa com radiante satisfação. - Vi bem que o meu vestido fez sensação. Rogério parecia estar orgulhoso comigo. E Ànnick, tão pequenina! Sou feliz... feliz...

No seu grande leito, Maria Violeta pensava: "Talvez Miguel tenha ficado contente; honrei esse orgulhoso. Não tenho nenhuma ilusão, foi só por vaidade que ele hoje deu atenção ao meu vestido, ao meu penteado, às minhas conversas. O seu coração? Ah! o seu coração não é para mim! Margarida, bem vestida, bem pintada, há-de ter-lhe lembrado muito o passado - esse passado ardente.

220 Nunca ele esquecerá o seu noivado. E eu não quero ser mais a substituta. com o pretexto de seguir os cursos, irei para Paris. E lá ficarei. Tem a mama e Corentina para cuidar dele. E... Mireille".

Susana, por sua vez, perguntava febrilmente: "Quando será que Margarida se decide a falar com a irmã? Francisco está cada vez mais impaciente. E eu queria sair desta situação falsa. Maria Violeta, afinal, revelou-se uma perfeita dona de casa. Posso muito bem deixá-los ambos. E Margarida podia, talvez, reunir-se a nós em Lorient".

Quanto a Corentina, testemunha da vida da família, na tepidez do seu colchão de penas, resumia assim a sua opinião: "Se a senhora pensa em tornar a casar-se, o melhor era fazê-lo já enquanto a pequena parece dentro do seu papel. Só pergunto é quem é que dará a notícia à nossa Maria Violeta. Talvez Margarida, se tiver coragem para isso. Pobre rapariga! foi um dia cruel para ela: ver as irmãs casadas, uma "miúda" em casa, Maria Violeta tornada Sr. a Abran no lugar dela e linda como um coração. Tive muito medo de que ela não se agüentasse até ao fim da recepção. Uma bela recepção, sim senhor... Mas Margarida é valente. Ninguém lhe viu um gesto de despeito, como todos esperavam, a espreitá-la pelo canto do olho e a dizerem-lhe palavrinhas doces para lhe ouvirem a resposta. Mas, pronto, lá se foi essa gente toda, com os seus fatos importantes. Tanto melhor. O que me faz muita pena é pensar que Annick nos vai deixar. A gente nem se gozou dela, com a irritante da ama. Annick é um tesouro! Faz cá falta outra como ela. E o Sr. Ternier é um bom marido. Das nossas três pequenas, Rosa Teresa é, talvez, a única feliz. Enfim, tanto melhor, não há assim tanta felicidade no mundo... "

Como um estribilho embalador, Margarida repetia: "Reviver, tornar a ser útil... reviver, tornar a ser útil... deixar de ser um sarmento seco... Mas, para isso, é preciso perdoar. Julgava que já o tinha feito; mas não, eu não tinha perdoado a ninguém. Nem a Miguel, que casou tão depressa com minha irmã, em lugar de me recordar com uma saudade eterna ou de não casar com ninguém... Nestes anos de solidão em Paris nunca deixei de pensar; "O que lhe interessava era a situação do papá, a clientela, o laboratório; conseguido isso, tanto lhe fazia casar com uma filha de Lê Fort, como com outra". E nunca mais perdoei a Maria Violeta por ter tomado o lugar que fora preparado para mim, e por ser bonita, feliz e amimada. Como não perdoei a Rosa Teresa por ser uma mulher esplendorosa e por ser mãe. E nem a meu próprio pai eu perdoei, por nos ter imposto o seu sucessor e por ter aceitado que isso custasse o preço do meu sacrifício. Queria mal aos vivos e queria mal ao morto. Para ressuscitar, para reviver e tornar a ter préstimo, tenho de livrar-me deste veneno do rancor e tenho de lavar a alma".

Na velha casa banhada pela claridade leitosa da lua cheia da Páscoa, só a pequenina Annick dormia. Doce sono da inocência baptismal. E a Trindade, debruçada sobre aquela rosinha branca, aspirava-lhe o odor.

 

TERMINARAM as festas do baptizado. O comprido carro dos Ternier regressa a Nantes, com Annick nos braços da ama e Rosa Teresa" ao lado do marido, que vai ao volante.

- Não deves ter passado uma mocidade muito divertida, não, metida neste buraco de Plémeur observou ele.

- Ah bem sabes que não levo as coisas para o trágico. Mas para dizer a verdade não era nada agradável, com um pai tão intransigente. Não tínhamos direito de fazer nada. Só o desporto, por ser bom para a saúde, mas não é coisa de que eu goste. Quanto a distracções e a estudos prolongados, não eram para nós. As filhas do Dr. Lê Fort não deviam sair de Plémeur.

- Tu, com certeza, não tiveste pena dos estudos - disse ele, a rir. - A questão intelectual não é o teu forte.

- Mas as outras interessavam-se por isso. Margarida sonhava com a medicina e Maria Violeta com a literatura e a filosofia, o que anda agora a estudar.

- Faria melhor se dirigisse a sua casa; a tua mãe é que manda em tudo. E ela é que devia ajudar o marido. Vi chegar certa loura, que tem o ar de invadir tudo...

- Achas? Miguel tem precisão de uma assistente capaz.

- Esta até é capaz de pregar alguma partida à pequena.

- Que pensas tu de Margarida? Ainda não a conhecias.

- Deve ter sido muito bela. Pergunto a mim próprio se a pequena a terá feito esquecer.

- Oh! Maria Violeta é muito bonita!

- É bonita, é, e fina; mas será o gênero que agrada aos homens? Em meu entender, substituiu muito mal a mais velha. Não notaste que Miguel a trata como se fosse uma garota?

- Bem, mas gosta dela. Trata-a com mimo. Reparaste nas jóias que ela trazia?

- És bem mulher, tu. O que significam as jóias? Até pode ser por orgulho que um rapaz na situação dele dê pérolas e diamantes à mulher. Publicidade para os seus negócios... O que falta saber é se uma rapariga nova, casada, se contenta, de facto, com o ser amada paternalmente. - Ela foi sempre tão simples, tão suave... Com ar brincalhão, ele acrescentou:

- A ti agradava-te um amor desse gênero?

- Nem me compares a minha irmã! Entre nós não há parecença nenhuma - volveu ela, a rir.

E não se falou mais em Maria Violeta.

A graça primaveril da Bretanha desabrochava em cada dia que passava. Na água clarinha e transparente da ribeira, liberta do inverno, reflectiam-se ramos floridos. O que eram as árvores do parque Monceau em comparação com aquela opulência de matizes e de perfumes? Havia alguns anos que Margarida não tinha outras "férias" além do tempo passado nalguma estação termal, onde a sujeição do tratamento não lhe deixava nem tempo nem as forças necessárias para dar passeios. E, perante aquela Primavera, maravilhava-se tanto como se fosse a primeira da sua vida.

"Mas então, nos outros anos, eu não tinha compreendido nada? Então sempre é verdade que "a dor é um mestre"? Esperava encontrar em Maria Violeta o mesmo despertamento da sensibilidade, mas a pequena, que outrora tanto amava a natureza, parecia não a ver. Quanto a Susana, o seu entusiasmo era quase excessivo. Margarida reparara-lhe nos olhos cheios de lágrimas em frente do lilás-da-pérsia que havia no jardim.

Todos os dias Susana perguntava à filha: Então quando é que falas a Maria Violeta? Já está perto o dia da tua partida... e tu ainda não disseste nada.

- A minha partida? Pedi mais uns dias de licença.

- Que alegria! Não te sentiste, então, muito infeliz entre nós, não?

Susana arrependeu-se logo destas palavras, receando que elas tivessem magoado Margarida dolorosamente. Mas não lhe viu qualquer alteração.

- Não. Fez-me bem tornar a encontrar a família. Todos foram muito amáveis para mim, mama.

- Ainda bem, minha querida. Ouve: se te fez bem tornar a encontrar a família, porque não vais juntar-te a mim em Lorient? Não te irrites. Ficavas com a tua independência e podias ir morar para um apartamentozinho numa dessas casas novas, que tão depressa ocuparam o lugar das ruínas feitas pela guerra; com as relações que Francisco tem, depressa arranjavas um emprego interessante. E já não estavas só... distante... perdida naquele Paris tão grande... Francisco foi o primeiro a falar-me nisto; será para ti um amigo. Peço-te que penses nesta possibilidade de recuperar, um pouco, a vida de família. E a tua mama.

Margarida comoveu-se:

- Obrigada, mama, por pensares nessas coisas. Mas bem sabes como eu me fiz selvagem... Enfim, hei-de pensar nisso.

Um pouco hesitante, Susana prosseguiu:

- O capitão queria que nos casássemos antes do Verão. Parece-te possível?

- Tão depressa? Acho muito difícil. Como vais tu prevenir a direcção da casa logo que te vás embora? Se Maria Violeta continuar a estudar, não pode fazer tudo o que tu fazes. Além disso ela não está ao facto de coisa alguma.

- Depressa a ponho a par de tudo. E os cursos... os cursos não vão durar indefinidamente.

- E depois de ela se acostumar a ir tantas vezes à cidade, poderá conformar-se com uma vida sedentária? É o que eu pergunto a mim mesma... E não tenho a. certeza.

- Vejo bem que censuras a minha idéia de tornar a casar-me - murmurou Susana, desanimada.

- Contava tanto contigo... Não disse nada a Rosa Teresa, toda entregue ao marido, à filha e à sua vida de sociedade. De momento, não há lugar para mais ninguém dentro daquela cabeça... Nem, talvez, naquele coração. De resto é bastante natural, numa rapariga casada de fresco.

"Enquanto no meu coração todos os lugares estão livres" - pensou Margarida. E disse pausadamente:

- Não, mama, não te censuro. Somente prevejo dificuldades. Tanto mais que actualmente não me parece que minha irmã esteja muito bem disposta.

- Naturalmente é por ainda não ser mãe. Mas porque há-de inquietar-se? É tão nova!

- Há outros cuidados que a trazem obsidiada. Ela não me disse nada, mas acho que perdeu a sua serenidade interior. Olha, a juventude da alma.

- Estás louca! Ela continua a ser uma criança.

- Miguel e tu é que julgam isso. Mas vocês enganam-se a si próprios por diligenciarem prolongar uma existência de menina, anormal para uma mulher casada.

- O que lhe fazemos é por amor, no intuito de evitar-lhe todas as preocupações.

- E se ela arranjar outras ainda piores?

- Não te percebo. Ela goza uma felicidade perfeita, que eu vou perturbar, destruir. Isso é que é o meu tormento, o meu remorso. Só isso.

Margarida não insistiu. Sua mãe não abrangia a situação. "O amor prejudica-lhe a compreensão. É, então, preciso a gente ser despojada de tudo para tornar-se capaz de dar alguma coisa aos outros? Eu supunha que, uma vez despojada, já nada tinha para dar... "

Quando havia de falar a Maria Violeta? Seria preciso procurar um cenário mais favorável que a casa da família? Tinha de apelar para a sua razão: "Tu, que estudas psicologia... Tinha de apelar para o seu coração: "Tu, que sempre desejaste a nossa felicidade... Seria preciso aludir aos obstáculos da vida familiar dos pais? Sérios problemas, tanto mais delicados quanto é certo que Margarida não via bem as modificações operadas em Maria Violeta depois do seu casamento. E resolveu pedir conselho a Ivone, irmã de Miguel, que tinha tanta experiência humana.

- Maria Violeta - disse ela - gostava de ir a Rennes. Podias levar-me à estação um destes dias?

- Podemos lá ir as duas. Preciso de uns esclarecimentos na Faculdade. Depois podemos encontrar-nos à noite, à hora do comboio.

Não sugeriu a idéia de andar com Margarida pela cidade. "Que independência que ela adquiriu!"

Telefonou a Ivone, para se ir encontrar com ela no Thabor, o formoso jardim de Rennes, para conversarem tranqüilamente.

Ivone foi a primeira a chegar e sentiu-se triste ao ver, de longe, a amiga avançar num andar hesitante.

"Coxeia... E tomba para um lado. Uma rapariga tão linda como era! O que será que ela quer "lizer-me?"

Ivone preparara o coração para ouvir tudo. De resto, estava sempre pronto. Depressa deixaram as banalidades, indignas de uma e de outra.

- Queria confiar-te uma preocupação grave, Ivone, e pedir-te conselho.

Tratar-se-ia de Maria Violeta, cuja crise moral Ivone conhecia? Admirou-se ao ouvir dizer:

- Trata-se da mama.

- De tua mãe? Não está doente, com certeza. Ela até remoçou.

- É verdade. E há uma razão para esse remoçamento. Sonha em tornar a casar. Aí tens. Ninguém sabe disto, excepto eu, a quem ela confiou "este projecto, este anseio, desde a sua viagem a Paris. E sou eu, absolutamente só, que suporto este segredo tão pesado.

Um silêncio. Ivone levava sempre tempo a reflectir. E depois:

- Compreendo a tua emoção. Censuras tua mãe, sem dúvida. Por causa da recordação de teu pai... de vocês as três... da idade dela... do homem com quem casar? Conta.

Ivone sentia medo. Privada de uma vida normal. Margarida, ao ver sua mãe regressar à vida de esposa, não sentiria erguer-se nela uma tempestade? Todavia, falava com toda a calma. Aquela rapariga tinha, decerto, um grande domínio sobre si mesma... o que não a impedia de sofrer.

Margarida, porém, de olhos voltados para um canteiro de amores-perfeitos de rosto encantador e melancólico, respondeu:

- Não a censuro.

Novo silêncio. Ivone estava admirada.

- Não, não censuro a mama. É um homem de valor, que a ama e que ela amou outrora, o capitão Francisco de Kermadec, que lhe propõe casamento. Meus avós opuseram-se ao seu casamento, porque a mama tinha de casar com um médico, o sucessor do avô, compreendes tu? e não com um marinheiro. Tinha de casar com um médico, tal como se tinha resolvido a meu respeito.

E a sua voz tremia.

- A mama cedeu. Além disso, o papá tinha qualidades admiráveis. Ela podia ter sido feliz, mas não o foi.

- Eu suspeitava disso... Mas porquê? Ela era bonita, cintilante e boa.

- Pouco depois de terem casado, o papá teve conhecimento do grande amor da mama por aquele camarada da sua mocidade e da pressão que ela sofrera para casar com ele. Magoado e cheio de ciúmes, começou a pensar que a mama tinha saudades do outro, que pensava sempre nele e não amava o marido que lhe tinham imposto. Tornou-se duro, e a pobre mama, que é dessas mulheres que não foram feitas para lutar, não soube restituir-lhe a confiança. Só no leito da morte, o papá se reconciliou com ela. Pediu perdão e disse.

Como a mama me confiou: "Não soube tornar-te feliz. Amava-te tanto! Amava-te exageradamente. E tinha ciúmes duma sombra". E ela respondeu-Lhe: "Também eu não soube fazer-te feliz. E, no entanto, amava-te".

"Ele está morto. O tal Francisco, que casou, sem amor, com outra mulher, enviuvou e voltou a dirigir-se à mama, propondo-lhe que acabassem a vida juntos... Sinceramente, não a censuro. Por mim, acho que a união conjugal não é coisa que se recomece... mesmo que tenha sido imperfeita. Mas a mama não se parece comigo. Ela tem necessidade de... Olha, vês estas flores? Sem sol não teriam desabrochado. A mama precisa de sol.

- Então, minha amiga, que conselho esperas tu de mim, se julgas o caso de tua mãe duma maneira tão ampla, tão generosa?

- Estás admirada... Julgavas ir achar uma rapariga áspera, revoltada, pronta a impedir um casamento - que, apesar de tudo, me parece uma infidelidade à memória de meu pai e uma confirmação da legitimidade do seu ciúme. Mas estou a sentir uma mudança em mim. Porquê? Nem eu mesma sei porquê. Além disso não se trata de mim. Trata-se duma dificuldade a vencer: - como se há-de

fazer aceitar o caso a Maria Violeta?

- Maria Violeta... - repetiu Ivone, ainda mais cheia de cuidados do que Margarida supunha. Perante ela, o problema apresentava-se mais complicado.

- Tu sabes, Ivone, o afecto que havia entre ela e o papá. Por ele, ela faria todos os sacrifícios. E não é preciso lembrar-te que foi durante a sua agonia que ela se ofereceu para casar com Miguel em meu lugar, para que o papá morresse em paz... e houvesse quem o substituísse, para o seu consultório continuar na família... e o padre ir absolvê-lo.

Reviver aquelas recordações era uma coisa que lhe fazia um mal infinito. Desfez uma lágrima com a ponta do dedo e continuou:

- Nunca falei disto a ninguém, desde...

- É muito duro, pobrezinha.

- E terrível. Mas alivia-me, embora me dilacere. O sofrimento aferrolhado num canto do coração fremente, envenena. Mas voltemos à pequena. Ela nunca há-de consentir em ver o lugar do papá tomado assim e em ver a mama partir com outro. É tão sensível, que há-de sofrer a um ponto que eu prevejo e receio. Talvez se revolte... E a mama, então, suplicou-me que lhe desse eu própria a notícia. Pois recuo todos os dias. Como hei-de fazer isso? Tu, que sabes falar às pessoas e desfazer as complicações, tu, que és criteriosa e religiosa e te entregaste toda aos outros, ajuda-me. Tenho dó da minha irmãzinha. E receio dar-lhe um golpe mortal.

- E tens toda a razão para isso - replicou Ivone tristemente - porque ela atravessa uma crise moral grave.

Deu-lhe parte da conversa que tivera com o professor de psicologia, inquieto com a evolução da sua aluna e com a camaradagem dela com um rapaz perigoso.

- A notícia do novo casamento de vossa mãe vai fazer-lhe mal. Vai ser uma nova causa de sofrimento.

- Uma nova causa? Mas ela não é feliz com Miguel? Responde-me, peço-te.

- Não sei - confessou Ivone. - Ele gosta muito dela, mas gosta com amor? O que gosta de sua mulher com amor trata-a como mulher e não como uma criança. Aborrecida, desiludida, sem ter que fazer, embrenhou-se em estudos, sem ter o espírito preparado para eles, e no ensino filosófico escolheu teorias perigosas. Sabes que... tua irmã se desviou da religião, segundo dizem. Vai à missa ao domingo, por tradição, e... pronto!

- Também ela? Hoje não te encubro nada, Ivone. Eu abandonei tudo, depois da minha provação. Mas ela...

- Tu abandonaste tudo - disse Ivone gravemente - mas tu voltas. Já deste um grande passo.

- Como sabes tu isso?

Um belo sorriso inteligente iluminou o rosto de Ivone:

- Senti-o. O baptismo de Annick abalou-te. Mas o trabalho está principiado na tua alma. Estás salva, Margarida. E agora, que a tua alma está salva, é preciso salvar outra. Primeiro, salvar tua irmã.

- A mulher de Miguel... Ivone. Julguei que, como mulher dele, chegasse a odiá-la. E odiei Miguel. Agora, pergunto se Maria Violeta, pelo seu lado, me terá perdoado.

- Mas perdoado porquê?

- Por ter tido o amor de Miguel. Calaram-se as duas. Tudo aquilo lhes parecia

muito grave. Ivone pensava: "Esta rapariga é um valor. Miguel tê-la-á esquecido? Maria Violeta terá podido fazer meu irmão esquecer-se do seu noivado tão breve e radioso?"

- Onde estará ela neste momento? - inquiriu Margarida.

- Na Faculdade, certamente. Espero que tenha ido procurar o professor Martinho Brunoy e não o outro, que a fez perder a fé e a conduz pouco a pouco para uma emancipação perigosa. E há ainda o camarada de estudos. Não se terão encontrado para lancharem juntos?

- Oh Ivone, ela?

- Ela, sim. Não se passa nada de mal, a não ser que a sua alma está em desagregação e que a sua reputação está, talvez, ameaçada. Ouve, quando abordares a questão de tua mãe fá-lo com a maior simplicidade. Não lhe dês o aspecto de um drama. Em seguida diz-lhe que a mãe, embora com as melhores intenções do mundo, tem estado a ocupar lá em casa o lugar que lhe pertence a ela e que a sua vida será completamente outra se ela própria dirigir Corentina e se encarregar dos trabalhos de expediente de Miguel. É preciso fazê-la reviver, mostrar-lhe responsabilidades capazes de arrancá-la a esse mundo da filosofia para onde ela se atirou por falta de ocupação e onde se arrisca a tresmalhar-se. Fala-lhe já nisto e em seguida volta para Paris. Mais tarde tornarás a vir. Mas presentemente serias de mais entre eles os três.

- Falo-lhe amanhã-decidiu Margarida, muito pálida.

- És muito corajosa. Está tranqüila. Nós rezaremos.

- Nós quem? Ninguém sabe...

- Pede a Gildas que reze, mesmo sem lhe explicar nada, é claro. O garoto adora Maria Violeta e é muito religioso. Diz-lhe que Maria Violeta tem um desgosto e que é preciso ajudá-la. Um coração de criança pode conseguir milagres. E o dele é tão puro, tão generoso... Agora tenho de deixar-te, minha amiga. Tenho trabalho à minha espera.

As duas irmãs tinham combinado encontrar-se no salão de chá onde Susana e as filhas costumavam ir sempre que iam a Rennes. Margarida esperou muito tempo por Maria Violeta e sentia-se inquieta; depois do desastre que sofrera, ficara nervosa. Por fim, a jovem chegou, com aspecto bastante cansado. Cavaquearam um pouco, sem nada dizerem de essencial. O assunto de quase toda a conversa foi Rosa Teresa e o bebê. Consideravam-na sempre a mesma, bonita, chique, boa rapariga, mas nada profunda. E muito feliz.

- É uma sorte poder viver sem cuidados suspirou Maria Violeta.

- Tu também não tens muitos - ousou responder a outra.

E Maria Violeta olhou para ela, com uns grandes olhos de espanto, ao mesmo tempo que pensava: "Que tem ela?"

A mais velha, porém, continuou arrojadamente:

- Ouve, querida, tu, afinal, estás muito isolada. Se tiveres um aborrecimento, com quem te abres tu? É uma coisa que pode acontecer a qualquer... O teu professor de filosofia inspira-te confiança? Dizem que é muito sensato, muito bom e paternal para com os alunos.

- Sim, a ele podem contar-se muitas coisas. E pedir-se conselho. Mas os conselhos não se seguem nunca...

- Minha independente! Faz-me uma promessa... Fazeres de Martinho Brunoy teu confidente se...

- Se o quê? És tonta? São quase horas de chegar o comboio. A conta, menina! Não, não, quem paga sou eu! Além disso és minha convidada lá em casa. E também tenho mais dinheiro do que tu. E tão poucas despesas!

- Bem sabes que não sou pobre, com o que ganho.

- Deve ser uma coisa muito agradável ganharmos nós próprios o dinheiro que gastamos.

- Não digas tolices!

- Ah! mas que maçada! - exclamou a jovem, revolvendo a malinha. - Não tenho dinheiro... Paga tu. Lá em casa pago-te.

- Então fizeste muitas compras?

- Não, não comprei nada. Perdido? Não. Não se fala mais nisso.

E depois, com aquela simplicidade que a fazia tão encantadora:

- Emprestei dinheiro a uma pessoa.

- A uma amiga em más circunstâncias?

- Não. Foi a um rapaz. Um camarada da Faculdade. Estava atrapalhado.

- E ele aceitou, Maria Violeta! Não sabes que um homem não deve aceitar dinheiro a uma mulher?

- Porquê? Desde que ela o tenha e ele não? Bem sei que isso antigamente não se fazia. Mas é razão para que não se faça agora?

- Que raciocínios os teus, minha filha!

Os olhos claros tiveram uma expressão de angústia.

- Fala-se para aí da crise da adolescência e da questão das idéias impostas pelos pais até cada um saber pensar por si mesmo. Eu não passei por isso; preocupava-me muito com a família, sobretudo com o papá... Agora é que os problemas me aparecem. A filosofia derrubou um feixe de coisas que eu supunha inabaláveis.

- E, em troca, o que te deu?

- Nada - fez ela, mostrando as mãos vazias.

- Vens?

Puseram-se a caminho. Ao passar pelas ruas,

Margarida encontrava recordações dos dias felizes: aqui a modista onde mandara fazer o seu vestido de noiva... ali, o joalheiro que vendera o anel... E a cada recordação, um pequeno aperto no coração. Maria Violeta, porém, preocupava-a muito mais do que ela esperava. O braço da mais nova deslizou por debaixo do seu; seria para ajudá-la a andar? Agastada, Margarida disse consigo: "Faço-Lhe dó". Mas uma voz suplicante murmurou:

- Margarida... quando voltares para Paris, leva-me contigo!

Não inquiriu porquê. com grande suavidade (como podia o seu azedume mudar-se assim em doçura?) respondeu:

- Será possível? Tens desejo de ver Paris?

- Sobretudo de mudar um pouco de atmosfera. E depois...

Frase interrompida. Talvez a oprimissem coisas muito graves,

- Voltaremos a falar nisso, minha irmãzinha. Prometo-te. Vai ao meu quarto amanhã de manhã. Estudaremos tudo isso juntas.

No comboio, Margarida fechou os olhos. "Deve estar cansada - pensou Maria Violeta, - Anda com dificuldade".

Mas, sobretudo, Margarida estava fatigada moralmente. E não queria ver o rosto patético daquela que, tanto a mãe como o marido, consideravam uma criança.

 

As coisas passaram-se com a maior simplicidade. Depois dos "bons-dias" dados pela manhã, Susana perguntara: "Quando lhe falas?" E como Susana tinha de ir à administração municipal tratar de uns assuntos do genro e devia demorar-se bastante, Margarida chamou Maria Violeta:

- Nós combinámos conversar um bocado. Tens tempo?

- Eu? Tenho sempre tempo.

Apareceu linda, alta e delgada no seu robe branco e cingido, os cabelos de criança espalhados pelas costas.

- Desculpa vir assim vestida - disse ela. Dormi mal e levantei-me tarde. Ontem falámos de muitas coisas - que tiram o sono.

- Eu também pouco dormi. A mama vai-demorar-se muito lá por fora; ninguém vem incomodar-nos. Podemos tagarelar à vontade.

- És uma rica irmã, Margarida.

- Achas sinceramente? Então, ouve cá. A mama foi à Administração. Porque não foste tu?

- Porque ela não me deixa fazer nada. É por isso.

- Tu é que devias começar a substituí-la nisso tudo.

- Para que servia? Ela interessa-se por essas coisas e faz tudo perfeitamente. Miguel tem confiança nela.

- E se ela vier a faltar?

- A mama? Tão nova e tão forte? O papá, sim, estava-se sempre à espera de que ele desaparecesse. Mas ela? Nunca tal idéia me veio à cabeça. Ela até é mais forte do que eu...

- E se ela sair de casa e os deixar os dois sozinhos? É muitíssimo natural. Por melhor e mais delicada, alegre e dedicada que a mama seja, parece-te desejável uma terceira pessoa num lar construído de novo? Tu não tens aqui o papel que de direito te pertence.

- Mas se eles estão satisfeitos com isso... Em todo o caso nunca eu pediria à mama que nos deixasse. E ela nem nisso pensa, decerto, a pobre mama, que julga tão necessário velar pela sua "filhinha"... como eles dizem. Mesmo, ela havia de fazer-me uma falta terrível. Fazes idéia do que seria eu, sozinha, dentro desta casa?

- Faço, sim. Tomavas conta de tudo e a tua vida tornava-se interessante.

- Mas para que serve, também, estar a acumular "sés"? Se a mama saísse de casa... Se eu tomasse conta de tudo... Se Miguel visse que não sou uma criança... Se...

- É uma coisa que pode muito bem acontecer, a mama ir-se embora.

- Mas tu estás doida? Para onde ia ela? Para Nantes, para ao pé de Rosa Teresa, para brincar com os netos? Pode ser... Mesmo assim, não o creio. E então?

Um grande esforço corajoso. E Margarida espantou-se por sentir brotar-lhe da alma uma prece a pedir auxílio, tal como a labareda de um fogo que se julgasse extinto.

- A mama podia partir por qualquer alteração que se desse na sua vida. A mama conserva-se nova e bonita, Nunca pensaste na possibilidade de ela tornar a casar-se?

Maria Violeta fez-se tão branca como o robe que trazia.

- Que estás tu para aí a inventar? Que idiota, pensar numa coisa dessas! Não está bem. Quem tem um marido como o papá era, não torna a casar-se. Perdeste a cabeça? Queres pôr à prova a minha resistência. Fazer-me sofrer, talvez... Quem sabe? Cala-te! Não me fales mais de semelhante horror.

Acabrunhada, Margarida baixou a cabeça:

- Querer fazer-te sofrer? Julgas-me um monstro? Confesso que depois da minha infelicidade me mostrei dura, egoísta, revoltada, inimiga da família. Mas fazer-te sofrer, a ti, a minha irmãzinha, a única que eu podia ver a... a ocupar o meu lugar? Como podes tu acusar-me de tal?

As duas irmãs ficaram em silêncio. Foi Maria

Violeta, com a voz completamente mudada, a primeira a quebrá-lo.

- Perdoa-me! Sou odiosa. Devia lembrar-me da generosidade tão simples, tão bela, com que me deixaste casar com Miguel. Eu, se o fiz, sabes bem que não foi por Miguel, mas sim pelo papá. E agora querem bani-lo da família, esquecê-lo, encerrá-lo definitivamente entre os mortos, mas os mortos verdadeiramente mortos, como diz Corentina, de quem não se fala mais... É claro que uma mãe não tem precisão do consentimento dos filhos para tornar a casar-se. A mama é livre. Mas eu é que nunca aceitarei isso. Nunca hei-de conhecer o marido. E ela... sim, não poderei tornar a vê-la quando tiver deixado o nome de Lê Fort pelo de... Quem é, afinal?

- O capitão Kermadec.

- Ah! é pior que tudo... Uma noite ouvi uma discussão entre nossos pais, em que o nome de Kermadec apareceu várias vezes. "Tu nunca o esqueceste" - dizia o papá. E tinha razão. Porque é que esse homem não morreu lá no mar, durante a guerra?

- A mulher é que morreu. Ele amava muito a mama e nossos avós recusaram-lha.

- Porquê? Porque não a merecia?

- Simplesmente por ele não ser médico, minha filha. Sempre a mesma história.

Maria Violeta estava hirta, sem lágrimas.

- Estou a compreender - disse ela. - A mama continuou a gostar dele. O papá não se enganava: ela nunca o amou, a ele. E agora aí está viúva.

Livre, alegre, em suma. Toda a gente diz que ela rejuvenesceu. É claro: livre do marido que lhe tinham imposto, volta para o passado. O papá morre pela segunda vez. Sou eu só que lhe fico fiel. Mas eu defendo-o, Nunca hei-de tolerar o seu substituto. E sinto que não poderei perdoar à mama. E tu perdoas-lhe? Tu não amavas o papá como eu. O papá... o grande amor da minha vida... o único ser que me amou verdadeiramente. -Tu, uma mulher casada, a falar assim?

- Tu estás cega, voluntariamente cega! Achas que Miguel me ama como um marido ama a mulher? O amor é outra coisa. Sei-o bem.

- Tu sabes... -pronunciou Margarida lentamente, sentindo que cada palavra que dizia a dilacerava. Mas era preciso que dissesse aquelas palavras. - Tu sabes porque gostas de Miguel com um amor apaixonado.

Maria Violeta fitou na irmã os olhos desvairados.

- Mas então vê-se? E ele, no entanto, não vê... Eu sou a menina modelo que não faz barulho em casa, que obedece à mama e a quem se fazem festas porque teve juízo. Quanto a Miguel... prefere Mireille. Uma mulher daquele gênero é que lhe convém. Sabes? Ela está a levar-mo a pouco e pouco... Mas, em caso de divórcio, não acredito que ele casasse com ela.

- Mas no que pensas tu, minha pobre criança?

- Em todas as possibilidades. Mireille detesta-me. Não chegaria, talvez, a levá-lo a casar com ela, porque daria um péssimo efeito se o Dr, Abran se divorciasse e tornasse a casar. Mas seduzi-lo, pô-lo sob a sua dependência de rapariga esperta e sensual, é uma coisa que ela já começou. E eu vou-me embora. O tempo das esposas humilhadas acabou-se; não serei indefinidamente uma criança insignificante. Pouco a pouco vou-me pondo em estado de ganhar a minha vida, de me bastar a mim mesmo. Assim que a mama partir, parto eu também e Mireille ficará a reinar, como esposa legítima ou não.

- Não te reconheço, Maria Violeta!

- Nem eu me reconheço a mim própria. Que havia em mim que estava adormecido? Quero fugirl Fugir desta casa, fugir de Miguel, fugir da mama... Leva-me para Paris, ao menos para eu ter tempo de ver claro. Suplico-te, Margarida! Ninguém ficará admirado por eu te levar no automóvel. Posso dormir no chão, lá no teu quarto. Ou então dormimos juntas. Quando eu era pequenina, lembras-te? e havia vendaval, ia meter-me na tua cama. Sossegava-me e acalmava-me, isso. Conchegava-me muito a ti e adormecia docemente.

Margarida teve de fazer outro esforço, porque queria dizer palavras que mal podiam passar-lhe na garganta:

- Agora, é ao pé de teu marido que deves acalmar-te e sossegar, e adormecer.

- Oh! não me fales nisso... Leva-me, Margarida! Vamos amanhã, sim? amanhã já!

- Eu contava ficar ainda mais uns dias.

- Não posso mais viver ao lado da mama.

Olha, o carteiro está a bater e a mama ainda não voltou. Vou lá abaixo.

Tornou a subir, com pressa:

- Um telegrama para ti! Que haverá?

- Ah a minha locatária morreu! Mandam-me dizer: "Venha imediatamente, antes de selarem a casa". com certeza que não tinha herdeiros. Tenho de partir. Tenho lá muitas coisas que tirar.

- Quem te previne?

- Um amigo dela, ainda novo. É cego. Uma amabilidade dele.

- Quem sabe se ele gosta de ti? Podias...

- Nunca me casarei - disse ela selvàticamente

- nem com ele, nem com outro. Evidentemente, um cego não sofria com a minha fealdade e a Sr. a Delarue achava engenhoso reunir duas desgraças. Mas tivemos ambos uma explicação. Ficou sendo para mim um bom amigo - e a prova disso aqui está. Vou-me embora esta noite

- E eu vou também. Vou ajudar-te a fazer a mudança, é um pretexto óptimo. Queres que te arranje a mala?

- Arranja a tua, pobrezinha. Mas primeiro é preciso prevenir Miguel.

- Quando ele voltar. Não quero encontrar-me com a mama antes do almoço. Diz-lhe o que te parecer melhor.

Desapareceu. Pouco depois a irmã viu-a sair. "Tenho a certeza de que vai ao cemitério".

Ia, de facto, mas primeiro foi ao campo. Queria flores. Daquelas de que o pai mais gostava: pervincas e violetas: "São como os olhos de minha filha, que tanto parecem pervincas como violetas". Levavam muito tempo a apanhar. O ramo crescia vagarosamente. Começava a sentir-se desolada, quando uma voz de criança pronunciou o seu nome;

- Bom-dia, Maria Violeta!

Era Gildas, que vinha da escola.

- Eu podia ajudar-te - propôs ele, timidamente. - Tenho de levar ovos para casa, mas ainda tenho tempo. Que flores é que tu queres? Só das azuis e cor de malva? Anda cá ao pé do regato. Há lá muitas. João Maria, que conhece todos os recantos, é que me mostrou aquele.

Levou a jovem pela mão. Tão linda, tão fina, essa mão, que não trabalhava na cozinha, não lavava a louça, nem mexia na lixívia, como as da mama e de Maria Ângela! Morria de vontade de beijá-la, como fazem os rapazinhos da "alta-roda" às senhoras bonitas. Porém, se Maria Violeta era uma senhora bonita, ele não era um rapazinho da "alta-roda".

- Descansa aí - disse ele. - Eu apanho as flores depressa. Já estou acostumado.

Fatigada, Maria Violeta sentou-se, encostada a uma árvore, e pôs-se a pensar no pai, tão querido, que já não podia ver a Primavera bretã. Enquanto ia colhendo as flores, Gildas rezava por ela. Seria essa prece infantil que lhe apaziguou os nervos? Pôs-se a chorar. Ele tinha de mostrar que dera por isso? As pessoas crescidas têm vergonha de chorar em frente dos outros. O pequeno inclinou-se ainda mais para a terra. Que bem cheirava a terra! Como as rolas gemiam docemente! Como era possível terem-se mágoas, quando se estava na Primavera e se era linda como ela, com olhos de violeta? Por fim, ela chamou-o, com a voz ainda molhada de pranto.

- Trabalhas muito depressa, querido! Mas creio que isso já chega.

Ele veio ter com ela, contente por causa da palavra "querido". Ajoelhando-se-lhe ao pé, mostrou-lhe a colheita que fizera.

- Têm de se atar. com certeza não tens guita nenhuma. As mulheres nunca têm guitas, a não ser Aliette, que mete tudo nas algibeiras. Mas eu tenho várias. Uma bonita, não é?

- A mais bonita que achares.

- Olha, uma fita dourada. Era a que vinha a atar a caixa de doces de Annick. Não, isto não tem valor nenhum para mim, acredita... Deixa-me atar o ramo assim como as floristas. Sei muito bem.

Mãozinhas magras, cuja agilidade Maria Violeta admirava. E com que gosto ele rodeou de folhagem o lindo ramo redondo.

- Aqui está. É para o teu quarto? Ela respondeu simplesmente:

- Não. É para o cemitério.

- Para a campa de teu pai. Vais lá agora? Tenho de te deixar. vou a correr buscar os ovos. Se vou tarde, o avô ralha-me.

- Dá-me um abraço - disse Maria Violeta. Assim como abraças a tua mama. com os dois braços à volta do pescoço.

E separaram-se. Mas ela tornou a chamá-lo.

- Ouve... eu vou para Paris com Margarida...

Não te ponhas com esse ar desolado! Vou pedir-te uma coisa. Queria que a campa estivesse sempre florida, enquanto estou ausente. Queres cuidar disso? Põe as flores que encontrares, não é preciso ser nada de extraordinário, mas que haja lá sempre flores. Compreendes? Sei que se pode ter confiança em ti.

Que orgulho, receber uma missão daquelas! Os olhos brilhavam-lhe.

- Prometo-to, Maria Violeta. Vou buscar ramos de ameixoeira brava. O teu papá há-de ter sempre flores. Mas... tu voltas breve, não?

Ah! que vontade de perguntar-lhe: "Não é por qualquer desgosto que partes?"

Mas um rapazinho não faz perguntas dessas a uma senhora, mesmo que ela seja mulher de seu irmão. Foi buscar os ovos. Em todas as árvores cantavam passarinhos. E no seu coração havia alegria, apesar da tristeza da separação: Maria Violeta pedira-lhe uma coisa muito importante, dizendo: "Tenho confiança em ti".

Maria Violeta foi a última a ir para a mesa. A mãe sabia que ela "já sabia" e aguardava qualquer reacção. Nada... Ela anunciou a Miguel a sua partida com a irmã. Ele ficou um pouco surpreendido, mas concordou em que Margarida precisava de auxílio. Susana, nervosa, falava cada vez mais depressa. Miguel perguntava a si mesmo: "Mas o que há?" E aquela atmosfera tornava-o nervoso, também. Só Margarida continuava calma: por que milagre de equilíbrio? Ela própria estava admirada. Então os "outros", com as suas preocupações, os seus desejos, os seus desgostos, absorviam-na toda?

Entretanto, a sua serenidade era, sobretudo, aparente. Vivia fora da vida e parecia-lhe demasiado tomar responsabilidades tão grandes sem se aconselhar com alguém. Tudo aquilo era bastante grave... Decidiu, por isso, abrir-se com o velho Sr. Abran. "Para todos os efeitos é avô de Maria Violeta. E tem um critério recto". Todos se inquietaram um- pouco por ela ter de descer a encosta: "Vais ficar cansada! - Não. Quero dizer adeus àquela gente". Ocupada num trabalho doméstico, Joana pediu licença para ir continuá-lo. Além disso, achava, na sua humildade, que Margarida teria muito mais prazer e proveito em conversar a sós com o avô.

Assim que ela saiu do aposento, Margarida pronunciou:

- Vim pedir-lhe um conselho. Levo para Paris preocupações graves... e Maria Violeta.

Contou tudo: as observações de Ivone, as suas, os projectos da mãe, a revolta de Maria Violeta e aquele amor apaixonado por Miguel que despertara no coração da jovem esposa, amor mesclado de ciúme por causa do passado - eu, Margarida

- e do presente - Mireille. E aquele desejo de fugir, de tornar-se independente, que a punha em risco de extraviar-se.

De olhos fechados, ele reflectia profundamente, sem que a rapariga lhe transtornasse a meditação.

- Leve-a - disse ele, por fim. - Aproveite o pretexto que se oferece. É certo que vai ter necessidade de ajuda para fazer a sua mudança e assim ninguém comentará desfavoràvelmente a partida de Maria Violeta. Mas sua mãe que se acautele com as intenções dessa Mireille e que a vigie. É ali que está o maior perigo. A nossa pobre Maria Violeta arrisca-se a muito em deixar o marido com uma rapariga que não é feia e que não tem escrúpulos.

- Se Maria Violeta não quiser voltar, minha mãe não pode casar-se, porque não pode deixar a casa. Se soubesse como ela deseja esse casamento! Pobre mamãi. Como é possível chegar-se àquela idade com tais reservas de mocidade! Eu, então, não tenho nenhumas!

- Julga a Margarida. Há muitas espécies de mocidade. O remoçamento experimentado por sua mãe não tem o valor que o seu teria se concordasse em renascer.

- Nascer de novo... Pensei nisso no baptizado da menina.

- Está no Evangelho. É preciso nascer de novo. E muitas vezes - até a gente ir para o outro mundo. Nunca se chega ao fim... Margarida, e a sua vida tem sido um exemplo de coragem. Creio que saberá "amansar" a nossa "selvagenzinha" e fazer-lhe aceitar o casamento da mãe. Quanto à outra questão... aos sentimentos que Miguel e a mulher têm um pelo outro, só há uma pessoa que pode resolvê-la: Miguel, esse idiota do MiguelPois então ele não vê nada? Não vê que a pequena é linda como um anjo e que lhe quer com todo a amor, com todo o seu amor de mulher, e que podia adorá-la? Ele mesmo é que tem de descobrir tudo isso. É curioso como um rapaz inteligente para os outros pode ser estúpido quando se trata do que lhe diz respeito.

Margarida foi procurar Joana para se despedir. Gildas foi até junto delas. Timidamente, murmurou:

- Daqui a pouco já nos restitui Maria Violeta, não é verdade? Ela é nossa, não é dessa gente de Paris.

A Sr. a Abran riu-se com isto. Mas Margarida e o velho entreolharam-se: "Ela é nossa!" Justamente ela já não queria ser deles.

À noite, quando Mireille se retirou na sua bicicleta motorizada, Margarida, corajosamente, foi ter com Miguel. Que emoção tornar a ver aquele gabinete médico, onde seu pai demonstrara o seu valor de profissional e de cientista! Na secretária via-se um belo retrato dele, como um conselheiro e um mestre. Ela estava profundamente comovida.

Pela primeira vez, encontravam-se sós na presença um do outro. O doutor sentia inquietação e mal-estar. Pôs-se a falar depressa.

- Vais deixar-nos já... Tens razão em levar tua irmã... Onde vais instalar-te?

- Antes de eu vir, já o meu patrão quase tinha prometido arranjar-me habitação. É bastante amável. Mas, decerto, temos de passar alguns dias no hotel.

- Em suma, não tens pena do teu quarto.

- Absolutamente nenhuma. Mas já chega falar de mim. Tenho de comunicar-te uma coisa de ordem familiar bastante grave. Trata-se da mama... Tenciona casar-se outra vez.

Ele ouviu-a, deixando-a dar todos os pormenores.

- Tua mãe é livre - disse ele, por fim. A sua presença, aqui, era-nos tão útil como agradável, mas, é ainda nova, e compreendo que ela queira ter, novamente, o seu próprio lar. E um apoio, em lugar de ser o nosso.

- Mas... é que há Maria Violetal Sabes que ela adorava o papá. Por isso não admite que a mama pareça esquecê-lo. Declarou que nunca se relacionaria com o capitão, e, até... que nunca perdoaria à mama.

- Compreendo o seu desgosto! Mas essa revolta, esse rancor, nem parecem da tua irmãzinha, habitualmente tão doce.

- Doce? No fundo será realmente doce? Um coração que pôde votar um culto tão entranhado ao papá não te parece capaz de todas as paixões?

Miguel estava perturbado. Recordava-se do pedido da pequena junto do pai moribundo: "Miguel, casa comigo!" Era por amor daquele pai, para que ele partisse em paz, que ela se oferecia assim ao casamento. Era capaz de todas as paixões...

- Compreendes agora porque é que eu a levo para Paris? Suplicou-mo ela. Não quer tornar a ver a mama. Quer fugir... fugir dela própria.

Fórmula estranha, que feriu o espírito de Miguel. Voltou, porém, a falar da mãe:

- Talvez eu fale como um egoísta. Mas tua mãe não pode casar-se enquanto Maria Violeta estiver ausente. É preciso aqui uma dona de casa, uma secretária. Como posso eu arranjar-me sem ter ninguém? Contas tê-la contigo pouco tempo, não é verdade?

- Isso depende dela que, naturalmente, há-de ter vontade de prolongar a sua estadia em Paris.

- Ela? Essa rapariguinha tímida? Que fará ela em Paris?

Margarida corou, o que a tornou mais feia, marcando-lhe a cicatriz num tom lívido.

- Parece-te que ainda se lhe possa aplicar o epíteto de "rapariguinha"?

Ele ficou calado. Estava admirado.

- Em todo o caso - prosseguiu ela - não precipitemos nada. Afinal é como se ela perdesse o papá pela segunda vez. Não censuro a mama absolutamente nada; teve por marido um homem superior, mas com quem era difícil viver, e o capitão Kermadec tem fama de ser muito bom. Não a censuro, mas Maria Violeta, que ainda não conhece bem a vida, tem a intransigência dos jovens... Enfim, concordas que eu a leve para Paris?

Ele passeava a todo o comprimento do gabinete.

- Decerto, mas espero que ela volte depressa e que não tenhamos de lamentar um rompimento entre a mãe e a filha... Vela bem por ela. Embora não toleres que ela seja tratada como criança, é uma criança na idade e na inexperiência. Que fará ela em Paris durante as horas em que estás a trabalhar?

- Freqüentará os seus cursos, irá aos museus...

- Sozinha? Nunca a devíamos ter deixado encher-se de filosofia. É uma coisa que vai acabar por fazer dela outra mulher.

- Talvez já o seja - murmurou Margarida. Até à vista. Fica tranqüilo que velarei maternalmente por minha irmã.

Ele pegou na mão mutilada e beijou-a com grande respeito e, talvez, com dor.

 

Mais tarde Margarida disse: - Ora cá estou instalada, graças à tua ajuda. Agora podias voltar para Plémeur, Maria Violeta.

Mas a resposta que obteve foi um encolher de ombros e um "não" murmurado surdamente.

Estava, de facto, instalada. O Dr. Bernardo Laugier reservara-lhe um apartamento num prédio de que era proprietário, que um médico militar, enviado para Madagascar, acabava de deixar. Era pequeno, mas cada uma das raparigas tinha o seu quarto e Margarida gozava uma satisfação sem limites por se sentir, enfim, na sua casa. Maria Violeta sentia-se menos contente. A rua estreita parecia asfixiante para a bretã costumada aos horizontes largos. Só à noite ela se sentia à vontade, com o candeeiro aceso; lia, então, com avidez os livros que Paris lhe proporcionava, mais numerosos e mais modernos que os de Rennes. Embriagava-se com essas novidades, cujo título bastava para inquietar a mais velha, que não tinha tempo de lê-los.

"Esta pequena está a envenenar-se a pouco e pouco. E durante o dia para onde vai ela?"

No entanto, Maria Violeta falava sem rebuços do emprego que dava ao tempo: cursos na Sorbonne e no Colégio de França, exposições de pintura, concertos, visitas arqueológicas. Mas quantas coisas se nos escapam numa atmosfera de estudo. Era preciso não olvidar o camarada de Rennes.

- Restituiu-te o dinheiro que lhe emprestaste?

- Não. Nem espero por isso.

- Não tornes a praticar generosidades desse gênero, queridinha.

- Porquê? Todos vocês estão recheados de preconceitos.

Maria Violeta gabava imenso o encanto de Paris e o valor do alimento intelectual que ali encontrava. Simulava ser uma mulher feliz e emancipada. Que tristeza, porém, naqueles olhos ternos, circundados duma sombra onde havia tons de malva!

- Tu estás a emagrecer. Trabalhas de mais. Paris cansa-te.

- Paris agrada-me. Aqui, ao menos, vive-se.

- E ao que chamas tu viver? A actividade só é bonita quando se emprega ao serviço de uma idéia ou de um amor.

- Viver é descobrir, é a pessoa tornar-se nela própria.

- As verdades descobertas pela inteligência são estéreis, se não forem utilizadas. E tu andas a descobrir verdades ou quimeras? Creio que só o coração pode fecundar as sementes das idéias, porque o amor é que presta vida a tudo.

Maria Violeta desviou a conversa assim que ouviu o vocábulo "amor". Essa palavra perseguia-a, abrasava-a.

Naquela noite, as duas irmãs sentiam que a declaração de Margarida: "Ora cá estou instalada! "- acordava algo nelas. Olharam com prazer para a habitação em ordem, toda arranjada com gosto, que adquirira a sua personalidade.

Todavia, Maria Violeta asseverou:

- Ainda faltam certas coisas. Tu não tens tempo nenhum de comprá-las. E agora ficaste cansada com estas arrumações. Vou ficar contigo mais uns dias. Além disso lá em casa podem esperar. Eu não disse quando voltava.

- A mama já está ralada.

- Mais por ela do que por mim. Mas ela que se vá embora, que se case! Quem é que a impede?

- Sabes muito bem que ela não pode deixar Miguel embaraçado com os trabalhos que ela faz.

- Pois ele que arranje uma secretária, se a sua Mireille não chega.

- Que idiota coisa dizer "a sua Mireille"! Pois se ela não lhe é nada.

- Que sabes tu disso? Em todo o caso, actualmente ela deve estar a manobrar para se fazer valer o mais possível.

- E de quem é a culpa? Alguém deixa assim à vontade um marido jovem tão pertinho duma rapariga daquele gênero?

- Quando um marido jovem ama a sua mulher não se trata por tu com uma rapariga daquele gênero, nem consente que ela lhe chame "meu querido Miguel". Julgas que estou a inventar? Ouvi eu.

- Miguel fez mal. Mas na profissão médica creio que pode haver muitas familiaridades sem ir mais além.

- Vai sempre além. Tenho a certeza de que Miguel passa perfeitamente sem mim. Escreve à mama e diz-lhe que procure uma secretária que possa substituí-la.

- E ela, naturalmente, responde: "Maria Violeta que volte". Ouve... as duas razões que, aparentemente, justificavam a tua presença cá, agora já perderam o valor. Vinhas ajudar-me a arrumar a nova casa. Já está arrumada. Querias, também, afastar-te da mama. Ela está pronta a sair lá de casa. Portanto... Oh não faças essa cara de criança teimosa!

- Olha, Margarida, eu não quero mais tornar a fazer o papel absurdo de menina ajuizada ao lado de um marido que dá a sua confiança a. uma Mireille qualquer e me considera a mim desajeitada e ignorante, boa, quando muito, para inspirar uma afeição paternal.

- Faz-te amar doutro modo. És bastante bonita

para isso.

Ela encolheu os ombros: "Ivone não viu um palmo à frente do nariz quando recomendou Mireille ao irmão. Agora, para ela remediar o mal, que meta no lugar de secretária uma velha feia e ressequida, que vigie a audaciosa operadora".

- Então tu não compreendes onde está o teu dever?

- Não é lá que está o meu dever. Além disso, o que é o dever?

- Martinho Brunoy falava assim nos seus cursos? Negava os grandes princípios que sustêm a mmoral?

- Não. Mas a filosofia actual ultrapassa-o. Vai descansar. Eu vou cuidar do jantar. Corentina ficaria espantada se me visse no meio das caçarolas! Ela também me supunha sem préstimo para nada,

- Estás enganada. - exclamou Margarida. Acabas por exasperar-me. Corentina é muito observadora. Disse-me que te entendias lindamente a dirigir a casa na ausência da mama e que era uma grande pena que tu não te pusesses a mandar em lugar dela.

- Corentina disse isso? Tanto melhor. Ao menos que haja alguém que veja que eu cresci... Não se incomodes a pôr a mesa. Eu trato disso.

Saiu do aposento. Margarida soltou um suspiro. Que obstinada, aquela pequena! E como devia sentir-se ferida, a despeito de todas as boas intenIções, para reagir assim! Na verdade, nunca podem Iprever-se as conseqüências de um acto. Ambas tinham feito aquele pacto destinado a dar a paz ao pai moribundo, pacto que tinha como compromisso o casamento de Maria Violeta com Miguel. Ao fazê-lo, tanto uma como outra estavam convencidas, - ingenuidade de raparigas! - de que as coisas se arranjariam normalmente e de que, por aquele meio, todo o sofrimento seria afastado. Não fora assim, porém; a desposada ficara, igualmente, com uma parte de sofrimento bem pesada. E nem a felicidade de Miguel, nem a dignidade da casa se encontravam seguras. Acabariam por chegar a uma separação, ao divórcio? Na Bretanha o divórcio é inadmissível, mas Maria Violeta, que se desprendera dos princípios tradicionais, era muito capaz de pedi-lo se soubesse que Miguel a atraiçoava. E não sucederia isso mesmo? Ele era novo. Mireille era jovem. Unia-os o liame do trabalho compartilhado. Por que razão votava ele a Maria Violeta apenas uma afeição paternal? E não via como ela o amava? Criança desastrada que não soubera fazer-se conhecer plenamente, nem soubera tornar-se querida como o merecia uma jovem cuja inteligência e cuja graça toda a gente admirava! Sim, toda a gente. Na rua dirigiam-se-lhe e ela contava-o, divertida. De que espécie era esse divertimento? Maria Violeta era uma florinha selvagem transplantada...

"E eu, no meio de tudo isto? - perguntou de repente Margarida a si mesma, reconduzida, por um pendor natural, para o egocentrismo em que se instalara depois das suas desditas - e eu?"

Percebeu, com estupefacção, que o seu eu já não a preocupava. Ele recuava, empalidecia, enquanto que os outros avançavam... figuras de primeiro plano... que tinham encontrado meio de arrancar-lhe, a ela, a espoliada, o que ela perseverava em conservar para si até à avareza - a sua solidão feroz, a sua independência, as suas mágoas altivas. Reclamavam tudo, então? com que ficaria?

Contemplou o crucifixo antigo que colocara na parede. E pareceu-lhe que uma resposta estranha deslizou até junto dela:

"com que ficarás? Nada, dizes tu, Mas tu terás tudo. Porque eu venho ter contigo. "

Maria Violeta entrou:

- Estás a dormir? Sentes-te cansada? Vem jantar. Fiz coscorões.

- Como Miguel gosta? - disse ela de propósito.

- Ah! não falemos mais de Miguel. Fiz os coscorões conforme a receita de Corentina, mais nada. Tenho a certeza de que nunca mais os comeste desde que estás em Paris.

Margarida pôs-se a rir, o que a espantou a si própria por julgar que já desaprendera de rir-se. E ria com tal graça que Maria Violeta olhava para ela como uma criança admirada, de olhos arregalados e a boca entreaberta, a descobrir-lhe os lindos dentes. Então aquela rapariga sabia rir-se? Tornara a aprender?

- Desculpa-disse Margarida, por fim. -Mas como é que eu havia de fazer coscorões lá em casa da pobre Sr. a Delarue? Um fogãozinho eléctrico e dois tachos do tamanho da palma da mão. Uma noite comia presunto, no dia seguinte um ovo, depois uma salada, umas frutas. E a seguir voltava ao mesmo.

- Confessa que presentemente comes melhor.

Vês que devo ficar? Quanto mais não seja, como cozinheira. Amanhã faço-te um jantar bretão.

Era agradável aquele jantar com companhia. Margarida não podia deixar de gozar esse prazer. À mesa bem posta, as iguarias bem preparadas e, na frente dela, a sua linda irmã. Sim, linda como uma flor. Era impossível que Miguel ainda não reparasse nisso. Já não tinha, porém, a sua expressão doce e cândida.

Maria Violeta quis tornar a pôr tudo em ordem e a outra deixou-a fazê-lo, julgando excelente para a pequena intelectual aquela actividade caseira. Quando voltou, trazia um livro na mão.

- Se tu me lesses um bocadinho? - perguntou Margarida. - Tu lês muito bem. O papá gostava de ouvir-te.

- Então, outro livro. Aquele não serve para ti.

- Que palermice. Então eu, a tua irmã mais velha, não posso ler o que tu lês? É um livro muito mau, não?

- Tudo depende do que assim chamarmos.

- Agora fazes sempre uma embrulhada do bem e do mal. Acautela-te. Não se sabe até onde isso pode levar.

Maria Violeta encolheu os ombros: "Bagatelas, essas distinções. Em todo o caso este livro não é bom para ti. Procura-se outro".

Ajoelhou-se em frente da estante dos livros, enquanto Margarida admirava a flexibilidade daquele corpo juvenil.

- Olha, aqui está um que te agrada.

Com efeito, o desenrolar do romance decorria numa atmosfera elevada. De pálpebras fechadas, a mais velha escutava, admirando-se de encontrar, em certas frases, a expressão da sua própria evolução de dolorosa. E com que arte aquilo era lido! Cada palavra adquiria o seu pleno valor e imprimia a sua marca na sensibilidade desperta e atenta. De súbito a sua voz deixou de ouvir-se. Bruscamente, Maria Violeta afastou o livro e, com os cotovelos encostados à mesa e a cabeça baixa, murmurou:

- Não posso mais. Isto faz-me lembrar muitas coisas. Faz-me mal. Não deviam escrever-se livros como este.

Margarida não respondeu. Fosse qual fosse a resposta, seria indigna do que se estava passando no coração macerado, no espírito atribulado da mulher de Miguel - a mulher que adorava Miguel e pensava que não era amada. Por fim, Maria Violeta ergueu a cabeça:

- Vou fazer-te uma pergunta odiosa. Diz-me a verdade. Jura-me que dizes a verdade... Margarida, ainda amas Miguel?

- O que se chama amar, não, já não amo Miguel. É meu irmão, mais nada. Ouve. Há algumas semanas, quando tornei a vê-lo, o meu amor despertou e fez-me sofrer. Tive ciúmes de ti. Revoltei-me. E depois... como hei-de explicar-te? As palavras são tão pobres, tão estúpidas, para dizer coisas profundas. Depois... tudo se modificou. Foi durante o baptismo da pequenita. Senti que tudo isso era o passado, um passado morto, e que Miguel já nada mais representava para mim do que o substituto do papá, o teu marido - um irmão.

- Juras?

- Juro, Maria Violeta Abran! Ela estremeceu.

- Porque me chamas tu assim?

- Porque tu és dele - para a eternidade. Fez-se um grande silêncio. Apenas se ouvia o

tiquetaque da pêndula, medindo o tempo, enquanto se falava de eternidade.

Finalmente, Maria Violeta murmurou:

- vou deitar-me. Boa-noite.

- Boa-noite, minha querida. Dorme bem.

- Oh! dormir... - suspirou ela.

E a irmã pensou no belo e vasto leito em que, nessa noite, Miguel dormiria sozinho.

No dia seguinte tiveram cartas da Bretanha. Susana escrevia a Margarida e Ivone também. Miguel escrevia a Maria Violeta.

- Toma lá - disse esta - lê. Isto é de um homem apaixonado pela mulher ou de um pai para a filha?

De facto, o tom da carta era gentilmente paternal, mas no fim havia quase uma ordem: regressar.

Maria Violeta amachucou a carta e atirou-a para o cesto dos papéis. E não perguntou à mais velha: "Que te diz a mama?" Nem queria sabê-lo. À Sr. Lê Fort, inquieta por ver que a ausência de Maria Violeta se prolongava, contava que Mireille abusava cada vez mais e que as más-línguas começavam a murmurar, segundo dizia Corentina, que repetia: "Minha senhora, esta rapariga não deve continuar a estar ao pé do senhor".

Susana falava, também, do seu noivo, que se recusava a compreender por que razão Maria Violeta não tornava a ir ocupar o seu lugar, dando, assim, liberdade à mãe. "Convence-a, peço-te!"

A carta de Ivone exprimia, igualmente, os mesmos pontos de vista sobre a opinião da terra e a atitude de Mireille.

"Como é que eu lhes meti esta aventureira em casa? Estou a ver se lhe arranjo qualquer situação excepcionalmente brilhante a fim de ela se ir embora - situação que, de resto, ela merece pelo seu valor profissional, E vocês ficariam tranqüilas, minhas pobres amigas! Em nossa casa tudo vai normalmente. Imagina que Gildas todos os dias vai pôr flores na sepultura de teu pai. Interrogado pelo avô acerca dos seus passeios, confessou que ia apanhar ramos de flores e que prometera a Maria Violeta ter a campa sempre adornada. Como ele a admira e como ele lhe quer! É um pequeno adorável, sabes? As suas preces podem reconduzir a pobre Maria Violeta ao bom caminho. Tenhamos confiança... Miguel fala muitas vezes dela com uma certa irritação. Ao começo achava a sua ausência absolutamente natural, mas agora, não. Vê se a resolves a vir, desde que ela te pareça mais calma e apaziguada. "

Gildas juntara um bilhetinho para Maria Violeta.

"Maria Violeta, tenho feito o que tu me pediste. Há lá sempre flores. No outro dia Miguel aborreceu-se porque eu estava constipado e assim mesmo saí para apanhá-las. Ralhou-me de tal maneira.

Depois de me tirar a temperatura, que eu acabei por dizer-lhe aonde ia. Foi engraçado como ele ficou, depois. Falou-me com meiguice. E quando eu voltei ao cemitério e esperava encontrar as últimas flores já velhas, havia lá rosas lindas, lindas, compradas, com certeza, numa florista... - Teu pequeno Gíldas. "

Maria Violeta tornou a dobrar a folha de papel sem dar parte dela à irmã. Mas esta viu-lhe os olhos cheios de lágrimas. E pôs a sua esperança em Gildas.

Nova carta de Susana: "A situação agrava-se, Corentina anda à discussão com Mireille, que se mete em tudo. Num dia de muita chuva, Miguel convidou-a para jantar. Corentina ficou furiosa... Por outro lado, o capitão desespera-se. Será realmente preciso Ivone procurar uma secretária? Uma secretária, porém, não substitui uma dona de casa. Tua irmã que venha, por favor! Se é de mim que ela se afasta, ela deixará de me ver; será apenas o tempo de pô-la a par dos assuntos correntes. Minha filha, então, jamais me perdoará? Obrigada por tu seres mais compreensiva! É verdade que sofreste... Decerto eu e Miguel estragámos Maria Violeta com mimos. "

- Como a mama está cega! - suspirou Margarida. - Pensa que é impedindo as pessoas de mostrarem o seu valor que se fazem felizes. "Estragam-nas", de facto, no sentido exacto do termo. Estragaram a mulher delicada e rara que Maria Violeta deveria ser. E nem um, nem outro o compreendeu ainda.

De nada lhe servia repetir à irmã: "Já cá não preciso de ti", como de nada servia a Miguel enviar-lhe breves bilhetes (brevíssimos, que eles eram), pedindo-lhe que regressasse. Maria Violeta continuava a deixar-se ficar e a vaguear por Paris, pretendendo que isso lhe agradava infinitamente, mas chorando, à noite, na cama.

Margarida, evidentemente, achava muito agradável aquela presença fraterna e era com certa angústia que encarava a necessidade infalível de tornar a cair na solidão. Procurara agradecer a Estêvão Rollin a decisão que tomara por ocasião do falecimento da Sr. a Delarue, mas ele não respondera à sua carta: "Pobre rapaz! Talvez me recorde com pesar. Mas eu nunca poderia casar... Além disso, o futuro já não me aparece desesperador. Não sei o que ele me trará... Mas parece-me que me vai trazer qualquer coisa. "

Rezou novamente, E em cada dia que passava a sua prece brotava cada vez com mais ímpeto, e mais vivificava as zonas da sua alma devastadas pela desventura.

 

MARIA Violeta trouxera aquele livro duma biblioteca, onde ela costumava ir buscar leituras. Leu-o e depois deu-o à irmã.

- Lê. Deve agradar-te.

- E a ti?

- A mim, não. Não é bastante actual. Imagina, é de antes da guerra de 14, "a grande guerra", como diz Corentina. Li muitos autores modernos para assimilar esse gênero de filosofia. É claro que Psichari era neto de Renan e a sua evolução teve os seus fundamentos. Mas para ser levado ao ponto de onde eu me retirei.

- Talvez para lá voltares por teu turno.

- Não se volta atrás...

"E, no entanto - disse Margarida de si para si

- eu fiz marcha atrás. E que depressa isto vail Enquanto a pequena se afasta, aproximo-me eu. "

Leu vagarosamente, com paixão. Dentre outras, uma frase penetrou nela para não mais sair: "Desde que se dê um passo fora da mediocridade, está-se salvo".

Não dera ela, já, esse passo? Entretanto não se sentia ainda "salva", porque uma pedra de tropeço a detivera no caminho em que devia ter avançado. "Já não amo Miguel", afirmara ela sinceramente a Maria Violeta. Porém, não aceitava ainda completamente que Maria Violeta fosse dele. Facilitando a partida da irmã, furtando-a a Miguel, não tirava ela uma espécie de desforra? O que ela descobria na sua consciência, lá bem no fundo, assustava-a.

Já tinham passado dois meses após essa perigosa separação dos esposos. Junho despontava com o seu perfume a rosas. E que rosas tão lindas havia na "Casa de Cima"! "Mama - diziam outrora as filhas de Susana, ainda pequenas -, as tuas faces parecem rosas". Margarida tivera, também, um rosto que era uma flor. E uma alma em flor. "Tornará a florir" - fora predição do cego. Conseguia ele ver as coisas interiores? Talvez. Mas, para tornar a florir faltava-lhe a seiva do seu consentimento na perfeita união de Miguel e de Maria Violeta. Mas esse consentimento demorava-o ela, incapaz, ainda, de pronunciar o "sim" libertador. Para esse "sim" a libertar, tinha de dilacerá-la e ela não queria ser esfarrapada mais uma vez.

Não suspeitava, sequer, de que em casa dos Abrans uma alma de criança se encontrava intimamente associada aos três. Gildas adivinhara tudo, graças à extrema intuição dum coração muito puro, aumentada ainda pelo estado doentio em que decorrera a sua primeira infância. E ele queria tanto a Maria Violeta! É certo que Miguel sempre falara a Maria Violeta com gentileza, mas duma maneira... que não deixava ver se ele a achava boa, bonita, inteligente, se lhe parecia encantadora quando se ria. E porque não ria mais amiúde a mulher de Miguel?

Gildas tinha um segredo que até do avô escondera. Porque o segredo não era dele, era de Maria Violeta. Um dia, pouco depois de Maria Violeta partir, foi à quinta buscar manteiga e a fazendeira disse-lhe: "A Sr. a Miguel Abran esteve cá e deixou isto esquecido em cima da mesa". Era um belo caderno de estudo com as folhas presas por uma mola de ferro, que fazia, há muito, a cobiça de Gildas. Mas era "uma coisa muito cara" - dizia a mama.

Pegou nele: "Eu levo-o para casa dela". Escapou-se dele um papel e teve de correr mais depressa que o vento para poder alcançá-lo. Saltaram-lhe logo aos olhos algumas linhas: "Miguel, meu amor, nunca saberás ver quanto eu te amo? Continuarei a ser para ti uma rapariguinha insignificante? Choro e tu não adivinhas que eu, tua mulher, choro".

Mau grado o seu desejo, leu isto duas vezes e depois, tomado de escrúpulo, tornou a meter a folha de papel entre as outras: "Não temos o direito de ler o que os outros escrevem". Mas as palavras gravaram-se-lhe no espírito. Ela, uma rapariguinha insignificante? Insignificante, aquela senhora bonita, de grandes olhos claros, cabelos negros, brilhantes e anelados, de pescoço alto e branco, com uma linda boca redonda que se abria sobre uns dentes pequeninos? O seu riso era uma música. E as suas mãos... a sua maneira de andar... de dançar. Tinha-a visto dançar algumas vezes em bodas, nas quintas... Gildas não compreendia que Miguel pudesse ser tão parvo. E depois pensara muito em tudo aquilo.

Que fora feito da folhinha de papel? Gildas esperava que o irmão a tivesse visto. Mas não. Miguel metera o caderno, sem o abrir, na estante de Maria Violeta. E nada "sabia". Continuava a pensar que ela era "uma rapariguinha insignificante". Era por causa disso, com certeza, que ela não queria voltar. Não há ninguém que goste de ser tratado como uma criança. Nem mesmo os mais pequeninos, na escola maternal. E então... uma pessoa como Maria Violeta... e depois: "Eu choro". Fazer chorar Maria Violeta!

E nessa quinta-feira de Junho, a mãe disse-lhe:

- Vai lá acima a casa de Miguel. Ele ficou de trazer uns medicamentos para o avô, quando passasse por aqui. Mas não veio nada. Agora anda distraído de todo. Deixa-te lá estar até a consulta acabar; senão já não o apanhas, porque ele sai.

- Eu mesmo podia trazer os remédios.

- Não. Creio que ele quer dar uma injecção ao avô. Vamos, vai depressa, querido!

Gildas foi-se embora, mas não ia muito depressa, porque o caminho entre a "Casa de Baixo" e a "Casa de Cima" era íngreme. Além disso, o cuco voava por ali e era engraçado ouvi-lo. Que trocista, o cuco! Maria Violeta não gostava dele. Gostava do rouxinol. E João Maria do melro. Ele, Gildas, gostava do arrulho da rola. No livro de missa falava-se dela: "O Inverno acabou... as flores apareceram sobre a terra, já se ouve a voz da rola... Gildas, menino do coro, conhecia muito bem o livro de missa.

Sim, o caminho era íngreme, e o pequeno estafava-se depressa. Por fim, avistou a "Casa de Cima". Olha, Mireille ia-se já embora? Estava vermelha e parecia colérica ao montar na sua bicicleta com motor, que largou numa corrida louca. Cuidado com as contravenções! Gildas encostou-se prudentemente a um muro e recebeu um olhar furioso. Que sorte ela ir-se embora antes da sua hora! Era a maneira de ele poder ver o irmão tranqüilamente, sem aquela Mireille que ouvia tudo, que se metia no que não lhe dizia respeito e sempre troçava de alguém ou de alguma coisa. Entrou e foi logo ter com o irmão, que parecia estar de um execrável mau humor.

- Que vens tu cá fazer? O que é que aconteceu? Alguém está mal?

- Não aconteceu nada. Ninguém está mal. A mama mandou-me cá para te lembrar os medicamentos para o avô e a injecção dele.

Miguel passou a mão pela testa: "Que maçada! Tinha-me esquecido! E por causa daquele diabo". Dava pontapés no cesto dos papéis, que acabou por rolar e deixar espalhar os papéis. Gildas atirou-se de gatas, para os apanhar a mãos ambas. -Deixa lá isso... Ah! que rapariga aquela! O rapazinho levantou o nariz: - Mireille? Vi-a a ir-se embora. - Sim. Nem à porta quero vê-la!

- Mas para sempre? Oh! que bom! que bom! E o cesto entornou-se de novo. Gildas, porém, ria-se contentíssimo.

- Mas tu estás maluco? - perguntou o irmão pasmado com aquela alegria, rara nesse menino tão sossegado.

- Não, o que estou é muito contente. Nós todos detestávamos Mireille.

- Todos quem?

- Em primeiro lugar, eu. Depois o avô. E depois a mama... não, a mama não detesta ninguém, mas não gostava nada dela. E depois... Corentina e Ivone e Margarida. E depois...

- E depois quem, meu rapazinho bem informado?

Sempre de gatas, ergueu os olhos claros para O corpo alto do irmão:

- E depois... Maria Violeta.

Silêncio. O coração de Gildas batia com pressa. Aquele silêncio fazia-lhe medo. Continuava a juntar os papéis.

- Oh! uma carta por abrirl É a letra de Margarida. Então tu deitas assim fora as cartas, sem as leres?

- Dá cá, idiota! É de mais! Ninguém me deu essa carta. É mais uma partida de Mireille. Não só me violava as cartas, como mas fazia desaparecer. Julgava que eu era imbecil.

Miguel sentou-se à secretária e pôs-se a ler. Era coisa para muito tempo. Papéis para apanhar já não havia e Gildas, sentado no chão, não ousava fazer um movimento. De tempos a tempos Miguel deixava escaparse-lhe da garganta um som de mau humor, fazia um gesto ou dizia: "Oh! Ah!" Por fim, virou os olhos e avistando o irmãozito no tapete interpelou-o:

- Que fazes tu aí, mosquito?

- Estou à espera dos remédios para o avô.

- Levanta-te. Upa! Anda cá. Olha bem para mim.

- Mas eu não estou doente. Não me dói nada.

- Não se trata de ti, nem da tua saúde. Margarida fala-me de Maria Violeta. Tu gostas muito dela, de Maria Violeta?

- Se gosto dela? Adoro-a.

- Tu tens passeado com ela muitas vezes. Ela tem confiança em ti, porque te encarregou de cuidar da campa do pai. Diz-me cá: viste-a chorar alguma vez?

- Nunca. Mas sei que ela já tem chorado.

- Como é que sabes?

- É segredo, Não se devem dizer os segredos dos outros.

- Tens razão. Mas eu, que sou seu marido, tenho o direito de conhecer esse segredo.

- Para quê? Para ela chorar ainda mais? Não, não!

- Cabeça de bretão! É para a fazer feliz.

- Ah! isso então é diferente... Mas não lhe dirás que eu te disse? Prometes? E achas que a promessa feita a um garoto tem valor?

- Prometo. E tanto respeito uma promessa feita a um garoto, como a qualquer outra pessoa.

- Então, vá lá... Um dia a mama mandou-me à manteiga. Maria Violeta tinha ido à quinta antes de partir para Paris e tinha-se esquecido lá do caderno de filosofia - um rico caderno, com um arame enroscado nos buracos. Folheei algumas páginas para me entreter. A mama acha que esses cadernos são muito caros, mas eu gosto muito deles.

Que paciência era precisa ao doutor, que só com os doentes era paciente.

- Hei-de comprar-te um. Mas diz lá isso depressa.

- Tenho de explicar-te bem. Ao virar as folhas pelo caminho fugiu-me um papel, que o vento levou. Corri e apanhei-o e li umas coisas que lá estavam... É preciso dizer-tas? Não vais ficar zangado?

- Não me zango, não. Diz lá o que leste.

- Estava lá escrito: "Miguel, meu amor... "

- Oh! - fez o doutor.

- "Miguel, meu amor, nunca saberás ver quanto eu te amo? Continuarei a ser para ti uma rapariguinha insignificante? Choro e tu não adivinhas que eu, tua mulher, choro. "

- Repete isso! - ordenou uma voz imperiosa.

- Devagar, sem alterar nada.

Na frente dele, a carta de Margarida continuava aberta.

- Que fizeste tu desse papel? Porque é que não mo deste?

- Tu pegaste no caderno onde ele estava e meteste-o no meio dos outros.

- Como era ele? Anda procurá-lo.

Gildas depressa reconheceu o belo caderno que o enfeitiçara. Miguel pegou nele e fechou-o à chave na sua secretária.

- Miguel - tornou a murmurar a criança - naturalmente não vais ficar contente... Escrevi-lhe e disse-lhe que tinhas levado flores ao pai.

Novo silêncio. E depois, bruscamente:

- Anda comigo. Vou na minha moto. Monta atrás.

- Diz lá... ela não torna a vir?

- Maria Violeta? Ah! sim, é preciso que volte.

- Estava a falar de Mireille.

- Mireille? Nunca mais.

Uma vez ao pé do avô, Miguel, primeiramente, não foi mais do que médico. Depois anunciou a partida da sua assistente.

- Tive de pô-la fora. Não sei o que ela imaginava.

- Não é difícil de adivinhar. Miguel reagiu.

- Juro-lhe, avô, que nada houve entre nós. Um pouco de familiaridade de mais, sem dúvida, mas eu andava aborrecido. A pouco e pouco tornou-se-me tão odiosa que a mandei embora. Oh paguei-lhe bem! Que desaforo! Mas, agora, estou descansado. O pior é que tudo vai cair em cima da minha pobre sogra, tão desejosa de se libertar. Ivone tem de arranjar-me depressa outra operadora. E até mesmo uma secretária, para a Sr. a Lê Fort poder ir-se embora,

- E tua mulher, Miguel?

- Minha mulher... O que sabe dela, avô? Terá sido só da mãe que ela quis afastar-se?

- Foi sobretudo de ti, meu rapaz,

- Mas então fi-la infeliz?

- Não, embora as tuas familiaridades com. Mireille tenham podido inquietá-la. Não a fizeste infeliz, mas também não a fizeste feliz... Um pássaro bonito, que se meta numa gaiola dourada e ao qual se dê o melhor alimento que houver e se dirijam as melhores palavras de mimo, poderá ser tão feliz como o pássaro que é livre e pode amar à vontade e fazer o ninho onde quer? Tua mulher foi uma ave de grande vôo metida numa gaiola dourada. Pobre médico, que sabe fazer diagnósticos seguros e não soube ver que a mulher não tinha o amor que lhe faltava e que se ia definhando em busca de derivativos para o seu sofrer!

- Uma ave de grande vôo... Olhe, avô, privado da companhia dela e reduzido ao convívio vulgar dessa Mireille, comecei a reconhecer na pequena uma personalidade superior.

- Levaste tempo para percebê-lo! Desde o dia em que a pobrezinha, trêmula e pálida, se atreveu a dizer, por amor do pai: "Miguel, casa comigo!" devias ter adivinhado do que ela era capaz. Precisou de heroísmo para propor isso em frente de Margarida e Margarida precisou de heroísmo para o aceitar.

- Que hei-de fazer? Diga-me!

- Vai buscá-la.

- Mas os doentes? O laboratório? A casa?

- Manda vir um substituto para a clientela.

Fecha o laboratório. E deixa tua sogra dirigir a casa e cuidar das tuas coisas até ao regresso de Maria Violeta.

- Se ela quiser voltar.

- Isso depende de ti... Tu, que a tratavas como se ela fosse uma criança, é que procedeste como tal. Vê nela a mulher. O vosso casamento, em suma, foi uma experiência muito delicada. Margarida estava entre vocês os dois. E estará por muito tempo. Tu lembravas-te do teu noivado com ela. A pequena sabia que tu trazias contigo essa recordação. Creio que foi preciso vir cá a mais velha para se quebrar o encanto. Foi preciso, também, que ela própria se libertasse do passado. E eu sei que ela está a libertar-se, a endireitar-se

- a pobre rapariga a que chamaram a "margarida desfolhada". Arranja as tuas coisas o melhor possível e parte para Paris. Julgo que não voltarás sozinho.

Uma pessoa bem contente com a saída de Mireille era Corentina. Ela reparara em tudo: nas manobras dessa rapariga para agradar a Miguel e captar-lhe a confiança, para tornar-se indispensável tanto ao médico como ao homem... que imprudentemente tinham deixado tão só. Ouvira desacreditar "essas senhoras". Vira-a ler cartas de família. E, para terminar, que se passara, para excitar àquele ponto a cólera do senhor? Talvez nunca ninguém o soubesse. Mas Corentina tinha percebido que Maria Violeta lhe faltava, a ele, há já algum tempo e que a descarada esperara tomar-lhe o lugar até ao dia em que o senhor, perdendo a paciência, a pusera na rua.

Foi para ela um grande prazer dar aquela novidade a Susana:

- A senhora não sabe o que acaba de acontecer?

- Oh! não é nada de aborrecido, não, Corentina? Agora tenho sempre medo.

- É uma coisa muito boa. O doutor pôs fora a Mireille. E para sempre. Ela foi-se que nem uma fúria.

- Ainda bem! Mas quem vai substituí-la, agora?

- inquiriu Susana, bastante desorientada.

- Não faltam raparigas com prática destas coisas. E até que volte a nossa Maria Violeta...

- Acredita que ela volte, Corentina?

- A saída da Mireille pode dar-lhe essa idéia, minha senhora. Não é agradável sentir-se uma mocidade daquelas ao pé do marido. A senhora deve compreender: o falecido senhor nunca teve ninguém. A pequena trazia coisas bem pesadas no coração. Sentia-se asfixiada. E sem um bebê. Depois de ter visto o da irmã, ainda mais o desejou. Sem o dizer, nem mesmo a ela própria. Foi endurecendo, a nossa Maria Violeta, tão doce quando era pequena. Nunca se consolou da morte do pai... Minha pobre senhora! Eu não digo tudo isto, de maneira nenhuma, para a censurar por se casar segunda vez. Mas Maria Violeta e o pai eram como se fossem um só, e para ela se consolar era preciso que o Sr. Miguel tivesse procedido de outra maneira.

- Mas ele gosta dela, Corentina! Nem sabe o que há-de fazer para amimá-la.

- Então porque foi ela embora? Não é de ser amimada que ela precisa, o que precisa é de ser amada como uma mulher é amada pelo namorado ou pelo marido. Foi assim que ele amou Margarida, noutro tempo. Enquanto ele não amar assim Maria Violeta, ela há-de sofrer. Não se fica rapariguinha até ao fim da vida.

Corentina falou assim. E Susana, confusa pela sua pouca perspicácia, censurou o seu egoísmo inconsciente, o esquecimento dos seus deveres maternos, causado pelo amor tardio que lhe voltara ao coração. Havia, então, uma quadra breve para amar? O amor do outono da vida seria anormal?

O coração dizia-lhe que não. Francisco também precisava dela. Seria uma união muito suave, muito bela, muito diferente do amor dos jovens. Na idade em que os outros casais celebram as suas bodas de prata, teriam eles o seu noivado. Ele, porém, sem filhos, encontrava-se livre para se entregar inteiramente a sua mulher. Enquanto que ela era mãe de três filhas, das quais duas tinham um destino atribulado. Teria ela compreendido bem as exigências, as tristezas, os apelos dessas duas?

"Francisco foi um condutor de homens. E é bom. Decerto poderá ajudar-me... Se as minhas filhas consentirem em vê-lo ao meu lado. "

E Susana sentiu que era bem duro ser uma mulher com deveres opostos.

 

MIGUEL, que gostava de seguir a sua primeira inspiração - tão segura como o seu diagnóstico médico -, decidira ir ter com sua mulher o mais cedo possível. Porém, nenhum médico sério se encontrava livre, para ficar a substituí-lo.

- Vou assim mesmo. Deixo os doentes até ao meu regresso' no dia seguinte. A população não corre perigo por estar vinte e quatro horas sem médico.

Eis, porém, que se apresentou um caso sério de sarampo, e depois outros: foi uma epidemia entre as crianças que freqüentavam as escolas. Nalgumas, a doença tomou um caracter bastante alarmante. Era impossível abandoná-las. De dia para dia via que era cada vez mais indispensável em Plémeur. Que seria feito de Maria Violeta? Não tinha nenhum momento livre para escrever, para redigir, sobretudo, a longa e delicada carta que, de algum modo, poderia substituir a presença? De resto, substituir seria possível? Faltava a presença.

Nesse período de excesso de trabalho, reconheceu o valor da sogra, que ele considerara, até então, mais como amável mulher de sociedade que como mulher de acção. Porém, pela sua inteligência, pelo seu método, soube evitar que a ausência duma assistente tivesse sérias conseqüências. À excepção das preparações de laboratório, para as quais lhe faltava a competência, fez tudo o que Mireille fazia, sem deixar nunca de ocupar-se da parte administrativa. As pessoas que iam à consulta ficavam satisfeitas com a forma como ela as recebia, muito diferente da "da loura, tão pouco amável". Susana propôs, mesmo, ir a algumas casas, para tomar conta das crianças doentes ou prestar-lhes cuidados mais esclarecidos que os das mães ignorantes. Miguel aceitou, admirando a dedicação dessa mulher que, no entanto, tinha pressa de se reunir ao que seria o companheiro da sua vida.

- Maria Violeta tem de voltar - dizia ela, por vezes. - Ela é que há-de ajudar-te, Miguel.

- Mas neste momento, não. Não quero.

E Susana pensou que ele temesse o contágio. Todavia, Maria Violeta tivera o sarampo em pequena. Mas não era por isso. Como havia ele de falar-lhe, pedir-lhe perdão, reconquistá-la, enfim, quando ele não passava agora de um médico extenuado, preocupado, e não o marido que ele sonhava ser?

Quando a epidemia diminuiu, encheu-se de esperança. Mas Gildas foi atacado por seu turno. E Gildas era tão frágil... Miguel amava o irmãozito ainda mais depois de terem o "segredo" em comum. Só teve uma idéia: preservá-lo de 284

qualquer complicação, para evitar que ele saísse daquilo enfraquecido. A luta foi renhida. Duas vezes por dia, Miguel ia lá abaixo vê-lo e ainda assim não ficava tranqüilo. "Iremos perdê-lo?" - perguntava Joana Abran com angústia. Aquele filho, nascido depois da morte do pai, era a sua predilecção.

- Eu velo por ele de perto, mama - dizia Miguel. - E ele tornou-se muito razoável para se deixar tratar. Lembra-te de como era custoso tratá-lo antigamente.

- Mas parece mesmo que ele não quer curar-se. Dá a idéia de que não faz caso da vida. Bem sabes que este pequeno é muito estranho. E pergunto a mim mesma que idéia terá podido germinar nessa cabeça,

Miguel ficou logo sobressaltado e reflectiu. Aproximando as diversas conversas que tinham tido juntos, chegou a esta conclusão: "Deve tratar-se de Maria Violeta, por quem ele tem um verdadeiro culto... E Gigi é um pequeno místico. Tenho de tomar conta nisto! Não terá ele imaginado oferecer o sacrifício da sua vida pela felicidade de Maria Violeta?"

Tomando-o nos braços para auscultar-lhe o coração - aquele pobre coraçãozinho irregular... perguntou-lhe:

- Diz-me cá, tu não pensaste em fazer isto? E expôs-lhe a dedução que tirara do seu mau

estado de saúde.

Muito confuso por lhe terem adivinhado o pensamento, o pequeno encolheu-se e balbuciou:

- Sim.

- Mas tu não deves fazê-lo, Gigi. À nossa vida não nos pertence. Deus faz dela o que quiser. E um rapazinho como tu não se mete em coisas dessas sem ouvir os conselhos de sua mãe e de um padre. Assim não presta. Além disso, se tu morresses, a mama morria de desgosto; e tu mesmo decerto não queres matá-la para Maria Violeta ser feliz, não é verdade? Hem? Eu, que sou marido dela, teu irmão mais velho e teu médico, digo-te: "É preciso quereres curar-te. Querer, estás a ouvir? Querer, com todas as tuas forças e depressa, para eu poder ir buscar a nossa Maria Violeta!"

- Porque é que ela ainda cá não está?

- Porque eu não quero que ela volte enquanto cá houver tantos doentes. Mas assim que o sarampo acabar, trago-a para cá. Ela também te ama muito, Gigi. E pensas que ela se consolaria se já não encontrasse o Gigi quando voltasse? Além disso tu queres ser padre, um dia.

- Então sabes?

- Adivinhei-o. E quando estou a tratar-te, para te tomares forte, penso no padre que há-de sair deste garoto.

Gildas, de olhos fechados, encostou a cabeça ao irmão.

- És muito gentil... Antigamente não te achava tão amável. Vou ver se me curo depressa. Prometo-te! E tu vais buscá-la.

A partir daquela promessa, restabeleceu-se com uma rapidez que espantou Joana Abran. Miguel, que conhecia a acção que tem sobre o corpo uma alma decidida a viver, não ficou admirado.

E Miguel pôde partir, porque a epidemia acabou e um substituto chegou, finalmente. Continuava sem uma assistente; a meio do ano e antes dos exames, não se encontrava nenhuma livre.

- Eu farei o que puder - disse Susana. Não tens de que agradecer-me. Mas... terei de ir-me embora se trouxeres a pequena? A sua hostilidade contra mim continua; ainda não recebi uma palavra dela desde que foi para Paris.

- Há muitas coisas que talvez se modifiquem, mãe. Espero trazer-lhe a verdadeira Maria Violeta, esse ser delicioso que eu não soube ajudar a desabrochar.

- Olha que na terra correm calúnias a respeito de Mireille e de ti.

- Pois que corram. Não me atingem.

- E se forem aos ouvidos de Maria Violeta?

- Só trago minha mulher se ela tiver plena confiança em mim. Assim, não fará caso do que se diz.

Plena confiança... No comboio que o conduzia a Paris, perguntava a si próprio de que maneira iria acolhê-lo a pequena revoltada. Conseguiria convencê-la de que dali em diante a compreenderia e lhe daria o verdadeiro amor, o grande amor que ela desejava? No bolso interior do casaco levava a folhinha de papel, aquela folhinha que não o deixara mais: "Miguel, meu amor... "

Raramente ele ia a Paris. Só quando uma questão profissional tornava a sua presença necessária lá. Não gostava da capital; nunca tivera tempo de deambular por ela, de auscultar-lhe a vida, de procurar-lhe a alma.

"Como é que Maria Violeta pode sentir-se bem. nesta agitação?" - pensava ele enquanto se fez conduzir da estação de Montparnasse ao bairro onde se encontrava a nova morada de Margarida. Ah! aquelas luzes vermelhas, que faziam parar o táxi, quando ele ardia em desejo de lá chegar! Finalmente chegaram à rua onde ela morava. Uma rua calma, com árvores que sobressaíam de um muro. Lá estava a casa. Subiu, Tocou a campainha. Ninguém respondeu. Então saíram as duas? Evidentemente Margarida regressava bastante tarde do seu trabalho. Mas contava encontrar Maria Violeta. Uma decepção... Que fazer? Provavelmente Margarida não estaria de volta antes de uma hora. Pôs-se a andar ao acaso. com agradá- vel surpresa descobriu o Bosque de Bolonha, cuja frescura o atraiu. Gomo os minutos são lentos! Assentou-se, com receio de perder-se; era um provinciano... Havia por ali crianças a brincar, lindas, bem tratadas.

"Se eu tivesse uma parecida!"

Sonhava com um rapazinho forte e gordo como aquele que estava a ver; com uma menina de vestidinho claro, a brincar sob a vigilância duma mama bonita - que era Maria Violeta. Até então nunca imaginara vê-la mama. E agora a imagem desenhava-se-lhe na frente, fina e graciosa. Aquela a quem ele tanto tempo tratara, por "filhinha" diria, por sua vez, "minha filhinha" a uma criança que seria deles... Os dois meninos sorriam-lhe, um pouco intimidados por se sentirem observados. Olhava para eles como médico, admirado de ver crianças parisienses tão belas. Mas olhava-as, também, como pai.

Passara já muito tempo. Margarida devia estar de regresso. Retomou o caminho para lá. À porteira disse-lhe que Margarida Lê Fort acabava de entrar. Não teve coragem de perguntar: "E a Sr. a Abran?" Tocou a campainha, ansioso. Foi Margarida que abriu.

- Oh! Miguel! Que surpresa!

Ela mandou-o sentar-se, mas ele conservou-se de pé.

- Maria Violeta está cá?

A rapariga ficou um momento embaraçada.

- Não está, não. Que pena! Vai de viagem,

- De viagem! Sem me prevenir!

- Ela nem a mim própria me avisou senão na véspera! Sabes, tornou-se muito independente.

- Mas onde foi ela? com quem vai? Escondes-me alguma coisa?

- Que havia eu de esconder-te? Disse-me que queria mudar de lugar, ver coisas novas e que tinha ido a uma agência que organiza circuitos turísticos. Deve encontrar-se nos Pirenéus. É uma bretã que queria conhecer a montanha.

- Sozinha? É insensato. Devias ter ido com ela.

- Mas eu não podia pedir outra licença. Além disso senti nela uma necessidade de solidão.

- Bonita solidão, num grupo de turistas!

- Mesmo assim estará só, visto que não conhece ninguém.

- Sabes, ao menos, por onde ela passa?

- Sei. Deixou-me o programa pormenorizado da viagem. Está tudo indicado, dia por dia. Vê. Poitiers, Bordéus, Biarritz, Saint-Jean-de-Luz, Pau, Lourdes, Cauterets... Regresso pelos Pirenéus Orientais. Hoje deve estar em Pau. Amanhã, excursão. Depois de amanhã, Lourdes.

- Vou ter com ela a Lourdes.

- Como, sem a avisares?

- Assim mesmo, Margarida. De outro modo, fugia-me. E assim, indo atrás dela, ela não tem tempo de arranjar uma máscara, de preparar palavras... Quero encontrá-la tal como ela está na verdade.

Margarida respondeu lentamente:

- Creio que deves tentar a experiência. Ouve, vai marcar um quarto no hotel e volta para jantares comigo. O meu apartamentozinho está à tua disposição amanhã todo o dia; penso que só à noite partirás para Lourdes. É inútil chegar lá mais cedo.

Era uma prova para a sensibilidade de Margarida: preparar uma refeição para aquele de quem ela fugira durante anos. Pôr os dois talheres... preparar iguarias simples mas ao gosto dele, que ela conhecia... Ele voltou, trazendo flores, com as quais ela adornou a mesa, ao mesmo tempo que lhe dizia e sentia ainda mais: "Para mim, não valia a pena". Cearam juntos; ela, esforçando-se por ter coragem de comer; ele, fazendo exactamente os gestos que ela lhe observara durante o tempo do seu noivado. Trocaram frases sem caracter pessoal; Miguel falava da Bretanha e admirava-se do interesse, algo apaixonado, que a jovem manifestava pelo meio de que se afastara. Ela queria pormenores, sempre mais pormenores.

- Tua mãe tem sido incomparável - disse ele.

- Nem podes imaginar o que ela me tem ajudado. Já é tempo de a deixar livre. Kermadec deve amaldiçoar-me.

Depois do jantar, ela arriscou o nome de Mireille.

- Ah! nem me fales dessa rapariga! Meteu, -se-lhe na cabeça representar o papel que tu adivinhas. Eu, descuidado, superficial por natureza "- nunca fui santo, confesso -, tolerei familiaridades perigosas: distraía-me. Compreendes, um homem sozinho, novo, sem a sua mulher...

Palavras que abrem ferida, despertando esperança. E ele continuou:

- Ora ela julgou que a coisa estava arranjada e a tal ponto se mostrou odiosa, que lhe atirei com um maço de notas e lhe disse: "Vá-se daqui! Não -quero tornar a vê-la!" Seguiu-se uma cena medonha, é claro: deitou-me à cara as coisas piores: umas são verdades, porque ela não é parva, mas outras são calúnias, e lá se foi com todo o barulho da sua máquina. Agora, verdades e calúnias correm lá pela terra, segundo parece. Não quero saber disso. Quando eu levar comigo minha mulher, as línguas logo se calam.

Dois versos de Rostand perseguiam naquele jmomento Margarida, supliciada pelo acento com que ele pronunciara as palavras: "minha mulher".

- Eu disse: - É muito, o coração é fraco,

- A alma, porém, é forte.

Forte? A hora da generosidade chegara, então? "Até aqui tolerei que eles fossem marido e mulher. Depois, aceitei. Agora, tenho de ver? Poderei?"

Pouco a pouco, Miguel pusera-se à vontade:

- Está-se bem, na tua casa. Sente-se a gente bem, contente. Esta atmosfera deve ter agido favoravelmente em Maria Violeta.

- Ela nunca me mostrou os seus pensamentos íntimos. Vivíamos lado a lado, mas nãona realidade.. Apenas creio adivinhar o que ela pensa.

Meu Deus! Como o coração lhe bate depressa! Está branca como a sua blusa de cambraieta, sem que ele, que é médico, o perceba. Se ele, seu noivo de outrora, se comovesse ainda um pouco, ao menos! Não, ele só pensa em Maria Violeta,

Margarida reuniu todas as suas forças morais:

- Ela atravessa uma crise grave, Miguel. O desgosto causado pelos projectos da mama é profundo. Mas sobre esse desgosto, tem outro... O casamento, para o qual ela foi com tanta simplicidade e confiança... o casamento desiludiu-a.

Uma pausa. Custa a dizer. Miguel está calado.

- Ao princípio achou muito natural, muito doce, que tu a considerasses como uma criança encantadora, de quem se gosta muito. Mas depois... a mulher despertou, e isso não lhe bastou. Ela começou a amar-te apaixonadamente, sem tu lhe corresponderes com um amor semelhante. Por outro lado, humilhaste-a involuntariamente, privando-a de toda a iniciativa e de toda a responsabilidade. A mama julgou que fazia bem em continuar a manter o seu papel de mãe e conservou-se no lugar que, normalmente, devia ter sido ocupado por tua mulher. Relegada para um segundo plano, começou a aborrecer-se e, sem ter a preparação suficiente, iniciou-se em teorias filosóficas perigosas, propícias para lhe tirarem o respeito pelos princípios familiares e religiosos. Imaginou que assim desenvolvia a sua personalidade. E como pensa que tu não a amas, não se julga ligada a ti. Está resolvida a tornar-se independente e a ganhar a vida. E abandonou todos os deveres religiosos. Aí tens...

Miguel ouvia-a, com tanta atenção como se escutasse o relato de um doente que analisasse os seus males, O doente, porém, era a sua própria mulher e era uma outra que fazia a análise do mal, recuando às suas origens e acusando-o, a ele. O seu rosto estava crispado pelo esforço e pela preocupação.

- Já supunha o que acabas de expor-me com tanta franqueza - disse ele. - Obrigado, Margarida... Depois de ela ter partido, o meu espírito começou a trabalhar; e crê que foi Gildas, um garoto, que me elucidou extraordinariamente. Na tua opinião a situação é desesperada?

- Não. A modificação é mais aparente do que real e durável. Se tiveres habilidade, podes curar Maria Violeta.

Ele não ousou perguntar: "Como hei-de ter habilidade?" Era tão delicada, essa pergunta! Margarida, porém, heroicamente, foi até ao âmago do problema. E, chegando à renúncia completa, perante a qual ela há tanto tempo recuava, disse pausadamente:

- É pelo amor, Miguel, que tu hás-de curá-la.

Ah! essa palavra "amor" pairando entre aqueles dois seres, que outrora a tinham pronunciado juntos, com tanto fervor! Eis que agora, voluntariamente, a mutilada, a despedaçada, a rapariga sem porvir de mulher, a pronunciava de novo com os seus lábios deformados, esses lábios que tantas vezes se tinham deliciado com os beijos do noivo... Por alguns instantes - daqueles instantes tão cheios de significação que influem em todo o destino -, Miguel sentiu uma emoção profunda. Margarida... o seu primeiro amor. E era ela, agora, que lhe entregava a chave com que transporia oumbral da felicidade: o amor para outra. Que desferir de asas a tinha libertado do pântano de amargura em que ela se submergia desde a sua desventura? Qual era o segredo daquela alma? Para que ponto do horizonte iria ela voar! Miguel ergueu-se: temos de levantar-nos perante quem merece a nossa homenagem. E ele levantou-se ante essa heroína, essa alma purificada, despojada de egoísmo. Levantou-se perante a nova Margarida, de cuja grandeza ainda ninguém suspeitava.

- És admirável, Margarida! -disse ele. -Permites-me?

E, inclinando-se, beijou a pobre mão mutilada. Sem juntar uma palavra mais, foi para o hotel. Por cima dos telhados de Paris brilhavam estrelas

- as mesmas que se viam na Bretanha, De um jardim próximo evolava-se um perfume de tília. com Margarida, contemplara, outrora, as estrelas e ambos se haviam inebriado com o aroma das árvores em flor.

Uma vez sozinha, Margarida olhou para o seu crucifixo, aquele mesmo que Jerónimo Lê Fort beijara antes de morrer, apaziguado pelo "sim" dito por sua filha, a "margarida desfolhada".

- Agora-murmurou ela-já entreguei tudo.

 

Um dia todo à espera. Dia mortalmente longo, arrastado. Que fazer numa cidade tão grande e onde nada nos é familiar? Miguel voltou para o Bosque de Bolonha e sentou-se um pouco distraído com a passagem de algumas amazonas e cavaleiros montados em belos cavalos de raça, e com os jogos das crianças. Mas o ar parecia pesado àquele provinciano. Sem os seus doentes, estava aborrecido. E um pesar, um remorso o obsidiava: ter desconhecido assim Maria Violeta. Como os homens compreendem mal as mulheres. Mas acaso duas almas podem tornar-se transparentes uma para a outra? Pelo amor, talvez? "Eu não soube amá-la".

Enviou a Gildas um breve bilhete: "Espero encontrá-la amanhã em Lourdes. Reza muito". Dava grande valor às preces do irmãozito.

Por fim, a hora de se reunir com Margarida, no restaurante onde almoçariam juntos, chegou. Pôs-se a passear de um lado para o outro, para matar o tempo. Entretanto, viu-a chegar. "Não coxeia muito, afinal. A deformação das costas é que se nota mais. E, depois, aquelas cicatrizes, que lhe desfeiam um lado todo da cara... Saltam logo à vista. Talvez fosse melhor não ter sobrevivido; mas ela parece estar conformada e presa às pessoas e às coisas. Uma personalidade magnífica, esta rapariga!"

Ela sorriu-se para ele, com o seu pobre sorriso de esguelha.

- Uma carta de Pau; veio esta manhã. Maria Violeta deve estar amanhã em Lourdes, como nós prevíamos.

Lourdes... No fim da refeição, nesse momento de calma que acompanha o café e o cigarro, Miguel repetiu aquele nome.

- Lourdes... Como hei-de eu encontrá-la no meio de tanta gente? Irá para o local de oração? Ela ainda rezará? Parece que perdeu a fé.

- Julgo que não a perdeu totalmente. Creio que quem conhece Deus alguma vez, nunca mais se aparta dele.

O rapaz não ousou perguntar-lhe se a sua própria história era assim. Ela, porém, acrescentou com simplicidade, da mesma maneira que antigamente:

- Maria Violeta era profundamente piedosa... muito mais do que eu. E eu tornei a encontrar a fé. Ela não se separou de Deus, crê! Procura-a nos lugares de oração. Mas mais ao ar livre do que nas basílicas. Conheces Lourdes? Eu não. Sabes bem que não íamos a parte alguma. Mas, pelo que tenho ouvido dizer, parece-me que a pequena há-de pôr-se em frente da gruta, com o rio a cantar perto dela. Para a descobrires com mais facilidade, vou dizer-te como ela foi vestida: fato saia e casaco cinzento e um lenço de escocês nos cabelos.

- Mas eu nunca lhe vi esse lenço... - disse ele, com ingênuo desapontamento.

Margarida pôs-se a rir:

- Acho que ela tinha o direito de comprar um novo. É muito bonito e fá-la muito fina. Vamos, tenho de voltar para o meu trabalho. Muita coragem, Miguel! E quando voltares, vem a minha casa.

- Talvez sozinho. - suspirou ele. - Entretanto, agradeço-te por a teres agasalhado e teres velado por ela... Diz-me: não achas que aqui tenham procurado tirar-ma?

- Nunca ela o deixaria. Não deseja outro amor senão o teu.

Miguel já tinha ido a Lourdes, numa peregrinação bretã, em que Hervé e ele tinham tomado parte, na sua adolescência. Como isso lhe parecia já distante! Reconheceu aqueles lugares, sem qualquer modificação, mas a alma que levava é que já não era a mesma. Errou, ao acaso, pelas três basílicas: não a encontrou. A irmã calculara bem. Estaria nas piscinas? Mas, impressionável, como era, não devia suportar esse estendal de corpos miseráveis. Na gruta, entre o caudal de águas saltitantes e rumorosas e o bruxulear dos círios, chamazinhas vacilantes? Miguel não descobriu o lenço de escocês no meio de todas aquelas cabeças, de olhos erguidos para a Mãe das misericórdias. Onde a encontraria? Quem sabe se teria ido a qualquer excursão na montanha?

Uma peregrinação acabava de chegar ao terreiro. Recitando Ave-Marias, os maqueiros empurravam os tristes veículos. E às suas vozes, bem timbradas, respondia a súplica extenuada de quem lá ia deitado. Miguel Àbran julgou impossível encontrar a forma delgada de sua mulher por entre aquela multidão. Voltou, então, à gruta, e implorou:

- Vós, que procurastes o Vosso Filho entre os peregrinos de Jerusalém e que estáveis tão aflita, tende piedade de mim! Restituí-me Maria Violeta. Se eu a encontrar e se ela voltar comigo, confiante e aplacada, prometo-Vos fundar na nossa terra qualquer coisa para os infelizes, O quê? Não sei ainda. Mas juntarei mais isso ao meu trabalho profissional. Fazei-me encontrar Maria Violeta! Levai-nos ao encontro um do outro. Ela é um pouco como um filho meu, a minha filha perdida. Pelo gozo do Vosso livramento, entregai-me Maria Violeta!

Retirou-se menos triste. Tinha a certeza de que Alguém o escutara. Mistério jubiloso do Rosário: o Menino Jesus encontrado. O mistério jubiloso derramaria a sua graça sobre eles os dois.

Procurou-a, ainda, pelo Caminho da Cruz, mas sem esperança. Uma alma que se afastou do Senhor tornará a juntar-se-Lhe no caminho do Seu calvário? Espreitou para as lojas: podia ser que ela fosse comprar uma medalha, ou um rosário para Gildas ou para Corentina. Havia, porém, tantos estabelecimentos! Quebrantado de fadiga, deixou-se cair na cadeira de um café antes de continuar as suas desanimadoras buscas. Se ele partisse sem Maria Violeta, parecia-lhe tê-la perdido para sempre. Perdida? aquela graça, aquela ternura confiante com a qual, ao princípio, ela erguia os olhos para o marido, a consultá-lo sobre todas as coisas, deixando-se iniciar por ele com uma simplicidade encantadora, na vida conjugal, da qual ignorava tudo. Perdida, essa presença feminina, essa esperança de paternidade? E todas essas riquezas desaparecidas por culpa dele, homem estúpido e cego, que não soubera lidar com uma criatura tão delicada e imaginara que o seu maior desejo era continuar criança, quando nela acordara a mulher!

Voltando à gruta - decididamente era lá que se estava melhor - ali se deixou ficar, esmagado pela sua própria miséria, contentando-se, como Claudel, com a prece muda:

"Maria, estar convosco, aonde Vós estais.

E sem nada dizer, contemplar Vosso rosto... "

Vós, "cujo olhar atinge o coração de súbito e faz brotar as lágrimas acumuladas".

Sim, são tantas, as lágrimas acumuladas! Mas as lágrimas não brotam ainda desse jovem coração masculino.

Aproximava-se a hora da procissão do Santíssimo Sacramento. As maças chegavam de todos os lados. E em breve as aflições mais diversas se expuseram em torno. Caras escavadas, que levavam já a máscara da morte. Corpos dobrados em dois, contorcionados. Arrastando-se em muletas ou apoiados em bengalas, vinham, igualmente, os menos doentes, os que estavam quase bem e aqueles a quem um mal secreto corroía, os cegos e os surdos, que se assemelhavam a toda a gente. Familiarizado com a enfermidade, o doutor depressa reconhecia a marca fatal e, inconscientemente, ia diagnosticando. Sentia-se envergonhado da sua magnífica saúde. Ele, cujo corpo não sofria, que ia ali fazer por entre todos aqueles corpos torturados?

Mas o sofrimento corporal não é o único. Não tinha ele também uma chaga viva a sarar, a chaga da sua alma e da sua vida? O remorso agravava-lhe o desgosto e a inquietação. Aquele homem, que estava habituado às felicitações pela sua ciência e à gratidão pelo bem cumprido, via-se humilhado, miserável. Não fora impelida por um mero capricho que sua mulher se afastara dele, mas porque ele, hábil em fazer um diagnóstico, não procurara conhecer-lhe a personalidade, e porque ele, que sabia curar os outros, a ferira cruelmente.

"Lauda Jerusalém Dominum", começaram a entoar os cantores. Educado num colégio religioso, Miguel recordava-se do seguimento do salmo: "É Deus que fortalece as fechaduras das vossas portas e que abençoa os filhos nascidos de vós". "Ah! que a minha casa possa tornar a edificar-se, sólida, e que nela nasçam filhos de nós dois!"

A procissão ia passando e à passagem do Senhor, Miguel ajoelhou-se, Ele cria, com toda a sua fé de bretão. Mas Maria Violeta creria ainda?

O padre que levava a custódia fazia uma pausa em frente dos doentes. Alguns, deitados, esforçavam-se por levantar a cabeça; outros mantinham as pálpebras cerradas, enquanto outros, com as mãos postas, deixavam perolar de lágrimas o rosto desfeito ou encovado.

Depois de o padre passar, Miguel ergueu-se e voltou-se, para seguir com os olhos a marcha da hóstia. Nesse momento, com indizível emoção, avistou uma jovem alta e esbelta, com um lenço de escocês nos cabelos: Maria Violeta... sim, era Maria Violeta. Ela mostrava-se retraída, direita, enquanto a procissão se ia aproximando. "Uma atitude de desafio" - pensou Miguel. Então, cruzou os braços sobre o peito e orou por ela, em seu nome, se ela já não sabia ou não podia fazê-lo, a pobre criança.

O padre ia avançando, com lentidão. Justamente em frente do lenço de escocês jazia uma mulher, quase morta. Colocou a custódia por cima dessa cabeça cadavérica e demorou-a um momento. Bruscamente, a cabeça com o lenço de escocês inclinou-se para a frente, enquanto as súplicas ardentes se desdobravam, repetidas pela multidão: "Senhor, curai as nossas enfermidades... Eu creio, mas aumentai a minha fé... Eu amo-Vos, mas aumentai o meu amor... Senhor, dizei uma só palavra e a minha alma ficará curada... Senhor, aquela a quem Vós amais está doente". Quem é "aquela a quem Vós amais"? A moribunda ou a linda jovem que se conserva atrás? Maria Violeta ajoelha-se, estende as mãos postas para Aquele que passa e Miguel percebe-lhe as lágrimas.

A multidão separa-os. Mas ele mete-se pelo meiodela, quer alcançar a esposa. É ali que ele deve unir-se à sua alma, visto que os seus ternos olhos choraram, como na ocasião da morte de JerónimoLê Fort.

Iria ela submergir-se no caudal de peregrinos? Iria perdê-la, depois de a ter encontrado? Temeu-a diversas vezes; e as pessoas invectivavam-no por ele as empurrar. Tanto piorl "Sou médico!" - disse ele num momento mais difícil, e todos se desviaram, julgando que ele ia socorrer um doente. Estava, enfim, perto dela. A jovem voltara para a gruta. Oh! querido rosto, banhado de lágrimas! Não se atreveu a interromper-lhe o diálogo com a Virgem; se ele lhe falasse de repente, a sua "filhinha", a sua mulher, não tornaria a cair no vácuo e no silêncio? Sim, ele pensava: "minha filhinha", mas ela não queria essa fórmula. Ela, porém, parecia tão nova e piedosa, com o rosto de criança inundado de pranto! E só, completamente só, ela que fora tão bem guardada, tão amimada! Sòzinha, a suportar o. assalto do desgosto, do temor, dos pesares da feminilidade insatisfeita, de tudo o que pode fazer chorar uma mulher jovem que repeliu o sustentáculo do seu companheiro e duvida dele.

Sem se aperceber da presença de um homem que se ajoelhara no chão, ao pé dela, ergueu para a Virgem o rosto banhado em lágrimas. Em Lourdes não há preconceitos. Reza-se à vontade, em voz alta, nessas multidões, onde cada qual se dirige à Virgem como se estivesse só, na Sua presença. E o homem ouviu um nome por entre o queixume das palavras, nome que se repetiu: "Miguel!"

Então, por sua vez, ela ouviu, também, pronunciar o seu nome: "Maria Violeta!" Virando a cabeça, deu com os olhos em Miguel, esse Miguel de quem tentara fugir.

- Tu!

Ele pousou a mão sobre a sua mão trêmula.

- Sou eu, sim, minha querida, minha esposa. Não dissera "minha filhinha", Não, dissera

"minha esposa".

Partiram os dois. Miguel apoiava-se no braço dela, como se fosse ele que precisasse de amparo. Deixaram a gruta das mil luzes, em que ressoam as Ave-Marias suplicantes ou reconhecidas num murmúrio incessante, que é mais das almas que dos lábios. O rio deslizava em torrente murmurante, com a sua voz que é, também, um louvor. Apertados um contra o outro, treparam uma parte da colina do Caminho da Cruz.

- Paremos aqui, não queres? - propôs Miguel, quando os seus olhos avistaram um vasto horizonte.

O sol, declinando, punha já tons de coral e de ouro no circo das montanhas. Miguel recordou-se da colina bretã, dominada pela alta cruz de granito onde, num arrebatamento, a sua adolescência, um dia, traçara o caminho do futuro. E todas as vezes que lá voltara - bem poucas, aliás - trouxera de lá um renovamento interior. Refazia-se, reconquistava-se: a paisagem era à medida da síntese e poética campina bretã. Ali, a paisagem era à medida desses gigantes - as montanhas. Mas, quer um, quer outro, ambos eram lugares de elevação, propícios à renovação íntima das almas.

Sentaram-se os dois. A mão da jovem tremia naquela mão ampla, que a retinha.

- Maria Violeta - suspirou ele, por fim -, tornei a encontrar-te! Sem ti, não podia mais viver. Era apenas uma pobre coisa.

- Eu tentei viver sem ti. Mas, que deserto! E tu vieste à minha procura, Miguel! Tiveste medo de que esta rapariguinha louca tomasse um mau caminho?

- Não, tu não és uma rapariguinha louca, não és uma criança. És a minha mulher, Maria Violeta Abran, a minha bem-amada!

- Oh! Miguel! Torna a dizer: "Maria Violeta Abran... a minha mulher... a minha bem-amada... Tanto que eu sonhei ouvir essas palavras!

- E eu não o senti. Que selvagem, que bruto pode ser um homem!

- Tu julgavas que me fazias feliz. E, sem dúvida, para os homens é difícil compreender o coração das mulheres. Sobretudo duma mulher como eu, que nunca tinha pensado no casamento. Não te enganavas, quando me chamavas criança.

- Mas como não vi eu que a criança se tornava mulher?

Ela hesitou:

- Porque a recordação de Margarida estava entre nós dois. Eu, tão diferente de minha irmã, que tinhas amado apaixonadamente, desorientava-te.

E eu pensava continuamente que tu pensavas nela. Singular casamento o nosso, em que fomos três a sofrer, porque ela também se recordava... Mas ela. Margarida, transpôs já as regiões onde sofremos duramente, com a maior rudeza. É uma grande alma, a minha irmã. Ao pé dela, sinto-me pequenina.

A noite lutava com a luz. O vale mergulhara já na sombra. Voltaram ambos para os hotéis. E ali, em face das realidades, perguntaram: "Que vamos fazer?"

- Continua a tua viagem - disse Miguel. Gostavas tanto de ver as montanhas...

- Eu não gosto de mais nada senão de ti... com certeza tens de voltar a Plémeur. Vamos os dois. Não quero que nos separemos nunca mais. Se nos perdêssemos outra vez...

- Ouve, creio que posso ter confiança no jovem médico que ficou a substituir-me. Que belo seria se continuássemos a viagem juntos!

- Ó Miguel, seria maravilhoso! Nada me interessava, por toda a parte arrastava uma alma morta! Mas, contigo, os Pirenéus hão-de encantar-me. Será uma segunda viagem de núpcias. Mais bela, ainda, que a primeira.

- É, verdade, não fomos muito longe.

- Não estás a compreender: será mais bela, porque nesse tempo havia entre nós a minha pobre irmã. Mas, agora, ela entregou-te a mim. Depois do seu primeiro consentimento, tão doloroso, ao pé do papá a morrer, faltava este para que nós fôssemos verdadeiramente marido e mulher.

- Quando tornamos a partir, minha querida?

- Quando eu tiver entrado em estado de graça

- respondeu ela, com a sua simplicidade de criança.

- Eu também tenho necessidade de perdão... Prefiro dizer-to já, para não ficar nenhuma sombra entre nós: Mireille, de quem tu desconfiavas com razão - oh! estremeceste, minha pobre querida! - Mireille tentou, de facto, fazer-me afastar de ti. Transtornou-me bastante e, confesso que, por vezes, fui fraco. Mas nunca traí minha mulher. E o que tu não sabes ainda é que a pus na rua, um dia em que a sua audácia se tornou odiosa,

- Então Mireille já não está na nossa casa? Oh! Miguel, como vamos ser felizes!

No dia seguinte, depois da missa na gruta entre os doentes, estes dois ressuscitados da alma retomaram o caminho dos Pirenéus. Antes, porém, expediram mensagens, assinadas com os seus dois nomes. Uma para Paris, para Margarida, outra para o "Fetal", para o pequeno Gildas. A terceira foi Maria Violeta quem decidiu enviá-la: levava o endereço da mãe.

- A mama tornará a casar-se assim que regressarmos. Já esperou de mais. Pobre mama! Devo tê-la feito sofrer muito.

- Depressa o esquecerá, tão feliz há-de sentir-se por ter recuperado o afecto da filha.

- E por ir sem pensamentos reservados para o outro afecto. Como o coração humano tem necessidade de amar, Miguel! Só Margarida continuará sem ter amor.

- Julgas? - interrogou ele, sonhador. – Não descobriu ela um amor, que está acima de todos os amores?

- Tu viste logo tudo, Miguel, tudo aquilo que eu me recusava a ver, endurecida e contumaz.

Então foi o deslumbramento perante as cascatas impetuosas e alegres; foi a contemplação silenciosa das neves que, lá no alto, a luz da alva e do crepúsculo matizava de ouro e rosa. Como Miguel era um bom guia e com que alegria se trepava atrás dele. Como era belo ouvir o riso de Maria Violeta e que encantador era o seu rosto quando ela se ria!

Apanhavam flores, como crianças.

- Dá ca - exclamou um dia Maria Violeta, estendendo as mãos para um ramo de violetas bravas que o marido lhe trazia, lindíssimo no seu invólucro de folhas verdes.

Ele ergueu-as, então, até perto daquele rosto fresco e mimoso e, inesperadamente, deu-lhe um novo nome de amor:

- Violeta do céu! Minha celeste Violeta! Surpreendida, mas encantada, ela pousou os

lábios nas flores e olhou para o marido e ele beijou aqueles lábios que, na sua frescura, conservavam o perfume sadio dos Pirenéus em flor.

Outro dia, numa das lindas cidades por onde passaram - encontram-se cidades admiráveis no feliz Meio-Dia da França -, ela parou em frente -duma ourivesaria. Ela, tão razoável, desejaria alguma jóia? E porque não? Mas a jovem disse:

- É o anel, Miguel. Estou a pensar no anel. Ele compreendeu imediatamente. Esse anel fora um penhor de amor entre ele e Margarida, e a desgraça que o arrebatara do dedo da noiva esfarrapara-lhe, ao mesmo tempo, a felicidade; esse anel, encontrado no fundo do vaiado e restituído depois, num impulso de gratidão, esse anel... raramente era usado por Maria Violeta: parecia-lhe que, por sua vez, roubara também. Não obstante, era impossível tornar a entregá-lo àquela para quem ele fora adquirido.

- Olha, Miguel, eu gostaria de que esse anel se convertesse em caridade... Podíamos vendê-lo e consagrar esse dinheiro ao dispensário que fizeste voto de fundar, queres? Comprar outro para mim? Não, para quê? Tenho o teu amor.

O seu amor... Margarida sofrerá duramente ao ver Miguel partir. Oh! imaginá-los juntos! Derradeiro sobressalto do seu pesar, do seu ciúme. Pouco tempo depois chegou a carta expedida de Lourdes, que trazia a palavra Magnificat e o nome dos dois... Ele encontrara-a e encontra-a plenamente... A tremer, procurou o refúgio duma poltrona. Que turbilhão na sua alma! Já não era, porém, uma sensação dolorosa. Não. De olhos fechados, abandonou-se àquela aragem de Pentecostes que passava, purificadora e vivificante. Já não cobiçava nada. A sua liberação concluíra-se. Não se tratava já de sua irmã e do seu noivo, mas de esposos destinados um ao outro e que, finalmente, se encontravam e se reconheciam. A "Casa de Cima" ia tornar-se uma casa feliz, coisa que nunca fora.

"Como eu me sinto leve... Eis cumprida essa obra de reconciliação, em que eu tive de trabalhar.

Mau grado a minha resistência egoísta. Agora já posso caminhar para outra coisa. O quê? Não sei ainda. Mas uma vida verdadeira vai começar. Como o cego predisse, a margarida tornará a florir. "

À passagem dessa brisa de Pentecostes, carregada de germes de vida, sentia a sua haste vergada a endireitar-se, as pétalas abrirem, o coração descerrar-se ao sol.

E, de súbito, vislumbrou que seria num jardim silencioso e cerrado que a margarida tornaria a florir. O sol, caindo sobre o ouro do seu coração e sobre a sua auréola branca, desceria directamente do amor de Deus - esse Deus que dá tudo a quem nada recusa.

Outras coisas, ainda, lhe foram ditas em voz baixa. Mas o que, em tais horas, se diz entre a alma e o seu Deus, jamais se propala - como não se propala um segredo de amor.

 

 

                                                                  Berthe Bernage

 

 

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