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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARIANA / Irving Wallace
MARIANA / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Bruscamente, Napoleão cessou de percorrer a sala e parou em frente de Mariana. Aninhada num grande cadeirão, junto do lume, com os olhos fechados, a jovem suspirou de alívio. Embora amortecidos pela espessura da carpete, aqueles passos cadenciados agiam dolorosamente sobre os seus nervos e faziam-lhe doer a cabeça. A noite, fértil em emoções, tinha-a deixado completamente esgotada. Só a dor de cabeça lhe dava a consciência de estar ainda viva. Além da excitação da estreia no palco do Teatro Feydeau, a incompreensível aparição, num camarote da frente, do homem que julgava ter morto e, depois, o seu desaparecimento, igualmente inexplicável, tinham chegado para a abater, embora possuísse um organismo vigoroso.

Com um certo esforço, abriu os olhos e viu que ele a olhava, com as mãos atrás das costas e uma expressão preocupada. Estaria realmente inquieto, ou simplesmente descontente? Sob o salto do elegante sapato de fivela prateada, desenhava-se já uma cova na carpete de cores pálidas, enquanto um certo tremor das narinas e um reflexo de aço nos olhos azuis faziam adivinhar um princípio de cólera contida. No espírito de Mariana surgiu de repente a dúvida se estaria em face do amante, o Imperador, ou de um simples juiz de instrução. Apesar de não ter dito grande coisa nos dez minutos que tinham decorrido após a sua chegada, a jovem podia já adivinhar as perguntas que se iriam seguir. O silêncio do quarto, calmo e seguro alguns instantes atrás, com as sedas azul-esverdeadas, as flores pintadas e os cristais translúcidos, tinha adquirido uma espécie de fragilidade, um aspecto de inconsistência... De facto, repentinamente, ele proferiu com secura:

Estás certa de não ter sido vítima de uma alucinação?

Uma alucinação?

Sim! Podias ter visto alguém que se parecesse com esse homem, sem que no entanto fosse ele. Seria estranho que um nobre inglês se pudesse passear livremente em França, frequentar os teatros, entrar no camarote do príncipe chanceler sem ninguém notar! A minha polícia é a melhor da Europa!

 

 

Apesar do susto e do cansaço, Mariana reprimiu um sorriso. Era então isso! Napoleão estava mais descontente do que preocupado, unicamente porque a sua polícia poderia ser apanhada em falta. Contudo, só Deus poderia saber quantos espiões estrangeiros se passeavam impunemente nesse belo país de França! Ainda que estivesse firmemente decidida a persuadi-lo do contrário, seria talvez de evitar os contactos com o temível Fouché.

 

Senhor disse ela com um suspiro de lassidão, sei tão bem como vós, ou talvez melhor, como o vosso ministro da Polícia se mostra vigilante e não tenho qualquer intenção de incriminá-lo. Mas uma coisa é certa: o homem que vi era Francis Cranmere, sem qualquer dúvida!

 

Napoleão esboçou um gesto irritado, mas, dominando-se imediatamente, veio sentar-se junto de Mariana e perguntou num tom manifestamente mais doce:

 

Como podes ter a certeza? Tu mesma me disseste ter conhecido mal esse homem..,

 

Não se esquece facilmente o rosto daquele que destruiu a nossa vida e ao mesmo tempo as nossas recordações. Além disso, o homem que vi tinha na face esquerda uma longa cicatriz que Lord Cranmere não possuía na manhã do nosso casamento.

 

O que pode provar essa cicatriz?

 

Que fui eu própria que lha fiz, com a ponta da espada, para o obrigar a bater-se! disse Mariana com doçura. Não creio numa semelhança tão fiel que chegasse a reproduzir um ferimento, que, aqui, sou a única a conhecer. Não, era mesmo ele e, por conseguinte, estou em perigo.

 

Napoleão começou a rir e, com um gesto cheio de ternura espontânea, apertou Mariana contra o peito.
Só dizes tolices! ”Mio dolce amor!” Como poderias estar em perigo, quando tens o meu amor? Não sou eu o Imperador? Não conheces o meu poder?

 

Como por milagre, a angústia que, havia um instante, fizera sofrer o coração de Mariana, quase desapareceu. Reencontrou a extraordinária impressão de segurança e protecção que só ele lhe sabia dar. Ele tinha razão quando dizia que nada a podia atingir. Mas... justamente ele ia afastar-se. Com um movimento de temor infantil, ela pendurou-se-lhe do braço.

 

Só tenho confiança em vós... em ti! Mas dentro de momentos vais deixar-me, deixar Paris, afastar-te de mim...

 

Obscuramente, teve, de repente, esperança que ele lhe propusesse levá-la consigo. Porque não havia ela também de ir a Compiègne? É certo que a nova imperatriz chegaria dentro de poucos dias, mas não poderia ele escondê-la numa casa da cidade, separada do palácio e contudo próxima?... Ia talvez formular o seu desejo em voz alta, mas já ele a colocava nas almofadas, se levantava e, lançando um olhar ao relógio da chaminé em bronze dourado, dizia:

 

Não estarei ausente muito tempo e, além disso, logo que voltar ao palácio vou convocar Fouché. Receberá ordens muito severas para proteger esta casa. De qualquer modo, deverá revistar Paris à procura desse Cranmere. Amanhã de manhã dar-lhe-ás indicações exactas.

 

A duquesa de Bassano diz ter avistado, no camarote, nesse momento, um certo visconde de Aubécourt, um flamengo. Talvez Francis se esconda sob esse nome.

 

Está bem, procuraremos o visconde de Aubécourt! E Fouché entregar-me-á um relatório preciso! Não te atormentes ”caríssima mia”, mesmo de longe cuidarei de ti. Agora tenho de te deixar.

 

-Já? Não poderei, pelo menos, conservar-te esta noite?

 

Apenas formulado o pedido e já Mariana se arrependia. Uma vez que estava tão apressado em abandoná-la, porquê rebaixar-se a implorar a sua presença? Apesar de estar certa do amor dele e do seu, no fundo do coração de Mariana os demónios do ciúme atormentavam-na. Não era para ir ao encontro de outra mulher que ele partia? Com as lágrimas nos olhos, viu-o dirigir-se para a cadeira, onde, ao entrar, pousara o casaco cinzento. Só depois de vestido, ele a olhou e respondeu:

 

Eu bem queria, Mariana, mas ao voltar do teatro encontrei uma quantidade de despachos a que tenho de dar resposta antes de partir. Sabes que para vir aqui deixei seis pessoas na minha antecâmara!

 

A esta hora! disse Mariana céptica.

 

Ele aproximou-se rapidamente e, com um gesto seco, puxou-lhe a orelha.

 

Retém isto, menina: As audiências oficiais durante o dia não são sempre as mais importantes! Recebo de noite muito mais vezes do que tu imaginas. Adeus, tenho de me retirar!

 

Inclinava-se para pousar um ligeiro beijo sobre os lábios da jovem, mas ela não lhe correspondeu. Deslizando do cadeirão, ergueu-se e foi buscar um candelabro que estava sobre a cómoda.

 

Eu acompanho Vossa Majestade disse num tom de excessivo respeito. A esta hora todos os criados estão deitados, excepto o porteiro.

 

Abria já a porta para o preceder no patamar, mas desta vez foi ele que a reteve.

 

Olha-me, Mariana! Estás zangada, não é verdade?

 

Não ousaria, Sire! Não devo sentir-me feliz por Vossa Majestade ter podido despender alguns minutos de um tempo tão precioso, numa hora tão importante da sua vida, para se lembrar de mim? Eu sou a vossa humilde serva!

 

A reverência protocolar esboçada não foi até ao fim. Napoleão interrompeu-a a meio caminho, pegou no candelabro, que pousou sobre um móvel, e forçando Mariana a erguer-se apertou-a nos braços e depois começou a rir.

 

Estás a fazer-me uma cena! Tens ciúmes, meu amor querido, e isso fica-te bem! Já te disse que merecias ser Corsa! Meu Deus, como estás bela assim! Os teus olhos brilham como esmeraldas ao sol! Morres de desejo por me dizer coisas horríveis, mas não ousas e isso faz-te palpitar. Sinto-te tremer...

 

Enquanto falava, tinha cessado de rir. Mariana viu-o empalidecer, cerrar os maxilares e compreendeu que o desejo o dominava. De repente, aproximando a cabeça do pescoço da jovem, começou a cobrir-lhe os ombros e a garganta de beijos rápidos. Agora era ele quem tremia, enquanto Mariana, com a cabeça deitada para trás e os olhos fechados, escutava o bater do seu coração e saboreava todas as carícias. Uma alegria selvagem, feita de orgulho e de amor, invadia-a, ao constatar que o seu poder sobre ele se mantinha em toda a plenitude. Finalmente, pegando-lhe levou-a até ao grande leito onde a colocou sem muitas preocupações. Alguns minutos mais tarde, o admirável vestido branco, obra-prima de Leroy, que encantara Paris inteiro, era apenas um monte de seda desfeita e completamente irreconhecível. Nos braços de Napoleão, Mariana via estremecerem por cima da cabeça as sedas cor de mar do seu baldaquino.

 

Espero-murmurou ela entre dois beijos, que aqueles que vos esperam nas Tulherias não achem o tempo demasiadamente longo... e que não sejam muito importantes...

 

Um correio do Czar e um enviado do Papa, meu demónio! Estás contente?

 

Como única resposta, Mariana apertou os braços à volta do pescoço do seu amante e fechou os olhos com um suspiro de felicidade. Minutos como aqueles compensavam todas as angústias, todas as aflições e todos os ciúmes. Quando o ouvia, como naquele momento, delirar num paroxismo de paixão, Mariana tinha confiança. Não era possível que a Austríaca, essa Maria Luísa, que ele ia meter no seu leito no lugar de Josefina, soubesse inspirar-lhe tanto amor. Era sem dúvida uma tonta aterrorizada que devia recomendar a alma a Deus em cada minuto da viagem que a aproximava do inimigo dos seus. Napoleão não podia ser para ela senão uma espécie de Minotauro, um ser desprezível, que trataria do alto do seu sangue imperial, se se parecesse, por pouco que fosse, com a tia Maria Antonieta, ou que suportaria passivamente, se fosse, como se murmurava nos salões, uma rapariga indolente, tão desprovida de inteligência como de beleza.

 

Mas uma hora mais tarde, quando viu, por uma janela do vestíbulo, o porteiro fechar a pesada porta da berlinda imperial, Mariana reencontrou os seus receios e incertezas; receios, porque não voltaria a ver o Imperador senão casado com a Arquiduquesa; incertezas, porque, sob um nome ou outro, Francis Cranmere percorria Paris em toda a liberdade. Os beleguins de Fouché nada poderiam fazer por ela enquanto não descobrissem uma pista, e isso não seria fácil. Paris era tão grande!

 

Estremecendo sob a camisa de renda, que vestira à pressa, Mariana retomou o candelabro e subiu para o quarto com um sentimento de solidão. O ruído da carruagem que levava Napoleão ressoava ainda ao longe, contraponto melancólico das palavras de amor que conservava ainda nos ouvidos. Apesar de ele se ter mostrado muito terno, apesar das suas promessas precisas e formais, Mariana sabia que uma página da sua vida acabava de ser virada. Por maior que pudesse ser o amor que a ligava a Napoleão, as coisas não voltariam a ser como tinham sido até aí.

 

Ao entrar no quarto, Mariana teve a surpresa de encontrar a prima. Envolvida num confortável roupão de veludo cor de amaranto, Mademoiselle Adelaide d’Asselnat, em pé, no meio da casa, examinava com interesse, mas sem se mostrar surpreendida, os gloriosos rasgões do vestido branco abandonado sobre o tapete.

 

Como, Adelaide, estáveis aí?admirou-se Mariana. Julgava-vos a dormir há muito tempo.

 

Durmo sempre com um olho aberto e, depois, qualquer coisa me dizia que precisarias dum pouco de companhia após a ”sua” partida! Eis um homem que sabe falar às mulheres! suspirou a velha senhora, deixando cair os restos do vestido de cetim nacarado. Compreendo que estejais louca por ele! Também já estive, eu que vos falo, quando ele era apenas um pequeno general desprezado e subalimentado. Mas posso saber como ele recebeu a súbita ressurreição do senhor vosso esposo?

 

Mal disse Mariana procurando, no leito desfeito, a sua camisa de noite que Ágata, a criada de quarto, deveria ter colocado sobre a colcha ao voltar do teatro. Não está muito certo que eu não tenha tido visões.

 

E... não tiveste?

 

Claro que não! Porque teria eu, de repente, evocado o fantasma de Francis, quando ele estava a cem léguas do meu espírito e o julgava morto? Minha pobre Adelaide, infelizmente não posso duvidar. Era mesmo Francis... e sorria, sorria, olhando-me com um sorriso que me apavorou! Deus sabe o que me estará ainda reservado!

 

Quem viver, verá! disse tranquilamente a velha senhora, dirigindo-se para a pequena mesa coberta de rendas, onde uma ceia fria tinha sido preparada para Mariana, ceia em que nem ela nem o Imperador tinham tocado. Com muito sangue-frio, Adelaide abriu a garrafa de champanhe, encheu duas taças, esvaziou uma de um trago, encheu-a de novo e levou a segunda a Mariana. Depois voltou a buscar a sua, pegou numa asa de galinha e instalou-se comodamente aos pés da cama, onde a prima acabava de se meter.

 

Bem recostada nas almofadas, Mariana aceitou o copo e olhou Mademoiselle de Asselnat com um sorriso indulgente. O apetite de Adelaide possuía qualquer coisa de fabuloso. A quantidade de alimentos, que aquela mulherzinha magra e frágil podia absorver, era extraordinária. Ao longo do dia, Adelaide mascava, chupava, mastigava ou engolia ”um pedacinho de qualquer coisa”, o que não a impedia, na ocasião própria, de se sentar à mesa com entusiasmo. Aliás, não engordava, nem perdia nada da sua dignidade.

 

A estranha criatura grisalha, assustada e revoltada que Mariana descobrira uma noite no salão, disposta a incendiar a sua casa, já não existia. Tinha dado lugar a uma mulher idosa, respeitável, cheia de compostura e cuja espinha dorsal reencontrara o seu porte natural. Bem vestida, os cabelos dum bonito cinzento doce e sedoso, sabiamente arranjados à moda antiga saindo da renda ou do veludo dos seus chapéus, a ex-revolucionária perseguida pela polícia de Fouché e com residência vigiada, tinha-se tornado na considerada e nobre Senhora D. Adelaide de Asselnat. Neste momento, com os olhos meio fechados, as asas do nariz arrogante palpitando de gulodice, saboreava a galinha e o champanhe com uma expressão de gata gulosa que muito divertia Mariana, apesar do seu actual desencantamento. Não estava muito certa de que a conspiradora tivesse morrido completamente na sua prima, mas, tal como ela era, Mariana gostava muito de Adelaide.

 

Para não perturbar o seu recolhimento gastronómico, bebeu lentamente o conteúdo da taça, esperando que a velha senhora falasse, pois adivinhava que tinha qualquer coisa para lhe dizer. Efectivamente, reduzida a asa de galinha ao seu esqueleto e bebido o champanhe até à última gota, Adelaide limpou os lábios, abriu os olhos e poisou sobre a prima um olhar azul cheio de satisfação.

 

Minha querida, começou ela creio que neste momento tomais o vosso problema ao contrário. Se compreendi bem, a ressurreição inopinada do vosso defunto marido mergulhou-vos numa grande confusão e, desde que o reconhecestes, viveis no simples terror de o ver surgir repentinamente de novo. E bem isso?

 

Naturalmente que é isso! Mas não compreendo onde quereis chegar, Adelaide. Na vossa opinião eu deveria alegrar-me por ter visto reaparecer um homem que eu tinha justamente punido pelo seu crime?

 

Meu Deus... sim, de certo modo!

 

Mas porquê?

 

Porque, se esse homem está vivo, vós já não sois uma assassina e já não tendes a recear que a polícia inglesa vos mande procurar, admitindo que ousasse, em tempo de guerra, fazer esse pedido à França!

 

Eu não receava muito a polícia inglesa disse Mariana sorrindo. Além do facto de estarmos em guerra, a protecção do Imperador é suficiente para eu não recear nada no mundo! Mas, em certo sentido, tendes razão. Apesar de tudo, é agradável saber que não tenho as mãos manchadas de sangue.

 

Tendes a certeza? Resta a bela prima que tão convenientemente liquidastes...

 

Não a matei certamente e, se Francis pôde salvar-se, penso que Ivy St. Albans está viva também. Aliás, não tenho qualquer razão para desejar a sua morte, visto que Francis já não me é nada...

 

... Apenas um esposo devidamente abençoado pela Igreja, minha querida! Aqui tendes por que eu digo que, em vez de vos atormentardes, de fugirdes da imagem do vosso fantasma e tentar escapar-lhe, deveis enfrentá-lo. Se eu estivesse no vosso lugar, faria, pelo contrário, todos os possíveis para o encontrar. Quando o cidadão Fouché vier ter convosco amanhã de manhã...

 

Como sabeis que espero o duque de Otrante?

 

Nunca me habituarei a chamá-lo assim, esse renegado! Mas, de qualquer modo, ele não pode deixar de vir amanhã... Não me olheis assim! Também me acontece escutar às portas, quando me interesso por qualquer coisa.

 

Adelaide! exclamou Mariana escandalizada.

 

Mme. de Asselnat estendeu o braço e acariciou a mão de Mariana;

 

Não sejais tão conformista! Até uma Asselnat pode escutar às portas! Vereis como é útil por vezes. Onde ia eu com tudo isto?

 

’Na visita do... do ministro da Polícia.

 

-Ah sim! Pois em vez de lhe pedir para deitar a mão ao vosso delicioso marido e expedi-lo para Inglaterra na primeira fragata, pedi-lhe, pelo contrário, para vo-lo trazer, a fim de lhe dardes a conhecer a vossa decisão.

 

A minha decisão? Eu tomei uma decisão? exclamou Mariana, que entendia cada vez menos.

 

Certamente! Admiro-me que nunca tenhais pensado nisso. Pedi ao ministro para tentar saber onde está o vosso santo padrinho, esse Gauthier de Chazay! Aí está um de quem poderemos precisar dentro de pouco tempo! Ainda ele era um padrezinho insignificante e já era da confiança do Papa. Para anular um casamento, não fazeis ideia como o Papa pode ser útil! Começais a compreender?

 

Sim, Mariana começava a compreender. A ideia de Adelaide era tão simples, tão luminosa, que ela censurava-se por não ter pensado nisso mais cedo! Devia ser possível, fácil até, anular o seu casamento, visto que não tinha sido consumado e fora contraído com um protestante. Depois, seria livre, inteira e maravilhosamente livre, pois nem teria de responder pela morte do esposo! Mas, à medida que evocava a pequena silhueta grave do padre de Chazay, Mariana sentia um mal-estar apoderar-se de si.

 

Desde que na madrugada de um dia de Outono ela tinha visto, com desespero, no cais de Plymouth, desaparecer um pequeno veleiro ao vento, pensara muitas vezes no padrinho! Primeiro com desgosto e com esperança, mas, à medida que o tempo passava, com um pouco de inquietação. Que diria o homem de Deus, tão intransigente no capítulo da honra, tão cegamente fiel ao seu rei exilado, ao encontrar a afilhada sob a personagem de Maria-Stella, cantora de Ópera e amante do Usurpador? Saberia compreender quantos sofrimentos e desilusões Mariana passara, para chegar até ali... e para ser feliz? É certo que se tivesse encontrado o padre no Barbicão de Plymouth, o seu destino teria sido completamente diferente. Teria sem dúvida, pela sua recomendação, recebido asilo em qualquer convento, onde pela oração e meditação teria tentado esquecer e expiar aquilo a que nunca teria deixado de chamar uma justa execução... Mas se evocara muitas vezes com saudade e bondade a ternura do padrinho, Mariana reconhecia francamente que não lamentava de forma alguma não ter vivido o género de vida que ele teria oferecido à viúva de Lord Cranmere.

 

Finalmente, Mariana traduziu as dúvidas que a assaltavam, dizendo à prima:

 

-Sentir-me-ia infinitamente feliz por reencontrar o meu padrinho, mas não achais que seria egoísmo mandar procurá-lo com a única finalidade da anulação? Parece-me que o Imperador...

 

Adelaide bateu as palmas.

 

Mas que boa ideia! Como foi possível não me ter lembrado mais cedo? O Imperador, vejamos, é o Imperador a solução! Depois mudando de tom. O Imperador que mandou prender o Papa pelo general Radet, o Imperador que o teve prisioneiro em Savona, o Imperador que Sua Santidade na admirável bula ”Quum memoranda...” tão magistralmente excomungou no passado mês de Junho, é do Imperador que precisamos para apresentar ao Papa um pedido de anulação... quando não conseguiu fazer anular o seu próprio casamento com a pobre e deliciosa Josefina!

 

É verdade disse Mariana aterrada. - Tinha-me esquecido! E vós pensais que o meu padrinho...?

 

Vos conseguirá a anulação logo que a pedir? Não duvido um só instante! Encontremos o querido abade e estamos salvas! A liberdade é nossa!

 

O súbito entusiasmo de Adelaide levou Mariana a atribuir ao champanhe esse belo optimismo, mas era certo que a velha senhora tinha razão e que, naquela conjuntura, ninguém seria mais indicado para interceder por ela do que o padre de Chazay... embora fosse desagradável descobrir que havia um ponto em que Napoleão não era todo poderoso. Mas seria possível encontrar rapidamente o padre de Chazay?

 

Com uma pancada seca, Fouché empurrou a tampa da tabaqueira, colocou-a no bolso, depois arranjou a gravata de musselina e as frentes da camisa engomada com enfeites do gosto do século dezoito.

 

Se esse padre de Chazay vive à volta de Pio VII, como pareceis pensar, deve estar em Savona e creio que não será difícil encontrá-lo e conduzi-lo a Paris. Mas, no que se refere ao vosso esposo, parece que as coisas se apresentam menos fáceis.

 

É assim tão difícil? disse Mariana com vivacidade. Se ele é esse visconde de Aubécourt...

 

O ministro da Polícia tinha-se erguido e, com as mãos atrás das costas, caminhava lentamente através do salão. O seu passeio não possuía o carácter nervoso e sacudido do do Imperador.

 

Era lento e reflectido, mas Mariana interrogava-se por que razão os homens sentiam essa necessidade de percorrer as salas enquanto discutiam mentalmente. Teria sido Napoleão que lançara esta mania em moda? Até Arcadius de Jolival, o querido, fiel e indispensável Arcadius, fora atingido.

 

As reflexões ambulatórias de Fouché detiveram-se em frente do retrato do marquês de Asselnat, que reinava com arrogância sobre a sinfonia amarela e dourada do salão. Olhou-o, como se esperasse uma resposta, depois, finalmente, virou-se para Mariana a quem envolveu num olhar pesado.

 

Tendes a certeza? disse lentamente. Não há qualquer prova de que Lord Cranmere e o visconde de Aubécourt sejam uma única pessoa!

 

Eu sei isso, mas gostaria, pelo menos, de o ver, de o encontrar.

 

Era fácil ontem ainda. O belo visconde, que vivia até agora na Rua da Grange-Bateliére, no Hotel Plinon, frequentava com alguma assiduidade, desde a sua chegada, o salão de Madame Edmond de Périgord, onde entrara pela recomendação do conde de Montrond, actualmente em Anvers, como sabeis sem dúvida.

 

Mariana fez um sinal de assentimento, mas franziu as sobrancelhas. Uma dúvida assaltava-lhe o espírito. Desde a véspera, partira do princípio que Francis era o visconde de Aubécourt, tinha-se agarrado a essa sugestão, como para provar a si própria de que não fora vítima duma alucinação. Mas como imaginar Francis em casa da sobrinha de Talleyrand? M.me de Périgord, ainda que pelo nascimento princesa de Courland e a mais rica herdeira europeia, mostrara-se mais do que amigável para com Mariana, mesmo ainda quando, como simples leitora de M.me de Talleyrand, adoptara o nome de M.me Mallerousse. É certo que Mariana ignorava o número e a extensão das relações duma amiga que, aliás, não frequentava assiduamente, mas parecia-lhe que se Lord Cranmere tivesse entrado no salão de Doroteia de Périgord ela teria sido prevenida por qualquer voz misteriosa.

 

E teria sido em Anvers disse por fim que o visconde de Aubécourt teria conhecido M.me de Montrond? Isso não prova que ele seja realmente do país. As relações entre a Flandres e a Inglaterra foram sempre as melhores.

 

-Concordo convosco, mas pergunto a mim próprio se, na qualidade de exilado vigiado pela polícia imperial, o conde de Montrond teria a audácia de introduzir um inglês disfarçado de flamengo, portanto um espião. Não seria correr um grande risco? Notai. Eu julgo Montrond capaz de tudo, mas na condição de usufruir qualquer lucro e, se tenho boa memória, o homem que desposastes viu em vós apenas um dote respeitável, dote que se apressou a dilapidar. Logo, não posso acreditar que as facilidades de Montrond estejam desligadas de um ganho financeiro.

 

Tudo isso tinha lógica e Mariana era obrigada a admiti-lo. Francis não estaria talvez escondido sob o nome desse visconde flamengo, mas estava em Paris, isso era certo. Suspirou de lassidão e disse por fim:

 

Tiveste conhecimento da chegada de um navio de contrabando à costa de Inglaterra?

 

Há uma semana, um ”cutter” inglês aportou à ilha de Hoedic, para receber um dos vossos bons amigos, o barão de Saint-Hubert, que conhecestes nas pedreiras de Chaillot. Eu tive conhecimento disso, evidentemente, só quando o navio se afastou, mas, embora tenha levado alguém, não significa que, antes, não tenha desembarcado outra pessoa, proveniente de Inglaterra.

 

Como sabê-lo? Será que...

 

Mariana deteve-se e uma ideia súbita fez-lhe brilhar os olhos verdes. Depois disse mais baixo: Nicolau Mallerousse continua em Plymouth? Talvez ele saiba qualquer coisa que se relacione com esses movimentos de navios.

 

O ministro da Polícia fez uma horrível careta e esboçou uma reverência cómica.

 

Concedei-me a graça, minha cara, de acreditar que pensei, muito antes de vós, no nosso extraordinário Black Fish... Mas acontece que, por agora, ignoro onde se encontra exactamente esse digno filho de Neptuno. Desapareceu há um mês.

 

Desapareceu? protestou Mariana indignada e preocupada. Um dos vossos agentes! E não vos inquietais?

 

Não, porque se tivesse sido preso ou enforcado, eu teria sabido. Black Fish desapareceu porque deve ter descoberto qualquer coisa interessante. Segue uma pista certamente! Não vos atormenteis assim! Acabo por crer que sentis verdadeira afeição pelo vosso pseudo-tio!

 

Podeis ter a certeza! interrompeu ela com secura. A mão de Black Fish foi a primeira que se me estendeu com amizade e desinteressadamente, quando tive dificuldades. Não o posso esquecer.

 

A alusão não era velada. Fouché tossicou, assoou-se, retirou uma pitada de tabaco da sua tabaqueira e, para terminar, declarou noutro tom:

 

De qualquer modo, podeis ter a certeza, minha cara, que lancei na pista do vosso fantasma vestido de azul os meus melhores homens: o inspector Pâques e o agente Desgrée. Eles inspeccionam, a esta hora, todos os estrangeiros actualmente em Paris.

 

Com uma ligeira hesitação, Mariana perguntou, corando um pouco, por se mostrar tão obstinada:

 

Foram... a casa do visconde de Aubécourt?

 

Fouché permaneceu impassível. Nem um músculo do seu rosto pálido se alterou.

 

Começaram mesmo por aí. Mas o visconde deixou o Hotel Plinon ontem com as bagagens e sem dizer para onde ia... Não podeis imaginar até que ponto são extensos os estados de Sua Majestade o Imperador e Rei!

 

Mariana suspirou. Tinha compreendido. A não ser que Francis se manifestasse, era tão difícil encontrá-lo, como uma agulha num palheiro... Contudo, era preciso encontrá-lo a todo o custo... A quem dirigir-se, se Fouché se confessava vencido?

 

Como se tivesse lido no pensamento da jovem, o ministro sorriu levemente ao inclinar-se para se despedir, sobre os dedos que ela lhe oferecia:

 

Não sejais tão pessimista, minha cara Mariana, conheceis-me suficientemente para saber que, sejam quais forem as dificuldades, não gosto de me dar por vencido. Sem vos dizer como M. de Calonne disse a Maria Antonieta: ”Se for possível, ou impossível, far-se-á”, eu contento-me, mais modestamente, em vos aconselhar a esperar.

 

Apesar das palavras de esperança de Fouché, apesar dos beijos e das promessas de Napoleão, Mariana passou os dias seguintes numa melancolia fortemente mesclada de mau humor. Nada a satisfazia, nem ninguém, e aborrecia-se consigo própria. Lutando, dia e noite, com os mil demónios do ciúme, sentia-se atabafar nas salas elegantes da sua casa, onde se movia como uma fera enjaulada, mas ainda receava mais sair, pois odiava Paris no momento presente.

 

Na expectativa do casamento imperial, a capital apressava-se com os preparativos. Um pouco por toda a parte, penduravam grinaldas, laços e lâmpadas. Sobre todos os monumentos públicos, instalaram a águia negra austríaca ao lado das águias douradas do Império com uma familiaridade que escandalizava os heróis de Austerlitz e de Wagram, enquanto, com a ajuda de baldes de água e limpezas vigorosas, Paris fazia a sua ”toilette” de gala. O acontecimento pairava pela cidade, palpitava nos recantos das suas inúmeras ruas, vivia nas canções das casernas, onde se ouviam as fanfarras, tal como nos salões onde se afinavam os violões, enchia lojas e armazéns, onde retratos imperiais reinavam tão nobremente sobre peças de seda e rendas, como sobre montanhas de outros enfeites, apressava os alfaiates, os cabeleireiros, espevitava os trabalhadores ao longo dos cais do Sena, onde se reparavam iluminações e fogos de artifício e vivia no coração das costureirinhas para quem o Imperador tinha deixado de ser o invencível Deus das batalhas, para se transformar numa boa imitação do eterno Príncipe do Amor. É certo que esta atmosfera de festa era viva e alegre, mas para Mariana, o burburinho organizado à volta dum casamento, que a feria no coração, era deprimente e escandaloso. Ao ver Paris, esse Paris que acabava de a aclamar loucamente, que instantes antes se baixara a seus pés, aprontar-se para se enroscar como um grande felino perante essa Austríaca detestada, a jovem sentia-se duplamente enganada. Por isso, preferia ficar em casa, esperando sabe Deus o quê. Talvez o som dos sinos e as salvas de artilharia que lhe anunciariam que a sua infelicidade era irremediável e que a inimiga entrava na cidade...

 

A corte tinha partido para Compiègne, onde a Arquiduquesa Maria Luísa era esperada no dia 27 ou 28, mas nos salões as recepções sucediam-se. Recepções para as quais Mariana, sendo uma das mulheres mais em voga em Paris, recebia forçosamente convites, mas às quais por nada no mundo comparecia, mesmo a casa de Talleyrand, sobretudo ali, de tal modo receava o sorriso finamente irónico do Vice-Grande Eleitor. Assim, ao abrigo dum falso resfriamento, Mariana continuava obstinadamente em casa.

 

Aureliano, o porteiro do palácio Asselnat, tinha recebido ordens severas: ”além do ministro da Polícia ou os seus emissários e M.me Hamelin, a senhora não recebia ninguém”.

 

Fortunata Hamelin, por seu lado, desaprovava fortemente esta forma de agir. A crioula, sempre tão ardente pelo prazer, não estava longe de achar ridícula a clausura a que se impunha a amiga, sob pretexto que o amante partira para contrair um casamento de razão. Cinco dias após a famosa representação, veio despertar de novo a amiga:

 

Vão julgar que és viúva ou foste abandonada! indignou-se ela. quando te encontras justamente na situação mais invejável. És a amante adorada, toda poderosa, de Napoleão sem, no entanto, seres a sua escrava. Este casamento liberta-te de qualquer modo do jugo da fidelidade. E, meu Deus! és jovem, incrivelmente bela, és célebre... e Paris está cheio de homens sedutores que gostariam de povoar a tua solidão! Conheço pelo menos uma dúzia que estão loucamente apaixonados por ti. Queres saber os seus nomes?

 

É inútil. protestou Mariana, cuja moral demasiadamente livre da antiga ”maravilhosa” chocava ao mesmo tempo que divertia. É inútil porque não me apetece encontrar outros homens. Se eu quisesse, bastar-me-ia responder a uma destas cartas, acrescentou apontando uma pequena secretária de pau-rosa, onde se amontoavam numerosas missivas, que todos os dias o correio trazia, ao mesmo tempo que múltiplas ofertas de flores.

 

E tu nem as abres?

 

Fortunata precipitara-se. Armada dum fino estilete italiano em forma de corta papel, tinha aberto algumas cartas, percorrido algumas linhas, procurado assinaturas e finalmente suspirara:

 

Isto é triste! Mais de metade da Guarda Imperial está apaixonada por ti, infeliz! Escuta só: Canouville... Tobriant... Radziwill... até Poniatowski! Toda a Polónia está a teus pés! Sem contar os outros! Flahaut, o belo Flahaut só sonha contigo! E tu ficas aí, ao canto da tua chaminé, a suspirar, a olhar para as nuvens, o céu baixo e a chuva, enquanto Sua Majestade galopa à frente da Arquiduquesa! Olha, sabes quem me lembras? Josefina!

 

O nome da imperatriz repudiada que, para Fortunata, era o de uma velha amiga e ao mesmo tempo duma compatriota, conseguiu furar o muro de mau humor obstinado, atrás do qual Mariana se abrigava. Ergueu para a amiga um olhar verde e incerto.

 

Porque dizes isso? Viste-a? O que faz ela?

 

Vi-a ontem à noite! E, na verdade, faz pena. Há já vários dias que devia ter abandonado Paris. Napoleão deu-lhe o título de duquesa de Navarra e o domínio respectivo, uma imensa terra junto de Évreux... acrescentando, evidentemente, o conselho discreto, mas firme, de para aí se dirigir, no momento do casamento. Mas ela agarra-se ao Eliseu, onde voltou nestes últimos dias, como a uma tábua de salvação. Os dias passam uns após outros e Josefina continua em Paris... No entanto é preciso que parta! Para quê prolongar o sofrimento?

 

Julgo que a posso compreender disse Mariana com um sorriso triste. Não é cruel arrancá-la à sua casa para a enviar para outra desconhecida, como um objecto que se relega? Não a poderia ele deixar, pelo menos, em Malmaison, de que ela tanto gosta?

 

É muito perto de Paris! Sobretudo para a chegada da filha do Imperador da Áustria I Quanto a compreendê-la acrescentou Fortunata, indo mirar num espelho a sua capa de veludo bordado e as plumas de avestruz cor de fogo do seu imenso chapéu, não estou tão certa de que possas! Josefina agarra-se à sombra daquilo que foi... mas ela já encontrou uma consolação para o coração martirizado.

 

O que queres dizer?

 

M.me Hamelin rebentou a rir, o que teve a vantagem de lhe fazer brilhar os dentinhos brancos e agudos e, em seguida, veio sentar-se num cadeirão junto da amiga, que envolveu num intenso perfume de rosas.

 

Fez aquilo que tu deverias fazer, minha bela, aquilo que faria qualquer mulher com juízo no seu caso... e no teu: arranjou um amante!

 

Demasiadamente surpreendida pela notícia para encontrar uma resposta, Mariana contentou-se em abrir imensamente os olhos, o que ainda mais entusiasmou a tagarela crioula.

 

Não faças essa cara escandalizada! exclamou. - Josefina teve toda a razão, na minha opinião. Por que se condenaria às noites solitárias... que aliás era já a sua sorte na maior parte do tempo nas Tulherias. Perdeu um trono e encontrou o amor. É uma compensação e, se queres a minha opinião, é uma justiça!

 

Talvez? Quem é?

 

Um rapaz de trinta anos, louro e vigoroso; lembra um deus romano. O conde Lancelot de Turpin-Crissé, seu chanceler, o que é muito cómodo!

 

Mariana não pôde deixar de sorrir, mais à recordação das suas antigas leituras de rapariga, do que ao discurso da amiga.

 

Assim disse ela lentamente, a rainha Guenièvre encontrou finalmente a felicidade junto do cavaleiro Lancelot?

 

Enquanto o rei Artur se prepara para desposar uma princesa germânica! terminou Fortunata. Como vês, os romances nem sempre têm razão. Que esperas para fazer o mesmo? Escolhe um consolador! Vou ajudar-te.

 

Fortunata dirigia-se já para a secretária. Mariana deteve-a com um gesto:

 

Não. É inútil! Não me apetece ouvir os galanteios do primeiro galanteador. Amo-o muito, compreendes?

 

Isso não impede! insistiu Fortunata teimosa. Eu adoro Montrond, mas se tivesse tido de lhe permanecer fiel durante o seu exílio em Anvers, já estaria doida.

 

Mariana renunciou, mais uma vez, a explicar à amiga o seu ponto de vista. Fortunata era dotada dum temperamento exigente e, contrariamente ao que pensava, preferia o amor aos homens. Os seus amantes não se podiam contar, o último era o financeiro Ouvrard que, embora menos belo do que o irresistível Casimiro Montrond, compensava essa inferioridade por uma enorme fortuna que M.me Hamelin gostava de aproveitar, sempre na melhor das intenções. Mariana suspirou e disse para pôr fim ao assunto.

 

Apesar do seu casamento, não quero faltar ao Imperador. Sabê-lo-ia sem dúvida e nunca me perdoaria acrescentou muito depressa pensando que Fortunata só poderia entender aquele argumento. E, por outro lado, recordo-te que tenho, em qualquer parte, um autêntico esposo que pode surgir dum momento para o outro.

 

Extinto todo o seu entusiasmo, Fortunata voltou a sentar-se junto de Mariana e, de repente, muito séria, perguntou:

 

Tens qualquer notícia?

 

Nenhuma. Simplesmente ontem à noite um cartão de Fouché dizendo-me que ainda não o encontraram... e que até esse visconde de Aubécourt continua invisível. Creio, contudo, que o nosso ministro procura activamente. Aliás, Arcadius, por seu lado, passa os dias e as noites a correr Paris, de que conhece os recantos tão bem como um polícia profissional.

 

De qualquer modo é estranho...

 

Nesse instante, e como que para concretizar as palavras de Mariana, a porta do salão abriu-se e Arcadius de Jolival surgiu, com uma carta na mão, cumprimentando as duas senhoras com graciosidade. Como sempre, a sua elegância era irrepreensível: uma sinfonia verde-azeitona e cinzento, realçada pelo brilho de neve da camisa de baptista sobre a qual aparecia o rosto moreno de rato, com os olhos vivos, barbicha e bigode negros do homem de letras empresário e companheiro indispensável de Mariana.

 

A nossa amiga disse-me que passais o vosso tempo nos ”bas-fonds” de Paris e, no entanto, pareceis sair de uma caixa de surpresas! lançou-lhe Fortunata com bom humor.

 

Hoje não estive num local desagradável, respondeu Arcadius mas sim em casa de Frascati, onde comi sorvetes, à força, e ouvi conversar bonitas raparigas. Não corri maior risco do que escapar, por pouco, a um gelado de ananás que M.me Recamier me ia deixando cair sobre as calças.

 

Continuamos sem notícias? perguntou Mariana, cuja expressão, repentinamente tensa, formava um contraste profundo com os rostos sorridentes dos companheiros.

 

Mas Jolival não pareceu notar a angústia na voz da jovem. Atirando, negligentemente, a carta que segurava sobre o monte das que já esperavam sobre a secretária, pôs-se a contemplar com atenção o anel que usava na mão esquerda.

 

Nada! disse sem hesitação. O homem vestido de azul parece ter-se dissolvido em fumo, como o génio dos contos persas. Pelo contrário, vi o director do Teatro Feydeau, minha querida! Está surpreendido por não ter tido mais notícias vossas desde a memorável noite de segunda-feira.

 

Mandei prevenir que estava doente interrompeu Mariana com humor. Isso deveria bastar-lhe.

 

-Infelizmente, não lhe basta! Colocai-vos no seu lugar. Encontrou uma estrela de primeira grandeza, e ela eclipsa-se imediatamente. Ora justamente ele está cheio de projectos para vós, projectos todos, uns mais austríacos do que os outros, é evidente. Sonha levar à cena ”O Rapto do Serralho”, depois um concerto formado unicamente de ”lieder” e...

 

Ele que nem pense nisso! exclamou Mariana com impaciência Dizei a esse homem que não pertenço à companhia regular da Ópera Cómica. Fui somente representar à sala Feydeau.

 

-E o nosso homem sabe-o bem, suspirou Arcadius, e tanto mais que têm chegado outras propostas que ele não ignora. Picard desejaria ver-vos representar na Ópera; os famosos ”Bardos”, que tanto agradam ao Imperador, e Spontini, por seu lado, alegam a vossa... como direi, italianeidade? Reclamam-vos para representar com os italianos ”O Barbeiro de Sevilha” de Paesiello. Em seguida, os salões...

 

Basta! interrompeu Mariana irritada. Não quero ouvir falar de teatro neste momento. Sou incapaz do menor trabalho aproveitável... e depois talvez me dedique só a concertos.

 

Julgo interveio Fortunata -, que vale mais deixá-la tranquila. Agora não se lhe pode tocar.

 

”Canções”. N. T.

 

Ergueu-se, beijou afectuosamente a amiga e acrescentou;

 

Não queres realmente vir jantar a minha casa esta noite? Ouvrard traz-me alguns bons convivas... e alguns belos rapazes.

 

Não, realmente! Além de ti, não me apetece ver ninguém e sobretudo pessoas engraçadas. Até breve.

 

Enquanto Arcadius acompanhava M.me Hamelin à carruagem, Mariana com um suspiro de lassidão foi sentar-se diante do lume, sobre uma almofada que atirou para o chão. Sentia-se tremer. Talvez que à força de se dizer doente o estivesse realmente. Mas não, só o coração estava doente, assaltado pela dúvida, a inquietação e o ciúme. Lá fora, a noite aproximava-se, fria e chuvosa, de tal modo semelhante à sua disposição que, por um momento, a jovem contemplou com simpatia as janelas negras entre os cortinados de damasco dourado. Vinham falar-lhe de trabalho? Como os pássaros, ela só podia cantar com o coração ligeiro. Aliás, não tinha qualquer vontade de se meter na estreita engrenagem, muitas vezes tão convencional, das personagens de ópera. Talvez que, no fim de tudo, não tivesse uma verdadeira vocação artística! As propostas que lhe faziam não a tentavam... ou seria somente a ausência do homem amado que a levava a sentir essa curiosa repugnância?

 

Abandonando a janela, o seu olhar subiu para a chaminé, deteve-se sobre o grande retrato que a ornava e de novo a jovem estremeceu. Nos olhos sombrios do belo oficial, parecia-lhe, de repente, descobrir uma espécie de ironia mesclada de piedade desprezível pela criatura sentada a seus pés. À luz quente das velas, o marquês de Asselnat parecia surgir do fundo enevoado do quadro para envergonhar a filha por se mostrar tão pouco digna dele, como aliás de si própria. Era tão clara a linguagem muda do retrato que Mariana sentiu-se corar. Mesmo sem querer, a jovem murmurou:

 

Vós não podeis compreender! O vosso amor foi tão simples que a morte partilhada pareceu-vos, sem dúvida, a continuação lógica e a realização desse amor na sua forma mais perfeita. Mas eu...

 

O passo ligeiro de Arcadius sobre o tapete interrompeu a prece de Mariana. Contemplou, por um momento, a jovem, que formava uma mancha de veludo preto sobre a decoração luminosa do salão, mais encantadora, talvez na sua melancolia, do que no brilho da alegria. A proximidade do fogo dava um tom quente às suas faces e acendia-lhe reflexos dourados nos olhos verdes.

 

Nunca se deve olhar para trás disse ele com doçura, nem pedir conselho ao passado. O vosso império está no futuro.

 

Dirigiu-se vivamente à secretária, retomou a carta que tinha trazido ao chegar e estendeu-a a Mariana.

 

Devereis ler, pelo menos, esta! Um correio enlameado até aos olhos entregava-a ao vosso porteiro, quando eu chegava, dizendo que era urgente... um correio que devia ter feito um longo percurso e apanhado mau tempo.

 

O coração de Mariana bateu apressado. Seriam, finalmente, notícias de Compiègne? Pegou na carta, olhou a letra, que não lhe deu qualquer indício, pois não a conhecia, e depois o envelope negro sem qualquer ornamento. Com um dedo nervoso, fê-lo saltar, desdobrou a carta que não trazia assinatura, mas simplesmente as seguintes palavras:

 

”Um fervoroso admirador da signorina Maria-Stella, sentiria uma grande alegria se ela aceitasse encontrá-lo na terça-feira, 27, no castelo de Braine-sur-Vesle, ao cair da noite. O local chama-se ”La Folie”, e é sem dúvida o nome que convém ao pedido daquele que espera... prudência e discrição.”

 

O texto era estranho e a entrevista ainda mais. Sem uma palavra, Mariana estendeu a carta a Arcadius. Viu-o percorrer rapidamente a mensagem e depois erguer uma sobrancelha.

 

Curioso!disse ele. Mas ao mesmo tempo compreende-se.

 

Que quereis dizer?

 

Que estando a Arquiduquesa no solo de França, o Imperador é obrigado a uma grande discrição... e que a aldeia de Braine-sur-Vesle se encontra na estrada de Reines para Soissons. Em Soissons deve a nova imperatriz parar nesse mesmo dia 2 7, à tarde.

 

Assim, na vossa opinião, esta carta é ”dele”!

 

Quem mais poderia marcar-vos um encontro nessa região? Penso que... Arcadius hesitou perante o nome que lhe escondiam tão cuidadosamente e depois continuou ele deseja dar-vos uma última prova de amor, passando alguns momentos junto de vós no próprio instante em que chega a mulher que desposa por razões de estado. Isto deve responder às vossas angústias.

 

Mas Mariana não precisava de ser convencida. Muito corada, com os olhos brilhantes, invadida pela paixão, não pensava senão no minuto em que caísse nos braços de Napoleão.

 

Arcadius tinha razão. Ele dava-lhe, apesar das precauções de que se rodeava, uma grande, uma maravilhosa prova de amor.

 

-Partirei amanhã declarou. Dizei a Gracchus para me preparar um cavalo.

 

Não ides de carruagem? Está um tempo horrível e estamos a umas trinta léguas.

 

Recomendam-me discrição disse com um sorriso. Um cavaleiro atrai menos a atenção do que uma elegante carruagem com cocheiro e tudo o resto. Eu monto perfeitamente a cavalo, sabeis?

 

Eu também replicou Jolival, por isso direi a Gracchus para selar dois cavalos. Irei convosco.

 

-Será preciso? Não pensais que...

 

Penso que sois uma jovem, que as estradas não são muitas vezes seguras, que Braine é apenas uma pequena povoação e que vos marcam um encontro ao cair da noite numa região que não conheço. Não ides imaginar que desconfio de... quem sabeis, mas não vos deixarei, enquanto não vos souber em boas mãos. Depois irei dormir à estalagem.

 

O tom não admitia réplica e Mariana não insistiu. No fim de contas, a companhia de Arcadius era boa, sobretudo numa expedição que duraria bem três dias com ida e volta. Contudo, não pôde deixar de pensar que tudo aquilo era um pouco complicado e que as coisas teriam sido muito mais simples se o Imperador a tivesse levado para Compiègne e instalado, como desejava, numa casa da cidade. É verdade que, segundo as más línguas, a princesa Paulina Borghèse estava em Compiègne com o irmão e que tinha consigo a dama de honor preferida, essa Cristina de Mathis, que tinha precedido Mariana nas boas graças de Napoleão...

 

O que estou eu a imaginar? pensou de repente Mariana.-Vejo rivais em toda a parte. Na verdade sou muito ciumenta. Tenho de ter cuidado.

 

A porta de entrada, batendo ruidosamente no vestíbulo, veio interromper o seu monólogo. Era Adelaide, que voltava da devoção, onde ia todas as noites, aliás, menos por piedade, segundo Mariana, do que para encontrar pessoas e interessar-se pelas historiazinhas do bairro. Efectivamente, M.me de Asselnat, curiosa como uma gata, trazia sempre uma tal quantidade de anedotas e de observações que provavam que o altar não tinha tido o monopólio da sua atenção.

 

Mariana aceitou a mão que Arcadius lhe estendeu para a ajudar a erguer-se e sorriu-lhe.

 

Chegou Adelaide disse. Vamos jantar e saber os boatos do bairro.

                                               UMA IGREJINHA DE ALDEIA

 

À tarde do dia seguinte, Mariana e Arcadius de Jolival paravam diante da estalagem do Sol de Ouro em Braine. O tempo estava mau, pois, desde madrugada, uma chuva diluviana inundava a região e os dois cavaleiros. Apesar das espessas mantas, estavam tão molhados que era necessário um abrigo urgente. Um abrigo e qualquer coisa quente.

 

Tendo partido na véspera, ambos tinham feito o trajecto o mais rapidamente possível, a conselho de Arcadius, que desejava poder reconhecer os locais antes do estranho encontro. Alugaram dois quartos na estalagem, que era a única modesta hospedaria da aldeia, e instalaram-se na sala baixa, vazia de fregueses àquela hora, para tomar um caldo quente e um copo de vinho. Deixaram-nos, aliás, tranquilos nos seus lugares, tal era a agitação na povoação, nas margens do Vesle, habitualmente tão calmas. Dentro de poucos instantes, de uma hora... talvez duas, a nova imperatriz dos franceses atravessaria Braine, dirigindo-se para Soissons, onde devia jantar e dormir.

 

Apesar da chuva, toda a aldeia estava na rua, com vestidos de festa, sob as grinaldas e as lâmpadas que se extinguiam pouco a pouco. Perto da igreja, tinham instalado um estrado enfeitado com as cores francesas e austríacas e aí as pessoas ilustres do local tomariam lugar debaixo de chapéus de chuva para aclamar, a sua passagem, a recém-chegada, enquanto, pela porta aberta da velha igreja, se ouviria o coro local repetir o cântico de boas-vindas, para saudar o desfile das carruagens. Tudo isto dava à região um aspecto alegre e colorido que contrastava estranhamente com o tempo. Sozinha, Mariana sentia-se mais melancólica do que nunca, embora uma curiosidade ardente se misturasse ao seu humor sombrio. Ela sairia também sob a chuva para tentar ver de perto aquela a quem não podia deixar de chamar a rival, essa filha de inimigos que ousava disputar-lhe o primeiro lugar junto do homem que ela amava, unicamente porque nascera sobre os degraus de um trono.

 

Contrariamente aos seus hábitos, Arcadius estava tão mudo como Mariana. Encostado à mesa de madeira grosseira, polida por gerações de cotovelos, contemplava, sem lhe tocar, o vinho cor de violeta que fumegava no copo de faiança. Parecia de tal modo ausente que Mariana não pôde deixar de lhe perguntar em que pensava.

 

No vosso encontro desta noite respondeu com um suspiro. Ainda o acho mais estranho desde que chegámos aqui... estranho até ao ponto de me interrogar se terá sido o Imperador que o marcou.

 

Quem poderia ter sido? Porque não haveria de ser ele?

 

Sabeis o que é o castelo da ”Folie”? Claro que não. Nunca vim aqui.

 

Eu já, mas há tanto tempo que o tinha esquecido. O estalajadeiro refrescou-me a memória há momentos quando mandei vir as bebidas. O castelo da ”Folie”, minha querida, é aquela coisa que podeis avistar daqui... e que parece um quadro um pouco severo para um encontro de amor.

 

Enquanto falava, o cavalheiro-artista designava, sobre a outra margem arborizada do Vesle, a silhueta imponente duma fortaleza medieval do século XIII, já meio arruinada. Envolvidas na névoa cinzenta da chuva, as muralhas, escurecidas pelo tempo, ofereciam um aspecto sinistro, contra o qual nada podiam os ternos rebentos verdes das árvores, que as envolviam. Mariana franziu as sobrancelhas, tomada dum pressentimento bizarro.

 

Aquela ruína feudal? É aquilo o castelo onde devo dirigir-me?

 

Aquele e nenhum outro. O que pensais?

 

(1) ”Loucura”. N. T.

 

Como única resposta, Mariana ergueu-se e calçou as luvas que tinha colocado sobre a mesa.

 

Que pode ser uma armadilha como outras, que já me armaram. Lembrai-vos das circunstâncias do nosso primeiro encontro, meu caro Jolival... e as doçuras que conhecemos nas mãos de ”Fanchon-Fleur-de-Lys” nas pedreiras de Chaillot? Ide buscar os cavalos. Vamos visitar já esse curioso ninho de amor. É certo que desejo estar enganada...

 

De facto, nem sabia bem o que desejava realmente. Uma vez passada a alegria do primeiro instante, vivia, desde a saída de Paris, num estranho estado de espírito. Ao longo do caminho que, no entanto, a aproximava do amante, Mariana não tinha podido evitar uma repugnância e uma inquietação, devidas talvez ao facto de a famosa carta não ter sido escrita pela ”sua” mão e o local do encontro estar no próprio caminho da arquiduquesa. É verdade que esta última objecção desaparecera rapidamente, quando soube em Soissons que o ponto do encontro previsto pelo protocolo, entre o Imperador e a noiva, na tarde do dia 28, se situava em Pontarcher, localidade situada a duas léguas e meia de Soissons sobre a estrada de Compiègne, mas não muito longe de Braine. Ao amanhecer, Napoleão teria muito tempo para reencontrar o seu séquito.

 

No momento presente, a ideia de agir fazia-lhe bem e retirava-se do abismo de perplexidade e de vaga angústia em que se movia há uma semana. Enquanto Arcadius ia buscar os cavalos, ela tirou do cinto uma pistola, que tinha trazido ao deixar Paris, como medida de prudência. Era uma das que Napoleão lhe dera, conhecendo a sua habilidade em manejar as armas. Friamente verificou se estava carregada. Se Fanchon-Flor-de-Lis, o cavaleiro de Bruslart ou algum dos seus sinistros acólitos a esperava detrás das velhas muralhas da ”Folie”, encontrariam resposta.

 

Ia abandonar a mesa, colocada perto da única janela da sala, quando do outro lado da rua qualquer coisa atraiu a sua atenção. Uma grande berlinda preta sem armas, mas atrelada a cavalos cinzentos muito belos, estava parada em frente da oficina dum ferreiro. Inclinado, junto do cocheiro enrolado numa grande capa verde, sobre o casco de um dos cavalos da dianteira, o homem examinava uma ferradura, sem dúvida com qualquer defeito. Este espectáculo nada tinha de extraordinário, mas despertou o interesse da jovem. Tinha a impressão de que conhecia aquele cocheiro...

 

Tentou ver quem ocupava a berlinda, mas no seu interior avistavam-se apenas duas silhuetas bastante vagas, embora masculinas. Porém, de repente, abafou um grito. Certamente para ver onde estava o cocheiro, um dos homens debruçou-se por detrás do vidro e Mariana pôde ver um perfil pálido e nítido sob um grande bicórneo preto. Esse perfil estava demasiadamente gravado no coração da jovem e não hesitou um momento em reconhecê-lo. Era o Imperador!

 

Mas que fazia ele naquela berlinda? Iria já para o castelo da ”Folie”? Nesse caso por que razão esperar, em pessoa, na carruagem que a ferradura do cavalo fosse arranjada. Tudo isto parecia-lhe tão bizarro que a brusca alegria de Mariana ao avistá-lo, num momento em que duvidava tanto da realidade do seu encontro, durou apenas um instante. Dentro da carruagem, ela vira bem, Napoleão tinha franzido as sobrancelhas e feito um gesto que ordenava para se despacharem. Ele estava apressado, muito apressado... mas para onde ia?

 

Mariana mal teve tempo de se interrogar mais. O ferreiro afastava-se, o cocheiro subia para o seu lugar e fazia estalar o chicote. Num grande ruído de cascos, a berlinda partiu a galope. Mariana correu para fora e esbarrou com Arcadius, que trazia os cavalos.

 

Sem uma palavra de explicação, Mariana saltou para a sela, enterrou até à testa o chapéu que continha a massa dos seus cabelos entrançados e, depois esporeando o cavalo, lançou-se na pista da berlinda que já desaparecia na nuvem de água e lama levantada pela corrida. Arcadius seguiu-a maquinalmente, mas como decididamente viraram as costas ao caminho da ”Folie”, ele forçou o galope do cavalo para apanhar a jovem.

 

Ah!... Mas para onde corremos?

 

Aquela carruagem lançou Mariana por entre o vento da corrida, quero saber para onde vai.

 

Porquê?

 

O Imperador vai lá dentro!

 

Jolival levou um momento a compreender a notícia, depois, inclinando-se bruscamente sobre a sela, agarrou nas rédeas do cavalo de Mariana e, parando a sua própria montada, conseguiu, com uma força surpreendente num corpo tão magro, refrear o galope.

 

Estais doido? gritou Mariana furiosa. O que é que vos deu?

 

Quereis então que Sua Majestade se aperceba de que é seguido? Seríamos logo notados numa estrada tão estreita. Pelo contrário, se tomarmos este atalho que vedes à direita, cortaremos pelo caminho mais curto para Courcelles, onde chegaremos antes do Imperador.

 

O que é Courcelles?

 

A próxima aldeia. Mas, se não me engano, o Imperador vai simplesmente ao encontro da noiva e não tardará muito a verem-se.

 

Julgais isso? Oh! Se eu tivesse a certeza!

 

A jovem empalidecera, de repente, até aos lábios. O horrível ciúme dos últimos dias, que a tinha abandonado por instantes, voltava mais amargo e ardente. Perante o seu olhar doloroso, Arcadius teve um leve sorriso e abanou a cabeça.

 

Mas... tendes a certeza? Sede franca convosco própria, Mariana. Sabeis muito bem para onde ele vai e quereis vê-la; vê-la primeiro e, em seguida, observar como será o primeiro contacto.

 

Mariana cerrou os dentes e afastou os olhos, enquanto dirigia o cavalo para o pequeno atalho. O seu rosto fechou-se, mas confessou:

 

Sim, é verdade... e nada nem ninguém poderá impedir-me.

 

- Nem penso nisso. Vinde, já que assim desejais, mas fazeis mal. De qualquer modo ireis sofrer e será uma dor inútil!

 

De novo a galope e, sem se preocuparem com a lama ou a chuva que aumentava, os dois cavaleiros lançaram-se pelo atalho. Seguiam pelas margens do Vesle duplicado de volume pelas últimas chuvas torrenciais e transportando uma água cinzenta e suja entre arbustos. A cada avançada dos cavalos, o tempo parecia tornar-se pior. A chuva, ainda há pouco fina e quase imperceptível, caía agora em pesadas bátegas dum céu enevoado, triste e melancólico. Mas o caminho à borda de água era realmente mais rápido e as poucas casas de Courcelles rapidamente foram avistadas.

 

Quando Mariana e Arcadius entraram na estrada principal, viram a berlinda que chegava a grande velocidade, deitando das altas rodas verdadeiras cataratas de água.

 

Vinde disse Arcadius, não podemos ficar aqui, se não queremos ser vistos.

 

Procurava arrastá-la para o abrigo da pequena igreja próxima, mas Mariana resistiu. Olhava avidamente a carruagem com um terrível desejo de ficar ali, de se fazer notada, de cruzar o olhar do seu senhor para nele ler... o quê precisamente? Não teve, porém, tempo de procurar uma resposta à sua interrogação. Talvez por causa do cavalo mal ferrado, a berlinda fizera um ligeiro desvio, em plena corrida, e viera tocar com a roda esquerda da frente nos degraus do pequeno calvário erigido à entrada de Courcelles. A roda partiu-se e Mariana não pôde conter um grito, mas a perícia do cocheiro fizera maravilhas. Depois de uma curta oscilação, segurara os cavalos e parara a carruagem.

 

Dois homens saíram imediatamente, um grande e curiosamente empenachado, sobretudo com um tempo assim, o outro logo reconhecível, mas ambos furiosos. Mariana viu o mais alto designar a igreja e puseram-se os dois a correr debaixo da chuva.

 

Vamos ordenou Arcadius, segurando Mariana pelo braço, senão ides esbarrar com ele. Vão, evidentemente, abrigar-se aqui, enquanto o cocheiro procura um ferreiro.

 

Desta vez, ela deixou-se conduzir sem resistência. Rapidamente, Jolival fez-lhe dar a volta à igreja, a fim de não serem vistos. Estavam rodeados por algumas árvores e os dois cavaleiros foram prender os cavalos a uma delas. Visto que o Imperador parara ali, o companheiro de Mariana sabia que não iriam mais longe. Aliás, a jovem já descobrira uma pequena porta lateral.

 

Entremos na igreja disse ela. Poderemos ver e ouvir sem sermos vistos.

 

Penetraram os dois no pequeno santuário, cujo ar húmido e frio, cheirando fortemente a mofo, caiu sobre as suas costas molhadas como uma placa de chumbo.

 

Vamos morrer aí dentro! murmurou Jolival, sem que Mariana soubesse o que lhe havia de responder.

 

Reinava uma semiobscuridade. A igreja estava quase abandonada. Numerosos vitrais partidos tinham sido substituídos por papel oleado. Bocados de estátuas formavam, a um canto, um monte de entulho e não havia mais do que dois ou três bancos, enquanto as teias de aranha ornavam abundantemente o púlpito e os confessionários. Mas, sob a pequena tribuna, a grande porta entreaberta permitia ver o que se passava no pórtico, onde, justamente, o Imperador e o seu companheiro chegavam a correr. Uma voz mordaz, impaciente e fácil de reconhecer, perturbou o silêncio do santuário.

 

-Esperaremos aqui! Crês que ainda estão longe?

 

Certamente que não respondeu a outra personagem, um jovem alto moreno com cabelo frisado e que fazia o possível para abrigar, sob a grande capa, um gigantesco bicórneo empenachado. Mas porquê esperar aqui, sob esta abóbada, onde, além da chuva que nos molha, ainda aproveitamos a água das goteiras. Não podemos pedir asilo numa destas quintas?

 

A estada em Nápoles não te valeu de nada, Murat trocou o Imperador. Temes algumas gotas de água, presentemente?

 

Não as receio por mim, mas sim pelo meu fato. As minhas plumas vão ficar estragadas e terei a honra de saudar a Imperatriz com uma palmeira sem folhas!

 

Se te vestisses com maior simplicidade, isso não te aconteceria. Imita-me!

 

Oh, vós, Sire, sempre vos disse, vestis-vos demasiadamente à antiga e não se vai cumprimentar uma arquiduquesa da Áustria vestido como um burguês.

 

Esta estranha discussão sobre vestimentas teve a vantagem, pelo menos, de permitir a Mariana reencontrar o pleno controlo de si própria. O seu coração tinha cessado de bater ao ritmo acelerado dos últimos momentos e o ciúme mesclava-se duma curiosidade muito feminina.

 

Era então o famoso Murat, cunhado do Imperador e rei de Nápoles? Apesar do soberbo fato azul e dourado, quase escondido pela capa preta, e, apesar da alta estatura, ela achava-lhe uma fisionomia bastante vulgar e um rosto de conquistador. Era talvez o maior cavaleiro do Império, mas, nesse caso, nunca se deveria mostrar sem o cavalo. Assim, parecia incompleto. Entretanto Napoleão explicava;

 

Quero fazer uma surpresa à arquiduquesa, como já te disse. Vou mostrar-me sem aparato e do mesmo modo quero vê-la no simples vestido de viagem. Sairemos para a estrada quando se vir o cortejo.

 

Um suspiro tão forte que chegou até Mariana, deu a medida daquilo que Murat pensava desse projecto e, depois, acrescentou resignado:

 

Esperemos então!

 

Vamos! Não faças essa cara! Tudo isto é extremamente romântico, vejamos! Lembro-te que a tua mulher está junto de Maria Luísa! Não estás contente de voltar a ver Carolina?

 

-Sim, com certeza! Mas estamos casados há bastante tempo para que possa existir surpresa. Aliás...

 

Cala-te! Não ouves nada?

 

Todos os ocupantes da igreja, observadores e observados, apuraram o ouvido. Com efeito, ao longe, uma espécie de rugido fazia-se ouvir, semelhante à aproximação duma tempestade fraca e ainda muito afastada, mas que se aproximava pouco a pouco.

 

Efectivamente disse Murat com um visível alívio. São seguramente as carruagens! Aliás...e o rei de Nápoles, abandonando corajosamente o abrigo do pórtico, avançou na estrada e voltou correndo e gritando: São os primeiros hussardos da escolta! A vossa esposa está a chegar, Sire!

 

Napoleão juntou-se a ele, enquanto Mariana, levada por uma curiosidade irreprimível, avançava até à porta da igreja. Não corria o menor perigo de ser vista. Toda a atenção do Imperador se dirigia para a longa fila de carruagens que, no extremo da estrada, avançava a grande velocidade, precedida de cavaleiros azuis e cor-de-rosa e Mariana sentiu essa tensão até ao fundo do coração. Compreendeu, de repente, com que ardor ele esperava aquela que lhe daria um herdeiro, essa filha dos Habsburgo, graças à qual atingiria finalmente o sangue real tradicional. Para lutar contra o desgosto que a invadia, Mariana esforçou-se por recordar as suas palavras: ”Caso com um ventre...” Era ridículo tudo no comportamento do amante... Não se dizia que tinha querido aprender a dançar em honra da noiva! fazia ressaltar a impaciência com que tinha esperado o momento em que a futura mulher lhe fosse entregue; tudo, até aquela escapada de colegial romântico em companhia do cunhado! Não tinha tido a coragem de esperar pacientemente até ao dia seguinte e até à entrevista, oficialmente preparada, de Pontacher.

 

Agora, Napoleão estava no meio da estrada e os hussardos azuis, detendo as montadas perante aquela figura tão conhecida, gritavam: ”O Imperador! Eis o Imperador!” O grito foi repetido pelo camareiro, M. de Seyssel, que seguia imediatamente. Mas Napoleão nada escutava, nada via. Sem se importar com a chuva, que redobrava, correu como um rapaz até uma grande carruagem, puxada por oito cavalos, e abriu a porta sem esperar que lha abrissem. Mariana viu duas mulheres. Uma exclamou ao inclinar-se:

 

Sua Majestade o Imperador!

 

Mas era evidente que Napoleão não tinha olhos senão para a sua companheira: Uma rapariga grande, loura e rosada com olhos azuis, um pouco salientes, que aliás parecia um pouco assustada. Os seus lábios, pesadamente contornados por um buço, tremiam, embora ela se esforçasse por sorrir. Estava vestida com uma capa de veludo verde, mas trazia na cabeça uma horrorosa touca guarnecida de penas de papagaio multicolores, que lhe davam o aspecto de um pássaro.

 

Mariana, que, a alguns passos da Arquiduquesa, a devorava com os olhos, sentiu uma alegria feroz ao descobri-la senão feia, pelo menos vulgar. É certo que Maria Luísa era fresca, mas os seus olhos azuis não possuíam expressão e sob o nariz, um poucolongo, o famoso lábio Habsburgo nada tinha de gracioso. E como estava mal vestida! Para uma rapariga, estava demasiadamente ataviada. Dentro de dez anos, seria gorda, pois já possuía um aspecto pesado.

 

Avidamente, a jovem espiava as reacções do Imperador que, com os pés na água, contemplava a esposa. Deveria estar decepcionado, cumprimentá-la-ia protocolarmente, beijar-lhe-ia a mãoe voltaria para a sua carruagem, que estava já pronta um pouco mais longe... Mas, longe disso! A sua voz alegre exclamava Sinto um grande prazer em vos ver, minha Senhora! Em seguida, subindo o estribo, sem se importar com o facto de estar todo molhado, tomou a loura nos braços e beijou-a várias vezes, com um entusiasmo que provocou um sorriso trocista à outra dama da carruagem, uma encantadora rapariga loura de pele cor de nácar, embora possuísse uma cabeça grande em demasia e um pescoço muito curto. O seu olhar sarcástico desmentia a ingenuidade da expressão, o que desagradou imediatamente a Mariana. Era sem dúvida a famosa Carolina Murat, irmã de Napoleão, e uma das mais temíveis mulheres do regime. O homem que tinha acompanhado o Imperador, aliás, já a beijava, depois de ter cumprimentado a Arquiduquesa, mas retirou-se imediatamente para voltar sozinho à berlinda sem armas, enquanto Napoleão, radioso, se instalava em frente das duas mulheres e gritava ao camareiro que permanecia em pé junto da carruagem:

 

Agora, depressa para Compiègne! Não parem no fim das etapas previstas!

 

Mas, Sire protestou a rainha de Nápoles, somos esperados em Soissons, onde as autoridades prepararam uma ceia, uma recepção...

 

Comerão a ceia sem nós! Quero que ”Madame” esteja hoje ainda em sua casa! Para a frente!

 

Tratada deste modo, Carolina franziu os lábios e refugiou-se no seu canto, enquanto a carruagem partia. Mariana, com os olhos cheios de lágrimas, ainda pôde ver o sorriso encantado com que Napoleão envolvia a noiva. Soou uma ordem breve e os cavalos puseram-se a trote. Uma após outra, as oitenta e três carruagens do cortejo começaram a desfilar diante da igreja. Apoiada à pedra húmida do pórtico, gótico, Mariana via-as passar sem se aperceber, entregue a pensamentos tão dolorosos que foi preciso Arcadius sacudi-la suavemente para que ela parecesse desperta.

 

Que fazemos agora? perguntou ele. Deveríamos voltar à estalagem. Estais toda molhada... e eu também.

 

A jovem envolveu-o num olhar estranho.

 

Vamos a Compiègne, também.

 

Mas... para quê? admirou-se Jolival. Tenho receio que cogiteis numa loucura. Que tendes vós a ver com este cortejo?

 

Quero ir a Compiègne, digo-vos eu insistiu a jovem batendo o pé. E não me pergunteis porquê, não saberia responder-vos. Só sei que tenho de lá ir.

 

Estava tão pálida que Arcadius franziu as sobrancelhas. A vida parecia ter-se retirado dela e ter deixado apenas um autómato. Com muita doçura, arrancando-a àquela dor gelada e como que paralisante, ele objectou: -E... o encontro desta noite?

 

Já não me interessa, visto que não foi ele quem o marcou. Ouviste-lo? Vai para Compiègne. Não é para voltar aqui. A que distância estamos de Compiègne?

 

Umas quinze léguas!

 

Já vedes! A cavalo e encurtemos caminho! Quero chegar a Compiègne antes deles.

 

Correu para as árvores onde estavam os cavalos. Arcadius tentou ainda dissuadi-la:

 

Não sejais louca, Mariana! Regressemos a Braine e deixai-me ir ver quem vos espera esta noite.

 

Não me interessa, já vos disse! Quando compreendereis que há um único ser no mundo que me interessa? Aliás esse encontro só poderia ser uma armadilha! Agora, estou certa disso... Mas não vos obrigo a seguir-me! exclamou ela cruelmente.- Posso muito bem ir sozinha.

 

Não digas tolices! disse Arcadius com um encolher de ombros.

 

Inclinando-se calmamente, ofereceu à jovem as mãos cruzadas, para que ela colocasse a extremidade da bota e subisse para a sela. Não lhe queria mal pelo seu humor negro, porque compreendia o que ela sentia nesse momento. Lamentava simplesmente vê-la martirizar-se ao tomar contacto com uma fatalidade contra a qual nem ela, nem ninguém podiam actuar.

 

Vamos, já que assim o desejais! disse apenas subindo para sua própria montada.

 

Sem responder, Mariana cerrou os flancos do cavalo com os calcanhares. O animal partiu a toda a velocidade em direcção ao caminho à beira de água. Courcelles, onde tinham surgido apenas alguns rostos, recaiu no silêncio e no abandono. A berlinda danificada, com uma nova roda de reserva, tinha também desaparecido.

 

Apesar do atraso em relação à cabeça do cortejo, Mariana e Arcadius chegaram à saída de Soissons a tempo de ver passar a carruagem imperial que, não obedecendo ao programa estabelecido, atravessou a cidade sob os olhares estarrecidos e um pouco escandalizados do Subprefeito, do Conselho Municipal e das autoridades militares, que tinham esperado longas horas debaixo de chuva para o único prazer de ver o seu Imperador fugir-lhes apressadamente.

 

Mas porque está ele tão apressado? exclamou Mariana entre dentes. - O que é que o obriga a estar em Compiègne esta noite?

 

Incapaz de dar uma resposta válida a essa pergunta, ia retomar a corrida depois de ter mudado de montada no Hotel dês Postes, quando viu de repente chegar a carruagem imperial. A porta abriu-se e a rainha de Nápoles, que Mariana reconheceu pelas penas de avestruz cor de malva e rosa que ornamentavam o seu chapéu de veludo cinzento, saltou para a estrada. Com passadas enérgicas e ar ofendido, encaminhou-se para a segunda carruagem. O camareiro, trotando atrás, fez descer o estribo e, parecendo uma rainha no exílio, Carolina Murat desapareceu no interior, enquanto o cortejo se pôs de novo a caminho.

 

Mariana lançou a Arcadius um olhar interrogador.

 

O que quer aquilo dizer?

 

Para dissimular o embaraço, Arcadius inclinou-se sobre o pescoço do cavalo e fingiu verificar qualquer coisa no arreio do animal, mas não respondeu. Este silêncio exasperou Mariana.

 

Tende, ao menos, a coragem de me dizer a verdade, Arcadius. Pensais que ele quis ficar só com essa mulher?

 

É possível respondeu Jolival prudentemente. A não ser que a rainha de Nápoles tenha tido um desses caprichos de que infelizmente costuma abusar.

 

Na presença do Imperador? Não creio. A galope, meu amigo, quero vê-los descer da carruagem.

 

Retomaram então a corrida infernal através de bátegas de água gelada,, lama e ramos baixos que enchiam os caminhos secundários escolhidos pelos dois cavaleiros.

 

Ao chegar a Compiègne, já noite fechada, Mariana extenuada e transida de frio, batia os dentes, mas mantinha-se a cavalo por um prodígio da vontade. Sentia todo o corpo dorido, como se tivesse levado uma sova, mas não o confessaria por nada deste mundo. O avanço sobre o cortejo era mínimo, pois nessa estrada interminável o ruído longínquo das oitenta e três carruagens acompanhara sempre a jovem, excepto quando se embrenhava no coração da floresta.

 

Agora, cavalgando ao longo das ruas iluminadas, pavimentadas e ornamentadas até aos telhados das casas, Mariana piscava os olhos, como um pássaro nocturno, atirado bruscamente para a luz. A chuva cessara. A notícia de que o Imperador trazia a noiva durante a noite para Compiègne, somente esperada na manhã seguinte, correra pela cidade. Por isso, apesar do mau tempo e da noite, todos os habitantes tinham invadido as ruas ou as estalagens e uma multidão permanecia junto das grades do grande palácio branco.

 

Este brilhava na noite como uma colónia de pequenas luzes. No pátio, um regimento de granadeiros da Guarda fazia manobras, pronto a sair para estabelecer a ordem. Dentro de momentos, os gigantescos soldados de barretes peludos afastariam a multidão como se fosse um rebanho e abririam uma passagem que ninguém teria a ideia de recusar. Mariana limpou maquinalmente a água que escorria das abas do seu chapéu.

 

Quando os soldados saírem, lançar-nos-emos em frente disse ela para aproveitarmos a confusão. Quero chegar até ao gradeamento.

 

É uma loucura, Mariana! Vamos ser espezinhados e esmagados. Não existe qualquer razão para que essa gente nos arranje lugar.

 

Nem se aperceberão. Ide prender os cavalos e vinde ter comigo. Temos de agir com rapidez.

 

Efectivamente, quando Arcadius se afastava a correr para a entrada duma grande estalagem muito iluminada, todos os sinos da cidade começaram a tocar. O cortejo devia ter dado entrada em Compiègne. Ao mesmo tempo, uma enorme aclamação elevou-se nos ares. Os portões do palácio abriram-se e deixaram passar o bloco poderoso dos granadeiros que. empunhando a arma, avançaram em boa ordem e dividiram a multidão em duas partes, formando uma dupla barreira no meio da qual passariam as carruagens. Mariana então avançou, seguida por Jolival. Aproveitando o refluxo da multidão, conseguiu chegar às grades do castelo, deslizando por trás dos granadeiros. Houve alguns protestos, algumas injúrias até, para essa jovem insolente que ousava querer o primeiro lugar, mas ela era insensível a tudo. Aliás, os primeiros hussardos desembocavam na praça, segurando com mãos firmes as montadas cobertas de suor. A multidão gritou numa só voz:

 

-Viva o Imperador!...

 

Mariana trepou sobre o muro baixo, onde se fixavam as lanças douradas do gradeamento, e agarrou-se ao ferro molhado. Entre ela e o grande pórtico, onde se alinhavam lacaios de libré verde, segurando tochas, cujas chamas se apagavam com o ar frio, existia apenas um espaço vazio. Num instante, as janelas do castelo povoaram-se duma multidão brilhante, os terraços dos telhados foram invadidos, uma orquestra instalou-se sobre a galeria que dominava o gradeamento, outra em qualquer local da praça e mais outra nas janelas duma casa patrícia. Por toda a parte brilhavam tochas. Ouviu-se um grande ruído de tambores, que ensurdeceu toda a gente.

 

Entre a barreira dos granadeiros, pajens, escuteiros, oficiais e marechais apareceram a grande galope uma carruagem, depois outra e mais outra. O coração de Mariana batia até estalar sob o pano molhado das suas vestes. Olhava, com os olhos muito abertos, o largo pórtico guarnecido de tapetes, sob o grande portão triangular, cobrir-se de mulheres com vestidos compridos, a que os diademas emprestavam luzes multicolores, de homens com fardas vermelhas e douradas ou azuis e prateadas. Avistou até alguns oficiais austríacos em grande ”toilette” branca, com o peito enfeitado de decorações. Em qualquer parte, um relógio bateu dez horas.

 

Então, num grande tumulto de gritos e vivas, apareceu a berlinda de oito cavalos, que Mariana já conhecia. Os metais, na galeria, começaram a tocar: ”Saudemos o Império”, enquanto a carruagem, como que empurrada pelo entusiasmo popular, passava os largos portões abertos e descrevia uma curva cheia de elegância. Os criados precipitaram-se, os portadores de tochas desceram até ao pavimento do pátio, os tambores soaram, enquanto, à entrada, os cetins e os brocados das vestes da corte se curvavam até ao chão em profundas reverências. Com os olhos inundados de lágrimas, que não conseguia reter, Mariana viu Napoleão saltar para o chão e depois voltar-se, com uma expressão encantada, para aquela que estava ainda dentro da carruagem e ajudá-la a descer com todos os cuidados e todas as ternas precauções de um amante atencioso. Um brusco furor secou as lágrimas de Mariana, ao constatar que a Arquiduquesa estava muito vermelha e que o seu chapéu de penas de papagaio estava todo descaído para um lado. Além disso, tinha uma atitude estranha, talvez um pouco aborrecida.

 

Em pé, Maria Luísa tinha um palmo de altura a mais do que o noivo. Formavam um casal bizarro e discordante, ela com a sua pesada moleza germânica, ele com a tez pálida, o perfil romano e toda a vitalidade nervosa à flor da pele, que devia ao sangue mediterrâneo. A única coisa que talvez não chocasse era a diferença de idades. Maria Luísa estava longe de possuir a fragilidade da juventude.

 

De qualquer modo, nem um nem outro pareciam aperceber-se disso. Contemplavam-se com um ar encantado, que deu vontade a Mariana de os assassinar. Como é que aquele homem que, há tão poucos dias, a amara com tanta paixão, e lhe jurara, em tom sincero, que seria a única a reinar no seu coração, podia olhar essa grande mulher loura com a expressão de uma criança que vê o seu primeiro presente de Natal? Furiosamente, a jovem enterrou as unhas na palma da mão e rangeu os dentes para não gritar de dor e raiva.

 

A recém-chegada beijava as mulheres da família imperial; a encantadora Paulina, que mal continha a vontade de rir ao contemplar o famoso chapéu, a prudente Elisa, com o seu severo perfil de Minerva, a beleza morena da rainha de Espanha, a graça loura da rainha Hortense, cujo vestido de seda branca, as pérolas de doce brilho e a elegância perfeita lembravam o fantasma de sua mãe e contrastava horrivelmente com as vestes de Maria Luísa.

 

Por um instante, Mariana esqueceu-se de si própria, para imaginar quais seriam, precisamente, os sentimentos da doce filha de Josefina, perante essa mulher que ousava vir sentar-se sobre o trono, ainda quente, da mãe. Não seria mais uma inútil crueldade de Napoleão tê-la obrigado a estar ali para acolher a estrangeira, à porta de um palácio francês? Completamente inútil, mas característico da maneira de ser do Imperador. Não era a primeira vez que Mariana constatava como a sua bondade natural podia tingir-se de uma espécie de fria desumanidade.

 

Permitir-me-eis agora que vos conduza até a uma estalagem para vos aquecerdes? disse muito perto a voz amiga de Arcadius. Ou desejais passar a noite agarrada a essas grades? Não há mais nada para ver.

 

Com um arrepio, Mariana constatou que, efectivamente, além das carruagens, dos criados e dos palafreneiros que conduziam os animais para as cavalariças, o pátio estava vazio e as janelas fechadas.

 

Na praça, a multidão retirava-se, quase com pena, com a lentidão duma maré a vazar. Ela virou para Arcadius um rosto, onde as lágrimas ainda não tinham secado:

 

Pensais que estou louca, não é verdade? murmurou. Ele sorriu-lhe com amizade e passou um braço fraternal em volta dos ombros da jovem.

 

Penso que sois jovem, maravilhosamente... cruelmente jovem! Atirais-vos sobre tudo aquilo que vos pode ferir com a cegueira de um pássaro perdido. Quando fordes mais velha, aprendereis a evitar as garras de ferro que a vida sabe dispor ao longo dos caminhos humanos para martirizar e fazer sofrer, aprendereis a fechar os olhos e os ouvidos para preservar, pelo menos, as ilusões e a paz interior. Mas ainda é muito cedo.

 

A estalagem do Veado Real estava cheia a transbordar, quando Mariana e Jolival entraram e o dono, que corria em todas as direcções, como uma galinha assustada, nem os quis ouvir. Foi preciso que Arcadius se zangasse, detivesse o homem em plena corrida, segurando o guardanapo que ele trazia à volta do pescoço, para o imobilizar com mão segura:

 

Para que são tantas precipitações, meu amigo? Há tempo para tudo e eu agradeço-vos que me escuteis. A Senhora que aqui está acrescentou ele, designando Mariana que, com um gesto lento, tinha tirado o chapéu e libertado os cabelos está, como podeis ver, morta de fadiga, de fome e ensopada. E... como ela é parente de Sua Majestade, sereis certamente amável e arranjar-lhe-eis um local onde possa repousar, restaurar-se e secar-se, nem que seja o vosso próprio quarto.

 

Entre os dedos delgados, mas duros, de Arcadius, o homem tinha passado por todas as cores do arco-íris. A palavra ”Sua Majestade” arrancara-lhe um gemido aterrorizado. Os seus pequenos braços abriram-se e fecharam-se, num gesto desesperado, enquanto pousava na jovem um olhar assustado.

 

Mas, já nem tenho o meu quarto, meu príncipe! Tive de o dar ao ajudante de campo do duque de Rovigo. Neste momento, Madame Robineau, minha esposa, deve estar ocupada a fazer-me uma cama no escritório. Não a posso oferecer à Senhora... ou devo dizer Sua Alteza? acrescentou ele com uma angústia que fez sorrir Jolival.

 

O bom homem interrogava-se febrilmente, se aquela encantadora mulher morena não seria, por acaso, alguma irmã mal conhecida do Imperador. Os Bonaparte eram uma família tão grande!

 

Podeis dizer simplesmente ”Senhora”, mas arranjai qualquer coisa!

 

No momento em que Robineau pensava que seria mais simples desmaiar para escapar àquela aflição, um oficial austríaco, com um elegante uniforme castanho-claro da Landwehr e que observava, com um interesse crescente, o belo rosto pálido de Mariana, aproximou-se e inclinou-se, batendo ligeiramente os calcanhares diante da jovem. Esta, com os olhos fechados, tinha-se encostado à parede, totalmente indiferente à discussão.

 

Permiti que me apresente: Príncipe Clary und Aldringen, enviado extraordinário de Sua Majestade o Imperador da Áustria! Tenho dois quartos à minha disposição nesta estalagem, se a Senhora quiser dar-me o prazer de aceitá-los...

 

Uma exclamação de Robineau interrompeu-o, ao mesmo tempo que a saudação compassada de Jolival.

 

Meu Deus! Monsenhor já chegou? Mas eu não esperava Monsenhor tão cedo! Monsenhor não deveria cear no Palácio?

 

O príncipe austríaco, um rapaz alto, de trinta anos, de fisionomia de traços finos, sob uma cabeleira loura, começou a rir com bom humor.

 

Sim, meu caro, tereis de me arranjar de comer. Não ceio no palácio, porque ninguém lá ceará.

 

Terá o cozinheiro enterrado uma espada no coração? perguntou Jolival com um sorriso.

 

Nada disso. A Corte estava toda reunida no salão nobre esperando passar à mesa, quando o Marechal Duroc veio dizer-nos que Suas Majestades se haviam retirado para os aposentos... e não haveria ceia. Mas agora abençoo este regresso inopinado, que amaldiçoava há um instante, visto permitir-me ser-vos útil, minha Senhora!

 

As últimas palavras dirigiam-se, evidentemente, a Mariana, que, insensível à sua intenção galante, nem se lembrou de agradecer. Do discurso do austríaco tinha retido apenas uma coisa, e a dúvida que ela provocava era tão imperiosa que não pôde deixar de perguntar:

 

Suas Majestades retiraram-se? Isso não quer dizer, suponho...

 

Não ousou terminar. Clary pôs-se a rir de novo.

 

Receio que sim. Parece que o Imperador, mal chegado aqui, perguntou ao Cardeal Fesch, seu tio, se estava realmente casado... ou, se pelo menos, o casamento por procuração de Viena fazia da Arquiduquesa sua mulher.

 

E então? perguntou Mariana com a garganta seca.

 

E então, o Imperador mandou dizer à... Imperatriz que teria a honra de visitá-la no seu quarto, alguns instantes mais tarde, precisamente o tempo de tomar um banho.

 

A brutalidade daquilo que estas palavras, delicadamente irónicas, evocavam, fez empalidecer Mariana até aos lábios.

 

-Assim...disse ela com uma voz tão sumida, que o austríaco a olhou com surpresa e Arcadius com inquietação.

 

Assim... Suas Majestades retiraram-se... e eis-me aqui a tempo de vos servir, minha Senhora. Mas estais muito pálida! Sentis-vos doente? Eh! Robineau, mandai vossa mulher conduzir a Senhora ao meu quarto; é o melhor da casa. Meu Deus!

 

A última exclamação aflita era bem justificada. Bruscamente, abatidas as últimas forças pelo golpe que, sem querer, ele acabava de lhe dar, Mariana vacilara nas pernas e teria caído se Jolival não a tivesse segurado a tempo. Instantes mais tarde, levada por Clary, que insistira em aliviar Jolival de um fardo talvez demasiado pesado para ele, e, precedida por M.me Robineau de vestido de seda e touca de musselina, armada de um grande castiçal de cobre, Mariana inconsciente subia as escadas bem enceradas da estalagem do Veado Real.

 

Quando, quinze minutos mais tarde, Mariana emergiu da feliz inconsciência em que caíra, viu lado a lado a figura de rato de bigodes de Arcadius e um rosto comprido de mulher, que terminava numa cabeleira castanha. Vendo que ela abria os olhos, a dama deixou de lhe banhar a testa com vinagre e constatou com satisfação que ”isso agora ia melhor”.

 

Para dizer a verdade, Mariana, embora tivesse recuperado os sentidos, não se sentia muito melhor, pelo contrário. Estava gelada até aos ossos, sentia grandes ondas de calor e os dentes batiam sem ela querer. Contudo, recordando aquilo que acabara de ouvir, quis levantar-se da cama, onde a tinham estendido toda vestida.

 

Quero ir-me embora! disse, tremendo tanto que as palavras mal se ouviram. Quero ir para a minha casa, já!

 

Com as duas mãos, Arcadius obrigou a jovem a estender-se novamente.

 

Nem penseis nisso! Regressar a Paris a cavalo e com este tempo? Não chegaríeis lá viva, minha querida. Não sou grande médico, mas possuo alguns conhecimentos sobre o assunto e, ao ver as vossas faces tão vermelhas, posso dizer-vos que tendes febre.

 

Que importa? Não posso ficar aqui! Não ouvis?... Estas músicas... estes cantos... Os foguetes que estalam! Não ouvis a alegria da cidade semilouca de felicidade, porque o Imperador meteu na cama a filha do seu pior inimigo?

 

Mariana! suplicou Arcadius alarmado, perante os olhos da amiga. Suplico-vos...

 

A jovem começou a rir com um riso discordante que fazia mal ouvir. Apesar dos esforços de Arcadius, ela saltou do leito, correu até a uma janela, a que se agarrou, afastando os cortinados com raiva. Para além da praça molhada e vazia, o palácio iluminado erguia-se na sua frente, como um desafio, esse palácio, dentro do qual Napoleão apertava a Austríaca nos braços, possuía-a como tinha possuído Mariana, murmurava-lhe talvez as mesmas palavras de amor... Na cabeça escaldante da jovem, o furor e o ciúme misturavam-se à febre e faziam-na sentir as chamas do inferno. A impiedosa memória recordava-lhe cada um dos gestos do amante, cada uma das suas expressões de amor... Oh! poder furar o segredo destas muralhas brancas e insolentes! Saber qual a janela, por detrás da qual, se perpetuava o crime de amor, de que o coração de Mariana era a vítima expiatória!

 

”Mio dolce amore!...” rugiu ela entre dentes cerrados. ”Mio dolce amore!...” Dir-lhe-á também a ela?

 

Arcadius, receando que, na sua loucura, Mariana se pusesse a gritar, não tinha ousado aproximar-se, nem tocá-la, e ordenou baixo à hospedeira aterrada:

 

-Ela está muito doente! Chamai um médico... depressa!

 

Sem esperar que lho repetissem, a mulher enfiou-se pelo corredor com grande ruído de saias arrastadas, enquanto, docemente, Jolival avançava para Mariana. Ela nem o via. Tensa como corda de arco, devorando com as pupilas dilatadas a enorme e branca moradia, parecia-lhe que, de repente, as paredes se tinham tornado de vidro, que podia ver, com essa terrível lucidez do ciúme, levado até ao paroxismo, até ao fundo dum quarto, onde, sob o veludo cor de púrpura e ouro de um imenso dossel, um corpo da cor de marfim apertava outro cuja carne roliça tinha tons de aurora. Mariana, dilacerada, crucificada, esquecera tudo o que a rodeava para ver apenas a cena de amor que facilmente imaginava por a ter vivido muitas vezes. Muito próximo, agora, Arcadius ouviu-a murmurar;

 

Como podes dar-lhe os mesmos beijos que me deste a mim?... São os teus lábios, no entanto! Não te lembras de nada, diz?... Não podes... Não podes amá-la como me amavas! Oh! não... suplico-te... não a apertes assim!... Manda-a embora... Ela traz-te infelicidade! Eu sei... sinto-o! Lembra-te da roda partida nos degraus do calvário! Não podes amá-la... Não, não, não!...

 

Lançara um grito breve, um único, mas era um grito de agonia. E, bruscamente, deixou-se escorregar contra a janela, sacudida por soluços desesperados que, apesar de tudo, aliviavam a perigosa tensão nervosa que tanto assustara Arcadius, ainda há instantes.

 

Ele percebeu que já a podia tocar, que ela não se defenderia. Inclinou-se com gestos de infinita doçura, quase gestos de misericórdia, ergueu-a, mal ousando agarrar o corpo delgado, que tremia e se apoiava a ele, e, com passos pequenos, conduziu-a para a cama. Ela deixou-se levar, sem maior resistência do que uma criança esgotada, demasiado absorvida pela dor para ter consciência do seu ser. Apetecendo-lhe chorar também com pena daquele sofrimento, não merecido, embora procurado, Jolival acabava de estender Mariana na cama, quando a porta se abriu diante de M.me Robineau, seguida do médico. Ao constatar que o dito médico era o próprio Corvisart, o médico do Imperador, Arcadius não teve uma grande surpresa. Depois de um dia, como aquele, já nada o poderia surpreender e, depois, não era de admirar que o médico imperial estivesse também nessa estalagem cheia de pessoas importantes... Era, pelo menos, um grande alívio.

 

Eu estava em baixo disse ele a beber um copo com camaradas, quando ouvi a nossa hospedeira reclamar um médico em grandes gritos. O príncipe de Clary seguiu-a e fez-lhe várias perguntas. Foi ele que me disse quem era a doente. Quereis dizer-me o que faz aqui e neste estado a ”Signorina Maria-Stella”?

 

Examinando, com um olhar severo, Mariana, que continuava a soluçar, o médico, com os braços cruzados, dominava Arcadius com a sua pesada silhueta vestida de negro. Era uma força da natureza, aquele homem, e Jolival estava muito cansado para ter uma discussão. Contentou-se em fazer um gesto de impotência.

 

Ela é vossa doente disse ele com um encolher de ombros, já a deveríeis conhecer um pouco, doutor. Quis vir a todo o preço.

 

Não a devíeis ter deixado...

 

Gostaria de vos ver no meu lugar. Sabei que seguimos o cortejo da Arquiduquesa desde Soissons! Quando Mariana soube o que se passava no palácio, teve uma crise nervosa.

 

Todo este caminho, e debaixo de chuva! Mas é uma loucura. Quanto ao que se passa no palácio, não é razão para adoecer! Meu Deus! Uma crise de nervos, porque Sua Majestade quis concluir o assunto sem tardança?

 

Enquanto os dois homens trocavam estas palavras, M.me Robineau, com a ajuda da criada, tinha despido uma Mariana tão dócil como um bebé, e tinha-a metido na cama que a criada aquecera apressadamente com uma braseira de cobre. Os soluços tinham acalmado progressivamente, mas a febre, em que a jovem ardia agora, parecia aumentar de minuto a minuto. Contudo, o seu espírito estava mais tranquilo. A violenta crise de desespero, que a abalara, tinha sossegado a grande tensão do seu espírito e foi com uma espécie de indiferença e os olhos semicerrados que ela escutou a grossa voz de Corvisart falar-lhe do risco que existe em percorrer as estradas sob um tempo glacial.

 

Vós possuís uma carruagem, segundo me parece, e excelentes cavalos! Que mosca vos picou para fazerdes todo o trajecto a pé com um tempo destes?

 

Gosto de montar a cavalo! disse Mariana amuada e decidida a não dar a conhecer as suas razões profundas.

 

Mas, vejamos! ripostou o médico. Que vai dizer o Imperador quando souber das vossas explorações e...

 

Com vivacidade, a mão de Mariana saiu debaixo do lençol e pousou sobre a de Corvisart.

 

-Mas ele não saberá! Doutor, peço-vos que não lhe digais! Aliás... é provável que isso não tivesse qualquer interesse para Sua Majestade.

 

De repente, Corvisart deu uma gargalhada homérica.

 

Já vejo. Não quereis que o Imperador saiba, mas se tivésseis a certeza que ele ficaria zangado ao ter conhecimento daquilo que fizestes, enviar-me-íeis imediatamente... Está bem, acalmai-vos. Dir-lhe-ei e ele ficará furioso.

 

Não acredito! respondeu Mariana com aborrecimento. O Imperador está...

 

... ocupado a tentar fazer um herdeiro! interrompeu o médico brutalmente. Minha querida amiga, não vos compreendo. Sabeis no entanto que esse género de actividade era inevitável, visto que o Imperador casou-se para isso.

 

Poderia mostrar menos pressa! Por que razão, já esta noite... meteu a arquiduquesa na cama? acrescentou Corvisart, que parecia decidido a brincar às frases interrompidas. Mas porque tem pressa, muito simplesmente. Casou, quer um herdeiro e põe imediatamente mãos à obra. Nada de mais natural!

 

Mas ele não está verdadeiramente casado! O verdadeiro casamento deve ter lugar dentro de alguns dias, em Paris. Esta noite, o Imperador deveria...

 

... ir dormir à Chancelaria, eu sei! Foi uma simples navalhada no contrato, e não há razão para ficardes nesse estado. Meu Deus! Olhai para a vossa figura num espelho. Pareceis-vos mais com um cão de água, do que com uma cantora amada e adulada, e pensai um pouco nessa rapariga gorda, embora fresca, que vai dar-nos um príncipe herdeiro. Tendes a vossos pés todos os homens, ou quase todos! Olhai, até esse austríaco que, mal desembarcado, espera ansiosamente, ao fundo das escadas, por notícias vossas! Deixai pois o Imperador desempenhar a sua função de marido. Isso em nada prejudicará o vosso amante, se me permitis esta brutalidade.

 

Mariana não respondeu. Para quê? Nenhum homem seria capaz de a compreender nesse momento e, na verdade, era pedir o impossível, pois era assim a natureza profunda dos homens. Ela não era tola, nem Fortunata Hamelin muito discreta, para pensar que fora a primeira mulher a ter sabido prender o Senhor da Europa.

 

Napoleão adorava a primeira esposa e tinha-a abandonado e enganado. Era essa a própria essência do homem, essa necessidade de mudança, essa irresistível tendência para a poligamia, ainda que estivesse muito apaixonado. Contudo, mesmo quando se esforçava por filosofar, Mariana não conseguia acalmar a dor surda do seu coração. A forma física da mulher, que apertava nos braços, possuía tão pouca importância a seus olhos? Nesse caso porque a escolhera a ela, Mariana? Até que ponto soubera tocar as fibras profundas da sua alma? Que lugar ocuparia entre a recordação de Josefina, a da loura Maria Welewska, por quem, segundo se dizia, tinha estado tão loucamente apaixonado em Varsóvia, e as outras amantes?

 

Pensando que ela adormecera, Corvisart puxou suavemente os cortinados do leito e retirou-se acompanhado de Arcadius. Mandara dar-lhe uma poção, prescrevera sinapismos, repouso e calor. Mariana ouviu-o murmurar no limiar da porta:

 

A crise de nervos está mais calma e creio que o resfriamento não terá importância. Ficará certamente um pouco abatida mas, no caso presente, é bom sinal. Pelo menos, tranquilizar-se-á.

 

Debaixo dos cobertores, Mariana surpreendeu-se a rir baixinho! Calma, ela? Tranquila, quando sentia fervilhar em si novas forças combativas, aguçadas talvez pela febre? Não era mulher para lamentar muito tempo a sua sorte. Gostava da luta e, nessa noite, nupcial para a outra, descobria, de repente, novas razões de ser para si própria: A aversão, uma aversão amarga, violenta, muito perto do ódio que sentia pela Austríaca loura e rosada, como uma grande borla indolente, e, em seguida e muito naturalmente, a necessidade de entrar em luta com ela, medir o seu poder sobre o espírito, o coração e os sentidos de Napoleão.

 

Porque não tentar pagar na mesma moeda? Porque não experimentar sobre ele o mais velho meio que o Diabo colocou no arsenal feminino; o ciúme que há uma semana a torturava tão fortemente? Ela era já célebre. Paris inteiro conhecia agora o seu nome, a sua voz, o seu rosto até. Tinha à disposição todos os meios de fazer corn que falassem de si. Desde Fouché, de qualquer modo seu servidor, até aos artigos dos jornais e os subtis ditos de Fortunata. Se associassem, com bastante frequência, o seu nome ao de outro homem, como reagiria o Imperador? Talvez fosse interessante saber.

 

”Toda a Guarda Imperial está apaixonada por ti”! Tinha dito Fortunata. Quanto a Corvisart, acabava de notar que quase todos os homens se interessavam pela sua beleza. Seria estúpido não se servir deste trunfo, para tentar ver mais claro no mistério, que consistia para ela o coração de Nopoleão. É certo que seria apenas uma aparência e nunca uma realidade.

 

Quando Arcadius, no bico dos pés, entrou no quarto para ver se tudo ia bem, ela bombardeou-o com o brilho verde do olhar:

 

Esse austríaco... esse príncipe continua ali?

 

Sim...! Pediu-me insistentemente para vir ver se não teríeis necessidade de qualquer coisa e fez ao doutor um interrogatório cerrado. Porque perguntais isso?

 

Porque ele se mostrou muito amável e não lhe agradeci como devia. Fazei-o por mim agora, Arcadius, e dizei-lhe que amanhã ficarei encantada por recebê-lo.

 

Jolival não esperava este pedido. Abriu muito os olhos:

 

Fá-lo-ei, sem dúvida, mas...

 

Mariana não lhe deu tempo para terminar. Meteu-se mais sob os lençóis e virou-lhe as costas ostensivamente.

 

Boa-noite, meu amigo. Ide repousar-vos. Precisais bem e é muito tarde.

 

Efectivamente, soava a meia-noite na igreja vizinha, e a vontade de dormir de Mariana não era fingida.

 

A febre, que lhe fazia palpitar as veias, provocava-lhe um adormecimento, prelúdio do esquecimento misericordioso do sono. Amanhã receberia o austríaco, seria amável com ele. Talvez ele lhe oferecesse a sua carruagem até Paris. Em Paris, Mariana sentir-se-ia mais segura para dirigir aos dois homens que ocupavam a sua vida a batalha que tencionava ganhar: batalha da liberdade contra Francis Cranmere, batalha de amor contra Napoleão.

 

Satisfeita com esta resolução, Mariana fechou os olhos e mergulhou num sono agitado, entrecortado de sonhos incoerentes. No entanto, coisa estranha, nem o Imperador, nem Francis fizeram parte deles. No meio de um pesadelo horrível, Mariana debatia-se no inferno verde de uma espécie de floresta, que atirava sobre ela estranhos tentáculos prateados de lianas floridas, cujas corolas inchavam até se tornarem goelas monstruosas. Quis gritar, mas nenhum som saiu dos seus lábios. Quanto mais procurava ajuda, mais se acentuava a sensação de estrangulamento. Ao mesmo tempo a floresta verde inchava, subia ao assalto da sua boca, submergia-a para se transformar, no instante seguinte, num oceano desenfreado, cujas vagas gigantes passavam sobre a sua cabeça. Mariana já não tinha forças, ia afundar-se, quando das profundidades tenebrosas surgiu uma mão, que cresceu, cresceu e, envolvendo-a num quente abraço, trouxe-a, de repente, para uma grande luz. Uma silhueta de homem apareceu, de repente, parecendo vir de um horizonte fulgurante, e Mariana, bruscamente, reconheceu Jason Beaufort. Viu também que ele a olhava com uma piedade eivada de cólera.

 

Porque amais tanto a infelicidade - disse ele porquê?... porquê?... porquê?...

 

A voz baixou de tom, decresceu ao longe, até não ser senão um sopro, enquanto a silhueta, envolvida numa capa negra agitada, se transformava num pássaro, voando através do céu cor de púrpura.

 

Com um grito e um soluço, Mariana acordou. O quarto, cujo fogo se apagara na chaminé, estava apenas iluminado por uma lamparina. Lá fora nada se ouvia, somente o ruído irritante duma chuva torrencial sobre os vidros e o pavimento. Na cama, Mariana teve um arrepio. Estava coberta de suor, mas a febre parecia ter desaparecido.

 

Incapaz de voltar a adormecer no leito molhado, ergueu-se, tirou os lençóis húmidos e a camisa de noite colada ao corpo e, nua, enrolou-se nos cobertores, deslizando sob o enorme edredão vermelho e deitou-se sobre o colchão. Não virara sequer a cabeça para a forma branca do palácio. O estranho sonho ainda lhe ocupava o espírito e deixara-lhe uma sensação de desgosto. Havia muito tempo que não pensava no americano, e parecia-lhe, de repente, que teria suportado mais facilmente a sua prova actual, se ele ali estivesse, pois, apesar de tudo o que os tinha separado, aprendera a gostar do clima que ele sabia criar; uma força tranquila, o gosto da aventura, até essa lógica friamente realista que outrora tanto a ferira. Com um sorriso amargo, pensou que o único homem com quem teria talvez sentido um verdadeiro prazer em despertar o ciúme de Napoleão era justamente Jason. Mas voltaria a vê-lo? Quem poderia dizer em que ponto do Globo vogava àquela hora o seu belo navio novo... um navio cujo nome nem conhecia.

 

O melhor era não pensar mais nele. Aliás, para aquilo que queria fazer, o conde austríaco serviria muito bem ou qualquer outro dos seus admiradores.

 

Com um suspiro, Mariana voltou a adormecer, e desta vez sonhou com um grande navio, que com todas as velas abertas vogava sobre um mar cinzento. Um navio, cuja proa tinha o perfil de falcão de Jason Beaufort.

 

                                                CASAMENTO IMPERIAL

 

Na tarde do dia seguinte, Mariana regressou a casa na carruagem do príncipe Clary und Aldringen, deixando para trás Arcadius Jolival para se ocupar dos cavalos. Ainda não estava completamente recomposta do violento acesso de febre que a acometera após a cavalgada, mas sentia uma pressa febril em abandonar Compiègne. A simples vista do palácio era-lhe tão insuportável que teria partido, se fosse preciso, a cavalo e debaixo de chuva para fugir à atmosfera duma cidade, onde desde a madrugada não havia outro ruído além dos comentários à infracção, sem precedentes, feita por Napoleão ao protocolo.

 

Perante a sua agitação, Arcadius, logo de manhã, pusera-se à procura duma carruagem e, para dizer a verdade, não tivera de ir mais longe do que ao pátio da estalagem. Leopoldo Clary, que o Imperador conservara junto de si até à chegada da nova esposa, deveria ir a Paris o mais depressa possível para entregar ao seu embaixador, o príncipe de Schwartzenberg, alguns despachos do seu soberano. Ao saber que a bela cantora, cuja beleza tanto admirara na véspera à noite, procurava uma carruagem para regressar a casa, o jovem austríaco ficara louco de alegria.

 

Dizei a Mademoiselle Maria-Stella que os meus bens e eu próprio estamos à sua disposição. Terei um enorme prazer em que ela nos utilize como lhe aprouver.

 

Uma hora mais tarde, Mariana abandonava Compiègne ao lado do jovem diplomata, enquanto Jolival se encaminhava melancolicamente para as cavalariças. O fiel mentor de Mariana estava perplexo. A súbita amabilidade manifestada pela jovem a esse austríaco, de quem, ainda na véspera, ignorava o nome, não lhe parecia de bom augúrio. Era de tal modo pouco conforme à reacção habitual da amiga que não podia deixar de se interrogar sobre aquilo que essa atitude encobria.

 

Entretanto, através da floresta húmida, a berlinda de Clary rolava na direcção de Paris, a grande velocidade e, novamente, sob a chuva. Esta recomeçara a cair durante a noite e não parecia decidida a parar. O céu estava pesado e dum cinzento-amarelado desencorajante, mas nenhum dos ocupantes da carruagem parecia dar-lhe qualquer importância. Mariana, ainda cansada, tinha-se envolvido na grande capa preta com capuz, que Jolival lhe arranjara, e, encostada ao estofo de tecido vermelho, olhava a chuva sem a ver, com o espírito ocupado pelas recordações da véspera. Revia o rosto maravilhado de Napoleão, quando abrira a portinhola da carruagem e descobrira as faces arredondadas da arquiduquesa sob as absurdas penas de arara. Revia também o modo como ele lhe estendera os braços para a ajudar a descer no pátio de Cornpiègne. A chuva também tem os seus fantasmas. A daquela manhã possuía continuamente dois, sempre os mesmos... Quanto a Clary, contemplava em silêncio o fino perfil da companheira, pálido de fadiga, as grandes olheiras que rodeavam os seus olhos verdes e sobre as quais as grandes pestanas pretas produziam uma sombra tão comovedora; por fim, a beleza perfeita das suas mãos, que desenluvadas repousavam, como flores brancas, sobre o tecido escuro da capa. O diplomata não podia deixar de se surpreender pelo aspecto tão evidentemente aristocrático da cantora. Uma italiana, uma simples rapariga de teatro com o porte de duquesa e mãos de rainha? E tão triste, tão misteriosa, como se no fundo do coração conservasse o peso dum segredo... Esse segredo pressentido intrigava tanto Clary, como a sua beleza o impressionava e o incitava a usar da maior discrição para com a companheira. Durante as vinte léguas que percorreram juntos, ele só lhe dirigiu a palavra para se certificar que ela não tinha frio, ou não desejava parar um momento, e ficava absurdamente feliz quando ela lhe sorria.

 

Na verdade, Mariana apreciava essa atitude e até lhe estava reconhecida. Encerrada no seu desgosto, eivado de cólera, ela sentia-se agradecida a Clary por essa extrema discrição. Aliás, não havia necessidade que ele conversasse para avaliar o efeito que produzia nele. Os olhos cinzentos do jovem falavam eloquentemente, embora a boca ficasse fechada.

 

Quando entraram em Paris, pela porta Saint-Denis, a noite tinha caído há muito tempo, mas Clary não deixava de olhar Mariana, mesmo quando o seu rosto não era senão uma mancha pálida na obscuridade da carruagem. Ardia em desejo de saber onde habitava a sua bela companheira, mas, fiel à decisão de ser discreto, contentou-se em declarar:

 

O nosso caminho passa pela embaixada. Pedir-vos-ei autorização, Minha Senhora, para vos deixar. A minha carruagem levar-vos-á seguidamente onde desejardes.

 

O olhar dizia tão bem aquilo que a boca calava que Mariana compreendeu a linguagem muda e sorriu com um bocadinho de malícia.

 

Agradeço-vos, Príncipe, por tanta cortesia. Eu vivo no Hotel de Asselnat, na Rua de Lille... e sentir-me-ei feliz de vos receber, se quiserdes fazer-me uma visita.

 

A carruagem parou diante da embaixada austríaca, situada na esquina da Rua do Mont-Blanc com a Rua de Provence. Vermelho de emoção, o diplomata inclinou-se sobre a mão que lhe estendiam e aí pousou os lábios.

 

Amanhã, terei a alegria de ir oferecer-vos os meus serviços, minha Senhora, já que me autorizais. Espero encontrar-vos completamente restabelecida.

 

Mariana sorriu de novo. Os lábios do jovem tinham tremido sobre a sua mão. Estava certa do seu poder sobre ele e esse poder tencionava usá-lo segundo a sua fantasia. Deste modo, foi com muito mais optimismo que entrou em casa. Aí encontrou Adelaide em companhia de Fortunata Hamelin.

 

Instaladas no salão de música, as duas mulheres tagarelavam com animação, quando Mariana surgiu. Não a tinham ouvido vir e olharam-na com igual admiração, mas foi M.me Hamelin quem primeiro se recompôs.

 

Ah, mas donde saístes? exclamou correndo a abraçar a amiga. Sabes que te procuramos há vinte e quatro horas?

 

(1) A actual Rua Chaussée d’Antin.

 

Procuram-me? disse Mariana, desfazendo-se da capa que atirou sobre a harpa dourada. Mas quem? E porquê? Sabíeis bem Adelaide que eu tinha de fazer na Província.

 

Justamente! exclamou a velha senhora com indignação Mantivestes para mim uma notável discrição, motivada aliás pelo facto de que fostes chamada fora de Paris para o serviço do Imperador. Mas podeis pensar como fiquei surpreendida quando um mensageiro do mesmo Imperador veio aqui, ontem, perguntar por vós da parte de Sua Majestade!

 

Com as pernas a tremer, Mariana deixou-se cair sobre a banqueta do piano e ergueu para a prima um olhar estupefacto.

 

Um mensageiro do Imperador?... Quereis dizer que ele me mandou buscar? Mas porquê?

 

Para cantar, evidentemente! Não sois cantora, Mariana Asselnat? lançou Adelaide com um ressentimento que fez sorrir Fortunata.

 

Na nova vida de Mariana, sem dúvida o que mais repugnava à aristocrática senhora era que a prima cantasse para ganhar a vida. Gentilmente, para evitar as reivindicações da dama idosa, a crioula foi sentar-se sobre a banqueta e envolveu com o braço os ombros da amiga.

 

Ignoro o que tinhas de fazer disse ela e não te pergunto os teus segredos. Mas uma coisa é certa. Ontem o Marechal do Palácio mandou-te pedir, oficialmente, para ires a Compiègne cantar hoje perante a corte...

 

Mariana pôs-se vivamente em pé sob o impulso duma brusca cólera.

 

Perante a corte ou perante a Imperatriz?... porque ela é já Imperatriz, sabes? e mesmo antes de as cerimónias do casamento terem tido lugar...

 

Que queres dizer? perguntou M.me Hamelin inquieta por um furor, tão súbito, como mal contido.

 

Que Napoleão meteu a Austríaca, esta noite, na sua cama! Que dormiu com ela, percebeste? Não pôde esperar pelo casamento civil nem pela bênção do Cardeal! Ela agradou-lhe de tal modo que não pôde conter-se, segundo o que me disseram. E ousa... ousa ordenar-me que vá cantar diante dessa mulher! Eu que ainda ontem era sua amante!

 

Que continuas a ser a sua amante corrigiu plácidamente Fortunata. Minha querida mete isto bem na cabeça: para Napoleão, pôr face a face a amante e a esposa legítima nada tem de chocante ou de anormal. Lembro-te que escolheu várias vezes as suas belas companheiras entre as leitoras de Josefina, que a nossa imperatriz foi, frequentemente, obrigada a aplaudir. M.”” George... a quem aliás Napoleão oferecera diamantes, que agradavam à sua mulher, e, que antes da tua chegada, não havia um bom concerto na corte sem a Grassini. A nossa Majestade corsa tem qualquer coisa de sultão. Secretamente, deveria ter gostado de observar o teu comportamento em face da Vienense, e teve de se contentar com o da Grassini!

 

A Grassini?

 

Sim, a Grassini. O enviado de Duroc tinha ordens, no caso de a grande Maria-Stella não estar disponível, ir buscar a cantora da corte. Tu não estavas; foi, portanto, a copiosa Giseppina quem teve de cantar hoje em Compiègne. Nota, na minha opinião foi melhor assim em certo sentido. Tratava-se de um dueto com o horroroso Crescentini, o castrado favorito de Sua Majestade. Tu detestarias logo esse pateta pintalgado, enquanto a Grassini o adora! Direi mesmo mais, ela admira-o como admira tudo aquilo que Napoleão honra e... ele prefere Crescentini!

 

Pergunto a mim mesma porquê! exclamou Mariana com o espírito ausente.

 

Fortunata deu uma gargalhada, o que teve a vantagem de distender o ambiente.

 

Isso é que é divertido! A dita Grassini, a quem fizeram essa pergunta, respondeu sem rir. ”Esqueceis a sua ferida!”...

 

Adelaide, sem rancor, fez eco à alegria da crioula, mas Mariana contentou-se em sorrir. Reflectia e, feitas as contas, não estava descontente por ter estado ausente. Não se via, realmente, a fazer a reverência diante da ”Outra” e dando a réplica a qualquer dueto de amor a semelhante homem, que, apesar da sua voz excepcional, só a poderia ter coberto de ridículo. Além disso, era demasiadamente mulher para esperar que Napoleão se interrogaria, pelo menos por alguns segundos, onde ela estaria para não ter obedecido. No fundo, tudo estava bem assim. Quando aquele que amava a voltasse a ver, seria, pelo menos, ao lado de um homem susceptível de lhe dar alguma inquietação... admitindo que ela possuía o poder de lha inspirar. Mariana sorriu a esta ideia, o que provocou uma observação de Fortunata.

 

O que há de agradável em ti, Mariana, é que se pode contar seja o que for sem conseguir reter a tua atenção. Em que pensavas ainda?

 

Em quê não, em quem? Pois, nele! Sentai-vos as duas. Vou contar-vos o que fiz nestes dois dias. Mas, por amor do céu, Adelaide, mandai-me servir qualquer coisa. Morro de fome.

 

Atacando, com estranho vigor para uma mulher tão doente na véspera à noite, a copiosa refeição que Adelaide fez sair das cozinhas como por magia, Mariana contou a sua aventura, tendo, todavia, cuidado em omitir tudo aquilo que pudesse ser sombrio ou triste. Narrou tudo com um humor cruel para si própria e que não fez rir as duas ouvintes. Fortunata estava até muito séria quando ela terminou.

 

Mas, enfimnotou ela esse encontro era talvez importante. Poderias, ao menos, ter enviado Jolival.

 

Eu sei, mas não me apetecia separar-me dele. Sentia-me... tão infeliz, tão abandonada e, além disso, estou persuadida de que foi uma armadilha.

 

Mais uma razão para te certificares. E se fosse o teu... teu marido?...

 

Fez-se um silêncio. Mariana pousou o copo que acabava de esvaziar, mas com tanta falta de jeito que partiu o pé. Tornara-se tão pálida, de repente, que Fortunata teve pena.

 

É apenas uma hipótese acrescentou delicadamente.

 

Mas quem teria podido verificar? Contudo, não vejo bem por que me teria feito ir a um castelo em ruínas e confesso que não pensei nele, mas antes naquela gente que, já uma vez, me raptou. Que posso fazer agora?

 

Aquilo que deverias ter feito logo: prevenir Fouché e esperar. Seja qual for a natureza da tentativa que pensavam fazer contigo, armadilha ou verdadeiro encontro, aposto que voltarão a aparecer. Mas permite-me, em todo o caso, que te felicite.

 

Porquê?

 

Pela tua nova conquista austríaca. Decidiste-te finalmente a seguir os meus conselhos e estou encantada. Verás como é mais fácil suportar a infidelidade de um homem quando se tem outro à mão.

 

Não vás tão depressa protestou Mariana rindo. Não tenho a intenção de oferecer ao príncipe Clary um lugar de substituto, mas simplesmente mostrar-me com ele. Queres crer que o que mais me interessa nele é a sua qualidade de austríaco? Parece-me divertido prender pelo beiço um compatriota da nossa nova soberana!

 

Fortunata e Adelaide começaram a rir, formando um belo conjunto.

 

É assim tão feia, como dizem? perguntou com animação M.me de Asselnat, depenicando nos frutos secos, servidos à prima.

 

Mariana não respondeu imediatamente, fechou os olhos como para rever melhor o rosto da intrusa. Um desdém cruel fez-lhe descair os cantos da boca num sorriso que era a própria essência da sua condição de mulher.

 

Feia? Não. Para falar verdade, não saberei dizer-vos com exactidão como ela é qualquer coisa!

 

Pobre Napoleão suspirou Fortunata com uma perfeita hipocrisia. Não merecia isso!... Uma mulher qualquer para ele que só ama o excepcional!...

 

São os Franceses, se quereis a minha opinião, que não mereciam isso exclamou Adelaide. Uma Habsburgo só pode trazer-lhes catástrofes.

 

Eles não parecem ter receio disse Mariana com um risinho. Deveríeis ter ouvido as aclamações nas ruas de Compiègne!

 

Em Compiègne, talvez. respondeu Fortunata, sonhadora. Estão privados dos grandes espectáculos da corte, com excepção das caçadas. Mas qualquer coisa me diz que Paris não será tão caloroso. A chegada desta Austríaca não entusiasma senão os salões irredutíveis que vêem nela a Nemesis do Corso e o anjo vingador de Maria Antonieta. Mas o povo está longe de sentir-se encantado. Primeiro, adorava Josefina e, depois, não gosta da Áustria, e não acredito que seja por sentir remorsos!

 

Na segunda-feira seguinte, 2 de Abril, ao contemplar a multidão que enchia a praça da Concórdia, Mariana pensava que Fortunata poderia ter razão. Era uma multidão endomingada, curiosa e agitada, mas não era uma multidão alegre. Esperando a passagem do cortejo nupcial do seu Imperador, estendia-se ao longo dos Campos Elísios, comprimia-se entre os oito pavilhões da esquina da praça e as paredes do Garde-Meuble e do Hotel da Marinha, mas não havia no ar a febre alegre dos grandes dias.

 

No entanto, estava um lindo dia. De repente, a chuva desesperadora, que parecia ter-se instalado para sempre em França, cessara de madrugada. Um Sol primaveril afastara as nuvens e brilhava com novo encanto num céu muito lavado e azul. Isto permitira a súbita eclosão dos chapéus de palha floridos nas cabeças das parisienses, vestidos de cores suaves e calças claras nos companheiros. Mariana sorriu perante aquele surto de elegância. Era como se o povo de Paris tivesse querido mostrar à recém-chegada que se sabiam vestir em França.

 

Instalada na sua carruagem, parada perto de um dos cavalos de Marly, em companhia de Arcadius, Mariana dominava o conjunto da decoração. Havia bandeiras e lampiões por toda a parte, até nas hastes do telégrafo de M. Chappe, colocadas sobre o telhado do Hotel da Marinha. As grades das Tulherias tinham sido douradas de novo, as fontes jorravam vinho e, para que todos pudessem tomar parte na boda imperial, imensos bufetes tinham sido erigidos ao abrigo de grandes barracas de riscas vermelhas e brancas, sob as árvores do passeio La Reine. À volta da vasta praça, laranjeiras com frutos rutilantes estavam prontas para a iluminação da noite. Logo que a cerimónia nupcial fosse celebrada no grande salão quadrado do Louvre, os bons súbditos do Imperador poderiam devorar a seu bel-prazer, 4800 empadões, 1200 línguas, 1000 pernas de carneiro, 250 perus, 360 capões, outras tantas galinhas, alguns 3000 chouriços e uma quantidade de outras coisas.

 

Esta noitesuspirou Jolival, cheirando delicadamente uma pitada de fino tabaco. Suas Majestades reinarão sobre um povo de bêbados e não se poderão contar as indigestões.

 

Mariana não respondeu. Aquela atmosfera de bazar distraía-a e irritava-a ao mesmo tempo. Um pouco por toda a parte nos Campos Elísios, erigiam-se barracas de divertimentos, atracções de todos os géneros, pequenos teatros ao ar livre, bailes, jogos de malha ou de luta, em que, desde a véspera, os Parisienses tentavam esquecer que lhes davam uma imperatriz que não lhes convinha. Aliás em redor da sua carruagem, como em redor das outras vindas até ali para ver, ouviam-se fortes gracejos, que traduziam bem o secreto estado de alma dos Parisienses. Efectivamente, ninguém ignorava já o que se passara em Compiègne e sabia-se que Napoleão ia levar ao altar uma mulher com quem dormia há uma semana, embora o casamento civil só tivesse tido lugar na véspera em Saint-Cloud.

 

Era meio-dia e o canhão soara havia uma boa meia hora. Na extremidade da longa perspectiva, ainda quase virgem, dos Campos Elísios, ao longo dos quais se estendiam, numa espuma verde-pálido, as ternas folhas novas dos castanheiros, o sol caía a pino sobre o enorme arco de triunfo de madeira e de tela pintada que tinham construído com grande custo para suporte da construção, ainda longe de terminada, do monumento à glória do Grande Exército. E, sob os raios primaveris, via-se o seu cimo ornamentado de bandeiras novas e a inscrição que proclamava:

 

”A NAPOLEÃO E A MARIA LUISA, A CIDADE DE PARIS”

 

Este entusiasmo era, aliás, bastante engraçado, pensou Mariana, quando se sabia do número de greves, reivindicações e movimentos diversos de que a sua construção tinha sido objecto. Mas a jovem não achava engraçado e não sentia qualquer prazer ao ver ligados os nomes de Napoleão e Maria Luísa.

 

Ao longo do percurso, podiam ver-se as plumagens vermelhas sobre os altos chapéus de pêlo dos granadeiros da Guarda, substituídos nas ruas laterais pelos bonés pretos de penacho verde e vermelho dos Caçadores. Uma canção em voga em Paris era tocada incessantemente pelas orquestras disseminadas um pouco por toda a parte. Chamava-se ”Onde se poderá estar melhor do que no seio da família”, e Mariana ficou logo irritada. Tocarem-na no dia em que Napoleão desposara a sobrinha de Maria Antonieta era uma ideia estranha, e os tiros de canhão davam-lhe um contraponto bizarro.

De repente, a mão de Arcadius, enluvada de pele de camelo clara, pousou sobre a de Mariana.

 

Não vos mexais e, sobretudo, não vos vireis bruscamente. murmurou. Mas gostaria que olhásseis discretamente para a carruagem que acaba de se colocar ao lado da nossa. Tem um homem e uma mulher. Reconhecereis facilmente a mulher, tal como eu, mas o homem nunca o vi. Posso dizer-vos que tem o rosto comprido, muito belo... e uma cicatriz que lhe atravessa a face esquerda, uma cicatriz delgada como a lâmina de uma espada...

 

Fazendo um grande esforço, Mariana conseguiu não se sobressaltar, mas, sob a de Jolival, a sua mão estremeceu. Bocejou com afectação, pondo a outra mão na frente da boca, como se a longa espera, imposta pelo cortejo nupcial, a aborrecesse. Depois, muito lenta e naturalmente virou a cabeça de modo que a carruagem vizinha entrasse no seu campo de visão.

 

Era um ”cabriolet” amarelo e preto, muito novo e elegante, com a chancela de Keller, o dono das carruagens dos Campos Elísios. Estava ocupado por duas pessoas. Na mulher idosa, soberbamente vestida de veludo negro e pele de marta, Mariana reconheceu a sua velha inimiga Fanchon Flor-de-Lis, mas o companheiro atraiu imediatamente o seu olhar e se, ao reconhecê-lo, o seu coração bateu mais violentamente, não foi de surpresa, mas sim com uma desagradável emoção muito próxima da repulsa. Depois da descrição de Jolival, esperava realmente identificar Francis Cranmere.

 

Desta vez não restava qualquer dúvida; era bem ele e não um fantasma criado pela sua imaginação agitada pela tensão nervosa duma noite de estreia. Mariana revia os traços muito puros, escondidos por um perpétuo aborrecimento, a testa teimosa, o queixo um pouco pesado enterrado nas pregas da alta gravata de musselina, a irrepreensível elegância de um corpo bem constituído, embora liberto até ali da gordura excessiva devido a uma prática intensa de desportos. O seu fato era uma admirável sinfonia cinzenta, onde se destacava a mancha escura de um colarinho de veludo preto.

 

Devem ter-nos seguido murmurou Jolival. Iria jurar que estão aqui só por causa de nós! Vede como esse homem vos olha. É ele, não é?... É... o vosso marido?

 

É mesmo ele respondeu ela com uma voz curiosamente calma, tendo em conta a tempestade que crescia no seu peito.

 

O olhar verde, altivo e de desprezo de Mariana encontrou o olhar cinzento de Francis e susteve-o sem fraquejar. Descobria, com satisfação, que, ao encontrá-lo face a face, a vaga angústia, que a assaltara desde a sua aparição no teatro se desvanecia. Nada receava, senão um perigo impreciso, inexplicável e fugidio. O desconhecido provocava-lhe mal-estar, enquanto um combate frente a frente a deixava em plena posse dos seus meios. Possuía demasiada coragem natural para não escolher, em todas as situações, a luta leal.

 

Nem pestanejou ao observar o sorriso trocista com que Francis e a companheira a envolviam. Mal se admirava por vê-los juntos e encontrar, vestida como uma duquesa, a terrível velha da cave do Homem Armado. Arcadius descrevera-lhe, já há muito tempo, as diferentes artimanhas da antiga pensionaria do Parque dos Veados. Sabia-a fingida, perigosa, bem armada, uma espécie de Proteia fêmea, que não ficaria surpreendida de encontrar num salão das Tulherias. Mas não tencionava discutir os seus assuntos na presença de Fanchon Flor-de-Lis, embora ignorasse por que alquimia Francis entabulara relações com a Desormeaux e, até que ponto, ele lhe fizera confidências sobre as suas relações passadas. Mariana possuía muito amor-próprio, para aceitar a ingerência, na sua vida privada, de uma mulher outrora marcada pela mão do carrasco. Como com aquele género de criatura nunca se podia adivinhar quais iriam ser as suas reacções, a jovem decidiu ceder lugar, embora o seu maior desejo fosse acabar de uma vez para sempre com Lord Cranmere.

 

Inclinava-se já para ordenar a Gracchus-Hannibal, que, na sua libré nova, tomava ares soberbos no banco de cocheiro, que voltasse para trás e a conduzisse a casa, quando a portinhola se abriu de repente e Francis apareceu. Com o chapéu na mão, saudava-a com uma insolente afectação de respeito.

 

Posso ter a felicidade de oferecer as minhas homenagens a rainha de Paris? disse ele num tom ligeiro.

 

Francis sorria, mas o sorriso não lhe chegava aos olhos, que, duros como a pedra, devoravam a jovem muito pálida sob o grande chapéu de seda lilás, enfeitado com rendas, a condizer com a elegante ”toilette”.

 

Fazendo um gesto vivo, com a mão enluvada, reteve Arcadius, que se preparava já para repelir o visitante:

 

Deixai, meu amigo! Isto é comigo.

 

Depois, num tom de voz que traía a sua emoção, perguntou com dureza:

 

Que quereis?

 

Já vos disse, oferecer as minhas homenagens à mais bela dama, conversar um momento, se vos agradar.

 

Não me agrada respondeu Mariana com arrogância. Se tendes qualquer coisa para me dizer, escrevei ao Senhor de Jolival, que se encarrega do meu correio e dos meus encontros. Ele vos dirá quando vos posso receber. Não se conversa no meio de uma multidão. A minha direcção é...

 

Eu conheço a vossa direcção e fico lisonjeado por preferirdes os encantos de um encontro a sós, mas recordo-vos, minha querida ironizou Francis, que a melhor forma de estar isolados é precisamente no meio de uma grande multidão e esta aumenta a todo o instante. Comprime-nos de tal forma que será mesmo impossível sairmos daqui, enquanto não se dispersar. Receio que tereis de me suportar, quer queirais ou não. Temos de falar dos nossos assuntos, não é verdade?

 

Com efeito, a multidão tornara-se tão densa que interditava qualquer movimento à carruagem, assim como às que se encontravam no mesmo local. Ouvia-se um burburinho, dominado de longe pelos ecos das orquestras, mas que permitia, no entanto, a conversa. Francis, de pé junto da portinhola, meteu a cabeça no interior da carruagem e designou Jolival.

 

Se esse Senhor quisesse fazer o favor de me ceder o lugar junto de vós, durante alguns instantes... começou ele.

 

Mariana interrompeu-o secamente, sem retirar a mão que colocara sobre a do amigo:

 

Nada tenho a esconder ao visconde de Jolival, que sabe tudo de mim e que é mais do que um amigo. Podeis falar diante dele.

 

Meu Deus! disse Francis com um sorriso irritado. Vós talvez não tenhais nada a esconder, mas o mesmo não acontece comigo. Além dissoacrescentou enterrando o chapéu na cabeça, se não quereis conversar é convosco... mas não vos dou mais de uma hora para vos arrependerdes, minha querida!

Ele ia retirar-se, mas um impulso mais forte do que a sua vontade, atirou Mariana para a frente.

 

No fim, o melhor é acabar já com isto. Ficai!

 

Depois, dirigiu a Arcadius um olhar suplicante e apertou ligeiramente a mão do amigo, dizendo-lhe:

 

Deixai-me falar-lhe por alguns instantes, Arcadius. Creio que é preferível. De qualquer modo, ele nada pode contra mim.

 

Com um suspiro, Jolival desaninhou-se das confortáveis almofadas.

 

-Está bem, eu desço! Mas não vos perco de vista. Ao menor gesto, ao menor chamamento, aqui estou com Gracchus.

 

Abriu a porta do lado oposto e desceu, enquanto Francis subia. Lord Cranmere pôs-se a rir.

 

Vejo que o vosso amigo alimenta contra mim desconfiança que só pode vir das vossas confidências, minha querida. Parece que me toma por uma espécie de bandido de estradas.

 

A minha opinião não tem qualquer interesse, Senhor ripostou Arcadius muito direito. Mas sabei que nada a poderá mudar.

 

Como dizeisrespondeu o inglês, encolhendo os ombros, ela não me interessa, mas se receais aborrecer-vos, nada vos impede de ir fazer companhia à dama que me acompanha. Sei que ela está desejosa de vos encontrar! Olhai, ela sorri-vos.

 

Maquinalmente, Mariana olhou para a carruagem amarela e preta e franziu as sobrancelhas, ao constatar que, efectivamente, Fanchon sorria, tão agradavelmente quanto o físico lhe permitia, ao ver Jolival. Este contentou-se em encolher os ombros e deslizou ao longo da carruagem para ir falar um momento com Gracchus, sem contudo deixar de olhar para o interior. Entretanto, Mariana dizia com secura:

 

-Se, como dizeis, pretendeis ”conversar” comigo, ”mylord”, poderíeis tomar outra atitude e não atacar o meu mais fiel amigo. Nem toda a gente gosta de relações duvidosas, e ao empregar este termo em relação à dama da flor-de-lis dou provas de muita indulgência!

 

Sem responder, Francis deixou-se cair pesadamente sobre as almofadas de veludo verde junto da jovem, que recuou instintivamente para evitar o contacto. Durante um curto instante, ela pôde admirar o seu perfil imóvel e fez-se um silêncio, apenas povoado pela respiração forte do inglês. Mariana pensou, não sem uma secreta e cruel satisfação, que ali estava uma recordação do golpe da sua espada, mas era uma compensação bem pequena para o desgosto de o ver vivo. Com curiosidade, como se se tratasse de um estranho, estudou o homem que amara, em quem tinha acreditado como se fosse um Deus, e a quem com tanta alegria jurara obediência e fidelidade... Era a primeira vez, desde a terrível noite, que se encontrava a sós com ele, e tantas coisas tinham mudado! Era então uma criança friamente sacrificada, desesperada e perdida nas garras de um homem sem escrúpulos e sem coração.. Hoje, o amor do Imperador tornava-a forte, protegia-a... Desta vez era ela quem imporia a sua vontade.

 

Notou que Francis, pelo contrário, não tinha mudado, com excepção, talvez, daquela prega de amargo cepticismo que, ao canto dos lábios, tinha substituído a do aborrecimento. Lord Cranmere continuava belo, apesar da cicatriz que lhe atravessava a face e acrescentava uma nota de romantismo trágico à perfeição dos seus nobres traços. Mariana espantava-se, depois de o ter amado tanto, por sentir agora uma antipatia, muito próxima da repulsa, junto desse homem soberbo. Mas, como ele se obstinava no silêncio e se limitava a olhar atentamente a biqueira brilhante das botas envernizadas, ela resolveu abrir o fogo. Era preciso acabar com aquilo e acabar depressa, até porque a sua presença, no espaço estreito da carruagem, provocava uma atmosfera incómoda.

 

Desejais falar-me disse com frieza, e agradeço-vos que comeceis. Não tenho intenção de eternizar este encontro.

 

Ele dirigiu-lhe um olhar adormecido e um sorriso ambíguo.

 

Porque não? Não é delicioso o momento em que dois esposos se encontram após uma longa ausência... e sobretudo depois de se julgarem separados para sempre? Não vos sentis feliz, querida Mariana, por voltar a ver ao vosso lado o homem que amáveis? Porque amaste-me, minha querida... direi mesmo que estáveis louca por mim, no feliz dia do nosso casamento. Relembro ainda os vossos grandes olhos húmidos quando o querido velho abade...

 

A paciência de Mariana diminuía rapidamente.

 

Basta! interrompeu ela. Sois, na verdade, duma impudência extraordinária! Será inconsciência ou esquecestes as desagradáveis circunstâncias que envolveram o nosso casamento? Devo lembrar-vos que, poucos minutos depois de terdes jurado perante Deus amar-me e proteger-me, durante a vida, apressastes-vos a jogar e perder, não só o pouco que vos restava, mas. a minha respeitável fortuna... pela qual me havíeis desposado? E como se não fosse ainda suficiente, ousastes atirar, sobre uma mesa de jogo, o amor que ingenuamente vos dedicava, o meu pudor de rapariga, a minha virgindade, enfim, a minha honra. Tendes pois a ousadia de falar nessa noite em que destruístes a minha vida, como se se tratasse de uma dessas alegres aventuras que os homens gostam de contar à noite, à volta de uma garrafa de brandy?

 

Lord Cranmere encolheu os ombros com descontentamento, mas desviou os olhos para evitar o olhar chamejante de Mariana.

 

Se tivésseis sido menos tola murmurou ele, isso teria até podido ser uma história alegre. Fostes vós que a tornastes num drama.

 

Realmente! Quereis explicar-me o que, na vossa opinião, eu deveria ter feito? Acolher, imagino eu, o substituto que me arranjastes...

 

Sem chegar aí! Uma mulher, verdadeiramente mulher, teria sabido encontrar as palavras que fazem esperar tudo e levara os homens até onde querem. Esse imbecil estava louco por vós.

 

Balelas!lançou Mariana, sentindo uma brusca emoção, ao evocar Jason Beaufort. Ele via-me nesse dia pela primeira vez.

 

Se julgais que isso não é suficiente para desejar uma mulher! Bastava ouvi-lo contar os vossos encantos, a beleza dovosso rosto, o esplendor dos vossos olhos... ”Se existem sereias dizia ele, lady Mariana é a sua rainha...” Meu Deus! rugiu Francis com uma súbita raiva, poderíeis ter feito dele o que quisésseis! Ele teria sido capaz de vos dar tudo, em troca de uma hora de amor! Talvez até de um só beijo. Em vez disso, vós fizestes uma tragédia, pusestes na rua o homem que tinha nas mãos toda a nossa fortuna...

 

”A nossa fortuna” ironizou Mariana.

 

A vossa fortuna, se assim quereis! Mais uma razão para que a tivésseis defendido um pouco melhor, tentar pelo menos apanhar algumas migalhas...

 

Mariana deixara de ouvir. Para quê? Já conhecia a profunda amoralidade de Francis e não devia admirar-se da depravação mental que o levava àquela indecência; censurar-lhe não ter sabido enganar Jason e arrancar-lhe os ganhos!... Já não o ouvia... Bruscamente, assaltara-a a lembrança dos últimos instantes passados junto de Jason, no seu quarto de Selton. O beijo não lho dera de livre vontade, mas ele roubara-lho e, com admiração, Mariana descobria que, após tanto tempo, ainda recordava o seu sabor violento e doce, desconhecido e perturbador. Fora o primeiro beijo que recebera... Qualquer coisa de inolvidável!

 

Mariana, que fechara os olhes por um instante, abriu-os de súbito. Que dizia Francis?

 

Não me ouvis?

 

É que já não me interessais! Não tenho a intenção de perder o meu tempo a explicar-vos como reagem, em certos casos, as pessoas que se importam com a sua honra e, se quereis saber o que penso, dir-vos-ei que não compreendo mesmo como ousastes abordar-me. Julgava ter-vos morto, Francis Cranmere, mas quer o Diabo, vosso senhor, vos tenha ressuscitado ou não, estais morto para mim!

 

Compreendo que essa atitude é das mais confortáveis para vós, mas a verdade é que estou vivo e assim tenciono continuar.

 

Mariana encolheu os ombros e virou a cabeça.

 

Então, afastai-vos de mim e procurai esquecer que uniram um dia Mariana de Asselnat e Francis Cranmere, se quereis continuar, senão vivo, pelo menos em liberdade.

 

Francis olhou a jovem com curiosidade.

 

Realmente! Creio perceber uma ameaça na vossa voz, minha querida. Que quereis dizer com isso?

 

Não vos façais mais estúpido do que sois. Sabeis muito bem. Estamos em França, sois inglês, um inimigo do Império: Basta-me fazer um gesto, dizer uma palavra para que sejais preso, e, uma vez preso, fazer-vos desaparecer para sempre seria uma brincadeira de crianças. Credes que o Imperador me recusaria a vossa cabeça, se eu lha pedisse? Vamos, sede bom jogador, por uma vez. Admiti que perdestes e retirai-vos sem procurar voltar a ver-me. Sabeis muito bem que nada mais podeis contra mim.

 

Falara suavemente, mas com firmeza e com uma grande dignidade. Não gostava de fazer ostentação do seu poder sobre o senhor da Europa, mas no caso presente era bom esclarecer as coisas imediatamente. Se Francis desaparecesse da sua vida de uma vez para sempre, tinha a certeza que conseguiria perdoar-lhe um dia... Mas em vez de meditar, como seria conveniente, nas palavras que ela acabava de proferir, Lord Cranmere começou a rir às gargalhadas e Mariana sentiu abalar um pouco a sua confiança. Perguntou com secura:

 

Posso saber o que vos provocou o riso?

 

É que... Oh! minha querida, sois simplesmente impagável! Julgais-vos a Imperatriz! Devo lembrar-vos que não sois vós mas uma infeliz arquiduquesa que Boney acaba de desposar?

 

A ironia de Francis junta ao injurioso diminutivo de que os ingleses se serviam para qualificar Bonaparte fustigaram a cólera de Mariana.

 

Imperatriz ou não rugiu ela entre dentes vou mostrar-vos, não só que não vos receio, mas que não me insultam em vão.

 

Inclinou-se para chamar Arcadius, que deveria estar perto da carruagem. Queria pedir-lhe para chamar um dos polícias, cujas silhuetas negras, em longos redingotes e chapéus de feltro, com uma sólida moca nas mãos, encaminhavam a multidão endomingada. Mas não teve tempo sequer de abrir a boca. Francis agarrara-a pelo braço e brutalmente atirara-a para o fundo da carruagem.

 

Estai sossegada, tontinha! Além de perderdes o vosso tempo, vede bem como a multidão nos cerca. Ninguém pode entrar ou sair das carruagens. Ainda que pudesse ir-me embora não poderia.

 

Era verdade. A multidão rodeava a carruagem de tal modo que das portinholas apenas se avistava um mar de cabeças. Arca Diminutivo depreciativo que os Ingleses davam a Napoleão Bonaparte. N T.

 

Arcadius tivera de se refugiar no banco do cocheiro com Gracchus, para não ser esmagado. Ouvia-se ao longe, dominando o murmúrio da multidão, como que um rugido de trovão sobre o qual existia o eco duma música ainda vaga. Seria o cortejo que finalmente se anunciava? Mas Mariana perdera todo o interesse desse dia. Dentro da carruagem, embora fosse a sua, tinha de repente a impressão de sufocar. Sentia-se mal, sem poder precisar por que razão. Talvez por causa do contacto com aquele homem detestado... Ele envenenava tudo.

 

Afastando a mão, que se conservava sobre o seu ombro, devolveu-lhe um olhar cheio de ódio.

 

Não perdeis nada em esperar! Saireis daqui para tomar o caminho de Vincennes ou da Forca.

 

Mas, de novo, Francis começou a rir e, de novo, Mariana sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe a pele.

 

Se gostais de jogar tanto como eu disse ele com uma doçura inquietante apostaria que não fareis nada disso.

 

E quem me impedirá?

 

Vós própria, minha querida! Além disso, uma denúncia de nada serviria, pois seria liberto rapidamente e com pedidos de desculpa. Perdereis a vontade de me mandar prender, depois de me terdes ouvido.

 

Mariana endireitou-se e sentiu um medo insidioso assaltá-la, ao mesmo tempo que tentava reflectir. Como ele parecia seguro de si! Seria o nome sob o qual se escondia que lhe dava essa segurança? Que lhe dissera Fouché um dia? Que o visconde de Aubécourt frequentava a casa de Doroteia de Périgord. Mas isso não era suficiente para o colocar ao abrigo das garras do dito Fouché, sempre na pista de espiões ou de conspiradores eventuais. Então?... Meu Deus, se pudesse dissipar a angústia que sentia!

 

Uma vez mais a voz trocista de Francis a chamou à realidade. Murmurava com uma doçura de tremer:

 

Sabeis que me fazeis pena? Sois admiravelmente bela, minha querida. Na verdade, seria preciso não ser homem para não vos desejar. A cólera domina-vos e faz brilhar esses magníficos olhos verdes, palpitar essa garganta...

 

O seu olhar apreciador envolvia o encantador rosto, a que o chapéu sedoso dava uma sombra rosada, acariciava o longo pescoço gracioso, a garganta altiva, largamente descoberta numa guarnição de rendas e sedas. Era um olhar ávido e sem ternura, o de um alquilador diante de um belo animal. Avaliava e despia tudo, mostrando, ao mesmo tempo, um desejo tão evidente e tão brutal que as faces de Mariana coraram. Como que hipnotizado por aquela beleza tão próxima, o inglês inclinou-se para ela, pronto talvez a apertá-la nos braços. Ela encostou-se às costas da carruagem e rugiu entre os dentes cerrados:

 

Não vos aproximeis! Não me toqueis! Senão, seja o que for que possa acontecer, eu grito, ouvis? Gritarei tanto que a multidão há-de afastar-se.

 

Ele estremeceu e endireitou-se. O seu olhar, há pouco tão ardente, readquiriu a expressão de aborrecimento. Retomou o seu lugar no outro extremo do banco e fechando os olhos suspirou.

 

É pena!... Pena, sobretudo, que tantos tesouros estejam reservados somente aos prazeres do Boney! Ou dais-lhe alguns coadjutores? Diz-se que uma boa metade dos homens desta cidade estão apaixonados por vós.

 

Acabai com isso! ralhou Mariana. Dizei duma vez para sempre o que tendes a dizer e acabemos depressa. Que quereis?

 

Ele abriu um olho e sorriu.

 

A galantaria deveria responder-vos: ”Vós!” e seria ao mesmo tempo justo e verdade, mas nisso falaremos mais tarde... Não, por agora tenho preocupações infinitamente mais terrenas: preciso de dinheiro.

 

Novamente! exclamou Mariana. E imaginais talvez que vos vou dar...

 

Não imagino. Tenho a certeza! O dinheiro teve sempre um papel importante entre nós, querida Mariana disse ele cinicamente. Desposei-vos por causa da vossa fortuna. Dilapidei-a um pouco depressa, estou desolado, mas como continuais a ser a minha mulher e nadais em ouro, parece-me muito natural pedir-vos algum.

 

Não sou a vossa mulher disse Mariana em quem o cansaço abafava um pouco a cólera. - Sou a cantora Maria-Stella... e vós sois o visconde de Aubécourt!

 

Ah! Sabeis isso! No fundo, estou encantado. Podeis ter uma ideia da posição que ocupo na sociedade parisiense. Apreciam-me muito.

 

Apreciar-vos-ão menos quando eu tiver acabado convosco! Saberão quem sois: Um espião inglês.

 

Talvez, mas, na mesma ocasião, saberão também a vossa verdadeira identidade e, como sois minha esposa legítima, voltareis a ser Lady Cranmere, inglesa... e porque não espia?

 

Ninguém vos acreditará! disse Mariana encolhendo os ombros. E quanto ao dinheiro...

 

Arranjareis o mais depressa possível cinquenta mil libras

- declarou Francis sem se comover. Senão...

 

Senão? exclamou Mariana com altivez.

 

Sem se apressar, Lord Cranmere procurou num bolso e retirou um papel amarelo dobrado em quatro, desdobrou-o e colocou-o sobre os joelhos da jovem, concluindo:

 

- Senão, a partir de amanhã, Paris inteiro será inundado de papéis como este.

 

A brisa que entrava pelos vidros abaixados fez tremer o papel, impresso em grandes caracteres pretos que Mariana leu com espanto: ”O Imperador nas mãos do inimigo! A bela amante de Napoleão, a cantora Maria-Stella, é uma assassina inglesa a soldo da polícia do Reino Unido...”

 

No instante seguinte, Mariana julgou que ia enlouquecer. Uma nuvem vermelha passou pelos seus olhos, enquanto no fundo da alma se elevava uma terrível tempestade, um furor como nunca sentira e que abafou o seu medo.

 

Assassina! disse. Não matei ninguém. Estais vivo, infelizmente!

 

Lede mais à frente, minha cara murmurou Francis suavemente, vereis que este libelo não exagera. Vós sois realmente uma assassina... a da minha deliciosa prima Ivy St. Albans que liquidastes tão- convenientemente com a ajuda de um pesado candelabro junto daquilo que julgáveis ser o meu cadáver. Pobre Ivy! Teve menos sorte do que eu, que graças ao meu amigo Stanton sou ainda deste mundo. Mas ela era tão frágil, tão delicada. Infelizmente para vós, ela retomou o conhecimento antes de expirar, um momento muito curto, mas que bastou para vos acusar. A vossa cabeça está posta a prémio em Inglaterra, bela Mariana!

 

Um gosto de cinzas encheu a boca da jovem. Esquecera a odiosa Ivy e, vendo Francis vivo, não pensara mais na prima. Aliás, até ali, considerara sempre, como uma espécie de julgamento de Deus, o duelo e o que se seguira... Mas, apesar da sua angústia, fez-lhe frente uma vez mais.

 

Não estamos em Inglaterra, mas em França. Imagino, portanto, que quereis levar-me a fim de receberdes o prémio e, por isso, viestes até cá.

 

Pela minha fé, confesso- ter pensado nisso respondeu Lord Cranmere, sem se perturbar. Os tempos são duros. Mas ao encontrar-vos tão bem instalada no coração do Império francês, os meus pensamentos mudaram de direcção. Podeis dar-me infinitamente mais do que algumas centenas de guinéus.

 

Desta vez, Mariana nada disse, perante propósito tão infame. Atingira os limites máximos do desprezo e continuava a olhar para o papel amarelo... onde era acusada de ter, numa crise de despeito, assassinado a sangue-frio a doce e linda prima do seu esposo, de quem tinha terríveis ciúmes... Nada fora deixado ao acaso e a lama que a ameaçava era tão nauseabunda como ignóbil.

 

Em seguida disse Francis sem parecer aperceber-se do seu silêncio -, pensei em vos raptar pura e simplesmente. Marquei-vos um encontro numa velha ruína pertencente a um amigo e esperava que aparecêsseis, mas deveis ter desconfiado, do que aliás me felicito. Pressionado pela necessidade, tinha imaginado que Boney pagaria um bonito preço para recuperar em bom estado a bela amante, mas era um cálculo um pouco apressado e, como tal, um mau cálculo... Há muito mais coisas a fazer!...

 

Portanto, fora ele que marcara o encontro da ”Folie”? Mariana mal se admirou. Não possuía qualquer sensação, estava incapaz de um único pensamento claro. Uma fanfarra de trombetas ouviu-se muito perto do local onde estava parada a carruagem e encheu o ar soalheiro, apoiado pelo ruído dos tambores que pareceu partir das profundezas de Paris e aumentar à velocidade do trovão. O cortejo nupcial devia ter partido, mas, ocupada com os seus próprios problemas, Mariana tinha deixado de prestar atenção aos ruídos exteriores e à agitação crescente da multidão. Havia um contraste tão pungente entre essas pessoas endomingadas, risonhas e agitadas e o duelo, talvez mais cruel do que o de Selton, que se travava dentro da carruagem!

 

Eis o cortejo! Falaremos mais tarde! É impossível com este bulício comentou Francis, instalando-se mais comodamente. Terminaremos a nossa conversa quando a multidão tiver passado!

 

Com efeito, uma corrente brilhante, um espantoso caleidoscópio de cores invadira os Campos Elísios e dirigia-se majestosamente para as Tulherias sob o ruído dos metais, o ribombar dos tambores, o troar dos canhões, saudado por gritos de ”Viva o Imperador!” A enorme praça tão atulhada de gente, em que as cores alegres dos vestidos se misturavam num tom acinzentado, pareceu erguer-se. Em redor de Mariana, o público comentava a ordem do cortejo.

 

-Os cavalos ligeiros polacos vão à cabeça!

 

Esses polacos! Como são belos! Alguns devem pensar em Maria Walewskal

 

Com efeito, vermelhos, brancos e dourados, com uma pluma cor de neve tremendo à volta do chapéu quadrado e chamas brancas e vermelhas dançando na ponta das lanças compridas, os soldados do príncipe Poniatowski desfilavam numa ordem admirável, mantendo impecavelmente alinhados os seus cavalos brancos e possantes, habituados a galopar por todos os caminhos da Europa. Em seguida, vinham os Caçadores de Guyot, cor de púrpura e ouro, misturados com os pelotões de Mamelucks, armados de punhais brilhantes, trazendo nas peles tostadas, nos turbantes brancos, encimados por uma ”aigrette” preta, e nas selas de pele pantera as cores violentas e quentes do Oriente. Depois, os Dragões, comandados pelo Conde de São Sulpício, de verde-escuro e branco, com bigodes soberbos sob os bonés de longas crinas pretas onde o sol punha reflexos dourados. A seguir, verdes, vermelhos e prateados, os Guardas de Honra precedendo uma longa fila de trinta e seis carruagens sumptuosas, de fundo dourado, onde vinham os principais oficiais da Corte e a família imperial.

 

No espantoso caleidoscópio de cores e ouro que formava o Estado-Maior do Imperador, os marechais, os ajudantes de campo e os escuteiros, Mariana, como do fundo de um sonho, reconheceu Duroc, dourado como um missal, Massena, Lefebvre, Bernadotte, que vira várias vezes em casa de Talleyrand. Viu Murat metido num uniforme cor de púrpura rutilante de dourados, com a húngara forrada de zibelina ao ombro, fulgurante como um fogo de artifício sob uma ”aigrette” de diamantes. Brilhava de orgulho, mas forçava à admiração pois, com uma ciência de cavaleiro consumado, dominava um admirável macho negro, visivelmente mal ensinado. O povo aclamou-o, dividindo o seu entusiasmo com o príncipe Eugênio, em uniforme de gala de Caçador da Guarda, magnífico e sorridente sobre um cavalo branco. Por afeição para com o Imperador, o seu pai adoptivo, o vice-rei de Itália retomara nesse dia o seu posto e lugar, à cabeça da Guarda Imperial.

 

Mariana reconheceu também, cobertas de jóias, as irmãs do Imperador, a morena Paulina, encantadora, irónica e toda vestida de branco, a loura Carolina de cor-de-rosa, que pousava na multidão um olhar olímpico, não condizendo com a sua pessoa fresca e roliça, Elisa, princesa de Piombino, grave e bela como um medalhão.

 

Numa carruagem, que precedia justamente a do Imperador, a jovem avistou a rainha Hortense, filha de Josefina. Acompanhada pela esposa de José Bonaparte, a morena Júlia, rainha de Espanha, e o duque de Wurtzburg, a rainha da Holanda, coberta das pérolas de que tanto gostava, e que lhe ficavam tão bem, oferecia à multidão um sorriso encantador mas velado de tristeza. Mariana pensou que ela se assemelhava mais a qualquer bela cativa, arrastada pelo carro do vencedor do que à feliz convidada de um casamento de príncipes. Com certeza que o pensamento de Hortense não abandonava a mãe, relegada com o seu desgosto para a longínqua região de Navarra, de que não gostava.

 

Atrás de todas estas carruagens, vinha, puxado por oito cavalos brancos, um grande coche todo dourado, encimado por uma coroa imperial, mas absolutamente vazio. Não se via qualquer figura atrás dos vidros brilhantes. Era a carruagem da Imperatriz que, hoje, não seria utilizada, pois o casal imperial quisera mostrar-se na mesma equipagem. Esse monumento dourado precedia imediatamente a caleche descoberta, onde vinham Napoleão e Maria Luísa... e os olhos de Mariana abriram-se de espanto, enquanto os ”vivas” da multidão sofriam uma baixa sensível.

 

Nunca a gente de Paris, ou Mariana, tinham imaginado aquilo que viam realmente.

 

Na carruagem, agitando a mão desajeitadamente, com um gesto romântico, Maria Luísa, muito vermelha sob uma pesada coroa de diamantes, sorria com um ar um pouco néscio, num magnífico vestido de tule prateado, obra-prima de Leroy, literalmente coberto de diamantes. Quanto a Napoleão, sentado junto dela, estava tão diferente daquilo que era habitualmente que Mariana, consternada, esqueceu momentaneamente Francis.

 

Acostumada à extrema simplicidade dos seus uniformes de coronel dos Caçadores ou dos Granadeiros, aos seus fraques pretos ou cinzentos, Mariana não podia crer que a estranha personagem, que sorria e saudava com a mão, fosse o homem que ela amava. Vestido à espanhola, em calção, fato e casaco curtos de cetim branco, todo coberto de diamantes também, tinha na cabeça um inacreditável barrete de veludo preto com plumas brancas, debruado por oito fileiras de diamantes, que parecia segurar-se apenas por um milagre de equilíbrio. O barrete merecia, por si só, uma elegia: tinha um ar improvisado e um aspecto vagamente de Renascença, completamente extravagante, segundo Mariana, e que ficava o pior possível ao rosto pálido e ao perfil do novo César... Como teria podido aceitar ataviar-se assim e como...

 

Uma gargalhada interrompeu o curso dos seus pensamentos. Com indignação, mas, no fundo muito contente por ter uma ocasião de traduzir a sua cólera e decepção, Mariana virou-se para Francis, que ria a bandeiras despregadas, meio deitado sobre as almofadas, sem o menor pudor nem compostura.

 

Posso saber o que vos dá tanta vontade de rir? perguntou ela secamente.

 

-Oh... não!... Minha querida, não me digais que não achais imensamente engraçado o disfarce de Boney? Está tão grotesco, que se torna sublime! É, na verdade, de chorar a rir... e é o que eu faço! Nunca... nunca vi nada tão cómico! Oh! é espantoso!... Espantoso!...

 

Tanto mais furiosa, quando no seu foro íntimo devia reconhecer que ele tinha razão, que aquele horroroso fato, apesar das pedras fabulosas que o enriqueciam, fazia uma espécie de janota do guerreiro que ela teria gostado de ver, como o deus dos trovões, rodeado de relâmpagos e nuvens de tempestade, Mariana reteve a vontade selvagem que sentia de se atirar sobre Francis com as unhas de fora, para despedaçar o rosto insolente e calar o riso inquietante. Se, naquele instante, tivesse uma arma à mão ter-se-ia servido dela sem hesitar, com mais vontade ainda do que na noite de Selton! Teria desejado que Napoleão aparecesse, perante o inimigo, em toda a majestade severa e sóbria de guerreiro, a fim de o fazer tremer de terror, ou, pelo menos, de lhe inspirar um salutar receio de a atacar, a ela, Mariana, sua amante dedicada!... Mas não, para desposar essa rapariga, gorda e vermelhusca, fora preciso ataviar-se como um favorito do rei Henrique III!... No entanto, tinha de calar a todo o custo esse riso, que a insultava no que ela tinha de mais querido e precioso, no seu amor... em tudo o que lhe restava no mundo.

 

Bruscamente lívida, tão pálida que o seu rosto parecia não conter gota de sangue, mas reflectir unicamente os seus fulgurantes olhos verdes, Mariana, endireitando-se, arrogantemente, dirigiu-se a Francis, que ria ainda como um louco:

 

Ide-vos!-murmurou. Nada mais temos a dizer-nos. Saí da minha carruagem antes que vos mande pôr daqui para fora e pouco me importa com o que possais fomentar contra mim! Tudo me é indiferente, compreendes? Podeis atirar ao vento os vossos horrorosos libelos, nada farei para vos impedir! Fazei o que quiserdes, mas ide-vos embora! Não vos quero ver mais! E sabei que não vereis nem um tostão!

 

Quase gritava e, apesar do burburinho da praça, várias cabeças voltavam-se para eles. Francis Cranmere cessou de rir. A sua mão caiu sobre o braço de Mariana e apertou-o até lhe fazer doer.

 

Acalmai-vos imediatamente ordenou e parai de dizer tolices! Não serve de nada. Não me escapareis!

 

Não tenho medo. Se me ameaçais, juro diante de Deus que me ouve, que vos matarei, percebestes Lord Cranmere, matar-vos-ei e, desta vez, nenhuma medicina humana poderá salvar-vos! Conheceis-me suficientemente para saberdes que o farei.

 

Já vos disse para vos acalmardes! Sei porque falais assim. Julgais-vos ainda muito forte, não é verdade? Dizeis a vós própria que ”Ele” vos ama bastante para vos defender da calúnia, que é bastante poderoso para vos proteger de qualquer perigo!

 

Mas olhai para ele! Brilha de alegria, de orgulho satisfeito! O momento que vive agora é o pináculo da sua vida! Pensai bem: É uma Habsburgo que desposa, ele um pobre corso! A própria sobrinha de Maria Antonieta! Todo este fausto, esta ostentação de pedras, que vai até ao ridículo, é para a encantar! E a sua vontade que vai fazer lei para o vosso Napoleão, porque espera dela o filho que assegura a sua dinastia! Julgais ainda que ele aceitaria desagradar à sua preciosa arquiduquesa para proteger uma assassina? Não lhe será difícil descobrir, através dos seus espiões em Inglaterra, que sois realmente procurada pela polícia por ter morto uma mulher sem defesa, depois de me ter ferido gravemente e... então? Acreditais, a divisa de Napoleão, nestes tempos, será: ”sobretudo nada de escândalos!”...

 

À medida que ele falava, um desgosto amargo invadia Mariana. Tanto mais cruel quanto o seu instinto lhe segredava que ele podia bem ter razão. Naquele minuto, toda a confiança que conservara no poder do seu amor, no seu ascendente sobre Napoleão, tremeu e afundou-se para nunca mais ressurgir. É certo que sabia que lhe agradava, que ele a amava, tanto quanto talvez lhe fosse possível amar uma mulher... mas não mais. O amor que uma mulher de carne e osso podia inspirar ao Imperador não podia rivalizar com o que ele dedicava ao seu império e à sua glória. Tinha amado Josefina e, apesar de desposada e coroada, Josefina fora obrigada a descer os degraus do trono e dar o seu lugar à loura e desajeitada Austríaca. Tinha amado a Polaca, ela esperava um filho seu... e contudo Maria Walewska fora obrigada a afastar-se e regressar à longínqua Polónia em pleno Inverno para aí dar à luz o fruto desse amor. Que peso teria Mariana e o seu encanto, Mariana e o seu amor devorador, em face daquela de quem ele esperava o herdeiro dessa glória e desse império? Com amargura, Mariana recordou o tom despreocupado que ele empregara ao dizer ”Desposo um ventre”! Esse ventre era mais precioso para ele do que o mais belo amor da terra.

 

Com os olhos cheios de lágrimas, viu afastar-se numa névoa de sol a dupla silhueta iluminada dos novos esposos, que parecia vogar sobre um oceano de cabeças. A voz de Francis chegou até ela como vinda dum sonho, insinuante e persuasiva.

 

Sede, pois, razoável Mariana e sabei contentar-vos com o vosso próprio poder... um poder que seria tolice comprometer por algumas centenas de escudos! O que são cinquenta mil libras para a rainha de Paris? Boney dar-vo-las-á, em menos de uma semana.

 

Não as tenho! respondeu Mariana, esmagando com raiva na face uma lágrima pronta a correr.

 

Mas arranjá-las-eis... digamos, dentro de três dias! Mandar-vos-ei dizer onde e como me entregareis esse dinheiro!

 

E quem me garante, se vo-lo dou, que ficarei ao abrigo das vossas infâmias?

 

Francis estendeu os longos braços com a graça preguiçosa dum gato gordo e lançou à companheira um olhar divertido.

 

-Devo dizer-vos que nada vos coloca ao abrigo... senão o facto de eu não precisar de dinheiro... durante algum tempo. Pode-se sempre compor uma nova história...

 

-Que mais cedo, ou mais tarde ver-vos-ei aparecer? Nada a fazer, nesse caso, Lord Cranmere! Mais cedo ou mais tarde atacar-me-eis... no dia, por exemplo, em que não tiver mais dinheiro! Não. Fazei o que quiserdes, mas não tereis as cinquenta mil libras!

 

Enquanto falava, Mariana esboçava já um plano. Nessa noite, nessa mesma noite, procuraria Fouché... ou até o Imperador, se fosse possível. Contar-lhe-ia o perigo que a ameaçava e em seguida partiria, para qualquer sítio, para que, se os esbirros de Fouché não conseguissem impedir a chuva dos libelos, existisse entre ela e o Imperador a distância suficiente para que não pudessem associar o seu nome ao do Imperador. Iria... para Itália, por exemplo, onde a sua voz lhe permitiria ganhar a vida e onde, talvez, pudesse encontrar o padrinho e obter a anulação desse casamento assassino. Em seguida, voltando a ser Mariana de Asselnat notara que o seu nome de solteira não era mencionado no libelo, talvez com receio de uma reacção perigosa da alta nobreza francesa poderia talvez aproximar-se, novamente, um pouco de Napoleão... Mas a voz de Lord Cranmere veio interromper o curso dos seus projectos.

 

Ah! esquecia-me disse num tom amavelmente reprovador conhecendo a impetuosidade das vossas reacções e essa deplorável mania que tendes de desaparecer sem deixar a morada... permiti-me tomar uma precaução suplementar... ao apropriar-me dessa velha louca, que vos serve ao mesmo tempo de mãe e de acompanhante e, que é, segundo creio, vossa prima. O coração de Mariana teve um sobressalto, enquanto sentia um nó apertar-lhe a garganta.

 

Adelaide? balbuciou. O que tem ela a ver com tudo isto?

 

Desempenhará... creio eu, um papel importante. Se me conhecêsseis melhor, minha querida, saberíeis que não sou homem para me lançar numa partida sem possuir vários trunfos à mão. Neste momento, M.me de Asselnat, que foram buscar a casa em vosso nome, deve ter sido colocada em lugar seguro pelos cuidados de alguns amigos dedicados. E se quereis voltar a vê-la viva...

 

A dor que paralisou o coração de Mariana deu-lhe de repente a justa medida da afeição que sentia pela prima. Para reter as lágrimas que não queria de forma alguma deixar ver a esse homem, fechou os olhos por um instante.

 

O miserável! Ousara atacar a gentil senhora, tão boa, tão dedicada! E Mariana sabia agora que espécie de relações ele entabulara com Fanchon Flor-de-Lis e o seu bando! Ao imaginar Adelaide nas mãos dessa gente, sentiu uma náusea. Conhecia bem a sua fria crueldade, a sua total ausência de escrúpulos, o ódio com que perseguiam tudo o que, de perto ou de longe, dizia respeito ao regime imperial.

 

Ousastes! rugiu ela entre dentes e julgais que, graças a essa ignomínia, podeis levar-me onde quereis... Mas eu saberei descobri-la. Conheço o covil da horrorosa velha que nos observa com o seu sorriso mau.

 

É possível que a encontreis! disse Francis calmamente, mas advirto-vos que, se os beleguins de Fouché forem arrastar os seus redingotes engordurados para o território da minha amiga Fanchon, encontrarão apenas um cadáver!

 

Não ousaríeis ir até aí!

 

Porque não? Em compensação, se vos mostrardes compreensiva, se, como espero, colaborardes amigavelmente comigo, posso prometer-vos entregá-la em perfeito estado.

 

Como quereis que acredite na palavra de um...

 

Miserável, eu sei terminou Francis. Parece-me que não tendes escolha possível. Começai por arranjar as cinquenta mil libras que eu preciso, bela Mariana. Prometo não fazer apelo ao vosso auxílio financeiro antes de... digamos um ano! E agora... Finalmente, desencostou-se, pegou na mão que Mariana, petrificada, nem pensou em retirar e levou-a aos lábios. Um instinto salvou a jovem desse contacto. A sua mão fina deslizou entre os dedos enluvados de Francis.

 

Odeio-vos! disse numa voz sem cor. Oh! como vos odeio!

 

Não vejo nisso qualquer inconveniente respondeu ele com um sorriso de maldade. Em algumas mulheres, o ódio tem ainda mais sabor do que o amor. Terei o meu dinheiro?

 

Tê-lo-eis... mas tomai cautela! Se cair somente um único cabelo da cabeça da minha prima, não existe em toda a Europa esconderijo mais secreto para vos salvar da minha vingança. Juro-vos pela memória de meu pai! E, ainda que tenha de subir ao cadafalso, matar-vos-ei com estas mãos!

 

Elevava até ao rosto de Lord Cranmere as mãos enluvadas de lilás claro. O sorriso apagou-se dos lábios de Francis. Havia nos olhos verdes uma tão fria determinação, tanto furor contido, que ele estremeceu. A palidez que invadira o belo rosto, a dor que ele exprimia tão claramente, impressionaram o inglês... iriam talvez tocar uma fibra esquecida no fundo do seu egoísmo e do seu cepticismo... Abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas, recompondo-se, encolheu os ombros com aborrecimento e, como quem deseja libertar-se de um fardo, saiu da carruagem. Uma vez em terra, disse, sem olhar a jovem;

 

Se quiserdes satisfazer os meus desejos, nada se passará de lamentável para ninguém. E... abandonais essa mania das palavras eloquentes e dos grandes gestos. Isso cheira a teatro!...

 

Afastou-se, após aquela maldade a que Mariana não teve coragem de responder. Para quê? Através das lágrimas, que não podia reter, viu-o subir para o ”cabriolet”, segurar nas rédeas sem responder às perguntas que lhe dirigia a companheira e virar os cavalos. Tendo desaparecido o cortejo nupcial na ponte, que conduzia às Tulherias, a multidão deslocava-se para as tendas, as barracas de guloseimas e os bufetes ao ar livre, para junto das orquestras e das fontes donde correria o vinho dentro de momentos. Mas Mariana nada via.

 

Invadida por um terrível sentimento de derrota e de impotência, ficara ali imóvel, com as mãos cruzadas sobre o cabo brilhante da sombrinha, com as faces inundadas de lágrimas, que deslizavam lentamente sobre a renda do vestido, sem pensar em chamar Arcadius ou dar ordem de partida. Os seus pensamentos dirigiam-se para a velha prima e o que podia sofrer nas mãos dos mariolas de Fanchon Flor-de-Lis. Como Jolival vira Lord Cranmere abandonar a carruagem, saltara do banco da frente e juntara-se a Mariana.

 

Por todos os santos do Paraíso! Que vos aconteceu? exclamou ele, encontrando-a transformada em estátua do desespero. Que vos fez esse homem? Porque não me chamastes?

 

Ela lançou-lhe um olhar desesperado, desamarrotou um pouco o papel amarelo que, maquinalmente, enrolara em bola entre os dedos e estendeu-o a Arcadius.

 

Lede! articulou com custo...-Amanhã, Paris inteiro lerá isto, se me recusar a dar o dinheiro que me exigem. Além disso... para me obrigar, mandou raptar Adelaide. Tem-me nas mãos e não me largará mais! Sabe muito bem que, por preço algum, o Imperador aceitaria ser metido num escândalo, ao ver o seu nome ligado ao de uma assassina.

 

Uma assassina? Isso é tudo mentira!...

 

Não. Matei, realmente, sem querer, e para me defender, Ivy St.-Albans. Sou procurada pela polícia em Inglaterra.

 

Ah!...

 

Arcadius instalou-se, pesadamente, nas almofadas da carruagem. Mariana viu, com angústia, que ele empalidecera e pensou, por um instante, que ele ia também afastar-se com horror. Mas Jolival contentou-se em tirar do bolso um enorme lenço de baptista imaculado e, passando um braço à volta dos ombros de Mariana, começou a limpar, fraternalmente, as lágrimas que continuavam a correr. Um vago odor a tabaco de Espanha invadiu

 

a carruagem.

 

E... que quer esse... cavalheiro? - perguntou ele tranquilamente.

 

Cinquenta mil libras... dentro de três dias. Mandar-me-á dizer onde e como devo entregá-las.

 

Arcadius emitiu um pequeno assobio de admiração.

 

Irra! E comilão! E é... apenas o início! Não parará a meio caminho...acrescentou, metendo no bolso o lenço.

 

Pensais que terá mais exigências? É também a minha opinião, mas devo dizer que se comprometeu, se eu lhe der o que me pediu, a não aparecer antes de um ano... e a entregar Adelaide intacta.

 

Como é amável!... Penso que não tendes a intenção de acreditar no que ele diz...

 

Nem por um instante, mas não temos outra solução. Ele tem Adelaide e sabe que eu farei tudo para a conservar viva. Se lançar a polícia na sua pista, matá-la-á sem piedade! Senão, já estaríamos a caminho da casa do duque de Otrante.

 

... que não nos receberia, porque assiste ao casamento do Imperador. Além disso, nada nos diz que ele pudesse impedir a aparição desta ignomínia. Nada é mais difícil de apanhar do que um libelo. Surgem todos os dias. Não, pergunto a mim mesmo se não seria possível procurarmos nós M.me de Asselnat. Não vejo muitos sítios onde Fanchon Flor-de-Lis possa escondê-la, visto que pensais que ela está nas suas mãos! -Estará nas pedreiras de Chaillot?

 

Certamente que não! A Désormeaux não é parva! Sabe muito bem que esse delicioso local não tem segredos para nós. Não. Deve tê-la noutro local... mas é preciso muita prudência para nos certificarmos, pois creio, como vós, que esse inglês não hesitaria em suprimir a prisioneira, como ameaçou. Espero somente que respeite os termos do contrato e no-la entregue contra o pagamento.

 

-E... se não o fizer?perguntou Mariana assustada.

 

- Aí está por que devemos tentar descobrir onde ele a esconde. De qualquer modo, como dizeis, não temos outra solução. Primeiro é preciso pagar. Depois...

 

Respirou fundo e Mariana viu, sob a barbicha preta, os maxilares cerrarem-se. Teve, de repente, a sensação de que uma vontade tão implacável como a de Francis se escondia nesse homenzinho amável e frágil, cuja elegância, demasiadamente requintada, possuía qualquer coisa de ligeiramente feminino.

 

Depois? murmurou ela.

 

Explorar o repouso, longo ou curto que quiserem dar-nos, para atacarmos por nossa vez. Temos de colocar Lord Cranmere em estado de não vos importunar mais.

 

Sabeis bem que só tenho um desejo: fazer anular o meu casamento para ter o direito de voltar a ser eu mesma.

 

Não será suficiente.

 

Então?

 

Então? disse Jolival com a maior doçura.-No caso de o Imperador não poder oferecer-vos a sua cabeça, penso que teremos de a ir buscar nós.

 

Ao anunciar esta calma e fria condenação à morte, Arcadius inclinou-se e bateu com a bengala no vidro de comunicação.

 

E lá! Gracchus!

 

A figura redonda do jovem cocheiro apareceu.

 

Senhor Visconde!

 

Para as Tulherias, meu rapaz!

 

A palavra despertou Mariana, que avaliava ainda os termos da declaração do amigo. Sobressaltou-se.

 

Para as Tulherias? Para quê?

 

Não deveis encontrar-vos com o príncipe Clary, que prometeu fazer-vos entrar na grande galeria do Louvre, para ver o casal imperial sair da capela?

 

Julgais indignou-se Mariana, feliz por ter semelhante pretexto para se zangar, que tenho qualquer intenção de ir contemplar de perto aquela... aquela mascarada?

 

Arcadius começou a rir com vontade, liberto também de uma espécie de opressão.

 

Vejo que não destes o justo valor ao esforço em vestir bem de Sua Majestade o Imperador e Rei, mas o espectáculo não será menos belo e...

 

-... e é melhor dizer-me já que desejais desembaraçar-vos de mim! Que estais a tramar, Arcadius?

 

-Não é coisa importante! Tenho uma pequena compra a fazer e esperava que deixásseis a carruagem livre...

 

Ficai com a carruagem, mas levai-me primeiro a casa. Gracchus! Voltamos a casa! decretou Mariana, batendo por sua vez no vidro.

 

Apetecia-lhe perguntar a Jolival o que era essa compra urgente, mas sabia, por experiência, que ele era o homem mais misterioso e que era quase impossível obrigá-lo a falar, quando ele decidia calar-se.

 

A carruagem de Mariana deu meia volta para ir apanhar a ponte da Concórdia. A multidão, tão densa no momento da passagem do cortejo, dispersava-se pouco a pouco. Passando pelo cais, ou pelo jardim, os parisienses dirigiam-se, na sua maioria, para o palácio das Tulherias, à varanda do qual, o casal imperial se oferecia à admiração do povo. Mariana não tinha qualquer vontade de o tornar a ver, esse casal irritante e discordante. Se Napoleão tivesse desposado uma princesa que se assemelhasse verdadeiramente àquilo que deveria ser uma princesa segundo os seus critérios, uma espécie de puro sangue digno de um imperador, Mariana, a aristocrata, teria sentido uma espécie de prazer doloroso, ainda que a amorosa tivesse sofrido mil mortes... mas aquela rapariga gorda e loura de olhar bovino!... Como podia ele olhá-la com aquela alegria, aquele orgulho que manifestavam todos os seus gostos? O próprio povo sentia isso. Talvez porque conservava, no fundo dos olhos, a imagem graciosa, requintada, sempre perfeitamente elegante de Josefina, não oferecera à recém-chegada senão um entusiasmo contido. Os ”vivas” tinham sido raros e tímidos. Quantos haveria, aliás, entre os que saudavam Maria Luísa, que dezasseis anos antes tinham visto cair, na mesma praça, a cabeça de Maria Antonieta? A nova austríaca, simples caricatura da encantadora princesa de outrora, que mais poderia inspirar ao povo de Paris do que uma certa desconfiança e um certo mal-estar?

 

A carruagem atravessava a ponte, com alguma dificuldade por causa das obras, pois o Imperador ordenara que as estátuas de oito dos seus generais, caídos no campo de batalha, fossem aí colocadas. Depois dirigiu-se para a Rua de Lille, contornando o Palácio do Corpo Legislativo (a), cuja nova fachada, de estilo grego, estava ainda atrás dos andaimes. Durante todo o percurso, nem Mariana nem Jolival descerraram os dentes. Permaneciam fechados nos seus pensamentos, respeitando o silêncio de cada um.

 

Quando a carruagem parou ao pé do pórtico renovado do Hotel de Asselnat, Mariana, aceitando a mão que Jolival lhe oferecia para a ajudar a descer, não pôde deixar de perguntar:

 

Estais certo de que não quereis a minha companhia... para essa compra tão urgente?

 

Muito certo respondeu Arcadius imperturbável. Esperai-me com juízo ao canto do lume... e sobretudo não vos atormenteis! Não estamos talvez tão desprovidos de armas, como Lord Cranmere quer imaginar.

 

Um sorriso encorajador, uma saudação, uma pirueta e o visconde de Jolival enfiara-se de novo na carruagem, que se dirigiu logo rua abaixo. Com um encolher de ombros, Mariana subiu os degraus e entrou no vestíbulo, onde um lacaio lhe segurava a porta aberta. Esperar com juízo... não se atormentar... Só Jolival lhe poderia dar esse conselho, quando já lhe era tão penoso entrar em casa e não encontrar Adelaide, a querida, insuportável e maravilhosa Adelaide, com a sua fome perpétua e tagarelice sem fim.

 

Porém, a jovem não teve tempo para pensar o que devia fazer, enquanto Jolival não regressasse. Aproximava-se da escadaria de mármore para se dirigir ao quarto, quando viu vir, compassado e solene, sob a sóbria peruca e libré de veludo verde-escuro, o seu mordomo Jeremias. Mariana não gostava muito de Jeremias, que nunca sorria e parecia guardar sempre na manga uma má notícia.

 

Mas Fortunata, que o tinha escolhido, prentendia que um homem tão distinto e lúgubre dava tom a uma casa. Desta vez, o longo rosto comprido e delgado, como a lâmina de uma faca, de Jeremias era um monumento de aborrecimento e tristeza, enquanto se inclinava.

 

O Senhor Constante espera a Senhora no salão de música murmurou ele com um ar perturbado, como se se tratasse de um segredo escabroso e já esperou perto de uma hora.

 

Uma súbita onda de alegria invadiu Mariana. Constante! O fiel criado de quarto de Napoleão, o homem dos segredos íntimos, o guarda daquilo que para Mariana era já o Paraíso perdido. Não era aquela a melhor resposta que o destino podia oferecer à sua presente ansiedade, às angústias do dia seguinte? A presença de Constante em sua casa significava que, apesar da solenidade do dia, Napoleão pensara nela, a isolada, e que a austríaca, no fim de tudo, não o subjugara talvez tanto como os boatos parisienses diziam.

 

Mariana lançou um olhar irónico ao mordomo.

 

A visita do Senhor Constante é para mim uma excelente notícia. É inútil fazer cara de catástrofe para o anunciar. É preciso sorrir, Jeremias, quando se anuncia um amigo; sorrir... sabeis o que é?

 

Não muito bem, minha Senhora, mas procurarei aprender!

 

                   OS APAIXONADOS DE FORTUISATA HAMELIN

 

Com a paciência das pessoas do Norte, Constante instalara-se o mais comodamente possível, para esperar por Mariana. Sentado ao canto da chaminé, com os pés sobre a lareira e os braços cruzados, acabara por adormecer. Os passos rápidos da jovem, sobre o pavimento do vestíbulo, despertaram-no daquela doce sonolência e, ao entrar no salão de música, Mariana encontrou-o de pé, cumprimentando-a respeitosamente.

 

Senhor Constante! exclamou. Que pena ter-vos feito esperar! É um prazer tão raro receber-vos... sobretudo num dia como este! Pensava que nenhuma força humana seria capaz de vos arrancar do palácio!

 

Para o Imperador, não há festas, nem solenidades, Mademoiselle Mariana. Ele ordenou... e eis-me aqui! Quanto ao tempo que esperei, não vos atormenteis. Deu-me um enorme prazer a calma repousante da vossa morada, depois de toda esta agitação.

 

Ele lembrou-se então de mim! disse Mariana muito comovida, pois a alegria que sentia, depois de tudo o que sofrera na praça da Concórdia, era muito grande.

 

Mas... creio que Sua Majestade se lembra muitas vezes de vós! Seja como for acrescentou ele, recusando o assento que Mariana lhe oferecia, tenho que vos entregar a minha mensagem e regressar ao palácio o mais rapidamente possível.

 

Dirigiu-se para o cravo e pegou num saco de pano grosso que alÍ colocara.

 

O Imperador encarregou-me de vos entregar isto, Mademoiselle Mariana, com os seus cumprimentos. Estão aí vinte mil libras.

 

Dinheiro? exclamou a jovem, cujo rosto ficou da cor da púrpura. Mas...

 

Constante não lhe deu tempo de protestar.

 

Sua Majestade pensou que poderíeis ter dificuldades na tesouraria nestes dias disse ele sorrindo. Além disso, é apenas uma retribuição, pois Sua Majestade requer os vossos serviços e o vosso talento para depois de amanhã.

 

O Imperador quer que eu vá...

 

Às Tulherias, cantar durante a grande recepção. Aqui tendes o vosso passe acrescentou ele, tirando do bolso um cartão e dando-o a Mariana. Mas ela não lhe pegou. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhou lentamente até uma das janelas que davam sobre o jardinzinho. A água das fontes cantava com suavidade na bacia de pedra cinzenta, sob os olhos sorridentes do delfim. Mariana contemplou-o um momento sem dizer nada. Inquieto com o seu silêncio, Constante aproximou-se.

 

Por que não dizeis nada? Ireis, não é verdade?

 

Não... não me apetece, Constante! Ser obrigada a fazer a reverência a essa mulher, cantar diante dela... nunca poderei!

 

No entanto, vai ser preciso! O Imperador ficou já muito descontente de não vos ver em Compiègne e M.me Grassini sofreu o seu mau humor. Se o desiludis também desta vez, tereis de enfrentar a sua cólera!

 

Virando-se de repente, Mariana exclamou:

 

A sua cólera? Ele não compreende o que eu sinto ao vê-lo ao lado dessa mulher. Estive agora na praça da Concórdia e vi-o a seu lado, sorridente e triunfante, tão feliz, que me senti mal. Para lhe agradar, até caiu no ridículo! Aquele fato grotesco, o barrete...

 

Ah! Aquele maldito barrete disse Constante rindo pode orgulhar-se de nos ter criado problemas! Levámos uma boa meia hora a procurar-lhe um ângulo mais ou menos conveniente... mas admito de boa vontade que não é um êxito.

 

O bom humor de Constante, a cena doméstica que evocava, distenderam um pouco os nervos de Mariana, mas o sofrimento visível da jovem não escapara ao criado de quarto imperial e, foi num tom mais sério, que retomou a palavra:

 

Quanto à Imperatriz, creio que deveis ver nela, como nós todos, apenas um símbolo e a promessa de uma dinastia. Penso sinceramente que a auréola que coroa o seu nascimento tem maior valor aos olhos do Imperador do que a sua própria pessoa!

 

Mariana encolheu os ombros.

 

-Vamos! murmurou ela. Contaram-me que na manhã seguinte à famosa noite... em Compiègne, ele dissera a um dos parentes, puxando-lhe a orelha: ”Casa com uma alemã, meu caro; são as melhores do mundo: doces, boas, ingénuas e frescas como rosas!” Disse-o ou não?

 

Constante afagou os olhos e, lentamente, foi buscar o chapéu que tinha colocado sobre uma cadeira, ao chegar. Virou-o entre os dedos e, por fim, ergueu os olhos para Mariana, sorrindo-lhe com um pouco de tristeza.

 

Sim, disse... mas isso não significa grande coisa; foi apenas um desabafo. Pensai que ele não conhecia a arquiduquesa, que ela é uma Habsburgo, a filha do vencido de Wagram, que ele esperava ver com orgulho, cólera ou até repulsa. Essa princesa plácida e um pouco desajeitada, tímida como uma noiva de aldeia e que parece satisfeita com tudo, sossegou-o. Ele está-lhe, segundo creio, profundamente reconhecido. Quanto ao amor... se ele a amasse tanto quanto imaginais, teria ele pensado em vós hoje? Não, crede-me, Mademoiselle Mariana, ide cantar para ele, se não para ela, e lembrai-vos que é Maria Luísa quem deve recear as comparações e não vós! Ireis?

 

Vencida, Mariana inclinou a cabeça em sinal de assentimento.

 

Irei... podeis dizer-lhe. Dizei-lhe também que lhe agradeço acrescentou, não sem certo esforço, designando o saco com um olhar.

 

Era-lhe desagradável aceitar o dinheiro, mas, nas circunstâncias presentes, era precioso e Mariana não podia dar-se ao luxo de o recusar.

 

Arcadius tomou o peso do saco e colocou-o sobre a secretária com um suspiro.

 

uma bela soma e o Imperador está cheio de generosidade... mas não chega para acalmar o apetite do nosso amigo. Precisamos de mais do dobro e a menos que peçais a Sua Majestade para se mostrar ainda mais liberal...

 

Não, isso não! exclamou Mariana muito corada. Nunca! E, além disso, seria necessário dar explicações, contar tudo. O Imperador lançaria logo a polícia na pista de Adelaide... e sabeis o que acontecerá se os homens de Fouché aparecerem...

 

Arcadius tirou do seu colete uma encantadora tabaqueira de tartaruga debruada a ouro, que Mariana lhe tinha oferecido, e retirou uma pitada de tabaco, que sorveu com lentidão e voluptuosidade. Acabara de chegar, sem dar mais explicações do que à partida, e eram já perto de nove horas da noite. Com um olhar sonhador, como se contemplasse uma ideia particularmente agradável, repôs a tabaqueira no bolso do colete, acariciou docemente o volume que ela produzia e, depois, declarou:

 

Acalmai-vos, não temos a recear essa última eventualidade. Nenhum agente de Fouché se porá à procurar M.Ime Adelaide, mesmo se lhe pedíssemos.

 

Porquê?

 

Quando me contastes a vossa conversa com Lord Cranmere, houve uma coisa que me impressionou; o facto de esse homem, um inglês dissimulado sob um nome falso e, segundo toda a aparência, um espião, poder, não só passear-se por Paris, de dia... em companhia de uma mulher notoriamente suspeita, mas também não parecer recear qualquer intervenção da polícia. Não vos disse ele que se o mandásseis prender, seria rapidamente solto com pedidos de desculpa?

 

Sim... disse.

 

E isso não vos fez pensar? O que concluístes? Nervosamente, Mariana apertou as mãos uma contra a outra e deu alguns passos,

 

Mas, não sei... eu... não procurei ainda aprofundar a ideia.

 

Eu quis saber mais e fui ao cais Malaquais. Tenho... algumas relações junto do ministro e soube o que queria saber, isto é, a razão por que o visconde de Aubécourt tem tão pouco receio das iniciativas da polícia. Está simplesmente em relações muito estreitas com Fouché... e, talvez, a seu soldo.

 

Estais louco! murmurou Mariana estupefacta. Fouché não entabularia relações com um inglês...

 

Porque não? Além de que os agentes duplos não são, de forma alguma, fruto da imaginação, acontece que o duque de Otrante possui, de momento, excelentes razões para se servir de um inglês e acolheu, certamente com grande alegria, o vosso nobre esposo.

 

Mas... ele tinha-me prometido procurá-lo...

 

Prometer não custa nada, sobretudo quando se está decidido a não cumprir a promessa. Creio poder afirmar que Fouché, não só sabe perfeitamente onde encontrar o visconde de Aubécourt, mas também não ignora quem se esconde sob esse nome.

 

É insensato... insensato!

 

Não. É a política!

 

Mariana sentiu-se perder o pé. Com um gesto nervoso, levou as duas mãos à cabeça, como para tentar afastar os pensamentos loucos. Arcadius dizia coisas tão estranhas que ela não podia acompanhá-lo nesses caminhos, bruscamente abertos na sua frente e que lhe pareciam cheios de sombras densas e armadilhas a cada passo... Tentou, contudo, lutar contra a sensação de incoerência.

 

Mas, é impossível! O Imperador...

 

Quem vos fala do Imperador? interrompeu Jolival com rudeza. Eu disse-vos Fouché. Sentai-vos, por um instante, Mariana. Cessai de andar à volta como um pássaro louco e escutai-me. No ponto a que chegou hoje, o Imperador atingiu o apogeu do triunfo e do poder. Nada mais tem na sua frente. O Czar jura que o ama como a um irmão, desde Tilsitt, o Imperador Francisco deu-lhe a filha em casamento, tem o Papa na mão e o seu império estende-se desde o Elba e o Drave até ao Ebro. Resta apenas a Espanha, miserável e feroz, e a sua aliada Inglaterra. Mas se esta última se retirar, a Espanha cairá como um ramo esgarçado do tronco pela tempestade. Ora, José Fouché alimenta um grande sonho: ser, depois do Imperador, o homem mais poderoso da Europa, aquele que poderia, se fosse necessário, substituí-lo, enquanto ele guerreia ao longe. Já o fez recentemente, quando os ingleses desembarcaram na ilha de Walcheren. iNapoleão estava na Áustria e a França abria-se perante o invasor, rouché mobilizou todas as guardas nacionais do Norte por iniciativa própria, repeliu os ingleses e talvez tenha salvo o império. Napoleão aprovou-o, quando alguns esperavam ver tombar a sua cabeça por ter ousado usurpar o poder imperial. Fouché foi recompensado: tornou-se duque de Otrante, mas a vantagem que conquistou quer conservá-la e até reforçá-la; quer ser o mais importante, o substituto de Napoleão e, para o conseguir, concebeu um plano de uma louca ousadia; aproximar a França da Inglaterra, sua primeira e mortal inimiga. Há vários meses, secretamente, por meio de agentes experimentados e através do rei da Holanda, empreendeu negociações com o gabinete de Londres. Se ele conseguir encontrar um termo de entendimento com Lord Wellesley, um único que seja, construirá sobre ele uma dessas teias de aranha, de que possui o segredo, enganará toda a gente, baralhará tudo... mas terá um dia a glória de dizer a Napoleão: ”Consegui trazer-vos essa Inglaterra que nunca quis entabular relações convosco. Está pronta a fazer a paz nesta ou naquela condição!” Evidentemente que, primeiramente, Napoleão ficará furioso... ou fingirá ficar, apenas, porque isso será tirarem-lhe a sua maior preocupação, ou melhor, assegurarem-lhe, sem perigo, a dinastia. Moralmente terá ganho... Eis porque Lord Cranmere, que foi certamente enviado por Londres, nada tem a recear de Fouché.

 

Mas murmurou Mariana que escutara atentamente a longa exposição de Jolival para que Fouché se decida a cumprir o seu dever e a perseguir os agentes inimigos, bastará advertir Sua Majestade do que se trama.

 

No seu velho rancor contra Fouché, o homem que a explorara tão friamente, quando era apenas uma fugitiva à procura de asilo, acariciava com prazer a ideia de revelar a Napoleão as iniciativas secretas do seu precioso ministro da Polícia.

 

- Julgo disse Arcadius com gravidade que faríeis mal. Compreendo que vos seja doloroso saber que um ministro do Imperador ultrapassa assim os seus direitos, mas o entendimento com a Inglaterra seria a melhor coisa que poderia acontecer à França. O bloco continental é a causa de uma quantidade de males; a guerra de Espanha, o cativeiro do Papa, as tropas necessárias para defender as intermináveis fronteiras...

 

Desta vez, Mariana não respondeu. A extraordinária aptidão que Arcadius possuía de estar sempre tão bem informado sobre todas as coisas, espantava-a muito. Contudo, desta vez, parecia-lhe um pouco forte demais. Para que Jolival estivesse ao corrente dum segredo de estado, era preciso que estivesse envolvido nele também. Incapaz de calar o seu pensamento, perguntou:

 

Dizei-me a verdade, Arcadius... Sois também um agente de Fouché, não é verdade?

 

O visconde riu-se com vontade, mas Mariana achou aquele riso igualmente suspeito.

 

Toda a França, minha querida, está às ordens do ministro da Polícia, vós, eu, a nossa amiga Fortunata, a Imperatriz Josefina...

 

Não brinqueis. Respondei-me francamente.

 

Arcadius cessou de rir, veio até junto da jovem amiga e, suavemente, acariciou-lhe a face.

 

- Minha filha disse docemente, eu não sou agente de ninguém, senão de mim próprio... do Imperador e de vós, mas aquilo que preciso de saber, arranjo-me por conhecê-lo... e neste assunto não podeis imaginar quantas pessoas estão já implicadas. Juraria, por exemplo, que o vosso amigo Talleyrand não o ignora.

 

Bem! suspirou a jovem irritada. Nesse caso, que posso fazer para me defender de Lord Cranmere, já que ele é tão poderoso?

 

Nada, por agora, senão pagar.

 

Nunca conseguirei arranjar as cinquenta mil libras em três dias.

 

Quanto tendes, precisamente?

 

Algumas centenas de libras, além dessas vinte mil. Tenho, evidentemente, as minhas jóias... as que o Imperador me deu.

 

Não penseis nisso. Nunca vos perdoaria, se as vendêsseis, ou as comprometêsseis. O melhor seria pedir-lhe, a ele, o que falta para a quantia necessária. Para a vida quotidiana, possuis várias propostas de concertos que vos darão o suficiente.

 

Por preço nenhum lhe pedirei esse dinheiro interrompeu Mariana tão categoricamente que Jolival não insistiu.

 

Nesse caso suspirou ele não vejo senão um meio...

 

Qual?

 

Ide vestir um dos vossos vestidos mais bonitos, enquanto eu ponho um fraque. Madame Hamelin recebe esta noite e convidou-vos, segundo me parece.

 

Não tenciono lá ir.

 

No entanto, ireis, se quereis o vosso dinheiro. Em casa da encantadora Fortunata, encontraremos certamente o seu amante titular, o banqueiro Ouvrard. Ora, além do Imperador, não vejo local mais propício para fornecer dinheiro do que a caixa de um banqueiro, e aquele é muito sensível ao encanto de uma mulher bonita. Talvez ele aceite emprestar-vos essa quantia que lhe retribuireis... após a próxima generosidade do Imperador.

 

O projecto de Arcadius não sorria a Mariana, que não gostava muito da ideia de utilizar o seu encanto pessoal junto de um homem que lhe desagradava, mas retomou a confiança pensando que Fortunata estaria presente para advogar o seu pedido. Depois... não tinha muitas soluções! Docilmente, dirigiu-se para o quarto para envergar um vestido de noite.

 

Nunca Mariana teria pensado levar tanto tempo a percorrer a distância entre a Rua de Lille e a Rua de Tom d’Auvergne, de tal modo havia gente nas ruas. Através de Paris, coberto de iluminações e de fogos de artifício, a carruagem avançava a passo, provocando protestos da multidão. Naquela noite, as ruas e as praças pertenciam ao povo e deve dizer-se que as carruagens eram raras.

 

Teríamos feito melhor em ir a pé notou Jolival. Chegaríamos mais depressa!

 

É muito longe respondeu Mariana. Só lá estaríamos amanhã de manhã.

 

Não estou muito certo de que não seja isso que nos espera!

 

Mas a beleza do espectáculo que Paris oferecia conseguiu cativá-los... A ponte da Concórdia tornara-se uma avenida flamejante, graças a oitenta colunas engrinaldadas de vidros coloridos e encimadas por uma brilhante estrela que as girândolas luminosas faziam entre si. Os andaimes do Palácio do Corpo Legislativo desapareciam sob alegorias luminosas: o casal imperial no templo do Himeneu, unido por uma figura de paz, muito branca, mas magnificamente coroada de louros verdes. Todas as árvores dos Campos Elísios estavam enfeitadas por lampiões multicolores e cordões de luzes estendiam-se ao longo das avenidas. Os majestosos edifícios estavam iluminados a gás, o que permitiu a Gracchus evitar a tempo uma boa dúzia de bêbados que tinham visitado as fontes de vinho, ao atravessar a praça da Concórdia. Encontraram uma certa acalmia na Rua Saint-Honoré, mas nas proximidades do Conselho de Estado, onde tinha lugar a ceia de casamento, foi preciso estacionar um bom momento. Efectivamente, o casal imperial aparecera à varanda, acompanhado do chanceler da Áustria, o príncipe de Meternich. No meio de um entusiasmo delirante, o príncipe, armado de um copo de champanhe, gritara:

 

Bebo pelo rei de Roma!

 

O rei de Roma? disse Mariana irritada. Quem é esse? Arcadius pôs-se a rir.

 

Querida ignorante! É o Senatus Consulte de 17 de Fevereiro? É o título que usará o filho do Imperador. Confessai que para um ministro do Ex-Santo Império Romano Germânico, Meternich dá provas de uma grande largueza de ideias.

 

Dá, sobretudo, provas de uma absoluta falta de tacto! Curiosa maneira de lembrar a essa velha desajeitada que a desposaram só por causa dos filhos que é obrigada a ter. Vede se avançamos, meu amigo! Nunca mais chegaremos assim!

 

Divertido com o pensamento de que a ”velha desajeitada” tinha contudo apenas mais um ano do que Mariana, Jolival evitou contudo qualquer comentário, pois adivinhava que o novo encontro com os ”jovens” esposos não iria acalmar o enervamento da jovem. Ordenou, gravemente, ao cocheiro para apressar os cavalos. Gracchus respondeu, não menos gravemente, que não era possível ir mais depressa, a não ser que galopassem por cima das pessoas. Recomeçaram a avançar lentamente... até às avenidas, onde estava prevista outra forma de distracção: arautos vestidos a rigor atiravam, às mãos-cheias, à multidão, medalhas comemorativas do acontecimento. Em menos de um minuto, tornou-se impossível mexerem-se dali. Em redor dos cavalos dos arautos, a multidão desesperava-se para tentar apanhar as medalhas, e a carruagem, de Mariana encontrou-se no centro duma extraordinária confusão onde havia pelo ar bengalas, chapéus, bonés, lenços e uma quantidade de objectos variados.

 

Nunca mais chegaremos lançou Mariana esgotada de paciência. Não estamos já muito longe! Prefiro continuar a pé.

Em vestido de cetim e no meio desta barafunda? Ficareis feita em bocados!

 

Mas ela tinha já aberto a portinhola e, segurando no braço a cauda cor-de-rosa e dourada do vestido, saltara para o meio da multidão, através da qual deslizou com uma ligeireza extraordinária, sem querer ouvir os chamamentos de Gracchus que, de pé no assento, gritava:

 

-Mademoiselle Mariana! Voltai! Não façais isso!

 

Jolival foi obrigado a lançar-se sobre a sua pista. Algumas medalhas, porém, lançadas por um dos jovens arautos, foram cair na borda do chapéu de Mariana e o infeliz tornou-se logo num centro de interesse evidente para alguns dos súbditos leais do Imperador, amadores de medalhas. Ele não tardou a desaparecer, o que levou Gracchus, que tudo vira do seu assento, a gritar, armado do chicote:

 

Aguentai, Senhor Visconde, vou já!

 

Entretanto, Mariana conseguira chegar à entrada da Rua Cerutti, sem outro dano senão o seu penteado e a perda da sua grande ”écharpe” de cetim, mas como a noite estava excepcionalmente amena para a época, pouco se importou e pôs-se a correr, na medida em que o pavimento desigual e os passeios da rua permitiam aos pés calçados de ligeiros escarpins cor-de-rosa. Felizmente, a rua, situada entre as altas paredes de grandes edifícios recentes e, geralmente bastante obscura, beneficiava nessa noite duma luz desusada, graças às iluminações de vidros coloridos de que estava ornado o Hotel do Império e a faustosa residência do rei da Holanda. Apesar de haver menos gente do que na avenida, havia, todavia, muitas pessoas que iam e vinham, mas ninguém deu atenção a essa jovem muito decotada e em vestido de noite, tal era a agitação de Paris. As pessoas passavam em bandos, de braço dado, cantando, a plenos pulmões, canções em geral bastante brejeiras e contendo todas um encorajamento, directo ou não, ao Imperador em vista dos seus deveres conjugais. Algumas raparigas, vestidas com trajos ousados e escandalosamente pintadas, ondulavam de um grupo para outro, à procura de clientes, e Mariana, para não ser confundida com elas, fez o possível por retardar o passo.

 

Passado o Hotel do Império, atingiu a zona mais obscura, formada pela casa do banqueiro Martins Doyen, quando a porta do jardim se abriu e Mariana, levada pela sua pressa, foi esbarrar com o homem que saía e que deu um grito de dor.

 

Grande bruto!exclamou ele, empurrando-a brutalmente. Não podes ver por onde caminhas?

 

Mas vendo logo de quem se tratava, começou a rir.

 

Perdoai-me. Não tinha visto que éreis uma mulher. É que me fizestes doer!

 

Pensais que esta colisão foi agradável para mim? respondeu Mariana. Estou cheia de pressa.

 

Nesse momento, passou um grupo alegre, armado de lâmpadas, cuja luz envolveu Mariana e o desconhecido.

 

Por Deus, que linda rapariga! exclamou ele. No fim, talvez tenha sido o meu dia de sorte. Vem, minha linda, vamos festejar isto! És exactamente aquilo de que eu precisava.

 

Estupefacta pela súbita mudança de tom, Mariana teve apenas tempo para se aperceber de que o desconhecido, vestido com um casaco preto atirado à pressa sobre a camisa branca mal fechada, tinha o aspecto dum militar vestido à civil; era alto e vigoroso, com um rosto insolente de feições bastante vulgares, mas que possuíam certa beleza, sob espessos cabelos castanhos, tão frisados que pareciam quase encarapinhados. Compreendeu, embora demasiadamente tarde, que ao ver o seu vestido cor-de-rosa, largamente decotado e as mechas de cabelo preto que lhe caíam sobre a testa, ele a tomara por uma rapariga de vida fácil. Com uma mão firme, ele obrigou-a a entrar pela porta donde saíra, encostou-a contra a madeira da porta e, apertando-a, começou a beijá-la com ardor, enquanto as suas mãos ágeis lhe exploravam o corpo através do vestido.

 

Meio sufocada, mas furiosa, Mariana reagiu imediatamente. Mordeu a boca que a violentava e depois, num ímpeto, tentou repelir o assaltante. A sua situação não lhe deixava muita força, mas bateu-lhe como pôde e, com grande surpresa, o homem deu um novo grito de dor e recuou.

 

Cadela! Fizeste-me doer!

 

Ainda bem!rugiu Mariana. Sois um grosseirão!

 

E, com toda a força, aplicou uma bofetada valente sobre a face do inimigo. Ele acusou o golpe. Isto permitiu a Mariana, que sentia o trinco da porta debaixo da outra mão, abri-la e atirar-se para a rua. Por felicidade, um grupo de estudantes e de raparigas voltavam da avenida, fazendo saltar, nas mãos, as medalhas conquistadas em grande luta, e enchiam a rua. Ela esgueirou-se por entre o grupo barulhento e agitado, recebeu algumas injúrias e alguns beijos, mas, finalmente, encontrou-se perto de Nossa Senhora do Loreto, sem ter visto o seu assaltante. Daí, retomou o caminho, não sem custo, pois a rua subia muito, e conseguiu chegar por fim a casa de Fortunata quase sem fôlego. Todas as janelas estavam iluminadas. Através dos vidros, viam-se brilhar, na abertura dos grandes cortinados amarelos, os cristais e as velas dos lustres. Ruídos de vozes e risos chegavam até à rua com um agradável acompanhamento de violões. Com um suspiro de alívio, Mariana, depois de ter constatado que a sua carruagem não estava entre aquelas que esperavam, não perdeu tempo a imaginar o que teria acontecido a Jolival e Gracchus-Hannibal-Pioche. Correu para Jonas, o gigantesco mordomo preto de M.me Hamelin, que estava à entrada, magnífico no seu belo fato de tecido vermelho com galões prateados.

 

Jonas, conduzi-me depressa ao quarto de Madame e ide dizer-lhe que estou cá. Não posso entrar no estado em que estou.

 

Efectivamente, com o lindo vestido cor-de-rosa rasgado, enxovalhado, manchado em vários sítios e os cabelos caídos, Mariana tinha realmente o aspecto daquilo por que a tinham tomado há bocado. O grande negro revirou os enormes olhos.

 

Meu Deus, Mademoiselle Mariana! Como vós estais! O que vos aconteceu? exclamou.

 

Oh nada! disse ela com um risinho. Vim apenas a pé. Mas conduzi-me depressa. Se me vissem assim, morreria de vergonha.

 

Certamente! Vinde por aqui!

 

Por uma porta e pela escada de serviço, Jonas conduziu a jovem até ao quarto da patroa e aí a abandonou para ir procurar Fortunata. Com um suspiro de alívio, Mariana deixou-se cair sobre um confortável cadeirão de seda verde-claro, colocado diante do ”psyché” de bronze e madeira, que com a cama, coberta de musselina das índias e brocado amarelo, formava a principal mobília do quarto. O espelho reflectiu uma imagem bastante assustadora. O vestido estava completamente estragado, os cabelos emaranhados formavam uma massa preta embaraçada sobre a cabeça, e o vermelho dos lábios esborratara para as faces, devido aos beijos glutões do desconhecido.

 

Com irritação, Mariana limpou-o com um lenço que estava caído no chão e repetiu para si própria: ”Louca”! Louca por se ter misturado com a multidão, para chegar mais cedo e, mais louca ainda, por ter escutado Arcadius! Teria sido melhor ir-se deitar e adiar para o dia seguinte a entrevista com Fortunata, em vez de se lançar nessa aventura burlesca através de um Paris meio ébrio. Como se lhe fosse possível, nessa noite de loucura, encontrar trinta mil libras! Resultado: estava morta de fadiga, doía-lhe a cabeça e estava feia de fazer medo.

 

Acorrendo, M.me Hamelin encontrou a amiga, à beira das lágrimas, a fazer caretas ao espelho e começou a rir.

 

Mariana! Mas com quem te bateste? Com a austríaca? Nesse caso ela deve estar num belo estado e tu a caminho de Vincennes.

 

Com o bom povo de Sua Majestade, o Imperador e Rei e também com uma espécie de sátiro que tentou violentar-me atrás da porta de um jardim!

 

Conta! exclamou Fortunata, batendo as mãos. Isso é muito divertido!

 

Mariana olhou a amiga com rancor. Nessa noite, Fortunata estava particularmente bonita. O vestido de tule amarelo, bordado a ouro, valorizava admiravelmente a cor quente da sua pele e os lábios um pouco grossos. Os olhos escuros brilhavam como estrelas pretas, entre os longos cílios curvos. Toda a sua pessoa respirava a alegria de viver e voluptuosidade.

 

-Não tem graça nenhuma! disse Mariana. Acabo de viver o pior dia da minha vida, depois do meu casamento! Estou... esgotada... e tão infeliz!

 

A sua voz tremeu. Grandes lágrimas correram dos seus olhos desolados. Fortunata cessou, imediatamente, de rir e tomou a amiga nos braços, envolvendo-a num pesado perfume de rosas.

 

Estás a chorar? E eu que brincava! Minha gatinha querida, desculpa! Diz-me depressa o que te aflige... mas primeiro tira esse vestido em farrapos! Vou dar-te outro.

 

Enquanto falava, rápida como o pensamento, puxava já o vestido estragado quando, de repente, se deteve, apontou com um dedo para uma mancha escura no corpo e deu um grito.

Sangue?... Estás ferida?

 

Que eu saiba... não disse Mariana espantada. Nem sei donde pode vir. A não ser que...

 

Recordava, de repente, os dois gritos de dor que arrancara ao agressor e aquela forma de vestir bizarra, levando o casaco sobre a camisa aberta. Talvez estivesse ferido.

 

A não ser que?...

 

Nada. Não tem importância! Oh, Fortunata, é preciso que venhas em meu socorro, senão estou perdida.

 

Com frases curtas, entrecortadas pelo nervosismo, Mariana contou o seu terrível dia, as exigências de Francis, as suas ameaças, o rapto de Adelaide e, finalmente, a impossibilidade de arranjar trinta mil libras em quarenta e oito horas, a não ser vendendo todas as jóias.

 

Posso emprestar-te dez mil disse calmamente M.me Hamelin. Quanto ao resto...

 

Deteve-se em suspenso, contemplando a amiga no espelho, por entre os olhos semicerrados. Enquanto Mariana falava, tinha-a despido completamente, depois, com uma grande esponja que fora buscar ao gabinete de ”toilette” e um frasco de água-de-colónia, procurava fazer desaparecer os traços de poeira e friccionava vigorosamente a jovem para a reconfortar.

 

Quanto ao resto? perguntou Mariana, vendo que Fortunata se conservava em silêncio.

 

M.me Hamelin fez um lento sorriso e... agarrando numa grande borla, pôs-se a empoar docemente as espáduas e os seios da amiga.

 

Com um corpo como o teu disse ela tranquilamente, não seria difícil... Conheço dez homens que te dariam isso por uma única noite.

 

Fortunata! exclamou Mariana sufocada.

 

Recuara instintivamente e corara até à raiz dos cabelos pretos. Mas essa indignação não perturbou a bela calma da crioula. Ela começou a rir.

 

Esqueço sempre que tu acreditas na mulher de um único amor e que te obstinas a continuar lamentavelmente fiel a um homem que, neste momento, faz tudo o que pode para engravidar outra. Quando compreenderás, jovem idiota, que o corpo não é senão um maravilhoso instrumento de prazer e é um crime contra a natureza deixar um como o teu tão tragicamente desocupado? Olha, é como se, de repente, o genial Paganini, que eu ouvi em Milão, decidisse meter o seu célebre Guarnerius no sótão, tapá-lo com jornais velhos e não o fazer produzir um só som durante anos... Seria tão estúpido!

 

Estúpido ou não, eu não quero vender-me! decretou Mariana com força. Fortunata encolheu os belos ombros arredondados.

 

O que há de difícil convosco, aristocratas, é que vos julgais sempre obrigadas a empregar grandes palavras para as coisas mais simples. Enfim! Vou ver o que posso fazer por ti.

 

Foi buscar a um armário um encantador vestido de seda branca guarnecida de grandes flores exóticas recortadas e aplicadas.

 

Veste-te, jovem, vestal guardiã do fogo sagrado da fidelidade amorosa, que entretanto vou ver se me posso enterrar no teu lugar!

 

O que vais fazer? perguntou Mariana inquieta.

 

Acalma-te, não vou vender-me àquele que der mais. Vou só pedir ao querido Ouvrard que nos empreste as vinte mil libras que nos faltam. Ele é escandalosamente rico e atrevo-me a crer que não me recusará nada. Está lá em baixo. Além disso, não tendo as melhores relações com Sua Majestade, ficará certamente encantado ao ser simpático, na tua pessoa, para alguém tão... próximo do Imperador... Instala-te e repousa. Vou dizer a Jonas para te trazer um pouco de champanhe.

 

És um amor! exclamou Mariana com sinceridade. Com a ponta dos dedos, enviou um beijo à jovem louca que desaparecia num turbilhão de tule amarelo. Depois, apressou-se a vestir o vestido de Fortunata, com receio que Jonas a surpreendesse numa indumentária tão sumária. Pegou num pente de marfim e numa escova de prata, que estavam sobre uma mesa, e pôs-se a desembaraçar e a pentear cuidadosamente a sua cabeleira. Fora invadida por uma espécie de paz, divinamente repousante, após a angústia das horas passadas. Fortunata tinha razão em possuir uma moral tão livre, pois desprendia-se dela uma tal vitalidade e um calor humano capazes de aquecer as almas mais transidas. A bela crioula era uma daquelas criaturas sem complicações que sabiam dar, sem nunca procurar receber. Era simples como a própria terra! Dispunha, com a mesma liberalidade, do seu auxílio, do seu tempo, do seu coração, do seu dinheiro, da sua piedade e não via porque havia de fazer excepção duma coisa tão natural como o seu corpo. Não era daquelas que, sob pretexto da prática da virtude, exercem sobre um homem uma fria crueldade e o levam lentamente ao suicídio. Nunca ninguém se suicidara por Fortunata. Não podia suportar ver alguém sofrer, sobretudo se se tratava, para acalmar esse sofrimento, de dar algumas horas de amor, e conseguia, uma vez passados esses momentos, transformar os amantes, por vezes voláteis, em amigos de uma fidelidade a toda a prova. Neste momento, em todo o caso, Mariana tinha a certeza de que ela exercia todos os encantos da sedução e do espírito para arrancar ao amigo rico a elevada quantia de que a amiga tanto necessitava.

 

Sorrindo interiormente ao pensamento desta amizade, Mariana estava ocupada a enrolar em forma de coroa, à volta da cabeça, os cabelos que juntara, quando a porta do quarto bateu. Pensando que era Jonas com o champanhe anunciado, não se virou e continuou a pentear-se.

 

Não sei... quem sois disse do fundo do quarto uma voz rouca e sem fôlego mas... por piedade... ide chamar M.me Hamelin!

 

Mariana estremeceu e ficou um instante com o braço erguido acima da cabeça, tendo a impressão de já ter ouvido aquela voz e virou-se. Apoiado ao batente da porta, um homem muito pálido lutava visivelmente contra o desmaio. Com os olhos fechados, a boca cerrada, respirava com dificuldade, mas Mariana, de tão surpreendida, não pensou sequer em socorrê-lo. O recém-chegado, efectivamente, tinha apenas sob o grande casaco preto atirado pelos ombros uma camisa branca, umas calças azuis-escuras e botas à húngara. Tinha cabelos castanhos frisados... e um rosto que a jovem, assustada, reconheceu num segundo. Era o seu agressor da Rua Cerutti...

 

Mariana não se enganara ao pensar que o homem devia estar ferido. A explicação das manchas de sangue no seu vestido estava agora bem visível na camisa branca, à altura do ombro esquerdo, enquanto o desconhecido deslizava, sem conhecimento, sobre o tapete do quarto.

 

Petrificada, tinha-o visto cair sem sequer pensar em socorrê-lo e teria ficado ali mais uns momentos a interrogar-se, se atrás da porta a voz de Jonas não se tivesse feito ouvir.

 

Abri, Mademoiselle Mariana! É Jonas! A porta está trancada!

 

O encanto desvaneceu-se. O homem caíra de tal modo que, com efeito, impedia a abertura da porta.

 

Um instante Jonas! Eu vou abrir.

 

Pegou no desconhecido pelos pés e puxou-o com todas as suas forças para tentar levá-lo para o meio do quarto, mas ele era grande e pesado... Conseguiu, no entanto, embora com dificuldade, deslocá-lo suficientemente para permitir que a porta se abrisse e deixasse passar Jonas.

 

Deixai a bandeja lá fora, não posso abrir mais aconselhou ela, puxando pelo batente.

 

O mordomo passou, como pôde, pelo estreito espaço.

 

Mas o que se passa, Mademoiselle Mariana?... Oh! O Senhor Barão!exclamou ele ao descobrir o obstáculo.- Meu Deus! Ele está ferido!

 

Conheceis este homem?

 

Creio que sim. É, como direi, da casa. É o general Fournier-Sarlovèze. A Madame Fortunata nunca vos falou dele? Não o podemos deixar aí. É preciso levá-lo para a cama.

 

Enquanto o grande negro pegava no ferido, como se não tivesse peso, e o colocava sobre a cama, de que já retirara a colcha, Mariana reunia as suas recordações. O general barão Fournier-Sarlovèze? Certamente que Fortunata lhe falara dele, com um tom de mistério que, depois de a conhecer bem, era elucidativo do género de lembranças que ele evocava. Era o belo Francisco, um dos seus três amantes titulares, sendo os outros dois, o não menos sedutor Casimiro de Montrond, actualmente exilado em Anvers, e o muito menos fascinante, mas muito mais rico, Ouvrard... Mas que lhe dissera ainda Fortunata? Porque é que Mariana nunca o vira em casa da amiga?... Ah sim! Era um homem impossível, ”o pior indivíduo de todo o Exército”, mas também ”o que melhor manejava o sabre” do mesmo exército. Como tal, ocupava a sua vida entre brilhantes acções militares e as passagens à disponibilidade, que lhe valiam numerosas rapaziadas e duelos incessantes. Neste momento, devia estar relegado na sua província natal, à espera que o Imperador passasse a esponja sobre a última proeza.

 

Ao pensar em Napoleão, Mariana recordou ainda outra coisa que a havia chocado profundamente, quando a amiga lhe confessara que saído da Revolução, na qual se batera com alegria, embora, primeiramente, tenha servido o rei, Fournier odiava o Imperador, que lhe retribuía o ódio com desprezo, mas deixava esse doidivanas retomar o serviço periodicamente, devido ao seu excepcional valor militar, valor que, aliás, lhe merecera o grau de general e o título de barão. Isso, porém, parecera mesquinho a Fournier, em comparação com os títulos e as fortunas dos marechais. Feitas as contas, sobretudo se acrescentasse as recentes recordações de Mariana, o homem não era nem interessante, nem simpático. Em certo sentido, podia até ser perigoso e a jovem não tinha vontade de saber mais. Era já suficientemente chocante saber que Fortunata, tão dedicada a Napoleão, conservava um terno sentimento por esse rapaz, unicamente porque era bonito e porque era um amante infatigável!...

 

Enquanto, com grandes exclamações desoladas, Jonas retirava as botas do ferido e começava a prestar-lhe alguns cuidados, Mariana virou-lhes as costas e dirigiu-se para a porta. Apetecia-lhe descer e prevenir Fortunata, mas hesitava, ignorando de que forma, a amiga conduzira as negociações com o banqueiro. A sua hesitação durou pouco tempo. A porta abriu-se sob a mão nervosa de M.me Hamelin, que exclamou:!

 

Fiz o que pude e creio que... i Interrompeu a frase. O seu olhar passou por cima do ombro da amiga, atingiu a cama, junto da qual Jonas acendera um candeeiro para ver melhor, e gritou:

 

Francisco! Meu Deus! Está morto!...

 

Com impetuosidade, afastando Mariana, correu para o leito, empurrou Jonas, que, com as mangas arregaçadas e armado de pedaços de linho, limpava a ferida, e caiu, com um rugido de tigre, sobre o corpo inerte do amante.

 

Doce Jesus! Madame Fortunata! protestou o mordomo não o sacudais assim, se não podeis matá-lo. Não está morto! Só desmaiado e a ferida não é muito grave.

 

Mas Fortunata, que Mariana desconfiava alimentar um gosto secreto pelos momentos trágicos, não o ouvia e soltava lamentações dignas de uma corsa. Ao mesmo tempo, cobria o amante de carícias tão ternas e de beijos tão ardentes que graças a estes estranhos cuidados e aos sais ingleses que Jonas lhe passava sob o nariz, o dito amante acabou por abrir um olho, manifestação de vida que arrancou a M.me Hamelin um grito de triunfo.

 

Bendito seja Deus! Está vivo!

 

Nunca ninguém duvidou! disse Jonas. O desmaio era só devido à fadiga e à perda de sangue! Cessai pois de o abanar assim, Madame Fortunata! O Senhor Barão está muito bem! Vede vós mesma!

 

Com efeito, o ferido recompunha-se com um gemido de dor e sorriu à amiga.

 

Estou a envelhecer! disse. Esse Dupont venceu-me, desta vez, mas vingar-me-ei!

 

Outra vez o Dupont! insurgiu-se Fortunata. Há quanto tempo vos bateis os dois em duelo, de cada vez que vos encontrais? Dez anos, doze?...

 

Quinzecorrigiu Fournier tranquilamente, como somos mais ou menos da mesma força no sabre, a luta não acaba. Não tens qualquer coisa tonificante para um ferido que...

 

Ele não acabou a frase. O seu olhar pousou em Mariana, que, de braços cruzados e rosto sombrio, esperava um pouco afastada que acabassem as primeiras demonstrações de afectividade, contemplando as chamas da chaminé.

 

Mas... eu conheço-vos! disse ele, procurando lembrar-se de qualquer coisa que, aliás, se precisava cada vez mais. Não sois...

 

Eu não vos conheço! interrompeu-o Mariana, muito direita. Agradecer-vos-ia somente se me deixásseis falar com Fortunata um momento, pois desejo deixar-vos sós todo o tempo que desejardes...

 

-Meu Deus! exclamou a crioula minha querida, até te esqueci! Com esta emoção...

 

Com ímpeto igual àquele com que correra ao encontro do amante, voltou para junto da amiga, passou-lhe o braço em redor dos ombros e segredou:

 

Falei com Ouvrard. Creio que está de acordo, mas deseja dizer-te uma palavra. Queres descer e ir ter com ele? Ele espera-te na salinha dos espelhos... Acompanha M.le Mariana, Jonas e traz o frasco de conhaque para o general.

 

Mariana virou as costas, sem que lhe pedissem novamente, aliviada por deixar de ser o alvo do olhar de Fournier, onde podia agora ler uma troça muito clara. Era evidente que a reconhecera e não se sentia perturbado pela lembrança da sua inqualificável agressão. Antes de abandonar o quarto, ouviu-o ainda declarar, dirigindo-se a Fortunata:

 

Não sei o nome dessa encantadora pessoa, mas, não sei porquê, tenho uma vaga impressão de lhe dever qualquer coisa...

 

Tu tens febre, meu amor respondeu Fortunata. Posso afirmar-te que nunca encontraste a minha amiga Mariana. É absolutamente impossível.

 

Mariana não pôde deixar de encolher os ombros. Aquele miserável sabia muito bem que ela nunca ousaria dizer à amiga a verdade sobre o início tempestuoso das suas relações e, de qualquer modo, não tinha muita importância, pois ela estava firmemente decidida a que ficassem por ali! Não tinha, com efeito, qualquer necessidade de saber que aquele homem, tão seguro de si, detestava o Imperador, para o achar antipático e o classificar imediatamente entre as pessoas que não lhe apetecia voltar a ver. Jurou logo fazer tudo o que lhe fosse possível para que tal acontecesse. Curiosamente, como se respondesse aos pensamentos de Mariana, Jonas que descia atrás murmurou:

 

-Se o general faz aqui uma estadia. Mademoiselle Mariana não verá a Madame durante um certo tempo! A última vez, ela e o general não abandonaram o quarto durante oito dias!

 

Mariana não respondeu, mas franziu as sobrancelhas. Não que uma tal cura de amor lhe parecesse excessiva, mas porque esse género de actividade podia não ser do gosto do banqueiro Ouvrard, o amante de Fortunata ”de serviço” naquela altura. Seria desastroso para Mariana que esse homem, de que ela tinha tanta necessidade, ficasse mal disposto durante os dias seguintes.

 

Com um suspiro, foi-se reunir ao banqueiro na salinha que conhecia muito bem e que tinha as preferências de Fortunata, porque podia contemplar a sua imagem sedutora reproduzida várias vezes pelos grandes espelhos venezianos, com molduras cinzentas e douradas. Aí se reflectiam, em pormenor, o cor-de-rosa velho das pinturas, o cinzento patinado dos móveis, os finos arabescos das girândolas, suporte de velas de tom rosado, e a única nota brilhante de uma jarra da China cor de turquesa-escura, onde se viam. tulipas e íris no meio de longos ramos em flor. A marca da dona da casa estava patente no ligeiro odor de rosas, em luta com o cheiro da madeira queimada, e nos inúmeros e minúsculos objectos de prata dourada que se encontravam um pouco por toda a parte, além de uma longa ”écharpe” de gaze cor de ouro abandonada sobre o braço de um cadeirão.

 

Mas, ao entrar na salinha e ao ver Ouvrard encostado à chaminé, Mariana pensou que, apesar da sua fortuna, o homem não condizia com a decoração. Não via bem, além do dinheiro, o que podia atrair as mulheres para aquele homenzinho, com cara de fuinha, a quem os quarenta anos começavam a branquear os cabelos lisos e que possuía sempre o aspecto de um cabide vestido, apesar do extremo cuidado da sua indumentária demasiadamente rica. No entanto, Gabriel Ouvrard tinha sucesso e não só junto de Fortunata, que não escondia o amor pelo dinheiro. Murmurava-se que a langorosa, a divina, a eternamente virginal Julieta Récamier tinha por ele grandes preferências, assim como outras beldades como ela.

 

Embora este apaixonado de M.me Hamelin não lhe fosse mais simpático do que o primeiro até parecia uma teima, Mariana esforçou-se por tomar um ar amável e sorrir, ao avançar para o banqueiro que se virara na sua direcção ao ouvir a porta. Com uma exclamação de satisfação, Ouvrard pegou nas duas mãos da jovem, pousou um beijo em cada uma e, sem a largar, conduziu-a docemente para o sofá cor-de-rosa, onde Fortunata, quando não tinha que fazer, passava longas horas a mordiscar rebuçados e a ler os raros romances ligeiros que a severa censura imperial deixava aparecer.

 

Porque não viestes directamente ter comigo, minha linda censurou-lhe ele num tom de confidência íntima. Era inútil incomodar a nossa amiga por causa duma ninharia.

 

A palavra ”ninharia” deu prazer a Mariana. Na sua opinião, vinte mil libras eram uma grande quantia e era preciso ser banqueiro para falar com aquela desenvoltura e desprezo, e sentiu-se encorajada. Entretanto, Ouvrard continuava:

 

Deveríeis ter vindo ter comigo imediatamente... Teríeis evitado assim muitas angústias.

 

É que... nunca teria ousado disse ela tentando recuperar as mãos que o banqueiro continuava a apertar.

 

Não ousaríeis? Uma mulher tão bonita? Nunca vos disseram que a beleza me fascinava, que eu era seu escravo? E quem, em Paris, é mais belo do que o Rouxinol Imperial?

 

O Rouxinol Imperial?

 

Sim, é assim que vos chamam, adorável Maria-Stella! Não o sabíeis?

 

Meu Deus, não. Disse Mariana que achava que o seu interlocutor acumulava em demasia os adjectivos elogiosos para um homem a quem se vai pedir emprestada uma grande quantia de dinheiro. Mas já Ouvrard continuava:

 

Estive na vossa estreia de Feydeau. Ah! Que maravilha! Que voz, que graça, que beleza! Posso dizer, sem mentir, que me senti transportado! Fui dominado pelo vosso encanto! Esse timbre raro, tão comovedor, saindo de uma garganta tão pura, de lábios tão cor-de-rosa! Quem não seria capaz de ajoelhar para melhor adorar? Por mim...

 

Sois muito indulgente interrompeu Mariana aborrecida e que começava a recear que o banqueiro juntasse o gesto à palavra e ajoelhasse na sua frente. Mas, peço-vos, deixemos essa noite... que não foi exactamente como eu a teria desejado.

 

-Oh! O vosso acidente? Efectivamente, foi...

 

Muito desagradável e as preocupações que o causaram têm aumentado. Peço-vos, portanto, que me perdoeis, se vos pareço impaciente e descortês, mas preciso de uma certeza. Podeis imaginar que me aborrece muito ver-me obrigada a pedir socorro a...

 

Um amigo... Um amigo fiel e dedicado, espero que não duvideis!

 

Já que aqui estou... posso contar com essa quantia... depois de amanhã, por exemplo?

 

Naturalmente! Quereis depois de amanhã à tarde?

 

-Não, é impossível. Eu devo cantar nas Tulherias, perante... Suas Majestades.

 

O plural tinha custado a passar, mas contudo saíra. Ouvrard acolheu-o com um sorriso beatífico.

 

Então, depois de amanhã à noite, após a recepção? Esperar-vos-ei em minha casa. Será, assim, muito mais agradável. Poderemos tagarelar... conhecer-nos melhor!

 

Com as faces, subitamente coradas, Mariana ergueu-se com brusquidão, retirando as mãos, que o banqueiro continuava a segurar. Acabava de compreender, de repente, as condições em que Ouvrard aceitava emprestar-lhe dinheiro. Trémula de indignação, exclamou:

 

Creio que nos compreendemos mal, Senhor Ouvrard. Trata-se de um empréstimo. Entregar-vos-ei essas vinte mil libras em menos de três meses.

 

O rosto amável do banqueiro franziu-se numa careta de contrariedade e encolheu os ombros.

 

Quem vos falou de um empréstimo? Uma mulher como vós tudo pode exigir. Dar-vos-ei mais ainda, se o desejardes.

 

Só quero isso... e só aceito um empréstimo.

 

Com um suspiro, o banqueiro ergueu-se e aproximou-se da jovem que, prudentemente, batera em retirada para a chaminé. A sua voz, tão doce um momento antes, tornou-se cortante, enquanto uma chama inquietante se acendia no seu olhar.

 

Deixai os negócios para os homens, minha querida, e aceitai simplesmente aquilo que vos oferecem de boa vontade.

 

Em troca de quê?

 

Mas em troca de nada... ou de tão pouco! Um pouco da vossa amizade, uma hora da vossa presença, o direito de vos contemplar um momento, de vos respirar...

 

De novo, estendia para ela mãos ávidas, prontas a apalpar ou apertar. Sobre a gravata esbranquiçada, o rosto amarelo do banqueiro tornara-se vermelho, enquanto os seus olhos se fixavam, com guloseima, sobre os belos ombros descobertos. Um arrepio de repulsa agitou Mariana. Como fora tão tola, ao dirigir-se a esse homem de passado escuro, mal saído da prisão, para onde o tinha enviado, no mês de Fevereiro, um negócio de ”piastras” mexicanas, perpetrado em companhia do holandês Vandenberghe? Fora pura loucura!

 

Aquilo que pedis lançou ela brutalmente numa tentativa desesperada de intimidação não vos posso dar, pois o Imperador não o perdoaria nem a vós nem a mim. Ignorais que sou um... privilégio imperial?

 

Os privilégios pagam-se caro, ”signorina”. Aqueles que lhes colhem o benefício deveriam compenetrar-se dessa verdade... e agir de forma a não ser possível uma maior oferta! Seja como for, reflecti! Estais cansada esta noite, visivelmente transtornada. Este dia de casamento deve ter sido muito difícil... para um privilégio! Mas não esqueçais que depois de amanhã, à noite, vinte mil libras... ou mais, vos esperarão em minha casa, toda a noite e se, for preciso, no dia seguinte!

 

Sem responder e, sem mesmo o olhar, Mariana virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta. A sua dignidade e o seu porte conferiram-lhe o ar de uma soberana ofendida, mas, no fundo do coração, estava desesperada. A única oportunidade que julgava possuir para arranjar esse dinheiro escapava-lhe, pois nunca aceitaria as condições de Ouvrard. Pensara, ingenuamente, que poderia obter um empréstimo amigável, mas apercebia-se, mais uma vez, que, com os homens, os negócios revestiam sempre uma certa forma, quando a mulher era jovem e bela. ”Conheço dez homens que dariam esse dinheiro por uma noite de amor”, dissera Fortunata e Mariana acreditara numa mentira. Até que ponto M.me Hamelin estava ao corrente das intenções de Ouvrard? Não seria para que a indecente proposta lhe fosse feita directamente que ela não tratara do assunto até ao fim? Contudo, Mariana não podia decidir-se a acreditar que a amiga a tivesse atirado friamente para uma armadilha tão repugnante, conhecendo-a como a conhecia.

 

A resposta à amarga pergunta que fizera a si própria chegou, de repente, quando passava a porta da sala dos espelhos, através da voz prudente de Ouvrard.

 

Não vos esqueçais. Esperar-vos-ei. Mas... é inútil que a nossa querida Fortunata seja posta ao corrente do nosso encontro. É uma criatura adorável... mas é tão exclusiva!

 

Exclusiva? Fortunata? De repente, Mariana quase esqueceu a sua cólera, apetecendo-lhe dar uma gargalhada no nariz do homem! Era grotesco que essa personagem se julgasse suficientemente encantadora para prender ”exclusivamente” o pássaro exótico que era a bela crioula! Teve uma vontade irresistível de lhe atirar à cara que, naquele mesmo momento, ”a adorável e exclusiva criatura” se entregava, segundo todas as probabilidades, a violentas alegrias nos braços de um belo rapaz que era seu verdadeiro amante, só para ver o que ele diria!

 

Mas M.me Hamelin levava a vida que entendia e, por nada no mundo, Mariana lhe teria causado o menor aborrecimento. Aliás, era reconfortante saber que ela não estava ao corrente da pequena infâmia de Ouvrard, nem dos termos do negócio que ele tencionava propor. E, de repente, Mariana teve outra tentação: pô-la ao corrente da situação, o que não teria deixado de fazer se Fortunata estivesse sozinha. Mas Mariana não desejava nem tornar a ver o insolente Fournier, nem perturbar um encontro amoroso.

 

Dizei a M.me Hamelin que a verei amanhã, se ela estiver visível disse simplesmente a Jonas, que acorreu.

 

-Mas, Mademoiselle Mariana, não ides sair assim! Esperai um momento. Vou mandar preparar uma carruagem.

 

Não é preciso Jonas. Aí está a minha carruagem! Efectivamente, através das portas envidraçadas do vestíbulo,

 

acabava de ver Gracchus-Hannibal que, após uma curva graciosa, parava os cavalos diante do portão. Mas, enquanto Jonas lhe colocava, com solicitude, um xaile sobre os ombros, os seus olhos dilataram-se ao ver Arcadius sair da carruagem.

 

Um dos lados do fraque fora arrancado, as rendas da camisa pendiam-lhe do pescoço, como fios, o seu belo chapéu de seda estava completamente roto, tinha um olho negro e numerosos arranhões espalhavam-se pelo rosto. Deste modo, o visconde de Jolival trazia as marcas gloriosas do combate que acabava de travar, enquanto Gracchus, muito direito no seu assento, mas sem chapéu e esbaforido, muito vermelho, brandia ainda o chicote com tanta segurança como Júpiter Triunfante, manejando os raios.

 

Bem! Estais bonito! murmurou Mariana. Mas onde estivestes?

 

Entre a multidão, onde nos deixastes! respondeu Jolival. Estais, evidentemente, muito melhor do que nós... mas julgava lembrar-me que, à partida, tínheis um vestido cor-de-rosa!

 

-Também tive aventuras! Mas vinde, meu amigo, regressemos a casa. Precisais urgentemente de um banho e alguns cuidados. Para casa, Gracchus, e o mais depressa possível!

 

Se quereis ir rapidamente, temos de passar pelo muro dos Agricultores Gerais e dar a volta a metade de Paris.

 

Vai por onde quiseres, mas leva-nos e evita a multidão. Enquanto saíam, de novo, pelo portão da casa, Arcadius pôs-se a limpar o olho com o lenço.

 

Então? perguntou. Conseguistes qualquer coisa?

 

Dez mil libras que M.me Hamelin propôs emprestar-me, espontaneamente.

 

É amável... mas ainda não chega. Tentastes do lado de Ouvrard, como vos aconselhara?

 

Mariana comprimiu os lábios e franziu as sobrancelhas ao lembrar-se do que se acabava de passar.

 

Sim. Fortunata arranjou-me um encontro com ele, mas não pudemos entender-nos. É... demasiado caro para mim... Arcadius!

 

Fez-se um pequeno silêncio, que Jolival empregou a pesar aquelas palavras, cujo verdadeiro sentido descobriu sem grande dificuldade.

 

Ah! E... M.me Hamelin está ao corrente dos termos do negócio?

 

Não, e não querem que ela os conheça. Contudo, eu ter-lhos-ia dado a conhecer sem hesitar, se ela não estivesse tão terrivelmente ocupada.

 

Porquê?

 

Uma espécie de soldado ferido num ombro, que lhe caiu em cima, há bocado, como uma chaminé num dia de vendaval, e que parece ocupar um lugar importante na sua vida. Um certo...

 

-Fournier, já sei! Ah, o hussardo regressou? Detesta o Imperador, mas não pode suportar ficar muito tempo afastado dos campos de batalha.

 

Mariana deu um pequeno suspiro.

 

Haverá alguma coisa que vós não saibais, meu amigo? Jolival esboçou um sorriso que os arranhões tornavam, sem dúvida, doloroso e contemplou, demoradamente, as ruínas do chapéu.

 

Sim... por exemplo, como vamos arranjar as vinte mil libras que ainda nos faltam.

 

Só nos resta uma solução: as minhas jóias, ainda que isso me possa causar os piores aborrecimentos com o Imperador.

 

Amanhã vereis se é possível conseguir um penhor. Senão... teremos de vendê-las.

 

Fazeis mal, Mariana. Crede-me, mais valia falar com oImperador. Pedi-lhe uma audiência e, como cantais nas Tulherias depois de amanhã...

 

-Não... por preço nenhum! Ele sabe muito bem fazer perguntas e há coisas que eu não quero dizer-lhe. No fim de tudo, sou realmente uma assassina acrescentou com tristeza. Matei uma mulher sem querer, mas matei-a. Isso recuso-me a dizer-lhe.

 

Julgais que ele não fará perguntas, se souber que vendestes as esmeraldas?

 

Tentai obter a possibilidade de as retirar dentro de dois ou três meses. Cantarei sempre que me pedirem. Arranjai-me contratos...

 

-Está bem! suspirou Jolival. Farei o que puder. Entretanto, guardai isto...

 

Procurando no bolso do colete todo manchado, tirou qualquer coisa redonda e brilhante, que meteu na mão de Mariana.

 

O que é? -perguntou ela, inclinando-se para ver melhor, pois na carruagem a obscuridade era quase total.

 

Uma recordação deste excelente dia brincou Jolival. Uma das medalhas que distribuíram há momentos. Ganhei-a depois de grande luta. Guardai-a, pois paguei-a caro acrescentou ele, recomeçando a limpar o olho inchado.

 

Estou desolada por causa do vosso olho, meu pobre amigo, mas acreditai-me, ainda que viva mil anos, lembrar-me-ei sempre deste dia!

 

                                       O CARDEAL DE SÃO LOURENÇO

 

Fiel ao seu papel de cavaleiro acompanhante, o príncipe Clary viera buscar Mariana na quarta-feira seguinte para a conduzir às Tulherias. Mas, durante o percurso até ao velho palácio, numa carruagem da embaixada, Mariana observara o rosto preocupado do companheiro, apesar dos esforços que ele fazia por se mostrar como habitualmente. Uma ruga, que não conseguia fazer desaparecer, atravessava a testa do jovem sob a espessa cabeleira loura e o seu sorriso franco tinha muito menos alegria do que de costume. Aliás, ele admitiu-o sem dificuldade, quando ela meigamente lho fez notar.

 

Estou inquieto, minha querida Mariana. Não voltei a ver o Imperador desde anteontem, a noite do casamento, e pergunto a mim mesmo se a recepção de hoje vai decorrer sem percalços. Não conheço ainda bem Sua Majestade, mas vi-o tão zangado, no outro dia, à saída da capela...

 

-Zangado? À saída da capela? Mas o que se passou? perguntou Mariana, cuja curiosidade fora logo desperta.

 

Leopoldo Clary sorriu-lhe, pegou-lhe na mão e colocou-lhe um beijo rápido.

 

E verdade, vós não estáveis lá, porque me abandonastes. Pois bem, ao entrar na capela, o Imperador apercebeu-se que dos vinte e sete cardeais convidados, só doze tinham comparecido, raltavam quinze, e podeis acreditar que se notava imediatamente, pois era enorme o espaço que deixavam vazio.

 

Mas... porquê essa abstenção, certamente voluntária?

 

Não se pode duvidar e isso preocupa-nos muito na embaixada. Conheceis a posição do Imperador perante o Papa? Conserva Sua Santidade prisioneira em Savona e não quis dirigir-se-lhe para a dissolução do seu anterior casamento. Foi a Oficialidade de Paris que fez tudo... Ora, a ausência desses príncipes da Igreja deixa planar uma dúvida sobre a legitimidade do casamento da nossa arquiduquesa. É extremamente desagradável e aqueles quinze lugares vazios também não agradaram ao príncipe de Metternich.

 

Ah! disse Mariana com um certo sentimento de satisfação, vós sabíeis tudo isso antes da vossa princesa abandonar Viena. Deveríeis ter-vos mostrado mais firmes, no capítulo religioso. Podíeis ter exigido que Sua Santidade sancionasse o repúdio da Imperatriz Josefina. Não me digais que ignoráveis que o Papa excomungou o Imperador, haverá bem um ano?

 

Eu sei e sabemo-lo todos. disse tristemente Clary Porquê obrigar-me a lembrar-vos que, desde que fomos batidos em Wagram, temos necessidade de paz e descanso e não éramos suficientemente fortes para nos opormos, com uma recusa, ao pedido do Imperador Napoleão.

 

Dizeis que este casamento era inesperado para vós! disse a jovem com uma crueldade que logo lamentou, perante o ar infeliz do amigo e ao ouvi-lo suspirar:

 

Não é divertido ser vencido. Seja como for, este casamento está feito e, se nos custa ver a Igreja tratar assim uma das nossas princesas, não podemos deixar de lhe dar certa razão. É por isso que estou preocupado. Sabeis que todos os bispos e cardeais foram convidados para este concerto?

 

Mariana ignorava-o, tanto mais que não se vestira em grande gala. O seu vestido de espessa seda azul-pálido bordado de pequenas palmas de prata era pouco decotado, sob os fios de pérolas que tinham sido da mãe e a única jóia que conservava o resto fora entregue na véspera a Jolival. As mangas eram longas e cobriam até uma parte das mãos. Fez um gesto de despreocupação, dizendo:

 

Atormentais-vos por pouca coisa, meu amigo. Porque quereis que os cardeais hostis venham a este concerto, se não compareceram à cerimónia?

 

Porque os convites do vosso Imperador se assemelham muito a ordens formais e talvez não ousem abster-se uma segunda vez. Assistir ao casamento era, de qualquer modo, sancioná-lo, enquanto um concerto... e receio o acolhimento que Napoleão lhes vai fazer. Se tivésseis visto o olhar com que ele gratificou os lugares vazios na capela, estaríeis tão inquieta como eu. O meu amigo Lebzeltern sentiu frio nas costas. Se houver conflito, a nossa posição vai ser muito desagradável. O Imperador Francisco está em muito boas relações com Sua Santidade.

 

Desta vez, Mariana não respondeu, pouco interessada pelo caso de consciência da Áustria que, na sua opinião, merecia amplamente estes aborrecimentos. Aliás, estavam a chegar! A carruagem passara a ponte das Tulherias, os portões do Louvre e aproximava-se do gradeamento dourado que rodeava o pátio do Carrocel. Mas a progressão, rapidamente se tornou cada vez mais difícil. Uma grande multidão enchia os arredores do palácio, comprimia-se contra as grades, que alguns até subiam, a fim de ver melhor, apesar dos esforços desesperados dos guardas. Era uma multidão que parecia singularmente interessada e até divertida, pois ouviam-se exclamações e risos.

 

Quer ela seja parisiense ou vienense, o povo é sempre igualmente curioso, indiscreto e indisciplinado murmurou o príncipe. Olhai como cercam os portões, sem se importarem com as carruagens que chegam. Espero que consentirão em nos deixar passar...

 

Mas já o enviado da embaixada tinha conseguido que reconhecessem a carruagem e os granadeiros da guarda afastavam as pessoas. O cocheiro dirigiu os cavalos, passou o portão e os ocupantes da carruagem puderam ver o estranho espectáculo que apaixonava e divertia, ao mesmo tempo, os parisienses. No imenso pátio, entre as sentinelas e os oficiais do palácio, os criados e os palafreneiros, que velavam pela boa ordem da chegada dos convidados, quinze cardeais, vestidos de gala com a cauda das sotainas cor de púrpura deitada no braço, andavam de um lado para o outro, com os secretários e confidentes trotando atrás, como um batalhão de galinhas pretas perdidas... Iam e vinham sob um sol brilhando num céu azul e luminoso, salpicado de nuvens, mais ligeiras do que plumas. Contudo, era necessário o bom humor do povo de Paris para achar graça a essas majestosas silhuetas vermelhas, pois nem os soldados, nem os oficiais pareciam importar-se com eles.

 

O que quer isto dizer? perguntou Mariana, que, virando-se para Clary, o viu tornar-se muito pálido e a loura cabeleira tremer-lhe um pouco.

 

Receio que seja uma das manifestações da cólera do Imperador... Que haverá mais?

 

A carruagem parava em frente do portão. Um lacaio abriu a porta. Clary apressou-se a descer e ofereceu a mão à companheira para a ajudar a pôr o pé em terra:

 

Vinde depressa! Entremos! Daria tudo para não ver isto! disse ele.

 

Para descanso da vossa consciência? ironizou Mariana. Qual é o género de animal que pratica esse género de política? A avestruz, segundo me parece? Sereis vós... avestríaco?

 

Que horroroso jogo de palavras! Há momentos em que pergunto, a mim mesmo, se não me detestais!

 

Para dizer a verdade, Mariana já se tinha interrogado antes sobre o mesmo assunto, mas, por agora, a resposta não lhe interessava. Os seus olhos claros acabavam de se deter sobre um dos prelados, um homem, cuja estatura baixa e a capa magna transformavam numa enorme e curiosa rosa vermelha. De pé, sobre o último degrau da entrada, em companhia de um padre magro e vestido de preto que se curvava para ouvir melhor, virava-lhe as costas e parecia discutir com animação, sem se importar com os colegas que se dividiam em grupos de três ou quatro para deliberar. Qualquer coisa naquele cardeal fascinava Mariana, sem que ela fosse capaz de dizer o quê. A forma da cabeça talvez, por cima do cabeção de arminho, a cor dos cabelos grisalhos, sob o barrete cor de púrpura... Ou então, as mãos, admiráveis, aliás, que o prelado agitava no entusiasmo da discussão!... De repente ele virou a cabeça. À vista do seu perfil, Mariana soltou um grito impossível de reter; Padrinho!...

 

O sangue subiu-lhe às faces, ao reconhecer o homem que, durante toda a sua juventude, partilhara o seu coração de criança com a tia Ellis. E, esse coração, mal entrevira as linhas do rosto, não hesitara. O pequeno cardeal era Gauthier de Chazay.

 

O que dissestes? inquietou-se Clary vendo-a tão perturbada. Vós conheceis...

 

Mas ela não o escutava. Esquecera-o até totalmente, naquele instante, como esquecera o resto da decoração, o local onde se encontrava, tudo, até a sua própria personagem, para ser, como outrora, a pequena Mariana de dez anos, correndo tanto quanto as suas pernas lhe permitiam, do fundo do parque de Selton, quando avistava o padre de Chazay subir a grande avenida ao passo tranquilo da sua mula. Nem se surpreendia de encontrar, sob a púrpura cardinalícia, o padrezinho sempre com falta de dinheiro, trotando através da Europa em misteriosas viagens. Com ele tudo era possível, até o inimaginável I Foi invadida por uma alegria tão grande que repetiu muito, naturalmente, os gestos de outrora. Erguendo com as duas mãos o vestido faustoso e a cauda, lançou-se para a frente, juntando-se aos dois padres que se afastavam sem notarem a curiosidade que provocavam. Em três segundos, alcançou-os.

 

Padrinho! Que bom!... Que alegria!...

 

Rindo e chorando ao mesmo tempo, atirara-se impulsivamente ao pescoço do pequeno cardeal, que, estupefacto, mal tivera tempo de a reconhecer antes de recebê-la nos braços.

 

Mariana!

 

Sim, sou eu, sou mesmo eu! Oh! Meu padrinho, que felicidade!

 

Mariana aqui? Estarei louco? Mas que fazes tu em Paris? Ele desprendera-a de si e, agora, segurando-a com as mãos, olhava-a com uma alegria misturada de um espanto muito maior do que a preocupação da sua dignidade. Todo o seu rosto sem beleza, rebrilhava.

 

Mas não estarei a sonhar! És mesmo tu! Meu Deus, como te tornaste bonita! Deixa-me beijar-te outra vez!...

 

E, sob os olhos dilatados do padre magro e do príncipe Clary, que seguira maquinalmente a companheira, o cardeal e a jovem caíram nos braços um do outro com um entusiasmo que não deixava qualquer dúvida sobre o calor dos seus sentimentos mútuos.

 

Estas manifestações de afeição tão pouco protocolares deram, indubitavelmente, que pensar ao magro abade, pois começou a tossir e a bater, respeitosamente, no ombro do prelado:

 

Que Sua Eminência me perdoe, mas talvez... quero dizer... enh!... as circunstâncias... Enfim, Sua Eminência deveria reparar que vos olham!...

 

Era verdade. Servidores do palácio, guardas e prelados tinham os olhos fixos sobre o estranho grupo que formavam, sob os olhares de um padre vestido de preto e de um soberbo oficial austríaco, o pequeno cardeal e essa encantadora jovem sumptuosamente vestida. Sorriam e murmuravam. Só Leopoldo Clary parecia seguro de si. Mas Gauthier de Chazay encolheu os ombros com altivez:

 

Não digais tolices, Bichette! Podem olhar quanto quiserem! Sabei que é a minha filha, filha do meu coração, quero dizer, que acabo de encontrar! Mas penso que desejais ser apresentado? Mariana, minha pequena, eis o padre Bichette, meu secretário dedicado. Quanto a vós, meu amigo, sabeis que esta bela dama é a minha afilhada, Lady Mariana.

 

Deteve-se instantaneamente, realizando aquilo que ia dizer, levado pela alegria e pelo seu temperamento entusiasta. O sorriso desapareceu, como se qualquer mão invisível fechasse uma cortina, e olhou para Mariana com uma súbita inquietação:

 

É impossível! murmurou. Como podes estar aqui, em França, introduzida neste palácio em companhia de um austríaco...

 

Príncipe Leopoldo Clary und Aldringen! rectificou o jovem, batendo os calcanhares para cumprimentar.

 

Encantado! disse, maquinalmente, o cardeal que seguia a sua ideia. Eu dizia, como podes tu estar em Paris, quando a última vez que nos vimos foi...

 

Mariana apressou-se a interrompê-lo, tomada de um súbito pavor, adivinhando o que se iria seguir. O rosto surpreendido de Clary, que certamente ouvira o ”Lady Mariana”, era já bastante inquietante.

 

Explicar-vos-ei tudo isso mais tarde, querido padrinho. É uma história muito comprida e sobretudo impossível de contar no meio deste pátio. Dizei-me antes o que aqui fazeis vós. Ides partir a pé, se bem compreendi?...

 

Faço o que fazem os outros! respondeu o cardeal. Quando nos apresentámos aqui, os meus irmãos e eu, o Grande Marechal do Palácio intimou-nos a partir, porque Sua Majestade, o Corso, recusava receber-nos, o pretensioso!

 

Eminência! implorou o padre Bichette, revirando os olhos aflitos, tende cuidado com as palavras!

 

Digo aquilo que quero! Puseram-me na rua, não? E tiveram até a delicadeza de mandar embora as nossas carruagens, para que pudéssemos oferecer ao povo de Paris um espectáculo divertido: quinze cardeais caminhando na poeira, de sotainas levantadas, regressando a casa a pé como merceeiros! Espero que a boa gente de Paris dê o justo valor à cortesia do seu soberano!

 

Monsenhor de Chazay tornara-se tão vermelho como o seu fato e a voz aristocrática, sempre tão doce, começava a elevar-se de modo inquietante. Clary interveio;

 

Vossas Eminências, se compreendo bem, são aquelas que julgaram não dever assistir ao casamento da nossa arquiduquesa? exclamou ele em tom severo. É evidente que o Imperador Napoleão não podia deixar passar tal afronta sem procurar qualquer vingança. Confesso que até esperava pior.

 

O pior virá, certamente, não tenhais receio! Quanto à Arquiduquesa, acreditai, Senhor, que lamentamos infinitamente, mas devíamos conformar-nos inteiramente com a posição que Sua Santidade tomou. O casamento de Napoleão e de Josefina não foi anulado por Roma.

 

Por outras palavras, a nossa princesa não está casada, na vossa opinião... respondeu Clary com irritação.

 

Mariana, assustada, vendo surgir um novo assunto de escândalo, apressou-se a intervir:

 

Por piedade, senhores! Aqui não... Padrinho, não podeis partir assim, a pé. Mas primeiro, onde habitais?

 

Em casa de um amigo, o cónego Philibert de Bruillard na Rua Chanoinesse. Não sei se soubeste, pequena, mas a casa da nossa família pertence agora a uma cantora de ópera, que concede facilidades a Napoleão... Não moro pois aí...

 

Mariana teve, de repente, a impressão de que a tinham esbofeteado. Cada uma das terríveis palavras acabava de lhe fazer uma ferida, por onde se escapava o sangue da sua alma. Pálida até aos lábios, recuou e procurou o braço de Leopoldo Clary para se apoiar. Sem esse socorro teria caído, sem dúvida, na própria poeira que já maculava os sapatos vermelhos do príncipe da Igreja. Aquelas poucas palavras tinham medido o abismo que se formara entre a sua infância e a vida actual. Invadia-a agora o enorme terror que Clary, com a sua ingénua franqueza e cavalaria de outra época, restabelecesse a verdade e anunciasse, como que para a defender, que a cantora de ópera em questão era precisamente ela. Mariana tencionava dizer a verdade, toda a verdade ao padrinho, mas no seu momento próprio e não no meio da multidão...

 

Tentando desesperadamente dominar a emoção, fez um pálido sorriso, enquanto a sua mão se crispava na manga do príncipe.

 

Irei ter convosco esta noite, se o permitis. Entretanto a carruagem do príncipe Clary vai conduzir-vos a casa, Padrinho.

 

O jovem austríaco teve um sobressalto.

 

Mas... minha querida, o que dirá o Imperador?

 

Ela, imediatamente se recompôs, fiel ao hábito de encontrar na cólera um bom paliativo para as suas profundas emoções.

 

Não sois súbdito do Imperador, meu querido príncipe. Além disso, recordo-vos que o vosso soberano mantém excelentes... relações com o Senhor Padre. Ou ter-vos-ei compreendido mal?

 

Leopoldo Clary endireitou-se, erguendo o queixo, como se se encontrasse bruscamente perante o próprio Francisco.

 

Compreendestes bem. Eminência, a minha carruagem e os meus criados estão à vossa disposição. Se quereis dar-me a honra...

 

Com um gesto seco de dedos, sem sequer se virar, chamara o cocheiro que, perante a conduta tão estranha do jovem adido da embaixada, ainda não se deslocara do portão. A carruagem veio docilmente alinhar-se perto do grupo e um dos lacaios, saltando do seu lugar, foi abrir a porta e baixar o estribo.

 

Os olhos claros do cardeal envolveram, com o mesmo olhar, a jovem de vestido azul, de repente, tão pálida, e o príncipe austríaco, quase tão pálido como ela, no seu uniforme branco. Havia no azul cândido do seu olhar um mundo de interrogações, mas Gauthier de Chazay não fez nenhuma. Com um gesto cheio de majestade, estendeu aos lábios de Clary o anel de safira, que ornava a sua mão, antes de o oferecer aos de Mariana, que, sem se importar com o pó, dobrou um joelho.

 

Esperar-te-ei esta noite disse ele, depois da saudação. Ah... esquecia-me! Sua Santidade Pio VII conferiu-me o chapéu de cardeal sob o título de São Lourenço-fora-dos-muros É sob este nome que sou conhecido... e admitido em França.

 

Alguns instantes mais tarde, a carruagem austríaca passou os portões das Tulherias sob o olhar invejoso dos outros príncipes da Igreja ao abandono, que, aliás, um a seguir ao outro, se resignava a sair também, com os familiares atrás, à procura de uma problemática carruagem de aluguer. Sem se mexerem, Mariana e Clary viram desaparecer o cardeal de S. Lourenço.

 

Maquinalmente, a jovem sacudiu, com as luvas, o pó que se acumulara nas palmas de prata do seu vestido e depois virou-se para o companheiro:

 

Vamos, agora?

 

Sim... mas pergunto a mim mesmo como iremos ser recebidos. Metade dos habitantes deste palácio viu-nos oferecer uma carruagem a um homem que, muito certamente, Sua Majestade o Imperador considera um inimigo.

 

Não vos interrogueis tanto, meu amigo. Vamos, vejamos e acreditai que há na vida coisas bem mais temíveis do que a cólera do Imperador! acrescentou ela entre dentes, pensando no que diria o padrinho, nessa noite quando soubesse...

 

A perspectiva desse momento atenuava um pouco a profunda alegria que sentira há instantes ao encontrá-lo, mas contudo não conseguia apagá-la. Fora tão bom tornar a vê-lo, sobretudo agora que tinha tanta necessidade de auxílio! É evidente que ouviria coisas muito desagradáveis, julgaria, certamente, com muita severidade a nova carreira de cantora... mas acabaria por compreender. Ninguém era mais humano e bondoso do que o Padre de Chazay... Porque haveria de ser diferente o Cardeal de S. Lourenço? E Mariana recordava, com um certo prazer, a instintiva desconfiança que o padrinho manifestara outrora para com Lord Cranmere. Não poderia deixar de lamentar a infelicidade de uma afilhada que amava. Acabara de lhe chamar minha filha... Não, no fim de tudo, a noite, que se aproximava, anunciava-se para Mariana infinitamente mais atraente

 

Cada cardeal é titular de uma paróquia romana.

 

do que inquietante. Gauthier de Chazay, cardeal de S. Lourenço, não teria qualquer dificuldade em conseguir que o Papa anulasse o casamento, que para a afilhada era um fardo tão pesado...

 

Mariana nunca tinha entrado nos apartamentos de luxo das Tulherias. A sala dos Marechais, onde deveria realizar-se o concerto, esmagou-a pelo seu esplendor e dimensões. Antigamente fora a sala dos Guardas de Catarina de Médicis e era uma divisão enorme, onde tinham reunido dois andares sob o tecto do pavilhão central do palácio. À altura de um primeiro andar, em face do estrado, onde se deveriam colocar os artistas, abria-se uma grande tribuna, onde dentro de momentos o Imperador e a família tomariam lugar. Essa tribuna era sustida por quatro gigantescas cariátides completamente douradas, representando mulheres vestidas à romana, mas desprovidas de braços. Um balcão, sobre o qual se abriam arcadas, assim como portas e janelas, de veludo vermelho semeado de abelhas douradas, partia de cada lado da tribuna e dava a volta à sala. O tecto formando uma cúpula de quatro faces tinha os ângulos ornados de trofeus de armas, tão dourados como monumentais, e o centro estava ocupado por um lustre colossal, todo em cristal facetado, mas que deveria ser julgado insuficiente, pois tinham-no acompanhado de mais quatro do mesmo género, embora mais pequenos. A abóbada estava pintada com frescos alegóricos e, para acabar de dar à sala um aspecto guerreiro, as paredes do rés-do-chão tinham os retratos de catorze marechais de pé, separados pelos bustos de vinte e dois generais e almirantes.

 

Apesar da multidão, que enchia e decorava o balcão, Mariana sentiu-se perdida nessa sala vasta como uma catedral. Reinava aí um murmúrio de pássaros loucos, onde se perdiam as notas dos músicos que afinavam os instrumentos. Amontoavam-se tantos rostos na sua frente, num caleidoscópio impressionante de cores e reflexos de jóias, que durante um momento Mariana foi incapaz de reconhecer uma só pessoa. Todavia viu Duroc, magnífico no seu fato violeta e prateado de Marechal do Palácio, vir na sua direcção, mas foi a Clary que se dirigiu.

 

O príncipe de Schwartzenberg deseja ver-vos imediatamente, Senhor. Pede-vos para ir ter com ele ao gabinete do Imperador.

 

No gabinete do...

 

Sim. Senhor, e é melhor não o fazer esperar.

 

O jovem príncipe trocou com Mariana um olhar consternado. Aquele convite só podia significar uma coisa: Napoleão já estava ao corrente do assunto da carruagem e o pobre Clary ia passar um mau bocado. Incapaz de deixar um amigo suportar o peso de uma falta sua, Mariana interpôs-se:

 

Sei porque o príncipe é chamado perante Sua Majestade, Senhor Marechal, mas como se trata de um assunto que só a mim diz respeito, peço-vos que me deixeis acompanhá-lo!

 

O rosto grave do duque de Frioul não se suavizou, muito pelo contrário, envolveu a jovem num olhar severo.

 

Não me compete, Mademoiselle, introduzir junto de Sua Majestade alguém que não foi mandado chamar. Por outro lado, devo conduzir-vos até os Srs. Gossec e Piccini, que vos esperam perto da orquestra.

 

Por favor Senhor Duque! Sua Majestade corre o risco de cometer uma injustiça.

 

Sua Majestade sabe perfeitamente o que faz! Príncipe, vós já deveríeis ter partido. Quereis seguir-me, Mademoiselle?

 

De boa vontade ou não, foi preciso que Mariana se separasse do companheiro e seguisse o Marechal. Um murmúrio ligeiro e discretos aplausos elevaram-se à sua passagem, mas, preocupada como estava, não lhes prestou atenção. Timidamente, mas com firmeza, pousou o braço sobre o de Duroc.

 

Preciso de falar com o Imperador, Senhor Marechal!

 

Também o vereis, Mademoiselle. Sua Majestade dignou-se dizer que vos receberia à saída do concerto!

 

Dignou-se... Como estais severo, senhor duque! Já não somos amigos?

 

Um ligeiro sorriso distendeu fugitivamente a boca cerrada de Duroc.

 

Sê-lo-emos sempre segredou-lhe rapidamente, mas o Imperador está muito zangado... e eu não tenho o direito de me mostrar amável convosco!

 

Caí... em desgraça?

 

Não saberei dizer, mas parece que sim.

Entãodisse atrás de Mariana uma voz amável e lenta, deixai-ma por um momento, meu caro Duroc. Os desgraçados devem amparar-se, ha?

 

Ainda antes da famosa interjeição final, Mariana tinha reconhecido Talleyrand. Muito elegante num fraque azeitona, constelado de decorações, a sua perna defeituosa metida numa meia de seda branca e apoiada à bengala de punho de ouro, agraciava Duroc com um sorriso impertinente, ao mesmo tempo que oferecia o braço a Mariana.

 

Talvez feliz por se ter desembaraçado dela, o Grande Marechal inclinou-se de boa vontade e abandonou a jovem ao Vice-Grande Eleitor.

 

Certamente, príncipe, mas não vos afasteis, o Imperador não deve tardar.

 

Eu sei murmurou Talleyrand. Somente o tempo de lavar o cérebro ao jovem Clary, para lhe ensinar a não se mostrar tão submisso ao encanto de uma linda mulher. São só cinco minutos. Eu conheço-o.

 

Enquanto falava, conduzia lentamente Mariana para o vão de uma das altas janelas. O seu ar despreocupado era o de um homem que se entrega a uma agradável conversa de salão, mas Mariana depressa compreendeu que o companheiro dizia coisas muito sérias.

 

Clary passa, sem dúvida, um mau bocado murmurou, mas receio que vós tereis a parte principal da cólera imperial. Que mosca vos picou também? Saltar ao pescoço de um cardeal em pleno pátio das Tulherias... e de um cardeal em desgraça, ainda por cima? São coisas que não se fazem... senão por alguém de muito chegado, ha? Mariana não respondeu. Era difícil explicar o seu gesto sem confessar a verdadeira identidade. Não era ela, para Talleyrand, uma certa rapariga Mallerousse, bretã? Alguém que de modo nenhum podia ser parente de um príncipe da igreja. Enquanto procurava, em vão, uma explicação plausível, o príncipe de Benévent continuou sempre num ar despreocupado:

 

Conheci outrora muito bem o padre de Chazay. Iniciou-se como vigário do meu tio, o arcebispo duque de Reims, que é, actualmente, o capelão do rei emigrado.

 

Sentindo, bruscamente, uma angústia, Mariana tinha a impressão de que as palavras do príncipe teciam pouco a pouco à sua volta uma teia. Recordava, no dia do seu casamento, a alta silhueta de Monsenhor Talleyrand Périgord, capelão de Luís XVIII. Efectivamente, o padrinho estava em óptimas relações com o prelado. Fora até ele quem emprestara os paramentos litúrgicos para a cerimónia de Selton Hall. Mas, sem parecer notar a sua perturbação, Talleyrand prosseguia, com a mesma voz tranquila e monótona, como um lago calmo.

 

Eu morava, nessa época, na Rua de Bellechasse, muito perto da Rua de Lille, então Rua de Bourbon e tinha excelentes relações de vizinhança com a família do padre. Ah! que tempo delicioso! suspirou o príncipe. Na verdade, quem não viveu nos anos à volta de 1789 não sabe o que é o prazer de viver. Creio nunca ter encontrado casal mais bonito, mais harmonioso e mais ternamente unido do que o marquês e a marquesa de Asselnat... cuja casa vós habitais neste momento.

 

Apesar do domínio sobre si própria, Mariana sentiu uma vertigem. A sua mão- crispou-se sobre o braço de Talleyrand e agarrou-se para melhor lutar contra a emoção. Teve dificuldade em recuperar a serenidade, de tal modo o coração lhe batia. Parecia-lhe que as pernas iam bruscamente recusar-se a andar, mas o príncipe, impassível, continuava a oferecer-lhe um perfil calmo e sereno, enquanto os seus olhos pálidos mal sustinham as pesadas pálpebras para olhar à volta. Uma grande mulher, ruiva como uma chama, muito bonita e vestida de branco, passou junto deles.

 

Não vos conhecia um gosto tão pronunciado pela ópera, meu querido príncipe! disse ela com uma insolência de grande dama.

 

Talleyrand saudou-a gravemente:

 

Qualquer forma de beleza tem direito à minha admiração, senhora duquesa, vós devíeis sabê-lo...

 

Eu sei, mas faríeis bem em conduzir... essa pessoa para junto dos músicos. O pequeno mi... enfim, quero dizer, o casal imperial vai fazer a sua entrada.

 

Vamos já! Obrigado, Madame.

 

Quem é? perguntou Mariana enquanto a bela mulher ruiva se afastava. Porque me despreza ela tão visivelmente?

 

Ela despreza toda a gente... e a si própria ainda mais do que os outros, desde que, para servir uma Arquiduquesa, consentiu, finalmente, em aceitar o cargo de dama do Palácio. É M.me de Chevreuse. E, como vistes, muito bonita. Tem também muito espírito e é muito infeliz, porque a sua alma apaixonada quase a sufoca. Imaginai que tem de dizer agora ”O Imperador” e ”Majestade” a alguém a quem particularmente chama só ”o miserável”. Ia-lhe, aliás, escapando há bocado... Quanto a desprezar-vos...

 

Subitamente, Talleyrand pousou o seu olhar vítreo em Mariana e disse com seriedade:

 

... Não tem outra razão para o fazer, a não ser aquela que vós própria lhe destes! Uma Chevreuse pode desprezar uma Maria-Stella... mas teria aberto os braços à filha do Marquês de Asselnat.

 

Fez-se um silêncio. Um pouco inclinado para a companheira, Talleyrand mergulhou os olhos claros até ao fundo do olhar verde que, no entanto, não se afastou.

 

Desde quando sabeis?perguntou Mariana com uma calma súbita.

 

Desde que o Imperador vos deu a casa da Rua de Lille. Nesse dia compreendi donde vinha a vaga recordação que não conseguia situar, essa semelhança que não podia definir. Soube então quem éreis realmente.

 

Porque não dissestes nada? Talleyrand encolheu os ombros.

 

Para quê? A coisa mais imprevisível aconteceu: tínheis-vos apaixonado pelo homem que fostes criada para odiar.

 

Mas em cujo leito me lançastes! disse Mariana brutalmente.

 

Lamentei-o bastante... nesse famoso dia em que vos acabo de falar. Depois pensei que valia mais deixar o tempo actuar. Esse amor não iria morrer de velho. Nem esse amor, nem a vossa carreira artística...

 

Impressionada, Mariana perguntou:

 

Por que razões, se faz favor?

 

Por uma única razão. Não sois feita, nem para Napoleão, nem para o teatro. Ainda que tenteis persuadir-vos do contrário, sois uma das nossas, uma aristocrata e da melhor raça. Pareceis-vos tanto com o vosso pai!

 

É verdade, conheceste-lo? disse Mariana com uma súbita avidez, vinda das profundezas do seu ser, por conhecer finalmente a verdade desse homem que lhe dera a carne e o sangue e de que, no entanto, apenas vira a imagem. Falai-me dele!

 

Docemente Talleyrand retirou a mão trémula, pousada sobre a sua manga, mas conservou-a um instante na sua.

 

Mais tarde. Aqui seria difícil evocar o seu fantasma. Não se sentiria bem! O Imperador aproxima-se. Tendes de ir, pelo menos por agora, Maria-Stella.

 

Com maior firmeza, ele guiava-a até ao grupo dos músicos, no meio do qual avistava Gossec, que a chamava com muitos gestos, Piccini que abria as partituras sobre o piano e Paer, o mestre de capela imperial, que limpava cuidadosamente a batuta. No momento em que chegou junto deles, movida por um impulso súbito, Mariana reteve o Vice-Grande Eleitor.

 

Se não sou feita nem para... o Imperador nem para o teatro, para quê, na vossa opinião, sou eu feita?

 

Para o amor, minha querida! -Mas... nós amamo-nos!

 

Não confundais. Eu disse o amor... um grande amor, aquele que transforma o mundo, faz fundir as dinastias imorredouras... aquele que se conserva para além da morte, aquele que a maior parte dos homens nunca encontra.

 

Porque o encontrarei eu?

 

Porque, se o não encontrais, é que ele não existe, Mariana... e porque é preciso que ele exista para eu continuar a negá-lo!

 

Profundamente perturbada, Mariana viu afastar-se o estranho coxo com o passo desigual e, contudo, elegante. Entrevia nessas palavras, tão pouco conformes à personagem e à lenda de Talleyrand, no desejo de a reivindicar para a casta comum, como que um oferecimento de amizade, ou pelo menos de ajuda... Ajuda! num momento em que tinha tanta necessidade dela! Mas poderia acreditar na sinceridade do príncipe de Bénevent? Por ter vivido sob o seu tecto, Mariana, melhor do que ninguém, conhecia essa espécie de encanto que dele imanava, tanto mais poderoso quanto parecia completamente involuntário. Lembrou-se, de repente, de uma frase do conde de Montrond que Fortunata Hamelin lhe repetira, um dia, a rir: ”Ah! Quem não o amaria? Ele tinha tantos vícios!”

 

Que procurara ele nessa noite? Conduzi-la, sem pensamentos reservados, para uma existência digna do seu nascimento ou, simplesmente, desligá-la mais do Imperador... do Imperador que ele traía, segundo se dizia, em benefício do Czar?

 

Um toque de trombetas, a pancada solene do bastão do conde de Ségur, Grande Mestre de Cerimónias, e a vasta sala encheu-se de um respeitoso silêncio, enquanto todos se viravam para o grande balcão, onde, numa torrente de vestidos brilhantes e uniformes dourados, o casal imperial acabava de fazer a sua entrada. Sobre o fundo cintilante das damas da corte e dos ajudantes de campo, Mariana viu destacar-se duas silhuetas; o uniforme verde de Napoleão e o vestido cor-de-rosa de Maria Luísa; depois, não viu mais nada. Como toda a corte, inclinou-se na reverência.

 

Porque havia de acabar essa reverência? Quando Mariana ergueu os olhos para os recém-chegados, a imagem de felicidade que ofereciam fez-lhe doer o coração. Teve a brusca certeza de um entendimento... Sem um olhar para a sala brilhante, Napoleão ajudava a sentar a sua mulher, com gestos ternos, pousando mesmo um beijo na mão que conservou entre as suas, quando, por sua vez, se sentou. Continuou, aliás, inclinado para ela, falando-lhe baixo, sem se importar com os assistentes.

 

Interdita, Mariana, de pé junto do piano, não sabia que atitude tomar. A corte sentara-se à espera que o Imperador desse o sinal para se iniciar o concerto, esse concerto que ele pedira, para fazer descansar Maria Luísa entre o grande almoço de gala e a recepção em que a nova imperatriz devia receber as felicitações do corpo diplomático e dos corpos constituídos.

 

Mas Napoleão continuava o seu segredo sorridente e Mariana, num suplício, teve, subitamente, a impressão de que o estrado baixo era uma espécie de pelourinho, onde a pregara o capricho cruel de um amante esquecido. Invadiu-a uma vontade louca de’ fugir daquela sala tão rica, daquelas centenas de pares de olhos. Infelizmente não era possível... Em cima, na tribuna, o conde de Ségur inclinava-se respeitosamente para Sua Majestade, pedindo, sem dúvida, o sinal... que lhe concederam com um gesto repentino, sem o olharem e que ele traduziu por uma solene bastonada.

 

A bastonada produziu, como um eco, as pancadinhas secas da batuta de Paer sobre a estante. Ao piano, Alexandre Piccini atacou o primeiro acorde e os violinos entraram. Pelo olhar assustado, que ele lhe lançou, Mariana compreendeu a sua perturbação. Em baixo, a um canto, viu o rosto inquieto de Gossec, pousado em si, como numa oração. Nunca tinham visto o Imperador tratar tão cavalheirescamente uma artista célebre. Mas Mariana lembrou-se de que se encontrava mais ou menos em desgraça, se acreditasse no que Duroc dissera; em desgraça por não ter permitido que o seu velho padrinho arrastasse as saias de seda cor de púrpura pela lama de Paris!...

 

Uma cólera benfazeja veio em seu socorro. A primeira peça que devia interpretar era a grande ária da ”Vestale”, a ária favorita do Imperador. Com uma profunda inspiração que acalmou o bater desordenado do seu coração, ela atacou-a com uma energia que subjugou a assistência. Ao clamar o desespero de Júlia, a vestal condenada a descer viva ao túmulo, quando tudo nela aspira à vida, Mariana encontrou expressões de uma tal intensidade que impressionaram uma assistência indiferente. Cantou, empregando todo o seu talento, na esperança de forçar, finalmente, a atenção do Imperador. Nas últimas notas, a dor vibrou de forma tão pungente, na sua voz, que se ouviram ”bravos” frenéticos, espontâneos e irresistíveis. Era contra o protocolo, pois só os soberanos podiam dar esse sinal. Mas a arte da cantora tinha electrizado o público.

 

Ergueu, para o camarote imperial, olhos brilhantes de esperança... Enfim! Napoleão não só não a olhava, mas nem parecia ter-se apercebido de que ela cantara. Inclinado para Maria Luísa, falava-lhe muito de perto. Ela escutava-o, com os olhos baixos, um sorriso um pouco néscio nos lábios e tão vermelha que Mariana, furiosa, concluiu que ele lhe dizia palavras galantes. Com um gesto imperativo, indicou a Paer para começar a segunda parte, que era uma ária do ”Casamento secreto” de Cimarosa.

 

Nunca a música terna e ligeira do compositor italiano fora cantada com tal ardor.

 

Com os olhos verdes fitos no Imperador, Mariana parecia querer forçar a sua atenção. Uma cólera tumultuosa enchia-lhe o coração, roubando-lhe o juízo ou o controlo de si própria. Porque sorria a tola vienense com cara de gata em frente duma taça de leite? Dizer que tinham pretendido que ela gostava de música!

 

Sem dúvida que Maria Luísa só gostava da música do seu país, pois, não só não escutava, como ainda, no meio da ária, ouviu-se o seu riso... um riso pueril, mas bastante sonoro para passar despercebido.

 

O sangue afluiu ao coração de Mariana. Pálida, calou-se de repente. Os seus olhos chamejantes planaram um instante sobre a assembleia em que todos os olhares possuíam a mesma expressão de expectativa. Depois, erguendo a cabeça com arrogância, abandonou o estrado e, no meio de um silêncio consternado, saiu da sala dos Marechais, sem que ninguém, nem mesmo os guardas da porta, pensassem em detê-la.

 

Direita, com a cabeça em fogo e as mãos geladas, prosseguiu o seu caminho sem querer ouvir a espécie de tempestade que rebentava atrás de si. Tinha uma única ideia no cérebro ardente: abandonar para sempre o palácio, onde aquele que amava acabava de lhe infligir uma afronta tão cruel, ir para casa e enterrar a sua dor no fundo da morada familiar, enquanto esperava... o que não poderia deixar de se seguir após uma tal explosão: a cólera do Imperador, os gendarmes, a prisão talvez... Mas, nesse momento, tudo era indiferente a Mariana. Estava num tal estado de desespero que teria caminhado para o cadafalso, sem virar a cabeça.

 

Atrás de si, soou uma voz:

 

Parai!... Menina! Menina Maria-Stella!...

 

Mas ela continuou a descer a grande escadaria de pedra, como se nada fosse. Para dizer a verdade, nada ouvira. Somente, quando Duroc a apanhou nos últimos degraus, ela parou, olhando com indiferença o Grande Marechal do Palácio, que parecia muito próximo da apoplexia. Estava quase tão violeta como o seu magnífico fato bordado.

 

Estais louca? lançou ele, tentando recuperar o fôlego.- Um escândalo destes... em frente do Imperador!

 

Quem deu o exemplo do escândalo, senão o próprio Imperador... ou, pelo menos, essa mulher?

 

Essa mulher? A Imperatriz? Oh!...

 

Não conheço outra Imperatriz senão a que foi sagrada pelo Papa, a de Malmaison! Quanto à caricatura a que vós chamais assim, recuso-lhe, em todo o caso, o direito de me ridicularizar publicamente. Ide dizer isso ao vosso senhor!

 

Fora dela, Mariana não se continha. A sua voz fria soava sob as abóbadas de pedra do velho palácio, com um som que Duroc classificou dos mais incómodos. Sob o bigode do granadeiro da guarda, em pé, junto da escadaria, não existiria a sombra de um sorriso? Ele próprio sentia uma indulgência culposa por aquela encantadora fúria...

 

Dando à voz uma severidade que não sentia, o bom Duroc articulou, pegando no braço de Mariana:

 

Receio que tenhais de lho dizer vós própria, Mademoiselle. As ordens do Imperador são que vos conduza ao seu gabinete, onde o esperareis.

 

Estou presa?

 

Que eu saiba não... pelo menos ainda não!

 

A reticência estava cheia de desagradáveis subentendidos, mas não perturbou Mariana. Esperava pagar muito caro a sua cartada, mas se lhe ofereciam a possibilidade de exprimir a Napoleão aquilo que lhe pesava no coração, não seria um preço muito elevado. Tencionava fazê-lo, sem mastigar as palavras. Prisão por prisão, então que valesse a pena. Pelo menos, o seu encarceramento pô-la-ia ao abrigo das maquinações de Francis Cranmere. O interesse do inglês não seria esmagá-la definitivamente. Seria então obrigado a esperar que ela saísse da prisão.

 

Restava Adelaide, mas, por esse lado, confiava em Arcadius para fazer o necessário.

 

Foi portanto com uma certa serenidade e a cólera momentaneamente acalmada pela perspectiva de um encontro com o Imperador que a revoltada entrou no gabinete, que conhecia tão bem, e ouviu Duroc ordenar a Roustan, o mameluco de guarda, para não deixar entrar ninguém e proibir a M.le Maria-Stella comunicar com quem quer que fosse. Esta última recomendação provocou nela um sorriso.

 

Vedes que estou prisioneira! disse docemente.

 

Já vos disse que não, mas não quero que o jovem Clary venha chorar a esta porta como um ”lulu”, que perdeu o dono. Quanto a vós, aconselho-vos a vos preparardes para uma longa espera, pois o Imperador não virá antes do fim da recepção.

 

Sem outra resposta além de um ligeiro, mas muito impertinente, encolher de ombros, Mariana foi instalar-se perto do fogo, sobre o pequeno canapé amarelo, onde vira Fortunata Hamelin pela primeira vez. A lembrança da amiga acabou por a fazer recuperar a calma. Fortunata conhecia muito bem os homens, para nunca ter tido medo de Napoleão. Conseguira persuadir Mariana de que o pior dos erros era tremer mesmo sobretudo se ele tinha uma das suas célebres cóleras. Era, nas circunstâncias presentes, um conselho útil a relembrar.

 

Um profundo silêncio, apenas interrompido pelo crepitar do fogo, envolveu a jovem. O quarto, apesar da sua severidade, era quente e íntimo. Era a primeira vez que aí se encontrava sozinha e, movida por uma curiosidade muito feminina, começou a inspeccioná-lo. Era-lhe agradável ver-se nesse gabinete, onde tudo recordava o Imperador. Desprezando as pastas de documentos, as carteiras de couro vermelho com as armas imperiais, o grande mapa da Europa atirado, como por acaso, sobre a secretária e a mesa junto de uma das janelas, divertiu-se a pegar nos lápis, na longa pena de pato branca metida no tinteiro de pórfiro, na águia de bronze dourada e numa tabaqueira de ouro cinzelado que, mal fechada, deixava escapar o seu pó odorante. Cada objecto proclamava a sua presença... até o bicórneo preto, torcido e atirado para um canto, sem dúvida num ataque de cólera recente, visto que Constante não o apanhara ainda. Teria sido o assunto da carruagem que motivara a cólera? Apesar da sua intrepidez, Mariana não pôde deixar de sentir um arrepio percorrer-lhe as costas. Que se iria passar?...

 

A inquietação é uma companheira sem atractivos. Subitamente, o tempo pareceu muito longo à jovem. Pressentia uma batalha e tinha pressa de se lançar nela. Cansada de andar à volta no silêncio filtrado do gabinete, pegou num livro que estava sobre a secretária e foi sentar-se. Encadernado de couro verde, com as armas imperiais, era um exemplar usado e velho dos ”comentários” de César. Estava tão anotado e rasurado, as margens tinham tantas linhas de uma letra fina e nervosa que se tornara perfeitamente ilegível, para quem não fosse o autor das notas. Com um suspiro, Mariana deixou-o cair sobre os joelhos, conservando porém a mão sobre o couro envelhecido, procurando inconscientemente a lembrança de uma outra mão. Sob os seus dedos, a encadernação aqueceu, tornou-se quase humana. Para melhor saborear a sensação, Mariana fechou os olhos...

 

Acordai!

 

A jovem teve um sobressalto. Abriu os olhos e viu que, na secretária, as velas tinham sido acesas, que lá fora era já noite... e que Napoleão, com um olhar colérico e os braços cruzados sobre o peito, estava de pé na sua frente.

 

Admiro a vossa coragem! disse ele sarcasticamente. Aparentemente, o facto de terdes provocado a minha cólera não vos fez tremer muito. Dormíeis profundamente.

 

O tom era brutal, agressivo, visivelmente calculado para aterrorizar alguém mal acordado, mas Mariana possuía essa faculdade de ficar instantânea e completamente desperta, ainda que tivesse estado a dormir profundamente, momentos antes. Além disso, jurara fazer tudo para conservar a calma, tanto quanto lhe fosse possível.

 

O Grande Marechal disse ela suavemente tinha-me prevenido que teria de esperar muito tempo. O sono não é a melhor forma de preencher o tempo de espera?

 

Julgo-o mais impertinente do que salutar, Madame... tanto mais que estou ainda à espera da vossa reverência.

 

Era evidente que Napoleão procurava a discussão. Pensara encontrar uma Mariana inquieta, trémula, agitada, talvez com os olhos vermelhos. Essa mulher, que acordava tão calmamente, só o irritava. Apesar da expressão ameaçadora do seu olhar cinzento, a jovem arriscou um sorriso.

 

Estou pronta a cair aos pés de Vossa Majestade, Sire... se Vossa Majestade quiser recuar o bastante para me permitir abandonar este canapé.

 

Ele fez uma exclamação de cólera e, furioso, virou-lhe as costas para se dirigir para a janela, como se tivesse a intenção de passar através dela.

 

Mariana, então, deslizou do canapé para o chão, onde se dobrou na mais profunda e respeitosa das reverências.

 

’Aqui tendes, Sire! murmurou.

 

Mas ele não lhe respondeu. Virado para a janela, com as mãos apertadas atrás das costas, conservou um silêncio que pareceu a Mariana uma eternidade, porque a obrigou a conservar-se nessa inconfortável posição, quase ajoelhada. Compreendendo que ele procurava deliberadamente humilhá-la, reuniu toda a coragem para o que se ia seguir e só poderia ser desagradável. Só desejava uma coisa: salvar o seu amor apesar de tudo e contra tudo...

 

Bruscamente, mas sem se virar, Napoleão falou.

 

Espero as vossas explicações, se todavia as possuis, para a vossa conduta insensata! As vossas explicações e as vossas desculpas, bem entendido. Parece que perdestes subitamente todo o senso comum, toda a noção do respeito mais elementar para comigo e para com a vossa Imperatriz. A menos que tenhais enlouquecido!

 

Mariana pôs-se de pé, no mesmo instante, muito corada. As palavras ”vossa imperatriz” tinham-na magoado, como um chicote.

 

Desculpas? disse numa voz clara. Tenho a impressão que não sou eu quem a deve pedir!

 

Desta vez, ele virou-se, dardejando-a com um olhar escaldante de furor.

 

Que dizeis?

 

Que, se alguém foi insultado neste palácio, fui eu e mais ninguém! Ao abandonar a sala, não fiz mais do que preservar a minha dignidade.

 

A vossa dignidade? Vós divagais, Madame! Esqueceis-vos onde vos encontrais? Esqueceis que viestes aqui apenas sob as minhas ordens, porque eu assim o desejei e com a única finalidade de distrair a vossa soberana.

 

A minha soberana? Se eu tivesse suposto, um só instante, que me tínheis feito vir aqui por causa dela, nunca teria aceitado passar o limiar deste palácio.

 

Realmente? Nesse caso, teriam-vos arrastado à força!

 

É possível! Mas não me teríeis obrigado a cantar! Aliás, teria sido um belo espectáculo para a corte ver a vossa amante arrastada até ao palco pela polícia, ou pelos guardas! Um espectáculo digno daquele que lhe destes há bocado, aliás: os príncipes da Igreja, errando pelo pátio, oferecidos pelos vossos cuidados aos risos do povo... como se não tivesse bastado, ter ousado levantar a mão para o Vigário de Cristo!

 

Em poucas passadas, o Imperador estava junto dela. O seu rosto lívido era assustador e os olhos lançavam chispas de furor. Mariana compreendeu que fora longe demais, mas não estava no seu carácter recuar, nem já poderia.

 

Endireitou-se para receber o choque, enquanto, a dois dedos do seu rosto, ele quase rugia:

 

Ousais!... Essa gente insultou-me, ridicularizou-me e porque havia de poupá-los? Pela minha clemência e longanimidade, deveríeis estar de joelhos, perdida de reconhecimento. Como se não soubésseis que teria podido metê-los na prisão... ou pior ainda!

 

E aumentar a vossa legenda? Vamos! Não ousastes castigá-los mais cruelmente por prudência e irritais-vos comigo porque, ao oferecer uma carruagem ao meu padrinho, não aceitei participar nessa mesquinha vingança!

 

A curiosidade suspendeu, por um instante, a cólera imperial.

 

O vosso padrinho? Esse cardeal italiano...

 

Não é mais italiano do que eu. Chama-se Gauthier de Chazay, cardeal de S. Lourenço. É meu padrinho e devo-lhe a vida, pois foi ele quem outrora me salvou dos homens da Revolução. Indo em seu socorro, não fiz mais do que o meu dever!

 

Talvez! Mas o meu dever é subjugar toda a subversão, fazer respeitar o meu trono, os meus... o meu casamento! Exijo que vás imediatamente implorar perdão, de joelhos, à imperatriz.

 

A imagem que ele evocava acabou por lançar Mariana num furor, não menos grande do que o de Napoleão.

 

Não conteis com isso! articulou ela secamente. Mandai-me para uma prisão, ou para o cadafalso, se isso vos diverte, mas essa abjecta submissão não a obtereis nunca de mim, ouvis, nunca! Eu, de joelhos em frente dessa mulher...

 

Transfigurada pela cólera, erguia-se num grito de orgulho, vindo das profundezas do seu sangue, tornara-se, num segundo, numa revoltada de grande raça e dominava-o agora, altiva, orgulhosa...

 

Incapaz de suportar a vista dessa arrogante estátua, Napoleão, louco de raiva, agarrou-a brutalmente por um braço, que torceu, arrancando-lhe um grito de dor.

 

É, aos meus que vos ides curvar, dentro de um segundo, miserável demente!... Curvar-vos para implorar o meu perdão! Na verdade, eu tinha razão, deveis estar louca!

 

Ele procurava atirá-la para o chão. Lutando, ao mesmo tempo contra a dor e a perda de equilíbrio, Mariana exclamou:

 

Louca? Sim, sou louca... ou pelo menos fui louca! Louca por vos ter amado, como amei! Louca por ter acreditado em vós, como acreditei! Dizei que eu tinha confiança no vosso amor! Mas eram apenas palavras, fumo! O vosso amor é para a última que aparece. Bastou aparecer essa gorda rapariga vermelhusca, para que fôsseis seu escravo, vós... o Senhor da Europa! A Águia... aos pés de um aborto! E eu, entretanto, calava o meu sofrimento, porque crera naquilo que havíeis dito! Um casamento político!... quando mostrais, aos olhos de todos, um amor abjecto, um amor que me despedaça e mata! Ristes-vos de mim! Na verdade, tendes razão... eu estava louca... e estou ainda, visto que, apesar disso, continuo a amar-vos, quando desejava tanto odiar-vos... Oh! sim, odiar-vos, como tantas outras! Seria tão simples! Tão maravilhosamente simples...

 

Vencida, ao mesmo tempo pelo desgosto e pela dor do braço torcido, caiu finalmente no chão. Bruscamente, como nos dias de tempestade, em que a chuva cai, de repente, de um céu convulso, ela abateu-se sobre o tapete, com a cabeça nos braços, sacudida por uma terrível crise de lágrimas... Acabara, tinha dito tudo e desejava apenas o aniquilamento final... misericordioso! A terrível cólera, que a ultrapassara e levara a desafiar o Senhor com aquela louca insolência, desaparecera finalmente, deixando-lhe apenas um imenso desgosto. Indiferente àquilo que ele lhe podia fazer a seguir, Mariana chorava sobre as ruínas do seu belo amor destruído.

 

Em pé, a alguns passos, Napoleão olhava, petrificado, a forma azul prateada, abatida no tapete, e ouvia os soluços desesperados que lembravam os de uma corça a morrer. Talvez procurasse uma continência, ou então tentava reencontrar a sua cólera perante o sofrimento, os gritos de amor que desejavam ser gritos de ódio. Talvez também, ele que possuía um gosto secreto tão pronunciado pelo drama, saboreasse, como artista, essa cena violenta... quando, de repente, a porta se abriu sobre uma forma redonda e rosada. Uma voz pueril, um pouco roufenha, queixou-se com uma forte pronúncia alemã:

 

Nana!... Que fazeis? Aborreço-me sem o meu esposo galante e mauzinho! Vinde Nana.

 

Aquela voz produziu em Mariana o efeito de um ácido sobre uma ferida. Semierguendo-se, olhou com espanto o casal imperial, a filha dos Habsburgo, que a contemplava amuada, balbuciando:

 

Oh!... Bateste-lhe... essa mulher má, Nana?

 

-Não, Luísa... não lhe bati! Deixa-me um instante, meu amor... já vou ter contigo. Vai, vai depressa. Reconduziu-a gentilmente até à porta com um sorriso, que ficava mal nesse rosto tenso, pousou-lhe um beijo na mão, aborrecido sem dúvida por aquela explosão de familiaridade burguesa, que caíra ali como um balde de água fria sobre as chamas de uma cena trágica. Quanto a Mariana, estava demasiado abatida para pensar em erguer-se. Nana! Ela chamava-lhe Nana!... Era de chorar a rir, se Mariana tivesse vontade.

 

Aliás, estavam novamente sós. Lentamente, o Imperador voltou para a secretária. Respirava alto e com dificuldade. O olhar que pousou em Mariana estava vazio, como se a cólera, ao retirar-se, lhe tivesse roubado a vida. Apoiou-se, com as duas mãos, à pesada mesa e deixou cair a cabeça.

 

Levanta-te disse surdamente.

 

Depois, ergueu a cabeça, olhou a jovem com uma espécie de doçura. Com a surpresa do tratamento familiar, tão milagrosamente reaparecido, ela abriu a boca, mas ele acrescentou, muito depressa, após uma profunda respiração:

 

Não... Não digas nada! Não digas mais nada. Não se deve, nunca se deve excitar a minha cólera, como tu o fizeste. É perigoso. Poderia... ter-te matado e tê-lo-ia lamentado toda a vida, porque, embora tenhas dificuldade em acreditar... eu continuo a amar-te! Há coisas que não podes compreender!

 

Lentamente, com tanto custo como se acabasse de travar um combate corpo a corpo, Mariana ergueu-se. Porém, teve de se agarrar ao canapé, pois tudo girava à sua volta e todas as fibras do seu corpo lhe doíam. Todavia, quis encaminhar-se na direcção de Napoleão, mas, com um gesto, ele deteve-a.

 

Não! Não te aproximes! Senta-te e procura recompor-te. Acabamos de nos fazer um mal terrível, não é verdade? É preciso esquecer isto tudo. Escuta, amanhã abandono Paris. Vou para Compiègne. Daí, até ao fim do mês, partirei para as províncias do Norte. Devo mostrar a minha mu... a Imperatriz ao meu povo. Isso vai permitir-nos esquecer... e, sobretudo, não terei de te exilar, o que seria obrigado a fazer, se ficasse aqui... Agora, deixo-te. Fica aí um momento mais. Constante virá buscar-te para te meter numa carruagem.

 

Com um passo curiosamente pesado, ele dirigiu-se para a porta. Com um gesto de que não foi senhora, Mariana, com os olhos cheios de lágrimas, estendeu-lhe as mãos, procurando instintivamente retê-lo. A sua voz elevou-se, suplicante e baixa:

 

Perdoas-me? Eu não pensava...

 

Sabes bem que pensavas cada palavra, mas perdoei-te porque tinhas razão, mas não te aproximes. Não te devo tocar, para não trair a Imperatriz! Ver-nos-emos mais tarde!

 

Muito rapidamente, desta vez, ele saiu e Mariana, com o coração e a cabeça vazios, foi sentar-se junto da lareira. Tinha, subitamente, frio... até à alma. Qualquer coisa dizia-lhe que tudo mudara entre eles. Havia essa mulher rosada e tonta... Havia as palavras de há bocado, palavras após as quais seria a ausência e o silêncio. Um silêncio perigoso. Sentiu uma saudade pungente dos dias maravilhosos de Trianon, onde as disputas terminavam no acordo final das carícias mútuas. Mas ninguém no mundo lhe poderia dar Trianon. O amor teria, dali em diante, um gosto áspero de solidão e renúncia. Voltaria alguma vez o tempo maravilhoso da felicidade no estado puro, como fora o seu, algumas semanas atrás? Ou teria de aprender agora a tudo dar, sem nada esperar?...

 

O palácio, em redor de Mariana caíra no silêncio, como um deserto de pesadelo. De repente, os passos de Constante, que se aproximava, sobre o sobrado nu de uma sala, parecerem-lhe vir do fundo dos tempos... Sentiu-se mal, subitamente. O ritmo do coração acelerou-se, enquanto um suor frio a envolvia. Tentou levantar-se, mas uma terrível náusea obrigou-a a sentar-se de novo no canapé. Foi aí que Constante a encontrou, com os olhos dilatados, o rosto cor de cera e o lenço apertado contra a boca. Ela ergueu para ele um olhar aflito.

 

Não sei o que tenho de repente... Sinto-me doente... mas doente mesmo! E há um instante... estava tão bem!...

 

Que sentis? Estais muito pálida!

 

Tenho frio, estou tonta e dói-me o coração.

 

Sem uma palavra, o criado de quarto apressou-se. Foi buscar água-de-colónia, banhou as têmporas de Mariana e ofereceu-lhe um estimulante. As náuseas desapareceram tão subitamente como tinham vindo. Pouco a pouco a cor voltou às faces pálidas de Mariana, que logo se sentiu bem.

 

Não sei o que me deu! disse ela, gratificando Constante com um sorriso cheio de reconhecimento. Pareceu-me que ia morrer. Deverei talvez consultar um médico...

 

Deveis consultar um médico, Mademoiselle... mas não creio que seja grave.

 

Que quereis dizer?

 

Cuidadosamente, Constante juntou os lenços e os frascos de que se servira e sorriu gentilmente, embora com uma certa tristeza.

 

É pena que Mademoiselle não tenha nascido sobre os degraus de um trono, isso ter-nos-ia evitado este casamento austríaco que, decididamente, não me parece que valha a pena! Espero que seja um rapaz. Dará prazer ao Imperador!

 

                                    O PACTO

 

A revelação do seu estado atordoou Mariana e, ao mesmo tempo, deu-lhe coragem, comunicando-lhe uma extraordinária impressão de triunfo. A sua ingenuidade não ia até ao ponto de imaginar que, se soubesse alguns meses mais cedo que esperava um filho, isso teria evitado o casamento austríaco. Napoleão tivera conhecimento, após Wagram, que Maria Walewska ia ter um filho seu e isso nada impedira. Teria podido desposar a polaca, que nessa altura amava e que pertencia a uma família nobre. No entanto não acontecera assim, porque, tal como Mariana, e por mais nobre que fosse, Maria não era princesa, logo o seu nascimento não podia assegurar uma dinastia. Contudo, Mariana sentia uma alegria bizarra, um pouco dolorosa, pensando que o sangue imperial corria já no mais íntimo de si própria, enquanto Napoleão se esforçava por fecundar o corpo inchado da Vienense, para lhe arrancar o herdeiro tão desejado. Fosse o que fosse que lhe pudesse fazer, agora estava ligado a ela, Mariana, por um laço de carne e de sangue, que nada poderia apagar. Do mesmo modo, nada poderia atenuar a alegria que sentia, exaltante e quente por trazer em si o filho ”dele”, nem até os preconceitos ou a reprovação, que caíam sempre sobre as mães solteiras. Por amor daquela semente, que lentamente iria amadurecer dentro dela, Mariana sentia-se já pronta a desafiar o universo do desprezo, dos ditos e dos olhares fugidios.

 

Todas estas ideias a assaltavam, enquanto, na sua carruagem, era conduzida à Rua Chanoinesse, para travar, sem dúvida, uma das mais difíceis batalhas da sua existência.

 

Conhecia muito bem o realismo impenitente do padrinho, a pureza dos seus costumes e a rigidez do seu código de honra pessoal, para adivinhar que a sua confissão teria momentos muito difíceis... admitindo que ele consentisse em ouvi-la até ao fim.

 

A Rua Chanoinesse, a essa hora tardia, era sombria, somente iluminada por duas lâmpadas penduradas por cordas estendidas, por cima da via, de uma casa a outra. As rodas ferradas da carruagem soaram sobre o rude pavimento, que devia datar pelo menos do tempo do rei Henrique IV, e que cobria a rua entre a dupla fila de moradias, discretas e silenciosas, onde atrás das janelas, defendidas por grades, se abrigavam as freiras do capítulo de Nossa Senhora. A sombra das duas torres da catedral alongava-se, desmedidamente, por cima dos velhos telhados, acentuando a escuridão da noite.

 

Um padre atrasado, interpelado delicadamente por Gracchus Hannibal, indicou a morada de M. de Bruillard, fácil de distinguir das outras, graças a uma torre quadrada, estreita e alta. Era, aliás, uma das raras onde havia luz. Deitavam-se cedo em casa das freiras, o que deixava o campo aberto aos rapazes que infestavam as velhas ruas da ”Cite” para exercer as suas pouco respeitáveis indústrias.

 

Com grande surpresa de Mariana, a casa do cónego não exalava o odor de cera fria e papéis velhos que, na sua opinião, era apanágio de uma residência de homem da Igreja. Um criado em libré escura, que não possuía nada de sacristão, conduziu-a através de dois salões mobilados à moda antiga, mas de uma discreta elegância, até uma porta fechada em frente da qual estava o padre Bichette, com a cabeça metida nos ombros e as mãos atrás das costas. Ao avistar a visitante, o fiel secretário teve uma exclamação de alegria e precipitou-se para ela. Mariana concluiu que era esperada.

 

Sua Eminência já mandou perguntar três vezes se tínheis chegado. Está impaciente!... Não pode suportar a presença de ninguém, nem a minha.

 

Sobretudo a tua pensou Mariana, que, por seu lado, não teria podido tolerar a presença do padre mais de um quarto de hora.

 

Imaginai acrescentou Bichette baixando o tom da voz que temos de abandonar Paris antes da aurora!

 

Como? Já? Mas o meu padrinho não me disse.

 

Sua Eminência ainda não sabia. Foi ao fim da tarde que o Ministro dos Cultos, Monsenhor Bigot de Premeneu, nos fez saber que a nossa presença não era desejável na capital e devíamos partir.

 

Mas para onde?

 

Para Reims onde... estão... os membros refractários da Cúria Romana! É uma grande infelicidade e uma grande injustiça. Na verdade, parece que chegaram os tempos apocalípticos...

 

Mariana não pôde saber mais sobre as vistas proféticas do padre Bichette, pois nesse instante a porta, diante da qual tinha lugar este interessante colóquio, abriu-se e o cardeal apareceu, mas desta vez um. cardeal muito mais conforme com a recordação que ela tinha do padre de Chazay. O seu hábito preto e modesto era menos elegante do que a libré do criado.

 

Bichette! disse ele com severidade.--Sou já bastante crescido para contar as minhas próprias infelicidades à minha afilhada. A vossa tagarelice atrasa-nos. Ide antes dizer à cozinha que me preparem café, muito café e muito forte! E não interrompais senão quando M. de Bruillard vos mandar dizer que está pronto. Entra, minha filha!

 

As três últimas palavras dirigiram-se, evidentemente, a Mariana, que entrou numa pequena, mas confortável biblioteca, cujas madeiras claras, as ricas encadernações e as frescas tapeçarias de Beauvais não cheiravam mais a eclesiástico do que o resto da casa. Em cima duma secretária, numa moldura oval de ouro fino, o retrato de uma linda mulher, penteada como um pássaro real, sorria com malícia entre dois altos candelabros de bronze dourado, enquanto sobre a chaminé o jovem rei Luís XV parecia estender o seu manto real por toda a sala.

 

Vendo que Mariana olhava esse retrato, um pouco surpreendida, o cardeal sorriu.

 

O cónego de Bruillard é filho natural do rei Luís XV e dessa bela dama que vês sobre a secretária. Por isso, não se

 

(1) Esta personagem é autêntica e, apesar do seu nome, não é imaginada. N. T.

 

encontra muitas vezes este retrato nos salões parisienses. Mas deixemos este assunto e vem sentar-te perto do lume, para te ver melhor. Desde que te deixei não cessei de pensar em ti e procurar compreender por que milagre te encontrei em Paris e como te encontrei no pátio das Tulherias em companhia de um austríaco, depois de te ter casado com um inglês.

 

Mariana fez um pequeno sorriso sem convicção. Chegara o momento mais difícil. Estava, porém, decidida a afrontá-lo, sem lhe fugir, sem procurar a mais pequena escapatória e, mesmo, sem se socorrer das queridas recordações que Monsenhor de Chazay não deixaria de evocar.

 

Não procureis, querido Padrinho... não conseguiríeis descobrir. Aquilo que foi a minha vida, desde o minuto em que nos separámos, nem vós, nem ninguém poderia imaginar. Para dizer a verdade, há momentos em que pergunto a mim própria se tudo aquilo que passei não foi um simples pesadelo, ou então uma história que me contaram!

 

Que quereis dizer? perguntou o cardeal, puxando um cadeirão para a frente daquele onde Mariana se sentara. Não tive mais notícias de Inglaterra desde o dia do teu casamento.

 

Então... não sabeis nada... absolutamente nada?

 

Mas nada, afirmo-te. Diz-me primeiro onde está o teu marido.

 

Não interrompeu Mariana vivamente, peço-vos, deixai-me contar-vos... à minha maneira, como puder. É-me tão difícil!

 

Difícil? Julgava ter-te ensinado a vencer sempre as dificuldades.

 

E vencerei! Ides compreender já o que quero dizer. Padrinho... a moradia dos Asselnat é minha. O Imperador deu-ma. Sou eu... essa cantora de ópera de que faláveis, há instantes.

 

Como?

 

Com a surpresa, o cardeal erguera-se. Do seu rosto sem beleza desaparecera toda a alegria e vivacidade. Era uma máscara de pedra cinzenta, fechada numa curiosa ausência de expressão. Porém, apesar do choque que sabia ter-lhe dado, Mariana sentia um alívio extraordinário. O mais difícil estava dito.

 

Silenciosamente, o cardeal dirigiu-se para um canto da sala, onde um crucifixo de marfim repousava numa moldura de veludo vermelho e, aí, deteve-se um instante sem ajoelhar, sem aparentemente rezar, mas quando se virou e voltou para junto de Mariana, o seu rosto recuperara um pouco de cor. Retomou o lugar no cadeirão, mas talvez para evitar olhar a afilhada, virou-se para o lume e estendeu-lhe as mãos brancas.

 

-Conta disse ele docemente. Escutar-te-ei até ao fim, sem te interromper.

 

Então, Mariana começou a longa narração...

 

A chegada do café, trazido pelo criado impassível e escoltado com veneração pelo padre Bichette, visivelmente devorado pela curiosidade, coincidiu justamente com as últimas palavras de Mariana. Fiel à sua promessa, o cardeal não dissera nada, enquanto ela falava, mas agitara-se mais de uma vez no cadeirão. Agora olhava para a bandeja do café com o reconhecimento que se reserva a um intervalo inesperado, no meio de uma batalha calorosa.

 

Deixai isso aí, Bichette disse ele ao padre que julgara seu dever encher as chávenas, certamente para ali ficar mais tempo. Nós serviremos o café.

 

Decepcionado, mas obediente, o padre desapareceu. Gauthier de Chazay virou-se então para Mariana.

 

Há muito tempo que não me serves chá ou café, Mariana. Espero que não tenhas esquecido.

 

Com os olhos subitamente cheios de lágrimas, por aquela observação que a transportava, de repente, à sua infância e ao seu lugar no seio da família, ela dirigiu-se para a mesinha, retirou as luvas, que atirou para um canto, e começou a servir a odorante bebida. Atenta àquilo que fazia, não olhava para o padrinho. Nenhum deles falava. Somente, quando lhe estendeu a chávena, ousou perguntar:

 

Vós... não me julgais com muita severidade?

 

Não me reconheço esse direito. Não gostei nem desse casamento, nem de Lord Cranmere... e parti. Agora sei que deveria ter ficado, para velar por ti, em vez de te abandonar. Mas Deus não quis, porque, por poucos minutos, ter-me-ias encontrado no cais de Plymouth e tudo teria sido diferente. Tu não pudeste escolher. Era preciso que seguisses o teu destino e, se chegaste àquilo que és hoje, também tenho as minhas culpas...

 

Não, na verdade, não tenho direito de te dirigir a menor censura, pois seria censurar-te de teres vivido!

 

Então ajudai-me, padrinho... livrai-me de Francis Cranmere!

 

-Livrar-te? Como poderia fazê-lo?

 

Lord Cranmer nunca me tocou. O meu casamento não se consumou e o esposo é indigno. Obtei do Santo Padre a anulação do meu casamento, que esse homem não tenha sobre mim qualquer direito, que eu possa tornar-me eu própria e esquecer, até, a existência de Lord Cranmere.

 

Será ela fácil de esquecer?

 

Deixará de ter importância no momento em que o laço que me liga ainda a ele tiver desaparecido. Livrai-me padrinho! Quero voltar a ser Mariana de Asselnat!

 

O eco das últimas palavras prolongou-se por algum tempo. O cardeal, sem responder, esvaziou a chávena, repô-la sobre a bandeja e ficou um momento absorto na contemplação dos seus dedos. Ansiosa, Mariana respeitou a sua meditação, dominando o melhor possível a impaciência que lhe afligia o coração. Porque hesitaria ele em responder-lhe? Que pensava ele por trás desse silêncio?... Por fim, os olhos azuis que conservara escondidos sob as pálpebras, durante esses longos instantes, reapareceram, mas tão cheios de tristeza que Mariana sentiu um arrepio.

 

Não é para voltares a ser tu própria que me pedes para te ajudar a encontrar a liberdade, Mariana. Não seria, aliás, possível porque a mudança está em ti, muito mais do que no nome que usas. Queres ser livre, para existires, sem sombra, aos olhos do homem que amas... e para melhor lhe pertenceres. Nisso, não posso consentir porque seria a aceitação de ver-te levar publicamente uma vida de pecado.

 

O que é que isso pode alterar? Não sou eu, abertamente, a amante de Napoleão? - exclamou Mariana num tom em que havia uma espécie de desafio.

 

Não. É uma certa Maria-Stella quem possui esse título, não é a filha do Marquês de Asselnat. Não te queiras enganar, minha filha, na nossa família nunca foi considerado uma honra o posto de favorita real e, com muito menos razão, o de favorita de um usurpador. Nunca deixarei juntar o nome de teu pai ao de Bonaparte!

 

A amargura do que ouvia misturava-se, no espírito da jovem, a um princípio de cólera. Sabia e tinha sabido sempre como Gauthier de Chazay era realista, mas não imaginava que pudesse introduzir a fidelidade ao Rei até nas relações com a afilhada, a criança de quem sempre tanto gostara.

 

Já vos disse como esse homem me tratou e me trata ainda, padrinho disse ela tristemente, e quereis, em nome de não sei que moral política, obrigar-me a continuar acorrentada a um miserável!

 

De modo nenhum. Quero apenas salvar-te de ti própria, salvando-te de Cranmere. Não foste criada, quer queiras ou não, para ligar o teu destino ao de Napoleão, primeiro porque nem Deus... nem a moral, a simples moral de toda a gente, e não aquilo a que chamas moral política, o consentirão. Esse homem vai para a sua perda e eu não te deixarei perder com ele. Promete-me renunciar, para sempre, a esse amor e em menos de quinze dias o teu casamento estará anulado.

 

- é chantagem pura e simples! zangou-se Mariana, tanto mais ferida, porquanto o cardeal repetia-lhe, por outras palavras, mas com muita calma, aquilo que Talleyrand já lhe dissera.

 

Talvez admitiu o prelado sem se zangar, mas se deves desonrar o nome que usas realmente, então que seja o do inglês. Um dia agradecer-me-ás...

 

Não creio! Ainda que quisesse fazer-vos essa promessa, mesmo se aceitasse destruir o amor que me dá vida, não o poderia! Ainda não sabeis tudo, Eminência! Conhecei então toda a verdade: espero um filho e esse filho é seu, ouvis?... É um... Bonaparte!

 

-Infeliz!... Louca!... Mais louca ainda do que infeliz! E tu ousavas falar em voltar a ser a pequena Mariana de Selton? Mas tu colocaste o irreparável entre ti e os teus!

 

Desta vez, a calma de Gauthier de Chazay desfizera-se, após aquela revelação, mas longe de se inquietar ou até de se comover, Mariana sentiu um momento de alegria violenta, carregada por toda a exaltação do triunfo e ficou feliz, como se essa criança ainda no mistério do seu corpo viesse vingar o pai, de todos os desprezos dos realistas, de todo o ódio dos emigrados. Friamente replicou:

 

É possível, mas é também a razão primordial pela qual quero ser irrevogavelmente separada de Francis Cranmere. O filho de um imperador não deve ter o nome de um bandido! Se recusais destruir o laço que ainda me liga a ele, sabei que não recuarei perante nada, ouvis bem? Perante nada, nem mesmo o assassínio mais frio e. mais premeditado para fazer sair, à força, Francis Cranmere da minha vida.

 

O cardeal deve ter sentido que ela pensava implacavelmente cada palavra da sua ameaça, pois viu-o empalidecer, ao mesmo tempo que uma curiosa expressão de orgulho se acendia no olhar, sempre tão calmo e tão doce. Mariana esperava um grito de cólera, um protesto violento. Em vez disso, recebeu um suspiro desencorajado... e um sorriso trocista.

 

O que há de esgotante em vós, os Asselnat notou Gauthier de Chazay, é o vosso carácter impossível. Se não se cumprem as vossas vontades, todas as vossas vontades, no próprio instante, pegais fogo a tudo e ameaçais matar toda a gente. Aliás, o pior é que, em geral, não só o fazeis, como ainda tendes sempre razão.

 

O quê? exclamou Mariana atordoada, aconselhais-me a... Mandar Francis Cranmere para junto dos seus nobres antepassados? Como homem, não veria qualquer inconveniente... e até julgo que aplaudiria. Mas como padre, devo condenar toda a violência, ainda que amplamente merecida. Não, Mariana, se digo que tu tens razão, é quando afirmas que o filho que esperas não deve possuir o nome desse miserável... mas unicamente porque ele será teu filho.

 

Os olhos de Mariana brilharam, pois sentiu a vitória desejada ao alcance.

 

Então consentis em pedir a anulação?

 

Espera um pouco. Responde apenas a uma pergunta. Desde quando sabes... dessa criança?

 

Desde hoje! e em algumas palavras contou o que sentira nas Tulherias.

 

Podes... lamento abordar um assunto tão íntimo, mas não podemos ter delicadezas... podes dizer-me aproximadamente... a quando remonta... o acontecimento?

 

É, segundo penso, bastante recente... Não terá sido há mais de um mês, ou talvez menos.

 

Curiosa forma de um soberano esperar a noiva! observou o cardeal sarcasticamente. Mas não entremos em delongas. O tempo urge. Escuta-me agora e, sobretudo, não faças a menor objecção, pois aquilo que te vou dizer será a expressão da minha vontade formal e irrevogável. É só por esse preço que te quero ajudar, sem trair a minha consciência ou o meu dever. Primeiro, guardarás secreta a notícia que acabas de me anunciar. Ouves, absolutamente secreta, durante algum tempo. Francis Cranmere não pode saber, de modo nenhum. Poderia destruir tudo e, com um homem como ele, nunca se tomam demasiadas precauções. Por isso, nem uma palavra, mesmo àqueles que te rodeiam de mais perto.

 

Nada direi! E em seguida?

 

O seguimento pertence-me. Dentro de quinze dias, o tempo de me reunir ao Santo Padre em Savona, o teu casamento será anulado... mas dentro de um mês casar-te-ás!

 

Mariana julgou ter ouvido mal e perguntou:

 

Que dissestes? Compreendi mal certamente.

 

Não. Não compreendeste mal. Eu disse que dentro de um mês casar-te-ás.

 

Ele pronunciara a palavra com tanta força que Mariana, atordoada, não pôde responder. Contentou-se em balbuciar;

 

Mas não é possível! Pensais realmente aquilo que dizeis?

 

-Não tenho por hábito empregar palavras de que não conheça o exacto valor e lembro-me que te adverti há bocado: nada de objecções! Contudo, consinto em me repetir, mas vou fazê-lo sem me preocupar com perífrases: se estás grávida de um mês é preciso que dentro de outro mês sejas a esposa de um homem conveniente, cujo nome tu e o teu filho poderão usar sem corarem. Não podes escolher, Mariana! E não me venhas falar do teu amor, do teu imperador, ou da tua liberdade! É. preciso arranjar lugar para a criança, visto que se anuncia! Necessita de um nome e de um pai, visto que o homem que o engendrou nada pode fazer por ele.

 

-Nada? insurgiu-se Mariana. Mas ele é o Imperador! Não pensais que é bastante poderoso para assegurar ao filho um futuro conveniente?

 

Não nego o seu poder, embora lhe veja pés de barro, mas podes estar certa de que o futuro, ou o tempo lhe pertençam também? Que lhe acontecerá se um dia cair? E que te acontecerá, assim como à criança? Não queremos bastardos na família, Mariana! Deves este sacrifício à memória dos teus pais, ao teu filho... e a ti mesma, acima de tudo. Sabes como a sociedade trata uma mãe solteira? Sentes-te tentada por esse estado?

 

Desde que conheço o meu estado, estou pronta a sofrer, a lutar...

 

Por quê? Por quem? Por amor de um homem que, se não me engano, acaba de desposar outra!

 

Não é a vós que vou falar dos imperativos de uma razão de Estado! Ele devia casar-se... mas eu não!

 

Por que razão?

 

-Ele não o permitirá!

 

O cardeal teve um risinho trocista.

 

Ah! Sim? Conhece-lo muito mal! É ele que te casará, infeliz, e sem. hesitar, quando souber que espera um filho. Quando as amantes não puderam arranjar um marido, ele soube sempre dar-lhes um. Nada de histórias ou complicações. Foi sempre a sua divisa em matéria de amor. O seu próprio lar deu-lhe sempre que fazer.

 

Mariana sabia que tudo isso era a própria verdade, mas não podia admitir a assustadora perspectiva que o padrinho acabara de lhe oferecer.

 

Mas enfim, Padrinho, reflecti! Um casamento é uma coisa grave, uma coisa que comporta... realidades. Vós quereis que eu vá, com os olhos fechados, confiar a minha sorte, a minha vida... e a minha pessoa a um perfeito desconhecido que terá sobre mim todos os direitos, que eu deverei suportar dia após dia, noite após noite? Não podeis compreender que ao seu contacto todo o meu ser se arrepiará de horror?

 

Compreendo sobretudo que queres, com todas as tuas forças e contra toda a razão, continuar a ser a amante de Bonaparte e que, de facto, as realidades do amor já não têm segredos para ti. Mas quem te fala de contactos? Ou mesmo de coabitação? É possível desposar um homem e viver sem ele. Nunca ouvi dizer que a bela princesa Borghèse, essa Paulina, vivesse muito com o pobre Camilo. Digo-te e repito: é preciso, imperativamente, que dentro de um mês estejas casada.

 

Mas com quem? Pensais em alguém, certamente, para seres tão categórico... Quem?

 

Isso é comigo. Não tenhas receio. O homem que escolher para ti, que já escolhi, será de tal modo que não poderás fazer-me qualquer censura, ainda que ligeira. Conservas a tua liberdade, que te é tão querida... pelo menos dentro dos limites da decência. Mas não julgues que te quero obrigar. Podes, se desejares, ou se puderes, escolher tu própria.

 

Como poderei? Proibiste-me de dizer a quem quer que fosse que espero um filho, e nunca aceitarei enganar um homem sério.

 

Se encontrares um homem, digno de ti e dos teus, que te ame suficientemente, para te desposar nestas condições, não verei qualquer inconveniente. Mandar-te-ei dizer onde e quando deverás reunir-te a mim para a celebração do casamento. Se o homem que escolheres te acompanhar, unir-vos-ei... Se vieres só, aceitarás aquele que eu te apresentar.

 

Quem será ele?

 

Não insistas. Nada mais te direi. Deverás confiar inteiramente em mim... e sabes que te amo como a uma filha. Aceitas?

 

Lentamente, Mariana baixou a cabeça; toda a sua alegria orgulhosa de há instantes desaparecera ao sopro das realidades quotidianas. Desde que se soubera grávida, deixara-se entusiasmar pelo sentimento exaltante de esperar um filho da Águia e, por um momento, pensara que isso lhe permitiria enfrentar o mundo inteiro. Mas compreendia bem que a razão estava do lado do padrinho, porque se por si desprezava a opinião dos outros, se estava pronta a lutar contra tudo, teria de impor ao filho o selo da bastardia? Certos homens não eram filhos daqueles cujo nome usavam. O encantador Flahaut era o filho de Talleyrand e todos sabiam, mas se pudera fazer no exército a sua brilhante carreira, fora porque o marido da mãe cobrira, com o seu nome, a mancha vergonhosa que lhe teria fechado as portas da sociedade. E Maria Walewska não partira para as neves de Walewice, para que o velho conde, seu esposo, pudesse reconhecer o filho?... Bruscamente, as leis da sociedade opunham os seus muros intransponíveis aos sonhos encantados de Mariana. Possuía muito- bom senso, para não compreender que teria de fazer sofrer o coração e o seu amor perante as duras necessidades.

 

Como dissera o cardeal, ela tinha outra solução. Contudo, no momento de pronunciar uma aceitação que, quase tanto como o ”sim” fatídico, moldaria o seu destino, tentou lutar ainda.

 

-Suplico-vos, deixai-me ver, pelo menos, o Imperador, falar-lhe... Ele talvez encontre uma solução. Deixai-me um pouco de tempo.

 

É a única coisa que não posso dar-te: tempo. É preciso andar depressa, muito depressa... e, pelo teu ar, adivinho que nem sabes quando voltarás a ver Napoleão. Aliás para quê? Já te disse. Se lhe vais explicar a situação, ele próprio a resolverá da única forma possível; casar-te-á com um dos seus fidalgos feitos à pressa, qualquer filho de estalajadeiro, ou de palafreneiro, a quem terás de agradecer humildemente, por querer desposar-te, tu, uma Asselnat, cujos antepassados entraram em Jerusalém ao lado de Godofredo de Bulhão e, em Tunis com S. Luís! O homem, em quem penso, não te pedirá nada... e o teu filho será príncipe!

 

O duro chamamento às suas origens decidiu Mariana. Num clarão, recordou, na moldura dourada, a figura e o belo rosto altivo do pai e, depois numa recordação cheia de bruma, o menos belo, mas mais terno e igualmente orgulhoso, da tia Ellis. As suas sombras não possuiriam o direito de se encolerizarem, com uma filha incapaz de aceitar o sacrifício exigido pela honra, eles que tinham subordinado a vida inteira e essa mesma honra... até à suprema abnegação? Pela primeira vez, Mariana sentiu que pertencia à velha árvore, cujas raízes mergulhavam no mais profundo da terra da Auvergne e cuja copa tantas vezes tocara o céu; avistou, como se se tivesse erguido, das sombras da biblioteca, a longa linhagem dos seus antepassados franceses e ingleses, que todos tinham lutado e sofrido para conservar intacto o velho nome e esse princípio de honra que a época actual se esforçava por esquecer. Então, de uma só vez, capitulou.

 

Aceito! articulou com clareza.

 

Ainda bem! Eu tinha a certeza!...

 

Entendamo-nos! interrompeu a jovem. Aceito o princípio de me casar dentro de um mês. Daqui até lá, empregarei todos os meus esforços para poder escolher o meu esposo.

 

Não vejo qualquer inconveniente, desde que o escolhas digno de vós. Peço-te somente que venhas, ao local e à hora que te der a conhecer, sozinha ou acompanhada. Digamos, se quiseres, que concluímos esta noite um pacto; salvas tu própria a tua honra e eu livro-te de Francis Cranmere, ou então comprometes-te a aceitar o salvador que eu te indicar. Estamos de acordo?

 

Um pacto é um pacto afirmou Mariana. Prometo respeitá-lo.

 

Está bem... Nesse caso, vou começar a cumprir a minha parte do contrato.

 

Dirigiu-se para uma grande secretária aberta a um canto, pegou numa folha de papel, numa pena e escreveu algumas palavras, enquanto Mariana, sentindo a necessidade de um estimulante, enchia outra chávena de café. Não procurava voltar atrás, depois daquilo que dissera, embora avaliasse o horror da situação em que se encontrava, mas assaltou-a, de repente, uma dúvida que expôs sem demora.

 

-No caso de... por meu lado não encontrar ninguém, posso pedir-vos uma graça, padrinho?

 

Sem responder, ele virou os olhos na sua direcção, esperando.

 

Se devo casar com um marido escolhido por vós, suplico-vos que penseis primeiro na criança... e não a obrigueis a usar o nome de um inimigo do pai!

 

O cardeal sorriu, encolheu os ombros e molhou a pena no tinteiro.

 

A minha fidelidade ao Rei não vai até ao ponto de me fazer cometer tais vilanias! censurou-lhe ele docemente.- Devias conhecer-me bem, para saberes que nunca me ocorreria uma tal ideia.

 

Terminou a carta, dobrou-a e meteu-a num envelope. Seguidamente, estendeu-a à afilhada.

 

Toma isto. Tenho de abandonar Paris dentro de alguns minutos e não quero deixar-te na situação perigosa e inextricável em que te encontras. Amanhã de manhã, apresentar-te-ás com esta carta em casa do banqueiro Laffitte. Ele dar-te-á as cinquenta mil libras, que o demónio inglês exige. Assim, poderás respirar por um momento... e recuperar essa louca Adelaide que a idade não deve ter melhorado.

 

O espanto cortou a respiração de Mariana, como não acontecera durante a conversa, embora pouco vulgar, que acabava de ter com o cardeal. Olhava para o envelope, sem ousar pegar-lhe... Aquela carta assim oferecida era um objecto absolutamente milagroso. Esta magnífica generosidade derrotava-a, obrigando-a a pôr de parte o rancor que lhe inspirava a atitude severa do padrinho. Achara-o implacável, intransigente, sem, no entanto, conseguir por um só instante condená-lo. Julgara que ele obedecia apenas à noção do dever e eis que, com uns traços de pena, dava à sua protecção toda a realidade da sua amplitude e do seu calor. As lágrimas subiram-lhe aos olhos, pois pensara, por momentos, que ele já não a amava tanto como outrora. O cardeal impacientou-se:

 

-Vamos, toma e não faças perguntas a que não poderia responder. Não é porque me conheceste pobre como Job que não me é possível encontrar dinheiro para te salvar a vida.

 

Aliás, era impossível fazer qualquer pergunta. A porta da biblioteca acabava de se abrir e dava passagem a outro cardeal. Vestido, como convinha à sua categoria, o recém-chegado era tão pequeno como o seu colega de S. Lourenço, mas o rosto, muito belo, possuía uma grande nobreza e oferecia uma semelhança bastante marcada como o grande retrato da chaminé.

 

A carruagem e a escolta acabam de chegar, meu pobre amigo. Temos de partir... O vosso cavalo espera-vos na cavalariça com a vossa bagagem e o vestuário necessário.

 

Estou pronto exclamou quase alegremente Gauthier de Chazay, pegando nas mãos do recém-chegado e apertando-as com afeição. Meu caro Philibert, nunca vos agradecerei suficientemente por vos sacrificardes assim! Mariana, quero apresentar-te ao cónego Bruillard que, não contente por me ter albergado, leva a sua amizade até ao desempenho do meu papel esta noite.

 

-Meu Deus! - exclamou Mariana tinha esquecido. É verdade que vos enviam para Reims. Mas então...

 

Mas então, eu não irei. Enquanto na carruagem, escoltada pelos polícias do senhor duque de Rovigo, o meu amigo Philibert irá tranquilamente para Reims em companhia do padre Bichette, eu, disfarçado de criado, galoparei para Itália, onde o Santo Padre espera que lhe dê contas de certa missão.

 

Interdita, apertando maquinalmente entre as mãos a carta preciosa, que lhe assegurava um ano de liberdade, ela olhou para os dois cardeais, o verdadeiro e o falso, perguntando a si mesma se alguma vez conhecera realmente Gauthier de Chazay. Quem era precisamente aquele homem que lutara tão ardentemente para salvar o bebé que ela fora, cuja vida era um mistério, que certamente, sempre sem fortuna, podia contudo, com uns riscos de pena, dispor de uma quantia principesca e que, sendo príncipe da Igreja, corria as estradas a cavalo vestido de criado?

 

Sem dúvida, consciente da perturbação da afilhada, o antigo padre aproximou-se e beijou-a ternamente.

 

Não procures adivinhar o que está fora do teu alcance, Mariana! Pensa apenas que serás sempre a minha filha querida e que quero ver-te feliz... ainda que os meios que emprego não te convenham. Que Deus te guarde, minha pequena! Rezarei por ti, como sempre fiz.

 

Apressadamente, traçou uma bênção sobre a testa da jovem e, em seguida, dirigiu-se para a janela que abriu.

 

É o caminho mais rápido para ir até à cavalariça, sem encontrar ninguém disse ele. Adeus, meu caro Philibert. Enviai-me Bichette para onde sabeis e quando puderes. Espero que não venhais a sofrer por causa de mim.

 

Não tenhais receio. Os homens de Savary verão apenas o vermelho... ou pelo menos a púrpura; o rosto, escondê-lo-ei o mais possível. Aliás, não somos muito conhecidos, nem um, nem outro. Os vossos irmãos do Sacro Colégio ficarão um pouco surpreendidos ao ver-me chegar, mas informá-los-ei do que se passa e, após alguns dias, desta vez sob o meu verdadeiro aspecto, encontrarei meio de regressar aqui... onde os meus servidores terão proibido a entrada em minha casa, sob pretexto de doença contagiosa. Boa viagem, meu caro Chazay! Colocai, aos pés de Sua Santidade, a minha afeição filial, o meu respeito e a minha obediência.

 

Assim farei! Adeus Mariana! Quando a encontrares, beija por mim essa louca Adelaide. Sempre discutimos, mas estimo-a muito.

 

Depois destas palavras, Sua Eminência sentou-se na janela e saltou para o pátio. Mariana viu-o correr para uma abertura, que se abria na sombra da alta e estreita torre quadrada. O cónego de Bruillard inclinou-se ligeiramente diante dela.

 

Ele sairá pelas margens do Sena, não vos inquieteis por sua causa. Quanto a mim, permiti que me retire. O padre Bichette espera-me ao lado e os polícias na rua.

 

Enquanto falava, enrolava-se numa vasta capa de que levantou a gola, de forma a tapar a maior parte do rosto, e, em seguida, após um último sinal de cabeça, abandonou a biblioteca. Pela porta aberta, Mariana entreviu o padre Bichette, que mais do que nunca tinha o ar de uma galinha assustada, e os uniformes azuis de alguns polícias. Na rua, que avistou através de uma janela munida de grades, viu uma grande berlinda, com as lanternas todas acesas, esperando no meio de um pelotão de cavaleiros, com bicórneos pretos e plumas vermelhas, cujos cavalos arrancavam faíscas ao velho pavimento real. Todo aquele aparato guerreiro para enquadrar dois calmos servidores de Deus pareceu, de repente, à jovem excessivo e mesquinho ao mesmo tempo e, de qualquer modo, intolerável. Mas, ao lembrar-se da desenvoltura com que Gauthier de Chazay escalara a janela e, sentindo na palma da mão a carta que valia tanto dinheiro, dinheiro que lhe entregaria o próprio banqueiro do Imperador, uma dúvida assaltou-a. Aquele pequeno cardeal, tão frágil e, aparentemente, tão inofensivo, não representaria um poder infinitamente mais activo e temível do que ela podia imaginar? Parecia comandar, como o próprio Deus, os acontecimentos e os homens. Dentro de um mês, por sua ordem, um homem estaria pronto a desposá-la, a ela, Mariana, uma perfeita desconhecida e grávida, além de tudo. Porquê? Com que fim? Em obediência a quê?

 

Lá fora, houve um ruído de armas. Arrancada aos seus pensamentos, Mariana viu a pequena silhueta vermelha do pseudocardeal entrar na berlinda, seguida, pela longa figura magra do padre que, diante do capitão comandante da escolta, se persignou precipitadamente várias vezes, como se tivesse visto o diabo. Ouviu ainda o ruído da porta, que se fechava, os chicotes dos postilhões e, com um barulho de apocalipse, a carruagem, envolvida pela escolta, abandonou a Rua Chanoinesse, a grande trote, sem que nenhum rosto aparecesse nas janelas vizinhas.

 

Atrás de Mariana, soou a voz comedida do criado que a acompanhara ao chegar.

 

Madame deseja ser conduzida até à carruagem? Tenho de fechar a casa, agora.

 

Ela pegou no casaco, que tinha colocado sobre uma cadeira, calçou as luvas e meteu a preciosa carta num bolso interior.

 

Estou pronta! disse apenas.

 

Agora, que o padrinho partira e que se encontrava só, perante si própria, Mariana sentiu invadir-se pela tristeza. Um mês! Dentro de um mês, teria desposado alguém... um perfeito desconhecido, talvez! Como não se sentir assustada e perdida perante uma tal perspectiva? É certo que tinha a faculdade de escolher, se quisesse evitar ser obrigada a colocar a mão na do desconhecido, de que o padrinho não desejara dizer o nome, fiel ao gosto pelo mistério que sempre lhe conhecera. Ninguém poderia ter sido tão discreto como o padre de Chazay e, aparentemente, o cardeal de S. Lourenço conservava os mesmos hábitos herméticos. Aliás, ainda que ela tivesse pronunciado um nome, ter-lhe-ia ele dito qualquer coisa? Não... era preciso encontrar alguém, alguém que não lhe fizesse medo, nem horror, um homem que, embora não amasse, pudesse estimar. As raparigas da sua casta, sempre o soubera, casavam-se muitas vezes sem conhecer o noivo. Só as famílias decidiam. Era também uma espécie de pacto concluído antecipadamente. Talvez fosse normal, no fim, o que lhe acontecia, mas a independência que achara na existência tumultuosa, a que o destino a obrigara, impedia-a de aceitar, sem luta, essa regra habitual. Queria escolher. Mas quem?

 

Seguindo através dos salões obscuros o criado, armado de um pesado candelabro, Mariana passava revista, febrilmente, aos homens que a rodeavam, e a quem poderia talvez fazer apelo, rortunata fizera-lhe notar que toda a Guarda Imperial estava apaixonada por si, mas entre todos esses homens, não podia distinguir um rosto ou um carácter, onde pudesse colocar a sua esperança. Quase não os conhecia e não tinha tempo para conhecê-los. Alguns, aliás, eram já casados, outros não desejavam casar... e, sobretudo, em tais condições, pois Mariana era bastante sensata para compreender que entre fazer-lhe a corte, isto é, tentar obter os seus favores e desposá-la, existia uma grande distância. Clary? O príncipe austríaco não casaria com uma cantora de ópera. Aliás era já casado com a filha do príncipe de Ligne. De qualquer modo, Mariana nunca aceitaria pertencer ao mesmo povo que essa Maria Luísa detestada. Então? Pedir a Napoleão para lhe escolher um marido não era possível, pelas razões que o cardeal evocara. Além disso, teria horror em ser entregue, pelo homem que amava, a um marido qualquer, que não poderia deixar de ser um lacaio. Mais valia o desconhecido escolhido pelo padrinho, visto que ele lhe prometera não ter nada a censurar-lhe.

 

Por um instante, teve a ideia de desposar... Arcadius, mas essa ideia, apesar do tormento em que se debatia, fê-la sorrir. Não, na verdade não se via M.me de Jolival. Teria a impressão de casar com o próprio irmão, ou então com um tio.

 

Mas, ao encontrar, na rua, Gracchus-Hannibal Pioche, que baixava o estribo da carruagem, ela teve uma espécie de revelação. A resposta que procurava acabava de surgir, ao avistar a figura redonda e a cabeleira ruiva do rapaz, que nenhum chapéu podia esconder convenientemente. Ao lado desse rosto e, por associação de ideias, acabava de surgir outro. A impressão foi tão forte que lhe provocou uma exclamação.

 

É ele! É dele que eu preciso! Falara alto e Gracchus admirou-se:

 

Mademoiselle disse...

 

Nada, Gracchus! Mas, diz-me, posso continuar a contar contigo?

 

Que pergunta, Mademoiselle Mariana! Precisais de mim? Então mandai.

 

Mariana não hesitou. Desta vez tinha escolhido e sentiu como que um alívio.

 

Obrigada, meu rapaz. Para dizer a verdade, não duvidava. Escuta! Quando chegarmos, irás mudar de roupa, vestirás um fato de viagem e selarás um cavalo. Em seguida, irás ter comigo. Dar-te-ei uma carta, que será necessário entregar, o mais rapidamente possível.

 

Não me deterei no caminho. É longe?

 

Vais a Nantes. Mas, por agora, para casa, Gracchus, e depressa!

 

Uma hora mais tarde, Gracchus-Hannibal Pioche, de botas altas e envolvido num amplo casaco, à prova das maiores chuvas, um chapéu redondo enfiado até às sobrancelhas, saía a galope pelo portão da moradia dos Asselnat. Em pé, atrás de uma janela da galeria do primeiro andar, Mariana viu-o partir. Somente quando Augustin, o porteiro, fechou a pesada grade, ela abandonou o seu posto de observação e regressou ao quarto, onde flutuava ainda o odor à cera com que fechara a sua missiva.

 

Maquinalmente, aproximou-se da pequena secretária, fechou a pasta de couro azul, tendo o cuidado de retirar a carta sem outra assinatura senão a que ali deixara há instantes. Essa carta, recebida quando regressara da Rua Chanoinesse, marcava-lhe um encontro na próxima noite com a obrigação de levar as cinquenta mil libras, evidentemente. Teve a tentação de a queimar, mas na lareira o fogo extinguira-se e pensou que valia mais mostrá-la a Jolival, que a essa hora, embora bastante tardia, ainda não regressara a casa. Devia andar à procura do dinheiro. Aliás, as palavras breves de Francis não tinham tido sequer o o poder de produzir em Mariana qualquer arrepio. Lera-as com despreocupação, como se realmente não lhe dissessem respeito. Toda a sua atenção e ansiedade dirigiam-se para outra carta, aquela que acabava de escrever e que Gracchus levara a Nantes.

 

De facto, era uma dupla carta. A primeira era dirigida ao Cônsul dos Estados Unidos, Robert Patterson, e pedia-lhe o favor de fazer chegar, o mais rapidamente possível, a segunda ao seu destino. Mas Mariana não tinha ilusões. A segunda carta era um pouco semelhante à garrafa que o náufrago, agarrado ao rochedo, atira ao mar. Onde estaria Jason Beaufort àquela hora? Em que mar navegaria o navio, cujo nome Mariana nunca quisera saber? Um mês era um prazo tão curto e o mundo era tão grande!... No entanto, embora as esperanças fossem poucas, Mariana não pôde deixar de escrever essa carta que fazia apelo ao homem que julgara odiar tanto e que, no entanto, nesse momento, lhe parecia o único seguro, enérgico e dedicado... o verdadeiro homem e o único a quem ousava pedir o nome para o filho de Napoleão.

 

Jason, habituado, desde a infância, a lutar pela vida com as mãos vazias, Jason que aceitava, como único senhor, o oceano, Jason dos quatro ventos e dos quatro horizontes... aquele que os saberia defender e proteger! Não lhe suplicara outrora para o seguir, a fim de poder encontrar a paz e o repouso no seu imenso país livre? Não lhe escrevera ele: ”Lembrai-vos que existo e que tenho uma dívida para convosco...?” Agora, pedir-lhe-ia que pagasse essa dívida. Ele não poderia recusar, visto que, se Mariana se encontrava ali onde o destino a conduzira, era um pouco por sua causa. Tinha-a arrancado, uma noite, às pedreiras de Chaillot e das garras de Fanchon Flor-de-Lis. Agora, era preciso que ele viesse e que a arrancasse a esse desconhecido misterioso, que o padrinho queria obrigá-la a desposar. Era preciso! Seria a única possibilidade de aceitar, sem horror, o casamento inevitável.

 

Todavia, sabia, ao chamar Jason, que iniciaria uma vida do mais cruel sacrifício, aquele que recusara com desespero perante o padrinho: renunciava a viver na órbita de Napoleão, condenava-se a separar-se dele, talvez para sempre. Se Jason consentisse em dar o seu nome ao filho de Mariana, não era homem para aceitar um papel grotesco de marido idiota ou compreensivo. Tornado esposo de Mariana, e mesmo se não exercesse os seus direitos, favor que ela desejava obter, Mariana não poderia deixar de segui-lo e aceitar ir viver onde ele quisesse, muito certamente na América... Um oceano separá-la-ia do homem que amava, não viveria sob o mesmo céu, nem respiraria o mesmo ar... mas não estava já separada dele por essa mulher, que possuía agora todos os direitos e que se erguia entre eles como uma barreira difícil de transpor? Só lhe restaria o filho e, através dele, Mariana sabia que ficaria ainda mais ligada ao seu amor do que por laços carnais. Era preciso que isso lhe bastasse para orientar a sua vida e conferir-lhe um interesse.

 

Quanto a Jason, Mariana não ousava interrogar-se sobre o género de sentimento que lhe inspirava. Afeição, estima, ternura ou simples amizade? Era tão difícil de descobrir! Em todo o caso, tinha confiança, uma confiança total e absoluta na sua coragem e no seu valor de homem. Nele, a criança encontraria um pai capaz de lhe inspirar respeito, admiração... talvez até amor. A própria Mariana encontraria junto dele, se não a felicidade, pelo menos a segurança, pois entre si e todos os que até aí tinham feito pesar sobre ela qualquer ameaça, Jason saberia interpor a sua força, o abrigo dos largos ombros e da sua energia. Não existiria Napoleão... para Mariana e o filho, mas também não haveria Francis Cranmere, ou outro triste ”sire”. Isto compensaria um pouco e o misterioso candidato do cardeal não poderia certamente oferecer-lhe tanto... Mas seria Jason prevenido a tempo? Se estivesse na América, nem valia a pena pensar nele!...

 

Fatigada de sonhar junto do lume apagado, Mariana ergueu-se, espreguiçou-se e dirigiu-se para a cama. Tinha frio, de repente. O cansaço desse terrível dia acabrunhava-a agora. Dormir! Era o único bem desejável! Sonhar talvez com esse país longínquo, de que, uma noite no pavilhão do palácio Matignon, Jason Beaufort lhe falara com uma atraente nostalgia...

 

Mariana deixou cair o penteador e abriu a cama. Mas, quando se preparava para deslizar entre os lençóis, ouviu bater à porta.

 

Estais a dormir? segredou uma voz.

 

Era Arcadius, finalmente de regresso, depois da caçada ao dinheiro... e o repouso não viria ainda. Com um suspiro, Mariana pensou que seria preciso contar-lhe quase tudo o que se passara, excepto aquilo que respeitava à criança e ao casamento projectado. Isso, até nova ordem, era o seu segredo...

 

Vou já! disse ela, em voz alta.

 

Em seguida, apanhando o roupão de renda e batista fina, vestiu-o e foi abrir a porta.

 

                         OS PALHAÇOS DA AVENIDA DO TEMPLO

 

O momento temido estava próximo. Chegara a hora de ir ao encontro de Francis com o dinheiro, mas nada distinguia Mariana e Arcadius das outras pessoas, quando, ao fim da tarde do dia seguinte, se misturaram com a multidão que, quotidianamente, se aglomerava em volta dos teatros ao ar livre, das barracas de feira e dos cafés, que bordejavam a maior parte da Avenida do Templo. Com um vestido de lã merino castanho, ornado de delgadas fitas de veludo do mesmo tom e uma pequena gola de musselina branca, uma touca do mesmo veludo enfeitada apenas com um pequeno folho branco e uma capa castanha pelos ombros, Mariana, calma na aparência, apesar do mal-estar que sentia, tinha realmente o aspecto de uma jovem burguesa, que viera contemplar as maravilhas da célebre avenida. Arcadius, com um chapéu de feltro, gravata preta e fato cinzento, cor de rato, dava-lhe gravemente o braço.

 

Tinham deixado a carruagem atrás dos jardins do Café Turco. O tempo estava bom e, sob os ulmeiros da célebre avenida, numerosos grupos iam e vinham, de uma barraca de doces para um vendedor de barquilhos, de uma tenda de palhaços para as barracas de madeira, que constituíam pequenos teatrinhos, ávidos de ver tudo, nessa espécie de feira perpétua, paraíso dos funâmbulos e dos saltimbancos de todos os géneros... e dos parisienses. Estes que, na maioria, tinham jantado às cinco horas, procuravam, no passeio sob as árvores, uma feliz digestão ou um espectáculo divertido para a noite.

 

No meio de um ruído infernal de gritos, música e pantomimas, berradas sobre um contraponto feito de ásperos chamamentos de trombetas e do pesado barulho de grandes caixas, paravam em frente do espanhol incombustível, um rapaz magro e pálido com um fato brilhante, que bebia óleo fervente e passeava-se sobre ferros avermelhados sem parecer incomodado, em frente do cão que tirava cartas, em frente das pulgas sábias, que puxavam carroças miniaturas ou se batiam em duelo com alfinetes. Sobre um estrado, enfeitado com panos azuis e cor de laranja, um velho alto e barbudo com cabeça de patriarca declamava;

 

Entrai, Senhoras e Senhores, damos hoje, extraordinariamente, uma representação do ”Festim de Pedro ou a Ateia fulminada”, comédia em cinco actos com mudança de cenário à vista, cheia de ardor no quinto acto e desaparecimento de M.lle Malaga. O célebre Hauterive desempenhará o papel de D. Juan com todo o guarda-roupa! Mostrai o fato do quarto acto! Vede; fato castanho-avermelhado, colete e mangas de renda de Flandres. E agora, apresentamos-vos a jovem Malaga em pessoa, para vos provar que a sua beleza não é uma quimera. Aparecei Malaga!

 

Fascinada, apesar de tudo, tanto pelo palavreado do homem, como pelo ambiente colorido, Mariana viu surgir, como um raio brilhante, uma adolescente morena, encantadora, com vestidos de seda matizada, com as longas tranças pretas, ornadas de travessões brilhantes, que saudou o público com imensa graça, provocando um trovão de aplausos.

 

Como é bonita! exclamou. É pena exibir-se em palcos miseráveis!

 

Há muito mais talento do que imaginais em todas estas barracas, Mariana. Quanto a Malaga, diz-se que é de boa família, nobre até, e que o pai, este barbudo que até na profissão de saltimbanco conserva uma espécie de grandeza, é um senhor desacreditado depois de qualquer triste história. Mas, se quiserdes, voltaremos cá para os aplaudir. Gostaria que vísseis dançar Malaga em companhia de M.”e Rosa, sua parceira. Creio que haverá poucas bailarinas na Ópera que tenham tanta graça... Por agora, julgo que temos mais que fazer.

 

Mariana corou. Naquela atmosfera de festa inocente, no meio da alegria ruidosa, fictícia ou real, esquecera por um momento a razão profunda da sua excursão à Avenida do Templo.

É verdade! Onde é esse Salão das Figuras..., já que é aí que devemos encontrar...

 

Não continuou. Era-lhe cada vez mais difícil pronunciar o nome de Francis Cranmere. Arcadius, apertando debaixo do braço a carteira contendo as cinquenta mil libras em notas, que Mariana fora buscar nessa manhã ao banco Laffitte, designou, um pouco mais afastado, um grande edifício, cuja fachada neogrega quase escondia uma enorme rotunda e que dominava, com certa altivez, a multidão das tendas e dos palcos.

 

Um pouco mais além do circo Olímpico, onde o Senhor Francis dá os seus espectáculos de cavalaria e que podeis ver daqui. Essa casa, cuja varanda tem quatro colunas coríntias, é o Salão das Figuras de Cera do Senhor Curtius. Um local muito curioso, vereis... mas tomai cuidado onde pondes os pés. Há muita lama por aqui.

 

Com efeito, para evitar as bichas em formação diante dos teatros da Alegria e do Ambíguo Cómico, onde cartazes de cores garridas solicitavam o cliente, tão imperiosamente como os chamamentos, tiveram de se desviar sob as árvores, onde o solo molhado por uma grossa chuva, caída de manhã, se mostrava bastante enlameado. Um grupo de rapazes passou, cantando um refrão de Désangiers, então muito na moda:

 

”O único passeio que tem valor

O único em que tu ris

O único onde me divirto bem

É a Avenida do Templo em Paris”.

 

A intenção é boa mas a retórica lamentável comentou Jolival, protegendo, como podia, Mariana contra a lama que os rapazes levantavam com os pés.

 

Porquê?

 

Com um gesto, Jolival indicou uma casa baixa, encaixada entre o Salão das Figuras de Cera e um pequeno teatro de madeira ainda deserto e que um grande cartaz de tela pintada anunciava como o Teatro dos Pigmeus. O rés-do-chão da casa era ocupado por um bar bastante vasto, cuja porta se abria sob uma insígnia representando uma espiga de trigo cortada por uma serra.

 

Este local encantador é o cabaré da Espiga-Serrada, um dos domínios da nossa querida Fanchon Flor-de-Lis. É melhor não nos aproximarmos muito.

 

A evocação da inquietante associada de Francis fez tremer Mariana, já bastante impressionada pelo que se iria seguir. Apressaram o passo e, alguns segundos depois, tinham chegado. Em frente da porta do museu de cera, um soberbo lanceiro polaco fazia a guarda, tão bem imitado que Mariana teve de se aproximar muito para se assegurar que era um manequim, enquanto Arcadius, com a carteira sempre debaixo do braço, foi pagar os bilhetes. O lanceiro era, aliás, o único luxo da entrada, que era das mais modestas com os dois lampiões e o anunciante que, infatigavelmente, chamava os parisienses a irem contemplar ”mais verdadeiros do que ao natural” os poderosos do momento.

 

Foi com desconfiança que Mariana penetrou numa grande sala negra e cheia de fumo, onde a luz entrava pelas janelas que precisavam de uma grande limpeza. O dia, embora claro lá fora, aqui parecia cinzento e enevoado, o que conferia às personagens de cera, que a povoavam, uma estranha irrealidade, que teria sido talvez angustiante se as exclamações e os risos dos visitantes não se encarregassem de aligeirar a atmosfera.

 

Faz frio aqui! murmurou a jovem sentindo um arrepio, enquanto, fingindo admirar uma reprodução muito marcial do defunto marechal Lannes, observava os arredores para ver se, por entre essa gente real ou não, reconheceria Francis.

 

Sim admitiu Jolival... e o nosso amigo está atrasado. Mariana não respondeu. O seu mal-estar aumentava, talvez

 

por se encontrar no meio dessas personagens de cera, tão semelhantes às verdadeiras. O grupo principal, que ocupava todo o meio da vasta e escura sala, representava o próprio Napoleão, à mesa com toda a família, servidos por criados. Todos os Bonaparte ali estavam: Carolina, Paulina, Elisa, a severa Mãe, um pouco mais rígida do que na realidade, nos seus véus de viúva. Mas era o imperador de cera que mais incomodava Mariana. Tinha a impressão de que os seus olhos de esmalte podiam vê-la nesse instante, em que ela agia com todo o mistério de uma conspiradora. Tinha vontade de fugir, de repente, sentindo ao mesmo tempo um receio instintivo de ver surgir Francis.

 

Adivinhando a sua perturbação, Arcadius aproximou-se da mesa imperial e começou a rir.

 

- Não imaginais até que ponto esta mesa reflecte a história de França. Vimos aqui Luís XV e a sua augusta família, Luís XVI e a sua augusta família, a Comissão de Salvação Pública e a sua augusta família, o Directório e a sua augusta família. Eis, agora, Napoleão e a sua augusta família... mas notai que falta a Imperatriz. Maria Luísa ainda não está pronta. Aliás, não estou muito certo de que, para a executarem, não se sirvam de alguns bocados da Pompadour, agora indesejável. Pelo contrário, do que estou certo é que estes frutos são os mesmos desde o tempo de Luís XV... e o pó também deve ser dessa época!

 

Mas a alegria, aliás forçada, de Jolival provocou em Mariana apenas um ligeiro sorriso. Que fazia Francis? Receava vê-lo aparecer, mas, por outro lado, tinha pressa de acabar com aquilo, o mais depressa possível e abandonar aquele local que, na sua opinião, não possuía nada de divertido.

 

De repente, ele surgiu. Mariana viu-o sair de um canto mais escuro ainda do que o resto. Apareceu bruscamente, atrás da banheira onde Marat agonizava pela facada de Charlotte Corday. Estava vestido também como um burguês, as abas do chapéu castanho e a gola do casaco escondiam-lhe, em parte, o rosto. Dirigiu-se rapidamente para a jovem e o companheiro e, Mariana, que sempre o conhecera tão seguro de si, notou, com um pouco de surpresa, que ele lançava, à sua volta, olhares inquietos e fugidios.

 

Sois pontuais! disse bruscamente sem se incomodar em saudá-los.

 

Vós não! ripostou secamente Arcadius.

 

Fui retido. Desculpai-me. Tendes o dinheiro?

 

Temos o dinheiro! respondeu ainda Jolival, apertando, mais contra o peito, a carteira. Pelo contrário, parece-nos que M.lle de Asselnat não vos acompanha.

 

Entregá-la-ei mais tarde. O dinheiro primeiro! Quem me diz que ele se encontra nessa carteira? acrescentou, estendendo o dedo para o objecto mencionado.

 

O que há de desagradável nos negócios com gente da vossa espécie, mylord, é a atmosfera de desconfiança que criais. Vede vós mesmo!

 

Vivamente, Arcadius abriu a carteira e mostrou os cinquenta pacotinhos de mil libras, fechou-a rapidamente e meteu-a de novo sob o braço.

 

Aí está! disse calmamente. Agora, a vossa prisioneira!

 

Francis fez um gesto irritado.

 

Mais tarde, disse eu! Levá-la-ei esta noite a vossa casa... Por agora estou com pressa e não me posso demorar aqui. Não me sinto em segurança.

 

Era evidente! Desde que chegara, Mariana não tinha conseguido cruzar o olhar de Francis, de tal modo estava instável e móvel. Mas, desta vez, ela entrou também na lide. Pousando uma mão sobre a carteira, como se receasse que Arcadius se deixasse cair em qualquer intempestiva generosidade, declarou:

 

Quanto menos vos vir, mais satisfeita ficarei, meu caro! A minha porta estará sempre fechada para vós. Está pois fora de questão que vos apresenteis em minha casa, só ou acompanhado. Fizemos um contrato. Acabais de verificar que, naquilo que me dizia respeito, cumpri a minha parte. Agora cumpri a vossa... senão tudo será posto em causa.

 

O que quer dizer...

 

Que não recebereis o dinheiro enquanto não me entregardes a minha prima.

 

Os olhos cinzentos de Lord Cranmere pareceram franzir-se e carregarem-se dum brilho ameaçador, e fez um esgar em forma de sorriso.

 

Não estareis um pouco esquecida dos termos do contrato, bela dama? A vossa prima, se a memória não me engana, era apenas uma parte... uma parte muito pequena! Era apenas uma... garantia de tranquilidade para mim, enquanto arranjáveis o dinheiro, que é uma garantia para vós.

 

Mariana não fraquejou sob a ameaça. Desde que cruzara as armas, reencontrara, como sempre quando tinha de travar um combate, toda a sua calma e toda a sua segurança. Permitiu-se até o luxo de um sorriso de desprezo.

 

Não o entendo assim. Desde o agradável encontro que me impusestes, tomei algumas precauções exactamente pela minha tranquilidade. Já não me fazeis medo!

 

Não empregueis o ”bluff”! rosnou Francis. Nesse jogo, sou mais forte do que vós! Se não me receásseis, teríeis vindo com as mãos vazias.

 

Vim apenas para recuperar a minha prima. Quanto àquilo a que chamais um... ”bluff”, sabei que ontem vi o Imperador e estive até várias horas no seu gabinete. Se o vosso serviço de informações funcionasse tão bem como dizeis, saberíeis isso!

 

-Sei e sei também que esperavam ver-vos sair entre dois polícias...

 

Mas saí escoltada, delicadamente, pelo criado de quarto de Sua Majestade até à carruagem imperial, que me conduziu a casa disse a jovem com uma serenidade que estava longe de sentir realmente.

 

Decidida a empregar a audácia até ao extremo, acrescentou:

 

Distribuí os vossos panfletos, meu caro; é-me completamente indiferente, e se não me entregardes Adelaide, não- vereis um tostão!

 

Apesar da profunda inquietação que não podia deixar de sentir, pois conhecia bem a alma tortuosa da personagem para pensar que o vencera tão depressa, Mariana saboreou uma dupla alegria em constatar que ele não respondia imediatamente e parecia até perplexo. Lendo no rosto pontiagudo do amigo Arcadius uma expressão muito próxima da admiração, ela sentiu que estava a conquistar uma vantagem importante. Era absolutamente necessário que Francis acreditasse realmente que só Adelaide era agora importante para ela. Não pensava em guardar o dinheiro da chantagem, que Jolival apertava tão ternamente contra o peito, mas sim em tentar retirar-lhe de futuro a perigosa mina. É certo que o futuro pertenceria talvez a Jason Beaufort, mas, do mesmo modo que tivera horror em ser um objecto de escândalo para Napoleão, recusava-se a destinar a Beaufort uma mulher desacreditada e publicamente coberta de lama. Era já suficiente oferecer-lhe uma mulher grávida de outro.

 

De repente, Lord Cranmere murmurou:

 

Gostaria de vo-la entregar, aquela velha cadela! Mas já não a tenho!

 

- Como?

 

Que quereis dizer?

 

Mariana e Arcadius tinham falado ao mesmo tempo. Com raiva, Francis encolheu os ombros.

 

Que desapareceu! Escorregou-me por entre os dedos! Fugiu, se preferis!

 

Quando? perguntou Mariana.

 

-Ontem à noite! Quando entraram no seu... quarto para lhe levar o jantar, tinha desaparecido.

 

E imaginais que vou acreditar nisso?

 

Bruscamente, o receio contido e mal-estar que a invadiam durante todo o tempo, transformaram-se numa violenta indignação que explodiu. Francis tomava-a por tola? Era muito fácil, na verdade! Ele recebia o dinheiro e não dava nada em troca, senão uma palavra e, talvez, uma mentira!

 

Com um furor igual, Francis ripostou;

 

Não tendes outra solução! Fui também obrigado a acreditar! Juro-vos que ela desapareceu da prisão.

 

Oh! os vossos juramentos! Se ela tivesse fugido, teria ido imediatamente para casa!

 

Só vos posso dizer aquilo que sei. Soube há instantes da sua fuga. Juro-vos... sobre os restos mortais de minha mãe!

 

Onde a tínheis escondido? interveio Jolival.

 

Numa das caves da Espiga-Serrada, muito perto daqui. Jolival começou a rir.

 

Em casa de Fanchon? Oh, meu caro, não vos julgava tão ingénuo! Se quereis saber onde ela está, dirigi-vos à vossa aliada. Ela sabe seguramente! Deve achar que lhe reservastes uma parte indigna neste negócio, se não dos seus talentos, pelo menos do seu apetite!

 

Não interrompeu-o secamente Lord Cranmere. É um género de graça que Fanchon não tentaria comigo. Sabe perfeitamente que eu não hesitaria em puni-la... de forma definitiva. Aliás, a sua cólera perante a fuga dessa velha louca era reveladora. Se quereis saber, minha cara, mais vale para ela não voltar a cair nas mãos de Fanchon. Devemos dizer que fez tudo para a exasperar.

 

Mariana conhecia bem Adelaide para calcular, sem dificuldade, como ela encarara o rapto e o cativeiro. Fanchon Flor-de-Lis, apesar do seu cinismo e da sua audácia, devia ter encontrado quem lhe fizesse frente e, no fim, era muito possível que a intrépida senhora tivesse conseguido fugir. Mas, nesse caso, onde estava? Porque não voltara à Rua de Lille?

 

Francis estava impaciente. Havia já alguns instantes que lançava olhares, cada vez mais numerosos, à entrada, onde acabava aliás de aparecer um enorme granadeiro da Guarda, com uma barba muito espessa e a cabeça tapada com o alto barrete de plumas vermelhas, com longos bigodes à gaulesa; mais parecia qualquer animal estranho, de tal modo se lhe viam pêlos e cabelos.

 

Acabemos com isto lmurmurou Francis. Já perdi muito tempo! Ignoro onde está essa velha doida, mas encontrá-la-eis qualquer dia. O dinheiro!

 

Nada a fazer! articulou, energicamente, Mariana. Só o tereis quando eu tiver a minha prima.

 

Julgais isso? Eu digo-vos que mo dareis imediatamente! Vamos! Depressa! Passai-me essa carteira, meu homenzinho, senão...

 

Subitamente, Mariana e Jolival viram aparecer por baixo do casaco de Francis uma pistola, cujo cano preto foi ameaçar directamente o ventre da jovem.

 

Eu sabia que haveria história por causa da velha disse Lord Cranmere entre dentes. Então! O dinheiro, ou disparo! E vós, homem de confiança, não vos mexais, senão...

 

O coração de Mariana quase parou. Leu a sua morte no rosto, de súbito descomposto, de Francis. Tal era a sua sede de ouro que certamente não hesitaria em disparar, mas recusou-se a mostrar-lhe o medo. Respirando fundo, ergueu a cabeça com altivez.

 

Aqui? disse ela com desdém. Não ousaríeis!

 

’Porquê? Não há ninguém, senão esse soldado... e está muito longe. Terei tempo de fugir.

 

Efectivamente, o alto granadeiro passeava tranquilamente com as mãos atrás das costas, através das figuras de cera. Aproximava-se lentamente da mesa imperial e não olhava para o lado deles. Francis tinha tempo para disparar várias vezes.

 

Transijamos! propôs Arcadius. Metade agora e a outra metade quando encontrarmos M.me Adelaide!

 

Não! É muito tarde e não tenho tempo. Preciso do dinheiro para regressar a Inglaterra, onde tenho que fazer. Então, dai-mo depressa, senão tiro-o à força e, antes de partir, terei ainda tempo para distribuir os papelinhos amarelos. O seu efeito será o que for... é verdade também que uma vez morta... não tereis de vos preocupar muito.

 

A pistola agitava-se, perigosamente, entre os dedos de Francis. Mariana lançou à sua volta um olhar aflito. Oh! não poder chamar o soldado!... Mas... desapareceu de repente... Francis era o mais forte. Tinha de capitular.

 

Dai-lhe o dinheiro, meu amigo disse ela numa voz incolor para ele desaparecer da minha vista!

 

Sem uma palavra, Arcadius estendeu a carteira. Francis pegou-lhe avidamente, e escondeu-a sob o grande casaco. A pistola também desapareceu, para alívio de Mariana, que, por um instante, vira a loucura nos olhos gelados de Francis e receava que ele disparasse apesar de tudo. Ela não queria morrer, sobretudo desse modo estúpido. A vida tinha adquirido a seus olhos um preço extraordinário sem saber muito bem porquê. Tinha ainda muitas coisas a oferecer-lhe, começando pelo filho, para que Mariana aceitasse perdê-la assim, às balas de um louco. Francis zombou, respondendo às suas últimas palavras:

 

Não conteis muito com isso! As pessoas da minha têmpera têm a vida dura, já pagastes para o saber. Ver-nos-emos, doce Mariana! Lembrai-vos que isto apenas vos dá um ano de tranquilidade! Aproveitai-o!

 

Tocando no chapéu com um dedo insolente, já se afastava entre os dignitários da corte, com gestos pomposos, quando bruscamente tombou. Surgido detrás da gigantesca figura do marechal Augereau, o granadeiro acabava de lhe cair em cima.

 

Estupefactos, Mariana e Arcadius viram os dois homens entregar-se a um combate selvagem. O granadeiro tinha a vantagem do tamanho e do peso, mas Francis, treinado, como todos os nobres ingleses, em numerosos desportos, era de uma ligeireza e de um vigor pouco comuns. Sobretudo possuía uma raiva louca por se ver assim preso no próprio momento em que, com uma fortuna debaixo do braço, ia partir para passar alguns meses de vida faustosa. Enquanto lutava, soltava gritos de cólera, enquanto o outro, silencioso, se batia sem dizer palavra, procurando dominar, sob o seu peso, um adversário tão escorregadio e remexido como uma enguia. Apoiando-se um ao outro, os dois combatentes tinham-se erguido e, cabeça contra cabeça, as mãos apertadas como pedras firmes, enfrentavam-se, soprando e rugindo como dois touros numa arena.

 

Um golpe de joelhos, aplicado traiçoeiramente, assegurou a vitória ao inglês. Com um gemido de dor, o granadeiro dobrou-se em dois e caiu no chão, segurando o ventre. Sem se demorar a deixá-lo retomar o fôlego, Francis apanhou a pasta que deslizara até perto da porta e, arquejante, fugiu coxeando.

 

Com o mesmo movimento, Mariana e Arcadius precipitaram-se para o infeliz adversário para o ajudarem a erguer-se. Mas o homem, sempre de joelhos, levava já um apito à boca e lançava um apelo estridente.

 

’Devo estar enferrujado, ou então bebo demais! comentou ele com bom humor. De qualquer modo, não irá longe. Eu teria preferido apanhá-lo! Fez-me doer horrivelmente... sem contar com o que me fez correr! Não importa! Dá-me prazer ver-te de novo, pequena!

 

Ergueu-se, ante os olhos de uma Mariana incrédula que ouvia com alegria, mas sem ousar acreditar, uma voz bem conhecida sair de todo aquele aparato de barba, bigode e cabelos.

 

Não é possível! murmurou. Sonharei?

 

He, não, sou mesmo eu! Ainda te lembras do tio Nicolau? Confesso que foi uma verdadeira surpresa reconhecer-te! Não te esperava encontrar aqui!

 

Nicolau! Nicolau Mallerousse! suspirou Mariana encantada, enquanto ele se desembaraçava tranquilamente dos postiços desnecessários. Mas onde tendes estado? Tenho pensado tantas vezes em vós!

 

’Eu, também, pequena, tenho pensado muitas vezes em ti! Quanto ao local onde tenho estado, é sempre o mesmo, a Inglaterra! Há muito tempo que ando atrás deste animal que acaba de me escorregar tão rapidamente entre os dedos... mas que deve estar já nas mãos dos meus colegas! É mau e hábil. Para te dizer a verdade, tinha perdido a sua pista em Anvers e tive alguma dificuldade em encontrá-lo aqui.

 

Porque o seguis?

 

Tenho contas a ajustar com ele... contas particularmente grandes e que tenciono que ele pague até ao último cêntimo! O que dizíeis? Eis que chegam.

 

Com efeito, Francis Cranmere reaparecia no salão das figuras de cera, mas, desta vez, solidamente seguro por quatro vigorosos polícias. Apesar das mãos ligadas, debatia-se ainda como um diabo e os guardas tinham de o arrastar porque não andava. Lívido, escumava de furor, lançando olhares assassinos à multidão que se juntava à entrada da casa e que polícias afastavam o melhor que podiam.

 

Apanhámo-lo, chefe! disse um dos gendarmes.

 

Está bem! Levai-o para Vincennes e sob dura vigilância, hem?

 

Aconselho-vos a soltarem-me, senão podereis arrepender-vos rugiu Francis.

 

Nicolau Mallerousse, ou Black Fish, caminhou até ele e baixou-se um pouco para o olhar bem de frente.

 

Julgas isso? Eu creio que vais arrepender-te de ter vindo ao mundo, quando eu tiver acabado contigo!

 

Vá, bandido! Para o cárcere!

 

Encontrámos-lhe isto! disse um dos homens, estendendo a carteira. Está cheia de dinheiro...

 

Ao ver o olhar ávido que Francis lançou às notas, Mariana compreendeu que o dinheiro era, para ele, mais importante do que a própria liberdade e que, se lho arrancassem, poderia tornar-se mortalmente perigoso, no caso, talvez improvável, mas sempre possível, de ele fugir. Arcadius não o vira sair de casa de Fouché? Não se tinha entregue às piores vilanias, à mais abjecta chantagem para obter o dinheiro? A sensatez aconselharia talvez a que ela lhe deixasse levar esse dinheiro mal adquirido. Mas, no fim, a sorte que fizera cair Black Fish sobre ele, precisamente no momento em que ela lhe entregava a elevada quantia, não seria um sinal do destino? Nas mãos do temível bretão, Francis não teria oportunidade para fugir a uma sorte pouco invejável. Fechado em Vincennes, cujas torres datando da Idade Média lhe tinham mostrado um dia, deixaria de ser perigoso. E depois a tentação de exercer a vingança, que se lhe oferecia, era muito forte.

 

Esse dinheiro é meu! disse ela. Este homem tinha-no-lo extorquido sob a ameaça de uma pistola... que deve ter ainda. Posso guardá-lo?

 

Eu vi, efectivamente, o prisioneiro, tirar a carteira das mãos do senhoraprovou Black Fish, designando Arcadius. Não há razão para não o entregar, visto tratar-se apenas de dinheiro. Pensei, primeiro, que se tratava de qualquer coisa infinitamente mais perigosa e, para não te esconder nada, pequena, tiveste sorte em nos conhecermos há muito tempo. Isto poderia ter-vos custado caro! Revistai-o!

 

Enquanto os polícias revistavam um Francis, escumando de furor, e achavam, efectivamente, a arma que trazia, Mariana perguntou:

 

Porque é que me teria podido custar caro?

 

Porque antes de te conhecer, tomara-te por um agente do estrangeiro.

 

Ela? gritou Francis fora de si. A quem quereis fazer acreditar que não sabíeis quem ela era? Uma cadela! Uma espia de Bonaparte, de quem é, aliás, a amante!

 

E se falássemos de vós? ripostou Mariana com desprezo. Que nome posso chamar-vos, além do facto de serdes um espião? Mestre-cantor? E talvez também...

 

Pagar-me-ás tudo isto, mais cedo ou mais tarde, vagabunda! Deveria ter desconfiado que me prepararias uma armadilha. Foste tu, hem, tu que me vendeste?

 

Eu? Como poderia ter sido eu? Quem de nós dois escolheu o local deste encontro?

 

Eu, bem entendido! Mas apesar do que te dissera, mandaste os polícias!

 

Não é verdade! exclamou Mariana. Eu ignorava que vos seguiam. Como teria eu sabido?

 

Basta de mentiras resmungou Francis, fazendo um gesto violento com as mãos atadas, como se quisesse bater na jovem. Ganhaste desta vez, Mariana, mas não te alegres muito depressa! Sairei da prisão... e então tem cuidado!

 

Já chega! interpôs Black Fish, cujos olhos se tinham dilatado de surpresa, ao ouvir a referência à situação de Mariana junto do Imperador. Já disse para o levarem. Embarcai este homem e amordaçai-o, se não se quiser calar. Quanto a ti, pequena, não tens nada a recear. Tenho razões suficientes para o fazer subir ao cadafalso e ninguém pode fugir das celas de Vincennes.

 

-Vingar-me-ei em menos de seis meses! rugiu Francis, enquanto um dos polícias lhe aplicava brutalmente sobre a boca um lenço sujo de quadrados, que conseguiu abafar as suas ameaças.

 

Estava dominado e amarrado. No entanto, Mariana viu-o partir, arrastado pelos guardas, com uma espécie de horror.

 

Sabia como era poderoso o génio do mal que habitava naquele homem, sabia até que ponto ele a odiava, com um ódio tenaz que aumentaria agora por a julgar capaz de o ter denunciado. Mas, desde a noite das suas núpcias, soubera sempre que entre eles existia uma luta de morte que só terminaria no desaparecimento de um deles.

 

Adivinhando o curso dos pensamentos da amiga, Jolival pegou-lhe no braço e apertou-o com firmeza para a sossegar e dar-lhe a entender que não estava sozinha, mas foi a Black Fish que, com os punhos nas ancas, via partir os seus homens e o prisioneiro, que ele se dirigiu:

 

O que fez ele, além do facto de ser inglês, e porque o seguis desde Inglaterra?

 

É um espião do Arenque Vermelho e perigoso!

 

O Arenque Vermelho? admirou-se Mariana.

 

Lord Yarmouth, se preferes, actualmente o director do Home Office no gabinete de Lord Wellesley, e muito conhecido na alta sociedade parisiense, que lhe deu esse sobrenome. Acrescento que a mulher, a bela Maria Fagiani, vive em Paris, onde ocupa o seu tempo, da forma mais agradável, com alguns amigos, dos quais o nosso animal faz parte. Mas foi por outra razão que jurei a perda deste Cranmere.

 

Qual?

 

Os prisioneiros dos pontões de Portsmouth, nos quais está particularmente interessado. Este cavalheiro gosta da caça e, para preencher os tempos livres, possui uma matilha de cães, cuja especialidade é seguir a pista dos prisioneiros evadidos... Vi alguns desses infelizes apanhados pelas feras de Cranmere... ou, pelo menos, aquilo que elas deixavam! Bem pouco!

 

Uma terrível cólera fazia tremer a voz surda de Black Fish, crispava-lhe os punhos entre os dentes cerrados. Mariana, aterrada, fechou os olhos com as visões de pesadelo que ele acababa de evocar. Que ser abominável era o homem a quem se ligara! Que abismo de horror, de crueldade sádica dissimulava esse belo rosto, essa figura de príncipe? Por um momento, veio-lhe o pensamento do pacto concluído com o cardeal de S. Lourenço e, pela primeira vez, teve um sentimento de reconhecimento para com o padrinho. Tudo, menos conservar o menor laço com tal monstro!

 

Porque não o matastes com as vossas mãos? perguntou ela muito baixo.

 

Porque sou, acima de tudo, um servidor do Imperador! Porque quero que ele seja julgado e porque não quero privar a guilhotina da sua cabeça. Mas, se os juizes não o mandarem para o cadafalso, juro abatê-lo, eu mesmo, com as minhas mãos... ou morrer! Agora, deixemos isso! Os visitantes regressam. Temos de deixá-los ver as figuras de cera!

 

Efectivamente, dois ou três curiosos entravam com prudência no salão, já livre de polícias. Com inquietação procuravam qualquer vestígio do drama que acabava de se desenrolar, em vez de olharem as personagens de cera.

 

A companhia é boa, mas devemos partir! suspirou Jolival. Se não vedes inconveniente... confesso que toda essa gente a olhar para nós...

 

Parti, nada tendes a fazer aqui. Dizei-me somente onde posso encontrar-vos. Eu fico, porque não encontrei no inglês os papéis que procurava. Há ainda a possibilidade de aparecer alguém com eles. Alguém que tenho de esperar.

 

Alguém que deve vir aqui?

 

Suponho que sim... Agora, põe-te a mexer, pequena. Tiveste sorte por nos conhecermos há tanto tempo, senão tê-los-ia embarcado juntamente com o inglês! Aquilo que se vai seguir não te diz respeito e não tenhas medo das suas ameaças! Ele não pode pô-las em prática.

 

Mariana gostaria de lhe fazer mais perguntas. Desde a entrada de Black Fish em cena, criara-se uma atmosfera de mistério, reforçada pela pouca luz dos candeeiros, com que o Senhor Curtius se esforçava por remediar o desaparecimento do dia. Ela compreendia que não lhe era possível imiscuir-se assim nos segredos de Estado, nem nas operações da polícia. Aquela que acabava de se efectuar... e que talvez a livrasse de Francis, bastava-lhe. Tinha plena confiança em Black Fish. Nem os homens, nem os elementos tinham poder sobre ele. No seu barco despedaçado pela tempestade, assim como na casa de Recouvrance, ou sob um disfarce, possuía qualquer coisa de indestrutível e Francis encontraria nele um adversário à sua altura...

 

Enquanto Arcadius garatujava, à pressa, a direcção numa folha arrancada a um livrinho, ela estendeu a mão ao pseudogranadeiro... no momento exacto em que um dos criados de cera da mesa imperial dava um prodigioso espirro, bastante forte e involuntário, para pôr em dúvida a natureza humana da personagem. Aliás, o infeliz, tomado de uma espécie de crise, espirrava cada vez mais, levando ao bolso uma mão trémula para tirar, sem dúvida, um lenço. Mas Black Fish caíra já sobre ele e fazia voar, no meio de uma nuvem de poeira, a cabeleira branca que o pseudocriado de cera usava.

 

Fauche-Borel! exclamou ele. Deveria ter desconfiado!

 

Com um gemido de terror, o interpelado saltou para trás, esbarrando com um Roustan de cera que caiu no chão com grande ruído e pôs-lhe os pés no pescoço sem se importar. Black Fish lançou-se no seu encalço. Correndo como um animal perseguido, que era, o falso criado, que era magro e baixo, esgueirou-se por entre os visitantes espantados, que viram a seguir passar o imponente granadeiro de chicote em punho. Arcadius começou a rir e, agarrando Mariana pela mão, quis arrastá-la para a saída.

 

Vamos ver! Desta vez promete ser divertido. -Porquê? Quem é esse Fauche...

 

Fauche-Borel? Um livreiro suíço de Neuchâtel que se considera o rei dos agentes secretos e que serve Sua Majestade Luís XVIII, na esperança de ser um dia chefe da biblioteca real. Sempre adorou as figuras de cera, mas raramente vi um desajeitado como ele! Vinde! Gostaria de ver o que lhe vai fazer o vosso pitoresco amigo.

Mas Mariana não tinha qualquer desejo de se lançar na pista do falso granadeiro e do falso criado de cera. O encontro com Francis deixara-lhe um gosto muito amargo, para que se pudesse divertir com o que quer que fosse e, apesar da extrema confiança que possuía em Black Fish, não podia recordar, sem sentir um arrepio, o último olhar que lhe lançara o inglês por cima do lenço que o amordaçava. Nunca vira o ódio em estado puro, nem crueldade tão implacável e, relacionando esse olhar com o que Black Fish contara, Mariana sentiu-se gelada de horror. Era como se, de repente, Francis, despojado da sua soberba aparência humana, tivesse deixado surgir, perante ela, o monstro que essa aparência escondia. Até àquele momento, julgara Lord Cranmere sem escrúpulos e sem a menor honestidade, de coração duro e de um egoísmo levado até ao fanatismo, mas as palavras de Black Fish tinham aberto perante os seus olhos, num abismo de crueldade sádica, as inquietantes manifestações de um espírito hábil e manhoso, misturadas às aberrações de um doido perigoso. Não, não lhe apetecia procurar a menor distracção. Tinha vontade de voltar a casa e, na maior calma, pensar em tudo isto.

 

Ide sem mim, Arcadius! - disse ela numa voz incolor. Vou regressar à carruagem e aí esperar-vos.

 

-Mariana! Mariana! Vamos! Despertai! Esse homem causou-vos medo, não é verdade? E aquilo que vos disseram aterrorizou-vos...

 

Compreendeis-me tão bem, meu amigo! disse ela com um risinho. Porque me perguntais então?

 

-Para ter a certeza absoluta! Mas, Mariana, nada mais tendes a recear! O inglês está nas melhores prisões de França. Não fugirá.

 

Já vos esquecestes daquilo que me dissestes? A facilidade com que ele vai a casa de Fouché? Essas familiaridades bizarras que ele tem junto do ministro francês da Polícia e os planos de paz em que este trabalha secretamente em Inglaterra? Black Fish ignora-os Não estava cá e pode ter uma surpresa desagradável e ser censurado até...

 

Arcadius abanou a cabeça, retomou o braço de Mariana e, arrastando-a lentamente para a saída, afirmou gravemente:

 

Não esqueço nada. Black Fish ignora os planos do ministro mas, por seu lado, Fouché ignora certamente a horrível actividade do seu hóspede, do outro lado do estreito. Ele não pode ficar insensível à morte atroz que alguns prisioneiros franceses lhe devem. Soltar esse monstro seria, na minha opinião, assinar a sua própria pena de morte. Napoleão, que ama realmente e profundamente os soldados, nunca lhe perdoaria. É um dos crimes sobre os quais não se pode passar a esponja e, se quereis a minha opinião, Fouché, pelo contrário, fará com que Lord Cranmere seja posto completamente de parte... e é possível que nunca mais se ouça falar dele. O dinheiro serve para calar as pessoas perigosas. Sossegai o vosso espírito e regressemos a casa, já que o desejais.

 

Ela agradeceu-lhe com um sorriso e pendurou-se do seu braço. A noite descera sobre a avenida, mas uma profusão de candeias e candeeiros iluminavam-na como se fosse dia. Todas as fachadas dos teatrinhos, o circo e os palcos dos saltimbancos estavam iluminados. Só o bar da Espiga-Serrada estava silencioso, vendo-se apenas uma pálida luz por trás das janelas de pedra. Mas uma grande multidão, que parecia singularmente remexida, estava agrupada em frente da casa vizinha, o teatro dos Pigmeus, onde o espectáculo fora interrompido. Os dois protagonistas, de pé na borda do palco, com as mãos nos joelhos, olhavam, com surpresa, o que se passava diante do seu teatro.

 

-Mas... estão a lutar aqui! exclamou Jolival.-Apostaria que é o vosso amigo e Fauche-Borel! Olhai, a cena parece divertir imenso os Senhores Bobèche e Galimafré.

 

Quem?

 

’Os dois palhaços que vedes além, a bater na barriga! disse Arcadius apontando com a bengala. O belo rapaz que veste casaco vermelho, calças amarelas, meias azuis, cabeleira ruiva e aquele surpreendente tricórnio com uma enorme borboleta no cimo de um arame é Bobèche. O outro, alto, magro e desengonçado, com um rosto enorme e o riso mais néscio que já se viu, é Galimafré. Não há muito tempo que estão na avenida, mas têm muito sucesso. Ouvi-os rir e interpelar o público.

 

Efectivamente, os dois palhaços encorajavam os combatentes com fortes graças e conselhos burlescos, mas Mariana abanou a cabeça.

 

Deixemos isto, peço-vos! Black Fish tem a nossa direcção, ele virá contar-nos o fim da história.

 

Oh! Não merece dúvidas. Fauche-Borel é mais pequeno... e vós estais fatigada, não é?

 

-Um pouco... sim.

 

Lentamente, evitando a multidão, alcançaram os arredores do Jardim Turco, onde tinham deixado a carruagem. Jolival ajudou Mariana a subir, deu a morada ao cocheiro e subiu, por sua vez, depois de ter colocado, entre eles, a carteira.

 

Que vamos fazer disto? perguntou ele. É perigoso ter em casa tais quantias de dinheiro. Já temos as vinte mil libras do Imperador.

 

-Amanhã, levá-las-eis ao banco Laffitte... mas em nosso nome. É possível que ainda precisemos delas. Senão... entregá-las-ei, muito simplesmente.

 

Arcadius fez um sinal de aprovação com a cabeça, enterrou o chapéu e encostou-se como se quisesse dormir, mas, um momento depois, murmurou:

 

Gostaria de saber onde estará M.le Adelaide.

 

Eu também! disse Mariana, um pouco envergonhada por constatar que a cena dramática com Francis lhe tinha feito esquecer momentaneamente a prima. Mas o principal é que já não está nas mãos de Fanchon Flor-de-Lis!

 

Temos de ter a certeza. Mas qualquer coisa diz-me que não devemos atormentar-nos por sua causa.

 

E o silêncio voltou e ninguém falou até chegarem à casa da Rua de Lille,

 

Eram cerca de onze horas dessa noite e Mariana estava com Ágata, que lhe escovava interminavelmente a longa cabeleira preta, quando Arcadius bateu à porta do quarto e pediu para lhe falar urgentemente. Ela mandou logo a criada de quarto deitar-se.

 

-Que há? perguntou imediatamente assustada por aquele preâmbulo misterioso.

 

Adelaide está cá.

 

Ela entrou? Como foi isso? Não ouvi tocar, nem nenhuma carruagem parar.

 

Fui eu que abri. Passeava no pátio antes de ir para a cama. Depois resolvi sair e ir um pouco até ao Sena. Acabava de abrir a porta pequena, quando a vi chegar. Confesso que tive dificuldade em reconhecê-la.

 

-Porquê? exclamou Mariana logo aflita.-Está ferida ou...

 

Não, não, nada disso! disse Jolival rindo. Reservo-vos a surpresa. Ela espera-vos em baixo. Só vos direi que não está sozinha.

 

Mariana, que ia precipitar-se para fora, atando apenas a larga fita cor-de-rosa para fechar o roupão de renda, deteve-se.

 

- Não está sozinha? Com quem está?

 

Com aquele a quem ela chama o seu salvador. É melhor prevenir-vos já que esse anjo guardião não é senão... Bobèche, um dos dois palhaços da Avenida do Templo, que vos mostrei há bocado.

 

O quê? Estais a brincar?

 

Não tenho a menor vontade, acreditai. É bem ele. Direi mesmo que, esta noite, o seu aspecto é o de um homem de bem. Quereis vê-lo?

 

Que estranho! Mas porque é que Adelaide no-lo trouxe? -Ela vo-lo dirá. Creio até que vai gostar muito de vo-lo apresentar.

 

Mariana tinha tido a sua conta de emoções para aquele dia, mas, além da satisfação de ter encontrado a prima, sentiu uma curiosidade mais forte do que o cansaço. Apressadamente, enrolou os cabelos e atou-os com uma fita, passou pelo guarda-vestidos, pegou num vestido ao acaso e enfiou-o em vez do roupão. Depois disso, foi ter com Arcadius, que a esperava no quarto. Ele acolheu-a com um sorriso divertido que a indignou:

 

Dir-se-ia que esta história vos diverte!...

 

- Por minha fé... Confesso que sim e penso que vos ides divertir também, logo que deis uma olhadela à vossa prima... e isso vai fazer-vos bem. A esta casa falta alegria, há algum tempo.

 

Embora prevenida, Mariana teve um sobressalto ao avistar Adelaide, instalada num dos cadeirões do salão de música, e teve de olhar duas vezes para se certificar que era mesmo ela. Uma extraordinária cabeleira loura aparecia sob o chapéu à última moda e uma espessa camada de pó tornava-lhe o rosto irreconhecível. Somente os olhos azuis, incrivelmente alegres e cheios de vida, e o grande nariz eram os mesmos de sempre; o resto pareceu a Mariana postiço.

 

Mas, sem parecer notar o ar desorientado da prima, Adelaide correu para ela, logo que a avistou, e beijou-a nas duas faces. Maquinalmente, Mariana correspondeu à sua manifestação de afectividade, mas exclamou:

 

Para onde fostes Adelaide? Não sabíeis que estávamos mortalmente inquietos por vossa causa?

 

-Espero bem que simdisse alegremente M.lle de Asselnat, mas vou-vos dar todas as explicações que desejais. Primeiro acrescentou ela, indo buscar o companheiro pela mão para o conduzir junto de Mariana, tendes de agradecer ao meu amigo António Mandelard, conhecido por Bobèche. Foi ele que me ajudou a sair do buraco, onde me tinham prisioneira, que me escondeu e protegeu...

 

e convenceu a não voltar para casa? interrompeu Jolival trocista. Teríeis descoberto a vossa vocação na Avenida do Templo, minha amiga?

 

Pois, dissestes bem, Jolival!

 

Mariana, entretanto, olhava com curiosidade o rapaz alto e louro, que se inclinava correctamente na sua frente. Possuía um rosto aberto, um sorriso franco, olhos alegres e feições cheias de malícia, que lhe agradavam. Estava vestido de escuro, com uma simplicidade que não excluía uma certa elegância. Ela estendeu-lhe a mão.

 

- Devo-vos muito, senhor, e gostaria de vo-lo poder exprimir melhor, do que apenas por palavras.

 

Socorrer uma dama em perigo- não merece agradecimento! disse ele delicadamente. É um simples dever.

 

Como ele falou bem! suspirou Adelaide. E se estais tão contente por reencontrar uma velha prima, minha querida, oferecei-nos uma espécie de ceia. Morremos de fome... eu pelo menos!

 

Deveria ter desconfiado! disse Mariana rindo. Mas os criados estão deitados. Ide, pois, pôr a mesa, Adelaide, e eu vou à cozinha ver o que podemos fazer.

 

Aparentemente, a cozinheira era uma mulher previdente. Mariana achou tudo o que era preciso para organizar uma ceia fria, muito aceitável, e, alguns minutos mais tarde, os quatro convivas daquela refeição improvisada instalavam-se em redor de uma mesa brilhante de cristais e pratas, onde Adelaide nem esquecera algumas rosas numa pequena jarra de cristal.

 

Enquanto devorava uma prodigiosa quantidade de galinha fria, salada e fatias de carne de vaca fumada de Hamburgo, regadas com champanhe, M.lle de Asselnat contou a sua odisseia. Disse como um criado, usando a libré de M.me Hamelin, viera buscá-la, para ir ter com a prima a casa da crioula e como, mal entrara na carruagem que esperava à porta, tinha sido ligada, amarrada e amordaçada por meio de um lenço e, em seguida, transportada através de Paris, até um local então impossível de determinar. Só recuperara os sentidos uma vez chegada ao destino: um reduto fechado, feito de tábuas de madeira mal juntas, colocado sobre uma cave iluminada por um respiradouro tão alto que se tornava impossível atingi-lo, mesmo subindo para cima da pilha de carvão que formava, com um monte de palha, a mobília da curiosa prisão.

 

Pelas fendas das tábuas continuou Adelaide, cortando um grande bocado de um queijo ”brie” cremoso, aliás o seu preferido podia ver a cave que prolongava a minha habitação. Tonéis, garrafas vazias ou cheias, vasilhas de toda a espécie e um material completo de despensa enchiam-na. Havia, além disso, um forte odor a vinho e cebolas, pois a um canto pendiam do tecto algumas réstias. Pelo ruído de passos, que se arrastavam por cima da minha cabeça, pelas vozes, mais ou menos avinhadas, que chegavam aos meus ouvidos, concluí que era a cave de um cabaré.

 

Espero, pelo menos, que nesse local, tão bem fornecido, não vos tenham deixado morrer de sede! disse Arcadius trocista.

 

Água! - acrescentou Adelaide com rancor. Foi tudo o que me deram e um pão, que não se podia comer! Meu Deus,, como este queijo é bom! Vou tirar mais!

 

Mas disse Mariana viste alguém nesse buraco?

 

Certamente! Vi uma abominável velha, vestida como uma rainha e a quem chamavam Fanchon. Deu-me a entender que a minha sorte dependia unicamente de vós e de uma certa quantia de dinheiro que devíeis pagar. Devo dizer que o nosso encontro não foi muito cordial e a mostarda subiu-me ao nariz quando essa velha pretendeu dar-me lições de patriotismo. Ousar vilipendiar o Imperador e glorificar esse animal de duas patas a quem chamam Luís XVIII! Pela minha fé, ela não esquecerá depressa o par de bofetadas que lhe administrei. Se não ma tivessem tirado das mãos, matava-a!

 

Jolival começou a rir.

 

- Isso não a deve ter incitado a melhorar o vosso tratamento, minha pobre Adelaide, mas felicito-vos do fundo do coração. Permiti que beije esta mão tão vigorosa e tão fina.

 

Isso diz respeito à prisão disse Mariana, mas como saístes?

 

Creio que, para o saberdes, é melhor dirigir-vos ao meu amigo Bobèche. Ele dir-vos-á o resto.

 

Oh! Foi bastante simples! disse o jovem com um sorriso que parecia pedir desculpa por atrair a atenção sobre si. Sendo o cabaré da Espiga-Serrada na nossa vizinhança, eu e o meu amigo Galimafré vamos lá frequentemente, para nos refrescarmos. Eles têm um vinhozito de Suresnes que não é desagradável. Devo dizer que vamos lá também para ver e escutar, pois notámos numerosas idas e vindas de personagens, mais estranhos do que o normal, e não tardámos a descobrir que esse cabaré era um lugar muito interessante. Eu, pessoalmente, vou poucas vezes por prudência, mas Galimafré passa lá longos períodos. O seu ar ingénuo e néscio, que é apenas aparente, posso jurá-lo, fazem com que não desconfiem dele. Julgam-no simples de espírito e atribuem o seu sucesso à naturalidade com que representa. Ora, Galimafré, sob as pálpebras descaídas e o seu aspecto adormecido, esconde um olhar vivo e um espírito alerta... ambos ao serviço de Sua Majestade o Imperador, como eu próprio.

 

Ao pronunciar o nome do Imperador, Bobèche ergueu-se com o copo na mão e fez um brinde, o que lhe mereceu um grande sorriso de Mariana.

 

Aquele saltimbanco agradava-lhe. Pouco importava que ele fosse filho de um tecelão da Rua Santo António! Livre das pinturas e do fato demasiado garrido, possuía uma espécie de distinção e uma delicadeza, a que a jovem era sensível... como, aliás, aos olhares discretamente admirativos que ele lhe lançava. Ela era feliz por agradar a um homem que se confessava tão simplesmente fiel servidor de Napoleão. Por um instante, perguntou a si própria se ele não seria um dos numerosos agentes de Fouché, mas quer fosse ou não, isso pouca importância tinha. Para que servia preocupar-se com a forma como ele servia o seu Senhor, visto que ele o servia? Por outro lado, notou também a expressão maravilhada com que Adelaide, esquecendo-se de comer, ouvia o rapaz. Durante um momento, Mariana pensou se ele não lhe inspiraria um pouco mais do que só reconhecimento... Bobèche, contudo, prosseguia a narração:

 

Galimafré notou, na outra noite, que levavam para a cave da casa um pão que não teria aí nada que fazer, a não ser que fosse destinado a alguém, e, mais tarde, durante a noite, fomos explorar a ruela, ou melhor, a vala que separa o nosso teatro dos Pigmeus do cabaré. Sabemos há muito tempo que por detrás de uma quantidade de objectos velhos e detritos há um respiradouro da cave da Espiga-Serrada. Isso permitiu-nos ser testemunhas duma conversa bastante tempestuosa entre Mademoiselle e Fanchon Desormeaux. Ficámos, assim, esclarecidos e...

 

... e na noite seguinte concluiu Adelaide, alegremente eles voltaram com ferramentas e uma corda de nós. As ferramentas para abrir o respiradouro e a corda para me tirar da cave. Nunca me julgara tão ágil!

 

Mas porque não regressastes a casa? perguntou Mariana.

 

Bobèche explicou-me que era mais prudente. Além disso, não podia atravessar Paris coberta de carvão, como estava. Enfim... tinha visto que podia ser muito interessante ficar nas imediações da Espiga-Serrada. Aliás, Mariana, mais vale dizer-vos imediatamente, eu parto com Bobèche. Temos negócios.

 

Mariana franziu as sobrancelhas e depois encolheu os ombros.

 

É estúpido! Que negócios podeis vós ter aí? Estes senhores não têm certamente qualquer necessidade de vós.

 

Foi Bobèche que lhe respondeu com um sorriso amigável na direcção da senhora idosa.

 

Enganais-vos, Mademoiselle. A vossa prima quis aceitar servir-nos de caixeira.

 

Caixeira? exclamou Mariana atordoada.

 

Perfeitamente! afirmou Adelaide num tom cheio de desafio, e não me vindes dizer que essas modestas funções são incompatíveis com as minhas nobres origens. Soube, não há muito tempo, que não existem profissões estúpidas.

 

Mariana, desta vez, corou. A alusão era mais do que transparente. Não poderia, realmente, censurar à prima essas curiosas funções, quando ela própria cantava num palco. Teatro por teatro, o do Pigmeu não era mais desprezível do que o elegante Feydeau... mas ao tomar conhecimento do desejo de Adelaide em partir, sentia-se invadida de tristeza. Não era só, aparentemente, que a velha senhora tinha mudado; parecia, de repente, decidida a lançar-se de alma e coração num caminho curioso e havia na sua voz uma nota de provocação que magoava Mariana. O seu olhar cruzou-se com o de Arcadius por cima da mesa. Ele sorriu-lhe, piscou o olho e, pegando na garrafa de champanhe, encheu de novo o copo de Adelaide.

 

Se é essa a vossa vocação, minha querida, faríeis mal em não a seguir. E... tencionais realmente continuar caixeira? Ou pensais experimentar o palco?

 

Talvez...disse ela rindo. De qualquer modo, já vos disse, não arrisco nada, muito pelo contrário, enquanto que, se ficar aqui, poderemos ver a repetição do meu rapto ou até pôr-vos todos em perigo. Isso não o desejo de modo nenhum! E depois... a aventura diverte-me. Quero saber se os famosos papéis do embaixador Bthurst vão passar pela Espiga-Serrada.

 

Os papéis? Mas que papéis afinal? exclamou Mariana. Durante todo o dia tenho ouvido falar em papéis. Não compreendo nada.

 

Arcadius pousou a mão, suavemente, sobre a da amiga.

 

Julgo compreender. O nosso assunto esteve misturado com outro, muito importante sem dúvida, e em que deve estar envolvido o vosso... enfim o inglês. Daí a chegada imprevista do gigantesco granadeiro, que vós conheceis tão bem, e talvez a erupção de Fauche-Borel. É isto?

 

É isso! - aprovou Bobèche. Perdoai-me de não entrar em mais pormenores, mas certos papéis que foram roubados a um embaixador inglês, desaparecido recentemente, têm todas as possibilidades de passar pelo bar da Espiga-Serrada, que é uma espécie de poiso para os agentes estrangeiros, tanto mais seguro quanto a Polícia não vai lá, pelo menos, oficialmente! Eis porque havia tanta agitação, nestes últimos tempos, na minha vizinhança e Porque um dos agentes que aí vai, e se julgou reconhecido, pensou ser vantajoso ir esconder-se entre as figuras de cera.

 

- De facto! disse Arcadius. Apanharam-no?

 

Bobèche fez um sinal afirmativo e absorveu-se na degustação do champanhe, manifestando, desse modo, a resolução de não dizer mais. Mariana olhava-o agora com um espanto dobrado e uma certa admiração. Como era estranho ouvir palavras tão graves sair duma boca feita para rir e dizer graças! Quem seria aquele palhaço e para quem trabalharia precisamente? Tinha-se proclamado ao serviço do Imperador, mas não parecia estar ao de Fouché. Faria parte do gabinete negro, pessoal do Imperador, como fora dos últimos reis de França e que formava, segundo se dizia, uma polícia paralela e ao lado da oficial? A sua profissão de palhaço devia permitir-lhe ver muitas coisas, sem desconfiarem, e possuía, sem dúvida, uma grande aptidão para se transformar. Nessa noite, com o seu fato verde-escuro, a gravata impecável e os cabelos espessos e dourados cuidadosamente penteados, não teria destoado em qualquer salão e ninguém teria suspeitado que esse rapaz elegante era um palhaço, ou um polícia.

 

O olhar perplexo de Mariana foi do jovem à prima que, encostada na cadeira, mastigava pequenos doces, sem tirar os olhos do novo companheiro. Bebia literalmente as suas palavras e nos olhos azuis havia uma chama que Mariana nunca vira, enquanto um tom rosado e juvenil lhe coloria as faces. Apesar dos quarenta anos, a absurda cabeleira, as pinturas e o grande nariz, Adelaide estava transfigurada, quase bela e quase jovem.

 

-Mas... está apaixonada! pensou Mariana estupefacta, mais triste do que divertida, pois receava ver a senhora aventurar o coração num caminho sem saída. Bobèche mostrara-se certamente, seguro, cavalheiresco mesmo e parecia sentir uma verdadeira admiração pela inteligência, a coragem e o talento de comediante de Adelaide, mas entre a mais louca admiração e o amor mais modesto, havia uma distância tão grande! Por isso, não pôde deixar de protestar, quando Adelaide, ao erguer-se e sacudir o vestido com um suspiro de satisfação, declarou:

 

Aí tendes. Sabeis tudo. Agora, creio que são horas de regressar ao teatro. Esta visita tinha como única finalidade sossegar-vos sobre a minha sorte. Já o fizemos, por isso parto!

 

É ridículo! suspirou Mariana. Apesar de tudo, continuareis em perigo e eu não poderei viver!

 

Faríeis mal, Mademoiselle disse docemente Bobèche. Prometo-vos velar por M.lle Adelaide, como pela minha própria irmã. Entre Galimafré e eu, ela não correrá qualquer risco, prometo-vos... e nós sentimo-nos felizes pela amizade espontânea que ela nos quis oferecer, embora sejamos indignos dela.

 

De qualquer modo acrescentou M.lle de Asselnat, que tinha ouvido este pequeno discurso com uma alegria visível nada nem ninguém poderá impedir-me de regressar ao teatro. Pela primeira vez na minha vida, tenho a impressão de existir verdadeiramente.

 

Desta vez, Mariana, vencida, guardou silêncio. Existir verdadeiramente? Ela que tinha estado na prisão por ter ousado protestar contra o divórcio de Napoleão, que vivera escondida no sótão da moradia Asselnat, abandonada, em companhia de um retrato, que uma noite quisera pegar fogo à mesma casa porque pensara que esta caíra em mãos indignas? Não chamaria ela viver a tudo isso? Foi com uma profunda tristeza que se deixou beijar, no momento da partida.

 

Adivinhando o pensamento da amiga, Arcadius deu-lhe o braço e segredou-lhe:

 

Deixai-a ir, Mariana. Ela está loucamente feliz por brincar aos agentes secretos... e eu, interrogo-me, se ela não terá realmente vocação. Além disso, mais vale para vós, assim como para ela, que não volte agora aqui. O rapaz tem razão: ninguém, nem mesmo Fanchon pensará procurá-la no Teatro dos Pigmeus.

 

-É verdade! suspirou Mariana. Mas vai fazer-me tanta falta.

 

Tinha contado tanto com Adelaide para os dias difíceis que iriam chegar, para a ajudar quando viesse a criança, para a guiar com conselhos, no momento de se reunir ao cardeal... se Jason não aparecesse. Porque havia de se deixar entusiasmar assim por esse demónio inesperado, em que a política e o prazer de representar tinham sem dúvida menos importância do que a sedução de um palhaço? Uma voz secreta murmurou-lhe: ”Se ela soubesse a verdade, ficaria junto de ti”. Mas essa verdade, Mariana não a podia dizer. Tinha prometido ao padrinho guardar silêncio. Além disso... ainda que Adelaide soubesse que precisavam dela, teria a coragem de renunciar a essa miragem que criara: partilhar um momento da vida de um rapaz belo e que lhe agradava? Não, era necessário deixar Adelaide seguir o caminho absurdo que escolhera, deixá-la viver a experiência! Mariana nada podia fazer.

 

Sentindo, subitamente, um peso no coração, ouviu o ruído da porta fechar-se sobre os que partiam. Tinha frio, de repente, e, arrepiada, foi estender as mãos sobre o lume da lareira. O silêncio envolveu o salão, perturbado apenas pela ligeira respiração de Arcadius. Lentamente, ele aproximou-se da amiga. O soalho gemeu sob os seus passos.

 

Porque vos atormentais, Mariana? disse com suavidade. Adelaide não arrisca grande coisa, feitas as contas... apenas perder algumas ilusões! Não façais essa cara triste! Sorri! A vida vai, de novo, encher-se de encanto, vereis como tenho razão! Olhai Adelaide! Encontra a felicidade num teatro de saltimbancos. Quem sabe o que o futuro vos reserva?

 

Contendo as lágrimas, Mariana conseguiu sorrir. Querido Arcadius, tão bom, tão dedicado! Tinha vergonha do segredo que era preciso guardar durante um mês e que, na sua opinião, não tinha importância. Mas um pacto é um pacto. Ela devia jogar o jogo.

 

Tendes razão! disse gentilmente. Que Adelaide se divirta como entender; uma vez que vos tenho, não estou perdida.

 

Até logo! Ide repousar agora e procurai ter sonhos bonitos. -Vou tentar, meu amigo; vou tentar!

 

Juntos, dirigiram-se para a grande escadaria, escurecida àquela hora tardia, e Arcadius pegou num candelabro para iluminar os degraus. Estavam mais ou menos a meio caminho, quando, bruscamente, ele perguntou:

 

Onde foi Gracchus? Ninguém o viu durante o dia e Samson não está na cavalariça.

 

Mariana sentiu-se corar até à raiz dos cabelos e abençoou a obscuridade que a dissimulava, mas não pôde evitar que a sua voz fosse mais rápida e tensa do que o habitual ao explicar:

 

Pediu-me... autorização para ir alguns dias à província... ver a família. Recebeu más notícias.

 

Mariana nunca soubera mentir, mas desta vez necessitou de um verdadeiro esforço. Amaldiçoou a sua pouca habilidade, persuadida que Arcadius iria descobrir logo a mentira. No entanto, a sua voz soou calma e despreocupada ao observar:

 

Não sabia que ele tinha família na província. Julgava que os seus parentes se resumiam à avó, que é lavadeira em Bolonha, na estrada de Revolte. Para que lado foi ele?

 

Para... Nantes, creio eu! disse Mariana incapaz de achar outra coisa além dessa semiverdade, um pouco consoladora.

 

Aliás, Arcadius não levou mais longe o seu interrogatório, contentando-se em exclamar: ”Ah! muito bem...” tão despreocupadamente que a jovem teve a impressão de que ele pensava já noutra coisa. Chegados à porta do quarto de Mariana, despediu-se galantemente, desejou-lhe boa-noite e afastou-se em direcção dos seus próprios apartamentos, entoando uma ária. Havia muito tempo que ele não mostrava uma tal alegria. Dava assim novas de um espírito perfeitamente livre de preocupações e Mariana, ao entrar no quarto, pensou que talvez ele acreditasse firmemente que Francis ficara fora do combate e, portanto, impossibilitado de a incomodar.

 

Sentiu um sentimento de alívio, uma serenidade nova e, nessa noite, dormiu como uma criança, que ainda era um pouco. Que poderia haver de mais maravilhoso do que a paz da alma? Durante três dias e três noites, Mariana saboreou-a plenamente, ao mesmo tempo que uma sensação de vitória sobre si própria e sobre Francis.

 

Durante esse tempo de remição, surgira-lhe uma ideia, que acalentou ternamente. Se Black Fish ganhasse a sua batalha, se ele conseguisse fazer desaparecer Francis da superfície da terra... a anulação não tinha razão e o inquietante casamento também. Seria viúva, livre e, não tendo mais a recear os ataques de Cranmere, poderia, com o pai do seu filho, procurar uma solução menos cruel para o seu amor.

 

Esteve, várias vezes, para pegar numa pena e em papel, com o intuito de escrever ao padrinho. Mas de cada vez, surgia uma impossibilidade. Para onde escrever? Para Savona onde estava o Papa? A carta não chegaria e cairia certamente nas mãos de Fouché. Não, mais valia esperar que o cardeal se manifestasse. Haveria, nesse momento, tempo de lhe dar a conhecer a alteração surgida e talvez fosse ele quem propusesse uma nova solução... Era tão bom sonhar, fazer projectos!

 

Foi na manhã do quarto dia que todas as suas esperanças se desfizeram em fumo. Ágata trouxe à senhora, que preguiçava na cama, um pequeno bilhete branco bem dobrado e cuidadosamente fechado. A sua leitura produziu na jovem um grito de angústia e fê-la sair do leito numa grande aflição. Perdendo apenas o tempo necessário de pôr pelas costas um penteador, de pés nus, correu ao encontro de Jolival, que tomava calmamente o pequeno almoço, lendo o jornal da manhã. A entrada intempestiva de Mariana lívida e aterrada fê-lo erguer-se, tão bruscamente que a mesa em frente da qual estava sentado virou-se, entornando todo o conteúdo da bandeja, que se partiu em mil bocados. Mas este cataclismo em miniatura não interessou ninguém. Incapaz de proferir uma única palavra, Mariana estendeu-lhe o bilhete e deixou-se cair num cadeirão, fazendo-lhe sinal para ler.

 

Em poucas palavras apressadas e enfurecidas, Black Fish dizia à jovem amiga que Lord Cranmere se evadira de Vincennes, de forma, aliás, inexplicável, que a sua pista ia para Bolonha e, sem dúvida, daí para Inglaterra. O bretão acrescentava que ia no seu encalço. ”Que Satanás venha em seu auxílio quando eu lhe deitar a mão”e escrevia à guisa de conclusão”será ele ou eu”...

 

Tão descontrolado como Mariana, Arcadius não ficou menos pálido. Amarrotando a carta entre as mãos, atirou-a com raiva para a lareira, depois foi para junto da jovem que, lívida e de olhos fechados, respirava com dificuldade e parecia ir desmaiar. Aplicou-lhe algumas pancadas secas sobre as faces e, pegando-lhe nas mãos geladas, começou a friccioná-las.

 

Mariana! chamou ele com angústia. Vamos, Mariana, dominai-vos! Abri os olhos! Olhai para mim!... Mariana...

 

Ela abriu as pálpebras revelando ao amigo dois lagos sombrios habitados pelo terror.

 

Ele está livre... balbuciou. Deixaram-no fugir... esse monstro! E agora não me largará mais! Vai voltar aqui, querer vingar-se... Matar-me-á... Matar-nos-á a todos!

 

A sua voz atingira um tom agudo insuportável. Nunca Arcadius vira Mariana com um medo tão atroz. Ela, sempre tão corajosa, tão pronta a enfrentar o perigo! Aquelas poucas palavras tinham-na conduzido às portas da loucura. Ele compreendeu que, para a salvar, era preciso fazê-la voltar a si brutalmente, e fazê-la sentir vergonha do seu medo era ainda o melhor meio. Endireitou-se e deixou cair a mão que segurava.

 

É por vós que tendes medo? disse ele com dureza. Não compreendestes o que disse Nicolau Mallerousse? O homem fugiu, é certo, mas dirigiu-se para Inglaterra... para Inglaterra, onde vai, sem dúvida, retomar as suas actividades de caçador de evadidos! Desde quando aprendestes a tremer por vós própria, Mariana de Asselnat? Estais em vossa casa, rodeada de servidores fiéis, de amigos, de pessoas como Gracchus e eu! Podeis pedir auxílio ao homem que tem a Europa na mão e sabeis que um impiedoso perseguidor vai atrás do homem que receais, uma pessoa pronta a morrer para o apanhar. E é por vós que temeis? Pensai nos miseráveis que ele vai lançar no mais horroroso perigo, quando o seu desejo é apenas escaparem a uma miséria atroz e tornarem-se homens livres!

 

À medida que ele falava, empregando as palavras como chicotadas, Jolival via os olhos de Mariana tornarem-se claros, carregarem-se de incredulidade e, depois, pouco a pouco, aquilo que ele esperava ver: a vergonha. Viu também as suas faces lívidas retomarem a cor e até inflamarem-se. Ela endireitou-se, passou a mão sobre o rosto, uma mão que já pouco tremia.

 

Perdão!... murmurou, um instante depois. Perdão! Perdi a cabeça! Sois vós que tendes razão... como sempre! Mas quando li isso... há bocado, julguei... que a minha cabeça rebentava... que endoidecia! Não podeis saber...

 

Docemente, Arcadius ajoelhou-se junto dela e pousou-lhe as mãos sobre os ombros.

 

Sim... adivinho! Mas não quero que vos deixeis destruir pela sombra desse homem. Ele está longe, sem dúvida, a estas horas e, antes de atacar a vossa vida, terá de defender a sua.

 

Pode voltar muito depressa... sob um disfarce.

 

Nós estamos de guarda.

 

É mais forte do que nós, visto que pôde fugir... apesar das muralhas, as cadeias, as enormes portas, os guardas e o próprio Black Fish... apesar daquilo que fez e do que sabemos dele!

 

Arcadius ergueu-se, maquinalmente, endireitou a mesa. O seu rosto de rato adquirira uma expressão severa.

 

Não ousais dizer que me enganei, não é verdade? Contudo, assim é. Enganei-me. Mas como imaginar que Fouché se atreveria a ir até aí? Qual será o papel desse miserável inglês na trama política que urdiu?

 

Um papel muito importante, sem dúvida.

 

Não pode haver projecto político, por mais importante que seja, que mereça a vida e a liberdade de um demónio. Mariana! É preciso prevenir o Imperador!

 

Preveni-lo? De quê? De que um espião fugiu de Vincennes? Já deve sabê-lo.

 

Certamente que não. Pediria muitas explicações. O relatório quotidiano que Fouché lhe fornece não falará nisso. Ide ter com ele e dizei-lhe tudo...

 

O Imperador já cá não está!

 

Está em Compiègne, eu sei. Ide lá.

 

Não. Ele não deseja ver-me agora... mais tarde talvez. Já vos disse como nos separámos.

 

- Vamos! Ele continua a amar-vos!

 

Talvez... mas não quero prová-lo neste momento! Teria muito medo... de cometer mais erros. Não, Arcadius, deixemo-lo entregue à lua-de-mel... a essa viagem que quer fazer às províncias do Norte. Após o seu regresso, talvez... Vejamos como as coisas se encaminham e... tenhamos confiança em Nicolau Mallerousse. O seu ódio é muito grande para não ser eficaz. Vós tendes razão, quando dizeis que com esse género de Nemesis a persegui-lo, Lord Cranmere está em perigo contínuo.

 

Com um suspiro, Mariana ergueu-se, empurrou com um pé distraído os restos da cafeteira de louça de Sevres e foi colocar-se em frente de um espelho. O rosto estava pálido e vincado, mas o seu olhar reencontrara a serenidade. O combate continuava e ela aceitava-o tacitamente. Que ele se desenrole como o destino tiver decidido!

 

Quando se dirigia para a porta, Jolival perguntou quase timidamente:

 

Não quereis, realmente, fazer nada? Quereis esperar?

 

Não tenho outra solução. Não me dissestes que as negociações secretas de Fouché podiam ser muito benéficas para a França? Merece, pois, a pena arriscar nelas vidas humanas... mesmo a minha.

 

Já vos conheço, Mariana. Nada revelareis, continuareis serena, o vosso rosto liso e puro... mas ides morrer de medo no fundo de vós mesma.

 

No limiar da porta, ela virou-se para ele e fez-lhe um pálido sorriso:

 

É possível, meu amigo, mas é um hábito a adquirir... muito simplesmente! Nada mais do que um hábito!

 

                                     UMA ESPERA MUITO LONGA

 

O tempo parecia ter parado. Para Mariana, fechada em casa, mais por prudência do que por falta de vontade de sair, os dias sucediam-se iguais, sem que nada viesse perturbar a desesperante monotonia. A única diferença residia em que o dia seguinte era mais longo do que o presente e o próximo ainda pior do que os dois anteriores. Como uma cruel gota de água, a incerteza minava Mariana, transformando a expectativa em angústia...

 

Gracchus partira quinze dias antes e não regressara ainda, o que se tornava inexplicável. Se tivesse cavalgado de dia e de noite, como dissera, deveria ter chegado a Nantes muito rapidamente... Três dias no máximo. Entregar a carta ao cônsul dos Estados Unidos não exigia muito tempo, e uma semana depois deveria estar de volta. Porque seria aquele atraso? Que se teria passado?... Os dias de Mariana decorriam numa pequena salinha do primeiro andar, cujas janelas davam para o pátio de entrada e para a Rua de Lille, a espiar os ruídos da rua. Os passos de um cavalo faziam-lhe bater o coração mais apressadamente, deixando uma decepção quando se afastavam. Era ainda pior se paravam e soava a campainha de entrada. Mariana corria então para a janela, mas retirava-se logo a seguir, com as lágrimas nos olhos, porque não era ainda Gracchus.

 

As noites tornavam-se pouco a pouco infernais. Mariana dormia pouco e muito mal. A enclausuração voluntária, a ausência de exercício físico, o seu estado e a ansiedade tiravam-lhe o sono. Empregava então as intermináveis horas de insónia a imaginar todas as espécies de hipóteses, mais loucas umas do que outras, sobre o que acontecera a Gracchus. A mais horrorosa de todas, e que a deixava trémula e banhada em suor no leito escaldante, era a de que o pobre rapaz fora vítima de um ataque. As estradas eram pouco seguras, infestadas de bandidos, apesar da severa polícia imperial. Um cavaleiro solitário era uma presa fácil e existiam tantas valas onde se podia deixar apodrecer um corpo durante semanas, sem ninguém dar por isso... Mariana afligia-se com a ideia de que, se tivesse acontecido qualquer coisa ao fiel cocheiro, ninguém viria dizer-lhe. Esperava, talvez em vão, o regresso de um amigo dedicado- e uma resposta que nunca viria.

 

Houvera uma única clareira em toda essa tristeza. De Compiègne, NapoleSo mandara-lhe um curto bilhete, cuja letra lhe fizera bater o coração mais aceleradamente, mas cujo texto a deixara desencantada:

 

”Minha boa Mariana. Apenas algumas palavras apressadas, para te assegurar que continuas a ocupar o meu pensamento. Vigia bem a tua saúde que me é cara e a voz que, no regresso das minhas viagens, saberá aligeirar o peso dos negócios de Estado que afligem o teu N”.

 

O peso dos negócios de Estado? Paris estava vazio e calmo, tendo toda a corte partido para Compiègne, mas a ”boa Mariana” sabia, por Arcadius, que ele não permanecia isolado e que os prazeres da corte e da lua-de-mel ocupavam o Imperador, infinitamente mais do que os negócios do Estado, que, pelo contrário, parecia evitar obstinadamente naqueles dias. Havia bailes, caçadas, passeios, teatros e divertimentos de toda a espécie e, além de uma presidência ao Conselho da Casa Imperial e uma audiência a Murat, por causa das questões italianas, o Imperador não fizera grande coisa... É certo que fora gentil ter-lhe escrito, mas, coisa impensável algumas semanas antes, Mariana atirara o cartão para a lareira e, com um suspiro, sem o olhar mais, entregara-se ao seu tormento.

 

Era tão grande o desejo de ver regressar Gracchus e saber se podia esperar a vinda de Jason que até o medo louco que lhe inspirara a notícia da evasão de Lord Cranmere se atenuara. Já não estremecia a qualquer ruído nocturno insólito, já não se assustava, quando da janela avistava na rua uma silhueta, que lembrava a do inglês. Existia Black Fish, em quem pusera toda a confiança e, além disso, sabia que a chegada de Jason seria o melhor remédio contra o medo. Se ele aceitasse tomá-la, para sempre, sob a sua protecção, as ameaças de Cranmere deixariam de a atormentar. Jason era forte, audacioso, o próprio tipo de homem junto de quem sabia bem ser mulher. Era preciso que ele viesse, era absolutamente necessário... Mas, meu Deus, como ele demorava!

 

Havia, no entanto, alguém, além do fiel Jolival, que Mariana teria gostado de ver: era Fortunata Hamelin. Efectivamente, se o pânico inspirado por Francis diminuíra, a jovem não deixara porém de reflectir menos sobre a sua extraordinária evasão. Não soubera mais pormenores, mas parecia bastante claro que, sem o auxílio do ministro da Polícia, esta nunca teria tido lugar. Ora, não podia admitir que um ministro de Napoleão se abaixasse até aí; trair a dedicação dos próprios agentes, libertar um criminoso perigoso, um inimigo mortal do país! E Fortunata, que sabia tantas coisas, Fortunata que, sem dúvida, fazia parte da imensa multidão dos agentes de Fouché por dedicação a Napoleão, talvez Fortunata pudesse esclarecer o mistério. Mas Fortunata, ocupada pelo amor do belo Fournier-Sarlevèze, tinha desaparecido, como Jonas, o mordomo negro, predissera.

 

Decididamente pensava Mariana melancolicamente, as duas mulheres em quem tenho realmente confiança, as duas únicas que amo verdadeiramente, foram levadas por um vento de amor irresistível. Só eu possuo um amor inútil que, por agora, não parece interessar a mais ninguém.

 

Um dia, Napoleão, ao citar Ovídio, dissera-lhe, rindo, que o amor era uma espécie de serviço militar. Para Mariana era ainda pior: uma espécie de voto religioso, tendo como únicos companheiros a solidão e as recordações que só agravavam um triste sentimento de frustração.

 

Ora, uma manhã que, segundo o calendário, era a de segunda-reira, 19 de Abril, à hora do pequeno almoço, Fortunata surgiu, sem prevenir, em casa da amiga. Vestida um pouco ao acaso, mal penteada, o que nela era sinal de grande perturbação, beijou, distraidamente, Mariana, disse-lhe que possuía um ”aspecto radioso”, o que, pelo menos, era exagerado, e afundou-se num pequeno sofá, reclamando a Jeremias uma grande chávena de café muito forte com muito açúcar.

 

Devias beber chocolate! notou Mariana alarmada pelos efeitos que podia ter o consumo do café em alguém visivelmente agitado. O café é muito excitante, sabes?

 

Quero estar excitada, exasperada, fora de mim! Quero que a cólera continue a ferver em mim! exclamou a crioula numa grande manifestação dramática. É preciso que me lembre, durante muito tempo, da perfídia dos homens. Retém isto, infeliz! Crer naquilo que um homem murmura, é crer no que contam as correntes de ar. O melhor é um monstro abjecto e nós somos todas pobres vítimas.

 

Se estou a compreender, o teu hussardo fez das suas! exclamou Mariana, a quem o grande furor de Fortunata produzia o efeito de uma lufada de ar fresco.

 

’É um miserável! afirmou a jovem, servindo-se de uma boa quantidade de ovos mexidos, que acompanhou com muitas fatias de pão com manteiga. Concebes isto? Um homem que amo há tantos anos. que tratei durante dias e noites com uma dedicação de irmã de S. Vicente! Fazer-me isto?

 

Mariana reteve um sorriso. As disposições em que abandonara Fortunata e o belo Fournier, na noite de casamento imperial, nada possuíam de comum com o apostolado e a piedosa caridade.

 

Isto? perguntou ela. O que te fez ele? Fortunata teve um risinho seco, completamente desprovido de alegria, mas não menos divertido na sua ressonância trágica.

 

Quase nada! Imagina que ousou trazer consigo, para Paris, essa italiana!

 

Que italiana?

 

Uma rapariga de Milão... nem sei o nome! Uma doida, que se apaixonou por ele lá em baixo, ao ponto de abandonar tudo para o seguir, família, fortuna... Tinham-me dito que ele a trouxera consigo e instalara em Sarlat, onde tem uma casa, mas eu não queria acreditar. Ora, não só estava realmente em Sarlat, como veio com ele até aqui! É o cúmulo, não achas?

 

Como soubeste?

 

Foi ele quem me disse! Não podes fazer ideia do cinismo deste rapaz! Deixou-me esta noite, dizendo-me simplesmente que ela devia começar a preocupar-se por sua causa. Atrevera-se mesmo a enviar-lhe uma mensagem, de minha casa, para lhe dizer que estava ferido e devia ser tratado numa casa onde ela não podia vir. Disse-me depois que era altura de ir ter com ela! Pu-lo na rua e espero bem que ela faça o mesmo, essa parva! Desta vez, Mariana não pôde conter-se por mais tempo. Pôs-se a rir, o que aliás lhe pareceu estranho, pois era a primeira vez que ria em três semanas.

 

Fazes mal em ficar nesse estado! Se ele estivesse fechado contigo, durante quinze dias, teria certamente muito mais necessidade de repouso e de sono, do que de paixão. Além disso, estava em convalescença, esse homem! Deixa-o ir ter com a italiana. Se ela vive com ele, deve haver em casa uma espécie de estatuto conjugal e, no fundo, és tu que tens o melhor papel. Podes abandonar-lhe as alegrias do caldinho quente!

 

-O caldinho quente? Com ele? Vê-se bem que não o conheces! Sabes o que me pediu, quando partiu?

 

Mariana fez um sinal negativo. Valia mais que Fortunata continuasse a acreditar que ela não conhecia Fournier.

 

Pediu-me a tua morada disse ela triunfalmente. ’A minha morada? Para quê?

 

Para te vir visitar. Pensa que com a tua ”imensa influência” junto do Imperador, poderias obter, sem dificuldade, a sua reintegração no exército. No que ele comete um grande erro.

 

Porquê?

 

Porque Napoleão já o detesta suficientemente, sem ter de indagar quais são precisamente as suas relações contigo.

 

Era evidente. Aliás, Mariana não desejava, de modo nenhum, voltar a ver o ardente general de olhar impudente e mãos ágeis. Possuir a audácia de pensar em pedir-lhe o seu auxílio era também um pouco forte, considerando a forma como se tinham conhecido. Além disso, estava farta dos homens que inventavam sempre qualquer coisa para lhe pedir e que nunca davam nada sem uma razão... Por isso foi com secura que declarou;

 

Lamento dizer-te isto, Fortunata, mas nunca me ocuparia do teu hussardo, e só Deus sabe quando eu verei o Imperador.

 

Bravo! aprovou Fortunata. Deixa os meus ternos amigos desembaraçarem-se sozinhos, não lhes deves nada, não é verdade?

 

Mariana franziu as sobrancelhas.

 

Que queres dizer?

 

Que não ignoro a forma ignóbil como Ouvrard se conduziu contigo. Que queres, Jonas tem, particularmente, bom ouvido... e adora escutar às portas!

 

Oh! disse Mariana, subitamente muito vermelha. Tu sabes? E disseste qualquer coisa a Ouvrard?

 

Nada! Mas não perderá com a demora. Está tranquila! Espero vingar-nos bem e rapidamente. Quanto a ti, atirar-me-ia ao fogo por ti, se fosse preciso. Diz-me do que necessitas! Sou tua de corpo e alma! Ainda tens necessidade do dinheiro?

 

Não, já não. Tudo corre bem.

 

O Imperador?

 

O Imperador aprovou Mariana, com uma certa dificuldade, perante aquela nova mentira, mas não queria contar a Fortunata o encontro com o padrinho e o que se seguira.

 

Não tinha o direito de falar da sua insuportável situação, da criança, do casamento a que era obrigada e, no fundo, era melhor assim. Fortunata, dotada de uma religiosidade ligeira que possuía muito de superstição e estava eivada de paganismo, não teria compreendido. Era uma pequena crioula despreocupada e sem pudor que daria ao mundo, sem hesitar, um exército de bastardos, frutos das múltiplas paixões, se a natureza não a tivesse criado tão hábil no amor. Mariana sabia que ela teria combatido, com todas as suas forças, os projectos do cardeal e o género de conselhos que daria à amiga não era difícil de adivinhar. Ir informar Napoleão da sua próxima maternidade, deixar-se casar por ele, com o primeiro imbecil... e em seguida consolar-se com todos os amantes que pudesse arranjar. Mas Mariana não queria, mesmo para salvar a sua honra e a do filho, dar a sua mão a alguém desprezível e interesseiro. Jason nada tinha de vil e conhecia bastante bem o padrinho, para estar certa que o homem escolhido por ele não obedeceria, ao desposá-la, a um cálculo baixo; não teria de desprezá-lo, nem desprezar-se a si própria... Na verdade, valia mais, sob todos os pontos de vista, nada dizer à amiga. Haveria tempo depois... ou, pelo menos, quando Jason viesse... se ele chegasse um dia...

 

Perdida, nestes sonhos tristes e, infelizmente familiares, Mariana não se apercebera de que o silêncio caíra entre elas, nem da atenção com que a amiga a olhava agora. De repente, Fortunata disse, muito séria:

 

-Tens aborrecimentos, não é verdade? O teu marido?

 

Ele? Prenderam-no! disse Mariana com um risinho. Mas parece que fugiu três dias depois.

 

Fugiu? Donde?

 

Mas... de Vincennes!

 

De Vincennes! exclamou Fortunata peremptória. Não é possível! Ninguém foge de Vincennes! Se ele fugiu, é porque o ajudaram e é preciso ser tremendamente poderoso para obter esse belo resultado. Tens qualquer ideia?

 

Mas... não.

 

Vamos! Não só tens uma ideia, mas tens a mesma que eu. Ninguém soube dessa evasão e apostaria que o Imperador a ignora... como, aliás, deve ignorar a prisão. Ora, queres dizer-me quem é bastante forte para ajudar a fugir de Vincennes um espião inglês, sem ninguém saber e sem os jornais falarem no assunto?

 

Mas, enfim, há os carcereiros, os guardas...

 

Queres apostar que, se fôssemos à prisão, só encontraríamos expressões ingénuas e negações convictas. Ninguém saberia do que queríamos falar. Não, na minha opinião, o assunto está assinado... mas o que não compreendo é a razão por que Fouché deixou fugir um inimigo.

 

E ainda não sabes tudo...

 

Rapidamente, Mariana contou à amiga a cena que se passara no Salão das Figuras de Cera e descreveu as terríveis confidências de Black Fish. Fortunata escutou-a com uma expressão significativa e por fim suspirou:

 

E imundo! A única coisa que espero para a honra de Fouché é que ele ignore isto tudo.

 

Como ignoraria? Crês que Black Fish lho tenha escondido?

 

Não podemos ter a certeza de que ele tenha visto o ministro após a prisão. Fouché poderia estar em Compiègne, ou em Ferrières. Além disso, quando o informaram sobre a prisão, não se apressou, certamente, em ver aquele que a fizera e ouvir as suas razões... que podiam ser aborrecidas: a prova! É uma raposa subtil o nosso ministro e, se digo que talvez ignore as explorações cinegéticas ou teu... enfim, desse inglês, é porque é muito possível e porque... Mas, afirmo-te que o saberei.

 

Como?

 

É comigo. Do mesmo modo que saberei a razão dessa estranha indulgência para com um espião inglês.

 

Arcadius pretende que Fouché empreendeu, sem o conhecimento do Imperador, negociações com a Inglaterra, negociações que passariam por banqueiros; Labouchére, Baring... e Ouvrard!

 

Os olhos sombrios de M.me Hamelin iluminaram-se com uma alegria maligna.

 

Aí tens!... Isso explicaria muitas coisas, minha querida. Notei, efectivamente, que se passavam, ultimamente, coisas curiosas nos arredores da casa de Juigné, assim como nos arredores do banco do querido Ouvrard. Se Jolival, que é homem sério, viu bem, esses senhores devem ter metido no negócio quantias muito elevadas... além do bem da França, que é a principal das suas preocupações! Como sou de natureza curiosa, vou tirar este assunto a limpo.

 

O que vais fazer? perguntou Mariana inquieta por ver a amiga lançar-se no caminho perigoso da guerra.

 

Fortunata ergueu-se e foi colocar um beijo maternal na fronte de Mariana.

 

Não canses a tua bonita cabeça com estas histórias tortuosas e deixa-me actuar! Prometo-te que vamos rir e que nem Ouvrard, nem Fouché o levarão para o Paraíso... ou melhor, para o inferno que os espera. Por agora, vai vestir-te e vem comigo,

 

Onde queres ir? -protestou Mariana com uma evidente repugnância, afundando-se no sofá como que para desencorajar a amiga de sair.

 

Por Paris, fazer compras. Está um tempo soberbo. Contrariamente àquilo que te disse, tens um péssimo aspecto, e vai fazer-te bem tomar ar.

 

Mariana fez uma careta. Parecia-lhe que se saísse, nem que fosse apenas um minuto, Gracchus aproveitaria para chegar!

 

Vamos! insistiu Fortunata, vem comigo. Tenho uma pequena ceia, amanhã à noite, e tenho de ir a Cheret no Palácio Real ver se têm ostras. Vem comigo, serás obrigada a pensar noutra coisa e não é bom ficar sempre a ruminar nos teus pensamentos negros... e no medo! Porque tens medo, não tens?

 

Coloca-te no meu lugar. Não terias medo também?

 

Eu? Estaria aterrorizada, mas creio que sairia tanto quanto mais medo tivesse! Está-se melhor no meio de uma multidão, do que isolada entre paredes. Além disso, o que é que receias precisamente do teu inglês? Que ele te mate?

 

Jurou vingar-se de mim! balbuciou ela.

 

De acordo. Mas há vinganças e vinganças. Se, como afirmas, ele é inteligente...

 

’Muito! É diabólico!

 

Então, não te matará. Tu és para ele a galinha dos ovos de ouro. Seria muito simples, muito fácil... e... sobretudo sem remição. Ele pode também supor que o Imperador tudo poria em prática para encontrar o teu assassino. Não, creio que ele vingar-se-á, tentando envenenar-te a existência... talvez até ao ponto de te levar a destruíres-te a ti mesma, mas não virá assassinar-te friamente. É um monstro, esse homem... mas não é imbecil! Pensa em tudo aquilo que pode esperar de ti em matéria de ouro!

 

À medida que ela falava, o espírito inquieto de Mariana registava avidamente cada uma das suas palavras, cada um dos seus raciocínios sem falhas. Fortunata tinha razão. Fora a perda da elevada quantia, tão facilmente ganha, que desencadeara o furor de Francis, no momento da sua prisão, não a perda da liberdade. O homem estava demasiadamente seguro de si para desprezar as prisões, os carcereiros e todo o mecanismo da justiça. Mas o ouro, esse dinheiro de que tinha sede, ainda mais do que do ar necessário à sua vida, ficara furioso por o ter perdido. Mariana ergueu-se.

 

Eu vou disse ela por fim. Mas não me convides para a tua ceia. Isso não aceitarei!

 

Mas... também não pensava convidar-te. É uma ceia a dois, minha querida, e uma ceia a dois perde todo o encanto quando lhe acrescentamos um terceiro conviva.

 

Ah! Compreendo! Esperas o regresso do teu hussardo! Aquela sugestão pareceu extremamente cómica a M.me Hamelin, pois começou a rir alto, ou melhor, começou a dar gritinhos alegres, que era a sua maneira própria de rir.

 

Não adivinhaste! Fournier que vá para o diabo! É outro oficial que eu espero, se queres saber.

 

Mas... quem? perguntou Mariana um pouco surpreendida, perante aquela Fortunata que chegara a sua casa, cuspindo fogo, em plena fúria de ciúme e que falava, agora tranquilamente, de uma ceia no dia seguinte, com outro homem. Os risos da crioula redobraram.

 

Quem? Mas vejamos, Dupont, o eterno adversário de Fournier, o homem que tão bem o ferira no ombro na outra noite! É um rapaz encantador, sabes!... E não imaginas como a vingança pode ter um gosto agradável com ele! Vai vestir-te!

 

Mariana foi imediatamente. Tentar compreender alguma coisa da lógica de Fortunata estava, por agora, fora das suas possibilidades. Sem falar da sua moral, era verdadeiramente uma mulher pouco vulgar, essa Madame Hamelin.

 

Uma hora mais tarde, Mariana encontrou-se trotando ao lado da amiga sob as galerias do Palais-Royal, onde havia as melhores casas de produtos alimentares. Estava bom tempo, um sol claro fazia brilhar as folhas novas das árvores, o repuxo da água na cascata e os olhos das raparigas bonitas que frequentavam aquele local, procurando o prazer sob variadas formas.

 

Mariana sentiu-se reviver um pouco. Passaram primeiro por Hyrment, onde a crioula encomendou um cesto de trutas frescas, mostarda de Maille e condimentos variados, declarando que nunca era mau encorajar os homens a mostrarem-se galantes com as damas. Daí, foram a Cheret, o especialista da caça. Era uma loja estreita, onde os clientes se apertavam entre barris de arenques e de sardinhas frescas, barris de ostras, cestos de caranguejos, enquanto dois carneiros pendurados de cada lado da porta montavam a guarda. Divertida, Mariana reconheceu o célebre Carême, entre os clientes. Ladeado por dois criados e três ajudantes de cozinha, carregados de cestos, o chefe da cozinha de Talleyrand, vestido de burguês, fazia a sua escolha com toda a seriedade de um joalheiro, procedendo a uma selecção de pedras preciosas.

 

Há muita gente e Carême leva sempre imenso tempo. Voltaremos depois. Vamos a Corcellet! disse Fortunata.

 

Na extremidade da galeria de Beaujolais, o célebre merceeiro tinha a sua grande loja, que era um verdadeiro paraíso dos clientes. Servidos por vários rapazes simpáticos, podiam escolher entre a mortadela de Lyon, as pastas de fígado de Strasburgo ou Périgord, o chouriço de Artes, os ”patês” de Nérac, as línguas fumadas de Troyes, os enchidos de Pithiviers, os frangos de Mans, sem contar os bolos de Dijon ou de Reims, as ameixas de Agen, as compotas de Clermont e o verdadeiro Cotignac.

 

A clientela era escolhida. Fortunata mostrou discretamente à amiga duas ou três mulheres da alta sociedade que faziam encomendas. Uma delas, baixota, jovial e simpática, parecia ter, a seus pés, todo o pessoal que, aliás, tratava com familiaridade.

 

Uma excelente mulher, esta Lefebvremurmurou M.me Hamelin, mas não tem nada de duquesa I Dizem que foi lavadeira e as distintas toleironas da corte tratam-na como tal, mas ela não se importa. Se possui, efectivamente, mãos de lavadeira, possui também, mais do que as outras, um coração de duquesa! Já não direi o mesmo daquela acrescentou ela, apontando discretamente uma mulher alta e morena, um pouco magra, com lindos olhos pretos, que vestia uma ”toilette” demasiado rica para a manhã e dava ordens com uma altivez, que tocava os limites da vaidade.

 

- Quem é? perguntou Mariana, que já vira aquela mulher, mas esquecera o nome.

 

Eglé Ney. É de boa família burguesa e filha de uma criada de quarto de Maria Antonieta, mas a recordação da sua origem, o sentimento da grande fortuna e do nome do marido dão-lhe uma espécie de snobismo real lamentável. Repara na preocupação que tem em não se aperceber da presença de M.me Lefebvre. Os maridos são irmãos de armas, mas as mulheres detestam-se. E uma representação bastante fiel da corte das Tulherias.

 

Mas Mariana já não a ouvia. Em pé, perto da montra, observava, há instantes, uma figura de mulher que acabava de sair do café em frente e, parada no limiar, parecia tomar ar. Era uma figura que ela julgava reconhecer.

 

Então! exclamou Fortunata, surpreendida. Que olhas tu? Asseguro-te que esse café dos Cegos não tem qualquer interesse para ti. É um local com muito má fama, onde se misturam prostitutas, rufias, rapazes maus e alguns provincianos que aí levam para os poderem depenar à vontade.

 

-Não é o café... é aquela mulher de xaile vermelho e vestido cinzento cor de rato. Tenho a certeza de que a conheço! Oh!...

 

A mulher do xaile vermelho virara a cabeça e Mariana, deixando a amiga ali plantada sem lhe dar mais explicações, precipitou-se para a rua, levada por um impulso que não pudera dominar.

 

Desta vez, reconhecera claramente a mulher. Era a bretã Gwen, a amante de Morvan, o provocador de naufrágios, que, desde a famosa noite de Malmaison, residia nas prisões imperiais.

 

Talvez não fosse de surpreender reencontrar em Paris, vestida como uma pequena burguesa modesta, a rapariga selvagem dos rochedos da Pagânia. Se Morvan estava em Paris, embora na prisão, porque não havia de estar ali também a sua amante? Mas uma voz misteriosa, de que Mariana era incapaz de explicar a proveniência, segredava-lhe que não fora unicamente para se aproximar do amante cativo que Gwen estava em Paris. Havia outra coisa... mas o quê?

 

Sem se apressar, a bretã seguiu a galeria de Beaujolais. Afectava uma atitude modesta, quase tímida, baixando a cabeça para conservar o rosto tanto quanto possível ao abrigo das abas do seu grande chapéu cinzento, ornado simplesmente por uma fita vermelha. Era evidente que não queria ser confundida com as numerosas raparigas, que, muito pintadas e decotadas, povoavam as galerias do Palais-Royal. Mariana pensou que, ao dissimular tão cuidadosamente a sua beleza, Gwen também não queria correr o risco de atrair a atenção de um dos numerosos ociosos que erravam por ali, à espera de serem abordados.

 

Para não correr o mesmo risco, Mariana tinha, aliás, puxado para o rosto o grande véu cor de amêndoa verde, que enfeitava o seu chapéu. Além disso, podia seguir a bretã sem ser reconhecida.

 

Uma atrás da outra, as duas mulheres percorreram a galeria até ao antigo teatro de Montansier. Aí, Gwen virou à esquerda, sob as arcadas de colunas que conduziam à Rua Beaujolais. Porém, antes de entrar na rua, Gwen voltara-se uma ou duas vezes, o que incitara imediatamente Mariana a ter prudência.

 

Parara ao abrigo de uma das imponentes colunas de pedra, parecendo interessar-se pela entrada do famoso restaurante Lê Grand Véfour.

 

Gwen tinha parado, um pouco mais longe, junto de uma carruagem preta que estacionava, uma carruagem que lembrou a Mariana outra muito parecida, que lhe despertou recordações pouco agradáveis. A bretã e o cocheiro, cujo rosto estava dissimulado pela gola levantada do casaco, trocaram algumas palavras animadas. Em seguida, a rapariga regressou ao local onde estava Mariana, mas esta notou que ela lançava vários olhares para o interior do célebre restaurante, fechado por grandes vidros foscos.

 

A impressão de Mariana confirmou-se, ao ver que Gwen continuava sob os arcos e começava a dar alguns passos. A jovem recuou então até à galeria de Beaujolais, mas sem perder de vista a antiga inimiga, cujo comportamento lhe parecia estranho. Felizmente, passava muita gente, entrando e saindo dos famosos jardins, e a manobra das duas mulheres passou quase desapercebida. Nesse momento, aliás, Fortunata Hamelin foi ter com a amiga.

 

-Dir-me-ás o que se passou? perguntou. Abandonaste a loja de Corcellet, como se te perseguissem.

 

Não me perseguiam, mas desejava seguir alguém. Demos alguns passos, se quiseres, minha querida Fortunata, para que não reparem em nós.

 

Pensas que será fácil? ironizou a crioula. Apesar do teu véu descido, tens uma figura que dá nas vistas, minha querida... sem falar da minha, que também me dá algum prazer. Mas andemos, já que assim o desejas! Continua a ser esta mulher de cinzento e vermelho que te ocupa o espírito? Quem é ela?

 

Em poucas palavras, Mariana pôs Fortunata ao corrente, e a jovem, excitada, concordou em que havia talvez razão para a vigiar. Contudo, objectou:

 

Não crês que essa mulher procura simplesmente... ganhar a vida? É muito bonita e entre as que frequentam estas paragens há algumas que cultivam o género respeitável. Segundo o que me contas, ela não é muito tímida, pelo menos para com os homens.

 

É possível, mas não creio. Doutro modo, para quê a carruagem que espera na rua, e porque continua ela em frente do restaurante, indo e vindo sem tirar os olhos da porta? Espera alguém, tenho a certeza, e quero saber quem é!

 

É evidente suspirou Fortunata que as relações deste género de mulheres podem interessar certas pessoas... entre outras o nosso amigo Fouché. Vejamos o que se segue! Talvez tenha muito interesse.

 

De braço dado, lentamente, as duas mulheres fingiram dirigir-se para o maciço de tílias e tuias que ornamentavam o centro do jardim, mas não tardaram a regressar ao ponto de partida. Pareciam manter uma conversa animada que se perdia no ruído dos numerosos cafés, salas de bilhar, livrarias e lojas de todas as espécies que abundavam no Palais-Royal. Não perdiam de vista a bretã, que, sob as arcadas, passeava também lentamente, da rua para o jardim. Subitamente, Gwen estacou e as suas duas observadoras também. A porta do restaurante acabava de se abrir...

 

Sinto que vai passar-se qualquer coisa! segredou Fortunata, apertando com mais força o braço da amiga.

 

Efectivamente, um homem acabava de sair. De constituição sólida, vestido com um redingote azul com botões dourados e um chapéu alto cinzento, posto um pouco de lado, deteve-se no limiar, respondeu com um gesto amigável à profunda vénia do chefe de mesa que o acompanhara e acendeu um longo charuto. Mas Mariana, com um sobressalto, já o havia reconhecido.

 

Surcouf! murmurou ela. O Barão Surcouf!

 

O famoso corsário! exclamou M.me Hamelin muito excitada. Aquele homem que faz lembrar uma mala de porão?

 

É ele mesmo, e agora já sei o que a rapariga espiava. Olha! Com efeito, Gwen tinha abandonado, discretamente, a coluna e, com um andar subitamente pesado, como o de uma mulher dobrada pela fadiga, preparava-se para passar em frente da porta do restaurante.

 

-Que vai ela fazer? segredou Fortunata. Abordá-lo?

 

Nada de bom certamente! respondeu Mariana franzindo as sobrancelhas. Morvan odeia Surcouf mais ainda do que o Imperador. Pergunto a mim mesma... Vem, avancemos! acrescentou.

 

Era invadida por um receio: que essa rapariga escondesse uma arma e se servisse dela para o matar. Mas não. Chegando perto do rei dos corsários, que, tendo acendido o charuto, metia calmamente o isqueiro no bolso, ela parou, vacilou e, levando uma mão trémula à cabeça, caiu sobre o pavimento.

 

Vendo a jovem desmaiar na sua frente, Surcouf precipitou-se para lhe prestar os primeiros socorros e tomou-a nos braços para a erguer. Mariana também avançou e chegou junto do casal a tempo de ouvir a bretã murmurar com uma voz sumida:

 

Não é nada... obrigada Senhor... levai-me à carruagem... que me espera aqui perto. Aí tomarão... conta de mim!

 

Ao mesmo tempo, afastava com um gesto cansado as outras pessoas que se aproximavam. Mas Mariana compreendera o plano de Gwen. Surcouf não necessitava de ninguém para ajudar uma rapariga delgada e ligeira a entrar na carruagem, e nessa carruagem devia haver pessoas que o esperavam. Num segundo, ele seria puxado para dentro e raptado em pleno Paris, o mais calmamente possível. O corsário representaria uma boa presa para negociarem com Fouché a libertação do provocador de naufrágios... se o chegassem a libertar!... Mariana estava pronta a jurar que o bando de Fanchon Flor-de-Lis não era estranho ao assunto. Por isso, não hesitou um instante.

 

Abordando Surcouf, que segurava já a pseudodoente, pousou a mão enluvada sobre o braço do corsário e declarou numa voz clara:

 

Colocai essa mulher onde estava, Senhor Barão. Ela não está mais doente do que vós ou eu! Sobretudo, não vos aproximeis da carruagem para onde ela vos quer arrastar.

 

Surcouf, surpreendido, observou aquela mulher velada que dizia coisas tão estranhas e, na sua perturbação, colocou Gwen no chão, que rugiu de cólera.

 

Mas, Minha Senhora, quem sois vós?

 

Com vivacidade, Mariana ergueu o véu.

 

Alguém que vos deve muito e que se sente feliz por estar presente para impedir que vos raptem.

 

Uma dupla exclamação, de alegria por parte de Surcouf e de zanga pela bretã, saudou a jovem ao ser reconhecida.

 

Mademoiselle Mariana! exclamou o corsário.

 

Tu? rugiu a bretã. Terei de te encontrar sempre no meu caminho?

 

Nunca o desejei! replicou Mariana com frieza. E se vivêsseis com toda a gente, isso não aconteceria.

 

De qualquer modo, mentiste! Todos podem sentir-se mal!

 

... o que já vos passou! A minha intervenção curou-vos muito rapidamente!

 

À volta das três personagens juntava-se já muita gente. A altercação das duas mulheres tinha aumentado o pequeno número daqueles que haviam parado para socorrer a doente. Vendo que o seu golpe falhara, a bretã quis esquivar-se com um encolher de ombros, mas a grande mão morena de Surcouf abateu-se sobre o seu braço e impediu-a de fugir.

 

Não tenhas pressa, minha linda! Quando se quer mal a alguém, são precisas explicações... e quando nos acusam, defendemo-nos!

 

Nada tenho a explicar.

 

-Creio que sim! interveio a voz cantante de Fortunata, que acabava de furar a multidão com dois homens atrás. Estes senhores ficarão encantados de vos ouvir.

 

Os redingotes pretos, hermeticamente abotoados, os chapéus achatados, os sapatos grossos e os cacetes dos recém-chegados, aliados ao seu mau aspecto, anunciavam a polícia. Na sua presença, a multidão afastou-se e conservou-se a distância. Com um movimento cadenciado rodearam Gwen, que começou a debater-se com fúria.

 

Não fiz nada! Larguem-me! Com que direito me prendem?

 

-Por tentativa de rapto do Barão Surcouf! Anda, rapariga! Explicar-te-ás perante o juiz imperial! disse um dos homens.

 

Não têm o direito de me acusar sem provas! É contra a justiça!

 

À falta de provas, temos os teus cúmplices. A gente da carruagem! Esta senhora acrescentou designando M.me Hamelin preveniu-nos a tempo. Dois dos nossos colegas ocupam-se deles. E agora nada de barulho, vem connosco.

 

Com pulsos vigorosos arrastaram a bretã, que escumava e se torcia como uma víbora cativa. Antes de se afastar, ela virou-se e cuspiu em direcção a Mariana, gritando:

 

Havemos de nos encontrar! Pagarás então tudo isto! Desaparecidos os polícias, a multidão rodeou Surcouf e fez-lhe uma ovação. Todos queriam aproximar-se e apertar a mão do célebre marinheiro. Ele defendeu-se com uma timidez não fingida, sorriu, deu vários apertos de mão e, finalmente, levou Mariana para o café da Rotunda, cujo terraço ia até ao meio do jardim.

 

Vinde! Vamos tomar um gelado para conversar um pouco. Depois destas emoções, vai fazer-vos bem e à nossa amiga também.

 

Instalaram-se na rotunda de vidro e Surcouf encomendou os refrescos. Os seus olhos azuis e sorridentes iam de Mariana a Fortunata, que exibia toda a graça de um pássaro das ilhas, mas voltavam sempre à jovem amiga.

 

Sabeis que tenho perguntado a mim mesmo o que seria feito de vós? Escrevi-vos várias vezes para casa de Fouché, sem nunca receber resposta.

 

Não fiquei em casa do duque de Otrante disse Mariana encetando o sorvete de baunilha, mas ele poderia ter-se dado ao incómodo de me mandar as vossas cartas.

 

É um pouco o que eu penso. Por isso tinha a intenção de o procurar antes de retomar o caminho da minha Bretanha. O quê? Partis tão depressa?

 

Tem de ser. Vim aqui em negócio e, já que vos encontrei, posso voltar tranquilo. Sabeis que estais soberba?

 

O seu olhar admirativo percorreu o vestido elegante da jovem e demorou-se sobre as jóias de ouro que a ornamentavam e Mariana sentiu uma certa vergonha. Como explicar-lhe o que era agora? A sua aventura com o Imperador era tão extraordinária e tão fantástica que seria difícil de acreditar para um homem tão simples e directo como o corsário. Foi Fortunata que, adivinhando o seu embaraço, a tirou de apuros.

 

Tendes na vossa presença, meu caro barão, a rainha de Paris.

 

Como? Notai que eu não duvido que possuis tudo o que é necessário para conquistar um reino, mas...

 

Mas parece-vos estranho em tão pouco tempo? Pois bem, sabei que a Mariana deixou de existir. Tenho a honra de vos apresentar a ”Signorina Maria-Stella”.

 

Como? Sois vós?... Mas em Paris só se fala da vossa beleza e do vosso talento. Sois então aquela que o Imperador...

 

Deteve-se. O seu rosto leonino enrubesceu-se, enquanto um tom idêntico cobria as faces de Mariana. Ele sentia-se mal pelo que ia dizer, e ela sofria pelo que o seu brusco silêncio subentendia. Subitamente, as coisas entre eles tinham adquirido as verdadeiras dimensões. Ela compreendera que Surcouf, embora provinciano e há pouco tempo em Paris, não ignorava os boatos que corriam as ruas e os salões, ele sabia estar na presença da amante de Napoleão e ela julgou notar que isso não lhe dava qualquer prazer. Os olhos azuis, que no rosto tisnado lhe lembravam estranhamente Jason Beaufort, tornaram-se sombrios. Fez-se um pequenino silêncio, de tal modo pesado que nem a tagarela Fortunata ousou romper. Esta entregou-se ao trabalho de saborear o gelado de chocolate e pareceu desinteressar-se da conversa. Foi, então, Mariana quem, corajosamente, falou primeiro:

 

’Julgais-me mal, não é verdade?

 

Não... Receio apenas que não sejais muito feliz, se o amais... o que não merece dúvidas.

 

Porquê?

 

Porque há coisas que uma mulher, como vós, não faz sem amor. Acrescento... que ele tem sorte! Espero que se tenha apercebido.

 

A minha é ainda maior! Mas porque pensais que não sou feliz?

 

Justamente porque sois vós que o amais. Ele acaba de se casar, não é? Vós sofreis certamente com isso!

 

Mariana baixou a cabeça. O marinheiro, com a simples clarividência das pessoas acostumadas a contar mais com a natureza do que com os homens, lia nela como num pequeno livro escrito em grandes caracteres.

 

É verdade! admitiu com um sorriso crispado. Sofro, mas não desejaria que as coisas fossem diferentes. Aprendi, à minha custa, que tudo se paga e estou pronta a saldar a factura de felicidade que possuí, ainda que ela seja excepcionalmente pesada.

 

Ele ergueu-se, curvou-se um pouco para pegar na mão de Mariana, que beijou ligeiramente. Perante o seu rosto de mármore, ela assustou-se subitamente.

 

Partis? Quer então dizer que... já não sois meu amigo? O seu raro sorriso, tímido e brusco, apareceu por um curto instante, mas todo o calor se concentrou nos seus olhos azuis, lavados por muitas tempestades e noites de vela sobre pontes varridas pelo vento.

 

Vosso amigo? Sê-lo-ei até ao último sopro, até ao fim do mundo! Mas tenho de partir. Eis que chegam o meu irmão e dois dos nossos capitães, a quem marquei encontro neste jardim.

 

Docemente, Mariana reteve os dedos rugosos que cerraram os seus.

 

Voltarei a ver-vos, não é verdade?

 

Se isso só depender de mim, certamente. Onde posso encontrar-vos?

 

Na Casa Asselnat, na Rua de Lille... Sereis sempre bem recebido.

 

Ele pousou, novamente, os lábios sobre a pequenina mão que o retinha e sorriu, mas desta vez o seu sorriso tinha a alegria maliciosa de um sorriso de criança.

 

Não insistais em me convidar. Sou capaz de me instalar. Não podeis imaginar como a gente do mar se prende facilmente!

 

Enquanto ele se afastava com o grupo de homens que, vendo-o acompanhado, o haviam esperado um pouco mais longe, Fortunata Hamelin deu um enorme suspiro.

 

Mal me olhou! disse ela com desapontamento. Decididamente, quando tu estás, minha querida, não posso ter qualquer oportunidade! Contudo, gostaria de o ter interessado! É um homem como eu gosto!

 

Mariana começou a rir.

 

Tu tens tantos, Fortunata! Deixa-me o meu corsário! Há outros que to farão esquecer. Dupont, por exemplo!

 

Cada coisa a seu tempo! Este é excepcional e, se não me prevenis imediatamente, quando ele der entrada na tua nobre moradia, nunca mais te falo!

 

Está bem. Prometo-te.

 

Era meio-dia. O pequeno canhão, que anunciava o meio do dia, acabava de soar com um elegante penacho de fumo branco e um ruído moderado. Mariana e a amiga dirigiram-se para a saída dos jardins para retomarem a carruagem estacionada em frente do teatro da Comedie-Française. Quando atingiam as arcadas do antigo palácio dos duques de Orleans, Fortunata disse bruscamente:

 

Aquela bretã aflige-me. Não gostei do seu último olhar. Neste momento não precisavas de aumentar o número dos teus inimigos. É verdade que esta não tem qualquer possibilidade de poder abrir as portas da prisão, mas tem cuidado, de qualquer modo.

 

Não a receio. Que poderia ela fazer-me? E depois, deveria eu deixar raptar Surcouf? Ter-me-ia arrependido toda a vida!

 

Mariana! exclamou Fortunata muito séria Não subestimes nunca o ódio de uma mulher. Cedo ou tarde, ela procurará fazer-te pagar aquilo que acabaste de lhe fazer.

 

Eu? E porque não tu? Quem foi buscar a polícia? Aliás, como conseguiste descobri-la tão depressa?

 

Madame Hamelin encolheu os belos ombros e abanou-se com um gesto desenvolto com uma ponta do lenço.

 

Há sempre uma colecção de polícias nos lugares públicos. Confessa que não é difícil reconhecê-los, até pela sua particular elegância... Dito isto, tu tiveste razão e, no fundo, admiro-te. És muito corajosa!

 

Mariana não respondeu. Pensava no número de bizarras coincidências que, havia algum tempo, pareciam encarniçar-se em colocar sob os seus olhos todos aqueles que haviam desempenhado qualquer função, boa ou má, na sua vida desde o infeliz dia do seu casamento. Seria porque a sua vida devia agora tomar uma nova orientação? Tinha ouvido dizer que no minuto em que a morte se aproxima de um ser, este revê, em poucos instantes, toda a sua existência. Era um pouco o que acontecia consigo. A vida da efémera Lady Cranmere e a da cantora Maria-Stella acabavam talvez de surgir perante os seus olhos, porque estas iam desvanecer-se, mas para dar lugar a quê? Que nome usaria amanhã Mariana de Asselnat? Mrs. Beaufort...ou, então, outro qualquer perfeitamente desconhecido?

 

Embora a visita das duas jovens ao Palais-Royal tivesse sido, efectivamente, muito distractiva, aquele dia pareceu a Mariana muito longo. Sentia um desejo imperioso e ao mesmo tempo infantil de regressar a casa, pois tinha a impressão de que qualquer coisa aí a aguardava, mas, receando a troça de Fortunata, resolveu acompanhá-la até ao final das suas intermináveis compras, até porque não possuía o menor pretexto válido para voltar mais cedo à casa da Rua de Lille. Aliás para quê? Encontraria aí apenas o vazio, o silêncio e a solidão...

 

Fortunata atravessava uma das suas crises de prodigalidade. Sentia sempre um prazer pueril em gastar dinheiro, mas por vezes desperdiçava-o com uma espécie de raiva. Nesse dia, atirou-o literalmente pela janela, comprando mais coisas do que precisava realmente. Empilhou lenços do pescoço sobre pares de luvas, botas sobre chapéus, que escolheu todos de uma notável extravagância. Quando Mariana mostrou a sua surpresa, perguntando à amiga por que razão renovava assim o guarda-roupa, M.me Hamelin começou a rir:

 

Já te disse que Ouvrard me pagaria a bonita infâmia que te fez. Começo a preparar-me! Tenciono... entre outras coisas... esmagá-lo sob as facturas.

 

E se ele não pagar?

 

Ele? é muito vaidoso! Pagará, minha linda, e sem pestanejar. Toma, olha este encantador chapéu com plumas frisadas! É exactamente do mesmo verde que os teus olhos! Seria pena se fosse parar a outra! Ofereço-to!

 

E, apesar dos protestos de Mariana, uma bonita caixa cor de rosa, contendo o chapéu verde, foi reunida à quantidade de embrulhos que enchiam a carruagem da bela crioula.

 

Quando o usares, lembrar-te-ás de mim! disse ela rindo. -Consolar-te-á das ideias loucas da tua prima. Naquela idade! Ir-se apaixonar por um palhaço de feira! Nota que, na minha opinião, ela não tem mau gosto. Esse Bobèche é sedutor... muito sedutor até!

 

Aposto que daqui a cinco minutos estás a pedir-me para ir assistir ao seu espectáculo! exclamou Mariana. Não, Fortunata, és um amor, mas vais pôr fim à tua generosidade levando-me a casa.

 

Já estás farta! E eu que queria dar-te um chocolate quente no Frascati.

 

Doutra vez se quiseres! Deve lá estar muita gente a esta hora e não me apetece ver ninguém.

 

Sempre as tuas ideias de outro tempo! Sempre a tua absurda fidelidade a Sua Majestade corsa, que, enquanto te mortificas, caça, dança, diverte-se e aplaude ”Fedro” em companhia da esposa vermelhusca!

 

Isso não me interessa! interrompeu Mariana secamente.

 

Ah não? E se te dissesse que a querida Maria Luísa está já a desagradar a muitas damas da corte e, ainda por cima, a alguns homens? Acham-na desajeitada, rígida e pouco amável! Ah! Não podem esquecer a pobre e adorável Josefina, que sabia receber com tanta graça! Não sei como Napoleão pode resistir!

 

Deve vê-la sempre com a águia austríaca nos ombros e a coroa de Carlos Magno na cabeça. É uma Habsburgo e encanta-o! disse Mariana maquinalmente, pois não gostava de falar de Maria Luísa.

 

Será o único! Não me espantaria que ela agrade à boa gente do Norte, que, dentro de uma semana, terá a honra de a admirar. A corte abandona Compiègne no dia 27...

 

Eu sei, eu sei!... disse Mariana distraidamente. No dia 27? Onde estaria ela por seu lado? O cardeal dera-lhe um mês para se preparar para o casamento. O dia da sua entrevista fora a 4 de Abril. Em boa lógica, devia reunir-se ao padrinho por volta do dia 4 de Maio, e já estavam, a 19 de Abril! Gracchus não regressara ainda e o tempo passava com uma terrível rapidez.

 

Traduzindo maquinalmente o mal-estar íntimo, repetiu:

 

Regressemos, peço-te!

 

Como quiseres! suspirou Fortunata. Talvez tenhas razão! Já gastei muito dinheiro hoje!

 

À medida que se aproximavam da Rua de Lille, uma pressa súbita apoderava-se de Mariana. Tornou-se tão intensa que, mal chegou à porta de casa, saltou para a rua, sem esperar que a carruagem entrasse no pátio e sem dar tempo ao cocheiro de descer para lhe colocar o estribo.

 

Meu Deus! exclamou M.me Hamelin. Estás assim tão apressada em deixar-me!

 

Não é a ti que tenho pressa de deixar é à minha casa que tenho pressa de chegar! Acabo de me lembrar que tenho de fazer uma coisa importante! respondeu-lhe Mariana.

 

A desculpa não era brilhante, mas Fortunata teve o bom gosto de se contentar com ela. Com um encolher de ombros, um sorriso e um gesto de despedida, ordenou ao cocheiro para seguir, e Mariana, com um sentimento inexplicável de alívio, empurrou a portinha de lado e penetrou no pátio.

 

A primeira coisa que viu foi um dos dois rapazes que tratavam dos cavalos, Guilherme, segurar um cavalo coberto de suor. O coração de Mariana teve um sobressalto e soube que o seu instinto tivera razão em a aconselhar a regressar a casa. O cavalo era Samson, logo Gracchus tinha chegado. Finalmente!... Subindo os degraus dois a dois, mal deu tempo a Jeremias para lhe abrir a porta. Quase caiu sobre ele no vestíbulo.

 

Gracchus? disse ela sem fôlego. Já voltou?

 

Sim... Mademoiselle! Há cerca de dez minutos. Pediu para falar à Mademoiselle, mas eu disse-lhe que Mademoiselle...

 

Onde está ele? interrompeu Mariana impaciente.

 

No quarto. Creio que está a mudar de fato. Devo preveni-lo de que...

 

Não é preciso. Eu vou lá!

 

Sem prestar atenção à cara escandalizada do mordomo, Mariana pegou nas saias, com as duas mãos, e correu para as instalações dos criados. Subiu, sem respirar, a escada de madeira, que conduzia ao quarto de Gracchus e, sem bater, entrou imediatamente.

 

Mal teve tempo de avistar o rapaz, pois este, surpreendido numa indumentária tão sumária, atirou-se para trás da cama, com um rugido de medo, e puxando a colcha envolveu-se nela o melhor possível.

 

Mademoiselle Mariana! Meu Deus, como me assustastes! Estou desolado!

 

Deixa isso interrompeu a jovem e responde-me: Porque demoraste tanto tempo? Tenho estado muito inquieta! Já te julgava raptado pelos bandidos, ou até morto!

 

Quase me raptaram, sim, mas não foram os bandidos, foram os sargentos recrutadores de Sua Majestade, o Imperador, que, em Baiona, queriam à viva força mandar-me para Espanha, ter com o rei José.

 

Em Baiona? Mas eu tinha-te enviado a Nantes, parece-me!

 

Primeiro fui a Nantes, mas o Senhor Patterson disse-me que o Senhor Beaufort devia ancorar em Baiona, um destes dias, com um carregamento de mercadorias vindas das colónias. Então, fui buscar o meu cavalo, a carta e corri para lá.

 

Depois, mudando de tom, censurou:

 

Poderíeis ter-me dito logo que a carta era para o Senhor Beaufort, pois ter-me-ieis poupado algumas léguas. Teria ido imediatamente para Baiona!

 

O quê? interrogou Mariana surpreendida.

 

Gracchus corou. O seu rosto, bronzeado pela longa cavalgada, tornou-se vermelho. Desviou os olhos e encolheu os ombros, incomodado pelo olhar fixo de Mariana e pelo seu trajo romano provisório.

 

Tenho de vos dizer que o Sr. Beaufort e eu temos mantido sempre correspondência... Sim, isto deve surpreender-vos! No dia em que ele partiu, depois da história das pedreiras de Chaillot, mandou-me ir ao hotel. Deu-me... uma bonita soma e depois disse-me: ”Gracchus, eu tenho de partir e creio que a minha partida não entristecerá Mademoiselle Mariana. Esquecer-me-á depressa, mas só estarei tranquilo quando a souber feliz... definitivamente. Por isso, mandar-te-ei dizer quando virei a França e tu enviar-me-ás uma carta para os locais que te disser para eu saber se tudo corre bem, se ela não tem aborrecimentos, se...”

 

Oh! interrompeu Mariana indignada. - Assim, tu servias-lhe de espião e, ainda por cima, ele tinha-te pago por essa tarefa!

 

Não! exclamou o rapaz, recuperando toda a dignidade que a indumentária lhe permitia. É preciso não confundir! O dinheiro era para me agradecer o que eu tinha feito em Chaillot. Quanto ao resto... se quereis saber, as flores na noite do Teatro Feydeau fui eu quem as comprou e mandou entregar com a carta, por sua ordem!

 

O ramo de camélias! Fora então assim que ele aparecera no camarote! Mariana recordava a emoção que se apossara dela, ao vê-lo sobre o toucador, da sua alegria e, depois, da decepção ao perceber que Jason não estava na sala. Em vez do amigo que procurava, avistara Francis...

 

Ao reviver a violenta emoção que sentira nesse momento, Mariana esqueceu a sua indignação passageira. No fim, era comovedor a conspiração dos dois homens, a solicitude de Jason e a fidelidade de Gracchus ao companheiro de combate de uma noite... Além disso era o melhor augúrio para aquilo que esperava do americano!

 

Por isso, tinhas notícias dele. Mas onde as recebias? perguntou ela com um sorriso.

 

Em casa da minha avó, a lavadeira da estrada da Revolte! confessou Gracchus, corando ainda mais do que da primeira vez.

 

Mas então, se sabias que ele devia passar por Baiona, porque não foste lá directamente? Não adivinhaste que se tratava dele quando te enviei a casa do Sr. Patterson?

 

Mademoiselle Mariana, respondeu o jovem gravemente quando me dais uma ordem, nunca a discuto. É um princípio. Eu pensei que se tratava do Sr. Beaufort, mas visto que não me dissestes nada, julguei que possuíeis as vossas razões.

 

Nada havia a dizer àquela prova de discrição e de obediência. Mariana resignou-se.

 

- Peço-te desculpa, Gracchus, eu não tinha razão. Tu és um amigo fiel. Agora diz-me depressa o que disse o Sr. Beaufort quando lhe entregaste a minha carta.

 

Sem preocupações, ela instalou-se sobre os pés da cama com a alegria impaciente de uma criança. Mas Gracchus abanou a cabeça.

 

Não o consegui encontrar, Mademoiselle Mariana. Quando cheguei, o ”Feiticeira do Mar” havia partido doze horas antes sem indicar o próximo destino. Tudo o que pude saber é que rumara para o cabo Norte.

 

Toda a alegria se desvaneceu em Mariana, para dar lugar a uma enorme angústia.

 

O que fizeste então? perguntou ela com a garganta seca.

 

Que podia fazer? Voltei a Nantes imediatamente, pensando que talvez o Sr. Jason aí aportaria. Entreguei a carta ao Sr. Patterson e esperei. Mas não chegou ninguém.

 

Mariana baixou a cabeça, invadida subitamente por um desgosto amargo, que não podia dissimular.

 

Pronto. Acabou-se. Ele não receberá a minha carta! murmurou ela.

 

Porque não? protestou Gracchus, que, desolado por ver uma lágrima deslizar no rosto de Mariana, quase deixou cair a colcha em que estava enrolado. Recebê-la-á mais rapidamente do que se estivesse na América! O Sr. Patterson disse que era raro ele passar perto de Nantes sem parar. Disse também que o ”Feiticeira do Mar” devia ter negócios urgentes noutro local, mas que não tardaria a voltar a Nantes. Eu teria esperado um pouco mais, mas tinha medo que estivésseis preocupada e tinha razão... visto que já me julgáveis morto... e, além disso prosseguiu ele com energia como se quisesse transmitir a sua confiança a Mariana, o cônsul prometeu-me que daria ordens a todos os capitães de navios para advertirem o ”Feiticeira”, no caso de o encontrarem, que tinha uma carta urgente em Nantes. Ora vedes?...

 

És um rapaz corajoso, Gracchus, e recompensar-te-ei como mereces! disse Mariana com um suspiro, erguendo-se.

 

Não vale a pena! Estais contente? De verdade?

 

De verdade! Fizeste tudo o que pudeste. O resto já não nos pertence... Descansa agora; não preciso de ti esta noite.

 

Como vos arranjastes sem mim durante estes dias? perguntou o rapaz desconfiado. Substituistes-me?

 

Mariana encolheu os ombros e sorriu.

 

-Foi muito mais simples, meu rapaz. Não saí! Sabes bem que és insubstituível...

 

Deixando o fiel Gracchus sossegado com as suas palavras, Mariana entrou em casa, onde encontrou Jeremias, mais lúgubre do que nunca. Com o rosto descaído, esperava-a ao pé da escada numa atitude tão melancólica que poderia sugerir todas as catástrofes. Mariana, porém, sabia que não queria dizer grande coisa e, em geral, divertia-se com aquela estranha propensão do mordomo para tomar ares sinistros ao anunciar as coisas mais simples, como a visita de qualquer amigo, ou a ementa preparada pela cozinheira, mas naquela tarde tinha os nervos à flor da pele e a figura de Jeremias exasperou-a.

 

O que há mais? Um dos cavalos perdeu uma ferradura ou Vitória fez um bolo de maçãs para o jantar?

 

Subitamente, o ar triste do mordomo transformou-se em consternação ofendida. Com um passo solene, dirigiu-se para uma cómoda, pegou numa carta, colocou-a sobre um prato de prata e veio oferecê-la à patroa.

 

Se a Menina não tivesse partido tão depressa murmurou ele num suspiro eu teria tido tempo de lhe entregar esta carta urgente, que um mensageiro, coberto de poeira, me entregou pouco antes do regresso do nosso cocheiro.

 

Uma carta?

 

Era um papel estreito, selado com cera vermelha e que devia ter feito um longo caminho, pois, apesar de espesso, estava amarrotado e sujo. Ao seu contacto, os dedos de Mariana começaram a tremer. O selo tinha o sinal de uma cruz e reconhecera imediatamente a letra do padrinho. Esta carta era a sua sentença, uma sentença de vida, talvez mais cruel do que uma sentença de morte.

 

Muito lentamente, Mariana subiu a escada sem abrir a carta. Soubera sempre que um dia essa missiva havia de chegar, mas tinha tido tanta esperança que pudesse dar-lhe outra resposta! Agora, retardaria, tanto quanto possível, o momento de a abrir, o momento em que os seus olhos se apropriassem do texto, pois ele teria o significado de uma mão implacável do destino.

 

Quando chegou ao quarto, encontrou Ágata, a sua criada de quarto, que guardava roupa numa cómoda e desejou mandá-la sair.

 

A Senhora está muito pálida! notou a rapariga, lançando um olhar inquieto ao rosto sem cor da patroa. Era melhor deixar-me, primeiro, despi-la e retirar-lhe os sapatos. Sentir-se-ia melhor. Em seguida, irei buscar-lhe qualquer coisa quente.

 

Mariana hesitou, depois, pousando a carta sobre a secretária, disse tristemente:

 

Tendes razão, Ágata! Obrigada! É realmente melhor! Ganharia assim ainda mais alguns segundos, mas enquanto

 

Ágata lhe retirara o vestuário de sair e o substituía por um vestido de lã verde-claro, guarnecido de fitas mais escuras, e umas pantufas do mesmo tom, o seu olhar continuou fixo na carta, finalmente, pegou-lhe e, um pouco envergonhada pela sua fraqueza pueril, foi estender-se junto da lareira sobre a cadeira preferida. Enquanto Ágata saía sem ruído do quarto, levando o fato que ela acabava de despir, Mariana com a ponta da unha fez saltar a cera vermelha e desdobrou a carta. O texto era curto e lacónico. Em poucas palavras, o cardeal informava a afilhada que devia dirigir-se a Lucques, na Toscânia, no dia 15 do próximo mês e instalar-se na estalagem do ”Duomo”. Acrescentava ainda:

 

”Não haverá dificuldade por parte da polícia em te darem o passaporte se declarares querer ir tomar águas a Lucques para a tua saúde. Desde que Napoleão fez da irmã Elisa uma grande duquesa da Toscânia, vê com bons olhos quem for a Lucques. Sê pontual ao nosso encontro.”

 

Mais nada! Mariana incrédula virou o bilhete em todos os sentidos.

 

Como? É tudo? murmurou surpreendida. Nem uma palavra de afeição! Nada mais do que um encontro sem explicação, sem outra indicação além de um conselho para a obtenção do passaporte. Nem uma palavra sobre o homem que me destina!

 

Para ser tão peremptório, o cardeal possuía já uma certeza. Esse encontro significava que o seu casamento com Francis Cranmere fora anulado, mas significava também que, em qualquer local insuspeitado, existia um desconhecido pronto a desposá-la. Como é que o cardeal não compreendia tudo o que esse desconhecido tinha de assustador para Mariana? Seria assim tão difícil dizer-lhe algumas frases sobre ele? Quem seria? Que idade, que figura, que carácter seriam os seus? Era como se Gauthier de Chazay tivesse conduzido a afilhada pela mão até à entrada de um túnel cheio de trevas... É certo que ele a amava, só desejava a sua felicidade, mas, subitamente, Mariana teve a impressão de ser apenas um pião sobre o tabuleiro de um hábil jogador de xadrez, um simples brinquedo entre mãos poderosas que, em nome da família e da honra, exerciam sobre si todos os poderes. Mariana descobrira assim que lutara por nada, ao lutar por uma liberdade ilusória completamente inútil. Era uma rapariga nobre, esperando passivamente o casamento que outros lhe tinham arranjado. Os séculos de uma impiedosa tradição caíam sobre si com a pedra de um túmulo.

 

Com uma sensação de fadiga, Mariana foi atirar o bilhete para a lareira, viu-o consumir-se e depois voltou para tomar a chávena de leite que Ágata lhe trouxera, apertando em redor da porcelana quente os dedos gelados. Uma escrava! Apenas uma escrava! Às ordens de Fouché, às ordens de Talleyrand, às ordens de Napoleão, de Francis Cranmere, do cardeal de S. Lourenço... às ordens da vida!... Que desespero!...

 

Invadiu-a uma revolta surda! Mandaria ao diabo o segredo ridículo, que lhe haviam exigido para melhor a obrigarem! Tinha uma necessidade desesperada de um conselho, de um amigo e, agora, faria como entendesse! Sentia-se sufocar de cólera, de desgosto, de decepção. Se falasse, ficaria aliviada... Encaminhou-se decididamente para o cordão da campainha e puxou duas vezes. Ágata acorreu imediatamente.

 

O Senhor Jolival já chegou?

 

-Já sim, Menina, acaba de entrar.

 

Pedi-lhe para vir aqui. Preciso de lhe falar.

 

Eu sabia que qualquer coisa não corria bem! disse Arcadius tranquilamente, quando Mariana o pôs ao corrente da situação. Sabia também que, se nada dizíeis, era porque certamente não podíeis!

 

E isso não vos chocou? Não me quereis mal? Arcadius começou a rir, mas esse riso era franco, embora não possuísse alegria e não iluminasse os seus olhos.

 

Conheço-vos bem, Mariana. Quando sois obrigada a esconder qualquer coisa a um amigo sincero, sofreis tanto que querer-vos mal seria não só absurdo, mas também cruel. Além disso, nas vossas condições, não poderíeis ter procedido doutro modo. As precauções do vosso padrinho eram legítimas e sensatas. Que ides fazer agora?

 

Já vos disse. Esperar até ao último minuto a chegada de Jason. Senão... comparecer ao encontro marcado pelo meu padrinho. Vedes outra alternativa?

 

Com grande surpresa de Mariana, Arcadius corou violentamente, ergueu-se, deu uma volta no quarto, com as mãos atrás das costas e, um pouco envergonhado, aproximou-se.

 

Haveria outra que seria a mais fácil para vós. Apesar da minha vida agitada, sou um cavalheiro e poderíeis tornar-vos M.me de Jolival. A diferença de idades punha-vos ao abrigo de qualquer... reivindicação da minha parte. Poderia ser para vós um marido, tão paternal como fictício, mas infelizmente não é possível!

 

Porquê? perguntou Mariana, com doçura, pois esperara essa reacção de Arcadius.

 

Ele voltou-lhe as costas para responder de uma só vez:

 

Já sou casado! Oh! É uma história antiga acrescentou muito depressa, virando-se, fiz sempre tudo o que podia para a esquecer, mas isso não impede que exista, em qualquer parte do mundo, uma M.me de Jolival que tem sobre mim, senão todos os direitos, pelo menos aquele que não me permite casar convosco.

 

-Mas, porque não me tínheis já dito? Quando vos conheci, nas pedreiras de Chaillot, estáveis até em litígio com Fanchon Flor-de-Lis, porque, se a memória não me falha, essa criatura queria casar-vos à força com a sua sobrinha Filomena e havia-vos metido na prisão por causa disso. Porque não lhe dissestes que éreis já casado?

 

-Ela não acreditou no que lhe disse! confessou Jolival tristemente. Além disso, disse-me que isso não constituiria obstáculo. Bastaria mandar suprimir a minha mulher. Ora, eu detesto Maria Simplícia... mas não a esse ponto! Quanto a vós, se não vos disse logo a verdade, é porque, não vos conhecendo ainda, receei que estivésseis imbuída de princípios que vos impedissem de me conservar junto de vós... e sois exactamente a filha que eu gostaria de ter tido.

 

Comovida, Mariana ergueu-se por sua vez e, aproximando-se do velho amigo, deu-lhe afectuosamente o braço.

 

Estamos em igualdade em matéria de dissimulação, meu amigo! Mas nada tendes a recear. Eu também queria conservar-vos junto de mim, pois, desde a morte da minha tia, ninguém velou por mim como vós tendes feito. Permiti-me somente uma pergunta. Onde está a vossa mulher?

 

Em Inglaterra! resmungou Jolival. Esteve antes em Mittau e, primeiro ainda, em Viena. Emigrou logo após o primeiro golpe contra a Bastilha. Estava em muito boas relações com M.me de Polignac, enquanto eu... enfim, nós tínhamos ideias políticas diametralmente opostas!

 

E... filhos? perguntou Mariana timidamente.

 

Mas, ao contrário do que esperava, Jolival pôs-se a rir.

 

Vê-se bem que nunca vistes Maria Simplícia. Desposei-a para dar prazer à minha pobre mãe e arrumar uma interminável história de família... mas nunca lhe toquei! Aliás, a sua religião e altivez ter-lhe-iam tornado, certamente insuportável, esse grosseiro contacto humano a que chamam amor. Actualmente, é uma das damas da duquesa de Angoulême e está certamente e perfeitamente feliz, se acreditarmos no que se murmura sobre o carácter da princesa. Juntas, devem rezar perdidamente a um deus de cólera e de vingança para fulminar o usurpador e dar, à França, as alegrias da monarquia absoluta, o que lhes permitiria regressar a Paris, ao som dos pelotões de execução e do ranger das cadeias dos dignitários do Império e dos ex-revolucionários conduzidos para as galeras. É uma mulher muito meiga, essa Maria Simplícia!...

 

Pobre Arcadius! disse Mariana pousando um beijo rápido na face do amigo. Não merecíeis isso! Não falemos mais desse assunto. Estou desolada por vos ter obrigado a tornar presentes todas essas recordações, que tanto procurais esquecer! Contudo, consegui-lo-eis rapidamente. Quanto a mim, já está decidido. Dizei-me somente de quanto tempo vou precisar para chegar a Lucques.

 

São cerca de trezentas léguas respondeu Arcadius com uma pressa que provava como se sentia feliz por mudar de conversa passando pelo Monte-Cenis e Turim. Felizmente que o tempo deve permitir-nos atravessar os montes e, com uma boa cadeia de mudas de cavalos, fazem-se facilmente vinte e cinco a trinta léguas por dia.

 

Mas, se dormíssemos na carruagem e mudássemos os cavalos sem parar muito tempo?

 

Parece-me difícil, sobretudo para uma mulher, e seriam necessários, pelo menos, dois cocheiros. Gracchus não aguentaria tanto tempo. Os postilhões é diferente, mudam-se nas estalagens. Tereis de contar, pelo menos, com quinze dias, pois, além das montanhas que diminuem consideravelmente a velocidade, deveis pensar nos acidentes do caminho...

 

Quinze dias! Tenho de partir no dia 1 de Maio! Jason não terá muito tempo para aparecer. E... a cavalo chegaria mais depressa?

 

Desta vez, Jolival começou a rir.

 

Certamente que sim, mas não resistiríeis muito tempo, se fizésseis vinte léguas por dia. É preciso estar treinado, como um granadeiro, para fazer um percurso tão longo. Conheceis a história do correio de Friedland?

 

Mariana fez um sinal negativo. Ela adorava as histórias de Arcadius, que sabia muitas, e gostava de contá-las.

 

Entre os correios do Imperador, há um particularmente rápido. É o cavaleiro Esprit Chazal, a quem deram o nome de ”Bigodes”. No dia seguinte à batalha de Friedland, Napoleão quis que a notícia chegasse a Paris, o mais rapidamente possível. Decidiu, primeiro, confiá-la ao cunhado, o príncipe Borghèse, um dos melhores cavaleiros do Império. Mas vinte e quatro horas depois, decidiu mandar com a mesma notícia o seu famoso Bigodes. Depois de cavalgar cinquenta léguas, Borghèse trocou o cavalo por uma berlinda e andou de noite e dia. Bigodes contentou-se com o que tinha: os cavalos das mudas e a sua resistência. Correu durante dias e noites e, em nove dias, fez as quatrocentas léguas que separam Friedland de Paris... chegou antes de Borghèse. Um feito extraordinário! Mas ia morrendo, e o Bigodes é um gigante talhado no granito mais duro. Vós não sois o Bigodes, querida Mariana, ainda que tenhais mais coragem e mais resistência do que a maioria das mulheres. Vou arranjar-vos uma berlinda bastante sólida e faremos o caminho...

 

Não! interrompeu Mariana. Prefiro que fiqueis aqui. Arcadius encolheu os ombros e franziu as sobrancelhas.

 

Aqui? Porquê? Por causa da promessa ao vosso padrinho?... Receais...

 

Não, mas quero que fiqueis para esperar Jason. Ele pode chegar depois da minha partida, visto que ignora o que espero dele... e se não houver ninguém para o receber, ele não poderá tentar ir ter comigo. É um homem vigoroso, um marinheiro e iria jurar que um excelente cavaleiro. Talvez... acrescentou ela, corando por sua vez que por mim conseguisse repetir a façanha de Bigodes... ou qualquer coisa parecida...

 

E ir de Paris a Lucques numa semana? Creio que efectivamente por vós seria capaz disso. Ficarei então... mas não podereis partir só. Essa longa estrada...

 

Já fiz longos caminhos sozinha, Arcadius! Levarei Ágata, a minha criada de quarto, e com Gracchus-Hannibal, como cocheiro, pouco terei a recear.

 

Quereis que vá buscar Adelaide? Mariana hesitou.

 

Não sei nada dela disse.

 

Eu sei. Fui vê-la várias vezes. Não manifesta qualquer desejo de regressar. Sem querer afligir-vos, creio que está louca. Está apaixonada por Bobèche!

 

Então, deixemo-la. Posso muito bem passar sem ela. Pensei, por instantes, levar Fortunata comigo, mas ela gosta muito de romances. A aventura seduzi-la-ia demasiadamente, para não resistir a falar dela. Para todas as outras pessoas, vou às águas de Lucques... e vós, meu amigo, encarregar-vos-eis dos passaportes.

 

Arcadius fez um sinal afirmativo, mas não respondeu. Dirigiu-se lentamente para a janela, ergueu o reposteiro e olhou para fora. A noite envolvia docemente o jardinzinho. O sorriso do Amor, na bacia de pedra, esmorecia pouco a pouco e, ao tornar-se vago, carregava-se de mistério. Jolival deu um suspiro.

 

Se o vosso padrinho não estivesse no fim desse caminho, não vos deixaria tomá-lo, Mariana. Já pensastes no que dirá o Imperador? Não teria sido mais natural dirigir-vos primeiro a ele, visto que é o primeiro interessado?

 

Que faria ele? disse a jovem secamente. Oferecer-me-ia um esposo da sua escolha... e eu sofreria ainda mais. Não quero ser dada por ele a outro. Prefiro enfrentar a sua cólera. Sofrerei menos.

 

Arcadius de Jolival não insistiu. Deixou cair o reposteiro e voltou para junto de Mariana. Ficaram um momento um em frente do outro, olhando-se sem dizerem nada, mas existia nos seus olhos um mundo de afeição e de compreensão.

 

Mariana compreendeu que a apreensão, que nascera em si perante a estranha perspectiva aberta pelo cardeal de Chazay, passava agora pelo espírito de Arcadius. O tempo da sua ausência seria para ele uma longa penitência. Aliás, com uma voz rouca, ele disse:

 

Espero, do fundo do coração... sim, espero que Jason Beaufort chegue a tempo! Mal chegue, partirá logo e, dessa vez, acompanhá-lo-ei. Mas, entretanto, apesar de não acreditar em grande coisa, rezarei, Mariana, rezarei de todo o meu coração para que ele venha... para que...

 

Incapaz de dominar, por mais tempo, a sua emoção, Arcadius de Jolival começou a soluçar e saiu correndo...

 

A chuva, que caíra toda a noite e uma parte da manhã, cessou bruscamente, quando a carruagem abandonava Carrara, onde tinha parado. O Sol rompeu bruscamente as nuvens, empurrou-as para as montanhas e surgiu um céu muito azul. As montanhas de mármore branco, tão ternas uns momentos antes, começaram a brilhar, parecendo glaciares cortados pelo machado de um gigante. As suas arestas reflectiam a luz do sol, originando faíscas brilhantes. Mas, Mariana, extenuada, não lhes concedeu sequer um olhar. Em Carrara havia mármore por toda a parte, em blocos brutos, cortado em cubos, em cilindros, em poeira branca sobre todas as coisas, até sobre as toalhas de mesa da estalagem, onde tomara uma refeição rápida.

 

Fornecemos todas as cortes da Europa e até do mundo inteiro. A nossa grã-duquesa envia os nossos produtos em grandes quantidades para França. Todas as estátuas do Imperador Napoleão foram feitas aqui! afirmara o estalajadeiro com um orgulho ingénuo, mas que não conseguira provocar na jovem mais do que um sorriso distraído.

 

Além de acreditar plenamente que Elisa Bonaparte quisesse eternizar a família em toneladas de mármore, em estátuas e baixos-relevos, Mariana não tinha vontade nenhuma de, naquele dia, ouvir falar da mais nova Bonaparte... e de Napoleão ainda menos!

 

Durante o longo percurso, encontrara aldeias em festa, cidades engalanadas em honra do casamento imperial. Uma sequência ininterrupta de bailes, concertos e divertimentos de toda a espécie faziam supor que os fiéis súbditos de Sua Majestade, o Imperador e Rei, nunca acabariam de celebrar uma união que Mariana, por seu lado, tinha chegado a considerar como uma injúria pessoal. Tinham seguido, praticamente, entre uma dupla fieira de bandeiras, mais ou menos recentes, flores murchas, garrafas vazias e arcos de triunfo arruinados que lhe haviam produzido uma impressão deprimente. Ao mesmo tempo, aquela decoração abandonada e aquele desleixo conduziam bem com a estranha viagem, que a conduzia para um desconhecido e um casamento, que não podia deixar de lhe inspirar repugnância.

 

O trajecto tinha sido terrível. Esperando sempre ver chegar Jason, Mariana reduzira, tanto quanto possível, o tempo necessário para o percurso, apesar dos conselhos de Arcadius. Ela não podia resignar-se a abandonar Paris e somente na madrugada do dia 3 de Maio consentira em subir para a carruagem. Sentira uma tristeza estranha apertar-lhe o coração quando os quatro vigorosos cavalos arrastaram a berlinda sobre o pavimento da Rua de Lille e o rosto inquieto de Arcadius, por cima da sua mão acenando maquinalmente, desapareceram. Era como se deixasse em casa uma parte de si própria. Tivera sensação semelhante àquela que a assaltara ao abandonar Selton e o túmulo paladino de Ellis. Desta vez caminhava para uma aventura que não podia deixar de achar ameaçadora.

 

Para não correr o risco de chegar atrasada ao encontro do destino, e para recuperar o tempo perdido, tinha exigido caminhadas forçadas. Durante três dias, até atingir Lião, recusara parar por mais tempo do que o estritamente necessário para trocar os cavalos e tomar refeições muito rápidas nas estalagens, pagando o dobro aos postilhões e o triplo aos guias para os incitar a ganhar tempo. Apesar das estradas más, deformadas ou esburacadas, iam a uma velocidade infernal, o que porém não impedia que Mariana se debruçasse com frequência à janela para olhar para trás. Contudo, se por vezes via um cavaleiro surgir no horizonte, nunca era aquele que esperava.

 

Após algumas horas de repouso em Lião, a carruagem dirigira-se para uma região montanhosa e a velocidade teve de diminuir. A nova estrada do Monte-Cenis, que Napoleão mandara fazer sete anos antes e que Arcadius lhe tinha aconselhado a seguir, embora ainda estivesse mal acabada, encurtava muito o trajecto, mas não fora menos difícil para Mariana, Ágata e Gracchus, que tiveram de fazer a pé um bom número de vertentes inclinadas, enquanto com machos e cordas puxavam a carruagem. No entanto, talvez graças ao reconfortante acolhimento dos frades do hospício e graças, sobretudo, ao esplendor da grandiosa paisagem de montanhas, que contemplava pela primeira vez na sua vida, Mariana gozou um instante de serenidade. Sentira talvez uma espécie de melancolia, ao pensar que a sua carruagem fora, sem dúvida, a segunda ou a terceira a percorrer aquela estrada, senão a primeira, mas não fora acometida pela fadiga e, esquecendo que o tempo urgia, demorara-se um longo momento sentada à borda do lago azul do cimo de um dos montes, com o estranho desejo de aí ficar para sempre, a respirar esse ar tão puro e a ver passar sobre a majestade dos cumes nevados o voo negro e lento das aves de rapina. O tempo parecera parar. Deveria ser fácil esquecer o mundo, as complicações tortuosas, as astúcias, os ruídos, os furores e os amores impossíveis. Ali não existiam bandeirolas amarrotadas, nem versos de pé quebrado, nem flores murchas a destruírem a harmonia da paisagem, apenas no alto de um rochedo a estrela azul de uma genciana, ou a renda prateada de um líquen. Via-se apenas a silhueta quase militar do hospício, aumentado também pelo Imperador tudo naquele país de França tinha a sua marca e que possuía uma nobreza e uma estranha espiritualidade, como se as suas paredes austeras irradiassem a oração e a caridade dos que aí habitavam. Deus, que, em baixo, cada um tentava acomodar às suas conveniências, adquiria ali a sua temível grandeza... Fora preciso que um monge viesse, docemente, bater no ombro de Mariana, para lhe lembrar que, um pouco adiante, uma criada de quarto, morta de fadiga, um cocheiro meio gelado e uma berlinda pronta para partir a esperavam, para que ela consentisse em retomar a estrada para Suse.

 

E o ritmo infernal recomeçara. Tinham atravessado Turim sem um olhar, Grênes sem nada ver. Nem o Sol, nem as flores brotando de todos os jardins, nem o mar tinham conseguido fazer dissipar em Mariana o humor negro, que aumentava em cada dia mais de viagem. Invadia-a uma raiva, que a forçava a ir mais depressa, sempre mais depressa, e que produzia por vezes em Gracchus um olhar inquieto. Nunca ele vira a senhora, ao mesmo tempo tão nervosa e tão fria, tão tensa e tão facilmente irritável! O pobre rapaz não podia adivinhar que pouco a pouco, à medida que se aproximavam da chegada, a decepção e o desprezo por si própria deslizavam na alma doente da sua senhora. Até àquele momento, contra ventos e marés, ela tinha esperado ver surgir Jason, que se habituara a considerar como um salvador obrigatório. Agora, porém, tinham-se desvanecido as esperanças.

 

Na última noite, tinham dormido somente quatro horas numa estalagem má, escondida num recanto dos Apeninos e, para Mariana, o sono fora entrecortado de pesadelos e tivera um despertar tão desagradável que, ainda antes do cantar do galo, se erguera do colchão que lhe tinham alugado e dera ordem de partida. Na madrugada desse dia, que devia ser o último da viagem, a berlinda lançara-se a toda a velocidade em direcção do mar. Estavam a 15 de Maio, o último dia, mas Lucques não era longe.

 

Ficava a treze léguas mais ou menos tinha dito o estalajadeiro de Carrara.

 

Agora a carruagem rolava sobre uma estrada plana e arenosa, quase tão suave como a avenida de um parque bordejando o mar. Apenas algumas velhas lajes aflorando aqui e ali lembravam que se tratava da antiga Via Amélia, construída pelos Romanos. Mariana fechou os olhos e encostou a face contra o tecido das almofadas. Junto dela, Ágata dormia como um animal cansado, dobrada sobre si mesma e com o chapéu caído sobre o rosto. Mariana tinha desejado fazer o mesmo, mas, apesar do cansaço, os seus nervos tensos recusavam-lhe o repouso. Além disso, o Sol reaparecido, a paisagem de dunas e ribeirinhos, salpicada de longe em longe por grandes pinheiros marítimos, sob um céu de novo enevoado, aumentavam a sua tristeza. Incapaz de conservar os olhos fechados, seguiu sobre o mar os movimentos de um barquito de vela triangular que fugia para o largo. A pequena embarcação parecia tão ligeira, tão feliz por ser livre! ”Fugir com ela pensou Mariana dolorosamente” fugir com o vento, esquecendo tudo o resto, seria tão bom!...”

 

Compreendia, subitamente, o que podia representar o mar para um homem como Jason Beaufort e porque ele lhe era tão apaixonadamente fiel. Fora ele, sem dúvida, que se interpusera entre eles, que o tinha impedido de vir ter com Mariana, quando ela precisava tanto dele... Agora, tinha a certeza, Jason não viria... Talvez estivesse na outra extremidade do mundo... no seu longínquo país, mas, fosse como fosse, o chamamento de Mariana perdera-se no vento e, se alguma vez ele o recebesse, seria demasiado tarde.

 

Uma ideia louca assaltou-a, nascida duma súbita sensação de pânico, porque numa tabuleta de madeira, sobre um pau, lera que faltavam apenas dez léguas para Lucques. Porque não fugiria também para o mar? Devia haver perto barcos grandes, um porto... Poderia embarcar e procurar esse homem que, talvez porque não conseguia encontrá-lo, se lhe tornara estranhamente caro, quase indispensável, como o próprio símbolo da liberdade ameaçada. Por três vezes lhe propusera levá-la, por três vezes ela recusara na cegueira de um amor quimérico... Teria sido louca!...

 

Movida por aquele impulso, chamou Gracchus, que, infatigável e sem problemas, assobiava tranquilamente o último sucesso de Désaugiers

 

”Boa viagem, Senhor Dumollet.

 

Desembarcai em Saint-Malo...”

 

com um sentido de oportunidade de que não tinha a menor consciência.

 

Sabes se há qualquer porto nesta direcção? - perguntou ela. Um porto importante?

 

Sob o chapéu coberto de pó, Gracchus abriu muito os olhos.

 

Sim. A rapariga da estalagem falou-me num. É Livourne, mas, pelo que me disse, não é bom ir lá agora. Parece que, há um mês, as alfândegas aprisionam todos os barcos com pavilhão turco e as suas cargas, e como quase todo o comércio desse porto se faz nesses barcos... podeis imaginar o que isso origina. Revistam todos os barcos e parece que ninguém está contente... Mas já não vamos para Lucques?

 

Mariana não respondeu. O seu olhar seguia de novo o barquito, que parecia vogar numa corrente de ouro na direcção do Sol que se escondia. Gracchus deteve os cavalos.

 

-Oh! Oh!... gritou ele e a carruagem parou. Ágata abriu os olhos vermelhos de sono. Mariana teve um sobressalto.

 

Porque paraste?

 

É que... se já não vamos para Lucques, tereis de dizer já, porque aqui a estrada divide-se. Para Livourne é em frente.

 

Era verdade. Para a esquerda, havia um caminho, na direcção de colinas salpicadas de ciprestes, onde se viam, aqui e ali, as cercas de pequenas quintas, ou o campanário rosado de uma igreja. No mar, a embarcação desaparecera, absorvida pelo Sol vermelho. Mariana fechou os olhos e contraiu a garganta para reter um soluço nervoso. Não era possível. Não podia faltar à palavra que dera. E, além disso, havia a criança... Por sua causa, era impossível qualquer aventura. A mãe não tinha o direito de pôr em perigo, sobre as ondas, essa vida frágil, a que aliás devia sacrificar mesmo as suas repugnâncias, ou as mais legítimas aspirações.

 

Dói-vos qualquer coisa? perguntou Ágata inquieta por vê-la empalidecer. É esta terrível viagem.

 

-Não... não é nada! Continua Gracchus! Vamos para Lucques!

 

O chicote soou, os cavalos retomaram a marcha. Resolutamente, a berlinda voltou as costas ao mar e tomou a direcção das colinas.

 

Quando começaram a ver Lucques, o crepúsculo cor de malva e transparente caíra já e o coração de Mariana acalmara-se. Depois de terem abandonado a Via Amélia, atravessaram um belo rio, o Suchio, por uma nobre ponte romana e tinham percorrido uma planície calma e fértil em direcção a um círculo de montanhas, no meio das quais, como no fundo de um buraco, a cidade surgira cor-de-rosa e atraente cercada por muralhas, cujos rudes bastiões estavam rodeados por árvores e verdura. Lucques parecia esvoaçar com os seus campanários romanos e as suas torres cobertas de vegetação para as doces montanhas, no cimo das quais pousava um último reflexo luminoso.

 

Chegámos! suspirou Mariana. Pergunta onde fica o ”Duomo”, Gracchus. E a catedral. A estalagem para onde vamos deve ser na praça.

 

As formalidades junto de um corpo de guarda muito novo linfático foram rápidas. Aliás, os papéis dos viajantes estavam perfeitamente em regra.

 

Com um ruído de trovão, a berlinda entrou pelas muralhas, enquanto de todos os sinos as notas frágeis das Ave-Marias se espalhavam pelos campos. Bandos de crianças foram atrás da carruagem, gritando e procurando pendurar-se nela.

 

Ao cair da noite acendiam-se lanternas aqui e ali, ao longo da estreita rua ladeada de altas casas medievais, por onde passou a carruagem. Como se usa em Itália, quando não chove, no fim do dia toda a cidade, ou quase, estava na rua e a carruagem teve de avançar a passo. Homens, sobretudo, passavam em grupos, de braço dado em direcção das praças. Também se viam algumas mulheres, vestidas de escuro na sua maioria, embora envolvidas da cabeça aos joelhos em grandes xailes de renda branca. Falavam alto, interpelavam-se, por vezes confundiam-se com o eco de uma canção, mas Mariana notou numerosos soldados e concluiu, com aborrecimento, que talvez a Grã-Duquesa Elisa estivesse na sua residência de Verão, nessa luxuosa casa de Marlia, de que Arcadius lhe falara. Se a notícia da pseudocura da cantora Maria-Stella lhe chegasse aos ouvidos, Mariana poderia receber um convite, que iria contra, não só às recomendações do padrinho, mas também ao seu próprio desejo. Efectivamente, em Lucques terminaria a carreira da efémera Maria-Stella. Não poderia voltar a subir a um palco. A nova identidade, que lhe ia ser imposta, não lho permitiria. Aliás, Mariana devia confessar que não tinha pena de abandonar o teatro, para o qual, decididamente, não fora feita. A sua última experiência pública, nas Tulherias, fora demasiadamente cruel. Valia mais evitar, se pudesse, a irmã de Napoleão...

 

Sempre rodeada por crianças ruidosas, a carruagem seguiu a rua e atravessou uma grande e bela praça plantada de árvores, onde se erigia uma estátua do Imperador, cortou por uma rua mais pequena e desembocou, finalmente, em frente de uma admirável igreja romana, cuja fachada, com uma tripla fila de ligeiras colunatas, temperava a arrogância de um poderoso campanário com ameias.

 

Eis a vossa catedral! comentou Gracchus. Gostaria de saber porque chamam a isto ”duomo” O)? Não tem qualquer cúpula em cima!

 

Explicar-te-ei depois. Procura a estalagem.

 

Não é difícil de encontrar. Aí está ela! Não se vê mais nada.

 

Depois de um encantador palácio do Renascimento, cujos portões de pedra deixavam ver um jardim luxuriante, a estalagem do ”Duomo” mostrava as janelas severamente gradeadas, mas bem iluminadas por dentro, e a sua grande porta de entrada, por cima da qual se via a sua insígnia rodeada de madressilva.

 

Dir-se-ia que tem muita gente! murmurou Mariana. Com efeito cavalos de sela esperavam à porta, seguros por alguns soldados.

 

Deve aí estar um regimento de passagem! resmungou Gracchus. O que é que fazemos?

 

Que queres tu fazer? respondeu Mariana impaciente. Entra! Não vamos passar a noite na carruagem, com o pretexto de que há gente na estalagem. Devem ter-nos marcado os quartos!

 

Como servidor obediente, Gracchus, sem perguntar quem teria marcado os quartos, entrou no pátio interior da estalagem e deteve majestosamente os cavalos escumantes. Como por encanto, surgiram de todos os cantos palafreneiros e criados e, pela porta das traseiras, armado de grande lanterna, veio o estalajadeiro, que se precipitou para a elegante carruagem, tão depressa quanto lho permitia a sua obesidade, e desfez-se em vénias sucessivas.

 

Sou Orlandi, minha Senhora, ao serviço de Vossa Excelência! É uma honra para a estalagem do ”Duomo” receber uma visita como a de Vossa Senhoria, mas ouso dizer que em parte nenhuma encontraria melhor conforto e melhor mesa!

 

Reservaram quartos para mim e os meus criados? perguntou Mariana em excelente toscano. Sou a Signorina Maria-Stella e...

 

A palavra francesa ”dome”, que significa cúpula, é da mesma raiz da palavra italiana ”duomo”. N. T.

 

”Si, si... molto bene!” Se a ”signorina” quer ter a bondade

 

de me seguir... O Signor Zecchini espera-vos desde manhã.

 

Mariana nem pestanejou, ao ouvir aquele nome desconhecido. Talvez um enviado do cardeal! Não podia ser o homem que devia desposar!

 

Mas, toda essa gente no vosso albergue quem são? perguntou ela, designando numerosos uniformes que surgiam pelos vidros escurecidos da cozinha.

 

O Signor Orlandi encolheu os ombros e, para mostrar a pouca estima que tinha pelos militares, cuspiu no chão sem cerimónia.

 

Penh! Guardas de Sua Alteza a Grã-Duquesa. Estão só de passagem... pelo menos assim o espero!

 

Manobras talvez?

 

O rosto redondo de Orlandi, a que um longo bigode de bandido calabrês se esforçava, sem sucesso, por dar um aspecto temível, pareceu alongar-se curiosamente.

 

O Imperador deu ordem de fechar os conventos em toda a Toscânia. Certos bispos ergueram as suas vozes contra o poder estabelecido. Quatro foram presos, mas receiam que outros se tenham refugiado em nossas casas. Daí estas medidas excepcionais.

 

Sempre aquele antagonismo incessante entre Napoleão e o Papa!

 

Mariana franziu as sobrancelhas. Que ideia a do padrinho mandá-la vir justamente àquela região, onde as coisas pareciam andar tão mal entre o Imperador e a Igreja! As dificuldades que entrevia para o regresso a Paris não se atenuariam, muito pelo contrário. Evocava já, tremendo, a recepção do Imperador, quando soubesse que, sem o consultar, ela tinha desposado um desconhecido. O cardeal prometera que não seria um inimigo seu, mas nunca se podiam prever as reacções de um homem ciumento do seu poder!

 

O ruído que reinava na grande sala da estalagem atordoou logo os recém-chegados. Um grupo de oficiais rodeava um que acabava de entrar. Coberto de pó e vermelho de cólera, este vociferava, com um bigode ameaçador e os olhos inflamados.

 

... um criado glacial veio até ao portão e explicou-me aos gritos, para cobrir os latidos de terríveis cães, que o seu amo não recebia ninguém e era inútil pesquisar em sua casa, para ver se qualquer desses bispos aí estava escondido I Depois, sem querer ouvir mais nada, virou-me as costas e partiu tão tranquilamente como se não existíssemos. Eu não tinha homens suficientes para investir contra a sua mansão, mas isto não ficará assim! Montai vós todos e vamos mostrar a esse Sant’Anna o que custa ignorar as ordens de Sua Majestade, o Imperador e de Sua Alteza Imperial a Grã-Duquesa!

 

Um concerto de aprovação saudou a belicosa declaração.

 

Se a ”Signorina” quer esperar-me um instante murmurou precipitadamente Orlandi, que ficara muito pálido tenho de intervir! Ho lá! Senhor oficial!

 

O que queres! vociferou o homem encolerizado. Dá-me uma caneca de ”chianti” e rápido! Tendo sede e pressa!

 

Mas, em vez de obedecer, Orlandi abanou a cabeça.

 

Desculpai a minha ousadia... mas se eu estivesse no vosso lugar, senhor oficial, não tentaria ver o príncipe Sant’Anna... primeiro, porque não conseguiríeis e depois, porque certamente Sua Alteza Imperial vos censuraria.

 

O ruído cessou bruscamente. O oficial, afastando os camaradas, aproximou-se de Orlandi. Mariana recuou até à sombra da escada, para evitar ser notada.

 

O que queres dizer com isso? Porque é que não conseguirei?

 

Porque ninguém ainda o conseguiu. Qualquer pessoa em Lucques vos dirá o mesmo. O príncipe de Sant’Anna, sabe-se que existe... mas nunca ninguém o viu!... ninguém com excepção dos dois ou três criados do seu serviço particular. Todos os outros... há muitos aqui e nas outras moradas do príncipe, mas nunca avistaram mais do que uma silhueta, nunca um rosto ou um olhar. Tudo o que conhecem dele é o som da sua voz.

 

Esconde-se? exclamou o capitão. E porque se esconde ele, hem, estalajadeiro? Sabes porque é que ele se esconde? Se não sabes, dir-to-ei, porque o saberei em breve.

 

Não, senhor oficial, não o sabereis... ou temei a cólera da Grã-Duquesa Elisa, que, como os grão-duques seus predecessores, sempre respeitou o enclausuramento do príncipe.

 

O soldado começou a rir, mas o seu riso soou um pouco falso aos ouvidos de Mariana, que, interessada na estranha história, escutava com toda a atenção.

 

Não é possível! Mas é o Diabo, então, o teu príncipe!

 

Com um arrepio supersticioso, Orlandi benzeu-se precipitadamente três ou quatro vezes e nas costas, para que o oficial não visse, apontou dois dedos em corno, a fim de esconjurar a má sorte.

 

Não digais essas coisas, senhor oficial! Não, o príncipe não é... enfim quem acabais de nomear. Diz-se que, desde a infância, possui uma doença terrível e é por isso que nunca ninguém o viu. Os pais nunca o mostraram. Pouco depois do seu nascimento, partiram para longe e aí morreram. Ele voltou, só... ou pelo menos só com os servidores de que já falei, que o viram nascer e que decidem tudo.

 

Mais impressionado do que queria admitir, o oficial abanou a cabeça.

 

E vive sempre nesse domínio cercado de muralhas de grades e criados?

 

Por vezes, vai-se embora... sem dúvida para outra das suas propriedades, sempre com o mordomo e o capelão, mas nunca se vê partir ou chegar.

 

Fez-se, de repente, um silêncio tão pesado que o oficial, para o quebrar, tentou rir. Virando-se para os camaradas que ouviam aturdidos, exclamou:

 

É um farsante, o vosso príncipe! Ou então é louco! E nós não gostamos de loucos! Se dizes que a Grã-Duquesa não gostaria que o atacássemos, não o atacaremos. Aliás temos muito que fazer agora! Enviaremos um mensageiro a Florença e...

 

Bruscamente, mudou de tom, tornou-se ameaçador e veio agitar o punho sob o nariz do pobre Orlandi.

 

... e se tu mentiste, não só iremos retirar do seu buraco o teu pássaro nocturno, mas saberás o que pesa a lâmina do meu sabre! Vamos, vós todos! A caminho do convento do Monte Oliveto... O sargento Bernardi ficará aqui com uma escolta! São muito devotos nesta terrível terra! É preciso vigiá-los, pois nunca se sabe!

 

Com grande barulho de botas e sabres arrastados, os guardas abandonaram a sala. Orlandi virou-se para Mariana que, sem se mexer, com Ágata e Gracchus atrás, esperara o final daquele bizarro diálogo.

 

Perdoai, ”signorina”... mas não podia deixar estes homens lançar-se ao assalto do palácio Sant’Anna. Não teria trazido felicidade a ninguém... nem a eles, nem a nós.

 

Intrigada, Mariana não resistiu ao desejo de fazer algumas perguntas sobre a curiosa personagem que o estalajadeiro acabava de evocar.

 

Tendes assim tanto medo desse príncipe? No entanto, vós

também nunca o vistes! Orlandi encolheu os ombros e pegou num candeeiro aceso para guiar os viajantes ao andar superior.

 

Não, nunca o vi. Mas vejo o bem que se faz em seu nome. O príncipe é muito generoso para os pobres. Além disso, com um homem como ele, não se sabe até onde vai o seu poder! Prefiro que o deixem tranquilo. Conhecemos a sua generosidade, não conhecemos a sua cólera... e se fosse, por acaso, um reprovado ou um maldito...

 

De novo, Orlandi benzeu-se três vezes com muita rapidez.

 

Por aqui, ”signorina”!... Conduzirei, em seguida, o vosso cocheiro ao quarto. Para a vossa criada, há um quartinho ao lado do vosso.

 

Um momento mais tarde, ele abria, diante de Mariana, a porta de um quarto rústico, mas limpo. As paredes estavam branqueadas com cal e continha poucos móveis: uma cama estreita e comprida de madeira preta, com uma cabeceira tão alta que Mariana, desagradavelmente impressionada, achou-lhe um aspecto de mausoléu, uma mesa e duas cadeiras direitas de madeira preta, um grande crucifixo e uma quantidade de imagens pias. Sem o tecido de algodão vermelho, que guarnecia a pequena janela e a cama, poderia tomar-se esse quarto por uma cela de convento. Os objectos de ”toilette”, de grossa louça branca e verde, estavam sobre uma prateleira. Uma lâmpada de azeite iluminava timidamente este conjunto.

 

Aqui tendes! É o meu mais belo quarto! disse o signer Orlandi com satisfação. Espero que a ”signorina” ficará bem. Devo... prevenir agora o signor Zecchini?

 

Mariana teve um sobressalto. A história do príncipe invisível fizera-lhe esquecer um pouco a sua e, sobretudo, a personagem misteriosa que a esperava desde manhã. Era melhor ver imediatamente quem ele era exactamente.

 

Preveni-o e dizei-lhe que o espero. Em seguida, mandar-me-eis a ceia.

 

Também quereis as malas?

 

Mariana hesitou. Ignorava se entrava nos planos do padrinho ficar muito tempo naquela estalagem e pensou que as malas não sofreriam muito por passarem uma noite na carruagem.

 

Não. Não sei se ficarei aqui. Mandai-me apenas o saco grande de tapeçaria, que está dentro da berlinda.

 

Por prudência, quando Orlandi se retirou, ela enviou Ágata, que aliás dormia de pé, explorar o seu próprio domínio, um pequeno quarto cuja porta baixa dava para o fundo do seu próprio quarto, e ordenou-lhe para não se mexer enquanto não a chamasse.

 

E... se adormeço? perguntou a jovem.

 

Dormi em paz. Acordar-vos-ei para a ceia. Minha pobre Ágata, nunca pensaste que esta viagem fosse um tal calvário, não é verdade?

 

Sob o chapéu descaído, Ágata sorriu delicadamente.

 

Foi fatigante, mas interessante. Com a Menina, iria até ao fim do mundo! Mas temos de confessar que não se está muito bem nesta estalagem. Apesar de estarmos no mês de Maio, uma lareira far-nos-ia bem. É húmido isto!

 

Com a mão, Mariana fez-lhe sinal para se calar e mandou-a logo embora. Efectivamente, alguém acabava de bater à porta.

 

Entrai! disse Mariana, quando a criada desapareceu.

 

A porta abriu-se docemente, muito docemente, como se a pessoa que entrava o fizesse com relutância, ou com muita hesitação. Uma alta personagem, vestida com um fato de pano cor de canela, de calças curtas e meias brancas, grossos sapatos de fivela e chapéu redondo enterrado sobre uma espécie de touca, surgiu na frente da jovem. O chapéu abandonou a cabeça, a touca permaneceu e o recém-chegado, juntando as mãos, ergueu os olhos para o céu e suspirou:

 

Deus seja louvado! Chegastes finalmente! Não podeis imaginar como me atormentei durante todo o dia com tantos soldados por aí! Mas estais aqui, é o principal!

 

Enquanto durou o discurso de boas-vindas em forma de acção de graças, Mariana tivera tempo de se recompor, ao constatar que o signor Zecchini não era senão o padre Bichette. Mas o infeliz estava tão pouco afeito ao trajo, ou melhor, o trajo dava-lhe uma fisionomia tão estranha, que ela não pôde deixar de rir.

 

Como vós estais vestido, senhor Padre! Sabeis que o Carnaval acabou há muito tempo e a Páscoa passou há três semanas?

 

Não façais troça! Já sofro bastante sob este disfarce. Se não fosse necessário e se Sua Eminência não o tivesse exigido por prudência...

 

Onde está o meu padrinho? perguntou Mariana, novamente séria. Pensava encontrá-lo aqui.

 

Um príncipe da Igreja é, ainda mais do que qualquer outro, obrigado a ter precauções durante os terríveis acontecimentos que vivemos. Tínhamo-nos instalado nestes últimos tempos no mosteiro do Monte Oliveto, mas julgámos mais prudente sair de lá.

 

Fora mais prudente, efectivamente aprovou Mariana, pensando no que dissera o irascível guarda, alguns minutos mais cedo. Era para esse importante convento que ele se dirigia.

 

E onde está Sua Eminência agora?

 

Em frente! respondeu o padre designando a janela pela qual se avistava o campanário da catedral. Instalou-se esta manhã em casa do sacristão e espera-vos.

 

Mariana deitou um olhar ao pequeno relógio de esmalte e ouro que lhe pendia do pescoço.

 

Já é tarde. A igreja deve estar fechada... vigiada...

 

A novena começou agora. As medidas do Imperador incidem sobre os conventos, não sobre as igrejas, onde o culto deve prosseguir. Os ofícios realizam-se sempre. De qualquer modo, o sacristão devia deixar uma porta aberta toda a noite, se fosse necessário. Sua Eminência espera-vos após a novena.

 

Onde? A igreja é grande...

 

Entrai pela porta esquerda e ide até ao transepto. Procurai o túmulo de Hilária. Representa uma jovem mulher estendida com os pés sobre um cãozinho. É aí que o cardeal vos espera.

 

Não vindes comigo?

 

Não. As ordens de Monsenhor são que eu abandone a estalagem, à noite. Ele não quer que nos vejam muito juntos. Depois de cumprir a minha missão, vou tratar de outros assuntos.

 

Obrigada, senhor Padre. Direi ao meu padrinho com que cuidado a cumpristes. Quanto a mim, vou já ao seu encontro.

 

Deus vos guarde! Rezarei por vós!

 

Colocando um longo dedo sobre a boca para recomendar silêncio e, caminhando sobre a ponta dos grandes sapatos com um aspecto de conspirador, que Mariana teria achado cómico noutra circunstância, o falso sígnor Zecchini saiu sem fazer mais ruído do que à entrada.

 

Mariana dirigiu-se vivamente para a mesa de ”toilette”, retirou o chapéu, assegurou-se de que o penteado não sofrera muito, e depois, abrindo o saco de tapeçaria que Orlandi lhe mandara entregar antes da entrada do padre, tirou um grande xaile de caxemira vermelho-escuro, que colocou sobre a cabeça, e com ele se envolveu à maneira das mulheres da cidade. Depois disso, foi abrir a porta que comunicava com o quarto de Ágata. Como tinha predito, a rapariga adormecera. Estendida sobre a cama, toda vestida, nem ouviu a porta abrir-se. Mariana sorriu. Podia ir ao encontro marcado, Ágata não acordaria tão cedo...

 

Ao descer as escadas, encontrou Orlandi, que se apressava a subir com um tabuleiro carregado de pratos e copos.

 

Um pouco mais tarde a ceia, se faz favor! disse Mariana. Eu queria... ir até à Igreja rezar um pouco, se for possível.

 

O sorriso comercial de Orlandi adquiriu uma expressão mais quente.

 

Certamente que é possível! Há, justamente, a devoção neste momento! Ide ”signorina”, ide, servir-vos-ei quando voltardes.

 

Para ir à Igreja? indignou-se o bom estalajadeiro. Seria bonito! Somos bons cristãos aqui! Se tivessem querido fechar as igrejas, teríeis encontrado a cidade em revolução. Quereis que vos acompanhe?

 

Apenas até à porta da vossa casa. Depois, irei sozinha... mas agradeço-vos muito.

 

Escoltada por Orlandi, Mariana atravessou a estalagem, sem que nenhum dos soldados fizesse o menor comentário. Aliás, pareciam pouco agressivos. O sargento jogava às cartas com um cabo e os homens conversavam, enquanto iam bebendo. Alguns tinham tirado os longos cachimbos e fumavam, erguendo os olhos para o tecto e observavam as espirais de fumo. Mal saiu de casa, Mariana apertou o xaile à sua volta e pôs-se a correr para atravessar a praça. A noite caíra completamente e as poucas lanternas, disseminadas por aqui e por ali, mal deixavam ver o volume claro da velha basílica.

 

Levantara-se um vento ligeiro, carregado de todos os odores do campo e Mariana deteve-se um instante no centro da praça para respirar o perfume. Por cima da sua cabeça, o céu, lavado pelas chuvas recentes, estendia a sua imensidade azul-escura, onde milhares de estrelas cintilavam suavemente. Em qualquer parte, na noite, um homem cantava e tocava guitarra, mas, pelas portas abertas da igreja, o som grave de um cântico chegou até à jovem. A canção, que o homem cantava, era uma canção de amor, o cântico proclamava a glória de Deus e as alegrias amargas da renúncia e da humildade. Uma fazia apelo à felicidade, o outro à austera obediência, e Mariana hesitou, pela última vez. Teve uma breve e ligeira hesitação, pois não havia para ela outra solução possível. Não podia escolher entre o amor e o dever. O seu amante não a chamava, nem a procurava. No meio de um povo em festa, percorria as estradas dos Países Baixos, sorrindo à jovem esposa, sem pensar naquela que abandonara e que, agora, cheia de vergonha e com a alma em pedaços, se dirigia para os braços de um desconhecido, para que o seu filho tivesse o direito de viver de cabeça erguida.

 

Decididamente, virou as costas à canção e olhou para a igreja. Como era assustadora na obscuridade, com a sua silhueta maciça e a alta torre erguida para o céu, como um grito de apelo!... O seu apelo, Deus não o tinha ouvido, visto que o amigo, a quem pedira socorro, não viera, nem viria. Também ele estava longe, talvez até a tivesse esquecido... Uma emoção cerrou a garganta de Mariana e logo se transformou num sobressalto de raiva.

 

Tonta que tu és! resmungou entre dentes. Quando deixarás de lamentar a tua sorte? Tudo aconteceu porque assim o quiseste, e sempre soubeste que terias de pagar a felicidade, ainda que tivesse sido curta! Paga, pois, agora o seu preço sem recriminações. Aquele que te espera aqui sempre gostou de ti e só quer a tua felicidade... ou, pelo menos, a tua paz interior. Tenta, pois, confiar nele, como outrora.

 

Com um passo decidido, Mariana encaminhou-se para o triplo pórtico, subiu os degraus e empurrou a porta da esquerda. Contudo, a inquietação não se dissipara completamente. Apesar de tudo, não podia deixar de sentir uma desconfiança que a fazia sofrer e que censurava a si própria. Teria gostado tanto de recuperar a confiança cega que tivera no padrinho durante os seus primeiros anos!... Mas este casamento extraordinário! A submissão de todo o seu ser que ele implicava!...

 

Além da lâmpada vermelha do coro e de algumas velas acesas, a catedral, invadida pela noite, era obscura. No altar-mor um velho padre de cabelos brancos oficiava, vestido de uma casula prateada, assistido por alguns fiéis ajoelhados. Mariana, ao entrar, apenas viu os dorsos redondos, os ombros curvados e ouviu vozes sussurrantes, respondendo aos suspiros do órgão e subindo harmoniosamente para as altas abóbadas, cujo gótico tinha um tom azulado.

 

Deteve-se um momento junto de um genuflexório, fez o sinal da cruz e dobrou o joelho para uma breve oração, em que o seu coração não participava verdadeiramente. Era, sobretudo, uma espécie de fórmula de delicadeza para com Deus. O seu espírito estava ausente. Rapidamente, sem fazer mais ruído do que uma sombra, deslizou ao longo da nave lateral, passou em frente duma elegante construção octogonal que abrigava um estranho Cristo crucificado, vestido de uma longa túnica bizantina, e chegou finalmente ao transepto. Algumas silhuetas estavam ali ajoelhadas, mas ela não viu a que viera procurar. Aliás nenhum dos que ali se encontravam virou a cabeça para ela.

 

Lentamente, aproximou-se do túmulo. Vira-o de repente e era de uma beleza tal que o seu olhar, desprezando uma admirável pintura da Virgem entre dois santos, não o abandonou mais. Nunca tinha imaginado que um sepulcro pudesse ter essa graça, esse encanto feito de pureza e de paz. Sobre a pedra, sustida por um friso de anjinhos e uma espessa grinalda, uma jovem mulher de vestido comprido repousava com os pés sobre um cãozinho. Tinha as mãos cruzadas sobre as pregas finas do vestido e os cabelos enquadravam um rosto jovem e encantador, que Mariana contemplou longamente, fascinada por essa juventude que o escultor reproduzira com tanto amor. Ignorava quem era essa Hilária, morta quatro séculos antes, mas sentia-se curiósamente próxima dela, como de um reflexo fiel, embora não se pudessem adivinhar no belo rosto os sofrimentos que a tinham conduzido ao túmulo, ao sair da adolescência.

 

Para não ceder ao desejo de colocar a mão sobre os da estátua e lutar contra um sentimentalismo que julgava perigoso, Mariana foi ajoelhar-se um pouco mais longe, meteu a cabeça entre as mãos e tentou rezar. Contudo o seu espírito mantinha-se num estado de alerta, por isso não se sobressaltou quando alguém veio ajoelhar no genuflexório vizinho. Erguendo os olhos, reconheceu o padrinho, apesar da gola do casaco preto que lhe escondia metade do rosto. Vendo que ela o olhava, ele sorriu-lhe ligeiramente.

 

A devoção está a terminar. Quando todos saírem, nós falaremos! - disse ele num murmúrio.

 

A espera não foi longa. Alguns segundos depois, o padre abandonava o altar, levando o ostensório. A igreja esvaziou-se pouco a pouco. Houve um ruído de cadeiras e, em seguida, de passos que se afastavam. O sacristão veio apagar as velas e a lâmpada do coro. Só continuaram acesas as do transepto colocadas diante de uma estátua muito bonita de S. João Baptista, obra do mesmo artista do túmulo. O cardeal ergueu-se, depois. sentou-se e, com um gesto, convidou Mariana a fazer o mesmo. Foi ela quem começou o diálogo.

 

Vim, como me ordenastes...

 

Não ordenei rectificou Gauthier de Chazay docemente. Pedi-te, somente, porque pensava que isso seria salutar para ti. Vieste... sozinha?

 

Sozinha!... E vós previste-lo, não é verdade? acrescentou ela com uma imperceptível amargura que, contudo, não escapou ao ouvido perspicaz do prelado.

 

Não-, Deus é testemunha que eu teria preferido que tu encontrasses o homem capaz de conciliar ao mesmo tempo o teu dever e a tua inclinação. Mas reconheço que não tinhas muito tempo, nem, talvez, outra solução. Contudo... tenho a impressão que me culpas por esta necessidade em que te encontras.

 

Só me culpo a mim, padrinho, podeis estar certo. Dizei-me se tudo está arrumado. O meu casamento...

 

Com o inglês? Está devidamente anulado, senão não te teria mandado vir. Não tive dificuldades em obter a dissolução. As circunstâncias eram excepcionais e a situação do Santo Padre também, por isso tivemos de nos contentar com um tribunal reduzido para julgar o teu caso. Foi com isso que contei, porque, doutro modo, nunca teríamos podido ir tão depressa! Mandei avisar também o consistório da Igreja de Inglaterra desta dissolução e escrevi ao notário que tinha redigido o contrato. És livre!

 

Mas por tão pouco tempo! Contudo, estou-vos muito reconhecida. Foi uma grande alegria para mim ficar liberta de uma cadeia odiosa e nunca vos agradecerei o bastante! Parece-me que vos tornastes numa personagem singularmente poderosa, padrinho!

 

Apesar da pouca luz, o ligeiro sorriso que, por um momento, iluminou o rosto sem beleza do cardeal não escapou a Mariana.

 

Não tenho outro poder além do que me vem de Deus, Mariana. Estás pronta, agora, para ouvir o seguimento?

 

Sim... pelo menos, assim o creio!

 

Era estranho este diálogo numa catedral vazia. Estavam sós, lado a lado, em face de um mundo obscuro, onde por vezes o brilho de uma chama iluminava uma obra-prima. Porquê aqui e não no quarto da estalagem, onde, dentro de um fato de burguês, o cardeal teria penetrado tão facilmente como o Padre Bichette, apesar dos soldados? Mariana conhecia bem o padrinho para adivinhar que ele tinha deliberadamente escolhido o local, talvez para dar às palavras que iam trocar uma espécie de solenidade. Talvez também por isso, parecia agora recolher-se antes de prosseguir. Tinha fechado os olhos e inclinado a cabeça. Mariana pensou que ele rezava, mas os seus nervos, cansados da viagem e da ansiedade, estavam sob enorme tensão. Com uma secura que não pôde dominar, murmurou:

 

Estou à espera!

 

O cardeal ergueu-se e, pousando a mão sobre o ombro da jovem, censurou docemente.

 

Estás nervosa, pequena, e é muito natural, mas, vês, é sobre mim que recairá toda a responsabilidade do que vai seguir-se e é normal que me concedas mais um momento de paz. Escuta agora, mas tens de saber, antes de mais nada, que não deverás desprezar o homem que te vai dar o seu nome. Ides ser unidos, mas nunca formareis um casal, e é aí que reside o meu tormento, porque não é assim que um homem de Deus deve encarar um casamento. Mas, agindo assim, prestar-vos-eis um serviço mútuo, pois ele salvar-te-á e salvará o teu filho da desonra e tu dar-lhe-ás uma felicidade que ele já não esperava. Graças a ti, o grande nome que ele tinha condenado a desaparecer consigo não se extinguirá.

 

Esse homem... é incapaz de ter filhos? É muito velho?

 

Nem muito velho, nem incapaz, mas procriar é para ele coisa impensável, ou até assustadora. Teria podido, evidentemente, adoptar qualquer outra criança, mas repelia, com horror, a ideia de misturar um sangue vulgar à velha árvore da família. Tu ofereces-lhe, não só o melhor sangue de França, mas também o de um imperador, que é o homem que ele mais admira no mundo. Amanhã, Mariana, desposarás o príncipe Conrado Sant’Anna...

 

Esquecendo onde se encontrava, Mariana deu um ligeiro grito.

 

Ele? O homem que nunca ninguém viu?

 

O rosto do cardeal adquiriu a dureza da pedra e o seu olhar azul faiscou.

 

Como o conheces? Quem te falou dele?

 

Em poucas palavras, a jovem relatou a cena, de que fora testemunha na estalagem e, depois, acrescentou:

 

Diz-se que tem uma doença terrível e é essa a razão por que se esconde com tanto cuidado e diz-se mesmo que é louco.

 

Nunca ninguém conseguiu prender a língua dos homens e ainda menos a sua imaginação. Não, ele não é louco. Quanto à razão da sua enclausuração voluntária, não me pertence revelar-ta. É o seu segredo. Talvez ele ta revele um dia, se assim o desejar... mas surpreender-me-ia I Quero que saibas simplesmente que ele obedece a móbeis, não só respeitáveis, mas muito nobres.

 

No entanto... se devemos ser unidos, é preciso que eu o veja! disse Mariana com uma certa esperança inconsciente.

 

O cardeal abanou a cabeça e observou:

 

Deveria ter dito também que não se pode dominar a curiosidade das mulheres! Escuta bem, Mariana, pois não o repetirei. Entre ti e Conrado Sant’Anna existirá um novo pacto, semelhante, de qualquer modo, ao que nós dois concluímos. Ele dá-te o seu nome, reconhecerá o teu filho, que será um dia o herdeiro dos seus bens e títulos, mas é possível que nunca vejas o seu rosto, nem no momento do casamento.

 

Mas, enfim exclamou Mariana irritada por aquele mistério em que o cardeal parecia comprazer-se, vós conhecei-lo? Já o vistes? Que tem ele para se esconder assim? É um monstro?

 

Que ideia! Vi-o, efectivamente, muitas vezes. Sempre o conheci. O seu nascimento foi um drama, mas jurei, por minha honra e sobre o Evangelho, nunca revelar nada. Deus, porém, é testemunha como eu teria desejado que vos fosse possível formar, abertamente, um verdadeiro casal, pois raramente encontrei homem de tal valor. Mas, considerando os vossos casos, creio agir da melhor forma para servir os vossos interesses na realização deste casamento... a união, de certo modo, de duas desgraças. Quanto a ti, em troca daquilo que ele te dará, pois vais ser uma grande dama, terás de viver honradamente e respeitar a família a que vais pertencer, cujas raízes mergulham na Antiguidade, e à qual estava ligada a dama que dorme neste túmulo. Estás preparada para isso? Entendamo-nos já, se vens à procura apenas de uma cobertura cómoda, para poderes levar uma vida sem entraves, com qualquer homem, mais vale retirares-te e procurar noutro sítio. Não te esqueças que não te ofereço a felicidade, mas a dignidade e a honra de um homem, que nunca estará junto de ti para as defender, e, além de tudo isto, uma vida isenta de qualquer preocupação material. Numa palavra, espero que te conduzas de acordo com a tua linhagem e os costumes dos teus. No entanto, podes ainda recuar, se as condições te parecerem demasiado duras. Tens dez minutos para me dizer se queres continuar a cantora Maria-Stella ou tornares-te na princesa Sant’Anna...

 

Ele parecia querer afastar-se dela para a deixar entregue à meditação, mas Mariana, tomada de um súbito pânico, agarrou-lhe o braço para o reter.

 

Só mais uma palavra, padrinho, suplico-vos. Vós compreendeis o que significa para mim a decisão que tenho de tomar! Sei, desde sempre, que não é hábito uma rapariga nobre discutir a união preparada pelos seus pais, mas admiti que, desta vez, as circunstâncias são excepcionais.

 

Admito-o, contudo não pensava que ainda as quisesses discutir.

 

Não se trata disso. Não quero discuti-las. Tenho confiança em vós e amo-vos, como teria feito a meu pai. Só desejo mais umas explicações. Acabais de me dizer que terei de viver segundo as leis dos Sant’Anna e respeitar o nome que vou usar.

 

E então? disse secamente o cardeal. Nunca teria pensado possível ouvir da tua boca uma tal dúvida...

 

Exprimo-me mal gemeu Mariana. Por outras palavras, como será a minha vida a partir do momento em que tiver desposado o príncipe? Serei obrigada a viver na sua casa, sob o seu tecto...

 

Já te disse que não. Poderás viver onde quiseres: em tua casa, no palácio Asselnat, ou onde te apetecer. Poderás, também, residir numa das moradas dos Sant’Anna, quando desejares, quer na casa que verás amanhã, ou nos palácios que eles possuem em Veneza, ou em Florença. Serás inteiramente livre e o intendente dos Sant’Anna procurará que a tua vida seja não só isenta de qualquer preocupação material, mas faustosa, como convém a uma mulher da tua linhagem. Desejo apenas que tomes plena consciência dessa linhagem. Nada de escândalos, de aventuras passageiras, de...

 

Ó padrinho! exclamou Mariana ferida. Nunca vos dei o direito de supor que eu podia descer tão baixo para...

 

Perdoa-me, não era o que eu queria dizer e também me exprimo mal. Pensava ainda nesse estado de cantora que tu tinhas escolhido e em cujos perigos talvez nunca tenhas meditado. Sei perfeitamente do que gostas e de quem gostas! Se deploro a escolha do teu coração, não ignoro que ele tem demasiadas preocupações para te chamar, quando o desejar. Não poderás lutar contra ele e contra ti mesmo. Mas, minha filha, aquilo que te peço é que te lembres sempre do nome que usarás e te conduzas de acordo com ele. Nunca ajas de tal forma que o teu filho... o vosso filho, aliás, te possa censurar um dia. Creio, contudo, que posso confiar em ti. Continuas a ser filha do meu coração... simplesmente, não tivestes sorte. Agora, deixo-te reflectir.

 

Dito isto, o cardeal afastou-se alguns passos e foi ajoelhar-se em frente da estátua de S. João, deixando Mariana junto do túmulo. Instintivamente, ela virou-se para ele, como se a resposta que o cardeal pedia devesse sair daquela boca de pedra. Viver na dignidade... morrer na dignidade, fora a isso que se resumira, sem dúvida, a vida da jovem que ali dormia! Como a dignidade a atraía... Aliás Mariana confessava sinceramente que não tinha gosto pelas aventuras, tal como as conhecera, e não podia deixar de pensar que, se as coisas tivessem sido diferentes e, sobretudo, se Francis fosse diferente, ela viveria a essa hora calma e dignamente no meio dos majestosos esplendores de Selton Hall.

 

Aproximou-se, docemente, do túmulo e colocou uma mão sobre uma prega do mármore, cujo frio a surpreendeu. Seria uma ilusão, ou o delgado rosto de olhos fechados de Hilária, tão digno sobre o alto colarinho que o rodeava, reflectira um fugitivo sorriso? Como se a jovem procurasse, para além da morte, encorajar a sua irmã viva?

 

”Estou louca! pensou Mariana com irritação. Agora tenho visões! Tenho de acabar com isto!...”

 

Virando, resolutamente, as costas à estátua, foi ter com o padrinho que rezava com a cabeça entre as mãos e, sem se ajoelhar, declarou numa voz clara:

 

Estou pronta. Amanhã casarei com o príncipe.

 

Sem a olhar, sem mesmo se virar, o cardeal murmurou, com os olhos postos no S. João de pedra.

 

Está bem. Vai para casa, agora. Amanhã ao meio-dia, deixarás a estalagem, tomarás a carruagem e dirás ao cocheiro para seguir a estrada das Termas de Lucques, que ficam a quatro ou cinco léguas. Ninguém se admirará, visto que podes ir tomar as águas, mas não irás até lá. A uma légua daqui, sobre a estrada, verás uma pequena capela. Esperar-te-ei aí. Agora vai.

 

Ainda aqui ficais? Está tão escuro... e tanto frio!

 

Eu habito aqui. O sacristão é um filiado... um amigo! Vai em paz, minha filha, e que Deus te guarde!

 

Ele parecia cansado, de repente, e ao mesmo tempo com pressa de a ver afastar-se. Com um último olhar à estátua de Hilária, Mariana seguiu o caminho por onde viera, com o espírito ocupado por uma nova ideia. Decididamente, o padrinho não Parava de a surpreender! Que palavra pronunciara a propósito do sacristão? Filiado? Mas filiado em quê? Seria possível que um príncipe da Igreja, um cardeal romano, pertencesse a qualquer seita? E nesse caso, a qual?... Havia outro enigma que era melhor deixar de lado, talvez... Mariana sentia-se cansada de todos esses segredos que invadiam, lentamente, a sua vida!

 

Depois dos odores de cera queimada e pedra húmida da catedral, o ar da noite pareceu-lhe delicioso. Estava tão doce e o céu como era belo! Com grande surpresa, Mariana descobriu que se sentia em paz consigo própria, agora que a decisão fora tomada. Estava quase feliz por ter aceitado aquele estranho casamento. Na verdade, teria sido loucura recusar uma união que lhe assegurava uma vida conforme aos seus gostos e ao seu nascimento, deixando-lhe pleno controlo de si própria... com a única condição de usar dignamente o nome dos Sant’Anna!

 

Nem a imagem de Jason, que evocou por um instante, perturbou aquela serenidade completamente nova. Fizera mal em procurar a salvação desse lado. O destino escolhera e talvez tivesse sido melhor assim. O único ser que realmente lhe fazia falta era esse querido Arcadius. Era tudo tão mais fácil quando ele estava presente!...

 

Mas, ao atravessar a praça obscura, o silêncio causou-lhe admiração. Não se ouvia qualquer ruído. A canção de amor desaparecera no ar... nada mais existia do que a noite, as trevas angustiantes, no termo das quais brilharia um dia, de que não podia prever a cor, e, sem bem saber porquê, Mariana estremeceu.

 

                                       A VOZ NO ESPELHO

 

Quando a carruagem passou pelo imenso portão armoriado, metido entre altas muralhas e formando uma fantástica renda preta e dourada, Mariana teve a impressão de entrar num mundo novo, cujos guardas seriam os gigantes de pedra erigidos sobre os pilares da entrada e que, armados um de um arco e o outro de uma lança, pareciam desafiar o visitante que ousasse passar o limiar proibido. O portão, como por magia, abrira-se perante os cavalos, sem que se visse qualquer guarda, ou um dos cães que tanto tinham assustado o oficial dos gendarmes. Não se via ninguém. À entrada, uma longa alameda, coberta de areia, bordejada de arbustos e altos ciprestes pretos, alternando com limoeiros em vasos de pedra, abria, sobre um campo verde e solitário, uma calma perspectiva que parecia envolver de bruma grandes jactos de água, saindo de uma cascata.

 

À medida que a carruagem avançava sobre a areia da alameda, avistavam-se recantos de um parque romântico povoado de estátuas, de árvores gigantes, ligeiras colunas e fontes de água cristalina. Um mundo, ao mesmo tempo vegetal e mineral, onde a água parecia soberana e se notava a ausência de flores. Tomada de uma irreprimível apreensão, Mariana olhava, retendo a respiração, como se o tempo tivesse parado. Na sua frente, o gentil rosto de Ágata conservava uma expressão vagamente receosa. Só, no seu canto, o cardeal, absorvido em vagos pensamentos, parecia desinteressar-se do cenário e escapar à estranha melancolia que se desprendia de tudo à sua volta. O próprio Sol, brilhante no momento em que tinham abandonado Lucques, tinha desaparecido sob um mar de nuvens brancas por onde se filtravam raios de luz. A atmosfera tornara-se subitamente deprimente. Nenhum pássaro cantava, nenhum outro ruído se fazia ouvir além da canção melancólica da água. Na carruagem, todos permaneciam silenciosos e, no seu lugar, Gracchus também não cantava ou assobiava, como era seu hábito.

 

A berlinda virou, atravessou um bosquezinho de tuias gigantes e desembocou num cenário de pleno sonho. Na extremidade de um longo tapete verde, onde se viam estátuas de cavalos e onde pavões brancos, hieráticos e sumptuosos, arrastavam as penas da cor da neve, um palácio, tendo como fundo as longínquas colinas azuladas da Toscânia, reflectia num espelho de água a sua calma silhueta. Muros brancos coroados de balaústres, janelas altas brilhando em redor de um grande pátio, cujas colunas estavam ornamentadas de estátuas, o pavilhão central terminando por uma cúpula encimada por um cavaleiro montando um licorne, a morada do príncipe desconhecido, renascença tingida de um barroco faustoso, parecia um sonho lendário.

 

As grandes árvores que rodeavam o grande tapete verde e a cascata eram salpicadas pela água e reflectiam várias tonalidades de verde e uma luz branca difusa.

 

Pelo canto do olho, o cardeal espiava as impressões de Mariana. Com uma expressão de surpresa no olhar e os lábios entreabertos, ela parecia absorver, através de todas as fibras do seu ser, a beleza daquele domínio encantado. O cardeal sorriu:

 

Se gostares da Villa del Cavalli, poderás aqui ficar sempre que te apetecer!...

 

Mariana admirou-se, e perguntou:

 

A Villa del Cavalli? Porquê?

 

-Foram as pessoas da região que assim a baptizaram: A Casa dos Cavalos. São eles os senhores aqui, os verdadeiros reis. Há mais de dois séculos, os Sant’Anna possuem uma coudelaria que seria, sem dúvida, tão célebre como as famosas cavalariças do duque de Mântua, se os seus produtos fossem conhecidos fora daqui. Mas, com excepção de alguns presentes sumptuosos, os príncipes de Sant’Anna nunca se separaram dos seus animais. Olha.

 

Aproximavam-se da casa. Do lado direito, Mariana avistou outra cascata, onde a água saía de uma concha marinha. Um pouco mais longe, entre dois nobres pilares, marcando talvez o caminho para as cavalariças, um palafreneiro segurava três soberbos cavalos brancos como a neve e que, com as crinas ao vento e as longas caudas arranjadas, pareciam os modelos das estátuas que ornamentavam o parque. Desde a sua mais tenra infância, Mariana adorava os cavalos. Amava-os pela sua beleza. Compreendia-os melhor do que qualquer ser humano e nem os mais selvagens lhe tinham metido alguma vez medo, pelo contrário. Herdara esta paixão da tia Ellis que, antes do acidente que a deixara coxa, tinha sido uma notável cavaleira. Os três esplêndidos animais pareceram-lhe o mais seguro e amigável dos acolhimentos.

 

São soberbos! suspirou ela. Mas como se contentam com um dono invisível?

 

Não o é para eles! disse secamente o cardeal. De facto, para Conrado Sant’Anna, eles são a única alegria real. Mas estamos a chegar.

 

Tendo descrito uma curva graciosa que muito honrava a ciência de Gracchus, a carruagem deteve-se junto de uma grande escadaria de mármore, onde estavam alinhados os criados do palácio. Mariana viu um imponente batalhão de criados de fatos brancos e dourados, cujas cabeleiras empoadas acentuavam o tom de pele meridional e os traços imóveis. Sob a porta de entrada que conduzia ao vestíbulo, três personagens esperavam: uma mulher de cabelos brancos, cujo severo vestido possuía uma gola branca, tendo um molho de chaves pendente do cinto; um padre sem idade definida, careca e magrizela, e um homem, alto e robusto, como uma máscara romana, de espessos cabelos pretos, prateados nas têmporas e vestindo, sem elegância, um fato irrepreensível. Tudo, neste último, indicava a origem plebeia, uma espécie de seiva rude que só a terra podia dar.

 

Quem são? segredou Mariana impressionada, enquanto dois criados vinham abrir a porta e baixar o estribo.

 

-Dona Lavínia é a governanta da família Sant’Anna, há várias décadas. Pertence à nobreza arruinada. Foi ela quem educou Conrado. O Padre Amundi é o capelão. Quanto a Matteo Damiani é, ao mesmo tempo, o intendente e o secretário do príncipe. Desce agora e lembra-te apenas do teu nascimento. Maria-Stella acaba de morrer... para sempre.

 

Como num sonho, Mariana pôs o pé no chão. Como num sonho, com os olhos fixos sobre os que, no alto das escadas, se inclinavam profundamente, ela subiu os degraus de mármore entre a dupla fila petrificada dos criados, apoiada na mão, subitamente imperiosa, do padrinho. Atrás dela, a respiração curta de Ágata, impressionada, fazia-se ouvir. O Sol, reaparecido, não estava muito quente; contudo Mariana teve de repente a sensação de sufocar. Teve vontade de desatar as fitas do chapéu que a apertavam. Mal ouviu a apresentação que lhe fez o padrinho, depois as boas-vindas da governanta, que mergulhara numa profunda reverência, como se a recém-chegada fosse uma rainha. O seu próprio corpo pareceu-lhe, subitamente, estranhamente mecânico. Agia por reflexos automáticos, independentes da sua vontade. Ouviu-se responder graciosamente às palavras de acolhimento do capelão e de Dona Lavínia. Mas era o secretário que a fascinava. Ele também agia como um autómato. Os seus olhos pálidos fixaram o rosto de Mariana com dureza. Pareciam perscrutar cada traço do seu rosto, como se estes pudessem dar-lhe uma resposta a qualquer pergunta só por ele conhecida. Mariana teria jurado que, nesse olhar tão implacável, também havia receio. Não se enganou. O silêncio de Matteo estava pesado de desconfiança e continha um aviso. Não via, certamente, com bons olhos a intromissão dessa estranha. Mariana teve, imediatamente, a impressão de ter nele um inimigo.

 

A atitude de Dona Lavínia era, porém, completamente diferente. O seu rosto sereno, apesar de irrefutáveis sinais de sofrimentos passados, transparecia doçura e bondade, o seu olhar acastanhado estava cheio de admiração. Após a reverência, beijara a mão de Mariana, murmurando:

 

Bendito seja Deus que nos dá uma princesa tão bela.

 

Quanto ao padre Amundi, embora o seu aspecto fosse de um nobre, não parecia possuir todas as suas faculdades e Mariana notou logo que ele falava sozinho e entre dentes, o que produzia um murmúrio rápido, perfeitamente incompreensível e bastante irritante. Contudo, oferecera à jovem um sorriso tão radioso, tão ingénuo, estava tão contente de a ver, que Mariana perguntou a si própria se, por acaso, não seria um velho amigo saído da sua memória.

 

Vou conduzir-vos ao vosso apartamento, Excelência! disse calorosamente a governanta. Matteo acompanhará Sua Senhoria.

 

Mariana sorriu e procurou o olhar do padrinho.

 

Vai, minha filha aconselhou ele e repousa. Esta tarde, antes da cerimónia, mandar-te-ei buscar para que o príncipe te possa ver.

 

Sem responder, retendo a pergunta instintiva que lhe vinha aos lábios, Mariana seguiu Dona Lavínia. Sentia-se devorada por uma curiosidade como nunca conhecera, um desejo devorador de ”ver” também esse príncipe desconhecido, o senhor desse domínio com limites reais, guardado por animais legendários. O príncipe ia vê-la. Porque não veria ela também o príncipe? A doença de que o suspeitava atingido era assim tão grave, tão terrível que ela não podia aproximar-se? O seu olhar pousou-se, de repente, sobre as costas direitas da governanta que caminhava à sua frente, num ruído agradável de seda e chaves. Que tinha dito Gauthier de Chazay? Ela criara Conrado Sant’Anna? Ninguém, certamente, o conhecia melhor do que ela... e ela parecera tão contente com a chegada de Mariana!

 

”Obrigá-la-ei a falar pensou a jovem. É preciso que ela fale!”

 

A magnificência interior da ”villa” estava de acordo com a beleza dos jardins. Depois de abandonar o vestíbulo decorado de estuques barrocos e lanternas de ferro forjado dourado, Dona Lavínia tinha levado a sua senhora através de uma imensa sala de baile, brilhante pelos seus dourados, depois uma série de salões, um dos quais era particularmente faustoso, onde molduras vermelhas e douradas finamente esculpidas realçavam o sombrio esplendor das placas de laca preta. Era, porém, uma excepção, pois o tom geral da casa era o branco e o dourado. Os pavimentos eram feitos de mosaicos de mármore branco e preto, sobre os quais os passos ressoavam.

 

O apartamento destinado a Mariana, situado na ala esquerda, estava decorado segundo o mesmo espírito, mas surpreendeu a jovem. Aí também reinava o branco e o dourado apesar da presença, no quarto, de dois contadores de laca cor de púrpura, que produziam uma nota mais quente. Mas, inclinados ao canto dos tectos, como a um balcão, personagens pintadas e com trajes de dois séculos atrás, pareciam seguir cada um dos movimentos dos habitantes do apartamento. Por outro lado, uma verdadeira profusão de espelhos decorava as paredes. Havia-os por toda a parte, reflectindo, até ao infinito, as duas silhuetas sombrias de Mariana e de Dona Lavínia, a riqueza esmagadora do grande leito veneziano, coberto de brocado, elevado do chão três degraus, como trono, e ladeado por dois tocheiros igualmente venezianos, representando negros vestidos à persa, segurando feixes de altas velas vermelhas.

 

Mariana olhou aquela decoração ao mesmo tempo faustosa e impressionante, com um misto de admiração e inquietação.

 

-É... o meu quarto? perguntou, enquanto os criados traziam as bagagens.

 

Dona Lavínia foi abrir uma janela e ajeitou um gigantesco ramo de flores sobre uma jarra de alabastro.

 

O de todas as princesas Sant’Anna, há dois séculos. Agrada-vos?

 

Para evitar a resposta, Mariana optou por fazer outra pergunta.

 

Todos estes espelhos... Porquê?

 

Teve a impressão que aquela pergunta embaraçava a governanta. O seu rosto fatigado teve uma ligeira crispação e afastou-se para ir abrir uma porta que dava para uma pequena divisão, toda forrada de mármore branco: uma sala para os banhos.

 

A avó do nosso príncipe disse por fim, era uma mulher de tão grande beleza... que gostava de se contemplar sem cessar. Foi ela quem mandou colocar estes espelhos. Deixaram-nos desde...

 

Parecia lamentá-lo, mas a sua entoação intrigara Mariana. A curiosidade por aquela estranha família aumentava cada vez mais.

 

Deve haver, em qualquer parte, nesta casa, um retrato seu disse ela sorrindo. Gostaria de a ver.

 

Havia um... mas foi destruído pelo fogo. A Senhora quer repousar, tomar um banho, restaurar-se?

 

As três coisas, por favor, mas primeiro o banho. Onde colocais a minha criada de quarto? Desejaria tê-la perto de mim acrescentou com grande alívio de Ágata que, desde a sua entrada na ”villa” só se deslocava na ponta dos pés, como num museu ou numa igreja.

 

Nesse caso, há um quartinho no fundo do corredor respondeu Dona Lavínia, empurrando com o dedo uma moldura esculpida e tão perfeitamente ajustada que não se adivinhava a forma da porta. Armaremos aí uma cama. Vou mandar preparar o banho.

 

Ela ia a sair, mas Mariana reteve-a.

 

Dona Lavínia!

 

Excelência!

 

Fixando o seu olhar verde bem de frente no da governanta, perguntou docemente:

 

Em que parte do palácio se encontra o apartamento do príncipe?

 

Era evidente que Dona Lavínia não esperava aquela pergunta, contudo muito natural. Mariana teria jurado que ela empalidecera.

 

Quando está aqui disse ela com esforço Sua Senhoria habita a ala direita... o apartamento simétrico a este.

 

Está bem... Obrigada.

 

Com uma reverência, Dona Lavínia desapareceu, deixando Mariana e Ágata sozinhas. As duas mulheres olharam-se. O gentil rosto da rapariga traía o receio, e de toda a segurança da parisiense sabida, não ficara nada. Juntou as mãos num gesto infantil de oração.

 

Vamos ficar muito tempo nesta casa, Menina?

 

Não, muito tempo não, assim o espero, Ágata! Não vos agrada?

 

É muito bonita disse a rapariga, lançando à sua volta um olhar desconfiado... mas não me agrada. Não sei bem porquê. Queira perdoar-me... mas creio que nunca chegarei a sentir-me aqui à vontade. É tudo tão diferente!...

 

Vai desfazer as minhas bagagens disse Mariana com um sorriso indulgente e não receies dirigir-te a Dona Lavínia, a governanta, para tudo aquilo que possas precisar. Ela é simpática e julgo-a boa! Vamos, Ágata, coragem! Não tens nada a recear aqui. É apenas a fadiga da viagem...

 

À medida que falava, Mariana apercebia-se de que, ao procurar sossegar Ágata, era de facto a si própria que falava. Também se sentia estranhamente oprimida desde que passara o imenso portão dessa estranha e soberba moradia, tanto mais quanto não via qualquer sinal tangível de perigo. Era qualquer coisa de mais subtil, como uma presença imaterial. Sem dúvida, a desse homem bem guardado, cuja morada principal era este palácio, o local onde preferia permanecer. Mas havia ainda outra coisa e Mariana iria jurar que vinha do próprio quarto... um pouco como se a sombra da mulher que, outrora, mandara colocar todos esses espelhos ainda por ali errasse impalpável, mas soberana, nessas imagens ordenadas como à volta de um santuário, cujo enorme leito dourado seria o altar e as personagens dos tectos a multidão dos fiéis atentos.

 

Lentamente, Mariana aproximou-se de uma das janelas. Talvez, devido à parte inglesa do seu sangue, Mariana acreditava em fantasmas. A rede sensível e delicada dos seus nervos tornavam-na acessível a uma quantidade enorme de impressões que talvez não afectassem um organismo menos complexo do que o seu. Nesse quarto, ”sentia” qualquer coisa... O pavilhão central impedia a vista da outra ala da casa, mas podia ver a extremidade do prado verde até aos pavões brancos e uma grande cascata de água reluzente, rodeada por dois grupos de cavalos furiosos. Naquela violência de torrente, contrastando com a paz verde dos jardins, Mariana viu um símbolo.- o de qualquer força escondida, mas poderosa, presa no fundo de uma calma enganadora. O ruído da água, a revolta contida dos animais que o escultor transmitira na pedra era a própria vida, a paixão de existir e agir que Mariana sempre sentira em si. Talvez por isso, aquela moradia tão bonita e silenciosa fazia-lhe o efeito de um túmulo. Só o jardim vivia.

 

O cair da noite encontrou Mariana de pé no mesmo lugar. O verde do parque desfizera-se em tonalidades imprecisas, a cascata e as estátuas não eram senão manchas pálidas e os grandes pássaros majestosos tinham desaparecido. A jovem tomara banho, comera uma ligeira refeição, mas fora incapaz de encontrar um instante de repouso. A causa fora, sem dúvida, esse leito bizarro, onde Mariana tinha a impressão de ser a vítima oferecida à faca de um sacrificador.

 

Agora, vestida com um traje de pesado brocado, de um branco creme, todo bordado a ouro, que Dona Lavínia tinha trazido sobre os dois braços, com muita solenidade, a cabeça coroada, pela primeira vez, de um lindo diadema de ouro e enormes pérolas, iguais às de um colar de uma riqueza bárbara, que enfeitava o seu peito bastante descoberto, Mariana tentava, através da contemplação do jardim, lutar contra o nervosismo e a ansiedade, que aumentavam à medida que a hora se aproximava.

 

Revia-se, havia bem pouco tempo, de pé noutro sítio, contemplando outro parque, enquanto esperava outro casamento. Fora em Selton, na noite do seu casamento com Francis... Havia já, meu Deus! Como era possível?... apenas um ano, embora lhe parecessem séculos! Por trás dos vidros do quarto nupcial, vestida de batistas frágeis, sob as quais o seu corpo de rapariga tremia num misto de expectativa e de angústia, vira a noite invadir o velho parque familiar. Como estava feliz nessa noite! Fora tudo tão belo, tão simples... amava Francis, com todo o seu ser, esperava ser amada por ele e esperava, com um fervor apaixonado, o instante perturbador em que nos seus braços conheceria o amor...

 

O amor, fora outro que lho tinha dado a conhecer e não havia uma única fibra do seu corpo que não vibrasse ainda de excitação e reconhecimento com a recordação das noites ardentes do Butard e de Trianon, mas fora também desse amor que nascera a mulher, de que os absurdos espelhos lhe tinham enviado a imagem: a estátua quase bizantina pelo seu esplendor, por uma espécie de majestade, de olhos demasiado grandes num rosto fechado... A Sereníssima Princesa Sant’Anna! Sereníssima... Muito serena... imensamente serena, enquanto sentia o coração despedaçado de angústia e desgosto!

 

Nessa noite, já não se tratava de amor, mas de um negócio, positivo, realista, impiedoso. A união de duas desgraças, dissera Gauthier de Chazay. Nessa noite, nenhum homem viria bater à porta desse quarto, nenhum desejo viria reclamar os seus direitos sobre o seu corpo, onde crescia uma vida ainda obscura e, no entanto, poderosa... nenhum Jasão apareceria para pedir o pagamento de uma dívida louca mas perturbadora...

 

Para lutar contra a vertigem que a invadia, Mariana apoiou-se ao fecho de bronze da janela e, com todas as forças, repeliu a imagem do marinheiro, descobrindo subitamente que, se ele tivesse aparecido, ela teria sentido talvez uma verdadeira alegria, uma secreta doçura. A sua ausência produzia um vazio bizarro! Sentia vontade de gritar, de repente, e mordeu a mão coberta de anéis para reter um último apelo de socorro. Nunca se sentira tão miserável como sob aquelas jóias que teriam causado inveja a uma imperatriz.

 

A porta do quarto, abrindo-se completamente, veio sacudir o estado mórbido em que ela se refugiara, ao mesmo tempo que os candeeiros trazidos por seis lacaios faziam desaparecer as trevas do quarto onde Mariana proibira a menor luz. No meio de todas essas chamas cintilantes, o cardeal, em trajo de cerimónia de prelado romano, entre sedas cor de púrpura, surgiu como em glória e, perante o brilho dessa entrada, Mariana piscou os olhos, como um pássaro nocturno bruscamente colocado sob intensa luz. O olhar pensativo do cardeal envolveu a jovem por um instante, mas não fez qualquer comentário.

 

Vem! disse apenas Está na hora!

 

Seria essa a fórmula, assim como o vermelho sanguíneo das suas vestes?

 

Mariana teve, subitamente, a impressão de ser uma condenada que o carrasco vinha buscar para conduzir à forca... Contudo, dirigiu-se para ele, colocou a sua mão carregada de jóias sobre a enluvada de vermelho que ele lhe oferecia. As duas figuras, a da capa magna e a do vestido de rainha, deslizaram sobre o lago de mármore dos salões.

 

Ao atravessá-los, Mariana constatou com espanto que todas as salas estavam iluminadas, como para uma festa, e, no entanto, nada evocava menos a alegria do que a sua nobreza vazia de qualquer presença humana. Foi, repentinamente, transportada às leituras apaixonantes da sua infância, a esses encantadores contos franceses que tanto amara. Nessa noite, era ao mesmo tempo a Cinderela, a Pele de Burro e a Bela Adormecida recordadas no meio dos esplendores de um passado abolido, mas a sua história não possuía um Príncipe Encantador. O seu príncipe era um fantasma.

 

O lento e solene passeio atravessou, assim, todo o palácio. O cardeal parecia apresentar com orgulho a recém-chegada às sombras de todos aqueles que tinham ali vivido, amado e talvez sofrido. Chegaram finalmente a um pequeno salão, forrado de damasco vermelho onde, com excepção de alguns cadeirões e tambores, o mobiliário principal consistia num alto espelho Regência, colocado sobre uma cómoda dourada e rodeada de girândolas de bronze segurando velas acesas.

 

O cardeal ajudou Mariana a sentar-se num dos cadeirões, sem dizer uma só palavra, e conservou-se de pé junto dela, na atitude de quem espera. Ele olhava para o espelho, em frente do qual a jovem estava sentada, mas conservava a sua mão na dela, como para a reconfortar. Mariana sentia-se mais oprimida do que nunca e abria a boca para fazer uma pergunta quando ele falou.

 

Eis aqui, meu amigo, aquela que vos anunciei: Mariana Isabel de Asselnat de Villeneuve, minha afilhada! disse ele orgulhosamente.

 

Mariana estremeceu. Fora ao espelho que ele se dirigira e eis que este respondia...

 

Perdoai o meu silêncio, meu querido cardeal. Devia ser eu o primeiro a falar para vos dar as boas-vindas... mas, na verdade, senti-me incapaz, tal era a minha admiração! O vosso padrinho, minha Senhora, tentou descrever-me a vossa beleza, mas, pela primeira vez na sua vida, as suas palavras revelaram-se pobres e infelizes... cuja única desculpa é a grosseira impotência das palavras em traduzir a divindade por quem não possui o dom sublime da poesia. Posso dizer-vos que estou profundamente... humildemente reconhecido por estardes aqui... e serdes aquilo que sois.

 

A voz era baixa, filtrada, natural ou voluntariamente surda. A sua ausência de cor produzia uma lassidão e tristeza profundas. Mariana endireitou-se para dominar a emoção que a invadia. Por sua vez, fixou o espelho, já que a voz parecia vir daí.

 

Podeis então ver-me? perguntou ela docemente.

 

Tão nitidamente, como se nenhum obstáculo existisse entre nós. Digamos... que eu sou este espelho, onde estais reflectida. Já vistes alguma vez um espelho feliz?

 

Gostaria de ter a certeza... a vossa voz é tão triste!

 

É porque não serve muitas vezes! Uma voz, que nada tem a dizer, esquece pouco a pouco que poderia cantar. O silêncio abafa-a e acaba por esmagá-la. Mas a vossa é pura música.

 

Era estranho este diálogo com o invisível, mas Mariana, pouco a pouco, ia serenando. Decidiu, de repente, que era tempo de tomar conta do seu próprio destino. Aquela voz era a de um ser que tinha sofrido ou que sofria. Quis jogar e jogá-lo sozinha. Virou-se para o cardeal.

 

Quereis, Padrinho, conceder-me a graça de me deixardes só um instante? Desejaria falar com o príncipe e, assim, ser-me-á mais fácil.

 

É muito natural. Vou esperar na biblioteca.

 

Mal a porta se fechou, Mariana ergueu-se, mas em vez de se aproximar do espelho, afastou-se e dirigiu-se para uma das janelas, diante da qual um grande vaso da China fazia por conter uma floresta virgem em miniatura. Sentia horror em enfrentar-se a si própria, com o contraponto dessa voz sem rosto... que aliás murmurava agora com uma espécie de desconfiança.

 

-Porque mandastes embora o cardeal?

 

Porque é preciso falarmos um com o outro. Há certas coisas que devem ser ditas.

 

-Quais? Pensava que o meu Eminentíssimo amigo tinha esclarecido, definitivamente, convosco os termos do nosso acordo!

 

Fê-lo. Tudo está bem claro, bem regulado... pelo menos, segundo me parece.

 

Ele disse-vos que eu não perturbaria em nada a vossa vida? A única coisa que não vos disse talvez... e que, no entanto, eu vos peço...

 

Hesitou. Mariana notou uma comoção na sua voz, mas ele acrescentou muito depressa:

 

... quando a criança nascer... trazei-a aqui de vez em quando. Gostaria que ela aprendesse a amar esta terra... esta casa, todas estas pessoas para quem ela será uma realidade tangível... e não uma sombra furtiva como eu.

 

De novo a comoção, ligeira, quase imperceptível, mas Mariana sentiu uma onda de piedade crescer no fundo do seu coração, ao mesmo tempo que possuía a certeza que tudo aquilo era absurdo, insólito e, mais que tudo, esse segredo estranho em que ele se refugiava. A sua voz tomou o tom de ’um pedido e murmurou:

 

Príncipe!... Suplico-vos, perdoai-me se as minhas palavras vos ferem, por pouco que seja, mas não compreendo e gostaria tanto de compreender! Porquê tanto mistério? Porque recusais mostrar-vos? Não tenho um pouco o direito de conhecer o rosto do meu esposo?

 

Houve um silêncio, tão longo, tão pesado, que ela julgou por um instante ter posto em fuga o seu interlocutor. Teve medo de ter ido longe demais demasiadamente cedo, levada pela sua impulsividade. Mas a resposta veio, pesada e definitiva como uma sentença.

 

Não. É impossível... Durante um curto momento, na capela, estaremos um perto do outro e a minha mão tocará a vossa... mas nunca mais estaremos tão próximos.

 

Mas porquê? Porquêobstinou-se ela. Sou de tão boa raça como vós e nada receio... nenhum mal, por mais horroroso que seja, se é isso que vos preocupa.

 

Ele teve um risinho breve, baixo e sem alegria.

 

Estais há bem pouco tempo na região, mas já ouvistes falar as pessoas. Não é verdade? Eu sei... fazem, a meu respeito, toda a espécie de hipóteses, das quais a mais benevolente é que uma doença terrível me devora... a lepra ou qualquer coisa semelhante. Não tenho lepra, minha Senhora, nem nada parecido. Contudo, é impossível que possamos ver-nos face a face.

 

-Mas porquê, em nome de Deus?

 

Desta vez foi a voz dela que deu sinais de emoção.

 

Porque não quero correr o risco de vos fazer horror!

 

A voz calou-se. O espelho ficou silencioso tantos minutos que Mariana compreendeu que estava sozinha. As mãos que tinha crispado sobre as espessas folhas de uma planta desconhecida distenderam-se ao mesmo tempo que dava um profundo suspiro. A presença, vagamente angustiante, tinha-se afastado. Mariana sentia um verdadeiro alívio, pois agora julgava saber: o homem devia ser um monstro, qualquer miserável dejecto humano, condenado à noite por uma fealdade repugnante, insuportável para outros olhos, além dos que sempre o tinham conhecido. Isso explicava a dureza de pedra sobre o rosto de Matteo Damiani, a dor no de Dona Lavínia e talvez também a infantilidade sobre o velho rosto do Padre Amundi... Explicava também que ele tivesse interrompido a conversa, quando tantas coisas podiam ainda ter sido ditas. ”Fui desajeitada censurou-se Mariana, apressei-me em demasia! Em vez de fazer, brutalmente, a pergunta que me intrigava, deveria ter abordado o assunto com prudência, tentar, pelo menos, alusões discretas, rodear pouco a pouco o mistério. Assim procedendo, aborreci-o certamente...” Surpreendia-a que o príncipe não lhe tivesse feito qualquer pergunta sobre si própria, a sua vida, os seus gostos... Contentara-se em louvar a sua beleza, como se, aos seus olhos, fosse a única coisa importante. Com um pouco de amargura, Mariana pensou que ele não se teria mostrado menos curioso se, em vez de um ser humano, ela tivesse sido uma bela égua destinada à sua preciosa coudelaria. Mais! Não tinha a certeza de que Conrado Sant’Anna não tivesse inquirido sobre os antecedentes, a saúde e os hábitos do animal! Mas, no fundo, para um homem, cuja única finalidade na vida era ter um herdeiro para continuar o velho nome, o aspecto físico da mãe importava mais do que tudo o resto! Que importância podia ter para o Príncipe Sant’Anna o coração, os sentimentos e os hábitos de Mariana de Asselnat?

 

A porta do salão vermelho abriu-se perante o cardeal que voltava. Mas, desta vez, não estava só. Era acompanhado por três homens. Um era um homenzinho vestido de preto, cujo rosto parecia compor-se unicamente de um par de óculos e de um nariz. O corte do casaco e a grande pasta que trazia debaixo do braço anunciavam um notário. Os outros dois pareciam saídos directamente de uma galeria de retratos de antepassados. Eram dois velhos senhores com fatos de veludo bordados como no tempo do rei Luís XV e cabeleiras de canudos. Um apoiava-se numa bengala e o outro ao braço do cardeal. Os seus rostos indicavam que eram ambos muito idosos. Contudo, conservavam a altivez que nem a morte consegue retirar aos verdadeiros aristocratas.

 

Com uma cortesia requintada saudaram Mariana, que lhes correspondeu com uma profunda reverência, ficando a saber que um era o marquês de Carreto e o outro o conde Gherardesca. Parentes do príncipe de Sant’Anna, estavam ali na qualidade de testemunhas do casamento que o segundo, o que andava com a bengala, devia, como chanceler da Grã-Duquesa, mandar registar na chancelaria.

 

O notário instalou-se a uma mesinha e abriu a pasta, enquanto todos os outros se sentavam. No fundo da sala estavam sentados Dona Lavínia e Matteo Damiani, que tinham entrado após as testemunhas.

 

Distraída, nervosa, Mariana mal escutou a longa e fastidiosa leitura do contrato. As fórmulas empoladas do estilo notarial irritavam-na. Só tinha um desejo, era que tudo aquilo acabasse depressa...

 

Por isso, nem se interessou pela enumeração dos bens que o príncipe de Sant’Anna reconhecia à esposa, nem pela real soma da pensão que lhe seria entregue. A sua atenção estava dividida entre o espelho mudo, colocado na sua frente, atrás do qual talvez estivesse o príncipe e uma desagradável sensação: a que produz um olhar insistente.

 

Sentia esse olhar sobre os ombros nus e sobre a nuca descoberta pelo alto penteado que segurava o diadema. Deslizava sobre a sua pele, insistindo na curva do pescoço com uma força quase magnética, como se alguém, por uma vontade muito forte, procurasse atrair a sua atenção. Isto tornou-se insuportável para os nervos tensos da jovem. Virou-se bruscamente, mas só encontrou o olhar gelado de Matteo. Parecia tão indiferente que ela julgou enganar-se. Todavia, mal retomou a primeira posição, sentiu de novo a mesma sensação ainda mais nítida...

 

Cada vez menos à vontade, acolheu com alegria o fim da cerimónia, assinou sem olhar sequer a acta que o notário lhe apresentou com uma profunda reverência e procurou o olhar do padrinho, que lhe sorriu.

 

Podemos agora dirigir-nos à capela. O Padre Amundi espera-nos! disse ele.

 

Mariana pensava que a capela se encontrava em qualquer parte da casa, mas compreendeu o seu engano ao ver Dona Lavínia aproximar-se com uma longa capa de veludo preto, que lhe colocou sobre os seus ombros, tomando o cuidado de levantar o capuz.

 

A capela é no parque explicou ela. A noite está boa, mas faz fresco sob as árvores.

 

Tal como ao sair do quarto, o cardeal veio dar a mão à afilhada e conduziu-a solenemente até à escadaria de mármore, onde esperavam os criados armados de tochas. Atrás deles, organizou-se o pequeno cortejo. Mariana viu que Matteo Damiani tinha substituído o cardeal oferecendo o braço ao velho marquês de Carreto, depois vinha o conde Gherardesca com Dona Lavínia, que cobrira a cabeça e os ombros apressadamente com um xaile de renda preta. O notário e a pasta tinham desaparecido.

 

Desceram assim até ao parque. Ao sair, Mariana viu Gracchus e Ágata, que esperavam no vestíbulo. Viam avançar o cortejo com um ar tão espantado que ela, de repente, teve vontade de rir. Eles não tinham ainda assimilado a inacreditável notícia que a sua Senhora lhes anunciara antes de se vestir. ”Estava ali para desposar um príncipe desconhecido”, mas, embora muito delicados e dedicados ao seu serviço para terem feito qualquer observação, a desorientação que transparecia nos seus rostos dizia muito sobre os seus pensamentos íntimos. Ao passar, ela sorriu-lhe e fez-lhes sinal para se colocarem atrás de Dona Lavínia.

 

”Devem julgar-me louca! pensou. Para Ágata, não tem muita importância. Ela é pouco esperta... é uma rapariga delicada, nada mais. Mas Gracchus, é outra coisa! Tenho de falar com ele. Tem o direito de saber mais!”

 

A noite estava escura como o breu. O céu, sem uma estrela, não se via, mas um vento ligeiro fazia tremer a luz das tochas trazidas pelos lacaios. Apesar de um rugido suave e longínquo que anunciava uma trovoada, o cortejo avançou com um passo tão lento e solene que Mariana se crispou:

 

Quem fazemos descer à terra? murmurou ela entre dentes. Na verdade, isto assemelha-se mais a um funeral do que a um cortejo nupcial! Não haverá aqui um frade para entoar um Dies Irae?

 

A mão do cardeal apertou a sua até lhe fazer doer.

 

Um pouco de contenção! ralhou ele baixo e sem a olhar. Não podemos impor aqui as nossas preferências. Temos de seguir as ordens do príncipe.

 

Elas dão a justa medida da alegria que ele sente por este casamento

 

Não sejas amarga! E, sobretudo, não sejas parvamente cruel. Ninguém mais do que Conrado teria desejado verdadeiras e alegres núpcias! Para ti é apenas uma formalidade... para ele um desgosto enorme.

 

Mariana aceitou a reprimenda sem protestar, admitindo honestamente que a tinha merecido. Fez um sorrisinho triste e, depois, mudando de tom, perguntou bruscamente:

 

Há, contudo, uma coisa que gostaria de saber.

 

O que é?

 

-A idade do meu... do príncipe Conrado.

 

Creio que pouco mais de vinte e oito anos!

 

Como? É tão novo?

 

Julgava ter-te dito que ele não era velho. -Com efeito... mas não o pensava tão novo.

 

Não acrescentou que tinha imaginado um homem com quarenta anos. Quando se aproximam da velhice, como Gauthier de Chazay, quarenta anos é a flor da idade. Ora, ela descobria que esse infeliz, cujo nome usaria e que uma natureza desumana condenava à reclusão perpétua, à noite, à renúncia total, era, como ela, um ser jovem, um ser que, com todas as suas forças, devia aspirar à vida, à felicidade, à liberdade. Ao recordar a voz filtrada tão pesada e triste, sentiu-se invadida por uma imensa piedade e um desejo sincero de lhe ir em auxílio, de adoçar o calvário que imaginava.

 

Padrinho-segredou, gostaria de ajudá-lo... dar-lhe talvez um pouco de afeição. Porque recusa tão obstinadamente mostrar-se?

 

É preciso deixar actuar o tempo, Mariana... talvez que Conrado venha a pensar de modo diferente do que até aqui... embora ficasse surpreendido. Lembra-te apenas que lhe vais dar aquilo com que sempre sonhou: um filho com o seu nome.

 

Do qual ele não será o verdadeiro pai! Ele pediu-me... para o trazer aqui de vez em quando. Fá-lo-ei de boa vontade.

 

Mas não ouviste a leitura do teu contrato? Tomaste o compromisso de trazer aqui a criança uma vez por ano.

 

Não... não ouvi nada! confessou, enquanto um profundo rubor lhe cobria o rosto. Creio que pensava noutra coisa.

 

Não era, porém, o momento mais indicado! ralhou o cardeal. Seja como for, tu assinaste...

 

E cumprirei a minha palavra. Depois do que me acabastes de dizer, cumpri-la-ei até com alegria! Pobre... pobre príncipe! Quero ser para ele uma amiga, uma irmã... Quero sê-lo!

 

Que Deus te ouça e te permita que o consigas! suspirou o cardeal. Mas duvido!

 

A alameda que conduzia à capela passava por trás da ala direita da ”villa” um pouco depois do portão que levava às cavalariças. Ao passar por trás da sua nova morada, Mariana viu que espelhos de água a rodeavam pelos quatro lados, mas aquele que se estendia por quase todas as traseiras da casa estava rodeado de uma imponente fonte de ninfas à volta de uma entrada de gruta. Lanternas de bronze, colocadas em cada coluna, iluminavam toda aquela arquitectura, que tomava um ar de festa veneziana e reflectiam-se na água preta em longos traços dourados. Mas o caminho da capela, passando por um pequeno bosque, perdeu logo de vista o elegante ninfeu. Até a ”villa” iluminada desapareceu, deixando apenas raros pontos luminosos na espessura da folhagem.

 

A capela, edificada numa pequena clareira, era baixa e antiga, de estilo românico muito primitivo. Tinha paredes grossas, raras aberturas e arcos arredondados. Contrastava, no seu aspecto pesado primitivo, com a elegância um pouco amaneirada do palácio rodeado por águas vivas. Lembrava uma antepassada rabugenta e teimosa, opondo a sua rudeza reprovadora às loucuras da juventude.

 

O pequeno pórtico aberto deixava ver as chamas das velas, brilhando no interior, a velha pedra do altar coberto por uma toalha imaculada, a mancha dourada do velho padre que esperava... e uma bizarra massa preta que Mariana não distinguiu bem do parque. Só quando atingiu o limiar da igreja, viu do que se tratava: presos na abóbada baixa, reposteiros de veludo preto isolavam uma parte do coro, que dividiam ao meio. Compreendeu, então, que a esperança que a habitara por um instante de avistar, pelo menos, a figura do príncipe durante a cerimónia, desvaneceu-se. Ele estava ou estaria nessa espécie de alcova de veludo, junto da qual tinham colocado um cadeirão e um genuflexório, irmãos gémeos, sem dúvida, dos móveis dispostos para lá do reposteiro.

 

Até aqui... começou ela.

 

O cardeal abanou a cabeça.

 

Até aqui! Só o oficiante verá o esposo, pois a parte em frente do altar está aberta. O padre deve ver os dois esposos no momento em que pronunciarem as palavras do compromisso. Com um suspiro de lassidão, ela deixou-se conduzir até ao lugar preparado para si. Uma enorme vela de cera branca ardia num candeeiro de prata colocado no solo, mas nenhum outro preparativo fora feito para a cerimónia, além da toalha do altar e dos vasos sagrados. A capelinha era fria, húmida e respirava-se aí um odor a mofo característico dos locais nunca arejados. Dos lados estavam os túmulos de pedra, onde os Sant’Anna dos tempos passados dormiam o sono eterno. A atmosfera era sinistra. Mariana lembrou-se, de repente, de ter visto, outrora, em Londres uma peça de teatro particularmente trágica, em que a noiva do herói, condenado à morte, era autorizada a desposá-lo na capela da prisão, durante a noite precedente à execução. O prisioneiro estava, então, separado da jovem por uma grade de ferro e Mariana lembrava-se como tinha ficado impressionada por aquela cena tão sombria e dramática... Nessa noite era ela quem desempenhava o papel da noiva e o casal que ia formar com o príncipe durante a cerimónia seria igualmente efémero. À saída da capela, estariam separados como se a lâmina de um machado se abatesse sobre um deles. Aliás, o homem que se conservava silencioso atrás do frágil pano de veludo não era também um condenado? A sua juventude condenava-o a viver... e em circunstâncias abomináveis.

 

As testemunhas e o cardeal tinham-se instalado um pouco atrás da jovem, mas ela viu, com surpresa, que Matteo Damiani viera juntar-se ao padre no altar para ajudar à missa. Uma sobrepeliz branca moldava-lhe os ombros maciços e fazia realçar o pescoço largo e curto, cuja fortaleza plebeia contrastava com a nobreza de certos traços do rosto. Parecia usar uma máscara romana, mas não era belo, talvez por causa da boca, demasiado grossa e cujas pregas revelavam uma sensualidade animal. Os seus olhos eram demasiadamente imóveis, nunca pestanejavam e possuía um olhar intolerável. Durante todo o tempo que durou o serviço divino, Mariana surpreendeu continuamente o seu olhar fixo nela e, indignada, lançou-lhe uma expressão de cólera e desprezo, mas não só os olhos impudentes do intendente não se afastaram, como julgou ver um fugitivo e frio sorriso passar pela sua horrorosa boca. Ficou de tal modo exasperada que esqueceu, por um momento, o homem do outro lado do reposteiro tão próximo e tão longínquo.

 

Nunca assistira a uma missa tão distraidamente. Todo o seu espírito estava absorvido pela voz já familiar que se fazia ouvir, quase sem cessar, rezando alto com um ardor e uma paixão que a perturbaram. Não tinha imaginado que o dono deste domínio de beleza quase sensual podia ser o cristão fervoroso que a sua maneira de rezar deixara adivinhar. Nunca tinha ouvido esse misto de dor resignada e imploração. Só, talvez, os mais austeros conventos, aqueles onde uma impiedosa regra prefigura a renúncia do túmulo, ouviam tais orações. Pouco a pouco esqueceu Matteo Damiani, para escutar essa voz perturbadora, sob a qual se perdiam os murmúrios febris do padre.

 

Mas chegara o momento da bênção nupcial. O capelão descia os dois degraus de pedra e aproximava-se do estranho casal. Como num sonho, Mariana ouviu-o solicitar do príncipe as palavras do rito e logo, a voz, com uma força inesperada, afirmava:

 

Perante Deus e os homens, eu, Conrado, príncipe de Sant’Anna, tomo aqui, como companheira e legítima esposa...

 

As palavras sagradas, ditas, desta vez, como um desafio, encheram os ouvidos de Mariana, ao mesmo tempo que um rumor de tempestade, ao qual se juntou um violento trovão sobre o telhado da capela e trouxe-lhes um sinistro contraponto. A jovem empalideceu, impressionada pelo mau presságio, e foi numa voz pouco segura que, por sua vez, pronunciou a fórmula habitual. Em seguida, o padre murmurou:

 

Dai a vossa mão.

 

O reposteiro entreabriu-se e Mariana com os olhos dilatados viu aparecer, no prolongamento de uma manga de veludo preto e um punho de rendas, uma mão enluvada de couro branco que se estendia para ela. Era uma mão muito grande, longa e forte que a luva moldava com uma precisão anatómica, a mão normal de um homem alto e vigoroso. Trémula perante aquela realidade tangível, Mariana olhava-a fascinada, sem ousar colocar nela a sua. Havia nessa palma aberta, nos dedos estendidos, qualquer coisa de inquietante e atraente ao mesmo tempo. Tinha o ar de uma armadilha.

 

Deves dar a tua mão segredou nas suas costas a voz do cardeal.

 

Todos os olhos estavam fixos em Mariana. Os do padre Amundi, espantados, os do cardeal imperiosos e suplicantes, os de Matteo Damiani sarcásticos. Foi talvez este último olhar que a decidiu. Resolutamente, pousou a sua mão naquela que se lhe oferecia e que a apertou docemente com delicadeza, como se receasse fazer-lhe doer. Através da luva, Mariana sentiu o calor, a firmeza viva da carne. As palavras ouvidas antes voltaram-lhe à lembrança.

 

”Nunca mais estaremos tão próximos...”, dissera a voz.

 

Agora, o velho padre pronunciava as palavras sacramentais que outro trovão sufocou em parte.

 

... Declaro-vos unidos para o melhor e para o pior e até que a morte vos separe.

 

Em volta da sua, Mariana sentiu estremecer a mão. Pela fenda do reposteiro, surgiu outra mão, a tempo de meter no seu anelar um grande anel de ouro, depois retiraram-se as duas mãos, levando a da jovem que, de repente, estremeceu dos pés à cabeça: sobre a ponta dos seus dedos, dois lábios tinham-se pousado antes de lhe devolver a liberdade.

 

O fugitivo laço de carne estava desfeito. Atrás do reposteiro de veludo, ouviu apenas um suspiro. Diante do altar, o Padre Amundi, ajoelhado, rezava, tão curvado sob a casula, que mais parecia um monte de tecido, cujas quebras reflectiam a luz. Outro trovão, mais violento ainda do que os dois anteriores, fez-se ouvir, tão terrível que as paredes tremeram. Ao mesmo tempo o céu desfez-se em chuva. Trombas de água abateram-se sobre o telhado com um ruído de catarata. Num instante, a capela e os seus ocupantes tornaram-se num mundofechado e isolado na tempestade, mas, sem parecer nada ouvir, o velho capelão partiu para a pequena sacristia, levando osvasos sagrados. Matteo, então, quase arrancou a sobrepeliz.

 

É preciso ir buscar uma carruagem! exclamou ele. A princesa não pode regressar à ”villa” a pé com este tempo.

 

Dirigiu-se rapidamente para a porta. Gracchus propôs timidamente:

 

Posso acompanhar-vos e ajudar-vos?

 

O intendente ralhou-lhe:

 

Há bastantes criados para isso! Vós não conheceis os nossos cavalos. Ficai aqui!

 

Chamando, com um gesto autoritário, dois criados com tochas, abriu a porta e lançou-se de cabeça baixa no meio da tempestade, investindo contra o vento como um touro furioso. Com um olhar aflito à alcova negra, onde nada já mexia, onde já nada se ouvia, pois o príncipe parecia ter-se volatilizado por milagre, Mariana foi procurar refúgio junto do padrinho. Aquela tempestade brutal, rebentando no momento preciso da união, era mais do que ela podia suportar.

 

É um presságio! murmurou ela. Um mau presságio! -És supersticiosa agora? ralhou ele em voz baixa. Não foi assim que te educaram. É ao Corso que deves isso? Dizem que ele é supersticioso duma forma estranha.

 

Ela recuou perante aquela cólera tão mal contida e sem explicação... a menos que ele também tivesse ficado impressionado pela trovoada e procurasse assim dominar essa impressão. Pensava talvez esmagar o medo infantil de Mariana sob o seu desprezo adulto, mas o resultado foi diferente. O apelo a Napoleão foi salutar para Mariana. Foi como se o Corso, todo poderoso, tivesse entrado subitamente na capela com o seu olhar de águia, a sua voz imperiosa e essa implacável dureza, a que se curvavam os mais fortes. Ela julgou ouvi-lo troçar e o malefício desfez-se. Fora por sua causa, no fim, que ela teve de se resignar àquele estranho casamento, pela criança que ele lhe dera. Em breve... amanhã voltaria a partir para França, para ele, e tudo aquilo seria apenas na sua recordação como um sonho mau.

 

Alguns minutos depois, Matteo reapareceu. Sem uma palavra, mas com um gesto cheio de orgulho, ofereceu a mão a Mariana para a conduzir à carruagem, mas ela fingiu nada ver e, com um olhar gelado, encaminhou-se para a porta. Entrou, ajudada pelo padrinho, mas tencionava sair sozinha, já que não tinha um esposo para lhe dar o braço. Era preciso que aquele homem de olhar impudente compreendesse, desde já, que ela tencionava agir ali como senhora e soberana, ou pelo menos queria ser tratada como tal.

 

Lá fora, a carruagem esperava, com o estribo descido, a portinhola segura por um lacaio impassível e todo molhado. Mas, entre ela e o pequeno pórtico, estendia-se uma grande corrente de água. Mariana colocou sobre o braço a cauda do vestido precioso.

 

Com a permissão da Senhora Princesa... disse uma voz. E antes que ela pudesse protestar, Matteo tinha-a erguido

 

nos braços para a ajudar a passar o obstáculo. Fez uma exclamação, endireitou-se para fugir ao contacto odioso de duas grandes mãos aplicadas sobre as suas nádegas e debaixo dos braços, mas ele apertou-a mais.

 

Vossa Senhoria deve tomar cuidado disse ele com uma voz neutra. Vossa Senhoria poderia cair na lama.

 

Mariana foi obrigada a deixar-se colocar sobre as almofadas da carruagem. Mas tinha detestado encontrar-se, embora por um instante, contra o peito desse homem e dirigiu-lhe, sem o olhar, um ”obrigada” muito seco. Nem a vista do pequeno cardeal, embrulhado nas sedas vermelhas e transportado da mesma forma, conseguiu apagar a prega de contrariedade da sua fronte.

 

Amanhã, disse ela entre dentes quando ele se instalou junto dela - regresso a casa!...

 

Já? Não será um pouco... apressado? Parece-me que as atenções manifestadas pelo... teu esposo mereceriam pelo menos uma estada... digamos de uma semana.

 

Sinto-me mal nesta casa.

 

Onde prometeste voltar uma vez por ano! Vamos, Mariana, é-te assim tão difícil dares-me aquilo que te peço?... Estivemos tanto tempo separados! Pensava que aceitarias passar junto de mim, além de outra presença, estes poucos dias...

 

Sob as pálpebras descidas, as pupilas verdes pousaram-se em Gauthier de Chazay.

 

Vós ficareis?

 

Mas... naturalmente. Não julgas que me seria agradável reencontrar, por alguns momentos, a minha pequena Mariana de outrora, aquela que corria para mim sob as grandes árvores de Selton?

 

Esta evocação inesperada fez subir as lágrimas aos olhos da jovem.

 

-Pensava... que tínheis esquecido esse tempo!

 

Porque não falo nele? É-me muito querido. Conservo-o escondido, no canto mais secreto do meu velho coração e, de tempos a tempos, entreabro um pouco esse canto... quando me sinto muito abatido.

 

Abatido? Nunca nada parece abater-vos, Padrinho.

 

Porque recuso mostrar-me? Mas a idade vem, Mariana, e com ela o cansaço. Fica um pouco, minha filha! Precisamos de nos encontrar, tu e eu, de esquecer lado a lado que existem soberanos, guerras, intrigas... tantas intrigas sobretudo! Concede-me isso... em memória de outrora!

 

O calor da afeição reencontrada influenciou de modo sensível a ceia que reuniu, pouco depois, os protagonistas do casamento na antiga sala de festins da ”villa”. Era uma divisão imensa, alta como uma catedral e de pavimento de mármore preto, um espantoso tecto, onde as curiosas armas dos Sant’Anna, um licórnio e uma víbora dourada lutando em campo arenoso, se repetiam. Estas armas tinham, aliás, divertido Mariana, que recordando as da sua família, onde se encontravam o leopardo de Asselnat e o gavião de seus primos Montsalvy, tinha constatado que, juntas, compunham uma singular mistura heráldica.

 

As paredes da sala, pintadas a fresco por um artista desconhecido, contavam a lenda do licórnio com uma grande frescura de coloridos e uma ingenuidade encantadora. Era a primeira divisão da ”villa” que agradava verdadeiramente a Mariana. Com excepção da mesa, faustosamente servida e enfeitada, havia menos dourados do que em todas as outras salas e era mais repousante.

 

Sentada à longa mesa, com o cardeal em frente, ela fez as honras da refeição com tanta graça como se tivesse estado na sua casa da Rua de Lille. O velho marquês de Carreto, que era bastante duro de ouvido, não era um conversador interessante, mas em compensação era um excelente conviva. Pelo contrário, o conde Gherardesca tinha uma conversa animada e cheia de espírito. No lapso de tempo da refeição, Mariana soube os últimos boatos da corte de Florença, das ternas relações da Grã-Duquesa Elisa com o belo Cenami e os seus amores mais tumultuosos com Paganini, o violoncelista diabólico. Soube igualmente dizer com discrição à jovem que a irmã de Napoleão se sentiria feliz por receber na sua corte a nova princesa Sant’Anna, mas Mariana declinou o convite.

 

Os meus gostos não estão inclinados para a vida da corte.

Se o meu esposo pudesse conduzir-me junto de Sua Alteza Imperial, seria para mim a maior das alegrias. Mas em tais circunstâncias...

 

O velho senhor lançou-lhe um olhar cheio de compreensão.

 

Fizestes uma obra de caridade, Princesa, desposando o meu infeliz primo, mas sois infinitamente jovem e bela, enquanto a dedicação deve ter limites. Não haverá ninguém entre a nobreza deste país que vos censurasse sair, ou receber fora da presença do vosso esposo, visto que, infelizmente, o humor particular do príncipe Conrado o leva a permanecer recluso e escondido.

 

Agradeço-vos muito, mas, por agora, isso não me tenta realmente. Mais tarde talvez... e apresentai, por favor, os meus cumprimentos respeitosos a Sua Alteza Imperial.

 

Enquanto pronunciava, maquinalmente, as palavras obrigatórias de delicadeza, Mariana perscrutava o rosto amável do conde, para tentar adivinhar o que ele sabia exactamente sobre o primo. Saberia ele o que obrigava Conrado de Sant’Anna a viver essa existência desumana? Falara dum ”humor particular”, enquanto o príncipe em pessoa lhe confessara recusar-se a inspirar-lhe horror... Talvez ela fosse fazer uma pergunta mais precisa, quando o cardeal, que adivinhara, sem dúvida, o seu pensamento, desviou a conversa interrogando o conde sobre as recentes medidas tomadas contra os conventos e a ceia terminou sem voltarem ao assunto que tanto a intrigava.

 

Quando se levantaram da mesa, as duas testemunhas despediram-se, alegando a idade para não prolongarem o serão. Um regressava ao seu palácio de Lucques, o outro a uma ”villa” que possuía nos arredores, mas ambos com uma delicadeza requintada e ultrapassada exprimiram o desejo de voltar a ver em breve ”a mais bonita das princesas”.

 

Aí vão dois mais do que seduzidos! comentou Gauthier de Chazay com um sorriso divertido. Eu sei que é preciso ter sempre em conta o entusiasmo do carácter italiano, mas mesmo assim! Aliás, não fico surpreendido. Mas-acrescentou cessando, repentinamente, de sorrir espero que os efeitos da tua beleza fiquem por aqui.

 

Que quereis dizer?

 

Que teria infinitamente preferido que Conrado não te visse. Desejei dar-lhe um pouco de felicidade e ficaria desolado por ter feito a sua infelicidade.

 

Donde vos vem esse súbito pensamento? Já sabíeis que eu não era repugnante.

 

É muito recente confessou o prelado. Durante toda a refeição, Conrado não tirou os olhos de ti. Ela estremeceu.

 

Como? Mas... ele não estava lá, não é possível!

 

Em seguida, lembrando-se do salão de damasco vermelho:

 

Não havia espelho.

 

Não, mas certos motivos do tecto deslocam-se para permitir a vigilância do que se passa na sala... um velho sistema de espionagem que, outrora, se revelou de certa utilidade no tempo em que os Sant’Anna se ocupavam de política e que eu conheço bem. Vi num deles dois olhos... que não podem deixar de ser os seus. Se esse infeliz começa a amar-te...

 

Como vedes, é melhor que eu parta!

 

Não, pareceria uma fuga e magoá-lo-ias. Deixemos-lhe essa pequena felicidade! E quem sabe? Talvez isso o decida um dia a esconder-se menos de ti do que dos outros...

 

Mas o momento de serenidade tinha desaparecido novamente para Mariana e a impressão da angústia voltara. Apesar da ideia consoladora que o cardeal acabara de ter, ela sentia uma espécie de horror ao pensar que o homem da voz triste poderia amá-la. Tentou, com todas as suas forças, lembrar-se dos termos do negócio concluído, pois era disso que se tratava; um contrato e mais nada!... Contudo, se Gauthier de Chazay tivesse razão, se ela tivesse trazido a esse homem sem rosto um aumento de dor e de desgosto?... Recordou o beijo sobre os dedos e estremeceu.

 

Ao entrar no quarto, encontrou Ágata completamente destroçada. A estranha cerimónia a que tinha acabado de assistir, juntamente com o receio que lhe inspirava o palácio Sant’Anna e o discurso que Dona Lavínia lhe fizera sobre a forma como convinha, dali em diante, tratar a sua Senhora, mergulhara a criadita numa enorme confusão. De pé, ao lado de Dona Lavínia, sempre tão calma, ela tremia como uma folha e, à entrada de Mariana, mergulhou numa reverência tão profunda que caiu no chão. Achou-se, de repente, à beira do pânico e o severo olhar da governanta fez o resto. Sem mesmo pensar em erguer-se, Ágata começou a soluçar vivamente.

 

Oh! indignou-se Dona Lavínia-Ela é louca!

 

Não rectificou docemente Mariana, está apenas assustada. É preciso perdoar-lhe, Dona Lavínia, eu não lhe tinha dito nada e, desde que aqui chegámos, tudo a tem surpreendido. Além disso, a viagem foi difícil.

 

Conseguiram ambas pôr em pé a rapariga, que fazia esforços desesperados para se desculpar.

 

Perdoe-me, Senho... Senhora Princesa... perdoe-me! Não... não sei... o que me deu. Eu... eu...

 

Sua Senhoria tem razão interrompeu Dona Lavínia dando-lhe um lenço, não tendes controlo em vós, minha filha. Ide dormir. Se a Senhora permitir, vou acompanhar-vos ao quarto e dar-vos um calmante. Amanhã tudo terá passado.

 

Obrigado, Dona Lavínia... e ide!

 

Volto já para ajudar a Senhora Princesa a despir-se. Enquanto levava Ágata, sempre entre lágrimas, Mariana

 

aproximou-se de um grande espelho veneziano, diante do qual estava uma mesa baixa de laca chinesa, com uma infinidade de frascos de cristal e de objectos de ”toilette” de ouro maciço. Sentia-se terrivelmente cansada e tinha pressa, agora, de se deitar. O grande leito dourado, cuja colcha tinha sido retirada, mostrava lençóis de linho branco muito frescos e era verdadeiramente acolhedor. Uma lamparina suave fora colocada sob os reposteiros do baldaquino e as almofadas cheias de penas fofas convidavam-na irresistivelmente ao repouso.

 

O diadema pesava sobre a fronte de Mariana, que sentia vir a dor de cabeça. Com certa dificuldade, pois estava solidamente preso com ganchos do cabelo, conseguiu tirá-lo, colocou-o sobre a mesa, sem o olhar, e desfez a cabeleira. O vestido também, com os espessos bordados e a longa cauda, embaraçava-a e, sem esperar o regresso de Dona Lavínia, Mariana retirou-o. Curvando-se com agilidade, pois nada ainda revelava a próxima maternidade, desapertou-se, libertou os ombros e, com um suspiro de alívio, deixou o pesado tecido cair-lhe aos pés. Apanhou-o em seguida e atirou-o para um cadeirão, tirou as saias e as meias, e vestida apenas com a fina camisa de cambraia guarnecida de rendas, espreguiçou-se como uma gata com um suspiro de felicidade... mas o suspiro transformou-se num grito de horror. No espelho, na sua frente, um homem devorava-a com os olhos, mostrando uma expressão de avidez voraz.

 

Virou-se bruscamente, mas não viu mais nada senão os outros espelhos na parede e que reflectiam apenas as chamas calmas das velas. Não havia ninguém no quarto... e, todavia, Mariana iria jurar que Matteo Damiani estava ali e que a vira despedir-se com um desejo brutal. Porém, não havia nada. O silêncio era absoluto. Nem um ruído, nem um sopro!...

 

Com as pernas bambas, Mariana deixou-se cair sobre o tamborete coberto de brocado, colocado diante do toucador, e passou pela cara uma mão trémula. Seria uma alucinação?! O intendente tê-la-ia impressionado até ao ponto de o ver por toda a parte? Ou seria fadiga?... Já não estava muito certa agora, de o ter visto realmente... O espírito perturbado não poderia criar fantasmas, fazer surgir do nada formas e rostos?!

 

Quando Dona Lavínia voltou, encontrou-a prostrada sobre o tamborete, pálida como a roupa e seminua. Juntou as mãos num gesto de desolação:

 

Vossa Senhoria não foi razoável! censurou ela. Porque não me esperou? Ei-la toda trémula! Espero que não esteja doente!

 

Estou, sobretudo, extenuada, Dona Lavínia. Gostaria de me deitar muito depressa... e dormir, dormir também. Não podereis dar-me um pouco daquilo que destes a Ágata? Queria ter a certeza de ter uma noite descansada.

 

- É muito natural depois de um dia como este!

 

Alguns instantes mais tarde, Mariana estava estendida na cama e Dona Lavínia servia-lhe uma tisana quente, cujo vapor agradável distendeu logo os seus nervos. Bebeu-a com reconhecimento, ávida por fugir aos seus pensamentos loucos e certa de que, sem uma ajuda exterior, não lhe seria possível, por maior que fosse a fadiga, encontrar o sono, com a recordação do rosto entrevisto ou imaginado. Talvez adivinhando a sua angústia, Dona Lavínia foi sentar-se num cadeirão.

 

Vou esperar aqui que a Senhora Princesa adormeça, para estar certa de que o seu sono é tranquilo prometeu ela.

 

Liberta de um peso, embora recusasse admiti-lo, Mariana fechou os olhos e deixou a tisana produzir o seu efeito. Alguns instantes mais tarde, dormia profundamente.

 

Sentada no seu cadeirão, Dona Lavínia não se mexera. Tirou do bolso um rosário de marfim e começou a rezar. Subitamente, na noite, fez-se ouvir o galope de um cavalo, primeiro ligeiro, e em seguida cada vez mais forte. Sem fazer ruído, a governanta ergueu-se, foi até à janela e afastou ligeiramente um dos reposteiros. Longe, na obscuridade confusa, uma forma branca surgiu, atravessou os relvados e desapareceu rapidamente. Era um cavalo transportando um sombrio cavaleiro a galope.

 

Então, com um suspiro, Dona Lavínia deixou cair o cortinado e retomou o seu lugar à cabeceira de Mariana. Não tinha vontade de dormir. Nessa noite, mais do que nunca, sentia que devia rezar ao mesmo tempo por aquela que dormia e por aquele a quem amava como a um filho, para que, na impossibilidade da felicidade, pelo menos o céu lhe concedesse a paz.

 

                                     A NOITE ENFEITIÇADA

 

O sol brilhante que inundava o quarto, quando ela abriu os olhos, e o bom repouso da longa noite deram a Mariana toda a sua vitalidade. A trovoada da noite lavara tudo no parque e os poucos desgastes, ramos partidos ou folhas arrancadas pela violência do vento, tinham sido já apagados pelos jardineiros da ”villa”. Tudo estava coberto de verdura e todos os odores do campo refrescado entravam em lufadas perfumadas, onde se misturava o feno, a madressilva, o cipreste e o rosmaninho.

 

Tal como ao adormecer, encontrava agora Dona Lavínia, de pé junto do seu leito, sorridente e ocupada a dispor, em grandes jarras, um enorme braçado de rosas.

 

Monsenhor, o Príncipe, quis que o primeiro olhar da Senhora Princesa, nesta manhã, fosse para as mais belas flores. E - acrescentou há também isto.

 

Isto era um cofre de razoáveis dimensões que repousava, aberto, sobre o tapete. Estava cheio de caixas de sândalo e de estojos de couro preto, com as armas da família Sant’Anna, mas com os sinais do uso que possuem sempre as coisas antigas.

 

O que é? perguntou Mariana.

 

As jóias das princesas Sant’Anna, Minha Senhora... as de Dona Adriana, mãe do nosso príncipe... as... das outras princesas! Algumas são muito antigas.

 

Havia de tudo, efectivamente, desde os antigos e muito belos camafeus, até às estranhas jóias orientais, mas a maior parte era constituída por pesadas e admiráveis jóias da Renascença, onde enormes pérolas barrocas serviam de corpo a sereias, ou a centauros, no meio de uma profusão de pedras de todas as cores. Havia também jóias mais recentes, grinaldas de diamantes, girândolas cintilantes, pulseiras e colares de ouro e pedrarias. Havia também certas pedras não montadas e, depois de Mariana ter examinado tudo, Dona Lavínia estendeu-lhe uma pequena caixa de prata, onde, sobre um fundo- de veludo preto, repousavam doze esmeraldas extraordinárias. Enormes e facetadas rudimentarmente, eram de um verde profundo e translúcido, de uma intensa luminosidade, certamente as mais bonitas que Mariana jamais vira. Mesmo as que lhe tinha oferecido Napoleão eram, sem dúvida, menos belas. E, subitamente, as palavras do Imperador foram repetidas pela boca da governanta.

 

Monsenhor disse que elas eram do mesmo verde que os olhos da Senhora Princesa. O seu Avô, o príncipe Sebastiano, trouxe-as do Peru para a sua mulher. Mas ela não gostava destas pedras.

 

Porquê? exclamou Mariana, que, com um gesto bem feminino, fazia incidir a luz do sol nas pedras. Elas são muito bonitas!

 

Os antigos pensavam que elas eram, ao mesmo tempo, o símbolo da paz e do amor. Dona Lucinda amava o amor... mas detestava a paz.

 

Foi assim que, pela primeira vez, Mariana ouviu pronunciar o nome da mulher que amava a sua própria imagem até ao ponto de ter coberto de espelhos as paredes do quarto. Mas ela não quis perguntar mais. Com uma reverência, Dona Lavínia informou-a que o banho estava pronto, que o cardeal a esperava para o almoço e deixou-a nas mãos de Ágata, sem que a nova princesa ousasse pedir-lhe para ficar e responder às suas perguntas. Notara, efectivamente, no rosto da velha senhora, uma passageira crispação, uma sombra no olhar, como se lamentasse ter pronunciado esse nome. Era evidente que queria evitar as perguntas que sentia virem.

 

Mas, quando Mariana encontrou o padrinho na biblioteca, onde ele mandara servir o almoço, apressou-se a fazer a pergunta que pusera Dona Lavínia em fuga, depois de ter contado como lhe tinham sido entregues as jóias ancestrais.

 

Quem era, exactamente, a avó do príncipe? Julguei compreender que se chamava Lucinda, mas pareceu-me que aludiam a ela com muitas reticências. Sabeis porquê?

 

O cardeal regou as pastas com uma espessa camada de um odorante molho de tomate, juntou queijo e misturou tudo cuidadosamente sem responder. Depois, provou a mistura assim obtida e, finalmente, declarou:

 

Não. Não sei.

 

Vamos! É impossível! Tenho a certeza de que conheceis os Sant’Anna desde sempre. Doutro modo, como teríeis podido partilhar do segredo que envolve o príncipe Conrado? Tendes de saber qualquer coisa sobre essa Lucinda. Dizei antes que não quereis dizer-me...

 

Tens tanta vontade de saber, que, dentro de momentos, chamas-me mentiroso disse o cardeal rindo. Pois bem, minha querida, fica a saber que um príncipe da Igreja não mente... pelo menos mais do que um padre. Mas, sinceramente, não sei grande coisa, a não ser que era veneziana, da nobre família Soranzo e de uma extrema beleza.

 

Daí os espelhos! Contudo, o facto de ser muito bonita e de se admirar um pouco não justifica as reticências que essa mulher parece inspirar aqui. Parece até que o seu retrato desapareceu.

 

Devo dizer que, segundo aquilo que pude saber, Dona Lucinda não tinha.,. lá... muito boa reputação. Alguns, muito raros agora, que a conheceram pretendem que ela era louca, outros, que era um pouco feiticeira e, em todo o caso, em muito boas relações com os demónios. Não gostam muito disso por aqui... nem algures!

 

Mariana tinha a impressão de que o cardeal se tornava voluntariamente evasivo. Apesar de todo o respeito e confiança que tinha nele, não podia deixar de ter o sentimento bizarro de que ele não lhe dizia a verdade... ou, pelo menos, toda a verdade. Decidida, no entanto, a tirar dele o mais possível, perguntou com um ar inocente, enquanto se entretinha a escolher cerejas num cesto de fruta.

 

E... onde se encontra o seu túmulo? Na capela?

 

O cardeal pôs-se a tossir, como se estivesse engasgado, mas essa tosse pareceu a Mariana um pouco forçada, e perguntou a si própria se ela não se destinava a esconder o súbito rubor que subira ao rosto do padrinho. Contudo, ofereceu-lhe um copo de água com um belo sorriso:

 

Bebei! Isso passará!

 

-Obrigado! O túmulo... hum... não, não existe! Não existe um túmulo?

 

Não. Lucinda morreu tragicamente num incêndio e nada encontraram do seu corpo. Deve haver, em qualquer local da capela, uma inscrição que... menciona o facto. Queres ir visitar um pouco do teu novo domínio? Está um tempo maravilhoso e o parque é tão belo! Além disso, há as cavalariças, que vão, certamente, maravilhar-te. Gostavas tanto dos cavalos quando eras pequena! Sabes que os animais daqui são da mesma linhagem dos famosos cavalos da Casa Imperial de Viena? São Lipizzans. O arquiduque Carlos que, em 1580, fundou em Lipizza, no Karst, as célebres coudelarias, partindo de produtos espanhóis, ofereceu aos Sant’Anna dessa época um garanhão e duas éguas. Daí em diante, os príncipes desta casa dedicaram-se a aperfeiçoar a raça...

 

O cardeal estava lançado. Era inútil tentar detê-lo, para o conduzir a um assunto, como o de Dona Lucinda. Ele preferira fugir-lhe. Aquela corrente de palavras destinava-se a impedir Mariana de dizer fosse o que fosse, e assim mudar insensivelmente o curso dos seus pensamentos.

 

Efectivamente, ao penetrar com ele no imenso pátio das cavalariças, a jovem esqueceu por um momento a misteriosa Dona Lucinda, para se abandonar ao gosto ardente, que sempre tinha tido, pelos cavalos. Descobriu, aliás que Gracchus Hanibal Pioche, seu cocheiro, a tinha precedido e parecia feliz como um peixe na água. Embora não falando italiano, o rapaz tinha conseguido fazer-se compreender, graças à sua expressiva mímica de rapazito parisiense. Era já amigo de todos os palafreneiros e cocheiros, que tinham reconhecido nele um irmão na religião do cavalo.

 

Nunca vi animais mais bonitos! Isto é o paraíso, Menina Mariana! Disse ele à jovem assim que a avistou.

 

Se queres viver muito tempo neste paraíso, meu rapaz corrigiu o cardeal meio-zangado, meio-divertido, tens de te habituar a dizer Senhora Princesa ou Vossa Senhoria... a não ser que prefiras Sua Alteza Sereníssima!

 

Sire... tendes de ter paciência comigo, Meni..,, quero dizer Senhora Princesa desculpou-se Gracchus muito corado,

 

Tenho muito receio de ter dificuldade em me habituar e de me enganar ainda.

 

Diz simplesmente ”Minha Senhora”, meu bom Gracchus, e tudo irá bem. Agora, mostrai-me os cavalos.

 

Eram, na verdade, magníficos, cheios de fogo e de sangue, com pescoços possantes, pernas fortes e finas ao mesmo tempo, quase todos de pêlo de um branco puro. Outros eram pretos como breu, mas igualmente bonitos. Mariana não precisava de forçar a sua admiração. Possuía, aliás, um bom golpe de vista para julgar das qualidades deste ou daquele cavalo e, uma hora depois, tinha convencido todo o pessoal das cavalariças que a nova princesa era bem digna da família. A sua beleza fez o resto e, quando regressou a casa, bastante tarde, Mariana deixou atrás de si um pequeno mundo definitivamente rendido aos seus encantos, com grande satisfação do cardeal.

 

Compreendes bem aquilo que vais representar para eles? Uma patroa viva, visível e sabendo ouvi-los... Dar-lhes-ás uma satisfação real.

 

Isso alegra-me, mas será necessário que continuem a viver sem mim a maior parte do tempo. Sabeis que devo voltar a Paris... nem que seja para regular com o Imperador a minha nova situação. Ignorais ainda como são as suas cóleras.

 

Posso imaginar... mas, no fim de tudo, nada te obriga a isso! Se ficasses aqui...

 

Ele seria muito capaz de me mandar procurar pela polícia... tal como vos mandou conduzir a Reims... pelo menos por pessoa interposta! Muito obrigada! Sempre preferi o combate à fuga e, nestas circunstâncias, tenciono explicar-me eu mesma.

 

Diz-me antes que, por nada do mundo, gostarias de perder esta ocasião de o voltar a ver! suspirou tristemente o cardeal.

 

Continuas a amá-lo...

 

Nunca pretendi o contrário!... ripostou Mariana com altivez. Creio nunca vos ter enganado sobre esse ponto. Sim, continuo a amá-lo. Lamento-o, talvez tanto como vós, embora por outras razões, mas amo-o e nada posso fazer.

 

Sei-o bem! É inútil discutirmos esse assunto! Em certos momentos, lembras-me muito a tua tia Ellis, com tão pouca paciência e tanto ardor nas disputas! Tanta generosidade também! Não importa! Sei que voltarás e é isso o principal.

 

O Sol escondia-se por trás das árvores do parque, e Mariana seguiu a sua queda com uma surda angústia. Com o crepúsculo, o domínio envolvia-se numa espécie de melancolia indefinível, como se a vida o abandonasse, tal como a luz do dia o fazia. Era aquilo que as pessoas da região chamavam ”una morbidezza” e que vinha talvez da excessiva beleza das paisagens e do céu.

 

Ao entrar em casa, Mariana, sentindo, subitamente, frio, apertou à volta dos ombros o lenço de seda da mesma cor que o seu vestido branco muito simples e, enquanto caminhava lentamente ao lado do prelado, ela via aumentar o volume claro da casa, pelo lado da ala direita, habitada pelo príncipe Conrado.

 

As altas janelas estavam obscurecidas, talvez porque os reposteiros tivessem sido fechados, mas não se via qualquer raio de luz.

 

Não pensais disse ela de repente que eu deveria agradecer ao príncipe as jóias que me mandou esta manhã? Parece-me que seria simplesmente delicado.

 

Não. Seria um erro. No espírito do Conrado, elas são-te devidas. És a sua depositária... um pouco como o rei de França era depositário das jóias da Coroa. Não se agradece um depósito.

 

No entanto, as esmeraldas...

 

São, sem dúvida, um presente pessoal... à princesa de Sant’Anna! Mandá-las-ás montar, usá-las-ás e transmiti-las-ás aos teus descendentes. É inútil quereres aproximar-te dele. Estou certo de que ele não o deseja. Se lhe queres agradar, usa as jóias que ele te deu. Será a melhor forma de mostrar que te deram alegria.

 

Nessa noite, para jantar em frente do cardeal na imensa sala de jantar, ela espetou no decote do seu vestido e na cintura que passava sob o peito uma grande jóia antiga feita de ouro, de rubis e de pérolas, que condizia com uns longos e pesados brincos. Mas, embora durante toda a refeição lançasse olhares discretos para o tecto, não viu mexer qualquer motivo, nem surgir qualquer olhar... e ficou surpreendida por experimentar uma vaga decepção. Sabia-se bela nessa noite, e essa beleza desejava oferecê-la silenciosamente ao esposo invisível para lhe agradecer. Mas nada surgiu, nem mesmo Matteo Damiani, que também não vira durante o dia e, muito naturalmente, interrogou Dona Lavínia, uma vez no quarto. O príncipe... partiu?

 

Mas... não, Vossa Senhoria, porquê?

 

Nada, durante o dia de hoje, marcou a sua presença e nem vi o seu secretário, ou o padre Amundi.

 

Matteo foi visitar uns agricultores bastante longe e o capelão esteve com Sua Alteza. Só sai do seu quarto para ir à capela ou à biblioteca. Devo dizer a Matteo que desejais vê-lo?

 

Certamente que não! disse Mariana talvez um pouco demasiadamente depressa. Fiz apenas a pergunta.

 

Estendida sobre o leito, ela teve dificuldade, nessa noite, em cair no sono e passaram-se várias horas antes que pudesse fechar os olhos. Perto da meia-noite, quando finalmente começava a adormecer, ouviu o galope de um cavalo atravessar o parque e escutou-o por um instante. Pensando que era, sem dúvida, Matteo Damiani que voltava, não se inquietou mais e, fechando os olhos, caiu no sono.

 

Os dias que se seguiram foram calmos e muito semelhantes ao primeiro. Em companhia do cardeal, Mariana visitou o domínio, deu alguns passeios aos arredores, numa das numerosas carruagens guardadas nas cocheiras. Visitou as termas de Lucques, algumas ruínas e também, em Marlia, os jardins da faustosa ”villa” de verão da Grã-Duquesa Elisa. O cardeal vestido com um fato preto, sem qualquer ornamento, não atraía as atenções, mas, por toda a parte, a beleza da jovem causava a admiração e, mais ainda, a curiosidade, pois a notícia do casamento tinha-se espalhado. Nos caminhos, assim como nas aldeias, as pessoas da região paravam à sua passagem e saudavam-nos profundamente com uma admiração nos olhares que se tingia de piedade e fazia sorrir Gauthier de Chazay.

 

Sabes que eles não estão longe de te considerar como uma santa?

 

Uma Santa? Eu? Que ideia!

 

A opinião geral espalhada na região é que Conrado Sant’Anna está muito doente. Então admiram-se que tu, tão jovem, tão bonita, te dediques a esse infeliz. Quando o nascimento da criança for anunciado, não ficarás longe da palma do martírio.

 

Como podeis brincar assim? censurou Mariana chocada pelo tom ligeiramente cínico do prelado.

 

Minha querida filha, se queremos suportar a vida sem sofrermos muito, o melhor é procurar em todas as coisas o seu lado humorístico. Além disso, era preciso explicar-te porque te olham assim.

 

Contudo, o tempo mais agradável para Mariana era o que passava na coudelaria, apesar dos remoques do cardeal. Na sua opinião, não só o lugar de uma grande dama era longe das cavalariças, mas também se inquietava por ver a jovem, no estado em que se encontrava, passar longas horas a cavalo, montando este ou aquele animal para lhe conhecer a fundo as qualidades e os defeitos. Mariana ria de todos os seus receios. O seu estado não a incomodava. Nada a perturbava, sentia-se maravilhosamente bem e a vida ao ar livre agradava-lhe muito. Tinha conquistado Rinaldo, o chefe das cavalariças, que a seguia, por toda a parte, com um grande cão, quando, com a cauda do seu fato de amazona sobre o braço não ousara, para evitar chocar as sensibilidades, vestir o traje masculino que preferia para montar a cavalo dava longos passeios através dos campos.

 

No regresso destas voltas fatigantes, devorava o jantar, depois caía na cama e dormia de um sono de criança até ao amanhecer. Até a estranha tristeza que envolvia a casa todas as tardes, ao cair da noite, já não a impressionava. O príncipe não voltara a manifestar-se, senão para lhe mandar dizer que se sentia feliz pelo interesse que ela mostrava pelos seus cavalos, e Matteo Damiani parecia manter-se a distância. Estava muitas vezes nos campos e quase não o via. Quando, por acaso, encontrava Mariana, saudava-a profundamente, informava-se sobre a sua saúde e desaparecia sem insistir.

 

A semana decorreu assim, rápida e sem incidentes, tão agradável até que a jovem não deu pelo tempo e no fim de contas apercebeu-se de que não tinha grande vontade de regressar já a Paris. A enorme fadiga da viagem, a insuportável tensão dos nervos, as suas angústias e apreensões tinham desaparecido em contacto com a natureza.

 

”No fundo, porque não havia de ficar ali mais algum tempo? pensava ela. Nada tenho a fazer em Paris, e o Imperador, certamente, não regressará tão cedo”.

 

Até a viagem de núpcias de Napoleão tinha deixado de irritá-la. Estava em paz consigo mesma e gozava tão plenamente a calma da nova residência que pensou, por instantes, passar ali todo o Verão e escrever a Jolival para vir ter com ela.

 

Mas, no fim da semana, surgiu o Padre Bichette, de regresso da sua misteriosa missão, e as coisas modificaram-se. O cardeal, que fora até aí o mais afectuoso e alegre dos companheiros, fechou-se longas horas no quarto com o seu secretário. Quando saiu, vinha preocupado e com a testa cheia de rugas profundas. Anunciou, então, a Mariana que era obrigado a ausentar-se e ia abandoná-la.

 

É mesmo indispensável? disse ela um pouco decepcionada. Eu que pensava que poderíamos prolongar um pouco mais esta estada! Era tão agradável estarmos juntos! Mas, visto que partis, vou mandar preparar as minhas bagagens.

 

-Porquê? Ausento-me apenas alguns dias. Não podes esperar-me aqui? Sou como tu, Mariana, gostei muito de viver a teu lado. Porque não havemos de prolongar este tempo? Após o meu regresso, poderei, certamente, consagrar-te outra semana.

 

Que farei aqui sem vós? O cardeal pôs-se a rir.

 

Mas... aquilo que fazias comigo. Nem sempre estávamos juntos. Além disso, não estarei sempre aqui, quando voltares todos os anos, com a criança. Não pensas que seria bom habituares-te a... reinar sozinha? Pareceu-me que te sentias feliz aqui.

 

É verdade, mas...

 

Então? Podes bem esperar-me aqui uns dias! Cinco ou seis no máximo... Será pedir muito?

 

Não! sorriu Mariana. Esperar-vos-ei. Mas quando partirdes novamente, irei também.

 

Concluído este acordo, o cardeal deixou a ”villa” nessa tarde, acompanhado do Padre Bichette, sempre atarefado, sempre preocupado sob o peso de uma enorme quantidade de segredos, reais ou imaginários, que lhe davam um aspecto divertido de perpétuo conspirador. Mas, mal a carruagem passou o portão do domínio, Mariana arrependeu-se de ter prometido esperar. A impressão de angústia do primeiro dia voltava, como se só a presença do cardeal conseguisse afastá-la.

 

Ao virar-se, viu que Ágata estava atrás de si e tinha os olhos cheios de lágrimas. Como lhe mostrou a sua surpresa por esse facto, Ágata juntou as mãos.

 

Não nos vamos também embora?

 

Porquê? Não estais bem aqui? Pareceu-me que Dona Lavínia vos tratava com muita delicadeza!

 

É verdade. É a própria bondade em pessoa, mas não é dela que tenho medo.

 

De quem é então?

 

Ágata fez um gesto evasivo que queria englobar a casa toda.

 

De tudo... desta casa que se torna tão triste quando vem a noite, do silêncio quando os jactos de água param, das sombras, donde se tem sempre a impressão que vai surgir um perigo, do príncipe que nunca vemos... e também do intendente!

 

Mariana franziu as sobrancelhas, contrariada por encontrar na criada a mesma impressão de angústia que ela própria sentia, mas esforçou-se por responder num tom ligeiro para não agravar a inquietação de Ágata.

 

Matteo? Que vos fez ele?

 

Nada... mas tenho a impressão de que ronda à minha volta. Tem uma forma de me olhar, quando nos encontramos, de roçar o meu vestido, quando passa por mim!... Faz-me medo, Minha Senhora! Gostaria de me ir embora.

 

Os factos eram mínimos, mas Ágata estava muito pálida e Mariana, recordando as suas próprias sensações, quis dissipar esse mal-estar. Pôs-se a rir.

 

Vejamos, Ágata, não há nada de muito assustador. Não é a primeira vez que um homem vos faz compreender que lhe agradais, penso eu. Em Paris, parece-me que não vos faltavam atenções... as do mordomo do palácio Beauharnais... ou as do nosso Gracchus e não vos queixáveis!

 

Em Paris, era diferente disse Ágata, baixando os olhos. Aqui... tudo é estranho, esquisito! E esse homem mete-me medo! insistiu ela.

 

Pois bem, dizei-o a Gracchus, ele proteger-vos-á e saberá acalmar-vos. Quereis que fale no assunto a Dona Lavínia?

 

Não... tomar-me-ia por uma tonta!

 

E teria razão! Uma rapariga bonita deve ser capaz de se defender. De qualquer forma, sossegai, não ficaremos aqui muito tempo. Sua Eminência voltará dentro de alguns dias e dessa vez para uma estada bastante curta. Depois partiremos ao mesmo tempo.

 

Mas a inquietação de Ágata entrara nela, aumentando a que já possuía. Não lhe agradava a ideia de Matteo Damiani andar à volta de Ágata, pois não podia ter qualquer interesse para a rapariga. Mesmo se a situação privilegiada junto do príncipe podia torná-lo num partido invejável para uma criadita, mesmo se fisicamente o homem fosse aceitável e não parecesse ter a idade real, a verdade é que ele já ultrapassara os cinquenta anos, enquanto Ágata ainda não tinha vinte. Decidiu, por isso, pôr fim àquilo discreta e definitivamente.

 

Chegada a noite, incapaz de se instalar sozinha na imensa sala de jantar, fez-se servir no quarto e pediu a Dona Lavínia para lhe fazer companhia e ajudá-la a deitar-se, enquanto Ágata iria, sob a protecção de Gracchus, dar uma volta pelo parque sob o pretexto de não lhe achar bom aspecto. Mas, mal Mariana abordou o assunto que a preocupava, a governanta pareceu fechar-se sobre si mesma, como uma planta sensitiva a quem tivessem tocado.

 

Que Vossa Senhoria me perdoe disse ela com uma perturbação evidente, mas eu não posso fazer a menor observação a Matteo Damiani.

 

Porque não? Não sois vós que, até agora, dirigis tudo nesta casa, desde os servidores até à vida de todos os dias?

 

Efectivamente... mas Matteo goza aqui de uma situação privilegiada, que me proíbe qualquer ingerência na sua vida. Além disso, ele não tolera facilmente as censuras; é o homem de confiança de Sua Alteza, cujos pais já serviu, como eu. Se eu ousasse fazer-lhe apenas uma insinuação, obteria um riso desdenhoso e mandar-me-ia meter nos meus assuntos.

 

Realmente? disse Mariana com um sorriso. Penso não ter nada a recear de semelhante... quais são os privilégios desse homem?

 

Oh! Senhora Princesa!...

 

Pois, ide buscá-lo! Veremos bem qual de nós duas terá razão! Ágata está ao meu serviço pessoal, veio de França comigo e não quero que lhe tornem aqui a vida impossível. Ide, Dona Lavínia, e trazei-me imediatamente o Senhor Intendente.

 

A governanta mergulhou na reverência, desapareceu e voltou alguns minutos mais tarde, mas só. A acreditar no que dizia, não tinha conseguido encontrar Matteo. Não estava junto do Príncipe, nem em nenhum outro local da casa. Talvez se tivesse demorado em Lucques, onde ia frequentemente, ou em qualquer outra quinta...

 

Falava muito depressa, acrescentando as palavras umas às outras, como quem procura convencer, mas quanto mais razões apresentava para justificar a ausência do Intendente, menos Mariana a acreditava. Qualquer coisa lhe dizia que Matteo não estava longe, mas não queria vir...

 

Está bem disse ela finalmente. Deixemos isso por agora. Visto que ele está invisível, veremos a coisa amanhã. Mandai-lhe dizer que o espero aqui logo de manhã... senão pedirei ao príncipe... meu esposo para me ouvir!

 

Dona Lavínia não respondeu, mas a sua perturbação parecia aumentar. Enquanto, substituindo Ágata, ela desfazia as espessas tranças negras da senhora e as escovava para a noite, Mariana sentiu tremer as suas mãos sempre tão seguras habitualmente. Não sentiu qualquer piedade. Pelo contrário, para tentar desvendar um pouco o mistério que representava o Intendente intocável, esforçou-se, quase cruelmente; fazia pergunta sobre pergunta sobre a família de Damiani, a sua situação junto dos pais do príncipe, sobre esses mesmos pais. Dona Lavínia fugia, contradizia-se, respondia tão evasivamente que Mariana não soube nada mais e, finalmente, exasperada, pediu à governanta para a deixar deitar-se sozinha. Visivelmente aliviada, abandonou o quarto com a pressa de quem não pode mais.

 

Ficando só, Mariana deu, agitadamente, duas ou três voltas ao quarto; depois, retirando o roupão, apagou as velas e lançou-se sobre o leito. O calor do mês de Agosto abatera-se, desde manhã, sobre a região e a noite pouco alívio trouxera. Sufocante e pesado, tinha invadido, durante o dia, as grandes salas da ”villa”, apesar da frescura das cascatas. Sob as cortinas do baldaquino, Mariana sentiu-se alagada em suor.

 

Com vivacidade, saltou da cama, afastou os reposteiros e abriu as janelas, esperando um pouco de acalmia para a febre que a devorava. A claridade do jardim banhado de luar surgiu, mágica, irreal, apenas habitada pela canção sussurrante das fontes. A sombra das grandes árvores espalhava-se, muito negra, sobre a relva sem cor. O campo, para além dos jardins, estava silencioso e toda a natureza parecia petrificada. O mundo, nessa noite, parecia morto.

 

Oprimida, com a garganta seca, Mariana dirigia-se, de novo, para a cama, a fim de beber um pouco de água da garrafa colocada à sua cabeceira, mas deteve-se e regressou à janela. Ao longe, ouvia-se o galope de um cavalo, suave ruído que se aproximava, pouco a pouco, amplificava-se, tornava-se mais preciso e mais forte. De um bosquezinho surgiu uma mancha branca. O olhar arguto de Mariana reconheceu logo Ilderim, o mais belo garanhão da coudelaria, o mais difícil também, um puro-sangue como a neve, duma beleza extraordinária, mas tão caprichoso que, apesar de toda a sua ciência equestre, ela não tinha ousado ainda montá-lo. A criança que vivia dentro de si interditava-lhe esse género de loucura. Distinguiu também a forma negra de um cavaleiro, mas não conseguiu reconhecê-lo. Parecia alto e vigoroso. Todavia, àquela distância, era impossível precisar qualquer coisa. Uma coisa era certa: não era Matteo Damiani, nem Rinaldo, nem nenhum dos palafreneiros. No espaço de um instante, cavalo e cavaleiro tinham atravessado o relvado e desapareciam sob as árvores, onde o ruído dos cascos diminuiu até se desvanecer completamente. Mas Mariana tivera tempo de admirar a irrepreensível silhueta do cavaleiro que, como fantasma negro sobre tanta brancura, não destoava da montada. O arrogante Ilderim reconhecia nele o dono.

 

Subitamente, uma ideia atravessou o espírito de Mariana e atormentou-a tanto que foi incapaz de esperar pela manhã para a verificar. Dirigiu-se para a campainha colocada na cabeceira da cama e agitou-a tão energicamente como se se tratasse de tocar a rebate. Alguns instantes depois, Dona Lavínia, em camisa de noite e touca, aparecia no quarto, muito assustada e” receando o pior. Vendo Mariana de pé e, aparentemente, muito calma, deu um suspiro de alívio.

 

Meu Deus, tive tanto medo! Julguei que a Senhora Princesa estivesse doente e que...

 

Não vos aflijais Dona Lavínia, estou muito bem. Estou desolada por vos ter despertado, mas desejo que respondais a uma pergunta... que respondais já... e com a maior clareza possível!

 

A candeia que Dona Lavínia segurava vacilou de tal modo que teve de a colocar sobre um móvel.

 

Que pergunta, minha Senhora?

 

Com um gesto, Mariana apontou para a janela aberta, junto da qual se encontrava, e envolveu com o seu olhar imperioso o rosto da governanta, que à luz da lua parecia feito de cera.

 

Sabeis muito bem qual é a pergunta, Dona Lavínia, doutro modo não estaríeis tão pálida! Quem é o homem que acabo de ver atravessar, a cavalo e numa corrida infernal, o relvado? Montava Ilderim, o cavalo que não se deixa montar por ninguém. Vamos, respondei! Quem é?

 

Minha Senhora... eu...

 

A pobre mulher parecia mal ter-se em pé e procurar apoio nas costas de um cadeirão, mas Mariana aproximou-se dela, colocou-lhe a mão sobre o ombro e martelou, cruelmente, as sílabas:

 

Quem é?

 

O... o príncipe Conrado!

 

Mariana deu um longo suspiro de alívio. Não estava surpreendida. Desde que avistara a vaga forma do cavaleiro, esperava aquela resposta, embora ela criasse no seu espírito uma série de pontos de interrogação. Mas, Dona Lavínia, esgotada de forças e desprezando todo o protocolo, deixou-se cair sobre o cadeirão e pôs-se a chorar com a cabeça entre as mãos. Imediatamente, Mariana, tomada de remorsos perante aquela dor, ajoelhou-se junto dela, procurando sossegá-la.

 

Acalmai-vos, Dona Lavínia! Não queria fazer-vos sofrer, interrogando-vos. Mas não podeis compreender até que ponto pode ser desagradável este mistério que me cerca desde que cheguei aqui.

 

Eu sei... compreendo bem... balbuciou Lavínia. Eu sabia que numa ou noutra noite o veríeis e que faríeis essa pergunta, mas esperava...

 

Que eu não me demoraria aqui o tempo suficiente de o ver, talvez?

 

Talvez... mas era pueril, porque cedo ou tarde... Ele sai assim quase todas as noites. Galopa durante horas com llderim, que é o único a poder montá-lo. É a sua maior alegria... a única que concede a si próprio!

 

Um soluço perpassou pela voz da governanta. Mariana apertou-lhe docemente as mãos e murmurou:

 

Não exagerará ele o rigor consigo próprio, Dona Lavínia? Esse homem não é doente ou um enfermo, senão não poderia montar Ilderim... A figura que eu avistei não parecia ter qualquer defeito. Pareceu-me alto e, aparentemente, vigoroso. Porquê então esconder-se assim, porquê condenar-se a esse isolamento desumano, porquê enterrar-se vivo?

 

Porque é impossível ser doutro modo... Impossível! Crede-me, princesa, não é pelo gosto mórbido do mistério, nem por necessidade de se tornar notado, que aquela pobre criança se isolou do mundo. É porque não podia evitá-lo.

 

Mas, a forma que avistei vagamente, nada tinha de repugnante. Parecia... normal, sim normal.

 

Talvez seja... o rosto é que o não é!

 

Seria apenas um pretexto. Já vi homens horrorosos, desfigurados por um ferimento e cujo aspecto se tornava repugnante, mas que não viviam escondidos. Vi também homens usar espécies de máscaras acrescentou ela lembrando-se de Morvan e das suas mascarilhas.

 

Conrado usa uma também, quando sai. A noite e a sombra de uma capa e de um chapéu não lhe parecem suficientes para o encobrir. Mas, à luz do dia, a própria máscara não seria suficiente. Crede-me, peço-vos, minha Senhora, não procureis saber, nem aproximar-vos dele. Poderia... morrer de vergonha!

 

De vergonha?

 

Com dificuldade, Dona Lavínia ergueu-se e puxou Mariana para junto de si. Tinha cessado de chorar e uma grande calma invadira-lhe o rosto. De qualquer modo, parecia aliviada por ter falado. Olhando Mariana bem de frente, nos olhos, acrescentou gravemente;

 

Conrado é portador do peso de uma maldição que se abateu sobre esta casa, outrora tão forte e poderosa, uma maldição que possuía um rosto de anjo. Só a criança que lhe ides dar poderá exorcizá-la. O mal de que sofre Conrado não terá remédio, mas pelo menos o nome de Sant’Anna poderá brilhar de novo entre os homens. Boa-noite, Vossa Senhoria. Tentai esquecer aquilo que vistes.

 

Desta vez, Mariana, vencida, não insistiu. Deixou Dona Lavínia retirar-se sem uma palavra. Sentia-se terrivelmente fatigada, como se tivesse feito um longo e doloroso esforço, e um enorme desencorajamento invadiu-a. O enigma que representava Conrado tomava conta do seu espírito, atormentava-a, insolúvel e lancinante. A sua curiosidade exacerbada, a necessidade que sempre sentira de ver claro à sua volta, levavam-na às piores loucuras, por exemplo, ir esconder-se na passagem do cavaleiro fantasma, atirar-se sobre o caminho de Ilderim para o obrigar a parar, mas qualquer coisa inexplicável retinha-a. Talvez as palavras que Dona Lavínia pronunciara: ”Ele poderia morrer de vergonha...” palavras tão pesadas de tristeza, como a voz vindo do fundo de um espelho.

 

Para tentar recuperar um pouco de calma e, ao mesmo tempo, refrescar-se, foi banhar o rosto e as mãos no gabinete de ”toilette”, aspergiu todo o copo de água-de-colónia e foi estender-se sobre a cama. Contudo não conseguiu adormecer. O calor ardente e as ideias desordenadas que lhe enchiam a cabeça afugentavam o sono. O seu ouvido mantinha-se atento para os ruídos incertos da noite, espiando o galope longínquo de um cavalo. Mas as horas passaram-se, sem que nada se fizesse ouvir, e Mariana, esgotada, acabou por cair numa espécie de torpor, longe de um verdadeiro sono. Imagens estranhas passavam pelo seu espírito, como num sonho, e contudo não tinha a impressão de estar a dormir. Eram formas vagas e enevoadas, ou então as personagens do tecto que lhe parecia terem descido para a envolverem numa dança de caretas trocistas, eram flores bizarras que se inclinavam sobre ela e se transformavam em rostos, era a parede do quarto que se entreabria subitamente para deixar passar uma cabeça, e essa cabeça era a de Matteo Damiani...

 

Com um grito, Mariana acordou bruscamente. Esta última impressão fora tão forte que fizera desaparecer as brumas do sono para a lançar na realidade, alagada de suor e com a garganta seca. Sentou-se na cama, retirou uma longa mecha húmida que lhe caía sobre o rosto e olhou à sua volta. O dia começava a despontar e banhava o quarto numa luz cor de malva, onde se adivinhava já o rosa da aurora. Em qualquer parte no campo, os galos lançavam os seus gritos matutinos, respondendo-se de quinta para quinta. Vinha uma frescura do jardim e, no leito húmido, com a camisa colada ao corpo, Mariana teve frio subitamente. Levantou-se para a despir e vestir uma seca e assim pôr fim à angústia que lhe deixara o sonho, quando o seu olhar pousou sobre o local onde, no pesadelo, vira aparecer a cabeça de Matteo e fez uma exclamação de espanto. Sob a moldura dourada de um dos espelhos, via-se uma linha negra sobre a parede, uma linha negra que nunca vira.

 

Sem fazer mais ruído do que um gato, de pés descalços, Mariana, com o coração a bater, aproximou-se e sentiu uma ligeira corrente de ar.

 

Sob a sua mão, o espelho afastou-se suavemente, pondo à mostra uma pequena escada feita na espessura da parede, que descia em espiral. Bruscamente, tudo se esclareceu no seu espírito. Não tinha sonhado! No seu adormecimento, vira, realmente, Matteo Damiani aparecer na abertura, mas com que finalidade? Para quê? Quantas vezes já ousara ele vir, assim, ao seu quarto, enquanto dormia?...

 

Recordou, ao mesmo tempo, o rosto entrevisto no espelho, na noite do casamento, enquanto se despia. Também não tinha sonhado! Ele estava ali e, lembrando-se da sua expressão brutal, Mariana corou, ferida no seu pudor e ao mesmo tempo de furor. Uma cólera louca invadiu-a. Assim, não contente de cortejar Ágata, de forma a incomodá-la, esse miserável tinha ousado introduzir-se no seu quarto... para espiar a esposa do seu senhor e surpreendê-la nos segredos da sua intimidade! Que esperava ele, vindo assim como um ladrão? Que teria ele talvez ousado um. dia, ou nessa mesma manhã, se ela não descobrisse o espelho móvel que, sem dúvida na sua precipitação, deixara mal fechado?

 

Vou retirar-lhe a vontade de recomeçar! murmurou a jovem.

 

Num instante, enfiou um vestido ao acaso, calçou leves sandálias, cujas fitas atou rapidamente, e foi buscar à sua mala de viagem uma das pistolas que Napoleão lhe dera e que trouxera de Paris. Verificou se estava carregada, meteu-a no cinto e acendeu a vela. Assim equipada, dirigiu-se decididamente para o espelho aberto e começou a descer a escada.

 

A corrente de ar fez diminuir a chama da vela, mas não a extinguiu. Suavemente, sem fazer o menor ruído, protegendo a chama com a mão livre, desceu os degraus já gastos. A escada não era longa e não correspondia sequer a um andar. Desembocava nas traseiras da casa, ao abrigo de um espesso maciço de folhagem que escondia a sua entrada. Através dos ramos, Mariana viu subitamente a água calma do ninfeu que a aurora empurpurava. Viu também Matteo desaparecer na gruta, que se abria no centro da colunata, e decidiu lançar-se em sua perseguição. Rapidamente, apagou a vela e escondeu-se sob os ramos.

 

Não sabia o que o intendente ia fazer, mas sabia que seria apanhado como numa armadilha e não poderia escapar-lhe. Conhecia, efectivamente, a gruta que visitara com o padrinho. Era um local agradável e fresco. A bacia do ninfeu prolongava-se Interiormente e formava uma espécie de piscina no meio de um salão, pois os rochedos das paredes estavam cobertos de seda e, em redor da bacia, tinham sido dispostos tapetes e almofadas com uma profusão oriental.

 

Ligeira, lançou-se na pista do intendente e pôs-se a correr ao longo da colunata. No momento de penetrar na gruta, hesitou um momento, encostou-se à parede rochosa e tirou a pistola. Em seguida, muito lentamente, avançou, passou a entrada... e fez uma exclamação de espanto. Não estava ninguém na gruta, mas uma das tapeçarias erguida revelava a entrada de uma espécie de túnel que devia atravessar a colina, pois na outra extremidade avistava-se a luz do dia.

 

Sem hesitar um momento sequer, apertando a arma na mão, Mariana avançou pelo túnel, que era bastante largo e cujo pavimento, coberto de areia fina, se tornava agradável e perfeitamente silencioso. A excitação substituíra, pouco a pouco, a sua cólera inicial, uma excitação semelhante à que outrora sentia em Selton, quando caçava raposas. Contudo esta raposa podia revelar-se tão perigosa como uma fera, e a aproximação do perigo exaltava Mariana. Existia também a certeza de ter abordado em tão pouco tempo alguns dos segredos dos Sant’Anna. Chegada à extremidade da passagem subterrânea, ficou encostada e confundida com o rochedo, na sombra, contemplando o estranho espectáculo com que deparou.

 

O túnel desembocava numa estreita clareira, uma abertura entre dois montes escarpados, fechada por dois lados por urzes e uma espessa vegetação. Ao fundo, contra a muralha rochosa, coberta de hera e plantas trepadeiras, uma série de estátuas de pedra com gestos delirantes em arquitectura rococó acentuava o aspecto trágico do edifício, cujas ruínas calcinadas ocupavam o centro da clareira.

 

Era apenas um montão de colunas partidas e escurecidas, de pedras, de esculturas despedaçadas às quais se agarrava a hera tenaz de odor acre. O incêndio destruidor deveria ter sido de uma rara violência, pois as ruínas e as muralhas rochosas mostravam longas manchas pretas deixadas pelas chamas. Mas sobre tais ruínas, sobre aquela desolação, milagrosamente preservada, sem dúvida, brilhando em toda a pureza do mármore branco, erguia-se uma estátua e parecia reinar. Mariana reteve a respiração, fascinada pelo que via.

 

Do amontoado de escombros, tinham feito alguns degraus e, no último deles, Matteo Damiani de joelhos e curvado enlaçava com os dois braços as pernas da estátua. Era a mais bela e a mais estranha estátua que Mariana jamais vira. Representava, em tamanho natural, uma mulher nua de uma beleza quase diabólica à força de perfeição e de sensualidade. De pé, com os braços atirados para trás e desligados do corpo, a cabeça virada para cima, como se fosse puxada pelo peso da cabeleira solta, a mulher, com os olhos fechados e os lábios entreabertos, parecia oferecer-se a qualquer amante invisível. A arte do escultor tinha reproduzido, com uma precisão alucinante, os menores detalhes do corpo feminino, mas a verdade com que traduzira, no rosto de olhos dilatados, lábios inchados de voluptuosidade, o êxito do prazer, era prodigiosa. E Mariana, perturbada por aquela bela imagem do desejo, pensou que o artista deveria ter amado o modelo com extremo ardor.

 

O Sol nascia. Um raio dourado deslizou sobre a colina e veio acariciar a estátua. Imediatamente, o mármore frio aqueceu e pôs-se a vibrar. Reflexos dourados surgiram sobre a pedra polida, tornando-a talvez mais doce do que uma pele humana, e Mariana julgou, por um momento, que a estátua ganhara vida. Viu, então, uma coisa incrível. Matteo erguera-se e, de pé sobre a base, tomara a mulher de mármore nos braços. Com uma paixão furiosa, beijava os lábios que se ofereciam tão naturalmente, como se lhes quisesse comunicar o seu próprio calor, enquanto murmurava palavras soltas e injúrias de amor. Produzia, assim, uma litania singular, onde a cólera se misturava ao amor e às mais brutais expressões do desejo. Ao mesmo tempo, as suas mãos febris percorriam o corpo de mármore, que à luz quente da manhã parecia estremecer sob as carícias.

 

Esta cena de amor com uma estátua possuía qualquer coisa de alucinante e Mariana, espantada, recuou na sombra do túnel, esquecendo que viera até ali para confundir e ameaçar aquele homem. A pistola, inútil, tremia agora entre os seus dedos e ela colocou-a, de novo, no cinto. O homem era louco; não havia outra explicação para aquele comportamento delirante e, de repente, Mariana teve medo. Estava sozinha com um doido, num local escondido, talvez ignorado até da maior parte dos habitantes do palácio. Até a arma que trazia lhe pareceu irrisória. Matteo possuía, sem dúvida, uma força perigosa. Podia atirar-se sobre si, se a visse, e atacá-la, sem que se pudesse defender. Ou então teria de disparar... matar... e isso, ela, também não queria. A morte involuntária que dera a Ivy St. Albans pesava-lhe ainda bastante.

 

Ouviu, então, o homem, no seu delírio, prometer à sua insensível amante voltar nessa noite.

 

A lua estará cheia, diabinha, e verás como não te esqueci! rugiu ele.

 

O coração de Mariana alvoroçou-se. Ele ia partir, descobri-la ali... e, sem esperar mais, fugiu, percorrendo o túnel, a gruta e o ninfeu a toda a velocidade; correu para trás do maciço de verdura e começou a subir as escadas, mas virou-se para lançar um último olhar através das folhas. Fora a tempo. Matteo emergia da gruta e, novamente, Mariana perguntou a si própria se não estivera a sonhar. O homem, que momentos antes ela surpreendera em plena crise de loucura erótica, caminhava calmamente sobre a passagem traçada entre as colunas e a água, com as mãos atrás das costas e parecendo respirar, com delícia, o vento ligeiro que brincava com os seus cabelos grisalhos. Era apenas um passeante matinal, aproveitando a frescura dos jardins húmidos de orvalho, antes de dar início ao seu dia de trabalho... Mariana subiu os degraus apressadamente, entrou pela abertura na parede, mas, antes de a fechar, teve o cuidado de observar o seu mecanismo exterior e interior. Podia, efectivamente, abrir-se dos dois lados, por um fecho nas escadas e pelo toque de um motivo da moldura dourada no quarto. Como se aproximava a hora em que Ágata costumava trazer-lhe a chávena de chá matinal, Mariana apressou-se a retirar o vestido e as sandálias e deitou-se na cama. Por nenhum preço desejava que Ágata, já tão assustada, soubesse da sua expedição matutina.

 

Recostada nas almofadas, tentou reflectir calmamente, embora não fosse fácil. As descobertas sucessivas da abertura na parede, do templo, da clareira, da estátua e da loucura de Matteo eram suficientes para abalar um sistema nervoso mais sólido do que o seu. E havia ainda essa entrevista estranha e ameaçadora que ele marcara à amante de mármore. Que significavam aquelas palavras bizarras? O que é que ele não tinha esquecido? Que iria ele fazer, de noite, àquelas ruínas e que teria sido esse monumento incendiado, sobre cujos escombros reinava a estátua? Uma vivenda? Um templo? Que culto aí teriam celebrado e celebrariam ainda? A que rito obscuro e demente Matteo Damiani tencionava sacrificar nessa noite?

 

Todas estas perguntas se cruzavam no espírito de Mariana, sem que lhe pudesse dar a menor resposta. Teve, primeiro, a ideia de interrogar mais uma vez Dona Lavínia, mas sabia que os seus interrogatórios faziam sofrer a pobre mulher, sem dúvida ainda mal refeita do que lhe fizera nessa noite. Além disso, era muito possível que ela ignorasse tudo sobre a estranha deusa, que o intendente adorava secretamente... O próprio príncipe saberia como o seu intendente e secretário ocupava as noites? E, se o soubesse, aceitaria responder a Mariana, admitindo que ela conseguisse ser ouvida? O melhor ainda talvez fosse interrogar o próprio Matteo, tomando, naturalmente, certas precauções.

 

Aliás, não ordenara, na véspera, a Dona Lavínia, para lho enviar de manhã cedo?

 

Veremos bem! disse por entre os dentes.

 

Tomada a decisão, Mariana bebeu o chá fervente que Ágata lhe trouxera, procedeu à sua ”toilette” e deixou-se vestir. Como o dia prometia estar tão quente como o anterior, ela escolheu um vestido de seda amarelo bordado de margaridas brancas e sapatos da mesma cor. Cobrir-se de tons claros e alegres parecia-lhe um bom meio de lutar contra as impressões angustiantes que tivera de noite. Em seguida, como Dona Lavínia a viesse informar que o intendente estava à sua disposição, dirigiu-se para a pequena sala contígua ao quarto e ordenou que o introduzissem.

 

Sentada diante duma pequena secretária, viu-o aproximar-se, tentando dissimular o melhor possível a aversão que ele lhe inspirava. A cena da clareira estava ainda muito fresca no seu espírito, mas se queria saber qualquer coisa mais, era absolutamente necessário dominar-se. Ele, aliás, não parecia nada comovido por se encontrar ali e quem o visse, de pé, diante da jovem, numa atitude de deferência, teria jurado que ele era o modelo dos servidores e não um homem suficientemente vil para se introduzir, como um ladrão, no quarto dessa mesma mulher, quando o sono a tornava indefesa.

 

Para melhor se conter e evitar que os dedos lhe tremessem, Mariana pegou numa longa pena de pato e, brincando com ela distraidamente, conservou-se em silêncio. Matteo tomou o partido de iniciar a conversa.

 

Vossa Senhoria mandou-me chamar?

 

Ela ergueu sobre ele um olhar cheio de indiferença.

 

Sim, Senhor Damiani, mandei-vos chamar. Vós sois o intendente deste domínio e penso que nenhum dos seus recantos vos seja desconhecido.

 

Creio, efectivamente, conhecê-lo a fundo! disse ele com um sorriso.

 

Podereis, portanto, informar-me. Ontem, à tarde, o calor era tão grande que nem nos jardins havia qualquer frescura. Procurei, pois, refúgio na gruta das ninfas...

 

Deteve-se, mas como não desviava o olhar do intendente, julgou ver uma ligeira prega nos seus espessos lábios. Com uma fingida indiferença, mas martelando bem as palavras, prosseguiu.

 

Apercebi-me então que uma das tapeçarias, ligeiramente afastada, deixava passar uma corrente de ar e vi a abertura que ela escondia. Não seria mulher se não fosse curiosa, e segui por essa passagem no extremo da qual vi os vestígios de um monumento incendiado.

 

Voluntariamente, ela não mencionara a estátua, mas desta vez, tinha a certeza, Matteo empalidecera. Com os olhos, subitamente entristecidos, murmurou:

 

Compreendo! Posso dizer a vossa Senhoria que o Príncipe não gostaria de saber que haveis descoberto o pequeno templo. É um assunto proibido e julgo que valeria mais a Senhora...

 

Sou a única a julgar o que será preferível para mim, Senhor Damiani. Se falo convosco, é porque não tenho a intençãode interrogar... o meu esposo sobre este assunto e, com maior razão, se ele lhe desagrada. Mas vós responder-me-eis.

 

Porque o farei? -lançou o intendente com uma insolência que talvez não tenha sido capaz de dominar.

 

Porque eu sou a princesa Sant’Anna, quer o queirais ou não, quer isso vos agrade ou não...

 

Eu não disse...

 

Tende, pelo menos, a cortesia de não me cortar a palavra. Sabei isto: quando faço uma pergunta, quero que me respondam. Todos os meus servidores sabem isso acrescentou ela, sublinhando voluntariamente a palavra servidor. Tendes de obedecer-me. Além disso, não vejo o que poderia impedir-vos de me responder. Se esse local devia permanecer ignorado, se ele lembra a vosso amo tristes recordações, porque não fechastes a passagem?

 

O meu amo não mo ordenou.

 

E vós agis apenas sob as ordens formais? ironizou ela. Endireitou-se, mas pareceu dobrar-se à sua vontade. O seu olhar glacial enfrentou o da jovem.

 

Está bem! Estou às ordens de Vossa Senhoria. Feliz por ter vencido, deu-se ao luxo de sorrir.

 

Estou-vos agradecida. Agora dizei-me simplesmente o que era esse pequeno templo... e sobretudo quem era a mulher, cuja estátua, magnífica e surpreendente, está entre as ruínas. Não me digais que é um vestígio antigo, pois não vos acreditaria.

 

Porque mentiria eu? Essa estátua, Minha Senhora, é a de Dona Lucinda, a avó do nosso Príncipe.

 

A sua indumentária não é... um pouco sumária para uma avó? Em França, não andam assim.

 

Mas as irmãs do Imperador também a usam! exclamou ele. A princesa Borghèse não quis imortalizar a sua beleza no mármore pelo cinzel de Canova? Dona Lucinda fez o mesmo. Não imaginais como era a sua beleza! Qualquer coisa de assustador, de insustentável, e sabia servir-se dela com uma arte diabólica. Vi homens rastejarem a seus pés, endoidecerem, matarem-se por ela... embora tivesse ultrapassado os quarenta e cinco anos há muito tempo! Mas era possuída pelo Diabo!

 

Como uma torrente que rompeu uma barragem, Matteo falava agora como se não pudesse parar, e Mariana, esquecendo por um instante a sua repugnância e as ofensas, ouvia-o fascinada. Contentou-se em murmurar.

 

Conheceste-la?

 

Ele fez um sinal afirmativo, mas virou-se ligeiramente, perturbado pelo olhar fixo da jovem, e, em seguida, acrescentou encolerizado:

 

Eu tinha dezoito anos, quando ela morreu... queimada, queimada viva nesse templo que, na sua loucura, mandara erguer ao seu próprio esplendor. Recebia aí os amantes, escolhidos quase sempre entre camponeses ou marinheiros, pois a paixão por si própria só se igualava ao frenesim amoroso.

 

Mas... porque os escolhia entre o povo?

 

Com uma súbita violência, virou-se para Mariana, com a cabeça baixa como um touro que vai atacar, e Mariana estremeceu ao ouvir, na sua voz, o rugido dos fogos do inferno que JLucinda devia ter acendido.

 

Porque podia, em seguida, fazê-los desaparecer sem que ninguém lhe pedisse contas. Os do seu meio, aqueles que sabiam agradar-lhe, conservava-os, segura da sua submissão à escravatura que lhes impunha e sem a qual se recusavam a viver. Mas quantos jovens desapareceram sem deixar o menor vestígio, depois de terem dado, numa noite de amor, toda a sua juventude e ardor a essa loba insaciável? Ninguém... não, ninguém pode imaginar o que era essa mulher. Sabia despertar os piores instintos, as piores loucuras e gostava que a morte fosse a conclusão do amor. Talvez a lenda seja certa...

 

A lenda?

 

Diz-se que essa beleza, que se recusava a desaparecer, era o resultado de um pacto feito com o Diabo. Uma noite, em que ela interrogava ansiosamente um dos espelhos do quarto, viu aparecer um belo rapaz vestido de negro que, em troca da sua alma, lhe ofereceu trinta anos de beleza intacta, trinta anos de prazer e de domínio. Diz-se que ela aceitou, que o tempo passou, mas que fez um mau negócio, pois os trinta anos não tinham ainda decorrido quando, uma manhã, os servidores, ao entrarem no quarto, encontraram apenas um esqueleto roído de vermes...

 

Como Mariana se ergueu com uma exclamação de repugnância, ele acrescentou com um sorriso de desdém.

 

É apenas uma lenda, Minha Senhora! A verdade foi completamente diferente, visto que, como vos disse, Dona Lucinda morreu no incêndio que destruiu o templo... um incêndio que ateou com as próprias mãos na noite em que descobriu uma ruga ao canto da boca. E ides, certamente, perguntar-me, Princesa, porque escolheu ela essa morte horrível. A isso, posso também responder. Não quis que o corpo maravilhoso, que ela tanto amara, se decompusesse lentamente na terra e conhecesse o horror da podridão. Preferiu destruí-lo pelas chamas!... Foi uma noite abominável... O fogo rugia e as chamas viam-se de tão longe que os camponeses aterrados juram ainda que eram as do próprio inferno... Ouço ainda o seu grito de agonia... um rugido de loba! Mas eu sei que ela não desapareceu completamente! Vive ainda!

 

Que quereis dizer? exclamou Mariana horrorizada com o que ouvira.

 

Matteo pousou nela um olhar alucinado. Fez um sorriso que lhe franziu os lábios sobre os dentes amarelos e continuou num tom misterioso, com um estranho poder de encantamento:

 

Que ela ronda sempre por esta casa... pelos jardins... pelo vosso quarto, onde se deslocava nua para poder comparar nos espelhos a sua beleza, com a da estátua que mandara erigir... Trouxe para aqui a maldição e vela sobre essa maldição que é a sua vingança... Vós própria não a podereis impedir!

 

Bruscamente, mudou de tom e inquiriu quase obsequiosamente:

 

-A Senhora Princesa deseja saber mais qualquer coisa?

 

Um sobressalto arrancou Mariana à espécie de torpor em que o intendente a mergulhara. Corou violentamente sob o olhar insolente em que ele a envolvia e a encarava com ousadia. Quis responder-lhe no mesmo tom e respondeu-lhe com altivez:

 

Sim. Fostes também amante dessa mulher... visto que ela amava tanto os camponeses?

 

Ele nem hesitou. Num tom de triunfo, lançou:

 

Mas... sim, Minha Senhora... e, acreditai-me, nunca poderei esquecer as horas que lhe devo!

 

Incapaz de conter por mais tempo a sua indignação, Mariana preferiu indicar-lhe, com um gesto, que podia sair. Mas, ao ficar sozinha, permaneceu um longo momento prostrada na cadeira, procurando dominar o pânico que a invadia. Toda a beleza da região que lhe dera uma alegria calma e tranquila parecia-lhe agora viciada, manchada, desfigurada pela recordação da mulher demoníaca que tinha marcado até àquele tempo toda a família. Ao evocar a silhueta sombria do cavaleiro que, nessa noite, montava Ilderim, essa imagem de nobreza natural que faziam o homem e o animal, sentiu-se invadida pela piedade, pois tinha a impressão de que entre o príncipe e a maldição existia uma luta, sem fim, sempre perdida e retomada. Teve de fazer apelo a toda a sua razão para não pedir imediatamente as bagagens, a carruagem, para fugir para França. Até o ruído das cascatas lhe pareceu carregado de ameaças...

 

Mas havia o cardeal a quem tinha prometido esperar... e havia a estranha promessa feita por Matteo à sombra de Lucinda. Essa promessa, queria saber em que consistia precisamente e, se fosse necessário, interviria. Seria talvez o meio de exorcizar finalmente o demónio ligado à casa dos Sant’Anna... O seu olhar errante fixou-se subitamente sobre as armas da família, bordadas nas costas de um cadeirão, e achou-lhes um estranho valor simbólico. A víbora e o licórnio! O animal venenoso, rastejante, mortalmente silencioso, e o animal de lenda, vestido de alvura e de luz... Era preciso que o combate cessasse antes de o seu filho vir ao mundo, pois ela não queria que ele reinasse sobre o universo de Lucinda. O instinto maternal despertava nela, repelindo com violência a mais ligeira sombra sobre o destino do filho, e, para isso, era necessário que Mariana acabasse com os demónios. Nessa noite, arranjar-se-ia para surpreender os laços que uniam ainda Matteo à morte maldita, ainda que, para isso, tivesse de arriscar a sua vida. Em seguida, agiria como a consciência lhe ditasse.

 

Mas quando a noite desceu sobre o palácio e os jardins, os projectos heróicos de Mariana deram lugar à mais primitiva das angústias, aquela que ela não sentira ainda, a das trevas cheias de perigos desconhecidos. A ideia de regressar à sinistra clareira, agora que a conhecia, de voltar a ver a estátua diabólica, gelava-a até à medula. Não conhecera ainda tal receio, nem mesmo após a evasão de Francis Cranmere, quando, por um momento, temeu pela própria vida. Francis, apesar de tudo, era apenas um homem, enquanto Lucinda incarnava o invisível e o insondável.

 

Tinha permanecido fechada no quarto, a maior parte do dia, tal era o receio de encontrar novamente o intendente. Somente, à tarde, tendo-o visto dirigir-se para a estrada, fora às cavalariças e examinara longamente Ilderim, como se qualquer sinal do belo cavalo lhe pudesse dar a chave do enigma que o seu dono representava. Mas não encontrara qualquer resposta para a pergunta que a torturava. Também não interrogara Rinaldo, que tinha seguido, com admiração, a longa atenção que a princesa dispensara ao puro-sangue, não querendo perturbar um fiel servidor, certamente muito dedicado ao amo, com o simples pretexto de o conhecer bem.

 

Regressada ao quarto, Mariana esperara a noite, na mais completa indecisão. A sua curiosidade exacerbada levava-a a voltar junto das ruínas do templo ímpio, mas aquilo que Matteo lhe tinha contado sobre Lucinda causava-lhe um desprezo infinito e receava quase tanto rever a impudica estátua como o seu fanático servo.

 

Comera um jantar ligeiro e deixara-se preparar para a noite pelas criadas, mas não se tinha deitado. O quarto sumptuoso e a extraordinária cama causavam-lhe, agora, horror. Julgava ver ainda erguer-se a estátua e mal ousava olhar para os espelhos, com medo de ver neles o fantasma da veneziana diabólica. Apesar do calor sempre muito grande, tinha mandado fechar as janelas e os cortinados num reflexo de medo infantil, que não podia evitar. A parede móvel retivera, por um longo momento, a sua atenção e tinha acumulado contra ela uma enorme quantidade de mesas e cadeiras, além de alguns objectos metálicos, tais como pesados candelabros, com o fim de provocar um enorme ruído no caso de alguém querer entrar por ali.

 

Antes de mandar embora Ágata e Dona Lavínia, tinha pedido à última para lhe enviar Gracchus. A sua ideia era instalar o jovem cocheiro num colchão no pequeno corredor que ligava o seu quarto ao de Ágata, mas, ignorando as aflições da sua Senhora, Gracchus fora passar a noite a casa de Rinaldo, de quem se tornara amigo e que vivia numa quinta nos confins do domínio. Mariana viu-se, assim, obrigada a defender-se sozinha contra o medo, esse medo que a levara a estender a mão, várias vezes, para o cordão da campainha para pedir a carruagem. A sua vontade fora mais forte, mas agora tinha de passar uma noite, que lhe parecia cheia de perigos. As horas que a sseparavam do regresso do Sol iam durar uma eternidade.

 

”O melhor seria dormir, dormir profundamente dissera a si própria, pois já não sentiria a tentação de voltar à clareira...”

 

Com essa intenção, tinha pedido a Dona Lavínia para lhe preparar a tisana que lhe fizera tão bem na primeira noite, mas, no momento de bebê-la, colocara-a sobre a mesinha de cabeceira sem lhe tocar. Se dormisse de um sono muito profundo e não ouvisse a queda dos objectos encostados à parede, no caso de...! Não, ainda que essa noite viesse a ser um terrível pesadelo, tinha de a viver completamente e com a maior lucidez possível.

 

Com um suspiro desencorajado, colocou as duas pistolas junto da cama, pegou num livro, estendeu-se e tentou ler. Era uma obra de M. de Chateaubriand, um romance muito comovedor, que tratava dos amores de dois jovens indianos, Chactas e Atala. Até ali, Mariana lera-o com muito interesse, mas nessa noite o seu espírito estava ausente. Vagabundeava muito longe das margens do Meschacebé, à volta da clareira, onde se ia passar, só Deus sabia o quê. Pouco a pouco, a insinuante e pérfida curiosidade ia-se infiltrando nela. Mariana acabou por pôr o livro de parte.

 

Não é possível! - disse ela muito alto. Se isto dura, vou endoidecer!

 

E estendendo o braço, puxou o cordão da campainha que a punha em comunicação com o quarto de Ágata. Contava pedir à rapariga que viesse passar a noite consigo. Acompanhada, sentir-se-ia mais forte para lutar contra o terror e contra o desejo de saber e a própria Ágata, sempre assustada, ficaria encantada de estar junto dela. Mas, embora Mariana esperasse, tocasse e voltasse a tocar, ninguém apareceu.

 

Pensando que, talvez, a rapariga tivesse tomado a mistura de Dona Lavínia, ergueu-se, envolveu-se num roupão ligeiro, meteu os pés em pantufas e dirigiu-se para o quarto de Ágata. Bateu levemente à porta, sob a qual havia luz, e, como não obteve resposta, rodou o puxador da porta e abriu-a. O quarto estava vazio.

 

Uma vela ardia sobre a mesa de cabeceira, mas não havia ninguém na cama, cujos lençóis estavam caídos no chão, como se, ao levantar-se, a criadita se tivesse arrastado. Inquieta, Mariana ergueu maquinalmente os olhos para a sineta pendurada sobre o leito e que comunicava com o seu quarto, e uma exclamação de surpresa e de cólera escapou-lhe da boca: estava forrada de roupa, não podendo emitir qualquer som. Era, muito forte! Não só Ágata abandonava o quarto de noite, mas o seu cinismo era tanto que abafava o som da sineta! Aliás, para onde iria? Encontrar-se-ia com alguém? Não era Gracchus que estava em casa de Rinaldo... e nenhum outro criado, pois Ágata não falava com ninguém e não saía, a não ser consigo, ou agarrada às saias de Dona Lavínia, a única que lhe inspirava confiança naquela casa. Quanto a...

 

Mariana, que ia voltar ao seu quarto, deteve-se junto do leito e considerou com um ar sonhador a bizarra disposição dos lençóis. Indicavam, claramente, que a rapariga fora levada, ou arrastada. Não se desfaz assim uma cama, quando nos erguemos. Pelo contrário, quando se tira um corpo, inerte ou não... Mariana sentiu bruscamente um aperto no coração. Uma ideia terrível acabava de lhe ocorrer. A sineta privada de som, os lençóis caídos, a vela ainda acesa... e também a chávena vazia sobre a mesa de cabeceira, essa chávena que continha ainda o odor característico da famosa tisana... junto a outro mais subtil...

 

Ágata não partira por vontade própria. Tinha sido levada e Mariana receava adivinhar por quem.

 

As suas últimas hesitações desapareceram completamente. Ao mesmo tempo, o medo, que durante toda a tarde a dominara, desvaneceu-se. Regressou ao quarto a correr, demoliu febrilmente a barreira de objectos contra a parede, apertou o roupão esvoaçante por meio de um lenço comprido de seda que atou à cintura, pegou numa vela com uma mão e numa pistola com a outra, colocou a segunda arma no cinto e tomou o mesmo caminho da manhã.

 

Mas, desta vez, percorreu-o rapidamente, sem uma hesitação, levada por urna cólera que fazia desaparecer a mais simples prudência ou qualquer instinto de segurança. Não teve necessidade de apagar a vela depois de descer as escadas. O vento encarregou-se disso. Durante a tarde, o tempo refrescara muito, mas, por detrás das janelas calafetadas, ela não se tinha apercebido. Aspirando com prazer o ar, que tinha deixado de ser sufocante, pensou que devia chover em qualquer parte. O céu estava claro, porque a Lua estava cheia, mas havia nuvens que corriam rapidamente, escondendo, de vez em quando, o grande disco prateado. O silêncio angustiante cessara. As inumeráveis folhas e os ramos das árvores agitando-se tornavam o parque sussurrante.

 

Com um passo decidido, Mariana entrou na gruta, que atravessou sem parar, mas na passagem sob a colina, diminuiu o andamento para não se tornar ouvida. Na clareira via-se uma luz avermelhada. Na passagem, fazia quase frio por causa da corrente de ar e Mariana, trémula, apertou no pescoço o tecido fino do seu roupão. Ao aproximar-se da extremidade, o seu coração pôs-se a bater com mais força, mas segurou, com firmeza, a arma, encostou-se contra a parede e arriscou-se a estender a cabeça para fora. Teve a impressão de ter mudado de século, de passar de repente da era napoleónica, cheia de ruído, de furor, de glória, mas fervilhante de uma vida intensa, ao mais profundo, ao mais negro obscurantismo medieval.

 

Junto da estátua, iluminada pelas chamas de duas grandes velas de cera preta e de duas panelas, donde saía um fumo acre e de estranha cor avermelhada, tinham erigido sobre as ruínas uma espécie de altar. Suportava a forma inerte de uma mulher nua, e, sem dúvida, inconsciente, pois estava perfeitamente imóvel, embora não fosse visível qualquer laço a prendê-la. Um vaso, bastante parecido com um cálice, estava colocado sobre uma pequena tábua em cima do seu ventre. Com um espanto misturado de pânico, Mariana reconheceu Ágata. Reteve, contudo, a respiração, de tal modo era profundo o silêncio. Parecia-lhe que o menor sopro podia engendrar a pior das catástrofes.

 

Diante da rapariga inerte, Matteo estava ajoelhado, mas um Matteo que Mariana reconheceu dificilmente. Vestia uma espécie de túnica comprida preta, bordada com sinais estranhos e largamente aberta no peito. Um círculo de ouro rodeava-lhe os cabelos cinzentos. Já não era o silencioso intendente do príncipe Sant’Anna, mas sim uma espécie de necromante que se aprontava a celebrar um dos cultos mais ímpios e mais antigos, vindos de remotas épocas. Começou, subitamente, a recitar orações, em latim, e, ao ouvi-las, Mariana não teve qualquer dúvida sobre o que se ia fazer.

 

”A missa negra!” pensou ela surpreendida, enquanto o seu olhar se deslocava do homem ajoelhado para a estátua, que, sob a iluminação sinistra, parecia vestida de sangue.

 

Num livro, poeirento, encontrado nas profundidades da biblioteca de Selton, ela lera um dia a descrição da abominável cerimónia. Terminada a sua oração sacrílega, Matteo ofereceria, sem dúvida, à deusa, que aqui ocupava o lugar do próprio Satanás, a vítima escolhida. Isto é, possuí-la-ia e, em seguida, degolaria sobre o seu corpo qualquer animal, ou até um ser vivo, como indicava a longa faca, cuja lâmina brilhava sinistramente aos pés de Lucinda. A não ser que matasse a própria Ágata... o que parecia mais plausível, visto que nenhum outro sinal de vida existia na clareira,

 

Matteo agora parecia ter entrado em transe. As palavras que pronunciava eram incompreensíveis, mas formavam uma espécie de murmúrio que encheu Mariana de horror. Com os olhos dilatados pela surpresa, ela viu-o erguer-se, retirar o vaso que colocou junto dele, cobrir de beijos o corpo da rapariga inconsciente e agarrar a faca. O terror de Mariana desapareceu subitamente como por milagre. Abandonando o abrigo do túnel, deu alguns passos na clareira, ergueu o braço armado, apontou e friamente fez fogo.

 

A detonação pareceu encher o espaço. Matteo vacilou, largou a faca e olhou à sua volta com um ar alucinado. Não tinha qualquer ferimento, pois Mariana visara a estátua, mas deu um terrível gemido ao constatar que o manto erguido de Lucinda desaparecera. Como um louco, quis precipitar-se para ela, quando a voz gelada de Mariana o deteve.

 

Ficai tranquilo, Matteo! disse ela, atirando a pistola já sem balas e pegando na outra. Teria podido matar-vos, mas não quero privar o vosso amo de um bom criado. Contudo, tenho outra bala à vossa disposição, se não obedeceis, e já pudestes constatar que nunca falho. Desfigurei o vosso demónio fêmea, a próxima bala será para a vossa cabeça. Levai Ágata daqui e couduzi-a ao seu quarto... É uma ordem e não a repetirei!

 

Mas o homem não parecia ouvi-la. Com as mãos e os joelhos arrastava-se sobre as ruínas, com os olhos de louco, a boca torcida, procurando, no entanto, pôr-se de pé. As pedras cortantes deixavam-no insensível, assim como os picos dos cardos. Parecia entregue a um transe, mas como avançava para ela, Mariana teve horror do que ia ser obrigada a fazer para se proteger daquele homem, cujas forças estavam, talvez, aumentadas: atirar-lhe a pouca distância.

 

Parai! - ordenou. Já vos disse para recuardes, ouvis? Recuai!

 

Ele não a ouvia. Tinha conseguido pôr-se em pé e continuava a avançar, com as mãos estendidas e o olhar assustador de sonâmbulo. Instintivamente Mariana recuou. Não se decidia a disparar. Era como se uma força mais poderosa do que a sua vontade lhe paralisasse o braço. O espanto e, talvez, uma espécie de anestésico davam a Matteo, com o rosto convulsionado, a túnica preta e as mãos feridas, o aspecto de um demónio vomitado pelo inferno. Mariana sentia as forças a abandoná-la. Recuou mais, procurando com a mão livre a entrada do túnel, mas devia ter-se afastado do caminho e só encontrava ervas e folhas. Continuou a recuar, mas um dos pés prendeu-se em qualquer coisa e, com um grito de terror, caiu sobre um arbusto. Matteo aproximava-se cada vez mais com as mãos estendidas. Pareceu-lhe que ele crescia, crescia desmedidamente... Na queda, a pistola escapara-se da sua mão e Mariana julgou-se perdida.

 

Gritou, mas o seu grito ficou estrangulado na garganta. Houve uma espécie de ruído de trovão e, no outro extremo da clareira, surgiu uma fantástica aparição. Um grande cavalo branco montado por um cavaleiro negro, um cavaleiro cujo chicote se abateu sobre Matteo e pareceu gigantesco à jovem aterrorizada. Aquilo que viu produziu-lhe uma nova exclamação. Antes de desmaiar, pôde avistar, sob a aba de um chapéu, um rosto sem traços, branco e sem expressão, onde os olhos pareciam dois buracos negros e brilhantes, qualquer coisa de informe que se perdia no turbilhão preto de uma vasta capa. Era um espectro que montava Ilderim, um fantasma saído das trevas e que corria para ela... Foi com um gemido desesperado que ela desmaiou.

 

Mariana nunca soube quanto tempo ficou desmaiada. Quando abriu os olhos, com a impressão de emergir de um interminável pesadelo, viu que estava no seu quarto, estendida na cama e, nas brumas do despertar, julgou efectivamente ter sonhado. Lá fora, o vento soprava, mas não se ouvia outro barulho. Fora, sem dúvida, apenas um mau sonho, com o quarto de Ágata, a clareira, um Matteo em pleno delírio e o assustador cavaleiro que montava Ilderim, e sentiu um profundo alívio. Era tudo tão estranho! Fora preciso estar muito excitada para ter imaginado aquela horrível cena!

 

Àquela hora, Ágata devia dormir profundamente na cama, sem sequer pensar no papel que desempenhava entre os fantasmas nocturnos da sua senhora.

 

Para se recompor, Mariana quis levantar-se a fim de aspergir o rosto com água fresca. Tinha a cabeça tão pesada, os pensamentos ainda tão confusos! Mas, ao afastar os lençóis, apercebeu-se de que estava nua no seu leito, onde uma mão desconhecida semeara folhas de jasmim odorante... Soube então que não tinha sonhado, que tudo fora verdade: a clareira, a missa negra, a bala disparada sobre a estátua, o furor assassino de Matteo e por fim a erupção do terrível cavaleiro...

 

Ao evocá-lo, sentiu os cabelos eriçarem-se sobre a cabeça e um longo arrepio. Fora então ele que a trouxera ali? Não podia ser Matteo... Matteo tinha querido matá-la e julgava tê-lo visto cair sob o chicote do cavaleiro... Então... fora o príncipe quem a trouxera... a despira... a deitara na cama... quem semeara as flores odorantes sobre um corpo que a inconsciência lhe entregava inteiramente... quem talvez... não, isso não era possível!... e aliás porque o teria feito, visto que, ao ouvi-lo, assim como ao cardeal, ele não queria por nenhum preço que o seu casamento se tornasse uma realidade... Contudo, ao procurar desesperadamente na névoa que tinha invadido o seu espírito, durante o desmaio, julgava lembrar-se de beijos, carícias...

 

Um louco terror, próximo do pânico, fez Mariana saltar rapidamente da cama. Queria fugir, fugir custasse o que custasse e imediatamente, deixar aquela casa, onde corria o risco de endoidecer, onde a partida do padrinho a entregara a todos os perigos de uma morada habitada por pessoas que faziam do segredo o seu pão quotidiano. Queria reencontrar a luz do dia, o Sol, as paisagens calmas, menos românticas talvez mas mais tranquilizadoras da França, a calma da sua bonita casa da Rua de Lille, os olhos alegres de Arcadius e até, sim mesmo isso lhe parecia maravilhoso, os furores de Napoleão, ou a ameaça que Francis Cranmere fazia pesar sobre si e que reencontraria inevitavelmente no seu regresso a França! Sim, tudo menos esta atmosfera mórbida e sensual que a asfixiava e contra a qual toda a sua juventude se revoltava!

 

Sem se lembrar que estava despida, correu de novo ao quarto de Ágata e constatou, com um profundo alívio, que a rapariga estava também na cama e não perdeu tempo a interrogar-se. Quem a tinha trazido, que acontecera a Matteo... não queria saber. Com uma energia, provocada pelo seu terror, abanou tão fortemente a rapariga que conseguiu acordá-la. Mas como Ágata, ainda sob o efeito da droga, vacilasse e a olhasse com olhos cheios de sono, ela agarrou num jarro de água e despejou-o sobre o rosto da rapariga, que se sobressaltou, tossiu... mas finalmente acordou completamente.

 

Finalmente! exclamou Mariana. Levantai-vos, Ágata, e despachai-vos!... É preciso fazer as bagagens, ir acordar Gracchus, dizer-lhe para atrelar imediatamente, imediatamente!

 

Mas... Minha... Minha Senhora...gaguejou a rapariga, espantada tanto pelo que via, como por ser desperta em plena noite, por uma inundação e por uma Mariana nua e com os cabelos desfeitos. Minha Senhora, vamo-nos embora?

 

Imediatamente! Quero que o nascer do Sol nos encontre já na estrada! Vá, em pé e depressa!

 

Enquanto Ágata, a escorrer água, saía da cama, Mariana, possuída por uma actividade extraordinária, corria ao quarto, esvaziava cofres e armários, arrastava as bagagens que tinham empilhado próximo da sala de banho e começava a meter tudo dentro das malas desordenadamente. Quando a criada apareceu, seca e vestida, alguns minutos depois, encontrou-a agitando-se como uma diabinha no meio da maior desordem que jamais vira. Vendo aquele espectáculo, Ágata pegou de passagem num roupão ligeiro e correu a envolver Mariana que, até aí, nem nisso tinha pensado.

 

A Senhora vai apanhar frio! disse num tom de reprovação, mas sem se arriscar a fazer a menor pergunta.

 

Obrigada. Agora ajuda-me a guardar isto tudo... ou melhor, não, vai acordar Gracchus... não, eu vou!

 

Não penseis nisso! insurgiu-se Ágata. A senhora vai vestir-se tranquilamente, enquanto eu vou buscar Gracchus. Seria bonito se a encontrassem nas instalações dos criados descalça e de roupão! Vou prevenir Dona Lavínia para vos vir ajudar.

 

Ágata mal teve tempo de sair. Com grande surpresa de Mariana, a governanta apareceu nesse mesmo instante, toda vestida, como se não se tivesse deitado nessa noite. Fora talvez o seu rebuliço que a acordara, mas não mostrou qualquer surpresa por encontrá-la assim no meio das malas e de uma quantidade de vestidos espalhados. A sua reverência foi tão correcta, tão calma como se fossem oito ou dez horas da manhã.

 

Vossa Senhoria deixa-nos? disse ela apenas.

 

Sim, Dona Lavínia! E noto que não pareceis muito admirada.

 

Os olhos azuis da governanta pousaram, calmos e doces, sobre o rosto corado de Mariana e ela fez um sorriso triste.

 

Receei que assim fosse, quando o Senhor Cardeal nos deixou. A Senhora, aqui sozinha, não podia deixar de despertar as forças más que reinam ainda nesta morada. Queria saber demasiadas coisas... e a sua beleza é das que provocam dramas. Não me leve a mal, mas sinto-me feliz por a Senhora partir... Será melhor para todos.

 

Que quereis dizer? interrogou Mariana com as sobrancelhas franzidas, pois a calma de Lavínia surpreendia-a. Era como se a governanta não ignorasse nada dos acontecimentos dessa noite.

 

Que o meu amo, ao entrar, há instantes, se fechou no quarto com o padre Amundi, que chamou urgentemente... que Matteo Damiani está preso na cave... e que um raio deve ter caído atrás da colina, onde está o ninfeu, pois vi aí grandes labaredas e ouvi um ruído de desmoronamento. É melhor, por agora, que a Senhora parta. Quando voltar...

 

-Nunca mais voltarei! disse Mariana num tom zangado, que, no entanto, não conseguiu abalar a doçura de Lavínia.

 

Contentou-se em sorrir.

 

Terá de ser! A Senhora não tomou esse compromisso? Quando voltar, digo eu, muitas coisas terão mudado. Eu... eu creio que nada mais haverá a recear... O príncipe...

 

Vi-o! interrompeu Mariana. É horroroso! Julguei ver um espectro! Fez-me tanto medo... Aquele rosto de gesso...

 

Não! corrigiu docemente Lavínia. Uma simples máscara, uma máscara de couro branco. Não lhe deveis guardar rancor. É de lamentar mais do que nunca, pois esta noite sofreu cruelmente. Vou fazer as malas.

 

Interdita, Mariana viu-a ir e vir através da vasta sala, dobrando vestidos, roupas interiores, metendo os sapatos nas caixas e colocando tudo ordenadamente nas malas abertas. Quando quis meter os estojos das jóias, Mariana interpôs-se.

 

Não, isso não, não os quero levar!

 

Deveis fazê-lo Pertencem-vos! Quereis desesperar mais ainda o meu amo? Ficaria profundamente ferido e julgaria que Vossa Senhoria o torna responsável e lhe guarda rancor.

 

Ela não perguntou de que é que o poderia pensar responsável, mas com um gesto de desânimo fez um sinal de assentimento. Já não sabia o que devia pensar. Até tinha um pouco de vergonha de si própria, deste pânico que a invadira, mas não sentia coragem para alterar as ordens que já dera e ficar ali mais tempo. Tinha de partir.

 

Uma vez fora daquela região inquietante, encontrar-se-ia a si própria, poderia reflectir calmamente, lucidamente, fazer o ponto, mas no momento presente devia partir. Só desse modo poderia evitar endoidecer e só quando existisse entre ela e o palácio de Sant’Anna uma certa distância, seria capaz de examinar os acontecimentos dessa noite sem perigo para a sua razão. Tinha de se afastar do cavaleiro de Ilderim.

 

Quando, por fim, ficou pronta e terminadas as bagagens, ao ouvir o ruído da carruagem parando em frente da grande escadaria, ela virou-se para Dona Lavínia.

 

Tinha prometido ao meu padrinho esperá-lo e contudo parto! disse ela tristemente.

 

Ide em paz, Princesa, eu dir-lhe-ei... ou melhor, o príncipe e eu dir-lhe-emos tudo!

 

Dizei-lhe também que regresso a Paris, que lhe escreverei para aqui, visto que ignoro onde ele quer ir em seguida. Dizei-lhe finalmente que não lhe quero mal, que sei que ele julgou ter feito bem.

 

... e que, aliás, fez bem! Mais tarde reconhecê-lo-eis. Boa viagem, Vossa Senhoria, e nunca esqueçais que esta casa pertence-vos, como todas as do nosso amo. Podeis estar segura de que ele saberá proteger-vos e, quando voltardes, fazei-o com confiança e sem receio.

 

Mariana sentia piedade por essa mulher, que fazia tudo para apagar do seu espírito a impressão dolorosa que levava. Sabia que talvez mais tarde se arrependeria de se ter conduzido tão pouco heroicamente, mas sabia também que, quando voltasse, visto que teria de voltar, nunca mais o faria sozinha. O cardeal ou Arcadius, ou os dois, estariam com ela... Mas guardando para si este pensamento, estendeu, afectuosamente, as duas mãos a Dona Lavínia.

 

Estai tranquila, Dona Lavínia. Apresentai as minhas despedidas ao vosso amo... e obrigada, obrigada por tudo! Não vos esquecerei. Quando voltar, haverá a criança e tudo correrá bem. Dizei-o ao príncipe.

 

Quando, por fim, subiu para a carruagem, a bruma do amanhecer cobria o parque, conferindo-lhe uma estranha irrealidade. O vento da noite caíra. O céu estava cinzento e húmido. Talvez o tempo fosse mudar e chovesse, mas Mariana, instalada com Ágata no fundo da carruagem, sentia-se agora em abrigo, protegida de todos os sortilégios verdadeiros ou supostos que o belo domínio possuía. Regressava a sua casa, para junto daqueles que amava. Mais nada podia atingi-la.

 

O chicote soou... a carruagem partiu no meio do ruído dos metais e couros dos arreios e dos cascos dos cavalos. A areia das alamedas foi esmagada pelas rodas. Os cavalos tomaram a trote. Mariana encostou a face à mão e fechou os olhos. O seu coração alvoroçado acalmava-se, mas sentia, de repente, um cansaço de morte.

 

Enquanto a pesada berlinda cortava a névoa da madrugada para dar início ao longo caminho de regresso a Paris, ela pensava na estranheza do destino e na sua crueldade que a condenava a essa procura perpétua, senão duma felicidade impossível, pelo menos duma sorte que não vagabundeava sempre nos trilhos normais. Viera até ali para fugir de um marido indigno e criminoso; viera como mãe, sem nunca ter sido esposa, para que o filho que possuía o sangue de um imperador pudesse viver de cabeça erguida; viera finalmente na esperança inconfessada de conjurar para sempre a fatalidade encarniçada em destruí-la. Voltava a partir rica, com um título de princesa, um grande nome, de uma honra intacta, mas com o coração ainda mais vazio de ilusões e ternura.

 

Partia... ao encontro de quê? Das migalhas do amor que lhe poderia oferecer o marido de Maria Luísa; ao encontro da obscura ameaça que fazia pesar sobre si o ódio vingativo de Francis Cranmere; da melancolia de uma vida de solidão, visto que dali em diante teria de guardar as conveniências, já que Jason não tinha podido... ou querido aparecer. Feitas as contas, o que a esperava à chegada era uma velha moradia habitada apenas por um retrato e um fiel amigo, uma criança a nascer, um horizonte, cujas formas ou cores não podia adivinhar, era, de novo, o desconhecido...

 

 

                                                                  Irving Wallace

 

 

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