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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÁSCARA DE RAPOSA / Juliet Marillier
MÁSCARA DE RAPOSA / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÁSCARA DE RAPOSA

Primeira Parte

 

Se há alguém capaz de compreender, és tu; sempre respeitei a tua inteligência. Eu tinha tanto para dar aí. Podia ter conseguido grandes coisas e com o tempo todos me teriam agradecido. Sim, até o Pele-de-Lobo. O fato de ter sido ele a tirar-me essa possibilidade é que me amargurou.

                         EXCERTO DE CARTA

 

Tudo mudou no dia em que a mãe de Thorvald lhe deu a carta. Creidhe estava a trabalhar no tear, a lançadeira voando de um lado para o outro, tecendo uma bela teia de um padrão azul e carmim, testemunho dos ensinamentos da tia Margaret. Estava tão entretida e tão calada que todos pareciam tê-la esquecido. A entrega de um presente tão perigoso como aquela carta tinha de ser feita num momento de total privacidade. A tia Margaret falou com o filho em voz baixa em frente da lareira. Creidhe podia vê-los através da soleira da sala do tear. Nem um nem outro discutiam. As vozes mantinham o tom próprio de gente bem-educada. Mas Creidhe ouviu a porta da frente a abrir-se repentinamente e viu Thorvald descer os três degraus da entrada num único salto, atravessar o pátio e desaparecer nos campos como se perseguido por demônios. A jovem viu o olhar gelado e furioso no seu rosto. E embora não o soubesse na ocasião, foi naquele momento que a vida de Thorvald, e a sua, mudou repentinamente, tomando um novo rumo.

Creidhe conhecia Thorvald melhor do que ninguém. Brincavam juntos desde crianças e eram grandes amigos. Thorvald tinha poucos amigos; os dedos de uma mão eram suficientes para contá-los. O jovem falava abertamente apenas com dois, a quem permitia que se aproximassem: ela e Sam, o pescador, em cujo barco Thorvald ajudava, por vezes. Quanto a Creidhe, conhecia-o muito bem: os seus maus humores, os seus prolongados silêncios, os seus súbitos e brilhantes esquemas e os seus raros momentos de franqueza. Ela amava-o, apesar de todos os seus defeitos. Na sua mente, não tinha dúvida de que casaria um dia com ele. Não era um primo a sério, assim como Margaret não era uma tia a sério. Os laços eram de amizade, não de família. Thorvald ainda não percebera que ele e Creidhe estavam destinados um ao outro para sempre, mas perceberia em breve. Era apenas uma questão de tempo.

A lançadeira parou. Creidhe ficou a olhar para a soleira da porta, para uma paisagem penteada por ovelhas e cordeiros recém-nascidos. De casa da tia Margaret podia ver-se até ao mar, onde as falésias nuas dividiam a terra e o mar. Lá longe podia ver a silhueta escura de Thorvald a correr, sempre a correr. Creidhe vira uma mudança terrível nos seus olhos.

— Acabaste?

Creidhe deu um salto. Margaret aproximara-se dela sem um som.

— N... não, mas talvez seja melhor ir para casa. O pai já deve ter regressado da Ilha da Areia e eu tenho de ajudá-lo... — Creidhe calou-se. A tia Margaret tinha os olhos rasos de água. Um fenômeno espantoso. Ela era um modelo de decoro e autodomínio. Nunca perdia o controle.

Aquela casa, dirigida por Ash, o antigo empregado de Margaret, mas orientada pela própria Margaret, funcionava segundo uma rotina severa, com pouco espaço para erros e isso refletia-se na aparência da própria Margaret. Era uma mulher bonita de cerca de trinta e seis anos e de cabelos ruivos, cuidadosamente entrançados e encerrados numa touca de renda, alva como a neve, o seu vestido de linho tinha sempre as pregas imaculadamente passadas a ferro e o casaco de lã estava sempre apertado por dois broches gêmeos de prata, polidos até à perfeição. Margaret usava os símbolos de uma boa dona-de-casa: a navalha, a tesoura e as chaves, pendurados numa corrente. Era uma mulher competente. Algumas pessoas até a achavam intimidante.

Não voltara a casar depois da morte do marido, no primeiro ano do estabelecimento da colônia norueguesa nas Ilhas Brilhantes, antes de Thorvald nascer. Creidhe não achava a tia assustadora; havia uma ligação entre elas. Creidhe podia não ser grande coisa como sacerdotisa, como a sua irmã Eanna. Podia não ser bonita ao estilo das raparigas esguias, elegantes e de pele morena da ilha. Mas tinha outras qualidades. Apesar de ainda ser muito nova, era a melhor parteira de Hrossey e ultrapassara rapidamente a especialista da ilha, assumindo total responsabilidade. As mulheres gostavam muito do seu toque ágil e da sua cabeça fria, o que tornava a sua juventude irrelevante. Essas mesmas mãos tinham muito talento para fiar, tecer e bordar. Margaret dava muito valor a esse talento e protegia há muitos anos as capacidades daquela sua sobrinha roliça de cabelos louros.

Se Thorvald não se apressa a fazer-me a corte, pensou Creidhe para si própria, outro qualquer o fará, para que possa dizer que tem a melhor tecedeira de Hrossey.

Não que não houvesse ninguém interessado. Creidhe tinha sempre par nos bailes. Sam fizera-lhe um pente de osso de baleia com animais marinhos gravados. Egil compusera-lhe um poema e recitara-o, corando. Brude beijara-a por trás da vacaria, quando não estava ninguém a ver. O problema era que ela não queria o gentil Sam, o estudioso Egil ou o belo Brude com os seus olhos azuis. Ela só queria Thorvald.

Thorvald tinha uns olhos escuros como a noite e uns cabelos ruivos e suaves, como os da sua mãe. Creidhe gostava da sua inteligência, da sua perspicácia, da maneira como era capaz de surpreendê-la quase sempre. Adorava os seus momentos de gentileza, por mais raros que fossem. Por vezes, gostaria que ele fosse menos distante; ouvira outras raparigas chamarem-no de arrogante e não gostara. Era, simplesmente, muito fechado; ela tinha sorte por ele a considerar amiga. Creidhe suspirou. Não havia meio de Thorvald se aperceber de que ela podia ser mais do que uma amiga. Com dezesseis anos, era uma mulher, pronta para o casamento; mais do que pronta, pensava, por vezes. Se Thorvald não acordasse rapidamente, o seu pai começaria a sugerir prováveis maridos, e que diria então? Como filha da sua mãe, tinha de se casar e ter filhos. Eyvind começaria a exercer pressão dentro de pouco tempo.

— Creidhe?

— Oh! Desculpe. — Estivera, mais uma vez, a sonhar acordada. — Sente-se bem, tia Margaret?

— Sinto. — As palavras desmentiam os olhos avermelhados e os lábios apertados. — Vai-te embora, já que Nessa está à tua espera. Isso pode ficar para amanhã. O desenho está a ficar bonito, Creidhe. És uma verdadeira artista.

Creidhe corou.

— Obrigada, tia. — A jovem fez uma pausa. — Tia Margaret...?

Margaret ergueu uma mão. Era um gesto que dizia tudo. Nada de perguntas. Fosse o que fosse que tivesse provocado a fuga de Thorvald, como um homem perseguido por sonhos sombrios, não diria nada, para já.

— Creidhe — disse Margaret enquanto a sua sobrinha se dirigia para a saída com uma pequena trouxa na mão — não vás atrás de Thorvald. Hoje não. Acredita no que te digo, é melhor deixá-lo sozinho durante algum tempo.

— Mas...

— Se ele te quiser dizer, dir-te-á em seu devido tempo. E agora vai para casa. O teu pai esteve fora durante muito tempo. Imagino que ele vai gostar muito dos cozinhados da filha, talvez do carneiro assado com alho, ou do bacalhau cozido com molho de alho-porro. Põe-te a andar.

O tom era ligeiro de propósito, pensou Creidhe. Os olhos da sua tia é que a denunciavam. Os de Thorvald tinham a mesma sombra.

Às vezes, Creidhe fazia o que lhe ordenavam, mas outras vezes não. Thorvald estava sentado no chão, encostado a um muro de pedra e olhava para o mar. Tinha o rosto escondido nas mãos. O seu cabelo ruivo liso escapara da fita e o vento chicoteava-o, parecendo as chamas de um archote. O jovem estava imóvel. Nas suas costas, por trás do campo murado, as ovelhas baliam e as crias respondiam. No céu, as aves cantavam canções de Primavera. Creidhe trepou por cima do muro e sentou-se a seu lado sem dizer nada. Tornara-se muito boa naquela espécie de atitude.

— Vai-te embora, Creidhe! — grunhiu Thorvald ao fim de um certo tempo. O jovem não abriu os olhos.

Para lá da rebentação estava um pequeno barco, de regresso da pesca. Levantara-se vento; a pequena vela empurrava o barquinho rapidamente para sul, talvez para Hafnarvagr, ou para outro lugar mais perto. Creidhe ergueu uma mão num gesto de saudação, mas do barco não a viram.

— Estou a falar a sério, Creidhe — disse rispidamente Thorvald. — Vai para casa. Volta para os teus bordados.

Ela inspirou profundamente e expirou lentamente enquanto contava até dez. Era bom ter mulheres inteligentes na família; podia não aprender os mistérios, já que eram secretos, mas podia aprender as técnicas que ajudavam a manter a calma.

— O que é que se passa? — perguntou-lhe ela calmamente. — O que é que ela te deu?

— Não quero falar nisso. Nem a ti, nem a ninguém.

— Está bem — disse Creidhe após um momento. — Compreendo. Quando quiseres, estou aqui para ouvir.

Thorvald cerrou os punhos. Os seus olhos estavam, agora, abertos, virados para oeste. A Creidhe pareceu-lhe que ele não estava a olhar para as falésias, para as gaivotas, para as nuvens, para o vento que vinha do mar. O jovem estava a olhar para algo diferente que estava muito mais longe.

O tempo passou. O seu pai estaria em breve em casa; a observação acerca do carneiro assado fora verdadeira. Os prazeres simples da vida tinham o poder de provocar um sorriso nos lábios de Eyvind e uma luz nos seus olhos, que aquecia a família inteira. Não era tanto a comida a responsável, antes a amabilidade e capacidade da filha. Creidhe pôs-se de pé e pegou na sua trouxa.

— Creidhe? — Um suspiro sombrio. Ela ficou imóvel por um momento, gelada, e depois sentou-se de novo sem um único som.

— Uma carta — disse Thorvald. — Do meu pai. Ela guardou-a estes anos todos. Nunca me falou dela.

Creidhe teve dificuldade em perceber a amargura na sua voz. O seu pai morrera antes de ele nascer e isso era muito triste, certamente mais triste para Margaret do que para aquele filho que nunca conhecera o pai. Pelo que as pessoas diziam, o marido de Margaret, Ulf, fora um grande chefe de guerra, que liderara a primeira expedição de noruegueses às Ilhas Brilhantes. Um pai de quem um filho se podia sentir orgulhoso. Uma carta era bom, não era? Não parecia apropriado Margaret tê-la guardado até à maioridade do seu filho.

— De Ulf? — perguntou gentilmente Creidhe. — Suponho que é razão para estares triste; recorda-te o que podias ter tido. É uma pena ele não estar aqui para te ver crescer.

— Eu não disse que era do marido da minha mãe, o valoroso Ulf Gunnarsson. — A voz de Thorvald era dura como o aço. — Eu disse que era do meu pai. Quer dizer, do homem que ela diz ter sido o meu pai. Toma, lê-a, se estás assim tão interessada. Por que não há de também tu saber, uma vez que já metade da ilha sabe?

O jovem retirou o pequeno rolo de pergaminho do interior da sua túnica e estendeu-lho. Creidhe estava espantada. Que queria ele dizer? A jovem desatou o fio que enrolava a carta e desdobrou-a, revelando uma escrita nítida e bem desenhada. Era velha, tinha os cantos gastos e os caracteres estavam borrados aqui e ali como se lhes tivessem caído em cima algumas gotas de água. Havia uma pálida linha na contra-face, onde o fio a atara, como se o pequeno pergaminho tivesse estado muito tempo guardado.

— Tu sabes que eu não sei ler, Thorvald. O que é que diz?

— Eu digo-te. Diz que não sou ninguém. Pior do que isso, sou filho de um louco, de um assassino. Esquece Ulf; esquece o conceito de um casamento respeitável e a morte triste do meu pai antes de eu ver a luz do dia. Ulf não era o meu pai. Ela escondeu-me durante estes anos todos. E eles sabiam: o teu pai, Nessa, Grim e todos aqueles que vieram com ele. Até aquele servo, Ash, sabia a verdade, mas manteve a boca calada este tempo todo. Uma conspiração do silêncio. — A sua voz tremia; o jovem olhava fixamente para o chão a seus pés. — Como pôde a minha mãe ser tão cruel?

Creidhe estava sem palavras. A jovem queria pôr um braço em redor do ombro do jovem para o consolar, como faria com qualquer das suas irmãs. Mas não o fez; Thorvald tê-la-ia afastado no momento em que o tocasse. Aquela notícia era, na verdade, terrível, se era verdadeira. E se lhe acontecesse o mesmo a ela? O seu pai era o centro do seu mundo, a alma da família. Na verdade, por vezes, Eyvind parecia que era o pai da comunidade inteira, guardião e protetor de todos. Saber que o nosso pai não é nosso pai é como perder, de repente, toda a segurança. É como arrancar o coração do próprio corpo. Não parecia haver maneira de o consolar.

— Ficaste muito calada — disse Thorvald subitamente, virando a cabeça para olhar para ela. — Não tens palavras nenhumas de consolação? Nenhuma solução rápida para os meus problemas? — Os seus olhos semicerraram-se; a sua boca transformou-se numa linha fina. — Mas, talvez já soubesses disto. Talvez eu seja o último a saber a verdade acerca da minha herança. Já sabias, Creidhe?

O seu tom era de raiva; Creidhe abanou a cabeça.

— É claro que não! Como podes pensar...?

Os ombros de Thorvald descaíram. A sua fúria virara-se de novo para dentro de si mesmo.

— É isso mesmo. Já não sei no que hei de pensar.

— Quem... quem era ele? — arriscou Creidhe. — Esta carta foi escrita para ti? Onde está ele?

— Pergunta ao teu pai. Ele sabe a resposta.

— Mas...

— Pergunta a Eyvind. Foi ele que exilou o meu pai, para que ele nunca soubesse que tinha um filho. A carta foi escrita para a minha mãe. Não diz nada acerca de mim. O meu pai tenta explicar-lhe por que razão o amante lhe matou o marido. Tenta justificar o assassínio do próprio irmão. Já viste a maravilhosa herança que a minha mãe me permitiu descobrir, agora que acabo de atingir a maioridade? — Thorvald pegou numa pedra e atirou-a para longe, para o vazio da falésia. Ergueu-se no ar uma nuvem de gaivotas, gritando de protesto. O seu rosto estava branco como a cal, enquanto os olhos eram dois buracos negros.

— Como é que ele se chamava? — perguntou Creidhe para ganhar tempo, enquanto a sua mente procurava freneticamente a coisa mais acertada para dizer. Naquela situação não havia, provavelmente, nada para dizer.

— Somerled. — O jovem atirou outra pedra.

— Por que razão não falam eles desse homem? Devem tê-lo conhecido.

— Por que não lhes perguntas, se estás assim tão interessada?

Ela respirou lentamente.

— Thorvald?

— O que é?

— A tia Margaret fez bem em não te ter contado isto antes. Tu agora já és um homem. Não és capaz de ver isto como um desafio, em vez de uma desgraça?

As sobrancelhas dele ergueram-se em ar de troça.

— O que queres dizer, Creidhe?

— Podes muito bem descobrir tudo acerca de Somerled. Tal como disseste, deve haver muita gente nas ilhas que o conheceu. Talvez ele não fosse tão mau como pensas. Toda a gente tem um lado bom.

— E depois? — respondeu Thorvald, irritado. — Meto-me num barco e vou à procura dele?

Aquelas palavras ficaram suspensas entre ambos enquanto o silêncio se prolongava, dando-lhes um peso que não estava na intenção de Thorvald. Os olhos azuis encontraram os negros; em ambos houve um reconhecimento de que aquela idéia louca era, de certo modo, inteiramente lógica.

Thorvald enrolou o pergaminho e atou-o com o fio. Pô-lo de lado e encostou-se ao muro de pedra com as pernas em redor dos joelhos e com os olhos firmemente fechados. Ela esperou de novo. Finalmente, sem abrir os olhos, ele disse:

— Eu sei que estás a tentar ajudar-me, Creidhe. Mas eu quero estar sozinho. — Seguiu-se uma pausa. — Por favor — acrescentou ele.

Não era possível um gesto de afeto, um abraço ligeiro, um aperto de mão, se bem que Creidhe desejasse tocá-lo

— Adeus, Thorvald — disse ela e dirigiu-se para casa sob um céu cada vez mais escuro.

Não lhe podia perguntar assim sem mais nem menos. Não era um tópico que pudesse ser aflorado no meio do caos de alegria provocado pelo regresso do seu pai, com as crianças e os cães a saltarem e a fazerem barulho, com Nessa quase incapaz de reter as lágrimas e o próprio Eyvind a fazer os possíveis por abraçar todos ao mesmo tempo apesar do fardo do machado, da espada e da grande mochila. Não era homem que pedisse a outros para lhe levarem a bagagem, nem sequer agora, que transportava sobre os ombros a autoridade das ilhas. Quando se casara com Nessa, aliara-se à última princesa real dos Folk, o que o colocara acima dos homens normais e Eyvind fizera desse estatuto um ponto de honra, dedicando-se ao estabelecimento de uma paz duradoura entre as duas raças durante muitos anos inimigas viscerais os nórdicos invasores e os Folk, que habitavam as ilhas desde tempos imemoriáveis. O fato de ambas viverem agora lado-a-lado amigavelmente devia-se mais a Eyvind do que a outro qualquer. Era quase possível esquecer que tudo começara com terror e derramamento de sangue. Quanto a Nessa, nunca perdera o respeito devido ao fato de ser ao mesmo tempo sacerdotisa e líder da tribo, uma questão crucial em tempos de adversidade. Agora era Eanna a sacerdotisa, Nessa já não desempenhava qualquer papel nos mistérios e retirara-se dos locais de culto. Tinha o marido, as quatro filhas saudáveis, a casa e a comunidade e desempenhava um papel nos conselhos e nas negociações, como o exigia o seu estatuto especial. Apesar disso, sentia alguma tristeza.

Eanna fora a primeira filha de Eyvind e de Nessa. O seguinte fora um rapaz, mas o mar levara Kinart antes de ele ter atingido os cinco anos. Depois dele, apenas raparigas: Creidhe, Brona e Ingigerd. Não como devia ter sido; não como os anciãos tinham previsto.

Apesar do estatuto quase real que possuía nas ilhas, a família de Creidhe vivia mais numa herdade do que num palácio, um conjunto vasto de edifícios de pedra rodeado por terrenos murados, um pouco a leste da ilha que deixava de o ser com a maré baixa, chamada Dorso de Baleia. Dorso de Baleia fora, em tempos, o centro do poder das Ilhas Brilhantes. Nessa vivera lá; o seu tio fora um grande Rei.

Quando os nórdicos apareceram pela primeira vez nas suas costas, vindos de leste, Margaret, Nessa e Eyvind não eram muito mais velhos do que Creidhe era agora. A viagem de descobrimento através do mar, de Rogaland até às águas protegidas das Ilhas Brilhantes, começara por ser uma viagem em busca de uma vida de paz e prosperidade, mas transformara-se, no espaço de um ano, num conflito amargo e destruidor, que só terminara com a chacina da maior parte dos conterrâneos de Nessa. Eyvind e Nessa, o guerreiro nórdico e a sacerdotisa dos Folk, é que conseguiram a paz; os dois, lado-a-lado.

Que vidas diferentes deviam ter tido, pensou Creidhe, enquanto a sua mãe e o seu pai permaneciam por alguns momentos juntos. Nessa afagou a face de Eyvind com os dedos; ele beijou-lhe os cabelos. A maneira como olhavam um para o outro provocou lágrimas nos olhos de Creidhe. A juventude de ambos fora cheia de aventuras: viagens, batalhas, lutas e proezas. Mal conseguia imaginar aquilo tudo ao olhar para eles. Ninguém via os próprios pais como heróis, apesar de eles serem exatamente isso. Olhava-se para eles como aquilo que eram, uma parte essencial da existência dos filhos. Onde estaria ela se não fossem eles?

Tinha de lhes perguntar. Mas ainda não. Primeiro, o jantar. Na casa viviam homens e mulheres: Eyvind chamava-lhes gente da casa, à moda da sua terra. Esses homens e mulheres eram gente capaz, que pareciam fazer quase parte da família. As mulheres tinham-se habituado ao fato de ser Creidhe a mandar na cozinha, especialmente quando ela queria preparar uma refeição especial para o pai. Naquele dia, alguém tinha ido à pesca e havia peixe fresco; Creidhe mandou Brona à horta em busca de alho-porro, enquanto ela própria ia buscar alho e cebolas. A pequena Ingigerd foi rapidamente convencida de que cortar vegetais, mexer molhos e esmagar ervas era uma coisa muito divertida, o que tornou possível Nessa e Eyvind retirarem-se para os seus aposentos e passarem algum tempo sozinhos. Creidhe contou às irmãs uma história enquanto preparava o peixe. Uma história sobre a Tribo Perdida, aquela gente de espírito manhoso que era vista de vez em quando em lugares antigos e subterrâneos e que ela tornou longa e excitante, permitindo que as crianças a interrompessem com perguntas sempre que lhes apetecia.

Anoiteceu ainda mais. As pessoas da casa juntaram-se em redor da mesa para jantar. Os esforços de Creidhe foram recompensados com o sorriso de Eyvind e com as palavras calmas de aprovação por parte de Nessa. Brona comeu até à última migalha e colocou o seu prato na tina sem que lhe tivessem exigido. Ingigerd já estava a dormir antes de terminada a refeição.

Respeitando a necessidade de privacidade da família depois do regresso de Eyvind, os homens e as mulheres da casa não permaneceram muito tempo depois da refeição, retirando-se cedo para os seus alojamentos. No exterior era noite fechada e um frio súbito percorreu a grande casa, se bem que as suas paredes de barro e pedra fossem espessas e robustas. Eyvind deitou mais turfa para a lareira e aproximaram-se todos. Uma de cada lado da lamparina de óleo, Creidhe e Brona trabalharam nos seus bordados. Brona estava a fazer laboriosos progressos com uma fila de pequenas flores vermelhas na bainha de um avental. O trabalho de Creidhe era mais complexo e mais pessoal. A jovem chamava-lhe a Jornada e trabalhava numa pequena secção de cada vez, mantendo o resto dobrado e escondido.

Estava tudo calmo. Ingigerd dormitava nos joelhos de Eyvind, segura pelo braço que a envolvia. Era uma pena, Creidhe pensou, a família inteira não poder estar ali toda junta. Era uma coisa cada vez mais rara, agora que Eanna completara o seu treino como sacerdotisa dos mistérios e se retirara da vida normal para ir viver sozinha nos montes. Tinha de lhes perguntar. Não podia esperar. Eyvind levou Ingigerd para a cama e aconchegou-lhe a roupa. Brona picou-se num dedo e lançou um pequeno grito; continuou a coser durante mais algum tempo, suspirou, bocejou e arrumou o trabalho.

— Boa noite, Brona — disse Creidhe, um pouco mordaz. — Eu ajudo-te amanhã de manhã, se quiseres.

Brona esboçou um sorriso e virou-se para abraçar, primeiro o pai e depois a mãe. A jovem dobrou-se para acender a sua pequena lamparina com um graveto da lareira e depois desapareceu na direção do quarto que partilhava com Creidhe.

— Mais cerveja? — perguntou Nessa. — E tu, Creidhe? Não dês cabo dos olhos com esse trabalho maravilhoso, minha filha. Pareces cansada.

— Anda cá, senta-te aqui ao pé de mim — disse Eyvind. — Tive saudades da minha querida. Conta-me o que fizeste enquanto estive fora. Aposto que a tua tia Margaret te deu que fazer.

Creidhe sentou-se ao pé do pai: a jovem pegou na caneca de cerveja que a mãe lhe estendia. O pai pôs-lhe o braço em redor dos ombros e ela sentiu-se quente e segura. Se o assunto tinha de ser abordado, não havia melhor ocasião.

— Pai, mãe, gostava de lhes perguntar uma coisa.

Ambos esperaram.

— É acerca de Thorvald.

Silêncio de novo, se bem que parecesse diferente, quase como se ambos esperassem aquela revelação.

— Ele hoje... ele hoje estava muito preocupado, porque... porque a tia Margaret lhe contou acerca do pai. Do pai verdadeiro.

A jovem sentiu a súbita tensão no braço de Eyvind e ouviu a respiração suspensa de Nessa.

— Eu tentei ajudá-lo. Tentei ouvi-lo, mas ele estava muito zangado. Ele disse... a tia Margaret disse-lhe que o verdadeiro pai dele era um assassino. Foi o que ele disse. Que ele matou o próprio irmão, o marido da tia Margaret. E ele disse... — Creidhe calou-se.

— O quê, Creidhe? — O tom de Eyvind era calmo.

— Que o pai expulsou o pai de Thorvald — suspirou ela. — Que o baniu das ilhas, para que não soubesse que tinha um filho.

— Estou a ver.

— Pai, por que é que nenhum dos dois nos falou dessa história? É verdade? E não foi crueldade da parte da tia Margaret tê-la escondido de Thorvald até agora? Ele está tão zangado e tão amargurado. Nunca o vi assim. Não pude fazer nada para o ajudar.

Os seus pais trocaram um olhar, um olhar complicado. Eyvind tirou o braço dos ombros de Creidhe e segurou-lhe numa das mãos.

— Falaste nisto a Margaret, Creidhe?

— Não. Ela disse-me para esperar até Thorvald estar pronto para me dizer. Mas...

— Mas tu não esperaste. — O tom de Nessa era seco, mas não indelicado. — Creidhe, essa história pertence a Margaret, é um segredo dela. Ela é que preferiu esperar e contar a Thorvald quando achou que ele estaria pronto para receber a notícia. Aqueles tempos foram terríveis. Recordar o que aconteceu é recordar uma barreira entre o povo do teu pai e o meu, barreira essa que nos manteria inimigos para toda a vida e que passaria para os nossos filhos e para os nossos netos. Houve muito ódio e muita crueldade. Tomamos a decisão, naqueles dias, de atirar com tudo para trás das costas. Não esquecemos; carregamos essa recordação até ao dia da nossa morte. Mas preferimos continuar, todos nós. Suponho que, a partir de agora, o assunto será discutido mais abertamente. Certamente que Thorvald vai falar dele aos amigos, incluindo tu.

— Eanna sabe o que aconteceu, Creidhe — disse Eyvind calmamente. — Tinha de saber, já que é a sacerdotisa. Mas não o disse a ninguém, tal como nós prometemos a Margaret. Para bem de Thorvald.

Creidhe não disse nada. Por vezes, dói não se ser ninguém especial, se bem que não ambicionasse grande coisa para si própria. Mas ainda doía mais o fato de os seus pais não terem nela a confiança suficiente para lhe terem confiado o segredo.

— Tive uma conversa muito interessante com um homem chamado Gartnait na Assembléia, na Ilha da Areia — observou Eyvind, mudando, aparentemente, completamente de assunto. — Um chefe de guerra das Ilhas do Norte, um jovem de bom aspecto de cerca de vinte e dois anos de idade, de boas maneiras e muito bem-educado. Ele perguntou-me por ti, Creidhe. Parece que a tua fama chegou longe.

— Fama? Que fama? — Eyvind sorriu.

— Nada de mau, ou não teria falado tão bem do rapaz. Foste descrita como um modelo de jovem, altamente qualificada nas artes domésticas e bem bonita.

— Eyvind! — Nessa franziu o sobrolho.

— As suas palavras foram bastante mais elogiosas do que o que eu acabo de dizer. De fato, as tuas virtudes foram enumeradas durante bastante tempo, mas não tas vou repetir porque tenho medo que fiques com a cabeça à roda, filha. É evidente que o interesse do rapaz foi despoletado pelo que ouviu acerca de ti. Ele anda à procura de mulher.

— Oh.

— Terias gostado dele, Creidhe — disse o pai. — Era um homem honesto, aberto e com sorriso pronto. E bonito... já tinha dito? Vais ter de começar a pensar neste gênero de coisas, filha. Sabes como é importante, não só para ti, como para todos nós. Para as Ilhas.

— Não é a primeira vez que o teu pai responde a perguntas acerca de ti — acrescentou Nessa.

Creidhe olhou para a mãe com o coração a bater com toda a força, subitamente cheio de esperança. Thorvald dissera alguma coisa, finalmente?

— Creidhe — disse Eyvind calmamente — nós gostaríamos de saber se estás na disposição de ir para fora por uns tempos, talvez com a tua tia Margaret, para te servir de dama-de-companhia. Uma estadia nas Ilhas do Norte seria bom para ti, ficarias exposta a um círculo maior, conhecerias gente e, ao mesmo tempo, descansarias um pouco do teu trabalho aqui. Tu tens trabalhado muito, minha querida. Seria fácil arranjar uma visita no Verão. Nós temos lá amigos. Eu não te estou a pressionar para que façamos uma aliança com este Gartnait de que te falei; conhecerias muita gente. Serias vista, ficando numa posição que te permitiria conhecê-lo a ele, mas também a outros. A seu tempo, farias os teus próprios julgamentos.

— Sabes como é importante fazeres uma boa escolha — disse Nessa. — Se não velarmos pela qualidade do sangue, a identidade dos Folk perde-se. Serão os teus filhos, assim como os de Brona e os de Ingigerd, os herdeiros da linhagem real.

Creidhe sabia; não era possível crescer no seio de uma família daquelas sem ter consciência da ascendência real e da importância de um bom casamento. Nessa era a única parente viva do grande Engus, último Rei dos Folk das Ilhas Brilhantes. Era filha da irmã dele e como a sucessão real era pela linha feminina, era vital que as filhas casassem com homens de credenciais impecáveis, já que os seus filhos seriam pretendentes ao trono. Como Nessa não tinha filhos rapazes, era duplamente importante. Continuava a ter importância, apesar de as ilhas estarem a ser governadas por conselho e já não por reis escolhidos.

— Tens de casar bem — acrescentou Nessa. Seguiu-se um silêncio.

— Pensei que íamos falar acerca de Thorvald — disse Creidhe abruptamente, vendo-se à beira das lágrimas sem razão aparente.

— Nós estamos a falar de Thorvald, Creidhe — disse o pai gentilmente.

A jovem sentiu-se gelar; sentiu um peso no coração. Parecia que não havia mais nada a dizer.

— Tu quiseste saber da história — disse Nessa. — Nós lhe contamos, mas sugiro que sigas o conselho de Margaret e que a guardes para ti. É um dilema de Thorvald e dela. É preferível que lidem com o assunto à sua maneira. O pai de Thorvald era um homem chamado Somerled; era, é verdade, irmão de Ulf, e veio para as ilhas na primeira expedição, a mesma que trouxe Eyvind.

— Ulf queria paz — continuou Eyvind. — Fez um tratado com o Rei Engus, tio de Nessa. Tudo parecia ir bem. Mas Ulf morreu. Foi assassinado em circunstâncias muito estranhas. O meu povo culpou os ilhéus e a guerra estalou. Aconteceram... aconteceram muitas coisas más. Morreu muita gente.

Nessa olhou de soslaio para ele com as sobrancelhas ligeiramente franzidas. À luz suave da candeia, com a sua pele pálida e olhos cinzentos, parecia muito nova, nada mãe de quatro filhas. Nessa estendeu um braço e agarrou na mão do marido.

— O meu próprio povo foi praticamente varrido — disse ela com gravidade. — O meu tio e o meu primo morreram e com eles os que me eram mais próximos, com exceção de Eyvind e de Rona. — Nessa fez uma pausa. A perda da sua velha mentora, a sábia que a ensinara, mas que também ensinara a Eanna os mistérios dos antepassados, ainda era recente porque Rona vivera muito tempo, tendo morrido tranquilamente na Primavera anterior. — Para mim, tornou-se claro, assim como para o teu pai, que Somerled, que se tornara líder depois da morte de Ulf, era o responsável pela onda de medo e ódio que varreu as ilhas. O teu pai foi muito corajoso. Confrontou Somerled com risco da própria vida e provou que ele era o assassino do próprio irmão.

Eyvind sorriu timidamente, mas os seus olhos azuis estavam perturbados.

— Se bem me lembro, foi a coragem da tua mãe que equilibrou a balança. Sem ela, tudo se teria perdido.

— Não compreendo — disse Creidhe, tentando abarcar o sentido daquilo tudo. — Qual foi o papel da tia Margaret no meio disso tudo?

— Apesar do que fez — disse Eyvind — Somerled não era um homem unicamente mau. Pelo menos, eu nunca acreditei que assim fosse, e Margaret também não. Tivemos alguma esperança numa redenção por parte dele, uma centelha de amabilidade, de bondade, que crescesse, dada a educação e os antecedentes. Houve uma época em que Margaret se sentiu muito só. Ulf, apesar de ser um homem muito bom, andava sempre ocupado com os seus projetos, e eu penso que ela sofria com isso. Somerled admirava-a muito. A subtileza e a inteligência eram muito importantes para ele. Em Margaret, ele viu alguém que só raramente se encontra; o seu par. Mas, no fim, a sua aliança não foi uma aliança feliz. Ela não conseguia tolerar o que ele fazia para conseguir o poder.

— Mas teve um filho dele. E o pai exilou-o. — Parecia uma coisa muito cruel, apesar de o homem ser um assassino. Não parecia nada um castigo imposto pelo terno e generoso Eyvind.

— Eu fui colocado perante a evidência. À face da lei que ele próprio instituíra, podia tê-lo condenado à morte. E era o que Somerled esperava. Ele sempre fora um homem ferozmente ambicioso. Durante um ano, ele foi Rei, aqui nas ilhas. Mas, finalmente, foi derrotado; até aqueles que o apoiaram começaram a abandoná-lo. Ficou sem ninguém e pediu-me que o matasse. A sentença que decretei foi no sentido de que ainda tinha fé nele, mesmo depois da terrível matança que ele provocou. Dei-lhe hipótese de mudar de caminho: dei-lhe hipótese de aprender a andar. Pensei que estava a ser misericordioso. Mas, para Somerled, o castigo foi uma coisa extremamente cruel.

— Ele abandonou as ilhas sem saber que Margaret estava grávida do seu filho — disse Nessa. — Rona sabia. Pelo menos, acho que sim. Mas Margaret não lhe disse e só me disse a mim depois de Somerled ter partido. Mas isso não teria alterado a decisão de Eyvind. Somerled não podia continuar nestas ilhas. Ele tratou o meu povo com desprezo. Muitos acharam a decisão de Eyvind demasiado clemente; temiam o regresso de Somerled. Ele era um homem que sabia exercer o poder. Influenciava as pessoas através do medo e o medo é uma grande arma. Mas Eyvind obrigou-o a prometer que nunca regressaria. Obrigou-o a prometer que faria os possíveis por mudar. Talvez nunca venhamos a saber se Somerled cumpriu a promessa.

— Por que prometeu ele isso?

— Por causa disto — disse Eyvind, enrolando a manga para mostrar a longa cicatriz que lhe corria pelo interior do braço acima. Creidhe sempre considerara aquilo como um legado da vida que o seu pai tivera como guerreiro Pele-de-Lobo; o seu corpo estava cheio de cicatrizes de ferimentos sofridos em combate. — Somerled e eu éramos irmãos de sangue, juramos lealdade um ao outro para sempre. No fim, ele quis quebrar esse laço, mas eu obriguei-o a mantê-lo. Depois, mandei-o para Oeste, através do mar. Talvez tenha sido, no fim de contas, uma sentença de morte. Nunca mais soubemos nada dele.

Creidhe ficara sem palavras. Era como uma velha saga, do gênero deuses e monstros. Não era, certamente, uma coisa da vida real.

— É verdade, Creidhe — disse a mãe. — Foram tempos terríveis. Eyvind e eu tivemos sorte; o nosso amor um pelo outro tornou-nos fortes. Os antepassados avisaram-nos de que o nosso caminho seria difícil, mas também nos disseram que estávamos a agir corretamente. Alguns poderes, muito antigos, ajudaram-nos no fim, mas foi a coragem humana que venceu naquele dia. Não deves pensar mal da tua tia Margaret, apesar de ela se ter deitado com um homem que não era o seu marido. Ela é uma mulher forte e orgulhosa. A sua vida tem sido solitária devido ao erro que cometeu. Nunca perdoou a si própria esse erro.

— Tem Thorvald.

— Sim. E ama-o, embora seja uma recordação diária das penas do passado. Suponho que ela lhe vai falar disto tudo e lhe vai explicar o melhor que puder. Espero que ele ouça e que não a julgue com demasiada severidade.

— Ele falou pouco dela — disse Creidhe lentamente. — Limitou-se a dizer que tinha sido cruel da parte dela ter escondido a verdade durante tanto tempo.

— Thorvald teria reagido de maneira diferente no ano passado, ou no ano anterior? — perguntou Eyvind suavemente. — Ele continua a ser um rapaz apesar de já ter dezoito anos. Com o tempo, há de chegar a uma conclusão. Ainda vai ter de crescer um pouco.

A sua expressão era pensativa.

— Pai? — Creidhe queria fazer uma pergunta, mas não queria ouvir a resposta.

— Sim, filha?

— Eu não gostaria que as pessoas julgassem Thorvald pelo que o pai dele fez. Parece-me... injusto... que as pessoas possam achá-lo... inadequado... só porque o pai dele agiu mal naquele tempo. Parece-me... acho que uma pessoa de bom senso devia pôr isso de lado e dar-lhe o devido valor. — Era muito difícil dizer aquilo. — É o que eu tenciono fazer. Ele continua a ser a mesma pessoa de ontem. — As lágrimas estavam próximas; a jovem pestanejou para as afastar. — Espero que se lembre disso, quando está a pensar em mandar-me embora para as Ilhas do Norte.

— Oh, Creidhe — disse Nessa com um suspiro. — Nós seríamos incapazes de te mandar embora; não penses dessa maneira. É uma oportunidade. O teu círculo de conhecimentos é muito estreito aqui, em Hrossey.

— Pai?

— Filha, sinto-me chocado por me achares capaz de um preconceito desses. Devias saber que eu julgo sempre um homem pelos seus méritos, nunca pela sua linhagem ou defeitos dos seus parentes. Thorvald não é Somerled; Thorvald é Thorvald e mais filho de Margaret do que qualquer outro. Não o vou sobrecarregar com o peso do passado.

— No entanto, quer que eu vá para as Ilhas do Norte para fazer amizade com um chefe de guerra que não conheço de lado nenhum?

Eyvind sorriu.

— No entanto, quero que vás, se bem que fique cheio de saudades do teu carneiro assado.

— Tenho de pensar no assunto — disse Creidhe, engolindo em seco. Era o mesmo que uma sentença; o que tinham e o que não tinham cuidadosamente dito. Achamos que Thorvald não é um marido adequado para ti. Quase gostaria que não fossem ambos tão gentis e tão diplomatas, para que pudesse gritar e bater o pé. Na sua cabeça havia uma mistura de sentimentos pedindo para ser libertados e não havia maneira de os deixar sair. Creidhe guardou o bordado e levantou-se.

— Boa noite, pai. Bons sonhos, mãe.

— Creidhe... — começou Nessa. Mas Creidhe já tinha voltado as costas, dirigindo-se para o seu quarto. Só quando soprou a candeia e se meteu sob os cobertores ao lado de uma Brona adormecida é que a jovem permitiu que as lágrimas corressem. Não era justo. Nada daquilo era justo. Por vezes, os antepassados pregavam partidas, fazendo com que as coisas ficassem todas ao contrário. Se ela estivesse minimamente interessada naquele Gartnait das Ilhas do Norte, seria tudo muito simples já que o tipo parecia vê-la como uma espécie de catálogo de virtudes femininas sem sequer a conhecer. Provavelmente, Gartnait era exatamente o que o seu pai dissera, um ótimo espécime masculino e perfeitamente adequado para ser o pai de um futuro rei. Por que tinha ela de amar o único homem no mundo que mal olhava para ela alguns dias, enquanto que noutros a tratava como se ela não fosse diferente de outro rapaz qualquer? Não era justo.

— Creidhe? — A voz de Brona soou abafada, vinda de sob os cobertores. — O que é que se passa?

— Nada — fungou Creidhe, aproximando-se do calor do corpo da irmã. Estava-se na Primavera, mas o ar continuava frio e até naquela casa bem construída se sentiam pequenas correntes de ar pelos cantos. — Nada. Dorme.

 

Era como uma maldição, uma escuridão, que pesaria sobre si o resto da sua vida, escurecendo cada passo que desse. Uma coisa era ter um pai que morrera como um herói e que nunca conhecera, um homem que ainda era recordado como o líder da primeira grande viagem da Noruega até às Ilhas Brilhantes. Outra era descobrir que o seu pai fora um assassino, um tirano que lançara uma vaga de sangue e terror sobre as ilhas. Thorvald não queria reconhecer, mesmo para si próprio, o significado daquilo. Caminhando com grandes passadas ao longo do trilho na direção de Stensakir com um vento violento chicoteando-lhe os cabelos e puxando-lhe a capa com dedos gelados e insistentes, o jovem encolhia-se perante a terrível verdade que o atingira como um martelo depois do choque paralisador provocado pela notícia que a mãe lhe dera. Mas não conseguia afastá-la. Aquilo fazia sentido. A sua herança não vinha de Ulf, vinha de Somerled, não era uma herança brilhante, era uma herança sombria, não era uma herança de equilíbrio e bom senso, era uma herança de discórdia e caos. Era a peça que faltava no quebra-cabeças. Dizia-lhe por que razão se sentira sempre à parte das outras pessoas, por que razão não conseguia sorrir e apertar uma mão como devia ser, por que razão se virava contra aqueles que queriam ser seus amigos, por mais que tentasse. Era por causa dessa herança que, em certos dias, se sentia como se carregasse a sua própria nuvem de miséria e que mais ninguém podia ver. Não admirava que não se sentisse integrado. Não admirava que nunca se sentisse como parte das coisas. Não admirava que tivesse tão poucos amigos.

Thorvald estremeceu. Tal como o seu pai, não merecia ter amigos e, certamente, amigos leais como Creidhe, em quem podia sempre confiar para o ouvir e esperar por ele mesmo quando o seu mau humor o fazia abocanhar e rosnar como uma fera. Era melhor Creidhe ficar afastada dele. O seu sangue mau podia vir à superfície a qualquer momento! Não era seguro um homem ser amigo dele, ou uma mulher e, muito menos, uma rapariga franca como Creidhe, com as suas agradáveis perseguições domésticas. Ela era uma criança, não conhecia nada do mundo. Estava inocente das forças destruidoras que ele transportava consigo. A partir de agora, ninguém estaria seguro. A não ser... a não ser, contra toda a evidência, que o que diziam acerca de Somerled fosse mentira. Se a história tivesse sido distorcida e mudada, como acontece com todas as histórias ao longo dos anos, se fosse assim, talvez ainda houvesse alguma esperança. Se a sua mãe dissera que Somerled matara Ulf, esse fato devia manter-se. Mas talvez tivesse havido uma razão, uma justificação. Por que razão agira Somerled daquele modo? E que acontecera ao homem? Fora banido para o mar, perto de Dorso de Baleia. Tudo o que tinha pela frente era um oceano imenso, até atingir o fim do mundo. Que castigo, uma punição suficientemente grande e terrível para pertencer a uma saga antiga, como um fardo imposto por um deus vingativo ou por um monarca louco. O fato de ter sido Eyvind a determiná-lo era inacreditável. O pai de Creidhe era amplamente respeitado nas ilhas, não apenas por ser o marido da princesa real dos Folk, mas também por ser o suporte do grupo de proprietários de terras que se reuniam duas vezes por ano na Assembléia para manter a ordem e administrar a justiça. Eyvind era conhecido por ser um homem escrupulosamente honesto e justo, um modelo de força e honra. Não era, certamente, um homem de imaginação tortuosa ou ironicamente astuto.

Engendrar um exílio daqueles parecia, aos olhos de Thorvald, uma falta de caráter. Talvez a história tivesse coisas que Margaret não lhe dissera.

Não era possível perguntar a Eyvind. O orgulho proibia-lho. Não podia falar à mãe. O pensamento do que ela fizera desgostava-o. Se tinha um marido modelo, como Ulf, por que razão mentir com um irmão assassino, um patife miserável? E como fora possível não contar nada ao filho durante aqueles anos todos? Era o que mais lhe doía. Até à data, quando estava zangado ou preocupado, contara sempre com os conselhos de Margaret, com as suas palavras calmas para o tranqüilizar. Quando via que a mãe se sentia só, ou maldisposta, fazia sempre os possíveis por distraí-la com um jogo ou com um passeio, ou falava-lhe do que tinha andado a fazer. Era assim desde que se lembrava: a maior parte das vezes os dois, a não ser que contasse com Ash, que pairava sempre silenciosamente nas traseiras. Thorvald não compreendia por que razão a mãe mantinha Ash. Para ele, era evidente que o tipo queria algo mais do que a simples relação empregado-patroa, coisa em que Margaret não estava minimamente interessada. Um homem que andava por ali às voltas como um cão durante anos e anos, à espera de umas migalhas que nunca lhe davam, era, segundo Thorvald, uma causa perdida. Mas o silencioso e impassível Ash continuava, enquanto outros servos iam e vinham. Mesmo assim, eram uma família de duas pessoas, Thorvald e Margaret, não muito dados a grandes manifestações de afeto, mas confiando e dependendo um do outro. Até à data. Essa proximidade estava, agora, destruída para sempre. Ela espetara-lhe uma faca no coração, pensou Thorvald, dando um pontapé numa pedra que encontrou no caminho. Mais valia bani-lo, tal como o seu pai, do caminho dos homens e mulheres honestos, para que fosse convenientemente esquecido. Como lhe poderia perdoar algum dia?

A tarde ia avançada quando se aproximou da aldeia de Stensakir, onde o fumo das cabanas era soprado pelo vento e os telhados de colmo estremeciam, deformando-se com as rajadas. Thorvald podia ver o Sea Dove rumando firmemente para terra, a vela listada de vermelho retesada por causa da ventania. Chegara a horas. Tinha de falar com Sam; tinha de lhe contar, assim como também tinha de sabe mais coisas. Preferia guardar a notícia para si, mas era preciso. Thorvald precisava de um barco. Sam tinha um. Só esperava que Sam fosse capaz de manter a boca fechada.

Ainda ia demorar um pouco até o amigo atingir o molhe, provavelmente com uma boa pescaria apanhada nas águas traiçoeiras da costa nordeste de Hrossey e de Hrossey, a que os antigos chamavam a Ilha da Rainha. Não era, certamente, o lugar mais seguro para pescar, mas Sam era um ótimo marinheiro e conhecia perfeitamente as correntes e as marés. O jovem prosperara e construíra a sua própria cabana em Stensakir; até lhe falara em casar e começar uma família. Thorvald achava aquilo ridículo e dissera-o ao amigo. Como era bom rapaz, Sam limitara-se a sorrir.

Aquele canal era, não só um local de pesca perigoso, mas também sede de uma morada extremamente estranha. Na base da Ilha Sagrada, situada a meio caminho entre as ilhas maiores, vivia uma comunidade de eremitas cristãos. Os irmãos tinham viajado, através do mar, vindos de uma terra longínqua a sudoeste, numas frágeis cascas de noz. Tinham escolhido aquela ilha, cheia de tradição, como a sua casa. Os Folk tinham evitado o local durante gerações; era conhecido por ser a morada da Tribo das Focas, um povo perigoso, à vontade tanto na água como em terra, as mulheres de uma beleza que não era deste mundo e os homens tão temíveis que eram capazes de assustar uma pessoa de morte com um simples olhar dos seus olhos verdes-escuros. Apesar disso, escudados pela sua coragem e fé ou pela sua cega ignorância dependendo da maneira de ver de cada um os irmãos tinham-se instalado na Ilha Sagrada e viviam em boa ordem, se bem que de maneira simples, apascentando algumas ovelhas, uma cabra ou duas e algumas galinhas. Tanto quanto se sabia, a Tribo das Focas nunca os perturbara, se bem que se dissesse que os Folk do mar eram imensamente pacientes e tinham grandes memórias. Por exemplo, alguém os ofendia, ou recebia um favor. Podiam passar gerações e tudo ficava esquecido, mas, de repente, lá vinham eles, exigindo vingança ou pedindo pagamento. Havia, por isso, poucos visitantes na Ilha Sagrada e aqueles que faziam a viagem levavam sempre um pedaço de ferro como medida de proteção. Se uma pessoa se esquecesse desse objeto essencial, não havia garantia de regressar são e salvo a casa. Sam era dos poucos a visitar frequentemente os irmãos, levando uma mensagem, um presente, um pouco de pão ou peixe fresco. Sam era um homem grande e não se assustava com facilidade.

Thorvald esperou no molhe enquanto o Sea Dove se aproximava. Era um barco maravilhoso, um navio capaz de encher os sonhos de um pescador como Sam sem nunca ser capaz de os realizar. Sam construíra-o para um homem chamado Olaf Egilsson, suficientemente rico para comprar os melhores carvalhos de Rogaland. O Sea Dove era um barco perfeito em todos os pormenores, desde as linhas suaves até à força vigorosa da sua quilha. As pranchas inferiores eram de carvalho, ao passo que as superiores eram de pinho, mais leves. Era um navio oceânico, se bem que mais pequeno. Os dois pares de remos raramente eram utilizados porque navegava melhor à vela com um homem de pé perto da popa para segurar no leme, que estava montado a estibordo, enquanto o outro mareava a vela. Por vezes, entravam e saíam do molhe a remos; mas mais nada. Fora o próprio Sam a fazer a vela, não confiando em mais nenhum homem de Hrossey para o fabrico daquela peça crítica do barco. No dia em que ficara pronto, Olaf Egilsson fora apanhado por uma sezão e no espaço de sete noites estava morto, mas não antes de ter dito a todos os da sua família que ninguém poria as mãos naquele barco, senão o homem que o construíra com tanto amor. Se tinha de morrer, que o Sea Dove fosse para Sam, porque só Sam lhe daria o uso que ele merecia.

O navio era tão bem preservado como qualquer outro barco das ilhas; o seu arrais tinha reputação de cuidadoso, apesar de ter apenas vinte anos. As pranchas que formavam os pequenos conveses à proa e à popa tinham sido substituídas no último Outono, quando uma tempestade atirou para a praia de Skaill uma certa quantidade de troncos de pinho. O mastro podia ser descido para descansar numa armação apropriada, se bem que Sam nunca fizesse essa manobra no mar; o mastro permanecia sempre no seu lugar, salvo quando o Sea Dove entrava em doca seca no Inverno para trabalhos de reparação. O orgulho e a alegria de Sam era calafetado de novo todos os anos, o casco limpo, os bancos dos remadores raspados com areia e depois oleados por causa da água salgada. Em boas condições, o barco podia ser manobrado confortavelmente por dois homens, pelo menos nas águas costeiras em redor de Hrossey, não deixando, por isso, de constituir um desafio. No seu todo, Thorvald achava o Sea Dove capaz de uma grande viagem. Esperava, sinceramente, que o seu amigo concordasse.

Naquele dia, Sam tinha um passageiro. O monge de cabelo grisalho pisou o molhe enquanto Sam e o seu marinheiro-ajudante atavam o barco e começavam a descarregar a pescaria numa seqüência de gestos rotineiros. De todos os irmãos, Tadhg era o mais conhecido nas ilhas, porque era seu costume viajar muito, contando as suas histórias da fé cristã. Tadhg era um velho amigo de Eyvind e de Nessa. Conhecera o tio de Nessa, o último grande Rei das Ilhas Brilhantes. O seu aparecimento era extremamente importante; Thorvald aproveitaria a oportunidade.

— Vai até a casa, Thorvald! — gritou Sam enquanto colocava ao ombro um cabaz de peixe. — Leva o irmão Tadhg contigo e acende o lume por mim. Eu vou já.

Thorvald encaminhou-se para a aldeia e entrou na asseada cabana de Sam, que tinha uma ampla sala principal, alegre, com uma janela virada para leste para se poder ver o mar e auscultar os seus humores, plataformas para dormir, uma pequena lareira separada e um abrigo protegido para armazenar coisas diversas. Na ocasião estava lá metida uma galinha choca, cacarejando confortavelmente num cesto de palha. O irmão Tadhg entrou atrás de Thorvald com a saia do seu hábito castanho fustigada pelo vento selvagem. O monge fechou a porta com alguma dificuldade. Thorvald remexeu as brasas da lareira, foi buscar turfa e pôs uma chaleira ao lume. Como o tempo era limitado, o jovem decidiu dispensar a cortesia.

— Quero perguntar-lhe uma coisa.

— Pergunta — disse Tadhg, sentando-se junto do fogo diminuto e estendendo as mãos para as aquecer.

— Sei tudo acerca de Somerled. Sei que era o meu pai. A minha mãe contou-me. Deve tê-lo conhecido. Quero que me diga que espécie de homem era. Quero descobrir por que razão matou o irmão. E...

— E o quê, Thorvald? — O monge não parecia nada perturbado com aquela rajada de perguntas difíceis.

O fogo estava a começar a pegar. Thorvald acrescentou-lhe mais turfa.

— E eu quero que me diga para onde pensa que ele foi quando Eyvind o deixou à deriva. Na Ilha Sagrada há homens que vieram cá parar vindos de muito longe, homens que devem conhecer as correntes do oceano e onde estão as ilhas e os recifes. Diga-me o que pensa. Ele pode ter sobrevivido?

Tadhg não respondeu de imediato. Era como se estivesse à procura das palavras certas, escolhendo cada uma com cuidado.

— Diga-me! — pediu Thorvald. — Não se preocupe com palavras doces. Se pensa que ele morreu, diga. Se acha que ele era depravado e maldoso, diga. A minha mãe escondeu-me a verdade durante dezoito anos. Não tenho paciência para palavras falsas, ou meias verdades. Seja o que for que tenha para me dizer, não pode ser pior do que descobrir que a minha vida tem sido uma perfeita mentira.

— Tu ainda és novo, Thorvald — observou Tadhg, olhando para ele muito sério. — Ainda tens muitos anos pela frente. Esses anos é que contam, não aqueles que já passaram. Aquilo que o teu pai era, e para onde foi, não faz qualquer tipo de diferença. Tu tens de viver a tua vida, não a de Somerled.

— Deixe-se de filosofias! — cortou Thorvald. — Dê-me fatos. Por que razão matou o meu pai Ulf? É verdade que ele chacinou a maior parte dos ilhéus antes de Eyvind o ter detido?

— Queres que te responda antes de o teu amigo chegar? São perguntas muito difíceis, Thorvald.

— Por favor. — Aquelas duas palavras tão simples custaram-lhe muito; mas viu compreensão nos olhos cinzentos do monge e ouviu compaixão na sua voz. Era conveniente respirar fundo e tentar manter a calma, se queria ter a hipótese de conseguir as respostas de que tanto necessitava.

— Só Somerled te poderia dizer por que razão matou o irmão — disse Tadhg. — As razões pareceram-me óbvias: o desejo de poder, o ciúme e a frustração provocada pelo sentimento de que não tinha qualquer papel a desempenhar nas ilhas. Talvez, também, os seus sentimentos pela tua mãe. Havia razões mais antigas, que ele trouxe consigo de Rogaland, coisas de um passado distante. Sobre essas, terás de perguntar a Eyvind.

— A Eyvind? Porquê?

— Eles eram ambos amigos muito chegados: irmãos de sangue. Foi por um sentido de responsabilidade face aos atos malignos de Somerled que Eyvind o baniu. Podia tê-lo matado. Em vez disso, preferiu dar ao amigo uma segunda hipótese. Foi uma decisão sábia e generosa.

— Uma segunda hipótese! A hipótese de navegar até ao fim do mundo e morrer.

— Essa era uma das possibilidades — concordou Tadhg.

— Pensa que havia outras? Diga-me quais!

— Tem calma, Thorvald. Uma resposta de cada vez. Somerled trouxe com ele uma data de problemas, quando veio com a expedição do irmão. Ulf era meu amigo; conversamos muito durante a sua curta estadia nestas ilhas como chefe de guerra. Apesar de Somerled ser seu irmão, Ulf temia-o. Não foi por sua sugestão que Somerled veio com ele, foi por sugestão do Jarl. Ulf foi pressionado a concordar, já que tinha sido o Jarl a financiar a expedição. O resultado foi catastrófico. Somerled fez coisas terríveis como chefe. Era um homem inteligente, subtil, engenhoso. Era, também, extremamente cruel. A mim, pareceu-me que era um homem totalmente inconsciente do sofrimento dos outros; era como se uma parte essencial da consciência humana estivesse fechada dentro dele, desde sempre, desde o seu nascimento. É perturbador pensar que, não fora a intervenção de Eyvind, e de Nessa, ele teria continuado como Rei, e nenhum dos Folk das ilhas teria sobrevivido. O teu pai acreditava que o povo nórdico era superior em tudo e muito mais bem preparado para governar. Não havia aqui lugar para um povo que ele acreditava ser primitivo, fraco e incapaz. Queria-o varrido daqui de uma vez por todas. Somerled nunca os compreendeu; nunca compreendeu as ilhas. Quase matou Nessa; ela tinha demasiada influência para ser deixada viva. E Eyvind, também. Em determinada ocasião, tanto o Pele-de-Lobo, como eu, estivemos presos e em vias de sermos executados. Somerled não gostava de ouvir a verdade, a não ser que servisse os seus propósitos.

Parecia que não havia nada que Thorvald pudesse dizer. No fim de contas, pedira respostas para as suas perguntas. E essas respostas doíam-lhe, se bem que pensasse que nada o magoaria depois do que a mãe lhe dissera.

— Rei — disse ele, finalmente, num tom cavernoso.

— Exato. Era a ambição da sua vida, pelo que Eyvind me disse. Durante um curto espaço de tempo, foi-o. Mas o preço foi elevado.

Thorvald sentiu escapar-lhe da garganta um riso amargo.

— Hã? Imagine, se ele tivesse ficado por aqui mais algum tempo, eu teria sido Rei depois dele. Rei Thorvald. Que giro. E Eanna não teria nascido, nem Creidhe, nem as outras. Ainda bem que foi expulso. Como Rei, se calhar teria sido tão mau como ele.

— Devemos preocupar-nos com o caminho que seguimos no momento, não o que abandonamos — disse Tadhg, usando um gancho de ferro para tirar a chaleira do lume e ver se a água já estava a ferver. — Tu queres saber para onde ele poderá ter ido. Porquê?

Tinha de responder cuidadosamente àquela pergunta.

— Ele era o meu pai. Tenho algum interesse em saber se está vivo ou morto.

— Eu só posso falar de probabilidades, Thorvald. Mas ninguém pode saber o que aconteceu. A tua mãe disse-te, imagino, que não se sabe nada de Somerled desde esse dia, nenhum sinal de que possa ter atingido uma costa qualquer. Só te posso dar conjecturas.

— Serve — disse Thorvald, tentando não parecer muito interessado. Era importante que ninguém suspeitasse dos seus planos.

— Muito bem. De acordo com as condições aparentes daquele dia, suponho que o barco deve ter rumado a Norte, ou a Oeste. Talvez para Norte. Não temos provas de que haja terras significativas a Oeste, mas existem histórias estranhas. Ouvi dizer que um tipo chegou às Ilhas do Norte, há algum tempo atrás, num tal estado de choque que quase tinha perdido a razão. Era um dos da minha fé, que seguiu a mesma rota do que eu, mas que foi afastado por ventos contrários e que não conseguiu aportar às Ilhas Brilhantes. As suas palavras não faziam sentido, mas parece que passou duas ou três estações num outro grupo de ilhas a Noroeste. Essas ilhas devem estar a vários dias daqui, pelo menos, ou até mais, já que sabemos tão pouco desse lugar. Um ou dois outros relatos parecem confirmar a sua existência. Devem ser as últimas terras a Oeste, um lugar marginal. E deve ser difícil dar com elas. Se o barco do teu pai derivou para norte, é possível que as tenha atingido.

O coração de Thorvald batia com toda a força.

— Por que razão estava esse homem em estado de choque? — perguntou ele, ansioso. — Estava confuso devido à viagem em si, ou devido a outra coisa qualquer?

Tadhg franziu o sobrolho.

— Aquilo que sei é por me terem dito, claro. O tipo estava aterrorizado, quase sem razão; poucas palavras coerentes conseguiram dele. Tinha medo de estar na praia, como se estivesse à espera de um inimigo vindo da água. Falou em roubo de crianças e de uns cânticos quaisquer. Uma coisa muito estranha. Provavelmente, a longa viagem e o isolamento fizeram com que tivesse pesadelos acordado. Não é uma experiência fácil. A fé de um homem é posta duramente à prova.

— Sim, mas é por isso que a fazem, não é?

Tadhg sorriu.

— De fato. E para te ser franco, tenho pensado muitas vezes se essa viagem não terá mudado Somerled para melhor, como Eyvind esperava.

— Talvez ele fosse incapaz de mudar — disse Thorvald. O jovem podia ouvir o ranger das botas de Sam no exterior. — Talvez ele fosse tão mau que não pudesse ser redimido.

— Ah — observou Tadhg — mas se não podemos saber o que aconteceu ao teu pai, eu posso falar-te numa das verdades mais profundas de Deus e tu serias um homem muito sábio se ponderasses nela, Thorvald. Nenhum homem está para além da salvação. A graça de Deus está em todos nós. Se bem alimentada, essa pequena chama pode crescer até se transformar numa bondade gloriosa. Nós somos todos criaturas d’Ele; somos todos parte d’Ele. Para mudar, tudo o que precisamos é de aprender a amá-Lo. Até Somerled é capaz disso. Tens de acreditar que é possível ele tê-lo feito à sua maneira.

A chegada de Sam, com um cordel de onde pendiam alguns peixes de ventres pálidos numa mão e com uma trouxa na outra pôs termo à conversa. Encheram umas canecas de cerveja, prepararam uma refeição e a conversa fácil fluiu: o tempo, a chegada de carneiros novos à pequena herdade dos irmãos, um casamento próximo e a morte de um ancião em Hafnarvagr. Era para onde ia o irmão Tadhg: uma grande jornada. Sam ofereceu-lhe uma cama para passar a noite, mas o monge recusou. Tinha combinada uma boleia com um camponês local; de fato, era melhor ir ter com ele imediatamente, antes que escurecesse demasiado. Dormiria na casa do homem e seguiria na carroça no dia seguinte com uma carga de vegetais e algumas galinhas para o mercado. Tadhg limpou o prato com uma bucha de pão e levantou-se para partir.

— Lembra-te do que te disse, Thorvald — disse ele suavemente. — Não te precipites. Com tempo para refletir, um monstro pode passar a ser apenas uma sombra fugaz e uma montanha inacessível uma ligeira inclinação. Ainda és novo; precipitas-te em busca de respostas sem quereres saber do custo. Se deres tempo ao tempo, talvez descubras que a única coisa de que precisas é de esperar.

Thorvald deixou-o acabar. Não ganhava nada discutindo. A verdade era simples. Transportava consigo a herança do seu pai, marcando-o tanto como a coragem e bondade de Eyvind marcara o seu filho Kinart. Se não tivesse sido levado pelo mar, teria crescido e teria sido o gênero de líder que as pessoas seguem até ao fim do mundo. Tadhg não percebera a questão. Para se conhecer a si próprio, para olhar para dentro de si mesmo, Thorvald tinha de descobrir que espécie de homem era o pai. E só havia uma maneira de o descobrir. Era perigoso. A mãe não gostaria. Teria muita dificuldade em convencer Sam. No entanto, tinha de tentar, ou viveria para sempre com o conhecimento de que não enfrentara a verdade. Se o seu pai ainda estava vivo, tinha de o encontrar. Era uma demanda: grande, desafiadora, heróica. Se o fizesse, a sua vida teria um significado.

Sam não se surpreendia com facilidade. O jovem escutou calmamente a história: Margaret, Somerled, Ulf, batalhas e sangue derramado, assassínio e exílio. De vez em quando bebia um pouco de cerveja e acenava com a cabeça. Franziu o sobrolho uma ou duas vezes.

Uma das razões pelas quais Sam continuava a ser seu amigo era a sua calma. Era quase tão bom ouvinte como Creidhe e muito menos inclinado a fazer sugestões quando não eram desejadas. Quando Thorvald chegou ao fim da história, Sam não fez qualquer comentário. Mexeu no fogo, encheu de novo a caneca do amigo e deixou entrar um gato pela porta dos fundos, tudo em completo silêncio.

— Tu queres que eu te empreste o Sea Dove — disse ele, por fim, com os seus pensativos olhos azuis.

— Não exatamente — replicou Thorvald, sentindo uma onda de alívio por Sam ter compreendido sem ter tido necessidade de lhe dizer. — Eu não sou suficientemente bom marinheiro para o levar sozinho. Terias de ir comigo. Posso pagar-te, se isso ajudar.

As sobrancelhas de Sam ergueram-se um pouco. O jovem bebeu uma golada de cerveja.

— Tencionas ficar fora quanto tempo? Uma lua, uma estação? Talvez mais, se o vento te levar mais longe? Apanha-se muito peixe nesse espaço de tempo, o suficiente para pagar o casamento de um tipo e tornar a sua cabana simpática e aconchegada: as melhores lãs, boa roupa branca e um pedaço de madeira para fazer um berço. O suficiente para lhe encher as mãos de dinheiro. E se o barco se avaria? Este barco é a minha vida, Thorvald. Pode ser um barco robusto, mas não foi feito para velejar no oceano.

Aquelas palavras eram tudo menos encorajadoras. Por outro lado, havia uma nota na voz de Sam, um certo brilho no seu olhar, que mostravam que o seu interesse despertara.

— Pode ser que não demore tanto tempo assim. — Thorvald inclinou-se para a frente com os cotovelos nos joelhos, pronto a aproveitar a vantagem que tinha. — O irmão Tadhg acha que ele não deve ter ido para muito longe. Podíamos ir e voltar quase sem ninguém saber. Podíamos dizer-lhes...

Sam levantou uma mão, cortando o fluxo de palavras.

— Mais devagar. E quando chegarmos lá, se chegarmos? Tencionas chegar, dizer-lhe que és filho dele e regressar a seguir? E se não o encontrares? E se o encontrares e ele quiser que fiques? Como é que eu fico?

O sorriso que encurvou os lábios de Thorvald era de troça.

— Podes ter a certeza de que isso não acontecerá. Não espero ser recebido de braços abertos, mesmo supondo que encontramos quem procuramos. Não tenciono ficar lá. Tudo o que quero é uma resposta para a minha pergunta.

— E que pergunta é essa? — perguntou Sam, afagando o gato que se enroscara no seu colo, ronronando de contentamento. Mas Thorvald não respondeu e o silêncio prolongou-se entre os dois amigos.

— Vou pensar — acabou Sam por dizer. — Mas sou franco contigo, Thorvald. Não vejo o que posso ganhar com isso tudo, para além de ajudar um velho amigo.

— Uma última aventura antes de assentares? — sugeriu Thorvald. — A tua última incursão como homem solteiro? Preocupas-me com essa conversa de berços. Eu disse-te que pagava.

Sam acenou lentamente com a cabeça.

— Se concordar, será para fazer um favor a um amigo. Espero que esse favor me seja devolvido, um dia.

— É evidente. Farei o que for preciso — disse Thorvald ardentemente. A verdade era que o favor seria pago facilmente, já que Sam nunca lhe pedia mais do que um dia de ajuda no barco, ou no telhado de colmo da cabana. O seu amigo contentava-se com pouco.

— Hum — disse Sam com um brilho divertido no olhar. — Olha que não me esqueço, Thorvald. Dá-me um dia ou dois para pensar no assunto. Outra coisa. Em mar aberto, precisamos de uma tripulação de quatro homens, pelo menos. Precisamos de arranjar mais dois. E esses, certamente, quererão ser pagos.

— Não. — Thorvald pensara na ocasião em que Sam chegaria àquilo; sabia que precisava de uma boa resposta, mas o olhar no rosto do amigo disse-lhe que nenhuma daquelas em que tinha pensado seria a adequada. — Não posso levar mais ninguém. Pedir-te que venhas comigo é uma coisa, arranjar mais homens é outra completamente diferente. Assim que começássemos a fazer perguntas, toda a ilha ficava a saber. Isto é um segredo, Sam. Temos de ser só nós dois, mais ninguém. Tu falaste-me muitas vezes da maneira como o Sea Dove se comporta face ao vento. E não é longe. Podemos fazê-lo facilmente. Tu não sais todos os dias só com um ajudante?

— És maluco — disse Sam secamente. — Nem penses. É preciso, pelo menos, mais um homem. Pareces muito confiante quanto à distância. Pensava que não sabíamos de todo.

— O irmão Tadhg falou numa viagem de alguns dias. Os Folk nem sequer dariam pela nossa falta. — Uma mentira, quase de certeza. — Anda lá, Sam. É a oportunidade de uma vida: uma aventura a sério.

— Uma aventura que não terá valido a pena se não voltarmos para contar a história — observou Sam, sem expressão. Seguiu-se um breve silêncio.

— Não queres pensar na hipótese, nesse caso? — perguntou Thorvald, olhando fixamente para o amigo. — Nem sequer como um teste ao teu barco, ou a ti mesmo? Seja a que preço for?

A boca de Sam distendeu-se numa breve careta.

— Seja a que preço for? Tu não és tão rico quanto isso, Thorvald, por melhor que seja a herdade da tua mãe. Diz-me, falavas a sério quando disseste que retribuirias o favor? Digamos que aceito e que depois, quando te pedir que retribuas o favor, ele não é do teu agrado! Cumprirás a tua promessa?

O coração de Thorvald deu um salto; era evidente que ainda havia esperança.

— É claro — disse ele totalmente confiante. Não conseguia imaginar uma coisa que Sam lhe pedisse que não fosse capaz de fazer. — Dei-te a minha palavra, não dei? Eu sei o risco que corres, Sam. Se me fizeres isto, fico em dívida contigo para toda a vida.

— Se o fizer, serei tão louco como tu — resmungou Sam. — Bem, vou pensar e depois digo-te. Talvez consigamos arranjar uma tripulação nas Ilhas do Norte, tipos que não te conheçam, se isso é assim tão importante. É preciso organizar muita coisa.

— Tem de ser mantido em segredo — acrescentou Thorvald rapidamente. — Seria impedido se soubessem... a minha mãe, Eyvind, todos eles. Não podes dizer nada a Creidhe.

— Tu já és crescido — observou Sam, levantando-se. O gato, desalojado, deixou-se cair no chão e afastou-se, imperturbável.

— Mesmo assim. Eles achariam isto uma loucura, um perigo. Preferiram não falar do meu pai durante estes anos todos; decidiram esquecê-lo. Dificilmente gostarão que ele regresse à vida, quando está tão convenientemente na bruma da memória de todos.

— Mas — disse Sam —, a tua mãe contou-te.

Thorvald estremeceu.

— É verdade — concordou ele. — Asneira dela.

— Estás a ser um bocado duro com ela, não estás?

Thorvald não respondeu, mas, mais tarde, enquanto Sam dormia tranquilamente, como um bebê, ele permanecia acordado, pensando se teria sido leal com Margaret. Na sua mente, não tinha dúvidas de que ela lhe devia ter contado a verdade mais cedo, que não a devia ter guardado até àquele dia, esperando que ele a absorvesse, compreendesse e perdoasse, como se fosse uma coisa de todos os dias. Por outro lado, naqueles tempos ela era uma mulher nova, mais nova do que agora. E talvez Somerled não fosse, então, o que as pessoas diziam. Talvez houvesse alguma razão para o que fizera, razão que ninguém podia compreender. Talvez ele se sentisse como Thorvald, um intruso, um homem com poucos amigos, um homem demasiado inteligente para seu próprio bem.

Thorvald ficou durante muito tempo a olhar para o telhado de colmo, escutando o ronronar do gato enquanto o animal se aninhava nos cobertores por trás dos joelhos de Sam. O pescador suspirou e virou-se. Thorvald considerou as implicações do seu plano. Não havia dúvida de que iria magoar as pessoas de quem gostava, a mãe e, especialmente, Creidhe. Era uma viagem longa, quase certamente mais longa do que dera a entender a Sam e não havia garantias de que encontrariam terra. Somerled podia não estar lá; se calhar, nunca lá estivera. Podia ter morrido há muito tempo, algures no mar, sozinho, no seu pequeno barco. Quando soubesse o que fizera, Margaret ficaria horrorizada. Creidhe ficaria magoada por ele não ter tido confiança nela; a jovem estava acostumada a partilhar todos os seus medos, todas as suas frustrações, todos os seus esquemas e planos. Mas não lhe podia falar daquele. Tinha de esperar que ela lhe perdoasse quando do seu regresso. Se regressasse.

Uma coisa era certa. Era uma jornada que se sentia obrigado a fazer: obrigado pelos laços de sangue.

 

                 Três correntes a oeste

                 A corrente sangrenta da caça à baleia

                 A corrente da morte da Noite das vozes

                 A corrente dos loucos da Ilha das Nuvens

                                         NOTA A MARGEM DE UM MONGE

 

O trabalho de Creidhe estava quase terminado, um suave cobertor da melhor lã, vermelho-vivo sobre o mais profundo dos azuis. As orlas decorativas, com o seu padrão de raposas, mochos e pequenas árvores, já tinham sido feitas no pequeno tear; Creidhe coseria as duas coisas de maneira a produzir um efeito sem costuras. Margaret perguntou-lhe o que iria começar a seguir, mas Creidhe não lhe soube responder. Pela simples razão de que não haveria um a seguir, pelo menos para já. Talvez fosse para as Ilhas do Norte, como os seus pais queriam, disse ela à tia. Talvez não fosse uma boa ocasião para começar um trabalho novo. E continuava a ter na cabeça a Jornada, o bordado muito secreto que parecia crescer cada vez mais e que nunca parecia acabado de maneira satisfatória.

— Não te preocupes com Thorvald — disse-lhe a tia Margaret sem cerimônias, numa tarde em que estavam as duas a retirar os fios do tear, trabalhando lado-a-lado enquanto o sol de fim de tarde entrava pela porta aberta, fazendo brilhar a lã colorida. Ele vem para casa quando se sentir pronto. Suponho que te disse o que se passa.

— Alguma coisa — disse Creidhe de modo acanhado. Era difícil abordar o assunto, apesar de a tia Margaret ser uma amiga de confiança. Não era apenas um simples segredo, era um caso de assassínio e traição e era difícil imaginar a asseada e auto-suficiente Margaret, uma mulher que não aparentava qualquer sinal de natureza apaixonada, metida num drama daqueles. — Eu sei que ele se sente infeliz — continuou Creidhe. — Gostava de o ajudar, mas...

— Um homem não pode ser ajudado se não quiser — disse Margaret. — É melhor deixá-lo em paz, Creidhe. Thorvald tem de interiorizar tudo isto sozinho. O teu pai tem razão, uma viagem é capaz de te fazer bem.

Creidhe não disse nada. Margaret devia pensar que Thorvald andava algures absorto e que regressaria quando sentisse que lhe podia perdoar. Creidhe sabia que não era assim. Thorvald tinha ido outra vez visitar Sam. Por vezes, Creidhe pensava que Thorvald achava que ela era estúpida, assim como achava que o tempo que ela passava a tecer, a coser e a cozinhar era uma coisa de mulheres, que requeria pouca inteligência. Ela sabia que não era estúpida. Sabia que Thorvald andava a planear uma expedição. Ele ia à procura do pai e Sam ia com ele; eram precisos dois homens para manobrar o Sea Dove. Se Margaret ainda não tinha percebido, conhecia menos o filho do que pensava.

Aquilo ia ser um desafio. Talvez fosse uma longa viagem e Creidhe nunca gostara muito dos movimentos de um barco, nem sequer do pequeno bote que utilizavam para passear quando eram crianças. Mas uma coisa era certa. Apesar dos seus dezoito anos, Thorvald ainda não era um homem e não sabia tomar conta de si próprio. E apesar do que se pudesse dizer acerca dele, precisava da sua ajuda, do seu amor. As pessoas olhavam para Thorvald e só viam o seu lado mau, os maus humores, as fúrias súbitas, os silêncios. Creidhe conhecia-o muito bem. Ele era amigo dela desde que se lembrava. Estivera presente no dia em que Kinart morrera, um dia terrível em que os seus pais tinham ficado demasiado abalados pelo choque e pelo desgosto para se preocuparem com a filha mais nova. Creidhe ficara muito quieta na sombra, observando enquanto a fria e pálida forma do seu irmão era depositada em cima da mesa para ser lavada e secada e se faziam os serviços fúnebres. Margaret também estivera presente com Thorvald, ele próprio também uma criança. Thorvald sentara-se ao lado de Creidhe, limpara-lhe as lágrimas, aquecera-lhe as mãos nas suas. Fora ele que mantivera afastado o terror do desconhecido naquele dia em que o seu mundo ficara de pernas para o ar.

E, mais tarde, houvera muitas outras vezes, vezes em que ela se sentira triste ou preocupada, ele a ouvira enumerar as suas desgraças num silêncio resignado e a confortara, dizendo-lhe que tudo correria bem. Vezes em que ele a livrara de sarilhos. Creidhe lembrava-se de uma ida ao lago, de um barco horrível, de este se ter virado e de um salvamento embaraçoso. Nesse dia, se não fosse Thorvald, talvez se tivesse afogado. Se não tivesse sido a sua ajuda, teria ido para casa toda molhada, confessando a sua estupidez aos seus pais.

Depois fora a leitura e a escrita, algo com que Creidhe sempre tivera imensas dificuldades. Fizera um grande esforço com as lições dadas por Margaret, porque a sua atenção estava sempre virada para as coisas que preferia estar a fazer: pão, a bordar ou a permanecer simplesmente na rua, a apanhar ar fresco. Então, Thorvald ajudara-a, acrescentando as suas lições não oficiais às sessões formais de Margaret. Sentava-se com Creidhe no muro virado para ocidente e observava enquanto ela desenhava as letras no chão com um pau. Nunca se zangava quando a estava a ensinar. A culpa era dela, se não conseguia aprender.

Não havia dúvidas na mente de Creidhe de que aquele paciente professor, aquela criança amável, representava o Thorvald real, a essência do homem que viria a ser. As outras pessoas viam-no como uma pessoa arrogante, sem sentimentos, até cruel. Não havia dúvida de que era capaz disso tudo. Mas o verdadeiro rosto, pensava Creidhe, só o mostrava àqueles em quem confiava, mas esses eram muito poucos.

Apesar disso, continuava a ser imprevisível, sorumbático e dado a decisões súbitas e ilógicas. Não podia ir para aquela grande aventura sem ela.

Uma vez que estava decidida, havia planos para fazer. Sam e Thorvald não concordariam em levá-la, por isso teria de pôr coisas de lado. O que significava descobrir a data em que partiriam e ir para Stensakir na noite anterior. Quanto tempo estariam fora? Em que direção iriam? E como acompanhá-los sem deixar Eyvind e Nessa ralados de morte?

O pensamento daquilo tudo provocava-lhe um nó no estômago. Tanto perigo, risco e incerteza. Thorvald devia ter feito perguntas, se bem que ela soubesse que ele não falara com Eyvind. O jovem devia ter tomado conhecimento da rota mais provável e do local em que Somerled teria desembarcado. Certamente que Sam, o homem mais experimentado de Hrossey, não concordaria em levá-lo sem o mínimo de garantias. Mesmo assim, continuava a haver perguntas em suspenso. Talvez o local de destino fosse longínquo. Talvez estivessem ausentes muito tempo, uma lua completa, ou duas. A sua mãe ficaria ansiosa e o seu pai chocado. Eyvind ficaria furioso com Thorvald, se bem que a sua presença no navio fosse de sua única conta e risco. Talvez, até, se lhe metesse na cabeça ir em sua perseguição, se bem que não houvesse nas Ilhas Brilhantes outro barco capaz de competir com a velocidade e capacidade de manobra do de Sam. O seu pai nem sequer seria capaz de comandar um navio. E Margaret? Quem a ajudaria no tear? Quem a consolaria quando ela descobrisse que o filho saíra de casa para ir em busca de um pai que nunca conhecera? Apesar disso, Creidhe sabia que tinha de ir. Era um conhecimento que não tinha nada a ver com lógica, mas que era profundo e forte, uma convicção que sentia no coração e que lhe percorria o sangue. Tinha de ir com eles. Sem ela, Thorvald não conseguiria. Sem ela, a demanda falharia.

A jovem prosseguiu cuidadosamente a sua rotina diária, tornando-se útil em casa, ou indo quase todos os dias, a pé ou a cavalo, a casa de Margaret. Os pais falaram de novo da sua viagem às Ilhas do Norte e ela fingiu que estava a pensar no assunto. Não se sentia bem por estar a enganá-los. A família baseava-se na confiança e na verdade; a jovem desejava pedir-lhes conselho, mas não podia, sabendo que nunca concordariam em deixá-la partir numa viagem tão longa.

A sua irmã Brona era a única pessoa que pressentia que havia algo errado, e foi Brona que ajudou Creidhe a arranjar uma maneira. Ia haver um casamento em Stensakir: a filha mais velha de Grim, Sigrid, ia casar com um camponês da Ilha Ocidental, e toda a família estava convidada. Deviam ir todos para lá no dia anterior e chegara um mensageiro com a notícia de que os chefes de guerra dos Caitt tinham enviado uma delegação a Hafnarvagr, desejando falar com Eyvind acerca de uma combinação para proteger os estreitos entre as Ilhas Brilhantes e a sua linha de costa, no norte. O tráfego dos navios nórdicos e dinamarqueses aumentara consideravelmente naquela zona e a qualquer momento qualquer um deles podia apoderar-se de gado, madeira, peles ou escravos. Eyvind tinha de viajar imediatamente para sul e Nessa, que andava há uns dias um tanto cansada e pálida, tomou a decisão de ficar em casa com Ingigerd, em vez de ir ao casamento com o marido.

Nessa não queria desapontar as filhas. Creidhe e Brona podiam ir, disse ela, desde que fizessem a viagem e regressassem com os três homens que Eyvind escolhera para as acompanhar e guardar, ficando em casa de Grim e da sua mulher Eira até que terminassem os festejos. Margaret não ia, assim como Thorvald.

Mais ao menos ao mesmo tempo, Creidhe teve um golpe de sorte incrível. Uma das servas de Eyvind, uma rapariga chamada Solveig, andava a namorar um rapaz que trabalhava no Sea Dove como marinheiro. Quando Solveig disse acidentalmente que Sam ia dar alguns dias de folga ao seu namorado logo a seguir ao casamento, tudo se encaixou. Só podia haver uma razão, pensou Creidhe, para uma decisão que custaria a Sam muito peixe perdido. O Sea Dove devia estar quase pronto para partir. E ela estaria suficientemente perto de Stensakir na ocasião: perfeito. Quase parecia de propósito.

A dor que estava quase a infligir à sua família provocava um grande peso no coração de Creidhe, mas estava decidida. As duas raparigas fizeram as malas: um vestido para cada uma para o casamento, o adorado colar de contas de âmbar de Creidhe, a fita amarela preferida de Brona e os dois pares de meias de lã branca. Os presentes para o feliz casal já tinham sido postos de parte: uma caixa de pedra-sabão com baleias e focas gravadas, cheia de moedas de prata e uma tapeçaria de lã feita por Creidhe, mostrando uma árvore mágica cujos ramos tinham frutos e folhagem de muitas formas e cores, maçãs, pêras e bagas, tudo crescendo ao mesmo tempo no mesmo ramo. Creidhe sentia-se feliz por o seu cobertor azul e vermelho ainda não ter sido dado. Sentia-se feliz por o seu trabalho ser tão apreciado, mas era sempre triste vê-lo ir, porque levava sempre uma parte de si própria. Thorvald acharia aquilo uma tolice; era uma das coisas que nunca lhe dizia. O seu pensamento adiantou-se no futuro. Talvez o cobertor azul e vermelho viesse a cobrir a cama que ambos haveriam de partilhar como marido e mulher. A jovem imaginou-se a acordar com a luz da madrugada a bater nas cores ricas da lã; sentiu o calor do corpo de Thorvald contra o seu, a força do seu braço rodeando-a...

— Creidhe?

A jovem teve um sobressalto; Brona devia ter dito qualquer coisa e ela não a ouvira.

— Por que estás a arrumar isso? — perguntou Brona, olhando para o tecido da Jornada enrolado que Creidhe estava a meter na bolsa de fora da sua trouxa. — Só vamos estar lá alguns dias e haverá festas e dança todas as noites. Não vais ter tempo para bordar. Eu não levo o meu.

— Mal não faz — disse Creidhe, contente por a irmã não ter reparado em algumas das coisas que tinha empacotado: uma faca afiada, uma corda, uma barra de sabão, alguns panos macios para o caso de ter o período antes de regressarem a casa, uma tesoura, uma pederneira, agulhas de osso, lã colorida e algumas ervas como prevenção contra o enjôo. No fundo do saco ia uma velha camisa e um par de calças de Thorvald, retirados subrepticiamente de uma das arcas da tia Margaret e um quente chapéu de feltro com abas. A roupa de Thorvald não lhe servia; a sua silhueta não se podia chamar arrapazada. No entanto, suspeitava que naquela viagem não poderia levar nenhum dos seus vestidos nem nenhuma túnica de lã. Estaria sempre molhada e fria até lá chegarem, fosse onde fosse. Tinha de ser prática.

— Creidhe? — chamou Brona, olhando para a irmã enquanto atava a sua trouxa.

— O que é?

— Levas aí uma grande trouxa.

— A tua também é grande.

— Mas a tua é maior.

— O que é isto, uma competição?

Brona franziu o sobrolho. A jovem era uma rapariga franzina de olhos grandes, cabelos suaves castanhos iguais aos de Nessa e de aspecto delicado, que não lhe escondia a inteligência aguçada.

— Creidhe, não estás a planear nada, pois não? Tens andado estranha nestes últimos dias.

— Planear? Que havia eu de planear? — Creidhe ergueu as sobrancelhas, esperando mostrar uma expressão de surpresa inocente.

Brona levou as mãos às ancas.

— Planear fugir com Sam — disse ela cortantemente. — É melhor não fazeres isso, porque se casares com Sam nunca mais te falo, nem quando já for uma velha toda enrugada e sem dentes.

— Não valeria a pena falares-me se já não tivesses dentes — replicou Creidhe, sentindo um grande alívio logo seguido de uma grande idéia. Brona aproximara-se alarmantemente da verdade, mas só se aproximara. — Não conseguiria compreender uma palavra. Além disso, por essa altura também já devo estar surda.

— E então? — perguntou Brona, ameaçadora. — Vais?

— É claro que não! — disse Creidhe, vendo que a irmã estava quase a chorar, surpreendida por não ter reparado como Brona se tinha tornado numa mulher, embrulhada como andava com as suas próprias preocupações. — Sam não é exatamente o tipo de homem que foge, Brona. Se quisesse alguma coisa, pedia, ou perguntava.

— Pediu-te?

— Pediu o quê?

— Pediu-te. Pediu-te que casasses com ele. Pediu a tua mão ao pai. Eu sei que ele te fez um pente. Vi-o a olhar para ti.

— Não, Brona — disse Creidhe, sentando-se na cama e colocando um braço em redor dos ombros franzinos da irmã. — Sam não me pediu nada e duvido que o faça. — Não era ocasião para dizer a Brona que era possível o pai não considerar o esforçado Sam mais adequado para genro do que Thorvald. — Mas adivinhaste em parte. Eu tenho um segredo.

— Qual? — A atenção de Brona virou-se totalmente para o que viria a seguir; o olhar calculista no seu rosto mostrava que estava a pesar todas as possibilidades, entre as quais estaria, provavelmente, um jovem. Brona sempre gostara muito de histórias romanescas.

— Digo-te quando chegarmos a casa de Grim e de Eira. Mas só se jurares guardar segredo.

— Por que havia de jurar?

— Também te digo quando lá chegarmos.

Dissera o suficiente, pensou Creidhe. A irmã poderia tornar-se extremamente útil para cobrir a partida e para suavizar a má notícia a dar a Eyvind e a Nessa. A julgar pelo olhar nos olhos de Brona sempre que o nome de Sam era mencionado, não seria difícil conseguir um favor em troca.

— E agora vamos levar as nossas coisas para os cavalos e vamos despedir-nos. Espero que não chova. Não te esqueças das tuas botas de Inverno.

Eyvind já partira para Hafnarvagr de madrugada com um grupo dos seus homens de confiança. Na passagem levariam Ash. O taciturno empregado de Margaret era um homem gabado pela sua habilidade em resolver dificuldades nas negociações de assuntos delicados, resumindo, clarificando e sugerindo compromissos úteis. Eyvind reparara que Ash adquirira essa habilidade muito útil por viver na mesma casa que Thorvald e Margaret, já que nenhum deles tinha um caráter fácil. Se Ash era capaz de sobreviver em tais condições, não teria qualquer dificuldade com os terríveis chefes de guerra dos Caitt.

Nessa despediu-se das filhas com um beijo nas faces e falou calmamente, primeiro com Brona e depois com Creidhe enquanto aquela abraçava uma última vez a irmã mais nova.

— Tem cuidado, filha — disse Nessa suavemente, os seus olhos cinzentos fixando com uma luz alarmante os de Creidhe. — Estás numa encruzilhada. Sei que é assim porque vi. Terás de escolher um dos caminhos e alguns deles preocupam-me.

— Esteve a ver o fogo por minha causa? — murmurou Creidhe. Em tempos, a sua mãe fora uma poderosa sacerdotisa. Desistira por causa de Eyvind, mas o que aprendera era profundo e duradouro. Ajudara a treinar Eanna nas artes e Creidhe sabia que ela ainda usava o seu poder para uso próprio quando a necessidade a isso obrigava. As imagens nas chamas, as vozes vindas do interior da terra, a canção do vento e as vagas, tudo lhe falava um pouco da sabedoria dos antepassados e o caminho a seguir. — O que é que viu?

— Uma viagem. Uma descoberta e uma perda. Morte. Amor. Dor. Não sei se a história decorre no espaço de uma única lua ou se demora mais tempo. Há uma estranheza nela, um certo terror, que faz com que deseje que fiques em casa, segura, onde pertences. Mas não posso. Os antepassados não nos mentem.

Creidhe estremeceu. Os olhos da sua mãe estavam sombrios.

— Falou ao pai nisso? No que viu?

— Não — disse Nessa.

— Se quiser, fico em casa. — As palavras de Creidhe saíram apressadamente. — A mãe não parece bem. Pergunto a mim mesma...

Nessa sorriu e o súbito arrepio desapareceu tão rapidamente como aparecera.

— Estou bem, filha e fico bem com a Ingigerd a fazer-me companhia até vocês regressarem. Divirtam-se; faz-vos bem dançar e divertirem-se. Talvez, para ti, um dos caminhos te leve apenas até às Ilhas do Norte e até um certo jovem. O que acontecer depois depende de ti. E agora vai, os homens estão à espera. A tua trouxa é esta? O que é que tens lá dentro, um tear e um saco de lã?

Então, a pequena Ingigerd começou a chorar, Nessa pegou nela com palavras de conforto e, de repente, eram horas de partir. Creidhe olhou por cima do ombro para a figura franzina da mãe a diminuir cada vez mais à porta de casa, com Ingigerd nos braços e um sorriso de coragem nos lábios que não escondia a preocupação que tinha nos olhos. Um arrepio percorreu de novo o corpo de Creidhe. Quando voltaria a vê-las? E que diria a mãe quando soubesse que ela partira num pequeno barco em direção ao fim do mundo?

No fim, acabou por ser tudo quase fácil demais. Na primeira noite do casamento Sam apareceu vindo da sua aldeia com a sua melhor túnica bordada a vermelho e juntou-se ao bailarico. Era uma festa e tanto; Eira, a mulher de Grim, não poupara na cerveja e o próprio Grim matara um par de porcos como complemento ao peixe habitual e ao acompanhamento. Uma mulher chamada Zaira, que era famosa pelos seus bolos, fizera um esplêndido com farinha de bere e mel, nozes e especiarias vindas da Noruega num barco de carga. Os produtos tinham a sua origem nos mercados do oriente, lugares tão longínquos que estavam para além da imaginação. A própria Zaira viera de um desses lugares longínquos. Era uma bela bailarina e como o seu marido Thord estava no mesmo conselho que Eyvind, fez par com vários homens, o seu cabelo escuro voando e os seus lábios vermelhos sorrindo. Era um pouco namoradeira, achou Creidhe, mas sem má intenção. Thord, um homem cheio de cicatrizes e desdentado, um homem que mais parecia um monólito, ganhara-a como uma espécie de prêmio há muito tempo, numa outra terra. Nas Ilhas Brilhantes os casamentos não seguiam um padrão de cultura ou de parentesco restrito. Bastava olhar para a noiva: o seu pai fora, em tempos, um guerreiro Pele-de-Lobo e a sua mãe, bastante mais nova, tinha o mais puro dos sangues das ilhas. Bastava olhar para Eyvind e Nessa. A própria Creidhe tinha sangue das duas raças. Um pretendente, capaz de sustentar uma família, podia ser aprovado independentemente das suas origens. Com Creidhe e as suas irmãs era um pouco diferente. Se era suposto um filho de uma delas vir a ser Rei, nenhuma delas podia casar com um homem qualquer, se bem que parecesse que Nessa tinha feito exatamente isso. Eyvind era nórdico e fora, em tempos, um guerreiro Pele-de-Lobo. O seu povo fora o inimigo, o invasor que trouxera devastação às ilhas antes de a coragem e a magia terem posto um fim a esse brutal conflito. Mas Eyvind fora cuidadosamente escolhido, como qualquer príncipe oujarí. Tanto Nessa como a sua velha professora, Rona, tinham-no sujeitado a provas, nas quais ele tinha demonstrado a sua coragem, não apenas como guerreiro mas também como protetor decidido, forte na coragem e na bondade, sábio e dedicado. Se havia um homem capaz de ser pai de reis, esse homem era ele.

Creidhe suspirou. Conseguira de Brona uma promessa de silêncio, tendo feito, por sua vez, outra promessa. Sim, dissera à irmã que, se Sam lhe perguntasse aquilo que ambas sabiam, Creidhe diria não. Além disso, faria os possíveis para que Sam virasse a atenção para a própria Brona que, no fim de contas, tinha quase quinze anos e que estaria pronta para casar dentro de um ano ou dois. Toda a gente sabia que Sam queria assentar assim que a sua casa estivesse suficientemente confortável; estava a poupar dinheiro e a fazer todos os possíveis para que tudo estivesse perfeito. Creidhe viu no olhar da irmã a sua determinação. Seria Brona a deitar-se naqueles belos cobertores de lã, a cozinhar uma boa refeição para o marido acabado de regressar da faina, a providenciar um bebê masculino para o novo berço e mais nenhuma das raparigas das ilhas.

Assim, Creidhe prometeu e não disse que talvez um pescador não fosse o pai adequado para um Rei, por mais agradável à vista que fosse. Em troca, Brona prometeu-lhe que guardaria silêncio durante um certo tempo, o suficiente até que fosse demasiado tarde para que alguém se metesse num barco e conseguisse encontrar o Sea Dove em mar alto. No fim de contas, Brona contaria a Nessa e a Eyvind o que Creidhe lhe dissera para contar, uma tarefa que exigiria bastante coragem. Creidhe sabia que a troca não era justa. Se bem que Brona não acreditasse, nunca quisera Sam para si. Gostava dele, toda a gente gostava, mas Creidhe nunca preferiria outro homem a Thorvald. Era tão simples como isso. Era uma pena que Sam não visse as coisas da mesma maneira; ele estava a atravessar a sala na sua direção com um propósito firme e havia um certo olhar nos seus firmes olhos azuis que a preocuparam. Brona estava no outro extremo com um grupo de raparigas e estava a olhar.

— Queres dançar, Creidhe? — perguntou Sam polidamente, esboçando uma pequena vênia que, vinda de outro homem, teria parecido ridícula. Sam tinha uma dignidade natural que lhe ficava bem. Creidhe deu-lhe a mão e encaminharam-se para o círculo. Brona tinha o sobrolho franzido. Aquilo não fazia parte da combinação.

A música recomeçou e o círculo começou a rodar num sentido e no outro, as palmas bateram e os pés leves e não tão leves moveram-se numa dança de roda. Havia muito barulho, as pessoas conversavam, os assobios e os tambores discursavam alegremente e as botas batiam no chão de terra.

— Estás com bom aspecto, Creidhe — gritou Sam por cima do barulho geral.

— Também tu — gritou Creidhe em resposta. — Não esperava encontrar-te aqui.

— Eu gosto de uma boa festa — disse Sam com uma careta, enquanto o círculo se quebrava e se transformava numa série de casais, começando um movimento serpenteante.

— Mas é tarde — observou Creidhe — se quiseres sair com o teu barco de madrugada, ou antes.

— Ah. Bem — disse Sam, fazendo-a girar mais depressa do que os outros homens faziam com os seus pares — talvez tire um dia de folga e vá trabalhar na cabana.

Creidhe acenou com a cabeça. Tinha de fazer as perguntas certas sem parecer demasiado inquiridora.

— Voltas amanhã à noite? Grim diz que vai haver jogos; não sei de que espécie.

Sam fê-la regressar ao círculo com habilidade. Brona estava no outro lado com o jovem Hakon, o filho de Grim. Sam piscou um olho e as faces de Brona coraram ligeiramente. Sam virou-se para Creidhe.

— Jogos, hã? Bem, suponho que vou faltar a isso. Vou partir numa viagem; sou capaz de ficar fora uns dias, talvez mais. Vou para Norte. Amanhã não haverá noitada para mim; parto ao nascer do Sol do outro dia.

— Ah sim? — disse Creidhe como que por acaso, se bem que o seu coração batesse como um tambor, excitado; no fim de contas fora fácil, ele dera-lhe a informação de que necessitava. Só mais um dia. Então, enquanto os jogos decorressem, arranjaria maneira de se escapar e...

O padrão da dança mudou de novo e ela viu-se nos braços de um camponês enquanto, nas suas costas, Sam dançava com Brona. Um olhar por cima do ombro mostrou-lhe que os dois não falavam um com o outro; na verdade, a irmã, normalmente volúvel, parecia sem palavras enquanto dançava graciosamente, os olhos cinzentos fixos nos do seu par com uma expressão docemente solene. A tez pálida de Brona ainda estava rosada. Pelo menos, Sam estava a olhar para ela. Já era um começo. A parte infeliz era que Brona não sabia do papel de Sam na expedição; como podia Creidhe dizer-lhe que ia fugir com o objeto do seu afeto? Quando regressasse teria de explicar muita coisa.

Bem, o destino entregara-lhe exatamente o que pretendia. Os jogos eram, geralmente, barulhentos e acompanhados por um generoso fluxo de cerveja. Ninguém repararia na sua falta. Teria de acreditar que Brona manteria a boca fechada até muito depois de terem dado pela sua falta. Brona sabia que estaria com Thorvald, por que razão, e a direção em que iam. Desde que Eyvind não saltasse para um barco e fosse atrás deles, coisa sempre possível, a viagem decorreria como planeado. Assim, só precisaria de sair às escondidas da casa de Grim, encontrar o Sea Dove, entrar a bordo, esconder-se, agüentar um certo desconforto até chegar a ocasião certa e... Lidaria com essa parte quando chegasse a ocasião, disse Creidhe a si própria. Tinha de atirar com os seus medos para trás das costas; que o tempo estaria mau, que o barco naufragaria e que velejariam dias e dias sem encontrar o destino. Tinha de pôr de lado o sentimento de culpa; não se podia dar ao luxo de imaginar o pai furioso e a mãe frenética, Margaret chorando e Brona em sarilhos por sua causa. Se pensasse nessas coisas, talvez se sentisse tentada a mudar de idéias. E a voz interior, a voz poderosa e profunda que fazia ao mesmo tempo parte de si, mas que também era exterior, estava a tornar tudo muito claro, dizendo-lhe que continuasse. Tomara uma decisão. Thorvald precisava dela e ela estaria presente, como muitas vezes no passado ele estivera presente por ela. Seria forte. Quanto às conseqüências, lidaria com elas mais tarde.

 

Era assustador, admitiu ele, assustador e hilariante, enquanto o Sea Dove rumava com dificuldade a noroeste, ora mergulhando no cavalo de uma onda como se ela os fosse atirar para as profundezas daquele reino náutico; ora cavalgando lá no alto, sobre o pico de outra onda monstruosa que, certamente, não conseguiriam transpor, certamente que iam ser esmagados. Sam berrava umas ordens concisas e Thorvald, de mandíbulas apertadas numa estranha mistura de excitação e terror, obedecia-lhes o melhor que podia, tentando manter o trêmulo barco numa rota estável e compreendendo que não fora nada sensato ao convencer Sam a não levar outro homem com eles. O plano fora navegar até às Ilhas do Norte e arranjar lá um homem ou dois que não os conhecessem. Desse modo, teriam braços suficientes para a viagem. O problema era que as dificuldades eram maiores do que alguma coisa que Thorvald já experimentara. O céu estava cheio de nuvens loucas; o mar era um monstro turbulento com uma mente e uma vontade próprias. Se lhe apetecesse devorá-los, homens, barco e provisões, fá-lo-ia com tanta facilidade como um cão tira um pedaço de pão de cima de uma mesa.

Na verdade, Thorvald estava a adorar. O temporal tirava-lhe toda a confusão da cabeça; a dor nas costas, as bolhas nas palmas das mãos, a luta constante para manter os pés firmes esvaziavam-no de tudo que não a vontade de viver um pouco mais e não deixar Sam sozinho com aquele belo barco. Tinha uma missão pela frente. Era bom; hoje era um homem.

A rota era um pouco mais para Oeste do que Thorvald esperava. Uma vez fora das águas abrigadas das Ilhas Brilhantes, tinham ganho velocidade porque o vento era favorável a uma rota a direito na direção do seu destino. Após um curto debate consigo próprio, Sam tomara uma decisão: rumariam a noroeste, abandonando o plano de passar pelas Ilhas do Norte e contratar um ou dois homens extra, já que isso acrescentaria, pelo menos, dois dias à viagem nos dois sentidos. As coisas estavam a correr bem; estavam a conseguir. E quanto mais cedo chegassem, disse Sam, mais cedo estariam em casa. Não queria que o seu marinheiro desertasse por falta de trabalho pago; levaria muito tempo para conseguir outro. Quando encontrassem as ilhas, Thorvald poderia falar com o seu misterioso pai, Sam aproveitaria para pescar e regressariam a casa. Entre o quarto crescente e a lua cheia a viagem estaria completa e estariam os dois de regresso onde deviam estar.

Assim, rumaram a mar aberto, sem outra coisa que não um certo sentido de orientação para os guiar. Sam não usava relógio de sol, já que o Sea Dove pescava apenas nas águas costeiras das Ilhas Brilhantes onde as falésias, as dunas e os recifes eram os únicos marcos de que um homem necessitava. Mas olhava para a luz do Sol e para as nuvens, para as aves que lhe passavam por cima e quando a noite se aproximava Thorvald via-o a perscrutar os céus, tentando descobrir o que o Sol e a Lua lhe diziam. O tempo acalmara; Thorvald pensara por momentos se não iriam ficar os dois acordados toda a noite, agarrados aos cabos, aos remos ou ao leme enquanto o mar prendia e libertava, elevava e afundava a embarcação. Mas os deuses estavam cansados de brincar e o Sea Dove acalmou, rangendo, limitando-se a um movimento suave de balanço. Ataram o leme e lançaram a âncora flutuante, um pesado cabo com um saco cônico atado na ponta para limitar o andamento. Talvez fosse possível um ficar de vigia aos recifes, às baleias e às diversas criaturas das profundezas enquanto o outro dormia. Quem sabia o que se poderia esconder naquelas águas desconhecidas? Algures para oeste, talvez não muito longe, estava o fim do mundo; um homem podia ser arrastado para lá antes de dar por isso e ver-se a cair para um mundo desconhecido. Talvez fosse melhor, no fim de contas, não dormirem.

— Comida — grunhiu Sam, ajoelhando-se para tirar um odre de água e um saco de oleado da caixa onde os tinha armazenado. O jovem estava habituado a ficar muitos dias no mar; ele e o seu marinheiro saíam muitas vezes antes de o dia nascer e só regressavam ao pôr do Sol e o capitão do Sea Dove era um homem grande e de grande apetite. Carneiro salgado, pão bem cozido, um ovo ou dois cozidos as suas galinhas estavam de novo a pôr era um festim naquelas circunstâncias. Sam estendeu um braço para passar a água a Thorvald e ficou subitamente gelado, como se se tivesse transformado em pedra.

— O que é? — perguntou Thorvald, um tanto alarmado. — O que é que se passa?

— Shhh — sussurrou Sam, fixando intensamente o convés de pinho entre os seus pés. — Escuta.

A princípio, Thorvald não conseguiu ouvir nada para além do constante ranger da madeira do barco e das ondas a baterem no casco. Mas... havia mais qualquer coisa, um som parecido com um gemido fraco, ou um suspiro e uma espécie de arranhadelas, muito pequenas, por baixo das pranchas.

— Ratos? — sugeriu Thorvald com as sobrancelhas erguidas. Parecia que Sam tinha outra coisa em mente que não animais a bordo. As suas feições largas e agradáveis tinham ficado pálidas e ele estava a levantar as pranchas que se mantinham soltas sobre a armação do barco para permitir aconchegar a carga ou o balastro. Uma tábua pequena, duas, três e Thorvald, espantado com a rapidez e a intensidade da reação do amigo, avançou para espreitar para o casco sombrio do Sea Dove, perto da proa. Cheirava a qualquer coisa; alguém tinha vomitado. E ouviu-se um som, não o arranhar de um animal, mas uma voz, uma voz de rapariga, trêmula e fraca:

— Sam?

Sem uma palavra, os dois homens desceram para o buraco entre o convés da proa e o da ré, onde estavam armazenadas as provisões; passaram por cima das traves mestras, afastando sacos e trouxas até conseguirem abrir caminho. Creidhe estava acocorada em cima das pedras de balastro, por trás da rede que prendia a mercadoria, num lugar que mais parecia o esconderijo de um rato. Tiraram-na os dois, Sam com alguma gentileza, Thorvald com umas mãos que tremiam de fúria.

— Em nome de todos os deuses, que estás tu a fazer aqui? — perguntou ele. — Como é que entraste a bordo? Pelos ossos de Odin, que vai dizer o teu pai?

— Agora não — disse Sam. — Ela precisa de água e é melhor acendermos a lanterna; em breve estará escuro. Está uma pederneira naquele saco, juntamente com uma mecha seca. Tem cuidado. Não precisamos de um fogo para nada.

O seu tom era neutro, cuidadoso, pensou Thorvald, para não afligir ainda mais a malcheirosa, pálida como um queijo e ranhosa Creidhe. Afligir. Ah! Mal conseguia imaginar que ela tivesse feito uma coisa tão estúpida. Porquê, por todos os deuses, porquê? Desafiava todo o senso comum. Ela pusera toda a sua viagem em risco, como se quisesse que ele falhasse. E a sua própria segurança? Aquilo não era lugar para uma rapariga. E se se magoasse? E se adoecesse? Era suposto Creidhe ser sua amiga. Os amigos não faziam coisas daquelas.

As suas mãos ainda tremiam enquanto fazia lume e acendia a lamparina de óleo que havia sempre a bordo. Sam estava a falar delicadamente com Creidhe, dando-lhe água a beber, lavando-lhe o rosto e obrigando-a a distender os membros entorpecidos. Havia lágrimas nos olhos dela. Thorvald podia ver o brilho à luz da lamparina. Louvado fosse Odin, como podia uma rapariga fazer uma tolice daquelas? Especialmente uma rapariga como Creidhe, que gostava tanto de passar o tempo a bordar e a cozinhar. Como podia Sam estar tão calmo? Devia ter vindo sozinho, pensou Thorvald, furioso. Não podia confiar em ninguém, nem sequer naqueles que achava que o compreendiam.

Creidhe estava mais calma, bebendo pequenos goles de água do odre, respondendo à paciência de Sam, distendendo os braços e as pernas com um gemido e aspirando grandes lufadas de ar fresco. Deuses, ela tinha um aspecto terrível, a túnica cheia de vomitado, o cabelo todo emaranhado e o rosto branco como a cal à luz da lanterna. Os olhos tinham por baixo umas grandes olheiras.

— O que... — começou Thorvald, mas Sam obrigou-o a calar-se com um gesto.

— Primeiro a comida. As perguntas ficam para depois — disse o pescador, vasculhando no saco. — Sou capaz de jurar que são capazes de ouvir o meu estômago em Stensakir. Bebe devagar, Creidhe, pouco de cada vez. E é melhor comeres, também, um bocado de pão. O teu estômago também deve estar vazio. Vamos, só um bocadinho ou dois. Sentes-te melhor?

Creidhe acenou levemente com a cabeça; a jovem segurava no pão com uma mão, mas parecia ser incapaz de fazer outra coisa para além de tremer enquanto segurava na outra o odre, e fungava de vez em quando. Sam cortou o pão em silêncio, um pedaço de carne, ovos cozidos e entregou uma porção de cada coisa a Thorvald. Apesar de estar esfomeado, Thorvald não conseguia comer. Finalmente, não se conteve mais.

— Diz-nos, Creidhe. Explica-nos. Não percebes que isto é muito perigoso? Sabes para onde vamos? — O jovem podia ouvir a aspereza da sua própria voz, apesar de estar a fazer um grande esforço para se manter calmo. Sam estava a olhar para ele com uma expressão que não se podia descrever como amigável. — Qual foi a tua razão para fazeres uma coisa destas? Só tornaste as coisas ainda mais difíceis.

— Tu vais precisar de mim — disse Creidhe, endireitando os ombros e erguendo o queixo de uma maneira bem familiar. — Eu sei. Vais precisar de mim antes do fim disto tudo.

A sua voz traía a sua tentativa para parecer confiante; era muito baixa e soluçava. Nesse momento, Thorvald soube que o aperto que sentira no coração no momento em que ouvira e reconhecera a sua voz, no fundo do convés, era mais de medo do que de fúria e frustração: medo por ela e do que lhe custaria por ser sua amiga. Já era suficientemente mau ter forçado Sam a acompanhá-lo e a pôr em risco o seu barco. Mas arriscar a vida de Creidhe, cujo mundo era composto por bordados, família e felizes dias de sol, era aterrorizador. Era como se a mão do seu pai, a mão que devastara as Ilhas Brilhantes no espaço de uma única estação, se estendesse para tocar na viagem do seu filho; para a ensombrar. Durante uns momentos, Thorvald não encontrou nada para dizer.

Não havia Lua; a pequena lanterna que Thorvald pendurara cuidadosamente à proa espalhava um círculo de luz pálida, a suficiente para mostrar quão minúsculos eram, os homens, a mulher e a frágil casca de noz na imensidão do escuro oceano que os rodeava.

— O Sea Dove não está habituado a isto — observou Sam. — Quero dizer, a estar fora toda a noite. Não há sinal de terra em nenhuma direção, não está certo. Não me parece bem.

— Bem, não me parece que estivesses à espera que as coisas fossem fáceis — disse Thorvald secamente, incapaz de conter o conflito de sentimentos que lhe ia na alma. — É uma viagem de risco, uma viagem ao desconhecido, não um... um passeio de família pela costa numa manhã bonita.

Sam não respondeu. Aquele comentário não lhe era dirigido. Lentamente, o jovem terminou a sua refeição, limpou as mãos à túnica e arrumou o pão, a faca e o encerado. Foi à proa ajustar a lanterna e olhou por instantes para o céu. As estrelas estavam quase imperceptíveis; apesar de a Primavera ter começado há pouco, as noites já eram varridas pelo pálido clarão do Sol. Finalmente, Sam virou-se para os outros dois.

— Bem — disse ele calmamente — não há duas hipóteses, pois não? Assim que o Sol nascer, vamos para casa.

— Não!

A palavra fora dita a uma única voz; Thorvald e Creidhe tinham respondido exatamente ao mesmo tempo. Sam pestanejou.

— Uma razão para esse não — disse ele, olhando complacentemente para os seus dois companheiros. — Uma, de cada um de vós.

Seguiu-se uma pausa prolongada enquanto Thorvald olhava, carrancudo e de braços cruzados, para o oceano ondulante e Creidhe para o odre, como se este fosse um objeto de intenso fascínio.

— Então? — perguntou Sam. — Não existe nenhuma, pois não?

— Aí é que tu te enganas. Percebo que estejas preocupado com a saúde de Creidhe, para não falar da sua segurança. Mas devo dizer, levando em linha de conta o que já viajamos até agora e a força do vento, que devemos estar mais perto do nosso destino do que das Ilhas Brilhantes. Não será melhor levar Creidhe para o porto seguro mais próximo?

Sam não fez qualquer comentário.

— Creidhe? — perguntou ele.

— Ela não tem de dizer nada — disse Thorvald antes que a jovem respondesse. — Ela nem sequer devia estar aqui. É tão simples quanto isso.

Creidhe tossiu para clarear a voz.

— Suponho que lhe prometeste — disse ela, virada para Sam. — E um homem cumpre as suas promessas.

A jovem não olhou para Thorvald.

— Prometi — respondeu Sam, franzindo o sobrolho. — O problema é que o teu pai mata-nos se não te levamos para casa sã e salva. Mesmo assim, é muito capaz de nos matar na mesma. Não percebo por que razão fizeste isto, Creidhe.

A voz da jovem era, agora, mais firme.

— Eu sei que vocês vão à procura de Somerled. Sei que vão na direção em que ele deve ter ido. E sabia que não me deixariam vir convosco. Mas tinha de vir. Não posso explicar facilmente a razão. É mais um sentimento, um sentimento profundo. Sei que tinha de vir.

— Não percebo porquê. — O tom de Thorvald era brusco. — Tu não sabes velejar, não sabes lutar e não nos podes ajudar seja no que for. Tudo o que fizeste foi pores-te em perigo e ralar a tua família.

— Não foi o que vocês fizeram? — perguntou Creidhe calmamente.

Seguiu-se outro silêncio, durante o qual Sam desenrolou dois cobertores, colocou um em redor dos ombros de Creidhe e encostou-se ao engradado.

— Já chega — disse ele. — O barco é meu e eu é que decido. O que acontece é que, em ocasiões como esta, o vento decide por nós. Vou dormir um pouco; vocês os dois podem continuar a bater um no outro toda a noite, se quiserem, pelo menos enquanto conseguirem manter os olhos abertos. Acorda-me quando quiseres descansar, Thorvald. Tomarei uma decisão ao amanhecer.

Mais tarde, Thorvald recordaria aquela noite como uma estranha calmaria na tempestade daquela jornada. O jovem recordaria a sua confusão, o seu sentimento de culpa e o seu medo. Recordaria a serenidade de Creidhe com a luz da lanterna a iluminar-lhe as feições pálidas; como, apesar da necessidade de se precipitar muitas vezes para a amurada para vomitar, continuava a olhar para ele com uma tranqüilidade que o aborrecia mais do que qualquer outra coisa, já que lhe dizia que era mais capaz de se controlar do que ele. Quanto a conversa, pouca coisa, ou nada. O jovem não confiava em si próprio para falar; ela parecia achar desnecessária qualquer outra explicação.

A jovem dormiu durante algum tempo com a face encostada a um dos braços, os cabelos claros espalhados como um tecido sedoso, e ele olhou para ela, tentando imaginar como conseguiria mantê-la em segurança e, ao mesmo tempo, prosseguir a sua demanda. A sua demanda: continuava presente na sua mente, se bem que qualquer outro homem, naquelas condições, decidisse regressar a casa sem hesitar. Talvez fosse o legado do seu pai, condenando-o a colocar os seus próprios interesses à frente dos dos outros. A reação de Sam à crise fora rápida e atenciosa. Thorvald estava dolorosamente consciente de que a sua resposta fora falha de compaixão. Sam dormia agora o sono de um homem cuja consciência estava limpa, ao mesmo tempo que Thorvald estava sentado sozinho na companhia do oceano e da noite, pensando em como o destino parecia determinado em desviar os seus passos e torná-lo num inadaptado. O destino, pensou ele amargamente, não perdia uma oportunidade para lhe recordar que era filho do seu pai. Creidhe estremeceu e suspirou. Ocorreu a Thorvald que houvera uma certa coragem no que ela fizera, por mais errado que tivesse sido. Não conhecia muitas raparigas capazes de se manterem em silêncio por baixo do convés numa viagem terrível como aquela, ou planear, sequer, uma coisa daquelas. De fato, não conhecia nenhuma. A terem uma rapariga com eles, Creidhe era a única hipótese possível. De modo ausente, o jovem aconchegou-lhe o cobertor, continuou a sua vigia solitária e rezou por um vento vindo de leste.

De fato, a decisão partiu dos próprios deuses. Na escuridão que antecede a alvorada, o agradável balouçar do Sea Dove transformou-se num movimento desagradável e a âncora flutuante praticamente inútil contra a força insistente da corrente. O vento levantou-se, enchendo cada canto do barco de espuma, ensopando-lhes as roupas, os cobertores, as provisões. A madeira do Sea Dove gemia e estalava; o pano protestava. Sam indicou o rumo e Thorvald obedeceu. Creidhe manteve-se encolhida, fazendo os possíveis para não atrapalhar. Os dois homens tomaram a decisão com rapidez como medida de segurança porque se a direção indicada por Tadhg estava certa, aquele vento levá-los-ia ao seu destino. Içaram a vela. A tempestade levou-os para oeste, ou talvez para noroeste; as nuvens cada vez mais baixas tornavam difícil a orientação. Sam agarrou-se ao leme com todas as suas forças e os outros agarraram-se como lapas a tudo o que encontraram. A extensão de pano por cima deles bramia a ponto de se rasgar; o mastro vergava, a sua força de resistência testada até ao limite. Ocorreu a Thorvald que não estavam a controlar minimamente a rota do navio; o vento ia levá-los para onde lhe apetecesse. A única esperança era virar o Sea Dove contra as vagas monstruosas e mantê-lo a flutuar até que a tempestade acalmasse. Que hipóteses tinham de encontrar um pequeno grupo de ilhas acerca das quais não sabiam nada, senão que estavam algures a noroeste das Ilhas Brilhantes? Para lá dessas ilhas, que podiam perfeitamente ser o produto da imaginação de um louco qualquer, toda a gente sabia que não havia outra coisa senão água. Era como se o vento lhes quisesse retirar a respiração da boca, porque o que lhes ia na mente não podia ser posto em palavras. Era melhor pensar apenas na tarefa que tinham em mãos e manterem-se a bordo, preparando-se para a vaga seguinte, para a seguinte e depois para a seguinte, atentos ao pano e à chuva gelada, forçando as mãos a apertar e a desapertar os cabos, mudando de posição para equilibrar o Sea Dove e, entretanto, rezar de dentes e olhos cerrados, procurando descortinar uma mudança no tempo, uma sombra de misericórdia.

A embarcação em que Somerled fizera aquela viagem era um pequeno barco de pesca, como os que Tadhg e os seus irmãos utilizavam, por vezes, para ir a terra. Ao lado do Sea Dove, um barco daqueles era tão diferente como um pato de um albatroz. Só era possível imaginar como seria viajar daquela maneira. Na mente de Thorvald surgiu uma terrível verdade. Somerled não podia ter sobrevivido. A seguir, teve outro pensamento ainda mais louco: Vamos morrer os três. Numa crença como a do irmão Tadhg, simples e infalível, a fé na misericórdia eterna do seu deus era total. Os irmãos não tinham feito aquela viagem guardados pela mão do mesmo deus? Mas Somerled não tinha essa fé; como poderia um homem mau, esperar qualquer favor de qualquer divindade? Se Somerled conseguira fazer a travessia, fora outra coisa qualquer que lhe dera as forças necessárias para isso. Ódio? Ambição? No entanto, nunca regressara; nunca regressara a casa para se confrontar com o amigo que o enviara para aquele pesadelo.

Sam continuava agarrado com todas as forças ao leme, os músculos dos seus braços quase explodindo. O seu rosto estava pálido à luz fraca do quase amanhecer. Gritava algo, mas Thorvald não conseguia ouvir as suas palavras devido ao rugido do vento. Os cabelos de Creidhe flutuavam como uma bandeira dourada; a jovem agarrava-se com todas as suas forças a uma antepara.

A vela, parecia dizer-lhe Sam. Arreia a vela. Porque o mastro oscilava perigosamente, a pressão era demasiada e tinham de desistir de controlar a rota, ou arriscavam-se a perder este e a vela, fazendo com que o navio ficasse incapaz de ser manobrado, mesmo com tempo mais calmo. Thorvald avançou subitamente, as botas ensopadas parecendo de chumbo, os dedos tolhidos pelo frio enquanto tentava desapertar um cabo e depois outro dos ganchos de ferro que os seguravam. O Sea Dove estremeceu; uma montanha de água erguia-se por cima deles.

— Segurem-se! — gritou alguém e um instante mais tarde a vaga esmagava-se sobre o barco. O nariz, a boca, os olhos e os ouvidos de Thorvald encheram-se de água; o mar ergueu-o num abraço feroz, gelado, e o jovem sentiu a dor ceifar-lhe quase os braços enquanto tentava manter-se agarrado ao cabo, tenazmente, como uma criança aterrorizada se agarra à mãe perante um perigo desconhecido. Passaram-se longos momentos; o jovem prendeu a respiração até sentir o peito rebentar-lhe, até não suportar mais a agonia, até perceber que estava mais perto da morte do que nunca e então, com o rugido de um animal ferido, o Sea Dove endireitou-se de novo e surgiu o abençoado ar, ao mesmo tempo que um novo dia rastejava cuidadosamente através do céu tempestuoso, e Thorvald atreveu-se a abrir os olhos mais uma vez.

O mastro quebrara-se, deixando lascas enormes de madeira erguidas para o céu e a vela desaparecera. Creidhe jazia no convés, sufocada, a tossir e com um cabo enrolado em redor da sua figura toda descomposta. Era um milagre ter sobrevivido à queda do mastro e à vaga avassaladora. Sam. Onde estava Sam? A embarcação oscilava violentamente ao sabor dos caprichos do oceano; o leme jazia, suspenso, descontrolado. O coração de Thorvald gelou. Isto não, suplicou ele, se bem que nunca tivesse confiado muito em deuses. Isto não está certo. Eu queria um desafio, mas isto não, por favor...

— Sam! — guinchou Creidhe, pondo-se de pé e precipitando-se através da amurada na direção da ré. O Sea Dove ergueu-se; Creidhe caiu de joelhos e voltou a pôr-se de pé, agarrando-se ao convés da ré. Rastejou; o leme deslocava-se aos arrancos e estremecia, suspenso não muito longe da sua cabeça. — Não fiques aí! — gritou ela por cima do ombro. — Ele está ali gelado e a sangrar! Não sabes manobrar esta coisa?

Em estado de choque, Thorvald viu a silhueta de Sam no convés, parecendo mais morto do que vivo. O brilhante fio de sangue que lhe escorria pela face até ao pescoço, ensopando-lhe a camisa e a túnica, dava uma nota de cor vibrante àquela madrugada escurecida pela tempestade e àquele mar verde-escuro. Thorvald conseguiu chegar à ré e agarrou no leme, sabendo que os seus esforços seriam inúteis perante a força maligna dos elementos, mas compreendendo que tinha de tentar. Era uma luta até à morte, do homem contra a natureza; tinha de agüentar e esperar que um poder superior, se havia tal coisa, se cansasse de brincar com eles. Quisera um desafio e tinha-o: o jogo mais difícil que alguma vez tinha jogado.

Creidhe estava a rasgar qualquer coisa e enrolava-a em redor da cabeça de Sam, pressionando o ferimento com a mão. A jovem fechava a boca com força; os raios de luz da madrugada, penetrando nas pesadas nuvens, permitiam ver o seu rosto ainda mais pálido, como se também ela fosse cair inconsciente a qualquer momento. A jovem tentou afastar Sam, o suficiente para permitir que Thorvald pudesse manobrar, tentando desesperadamente controlar o Sea Dove, se bem que, sem os remos e a vela, o melhor que conseguiria seria evitar que ele se afundasse. Creidhe deixou-se cair no convés com a cabeça de Sam no colo; o jovem era demasiado pesado e ela amparou-lhe o ferimento com uma mão, agarrando-se com a outra ao pedaço de madeira mais próximo enquanto o céu acima deles trovejava e as vagas desabavam ou retiravam, erguiam-se ou caíam, determinadas a desalojá-los. O tecido que envolvia a cabeça de Sam a camisa de Creidhe, já tinha uma mancha vermelha. A jovem olhou para Thorvald apoiado com toda a força no leme, para o rosto coberto de cabelos molhados e para os olhos sombrios.

— Lamento — disse ela. Não era possível saber se aquilo era por causa do sarilho em que estavam metidos, ou simplesmente por estar ali.

— Também eu — disse Thorvald.

O Sea Dove escapou a mais um dia e a mais uma noite gelada, durante a qual Sam gemeu por baixo de dois cobertores. Thorvald e Creidhe fixavam a escuridão totalmente exaustos, mas vigiando teimosamente, ora o ferido, ora o mar, as estrelas, o movimento do barco meio arruinado. Mantinham-se os dois calados. Creidhe limpou a fronte de Sam, deu-lhe alguns goles de água e ajudou-o a virar-se. O jovem pescador parecia melhor. Thorvald fez os possíveis por manter a rota, se bem que lhe parecesse que o barco não respondia como devia. O jovem achou que o leme estava avariado, mas não o mencionou a Creidhe.

Não avistaram terra ao segundo dia de terem perdido o mastro. O vento amainou, as águas acalmaram-se e o frio entrou-lhes nos ossos. Cobriram Sam com toda a roupa seca que encontraram porque, no estado de fraqueza em que se encontrava, era importante que não cedesse ao frio e desistisse. O pescador dormia muito, mas quando acordava dizia coisas com senso e tentava fazer sugestões úteis, o que era bom sinal. Na noite seguinte, Thorvald ouviu Creidhe a murmurar de vez em quando e perguntou a si mesmo se a jovem não estaria a perder o juízo; isso seria o fim. Mas, após alguns momentos, veio-lhe à idéia que ela devia estar a rezar, ou algo parecido, se bem que falasse na antiga língua das ilhas e ele não fosse fluente nessa linguagem.

Lembrou-se que a irmã de Creidhe era uma sacerdotisa; que a sua mãe também sabia os mistérios da sua fé, que tinha a ver com a terra e o mar, o ancestral folclore das pedras erguidas e com os percursos da Lua e do Sol. Creidhe salmodiava de olhos fechados. Não podia saber a quem se estava a dirigir nem o que estava a pedir.

Se aquilo a fazia sentir-se melhor, pensou Thorvald sinistramente enquanto o céu empalidecia, antecipando uma nova aurora, melhor. Quanto a ele, estava a tornar-se rapidamente evidente que não conseguiria agüentar muito mais tempo. A dor que tinha nos braços era insuportável, as palmas das mãos estavam cheias de bolhas e, pior do que tudo, as dores de cabeça eram tantas que quase o cegavam. Aquilo acontecia de vez em quando em casa e ele sabia que a única coisa a fazer era deitar-se na escuridão e esperar que passasse. O Sol estava a nascer; a luz pálida transformou a dor de cabeça num torno que lhe apertava as têmporas, fazendo com que o estômago lhe subisse à boca e visse estrelas.

— Thorvald! — A voz de Creidhe perfurou-lhe o crânio. — Thorvald!

O jovem fechou os olhos; Aguenta-te, disse ele para si próprio, aguenta-te, continua...

— Thorvald! — A voz de Creidhe soou tão alta que a sua cabeça quase se dividiu em duas com a dor. — Terra! — gritou ela. — Estou a ver terra!

Os seus olhos abriram-se repentinamente. Creidhe estava meio de pé meio sentada a seu lado no convés da popa e gesticulava apontando para norte, onde sim, era verdade se erguiam umas ilhas incrivelmente íngremes à distância, agrupadas como um anel de torres fortificadas desafiando o oceano inóspito. Algo gritou no seu coração e lhe incendiou o espírito: uma esperança improvável.

— O que...? — Sam tentou pôr-se de pé; fez força nos joelhos e as mãos procuraram o apoio de um cabo.

— Terra — disse-lhe Creidhe, tranquilizando-o. — Ilhas. Não muito longe. Abrigo, comida, ajuda. — A jovem virou-se para Thorvald. — És capaz de nos levar até lá, não és? — perguntou ela.

Subiu-lhe aos lábios um riso amargo; o jovem reteve-o. Com vento de leste, sem mastro, sem vela, com um leme que só funcionava parcialmente e com ele, que não servia para nada com a sua dor de cabeça gritante e braços impotentes? Levá-los até lá? Aquelas ilhas envoltas em bruma não eram mais realidade do que uma terra de fábula, que fugia sempre que um marinheiro se aproximava. O silêncio prolongou-se.

— Eu sei que não podemos velejar — disse Creidhe em voz baixa. — Mas talvez possamos remar. — Seguiu-se outra pausa. — Podemos tentar, pelo menos.

Sam tentou levantar-se com a mão na cabeça.

— Remos — gaguejou ele, fazendo um gesto na direção da prateleira onde eles estavam armazenados. — Vamos...

Thorvald olhou para Creidhe e ela devolveu-lhe solenemente o olhar. Era impossível ela conseguir pegar num remo; naquelas condições, ele também não sabia se conseguiria. E quem iria ao leme?

— Toma. — Sam percorrera o espaço vazio, precariamente equilibrado mas com o instintivo sentido de equilíbrio de um marinheiro. O jovem tirou um longo remo do local onde estava armazenado no convés da proa e colocou-o no seu lugar. Naquele barco, o trabalho de remar era executado por dois homens lado-a-lado. Os braços maciços de Sam agarraram na pega de pinho à altura do peito. O pescador virou a cabeça na direção do outro remo e rolou os olhos na direção de Thorvald. — Direito. Creidhe... leme. O vento está a amainar. Temos... tentar. Raios me partam se perco... o Sea Dove...

Foi um espanto para Thorvald, mais tarde, o fato de terem conseguido. Os amigos, pensou, eram ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção. Talvez se se tivesse sentido espicaçado pelo desejo de não querer parecer mais fraco do que Sam ou mais exausto do que Creidhe, cada um dos quais se sentou de dentes cerrados e olhos resplandecentes de esperança. O jovem remou, Sam remou e Creidhe agarrou-se com unhas e dentes ao leme, os olhos semicerrados enquanto tentava manter a rota na direção daqueles distantes pontos no horizonte. O vento amainou; o Sol apareceu timidamente por entre as nuvens que corriam no céu. Algumas aves começaram a sobrevoar o navio e desapareceram com gritos de alarme. Ninguém perguntou se estavam mais próximos. As mãos feridas e os braços doridos era tudo o que existia, isso e o movimento firme do Sol através do céu. Após um longo período de tempo viram rochedos a leste e a oeste e algumas focas nadando à sua volta. Após um período de tempo ainda maior, viram a silhueta de uma ilha e durante algum tempo remaram com força na sua direção, mas a corrente persistente empurrava-os para o largo. Num momento de desespero doloroso, pararam de remar e permaneceram em silêncio, vendo recuar os declives vestidos de verde. Havia lágrimas nos olhos de Creidhe. A jovem pestanejou para as fazer retroceder e falou com extrema firmeza.

— Bebemos um pouco de água, descansamos e continuamos. Estamos um pouco a oeste do grupo principal, mas parece haver outro a norte. Vamos para esse. Não está longe. Vocês estão a ir bem.

Sam olhou para Thorvald e Thorvald olhou para Sam. Através do brilho do suor, da dor e do cansaço dos músculos, ambos esboçaram um sorriso por entre os lábios rachados.

— Parem de rir-se de mim — ordenou Creidhe. — E agora, toca a andar. Peguem nos remos. Confiem em mim, sei o que estou a fazer.

Apesar de haver um ligeiro tremor por baixo da louvável vivacidade do tom, ambos os homens preferiram ignorá-lo.

Passaram a oeste de outras ilhas, umas maiores, outras mais pequenas e muito ao largo de uma minúscula, com monstruosas falésias subindo até um planalto desolado onde, coisa incrível, se viam ovelhas a pastar. Os dois homens lutaram contra a corrente; aquilo tinha inteligência própria. Por vezes, a superfície do mar deixava ver um contorno estranho, mais além verde-prateado e mais perto da cor natural das águas profundas. Era para oeste dessa divisória que a corrente tentava arrastá-los e precisaram de todas as forças para lhe resistir. Talvez se tivessem aproximado daquela ilha mais a norte; estavam demasiado cansados para saber. Thorvald pensou ver umas cabanas, mas não teve a certeza. Parecia-lhe impossível haver gente a viver num lugar minúsculo como aquele, onde mal se podia ver um pedaço de terra e onde as vagas castigavam a costa rochosa como se a quisessem despedaçar. Quem seria suficientemente louco, naquele lugar, para se atirar ao mar?, pensou ele azedamente enquanto remava e remava, e o Sea Dove abriu caminho através das águas agitadas. Quem se estabeleceria ali, senão um exilado ou um louco?

No fim, descobriram uma baía, uma pequena praia e uma corrente que os empurrou para terra. Por fim, começavam a acreditar que não iam morrer, pelo menos naquele dia. Não foi culpa de Creidhe se o Sea Dove raspou o casco nas rochas e se começou a adernar de modo alarmante. As águas estavam agitadas e os recifes submersos invisíveis. Mesmo assim, Thorvald olhou para ela, carrancudo, enquanto puxava o remo. Creidhe parecia ter dificuldade em reter as lágrimas. Quanto a Sam, quando ouviu o som inimitável, doentio, da madeira do navio a ser rasgada pelo recife, vacilou como se tivesse sido ferido mortalmente. Virou as costas ao remo, rosnando para Thorvald que continuasse a remar porque, se conseguissem encalhar o Sea Dove na areia antes de ele naufragar, teria, pelo menos, hipótese de o remendar. A paisagem era desabrigada; aquelas ilhas pareciam tão pobres de madeira como as Ilhas Brilhantes e muito menos hospitaleiras. Sem dúvida, tal como em casa, os troncos deviam dar à costa de vez em quando, um presente do mar mais precioso do que o ouro ou a prata mais bem trabalhados. Não tinham nada para trocar, à exceção do próprio Sea Dove. Mas estavam vivos e num último e desesperado esforço com os remos, sentiram o casco do navio deslizar na areia e Sam, menos alegre do que de costume, saltou por cima da amurada para amarrar os cabos às duas pedras maciças que pareciam estar ali para aquele propósito. Não havia nenhum molhe, mas havia barcos mais acima, pequenos, embarcações deselegantes que não pareciam adequadas àquelas águas caprichosas. Para lá da baía erguiam-se uns declives rochosos incríveis. Não se via vivalma. Mais atrás, abrigados numa prega de terreno, viam-se uns edifícios quaisquer; o fumo saía dos telhados de colmo.

De fato, estava para além das suas forças ir até lá e pedir ajuda. Sam inspecionou os danos do seu amado barco, modo de vida e tesouro; abanou a cabeça ligada, mas era evidente que já estava a pensar como conseguiria remendar o grande rombo no casco, substituir o mastro e regressar a casa. As rochas afiadas tinham trespassado o gabordo e as pranchas perto da proa; onde encontrar um carvalho de qualidade naquelas ilhas tão pobres de árvores? O pescador passou a mão pelas pranchas, resmungando para si próprio.

Creidhe mal podia andar. No instante em que pôs pé em terra os seus joelhos dobraram-se e a jovem caminhou aos tropeções até cair, de frente, no cascalho da praia. Thorvald sentia-se um pouco melhor. Os seus braços e ombros doíam-lhe como se tivessem sido marcados com ferro quente; quanto às mãos, não olharia para elas, temendo ficar doente. Sabia que estavam em carne viva e a sangrar; vira as de Sam. Esperava que a população local fosse amigável e que houvesse curandeiros. O jovem deixou-se cair na praia ao lado de Creidhe, de olhos fechados.

— Estás bem, Thorvald? — Apesar de tudo, a sua débil voz era desesperadamente cortês.

— Hum — grunhiu ele. — E tu?

— A culpa é minha — murmurou ela. — Agora, o Sea Dove está avariado e não podemos voltar para casa.

— O mar é que tem a culpa — disse Sam calmamente, subindo o areal na direção de ambos. — Eu posso repará-lo, desde que tenha tempo e a madeira adequada. O que quer dizer que vamos ficar aqui algum tempo. Precisamos de arranjar abrigo. E era capaz de comer uma ou duas pernas de carneiro assado. Parece que há uma aldeia qualquer lá em cima, se bem que as pessoas não pareçam com pressa de nos vir dar as boas-vindas. Tentamos?

Thorvald sentou-se abruptamente.

— Só uma coisa — disse ele. Os outros olharam para ele.

— Vocês sabem por que razão eu estou aqui. Estou aqui para o encontrar, para encontrar Somerled. Tenho de acreditar que ele veio dar aqui, senão não terá valido a pena. Sei que as hipóteses são mínimas, mas não é impossível. Talvez ele esteja lá em cima numa das cabanas, ou talvez não. Quero que vocês não digam nada acerca disso. A demanda é minha e de mais ninguém e eu é que sei como agir. Compreendem?

— Que queres dizer? — perguntou Creidhe, pousando a cabeça nas mãos como se estivesse demasiado cansada para pensar. — Não lhe vais dizer que és filho dele?

— Exatamente. E não vou dizer a ninguém a razão por que vim aqui. Se Somerled está nestas ilhas, quero observá-lo, primeiro, avaliá-lo, antes de lhe dizer a verdade. E não posso fazer isso se alguém disser quem sou e quem procuro assim que conhecermos a gente local.

— Se calhar, nem estamos nas ilhas certas... — murmurou Creidhe.

— Não te preocupes com isso — disse asperamente Thorvald. Aquilo ia demorar muito tempo e doía-lhe a cabeça. — Pode muito bem ser este o local. Quais são as probabilidades de haver dois grupos de ilhas iguais nestas paragens? E agora, compreendem, vocês dois, o que eu quero?

— Compreendo muito bem. Queres que mintamos a teu respeito — disse Sam secamente. O seu rosto estava horrivelmente branco sob a ligadura manchada de vermelho os seus olhos tinham um aspecto desaprovador.

— Não precisas de mentir. Basta não falares em Somerled. Até para ti deve ser fácil, Creidhe. — Thorvald viu-a estremecer e arrependeu-se imediatamente da farpa. Mas, por que levavam eles tanto tempo a compreender o que era tão óbvio? Que os deuses o protegessem dos amigos.

— Escuta, Thorvald — disse Sam de modo cansado. — Dói-me a cabeça, tenho um barco avariado e Creidhe está próxima da exaustão. Estamos no meio de coisa nenhuma e ninguém tem paciência para os teus joguinhos. Diz-nos qual é a história que temos de contar para que esta gente não pense que somos malucos e vamos ver se conseguimos alguma ajuda.

Sam articulava mal as palavras. Thorvald deu-se conta de que tinha esquecido por completo o ferimento do amigo.

— Que fomos pescar, que fomos afastados da rota e que deitámos a carga ao mar quando o barco começou a afundar-se — disse ele sucintamente. — E agora pedimos abrigo enquanto reparamos o barco. É fácil.

— E Creidhe? Por que está ela aqui?

— É tua irmã? Tua mulher?

As feições de Sam retesaram-se um pouco.

— Tens a resposta pronta, Thorvald. Não vou falar em Somerled se é isso que queres, mas não é preciso dizer mais mentiras. E agora vamos, vocês os dois. Estou molhado até aos ossos, a minha cabeça mata-me e a minha barriga está outra vez a queixar-se. Vamos ver que espécie de gente se estabeleceu no fim do mundo.

 

— Brona! — O nome soou através dos quartos iluminados da grande casa como um grito de batalha, ao mesmo tempo que a porta se fechava com estrondo nas costas de Eyvind. Um instante mais tarde, Ingigerd começou a chorar, acordada repentinamente do sono. Era a primeira vez que ouvia a voz zangada do pai.

— Recebeste a mensagem. — Nessa estava sentada à lareira com as mãos no colo e com os grandes olhos cinzentos abertos, fixando a figura enorme e furiosa do seu marido com o machado às costas, a espada no flanco e a pele de lobo, grande e hirsuta por cima dos ombros. O seu rosto era a imagem da angústia. — Não te zangues com Brona. Ela já derramou lágrimas suficientes. E estava a cumprir uma promessa. Foste tu que lhes ensinastes a cumprir uma promessa.

Brona surgiu naquele momento na soleira, transportando ao colo a irmã lacrimosa. A rapariga olhou para eles; os seus olhos estavam inchados e a sua expressão era deplorável.

— Está tudo bem, filha. — O tom de Nessa era calmo. — Leva Ingigerd para a cama, conta-lhe uma história. O teu pai fala contigo amanhã de manhã. — E, virando-se para Eyvind: — Vem, senta-te, que eu arranjo-te uma caneca de cerveja. Vieste depressa, meu querido; isto afetou-te. Vamos. Senta-te um pouco. Talvez as coisas não sejam tão más como parecem.

— Como pode ser isso? A nossa filha, a nossa querida filha sempre tão ajuizada, fugiu com dois rapazes irresponsáveis num barco de pesca costeira para águas desconhecidas? Em que estava a pensar Creidhe? — O guerreiro percorreu a sala várias vezes enquanto se desembaraçava da capa e das armas. — Nem parece dela, parece coisa de uma pessoa sem caráter. E o culpado é Thorvald. O rapaz é imprevisível e não inspira confiança. Devíamos tê-la mandado para as Ilhas do Norte.

— Senta-te, Eyvind. — Nessa usou um tom que o marido não podia recusar. O guerreiro sentou-se; ela colocou-lhe uma caneca de cerveja nas mãos e estendeu um braço para lhe colocar um caracol por trás da orelha. — E agora ouve-me.

— Eu não devia estar aqui; devia ir a caminho do norte, encontrar um barco e ir atrás deles. Não podem ter ido longe...

— Eyvind. Escuta-me.

O guerreiro calou-se.

— É possível que isto estivesse escrito. Eu vi qualquer coisa no fogo; não pude evitar a visão que os antepassados me enviaram. A nossa filha tem um caminho estranho pela frente, meu querido. Estranho e perigoso.

— Tu viste isto? Viste e não me disseste?

— Não te podia dizer. Tu sabes como são estes presságios; podem ser imprecisos, enganadores. Vi Creidhe numa longa e árdua jornada, vi sinais e símbolos; uma criança andrajosa; uma criatura parecida com uma raposa... não, não te conto.

— Pior ainda?

Nessa viu o olhar de Eyvind e segurou-lhe na mão.

— Pior e melhor — disse ela. — A nossa filha terá uma história maravilhosa para contar se ultrapassar isto. Perguntas por que razão fez ela isto, por que razão fugiu. Creidhe não fugiu. Procura, apenas, ajudar um amigo. Ela sacrificar-se-á muito por Thorvald. Tu sabes que ela o ama.

Eyvind franziu furiosamente as sobrancelhas. Aquele olhar transformara muitas vezes os intestinos dos seus inimigos em água. Nessa esperou com uma expressão tranqüila.

— Pensava que tinha acordado que Thorvald era o último homem que queríamos para ela — disse ele. — O rapaz é esperto, reconheço, mas o legado que carrega é sombrio e ele tem poucas das qualidades que eu quero que tenham os maridos das nossas filhas. O rapaz é egoísta, volátil e pouco amável. Como podes dizer...?

Nessa sorriu.

— Thorvald vai precisar da ajuda dela antes do fim da jornada. Devias rezar por ambos e por Sam. Vão sofrer os três e tornar-se-ão mais sábios antes de isto tudo terminar.

Eyvind mudou de posição, irrequieto. O guerreiro ainda não tocara na cerveja.

— Tenho de ir atrás deles. Aquelas águas são bravias e nada familiares; até Sam terá dificuldade em encontrar o lugar que procuram, isto supondo que é algo mais do que a visão de um louco. Não sou pai nem sou nada, se deixo que a minha filha parta numa demanda tão temerária como esta. Tenho de tentar encontrá-la...

— Não, Eyvind. — Nessa colocou-lhe uma mão no rosto e segurou-lhe no queixo, olhando-o nos olhos. — Não vais. Não podes. Vou precisar de ti aqui.

Ele pestanejou, confuso. Nessa era inteligente e cheia de recursos; governava a casa sem grande esforço e tomava parte nos conselhos e negócios das ilhas, como convinha ao seu estatuto real.

— Mas... — começou ele.

— Eyvi, meu querido, tenho notícias para ti. Esperei para te dizer até ter a certeza. — A sua voz baixara subitamente de tom, hesitante. Os seus dedos afagaram-lhe a têmpora; ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios. Ela viu alarme nos olhos dele e falou rapidamente. — Vou ter outro filho. Fiquei surpreendida; pensei que não teria outra hipótese. E acho que, se chegar ao fim, será um rapaz. Tenho esperança... Tenho tanta esperança...

Os seus lábios tremeram; as lágrimas que lhe começaram a rolar pelas faces pálidas refletiram-se nas dos olhos do seu marido. Ele apertou-a contra si, afagando os longos e suaves cabelos.

— Oh, Nessa — sussurrou ele. — Oh, minha pomba. É claro que fico, é claro, mas...

— Creidhe há de atravessar isto sã e salva — disse Nessa, trêmula. — A nossa filha é forte e capaz; isto pode parecer-te uma escapadela, mas ela não teria ido sem uma boa razão. Brona disse que a irmã odiava ter de nos mentir. Brona lamenta muito, Eyvi. Não sejas muito duro com ela. Elas são, as duas, boas raparigas.

— Um filho — murmurou Eyvind. — Nunca pensei que fôssemos abençoados de novo depois de o mar nos ter levado o nosso pequenino. Mas... não será arriscado para ti? Deves descansar, talvez devesses estar neste momento na cama...

— Shhh — disse Nessa, sorrindo ao mesmo tempo que chorava. A perda de Kinart ferira-o profundamente; transportaria aquela ferida para sempre. O seu pequeno filho fora a luz dos seus olhos durante quatro Verões, até à manhã em que a Tribo das Focas o levara. Ela sempre achara que aquilo fora uma espécie de pagamento, um ajuste de contas por parte daqueles estranhos habitantes do mar por a terem ajudado um dia. Se assim fora, o preço fora bem alto. — É provável que já tenha ultrapassado a idade ideal, mas sinto-me bem e com saúde e sei como preparar-me. Creidhe é boa parteira; ela ajuda-me quando chegar a ocasião. Não estejas tão ansioso, meu querido. Contenta-te com este presente maravilhoso.

— Eu estou contente. Contente mas preocupado por ti, por ele — disse ele, levando uma mão ao estômago dela, que já estava ligeiramente arredondado com a nova vida — e terrivelmente preocupado por Creidhe, apesar de tentares tranquilizar-me. Além disso, temos o tratado; não confio naquele principezeco dos Caitt e Ash também não. Vamos estar muito ocupados.

— Como vês, não podes ir atrás da tua filha — disse-lhe Nessa. — Confia em Creidhe. Ela vai surpreender-te.

— Isso já ela fez — disse ele severamente. — Diz-me, quando nasce a criança? É para quando?

— Para o Outono, pelas minhas contas. Talvez duas luas antes da cerimônia das mulheres. Por essa altura já Creidhe estará em casa e as tuas preocupações terão acabado. E agora bebe a cerveja, marido e vai dar as boas-noites às tuas filhas. Diz a Brona que lhe perdoas. Não podemos deixar que a Lua nasça conosco zangados.

Mais tarde, enquanto Nessa dormia nos seus braços, Eyvind olhou pela estreita janela para o pálido céu prateado daquela noite de Primavera. Pensou na filha de cabelos claros algures no mar bravio ou atirada para uma praia qualquer apenas com a coragem e o bom senso para a ajudarem. Pelos deuses, uma rapariga tão querida, de dezesseis anos atirada subitamente para o meio daquilo a que um punhado de homens selvagens e desesperados chamava casa naquelas ilhas distantes; só a idéia bastava para o aterrorizar. Nessa não percebia como aquilo era perigoso; Nessa não pensava como um homem. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.

Somerled. Somerled era capaz de estar lá. Se o homem sobrevivera àquela perigosa viagem, quem poderia dizer no que se tornara durante aqueles longos anos de exílio? Talvez tivesse mudado como lhe pedira Eyvind, transformando-se num homem sábio, num homem bom, num homem de paz. Ou talvez tivesse aperfeiçoado as qualidades que tinham feito dele Rei das Ilhas Brilhantes: ambição desmedida e um completo desprezo pelo bem-estar dos outros. Somerled não tinha respeito pelas mulheres; acreditava que um homem devia ter o que quer. Odiava Eyvind e a sua família. Era de esperar, portanto, que eles não encontrassem aquelas ilhas; que Thorvald não localizasse o pai. No entanto, tinham de o encontrar.

Não havia outra coisa senão uma morte lenta naqueles mares vazios. Que os deuses protegessem Creidhe e que os deuses protegessem aquele bebê que estava a crescer na barriga de Nessa. Que Creidhe regressasse a casa a tempo de ajudar o bebê a nascer em segurança porque, se não regressasse, não sabia o que faria. Não confiava noutras mãos para aquela tarefa. Não podiam perder outro filho; não sobreviveria. Não se passava um dia sem que pensasse em Kinart, nem uma noite em que não sonhasse com ele: o seu filho a aprender a andar, as suas pernas gorduchas movendo-se confiante mas desajeitadamente, os cabelos claros espetados no alto da cabeça e as suas feições infantis iluminadas por um enorme sorriso de triunfo. Kinart cavalgando à sua frente, um pequeno e orgulhoso guerreiro muito direito nos braços do pai enquanto o velho cavalo prosseguia vagarosamente ao longo dos campos verdejantes. Kinart dormindo no colo de Nessa, cansado por um dia na rua e a luz da lareira iluminando-os a ambos. Kinart na praia, pálido e sem vida e um terrível grito de angústia saindo-lhe dos lábios se bem que o seu coração estivesse gelado de terror. Sofrera perdas antes, mas nenhuma como aquela. Dou tudo, prometeu ele em silêncio sem saber bem a que deus estava a rezar, apenas que era uma súplica vinda do mais profundo do seu ser, tudo o que quiseres, se deixares viver este.

 

               Tocam os sinos de Água Brilhante

               Por quem tocam eles?

               Pelo nascimento de uma criança,

               Pela chegada das baleias

               Ou pela chegada de estranhos?

                                 NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Um sino tocava algures, lenta e regularmente. Creidhe podia ouvir vozes de homens, que vinham da aldeia. Podia dizer, pela expressão de Thorvald, que o jovem estava com uma das suas dores de cabeça; nenhuma outra coisa lhe podia provocar aquela palidez doentia, aquele cerrar de maxilares. Para além disso, estava tudo enevoado. Estava a conseguir andar, os seus pés pareciam aguentar-se, mas tinha as pernas dormentes e não conseguia deixar de tremer. Esquecera durante algum tempo, nos braços da morte, o frio e a fome. Agora, sentia um frio gelado de Inverno, que lhe chegava à medula; tinha as roupas ensopadas e apesar de estar a caminhar em solo firme, a cabeça andava-lhe à roda e o estômago agitava-se com náuseas. Sam segurava-a por um braço, ajudando-a a continuar e Thorvald, com o rosto branco como a cal, caminhava com uma firmeza louvável, enquanto os três homens desciam o carreiro ao seu encontro.

— Bom dia. — A voz de Thorvald era firme; era evidente que os seus dentes não batiam descontroladamente como os dela. — Espero que nos possam ajudar. Como vêem, fomos atirados para aqui e o nosso barco ficou danificado. Precisamos de comida, de água e de abrigo. Podem ajudar-nos?

Os três homens pararam e colocaram-se lado-a-lado no carreiro. Não olharam para Thorvald; tinham os olhos fixados intensamente em Creidhe. Não disseram nada. Através da névoa da sua tontura, Creidhe reparou que usavam peles de lobo como roupa e botas de pele de ovelha. Havia uma certa rigidez no comportamento dos três homens, dois jovens e um mais velho, talvez o líder. Não era possível dizer de que raça eram, nem que língua falariam. O mais velho tinha cabelos grisalhos e tinha o rosto barbeado; os outros eram louros e barbudos. A maneira como olhavam para ela: seria assim um espectáculo tão grande, toda despenteada e enjoada como uma pescada? Era de supor que tivessem ficado surpreendidos com aquela chegada inesperada: até chocados. Mas aquele exame minucioso e silencioso era provocado por mais qualquer coisa; a jovem sentiu que estava a ser examinada, de certo modo avaliada, e não gostou. A um dos homens faltavam-lhe os dentes da frente. A outro, faltava-lhe uma orelha. Todos tinham cicatrizes na face direita: umas linhas paralelas nítidas, quatro ou cinco. Não eram produto de combates, eram marcas rituais. Dois deles transportavam lanças; todos usavam facas. Se Thorvald e Sam tinham trazido armas, continuavam no barco.

— Espero que possam ajudar-nos — disse Thorvald de novo, mais lentamente. O jovem abriu as mãos. — Não queremos fazer mal a ninguém. Somos apenas três, aqui o meu amigo indicando Sam com o queixo e... a rapariga. Como vêem, está doente e cheia de frio e o meu amigo tem um ferimento na cabeça. Podem oferecer-nos abrigo por uma noite?

Os olhos dos três homens viraram-se para o alto e louro Sam que se mantinha firme sob o seu olhar perscrutador e depois regressaram à trémula Creidhe que se apoiava no seu braço. A jovem sentiu a força daquele olhar com uma terrível angústia, sentiu-o como uma lâmina raspando-lhe a superfície para lhe examinar o interior. Não deviam ter ficado muito impressionados; a jovem estava consciente da sua aparência. Os olhos dos homens viajaram de novo pela sua pessoa, avaliando, calculando; pareceu-lhe que eles tomaram uma decisão sem terem trocado uma palavra. O silêncio tornou-se desconfortável. Sam mexeu um pé.

— Eles não te compreendem — disse ele para Thorvald. — Faz sinais com as mãos. Dormir, comer, sabes como é. Gestos simples.

— O meu nome é Einar. — Parecia, no fim de contas, que compreendiam; o homem mais velho falou com um sotaque acentuadamente nórdico. Os olhos eram encovados e a sua expressão cautelosa. — A mulher — continuou ele, olhando para Thorvald. — Tua mulher? Tua irmã?

Thorvald pestanejou; apesar de ter a resposta pronta, ficou sem saber o que responder.

— Nossa amiga e parente — disse Sam. — Sob a nossa protecção. Queremos reparar o barco e regressar a casa. Mais nada. Fomos afastados da nossa rota, uma grande tempestade a sudeste.

— Tens madeira para a reparação? — perguntou rudemente um dos homens mais novos.

— Talvez não tenhas compreendido — disse Thorvald. — A jovem senhora precisa de descanso e de roupa seca...

Foi naquele momento que Creidhe sentiu o mundo a girar e, por um momento, a escuridão apoderou-se dela. Acordou nua por baixo de uns cobertores, o que era de certo modo alarmante, se bem que fosse uma bênção estar seca e quente. A jovem manteve-se imóvel, consciente das dores nas mãos, nos braços e nas costas; o tempo que estivera ao leme do Sea Dove castigara-lhe muito o corpo. Por todos os antepassados, se lhe doía tanto o corpo por ter estado ao leme, como estariam os outros depois de terem remado daquela maneira? Creidhe virou-se cuidadosamente e abriu os olhos. Estava deitada numa enxerga rude; fosse o que fosse que recheava o colchão, não era coisa cómoda. Por cima da sua cabeça os suportes do telhado de uma cabana, madeira apanhada à deriva segurando um entrançado de junco coberto de turfa. O local era escuro. A jovem virou a cabeça. Era um pequeno quarto de dormir; havia vários espaços para camas toscamente limitados por lajes de pedra, mas o único ocupante para além dela própria era uma anciã sentada num banco alto junto da entrada tapada por um pano, fiando com roca e fuso à luz de uma simples lanterna, não mais do que uma tigela com um pavio a flutuar no óleo. O brilho da lâmpada acentuava-lhe as rugas profundas do rosto e das mãos, firmes no seu trabalho e dos olhos encovados. Creidhe tossiu.

— Desculpe, onde estão as minhas roupas?

A mulher virou-se para ela; as suas mãos não detiveram o movimento da roca nem o enrolar da lã. A sua expressão era nula, de total incompreensão.

— Roupa — repetiu Creidhe, sentando-se cuidadosamente com o cobertor enrolado em redor do peito. — Túnica, calças, sapatos? As minhas coisas? — A jovem tentou ilustrar o que queria dizer com uma mão enquanto segurava no cobertor com a outra.

A roca parou de rodar. A anciã fez um gesto brusco com o queixo na direção dos pés da cama e afastou o olhar.

— Oh — disse Creidhe um tanto desconcertada. Havia ali um pequeno monte de roupa, era verdade, mas não era a sua, nem a de Thorvald que usava quando chegaram, nem sequer a que tinha na sua trouxa. De fato, o seu saco não estava à vista; tanto quanto sabia, ainda estava metido por baixo do convés do Sea Dove. Um arrepio percorreu-a.

— Preciso do meu saco! Onde estão as minhas coisas?

Não houve qualquer reação. Muito bem, teria de se meter naquelas roupas e sair em busca dos seus pertences. Não ia permitir que aquela gente obstinada pusesse as mãos na sua Jornada.

Abandonando a tentativa de modéstia, Creidhe levantou-se e vestiu-se, consciente da mordedura do frio que lhe provocava pele-de-galinha e consciente dos olhos encovados da anciã perscrutando cada um dos seus movimentos. Parecia que nunca tinham visto uma rapariga antes pela maneira como olhavam para ela. Bem, era uma terra diferente; costumes diferentes, modos diferentes. Vestiu a roupa que estava aos pés da cama: uma camisa, um vestido de pano cinzento grosseiro nada elegante mas quente e um espesso xale de lã. As botas de pele de ovelha eram grandes, mas, para já, teriam de servir.

— Pente? — perguntou ela sem muita confiança, correndo as mãos pelos cabelos emaranhados, sujos e cheios de sal. A fita que lhe segurava a espessa trança tinha desaparecido na tempestade; só uma boa lavagem com sabão, seguida por uma escovadela forte e dolorosa lhe voltaria a pôr os cabelos em bom estado. — Água? Sabão?

A anciã grunhiu de modo desaprovador e virou de novo a cabeça com um safanão. Aquilo estava a tornar-se irritante. Havia um pedaço de tecido cinzento em cima da cama, mais fino e mais suave do que o tecido do vestido. Perante o olhar sem expressão de Creidhe, a anciã parou de fiar e gesticulou, tornando evidente o que pretendia. Pega nisso, cobre-te, tapa o cabelo. A mulher tinha o sobrolho franzido; não era possível saber por que razão.

— Pente? — Creidhe gesticulou, fazendo os possíveis para parecer bem-educada e amigável. — Por favor?

A velha olhou para ela, irritada e cuspiu uma única palavra incompreensível com tal intensidade que Creidhe vacilou. Muito bem; tinha um pente no seu saco. Oxalá não tivesse sido levado pelo mar naqueles últimos dias de tempestade. Esperava sinceramente que não, porque perder a Jornada seria uma coisa muito cruel.

— Vou sair — disse Creidhe o mais calmamente que conseguiu. — Preciso do meu saco e quero ver os meus amigos. Obrigada por...

Não sabia como terminar aquilo. Por ter tomado conta de mim? A jovem pôs o pé na soleira, mas a mulher já lá estava, alarmantemente rápida para um ser tão velho, de braços abertos para lhe impedir a passagem.

— Eu quero sair. — O coração de Creidhe batia com toda a força. — Os meus amigos, preciso de falar com eles.

A velha abanou a cabeça, repetindo o gesto feito anteriormente: Tapa o cabelo. Claro, pensou Creidhe, podia, simplesmente, afastá-la do caminho, mas algo, nos olhos escuros brilhantes como contas, lhe disse que não o devia fazer. A jovem não esquecera os homens com o olhar avaliador e com as lanças. Creidhe recuou para a enxerga, pegou no tecido e envolveu negligentemente os cabelos com ele. Fora, realmente, apenas há dias que usara o seu melhor vestido azul de linho com um galão prateado e dançara num casamento com fitas de seda nos cabelos?

— Já posso sair? — perguntou ela calmamente, fazendo os possíveis por parecer reservada e tímida, se bem que sentisse uma ira lenta a subir-lhe pelo corpo acima.

A velha não respondeu, mas agarrou-a pelos braços e obrigou-a a virar-se. Aquelas mãos velhas, duras como as raízes de uma árvore, meteram-lhe os cabelos por baixo do lenço, fazendo desaparecer cada mecha e apertou o conjunto com uns alfinetes de osso tirados das profundezas de uma algibeira. À frente, o lenço estava puxado para baixo e as madeixas de cabelos escondidas dentro dele. Creidhe permaneceu silenciosa, sentindo-se corar de indignação. Tinha as palavras na boca: Sabes de quem sou filha? Mas estava numa ilha distante, um lugar selvagem no fim do mundo. Ali nunca tinham ouvido falar do bravo e nobre guerreiro Eyvind que levara a paz às Ilhas Brilhantes, nem da encantadora Nessa que personificara as esperanças e a identidade do seu povo durante os tempos sombrios. Para aquela gente, Creidhe e os seus companheiros eram apenas viajantes atirados pelo mar para o lugar errado: uma maçada. Tinha de estar agradecida pela ajuda que lhes tinham oferecido. Sentia-se quente e seca e dormira um pouco. Finalmente, a anciã afastou-se e deixou-a sair.

Creidhe atravessou um pequeno pátio onde pastavam algumas galinhas magricelas e, seguindo o som de vozes, entrou numa cabana maior. Lá dentro estavam alguns homens em redor de uma lareira. Thorvald e Sam estavam a comer. Pelo menos, Sam tinha um osso de carneiro na mão e a boca cheia; havia um tabuleiro em cima de um banco ao lado de Thorvald, mas Creidhe percebeu, pelo seu aspecto pálido e distante, que ainda lutava contra a dor de cabeça, incapaz de comer. A jovem aprendera a ler-lhe as expressões ao longo dos anos, desde a infância. Naquele momento, ele devia estar quase cego pela dor, mas fazia os possíveis para não dar mostras de qualquer fraqueza perante aquele pequeno grupo de homens da ilha reunidos para partilharem aquela refeição e observar os estranhos subitamente chegados ao seu meio. E havia outra coisa; Creidhe pensara nela quando encontraram aqueles três homens no carreiro da praia. A partir daquele momento, Thorvald não olharia para um homem de meia-idade sem pensar: Tu és o meu pai? O teu nome é Somerled? Por todos os antepassados, aquilo ia ser uma estadia de tortura se insistisse no silêncio dela e de Sam e mantivesse o seu até ter a certeza. Mas Thorvald era assim; nunca ia pelo caminho mais fácil.

Na lareira rude ardia um pequeno fogo alimentado por esterco de animal. Creidhe avançou para se colocar em frente dele, decidindo que não se deixaria intimidar pelo olhar selvagem dos homens ali reunidos, nem pelo fato de não haver uma única mulher no meio deles. Talvez aquele fosse apenas um local de reunião de pescadores; as suas aldeias eram, provavelmente, mais longe, em qualquer parte mais hospitaleira da ilha, em vales escondidos, em terrenos verdejantes e ondulantes como os das Ilhas Brilhantes. A jovem estremeceu, recordando as falésias íngremes, as vagas poderosas, os picos altos e escarpados que tinham visto do Sea Dove. Os rostos fechados daqueles homens, os seus olhos cautelosos, falavam de uma vida de luta, de uma existência gravada pela face dos elementos. Subitamente, a sua casa pareceu-lhe muito, muito longe. Talvez estivesse apenas um pouco assustada. Não podia ser de maneira nenhuma; estava ali para ajudar Thorvald, não para o impedir de fazer o que ele queria.

— Boa noite. — Creidhe usou um tom cortês e confiante enquanto estendia as mãos para as aquecer. — Obrigada por nos terem dado abrigo.

Seguiu-se um silêncio, como se tivesse dito uma coisa espantosa ou totalmente inapropriada. Então, um dos homens virou-se para Thorvald e murmurou algo acerca de comida e bebida.

— Queres comer alguma coisa, Creidhe? — perguntou Thorvald com a voz constrangida que a dor de cabeça lhe impunha.

Creidhe olhou para o homem que falara.

— Obrigada — disse ela. — Apenas um pouco. Tenho estado doente. — Na verdade, sentia uma fraqueza nas pernas e uma tontura na cabeça.

— Toma — disse Sam, movendo o banco para arranjar espaço para ela. — Senta-te, pareces esgotada. — O jovem olhou para o lenço apertado em redor da cabeça, mas não fez qualquer comentário.

— Obrigada. — Creidhe sentou-se; o jovem no outro lado afastou-se como um animal selvagem e o que estava de pé, por trás, também se afastou, como se ela lhes pudesse transmitir alguma doença. Talvez cheirasse mal; falta de água para se lavar, não podia fazer nada. Todos os homens estavam a olhar para ela; aquela expressão estranha em todos os rostos, como se o menor movimento da parte dela fosse do maior interesse. O homem mais velho, Einar, tirara alguma carne de um pote e colocara-a numa tigela; não a passou a Creidhe, entregando-a antes a Thorvald com um movimento de olhos na direção dela.

— Toma — disse Thorvald, colocando-lha nas mãos. Os seus olhos desafiaram-na a falar da dor de cabeça. Ela manteve-se calada. O guisado tinha uma cor estranha, bolhas de gordura e não havia, sequer, uma colher, ou um pedaço de pão para o levar à boca. Os homens continuavam a olhar para ela.

— É melhor comeres — aconselhou-a Sam. — Eles dizem que vamos sair daqui amanhã. Temos de ir ver o chefe deles; ver se descobrimos madeira para o Sea Dove. Estes tipos estão de passagem a caminho de um lugar chamado Fiorde do Conselho. Foi sorte termos aparecido quando eles estavam aqui. Toma.

O jovem vasculhou na algibeira e tirou uma pequena colher de osso de baleia; sempre fora um tipo cheio de recursos. Creidhe comeu em silêncio, sentindo a pressão de muitos olhos na sua pessoa. Não parecia haver razão para tanta descortesia.

— Diz-me uma coisa — disse Thorvald após alguns momentos — quantos vivem nestas ilhas e onde estão? Vocês falam como nós; devemos ter os mesmos antepassados. Há quanto tempo vivem aqui? De onde vem o vosso povo?

Einar estava sentado em frente de Thorvald, usando um dedo para rapar o molho do seu prato.

— Fazes muitas perguntas — observou ele, franzindo o sobrolho.

— Não te quero ofender — disse Thorvald cuidadosamente. — Se eu tivesse parentes nestas ilhas gostaria de ter a oportunidade de os conhecer, mais nada. Tenho a certeza de que os meus amigos pensam do mesmo modo. Algum de vocês veio de um lugar chamado Ilhas Orcades, conhecido também por Ilhas Brilhantes? Há aqui homens da Noruega? Do Ulster?

— Não temos nada com isso, é evidente — murmurou Sam, tirando os últimos pedaços de carne do seu osso. — Mas é interessante. Boa refeição, esta; a melhor que tive em muitos dias. Como é a pesca nestas águas? Aposto que tem correntes traiçoeiras. O que é que apanham mais? Bacalhau? Peixe vermelho?

Alguns dos homens começaram a falar ao mesmo tempo; aquele tópico, aparentemente, era ao mesmo tempo seguro e interessante. Em menos de nada, Sam era o centro de uma conversação animada que incluía muitos movimentos de mãos, se bem que não houvesse sorrisos; aqueles homens tinham um aspecto sinistro. Creidhe fez um esforço para comer. A qualidade da cozinha não tinha nada a ver com a sua, mas não se podia dar ao luxo de ser exigente. Só esperava que lhe ficasse no estômago.

— Thorvald — sussurrou ela no meio daquela conversa acerca de barcos, redes de pesca e ventos. — Estás com um aspecto terrível. Diz-lhe que precisas de te deitar.

— Eu estou bem. — O jovem estava sentado perto dela, encostado à parede de olhos fechados. O seu rosto estava branco como a cal.

— Nesse caso, digo-lhes eu. Estás a ser estúpido.

— Estou bem, Creidhe. Come.

A carne era rica e gordurosa; talvez, ali, as ovelhas conseguissem criar uma camada extra de gordura para as ajudar a suportarem o frio que naquele mesmo momento entrava naquela pequena sala. O vestido quente, o xale de lã, o lenço e as botas de pele de ovelha não conseguiam aliviar os tremores de Creidhe. A jovem tinha sede, uma sede terrível. Havia um jarro na mesa mais distante, talvez de água, mas no meio daquele barulho de vozes ninguém ia ouvir pedindo cortesmente uma bebida. Creidhe começou a levantar-se para o ir ela mesma buscar, mas surgiu na sua frente o mesmo rapaz que se afastara quando ela entrara, estendendo timidamente uma mão e oferecendo-lhe uma taça. A sua mão tremia tanto que a água transbordou; que tinha ela para causar reações tão estranhas?

— Obrigada — disse Creidhe, sorrindo-lhe e segurando na taça. O jovem curvou a cabeça com um ligeiro sorriso nas feições e regressou ao seu canto. Se os outros podiam fazer perguntas, decidiu Creidhe, também ela podia.

— Onde estão as mulheres desta comunidade? — A pergunta foi feita a Einar, que não se juntara à conversa sobre a pesca, mas que mantivera a sua atenção em Thorvald e nela mesma, quase como se temesse que ambos fugissem, se bem que não houvesse para onde fugir. — Elas não comem convosco à noite?

Os olhos duros de Einar olharam para ela. O homem abanou a cabeça e depois virou-se para Thorvald.

— Amanhã — disse ele concisamente. — Amanhã vamos para Água Brilhante. O governador encontrar-se-á lá conosco. É a ele que compete responder às vossas perguntas, não a mim.

— O governador? — perguntou Creidhe. — Que governador?

Nem por aquela pergunta mereceu uma resposta direta; o tipo continuava a responder a Thorvald, como se ela fosse invisível.

— O governador das Ilhas — disse ele gravemente. — O líder do povo dos Facas Longas. Os estrangeiros devem, todos, ser vistos por ele; será ele a decidir do vosso destino.

A dor de cabeça foi responsável por Thorvald não ter reagido àquela declaração. Foi Sam que avançou, franzindo o sobrolho, abandonando abruptamente a conversa acerca de redes de pesca e marés.

— Destino? Que queres dizer com isso? Tudo o que queremos é alguma madeira e um telhado enquanto reparamos o nosso barco. Pagaremos por isso, como já te disse; com trabalho, se for preciso. Ajudar-vos-emos em tudo o que for necessário. Ninguém está aqui a falar de destino.

— É um nome estranho, povo dos Facas Longas — observou Creidhe. Não havia maneira de lhe pararem os tremores, que não eram inteiramente devidos ao frio. — Quem são eles?

Um instante mais tarde teve a resposta, porque aquele nome fora dito com um certo orgulho e via as armas que os homens usavam à cintura, todos eles, apesar de aquilo parecer apenas um posto avançado de pesca. Com as suas rígidas expressões e peles com cicatrizes, aqueles ilhéus tinham inteiro direito ao título.

— Esse governador — continuou Sam. — Ele tem nome?

Einar cuspiu para o chão de terra; o homem estivera a tirar os restos de carne de carneiro dos dentes com uma lasca de osso.

— Faz as tuas perguntas amanhã. Partimos cedo; podeis dormir ao pé de nós. Subida íngreme. A rapariga é capaz?

Era impossível continuar a ignorar a falta de educação do homem.

— Se te estás a referir a mim — disse-lhe Creidhe num tom gelado, levantando-se — eu tenho ouvidos e língua e sou perfeitamente capaz de usar ambas as coisas. Sou capaz de ir onde Thorvald e Sam vão e tenho intenção de o fazer. Ora, aqui o meu parente tem uma enorme dor de cabeça e precisa de se deitar. E queremos ir ao nosso barco buscar as nossas coisas...

— Não! — disse Einar de modo cortante. — Não é seguro para ti...

O homem pôs-se de pé e deu alguns passos na direção dela. Talvez não tivesse intenção de a tocar, mas ela recuou e, ao mesmo tempo, Sam colocou o seu grande corpo entre os dois. Thorvald abrira os olhos, mas parecia demasiado aturdido para perceber o que estava a acontecer.

— Vamos, vamos — disse Sam em tom neutro — não é preciso isso. Terras diferentes, costumes diferentes, eu sei. Mas nós não gostamos de homens que maltratam mulheres, lá nas Ilhas Brilhantes. Mantém as mãos afastadas de Creidhe, se sabes o que é bom para ti. Ela é descendente de reis: é uma senhora.

A atenção do ilhéu virou-se para Sam, se não para as suas palavras. Os seus olhos fixaram-se nos maxilares quadrados e no corpo robusto do jovem, nos seus braços musculosos e viu determinação por baixo do pedaço de tecido que ainda lhe ligava a cabeça ferida.

— Tu és guerreiro? — perguntou.

Creidhe viu Sam abrir a boca para responder que não, que era apenas um pescador que não queria lutar com ninguém, mas não teve oportunidade. Thorvald já estava de pé com uma mão encostada à parede para se manter firme.

— É evidente que sim — anunciou ele com uma firmeza que contrastava com a sua alarmante palidez. — Na terra de onde vimos, nenhum miúdo chega aos doze anos sem saber manejar uma lança e uma espada. Um povo ilhéu, se não souber defender-se, pode esperar a aniquilação.

— Ótimo — disse Einar após uma pausa considerável, durante a qual várias expressões conflituosas passaram pelas feições habitualmente plácidas de Sam. Isso vai agradar ao governador.

A ocasião parecia adequada para aproveitar a pequena vantagem, apesar de as palavras de Thorvald terem perturbado Creidhe; chamar-lhes um exagero era pouco. A jovem chamou a si toda a sua coragem.

— Eu quero o meu saco, o que deixei no barco. E nós precisamos de uma cama para Thorvald, ele está doente. E a promessa de que estaremos em segurança até chegar a... a...

— Água Brilhante, não é? — Thorvald disse o nome numa voz que não era mais do que um suspiro. O esforço anterior parecia ter-lhe tirado as poucas forças que lhe restavam.

— Dormir — disse o homem, apontando para o fundo da sala, onde uma porta se abria para um espaço maior. Alguns dos homens estavam a sair por ela; os seus bocejos sugeriam que fora um dia duro. Um deles quase dormitava junto da lareira. A sala fria ficou ainda mais fria. A anciã regressou e ficou à porta como um mensageiro da Terra mãe, com os seus olhos encovados e as mãos enrugadas. — Dormir — disse o homem de novo, fazendo um movimento com a cabeça na direção da velha. — Em segurança aqui. — Era uma espécie de resposta, mas não o suficiente.

Creidhe agarrou-se ao braço de Sam.

— Sam, diz-lhe! Eu preciso das minhas coisas. — Parecia um capricho de rapariga e uma petulância e ela não queria ser desagradável; o seu papel era ajudar Thorvald, não levantar obstáculos. Não era o pente que era importante, ou as roupas limpas, ou ainda os objetos úteis. Era a Jornada; não podia permitir que aquela gente lhe pusesse as mãos em cima.

— Não te aflijas, Creidhe — disse Sam. — Não tenciono ir para a cama sem dar uma vista de olhos ao Sea Dove. Ainda há luz suficiente, nesta altura do ano. Eu trago-te as coisas de que precisas, se as conseguir encontrar.

Fiel à sua palavra, o jovem estava de regresso pouco depois à porta da pequena cabana que abrigava Creidhe e o seu carrancudo guardião. Antes que Sam pudesse abrir a boca, a velha tirou-lhe o saco das mãos e enxotou-o.

À luz da mesma minúscula lâmpada que iluminara o ato de fiar da anciã, Creidhe tirou as suas roupas encharcadas, o novelo de lã e as agulhas e os outros haveres para os pôr a secar o melhor possível nas prateleiras vazias das camas. A Jornada parecia incólume e estava totalmente seca. As outras coisas estavam numa confusão, tal como o seu cabelo. No entanto, sentia-se satisfeita por os seus pertences terem sobrevivido; se não os tivesse guardado tão bem, ter-se-iam, sem dúvida, perdido na tempestade.

A jovem lutou para passar o pente nas madeixas emaranhadas. Pareceu-lhe que tentar desatar os nós era como conseguir informações úteis daquela gente estranha e pouco faladora. Ela sabia que a velha a compreendia, tal como os homens. No entanto, só resmungava e franzia o sobrolho e Einar parecia acreditar que as mulheres tinham pouca capacidade de compreensão. Zangara-se rapidamente quando ela o desafiara. Quanto aos outros, com os seus olhares nervosos e de lado, aborreciam-na quase tanto como a rudeza de Einar. Não gostava daquilo. Não gostava mesmo nada, mas quando conhecessem o governador das Ilhas, provavelmente outro pescador cheio de importância, dir-lhe-ia o que pensava, com ou sem Thorvald. O seu pai ensinara-lhe que a honestidade era o melhor caminho; a sua mãe ensinara-a a ser corajosa e franca. Como podia ajudar a causa de Thorvald se se deixasse intimidar?

— Ai! — encolheu-se Creidhe quando o pente encontrou outro nó. A tarefa estava quase acabada; de manhã usaria o lenço sem discutir para evitar que o vento lhe emaranhasse de novo os cabelos. A jovem bocejou. Que lugar aquele, tão abandonado. Era impensável que o pai de Thorvald tivesse preferido ficar ali, se podia ter ido para outro lado qualquer. As pessoas eram tão caprichosas e estranhas como os ventos e as marés, impossíveis de compreender. Esperava que encontrassem Somerled rapidamente, ou pelo menos que soubessem o que lhe tinha acontecido. Nada no mundo a faria ficar naquelas ilhas um instante mais do que o necessário.

 

Uma subida íngreme: em parte era, mas era, também, uma longa caminhada. Thorvald já se sentia melhor e achou que estava a dar uma imagem de alguma força ao fazer um esforço para acompanhar o passo rápido dos ilhéus, apesar de saber que devia estar a ser uma tarefa difícil para Creidhe com as suas botas grandes de mais. O jovem achou que, para sobreviver ali, era preciso ganhar rapidamente o respeito daquela gente. Eles percebiam de ventos, de marés e de peixe e admiravam a força: a única coisa que os impressionara fora a rápida defesa de Creidhe por parte de Sam. Creidhe. Por todos os deuses, pensou Thorvald enquanto observava a sua luta obstinada para acompanhar os homens que trepavam por aquele carreiro alcantilado e escorregadio, que lhe dera para vir com eles? Premonições e sentimentos vagos não eram base para uma viagem daquelas. Certamente que ela sabia isso; sempre fora uma rapariga prática. A sua presença era mais um obstáculo do que uma ajuda; ia causar todo o gênero de complicações com aqueles ilhéus, disse ele para si próprio. Tudo nas suas maneiras gritava que se sentiam pouco à vontade com a sua presença e, pior ainda, sentia que ela estava assustada apesar da sua manifestação de confiança. Conhecia-a bem; vira a mudança no seu olhar quando aquele homem, Einar, quase a tocara. A situação não era já suficientemente difícil com o Sea Dove danificado e eles próprios sob escolta armada? Como podia continuar com a missão a que se dedicara se tinha constantemente de se preocupar com Creidhe?

Pararam num pequeno pedaço de terra plana perto do topo de uma secção particularmente íngreme do carreiro. De um lado, o declive mergulhava no abismo, ao passo que do outro subia bruscamente. Viam-se algumas ovelhas esguias a pastar, inconscientes do perigo de queda, se bem que se mantivessem do lado de fora das crias. Os homens passaram em redor uns odres com água; alguns acocoraram-se na beira do carreiro e outros sentaram-se nas rochas, distendendo as pernas. À distância, muito longe, via-se uma coluna de fumo. Por baixo via-se um lago cintilante, largo e tranqüilo sob o céu claro, as suas margens subindo, alcantiladas, até umas montanhas vestidas de verde e uns picos rochosos e nus. Tinham trepado o suficiente para ver até longe para oeste, onde uma longa e estreita baía parecia ter sido cortada por entre umas falésias escuras. Havia mais ilhas na sua boca; uma pequena, outra incrivelmente íngreme não muito longe e outra, mais distante, que parecia usar um manto de nuvens naquele claro dia de Primavera.

— Fiorde do Conselho — disse Einar, apontando para oeste.

— A aldeia principal do teu povo é ali? Uma casa do conselho, onde pode ser convocada uma Assembléia? — perguntou Thorvald. O jovem vira do Sea Dove que havia muitas ilhas, espalhadas para norte e para sul, apesar de achar que aquela ilha vestida de nuvens devia ser o ponto mais a oeste. Guerreiros. Teriam medo de uma invasão, ali? Certamente que não; o lugar era demasiado remoto para atrair atenções indesejadas. Além disso, era mais desabrigado do que se poderia imaginar; que haveria ali que valesse a pena? Era claro que o perigo também podia vir de dentro. Aquele domínio devia conter muitas aldeias, cada uma com os seus habitantes e códigos de conduta. Mas, como seria possível sustentar uma disputa séria naquele terreno tão agreste? Quase não se via uma única parcela de terra plana. Eles não precisavam de guerreiros, precisavam de criaturas lendárias que pudessem voar como águias ou nadar como focas. — A tua casa? continuou ele.

— O povo dos Facas Longas vive aqui na Ilha das Tempestades, na Ilha das Torrentes e na Ilha de Leste — disse Einar, abrangendo tudo com uma mão. — Mais algumas a norte. E a sul, as outras.

— Outras?

— Um flagelo; uma raça maldita. — Aquelas palavras foram ditas em voz baixa, como se até a menção do nome fosse um perigo. — Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz.

Thorvald sentiu arrepiarem-se-lhe os pêlos do pescoço.

— Não... não são humanos? — Pergunta estúpida; o tipo de pergunta que faria uma rapariga, não um homem que se declarara ousadamente um guerreiro ainda não havia muito tempo.

— Não vou falar disso aqui — murmurou Einar. — Não é seguro. Estamos em guerra; não há tempo para conselhos. Vamos, temos de continuar.

Thorvald pôs a sua trouxa ao ombro e seguiu Einar. O carreiro, ali, era íngreme, subindo para contornar a encosta acima do lago; a alguma distância à frente, caía de novo na direção do que parecia ser uma pequena aldeia. Sam caminhava perto da frente da fila. Thorvald reparou que o amigo transportava tanto o saco de Creidhe como o seu, ao mesmo tempo que mantinha uma viva conversação enquanto continuava. A Thorvald doíam-lhe as pernas e as costas ainda sentiam a tensão daquele último e desesperado esforço nos remos. As mãos também lhe doíam, se bem que um tipo chamado Skolli as tivesse untado no dia anterior com uma espécie qualquer de gordura malcheirosa, o que parecera ter ajudado um pouco. O jovem manteve a mente fixa no caminho na sua frente. Governador das Ilhas. O título parecia possível para um homem que possuíra, em tempos, o desejo ardente de ser rei. Ensaiou o que talvez dissesse e as perguntas que faria. Pensou nas informações que poderia fornecer. Não muita coisa: até o nome da sua mãe poderia ser de mais. Talvez devesse fazer-se de parvo e esperar que Sam e Creidhe mantivessem as bocas caladas quando fosse preciso. Talvez fosse melhor deixar que fosse Somerled a falar. Se fosse Somerled. Conseguiria ele descobrir alguma coisa? Haveria alguma coisa no sangue que dissesse este é o meu pai, este é o meu filho, um reconhecimento instantâneo para além da voz, da aparência, coisas prováveis e lógicas? O jovem estremeceu. Em breve teria a resposta e talvez lamentasse o impulso que o arrastara até ali. E se lhe saísse um monstro?

Ouviu-se um súbito e cortante grito dos homens atrás e abaixo de si. A fila parou abruptamente, estendendo-se ao longo do estreito carreiro. Thorvald virou-se e o coração subiu-lhe à boca. Creidhe saíra da pista. Estava numa minúscula plataforma saliente, uma superfície escorregadia, suficientemente grande apenas para sustentar os seus pés. A jovem olhava para oeste, para o mar, os olhos fixos naquela longínqua ilha coberta de nuvens como se ela tivesse o poder de a puxar através do ar na sua direção. O menor movimento e Creidhe mergulharia no precipício, indo esmagar-se nas rochas protuberantes ou afogar-se nas águas do lago. O homem imediatamente atrás dela gritava-lhe que tivesse cuidado; o outro à sua frente corria para ela. A jovem estendeu os braços, não para pedir ajuda mas como se quisesse voar, como se quisesse abraçar o ar que a separava da visão que estava a ter, uma coisa qualquer assombrosa que mais ninguém conseguia ver. Thorvald sabia que ela cairia no momento em que lhe tocassem.

— Não! — gritou ele num tom urgente mas baixo, como que para não a assustar. — Não, assim não! Eu vou lá!

O jovem começou a descer o carreiro; os ilhéus encostaram-se uns aos outros para o deixar passar. O seu coração batia com toda a força e tinha a testa cheia de suor gelado. Ele estava ao corrente daqueles transes e do perigo de os quebrar abruptamente. Havia mulheres sábias na família de Creidhe, sacerdotisas; não se crescia na vizinhança de tais pessoas sem ter uma compreensão do poder de uma vidente e da devastação que ele podia provocar. Thorvald prosseguiu cuidadosamente, reprimindo o instinto de correr. Por trás de si podia ouvir o som de Sam a descer — quem mais desceria daquela maneira, tão depressa, atirando com uma chuva de pedras pelo precipício abaixo? — se bem que não conseguisse imaginar como poderia ele ajudá-lo.

— Para trás — disse ele por cima do ombro. O jovem estava, agora, muito perto de Creidhe e aproximava-se lentamente, fazendo os possíveis para que a sua sombra não batesse no rosto dela e para não a assustar com movimentos súbitos e sons inesperados.

— Creidhe? — Thorvald manteve a voz baixa, calma. — Creidhe? Que estás a ver?

O rosto dela estava virado para longe, os olhos sempre fixos naquela ilha distante, misteriosa, do outro mundo, com os seus declives cinzento-azulados, violeta-escuro e verde-musgo, erguendo-se graciosamente de uma vasta extensão de água envolta em neblina. Um manto branco agarrava-se aos pontos mais altos.

— O que é, Creidhe? Que estás a ouvir? Diz-me. Sou o Thorvald. Diz-me.

O jovem aproximou-se de lado, colocando os pés silenciosamente na parede rochosa. Era tão fácil enganar-se, precipitar-se para a agarrar e falhar por um cabelo; era capaz de a ver a cair com os olhos muito abertos e aterrorizados, os cabelos louros como um estandarte, o vento arrebatando-lhe o último grito.

— Creidhe?

Atrás de si, Sam parara e mantinha-se imóvel. Os outros homens estavam silenciosos. Até as gaivotas, que tinham seguido os seus passos circulando e gritando, se tinham calado; era como se a ilha inteira tivesse prendido a respiração.

— Creidhe? — Thorvald avançou mais um passo. Já estava suficientemente perto para lhe tocar, mas não o faria, ainda não. O jovem podia ver-lhe os olhos, grandes e estranhos; talvez fosse possível ter um vislumbre da visão se olhasse profundamente para eles. A jovem tinha as faces coradas; o vento libertara-lhe alguns cabelos do lenço que lhe tapava a cabeça e fazia-os flutuar em frente da testa. Havia uma espécie de auréola nas suas feições que aterrorizou Thorvald; era como se ela pertencesse inteiramente a outro mundo, um mundo a que ele não tinha acesso. O jovem viu-a exalar um profundo e trêmulo suspiro e depois outro e viu a mudança no seu rosto, a dúvida e a confusão sobrepondo-se à visão enquanto ela regressava a si. Creidhe ergueu as mãos para tapar os olhos e iniciou um passo para a frente. Então, ele agiu, mais depressa do que pensava ser capaz, agarrando-a pela cintura e puxando-a para trás, sã e salva. O jovem podia senti-la tremer; chorava, agora, escondendo o rosto com ambas as mãos como se, não podendo ver o que estava na sua frente, pudesse regressar ao estranho mundo que a arrebatara. Thorvald segurou-a com força pelos braços, não fosse ela afastar-se dele e precipitar-se. Os ilhéus aproximaram-se, falando todos ao mesmo tempo. O tom parecia ter um tom de aprovação. Thorvald gostaria de merecer a sua aceitação de uma maneira mais fácil.

— Creidhe! Acorda! Vamos! — O jovem abanou-a ligeiramente; a sua posição ainda era precária e agora que o perigo era menor sentiu uma súbita zanga substituir o terror. Thorvald engoliu as palavras que lhe vieram à boca porque, no fim de contas, ainda tinham de chegar à aldeia. — Já chega, Creidhe. Enxuga o rosto e continua. Estás a atrasar-nos.

Trêmula, ela fez o que lhe mandavam apesar de lhe correr pelas faces um rio de lágrimas. O jovem não percebeu se eram devidas à visão ou à sua perda. Talvez não passasse de um artifício. As mulheres faziam aquilo por razões muito femininas.

— Vamos — disse ele, empurrando-a na sua frente ao longo do carreiro.

— Segura na minha mão. — A voz de Sam soava de novo estranha, áspera. — Já falta pouco. Pelo menos, é o que dizem. É uma ilha bonita. Não me importava de lá ir para dar uma olhadela.

— Ah! — A exclamação veio de um homem entroncado com as feições marcadas pelo tempo, com uma barba sedosa, que seguia ao lado de Sam. — A Ilha das Nuvens? Não tenhas pressa. É uma travessia terrível. Chamam-lhe a Corrente dos Loucos. É uma sorte conseguir fazê-la uma vez por ano, na altura da caçada.

— A sério? — perguntou Sam, caminhando firmemente ao longo do carreiro com os dois sacos às costas e uma mão estendida para trás, segurando na mão de Creidhe para a guiar. — Nesse caso é desabitada? Parece um lugar agradável. Mas estranho.

— É estranho sim senhor. É onde moram os loucos e os feiticeiros. Chamam àquele pico a Velha. Ou antes, a Bruxa. Ninguém se aproxima da Ilha das Nuvens. É proibido, até para os que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se- Diz. É um lugar de morte; amaldiçoado.

— Exceto em altura de pesca — acrescentou outro homem.

— Aquela ilha come homens — disse o primeiro. — Chupa-os e deita fora os restos. A tua mulher que afaste os olhos daquele lugar; é demoníaco. Nós não vamos lá.

— Exceto em altura da caçada.

— Estou a ver — disse Sam pensativamente. — E quando é que é a altura da caçada?

Mas não recebeu nenhuma resposta. Einar berrara uma ordem lá da frente; os seus homens calaram-se e desceram lentamente o resto do caminho até o terreno se tornar plano na margem do lago e surgir um aglomerado de casas com telhado de turfa, apertadas entre um ribeiro turbulento e o monte vestido de verde. O Fiorde, com a sua vista para a misteriosa Ilha das Nuvens não se podia ver dali. Creidhe mantinha os olhos no carreiro, seguindo os passos de Sam. Se ela tivesse feito aquilo durante a viagem toda, pensou Thorvald, carrancudo, tê-los-ia poupado a uma carga de trabalhos. Era estranho: ela nunca tivera visões, pelo menos que soubesse. Na verdade, Creidhe sempre fora uma pessoa prática, sensível, sempre ocupada com os seus bordados e a sua culinária, ao mesmo tempo que a sua irmã mais velha Eanna aprendia as coisas do espírito. Creidhe não entrava em transe nem saía dos carreiros como se esperasse ter asas. Esperava que não acontecesse de novo, ou a sua responsabilidade ainda seria maior. O seu coração ainda lhe batia descompassadamente; não devia ser tão forte como pensava. E estavam quase a chegar. Tinha de pôr os pensamentos em ordem; tinha de estar pronto.

— Lembrem-se — sussurrou ele para os outros dois. — Lembrem-se do que vos disse. Deixem a conversa para mim.

Já estavam em terreno plano e o carreiro era suficientemente largo para permitir que caminhassem lado-a-lado. Sam amparava Creidhe com um braço; ambos viraram a cabeça para ele. Thorvald viu, para sua surpresa, que o grande e corpulento Sam estava pálido como um fantasma. O rosto de Creidhe estava marcado pelos sulcos das lágrimas; a jovem parecia exausta e triste. Ambos olharam para ele e depois viraram-se continuando a andar. Havia alguma reprovação nos seus olhos. Que se passava com eles? Ele salvara Creidhe, não salvara?

Entraram na aldeia, se se podia chamar aldeia àquele conjunto decrépito de minúsculas cabanas, pátios estreitos e ruelas serpenteantes. Alguém fazia soar um sino no alto do monte; boas-vindas, talvez, para aqueles viajantes raros. Por que razão, nesse caso, lhe soava como um toque de aviso? Thorvald rangeu os dentes. Aquele lugar estava a afetá-lo negativamente e não podia permitir que isso acontecesse. Ele era o chefe daquela expedição e um chefe tem de ser forte. O jovem endireitou os ombros e ergueu a cabeça, dirigindo-se aos homens que os tinham levado até ali e fazendo com que a sua voz soasse firme e confiante: não era um pedido, era uma exigência.

— Levai-me ao governador destas Ilhas — disse ele. — Quero falar com ele.

Mas não seria uma coisa fácil, porque lhe disseram que não era possível ir até àquele potentado. Teriam, em vez disso, de esperar que ele aparecesse. Em seu devido tempo, disseram-lhe os homens da escolta, seriam mandados chamar. A rapariga iria para outro lado qualquer; não era apropriado ela ficar na mesma casa que eles. Sam e Thorvald protestaram. Creidhe não estava bem, precisava dos amigos junto dela e eles eram responsáveis pela sua segurança. Quanto à própria Creidhe, estava excepcionalmente silenciosa, agarrada ao seu saco com as duas mãos. O seu olhar era extremamente vago, como se ainda estivesse a ver os últimos fragmentos da visão. Finalmente, apareceu um par de mulheres e Thorvald, descansado quanto à sua aparência prática e terra-a-terra, permitiu que levassem Creidhe para uma das pequenas casas. Era menos uma coisa em que pensar.

Os dois homens foram conduzidos até uma casa um pouco maior e mais bem conservada do que as outras. Esperaram numa pequena antecâmara. Havia ilhéus em cada uma das portas, mas se era para evitar que entrasse mais gente, ou para impedir que os recém-chegados saíssem, não sabiam. Tentaram meter conversa com eles, mas foi inútil. Tudo o que Thorvald soube foi os seus nomes: o homem da barba sedosa era Orm; o outro, o mais novo, Svein. Trouxeram-lhes comida: um chouriço de sangue, rico e escuro e um prato com ovos. Os dois jovens agradeceram. Também lhes deram água; eles teriam preferido cerveja. Talvez aquela gente não a soubesse fabricar, porque não parecia haver terreno para cereais. Esperaram muito tempo e o dia foi passando. Tinham muito tempo para pensar: demasiado tempo. Por fim, Sam estendeu-se no chão com a cabeça no seu saco e adormeceu. De vez em quando, resmungava, talvez a sonhar com tempestades. Thorvald sabia que o seu amigo estava ansioso por causa do Sea Dove; custara-lhe muito deixá-lo sem proteção.

A noite estava a cair quando foram, finalmente, chamados. Os sinais tinham sido bons: tinham-lhes trazido água para se lavarem, mais roupas secas e um casaco quente para cada um. Mesmo assim, Thorvald recordou a conversa acerca do destino. Tinha de assumir o controle logo desde o princípio; não se podia esquecer de que aquela era a sua demanda e que tinha de fazer o melhor possível. Aquelas ilhas eram um teste. Nelas descobriria quem era. Talvez o seu pai estivesse ali. Talvez Somerled ainda fosse o mesmo homem, impiedoso, impulsivo, cruel. Talvez tivesse mudado. Poderia um homem mudar? Poderia ele próprio libertar-se de um passado sombrio e começar de novo? E, se assim fosse, não poderia o seu filho, também, esforçar-se deixando a sua marca no mundo, encontrar o seu destino e vocação? Thorvald estremeceu. Provavelmente, a verdade que iria descobrir só confirmaria aquilo de que já suspeitava: que o sangue do seu pai putrefato, o seu espírito irrecuperavelmente mergulhado na maldade. Que era esse o seu legado, uma sombra inelutável, tornando também Thorvald incapaz de boas ações e de pensamentos dignos. No entanto, pelo menos, ficaria a saber, de uma maneira ou de outra. Saberia a verdade.

— As minhas saudações. — O homem que se mantinha sob a lanterna da sala, à sua espera, não estava rodeado por cortesãos, por guerreiros, por pescadores ou gente da sua família. Tinha apenas um guarda com ele, um homem enorme com os ombros de um touro e uns olhos pequenos sempre alerta. Thorvald e Sam atravessaram a sala com dois ilhéus atrás de si. Thorvald reparou no teto baixo, na pequena lareira e na falta de tapetes nas paredes. Se aquele era o domínio do governador, era bem pobre ao lado da grande sala do conselho das Ilhas Brilhantes. Quanto ao homem propriamente dito, era suficientemente formidável. Olhava para eles de frente enquanto se aproximavam, avaliando com os seus olhos escuros e a boca transformada numa linha fina, não deixando transparecer nada. Era de estatura mediana e medianamente constituído, mas rijo e esguio. Estava na força da idade: os seus cabelos eram escuros como a asa de um corvo, com algumas mechas grisalhas nas têmporas e com as mesmas cicatrizes paralelas na face direita que tinham visto nos outros homens, um padrão de cinco linhas desenhadas com precisão. O traje que vestia não tinha nada de majestoso, era de simples lã e tinha um único enfeite formado por uma estreita orla com desenhos de cinzento-claro sobre cinzento-escuro. Os seus cabelos estavam atados atrás com uma fita do mesmo tecido. A impressão era austera. Os dois homens pararam a alguns passos dele. O grande guarda mexeu-se ligeiramente, os seus dedos movendo-se na direção do cabo do machado.

— E as nossas para ti — disse Thorvald, imitando o seu tom cortês. — És o homem a quem chamam o governador destas Ilhas?

— Meu senhor — disse Orm rapidamente num tom apologético — estes são os dois viajantes que deram à costa na Baía Sangrenta. A mulher...

— Podes sair. — O governador falou sem ênfase. Um momento mais tarde, os ilhéus tinham desaparecido; a obediência era, pelos vistos, automática e instantânea. O guarda-costas não se mexeu. — Por favor, sentai-vos. — O governador indicou o banco de pedra e sentou-se ele próprio num que se lhe opunha. — Os vossos nomes?

Sam abriu a boca, mas Thorvald foi mais rápido.

— Vimos das ilhas a sudeste, a que alguns chamam Orcades e outros Ilhas Brilhantes — disse ele sem nunca desviar o olhar do governador. — Como já dissemos àqueles que nos trouxeram aqui, fomos afastados da nossa rota e o nosso barco ficou danificado. O meu nome é Thorvald; o do meu amigo é Sam.

— Sam Olafsson de Stensakir. O barco é meu e eu estou ansioso por repará-lo e regressar a casa. Esperávamos...

O governador ergueu uma mão; Sam calou-se.

— E tu? — perguntou o governador fixando intensamente Thorvald. — És irmão dele? Parece-me pouco provável. És marinheiro dele? Acho que não; a tua maneira de falar sugere, pelo menos, uma educação rudimentar. O teu amigo deu o nome do seu pai com orgulho. Por que não fizeste o mesmo?

— De ti — replicou Thorvald com o coração a bater com toda a força — também não sabemos o teu nome nem a tua linhagem. O título de governador não te foi dado no berço, suponho. — Sam deu-lhe um murro nas costelas; Thorvald ignorou-o. — Quanto a mim, sou dono de mim próprio e vou para onde quero. Não preciso de outra identidade. Gostaria de estar a dizer a verdade; a vida seria, assim, muito mais simples.

— O meu nome é Asgrim — disse o governador. — Aqui, somos de muitas raças. Chamamos Ilhas Perdidas a estas terras: um refúgio de fugitivos e de banidos, homens que vêem o mundo para lá destas praias através de um véu de amargura e desconfiança. Não contentes com isso, fazemos guerra uns aos outros.

Rapidamente, Thorvald pensou de novo no que ia dizer.

— Asgrim — disse ele pensativamente. — Um bom nome nórdico. Os teus ascendentes são dessa terra? Há quanto tempo vive gente nesta terra? No lugar de onde vimos, a existência destas ilhas é apenas uma conjectura: quase uma lenda.

Asgrim juntou as mãos, os seus olhos escuros fixando intensamente o rosto de Thorvald.

— Einar mencionou o teu gosto por perguntas — disse ele suavemente. — Também tenho algumas para ti, mas, antes de responderes, farias bem se prestasses atenção à minha pessoa e ao poder que tenho aqui. O povo dos Facas Longas obedece-me em tudo. Não fora a minha liderança e teriam perecido há muito. Esta terra é implacável e não somos os seus únicos habitantes. O meu povo está sempre em luta. Só aprenderam a jogar um jogo, um jogo que têm de jogar para poderem sobreviver: o meu jogo. Enquanto aqui estiveres, farás o mesmo. Os fracos e os desobedientes não podem sobreviver num lugar como este. E agora, responde-me. Como viestes aqui parar? Que quereis?

Seguiu-se uma breve pausa.

— Sam disse a verdade — disse Thorvald. — Estamos aqui acidentalmente; houve uma tempestade e o nosso barco foi arrastado para esta costa apesar dos nossos esforços para virarmos para leste. Quanto ao que queremos, dissemo-lo ontem: madeira para reparar o Sea Dove para que nos possamos ir embora.

— Sabemos que a madeira deve rarear — acrescentou Sam. — Não é surpresa nenhuma, nas nossas ilhas é a mesma coisa. Trabalharemos no que for preciso até pagar aquilo de que necessitamos. Eu tenho ferramentas; posso fazer as reparações, preciso apenas do material...

Asgrim ergueu de novo a mão, cortando as palavras de Sam.

— Sim, eu ouvi a história. Pescador, não é assim? Disseram-me o suficiente para saber que tu, pelo menos, és quem dizes ser. Esta gente conhece os do seu meio. Mas tu — disse ele, virando-se para Thorvald — tu és outra coisa. Diz-me, por que trouxeste uma mulher nesta expedição? Uma mulher de excepcional beleza e ainda por cima muito nova? Só vejo uma razão para isso, que não condiz com o que penso de ti, nem do teu amigo. A rapariga é mesmo para vos aquecer a cama, à vez?

Sam ficou vermelho que nem um tomate.

— Estás a insultá-la e a ofenderes-me com essa sugestão, meu senhor. Creidhe é boa rapariga; não se passa nada disso, absolutamente nada e espero que metas isso na cabeça dos teus homens, porque se alguém lhe põe as mãos em cima...

— Sam — avisou-o Thorvald e a torrente de palavras deste esmoreceu até se transformar num resmungo zangado.

— Ainda não ouvi resposta nenhuma — observou Asgrim friamente. — A rapariga deve ser a namorada deste homem, visto que uma simples pergunta provocou uma emoção tão grande. Ela deve ser agradável, certamente, bem-feita e bonita. Uma mulher assim atrai o olhar. Quem é ela?

— Uma amiga de infância, meu senhor. — Thorvald ficou de certo modo surpreendido com as repetidas alusões à beleza de Creidhe. Nunca pensara nela naqueles termos. Beleza excepcional? Dificilmente. Creidhe era... bem, era Creidhe. O jovem decidiu que a verdade era a melhor opção. — Tem dezesseis anos, é de alto nascimento e ainda não foi prometida a nenhum homem. É virgem.

— E é bom que assim continue — grunhiu Sam.

— Mas, meu senhor, para ser honesto contigo — continuou Thorvald — a rapariga não veio com o nosso consentimento. Creidhe escondeu-se no barco; quando demos com ela já a tempestade nos arrastava para longe das nossas costas. Não tivemos outra hipótese senão continuar com ela a bordo. Sabes como são as mulheres; quando metem uma idéia na cabeça, nada as demove. Suponho que Creidhe achou que partia para uma aventura.

— A sério? — As sobrancelhas escuras de Asgrim ergueram-se, incrédulas. — Uma viagem de pesca? As mulheres da tua ilha devem ter poucas ocasiões de divertimento.

Thorvald encolheu os ombros com indiferença.

— É nova — disse ele. — Por vezes, nem sabe o que faz. — A visão de Creidhe na pequena saliência com os braços estendidos e os olhos cegos para o mundo estava firmemente gravada na sua memória.

— Assim me disseram — observou Asgrim. — Um incidente no caminho para aqui. A rapariga quase morreu. Foi falta de cuidado. Interroguei os que a acompanhavam; foram castigados severamente. Visitantes como vós são raros nas nossas costas e devem ser protegidos.

— Castigados? — Sam parecia surpreendido. — A culpa não foi deles. Creidhe fez aquilo sozinha. Foi como se algo se tivesse apropriado dela, algo que nenhum de nós podia ver.

— Sim. Parece que essa jovem é mais do que caprichosa: é instável, se assim se pode dizer. Representa um perigo para si própria e para os outros.

— Oh não! — disse Sam ansiosamente. — Creidhe é boa rapariga, uma rapariga de confiança. É uma grande fiadeira e uma ótima tecedeira, uma cozinheira maravilhosa a mulher ideal para qualquer homem. — O jovem apercebeu-se do olhar penetrante de Thorvald e corou violentamente. — É este lugar — acrescentou ele em tom de desculpa. — Ela ficou apanhada por esta estranheza toda. Quer dizer, como é possível uma enseada ter o nome de Baía Sangrenta.

— É apenas por causa das baleias — disse Asgrim suavemente. — Em tempos, os homens dessa aldeia orgulhavam-se com o tamanho dos animais que conseguiam apanhar com os seus pequenos barcos: a areia ficou vermelha em muitas ocasiões. Hoje, andamos mais ocupados com outra pesca; há mais de cinco anos que não pescamos uma baleia. Quanto a Creidhe, é preciso guardá-la bem. Ela é uma criatura de grande encanto e com grandes qualidades, se tu disseste a verdade. Um tesouro, na verdade. Felizmente, esta aldeia está bem protegida e há aqui mulheres que podem fazer companhia à tua amiga assim que vocês continuarem.

Seguiu-se um breve silêncio.

— Continuar — acabou por dizer Thorvald. — Continuar para onde?

Asgrim espreguiçou-se com os braços ligados atrás da cabeça.

— Sabes — disse ele expansivamente — eu acho que não respondeste a uma única das minhas perguntas. Felizmente, a jovem senhora foi muito mais comunicativa. Continuamos amanhã, depois de teres algum tempo para pensar? Está a fazer-se tarde e vocês têm um longo dia pela frente. Que não se diga que o governador destas Ilhas se esqueceu do que significa ser um bom anfitrião.

O homem bateu as palmas e ouviu-se o som de homens a aproximarem-se, o tilintar de recipientes e o cheiro de carne assada.

— Só um momento — disse Thorvald, ao mesmo tempo que um arrepio de desconfiança lhe percorria a espinha. — Já falaste com Creidhe? Por que não nos disseste? O que é que se passa aqui?

Pelos ossos de Odin, talvez Asgrim já soubesse a verdade acerca da sua demanda; talvez Creidhe lhe tivesse dito tudo. Não, Creidhe seria leal à sua palavra. Se havia alguma coisa a dizer em favor de Creidhe, era que a jovem era de confiança. Ela não falara, fiel à sua promessa.

— O quê, mais perguntas? — O governador sorriu levemente. — É muito simples, Thorvald. Não é difícil de perceber. Trocamos informações, pergunta por pergunta, resposta por resposta. Não se faz isso no local de onde vens? E há outra parte, em que as coisas ainda são mais simples. Tu queres uma coisa, que eu te posso dar. Mas deves merecê-la. Como este domínio é meu tens de a merecer segundo as minhas condições. Disseram-me que tu sabes alguma coisa acerca das artes da guerra. Nós podemos usar esse talento; na verdade, é precisamente o que queremos. Mas vais achar a guerra que levamos aqui estranha e frustrante, porque está tudo dependente do vento, das marés e dos poderes misteriosos dos nossos inimigos, que estão fora do alcance das lanças e das facas. Temos muito pouco tempo para agir; isso requer um planejamento muito meticuloso.

Entraram na sala alguns ilhéus com jarros, taças e pratos com carneiro e peixe cozido.

— Conta — disse Thorvald, muito interessado — conta mais. Quem são esses inimigos e onde vivem? Por que estás em guerra com eles? Qual é a natureza dos ataques deles?

— Talvez — observou Asgrim — aprendas a ter paciência durante a tua estadia conosco, Thorvald. Espero que sim. Essas perguntas constantes cansam. Vamos, come e bebe. Falaremos disso amanhã.

— Eu, — Thorvald ficou surpreendido por ouvir Sam falar, porque o tom do seu anfitrião ficara extremamente frio — eu sentir-me-ia melhor se soubesse que Creidhe está bem. Parece que as mulheres não vêm comer aqui; parece que aqui é assim. Mas, tenta compreender, ela é apenas uma rapariga e nós somos responsáveis por ela.

Asgrim aproximou-se da mesa de pedra onde estavam colocados os pratos; o governador utilizou uma faca pequena e bem afiada para cortar algumas fatias de carne, colocando-as num prato a seu lado. A maior parte dos homens que os tinham acompanhado desde a baía estavam, agora, na entrada. Deviam ser horas de jantar, mas não parecia haver qualquer convívio; estavam todos silenciosos e de rostos fechados. Thorvald não via o homem que caminhara à frente de Creidhe naquela manhã, nem o que a seguira.

— Fica descansado, rapaz — disse Asgrim a Sam com um trejeito que podia ser um sorriso — não há lugar mais seguro nestas ilhas para a tua amiga do que aqui, em Água Brilhante. Não te preocupes. Ela tem uma lareira quente, boa comida e companhia feminina em abundância. Imagino que deve estar muito mais confortável do que no teu barco. Confia em mim. A rapariga é um tesouro e eu sei cuidar das coisas preciosas. E agora bebe; temos trabalho pela frente e tu precisas das tuas forças.

Mais tarde, quando os dois homens se instalavam no pequeno quarto que lhes tinham dado para dormir, Sam murmurou a Thorvald:

— Ouviste o que ele disse? Artes da guerra? Por que lhe disseste que todos os miúdos das Ilhas Brilhantes eram guerreiros antes dos doze anos? Sabes o que vai acontecer. Vamos acabar na linha da frente e mortos antes do Verão.

— Shhh — murmurou Thorvald. — Baixa a voz, há homens a dormir do outro lado da parede e aposto que eles têm ordens para contar tudo o que ouvirem. Talvez eu tenha exagerado um pouco.

— Um bocado? Eu posso dar um jeito com os meus punhos quando desafiado, mas seria de pouca utilidade com uma espada nas mãos. Artes da guerra? A minha única arte é a arte da pesca.

— Tudo bem, Sam. Eu sei o que estou a fazer.

Seguiu-se uma pausa.

— Ninguém diria — resmungou Sam. Thorvald não respondeu.

— Achas que é ele?

— Não sei. — Era mentira, claro; o jovem tinha quase a certeza depois daquela conversa. Não que o homem se parecesse com ele, salvo, talvez, os olhos. Era mais um pressentimento, não o chamamento do sangue que imaginara, antes um reconhecimento alarmante e mais temerário. Aquele homem escondia muita coisa; tinha segredos, conspirava e planeava. Tinha de o desmascarar; tinha de descobrir o que se escondia para lá daquela máscara austera e controlada. Asgrim intrigava-o. Todo o local o intrigava: uma ilha de feiticeiros e loucos, uma guerra contra um inimigo com poderes extrafísicos, uma caça que teria de ser feita no momento exato era, na verdade, uma demanda, um desafio maior do que imaginara. E havia de conseguir; mostraria a Asgrim, que podia ou não ser o seu pai, do que era capaz. Talvez conseguissem juntos a vitória: tal pai tal filho.

— É uma oportunidade — disse ele suavemente, não muito certo de que Sam ainda estivesse acordado. — Uma hipótese de descobrir o tipo de homem que ele é. Talvez seja o meu pai e talvez não. Talvez eu lhe diga e talvez não. De qualquer maneira, temos de ganhar a nossa madeira. Continuar é bom. Posso falar com os homens, descobrir quem veio até aqui há dezoito anos. De qualquer maneira, parece que eles precisam mesmo de nós, meio guerreiros ou não. Parece que podemos ajudá-los. Este lugar é estranho, interessante. Quero descobrir mais coisas.

O jovem virou-se para o outro lado, sabendo que o sono demoraria a chegar.

— Thorvald? — chamou Sam em voz baixa no escuro.

— O que é?

— E se nós morrermos e Creidhe ficar aqui sozinha?

— Confia em mim — disse Thorvald. — Vai correr tudo bem. E agora, dorme; ouviste o que o homem disse. Vamos precisar das nossas forças todas.

 

A luz estava a diminuir. Margaret sentou-se ao tear com a lançadeira na mão e com os fios de lã cinzentos e castanhos-escuros em frente dos olhos cansados. Era demasiado tarde para trabalhar; era melhor desistir e ir para a cama. No entanto, continuou ali a olhar cegamente para a teia de lã e a imaginar outra, azul e vermelha, e as mãos pequenas e habilidosas da sua sobrinha, como aves cheias de graça, percorrendo impecavelmente a sua superfície. Por que não chorava como as outras mulheres todas? Por que razão as coisas cresciam, cresciam no interior do seu peito, quando o seu coração já tinha tantos fardos? Por todos os deuses, o castigo era demasiado grande para um erro tão pequeno. Em dias como aquele, parecia-lhe que estava condenada para sempre.

— Vem, tens de comer qualquer coisa. Deixa isso por agora.

A voz de Ash era calma e sem variações, como sempre. Ela não virou a cabeça, mas sabia que ele estava na soleira por trás dela, conhecia cada ruga, cada linha das suas feições graves, a preocupação nos seus olhos, as roupas simples e práticas que usava, a maneira de vestir que refletia o seu papel, que era ao mesmo tempo de guardião e companheiro, criado da casa e amigo. Ao longo dos anos, vira os seus cabelos passarem de ruivos-escuros a cinzentos. Aquilo não era vida para um homem, na melhor das hipóteses era uma meia vida.

— Anda lá — disse ele de novo, insistindo gentilmente. — Não vês nada com esta luz, dás cabo dos olhos.

Ela levantou-se relutantemente e virou-se para olhar para ele, sabendo que ele veria a palidez das suas faces e as lágrimas por derramar.

— Ele volta, sabes? — disse Ash. — Os filhos têm o hábito de partir; conhecem o mundo e conhecem-se a si próprios. Thorvald ama-te. Com o tempo, lembra-se disso.

Margaret estremeceu e passou por ele a caminho da grande sala. Havia pão e cerveja em cima da mesa, um queijo de ovelha e um prato com pequenas cebolas. Ash era tão bom para ela; não merecia tanta bondade.

— Ele odeia-me — disse ela. — Disse-me. Olhei para os olhos do meu filho quando ele disse aquelas palavras e vi Somerled a olhar para mim. Não posso fugir do que fiz; é uma maldição, não só para mim, mas também para Thorvald.

— Vem, senta-te — disse Ash. — O pão é bom, eu corto-te uma fatia. — As suas mãos tinham dedos longos e seguraram na faca à vontade enquanto cortavam o pão e o queijo e lhe colocavam o prato na frente.

— Não consigo comer — disse Margaret, sentindo um nó no estômago. Desde que Thorvald se fora embora que uma nuvem de incerteza lhe ensombrava os dias e lhe assombrava os sonhos durante a noite; não havia meio de lhe escapar. — A culpa é minha, Ash. Se lhe tivesse dito tudo mais cedo, quando ele era mais novo, talvez ele se tivesse habituado à idéia. Não teria feito isto. — Ela meteu a cabeça nas mãos, odiando a própria fraqueza.

— Estás preocupada com ele; eu também estou — disse Ash. — Mas Thorvald não é nenhum fraco. Tu ensinaste-o a ser desembaraçado, a aceitar os desafios.

Ela conseguiu um ligeiro sorriso.

— E, graças a ti, o meu filho é capaz de manejar a espada e o arco, se bem que nunca to tenha agradecido.

— Thorvald não gosta da minha presença nesta casa — observou Ash calmamente, metendo na boca um pedaço de pão e outro de queijo. — Há muito que sei isso. Ele não percebe a nossa relação. Quer ser o único centro do teu mundo; e não percebe que é exatamente isso.

Margaret bebeu um gole de cerveja; por que era que tudo lhe sabia a cinza? Era como se uma mortalha tivesse descido sobre ela no dia em que contara a verdade a Thorvald. Na ocasião, não se apercebera das conseqüências para ela, para os seus velhos amigos e para toda a gente. Naquele dia, devolvera a vida a Somerled.

— Isto aqui parece diferente sem as visitas de Creidhe — observou Ash calmamente, esmigalhando o pão com os dedos.

Subitamente, Margaret foi incapaz de reprimir uma lágrima, que lhe escorreu pela face. Ela limpou-a com dedos furiosos; não daria mostras de fraqueza, nem sequer ali, sozinha com Ash. Tudo o que lhe restava era a sua força.

— Tens saudades dela — disse ele, olhando-lhe para o rosto. — Tens mais saudades dela do que de Thorvald: a luz dos teus olhos. Ela é quase tua filha.

— Tu estás aqui há demasiado tempo, Ash — disse Margaret amargamente. — Por vezes, penso que me conheces melhor do que eu própria.

Ele não disse nada. Ficaram os dois em silêncio, sem apetite.

— Devias ir-te embora — disse Margaret, finalmente. — Sabes isso muito bem. Aqui não há nada para ti. Nem vida, nem futuro. Devias ir-te embora, arranjar uma herdade, uma mulher jovem, uma família. Ainda não estás tão velho que não possas ser feliz.

Ash sorriu; havia tanta tristeza naquelas palavras, tanta resignação, tanta culpa e tanta dor.

— Sabes muito bem que não vou — disse ele com toda a simplicidade. — Conheces-me. Além disso, por que razão havia eu de seguir os teus conselhos se tu não segues os meus? Estávamos a falar de Creidhe, que é como uma filha para ti. Apesar disso, ela não é tua, se bem que gostes muito dela. Por que não te libertas e arranjas uma vida nova, livre dos grilhões do passado? Aconteceu tudo há muito tempo. E tu continuas nova, podes ter mais filhos, se quiseres: a tua própria filha.

Ela riu-se, um som áspero, amargo, rapidamente reprimido.

— Dar ao mundo outra criança para partilhar a maldição que carrego comigo? Não me parece.

Ele olhou para ela, muito sério.

— Que será preciso — perguntou-lhe ele — para tirar esse peso dos teus ombros? Uma vida inteira de solidão? Ainda não chega?

— Não sei — suspirou ela, abraçando-se a si própria. — Tenho medo que o meu filho cresça igual ao pai. Tenho mais medo disso do que de tudo o resto. E tenho medo por Creidhe; ela foi arrastada para algo que a pode engolir e destruir. O amor dela por Thorvald deixa-a aberta a grandes sofrimentos. Se, ao menos, ela não tivesse ido com ele...

— Um viajante precisa de um farol que lhe mostre o caminho — disse Ash, embrulhando o pão num pano e cobrindo o queijo. — Enquanto ela estiver com ele, a nossa casa estará mais escura. Talvez ela tenha um papel a desempenhar. Pareces cansada; devias ir deitar-te.

— Tenho sonhos. Não tenho vontade nenhuma de adormecer.

— Margaret?

Ela olhou para ele, vendo a bondade inabalável nos seus olhos cinzentos, reparando em novas linhas nas suas feições gastas e sabendo o que ele ia dizer.

— Nós dormimos os dois em camas frias. — A voz de Ash era muito doce. — Não precisas de estar sozinha durante os teus sonhos.

Ela abanou a cabeça, desamparada.

— Não posso. Sabes isso muito bem. Não tenho nada para te oferecer; não tenho nada para dar. Não consigo afastar as sombras do passado; Somerled há de estar sempre entre nós.

— Mesmo assim — disse Ash, pondo-se de pé — estarei perto, caso precises de mim. Sabes isso.

— És muito bom, Ash. E eu não valho esses cuidados todos.

Ele não disse nada. Havia um pato entre eles, uma espécie de combinação que não permitia um beijo na mão, na face, ou o simples bater de mãos da dona-da-casa para o servo. Ela levantou-se: mais um dia passado e mais uma noite para suportar. Onde estariam eles, o seu filho com o seu rosto pálido e intenso e os seus olhos irrequietos; a sua querida Creidhe de cabelos dourados e mãos habilidosas? Tê-los-ia devorado o oceano, ou estariam numa qualquer praia longínqua contemplando o olhar sem piedade do homem que ela pensara amar um dia? Que os deuses os protegessem; que os deuses fossem tão misericordiosos com eles como tinham sido consigo, presa como estava na teia que ela própria tecera.

— Boa noite, Ash — disse Margaret.

 

               Chamam-nos; chegou a hora.

               Não aprenderam nada?

               Nem a sagrada cruz ou o ferro frio,

               podem impedir estas trevas.

               Que Deus me permita ficar de ora.

                                       NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Ela conseguiu fingir. Não chorou; não pediu para ficar ou, pelo menos, para que não a deixassem na aldeia com aquelas estranhas que, apesar dos seus esforços para a receberem bem, continuavam a portar-se de maneira muito estranha. Havia homens de guarda em redor de Água Brilhante e ninguém lhe dizia por que razão. Estava uma guerra em curso; fora a única coisa que conseguira que as mulheres lhe dissessem. Os homens que não estavam de guarda à aldeia tinham de partir. Era terrível ter que sorrir e apertar a mão a Sam e a Thorvald postados na sua frente com os sacos às costas, de bordão na mão e vestidos com roupa que sugeria uma longa viagem. Custava-lhe fingir que não se importava, manter a boca fechada quando tudo na sua alma gritava: levai-me convosco, por favor!

Houve um momento, quando Sam lhe perguntou gentilmente se tinha a certeza de ficar bem, em que quase lhes disse que se sentia preocupada e lhes pediu para ficarem. Mas sorriu de novo e disse que estava tudo bem. Ela sabia que eles tinham de trabalhar para pagar a madeira de que necessitavam. O governador explicara-lhe que num lugar como aquele havia sempre cabanas e barcos a necessitarem de reparações depois de uma tempestade, carreiros a endireitar, gado para tratar. Asgrim parecera-lhe um homem bem-educado, ao mesmo tempo autoritário e simpático. Perguntara-lhe se estava bem de saúde e assegurou-a de que ficaria bem em Água Brilhante. Tivera alguma dificuldade em não o perscrutar de perto, procurando sinais de parecença com Thorvald. Tentara não olhar fixamente para ele. Quanto a conclusões, não chegara a nenhuma. Podia ser Somerled, mas também podia não ser. No fim de contas, parecia pouco provável um homem tão simpático ter um passado tão maldoso. Como estavam de partida, cabia a Thorvald descobrir, de uma maneira ou de outra.

A jovem despediu-se a custo e ficou a ver a longa fila de homens serpentear pelo carreiro acima em direção a oeste, fixando os olhos nos cabelos ruivos de Thorvald, uma nota solitária de cor no verde-acinzentado da encosta, afastando-se cada vez mais até desaparecerem por trás de uma curva. Creidhe vira uma luz de desafio nos seus olhos; isso era bom. A amargura daqueles últimos dias em Hrossey desaparecera do seu rosto e ele olhava em frente. Não demorariam, certamente, muito tempo a fazer o trabalho que tinham a fazer e a regressar com a madeira. Falar das suas preocupações só os teria retardado e ela estava ali para ajudar, não para colocar dificuldades. Além disso, provavelmente, essas preocupações não tinham razão de ser, eram apenas saudades de casa e uma conseqüência do que acontecera naquela primeira manhã no alto da falésia, no carreiro. Tentara recordar-se do sonho fechando os olhos, tentando trazê-lo de volta, mas era-lhe cada vez mais difícil, o sonho estava a esbater-se. Fora uma espécie de voz, uma canção, mas apenas na cabeça; sem palavras, uma música mágica que se mantinha chamando, chorando. Aqui, estou aqui! Por vezes, pensava que era como se umas mãos se estendessem na sua direção, mãos em busca de amor, de amizade, mãos carentes. Vem, diziam as mãos. No entanto, ao mesmo tempo, as mãos abraçavam aquela ilha envolta em brumas, envolvendo-a como uma barreira de proteção. Teria ido se pudesse, voando com asas invisíveis, transpondo a distância amparada apenas por um sonho.

Não falara do que sentira, nem sequer a Thorvald. Duvidava, até, que fosse capaz de partilhar algo tão estranho e poderoso com a sua própria mãe, com a sua própria irmã. Agora, Thorvald e Sam tinham-se ido embora e com eles Asgrim, o governador, com a maior parte dos seus homens. A pequena força armada com lanças podia ser vista a patrulhar os carreiros e ruelas de Água Brilhante de dia e a montar guarda de noite, mas estava tudo calmo.

Creidhe decidiu dedicar-se ao bordado. Não poderia sair dali; as mulheres tinham deixado isso bem claro. Era permitido um passeio até ao lago e até à curva que dava para a mancha verde murada, mas mais nada; a jovem tentara um dia e vira-se escoltada de volta por dois dos homens armados de lanças. Era para sua segurança, tinham-lhe dito as mulheres. Nenhuma delas saía dali.

A Visão que a assombrava, aparecendo-lhe claramente nos sonhos, encontrou um lugar na Sua Jornada. A princípio, as mulheres foram curiosas, amontoando-se à sua volta. Era evidente que não havia ali nenhuma costureira para fazer aquele trabalho tão detalhado. Creidhe foi obrigada a mostrar-lhes, um pouco, como se fazia, desembrulhando um pouco o tecido para revelar as cores vibrantes e pormenores meticulosos, um padrão nada tradicional com as suas imagens perfeitas, os seus motivos convencionais e orlas regulares, mas um fluxo orgânico, envolvente e sempre a mudar. Elas soltaram exclamações, espantadas, impressionadas, talvez um pouco assustadas: nunca tinham visto nada semelhante. Uma admirou as minúsculas árvores, outra os animais escondidos na folhagem, outra ainda a figura que parecia uma rapariga a voar e a Lua ao seu alcance. Uma estendeu um braço para tocar; Creidhe voltou a enrolar o seu trabalho, deixando apenas exposta a parte ainda vazia. O sonho, a visão, crescia no tecido com cores violeta e azul-escuro, verde-claro, cor de musgo e cor de líquen, o cinzento das rochas sob o impulso da maré, o subtil colorido da pele de uma foca. A Jornada continuou; era como se tivesse metido no seu saco uma grande provisão de agulhas e de lã, porque se tinham passado muitos dias sem que estivesse ocupada.

Ninguém era capaz de fazer um trabalho tão exigente durante o dia todo. Vira, entretanto, as outras a fiar e oferecera-se para ajudar; aquilo pareceu surpreendê-las, mas quando se tornou evidente que ela era mais do que capaz, arranjaram-lhe uma roca e um fuso e deixaram-na fiar com elas na cabana comunal durante uma manhã inteira. A jovem ofereceu-se para cozinhar; na verdade, esforçou-se na cozinha e produziu algo mais agradável do que a infindável dieta de peixe cozido e carneiro requentado. Mas Gudrun, em casa de quem Creidhe estava hospedada, tornou claro que a hóspede não poderia esforçar-se daquela maneira. Creidhe tinha de descansar, comer bem e recuperar da doença. Os seus protestos entraram em ouvidos moucos. Creidhe tornou-se irrequieta. Em casa, os seus dias eram preenchidos; estava sempre ocupada. A ociosidade fazia com que se sentisse pouco à vontade e passou a percorrer a secção de carreiro permitida quatro vezes cada manhã enquanto pensava miseravelmente nas viagens diárias a casa da tia Margaret e como tinha saudades delas. Pobre tia Margaret; devia estar tão preocupada por causa de Thorvald. Quanto à família de Creidhe, tremia só de pensar na sua inquietação e de como essa inquietação devia aumentar a cada dia que passava sobre a sua ausência. Porque o tempo enlouquecera com cortinas de chuva e uma bruma densa e baixa e ninguém parecia esperar o regresso dos homens. Por vezes, as mulheres falavam daquilo em voz baixa, nervosamente. Creidhe interrogou-as, mas as suas respostas não lhe diziam nada. Ela continuou a fiar, a coser e esperou.

Não havia muitas crianças na aldeia. Um par de rapazes parecia ir e vir com peixe e ovos e havia um miúdo de uns doze anos com um estrabismo terrível e umas maneiras furtivas e tímidas, mas não um bebê, ou uma criança. Creidhe sentia saudades da sua irmã Ingigerd e de Brona com a sua perspicácia e sorriso pronto. Imaginava como ela se devia sentir, sabendo que Sam fora na expedição com Creidhe e esperando dias a fio sem qualquer notícia.

Uma das mulheres estava à espera de bebê; quando chegasse a hora, coisa que deveria ser dentro de uma ou duas luas, equilibraria um pouco as coisas. Creidhe falou no assunto a Gudrun e, como de costume, recebeu uma resposta que não lhe disse nada. A jovem voltou a comentá-lo às outras e recebeu olhares vazios. Era um desafio encetar uma conversação acerca do tempo, quanto mais tópicos mais sérios. Creidhe falou à mulher grávida, Jofrid, da sua experiência como parteira e ofereceu os seus serviços em caso de necessidade. Para dizer a verdade, ela esperava fervorosamente já estar a caminho de casa quando o bebê estivesse para nascer; quem imaginaria que uma outra viagem no Sea Dove seria tão atrativa? Jofrid acenou com a cabeça nervosamente quando Creidhe lhe falou nos gêmeos que ajudara a nascer em Hrossey, dos rapazes que ajudar a vir ao mundo com sucesso, dos muitos casos fáceis, como parecia ser o caso de Jofrid, porque ela parecia jovem e forte, se bem que desproporcionalmente receosa.

— É o teu primeiro filho? — perguntou-lhe Creidhe, certa de que a resposta seria sim; por vezes acontecia aquilo, sobretudo quando as mães não estavam por perto para as tranqüilizar. Jofrid abanou a cabeça com os olhos no chão. Creidhe olhou para Gudrun; não havia crianças de roda das saias de Jofrid quando se sentaram para fiar, nenhum bebê às suas costas quando saíra da cabana.

— É o terceiro. — Gudrun disse aquilo com um grande à vontade enquanto dobava a lã, transformando-a numa bola. — Perdeu dois. Se se aguentar até ao Verão, pode ser que consiga ficar com esse.

— Oh — disse Creidhe. — Oh, lamento. Mas, como já disse, ajudei a nascer muitos bebês; posso ajudar...

— A ajuda é sempre bem-vinda, se for o caso — disse Gudrun, que era uma daquelas mulheres cuja idade parece indeterminável; as feições muito marcadas, franzina, cabelos apanhados na nuca e olhos argutos condiziam com uma certa sobriedade de maneiras. — É claro que, por essa altura, provavelmente já te terás ido embora. Talvez não haja caçada esta estação. Rezemos para que Jofrid não se adiante.

Talvez não estivesse a entender qualquer coisa, pensou Creidhe. A jovem mediu cuidadosamente as palavras:

— Fala-me dessa caçada. Os homens também falaram dela. De que vão eles à caça? Há veados ou raposas por aqui? Lobos? — A jovem nunca vira nenhum daqueles animais, mas conhecia-os pelas histórias do seu pai. Há muitos anos, na Noruega, Eyvind fora considerado um caçador inigualável. — Ou estavas a falar da caça à baleia? Ouvi dizer que era uma coisa comum, aqui, antes da guerra.

— Descobrirás se ficares aqui tempo suficiente — disse Gudrun. — Já perdemos maridos e irmãos, filhos e pais por causa dela ao longo dos anos. É claro que, este ano, pode ser diferente.

— Porquê, diferente? — Um súbito pressentimento atingiu Creidhe quanto à natureza do trabalho de Thorvald e de Sam.

— Deixa-me entrançar-te o cabelo, Creidhe. — Uma mulher chamada Helga, uma das mais amigáveis daquele grupo severo, avançou com um pente numa mão e um pedaço de fio na outra. — Vira-te para mim... isso.

Com aquilo, as respostas esvaíram-se. Ninguém falaria mais da caçada ou da falta de crianças e Creidhe sentou-se muito pensativa enquanto Helga lhe penteava e entrançava os cabelos. As longas madeixas louras de Creidhe eram objeto de muita admiração entre as mulheres; nenhuma delas tinha os cabelos daquela cor, ou daquele brilho, espessura e abundância. Sombrias e silenciosas como eram a maior parte do tempo, deliciavam-se, por isso mesmo, a pentearem-se e a vestirem-se, quase como se aquilo fosse uma espécie de brinquedo que lhes tivesse sido previamente proibido. A jovem reparou que também lhe queriam emprestar um xale favorito, ou a melhor saia, juntamente com o que passava por ser uma delicadeza: carne fresca de enguia e carneiro seco ao vento. Era como se estivesse a ser engordada para o mercado; não era um sentimento confortável. Teria trocado todas aquelas coisas por uma conversa honesta. Tinha tantas saudades de Thorvald e de Sam. Por vezes, os rapazes podiam ser cegos e falhos de subtileza, mas, pelo menos, podia conseguir deles respostas diretas. Com alguma sorte, estariam de regresso dentro de pouco tempo, porque a Lua crescera e diminuíra desde que eles tinham partido e certamente que àquela hora já deviam ter pago o preço das poucas pranchas de madeira de que precisavam.

 

Os dias passaram. Estabelecera-se uma rotina; Creidhe levantava-se de madrugada para percorrer o carreiro através da aldeia com uma pausa no ponto mais ocidental para perscrutar a íngreme encosta no caso de avistar Thorvald e Sam de regresso. Depois do passeio, regressava para junto de Gudrun para tomar o pequeno-almoço, juntando-se, depois, às outras para fiar. Todas elas passavam as manhãs a fazer aquela tarefa, salvo as poucas que levavam todos os dias uns pequenos barcos para o lago para pescar; era estranho, mas com todos os homens ausentes, ou de guarda, era essencial. Creidhe não era convidada para essas expedições. Mais tarde, quando as mulheres regressavam às suas cabanas para preparar a comida ou tratar dos animais, Creidhe tirava a Jornada do saco e deixava a sua mente flutuar livremente enquanto os seus dedos retomavam a complexa história, o quebra-cabeças intricado de imagens. Ao crepúsculo, Gudrun preparava outra refeição, olhando para a sua hóspede quando esta levava a comida à boca, quase como se Creidhe fosse uma criança doente que temesse perder. Era difícil fingir que gostava da comida; o queijo da ilha era de fraca qualidade, tinha pouco sabor e tinha uma textura duvidosa e, por vezes, Creidhe pensava que seria capaz de matar por um pedaço de pão fresco. O grão era escasso, um luxo num dia de festa. Depois do jantar não havia outra coisa a fazer senão ir dormir. Não lhe permitiam que alimentasse o gado ou tratasse da horta desgarrada e desalinhada. Impediam-na de limpar peixe e de lavar pratos, não fosse estragar as mãos.

Com tão pouco que fazer, Creidhe resolveu executar, pelo menos, uma tarefa: supervisionar os últimos tempos da gravidez de Jofrid, certificando-se de que aquele bebê chegaria ao mundo são e salvo. A jovem ensaiou mentalmente as possíveis complicações. Uma apresentação de costas: difícil mas possível, procuraria os sinais e viraria o bebê no útero antes de ele estar pronto. Gêmeos: não lhe parecia que Jofrid tivesse mais do que um bebê, mas, em todo o caso, tinha de ter a certeza de que as outras mulheres sabiam como ajudar. Outras complicações que poderiam ocorrer: ensaiou-as todas mentalmente. Seria capaz. Entretanto, obrigou Jofrid a beber leite, a comer peixe e a descansar à tarde com os pés elevados apesar dos protestos das outras mulheres, que diziam que ela tinha animais para tratar. As outras que fizessem esse trabalho, disse Creidhe a Jofrid com firmeza, pelo menos a partir dali até que o bebê nascesse e estivesse a ser amamentado. Jofrid ficou a olhar para ela de boca aberta, sem cor e sem dizer nada; por vezes, Creidhe pensava se ela não seria simples demais.

Gudrun, como mulher mais velha da aldeia, organizou as outras no sentido de tratarem da vaca e das crias de Jofrid e de lhe manterem a cabana asseada. Mesmo assim, Creidhe sentiu o peso dos seus olhares, como se os seus esforços para ajudar fossem de algum modo bizarros, inapropriados e condenados ao insucesso. A jovem endireitou os ombros e continuou. Alguém tinha de fazer alguma coisa.

 

O Verão estava a chegar. Em casa, os carneiros já deviam ter nascido e os dias eram mais longos e mais claros. Ali bem podia ser ainda Inverno, porque nunca se sabia o que a manhã traria: chuva, granizo, tempestades, nuvens baixas e brumas terríveis eram fenômenos comuns, se bem que de vez em quando o Sol mostrasse o seu rosto como que para lhes recordar a estação e nas vertentes íngremes por cima de Água Brilhante as ovelhas chamavam as suas crias desobedientes. Se havia lobos ou outros animais selvagens para caçar, parecia que não freqüentavam aqueles lados, porque as ovelhas andavam à vontade durante o dia, livres de pastores ou cães. A rapariga estrábica tinha gansos e galinhas para guardar; os dois rapazes desapareciam todas as manhãs, regressando antes do anoitecer com uma rede de marisco, ou enguias, ou ovos de diferentes tamanhos e feitios. Pelos vistos, eles podiam ir onde Creidhe não podia. As regras eram difíceis de compreender. Continuava a ser suposto a jovem usar o lenço quando saía à rua, cobrindo totalmente os cabelos louros, se bem que as outras mulheres não estivessem sujeitas a esse édito. Ela perguntou e não obteve resposta, exceto que era uma regra e que tinha de ser obedecida. De fato, o lenço era útil. Naquele lugar, nunca se sabia quando os céus se abriam, despejando água a rodos.

Numa manhã assim, depois de uma tempestade de Primavera, começaram as dores de Jofrid. Ainda era cedo, perigosamente cedo. As mulheres chamaram Creidhe, não por confiança nas suas capacidades como parteira, mas porque Jofrid pedira a sua presença. A grávida estava estendida numa enxerga na cabana de Gudrun, os olhos esbugalhados de medo, a fronte pálida e cheia de suor. Creidhe examinou-a, ao mesmo tempo que murmurava palavras de conforto. O nascimento não seria para já; certamente que as dores não eram grandes? Vivamente, Creidhe pediu-lhe que se levantasse e que caminhasse no intervalo das dores; não só apressaria o processo, como lhe tiraria, por momentos, a mente da barriga. Gudrun, mais séria do que o costume, se isso era possível, pôs uma chaleira ao lume e vasculhou numa arca em busca de roupas. Helga entrou transportando um jarro de leite e um pedaço de pão para ser partilhado depois do trabalho árduo que tinham pela frente. O rosto de Helga estava quase tão ansioso como o de Jofrid. Enquanto ajudava a mãe expectante a caminhar de um lado para o outro do quarto, Creidhe olhou para o exterior e viu homens na soleira vestidos com roupa de viagem e, por trás deles, a chuva a cair.

Gudrun foi ter com eles e teve lugar uma conversa insistente em voz baixa.

A determinada altura, Gudrun olhou para Creidhe e perguntou:

— Quanto tempo?

— Ela ainda agora começou. A criança não nasce antes do anoitecer. — Evidentemente, um bebê podia sempre surpreender, mas as dores de Jofrid não pareciam muito fortes. Era mais preocupante o fato de a criança querer nascer já, pelo menos um ciclo lunar antes do tempo. Seria, certamente, pequeno e fraco. Creidhe esperava que Jofrid pudesse pôr de lado o seu pânico irracional de modo a dar à luz em segurança e que o seu leite fosse copioso. Aquela criança tinha de sobreviver; Creidhe prometera a si própria que Jofrid não perderia outro filho enquanto ela tivesse o poder de fazer qualquer coisa acerca disso.

— Continua a andar — insistiu ela quando Jofrid fez uma pausa, ofegante, depois do mais normal dos espasmos. — Será mais fácil se te mexeres agora, prometo-te...

À entrada, Gudrun continuava a falar com os homens e a jovem ouviu as suas vozes subirem ligeiramente de tom. Tens de ir buscá-lo... carreiro... não se pode passar... pelo menos até amanhã... e ela?

Então, Gudrun disse:

— Sem Asgrim aqui, esta criança está condenada.

Não fazia sentido. Os homens saíram e a porta foi fechada por causa da chuva. As duas mulheres continuaram a andar para baixo e para cima, para baixo e para cima.

— Por que é que mandaste chamar Asgrim? — arriscou Creidhe. — Ele é o pai do bebê?

Aquelas mulheres falavam pouco sobre assuntos pessoais; eram tão fechadas como lapas. Creidhe ouvira dizer que o homem de Helga se chamava Skolli, e que era ferreiro. Também descobrira que Gudrun era viúva e que tinha filhos crescidos. Mas Jofrid nunca mencionara um marido; se tinha um, não era, certamente, em Água Brilhante. Se, na verdade, o governador era o marido daquela jovem assustada e o pai dos seus bebês perdidos, as probabilidades de ele ser Somerled eram menores. Asgrim parecera-lhe muito social para ser um assassino. Uma mulher e um filho torná-lo-iam um homem comum.

— O bebê não é dele — disse Gudrun, pondo um fim abrupto às especulações de Creidhe. — E não pode estar aqui a horas. A criança só devia nascer no Verão. Então, ele já estaria de regresso; já teria feito o que foi fazer. Eles vão, mas não podem estar de regresso senão amanhã de manhã. O bebê está condenado. Não pode sobreviver.

Creidhe sentiu uma fúria súbita.

— Não digas isso! — disse ela asperamente. — Como podes dizer esse disparate? Já te disse, eu ajudei a nascer muitos bebês e não vejo razão para este não nascer bem, apesar de ainda não ter chegado a hora. Temos de ajudar Jofrid, não preocupá-la. Um homem não faz a diferença, certamente.

— A criança foi amaldiçoada. — Helga disse aquilo do lugar onde estava, junto da mesa, onde estava a dobrar roupa. O seu tom era de resignação.

— Como amaldiçoada? Vocês não têm aqui sacerdotes ou mulheres sábias que saibam fazer um círculo e dizer palavras de proteção? — Creidhe não vira nada do gênero durante a sua estadia em Água Brilhante. Ficara surpreendida, mas era uma das coisas acerca das quais decidira não fazer perguntas, visto que aquela gente nunca lhe respondia a nada.

— Isto está para além do poder de qualquer sacerdote — resmungou Gudrun, mas havia uma nota de incerteza na sua voz.

— A minha mãe é uma mulher sábia, assim como a minha irmã. O mais simples dos rituais ajuda nestas ocasiões — disse Creidhe. — Eu não tenho poderes para chamar os espíritos, mas deve haver aqui alguém que...?

— Na aldeia, não — disse Helga, olhando de soslaio à direita e à esquerda como se as paredes tivessem ouvidos. — Além disso, Asgrim não gosta que eles venham aqui. Não confia neles.

Não confia em quem? As complicações nunca mais acabariam? Por que não seriam capazes de ver que aquilo não ajudava Jofrid em nada? A jovem mãe gemia, o rosto branco como o leite e Creidhe viu-se forçada a deixá-la deitar-se uma vez mais, uma figura sem energia, patética, na enxerga, a barriga inchada e tensa como um fruto maduro.

— Eremitas, cristãos. Eles são capazes de vir, se os mandarmos buscar. Os rios vão cheios; não é um passeio fácil. Os rapazes podiam lá ir. Mas o governador ficaria furioso. Ele diz que eles fazem mais mal do que bem. Intrometidos.

— O governador não está aqui — disse Creidhe firmemente. — Se os pregadores cristãos puderem ajudar, chamemo-los. Vivem muito longe, esses eremitas?

Gudrun fixou-a por momentos, perplexa, e depois abriu a porta com dificuldade por causa do vento e assobiou estridentemente com os dedos na boca. Pouco depois apareceram os dois rapazes. Deram-lhes instruções e um saco a cada um para se defenderem da chuva. Esta caía com tanta força que o dia parecia que estava a acabar e o carreiro no exterior da cabana de Gudrun era uma torrente lamacenta e gorgolejante. A porta foi novamente fechada. As mulheres esperaram.

Depois de uma manhã de trabalho árduo e poucos progressos, Jofrid adormeceu. Passou-se muito tempo depois de os rapazes terem partido no meio da tempestade. As mulheres comeram algum pão, duro e bolorento, mas bem-vindo, mesmo assim e uma sopa aguada de peixe que Helga preparara. Até Gudrun, cujas feições duras nunca mostravam qualquer emoção, parecia esgotada; a mulher sentou-se com a sua tigela de sopa nas mãos, olhando para a lareira onde algum esterco de vaca seco, fazendo faíscas, ardia sem providenciar um grande calor. Umas lâmpadas de óleo de foca, em cima de umas prateleiras de pedra, espalhavam uma luz suave sobre a silhueta de Jofrid, agora misericordiosamente tranqüila no seu sono. Creidhe esperava que ela não acordasse já; apesar dos encorajamentos da jovem, Jofrid passara a manhã num estado de intenso terror.

As mulheres tinham dito a Creidhe que estava a chegar uma parteira chamada Frida, mas a sua chegada não trouxe confiança. Na verdade, produziu-se até o contrário, porque a anciã, que chegou a meio da manhã embrulhada em xales, não era outra senão a velha que montara guarda a Creidhe na primeira noite na enseada com o nome desagradável de Baía Sangrenta. A mulher ergueu as sobrancelhas com aparente desdém perante os preparativos de Creidhe e teria assumido total controle imediatamente se Jofrid não se tivesse agarrado à mão de Creidhe com os olhos esbugalhados de terror.

Agora, Jofrid dormia e Frida descontraíra-se um pouco. A velha sentou-se à mesa, deitando pedaços de pão na sopa e chupando-os através dos poucos dentes negros. As suas mãos estavam imundas, as unhas cheias de fuligem. Creidhe bebeu a sua sopa, escutou os estalidos do fogo e a chuva a bater sem descanso no exterior. Ao cabo de algum tempo, pareceu-lhe distinguir outro som, um chamamento distante, como se alguém estivesse preso num lugar profundo sem poder fugir. Sentiu um frio gelado no coração; pensou, instantaneamente, em Thorvald. Fez um esforço para normalizar a respiração. Devia ser o vento. Que mais havia de ser? Aquele era um dia de Inverno na Primavera e, com alguma sorte, Thorvald e Sam estariam protegidos e seguros algures dentro de uma casa qualquer, num canto qualquer daquela ilha. Fora Asgrim que os levara. Talvez os eremitas não viessem, no fim de contas. A ventania fustigava a cabana, fazendo matraquear as portadas. Só um louco andaria na rua num dia daqueles; seria atirado da falésia como uma folha por uma brisa de Outono.

— Só um louco, ou um cristão, seria capaz de sair à rua com uma tempestade destas — observou secamente Gudrun, pondo-se de pé com alguma relutância.

— Ou um deles — acrescentou Helga num sussurro.

— Shhh! — disse Frida. — Não digas isso; não tentes o destino.

— Ela está acordada. — Creidhe estivera a olhar para a enxerga; a jovem viu os olhos de Jofrid abertos, a princípio tranqüilos recordando um sonho bom e depois alerta, o rosto cada vez mais branco de terror. Jofrid abriu a boca e gemeu com um som pesado e áspero vindo das profundezas da barriga, um som de desespero que gelou o sangue de toda a gente. Enquanto agarrava de novo na mão de Jofrid e lhe aconchegava a almofada, ocorreu subitamente a Creidhe que, apesar de ter perdido antes dois bebês, aquela mulher daria tudo para não ter aquele; que era a perspectiva do nascimento em si que a aterrorizava. Creidhe afastou rapidamente o pensamento; certamente que não era verdade. As mulheres não gostavam todas de crianças? Sempre imaginara que seria assim quando desse um filho a Thorvald, um bebê de cabelos ruivos como o pai, como duas ervilhas da mesma vagem. A jovem sabia que não tremeria nem choramingaria como Jofrid, antes levaria até ao fim o processo com a mesma eficiência que fazia tudo, com o mínimo incômodo para toda a gente, se bem que fosse bom ter Nessa junto de si; uma rapariga precisava da mãe em ocasiões daquelas. Creidhe imaginara Thorvald com o bebê nos braços, um sorriso de orgulho substituindo o olhar sombrio e furioso que tantas vezes lhe ensombrava as feições. Creidhe franziu o sobrolho. Era cada vez mais difícil reter aquelas imagens na memória. Se Thorvald não casasse com ela quando regressassem a casa, casaria algum dia?

 

Ao fim da tarde, a tempestade escurecera o céu de um modo tão pesado que o pôr do Sol por trás das nuvens fez pouca diferença, limitando-se a aumentar a escuridão. Creidhe ouvira de novo, ao longo da tarde, aquele grito distante que lhe provocava arrepios e soube que as mulheres também o tinham ouvido, se bem que não falassem nisso. A jovem reparou no que elas faziam; da primeira vez, Helga mexeu no fogo e verificou as lâmpadas todas, enquanto Gudrun tratava de Jofrid, falando em voz alta e constantemente até o grito cessar. Depois, Gudrun abriu a porta, chamou e os homens que guardavam a aldeia aproximaram-se. Creidhe ouviu as ordens de Gudrun com consternação: vigiar em redor da casa com ou sem tempestade até aquilo acabar. Não poderiam abandonar os seus postos fosse sob que pretexto fosse, ouvissem o que ouvissem, vissem o que vissem.

Da segunda vez, Gudrun foi até às janelas e colocou umas barras de ferro no lado de dentro das portadas, onde havia umas concavidades para as colocar. Frida sentou-se à lareira a olhar, em silêncio. Na verdade, a anciã mal saíra dali; Creidhe suspeitou que a parteira deixaria todo o trabalho para ela, assumindo, depois do nascimento em boas condições, o êxito. Não tinha importância. A criança tinha de viver, assim como Jofrid; nada mais tinha importância. Da terceira vez, o som foi mais alto, mais perto.

— O que é isto? — O coração de Creidhe batia com toda a força; o vento não soava assim, como se estivesse zangado. — Que gritaria é esta?

Mas elas não lhe responderam. Gudrun olhou para Helga, ambas olharam para Frida e as três fizeram o mesmo sinal ao mesmo tempo: as duas mãos na testa, com a ponta dos dedos, e depois cruzadas no peito, um feitiço de proteção, pensou Creidhe, se bem que não lhe fosse familiar.

— Eles estão a chegar — disse Gudrun.

Um momento mais tarde ouviram-se umas pancadas na porta. Jofrid lançou um grito estrangulado, ao mesmo tempo que Creidhe não conseguiu reter uma exclamação de susto. As mulheres ficaram geladas. As pancadas repetiram-se.

— Vimos em nome de Deus! — disse uma voz de homem por cima da tempestade. — Deixai-nos entrar, por favor!

Gudrun foi abrir a porta, enquanto Helga, com uma cortina, escondia a enxerga de Jofrid. Creidhe pôs-se de pé quando os três homens entraram. Um era muito jovem, pouco mais do que um rapaz, com os cabelos ainda por rapar. O segundo usava a tonsura que Creidhe vira no irmão Tadhg e nos seus companheiros, em Hrossey; a fonte lisa como a de um bebê e, na nuca, o cabelo curto e bem cortado. Esse tinha feições feias mas agradáveis e uma voz suave com um sotaque gutural; tinha, supôs Creidhe, as mesmas origens do próprio Tadhg e fizera, certamente, a mesma viagem perigosa desde o Ulster. O terceiro homem ficou à porta com um capuz a cobrir-lhe a cabeça. A sua capa pingava.

— Não esperava ser chamado — disse o segundo homem desatando a capa e passando-a para as mãos estendidas de Helga. — Pelo menos num dia como este. Deus castiga-nos em dias como este; recorda-nos as nossas fraquezas, recorda-nos que somos pequenos perante as forças da Sua criação. Disseram-me que está uma criança para nascer.

Helga pedira, também, a capa ao mais novo e estava a pendurá-la perto da lareira; um autêntico ribeiro escorria do pesado tecido de lã. As capas estavam remendadas; acontecia o mesmo com Tadhg e com os seus companheiros, que viviam na maior das austeridades. Creidhe sentiu o mal-estar esvair-se; talvez, finalmente, tivesse encontrado alguém em quem podia confiar. Em Hrossey, os homens não podiam estar à cabeceira de uma parturiente, mas a jovem aprendia, a cada dia que passava, que aquela ilha tinha as suas próprias regras.

— O bebê de Jofrid vai nascer antes de tempo — disse Gudrun secamente. — Ouvistes o vento e nós sentimo-nos atormentadas. Pensamos que uma oração ou duas... — O seu tom era hesitante. — Mal não faz.

— Isso quer dizer que Asgrim regressou ao acampamento. — A voz do eremita era calma; não parecia sentir-se ofendido perante os modos bruscos de Gudrun. — Não creio que tivésseis pedido a nossa ajuda se ele estivesse aqui.

— Asgrim anda muito ocupado com os seus assuntos — disse Gudrun, colocando a chaleira ao lume. — Está demasiado longe para vir com este tempo. A rapariga pediu que vos chamássemos. Não vejo nenhum mal nisso.

— Mas também não vês nenhum bem, pois não? — O eremita avançara, mas ficara a alguma distância da enxerga; a pequena cortina escondia apenas parcialmente Jofrid. — A oração tem um grande poder, Gudrun. Nosso Senhor vela por todas as Suas criaturas; só precisamos de nos virar para Ele. Uma coisa que caiu em ouvidos moucos no caso de Asgrim, infelizmente. Ainda bem que nos mandaste chamar. — O monge virou-se para Creidhe, que estava junto da cortina. — Eu sou o irmão Breccan — disse ele. — Trouxe comigo o irmão Colm — disse ele indicando o jovem com o queixo — e o irmão Niall. Não sei o teu nome, se bem que tenhamos ouvido falar da tua chegada e dos teus companheiros. Uma longa viagem.

— O meu nome é Creidhe, filha de Nessa. — A jovem respondeu-lhe quase sem pensar, porque se sentia cada vez mais consciente do escrutínio silencioso da figura encapuzada que se mantinha na soleira da porta. Não lhe via o rosto, mas sabia que toda a sua atenção estava fixada nela e só nela. Era uma sensação desconfortável. — Ainda bem que vieram — conseguiu ela dizer. — Na minha ilha existe uma comunidade como a vossa. O nosso povo tem muito respeito por eles. Espero que possam ajudar. — Creidhe gostaria de poder dizer: Jofrid está aterrorizada, elas estão sempre a falar de pragas e maldições e eu acho que devíamos andar para a frente com isto, mas não podia dizer aquilo diante de Gudrun e das outras. O irmão Breccan tinha um rosto honesto; o seu nariz bulboso e retorcido e as suas feições avermelhadas não conseguiam esconder a boa vontade dos seus olhos.

— Também eu — disse ele concisamente.

— A rapariga diz que é parteira. — O tom de Frida sugeria uma profunda desconfiança.

— Eu posso ajudá-la a dar à luz como deve ser — disse Creidhe calmamente. Por todos os antepassados, por que razão não entrava aquele tipo de uma vez por todas e não deixava de a fixar? Aquelas ilhas pareciam cada vez mais estranhas. — Pensamos que pudesses fazer uma prece ou duas para afastar o medo que todas elas receiam. Eu não sei o que é, mas Jofrid precisa de se concentrar no que está a fazer e tu podias...

O irmão Breccan sorriu de novo.

— Tu pertences à nossa fé? — perguntou-lhe ele. O jovem, o irmão Colm, sentara-se à mesa com os olhos cuidadosamente afastados da cortina e da enxerga, envolvendo a malga de sopa de peixe que Helga lhe dera com as mãos, para as aquecer. O outro continuava imóvel.

Creidhe abanou a cabeça.

— A minha mãe é... sacerdotisa dos Folk e a minha irmã também — disse ela. — Somos da velha fé. Mas respeitamos a tua. Os irmãos só têm praticado o bem nas Ilhas Brilhantes. Por favor, ajuda-nos.

— Tudo o que acontece é da vontade de Deus; vamos pedir a Sua misericórdia. — Era imaginação sua ou o tom daquele monge sorridente tinha a mesma lugubridade das palavras de Gudrun, de Helga e de Frida? Creidhe estremeceu e nesse momento o homem que se mantinha na soleira afastou o capuz da cabeça e deu um passo em frente.

— Bem, bem, Gudrun — observou ele suavemente — aparece-te cada um à porta. Nunca ouvi dizer que as mulheres dos Folk fossem louras; não é suposto serem pequenas e de cabelos escuros? — O monge tirou a capa num movimento fluido e deixou-a cair em cima de um banco sem se preocupar com o movimento precipitado de Helga para o fazer por ele.

Creidhe fixou-o. Os modos daquele homem não podiam ser mais diferentes dos de Breccan; as suas palavras pareciam uma espécie de desafio. A jovem esquecera-se de Somerled. Mas agora, ao olhar para aquele par de olhos escuros de uma intensidade penetrante, a demanda de Thorvald regressou-lhe à mente e teve um pressentimento angustiante. Teria dito o que não devia? Mas não. Ficou descansada. O homem que se aproximou da luz da lâmpada para se sentar ao lado de Colm era demasiado velho. Na parte de trás da sua cabeça tonsurada, os cabelos do irmão Niall eram totalmente brancos. As sobrancelhas eram da mesma cor alva, incongruentes sobre uns olhos negros, penetrantes. O rosto era suave, esbelto e tinha poucas rugas. A jovem reparara no mesmo fenômeno em Hrossey; se era devido à vida simples que levavam, labutando nos campos e subsistindo de um peixe ou dois, uma côdea de pão duro, dormindo em cima de pedras e pedindo alegremente ao seu deus uma bênção, ou se era, simplesmente, dos seus corações e mentes abertas, todos os irmãos da Ilha Sagrada possuíam umas feições serenas, despreocupadas e jovens, como se os anos passassem por eles mais levemente devido à sua bondade. Aqueles três tinham o mesmo aspecto; a Creidhe, pareceu-lhe que eles traziam a luz que faltava àquele lugar.

— O meu pai veio das terras nevadas — disse ela, já que parecia necessária uma resposta. — Um guerreiro de fama considerável. Penso que seria melhor continuarmos.

Porque Jofrid lhe agarrara subitamente na mão com dedos frios e duros como o ferro, lançando um longo gemido, um som parecido com um grunhido, que Creidhe reconheceu imediatamente. Em breve, a parturiente teria de começar a fazer força. Não faltava muito.

Talvez aquela cabana fosse a maior da aldeia, mas permitia pouca privacidade, com ou sem cortina. A jovem podia ver como Colm estava pálido, como se preferisse estar noutro lugar qualquer.

— Despachem-se — disse ela aos homens enquanto Jofrid gritava de dor, apertando-lhe a mão com uma força incrível. Em seguida, Creidhe ficou de tal modo ocupada que registrou apenas vagamente que o irmão Breccan andava pelos cantos da sala rezando numa língua que ela reconheceu como sendo Latim, mas da qual não compreendeu nada. Colm, com os olhos fixos no chão, seguia atrás do monge do Ulster com um pequeno frasco de água na mão, com a qual borrifava de vez em quando o chão, a pedra da lareira, a mesa e a porta que estremecia sob a ventania, como se fosse saltar dos gonzos e estatelar-se no solo a qualquer momento. A voz de Breccan era firme, clara, infinitamente tranqüilizadora. O terceiro homem, o irmão Niall, permanecia na sombra, junto da parede. Olhando para ele de soslaio, Creidhe apanhou um brilho de metal no seu flanco, nas pregas do seu hábito castanho gasto: uma faca? Desde quando andavam os eremitas cristãos armados? Como se se tivesse apercebido do seu exame, o homem de cabelos brancos virou ligeiramente a cabeça; olhou para ela e um pequeno sorriso, divertido, curvou-lhe os lábios. O brilho prateado desapareceu, o monge cruzou tranquilamente as mãos. No entanto, Creidhe não crescera em vão na casa de um Pele-de-Lobo. A jovem reconheceu o seu porte, aparentemente tranqüilo, mas com todos os músculos do corpo atentos. Pronto para se movimentar a qualquer momento: pronto para qualquer sarilho. O irmão Niall, pressentiu ela, nem sempre fora um homem de Deus.

Ao mesmo tempo que o lamento do vento e os grunhidos de sofrimento de Jofrid, o fluxo de orações continuou. O rosto duro de Gudrun parecia cansado, esgotado e as feições mais suaves de Helga coradas e ansiosas. Frida estava sentada como uma estátua antiga e desaprovadora e aquele homem, Niall, mantinha uma presença silenciosa e vigilante na sombra. Jofrid estava exausta, os seus olhos muito abertos fixando o vazio e parecia inútil insistir com ela, mas Creidhe continuou. A criança tinha de nascer, ou morreriam as duas. Continua a tentar... força... continua a puxar... Era imaginação de Creidhe ou os esforços da parturiente eram cada vez mais fracos? Creidhe rezou para que não fosse assim; Jofrid tinha de manter o vigor suficiente para expelir o bebê. A jovem ouvira falar de casos em que a mãe perdia a vontade e a criança tinha de ser retirada do seu corpo à força; Creidhe sabia que não conseguiria fazer isso. Mesmo com o mais competente dos cirurgiões, não conhecia nenhum caso em que a mulher tivesse sobrevivido. Por vezes, a criança sobrevivia. Geralmente, morriam as duas num lago de sangue.

— Jofrid, — disse Creidhe — na próxima vez, não pares de fazer força. Creio que vi a cabeça dele há um momento. — Senta-a — ordenou ela a Gudrun. — E tu acrescentou ela, acenando com a cabeça na direção do rosto sombrio de Frida — ampara-lhe as costas. Helga, arranja um pano limpo; segura no bebê quando ele sair e verifica se respira. E agora...

Então, Jofrid gritou, fez força, todas trabalharam em conjunto e a minúscula cabeça do bebê apareceu cheia de cabelos escuros e pegajosos, seguida pelo rosto branco-azulado. Creidhe teve um sobressalto.

— Pára de fazer força!

— Tem o cordão à volta do pescoço — observou Frida secamente, ao mesmo tempo que espreitava mais de perto, levando um dedo sujo às feições pequenas e fechadas. — Está morto.

Mais atrás, o fluxo de orações continuava. Um pedido de misericórdia, um lamento de morte? Quem poderia dizer?

— Não digas isso! Não lhe toques! — Creidhe sentiu o seu rosto corar, as lágrimas caírem-lhe pelas faces e sentiu uma raiva imensa. — Helga, vê se ela não faz força, é vital. Jofrid, isto vai doer um pouco. Não te mexas. Tens sido muito corajosa; aguenta-te um pouco mais.

Tinha de ser rápida, antes que o espasmo seguinte tomasse conta da barriga de Jofrid e lançasse o bebê para o exterior, estrangulando-o devido ao cordão em redor do pescoço, roubando-lhe a vida no momento do nascimento. Maldita Frida. A criança não estava morta; Creidhe não permitiria que isso acontecesse.

A jovem enviou uma prece aos espíritos que, eventualmente, a quisessem ajudar. Firmemente, colocou uma mão por baixo do minúsculo crânio para o amparar, sentindo a fragilidade da tênue vida e inseriu a outra no interior de Jofrid em busca do cordão. Jofrid gritou, um som animalesco de dor e de medo.

— Não faças força — disse Helga com a voz a tremer. — Respira devagarinho, Jofrid. Não faças força.

Depressa, um dedo, dois entre o cordão e o pequeno pescoço, segurando-o firmemente por causa da camada de muco e de sangue, ah, conseguira; e enquanto Jofrid arquejava e Helga a acalmava com voz trêmula, Creidhe passou o cordão por cima da cabeça do bebê e libertou-o.

— Aaaah! — Jofrid expeliu todo o ar que tinha nos pulmões e, com um último grito, a criança nasceu. Ficou imóvel e azul nos braços de Creidhe.

— Eu disse-te — disse Frida.

— Chega! — Espantosamente, fora Gudrun a falar. — Cala essa boca!

Ficaram por um longo momento a olhar para o recém-nascido: um rapaz, pequeno, perfeito, mas muito quieto.

— Onde? — sussurrou Jofrid. — Dá...?

As faces de Creidhe estavam cheias de suor. A jovem não conseguia falar. Aquilo ainda não tinha terminado.

— Dá-mo — disse Helga. A mulher pegou no bebê, que ficou nos seus braços imóvel e sem responder, como um peixe em cima de um cepo. Helga abriu-lhe a boca e inseriu nela um dedo para lhe limpar as vias respiratórias.

— Não vale a pena — resmungou Frida, mas ninguém a estava a ouvir: todos os olhos estavam fixos na criança. Até o vento acalmara no exterior das paredes da cabana.

Helga segurou o bebê pelos tornozelos e pô-lo de cabeça para baixo. O jovem, Colm, prendeu a respiração. Aquela prática era comum, desimpedindo os pulmões para permitir que o bebê respirasse; mas, como qualquer rapaz de dezesseis anos, nunca testemunhara um parto. Helga deu-lhe uma palmada nas costas e depois outra; não houve sinal de vida.

— Maldito — resmungou Frida e nesse preciso momento a pequena boca abriu-se para revelar um muco que deixava de ter a cor azulada da morte para se tornar violáceo e depois cor-de-rosa e ouviu-se um vagido no compartimento iluminado pela lâmpada, um arquejo, uma proclamação soluçante de presença. Jofrid irrompeu em lágrimas.

— Muito bem — disse Creidhe, fungando. — Embrulha-o, ele é muito pequeno. Portaram-se todas muito bem.

Durante alguns momentos, o mais puro alívio substituiu tudo o mais. A jovem supervisionou o que faltava fazer; a lavagem e a mudança de roupa. Creidhe manteve os olhos na criança, agora nos braços da mãe e tentando atabalhoadamente agarrar num mamilo; com o tempo, alimentar-se-ia bem, era um lutador. A jovem obrigou Jofrid a beber um pouco de leite quente. Creidhe tentou perceber, envolta na bruma do cansaço, por que razão Jofrid não parara de gritar; por que razão Gudrun não conseguia, senão, um ligeiro sorriso; por que razão Helga, ocupada a cortar pão e queijo e a servir uma cerveja aguada, continuava a olhar nervosamente para a porta e para as janelas sempre que o vento as abanava. O vento soprava de novo. Mas agora já não tinha importância. Fosse pelas orações de Breccan, pela habilidade de Creidhe, ou pelo fato de, ao fim todas se terem portado bem, a criança estava viva e isso é que interessava.

A jovem apercebeu-se de que estava demasiado cansada para continuar e como tudo se passara de acordo com os seus desejos, sentou-se à mesa com a comida e a bebida na sua frente. As outras ficaram de pé ou sentaram-se em volta do compartimento. Por que estavam tão caladas? Na enxerga, Jofrid ainda soluçava baixinho com a criança nos braços. Gudrun mantinha-se sentada à parte, de rosto fechado. No outro lado, Frida fazia o mesmo. Com gente daquela, pensou Creidhe, esgotada, qualquer mulher choraria. Helga estava a cortar o resto do pão. A faca estremeceu nas suas mãos. Breccan e o rapaz pareciam calmos; estavam a comer com entusiasmo. Creidhe suspeitou que aquela refeição magra era um festim para eles. O outro, o irmão Niall, não comia nem bebia. Mal se mexera do seu lugar, na sombra.

Creidhe estava demasiado cansada para comer. A jovem não resistiu, cruzou os braços em cima da mesa e pousou a cabeça neles, só por um momento... Levantar-se-ia daí a momentos para que Helga pudesse descansar...

Aconteceu tudo muito depressa: oh, tão depressa. Uma súbita mudança no vento, uma subida mudança na sua voz; por cima do seu uivo, vozes de homens, não palavras de desafio, antes gritos de medo. As lâmpadas tremeluziram e apagaram-se, todas, mergulhando a sala na escuridão à exceção da leve luz provocada pela lareira. Um terror frio apoderou-se do coração de Creidhe e ela começou levantar-se sem saber o que se estava a passar, o que fazer, ao ver nos estranhos olhares dos presentes não o choque, não o medo, mas um terrível fatalismo: a aceitação de uma inevitável crueldade.

— O que é? — murmurou ela, mas ninguém lhe respondeu. O irmão Breccan estava de novo a rezar com uma voz menos firme e, com a respiração entrecortada, Colm juntou-se-lhe, as duas vozes em conjunto, não em Latim, dessa vez, mas numa língua mais antiga: Kyrie eleison, Christe eleison...

As vozes aproximaram-se. Estavam ali, no interior da cabana, se bem que a porta e as portadas estivessem fechadas por causa do vento. Forças como aquelas entram como querem; não precisam de autorização. Era um grito, uma canção, uma música terrível que soava no interior da cabeça e atingia o cérebro, vibrando nos ouvidos, insinuando-se na boca e no nariz, pulsando na própria respiração, arrancando todos os sons do corpo do ouvinte, como se lhe quisesse sugar todas as forças. Ressoava no sangue, ressoava nas veias, ressoava no coração. Creidhe esfregou os olhos, se bem que não houvesse nada para ver. A jovem levou as mãos aos ouvidos, mas a canção continuava, rasgando-lhe o espírito e a vontade, procurando roubar-lhe a identidade. Ela aspirou profundamente e deixou sair o ar. Não se era impunemente filha dos seus pais sem saber o que era a coragem. Yyrie eleison... Christe eleison...

— Fora! — Creidhe levantou-se com as mãos ainda nos ouvidos e os olhos abertos para a escuridão, ao mesmo tempo que lhe faltava a respiração. — Por todos os antepassados, desapareçam daqui! — Era uma loucura esperar obediência a uma ordem daquelas; ela não era uma mulher sábia. No entanto, tinha de tentar por amor ao pai e à mãe e à sua sabedoria. Pelo menos, tinha de tentar.

O terrível som decaiu e fluiu, como se uma força maligna circulasse no interior do compartimento. Creidhe pensou sentir uma espécie de riso, um riso amargo, triste, um lamento de derradeira desolação e um grito sarcástico de troça, tudo ao mesmo tempo. O som percorreu a câmara uma, duas, três vezes e, com um último grito terrível de tremenda intensidade, pareceu rodopiar na direção da lareira, insinuou-se na chaminé e morreu; o compartimento ficou numa escuridão total.

Durante um longo momento, ninguém falou. Até Jofrid estava silenciosa. Então, houve um movimento e surgiu uma pequena luz vacilante: alguém estava a acender uma vela nas brasas por baixo das cinzas da lareira. Acendeu-se uma lâmpada. A luz tocou nos cabelos brancos do irmão Niall enquanto ele atravessava o compartimento, acendendo todas as lâmpadas de óleo de foca. As suas feições estavam impassivas.

Creidhe estava gelada. Mais fria do que nunca, mesmo quando ensopada e miserável por baixo do convés do Sea Dove depois de um dia de viagem infindável. Estavam todos a olhar para Jofrid. Jofrid já não chorava. Estava sentada na cama com o rosto cor de cinza e olhos vazios. O bebê jazia no seu colo ainda embrulhado no cobertor de lã. Ninguém disse nada.

Foram os passos mais longos que Creidhe alguma vez deu: na direção da cama de Jofrid. A jovem fez um esforço para olhar para baixo. O bebê estava imóvel, já não tentava mamar; os olhos, vagos, não procuravam discernir a luz da sombra; as mãos minúsculas, como duas flores, estavam imóveis, mais pálidas do que o tecido em que se mantinham abertas. Creidhe não precisou de olhar de novo para perceber que estava morto.

Depois, durante alguns momentos, tudo foi confusão. Creidhe não chorou. Na verdade, não sabia se o que sentia era dor ou ira, ou apenas o reconhecimento gelado do fracasso. Todo aquele dia de trabalho, toda aquela noite de esforços tinham sido inúteis. Sentia dor, certamente. Fosse qual fosse a força que provocara aquilo, por que a deixara salvar primeiro o rapaz, por que a deixara gozar aquele pequeno triunfo para depois lhe tirar?

A jovem sentou-se com a cabeça entre as mãos e deixou que os outros fizessem o que tinha de ser feito. Jofrid regressou à sua própria cabana com Helga a seu lado. Frida desapareceu. Entraram alguns homens, falaram com Gudrun e voltaram a sair, levando consigo os eremitas: até os monges tinham de dormir. Creidhe estava consciente da presença de Gudrun movendo-se pelo compartimento juntando pratos, tirando a palha da enxerga, arrumando coisas. Era tarde; devia ir deitar-se, ou seria apanhada pela manhã. Mas não parecia capaz de se mexer. Gudrun desaparecera na parte norte da cabana, onde estavam armazenadas as suas coisas para o Inverno; o som de um mugido e o de baldes a tocarem uns nos outros sugeria que talvez se demorasse um pouco. Creidhe sentiu o peso do cansaço e das saudades de casa. Por todos os deuses, como conseguira que tudo desse errado? Estava tão certa de poder ajuda-las. Havia ali uma feitiçaria maligna, horrores para além do pior dos pesadelos. Regressa, gritava algo dentro dela, uma voz que não conseguia calar, se bem que sentisse vergonha dela. Oh, por favor, regressa depressa. Quero ir para casa.

— É difícil.

Creidhe olhou, estupefata; pensara que estava sozinha, mas parecia que o irmão Niall não tinha ido com os outros. O monge estava ali na sua frente, do outro lado da mesa, fixando-a com as suas feições graves.

— Estás a chorar; ou devias, se ainda tivesses forças. Não é tanto a morte desta criança que te magoa, é antes o fato de não teres conseguido evitá-la. Essa pode ser a lição mais difícil deste mundo, não conseguir evitar o inevitável. Ficar a olhar enquanto outros destroem a tarefa que sabes poder desempenhar na perfeição. É uma lição difícil de engolir. Para alguns, é impossível não fazer qualquer coisa, não lutar. Sabem que estão a fazer o que está certo, o que deve ser feito; como é possível não tentar? No entanto, numa ocasião como esta, a ação só piora as coisas. Um enigma.

Creidhe sentiu de novo a raiva.

— Suponho que me vais dizer que a criança morreu por vontade de Deus e que eu devo aceitar isso? — perguntou ela em ar de desafio e viu os cantos da boca dele torcerem-se, divertidos. — Como te atreves? Qual é o deus capaz de ficar contente com o fato de Jofrid ter perdido os seus três filhos? Qual é o deus que decide que a vida de um bebê deve acabar antes sequer de ele ter hipótese de respirar como deve ser? Por que me daria eu ao trabalho de o salvar e depois...

As suas palavras esvaíram-se.

— Como eu disse antes — não havia julgamento na voz de Niall — foi o teu orgulho que ficou ferido; pensaste que podias ser uma heroína, que conseguirias fazer o que esta gente achava impossível, e falhaste. E agora, estás mesmo a chorar. Suspeito que elas tentaram avisar-te, mas tu não as quiseste ouvir.

As lágrimas começaram a correr livremente; ela procurou um lenço, fungando.

— Elas nunca me disseram nada; nunca me falaram do que aconteceria. O que foi aquilo, afinal de contas? Aquele vento, aquelas vozes? — Para lá da sua angústia, Creidhe sentiu uma espécie de gratidão; irritante, talvez, mas, pelo menos, ele estava a falar com ela.

— O inimigo deles foi gravemente ferido e riposta como pode — disse Niall, sentando-se na sua frente e cruzando as mãos no tampo de pedra. O povo de Asgrim nunca compreendeu o que significa viver aqui, um lugar muito antigo, um lugar selvagem. Não se perturba um domínio destes sem se pagar um determinado preço. À superfície, Aqueles-Cujo-Nome-Não- Se-Diz parecem-se conosco; homens e mulheres comuns. Falam a nossa língua; até se parecem conosco. Mas não são como nós. Os primeiros que chegaram aqui encontraram um povo que já cá vivia, um povo envolto em magia e com poderes para além do entendimento dos da nossa espécie. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vêm da união de duas raças. Se não forem controlados, são muito perigosos. Não sabemos como têm estes poderes, esta magia, que retiram do fundo dos seus corpos. Ainda não conseguimos descobrir como esta música estranha nos atinge aqui, na Ilha das Tempestades, quando os seus cantores vivem a sul e raramente põem o pé nas nossas praias. Tudo o que sei é que esta magia é terrível, um grande poder utilizado deficientemente por falta de controle, por falta de liderança. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz nem sempre estiveram em guerra com a tribo de Asgrim. O povo das Facas Longas cometeu um erro e agora pagam-no com as vidas dos seus recém-nascidos.

— Um erro? — Creidhe sentiu-se ao mesmo tempo fascinada e repugnada. A voz do eremita mantivera-se calma e tranqüila; o monge não parecia afetado pela estranha visita e mais parecia que estava a falar do tempo.

— É verdade. Por um golpe do destino, algo foi roubado: uma coisa de grande valor para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Até que seja devolvido, ou substituído, essas vozes ouvir-se-ão em cada nascimento, o povo das Facas Longas é caçado e perde o futuro; à medida que o tempo vai passando, os tênues laços que o ligam a estas ilhas vão-se desapertando, porque a caça diminui o seu número. Um povo mal governado; o seu governador não é grande coisa.

Creidhe tentou compreender, a sua cabeça zumbindo devido à falta de sono.

— Uma coisa de grande valor? Que coisa? Um tesouro? Armas? Um talismã?

Niall sorriu ligeiramente.

— A última coisa que mencionaste estará, provavelmente, mais perto da verdade. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz perderam o símbolo da sua fé: a pedra da sabedoria. Perderam aquilo que mantém os seus incríveis poderes sob controle. Foram os homens de Asgrim que lhe tiraram e a colocaram fora de alcance, exceto para os que têm a sua bênção. Agora, o seu povo está preso a isto até encontrar uma solução.

— Por que não me disseram? Por que não me explicaram nada?

Os olhos de Niall semicerraram-se.

— Eu tenho uma teoria; posso discuti-la contigo, mas não aqui, onde podemos ser ouvidos. — Ouviam-se os sons provocados por Gudrun a tratar do gado. — Mas suponho que o conhecimento da situação não teria mudado as tuas intenções. Estou certo?

Creidhe sentiu as faces corarem.

— Achas que sou louca — disse ela, sentindo-se castigada.

— Louca na tua coragem, talvez.

— Falaste numa solução. O governador falou de guerra. Isso preocupa-me. Os meus amigos foram com ele. Eles não são guerreiros; um é pescador e o outro um... um estudioso, suponho que se lhe pode chamar assim. Que guerra? O povo de Asgrim luta contra Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, esse povo que é capaz de uma magia tão terrível? Que hipóteses têm homens normais contra feitiços tão perversos? — O pensamento de ver Thorvald a combater já era suficientemente mau; Thorvald à mercê de um demônio qualquer era uma coisa impensável.

— Perverso? É tudo relativo. — Niall franziu o sobrolho. — Asgrim devia abrir a mente a todas as possibilidades, expandir um pouco a sua visão. Ele passa muito tempo a aperfeiçoar as capacidades dos seus homens com o fito na caçada. Não faz qualquer esforço para investigar algumas alternativas, para encontrar outra saída.

— A caçada de que estão sempre a falar, mas sobre a qual não falam. Que caçada é?

O monge abriu muito os olhos cor de carvão e ergueu as sobrancelhas.

— Os homens de Asgrim andam à caça do que perderam e não conseguem encontrar, mas que têm de encontrar se querem sobreviver. Procuram aquilo que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz desejam mas que não podem vir buscar, já que esta ilha lhes é proibida. O... o que é que tu lhe chamaste? O talismã deles.

— Ah. — Ela tentou imaginar o que poderia ser: uma pedra, uma jóia, um osso sagrado com a forma de um animal. — Então, é mais ou menos uma caça ao tesouro do que uma caça a um animal? Eu pensei...

Ele sorriu; era uma expressão sem alegria.

— Ambas as coisas — disse ele. — Duas coisas numa.

Ouviu-se um restolhar, o ranger da porta das traseiras da cabana.

Gudrun estava de regresso.

— Tenho de ir — disse o irmão Niall, levantando-se agilmente. Não dava mostras de cansaço. — Não vale a pena flagelares-te. Não podemos evitar o inevitável. Este povo é culpado da própria desgraça.

Creidhe sentiu-se chocada.

— Isso é uma visão estranha para um monge cristão. — Não pôde ela deixar de dizer.

— Achas? — O monge estava a vestir a longa capa. Esta ainda não tinha secado e cobriu-lhe o corpo, pesada e escura. — Creidhe? — O tom da sua voz baixou subitamente, tornando-se num sussurro. — Temos de falar, os dois, amanhã. Talvez não estejas segura, aqui. Devias pensar... — O monge calou-se; Gudrun tinha regressado, bocejando ruidosamente enquanto abafava a lareira. — Boa noite — disse suavemente o eremita, dirigindo-se para a porta. — Talvez apareça amanhã de madrugada, antes de partirmos. Vivemos tempos tristes, Gudrun. — E, com aquilo, desapareceu.

Os pensamentos sombrios mantiveram Creidhe de olhos bem abertos até os primeiros alvores entrarem na cabana de Gudrun e então, abruptamente, a exaustão venceu e ela adormeceu. Tencionava levantar-se cedo e caminhar pelo carreiro que atravessava a aldeia, como era seu costume. Esperava apanhar o eremita sozinho, no exterior; as suas palavras de aviso tinham-na preocupado. Além disso, era um alívio poder ter uma conversa com pés e cabeça, apesar de os comentários do irmão Niall, por vezes, serem quase incompreensíveis. Mas ficou até muito mais tarde presa à rede de sonhos perturbados, quando foi acordada pelo som de vozes zangadas. A jovem levantou-se rapidamente, vestiu a túnica, meteu os pés nos sapatos e penteou os cabelos o melhor que pôde no canto escuro em que dormira. Estava só: a voz de Gudrun era uma das que ouvia no compartimento. Creidhe encaminhou-se para lá e depois parou, gelada, ao ouvir o que diziam.

— Há muito que te devia ter expulso desta ilha! — A voz era asperamente autoritária: Asgrim tinha regressado, demasiado tarde para a criança, mas tinha regressado e, pelo som da sua voz, vinha furioso. — Vocês são um bando de ignorantes. Que pensavam conseguir? Tornei bem claro que estavas proibido de vir a Água Brilhante, mas continuas a vir aqui cuspir as tuas doutrinas de tolerância e indulgência. De que serviu a Jofrid, ou a nós? Alguma vez alguém dos Facas Longas se virou para a tua cruz nestes anos todos que vocês têm aqui passado como autênticos parasitas? O episódio da noite passada só ilustra aquilo que já todos sabemos: as vossas preces são completamente inúteis. O nosso inimigo continua encarniçado contra nós e mais uma criança sucumbiu apesar das vossas litanias sem significado. Quanto a ti, tinhas obrigação de saber como é. Existem regras e as regras são para serem cumpridas, a não ser que queiramos mergulhar num caos total. Tem de ser assim para tua inteira proteção.

— Foi a rapariga que nos convenceu. — Creidhe mal reconheceu a voz de Gudrun, de tão amortecida. A mulher parecia quase assustada.

— A rapariga? — O tom de Asgrim era mordaz. — Como pôde ela influenciar-te? O papel dela já está determinado. Sabes que é assim.

— Quando vimos que não chegarias a tempo — disse Gudrun — pareceu-nos que uma oração ou duas não fariam mal nenhum.

— Regras, Gudrun — ralhou-lhe Asgrim. — Nenhum de nós se pode dar ao luxo de acordar isto.

— Não voltará a acontecer — disse Gudrun. Ouviu-se uma tosse polida.

— Regressemos ao assunto que temos em mãos. — Aquela voz era calma e ponderada: era a voz do irmão Niall. Creidhe sentiu-se percorrida por uma onda de alívio e saiu do canto onde dormia. Estavam os três de pé, Asgrim ainda com a pesada capa e as botas enlameadas e com uma faca à cintura, Gudrun à lareira e o eremita tranquilamente perto da porta com a capa pelos ombros, pronto para a viagem. Não havia sinal do irmão Breccan ou do jovem, Colm. O governador, certamente, não viera sozinho. Devia ter trazido alguns homens consigo. Talvez...

— Thorvald e Sam — disse ela subitamente, entrando na sala — vieram? Eles vieram? — Para casa: iria para casa e o pesadelo acabaria. O irmão Niall fixava-a zombeteiramente; a jovem reparou que estava a ser mal-educada.

— Peço desculpa. — Creidhe dirigia-se ao eremita. — Adormeci. Vais-te embora?

— Ah — disse Asgrim antes que Niall pudesse responder. — Creidhe. Disseram-me que fizeste os possíveis para ajudar nos tristes acontecimentos da última noite. Estamos em dívida contigo. Lamento, mas vim sozinho, apenas com Skapti, o meu guarda. Os teus jovens amigos estão muito ocupados. O irmão Niall ia-se agora mesmo embora. Depois, acho que um pequeno-almoço nos faria bem.

Gudrun virou as costas e começou a fazer tilintar potes e frigideiras.

— Não te atrases por nossa causa, irmão. — A voz de Asgrim era gelada.

— Ah. — O tom de Niall era um eco da do outro. — Temos um assunto pendente; não me lembro de responderes à minha sugestão. Limitaste-te a perder as estribeiras. Eu acho que a meditação é uma excelente ajuda para o autocontrole. Devias tentar, um dia des...

— Chega! — troou Asgrim. Os pratos fizeram barulho em cima da mesa. — Vai-te embora! A tua sugestão não merece uma resposta, é ridícula. Uma rapariga solteira sozinha no alto daquele monte numa casa de homens? É uma pura loucura!

— Nós juramos celibato, todos nós — disse Niall monotonamente. — Creidhe ficaria em segurança no eremitério, muito mais do que aqui. E o que aconteceu esta noite? Estas visitações não transpõem a nossa soleira. Pelo menos, devias dar uma hipótese à tua jovem hóspede. — Ele olhava diretamente para Creidhe, tentando enviar-lhe uma mensagem qualquer com aqueles olhos escuros e enigmáticos.

— Oh — disse ela, surpreendida. — Oh... posso ir para lá? — Sempre era preferível àquela prisão: acabariam os silêncios estranhos, as manifestações fantásticas, deixaria de ver a sorumbática Gudrun e a carrancuda Frida. Melhor ainda, haveria gente com quem falar, homens bons, honestos como os irmãos da Ilha Sagrada. — Não quero parecer mal-agradecida — disse ela para Asgrim — mas gostaria de ir. Só até Thorvald e Sam regressarem. Acho que vou; muito obrigada.

A jovem sorriu para o eremita; ele inclinou cortesmente a cabeça.

Havia qualquer coisa no silêncio que se seguiu que a deixou muito pouco à vontade. Gudrun deixara de fingir que estava a cozinhar e estava, agora, muito quieta; Asgrim respirou profundamente.

— Está combinado — disse tranquilamente o irmão Niall. — Eu espero enquanto arranjas as tuas coisas. Nós vivemos frugalmente, mas ficarás quente e serás bem alimentada. E, como dizes, é só até os teus amigos regressarem. É muito melhor assim. — O monge levou a mão ao puxador da porta.

— Não me parece. — Asgrim já não gritava: o governador manteve a voz muito suave. — Creidhe — disse ele, virando-se para ela e segurando-lhe nas mãos — não gostarias de estar aqui quando os teus amigos chegarem? Eles podem estar de volta dentro de um dia ou dois. Por que não ficas conosco mais um pouco? Estou certo que Jofrid gostaria muito; disseram-me que ela gosta muito de ti e, é claro, ela vai precisar que a consoles depois da perda que sofreu. — Asgrim suspirou. — Outro rapaz; mais um pedaço de futuro que desapareceu. Jofrid chora sem cessar. Creidhe, eu sei que não queres perder a chegada dos teus amigos. Eles vão ter tanto para te contar.

O governador olhou para Gudrun.

— Asgrim tem razão — disse Gudrun. — Além disso, tu ajudaste-nos mais do que seria de esperar; o que aconteceu não teve nada a ver contigo. Tu fizeste o possível. Deixa-nos pagar-te o que te devemos. Fica mais um pouco; os teus amigos gostarão de te ver aqui quando regressarem.

Creidhe nunca a ouvira falar durante tanto tempo.

— Bem... — disse ela. A jovem pensou na longa viagem de Thorvald de regresso a Água Brilhante; imaginou o seu sorriso quando a visse de novo, sã e salva. Aquilo valia, certamente, mais um ou dois dias de espera. No entanto, o irmão Niall dissera que ela, ali, não estava segura; e aquelas vozes que transportavam consigo a morte? E se regressassem? Ele não tivera oportunidade de lhe explicar o que significavam. — Não sei. Thorvald e Sam vão mesmo regressar brevemente? — Parecia-lhe que estava ali há uma eternidade à espera.

— Sem dúvida, minha cara — disse Asgrim, sorrindo. — Eu venho agora mesmo do acampamento onde eles estão. Eles falam muitas vezes de ti com afeto. Terei muito prazer em te falar das façanhas deles à mesa do pequeno-almoço, isto se Gudrun ainda não se esqueceu de como se cozinha.

— Creidhe devia ir comigo — disse Niall firmemente. — Estou certo que é o mais acertado. No fim de contas, não é longe; tenho a certeza que nós...

— Chega. — A voz de Asgrim era cortante como uma lâmina. — A rapariga fica aqui à espera do namorado dela; ela tem sido muito paciente, não achas? Além disso, terá muito tempo, depois da chegada deles, para ir lá acima visitar o teu estabelecimento, se ela quiser. Os rapazes podem acompanhá-la: não há nada de impróprio nisso. Que dizes, Creidhe?

— Por favor, fica, Creidhe — disse Gudrun. — Jofrid precisa de ti.

Aquilo foi tão inesperado que Creidhe quase não conseguiu responder.

— Creio que já te demoraste o suficiente, irmão Niall — disse Asgrim, e nesse momento a porta abriu-se para revelar um homem muito grande vestido de cabedal e armado com uma lança. — Adeus, irmão Niall — acrescentou o governador.

— Lamento — conseguiu Creidhe dizer. — Gostaria de poder ir; gostaria de poder conversar contigo e com os outros. Mas preciso de estar aqui quando Thorvald e Sam regressarem; é disso que eles estão à espera.

O irmão Niall acenou com a cabeça. O monge parecia indiferente ao gigante de olhar feroz nas suas costas e ao olhar severo do governador.

— Lembra-te — disse ele tranquilamente a Creidhe — nós estamos lá, se precisares. A nossa porta está sempre aberta. Sobe o carreiro a leste do vale e encontra-nos. Um bom dia para ti, Gudrun.

O homem de cabelos brancos virou-se e saiu; o grande guarda afastou-se para o deixar passar. Por trás dele, Creidhe avistou o irmão Breccan e o jovem Colm, esperando no exterior. A chuva transformara-se num chuvisco fino. A jovem virou-se para o governador.

— Conta-me — disse ela avidamente. — Fala-me de Thorvald e de Sam.

 

Na Ilha das Nuvens a chuva caía com um sussurro frio, refrescante, cobrindo as encostas, prateando os campos e pondo as aves a cantarem umas com as outras. Guardião estava na encosta leste com Pequenino nos calcanhares, olhando para a Ilha das Tempestades. Os seus olhos fixavam-na penetrantemente: pequenos barcos aproximavam-se da praia distante, empurrados pelo vento, de regresso da pesca. Algum fumo elevava-se de lado na atmosfera, vindo do abrigo do Fiorde do Conselho. As gaivotas gritavam por cima da Ilha do Dragão, competindo pelos melhores bocados. Ali, na ilha, as aves não precisavam de guerrear daquela maneira. Ali, elas compreendiam-no e ele a elas. Elas davam-lhe o necessário para manter Pequenino vivo: alguns ovos cuidadosamente escolhidos; os próprios corpos, capturados gentilmente, com amor. A execução feita na perfeição, como devia ser, com mãos fortes e suaves e palavras de respeito pelo sacrifício feito. Os homens eram diferentes. Vinham com ódio nos corações, para onde não pertenciam. Quando matava um homem, não via razão para ter misericórdia.

Mais tarde, Pequenino mexeu-se durante o sono, choramingando. Guardião não dormia. Estava sentado em frente dos restos da fogueira confinada pelo anel de pedras e escutava as vozes. Havia uma tempestade por cima do Fiorde do Conselho, mas os seus ouvidos eram os de um caçador. Aquela canção chegada longe e profundamente, abrindo caminho através do turbilhão do vento e do dilúvio. Guardião colocou uma mão sobre o ouvido de Pequenino, posto a descoberto pelo cobertor coçado. A outra mão foi ao próprio pescoço, tocando no ornamento que usava, um estreito círculo de cabelos entrançados em tempos de um louro brilhante, agora manchado e sem cor, mas forte: a parte mais forte dele. Sula. O seu nome era o talismã que os mantinha em segurança. As vozes carpiram ao vento, declinaram e fluíram com as vagas, choraram amargamente a perda que sentia profundamente no seu coração. Não lhes prestaria atenção. Sula, mantenho-me fiel à promessa. Sou-te fiel.

A música subiu de tom até se transformar num choro, num lamento frenético que lhe rasgava o coração. Pequenino chorou nos seus sonhos e Guardião deitou-se a seu lado, curvando o corpo para se aconchegar ao dele e estendendo um braço para o proteger. Esperou. Finalmente, as vozes enfraqueceram e desapareceram, completa a colheita até à próxima vez, e à seguinte. Quantas estações, quantas crianças ainda para o povo dos Facas Longas? Não ia pensar naquilo. O que acontecia ao povo de Asgrim não era da sua conta; a loucura deles é que tinha provocado aquilo.

Pequenino gemeu de novo, mexendo-se na escuridão.

— Estou aqui — murmurou Guardião. — Dorme. Estás em segurança. Estarei sempre aqui.

 

                 Em quem há de um homem confiar?

                 Num deus silencioso, num irmão ausente?

                 O coração chora para o vazio, impotente.

                                                   NOTA A MARGEM DE UM MONGE

 

Estavam acampados no topo de longo fiorde, num local onde, em tempos, existira uma aldeia com telhados de turfa e uma casa substancial para conselhos e reuniões. Se bem que não fosse muito longe de Água Brilhante, podia ser uma terra diferente, de tal modo era tudo diferente. Havia muitos homens no acampamento, dormindo comunalmente na casa do conselho. Os seus dias eram empregues numa espécie de preparativos para a guerra. Havia uma regra que ninguém quebrava: ninguém saía dali sem o consentimento de Asgrim. E ninguém pedia para ir a parte nenhuma. Havia um acordo não expresso por palavras que dizia que as saídas do acampamento só aconteciam quando o governador tinha assuntos a tratar. Geralmente, ficavam de guarda dois ou três homens no carreiro que se dirigia para leste, apenas para ficarem descansados. Thorvald percebeu que, desde o princípio da Primavera até meio do Verão, pelo menos, aqueles ilhéus não mantinham qualquer contato com as suas mulheres e filhos, com os amigos, com as suas comunidades. Aquilo era necessário por causa da caçada.

Os dias eram passados na manutenção dos barcos e das armas, na preparação do equipamento de combate. Estavam sempre ocupados, se bem que Thorvald fosse muito crítico quanto àquilo tudo, já que as coisas não andavam para a frente. O jovem manteve-se calado. Quanto ao governador, percorria o acampamento inspecionando os trabalhos dos homens, sempre seguido por um ou outro dos seus grandes guarda-costas. As suas críticas eram ásperas e vexatórias. O governador andava tenso, como se esperasse qualquer coisa. Mantinha-se fechado, dormindo à parte numa cabana reservada para esse propósito e comendo as suas refeições quase sempre em silêncio. Aparecia à noitinha para dar ordens ríspidas para o dia seguinte. O par de formidáveis guerreiros que o serviam como guarda pessoal era um incentivo adicional à obediência.

As leis de Asgrim eram absolutas e ele não hesitava em fazê-las cumprir pela força, se necessário. Uma vez, um dos homens foi apanhado a beber do barril da cerveja. Thorvald não testemunhou o castigo, mas fosse ele qual fosse, o culpado ficou sem se ter de pé durante três dias. Os dois homens responsáveis pela quase queda de Creidhe na falésia nunca mais tinham aparecido. Quando Thorvald perguntou por eles, Orm resmungou algo acerca do lago e de um certo precipício, regressando depois a um silêncio total.

Com ou sem Asgrim, precisavam de madeira para reparar o Sea Dove. Parecia apropriado, portanto, fazer o que lhes pediam. Assim que se soube a sua profissão, Sam passou a remendar os pequenos barcos que estavam nas lagoas deixadas pelas marés, por baixo do abrigo. Havia uma provisão razoável de madeira já aparelhada: traves de pinho e de freixo, e pedaços de outras, algumas já aparelhadas, outras como as marés as tinham atirado para a praia. Sam fez amigos e meteu ombros à sua tarefa com vontade, observando a Thorvald que não demoraria muito até rumarem para casa com o Sea Dove como novo. O mastro ia ser um desafio, mas o jovem reparara num pedaço de madeira que poderia trabalhar; fizera nele uma marca, apenas para ter a certeza. Assim que aquelas amostras de barcos estivessem prontas, pediria polidamente o que lhe era devido e pronto.

Quanto a Thorvald, o caso não era assim tão simples. Em Hrossey, aproximara-se do círculo da sua mãe e do de Eyvind e Nessa, o grupo que mantinha a ordem e a cultura nas Ilhas Brilhantes. O jovem estava acostumado a discussões abertas sobre estratégia, planejamento de esforços no comércio ou numa aliança, na discussão de assuntos de justiça e lei. O debate excitava-o; as idéias intrigavam-no.

Ali, não tinha essa possibilidade. Aqueles ilhéus não passavam de simples fazendeiros e pescadores; nunca questionavam o julgamento do governador e, aparentemente, nunca procuravam saber mais do que o pouco que ele lhes dizia.

Era evidente que uma das regras que Asgrim lhes impunha era o segredo. Sam parecia conversar durante o dia todo e os seus companheiros respondiam-lhe prontamente. No entanto, à hora do jantar, Sam só tinha histórias de ventos, de marés e de improváveis bacalhaus enormes para contar. Para Thorvald, meter conversa com aqueles homens era como andar às cegas através de um labirinto de ruelas e becos. O jovem precisava de saber o que se estava a passar. Queria saber. Como filho do homem que se intitulava governador, podia haver ali um lugar para si, um lugar e um propósito, se fizesse tudo como deve ser. Era evidente, pela maneira como se faziam ali as coisas, que a eficiência não era grande, e ele sabia como remediar a situação. Mas aqueles homens eram extremamente obstinados, tristes e silenciosos e ele não sabia como quebrar a barreira que erguiam à sua volta.

Passaram-se muitos dias sem que Thorvald conseguisse qualquer informação sobre a natureza da caçada de que falavam. O jovem trabalhara ao lado de alguns homens na preparação das armas e compreendera alguns passos da batalha, observando-os e armazenando o que ia aprendendo. O jovem quis falar com Asgrim. Cada vez lhe parecia mais provável que aquele autocrata silencioso fosse Somerled; a sua autoridade impiedosa e língua cáustica acentuavam essa suspeita. Na sua mente, Thorvald colocou o homem na história que Margaret lhe contara, uma história cruel de conquista e fratricídio sangrento e achou que Asgrim assentava nela como uma luva. E as suas maneiras secretas, evasivas, ocultas. Thorvald via naquilo e nos olhos escuros e vigilantes um reflexo desconfortável de si mesmo.

Decidiu fazer a Asgrim algumas perguntas incisivas sem desvendar a verdade da sua missão. Assegurar-se-ia de que conseguiria respostas que provassem a sua teoria, de uma maneira ou de outra. Se Somerled se tornara no governador das Ilhas, conseguira o que ninguém esperava. Forjara uma vida; tornara-se, mais uma vez, um líder de homens. Por outro lado, tornavam-se evidentes, a cada dia que passava, as imperfeições da liderança de Asgrim. O jovem ansiava por começar, por fazer mudanças. Tudo o que necessitava era de uma explicação. Se o governador lhe contasse a razão daquela caçada, estava certo de poder fornecer sugestões, começando por algo que acordaria aqueles aspirantes a guerreiros de uma mentalidade que parecia aceitar a derrota antes, sequer, de começar a batalha. Mas Asgrim preferia manter-se indisponível. Depois da primeira entrevista, não mostrara inclinação para conversar com Thorvald ou com Sam e aquele começou a acreditar que se limitariam a ganhar a madeira de que precisavam e que regressariam à Baía Sangrenta sem mais palavras. A sua frustração cresceu. Precisava de saber se Asgrim era merecedor de saber a verdade. Ao fim de algum tempo, começou a suspeitar de que Asgrim já sabia e que preferira não o reconhecer publicamente. Decididamente, o governador evitava-o.

Entretanto, havia trabalho para fazer e Thorvald descobriu, até um determinado ponto, que não podia continuar a permitir que eles o fizessem tão mal. Se havia uma coisa que Ash lhe ensinara fora a fazer o melhor uso do que se possuía, fosse ele material em bruto, talento ou espírito de iniciativa. Além disso, a atitude deles irritava-o. Por que se davam ao trabalho de lutar se já partiam derrotados?

Os homens estavam a acabar uma fornada de lanças. As hastes tinham sido cortadas com machados, enxós e facas dos ramos de um grande freixo morto, um tesouro valiosíssimo lançado para a praia por uma tempestade de Primavera e armazenado até à Primavera seguinte. As pontas eram de ferro. Os pontos mais altos daquela ilha tinham minério de ferro e na encosta por cima daquela enseada abrigada trabalhava dia e noite uma forja. O seu fogo brilhante, alimentado com esterco e turfa, era o coração daquela colônia de homens.

Aquelas lanças eram de arremesso, de pontas longas e delgadas, algumas com a forma de folhas e outras triangulares, ou farpadas. Eram mais rudes do que as que os homens de Eyvind usavam em Hrossey, de qualidade inferior, de acabamento tosco; no entanto, eram capazes de provocar danos se usadas com habilidade. Thorvald estava a dar forma ao topo de uma haste, onde a ponta seria colocada. Tinham feito, naquele dia, mais de dez, assim como algumas flechas. A sua enxó movia-se cuidadosamente, suavizando a madeira.

— Reparei — disse ele casualmente — que estamos a fazer muitas lanças, assim como flechas. No entanto, vocês já têm uma grande provisão. Perdem muitas, é?

O homem a seu lado deu um grunhido de assentimento. Os outros acenaram com as cabeças sem fazerem uma pausa na sua firme labuta.

— É claro que — continuou Thorvald — vocês sabem como deixar a cunha mais ou menos solta?

Os homens olharam para ele sem comentar, sem expressão.

— Não? É muito simples. Trata-se de ter a certeza de que o inimigo não vos atira de volta as que vocês falharem. Mantenham a cunha no lugar, segurando a ponta da lança, assim, estão a ver? Até estarem prontos para lançar, mas devem deixá-la um pouco solta para ser facilmente tirada. Então, antes de fazerem o lançamento, tiram a cunha.

— Uma lança sem ponta nunca matou um homem — observou Orm com a sua barba sedosa, olhando para Thorvald sem expressão. — A não ser que se lhe acerte num olho, talvez.

— Repara — disse Thorvald. As lanças já acabadas estavam encostadas à parede de pedra; o jovem escolheu uma que ele próprio fabricara, bem equilibrada. Havia um alvo para testar esse mesmo equilíbrio antes de serem declaradas prontas: um homem de palha com uma pele extra de serapilheira. Alguém utilizara barro colorido para desenhar umas feições rudes, uns olhos penetrantes e uma boca trocista.

Thorvald tirou a cunha da lança, fazendo de modo que todos vissem o que estava a fazer. O jovem ergueu o braço, tomando o peso à arma, apontou e lançou. Ouviu-se um silvo e um baque.

— Eu disse-te — disse Orm, carrancudo. — Cai.

Mas já os outros corriam para o homem de palha, apontando e exclamando.

— Olha! Mesmo no alvo e a haste separou-se da ponta.

— É magia — disse Ranulf com voz tensa. — É um mistério.

— De fato — disse Wieland, aproximando-se e inserindo um dedo no buraco que a arma fizera no peito do homem de palha, no lugar onde seria o coração — não é provável que o inimigo consiga devolvê-las, se tiver de andar à procura das pontas para as amarrar de novo às hastes antes de as lançar. — O homem olhou para Thorvald com os olhos semicerrados. — Como é que isso funciona? Como é que isso se faz?

Thorvald esboçou um sorriso.

— Não é feitiçaria nenhuma, podes ter a certeza. Trata-se apenas de um movimento para a frente. Enquanto a lança percorre o ar, a força com que é impelida mantém a ponta no lugar. Só quando a arma atinge o alvo é que as duas coisas se separam. Depois da batalha, é possível reunir as duas coisas e fazer lanças de novo. É muito simples, mas retarda o inimigo na fase inicial do ataque, o que te dá vantagem. — Os homens olharam para ele de olhos esbugalhados, silenciosos; o jovem pensou detectar uma ligeira mudança nos seus olhos. — Querem tentar? — perguntou ele.

A partir daquele momento, os homens passaram a colocar as cunhas de maneira diferente, de modo a saírem com facilidade. A uma sugestão de Thorvald, Ranulf e Svein foram buscar a provisão ao armazém e passaram algum tempo a modificá-las. Entusiasmado com aquele pequeno sucesso, Thorvald continuou com as suas perguntas.

— Que armas é que o inimigo tem? Parece que nós temos poucas espadas, facas e até lanças. Este material é bom para uma primeira fase. E quando avançarmos?

Silêncio de novo, não exatamente hostil, simplesmente sem expressão. Einar, um dos primeiros a recebê-los na Baía Sangrenta, era o mais velho e o mais pronto a contribuir com mais do que um grunhido ou um suspiro. O homem olhou para Thorvald de olhos semicerrados, maxilares apertados e depois virou a sua atenção para a corda do arco que estava a experimentar. Não responder parecia uma espécie de defesa, um muro de proteção que tinham aprendido a erguer em redor de si próprios. Aqueles homens não eram estúpidos: Thorvald vira com que rapidez eles aprendiam, uma vez despertado o interesse. Wieland, em particular, um jovem com cabelos cortados à escovinha e olhos tristes, parecia pronto a abraçar idéias novas. Aquilo era, simplesmente, uma profunda resistência, como se, lá bem no fundo, estivesse uma crença que o grupo não podia alterar, por mais que tentassem. Aquilo enfurecia Thorvald; não valia a pena, era uma perda de tempo, e ele resolveu mudar aquilo nem que lhe levasse o Verão inteiro. Trataria, primeiro, dos homens e deixaria o líder para o fim. Aqueles homens precisavam de ajuda; tinha de pôr, por algum tempo, a sua demanda de parte. Além disso, era a melhor maneira de mostrar ao seu pai a sua iniciativa, as suas qualidades, dedicando todo o seu esforço àquela tarefa! Se ele era, realmente, o seu pai.

— Esse inimigo tem machados? Espadas? — perguntou-lhes ele. — Ou vamos atacar uma fortaleza inexpugnável?

Uma longa pausa. Talvez, pensou Thorvald, se tivesse enganado e os ilhéus fossem lentos de pensamento.

— Ajudava — acrescentou ele, chamando a si o que lhe restava de paciência — se eu soubesse o que temos pela frente.

Orm clareou a garganta.

— Pergunta ao governador — resmungou ele. — É melhor que seja ele a explicar-te.

— O governador não fala comigo — disse Thorvald. — Por que não me dizem vocês?

Os homens olharam uns para os outros com olhares furtivos, receosos.

— Lanças de ossos vivos — murmurou um deles.

— Dardos envenenados — disse outro.

— Pedras — resmungou outro e os outros acenaram com as cabeças. — Grandes pedras que vêm pelo ar; decapitaram um homem no Verão passado.

— Vento, vagas, marés — disse Orm. — O inimigo tem aquilo que nós não temos: feitiçaria. Mas é melhor não te dizermos mais nada. Pergunta a Asgrim. Ele sabe. O governador sabe o que fazer.

— De qualquer maneira, que queres tu dizer? — perguntou um deles, com a voz a subir de tom, desconfiada. — Ajudava, disseste tu? Ajudava quem? Ajudava o quê?

Thorvald viu-se, subitamente, sem resposta, porque não podia dizer o que lhe ia na cabeça: Se eu soubesse a verdade acerca da situação, podia ajudar-vos a ganhar a guerra. E, depois desse, outro pensamento, se bem que não soubesse de onde tinha vindo. Podia liderar-vos.

— Não interessa — disse ele, como que por acaso. — Não tenho nada a ver com isso, claro. No fim de contas, só estou de passagem. — A pretensão de indiferença não parecia estar a resultar: os homens estavam todos a olhar para ele de maneira suspeita. — Eu mostro-vos uma maneira de meter mais flechas nestas aljavas. Vocês falaram em dardos envenenados? Já pensaram em usar alguns, também?

Thorvald sabia, claro, que Asgrim estava a vigiá-lo. Asgrim vigiava toda a gente. O que era razoável porque Thorvald, por seu lado, vigiava o ameaçador chefe de guerra. O jovem aprendeu os hábitos diários do governador, a sua disciplina, os meios que utilizava para se assegurar de que os homens andavam sempre um pouco cansados, um pouco receosos, não pensando, assim, em questionar as suas ordens. Thorvald reparou nas diferenças entre um dos grupos, mais pronto a falar e a sorrir, trabalhando exclusivamente nos barcos num dos extremos da baía, e os outros, Einar e os seus companheiros, unidos na sua reticência e naquela expressão severa. Thorvald tentou imaginar se eles só veriam a morte no futuro; reunira informação suficiente para saber que muitos se perdiam sempre que defrontavam aquele estranho inimigo. Entre vigiar o governador e tentar fazer compreender àqueles homens que nada mudaria a não ser que arranjassem algumas idéias novas, os seus dias eram sempre muito cheios. À medida que o tempo passava, o jovem viu a sua mente cada vez menos preocupada com Somerled e com perguntas acerca do seu caráter, ou acerca do caráter do seu pai, e mais com coisas práticas, como a de se assegurar de que os homens sabiam a técnica base de estancar o sangue de um ferimento, ou colocar novas penas numa flecha. Estranhamente, parecia estar a divertir-se.

Tinham chegado à ilha há quase duas luas. Thorvald já sabia os nomes dos homens quase todos e aprendera um pouco acerca de cada indivíduo, mas pouco. Era como se eles achassem que uma troca de palavras era uma coisa que não valia a pena. O jovem não conseguira iluminar o olhar de desânimo que todos eles pareciam possuir, como se os seus esforços estivessem destinados a um insucesso inevitável. Mudar aquele olhar tornou-se, para ele, numa outra demanda, porque não gostava de ver homens mergulhados no desespero, especialmente quando uma grande parte desse mesmo desespero se devia a uma má liderança.

Dedicou-se a um de cada vez. Wieland parecia o alvo ideal, porque o jovem estava sempre muito atento quando Thorvald explicava qualquer coisa nova e podia ser visto muitas vezes a mostrar aos outros maneiras diferentes de amarrar a ponta de uma flecha, ou de segurar no escudo. Mas Wieland era um homem reservado. Tinha o hábito de observar, não de falar. Assim, foi por Skolli, o ferreiro, que Thorvald começou, sabendo que, mesmo em tempo de desespero, um artesão tem o seu orgulho. O jovem manteve-se na soleira da pequena forja, observando, de braços cruzados, o ferreiro a martelar um pedaço de ferro até o transformar na ponta aguçada de uma lança. Skolli usou as tenazes para erguer o metal cada vez mais escuro e mergulhá-lo no barril de água. O vapor ergueu-se na atmosfera.

— Trabalhaste aqui durante toda a tua vida? — perguntou Thorvald, como que por acaso.

Skrolli lançou um grunhido enquanto virava o ferro na água.

— Fiorde do Conselho, Baía Sangrenta, ilhas exteriores.

— Como é que aprendeste o ofício?

— O meu pai. — A ponta de lança saiu do barril, foi colocada de novo na bigorna e foi cuidadosamente inspecionada. — Ele veio do outro lado do mar. Sempre a queixar-se. Dizia que o ferro, aqui, era de má qualidade, de segunda categoria. Estou a ver que é verdade. As tuas armas são de melhor qualidade, superiores. Dá-me um pouco desse ferro e eu faço dele uma coisa de que qualquer homem se poderá orgulhar.

Thorvald sentiu-se encorajado.

— É claro que — disse ele espontaneamente — se estas ilhas fizessem comércio com, por exemplo, as minhas, ou com as que estão a norte, terias o ferro de boa qualidade que quisesses. O governador já pensou nisso?

— Ah — grunhiu Skrolli, pondo de lado a peça terminada e inclinando-se para limpar a fronte com um trapo. O homem suava as estopinhas. — Comércio? Quem tem tempo para pensar nisso, com a caçada pela frente? Um homem não pensa em comércio quando luta pela sobrevivência. Não que algumas armas decentes não ajudassem; nisso tens toda a razão.

— Portanto, não tens hipótese de melhorar o material — disse Thorvald, sentando-se no banco junto da porta. O calor vindo da forja era intenso; o jovem tirou a capa dos ombros. — E o corte? Eu não sei muito, mas trabalhei com homens que tinham pertencido à guarda pessoal de um Jarid, tenho algumas idéias... É claro que terias de me dizer se não fossem práticas. Eu acho que, com este ferro e a tua habilidade, poderíamos produzir uma espécie diferente de ponta de lança, mais apropriada a este terreno... — Thorvald pegou num galho carbonizado e começou a desenhar no banco, pronto para a troça de Skolli, ou para o seu silêncio. — Duas espécies, talvez, uma com um rebordo à volta, assim, e a outra maior e mais estreita, fácil de lançar e fácil de arrancar. Hastes mais longas e mais leves para estas, para que os homens as possam transportar com facilidade através dos campos. Que achas?

— Interessante. — Skolli tirou o graveto da mão de Thorvald, apagou o diagrama e começou de novo. O olhar no rosto do homem surpreendeu e aqueceu o coração de Thorvald; aquilo despertara, na verdade, a sua atenção. — Eu podia obliquar o rebordo para baixo e deixar uma aresta ao longo do centro, o que lhe daria um pouco mais de peso quando do lançamento — continuou o ferreiro. — Essa teria a cunha removível, ao passo que a outra ficaria fixa para o combate corpo-a-corpo, não que se veja muito disso na ilha.

Seguiu-se uma pausa enquanto Skolli olhava para o seu desenho, pensativo.

— Na ilha? — perguntou Thorvald.

— A Ilha das Nuvens — disse Skolli, absorto. — A caçada é lá. Repara, acho que consegui. Que pensas disto?

— Excelente — disse Thorvald. — Quando é que podes fazer uma fornada?

— Amanhã. Quero aperfeiçoar o desenho mais um bocado, assegurar-me de que é mesmo assim. Os tipos que se despachem com as hastes. Hjort é o melhor homem para cortar a madeira, e aquele pescador, Knut, também não é mau. E descobre como testá-las. Arranja qualquer coisa para que a diferença seja grande; a nova versão e a velha versão. É capaz de ser difícil convencer os tipos a mudar.

— E Asgrim? Conseguiremos persuadi-lo a mudar?

— Não sei — resmungou Skolli, que estava outra vez a desenhar. — Nunca ninguém se atreveu.

Os desenhos novos eram bons. Testadas em corrida, contra alvos estacionários e por homens de diversas estaturas e constituições, provaram ser superiores em tudo e depois de Einar as ter aprovado com um aceno de cabeça não demorou muito tempo até os outros concordarem e darem uma palmada nas costas de Skolli, congratulando-o pelo seu trabalho. Skolli disse-lhes que o trabalho era seu, mas que a idéia era de Thorvald. Na ocasião, ninguém comentou. Mas Thorvald detectou uma mudança sutil a partir dali. Os homens sentiam alguma relutância em deixá-lo tomar a liderança nas manobras em curso; na verdade, até se treinavam muito pouco no combate corpo-a-corpo. Mas começaram a ouvir os seus conselhos acerca de armas e táticas e, ocasionalmente, um dos homens de mais confiança, Einar ou Orm, davam a sua opinião ou reconheciam o bom senso das sugestões de Thorvald.

O jovem começou a juntar informação. Einar já estava preparado para falar mais abertamente sobre o que estava para vir; e uma manhã, nas poças deixadas pela maré por baixo do abrigo, Thorvald encontrou o homem a caminhar junto da água, as suas botas deixando marcas ao lado das deixadas pelas gaivotas e andorinhas-do-mar, e perguntou-lhe diretamente:

— Skolli disse-me que a caçada terá lugar na Ilha das Nuvens. — Dali, a silhueta da ilha podia ser vista claramente para lá da boca do fiorde, escura e misteriosa com as suas encostas envoltas em nuvens, no meio da extensão prateada de água. — Eu percebo as tuas dificuldades como chefe dos homens; eles parecem derrotados e não se treinam como guerreiros que vão enfrentar um desafio desta natureza. Asgrim não te facilita as coisas.

Einar olhou de soslaio para ele, franzindo o sobrolho.

— Devias ter cuidado com o que dizes, Thorvald. Os recém-chegados não têm direito a nenhum tratamento especial. O governador não gosta desse tipo de conversa.

Thorvald falou calmamente.

— Eu não estou a criticar o governador, nem a ti. Vejo muito bem que ambos tentam fazer o melhor possível nestas circunstâncias difíceis. Não quero adiantar-me, mas acredito que posso contribuir com alguma coisa, se me deixarem.

Einar não disse nada. O homem ergueu as sobrancelhas numa expressão interrogativa, prudente.

— Dás-me autorização para comandar os homens em alguns exercícios de combate? Talvez discutir contigo e com Orm algumas idéias para organizar melhor os dias de trabalho deles, para que todos eles sejam testados, física e mentalmente? Creio que, se conseguirmos fazer isso, se conseguirmos ocupar melhor o tempo deles, para que não tenham tempo de pensar no medo que os assalta, talvez possamos mudar o modo de eles pensarem nisto, nesta caçada.

— Ah sim?

— Sim. Eu acredito que sim, Einar. Mas não posso fazer isso sem mais informações. Preciso que me fales na caçada, na batalha, ou lá o que é. Quem é o inimigo, que armas possui, quais são as suas vantagens? Fala-me do terreno e nas dificuldades que encontraram lá. Diz-me quando teremos de estar prontos. Diz-me por que razão os homens estão tão desanimados, tão aterrorizados que nem trabalham como deve ser. Diz-me isso e eu ajudo-te a mudar as coisas.

Thorvald esperou algum tempo, nervoso. Arriscara-se muito. De todos, Einar era o único que parecia ter a confiança dos homens. Era o que mais se aproximava de um verdadeiro líder. Asgrim não contava. Esse fazia as suas próprias regras e não levava em linha de conta as opiniões dos outros. Como governador era ineficaz e isolava-se arrogantemente dos seus homens, protegido pelos dois enormes guardas que andavam sempre na sua sombra, provocando o medo em todos. Um chefe de guerra não podia liderar convenientemente se os seus homens não o conheciam. Não podia liderá-los em condições se eles tinham medo dele. Talvez, por isso, as coisas tivessem corrido mal com Somerled nas Ilhas Brilhantes. Thorvald sentiu um nó no estômago. Podia ajudar o pai naquela guerra, tinha a certeza. Mas talvez ninguém o pudesse ajudar. Talvez ele estivesse fora de alcance. Talvez Asgrim não quisesse um filho.

— Difícil — disse Einar em tom baixo. — Asgrim prefere que não falemos disso. Especialmente com estranhos. Precisarias da aprovação dele para fazeres o que dizes. Não podes agir sem ele, a não ser que queiras enfrentar Hogni, ou Skapti, ou ambos.

— Bem, não. — Thorvald pensou nos dois guarda-costas com os seus olhos ameaçadores e pescoços espessos, musculados. — Mas não posso deixar que as coisas continuem assim. Não está certo.

— Por que te preocupas? — perguntou Einar, sem expressão.

— Porque... — Thorvald sentiu-se, momentaneamente, perdido. — Porque eles são todos bons homens e eu não gosto de ver homens bons a desistir. É a única resposta que tenho para te dar.

— Hum! — disse Einar, olhando para Thorvald com uma expressão um tanto diferente nas feições gastas. — Suspeito que não sabes no que te vais meter, mas admiro a tua coragem. E vais necessitar de alguma ajuda. Mas há uma maneira certa e outra errada de fazer as coisas. Eu não vou contra as ordens do governador. Não sobrevivi a cinco viagens à Ilha das Nuvens por ser estúpido. — A sua mão moveu-se para tocar nas cicatrizes paralelas que tinha na face. Thorvald já sabia que aquilo era um distintivo de honra, uma cicatriz nova cada vez que um homem participava na caçada e regressava para contar a história. Cinco era o máximo, sinal de que era um guerreiro veterano. — Precisas de saber uma coisa ou duas — continuou Einar. — Não se trata, exatamente, de ganhar uma batalha. Trata-se de permanecer vivo enquanto tentamos descobrir o que procuramos.

O coração de Thorvald bateu com mais força: finalmente, informação, algo que podia ser utilizado.

— E que procuram vocês? — perguntou ele.

— Uma criança — disse Einar com alguma relutância. — Um prisioneiro.

— Um dos vossos? Prisioneiro da tribo que vive lá?

— Acontece que — disse Einar — não é bem uma tribo de guerreiros, é uma força da natureza, um inimigo que usa a feitiçaria e outros truques para nos derrotar. Nós só temos algumas lanças e flechas, ao passo que o inimigo só precisa de abrir a boca para as entranhas dos homens se desfazerem.

— Que queres dizer? — Aquilo era muito estranho. Uma criança! Como podia uma criança valer a perda de tantas vidas, o dispêndio de tanto esforço? Havia ali uma história qualquer e ele tinha de a descobrir.

— Já disse mais do que devia — resmungou Einar. — Se queres saber a história da caçada, vai ter com Asgrim. Só voltaremos a falar disso depois.

Thorvald calou-se. Meia história sempre era melhor do que nada. Mas esperava mais.

— É — continuou Einar, virando-se para se dirigir para o abrigo vou falar com os outros, em particular com Orm. — Nós sabemos que tu tens idéias novas. Sabemos que queres ajudar. Mas não vai ser fácil persuadi-los. Compreenderás quando Asgrim te falar daquilo que enfrentamos aqui. Se nós parecemos derrotados antes mesmo de a batalha começar, é porque há uma boa razão. Vais ter uma tarefa difícil pela frente.

— Eu não, nós — corrigiu-o Thorvald. — Nós temos uma tarefa difícil pela frente. Um desafio.

— Veremos — disse Einar.

 

Ainda não tivera oportunidade de falar com Sam. O pescador trabalhava durante o dia todo, ora na praia reparando os barcos, ora no Fiorde, tirando do oceano cheio de truques e surpresas a alimentação dos homens. À noite, dormiam todos na casa comprida, nas plataformas de terra erguidas de cada lado. Ali, a conversa nunca era privada e era sempre interrompida por queixas ruidosas daqueles que queriam dormir.

Sam apanhou Thorvald uma tarde, quando os fabricantes de armas estavam a arrumar tudo e os pescadores transportavam o produto da pesca para o abrigo. A chuva caía com intensidade; naquelas ilhas era possível, num só dia, testemunhar todas as estações do ano. Sam transportava aos ombros um saco que parecia ensopado; estava no carreiro, na areia escura, com os seus olhos escuros sem maldade cheios de ansiedade. Parecia mais magro; mais velho, de certo modo.

— A pescaria foi boa? — perguntou Thorvald. Sam olhou para ele em silêncio.

— Não me digas que foste contagiado — exclamou Thorvald, zombeteiramente alarmado. — A falta de capacidade para falar, quero dizer. Estou a ficar maluco. Mas o teu grupo fala muito, não fala? Tenho reparado.

— Thorvald. — Sam pousou o saco. O jovem parecia alarmantemente sério.

— O que é? O que é que te preocupa?

— Nem sequer devias perguntar-me — disse Sam.

— Ora, diz lá. O que é que se passa?

Sam suspirou.

— Não sabes contar? Já reparaste que a estação está a acabar? Sabes há quanto tempo estamos aqui?

Thorvald fixou o amigo. Que se passava?

— Eu disse-te que isto ia levar tempo — disse ele cuidadosamente. As feições plácidas de Sam pareciam quase zangadas; nele, era uma coisa pouco comum. — Tenho de avaliar a situação, perceber quais são as intenções do homem. Não é fácil falar com ele...

— Já te esqueceste de Creidhe? Ela está sozinha e ninguém me diz quando voltamos. E se lhe acontece alguma coisa? Quer dizer, nós viemo-nos embora e a deixamos...

Thorvald não conseguiu evitar que as sobrancelhas se erguessem, descrentes, se bem que estivesse a fazer os possíveis para compreender.

— É disso que se trata? Creidhe está bem, Sam. Ela disse que não se importava que viéssemos para aqui, não te lembras? Creidhe é uma rapariga forte. Além disso que lhe pode acontecer na aldeia? Ela tem tudo aquilo de que gosta: a companhia de mulheres, confortos domésticos, tempo para tecer e bordar e coisas para ir fazendo. Aposto que a esta hora já ela organizou tudo à medida dos seus desejos. Nem sequer se deve ter apercebido da nossa ausência. Não te preocupes com Creidhe.

— Preocupo, pois — disse Sam teimosamente — e tu também te preocuparias se deixasses o teu pequeno mundo por um momento ou dois.

Thorvald não respondeu. O seu amigo nunca lhe falara daquela maneira.

— Se a coisa te soa mal, lamento, mas é a verdade — continuou Sam com as faces a ficarem vermelhas. — Passa-se aqui qualquer coisa de que eu não estou a gostar e da qual não quero fazer parte. Reparar um barco ou dois não custa nada e ajudar estes tipos na pesca também não, mas eles andam assustados, muito assustados e se pensas que Creidhe está sã e salva com aquela gente e que se esqueceu da família e dos amigos, és estúpido. Algumas das histórias que tenho ouvido provocam-me um nó no estômago. — O tom da sua voz transformou-se num sussurro quando alguns homens passaram perto a caminho de uma caneca de cerveja e do jantar. — Aquele tipo, Asgrim, não presta para nada. Eu sei que ele pode ser o teu pai e talvez não gostes que eu diga isto, mas tenho de o dizer. Estes tipos vão-lhe todos comer à mão, mas não como acontece em Hrossey com Eyvind: não o fazem por respeito. Estes homens têm medo do governador e com razão.

Thorvald encontrou a sua voz.

— Que queres dizer com isso, histórias? — Talvez Sam soubesse mais acerca daquela história estranha da criança prisioneira e feitiçarias. — Que andam eles a dizer?

— Que querem ir para casa, tal como nós. Mas não podem. Têm mulheres nas aldeias, mas não podem vê-las, ou estar com elas. Só no Inverno. Ele não os deixa ir.

— Está uma guerra em curso — disse Thorvald, franzindo o sobrolho. — Os homens não vão a casa durante uma guerra.

— Mais uma coisa. Vem aí uma espécie de batalha, um teste qualquer. Ninguém diz quando ganharmos, ou até se ganharmos. Eles dizem se eu morrer, diz a Helga que tenho um pouco de prata escondida por baixo da lareira, ou se eu morrer, podes ficar com a minha rede. Não soa bem. Estes tipos não são mais guerreiros do que eu, Thorvald. Eu não vim aqui para lutar.

— Estamos a melhorar — disse Thorvald. — O grupo com quem trabalho tem feito avanços, tanto em matéria de capacidade como no fabrico de armas. Pode ser que não precises de ser guerreiro, Sam. Talvez nenhum dos teus pescadores precise de tomar parte nisto.

— Já ouviste falar no que acontece quando um tipo se quer ir embora? — perguntou Sam pesadamente.

Thorvald esperou.

— Asgrim é que dita a lei, aqui. Um jogo, não foi o que disseste? Grande jogo. Sabes o que aconteceu àqueles dois que seguiam Creidhe? Morreram e foram atirados ao mar, foi o preço do erro que cometeram por quase a terem deixado cair da falésia. E a culpa nem sequer foi deles. É claro que, se Asgrim decide que tu és demasiado útil, batem-te em vez de te matarem, o suficiente para evitar que desobedeças de novo, mas não para te deixarem deficiente, já que os deficientes não podem combater. Aqueles dois tipos grandes, Skapti e Hogni, é que fazem esse trabalho sujo por ele. Não quero que Creidhe fique nesta ilha, Thorvald. Acho que devíamos ir para casa.

— É claro — disse Thorvald após um momento de silêncio. — Mas ainda temos a questão do Sea Dove.

— Já ganhamos, certamente, a madeira de que necessitamos — disse Sam. — Só nos resta pedi-la.

— Nesse caso, pede.

— Eu?

— Por que não?

— Pede tu. Esta viagem é tua, não minha. Pede a madeira, pergunta-lhe se ele é o teu pai, pergunta-lhe por que razão castiga homens que só querem uma vida pacífica com as suas redes e famílias. Foste tu que me trouxeste para aqui, juntamente com Creidhe. — A voz de Sam quebrou; nem parecia ele.

— Tenho uma sugestão — disse Thorvald. — E se regressasses com a tua madeira, visses se Creidhe está bem e começasses a reparar o barco? Eu vou mais tarde, depois...

— Depois da batalha? Tu queres entrar nela?

— Temos trabalhado muito; estes homens têm aprendido umas coisas. Eles podem vencer com o que eu já lhes ensinei e com o que ainda lhes vou ensinar até ao Verão. Pelo que ouvi dizer, parece que o que eles têm a fazer é ir buscar além um prisioneiro. Não deve ser impossível.

Sam colocou de novo o saco de peixe aos ombros e virou-se para subir na direção do abrigo.

— Estás a divertir-te, não estás? — Perguntou ele por cima do ombro. — Não te consegues afastar, nem sequer com a vida de Creidhe em risco. Se estás à procura de provas de que és filho dele, conseguiste.

— Ora vá-la, Sam — protestou Thorvald. O estranho comportamento do amigo estava a deixá-lo cada vez menos à vontade. — A vida de Creidhe em risco? Não acredito. Se não gostasses tanto dela, não te teria passado pela cabeça essa possibilidade.

— Pergunta-lhe — grunhiu Sam. — Pergunta-lhe esta noite.

 

As coisas passavam-se de maneira simples durante aquela última parte do dia, entre o crepúsculo e a hora de deitar. A estação ia avançada e o dia de trabalho era longo. O sono vinha rapidamente depois da refeição. Havia uma lareira no centro da grande cabana, com uma abertura rudimentar por cima que não escoava a totalidade do fumo. Eram acesas duas lâmpadas e os homens reuniam-se em redor do fogo onde um ou dois deles cozinhavam o peixe apanhado, geralmente uma espécie de guisado que continha uma dose bem grande de espinhas aguçadas. Por vezes, tinha alguns vegetais, a maior parte das vezes cebolas que algum deles tinha trazido da sua aldeia. Por vezes aparecia um par de miúdos escanzelados com algumas mensagens. Desse modo, um dos homens soube que a mãe tinha morrido devido a um frio qualquer de Primavera e outro que uma vaca sua tivera gêmeos, um macho e uma fêmea. Nenhum dos homens pediu autorização para regressar a casa. Não havia dispensas: pelo menos enquanto durasse a caçada.

Enquanto o jantar cozinhava, conversava-se um pouco, quase tudo comentários de pescadores respeitantes ao dia de trabalho, à faina, ao tempo e um ou outro comentário sobre um ponto esquisito na rede. Thorvald reparara na popularidade de Sam no meio daquele grupo e também reparara que Sam tinha sempre muito cuidado, não revelando nada de especial e nunca fazendo perguntas delicadas. Ocorreu-lhe que talvez tivesse subestimado o amigo.

Os fabricantes de armas falavam pouco. Já cansados devido ao tempo que levavam a chegar ao abrigo, sentavam-se, derreados e silenciosos, e quando o jantar estava pronto comiam sem proveito aparente. Trabalhar, comer, dormir, pareciam apenas passos necessários numa existência imutável e sem qualquer alegria. Thorvald sentou-se, noite após noite, entre eles e perguntou a si próprio se, a seu tempo, não ficaria como eles: um animal subjugado a uma carga pesada, obediente ao chicote e à voz do dono. O jovem estremeceu. Não era verdade: ele já estava a mudá-los. Ia ensinar-lhes novos truques, novas maneiras. Acenderia uma centelha qualquer nos seus olhos parados, custasse o que custasse; deixaria a sua marca antes de se ir embora.

Asgrim tinha o hábito de descer da sua cabana a tempo de comer. Ali não havia mesas formais, não havia bancos, apenas as grandes plataformas de terra que serviam de cama, de assento e de armazenamento a uma comunidade de trinta homens. O único que dormia fora daquela casa escura e fumarenta era o próprio governador. E os seus dois guardas pessoais, Hogni e Skapti, os maiores e mais silenciosos de todos. De ombros largos e caras de pau, eram irmãos e passavam as noites, por turnos, no exterior da cabana do governador.

Thorvald pensou muitas vezes em sentar-se perto de Asgrim e iniciar uma conversação tão casualmente quanto possível, tentando conseguir algumas pistas e tentar compreender aquele estranho padrão de vida e o conflito entre as ilhas. Tinha tantas perguntas para fazer: qual era, exatamente, a natureza daquele inimigo? Quantos eram? Utilizavam mesmo a feitiçaria nos seus assaltos, ou isso era produto de um medo supersticioso? Por que razão estavam as forças de Asgrim reunidas naquele único lugar, servindo de alvo Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz que vinham do mar, como ouvira dizer que era seu hábito? E por que razão os homens não podiam falar daquilo?

Tudo o que tinha a fazer era estar presente na ocasião adequada e perguntar. Mas, fosse como fosse, estivesse onde estivesse, Asgrim estava sempre no outro lado, ou no fundo da casa, sentado entre homens mais altos e maiores, de modo a Thorvald não lhe poder atrair a atenção. E com tantos homens reunidos num espaço tão pequeno, sempre com o pensamento no descanso, parecia sempre impossível passar por eles e tentar chegar ao governador; na verdade, havia algo de tão estranho nos sentimentos espessos, fumarentos e derrotados à partida daqueles comensais silenciosos que o impediam de fazer quaisquer perguntas antes de lhe surgirem no pensamento.

Assim, Thorvald deixou passar o tempo: demasiado tempo. O jovem não achou que o tivesse desperdiçado. Em frente das suas malgas de guisado sem sabor, aproveitara para observar. Já sabia quais eram os homens que tinham o favor de Asgrim: Orm, Skolli e Einar. Já sabia quais eram os que o governador vigiava com um ligeiro franzir de sobrancelhas: Svein, Wieland e, estranhamente, Sam que, tanto quanto Thorvald podia ver, não dera um passo em falso desde que ali tinham chegado. O homem que fora chicoteado por roubar já não atraía a atenção de Asgrim; uma lição parecia ser suficiente.

Não tinha outra hipótese senão tentar naquela noite. Maldito Sam e as suas ansiedades patetas. Se Thorvald não tivesse abordado o assunto, o amigo fá-lo-ia, provavelmente, por ele, enviando-os aos dois imediatamente de regresso antes de Thorvald poder terminar o que ali fora fazer; antes de descobrir o que queria. Tinha de confrontar Asgrim naquela noite e fazer, com alguma habilidade, com que o homem lhe respondesse.

O jovem esperou. Sentaram-se, cozinharam e comeram, desenrolaram os cobertores, descalçaram as botas e instalaram-se, amontoados, nas prateleiras de terra. Um ou outro foi ao exterior fazer as suas necessidades e Thorvald seguiu-os sorrateiramente. Asgrim estava a caminho da sua cabana solitária com as sombras indefinidas de Hogni e de Skapti, uma de cada lado. Chovia; a oeste, um raio perfurou o céu escuro seguido por um terrível e profundo trovão, como se os gigantes da terra dissessem, zangados: Quem se atreve a perturbar o nosso sono?

— Quero falar contigo — disse Thorvald secamente, saindo da sombra e atravessando-se no caminho de Asgrim. Um instante mais tarde já Hogni o imobilizava pelo pescoço, ao mesmo tempo que Skapti, respirando pesadamente, lhe encostava uma lança ao rosto.

— Ah sim — observou Asgrim, detendo-se. A chuva caía agora pesada e firmemente. — Thorvald. Tens andado muito ocupado.

Hogni mexeu ligeiramente uma das mãos: a dor no pescoço e na cabeça aumentou, sugerindo-lhe que a inconsciência não estava longe.

— Matas um homem só porque se atreve a falar-te? — conseguiu ele dizer, tentando recordar-se se Ash o ensinara a livrar-se de um aperto daqueles. — Não admira que o teu exército seja tão pequeno. — A ponta da lança estava tão próxima do seu rosto que podia ver cada marca de ferrugem no ferro, cada gota de água que corria através do metal escuro. Não fecharia os olhos.

— Achas que devo deixar-te viver? — O tom de Asgrim era ligeiro. A ponta da lança tremeu.

— Depende do que queres — disse Thorvald com dificuldade. Ah, já se lembrava: a finta e o joelho, era esse o truque. — Queres ganhar, ou queres que as coisas continuem como estão? — Subitamente, o seu corpo ficou mole; por um instante, não mais, a surpresa fez aliviar o aperto de Hogni e Thorvald aproveitou para rodar e atingir o adversário com um pontapé bem colocado na dobra da perna. Hogni gemeu; Skapti tentou apanhá-lo descontroladamente com a lança.

— Muito lento — disse Thorvald com a respiração entrecortada do lugar onde estava, por trás do governador. — Devias contra-atacar com um golpe por baixo, seguido de um pontapé. Se quiseres, mostro-te como é, amanhã.

Ouviu-se um rugido de fúria da parte dos dois guardas quando eles se aproximaram, um de cada lado, de dentes cerrados, as feições contorcidas por idênticas caretas de furiosa frustração.

— Chega, homens — disse Asgrim calmamente. — Com este tempo, não; esta chuva está a encharcar-nos. Ide deitar-vos.

— Mas... — disse Skapti, olhando para ele e depois para Thorvald. Asgrim olhou para ele.

— Sim, meu senhor — resmungou Skapti. Hogni flectia os dedos das mãos de um modo que sugeria que ainda não tinha terminado com Thorvald e isso não incluía lições de combate corpo-a-corpo. Os dois guarda-costas viraram-se sem mais uma palavra e desapareceram na escuridão.

— Bem — disse Asgrim friamente — suponho que não tencionas ficar aqui à chuva a noite toda. Segue-me.

A cabana do governador era confortável sem ostentação; o alojamento prático e solitário de um chefe de guerra experimentado. Tinha uma mesa de pedra, dois pequenos bancos e uma plataforma para dormir, onde se via um cobertor dobrado. Tinha uma lareira, ainda quente. Asgrim espevitou as brasas, acrescentou-lhe esterco de vaca e acendeu algumas lâmpadas com um graveto. A luz revelou mais alguns pormenores: parecia que o governador era um homem culto, porque havia um ou dois rolos de pergaminho num nicho por trás de uma faca, de uma espada e de um arco. Asgrim foi buscar uma vasilha com cerveja e encheu duas taças de barro rude.

— Senta-te, Thorvald. Recupera o fôlego.

Thorvald sentou-se. Agora que tinha a oportunidade, não sabia por onde começar. Se errasse, seria despachado sem uma única resposta. Asgrim tinha o rosto fechado e os olhos eram ilegíveis. No entanto, convidara Thorvald a entrar.

— Quando aqui cheguei — disse Thorvald — tu falaste-me de um processo. Uma pergunta, uma resposta. Eu tenho muitas perguntas, mas poucas respostas que te possam interessar.

Asgrim murmurou qualquer coisa que poderia ser um assentimento. O governador sentou-se em frente de Thorvald com uma taça na mão.

— Como é que jogamos este jogo? — perguntou Thorvald. — Talvez devas ser tu a começar, já que estás no teu território. Que queres saber de mim?

Os lábios finos de Asgrim torceram-se num sorriso.

— Vejo que aprendeste qualquer coisa, no fim de contas. Por que razão estás aqui e que procuras? — A pergunta saiu seca, rápida como uma lâmina na escuridão.

O coração de Thorvald bateu com força e depois acalmou-se em obediência à sua vontade.

— Acredito que tenho aqui alguns parentes. Falaram-me de um homem que navegou até estas ilhas, um monge cristão que esteve fora durante muitas estações e que regressou meio enlouquecido pelo que viu. Resolvi vir até aqui e tentar descobrir que o terá confundido aquele homem de fé. Ao mesmo tempo, descobrir se os meus parentes viajaram até estas paragens e o que lhes aconteceu.

— E os teus companheiros?

— Como já disse, um veio porque o barco é dele e eu precisava dele. A rapariga não foi convidada.

— Foi o que me disseste.

— É a verdade. Não tenho razão para te mentir. Na verdade estou aqui neste momento porque Sam quer ir-se embora. Ele quer a madeira que lhe prometeste para começar a reparar o Sea Dove.

Asgrim acenou lentamente com a cabeça.

— E tu?

— Isso são três perguntas.

— Responde e terás as tuas três respostas.

— Tens uma maneira muito rebuscada de conseguir informações na véspera de uma batalha. Não admira... — Thorvald calou-se ao ver o olhar nos olhos escuros do governador. Aquele homem dispunha da vida e da morte com a mesma facilidade com que enchia uma caneca de cerveja. — Muito bem — disse Thorvald. — Eu preferia ficar mais um pouco. Tenho tentado trabalhar com os teus homens, melhorar as armas e o modo de usá-las. Quero fazer muito mais. Acho que posso ajudar-te. Mas não sem mais informação. Os homens falam pouco.

— Os homens obedecem. Um exército tem de obedecer.

— Há quanto tempo travas esta guerra? Quantas ganhaste até agora? — Thorvald esqueceu-se de ser cauteloso. — Estes homens estão cansados, derrotados à partida. Só pensam na derrota. Não consegues grande coisa assim...

Asgrim ergueu de novo a mão.

— São essas as tuas perguntas? — perguntou ele suavemente. Aborrecido, Thorvald sentiu-se enrubescer. O jovem bebeu uma golada de cerveja: era de muito melhor qualidade do que a beberagem que era servida no abrigo.

— Desculpa — disse ele. — Agradecia-te que me falasses da natureza do inimigo a quem chamas Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz: quantos são, onde vivem, como atacam. Não te posso ajudar se não souber isso. Por vezes, ouço falar de uma batalha e por outras, de uma caçada; são as duas a mesma coisa? Que criança é essa que procuramos? Já percebi que temos de ir até à Ilha das Nuvens. Por que razão estamos tão mal preparados para esse combate? Estes homens não treinam com as espadas e as lanças de arremesso, a não ser que eu os obrigue. Parecem pensar que não vale a pena.

— Estamos tão mal preparados? — Thorvald olhou para as próprias mãos.

— Não gosto de ver tanto potencial desperdiçado. Aqui há força, talento, se conseguirmos ultrapassar a atitude negativa. Eu acho e consigo, se me deres uma oportunidade. Se me forneceres informação.

— Hum, — disse Asgrim, bebendo um pouco de cerveja. — E tu podes ser um espião, se bem que os espiões não vão direitos ao quartel-general do inimigo pedir informações detalhadas dos seus planos. Thorvald, talvez já te tenhas esquecido do que me disseste quando aqui chegaste. Pesca, uma tempestade, o desejo de reparar o barco e regressar a casa na primeira oportunidade. Não foi assim?

— Isso é outra pergunta — disse Thorvald. — Primeiro, tens de responder a umas perguntas, acho eu. — O jovem sentiu um suor súbito no pescoço: ali, naquela cabana isolada, era fácil acreditar nas histórias acerca de súbitos e fulminantes castigos. Bastava olhar para as feições pálidas e impassíveis, para os olhos escuros e argutos, para ver o seu próprio reflexo. Por que é que não trabalhamos os dois juntos? Como pai e filho?

— Há aqui uma coisa que me faz uma certa confusão — disse Asgrim, levantando-se para ir buscar ao nicho na parede um dos pergaminhos enrolados. — Sam quer regressar a casa, tu queres ficar. Por outro lado, não sabemos o que se passa na cabeça da rapariga; talvez queira esperar por ti, talvez não. São duas coisas difíceis de conciliar.

— Sam não quer saber de guerras. Ele podia regressar à Baía Sangrenta, se tu lhe permitisses. Podia visitar Creidhe no caminho de regresso e reparar o amado barco. Depois, quando eu acabasse o que desejo fazer aqui... — As palavras de Thorvald morreram lentamente enquanto o governador desenrolava o pergaminho em cima da mesa, colocando pequenas pedras nos cantos para o manter esticado. Asgrim pegou numa das lâmpadas de pedra de sabão e colocou-a de maneira a poderem ver o desenho meticuloso, nítido e complexo na superfície enrugada e acastanhada do pergaminho.

Era um mapa desenhado por um especialista, um mapa que mostrava as ilhas detalhadamente, as curvas e fissuras da linha da costa, os lagos, os rios e as correntes marinhas, os montes, os vales e as minúsculas aldeias. Aqui e ali viam-se palavras, palavras que Thorvald leu: Ilha das Tempestades, Ilha das Correntes, Ilha do Dragão. Arco do Troll, na boca do Fiorde do Conselho. Dedo da Bruxa. A oeste, isolada, a Ilha das Nuvens. A sul, havia ilhas sem nome, terras apenas esboçadas pela pena, como se esses territórios estivessem para lá de uma barreira que não podia ser ilustrada por meio de imagens, ou de texto. As terras d’Aqueles-Cujo-Nome- Não-Se-Diz. Thorvald ficou a olhar para o mapa, incapaz de dizer uma palavra. O jovem conhecia aquela escrita: já a vira antes.

— Algumas das tuas respostas estão aqui — disse Asgrim calmamente.

— Que belo trabalho — disse Thorvald asperamente. O jovem tossiu para aclarar a voz. Chegara a ocasião, tinha de agarrar a oportunidade. — Dou-te os meus parabéns.

Asgrim não respondeu. A sua mão moveu-se para abarcar as ilhas esboçadas a sul.

— Um mapa não mostra tudo — disse o governador. — Não mostra os anos de insucesso, as mortes, a amargura. O nosso inimigo tem um poder que não podemos sequer, imitar; os meus homens sabem isso, viram-no. O seu desespero não é surpreendente. Todos nós sofremos as nossas perdas: pais, irmãos, camaradas. Incluindo eu. — Asgrim inclinou a cabeça.

— Lamento — disse Thorvald, fazendo um esforço para controlar a voz agora que tinha a prova, agora que sabia. — Perdeste alguém de família? — Somerled podia ter casado de novo, provavelmente até o fizera; o exílio não significava, forçosamente, o isolamento total. No entanto, era estranho: nunca lhe ocorrera a possibilidade. Podia ter ali uma madrasta e uma tribo inteira de meios-irmãos. Sempre imaginara Somerled sozinho.

— Uma filha — disse Asgrim calmamente, percorrendo suavemente com os dedos a superfície da Ilha das Tempestades e das ilhas mais a norte. — Uma rapariga tão bonita como a tua amiga, com os mesmos cabelos louros e o mesmo sorriso inocente. Foi levada, roubada, chacinada. E também um rapaz. Mas esse era louco. Os seus esforços disparatados para endireitar o mundo amaldiçoaram-nos o futuro. Nunca teria chegado a lado nenhum; era muito parecido com a mãe. E tu?

A pergunta foi tão abrupta depois daquela declaração amarga que Thorvald quase não percebeu o seu significado.

— Tens família? — perguntou Asgrim, olhando para ele do outro lado da mesa. Entre ambos, jazia o mapa com toda a sua complexidade surpreendente, última peça de um quebra-cabeças cuja solução ainda não era conhecida do seu desenhador.

— Tenho — disse Thorvald com o coração a bater com toda a força. — Mas não vou falar dela enquanto não responderes às minhas perguntas. As regras do teu jogo são para ser cumpridas, não são? — No momento em que mencionasse o nome de Margaret, a verdade seria conhecida, e tudo mudaria. Agora, que estava tão perto, o jovem sentiu, curiosamente, alguma relutância em dar o passo seguinte. Como estranho, podia provar o seu valor. Melhor ainda, pensou ele, aceitaria o desafio, transformando aquele grupo de ilhéus desiludidos numa força de combate com alma e disciplina. Melhor ainda, ganharia a batalha e só então revelaria a verdade. Consegui, e sou teu filho. Não te desapontarei, como outros fizeram.

— Como sabes — disse Asgrim — vivemos numa terra de segredos, de passado estranho, de presente difícil e de futuro desconhecido. Sentimos alguma relutância em divulgar a nossa história; custa-nos muito fazê-lo. Tenho-te observado, esperando até que seja apropriado revelar-te, porque se, como dizes, desejas ter um papel a desempenhar nela, deves tomar conhecimento de um certo número de coisas.

— E que concluíste? — Thorvald conseguiu fazer com que a sua pergunta parecesse despreocupada, como se o seu desejo de saber a verdade lhe interessasse pouco. De fato, mal conseguia esperar. Finalmente, Asgrim ia contar-lhe tudo. O seu pai confiava nele.

O governador esboçou o seu fino sorriso habitual.

— Concluí que me podes ser útil. Pensava que a tua conversa sobre armas fosse a gabarolice habitual de um rapaz da tua idade, um exagero destinado a impressionar. No entanto, as tuas ações e o teu evidente empenhamento em melhorar os esforços dos homens, parecem provar que estava enganado. Se o teu desejo de ajuda é genuíno, acredito que possamos trabalhar em conjunto. Desse modo, deves saber a verdade.

Thorvald esperou.

— Deves compreender — continuou Asgrim — que isto, nestas Ilhas, nem sempre foi assim, o povo das Facas Longas contra Aqueles-Cujo-Nome- Não-Se-Diz, as batalhas, a caçada, o assassínio de crianças...

— Espera um pouco — interrompeu-o Thorvald. — Eu sei que o objetivo da caçada é apanhar uma criança, mas ninguém me falou em assassínio nenhum.

— Faz tudo parte da história; uma longa história de sofrimento. Quando nos instalamos nas Ilhas Perdidas, a vida não era assim. Viemos para estas ilhas como exilados, como banidos, camponeses, pescadores e eremitas, fugindo todos de qualquer coisa, buscando todos algo diferente. Forjaram-se laços; não se pode sobreviver numa terra destas sem eles. Construímos as nossas aldeias e os nossos barcos. Apascentamos o nosso gado nas encostas, forjamos uma vida, criamos os nossos filhos e filhas. Nas Ilhas a sul, na Ilha das Sombras e na Ilha dos Sonhos, vivem aqueles que já aqui estavam antes de nós. Vemo-los pouco.

— Ouvi falar em feitiçaria e magia — disse Thorvald hesitantemente. — Fiquei com a impressão de que essa tribo a que chamas Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz não é inteiramente humana.

O dedo de Asgrim percorreu de novo o mapa, detendo-se na pequena e isolada Ilha das Nuvens.

— Os Invernos, aqui, são longos — disse ele — e os Verões brumosos e tempestuosos. Um clima que provoca medos supersticiosos. Eu mantenho os homens ocupados o melhor que posso e sei, mas as suas imaginações levam a melhor. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz são da nossa raça. Falam a nossa língua. Mas não são como nós. Pensa-se que havia aqui outra raça mais antiga, uma raça que possuía poderes invulgares e que era de uma selvajeria pouco comum. As duas raças cruzaram-se e, com o tempo, transformaram-se num único povo: um povo diferente de qualquer outro, Thorvald. Uma praga, uma maldição.

Seguiu-se um ligeiro silêncio, durante o qual Thorvald tentou decidir a pergunta seguinte.

— Disseram-me — arriscou ele — que essa tribo prevalece graças ao uso de bruxarias e feitiços. Como podemos lutar contra isso? Penso que é o que os homens temem, não a perspectiva de uma batalha normal.

Asgrim sorriu retorcidamente.

— O inimigo e a ameaça são reais; eu perdi o meu único filho. Conheci a dor deste conflito, tal como todos eles. Os antepassados d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz já viviam nestas ilhas muito antes de nós aqui termos chegado em busca de refúgio. O cruzamento de raças deu-lhes faculdades que nós não possuímos, uma força que emana da própria terra. Eles usam essa força contra nós com efeitos devastadores.

— Ventos, marés, clima — disse Thorvald com ar absorto.

— Exatamente. Chama-lhe magia, se quiseres; os meus homens acham que é isso mesmo. Está para além das nossas possibilidades, Thorvald. O nosso número baixa a cada confronto. Além disso, temos as crianças. Isso foi o golpe final. Não admira que só vejas desespero nos olhos dos meus homens. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz roubam-nos o nosso próprio futuro.

Asgrim sentou-se de novo com as mãos apertadas em cima da mesa. Finalmente, Thorvald via algum sentimento nos seus olhos cor de carvão.

— Conta-me a história — disse ele, pegando na bilha e servindo a ambos mais um pouco de cerveja. No exterior da cabana de pedra, o vento erguia-se; a chuva batia como um malho.

— É uma história triste, Thorvald, uma história que fez de nós velhos antes de tempo. Em tempos, vivemos aqui em paz. Eles deixavam-nos em paz; nós não nos aventurávamos até às ilhas onde eles viviam. Havia encontros de acaso de vez em quando, uma borrasca súbita que atirava um barco para uma praia indesejada, um pedido de uma ovelha ou duas em anos de colheitas más. Havia tolerância entre nós, mas não havia quaisquer laços de amizade, ou alianças. Havia uma espécie de conselho, uma vez por ano no Verão, na Ilha das Sombras, que lhes pertence. Eles são um povo de muitos segredos; os seus ritos são determinados por uma rede de leis complexas. Não permitem que mais de três de nós compareçam às reuniões: o governador e dois dos seus homens. Nos primeiros tempos como chefe de guerra, fui a vários conselhos; Einar também. Descobrimos algumas coisas acerca deles. — A voz de Asgrim desceu subitamente de tom, transformando-se num sussurro. — Foi assim que conhecemos Máscara-de-Raposa.

— Máscara-de-Raposa? — Aquilo estava a ficar cada vez mais estranho.

— O sacerdote deles, ou homem sagrado. Um visionário, um guardião da sabedoria antiga. Quando eu me tornei governador já Máscara-de-Raposa era velho. Velho, cego e aleijado. Não aparecia muito, mas eles tinham por ele o maior respeito e reverência, como se ele não fosse uma criatura deste mundo, antes meio-ancião, meio-animal selvagem, capaz de lhes transmitir a sabedoria das rochas e dos poços profundos, dos animais selvagens e das estrelas eternas. Máscara-de-Raposa era o centro da sua existência, a pedra angular da sua crença. Máscara-de-Raposa manteve-os sãos e salvos; disse-lhes como viver as suas vidas, como sobreviver. Sabes, aquele sacerdote aleijado, aquele velho é apenas um de uma longa linhagem de videntes. Máscara-de-Raposa não é um indivíduo singular, é um título; um cargo, por assim dizer.

— Como o de governador.

Asgrim acenou com a cabeça.

— Exato, se bem que não seja um líder tal como nós o entendemos no povo dos Facas Longas. Máscara-de-Raposa não lidera o seu povo na guerra. Máscara-de-Raposa fala: eles ouvem-no e seguem o que ele diz.

— Não parece muito assustador — observou Thorvald, pensando que, na verdade, não era muito diferente do povo de Nessa, outra raça antiga das ilhas. Aquela gente agarrava-se ao conhecimento do céu e da terra, da água e do fogo. Thorvald achava que estavam condenados, mais tarde ou mais cedo, a ser absorvidos por gente mais flexível, gente mais dada à mudança. Mas não era um pensamento que expressasse diante da sua mãe. Não falava dele a Eyvind que, como nórdico, estava ferozmente empenhado na preservação da cultura ancestral da sua mulher. Nem a Creidhe, filha das duas raças.

— Não era assustador — disse Asgrim — até Máscara-de-Raposa ter morrido. Isso aconteceu há algum tempo. Eu era jovem, então, os meus filhos ainda eram crianças, tanto ele como ela. É costume d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, depois da morte, escolher outro para substituir o vidente. Eles fazem isso com alguma cerimônia. Mas, dessa vez, nenhum candidato preenchia as condições. Um Máscara-de-Raposa é escolhido por circunstâncias de nascimento; segue-se um teste para determinar a sua aptidão. Se nenhum membro da tribo preenche essas condições, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz ficam sem a sabedoria antiga, sem a liderança de que necessitam para viver, para sobreviver nestas terras selvagens. Não havia nenhum visionário; assim, procuraram fora da tribo.

— Estou a ver — disse Thorvald suavemente, sem tirar os olhos das feições duras de Asgrim, da sua boca apertada. — Uma criança? Foi disso que falaste, de roubarem uma criança?

Asgrim abanou a cabeça.

— Nós não sabíamos por que razão eles tinham começado a atacar, a afundar os nossos barcos de pesca, a atacar as nossas aldeias na costa, a cantar os seus cânticos noturnos e a encher-nos as cabeças com pesadelos. Convocamos um conselho; fui até à Ilha das Sombras com mais dois homens e convencemos Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a sentarem-se e a explicarem-se, tentando conseguir um acordo. Eles expulsaram-nos à pedrada, com flechas feitas de osso e com música enfeitiçada que nos encheu as cabeças de visões. Depois disso, preparamo-nos para a guerra. Enfrentamos os seus ataques o melhor que pudemos; ensinei o que sabia sobre guerra ao meu povo e tentamos proteger os nossos campos, o nosso gado, os nossos barcos. Perdemos muitos homens. Mas só percebi o que eles queriam quando a levaram. O governador estava a perder o controle das suas emoções; a sua voz tremeu e surgiram nos cantos da sua boca umas rugas de dor.

— A tua filha? — arriscou Thorvald. Asgrim acenou com a cabeça.

— A minha única filha. Não como vidente: um Máscara-de-Raposa deve pertencer ao povo deles. Roubaram-me a minha filha durante a noite. Não conseguimos resgatá-la: os ventos e as correntes derrotaram-nos sempre. Eles serviram-se dela, Thorvald. Esperaram até à sua primeira menstruação e depois passaram-na de homem em homem para que a criança que trouxesse no ventre fosse de todos, um verdadeiro filho da tribo. É a prática odiosa que seguem. Sula deu-lhes um filho e morreu por causa disso. Coisa de pouca importância para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Já tinham o vidente que desejavam: Máscara-de-Raposa tinha renascido.

Thorvald tossiu para aclarar a voz. Fora até àquelas ilhas à procura de respostas; e aquilo era mais do que procurava. Não admirava que, por vezes, o governador parecesse um homem estranho. Era um peso, uma dor e uma culpa que rivalizavam com o fardo que Somerled transportara consigo quando abandonara as Ilhas Brilhantes.

— Lamento — disse ele, sabendo que qualquer palavra seria inadequada. — Nesse caso, prossegues esta guerra por vingança? Para os fazeres pagar pelo sofrimento da tua filha?

Asgrim sorriu friamente.

— Não, Thorvald. Não quero que morram mais homens simplesmente para que eu fique de consciência tranqüila. A minha filha morreu; nenhum derramamento de sangue pode devolve-la. Se dependesse da minha vontade, tentaria negociar, chegar a uma trégua. Na verdade, já tentei isso e voltarei a tentá-lo. Não sou eu a desejar continuar este conflito, são eles: a tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.

— Mas porquê? Eles já têm o que queriam, o vidente...

— Já não têm. Durante algum tempo, pouco, houve alguma paz, uma paz que se instalou com alguma dificuldade. Então, subitamente, Máscara-de-Raposa desapareceu. Raptado. Foi levado para um lugar onde só um louco ousaria ir. Foi rodeado por uma barreira de proteção que só o mais inteligente e tortuoso seria capaz de atravessar. E a situação mantém-se. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não o conseguem trazer de volta: o lugar onde ele está escondido lhes é proibido. Pôr o pé nesse local é transgredir a sua mais antiga lei. O próprio Máscara-de-Raposa está acima dessa lei; pode pôr o pé onde muito bem lhe apetece. Dizem que ele continua vivo algures naquela última ilha a ocidente e como os seus ataques contra nós se baseiam nessa crença, temos de a honrar, se bem que a sua sobrevivência seja um milagre. A ilha é perigosa, rodeada pelas águas mais traiçoeiras, cheia de truques e armadilhas, um lugar que só nos atrevemos a visitar no Verão, quando ocorre uma conjuntura especial de ventos, marés e clima. No entanto, temos de tentar. Só quando o conseguirmos trazer de volta é que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz param de nos castigar, roubando-nos as nossas esperanças: eles matam-no todos os nossos recém-nascidos.

— O quê? Mas isso é incrível! Como é que agüentas isso? Certamente que os teus guerreiros podem prever isso, seria fácil...

— Este assunto ultrapassa os meios puramente físicos — disse Asgrim sem expressão. — Não pode ser resolvido com espadas ou lanças. Foi lançada uma maldição sobre o povo dos Facas Longas. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz já não precisam de pisar a nossa terra, ou erguer uma mão contra nós. Bastam as vozes, que uivam na noite. Desde que Máscara-de-Raposa foi raptado, há cinco anos, nem um dos nossos filhos viveu para ver o Sol nascente. A nossa gente está condenada, a não ser que consiga trazer de volta o vidente.

Thorvald não encontrou nada para dizer. Esperara ouvir falar de armas, de campanhas, de estratégias e vantagens. Não podia contribuir com nada naquele caso. Aquilo parecia mais uma história antiga, parte verdade, parte imaginação bizarra. No entanto, era-lhe contada como se Asgrim lhe estivesse a apresentar os seus planos para o treino de combate do dia seguinte.

— Quem é que raptou o vidente? — perguntou. — E quem é que o guarda?

— Quem o raptou? Um estrangeiro louco, um tipo que não devia estar no seu perfeito juízo. Foi um dia negro. Nós pensávamos que os tempos de morte e sofrimento tinham terminado. O fato de termos sido traídos por um dos nossos foi um golpe duro. Por causa dele, o sacrifício de Sula foi em vão. Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, suponho que o castigo é apropriado: a criança deles foi raptada e, por isso, roubam-nos as nossas, todas elas à nascença, até encontrarmos Máscara-de-Raposa e devolvê-lo ao povo a que pertence. Sem o seu vidente, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz são uma força poderosa. Sem o seu controle, a música selvagem deles provoca uma tal devastação que quase nos enlouquece. Eles não se conseguem governar, parece, a não ser que esse coração bata de novo de acordo com o seu conhecimento antigo, são e salvo no meio do seu estranho círculo. Eu próprio o testemunhei, nos meus esforços inúteis para conseguir a paz. Há um ancião d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz que, no passado, foi a voz do seu povo no conselho e que falava sabiamente, apesar de ser um velho estranho. Mediante certas condições, conseguimos algumas reuniões secretas entre esse ancião e eu próprio; temos de seguir determinadas regras e é um pouco arriscado. Já fui a uma ou duas dessas reuniões com Skapti. Foi por esse homem que fui informado do destino de Sula, do rapto de Máscara-de-Raposa e da maldição que nos lançaram até que a criança lhes seja devolvida. Para nós, o fim está muito próximo, a não ser que consigamos o objetivo rapidamente. É esse o propósito dos nossos preparativos, Thorvald: viajar até à Ilha das Nuvens e entrar em combate para resgatar o vidente e devolvê-lo ao povo a que pertence.

— Desculpa — disse Thorvald, tentando perceber se perdera alguma coisa — mas há mais alguma tribo na Ilha das Nuvens com quem tens de combater para conseguir chegar ao vidente? Esse Máscara-de-Raposa não é um rapaz novo? Não seria fácil ir lá e apanhá-lo, com ou sem correntes traiçoeiras? — O jovem já se via a velejar na direção da ilha e a cumprir a tarefa com facilidade, regressando triunfante depois de ter posto tudo em pratos limpos. Sam ajudá-lo-ia; Sam gostava de crianças.

— Fácil? Não, Thorvald, não é nada fácil. Há cinco anos que os meus homens levam a cabo a caçada durante os poucos dias do ano em que as condições a tornam possível. Temos tido enormes perdas. Aquele que procuramos está protegido por uma grande força dos elementos. Não lhe chamarias fácil se conhecesses a Ilha das Nuvens.

— Asgrim — perguntou Thorvald com alguma hesitação, porque havia ali segredos, velhas e profundas dores. — Quem é que raptou Máscara-de-Raposa? E porquê?

Nesse momento, ao uivar do vento e ao bater da chuva juntou-se o arranhar da porta e o som de uma voz pesada e áspera: a de Skapti, ou talvez a de Hogni.

— Meu senhor! Um mensageiro, meu senhor!

Em seguida, tudo se passou com muita rapidez. Dois homens, ensopados, entraram e conferenciaram por breves instantes, entrecortadamente e inaudivelmente com o governador, enquanto as suas roupas pingavam o chão à sua volta. Skapti manteve-se junto da porta meio aberta, olhando para Thorvald. Tudo o que o jovem ouviu da mensagem foi um nome de mulher, Jofrid, e algo acerca de ainda ser muito cedo. Fosse qual fosse o significado da mensagem, provocou um olhar no rosto de Asgrim que Thorvald achou inquietante: o olhar furioso de um homem que vê frustrados os seus planos há muito delineados. Um instante mais tarde, viu o governador a respirar profundamente e a fazer um grande esforço para manter uma expressão calma. Asgrim já dava ordens enquanto estendia um braço para a sua capa, calçava as pesadas botas, cingia a espada e pegava na lança.

— Skapti!

Parecia que o guarda ia acompanhar Asgrim aonde ele ia naquela noite de vento gritante e chuva copiosa. O governador parecia que se ia embora sem se preocupar mais com Thorvald, mas virou-se antes.

— Fui chamado, como vês. Escusado será dizer-te que a nossa conversa deverá ficar entre nós. Os homens sabem de tudo, mas não falam; este assunto deixa-os pouco à vontade. Thorvald, para minha surpresa, os homens parecem estar a responder aos teus esforços para os treinar, o que só pode ser vantajoso para nós na caçada. Quero que continues, se bem que na minha ausência seja Einar a comandar. Se conseguires trabalhar com ele, melhor. Quanto a Sam, vê se consegues persuadi-lo a ficar mais um pouco. Ele é um tipo grande e forte. Tenho a certeza que sabes que ele pode ser útil. Diz-lhe que eu garanto que poderá regressar a casa são e salvo quando isto tudo terminar.

Com isto Asgrim desapareceu na noite camuflado pela silhueta indistinta do seu guarda-costas. Os mensageiros olharam um para o outro, pálidos e sem fôlego. Pareciam ambos prontos a cair de exaustão.

— Vamos — disse Thorvald aos dois homens, apagando as lâmpadas e abafando a lareira. O jovem sentiu-se tentado a ficar na cabana para investigar os possíveis segredos que pudessem existir nos alojamentos privados de Asgrim. Por outro lado, Hogni andava por ali algures e Thorvald ainda sentia os seus grandes dedos no pescoço. — Vocês precisam de comer e de um lugar quente para dormir. Sigam-me.

Não lhe parecia nada estranho assumir alguma responsabilidade. Na verdade, pareceu-lhe inteiramente apropriado.

Não precisou de falar com Sam, porque no dia seguinte o amigo regressou mais cedo dos barcos amparado por dois homens e com o pé direito de tal modo ferido que foi necessário cortar-lhe a bota. Caíra-lhe em cima uma âncora, ou fora deixada cair: um acidente muito feio. Os homens disseram que Sam tivera muita sorte. Não parecia haver ossos partidos, mas o ferimento era doloroso e ele não podia pousar o pé no chão. Orm aplicou-lhe o ungüento verde que parecia ser um medicamento para tudo; Hjort envolveu a extremidade ferida num pedaço de tecido. Sam encarou o seu azar com boa cara, como fazia com quase tudo. Não precisou que lhe dissessem que não podia regressar a Água Brilhante, quanto mais à Baía Sangrenta. Era como se o destino tivesse conspirado para os manter a ambos no acampamento; o momento do acidente não fora nada oportuno, mas o jovem não disse nada a Sam. Por sua vez, Sam não perguntou a Thorvald nada sobre a noite anterior e Thorvald apreciou a sua discrição. Andava demasiado ocupado para explicações.

Com Asgrim fora e Skapti com ele, apresentou-se uma breve oportunidade. Hogni continuava no acampamento e a sua atitude para com Thorvald não podia ser descrita como cordial. O papel de Hogni era perigoso e o tempo escasseava.

Havia três maneiras de lidar com a situação. Primeira, Thorvald podia esperar que Hogni questionasse a sua autoridade e até lutasse por ela, esperando salvar alguma reputação. O jovem poderia, ou não, sobreviver. Segunda, Thorvald podia ignorar o olhar furioso de Hogni e oferecer-se para lhe ensinar, assim como aos outros, um ou dois truques que aprendera com Ash. Talvez ganhasse, desse modo, a confiança do guarda-costas. Havia uma terceira hipótese, que foi a que Thorvald escolheu: o primeiro passo de uma estratégia que, se corresse bem, o levaria até à Ilha das Nuvens.

Já tinham uma boa provisão de lanças. O primeiro tipo era baseado num modelo que Thorvald vira Eyvind usar, uma lâmina elegante com uma estria que percorria o centro e com o que se podia chamar umas asas na base. Aquele tipo de ponta podia penetrar e ser puxada com relativa facilidade. A segunda era mais estreita, um triângulo comprido com uma ponta extremamente precisa. Thorvald explicara as vantagens daquele tipo de lâmina em combate corpo-a-corpo, quando o oponente usava roupa protetora, como uma camisa de malha de ferro, por exemplo. A explicação deixara-os sem expressão. Ou uma jaqueta de couro, acrescentara Thorvald, como as que Hogni e Skapti tinham. O jovem demonstrou como a ponta da lança podia penetrar bem num ponto vulnerável, já que a sua cabeça fora desenhada para isso mesmo. Era claro que um homem tinha de desenvolver alguma perícia no seu uso. Mostrar-lhes-ia.

Um dia ou dois mais tarde depois da partida de Asgrim, Thorvald fez um pedido a Hogni. Antes, assegurou-se de que estavam sós. Os homens precisavam de praticar em combate corpo-a-corpo, disse ele, para estarem preparados e para testar as armas como devia ser. Não era de esperar que o inimigo ficasse imóvel como um homem de palha. Todos sabiam que Hogni e Skapti eram os melhores em combate corpo-a-corpo. Não o testemunhara Thorvald ainda há pouco? Na verdade — o jovem esfregou o pescoço — levaria algum tempo a esquecê-lo. Os homens riram-se. Por isso, disse-lhes ele, a partir daquele dia lutariam uns com os outros, aos pares, vigiando-se e aprendendo mutuamente. E como Hogni era um tipo talentoso, seria ele o primeiro a demonstrar o que sabia.

Hogni grunhiu e cuspiu para o chão. Não havia maneira de saber se aquilo significava consentimento ou troça.

— Acontece — disse Wieland hesitantemente que não vai haver muito disso. Corpo-a-corpo, quero dizer. Mesmo na ilha. Não vai haver esse tipo de combate. Nunca temos essa hipótese.

— Não que não gostássemos, se a tivéssemos — acrescentou Orm, coçando o queixo. Mas...

— É quase sempre flechas — disse Knut. — Levaram-nos seis homens, da última vez. Além das lanças e das outras coisas...

— Desta vez — o tom de Thorvald era confiante, forte, a voz de um líder — teremos lanças melhores e flechas melhores. E saberemos como usá-las. Desta vez, vamos atacar também com as nossas inteligências. Vamos levar a batalha ao nosso inimigo. Desta vez estaremos prontos.

— Quem é que vai lutar com Hogni, afinal? — perguntou um dos pescadores. Ouviu-se um murmúrio geral e algumas risadas, uma cotovelada aqui e um gesto além. Por fim, estavam interessados. — E quando é que começamos?

Hogni pôs-se de pé. O homem era uma cabeça mais alto do que todos os outros e parecia um touro.

— Por que não agora? — perguntou ele, olhando para Thorvald.

— Por que não, na verdade? — Thorvald devolveu-lhe o olhar. — E como fui eu quem teve a triste idéia, suponho que o primeiro desafio é para mim. Só espero que não me mates. Skolli tem mais uma fornada de pontas de lança a arrefecer na forja e gostava de estar aqui amanhã para ver se são boas. Vamos lá. — O jovem mostrou um sorriso negligente, se bem que o seu coração batesse com toda a força; os ensinamentos de Ash tinham sido duros, mas havia limites para o que um homem podia conseguir contra um oponente daquele tamanho. — Começamos?

Não era preciso vencer, apenas sobreviver. Apenas isso. A sua demonstração de agilidade na noite da partida de Asgrim devera-se, quase unicamente, à sorte e às circunstâncias, e Thorvald estava desconfortavel- mente consciente disso. O jovem considerava-se um lutador médio; até à data contara com a capacidade para aprender rapidamente e com o seu talento como observador.

Era evidente, pela maneira como Hogni flectia os braços e dobrava os joelhos, preparando-se, que aquele gigante não tencionava ser benevolente com ele. Os homens formaram um círculo em redor dos dois combatentes. Thorvald avistou Sam na retaguarda, apoiado no ombro de um tipo e pálido como o leite de uma cabra. Orm estava a aceitar apostas; os homens juntaram-se para poderem ver melhor. Se morresse com o crânio esmagado, ou com o pescoço partido, pensou Thorvald, olhando para os braços maciços do guarda-costas, para os seus ombros formidáveis e para os seus pequenos olhos vingativos, teria conseguido, pelo menos, um dos seus objetivos. O que fizera até ali acordara-os; despertara neles uma centelha. Era, exatamente, aquilo de que necessitava e usá-lo-ia se saísse dali vivo.

Era importante, disse Thorvald para si mesmo enquanto Hogni se aproximava, baixando-se e erguendo-se com um grande impulso de ombros, era importante demorar o combate o mais possível para demonstrar o mínimo de força e habilidade, providenciar um bom espetáculo para que os homens se sentissem divertidos e animados. Seria bom, devaneou ele enquanto Hogni o atirava dolorosamente ao chão, fazendo-lhe doer cada osso do corpo, seria bom parecer que estava a ganhar em determinado ponto, apenas para manter uma certa credibilidade. O jovem rolou, contorceu-se, pôs-se de pé e conseguiu dar um ou dois pontapés; Hogni grunhiu, surpreendido, dorido talvez, e deu um passo atrás. O que importava, disse Thorvald a si próprio enquanto o seu oponente juntava as duas mãos para lhe desferir um golpe no pescoço e nos ombros, qual martelo, o importante, à parte o não morrer, claro, era que Hogni vencesse. Do modo como as coisas estavam a decorrer, isso não seria um problema.

O jovem deteve o golpe com o braço esquerdo; era um golpe de quebrar os ossos e Thorvald cambaleou, tentando manter-se de pé. Hogni rugiu e carregou com a cabeça baixa, uma massa de músculos. A multidão rugiu de excitação.

Thorvald saltou. A manobra não fazia parte do repertório de Ash: surgiu-lhe de repente como a única opção possível. O jovem trepou de modo estranho para as costas de Hogni, as pernas em redor do pescoço do homem, o rosto ao nível das suas nádegas, olhando para o grupo de espectadores. Hogni endireitou-se, as mãos como tenazes em redor das pernas cruzadas de Thorvald. Este apertou as coxas com força e rezou. Estava pendurado, a cabeça contra as calças malcheirosas de Hogni e os braços lutando por conseguir vantagem. O jovem podia ouvir Hogni a resfolegar, tentando respirar enquanto as pernas do seu oponente lhe apertavam cada vez mais o pescoço.

O barulho vindo da multidão era incrível. Alguns deles tinham começado uma espécie de cântico que dizia: Hog-ni, Hog-ni, mas outros gritavam encorajamentos que diziam: “É assim mesmo, miúdo!”, e algumas sugestões: “Enterra-lhe os dentes, miúdo!”

Hogni abanava-o, rangendo os dentes. O gigante virou-se, fazendo-o girar e fazendo-o sentir-se tonto. Aguenta-te, aguenta-te... O aperto estava a abrandar. Thorvald sentia os dedos a soltarem-se, conseguia ouvir o assobio das tentativas agonizantes de Hogni para respirar. O gigante devia ter o rosto vermelho, quase a desmaiar. Hogni cambaleou; o chão subiu subitamente na direção da cabeça de Thorvald.

Chegara a ocasião. Thorvald abrandou o aperto mortal das suas pernas no pescoço de Hogni e segurou o homem pelo cinto para evitar que ele caísse. Mesmo a tempo: o guarda-costas podia ter uma aparência animalesca, mas era um lutador formidável. Hogni respirou rapidamente, colocou-se de novo em posição e com um hábil movimento dos braços e das mãos arrancou o adversário do dorso, atirou-o pelo ar e fê-lo aterrar, com um baque surdo, de costas no centro do círculo formado pelos espectadores.

— Au! — disse Thorvald após um momento. — Creio que me partiste qualquer coisa.

Ouviu-se um coro de vivas e o grito de guerra: Hog-ni, Hog-ni. Uma porção de mãos puseram Thorvald de pé, sacudiram-lhe a poeira do corpo, afagaram-lhe os cabelos e deram-lhe palmadas nos ombros. Os homens gostam sempre de um bom perdedor.

Endireitando-se, Thorvald viu-se a olhar diretamente para os olhos do guerreiro que fora, discutivelmente, o vencedor daquele combate. O rosto de Hogni estava alarmantemente vermelho; o suor escorria-lhe pela larga testa. O homem estava radiante.

— Nada mau, esse truque — observou ele, estendendo uma grande mão. Nada mau para um recém-chegado. Mas não conseguiste agüentá-lo, pois não?

Thorvald apertou a mão; mesmo depois daquele reencontro, a força do aperto de Hogni continuava a ser extremamente forte.

— Bem — disse ele, sorrindo também — hão de aparecer outras oportunidades. Suponho que não me ensinas o golpe que utilizaste comigo na outra noite, pois não?

 

Enquanto o Sol descia na direção do horizonte, Guardião fabricava as suas lanças: um pedaço de uma velha árvore lançada pelo mar a seus pés: uma lasca de osso de um grande gigante das profundezas, retirado com uma oração. Algumas tinham pontas de ferro, arrancadas dos corpos dos que tinham manchado aquela praia para lhe roubarem a coisa preciosa que ele guardava. Pequenino temia o cheiro do ferro; enquanto Guardião esfregava, amaciando o metal, o outro observava por entre as rochas, um par de olhos brilhantes na sombra.

— Não é a lança que mata — disse Guardião. — As mãos dos homens é que matam, quando seguram na lança. Isto é uma mera ferramenta.

Pequenino não respondeu; a sua sabedoria era diferente. Ao longo dos anos, Guardião aprendera a aproximar-se dela, não mais do que isso. Compreendia, apenas, o mistério do dom de Pequenino e o perigo que representava.

As lanças estavam alinhadas ao longo da parede de rocha cheia de musgo; a luz do pôr do Sol incidia nelas com uma luz vermelho-sangue. Guardião fabricara-as com amor, desejando que cada morte que provocassem fosse um ato de limpeza, um sacramento, um grito de verdade. Assim jurara há muito tempo e manteria esse juramento até ao dia da sua morte.

Na sombra, Pequenino tremia.

— Vem — disse Guardião. — Fogo; comida — continuou ele a dizer, estendendo uma mão num gesto de encorajamento e, após uns momentos, o outro avançou e aproximou-se da fogueira ainda a tremer, como se agitado por uma força invisível. Guardião espevitou o fogo; o peixe que apanhara às primeiras horas do dia estava pronto, escamado, ao lado das pedras.

À medida que a noite descia, as chamas aqueciam as feições ansiosas de Pequenino e as tremuras cessaram. Baixinho, Pequenino começou a murmurar e o fogo adquiriu a cor verde do oceano profundo, a cor azul do céu de Verão e a escura do flanco de uma velha baleia. As pedras aqueceram. Quanto ficaram prontas, Guardião colocou o peixe em cima delas e cobriu-o com cinzas e terra. O murmúrio cresceu lentamente, transformando-se numa canção. O céu escureceu e contra o cinzento da noite de Primavera surgiram as primeiras estrelas distantes, solitárias, doces como as notas que Pequenino lhes dirigia, chamamento e eco, pergunta e resposta perfeita, deslumbrante.

 

             Três ovos, hoje: uma colheita aceitável.

             Depois do pequeno-almoço, esta lenta caligrafia.

             Recordações perturbadoras, cruéis como uma aça.

                                                   NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Por vezes, a jornada fluía-lhe por entre os dedos, parecendo que se fazia a si própria. Se semicerrasse os olhos, conseguia ver as imagens a moverem-se, a mudar, descrevendo uma vida própria nos limites da sua estreita orla, uma paisagem de lã, mas possuindo, no entanto, uma liberdade, que ofereciam às pessoas que seguiam o seu sólido caminho na terra e que respiravam o ar verdadeiro. Por vezes, sentia-se tão desanimada que não conseguia enfiar a linha na agulha de osso para dar um único ponto.

Eles não tinham vindo. Asgrim prometera, mas eles não tinham vindo. Creidhe sabia que se estava a portar como uma criança ansiosa, mas não conseguia evitar a angústia que se apoderara dela, ou a ira que a acompanhava. Asgrim fora amável, arranjando tempo para se sentar a seu lado e contar-lhe tudo sobre o que Thorvald andara a fazer: reconstruindo velhos muros deitados abaixo por uma tempestade, ajudando a transportar por barco provisões até comunidades isoladas e escavando diques. Aquilo fizera-a sorrir; Thorvald possuía um certo sentido da sua própria importância e não era conhecido por ser especialmente prestável quando tinha as qualidades suficientes para uma determinada tarefa. Um trabalho árduo e básico como aquele far-lhe-ia bem.

Asgrim assegurara-lhe que os rapazes tinham amplamente merecido a madeira de que necessitavam e que estavam a prestar uma ajuda final antes de a irem buscar e reparar o Sea Dove. Tinham ganho amizades com a sua boa vontade e feitio fácil. Ambos tinham falado nela muitas vezes com preocupação evidente e afeto óbvio. Asgrim dissera que lhes diria que estava bem e em perfeita segurança. Era uma pena ela ter tido de testemunhar o que acontecera a Jofrid; era uma dificuldade provocada pela outra tribo, uma maldição e uma tristeza, mas não era algo com que os visitantes tivessem de se preocupar. O povo dos Facas Longas estava habituado àquilo. Um dia, arranjariam uma solução. Ela tinha de esquecer o assunto, atirá-lo para trás das costas. Dentro de dois dias, talvez três, Thorvald e Sam regressariam, dissera Asgrim. Creidhe far-lhe-ia um favor especial se fizesse companhia a Jofrid durante mais algum tempo e se ficasse mais alguns dias enquanto os seus amigos consertavam o barco. Gudrun também gostaria, assim como as outras mulheres. Tinham passado a gostar dela.

Assim, Creidhe esperou dois dias, três, deslocando-se todas as manhãs até à extremidade da aldeia, os olhos perscrutando em vão a encosta em busca de sinais de vida para além das ovelhas e cabras errantes. Asgrim regressara ao acampamento, fosse ele onde fosse, com o seu guarda-costas, um homem muito grande, caminhando silenciosamente a seu lado. Esse homem medira Creidhe de alto a baixo com os seus pequenos olhos e com um ar meticuloso e conhecedor, como se ela fosse uma bezerra ou uma porca premiada, até que Gudrun o pusera fora da cabana. Agora, estava longe juntamente com o governador e Creidhe não esperou dois ou três dias, antes sete, nove, quinze e mais uma lua e Thorvald continuava sem regressar. Sentada na sala de trabalho a fiar enquanto Jofrid cardava a lã, Creidhe foi forçada a reconhecer aquilo que sentia. Thorvald não correspondera às suas expectativas. Fora grosseiro com ela e com Sam. Estavam ambos habituados; acontecera muitas vezes e isso podia ser desculpado com o fato de Thorvald não se aperceber de que os magoava. O jovem esquecera-se dela. Ela também podia perdoar isso; Sam vira como ela estava ansiosa, podia ver a preocupação nos seus olhos, mas Thorvald achara, pelas suas declarações otimistas, que não se importava. Desta vez, no entanto, o egoísmo de Thorvald não tinha explicação. Ela tentara; na verdade recordava-se das vezes em que o desculpara, justificara o que ele fizera, simplesmente para justificar a sua crença nele. Os dias iam passando e Thorvald continuava ausente. No entanto, era livre de regressar: Asgrim confirmara-lho. Aquela atitude só podia ter uma explicação: Thorvald não queria saber dos seus sentimentos. Na verdade, não pensara nela uma única vez desde que partira naquela manhã com o cajado na mão e os olhos fixos na sua demanda muito pessoal. Não só lhe era indiferente a própria Creidhe e a sua família como a vida de Sam e a de todos aqueles que esperavam em Hrossey, que não sabiam se estavam mortos ou vivos. E Margaret? Pensara nela alguma vez, na sua dor e sentimento de culpa que deveria sentir, sabendo que fora por sua causa que ele partira naquela jornada? Creidhe sentiu-se forçada a reavaliar Thorvald, e o resultado deixou-a insatisfeita, não só com o objeto do seu afeto, mas também consigo própria.

— Pareces zangada — disse Jofrid docemente, passando a carda pela lã emaranhada.

Creidhe fez rodar o fuso e deixou que o fio torcido de lã lhe passasse pelos dedos. O que fiar tinha de bom era que, uma vez apanhado o jeito, não era necessário pensar; eram as mãos, simplesmente, que faziam o trabalho todo.

— Zangada, não, estou apenas um pouco triste. Não percebo por que razão Thorvald e Sam não estão aqui.

Pelas pálidas feições de Jofrid passou uma centelha de luz, que morreu logo a seguir. A jovem mal recomeçara a falar depois daquela terrível noite em que perdera o bebê. A sua voz era um sussurro apologético, o seu comportamento o de uma pessoa totalmente derrotada. A jovem agarrava-se a Creidhe como uma sombra. Tornara-se um hábito trabalharem as duas juntas todas as manhãs; de tarde Creidhe sentava-se na cabana de Jofrid e bordava, enquanto Jofrid tratava do gado ou ficava sentada em silêncio, por vezes, observando-a. Regressar a casa de Gudrun para jantar e dormir era um alívio. A grande e obstinada Gudrun amaciara um pouco; havia uma amabilidade relutante nos seus comentários sóbrios, nas suas tentativas para cozinhar algo diferente.

— Desculpa — continuou Creidhe, falando mais consigo própria do que com Jofrid. — Eu sei que parece egoísmo da minha parte preocupar-me com estas coisas. Mas não esperava ficar tanto tempo fora de casa, mais nada. Tenho saudades da minha família. — A jovem conseguia vê-los, como se estivessem ali na sua frente. Eyvind de um lado para o outro, ralado e com um sentimento de culpa, se bem que não tivesse nada a ver com aquela situação; devia pensar que falhara nos seus deveres de pai ao permitir que aquele desastre acontecesse. Nessa calada com Ingigerd nos braços, escondendo a sua preocupação como sempre, procurando sinais no fogo e na água, procurando respostas no seu espírito. Brona, tentando fazer as suas tarefas e as de Creidhe e mordendo as unhas por causa de Sam. A tia Margaret, segunda mãe de Creidhe, estática e silenciosa nos degraus da sua casa, olhando para oeste. Ash estaria algures atrás dela, vigiando-a fielmente. — Tenho imensas saudades de todos.

Jofrid baixou a cabeça, aparentemente concentrada na sua tarefa. A jovem deixou cair uma mão-cheia de lã cardada no cesto ao lado de Creidhe; entre as duas tinham preparado a quantidade suficiente para começar um cobertor ou uma túnica quente para um dos homens.

— Jofrid?

Não houve resposta; Creidhe não esperava uma.

— Tu tens marido? Ele está com os homens de Asgrim? — Creidhe ainda não tentara aquela pergunta direta; aquela ocasião parecia-lhe tão boa como outra qualquer.

Um assentimento. As mãos de Jofrid pararam de trabalhar.

— Como é que ele se chama?

— Wieland — sussurrou Jofrid, suspirando um pouco ao dizer o nome, um pouco triste.

— Ele é pescador?

— Já não é — disse Jofrid. — Agora é guerreiro. — Um momento mais tarde rolava-lhe uma lágrima por uma das faces. — Ele... — A voz tremeu; caíram mais lágrimas e a jovem levou as mãos ao rosto.

— Oh... Desculpa, eu não queria... — começou a dizer Creidhe, mas, tal como começara, o momento desapareceu. Jofrid passou uma mão pelas faces, pegou de novo na carda e regressou ao silêncio.

Depois daquele arremedo de conversa, Creidhe engoliu a sua frustração e prosseguiu a espera enquanto a Primavera se transformava em Verão e os cordeiros das encostas engordavam. Não tinha quaisquer notícias de Thorvald e de Sam. Quanto ao irmão Niall e seus companheiros, nunca mais os vira; a jovem supunha que Asgrim lhes proibira o acesso à aldeia de Água Brilhante. Creidhe pensou para si própria que as mulheres deviam ter gostado das suas vozes calmas e sensatas entre elas. Talvez as orações de Breccan fossem impotentes para afastar aqueles gritos de morte, mas, pelo menos, davam algum consolo. Face a uma dor daquelas, Creidhe achava que os deuses em que se acreditava importavam pouco, se se tinha fé ou não. Tudo era bom, desde que ajudasse.

À medida que o tempo ia passando, parecia a Creidhe que as mulheres se iam acostumando à sua presença, quase como se ela fosse uma delas e, por causa disso, começou a ouvir coisas que não eram destinadas aos seus ouvidos, farrapos de conversas que as preocupavam. A princípio, a jovem esquecia-os. Sentia-se só, preocupada e desapontada com Thorvald. Estava a exagerar. Mesmo assim, como digna filha do seu pai, Creidhe aprendera a ouvir e quanto mais ouvia mais medo sentia, mais segredos e sombras perigosas se lhe agarravam ao espírito.

Gudrun, mexendo em tachos à lareira, falando com Helga enquanto Creidhe mudava de sapatos no quarto interior: uma coisa tão linda, tão pequenina... é uma pena... E a resposta de Helga, apressada: Shhh...

Frida, convidada para jantar numa outra noite, mastigando silenciosamente o carneiro cozido e olhando para Creidhe com os seus olhos brilhantes e hostis. Mais tarde, a cerveja; uma piada da parte de Gudrun, algo acerca do tamanho dos narizes dos homens que as fizera rir a todas exceto a Frida, cujos lábios esboçaram apenas um sorriso. Mais tarde, enquanto Frida punha o xale pelos ombros e Gudrun lhe abria a porta: cuidado... muita amabilidade... depois é mais difícil...

Helga, na sala de trabalho numa manhã soalheira e Creidhe oferecendo-se para ajudar a fiar. Havia uma maneira melhor de ajustar os fios da teia, de agarrar na lançadeira de osso de baleia torcendo o pulso, que tornava mais fácil o trabalho, se ela lhe deixasse mostrar como se fazia. Creidhe fez uma demonstração: os fios alinharam-se na perfeição. A jovem observou enquanto Helga tentava uma primeira vez e depois uma segunda para ter a certeza; Creidhe felicitou-a pela sua facilidade de aprendizagem.

Helga sorriu.

— Oh, obrigada. Tu és uma rapariga tão inteligente, Creidhe, tão amável, que é uma pena... — A mulher corou e virou as costas.

— O que é que é uma pena? — perguntou Creidhe calmamente. De repente, a sala ficou silenciosa.

— Que não fiques cá — disse Gudrun do lugar onde estava sentada a fiar. — Que é uma pena ires-te embora assim que os teus amigos regressarem.

Era uma resposta lógica. Mas Creidhe sabia que não era a resposta que Helga quase lhe dera. Havia algo, algo que elas não diziam e que tinha que ver com ela. Desejava que Asgrim regressasse depressa para lhe poder perguntar diretamente.

Então, numa ocasião em que o ar estava a ficar cada vez mais quente, finalmente, com um toque de Verão, elas deram-lhe um presente. Um vestido de boa lã que não fora feito naquelas ilhas, suspeitou a jovem, um vestido que viera ali parar vindo de longe e posto de parte para uma ocasião especial. Aquelas mulheres não tinham a habilidade nem as ferramentas para fazer um trabalho daqueles. Era bege-pálido com uma estreita orla verde no pescoço e na bainha, bordada com pequenas flores e aves: um trabalho de habilidade e amor. As mangas eram estreitas, ao passo que a saia caía em folhos graciosos. Tinha, também, fitas verdes para os cabelos, para completar a toillette. Era um presente maravilhoso, mas totalmente inapropriado.

— Eu não posso ficar com isto — disse Creidhe, sem graça. — Mais parece um... um vestido de casamento. Vocês devem ficar com ele para uma de vocês, para uma das vossas filhas... — A jovem calou-se. Aquela aldeia tinha poucas raparigas; o par de rapazes e a rapariga estranhamente estrábica eram as únicas crianças que existiam. — Vocês não devem desperdiçar um vestido destes comigo continuou ela se bem que vos agradeça a generosidade...

— Fica com ele — disse Gudrun, quase zangada. — Prova-o. Deves ficar muito bonita, com esses cabelos louros e tudo.

— Quando o teu amigo regressar — acrescentou Helga — há de gostar de te ver com ele!

— Anda lá, rapariga — disse Gudrun.

Creidhe foi empurrada e espicaçada até ao quarto interior, onde não foi capaz de recusar os pedidos insistentes para se despir e provar o vestido. O corte não era mau, o corpete um pouco apertado e a cintura um pouco larga, mas era confortável. Como já fizera o que elas queriam, retiraram-se; apenas Jofrid ficou penteando os cabelos de Creidhe, atando-lhe as fitas no cabelo e ajeitando os folhos da saia para que caíssem com mais perfeição. O vestido era de um corte estranho, permitindo mostrar mais do que era considerado respeitável em sua casa. Mesmo em ocasiões de festa, Creidhe e Brona usavam sempre vestido de cerimônia e sobreveste devidamente abotoada, ou uma saia lisa e uma longa túnica, que era o traje tradicional do povo da sua mãe. Aquilo era mais um vestido de noite, justo no peito e nas ancas, um vestido que ela não fazia tenção de usar em frente de Thorvald e Sam, se bem que fosse interessante ver o olhar nos seus rostos. A jovem mirou-se no pesado espelho de bronze de Gudrun; a imagem devolveu-lhe o olhar mal iluminado pela luz da lâmpada, indistinto, preocupado, num rosto pálido e oval. Os cabelos caíam-lhe pelos ombros e pelas costas. Jofrid manteve-se atrás dela como um fantasma ansioso.

— Creidhe.

O sussurro de Jofrid era tão suave que Creidhe pensou, a princípio, que o imaginara: minúsculo e intenso, um sopro de perigo.

— O que é? — sussurrou ela, também.

— Tens de te ir embora. Amanhã de manhã.

— O quê? — O choque fez com que falasse em voz alta.

— Shhh! — disse Jofrid. — É perigoso. Não podes ficar aqui.

O coração de Creidhe batia com toda a força. A jovem abriu a boca para perguntar qual era o perigo, para onde havia de se ir embora, mas o momento passara. Jofrid, ao ouvir as outras regressarem, remetera-se ao silêncio; a jovem continuou a pentear os longos cabelos de Creidhe, amaciando-lhe as madeixas brilhantes e os seus olhos voltaram a não ter qualquer expressão. Era como se nada tivesse acontecido.

Creidhe deixou-se admirar e acariciar, excitada. Submeteu-se a mais fitas nos cabelos, a pequenos ajustamentos no vestido e a um par de suaves chinelas mais apropriadas do que os sapatos de todos os dias. Tornou-se evidente que não poderia recusar o vestido; relutantemente, a jovem aceitou-o, sabendo que nunca o poderia usar, salvo, talvez, na privacidade do seu próprio quarto, divertindo-se com Brona. Naquele posto avançado, entre aquela gente carrancuda, vestir aquele vestido extravagante era arvorar-se como única, diferente, especial, e a jovem não via qualquer razão para isso. Quando todos os pormenores ficaram a seu contento, as mulheres afastaram-se e admiraram-na com alguns comentários acerca da sua amabilidade, do seu desejo de ajudar, da sua inteligência e como se sentiam felizes por lhe poderem agradecer. Jofrid não dizia nada; a jovem olhava para o chão ou para os cantos da sala, como se pretendesse estar ausente. Mas depois de tudo acabado, depois de Creidhe ter despido e dobrado o belo vestido, Jofrid olhou para ela da porta e a mensagem estava, mais uma vez, firme e clara nos seus olhos: Vai-te embora! Agora, ou será demasiado tarde.

Creidhe passou a noite sem dormir, tentando ordenar os pensamentos enquanto o coração lhe batia no peito como um tambor, em pânico, e o corpo se lhe enchia de suores frios. Pouco antes do amanhecer, acalmou. No outro lado do pequeno quarto, Gudrun continuava a ressonar por baixo dos cobertores; a cerveja correra livremente na noite anterior e com alguma sorte a mulher dormiria mais do que habitualmente. Creidhe arrumou as suas coisas. Não havia tempo para procurar tudo e, assim, meteu no saco tudo o que encontrou: a faca, o material de bordar, um xale, o pente que Sam lhe fizera e, na bolsa exterior, o rolo da jornada. Então, com as botas de lã de ovelha numa mão e o saco aos ombros, percorreu em bicos dos pés a sala principal da cabana onde a fogueira estava reduzida a um monte de cinzas frias e onde a luz cinzenta da madrugada se inseria pelas frinchas e fendas da porta. Tudo feito em perfeito silêncio, porque apesar de ser uma rapariga e não estar destinada a ser um caçador, ou um guerreiro, Creidhe aprendera algumas coisas na casa do seu pai. Para um homem tão grande, Eyvind movia-se com a ligeireza de movimentos de uma sombra, silencioso como um falcão quando era preciso. Creidhe aprendera, também, como olhar e escutar, como aproveitar uma oportunidade. A jovem soltou o ferrolho da porta da frente da cabana de Gudrun, abriu-a, fechou-a sem um som e colocou de novo no lugar as pedras que impediam que ela oscilasse e batesse. Com o capuz na cabeça, a jovem deixou-se ficar, por instantes, encostada à parede, alerta para qualquer perigo. O lugar estava calmo; nenhum cão ladrou e nenhum pássaro cantou antecipando uma saudação ao Sol nascente, se bem que já se visse uma claridade pálida anunciadora por baixo do manto escuro que cobria as casas. Se havia homens de guarda à aldeia, não estavam à vista. Aquela hora da manhã, era provável que estivessem junto de uma fogueira algures, aquecendo as mãos e partilhando um jarro de cerveja e um pedaço ou dois de carneiro. Pelo menos, esperava que assim fosse.

A primeira parte foi fácil, com ou sem bruma. Percorrera aquele caminho todos os dias, com ou sem chuva, desde o dia da sua chegada a Água Brilhante. Silenciosa como um fantasma, Creidhe passou pelas cabanas e pelos anexos, pocilgas e galinheiros e chegou até ao local onde uns degraus num muro de pedra marcavam o fim do território que podia percorrer, a fronteira de uma terra proibida. A jovem olhou para trás por cima do ombro. Ao fundo, a bruma escondia, de algum modo, a morada de Gudrun, a casa comunal e as cabanas de Jofrid e de Helga. Creidhe levantou as saias e passou por cima do muro, passando para um carreiro irregular e cheio de vegetação. Subitamente, ouviu-se uma ave, reconhecendo confiantemente a madrugada. Creidhe respirou fundo, sentindo o ar úmido e frio, sentindo algo estranho no coração, talvez medo, misturado com uma sensação de liberdade que ia muito para além do fato de estar a abandonar a pequena aldeia e aquelas mulheres silenciosas, de segredos calados. Ainda não sabia bem o que era: senti-a dentro de si, forte mas elusiva, bela mas perigosa. Para além da dúvida, aquele sentimento estava relacionado com a visão que tivera naquela manhã na vereda da falésia, algo maravilhoso, poderoso e inefavelmente triste. Não sabia o que era; sentia, apenas, uma profunda gratidão por ainda se manter viva algures no seu espírito. Ajustando o saco que levava aos ombros, Creidhe pôs-se a caminho e começou a subir o vale, afastando-se de Água Brilhante. A seu tempo, a bruma matinal desfez-se e a rapariga estrábica levou os seus gansos a pastar. Então, nada mais se viu na encosta, para além da aldeia, senão as lentas e pálidas silhuetas das ovelhas a pastar.

 

— Ela não está aqui — disse calmamente o irmão Niall com uma facilidade nada de acordo com a sua tonsura e hábito. — Não há sinal dela, apesar de Colm ter estado toda a manhã lá fora a tratar da horta. Ele teria visto Creidhe se ela tivesse passado por aqui. Disse isso mesmo aos dois rapazes que apareceram por aqui à procura dela. Fizeste esta caminhada para nada.

Os dois rapazes tinham aparecido no eremitério por volta do meio-dia, respirando com dificuldade e tinham sido mandados de volta com uma breve resposta depois de terem bebido alguma água. E agora Gudrun percorrera o vale e subira a encosta, de rosto vermelho, a suar e com uma nota de medo na voz.

— Para onde havia ela de ter ido? — arquejou ela. Deve ter vindo para aqui.

O irmão Niall abriu as mãos num gesto que indicava uma perplexidade impotente. Era engraçado, pensou Creidhe enquanto permanecia imóvel, observando tudo através da frincha da porta do quarto daquela cabana pequena e perfeitamente asseada. Nunca vira, à exceção do seu pai, um homem parecer tão impotente.

— Não faço idéia — disse o irmão Niall. — Compreendo a tua preocupação. Não sei o que lhe terá passado pela cabeça. Esperemos que Creidhe tenha ido, apenas, passear ao longo do lago, ou tenha ido apanhar flores ao campo. As raparigas fazem coisas dessas. É claro que pode ter tentado ir até à Baía Sangrenta. E todos sabemos como é perigoso uma rapariga passear sozinha na praia. Receio que seja tarde de mais. Asgrim não vai gostar nada.

Gudrun torceu as mãos. Creidhe nunca a vira assim, nem sequer durante a noite das vozes. Aquela mulher grande e capaz parecia desfeita.

— Serás bem-vinda, se quiseres vir rezar um pouco conosco — acrescentou o irmão Breccan da mesa cheia de rolos de pergaminho, tinteiros de pedra-sabão e penas num jarro de barro onde estava sentado ao fundo do compartimento. — Talvez Deus tenha uma resposta para ti. Um pouco de reflexão pode providenciar grande conforto a um espírito perturbado.

Por todos os antepassados, aquele ainda era igual a Niall: dois hipócritas de rosto rapado. Creidhe olhou em silêncio enquanto Gudrun seguia os eremitas e vasculhava os cantos da cabana com o olhar, como se em busca de provas de que a estavam a enganar.

— Como vês — disse o irmão Niall numa voz gentil e sem expressão — só estamos os dois aqui e Colm lá fora no campo, algures. Se quiseres, chamamo-lo para que lhe possas tu mesma perguntar. A não ser que queiras inspecionar os alojamentos de três homens, todos eles celibatários e ao serviço de Deus? O monge ergueu as sobrancelhas. Não digas sim, rogou Creidhe a Gudrun. Se a mulher desse mais um passo na direção da porta, vê-la-ia. Aquele monge de cabelos brancos parecia gostar de correr riscos.

Gudrun grunhiu uma resposta qualquer, na qual Creidhe pensou discernir o nome Asgrim, girou nos calcanhares e desapareceu pela encosta abaixo. Era uma grande caminhada até Água Brilhante, e nada fácil. Esperaram os três em silêncio. Após um intervalo suficientemente longo, o irmão Breccan aproximou-se da porta da frente, um pedaço de madeira maciça e pesada que devia ter pertencido a um navio porque tinha cravos em lugares improváveis.

— Bem, bem — observou o irmão Niall enquanto Creidhe saía do seu esconderijo e retomava o seu lugar à mesa. O monge foi buscar um jarro a uma prateleira de pedra na parte mais longínqua do compartimento, encheu uma caneca e entregou-lhe. — Parece que os sarilhos andam atrás de ti, não andam?

— Peço desculpas — disse ela. A jovem já explicara as razões da sua súbita chegada não anunciada, o modo como a sua intranqüilidade crescera na aldeia até se transformar num medo real. Ao recordar-se dos avisos velados do irmão Niall e da sua oferta de ajuda, esperara que lhe dessem asilo. Ali estaria, sem dúvida, em segurança. As pessoas não faziam mal aos homens de fé, nem àqueles que asilavam. Os irmãos tinham-na recebido tranquilamente, ouvido o que tinha para dizer, tinham-na alimentado com vegetais e tinham-lhe dado uma cama quente. Enquanto comia — a caminhada trouxera-lhe de volta o apetite que perdera recentemente — Breccan fizera alguns ajustamentos no compartimento onde dormiam na cabana. Colm dormiria com a vaca e a cria no estábulo, anunciara ele alegremente; era o local mais quente de todos, para além de uma boa lição de humildade. Ele e Niall estenderiam os cobertores no compartimento exterior, deixando a hóspede sozinha. Creidhe começara por protestar, mas depois da caminhada estava suficientemente cansada apesar de ainda nem sequer ser meio-dia e adormecera numa das camas no instante em que se deitara. Acordara há pouco quando Gudrun batera à porta. Gudrun tinha-se ido embora, mas podiam aparecer outros; e a jovem apercebeu-se, sentada junto daqueles homens tranqüilos, com o sol da tarde a entrar pelas portadas abertas, de que não voltaria a Água Brilhante nem que Gudrun, Asgrim ou outro qualquer lhe pedissem.

— Não te desculpes — disse Breccan. — A nossa casa está aberta para ti; aqui, estás segura.

Niall não fez qualquer comentário.

— É só até os outros regressarem — acrescentou Creidhe apressadamente. — Não falta muito; Asgrim disse... — A jovem calou-se.

— Asgrim disse dois dias, parece-me que foi o que ouvi. — O tom de Niall era pensativo. — Isso já foi há algum tempo. Receio, minha querida, que o governador tenha outros planos para os teus amigos, planos que os manterão afastados daqui até, pelo menos, meio do Verão.

Creidhe ficou horrorizada.

— Que planos? Ele disse que eles já tinham ganho a madeira de que necessitavam. Asgrim disse que eles iam regressar.

— Sim — concordou Niall. — O governador diz muitas coisas e cada uma tem um propósito.

— Maldito seja! — Creidhe levantou-se de punhos cerrados. — Vou até lá ter com eles, é o que vou fazer. Estou farta de tanta regra: cobre o cabelo, fica na aldeia, não faças perguntas esquisitas. Thorvald e Sam têm de regressar; as nossas famílias precisam de nós em casa.

— Perguntaste a alguém por que razão? — A voz de Niall era suave. — Por que há de cobrir o cabelo? Por que não há de andar pela aldeia livremente?

Creidhe olhou para ele de lado.

— É claro que perguntei. Mas ninguém me dizia nada. Suponho que tem que ver com... os espíritos, as vozes, ou seja lá o que for que a outra tribo faz para os aterrorizar. Eu não tenho medo deles. Agora, era ela que mentia; estava aterrorizada, mas, de momento, a ira era maior. Vou lá, encontro Thorvald e Sam e ninguém me vai impedir.

— Hum. — Niall olhou para ela fixamente com os seus olhos escuros. — Mas hoje, não. Não chegarias lá antes do anoitecer e, se queres evitar Água Brilhante, tens de ir pelo carreiro íngreme, o que pode ser perigoso, mesmo com essas botas. — O monge olhou para o irmão Breccan e este foi para junto da lareira. — Eu posso responder a algumas das tuas perguntas, Creidhe. Meras suposições, talvez, mas fruto da minha longa estadia nestas ilhas, tanto perto da tribo de Asgrim como da outra. Na verdade, acho que seria bom saberes alguma coisa antes de...

Creidhe fez uma careta.

— Antes de eu ir a correr tentar mudar o mundo? — A jovem sentou-se e cruzou os braços em cima da mesa. A sua superfície de pedra brilhava de tão bem limpa; as penas, a tinta e os rolos de pergaminho estavam alinhados num dos extremos, tudo pronto para o exercício de um intelectual. — Tens razão, claro. Estou a comportar-me como Thorvald, atirando-me para a luta sem estudar o terreno. — Fora, exatamente, o que Thorvald fizera, pensou ela, quando seguira Asgrim e abandonara Água Brilhante. Apesar de não lhe ter dito nada, já decidira que o governador era o seu pai; a jovem vira a decisão nos seus olhos. Talvez tivesse razão. Agora já devia saber, de uma maneira ou de outra. Havia uma maneira simples de dominar as pessoas, que era evitar qualquer pergunta. — O meu pai teria vergonha de mim acrescentou ela.

— Teria? Bem, façamos como ele gostaria que fizéssemos, tranqüila e cuidadosamente. Por mim, aprendi o valor do conhecimento antecipado; não podemos derrotar um inimigo que não compreendemos. Infelizmente, Asgrim nunca aprendeu isso. Assim, a situação fica cada vez pior para o povo dos Facas Longas, estação após estação. Esta gente merece melhor.

Breccan pegara num balde e saíra, fechando a porta. Do rapaz, Colm, não havia sinais para além de uma cabeça inserida numa das janelas algumas horas antes e de um pedaço de queijo passado para o exterior sem mais explicações. Breccan fora avisá-lo, no caso de aparecer mais alguém à procura dela.

— Temos alguns dias pela frente, pelo menos — disse Niall, vendo, talvez, alguma ansiedade no rosto da jovem. — Ele vai saber que tu estás aqui; conhecemo-nos há muito tempo. Ele vai perceber que eu te tenho aqui, longe do seu alcance; mas não se vai apressar. Asgrim anda ocupado. Está a preparar as suas forças para a caçada. Neste preciso momento está a preparar-se, segundo me informaram, para navegar no vosso barco da Baía Sangrenta até ao acampamento para fazer algumas reparações. Suspeito que tem em mente um trabalho muito especial para esse navio. Asgrim tem muito com que se ocupar, por agora. No entanto, temos de estar preparados. O que quer dizer, receio bem, que continuarás aqui como numa espécie de prisão. Terás de ficar no interior da cabana até decidirmos o que fazer.

Oh. Talvez, no fim de contas, tivesse cometido um grande erro. Talvez aqueles homens não fossem nenhuns monges cristãos à semelhança do irmão Tadhg e dos outros. Aquele que tinha na sua frente ainda usava um punhal; ela vira a sua mão mover-se para o seu punho quando Gudrun batera à porta. Vira-o ajustar o hábito mais tarde para esconder o metal brilhante.

— Não é nada bom, eu sei. Tu deves ser uma rapariga ativa. Fizeste a caminhada até aqui num tempo notável.

— Em casa, estou habituada a ir todos os dias a casa da minha tia Margaret para trabalharmos juntas. Por vezes, vou a cavalo; ainda é longe. Detesto estar fechada. — Creidhe corou. — Peço desculpa, não quero parecer ingrata. Por favor, conta-me o que sabes acerca disto tudo. Estou preocupada com Thorvald. Ele, quando se lhe mete uma idéia na cabeça, esquece tudo o resto. Na verdade, não é capaz de tomar conta de si próprio. E Sam é apenas um pescador, que espera que os outros sejam sempre tão honestos como ele. Foi por isso...

Niall esboçou um pequeno sorriso.

— Foi por isso que vieste com eles?

— Bem, foi. Suponho que parece uma tolice, mas pareceu-me que eles precisavam de alguém... — Creidhe calou-se de novo.

— Alguém que conseguisse ver a situação por outro prisma e tivesse respostas? Receio que desta vez não. Vocês os três caíram numa armadilha muito traiçoeira, complexa e muito antiga, uma luta que já quase aniquilou todos aqueles que aqui vivem, tanto do lado do povo dos Facas Longas, como do lado d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E, é triste dizê-lo, por tua causa e daquilo que representas, não vai ser fácil desenredar-te.

— Por causa do que represento? — repetiu Creidhe, sem compreender.

Niall estendeu um braço e segurou numa mecha dos seus cabelos dourados, torcendo-os gentilmente.

— Apenas tu, não os rapazes. Eles obrigaram-te a cobrir o cabelo por uma boa razão. A filha de Asgrim tinha o cabelo assim, louro e brilhante, da cor do trigo maduro. A filha de Asgrim foi raptada por causa do cabelo, raptada e violada pelos homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Passou por todos durante uma lua inteira. É assim que a tribo tem um filho, um filho especial, cuja concepção e nascimento pertence a todos. Chamam-lhe Máscara-de-Raposa, um vidente poderoso, um sacerdote e um sábio. Uma criança assim só pode nascer de uma mulher que seja ao mesmo tempo Sol e Lua; os cabelos como os raios do Sol da manhã e a pele branca como o brilho da Lua na neve.

Creidhe olhou para ele espantada.

— A filha dele? Que coisa terrível! Que lhe aconteceu? — Mas parecia que a jovem já sabia a resposta; estava gravada nas feições austeras do monge, na cuidadosa neutralidade dos seus olhos.

— Morreu; era muito nova, teria, talvez, treze anos quando a raptaram. Mais nova do que tu, Creidhe. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estavam sem qualquer vidente há alguns anos, desde que o último morrera. Estavam em permanente agitação; precisam desse tipo de liderança para manter a ordem, todo um padrão de vida. Sem ela, são como um machado afiado nas mãos de um louco, manejado de qualquer maneira, pronto a destruir o amigo ou o inimigo. Ouviste a música bárbara deles; viste os danos que pode provocar. Eles não usavam esses poderes quando Máscara-de-Raposa estava com eles. A rapariga serviu o propósito para que foi raptada; a sua morte não teve qualquer significado. Para eles, não passou de uma incubadora.

Por baixo do ultraje que sentia, Creidhe pensava com toda a rapidez.

— Cabelos louros, sim, suponho que tenho de os cobrir porque me podem ver, porque me arrisco a ser... raptada. — A jovem estremeceu, tentando imaginar a rapariga sozinha no meio daqueles monstros, destruída a sua vida. Tentou imaginar-se a si própria, raptada também e usada da mesma maneira... Era horrível, impossível. Coisas daquelas não aconteciam. — Por que só eu? — perguntou ela, ouvindo o tom de medo na própria voz. — Por que não hão de todas as mulheres cobrir os cabelos? E como é que tu sabes isso tudo? Pensei que nenhum de vós podia ir à aldeia, pensei que tinham sido banidos.

— Quanto a isso — disse Niall não somos bem-vindos nos domínios de Asgrim, isso é verdade. Mas já estou aqui há muitos anos, Creidhe, já aqui estava quando começaram os sarilhos. Houve um tempo, nestas ilhas, em que os homens faziam comércio sem receio; em que as pessoas viajavam livremente de aldeia em aldeia e falavam abertamente dos seus assuntos. Nesses tempos, o povo dos Facas Longas e o d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se- Diz encontravam-se uma vez por ano num conselho. Custa a acreditar, agora, mas é verdade. Hoje em dia, as informações chegam apenas pela voz de Asgrim, que é o único que pode falar com o inimigo e, mesmo assim, com alguma dificuldade, suponho. Os meus jovens mensageiros, os que me trazem peixe e novidades, mantêm-me informado sem que se saiba. Perguntas: Porquê só eu? As mulheres louras são raras nestas ilhas. Nestes anos todos que aqui tenho passado, apenas vi duas raparigas com esse tipo de cabelos: Sula e tu. Suponho que a tua mãe veio de uma terra a leste: Noruega, talvez?

Creidhe esboçou um sorriso.

— A minha mãe pertence à velha raça das Ilhas Brilhantes: é uma mulher de cabelos escuros e de aspecto franzino. Mas tu já sabes isso. O meu pai é que é louro e com olhos da cor do céu.

O monge não respondeu. Dentro do pote a seu lado estava uma pena. Niall pegou nela e rodou-a entre os dedos com um ar ausente.

— Tu és escriba? Desenhador? — perguntou Creidhe, tentando fixar a mente numa coisa normal, tentando tranquilizar-se, assegurar-se de que não estava a ter um pesadelo. A jovem pensara nos instrumentos colocados em cima da mesa; pareciam incongruentes naquela paisagem brutal e abandonada.

Por um momento, Creidhe pensou que ele não ia responder. Finalmente, ele pousou a pena e disse:

— Nós praticamos esta arte, os três, de uma maneira ou de outra. Ajuda a passar o tempo. Tu sabes ler?

— Oh não. Gostava, claro; Thorvald sabe ler, a mãe dele ensinou-o e eu quis aprender, mas parece que não tenho o jeito necessário. A tia Margaret disse que não tinha importância, que eu tenho talento para outras coisas. Mas gostaria muito de ser capaz de escrever o meu nome; fazer contas: escrever coisas.

— Outras coisas? Que coisas são essas, para as quais a tua tia Margaret diz que tens talento?

A jovem corou de novo: que estupidez.

— Coisas de raparigas. Fiar, tecer, bordar. Cozinhar e fazer trabalho de parteira. Cuidar de crianças e ensiná-las. Thorvald acha que estas coisas não são importantes, mas são. Têm de ser. São a alma da comunidade, mantêm tudo junto... — balbuciou Creidhe; era evidente que aquilo não tinha qualquer interesse para ele!

— Tens algum desses trabalhos contigo?

— Tenho. Mas não o mostro a ninguém. Pelo menos, não muitas vezes.

O sorriso dele era prudente; algo provocara um certo constrangimento entre os dois.

— Nem eu o meu, Creidhe. Nós os dois não confiamos muito nas pessoas e, se calhar, temos razão. Talvez, quando nos conhecermos melhor, possamos trabalhar lado-a-lado. Mas agora está a fazer-se tarde e eu penso que os meus colegas estão de regresso; talvez tragam ovos.

— Oh, mas tu não acabaste! E Asgrim e os rapazes... por que é que ele os tem lá e como é que...?

A porta rangeu e abriu-se, deixando entrar Breccan e Colm. O último lançou uma olhadela a Creidhe e retirou-se para junto da lareira com um balde de leite numa mão e um cesto de ovos na outra. Creidhe pensou que ele ainda era suficientemente jovem para achar perturbadora a presença de uma mulher tão perto de si; os outros, devido à idade ou à disciplina, não pareciam minimamente perturbados. O barracão da vaca devia ser, provavelmente, uma bênção para Colm a julgar pela maneira como ele olhava para ela de esguelha, como um pretendente tímido.

— Como já disse — Niall cruzou os braços casualmente — ainda temos alguns dias e com a restrição de atividades fora de portas, temos muito tempo para falar. E tu precisas de mais comida e mais sono. Vamos devagar. Há aqui muita coisa para desembrulhar. Ah, quatro ovos. As galinhas devem ter-te ouvido chegar.

 

— Vou regressar — declarou Sam, fazendo peso no tornozelo ligado e gemendo de dor. O ferimento estava a demorar muito tempo a sarar; talvez houvesse qualquer coisa partida, no fim de contas. — Vou-me embora, nem que tenha de ir de rastos. Isto é ridículo. Quero o meu barco, quero ver Creidhe e quero ir para casa. Como o governador não está cá, não preciso de pedir autorização, pois não? Ou é a ti que é suposto pedir, já que te armaste em chefe na ausência dele?

O jovem olhou de relance para Thorvald e deu outro passo hesitante ao longo da praia. Estavam os dois sozinhos; mais acima, junto do abrigo, os homens lutavam a fingir sob a supervisão de Hogni. Thorvald já tinha ensaiado o corpo-a-corpo e agora eles ensaiavam possíveis escaramuças, oito contra oito, enquanto os restantes observavam. Estariam prontos a meio do Verão; faria com que assim fosse.

— Chefe? — Thorvald ergueu as sobrancelhas. — Dificilmente, já que sou aquilo a que eles chamam um recém-chegado, no fim de contas. Limito-me a partilhar os conhecimentos que tenho. Tu viste como eles eram, Sam. Autênticos alvos numa batalha. O mínimo que eu podia fazer era ajudá-los um pouco.

— Hum. Mas estás a gostar, não estás? Tratado como se fosses alguém especial, o herói em que eles todos se revêem e que lhes resolve os problemas todos? Não te estou a conhecer, Thorvald, a sério que não.

— De qualquer modo — disse Thorvald, sentindo-se algo tagarela apesar de os comentários de Sam serem um disparate, claro — sabes muito bem que não consegues dar mais de seis ou sete passos sem cair. Sabes muito bem que não consegues chegar à Baía Sangrenta, principalmente com um carregamento de madeira aos ombros. Suponho que o plano é esse, já que estás à espera de alguma madeira para o Sea Dove. Sabes muito bem que ainda não posso regressar. Estes homens dependem de mim. Sem a minha ajuda serão novamente derrotados: derrotados, mutilados, mortos e atirados de novo para o desespero, até que o inimigo acabe com eles até ao último. Queres que eu deixe que isso aconteça quando posso fazer algo para o evitar? Põe de lado as tuas preocupações, Sam. Isto é muito maior do que tu, eu e o Sea Dove. — Era tão grande, de fato, que lhe começara a consumir os pensamentos, noite e dia. Nas Ilhas Brilhantes, o mais próximo que estivera de influenciar um homem, de tomar uma decisão de alguma importância, fora juntar-se ao debate quando convidado para os conselhos com a sua mãe. As suas contribuições, se bem que recebidas com respeito, tinham sido sempre periféricas. Nunca se achara essencial em qualquer das discussões, em nenhuma das tentativas. Nunca tomara parte numa aventura, na qual a vida e a morte estivessem em jogo; nunca tivera homens dependendo de si. Aquilo era vital. Quase acreditava que fora enviado de propósito para aquilo.

Sam cerrou os maxilares obstinadamente. Desistira de tentar andar e apoiara-se no pedaço de madeira que usava como bengala.

— E Creidhe? — perguntou ele. — Esqueceste-te dela, não esqueceste, nessa tua missão de impressionar esse teu pai?

Subitamente, a raiva apoderou-se de Thorvald. O jovem ergueu um braço como que para desferir um golpe, mas desceu-o ao ver o olhar de Sam.

— Tento na língua! — disse ele asperamente. Em seguida, respirou profundamente. Um líder não perde o controle com facilidade e ele era ali um líder, apesar de tudo. De fato, Sam tinha razão. Os homens viravam-se cada vez mais para Thorvald em busca de liderança e encorajamento e ele via neles um certo desabrochar, tanto em termos de luta como em termos de confiança. — Creidhe veio porque quis — disse ele, forçando a voz a permanecer calma. — Sabes isso muito bem. Não há razão para ela não esperar mais um pouco por nós. Desde que partamos antes das tempestades de Outono, chegamos facilmente a casa. Uma passagem pelas Ilhas do Norte, talvez, e depois uma viagem cuidadosa até Hrossey. Temos muito tempo.

Creidhe podia esperar. A sua mãe podia esperar. Aquilo era uma missão, um desafio a sério, real.

— Acabas por fazer o que queres, claro — resmungou Sam. — Acabas sempre. Mas não me podes obrigar. Desta vez, não. Tenho um mau pressentimento que tem que ver com Asgrim, com esta porcaria da caçada e com Creidhe. Assim que este pé estiver bom, vou ter com ela e se tu não estiveres lá quando o Sea Dove estiver pronto, vamos para casa sem ti.

Thorvald sorriu levemente.

— Vai ser bom, só vocês os dois. — Magoava-o o fato de Sam não o apoiar, o fato de Sam não compreender a magnitude do que estava a tentar fazer ali, o significado de tudo aquilo. Ganharia a batalha daquele Verão, resgataria, finalmente, Máscara-de-Raposa e devolveria a paz há tanto tempo desejada por Asgrim para a sua tribo. Certamente que nenhuma rapariga, nenhum barco, era mais importante do que aquilo?

— Tu és cego, não és? — grunhiu Sam, virando-lhe as costas.

Thorvald não fazia idéia do que ele estava a dizer e não lhe apetecia perguntar-lhe. O ferimento, a inação forçada, transformara-o numa pessoa bem estranha; a sua disposição sempre amável e alegre fora substituída por um temperamento doentio e por uma melancolia desassossegada. Bem, o problema era de Sam, não dele. Asgrim regressaria em breve, a sua última viagem fora para fiscalizar os postos avançados e recrutar mais alguns homens para aumentar o número de efetivos que Thorvald estava a treinar no acampamento. Tinha de fazer com que, quando o governador regressasse, tivessem algo para lhe mostrar.

À medida que a confiança em Thorvald crescia, os homens iam começando a falar mais abertamente e o jovem aprendeu o suficiente acerca da natureza da batalha que estava para vir e do terreno em que ela seria travada, descobriu como restringir a estratégia aos mais apropriados naquelas condições tão difíceis. Qual era o tamanho das forças inimigas? Grande: vinham de todas as direções, apareciam e desapareciam como lhes apetecia. No último Verão, tinham dado conta de muitos homens de Asgrim antes de o restante do exército dos ilhéus ter conseguido atravessar a Corrente dos Loucos de regresso ao Fiorde do Conselho. Portanto, aquela tribo tinha muitos homens, bem armados, inteligentes e engenhosos. Tinham a vantagem de conhecer o território. O tempo de duração da caçada? Dois dias, se tivessem sorte; os barcos ficariam na Ilha das Nuvens durante a noite porque a travessia era traiçoeira mesmo em plena luz do dia e havia presenças misteriosas. Nenhum homem queria pôr o pé naquela praia na escuridão. Dois dias e regressariam a casa de novo, fosse qual fosse o resultado; se não conseguissem passar enquanto a estranha calma de Verão embalava as águas turvas da Corrente dos Loucos, o mar engoli-los-ia, se o inimigo não o fizesse. O terreno? Um lugar terrível, cheio de súbitos e íngremes precipícios, buracos, falhas e cavernas. Pouca cobertura, além de que o inimigo conhecia aquilo como as palmas das mãos. Havia aves por toda a parte, o solo, em alguns lugares, era escorregadio devido aos seus excrementos e o ar estava sempre cheio com os seus gritos e bicadas dolorosas. Teriam de proteger os novos; um risco adicional. Mais alguma coisa? Bem, havia a bruma, a chuva sempre a cair, o frio; as mãos vindas de sob a água, e as vozes...

Uma guerra na qual as formações organizadas, e as cunhas eram totalmente inapropriadas. Os Pele-de-Lobo seriam bem utilizados. O medo do inimigo parecia ser uma barreira a ultrapassar e uma força pequena de profissionais de elite seria de grande utilidade, para não falar daqueles fanáticos seguidores de Thor com a sua total falta de instinto de sobrevivência. Era interessante. Thorvald pensou no pai de Creidhe, que fora, em tempos, um daqueles guerreiros; na verdade, apesar de Eyvind ser agora mais um árbitro e um homem de família do que um soldado, as pessoas, nas Ilhas Brilhantes, continuavam a referir-se a ele como o Pele-de-Lobo, Filho de Thor, como se só tivesse existido um. Bem, ali não havia daqueles guerreiros; até os melhores homens de Asgrim viam aquele conflito com alguma perturbação, ou com uma aceitação fatalista. Thorvald esforçava-se por mudar esse estado de espírito. Decidira conhecer melhor os homens, inserindo em cada, um sentido de objetivo. Começava a dar resultado. Einar tornara-se num amigo e Skolli num aliado. Wieland estava mais pronto a partilhar as suas idéias do que antes, se bem que continuasse pouco naturalmente sombrio.

Skapti fora um desafio. Fora necessário despoletar uma situação na qual o segundo dos dois grandes guarda-costas, que os homens temiam ainda mais do que o irmão, Hogni, foi elogiado pela sua destreza, pelas suas capacidades especiais e convencido de que era vital para aquele empreendimento. O próprio Hogni ajudara. Skapti, disse ele a Thorvald, calmamente, tinha muito jeito para lançar facas. Não havia ali grande necessidade daquela destreza; força bruta e escrúpulos mínimos era o que Asgrim exigia dos seus guarda-costas. Mas Skapti era um artista com as facas.

Thorvald deu uma tarde de folga aos homens e pô-los a competir em jogos de várias espécies: luta livre, corrida, salto e escalada, puxar um barco para a praia, desatarem nós e, para coroar o concurso, lançamento de facas. O alvo era uma porta de madeira, na qual estava desenhado um homem com o coração pintado de vermelho. Cinco pontos para a cabeça, dez para o coração e um para um ponto qualquer do corpo. Após cada ronda, Thorvald afastava mais um pouco o alvo.

Na ronda final, apenas quatro lançadores conseguiram atingir o homem de madeira, dois numa perna e um num braço. As grandes mãos de Skapti empunhavam as facas com uma precisão delicada. O guerreiro fez um triângulo nítido com os seus mísseis, cada um deles atravessando o pequeno coração vermelho. Thorvald felicitou-o calorosamente, ofereceu-lhe uma bebida e depois outra. Ao fim da tarde já ele tinha persuadido o grande guerreiro de que o sucesso da caçada dependia da capacidade de Skapti para ensinar aos homens todos os truques que conhecia, não apenas com as facas, mas todo o seu considerável repertório de luta. Se Hogni e Skapti trabalhassem com ele, disse Thorvald, teriam um grupo de guerreiros de primeira qualidade por alturas do Verão.

Alguns dos homens tinham olhado de lado para Thorvald; o passado de Skapti não jogava a seu favor como professor e eles pensavam, sem dúvida na pancada que receberiam se não cumprissem os objetivos. Thorvald ignorou os olhares.

— Precisamos de ti, Skapti — dissera ele no fim, dizendo a verdade porque sem aquele guerreiro formidável como aliado os homens teriam de continuar sob a autoridade rígida de Asgrim. — Ajudas-nos? Queres fazer parte do projeto?

Skapti, curiosamente hesitante, falara com um constrangimento pouco habitual.

— Tens a certeza? — perguntou ele, fixando os pequenos olhos em Thorvald. — Tens a certeza de que me queres a mim e não outro qualquer?

— Tenho, Skapti. Confio em ti. Na verdade, não sei o que seria de mim sem ti. Que dizes?

O sorriso feroz de Skapti e o brutal aperto de mão a Thorvald tinham sido a resposta necessária. E a confiança de Thorvald parecia fundada, até à data. Tanto Hogni, como Skapti, pareciam deliciados com as suas novas funções como instrutores de guerra. Tudo o que Thorvald necessitava era de tempo. O jovem esperava ter o suficiente.

Skapti e Hogni cumpriram as suas funções sem necessidade de muitas palavras. Ambos conheciam o seu ofício; se assim não fosse, Thorvald não lhes teria confiado a tarefa. Já tinham o respeito dos homens devido ao seu tamanho e força, um respeito misturado com algum medo porque aqueles dois eram, há muito, o instrumento da dura justiça de Asgrim e ninguém se esquecia disso.

Asgrim tinha o hábito de ficar por ali um pouco, ladrando uma ou duas ordens ríspidas, passeando pelo acampamento, observando os esforços dos homens e pondo-os nervosos, desaparecendo depois durante um dia, dois, três, por vezes mais. Levava sempre Skapti ou Hogni com ele, por vezes ambos. Recentemente, Hogni e Skapti tiravam à sorte para determinar quem ia ou ficava e era aquele que perdia que partia ao lado de Asgrim, se bem que não dissessem nada ao governador. Thorvald encarregara Hogni dos treinos diários de combate, ao mesmo tempo que Skapti ficava com a responsabilidade de se assegurar de que cada homem, pescadores incluídos, atingiam um determinado nível de treino, tanto em combate armado como desarmado. Havia recompensas: uma faca melhor, um cobertor mais quente, o privilégio de liderar a sessão de canto depois do jantar, se se podia chamar aquilo canto. Thorvald retirara da memória um conjunto de velhas sagas de guerreiros heróicos e mulheres sedutoras, ferozes trolls maus e gigantes do gelo ameaçadores e contava-as o melhor que sabia. O jovem encorajou a invenção de outras e iniciou-se uma certa competição, com Orm a ser o campeão até à data.

As ausências do governador tornaram-se mais freqüentes e mais duradouras. Dizia-se que ele andava a ver se conseguia umas tréguas com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Quando estava no acampamento, Asgrim observava em silêncio, de olhos semicerrados e lábios apertados. Não tentava restringir os esforços de Thorvald, nem os elogiava. A determinada altura, sugeriu que Thorvald podia, também, fazer uso da sua cabana enquanto ele estava ausente; não se devia pôr de lado a oportunidade de dormir numa boa cama. Aquilo parecia indicar um certo reconhecimento. Mas Thorvald disse que preferia dormir ao lado dos homens e dizia a verdade.

Até os pescadores andavam ativamente envolvidos. Naquele dia, usavam os escudos feitos recentemente para desviar os golpes da equipe adversária, tentando ultrapassar, teimosamente, uma determinada linha delimitada por um par de postes de ferro enterrados no solo. A equipe que defendia tinha lanças. Estas não eram armas de treino: as armas de treino eram um luxo a que aquele exército não se podia dar, já que era pobre em ferro e madeira. Ao ouvir a pressão dos corpos, os gritos e o estrondo das pontas das lanças nos escudos, Thorvald só esperava que Hogni os detivesse antes de alguém sair seriamente ferido. Cada homem tinha um papel a desempenhar na caçada: um par guardaria os barcos, enquanto o resto invadiria a Ilha das Nuvens. Utilizando cada camponês, cada pescador, podia reunir uma força de vinte e sete homens. Enviaria Hogni e Skapti com um grupo cada um, enquanto Einar comandaria o resto, com Orm ou Wieland ao lado. Cada um deles tinha mostrado uma certa capacidade de liderança. Se mantivessem o sangue-frio, as hipóteses de derrotar o inimigo eram melhores do que boas. Encontrar Máscara-de-Raposa e resgatá-lo são e salvo seria a sua própria tarefa.

Sam estava acocorado nas rochas, grande e grosseiro, mexendo na ligadura que lhe atava o pé ferido.

— Que estás a fazer? — perguntou Thorvald. — Não tires isso. É suposto manter o ungüento tapado...

— Estou farto disto — disse Sam pesadamente, desenrolando a ligadura. — Estou farto disto tudo. O que o meu pé precisa é de apanhar água salgada e ar fresco. Sempre me dei bem com isso. — O jovem sentou-se numa rocha plana e meteu o pé inchado e vermelho numa pequena poça que refletia o céu ensolarado. Tinham tido poucos dias de verdadeiro Verão; aquelas ilhas tinham um clima terrível, se bem que a pesca não fosse má. — A partir de agora, vou passar a fazer as coisas à minha maneira — disse Sam. — Se aquele tipo, o Asgrim, me der ordens de que não gosto, não as cumpro. Pode ser que seja o governador, mas não é meu patrão. Quero sair daqui, Thorvald.

— Sim, tornaste isso muito claro. — A voz de Thorvald era tensa. — Sam?

— O que é?

— Devias fazer o que te mandam. Devias fazer parte disto. Nós precisamos de todos os homens capazes.

— Homens capazes? — perguntou Sam, olhando para o seu pé inchado no meio do mexilhão e das algas como uma criatura do mar.

— Isso sara antes do Verão. Não me abandones, Sam, preciso de ti. Pensa no que os outros dirão se te fores embora. E não desafies Asgrim. Não seria muito sensato da tua parte.

— Isso é uma ameaça?

— Chama-lhe o que quiseres. Ninguém lhe desobedece sem pagar a fatura, mais nada. Sabes isso muito bem, foste o primeiro a dizê-lo.

— Eu disse que ele era cruel. O homem não tem coração.

— Isso não é justo. Vivemos circunstâncias extraordinárias e ele faz os possíveis para manter a disciplina. Estes homens não são guerreiros. Há algo no inimigo que os aterroriza. Asgrim acha que é a sua presença que os mantém unidos. Pelo menos é o que eu penso. Não percebe que a chave para um bom desempenho é o respeito e a confiança, combinados com uma sólida preparação.

— Desempenho — disse Sam sem expressão. — Como um cavalo, ou um cão de caça, queres dizer? Pode ser que tenhas os teus métodos, Thorvald, mas o chefe é Asgrim. Se um homem não desempenha o seu papel, ele, simplesmente, livra-se dele. Se ainda procuras provas de que ele é o teu pai, creio que as tens na tua frente. Somerled não matou o próprio irmão a sangue-frio e não fez frente a todos aqueles que se puseram no seu caminho? Parece que não melhorou desde então. — O jovem fez uma pausa. — Eu devia pedir desculpa por ter dito isto, mas não peço. Eu sei que tu achas que ele pode ser o teu pai, mas há algo nele de que eu não gosto, Thorvald. Não confio nele.

— Estás enganado. Fica aqui, ajuda-me e eu provo-te que estás enganado. Asgrim tem andado a lutar contra o impossível. Imagina como se deve sentir ao perder a mesma batalha ano após ano; ver os seus homens a morrer sem resultados práticos. Imagina um inimigo que mata crianças no dia em que vêem a luz do dia. Ele faz os possíveis, mas está desesperado e os homens desesperados, por vezes, tornam-se cruéis. Provavelmente, pensa que é a única maneira.

— Nesse caso, por que é que te deixa fazer o trabalho dele? — perguntou Sam rudemente. — A mim, parece-me que ele te está a usar.

Thorvald não respondeu. Havia uma resposta óbvia, mas não diria qual era.

— Estás orgulhoso por ser filho dele, não estás? — No rosto honesto de Sam, o seu olhar era gelado.

— Se ele for o meu pai — disse Thorvald num sussurro — acho que devo ser o melhor filho possível. Mais nada. Ficas comigo?

Sam abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas fechou-a logo a seguir. Um dos homens gritara qualquer coisa e os restantes estavam a pousar lanças e escudos e corriam para a praia, apontando para o mar. Sam levantou-se cuidadosamente, utilizando o ombro de Thorvald para se apoiar e olhou também para o oceano. Era um barco remado por dois homens em pé, um barco maior do que os que estavam no areal. A embarcação prosseguia pesadamente numa rota algo errática. Os remadores eram Egil e Helgi, que tinham ido com o governador na última viagem deste. Ao leme estava o próprio Asgrim. Os remadores remavam, os músculos inchados pelo esforço e o Sea Dove raspou nas conchas e nas pequenas rochas antes de encalhar, todo de lado, na areia escura. No lugar do buraco havia agora uma variedade de pranchas e remendos, rudemente cravados e unidos, como se uma espada finamente forjada tivesse sido remendada com um pedaço de ferro, ou um bordado delicado com pedaços de lã por cardar. Sam ficou a olhar, horrorizado.

Asgrim, primeiro a saltar para terra, caminhava na sua direção.

— Thorvald, Sam. Ele ainda navega, como vêem. Que tal vão os progressos dos homens?

— De acordo com o previsto — disse Thorvald de modo ausente. O jovem estava a olhar para o amigo. Sam dera um passo hesitante em frente e depois outro. A expressão do seu rosto era ao mesmo tempo cômica e incrédula.

— Quem remendou o meu barco? — conseguiu ele dizer. — Chamam a isso uma reparação? Pelos ossos de Odin, uma criança era capaz de fazer melhor. Onde é que os teus homens aprenderam a construir barcos? Com um cozinheiro, ou com um pescador? — O jovem chegou a coxear até junto do Sea Dove e estendeu uma grande mão para tocar primeiro na madeira em bom estado e depois, com desgosto, na linha irregular onde começava o feio remendo.

— O remendo é temporário, claro — disse Asgrim suavemente. O governador estava a olhar de perto para Sam, reparou Thorvald, talvez à espera de uma resposta especial. — Precisamos dele aqui; é um barco capaz de transportar mais homens do que os outros e a sua construção, de boa qualidade, dar-lhe-á vantagem nas correntes fortes da Ilha das Nuvens.

— Ninguém vai velejar nele com este remendo horrível no casco — disse Sam secamente. — Ele só vai para o mar depois de eu o reparar como deve ser. E ninguém mexe nele sem eu dizer. Estou a falar para todos. — O jovem olhou em ar de desafio, virando a cabeça não só para Asgrim e Thorvald, mas também para o semicírculo de guerreiros, pescadores e guarda-costas reunidos na praia para ver o Sea Dove.

— Belo barco — grunhiu um dos pescadores. — Nunca vi nada igual.

— Espero que tenhas ouvido o que eu disse — disse Sam, virando os olhos azuis para Asgrim.

— Ouvi. — O governador parecia imperturbável. — É evidente que deves ser tu a fazer as coisas à tua maneira e a escolher os ajudantes, recordando, claro, que devem ter todos a sua quota diária de treino de combate. Tenho a certeza de que Thorvald está de acordo. As minhas desculpas pelo remendo. Só quero vê-lo reparado, falaste nisso muitas vezes, e como não estavas capaz de o ir buscar... Foi uma solução de emergência, mais nada. E tens de substituir o mastro; nós temos um tronco de abeto para isso. Não é perfeito, mas é capaz de servir. É uma grande tarefa, Sam, e não tens muito tempo. Tens a certeza de que és capaz?

A expressão nos olhos de Sam foi a resposta.

— Vou começar já — disse o jovem. — Onde é que está o meu saco das ferramentas? Knut? Vamos, toca a andar.

 

— Thorvald? — Einar falou com algum acanhamento enquanto os dois observavam, naquela manhã, os homens a praticarem tiro ao alvo. Mais ao longe, na praia, o Sea Dove estava rodeado por um enxame de ajudantes escolhidos por Sam; a maior parte do remendo feito já tinha desaparecido.

— Sim?

— Preciso de te dizer uma coisa confidencial. Espero que não a aches imprópria.

Thorvald virou-se para olhar para o homem mais velho. A expressão de Einar era invulgarmente severa, mesmo para um homem que raramente sorria.

— É claro que não — disse o jovem calmamente, apesar de se sentir pouco à vontade. — O que é?

— Tens de ter cuidado — disse Einar, baixando a voz até se transformar num sussurro. — Muito cuidado. Ele pediu-me para te vigiar, para ter a certeza de que tu não ultrapassas os limites.

— Que queres dizer? — Thorvald sentiu-se, subitamente, gelado. Asgrim não confiava nele? Não fora o próprio governador a pedir-lhe que assumisse a chefia?

— Não te posso dizer mais. O problema é que tu estás a ser-lhe útil, muito útil, e se conseguires o objetivo, ele não te vai impedir, pelo menos até isto acabar. Mas ele vê como os homens olham para ti e não gosta nada. Ele está a avaliar-te: se és uma vantagem, uma ameaça ou, a longo prazo, um obstáculo. Eu já vi aquele olhar antes, Thorvald. Ele não é homem para se ter como adversário.

— Por que me estás a dizer isso? — perguntou Thorvald. O jovem estava dividido entre a raiva e a dor. — Não te pões também em perigo?

— O que é que achas, louco? — respondeu Einar, colocando uma mão no ombro do jovem. — Limito-me a pedir-te que tenhas cuidado. — O tom da sua voz mudou abruptamente. — Acabou a rodada e todos os homens acertaram no alvo pelo menos uma vez. Estão a melhorar.

— Sim — disse Thorvald, reconhecendo que fosse o que fosse que povoasse os seus pensamentos, o seu pai, a sua identidade, o seu futuro, nada era mais importante do que o aperfeiçoamento das capacidades e coragem daqueles homens e o reacordar da sua esperança. — E ainda hão de melhorar mais. Vem, vamos dizer-lhes isso.

 

Creidhe sentia-se desconfortável se as suas mãos permaneciam muito tempo desocupadas. Depois de uma boa noite de sono, sentou-se à mesa com o saco a seu lado e a Jornada nos joelhos. O tecido estava desenrolado apenas o suficiente para mostrar os últimos pontos que fizera algum tempo antes em casa de Jofrid. Ela enfiou um fio de lã verde-musgo na agulha — atravancara a lareira do quarto de trabalho da tia Margaret com tintas e corantes até conseguir aquela cor — e começou a bordar. Aquela parte do padrão era mais suave, uma calmaria na corrente veloz da Jornada. O que estava a bordar significava confiança e abertura, uma coisa pouco comum naqueles tempos mais recentes. A jovem desenhou um monte e um pequeno edifício com uma cruz no topo. A parte seguinte continuava na sua mente: mãos apertadas; uma adaga meio escondida; um ovo, a sua forma simples e perfeita.

O irmão Niall estava sentado no outro lado da mesa, observando-a em silêncio. Os outros tinham saído; depois das orações da manhã havia trabalho para fazer: tratar do gado e da horta, porque tinham de ser auto-suficientes em tudo, dissera-lhe Breccan ao jantar. Até tinham um pequeno barco, que o tinha trazido a ele e a Colm até àquelas ilhas vindos da sua terra, louvado fosse o Senhor, e que estava agora guardado num local não muito longe da Baía Sangrenta. Se Colm não lhe tirara o encerado, já devia estar mais ou menos invisível.

Após algum tempo, Niall desenrolou um dos rolos de pergaminho e colocou pequenas pedras nos cantos. O monge foi buscar um pequeno jarro com água, raspou um pouco de pó para dentro de um tinteiro, mexeu e esperou. Em seguida, pegou numa pena e começou a escrever. Olhando para cima, Creidhe viu as palavras a fluírem através do pergaminho, com precisão e regularidade, críticas e tão bem-feitas como as pegadas de uma lontra, de uma lebre, de uma gaivota ou de uma andorinha. No alto da página havia uma letra maior com padrões em redor de cores tão profundas e sutis como as que ela estava a bordar no seu próprio trabalho. Havia folhas, espirais, serpentes retorcidas e pequenas criaturas de olhos estranhos com asas e escamas. A pena continuou; naquele dia, Niall estava apenas a acrescentar texto em filas perfeitamente alinhadas. No entanto, no meio daquela ordem, a jovem conseguia ver alguma desordem: em redor da estrutura nítida, sinais de fuga. A jovem virou a sua atenção para o seu próprio trabalho. As suas mãos moviam-se industriosamente desenhando uma flor, uma nuvem, uma pequena ovelha. Trabalharam os dois durante algum tempo em silêncio, ambos concentrados em cada tarefa.

— Reparei — a voz de Niall quebrou a quietude — em pequenas irregularidades no teu trabalho; deliberadas, suponho. O padrão, aqui na margem, é interrompido, há um carreiro para fora, por assim dizer, por entre esta fila de videiras. É muito interessante.

A sua primeira reação foi dobrar o tecido rapidamente para cobrir o que tinha feito; era um segredo a não partilhar e, certamente, a não discutir. Mas, não bordara o que sentira mais naquela pequena casa de homens? Confiança? A jovem desdobrou mais uma vez o seu trabalho, tocando com um dedo na parte que ele mencionara.

— Tens uma boa visão — disse ela.

— Para um homem de idade? Sim, mais ou menos. És capaz de me explicar esse padrão? Parece ser uma coisa prodigiosa. Algumas pessoas chamar-lhe-iam um talismã poderoso. Não é o teu Thorvald, evidentemente. Os olhos dele são menos perspicazes apesar da tenra idade.

— Eu digo-te o que isto significa, esta interrupção aqui na margem, se me disseres o que significa essa escrita que vai até à margem do teu manuscrito. Parece que as letras estão a tentar fugir.

A pena deteve-se. Niall sorriu; Creidhe prendeu a respiração porque a expressão dele era uma combinação de tristeza, pena, aceitação, tudo misturado com um olhar levemente culpado, como o de um rapaz apanhado a fazer uma asneira qualquer.

— Creidhe — disse ele calmamente. — Acho que a tua visão ultrapassa a minha; vai direto ao coração das coisas. Muito bem, eu digo-te, se queres. Mas, primeiro, as senhoras.

— Está bem.

A jovem desenrolou um pouco a Jornada em cima da mesa, o suficiente para que ele pudesse ver as partes que ela fizera naquele dia e a parte anterior. As imagens daquela última parte eram sombrias e estranhas; o seu medo e intranqüilidade viam-se nas sombras, nas mãos apertadas e apenas avistadas, nos rostos que sorriam em sinal de boas-vindas e gritavam ao mesmo tempo de furioso repúdio. A jovem não lhe mostrou o local onde bordara a Ilha das Nuvens.

— É difícil de explicar — disse ela. — Devido ao que é, ao poder que tem, é preciso ter cuidado. Eu faço mais um pouco todos os dias, se posso. Chamo-lhe a Jornada. Estes pontos são muito mais do que simples pontos, estas imagens são mais do que simples linha, são uma... escapatória. Se não fizesse isto, o amor, o ódio, o medo e a alegria cresceriam até não poderem caber num objeto tão pequeno. Tornar-se-ia demasiado perigoso, demasiado poderoso. Assim, faço este pequeno carreiro aqui, na margem: uma escapatória. Não é regular; não pode ser um padrão, ou arriscar-se-ia a perder-se no conjunto. É assim que fazemos tudo. Cada cobertor, cada tapete, cada peça de vestuário possuiu esta irregularidade. É uma forma de proteção para aqueles que os usarem mais tarde. Até a tia Margaret os faz, agora, se bem que seja uma tradição do povo da minha mãe, não do dela.

— Respeitas muito essa tua tia, pelo que vejo. Ela é irmã do teu pai?

Creidhe pressentiu uma casualidade estudada naquela pergunta; a jovem começou a sentir uma sensação esquisita na espinha, uma espécie de formigueiro.

— Oh não — disse ela. — A tia Margaret não é do meu sangue; é uma velha amiga dos meus pais, mais nada. Eu penso nela como uma tia e uma amiga ao mesmo tempo; ela não tem filhas, apenas Thorvald e tem sido muito boa para mim, ensinando-me tudo o que sabe acerca de fiar e tecer. Ela gosta da minha companhia, acho eu; a sua vida seria muito solitária sem os nossos tempos juntas.

— O teu amigo Thorvald é filho dela?

Creidhe acenou com a cabeça.

— O único, sim. O marido da tia Margaret morreu. Ela nunca voltou a casar, se bem que tivesse muitos pretendentes. E agora, respondes à minha pergunta?

— Respondo, pois. Qual era a pergunta?

Ela olhou para ele, surpreendida e ele devolveu-lhe o olhar, os olhos brilhantes devido a uma emoção que ela não conseguiu interpretar. Creidhe estremeceu; parecia que estava à beira de um precipício, como que num momento de descoberta. Veio-lhe à mente que talvez tivesse compreendido tudo mal.

— Diz-me o que é isso, esses lugares onde a escrita quase desaparece da margem da folha onde trabalhas.

— Ah sim — disse Niall suavemente, enrolando as mangas do hábito rude para que o tecido não borrasse a tinta molhada e esticando o braço para tocar numa irregularidade no alto da página. O manuscrito era um trabalho extremamente artístico, uma criação que rivalizava com a Jornada e, certamente, realizado com o mesmo amor e carinho. — De certo modo, a resposta é a mesma. A nossa regra está aqui escrita: boa, mas restrita. A minha própria regra é ainda mais rigorosa, imposta de acordo com um voto, assim como a disciplina que todos seguimos, mas mais áspera e mais particular no meu caso. — O seu olhar deixou o pergaminho e fixou-se na distância, como se tivesse visto algo ao longe, ou há muito tempo. A intensa escuridão daqueles olhos evocava uma imagem de Thorvald no alto da falésia, cabelos ao vento, a carta do pai na mão e palavras amargas nos lábios. — Para alguns homens e para algumas mulheres, suponho — continuou Niall — a maior dificuldade é não poder agir quando sabem que podem ter alguma influência no mundo; não poder resolver quebra-cabeças quando o intelecto o exige; ignorar soluções que estão perante os seus olhos. Mas alguns homens não deviam agir; alguns homens, parece, só causam destruição, quer tenham, ou não, essa intenção. Estes pequenos versos que estás a ver, tentando sair da página como animais tentando escapar de uma jaula, são divagações de alguém que luta contra as grilhetas que impôs a si próprio, mais nada. As palavras são seguras, acho eu; na verdade, ao substituírem a ação, desempenham a mesma função das tuas escapatórias, permitindo que o que é perigoso se dissipe antes que provoque qualquer dano. Isto tem um certo custo para mim, assim como para ti, como fazedores destes mapas da alma, mas é um preço que vale a pena; não concretizar estas coisas é como secar e morrer. Eu divago, Creidhe. Respondi à tua pergunta?

Ela acenou com a cabeça, incapaz de responder. Parecia-lhe que ele respondera a várias perguntas e o fato de as ter apreendido todas, naquele momento, era esmagador.

— Não sei que dizer. — Era uma resposta coxa para o que fora, na sua essência, uma revelação dos seus sentimentos mais íntimos.

— Não há necessidade de falar mais nestas coisas — disse Niall calmamente, baixando as mangas até aos punhos e estendendo um braço para pegar na pena. — Acho que nos compreendemos mutuamente. Lamento não ter conhecido os teus amigos antes de Asgrim os ter levado. Lamento muito.

Continuaram ambos a trabalhar em silêncio por algum tempo e se a confusão de pensamentos e sentimentos fizeram com que a pena e a agulha se movessem com menos liberdade, nem o eremita de cabelos brancos, nem a jovem o disseram. Finalmente, foi Creidhe quem quebrou o silêncio.

— Há algumas coisas que devemos discutir. Ontem, não explicaste tudo. Asgrim é a ameaça da outra tribo; não a compreendo muito bem e tenho de a compreender, já que estou em perigo. E os rapazes; preciso de saber quais são os planos dele para eles.

— Sim, Creidhe, precisamos, na verdade, de falar disso, porque sinto que cada vez estás menos segura aqui. Penso que dentro de um dia ou dois vamos ter de te mudar para outro lugar, antes que Asgrim decida que a nossa hospitalidade já durou muito. Ele suspeita de mim há muitos anos. Eu sou um dos poucos que pode desafiar a autoridade dele; apesar de, devido ao fato de ser um clérigo, o faça apenas com palavras, não com atos. — O monge esboçou um sorriso torcido. — Daqui a pouco, eu e Breccan vamos preparar as tuas coisas; depois, decidiremos o que fazer. Mas ainda não. Quero pedir-te um pequeno favor. — A sua voz ganhara um leve tom de acanhamento.

— Um favor? — perguntou Creidhe. Niall hesitou.

— Não quero falar do passado — disse ele. — És capaz de respeitar isso?

— Claro. — Thorvald quereria, certamente, falar do passado. Mas Thorvald não estava ali e ela não tinha nada que se meter nos assuntos secretos daquele homem. Além disso, prometera a Thorvald e quando mais Niall lhe contava, mais dificuldade tinha em guardar segredo. — Se é isso que queres.

— Por outro lado — disse ele — gostaria muito de ouvir falar um pouco da tua vida em casa: a tua família, os teus amigos, o mundo em que vives quando não andas no mar em busca de aventuras. Espero que perdoes as tolices de um velho.

— Um velho? — A jovem ergueu as sobrancelhas.

— Não é o que pensas?

— Bem, tens cabelos brancos. É suposto...

— Quando vim para aqui era novo. Quando pus os pés nesta ilha o meu cabelo já era da cor que vês agora. Se isso me faz velho, sou um velho. És capaz...?

— É capaz de ser uma chatice para ti. A maior parte da minha vida tem sido passada em frente de um tear, ou diante de tachos e panelas.

— Mesmo assim.

Ela contou a sua história cuidadosamente, desenhando-lhe um quadro: os tempos de paz nas Ilhas Brilhantes, o nascimento e a criação do gado, a colheita das sementeiras, o governo de uma sociedade fruto de duas raças a antiga dos Folk, o povo da sua mãe, cujos reis tinham reinado durante gerações; e os nórdicos recém-chegados, a raça do seu pai, que agora vivia ao lado dos outros e que era mais numerosa. A jovem falou da existência de várias religiões: de eremitas cristãos como ele, vivendo nas Ilhas Brilhantes lado-a-lado com sacerdotisas da velha fé, a sua própria irmã era uma dessas mulheres sábias e os que acreditavam nos deuses das terras nevadas, Odin, Thor, Freyr. Creidhe falou no seu pai, como ele liderava o povo com sentido de paz e justiça; da sua mãe, cuja sabedoria e perspicácia resolvera muitas disputas entre as diversas raças das ilhas ao longo dos anos. Como Niall não a interrompesse, não lhe cortasse a palavra, ela continuou e falou nas suas irmãs e no seu pequeno irmão que morrera antes dos cinco anos. Falou de Margaret e de Thorvald, este quase da idade da sua irmã mais velha, Eanna, a que era sacerdotisa. Após algum tempo, Creidhe reparou que ele parara de escrever e que estava com o queixo encostado a uma mão, com um olhar distante, escutando muito simplesmente.

— Eu estou ligada a uma promessa, sabes? — disse ela, já perto do fim. — Thorvald fez dezoito anos no último Outono. Então, na Primavera, a mãe dele entregou-lhe uma coisa. Foi essa coisa que provocou esta viagem. Não sei se ele conseguirá encontrar o que procura. Para ele, é da maior importância; uma busca de identidade, por assim dizer.

— Hum! — disse o irmão Niall. — Tarefa difícil, não só para esse jovem. Tu és uma amiga leal, Creidhe; és uma filha digna dos teus pais. — O seu tom de voz era tão baixo que ela mal o ouviu, apesar do silêncio que reinava na cabana. — É provável que, no fim, tenha uma amarga desilusão. Mais valia ter ficado em casa e continuar com a vida que tinha. Pelo menos, é o que eu penso.

— Tal como tu — disse Creidhe cuidadosamente — Thorvald tem muita dificuldade em não agir. É por isso que tenho de saber o que anda a fazer com Asgrim. Tenho o pressentimento de que está metido num sarilho qualquer.

— Vamos chamar o irmão Breccan — disse Niall, levantando-se — e pensar num plano de ação. Receio que colocar o nosso futuro nas mãos de Deus seja inadequado na presente circunstância.

— Só mais uma coisa, antes de o chamares. — Creidhe hesitou. Tinha de dizer aquilo; só esperava que ele não se ofendesse. — Acreditas que um homem pode mudar? Tu disseste qualquer coisa acerca... acerca de uma vingança destruidora, como se fosse esse o único caminho possível. Não és cristão? O irmão Tadhg dizia-nos que o Deus cristão ama até os pecadores; que um homem só precisa de se virar para Ele para começar uma vida nova. Se praticou o mal, Deus perdoa-lhe e deixa-o tentar de novo. Se acreditas nisso, como podes falar assim de um homem acorrentado ao mal?

— Ah. Falas por experiência própria; cresceste entre os bravos e virtuosos e isso ensombrou de algum modo a tua capacidade de julgamento, acho eu. Eu sou o cristão que Breccan conseguiu fazer de mim quando chegou a estas ilhas. As intenções dele eram boas.

O seu tom de voz era frio como o gelo e os seus olhos não tinham expressão. Pode um homem mudar? Podemos passar a vida inteira a debater esse ponto sem chegar a uma conclusão. Chamo os outros?

Foi assim que Creidhe tomou conhecimento de toda aquela história retorcida: como, depois da rapariga, Sula, ter dado à luz a criança de que eles necessitavam, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a tinham perdido antes do seu segundo ano de vida. O bebê fora raptado, levado pelo próprio filho de Asgrim, irmão de Sula, não para junto do povo dos Facas Longas, mas para a Ilha das Nuvens, onde ainda se mantinha escondido, cinco longos anos depois. A ilha era interdita à tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz: a sua tradição decretava que era mortal um homem aproximar-se do local. Sendo um homem santo, o próprio Máscara-de-Raposa era, aparentemente, a única exceção à regra. Quanto ao resto, talvez fosse mesmo mortal, com ou sem tradição. As correntes entre a ilha e o Fiorde do Conselho eram temidas por todos os pescadores do povo dos Facas Longas e evitadas em qualquer estação, salvo durante um breve período de tempo por ocasião do meio do solstício do Verão, quando uma estranha calmaria descia sobre o oceano agitado e um homem podia atravessar e regressar em segurança no intervalo entre o nascer do Sol de um dia e o crepúsculo do seguinte. Mesmo assim, os pescadores só o faziam se necessário. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham lançado uma maldição sobre o povo dos Facas Longas quando Máscara-de-Raposa foi raptado. Até ser resgatado e devolvido à sua própria tribo, nenhum bebê Faca Longa sobreviverá para ver o Sol nascente duas vezes. As vozes vinham, cantavam e eles desapareciam nas trevas.

Daí a caçada: todos os Verões, os homens embarcavam nela, ano após ano, e todos os Verões os sobreviventes ensangüentados regressavam com os corpos dos que tinham caído e os que tinham conseguido recuperar. Asgrim levara-os e conduzira-os cinco vezes àquela armadilha mortal; aquele Verão seria a sexta. Durante todos aqueles anos, nem um único bebê dos Facas Longas sobrevivera. Ninguém sabia ao certo que tribo vivia na Ilha das Nuvens, apenas que eram ferozes como animais selvagens, numerosos e peritos em magia. O povo dos Facas Longas nem sequer sabia se o próprio Máscara-de-Raposa ainda lá vivia, mas era evidente que Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz acreditavam que sim, continuando a puni-los até o vidente ser encontrado.

— Estou a ver — disse Creidhe. Enquanto Niall e Breccan contavam a história, ela estivera a cozinhar; a jovem tirou os bolos da frigideira suspensa por cima do fogo e colocou-os num prato. Colm também estava presente; os seus olhos brilharam à vista daqueles bolos dourados e estaladiços e ao sentir o aroma das ervas e da manteiga a chiar. De fato, era apenas uma mistura de ovos, farinha e um pouco disto e daquilo. O truque estava na maneira de amassar a farinha. — Acham que Asgrim persuadiu Thorvald e Sam a ajudá-los neste empreendimento? Participar nele. Não consigo pensar em Sam a fazê-lo de livre vontade.

— E Thorvald? — perguntou o irmão Niall, cortando o seu bolo e olhando para ele com gosto. — Sim, Creidhe, essa parece ser a explicação para uma ausência tão prolongada. Uma troca, talvez; eles ajudam-nos nos preparativos para a caçada e ganham a madeira necessária para repararem o barco. Ouvi dizer que Asgrim tinha ido à Baía Sangrenta e tinha levado o barco para o Fiorde do Conselho. Isso deu-me que pensar.

Creidhe sentiu o coração a bater com força.

— Eles não deviam lutar... quer dizer, Sam não percebe nada de guerra e Thorvald...

— Estranhamente, não é com isso que estou preocupado — disse Niall. — Hum, tu sabes mesmo cozinhar. Não, receio que a partida repentina desses dois jovens, seguida por uma longa ausência, não passa de uma estratégia para os manter longe de ti, Creidhe. Tu estás em perigo. Se Asgrim conseguir acabar este conflito sem perder mais vidas, nada o deterá. Ao fim de cinco longos anos, os seus homens estão profundamente desanimados. Em breve começarão a questionar a sua liderança, a questionar o seu papel como chefe de guerra. E as mulheres também; este conflito, não só lhes rouba os filhos, como lhes chacina os homens, deixando-as com o fardo adicional de tratar do gado, dos campos e da vida inteira da comunidade. Só há rapazes para pescar, uma vez que Asgrim leva os homens todos. São as mulheres que passam dias cansativos no lago e com magros resultados. É um fardo pesado para o povo dos Facas Longas. Asgrim não se pode dar ao luxo de mais uma caçada.

Creidhe esperou.

— A nós, parece-nos — disse Breccan com o seu sotaque suave — que contigo no nosso seio, Asgrim tem os meios para fazer um acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Até agora, os homens dele têm sido incapazes de resgatar Máscara-de-Raposa daquela ilha fortaleza. Este Verão vai trazer-nos mais uma expedição condenada ao fracasso! Assim, ele agarra a oportunidade de uma alternativa. Convoca uma reunião com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, uma coisa que nós sabemos ser ainda possível, apesar de eles já não comparecerem nos conselhos nem falarem com quaisquer outras pessoas dos Facas Longas. Em troca, não haverá mais mortes nem vozes durante a noite. Para conseguir a paz, Asgrim oferece-lhes outra rapariga de cabelos louros: tu.

Seguiu-se um silêncio. Creidhe conseguia sentir o bater do seu coração, o frio que lhe subia pela espinha. Se não tivesse saído da aldeia, talvez já tivesse sofrido o mesmo destino da filha de Asgrim.

— Esperem — disse ela, franzindo o sobrolho. — Foi a própria filha dele que eles raptaram, que raptaram e trataram de maneira cruel. Certamente que nenhum pai procuraria que isso acontecesse a outra rapariga, certamente que ele recusará essa idéia, apesar de eu ser uma estranha. Ele foi amável comigo.

— Talvez — disse Niall. — Mas receio que seja mesmo esse o objetivo de Asgrim. Já o teria feito antes do nascimento do filho de Jofrid, prevenindo, assim, mais uma morte. A chegada antecipada do bebê tornou-o impossível; como já disse, nestes tempos de conflito, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz só negociam com o próprio governador e eu imagino que uma reunião dessas leva tempo a preparar. Aquele bebê perdeu-se, mas ele pode salvar os homens e permitir que as mulheres da sua tribo possam, de novo, ter filhos sem medo. Ele tem de dar qualquer coisa ao adversário antes de começar a caçada e essa coisa és tu. Não temos muito tempo.

— Não acredito que ele faça isso — disse Creidhe suavemente. — Depois da perda da própria filha. Como é possível?

— Tu julga-o pelos homens que tens conhecido até agora, Creidhe; o teu pai, talvez. Eu tenho razões para duvidar de Asgrim. Houve algumas... irregularidades... quando do rapto da filha dele, que não melhoraram em nada a opinião que eu tinha dele. Como governador, ele agarra-se ao poder, mas os dedos estão-lhe a fugir. Em tempos desesperados, os limites dos homens alteram-se.

— Niall tem razão, Creidhe — disse Breccan. — Se não fosse a persuasão de Asgrim, os teus amigos já estariam aqui há muito tempo. Ele tem-nos lá forçadamente até conseguir este... arranjo. Não temos muito tempo. Amanhã, ou no dia seguinte, vamos levar-te para um lugar seguro.

— Para onde? — perguntou ela sem expressão, pensando em encostas íngremes, falésias e mares agitados. — E Thorvald? E Sam? Como é que eles me hão de encontrar?

— Eu posso levar uma mensagem — disse o jovem Colm, corando de timidez. — Eu posso ir até lá e oferecer-me para dizer algumas preces, teria tempo para dar uma palavra ou duas antes de eles me expulsarem. É claro que teria de ir quando o governador estivesse ausente. Aqueles dois rapazes são capazes de me dizer quando será a ocasião certa. Conheço-os bem.

Breccan sorriu.

— Ótimo. Tem cuidado. Temos de dar tempo para que Creidhe consiga chegar ao seu destino antes de chamarmos a atenção de Asgrim. Ele foi para a Baía Sangrenta, não foi, para levar o barco para o acampamento?

— Foi o que me disseram — disse Niall. — Mas pode já lá não estar. Possivelmente, fará um pequeno desvio no caminho. — O monge virou-se para Creidhe. — A baía onde estava o vosso barco é o lugar ideal para o embarque para a Ilha das Sombras, onde moram os anciãos d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz. Se eu fosse o governador, não deixaria escapar a oportunidade de os sondar, de, possivelmente, finalizar um acordo. Acho que vamos ter uma visita muito em breve.

— Para onde é que eu vou?

— Para já, para junto dos nossos irmãos no norte. Ah sim — ele vira o seu olhar de surpresa — nós não estamos sós nestas ilhas. Este local atrai aqueles que procuram Deus na solidão e na vida dura. Temos dois irmãos no outro extremo desta ilha com um barco e há outro eremitério na Ilha das Tempestades. É melhor ires para ao pé deles até conseguirmos falar com os teus amigos. Lamento, Creidhe, isto pode ser assustador, mas não te vou insultar dizendo-te outra coisa que não a verdade.

Creidhe estremeceu.

— Mentiria se dissesse que não estou assustada. Só queria que houvesse outra solução, uma que não envolvesse morte ou sofrimento. Se o meu pai estivesse na posição de Asgrim, sei que ele conseguiria reunir um conselho, juntar todas as partes, falar abertamente sobre a situação e tentar um acordo que conviesse a todos. Não faria as coisas às escondidas.

— Asgrim não tem feito as coisas às escondidas — disse Niall severamente. — É evidente que as mulheres da aldeia devem saber do que está para te acontecer.

— Sim. — A voz de Creidhe era firme, recordando as refeições especiais, as escovadas de cabelo, o vestido verde. — E uma delas avisou-me. Uma que teve coragem suficiente para isso, se bem que tivesse acabado de perder o filho. Aqui há boa gente. Por que é que Asgrim não procura outra solução?

— Talvez acredite que não há. Não te esqueças, o adversário dele luta com maldições e feitiços, vozes que trazem a morte e exércitos de força sobre-humana. Eu já tentei imaginar outra solução. Estou inclinado a acreditar que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz seriam capazes de aceitar outra coisa; bastaria apresentá-la de maneira que eles compreendessem, mais nada. Persuadi-los a uma interpretação ligeiramente diferente da sua tradição.

— É uma fé bárbara — disse Breccan. — Eles são surdos à palavra de Deus e à Sua infinita misericórdia. Daria tudo para conseguir chegar até eles, mas eles não querem ter nada a ver conosco. A tribo de Asgrim é pouco melhor: ele teme a verdade de Deus.

— Hum! — A resposta de Niall podia significar qualquer coisa. — Devias partir logo de manhã, Colm. Certifica-te de que sais de lá antes de Asgrim chegar com o barco ao Fiorde do Conselho. Sê discreto; não te metas com ninguém. Suponho que os teus amigos não pertencem à fé Cristã, pertencem? — perguntou ele a Creidhe com as sobrancelhas erguidas.

— Bem, não. Sam adora Thor, um bom deus para um pescador. Thorvald não pensa muito em religião. Ele diz que se um homem não é capaz de depender apenas de si mesmo, não é homem.

A boca de Niall esticou-se ligeiramente num dos cantos.

— A sério? Bem, Colm terá de fazer o melhor que puder. Uma palavra ou duas, só precisamos disso; um aviso, suficientemente específico para lhes dar a entender a urgência, mas não muito detalhado. Não queremos ninguém a desafiar Asgrim.

— E Creidhe pode ir logo a seguir. Temos de esperar apenas o suficiente para ter a certeza de que ela não vai cair em cima de Asgrim ou dos homens dele, mas tem de já estar longe daqui no caso de ele decidir vir à procura dela. A ocasião ideal seria ao nascer do dia de depois de amanhã. Então, Colm já terá regressado e nós saberemos se ele conseguiu falar com os rapazes. — Breccan franziu o sobrolho. — Um de nós tem de ir com Creidhe, enquanto o outro ficará para responder às perguntas. O monge trocou um olhar complicado com Niall — Ele há de vir em pessoa e tu és o único capaz de lidar com ele.

— Queres dizer que minto impunemente, arriscando-me à desaprovação de Deus para o resto da minha vida? Sim, eu compreendo. Além do mais, tu és mais novo. Suponho que teria dificuldade em acompanhar o passo da nossa jovem amiga através dos campos, a julgar pela rapidez com que ela subiu esta encosta. Muito bem, está combinado. E agora, viremos a nossa atenção para os restos deste excelente pequeno-almoço. Que pena não poderes ficar conosco, Creidhe. Adorava ver o que serias capaz de fazer com umas cavalas frescas.

O plano parecera, se não infalível, pelo menos razoável. O homem que usava um nome tirado de uma história ouvida na infância esperou sozinho no eremitério pela chegada de um governador zangado, imperioso, exigindo o regresso do produto do seu acordo. Colm partira no dia seguinte e Creidhe no outro, subindo o vale às primeiras luzes do dia com Breccan a seu lado. Desapareceram nos montes como duas sombras, o cabelo da jovem cuidadosamente escondido e de saco às costas: o seu estranho bordado ia consigo para toda a parte. Colm ainda não regressara. Niall mungiu a vaca, alimentou as galinhas, passou uns olhos experientes pela horta e regressou para dentro de casa. O monge não conseguia escrever; tinha a mente noutro lado qualquer. O Sol passou por cima da sua cabeça, começou a descer para oeste e o rapaz continuava sem aparecer. Colm estava atrasado um dia. Niall recolheu os ovos e limpou o estábulo, atirando a palha suja para a horta. Colm tinha orgulho nos seus alhos e cebolas; não podia negligenciá-los. O brilho frio do longo crepúsculo de Verão espalhou-se pelo céu. Niall acendeu uma única lâmpada, mais para se tranqüilizar do que por necessidade. Estava tudo calmo. Os últimos gritos queixosos das aves soaram através do ar e, por baixo deles, ouvia-se o velho e profundo rugido do mar. O monge esperou, sozinho na noite.

Ao amanhecer, tomou uma decisão e, de cajado na mão, dirigiu-se para sudoeste, pelo carreiro acima, para o Fiorde do Conselho. Antes de o Sol se ter erguido dois dedos acima do horizonte, deu de caras com Colm por terra com a cabeça contra umas rochas, de mãos abertas, desamparado no cascalho da vereda. Recebera um único golpe; não havia muito sangue. Niall virou-o e fechou-lhe os olhos sem vida. O monge tentou fazer o que era apropriado, ajoelhando de mãos postas e murmurando uma oração: Pater noster... mas faltaram-lhe as palavras. Aquele rapaz precisava era de Breccan para o ajudar a conseguir a recompensa que o esperava, não de um mal fadado que não podia pôr a mão em nada sem reduzir tudo a cinzas. O rapaz era alto e pesado. Niall não conseguiria carregá-lo aos ombros. O monge instalou-o o melhor que pôde, uma cruz feita com dois paus entre as mãos cruzadas no peito e amparado por algumas pedras para que não caísse pelo precipício abaixo. Quando Breccan regressasse, voltariam ali e levá-lo-iam para casa.

Esperou de novo. Muito tempo; demasiado. O monge passou outra noite à escuta. A casa estava fria. Niall não acendeu a lareira, mas acendeu uma lâmpada; Breccan precisaria dela para encontrar o caminho quando regressasse. Se regressasse. Ocorreu a Niall que, se o que sentia no coração fosse igual ao que mostrava exteriormente ao mundo, podia ter rezado e tirado da oração algum proveito. No entanto, os deuses não estavam do seu lado, nem nunca tinham estado. Era justo: duvidara durante muito tempo da sua eficácia. Naquela noite desejaria ter fé, mas o desejo não era suficiente.

O tempo passou. Em determinada ocasião ouviu passos no exterior e dirigiu-se instantaneamente para a porta de faca na mão.

— Niall? — disse uma voz quase irreconhecível e quando este abriu a porta, Breccan caiu no interior da cabana, tremendo e respirando com dificuldade. Niall acendeu mais algumas lâmpadas, acendeu a lareira e foi buscar cobertores. O monge esperou; o outro ainda não conseguia falar. Quando as palavras surgiram vinham acompanhadas de lágrimas e o ruivo do Ulster não tentou retê-las. Atacados... na passagem... Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz... demasiado tarde para ajudar...

— Está tudo bem — disse Niall. A sua voz soava distante e fraca, como se viesse de outro local qualquer. — Está tudo bem; tens de beber qualquer coisa, toma, e de te aquecer. Deixa-me ver se estás ferido.

Breccan tinha um ferimento feio na cabeça e um dos pulsos torcido. Niall foi buscar ungüentos e ligaduras, ligou-lhe o braço, limpou-lhe o ferimento da cabeça e meteu, finalmente, o amigo na cama.

— Colm? — segredou Breccan, ao mesmo tempo que as pálpebras se fechavam sobre os seus olhos sombrios.

— Ainda não chegou — disse Niall calmamente. — Dorme. Falaremos disso tudo amanhã.

O monge baixou a luz das lâmpadas e ficou na escuridão escutando o próprio coração a bater com força, com força e insistentemente. Mais valia desistir: de que valia? Se estava condenado ao fracasso, a transformar o ouro em escória e a esbanjar o que havia de mais precioso, para quê continuar? No entanto, por uma razão qualquer, já sentira aquilo antes e continuava a sentir. Talvez tivesse estado à espera durante aquele tempo todo, aqueles anos todos, para perceber o que tinha de ser feito. A mente sussurrava-lhe qualquer coisa, uma coisa terrível, uma coisa extrema, uma coisa que até gelava o sangue de um homem que acreditava que a sua vida não tinha qualquer valor. Não permitiria que aquilo tomasse forma, pelo menos enquanto Breccan jazesse ferido e o rapaz no monte, por sepultar. No entanto, aquele meio pensamento girava na sua mente. Teria de tomar uma decisão, mais tarde ou mais cedo.

 

           Quem se atreve a acordar o passado?

           O passado brilha como o nascer do Sol

           E corta como uma faca bem afiada.

                                     NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

No momento em que a agarraram, Creidhe só teve um pensamento; sobreviveria, acontecesse o que acontecesse. Eles saíram da bruma num silêncio total com longos braços, rostos pálidos, encapuzados, de olhos selvagens e brilhantes e de maxilares cerrados, decididos. Breccan começou a erguer o seu cajado; então, com um grunhido de surpresa, caiu por terra, ao mesmo tempo que o seu oponente lhe batia na cabeça com uma moca curta e robusta. O coração de Creidhe batia com toda a força; a jovem podia sentir o suor frio que lhe percorria o corpo, conseguia cheirar o próprio medo. As mãos deles, segurando-lhe os braços atrás das costas, eram frias como gelo e fortes como o aço. O seu instinto dizia-lhe para lutar e fê-lo durante alguns momentos desesperados, tentando libertar-se, dando pontapés e usando as unhas para arranhar e rasgar. No entanto, apercebeu-se rapidamente, através de uma névoa provocada pelo medo, de que eles, simplesmente, afrouxavam o aperto, evitavam os seus golpes e voltavam a segurá-la com força. Eram muitos, altos, silenciosos e fortes. Tornou-se rapidamente evidente que tentar fugir era perfeitamente inútil. Breccan estava sem sentidos e os seus esforços para resistir só serviam para precipitar o mesmo tratamento. Então, deixaria de ter esperança de escapar. Preocupava-a ainda mais um outro pensamento. Era evidente que eles tinham a preocupação de não a ferir, de não a deixar marcada. Seguravam-na com cuidado e moviam-se cautelosamente para que ela não sofresse qualquer ferimento na sua tentativa desesperada para escapar.

Em seguida, conduziram-na para fora do carreiro, sempre sem uma palavra. Breccan foi deixado onde caíra. Dois dos homens caminhavam a seu lado, com dedos finos segurando-lhe os braços. Os outros seguiam à frente e atrás. A jovem não vira qualquer arma, à exceção da moca que atingira o seu companheiro. Creidhe esperava que ele não tivesse ficado muito ferido. Pelo menos, poderia regressar e contar o que acontecera.

O passo era vivo e depois de algum tempo rumaram a oeste, aparentemente de regresso ao Fiorde do Conselho. Seguiram o curso de um rio que corria rápido, batendo nas rochas. Aqui e ali o terreno era pantanoso, saturado de água; os homens asseguraram-se de que ela não escorregava e caía, se bem que as suas botas estivessem totalmente enlameadas. Creidhe arriscou um olhar à esquerda e à direita; não gostou do olhar dos seus captores. Percebeu imediatamente quem eram e o que queriam. Os seus rostos, os seus olhos, os seus estranhos trajes feitos de pele ordinária diziam-lhe que não pertenciam ao povo dos Facas Longas, antes àqueles de quem Niall falara. E sabia o que significavam aqueles cuidados todos com ela, aquela preocupação em não danificar a sua prisioneira, que tinha de ser entregue à tribo sem qualquer marca: um troféu perfeito. Enquanto tropeçava nas rochas e escorregava no cascalho, Creidhe pensava. Uma rapariga que era ao mesmo tempo o Sol e a Lua era uma coisa muito poética, mas as conseqüências disso estavam para além da imaginação. O que acontecera à outra rapariga, Sula, era cruel e odioso. Talvez eles acreditassem que se justificava, permitindo que cada homem da tribo fosse o pai da criança que ela daria à luz. Mas não desculpava uma tal brutalidade. Agora, era a vez de Creidhe; seria seu destino dar à luz o novo vidente, um Face-de-Raposa renascido. A jovem viu-o no modo como aqueles homens olhavam para ela, no modo como a conduziam cuidadosamente, pelo toque das suas mãos. Nos seus olhos misteriosos havia uma mistura de temor supersticioso e luxúria. Creidhe estremeceu. Aquilo não ia acontecer. Não permitiria que acontecesse.

A jovem utilizou um truque que a mãe lhe ensinara. Começou a respirar lentamente, permitindo assim que o coração batesse mais devagar e tornando a mente mais clara e mais capaz de raciocinar. Creidhe ponderou a situação enquanto caminhava com os seus captores silenciosos e implacáveis à sua volta. Não valia a pena gritar. Quem a ajudaria? Eles estavam combinados, o povo dos Facas Longas e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Tinha de fugir da armadilha sozinha, sem qualquer ajuda.

Foi uma longa caminhada, para além da distância que já tinha percorrido com Breccan desde o eremitério por cima de Água Brilhante. Creidhe tentou reconhecer o caminho que levavam, sabendo que esse conhecimento seria vital se conseguisse escapar, mas a bruma espessa estava demasiado baixa, escondendo quaisquer marcas e ela teve de se deitar a adivinhar. Achou que tinham ultrapassado um desfiladeiro alto e estavam agora a ir na direção da praia do Fiorde a oeste, se se podia chamar àquilo praia: umas falésias íngremes rodeavam o estreito canal na sua quase totalidade. A bruma escondia a encantadora ilha a oeste, o reino místico e envolto em nuvens que ainda via em sonhos. A jovem conseguia avistar outras ilhas mais próximas: uma estreita e incrivelmente íngreme e junto dela um baixo e robusto arco. Estavam a chegar a um local do outro lado do fiorde, em frente daquelas pequenas ilhas, um local onde havia uma pequena faixa de terreno plano junto à água e um par de cabanas rudes na encosta mais acima. As pequenas moradias pareciam vazias, desertas. Os seus captores tinham começado a murmurar entre eles; ela não conseguia perceber o que diziam. Percebeu, apenas, uma palavra com nitidez: Asgrim. Aquilo não a surpreendeu. Já vira, entre as figuras altas e desgrenhadas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, um homem que não era daquela raça, um que vira em Água Brilhante, quando o governador regressara à pressa e quando o filho de Jofrid fora sepultado. Aquele guerreiro enorme não era outro senão o guarda-costas pessoal de Asgrim e a sua presença ali entre o inimigo dos Facas Longas dizia-lhe que as suspeitas de Niall eram fundadas. Ela não estava a ser raptada. Estava a ser trocada: Asgrim conseguira a paz para o seu povo e o preço era o seu próprio futuro.

Infelizmente para o governador, pensou Creidhe amargamente, não fazia tenção de ficar prisioneira senão o estritamente necessário. Tinha de arranjar um plano rapidamente, porque naquela estreita faixa de terra, naquele canal abrigado, estava um barco comprido e baixo, feito de peles por cima de um esqueleto de madeira. A seu lado estavam mais homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz à espera. Eram todos altos, magros e de rostos fantasmagoricamente pálidos. Estavam todos imóveis, uma imobilidade que falava de coisas antigas, de uma identidade que fazia parte até das rochas daquelas ilhas selvagens, duradoura e profundamente enraizada. Parecia emanar deles uma força sombria. Usavam armas: lanças de osso, arcos e aljavas, pequenas mocas. Não tinham nada feito de ferro. Os seus trajes eram de peles curtidas rudemente por cima de camisas de lã grosseira. Aqui e ali, viam-se algumas capas esfarrapadas, um colar de conchas em redor de um pescoço, um pequeno osso pendurado de um fio. As suas bocas, fechadas devido a uma disciplina feroz, contrastavam com a fome dos seus olhos, uns olhos ferozes, sombrios, que regressavam sempre à silhueta de Creidhe, uma vez e outra, apesar de a jovem estar bem coberta pelo vestido e pela capa, pelas botas e pelo lenço. O vento soltara-lhe um caracol e este esvoaçava-lhe, dourado e fino, através do rosto. Era aquilo, acima de tudo, que atraía os seus olhares e Creidhe viu nas máscaras dos seus rostos aquela mistura de veneração supersticiosa e desejo. Por um momento, o terror e a repulsa quase a esmagaram. Tinha de se abstrair; não podia deixar que o medo a paralisasse. Só as pessoas fracas agiam assim e ela era forte.

Um plano, precisava de um plano. Mas nada se apresentou imediatamente. O barco estava a ser preparado para partir. Sete homens para a acompanharem seis para remar e um para guarda-la, supunha ela. O irmão Niall falara na Ilha das Nuvens, a sul. Na praia, o grande guarda-costas mantinha-se imóvel, vigilante. O seu rosto parecia ter sido trabalhado a partir de um pedaço de rocha, tão pouco revelava, enquanto aqueles selvagens a metiam no barco e a colocavam à ré com o guarda a seu lado.

As opções dardejavam a mente de Creidhe, para serem descartadas uma a uma. Tentar fugir: nem sequer conseguiria sair do barco. Gritar: um esforço inútil. Provavelmente, todo o povo dos Facas Longas estava a par do que lhe estava a acontecer e estava a gostar. Gudrun estava a par e Helga também, apesar dos seus sorrisos e pequenos presentes. A jovem concedeu uma exceção a Jofrid, uma mulher de coragem surpreendente. Aquele grande guarda-costas estava a par, mesmo quando a percorrera com o olhar, na aldeia. Niall e Colm estavam longe, fora de alcance e Breccan jazia ferido algures na bruma. Quanto a Thorvald e Sam, eram como que dois fantasmas de uma outra vida, visto que não os via há muito tempo. Mesmo assim, o momento era de expressar, de algum modo, o que sentia.

— Que vergonha! — gritou Creidhe para o guarda-costas. — Não passas de um fantoche de Asgrim e Asgrim não merece ser governador! Como me pudeste fazer uma coisa destas? Eu só estou aqui por acaso!

O grande guerreiro caminhou na direção do barco. Por um breve momento de fazer parar o coração, ela pensou que ele a ia ajudar, que ia fazer com que eles a deixassem ir-se embora. Mas o homem e mais alguns outros puseram as mãos na proa, empurrando com toda a força. O barco baixo rangeu no cascalho e entrou na água. Os homens d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz subiram para bordo e pegaram nos remos. Deram a volta ao barco com perícia e começaram a remar firmemente em direção a águas profundas.

Uma das lições do seu pai fora manter a calma em situações difíceis. Creidhe sentou-se e ficou quieta por algum tempo, fazendo mentalmente uma lista das suas possíveis vantagens. Não estava atada. Já ninguém a segurava: agora que a tinham em segurança no barco, possivelmente pensavam que podiam deixá-la com as mãos livres. No fim de contas, à parte a luta inicial e as breves explosões de gênio, parecia uma prisioneira complacente. A jovem continuava com o saco às costas e nesse saco havia algumas coisas úteis, simplesmente não era possível tirá-las sem ser observada. Infelizmente, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz eram sete, ela era só uma, já estavam na água e a pequena embarcação oscilava e saltava de uma maneira familiar e desagradável, fazendo Creidhe recordar a sua chegada àquelas ilhas isoladas.

A bruma estava a dissipar-se e, olhando para oeste, ela viu-a no momento em que o véu se abria, erguendo-se à distância como uma visão adorável: a Ilha das Nuvens sempre com o seu manto de bruma, como que chamando-a, gritando-lhe: Aqui! Aqui!

E a resposta, claro, era aquela. Aquele era o único lugar onde eles não a podiam seguir, o único domínio em que não podiam entrar para a resgatar. Ali, estaria a salvo do povo dos Facas Longas e d’Aqueles-Cujo- Nome-Não-Se-Diz. De maneira a rumarem para sul, para as suas ilhas, aqueles remadores tinham, primeiro, de sair do Fiorde e aproximar-se daquelas duas pequenas ilhas, a alta, cheia de reentrâncias e a que tinha o arco baixo. Tinham de contornar a Corrente dos Loucos.

Muito bem; esqueceria, por algum tempo, o que ouvira acerca da força da água que separava aquela ilha mais a oeste da Ilha das Tempestades; esqueceria que nenhum pescador com apreço pela própria vida ia naquela direção, de Inverno ou de Verão. Não pensaria na probabilidade de morrer gelada, pensaria apenas em permanecer dentro dela durante o mais curto espaço de tempo possível. Não pensaria em tubarões ou serpentes marinhas, ou em correntes capazes de a puxarem para o fundo ou de a varrerem para lá do seu destino e para lá do fim do mundo.

A jovem olhou para o mar. O irmão de Gudrun afogara-se na Corrente dos Loucos, apenas mais um dos muitos homens das ilhas perdidos naquelas correntes instáveis, nos caprichos do vento e nos súbitos turbilhões. Olhou para os remadores, vendo como eles lutavam para manter uma rota estável. Até ali, nos limites do canal entre o Fiorde e a Ilha das Nuvens, a corrente continuava a puxá-los para oeste, como se a Corrente dos Loucos exigisse um tributo, avisando-os de que estavam quase a pagá-lo. A jovem abençoou os Verões passados nas Ilhas Brilhantes, quando brincara em águas paradas com Eanna e Thorvald e aprendera a nadar. Não importava se as águas paradas eram quentes e abrigadas. Ela era capaz de o fazer. Não tinha escolha.

Atrás deles, a faixa de terra transformara-se numa mancha na base da íngreme falésia. A pequena silhueta do guarda-costas de Asgrim podia ser vista na praia, olhando para eles. O barco estava próximo do grande e estreito ilhéu; a tripulação estava a tentar mudar de rota, contornando a margem ocidental dessa ilha e rumando a sul. Pelo canto do olho, Creidhe vigiava o movimento dos remos. A jovem sentiu a força da corrente, reconhecendo a mesma tração, a mesma insistência que sentira quando Thorvald e Sam lutavam para levar o Sea Dove em segurança para a praia contra todas as probabilidades. Se fosse uma mulher sábia, perita na velha tradição, como a sua irmã, poderia invocar a ajuda das forças submarinas, talvez a Tribo das Focas, porque, sem dúvida, também moravam ali, sob as vagas, podendo responder ao chamamento de uma sacerdotisa numa ocasião de grande necessidade. Como não tinha essas capacidades, Creidhe fez o que sabia. Esperou pelo momento ideal, o momento em que o barco atingiu a crista de uma vaga e os homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lutavam arduamente contra aquela estranha corrente. Um deles falou asperamente gritando uma ordem e nesse preciso momento o homem que estava sentado a seu lado distraiu-se. Creidhe ergueu-se; o barco oscilou violentamente. Os homens gritaram; o seu guarda pôs-se de pé com a velocidade de um raio, agarrando-a por um braço enquanto a embarcação se empinava na crista de uma vaga. Mas era tarde. Prendendo a respiração, Creidhe saltou.

A entrada na água foi como que um torno a apertar-lhe o peito, aspirando-lhe o ar que tinha nos pulmões; só depois de conseguir chegar à superfície em busca de ar é que percebeu como estava fria. A corrente já a afastara um pouco; os homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estavam a ignorar o perigo e estavam a dar a volta ao barco para remarem na sua direção. A embarcação aproximou-se; Creidhe voltou a prender a respiração e mergulhou, permitindo que o oceano a transportasse para lá do alcance dos seus perseguidores. Por todos os poderes, o frio era maior do que alguma vez imaginara; não admirava que tantos se tivessem perdido naquelas águas. A jovem manteve-se debaixo de água o mais que pôde. As saias puxavam-na para baixo; Creidhe tentou tirar as botas de pele de ovelha. O saco não era para tirar, mas representava um peso imenso nas suas costas. Conseguiu, de novo, chegar à superfície a tossir, engasgada e com os cabelos em cima do rosto. O barco estava próximo e eles estavam a olhar na sua direção com os remos parados e olhares furiosos: aquela perda seria terrível para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e mais terrível ainda para o povo de Asgrim. As forças já lhe estavam a faltar; não poderia continuar por muito mais tempo. A corrente que a afastara para oeste empurrava-a cada vez mais; não era naquela direção que ela queria ir. Eles ainda não a tinham visto, se bem que estivessem muito próximos, a pá do primeiro remo estava quase ao alcance das suas mãos...

A água redemoinhou e um golpe de vento fez estremecer a superfície. Creidhe estendeu um braço e, agarrando na haste do remo, puxou com todas as forças. Apanhado de surpresa, o remador largou-a e o remo caiu na água. Ouviu-se um grito seguido de um movimento geral para o mesmo lado do barco, que adernou perigosamente. Agarrando no remo, Creidhe cerrou os dentes, deu um impulso e a Corrente dos Loucos levou-a. Olhando para trás, observou, com olhos espantados, o que estava a acontecer, porque era digno de uma história qualquer antiga sobre pesadelos de conseqüências desastrosas. Ergueu-se uma vaga: não uma vaga muito grande, uma vaga moderada, mas como que guiada por uma vontade inexorável. O céu escureceu; o vento começou a soprar. A água ergueu o barco, virou-o lentamente, deu-lhe um piparote gentil e os homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz foram atirados ao mar. Creidhe não viu o que lhes aconteceu depois. Talvez se tivessem afogado; o que sabia era que tinham desaparecido quase instantaneamente. Talvez tivessem nadado na direção da praia, mas, se o tinham feito, não havia sinal deles. Tudo o que sentia era o bater do seu coração, o som da sua respiração, o peso da roupa que a puxava para baixo, a dor terrível nos braços e pernas enquanto se agarrava ao remo, desesperada por se manter a flutuar. A corrente puxava com força para oeste, fazendo-a girar desamparadamente; umas vezes virada para trás, outra para o Sol, umas vezes para baixo, outra para cima, enquanto a forma sombria da Ilha das Nuvens se aproximava gradualmente e o seu corpo ficava cada vez mais frio e a mente enevoada e hesitante, recusando-se a obedecer à sua vontade. A jovem repetiu para si própria, vezes sem conta, um feitiço de sobrevivência: Não vou morrer, não vou morrer.

Enquanto os seus braços e pernas iam ficando dormentes, de modo que não sentia os seus movimentos, recordou o que Nessa dissera depois de Kinart ter morrido. Creidhe ainda era muito nova, tinha apenas quatro anos, mas recordava-se. Kinart tinha-se afogado: tinha-se afastado e só o tinham encontrado quando já era demasiado tarde. Fora um acidente, tinham dito as pessoas. Mas Nessa tinha a certeza de que fora a Tribo das Focas que lhe levara o filho como pagamento por um favor que lhe tinha feito. Se era verdade, Creidhe tentou imaginar porque favor estaria ela agora a pagar. Pela sua própria loucura, talvez, por pensar que a sua presença naquela maldita viagem seria uma ajuda para Thorvald. Thorvald... nunca mais o veria, nem aos seus pais, nem às suas irmãs... nunca mais regressaria a casa... por todos os antepassados, tinha tanto frio... talvez fosse mais fácil se se deixasse ir, porque começava a sentir muitas dores, ninguém sabia onde estava e só lhe apetecia dormir... muito fácil, deixar ir...

Algo surgiu a seu lado. O seu coração contraiu-se; num ápice ficou totalmente acordada, antecipando o momento da mordedura de uma qualquer criatura do mar. Mas não: o que flutuava à tona de água era uma construção familiar de madeira e pele, flutuando de casco para cima, mantida à tona por ar aprisionado no seu interior e engrinaldada com uma confusão de cabos emaranhados. O barco flutuava sozinho; não havia homens, mortos ou vivos, agarrados ao casco ou aos cabos. Não se via nenhum em qualquer direção daquele vasto mar. A praia de onde viera estava agora mais distante do que a forma graciosa e envolta em nuvens da ilha onde estivera em pensamento.

Não vou morrer. Recuso-me a morrer. Trepar para cima do barco parecia-lhe impossível. Mesmo assim, tinha de tentar, porque sair daquele abraço gelado da água era, certamente, a sua melhor hipótese de sobrevivência. Trepar, trepar com a ajuda daquelas cordas, e teria uma hipótese. Uma mão... duas... um pé... por todos os poderes, o seu corpo iria sofrer as conseqüências daquilo tudo se sobrevivesse... puxar... era tão difícil, não conseguiria içar o próprio corpo para cima do barco... respirar fundo uma vez, duas... agora, uma onda vinda de trás, levantando-a num abraço gentil, um último esforço... agarrar, torcer, agora, depressa, os braços e as pernas em redor das cordas, o coração a bater como um tambor, depressa, agarrar enquanto podes... e, então, a simples exaustão total... o casco espantoso e sólido do barco por baixo de si... o embalar das ondas... o frio terrível é de gelar os ossos... a escuridão...

 

Algo mudara desde o regresso de Asgrim. Thorvald sentiu-o, apesar de não saber exatamente o que era. O governador parecia irritado, perturbado; percorria o acampamento, ia à forja, descia e ia até aos barcos, mas Thorvald sentia que durante a maior parte do tempo Asgrim não estava a ver o que estava diante de si. Havia um olhar pensativo naqueles olhos escuros, a testa pálida franzida que sugeria que a mente do governador andava ocupada com outras coisas, com coisas secretas. Skapti não regressara com ele e quando Hogni lhe perguntou onde estava o seu amigo, Asgrim respondeu asperamente que tinha ido tratar de uns assuntos pessoais e que regressaria a seu tempo. Aquela momentânea perda de controle, tão invulgar naquele homem, deixou Thorvald pensativo. Parecia-lhe que Asgrim estava à espera de qualquer coisa. Ouvira falar em negociações. Teria Skapti sido despachado para junto d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz para tentar um acordo de paz? Pouco provável: o governador dissera que o inimigo só falava com ele. Além disso, um assunto como um tratado de paz requeria subtileza, astúcia e inteligência. O guarda-costas possuía aquelas três qualidades numa arena de combate, mas não era nenhum diplomata.

Na ausência de Skapti, Einar ocupou o seu lugar como guarda pessoal, visto que Hogni não podia estar de serviço dia e noite. Hogni também começara a andar de sobrolho franzido; tinha saudades do irmão e dava mostras disso, apesar de tentar esconder esses sinais de fraqueza. Os homens começaram a murmurar e a conversa rodava à volta de uma espécie de acordo, de um tratado; talvez não tivessem de lutar, talvez pudessem, finalmente, ir para casa. Asgrim não dizia nada. Andava de um lado para o outro, carrancudo, e era evidente que estava à espera de qualquer coisa.

Thorvald começou a andar também irritado. Enquanto Sam trabalhara freneticamente para desfazer o remendo no Sea Dove e pô-lo como era antes do rombo, ele próprio trabalhara com ardor para Asgrim. O aviso de Einar não conseguira evitar a sua aproximação: um líder era inútil se não tinha o respeito dos seus homens. Se tinha de correr riscos pessoais, paciência. Quando não estava a comandar os treinos, ensinando, encorajando, por vezes ameaçando para conseguir o resultado que queria, falava com os homens: tentando conseguir o maior número possível de informações sobre a Ilha das Nuvens e as campanhas que tinham tido lá lugar, tentando descobrir como poderiam ter conseguido uma vitória decisiva em vez de derrotas estúpidas. Quando o longo dia chegava ao fim, a última lâmpada apagada e o grupo de homens ressonava na meia-luz da pálida noite de Verão, Thorvald permanecia acordado com a cabeça cheia de planos, esquemas, estratégias. Havia ali muita coisa em jogo; se falhassem em mais uma caçada, duvidava que aqueles homens tivessem o ânimo necessário para tentar de novo, o que significava que tudo tinha de ser perfeito até ao mínimo pormenor. Assim que chegassem à Ilha das Nuvens, tinha de estar preparado para tudo.

E estaria. Estariam. Era uma pena que Asgrim parecesse incapaz de mostrar um apreço genuíno pelos seus esforços; o governador continuava irritantemente afastado. Como chefe de guerra, pensou Thorvald, era tempo de o governador mostrar que era um verdadeiro líder. Se a história de Margaret estava certa, Somerled fora mal aconselhado e cruel, mas fora um verdadeiro líder. Conseguira coisas. A falta de apoio de Asgrim retirava entusiasmo aos homens e enfraquecia-lhes a confiança. Thorvald pensou que teria, dentro em breve, de se confrontar abertamente com o governador; teria de lhe fazer a pergunta diretamente. Certamente que, como filho, era de esperar o total apoio do pai naquele empreendimento. Talvez só precisasse de lhe dizer a verdade.

Fizeram um mapa na areia molhada, descrevendo Orm e Skolli os contornos da ilha, as suas enseadas estreitas, o seu único pico rochoso, as suas falésias e recifes enquanto Thorvald os desenhava cuidadosamente. Wieland preparara a mistura para que o mapa se agüentasse. Knut, mordendo o lábio, concentrado, acrescentava pormenores sob a forma de pequenas pedras, gravetos e algas. Alguns outros amontoavam-se à sua volta em círculo, coçando as cabeças ou os queixos. Muitos estavam perplexos pelo que parecia ser um jogo de crianças, mas à medida que a Ilha das Nuvens ia tomando forma com as suas grutas, formações rochosas, lugares escondidos e perigosos, começaram a acenar com as cabeças e a fazer sugestões; não havia um lugar perto da falésia com uma queda de água e um buraco mesmo ao lado onde se podiam esconder dois homens? A ilhota no ponto mais ocidental devia ser maior e o canal que a separava da costa devia ser mais estreito. Havia agrupamentos rochosos aqui e ali, onde as aves nidificavam. Sim, era mesmo aquilo. Pelos ossos de Odin, a construção era uma maravilha: só lhe faltava estar viva para ser perfeita.

— E agora digam-me — disse Thorvald, depois de tudo acabado para sua satisfação. — Onde é a aldeia dessa tribo sem nome que vive na Ilha das Nuvens? É evidente que só podemos desembarcar num lugar, o que limita as nossas opções iniciais. Einar diz-me que, por vezes, eles atacam assim que nós pomos pé em terra. Mas nem sempre; em alguns anos, esperam até nós chegarmos a um determinado ponto. Que ponto é esse, exatamente?

— Não sei de nenhuma aldeia — disse Orm, aproximando-se para ver melhor a areia esculpida. — Nunca vimos nenhuma, nem sinais de habitação para além das armadilhas que nos estendem. Talvez seja aqui. — O guerreiro apontou na direção do lado mais ocidental da ilha, entre o local de desembarque e a encosta íngreme, mais no interior. — Era o único local onde parecia haver terreno suficiente para construir casas, se bem que, provavelmente, fosse pouco abrigado dos ventos chicoteantes vindos de oeste. Onde há de ser, a não ser que vivam no mar? Nós nunca vimos cabanas, telheiros ou barcos naquela ilha. Vimos algumas ruínas, mais nada.

— E estas grutas? — perguntou Thorvald. — Eles devem viver num lugar qualquer. Há outros lugares escondidos na ilha? Eles não têm filhos? Devem fazer fogueiras. Viram alguma vez algum fumo?

Einar abanou a cabeça.

— Apenas as brumas que eles invocam, para afastar um tipo dos carreiros e fazê-lo cair das falésias.

— Estou a ver — disse Thorvald após um momento. — Nesse caso de que lado vêm eles quando atacam? Talvez a solução seja essa. Temos de meter isto na cabeça de maneira diferente, este Verão; precisamos de compreender o modo como o inimigo age antes de desembarcarmos. Eu tenciono minimizar as perdas. Vamos vencer e vamos fazê-lo com o menor número possível de perdas. E agora vamos falar da caçada do ano passado. Orm?

— Foi um massacre — grunhiu Orm com os olhos fixos na escultura elegante e efêmera que tinham feito.

Thorvald esperou, mas ninguém parecia ter nada a acrescentar. O jovem respirou fundo.

— Passo a passo, é o que preciso que me digam — disse-lhes ele calmamente. — Eu sei que foi mau. Sei que foi assustador e que muitos dos vossos camaradas foram mortos. É por isso que é preciso metermos nas nossas cabeças o que aconteceu, precisamente para evitar, na próxima vez, os mesmos erros.

O jovem olhou para cima, alertado por uma mudança no silêncio. Um círculo de rostos olhava para ele, para o lugar onde ele estava ajoelhado junto do mapa desenhado na areia: o rosto de Orm, sinistro devido à recordação das mortes; o de Knut, mais novo, os lábios retorcidos numa tentativa de sorriso, porque gostara de ter ajudado; o de Wieland, cheio de cicatrizes, triste, resignado; muitos homens, todos eles fixando-o, todos eles procurando qualquer coisa, uma solução, uma saída. Ele podia dar-lhes a solução, a saída, se conseguisse que compreendessem.

— Pode ser que não haja uma próxima vez. — O governador aproximara-se em silêncio; agora, estava inserido no círculo, a sua sombra tapada pela do grande Hogni por trás de si. Este inclinou-se para ver o que Thorvald fizera; Asgrim olhou para ele apenas de relance.

Thorvald ergueu-se. Sentiu-se possuído por uma ira súbita, mas lutou por parecer calmo.

— Sim, ouvi falar de um acordo. Fiquei surpreendido. Se tu tivesses sofrido tantos reveses e perdas ao longo dos anos, a minha mente só pensaria em vingança, não em tréguas. Há uma hipótese de derrotar este inimigo de uma vez por todas, mostrar-lhe que sois guerreiros capazes e corajosos. Um homem de sangue quente não desperdiça uma oportunidade assim, avança de encontro a ela.

— A mim, parece-me — divagou Asgrim com os olhos escuros fixos em Thorvald e com uma expressão impossível de compreender — que o teu interesse é muito pessoal. Fizeste um bom trabalho, ninguém nega. Mas, pergunto a mim próprio por que razão. Não é coisa de recém-chegado.

Thorvald sentiu-se corar, apesar dos seus esforços para conter a ira. As palavras saíram-lhe da boca antes de as conseguir evitar.

— Que esperavas? Que este recém-chegado ficasse de lado a ver os teus homens serem chacinados mais uma vez? Que me divertisse, simplesmente, a consertar umas lanças e uns arcos malfeitos, sabendo que toda a campanha estava destinada ao fracasso? Se era isso que esperavas, não percebo por que nos trouxeste para aqui. Devias ter-nos dado a madeira que te pedimos, mais nada, e acenado com um adeus.

O pé do jovem mexeu-se, desfazendo a pequena ilha, transformando- a num monte amorfo de areia; ouviu-se um suspiro de decepção no círculo de homens.

— Não era preciso estragares tudo — disse Knut, ultrajado. — Depois de tanto trabalho.

— Tens razão. — Thorvald ouviu o som gelado da sua própria voz. Não se lembrava de se ter zangado tanto, desde o dia em que Margaret lhe dera a carta e mudara toda a sua vida. — O trabalho tinha um propósito e esse propósito é a vitória e o auto-respeito. Só depois disso é que vem a paz tão desejada pelos teus homens. É assim tão difícil compreenderes que um homem pode querer colocar os seus talentos ao serviço de outros, liderá-los num determinado objetivo?

Seguiu-se um silêncio gelado. Após alguns momentos, os homens começaram a afastar-se na direção da beira-mar ou na direção dos alojamentos sem dizerem uma palavra. O coração de Thorvald parecia um tambor; estava apanhado entre a fúria e o medo. O rosto do governador estava pálido e os maxilares apertados. Provavelmente, nunca ninguém lhe falara naquele tom. Thorvald manteve-se imóvel, fixando os olhos de Asgrim, esperando uma salva retaliatória de palavras mordazes.

— Não voltes, nunca mais, a fazer isso. — A voz do governador era mortalmente calma. — Se tens dúvidas quanto à qualidade da minha liderança, fá-lo em privado. Eu escuto-te, desde que os teus argumentos sejam baseados em fatos, não em emoções. Estás menos a par da inteligência dos meus homens do que pensas, se pensas que esta troca de palavras não danificará a tua reputação entre eles. Eles conhecem-me. Confiam em mim. Eu sou um deles. Tu és novo, ainda não foste testado, ainda não tentaste nada. Tem mantido-os ocupados durante estes tempos difíceis e isso foi uma coisa útil. Mas ainda não lutaste ao lado deles, ainda não sofreste nem choraste com eles por um irmão, um pai, um camarada caído. Ainda não sabes o que é a cólera d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Ainda não viste desaparecer a luz dos olhos de uma criança no dia em que respira pela primeira vez. Como podes saber o que eles querem? Nem sequer ainda começaste a perceber o que tudo isto significa para eles.

Aquilo foi como se Asgrim lhe tivesse dado um murro no rosto. Hogni mantinha-se a uma pequena distância, mudando o peso do corpo de um pé para o outro. Mais longe, as vozes dos homens podiam ser ouvidas enquanto eles se encaminhavam para o abrigo.

— Estás enganado — disse Thorvald. O jovem não conseguia impedir que a voz lhe tremesse. — É precisamente nessas ocasiões que entram em jogo a estratégia e uma boa técnica. Nessas ocasiões, quando os homens arriscam mais, é que um recém-chegado é bem-vindo. Eu estou de fora; vejo o assunto com outros olhos e posso imaginar as necessárias soluções. Se desistes e consegues umas tréguas, os teus homens vivem um pouco mais até à próxima vez que as outras tribos se decidam virar para ti. Monta um ataque sólido, planejado com precisão e executado com disciplina e eles podem ganhar a paz e a fé em si próprios. Se fizeres isso, liderarás um povo forte. E eu acredito que posso conseguir-te isso. — Havia outras palavras que lhe tremiam nos lábios: Não sabes que sou teu filho não percebes que podemos mudar o futuro, tornando-o melhor? Mas o jovem mordeu-as.

— Falas com paixão — disse Asgrim — apesar dessa conversa de estares de fora. Não consigo compreender as tuas razões para essa dedicação a uma causa estranha. Trabalhaste arduamente durante esta estação; eu vi isso muito bem. O teu amigo também. — O governador olhou de relance para a praia, para o local onde Sam continuava a trabalhar no casco do Sea Dove. — Mas compreendo a paixão dele; o barco é a vida dele. Tu és mais um enigma. Parece que, se tivesses vindo aqui parar mais cedo, mais cedo tentarias controlar os nossos esforços para provar que sabes mais do que nós sobre as nossas vidas. Expulsaram-te das Ilhas Brilhantes por te meteres onde não eras chamado? — As sobrancelhas do governador ergueram-se interrogativamente.

Thorvald voltou a corar.

— Já que falamos disso, tenho uma pergunta para te fazer. Tu não és, também, um recém-chegado? Não é cada um de vós um refugiado de outro lugar, vindo para estas ilhas para esquecer? As Ilhas Perdidas: um lugar onde um homem pode atirar com o passado para trás das costas, os seus erros, os seus delitos, os crimes que cometeu, as boas ações que nunca fez, tudo posto cuidadosamente de lado agora que vive onde o passado não o pode perseguir? Certamente que os únicos que nasceram e foram criados nestas ilhas são os mais novos. A língua que falas é a nossa; o teu modo de vida não me parece um exílio de há muitas gerações. A mim, parece-me que os Facas Longas são tão estrangeiros como eu. Eu só estou a tentar ajudar-te. Como te atreves a julgar-me? — O jovem percebeu que estava a tremer. Estava a perder o controle, algo que queria evitar a todo o custo.

— Eu não te estou a julgar, Thorvald — disse o governador calmamente. — Procuro, simplesmente, descobrir se, nos meus planos para o futuro, tu és uma oportunidade ou uma ameaça. As tuas maneiras e as tuas palavras dizem-me que tu és um líder e o povo dos Facas Longas só tem um líder.

— Eu não sou uma ameaça para ti — replicou Thorvald, perguntando a si próprio se estava a dizer a verdade. — Não agi assim por querer provocar qualquer dano à tua causa ou minar a tua autoridade. Talvez os meus motivos sejam difíceis de compreender. Em casa, eu era... tinha... sentia que estava a mais, que andava à deriva. Eu... — Deuses, parecia uma criança confusa a gaguejar. O jovem fez um esforço para respirar lentamente. — Eu perdi o meu pai; nunca o conheci. Tentei encontrar um lugar para mim mesmo, desempenhar um papel e ter um propósito, e viajei até aqui na esperança, pelo menos, de descobrir ambas as coisas.

— Hum — disse Asgrim, franzindo o sobrolho. — A pergunta é: queres, simplesmente, substituir-me? Tu já me conheces, Thorvald. Sabes, certamente, que essa ambição pode tornar a tua vida mais curta.

— Ouvi dizer que podes ser impiedoso, sim. Compreendo isso, pelo menos em parte. Um líder deve agir com decisão num lugar como este, ou perde a autoridade.

O governador acenou com a cabeça.

— Diz-me uma coisa — disse ele, — por que parou aqui? Por que não foste para sul, para o Ulster, ou para leste, para a terra dos teus pais? Isto é um canto escuro do mundo, Thorvald, escuro e proibido. Este lugar não recebe bem os estranhos. Essa escolha parece-me caprichosa: não é a decisão de um homem racional.

Thorvald respirou fundo.

— Pensei que talvez encontrasse aqui um parente meu, que talvez tenha vindo para aqui há muito tempo — disse ele. — Quis descobrir se era verdade. Foi essa a única razão para a minha escolha. Já disse isto antes, penso e suspeito que Creidhe também já o deve ter dito.

Algo surgiu no rosto do governador, uma sombra, uma mudança diminuta, que desapareceu quando ele impôs mais uma vez o rígido controle às suas feições.

— Tinha-me esquecido — disse Asgrim de modo ligeiro. — Que parente é esse? Estas ilhas não são muito populosas; ninguém chega aqui sem o meu conhecimento. Que tipo de homem era ele?

Thorvald engoliu em seco.

— Teria mais ou menos a tua idade, talvez quarenta anos, talvez um pouco menos; um homem novo quando veio para aqui, de ascendência nórdica.

— Qual era a aparência dele?

Thorvald não conseguiu evitar que a sua boca se torcesse num trejeito de troça.

— Mais ou menos como a minha, imagino. Nunca o vi. Ele viajou para estas ilhas um ano antes de eu nascer.

Os olhos de Asgrim semicerraram-se.

— Estou a ver — disse ele lentamente. — E tens um nome para esse homem?

— Um homem pode mudar de nome. — Thorvald sentia o coração a dançar loucamente, como se quisesse saltar-lhe do peito. — Provavelmente, até mudou, suponho, quando aportou a estas costas como muitos outros, para esquecer.

— Mesmo assim.

— Somerled — disse Thorvald. — O nome dele era Somerled.

Seguiu-se um longo silêncio. Hogni tossiu levemente e mexeu os pés; do abrigo vinha o cheiro de peixe frito em óleo e ergueu-se do buraco no telhado uma coluna de fumo, que desapareceu rapidamente por ação do vento. O céu estava vermelho, o Sol punha-se a oeste para lá da sombra acinzentada da Ilha das Nuvens. Thorvald olhou para o rosto de Asgrim. O homem era um mestre a controlar as suas emoções; durante longos momentos pareceu não ter qualquer reação. Quando a teve, foi um sorriso furtivo, sem humor, que gelou o coração de Thorvald.

— A sério? — disse Asgrim. — Somerled. Não há nenhum homem nestas ilhas com esse nome. Que te era esse Somerled para o teres vindo procurar tão longe de casa, já que desapareceu antes de o teres sequer, visto?

Thorvald girou nos calcanhares, incapaz de suportar a malícia nos olhos escuros de Asgrim, a crueldade nos seus lábios finos.

— Não interessa — disse ele, quase sem reconhecer a própria voz, que lhe parecia vir de um lugar qualquer, distante. — Não tem importância.

Só depois de se ter afastado dez, doze passos na direção do abrigo e do falso conforto dos companheiros que, provavelmente, ainda pensavam pior de si do que o governador, é que Thorvald ouviu a voz leve e trocista de Asgrim atrás de si.

— O teu pai?

E pronto. Viajara até tão longe, dera tanto de si na tentativa de conseguir algo que valesse a pena e fosse duradouro, provando que tinha valor. Encontrara o pai e o pai queria tanto saber dele que nem sequer se dera ao trabalho de o reconhecer. No entanto, era ele e Asgrim sabia-o: Thorvald reconhecera-o pelo desdenhoso erguer das sobrancelhas, pelo tom irônico e cruel da sua voz. Ele era Somerled. Somerled encontrara o seu lugar nas Ilhas Perdidas, uma terra onde não havia lugar para o seu filho.

Thorvald sentou-se sozinho nas rochas por cima da praia pedregosa. As pequenas ondas iam e vinham à luz do crepúsculo e o som que faziam era um suspiro, triste, resignado. Nós mudamos, mas continuamos as mesmas. Tudo é como foi. Tudo é como é. Tudo é como será. O jovem atirou uma pedra para a água e depois outra. O céu escurecera até ficar cinzento como a pele de uma foca, com laivos de um brilho fraco que era ao mesmo tempo a recordação de um dia e a antecipação de outro. Ali, a noite, no Verão, não era mais escura do que aquilo. Thorvald podia ouvir os chamamentos solitários das aves, voando de falésia em falésia, um contraponto lúgubre aos murmúrios do mar.

Não havia mais nada a dizer. Nada mais para fazer. Se um pai não quer reconhecer o próprio filho, mesmo quando este faz os possíveis para lhe agradar, então é evidente que este não tem valor neste mundo, não será assim? Se não está preparado para reconhecer o filho quando está no exílio, um homem que compreenderá, certamente, o que significa ser expulso como uma coisa sem valor, que será do filho? Thorvald estremeceu. Por que se dera a tanto trabalho? Por que confiara nos seus instintos em vez de pensar? Zangara-se: zangara-se com a mãe por lhe ter escondido a verdade, por não ser a criatura perfeita que ele achava que ela era, por... não sabia o quê. Margaret era humana, no fim de contas. Devia ter dezessete anos quando se deitara com Somerled e tivera um filho que viria a crescer sombrio e retorcido como o pai. Ficara furioso com Eyvind, que fora o maior amigo do seu pai e que o banira para sempre da terra onde fora Rei. Que espécie de homem era capaz de tomar uma decisão daquelas? O barco, tinham dito eles, era uma pequena embarcação de pele e as provisões mínimas. Fora uma decisão extremamente cruel. Nem parecia uma coisa do pai de Creidhe, que era conhecido por ser um homem sábio e justo. Desejava, agora, ter falado com Eyvind. Acima de tudo, Thorvald zangara-se consigo mesmo, porque no dia em que Margaret lhe contara a verdade, reconhecera que era o filho do seu pai. Transportava em si a crueldade de Somerled, a sua ambição, a sua auto-suficiência. Somerled tornara-se rei porque era impiedoso e obstinado. Agora, era governador pelas mesmas razões. A sua conversa acerca de partilhar a dor e o sofrimento com os seus homens era um disparate sentimental, uma brincadeira de mau gosto. Asgrim não era líder por favor, era líder por ter um punho de ferro e pela maneira como alimentava o medo do seu povo por Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Thorvald sabia, para sua vergonha, que possuía no peito a mesma determinação, a mesma teimosia e crueldade. Sabia que o fazia morder e rosnar àqueles que tentavam dobrá-lo. Sabia que o fazia ficar cego, por vezes, às necessidades dos que o rodeavam. Creidhe dissera-o e Creidhe nunca mentia. Na ocasião, fingira que não a ouvia. Mas ouvira, compreendera e aceitara; aceitara aquela energia sombria que tinha dentro de si, uma energia que podia conseguir coisas maravilhosas, coisas que mais nenhum homem podia conseguir, mas que também podia conduzi-lo ao maior dos desesperos.

Deuses, como desejava ter Creidhe ao pé de si, sentada muito quieta como era seu hábito, imóvel e tranqüila, a ouvir, simplesmente. Podia dizer-lhe qualquer coisa, sabendo de antemão que ela compreenderia e perdoaria. Creidhe era a única pessoa com quem podia falar quando estava de mau humor; se contasse os seus pensamentos a outra pessoa qualquer, seria apelidado de louco. Por vezes, até ele pensava assim, se Creidhe não estivesse junto dele para o consolar e tranqüilizar. Era verdade que, por vezes, tinha a mania que sabia tudo, mas, de uma maneira estranha, ela era-lhe essencial. Percebeu que tinha saudades dela há muito tempo sem se aperceber.

Bem, se Asgrim conseguisse as tréguas, pensou Thorvald ferozmente, atirando outra pedra para o mar, veria Creidhe dentro de pouco tempo já que tudo aquilo acabaria, o seu trabalho com os homens completamente desperdiçado, as armas fabricadas com tanto carinho armazenadas e a tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e seus acólitos da Ilha das Nuvens teriam vencido mais uma vez sem a menor resistência. Orm, Wieland, Knut e os restantes pensariam que estavam salvos, que a paz era bem-vinda, até começar tudo de novo. E começaria: guerras daquelas não terminavam assim sem mais nem menos. Algo provocaria o reacender do ódio, aquelas tribos entrariam de novo em guerra e o povo dos Facas Longas seria vencido por não ter permitido que ele os comandasse, porque, por essa altura, já teriam esquecido tudo o que lhes ensinara. Não valia a pena, tudo aquilo era inútil. O jovem lançou outra pedra. Fútil. Um desperdício. Maldito Asgrim e mais o seu tratado. Maldito riso cínico. Como se atrevia ele a troçar? Thorvald ficou ali sentado durante muito tempo, sempre com os mesmos pensamentos. Um passo em frente, dois para trás, parecia ser sempre assim com ele. Era como se lhe tivessem lançado uma maldição quando ainda estava no ventre da mãe: uma maldição lançada por Somerled como aviso para o resto dos seus dias, dizendo-lhe que tudo o que fizesse, ou em que tocasse, se desfaria em cinzas. O jovem esquecera-a na tentativa de fazer daquele grupo de ilhéus uma força de ataque disciplinada. Acreditara na tarefa e, durante algum tempo, acreditara em si próprio, o que só provava como a sua capacidade de julgamento era defeituosa, porque bastara a Asgrim Somerled um momento para destruir a visão do seu filho. Que espécie de homem podes ser se tens um pai que te trata como um recém-chegado intrometido?

Na sua mente, algures, ouvia a voz de Creidhe, calma, cuidadosa, dizendo: Há outros que te amam, Thorvald, outros que acreditam em ti. A tua mãe... Não te esqueças de Margaret, de Ash, dos teus amigos. Mas ele fechava os pensamentos àquelas palavras meio recordadas, meio imaginadas, porque naquela noite estava para além de qualquer conforto. Creidhe não estava ali, nem Margaret, nem mingúem, senão Sam, que ressonava junto dos outros no abrigo, cansado por um dia de trabalho honesto no barco. Thorvald estava sozinho com o oceano e com a noite, sozinho no local ideal para um homem cujo espírito mais parecia um pequeno eco das praias desoladas, dos montes íngremes, das falésias monstruosas e das vagas ferozes daquela terra esquecida dos deuses. Era possível acabar com tudo, claro. Numa ilha daquelas, estava tudo à mão, a resposta era fácil, bastava dar um passo para cair da falésia quando não havia ninguém por perto para acudir e dizer Não! Thorvald pensou naquilo, ponderou os métodos, qual seria o mais rápido e mais asseado. Somerled podia ter-se matado. A sua viagem para o exílio fora desesperada, um desafio muito maior do que a terrível viagem a bordo do Sea Dove. O barco de Sam era grande e robusto e tinha três pares de mãos para o governar. Somerled estivera sozinho. Ele não sabia sequer, se havia terra para oeste da praia onde o seu maior amigo o pôs à deriva. No entanto, não escolhera a saída mais fácil de uma faca afiada e de uma viagem rápida e sangrenta para o esquecimento. Somerled continuara; cerrara os dentes e seguira uma qualquer voz interior até àquele lugar selvagem para começar de novo a sua vida. Para quê? Para se tornar governador de uma gente desgarrada à mercê dos habitantes mais antigos e mais perigosos das Ilhas Perdidas? Para fazer uma filha e um filho e perder ambos numa fútil luta pela sobrevivência? Não era recompensa nenhuma, não era satisfação nenhuma. Mas ficara. Escolhera aquela terra e decidira sobreviver. E Thorvald sabia que também sobreviveria apesar de todos os seus pensamentos sombrios. Não sabia porquê; não compreendia. Sentia apenas o bater firme do coração, o pulsar regular do sangue, a pausa entre o expirar e o inspirar, a força. Mas sabia. Vou continuar. Ainda não chegou o meu momento. Até naquilo parecia ser o filho do seu pai.

Finalmente, começou a nascer o dia e pouco depois surgiu Sam com o sobrolho franzido no rosto habitualmente plácido.

— Passaste aqui a noite? Não é o melhor começo para um dia de trabalho.

Thorvald não disse nada.

— E está frio, com ou sem Verão. Toma. — Sam deixou cair um cobertor por cima dos ombros do amigo. Seria um gesto infantil recusá-lo; Thorvald enroscou-se nele, não confiando em si próprio para falar porque, subitamente, parecia que tinha lágrimas nos olhos: que tolice.

— Ouvi dizer que tiveste uma discussão com Asgrim — disse Sam sem nenhuma ênfase especial. — Disseste-lhe?

Thorvald acenou com a cabeça.

— Mais ou menos — conseguiu ele dizer. — Ele preferiu não me reconhecer; suponho que já estava à espera.

Seguiu-se um curto silêncio.

— Lamento — disse Sam em voz baixa. — Lamento, mas não estou surpreendido. Ele tem o seu próprio mundo, aqui, e não há nele lugar para mais ninguém.

Os dois jovens permaneceram sentados enquanto o céu ia clareando por cima das suas cabeças e um ou dois dos homens passaram por eles a caminho dos barcos. Seria um bom dia de pesca: um dia agradável, suave, um dia em que as Ilhas Perdidas usavam um rosto que desmentia toda a sua selvajaria.

— Thorvald?

— Hum?

— O Sea Dove está quase pronto. Os tipos arranjaram-me um mastro melhor do que eu esperava e parece que há uma vela pertencente a um barco que naufragou aqui há um ano ou dois. Não me apetece nada utilizá-lo na porcaria da caçada de Asgrim; provavelmente, vai acabar no fundo do mar e nós com ele naquela Corrente dos Loucos. E eu não sou um guerreiro, sabes isso muito bem. Eu sou capaz de o ter pronto depois de amanhã. Eu acho que devíamos ir buscar Creidhe à aldeia, com ou sem guardas e devíamos ir para casa. O tempo parece que se vai agüentar. Não me interpretes mal. Não te estou a pressionar. Eu sei que é difícil para ti e que tens de ser tu próprio a decidir. Mas, para que saibas, há um tipo que quer ir comigo, desde que Asgrim não dê pela coisa enquanto não estivermos suficientemente longe. No entanto, se estivesse no teu lugar, eu não ficava. Era o que te queria dizer.

Por alguns momentos, Thorvald não respondeu; fazê-lo seria admitir o seu fracasso. Finalmente, disse:

— Dou-te uma resposta esta noite. Pode ser?

— Claro — disse Sam muito sério. — Eu digo-te o que posso fazer. Por que é que não vais trabalhar comigo, hoje, para o Sea Dove? Tu tens bom olho para os pormenores; podes ser-me útil. Knut tem-me ajudado, mas ele é melhor nos trabalhos mais rudes. Pensa nisso. Prometo não falar muito.

A oferta do amigo deixou Thorvald sem palavras.

— Olha que não se trata de um privilégio entre amigos — disse Sam com um sorriso. — Tenciono fazer-te trabalhar a sério, para ver se acabamos o trabalho.

— É melhor irmos comer qualquer coisa. Vai ser um dia longo.

Mais tarde, Thorvald reconheceu que a sugestão de Sam fora, não só amável, como notavelmente inteligente. O trabalho duro impedia-o de estar sempre a pensar; estava tão ocupado para pensar para além do próximo cravo, da próxima prancha, da brocha e do alcatrão. Mal terminava um trabalho, Sam arranjava-lhe logo outro, ou pedia a sua ajuda para erguer uma carga pesada, ou perguntando-lhe se a junta entre duas tábuas estava perfeitamente alinhada e vedada. Knut trabalhava em perfeito silêncio, feliz por fazer o que lhe mandavam. Foi com surpresa genuína que Thorvald reparou, enquanto aparava a superfície interior da última das pranchas de substituição, que o Sol já estava a descer mais uma vez para lá da Ilha das Nuvens e que estaria, em breve, demasiado escuro para trabalhar. Reparou também, nesse preciso momento, sem se dar conta, que tomara uma decisão.

Knut terminara o seu dia de trabalho e ia a caminho do jantar. Sam estava a arrumar as ferramentas; o fato de estar longe de casa tornara-o ainda mais metódico. Thorvald saltou do Sea Dove para a areia da praia.

— Sam?

— Hã?

— Queria dizer-te — Thorvald interrompeu o que ia dizer devido ao som de vozes zangadas vindo do acampamento; ouvia-se, agora, o som de passos a correr e o brilho de alguns archotes. O jovem pensou ouvir o tom trovejante de Skapti, mas o homem que gritava era Asgrim.

— Que estará a acontecer? — resmungou Sam.

— É melhor irmos ver — disse Thorvald, sentindo uma estranha sensação no estômago, uma premonição gelada de que algo iria mudar. Vamos.

Os dois amigos começaram a andar na direção do acampamento.

— O que é que me ias dizer?

— Não interessa. Pode esperar.

A sensação atingiu-o de novo, uma excitação, um certo medo, uma antecipação. Talvez aquilo ainda não tivesse acabado. Talvez os planos para uma trégua tivessem falhado; que outra coisa faria Asgrim perder as estribeiras em frente dos homens todos? Fazei com que seja verdade, viu-se Thorvald a rezar a um deus qualquer que, eventualmente, o estivesse a ouvir. Fazei com que seja verdade; deixai-me liderá-los. Tenho direito.

Quando chegaram ao abrigo já o governador não estava presente. Os homens estavam muito calados. Procediam à rotina habitual de cozinhar o jantar e de preparar as camas, mas Hogni e Einar estavam ausentes e não apareceram quando o peixe foi servido. Thorvald perguntou a Orm o que acontecera, mas este, tal como os outros, não sabia praticamente nada. Skapti estava de volta e dissera qualquer coisa ao governador, uma notícia que não lhe tinha agradado nada. Asgrim levara-o para a sua cabana, assim como Einar e Hogni. Não queriam ser perturbados. Era tudo o que sabiam.

— Achas que isto significa o fim das tréguas? — arriscou Thorvald em voz baixa.

Os homens olharam para ele: Orm, Wieland, Skolli. Enquanto o seu coração se enchia de esperança, os olhos deles enchiam-se de uma terrível resignação.

— Que outra coisa havia de ser? — disse Wieland, sem expressão. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz rejeitaram a oferta; a caçada vai ter efeito.

— Ainda não sabes. — Thorvald sentiu-se obrigado a dizer aquilo, se bem que tivesse a certeza de que o homem tinha razão. Teria dificuldade em persuadi-los de que aquilo não significava boas notícias.

— Ele, amanhã, diz-nos — grunhiu Orm. — E isto vai continuar, como sempre. Vou-me deitar. Apaguem a lâmpada, sim?

Thorvald andava há muito tempo a dormir mal. No entanto, naquela noite, não lhe pareceu correto abandoná-los e sentou-se com eles numa das prateleiras de terra, iluminados por uma única lâmpada de óleo de foca junto da entrada, para além do brilho da lareira. O jovem viu que Sam também estava acordado, envolto no cobertor, de olhos fixos em Thorvald. Nenhum deles disse nada. Talvez soubessem os pensamentos um do outro. O Sea Dove estava pronto para partir; ainda nada estava decidido.

O chamamento surgiu amortecido. Hogni estava à porta, lançou um pequeno assobio e fez um gesto com a cabeça. Thorvald levantou-se cuidadosamente para não pisar nenhum dos homens adormecidos; o jovem estava consciente de que Sam o seguia e esperava que o Hogni mandasse o pescador de volta, mas o guarda-costas conduziu-os pelo carreiro acima até à cabana de Asgrim. O governador estava à espera com Skapti e Einar. As rugas na boca e testa de Asgrim eram visíveis à fraca luz da noite; o homem parecia velho. Einar estava pálido e silencioso e o grande guerreiro Skapti nervoso como um rapaz, mexendo os pés com freqüência, cruzando e descruzando as mãos. Hogni ficou no exterior, junto da porta.

— Thorvald, Sam. — O governador olhou para eles sem expressão, sem denunciar fosse o que fosse; a sua voz, no entanto, era tudo menos firme. — É melhor sentarem-se. Einar, dá-lhes um pouco de cerveja.

Sentaram-se todos. Ninguém se atreveu a desobedecer a Asgrim. Thorvald sentia-se confuso. Esperava ser chamado se as tréguas ficassem sem efeito; esperava receber instruções: Põe os homens a treinar outra vez, continua o que começaste, porque preciso de ti. Mas, por que fora Sam também chamado? Por que se estavam todos a portar de modo tão estranho, como se as notícias fossem demasiado más?

Quando os dois se sentaram com uma caneca de cerveja na mão, Asgrim tossiu para clarear a voz e disse:

— Não sei como vos hei de dizer isto. Tenho más notícias para vós. Chocantes e muito tristes. Foi Skapti que as trouxe de Água Brilhante. — O governador calou-se, mexendo as mãos; os outros pareciam estátuas. Foi Sam que quebrou o silêncio com uma voz que soou áspera e descontrolada, uma voz que Thorvald nunca ouvira antes, um som que lhe provocou um nó no estômago sem que percebesse por que razão.

— O que é? — gritou Sam, pondo-se de pé num salto. — Diz-nos! O que é?

— Calma, calma, senta-te, por favor — disse Asgrim, avançando com os braços estendidos para obrigar Sam a sentar-se de novo. Sam empurrou-o e ergueu um punho, mas já Einar, como um relâmpago, se interpunha entre os dois como um escudo. O rosto de Sam ficou escarlate.

— Senta-te, Sam — murmurou Thorvald. — Faz o que ele diz. Ouçamos as notícias, por favor — acrescentou ele, dirigindo-se a Asgrim com uma polidez exagerada. — Se achas que não as conseguimos agüentar, sejam elas quais forem, podes ter a certeza de que o fato de protelares o momento da verdade não contribuirá para nos deixar menos apreensivos.

— Trata-se de Creidhe, não é? — conseguiu dizer Sam. — Aconteceu alguma coisa a Creidhe.

E ao mesmo tempo que o silêncio se instalava mais uma vez e Asgrim inclinava a cabeça para olhar para as próprias mãos, Thorvald sentiu um frio terrível percorrer-lhe o corpo, começando na vizinhança da cabeça e alastrando gradualmente.

— O que é? — conseguiu ele dizer em voz áspera. — Que aconteceu?

— A tua amiga foi raptada. — A voz de Asgrim tremia. — Foi levada pelos nossos inimigos. E...

Ninguém conseguiu deter Sam. O jovem atirou-se, agarrou Asgrim pelos ombros e abanou-o com força.

— O quê? — rugiu ele. — Disseste-nos que ela estaria em segurança! Quando é que isso aconteceu? Por que não foste atrás dela? Sabes muito bem o que eles lhe vão fazer...

As palavras morreram-lhe na garganta quando Einar lhe tapou a boca com a mão e, com a ajuda de Skapti, o afastou de Asgrim.

— Calma, Sam. — Algo acontecera com a voz de Thorvald; só conseguia murmurar. — Temos de ouvir o resto. Deixa Asgrim acabar. — Porque aquilo não era tudo. Podia vê-lo nos olhos do pai.

— Ela andou a passear pelos arredores da aldeia de manhã cedo, enquanto estavam todos ainda deitados. As mulheres disseram que, provavelmente, tinha ido visitar os eremitas, aqueles cristãos malucos que vivem no alto do monte, mas Skapti estava perto do local e viu-os levarem-na. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vieram do mar; foi tudo muito rápido. O barco deles veio e foi-se embora quase sem nos apercebermos.

Thorvald olhou para Skapti, que continuava a segurar em Sam, se bem que este já tivesse deixado de se debater.

— Onde é que tu estavas? — ouviu-se ele a dizer. — Por que não a ajudaste? Ela não passa de uma rapariga. — Curiosamente, o jovem sentiu que talvez estivesse a falar para si próprio.

As feições abrutalhadas de Skapti coraram. O homem abriu a boca e fechou-a de novo.

— Ele tentou, Thorvald — disse Asgrim gentilmente. — Mas não conseguiu chegar a tempo. Então... — O governador fez uma pausa.

— Ela afogou-se — disse Skapti, largando subitamente Sam, de modo que este ficou de novo sentado ao pé do amigo. — Eu vi. Ela estava de pé e o barco ia em direção à Corrente dos Loucos. Foram todos varridos e afogaram-se. Aquele lugar é maldito. Mais valia não ter vindo aqui...

— Tudo bem, Skapti — disse Asgrim de modo seco, e o guarda-costas calou-se, limpando o nariz à manga da túnica. — Receio que seja verdade continuou o governador, sentando-se em frente de Thorvald. Aquela corrente é mortal. Não sei que te hei de dizer. Uma rapariga tão bela, tão delicada. As pessoas já gostavam dela, na aldeia. Isto é típico do nosso inimigo; eu próprio sofri o mesmo e sei o que deves sentir.

— Tu? — gritou Sam. — Sabes o quê, seu egoísta de...

— Sam. — Thorvald colocou um braço em redor dos ombros do amigo e este, com um estranho soluço, levou as mãos ao rosto. Thorvald também gostaria de chorar, ou de gritar em voz alta a sua dor e a sua fúria. Mas o momento exigia algo mais e o jovem, procurando no fundo da alma, conseguiu-o. — Quero saber exatamente como é que vocês permitiram que isto acontecesse. — O seu tom era preciso, frio. — Disseram-nos que Creidhe estava em segurança. Não nos deixaram ir ter com ela a Água Brilhante. Vocês dizem que se afastou. Creidhe não é nenhuma criança e não é estúpida. Ela não se afastava assim.

— Talvez não — disse Asgrim calmamente. — Mas o comportamento dela é... era... imprevisível, não o podes negar. Ela não saiu do carreiro a caminho da Baía Sangrenta? Talvez ela tenha tido uma das Visões dela e tenha ido cair nas mãos d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.

— E esses eremitas de que falaste? — perguntou Thorvald.

— É a primeira vez que ouço falar em cristãos. Quero uma resposta como deve ser; desconfio que nos têm andado a esconder a verdade. Se esta morte tivesse acontecido na minha ilha, haveria uma investigação e haveria uma compensação. Estou profundamente desiludido. — As palavras saíam-lhe suavemente; parecia ter descido sobre ele uma calma fria, permitindo-lhe continuar aquele jogo sombrio, se bem que sentisse crescer dentro de si uma fúria selvagem, como um animal selvagem tentando libertar-se. Não podia permitir que fugisse. Tinha de manter o controle.

— Os eremitas? Geralmente, são apenas aborrecidos — disse Asgrim. — Estão aqui há muito tempo. Há mais noutras partes das ilhas, quase todos vindos do Ulster. Parecem sentir-se bem isolados, exceto um, intrometido, que não sabe estar calado. Talvez tenha sido ele a persuadir a tua amiga a afastar-se. Vou fazer com que seja interrogado, se é esse o teu desejo.

Thorvald ergueu as sobrancelhas e cerrou os lábios. A seu lado, Sam chorava miseravelmente; Einar aproximara-se do pescador. O braço de Thorvald continuava em redor dos ombros de Sam; os soluços pareciam atravessar o seu próprio corpo, sobressaltando-lhe o coração e tirando-lhe a força de vontade, mas o jovem não o tirou. Podia fazer aquilo, era o líder.

— Suponho que não há a menor hipótese — disse ele — a mais ínfima das hipóteses...?

Asgrim abanou a cabeça.

— Na Corrente dos Loucos? Nenhuma. Ela morreu, Thorvald. Lamento, lamento muito. Que mais posso eu dizer?

Aquilo estava a ficar cada vez mais difícil; Thorvald fez um esforço para respirar mais lentamente. O jovem olhou para Asgrim, fixamente, e este devolveu-lhe o olhar sem pestanejar.

— As reparações no barco acabaram — disse Thorvald. — Decidimos ir para casa. Temos de dar a notícia à família de Creidhe. O tempo parece estar bom. Estamos a pensar partir depois de amanhã.

— Mas... — Einar e Skapti falaram ao mesmo tempo e calaram-se ao mesmo tempo.

— Estou a ver — disse Asgrim. — E compreendo as tuas razões, se bem que recorde as tuas palavras, ditas ainda não há muito tempo. Disseste: Se eu tivesse sofrido o que tu sofreste, só procuraria vingança, não tréguas. Mudas de idéias assim tão depressa?

Sam calara-se, se bem que os seus ombros ainda estremecessem. Einar procurou na algibeira, tirou um pedaço de tecido cinzento e amarrotado e estendeu-o ao pescador. Thorvald manteve-se calado.

— Compreendes, certamente, que depois deste acontecimento terrível eu não posso continuar a considerar a possibilidade de tréguas com o nosso inimigo — disse Asgrim. — Como é possível pensar em paz com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? Raptar uma das nossas raparigas em plena luz do dia quando estávamos em conversações, à espera da resposta deles; foi uma coisa bárbara, um ultraje. Depois disto, só pode ser a guerra.

Outro silêncio. Skapti suspirou; Sam utilizou o lenço para limpar os olhos e depois, ruidosamente, para se assoar.

— Esperava — Asgrim abriu as mãos numa espécie de apelo — que ficasses a meu lado nesta empresa, Thorvald, para que liderasses os meus homens. Esperava que Sam nos emprestasse o barco para que pudéssemos, talvez, atravessar aquelas águas traiçoeiras onde Creidhe morreu de modo tão cruel. As capacidades dele como marinheiro, também; os nossos homens não são tão bons. Podias ajudar-nos muito, ambos. Poderiam fazer a diferença na caçada. Mas compreendo que queiram ir-se embora. Nenhuma vingança conseguirá trazer Creidhe de volta, nem a minha Sula. Deves fazer o que achares melhor.

Thorvald esperou. O jovem viu os sinais de incerteza, uma ligeira mudança nos olhos do governador, a mudança de posição das mãos em cima da mesa, na sua frente. Asgrim sabia que não podia fazer aquilo sem a ajuda de Thorvald. Era um presente; a oportunidade por que Thorvald esperava há muito, mesmo contra a sua vontade. Aceitá-la era aceitar o preço que custara.

— Nós ficamos. — A voz de Sam saiu abafada, mas as palavras suficientemente claras. — Ficamos até ao fim da caçada. Vamos varrer aquela escumalha da Ilha das Nuvens e depois vamos atrás dos outros. Pelo martelo de Thor, se algum dos animais que pôs as mãos na Creidhe sobreviver a isto, hei de fazê-lo nadar no próprio sangue quando lhe puser as mãos em cima. Podeis contar conosco. Creidhe não merece menos.

Depois daquilo, não havia mais nada a dizer. Asgrim ofereceu-lhes um lugar para dormir na sua cabana, mas eles declinaram a oferta. Hogni e Skapti escoltaram Sam até ao abrigo, um de cada lado; já não havia punhos cerrados nem gestos ameaçadores. Uma vez no abrigo, os outros foram acordados e a cerveja correu; era evidente que tencionavam continuar a beber durante a noite, oferecendo assim, ao pescador, um esquecimento temporário. Thorvald não se demorou. Parecia-lhe ser imperativo afastar-se o mais possível deles, mas era noite e os carreiros por cima da baía perigosos, Mesmo assim, o jovem caminhou um bocado à luz do luar até encontrar uma pequena cavidade por baixo da falésia, um lugar de onde poderia ver a luz da lâmpada do abrigo e a que passava pela porta da cabana de Asgrim, deixando ver a silhueta de Skapti no exterior, jazendo pesadamente no solo irregular.

Thorvald olhou para o oceano escuro. Aquilo que tinha dentro do peito crescia, feroz, tentando libertar-se; o jovem dominou-se, porque um verdadeiro líder tinha de saber dominar as suas emoções. Um homem a sério não grita a sua dor, não se queixa às estrelas, aos deuses, não culpa a maldade do inimigo ou as fraquezas dos amigos. Um homem a sério é forte. Mesmo sozinho na noite, numa falésia às escuras, não entra em desespero. Por isso, manteve-se sentado em silêncio, respirando como vira Creidhe fazer quando ele a arreliava e ela tentava não chorar; um, dois, três inspira, um, dois, três expira. Parecia estar a fazer efeito, ou quase; o jovem conseguiu evitar que o som saísse, um som que ele sabia ser um uivo de dor, o grito de um animal ferido. No entanto, era estranho: não parecia ser capaz de reter as lágrimas que lhe corriam, como um rio, pelas faces abaixo, lágrimas cuja origem não compreendia porque no seu espírito só sentia um vazio.

 

Guardião não esperava ver uma deusa naufragar na sua ilha. Vira o barco aproximar-se, vira e não acreditara nos seus olhos, apesar de ter orgulho na sua visão. Do ponto onde estava, no alto da falésia, num dia claro, era possível avistar até coisas pequenas: pequenas vagas brincando, um bando de andorinhas passando como uma flâmula prateada por cima do Arco do Troll, fumo nas cabanas do Fiorde do Conselho. Ficou a olhar por alguns momentos vendo o súbito brilho dourado, o tecido pálido sobrepondo-se à pele escura que cobria o barco. Tentou tirar algum sentido daquilo. Então, quando se tornou evidente que a Corrente dos Loucos entregava aquele presente à sua própria Ilha Guardião foi tomar posse dele.

A princípio, Pequenino partiu à frente, contente com a expedição, porque tinham estado durante muito tempo imóveis, olhando simplesmente. A maré e o vento tinham dito à Guardião que ainda não eram horas da caçada, mas que esta se aproximava. Nem o menor dos sinais escapava à sua observação, nem a menor das pistas, ou não estaria pronto para eles. As suas lanças, os seus mísseis e as suas armadilhas esperavam. Mas acima das suas armas estavam os seus ouvidos e olhos, a sua ligeireza de pés e a própria ilha. Tinham passados muitos dias em observação e Pequenino estava cada vez mais inquieto.

Assim, foi o primeiro a chegar ao cascalho da pequena ilha; o primeiro a chegar ao barco virado com a sua carga emaranhada, inerte, nas cordas retorcidas ao longo do casco; o primeiro a estacar e a recuar, espantado. Guardião também parara devido a algo que não compreendia totalmente: um sentimento de viragem, de mudança, ao mesmo tempo prodigiosa e terrível. Os seus dedos tocaram no colar prateado em redor do seu pescoço, descorado pela poeira; os seus olhos fixaram-se na silhueta inerte sobre o casco do barco. Os seus cabelos estavam escurecidos pela água, emaranhados e desordenados; no entanto, espalhavam-se-lhe pelo rosto, pelos ombros e desciam-lhe pelo dorso como uma cascata de brilho solar. Guardião engoliu em seco. Sula tinha morrido; nunca mais regressaria. Vira-a, pequena e de rosto cinzento, como uma imitação ridícula da sua risonha e divertida irmã. Aquela era outra, alguém que jazia imóvel e silenciosa, as mãos pálidas enroladas nas cordas, as roupas ensopadas e a pingar e um pé branco, pequeno, à vista por baixo da bainha do vestido de lã. Aquela trazia um saco às costas, que também estava ensopado. Já era tarde, o Sol já só estava três dedos acima do oceano. Poderia uma deusa afogar-se, ou morrer de frio? Guardião fez um esforço e aproximou-se, passando pelo lugar onde Pequenino estava, tremendo, bem ao pé da forma escura do barco naufragado. Guardião tirou a faca do cinto e começou a cortar cuidadosamente: nada se podia desperdiçar porque viviam daquilo que o mar dava e do que a caçada deixava para trás. Daria uso às cordas, à madeira, à cobertura de pele, a tudo.

Em determinado ponto tornou-se necessário carregar aquela figura inerte e Guardião percebeu que era uma mulher. Poucos segundos depois, a cortina dourada de cabelos caiu-lhe do rosto e ele descobriu que ela era espantosamente branca e que ainda estava viva, mas por pouco tempo. Então, parou. A recuperação do barco podia ficar para o dia seguinte; se a maré o levasse durante a noite, talvez fosse porque o destino assim o exigia. Daqueles dois inesperados presentes do mar, era evidente qual deles era o mais precioso.

Guardião chamou Pequenino:

— Depressa! Cobertores! — Mas Pequenino tinha desaparecido no meio das rochas acima da praia. Não era surpresa nenhuma. Quando os homens vinham à ilha, era sempre para magoar, para matar. Vinham com as suas lanças de pontas de ferro, com as suas florestas de setas e olhares furiosos. Pequenino tinha de ter medo, só recordava os anos de caçada, nada dos tempos anteriores. Tinha apenas um ano quando Guardião o levara para ali, os cabelos dourados da sua mãe apenas uma vaga e terna recordação na sua mente infantil. Naquele mundo, um estranho significava terror, sangue e morte. Assim, escondeu-se nas sombras, vigilante, enquanto Guardião carregava a mulher nos braços e a levava para um lugar seco e seguro.

Era preciso ser rápido. Ela estava pálida como a Lua e a respiração lenta e entrecortada. Guardião sentiu a frialdade da sua pele e viu que não tremia: estava quase a desistir, então, permitindo que o seu espírito a abandonasse. No entanto, continuava a respirar. Guardião chamou de novo, mas não obteve resposta. Pequenino apareceria quando tivesse fome; não havia mais ninguém para o alimentar. Guardião moveu-se com a eficiência de um homem que vive há muito tempo sozinho e está habituado a arranjar soluções. Arranjou madeira e fez uma fogueira no interior do pequeno abrigo. Arranjou cobertores; tinham poucos e já estavam muito coçados, mas havia outras coisas armazenadas, troféus da caçada: capas, túnicas e uma jaqueta de pele de ovelha. Depois de estar quente, depois de acordar, envolvê-la-ia nessas coisas. Havia também, algures, dois vestidos de Sula; por que razão os levara para ali, não sabia, salvo que, assim que soube que ela morrera, não lhe parecera dever deixar a mais pequena recordação entre aqueles que lhe tinham roubado a infância, a inocência e, eventualmente, a vida. Tinha, também, os seus sapatos. Oferecer-lhos-ia: um presente. Mas ainda não. Tinha de lhe tirar aquela roupa toda molhada, envolvê-la em cobertores e deixá-la durante algum tempo junto da fogueira.

Guardião sabia que ela poderia vestir as roupas da sua irmã. Sula era uma rapariga frágil, magra, pouco mais do que uma criança. Aquela rapariga era... era... as mãos tremiam-lhe enquanto a estendia na capa estendida junto da fogueira, a cobria com mais duas e depois com os cobertores. Guardião estendeu um braço para lhe afastar os cabelos dourados da fronte pálida. Aquela rapariga era, simplesmente, a coisa mais bela que vira em toda a sua vida, ou que esperava ver algum dia. Sentou-se junto dela por alguns instantes, observando-lhe o rosto, desejando ver-lhe alguma cor nas faces, um leve bater das longas pestanas. Aquela rapariga era um milagre de curvas suaves e elegantes superfícies planas, de cores brancas, rosas e douradas; uma criatura de graça aterrorizadora e torturante cuja presença a seu lado, junto da fogueira, lhe enchia o coração com um tumulto de sentimentos e o corpo com uma confusa mistura de prazer e dor. Ocorreu-lhe que talvez tivesse razão quando a vira pela primeira vez; talvez ela fosse mesmo uma deusa. Que mulher conseguiria provocar tal devastação simplesmente por permanecer ali deitada?

O fogo ardia, quente. Guardião sabia que Pequenino regressara; a luz das chamas refletiu-se nos seus olhos entre as rochas, no exterior da cabana. Pequenino continuava assustado; não voltaria ali enquanto Guardião não o convencesse de que não havia perigo.

Tinha de tratar das roupas molhadas. Guardião estendeu-as: um vestido, uma túnica e uma peça fina de roupa interior. Estava tudo rasgado e danificado pelo mar. Tinha de lhe arranjar qualquer coisa, fazer-lhe qualquer coisa; tornara-se bom nisso ao tomar conta de Pequenino, que trouxera pouca coisa. Ainda não vira o que continha o saco que ela trazia às costas, uma coisa preciosa, sem dúvida, pensou Guardião, ou tê-lo-ia largado na água. Estava completamente saturado.

Pelo canto do olho, viu Pequenino aproximar-se timidamente. Guardião pegou no peixe que apanhara, envolto em algas e colocou-o ao lume, sabendo que Pequenino ficaria mais tranqüilo se o visse a fazer coisas rotineiras, familiares. Ainda não podia cozinhar, as chamas estavam demasiado altas; mas tinha de as manter assim para que a rapariga acordasse. Depois, não imaginava o que poderia fazer. O saco: as coisas dela ficariam arruinadas. Guardião desapertou o cordão que o fechava, começou a tirar cuidadosamente os objetos do seu interior e estendeu-os a secar em cima da pedra lisa perto da fogueira. Pareciam, todos, coisas prodigiosas, secretas e mágicas. Um pente de osso de baleia com pequenos animais marinhos gravados; ainda tinha uma pequena mecha dos seus cabelos. Uma tesoura de ferro, bem afiada; e uma pequena faca de trabalho. Guardião secou as duas coisas cuidadosamente, sabendo como a ferrugem lhes podia ser prejudicial. Pequenino aproximara-se e olhava intensamente; o ferro fê-lo hesitar. Guardião também não se sentia à vontade ao tocá-lo, ao cheirá-lo, mas habituara-se àquele metal maldito por ser essencial para a sua sobrevivência. Um pedaço de tecido forte, que se desdobrou para mostrar muitas bolsas pequenas com agulhas de osso, outros delicados instrumentos cujo nome ele não conhecia e meadas de lã colorida, as cores da sua ilha; azul como à tardinha, vermelho como ao crepúsculo, dourado como ao amanhecer, cinzento como as focas... A magia devia ser poderosa. Guardião colocou-as em cima da pedra cuidadosamente, primeiro as cores claras, depois as escuras, primeiro a alvorada, depois o crepúsculo, depois a noite. Aquele pequeno saco era, em si, um mundo: e ela, o que era?

Havia outras coisas, coisas interessantes: alguma roupa, uma corda enrolada, uma pederneira, um jarro firmemente arrolhado que ele não abriu, um recipiente de pedra-sabão pouco profundo e um pedaço de pavio. E ervas, num saco oleado, mas este desfizera-se e as ervas estavam estragadas. Guardião ficou a olhar para o que estava na sua frente. Para uma deusa, tinha uma mente muito prática; dificilmente teria arrumado as coisas melhor do que ela. Só lhe faltava um anzol, pensou ele.

Pequenino aproximou-se e deu uma cotovelada em Guardião. Tinha o nariz frio.

— Tens fome? Eu sei, vou já cozinhar o peixe. Quando ela acordar...

Pequenino deu-lhe outra cotovelada, ao mesmo tempo que emitia um pequeno som, cheirando o saco. E Guardião reparou que havia outro compartimento, uma bolsa no lado de fora, firmemente fechada com a ajuda de um pedaço de guita. Parecia impossível que um receptáculo tão pequeno pudesse conter tanta coisa. Desataram os dois a guita e Guardião retirou o rolo de tecido fino que estivera tão bem guardado no interior. Era muito estranho; o saco estava encharcado, como era natural depois de ter passado tanto tempo na água, mas aquilo estava perfeitamente seco e limpo. Guardião arranjou espaço na pedra e, lentamente, desenrolou o tecido.

Guardião ficou a olhar para ele durante muito tempo, num grande silêncio, os seus olhos deslocando-se lentamente ao longo do padrão intrincado de pequenas imagens e cores vivas, um mundo de mistério e maravilha, revelado num complexo trabalho de lã. Podia vê-lo movendo-se, envolvente, como se a história que contava, a verdade que continha, estivesse sempre a mudar, tal como o espírito do homem e da mulher cresce e muda, procurando avidamente a mudança. Guardião achou que era capaz de ficar ali eternamente sentindo o Sol nascer e pôr-se, as estações pintarem a paisagem com cores novas no mar e no céu sem, no entanto, conseguir ver tudo. A história da rapariga estava ali e também a de outros, porque havia um homem no princípio, um guerreiro de cabelos amarelos como os dela e com uma marca no braço. Havia uma mulher, uma sacerdotisa, pensou ele, porque alguns animais flutuavam no ar à sua volta, uma coruja, uma lontra, um cão e a seus pés uma criança, o seu próprio Pequenino. A própria deusa aparecia no padrão, voando no céu, tocando na Lua com os cabelos dourados a esvoaçarem. Um barco no meio de uma tempestade; a deusa e os seus companheiros no seu interior... e, ali, a Ilha das Nuvens...

Guardião deu-se conta, a determinada altura, de que Pequenino decidira que era seguro, finalmente, e que subira para os seus joelhos para ver melhor. Estudaram ambos o tecido mágico. Após alguns momentos, Guardião começou a contar a história a Pequenino tal como a via. Era importante utilizar a linguagem para que Pequenino pudesse compreender, se bem que, até à data, o pequeno ainda não tivesse dito uma palavra. Guardião era jovem e forte, mas não o seria para sempre. Que aconteceria a Pequenino, então? Assim, Guardião tentava, o melhor que podia, ensinar àquele que estava à sua guarda tudo o que achava ser útil: acender uma fogueira, encontrar abrigo, falar e fazer-se compreender. Não era fácil. Aquilo que Pequenino sabia, estava-lhe entranhado no espírito. Ninguém lhe ensinara aquilo que era capaz de fazer. As outras coisas, aquilo que um homem precisava de saber para sobreviver, escapavam-lhe.

— Este aqui é o pai dela — disse Guardião num sussurro para não perturbar a deusa. — Vês, um homem perfeito com cabelos da cor do Sol, como os dela. E aqui está a mãe dela, uma mulher sábia; estes animais são os seus amigos espirituais, como os papagaios-do-mar e as focas são os nossos. Este é o irmão dela, como tu, mas que ela teve de deixar para trás. Vê até onde ela foi, longe, longe através do mar... muito mais longe do que nós... com dois fortes companheiros. Um tem cabelos vermelhos como o fogo, ao passo que o outro tem cabelos claros, talvez seja o irmão mais velho. Ela veio até estas ilhas, mas ficou ferida e assustada... Estás a ver aqui, as vozes, os rostos... eles assustaram-na e ela fugiu...

Pequenino tinha o polegar na boca; os seus olhos estavam fixos na imagem, o seu corpo quente e descontraído encostado ao de Guardião. O seu medo tinha desaparecido. O jovem murmurou qualquer coisa, não uma palavra, antes um som que queria dizer: Mais.

— Tens de perceber — disse Guardião — que aqui há muitas, muitas histórias; cada vez que um homem olha para estas imagens, vê uma coisa diferente e depois mais uma. É possível passar uma vida inteira a olhar, a aprender. Mas, hoje, só te conto uma. Ela percorreu um longo caminho pelo monte acima até chegar a uma pequena casa onde habitavam uns amigos. — Ele conhecia a casa, ele próprio estivera lá, há muito tempo. Recordava-se do irmão Niall, um homem de cabelos brancos e de um outro, mais novo. Tinham sido amáveis com ele. O seu pai batera-lhe por ter ido até lá. — Amigos... mas... — O padrão terminava ali. A última coisa que ele viu foi uma mão, estendendo-se no vazio. — Mas que, no fim, não puderam ajudá-la — disse Guardião e olhou para cima. A deusa continuava deitada junto do fogo, as curvas do seu corpo mal escondidas pelos cobertores quentes que ele lhe estendera por cima. A luz das brasas tocou-lhe na cortina dourada dos cabelos e na palidez das faces, mostrando-lhe um par de olhos tão azuis como o céu do Verão, totalmente abertos e a olharem para ele.

 

             Bela é a voz de uma criança,

             bela é a voz de uma mulher a cantar.

             Mas, mais belo ainda, é o silêncio.

                                     NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Quando, finalmente, saiu do estado febril em que se encontrava, Creidhe pensou se não imaginara: o jovem alto, escorreito, cheio de cicatrizes, de olhar perigoso, com roupas esfarrapadas e um ar selvagem que sugeria algo mais ou menos do que um simples ser humano; e a criança andrajosa nos seus joelhos, meio a dormir, de polegar na boca guardado pelo mais improvável dos guardiões. A jovem recordou os olhares nos rostos de ambos, confusos, encantados; a jovem ainda ouvia o fluxo gentil da voz dele contando, de maneira extraordinária, a sua própria história. Nunca ninguém vira a Jornada totalmente desdobrada, salvo ela; ninguém que ela conhecesse podia ter relatado o seu significado como aquela criatura feroz com as suas palavras e gestos suaves. A jovem recordava-se disso e da maneira como ele começara e como parara abruptamente quando se apercebera de que ela estava acordada. Depois, recordou-se de outras coisas, da sua gentileza, do seu próprio medo, não tanto dele, porque era evidente, a partir do momento em que ouvira pela primeira vez a sua voz, que ele não lhe queria mal, mas da ilha e dos outros que também viviam nela, aqueles que mantinham Máscara-de-Raposa cativo e que, todos os Verões, combatiam ferozmente contra as tropas de Asgrim.

Fora para ali porque sentira que estaria segura; infelizmente, havia muito pouca lógica na sua decisão. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não a podiam seguir até ali; o mesmo acontecia com os outros. A jovem lembrou-se do seu medo ao descobrir que estava nua sob os cobertores e do modo como ele afastara o olhar quando necessitara de se aproximar, como se soubesse o que ela sentia. Ele alimentara-a com peixe, bocado a bocado como se ela fosse um pássaro no ninho; segurara uma caneca nos seus longos dedos, tentando fazer com que ela bebesse. Acima de tudo, reparara que, assim que o jovem se apercebera de que ela estava acordada, a criança desaparecera. Ela estava ali e, no momento seguinte, já não estava. A jovem concluiu que não passara de imaginação.

Pouco depois, deitada junto da fogueira no interior da minúscula cabana, olhando para o exterior através da porta aberta enquanto o crepúsculo de Verão se espalhava pelo céu, começou a sentir a febre a tomar-lhe conta do corpo como o mar não fizera e começou a tremer, a arder e tudo ficou enevoado. Aquilo continuou durante algum tempo e ela deixou de se preocupar com pequenos pormenores, como, por exemplo, ter sede ou estar a expor a sua nudez a estranhos; essas coisas não tinham consequência. O seu corpo doía e tremia, a cabeça zumbia-lhe, estava encharcada em suor, sentia-se gelada... queria morrer, ou, se isso não fosse possível, queria ir para casa, queria tanto ir para casa...

A febre durou vários dias, enquanto a estação se encaminhava para o solstício de Verão. Se havia outras tarefas que o seu guardião supostamente fazia, pusera-as, era evidente, de lado. Ele passava-lhe um pano pela testa, fazia-a engolir água, mudava-lhe os cobertores que a cobriam e fazia os possíveis para que o seu corpo se mantivesse limpo. Manteve o fogo aceso e quente; cozinhou comida que ela não conseguia engolir. Nos seus raros momentos de lucidez, tornou-se cada vez mais evidente para Creidhe que não havia ali nenhuma criança; como podia haver? Quando vira aquela pequena figura nos joelhos do jovem, pensara em Máscara-de-Raposa, uma criança de seis anos, e aparentemente cativa algures naquela ilha. Mas tudo o que vira através da bruma da febre fora uma criatura qualquer, pequena e selvagem, talvez um cão, se bem que não fosse esse o seu aspecto, aproximando-se delicadamente do lugar onde o jovem cozinhava o jantar nas brasas, debicando um pedaço ou outro e escondendo-se de novo. A jovem pensou pouco naquilo; a doença roubara-lhe o sentido das coisas. Não fora assim e sentir-se-ia só, abandonada e com medo. Tal como estava, a vida era apenas calor e frio.

Houve uma noite em que os seus ossos pareciam feitos de gelo, os dentes batiam como castanholas e apesar de o jovem lhe empilhar cobertores e capas em cima, ela continuava a tremer e o frio a entrar, estendendo os seus longos dedos, procurando roubar-lhe a centelha de vida que ainda lhe restava. Nessa noite, a jovem viu o terror nas suas duras feições. Por fim, ele deitou-se a seu lado e cobriu-a com o próprio corpo, com os braços e as pernas, apertou-a, coração contra coração e lentamente o frio terrível foi desaparecendo e ela caiu num longo sono sem sonhos. Quando acordou, pouco depois da alvorada, ele tinha-se afastado, mas por trás dos seus joelhos dobrados a criatura parecida com um cão estava enroscada a dormir, uma bola de pele cinzenta em desalinho com o nariz pontiagudo metido por baixo da cauda. A jovem soube, nessa manhã, que a febre desaparecera e que iria ficar boa de novo.

O jovem tinha falado pouco. As suas palavras tinham-se resumido a: Come, dorme, bebe isto. Creidhe suspeitava de que tinha pairado incessantemente, ao longo dos dias e noites de doença, de coisas que não imaginava: talvez tivesse falado de casa, das suas preocupações com Thorvald e Sam, que não sabiam para onde ela tinha ido. Agora que tinha a mente desanuviada, que o jovem estava do outro lado da fogueira a fazer qualquer coisa com uma faca e a olhar para ela com aqueles olhos estranhos e luminosos, olhos da cor das profundezas do mar, não sabia o que dizer. Na verdade, nem sequer sabia se ele a entenderia. Por vezes, dava a impressão de que era um animal prestes a fugir. No entanto, compreendera a história da jornada: a sua história. Talvez também isso tivesse sido um produto do seu delírio febril.

Finalmente, a jovem disse uma coisa perfeitamente prática.

— Preciso de roupa. Penso que já me posso levantar, tentar cuidar de mim própria. Deves ter outras coisas para fazer.

Ele curvou a cabeça numa espécie de aceno.

— Saia, túnica, sapatos pequenos — disse ele. — Tenho isso; vou buscá-los. Um presente.

— As minhas velhas coisas servem... — começou Creidhe a dizer, mas parou porque lhe parecera grosseiro. Quando os olhos de um homem tinham aquela expressão, sem sinal de perfídia, não era possível evitar a sua amabilidade. — Obrigada — disse ela. — Suponho que estão todas estragadas. Qualquer coisa serve. — Ela ficou a olhar para ele, para o seu rosto seco, um rosto jovem mas circunspecto e autocontrolado, para as mãos ágeis e sujas, para os olhos estranhos. — Salvaste-me a vida — acrescentou ela em voz baixa. — Estou-te grata.

A sua grande boca suavizou-se um pouco sem chegar a esboçar um sorriso.

— O mar trouxe-te até à minha praia — disse ele. — O meu nome é Guardião; foi-me dada essa tarefa. Aqui, estás salva.

Creidhe teve alguma dificuldade para se sentar; a jovem enrolou os cobertores em redor de si própria, esperando que ele lhe arranjasse rapidamente algumas roupas. Uma coisa era saber que o jovem a tocara, que a lavara e que a limpara enquanto estivera doente; outra era sentir-se exposta e vulnerável, agora que voltara a si. Se calhar, ele tinha coisas velhas armazenadas. A jovem tentou imaginar-se vestida como ele, roupas com penas cosidas por cima, mas não conseguiu. Ocorreu-lhe que tinha muitas perguntas para fazer, perguntas importantes, e que não tinha idéia por onde começar.

— Salva — repetiu ela. — Mas aqui não é seguro, pois não? E a caçada?

Os olhos dele encontraram os dela, firmes por cima das chamas baixas da fogueira.

— O meu nome é Guardião — disse ele de novo. — Serás protegida. Juro pelas pedras e pelas estrelas, pelos ventos e pelas aves. Eles não se aproximarão de ti.

As suas palavras e tom provocaram-lhe um arrepio, como uma recordação de algo sombrio e antigo. A jovem não duvidou, nem por um momento, de que aquela estranha criatura dizia a verdade.

— Guardião? — perguntou ela cuidadosamente. — É esse o teu nome?

Ele acenou com a cabeça gravemente e voltou a pegar na faca; estava a envolver o punho em qualquer coisa, um trabalho elaborado, um desenho decorativo feito com um fio entrançado.

— Não tens outro nome? — perguntou-lhe ela. — Aquele que a tua mãe e o teu pai te deram?

Não recebeu qualquer resposta.

— O meu nome é Creidhe — disse ela. — Venho de um lugar distante chamado Ilhas Brilhantes. Vim até aqui porque... — A jovem não sabia bem como continuar, já que não tinha a certeza de que ele compreenderia.

— Fugiste de Asgrim? — Havia um tom estranho na sua voz, um tom de perigo; o fato de ele ter tratado dela, pensou Creidhe, devia, provavelmente, ter ultrapassado o seu padrão habitual de vida. Havia qualquer coisa de guerreiro nele, um guerreiro que existe essencialmente em histórias e sonhos. Talvez, na verdade, se tivesse mesmo afogado na Corrente dos Loucos e tudo aquilo fosse uma visão do outro lado do mundo.

— Fugiste d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? — acrescentou ele.

— De ambos — disse Creidhe após alguns momentos de pausa. — Fui... negociada. Eles iam levar-me. Foi então que saltei do barco e escapei.

Ele esperou um pouco antes de falar de novo; tinha as mãos ocupadas, enrolando o fio entrançado em redor do punho da faca, por cima, por baixo.

— Trouxeste a tua história para a minha ilha — disse ele. Creidhe acenou com a cabeça, sentindo um nó na garganta.

— Eu não a mostro às pessoas — disse-lhe ela. — Nunca ninguém viu senão uma pequena parte dela. É uma coisa... secreta, privada.

Ele não disse nada; as suas mãos continuaram firmemente a fazer o trabalho, hábeis, fluidas. Por trás dele, a um canto, ela via uma sombra pequena e escura e um par de olhos brilhantes.

— Eu acho... eu acho que, se calhar, estive a sonhar — disse Creidhe. — Pareceu-me ouvir-te contar a história, a minha história. Mas, como foi possível? Como foi possível teres reconhecido a minha mãe, o meu pai?

Ele olhou para ela e sorriu e ela pensou ver naquele sorriso uma mensagem, algo nascente, doce, profundamente perigoso.

— Estava lá tudo — disse Guardião. — Eu sabia que virias: para te sentires segura.

Creidhe desejou ter ali a mãe, ou a irmã Eanna. Só uma mulher sábia podia compreender aquilo, ela não passava de uma rapariga comum com habilidade para bordar e com algumas idéias estranhas na cabeça. Não conseguiu encontrar nada para dizer. Quanto mais perguntas fazia, menos compreendia as respostas.

— Roupa — disse Guardião, levantando-se e pondo o seu trabalho de lado. — Estão prontas, Creidhe. — A sua voz era hesitante ao pronunciar o seu nome pela primeira vez; o jovem olhou para ela de relance, timidamente, como se não soubesse ao certo se lhe podia chamar assim.

— Obrigada — disse ela, esboçando um sorriso. Não era um sorriso por aí além; Creidhe ainda se sentia fraca, sentia a cabeça estranha e estava perfeitamente consciente da sua nudez por baixo do cobertor rude que mantinha enrolado em redor do corpo. Apesar disso, fê-lo corar como um rapaz envergonhado. Murmurando algo que ela não compreendeu, ele virou-lhe as costas e saiu da pequena cabana.

A jovem esperou. Por baixo da prateleira de pedra junto da entrada, algo rastejou e olhou para ela. Creidhe sentiu-a mais do que a viu, porque como Guardião tinha saído da cabana, a criatura retirara-se mais ainda, receosa se o homem não estava presente. Creidhe tentou imaginar que tipo de animal viveria na Ilha das Nuvens para além dos papagaios-do-mar, das outras aves marinhas e das focas. A jovem tentou imaginar quando se mostraria o resto da tribo e qual seria o papel de Guardião no seu seio. Ele não parecia um seguidor nem um líder, antes ele próprio. Talvez se mantivesse completamente à parte. Devia fazer-lhe perguntas acerca da tribo e acerca da caçada. Devia fazer-lhe perguntas acerca de Máscara-de- Raposa. Mas não queria. Não queria contemplar o futuro, porque lhe parecia que o povo dos Facas Longas e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lhe tinham barrado o caminho. Ela viera até às Ilhas Perdidas com Thorvald, seu melhor amigo e a quem amava. Pensara apoiá-lo na sua missão e ajudá-lo a regressar a casa quando tivesse terminado. Na verdade, fora ela que lhe encontrara a resposta, uma resposta que não lhe podia comunicar porque estava ali, naufragada numa ilha e sozinha, procurada pelas tribos daquela longa guerra, incapaz de regressar. Além do mais, sentia-se fraca como uma criança; na ausência de Guardião, tentou levantar-se e sentiu as pernas faltarem-lhe.

No entanto, sentia uma calma estranha, a certeza de que fizera o que devia. Enquanto uma pequena brisa entrava pela porta e murmurava através do fogo, ocorreu a Creidhe que estava sã e salva e que, ridiculamente, se sentia melhor do que alguma vez se sentira desde que deixara Hrossey. Imaginou Nessa em casa, à lareira, atirando para o fogo uma mão-cheia de ervas secas e procurando respostas nas chamas. Viu Eanna na encosta solitária, morada das mulheres sábias, em frente da sua própria lareira com os braços abertos e os olhos fechados, para ver melhor com os do espírito. Estariam a vê-la, a sua mãe, a sua irmã? Talvez, se se concentrasse muito, se fixasse a mente nelas, pudessem sentir a sua presença. Creidhe fechou os olhos e começou a oscilar, ao mesmo tempo que entoava um cântico em surdina. Algumas coisas não conhecem fronteiras.

Quando voltou a si, mais uma vez, um pouco tonta porque demorara mais do que era sua intenção, viu que Guardião regressara e voltara a sair silenciosamente, sem que ela desse por isso. O jovem deixara uma pilha de roupas dobradas junto dela, pousada com cuidado nas pedras lisas junto da lareira. Naquela primeira noite ele tirara-lhe do saco as lãs coloridas; ela vira como ele as estendera a secar numa sequência de cores, das mais claras às mais escuras, do dia para a noite. A sua própria sequência devia ter-lhe parecido ao acaso. O vermelho-sangue junto da meia-noite e a pervinca azul aproximando-se do sol amarelo, se bem que esse aparente caos tivesse o seu próprio padrão: ela sabia qual pertencia a qual. Pegando no saco, a jovem verificou que as meadas estavam de novo no seu lugar, cada uma no lugar exato onde as costumava deixar.

Não havia sinais de Guardião. Até a pequena presença na sombra tinha desaparecido. A jovem desdobrou as coisas que lhe tinham deixado, esperando ver uma espécie de túnica e umas calças, uma capa de pele e talvez umas botas, se tivesse sorte. Percebeu, ao primeiro toque, que estava enganada. Por um momento, os seus dedos encontraram o toque suave da lã e ela sentiu um arrepio; ainda há pouco as mulheres de Água Brilhante lhe tinham dado de presente um vestido de lã. Um vestido de sacrifício, fora isso. Aquele era mais simples, mas, à sua maneira, tão bem-feito como o outro. Não tinha penas. Uma longa camisa de homem, cortada na bainha e nas mangas e perfeitamente rematada; o tecido era velho mas ainda estava bom, de um azul-esbatido e os novos pontos tinham sido feitos com uma cor mais escura, parecida com a cor do mar sob o céu de Outono. O fio, tinha a certeza, vinha da sua própria provisão; tivera dificuldade em conseguir aquela cor. O trabalho era quase perfeito. Havia uma saia comprida, habilidosamente feita de pedaços de outras peças de roupa, pensou ela, com um cordão a fazer de cinto. Uma outra saia fora alterada para fazer uma espécie de combinação sem mangas, com as orlas cosidas com outro fio. Creidhe dera àquela linha o nome de olho de coração, em nome de uma flor que crescia, na Primavera, nas falésias perto da sua casa, em Hrossey. Uma tonalidade profunda, brilhante, algures entre o vermelho e o púrpura, uma cor que gritava a sua satisfação no verde, no castanho-escuro e no cinzento dos campos.

Devia estar a regressar e, com ele, a pequena sombra. Um pouco hesitante nas pernas ainda trêmulas, Creidhe vestiu a saia e a túnica. Havia um cinto, um cordão de lã cinzento e azul, e ela atou-o à cintura. Era estranho: suficientemente estranho para lhe provocar de novo um arrepio. Quando as mulheres, em Água Brilhante, a tinham feito vestir o vestido verde bordado, aquele que lhe marcava as formas como se ela fosse um objeto de comércio, estava apertado aqui e mais largo ali, como seria de esperar com um vestido feito para outra pessoa. Mas aquele servia-lhe perfeitamente. As mangas chegavam-lhe exatamente aos pulsos, a saia fluía perfeitamente pelas ancas abaixo e o cinto atava-lhe a cintura na perfeição, sobrando apenas uns pedacinhos franjados para além do nó. Os cabelos do pescoço de Creidhe eriçaram-se. A jovem tentou imaginar Thorvald a lidar com aquela situação: viu, imediatamente, o amigo carrancudo, irritado, atirando-lhe a primeira peça de roupa que tivesse à mão. Pega, veste isto, diria ele, virando depois as costas e continuando com qualquer coisa que valesse mais o seu tempo.

A jovem passou os dedos pelos pontos coloridos e perfeitos nos pulsos da camisa. A maior parte dos jovens que conhecia nem sequer sabiam enfiar a linha numa agulha. Os pescadores eram capazes, claro, mas não era a mesma coisa. Era evidente que aquilo levara tempo e concentração, cuidado e imaginação. Ela pensou nos olhos dele: verdes, muito verdes, misteriosos, insondáveis; nas mãos de dedos longos, habilidosos, perigosos... A Jornada revelara-lhe os seus segredos espontaneamente. Por que razão estava Guardião ali? A Creidhe, parecia-lhe que ele era Outro; que estava para lá do que ela sabia acerca da Ilha das Nuvens a tribo feroz, a caçada, Máscara-de-Raposa, a longa e amarga disputa. A sua mãe tinha um vestido velho, metido no fundo de uma arca. Era uma peça de vestuário com todas as tonalidades do mar, uma coisa difusa, envolta em encantamentos sombrios de um poder antigo. Só fora usado uma vez, numa noite em que Nessa fizera uma profunda magia para salvar o seu povo e o homem que amava. O vestido fora um presente: um presente da Tribo das Focas. Nessa pagara um preço terrível pela sua ajuda numa ocasião de grande necessidade.

Creidhe abraçou-se a si própria e foi sentar-se nas pedras junto da fogueira. Aquela suave peça de vestuário de lã, aquele traje cuidadosamente preparado, extremamente sedutor na sua simplicidade, certamente não era tão perigoso como o vestido de Nessa. Aqueles pequenos pontos, feitos com tanta delicadeza e com linhas tiradas do seu saco, pareciam mais uma proteção do que uma ameaça. Além do mais, por razões práticas, não tinha mais nada para usar e aquilo era muito melhor do que um monte de penas.

A jovem olhou para o fogo. O combustível que Guardião utilizava ardia com pouco fumo, mantendo o local seco e quente. Creidhe olhou para o exterior e aventurou-se a circundar a cabana, tentando perceber em que lugar específico da ilha se encontrava. Um carreiro estreito, quase imperceptível, descia por encostas cheias de gelo na direção oeste. Para leste, o terreno subia, íngreme, na direção de rochedos escarpados cobertos de nuvens; deles vinha um vento frio, fazendo estremecer a erva. Na parte norte da cabana havia um precipício abrupto sobre o mar; as aves circulavam por ali. Era necessário muito cuidado ali, de noite. Tal como a Ilha das Tempestades, aquele local oferecia um abrigo escasso; parecia à mercê do mau tempo e do vento e Creidhe não via nada que crescesse acima da altura do joelho. Para o homem e para os animais, os afloramentos rochosos podiam fornecer proteção e súbitas ravinas servir de esconderijo. De pé à entrada, Creidhe via a minúscula enseada onde naufragara o barco.

Por todos os antepassados, oxalá aquele capacete desaparecesse depressa para que pudesse começar a fazer qualquer coisa de útil. A existência de Guardião parecia ser solitária e difícil. Ela já lhe roubara bastante tempo, tempo que seria mais bem passado a... a pescar, ou a caçar, ou a fazer outra coisa qualquer. A jovem pegou nos cobertores, dobrou-os e limpou tudo o melhor que pôde. Até aquele pequeno esforço a deixou a arfar e com as pernas a tremer. Podia fazer o jantar, mas isso seria perturbar a rotina das coisas. Cozinhar era uma coisa para mais tarde; a jovem observara isso durante a doença. No entanto, havia uma tarefa que podia desempenhar: a jornada. Apesar de as mãos lhe tremerem devido à febre recente, o tecido e as lãs chamavam-na, ansiosos por novos bordados. A jovem desenrolou-o, as cores do arco-íris sobre a pedra cinzenta, dando vida ao pequeno espaço da cabana. Ela olhou de relance do complexo entrelaçado do padrão para a linha colorida, simples e pura que percorria o decote, as mangas e a bainha do vestido. Ela não queria reconhecer a verdade, mas lá estava ela, visível, nítida. O irmão Niall reparara nas escapatórias no seu trabalho, nos locais onde ela permitia que a dor e a alegria daquilo que representava saíssem e se dissipassem antes que o seu poder crescesse até um determinado ponto. Mas ali, naquela ilha, algo mais acontecera. A Jornada ultrapassara os seus limites e já não podia ser contida. Agora, havia outras mãos, ajudando-a a avançar.

Creidhe enfiou uma linha na agulha e selecionou um cinzento-suave e um verde muito escuro. A jovem tentou mostrar o que vira, no canto: a pequena criatura que dormira na esteira e que fugira no momento em que ela acordara. O pequeno rosto estava difícil. Por vezes, parecia uma coisa; outras vezes, outra; agora um pequeno cão hirsuto, depois um pequeno animal caçador, um daqueles animais das histórias do pai, uma doninha, uma raposa, um gato, porque tinha o focinho pontiagudo, as orelhas grandes e uns olhos ferozes. No entanto, por vezes, tinha uma forma diferente mas nebulosa, como se o que desejava mostrar ao mundo fosse uma insinuação, uma sugestão do que estava por trás. Quando já estivesse suficientemente forte para se aventurar até mais longe, pensou Creidhe, talvez encontrasse rebanhos ou tribos daqueles animais na ilha. Talvez fosse a sua fraqueza a impedi-la de distinguir melhor as formas. Conseguia ver Guardião com toda a nitidez, mas não ia pô-lo na Jornada. Fazer isso parecia-lhe uma coisa muito perigosa.

A jovem inseriu a agulha com firmeza, esquecendo o tempo e o lugar, como sempre que uma pessoa está muito concentrada num trabalho. O que conseguiu, no fim, era menos uma descrição e mais uma sugestão, menos uma imagem e mais uma idéia: os olhos, o focinho delicado, as sombras, a timidez e a total estranheza. A jovem achou que conseguira, pelo menos, retratar a criatura, apesar da dificuldade em ver como ela era realmente, com as suas fugas e mudanças. Depois de terminar aquela parte, bordou de novo a Ilha das Nuvens, dessa vez muito pequena, cercada por um par de braços, as mãos curvadas para dentro para manter o pequeno fardo são e salvo. Fora dessa parede protetora, a tempestade rugia, brilhante, sangrenta; para lá da barreira, a Corrente dos Loucos varria sem piedade aqueles que se atreviam a aproximar-se. No interior dos braços protetores, a ilha permanecia à parte, sozinha, inviolável.

Guardião regressou com peixe da parte ocidental da ilha, onde as grandes vagas batiam na base de uma pequena ilhota habitada apenas por milhares de aves. Para lá das suas falésias e aglomerados rochosos, nada mais senão o oceano vazio, até ao fim do mundo. Creidhe continuava a bordar, levando a orla sinuosa e rastejante até ao local onde bordara as coisas misteriosas e prodigiosas. A jovem não fez menção de esconder o trabalho. Era estranho deixá-lo à vista, como se deixasse Guardião penetrar-lhe no espírito e ver um local que mais ninguém vira, nem sequer Thorvald. A sua boca torceu-se num leve sorriso divertido. Guardião já vira, certamente, muito mais do que Thorvald; mas ela não o pudera evitar. Ainda bem que ele parecia tímido, assim como assustadoramente capaz.

— Por que estás a sorrir? — Ele já tinha escamado e arranjado o peixe na praia; agora, estava a limpá-lo e estendendo algumas algas para o embrulhar, pronto para ser cozinhado.

— Por nada, a sério. — Não era coisa que lhe pudesse dizer, certamente. — Estava a pensar em como é estranho estarmos aqui os dois, sozinhos. No Verão passado eu estava em casa com os meus pais, com as minhas irmãs e com os meus amigos. Nunca pensei que os antepassados me conduzissem até aqui.

— Os dois, não — corrigiu ele, muito sério. — Os três.

— Queres dizer o...? — Creidhe olhou de esguelha para o lado de lá da fogueira; a criatura parecida com um cão estava sentada junto do seu dono com os olhos fixos no peixe suculento.

— Sim, o meu irmão.

Creidhe engoliu em seco. Guardião era, inegavelmente, uma pessoa invulgar, como seria de esperar de um homem a viver num local tão remoto. Mas nunca pensara que não tivesse o juízo todo.

— Teu irmão? — perguntou ela, chocada.

— Não um irmão a sério — disse ele — mas penso nele como tal. Somos parentes.

A mente dela girou, deu outra volta, tentando dar uma forma aceitável àquelas palavras. Seria ele uma espécie de sacerdote e aquela criatura o seu companheiro? Ela conhecia alguns casos. Nas Ilhas Brilhantes, a mulher sábia, Rona, que fora a professora de Nessa e depois de Eanna, possuía uma estranha afinidade com cães. Creidhe decidiu fazer uma pergunta inocente.

— Como é que ele se chama?

— Pequenino.

Ela pensou um pouco naquilo.

— O mesmo tipo de nome que Guardião — comentou ela. Do outro lado das chamas, ele olhou para ela com sobriedade.

— Fomos nós que os escolhemos — concordou ele. — Não precisamos dos que as outras pessoas nos deram. Esta é a nossa ilha, o nosso refúgio.

Tinha de ir com cuidado.

— Eu tenho orgulho no meu nome — disse ela — no nome da minha mãe e no do meu pai. Creidhe foi o nome que eles me escolheram. Também posso chamar a mim própria Filha de Nessa, Filha de Eyvind e sentir alegria nisso, sabendo que transporto no meu sangue a sua coragem e bondade. Isso não faz com que eu seja menos eu própria.

Guardião permaneceu silencioso enquanto os seus dedos embrulhavam o peixe nas algas e atravessando-o de viés com o que parecia ser um osso afiado.

— Peço desculpa — disse ela, pensando, talvez, que o tinha aborrecido. — Não quero ser intrometida. Só estou um pouco ansiosa, mais nada. Não sei, exatamente, quem és, ou... ou quem é Pequenino e disseram-me que há uma tribo muito perigosa nesta ilha; as mulheres de Água Brilhante disseram-me que morrem aqui muitos homens todos os Verões, em combate. Eu acho que os guerreiros de Asgrim podem não encontrar Máscara-de-Raposa, mas é possível que me encontrem a mim. Eles tinham planejado oferecer-me como uma espécie de substituto, para não terem de vir até aqui mais uma vez este Verão. Não sei se estás a par da história...?

— Conheço a história. — O tom da sua voz era grave, calmo. — É verdade, morrem aqui muitos homens por ocasião da caçada. Mas tu estás segura. Eu prometi.

— Sim, mas...

— Eu prometi. Não precisas de ter medo.

— Sim, eu sei — disse ela após um momento. — E não duvido do que dizes. Mas, sinto-me... perturbada. Vim até estas ilhas com uns amigos, dois rapazes. Asgrim levou-os. O governador mentiu-me acerca de diversas coisas. Pode ser que também tenha mentido quando me disse que os meus amigos só o estavam a ajudar a reparar os estragos feitos pela tempestade nas aldeias, em troca da madeira de que necessitavam para consertar o nosso barco. Tenho medo que tente envolvê-los na caçada. E se eu estou aqui, protegida por ti, Thorvald e Sam não estão. — Ele estava a avivar as brasas e a colocar o peixe em cima das pedras quentes.

— Eles são guerreiros, esses teus companheiros? — perguntou ele.

— Não — disse Creidhe. — O problema é esse. — Sam não é, de modo nenhum, um guerreiro e Thorvald só finge que é. Seria perigoso serem apanhados ambos nisto tudo. Mas... Thorvald tem o hábito de fazer coisas destas e, por vezes, é muito difícil fazer com que veja as coisas como deve ser.

— Se eles não podem lutar — disse Guardião — Asgrim não os trará com ele à Ilha das Nuvens.

— Espero que tenhas razão. — Creidhe estremeceu. A jovem começou a guardar a Jornada, as agulhas e as linhas nas respectivas bolsas, assim como a tapeçaria luminosa, dobrada e guardada em segurança.

— Se eles vierem — disse Guardião — morrerão, assim como os homens de Asgrim. Se não no Verão passado, este Verão. Se não este Verão, no próximo.

Creidhe achou aquela afirmação muito pouco tranqüilizadora, mas não fez qualquer comentário.

— Diz-me uma coisa — Guardião sentou-se nos calcanhares, olhando para ela — por que trouxeste contigo esses protetores, se eles não podem lutar por ti? Qual foi o objetivo ao escolher esses companheiros?

— Oh. Bem, acontece que não os escolhi, propriamente. A expedição era de Thorvald e Sam veio porque o barco é dele e sabe velejar. Eu não fui convidada. Vim com eles porque achei que se meteriam em sarilhos sem mim. Como vês, estava enganada. Eu é que me meti em sarilhos. — A jovem tentara manter um tom de voz ligeiro, brincalhão; infelizmente, as lágrimas apareceram sem serem convidadas enquanto falava e arruinaram o efeito. Creidhe limpou-as com uns dedos irritados; era suposto ser forte, capaz. Assim, não.

Guardião pôs-se de pé e saiu sem uma palavra. Junto da fogueira, Pequenino ficou a olhar para ela com os seus olhos grandes e estranhos.

— Para ti, está tudo bem — murmurou ela, zangada. — Ficas sentado à lareira, dormes numa cama, dão-te comida e depois foges e escondes-te quando as coisas ficam difíceis. — As orelhas dele torceram-se; Pequenino pestanejou. Era a primeira vez que não fugia para não ficar sozinho com ela. — Desculpa — disse ela. — Não é o que eu penso, a sério. Estou preocupada, mais nada. — Pelos antepassados, a criatura era mesmo estranha; quanto mais olhava para ele, menos percebia que espécie de animal era. — Que animal és tu? — murmurou ela. — Diz-me; mostra-me. — Mas Pequenino limitou-se a olhar para ela com os olhos a brilhar à luz da lareira.

Guardião regressou de rosto sombrio. Trazia algo na mão.

— Sapatos pequenos — disse ele, ajoelhando-se junto de Creidhe e colocando-os no chão. — Acho que devem servir-te; tu tens pés pequenos, mãos pequenas. Por favor, usa-os. Um presente.

Ela reparou como os dedos dele percorriam a pele suave das botas, quase de certeza umas botas de mulher, porque eram, na verdade, pequenas e fabricadas com delicadeza, as costuras fortes e bem-feitas, a pele suave e bem curtida. As mãos dele pareciam relutantes em deixá-las ir; via-se que lhe eram muito preciosas.

— Tens a certeza?

— Por favor. Um presente. Amanhã, se já estiveres boa, levo-te e mostro-te, para que possas compreender que estás segura aqui, conosco. Para isso, precisas de sapatos. Experimenta-os.

Creidhe calçou-as; as botas serviam-lhe, não tão bem como as roupas, porque estas tinham sido feitas para uma rapariga diferente, mas eram suficientemente confortáveis para andar. Creidhe começou a pensar, a ponderar várias possibilidades e a reuni-las de maneiras diferentes.

— Obrigada pelo presente — disse ela, tocando na mão de Guardião. A jovem arrependeu-se instantaneamente; ele comportou-se como um animal assustado e ela sentiu o próprio coração a sobressaltar-se de um modo estranho. — São muito bonitos. Sentir-me-ei orgulhosa por usá-los. Tu és generoso com os teus presentes; e eu não tenho nada para te dar.

Ele afastara-se para o outro lado da fogueira; manteve-se ocupado com o peixe durante algum tempo, acrescentando turfa e deitando água numa tigela para Pequenino.

— Tu podias... — começou ele, hesitante. — Tu podias dar... eu não devo pedir...

— É melhor continuares — disse Creidhe secamente, imaginando o que um rapaz naquela situação poderia esperar de uma rapariga que não tinha com que pagar uma refeição e sabendo que, provavelmente, seria a última coisa que Guardião lhe pediria.

— O bordado — disse ele — a história... Ele gosta de uma história quando vai para a cama. Se pudéssemos olhar para ela outra vez...

Mais uma vez, a simplicidade dele deixou-a sem palavras. Ela olhou para ele por cima das chamas e ele retribuiu-lhe o olhar, muito solene.

— É pedir demasiado — disse ele. — Essa coisa que tu fazes é mágica e secreta. Mas nós vimos a nossa ilha nessa história. Olhar de novo para ela seria...

— Depois do jantar, então — disse Creidhe calmamente. — Uma história na hora de ir para a cama não é má idéia. — A jovem olhou para as pequenas botas, praticamente novas. Umas botas de criança, quase; ainda bem que tinha pés pequenos.

— Estás outra vez a chorar — disse Guardião, consternado. — Por favor, não...

— Está tudo bem, não é nada... — Creidhe tentou secar as lágrimas, tentou deter o fluxo, mas não conseguiu; só naquele momento, ao olhar para as botas, tão pequenas, tão amorosamente preservadas, é que a realidade do que lhe acontecera lhe entrou no coração com todo o seu terror. — Oh deuses, oh, peço desculpa... — A jovem levou as mãos ao rosto.

Creidhe ouviu-o aproximar-se, ouviu o roçagar das penas do seu traje, o pisar suave dos seus pés no solo. Mas foi Pequenino o primeiro a chegar a ela, saltando-lhe para o colo com as pequenas e duras patas de cão e a cauda peluda e chicoteante e foi a língua de Pequenino que lhe lambeu as lágrimas. Creidhe não sabia se rir, se chorar, ou ambas as coisas. Guardião sentou-se a seu lado com as feições pálidas de preocupação e os olhos profundos cheios de ansiedade. O jovem ergueu uma longa mão na direção do rosto dela, mas não lhe tocou; os seus dedos pairaram numa das faces, acompanhando a sua curva como se fosse um eco da sua forma. A respiração de Creidhe morreu-lhe na garganta. A vontade de cobrir a mão dele com a sua era muito forte; há muito que estava só, sem qualquer carinho. Mas não seria tola a esse ponto. Sem compreender bem porquê, sentiu que tinha o poder de causar grandes estragos, que aquele rapaz forte era muito mais vulnerável do que ela, apesar de ser ela quem estava a chorar.

Pequenino ajudou, metendo-se entre os dois; a criatura colocara-lhe as patas da frente nos ombros e lambia-lhe o rosto meticulosamente. O momento de perigo passara.

— Já estou bem — disse Creidhe, levantando-se e colocando Pequenino no chão. — Desculpa; geralmente, não sou rapariga para chorar. Foram os sapatos. Foste tão amável; penso que foi isso que provocou as lágrimas.

— Culpa minha — Guardião recuara alguns passos: demasiado perto, ainda. — Magoei-te?

— Não, Guardião — disse ela, respirando fundo. — A tua gentileza fez-me lembrar a minha casa e a minha família. Foi por isso que pareci magoada.

— A sacerdotisa? O homem com uma marca no braço?

— Sim. Mas estão todos muito longe e eu sei que não posso ir ter com eles; não vale a pena chorar por causa disso. Talvez devêssemos tratar do peixe; devem ser horas de jantar.

— Há um homem com essa marca no braço, nestas ilhas — disse Guardião a olhar para ela. — Conheci-o, em tempos.

— Sim. Eu sei.

— Conhece-o?

Ela acenou com a cabeça.

— É amigo do meu pai. É o pai de Thorvald. A cicatriz é a prova. A prova de que são irmãos de sangue. O meu pai tem a outra. Depois de a ver percebi quem era o irmão Niall; a maneira como ele falou convenceu-me, se bem que nunca o tenha dito de maneira clara. Mas Thorvald ainda não sabe. Ele foi com Asgrim. Tudo correu mal. Toda a nossa viagem, sabes, toda a empresa foi pensada com esse objetivo, com o objetivo de Thorvald encontrar o pai. Thorvald queria que isto se mantivesse em segredo. Depois do que aconteceu, não vejo razão para mais segredos.

— Um homem bom — disse Guardião em voz baixa. — Um homem solitário. O mundo dele mudará por inteiro quando souber que tem um filho. — Havia uma tristeza infinita na sua voz.

— Sim — disse ela. — Pode haver nisso uma grande dor, mas também uma grande alegria, acho eu. Mas eles precisam de mim e eu não estou lá para os ajudar.

— Não — disse Guardião. — Tu estás aqui. Foi por isso que choraste, por a Corrente dos Loucos te ter trazido para a minha ilha, afastando-te do teu amigo?

Creidhe olhou para ele; só os antepassados sabiam o que ele via nos seus olhos.

— Não — murmurou ela e depois tossiu levemente para clarear a voz. — E agora — acrescentou ela, tentando falar em tom normal — creio que devíamos comer o peixe antes que se estrague. Eu cozinho amanhã, se quiseres. Dizem que sou muito boa cozinheira, se tiver os ingredientes apropriados.

Mais tarde, depois da frugal refeição e quando estavam os três sentados à luz da noite de Verão, Creidhe tirou a Jornada e estendeu-a nas pedras ao lado da fogueira. Ainda havia espaço para mais imagens; o padrão intrincado ainda podia crescer e desenvolver-se. Mas o tecido não duraria para sempre; as lãs coloridas chegariam ao fim, com o tempo. Não havia material daquele na Ilha das Nuvens.

Creidhe olhou para Guardião, sentado no chão com as longas pernas cruzadas, ao lado de Pequenino, as mãos ocupadas mais uma vez com o padrão entretecido do cabo da faca.

— Está pronto — disse ela. — Mas ele parece cansado.

— Conta. — A voz de Guardião era baixa. — Por favor.

— Oh. Mas eu não sei...

— Conta como quiseres. Há aí muitas histórias.

— Sim, há — concordou Creidhe, tocando com os dedos no pequeno desenho de um homem com uma cicatriz num braço e pensando num outro que tinha uma igual. Começara tudo com aqueles dois: Eyvind e Somerled. Quando aqueles dois rapazes pegaram numa faca, cortaram mutuamente os braços e juraram lealdade eterna, quem diria que acabaria por se chegar àquelas ilhas nos confins do oceano, onde a filha de Eyvind andara à deriva nos braços da Corrente dos Loucos enquanto o filho de Somerled continuava em perigo, cego perante a verdade que ela descobrira?

— Era uma vez — disse Creidhe — um rapaz chamado Evind, que sempre quisera ser guerreiro. Não um guerreiro antigo, compreendes, antes um guerreiro muito especial...

Nem tudo o que contou estava na Jornada, pelo menos com a precisão e exatidão que ela colocou nas suas palavras. Mas estava o essencial: o olhar do seu pai, a pele de lobo que ele trazia nos seus largos ombros e os dois cães a seu lado, como dois guardas. A cicatriz.

Num determinado ponto, Pequenino aproximou-se dela com mais cuidado do que quando ela chorara e subiu-lhe para o colo, onde se aninhou aparentemente concentrado nas imagens da Jornada enquanto Creidhe tocava nelas e contava a história. Mais tarde, ela apercebeu-se de que Guardião pusera de lado o seu trabalho e se aproximava silenciosamente para se sentar aos seus pés, de joelhos erguidos contra o peito e os braços em volta deles, como uma criança. Também ele fixou as imagens no tecido, como se estivessem vivas. O jovem estava imóvel e muito perto; se ela tivesse estendido uma mão, ter-lhe-ia tocado nos cabelos negros como as asas de um corvo, emaranhados e selvagens. Havia uma pena neles, verde-azulada, e um pedaço de alga seca.

A história estava perto do fim.

— Foi assim que Eyvind se tornou no maior Pele-de-Lobo de sempre — disse Creidhe suavemente — e soube que era seu destino ser algo diferente. Nas Ilhas Brilhantes aprendeu que o amor, não a guerra, é que é a essência de uma vida bem vivida. — A jovem estava a ter uma sensação muito estranha; se bem que os seus olhos lhe dissessem que a pequena criatura nos seus joelhos ainda tinha um focinho pontiagudo, orelhas de cão e pêlo cinzento e hirsuto, a forma que sentia no colo tinha o feitio e o peso de uma criança aninhada, a sua cabeça tocando-lhe no peito, as suas pernas penduradas nas suas coxas, tal como a sua irmã Ingigerd em inúmeras noites à luz da candeia, aninhada no seu colo e escutando histórias de bravura e magia. Creidhe prendeu a respiração, espantada. Poderia acreditar no que as suas mãos tocavam, no que os seus sentidos lhe diziam? Era impossível; a lógica assim o dizia, no entanto o seu coração reconhecia a verdade, uma verdade mais profunda do que a compreensão humana.

— Portanto — disse Guardião com uma voz estranhamente forçada — a cicatriz não era meramente uma promessa, era um sinal de amor.

Creidhe fechara os olhos; a jovem mexeu uma mão cuidadosamente para tocar na pequena pessoa que estava sentada nos seus joelhos. Os seus dedos percorreram o delicado pescoço de uma criança, uma cabeça redonda, umas madeixas de cabelo emaranhado que, era evidente, não viam um pente há muito tempo, tal como os de Guardião. A jovem afagou os caracóis emaranhados o mais gentilmente que conseguiu; sentira o choque percorrer aquele frágil ser quando se mexera.

— Sim — disse ela — é um sinal de amor, se bem que, na ocasião, nenhum deles se tivesse apercebido disso. Ligou-os para sempre. Ainda os liga, um de cada lado do oceano, de cada lado do arco dos anos. O passado segue-nos; transportamo-lo no nosso espírito, no nosso sangue. — A criança suspirou, encostando-lhe a cabeça ao seio; a jovem sentiu que ele metia o dedo na boca e que fechava os olhos. Uma mão pequenina estendeu-se e agarrou-lhe uma prega do vestido. Pequenino aninhou-se nela e adormeceu. Creidhe não abriu os olhos. A jovem sentiu-se atingida por um sentimento de prodígio e terror; uma história triste, muito triste, uma história terrível para ambos. — Ele deve ter seis anos — disse ela em voz baixa ou quase.

— Tinha quase um ano quando fiquei com ele. — A voz de Guardião era tão suave que ela mal conseguia ouvi-lo, apesar de ele estar muito perto dela. — Suportamos cinco vezes a caçada.

Ingigerd tinha seis anos. Ingigerd era capaz de coser uma bainha, mugir uma cabra, ou atar os próprios sapatos. Ingigerd era capaz de correr, nadar e ir ao galinheiro buscar ovos com um cesto.

— Ele parece... muito frágil e assusta-se com facilidade — disse Creidhe.

Guardião não disse nada. Possivelmente, as suas palavras tinham-lhe soado como uma crítica.

— Por que é que ele não se mostra como é na realidade? — perguntou ela. — Mesmo agora, não posso vê-lo... — Ela abriu os olhos e olhou para baixo. — Oh — disse ela, e ouviu a própria voz a tremer. Ali, na Ilha das Nuvens, o impossível tornava-se realidade.

— Ser caçado significa ter medo. — Guardião levantou-se e afastou-se.

— Des... desculpa — gaguejou Creidhe, vendo como a boca dele se cerrara. — Eu sei que não posso, sequer, imaginar a vossa vida aqui, como deve ser duro, como deve ser difícil para ti mantê-lo seguro e bem de saúde. Este lugar é agreste e solitário. E a outra tribo? Eles ajudam-te?

Guardião olhou para ela em silêncio. O jovem mantinha-se na sombra, uma silhueta alta e remota; grande, de rosto pálido como uma máscara e com dois buracos negros no lugar dos olhos. As penas do seu vestuário agitavam-se ligeiramente sob a brisa; todo o resto, à sua volta, estava imóvel. A criança nos seus joelhos dormia. A sua pequena silhueta era agora perfeitamente visível, os seus membros magros, o seu rosto triangular e estranho mas certamente humano e os seus cabelos uma miniatura dos caracóis selvagens de Guardião. A roupa era a mesma, uma mistura de peles e penas, se bem que, por baixo, Creidhe pudesse ver uma peça de roupa de lã, feita para o seu tamanho, tal como a roupa que ela agora usava. Os seus sapatos eram feitos de umas botas maiores, cosidas com pedaços de pele.

— É um rapaz muito bonito — disse ela, conseguindo esboçar um sorriso. — Um rapaz encantador. Vê-se que tomaste bem conta dele. E estou a ver que ele... não é como as outras crianças. É filho da tua irmã?

Guardião acenou com a cabeça, franzindo o sobrolho.

— Disseste que o passado nos segue, que o transportamos conosco. Pequenino e eu estamos livres do passado. Temos os nossos próprios nomes, o nosso próprio lugar. Só uma coisa me prende ao passado: a promessa que fiz a ela, que tomaria conta dele. O resto foi posto de lado. — A mão dele moveu-se para tocar no que o Pequenino tinha ao pescoço: um colar de cabelo entrançado, velho, desbotado. — Foi-me dada uma tarefa; é essa a minha vida.

Creidhe estendeu a mão para enrolar a Jornada; com a outra, amparou a criança adormecida.

— Compreendo — disse ela — por que razão não reconheces que és filho de Asgrim.

— Eu não sou filho de homem nenhum — disse Guardião. — E o meu irmão não é filho de nenhum homem. — O tom da sua voz era profundamente frio; Creidhe pensara que nunca teria medo dele, mas agora não tinha tanta certeza. A jovem quis perguntar-lhe: Que vai acontecer quando ele crescer, qual vai ser o futuro dele aqui? Ela estava a pensar novamente em Ingigerd, roliça e saudável, alegre e inteligente, crescendo no meio das pastagens viçosas das Ilhas Brilhantes e cercada pelo amor. A única maneira de lhe fazer a pergunta era, talvez, bordá-la na Jornada.

— Isto há de acabar um dia — foi o que acabou por dizer. — A guerra, as vozes, a caçada. Então, talvez ele não se sinta tão assustado.

— Isto só acabará quando estiverem todos mortos.

Guardião tinha uma maneira estranha de dizer as palavras: não era, pensou Creidhe, o discurso de um homem com uma língua nativa diferente, antes o de um homem que não estava habituado a falar. A jovem pensou, de novo, na tribo que vivia na Ilha das Nuvens.

— Quando estiverem todos mortos? — perguntou-lhe ela, alarmada com o tom amargo da voz dele.

— Os homens de Asgrim. Só quando morrerem todos é que acaba a caçada. Então, estamos em paz, Pequenino e eu; então, eu faço uma vida para ele.

— Aqui, nesta ilha?

— Não há outro lugar. — Guardião aproximou-se para tirar a criança dos joelhos dela; a jovem sentiu o toque inadvertido das mãos dele, como se a tivessem queimado e, no mesmo momento, viu a mudança no rosto dele. A presença de Pequenino, pensou ela, era, de certo modo, uma bênção.

— Mostras-me amanhã, como disseste? — perguntou ela. — A ilha, a outra tribo e o que acontece quando chega a caçada?

— Se estiveres suficientemente forte. Não quero cansar-te.

— Eu estou habituada a andar — disse Creidhe. — Não haverá problema. — A jovem pôs-se de pé e sentiu-se imediatamente tonta. A febre, no fim de contas, tinha desaparecido há pouco. — Problema... — murmurou ela, ao mesmo tempo que os joelhos se lhe dobravam.

Ele foi muito rápido. Pousou a criança nos cobertores, deu dois passos atrás e apanhou-a antes que ela atingisse o chão. Creidhe sentiu-se transportada e pousada no calor de uma capa de lã dobrada e estendida. A sua visão comportava-se de maneira estranha; as paredes da cabana pareciam mover-se lentamente à sua volta e a luz da fogueira, refletindo-se nas superfícies fendidas das pedras maciças, formava desenhos sombreados, formas de homens e animais, uma dança antiga guardada na sua memória monolítica. As feições de Guardião estavam enevoadas; o jovem inclinou-se e ela pensou que conseguia ver o oceano nas profundezas dos seus olhos.

— Desculpa — murmurou ela. — Pensava que já estava boa...

— Shhh. — Ele colocou-se a seu lado de pernas cruzadas e estendeu um braço para a cobrir com um cobertor até ao queixo. — Cansada. Minha culpa. Pedi demasiado.

— Não — disse ela suavemente. — Culpa minha. Não me apercebi, a princípio, de como o amas. De como a amavas. Sula. Estes sapatos eram dela, não eram?

— Agora, são teus — disse Guardião. — Amanhã vou andar contigo, mostrar-te a ilha. Dorme, agora.

Ela esperou que ele se afastasse, que se fosse instalar no outro lado da cabana, no outro lado da lareira, ou junto da entrada. Mas ele ficou onde estava, muito perto dela, sentado muito direito na semiescuridão. Creidhe fechou os olhos. Estava, na verdade, cansada, no entanto o sono parecia longe porque tinha a mente cheia de perguntas e o seu coração, por qualquer razão, batia apressadamente, como se tivesse estado a correr. A jovem tentou pensar em coisas tranqüilas: uma gaivota cavalgando as correntes de ar, as belas cores de um olho-de-coração nos campos da sua ilha, a voz da sua mãe dizendo-lhe que estava tudo bem... Não, não podia ser; tinha, mais uma vez, os olhos rasos de água, as lágrimas prontas a rolarem, perdendo-se nas mechas do seu cabelo. E surgiu uma mão para as enxugar, tão leve que ela quase pensou que era apenas um sussurro da brisa, só que era a mão dele e ela sentiu-a em cada canto do seu corpo. A jovem reteve a respiração. Os dedos dele tocaram-lhe no cabelo, afastando-o da fronte, gentilmente, cuidadosamente. Lentamente, docemente. Ela respirou de novo, suspirou e, contra todas as probabilidades, caiu instantaneamente no sono.

 

Como havemos de nos sentir quando o prêmio que merecemos nos cai no colo e descobrimos que o seu custo está para além do que podemos pagar? Como podemos continuar, sabendo que a nossa oportunidade para brilhar foi comprada com a vida do nosso melhor amigo? No dia a seguir à notícia da morte de Creidhe, Thorvald foi ter com o governador e disse-lhe que não estava preparado para comandar os homens, que lhe parecia haver outros mais aptos para desempenhar esse papel; Einar, por exemplo, ou Orm. De fato, não acreditava, mas obrigou-se a dizê-lo, quanto mais não fosse para negar que uma parte do seu espírito continuava a gritar: Sim! É a tua hora! Porque lhe parecia que uma parte de si mesmo devia ter sido estrangulada à nascença.

— Depois de refletir — disse ele, mantendo o olhar fixo nos impenetráveis olhos escuros de Asgrim. — Não acho apropriado Sam e eu participarmos nisto. Creidhe não gostaria que nos vingássemos à custa da vida dos teus homens, ou das nossas. Além disso, não foi a tribo da Ilha das Nuvens que a matou, foram Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Por que razão havemos de combater para resgatar o seu vidente quando eles agiram tão selvaticamente contra nós? Não faz sentido. Vamos para casa.

No seu espírito, talvez esperasse que Asgrim lhe contrapusesse algum argumento, que lhe pedisse.

— Muito bem — disse o governador. — Se pensas assim. Devo dizer que estou desapontado. Pensava outra coisa de ti, Thorvald. Mas já passamos sem ti e voltaremos a fazê-lo, suponho. Receio que as perdas vão ser grandes. A notícia vai cair mal entre os homens. E és capaz de ter alguma dificuldade em convencer Sam.

— Esse problema não é teu — disse Thorvald. — Ele conforma-se. Ainda há pouco, a única coisa que queria era regressar a casa.

Naquele dia, o jovem evitou o mais possível os outros, falando pouco, ficando para trás de modo a empacotar os seus magros haveres, antecipando uma partida não desejada. Hogni andava por perto, não estava a trabalhar com os homens nem estava de serviço, ora sombriamente encostado a um canto do abrigo, ora sentado no exterior em cima de umas pedras com os braços em redor dos joelhos, tão triste como um cão. Finalmente, Thorvald sentiu-se compelido a ir ter com ele e perguntar-lhe o que se passava.

— Nada — grunhiu Hogni com o sobrolho franzido.

O guarda-costas era um homem de tamanho e maneiras intimidantes, mas Thorvald viu o olhar perdido nos seus pequenos olhos. O jovem sentou-se ao lado dele.

— Mesmo assim — disse ele e esperou.

As mãos de Hogni não estavam quietas, os dedos tamborilavam nos joelhos e depois retorciam-se. Thorvald olhou para os homens na praia, praticando com as facas; o jovem sentiu-se, curiosamente, desligado daquilo, agora que tinha decidido não continuar. No entanto, reparou que a habilidade de Wieland tinha melhorado; o seu lançamento tinha melhorado imenso e ele estava a começar a evidenciar um estilo muito próprio. E Orm também não estava nada mal. Acabara de assustar Hjort com a sua perícia.

— O meu mano — conseguiu dizer Hogni, subitamente. — Skapti. Anda esquisito. Calado. Nem parece ele. Anda qualquer coisa a roê-lo, mas não diz nada.

Thorvald já suspeitava de algo parecido; vira-o no comportamento de Skapti na noite anterior.

— Hum — disse ele. — Custa-te vê-lo assim, não?

— Errado. — Hogni esfregou a sola da bota na terra, afastando algumas pedras. — Há qualquer coisa errada. Nunca o vi assim. Quase nunca.

— Perguntaste-lhe o que se passa?

— Tentei. Nada, — disse ele. — Ando preocupado, Thorvald. Não gosto do que vejo nos olhos dele. A caçada vem aí, precisamos todos de estar o melhor possível. Concordas que é assim.

Thorvald sentiu um arrepio, um sopro de vento frio que lhe atravessou os ossos. Talvez fosse uma premonição, mas acerca de quê, não sabia. O jovem respirou fundo. Não pertencia àquele lugar; aqueles não eram os seus homens. Fora tolo ao pensar que pertencia àquele lugar. A caçada era um assunto de Asgrim.

— Acontece — disse Hogni, rudemente — que eu pensei que talvez Skapti falasse contigo. Ele gosta muito de ti. Tenta ser igual a ti. Talvez te diga a ti o que não me diz a mim.

Thorvald abriu a boca para dizer não, não haveria tempo, porque iria para casa no dia seguinte. O jovem encontrou os olhos ansiosos do guarda, viu a expressão de tristeza no rosto grande e ossudo. De certo modo, não conseguia dizer as palavras, porque lhe pareciam mais uma traição.

— Skapti tenta ser igual a mim? — perguntou ele. — Não me parece. Ele era capaz de me derrubar apenas com um dedo.

— Tem sido bom trabalhar contigo. Todos concordam que é verdade. Tu não és o recém-chegado convencido que pensávamos que eras. Skapti também pensa assim. Ele disse que tu tens miolos e coragem. Falas com ele?

— Vou tentar. — Não havia maneira de recusar.

— Sabia que podia contar contigo — disse Hogni com uma careta que lhe revelou duas filas de dentes partidos. O homem já tivera mais do que a sua conta de combates.

Tinha de fazer tudo naquele dia: não só falar com Skapti, uma coisa que Thorvald achava não valer de nada, mas também convencer Sam de que tinham de seguir o plano original e rumarem a casa enquanto o tempo estava bom. Sam estava no meio dos guerreiros, treinando-se com a lança. As feições amáveis do pescador tinham uma expressão dura, feroz, nada dele. Os seus olhos estavam vermelhos e encovados. Devia haver algumas cabeças doridas; todos eles tinham bebido até tarde, enquanto Thorvald estivera no alto da falésia sozinho. De manhã, Einar acordara-os à hora habitual, sem exceção, e eles tinham ido trabalhar pouco depois sem se queixarem. Aqueles homens estavam a aprender o significado da disciplina. Alguns estavam a aprender o significado da liderança. No entanto, recordou Thorvald, Asgrim é que era o chefe de guerra deles, não ele. Asgrim dissera que se arranjariam. Thorvald era dispensável. Ir-se-ia embora, então, e se nunca visse a força que treinara para ganhar aquela batalha, que importava? Fora suficientemente louco para se envolver, louco por se importar, por pensar que haveria, ali, um lugar para ele. Estúpido e arrogante. Os deuses tinham-lhe exigido um preço terrível por aquela arrogância, um preço que levaria toda a sua vida a pagar com sentimentos de culpa e de dor. Tinha de regressar e dizer a Eyvind e a Nessa que a filha de ambos morrera por sua causa. Tinha de dar parte a Margaret das conseqüências do seu orgulho e da sua ambição. A inteligência e a coragem, se as possuía, não o iam ajudar nessa missão.

Sam parecia estar a fazer os possíveis para nunca estar sozinho. Se não estava a lançar facas com Orm, ensaiava a escalada da falésia com Wieland, com ou sem pé ferido. Knut e outros pescadores também estavam envolvidos; de todo o conjunto de homens, os únicos que não estavam a praticar qualquer coisa eram aqueles que tinham ido pescar qualquer coisa para a refeição comunal. E Skapti. O governador aparecera com a sua sombra, Hogni, para observar; manteve-se perto dos lançadores de facas com uma expressão severa, fazendo um comentário de vez em quando. Os homens pareciam nervosos com a sua presença e faziam pior do que antes. Thorvald estava morto por ir ter com eles para os tranqüilizar e encorajar, mas não o fez. Se Hogni estava de serviço, isso significava que Skapti estava sozinho, algures. Decidiu ir procurá-lo.

O instinto levou-o à mesma falésia onde estivera de vigília na noite anterior, sozinho com a sua dor. Não foi difícil avistar Skapti, um verdadeiro gigante. O guarda-costas estava perigosamente perto da beira, olhando para oeste. O coração de Thorvald parou; tinha diante dos olhos a visão de Creidhe, Creidhe com o olhar fixo na Ilha das Nuvens e com os pés a escorregarem para fora do carreiro. O jovem aproximou-se com precaução.

— Skapti — disse ele em voz baixa, aproximando-se para se sentar nas rochas, perto do guerreiro. — Senta-te homem, estás a assustar-me. Anda lá, senta-te aqui ao pé de mim.

Skapti grunhiu algo parecido com um desaparece. Thorvald ficou onde estava sem dizer nada.

— Estou a falar a sério — resmungou Skapti após uns momentos. — Não tenho nada para te dizer. Lamento que a rapariga tenha morrido e não vou falar mais do assunto. E agora deixa-me em paz. Se eu decidir saltar, não tens nada com isso. — O guerreiro deu um passo; a biqueira da bota dele já estava fora da beira. Thorvald engoliu em seco.

— Tenho, sim — disse ele, fazendo um esforço para manter o tom de voz de todos os dias. — Não temos treinado os homens durante a estação toda para a caçada, tu, eu e Hogni? Estás a dizer-me que não queres viver para ver o fruto desse trabalho? Ora vamos, Skapti, eu estou a contar contigo. Quem mais tem a hipótese de sair incólume do combate? Nós precisamos da tua equipe num flanco e da de Hogni no outro. Os homens não confiam em mais ninguém. Não podes atirar isso assim fora.

Skapti hesitou na beira da falésia, estendendo um braço para se equilibrar. O seu rosto ficou, subitamente, muito branco. Pela mente de Thorvald passaram várias hipóteses, nenhuma delas prometedora. Não fora difícil agarrar em Creidhe e puxá-la para trás. Creidhe era uma rapariga leve. Aquele gigante arrastá-lo-ia consigo, bastando, simplesmente, inclinar-se mais um pouco.

— Vamos fazer o seguinte — disse Thorvald. — Façamos um acordo. Primeiro, conversamos, só um bocado, e depois eu vou-me embora e deixo-te sozinho. O que fizeres depois, é contigo.

Skapti produziu um som ininteligível.

— Acontece — disse Thorvald num tom casual — que, primeiro, terás de te sentar. Ver-te assim, a balançar, faz-me ficar enjoado. Anda lá, homem, senta-te aqui ao pé de mim. Isso mesmo. — O jovem ouviu a sua própria respiração a sair enquanto o guerreiro se afastava da beira e se aproximava para se deixar cair nas rochas. Skapti também respirava pesadamente e as suas feições estavam esverdeadas.

— Aposto que foi Hogni que te mandou — arriscou o guarda-costas, carrancudo.

— Falei com ele, sim, mas a idéia de vir falar contigo foi minha. A caçada aproxima-se; se estás chateado, ou doente, ou se não estás satisfeito com alguma coisa, eu preciso de saber, para poder ajudar.

— Não foi o que ouvi.

— Ah sim?

Skapti abanou a cabeça.

— Asgrim diz que tu te vais embora. Diz que tu já não nos queres comandar. — O guerreiro virou a cabeça subitamente para fixar ferozmente os seus pequenos olhos nos de Thorvald. É verdade?

— Como é que eu posso ficar? — As palavras saíram-lhe zangadas, contra a vontade de Thorvald. — Creidhe morreu. Ela morreu porque eu estava aqui a fazer isto, em vez de estar a tomar conta dela. Tenho de ir para casa. Tenho de contar o que aconteceu ao pai dela. À sua maneira, ainda vai ser pior do que qualquer batalha. Ele é um homem formidável. Havias de admirá-lo, acho.

— Ah sim? Que é ele, um chefe de guerra, uma espécie de rei?

— Não exatamente. Um líder de homens, certamente. Em tempos, foi um Pele-de-Lobo, em Rogaland. Isso dá-lhe uma certa reputação. Não sei se tu...? — O jovem calou-se. Era evidente que Skapti sabia exatamente o que era um Pele-de-Lobo e achava isso impressionante.

— Isso explica tudo. — O grande guerreiro acenou com a cabeça, os olhos plenos de tristeza e de mais qualquer coisa que Thorvald não percebeu bem. — A filha de um Pele-de-Lobo. Não admira.

— Não admira o quê? — perguntou Thorvald, sentindo um arrepio na espinha.

— Nada — resmungou Skapti, olhando para o chão.

— Nada, não. Tu estavas lá. Conta-me!

— Não sei se gostarás de ouvir, sendo amigo dela e isso tudo. Não foi agradável. Ainda tremo e tenho pesadelos.

Thorvald fez um esforço para respirar normalmente.

— Conta-me, Skapti — disse ele em voz baixa.

— Bem, sabes, não foi exatamente como Asgrim disse. A maneira como ele contou fez parecer que a rapariga cometeu uma loucura, pondo-se de pé no barco, provocando um acidente e fazendo com que se perdesse uma série de homens. Mas eu vi. Vi o que ela fez e fiquei a matutar. E agora sei. Filha de um Pele-de-Lobo; faz sentido. — Skapti estremeceu. — Ainda piora as coisas. Assim, ainda é mais difícil continuar.

— O quê? — Thorvald lutava para manter a calma. — O que é que Creidhe fez?

— Foi deliberado. Não foi nenhuma estupidez. Tentou escapar. Pôs-se de pé e mergulhou. A princípio, pareceu que tinha ido ao fundo de vez, mas, depois, apareceu um pouco mais longe. Quando eles a viram, remaram na direção dela e entraram na Corrente dos Loucos. Ela fez aquilo de propósito. Eles andaram às voltas com os remos, tentando alcançá-la, tentando não perder o controle do barco. A rapariga agarrou num remo, puxou-o, o remador desequilibrou-se e o barco virou-se. Então, desapareceram todos. Que rapariga corajosa. Que espírito lutador. E bonita, também. Bem-feita. — As lágrimas rolavam pelas faces de Skapti; ele não fez qualquer tentativa para as evitar. — Acho que não consigo continuar, Thorvald. Acho que não posso continuar com isto.

— Continuar o quê? — Deuses, mais valia não ter tomado conhecimento daquilo; era mesmo de Creidhe lutar sempre, agarrar-se à esperança até ao fim. Recusava-se, simplesmente, a desistir. Podia vê-la na água, a pele pálida a ficar azul com o frio, os dedos agarrados a um remo, murmurando para si própria: Não vou morrer, enquanto as vagas se erguiam para a levar para o fundo, para lhe tirar o último fôlego.

— Tudo — murmurou Skapti, olhando para as próprias botas. — As coisas dele. As coisas de Asgrim. De que vale? Nós cumprimos ordens, obedecemos, combatemos as guerras dele e morremos na caçada porque não temos outra hipótese. Mas, onde é que isto vai dar é que eu gostaria de saber! Quanto tempo mais? Quantas vezes mais? Olha para Wieland. A mulher dele perdeu três filhos, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz cantaram, ela perdeu três bebês e Asgrim nem sequer o deixa ir a casa para a consolar. A caçada é muito importante. — Skapti cerrou os punhos. — Mas, por quanto tempo mais? Cinco anos, e mais antes disso, quando nós rechaçávamos os ataques deles. E as outras coisas... ele pensa que me pode pedir o que quiser, tudo. Eu sempre obedeci. Ele é o governador. Ele é que sabe. Mas não posso mais. Acho que seria melhor eu não estar aqui. Assim, ele já não me obrigava. — O grande homem era a imagem da miséria.

— Este Verão pode ser diferente — disse Thorvald. — Já te tinha dito. É apenas uma questão de pensares a caçada de maneira diferente e de estares preparado como deve ser. Quando aqui cheguei, os homens andavam por aí sem disciplina, sem técnica. Eu não sou um guerreiro profissional, como tu, mas fui bem ensinado. E vi aqui muito potencial. Percebi que Asgrim não estava a utilizar como deve ser os homens que tinha. É uma coisa que acontece quando um líder deixa de ter esperança. E agora, olha para eles. São fortes, estão bem treinados e concentrados na tarefa. Trabalham em equipe. As armas são melhores, a maneira como as usam é melhor, toda a atitude mudou. Esta caçada pode ser diferente, Skapti, eu sei: a primeira que eles vão ganhar.

Skapti resmungou qualquer coisa.

— O que é que disseste?

— Sem ti, não — disse Skapti. Thorvald sentiu um aperto no coração.

— Asgrim pode liderar-vos... sim, eu sei o que disseste... mas ele pode, desta vez, levar-vos à vitória. O trabalho de campo está feito. Além disso, ele não me quer. A sério que não.

— Digamos que ele faz isso — disse Skapti, olhando fixamente para os olhos de Thorvald; os do guerreiro estavam cheios de lágrimas, vermelhos. — Digamos que ele nos lidera e que nós conseguimos resgatar Máscara-de-Raposa. Digamos que nem todos morrem na tentativa. Isso é bom, concordo. Mas, e depois? Eu estou farto, estou farto dele e das regras dele, farto de cumprir ordens de que não gosto, porque tenho medo de dizer não. E se eu tenho medo, imagina os outros!

Thorvald sentiu de novo um arrepio, algo ao mesmo tempo excitante e extremamente perigoso.

— Não sei por que me estás a dizer isso — disse ele. A sua voz transformara-se num murmúrio, se bem que não estivesse mais ninguém à vista.

— Acontece — disse Skapti, olhando nervosamente à esquerda e à direita — que nunca tivemos um líder como tu. Nunca ninguém lhe fez frente. Se te fores embora, as coisas continuarão na mesma.

As palavras pairaram no ar entre os dois, as que tinham sido ditas e as que eram demasiado perigosas para serem ditas em voz alta.

— Pois — conseguiu dizer Thorvald. — Acho... acho que não devemos continuar a discutir isso. Nem sequer aqui. Não é que eu não queira ficar. Mas não posso. A culpa é minha se Creidhe morreu. Vou ficar com esse peso na consciência para o resto da minha vida. Mas tenho de o reconhecer e ir para casa; reconhecer que nunca fui aqui outra coisa senão um estranho.

— E o peso ainda será maior se te fores embora — disse Skapti. — É essa a minha opinião.

Finalmente, os dois homens regressaram, Skapti cabisbaixo e silencioso, Thorvald caminhando rapidamente e com a mente fixa numa única coisa: tomara uma decisão, a única possível, e agarrar-se-ia a ela. Eles podiam ganhar aquela guerra sem ele; faria com que acreditassem que era possível. Quanto à perspectiva tentadora a que Skapti aludira, o depois, não se permitiria pensar nela. Era demasiado perigoso.

Tinham estado ausentes mais tempo do que pensava. O jantar estava a ser cozinhado e os homens sentados à volta da fogueira, tal como quando ele ali chegara: cansados e desanimados. Provavelmente, extenuados. Parecia que tinha sido um dia difícil, apesar de Thorvald não ter tomado parte nele. O jovem perdera a oportunidade de apanhar Sam sozinho e o tempo estava a escassear. O tempo tinha a mania de ficar mau de repente, ali e, geralmente, fazia-o sem aviso. Teria de tentar novamente à noite, chamar o amigo sob um pretexto qualquer. Tinham de partir no dia seguinte: havia um limite para a sua capacidade de se manter agarrado àquela decisão.

Asgrim ainda não aparecera. Hogni também estava ausente. Deuses, os homens estavam mesmo com mau aspecto: Einar muito sério, Skolli a olhar para a sua caneca de cerveja. Wieland pálido e exausto. Quanto a Sam, a expressão do seu rosto só podia ser descrita como furiosa. Era evidente que um dia de treino com as ferramentas de combate nada fizera para lhe acalmar a raiva. Era evidente que a maioria tinha estado a beber até tarde, na noite anterior, recordou Thorvald a si mesmo enquanto se sentava junto de Skapti na prateleira de terra. No entanto, sentiu-se muito pouco à vontade. Era cada vez mais evidente que a tristeza, a desaprovação e a animosidade lhe eram dirigidas.

Pouco se disse até o guisado ter sido tirado do pote e o pão escuro cortado e dividido. Thorvald não conseguiu engolir a comida; doía-lhe o estômago. A seu lado, Skapti comia estoicamente. Foi Einar, o mais velho, que quebrou o estranho silêncio.

— Então, Thorvald, Asgrim disse-nos que te vais embora amanhã. Que nos abandonas.

— Não se eu tiver uma palavra a dizer — grunhiu Sam em voz baixa.

Thorvald não disse nada; de que valia? Eles não podiam compreender as suas razões.

— Custou-nos a acreditar — disse Wieland bruscamente, surpreendendo Thorvald por ser um homem reservado, um homem de poucas palavras. — Que te virasses contra nós, que nos abandonasses assim sem mais nem menos. Especialmente agora. Como pudeste fazer uma coisa dessas?

— Quer dizer — acrescentou Skapti — nós sabemos o que aconteceu à rapariga, foi uma coisa terrível, perturbou-nos a todos, oh, se perturbou. Mas eu pensei que, exatamente por isso, ainda tivesses mais vontade de continuar. No fim de contas, passas a ser um de nós.

— É isso mesmo — disse Orm. — Agora já sabes como nos sentimos. Todos nós perdemos alguém: um amigo, um irmão, um pai. Filhos à nascença. Olha para Wieland, ali, o último perdeu-o na última Primavera, o bebê que a tua rapariga ajudou a nascer. Parece que ela fez o melhor que pôde por nós. Por que não fazes tu o mesmo?

— Pensava melhor de ti — resmungou Knut, o jovem pescador. — Pensava que ia ser diferente, desta vez. Só prova que não se pode confiar num recém-chegado. — Houve um murmúrio geral de concordância; o seu tom era ameaçador.

— De qualquer maneira — disse Sam — se eu não vou, tu também não podes ir. Já pensaste nisso?

Seguiu-se um breve silêncio.

— Suponho que tenho de explicar — disse Thorvald relutantemente. Era a segunda vez que passava por aquilo; o jovem sentiu um desejo profundo de que tudo aquilo acabasse e que o Sea Dove já estivesse a caminho, apesar de a viagem só poder terminar mal. — Não espero que vocês compreendam. É só... é só... — Thorvald parou e respirou fundo; eles estavam zangados e eram muitos. Não era o momento de aparecer com uma declaração qualquer, desconexa, sobre os seus sentimentos. Era o momento de demonstrar uma verdadeira capacidade de liderança. Se ainda fosse capaz. O jovem pôs-se de pé e afastou os braços.

— Sabem — disse ele — quando cheguei aqui, não sabia o que fazer de vocês. Tanta força e tão pouca aplicação; tanto potencial e tão pouca vontade de o desenvolver; tanta habilidade e tão pouca coesão. Havia líderes entre vós, mas estavam demasiado desanimados. Havia combatentes capazes, mas perdiam o seu tempo a fazer de guarda-costas. Havia inteligência, mas não estava a ser usada. Vi um exército sem esperança. No entanto, vi um exército.

Os homens estavam todos silenciosos.

— Bem — disse Thorvald, virando a cabeça para fixar cada um deles. — Olhem para vocês, agora. Que equipe! Que grupo de combate! Vocês adquiriram destreza, habilidade e capacidade; adquiriram capacidade de cooperação, disciplina e vontade de continuar. Vocês adquiriram aquilo que faz um homem levantar-se de madrugada sem se queixar e ir para o campo treinar, mesmo quando a cabeça lhe dói tanto que quase estoura. — Ouviu-se uma pequena risada geral. — Vocês têm líderes como Einar, como Skapti, como Hogni, que vos treina até estardes meio-mortos de pé e que se mantêm junto de vós nos bons e nos maus tempos. Já não sois uma escumalha, sois uma força com direito a serdes reconhecidos. Tendes o que nunca tivestes antes: a vontade de vencer. Não fui eu quem vos deu isso, fostes vós que o conseguistes através de trabalho duro e determinação.

Seguiu-se um momento de pausa e depois um aplauso geral e um viva. Thorvald reparou em Asgrim e Hogni à porta, observando. Então, Einar falou.

— Bem dito. É verdade, temos mais hipóteses nesta caçada e sabemo-lo. E parece que não temos outra hipótese senão experimentarmos, já que não há possibilidade de tréguas. Mas, tu subestimas-te, Thorvald. Só há uma coisa diferente do ano passado e do anterior; tu. Sem ti, continuaríamos a mesma... como é que tu disseste...?

— Escumalha — disse Skolli.

— Exatamente. Não podes deixar-nos. Foste tu que nos transformaste no que somos. Foste tu que tiveste as grandes idéias; atacar de três pontos ao mesmo tempo, adulterar as armas, neutralizar as armadilhas. Não o podemos fazer sem ti.

— Eu disse-te — murmurou Skapti ao lado de Thorvald

— Fica até ao fim da caçada — pediu-lhe Einar. — Então, enchemos-te o barco e vocês os dois podem ir para casa, se é isso que querem.

— Ou podem ficar — disse Skapti com os olhos a piscarem nervosamente na direção de Asgrim.

— Ou podem ficar — concordou Einar, muito sério. — Que dizes, homem?

Então, ouviu-se um coro de vozes e muitos homens a avançarem ao mesmo tempo, cada um para pedir pessoalmente a Thorvald, todos eles com o mesmo olhar no rosto, um olhar que o fez compreender que o que conseguira ali era maior do que imaginara. Pusera esperança nos corações deles, mostrara-lhes um futuro sem medo. Agora, tirava-a de novo. O jovem não percebera quão associado estava à fantasia daquela gente; nem sequer imaginara algo semelhante senão quando Skapti pronunciara as palavras fatais: Se te vais embora, a esperança de mudarmos aqui as coisas desaparece. Para aqueles homens, o futuro não incluía a liderança de Asgrim, um futuro em que a sua própria posição era crítica. Ocorreu-lhe que Asgrim seria um perfeito louco se o deixasse ficar.

Thorvald ergueu uma mão e o tumulto acalmou-se.

— Estais a esquecer-vos, talvez — disse ele — que uma amiga minha se afogou nestas águas. Assumo essa responsabilidade. Devia tê-la protegido, mas não o fiz porque a minha mente estava no nosso trabalho aqui e esqueci-me dela. É meu dever levar a notícia da sua morte à sua família o mais rapidamente possível. É essa a principal razão para...

— Nós compreendemos a tua dor, Thorvald. — Asgrim aproximara-se da lareira e estava agora de pé, envolto na sua capa escura, varrendo-os a todos com o olhar. O silêncio era total. — Já todos nós sentimos o mesmo. Nas Ilhas Perdidas, a morte é o pão-nosso de cada dia. Mas sejamos práticos. A tua jovem amiga desapareceu: não a podemos ressuscitar. Tu estás longe de casa há muito tempo, mais do que uma estação. Que diferença faz se a família de Creidhe só receber a notícia depois do solstício de Verão? Nenhuma, penso eu. Permite que acrescente a minha voz aos dos meus homens. Tu dizes a verdade e di-la com voz inflamada, a voz de um homem novo. Nós temos necessidade absoluta de verdadeiros líderes de combate, homens que possam conduzir-nos à batalha com esperança e propósito. Eu aceitei a tua decisão de nos deixares, já que não te podia obrigar a ficar. Mas lamento tê-lo feito. Posso pedir-te, uma última vez, que fiques até depois da caçada? Precisamos de ti, Thorvald, de ti e de Sam. — O governador acenou com a cabeça na direção de Sam. — Fica conosco. Vinga a tua amiga. Ajuda-nos a capturar Máscara-de-Raposa. Foi essa a razão, acredito, porque os deuses te enviaram às Ilhas Perdidas nas asas do vento de leste. Esta é que é, estou convencido, a tua demanda.

Ouviram-se gritos de novo, desta vez mais altos. Alguém colocou uma caneca na mão de Thorvald. O jovem teve a sensação curiosa de que já não controlava a sua vida, que uma força maligna assumira o controle e que fazia de propósito para o magoar e para lhe pôr as fraquezas a nu. Ele desejava, absolutamente, dizer sim, mas sabia que não podia.

— Eu não... — murmurou ele.

O olhar sombrio de Asgrim cruzou-se com o seu através da fogueira.

— Por favor, filho — disse o governador. — Faz isto por mim.

Thorvald sentiu o coração parar, ao mesmo tempo que cessava a respiração. Contra vontade, o jovem acenou levemente com a cabeça; era o suficiente. Só depois de os homens terem recomeçado a gritar, de tal modo que até o telhado vibrava, é que o batimento do seu coração voltou ao normal, ele voltou a respirar e olhou para Asgrim, perguntando a si próprio se aquilo não seria mais um truque cruel. O governador sorriu, um mero franzir dos lábios. Asgrim disse algo mais, mas Thorvald não percebeu porque estava envolvido num enorme abraço de urso de Skapti seguido de várias sapatadas violentas nos ombros e de uma série de murros amigáveis nos braços, maneira de agradecer daqueles homens todos. Wieland, de lábios cerrados, tinha lágrimas nos olhos. Hogni irradiava felicidade. Einar quis logo ali discutir um plano tático em que tinha estado a trabalhar. Orm queria beber com ele. E Skolli, parecia, tinha um presente: um presente que tinha exatamente para aquele momento.

— De todos nós — disse o ferreiro rudemente. — A lâmina foi feita por mim, claro; guardei um pedaço de metal para ela, melhor do que o habitual. Einar fez o punho; dente de narval. Knut cobriu-o, já que tem jeito para nós. Os rapazes fizeram o cordão, poliram-no, desenharam a bainha e tudo o mais. Espero que gostes. Uma espécie de agradecimento. Não precisavas de nos ajudar. Ter-te-ia dado na mesma, mesmo que te fosses embora. Mas é melhor assim. Podes usá-la na caçada. Pode ser que te dê sorte.

Pelos ossos de Odin, tinha lágrimas nos olhos. Que se passava com ele? A faca era perfeita; ajustava-se à sua mão como se fosse uma extensão do próprio braço, finamente equilibrada, elegante e estreita. O punho era quente, o osso branco-amarelado quase da cor da palma da mão. Até a bainha era uma maravilha, a pele gravada com um entrelaçado de vinhas e criaturas. Não sabia que havia homens tão habilidosos entre eles. Não podiam ter feito aquilo na última Primavera; um homem esgotado pela dor, um homem que acredita que não vale nada, não tem o espírito suficiente para criar coisas bonitas. Era verdade? Fora mesmo ele que os mudara?

— Obrigado — disse ele rudemente. — Vou usá-la com orgulho; vou liderar-vos ainda com mais orgulho. Sois ótimos combatentes e uns grandes amigos. E agora, alguém falou em cerveja?

O jovem permitiu a si próprio uma bebida, coisa que não fizera antes, mas manteve-se atento, porque um líder não se pode dar ao luxo de perder o controle das suas emoções. O jovem viu, uma vez, Sam a olhar para ele com uma expressão esquisita no rosto, mas decidiu ignorá-lo. Ele queria ficar, não queria? Bem, parecia que iam mesmo ficar, pelo menos até ao solstício de Verão. Portanto, Sam conseguira o que queria; não havia razão para olhar para ele daquela maneira tão desaprovadora. Quanto ao governador, Asgrim chamara-lhe filho. Provavelmente, era outro jogo, um jogo que podiam ambos jogar. Primeiro, comandaria a caçada e resgataria Máscara-de-Raposa. Depois, Asgrim descobriria que as regras tinham mudado.

 

Em Hrossey, numa praia virada para oeste, pouco depois do pôr do Sol, estavam três mulheres, muito calmamente, em redor de uma pequena fogueira. Uma era jovem, esguia, pálida. A sua expressão era distante e séria; os seus cabelos castanhos entrançados numa única trança, caíam-lhe pelas costas. Usava uma saia, uma longa túnica cinzenta e um pequeno saco de pele ao pescoço. Era Eanna, sacerdotisa dos mistérios, irmã de Creidhe. Tinha os olhos fechados e os braços abertos; o fumo da fogueira subia, retorcido, mostrando-lhe visões do passado, do presente e do possível futuro.

Margaret e Nessa esperavam. Procuravam respostas; restava saber se Eanna lhes podia dar. A mulher sábia, geralmente, não celebrava os rituais ali; a sacerdotisa morava sozinha no seu local secreto e se os Folk queriam saber a verdade, iam ao encontro dela. Mas Nessa, que era mãe de Eanna, estava grávida há muito tempo e a criança não podia ser posta em risco. O grande desejo de Nessa e de Eyvind por um filho era conhecido, se bem que não falassem dele abertamente. Mas não era tudo. Nessa era a última sacerdotisa dos Folk, a antiga raça das Ilhas Brilhantes. Se a chegada dos nórdicos não tivesse alterado a vida das ilhas para sempre, o filho de uma princesa assim seria o Rei, porque era assim que o determinava a lei dos Folk, pelo lado feminino. Mas já não havia reis nas Ilhas Brilhantes; mesmo assim, aquela criança seria o símbolo da sobrevivência da velha raça e da velha fé. Nessa deixara de andar a cavalo; também não viajava de carroça e o santuário de Eanna ficava muito longe. Assim, a mulher sábia viera até à praia, não muito longe da casa da família, e fizera as suas invocações enquanto o Sol se punha no mar. Tinham escolhido aquele local por uma razão. Nessa tinha medo da Tribo das Focas, a raça que vivia no mar e que lhe roubara o pequeno Kinart. Temia-os acima de tudo, enquanto o bebê crescia no seu ventre e lhe sentia os pontapés vigorosos contra as paredes do útero. Ela não sabia se a Tribo das Focas ficara apaziguada quando lhe levara o filho, se bem que quando a tinham ajudado, há longos anos, parecessem tê-lo feito de boa vontade, por amor às ilhas. Nessa temia pelo bebê e temia por Creidhe. Não lhe parecera, na ocasião, apropriado invocar ela própria os antepassados; Nessa sabia que não estava suficientemente afastada, psicologicamente, para ter a visão e deslindar o seu significado calma e friamente. A sua filha é que era a sacerdotisa. Eanna carregaria esse fardo por ela.

Margaret não parecia ter muita confiança em deuses, ou em espíritos ancestrais. Nas raras ocasiões que pedira a sua ajuda, achara o resultado tudo menos útil. Além disso, pensou ela, carrancuda, enquanto a mulher sábia erguia os braços lentamente na direção do céu violeta e acinzentado, suspeitava que teria cometido os mesmos erros na sua vida se tivesse tido fé, mesmo que Freya, ou Thor, ou um dos outros tivesse decidido tomar conta dos seus assuntos. Margaret sentia-se fadada para fazer tudo mal. Assim, a maior parte das vezes, limitava-se a cumprir as tarefas necessárias para levar a sua vida em frente: dirigir os campos, os celeiros e as vacarias, a casa e a horta; fiava e tecia, bordava, desenhava e fazia roupa. Antes, tinha Thorvald: ao mesmo tempo uma bênção e uma desgraça, o seu único filho, o filho de Somerled. Mas tinha-se ido embora e ela não conseguia perceber como era possível ele ter deixado tanto vazio, um buraco que falava de uma verdade que ela negara durante muito tempo: amava o seu filho, apesar do pai. Era dela, era bom rapaz, muito bom rapaz apesar dos seus defeitos. Tinha saudades de Creidhe, a sua rapariga dourada, a sua aprendiz luminosa; mas era a perda de Thorvald que mais lhe custava. Assim, fora com Nessa, não só para apoiar a amiga, mas também por saber que notícias de Creidhe eram, também, notícias de Thorvald.

Fora da vista, para lá de uma pequena elevação, Ash e Eyvind esperavam para as acompanharem a casa. Os rituais da mulher sábia não eram para homens, se bem que havia muito tempo, tanto que agora parecia uma nova vida, Eyvind tivesse estado perto, quando Nessa e a velha sacerdotisa, Rona lhe tinham concedido abrigo. Naquela manhã, Ash parecera cansado. Margaret suspeitou que ele não dormira. Talvez tivesse sido ela a mantê-lo acordado, pela maneira como andou de um lado para o outro durante a noite, atormentada pelas recordações. Havia uma solução, uma solução simples; durante aqueles últimos tempos sombrios, sentira-se atraída para ele com uma urgência que nunca sentira antes, nem sequer nos seus primeiros tempos de viuvez, quando era pouco mais do que uma rapariga. Pensava na carne, nos desejos do corpo, em secar e morrer, privada depois de tanto tempo. Tinha trinta e seis anos, certamente demasiado velha para ter uma paixão, certamente demasiado tarde para ser consolada com facilidade por mãos gentis e pelo corpo duro e ardente de um homem. No entanto, o desejo estava presente e ela parecia ter cada vez mais dificuldade em o abafar. Mulher estúpida, dizia a si própria, mulher louca, com um filho crescido, uma casa para governar e um corpo que se recusava a admitir que era demasiado tarde para mudar. Se nunca dormira com Ash naqueles dezoito anos que levavam de vida em comum na mesma casa, por que o haveria de fazer agora? A resposta veio-lhe instantaneamente, sem ser convidada. Porque, após dezoito anos, ele continua presente e ainda te ama.

Eanna estava a emergir do transe, fazendo pequenos gestos com as mãos e os braços para acordar o corpo, cantando em surdina uma melodia. Nessa estava sentada nas rochas, já que se cansava, agora, com facilidade devido ao tamanho do bebê e ao fato de ter sido sempre uma pessoa frágil. Os olhos de Eanna abriram-se: cinzentos, grandes, cegos por um momento enquanto mudava da visão do espírito para a visão do corpo. A jovem pestanejou e inclinou a cabeça. Então, endireitando as costas, deixou-se cair de pernas cruzadas junto da pequena fogueira e Margaret passou-lhe uma malga de água. Ninguém lhe perguntou: Que viste? A resposta viria a seu devido tempo. Eanna bebeu muito, estremecendo ao mesmo tempo e tossiu para aclarar a voz. Não é simples regressar de um transe profundo; esgota o corpo e entorpece a vontade.

— Foi confuso — disse-lhes ela, finalmente. — Muitas imagens pequenas, desordenadas. Inclino-me mais para o passado recente do que para o que está para vir: Creidhe com uma criança nos joelhos e umas cores, umas cores maravilhosas, como se todos os tons das quatro estações se agitassem e mudassem à sua volta, passando. Um homem aos pés dela. Não era Thorvald, nem Sam, antes outro, de olhar selvagem, se bem que estivesse quieto, sentado. Estavam ambos sós; o mar, o céu e a magia separavam-nos do mundo dos homens. — Eanna fez uma pausa; não diria tudo, nem sequer à sua própria mãe. Era necessário pensar nas conseqüências de partilhar uma visão na sua totalidade. Uma vidente carrega um fardo pesado.

— Creidhe estava bem? Parecia feliz? — perguntou Nessa, trêmula.

— Bastante bem. Parecia cansada, mas não descontente. Mais magra. A criança era estranha, uma criatura parecida com uma ave. — Nessa acenou com a cabeça.

— Eu também já vi essa imagem.

Margaret não disse nada; não perguntaria nada. Esperou com as mãos apertadas uma contra a outra.

— Não vi nada acerca de Sam — disse Eanna. — Vi Thorvald, numa falésia à noite, a chorar. E um homem de cabelos brancos, vestido como um sacerdote cristão. Escuridão e luz, uma ligação qualquer... morte e vida em equilíbrio. Vi homens armados e sangue derramado.

— Nenhum sinal, nada que nos diga que vêm para casa? — perguntou Nessa. — Não que eu espere respostas precisas; celebrei este rito vezes suficientes para saber que as imagens não são fáceis de interpretar.

— Gente a cantar durante o nascimento de uma criança — disse-lhes Eanna num sussurro. — Não um som alegre, antes um som de partir o coração, um lamento que não era deste mundo. E a voz de Creidhe, desafiadora, plena de coragem. E lágrimas. É tudo o que vos posso dizer. Senti a presença de Creidhe com muita força. Eu sei que ela não foi treinada nas artes de uma mulher sábia, mas pareceu-me que ela estava a tentar comunicar comigo, a tentar dizer-me qualquer coisa. Talvez que nos ama e que nos tem no seu coração. Talvez só isso.

Nessa acenou com a cabeça moderadamente, pondo-se de pé e reclinando-se ligeiramente para agradecer; apesar de ser sua filha, o respeito devido a uma mulher sábia devia ser demonstrado.

— Obrigada — disse ela. Nessa não choraria. As notícias tinham sido boas e más; ponderaria nelas durante algum tempo e esperaria que o coração lhe dissesse qualquer coisa.

— Obrigada — disse Margaret, pensando que nunca vira o seu filho chorar, nem sequer em criança. Parecia-lhe que aquelas notícias escassas só lhe faziam doer ainda mais o coração; e preferia que não lhe doesse de todo. Eanna passou a noite com a família. De manhã regressou ao santuário, uma minúscula cabana de pedra nos montes, construída numa faixa de terra onde um salgueiro inclinado pelo vento crescia junto de um aglomerado rochoso parecido com uma velha. Junto da porta passava lentamente um ribeiro; a lareira, no interior de umas pedras lisas, dava para um vale vestido de verde e, mais abaixo, para um lago circular, cintilante. Eanna acendeu o fogo e sentou-se por alguns momentos sob a abóbada do céu de Verão. A mãe dera-lhe provisões; pão, vegetais frescos, um queijo de ovelha e um saco de feijões. O pequeno gato de Eanna estava zangado por ela ter passado a noite fora de casa. Algo apaziguado por uma fatia de queijo, sentou-se nas rochas perto dela como uma sombra, lambendo os beiços. Margaret dera à jovem sacerdotisa uma capa quente feita por ela, cinzenta com uma estreita orla azul e pequenos cães e flores bordados.

Eanna pensou na sua visão. Dissera-lhes exatamente o que vira; não se podia falsificar a sabedoria dos antepassados. Por outro lado, não falara de algumas partes. Tinha de pensar na saúde da mãe; Nessa tinha de dar à luz aquele filho e, mesmo depois, havia algum risco, porque já tinha ultrapassado a idade ideal. Era importante que Creidhe estivesse de volta a tempo. Eanna podia dizer as preces de que ambos necessitavam, celebrar o ritual adequado à ocasião. Podia pedir a ajuda dos antepassados. Mas, chegada a hora, o que era necessário era um par de mãos fortes e experientes e uma voz calma e confiante para dominar a situação. As mãos de Creidhe, a voz de Creidhe. Mas se chegaria a tempo, ou se regressaria de todo, Eanna não sabia. Sabia, apenas, que o jovem que vira, sentado junto dos joelhos da irmã, como se também ele fosse uma criança em transe devido a uma história na hora de ir para a cama, tinha um olhar estranho, um olhar que lhe dizia qualquer coisa, qualquer coisa relacionada com as suas histórias de criança. As longas mãos ossudas, a palidez, os estranhos olhos profundos, que pareciam refletir o mistério líquido do oceano: não eram aquelas as marcas da Tribo das Focas?

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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