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MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS / Taylor Caldwell
MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS

Primeira Parte

 

Lucano nunca soube com certeza se gostava ou não de seu pai. Seria possível admirar homens simples e despretensiosos. Seria possível honrar homens sábios. Mas seu pai não era simples nem sábio, embora se considerasse pertencente à classe destes últimos.

Guarda-livros e arquivistas tinham sua importância na vida especialmente se fossem diligentes e soubessem o seu valor como guarda-livros e arquivistas, sem pretender sugerir que possuíam maiores dons.

Não era agradável ouvi-los falar em "homens inferiores", tomando para isso ares superficiais e altamente cultos. A mãe de Lucano, porém, sorria tão terna e tão misericordiosamente, quando o marido dava voz aos seus ridículos preconceitos, que a luz da sua compaixão abrandava o coração do filho.

Enéias lavava as mãos em leite de cabra, pela manhã e à noite, esfregando cuidadosamente o rico fluido em cada ruga, rachadura e junta. Pelo que conhecia, aos dez anos de idade, Lucano compreendeu que o pai não estava apenas tentando amaciar e branquear as mãos, mas que pretendia apagar as cicatrizes de sua antiga servidão. Aquilo irritava Lucano, pois já então sabia que o trabalho, não importava de que espécie, não degradava ninguém, a não ser que parecesse degradante ao espírito do trabalhador. Enquanto Enéias sacudia muito delicadamente as mãos, para enxugá-las ao ar ameno da Síria, Lucano podia ver as regiões desfiguradas de suas palmas e a comprida e feia cicatriz que havia nas costas da fina mão direita; e um fluxo de vago amor e piedade surgia nele. Mas sua compreensão real era ainda infantil.

Enéias mostrava-se sob seu melhor aspecto exatamente antes da refeição da tarde, quando servia a costumeira libação aos deuses.[1] Lucano o contemplava, então, com uma veneração sem palavras. A voz de seu pai, habitualmente tão fina, seca e orgulhosa, tornava-se humilde e hesitante. Enéias sentia-se grato aos deuses que o libertaram e tornaram possível a casa pequena e agradável, com seus jardins de palmeiras, flores, árvores frutíferas. Que o tinham levantado do pó e lhe haviam outorgado autoridade sobre outros homens. O fato mais solene, para Lucano, porém, era quando Enéias tornava a encher a taça de vinho e, com uma nova reverência, derramava o líquido vermelho, lenta e cuidadosamente, e dizia com brandura quase inaudível: "Para o Deus Desconhecido."

As lágrimas enchiam os grandes olhos azuis daquele Lucano de dez anos. O Deus Desconhecido. Para Lucano, a libação era não só um velho costume dos gregos mas, ainda, uma saudação mística, um rito universal. Lucano ficava a olhar a queda das gotas de rubi, e seu coração apertava-se com emoção quase insuportável, como se estivesse testemunhando o derramar-se de sangue divino, a oferenda de um Sacrifício inescrutável.

Quem era o Deus Desconhecido, sem nome? Enéias respondia ao filho: era um costume dos gregos oferecer-lhe aquele ritual, e fazia-se necessário manter os costumes civilizados da Grécia quando se vivia entre romanos bárbaros, embora fossem os bárbaros que governassem o mundo. Suas mãos marcadas de cicatrizes cruzavam-se num gesto inconsciente de homenagem, e seu rosto estreito, tão insignificante e comum, adquiria distinção e gravidade. Era nessas ocasiões que Lucano tinha certeza de amar seu pai.

         Sobre os deuses Lucano fora cuidadosamente instruído pelo pai, que lhes dava seus nomes gregos e não os nomes toscos que os romanos lhes atribuíam. Mesmo assim, com seus nomes poéticos e adoráveis, eles eram, para Lucano, simplesmente homens que se tornaram gigantescos e imortais, donos de toda a crueldade, rapacidade, luxúria, ódio e malícia do homem. O Deus Desconhecido, entretanto, parecia não possuir os atributos do homem, nem seus vícios nem suas pequenas virtudes.

- Os filósofos ensinaram que Ele não deve ser compreendido pelo homem dissera Enéias a seu filho, certa vez. - Mas Ele é poderoso, onisciente e onipresente, e ainda assim está impregnado em - cada partícula de quanto existe, seja árvore, ou pedra, ou humanidade. Assim dizem os pensadores imortais de nossa gente.

"O rapaz é sério demais para sua idade" dissera Enéias certa vez à sua esposa, Íris. - "Entretanto, devemos recordar que seu avô, meu pai, era um poeta, portanto não devo ser demasiado severo no meu julgamento."

Íris sabia que o avô poeta era uma das mais patéticas ficções de seu marido, mas concordou, com um movimento de cabeça.

- Sim, nosso filho tem alma de poeta. Apesar disso, eu o vejo e ouço a brincar com grande vivacidade, em companhia da pequena Rúbria. Correm juntos atrás dos carneiros e escondem-se um do outro entre as oliveiras. Às vezes, sua linguagem infantil é impetuosa e barulhenta.

Olhava meigamente para seu marido, ao vê-lo erguer a cabeça comprida, com importância, numa tentativa para mostrar-se carrancudo. Em seu pobre coração aquele homem sentia-se lisonjeado, apesar de todo o seu desdém pelos romanos.

- Espero que não esteja negligenciando suas lições dissera ele. - Com todo o respeito que devo ao meu patrão, é duro esquecer que se trata de um bárbaro romano e que sua filha não pode oferecer a meu filho qualquer divertimento intelectual. - E acrescentou, rapidamente: - Contudo, temos de nos lembrar que ele tem apenas dez anos, e que a pequena Rúbria é ainda mais nova. Dizes, minha querida, que eles brincam juntos constantemente? Não o tinha reparado. Também, estou sempre ocupado, de manhã à noite, na casa do tribuno.[2]

- Lucano ajuda Rúbria nas lições dela contou Íris, afastando da testa um caracol de seus cabelos dourados. - É uma pena que o nobre tribuno Diodoro Cirino não te empregue para ensinar a filha.

Enéias suspirou e tocou a fronte da esposa com seus lábios agradecidos.

- Mas quem tomaria conta dos negócios dele em Antioquia? Quem manteria os arquivos e supervisionaria os capatazes dos escravos? Ah! Esses ávidos, esses sugadores romanos! Roma é um abismo no qual toda a fortuna e todo o trabalho do mundo mergulham sem ruído, um abismo do qual não sobe nem jamais subiu qualquer música.

Íris absteve-se, muito consideradamente, de recordar Virgílio a seu marido. Ele costumava compará-lo, desdenhosamente, com Homero.

Enéias sentia-se ofendido por ser seu patrão apenas um rude tribuno e não um augustal.[3] Na verdade, muitos dos tribunos romanos eram augustais, mas não Diodoro, que odiava patrícios[4] e cujo herói era Cincinato.[5] Diodoro tinha considerável instrução e muito intelecto, era filho de sólida e virtuosa família de muitos soldados, mas assumia a atitude de escárnio do militar pelos homens que preferiam as coisas do espírito. Apertava contra o peito suas virtudes fora de moda, afetava ignorar coisas que sabia, e falava com o rude e simples acento de um soldado para o qual os livros eram desprezíveis. A sua maneira, tinha tanta afetação quanto Enéias. Ambos eram uma fraude dizia Íris consigo mesma, tristemente -, porém piedosas fraudes. Que Enéias se mostrasse condescendente para com o soldado cujo pai o libertara, e que Diodoro usasse deliberadamente má gramática e exibisse más maneiras, isso não importava.

O pai de Diodoro Cirino, um homem moral, de nobres qualidades, comprara o jovem Enéias de um conhecido, notável pela sua extrema crueldade para com seus escravos, crueldade que se tornara infame até mesmo para as pessoas mais duras e cínicas. Dizia-se que nem um só de seus escravos deixava de ter cicatrizes, desde os que trabalhavam em seus campos, vinhedos e olivais, até as mais jovens escravas de sua casa. Apesar das leis, ele não desistia de matar caprichosamente, quando bem entendesse, qualquer dos escravos que o tivesse desagradado e usava invenções próprias de tortura e assassínio que lhe davam imenso prazer. Augustal de família orgulhosa, se bem que decadente, e de imensa riqueza e poder, era também senador, e dizia-se que até mesmo César o temia.

Houve apenas um homem em Roma que ousou escarnecê-lo publicamente: o virtuoso tribuno Prisco, pai de Diodoro, amado pelas turbas romanas, que, sendo elas próprias aviltadas e viciosas como seus senhores, ainda assim honravam-no pela sua integridade e pelas suas qualidades militares. As turbas admiravam-no mesmo pela sua bondade e justiça em relação aos seus escravos e isso era paradoxal num povo para o qual o escravo era pouco menos do que um quadrúpede.

Enéias, o escravo grego, fora um dos trabalhadores das terras do senador, e ninguém sabia com certeza de que forma Prisco o adquirira, a não ser ele próprio, que jamais falava nisso. Prisco, porém, levara o jovem, machucado e ferido, para sua casa, chamara seu médico, para que o tratasse; dera-lhe um lugar entre seu pessoal doméstico, exigindo dele apenas obediência.

- Estamos todos sujeitos à obediência tinha dito Prisco severamente a seu novo escravo. - Eu obedeço aos deuses e às leis de meus pais, e há orgulho nessa obediência, porque ela é voluntária e exigida de todos os homens honrados. O homem sem disciplina é um homem sem alma.

Enéias era iletrado, mas rápido e respeitoso, dotado de mente arguta e metódica. Prisco, que acreditava dever todo homem, mesmo um escravo, desenvolver-se até o máximo de sua capacidade, permitira que Enéias se sentasse a um canto do quarto onde seu jovem filho recebia instrução. Num espaço de tempo espantosamente curto Enéias alcançou Diodoro: sua memória era extraordinária. Não se passou muito tempo e Enéias, com ordens de Prisco, estava ocupando uma extremidade da mesa onde Diodoro se sentava com seu mestre.

- Temos aqui um erudito grego? Perguntou Prisco ironicamente ao mestre.

O mestre, porém, replicou com sagacidade que Enéias não era um verdadeiro erudito e sim um jovem de mentalidade inteligente.

Quando Enéias completou vinte e cinco anos estava administrando as propriedades romanas de seu senhor, Prisco, enquanto Diodoro assumira sua profissão de soldado e assistia o procurador em Jerusalém. Apaixonara-se, também, por uma outra escrava, a jovem Íris, criada de quarto da esposa de Prisco, jovem e bela grega, a querida do pessoal doméstico, educada pessoalmente por Antônia, que lhe devotava afeto maternal. Prisco e Antônia presidiram o casamento dos jovens, dando-lhes muitos presentes, inclusive a dádiva inestimável da liberdade.

Diodoro Cirino, voltando para casa depois da morte de seus pais, ficou satisfeito com o liberto Enéias, pois as propriedades romanas estavam em excelente ordem. Lembrava-se de seu antigo colega de estudos como de um indivíduo comum, sem brilho particular. Mas reconheceu suas qualidades e honestidade, embora se aborrecesse com sua petulância e com as pequenas arrogâncias que exibia para com os escravos sob suas ordens. Mas sendo Diodoro extremamente inteligente, e secretamente piedoso, compreendera que daquela maneira Enéias se estava compensando pelos anos de escravidão.

O solitário e jovem romano, que tinha agora vinte e sete anos, cinco menos do que Enéias, depressa casava-se com uma moça de vigorosa família romana, que tinha suas próprias e robustas qualidades, mas não sua inteligência. Logo depois disso Diodoro foi nomeado governador de Antioquia, na Síria, e levou consigo Enéias e Íris.

Ali, Enéias encontrou campo mais amplo para seus talentos de meticulosidade, gerência, escrituração e precisão, e pela primeira vez teve sua casa própria em certa propriedade, num subúrbio de Antioquia. Durante as noitadas ele sonhava seus sonhos dos gloriosos homens da velha Grécia, identificava-se com eles, lia poemas de Homero[6] e declamava-os em voz alta para a mulher e o filho. Seus conhecimentos, intelectualmente, permaneciam pequenos e escassos. Fazia-se loquaz, falando de Sócrates,[7] mas os Diálogos ficavam para além da sua verdadeira compreensão. Sabia muito pouco sobre os gigantes menores da Grécia, e quase nada sobre os estadistas de sua nação. Servia seus deuses com o mesmo senso de dever com que servia Diodoro. Talvez para Enéias eles representassem a Grécia. Talvez em sua beleza, delicadeza e esplendor, trouxessem-lhe à memória que seus equivalentes romanos eram grosseiros, lascivos, abrutalhados, além de toda a sutileza e graça, simples sombras aumentadas dos próprios romanos. Em seus deuses, Enéias encontrava refúgio contra as lembranças da amarga escravidão; neles encontrava orgulho para si próprio, pois mesmo os romanos os reverenciavam, construíam-lhes templos e começavam a fazer distinções entre eles e suas próprias deidades.

Enéias teria preferido Roma a Antioquia, pois embora desdenhasse a população romana, gostara do movimento das ruas repletas, da excitação da cidade e da atmosfera de poder. Antioquia, para ele, era "estrangeira" demais, pois era constantemente invadida por embarcadiços rudes, que vinham de centenas de anônimas e suspeitas regiões bárbaras. Tinha por eles uma aversão clara, e afastava-se de seu contato, em melindroso estremecimento. Mas possuía uma pequena casa, agradável, com soalhos frescos de pedra e brilhantes cortinas de lã, arcos e jardins, longe bastante da casa maior de Diodoro para dar-lhe a ilusão de que era um senhor de terras, com seu direito próprio.

Muito de seu prazer, entretanto, era arruinado freqüentemente quando tinha contato com Diodoro e se via forçado a ouvir em silêncio os expletivos e a crua linguagem militar do romano.

Diodoro sentia-se ainda mais solitário na Síria do que o fora em Roma. A esposa Aurélia, jovem gorducha e alegre, devotada ao lar, aos escravos, ao marido e à filhinha era piedosa e virtuosa, à maneira das velhas matronas romanas; mas não tinha instrução, sendo apenas esperta, e tão naturalmente destituída de polimento quanto o marido era secretamente refinado. Tagarelava sobre os escravos, a filha, as modas mais recentes de Roma, falava de esbanjamentos na cozinha, do clima, da saúde da família e dos pratos que ela própria inventava sob os olhos das cozinheiras. Não havia dúvida de que se tratava de uma mulher estimável, um tantinho gorda demais, mas ainda assim tinha certa beleza no rosto rosado e redondo, nos grandes olhos castanhos e no luxuriante cabelo preto. Diodoro ouvia-a afetuosamente, depois metia-se em sua biblioteca, de onde retirava livros surrados pelo uso, e lia até meia-noite, muito tempo depois de todos da casa se haverem recolhido. Deleitava-se, especialmente, com poesia, história e filosofia. Murmurava para ele mesmo um poema inteiro, com uma espécie de caprichoso abandono ao ritmo das frases e dos cantos.

Nunca lhe ocorria, como romano moral anacrônico, procurar algum divertimento sexual nos apinhados bordéis de Antioquia, nem considerava próprio reunir-se a alguns companheiros romanos da cidade para jogar, assistir a rinhas de galos ou manter simples camaradagem. O lugar de um homem, depois de seu trabalho, era no lar, segundo pensava Diodoro, por mais insignificante que fosse a conversa da esposa. Bebia muito pouco à mesa e acreditava ser a embriaguez um dos pecados maiores. Assim, sua única evasão estava no trabalho.

Aurélia tinha amigas entre as famílias romanas de Antioquia, mas eram tão virtuosas e comuns quanto ela própria. Reunidas, tagarelavam sobre algumas mulheres mais emancipadas, de seu conhecimento, e deploravam-lhes as atitudes com arrepios de horror. Eram todas completas e inocentemente inconscientes da depravação de seu país, de sua corrupção e de sua moral viciosa, de suas maneiras e costumes licenciosos. E criticavam outras mulheres por um comportamento que, em Roma, era comum e admitido. Seus lares e penares eram as coisas mais importantes em suas vidas, e sua tagarelice mostrava-se tão excitante como uma tigela de feijões cozidos. Sentiam-se felizes; tinham maridos, filhos, jardins, eram diligentes e devotadas.

Era entre os soldados mais simples de Antioquia que Diodoro encontrava algum descanso, e com eles conversava facilmente sobre assuntos militares, para sufocado vexame de seus oficiais subalternos. Os próprios oficiais consideravam-se exilados naquele lugar, e suspiravam pelos deleites, alegria e vícios de Roma, pensando em seu oficial superior com espanto e secreto escárnio. Jamais duvidaram da moralidade dele, mas isso não lhes inspirava respeito: ao contrário, achavam-no um tolo. Mesmo sua severa justiça, que nunca era impulsionada pelo capricho ou mesquinhez do momento, parecia-lhes algo de inumano. Diodoro punia um oficial com a mesma presteza com que punia um soldado raso da infantaria, sem se preocupar com sua família ou sua categoria em Roma. Enéias solidarizava-se com eles, e os oficiais piscavam-lhe um olho ao ouvir alguma ordem rígida de Diodoro, quando, então, Enéias fingia pomposamente esconder um sorriso afetado.

Os fatos tinham sido particularmente complicados e desagradáveis naquele dia. Diodoro, rodeado de seus oficiais, observava o embarque por escravos, num navio romano, de frutos da Síria, mel, azeitonas e azeite e muitas outras coisas. Embora estivessem em dezembro, e a festa das Saturnais[8] se aproximasse, o sol mostrava-se quente demais para a estação, o ar trazia umidade, as águas gordurosas luziam como que cobertas de graxa ardente. Os gritos dos capatazes tinham sido excepcionalmente irritantes, e o estalido dos chicotes soam constantemente contra a muralha de ar úmido. Os escravos, entretanto, suando profusamente, mostravam-se apáticos. De súbito, com uma blasfêmia impaciente, Diodoro deixara a mesa das docas onde Enéias ia meticulosamente registrando os fardos e as barricas, e agarrara pessoalmente uma caixa das maiores sobre os ombros, com tanta facilidade como se tratasse de um cordeirinho. Caminhara pelo pranchão do navio e atirara a caixa, com precisão rápida, sobre as outras. Depois, ficara ali, de pé, sorrindo de contentamento.

Os oficiais estavam boquiabertos. Enéias, diplomaticamente, olhava para o outro lado. Os soldados tinham os olhos fixos, e capatazes e escravos pareciam petrificados. Mas Diodoro flexionara os músculos, respirara profundamente, e dissera:

- Oh! Como isto faz bem à alma de um homem!

Enéias, o grego, partilhava com todos os gregos o desdém e a aversão ao trabalho manual, e sentia-se escandalizado até o coração. E ele e os outros ficaram ainda mais escandalizados quando ouviram Diodoro gritar aos escravos:

- Vocês são homens ou vermes doentes? Isto tem de ser carregado antes que o sol se ponha. Quando não, terão de trabalhar à noite, à luz de tochas. Vamos, tratemos de nos mexer como homens que têm um propósito, e acabar com isto! - De novo curvara-se, agarrara uma barrica e rolara-a pelo pranchão. E seus músculos avultavam nos ombros, pernas e braços. Era evidente que se estava divertindo. Os escravos, estimulados pelos chicotes, voltaram correndo ao trabalho e, inspirados por Diodoro, apressaram seus movimentos. Ele começou a cantar, com voz rouca, num ritmo embalador, e os escravos riram-se e cantaram com ele. Muito antes do pôr-do-sol, o navio estava carregado. Nem um só oficial ajudara, nem mesmo um soldado raso da infantaria, pois Diodoro indicara, com um olhar desdenhoso, que repudiava sua assistência.

Diodoro, então, ficou de pé entre seus oficiais, limpando o suor com o lenço que um deles lhe ofereceu e sorrindo amplamente a contemplar o navio. O comandante aproximou-se dele, com respeitoso temor, e Diodoro gritou:

- Dize àqueles homens-damas impotentes de Roma que Diodoro Cirino, filho de Prisco, ajudou pessoalmente a carregar este navio! Dize-lhes, enquanto eles se perfumam com nardo e óleo de rosas, e ouvem alaúdes, e mergulham línguas de rouxinol no mel, que viste hoje um romano trabalhar como os romanos outrora trabalharam, e que eles devem trabalhar de novo, se quiserem que Roma sobreviva e não morra para sempre entre vasos, flores, jovens cantoras, vinhos e elegâncias.

Depois, voltara-se para seus oficiais que coravam de vergonha por ele -, blasfemara em voz alta e gritara, novamente.

- Onde estão vossas cicatrizes, vossos músculos, vossos ombros morenos, ó pelintras? Sabeis o que é a guerra, o trabalho, o que é a força dos corpos que vivem sobriamente e com resolução? Para o Hades[9] convosco! Todos! Por Mercúrio[10], sois menos homens do que estes pobres escravos!

Aquilo fora imperdoável. Os escravos tinham sufocado o riso entre eles, e os rostos dos oficiais romanos ensombraram-se ominosamente. Não ousaram responder, entretanto. Diodoro era bem capaz de esbofetear abertamente um rosto atrevido; fizera isso muitas vezes, mesmo diante de soldados rasos e escravos.

Infelizmente, o tribuno não havia terminado. Correra os olhos, colérico, pelos seus homens, continuando:

- Cincinato deixou seu arado para salvar Roma e não se deteve sequer para lavar as mãos manchadas ou calçar sandálias nos pés sujos de terra. Nenhum de vós, porém, deixaria os braços de uma prostituta síria para salvar a vida de um homem, ou para manter, em vossa jurisdição, a lei de Roma.

Afastara-se deles, num repelão, e caminhara pesadamente pelas docas, até seu cavalo, pondo-se a galope a caminho de sua casa do subúrbio. Deixara sua biga, que um oficial teria de levar para as suas cavalariças, e Enéias seguiu nela com o oficial. Uma vez em casa, Enéias contara todo o horrível episódio a Íris, que o escutara em silêncio. Esperava ver a esposa horrorizada, mas ouviu sua voz meiga, com seu sorriso adorável:

- O nobre tribuno foi, outrora, meu companheiro de folguedos, na casa de Prisco. Sempre foi um rapaz ativo e às vezes carregava-me às costas, dizendo ser Júpiter em seu disfarce de touro, e eu Europa.[11]

Observando a expressão horrorizada do marido, por um instante, acrescentara, docemente:

- Ah! Éramos crianças nesse tempo, meu querido.

Havia ocasiões em que Enéias não podia entender Íris. Disse então, pomposamente:

- Vejo que não percebes a maior implicação do incrível episódio de hoje. Diodoro está constantemente falando de disciplina, entretanto ridiculariza publicamente seus oficiais, diante de seus homens e dos escravos. Isso engrandece a sua autoridade?

Íris compreendia que a cólera de Diodoro não fora lançada tanto sobre os homens que ali estavam em derredor quanto sobre os modernos costumes e a corrupção de Roma, que ele não podia suportar. Esse tinha sido o fato que precipitara e aliviara a raiva crônica e sufocada do tribuno. Suspirou e disse ao marido:

- Tenho certeza de que ele nunca mais fará isso.

Severo, Enéias replicou:

- Ninguém pode ter certeza quando se trata de um homem caprichoso. Confesso que nunca o entendi.

A furiosa exaltação de Diodoro durara através da refeição noturna. Contara tudo a Aurélia, e ela fizera um gesto de assentimento, como esposa sensata, embora O assunto estivesse inteiramente fora de sua compreensão. Deixou que se seguisse uma pequena pausa, e depois disse, ansiosa, como se seu marido de nada lhe tivesse falado:

- A pequena Rúbria está de novo cuspindo sangue e queixa-se de dores nos braços e pernas. O médico receitou fumigações na garganta e nas juntas, e ela está dormindo, finalmente, embora tenha o rosto ainda enrubescido. Que tristeza ver uma criança sofrer, uma criança que nunca foi saudável, e quanto mais triste é, meu querido esposo, eu te ter dado apenas aquele cordeirinho frágil e não filhos fortes.

Diodoro esqueceu imediatamente sua cólera, tomou a esposa nos braços e beijou-a. Ela não se revoltou contra o odor acentuado de seu suor, antes encontrou conforto nele. Passou-lhe os braços em torno do pescoço e disse:

- Mas tenho só vinte e cinco anos e ainda pode ser que os deuses nos concedam filhos. Preciso ir a Antioquia muito em breve e fazer um sacrifício especial a Juno[12].

A criança, Rúbria, era o coração do coração de Diodoro, embora ele acreditasse ser o único a saber disso. Sem ruído, subiu a escadaria de pedra branca que levava ao apartamento dela e, silenciosamente, afastou para um lado os pesados reposteiros de seda escarlate. A menina estava deitada em sua cama, na frescura do início da noite. Dormia, com a ama vigilante a seu lado. A janela pequena era um quadrado carmesim, e sombras arroxeadas suspendiam-se pelos cantos do aposento. Seria um reflexo do pôr-do-sol que avermelhava assim o rostinho dela ou seria aquela febre sinistra e desconhecida? Diodoro curvou-se sobre a filha, e seu indômito coração fremiu diante de tanta fragilidade. Longos e espessos cílios pretos palpitavam, inquietos, sobre o rosto fino e brilhante: a bonita boca infantil queimava. Tão doce e tão querida criatura, cheia de risos e alegria, mesmo quando estava sofrendo, uma pombinha tão terna! A mão nodosa de Diodoro tocou a massa negra de cabelo que se espalhava pela brancura do travesseiro, e ele suplicou, desesperadamente, a ajuda de Esculápio[13].

- Suplico-te, Mestre Médico, filho de mandes a esta criança, nas asas da compaixão, pois ela me é mais preciosa do que a minha vida, e que tua filha, cuida dela com ternura. Mercúrio, apressa-te a vir ter com ela, pois não é ela igual a ti, rápida como o fogo, veloz como o vento, mutável como uma opala?

Prometeu sacrificar um galo a Esculápio, que preferia aquele sacrifício, e um par de bois brancos a Mercúrio, com argolas de ouro nos focinhos. O terror apoderou-se dele quando tocou o cabelo de Rúbria e viu o tremor das mãozinhas sobre o lençol. Sem dúvida, honrara os deuses por toda a sua vida, e eles não iriam tirar-lhe a vida de seu coração. "Jamais temi espada ou lança, homem ou coisa, contudo o medo me torna fraco, hoje", disse ele, consigo mesmo. "Não que esta doença seja qualquer coisa de novo, mas minha alma estremece, como que sob um pressentimento."

Renovou suas preces e acrescentou uma a Juno, a mãe das crianças. Para eles, os deuses de Roma jamais tinham sido depravados mesmo Júpiter, apesar de todas as suas propensões referentes às donzelas.

Ficou a cogitar se devia pedir a Marte[14], sua deidade especial, padroeiro dos soldados. Resolveu o contrário: Marte não entenderia um soldado que considerasse uma criança mais preciosa e importante do que uma guerra. Tal prece que lhe fosse enviada poderia provocar-lhe a cólera. Diodoro rapidamente tornou a implorar a Mercúrio, com suas sandálias aladas e seu bastão de serpentes.

Quando tornou a se reunir a Aurélia, encontrou-a na antecâmara do próprio quarto, fiando diligentemente lã fina para tecê-la e do tecido fazer um capitium[15] para sua filha. Era a perfeita encarnação de uma matrona da velha Roma, ali sentada, o pé movendo-se ritmicamente sobre o pedal, a mão na roda, o cabelo preto severamente trançado em torno da cabeça, o rosto rosado sério e absorto. Suas vestes brancas flutuavam em torno do corpo cheio, tombando em pregas modestas, e tinha os braços voluptuosos cobertos a meio pelas mangas. Para Diodoro, aquela era uma figura tranqüilizadora. Em vez de choramingar futilmente pela sua filha, fiava um bom agasalho para ela. Diodoro tocou-lhe afetuosamente a cabeça com a mão e depois com os lábios. O pé ativo e a mão que se movia não pararam, mas Aurélia sorriu:

- Por que não vais andar pelo jardim, ao pôr-do-sol, meu bem-amado? Ficarás confortado ali, como sempre. - A voz dela era firme e calma.

Diodoro pensou em seus livros. Recebera naquele dia, por um mensageiro especial, um rolo contendo a filosofia de Filo[16] que, dizia-se, era considerado superior a Aristóteles[17]. Nisso Diodoro não acreditava, mas sentia-se ao mesmo tempo excitado e curioso. De súbito, porém, veio-lhe um peso de languidez ao coração, e resolveu fazer o que a esposa lhe sugerira. O livro podia esperar; sentia-se inquieto demais para dar-lhe a sua integral e considerada atenção.

Saiu para o pátio. Um vermelhão escuro fluía através das frondes das palmeiras e o perfume do jasmim subia em nuvens para a atmosfera tépida. As laranjeiras e limoeiros ornamentais estavam envolvidos em frutos verdes e dourados. Insetos zumbiam, com o som de delgados arames, e subitamente um rouxinol cantou para o céu avermelhado.

As pedras brancas colocadas entre os carneiros de flores exóticas estavam mergulhadas em sombras cor de heliotrópio, e luz de um azul fosco enchia os arcos da colunata que rodeava o pátio. Uma fonte, sobre a qual se erguia um fauno de mármore, sussurrava docemente, misturando sua canção frágil à canção do rouxinol. As tonalidades púrpura e escarlate do poente luziam na bacia da fonte, a que peixes brilhantes e pequenos davam vida. Agora, as palmeiras farfalhavam sob o vento refrescante, vindo do mar distante, e através das frondes em movimento Diodoro pôde ver a brilhante radiosidade da estrela vespertina. Os troncos das árvores, plantadas ao longo das altas paredes do pátio, pareciam espectros acinzentados.

Não vinha ruído algum do maciço alto e quadrado que era a casa que ficara atrás de Diodoro; as colunas tremeluziam na meia-luz, como que feitas de algo insubstancial e não de mármore. Diodoro sentiu que o silêncio se fazia de repente opressivo: a voz do rouxinol não o seduzia como de costume. Era uma voz que não trazia consolo em si, apenas melancolia, e a fonte murmurava sobre tristezas que não eram humanas. Diodoro, de novo assaltado pela solidão, pensou em Antioquia e nas comemorações que ali se iniciavam em louvor de Saturno. Terminariam em deboche geral, como de costume, mas pelo menos ali haveria ruídos de homens e mulheres. Pensou em cavalgar de volta a Antioquia e convocar alguns de seus oficiais que lhe eram menos repulsivos. Sabia, porém, que não poderia suportá-los: eles quereriam participar da tumultuosa alegria e sua presença só iria inibi-los. Se ao menos tivesse um companheiro, pensava o solitário tribuno.

Se ao menos houvesse apenas um com quem eu pudesse falar, para afogar em mim a voz do medo, um que comigo partilhasse uma taça de vinho e discutisse as coisas que para mim são importantes. Um filósofo, talvez, ou um poeta, ou apenas um homem sensato.

Ouviu um movimento levíssimo, quase um sopro, e voltou-se de novo para a fonte. O sol poente brilhou por um momento acima das copas farfalhantes das palmeiras e veio cintilar sobre a cabeça loura de um menino que se reclinava contra a bacia de mármore da fonte, em completo encantamento, inconsciente da presença de Diodoro.

Caminhando silenciosamente, Diodoro avançou para junto da criança, que se sentara no áspero gramado verde e erguia os olhos para as janelas de Rúbria. Quando chegou ao lado oposto da ampla e rasa bacia, Diodoro pensou: "Ora essa, este é o jovem Lucano, filho do meu liberto Enéias." Seu coração palpitou com uma nostalgia ignota, e ele pensou em Íris, sua antiga companheira de folguedos, Íris com seu cabelo áureo, seus maravilhosos olhos azuis, sua macia carne branca, seu rosto cheio que fazia covinhas, e seu fino nariz grego. Ouviu, como se viesse de corredores compridos e ensombrados, o som de seu riso de criança, o tom interrogador da sua voz ao chamá-lo. Íris, para ele, não existira nem mesmo como companheira de brinquedos que se recorda, depois de seu casamento com aquela empertigada e precisa mediocridade de um Enéias. Agora, porém, recordava-se que quando ele estivera fora, em suas campanhas, antes da morte de seus pais, Íris tinha brilhado como estrela em sua mente, doce, sensata Íris, a jovem escrava de sua mãe, a criada de quarto mimada, que para ela fora como uma filha.

Ele, um tribuno, jovem e ambicioso, atlético, de família impecável, chegara mesmo a sonhar em casar-se com Íris. Seus pais, acreditava ele, apesar do afeto que nutriam por ela, teriam morrido de humilhação se seu filho tivesse descido a uma escrava, se ela tivesse dito: "Onde estiveres tu, Caio, estarei eu, Caia." Ainda assim, ao saber da morte deles, enquanto ainda estagiava em Jerusalém, seu primeiro pensamento, depois da angústia da primeira dor, tinha sido para Íris.

Voltara a encontrá-la não só liberta, mas casada e grávida, e afastara-a severamente de seus pensamentos. Com certeza, então, sua solidão tivera início, e ele a tomara como um desejo de voltar à sua vida ativa no Oriente.

Todo o pátio encheu-se de doces sombras esverdeadas, nas quais a cabeça recostada de Lucano era como a lua cheia amarela. Diodoro, que podia ver-lhe apenas o perfil delicado, pensou: É a face do filho de Íris. Jamais se sentira interessado pelas crianças, a não ser pela filha Rúbria e, embora desejasse filhos, pensava neles como em jovens soldados, como seus herdeiros. Agora fixava os olhos em Lucano, forçando-os através da meia-luz colorida, e de novo seu coração estremeceu e encheu-se de ternura.

Lucano estava sentado em silêncio, imóvel, ainda contemplando o quadrado, que se apagava, da janela de Rúbria. Usava leve túnica branca, suas pernas longas eram tão pálidas que se assemelhavam ao alabastro e dobravam-se sob seu corpo. Em suas mãos havia uma pedra grande, de feitio e colorido pouco comuns, que à luz nublada inquietava. Toda a atitude de Lucano era de arrebatamento religioso, e ainda assim ele estava absolutamente imóvel. Seus lábios rosados entreabriam-se e seus olhos mostravam-se repletos de estranha tonalidade azul. Era como se ele estivesse ouvindo algo, e Diodoro, supersticioso como todos os romanos, observava-o com uma espécie de medo, nervoso, a pele arrepiando-se.

Falou, de repente, em voz alta:

- És tu, Lucano?

O menino não se sobressaltou. Moveu-se um pouquinho, apenas, e voltou para Diodoro seu rosto extasiado. Não saltou sobre os pés, apenas ficou ali sentado, a pedra nas mãos. Era como se não estivesse de forma alguma vendo o tribuno.

Diodoro ia falar de novo, mais asperamente, quando o menino sorriu e pareceu vê-lo pela primeira vez.

- Eu estava rezando por Rúbria disse, e a voz era a da jovem Íris.

Diodoro deu a volta à fonte, hesitou, depois acocorou-se e olhou com firmeza para o menino, diante dele sentado, em tão absoluto repouso de músculos e em tão absorto enlevo. O tribuno despira suas pesadas vestes militares quando voltara para casa. Usava agora uma túnica branca, solta, com um cinturão de couro simples, que trazia incrustações de prata. Sob aquele material ligeiro, seu corpo moreno era robusto e rijo, e suas pernas espessas mostravam músculos salientes. Cruzou os braços fortes em torno dos joelhos e contemplou Lucano, que lhe sorria com serenidade simples.

Lucano não se mostrava nem atemorizado nem tomado de respeito pelo soldado. Olhava o altivo rosto moreno, agudo e severo, tão tranqüilamente como teria olhado para seu pai. Aquele queixo áspero e saliente não o alarmava, como não o alarmavam os olhos negros e penetrantes, acomodados sob sobrancelhas escuras e fartas. Diodoro, porém, confrontado com a verdadeira imagem da criança que outrora conhecera, sentiu-se consciente de sua própria cabeça redonda, coberta de cabelo preto e rígido, tosquiado e sem brilho, e da força bruta de seu corpo disciplinado.

O menino nada tinha a fazer naquele pátio, pensou, automaticamente. E então ficou envergonhado, recordando-se de Íris. Mas que dissera ele? "Eu estava rezando por Rúbria." As duas crianças eram companheiras de brinquedos, tal como ele e Íris o foram.

Diodoro abrandou sua voz rascante.

- Estás rezando por Rúbria, menino? Ah! Ela bem precisa de tuas preces, a pobrezinha.

- Sim, senhor respondeu Lucano, seriamente.

- A que deus estás rezando? Perguntou Diodoro. Com certeza, pensou ele, os deuses ficam especialmente enternecidos com as orações dos inocentes. E um pouco de sua dor foi aliviada.

Lucano disse:

- Ao Deus Desconhecido.

Os olhos escuros de Diodoro faiscaram, surpreendidos. Lucano continuou:

- Meu pai ensinou-me que Ele está em toda parte e em todas as coisas. - Estendeu para Diodoro a pedra que tinha nas mãos, e disse simplesmente: - Encontrei isto hoje. É muito bonita. Achas que Ele está aqui, e que me ouve?

 

Diodoro tomou a pedra nas mãos, ainda acocorado. Mal podia vê-la agora, pois a escuridão se acentuara, mas sentiu que era quente. Volveu-a nos dedos e a pedra cintilou de uma forma curiosa, apagadamente, em muitas cores que refletiram as últimas luzes.

Estava quente, provavelmente por ter ficado muito tempo nas mãos do menino. Mas o calor não diminuía, embora o ar estivesse esfriando rapidamente. Ao contrário, crescia de intensidade. O supersticioso Diodoro quis deixar cair a pedra, mas seria um gesto embaraçoso diante da criança.

- Achas, senhor, que Ele está aí, e que Ele me ouve? Repetiu Lucano. Tinha uma voz clara e firme, sem servilismo, a voz de um patrício pelo nascimento.

- Quem? Perguntou Diodoro. De novo volveu a pedra nos dedos, firmando os olhos nela.

- O Deus Desconhecido respondeu Lucano, pacientemente.

Diodoro sabia tudo sobre o Deus Desconhecido. Outrora, num templo grego, tinha-Lhe feito sacrifícios, embora os gregos acreditassem que Ele não desejava sacrifícios. Quem era aquele Deus que não tinha nome? Quais eram os Seus atributos? De que homens era Ele o padroeiro? Não havia imagens Dele em parte alguma. Poderia ser o Rei dos Judeus, do qual Diodoro tanto ouvira falar em Jerusalém? Mas soubera que eles, os judeus, sacrificavam-Lhe pombas e cordeiros, em um festival a que chamavam Páscoa, na temporada da primavera. Os judeus chamavam-No Senhor, e pareciam conhecê-Lo muito bem. Com os olhos da mente, Diodoro podia ver o grande templo de mármore pálido e dourado, que se erguia contra o céu azul-pavão de Jerusalém. Lucano era grego, não judeu. Seria possível que os gregos tivessem ouvido falar no Deus judeu e, não sabendo o Seu nome, chamassem-No o Desconhecido.

Diodoro sacudiu a cabeça. Uma grande lua, como uma vasilha repleta de fogo macio, ia, agora, erguendo-se por trás das palmeiras. Encheu o pátio com uma torrente de raios cambiantes, e as sombras das palmeiras tombaram, bem recortadas, sobre as pedras brancas e as Paredes alvas da casa, insinuaram-se pela colunata, que começara a reluzir como se as colunas fossem feitas de mármore amarelo. O perfume do jasmim ergueu-se em ondas em torno do homem e do menino, e grilos cricrilaram na relva e entre as flores destituídas de seu colorido. Algures, fora do alcance da visão, um animal de carapaça passou raspando pelas pedras.

Diodoro recordou-se do nome que ouvira de um principezinho judeu: Adonai[18]. E disse a Lucano:

- Seu nome é Adonai?

- Ele não tem nome que os homens conheçam, senhor - replicou o menino.

- Seja como for, creio lembrar-me de que esse nome significa "Senhor" disse Diodoro, abstraidamente. - É o Deus dos judeus.

- Mas o Deus Desconhecido é o Deus de todos os homens - falou Lucano, animadamente. - Ele não é Deus apenas dos judeus, mas dos romanos e dos gregos, dos pagãos, dos escravos, dos césares e dos homens selvagens das florestas e das terras ainda desconhecidas.

- Como sabes disso, criança? Indagou Diodoro, com um ligeiro sorriso.

- Eu sei. Eu sei no meu coração. Ninguém me disse falou Lucano, com simplicidade.

Diodoro ficou estranhamente comovido. Recordou-se de que os deuses dão às crianças, de preferência, a sua sabedoria, pois elas não têm as mentes deformadas e torcidas pela vida.

         - Um dia disse Lucano eu O encontrarei.

- Onde? Perguntou Diodoro, tentando ser indulgente.

Mas Lucano erguera o rosto para o céu e seu perfil ficou banhado pela luz dourada do luar.

- Não sei onde, mas eu O encontrarei. Ouvirei a Sua voz, e O conhecerei. Ele está em toda parte, mas eu hei de conhecê-Lo em particular; e Ele falará comigo, não só na lua e no sol, nas florestas e nas pedras, nos pássaros e no vento, nas auroras e nos poentes. Eu O servirei, e darei a Ele meu coração e minha vida.

Havia júbilo na voz do menino e de novo Diodoro sentiu um frêmito de superstição.

- E rezastes para Ele pedindo por Rúbria? Perguntou.

Lucano voltou o rosto para o homem e sorriu:

- Sim, senhor.

- Mas que nome Lhe dás, menino, quando rezas?

Lucano hesitou. Olhou firme para Diodoro, como que em súplica.

- Chamo-O Pai respondeu, em voz baixa.

Diodoro estava estupefato, apanhado que fora de surpresa. Ninguém chamara jamais Pai a qualquer dos deuses. Aquilo era ridículo. Seria afrontar os deuses, dirigir-se-lhe o homem insignificante de maneira tão familiar. Se aquele menino falava assim ao Deus Desconhecido, quem sabia se, em Sua cólera divina, Ele não golpearia o objeto de tais preces? Rúbria!

Diodoro disse, severamente:

- Homem algum, nem mesmo os filhos dos deuses, jamais ousaram chamar Pai a um deus. É ultrajante. E verdade que muitos deuses têm filhos e filhas através de homens e mulheres mortais, mas mesmo assim...

- Senhor, tu falas colericamente disse Lucano, não com voz de medo ou servilismo, mas com a voz arrependida de quem ofendeu sem o desejar e pede perdão. - O Deus Desconhecido não se zanga quando um de Seus filhos chama-O Pai. Ele fica satisfeito.

- Mas como sabes isso, menino?

- Eu sei em meu coração. E assim, quando eu O chamo Pai e peço-Lhe que cure Rúbria, sei que Ele ouve delicadamente e vai curá-la, porque Ele a ama.

Um deus delicado. Isso era absurdo. Os deuses não eram delicados. Tinham zelo de sua honra, eram vingativos, distantes e poderosos. Diodoro fixou os olhos em Lucano, tomando uma nota mental no sentido de dizer a Enéias que castigasse seu presunçoso filho. As palavras de fria censura já estavam em seus lábios quando a lua iluminou em cheio o rosto de Lucano, que se tornou soberbamente radioso.

Diodoro, então, lembrou-se do que aquele menino dissera: "Ele a ama." Os deuses não "amam" os homens. Pedem adoração e sacrifícios aos homens, mas o homem, como tal, é uma coisa sem valor para os deuses.

"Ele a ama." Poderia o Deus Desconhecido ter como um de Seus atributos a qualidade de amar os homens? Oh! Que absurdo! Que presunção! E que estava fazendo ele, Diodoro, ali, ao luar, conversando com uma criança, com o filho de um infeliz liberto como um homem da nobreza pode conversar com seu igual?

Diodoro levantou-se bruscamente, num forte e flexível movimento.

- Vamos, menino, é tarde, eu te levarei para junto de teus pais.

Ficou espantado com suas próprias palavras. Que lhe significava aquela criança, o filho de Enéias? Que importava se ele encontrasse ou não o seu caminho, ou, errasse pela escuridão até o amanhecer? Mas aquele era o filho de Íris, e imediatamente Diodoro desejou ver sua antiga companheira de brinquedos. Havia também perigo na distância embalsamada, mas ameaçadora, que corria entre a casa-grande e as menores.

Lucano levantou-se e, ao luar, Diodoro viu que o menino sorria timidamente.

- Senhor, quererás levar esta pedra para Rúbria e colocá-la junto do travesseiro dela, esta noite, pois que parte do Deus Desconhecido está nela?

A pedra, a pedra dotada de sentidos. Pulsava ela realmente em sua mão, pensou Diodoro, como lento e meditativo coração, cheio de mistério? De repente, ele sentiu que já não tinha medo da pedra. Disse consigo mesmo, com certo acanhamento: É uma coisa bonita e nada comum, e pode divertir a pequena Rúbria, que gosta de coisas estranhas. Colocou a pedra na bolsa que pendia de seu cinturão de couro.

Mas Lucano lhe estava oferecendo uma pequena sacola. Diodoro tomou-a. Dela emanava selvagem e intenso odor.

- São ervas disse Lucano. - Eu as apanhei hoje nos campos, como se assim me tivessem indicado. Senhor, manda um escravo as pôr de infusão em vinho quente, e faze Rúbria beber a mistura, pois sua dor passará.

- Ervas! Exclamou Diodoro. - Criança, como podes saber se algumas delas não são venenosas?

- Não são venenosas, senhor. Para ter certeza, entretanto, eu próprio comi uma porção, há algumas horas, e a dor de cabeça que estava sentindo desapareceu.

Diodoro estava intrigado. Levou a mão rude ao queixo de Lucano e ergueu-lhe a cabeça, a fim de estudar-lhe o rosto, meio a rir. O menino, porém, falara com autoridade. Dissera: "como se assim me tivessem indicado". Era possível que o próprio Apolo, que poderia possuir um rosto assim, uma testa assim, límpida, tivesse instruído o menino diretamente. Não podia haver mal algum em fazer o que Lucano lhe sugeria e Diodoro meteu a sacola em sua bolsa.

- Ela beberá a mistura à meia-noite, hora em que habitualmente acorda prometeu.

Tomou a mão de Lucano na sua, como faz um pai, e juntos caminharam através da meia-luz dourada, mantendo-se cuidadosamente no caminho de terra, receosos das cobras. Diodoro pensava: Este não é um menino comum, mas um menino inteligente, desassombrado e pensador. Não há dúvida que está sendo preparado por Enéias para seguir-lhe os passos como guarda-livros. De certa forma aquilo contrariava Diodoro.

- És muito jovem, menino disse ele -, mas com certeza pensas freqüentemente em ti próprio como adulto. Quais são os teus projetos?

- Encontrar o Deus Desconhecido, senhor, e servi-Lo - respondeu Lucano. - Posso servir melhor o homem como médico, que é o meu caro desejo. Estive no porto e vi os homens doentes nos navios, e os moribundos que vêm de toda parte do mundo. Rezei para poder ajudá-los. Conheço os filósofos e médicos da Grécia, e seus livros de remédios para os males dos homens, tanto mentais como físicos, muitos dos quais eles receberam dos egípcios. E visitei muitas vezes as casas dos médicos de Antioquia, e eles não me expulsaram, antes agradaram-me e explicaram-me muitas coisas. Estou aprendendo outras línguas, inclusive o egípcio e o aramaico, de forma a poder conversar com os sofredores em suas próprias línguas.

Diodoro sentia-se vastamente espantado. Apertou a mão de Lucano e disse, pensativamente.

- Há uma grande escola de medicina em Alexandria, da qual ouvi falar muito.

- Irei para lá falou Lucano, simplesmente. - Também eu, senhor, ouvi falar dela, pois os médicos de Antioquia referem-se àquela escola com reverência. Vai custar-me muito dinheiro, mas Deus proverá.

- Com que então temos um Deus que não só deixa de possuir um nome ou atributos compreensíveis, ou rosto, ou forma, que está em toda parte simultaneamente, mas é também banqueiro! Disse Diodoro, com um sorriso esquisito. - Achas que ele exigirá juros também, meu filho?

- Com toda a certeza respondeu o menino, com voz grave e cheia de segurança. - Toda a minha vida, toda a minha devoção.

Diodoro pensou que se um homem lhe falasse assim ele o acreditaria louco. Ele, Diodoro, ouvira muitas vezes os judeus falando dos homens sábios, nos portões, que nada pensavam e nada falavam a não ser em seu Deus. Mas os judeus eram um povo que ninguém poderia compreender nunca, e ainda menos do que todo um romano, embora César Augusto, sendo homem tolerante e, além disso, supersticioso, tivesse ordenado que em Roma o Deus dos judeus recebesse alguma recognição, quando mais não fosse, para persuadi-Lo e amolecer os pescoços duros e o sombrio ressentimento de Seu povo contra os romanos, e assim tornar menos difícil o governá-los. Diodoro começou a rir consigo mesmo, docemente. Lembrava-se de que, como jovem tribuno, oferecera-se para colocar uma estátua do Deus judeu no templo romano de Jerusalém, e quanto o grão-sacerdote ficara horrorizado e como erguera as mãos, sacudindo-as violentamente no ar, como se implorasse a seu Deus que fulminasse o tribuno de morte, ou o amaldiçoasse silenciosamente. Diodoro, estupefato, percebera que incorrera em um erro imperdoável, mas como e por quê, jamais pudera compreender, deduzindo das abafadas imprecações do sacerdote. Tentara argumentar com o santo homem: como era possível que uma estátua do Deus judeu num templo romano O ofendesse, e por que desprezaria ela a honraria do romano? O grão-sacerdote apenas arrancara a barba e rasgara as vestes, olhando para Diodoro com olhos tão terríveis que o pobre jovem tribuno despedira-se rapidamente. Aquilo confirmara sua crença hesitante de que os judeus eram loucos, especialmente seus sacerdotes.

Lucano, porém, era grego, não judeu, embora falasse em devotar sua vida ao Deus Desconhecido do mesmo modo que os judeus falavam em devotar as suas ao seu próprio Deus. Diodoro recordava-se como nas ruas de Jerusalém vira homens chamados rabis, seguidos de multidões humildes, que ouviam com ansiedade as suas palavras de sabedoria. Havia alguns com fama de milagreiros, e aquilo interessara Diodoro, que acreditava fervorosamente em milagres divinos. Mas não acreditou naqueles homens, porque quase sempre andavam descalços, andrajosos e eram desesperadamente pobres, apesar de seus olhos fulgurantes e de suas palavras estranhas e incompreensíveis. Andando em direção a Lucano, ele balançou a cabeça.

- Devias visitar o templo dos judeus em Antioquia disse divertido.

- Eu o visito, senhor respondeu, serenamente, Lucano.

- Sim! Exclamou Diodoro, afastando um galho de arbusto espinhoso do menino, como teria feito com sua filha. - E o Deus deles é o Deus Desconhecido?

- Sim, senhor, estou certo de que é.

- Mas Ele não ama todos os homens. Ama apenas os judeus.

- Ele ama todos os homens disse Lucano.

- Estás enganado, rapaz. Ofereci-me para colocar uma estátua Dele no templo romano de Jerusalém, e a estátua foi recusada. - Diodoro riu e continuou: - Os judeus não fazem objeção a que entres em seu templo? Ah! Agora recordo. Em Jerusalém o templo tinha um lugar chamado o Pátio dos Gentios. Mas eles não podiam entrar no santuário interno dos judeus.

- Eu presto culto no Pátio dos Gentios, na sinagoga de Antioquia - disse Lucano.

Que menino estranho! Mas Diodoro começava a pensar na escola de medicina de Alexandria. E disse:

- Penso que o Deus Desconhecido arranjou uma forma de poderes estudar medicina, Lucano.

E riu de novo, penosamente. Era homem justo, às vezes caridoso, mas, tal como os antigos romanos, prudente no que se referia a dinheiro, acreditando que duas moedas de ouro deviam voltar para um homem acompanhadas de duas outras.

Tinham agora alcançado uma clareira diante dos jardins da casa de Enéias. Altas palmeiras estendiam-se contra a lua, e o ar da noite estava cheio dos perfumes das flores. No meio delas levantava-se, brilhante, a casa branca do guarda-livros, pequena, baixa e compacta, marcada com as sombras das palmeiras. Uma luz fulgurava, vinda da porta aberta, e quando Diodoro e Lucano se aproximaram dela o portal recortou a figura bem modelada de uma jovem mulher, cujos cabelos soltos se tornaram uma nuvem dourada contra o resplendor de luz que vinha por trás dela. Estava vestida com o traje branco, simples, da mulher que passa seu tempo em casa, e chamou ansiosa:

- Lucano? És tu, querido?

- Sou eu, mãe respondeu Lucano.

Íris desceu para o relvado, depois parou, vendo quem estava acompanhando seu filho.

Meus cumprimentos, Íris, disse Diodoro, a voz grossa e baixa em sua garganta. Pensava nas palavras de Homero: "Filha dos deuses, divinamente alta e divinamente loura."

- Meus cumprimentos, nobre Diodoro respondeu Íris, hesitante. Ele se dirigira a ela com a delicadeza com que um homem se dirige à esposa de um de seus pares, e ainda assim a delicadeza chegou-lhe ansiosamente, com uma tonalidade de esperança. Por uma razão qualquer os olhos de Íris arderam com as lágrimas e ela recordou o companheiro de brinquedos de sua infância. Fora um rapaz cândido e corajoso, tão verdadeiro e bom, tão honrado, tão cheio de afeição por ela. A moça não o vira, a não ser de longe, desde muito tempo e, a partir do momento em que se casara com Enéias, ele mal tomara conhecimento de sua existência.

Enéias apareceu no limiar da porta, e depois desceu os degraus. Vendo Diodoro, inclinou-se:

- Bem-vindo sejas ao nosso pobre lar, senhor disse ele, com a voz trêmula de um homem que se sente dominado.

- Isto não é uma casa "pobre" falou Diodoro, irascivelmente. - Era a casa do antigo legado de Antioquia, antes que a minha casa fosse construída, e ele não a considerava sem valor.

Empurrou Lucano em direção de seu pai, e disse em voz áspera:

- Trouxe teu menino para casa. Estava em nosso jardim e poderia ser mordido por uma cobra ou por um escorpião, depois que o sol desceu.

Enéias era todo confusão e abjeto medo. Ofendera Diodoro e a cólera dele voltava-se agora contra seu filho.

- Não te parece importante que tua mãe tenha estado aflita por tua causa, pronta para ir procurar-te pela escuridão? Não te parece importante teres afrontado o nobre tribuno.

- Ele não me afrontou interrompeu Diodoro. A luz que saía da porta vinha de esguelha sobre o rosto bonito e desconsolado de Íris. Diodoro desejava poder colocar no ombro dela a mão consoladora. - A pequena Rúbria é sua companheira de brinquedos. Encontrei-o no jardim rezando embaixo das janelas dela, pois a menina está doente. Tenho motivo para lhe ser grato. - Olhou para Íris e viu que ela começara a sorrir, em agradecido alivio. E falou ao trêmulo Enéias, lutando para manter um tom mais natural: - Um menino bem pouco comum, este teu, Enéias, e foi um privilégio conversar com ele. - Hesitou: - Tenho a garganta seca. Posso tomar um copo de vinho?

Enéias estava novamente estupefato. Mal podia acreditar em seus próprios ouvidos. Olhou para Lucano com respeito. Aquele era o filho do qual o tribuno falara! E era por causa daquele filho que o tribuno condescendera em pedir vinho na casa de seu liberto. Enéias sentia-se estonteado. Pôde apenas murmurar algo, e afastar-se para um lado, até Diodoro entrar em sua casa. Olhou rápida e estupidamente para Íris, mas ela passara o braço no pescoço do filho e o levava para a frente. Enéias seguiu-os, os joelhos trêmulos. O tribuno trouxera o menino para casa, quando lhe bastaria expulsá-lo de seus jardins ou, se estivesse bondosamente disposto, mandar um escravo com ele, pela escuridão!

Diodoro recuperara seu bom humor. Ficou de pé na pequena, mas de forma alguma humilde sala e examinou-a expansivamente. Sobre a mesa havia flores numa vasilha e espalhadas em vasos pelo soalho, que era de mármore. As portas que davam para as cozinhas e os quartos tinham cortinas de lã de alegres coloridos, drapejando à brisa da noite, que entrava pelas janelas pequenas e pela porta. Aqui e ali Diodoro reconheceu, entre o mobiliário deixado pelo antigo administrador, cadeiras e mesas, da casa de seu pai, dadas a Enéias quando de seu casamento com Íris. Diodoro olhou, em particular e com prazer, para uma cadeira. Era de ébano, marchetada de marfim, e fora uma das prediletas de seu pai. Havia uma pequena mesa de limoeiro precioso, reluzindo à luz da lâmpada, e que pertencera a Antônia. Sobre ela ficava a lâmpada de prata, com sua Língua brilhante de chama.

- O escravo que designei para ti faz bem o seu trabalho disse Diodoro, cada vez mais satisfeito. Sentou-se na cadeira de ébano e estendeu as pernas morenas e musculosas diante de si. Com toda a atitude natural de um soldado. E Enéias, de pé diante dele, incerto, formalmente vestido com comprido traje branco, ele, o guarda-livros, parecia mais o patrício, com suas feições finas, e face e cabeça estreitas, do que o franco tribuno sem-cerimônia metido em sua túnica ocasional, curta. Ora essa, pensou Diodoro, a pobre criatura até mesmo possui uma toga para usar no seio secreto da família.

- Não tenho vinho digno de vós, senhor disse Enéias.

Íris, porém, deslizou graciosamente para trás da cortina e trouxe uma bilha e duas taças de prata, que Diodoro também reconheceu como de sua infância. Movendo-se como adorável estátua animada, colocou os copos na mesa de limoeiro e serviu o vinho. A luz rosada refletiu em seu rosto, vindo do liquido, e Diodoro pensou numa donzela feita de mármore que a luz do poente banhasse. Desejava tocar seu cabelo miraculoso, que com tanta facilidade tocara na meninice. Podia sentir de novo seu sedoso comprimento, e todo ele era desejo. Pensou que sua mãe, Antônia, devia ter se oposto com mais vigor ao casamento de Íris com Enéias.

- Não sou especialista em vinhos, graças aos deuses disse Diodoro. - Para mim, uma vindima ou outra são o mesmo.

Estendeu a mão para a taça, e Íris deu-lha com seu sorriso inefável, pois Enéias ainda estava estonteado demais para ter movimentos voluntários.

- Que é isso, não vai beber comigo? Perguntou Diodoro em tom enfático.

Enéias agarrou a taça e algum vinho derramou-se sobre seus dedos trêmulos.

Lucano, obedecendo a um leve gesto materno, inclinou-se diante de Diodoro e, respeitosamente, desejou-lhe boa noite. O tribuno deu um sorriso grave e o menino deixou a sala. Diodoro fez uma pequena libação aos deuses, e Enéias, ainda muito pálido, também fez uma libação. O tribuno ficou a observar enquanto o grego derramava mais vinho, seus lábios movendo-se reverentemente.

- Ah! Sim, disse Diodoro. - O Deus Desconhecido.

- É um costume grego falou Enéias, como quem se desculpa.

- Excelente costume disse Diodoro, e seu rosto altivo tornou-se quase afável. Voltou a cabeça e viu que Íris acompanhara o filho. Sentiu-se profundamente desapontado, mas, como um "antigo" romano, aprovou isso também.

- Dize-me, Enéias falou -, estou interessado por esse teu filho. Quais são as tuas esperanças para o futuro dele?

- Posso sentar-me, nobre Diodoro? Perguntou Enéias. - Sentou-se rigidamente numa cadeira, a alguma distância de seu hóspede. Pensou nas palavras de Diodoro e tornou a ficar estupefato e submisso diante daquela condescendência. - Eu tinha pensado, senhor, que ele me seguiria a seu serviço.

- Tratar de livros e de registros, esse menino? Perguntou Diodoro, zombeteiramente.

- Ah! Não! Ele não te fez confidências com referência ao desejo que tem de ser médico?

Enéias, ainda mais pálido, apenas continuou olhando para o tribuno. Com certeza, o menino dissera aquilo a ele e Íris, mas Enéias repelira severamente o pensamento presunçoso, e sentira-se ofendido.

- Vejo que sim disse Diodoro, com um movimento afirmativo de cabeça. Bem, meu bom Enéias, então ele será um doutor. - Tornou a hesitar, melancolicamente: - Eu próprio o mandarei para a escola de medicina em Alexandria, quando tiver mais idade. Nesse meio tempo, ele tomará lições com o preceptor de Rúbria.

Lágrimas correram dos olhos de Enéias. Antes que Diodoro pudesse mover-se, ele saltara sobre seus pés e prostrara-se diante das sandálias empoeiradas do tribuno. Não conseguia falar, sequer, mas apenas murmurar estonteadamente sua gratidão e incredulidade.

- Vamos, vamos, homem disse-lhe Diodoro, que nunca tolerara que lhe agradecessem alguma coisa. - Não tenho filho meu, e esse é o rapaz que eu devia ter tido. Será médico. Levanta-te, Enéias. Não és escravo. E esqueceste que também tomaste tuas lições comigo?

Ele sabia exatamente quais eram as pretensões de Enéias, e como ele considerava seu senhor um bárbaro, e a si próprio um filósofo exilado de um país que jamais vira; e sabia que mentalidade pequena, embora honesta, aquele homem possuía. Jamais chegaria Enéias a esquecer que fora escravo? Diodoro olhava, escarnecedoramente, o homem vestido de branco que tinha a seus pés. Moveu-os, como que temeroso de que Enéias quisesse beijá-lo em seus extremos de maravilha e gratidão, e isso, vindo do marido de Íris, ser-lhe-ia insuportável.

Enéias sentou-se de novo em sua cadeira, enxugando as lágrimas.

O tribuno desviou os olhos para o lado, e seu olhar tombou sobre um rolo de papel. Viu que continha o tratado de Aristóteles sobre Democracia e Aristocracia. Sentiu-se imediatamente interessado. E disse:

- Entregaram-me hoje alguns dos livros de um filósofo, Filo. Há muita excitação em torno dele, e eu desejava compará-lo com Aristóteles.

Durante um momento a esperança acordou no tribuno solitário. Sabia, pelas rápidas conversas que antes mantivera com Enéias, que o liberto, embora pudesse citar com exatidão grandes trechos de Platão e Aristóteles, e em grego, era incapaz de qualquer compreensão sutil. Ainda assim, Diodoro fitou esperando.

- Filo? Murmurou Enéias, com voz fraca. Um esgar de desdém, totalmente involuntário, repuxou-lhe a boca. Então, temeroso de haver novamente ofendido Diodoro, apressou-se a dizer: - Deve ser um grande filósofo, com certeza.

Diodoro encolheu os ombros.

- Há gente demais em Roma a aclamá-lo. Se um homem pode ser julgado pelos inimigos que faz, também pode ser julgado pelos indivíduos que o louvam. Filo, ainda tão jovem, já recebeu honrarias demais, para que valha grande coisa. - Calou-se. Sob certos aspectos, César Augusto se parecia aos esquecidos "velhos" romanos, pois que se dizia ser ele um homem moral comparado aos que se aglomeravam em sua corte. Tentava respeitar o Senado, e se não podia respeitar os senadores, a culpa não era dele, continuou Diodoro, que o próprio César tem conversado muito com Filo. Bem, depressa saberei se Filo é merecedor de uma tal consideração.

Cruzou os braços curtos, mas sólidos, sobre o peito, e fixou os olhos em Enéias.

- Aristóteles... Prosseguiu, meditativo. - Gosto das suas definições. É filósofo superior a Platão, em vários aspectos, porque Platão, embora julgando-se um realista, ainda assim velava-se em misticismo. Embora ensinasse que o universal tem existência objetiva, envolvia-se em poesia apesar de toda a sua República, que, na minha opinião, é um trabalho etéreo. Que disse Aristóteles de Platão? "Amo Platão, mas amo ainda mais a verdade."

Enéias, para quem Platão era a própria essência da verdade revelada, apenas pestanejou. Lutava desesperadamente para seguir Diodoro, que não acreditava capaz de compreender absolutamente os filósofos gregos. Não conseguindo encontrar palavras, contentou-se em fazer solenes movimentos de afirmação com a cabeça.        Diodoro suspirou. Percebia que Enéias não o estava seguindo, mas, pelo menos, a pobre criatura possuía um remoto conhecimento das palavras dos filósofos. O tribuno tornou a estender o corpo em sua cadeira.

- Platão, embora herdasse de Sócrates, seu mestre, a maneira de definir termos, não tinha realmente consciência da sua verdadeira conotação, disse Diodoro, inflamando-se à proporção que desenvolvia o assunto. - Não tinha essa consciência, mas tudo quanto escreveu e disse foi subjetivo. Aristóteles é o verdadeiro pai da lógica.

O particular absoluto foi o único particular que ele reconheceu. Era completamente objetivo. - Meditou por um momento, as sobrancelhas carregadas, e depois continuou: - Platão foi um paradoxo: exigindo precisão, tropeçou, finalmente, no mar de suas generalidades. É interessante recordar que Aristóteles foi outrora um soldado, e um soldado sabe que há absolutos, tais como disciplina, honra, obediência, patriotismo e respeito pela autoridade.

- Evidentemente, há absolutos confirmou Enéias complacente.

- Em nome dos deuses, que viriam a ser esses "absolutos"?

Os olhos ferozes de Diodoro reluziram quase amavelmente, voltando-se para o seu liberto. Bocejou, bebeu até a última gota de seu vinho e recomeçou:

- Também é interessante recordar que Aristóteles pertenceu à fraternidade médica de Asclepíades[19]. Isso me leva de novo a Lucano. Penso que ele será um filósofo, além de médico. Não lhe negues o acesso aos teus preciosos manuscritos, Enéias.

Enéias esqueceu quem era por alguns momentos, e disse, com orgulho:

- Ele já tem esse acesso. Eu lhe dou lições, pessoalmente, senhor.

- Muito bem.

Diodoro esticou o corpo e levantou-se. Enéias saltou sobre os pés. Deus proteja o pequeno dos confusos ensinamentos de seu pai, pensava Diodoro. Despediu-se amavelmente de Enéias, depois fez seu solitário caminho de volta a casa, sob o luar que se tornava alvo e forte. Começou a pensar sombriamente em suas frustrações. O coração doeu-lhe e ele recordou Íris. Mesmo que desejasse comportar-se como os suínos imundos da moderna Roma, sabia que tal coisa estava além de suas possibilidades. Íris, antiga escrava, esposa de um liberto, não ousaria negar-se-lhe. Se ainda o recordasse com amor ele não poderia violar tal amor. Além disso, tratava-se de uma virtuosa matrona.

Olhara para ele, naquela noite, com olhos úmidos e sorrira-lhe como lhe seria impossível sorrir para o marido, sem dúvida. Diodoro pensava na criada de quarto de sua mãe com ternura reverente, o que era algo tão diferente de seu amor por Aurélia que ele não poderia acusar-se de licenciosidade mesmo em pensamento. Comparava Íris com Diana[20], a inviolada, a eternamente pura.

Olhou para a lua e, em sua profunda simplicidade, implorou à deusa que protegesse aquela grega que ele tinha amado e que ainda amava. Sentiu com aquilo algum conforto.

Não se lembrou do menino, de Lucano, até o momento em que entrou em casa e encontrou Aurélia tomada de ansiedade pouco comum nela. A pequena Rúbria havia acordado, e gemia de dor, chamando pelo pai.

 

Juntos, de mãos dadas, subiram a escadaria e entraram no quarto da menina. Duas lâmpadas ardiam num pequeno cômodo sobressalente, e aumentavam o calor que ali se estagnava. Diodoro sentiu-se abafado, quase sufocado, depois do frio ar noturno que encontrara lá fora.

Havia ali um estranho e desagradável odor. O tribuno olhou para a janelinha que ficava bem alto, na parede branca, sobre a qual sombras grotescas dançavam, pois que o médico escravo da casa, Keptah, e a ama, rondavam o leito. As cortinas de seda tinham sido corridas pesadamente sobre a janela, e Diodoro caminhou instantaneamente para elas, abrindo-as rudemente.

- Ufa! Exclamou ele. - Isto acaba asfixiando a menina! E de onde vem este mau cheiro que estou sentindo?

As faces rubicundas de Aurélia empalideceram. Como obediente matrona, raramente censurava o marido, muito menos na presença de escravos. Disse, apenas:

- Diodoro, o ar da noite é perigoso nesta época do ano. Eu mandei que fechassem a janela.

Mas Diodoro estava respirando profundamente a frescura do ar novo. Apanhou as cortinas e abanou-as, impelindo assim para o meio do quarto a brisa que entrava.

- Se a menina já não está asfixiada, isto a fará reviver disse.

Fez sinal à ama para que continuasse sacudindo as cortinas e ela, com os olhos dilatados de susto, tratou alvoroçadamente de obedecer. Diodoro aproximou-se da cama. Rúbria sorriu-lhe, lá de seu travesseiro. Mas um sorriso doloroso, e a menina sacudia a cabeça escura, inquieta, estendendo a mãozinha para o pai. Ele a tomou, fortemente, entre suas firmes palmas morenas, e embora seu coração alterasse o ritmo ao verificar aquele calor, disse, resolutamente: - O que é que há, minha filha? - Seus olhos perscrutavam o rostinho dela, notando-lhe os contornos definhados, os lábios quentes e secos. A febre estava consumindo aquela criatura, a mais querida entre todas. Sob sua carne enrubescida, o tom cinzento da morte se insinuava, como furtiva maré sob águas avermelhadas pelo sol. O terror torceu o coração de Diodoro, comprimindo suas aurículas e trazendo com aquilo uma angústia puramente física.

Keptah dizia, mansamente:

- Senhor, esfreguei um linimento nos membros da menina, gordura de abutre, misturada com vesícula biliar de abutre. Por isso o cheiro é tão irritante. Mas aprendi que este é o tratamento mais eficaz para juntas e tendões doloridos.

Diodoro ouviu a respiração lenta e difícil que vinha dos pulmõezinhos de Rúbria. Via, à luz vacilante das lâmpadas, o pulsar de artérias torturadas na garganta da menina e em suas têmporas. Ainda segurando a mão dela, colocou a mão direita sobre o peito da filha. A vibração do coração foi sentida, rápida e frenética. A doença misteriosa que assim afligia os tenros tendões de seu corpo alcançara o coração inocente e o estava estrangulando.

Diodoro curvou-se sobre a menina, que, pequena como era, percebendo o medo do pai e desejando apenas tranqüilizá-lo, sussurrou fracamente:

- Estou muito melhor, meu pai. A dor não é tão forte agora.

O pai afagou-lhe os longos cabelos pretos que se espalhavam sobre o travesseiro, com dedos trêmulos: eles estavam úmidos de suor. Afagou a face ardente, a curva delicada do pescoço. E disse consigo mesmo:

Que eu morra, mas que minha filha seja poupada. Torcei meu corpo e atirai-o no pó, mas que minha filha seja poupada. Para mim o fogo e a espada de todas as maldições dos deuses, mas que minha filha seja poupada. Um grande e terrífico silêncio tombou sobre ele.

O médico estava misturando uma poção num cálice, e um momento depois chegava-o aos lábios de Rúbria. Ela, porém, teve náuseas. Diodoro fez sinal ao médico para que se afastasse e tomou o cálice na mão. Obedientemente, então, e controlando as náuseas, a menina bebeu, lentamente, gota a gota, parando com freqüência para respirar em haustos. Aurélia começou a faz r massagem nas partes inchadas das perninhas e dos bracinhos bonitos, pacientemente, com firmeza, e Diodoro observava-a, enquanto mantinha o cálice junto dos lábios da filha. Quanto era calma a sua esposa! Se sentia terror, não o revelara. Rúbria agora suspirava, sob o tratamento que lhe dava a mãe, e os espasmos tornavam-se menos freqüentes. A ama continuava a abanar as cortinas, e Keptah movera-se, afastando-se do leito, imperscrutável e Silencioso.

Aurélia mergulhava sem cessar os dedos na vasilha de prata do linimento à proporção que ia fazendo a massagem. Seus dedos curtos e brancos tinham força e propósito. Ela parecia saber quando fazer pressão, quando erguer delicadamente a mão. Era como alguém que, confiante e destemida, se movesse com firmeza contra um inimigo. O corpo de Rúbria afrouxou a rigidez, polegada por polegada, tornou-se menos tenso de agonia, menos rijo de sofrimento.

- Ah! Ah! Exclamava Aurélia, em voz baixa e confortadora.

- Nós vamos mandar isto embora. Não vamos?

Os músculos de seus braços, de suas mãos gorduchas, erguiam-se e abaixavam-se visivelmente, e a luz das lâmpadas ondulava sobre eles. Ela combatia, mas não havia sinais de combate em seu rosto plácido, em seus olhos serenos e sorridentes. Minha Aurélia pode não ter muita imaginação, mas é uma mulher e a tenacidade está nas mulheres como a força está no exército, pensou Diodoro, com humildade nova.

Rúbria agarrava-se à mão do pai, mas voltava-se inconscientemente para sua mãe, como o faz um recém-nascido. O vestido de Aurélia era decotado, e Diodoro podia ver o rico intumescimento de seu peito, aquele peito imperturbado e sem agitação. Reluzia de suor, mas não havia respiração ansiosa a erguê-lo e baixá-lo.

Sem interromper sua tarefa, Aurélia levantou os olhos para o marido, e seu sorriso era cheio de amor. Seus olhos castanhos diziam-lhe: “Eu salvarei esta pequenina para ti. Não te tortures, meu querido”. Não havia ciúmes em seu olhar. O que importava era apenas que a Diodoro fosse poupado um desgosto esmagador. As faces rechonchudas de Aurélia luziam com seu calmo esforço e seus lábios cheios curvavam-se. Tinha soltado os cabelos para a noite e eles derramavam-se como negra cascata por sobre seus jovens ombros rotundos.

O medo de Diodoro, agora, diminuiu. Voltou-se para Keptah, o médico. Tratava com muita atenção aquele escravo, e emprestava-o com freqüência a seus amigos quando estes adoeciam. Prisco o mandara para a grande universidade de Alexandria, reconhecendo muito cedo que o rapaz tinha talento para a medicina. O pai de Diodoro gostava dele como pessoa e fizera Diodoro prometer que quando Keptah alcançasse os quarenta e cinco anos de idade seria libertado e receberia ouro bastante para garantir-lhe a segurança. Diodoro tinha a intenção de cumprir tal promessa, mas, embora tivesse respeito pelo escravo como médico, não gostava dele como homem. Em Diodoro não havia paciência para o sutil, o ambíguo, o secretamente sorridente, o sombriamente enigmático, o suavemente cético e silencioso.

Pois Keptah, aos quarenta anos, era tudo isso. Jamais alguém soubera qual a sua origem racial, mas havia algo de egípcio em seu rosto magro, tão remoto, misterioso e moreno, com seu nariz cinzelado, adunco, com seus olhos oblíquos e secretos, sua boca de delgado recorte. Seu cabelo, tão curto quanto o de Diodoro, parecia pintado com pincel negro sobre um crânio comprido e frágil. Era alto, quase descarnado, e sob suas vestes os ombros ossudos mostravam-se largos. Tinha mãos morenas, longas e flexíveis, com unhas pálidas e juntas grandes. Diodoro acreditava que aquelas juntas revelavam o filósofo, mas se Keptah tinha filosofias, ocultas e místicas, que Diodoro gostaria de descobrir, furtava-se agilmente às sondagens de seu senhor:

- Não sei, senhor, murmurava com sua voz macia e de acento curioso. - Não passo de um escravo.

Aquela altaneira paródia de humildade jamais deixava de irritar o tribuno, intelectualmente faminto como estava e que se sentia repelido como soldado rude e estúpido. Diodoro suspeitava, também, que Keptah ria-se dele. Não se podia negar, entretanto, que se tratava de homem sensato e grande médico.

Diodoro, olhando agora para ele, que estava de pé ali ao lado, mas de certa forma ausente, lembrou-se de um acontecimento estranho que se passara naquela casa havia apenas alguns meses.

O vigilante do pavilhão dos escravos estivera comemorando seu aniversário naquele pavilhão. Diodoro, bom senhor que era e reconhecedor dos servos fiéis, dera ordens para que excelente comida e vinho de sua mesa fossem usados naquela noite. Como presente pessoal, dera ao capataz uma bolsa de moedas de ouro. Não houvera restrições para as comemorações e assim Diodoro, que ia abrindo caminho lentamente, mas com segurança através de um obscuro tratado sobre ética, pusera de lado o pergaminho e franzira as sobrancelhas.

Em sua biblioteca tudo era silêncio à luz da lâmpada, mas o tumulto da instalação dos escravos fazia-se clamor ruidoso no ar tépido. Diodoro, então, sorrira, num esforço de indulgência. Teodoro, um velho, não teria muitas oportunidades para a hilaridade e os festejos. Que as moças bonitas dançassem diante dele, e os jovens pinoteassem, e o vinho corresse, e os ossos fossem atirados no piso de mármore, e a música batesse Contra as paredes da casa.

O ruído, porém, ia ficando cada vez mais desenfreado. A pequena Rúbria Seria perturbada e também Aurélia, que se levantava antes de suas escravas. Havia um limite para tudo, mesmo para festas de aniversário. Diodoro não confessou a si mesmo que o som de alegre vida humana sob a lua o arrastava; pois não era um romano austero, que detestava a frivolidade? Resmungou consigo mesmo que precisava deter aquele alarido, mas seu passo ia leve e rápido quando ele se encaminhou para o pavilhão dos escravos.

As festividades haviam transbordado do pavilhão para o perfumado pátio dos escravos. Lâmpadas foram colocadas em mesas trazidas do pavilhão e faiscavam contra as palmeiras, as flores, e as humildes estátuas em cantos distantes. O luar e a luz das lâmpadas misturavam-se para mostrar uma cena da desenfreada e devassa festividade.

As moças escravas, particularmente aquelas que tinham deliciosos corpos rosados, estavam quase nuas, os cabelos saltando em torno delas, enquanto dançavam de maneira espantosamente licenciosa, os rostos brilhantes de lascívia, juventude e vinho. Tranças castanhas, negras e louras saltavam como flâmulas sobre seios despidos e membros arredondados. Os rapazes, vestidos como faunos e sátiros, saltavam no meio das moças, em gestos escandalosos. E a música se esganiçava e erguia-se, dançava e ria, incitava, seduzia e guinchava.

Refestelado como o próprio amo num macio divã, Teodoro observava tudo com alegria e impotente sensualidade, enquanto sua cabeça branca marcava o ritmo da música, os dedos retorcidos estalando o compasso.

A fragrância das flores, das ervas, do vinho, do suor, das carnes assadas e quentes, bem como do pão, fazia-se um nevoeiro no ar. As lâmpadas, elas próprias como que inspiradas, ardiam com brilho maior, e a luz e a sombra perseguiam-se como dardos embriagados, através do pátio. Diodoro ficou aterrado. Naquela casa tão correta e decorosa, como haviam aprendido as moças e rapazes tais danças vergonhosas, tais gestos licenciosos, tais canções, tais gritos obscenos? Era um bacanal! Tal coisa não devia ser permitida! Metido nas sombras profundas, o tribuno sentiu-se corar. Precisava ter uma conversa com Aurélia, na manhã seguinte. Mas, com toda a certeza, Aurélia também devia estar ouvindo todo aquele barulho. Por que não chamara uma escrava, severamente, e não dera ordem para que se pusesse fim em tudo aquilo?

Hesitou. Teodoro estava agora cantando com sua voz rachada e trêmula. Tinha começado a bater palmas. Para estupefação de Diodoro, o velho incitava as moças e os rapazes para fantasias ainda mais selvagens, com frases que seu amo nem sequer acreditaria que ele conhecesse. Tais palavras, pelos deuses!

Mais habituado, agora, à escuridão, à luz das lâmpadas e ao luar, Diodoro correu os olhos pela cena. Através do pátio viu um movimento confuso, depois o brilho de um traje branco. Reconheceu a figura alta e majestosa de Keptah, o médico. Diodoro ficou ainda mais estupefato. Keptah jamais se reunia aos outros escravos. Não obstante, lá estava ele também observando, como Diodoro. Também ele devia sentir-se solitário.

Subitamente, Keptah saiu da sombra, revelando-se em seu traje branco e longo de médico, ereto, e ainda incompreensível. A luz da lâmpada brilhou por inteiro sobre seu rosto, e Diodoro mal o reconheceu, tão estranho estava, tão cintilante, tão secreto, e tão contido.

Keptah ficou ali a observar os corpos saltitantes, as pernas e braços enlaçados, os cabelos revoltos, o ritmo da carne quente, o jubiloso abandono da juventude voluptuosa e ébria. Os pés dançantes rodopiavam e rodopiavam, aproximando-se dele cada vez mais. Às vezes sua figura era obscurecida pelas moças e depois elas tornavam a recuar, aproximavam-se e afastavam-se, sempre dançando, rapazes e meninos seguindo em perfeito ritmo, as mãos agarrando-se e avançando para seios e braços amorosos, ou atirando os cabelos para cima. Keptah, porém, não se movia nem recuava. Começava a sorrir e, vendo aquele sorriso, Diodoro franziu as sobrancelhas. A luz no rosto de Keptah cintilou.

Então, Keptah levantou a mão direita. Se pensa que vai detê-los, é louco, pensou Diodoro. Só um corisco produziria efeito.

Keptah manteve a mão erguida, e Diodoro podia ver a palma rasa e trigueira. Não era um gesto de comando. O polegar dobrava-se para a palma de forma curiosa, e os dedos afastavam-se. O tribuno estava tão absorvido observando seu médico que só alguns momentos depois teve consciência de que o mais profundo silêncio havia tombado ali. Mesmo os músicos tinham cessado de tocar sua música selvagem.

Diodoro teve um sobressalto. Olhou ao seu redor, incrédulo, e então a estupefação o dominou. Os dançarinos tinham se detido em posição de dança. Os alaudistas, flautistas e harpistas como que se haviam congelado, as mãos imóveis no ar. A cabeça de Teodoro tombara sobre o peito de ancião. Havia agora apenas o mais profundo silêncio no pátio, exceto pelo silvo das lâmpadas, o chilro dos insetos noturnos, os gritos distantes dos pássaros, o remoto ladrido de um cão. O luar banhava o pátio e as lâmpadas baixavam suas flamas, morrendo. Os dançarinos estavam ali, pernas erguidas, braços arremessados para a frente, rostos brancos e enlevados. Aquilo podia ser uma pena de um mural, ou um pátio repleto de estátuas, bacanal esculpida por um artista louco.

Diodoro não podia acreditar no que via. De boca aberta e olhos fixos, esfregava os olhos e tornava a fixá-los ali. A noite estava muito quente, mas de repente ele sentiu um frio de morte. Algo farfalhou e um passo levíssimo se fez sentir. Diodoro deu um salto, subitamente assustado, e voltou-se. Keptah estava a seu lado, sorrindo sombria e respeitosamente; depois, curvando-se, murmurou:

- Eles te estavam incomodando, senhor.

Diodoro estremeceu e deu um ou dois passos. Sussurrou:

- Que fizeste?

Os olhos insondáveis contemplaram-no seriamente, mas em suas profundezas havia uma faísca avermelhada.

- Eu, senhor? Disse o médico, levantando as sobrancelhas oblíquas como que surpreendido por uma infantilidade. - Isto não é nada. Eu te vi através do pátio e era evidente que estavas aborrecido. Assim, mandei que esses malucos parassem e eles me ouviram.

- Que fizeste? Repetiu Diodoro, e agora, apesar de seu tremor, a voz saiu-lhe áspera e forte.

Mais uma vez Keptah estudou-lhe o rosto, com zombeteira surpresa.

- Isto é algo que aprendi como médico, senhor.

Voltou-se um pouco e contemplou a terrível cena diante dele. O luar, aqui e ali, banhava um jovem seio marmóreo, o movimento imobilizado de um braço, a curva de um joelho.

- Isto te está alarmando, senhor? Perguntou Keptah, como que espantado. - Mas não é nada.

Diodoro levantou o braço num gesto involuntário de horror e ameaça.

- Liberta-os imediatamente! Exclamou, afastando-se num recuo do médico, todas as suas superstições a arrepiar-lhe a pele.

- Para o abandono e o ruído, senhor? - Keptah parecia perplexo. - Logo amanhecerá.

- Liberta-os, maldito! Berrou Diodoro. Estava terrivelmente amedrontado.

- Para mais decoro, talvez? Urgia a voz insidiosa, em tom ansioso.

Diodoro ficou em silêncio. Keptah parecia refletir sobre a frustração de seu amo. Ergueu então os ombros. Levantou de novo a mão, murmurando algo para si mesmo.

A cena não se modificou subitamente. Mas, lentamente, os braços e pernas começaram a se mover, a tombar, relaxados. Os corpos tornaram-se vivos, embora frouxos. Como que se movendo em sonhos, cabeças voltaram-se, pés começaram a andar, não na dança, mas em encantamento. O luar, frio e imóvel, brilhava sobre ombros pesados, membros entorpecidos. Um por um os escravos deslizaram para fora do pátio, sem falar, sem se olhar, completamente inconscientes uns dos outros. Era como que observar uma cena de total exaustão e de inconsciência animal. Para Diodoro, aquilo era um terrível e insondável pesadelo.

Agora, o pátio estava vazio. Ficaram somente as lâmpadas, as mesas cobertas de objetos, as cadeiras vazias. Os instrumentos dos músicos estavam sobre as pedras, como se ali tivessem sido arremessados em fuga. As lâmpadas, no último piscar, apagaram-se. A lua desceu lentamente e as palmeiras farfalharam.

Keptah falou, e pareceu a Diodoro que ambos estiveram ali por um tempo infinito.

- Eles esquecerão, senhor. Acreditarão que foram dormir depois de uma noite feliz, de festança e regozijo. - Suspirou: - Como são felizes, tendo um amo assim indulgente!

As roupas de Keptah tombavam ao longo de seu corpo com pregas angulosas. O luar ganhava as cavidades fundas de suas faces, acentuava as cavernas em torno de sua boca.

- Pensaste que eu era mau, senhor disse ele. - Mas tenho conhecimento. Há uma lenda antiga que diz que o mal e o conhecimento são uma coisa só. Não é bom saber. É muito melhor ser um animal inocente. - Olhava agora para Diodoro, e no lugar de seus olhos, havia covas de trevas sem fundo. - Mas continuou ele - quem existe, entre nós, que preferisse não ter conhecimento do bem e do mal? Não saber é não ser homem. Ou os deuses, acrescentou, ainda mais baixo. Afastou-se, e não houve som em torno dele. Fora aquilo que ele dissera.

Quando Diodoro, pela manhã, indagou, cautelosamente junto de Teodoro sobre as festividades da noite, o escravo responder alegremente:

- Graças a ti, senhor, foi uma noite gloriosa! Nunca teus servos se sentiram mais felizes!

Dobrou os joelhos, que estalavam, e beijou as mãos de Diodoro.

O sol brilhava em seu rosto murcho.

- Nunca nos esqueceremos disse ele.

Diodoro, então, mandara chamar Keptah, que veio ter com ele com pés que pareciam deslizar.

- Falaste comigo em bem e mal, na noite passada, e também em conhecimento disse ele. - Tua linguagem foi muito obscura.

Diodoro fez uma pausa. Fixou os olhos em Keptah, não como um amo olha para o escravo, mas como um homem olha para outro.

- Estudaste os trabalhos de Aristóteles durante teus anos em Alexandria. Lembras-te que o sábio falou sobre absolutos. Acreditas em absolutos?

Keptah não estava perplexo. Sabia que Diodoro pensara longamente na conversa da noite. Sabia tudo quanto se podia saber sobre o tribuno.

- Não, senhor, eu não acredito.

- E por quê?

- Porque, senhor, não há absolutos, a não ser Deus.

- Mas Aristóteles era um grande filósofo! Estás tendo a pretensão de contradizê-lo?

Diodoro voltou-se em sua cadeira, ofendido.

Keptah sorriu, seu sorriso sutil:

- A sabedoria terminou com Aristóteles?

Diodoro franziu as sobrancelhas, mas sentia-se abalado.

- Então, a última palavra ainda não foi dita?

- Não, senhor, ainda não foi dita.

Diodoro assumiu aspecto ainda mais ameaçador.

- Não há absolutos! Não há a última palavra!

Estava desanimado. Já era bastante desagradável que a política fosse sempre tão instável e a vida tão caprichosa. Mas a filosofia, com certeza, e filosofia como a de Aristóteles, era uma coisa eterna e imutável. A que se agarraria um homem num mundo imprevisível, a não ser na filosofia, na memória de seus pais, nos templos de seus deuses, e na sabedoria? Levantou os olhos para Keptah e percebeu que seus olhos eram estranhos e distantes e que seus lábios exangues tinham um contorno obscuro.

- Dize-me perguntou o tribuno -, que fizeste aos escravos na noite passada?

- Apenas uma forma de hipnotismo, senhor respondeu o médico. - Uma ilusão, isso foi tudo.

- Ilusão de quem?

Diodoro estava encolerizado.

Keptah ergueu delicadamente os ombros.

- Quem sabe, senhor?

Diodoro, irritado, mandara que ele se retirasse. Os pensamentos que as palavras de Keptah despertaram nele eram demasiadamente perturbadores e, assim, ele os suprimiu o mais depressa possível. Não se havia lembrado mais deles, até aquele momento.

E, agora, olhava para Keptah e estava mais convencido do que nunca de que o escravo o considerava, a ele, o poderoso tribuno, como um indivíduo simplório. Era simplicidade, então, acreditar na virtude, no patriotismo, na moralidade, na honra, no dever? Diodoro suspeitava que para Keptah, o misterioso, tal simplicidade era absurda. Mas, com certeza, um homem que não acreditava em absolutos era um corrupto! Estaria direito que tal homem cuidasse de Rúbria? Mas quem, em Antioquia, ou mesmo em Roma, era médico tão dotado quanto Keptah?

Foi então, por uma razão qualquer, para ele desconhecida, que Diodoro subitamente lembrou-se de Lucano.

Levou sub-repticiamente a mão à bolsa e tateou a pedra e o saquinho de ervas. Viu que Keptah o observava, embora sem demonstrar. E disse, como estudante tímido:

- Eu tenho um amuleto aqui.

Keptah ergueu suas aladas sobrancelhas negras e disse polidamente:

- Um amuleto? Ah! Amuletos às vezes possuem propriedades sobrenaturais.

Diodoro franziu o cenho. O homem estaria novamente zombando dele? Keptah, porém, mostrava-se muito sério e esperava cortesmente.

Ele quase empurrou a estranha pedra na mão do médico.

Keptah estudou-a. E então, com a expressão mais enigmática, passou-a sobre o próprio rosto. Voltara as costas para a lâmpada, de forma que ficara na sombra, e Diodoro espiou por cima do ombro dele. Nas mãos de Keptah, na obscuridade, a pedra luzia como que ardendo com um fogo intenso e inextinguível. Lançava uma claridade ligeira, mas firme, sobre os compridos dedos morenos de Keptah.

- Que vem a ser isso? Perguntou Diodoro, impaciente.

Keptah, com aquele ar secretamente divertido que lhe era habitual, contemplou o alarma do amo e seu rosto subitamente congestionado.

- Deram-me esta noite acrescentou Diodoro -, e quem a deu foi o filho do meu liberto, o pequeno Lucano, para a senhora Rúbria. Disse-me que a encontrara e declarou-me que os deuses, ou Deus, estava nela.

O rosto de Keptah modificou-se:

- Lucano? Perguntou ele.

Ficou refletindo. Sabia do afeto que ligava o jovem grego a mais jovem Rúbria um afeto tão inocente e tão gentil. Sabia, também, qual o tremendo poder da sugestão. Dirigiu-se ao leito, e, imperativamente, como se fosse o senhor e Aurélia uma escrava, fez-lhe sinal para que se afastasse. E ela, instintivamente, obedeceu. Rúbria estava chorando baixinho, mas agora olhava para Keptah, como que amedrontada. Ele sorriu para a menina, e mostrou-lhe a pedra, que não era comum, mas não possuía outras qualidades além de sua beleza.

- Isto disse ele - é uma pedra mágica que foi achada pelo teu companheiro de brinquedos, Lucano. Os deuses devem tê-lo dirigido para ela. Isto te ajudará, senhorazinha, se acreditares nela, pois não foi Lucano que a encontrou para ti?

Rúbria olhou para a pedra e tocou-a timidamente com um dedo frágil. Começou a sorrir. Keptah mudou-a de posição, rápida e habilmente; apertou os contornos arredondados da pedra contra o flanco esquerdo da menina, na região do seu fígado inflamado.

- Aqui ela deve ficar disse ele, aos pais e à ama durante vários dias, até que a menina recupere a saúde.

Olhou firme para Rúbria, com um olhar imperioso, e a menina bem como seu pai e sua mãe pareceram tomados de respeitoso temor.

Diodoro esfregou o queixo: podia ser supersticioso, mas também era homem de razão e de lógica. Curvou-se sobre a filha e estudou a pedra, vendo-a faiscar e refletir. Um tanto desconfiado, então, tornou a levantar os olhos para Keptah, teve dificuldade para manter sua gravidade.

- Não acredito em magia resmungou o tribuno.

- Senhor, há muita magia no mundo. Basta acreditar nela para encontrá-la.

O tribuno achou aquilo ambíguo e franziu as sobrancelhas, mas Keptah parecia muito sério. Bem, pensou Diodoro, é possível que eu não saiba tudo; não sou médico nem faço mágicas, como esse charlatão.

Sua atenção voltou-se rapidamente para Rúbria e ele sacudiu a cabeça.

- Que será que faz mal a esta criança? Perguntou. – Não foste definitivo, bem ao contrário, foste evasivo, Keptah. O sangue, derramamento nas juntas, regiões contundidas da carne, dificuldade de respirar, gengivas com filtração, crescimentos nas glândulas...

Keptah desviou os olhos.

- Não é uma condição rara falou, suavemente -, embora seja difícil... de curar.

Era impossível para ele dizer àquele pai que a menina tinha a doença branca, invariavelmente fatal. Em seu coração havia piedade.

- Mas a pequena Rúbria vivera, indagou Diodoro, e seus olhos abateram-se ao simples pensamento da morte da filha.

Keptah olhou-o por um longo momento antes de responder:

- Não está ordenado que ela morra agora, senhor, ou em um futuro imediato.

Rúbria, ao contato da pedra de Lucano contra sua pele jovem, sentia que tudo acabara, e isso Keptah notou. A força do espírito, refletiu ele, muitas vezes mantém a morte à distância, e a fé às vezes realiza o impossível.

Diodoro não estava satisfeito e o medo acelerava seu coração.

- Falas de forma evasiva. O amuleto não a curara inteiramente?

- Não sei, senhor.

Os olhos emboscados olhavam para Diodoro com uma expressão que o romano não reconheceu como distante compaixão.

- Então disse Diodoro, com irado frenesi ela morrerá no futuro, com certeza?

- Não é esse o fado de todos nós, senhor?

Diodoro deixou que sua cabeça tombasse sobre o peito, e apertou os lábios contra os dentes. Pensou, então, no saquinho de ervas que recebera daquele menino altamente impenetrável, Lucano, e com dedos trêmulos retirou-o da bolsa, entregando a Keptah com repentina rigidez.

- Lucano também me deu isto, e disse que deve ser misturado a vinho quente e dado à senhora Rúbria.

Esperava nova zombaria de Keptah, mas o médico apanhou o saquinho com leve e delicada rapidez. Abriu-o. Imediatamente o quartinho aquecido foi invadido por um odor forte, amargo, ainda assim agradável. Keptah levou o saquinho ao nariz, fechou os olhos e inalou.

- Onde, senhor, o menino encontrou estas ervas, e como as colheu?

- Não sei! Gritou freneticamente Diodoro. - Nos campos, foi o que ele disse. Não me falou como as escolheu! Deuses! Não haverá fim para este mistério? Que existe nesse saquinho?

Keptah sorriu e fechou cuidadosamente o saquinho.

- Ervas que eu próprio não consegui encontrar, embora as tenha procurado longa e infinitamente. - Pousou os dedos ossudos na boca, como para aquietá-los. Deu o saquinho à ama, ordenando que as ervas fossem misturadas ao vinho quente, imediatamente. Voltou-se sobre os calcanhares, em silêncio, dirigiu-se para a cama, e olhou para Rúbria com a expressão de alguém que se visse diante de um milagre.

Diodoro agarrou o braço do médico.

- O menino, Lucano, disse que deseja estudar medicina e eu lhe prometi... - Parou. Seus olhos altivos apertados em conjectura e pensamento, e sua mente frugal acelerada.

- Sim, senhor? Perguntou keptah, outra vez o escravo altaneiro parodiando a humildade.

- Eu lhe prometi que podia estudar com a senhora Rúbria, e que mais tarde... mais tarde seria possível que ele fosse estudar... - Diodoro parou, as sobrancelhas ferozes reunidas. - Tu o Keptah, se acreditares que ele tem capacidade para se tornar um médico, e então... Respirou fundo e abandonou heroicamente a precaução: -... eu o mandarei para Alexandria.

Esperava que Keptah se mostrasse incrédulo e divertido. Mas este curvou a cabeça, seriamente.

- Senhor, o que disseste está prescrito.

- Agora, em nome do Hades, que queres dizer com isto? - perguntou Diodoro, perplexo. - Penso que está de novo falando nos Fados. Mas Aristóteles e Sócrates não falaram na livre escolha do homem, ridicularizando o que está prescrito?

- Muitos filósofos não são sábios em todas as coisas disse com calma o irritante Keptah. - Se um homem tivesse de viver apenas através das teorias dos filósofos ele não sobreviveria e nem conservaria sua sanidade mental. - Sorriu amplamente para Diodoro, como um pai magnânimo sorri para um filho jovem e obstinado.

A ama trouxe um cálice de prata com vinho quente, e Keptah misturou nele, habilmente, as ervas que recebera. Os gemidos da menina eram agora mais baixos, embora fosse evidente que ainda sofria grandes dores. Keptah entregou O cálice a Aurélia, que o levou aos lábios da filha com um sorriso amoroso. A menina bebeu obedientemente entre profundos haustos de dor. Keptah ficou junto do leito, observando-a atentamente por alguns momentos.

Os gemidos tornaram-se menos freqüentes, os olhos da menina dilataram-se maravilhados e tranqüilos. Sua cabeça descansava sobre os joelhos maternos, como que surpreendida com a diminuição da angústia. Então pôs-se a respirar, um hausto depois do outro, lento e profundo, como suspiros.

- Ah! Deuses! Murmurou Diodoro, as pálpebras umedecidas pela gratidão.

Como se fosse rubra maré, o surto de febre recuou das faces de Rúbria e de seus lábios, substituído por uma palidez fantasmal. Para seus pais aquilo era excelente, pois se haviam esquecido de que aquele mesmo calor precedera sua última crise aguda da doença, havia semanas já, despertando sua ansiedade. Keptah assentiu para si mesmo, com melancolia.

- A menina está dormindo! Exclamou Aurélia, muito delicadamente. E Rúbria realmente adormecera, branca, como se estivesse morta sobre as madeixas escuras de seus cabelos.

- Sacrificarei não um galo, mas dois, a Apolo, exclamou Diodoro, que o alívio tornava fraco. - E ao seu mensageiro, o glorioso Mercúrio de pés ligeiros, duas hecatombes[21].

Atirou-se para o médico e, esquecendo que era o senhor daquele escravo imperscrutável, agarrou-lhe a mão, pestanejando para conter as lágrimas.

- Ah, Keptah, pede o que quiseres! E terás o que pedires instantaneamente, pelo seu trabalho desta noite!

Keptah ficou calado, enquanto Diodoro lhe apertava a mão. Refletia que só um oportunista tiraria proveito do que não lhe pertencia. Mas os escravos não têm escolha, a não ser o expediente. E disse, tão baixinho que seus lábios mal se moviam:

- Minha liberdade, senhor.

Diodoro foi apanhado de surpresa. Comprimiu a boca, relanceou um olhar furibundo sobre o escravo.

- Ah! Disse, com voz ameaçadora. - Queres tirar vantagem da minha emoção, natural num pai?

Keptah encolheu os ombros.

- Foste tu que sugeriste isso, senhor, não fui eu respondeu ele.

O cabelo curto de Diodoro arrepiou-se com aquela sua repentina cólera. Em seu nariz adunco as narinas dilataram-se. A desconfiança reluziu em seus olhos.

- Que velhaco lisonjeiro és tu, Keptah! Sabes que foi prometido a meu pai que eu te daria a liberdade quando tivesses quarenta e cinco anos, bem como ouro bastante para que vivesses bem. Quererás que eu quebre a promessa que fiz a meu pai?

Keptah não pôde conter um sorriso diante desse sofisma e, vendo o sorriso, Diodoro sentiu-se ainda mais encolerizado e consideravelmente encabulado. Sacudiu para longe a mão de Keptah, levantou os ombros, pesadamente, até a altura das orelhas, e manteve-se obstinadamente, como um touro pronto a atacar. Tentou fazer o escravo baixar os olhos, sombriamente. Keptah, entretanto, manteve-se em tranqüila dignidade, tocando com os dedos uma preza de seu traje.

Diodoro por um momento esqueceu a filha adormecida e berrou:

- Muito bem, então, tratante! Que seja. Dentro de alguns dias irás comigo à casa do pretor. - Sacudiu um dedo espesso diante do rosto de Keptah: - Mas com a condição de que te conserves voluntariamente comigo até que eu te despeça.

- Pensaste que eu iria deixar-te, senhor? Perguntou Keptah, como que estupefato, - Além disso, não está prescrito que eu fique nesta casa e ensine o filho de Enéias?

Diodoro, porém, não se acalmou. Fervia de indignação, tentando intimidar o outro. Keptah não estava intimidado.

- O pretor e tu, senhor, sem dúvida concordarão com um estipêndio que eu preferiria sugerir.

Diodoro estava para estourar mais uma vez quando sentiu os dedos de Aurélia em seu braço suarento. Ela sorriu para o marido, as faces de novo rubicundas, uma covinha brincando ao lado da boca.

Parecia uma menina, sentada à beira da cama da filha, os cabelos tombando em caracóis tímidos por sobre a testa e os ombros.

- Nunca se dirá que o nobre Diodoro rompeu uma promessa murmurou ela.

Sua aparência e seu amor comoveram o coração secretamente sensível de Diodoro. Mas era necessário não trair tal fraqueza pouco militar. O homem atirou para a frente as mãos, num gesto de raivosa capitulação.

- Eu o disse, portanto que seja! Exclamou. - Direi também que desprezo o homem exigente, seja ele amo ou escravo. Keptah, eu te respeitei: agora sinto desdém por ti.

- O desdém de um homem como tu, senhor, vale a honraria concedida por todos os demais homens falou Keptah, e Aurélia riu alto, como que encantada.

Keptah esperou que o mandassem embora, e quando o fizeram ele curvou-se profundamente diante de Diodoro e Aurélia, dirigindo-se em seguida para sua própria farmácia, fechada à chave, onde compunha suas poções e Linimentos, e onde conservava os corpos reduzidos a pó de animais e insetos, bem como estranhas ervas, flores secas e substâncias inorgânicas que nenhum outro médico conhecia, a não ser os que com ele se ombreavam.

Aquela farmácia fazia parte de seus próprios aposentos, afastados dos aposentos dos outros escravos. Não era necessário adverti-los para que se mantivessem a distância: eles tinham pavor de Keptah, de sua majestade e de seu ar abstruso. Tinham ainda pavor maior da magia que havia por trás daquela porta fechada. Cochichavam que ele visitava o crematório e retirava o sangue dos mortos antes da cremação, usando-o em seus remédios. Cheiros nauseantes flutuavam em torno dele, como uma aura, e às vezes havia luzes ardendo até bem depois de meia-noite, através de sua janela. Alguns dos escravos juravam que não eram luzes de lâmpadas, mas faíscas movediças conto estrelas, e que aquelas faíscas muitas vezes suspendiam-se sobre o peitoril da janela, como fogos-fátuos.

Keptah preparou determinado líquido, que era cor de ferrugem e tinha um cheiro sobrenatural. Derramou-o numa pequena bilha e então manteve-a na mão. De pé em sua farmácia, com as Prateleiras e jarros espectrais ao seu redor, fez-se imóvel como uma pedra, os olhos subitamente fixos no céu, para além da janela. Seu coração saltou, acelerado, tal cordeiro fugitivo, depois parou e começou a trabalhar.

Chegou, sussurrou, audivelmente. E então, exultante, repetiu, com voz trêmula: - Chegou! Bem-aventurados sejam meus olhos que viveram para ver isto!

Tateou no peito, procurando um pequeno objeto, que dali retirou. Era feito de ouro, o desenho simples. Apertou-o de encontro aos lábios, e curvou-se várias vezes, dizendo:

- Santo! Santo! Santo!

Tombou de joelhos, a cabeça inclinada sobre o peito, mal parecendo respirar, tomado de um encantamento que ficava além da compreensão do mundo. O objeto que retirara de sob a veste balançava-se diante dele, pendurado a uma corrente de ouro, e aumentava diante dos olhos deslumbrados de Keptah, até dar a impressão de que abarcava o universo.

A lua era apenas pálida sombra nebulosa, bem distante no céu, quando Keptah saiu daquela sua porta particular para o pátio. As palmeiras, porém, interferiam com o firmamento, e ele deslizou para mais longe, para dentro da treva, que se mostrava tremulamente misteriosa, com sombras prateadas. O homem precisava de espaços abertos, os quais pudesse contemplar. Perguntava a si mesmo, muitas e muitas vezes, com o coração pulsando fortemente nos ouvidos: Eles me deixarão ir? Eles deixarão que meus olhos vejam? Depressa serei um liberto, e não há nada que impeça a minha ida durante algum tempo. Bateu compulsivamente com as mãos no peito, e rezou para que Eles consentissem.

Caminhou através dos jardins emaranhados até bem para além da casa, e notou de novo como cada folha, cada fio de relva fremia, sob a luz prateada, sobrenatural. Aquilo, para ele, era um reflexo sagrado; às vezes, parava para sorrir e tomar uma folha espessa e reluzente, e então levantava os olhos para o céu. Aqueles astrônomos, que não eram caldeus como ele próprio, deviam estar falando agora, medrosamente, de cometas, embora não se esperassem cometas. Mas sua Fraternidade sabia. Desejava ir juntar-se a ela. Tinha rezado, outrora, para que se a Estrela viesse durante a sua existência ele pudesse estar entre os de sua Fraternidade, nessa ocasião. A Estrela viera, e havia uma longa distância a pé, de Antioquia até onde a Fraternidade deveria estar em jubilosa vigília, os olhos escuros cheios de mistérios e de ações de graças. Tinham mantido tal vigília tão longamente que seu início se perdia no tempo, desde os dias de Ur, desde os dias do florescimento de Bit Yakin, desde os dias em que tinham vindo de algum deserto longínquo, quando ainda eram um povo de sacerdotes os kalu antes que os judeus os chamassem babilônios. "Nem aos mais sábios entre nós é dado saber a hora: só Ele sabe", haviam ensinado a Keptah. "Nem mesmo os Santos do céu o sabem, mas só o Santo dos Santos, abençoado seja Seu Nome."

Keptah alcançou um lugar aberto nos grandes jardins, e ali estava na margem baixa de um estuário do rio Orontes. O estuário era estreito, mas rápido, e agora ainda mais rápido, como se apressasse, privado de fôlego, a levar as notícias ao rio, e depois aos mares que banhavam o mundo. As margens estavam escuras, embora longas lanças de luz de mercúrio fulgurassem através delas. Mas a corrente estreita brilhava com uma luz mais forte do que a do luar. Sua superfície rugosa, em preto e branco, girava e cintilava. Sua voz era como a do tambor e da flauta, misturadas, embora não houvesse vento.

E agora, Keptah, na margem, suas roupas e seu rosto inescrutável, inundados de radiosidade, levantava os olhos para o céu aberto. A Estrela estava nos céus, quase tão brilhante quanto o sol, seus raios agudos lançando-se com firmeza na treva silenciosa que a rodeava.

Fora profetizado que ela se moveria, que ela apontaria o caminho.

Ainda estava fixa. Então, pensou Keptah, Eles ainda não escolheram os que a devem seguir.

Observando a Estrela, que era tão imensa e que ardia tão friamente, começou a rezar com humildade, tombando de joelho:

- Oh! Tu por Quem o mundo esperou tanto tempo, abençoado sou eu, pois me foi dado ver o Teu Sinal! Abençoada é a terra que Te recebeu. Abençoada é aquela que Te trouxe ao mundo, num lugar que não conheço. Abençoado é o homem porque Tu redimiste o homem. Porque agora os lugares trevosos serão resgatados, as regiões secretas serão reveladas e as portas da Casa do Senhor se abrirão de par em par até o fim do tempo, e não mais haverá morte.

Uma sensação súbita de incrível doçura veio ter a ele, êxtase intenso, como se alguém profundamente adorado lhe tivesse sorrido, e reconhecido, enviando-lhe sua mensagem de amor. Lágrimas rolaram Pelas suas faces trigueiras e ele ergueu as mãos para o céu, num gesto de adoração e de arrebatada humildade.

Murmurou, audivelmente:

- Fui limpo. Fui salvo. O que havia de mau, de zombaria ou de dúvida em mim foi destruído. Banhei-me nas águas da vida. Desta hora em diante eu nasci. Abençoado seja o Nome do Senhor!

Uma grande quietude e uma imobilidade se apoderaram dele, como uma bênção. Paz imensa envolveu-o. Não importava não ter sido escolhido para ver com seus próprios olhos Aquele que nascera nessa noite. Porque O que nascera estava com todos os homens, em todos os lugares da terra, naquela hora, e jamais tornaria a partir.

A Estrela era brilhante demais para que pudesse ser contemplada por muito tempo, e os olhos de Keptah abaixaram-se. Conservou-se de joelhos, inteiramente quieto, observando como se fazia mais rápida a corrente iluminada que corria diante dele. Seus olhos, então, perceberam um levíssimo movimento, e houve um brilho maior não longe dele, na descida da margem do estuário. Dirigiu sua atenção para aquilo, e viu que se tratava de uma cabecinha loura que a luz da Estrela fazia quase incandescente[22].

Agora, podia ver o delicado perfil da criança que estava sentada na margem do estuário, um perfil que se erguia para o céu. O belo nariz apolíneo, a delicada curva da face e do queixo, a queda dos cabelos dourados, mostravam-se inteiramente, desenhados, como se uma luz interior brilhasse através de alabastro. É o menino, é Lucano, pensou Keptah, maravilhado.

Levantou-se e encaminhou-se em silêncio pela margem abaixo, parando junto do menino que nada via, observando como estava a Estrela. Seus olhos azuis refletiam-lhe a radiosidade, e ele sorria, as mãos cruzadas sobre os joelhos. Estava muito quieto, como que encantado, sem pestanejar, o pescoço branco, limpo e liso, como que de mármore.

Então, Keptah falou baixinho, para não sobressaltar a criança:

- Lucano, por que estás fora de tua casa a esta hora tão tardia?

Lucano voltou vagarosamente a cabeça e sorriu:

- És tu, Keptah? Eu não podia dormir, por isso esgueirei-me para fora do quarto, pois tinha visto a Estrela pela minha janela. Foi como se ela me chamasse, e eu não pudesse desobedecer.

Sua voz era serena e sem receio, e ele contemplava-o com seu respeito habitual, embora Keptah ainda fosse um escravo.

- Não podias desobedecer, com certeza, criança disse Keptah, sentando-se ao lado de Lucano. Juntos contemplaram a Estrela. Não é possível que ele saiba, dizia Keptah consigo mesmo, perguntando-se, ainda: Devo dizer-lhe o que significa? Esperou pela resposta que veio, calada e firme: Não. Mas havia também uma ordem, e um conhecimento, seguindo aquela palavra. Curiosamente, Keptah examinou o menino. Lembrou-se de que Lucano tinha uma forma particular de silenciar seus passos, aparecendo, sem que se soubesse de onde, quando ele tratava os escravos doentes; e de que observava os tratamentos de Keptah do limiar de uma porta, por trás de uma cortina, ou de uma distância tímida e ansiosa. Sua presença muitas vezes o irritara. Os meninos costumam ser animaizinhos indagadores, gostando de ver violência ou dor, alguma selvageria primitiva animando-os e excitando-os. Keptah considerava Lucano dessa forma, até aquela noite.

- É uma Estrela estranha, não é mesmo? Esperou, atentamente, a resposta.

- Sim disse Lucano. - É estranha! E bela! Acho que ela nos está dizendo algo. - Sua voz era a de um jovem, e não a de uma criança, e Keptah, que raramente o ouvira falar antes, teve consciência daquela voz pela primeira vez.

E que achas, Lucano, que ela nos esteja dizendo?

Lucano ficou silencioso. Suas sobrancelhas douradas contraíram-se.

- Não sei. Mas sei que um dia o que ela diz será revelado.

Keptah teve um gesto de assentimento para si próprio. Pôs a mão morena no alvo ombro do menino, e apertou-o:

- Isso eu sei murmurou. - Voltou Lucano para si, e o menino, surpreendido, olhou para ele, tímida e atentamente. Keptah estudou a serena e bela face, os contornos fortes sob a delicadeza, a curva ardente da boca, a paixão nos olhos azuis. - Eu vou ser teu professor disse ele, e sorriu. - Assim foi ordenado esta noite pelo grande Diodoro. - O rosto de Lucano irradiou alegria e espanto. - E então continuou Keptah, com delicadeza serás mandado pelo amo para Alexandria, a fim de que ali continues os estudos.

Lucano agarrou a mão do escravo e beijou-a com veemência.

- Sou teu escravo, nobre Keptah! Exclamou, e apertou aquela mão morena contra seu peito, num gesto comovente de enlevo. Keptah pôs sua outra mão sobre a cabeça do menino, como se o abençoasse.

- Nunca tiveste medo de mim, Lucano?

Não. - O rosto do menino expressava admiração, quando continuou: Eu tenho apenas honrado tua pessoa em meu coração, senhor.

Keptah sorriu, tristemente:

- Não me chames senhor, Lucano. O nobre Diodoro não aprovaria. Ele tem um senso imenso da propriedade.

Pensou em Diodoro, penalizado e não com seu divertimento habitual. É verdade, pensou, que há coisas maiores e mais eternas do que suas absurdas e férreas realidades. Mas eu errei, fui cruel na noite em que os escravos dançavam com tamanha algazarra, tentando desiludi-lo. Ainda bem que não o consegui.

A Estrela brilhava, resplandecente, seus raios alargando-se e apagando todas as outras estrelas e todos os outros planetas menores, fazendo-os correr através da curva do céu, rumo à aurora. Keptah tornou a contemplá-la, esquecendo Lucano, e este, fixando os olhos naquele perfil recortado, moreno e oriental, perguntou:

- Quem és tu, Keptah?

Keptah ficou silencioso por um longo momento, como se perguntasse coisas a si próprio e recebesse respostas. Depois, sem olhar para Lucano, começou a falar:

- Sou um caldeu. Isto contaram-me há muitos anos, embora eu não o soubesse antes, tendo vindo para a casa de Prisco como uma criancinha, e escrava. Meu pai era um kalu, que quer dizer sacerdote, mas até hoje não sei quem era a minha mãe. Há, contudo, uma viagem na qual eu ainda estava nos braços de minha mãe. Meu pai sabia coisas misteriosas e estava a caminho... de um país distante. – Seus olhos não se moviam da Estrela, enquanto continuava: - Ele acreditava, erroneamente, estar prescrito que lhe caberia ver... - Calou-se, e moveu-se, inquieto.

"No caminho para o tal país a caravana na qual ele e minha mãe viajavam foi atacada por ladrões e escravagistas. Meus pais foram mortos. Eu, uma criança, fui vendido com os demais homens e mulheres, como escravo, e Prisco comprou-me e levou-me para sua casa de Jerusalém, depois para Roma."

Lucano esperou que ele continuasse, mas Keptah ficou silencioso. Seu rosto enigmático mostrava-se majestoso, tomado de frio e recolhido desgosto.

- Quem te contou isso, Keptah, se nem mesmo o nobre Diodoro o sabe?

Keptah olhou rapidamente para o menino, e riu, com ternura.

- Ah! Estiveste interrogando o amo, na minha ausência. Seu riso cessou bruscamente: - Não te mostres tão embaraçado, menino. Não estou ofendido. - Suspirou: - Que isto seja o suficiente para ti, Lucano: contaram-me, mas quem me contou eu não te posso revelar. Posso falar-te, entretanto, sobre a Caldéia, ou a Babilônia, e sobre meu povo e isso me foi permitido contar-te, embora não esteja ainda clara para mim a razão disso.

"Nós somos um povo tão antigo, que os próprios judeus, que dizem ser muito antigos, não têm sequer uma lenda relacionada com nossa origem. Mas demos um Abraão aos judeus, que agora o chamam de Abraão. Viemos para a terra de Ur, procedentes de lugar que não ficou registrado, e tivemos outrora a mais florescente, sábia, urbana e madura capital que desde então houve sobre a Terra. Seu nome era Bit Yakin. É possível chegar a tamanha sabedoria, mas, se tal sabedoria não tiver Deus, tomba-se na corrupção... Por que te sobressaltas assim, menino?

- Nada sussurrou Lucano. Keptah, porém, deu-lhe uma ordem com seus olhos cavos, e o menino disse, hesitante: - Eu estava pensando no Deus, Desconhecido dos gregos.

- Ah! Sim! É o mesmo disse Keptah, abstraído. Continuou: - No começo e durante séculos, Bit Yakin lembrou-se de Deus, floresceu e foi poderosa e vinham sábios de todos os lugares para estudar com os seus kalu, aprendendo alguns dos mistérios que lhes eram cautelosamente ensinados, bem como discernimento. E os sábios levavam aqueles conhecimentos para seus países. Um deles foi o Egito, e um homem chamado Moisés tomou conhecimento de tais mistérios através do kalu que recebera ordens para ir ao Egito e ensinar o jovem príncipe egípcio para além daquilo que os sacerdotes egípcios já sabiam. Ouviste falar em Moisés, Lucano?

- Sim, os judeus me contaram, em Antioquia. Ele trouxe aos homens os Mandamentos de Deus.

Keptah suspirou, e disse, ironicamente:

- E há séculos os homens se têm ocupado assiduamente em transgredi-los todos!

Lucano receou que Keptah o tivesse esquecido, pois que ficou silencioso durante muito tempo. Então, tornou a falar:

- Porque os homens são homens, tornam-se orgulhosos, especialmente quando adquirem fama. Mesmo muitos dos kalu tornaram-se orgulhosos e quando isso aconteceu eles perderam sua sabedoria, pois que haviam esquecido de onde lhes vinha o conhecimento dos mistérios. Assim, tornaram-se charlatães, em vez de sacerdotes, e necromantes, já que se recordavam das palavras ocultas da magia. E usaram-nas para ganhos e maus fins. Tais sacerdotes, tão empenhados em crua magia, já não eram astrônomos, médicos, cientistas e sacerdotes. Eram homens maus, ocupados em vaticínios vulgares, que passavam a seus filhos. E, se um clero se torna decadente, o povo também se torna decadente, e toda a Caldéia, traída pelos seus sacerdotes, foi lentamente devorada pela corrupção. E anulou-se, caindo nas mãos de inimigos. Se uma nação não tem Deus, terá de cair, mas se uma nação tem Deus, nem todos os poderes do mal, nem todos os exércitos podem sacudir seus fundamentos. Não. Nem mesmo que o mundo inteiro se organize contra ela.

Keptah olhava para a Estrela, e seus lábios moveram-se silenciosamente durante alguns instantes.

- Assim, os bons kalu, e bem poucos deles havia, deixaram a Caldéia chorando e foram para muitos países com os seus segredos. Nesses países eles são os magos do Oriente, e médicos, astrônomos, vaticinadores para os eleitos, astrólogos, cientistas e metafísicos. Só eles saberão sempre quem são. Porque se tornaram desconfiados em relação à humanidade, e pelas mais excelentes razões. Formam uma Fraternidade oculta, e escolhem os que nela devem entrar.

Agora, Keptah estava dando sua inteira atenção a Lucano, e pensava consigo mesmo: Por que estive tão cego? E então falou, e a voz era áspera e imperiosa:

- Esta não é uma história que irás aprender em Alexandria, e devo dizer-te que não a repitas para ouvidos moucos, Lucano.

- Não a repetirei, mas não a esquecerei disse Lucano, simplesmente.

Keptah abrandou-se:

- Eu sei, criança. Não há corrupção em ti. Mas deixa-me continuar. Tão corrupta e orgulhosa tornou-se a Caldéia, ou Babilônia, que já não reverenciava os kalu, e não mais dava a si própria o nome de terra dos sacerdotes sábios, mas olhava cobiçosamente para seus vizinhos, desejando ouro, escravos e terra. E começou a dar-se o nome de Kaldi-Kasdi, que quer dizer "conquistadores". E assim guerreou, conquistou, escravizou e oprimiu e, como todas as nações que guerreiam devem morrer, a Caldéia morreu, pois a guerra, acima de todas as coisas, é a mais imunda, a mais abominável aos olhos de Deus, a mais odiosa, pois que destrói o que o Santo criou em Seu amor, e degrada o homem ao nível da formiga sem pensamento, que obedece sem saber por que obedece e combate sem saber por que combate. Pois, na verdade, na guerra o homem se bate por coisa nenhuma.

Olhou longamente para Lucano, que estava sério e meditativo. Depois, como se lhe fosse ordenado, retirou um objeto de ouro, que as vestes encobriam sob seu peito, e manteve-o na palma da mão aberta.

- Olha, menino, e dize-me o que é isto.

Lucano fixou os olhos no objeto que estava na mão de Keptah, e estremeceu:

- É uma cruz, o sinal da infâmia, pois que nela os romanos executam os criminosos da mais baixa espécie.

A cruz de ouro empalidecia na palma de Keptah, tornava-se branca e brilhante à luz da Estrela. Parecia possuir uma incandescência própria.

- Isto é a Luz do Mundo disse Keptah. - Um dia saberás.

"Durante séculos, tantos que os homens os esqueceram, e eles estão recobertos de pó, este Sinal foi conhecido pelos kalu, pelo que é. Não te posso contar a significação dele, pois é proibido. Os kalu usavam-no ao peito, antes que os judeus fossem uma nação ou um povo, antes que o Egito tivesse um faraó, antes que a Grécia nascesse, antes que Rômulo e Remo tivessem sido amamentados por uma loba[23]. Alguns dos sábios do Egito levaram-na consigo da Caldéia para o seu país sem conhecer seu significado e ele pode ser visto nas pirâmides até hoje, sinal oculto compreendido apenas pelos eleitos caldeus. Os sacerdotes da Grécia conheceram-no vagamente, embora sem o compreender, mas sob sua influência levantaram altares ao Deus Desconhecido.

Certa emoção sem nome agitou subitamente Lucano. Os olhos encheram-se de lágrimas. A cruz pareceu expandir-se na palma de Keptah. Lucano estendeu a mão e tocou-a com um dedo trêmulo, ficando imediatamente impregnado de uma sensação de indescritível doçura e amor.

- Olha! Exclamou Keptah, e Lucano teve um sobressalto.

Keptah apontava para o céu. A grande e adorável Estrela movia-se para o lado do Oriente, inflexivelmente, como que levando um propósito. Lucano ficou a olhar, tomado de respeito e temor. O brando tom rosado da aurora estendia-se sob ela, como um lago, e recebia-lhe os raios, tornando-se fulgurante. Keptah chorava: - Os escolhidos foram escolhidos disse, baixinho. - Estão a caminho. Eu não fui escolhido.

Ficaram a olhar até que a Estrela desceu lentamente, mergulhando no mar róseo da manhã, e perdeu-se para eles, e eles se sentiram desolados.

- Foi-se, lamentou Lucano.

- Não respondeu Keptah, enxugando os olhos na manga -, jamais ela se perderá, jamais, até o fim dos tempos. - Contemplou a cruz na palma de sua mão, e pensou: E sobre isto escarrarão, e isto será ignorado, ridicularizado e blasfemado, mas nunca será esquecido, nunca explicado, nunca desvanecido, apesar da violência das raças ainda por nascer, apesar da guerra, da morte, da agonia, do sangue e da treva e fogo dos últimos dias e da última e desvairada fúria dos homens.

Voltou-se para Lucano, e por um momento sentiu a inveja.

Abençoada és tu, criança, disse consigo mesmo. E depois pensou: Abençoado sou eu, que devo ensinar-te.

Uma fria austeridade voltou ao rosto de Keptah. A aurora translúcida, cor de papoula, erguia-se por trás das grandes árvores e das palmeiras que farfalhavam à brisa matinal.

- Rúbria sofre da doença branca e jamais alcançará a idade adulta. Ouve! Não chores tão alto e não te impressiones tanto. Por que choras? A vida não é coisa tão bela para a grande maioria. Nascemos obscuramente, vivemos obscuramente e morremos obscuramente. Mas o que te disse não deve ser contado ao tribuno Diodoro, para que seu coração não se despedace antes do tempo.

Lucano cobriu o rosto com as mãos e Keptah, compassivo, sacudiu a cabeça. Para os jovens a morte é impossível, a morte é o supremo e inacreditável horror. Olhou para o céu aperolado, onde a Estrela estivera, e suspirou.

- Precisas dizer-me onde encontraste as ervas que suavizaram as dores da senhora Rúbria.

- Encontrei-as nos campos e à margem dos regatos e sabia que elas eram boas, Keptah.

A voz do menino era apenas um sussurro de medo.

- São boas. Precisas encontrar mais para mim, a fim de evitar lhe sofrimento, e eu as secarei e reduzirei a pó para destilar-lhes à essência, pois são preciosas.

Levantou, alto e distante, e Lucano levantou-se com ele.

- Já é manhã, disse Keptah. - Tua mãe deve ter estado à tua procura. Vai, menino, e não fales do que te falei, porque, se o fizeres, nada mais te ensinarei.

 

- Bem, agora estás livre disse Diodoro, mal-humorado, depois que ele e Keptah regressaram da visita ao pretor, em Antioquia. - Mas não tenho a obrigação de te dar aquela grande soma de ouro enquanto não fizeres quarenta e cinco anos. A essa parte da promessa feita a meu pai hei de ser fiel.

O dia estivera quente, a cidade particularmente ruidosa e demasiadamente colorida para um romano moral. Diodoro agora estava sentado em seu vestíbulo de mármore branco e bebericava, amuado, um copo de vinho frio, engolindo, zangado, figos maduros que tirava de uma vasilha de prata colocada a seu lado.

- Ora, esse vinho grego resinoso! Exclamou. O mau humor era evidente. - Ainda estou certo de que te aproveitaste de um momento de fraqueza e me obrigaste a agir. Mas deixemos isso, deixemos isso, seu espertalhão! Já estou bastante ofendido com a quantia que exigiste como remuneração. Logo estarás tão rico quanto os levantinos dos bazares, e sem dúvida alguma terás teu próprio estabelecimento e comprarás teus próprios escravos, e eu terei de suplicar tua indulgência para vires atender doentes em minha própria casa.

Keptah escondeu um sorriso. Estava de pé diante de Diodoro e olhava-o sombriamente e divertido.

- Senhor, disse ele, jamais deixarei de ser grato a ti, e de estar pronto a atender teu chamado. Aonde fores, eu irei, e minha vida ainda te pertence, quando a quiseres.

- Belas palavras, resmungou Diodoro. Os olhos faiscaram, irados, sobre seu liberto. Mas disse: - Acho que precisamos comemorar o fato. Que o Hades te devore! Ali, naquela mesa, há outro copo. Se posso mandar como dizes, mando que partilhes comigo deste vinho, e podes comer um ou dois figos.

- Senhor, eu prefiro os vinhos romanos, e peço-te que me dispenses da obrigação de beber vinho grego.

Diodoro praguejou baixinho, mas não se irritou totalmente.

Lançou um olhar furioso para o copo.

- Esta coisa é mesmo péssima disse ele. - Respeito teu gosto. Mas o próximo navio trará bom vinho, e acrescentou sarcasticamente confio em que me permitirás mandar algumas garrafas aos teus aposentos, para que te deleites com elas.

Retiniu as solas ferradas de suas sandálias sobre o piso alvo como a neve e ficou a olhar para Keptah sob suas fartas sobrancelhas pretas.

- Come um figo disse.

Keptah curvou graciosamente o corpo comprido e apanhou uma das frutas. Languidamente, Diodoro meteu outro na boca.

- Por Pólux[24], esta cidade é detestável disse ele. – Um monte de refugo que vem de todas as sarjetas do mundo. Se eu não tivesse um senso tão grande de dever, pediria para ser exonerado. Mas quem poderia arranjar-se tão bem com essa massa rastejante de gusanos?

- Ninguém a não ser tu, nobre Diodoro.

Diodoro o examinou outra vez, desconfiadamente.

- Tens a voz tão untuosa. Escorre, reluz e cheira mal. Acido misturado com mel.

- Lamento não te agradar, senhor disse Keptah, tornando a sorrir.

- Não poderias agradar menos a Plutão[25] retrucou Diodoro, ainda enfático. Apanhou outro figo e chupou os dedos.

- Mandarei que doem um sestércio[26] a cada escravo, em tua honra. Que arrogante cão és tu, com toda a tua humildade fingida Na tua opinião, não há ninguém tão sábio como tu.

Keptah manteve a dignidade, apesar da vontade de rir.

- Sem dúvida alguma vais te dar ainda maiores ares do que de costume, mas eu te previno para que não uses novamente os teus truques para com os pobres escravos.

Keptah estudou-o. Deveria contar a verdade a Diodoro? Dizer-lhe que, na realidade, não havia hipnotizado os escravos, mas apenas o tribuno? Resolveu não o fazer. Diodoro jamais o perdoaria.

Inclinou-se e disse:

- Prometo, senhor, que não farei mais truques. E agora, se me despedires, eu devo ir ter com a senhorita Rúbria.

O rosto de Diodoro clareou.

- Ah! Ela está muito melhor, não está? Já pode sair da cama e seu rosto tem um ligeiro colorido, que não é de febre e sim de saúde. Quando pensas que ela estará curada?

Keptah hesitou:

- Penso, senhor, que daqui a alguns dias ela poderá deixar a casa pelo jardim e quinze dias depois estará em condições de recomeçar os estudos, com o professor que também dará aulas a Lucano, filho de Enéias. Depois dessas lições, segundo compreendi, ele estudará comigo?

- Por uma remuneração extra? Perguntou Diodoro, novamente zangado.

     - Não, senhor, eu ensinarei ao menino tudo quanto sei, por gratidão para contigo.

Diodoro resmungou e ficou contemplando a sombra comprida de seu liberto esgueirar-se pela parede de mármore, enquanto Keptah deslizava entre ela e o sol que fluía através das colunas baixas da direita. Sou acomodado demais, disse Diodoro consigo mesmo, depois de tomar um gole do vinho resinoso. Trato meus libertos como iguais e meus escravos como libertos. Não admira que não me respeitem. Preciso ser mais rigoroso com isto e trazer um pouco de disciplina militar a esta casa. Mas em seu coração sábia que era incapaz de se mostrar injusto ou brutal, assim como seus estimáveis pais o tinham sido, respeitando as vidas e as pessoas, mesmo os mais humildes homens.

Diodoro começou a cogitar de novo sobre a moderna Roma e fez uma careta.

Os generais de gabinete, que podiam dirigir, petulantemente, as campanhas de comandantes calejados em campos distantes e inventar táticas e estratégias como se alguma coisa entendessem sobre elas! Os pálidos e indulgentes senadores com as togas colantes, comprando e vendendo em suas bolsas de ações, depois de uma longa manhã nos banhos, refazendo-se de uma noite de devassidão e parcialmente revigorados por escravos hábeis que, com mãos lubrificadas, massageavam seus flácidos músculos! Comprando e vendendo os obesos patifes aquilo que outros homens tinham dado a vida a fim de obter para Roma, e sacudindo lenços perfumados diante do rosto, enquanto regateavam e faziam lances, cada um tentando ser mais esperto do que o outro. E, entre lances, contavam as últimas obscenas murmurações da cidade! Suas mulheres prostituídas, suas concubinas, suas depravadas esposas que usavam os mais nobres nomes de Roma e cometiam adultério como se fosse passatempo da moda... O que realmente era. Os parasitos, os augustais, que entravam e saíam do Palatino[27], tão aristocráticos como estátuas, com podridão em seus corpos e harpias nas mentes e traição e assassínio em suas almas astuciosas! As liteiras douradas, os jovens escravos, tratados com mimos e mantidos com propósitos vergonhosos, a rapina e a licenciosidade de uma sociedade que fora outrora disciplinada, parcimoniosa, modesta e heróica, o lento desaparecimento de uma classe média sólida, um desaparecimento deliberadamente planejado! A cidade resplandecente, a amante do mundo, tornada um sumidouro de corrupção, traição, avidez, prazeres e decadência, uma fedentina de imundície da qual emanavam as febres, as loucuras e as moléstias que poluíam os mais remotos pontos do Império!

E as turbas romanas de muitas raças! Mesmo Júlio César as temera, com razão, e diante delas se acovardava, lisonjeando-as e aclamando-as. As turbas romanas, volúveis, sanguissedentas, impiedosas, ávidas, providas de muitas línguas! Quando outrora tinham vivido em sóbria e próspera cidadania, orgulhosas de seus antepassados fundadores, zelosas de sua República, encontrando sua integral razão de ser no trabalho, na família e em seus deuses, em seus lares tranqüilos e nas sombras de suas árvores, agora viviam como variegada e rapace canalha das ruas, prontas a aclamar, prontas a matar, prontas a discutir e, da mesma forma, desprovidas de senso, prontas a aplaudir, aglomeradas em casas de muitos andares que pareciam desaguadouros, odiando o trabalho e preferindo mendigar, apelando permanentemente para o Estado, a fim de que ele as mantenha, bajulando políticos vis que lhes davam vantagens, e ameaçando os poucos homens honestos que se lhes opunham, pelo bem de Roma, e mesmo para seu próprio bem, pedindo perpetuamente pão e circo, procurando prazeres mesquinhos, adorando gladiadores estúpidos e prestando culto ao maior corredor ou ator, ou discóbolo, como se fossem eles os maiores homens, devorando, em sua ociosidade, as taxas esmagadoras impostas sobre homens mais dignos, taxas destinadas a mantê-las, quando o mundo bem poderia livrar-se delas pela fome ou pela pestilência. Ah! As turbas romanas, as malditas turbas, senhores e escravos adequados de seus patronos, de seus políticos, dos arrecadadores de seus votos!

Não era de admirar que houvesse tão poucos bons artesãos, comerciantes, trabalhadores e construtores, em Roma. O governo monstruoso sugava o fruto de seu labor sob a forma de taxas destinadas a uma canalha vociferante, devoradora, ociosa, mantida pelo Estado. Que importava ao homem da rua, ao homem abjeto, de olhos exorbitados e boca aberta, ter ele destruído o esplendor de Roma, difamado seus deuses, atirado excremento sobre as estátuas de seus antepassados? Não podia ele, agora, uivando e marcando paredes durante a noite, conseguir suas vasilhas repletas de mais feijão, mais sopa e mais pão, ou não podia assistir a espetáculos mais sangrentos no Circo Máximo? Os senhores valiam tanto quanto os escravos, e os escravos eram bem dignos de seus senhores.

Ali estava, no Palatino, aquele soldado que envelhecia César Augusto, um homem severo e moral. Que podia ele fazer, porém, rodeado como estava de senadores e estadistas corruptos, eleitos pela canalha das ruas ainda mais corrupta? Diodoro recordou-se, de súbito, de uma carta que recebera algumas semanas antes, vinda de um de meus amigos, cuidadosamente lacrada e enviada por mensageiros de confiança. (Quanto tempo passara desde que os homens honestos tinham começado a lacrar suas cartas para evitar os olhos indiscretos e Vingativos dos espias empregados pelo Estado?) O amigo escrevera: "Receio que Roma esteja morrendo. Eu, como tu, caro amigo, acreditei durante demasiado tempo, suplicando para que isso acontecesse, na possibilidade de que as velhas virtudes ainda florescessem na cidade, como excelentes e belas flores em jardim esquecido, preparando sementes que novamente seriam cultivadas nos lugares abandonados. Mas o jardim não existe: Foi pisado e transformado em lama pelas turbas e pelos seus senhores acovardados, que vivem dos favores desta turba.

Diodoro, mergulhado em desânimo e desesperança, como jamais sentira antes, pensava nos deuses de Roma. Outrora, eles haviam personificado trabalho honroso, amor, a santidade do lar e da propriedade particular, liberdade, graça, bondade, as qualidades militares de devotamento e dever, o carinho para com os filhos, o respeito entre empregados e empregadores, o patriotismo, a obediência aos decretos divinos e imutáveis e o orgulho e dignidade de cada um. Mas o que fizera Roma desses deuses? Tornara-os réplicas indizíveis e venais dela própria em todos os seus aspectos.

Diodoro atirou para longe o copo, que se espatifou de encontro à parede de mármore. Saltou sobre os pés e pôs-se a caminhar de cá para lá sobre o piso branco e solitário, as sandálias martelando-o como o rufar frenético de um tambor.

Recordava-se de como o amigo terminara a carta que lhe tinha enviado: "A única esperança para Roma será o retorno aos valores religiosos..."

Não um retorno aos deuses poluídos. Mas a quê? A quem? Ao Deus Desconhecido dos gregos. Mas quem era Ele? Onde estava Ele? Ele, o incorruptível, o Pai, o Amoroso, o Justo? Por que estava Ele silencioso, se existia? Por que não falava Ele à humanidade, e reorganizava o mundo enfumaçado, trazendo paz aos que a tinham perdido; esperança aos desesperançados; amor aos dele privados; abundância aos que tinham fome de retidão? Se Ele vivia, aquela era a hora em que devia manifestar Sua Presença, antes que o mundo ficasse sufocado pela montanha de seus próprios excrementos, ou morresse por sua própria espada.

Diodoro sentia-se latejante de selvagem ânsia e impaciência. Parou entre suas colunas brancas e olhou para o céu do poente, acima das árvores e das palmeiras. Durante um momento sua dor cessou. Jamais vira antes arrebol tão glorioso, tão cheio de luz rosada e flechas de ouro tão brilhante e tão puro que as moitas de árvores, as frondes trêmulas das palmeiras, as colunas da casa luziam com radiosidade própria e refletiam as cores do céu. Delicadeza e majestade irradiavam dele, como se Voz poderosa tivesse outorgado bênção ao mundo inteiro, como se Mão poderosa se houvesse erguido, com ternura e amor. O rosto violento de Diodoro abrandou-se, tornou-se quase infantil. Sua mente disciplinada disse-lhe que aquilo não passara de uma resplandecência rara. Sua alma disse-lhe que uma Palavra fora pronunciada.

Ele se recordou, então, dos desvairados falatórios ouvidos em Antioquia durante aquele dia. Uma Estrela particularmente brilhante, mais fulgurante do que a mais fulgurante lua, aparecera no céu na noite anterior e fora vista por muitos, mesmo durante as mais vergonhosas horas da Saturnal. Houvera muito terror, e turbas tinham corrido cegamente através das ruas, em pânico, suas roupas festivas arrastando-se atrás delas. Mas Diodoro fora informado por um sacerdote do templo de Mercúrio que se tratava apenas de um cometa, ou de um meteoro, do qual falava com indulgência.

- Mas onde estavas, que não a viste pessoalmente? Indagara Diodoro. O sacerdote respondera:

- Eu estava dormindo, nobre tribuno.

Diodoro procurou a Estrela onde lhe tinham dito que ela aparecera. Não havia nada ali, a não ser a estrela vespertina, cintilando docemente. De repente, entretanto, acreditou que realmente houvera uma Estrela. Seu coração ergueu-se num poderoso impulso de júbilo, e ele sentiu-se confortado, embora não pudesse explicar o que sentia.

Os jasmins de floração noturna acordaram numa onda de fragrância, e Diodoro respirou-a, como se fosse incenso. Sentiu-se humilde e calmo, cheio de força.

Posso fazer o que puder, viver segundo os valores e verdades nos quais fui educado, nas virtudes e justiça que conheço, e seguramente Ele se lembrará de mim, embora o mundo se torne louco.

Caminhou entre as colunas ao longo da passagem de mármore, em direção ao compartimento das mulheres. Então, encontrou dois de seus oficiais no pátio, jovens de quem ele gostava e que treinara pessoalmente, e nos quais confiava por causa de seus rostos honestos, seus olhos cândidos, seu devotamento por ele e suas velhas virtudes. Eles se perfilaram ao vê-lo, saudando-o com elegância, e Diodoro parou, tentando compor um ar severo, mas gostando demais deles para isso.

- Vamos, meninos, por que não voltastes para Antioquia? - perguntou bruscamente. Jamais mantivera guarda de corpo em sua casa, como outros militares em comando faziam, pois confiava em seu próprio braço direito e não apreciava grandes exibições de militarismo.

- Nobre Diodoro, ouvimos boatos alarmantes em Antioquia no dia de hoje respondeu um dos soldados. - Há gente da população que está a gritar que a Estrela que pretendem ter visto na noite passada indica a queda de Roma e a cólera dos deuses contra todos os romanos. Dizem que a Estrela moveu-se em direção do Oriente, afastando-se da Cidade Imperial, e isso indica, segundo declaram, que Roma está para cair. E quando um império cai, raciocinam eles, é de um país submetido levantar-se e golpear.

- Ficai à vontade, Sexto disse Diodoro, pondo a mão sobre o ombro do jovem capitão. - Vamos, vamos, não estais com medo por mim? Foi por isso que ambos desobedecestes minhas ordens expressas? Eu vos digo, se Roma cair, será por lhe faltar mentes disciplinadas.

- Ainda assim, nobre tribuno, preferimos permanecer de guarda durante algumas noites disse o jovem Sexto, obstinadamente, mas com seus devotados olhos suplicantes.

Diodoro calou-se. Desviou o olhar de Sexto para o centurião e viu a obstinação de ambos. Se lhes der ordens para voltar a Antioquia, pensou, eles permanecerão de alcatéia nos jardins, longe de meus olhos, sem dormir e sem comer, e isso será duro. Seria justo fazer-lhes isso, em troca do que estão considerando como de seu dever? E disse, comovido:

- Bem, então, seus dois jovens malucos de cabeça dura, ficai aqui o tempo que quiserdes. Mandarei arrumar instalações para vós, bem como alimentos, e marchareis em torno da casa e guardareis as portas, apenas para que fiqueis satisfeitos. Não que me desagradasse o que quereis fazer disse, rapidamente, por amor da disciplina. – E quando estou em casa não sou um soldado, e sim apenas um pacífico cidadão.

Dirigiu-se às instalações das mulheres e procurava uma escrava que chamasse a senhora Aurélia, quando ela própria apareceu, acompanhada de Íris. Vinham rindo baixinho, juntas, como duas irmãs, e a mão de Aurélia descansava levemente no braço de Íris, que jamais parecera tão bela aos olhos de Diodoro. Foi para ela que olhou e, como se houvesse algo de terrivelmente revelador em seus olhos sobressaltados, o rosto da jovem obscureceu-se e seus olhos azuis enevoaram-se, como se toldados por desgosto ou angústia.

Para a "velha romana" Aurélia a esposa de um liberto não era objeto de desdém, embora tivesse sido outrora uma escrava. Se merecia amor, recebia amor, se merecia respeito, recebia respeito. Aurélia e Íris eram ternas amigas. Mas Diodoro não sabia que Íris visitava freqüentemente sua casa, durante a sua ausência. Aurélia ficou surpreendida e feliz ao vi.

- Estou atrasada, Diodoro? Perguntou, caminhando para ele e tomando-lhe a mão. - O sol ainda não desceu completamente.

- Eu é que estou adiantado respondeu ele. Desejava beijar-lhe o rosto moreno e corado, apertar a boca contra seus lábios cheios. Era um refúgio contra algo que o ameaçava.

Aurélia começou a tagarelar alegremente, como era de seu costume.

- Íris esteve me ajudando a tecer os linhos e lãs para o inverno. Olha para meus dedos! Estão calosos, quase sangrando.

Abriu as mãos diante dos olhos dele, e riu, o cabelo, penteado com formalidade, tombava-lhe sobre o ombro em duas tranças negras e reluzentes, que desciam bem abaixo de sua cintura; havia em seu rosto uma umidade luzidia na região das têmporas, e pequenas gavinhas de obscura juvenilidade enroscavam-se nas frontes e nas faces.

Íris ficara de lado, tão inabalável quanto uma ninfa de mármore, os cabelos dourados arranjados à moda grega, suas madeixas enroladas em torno da cabeça com fitas brancas. Fitas iguais rodeavam-lhe também a cintura esbelta, acima da qual erguia-se o busto perfeito. O poente, tombando sobre ela, dava translucidez à sua carne, e Diodoro pensou: Não a Diana, mas a Ártemis grega. Os braços, pescoço e faces de Íris tornaram-se tais uma rosa, e a expressão de seu rosto, a delicada dignidade de sua figura eram as de uma estátua sonhadora, embebida em pensamentos remotos que nada tinham a ver com a humanidade. Aquele aspecto fez Diodoro pensar, apesar da presença da esposa: Eu sou como Acteão[28], e com certeza é proibido olhar para ela!

Aurélia percebeu a fixidez no rosto de Diodoro enquanto ele olhava para a jovem liberta, e suspirou. Foi então Íris, depois de profunda reverência, quem se afastou. Sua figura alta e bem-feita perdeu-se nas sombras das árvores sonhadoras. Diodoro ficou a olhar, enquanto ela desaparecia. Aurélia tomou-lhe carinhosamente o braço. Não havia ciúmes em seu coração. Amava demais Diodoro e conhecia muito bem a virtude de Íris. E, se era permitido que um homem olhasse para uma mulher, sua esposa deveria ter dignidade e respeito próprios bastante grandes para não se sentir constrangida.

Foram juntos para casa, Diodoro queixando-se de sua guarda de Corpo. Mas Aurélia sentiu-se aliviada. Ouvira de suas escravas os rumores correntes em Antioquia.

- Precisamos arranjar instalações e alimentos para esses devotados soldados disse ela, placidamente.

Encantava-a saber que também eles gostavam de Diodoro. Desejava mostrar ao marido o maravilhoso progresso de saúde de sua filha Rúbria, e embora Diodoro insistisse nas perguntas sobre o estado da menina, Aurélia apenas sorria e movia misteriosamente a cabeça.

Diodoro, seguido por Aurélia, foi rumorosamente subindo a larga escadaria de pedra e dirigiu-se para o quarto de Rúbria. A ama ali estava, bem como Keptah e o menino Lucano, mas Diodoro viu apenas sua filha, sentada na cama e rindo. Havia cores recentes nas faces infantis; seus olhos escuros dançavam; os cabelos negros e compridos tinham sido afastados do rosto e presos atrás com uma fita dourada. As mãos pequenas seguravam uma boneca que Lucano fizera, toda de cores brilhantes e alegres, com braços e pernas de madeira flexíveis. A menina fazia a boneca dançar sobre seus joelhos, levando-a a adotar atitudes grotescas. Lucano contemplava-a com um sorriso rígido e ansioso, e Keptah misturava uma poção numa taça de vinho.

Vendo Diodoro, Rúbria empertigou-se na cama e exclamou, excitadamente:

- Vê se não é uma maravilha, pai! Lucano trouxe-a hoje para mim!

Beijou rapidamente Diodoro, desejosa de voltar ao brinquedo, e o pai ficou a estudá-la, carinhosamente. Ah! A pequenina fora arrancada dos próprios limites dos Campos Elíseos[29]. Viveria, seria o encanto do coração do pai, com um bom casamento, mais tarde, dando-lhe netos que faria saltar sobre os joelhos. Mas precisavam voltar para Roma, era o que o tribuno pensava. Aquele clima não servia para uma criança. Levaria a família para a sua propriedade rural nos arredores de Roma, onde o ar era excelente e seco; seria um lavrador e esqueceria a cidade podre, regozijando se com sua família. E poderia, mesmo, ter filhos.

Olhou para Lucano. O menino surpreendeu-lhe o olhar e disse, timidamente, mas com orgulho:

- Rúbria esteve sentada na cadeira hoje, durante duas horas, senhor.

Depois riu com a menina diante dos gestos cômicos da boneca, e foram ambas crianças que se divertem juntas. Pela primeira vez Diodoro pensou nas despesas com a Universidade de Alexandria sem sentir uma ferroada em sua bolsa. O menino viria a substituir Keptah, eventualmente, quando este último estivesse velho demais. Ficaria com a família, que gostava dele, e iria para onde a família fosse. Já que Lucano nascera livre, poderia casar-se com pessoa de família sólida e virtuosa, a família de um negociante próspero, talvez, uma família romana.

Lucano e sua esposa (que seria escolhida por Diodoro com um olho em seu dote e virtudes, bem como na sua capacidade de se tornar mãe) teriam um lar em sua fazenda. A alma paternalística do tribuno expandiu-se. Em sua velhice teria os risos e vozes de crianças em torno dele, e a visão dos campos e florestas, e o mugido agradável do gado, e árvores de fruta e sombra, e os ruídos de um rio veloz.

Feliz como há muito não se sentia, Diodoro ordenou que Lucano ficasse para o jantar, e disse à sua ama que mandasse um escravo à casa de Enéias a fim de informar aos pais do menino que ele chegaria mais tarde em casa. Lucano corou, pois nunca antes o convidaram a comer à mesa do tribuno e sua senhora, mas não fez objeções. Rúbria pediu, imediatamente, que a carregassem lá para baixo, e Keptah fez um movimento afirmativo, respondendo ao olhar interrogador de Diodoro. Este tomou a filha nos braços, e sentia o coração tão leve que nem percebeu a fragilidade dela. Tinha consciência, apenas, de que a filha ria ainda, e de que aninhara a cabeça em seu peito.

O salão de jantar era de ladrilhos coloridos, e havia um tapete persa no piso. As janelas davam para as palmeiras, cujas pontas mostravam-se tingidas de escarlate pelos últimos raios do sol. A fragrância dos jasmins e das rosas enchia o ar tépido. Tudo estava tão imóvel e sereno que se podia ouvir a voz do rio. Keptah, em suas novas honras de liberto e prezado médico, sentava-se longe, na outra extremidade da mesa, mas Lucano sentou-se ao lado de Rúbria. Ele é como meu filho, pensou Diodoro, subitamente amando o rosto de Lucano, tão semelhante ao de Íris, e reparando na nobreza de sua fronte. Afinal, pensou, para atenuar sua repentina democracia e violação das propriedades, nós, romanos, sempre concedemos superioridade aos gregos, inclusive entre os filósofos. Esse menino, sem dúvida alguma, teve ancestrais patrícios, provavelmente muito mais antigos do que os meus.

A refeição foi uma surpresa para Lucano, pois a mesa de seu pai era muito mais pródiga e os vinhos melhores. Veio um prato de carneiro assado, frio, sem grande capricho nos temperos, e demasiado gorduroso. Veio uma bandeja de pão grosseiro e vários queijos não muito finos. O vinagre e o azeite usados nos rabanetes e pepinos eram de variedade ordinária, devido às economias de Diodoro e à sua falta de apreciação. Lucano viu que o tribuno e Aurélia não tinham paladar: eram, na verdade, pessoas simples e cordiais, preferindo alimentos simples e cordiais, que comiam com prazer. Lucano teve saudades da mesa de seu pai: Íris sabia temperar um prato de humildes feijões de tal forma que aquilo se tornava um deleite epicuriano[30].

Keptah, admitido pela primeira vez à mesa do tribuno, torcia seu nariz moreno e aquilino. Aquilo era comida para porcos, não para homens. Diodoro roia um ossinho e havia ali um odor pungente de alho. Um homem civilizado pode distinguir-se da plebe pela quantidade de alho em sua comida, foi o que pensou Keptah, contentando-se com um pedaço de queijo, outro de pão, e um dos vinhos menos revoltantes. Apesar disso, sentia bastante afeição por Diodoro.

Rúbria cansou-se, subitamente, e sua voz jovem e vivaz tornou-se mais morosa. Diodoro levou-a pela escadaria até seu quarto. Os escravos acendiam lâmpadas pela casa toda. Lucano acompanhou o tribuno, e Rúbria suspirou de satisfação, ao recostar-se em seus travesseiros. Estendeu a mão para Lucano, que a tomou, beijando-lhe delicadamente os dedos. Rúbria fechou os olhos e sorriu, adormecendo imediatamente.

Estava escuro, agora, e Diodoro informou Lucano de que ele, e não um escravo, iria levá-lo a casa. No caminho, através da noite que se fechava com rapidez, Diodoro falou eruditamente sobre Alexandria, onde estivera. O colégio médico, só em si próprio, era vasto, e a biblioteca representava uma das maravilhas do mundo. Lucano devia sentir-se adequadamente humilde, ao pensar que iria ser um estudante ali. O menino confirmou gravemente com a cabeça.

- Custará muito dinheiro disse Diodoro, cautelosamente, tentando ver o rosto de Lucano à luz frágil das estrelas e da lua que se erguia. - Não sou rico, Lucano. Tuas despesas serão pagas, mas deves ser sóbrio.

Lucano conteve um sorriso.

- Senhor, disse ele, eu agradecerei um enxergão no piso de um estábulo e minhas necessidades serão pequenas. Em troca, suplico que me permitas servir-te. Ou, se não for assim, pagarei o que gastares quando receber meus salários de médico.

Diodoro ficou satisfeito com aquela austeridade. Tomara a mão de Lucano, e agora apertava-a. Tolice, tolice disse ele, magnanimamente. - Só quero que aprecies as vantagens que vais ter. Naturalmente, depois que te diplomares, permanecerás com a família. Keptah estará mais velho, também gozará de generoso estipêndio próprio, que lhe foi deixado por meu pai Frisco.

Que homem estranho e enigmático!

Atrás dele, sem que o soubesse sequer o soldado de ouvidos agudos, seguia um jovem centurião, escondido entre as árvores, à distância, a espada desembainhada pronta à proteção. Finalmente, surgiu aos olhos deles a casa de Enéias, e Lucano pediu a Diodoro que não fosse mais adiante. Correu então para a casa, parando por um momento para acenar timidamente ao seu benfeitor, que o saudou, indulgente, em resposta. Ah! Sim, disse Diodoro consigo mesmo, este é o filho que eu devia ter tido. Por um momento, quedou-se melancólico.

Demorou-se ali. Lucano entrou em casa correndo. Agora, tudo era silêncio, a não ser pelo trilar agudo dos grilos e o misterioso sussurro das folhas das palmeiras. Diodoro não sabia por que se retardava e por que havia em seu coração aquela desolação súbita. A única lâmpada da casa de Enéias crepitou. A porta, então, abriu-se e Íris saiu, sozinha. O luar dava um aspecto de prata flutuante ao seu vestido branco e simples. Caminhou como uma deusa até uma árvore, contra a qual se reclinou, sem saber da presença próxima de Diodoro. Seu cabelo dourado tombava-lhe, solto, sobre os ombros.

Diodoro reteve o fôlego. Mal podia ver o perfil da jovem, na luz difusa e argêntea. Mas viu que ela olhava em direção de sua casa, e estava imóvel como uma estátua, a mão sobre a árvore. O braço nu, estendendo-se dela, era perfeito e esbelto, e mais branco e radiante do que a própria lua.

Nos ouvidos de Diodoro havia um ruído trovejante. Um momento passou-se e Íris ainda olhava em direção da casa do tribuno. Estava tão imóvel que Diodoro pensou numa aparição. Depois, sentiu o ruído de um choro abafado, e sobressaltou-se. Íris cobria as faces com as mãos.

Diodoro deu um passo, um só, na direção dela, e então parou. Desejava chamar, e não podia. Bastava-lhe ir até junto de Íris, tomá-la nos braços, e por isto sua carne sentia terrível desejo. Podia sentir o corpo dela contra o seu, e suas mãos nos cabelos maravilhosos, cabelos com os quais brincara tão descuidadamente quando rapaz. Seriam como seda dourada, e perfumados de flores frescas.

Mas não se moveu, apesar de toda a avidez apaixonada que fazia tremer seus braços e seu coração pulsar ansiosamente. Baixou a cabeça e, sem ruído, recuando passo a passo, retirou-se para entre as árvores e se foi embora.

        

O professor grego de Rúbria e Lucano era um jovem ativo e pequeno, de rosto moreno e malicioso e maneiras bizarras. Escravo, era muito valorizado pelos seus conhecimentos. Custara a Diodoro quinhentas peças de ouro, uma extravagância que só ocasionalmente causava um frémito de arrependimento ao tribuno. Seu nome era Cusa, o que para Diodoro soava como nome pagão, nem grego nem romano, e tinha as feições de um sátiro jovem e língua apimentada e impudente. Não temia nada nem ninguém, a não ser Diodoro, e embora fosse brincalhão e não desdenhasse pregar peças e dizer gracejos grosseiros, tinha mente brilhante e o dom das artes poéticas. Além disso, odiava o analfabetismo e a estupidez, e atacava-os em linguagem suja, que fazia Diodoro rir, mesmo quando censurava seu escravo.

- Por todos os deuses dissera ele, uma vez -, pensei que, como soldado, conhecia todas as palavras, mas teu espírito inventivo meu Cusa, melhorou meu vocabulário.

Cusa ressentiu-se da presença de Lucano desde o início. Como rapaz feio, invejava do menino sua beleza apolínea. Na condição de escravo, considerava Lucano, filho de antigos escravos, como que se impondo sobre ele. Mas o senhor era homem caprichoso, suas ordens tinham de ser obedecidas. Nem por isso Cusa deixou de se armar de um pequeno chicote, que usava em Lucano mais do que o necessário, quando em sua opinião o menino estava demonstrando uma estupidez irredutível. Fazia isso longe dos olhos de Rúbria e de qualquer outro que fosse contar ao tribuno o que se passava, e Lucano, embora dolorido, não se queixava. Um dia, porém o menino prometia a si próprio -, tomaria aquele chicote e o usaria sobre os ombros de Cusa, com bons resultados. Cusa percebia o brilho nos olhos azuis do orgulhoso menino, e fazia uma careta risonha. Pois é, pensava ele, sou pequeno de estatura, e tu tens meia cabeça a mais do que eu, meu belo ignorante, apesar da tua idade, mas aqui quem manda sou eu!

A sala de aulas era pequena, com uma única mesa e três cadeiras, e uma estante cheia de rolos, que eram livros. Cusa mantinha a porta aberta, e às vezes, por gentileza e em deferência para com Rúbria, levava os alunos para a relva e permitia-lhes sentar-se nela, Rúbria numa almofada para protegê-la da umidade.

- Os filósofos perambulavam entre as colunatas dizia ele - e reclinavam-se sobre pedras. - Mandava que Lucano se empoleirasse numa pedra particularmente desconfortável, e dizia insinuantemente:

- Devemos aprender a ser estóicos: é excelente para a alma e uma disciplina para a mente.

E, como não era um estóico, estendia sobre a relva seu manto de lã carmesim, onde instalava suas próprias nádegas.

Uma vez, disse a Diodoro:

- Senhor, peço-te que não te sintas desapontado. Este menino pode ser bonito, mas tem a cabeça como o mármore ao qual se parece.

- Pois então, ensina-lhe a ser carne e cérebro, disse Diodoro, compreendendo Cusa. - Advirto-te, Tens de prepará-lo para Alexandria, e o mais depressa possível.

Aquilo fez com que Cusa detestasse Lucano mais do que nunca. Ah! Era bastante ter cabelos amarelos e pele branca para atrair um benfeitor, dizia consigo mesmo, maliciosamente. Tu, meu bom Cusa, parece-te a um camelo ou a um macaco e essa é a tua desgraça.

Apesar disso, durante o decorrer dos muitos momentos, horas, semanas e meses, até alcançar dois anos, acabou, relutantemente por olhar com respeito à rapidez dos progressos de Lucano, sua ponderação sua compreensão quase miraculosa do conhecimento. O menino possuía mente devoradora: fatos, poesias, línguas, tudo ele recebia, assimilava e fazia seu. Aparentemente, nada esquecia. Suas declamações eram maravilhosas. Havia já muito tempo que deixara Rúbria para trás, e ela o contemplava com admiração, aplaudindo-o. Como se tratava de uma menina, não se esperava que tivesse uma inteligência fora do comum: seu pai desejava que adquirisse apenas o conhecimento necessário para apreciar a poesia e os livros menos exigentes.

Diodoro, ouvindo os relatórios sobre OS progressos de Lucano, dizia:

- Bem, agora aquele patife do Cusa está começando a valer o dinheiro que gastei com ele.

Relutantemente, Cusa começou a sentir prazer nas lições que dava a Lucano. O menino mantinha-o alerta, e as horas de ensino já não enfadavam, como acontecia quando Rúbria era sua única aluna.

Tentou alcançar os limites de Lucano dando-lhe lições intrincadas, muito para além da idade do menino, mas Lucano estava sempre um passo à frente delas, e sem dificuldade. Cusa, um verdadeiro professor, tinha orgulho constrangido e secreto daquele aluno, embora sua língua ferina e seu sarcasmo não traíssem tal coisa.

- Serás um esplêndido guarda-livros dizia ele, freqüentemente. - Mas que fantasia é essa tua de estares convencido de que serás médico um dia? Nada sabes, senão de cor, e eu choro pelos teus futuros pacientes. - O chicote continuava sempre pronto.

Dentro de dois anos Lucano podia discutir com Diodoro os poetas e os filósofos maiores, para satisfação do tribuno. Diodoro abriu-lhe sua preciosa biblioteca, e Lucano ali ia estudar, depois das horas que passava com seu professor. E só o escurecer o arrancava do lugar.

Havia também as horas com Keptah, e essas eram as que Lucano considerava mais compensadoras. Os dois jamais falavam da morte inevitável de Rúbria quando estavam juntos. Era verdade que o corpo Jovem da menina se ia fazendo arredondado, com a doçura da puberdade que se aproximava, embora ela fosse dois anos mais moça que Lucano. Também era verdade que seu bonito rosto moreno estava mais cheio e alerta com a alegria de ser jovem e querida, e que seu apetite melhorara, podendo ela, em curtos intervalos, brincar vigorosamente com Lucano. Mas sua doença mortal, Keptah o sabia, permanecia latente. Para Lucano, era bastante estar junto de Rúbria, tocar-lhe a pequena mão quente, trocar com ela olhares divertidos, à custa de Cusa, correr pela grama e apanhar uma flor imensa, vermelha e úmida, para colocar atrás da orelha da menina. Atiravam bolas um ao outro, rindo e gritando. Imitavam o chamado dos pássaros, e olhavam com respeito e amor os pequeninos animais selvagens da floresta. Havia momentos em que ficavam tão dominados por uma alegria inenarrável, que apenas podiam olhar nos olhos um do outro, com radiante gozo e timidez. Dia após dia, Rúbria fazia-se mais bela, mais amada pelo seu companheiro de brinquedos. Às vezes, ele pensava: Com certeza Deus não levará de mim este tesouro, esta querida, esta irmã, este coração do meu coração.

Sem Rúbria não haverá canções, nem alegria no sangue, nem ternura, nem razão para existir. Brincava com os cabelos de Rúbria, como Diodoro havia brincado com os cabelos de Íris, e regozijava-se com suas madeixas sedosas, tão impregnadas de frescura e do pungente odor da vida. Às vezes, sem se falarem, beijavam-se, e a sensação da face de Rúbria encostada à face de Lucano dominava o menino em fervorosa beatitude. Tomava a companheira nos braços e sentia manter ali o mundo, e toda a beleza e doçura.

Vendo aquilo, Keptah já não advertia Lucano quanto à inevitável desolação. Ele próprio acreditava na presença de algo sagrado e iluminado pela inocência. Havia ocasiões em que se entristecia, e perguntava: Deus da apenas para retomar? Rouba apenas a fim de voltar para si o coração humano?

Cusa veio ter com Lucano e Rúbria, uma tarde, depois de terem terminado suas aulas. Lucano tecia uma guirlanda de folhas e flores para Rúbria e ela o observava, com intenso prazer. No ombro da menina pousava um pássaro domesticado, todo escarlate e jade, que pipilava em seu ouvido. De vez em quando, ela voltava a cabeça e beijava-lhe o bico amarelo. O professor, sempre pronto a uma frase cáustica para censurar a perda de tempo, ficou abruptamente silencioso. Olhou-os de longe, e sentiu-se tomado de melancolia. Os deuses ressentiam-se da juventude, da beleza e da alegria entre os mortais. Ali estava um rapaz como Febo, deus do sol, e uma donzela de tímida virgindade e doçura. Cusa, tomado por pressentimentos, voltou-se e saiu dali. Cético como era, nem por isso deixou de rezar, naquela noite, para que os deuses não invejassem aquela beleza, aquele ingênuo dulçor. Na manhã seguinte, disse a Lucano, zangado:

- Se quiseres ser um erudito e um médico, advirto-te de que não folgues com meninas, tão descuidadamente. Isso é para a plebe e para os vulgares. Atenção! Vamos repetir esta manhã os diálogos de Sócrates, singularmente obtuso no que a eles se refere.

Aquele foi um verão delicioso. Tudo era serenidade. O pedido de Diodoro, a fim de passar para Roma e para a sua propriedade rural, não tivera resposta, mas ele esperava que fosse favorável. Cultivara assiduamente as horas com sua esposa, e alguma tranqüilidade fez-se nele. Evitava Enéias o máximo possível, e nunca mais levou Lucano de volta a casa. Íris demorava-se em sua mente com a lembrança da manhã, mas ele evitava severamente encontrar-se com a moça. Era um sonho, e devia ser recordada como um sonho. Se um homem não pudesse controlar estritamente seus pensamentos, então não era um homem e, particularmente, não era um romano. A vida exigia disciplina tanto da mente como do corpo e, especialmente, do coração. Recebia livros de Roma, e mergulhava neles. Tinham agora para ele uma significação especial aquelas filosofias de homens ascéticos, cheios de sabedoria, que soavam a nota de paciência e fortaleza quando os homens faziam soar sinos solenes e sonoros. Mergulhado na filosofia eterna, esqueceu a corrupção de Roma e seu fétido e clamoroso presente. Que o mundo todo tombasse. A verdade era imortal. "Os imbecis correm para Roma", citava ele, para si próprio, "mas o homem encontra refúgio nas verdades."

Rúbria alcançou a puberdade, e Aurélia regozijou-se. Houve solenes sacrifícios no templo predileto de Aurélia, o templo de Juno. Ela recomendou sua filha à esposa de Júpiter, a guardiã da lareira, da família e das crianças. Olhou dentro dos olhos luminosos de Rúbria, tão puros e inocentes, e sonhou com netos. Havia ainda em Roma famílias que tinham filhos jovens e vigorosos, devotados aos deuses e à sua pátria. Era possível ter netos, mesmo quando não se teve filhos homens. Trançava os cabelos de Rúbria com fitas e aconselhava-a a que fosse modesta. Ensinou-lhe as artes domésticas e da cozinha, e como uma mulher pode agradar mais seu marido. Escreveu a amigos, em Roma, e comentou a beleza e a maturidade crescentes de Rúbria.

- Estás apressando as coisas disse-lhe Diodoro, certa noite.

- A menina tem apenas onze anos.

Tinha ciúmes do jovem que iria tomar-lhe a filha, gozar de seus risos e doçura, separá-la dele, e fazê-la esquecer o pai.

Murmurando sobre uma tabuinha encerada na qual escrevia a uma amiga querida, mãe de filhos atléticos, Aurélia disse, abstraidamente:

- Qual será o dote de nossa filha? Diodoro, esquece teus bancos, peço-te. Precisamos considerar o futuro de Rúbria. Ela estará pronta para o casamento em menos de três anos.

Três anos. Sou um velho, pensou Diodoro, ressentido. E disse:

- Estás apressando as coisas. A pequena diverte-se a correr pela relva; é ainda uma criança.

Naquela noite embalou Rúbria em seus braços e cantou para adormecê-la. Depois, ficou contemplando as sombras de seus cílios lançadas sobre as faces cor-de-rosa, e a doce curva de sua boca. Minha querida, pensou, querida do meu coração. Com certeza jamais houve donzela tão adorável e tão inocente, tão tépida de carne e tão querida. Uma Hebe[31], nascida para servir os próprios deuses. Desviou o pensamento, com um súbito sentimento de terror. Que os deuses arranjassem outros servidores! Eram deuses, e tinham multidões, mas ele possuía aquela filha.

Uma tarde, Keptah entrou na sala de aula e disse, laconicamente, a Lucano:

- Vem.

Cusa lançou-lhe um olhar furioso e disse:

- O menino está estudando Platão neste momento.

- Vem repetiu Keptah a Lucano, ignorando o professor, que, afinal, não passava de um escravo. E Lucano, sem uma palavra, ergueu-se e deixou o quarto com o médico. Mas, no limiar, parou para uma reverência a Cusa, compreendendo que escravos e servos são muito sensíveis.

- Diodoro tinha posto um burro a serviço de seu liberto, Keptah.

- Um animal desprezível disse o médico, um tanto mortificado.

- Mas ouvi dizer que os burros são freqüentemente mais inteligentes do que os homens e têm senso de humor. Pediu um burro emprestado para Lucano. Hoje vamos a Antioquia disse ele, - Ah! Aqui está teu animal, que vem das cavalariças. Ainda bem que não pedi cavalos, pois ficaríamos desapontados. Para um romano, nosso senhor não se deixa Impressionar pela carne eqüina, e todas as suas criaturas estão picadas de pulgas. Que adianta o dinheiro se não o gozamos? Mas há alguns homens que gozam a idéia de seus cofres mais do que o pensamento de tirar proveito deles.

Sua má disposição fez Lucano sorrir. Os burros estavam gordos, bem-tratados a almofaça, e fitavam o médico e o rapaz com arrogância.

- Eles também não se sentem impressionados a nosso respeito, comentou Keptah, montando.

Suas pernas compridas e ossudas pendiam quase até o chão, e Lucano sorriu. Saltou sobre o animal que lhe fora indicado, acariciou-lhe o pescoço e o burro fechou os olhos, como que entediado.

Começaram, então, a trotar pela estrada de Antioquia, mantendo Keptah um silêncio fora do habitual. Tinha puxado o capuz sobre sua cabeça, menos no esforço de se proteger contra o sol escaldante do que para se retirar em solidão. Às vezes, Lucano chicoteava o animal para que ele saísse a galope, regozijando-se com o sol e com o vento, que não crestavam sua pele alva. Seu cabelo louro esvoaçava para trás, e o menino cantava. Não sabia onde Keptah o estava levando, mas era bastante estar livre à luz do dia, ser jovem e ver vastidões azuis, flores selvagens, escarlates e roxas, ao longo da estrada estreita. Ele tinha os seus sonhos.

Antioquia, como sempre, era um turbulento lodaçal de cor, calor e fedentina. Novas frotas vindas do Oriente e de outras terras estranhas mantinham-se no porto azul e fulgurante, suas velas brancas e vermelhas palpitando contra o céu. As ruas estreitas, curvas e empinadas, retumbavam de vozes estrangeiras, e em todas as portas, em todas as passagens e becos calçados de pedras, apareciam rostos morenos e vorazes, soavam palavreado profano, gritos, risos e exclamações. As lojas fervilhavam. Os gritos dos mercadores deixavam os demais ensurdecidos. Camelos queixavam-se, bigas passavam em disparada ruidosa. Asnos zurravam, e havia um cheiro quente de carne assada, vinhos, acidez, e de especiarias em bolsas aquecidas, ao longo das ruas. Judeus, sírios, sicilianos, gregos, egípcios, tessalonicenses, negros, gauleses, bárbaros de várias procedências e metidos em roupagens estranhas caminhavam ou esbarravam uns nos outros por todas as ruas, levantando nuvens de espessa poeira tranca que a luz do sol tocava. Havia, aqui e ali, discussões acaloradas e brigas e edifícios pálidos e brilhantes salientavam-se no ar. Crianças brincavam nos caminhos de veículos e animais, xingavam os que os conduziam ou montavam, e pediam esmolas, suas faces impertinentes bronzeadas de sol.

Lucano gostava da cidade fulgurante e ela o excitava. Viu homens e mulheres entrando em pequenos templos de coluna, com pombas e cabritinhos sob o braço. Viu as flâmulas brilhantes e sentiu o cheiro do feno aquecido e a pugência do pó. Teve esperança de que Keptah o levasse à taverna favorita do médico, mas este passou por ela sem sequer lhe dirigir um olhar. Soldados romanos namoricavam moças vestidas de cores vivas, e sentiam-se particularmente atraídos pelas que usavam véu no rosto. Pilheriavam com as jovens, e olhos escuros relampagueavam à luz do sol. O ruído era uma presença palpável no ar quente e picante, que trazia em si um odor de alho e excrementos.

Diodoro falava em Roma, da Cidade Imperial, mas Lucano pensava que cidade alguma poderia ter aquele cheiro e aquela sedução. As mulheres debruçavam-se nas sacadas e de dentro de algumas casas vinha o tanger de liras e risos, vinha o cheiro das flores de laranjeiras e das rosas dos jardins que ficavam atrás das altas paredes.

Keptah lá se ia trotando em seu asno, presença recolhida e secreta, para Lucano até depressiva, em todo aquele colorido. Um grupo de marinheiros, usando tangas, e com grandes argolas de ouro nas orelhas, estava discutindo numa esquina, os rostos escuros altivos e violentos, os gestos veementes. As vozes estranhas, falando uma língua que Lucano não reconheceu, gritavam no calor, e uma faca reluziu.

Keptah continuou seu caminho como se estivesse a sós. Lucano suspirou. Havia mais vida do que filosofia. Corpos quentes apertavam-se em torno de seu burro, e havia por toda parte um cheiro ácido de suor. Palmeiras secas, que a poeira recobria, espalhavam-se pelas ruas. Vendedores ambulantes, levando tabuleiros de doces, sobre os quais as moscas voejavam, apregoavam agudamente suas mercadorias e corriam atrás do rapaz e do homem com seus pés nus e escuros. Depois, desapontados, gritavam-lhes maldições. Mendigos sentavam-se contra as paredes, gemendo, batendo em suas tigelas, as barbas emaranhadas e sujas. Mulheres ofereciam flores em cestas, e velhos, com bastões, andavam pelo meio do lodaçal, como se não enxergassem, como se já não fosse o seu mundo. Um grupo de cabras, conduzido por um menino, bloqueou momentaneamente a passagem, os animais gemendo, zombando, dançando. Como sempre, Lucano estava encantado. Riu de um macaco insolente trepado nos ombros de um homem, e desejou inspecionar uma loja de papagaios.

As ruas foram se fazendo mais quietas e mais sombrias, e Lucano percebeu que havia menos pedestres e menos veículos. Agora, os edifícios, velhos e decrépitos, tinham aspecto soturno. Os ruídos da cidade ficaram abafados. Os uivos dos cães diminuíram. Lucano, deprimido, trotava ao lado de Keptah:

- Para onde vamos? Perguntou. - Nunca estive aqui antes.

- Fica quieto disse Keptah, em voz fraca e rouca que veio de dentro de seu capuz. - Esperei muito tempo pela resposta a uma mensagem e ela só chegou hoje.

O ar era mais fresco ali, as pedras redondas estavam úmidas como se houvesse chovido, as paredes das casas mostravam-se intransponíveis e sombrias. As ferraduras dos asnos levantavam ecos e poeira adstringente. Um riachozinho, proveniente de águas de valetas, corria sobre as pedras, escuro e lodoso. Produzia um ruído rouco e cheirava mal. Paredes de pedra de um rosado escuro erguiam-se de cada lado a rua fechada, e não vinham vozes delas. Mas, por uma ou duas vezes, Lucano ouviu o miado brando de gatos invisíveis, e pensou em Íris, a deusa branca dos egípcios, e nos rituais secretos, e nos mistérios do Oriente. O menino estremeceu: a umidade do suor esfriou em sua carne, e ele desejou ter trazido um manto.

Keptah, então, abruptamente, freou seu asno cinzento e fez um gesto para o menino. Parara diante de uma alta parede de basalto, preta e lisa. Não havia janelas recortadas em sua forte e impressionante lisura. Não vinha som de vida de trás de sua altura. Apenas uma portinha surgia em sua fachada repelente. Keptah desmontou e, deprimido, Lucano seguiu-o. Sem falar, o médico bateu na porta, como que dando um sinal. A batida ecoou de parede a parede. Keptah esperou, depois tornou a bater. Dessa vez houve um tinir de correntes, e o som de ferrolhos retirados. A porta abriu-se, com um queixume dos gonzos. A abertura alargou-se, e um velho vestido com grosseira túnica cinzenta ali estava, incrivelmente pequeno, com longa barba branca e os olhos castanhos mais brilhantes que Lucano tinha visto em sua vida - os olhos de uma criança sorridente e maravilhada. Havia chaves retinindo em seu cinto de cânhamo, e trazia os pés descalços.

Falou com Keptah numa língua incompreensível, rápida e em tom de boas-vindas, e curvou-se profundamente. Durante todo o tempo lançava olhares curiosos sobre Lucano. Abriu a porta para trás, tornou a inclinar-se e afastou-se para um lado.

Lucano pestanejou, estonteado. Atrás daquela porta havia um jardim de relva sedosa, tamareiras, árvores brilhantes, fontes, canteiros de rosas e lírios, e toda espécie de flores. O jardim fruía o sol como se fosse um outro mundo. Maciços de salgueiros agitavam-se como cataratas verdes, ao mais doce e mais silencioso dos ventos. As fontes cantavam e as árvores respondiam. A uma certa distância, naquele brilho e perfume, ficava um edifício retangular, baixo e radioso, feito de mármore branco, e para além dele levantava-se um outro edifício de granito cinzento, com janelas em arco, que fechavam, repelindo a luz, e tão silencioso quanto um sepulcro.

Passagens de pedras amarelas serpeavam pelos jardins, e bancos de mármore ficavam espalhados aqui e ali, em pontos de sombra claro-escura, protegidos do sol. Jamais Lucano vira tal beleza e tranqüilidade, e ainda assim havia um ar de dignidade e reserva naqueles jardins e em torno dos edifícios. O silêncio não era perturbado sequer por uma voz, nem se via alguém nos terrenos, no edifício de mármore, ou no outro edifício. O rapaz estava estupefato. Ficou a olhar, estonteado, enquanto a porta se fechava atrás dele e de Keptah, e não teve consciência do cuidadoso correr dos ferrolhos e do tilintar das correntes.

- Vem disse Keptah, e Lucano seguiu-o sobre a relva macia.

Pássaros coloridos fitavam-nos, das ramas douradas. As fontes sussurravam. As rosas balançavam e exalavam tépida fragrância. Os lírios erguiam seus cálices alvos, espalhando seu perfume sagrado, enquanto abelhas suspendiam-se sobre eles, introduzindo os corpos dourados, profundamente naquelas taças. E, pela primeira vez, Lucano percebeu um som que antes não ouvira: era um ruído que o ouvido mal interceptava, não uma canção, não um cântico, mas apagada combinação de ambos. Fazia parte do ar luminoso, parte das fontes, parte do vento e, contudo, era uma voz humana.

Keptah conduzia Lucano, em silêncio, através do relvado e em direção ao edifício retangular de mármore, que não tinha janelas nem pórtico. Uma porta de bronze esculturada com estranhas figuras, que reluzia em toda aquela brancura, abriu-se.

- Entra disse Keptah. Lucano, mesmo em seu estonteamento, teve um sobressalto. Mão alguma abrira a porta, que, aparentemente, movera-se por si mesma, sem ruído de gonzos. Lucano ficou no limiar e hesitou antes de entrar ali. Keptah murmurou: - Nada fales, nada perguntes. Eu vou te deixar por alguns momentos.

A porta fechou-se diante do rosto dele, e Lucano ficou sozinho.

       Embora não houvesse janelas nem porta aberta, a nua alvura do amplo aposento estava impregnada de uma luz flutuante e aperolada que se acentuava, reluzia, desmaiava, depois tornava a reluzir. Era impossível ver a nascente daquela luz, que pulsava como um coração pacífico. Trazia com ela um toque como que de incenso, que vinha de toda parte, e de parte alguma. Lucano percebeu, imediatamente, que estava num templo, mas não sabia de que espécie e, sem que pudesse explicar por que, começou a tremer. Notou, então, que no centro do aposento estava a mais estranha de todas as coisas; não um altar, mas algo que lançou um medo impulsivo na alma do rapaz. Sobre a ampla plataforma central de três degraus baixos de mármore branco levantava-se o grande símbolo da coisa mais infamante do mundo, o símbolo da mais vil criminalidade e morte. Era uma Cruz imensa, que parecia feita de alabastro transparente, e que se erguia quase até o teto raso, de pedra lisa. O medo de Lucano transformou-se em temor respeitoso e espanto. A Cruz elevava-se, solitária, e nada mais havia no templo a não ser sua simples, mas terrífica majestade; nenhum som, mas absoluto silêncio.

A luz pulsava e desvanecia-se, e a Cruz esperava. Lucano, entretanto, ficou de pé, longamente, a contemplá-la, o coração batendo audivelmente em seus ouvidos. Poucas, muito poucas vezes, ele vira um homem crucificado nas colinas dos arredores de Antioquia, e sentira-se comovido até as lágrimas, tomado de uma cólera a que não saberia dar nome. Depois vira a cruz de ouro na mão de Keptah, na noite da Estrela, havia já dois anos. Tinha quase esquecido.

Timidamente, caminhando devagar como que para não perturbar aquele silêncio santificado nem aumentar a maré da radiação flutuante, aproximou-se da Cruz e ficou na base dos degraus rasos e brilhantes, levantando os olhos para ela. Seus braços poderosos estendiam-se bem acima dele. Ela mostrava uma qualidade sobrenatural de espera, fria e interrogativa. Seu corpo era fixo e poderoso, ainda assim leve como luz. Parecia agora, ao rapaz, menos do que pedra, mas algo sensível e eterno, inalterável em sua vastidão, esculpida em grandeza.

Lucano olhava para ela, e seu olhar não podia desviar-se. Nada havia agora nele, a não ser uma antecipação sem nome. Sua garganta pulsava. Sem volição sua, seus joelhos dobraram-se e ele ajoelhou-se no primeiro degrau, juntando as mãos, sem retirar os olhos da Cruz. Ela agigantava-se por sobre o rapaz, que sentiu ali alguma horrível presciência, mas, ainda assim, era como se braços se suspendessem sobre ele, protetoramente. Agora, a luz do templo aumentava, como o reflexo da lua em asas amplas.

Não havia pensamento em Lucano, nem consciência da carne, apenas um profundo encantamento e algo como júbilo tocado de dor. Esteve ajoelhado, longamente, seus olhos azuis levantados bem alto para a Cruz, as mãos postas.

Não soube em que momento a Cruz começou a brilhar; em que momento a própria Cruz começou a ondular com leves sombras rosadas. Era como se a sua alma se tornasse consciente disso antes da sua mente, e assim ele não se alarmou. Estava, também, sonhadoramente consciente de uma Presença invisível, com a Cruz, com a luz, com ele próprio. A Presença era como que um feixe da mais profunda luminosidade, repleta de enorme ternura masculina. Lucano disse, com seus lábios pálidos:

- O Deus Desconhecido.

Durante os dois últimos anos, sua juventude e a abundância de sua vida, seu gozo apaixonado do conhecido, suas ambições, seu muito caro amor por Rúbria, sua sensação de pertencer ao mundo e àqueles que o amavam, sua dedicação pela medicina e sua preocupação com Keptah, a própria alegria e alvoroço de sua idade, sua saúde saltitante e seu deleite em todas as coisas, tinham obscurecido, tornado apagado e ilusório o que ele tinha conhecido ou sentido quando criança. Mesmo o Deus Desconhecido se tornara um dos do Panteão, e os aspectos, relatos e benevolências dos deuses tinham intrigado seu coração jovem como uma tremenda fantasia de beleza. Seus dias, durante aqueles dois anos, corriam como um rio colorido e vivaz, atrás e diante dele, cheio de promessas. Cusa era um cético e Lucano viera a examinar as coisas sob tom humorístico, mesmo os sonhos e mistérios que conhecera quando criança. Como se soubesse, Keptah também falara cada vez menos no Deus Desconhecido e se limitara às lições de medicina. Às vezes seu rosto concentrado e secreto fizera Lucano sentir uma constrangedora impressão de culpa.

E agora, naqueles momentos, sua vida tornou-se uma ilusão, a vida de uma criança muito nova, e ele estava de novo na presença do grande Milagre, que não o repreendia, antes lhe dava as boas-vindas.

Lucano não compreendia a significação da Cruz com a sua mente; apenas seu coração compreendia e ainda assim não tinha palavras.

Sentia-se repleto de êxtase como se, diante dele, visões se abrissem magnificentes, contudo dolorosas por um sofrimento sobrenatural, que ficava para além da compreensão dos homens.

O faiscar da Cruz tornou-se mais profundo em colorido e mais intenso, de forma que as paredes brancas, o teto e o piso empalideceram como nuvens, parecendo tão tênues quanto elas. Lentamente, de forma sincrônica, o colorido rosado e inquieto tomou a aparência de flutuantes sombras de sangue, empoçando, tombando e derivando dos braços e descendo por todo o enorme corpo da Cruz. A luminosidade aperolada que flutuava pelo templo moveu-se mais rapidamente, como se presenças etéreas se estivessem reunindo em maior concentração. O menino estava consciente de que não sentia medo, apenas um assombro crescente e um amor tão profundo que seu corpo mal podia conter. Os reflexos escarlates vindos da Cruz reluziam em seu rosto, em sua túnica branca, em suas mãos postas, em seus olhos, em seus joelhos dobrados.

Vagarosamente, arrastado como que por um encanto, ele ergueu-se e subiu os degraus rasos, pondo-se em nível com a Cruz. Era uma árvore onde se misturavam o vermelho e o branco, palpitando com força desconhecida para ele. Ousou estender a mão, e tocá-la; sentiu-a fria sob seu toque, ainda assim vibrando lentamente. Súbito, Lucano foi dominado por uma paixão que ia além do arrebatamento: sentia-se arrastado para o próprio coração da Cruz. Suas pernas enfraqueceram e ele deslizou sobre a plataforma, envolveu o tronco da Cruz com os braços e encostou o rosto contra ela, sem a mais leve consciência de que seu corpo tremia de adoração, e com a paz mais profunda que ele já conhecera. Fechou os olhos: estava no âmago do universo.

A porta de bronze abriu-se silenciosamente, como que tocada por mão invisível, e quatro homens apareceram no limiar, e um deles era Keptah. Conservaram-se na abertura e viram o rapaz prostrado, os braços circundando o pé da Cruz, o rosto contra seu fuste. Três dos homens, muito mais altos e de ombros mais largos do que o do próprio Keptah, sorriram com ternura, olhando uns para os outros. Aproximaram-se da plataforma com pés que pareciam calçados de veludo, e ali ficaram, sem uma palavra, contemplando a Cruz por muito tempo. Depois, os quatro ajoelharam-se, inclinaram a cabeça sobre o peito e fecharam os olhos. Seus lábios moviam-se em oração.

Três dos homens estavam vestidos como reis solenes, pois na verdade eram reis. Suas túnicas e seus mantos reluziam em tonalidades carmesins, azuis e brancas, e um tom jade dos mais delicados. Cinturões de ouro trabalhado, incrustados com jóias reluzentes, rodeavam-lhes a cintura. Turbantes da mais pura seda branca envolviam-lhes a cabeça, constelados de pedras preciosas que brilhavam com resplendor celeste. Traziam ao pescoço imensos colares largos de ouro e prata, cada um mais comprido do que o outro, franjados de metais nobres e intrincadamente trabalhados com pedras preciosas de muitas cores. Os braços morenos e nus ostentavam largos braceletes incrustados de gemas, logo abaixo dos ombros e em torno dos pulsos, e os pés calçavam sandálias douradas. Os rostos orientais mostravam-se morenos pelo sol do deserto, e as barbas curtas eram viris e reluziam com óleos perfumados. De sob espessas sobrancelhas pretas seus olhos orientais cintilavam como fortes estrelas escuras, e seus narizes eram de águias, aduncos e poderosos, mais do que um tanto selvagens, como o eram seus lábios vermelhos.

Lucano não saberia dizer quando teve consciência da presença de Keptah e dos estranhos. Mas não lhe pareceu esquisito que ali estivessem, e olhou-os com aceitação tranqüila, esperando, os braços ainda rodeando a Cruz. Quando se levantaram, Lucano não se moveu. Pois foi como se eles o tivessem esquecido ou não o tivessem visto. Deixaram o templo, e Lucano tornou a dormitar ou dormir, e aquilo foi algo que mais tarde não soube explicar a si próprio. Sentia a mais profunda relutância em deixar a Cruz. Enquanto ali estava, sentia segurança, paz e a realização de todos os desejos.

Keptah ficou de pé, separado dos estrangeiros, no jardim, enquanto eles se comunicavam uns com os outros, voltando-se para o que falava, com a mais profunda gravidade, e depois confirmando com um gesto de assentimento. Falavam uma língua que nem Keptah conhecia, mas que tinha ressonâncias familiares, como se ouvisse ecos de vozes de sua infância.

Afinal, como que chegando a uma conclusão, sorriram afetuosamente para Keptah, e um dos estrangeiros aproximou-se dele, e quando Keptah ajoelhou-se, o outro colocou-lhe a mão sobre a cabeça, abençoando-o. Falou então, de forma que Keptah pudesse entender.

- Não te enganaste, meu irmão disse ele. – Estás verdadeiramente certo. O rapaz é um de nós. Mas não pode ser admitido na Fraternidade, e eu não ouso dizer-te o porquê. Há um outro caminho e uma outra luz para ele, através de longos e áridos lugares. Cinzentos e desolados, e ele terá de encontrá-los. Porque Deus tem trabalho para ele realizar antes que chegue à sua última viagem, e uma mensagem única para lhe dar. Não te sintas desapontado, não chores. Fizeste bem, e Deus está contente contigo. Muitos serão chamados dos cantos mais remotos da terra, e quando e como são escolhidos não está em nossas mãos, mas nas mãos de Deus, apenas. Ensina-lhe o que puderes ensinar-lhe, depois deixa-o ir, mas podes estar certo de que não se extraviará nas sombras e de que voltará de novo para a Cruz.

Um deles contemplou meditativamente os jardins, como se visse uma visão longínqua.

- Chegará até ela, e sentará em seus joelhos murmurou. - Ela lhe falará das coisas que ponderou em seu coração e sobre as quais não falará a outro homem. Tem poucos anos mais do que o próprio Lucano, e também terá de sofrer sua angústia, que aceitou na noite da Anunciação Angélica. Ele verá sua beleza e doçura e ouvirá sua meia voz. Mas isso será no futuro, não está prescrito para agora.

- Eu desejei vê-la, tocar seu manto disse Keptah, a voz trêmula. - Sonhei com a visão do menino recém-nascido em seus braços.

- Tu a verás disse um dos estrangeiros, em voz baixa. – Se não a vires aqui, hás de vê-la no céu.

- Misteriosos são os caminhos de Deus disse ainda outro. - Nós só podemos obedecer.

- Eu nada tenho a dar, disse Keptah.

- Estás dando tua vida. És fiel e cheio de conhecimento.

Keptah levantou-se, depois inclinou-se e beijou a barra do manto dos estrangeiros, os olhos nublados pelas lágrimas. Eles ergueram-no, beijaram-no e deixaram-no, dirigindo-se para o edifício de granito que ficava a distância.

- Dai-me sabedoria murmurou Keptah quando eles se afastaram.

Lucano surgiu, passando pela porta que ficara aberta, deslumbrado, pestanejando, e encontrou Keptah sozinho. O rapaz e o homem contemplaram-se mutuamente, demasiado repletos de pensamentos para poderem falar durante algum tempo. Depois, Lucano disse:

- Quem eram aqueles homens? Parecem reis.

- São reis disse Keptah, delicadamente. - São os reis Magos[32].

Tomou a mão fria de Lucano e conduziu-o para a saída, dizendo:

- Não faças perguntas porque eu não posso responder. Não me é permitido falar.

 

- Um dos nossos maiores sacerdotes da Babilônia, ou Caldéia, declarou, certa vez, que se um homem se priva das coisas boas do mundo, coisas permitidas pelo mundo e por Deus, será chamado severamente a prestar contas disso falou Keptah. - Isso é algo que esses moralistas ascéticos, de rostos compridos, os judeus fariseus intelectuais, negariam. E, possivelmente, também nosso bom senhor, o tribuno, o negaria. Entretanto, é a verdade. E uma filosofia que não pode ser desafiada pela declaração de um Sócrates dizendo que desejar o mínimo possível é fazer aproximação mais chegada de Deus. Isso vem a ser, como sempre te digo, meu jovem Lucano, uma interpretação individual, e o que para um homem é felicidade, bondade e moralidade, pode ser odioso para outro homem.

Lucano riu:

- Não admira, Keptah, que Diodoro esteja sempre se queixando de que és um sofista, e de que qualificas uma declaração agradável com outra desagradável, sendo ambas verdadeiras por igual.

- Meu gregozinho, lidou Keptah, com indulgência -, eu te disse: sou homem tolerante, por isso pareço complexo e tortuoso aos simples, não merecendo a confiança deles. Para ser homem de conhecimento é preciso que se saiba não só os próprios argumentos, mas também os argumentos dos outros. Agrada-me que compreendas ser uma declaração repulsiva à crença de alguém possivelmente tão verdadeira quanto uma que é agradável a esse alguém. Tudo isso, com certeza, relaciona-se apenas aos negócios do mundo, que eu acho infinitamente divertidos.

Estavam sentados na taverna predileta de Keptah, muito freqüentada por homens de negócios, estudantes, eruditos, mercadores, das muitas raças que existiam em Antioquia. A rua, lá fora, calçada com pedras escuras, reluzia com luz ofuscante, sua estreiteza varrida por espessas nuvens de pó quente e branco, e retumbante de queixas dos camelos e dos burros, das vozes dos homens rudes, bem como do roçar pelo piso dos pés apressados dos passantes, e do rumor das rodas. Do lado oposto, os edifícios de um branco-amarelo devolviam a luz, como espelhos palpitantes, diante dos quais passavam homens e mulheres vestidos de vermelho, azul, preto, amarelo, verde e escarlate. Mas a taverna estava fresca, tranqüila e ensombrada, cheia de odores do vinho, dos bons queijos e da excelente pastelaria pequena e quente. Tigelas de madeira, onde se amontoavam as azeitonas da Judéia, Pequeninas e salgadas, uvas dos vinhedos locais arroxeadas, opalescentes e brilhantes mesmo na sombra -, romãs que pareciam globos de fogo vermelho, outras frutas, e cachos de tâmaras douradas, destilando sua gota de mel, estavam sobre as mesas brancas, bem esfregadas. As paredes ásperas da taverna foram decoradas por um artista da terra que, embora mostrasse crueza, falta de treinamento e delicadeza na composição, compensava essas falhas pela criação de um colorido vivaz pela inocente lascívia. O chão de ladrilhos vermelhos era de uma frescura agradável para os pés de Keptah e seu aluno, assim como o eram para seus lábios as taças de vinho bem frio.

A cabeça de Lucano formava um halo de esplendor na sombra refrescante da taverna, o que atraiu a atenção dos homens escuros, nas outras mesas. Um homem alto, moreno, com turbante à maneira oriental, ficou particularmente encantado. Seu rosto estreito, astuto, mas vigoroso, iluminado por um par de olhos extraordinariamente brilhantes, e terminando numa barba rala e curta, não podia desviar-se da contemplação do jovem grego. Seu vestuário, de um roxo sombrio e verde-pálido, garantia a quem quer que o visse tratar-se de homem de posição, o mesmo confirmando os muitos anéis que cintilavam em seus dedos. Seus servos, armados com adagas, estavam de pé junto à porta aberta, bebendo copinhos de vinho. Exibiam aspecto disposto, suas fortes pernas morenas reveladas vigorosamente por baixo das túnicas coloridas que usavam.

O estrangeiro, finalmente, inclinou-se para Keptah, em seu comprido manto de linho pálido, e falou em grego, com sotaque execrável:

- Estive ouvindo o que dizias, senhor, com muito interesse. Permita-me apresentar-me: sou Lino, o mercador de Cesaréia, na Judéia, e negocio com sedas, jades e marfins de Cathay[33]. Minha caravana está a caminho de Roma.

Falava com Keptah, mas seus olhos inquietos estavam voltados, com encanto, para Lucano, que, reparando no homem pela primeira vez, corou inexplicavelmente sob aquele olhar atento, que o percorria. O rapaz mexeu-se na cadeira, constrangido.

Keptah estudou Lino fria e deliberadamente, observando em particular a contemplação hipnótica de Lucano. Meditou. Não era cedo demais, resolveu, para dar a oportunidade de Lucano conhecer alguns dos aspectos mais sombrios e mais pungentes da vida. E disse, com cortesia:

- E eu sou Keptah, médico do tribuno Diodoro, pro cônsul da Síria. - Hesitou e continuou depois: - Vens da Judéia, disseste? És judeu, senhor?

O rosto de Lino modificou-se, momentaneamente, quando teve conhecimento da posição erudita de Keptah. O pro cônsul tinha fama que desagradava muito os mercadores ao longo do Grande Mar, e aquele Keptah era seu médico. Lino compôs as feições, dando-lhes expressão de respeito, que não era de todo fingida. Atem disso, estava satisfeito. Aquele menino de cabelos de sol seria, estava evidente, o escravo do médico, e assim as coisas poderiam vir a ser negociadas, conforme ele desconfiara.

- Posso oferecer-te uma garrafa de vinho, senhor Keptah? - perguntou Lino. - Com os meus cumprimentos?

- Se beberes conosco disse Keptah, gravemente.

Lino levantou-se, alegremente, e mostrou-se um homem gracioso, alto, ágil. Abrindo de leve suas vestes, Keptah viu que ele usava um colar bem largo, de ouro intrincadamente trabalhado, à maneira egípcia, mas que agora estava sendo adotado por alguns dos jovens modernos, entre os romanos. Lucano, ainda corado e constrangido, sem saber por quê, afastou um pouco sua cadeira a fim de dar lugar para o mercador e, ao fazer isso, sentiu um leve beliscão em seu joelho. Percebeu que se tratava de uma mensagem de Keptah. O médico lançou-lhe, também, um rápido olhar que, interpretado, era ordem para que segurasse a língua, fosse em que circunstância fosse.

Não parecia estranho para Lino o fato de um escravo sentar-se tão familiarmente com seu senhor, quando o rapaz era, evidentemente, o querido bem-amado de seu dono, o mimado e acariciado, usado para certos propósitos. Agora que estava mais perto dele, Lino sentia-se cada vez mais seduzido. Conhecia exatamente um senador romano que acharia aquele garoto uma beleza, e que não discutiria o preço dele. Mil sestércios não seriam demais. Lino sorriu, e a brancura canina de seus dentes foi um clarão entre o moreno de seu rosto ladino e inteligente.

- Não, senhor Keptah, não sou judeu disse ele. - Que Ball[34] não permita! Sou de raça mais antiga. Um babilônio, embora outras raças igualmente esplêndidas do Oriente tenham contribuído para o meu sangue.

Lucano olhou para Keptah, que tornou a beliscá-lo sob a mesa.

- Muito interessante disse o médico, imperturbável. O taverneiro aproximou-se da mesa e Lino ordenou-lhe, com maneiras senhoris, que trouxesse o melhor vinho, enquanto Keptah, num gesto aprovador, dizia: - O Abraão dos judeus era babilônio. Talvez tenhas ouvido falar nele, senhor Lino?

- Ah! Sim disse Lino, despreocupadamente. Tornou a sorrir: - Quando estou na Judéia sou judeu, quando estou na Síria sou sírio, quando estou em Roma sou romano, e quando estou na Grécia sou grego. - Riu, alegremente.

Keptah serviu-se de algumas minúsculas azeitonas pretas, e disse:

- E quando estás na África, sem dúvida, és negro.

O sorriso de Lino apagou-se abruptamente. Sua mão carregada de anéis saltou para a adaga. Keptah cuspiu serenamente seus caroços de azeitona na palma escura, depois atirou-os ao chão.

- Um homem inteligente é como o camaleão -, disse ele, com admiração excessiva. - Tem todas as coisas de todos os homens. Vejo que és um filósofo como eu o sou, quando não estou destilando poções e atendendo a família do ilustre Diodoro. - Olhou para cima, e seus olhos enigmáticos fixaram-se no mercador, cuja mão ia lentamente se afastando da adaga. - Penso que te disse ser o médico da casa do pro cônsul da Síria, o romano de grande virtude e influência? E particularmente entrosado com a disciplina e a espada.

Lino, cujas atividades menos horrorosas já chamara duas vezes a atenção de Diodoro, sorriu sedutoramente:

- Imagino que ele deva pagar-te bem disse, com insinuação.

O rosto de Keptah manteve-se inescrutável.

- Ah, sim! Tanto quanto um cavalheiro sóbrio se permite, e meu senhor é famoso pela sua sobriedade. Um dos "velhos" romanos. Conservo-me com ele porque sinto afeição pela família, embora tenha recebido excelentes ofertas de outros.

Lino relaxou, recostando-se em sua cadeira em atitude graciosa. Tornou a olhar para Lucano com intensidade. Este achava aquela conversa atordoante. O taverneiro chegou com uma garrafa de excelente vinho velho, mantendo-a reverentemente nas mãos, com toda a sua poeira, e curvando-se. Keptah e Lino inspecionaram com olhos críticos a garrafa, fizeram um gesto de que a aceitavam, e o vinho foi servido em taças de prata adequadas à sua importância e raridade.

Keptah serviu um pouquinho a Lucano, e o rapaz sentiu a delicada e fina fragrância da bebida.

- Não tomarás um vinho deste em casa de Diodoro, que os deuses       abençoem sua bolsa magra e sua língua bárbara disse Keptah.

Lino, que tinha pungentes e memoráveis lembranças do pro cônsul, pensou perceber desdém e escárnio na voz de Keptah e ficou mais à vontade do que nunca.

- Apesar disso disse Keptah, com um olhar furtivo e dominador para Lucano -, ele cuida muito dos que o servem, principalmente de seu médico. Temos respeito mútuo, e apreciamos o valor um do outro. Por isso ele me forneceu quatro escravos bem armados para minha proteção. Esperam apenas pelo som de minha voz, na rua que fica aí atrás, e onde eles estão guardando a minha liteira.

Os lábios vermelhos de Lucano abriramem estupefação diante daquela inverdade, mas Keptah agora estava bebericando seu vinho com o ar de um epicurista satisfeito. As sobrancelhas negras de Lino levantaram-se em surpresa, mas o homem não duvidou das palavras do médico nem por um instante. Aqui está, pensou ele, um homem de importância, que tem ar elegante e seguro, ar que apenas as pessoas muito estimadas adquirem. O taverneiro, em honra do vinho, trouxe uma tigela polida e uma bandeja para a mesa.

- Ah! Disse Keptah, com ar apreciador -, corações de alcachofras em vinagre e óleo, com um toque discreto de alcaparras e alho-poro. Há alguns pratos romanos que eu aprecio. - Mergulhou um pedaço de pão na tigela e comeu elegantemente o que tinha ali pescado.

- É verdade que os romanos não são civilizados, mas, às vezes, têm inspirações.

Lino estava ficando impaciente. Era um mercador e, portanto, homem de decisão. Estalou um dedo na direção de Lucano e disse:

- Senhor Keptah, este moço é com certeza um grego? Esse cabelo dourado, essa pele branca, esses olhos azuis, o contorno de suas feições são encantadores e gregos.

- Viste muitos como ele na Grécia? Perguntou Keptah, demonstrando surpresa.

- Não. Os gregos são uma raça de pequena estatura e de pele morena. Adoram o que é claro, por causa disso, e imortalizaram tais coisas em suas estátuas. Podes estar certo de que o ideal dos homens não se parece a eles próprios, mas apenas aos seus senhores. Apesar disso, o rapaz é grego, embora, sem dúvida, seus antepassados tenham entrado na Grécia vindos das frias regiões do Norte, ou Gália, onde os homens usam peles de bichos e chifres de animais, e vivem em florestas primitivas. Não é ele de considerável beleza, mas também de infantil virilidade?

Lucano não podia compreender seu mentor e mestre, e estava indignado e humilhado. Agora não só temia Lino, achando-o desagradável, mas detestava-o.

A maneira de falar de Keptah, como se Lucano não fosse humano e pudesse ser discutido como se discutem cavalos ou bons cães, confirmou para Lino a idéia de que se tratava de um escravo, e servo de Keptah.

- Um belo rapaz, disse ele, com abafado encantamento. - Como se chama ele, senhor Keptah, e que idade tem?

Keptah bebericou seu vinho, olhos fechados, em reverência. Lino esperou. Suas jóias reluziam nas sombras azuis da taverna.

- Tem treze anos disse Keptah -, embora seja alto, como todos os pagãos. Mas é gracioso, não é?

Lino estava mais satisfeito do que nunca. O menino tinha treze anos, portanto ainda não alcançara a puberdade. O velho senador de Roma ficou esquecido. Havia damas patrícias, cansadas de seus maridos e amantes, mulheres de grande fortuna, que achariam prazeroso levar aquele menino à puberdade, e depois às suas camas, para iniciar sua inocência nas artes do amor. Era bem possível que pagassem dois mil sestércios por um tesouro daqueles, para iludir seu tédio. A esposa dissoluta de um dos augustais mais notáveis, por exemplo, agora em seus quarenta anos, e que tinha tendência para rapazes assim! Ela ficaria fascinada com aquela beleza e não resistiria à compra. Lino reclinou-se confidencialmente para o lado de Keptah e disse em voz baixa, mas que não escapou aos ouvidos de Lucano:

- O nobre tribuno é um homem notável, como disseste, pela sua sobriedade. Conservas-te com ele por motivos virtuosos, tais como seja devotamento e lealdade para com a sua família. Este rapaz não é um dos escravos dele?

- Não disse Keptah. - De certa forma, ele me pertence. O tribuno entregou-o às minhas mãos, como recompensa daquilo que tu bondosamente chamaste minhas virtudes.

Os lábios de Lucano tornaram a abrir-se em nova indignação e logo o rapaz pestanejava, sob o beliscão de Keptah. Lino sorria beatificamente.

- Talvez, Keptah, possamos chegar a certo acordo. Tenho clientes em Roma que dariam valor a este rapaz.

- De verdade? Indagou Keptah. - Um senador, talvez, ou uma dama que explorou muitos deleites e sente-se entediada? - voltou-se para Lucano e perguntou, afetuosamente: - Gostarias de ir para Roma, Lucano?

- Não disse Lucano.

Lino, porém, estava dizendo-lhe, peremptoriamente, com um estalido de dedos:

- Levanta-te, rapaz! Quero examinar-te melhor.

Lucano, incrédulo diante daquele tom com o qual ninguém jamais se lhe dirigira antes, e sentindo-se ultrajado, agarrou-se às bordas de sua cadeira e dirigiu um olhar furibundo para Keptah. E este, indefinível e enigmático como só ele podia ser, devolveu-lhe o olhar de uma forma sombria, que nada disse. Foi aquela expressão que confundiu completamente Lucano, e levou-o a levantar-se, menos em obediência à ordem de Lino do que num primeiro movimento de fuga. O rosto de Keptah não se modificou. Atirou o braço longo e emaciado por sobre o encosto de sua cadeira, e as pregas do linho cinzento claro tombaram daquele braço como pano que caísse sobre desenho de ossos.

Lino aproximou-se de Lucano, e os outros mercadores, incluindo estudantes e eruditos que estavam na taverna, deram sua franca atenção e curiosidade ao rapaz. Por Vênus! Pensou um homem que comerciava com óleos e perfumes, aqui está um verdadeiro Adônis[35], com cabelos que parecem de sol, e olhos tão azuis como o céu setentrional no inverno. Assemelha-se a uma estatua, com a doce rigidez da juventude em seu rosto e a delicada severidade da inocência em sua boca. E que fronte aquela. como mármore maciço, pés arqueados como pequenas pontes, e uma altura que seguramente vem dos deuses.

O próprio Lino surpreendeu-se com a estatura de Lucano e ficou Um tanto desconfiado. Mas a túnica branca e curta do rapaz estava orlada com o roxo pálido da pré-adolescência[36], e aos olhos argutos de Lino, depois de um momento de observação, ficou evidente que apesar de sua estatura e de seus ombros largos, o rapaz era verdadeiramente muito jovem. Lucano teve violento sobressalto quando Lino estendeu suas mãos morenas e ergueu-lhe a túnica, apalpando-lhe depois as nádegas. Seus olhos azuis faiscaram de cólera, mas ainda assim um orgulho novo o mantinha agora Imóvel rígido como pedra.

- Ah! Murmurou Lino, pensativamente. - Eu estava pensando em certo califa rico como Creso, se as nádegas fossem mais macias e mais arredondadas. Mas este rapaz é, evidentemente, o feto de um homem, e não um brinquedo para um cavalheiro da Pérsia. - Manejava Lucano com o grosseiro interesse de um homem que examina um belo animal que lhe ofereceram à venda.

Lucano, apesar do embaraço e cólera que lhe subiam à mente, conscientizou-se, pela primeira vez na vida, de profunda e inenarrável depravação, e de inteira repugnância. Ouviu as palavras murmuradas por Lino, que continuava a inspeção e sua carne branca arrepiava-se e fazia-se fria, e ele não se poderia ter movido mais do que o mármore - ao qual se assemelhava poderia fazê-lo por sua própria vontade. Mas seu coração tremia e seu espírito sofria náuseas por aquele terror. Percebia profundezas nunca antes pressentidas, abismos, escuras e ardentes obscenidades do espírito humano. Jamais encontrara tais coisas no lar do virtuoso tribuno, nem sequer com elas sonhara. Não que estivesse integralmente consciente das insinuações ou que as compreendesse por completo. Era como uma criança que, correndo e rindo para uma gruta verde e secreta, esbarrasse com uma cena de licenciosidade e, sem compreender inteiramente, sentisse que ali havia alguma coisa de libertino e vergonhoso, e ficasse aterrorizada.

As mãos pesquisadoras, beliscadoras e tateantes de Lino tinham monstruoso efeito hipnótico sobre o rapaz. Ele se sentia degradado, mas incapaz de repelir a degradação. Sentia sua humanidade insultada, sua integridade ameaçada. Ainda assim, como vítima destituída de voz, não tinha o poder de resistir, mas podia olhar, sem ver, para Keptah, sentir náusea diante daquela traição incrível, e o fogo da ignomínia mesclado à cólera furiosa, em seu peito.

Lino, sorrindo rapidamente, atirou-se de novo à sua cadeira.

- Quinhentas peças de ouro, disse ele a Keptah.

Tirou uma bolsa dos grandes discos de ouro que formavam o cinturão acima de sua cintura esbelta, e dela derramou um monte faiscante de ouro:

- Sejamos breves. Tu compreenderás, senhor, que eu não posso escoltar esse rapaz através das ruas, à luz do dia. - Piscou e sorriu - de forma forçada para o enigmático médico. - Já houve alguns pequenos aborrecimentos com os malditos soldados do pro cônsul, e eu não desejo me encontrar de novo com eles. Aqui estão cem sestércios. Entrega-me o rapaz esta noite, na hospedaria da Estrada das Virgens, e receberás as quatrocentas peças restantes.

Toda a carne de Lucano ardia como se tivesse sido crestada com fogo, e as veias de suas têmporas pulsavam visivelmente. Um dos comerciantes exclamou:

- Quinhentos sestércios! Isso é roubo, senhor. Eu ofereço mil. - E fez menção de se levantar de sua cadeira, ansiosamente.

Então Keptah falou, calmamente:

- O rapaz não está à venda.

Lino corou profundamente e debruçou-se para ele:

- Não está à venda? Repetiu. - Este escravo não está à venda... por uma fortuna? Estás louco?

- Mil sestércios! Gritou o outro comerciante, aproximando-se da mesa.

Os demais que estavam na taverna aplaudiram, assobiaram, protestaram, riram. Ouvindo o alvoroço, o taverneiro correu para a sala, trazendo uma bandeja com pastelaria nova e quente. Keptah chamou-o com um gesto do dedo e disse:

- Meu bom Sura, queres ir, por favor, até a próxima rua, imediatamente, e dizer ao jovem Capitão Sexto, que Keptah, o médico do nobre tribuno Diodoro, requer sua rápida presença aqui?

O taverneiro curvou-se e saiu correndo para a rua. Lino saltou para trás, blasfemando. Sacudiu o punho diante do nariz imperturbável de Keptah. Os outros fizeram silêncio, boquiabertos.

- Maldito egípcio! Gritou Lino. - Cortarei tua garganta!

Sacudia-se de fúria, e seus servos aproximaram-se dele imediatamente, facas em punho.

Keptah não se abalou.

- Não sou egípcio, meu bom homem de muitos, abomináveis e desconhecidos sangues. Nem sou homem que deseje o sangue alheio. Apressa-te e parte já, antes que o capitão chegue com seus homens. Não compreendestes. Este rapaz é a menina dos olhos do pro cônsul, é para ele como um filho, e nasceu livre na casa de Diodoro.

Os outros correram para fora da taverna, trepidantes, não desejando estar presentes quando os soldados chegassem, temerosos de brutalidades. Lino ficou sozinho com seus servos. Olhou para Lucano, suas mãos finas fizeram inconscientes movimentos de rapina, como se quisesse agarrá-lo e levá-lo imediatamente. Começou a respirar pesadamente e depois girou nos calcanhares. suas ricas vestes roxas e verdes flutuando em torno do corpo. Saiu da taverna como um vendaval, os servos correndo atrás dele. Keptah e Lucano ficaram sozinhos, e o rapaz sentou-se lentamente, o suor descendo-lhe pelo rosto lívido, os olhos amargos e frios fulgindo nas cavidades com tonalidades rancorosas.

Keptah, despreocupado, apanhou um cacho de tâmaras e mastigou-as apreciativamente. A pilha de moedas de ouro estava sobre a mesa, e reluzia na sombra azulada. Keptah teve a atenção atraída para ela, e então sorriu.

- Aquele comerciante velhaco não ficou para pagar sua conta comentou ele. - Entretanto, deixou sua bolsa, generosamente, e eu pagarei o que ele ficou devendo e guardarei o resto. Sem dúvida, foi sua graciosa intenção que isso se fizesse, e eu não sou homem para recusar um presente desses.

- Como ousaste! Exclamou Lucano, e agora estava de novo muito jovem, e próximo das lágrimas. - Não és apenas um mentiroso, Keptah, mas também um ladrão e um velhaco!

Chorava e repelia as lágrimas com as costas da mão. Keptah ficou a olhá-lo pensativamente. Afinal pousou o cacho de tâmaras, seu rosto modificou-se severamente e seus olhos enigmáticos ficaram frios e indiferentes.

- Tu me traíste! Soluçava o menino. - Tu me envergonhastes e me degradaste! E eu pensava que fosses meu amigo, bem como meu professor.

- Ouve-me, Lucano disse Keptah, num tom firme e calmo, e Lucano tirou as mãos dos olhos e ficou olhando para o médico. – Já não és mais criança, pois viste, ouviste e sentiste o mal. É bom que o tivesses conhecido, pois o conhecimento do mal traz virilidade e aversão. Agora, estás armado.

Empurrou algumas moedas com o dedo fino.

- Nasceste livre, numa estimável casa, onde os escravos são tratados com bondade. Jamais os viste serem tratados com crueldade, apenas com justiça. Isto é das coisas mais raras: a casa de Diodoro não é como a maioria.

Um violento e frio reflexo escapou de sob suas pálpebras descidas.

- Foste degradado, tua humanidade tratada ignominiosamente, tua dignidade de homem foi insultada. Viste cicatrizes nas mãos de teu pai, que foi outrora escravo, e as aceitaste serenamente, como uma criança, considerando-as naturais. Perguntastes algum dia a teu pai o que significa ser escravo, ser tratado como menos do que um homem, menos, mesmo, do que um cavalo de valor ou um bom cachorro? Tu lhe perguntastes sobre sua própria jovem ignomínia, sua própria vergonha, sua própria amargura, quando sua humanidade era rebaixada? Sabes o que é ser escravo?

Lucano ficara inteiramente imóvel. Algumas lágrimas reluzentes permaneciam em suas faces pálidas. Então, disse, em voz baixa:

- Não. Não. Perdoa-me. Eu não compreendi. Eu era uma criança, e não compreendi. Tu me ensinaste.

Keptah sorriu, melancolicamente.

- O conhecimento vem com lágrimas, desgosto e dor. Isso é justo, pois o homem não pode compreender Deus quando é jovem, feliz e ignorante. Só pode conhecer Deus através do desgosto: do seu próprio desgosto e da agonia e desgosto dos outros.

- Homem algum, daqui por diante, será um escravo a meus olhos, mas um homem de dignidade, e odiarei a escravidão com toda a minha alma, com todo o meu coração! Disse Lucano, a voz trêmula.

Keptah pôs a mão sobre o ombro do rapaz, delicadamente:

- Eu te expus ao mal para que não continuasses a ser indefeso.

Eu te expus ao ar vil da escravidão para que nunca mais a aproves. E agora aí está nosso bom Sexto, com seus dois bons soldados. Ah! Sexto, por favor, espera um momento e bebe conosco um pouco deste excelente vinho. Fomos incomodados por uma pessoa desprezível, e estamos de certa forma em perigo. Desejamos tua escolta. Nossos burros estão amarrados a pequena distância daqui e, sem dúvida, estarão impacientes os pobres animais.

- Que velhacaria desmanchaste agora? Perguntou o jovem capitão, com bom humor e algum cinismo. Serviu-se de uma taça de vinho que bebeu num só gole. A boca de Keptah torceu-se, em reprovação:

- Bebes esse vinho como se ele não tivesse sido destilado das vinhas do próprio céu disse ele e como se fosse apenas o vinho tinto barato do teu quartel.

Sexto estalou a língua, pensou um pouco, inclinou seu elmo para um lado da cabeça e declarou:

- Não percebo qualquer sabor excelente ou especial. Tu és um charlatão, Keptah. - Piscou para Lucano, depois ficou preocupado com a palidez do rapaz. - Esse menino está doente? Indagou.

- Muito doente falou Keptah, levantando-se. - Mas não morrerá disso.

O taverneiro aproximou-se, timidamente, e Keptah, com ares de grandeza, somou sua conta com a de Lino e deixou mais uma peça de ouro como gratificação. O taverneiro ficou encantado.

- Bom senhor disse ele -, lamento que tenhas sido perturbado. Prometo-te que isso não tornará a acontecer.

- Não faças promessas temerárias disse Keptah. - Esta foi uma tarde muitíssimo esclarecedora. - Encheu sua bolsa com as moedas de ouro que sobraram e disse: - E agora, Lucano, vamos embora.

 

Diodoro Cirino acordou e tomou conhecimento de três fatos desoladores: o marido da irmã mais velha de Aurélia, o senador Carvílio Ulpiano, era hóspede indesejável em sua casa. Chegara na noite anterior, e mostrara-se afetuosamente complacente, tendo, ao que parecia, esquecido de que, embora fosse membro de família muito nobre e antiga, casara-se com Cornélia pelo dinheiro dela. Esse dinheiro não só lhe servira para fazer-se senador apenas por suborno, era o que Diodoro dizia, selvagemente mas possibilitara que se entregasse à sua paixão pela arte egípcia. Ouvira falar em alguns vasos excelentes e em estatuetas que datavam da Segunda Dinastia, e estava a caminho do Egito, para negociá-los.

O segundo fato infeliz, com o qual Diodoro se confrontava naquela manhã, era ser aquele o dia do mês em que devia reunir-se com os magistrados sírios no Palácio da Justiça, e ouvir as queixas dos nobres, proprietários e caudilhos locais, sobre as taxas extorquidas às províncias, e especialmente a eles próprios, e ouvir os relatórios dos velhacos coletores de taxas, que Diodoro detestava mais do que qualquer outra espécie de homem. Para Diodoro, um coletor de taxas, embora aparentemente necessário naquela época degenerada, era mais imundo do que o mais imundo chacal, e tinha algo dos hábitos de um chacal. Sobre isso, Diodoro discorria em altas vozes, com as mais profanas expressões militares. Tal coisa entusiasmava, invariavelmente as vítimas dos coletores de taxas.

O terceiro era estar com dor de cabeça. Conhecia aquelas dores de cabeça, que o atormentavam habitualmente naqueles dias em particular; e mesmo todo o saber de Keptah não era suficiente para aliviá-las.

Acordara com o temeroso e súbito fulgor da luz diante dos olhos, depois com a náusea conseqüente, a seguir com agudo seccionamento da visão e a temporária diminuição da vista, tudo rematado com a maldita hemicrania. O fato de Keptah poder dizer-lhe, eruditamente, que se tratava de uma enxaqueca e que Hipócrates[37] escrevera um longo e precioso tratado sobre isso não eliminava as náuseas, não retirava o martelo que batia de um lado de sua cabeça, nem a sensação de que a morte estava próxima e não seria de todo mal recebida.

- Que o Hades engula o teu Hipócrates! Dizia enraivecido, a Keptah. - Não, não, não quero mais tuas poções e efusões malcheirosas.

Submetia-se quase sempre às efusões e às poções, e então vomitava triunfantemente diante de Keptah, e dirigia-lhe olhares furibundos e acusadores. A enxaqueca não o abandonava até a noite. Bastava que deixasse Antioquia e fosse para casa, que ela desaparecia, deixando uma fraqueza desagradável que antecipava o tratamento e a preocupação da amorosa Aurélia. Gozando ambas as coisas, ele dizia a Keptah:

- Estás vendo, a mão de uma mulher é mais sabia do que a de qualquer médico, seu charlatão. - A isso, Keptah respondia apenas com um sorriso. Uma vez dissera a Diodoro que as suas dores de cabeça eram seu protesto contra os magistrados e coletores de taxas, que ele detestava, mas Diodoro ficara tão zangado com aquela insinuação de debilidade feminina, que Keptah nunca mais repetiu a indiscrição.

Diodoro, o virtuoso romano, acreditava que o pessoal doméstico responsável levantava-se antes do amanhecer. O senador não se levantava ao amanhecer, e Aurélia, que tinha afeição até mesmo pelo seu cunhado, não permitia aos escravos seu assalto habitual e ruidoso às colunas, pisos e paredes com esfregões e vassouras, enquanto o senador não chamasse para que lhe levassem ao leito a primeira refeição. Isso, para o tribuno, era empilhar degradação sobre degradação. Casa suja, e primeira refeição na cama. Sem dúvida, coisa típica da Roma moderna. O séquito do senador, escravos mimados e secretários (estava sempre escrevendo cartas, mesmo quando visitava Diodoro para ter certeza de que seus clientes não se esquecerão de manter-lhe os cofres cheios durante a sua ausência) recebia invariavelmente os melhores aposentos, nas instalações dos escravos da casa. O senador costumava trazer com ele duas belas escravas, aumentando a cólera de Diodoro, que enclausurava as moças, sombriamente. "Não haverá orgias nesta casa!", dizia ele ao senador, que sorria com indulgência, e se surpreendia sempre ao ver que as bonitas escravas daquela casa bárbara jamais chamavam a atenção de seu dono.

Além disso, o senador usava nardo e essência de rosas, e Diodoro dizia em voz alta:

- Não apenas uma casa suja e primeira refeição na cama, mas também perfumes! - Fingia considerar extraordinário o senador, o que convencia este último de que Diodoro devia permanecer na Síria, apesar de suas cartas para Roma. Aquele era um assunto sobre o qual o senador ainda não falara com seu hospedeiro. Sentia que necessitava primeiro de um repouso prolongado. Enjoara durante toda a viagem até Antioquia. E Diodoro era um homem difícil.

A dor de cabeça fora extraordinariamente forte naquela manhã, e Keptah, misturando poções enquanto seu senhor urrava negativas, percebeu que Carvílio Ulpiano acrescentava uma tortura extra à aflição. Deu a taça a Diodoro, e disse, maciamente:

- Um estudante de Hipócrates uma vez perguntou ao grande médico: "Assassínio permitido não aliviaria as dores da vítima?". Ao que Hipócrates respondeu: "Com certeza.".

- Estás querendo insinuar que se eu pudesse matar alguém, ao acaso, sem escrúpulo, isso melhoraria a minha dor de cabeça? - perguntara Diodoro, ultrajado, sentando-se na cama.

Keptah anuiu. Diodoro começou a blasfemar, depois sorriu pensando em seu cunhado.

- Essência de rosas! Murmurou. - Puf! - Tornou a tombar sobre os travesseiros e entregou-se a uma agradável fantasia. A enxaqueca aliviou um pouco e daquela vez Diodoro não vomitou a poção. Ainda assim, sentia-se mal e de mau humor quando saiu da casa para a manhã fresca e reluzente, sem tomar qualquer refeição, pois não podia comer quando se sentia assim aflito. Aquele filho de uma raça inteira de porcos podia ao menos ter trazido Cornélia, pensou ele, para visitar minha esposa, em vez de trazer apenas cartas. Cornélia, porém, tão simples, robusta e destituída de imaginação quanto Aurélia, teria inibido de certa forma as diversões do senador.     Diodoro consolou-se pensando que as visitas do cunhado eram poucas e bem espaçadas.

A enxaqueca, depois de reduzir um pouco a visão, sempre fazia Diodoro enxergar clara e rapidamente demais, de forma que enxergar já era em si doloroso. Aquela possibilidade aumentada de ver deprimia-o. Ouviu alguém sorrir, pestanejou, levando a mão à cabeça. Quem podia rir quando o dono da casa estava morrendo em pé e temendo o rumor, a aguação e o ribombar da biga que depressa chegaria para levá-lo a Antioquia? Resmungando palavras que ele jamais usava diante de alguém, a não ser dos coletores de taxas, deixou o pátio externo e foi para os jardins. Sua filha Rúbria e Lucano estavam jogando bola com duas jovens escravas e fazendo ruído bastante para acordar os mortos ou, foi o que pensou Diodoro, o bastante para acordar qualquer um, menos o fragrante senador, com os seus óleos.

Aquela donzela de olhos negros, faces vermelhas e cabelo preto flutuando vestida com uma comprida túnica rosada a correr para apanhar a bola que Lucano ou uma das escravas arremessava era uma bela visão. Em contraste, Lucano parecia um jovem e dourado deus, complementando-a, e as moças escravas, vestidas tão simplesmente como sua jovem senhora, e tão encantadoras quanto ela, assemelhavam-se a ninfas, seus pés brancos molhados de orvalho, as tranças ruivas e castanhas cascateando atrás delas como flâmulas. Em torno daqueles jovens todo o jardim parecia ter saído recentemente das mãos de Ceres[38], as palmeiras agitando-se e curvando-se sob o vento perfumado, as estátuas resplandecendo, as fontes saltando como prata l íquida, e o arco do céu mostrando o azul mais inefável.

Durante um momento, o mau humor de Diodoro abrandou-se. Contemplou o rapaz e a mocinha, e pensou: Como é maravilhoso ser inocente e belo. Ficou então novamente zangado. Ninguém tinha o direito, nem mesmo uma donzela e um menino, de ser inocente neste mundo asqueroso, composto de senadores perfumados, vis coletores de taxas, magistrados, oficiais e césares que não respondem cartas urgentes.

A mocinha tinha quatorze anos; precisava ficar noiva agora e preparar-se para o casamento, era o que pensava Diodoro, ressentido. O fato de o senador ter mencionado discretamente um de seus próprios filhos, agora com dezessete anos e pronto para o casamento, e daquela referência ter feito Diodoro parecer-se a um verdadeiro Marte, com faíscas vermelhas nos olhos, fora completamente esquecido pelo tribuno. Rúbria, embora ainda esbelta demais, e dada a ataques de dispnéia e lividez em torno dos lábios quando se cansava, tinha pequenos seios redondos, e suas pernas, surgindo sem modéstia alguma de sob sua túnica esvoaçante eram, definitivamente, as pernas de uma mulher. Diodoro ficou horrorizado, não só com esse novo aspecto de sua filha, mas também com o fato de não estar ela ainda prometida em casamento. E, de certa maneira, sentia-se furioso com Lucano, por qualquer razão pouco conhecida.

Levantou a voz para um tom estentóreo:

- Que brincadeira é essa? Não é hora de aula? Por que esse desregramento?

As moças escravas olharam-no, apavoradas, e correram para os fundos da casa, como pétalas espalhadas pelo vento. Rúbria, ainda sorrindo, ficou com a bola em sua mão fina e morena, e Lucano corou.

- Ainda não é hora, pai disse a menina, e correu para ele, a fim de beijá-lo. Passou-lhe os braços ao pescoço e Diodoro não pôde resistir a corresponder-lhe. Mas olhou furibundo para Lucano:

- Dezesseis anos! Exclamou. - E brincando com meninas! Não podes arranjar melhor companheiro de brinquedo, entre os de teu próprio sexo?

Rúbria tornou a beijá-lo, contente, como fazia sua mãe, mas o pai olhou zangado para Lucano, por cima dos ombros dela. O jovem manteve-se em silêncio, a cabeça amarela erguida orgulhosamente, o rosto frio e impassível.

- E com quem ele brincaria? Perguntou Rúbria, as mãos acariciando o braço do pai para confortá-lo. Não estava perturbada; aprendera com a mãe a tratar Diodoro como uma criança querida, mas às vezes rabugenta. - Nenhum dos moços escravos tem a idade dele, e não há famílias com filhos perto de nós. - Olhou para Lucano, rindo, com ar malicioso: - Ele também é sensato demais.

- Não é sensato demais para negligenciar suas lições e se meter em brincadeiras infantis e grotescas disse Diodoro. Naquela manhã não estava gostando do jovem. - Será preciso esperar até que a ampulheta deixe cair os grãos de areia exatos para começar os estudos? E é com um irresponsável desses que gasto meu dinheiro?

Lucano contemplou-o com uma luz azul firme em seus olhos, e abriu a boca para responder colericamente. Viu então que Diodoro estava amarelo, com ar de doente, e não tinha feito a barba. Lucano lembrou-se de que aquele era o dia dos magistrados e dos coletores de taxas, e que Diodoro, naqueles dias, estava invariavelmente de mau humor. A barba por fazer podia ser tomada como sinal tão exato como uma clepsidra[39].

Assim, Lucano sorriu brandamente:

- Fazes bem em reprovar-me, senhor.

Afastou-se, pisando com altivez e graça, e Diodoro ficou a contemplá-lo, sentindo-se mais deprimido do que nunca.

- Vai com tua mãe, menina disse, com aspereza incomum, à filha. Agora sua biga chegava. Ele ouviu o ruído, o clamor infernal, e tornou a pestanejar, gemendo. Rúbria beijou-o, acariciou-lhe o rosto, olhou-o com amorosa comiseração e correu para a casa. Diodoro seguiu-a com os olhos até que ela desaparecesse, e seu coração se confrangeu. Ainda ontem era um bebê, preso ao seio materno; hoje fazia-se mulher, e depressa deixaria seus pais. Eis um dos insuportáveis golpes da natureza. Pensou de novo em Lucano, e agora sua cólera obscura voltava. Vira o olhar ardente de Rúbria para o jovem, e vira Lucano responder com um profundo sorriso. Diodoro chicoteou os cavalos, tomado de pânico. Se não pudesse ser substituído naquele lugar contaminado, mandaria Rúbria e Aurélia para Roma, e mesmo o filho do senador, que era um jovem frágil e estudioso, e não correspondia ao gosto exigente de Diodoro, poderia ser considerado um possível genro. Pelo menos, algum dinheiro voltaria para a família, pensou o tribuno, que considerava ofensivo o fato de Carvílio Ulpiano ter a possibilidade de gastar uma simples moeda de tal dinheiro.

Um velho orgulho retornou ao romano, e seu coração endureceu diante da afronta. Irritava-o, agora, a idéia de que aquele Lucano, aquele filho de um liberto, pudesse sequer olhar amorosamente para sua filha. Esqueceu, naquela sombria cólera que se ia inflamando, que Lucano era filho de Íris, a quem ele não via de há muito, a não ser bem de longe, e ainda assim furtivamente. Diodoro resolveu que naquela noite teria uma conversa muito séria com Aurélia. Ele, Diodoro, cumpriria a promessa de educar o jovem a fim de que servisse humildemente em sua casa. Alguma das moças escravas, a mais fiel, modesta e bem-dotada nas artes domésticas, seria liberta, e um casamento arranjar-se-ia entre ela e Lucano. O senhor romano tinha apenas de ordenar, e ordenaria. Que Lucano levasse sua esposa para Alexandria, para que ela tomasse conta da casa humilde de seu marido estudante, e lhe cozinhasse o pão e lhe servisse um vinho adequadamente inferior. Tenho sido brando e fraco, pensava o tribuno, mordendo seu espesso lábio inferior e chicoteando os cavalos. Esqueci que sou um romano, nesta província abafada, efeminada, depravada. Tenho tratado os escravos como iguais.

Esquecera, também, muitas outras coisas. O rosto de Enéias ergueu-se diante dele aquela imitação de homem, ardilosa, dissimulada, pusilânime! E a cólera cegou-o por alguns momentos, enquanto o coração batia como se tivesse sido insuportavelmente humilhado. Velha angústia, que não tinha feições, voltou a morder-lhe o coração.

Quando chegou a Antioquia estava com excelente disposição vingativa. Jamais matara um homem, a não ser em batalha, mas agora desejava matar. Se ao menos fosse Hércules! Rasgaria aquela cidade em duas, com as mãos limpas. Para suas narinas, que as fedentinas da cidade assaltavam, prevalecia o cheiro de urina. Uma cidade tomada por odores excrementícios! E que fazia um procônsul romano a guiar sua própria biga ali, como um mesquinho comerciante? Ninguém o respeitava? Onde estavam seus soldados? Esqueceu que tudo aquilo fora coisa de sua própria deliberação, e que dissera freqüentemente ser um simples soldado e não um homem-dama da moderna Roma; que Cincinato entrara na Cidade Imperial montado num simples burro, sem qualquer séquito, a não ser pobres lavradores como ele próprio. Vai haver mudanças! Prometia Diodoro a si mesmo, em sombrio silêncio.

A seu encontro vieram Sexto e uma tropa de soldados, com elmos, escudos e armas, como de costume no dia da justiça. Diodoro berrou para Sexto, o rosto flamejando de cólera:

- Então só agora pudeste arrancar-te para fora da cama a fim de vir ao meu encontro e escoltar-me? Sou eu um cão de magistrado provincial que não merece honras nem escoltas, mas devo guiar minha própria biga como o mais mesquinho dos camponeses de minha própria casa?

Sexto estava habituado ao mau humor do tribuno naqueles dias, mas não a um ataque assim à sua integridade como soldado, como oficial digno e leal. Foi tomado de surpresa, então. Não se manteve em obediência e reserva militares, conforme estava treinado a fazer quando chicoteado pela língua de seu superior. Disse abruptamente:

- Por quê, nobre Diodoro? Eu apenas cumpri tuas ordens expressas. Recusaste constantemente ser escoltado e ordenaste que em tua casa não ficasse soldado algum. - Olhava com assombro para Diodoro, e seus soldados mantinham rostos impassíveis, olhando para a frente, carregando os fasces[40] e os estandartes.

Diodoro freou seus cavalos com tanta fúria que eles empinaram, e um casco quase alcançou o rosto de Sexto que, entretanto, não recuou. Seus olhos jovens mostrando-se repletos tanto de censura como de espanto.

- Vamos, por Zeus! Mugiu Diodoro, chicoteando os cavalos.

- Onde esta teu discernimento militar? - Conseguiu controlar os animais, e blasfemou contra eles. - Não só me acompanharás até o Palácio da Justiça, mas voltarás comigo à minha casa, e lá ficarás às minhas ordens!

Saiu, num repelão, e Sexto sacudiu a cabeça desanimado. Depois ordenou severamente às suas tropas que o seguissem, acompanhando o tribuno. A biga de Diodoro estava agora envolvida na poeira quente, branca e gredosa, ao fim da rua calçada de pedras lisas. Sexto e seus soldados iniciaram um trote militar para segui-lo: e a humilhação do jovem soldado foi completa quando passantes começaram a zombar deles. Sexto rilhava os dentes.

Estivessem ou não os magistrados mais tediosos do que costume, fossem os relatórios dos coletores de taxas os mais aborrecidos, mostrassem-se os nobres e mercadores locais mais queixosos, o caso é que para Diodoro aquele dia pareceu o pior de quantos se podia lembrar. Gritou, esmurrou a mesa, espalhou papéis, denunciou, insultou, atribuiu ancestralidade vergonhosa aos magistrados, juízes, nobres e coletores de taxas, igualmente. Todos tinham cabeças de asnos; suas mães e tinham empenhado desde a puberdade em obscenidades indescritíveis; eles mostravam-se inteiramente analfabetos; eram habitantes do país mais depravado e mais desprezível do mundo. O espírito deles era igual ao das moscas. Antioquia era uma cloaca e eles indignos habitantes dela. Desprezou-os todos, em linguagem enérgica. Com certeza, em alguma ocasião, ofendera imperdoavelmente os deuses, quando não, jamais estaria ali. Mandou-os todos para Plutão, e pugnou sua honestidade, suas decisões, seus registros. Eram todos ladrões, mentirosos, idiotas e canalhas. Embora seu pulso estivesse rodeado de tiras de couro ele deslocou-o com os murros sobre a mesa, e seu rosto, intumescido e escarlate, esteve a ponto de estourar. Não quis comer nada; quando lhe ofereceram vinho expôs sua opinião a respeito dele e cuspiu. À tarde, quando saiu dali ruidosamente, sua cabeça era uma caldeira de dor e os músculos do pescoço estavam tomados de espasmos. Os que ficaram, pela primeira vez mostraram-se partidários do mesmo ponto de vista. O tribuno estava louco, naturalmente, e era um animal como todos os romanos. Coletores de taxas e mercadores reuniram-se para se darem mútuas condolências. Os magistrados expressaram sua fervorosa esperança, em vozes baixas e cochichadas, de que não só o tribuno descesse ao inferno, mas Roma junto com ele.

Sexto arranjara cavalos para ele próprio e três de seus oficiais subalternos, e saíram a galope atrás da biga de Diodoro. Mal conseguiam manter-se no ritmo dele. Guia como Apolo, pensava Sexto, ainda magoado, sem a beleza de Apolo. Devia entrar para as corridas dos circos. Deuses, desgrudar daqueles pobres animais! Seu coração de soldado, contudo, estava repleto de consternação. O tribuno parecia estar temporariamente fora de si. Sexto invocou Ares[41], enquanto galopava pela estrada cheia de sulcos. O calor úmido era intenso, e sob sua armadura os sombrios soldados suavam e seus escudos mostravam-se pesados demais. Alguns deles pensavam em que castigo iriam receber e qual a transgressão alegada.

O senador Carvílio Ulpiano estava sentado graciosamente no pórtico externo com a cunhada Aurélia, bebericando um dos mais caros vinhos de Diodoro e fazendo comentários sobre a bebida, para si próprio, em linguagem expressiva. Aurélia, a boa matrona, ia diligentemente ocupando as mãos em costurar, hábito vulgar e comum que sua irmã compartilhava, pois Cornélia jamais seria uma dama elegante. Tiveram um sobressalto ao ouvir o trovejar dos cascos e ao verem, a distância, a grande nuvem de poeira luminosa. O senador ergueu-se, seus trajes brancos flutuando em torno do corpo.

- Vamos, por Mitras[42], é o Minotauro[43] que se aproxima? Ou Plutão que explode através da terra?

- Provavelmente é apenas Diodoro respondeu Aurélia, sem se perturbar. - Esse é sempre um dia ruim para ele. Mas não há outros cavalos seguindo os dele? - Pôs de lado sua costura e levantou-se para ver e ouvir. Jovem mulher otimista, jamais pensava que coisa alguma fora do comum pudesse ser de mau agouro. – Estará trazendo hóspedes para o jantar?

- Se são hóspedes, trata-se com certeza de cocheiros que perderam a prática disse o senador, resguardando os olhos do sol da tarde e esticando o pescoço para poder enxergar. Começou então a rir, distinguindo Diodoro a chicotear seus cavalos, de pé, como um corredor, em sua biga, e os soldados precipitando-se atrás dele, todos envolvidos em radiantes nuvens de poeira. Bateu as mãos e fez exclamações de estímulo, como quem aplaude os cocheiros dos circos. – Ele conseguirá! Ele chegará primeiro aos portões!

- Pelos céus, com esse calor murmurou Aurélia. - E com aquela dor de cabeça. Por que Sexto veio com ele? E os outros?

- Sou eu sua esposa para saber o que Diodoro faz? - perguntou o senador, razoavelmente, ainda a rir.

Diodoro alcançou o portão como uma trovoada, saltou da biga e atirou as rédeas para o lado. Seus seguidores chegaram em tropel e mal conseguiram evitar chocar-se contra a biga parada; seus cavalos dançavam, empinavam-se, corcoveavam por ali, relinchando angustiados. A luz do sol tirava reflexos dos elmos e das armaduras dos soldados, e os cavalos estavam cobertos de suor. Diodoro entrou pelo portão num arranco e foi num passo enérgico até o pórtico externo. Relanceou um olhar furibundo para o senador e ignorou sua esposa.

- Quê! Ainda estás aqui? Perguntou grosseiramente. – Ainda não começaste a sentir falta de teus coribantes e bacantes[44], nem enlanguesces pelos teus gladiadores e atores prediletos?

Arquejava, tinha a fronte arroxeada e pingava suor.

- Querido disse Aurélia, estupefata diante daquela rudeza e alarmada com a aparência do marido. Deu um passo para ele, que a afastou com um gesto.

- Vai para os teus aposentos, mulher! Disse isso sem olhar para ela. Aurélia apanhou sua costura e desapareceu entre as colunas da casa, os olhos repletos de lágrimas. Jamais Diodoro lhe falara assim.

O senador não se perturbou. Permaneceu ali, ostentando toda a alta elegância, e o rosto mostrava-se divertido. Considerava Diodoro um rústico, um militar imbecil, cuja disposição, como a de todos os soldados, era mais adequada para um animal do que para um homem. Ergueu as sobrancelhas, sorriu e olhou com ar crítico para a taça que tinha na mão.

- Baco desdenharia este vinho, meu bom amigo e irmão, e mesmo que eu estivesse saudoso, não há bacantes agitando-se em torno de mim.

O leve insulto fez Diodoro tremer. Ficou diante daquele calmo patrício, com suas mãos belas e sua toga lindamente pregueada, como figura selvagem e sombria de um militar bárbaro, coberto de pó, os olhos furiosos, o rosto violento e rubro todo convulso. Seu arquejo fazia-se audível na quietude da tarde. Arrancou o elmo e atirou-o sobre as pedras, onde rolou e retiniu. Carvílio Ulpiano tomou um delicado gole do vinho e sacudiu a cabeça como que deplorando.

O senador sentou-se de novo, graciosamente. Suas sandálias eram de prata, presas com fios de ouro.

- Senta-te sugeriu ele, como homem que hospeda outro de categoria inferior. - Toma um pouco de vinho. Isso te refrescará. A dor de cabeça ainda está muito forte? Tenho comigo meu médico e ele traz uma poção que é muito eficaz. Queres que eu o chame para que te preste serviços? - Estava sentado em sua cadeira, figura estranhamente majestosa, à vontade no pórtico tosco da frente de uma casa que considerava plebéia ao extremo, própria apenas para um capataz de escravos.

- Que Mercúrio amaldiçoe teu médico! Disse Diodoro.

Atirou-se a uma cadeira e começou a enxugar com as mãos o suor que escorria na testa. Quando o senador lhe ofereceu seu lenço perfumado, Diodoro rejeitou-o, com uma blasfêmia. O senador riu.

- O dia deve ter sido excitante, no Palácio da Justiça - comentou ele, servindo-se de um doce grosseiro que estava numa bandeja de prata, a seu lado, sobre a mesa. Olhou em torno de si, procurando um servo. Era demais pretender que houvesse um servo à mão naquela casa bárbara, portanto o senador serviu o vinho para o tribuno, estendendo-lhe o copo com uma reverência. Diodoro quis recusá-lo, mas sua boca estava seca e ardente pela poeira e pela febre, e assim arrebatou a taça das mãos do outro e esvaziou seu conteúdo num gole só. Começava agora a sentir-se embaraçado por ter insultado seu hóspede mesmo sendo esse hóspede o seu cunhado. Ali ficou, os joelhos afastados e seu corpo forte e nervoso inclinado para frente, a cabeça ligeiramente abaixada. Ficou a olhar sombriamente para o fundo da taça vazia:

- Sou uma chaga purulenta.

Carvílio Ulpiano cogitava onde seus próprios servos poderiam estar. A frouxidão e o descaso plebeu daquela casa sem dúvida os contagiaram, e os patifes estariam provavelmente folgando com os outros escravos. Contudo, afrouxou o corpo. Achava o ar da Síria muito salubre e agradavelmente tépido, pois era homem de sangue frio.

O senador compreendia que Diodoro se estava desculpando, menos para ele do que por se ressentir, sombriamente, de ter cometido uma grande falta contra as boas maneiras, grande mesmo para um soldado. Suas feições aristocráticas assumiram expressão agradável e compreensiva, e seus olhos pequenos e pálidos, sem cor definida, tomaram o aspecto benigno que ele reservava para os clientes, principalmente para os grandes proprietários de terras que desejavam favores em troca de respeitável emolumento.

O tribuno levantou-se, tirou o peitoral, soltou o cinturão de couro com a espada curta, e atirou-os sobre uma cadeira. Seu corpo revelou-se sob a túnica de linho cor de terra vermelha, tecida em casa pela cuidadosa Aurélia, que também fiara e costurara para ele. Suas pernas e braços robustos, bem como o peito, eram cobertos de pêlos pretos e eriçados, e ele irradiava força, masculinidade e suor a tal ponto que o senador fechou os olhos delicados. Soldados, refletia ele, são inevitavelmente violentos e estúpidos, e Diodoro não constituía exceção. Embora Cornélia, mulher simples, declarasse serem destinados a Diodoro os livros que o senador estava sendo constantemente compelido a mandar para Antioquia, o remetente não acreditava em tal coisa. Um vândalo[45]! Ele, seu pai, e todos os seus ancestrais tinham fama de absoluta integridade, honra, virtudes e qualidades militares em Roma. Aquilo, considerava o senador, era a qualidade deles, prosaica, rústica, sem inteligência. Ainda assim, embora os augustais rissem de Diodoro, e mesmo o Tibério de rosto frio sorrisse à menção de seu nome, ele tinha influência entre seus iguais de Roma, e nunca se subestimava o poder dos tribunos e militares, embora eles fossem estúpidos.

Diodoro tornou a encher a taça, deixando que algum vinho caísse sobre suas mãos. O poente vermelho manchava as paredes brancas da casa, e fazia dos pilares colunas rosadas. Um odor quente e doce derivou dos jardins que ficavam atrás da casa, e as palmeiras farfalharam. Tudo era quietude e paz, bom para os nervos de um cavalheiro que viera de Roma, onde o ar recendia a intrigas. Diodoro sentou-se. Repetiu em tom menos sombrio, porém mais duro:

- Sou uma chaga purulenta.

O senador suspirou e olhou para suas mãos cheias de jóias, pensativamente. Tentou, entretanto:

- Não o és, com certeza disse ele -, em todo este encanto, e com o poder que manténs na província. César está muito satisfeito contigo. Disse-me, antes da minha vinda: "Meus cumprimentos ao nosso bom Diodoro, e dize-lhe que não sei de outra província ou país mais bem governado."

- Ele quer dizer falou Diodoro rudemente que não sou mentiroso nem ladrão, que lhe mando as taxas prontamente, que procuro ser o mais justo possível em meu trato, e com isso a Síria não lhe dá preocupação.

O senador tornou a suspirar. Tinha cabeça estreita, de cabelos pretos e lisos. Sua boca era ligeiramente efeminada, e um tantinho cheia e vermelha demais para um homem. Diodoro continuou, e agora sua voz tremia um pouco:

- Lembro-me de meu velho camarada de armas, Gaio Otávio, que tu delicadamente chamas Augusto. Quando me escreveste que ele morrera em Nola, velho lar de seu pai, nos braços de sua esposa, meu coração despedaçou-se. Não reconheço seu sucessor como meu César, não o reconheço em meu coração, mesmo que fales nele como uma divindade. Divindade!

O senador olhou rapidamente em torno de si. Esperava que ninguém os estivesse espiando, ninguém que pudesse repetir declarações tão comprometedoras. Tossiu e murmurou:

- Um homem deve ser discreto. Não tornes esse aspecto tão colérico, meu Diodoro. Se bem me recordo, tu te queixaste, em cartas que me escreveste, que teu "velho camarada de armas" tinha finalmente destruído a República e terminado com a liberdade política. Queimei tuas cartas, naturalmente, pois elas eram perigosas.

- Tolice falou Diodoro, com raiva, e cheio de ressentimento.

- Eu lhe escrevi também uma carta nesses mesmos termos. Velhos amigos, velhos soldados, são honestos uns para com os outros. Eu era como um filho, para ele. Brigávamos a propósito das honrarias que ele tinha aceitado, e meu pai também brigou com ele pelo mesmo motivo. Sim, a República morreu com ele, e não inteiramente por sua culpa, mas foi um bom soldado, melhor, na minha opinião, do que o próprio Julio César. Perdoa-se a um bom soldado muitas coisas, embora não se perdoe, naturalmente, a usurpação do poder, e por isso eu o censurava freqüentemente. E ele me disse, quando era homem sensato: "Cidadãos corruptos criam governantes corruptos, e é a turba que finalmente decide quando a virtude morrera."

A despeito de si próprio o senador sentiu-se surpreendido e marcou seu primeiro respeito por Diodoro, que podia ralhar com César impunemente, e receber respostas que eram desculpas.

- Esse patife, agora coroado com folhas de carvalho, pessoa de sangue frio, pode ser, tecnicamente meu imperador, e eu o sirvo como soldado, assim como meu pai serviu Gaio Otávio, mas não preciso fingir que o adoro nem vê-lo como um dos deuses. - Diodoro remexeu-se em sua cadeira, raivosamente: - E quero ir para a minha fazenda próxima de Roma e esquecer vossas malditas turbas, toda a vossa política e depravação, e ficar com a minha família sob as árvores frutíferas.

- E esquecer também que és um soldado, meu violento Marte?

Diodoro hesitou:

- Se Roma precisar de mim como soldado, então devo, responder. Não sou necessário na Síria. Mandai um dos vossos patifes para cá e ele estará mais indicado para este lugar infernal do que eu. - Lançou um imenso suspiro, continuando: - Pelo menos o meu César era virtuoso, e sua esposa foi amada por ele até sua morte, durante cinqüenta anos inteiros. Dize-me: Tibério é homem assim?

O senador esfregou o queixo e seus olhos atiraram-se para o pórtico, olhando para além da porta aberta. E disse, usando tato:

- Não sou homem de discussões e meu negócio é política, e embora veja César frequentemente, não discutimos nada que possa trazer controvérsias!

- Em outras palavras, Tibério tem ignorado as minhas cartas, e tu não as discutiste com ele. - Os olhos veementes de Diodoro faiscavam.

- Paciência, paciência murmurou o senador, cogitando consigo mesmo sobre quando seria servido o jantar. Estava também começando a sentir dor de cabeça. E falou, cheio de esperanças:

- Haverá hóspedes para o jantar? - Talvez os hóspedes tivessem efeito tranqüilizante sobre aquele incontrolável soldado.

- Hóspedes! Exclamou Diodoro. - Não. Convidaria inferiores a vir a minha casa? Não conheces Antioquia. Digo-te, eu apodreço aqui! Se não visitar o procurador em Judéia, uma vez por ano, mais ou menos, morro de tédio e raiva. Esperaste um banquete como aqueles a que estás habituado em Roma, com Tibério?

Ó! Deuses, pensou o senador, desanimado. E disse razoavelmente:

- Por que te ressentes assim? Afinal, Tibério é um magnífico soldado; diminuiu a taxação onde pôde, em nome da economia; é relativamente honesto e cavalheiro honrado, justo em seu trato com as províncias, e consolidou o Império. Quanto a banquetes, como soldado que é, Tibério não os aprecia. Pensava que ele fosse um Baco?

- Estive com ele em campanha disse Diodoro, sombrio, e esfregando a fronte dolorida. - Não se podia comparar a Gaio Otávio acrescentou, como quem se defende. - Mas é homem silencioso, de espírito frio. Entrega demasiado as coisas a vós, senadores; permite a agitação a demasiadas línguas soltas e isso não são maneiras de imperador. Não há disciplina...

- Ainda assim, ao contrário do teu querido Otávio, é um romano de tua própria espécie. Quando subiu ao trono havia menos de cem milhões de sestércios no Tesouro. Agora a quantidade cresce de mês para mês. Ele é sóbrio.

- Apesar disso usa espias e informantes, como soldado algum deve fazer disse Diodoro. - Quando um homem tem medo de seus compatriotas e teme ser assassinado, é preciso examinar esse homem. - Tornou a olhar com ira para o senador. - Por que ele não responde às minhas cartas?

- Porque estás administrando a província a gosto dele. Se não estivesse, seria chamado abruptamente. Digo-te, Tibério e tu sois da mesma espécie.

- Isso não lisonjeia declarou Diodoro. Levantou-se. – Se eu fosse César, poria todos vós, senadores, em vossos lugares.

- Em outras palavras, serias um tirano disse o senador, sorrindo.

- Eu teria disciplina, respondeu Diodoro, suspendendo o cinto de sua túnica. - Encorajaria os "novos" homens, a classe média, em Roma, os cavaleiros rurais, os mercadores, os lojistas, os comerciantes, os advogados, os médicos, os construtores. Compreendo que eles não são patrícios mas também eu não o sou! Muitos deles pertencem a antigas famílias da Etrúria. - Os olhos dele acenderam-se.

- No que a mim se refere, podemos entregar a Itália de volta aos etrúrios, e deixá-los, bem como os "novos" romanos, entender-se com a populaça de Roma, não para afagá-la como fazeis vós, os senadores, pelos seus favores imundos. Nem encheria meus aposentos de gladiadores e de patifes e libertos, chamando-os meus clientes. Corja!

O senador estava de novo ligeiramente divertido.

- Tibério não é Catilina[46], e, tanto quanto me consta, os "novos" homens não produziram ainda nenhum Cícero.

Diodoro começou a afastar-se em passos pesados, resmungando, desdenhoso. Então, deteve-se:

- Não te esqueças, meu bom Carvílio, de que jantamos quando toca o gongo. Enquanto isso, vou lavar um pouco a fétida poeira de Antioquia do rosto e das mãos.

O senador ficou sozinho no crepúsculo que descia rápido e purpurino e recostou-se em sua cadeira, suspirando de satisfação. Alguns dias mais aliviariam seu nervosismo. Aquela casa embora bárbara e dispondo de poucos móveis, sem qualquer luxo ou distinção, praticamente sem marfins, sem vasos murrinos[47] e com poucas excelentes estátuas, mesmo dos deuses, sem candelabros coríntios de bronze, sem quadros de mérito, e embora os dormitórios fossem meros cômodos arranjados apenas para o vulgar dormir animal e não para o prazer - tinha certo repouso simples. E, melhor do que tudo, não se esperavam favores dele, e ali não se precisava estar em guarda. Os bárbaros, conjeturava ele, às vezes podem ser admirados. Refletia também que não era prejudicial, em Roma, estar ligado pelo casamento à "velha família romana" de Diodoro, tão respeitada. Mesmo Tibério sorria para Carvílio Ulpiano mais freqüentemente do que para seus colegas, e se aquele sorriso era, invariavelmente, delgado e ácido, pelo menos era um sorriso. E, também com freqüência, pedia notícias de Diodoro.

As fontes do jardim que ficavam atrás da casa cantavam, claras e musicais, na sombra silenciosa, e os pássaros faziam coro para aquela música. Espreguiçando-se prazerosamente, o senador levantou-se e caminhou para os jardins. Tinha uma propriedade, fora das portas de Roma, mas não se lembrava de que ela tivesse o efeito calmante daquela, nem que as fontes murmurassem e jorrassem com tal harmonia para a curva dourada da lua que ia subindo. O ocidente se tornara uma série de pequenos lagos de fogo rodeados de um verde sobrenatural, translúcido, que se parecia a verdor celeste. As colunas brancas da casa, simples e jônicas, e as colunatas sem ornamentos pareciam neve esculpida, salpicada, aqui e ali, pelas derradeiras tintas profundamente purpurinas do sol.

O senador chegou aos jardins. Todo o recinto envolvia-se em luz cor de heliotrópio, abafada e secreta, mas a água das fontes cintilava como prata. O odor dos jasmins flutuava na branca aragem noturna, e as palmeiras sacudiam seus leques contra o céu onde as cores de ametista se iam aprofundando. O homem olhou em derredor com satisfação, regozijando-se com aquele silêncio rompido apenas pelo som da água e pela voz langorosa dos pássaros. Então, teve um sobressalto.

Jamais reparara antes naquela bela estátua de mulher, em tamanho natural, erguida junto à fonte do centro, um braço de neve estendido, de forma que as pontas dos dedos pudessem tocar as águas levemente luminosas da bacia de mármore. Onde teria Diodoro, que jamais apreciara trabalhos de arte, conseguido tão maravilhosa criação? O senador fervia de inveja. Na Sicília, talvez. Os sicilianos coloriam suas estátuas, às vezes com delicadeza. Aquela tinha cabelos dourados, estava vestida à moda grega, e o perfil adorável e pensativo fora tão habilmente tocado de róseo que seria de supor tratar-se de carne viva. O manto de alabastro envolvia o busto mais perfeito e divinamente belo, que quase parecia respirar naquela misteriosa luz que ali pairava, e as pregas do tecido, simples e nobres, tombavam da cintura esbelta como um junco, e modelavam-se sobre as coxas cintilantes. Nunca o senador vira coisa mais adorável. Praxíteles[48] jamais modelara forma tão graciosa e de tão delicada perfeição.

Então, para terror do supersticioso augustal, que não acreditava nos deuses, somente os temia, a estátua vacilou um pouco, e moveu-se, recuou um passo, umedecendo os lábios com a língua. Não se sentiria surpreendido se a estátua em movimento erguesse um arco de prata e se voltasse para ele, visando-o no coração com uma flecha, pela ousadia de vislumbrar Ártemis em sua virgindade. Foi então que ele viu Diodoro em pé no arco das colunatas, inconsciente da presença de seu hóspede na sombra purpúrea que se adensava. Diodoro olhava para a majestosa jovem que, com a cabeça baixa, ia lentamente deslizando para fora, dirigindo-se para o portão do jardim.

A imobilidade absoluta do tribuno atraiu a atenção alerta do senador. Viu o rosto de Diodoro, a sua sombria intensidade, que podia ser observada mesmo naquela meia-luz. Viu-lhe o perfil, contorcido por uma espécie de pesada dor, de desesperado sofrimento. A moça, sem perceber a presença dos dois homens, alcançou o portão, abriu-o e desapareceu na névoa.

Agora, por Jove, pensou o senador, intrigado com a atitude e expressão de seu hospedeiro. Ele não é tão invulnerável, afinal. Essa não é a expressão de um marido virtuoso, de um soldado absorto. É a expressão de um homem apaixonado, e eu não o censuro. A escrava excitaria o próprio Júpiter, levando-o ao êxtase.

Ouviu Diodoro suspirar. Foi um ruído rápido e terrível, na sombra. As mãos cabeludas do tribuno contraíram-se ao longo de seus flancos. Mais intrigado do que nunca, o senador tossiu, depois aproximou-se do outro. Diodoro teve um sobressalto, e olhou para seu hóspede como que estonteado, a dor desaparecendo devagar de seus olhos altivos. Durante alguns instantes não pareceu estar vendo o senador.

- Vamos disse Carvílio Ulpiano, em tom de cordial congratulação -, esta é a escrava mais bela que já vi. Pensei, por um momento, que se tratasse de uma estátua e que me pudesses vender. Na verdade, minha oferta permanece.

Diodoro nada disse; de fato, parecia temporariamente incapaz de falar. Conseguiu apenas fixar os olhos, com aquele alheamento estranho, na figura do senador, como se tivesse sido profundamente abalado. Carvílio Ulpiano bateu-lhe pancadinhas afetuosas no ombro.

- Afrodite[49] jamais se revestiu de tamanha beleza disse ele. - Qual foi o mercador que te vendeu mercadoria assim, e onde existe quem se lhe compare? Tem ele deleites similares? Tem ele um estábulo de tais Eurídices[50], de tais formas feiticeiras e de tais faces olímpicas[51]? - Estalou delicadamente os lábios. Estava impregnado de desejo e inveja. E continuou: - Embora seja possível que já tenha perdido sua virgindade e tossiu eu estou disposto, meu Diodoro, a fazer-te uma esplêndida oferta por ela.

Ficou assustado com o rosto que Diodoro voltou para ele, um rosto de tão selvagem cólera, sofrimento e ultraje, que o senador recuou precipitadamente, cogitando em se estaria diante de um louco.

Mas quando Diodoro falou, foi com voz baixa e rouca, como que abafada:

- Estás enganado. Aquela mulher não é uma escrava. É minha liberta.

- Libertaste tão gloriosa criatura? Perguntou o senador, sua perturbação dominada pelo espanto.

- Ela foi uma filha para minha mãe disse Diodoro, a voz ainda sufocada. - Não é uma moça. É uma mulher de quase trinta anos, e esposa do meu guarda-livros, Enéias, um liberto. – Respirou pesadamente, continuando: - Além disso, é mãe do meu protegido, Lucano, que eu estou educando para que seja médico.

O senador, desapontado e desgostoso, sacudiu a cabeça:

- Eu juraria tratar-se de uma jovem virgem. É uma calamidade que ela seja livre. Daria uma fortuna ao seu senhor. - Bateu no queixo, naturalmente, com uma unha polida. - Ela estava a tua espera, por acaso, meu Diodoro, e eu vim perturbar-vos?

Diodoro disse, quase num sussurro:

- Não. Ela não sabia que eu estava aqui. É evidente que se tenha atrasado.

Seus olhos tomaram a luz dura do sofrimento, e ele voltou-se, desaparecendo na casa. No momento em que entram, o gongo soou, e o senador, tentando heroicamente engolir seu constrangimento diante da rudeza de seu hospedeiro, que o precedera sem lhe dizer uma palavra, seguiu-o, com tranqüila elegância.

 

Havia, realmente, vinho de Cefalônia para o jantar. Mas aquilo não podia distrair o paladar delicado de Carvílio Ulpiano. Apício, cujo livro de culinária era usado nas próprias cozinhas de Tibério, registrava setenta e cinco maneiras excelentes de preparar feijão. Aurélia e suas cozinheiras, porém, pareciam conhecer apenas uma, e a mais grosseira, boa apenas para escravos das galés. O senador patrício olhou para a travessa de feijão, bem temperado com alho, no qual fora cozida uma carne qualquer, de aspecto duvidoso, parecendo de cabra ou das menos desejáveis porções do porco. O pão era inferior, as verduras flácidas, e o único prato que não pareceu repulsivo ao melindroso Carvílio Ulpiano foi o de pequeninas azeitonas pretas e salgadas que vinham da Judéia. Ele esquecera quanto eram repulsivas as refeições naquela casa. Diodoro observava-o ironicamente à luz fraca das lâmpadas fumacentas, que eram de estanho, não de prata. O tribuno tocou na base de uma delas e disse:

- Pareces aflito, meu irmão. Lamento que estas lâmpadas não sejam de vidro de Alexandria. Se fossem, poderias ver melhor o teu jantar.

- Dizes essas mesmas palavras de cada vez que te visito, falou o senador, pacientemente. Que seria aquilo que passaram no pão? Estava oleoso, rançoso; e o senador, que era homem de coragem, sorriu e pôs um pedaço na boca. Era também polido, e teria murmurado algo parecido a um cumprimento em relação ao jantar, se o pão não o tivesse subitamente nauseado.

- Por Hécate[52], Diodoro! Exclamou ele, agitado. - É necessário viver assim? És rico como Creso[53]. Poderias cobrir tua mesa com vasos murrinos e encher tuas lâmpadas com óleo que não causasse náuseas a uma pessoa. Poderias ter taças que rebrilhassem de ouro e pedrarias, e gozar o som dos alaúdes pelas noitadas. Também poderias ter um cozinheiro com algum talento.

Diodoro, cujo rosto moreno estava lívido pela emoção passada, olhou com escárnio para o senador:

- Podia ter também divãs onde me reclinasse para fazer as refeições, e moças de Chipre para danças abomináveis e untar meus pés com bálsamo. Contudo, não sou um urbano. Sou um simples soldado, e vivo como soldado.

- Que detestável afetação, disse o senador. - Júlio César era também um soldado, e o mesmo era o teu bem-amado Gaio Otávio. Viviam austeramente no campo. Quando estavam em Roma, viviam como romanos e não como reles pugilistas.

Diodoro começou a sorrir. Comia o pão com prazer e havia agora um clarão sombrio de zombaria sob suas sobrancelhas negras e espessas.

- Talvez, disse ele, eu prefira guardar meu dinheiro... - Comeu uma grande porção de feijão e rematou: -... para dar um dote à minha filha, que está quase pronta para o casamento.

O senador, que não tinha aversão pelo ouro e possuía quatro filhos, perdeu seu ímpeto, coisa pouco comum nele.

- Ah! Disse eis um assunto que me interessa. A pequena Rúbria é de constituição delicada, mas ganhou consideravelmente em saúde neste clima agradável. E tem uma beleza, também, que é quase oriental, em sua vivacidade.

- Sim, disse Diodoro, pensativamente. - Estou pensando na possibilidade de mandar Aurélia e a menina para Roma, em futuro próximo. Não há família nobre romana aqui em Antioquia que tenha filho digno dela nem idade conveniente.

- Nesse caso, disse o senador - é possível que Tibério, que é justo, embora tenha água gelada nas veias, torne a chamar-te.

- Sim, falou Diodoro. Os dois homens estavam sozinhos na sala de jantar e, como o tribuno não gostava da presença de escravos em torno dele, tinha à mão um sino de cobre para chamá-los quando necessário. Esfregou os dedos sobre o rendilhado do sino, que era do tipo barato, e disse: - Estive pensando muito, hoje. - Atirou um olhar agudo para o senador e acrescentou, o que o outro considerou irrelevante: - Tenho também dor de cabeça.

Carvílio Ulpiano estava ainda curioso a respeito de Íris, que era, segundo ele pensava, bonita bastante para animar o frio Tibério, e criar loucuras em Roma. Tratava-se de uma liberta e contudo não haveria augustal, ou patrício, que não ficasse ansioso para levá-la ao leito e derramar sobre ela todo o ouro de seu cofre. Tocando delicadamente o canto dos lábios com a língua, o senador disse:

- Levarás, naturalmente, todo o pessoal de tua casa se fores chamado a Roma novamente. - Diodoro não respondeu. Sua dor de cabeça não havia aliviado. Amaldiçoou Keptah em silêncio. O senador, impelido pelo desejo e pela lembrança de Íris, continuou:

- Também teu guarda-livros e a família, pois ele deve ser inestimável para ti. Não contastes, uma vez, que ele foi escravo de Prisco, teu pai, e que teu pai gostava dele?

- Sim disse Diodoro, em voz desanimada. - Entretanto, Enéias é tão sóbrio quanto eu, e tem guardado seu dinheiro, comprou também um pequeno olival que não fica distante de Antioquia, e que ele se designa cultivar através de dois escravos meus. Aprendeu a salgar as azeitonas à moda dos judeus, e elas são bastante gostosas. Além disso, tem um respeitável rebanho de carneiros, cuja carne me vende, e também aos mercadores de Antioquia. Duvido que deseje voltar comigo para Roma.

A conversa enlanguesceu. Quando o senador comentou que Enéias sem dúvida seria leal ao senhor e levaria seus desejos em consideração como levaria em consideração os desejos dos deuses, Diodoro sacudiu a cabeça:

- Não farei imposições à sua lealdade, se ele a tiver - respondeu. - Além disso, lealdade é uma palavra pouco familiar para os gregos. Jamais tornaria a ver Íris. Olhava-a agora como um terror. Quando a vira no jardim, tão perto, tão próxima, como há anos não a via, seu coração saltara. Tivera que se controlar para não correr até ela, agarrá-la, e mergulhar a cabeça em seus cabelos dourados. Houvera dentro dele um grito, como o grito da maior alegria e angústia mescladas. A desolação dominou-o.

O senador observava as paixões reveladas e os desesperos galoparem através das feições vigorosas e sem sutilezas do tribuno, e sorria consigo mesmo. Lembrou-se de que havia uma tristeza meditativa na face da jovem mulher grega. Vênus jamais tivera devotos tão relutantes!

Diodoro era um tolo. Por que não se castrava de uma vez e acabava com aquilo? O tribuno levantou involuntariamente os olhos e, vendo o leve sorriso, os olhos mundanos do senador, corou. Encheu sua taça lisa novamente e bebeu o vinho até o fim. Depois disse:

- Talvez te surpreenda saber, Carvílio, que sou um marido virtuoso.

- Infelizmente, isso não é surpresa, disse o senador. Estava um tanto espantado ao ver que Diodoro era tão perceptivo. Bocejou e aquilo o espantou ainda mais. Não eram horas de se recolher. Depois recordou-se de que todos, naquela casa bárbara, deitavam-se cedo. Refletiu, sentindo-se infeliz, que não seria confortado em sua cama dura, naquela noite, por uma de suas bonitas escravas. Por que imaginara que poderia passar muitos dias naquele lugar? Teria de ir embora o mais depressa possível, depois de ter chegado a um certo acordo com Diodoro a respeito de Rúbria.

Antes de se deitar, Diodoro dirigiu-se pesadamente para os aposentos de sua mulher. Aurélia, cujas faces morenas e coradas mostravam sinais de lágrimas recentes, e cujos olhos bondosos tinham as pálpebras avermelhadas, estava consentindo que uma escrava lhe escovasse os cabelos pretos. Estava sentada junto à mesa, vestida com sua camisola de noite, de linho branco, e sob o pano seu corpo voluptuoso era inquestionavelmente matronal. Quando viu Diodoro, seus lábios vermelhos estremeceram e seus olhos brilharam. Controlou-se, instantaneamente, e compôs um rosto frio.

Diodoro teve um gesto brusco para a escrava, mas Aurélia, pela primeira vez desde que se casara, disse com energia pouco habitual:

- Não me deixes, Calíope. Não terminaste de trançar meus cabelos e há outras coisas para fazer.

- Sim, senhora disse Calíope. Tinha uma voz rude e desagradável, que feria os ouvidos, voz estridente demais para uma jovem tão pequena e tão bem-feita.

Diodoro era sempre bastante vago quanto aos servos de seu serviço doméstico, e raramente prestava-lhes atenção. Mas, tendo algo em mente, olhou perscrutador para Calíope e disse, com sua habitual falta de tato:

- Calíope[54]! E com uma voz destas!

A moça sorriu com afetação e curvou a cabeça:

- Sim, senhor.

Diodoro examinou-a. Parecia ter, evidentemente, dezessete ou dezoito anos, rosto vivaz e impertinente, não belo, mas tão animado que lhe dava certo encanto. Tinha ar enérgico e competente, e seu corpo possuía bastante graça. As tranças compridas, de um tom castanho claro, tombavam-lhe abaixo dos quadris. Diodoro percebeu um fulgor castanho, brilhante, embora leve, sob seus cílios. Olhou para as mãos dela. A moça estava acostumada ao trabalho árduo, sob a direção de sua senhora. Parecia integralmente adequada para o que o tribuno tinha em mente.

- Gostarias de te casar? Perguntou-lhe ele bruscamente.

- Oh! Sim, senhor. - E a moça olhava-o impudentemente, sob as pálpebras descidas.

- Está bem. Tenho um excelente marido para ti disse ele, assim aparentemente concluindo o assunto. De novo fez-lhe sinal para que se fosse, e dessa vez Aurélia não rebateu a sua ordem. Quando a moça já se fora, puxando a pesada cortina de lã azul sobre a porta, Aurélia disse, contrariada:

- Penso que é prerrogativa da senhora arranjar os casamentos de suas escravas, moças ou mulheres.

- Sim, sim, disse Diodoro, impaciente. - Mas esta é uma ocasião especial.

Aurélia levantou o espelho de prata e fingiu estar ocupada em examinar a pele.          Diodoro, finalmente, percebeu que sua mulher estava descontente com ele. E disse:

- Que fiz eu?

Aurélia examinava a pele, e suspirou.

- Deve ter sido coisa muito má continuou Diodoro -, mas agora não é ocasião para exasperações matronais.

Aurélia ficou ofendida. Pousou o espelho sobre a mesa, com um movimento brusco, e a lâmpada estremeceu. Sua luz fraca brilhava sobre um leito austero, sem decorações de bronze e sem esculturas; o móvel era de madeira, sem ornamentos, e os tapetes que estavam de ambos os lados dele eram apenas de lã castanha.

- Sou eu dada a caprichos? Perguntou ela. – Tenho acessos de raiva? Quando foi que te aborreci, Diodoro? Quando mereci o insulto que me fizeste esta tarde, diante do marido de minha irmã?

- Oh! Disse Diodoro, franzindo as sobrancelhas. Sentou-se e ficou a olhar para seus joelhos nus. - Não sabia que te havia ofendido. Peço-te perdão, Aurélia. Eu tive hoje uma dor de cabeça verdadeiramente infernal. - Esperou pelas habituais palavras de preocupação de Aurélia, mas ela apenas fungou e a frieza de seu rosto tornou-se ainda mais acentuada. - Deve ter sido muito grave repetiu Diodoro.

Aurélia começou a trançar os cabelos, e Diodoro tentou reprimir sua impaciência. Estava magoado por sua esposa não ter mostrado comiseração a seu respeito, não ter aberto a caixa dos ungüentos para friccionar em sua testa, não o ter convidado a deitar-se em sua cama a fim de que ela pudesse tomá-lo nos braços, como de costume, e cantarolar baixinho para ele até que esquecesse a sua dor, ou que ela passasse.

- Quero dizer falou o tribuno, irascível que é mau quando uma esposa não mostra solicitude para com seu marido.

Aurélia tornou a fungar. As madeixas brilhantes de seu cabelo preto fluíam de entre seus dedos.

- Além disso, continuou Diodoro, em voz mais alta -, juro por todos os deuses que eu não sabia que te havia ofendido diante daquele pretensioso de toga. Por que usa ele toga numa casa tão simples?

- Ele é um cavalheiro informou-lhe Aurélia, significativamente. Diodoro dirigiu-lhe um olhar furibundo, que ela retribuiu com outro igual. Aquilo se parecia tão pouco com a amável Aurélia, dona de uma afeição tão ampla e tão difundida por todos, que Diodoro se viu tomado de surpresa.

- É isso, então: eu não sou um cavalheiro observou ele.

- Tu nunca o foste. - Contra sua vontade, uma covinha apareceu em seu rosto moreno. Depois, desapareceu. - Que história foi essa de casamento para Calíope? Com quem queres casá-la?

- Com Lucano, disse Diodoro, e deu uma palmada no joelho como se a coisa estivesse de todo resolvida.

Os olhos de Aurélia arredondaram-se de espanto. Suas mãos gorduchas tombaram dos cabelos para o colo:

- Lucano! Exclamou ela. - O filho de Íris?

- Quem mais? Respondeu Diodoro, com irritação.

- Ele pediu essa moça? Indagou Aurélia, incrédula.

- Não, não. Eu não disse isso. Resolvi por mim esse caso. Antes que ele se case eu a libertarei e ela será meu presente para Lucano. Quem é ele para protestar contra minhas ordens?

Aurélia abriu a boca, incrédula.

- Esqueceste de que não lhe podes ordenar que se case com uma jovem que escolheste, mesmo sendo tu procônsul e tribuno? Ele nasceu livre! - Estava cada vez mais incrédula. Tinha afeição por Lucano, que era filho de sua amiga Íris, e um jovem bonito, condiscípulo e companheiro de brinquedos de Rúbria. Mas pensara sempre que Diodoro se mostrava excessivamente entusiasmado pelo rapaz.

- Eu posso dar-lhe ordens! Gritou Diodoro, tomado de cólera. - Quem é ele, senão o filho de um cão fraco e antigo escravo, aquele Enéias!

Aurélia ficou calada. Depois, olhando firme para ele, disse:

- Ele é também filho de Íris.

Diodoro fez menção de falar, depois calou-se, e Aurélia continuou:

- Não grites comigo. Posso surpreender-te, mas às vezes também tenho dores de cabeça, embora pareças inconsciente das dores de cabeça que se referem aos demais. Deixa-me continuar. Lucano nasceu livre. E orgulhoso. Não podes ordenar que se case com uma escrava. Nem podes mandar açoitá-lo ou prendê-lo, se te desobedecer. Creio que mencionaste, com aprovação, que o próprio Tibério baixara editais proibindo violência e ordens ilegais.

- Tibério! Disse Diodoro, num tom que enviava o Imperador para o esgoto. - Ouve-me: falarei com Enéias e dir-lhe-ei que é o meu desejo. Ele, pelo menos, não ousará desobedecer-me. Eu o disse. Eu o farei.

Levantou-se, determinado. Mas Aurélia não estava impressionada.

- Pensaste em Íris, que estás para ofender profundamente? Não posso permitir esse ultraje.

O rosto de Diodoro intumesceu de fúria, diante daquilo.

Ultraje! Berrou. - Dou ao rapaz uma escrava para atendê-lo, enquanto pago suas contas imensas em Alexandria, roubando minha própria filha de seu dote...

Aurélia levou as mãos aos ouvidos. Quando Diodoro parou, fervendo, ela removeu as mãos e disse, tranqüilamente:

- Sem dúvida, estás sendo impelido pelos mais elevados motivos. Contudo, dá Calíope a Lucano quando ele partir para Alexandria, se queres.

- Darei, disse Diodoro.

Agora, a curiosidade apoderava-se de Aurélia:

- Mas por quê? Perguntou.

- Eu resolvi isso. Não é bastante?

- Não disse Aurélia, recomeçando a trançar os cabelos.

Depois, sacudiu a cabeça: - Não sei o que tens em mente. Sabes que, ocasionalmente, és sinistro?

Diodoro estava para explodir em gritos coléricos, de novo, quando uma palavra chamou-lhe a atenção. Sinistro. Jamais se considerara assim. Fosse como fosse, o pensamento intrigou-o. Esfregou a testa, desapontado, e disse, num tom mais manso:

- Falei várias vezes: sou apenas um simples soldado. Meus motivos são sempre tão puros como o mel.

Aurélia parecia mais compreensiva e aquilo agradou Diodoro.

- Mesmo que Calíope fosse uma pérola de Cós, dotada pelas próprias Graças[55] disse ela -, Lucano não a quereria. Íris disse-me, hoje, com muita preocupação, que ele fez um voto sagrado aos deuses, de jamais se casar.

- Jamais se casar! Exclamou Diodoro. - Que loucura: O que o levou a tal maluquice? As moças não o atraem?

Aurélia ergueu os ombros:

- Não olho Lucano como um filho, como tu fazes com freqüência disse ela, significativamente. Deixou aquela farpa palpitar em Diodoro por um momento, depois continuou: - Não sou sua confidente; ele é demasiado silencioso e reservado para um jovem. Entretanto, um homem não faz voto sagrado de furtar-se ao casamento se não se sentir atraído pelas jovens.

Aquilo parecia razoável. Diodoro franziu o cenho e murmurou:

- Tolice.

Aurélia tornou a erguer os ombros.

- Tens algo em mente disse ela. - E eu sou muito curiosa.

Enorme alívio inundou Diodoro. Sorriu:

- Se ele fez tal voto, então não o violará. Portanto, está acabado.

- Ainda estou curiosa insistiu Aurélia.

Diodoro sabia que sua esposa não era intelectual nem sutil. Mas era astuta. Tinha, também, um grande respeito por Aurélia.

- Não sou homem para satisfazer a curiosidade de uma mulher disse ele, zombeteiramente. Sua dor de cabeça desaparecera como por milagre. - Pensei em fazer isso para beneficiar Lucano, nada mais.

- Oh! Disse Aurélia, sem se convencer. Bocejou. Perdeu o interesse pela conversa e esqueceu seus sentimentos ofendidos.

Relanceou os olhos para a cama, depois sorriu inocentemente para seu marido.

- Ficaste mais exaltado hoje do que de costume, Diodoro. Os magistrados, os coletores de taxas, os nobres e os caudilhos mostraram-se excepcionalmente odiosos?

- São uns porcos disse Diodoro, expandindo-se. Percebera o olhar da esposa para a cama. Suas mãos começaram a afrouxar o cinturão. Aurélia levantou-se, sacudiu as tranças, depois apagou a lâmpada.

Quando estavam deitados, e abraçados, Diodoro disse:

- Arranjei o casamento entre Rúbria e teu sobrinho predileto, Iso. - Encostou a cabeça no seio de sua esposa, o que aqueceu seu coração e refrigerou sua fronte. Envolveu-se quase desesperadamente na força dela e entregou-se aos afagos delicados de suas mãos. Fechou os olhos e ordenou a si próprio esquecer Íris, que se havia retirado, como a lua se retira para trás de uma nuvem.

 

Pela manhã, Diodoro levantou-se sentindo-se comunicativo, tocado de algum remorso. Lucano era apenas o filho de um liberto, disse Diodoro, que o amava verdadeiramente como a um filho, sentia vergonha de si próprio. Fora aquela maldita enxaqueca, naturalmente que exercem sobre a razão de um homem o mesmo efeito que Medusa[56] tinha sobre a carne, O que o levara a esquecer que uma modesta donzela romana não se poderia casar sem o consentimento de seu pai? Era antes, seu jovem coração que ele estava considerando, pensou o tribuno. Não o queria esmagado. Assim como ele amara Íris, era possível que a delicada e pequena Rúbria amasse Lucano. Aquilo tornou Diodoro mais determinado do que nunca a mandar a menina e a mãe para Roma. Neste ínterim concluiu os arranjos para o noivado de Rúbria, à hora da primeira refeição, com Carvílio Ulpiano. Regateando no que se referiu ao dote. O cauteloso tribuno queria ter certeza de que, se Piso um dia viesse a divorciar-se de Rúbria, ou se ela resolvesse deixar a casa do esposo, o dote lhe seria devolvido. O senador ficara bem-humorado, embora tivesse resolvido deixar aquele lugar impossível na manhã seguinte.

Keptah, naquela aurora rosada, esteve no quarto de Rúbria, para o costumeiro exame matinal. Sentia-se profundamente angustiado. A mocinha tivera sua doença mortal estacionada durante um período de tempo que durara mais do que em qualquer outro caso registrado por Hipócrates ou pelos seus discípulos. Os sintomas do retorno, porém, estavam ali. As mucosas macias de sua boca e garganta mostravam o crescimento mortal da doença branca. Um de seus joelhos estava inchado e quente e, da noite para o dia, ela perdera o colorido das faces e de novo se fizera pálida como um fantasma. Sentia-se lânguida e febril, mas havia um bom sinal: sua disposição ainda era alegre. Poderia haver outro estacionamento, se não ocorresse hemorragia interna. O médico examinou-lhe a urina, fez certas perguntas à ama. Até então, as secreções do corpo estavam livres de sangue. Recomendou, então, que ela passasse alguns dias na cama. Encontrou-se com Diodoro na escadaria. O tribuno tinha uma expressão altamente satisfeita e contente em seu rosto feroz.

- Por que a pequena não está com sua mãe? Indagou.

- Ela sente-se hoje um pouco cansada respondeu o médico, em voz baixa.

Diodoro parou na escada.

- Está doente? Perguntou, sentindo o coração acelerado.

O médico hesitou. Por quanto tempo deveria manter o tribuno inconsciente de que sua filha ia morrer? Diodoro observava-lhe agudamente o rosto. Keptah sorriu:

- Acho que ela esteve brincando demais disse ele. – Torceu um joelho e precisa ficar na cama até que a inchação desapareça. – E acrescentou: - Dei-lhe uma poção que a fará dormir, a fim de descansar o ponto machucado.

A forte compressão que Diodoro sentira na garganta afrouxou. Sacudiu a cabeça, dizendo:

- Parece impossível que uma jovem de quatorze anos se comporte como uma criança saltitante de quatro. Eu estava a tua procura, meu Keptah. Antes que comecem as chuvas da primavera, a senhora Aurélia, minha filha, e tu partireis para Roma. Acabo de contratar o casamento dela com meu sobrinho, Piso, filho de Carvílio Ulpiano.

Keptah ficou apavorado. Cruzou as mãos finas e morenas sobre seu traje branco, de forma que Diodoro não pudesse ver como se contraíam, trêmulas.

- Senhor, disse ele -, não é boa a ocasião. Rúbria fez muito progresso neste clima tépido e suave. Passou bem durante alguns anos. Entretanto, ainda tem a constituição delicada, e expô-la à umidade e às chuvas de inverno de Roma a esta altura será perigoso.

- Tolice disse Diodoro, mas sentia-se abalado. – Vi meninas mais doentes tornarem-se vigorosas e rechonchudas depois de casadas e, particularmente, depois que tiveram filhos. Rúbria tem sido muito mimada.

Keptah umedeceu os lábios e manteve os olhos baixos, para que o tribuno não pudesse ver neles o medo. A menina tinha menos de um ano de vida: podia morrer no dia seguinte, ou no outro. Afastá-la de seu pai, de seu querido companheiro de brinquedos, da tepidez e dos aromas da Síria apressaria sua morte, arrebataria à doente a sua tranqüilidade.

- Um ano, seis meses suplicou Keptah. - Ela tem só quatorze anos.

- Não falou Diodoro, batendo enfaticamente com a mão na parede branca da escadaria. - Dentro de um mês.

Keptah, esquecendo sua posição, levantou a voz e exclamou:

- Em nome de Deus, Diodoro, não afastes de ti a menina! Ela é o coração de teu coração, e ama-te mais ternamente do que qualquer outra pessoa no mundo.

- Isso eu sei disse Diodoro, em tom mais brando. – Achas que será fácil para mim renunciar a ela? Mas se ela e sua mãe forem para Roma, aquele César de sangue gelado poderá chamar-me de volta. Carvílio Ulpiano fará o que puder. Tibério sempre ouve os senadores, e Carvílio tem muitos amigos entre eles. Quero paz. Quero retirar-me para a minha fazenda.

Keptah pensava no amor entre Rúbria e Lucano. Observara como crescia a inocente paixão entre a donzela e o filho de Enéias. Ultimamente, não dissera a Lucano que a menina ia morrer. Eles precisavam ter o seu jovem sonho de amor, o mais belo e mais doce de todos os sonhos, até o momento inevitável. Era um amor puro e, tristemente, ia passando, a cada dia que corria, a ser o amor de uma mulher por um homem. Se Rúbria não estivesse morrendo, Keptah teria sugerido ao tribuno que afastasse sua filha de uma situação que, inevitavelmente, traria angústia para ela.

O médico sentia-se perplexo. Não tinha coragem de dizer àquele pai que sua filha morreria, fatalmente, no máximo dentro de alguns meses. Mas sabia, ainda assim, que ela não podia ir para Roma, e ali morrer em lágrimas, por causa de Lucano e de seu pai. Havia apenas uma coisa a fazer: Inclinando-se em silêncio diante do tribuno, dirigiu-se aos apartamentos das mulheres e pediu a uma escrava que solicitasse de Aurélia um momento de consulta. Aurélia, que estava fiando diligentemente entre as escravas, mandou chamá-lo, sem interromper seu trabalho. Keptah estudou-a. Era uma mulher de senso e força, nunca histérica, nunca se mostrando caprichosa, nunca amuada ou irracional. Suas faces estavam mais coradas do que de costume, naquela manhã. E seus grandes olhos castanhos pareciam mais meigos, como se ela estivesse devaneando sobre algum prazer, algum amor passado.

- Posso falar-te em particular, senhora? Pediu Keptah.

Aurélia imediatamente mandou que suas escravas se retirassem, mas suas mãos continuaram ocupadas.

- Como está a nossa Rúbria esta manhã? Indagou.

Keptah disse:

- Há algo de que te preciso falar, senhora, e que não ouso dizer ao nobre tribuno.

Aurélia ficou com o fuso na mão, e seu pé imobilizou-se sobre o pedal. Empalideceu um pouco, mas seus olhos não se obscureceram, nem se alargaram de susto. Disse, serenamente:

- Rúbria está doente outra vez?

- Sim, senhora. Ela não pode viver. Morrerá antes do outono.

Aurélia tornou-se lívida sob a pele morena. Pousou o fuso sem que a mão lhe tremesse.

- Conta-me pediu ela, em voz abafada.

Keptah jamais a admirara tanto quanto a admirava agora. A força, nela, era a força de um carvalho, atormentado por um vendaval, mas sem ser arrancado por ele. Como Ceres, que perdera sua filha Proserpina para o deus da morte, Plutão, também para ele perderia sua filha. Ao contrário de Ceres, não amaldiçoaria a terra, nem andaria sobre ela, de lá para cá, lançando queixumes. Suas raízes eram profundas e vigorosas.

- A pequena Rúbria tem a doença branca disse Keptah, sem conter as lágrimas que afluíram aos seus olhos enigmáticos.

Aurélia as viu e comoveu-se. Disse:

- A doença branca. Não há cura para isso, eu sei. Tens certeza, Keptah?

- Sim, senhora. Ela teve uma recuperação de alguns anos, bem para além das minhas expectativas. Mas agora a doença voltou. Deus concedeu um milagre para seus próprios e misteriosos propósitos. Não concederá outro milagre, desta vez.

Aurélia cruzou as mãos robustas sobre os joelhos e ficou a olhar para elas.

- Eu não disse ao tribuno que estou grávida. Queria ter certeza. Devo dizer-lhe, para aliviar o golpe da morte próxima de Rúbria?

- Senhora, dentro de duas semanas podes falar-lhe na criança que vem, pois, então, teremos certeza. Mas não lhe fales de Rúbria. Seu coração está nas mãos dela.

Aurélia fez um movimento de confirmação. Tornou-se silenciosa, durante muito tempo, enquanto Keptah ali estava, em pé, no quarto despido e brilhante. Mesmo a morte ela aceitava com coragem.

- Que ele tenha paz. Que ele se sinta alegre tanto pela filha como pela criança que nascerá disse Keptah, reverenciando-a. - Contei-te a verdade, senhora, porque preciso de tua ajuda. Rúbria não pode ir para Roma. Como inevitavelmente morrerá, é melhor que morra aqui, com o pai a seu lado.

- Compreendo, disse Aurélia. Mecanicamente, fez um movimento como se fosse erguer o fuso, depois afastou as mãos. - Direi a Diodoro que prefiro ficar aqui até o outono, e que este verão em Antioquia melhorará ainda mais a saúde de Rúbria. Devíamos partir dentro de quatorze dias.

Olhou de novo para Keptah, e seu busto generoso estremeceu:

- Obrigada falou, com profunda gratidão. E apanhou de novo o fuso.

Keptah interceptou o passo de Lucano quando o jovem ia entrar na sala de aulas, onde Cusa já estava dispondo as lições.

- Vem comigo disse Keptah. Tomando o braço do rapaz, conduziu-o para a doce brisa silvestre do início daquela manhã primaveril. Ficaram no centro do jardim, onde ninguém os podia ouvir.

Keptah olhou o jovem nos olhos, e disse, serena e gravemente: - Tenho más notícias para ti, meu Lucano. A doença branca voltou em Rúbria, e ela morrerá antes que as folhas tombem.

Lucano enrijeceu. Suas faces tornaram-se como que de mármore. Durante os últimos dois ou três anos ele chegara a acreditar que Rúbria viveria. Além disso, parecia-lhe que seu próprio espírito estava ligado ao dela, como as duas árvores que eram as almas de marido e mulher e que haviam recebido a graça dos deuses por causa de seu grande amor. Não falara de Rúbria com Keptah: tivera demasiado medo. Cada dia ele se regozijava com o florescimento dela, cada hora com ela era como ouro, recentemente tirado da mina, e primitivo. O riso dela era mais claro e mais forte; o colorido de suas faces mais brilhantes; seus membros mais leves e mais rápidos nos movimentos. Deus fizera um milagre, e embora Keptah o tivesse advertido no início de que se tratava apenas de um recuo, Lucano, obstinadamente, chegara a acreditar que o milagre tivesse permanência.

- Não acredito nisso disse Lucano, com voz estrangulada, tentando arrancar o braço do aperto das mãos de Keptah. Agora seus olhos brilhavam de dor e medo, e o rapaz olhava para Keptah como para um temível inimigo. Keptah apertou ainda mais o braço dele.

- Eu não minto, falou. - A menina está morrendo.

- Deus não pode permitir que essa coisa horrível aconteça, disse Lucano, uma nota de ódio em sua voz. Olhava para a abóbada translúcida do céu. - Ele não pode levar Rúbria, que não fez mal a ninguém, cujo coração é puro, que carrega deleite e amor até em sua própria sombra.

Keptah suspirou:

- Se Deus levasse apenas os perversos, então este mundo seria realmente um paraíso. Dizem que os que os deuses amam morrem jovens. Deus ama aquela criança. Rúbria será levada para Ele, a fim de repousar em paz e luz, pela eternidade, esperando por ti.

Mas o jovem coração de Lucano rebelou-se violentamente. Sua mente estava cheia de escuridão e desespero. O macio vento que lhe roçava a carne fazia-o estremecer. Odiava Deus, que podia privar o mundo de Rúbria e despedaçar seu espírito em farrapos. Tudo quanto soubera sobre Deus, todo o amor que Lhe dera, humildemente, com júbilo e exaltação, morria em cinzas amargas, espalhadas por um vento mortífero. Tinha rezado, freqüentemente: "Rúbria não, Pai, mas eu, poupa Rúbria." E acreditara que Deus o ouviria e atenderia sua prece.

Dizia consigo mesmo, desesperado: Não acredito! Não acredito mais! Se Deus deixar que isso aconteça, então Ele é mau, e não há nada senão mal neste mundo. Não há Deus. Se Rúbria tivesse morrido quando a doença se manifestara pela primeira vez, Lucano teria aceitado aquilo com a simplicidade e a tristeza de uma criança inocente, e teria rezado pela alma da menina. Amava-a agora como homem, com poder, intensidade e toda a aspiração e dedicação de sua alma. Como homem, acreditava, de súbito, que ela morreria completamente, e estaria perdida para ele, pela eternidade.

Observando-o, Keptah viu o ódio violento e a agonia nos olhos do jovem, a amarga rebelião, a recusa. Disse, alarmado:

- Esqueceste, então, tudo quanto sabias, meu Lucano? Esquecestes a Estrela, o amor, a compreensão? Perdeste teu devotamento a Deus, e teu conhecimento Dele?

Lucano disse, através dos lábios ressecados:

- Esqueci. Sonhei, como uma criança. Agora estou no mundo dos homens.

- Então, como homem, deves aceitar. A revolta é para as mulheres, que não têm conhecimento disse Keptah, tornando a suspirar. Levou a mão ao ombro rígido de Lucano, recordando-se de que os Magos lhe haviam dito que o jovem deveria fazer sombria e solitária jornada a até Deus. Ainda assim, desejava que Lucano não viajasse sozinho. "Pensas ser o único a conhecer o infortúnio? Perguntou Keptah. O coração revolta-se contra a dor, pois isso é natural. Mas tu conheceste mais do que a dor. Conheceste Deus. Ele é assim tão fácil de esquecer?”.

Lucano ficou silencioso.

- Não repelir instantaneamente a dor é não ser humano, continuou Keptah com urgência na voz. - Felicita-te por todos estes anos terem sido teus, por não haver a tristeza roçado por ti, por teres tido o amor de teus pais, e de Diodoro, de ter sido tua vida serena e alegre, de teres amado Rúbria. Deus tem sido terno e amoroso para contigo. E, apesar disso, exatamente quando Ele pede que compreendas, que tenhas fé, que no desespero e no temporal O aceites simplesmente, como O aceitaste ao sol radiante e à beleza, e ao riso, tu Lhe voltas as costas com ódio e gritas em tua alma: Não há Deus!

- Que Ele faça outro milagre disse Lucano, respirando profundamente.

Keptah sacudiu a cabeça:

- Tu é que vais dispor o que Ele deve fazer? - E acrescentou:

- Tenho sido teu professor. Tens estado comigo em meio a tantos fatos desagradáveis. Viste dor; sofrimento e morte. Ajoelhaste ao lado da enxerga de escravos moribundos e os consolaste com palavras de paz, amor e fé; dirigiste para Deus os pensamentos deles. Mas... Deus não deve tocar-te, Ele não deve torcer teu coração! És, então, de tal forma sacrossanto que devas ser poupado ao fato comum a todos os outros homens? Oh! Egoísta! Oh! Homem de pouca fé!

Lucano não respondeu. Seus olhos pareciam pedras azuis. Keptah prosseguiu:

- Uma mulher é mais forte e mais sensata do que um homem.

Dei a notícia a Aurélia, e ela aceitou-a com coragem e submissão, - E acrescentou: - Nada disse a Diodoro. Ele, como tu, não tem força.

Lucano exclamou:

- Como se pode ter força quando não há uma resposta para o infortúnio e para o sofrimento?

Keptah baixou os olhos, pensativamente.

- Houve um homem chamado Jó que fez essa pergunta. E Deus lhe disse: "Onde estavas tu quando Eu lancei os fundamentos do mundo?" E Jó silenciou.

- Isso é uma resposta de sofista, falou Lucano.

- Ainda assim é uma resposta mais confortadora do que muitas outras.

Lucano apertou as mãos contra os olhos, e Keptah contemplou-o compassivamente. Depois, disse:

- Regozija-te com as pequenas bênçãos. Era desejo de Diodoro que Rúbria te deixasse, dentro de duas semanas, partindo para Roma. Agora, a heróica Senhora Aurélia o dissuadirá, porque sabe. Ela não quer que a filha morra tão longe do pai. E de ti. Não podes ser tão nobre quanto uma mulher?

Cusa surgiu no jardim.

- Aí estás, aluno velhaco! Disse o professor grego. – Queres evitar as lições, não é? Apressa-te, vagabundo!

Lucano olhou com raiva para ele, mas Keptah sorriu e tocou-lhe no braço:

- Meu bom Cusa, teu aluno está pronto. Eu acabo de completar a lição.

Voltou-se para Lucano, e indagou:

- Completei a lição?

Lucano, porém, olhou para ele sombriamente. E deixou Keptah, que o acompanhou com os olhos, tomado de tristeza.

 

- Preferirias, sem dúvida, estar seguindo Keptah entre as enxergas infectadas de febre dos escravos, e examinar eruditamente seus vasos noturnos disse Cusa, sarcasticamente. - Ainda assim, se quiseres chegar a Alexandria com algo mais do que simples tinturas de conhecimentos, advirto-te que te apliques às tuas lições. Não - acrescentou, sombrio - que isso adiante muito para uma pessoa de tua limitada inteligência.

Aquela era a sua maneira de estimular Lucano a fazer esforços extras. O rapaz habitualmente respondia com um de seus calmos e austeros sorrisos. Dificilmente encorelizava-se, mas quando isso acontecia, ficava resistente como uma pedra, e em suas órbitas surgia um fulgor azul.

Naquele dia Lucano sentou-se em silêncio, a mão ociosa sobre o estilo, os livros enrolados, a cabeça baixa. Mas quando Cusa o ridicularizou, ele ergueu a cabeça, e o fogo gelado de seus olhos foi uma advertência para o grotesco professor.          Entretanto, Cusa falou:

- Não olhes assim para mim, filho de um antigo escravo, como se fosses meu amo e eu te houvesse insultado de maneira imperdoável. Foi apenas o acaso que te fez livre. Numa casa mais sensata estarias derramando água sobre as pedras e esvaziando os vasos noturnos, e não sentado a uma mesa de mármore, como um prático.

- Deixa-me em paz disse Lucano, em voz abafada.

Cusa então viu que o jovem estava tomado de tremenda angústia, e que mais zombarias o incitariam à violência. O professor de há muito deixara de chicoteá-lo durante as lições. Em seu coração ele agora amava aquele aluno, e quase cessara de invejar-lhe a beleza e os favores com que Diodoro o cumulava.

- Bem, disse Cusa, pensativamente, um dedo em seu rosto de sátiro.        Estudou Lucano, e sua mente saltava como uma cabra, olhando para a cadeira vazia de Rúbria. A mocinha, ultimamente, andava respirando com mais dificuldade do que antes, e uma ou duas vezes tinha fechado os olhos, como se fosse desmaiar, os lábios e faces tomando um tom peculiar, de um cinzento fantasmal. Cusa, cuja curiosidade não tinha limites, passara anos estudando os livros de medicina de Keptah, e algo faiscou em sua mente ágil. Era qualquer coisa implacável. Refletiu que Lucano não estaria assim angustiado se a doença de Rúbria fosse banal. Viu que o jovem também fixava a cadeira vazia de Rúbria, e que sua boca se retorcia, rigidamente. Conforme o professor temera, os deuses, esperando em seu relampejante silêncio, tinham ferido a donzela de alguma forma particular e mortal, e Lucano o sabia. O professor pigarreou.

- Rúbria está ausente hoje disse ele, observando Lucano com atenção. - Ah! Como é cansativo ser mulher! Amanhã ela estará presente.

Mas Lucano, sem ouvi-lo, apenas contemplava a cadeira de Rúbria, e sua garganta tornava-se rígida como se fosse feita de mármore. Cusa sentiu uma piedade que não lhe era familiar.

- Atenção! Disse, desenrolando um manuscrito, que estalou no silêncio. - Diodoro está gastando contigo muito tempo e esforço e, eventualmente, dinheiro. Sejamos homens, não crianças.

Lucano não respondeu; seus dedos torciam o estilo, como se ele estivesse torturado. Cusa meditou e então disse:

- Consideremos Anascrúsio[57] por um momento, de passagem. Observa a sua filosofia: “É o momento crítico que revela o homem”. Portanto, quando a crise te atingir, lembra-te que Deus, como um treinador de lutadores, deu-te um antagonista áspero e rijo. Com que fim?, perguntarás. Para que te consagres vitorioso nos Grandes Jogos.

Um sorriso sardônico e enlutado passou pelos lábios de Lucano. Ele levantou os olhos para o professor e disse:

- Tu sempre declaraste, Cusa, que Deus era uma alegoria. Uma invenção poética.

Cusa sacudiu a cabeça, em reprovação.

- E é. Mas, ultimamente, tenho notado que Ele é algo mais. O elemento vital do universo, como disse Aristóteles.

- Depressa estarás sacrificando em algum templo, disse Lucano, com frio desdém.

Cusa encolheu os ombros:

- Foi declarado que os sacrifícios não são prejudiciais. Se os deuses existem, os sacrifícios lhes agradam, e isso é excelente. Se não existem, teus vizinhos falarão sobre a tua piedade, e isso é ainda mais excelente. - Estava magoado ao perceber que sua tentativa para aliviar a atitude sombria de Lucano não dera resultado. - Atenção! Anaxágoras[58] declarou que o homem tornou-se inteligente porque aprendeu a usar as mãos. Faltou observação: os macacos usam suas mãos, e sua inteligência não é notável. Os coelhos dos campos levantam as cenouras nas patas da frente e devoram-nas como os homens as devoram, mas os coelhos são apenas um pouco menos inteligentes do que alguns estudantes que eu poderia nomear. Aristóteles garantia que os homens aprenderam a manipular as mãos porque se haviam tornado inteligentes. Garantia, também, que o cérebro é apenas um órgão para refrescar o sangue. Os filósofos orientais declaram que o cérebro é a sede da alma, do ego, da mente, e não o coração. Aristóteles tem seu momento de estupidez, e prefiro os filósofos orientais nesse assunto. Afinal, este não é o ponto em discussão. Qual dos filósofos te parece mais válido no caso: Anaxágoras ou Aristóteles? E por quê?

O estilo de Lucano moveu-se lentamente, e depois com maior velocidade, conforme a mente erguia o problema em suas mãos invisíveis e fazia-o girar, estudando-o e pesando-o. O rapaz escrevia clara e concisamente. Cusa admirava-o de maneira furtiva. Algum horrendo conhecimento chegara a Lucano e, apesar disso, ele poderia deixar que uma idéia reunisse seus pensamentos. Somente um camponês ficaria dominado pelas suas emoções. Entretanto, e nisso Cusa refletia melancolicamente, o camponês goza considerável paz de espírito, paz desconhecida do homem de cultura. O preço da inteligência seria sempre a dor?

Cusa bocejou de repente, e Lucano, ainda muito pálido e rígido, aplicou-se às suas lições. O dia se fizera muito quente, muito silencioso, sem ar. O sol brilhava demasiadamente. Os pássaros estavam imóveis. De repente, apesar do sol, um som trovejante e cavernoso se fez ouvir, sacudindo a casa, e momentaneamente agitando as árvores para além da porta aberta. O silêncio foi seguido por uma espécie de augúrio nefasto. Cusa foi até a porta e olhou para o jardim. A grama, as flores, as próprias fontes pareciam apanhadas e aprisionadas em luz absoluta, ao mesmo tempo terrifica e estranha. Cada cor se intensificara e tomara vagamente uma qualidade de terror. Cusa percebeu que arquejava; era como se tivesse levantado a tampa de uma caldeira. Olhou para o céu. Ali, a luz mostrava-se curiosamente cuprea, obscurecendo o azul. Ah!, Pensou Cusa, vamos ter mau tempo. Conhecia aquelas rápidas tempestades semi-tropicais, violentas e destrutivas. Passavam rapidamente, porém, jamais, entretanto, vira luz tão semelhante ao latão. Num momento a terra tornou-se de cor citrina. Mesmo as palmeiras banhavam-se em claridade ocre, e as folhas das árvores caducas amarelaram. As folhas da relva eram cor de topázio. Os lírios brancos fizeram-se morenos. Uma inquietação e um pressentimento feriram o ar. E o calor cresceu insuportavelmente enquanto o sol parecia aumentar de tamanho, tornar-se o escudo de ouro do próprio Zeus, voltado para o mundo e exibindo sua intensa cor de açafrão.

Não gosto disso, pensou Cusa. Como que respondendo, numa zombaria dos deuses, os céus explodiram em chama ambarina. A fúria atirou-se às árvores, às palmeiras, às próprias folhas de relva, e elas torceram-se incontrolavelmente. Livros voaram de sobre a mesa de mármore da sala de aula. Houve um grito estridente e insuportável no ar, como que de milhões de papagaios que tivessem enlouquecido. As cores todas desapareceram do jardim, perdidas numa fulguração ictérica. O mundo todo ficou amarelado!, Pensou o assustado Cusa. Lutou com a porta, pois o vendaval se tinha transformado em golpes selvagens contra seu corpo. Chamou Lucano para ajudá-lo, e sua voz foi carregada pelo vento. Mas o jovem grego estava a seu lado. Foi preciso que reunissem suas forças, para fechar a porta, e depois ficaram ali, arquejantes, olhando um para o outro. Não houve oportunidade para falar. O trovão, contínuo e ensurdecedor, envolveu-os, acompanhado de terríveis e contínuos coriscos cor de limão. O piso ressoava seguidamente sob seus pés. Ambos mantinham a boca aberta, lutando para respirar, pois o calor era como a ardência de muitas fornalhas. Uma ou duas vezes ouviram um som selvagem, como de águas em tormenta.        Depois, veio a chuva, não constantemente, mas em lençóis pesados de água pura e esmagadora, da cor dos crocos amarelos. Cusa e Lucano foram para a mesa de mármore, que tremia sob suas palmas suadas. Os lábios de Cusa moviam-se em frenética oração.

Lucano observava-o, sua boca se curvava, desagradavelmente. Cusa, parando por um momento em suas preces, ficou espantado com a expressão do jovem. Continuou a rezar apressadamente, conforme o trovão retumbava como se sobre a terra passassem as rodas de uma poderosa biga, mas ficou pensando. Os relâmpagos inflamados faiscavam e tornavam a faiscar no rosto de Lucano, naquela sombra ictérica, e pareciam estar ferindo o rosto de uma estátua trágica. Uma e mais vezes a terra estremeceu.

O vendaval batia de encontro à porta de bronze com punhos de ferro. A cortina da janela estendeu-se para fora, direita, como vela encapelada de um barco. Enceguecido pelos relâmpagos, e tiritando até dentro do coração, Cusa cobriu os olhos. Não viu a água começando a filtrar por baixo da porta. Primeiro, veio como se lançasse gavinhas, tremulamente. Depois, correu em regatos serpentinos, mais largos, luzindo e refletindo os coriscos. A seguir foram lençóis, levantando-se, fluindo, torcendo-se. E cobriu o piso de mosaicos. Quando alcançou as sandálias de Cusa, ele deu um salto e abriu os olhos. Lucano, porém, não se moveu. Tinha a cabeça abaixada e parecia meditar.

Com certeza isto acaba logo, pensava o professor tomado de pânico. Mas a tempestade aumentava de intensidade. Parecia devorar a terra em fogo. O som estranho acentuava o mugido do trovão, um som ipitado, indescritível. Cusa perdeu a noção do tempo. Se os pilares da casa ruíssem, se as colunas se espalhassem, ele não se teria surpreendido. Ninguém se aproximou da sala de aula pela porta interna. A casa inteira acovardara-se. Ocasionalmente, o forte clamor do trovão era acompanhado de um som de algo que voa em lascas, numa reverberação de chama, e uma árvore era atingida. As paredes brancas do aposento palpitavam em vagas de brilho, que se apagavam, momentaneamente, em semi-obscuridade, e depois acendiam-se de novo.

Jamais Cusa testemunhara semelhante temporal. Aspirava sentir encorajamento e consolo humanos. Lucano não lhe dera nenhum. Estava, ao que parecia, inconsciente dos assaltos que a terra sofria por parte dos céus sibilantes e enfurecidos. Apoiara os cotovelos na mesa, e amparava o queixo com o polegar e o indicador da mão esquerda. Podia ser tomado por um estudante que refletisse sobre um teorema.

Então, da mesma forma súbita com que começara a tempestade terminou. Os relâmpagos cessaram de atirar seus dardos inflamados contra a terra, e da mesma maneira abrupta o trovão deu fim à sua voz estrondosa. As flamas que refletiam nas paredes do aposento desapareceram. A cortina caiu, desarvorada, sobre a janela. Os ouvidos de Cusa, entretanto, zumbiram durante alguns minutos ainda, e algum tempo se passou antes que lhe fosse possível controlar o tremor das pernas e pudesse se levantar, patinando na água límpida que inundava o piso. Empurrou a porta para trás e mais água invadiu o local. Um sol claro e inocente, recém-nascido e de olho arregalado, espiava para a terra. Árvores e palmeiras despedaçadas espalhavam-se pelo terreno todo, como cavacos de lenha. As fontes transbordavam em cascatas de luminosidade argentina. Mas as flores foram atiradas a terra como cadáveres frágeis e coloridos. Imediatamente, o mais doce odor ergueu-se do chão, vindo das rosas quebradas e dos jasmins arrancados. Os pássaros iniciaram uma canção tímida, ação de graças por terem sido poupados. A voz do rio, demasiado próxima, conversava alta e agitadamente com o céu. Tons de mercúrio corriam por toda parte, através da relva batida, das árvores tombadas e dos troncos e folhas.

Os escravos começaram a sair aos magotes da casa gotejante. Observavam a destruição e lamentavam-se. Cusa gritou para eles:

- Olá! Onde vos estivestes escondendo, covardes! Trazei pão, queijo e vinho imediatamente. Devemos morrer à fome entre os livros?

Pela primeira vez, Lucano ergueu os olhos e sorriu levemente. Mas não era o sorriso de um jovem, e sim o de um homem cansado.

Um escravo, ainda tremendo, trouxe uma bandeja de pão grosseiro, vinho barato local, e uma fatia espessa de queijo duro amarelo, bem como alguns pepinos em coalhada. Tagarelava:

- Oh! Houve muito estrago! Quatro das melhores cerejeiras caíram, seis macieiras e todas as romãzeiras foram fulminadas lá nos campos, e os carneiros desapareceram.

Cusa dirigiu-se para a mesa com ar fanfarrão, meteu um dedo na tigela de pepinos, lambeu-o, e comentou, com ares críticos, lançando um olhar furibundo para o escravo:

- És criança, para teres medo do temporal? Enquanto ele passava... e houve, mesmo, um temporal?... Nós estudávamos o Fedo[59]. Fora daqui!

A água fluía através da porta. Lucano falou:

- Quem será que estava encolhido junto de mim, dizendo ao mesmo tempo imprecações e preces?

- Atenção! Disse Cusa. - Vamos estudar as Categorias de Aristóteles.

O sol quente secou a água e o piso cobriu-se de vapor. Agora, todo o jardim e toda a terra estavam envolvidos em névoa radiosa. O rio ainda clamava, e Cusa, constrangido, pensava se ele não iria invadir a terra. Tudo gotejava: milhares de minúsculas vozes musicais eram ouvidas por toda parte. As estátuas do jardim brilhavam sob a água iluminada. O perfume dos jasmins parecia-se ao odor dos lírios brancos das margens do Lete[60], dominando e anestesiando os sentidos. As vozes dos escravos vinham lá de fora para o aposento, cheias de jaculatórias e temor respeitoso diante da destruição feita pelo temporal.

Cusa comia com satisfação. Lucano apenas bebeu um pouco de vinho. Parecia absorvido em seus livros. Uma hora passou-se e outra e mais outra. O sol primaveril enviesou para o Ocidente. Cusa não podia decifrar o rosto quieto de Lucano, que tinha em si algo de maciço.

O estilo rangia. A porta interna abriu-se e Diodoro entrou na sala de aulas. Cusa e Lucano se levantaram. O rosto do tribuno estava cadavérico e tenso. Caminhou até a mesa de mármore, olhou Lucano bem dentro dos olhos, tentou falar, não pôde. Lucano soltou uma exclamação, agarrando-lhe o braço:

- Rúbria! Rúbria?

- Vem comigo disse o tribuno. E, estendendo o braço, passou-o pelos ombros do jovem, como o faria um pai.

Íris estava augusta em sua dor. Aurélia chorava ao lado dela, mas Íris não chorava. Lucano não pôde aproximar-se da mãe, pois havia nela uma majestade que repelia gestos de consolo. Estava de pé, no centro do vestíbulo de sua casa, vestida de silêncio, o rosto cego e fechado, as mãos apertadas uma contra a outra diante do corpo. Parecia ouvir apenas Diodoro, que lhe falava na morte do seu marido Enéias.

- Enquanto os outros fugiam como frangos, ele ficou com seus livros de escrituração, no pequeno abrigo da margem do rio dizia Diodoro, em voz baixa. - Há ocasiões em que a coragem é uma loucura, mas quem pode questionar a lealdade e a coragem? Ele não poderia levar consigo todos os livros, portanto ficou. Mas o rio subiu sobre a terra, sobre as docas, sobre o abrigo, e levou Enéias consigo ao retrair-se.

Estava cheio de espanto e reverência por ter aquele liberto tentado preservar seus registros até morrer. Não sabia que para Enéias os registros em si mesmos, as coisas que escrevia com sua mão, eram mais valiosos, em momentos de desastre, do que sua própria vida. Tinham simbolizado para ele a razão de sua existência; neles estava registrada a evidência de que o homem que os fazia tivera importância, e sua correção era uma negativa quanto à antiga escravidão que sofrera. Triunfantemente, afinal, vira Diodoro sair em busca de terreno mais alto, sem ter podido arrancá-lo de suas tabuinhas, de sua mesa, de seu estilo.

Somente Lucano, com percepção interior, compreendeu, e ficou abalado. Durante os últimos anos, ele e o pai se vinham separando, e a estatura de Enéias minguara diante dos olhos jovens do filho. Ele não ouvira com demasiado senso de dever quando Enéias, pelas noitadas, expunha os filósofos gregos, pomposamente. Lucano sabia mais acerca deles, e com mais verdade, com maior profundidade. Freqüentemente, irritava-se ao observar a superficialidade do pai. Só a presença de Íris impedia Lucano de usar expressões de impaciência. Às vezes, achava seu pai insuportável. Ele encolerizava Lucano com seus comentários zombeteiros sobre a falta de cultura de Diodoro. Sugerira que o interesse do tribuno em relação a Lucano era um reconhecimento de sua inferioridade como romano perambulante. "É o tributo que a grosseria só muito infreqüentemente paga ao refinamento", dizia ele. Lucano abria a boca, num impulso, mas percebia os olhos ternos e cheios de advertência da mãe, e recolhia-se, furioso.

Para Lucano, a morte do pai era uma tragédia que ia além da simples morte. Não podia chorar. Apenas conseguia ficar ali, sentado, contemplando a mãe. Desejava cair aos pés dela, prostrado, implorando-lhe o seu perdão.

Eu apenas tenho vivido na casa de Diodoro, pensava Lucano. Tenho vivido apenas para Rúbria, para Keptah, para meus livros. Um homem deseja parecer um deus aos olhos do filho. Eu deixei que meu pai percebesse que era um pigmeu, vi que ele se encolhia sob meu olhar. Oh!, Não pude deixá-lo crer que era importante, embora tentasse falar-lhe respeitosamente, e com falso tom de submissão! A tal degradação cheguei!

- Quando o rio devolver seu corpo, faremos para ele o funeral de um herói dizia Diodoro, olhando para a bela Íris, que nele fixava os olhos que eram uma cegueira azul. - Eu próprio acenderei a pira. Haverá flâmulas e trombetas; e a presença de soldados com as insígnias reais, incenso, rufar de tambores, e um vestuário de púrpura e branco misturados.

Aurélia, chorando, pensava no que seria para ela se Diodoro tivesse sido estúpido bastante para tentar salvar aqueles tolos livros e registros.

- Começarei os sacrifícios amanhã, no templo de Hércules, o deus de todos os heróis disse Diodoro. Se Aurélia e Lucano não estivessem presentes, bem como Keptah, ele teria se ajoelhado e beijado a barra das vestes de Íris. Desejava prestar lhe honras, em nome de seu marido morto. Detestava Enéias, mas esse sentimento fora devorado pela admiração, e pelo seu amor em relação a Íris. A face imóvel e maravilhosa da moça tocava-lhe o coração. Queria gritar-lhe: "Íris, minha companheira de brinquedos, minha bem-amada, minha vida é sua quando a quiseres pedir!"

Keptah desaparecera atrás da cortina que levava à cozinha, e agora voltava com uma poção numa taça. Curvando-se como diante de uma deusa, colocou a taça nas mãos de Íris. Ela bebeu, mas ainda olhava para Diodoro com aqueles olhos afogados e sem visão.

- Mandarei esculpir uma estátua para ele dizia Diodoro, sem saber o que fazer.      - Ela terá um nicho de honra próximo ao altar de Hércules. Em nome de Enéias certa soma te será entregue todos os anos. É o mínimo que posso fazer.

Aurélia tornou a chorar, com uma nova torrente de lágrimas. Os livros, afinal, tinham sido carregados com Enéias. Seu gesto de trágico heroísmo fora desperdiçado. Oh!, Os homens comoventes e tolos, que supunham ser um gesto mais importante para suas famílias que as suas vidas! Os homens eram heróis, mas as mulheres eram sensatas. Aurélia sentia muito por Íris, que tinha por marido um herói.

- Eu não o amei como meu marido, mas apenas como a mãe ama um filho disse Íris, falando pela primeira vez.

Aurélia compreendeu, e, mesmo soluçando, confirmou com um aceno de cabeça. Não a surpreendia aquela honestidade.

- Ele era para mim um filho, digno da minha ternura, da minha proteção continuou Íris, em voz fraca e sonhadora. - Ele era trágico.

- Sim, sim disse Diodoro, sem nada compreender. - Mas a tragédia é a sina dos heróis.

Estava muito cansado, coberto de lama. Trabalhara durante horas salvando o que podia ser salvo. Três navios carregados com os melhores produtos da Síria tinham naufragado. Ele nadara, com seus oficiais, procurando, em vão, o corpo de Enéias. Quando vira Enéias ser arrastado, mergulhara de peitoral, sandálias, espada e tudo, atirando-se às águas violentas e amarelas. Pensara apenas em Íris.

- Penso disse Keptah, em voz branda que seria melhor a Senhora Aurélia conduzir Íris para seu quarto. A poção está fazendo efeito.

E, realmente, Íris começara a cambalear perceptivelmente.

Aurélia levantou-se, cercou a amiga com o braço e levou-a, através da cortina, para seu quarto de dormir. Disse, por sobre o ombro, ao marido:

- Ficarei com ela algum tempo. Quando voltares, Diodoro, manda minha escrava especial, Maria, para ficar aqui e tomar conta de Íris durante a noite.

Os três homens ficaram sozinhos: Diodoro olhou para Lucano, que em sua dor se havia sentado na presença do tribuno. Pôs a mão no ombro do jovem:

- Que a nobreza e a noção de dever de teu pai sejam uma imorredoura lição para ti falou, em tom comedido. Keptah cruzou as mãos sobre sua roupa e baixou os olhos.

- Não fui um bom filho, disse Lucano.

Diodoro bateu-lhe no ombro, afetuosamente:

- Nós nos censuramos quando os que amamos nos são levados, disse ele. - Mas, se meditarmos, conseguiremos ver como podem eles inspirar nossas vidas e fazer nossos anos mais significativos, pelas suas lições.

- Peço-te perdão, senhor, mas não compreendeste, disse Lucano, esmagado pelo seu desgosto.

- Eu nunca compreendo: é o que toda gente me diz, falou Diodoro, um tanto irritado. Sua exaustão enfraquecia-o. Tornou a dar pancadinhas nos ombros de Lucano. - Fica com tua mãe. Conforta-a. Exalta-lhe o espírito, pois ela tem um herói por marido.

Lucano levantou-se e foi para o quarto da mãe. Ela estava deitada, uma estátua, tombada no leito, os olhos fechados. O rapaz ajoelhou-se ao lado de Íris, enquanto Aurélia arranjava os tapetes sobre os pés níveos dela. Beijou-lhe a mão abandonada. Íris abriu os olhos, viu-o, seus lábios moveram-se. Pela primeira vez, chorou; Lucano ergueu a cabeça dourada dela contra seu ombro, e abraçou-a, num amplexo doloroso e mudo.

Seu coração parecia uma pedra imensa. Desejava rezar pela alma de seu pai, que agora vagava em algum fantasmal Campo Eliseo, chamando, em voz apagada e solitária. Mas, mesmo agora, só podia pensar em Rúbria, na jovem, terna e adorável Rúbria, que depressa viajaria por aquele penoso caminho para as profundezas da morte, e estaria perdida para ele, por toda a eternidade.

 

Rúbria recuperou um pouco as forças, o bastante para ser levada para baixo de uma árvore, à tépida luz do sol da primavera. O aspecto fantasmal de seu rosto iluminou-se com leve colorido. Keptah dissera a Diodoro que as mocinhas têm, freqüentemente, essas recaídas que tomam aspecto de invalidez parcial. O devotado pai não sabia que as mangas compridas usadas pela menina escondiam a seus olhos o doloroso derramamento de sangue sob a pele, e aqueciam seu corpo que ia desfalecendo. Entre ele e Aurélia ficara convencionado que Rúbria e a mãe não iriam para Roma, a não ser no outono. No entanto, cartas fogosas, concernentes ao dote, eram trocadas entre ele e o senador.

Cusa, tanto quanto possível e quando Lucano o contemplava especialmente, permitia que o rapaz viesse fazer suas lições no jardim, junto de Rúbria, para que ele pudesse ver a donzela. Rúbria já não estudava mais: sua força que desaparecia, seu langor, suas súbitas caídas em profundo sono proibiam qualquer esforço. A moça ria gentilmente de algumas das saídas de Cusa, que sempre se acreditara muito espirituoso. E para distrair a mocinha, Cusa muitas vezes ficava acordado, durante a noite, inventando coisas espirituosas ou histórias alegres. O coração do astucioso grego se tornara mole como manteiga na presença de Rúbria. Acreditando apenas que todos os homens eram maus, incapazes de razões verdadeiramente desinteressadas, que eram cruéis por natureza e dissolutos em todos os seus pensamentos, espantava-se de si próprio. Diante daquela menina, a única inspiração poderia ser amor.       Havia moças escravas naquela casa, mais bonitas do que a jovenzinha. Em comparação com Íris, que tinha idade bastante para ser sua mãe, ela era uma mortal comparada com deslumbrante deusa.

Ainda assim Cusa começava a acreditar que jamais havia existido criatura tão perfeitamente adorável. À proporção que seu rosto emagrecia, em sua esbeltaz morena, seus olhos tornavam-se imensos, brilhantes, repletos de uma luz sobrenatural, umedecidos de sonhos e amor. Sua boca, dizia Cusa para si próprio, parecia-se a uma flor. Seus longos cabelos pretos assemelhavam-se a um entrançado de cristal, tombando em cascata sobre seus ombros jovens e sobre seus seios imaturos.

Recostava-se em sua cadeira, as pernas e pés cobertos com tapetes de lã, mesmo nos dias mais quentes. E os contornos de seu corpo tomavam um aspecto impalpável, como contornos de um espírito. Quando dormia, parecia ter cessado de respirar. Acordava tão subitamente quanto tinha tombado numa sonolência, e olhava em derredor com timidez e afeição ardentes. Donzela romana, de nobre família, como era, tratava as escravas sempre com a cortesia que se oferece aos nossos iguais.

Aceitava a vida com carinho e reverência. E à proporção que sua existência mortal declinava, sua alma tomava dimensões para além da compreensão dos homens. Na companhia dela ficavam todos convencidos de que tudo na vida era bom e cheio de significação e poesia. Seus pássaros prediletos pousavam-lhe ao ombro para comer o pão ou a fruta que ela lhes oferecia de seus lábios. Empoleiravam-se em seus dedos delicados e curvavam-se para a jovem, ansiosos, como para aprender com ela algum segredo inefável. Mesmo o sol parecia brilhar mais, quando ela estava presente, e luzir mais tepidamente sobre seu corpo. Se tinha alguma dor, ninguém o sabia, a não ser Keptah. Tranqüilidade e serenidade envolviam-na como uma aura; ela não tinha medo. Durante os meses que se tinham passado, desde que sua doença voltara, Rúbria tornara-se uma mulher, e, para a humilde crença de Cusa, uma divindade.

Sabia que ela estava morrendo: todos o sabiam, exceto o pai, apaixonadamente devotado. Cusa suspeitava que Rúbria também sabia.

Sua paciência sublime, sua ternura, sua maneira de olhar em torno, pelo jardim e para todos os rostos, com silenciosa intensidade e encanto, asseguravam-lhe que ela partiria antes que viesse o inverno. Sem embargo, Rúbria jamais se queixava, e sorria, apenas, como se possuí se algum segredo divino.

Diariamente, Lucano se ia fazendo mais severo e mais frio, a não ser quando em companhia da mocinha. A austeridade de seu rosto parecia alcançar os próprios ossos. Sofria por seu pai, e isso Rúbria sabia. Raramente vira Enéias, mas sofrera por Íris e Lucano. Não falava no morto, mas às vezes suspirava, contemplando seu antigo companheiro de brinquedos. Era por solicitação específica sua que Lucano comia frequentemente com ela e seus pais, quando lhe chegavam as forças para descer à sala de jantar. A fim de poupar angústia ao pai, vinha caminhando, vagarosa e debilmente, até seu lugar à mesa. Quando ali chegava, toda a sua atenção era para Diodoro, que a contemplava com amor. Acreditava que a mocinha melhorava, e Keptah fugia às suas perguntas mais diretas, em tom brando.

Diodoro, feliz porque Carvílio Ulpiano terminara, afinal, por concordar com as condições por ele propostas em relação ao dote, exultava em sua crença de que a filha ia melhorando lenta e seguramente. Também exultava com a idéia de que Aurélia lhe daria um filho.

- Naturalmente dizia ele, afetuosamente, à esposa será um menino. Não sacrifiquei bastante aos deuses? Ainda ontem sacrifiquei uma hecatombe, e os preços que esses sírios pedem, os ladrões!

Dediquei o menino a Marte. Ele deve nascer em Roma, é natural, não nesta terra desprezível.

Aurélia lhe sorria. Às vezes, ele a encontrava em lágrimas, mas a esposa dizia-lhe, rapidamente:

- Deves lembrar-te que as mulheres tem desses caprichos durante a gestação. Põe a mão no meu ventre, meu muito querido, e sente como teu filho salta: parece um cordeiro, Ah! Ele é forte! Vale tanto quanto seu pai.

Um dia, ao fim do verão, Rúbria e Lucano estavam sozinhos sob a sombra de uma árvore grande, verde e brilhante. Lucano estava sentado ao lado dela, que dormitava, e ia fazendo suas lições e desenrolando seus livros de referência. De súbito, tremendo cansaço tombou sobre ele, e uma sensação de desespero esmagador. Pôs de lado suas tabuinhas e seus estilos. Olhou para Rúbria, para os cílios longos e pretos que desciam como sombras sobre suas faces pálidas, para suas mãos cruzadas, transparentes como alabastro. Tinha o aspecto da morte, de absoluta entrega, o peito mal se movendo. Então ele soube, com absoluta certeza, a despeito de sua rebelião, a despeito de suas preces entre lágrimas, e às vezes mesmo blasfemas, a despeito da oposição de sua vontade contra a vontade de Deus, que ela morreria, e muito em breve. Seus malares apareciam como de marfim, sob a carne delgada, e seu pescoço era uma haste. Lucano deixou a cabeça cair lentamente contra o joelho dela, fechou os olhos, e entregou-se à dor.

Quando ela morrer eu irei embora, pensava. Irei fazer-me um andarilho sobre a face da terra. Partirei pela noite até os mais remotos cantos do mundo, e ninguém saberá qual o meu nome. Não há nada, se não houver a querida de meu coração, sem tudo quanto verdadeiramente amei.

Os pássaros cantavam e tagarelavam, e ele não os ouvia. O sol dançava em cada folha e em cada flor, e diante de seus olhos havia apenas escuridão. Era jovem e quente, mas sentia-se velho e frio como a morte. Todo o desejo por tudo quanto vive desertara dele. Quando as trevas do túmulo ou da pira funerária tivessem devorado aquela jovem, também a ele teriam devorado. Um torpor de fraqueza correu-lhe pela carne, e Lucano sentiu-se mortalmente doente, como se também estivesse para morrer. Um gemido ligeiro escapou de seus lábios.

Mão leve como o toque de uma folha tocou o alto de sua cabeça dourada e ele, sobressaltado, levantou os olhos. Rúbria sorria-lhe com a terna sabedoria de uma mulher. Todo o amor brilhava em seus olhos, toda a compreensão. Ele tomou-lhe a mão e beijou-a com força desesperada. Podia sentir sua fragilidade, sua delicadeza quase espiritual.

Então, ela falou:

- Não deves sofrer, Lucano querido.

Sua voz era baixa, e infinitamente suave. O coração de Lucano estremeceu. Então, a menina sabia. E era possível que o soubesse de há muito tempo. Ele não podia suportar a idéia de que aquela criatura tão jovem e tão bela soubesse a verdade e a tivesse aceitado, sem medo natural, sem lamentações, somente com uma coragem sublime. Intimamente, amaldiçoou Deus, e pensou: Quando ela morrer, eu irei com ela, pois nada existe sem ela. Então uma grande imobilidade e quietude caíram sobre ele.

- Não deves sofrer repetiu a menina, e sua voz ainda era mais grave. - Eu sou muito feliz. Não estarei separada muito tempo de ti e de meu pai. Os deuses são bons, e não odeiam o amor entre os mortais.

Mas Deus é perverso, pensou Lucano. Pôs de novo a cabeça sobre os joelhos de Rúbria, e o belo jardim que o rodeava tornou-se fantasmal a seus olhos, que se enchiam com as formas da agonia.

Rúbria falou de novo, muito baixinho:

- Sinto em meu coração o que estás pensando, querido. Não deves pensar assim. Deus tem um grande destino para ti. Ele é nosso Pai, e nós somos Seus filhos. Achas que Ele nos infligirá desgosto e dor sem um propósito? Seremos chamados até Ele!

- Não! Exclamou Lucano. - Se Ele é como dizes, Rúbria, te erga dessa cadeira e ponha sangue em tuas faces e força em teus membros. - A garganta dele apertou-se num espasmo de angústia.

A donzela suspirou:

- Ele sabe, seguramente, o que é melhor. Com toda a certeza a paz que sinto é a Sua misericórdia, a Sua bondade. Hoje não tenho dores. Na noite passada dormi como uma criancinha, e meus sonhos foram adoráveis, mais do que se possa imaginar. Eu estava cheia de alegria, e a alegria está comigo, hoje. O mundo é belo, mas o lugar para onde vou é ainda mais belo e não haverá mais separação.

Levantou a cabeça de seu travesseiro e olhou para Lucano, para seu rosto esculpido, para a sua boca imóvel e rígida, para o amargor azul de seus olhos.

- Ah! Tu te esqueceste disse ela. - Quando éramos mais novos, foste tu quem me disseste tudo isto.

Mas era mentira! Pensava Lucano. Não podia falar, não podia privar aquela mocinha de seu último consolo, mesmo quando ele fosse falso. Rúbria observava-o, gravemente:

- É a verdade falou. - Tudo quanto me disseste quando éramos crianças é verdade. Minha alma afirma-me isso, e não há mentira à beira da sepultura. Vou ter com Deus.

Tateou seu peito, e dali tirou a cruz de ouro que Keptah lhe dera. Colocou-a na palma da mão de Lucano, e então levantou os olhos para contemplar o céu.

- Keptah é um homem estranho, cheio de sabedoria, Lucano. Contou-me que Aquele que irá morrer nesta Cruz está vivendo agora no mundo, conosco, e é pouco mais do que uma Criança. Mas onde Ele vive ninguém sabe, a não ser Sua Mãe. Seu nascimento foi profetizado pelos padres da Babilônia, há milhares de anos, e Ele veio.

Há de levar-nos para a vida eterna, e não haverá mais morte, mas júbilo.

Lucano pensou, de repente, na grande Cruz branca que vira no templo escondido dos caldeus, em Antioquia. E ficou dominado pela cólera, pelo auto-escárnio, pelo ódio e pela repulsa. Os padres eram charlatães notórios, com seus oráculos, profecias, conjurações, ilusões e jargão misterioso. Riam em segredo da ingenuidade dos que neles acreditavam. Engordavam com os sacrifícios. Cometiam abominações. Enchiam seus cofres com o ouro dos fátuos. Em face da morte definitiva, seus rostos hipócritas desapareciam, suas vozes silenciavam.

A cruz de ouro reluzia na mão de Lucano. Ele desejava atirá-la apaixonadamente, para longe, e amaldiçoá-la, como quinquilharia que era. Rúbria debruçou-se em sua cadeira, cruzou-lhe delicadamente os dedos sobre ela:

- É um presente que te dou.

O poente mostrava-se, no céu ocidental, um mar de ouro e escarlate, repleto de velas verdes, pequenas nuvens que se espalhavam. A brisa suave se abateu e o perfume das flores e da terra fértil ergueu-se como incenso. Rúbria dormia, e Lucano estava sentado a seu lado, a cabeça sobre os joelhos da mocinha, a mão dela em seu cabelo dourado. Não saberia dizer quanto tempo permaneceu assim. As pontas da cruz enterravam-se em sua mão, cortando-a, e ele não sentia.

Por fim, ergueu a cabeça, e a mão da donzela tombou, pesadamente, de sobre ela. Havia um sorriso no rosto de Rúbria, como se tivesse acordado para a alegria serena e completa. Suas faces e lábios tinham empalidecido para absoluta alvura, a sua testa reluzia. Os cílios desciam sobre as faces como a mais doce das sombras.

Lucano pôs-se de pé, lentamente, e o peso da idade tombou sobre ele. Curvou-se para Rúbria, e lançou um só grito, alto e terrível.

 

- Os ciprestes ergueram-se diante da porta da casa de Diodoro, e diante desta porta disse Íris a seu filho. - Um pai desesperado chora sua filha, uma mãe de coração despedaçado sente-se inconsolável. E eu, eu não sou senão tua mãe: lembra-te de teu pai.

“Mas só tu sofres! Não ouves o grito alheio de aflição, mas só o teu. Quando eras criança, vivias como criança. Mas agora és um homem, e deves pôr de lado as coisas infantis. Pensa que o mundo é todo ele um sonho de doçura e felicidade? Isso é sonho de loucos, dos que serão crianças para sempre, dos que se apavoram diante da noite e querem ter rouxinóis, como Edon, cantando eternamente para que eles nunca ouçam a voz da tragédia. Felicidade! Os que dizem que ela existe, que devia existir; que os homens têm direito a ela apenas porque nasceram, são como crianças idiotas cujos lábios balbuciantes estão úmidos de mel.

Fechaste tua porta àquele escravo, teu professor, Cusa, e ao médico, Keptah. Fechaste tua porta em meu rosto. Vai vingar-te do mundo, porque a criatura que amavas te deixou. Vai vingar-te de Diodoro, que te ama e te valoriza como a um filho. Vai vingar-te dos deuses. Irás perambular pelo mundo, e tudo ficará desolado, é o que acreditas.

Mas eu te digo que Diodoro será confortado quando seu filho nascer; e te esquecerá, ou pensará em ti com desprezo. Teu professor terá outro aluno. Só eu me lembrarei de ti, eu, tua mãe, que não viste como uma mulher sem marido e sem filho.”

Ela tremia em sua cólera. Para além das portas e janelas, as chuvas e os ventos outonais carpiam. Íris entrara no quarto de dormir do filho, e à luz triste da tarde vira-o à mesa, a cabeça entre as mãos. Mas, pela primeira vez depois de muito tempo, ele estava ouvindo. O rosto lívido dele contorceu-se de dor silenciosa.

Oh! Recebeste tantas bênçãos! Exclamou Íris. - Tens sido rodeado de amor. Não és escravo. És um homem livre, nascido livre.

Que Sabes das horríveis dores e agonias do mundo? És jovem, foste educado. Mas não levantarás tua dor como um homem. Tal Orfeu, deves chorar eternamente.

- Eu vi sofrimento e morte muitas vezes falou Lucano, a voz rouca de quem esteve silencioso por muito tempo. - Não são coisas pouco familiares para mim. - Agora, seus olhos fundos brilhavam na sombra, e ele apertava os punhos cerrados contra a mesa. – Sabes quais têm sido os meus pensamentos durante esta semana? Que Deus é um torturador, que o mundo é um circo onde homens e animais são dados selvagemente à morte, sem razão, sem consolo.

Íris regozijava-se consigo mesma por seu filho ter mostrado finalmente alguma emoção, mas disse severamente:

- É coisa má blasfemar contra os deuses.

As palavras de Lucano, porém, jorraram dele como um regato incontido:

- Para que nasce um homem? Nasce só para torcer-se em tormento, e depois morrer tão ignominiosamente como viveu, e da mesma maneira sombria. Grita para Deus, mas não recebe resposta. Chama por Deus. Chama por um carrasco. Seus dias são curtos, e nunca livres de transtornos e dores. Sua boca se extingue no pó e ele desce a seu túmulo, e o horrível enigma permanece. Quem voltou do túmulo com uma mensagem de conforto? Que Deus já disse: "Levanta-te, e Eu aliviarei tua carga e guiarei tua vida"? Não, nunca houve tal Deus, nunca haverá tal Deus. Ele é nosso inimigo.

Olhava para os punhos, depois abriu-os, e voltou as mãos de forma a olhar para as palmas e para os dedos. Seu rosto mostrou-se áspero e duro de ódio.

- Aprenderei a derrotá-lo murmurou. - Arrancarei Dele as Suas vítimas. Afastarei a Sua dor dos desamparados. Ele estende Sua mão para uma criança, e eu golpearei aquela mão, para afastá-la.

Quando Ele decretar morte, eu decretarei vida. Essa será a minha vingança sobre Ele.

Levantou-se. Estava fraco, pois quase não se havia alimentado.

Cambaleou e agarrou-se à beirada da mesa. Levantou-se, olhou para sua bela mãe e viu lágrimas em seus olhos. Deu um grito e tombou de joelhos diante dela, rodeando-lhe a cintura com os braços e encostando a cabeça contra seu corpo. Íris colocou as mãos sobre a cabeça do filho e abençoou-o silenciosamente. Depois curvou-se, e beijou-lhe a testa.

- Hipócrates disse que esta coisa odiosa às vezes tem cura espontânea disse Keptah. - Contentou, em certa ocasião, que se trata de uma visita dos deuses que, certamente, numa ocasião destas não se mostram melhores do que os homens. Recomendava infusões e destilações de determinada erva para aliviar o estranho tormento, e aconselhava tampões empapados em vinho e poções para o alívio de mulheres afligidas pela moléstia que as devora nos lugares secretos. Para homens, aconselhava cauterizações e castrações. Supunha tratar-se de uma doença que atacava apenas partes particulares, embora se contradiga em algumas de suas afirmativas. Trata-se de uma doença só ou de muitas? Um seu aluno considerava-a aparentada com a lepra, quando ataca a pele. Trata-se da mesma coisa, quando uma verruga aumenta de tamanho, escurece e mata rapidamente? Será, também, a doença branca a que destrói o sangue e torna-o pegajoso ao toque, como xarope? Será isso que destrói os rins, os pulmões, o fígado, os intestinos?

Hipócrates não tem certeza. Mas eu tenho. É o mesmo mal, com manifestações diferentes. É o pior dos males, pois chega como um ladrão pela noite e só ao fim a vítima grita e pede morte, quando a faca se revolve em seus órgãos.

Estavam ele e Lucano num pequeno hospital arranjado para os escravos. Cinco camas se viam ocupadas por homens e mulheres que gemiam e se debatiam. Três escravos seguiam-nos com vasilhas de metal, óleos, tiras de linho branco. Outro escravo levava uma bandeja de pequenos frascos, repletos de líquidos. O médico e Lucano tinham parado ao lado do leito onde um homem arquejava, na mais pura das agonias. O lado esquerdo de seu rosto fora corroído pelo mais monstruoso gusano, a carne viva e lacerada, o lábio intumescido e destilando sangue. O escravo ergueu os olhos para o médico, que o contemplava com tristeza. E Lucano ficou a olhar para ele, em amargo desespero.

Murmurou para Keptah:

- Não seria, com certeza, mais misericordioso, dar-lhe uma poção que lhe trouxesse paz e morte?

Keptah sacudiu lentamente a cabeça:

- Hipócrates declarou que isso é proibido. Quem sabe em que instante a alma tomará conhecimento de Deus? Deveríamos matar o sofredor esta noite, quando pela manhã esse conhecimento viria? Além disso, o homem não pode dar vida. Portanto, não lhe compete dar morte. Essas são coisas reservadas apenas para Ele, que é impenetrável para as nossas naturezas, e que se move em mistérios.

- Mata-me! Exclamou o escravo, debatendo-se em sua cama.

Agarrou o braço do médico com sua mão esquelética. - Dá-me a morte! - Sua voz gargarejou, num jato de sangue.

Keptah voltou-se para Lucano, que olhava com horror para o homem que sofria. Tocou-lhe no braço, e Lucano moveu a cabeça e fixou os olhos nele, com obstinada severidade e acusação.

- Terias privado Rúbria de uma hora de sua vida? E eu te diga que ela sofreu tanto quanto este homem e ainda mais.

Embebeu um chumaço de linho num líquido branco que derramou de um dos frascos. Lucano cerrava os dentes com ódio. Que tinha feito contra os deuses aquele pobre escravo, um jardineiro, para merecer tal coisa? Fora uma alma inocente e delicada, deleitando-se com as flores, orgulhoso de suas cercaduras, amando seus lírios, confortando suas rosas como um pai. Havia milhões menos merecedores de paz e de vida do que ele. O mundo estava repleto de monstros que comiam, bebiam e riam, e cujos filhos dançavam nos jardins agradáveis de seus lares e não conheciam pragas.

Keptah, com grande delicadeza, tomou a mão que o escravo atirara para ele, e segurou-a com firmeza.

- Ouve-me disse-lhe -, porque és um bom homem e vais compreender-me. Há quem tenha esta doença, mas no espírito, e digo-te que eles suportam mais do que tu. Quando tua boca esguicha sangue, suas almas esguicham violência e veneno. Onde tua carne está dilacerada, os corações deles estão dilacerados. Níger, eu te juro que és mais feliz do que eles.

O escravo começou a soluçar e seus olhos tornaram-se grandes e imóveis. Sussurrou, entre seu sangue:

- Sim, senhor.

Selvagem escárnio corroía Lucano como um ácido. Observou Keptah colocar o chumaço de linho molhado sobre o horroroso rosto desfigurado. O escravo arquejava. Os outros escravos, menos aflitos, olhavam lá de suas camas. Então, finalmente, nos olhos do doente surgiu um alívio úmido, uma tranqüilização trêmula. Uma lágrima correu do canto de sua pálpebra. Keptah apanhou um copo e colocou o braço sob a cabeça do escravo, erguendo-a tão ternamente quanto uma mãe ergue seu filho. Chegou o copo junto dos lábios torcidos e, lentamente, Níger bebeu, em comovente obediência. Quando Keptah tornou a colocar-lhe a cabeça no travesseiro, Níger já adormecera, gemendo baixinho. Keptah contemplou-o enigmaticamente durante um longo momento. Seu rosto moreno, com os olhos encovados, mostrava-se impenetrável.

- Já invadiu a laringe murmurou. - Ele não viverá muito.

Voltou-se para um dos escravos:

- Dá-lhe esta poção quando ele não puder suportar mais, porém nunca antes que se tenham passado três horas da última dose, segundo a clepsidra.

- E isso é tudo quanto podes fazer! exclamou Lucano.

- Não. Se ele tivesse me procurado quando a primeira ferida, pequena, dura e branca, apareceu na parte interna de sua face, eu a poderia ter destruído, queimando-a com um ferro quente. Ele só me procurou quando sentiu dificuldade de engolir e as partes internas de sua boca sangravam, corroídas, os tecidos desfazendo-se. Lembra-te que, seja a doença do espírito ou da carne, o melhor é procurar auxílio e conselho logo ao começo. Mais tarde, tudo estará perdido.

Dirigiram-se para o leito de uma escrava que sofria pouco menos que Níger. Tinha a cama suja pelas exonerações de sua vagina. Keptah virou-se para um escravo e exclamou:

- Não te disse que mantivesse a roupa seca e limpa? Isto é veneno que está saindo dela. Vou fazer queixa de ti ao capataz, portanto prepara-te para ser açoitado.

- Senhor, eu tenho outros serviços choramingou o escravo.

- Não há serviço maior do que curar ou aliviar o sofrimento. A medicina é, verdadeiramente, a arte divina. E chega. Trabalha melhor, e eu esquecerei o açoite.

A moça escrava, apesar de descabelada e febril, era bonita e atraente. Keptah tocou-lhe a testa, para sentir-lhe o calor. E disse a Lucano:

- Ela tentou fazer em si própria um aborto, com um Instrumento sujo e primitivo, que os selvagens usam. Este é o resultado.

- Eu não podia ter um filho nascido na escravidão! Chorou a moça.

Sombriamente, Keptah falou:

- O pensamento foi virtuoso; a ação não o foi. Devias ter mantido a virtude. Tens um mau senhor? Se lhe tivesse pedido um marido, ele o haveria dado. Esta casa é uma casa virtuosa. Mas tu foste leviana. Por capricho e luxúria. Não tens culpa. Ensinaram-te a ler e escrever, a fiar e coser, a cozinhar e a fazer outros serviços valiosos. Não eras como as escravas de Roma, que são chamadas ao leito de seu senhor, quando a ele bem lhe parece. Ah! Bem! Vamos examinar-te.

Antes, porém, lavou as mãos com água e depois esfregou-lhe um óleo de odor pungente. Então, examinou a moça que chorava e tocou seus órgãos inflamados, que destilavam pus.

- Vou morrer, senhor? Exclamou Júlia, aterrorizada.

Keptah não respondeu. Torceu um pedaço de linho, formando com ele um delgado cone branco. Mergulhou-o no líquido de um dos frascos. A moça empalideceu. Mas Keptah, com firmeza, afastou-lhe as pernas e introduziu o cone em seu corpo. Ela gritou, o ar estava cheio de um odor aromático.

- Deixa o tampão permanecer até a noite ordenou Keptah ao escravo que era seu assistente. - Depois tira-o, e trata de destruí-lo.

Está contaminado e é perigoso. A seguir, lava os órgãos com água corrente e limpa, faze outro tampão, e deixa que ela mesma o coloque.

Doerá menos.

Deu umas pancadinhas na mão úmida da moça, apresentou-lhe algo para beber, e disse-lhe:

- Não morrerás, eu espero. Viverás para pecar um pouco mais, é o que receio. - Olhou para Lucano: - Visita-a ao cair da noite.

Renova as minhas ordens.

- Por que censuras esta pobre criança? Perguntou Lucano, ressentido. - Ela é maior do que a sua natureza, que foi Deus quem lhe deu? Ele deu-lhe seus instintos normais.

- Quando os instintos normais podem ser perigosos, então é preciso controlá-los disse Keptah. - E o que é normal? O mundo? Precisamos disciplinar-nos para enfrentar as urgências do mundo, a fim de não sermos como os animais.

A moça, um tanto aliviada, sorria para Lucano, dengosamente.

Ele desviou o olhar e afastou-se, triste, mas revoltado.

As janelas estavam abertas e o fresco ar invernal bem como as brisas enchiam o aposento.

- Ar e luz são inimigos da doença dizia Keptah, contra o ponto de vista dos outros médicos. - A limpeza também é um inimigo. Para não mencionar o respeito próprio e a estima pela carne, na qual o espírito está enroupado.

Pararam junto à cama de uma mulher jovem e graciosa, que mostrava um ventre enorme. Ao lado dela, acocorado, estava seu marido, igualmente jovem e bonito, cujo rosto mostrava lágrimas. Levantou-se ansiosamente e olhou para Keptah com olhos brilhantes e urgentes.

- Ah! Senhor! Disse ele. - Seguramente ela está grávida e a criança vai nascer logo?

Keptah suspirou.

- Já te falei, Glauco. Isto não é criança, mas um grande tumor. Ela precisa retirá-lo, pois caso contrário morrerá. Deixei o caso em tuas mãos, embora pudesse ter operado antes. Esperaste, e assim diminuíste suas possibilidades de viver. Não é mais possível. Faze agora a tua escolha.

- Senhor, eu não passo de um escravo. Tu só tens de ordenar, disse Glauco, lacrimoso.

Keptah sacudiu a cabeça:

- Homem algum é escravo, por muito que esteja amarrado e encadeado, até que admita ser um escravo. És um homem. Devo salvar tua esposa agora, ou esperarás que ela morra? Morrerá, sem dúvida, se não fizer a operação. Poderá viver, talvez, se eu a fizer.

Voltou-se para Lucano:

- Apalpa-lhe o ventre disse.

Lucano estava cheio de piedade por aquela jovem e estóica mulher, que não chorava, apenas sorria corajosamente. Levantou-lhe a camisa. Seu ventre estava liso e cortado de veias, como o mármore, e luzia, pela tensão da pele esticada. Apalpou-o cautelosamente, fechando os olhos para concentrar-se através dos dedos delicados. Do lado direito era como se apalpasse uma pedra, mas havia um gorgolejar de líquido e algo de esponjoso, quando ele moveu os dedos para o umbigo.

- Tenho certeza de que não se trata de um carcinoma disse ele a Keptah, que anuiu satisfeito.

- É um tumor lipóide e de soro disse o médico. – Muito comum. Eu deveria ter removido isso há muitos meses, mas este casal desejava muito um filho, e acreditou que o tumor fosse isso, depois de três anos de casados. O tumor está preso ao ovário direito, que terá de ser, também, removido.

- Então ela não terá filhos! Lamentou Glauco. - Ou só terá menina!

- Não sejas tolo ralhou Keptah. - Aristóteles afastou a antiga teoria de que um ovário produz uma menina, ou um rapaz, ou um testículo produz apenas um sexo. Tua mulher ficará com o ovário esquerdo, e isso dela ter mais tarde um filho ou uma filha é a misteriosa escolha de Deus.

   Socou algumas folhas frescas e acres num almofariz, acrescentou um pouco de vinho, e deu a mistura a Hebra, que a tomou obedientemente. Keptah disse a um dos escravos:

- Fica com ela e dá-lhe um grande copo de vinho, depois outro. Quando adormecer, chama-me.

Os olhos de Hebra estavam começando a fechar-se, enquanto o marido a observava, temeroso. Ela ergueu languidamente a mão bondosa e acariciou-lhe o rosto, consolando-o.

- Podes observar que as mulheres têm menos medo da morte e da dor do que os homens disse Keptah a Lucano, enquanto iam para junto de outra cama. - Será fé? Ou, como as mulheres são realistas, aceitam a adversidade com melhor espírito?

Lucano relanceou os olhos para ele, sombrio. Talvez, pensou, todos aqueles comentários tivessem sido dirigidos para ele, na primeira manhã de sua volta à casa de Diodoro. E as lições do médico fossem farpas sutis e censuras para a sua sensibilidade. Sentia-se encolerizado e envergonhado.

O homem do leito vizinho estava imensamente gordo, e tão branco e flácido como massa crua de pão. Olhava para Keptah num silêncio ressentido. O médico lançou os olhos para a mesinha que ficava ao lado da cama e na qual havia um jarro de água e um copo.

- Bebeste toda esta água hoje, meu amigo?

O homem murmurou algo lá dentro da garganta. Um cheiro de maçãs, ou feno, flutuava em seu hálito pesado.

- Há meses eu te avisei para que moderasses teu amor pelas pastelarias, pelos pães, pelo mel disse Keptah, severamente. – Eu te disse que tinhas a doença doce, e que se não tivesses cuidado teus próprios músculos e ossos correriam de ti num rio de urina. Mas vejo que não te contentaste com carnes magras e vegetais, coisas que existem com fartura nesta casa, que é uma casa pronta a alimentar suficientemente os escravos. Se não controlares teu apetite de porco, morrerás muito depressa, em convulsões. A escolha te cabe. Trata de fazê-la.

Voltou-se para Lucano e deu-lhe uma rápida explicação sobre a doença.

- O homem é sempre sua própria doença disse ele. – O que sofre da doença doce, quando a urina é sacarina, quase sempre é um temperamento auto-indulgente que tem origem numa recusa egoística de cuidar de outros a não ser dele próprio. Assim, os outros não o amam e, para satisfazer seu natural e humano desejo de amor, come os doces da terra, em vez dos doces do   espírito. Há outras manifestações desta doença, especialmente em crianças que, invariavelmente, morrem dela. Seria interessante conversar com essas crianças que, em seus mais tenros anos, possivelmente são de disposição ávida, pensando apenas em si próprias. Nada podemos fazer senão prescrever as carnes mais magras, os legumes e frutas que menos amido contenham, e restringir, ou omitir, os doces e os amidos. Pouco, entretanto, se consegue, exceto a penosa privação e o prolongamento de uma vida restrita, a não ser que o paciente tenha um enfraquecimento de espírito e assim se habilite a amar para além de si próprio.

Olhou para o escravo carrancudo, que o estivera observando com olhos que pestanejavam.

- Olha para tua esposa com amor advertiu ele. - Não digas: "Ela me pertence, e me servirás!" Dize, antes, em teu coração: "Esta é a minha esposa bem-amada, e que posso eu fazer para torná-la a mais feliz das mulheres, de forma que ela diga se ter casado com o mais bondoso e mais nobre dos homens?"

Enquanto se afastavam, Lucano perguntou:

- Então, esta não é uma doença orgânica?

Keptah parou e meditou, dizendo por fim:

- Não se pode separar a carne do espírito, pois é através da carne que ele se manifesta. Estás cogitando em como certas pessoas contraem doenças e contagiam-se em epidemias, e outras não.

Hipócrates falou de imunidade natural nos que escapavam. Um de seus discípulos acreditava que escapam, fabricando em si próprios alguma essência que repele a doença. Mas por que será certo que determinados temperamentos resistem as infecções, enquanto outros não? Imunidade? Se é assim, então é imunidade do espírito, embora outros médicos não acreditem nisso. Não estou falando do homem e do mal. Estou falando apenas do temperamento.

Chegaram à última cama. Ali estava um jovem com febre. A perna direita contraída, de maneira que os músculos avultavam nela como protuberâncias. Tinha o rosto moreno, agudo, com olhos excepcionalmente inteligentes e ousados, e uma expressão colérica. Keptah olhou para um dos escravos atendentes.

- Eu disse que esta perna precisava estar constantemente enfaixada em compressas quentes de lã, dia e noite, tão quentes quanto ele pudesse suportá-las. Não me venhas com desculpas! Irritado, ergueu a mão e deu uma bofetada no rosto do escravo. - Não temos aqui senão homens e mulheres que procuram apenas seus próprios prazeres e satisfações? Vamos!

Olhou para o jovem que estava na cama e disse a Lucano:

- Aqui está um jovem de natureza altaneira, orgulhosa e inconsiderada, superocupada com o seu amor-próprio, e arrogante. Despreza a ignorância e a estupidez. Sua mente é como a lâmina delgada de uma faca muito bem afiada. Odeia seu próximo, que raramente tem a inteligência dele. Não tem paciência, nem bondade.

Ensinei-lhe a ler e escrever e ele tem acesso à minha própria biblioteca, onde entra e sai à vontade. Nunca pensa com o coração, mas só com o cérebro. Descobrirás que os que se parecem com ele são muito suscetíveis a esta doença que aleija. Descobrirás, também, que os mais estúpidos, mais bovinos, raramente a contraem, mesmo entre crianças.

Diomedes estava sorrindo, um sorriso onde se misturavam o orgulho e o mau humor.

- Obrigado, senhor, por tuas palavras sobre o meu intelecto - disse ele. Era evidente que sentia grandes dores, mas seu orgulho não permitia que expressasse tal coisa.

- Não te estou lisonjeando disse Keptah. - Era quase inevitável que tivesses essa miserável doença que, receio, vai deixar-te com perna coxa.

- Importo-me pouco com o meu corpo, se puder alimentar minha mente disse Diomedes.

Keptah olhou para Lucano.

- Observaras este traço nas pessoas que sofrem dessa doença. Por que deve um homem desprezar sua carne e a carne dos outros, quando ela é invenção maravilhosa de Deus e pode ser mais bela do que qualquer outra coisa viva? É através da carne que nos comunicamos com os outros. Homens como Diomedes não desejam comunicação. Almejam apenas obediência e adulação para suas mentes, de fato excelentes. Digo aos pais de filhos assim: "Ensinai vossos filhos a amar, a dar, e treinai-os na reverência diante de Deus."

Os lábios de Lucano contorceram-se, mas ele nada disse. Keptah falou com Diomedes:

- Mandarei alguns livros para ti esta tarde. Vejo que já lestes os que te havia mandado. No intervalo, há aquela donzela. Leda, que escreve com freqüência as cartas para a Senhora Aurélia. É uma menina bonita, inteligente e amorosa, e adora-te. Recebe o seu amor, mas trata de retribuí-lo com todo o teu coração. Sei que isso será difícil para ti, mas poderá ensinar-te a amar, se assim o quiseres. Nada é impossível quando se tem mentalidade pesquisadora e intelectual. A senhora Aurélia é tão apegada àquela moça, que me disse estar disposta a dar-lhe a liberdade, quando ela se quiser casar. Afastarás dela essa dádiva?

Diomedes deixou escapar um riso zombeteiro. Então, seu rosto abrandou-se e, subitamente, voltou-se em seu travesseiro. Seus ombros delgados erguiam-se, e Keptah disse com suavidade:

- Tem havido mais almas salvas através de lágrimas humildes do que de todas as poções deste mundo.

Lucano disse, desafiante, a si próprio: Ele simplifica demais.

Estava comovido, no entanto, com os soluços de Diomedes, que não se podia controlar, embora todos os seus músculos se contraíssem com o esforço. E Keptah falou:

- Apressa-te a ficar bom, Diomedes. Eu precisarei de ti como assistente, quando sentires piedade e amor pelos demais.

Diomedes ergueu do travesseiro seu rosto coberto de lágrimas, e a alegria brilhou em seus olhos:

- Tu me deixarás assistir-te, senhor? Exclamou ele, incrédulo.

Keptah sorriu:

- Será um excelente auxiliar, Diomedes. Quando amares e tiveres piedade, quando sentires a dor alheia em teu próprio corpo.

Voltaram para junto da cama de Hebra, que estava como que adormecida, respirando suavemente. Keptah mandou vir biombos, que foram colocados em torno do leito. Retirou Glauco do recinto formado, colocou sobre a mesa uma bandeja, onde estavam agulhas, suturas e três escalpelos, um grande e dois pequenos. Disse a Lucano:

- É tempo de veres a primeira operação. Se vomitares, por favor, usa este balde, mas nada digas. Se desmaiares, eu te deixarei onde caíres. Há uma vida a salvar. Precisarei do teu auxílio. Apanha esse chumaço de linho e mergulha-o neste óleo pungente. Há infecção aqui até mesmo no ar.

Lucano começou a tremer. Mas obedeceu às ordens, silenciosamente. Olhou para a moça anestesiada pela droga, e que se mostrava doce em seu sono profundo. Sentiu-se repleto de apaixonada piedade.

Por que um deus qualquer deveria afligir aquela criança que só queria filhos, o amor de seu marido e uma vida tranqüila? Oh! Tu que fazes estas perversidades aos homens, eu te desprezo! Pensou Lucano. Mesmo o mais baixo dos homens não mostraria maior comiseração?

Keptah expôs o ventre reluzente e tenso de Hebra. Apalpou-o com cuidado. Depois, com golpes firmes do escalpelo, como quem desenha um cuidadoso diagrama, correu a lâmina sobre a carne branca. Sua passagem foi seguida por uma lista vermelha, que se alargou e abriu, como boca faminta. Lucano teve náuseas, mas ficou olhando.

Agora, os músculos vermelhos e brilhantes estavam expostos, recortados de veias que pulsavam. Keptah afastou-os, hábil e delicadamente dizendo:

- Agora usaremos os ganchos egípcios para fazer a ligadura dos vasos sanguíneos, a fim de manter o campo operatório tão livre quanto possível e para impedir a hemorragia até a morte. Observa estes vasos e as pulsações do coração que os fazem latejar! Não é tudo perfeito?

Quem pode olhar para isto e não reverenciar Deus em seu coração?

Ele desenhou o homem tão maravilhosamente quanto desenhou o sol e seus planetas. Ali! Cuidado! Usa esses pequenos chumaços de linho para manter a ferida aberta. Não deixes que teus dedos toquem qualquer parte da ferida, pois há veneno em teus dedos e no ar. Os egípcios sabiam isso há muitas centenas de anos, mas os gregos e romanos zombam de tal coisa, dizendo: "Onde está o veneno? Nós não vemos."

Há milhões de coisas no universo que os homens não podem ver e, apesar disso, elas existem.

Hebra começou a gemer, a falar incoerentemente.

- É a sua carne assaltada que fala disse Keptah. – O espírito também está protestando contra a ignomínia de sua passividade sob a droga. Há quem diga que as drogas submetem o espírito: não é assim. Ela sente dor? Com certeza. Mas, quando acordar, não se lembrará do que sofreu. Dirá: "Eu fui uma das que dormiram através da tempestade."

Lucano, cheio de piedade pela moça, disse-lhe, bem no fundo de sua alma, silenciosamente: "Repousa, suporta, tem coragem. Nós te salvaremos, criança querida". Dirigiu a força intelectual da sua mente para ela, a fim de tranqüilizá-la. Talvez fosse apenas a droga que tomara, e o vinho entorpecedor, mas imediatamente a jovem suspirou, e relaxou a tensão. Os músculos contraídos suavizaram-se.

Os intestinos cinza-róseos e lustrosos estavam agora expostos. Ali estavam, em suas convulsões, massa e mais massa escorregadia. Palpitavam, torcendo-se um pouco, e Lucano falou com eles, bondosamente, em sua mente, e também eles se fizeram flácidos. Com o mais delicado dos cuidados, Keptah afastou-os para um dos lados e, como mão que brotasse, uma bolha imensa e opalescente subiu de sob eles, empurrando-os desapiedadamente; uma bolha enevoada e lustrosa, fervilhante de corrupção e desenhos movimentados e de sangue.

Ficou a mover-se, sem parar, sobre os intestinos. Estava ligada, embaixo, por uma corda de cor mais acentuada do que ela própria.

- Este é o momento vital disse Keptah, trabalhando com mãos seguras. -       Agora, observaremos cuidadosamente o ovário. O mais leve descuido fará estourar esta bolha e encher todo o ventre com a morte. - Expôs o ovário, de um amarelo esbranquiçado. - Ah! Está de boa saúde. Afinal, vamos salvá-los. Estás preocupado demais. Usa mais chumaços, segura a carne com firmeza, separando-a.

Imediatamente, a cena obscureceu-se e crepitou diante dos olhos de Lucano. O cheiro do sangue quase o abateu. Suas pernas tremeram violentamente, e houve uma grande náusea seca em seu estômago.

Disse consigo mesmo: Se eu falhar, se desmaiar, quem a ajudará? Olhou para a bolha perversa e inquieta, e forçou sua repulsa natural e humana a acalmar-se. Tentou observar as camadas de gordura sobre o peritônio, amareladas e úmidas como gordura de carneiro. Apertou os chumaços mais fortemente contra a boca bocejante da ferida e seus músculos fizeram-se tensos, enquanto ele suava. Keptah estava amarrando corretamente a corda da bolha em várias alturas, apertando bem o fio. A corrupção opalescente tornou-se leitosa, obscurecendo-se, e os riscos de sangue se acentuaram. Então, com um movimento lento do escalpelo, Keptah cortou a corda. A bolha aquietou-se sobre os intestinos.

Com o maior dos cuidados, e vagarosamente, Keptah ergueu-a de sua posição e deixou-a cair na bandeja. Os olhos de Lucano nadavam, e gotas de suor pingavam de seu rosto.

- Observa como vou costurar estas camadas, agora, tão corretamente quanto uma costureira disse o médico. - Nem um só erro deve ser cometido nas suturas. - Empregou um desenho em ziguezague, usando linha clara, que explicou ser corda de tripa. - Com o tempo o corpo a absorverá, as ligações estarão mais firmes do que antes. Alguns médicos usam fio de linho, que o corpo não absorve e que mais tarde causa problemas.

A bolha perversa mostrava-se tão grande quanto um recém-nascido que se tivesse encolhido na bandeja. Com infinitos cuidados, o médico juntou uma por uma as camadas do ventre e costurou-as com firmeza.

- A gordura é difícil. Às vezes separa-se da linha, ou dilacera-se. Aqui. Pronto. E agora, a pele, que é muito dura. Usaremos fio de linho, que dentro de uma semana retiraremos.

O ventre se havia tornado milagrosamente achatado. A moça gemia e tornava a gemer, procurando respirar em soluços desesperados.

- Ela está acordando disse Keptah. Amarrou o último e hábil nó. Mergulhou um pano em água quente, torceu-o, e colocou-o sobre o coração da moça; depois, mergulhou outro pano e envolveu-lhe com ele os pés, pondo ainda outro sobre seus pulsos. Curvou a cabeça e apertou-a contra o coração da doente. - Rápido, mas forte.

Ela não terá choque, que é muito temeroso. Usa o balde junto da boca e segura-lhe a cabeça.

Enrolou largas tiras de pano no corpo dela, como se fossem sudários. Recuou e contemplou a jovem com satisfação. Estava muito calmo. Relanceou os olhos para Lucano e viu que a túnica do rapaz estava molhada e pingando. Riu, suavemente:

- Suportaste tudo muito bem. Eu te felicito. Bebe este vinho o mais depressa possível. Posso mesmo dizer que estou orgulhoso de ti.

A moça abriu olhos enevoados. Keptah debruçou-se sobre ela.

- Está tudo terminado, minha pequena. Estás muito bem. – A moça gemeu, começou a chorar, e Keptah pisou mais folhas picantes e levou-lhe a poção à boca, dando-lhe água depois. Ela engoliu, fracamente. Estava pálida como a morte. - Dorme disse ele. - O sono cura mais doenças do que a arte de qualquer médico.

Fez um movimento de cabeça para Lucano.

- Reparei, com prazer, que mantiveste bem os chumaços restringentes. Agora, limparás esta confusão e virás visitá-la dentro de algumas horas.

- Glauco, murmurou a moça. Keptah afastou o biombo e chamou o marido, que veio mais rápido do que o vento. Ajoelhou-se ao lado da esposa e encostou o rosto no dela, soluçando:

- É mais duro para o marido observou Keptah, disfarçadamente.

Deixou a Lucano o sujo e repulsivo trabalho de remover todos os sinais da operação. As mãos do moço moviam-se fracamente e com repugnância. Lavou os escalpelos e colocou-os de novo na bandeja. O cheiro de sangue era nauseante, bem como o de todos os eflúvios do corpo violado. Por que não poderia um escravo ter feito aquele trabalho? Sentia-se irritado. Quando saiu de detrás dos biombos encontrou Keptah conversando jovialmente com os outros pacientes, e dando ordens. Keptah lhe disse:

- Nem sempre terás um assistente. Com muita freqüência um cirurgião precisa arranjar-se sozinho e fazer tudo por si mesmo. - Olhou para Lucano e, rapidamente, agarrou um balde onde o rapaz vomitou num ímpeto, até parecer que suas próprias entranhas, estômago e fígado, sairiam por sua boca aberta. Keptah foi paciente: - De novo te felicito, meu Lucano. É melhor dar largas ao que se sente depois de uma emergência do que durante. Vai deitar-te até poderes ir ter com Cusa.

Lucano enxugou a boca amarga.

- Prefiro ir para casa.

- Não disse Keptah. - Irias pensar demais no que aconteceu. Arruma-te e continua teu trabalho.

Os ventos outonais carpiam como as vozes de uma multidão de pombas quando Lucano deixou a sala de aulas. As chuvas cinzentas arremetiam contra as palmeiras e as árvores, através das colunatas da casa de Diodoro, e agora, subitamente, a rajada de vento que trazia consigo a voz do mar branqueava todas as folhas, todos os galhos e troncos, alvejava a relva. um uivo em surdina elevava-se da terra, som dos mais dolorosos. Lucano puxou para a frente o capuz de seu manto, e ficou contemplando sombriamente o jardim pálido e retorcido. As fontes queixavam-se, angustiadas; das estátuas escorria a água cinzenta, e as flores inclinavam as cabeças em sofrimento resignado. Lucano era jovem. Esqueceu que amanhã tudo estaria de novo sorridente e quente, as palmeiras reluzindo, os pássaros cantando para o céu azul. Para ele, como estava agora tudo estaria sempre, despedaçado com dilacerante tortura, respondendo fragilmente ao vento que chegava roncando, vindo do mar, curvando-se perpétua e desamparadamente, como as relvas dos Campos Elíseos fantasmais.

Tudo está morto, dizia Lucano para si mesmo. Tudo está batido, afogado, perdido. O que eu amei se foi. Enxugou o rosto molhado com a ponta do manto e sentiu em si próprio a mais temerosa desolação, vazio onde não havia um único sonho, uma única esperança. Sua carne jovem pesava-lhe sobre os ossos, como se aquela carne fosse velha, embebida, saturada de terra. Olhou para o céu coberto de névoa, tão descolorido quanto a própria morte, e desejou chorar. Mas não havia lágrimas nele, apenas uma aridez onde nada crescia, onde nada se movia.

Desejava ir para casa, ainda assim recuava a tal pensamento. Íris, sua mãe, estaria ali, seu belo rosto pálido de silencioso desgosto; olharia longamente para ele, interrogando-o com o olhar, e Lucano não teria respostas para dar-lhe. Era velha; tinha trinta e um anos. Os mais velhos não têm sabedoria, apenas indagações. Somente a juventude possuía as respostas, e só podia responder quando era feliz. Na verdade, disse Lucano em seu coração, não há resposta para a inanidade. E existe apenas inanidade. Sentia-se, então, cheio de raiva selvagem e tumultuosa, e levantou seu punho fechado para o céu:

- Eu Te derrotarei! Exclamou. - Eu Te privarei de Teus sacrifícios!

A ventania que vinha com a voz do mar, contra o rosto dele, pareceu-lhe uma zombaria e um desafio. Começou a caminhar através dos jardins tremendo de fúria, e chegou ao pórtico aberto diante da casa.

As portas de bronze esculpido estavam fechadas. Caminhou para elas sem pensar e bateu com o punho. Quando se abriram, disse ao escravo:

- Quero falar com teu senhor Diodoro.

O chefe do vestíbulo olhou-o com impudência.

- O senhor está na biblioteca. Há muitos dias que não fala. Queres impor-lhe a tua presença, Lucano? Não te receberá; recusou receber seus amigos romanos. Receberia o filho de um liberto?

Lucano abriu a porta para trás e, com um safanão, atirou para o lado o escravo. A luz espectral e aguada que vinha do céu caiu sobre o mármore branco e preto do piso do vestíbulo, e Lucano entrou, suas sandálias fazendo ruído, seu manto branco flutuando atrás de si em dobras, como que de um fantasma. O ar parado e frio da casa parecia o ar de uma sepultura, mofada e sem vida. Nenhuma voz, nenhum movimento rompia o silêncio, a não ser o bater dos pés de Lucano. O arco da entrada da biblioteca estava acortinado em pesado pano cor de castanha, que Lucano afastou. Só quando entrou no aposento espantou-se, de súbito, pensando no porquê de ter vindo e no que estava fazendo ali.

Diodoro estava sentado junto de uma mesa de mármore claro, muitos livros enrolados em torno dele, a cabeça nas mãos. Estava imóvel como uma estátua esculpida em bronze escuro, pois mesmo sua túnica era de tecido sombrio. Quando ouviu o roçar do pano da cortina, deixou cair as mãos, pesadamente, e levantou um rosto sem vida, pondo-se a olhar Lucano como que atordoado, Lucano que ele não via desde a morte de Rúbria.

Lucano ficou aturdido com a aparência de seu protetor, com a cor cinzenta de suas faces, com a secura de sua boca, com as órbitas cavadas onde os olhos ocultavam-se, sem brilho e sem interesse.

Mesmo a carne do tribuno parecia ter murchado. Seus ombros afrouxavam-se, lânguidos, e quando ele se moveu um pouco, foi com esforço. Lucano sentiu de repente sua própria juventude, a força de seu corpo, a flexibilidade de seus ombros, a vitalidade de seu sangue, apesar de seu desgosto e de sua cólera infinita. Ali, como dissera sua mãe, estava o desespero absoluto, para além de qualquer tentativa de consolação.

- Quê? Murmurou Diodoro, como se não reconhecesse o jovem. Ficou a olhar para Lucano que se aproximava, e com completo desinteresse o observou quando o rapaz se ajoelhou a seu lado, a cabeça curvada para o peito. Um som abafado veio de Diodoro, um som cansado e insondável. Depois, tornou a deixar cair a cabeça nas mãos, e esqueceu-se de seu visitante.

Az palavras vieram ter aos lábios de Lucano, involuntariamente:

- Senhor, há uma velha história que meu pai me contou. Um velho perdeu seu único filho, e seus amigos vieram procurá-lo e disseram: "Por que choras? Nada te pode devolver teu filho." E o velho disse: "É por isso que eu choro."

A única janela alta da biblioteca deixava passar luz hesitante e crepuscular, ensolarada e vaga. O silêncio enchia o aposento. O jovem estava ajoelhado junto do homem e ambos conservavam-se imóveis.

Então, Diodoro, lenta e hesitantemente, pôs a mão no ombro de Lucano.

Disse, enfim, com voz rouca:

- Também tu a amavas. Mas não eras pai dela.

- Eu perdi meu pai disse Lucano, voltando o rosto de forma que ele descansasse sobre a mão de Diodoro. Suas palavras vieram num impulso violento. - Olha para mim, nobre tribuno. Sou um filho que não chegou a odiar seu pai, mas chegou a desprezá-lo levianamente, como homem de pouco conhecimento e de muitas pretensões.

Tornei-me arrogante, impaciente e condescendente. Esqueci tudo quanto ele sofrera, tudo que ele tinha sabido. Já não achava comovente seu ar bombástico: considerava-o risível. Não perdi meu pai nesses anos, mas meu pai perdeu um filho. E, agora, o filho perdeu seu pai, e não pode ir alcançá-lo para pedir perdão pela crueldade, impaciência e orgulho da juventude.

A mão de Diodoro repousava ainda no ombro de Lucano, e pela primeira vez a vida e a simpatia voltavam aos olhos do tribuno. Não podia ver o rosto de Lucano, escondido como estava nas sombras do capuz. Disse, muito delicadamente:

- Os deuses com certeza não rejeitam contrição, e com certeza as sombras da região da morte têm consciência do arrependimento.

Mas Lucano sacudiu a cabeça, sem poder falar.

- Eu honrei meu pai disse Diodoro, compassivamente. - Não sou homem sem compreensão. Posso imaginar o que deve ser a lembrança de se ter desprezado o pai.

Fez uma pausa, depois continuou:

- Enéias era um bom homem, honrado, e eu confiava nele sem qualquer reserva. Se lutou para obter sabedoria, essa luta não foi desprezível. Apenas quando um homem não se esforça é que chega a ser menos do que um bom cachorro. Honremos os que em seus corações sabem que não são grandes, pois que eles respeitam e reverenciam a grandeza.

- Sim disse Lucano. - Mas isso não me absolve.

Diodoro ficou alguns momentos sem nada dizer. Depois, como se pensasse em voz alta, falou:

- É bom viver de tal maneira que quando uma pessoa amada morre não tenhamos remorsos. Mas quem não tem remorsos? Quem não foi rude, ou áspero, ou insensível algumas vezes? Quem não foi humano, com todas as faltas? Por que, então, deveríamos castigar-nos e gritar em voz alta: "Se eu ao menos tivesse sabido! Se eu ao menos tivesse observado! Então, talvez tivesse podido imobilizar a morte com as minhas mãos nuas, antes que fosse tarde demais."

Um ar maravilhado correu pelo seu rosto torturado, como luz frágil, e seus ombros ergueram-se:

- Disse muitas vezes a mim mesmo que fui negligente, que se tivesse guardado mais de perto a minha filha ela poderia estar viva.

Mas agora vejo que os deuses têm a hora de sua escolha, e que nada podemos fazer senão rezar pela alma dos que nos deixaram, e que elas terão paz e saberão que nós as amávamos e continuamos a amá-las.

Mas a secura em Lucano tornou-se ainda mais sombria, e o que Diodoro dizia não passava, para ele, de um eco sem significação.

- Sim, sim! Exclamou Diodoro. - Por que me afastei da vida? Por que fui pouco menos do que um bruto, que se enluta e nisso resume sua vida? Se essa foi a vontade dos deuses, que seja. Eles não têm necessidade de nos responder, pois sua natureza fica além de nosso entendimento. - Sacudiu a cabeça com veemência, continuando: - Deixei minha pobre esposa chorar sozinha em seu leito, e ela é a mãe de minha filha, e está pesada com outra criança.

Abandonei-a, e quando veio consolar-me eu me afastei dela. Terá sofrido? Terá vagado pelo quarto vazio? Sente falta da voz da donzela, daquela donzela feita de sua própria carne? Que aconteceu comigo, o odioso, o amargurado, que queria vingar em si mesmo a morte de sua filha? Lucano, com toda a certeza os deuses misericordiosos te enviaram hoje até junto de mim! Se eu tivesse continuado a meditar assim sombriamente, acabaria por me atirar sobre a ponta de minha própria espada!

"Eu a vingarei", murmurou Lucano para si mesmo. "Eu a vingarei durante toda a minha vida."

Diodoro olhou para o jovem ajoelhado, cujo rosto duro e branco estava escondido no capuz, e pareceu ao tribuno que ali estava um verdadeiro mensageiro do Olimpo. Rodeou os ombros do jovem com os braços nodosos, como um pai abraça o filho.

- Não mais precisamos rezar para que nos absolvam dos nossos crimes contra os mortos, mas dos nossos crimes contra os vivos - disse ele. Levantemos-nos, pois, como homens, e vamos cuidar das coisas da vida. Os vivos esperam por nós.

Então, como Odesseu[61] e seu filho, choraram juntos, e as lágrimas de Diodoro curavam, enquanto as de Lucano eram escaldantes e ácidas.

O moço atravessou a floresta gotejante em direção de sua casa e dizia consigo, transido e incrédulo: "Mas que lhe disse eu? Que mensagem lhe levei? Na verdade nada disse. Falei sobre meu pai, por quem não sofro realmente, por quem sinto apenas remorso. Quando falei, meus pensamentos estavam com Rúbria e não com Enéias, meu pai, e a ela hei de vingar, seja contra que deuses for."

Diodoro entrou no quarto de sua esposa, que estava deitada em sua cama, mergulhada em tristeza. Ela teve um sobressalto, quando o marido entrou, e ao lhe ver o rosto ajoelhou-se na cama com um grito soluçado, estendendo-lhe os braços. Agarrando-se a ele, pôs-se a chorar contra seu ombro.

- Perdoa-me, querida disse-lhe ele, suas lágrimas confundindo-se com as dela.

 

Íris, de pé na sombria e enevoada escuridão da noite, à porta de sua casa, viu o filho aproximar-se, e esperou por ele, sem fazer-lhe um aceno, sem cumprimentá-lo. O rapaz entrou, atirou para um lado sua capa e a moça viu-lhe o calor dos lábios, o azul pétreo e áspero de seus olhos. E falou:

- Viste Diodoro? Rezei para que fosses ter com ele, para que te lembrasses de que ele é um pai para ti. Dize-me: ainda está alquebrado pela tristeza?

Os olhos de Lucano faiscaram.

- Há uma coisa que eu não compreendo e que poderia ter entendido quando era uma criança irrefletida. Falei com Diodoro. Não lhe falei de Rúbria, mas de meu pai. E ele se levantou como se tivesse renascido. Não me perguntes o que eu disse, porque não me recordo.

Íris acendeu uma lâmpada. Voltou o rosto para o filho, e nunca lhe tinha parecido tão bela, assim envolvida em luz dourada, tão semelhante a sua estátua esculpida por Fídias. Dirigiu-se para Lucano e pôs delicadamente a mão no rosto dele.

- Aqueles aos quais os deuses dão uma mensagem nem sempre a compreendem disse ela e, pela primeira vez desde a morte de Enéias, sorriu. - Outros ouvem, e seus corações compreendem.

Lucano jamais havia falado bruscamente com a mãe, mas agora exclamou:

- Estás falando tolamente. Falas como mulher e as mulheres tagarelam a propósito de nada. Ah! e a voz dele modificou-se - lamento. Não chores, mãe. Tens o mais terno dos corações. Mas eu não sinto outra coisa além de ódio e desejo de vingança. E hei de me vingar!

Foi para seu quarto, não vagamente, mas com um propósito.

Apanhou os rolos dos livros que estavam nas prateleiras, acendeu uma lâmpada, e começou a estudar.

 

Cusa pensou: Arquimedes[62] garantiu que com uma alavanca poderia mover o mundo. Mas, ó deusa de Chipre, a mais poderosa de todas as imortais, podes mover não só o mundo, mas os mundos, e os próprios deuses; podes erguer a vida dos próprios braços de Plutão, e dar ao homem uma estatura tal que ele consegue desafiar o Olimpo com um só juramento, que será ouvido pela estrela mais longínqua!

Olhava para Lucano com disfarçada comiseração, pois o rapaz parecia não mais dormir, porem devorar as lições, como se tivesse os olhos de Hidra[63]. Em certa ocasião dissera a Lucano, sorrindo, mas alarmado:

- Virgílio[64] disse que a prerrogativa dos deuses e dos homens é o riso. Agora, nunca ris. Por acaso odeias? Lembra-te que o ódio tem apenas vitória de Pirro[65].

Lucano, porém, deu-Lhe um rápido olhar e desenrolou outro livro, curvando sobre ele sua cabeça dourada, como se Cusa tivesse articulado o mais asnático dos comentários.

Com certa irritação, Cusa falou:

- Virgílio também disse que a humanidade despertava o riso dos deuses. Será por serem os homens tão sérios, especialmente quando são jovens? Por Atenas, tu depressa farás com que nada mais tenha a ensinar-te!

Em outra ocasião, ele disse:

- Há mais alguma coisa no mundo, além da medicina. Espera até que chegues a Alexandria! - Sacudiu a cabeça, com ar agoureiro, e rematou: - Cláudio Vesálio, que ali vive uma criaturinha afetada, irá levar-te pelos caminhos da matemática, coisa de que entendes tanto quanto um macaco.

Caminhando a sós através das florestas ao lado do rio, ou nos jardins, ou deitado na cama, ou comendo e bebendo sobriamente, ou trabalhando em suas lições, ou assistindo Keptah, Lucano tinha apenas uma imensa pergunta: Onde está Rúbria? Todas as cores, luzes, formas maravilhosas de árvores, flores, fios de relva, pássaros, animais, insetos, borboletas, abelhas e estrelas tinham desaparecido dos olhos de Lucano. Todo o seu trabalho significava apenas caminho para a vingança, que era o seu fim, e a beleza deixava a medida e a consciência de seus olhos. A nada respondia, a não ser a um grito de dor, e quando um escravo morria ficava inconsolável durante vários dias.

Não havia mãos mais delicadas e compassivas do que as suas, e não havia olhar mais amargo do que o seu, quando Keptah mostrava-se impotente para ajudar um sofredor.

- Se isso é tudo quanto podes fazer, então não podes fazer nada dizia ele.

Keptah respondia, brandamente, mas com alguma severidade:

- Os homens são imortais?

Sem se sentir confortado, Lucano perguntava a si mesmo: Se não somos imortais, então por que nascemos? Se ao menos eu pudesse acreditar que Deus não existe! Mas acredito Nele, e Dele tirarei Suas vítimas, se não consigo tirar Sua resposta! Ele me persegue. Ele persegue todos os homens, para a satisfação de Seu ódio.

Outrora, o aspecto do mundo parecera iluminado por alguma radiosidade profunda que não vinha do sol, da lua ou das estrelas, mas de certa emanação que jazia por baixo, e ainda em torno de sua aparência física. Agora, o mundo estava iluminado a seus olhos por um clarão violento, que magoava a vista, levando consigo a incandescência do inferno. Conforme os dias passavam, sua ira e sua angústia não decresciam. Eram como que um fogo eternamente alimentado, que cada noite, ao dormir, queimava até se reduzir a cinzas, e pela manhã erguia-se das cinzas, como uma fênix[66], cujas asas fossem de agonia. Keptah, observando-o à socapa, pensava: Ele é como Jacó: lutando com o anjo, mas meu pobre discípulo está lutando com ódio e tormento. Não tem a visão da escada pela qual os anjos sobem até Deus; sua escada tem degraus de chama, que descem para as regiões infernais. Como o Rei de Nemi, caminha pelos campos da ira de espada desembainhada, esperando pelo destruidor.          E Keptah rezava: "Oh! Tu, o muito Santo, o muito Misericordioso, o muito Divino, o muito Compassivo, que caminhas hoje sobre esta terra, num lugar que não conheço, sob o disfarce de uma criança, olha com compaixão para este que é pouco mais velho em carne do que Tu! Como Jó gritou para Ti, assim ele grita em seu coração, e ainda não ouviu a Tua voz. Tem misericórdia, Senhor, misericórdia!".

Lucano, quando criança, indagava das coisas mais simples e inocentes: "Estás aí? Ou Ali?" Agora, porém, nada via em torno de si, e perguntava, apenas: "Onde está Rúbria?" O único alívio para sua dor era tratar de alguém que sofresse. Os escravos viam-no aproximar-se, e Keptah maravilhava-se com o súbito brilho ansioso de seus rostos, e com a cessação de seus gemidos quando Lucano, deliberadamente, fazia-lhes perguntas, e como respondiam, humildes e esperançosos. Bastava que ele pusesse a mão em fronte febril para afastar a febre e dar sono ao pobre escravo. Seus olhos azuis tinham agora uma qualidade profunda e penetrante, e uma figura apaixonada. Ajudava Keptah nos trabalhos de parto, e mantinha os recém-nascidos em seus braços, como um pai, junto de seu peito, protegendo-os. Os escravos esqueciam-se de que se tratava do filho de um antigo escravo; os mais velhos esqueciam-se de que outrora o haviam ridicularizado por suas pretensões, de que tinham rido dele quando criança; de que tinham repreendido, invejado, e mesmo esbofeteado aquele menino. Em poucas semanas ele se tornara um libertador; alguém que era santo e podia aliviá-los, cujos olhos podiam levar os seus a se fecharem em repouso; cujas mãos possuíam estranha qualidade de conforto e cuja voz conseguia afastar o terror ou a culpa. "Apolo tocou-o", sussurravam uns para os Outros. Olhavam-no com supersticioso e temeroso respeito; com medo e reverência. Quando um marido, uma esposa ou um filho morria, os parentes agarravam a mão de Lucano e suplicavam-lhe, a ele, o inconsolável, que lhes desse consolo. Lucano tinha apenas lágrimas para dar-lhes, mas eles viam aquelas lágrimas, consideravam-nas como piedosas lágrimas dos deuses, e sentiam-se consolados. Keptah não se surpreendia com tais manifestações do mágico poder de curar que Lucano possuía. Sua única preocupação era o próprio Lucano.

Quando estava longe do pequeno hospital, o brilho suave do rosto do jovem desaparecia e, de tão austero e reservado, aquele rosto se tornava quase áspero.

Um dia, Keptah chamou Lucano para junto de si, em seus próprios aposentos. O médico estava à sua mesa, com muitos livros desenrolados em torno, e tinha o rosto grave e sombrio.

- Deves ter percebido, meu Lucano, que tens o dom de curar. Estás surpreendido? Não o fiques. Chega, não discutiremos isso agora. Temos um problema sério pela frente. - Estendeu para ele um frasco com urina turva e escura. - Dize-me: o que achas disto?

Lucano apanhou o frasco, cheirou seu conteúdo, deixou que ele corresse pela parte clara do cristal. Depois, disse:

- Este homem está muito doente, a urina mostra-se cheia de venenos, condensada, má e de cor escura. Penso que vejo a presença de sangue. Os rins dele estão perigosamente comprometidos. O rosto jovem animou-se: - Devemos prescrever grandes quantidades de água, e proibir sal, mandando dar imediatamente banhos de vapor para provocar suores abundantes.

Keptah respondeu:

- Não se trata de um homem. Essa urina é de uma mulher que muito em breve dará à luz. Ela tem edema do ventre e do rosto, bem como em torno dos tornozelos.

- Então devemos retirar o fluido disse Lucano, em tom interrogador. Tornou a examinar o frasco, e disse: - Ela pode morrer.

- Sim confirmou Keptah. Suspirou profundamente. - Faltam ainda pelo menos seis semanas para que a criança esteja em condições de nascer. Mas precisamos apressar imediatamente o parto. A criança, muito provavelmente, morrerá, como prematuro que é. Trata-se de uma escolha terrível que devemos fazer. A única oportunidade de salvar agora a mulher, que está sendo envenenada pelo seu próprio feto, é o parto induzido. Na verdade, não há sequer escolha! A situação é desesperadora.

- E a criança não pode viver?

- A possibilidade é mínima disse Keptah, deixando cair a cabeça entre as mãos e soltando um suspiro que era quase gemido.

Lucano teve pena dele, e da pobre mulher, e ainda mais pena da criança inevitavelmente condenada à morte, fosse ou não fosse o parto provocado de imediato. Depois disse consigo mesmo: Ainda assim, é bom viver?

E disse a Keptah:

- A mulher pode ter outro filho, mesmo que perca este. Ela já foi mãe?

Keptah olhou com ar estranho para ele.

- Sim. Teve uma filha. E essa filha morreu. A mulher não é jovem; esperou por este filho muitos anos, e agora ficará inconsolável se ele também morrer. E o marido também sofrerá muito, ou ainda mais, pois esperou longamente por um herdeiro.

Lucano sentou-se bruscamente, o rosto lívido. Então, suas mãos apertaram-se sobre a mesa:

- Aurélia, sussurrou ele.

- Tudo ia muito bem até cinco dias atrás disse Keptah. – É a toxemia gravídica, uma coisa letal. Tive receio disso quando a senhora Aurélia começou a apresentar dores de cabeça, ultimamente, e um pouco de febre. Observaste a urina. Sabes o que isso significa.

Preciso do teu auxílio. Vou mandar um escravo chamar tua mãe. É felicidade que o nobre tribuno não tenha ido hoje a Antioquia.

Levantou-se, e olhou severamente para Lucano:

- Aurélia teve duas convulsões esta manhã. Dei-lhe um sedativo, e suas aias estão com ela; não a deixam por um momento. Eu a sangrarei daqui a pouco, e preciso de tua assistência. - Parou, e seu olhar tornou-se mais profundo, sobre o jovem: - Que é isso? Estás aí sentado, como se tivesses sido atingido pela morte. - Levantou a mão, em advertência: - Há trabalho sério a fazer, e se tu me faltas nisto, terei de dizer a Diodoro que está desperdiçando seu tempo, que desperdiçará seu dinheiro em tua educação, Vamos!

Keptah abriu o caminho de seus aposentos até a biblioteca, através da casa.        Ali, Diodoro esperava, impaciente. Seus olhos violentos estavam fixos de medo.

- Bem! Exclamou. - Não é sem tempo, pelos deuses! Mandaste-me um recado esta manhã, relacionado com a senhora Aurélia! De que se trata?

Lucano contemplou-o com piedade e temor. Não amara exatamente Diodoro, pois seu temperamento naturalmente austero e reservado se coadunava com violência e emoções fortemente expressas, e era raro que se mostrasse zangado ou furioso. Para ele, Diodoro era rápido demais em suas tumultuosas mudanças de disposição. Suspeitava que ele fosse instável, embora o honrasse pelos seus conhecimentos e pelo seu amor da beleza de um poema ou de uma prosa elevada pela sua vasta e para Lucano - às vezes incrível erudição. Lucano sabia que o proconsul gostava dele, não como um filho, mas também como um sobrinho predileto, e lhe era grato a seu modo calmo, tentando sempre retribuir aquele afeto com simpatia e respeito. Apesar disso, e muito lhe pesava, não podia retribuir, e não retribuía integralmente a afeição de Diodoro.

Fora atingido menos pelo pensamento do parto iminente de Aurélia, com morte possível, do que pela volta súbita de sua dor por Rúbria, numa casa que ainda tão recentemente conhecera a morte.

Para Lucano, não era tanto Aurélia que estava em perigo, e sim a mãe de Rúbria.

Mas agora, ao olhar em silêncio para Diodoro, seu coração apertou-se, e sentiu por ele um amor filial, e desejou tombar aos seus joelhos, como um filho, e encostar a face em sua mão, cobrindo-a de lágrimas. Soube, instantaneamente, que aquele romano de olhos violentos, de nariz adunco, estava para suportar de novo a agonia do desgosto, se não por uma esposa, então por um filho, e daria naquele instante sua própria vida para poupar a Diodoro tal indizível tortura.

Keptah disse:

- Senhor, tenho notícias tristes a te dar. Deverei ver imediatamente a senhora Aurélia, mas ainda devo preparar-te. Preciso fazer o parto imediatamente, se tua mulher tem de viver. - Calou-se, e seu rosto moreno ficou lívido de emoção.

Diodoro tombou pesadamente numa cadeira. Tentou umedecer os lábios grossos. Depois, teve um paroxismo de tosse seca, como se estivesse sufocado. Não podia olhar para o médico, que se conservava de pé a seu lado, como descarnada estátua da dor, em seu traje de linho cinzento.

Keptah continuou, rapidamente:

- Não temos alternativa, senhor. Não te posso dizer: "Devo salvar a senhora ou devo salvar a criança?" A não ser que o parto seja provocado, tua esposa morrerá, não levando a termo o filho, e a criança morrerá no corpo dela. Desejei preparar-te para o fato de ser a criança prematura ao nascer, sendo mais provável que morra imediatamente. Agora, devo ir.

Diodoro agarrou uma dobra da veste de Keptah, prendendo-a fortemente e em seu rosto havia o mais acovardado desespero.

- Salva Aurélia! Suplicou ele, em voz abafada. Olhou alucinadamente, quase cegamente, para o médico, e chegou o corpo até a beirada da cadeira, tremendo violentamente em sua forte estrutura.

- Que é um filho para mim, se minha esposa morrer? Que seria uma dúzia de filhos? - As veias de sua testa fizeram-se roxas e salientes e em seu pescoço distinguia-se um forte latejar: - Tu a salvarás! Tu precisas salvá-la!

Havia uma súplica em sua voz hesitante, uma angústia crescente.

Lucano aproximou-se rapidamente dele, colocando a mão sobre seu ombro largo. E disse, em voz clara e forte:

- Foste um pai para mim, senhor e, como filho, deixa que eu te console. Dou-te minha força! Daria a minha vida por ti!

Keptah, que estava fazendo um movimento para partir, olhou por sobre o ombro para Lucano, e sorriu, ligeira e estranhamente. Diodoro, porém, apenas deixara o manto do médico escapar de sua mão enfraquecida, e embora voltasse seu rosto lívido para Lucano, era evidente que não o via nem o entendia.

- Vem, disse Keptah. - Precisarei de teu auxílio, e não podemos nos demorar mais nem um instante.

- Não posso ficar com ele?

- Não. Pensas que ele é mulher? Trata-se de um homem.

Keptah saiu rapidamente do aposento, o manto inflado, as sandálias deslizando pelo piso de mármore. Lucano hesitou. Gotas de suor, como grandes pedras úmidas, corriam pesadamente da testa de Diodoro, e depois caíam, intactas, no peito de sua túnica, ou rolavam por ele abaixo. Lucano correu para a mesa, deitou um pouco de vinho num copo, e chegou-o aos lábios secos de Diodoro. Como alguém tomado de estupefação, ou atordoado para além da resistência humana, o tribuno engoliu obedientemente um gole lento após o outro.

Se eu ao menos pudesse rezar! Pensou Lucano. E nele houve um terror frio, compreendendo, estranhamente, quanto Deus representa para um homem em suas horas supremas, e tendo noção de sua própria e horrível solidão. Mas não se reza para um Deus de aflição, que nada se importava com as lutas humanas, antes as ordenava.

Diodoro sussurrou, roucamente:

- Se ela morrer, eu seguramente não poderei viver, pois lhe fui infiel em meu coração, e ela é a mais amorosa e terna das esposas, a que mais se sacrificou, a mais Querida.

Lucano viu que o homem abatido mal tinha noção de sua presença, como se ele fosse uma sombra misteriosa que lhe estivesse dando auxílio. Não pôde suportar aquele sussurro seco e rumorejante. E disse:

- Senhor, permite-me; tens sido o melhor dos maridos e... os deuses não te abandonarão. Ela viverá, com certeza!

Os olhos de Diodoro não tinham lágrimas; tudo quanto podia fluir dele, fluía de sua testa. Lucano, porém, chorou, baixando a cabeça sobre a do homem mais velho e encostando a face sobre seu cabelo áspero e eriçado. Diodoro ouviu aquele som lamentoso, e moveu-se vaga e inquietamente, vendo então Lucano pela primeira vez.

- Ah! És tu? Murmurou. - Tu me consolaste antes. Tu me consolas agora, Lucano.

Lucano pousou o copo vazio e puxou, para mais perto do tribuno tiritante, o braseiro onde o carvão ardia. Apanhou de sobre uma das cadeiras um manto de lã e envolveu com ele aqueles ombros curvados, pois o dia estava frio e o sol mostrava-se pálido, descolorido. Diodoro permitiu que ele lhe prestasse aqueles pequenos serviços carinhosos, e um leve estupor passou-lhe pelo rosto, logo substituído por uma expressão vaga.

- Devo ir ajudar Keptah disse Lucano, sentindo de novo sua própria e horrenda solidão. Sem olhar para trás correu para fora do aposento, as lágrimas ainda rolando pelo rosto.

Keptah encontrara Aurélia entorpecida pela droga que ele lhe ministrara. Arquejava, porém, em sua cama, e em seu rosto tumefato um horrível tom azulado se espalhava. Erguera os joelhos sob as cobertas, e uma das mãos apertava-se contra o ventre dolorido. Seus músculos contraíram-se em todo o corpo, como se possuíssem vida própria, desligada da mulher. Sua língua inchada surgia de entre os lábios intumescidos e nos cantos deles havia espuma sanguinolenta.

Sua respiração estertorosa enchia o aposento. As enfermeiras deram ao médico a notícia de que alguns momentos antes a senhora estivera quieta e aparentemente adormecida.

Keptah tomou-lhe o pulso e, encostando a cabeça ao peito dela, ouviu-lhe o coração. Estava acelerado, e dava saltos. Levantou a cabeça, e Aurélia recomeçou a debater-se contra as almofadas que lhe amparavam o corpo, na prevenção de que tombasse da cama durante uma das convulsões. Enquanto seu corpo em sofrimento retorcia-se ela se ia fazendo cada vez mais consciente. Disse a Keptah:

- Deves salvar a criança estou muito doente. Talvez morra, isso não tem importância. Salva a criança para meu querido esposo.

Levantou-se a meio na cama, e agarrou o braço magro dele, enquanto suas tranças escuras e úmidas tombavam, emaranhadas, sobre seus ombros e seios.

Keptah estendeu a mão para uma bandeja que uma das enfermeiras lhe apresentava, e deitou um pouco de um líquido dourado, viscoso e brilhante, num copinho. A arquejante Aurélia olhou para aquilo com ar de dúvida.

- Isso salvará meu filho? Suplicou ela, em tom lastimoso.

O médico nutria por ela demasiada reverência para mentir-lhe.

- Senhora... E se Diodoro desejasse que tu sobrevivesses e a criança morresse?

Seus lábios intumescidos e raiados de sangue sorriram tristemente:

- A criança será um conforto para ele. E terá outro consolo, e eu abençôo esse consolo e, se me for permitido, ao atravessar o Estígio[67] rogarei pela felicidade dele. Porque ele foi para mim mais do que pai, irmão, irmã e filho.

Keptah curvou-se reverentemente diante dela, como diante de uma deusa, e levou-lhe o copo aos lábios. Aurélia bebeu em goles que lhe custavam dores, pois tinha a garganta contraída. Então, por sobre o ombro de Keptah ela viu alguém, e seus olhos embaçados fizeram-se imediatamente atentos, profundamente amorosos e suplicantes. Keptah seguiu-lhe o longo olhar e viu que Íris tinha entrado no aposento, envolvida em lã branca que a protegia do frio; suas tranças douradas tombavam quase até os joelhos.

A grega aproximou-se imediatamente de Aurélia e acariciou-lhe o cabelo escuro com delicada solicitude, os olhos azuis estudando o rosto cianosado e tenso da doente. Aurélia esqueceu todos os demais que estavam no quarto, menos a sua amiga. Levantou a mão trêmula e tomou a de Íris, e entre as duas mulheres passou uma permuta, eloqüente e silenciosa.

Então, Aurélia tombou de novo sobre seus travesseiros e olhou para Keptah:

- Contam que retiraram Júlio César do ventre cortado de sua mãe para que ele vivesse. Podes fazer isso comigo? Que é a minha vida, comparada com a felicidade de meu marido?

- O que te dei a beber, senhora, apressará o trabalho de parto disse Keptah, evitando-lhe os olhos, - O resultado só a Deus pertence.

- Mas a criança está longe do tempo, gemeu a infeliz senhora.

- Não muito longe, um pouco menos de sete semanas falou o médico. - Vi outras mais novas sobreviverem.

Lucano entrou no aposento e ficou ao lado do médico, o rosto marcado com a evidência de suas lágrimas. Ele e sua mãe enchiam o quarto com a beleza e a solenidade de sua estatura, e mesmo Keptah alto e nobre, ficava diminuído. O vento tardio e frio do inverno fazia voar as cortinas da janela. Vasilhas de bronze, cobertas, cheias de brasas ardentes, foram colocadas em torno do corpo convulsionado, de Aurélia. A mente da senhora aclarava-se, com a chegada da morte. Íris ajoelhou-se ao lado dela, pois Aurélia não lhe largava a mão. E disse à liberta, em tom franco:

- Tudo quanto tenho eu te entrego. Não chores. Tens sido minha amiga, e amigos valem mais do que nascimentos, mais do que dinheiro, mais do que posição, mais, mesmo, do que a própria Roma.

Peço-te o que darias em qualquer circunstância: devotamento e amor, de todo o teu coração.

Lucano, em pé ao lado de Keptah que esperava, ficou espantado e confuso. Que dizia Aurélia à sua mãe? Que significava aquela enigmática conversa, e por que sua mãe chorava silenciosamente, sem fazer perguntas? Então, esqueceu tudo, no seu apaixonado cuidado por Aurélia, pois o rosto da senhora sofrera modificações, uma atenção como se ela estivesse ouvindo algo que só poderia ouvir com sua alma.

Seu corpo inchado tornou-se instantaneamente rígido, e ela atirou os braços, erguendo-se em arco, em súbita convulsão. Seu pescoço esticou-se, seus ombros ergueram-se, e um vasto e oculto gemido subiu de sua garganta, como se viesse de algures, de um lugar profundamente enraizado em sua carne. Os olhos tornaram-se protuberantes e a língua debatia-se entre os lábios arroxeados.

- Olha disse Keptah em voz baixa, para Lucano. Afastou para o lado as cobertas e dobrou para trás a camisa de Aurélia. O ventre azulado e alto, veiado como o mármore, palpitava com força, e ondulações musculares corriam por ele. Então, pelo canal do nascimento, veio um rápido jato de sangue e água misturados, e o quarto encheu-se do odor daquele líquido. Keptah introduziu os longos e finos dedos no corpo da pobre senhora, e ela gemeu de novo, enquanto Íris tomava-lhe ambas as mãos nas suas, apertando-as com força. Uma das enfermeiras começou a soluçar, e as outras duas tombaram de joelhos, em oração desorientada. Agora, Aurélia gemia continuamente, até que o som pareceu parte do próprio aposento, parte do vento equinocial.

Lucano sabia o que fazer. Apertou com ambas as mãos o alto ventre e acompanhou ritmicamente as ondulações dos músculos, em suas tentativas para expulsar o filho da carne materna. Mas os músculos estavam contraídos pelas convulsões de Aurélia e resistiam como ferro sob as mãos do jovem. Ele fechou os olhos, e suas mãos e dedos sensíveis cumpriram sua tarefa, dando sua força à ondulação muscular, quando esta enfraquecia.

As convulsões produzidas pela doença de Aurélia estavam impedindo o       nascimento da criança, mas Keptah ainda hesitava diante da coisa horrível que sabia, agora, ia ser obrigado a fazer. A criança morreria, provavelmente, depois de nascida, ou nasceria morta. Ainda assim, havia uma possibilidade de ser um parto viável, e mínima possibilidade de que a criança sobrevivesse. Para que isso pudesse acontecer, entretanto, o colo do útero tinha que ser alargado com o bisturi, e a criança extraída à força. Aurélia, então, morreria de hemorragia proveniente do órgão cortado. A cabeça da criança não podia ser encontrada pelo fórceps nas condições presentes, pois não tinha ainda descido para a entrada do útero, devido a sua prematuridade, e também por causa das convulsões do corpo de Aurélia. Pior ainda - Keptah agora verificava, depois de mais um exame -, a criança apresentava-se em posição anormal, de nádegas. "Oh! meu Deus!", gemeu Keptah, audivelmente.

A um sinal de Keptah, Lucano colocou o ouvido sobre o peito levantado de Aurélia. Olhou alarmado para o médico, pois o coração da senhora mostrava-se perceptivelmente mais fraco, embora o ritmo se acelerasse. Além disso, a agonia de Aurélia estava se tornando maior do que lhe era possível suportar. Quando Lucano viu a mão trêmula e escura de Keptah estender-se para um bisturi curto e forte, mordeu os lábios com força, e sentiu-se repleto de selvagem e impotente cólera.

Curvou-se então sobre Aurélia, e tomou-lhe o rosto gelado e úmido nas mãos. Pela força de sua vontade atraiu para os seus os olhos nublados dela, e começou a murmurar, hipnoticamente:

Não sentes dor e repetia, repetia. - A dor passou. Estás com sono, cansada. A dor passou, tens muito sono, estás relaxando teus músculos, a dor passou, dormirás agora...

Aurélia viu-lhe os olhos e ouviu-lhe a voz. Os olhos do rapaz brilhavam para ela como luas azuis nadando nas trevas. Encheram todo o Universo, tornando-se a cada momento mais brilhantes. E tudo era embalado por aquela voz: ela sentia-se flutuar num mar sem luz, mas infinitamente consolador, sem dores. Uma sensação beatífica apoderou-se da mulher, uma leveza, uma liberdade sem angústia. Tudo estava explicado, tudo estava compreendido, tudo era júbilo e paz. Ela não sentiu o bisturi recortar sua carne, nem o cascatear de seu sangue. Não tinha corpo. Sorria, e o sorriso parecia ser retribuído por alguém, que de profundidade muito mais longínqua vinha ao seu encontro, uma profundidade impregnada de amor, ternura e compaixão. "Mamãe", disse ela, com voz fraca, e contente. Depois, ficou imóvel.

Lucano levantou a cabeça, olhou para Keptah, e sentiu-se repleto inteiramente de fel.

- Morreu disse ele.

Mas Keptah puxava as pernas de uma criança de dentro do corpo da mãe, pernas minúsculas, grotescamente cambaias, pequeninas como as de uma boneca e azuladas. Agora, com rapidez cada vez maior, foi aparecendo seu ventre mínimo, seu peito minúsculo, depois a cabeça molhada de sangue, como se mostrava todo o seu corpo, onde os olhos de boneca estavam fechados, a boca sem hálito.

A criança, então, ficou entre as pernas mortas da mãe, tão imóvel quanto ela, num charco de seu sangue. Íris pôs a cabeça ao lado do rosto imóvel de Aurélia, e seu choro encheu o aposento, no qual os gemidos tinham cessado: foi como que a continuação do lastimoso som.

Estava acabado; nenhuma das vidas fora salva. Keptah cobriu o rosto com as mãos e ajoelhou-se aos pés da cama. Lucano endireitou o corpo rigidamente. Todo ele parecia estourar de fria cólera, abominação e ofensa. Duas criaturas haviam morrido sem razão alguma, e sem qualquer bom propósito. Mais duas que eram dadas à morte pela mão selvagem de Deus.

- Não! Exclamou Lucano, com veemência. - Não!

Correu para os pés do leito e levantou nos braços a criança que não respirava. Por um momento, a leveza dela apavorou-o. Pesava menos do que o boneco que ele dera a Rúbria havia muitos anos. Tinha carne fria e pálida, o rosto azulado, a cabeça baloçante. Lucano abriu à força os lábios do menino, meteu-lhe o dedo na garganta, arrancando dali um coalho de sangue e muco. Ninguém lhe prestava atenção quando ele apanhou uma coberta quente e envolveu nela a criança. Abriu de novo a boca incrivelmente pequena, segurou a criança contra seu rosto, e forçou profundas expirações sobre sua garganta e pulmões. Concentrou toda a sua atenção, todo o seu desejo, no recém-nascido. Íris continuava a chorar alto, Keptah estava ajoelhado, rezando pelas duas almas que tinham deixado seus corpos, e as enfermeiras se lamentavam, as cabeças encostadas ao soalho.

- Vive! Ordenou Lucano à criança, e grandes gotas de suor porejavam-lhe da carne e encharcavam suas vestes. Seu hálito forte entrava e saía na garganta da criança, como a própria vida, sombria e propositadamente, que não quisesse ser negada. Seus dedos delicados, mas firmes, rodeavam o tórax do bebê, comprimindo e rapidamente soltando aquele peito, enquanto mantinha e continuava a respirar profundamente dentro da garganta dele.

Íris puxou uma colcha sobre o rosto tranqüilo e morto de Aurélia, e seu choro apagou-se ao ver o leve e calmo sorriso nos lábios de sua senhora. O retalho de céu cinzento escurecia como uma tempestade que se aproximava; havia sons distantes de trovoada, e depois veio o fulgir de um relâmpago. As enfermeiras escravas continuavam a soluçar, a gemer e a rezar pelos mortos. Keptah sentou-se sobre os calcanhares, a cabeça baixa. O vento e a trovoada misturavam-se às suas vozes.

De repente Keptah teve um sobressalto e deu um pulo, pondo-se de pé. Porque havia no quarto um som novo, frágil e delgado como o grito de um filhote de pássaro. Keptah correu para Lucano e exclamou, com temeroso respeito:

- O menino vive! Não está morto!

Mas Lucano não o via nem o ouvia. Seus dedos moviam-se com firmeza e ele introduziu seu hálito e sua vontade e sua vida naquele corpo infinitesimal. A criança moveu-se contra o seu coração, fragilmente, como uma avezinha que se debatesse. Seu rosto manchado de sangue perdeu seu livor, enrubesceu profundamente. A mão incrivelmente pequenina atirou-se contra a coberta de lã.

- Ele vive! Exclamou Keptah, dominado pela alegria. – Ele respira! Foi um milagre de Deus!

Ninguém, a não ser Íris, viu Diodoro entrar no quarto, cambaleando como um homem embriagado. Ela dirigiu-se para ele e tombou de joelhos, abraçando-lhe as pernas e chorando em voz alta.

 

Lucano estava lendo o sétimo livro de Heródoto[68], no qual ele escrevera sobre Xerxes, que chorara quando da vitória. Então, o tio de Xerxes, Artábano, viera consolá-lo, e dissera: "Majestade, primeiro congratulai-vos convosco mesmo, depois chorai", ao que Xerxes respondeu: "Eu fui tomado de piedade à lembrança da brevidade da vida humana, quando compreendi que, de todas essas multidões, nem um só indivíduo estará vivo daqui a cem anos".

Artábano replicara: "Na vida temos outras experiências mais lastimáveis do que essa. Nossa existência é realmente breve, como dizeis, e, ainda assim, não há um só indivíduo, neste exército como no mundo, tão constitucionalmente feliz, que neste prazo, breve como é, não se encontre, não uma vez, mas várias vezes, desejando estar morto e não vivo."

"Sim." Lucano pôs de parte o livro e encostou a cabeça na mão, olhando sem ver para o quente raio do sol de verão que tombava sobre seu pé calçado de sandália. Estudava muito em casa, agora, fugindo da sala de aula no momento em que as lições terminavam, para escapar dos escravos, que persistiam em curvar-se diante dele, ou em tocar-lhe as roupas ou em cair de joelhos à sua frente, implorando sua interferência junto dos deuses. Horrorizava-o e causava-lhe repulsa a idéia de que ele, tão irremediavelmente afastado de Deus, recebesse súplicas para ser intermediário entre os sofredores e Ele. Evitava os olhos de adoração e as mãos erguidas. Desejava gritar-lhes:

- Eu vos digo! Ele nos dá a vida só para que morramos na escuridão. Dá-nos olhos para que possamos ver a fealdade da morte, dá-nos amor para que possa destruir-nos! É melhor adorar Caronte[69] do que Ele!

Mas não podia dizer tais palavras, embora fervessem em seu coração. Desde que salvara a vida do pequeno Prisco, os escravos acreditavam, devotadamente, que ele fora tocado pela divindade. Não podia mais ir ao hospital nem visitar um escravo doente em companhia de Keptah. Havia seis meses que aquilo se passava. Depressa iria para Alexandria, onde seria apenas um dos estudantes anônimos, e tratado com altaneira, o filho de um antigo escravo, o protegido de um romano de bom coração. Neste meio tempo mantinha a porta fechada para os que chegavam até ela, humildemente, e punha as mãos sobre os ouvidos, à noite, para não ouvir sua mãe, que respondia com tristeza às importunações deles. Estudava desenhos mortos de anatomia com Keptah, mas não ouvia os vivos. Quando Keptah o censurara, certa vez, respondera, frenético:

- Devo dizer-lhes aquilo em que acredito? Que Deus é o seu inimigo? Hei de dizer isso, com certeza, se me forçares a falar com eles. E que lhes adiantará isso? Eu não sou um mentiroso!

- Tu te pareces ao arqueiro parta que, recuando, atira flechas envenenadas por cima dos ombros disse Keptah. - Digo-te, Ele te persegue e tu não Lhe escaparás. Teus dardos ferem-No, mas ainda assim Ele te persegue por Seu amor, não por Seu ódio. – Apesar disso, o médico compreendia com profunda piedade.

Uma abelha zumbiu através da janela sem cortinas, e pousou no livro enrolado que estava junto da mão frouxa de Lucano. As asas douradas fremiam, e ela, delicadamente, explorou o manuscrito. Suas pernas delgadas perambularam nervosamente. De repente, ergueu vôo e pousou na parte de trás do dedo do jovem, que lhe viu os grandes olhos brilhantes e suspirou. Levantou-se devagarzinho, caminhou lentamente até a janela e deixou a pequenina criatura voar, separando-se dele, seguindo-lhe o vôo brilhante até que ela desaparecesse. Havia uma grande dor nele, e uma secura nos olhos. Oh! Os inocentes, que viviam só para que pudessem morrer! Lucano descansou a testa no peitoril da janela e sentiu uma tremenda compaixão e um tremendo amor por tudo quanto vivia e era torturado, murchava, desfazia-se em pó, desde uma abelha até um homem, de uma folha a uma criança, de uma árvore a um boi, de uma estrela a uma aranha. Desejava abarcar a vida em seus braços, acarinhá-la, murmurar-lhe amor e consolo, e, mantendo-a assim, desafiar seu Destruidor.

Tornou-se claramente consciente dos rumores da casa e do riso de Uma criança. Era uma criança muito nova, a filha de uma escrava que estava amamentando o pequeno Prisco. Íris era, agora, a guardiã do filho de Diodoro; levara-o para casa poucas horas depois de seu nascimento, trazendo com ela a ama-de-leite e mais uma escrava.

Fora Íris quem cuidara carinhosamente do pequeno Prisco, sem deixá-lo um só momento, durante os primeiros e precários meses de sua vida. Fora Íris quem vira seu primeiro sorriso desdentado e ouvira seu primeiro murmúrio afetuoso. Embalava-o ao colo e dormia ao lado de sua caminha. O mais leve som por parte dele trazia-a correndo para perto. Tecia os panos para suas roupas e costurava-as. Embalava-lhe o berço, quando ele estava inquieto, e debruçava-se sobre ele, cantarolando. Lavava-lhe o corpo minúsculo, e jamais se separava dele.

Lucano ouvia agora a voz de sua mãe, e a resposta balbuciada da criança. A cabeça dourada dela passou pelo lado de fora da janela de Lucano, e a mulher levava Prisco nos braços, bem preso ao seu peito.

O rosto da criança espiava por cima do ombro dela, e seus olhos encontraram os de Lucano. O jovem pestanejou, pois o pequeno rosto era o de Rúbria, e ele não podia suportar aquilo. Prisco sorriu alegremente, pois era uma alma alegre e afável para com todos. A despeito de si próprio, Lucano correspondeu-lhe ao sorriso. O bebê esticou para trás a cabecinha e guinchou alegremente, esfregando o nariz na orelha de Íris. Ela ia levá-lo para a frescura do jardinzinho que havia atrás da casa. Ali, iria sentar-se sob uma grande árvore, murmurando e cantando até que o menino dormisse. O sol caminhava para o Ocidente, o ar mostrava-se amplo, empapado de ouro, sussurrante de vida secreta. O cheiro da terra, das flores, da relva misturava-se com a luz morena, e algures, uma escrava cantarolava, cuidando de suas tarefas. As palmas chocavam-se e balouçavam e os pássaros voavam como flechas de uma árvore para outra, as asas douradas pela luz do sol.

Lucano saiu para o jardim. Íris apanhara uma flor branca, e Prisco, sentado nos joelhos da moça, examinava atentamente aquela flor. O menino ainda era pequeno para a sua idade, mas rechonchudo, animado e vivo, os olhos escuros irradiando a alegria de ser e de ver.

Estava nu, a não ser pela fralda branca. Seu peito miúdo era largo e moreno, e caracóis de cabelos pretos rodeavam-lhe as orelhas, o pescoço e a testa. Pequeno como era, possuía uma força quase incrível para alguém tão novo, nascido prematuramente. Dava a impressão de um guerreiro em miniatura, mas seu sorriso era o de Rúbria, cativante e doce, com uma sugestão de travessura, e a expressão de seus olhos, comovente e indagadora, era a dos olhos de Rúbria. Era por essa razão que Lucano, habitualmente, evitava a criatura. Prisco viu-o antes que Íris o visse, e guinchou de novo jubiloso, sacudindo a flor para ele, como um cumprimento.

Íris sorriu para o filho, escondendo a constante ansiedade a seu respeito.

- Vê disse ela. - Não é mesmo um arqueiro, ou um lutador, ou um condutor de biga? Seus músculos são verdadeiras couraças.

A boca do menino ainda conservava vestígios do leite que mamara recentemente, e ele saltava sobre os joelhos de Íris de tal maneira que a fazia rir ao mesmo tempo em que o tentava conter. Lucano estendeu um dedo, que o pequeno agarrou, examinou seriamente, e depois meteu na boca. O moço sorriu. Sentia-se como um pai para aquele menino. Depois, franziu as sobrancelhas:

- Acho estranho que Diodoro se demore tanto em Roma. Seria de esperar que tivesse pensamentos para seu filho. - E, imediatamente, exclamou: - Ui! Ele tem dentes!

- Quatro disse Íris, orgulhosa. - Não é maravilhoso? – As faces dela mostravam-se puramente coloridas, e tão jovens como as de uma menina. Depois de um momento, falou, abstraidamente: - Diodoro? Sim, há quase seis meses... Desta vez ele não voltará enquanto não obtiver permissão para deixar Antioquia. Foi o que me escreveu.

Imagino continuou ela, com um leve sorriso que está enfrentando, severa e impacientemente, Carvílio Ulpiano, e perseguindo o Palatino.

Já não pode mais suportar a Síria, e está resolvido a recolher-se às suas propriedades. Acredito que a esta altura já reduziu César a uma sombra, pois é homem obstinado e tem considerável influência.

Afagava a cabeça ágil da criança, enquanto falava. Diodoro havia levado as cinzas de sua filha e de sua esposa para Roma, a fim de depositá-las no cemitério da família. Íris sabia que aquela viagem fora dolorosa, sem consolo. Diodoro, após a morte de Aurélia, tornara-se silencioso, a seguir partira para Roma, de onde só muitas semanas depois escrevera laconicamente, para falar de seus planos e perguntar do filho. Houvera indiferença naquela pergunta. Vira Prisco apenas poucas vezes e não demonstrara qualquer espécie de emoção. Mas sua última carta era mais animada. Convencera-se de que a Síria se fazia maléfica no que se referia à sua família. Quando voltasse, seria apenas para reunir seu pessoal doméstico, esclarecer seu sucessor. Depois, deixaria para sempre aquela terra "maligna". Seu filho seria educado na terra dos pais, tendo a visão das Sete Colinas, e sob a proteção de seus deuses.

Escrevera apenas uma linha que se relacionava com Íris: "Espero que tu, minha antiga companheira de brinquedos, minha irmã em espírito, consintas em voltar comigo, para continuar a servir de mãe para meu filho.".

Íris suspirou. Esperava muito mais do que isso! Mas seu próprio filho estaria longe, em Alexandria, seu filho tão impulsionado, tão obcecado, tão incessantemente batido pela dor, tão sombrio e desolado. Ah! Pensou ela, ele, porém, é jovem e há muito que estudar e que aprender. Compreendia que Lucano se lhe parecia muito, em temperamento e na aparência: paciente, dedicado, profundamente amoroso, embora se mostrasse calmo nesse sentimento, reservado em palavras e em ações, vivendo uma existência plena, embora oculta; disciplinado e de certa forma austero consigo mesmo. Ainda não adquirira a flexibilidade que a mãe apresentava agora, sua delicada resignação, sua profunda fé de que Deus era bom e não malévolo.

Sempre se haviam comunicado, menos em palavras do que em olhares eloqüentes, ligeiro sorriso, o mais leve dos gestos, a mínima inclinação de cabeça. Houvera sempre o mais profundo entendimento entre ambos, até a morte de Rúbria. Então, Lucano se afastara até mesmo de sua mãe, e se mantivera fria e voluntariamente a distância.

Recusara-se a interessar-se pela criança que salvara, até aquele momento, embora Íris carinhosamente percebesse que havia menos frieza do que medo de mais uma vez se ver envolvido num amor pessoal, fosse pelo que fosse, pois no amor, acreditava ele, havia sempre presente o perigo e a ameaça de desastre.

Sentiu-se intensamente comovida quando Lucano de súbito acocorou-se, a fim de trazer o rosto ao nível do da criança. Prisco ficou encantado. Estendeu a mão para o nariz de Lucano, o que fez o jovem exclamar:

- Ele tem mãos de gladiador! E calcanhares de águia!

Prisco gritava de alegria. Largou o nariz de Lucano e agarrou o caracol de cabelo que tombava sobre a testa do moço, puxando-o. Lucano estava maravilhado com a força dele. Ali estava uma criança que havia apenas seis meses jazera em seus braços como um frágil boneco, sem fôlego, azulado, indefeso e inerte. De repente, Lucano sentiu-se inundado de orgulho e afeto. Estendeu os braços ao menino, e Prisco prontamente atirou-se para eles. O calor daquele pequeno corpo robusto transpassou Lucano até dentro do coração e ele beijou os ombros nus e morenos, os joelhos e cotovelos cheios de covinhas. Beijou os olhos tão parecidos aos de Rúbria, e depois, muito carinhosamente, a boca, que era uma réplica pequena da boca da jovem morta. As pálpebras de Lucano arderam e sua garganta apertou-se. Oh! Não me deixes amar de novo! Suplicou ele a uma deidade sem rosto.

Pôs nos braços de Íris a criança que protestava, levantou-se abruptamente, e saiu dali. Íris seguiu-o com um olhar longo e tristonho, mas, ainda assim, sentia-se consolada.

Na manhã que se seguiu à noite em que Diodoro voltou para Antióquia, o tribuno deu ordens para que Keptah viesse atendê-lo. O médico entrou na biblioteca de seu senhor e seus olhos cavos instantaneamente avaliaram as condições físicas e mentais do homem que ali estava. O rosto de Diodoro parecia gasto e mais pálido, e suas feições mostravam-se como se muitos anos se tivessem passado por elas. Apesar disso, havia nele uma tranqüilidade sombria, e seu rosto adunco adquirira maturidade mais firme. Era mais romano do que nunca, e menos simples do que jamais fora.

- Estou bem de saúde disse, bruscamente, antes mesmo que Keptah pudesse cumprimentá-lo. - Não é preciso que teus olhos de médico me esquadrinhem. Chega. Dentro de quatro semanas partirei para Roma, com todo o pessoal de minha casa. Tu já não és um escravo.

Sei que compraste vinhedos de olivais nestas redondezas, e que na própria Roma tens alguns investimentos. Não tenho tempo a perder. Não te posso dar ordens, sendo tu um liberto. Posso apenas pedir-te. Queres voltar para Roma comigo?

- E era necessário pedir-me isso, senhor?

Diodoro nada disse por um momento. Depois falou, com aquela sua tranqüilidade nova:

- Uma coisa aprendi nestes sete meses de Roma: um homem nunca pode confiar em outro homem. Se confia, é para seu próprio prejuízo, e quem negar isto é um mentiroso ou um tolo. Quem foi o filósofo que disse: "Sê amistoso para com todos, e com ninguém mantém intimidades"? Não se trata, como alguns me disseram em Roma, apenas do fato de ser o homem um mal, é que ele nunca é o mesmo homem, de hora para hora, de dia para dia. Minha pergunta não foi um insulto para ti. Eu estava apenas me informando.

Keptah não respondeu. Estava cheio de compaixão por aquele homem mais magro e menos veemente, cujos olhos altivos estavam ainda enevoados e fixos pelo desgosto. O tribuno perdera determinada animação, e sua vitalidade estava em suspenso. Ainda assim, sugeria certa ferocidade e melancolia. Diodoro continuou:

- Pensei, quando fui para Roma, que iria associar-me aos meus antigos camaradas, e que eles me recordariam afetuosamente. Vês bem que tolo eu era. É verdade que me receberam com a afetação de muito prazer, e isso porque se lembraram de que tenho muita influência mesmo com aquele Tibério, que pelo menos recorda-se de que sou excelente soldado, se não se recorda de que sou um ser humano.

Pensei que em Roma fosse encontrar algum conforto... - Calou-se, e uma sombra profunda passou-lhe pelo rosto. Levantou-se, deitou vinho num copo e depois fez sinal a Keptah para que se servisse.

- Numa palavra, senhor, disse Keptah, depois de ter respeitosamente tomado um gole de seu vinho -, descobriste que os homens não são diferentes, seja em Roma, e na Síria, na Bretanha, na Gália, na Judéia, no Egito ou na Grécia.

Diodoro pousou lentamente seu copo, sem aquela sua maneira habitual de bater com ele sobre a mesa. Havia desaparecido de sua maneira e de sua voz a velha ênfase. E disse:

- É essa a verdade, sim. Mas eu estivera fora de Roma durante muito tempo e tinha esquecido. A propósito disto conversarei mais tarde contigo. - Começou a andar de cá para lá, pela biblioteca, num passo pesado e lento. - Por que a inteligência e o intelecto são tão raros? Por que devemos procurá-los como quem procura ouro?

- Os deuses, disse Keptah, contornando a questão, ainda têm ciúmes de sua sabedoria. Ela é o fogo de Prometeu[70], e quando arde num homem os deuses o castigam, contudo seus semelhantes ainda o castigam mais. Disseram, também, que nada se pode ensinar a um homem; apenas se pode assisti-lo na procura do que há dentro dele próprio. Se não tiver mente, todas as vossas exortações, todas as vossas lições, todas as vossas tentativas para melhorar seu ambiente, todos os vossos sacrifícios e vossos ideais não o afastarão de sua animalidade. Em troca da presunção de que ele é dono de sua mente, só porque tem forma humana, volta-se e dilacera quem assim o vê. E eu acho que essa é uma retribuição justa.

Diodoro deu-lhe uma olhadela. Serviu-se de mais um copo de vinho, bebendo até o fim. Depois olhou para o fundo do copo. E disse, parecendo mais dirigir-se a ele próprio do que a Keptah:

- Preciso de uma mãe para meu filho.

O rosto de Keptah transformou-se, alarmado.

- Encontras-te em Roma tal senhora, senhor? Pensou em Íris consternado, mas Diodoro era romano!

- Fiz uma coisa vil disse Diodoro, como se Keptah não tivesse falado. Olhava agora para o médico, e sua fisionomia mostrava-se severa. - Por que confio em ti, um homem que me pode trair amanhã?

Devo subornar-te para que te conserves quieto e não vás espalhar isto em Roma? Posso contar que não dirás palavra alguma em algum ouvido indigno, quando tiveres bebido, se jamais chegas a beber assim? Garantes que não te tornarás meu inimigo, neste ano ou no próximo? Acho melhor, afinal, para ti mesmo, que não voltes comigo para Roma.

- Como quiseres, senhor disse Keptah, e havia alguma cólera em sua voz.

Então, Diodoro pousou seu copo com algum de seu ardor antigo.

- Afinal disse ele -, quem aceitaria a palavra de um antigo escravo contra a de Diodoro?

Keptah cruzou, sobre o peito, os braços envolvidos no manto.

- Essa é a verdade disse ele. - Portanto, não precisas confiar em mim, senhor. Não pedi confiança. Pela tua própria paz de espírito, prefiro que não a concedas.

- Ainda assim, estaria mais seguro em Roma tendo-te como meu médico. Ouvi contar coisas! Podem não ser verdadeiras, mas dizem que Tibério se livrou de alguns homens intransigentes, inclusive dois senadores, subornando seus médicos. Isso me parece mentira: Tibério pode ser pessoa de coração frio, mas o veneno não é maneira de um soldado tratar com seus inimigos, mesmo que empregue informantes.

Todavia, eu soube de excelente fonte que alguns canalhas ricos e depravados, que ocupavam altos cargos em Roma, subornaram os médicos dos maridos das mulheres que cobiçaram, ou usavam do mesmo expediente para auferir qualquer vantagem política. - Sorriu para Keptah, de maneira estranha - Quando o escândalo vinha a público os subornadores não eram punidos. Os médicos, habitualmente, eram encontrados no Tibre, algum tempo depois.

Keptah não pôde evitar um largo sorriso:

- O Tibre não me atrai como cemitério, senhor.

Diodoro deu um leve sorriso, sem alegria.

- Que as Fúrias te levem! Não entendeste. Preciso de um amigo. E tenho de recorrer a um liberto para isso! Não é irônico?

- E não encontraste amigos entre teus companheiros de armas e em tua própria categoria, senhor? Perguntou Keptah.

- Não. - Diodoro sentou-se e ficou a olhar para O riso de mármore entre suas pernas. - Vejo que respondeste a minha pergunta. Todavia, a fim de garantir tua presença em Roma com o pessoal de minha casa e manter-te fiel, triplicarei teu estipêndio e dar-te-ei uma casa em meus domínios.

- Não disse Keptah. - Não estou à venda, senhor. – Sua voz levantara-se, em dura frialdade. - Roma não te fez feliz, é o que vejo. Suplico-te que recordes de que confiaste implicitamente em mim antes que para cá voltasses, e que teu pai também confiava em mim, sentia-se profundamente ligado a mim, e que a Senhora Aurélia fazia-me confidências, e que jamais te desapontei, nem uma só vez na vida, a não ser quando pensei, apenas com espírito misericordioso, que a verdade te iria ferir. Posso ir-me, senhor?

- Não disse Diodoro. Olhava ainda para o chão. Não era apropriado para um romano desculpar-se diante de um homem de condição inferior à dele, mas Diodoro disse:

- Sinto muito.

Keptah ficou estupefato, e comovido. Tomou uma das mãos de Diodoro e beijou-a.

- Senhor, sabes quão profundamente eu venero Deus. Se te sentires consolado por confiar em mim, embora, por ti mesmo, eu prefiro que não o faças, eu juro, pelo Seu Muito Sagrado Nome, que jamais te trairei, que esquecerei instantaneamente a tua confidência.

Diodoro ficou a escutá-lo, sombriamente.

- Então devo contar-te a coisa vil que fiz, a coisa mentirosa, em Roma, não só porque és meu amigo, mas também porque estou confuso, e porque... - Parou e respirou profundamente, continuando depois: - Há um senador que é amigo de Carvílio Ulpiano, e só sua fortuna, sua impiedade e fama de vingativo cruel mantêm seu segredo conhecido apenas de Carvílio. Discuti certo assunto com meu cunhado, e então ele partilhou comigo o segredo do senador. Suspeito, a propósito, de que o senador tem certa ascendência sobre Carvílio, e que o arruinaria se este não se conservasse silencioso. Vê bem como eu me tornei desconfiado!

Keptah esperava, e Diodoro, lentamente, foi corando.

Fiz o que o senador fez. Ele amava uma escrava de seu pessoal doméstico, em uma de suas propriedades da Sicília. Libertou-a. Sua esposa era estéril, e ele divorciou-se. Então, recorreu a um genealogista, que inventou excelente linhagem para a liberta, com quem se casou com honra. E ela é uma das grandes prediletas de Roma, considerada como digna matrona.

Keptah franziu a testa:

- Compreendo, senhor. Procuraste algum genealogista e ele inventou uma distinta linhagem grega para Íris.

O homem sentia-se imensamente aliviado.

- Sim falou Diodoro, carrancudo.

Keptah sentiu o primeiro júbilo, em tantos meses. Depois, seu rosto fez-se sombrio:

- Esqueceste, senhor, de que todo o pessoal de tua casa sabe que Íris foi uma escrava? Como podes ter certeza que tantas pessoas deixarão de tagarelar?

- Naquela linhagem disse Diodoro, ignorando o comentário, eu mandei escrever que Íris foi roubada de sua distinta família de Cós, por negociantes de escravos que se sentiram atraídos por sua beleza infantil, e que só ultimamente foi descoberto quem ela era realmente. Seus pais morreram de desgosto e descobriu-se que haviam deixado sua fortuna para a filha raptada, uma fortuna bastante respeitável.

Keptah pesou tudo aquilo, criticamente:

- Bem, senhor, disse ele, finalmente. - Então não precisavas me ter confessado que essa linhagem era inventada. Por que fizeste isso?

Diodoro sacudiu lentamente a cabeça, de um lado para o outro.

- Era necessário que houvesse um homem para o qual eu não pudesse mentir ou não quisesse mentir. É estranho que tivesse de ser tu!

Preferi, por alguma estranha perversão, que conhecesses a verdade.

- E assim, enquanto esperavas confiar em mim, ainda me ameaçavas.

Diodoro levantou os olhos para ele, com alguma de sua antiga irritação.

- Para homem sábio.. tu és bastante obtuso! - Levantou-se, pôs-se a andar outra vez de cá para lá, dizendo: - Carvílio Ulpiano também sabe a verdade. Mas não falará nisso, nem mesmo com Cordélia, irmã de minha esposa morta. Por varias razões.

Parou de caminhar e falou, as costas voltadas para o médico, a voz muito baixa:

- Amei Íris desde nossa infância. Ela ainda poderá ter filhos. Não posso pensar em casamento com outra mulher, nem mesmo com uma mulher de qualquer das maiores famílias de Roma. Não conheces as mulheres romanas! Perderam toda a feminilidade. Metem-se em negócios! Tornaram-se homens, dissolutos e fraudulentos. Andam através de Roma em suas liteiras douradas, desacompanhadas, e podem repetir-te quais são os últimos preços das ações com a facilidade dos banqueiros! Muitas preferem não se casar, mas têm muitos amantes. Eis a degeneração em que Roma tombou. Não sujarei minha boca com a enumeração de seus hábitos abomináveis.

Cruzou apertadamente as mãos e continuou:

- Tenho tido muitos sonhos estranhos, nos quais a senhora Aurélia vem ter comigo sorrindo, não como uma sombra, tal nos ensinaram, mas em belo desabrochar da juventude, com amor em seus olhos e consolo em suas mãos. Tem insistido para que me case com Íris, a quem chamava "irmã". - Girou sobre os calcanhares para enfrentar Keptah, desafiando-o com seus olhos salientes. – Achas que sou supersticioso? Declararias, naquela tua forma oculta, como freqüentemente fizeste, que os sonhos não passam da realização de desejos secretos?

Keptah falou com seriedade:

- Creio, neste caso, que és supersticioso, que não estás tentando racionalizar um profundo desejo pelo qual te atormentas, sentindo-te culpado. Antes da Senhora Aurélia morrer, Íris veio vê-la. – E contou a Diodoro o que Aurélia dissera à liberta, com tanta urgência e com tanta esperança.

Enquanto Keptah falava, o rosto de Diodoro mudou e empalideceu. Tombou na cadeira. Depois, curvou a cabeça entre as mãos e gemeu. Keptah ficou alarmado, Esperava alívio e júbilo, mas Diodoro parecia impressionado até quase à morte.

- Então disse ele, em voz lamentosa não enganei minha pobre esposa! Ela sempre soube que eu lhe era infiel em meu coração, mas não soube quanto lutei contra aquilo, não soube quanto a amei.

O que ela deve ter suportado e quanta solidão e tristeza! Não era bastante que sua filha tivesse morrido. Não era bastante que expirasse ao dar-me um filho. Eu tinha de tomar-lhe o que é mais caro para uma mulher. E ela sofreu em silêncio, com devotamento e ternura.

- Estás errado, senhor! Exclamou Keptah, aproximando-se dele. - A Senhora Aurélia pode não ter sido uma mulher erudita e sofisticada. Mas compreendia tudo quanto devia ser compreendido. Era uma boa mulher.

Desejou, com certa selvageria e piedade, que Diodoro fosse menos complicado, menos inteligente e menos difícil, e que desse menos importância ao hábito de introspecção crítica. Inventaria culpas para si próprio, mesmo que não houvesse culpa alguma: deixou tombar das faces, fatigado, as mãos que as cobriam.

Seu rosto estava avermelhado pela pressão dos dedos, e, embora não tivesse chorado, seus olhos mostravam-se congestionados. E disse serenamente:

- Está tudo muito bem. Mas agora sei que jamais poderei me casar com Íris. Minha consciência não permitiria tal coisa. Nem a levarei comigo para Roma. A vida terminou.

 

Diodoro mandou chamar Íris naquela tarde.

Em seu caminho, acompanhada por uma escrava e com a criança, dirigiu-se a Aurélia, do fundo mesmo de seu coração: "Ele chamou-me, senhora. Sabes que nós nos amamos, e que jamais te fomos infiéis, pois também te amávamos. Posso ir ter com ele, agora, e dizer-lhe: "Onde estiveres tu, Caio, estarei eu, Caia." Minha amiga mais querida, nós te recordaremos com amor e com as mais preciosas lembranças. Se formos abençoados com filhos, daremos teu nome à primeira menina, ó tu, a mais bondosa das amigas.".

A alegria era tão explosiva que o rosto bonito irradiava luz. Tinha trançado os cabelos de ouro com fitas brancas, e sua estola fora cuidadosamente drapeada, as pontas encanudadas ondulando sobre o alto e alvo arqueado de seus pés. Ia radiante como uma jovem deusa, seu pescoço rosado pelo sangue que ali pulsava rapidamente. Precisava conter-se para não correr em seu entusiasmo.

Entrou sozinha na biblioteca, e o êxtase azul de seus olhos foi um relance de céu. Diodoro, de pé junto da mesa, sentiu a dominadora agonia do desespero do amor ao vê-la, e pensou que Afrodite, surgindo das águas, jamais apresentara tal aspecto de radiosa e perfeita beleza ao mundo atônito. Não se lembrava inteiramente da maravilha que eram os seus cabelos, da brancura de sua pele, da neve modelada de seus braços, da iridescência de seu corpo. Mas não era apenas a beleza que o estonteava; para ele, a mulher tinha certa emanação de divindade, envolvida em luz, intocada pela poluição humana. Usava sua maravilhosa beleza, tão simples e inocentemente quanto um lírio, e com idêntica pureza.

Ficou em pé ao lado da mesa, vestido com sua túnica de soldado, a armadura, a espada curta e larga metida no cinto. Seu elmo estava sobre a mesa, ao lado dele, e era evidente que sua partida de Antioquia fazia-se iminente. Havia nele um ar de pressa e brusquidão, um militarismo frio, algo de alheamento. E foi aquele ar que fez Íris parar de súbito à entrada da sala e impediu-a de tombar de joelhos diante dele, para beijar-lhe a mão. Uma forte sensação de desgraça assaltou-a, e o brilho desapareceu do rosto. Aquele homem cansado e mais magro, aquele homem altaneiro e formidável, não era o Diodoro que ela conhecera.

- Eu te saúdo, nobre senhor, murmurou ela, e a sensação de desgraça aprofundou-se. - Espero que tenhas tido agradável viagem.

- Entra, Íris disse ele, voltando para a mulher seu perfil de águia. E ela viu seu constrangimento de ferro. - Não te deterei por muito tempo. Disseram-me que deste cuidados ternos e maternais a meu filho, e que apenas o ouro não poderá pagar tais cuidados. Mas isso é tudo quanto tenho para te oferecer.

Íris olhou para ele, com um sorriso pungente.

- Tu nada me deves, senhor, disse ela, com voz fraca. – Foi uma alegria servir de mãe a teu filho, que parece um jovem Marte, e é muito brincalhão. - Calou-se e sua garganta e seu peito doíam penosamente.

Observando, desalentada, o rosto dele, sentiu uma pontada mais forte de ansiedade, e esqueceu de si própria. Diodoro estaria doente?

Por que aquela expressão de reprimida angustia, a aspereza pálida dos lábios, o amargo franzir da testa? E exclamou, com medo:

- Senhor, nem tudo corre bem para ti! Estiveste doente de febre em Roma? - Adiantou-se para ele, então, o coração trêmulo de amor e receio, e seus olhos azuis apegaram-se com força ao perfil do homem, observando-o. Diodoro não olhou para ela. Tinha as mãos sobre o elmo, os tendões salientes. Diodoro! Gritava a moça, intimamente. Querido de minha alma! Não sabes que eu daria alegremente minha vida por ti? Conta-me o que te perturba!

Diodoro continuava a não olhar para ela. Não ousava fazê-lo. Sentia a fragrância de sua carne, tépida, jovem e doce como uma flor. Sua mão agarrou-se ao elmo, num espasmo de aguda agonia.

E disse, como se ela não tivesse falado:

- Na última carta que te escrevi, Íris, perguntava-te se voltarias comigo para Roma quando eu deixasse para sempre este lugar maligno, a fim de tomar conta de meu filho. - Parou. A carne cinza-castanho em volta de seus olhos desviados enrubesceu. - Agora, porém, não peço isso, não posso pedir-te. Teu filho irá para Alexandria dentro de três semanas. Desejarás estar junto dele. Como um presente, e para demonstrar minha estima por ti, dou-te Cusa, que auxiliará os estudos de Lucano em Alexandria, e Calíope, que agora é esposa dele, como tua criada particular. Além disso, depositarei mil sestércios de ouro em teu nome, de modo que possas viver confortavelmente em uma casa pequena, próximo da universidade e a cada dezembro a mesma quantia te será entregue. Compreendo, naturalmente, que é uma pobre retribuição pelo que tu e teu filho fizestes por mim, mas é tudo quanto tenho.

O terror, a derrota, o assombro apoderaram-se de Íris, que ficou a olhar para Diodoro, incrédula.

- Estás me afastando de junto de ti, senhor... para sempre! - exclamou, apertando o peito com as mãos. - Para sempre, Diodoro?

Sou assim tão odiosa a teus olhos? - As lágrimas começaram a descer pelas faces alvas da moça.

- Estou apenas tentando ser justo disse Diodoro, em voz abafada. - Pensei que preferias ficar junto de teu filho. Compreendo que será duro para ti separar-te de Prisco, do qual tens sido a mãe, tal como a minha mãe o foi para ti. Mas a vida é toda uma separação. - Ouvira o tormento na voz dela, o incrédulo tormento e a descrença. - não deves pensar que sou ingrato.

Então voltou o rosto para ela, e esse rosto mudou.

- Achas que é fácil para mim? Perguntou, asperamente. - Apesar disso, tal é o meu desejo, pois não há alternativa.

- Então, de alguma forma imperdoável, eu te contrariei terrivelmente balbuciou Íris. Ele não mais me ama, pensou, com profundo e dominador desespero e despedaçamento. Encontrou alguma dama em Roma, com a qual se vai casar, e eu agora me faço inconveniente e constrangedora para ele. Esquecerá até mesmo que eu existo.

O sofrimento debilitava-a, e ela desejava deitar-se no chão e entrar em estado de insensibilidade piedosa, ou mesmo morrer. Uma aridez, como que de poeira na boca de um moribundo, ressecara seus lábios, sua língua, e o coração latejava-lhe com dor esmagadora.

Deixa que eu seja a mais humilde escrava de tua casa, implorava-lhe ela, em silêncio. Deixa que eu nem sequer seja vista por ti. Mas não me mandes para longe de ti, em nome de todos os deuses! Será bastante estar sob o mesmo teto que te cobre, ter um relance de tua presença, bem de longe, ouvir o eco de tua voz. Como poderei viver de outra maneira?

- Íris disse ele, e depois parou. Não podia mudar de idéia.

Não ousava mais ver a jovem. Pensava em Aurélia, e parecia-lhe que a morta olhava severamente para ele, exigindo aquele terrível sacrifício para revelar sua culpa.

Colocou o elmo na cabeça. Não podia olhar de novo para Íris, pois seus braços sentiam-se destituídos de poder, vazios, e ele sabia que devia fugir daquele aposento, se quisesse se salvar.

- Deves querer preparar-te para a viagem com teu filho disse ele, olhando cegamente para o chão. - Íris. Nunca mais nos veremos.

Dei ordem para que meu filho voltasse para esta casa amanhã pela manhã com a sua ama. - Fez uma pausa, e concluiu: - Íris, eu te desejo todas as bênçãos dos deuses e toda a felicidade.

Ela estendeu as mãos trêmulas para uma cadeira, sentou-se, deixou que a cabeça caísse sobre o peito, os braços tombados. Depois começou a falar, em voz baixa, porém muito clara:

- Senhor, nada posso receber de ti. O que fiz, se teve alguma importância, foi por amor... por amor... de Aurélia e da criança.

Receber de ti o menor dos presentes seria insultá-los. E insultar-me.

Diodoro começou a caminhar em direção à porta. Foi tomado, então, por tremenda desolação, pelo desgosto, e por um desejo ardente. Parou, de costas para ela.

- Apesar disso falou, a voz velada sou um romano, e devo de alguma forma expressar minha gratidão.

Íris ergueu a cabeça e olhou para ele como para um igual que tivesse ofendido imperdoavelmente. Diodoro sentiu a força da mulher e, involuntariamente, voltou-se sobre os calcanhares e encarou-a. Íris parecia uma nobre estátua, ali sentada, a estola branca tombando sobre o peito e sobre as coxas perfeitas, e pousando sobre o alto arqueado de seus pés. Estava pálida como o mármore. Envolviam-na dignidade e orgulho, enquanto seus lábios esmaecidos curvaram-se, escarnecedores.

- Diodoro, disse ela, e sua voz era forte e colérica. - Há algo que te preciso dizer. Não sou uma simples criada para ser despedida e mandada embora. Mantive um segredo durante longo tempo, porque esse era o desejo de tua mãe, a Senhora Antônia. Ela pensava que tal coisa te ofenderia profundamente... como a um romano! Entretanto, deu-me permissão para contar-te este segredo quando eu o julgasse necessário, e agora acho que é necessário. Depois que teu pai morreu, ela adotou-me legalmente, mas em segredo, como sua filha. O pretor assim o registrou, em Roma, antes que voltasses de Jerusalém. E em Roma há muito dinheiro a minha espera, que eu ainda não usei. Meu marido nunca soube disso. Ficas a olhar para mim, como se eu estivesse mentindo! Basta que visites o pretor de Roma!

Levantou-se, lenta e graciosamente, e era como uma estátua de uma deusa, esculpida por Escopas[71]. Enchia a biblioteca com luz e com um solene poder.

- Não imagines falou, amargamente que eu jamais divulgue isso, seja diante de quem for, para tua humilhação! Não serei uma intrusa a teu lado, em Roma, ou seja onde for, exigindo que me reconheças como tua irmã. Jamais direi: "O nobre tribuno Diodoro é meu irmão adotivo", pois conheço teu orgulho terrível! Tua mãe amava-me, tão carinhosamente como a uma filha. Embora não o saibas, ela não desejava que eu me casasse com o pobre Enéias. Mas eu te conhecia, Diodoro! Sabia que me amavas, então, e sempre me havias amado.

Sabia também que, como romano, jamais pensaria em te casar comigo, uma antiga escrava. A fim de terminar para sempre com o teu desejo, tuas lutas Íntimas, casei-me com Enéias. Eu teria consentido, antes daquela adoção, em ser tua amante, em ser a mais baixa, em carregar lenha para teu banho. Mas passei a ser filha da tua mãe, e não podia ofender-lhe a memória.

Diodoro voltou cambaleante para a mesa, retirou o elmo, depois ficou a olhar para ela. Sentia-se abatido de vergonha. Umedeceu os lábios, tentou falar, conservou-se silencioso. Tossiu, uma tosse seca, e passou a mão pela testa.

- Deixe-me falar disse ele, quase inaudivelmente e então nos separaremos. - Continuou a fixar os olhos no elmo, enquanto falava. - Sabes o que sofro? Sabes quanto te amo, e sempre te amei? Sabes que apenas a tua lembrança sustentou-me enquanto levei as cinzas de minha filha e de minha esposa para Roma? Sabes que nas noites mais escuras eu tinha o brilho da visão de teu rosto? - Parou, tornou a tossir: - Mas soube que Aurélia teve conhecimento da minha paixão por ti. Penso no que ela deve ter sofrido por isso. Tornei-me culpado diante dela. Devo penitenciar-me.

- Oh! Exclamou ela, chorando outra vez, o rosto como o sol sob a chuva. - Ó tu, louco romano, tu, querido, tu bem-amado louco! Aurélia sabia, naturalmente. Soube desde o momento em que entrou em tua casa. Nós te amávamos juntas, e ela sentia-se contente, pois era uma senhora de senso e não um homem de cabeça estúpida! Nem uma só vez sentiu-se perturbada. Eras o marido dela, e eras homem de honra. Tua alma é tão pequena que ousas insultar a grande e bondosa alma de Aurélia, minha amiga? Quando começou a gerar teu filho teve o pressentimento da morte e confiou em mim. Antes de morrer pediu-me que permanecesse a teu lado para sempre, que te consolasse, que te desse felicidade. Ainda assim tu agora a insultas!

Estava colérica, outra vez. Deu duas ou três passadas em direção à porta. E Diodoro disse:

- Espera... meu amor. Tenho algo pior a dizer-te. Enquanto estava em Roma inventei uma linhagem falsa para ti, a fim de poder casar-me contigo e com a honra.

Ela parou e olhou para o homem com olhos muito abertos, depois com ternura, a seguir com um sorriso, e logo após com um súbito espocar de risos divertidos. Correu para a porta e chamou a ama-de-leite que esperava lá fora.

- Traze aqui a criança! Exclamou. E quando o menino lhe foi entregue ela o tomou nos braços e o pequenino pôs-se a exultar e a esfregar o narizinho no rosto dela.

- Teu filho, disse ela a Diodoro. - O filho que negligenciaste e que mal querias ver, porque o acreditavas culpado da morte da mãe. O menino querido, que se parece tanto contigo quanto com Aurélia. Olha para ele! Não te conhece, romano orgulhoso.

Então, meteu a criança nos braços paternos e atirou a cabeça para trás, rindo-se como uma menina. Prisco deixou escapar alguns gritinhos de contentamento e agarrou-se ao cabelo de Diodoro. O tribuno olhou para Íris, e toda a sua alma liberta estava em seus olhos com todo o seu amor. Não disse Íris, fazendo uma covinha no rosto rosado. – É a ele que deves beijar primeiro!

 

 

[1] Diante do altar dos deuses, ou antes de tomar alguma bebida – especialmente vinho -, os povos da Antiguidade costumavam derramar algumas gotas do líquido , previamente, em honra das suas deidades. O vinho era considerado o “sangue da uva”, por isso mais usado do que o leite, o mel e o azeite, que também tinham os seus usos nos sacrifícios (N. do T.)

[2] Magistrado encarregado de defender os interesses do povo, na antiga Roma (N. do T.)

[3] Magistrado religioso, instituído por Augusto, primeiro em Roma, depois em todo o Império.

[4] Membros das velhas famílias predominantes de cidadãos da antiga Roma.

[5] Lúcio Quinto Cincinato, senador romano, cônsul, depois por duas vezes ditador, que deixou um nome proverbial pela austera simplicidade que usou no poder. (N. do T.)

[6] Poeta grego do século IX, considerado o autor da Ilíada e da Odisséia, os mais célebres poemas de sua língua.

[7] Ilustre filósofo grego, mestre de Platão, igualmente célebre, que em seus Diálogos expôs toda filosofia de Sócrates, pois este último nada deixara escrito. Também as obras de Xenofonte divulgam as idéias de Sócrates, que, acusado de impiedade pelos seus concidadãos, foi condenado ao suicídio , através da cicuta. Morreu com a mesma digna altivez com que vivera. É considerado o criador da ciência moral (468-400 ou 399 a.C.). (N. do T.)

[8] Festas romanas em honra de Saturno, que de início constavam de regozijos públicos, nos quais os escravos podiam vestir-se como os senhores e censurarem-nos pelas suas faltas. Com o decorrer do tempo tais festas transformaram-se, tanto em duração como em caráter, passando mesmo a constituir orgias coletivas. (N. do T.).

[9] Lugar para onde iam os mortos, na mitologia grega. Deus do Inferno

[10] Mensageiro dos deuses, deus ele mesmo da eloqüência e do comércio. (N. do T.)

[11] Júpiter, deus maior do politeísmo antigo. Dizem que, se apaixonando por Europa, filha de Agnor, rei da Fenícia, transformou-se em touro para a roubar, atravessou o mar com ela sobre o dorso e trouxe-a para a parte do mundo que tomou o nome da donzela raptada. Os gregos davam-lhe o nome de Zeus. Jove é uma outra forma de seu nome. (N do T)

[12] Na mitologia romana era esse o nome dado a Hera dos gregos, filha de Cronos (Saturno) e ela, a esposa e irmã de júpiter, ou Zeus. (N do T)

[13] Nome latino do deus da Medicina, Asclépio, filho de Apolo.

[14] Deus da Guerra.

[15] Capuz (em latim no original). (N. do T.)

[16] Filósofo helenístico de origem judaica, nascido em Alexandria, no ano 20 a.C., que viveu até o ano 54 da nossa era.

[17] Filósofo grego, nascido em Estagiros, chamado, por isso, o Estagirista. Exerceu grande influência no pensamento europeu durante a Idade Média (354 a.C. - 322 a.C). (Notas do Tradutor.)

[18] Senhor, Soberano, Mestre, nome dado a Deus pelos judeus. (N. do T.)

[19] Família ou corporação de médicos gregos, que pretendem descender de Asclénio.

[20] Também chamada Ártemis, pelos gregos, filha de júpiter e de Latona, obteve de seu pai a graça de jamais se casar e foi feita rainha dos bosques. Sua ocupação principal era a caça. (Notas do Tradutor)

[21] Expressão grega que se referia ao sacrifício (homenagem) feito aos deuses, para atrair-lhes os favores ou agradecer-lhes uma graça concedida, sacrifício feito, solenemente, com cem bois, ou, por extensão, cem animais quaisquer. Figuradamente, usamos a expressão para nos referirmos à morte de um grande número de pessoas. (N. do T)

[22] Esta Estrela foi vista em todo o mundo conhecido. (N. do T.)

[23] Fundadores lendários de Roma, irmãos alimentados por uma loba. Rômulo assassinou o irmão e reinou, segundo a tradição, entre 753 e 715 a.C. Era detestado pela aristocracia e desapareceu, arrebatado por um temporal, durante uma revista às suas tropas, conforme diz a lenda. (N. do T.)

[24] Polux, irmão de Castor, e citados sempre untos como os dióscoros, eram heróis mitológicos, Filhos de Júpiter e Leda, transportados para o céu, ali se tornaram a constelação dos Gêmeos.

[25] Rei dos Infernos e deus dos mortos, filho de Saturno e de Réia, esposo de Proserpina. É o Hades grego.

[26] Moeda de prata dos antigos romanos, o grande sestércio, valia 1.000 sestércios comuns. (Notas do Tradutor)

[27] Uma das sete colinas da Roma antiga, na qual, segundo a tradição, as primeiras construções se ergueram. Ali os imperadores tiveram sua residência. (N. do T)

[28] Caçador que, tendo surpreendido Diana no banho, irritou-a a ponto de a deusa transformá-lo em cervo, fazendo-o estraçalhar pelos seus cães. (N. do T.)

[29] As almas dos justos vivem, depois da morte, segundo a mitologia greco-romana, num lugar privilegiado, os Campos Elíseos. (N do T)

[30] Por uma interpretação falsa, a palavra epicuriano é usada para tendências ou prazeres sensuais. Epicuro, o célebre filósofo grego (341-270 a.C.), ensinava que os homens devem procurar o prazer, que é o grande bem da vida, mas com isso não se referia aos prazeres grosseiros e sim à cultura do espírito e à prática das virtudes. (N. do T.)

[31] Hebe, deusa da juventude, filha de Júpiter e de Juno. Foi a esposa de Hércules, o Héracles grego, semideus da mitologia latina que, em conseqüência dos seus conhecidos doze trabalhos, tornou-se o símbolo da força e da coragem. A referência, aqui, é o fato de ser Hebe a encarregada de servir aos deuses o néctar olímpico (N. do T)

[32] Mateus 2:1. (N. do T.)

[33] Cathay (no original), ou Cataio, como usam os portugueses, é a designação antiga da China. (N. do T.)

[34] Divindade da religião fenícia. (N. do T)

[35] Divindade fenícia, jovem de imensa beleza, mortalmente ferido por um javali. Vênus transformou-o em anêmona. Seu nome transformou-se o símbolo da beleza efeminada.

[36] era o vestuário habitual do romano. Os rapazes até os 17 anos usavam a toga branca, debruada com uma barra de cor roxa, chamada toga praetexta. Daí por diante passavam a usar a toga dos adultos, isto é, a toga rilis. (Notas do Tradutor.)

[37] considerado o maior médico da Antiguidade, nascido mais ou menos em 460 a.C. (N do T)

[38] Filha de Saturno e Cibele, deusa latina da agricultura. (N. do T)

[39] Relógio de água dos antigos. (N. do T)

[40] Feixe de varas, amarradas por uma correia, em volta de um machado, cujo ferro surgia na parte de Cima. Fasces ou fascies, que eram levados, na Roma antiga, pelos lictores, homens que precediam sempre os ditadores, cônsules, e outros altos dignitários, quando se apresentavam em público, deram origem à palavra Fascismo. (N. do T)

[41] O Marte da mitologia grega. (N. do T)

[42] Um dos deuses da religião dos persas, deus da luz.

[43] Monstro metade homem metade touro, que vivia em Creta e foi morto por Teseu.

[44] Coribanses eram sacerdotes da deusa Cibele (filha do Céu, deusa da Terra e dos animais, esposa de Saturno, mãe de Júpiter, Netuno, Platão) que dançavam e tocavam nas festas daquela deusa. Diziam-se os inventores dos tambores. As bacantes eram sacerdotisas que nas festas de Baco (deus romano do vinho, filho de Jupiter, O Dionísio dos gregos) celebravam os mistérios, e dançavam, aos gritos, a cabeça coroada de hera. Tais mistérios as celebradas bacanais acabaram por causar escândalo e foram proibidos pelo Senado. (Notas do Tradutor)

[45] Vândalos eram um antigo povo germânico, que invadiu a Gália, depois a Espanha e a África. Eram terríveis, onde quer que passassem, daí ter ficado a expressão, até hoje, para designar depredadores de monumentos, árvores etc. (N. do T)

[46] Lúcio Sérgio Catilina, patrício romano (109-62 a.C.). Conspirou contra o Senado, sendo denunciado por Cícero (Marco Túlio Cícero), o mais eloqüente dos oradores romanos. Catilina morreu em Pistóia, de armas na mão, e seus cúmplices foram executados, através da insistência de Cícero que, por sua vez, morreu assassinado a mando do Imperador Marco Antonio e sua esposa Fúlvia, que ele atacara tremendamente em suas Filípicas. A expressão "catilinária", usada para expressar violenta censura, vem dos discursos de acusação feitos por Cícero contra Catilina.

[47] Dá-se esse nome a certos vasos que eram altamente apreciados outrora, e feitos de murra, material que não nos é muito conhecido. Custavam verdadeiras fortunas. (Notas do Tradutor.)

[48] Escultor grego célebre (390 a.C.) (N do T)

[49] Deusa grega da beleza, tal como Vênus com quem ela se identifica o era na mitologia latina.

[50] Eurídice era a esposa de Orfeu, músico divinal, que amansava as próprias feras com o som de seus instrumentos. Tendo Eurídice sido picada por uma serpente no dia de seu casamento, Orfeu desceu ao Inferno e conseguiu abrandar as divindades infernais, que consentiram em lhe restituir a esposa, com a condição de que a levasse, precedendo-a, e sem olhar para trás. Orfeu não resistiu e voltou-se para ver Eurídice, perdendo-a, então, definitivamente. Tornou-se presa de grande dor e abatimento, terminando por ser dilacerado pelas bacantes.

[51] Relativo ao céu dos deuses, o Olimpo. (N. do T.)

[52] A este nome correspondem duas divindades muito diversas: a infernal, de três cabeças, identificada com Perséfona, rainha dos Infernos, a Proserpina dos romanos; e a divindade lunar, identificada com Artemisa, ou Diana.

[53] Ultimo rei da Lídia, célebre pelas suas riquezas, que vinham do rio Pactolo, de areias auríferas (563-54S AC.). (N. do T.)

[54] Musa da poesia épica e da eloqüência. (N do T)

[55] Em grego, Cárites, divindades pagãs que eram a expressão do que havia de mais sedutor em beleza. Eram três: Aglaia, Tália e Eufrosina. (N. do T)

[56] Uma das três Cérgonas (monstros da fábula: Medusa, Euríade e Estênio) que tinham poder de transformar em pedra todos os que as olhassem, poder ainda mais forte em Medusa, que é representada com uma cabeleira feita de serpentes. (N. do T.)

[57] Filósofo cita, do sexto século a.C., que viveu em Atenas.

[58] Filósofo grego, que morreu no ano 428 a.C. (N. do T.)

[59] Diálogo de Platão, tratando da imortalidade da alma.

[60] Rio dos infernos, cujo nome significa esquecimento. As sombras bebiam-lhe as águas para esquecer. (Notas do tradutor.) 

[61] Nome grego de Ulisses, lendário rei de Ítaca, um dos principais heróis do cerco de Tróia, cantado por Homero na Ilíada. Sua volta ao lar é o objeto da Odisséia, o outro célebre poema homérico. (N. do T)

[62] Matemático ilustre, nascido em Siracusa. 287 a.C.

[63] Referência à chamada Hidra de Lema, que, segundo a fábula, era uma serpente monstruosa, com sete cabeças que renasciam à proporção que eram cortadas. Um dos doze trabalhos de Hércules foi a destruição desse monstro.

[64] O mais célebre dos poetas latinos (71-19 a.C).

[65] Rei de Epiro, nascido mais ou menos em 318 a.C. e célebre pelo seu combate aos romanos. Teve algumas vitórias, mas tão caro lhe custaram que ele próprio respondeu a um dos generais que o felicitavam: "Mais uma dessas vitórias, e estou perdido." Daí a expressão usada. (Notas do Tradutor)

[66] Pássaro fabuloso, que viveu durante vários séculos nos desertos da Arábia, deixando-se queimar numa pira e renascendo das próprias cinzas. Era o único de sua espécie. (N. do T.)

[67] Rio do Inferno, ao qual se dava a volta sete vezes. Suas águas tornavam invulnerável quem nelas mergulhasse e quando os deuses juravam por ele tal juramento tornava-se irrevogável. (N. do T.)

[68] Historiador grego, chamado o Pai da História (484-425 a.C.).

[69] Barqueiro do Inferno que atravessava em sua barca as almas dos mortos, desde que lhe dessem um óbolo. Por isso havia o hábito de colocar uma moeda na boca dos defuntos antes de amortalhá-los. (Notas do Tradutor.)

[70] Gênio do fogo, que aparece na mitologia como o iniciador da primeira civilização humana. Formou o homem com o barro e, para dar-lhe vida, roubou o fogo do céu. Teve como punição ficar acorrentado no alto do Cáucaso, onde um abutre lhe devorava continuamente o fígado. Hércules libertou-o. (N. do T.)

[71] Escultor grego, nascido em Paros (420-350 a.C.). (N. do T.)

 

                                                                                 CONTINUA  

 

                      

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