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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MEU AMOR PIRATA / Barbara Cartland
MEU AMOR PIRATA / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MEU AMOR PIRATA

 

Em 1796, os nativos da ilha de Granada, juravam que sua ilha ensolarada era habitada também por fadas e deuses da Natureza, tal a beleza da vegetação, dos rios e cascatas cristalinas. Mas havia os terríveis piratas, que aproveitavam as baías e praias desertas da ilha como esconderijos. Um desses piratas era Beaufort, o mais belo aventureiro dos mares daquela região. Pois foi justamente em seu navio que Mildred procurou abrigo, fugindo de um casamento com o cruel e desumano Maigrin, o noivo imposto por seu pai. E Beaufort, um homem temido e arrogante, recebeu-a com beijos e protegeu-a com seus braços!

 

 

1795

Mildred subiu a escada depressa e ficou à escuta no patamar.

A casa estava escura; mas não era a escuridão que a amedrontava.

Estava assustada com as vozes que vinham da sala de jantar e também com a atmosfera que ela sentia tensa, malignas.

No último mês tinha esperado, ansiosa, a hora de chegar a Granada, desejando que tudo voltasse a ser como a três anos, quando partira de lá.

Mas, ao chegar àquelas ilhas verdejantes que pareciam esmeraldas incrustadas num mar azul, tudo começou a dar errado.

Quando o pai dissera que ia levá-la de volta ao lar, tinha achado que ia ser tão feliz como antes, no lugar que sempre lhe parecera uma ilha encantada.

Na imaginação de Mildred, Granada não era habitada somente por pessoas sorridentes, mas também por deuses e deusas que viviam no topo das montanhas, e por fadas e gnomos que se moviam rapidamente por entre as moscadeiras e os coqueiros, mal podendo ser vislumbrados.

Após vencerem as tempestades do Atlântico, Mildred falara ao pai, deixando transparecer toda sua emoção:

- Vai ser fascinante voltar para a Enseada Secreta!

O mar límpido e tranquilo brilhava ao sol. Os marinheiros cantavam, quando subiam nos mastros, canções que recordavam a acabar o inverno. E o frio que a faz tossir a sentir-se tão mal. Mas a condessa insistiu. Achando justo que o pai soubesse o quanto a mãe estava doente, Mildred lhe escreveu.

Sabia que levaria tempo a receber resposta, pois durante todos aqueles anos o pai escrevia raramente.

Algumas cartas se perdiam, mas chegavam outras, cheias de noticias sobre a fazenda, a casa, os preços que ele obtivera pela noz-moscada, ou pelo cacau, e se a safra de bananas tinha sido boa.

Em outras ocasiões, após vários meses, a carta não passava de rabiscos, escritos por mão sem firmeza.

Quando chegavam estas cartas, a jovem percebia, pela expressão contraída dos lábios da mãe, que elas fizeram bem em voltar para a Inglaterra.

Sabia que, se tivessem ficado lá, as cenas e as reclamações sobre os excessos do pai na bebida se repetiriam, assim como as mesmas desculpas, e o perdão da mãe ao ouvir promessas que nunca seriam cumpridas.

Certa vez, Mildred disse à mãe:

- Se estamos gastando o seu dinheiro, mamãe, aqui na Inglaterra, como é que papai se arranja, lá em casa?

Por um momento, achou que a condessa não ia responder.

Depois, ela disse:

- O pouco dinheiro que tenho está sendo gasto com você, minha filha. Seu pai precisa aprender a se virar sozinho. A melhor coisa que pode acontecer é ele depender de si próprio e não de mim.

Mildred nada disse, mas achava que seu pai sempre encontraria alguém em quem pudesse se apoiar. Se não fosse a esposa, seria um dos amigos com quem bebia e jogava.

Por pior que fosse o seu comportamento, por mais que a condessa se queixasse da atitude do marido para com ela, e apesar de não cuidar adequadamente da propriedade, o conde tinha um encanto irlandês que todos achavam irresistível.

Quando ele não bebia, Mildred achava que era mais divertido e mais interessante do que qualquer outra pessoa.

Seu riso era contagioso; ele tornava interessante qualquer história ou anedota que contasse.

Quando ela era pequena, um dos amigos do conde lhe disse:

- Dê a seu pai uma caixa de madeira e duas batatas e ele fará com que você acredite 'que se trata de uma carruagem com dois cavalos que a levarão ao palácio de um rei!

Mildred jamais se esqueceu disso.

E era verdade.

Seu pai achava a vida uma aventura excitante, e jamais a levou a sério, e os que se viam em sua companhia chegavam a pensar da mesma maneira.

Mas agora Mildred sabia que os três anos de separação o tinham modificado.

Ele ainda ria, ainda emprestava às histórias que contava uma qualidade mágica que as tornava irresistíveis. Mas, durante toda a viagem através do Atlântico, ela percebeu que seu pai lhe escondia alguma coisa. Só ao chegarem a Granada, Mildred soube do que se tratava.

Depois da trágica morte da mãe, ela achou que o pai iria querer viver em sua companhia e que, juntos, iriam ter um lar feliz.

Os pianos do conde, entretanto, eram incrivelmente diferentes. Desejava casar a filha com um homem que ela não suportava a que fora desprezado pela mãe de Mildred.

O navio no qual viajavam deveria ancorar em St. George, mas, conforme o hábito no Caribe, afastou-se um pouco de seu curso para que o conde desembarcasse onde queria.

A fazenda de Roderick Maigrin ficava na freguesia contígua a St. George, a qual os ingleses tinham dado o nome de St. David.

Essa freguesia ficava ao sul da ilha e era a única sem nenhuma cidade, numa região onde a natureza era privilegiada.

Em Westerhall Point, que era uma pequena península, Roderick Maigrin tinha construído uma casa grande e pretensiosa, digna de seu dono. Mildred intuitivamente a detestou.

Não se lembrava de tê-la visitado em criança. Agora, quando iam para terra no barco que Maigrin mandara para apanhá-los, ela teve a horrível impressão de que estava entrando numa prisão.

Seria impossível escapar. Sentia que não seria mais ela mesma e sim escrava do homem grande, de rosto vermelho, que os esperava.

- Prazer em vê-lo de volta, Kilkerry! - gritou Maigrin, exageradamente dando uma pancadinha nas costas do conde.

Estendeu a mão Para Mildred. Quando viu a expressão dos olhos dele, a moça teve que fazer um esforço tremendo Para não virar as costas e correr em direção ao navio.

Roderick Maigrin levou-os Para dentro de casa, onde um criado já estava preparando ponches de rum, servido em copos altos.

Quando o conde ergueu o copo, havia um estranho brilho em seus olhos.

- Esperei por este momento, desde que saí da Inglaterra - disse ele.

Roderick Maigrin riu.

- Foi o que pensei. Então beba! Há mais, quando tiver vontade, e quero beber à saúde da Linda moça que você trouxe para cá.

Ergueu o copo, ao dizer isto. Mildred achou que os olhos injetados de sangue a fitavam com expressão devassa, como se Maigrin a despisse mentalmente.

Ela o detestou tão violentamente, que achou que seria impossível ficar com ele no mesmo aposento, sem lhe dizer isso.

Deu a desculpa de que desejava ir para o quarto e.saiu. Quando uma criada a chamou para o jantar, ela fez um esforço para lavar-se e trocar de roupa. Depois desceu, achando que deveria comportar-se como sua mãe o desejaria, isto e, com dignidade.

Conforme esperava, notou que seu pai já havia bebido muito, o mesmo tendo acontecido com o dono da casa.

Mildred percebeu que os ponches de rum não eram apenas muito fortes, como tinham um efeito cumulativo.

No fim do jantar, nenhum dos homens se esforçou para fingir que comia. Apenas bebiam, fazendo brindes um ao outro, e também a ela, tornando claro que o casamento da jovem com Maigrin deveria se realizar o mais depressa possível.

Mildred achou ofensivo que Roderick Maigrin nem mesmo se desse ao trabalho de pedi-la em casamento, como se isto fosse assunto encerrado.

Em Londres, ela aprendera que uma filha não devia discutir as decisões dos Pais, quando se tratava de lhe arranjar um marido.

A principio, ficou admirada por seu pai achar que um homem grosseiro, idoso, bêbado, como Roderick Maigrin, fosse um partido aceitável para ela.

Depois, as coisas que eles diziam um ao outro, assim como as insinuações de Maigrin, fizeram com que ela tivesse certeza de que aquele homem estava pagando ao conde pelo privilégio de casar com sua filha. E o pai parecia satisfeito com o arranjo.

Um prato se sucedia ao outro. Mildred estava horrorizada, e não ousava falar nada, apenas ouvindo os dois homens que a tratavam como se posse uma marionete sem sentimentos, sem sensibilidade e, principalmente, sem opinião própria.

Teria que casar, com ou sem vontade. Seria a propriedade de um homem que ela detestava, ficando na situação dos escravos que viviam e respiravam apenas porque Maigrin o permitia.

Mildred odiou tudo o que ele disse, assim como sua maneira de falar.

- Alguma novidade, enquanto estive fora? - perguntou o conde a Maigrin.

- Aquele maldito pirata Will Wilken apareceu aqui, certa noite, levou seis dos meus melhores porcos e doze perus. E ainda cortou o pescoço do rapaz que tentou impedir o roubo.

- O empregado foi corajoso, tentando enfrentá-lo - observou o conde.

- Foi um idiota, isto sim, tentando brigar com Wilken, sozinho - replicou o dono da casa.

- Mais alguma coisa?

- Há por aí um outro pirata amaldiçoado, um francês chamado Beaufort. Se eu o vir, meto-lhe uma bala na cabeça.

Quando o jantar terminou e os criados colocaram várias garrafas cheias de vinho na mesa, se retirando, Mildred achou que também podia escapar.

Tinha certeza de que seu pai não se achava em condições de notar se ela estava ou não presente. E Maigrin, bebendo em companhia de seu hóspede, não teria oportunidade de segui-la.

Esperou até ter certeza de que os dois tinham esquecido de sua existência. Sem uma palavra, saiu apressadamente da sala, fechando a porta.

Foi para o quarto, o único lugar onde poderia ter um pouco de paz, e ficou imaginando o que poderia fazer.

Procurou, desesperadamente, lembrar-se de alguém a quem pudesse recorrer, na ilha.

Depois, compreendeu que, mesmo que houvesse alguém disposto a ajudá-la, seu pai iria buscá-la sem que ninguém pudesse fazer o mínimo gesto de protesto.

Enquanto estava no patamar, imaginando o que poderia fazer, ouviu a risada de Roderick Maigrin, que soou como o derradeiro horror que atingiu sua consciência, fazendo com que ela compreendesse como era grande o seu desamparo.

Sentiu que não era apenas a risada de um homem que tinha bebido muito, como também a de alguém satisfeito com seu quinhão, um homem que conseguiu o que desejara.

Depois, como se alguém lhe tivesse explicado por meio de palavras, Mildred soube a resposta.

Maigrin a queria não apenas, porque ela era bonita, conforme percebera no olhar dele, mas também porque era filha de um conde, e um titulo de nobreza era importante até mesmo numa comunidade pequena, como a de Granada.

Era esta a razão, pensou Mildred, o que fizera com que a principio Maigrin se sentisse atraído pelo conde; não era apenas o facto de serem vizinhos, mas porque ele queria ser amigo do homem que era recebido, consultado e respeitado pelo governador e por todas as pessoas de influência.

Mas a condessa tinha tornado claro que não gostava de Roderick Maigrin, não tanto por causa de sua educação, mas pelo seu comportamento.

- Esse homem é grosseiro e vulgar - dissera ela ao marido certa vez. - E não o quero aqui em casa.

- É um vizinho - replicara o conde, despreocupadamente. - E não temos tantos assim, para nos mostrarmos "exigentes".

- Pretendo saber o que você chama de "exigente", quando se trata de amizades - retrucou a condessa. - Temos vários outros amigos e nenhum deles quer saber de Roderick Maigrin.

O pai tinha argumentado, mas a condessa fora inflexível.

- Não gosto dele e nem tenho confiança nele. Mais ainda: diga você o que disser, acredito nas histórias dos maus-tratos que ele inflige aos escravos, de modo que não o quero aqui em casa.

A condessa tinha vencido no sentido em que Maigrin não apareceu mais na Enseada Secreta, mas Mildred sabia que o pai o visitava e que bebiam juntos em outras partes da ilha.

Agora que a mãe tinha morrido, o pai queria que ela casasse com um homem que representava tudo o que a jovem detestava e desprezava.

- Que posso fazer? - murmurou.

A pergunta se repetiu em sua mente. Quando entrou no quarto e fechou a porta, Mildred teve a impressão de que o próprio ar que entrava pela janela perguntava a mesma coisa.

Não acendeu as velas que estavam na penteadeira e foi para a janela, ficando a olhar o céu estrelado.

O luar iluminava as palmeiras que se moviam pela aragem vinda do mar.

A brisa diminuíra com o cair da noite, mas sempre havia uma aragem que aliviava o calor pesado, húmido, que durante o dia era insuportável.

Mildred sentiu o perfume de noz-moscada, de canela e de cravo.

Talvez fosse imaginação sua, mas esses perfumes faziam parte de suas lembranças, a ponto de ela achar que as especiarias da ilha a chamavam e lhe davam as boas-vindas, agora que tinha chegado ao lar.

Mas, que espécie de lar?

Havia apenas Roderick Maigrin e um terror tão grande que Mildred achou que seria presença daquele homem!

Não soube quanto tempo ficou à janela.

Sabia apenas que, no momento, os anos que ela passara na Inglaterra tinham desaparecido, nunca tinham existido. Ela agora fazia parte da ilha outra vez, como acontecera durante tantos anos de sua vida.

Não se tratava apenas da magia da floresta tropical, das samambaias gigantes, dos cipós e do cacau, como também da história de sua vida. Um mundo de piratas a bucaneiros, de tufões e de erupções vulcânicas, de combates em terra e mar entre franceses e ingleses.

Era tudo tão familiar que fazia parte dela, e a educação que recebera na Inglaterra pareceu dissolver-se no calor da atmosfera.

Ela não era mais lady Mildred O'Kerry e sim um dos espíritos de Granada, parecendo fazer parte das flores, das especiarias, das palmeiras, assim como das ondas do mar, cujo ruído ela podia ouvir ao longe.

- Socorro! Socorro! - falou baixinho Mildred.

Dirigia estas palavras à ilha, como se toda a Natureza pudesse sentir seu dilema a ajudá-la.

 

Muito tempo depois, Mildred despiu-se lentamente e deitou-se.

Enquanto ficara à janela, a casa estivera silenciosa.

Pensou que, se seu pai tivesse subido a escada, cambaleante, ela teria ouvido seus passos.

Mas não se preocupava tanto com ele. Só podia pensar em si mesma. Mesmo após fechar os olhos para tentar dormir, rezou com uma intensidade que envolveu seu corpo e sua alma num desesperado pedido de socorro.

Acordou, sobressaltada, com um ruído que ela mal sentiu do que ouviu.

Recobrou a consciência e ficou à escuta. Depois ouviu um novo ruído e por um momento pensou que alguém estivesse à porta do quarto. Teve medo do que pudesse ser...

Percebeu que o som vinha de fora. Ouviu um assobio, e de seguida o seu nome.

Ainda meio adormecida, Mildred saiu da cama e foi até à janela que havia deixado aberta.

Olhou para fora e distinguiu a figura de Abe, lá embaixo.

Abe era o criado do conde, que o acompanhara a Inglaterra.

.A jovem o conhecera a vida inteira. Abe tinha cuidado da casa, no tempo da condessa. Era quem cuidava dos empregados, treinando-os e mantendo-os na linha.

Quando Mildred chegara à ilha, fora Abe quem primeiro a levara a passear de barco, ajudara-a a carregar as lagostas que apanharam na enseada, enquanto procuravam as ostras que o conde preferia a qualquer outro tipo de frutos do mar.

Foi Abe quem a levara montada no pônei, quando era pequena demais para caminhar, para visitar as plantações e ver os escravos que trabalhavam nas plantações de noz-moscada, de cacau e de banana.

Era Abe quem a acompanhava a St. George, quando ela queria comprar alguma coisa nas lojas, ou ficar observando os navios que descarregavam mercadorias no porto e apanhando os passageiros que queriam ir para outras ilhas.

- Não sei o que faríamos sem Abe - a condessa costumava dizer.

Quando haviam partido para Londres sem ele, Mildred tinha percebido que sua mãe sentia falta de Abe, quase tanto quanto ela.

- Devíamos ter trazido Abe conosco - disse a menina. Mas a condessa sacudira a cabeça.

- Abe pertence a Granada, ele faz parte da ilha. além do mais, seu pai não se arranjaria sem ele.

Quando a jovem escrevera chamando seu pai a Inglaterra, ele chegara após a morte da condessa, acompanhado de Abe.

Mildred tinha ficado tão contente em vê-lo que quase se atirara em seus braços para beijá-lo.

Conteve-se a tempo, sabendo que isto iria constranger o velho criado. Mas, ao ver o rosto cor de café, ela sentiu saudades de Granada, mais do que jamais sentira durante todo o tempo em que estivera em Londres.

Agora, inclinando-se para fora, a moça perguntou:

- O que houve, Abe?

- Preciso falar-lhe, senhora.

Agora a chamava de "senhora", embora em pequena a chamasse de "senhorita". Qualquer coisa no tom de voz de Abe fez com que ela adivinhasse que tinha algo importante a dizer.

- Vou descer - disse. Depois, hesitou.

Abe percebeu o que ela estava pensando.

- Não há perigo, senhora. O patrão não vai ouvir.

Mildred compreendeu, sem que houvesse necessidade de explicações, por que motivo o conde jamais a ouviria nessa hora. Sem mais uma palavra, ela vestiu o roupão que estava na mala ainda não desfeita e enfiou os pés numas sandálias.

Cautelosamente, fazendo o mínimo ruído possível, abriu a porta do quarto.

Apesar do que Abe havia dito, temia não ver o pai e sim se deparar com o dono da casa.

Quando desceu, viu que as velas ainda estavam acesas, embora quase gastas. Chegando ao hall, entrou numa sala onde sabia que existira uma porta que dava para o jardim, sob a janela de seu quarto.

Abriu a porta-janela que dava para o terraço. Abe subiu a escada de madeira, vindo ao encontro dela.

- Vamos embora depressa, senhora.

- Embora? Que quer dizer com isso?

- Perigo... Grande perigo!

- O que foi que aconteceu? - perguntou a moça. - Que está querendo dizer?

Antes de responder Abe olhou por sobre os ombros como tivesse medo de ser ouvido. Depois, disse:

- Rebelião em Grenville... entre os escravos.

- Rebelião? - exclamou.Mildred.

- Alguns fugiram. Chegaram aqui antes do escurecer.

Abe tornou a olhar por sobre os ombros e disse, ainda:

- Os escravos daqui acham que devem unir-se aos rebeldes.

A jovem não duvidou de que ele estivesse dizendo a verdade.

 Sempre havia boatos de barulho nas ilhas que estavam constantemente mudando de mãos: ora revoltas entre as comunidades favoráveis aos franceses, ora entre as favoráveis aos ingleses.

Granada estava sob o poder dos ingleses havia doze anos, depois de um período relativamente curto de domínio francês.

Quando estavam no navio que os trazia da Inglaterra, ela e o pai tinham ouvido os oficiais falarem da revolução na França e da execução de Luis XVI, dois anos antes.

- Não há dúvida de que agora os escravos das ilhas vão ficar inquietos e prontos a começar sua própria revolução - dissera o capitão.

Era o que parecia estar começando em Granada neste momento.

- Para onde iremos? - perguntou a Abe, temerosa.

- Para casa, senhora. É o lugar mais seguro. Poucas pessoas encontrariam a Enseada Secreta.

A moça sabia que era verdade. A "Enseada Secreta" era o lugar adequado para um esconderijo.

A casa, que tinha sido construída muitos anos antes de ser restaurada pelo conde, ficava numa parte isolada da ilha quase inatingível.

- Precisamos ir imediatamente! - disse Mildred. - Você avisou papai?

Abe sacudiu a cabeça.

- Não vamos acordar o patrão. Venha, senhora. Seu pai irá depois.

Ela hesitou por um momento em abandonar o pai. Depois, lembrou que estaria também deixando Roderick Maigrin e isto era justamente o que desejava!

- Está certo, Abe. Temos que ir para lá, se há mesmo perigo. Tenho certeza de que papai nos seguirá, amanhã.

- Tenho três cavalos à espera - contou Abe. - Um levará a bagagem.

Mildred ia dizer que a bagagem não importava, mas mudou de idéia.

Afinal de contas, fazia três anos que estava fora de casa, e ela não tinha outras roupas, a não ser as compradas em Londres.

Como se sentisse a hesitação da moça, Abe disse:

- Deixe por minha conta, senhora. Vou buscar a bagagem.

Depois, como se de repente também sentisse medo, acrescentou:

- Depressa! Vá a senhora mesmo e depressa! Não há tempo a perder.

A moça soltou uma exclamação abafada. Segurando o roupão com ambas as mãos, atravessou a sala correndo e subiu a escada rumo ao seu quarto.

Levou apenas alguns minutos para vestir a roupa de montaria e guardar o vestido que usara ao jantar, colocando também a camisola e o roupão na parte de cima da mala que não tinha sido desfeita.

Somente esta mala tinha sido levada para cima. As outras ainda estavam embaixo.

Acabara de abotoar a blusa de musselina, quando Abe bateu à porta, de mansinho.

- Estou pronta, Abe - murmurou a moça.

O criado entrou, fechou a mala e apanhou-a.

Colocou-a no ombro e, sem nada dizer, desceu a escada, silenciosamente.

Mildred seguiu-o. Quando chegou ao hall, compreendeu que não poderia partir, sem deixar um bilhete dizendo ao pai para onde ia.

Tinha visto que havia uma escrivaninha na sala onde Roderick os recebera, quando chegaram. Com uma vela na mão, procurou por uma folha de papel.

Encontrou-a; pegou uma pena, mergulhou-a na tinta e escreveu:

 

"Fui para casa. Mildred".

 

Ainda com a vela na mão, voltou para o hall.

Por um momento, ficou imaginando se devia deixar o bilhete numa mesinha, onde seu pai pudesse vê-lo.

Depois teve medo de que alguém o tirasse dali, antes que o conde o visse.

Nervosa, sentindo que seu coração batia violentamente, ela virou a maçaneta da sala de jantar.

Abriu uma fresta e espiou.

Viu a mesa. À luz das velas notou os dois homens debruçados nela, inconscientes, no meio de garrafas e de copos. Por um momento, Mildred observou o homem e o outro, com quem o conde pretendia casar a filha.

Não suportando a idéia de aproximar-se deles, deixou o bilhete junto à porta e tornou a fechá-la.

Depois, saiu correndo, sentindo um pavor incontrolável, indo ao encontro de Abe, que a esperava lá fora.

 

Mildred cavalgou sem falar, seguida por Abe, que conduzia um cavalo com as duas malas da moça sobre a sela. Um outro cavalo levava outra mala e uma cesta.

Quando Abe indicou o caminho, ela percebeu que ele não queria seguir pela estrada, pouco mais do que uma trilha, que ficava ao norte da casa de Maigrin. Essa estrada não apenas era o único caminho que levava à Enseada Secreta, como também a St. George.

 Ela ficou cogitando sobre o desejo de Abe de esconder-se e achou que ele talvez tivesse medo de encontrar um bando de escravos que se tinham rebelado contra seus donos ou que quisessem juntar-se aos rebeldes de Grenville.

Abe dissera: "Muitos ingleses foram mortos". Mildred sabia que, depois que os escravos começassem a saquear e a matar, seria difícil contê-los.

Tinha medo, mas não tanto quanto de Roderick Maigrin e do futuro que seu pai lhe reservava.

Enquanto cavalgava pela densa vegetação, ela achou que não só estava fugindo de Maigrin, mas que ele jamais a alcançaria.

Sabia que esta idéia não se fundamentava em factos, mas, pelo menos, estava se afastando dele, o que já era um consolo.

Havia uma espécie de trilha paralela ao mar, que se torcia para acompanhar as numerosas baías e a linha irregular da costa.

Mildred sabia que, por este caminho, eles levariam muito mais tempo para chegar em casa, mas não estava com pressa.

O cenário tinha uma magia estranha, irreal.

Os raios do luar quase pareciam uma revelação do céu, pondo manchas prateadas no caminho e nas folhas grandes das samambaias tropicais.

Passaram por cascatas que eram como prata líquida, depois viram trechos de mata banhados pelo luar.

Era um mundo que ela conhecia e amava. Naquele momento, Mildred queria esquecer o passado e o futuro e pensar apenas que estava em casa e que os espíritos da floresta tropical a protegiam e a guiavam.

Depois de viajarem durante quase uma hora, o caminho deu num espaço aberto e Abe caminhou ao lado dela.

- Quem ficou tomando conta da fazenda, enquanto você esteve na Inglaterra? - perguntou a moça.

Houve uma pequena pausa. Depois Abe respondeu:

- Joseph ficou tomando conta.

Mildred refletiu por um instante; depois, lembrou-se de um rapaz alto, que era parente de Abe.

- Tem certeza de que Joseph é capaz de tomar conta da casa e da fazenda?

Abe não respondeu e a jovem insistiu:

- Conte-me o que aconteceu, Abe. Está me escondendo alguma coisa?

Finalmente, ele respondeu:

- Há dois anos que o patrão não mora na Enseada Secreta!

Ela ficou atónita.

- Não mora na Enseada Secreta? Então, onde?...

Interrompeu-se. Não havia necessidade de esperar pela resposta.

Sabia muito bem onde seu pai tinha morado e por que motivo eles tinham ido para a casa de Roderick Maigrin, em vez de irem para casa.

- O patrão se sentiu solitário, depois que a patroa foi embora - disse Abe, como se quisesse desculpar o conde.

- Posso compreender isto - respondeu Mildred baixinho. - Mas, por que foi morar com aquele homem?

- O Sr. Maigrin vinha sempre visitar o patrão - explicou Abe. - Depois, o patrão disse: "Vou para um lugar onde há alguém com quem posso conversar". E foi.

- E você não o acompanhou? - perguntou a jovem.

- Fiquei tomando conta da casa e da fazenda, senhora, até o patrão me chamar, no ano passado.

 - Está querendo dizer que, durante um ano, não houve ninguém para tomar conta da fazenda?

- Eu ia lá, quando podia - respondeu Abe. - Mas o patrão precisava de mim.

Mildred suspirou.

Compreendia que o pai achasse Abe indispensável, como também a mãe achara, mas mal podia acreditar que ele tivesse deixado a casa fechada e a fazenda abandonada, enquanto ficava bebendo em companhia de Roderick Maigrin.

Não adiantava dizer isso. Reflectiu apenas que era o que sua mãe devia ter esperado, quando tinham deixado o conde sozinho.

Nunca deveríamos ter partido, pensou Mildred.

Por outro lado, sabia que se não tivesse ido para Londres, não teria tido oportunidade de estudar e educar-se como ocorrera.

Ao mesmo tempo tinha a desagradável sensação de que seu pai tinha pago por esta experiência, não com dinheiro, e sim, primeiro com solidão e, depois, vendo-se obrigado a procurar a companhia de um homem que tinha péssimos hábitos de vida.

Agora era tarde demais para arrependimentos. Assim que o pai viesse juntar-se a ela, precisariam resolver o que fazer sobre a rebelião, se é que era tão séria quanto Abe imaginava.

Quando as ilhas mudavam de dono, o que acontecia regularmente nos últimos anos, sempre havia fazendeiros que perdiam suas terras e seu dinheiro.

Após as primeiras comemorações de vitória os escravos descobriam que tinham apenas trocado um patrão exigente por outro.

"Talvez não seja nada sério", pensou Mildred procurando convencer-se disso.

Querendo mudar de assunto, disse:

- Na viagem para cá, tivemos sorte de não encontrar nenhum navio francês e nenhum pirata. Ouvi dizer que Will Wilken roubou porcos e perus do Sr. Maigrin e matou um homem, ao fazer isso.

- O pirata é um homem mau! - exclamou Abe. - Mas não atacava navios grandes.

- É verdade - concordou a moça. - Mas os marinheiros de nosso navio disseram que piratas como Wilken atacam navios de carga e que isso é trágico para as pessoas que precisam de comida e para os negociantes que perdem as cargas com as quais iriam obter dinheiro.

- Homem mau! Cruel! - murmurou Abe.

- Will Wilken é inglês. Ouvi também dizer que há um francês, mas não creio que ele estivesse por aqui antes de eu ir para a Inglaterra.

- Não, naquela ocasião não estava aqui - concordou Abe.

Falou como se não quisesse continuar o assunto. Mildred virou-se para ele e disse:

- Creio que o francês se chama Beaufort. Ouviu falar dele?

De novo houve uma pausa. Depois Abe disse:

- Vamos virar à esquerda. A senhora vá à frente.

Ela obedeceu, mas ficou imaginando por que Abe não queria falar sobre o pirata francês.

Quando era pequena, os piratas sempre lhe pareciam pessoas excitantes, embora os escravos tremessem de medo quando eles eram mencionados. Os escravos católicos até faziam o sinal da cruz!

O conde costumava pilheriar a este respeito, dizendo que os piratas não eram tão maus como se dizia.

- Eles só têm navios pequenos, de modo que não se atrevem a atacar os grandes - dissera. - Não passam de ladrões baratos, roubando um porco aqui, um Peru ali. Fazem menos mal do que os ciganos dos meus tempos de menino, na Irlanda.

Continuaram seu caminho. Mildred reconheceu os grupos de palmeiras e o brilho dos corais-de-jardim que, na ilha, atingiam quase doze metros de altura.

Agora o luar se apagava, e as estrelas pareciam sumir no céu negro. Logo iria amanhecer. Mildred sentia a brisa que vinha do mar e que tornava o ar menos pesado. As árvores tropicais pareciam recifes verdes de cada lado do caminho.

Finalmente, a floresta ficou para trás e eles chegaram às plantações do conde.

Mesmo à luz fraca do luar agonizante, Mildred achou que pareciam abandonadas. Depois, disse a si mesma que estava sendo exageradamente crítica.

Sentiu o cheiro de noz-moscada, de canela, unido à fragrância do tomilho que ela se lembrava, era vendido em ramos, com a cebolinha. Julgou ainda reconhecer o cheiro do grão tonka, que seu pai também cultivava.

"A ilha das especiarias", pensou Mildred, com um sorriso, julgando distinguir o cheiro da pimenta-da-jamaica, ou pimentão doce, que Abe lhe mostrara quando ela era muito pequena, unido à fragrância da canela, da noz-moscada, do cravo.

A madrugada rompera e agora Mildred pôde ver o telhado de sua casa.

- Olhe lá, Abe! - exclamou excitada.

- Sim, senhora. Mas não fique decepcionada com o pai. Farei com que as mulheres limpem tudo, logo.

- Sim, é claro - concordou ela.

 Ao mesmo tempo, sentiu que seu pai nunca pretendera trazê-la para casa.

Sua intenção era ficarem em casa de Roderick Maigrin. Se não tivesse havido uma revolução, ela certamente teria casado logo com Maigrin, por mais que protestasse.

- Não posso casar com ele! - disse, a si mesma.

Achou que, se o pai viesse sozinho para casa, poderia lhe explicar que lhe era impossível tolerar aquele homem. Tentaria fazer com que o conde compreendesse isso de todas as formas.

Seria mais fácil, refletiu a moça, se pudesse falar com o pai sem que aquele horrível Roderick de cara vermelha estivesse ouvindo e enchendo o conde de bebida.

Fez uma oração à mãe, pedindo ajuda, esperando que ela a salvasse, embora Mildred não soubesse como.

Quando se aproximaram da casa, a moça viu as janelas com venezianas de madeira. A vegetação tinha chegado mais perto do que teria sido permitido no passado.

Ocorreu-lhe que a casa parecia a da Bela Adormecida.

As buganvílias chegavam aos degraus do terraço e subiam até o telhado, ao passo que os botões amarelo-pálido das acácias e uma trepadeira chamada "taça de ouro" tinham tomado conta de quase tudo.

Era belo, mas tinha uma aparência irreal. Por um momento, Mildred pensou que estivesse sonhando e que logo acordaria, vendo que tudo desaparecera.

Fez um esforço para dizer, com naturalidade:

- Leve os cavalos para a cocheira, Abe, e dê-me a chave da casa, se é que a tem.

- Tenho a chave dos fundos, senhora.

- Então, vou entrar pelos fundos - disse ela, sorrindo. - E trate de abrir as venezianas. Creio que deve estar tudo mofado, depois de a casa ficar fechada durante tanto tempo.

Pensou também que deveria haver lagartixas nas Paredes. E, se houvesse fendas no telhado, os pássaros provavelmente tinham feito seus ninhos nos cantos dos quartos.

Desejou apenas que a umidade não tivesse estragado as coisas bonitas de sua mãe; a mobília que ela trouxera da Inglaterra.

Havia outros tesouros acumulados durante anos, comprados às vezes dos fazendeiros que voltavam para sua terra natal, ou presentes de amigos de St. George e de outras partes da ilha.

As cocheiras estavam cobertas de buganvílias roxas, de modo que Abe teve que afastá-las, para encontrar a entrada das baias.

Mildred apeou, deixando que Abe tirasse as selas dos animais e as malas que estavam nos dois cavalos.

Ela achou que os escravos logo acordariam e que haveria alguém para ajudar Abe, mas no momento só queria entrar em casa.

Subiu a escada que dava para a porta dos fundos, observando que estava precisando de reparos e que a porta descascava.

A chave girou com facilidade e Mildred entrou.

Conforme esperava, a casa cheirava a mofo, mas não tanto quanto supusera.

Ela atravessou a cozinha grande, que sua mãe sempre tinha conservado imaculada, e entrou no hall.

Não havia ali tanto pó como era de se esperar, mas era difícil ver direito, à luz fraca.

Mildred abriu a porta que dava para a sala de visitas.

Notou, com surpresa, que os móveis não estavam cobertos por panos, como deveriam estar. As cortinas também estavam afastadas e as venezianas abertas.

Achou que Abe tinha sido descuidado com esta sala, que ela amava especialmente.

Mas não parecia ter havido grande estragos, embora fosse difícil ver os detalhes.

Instintivamente, Mildred ajeitou uma almofada que estava torta numa cadeira, mas depois disse a si mesmo que, antes de começar a abrir a casa, devia ir trocar de roupa.

O dia começara a esquentar, a saia da montaria era de tecido e a blusa de musselina, de mangas compridas, logo seria pouco confortável.

Mildred, lembrou-se que tinha já crescido, e os vestidos que deixara na casa deviam estar pequenos para ela. Provavelmente haveria alguma roupa da mãe que lhe servisse.

Quando foram para a Inglaterra, a condessa não levara os vestidos leves de algodão, sabendo que lá não teriam serventia. E, além do mais, estariam fora de moda.

- Vou usar um dos vestidos de mamãe - disse a si mesma. - Depois começarei a dar um jeito na casa, para que fique como antes de partirmos.

Subiu a escada que levava ao andar de cima.

A escada era bonita, artística, e dava para um patamar de onde saía o quarto principal, que fora desenhado especialmente para a condessa.

Mildred se lembrou de que era para este quarto que ela corria de manhã cedo, em criança, assim que a empregada a vestia.

A mãe estaria apoiada nos travesseiros com fronhas enfeitadas de renda por onde ela passava fitas coloridas que combinavam com as camisolas.

Certa vez, dissera a sue mãe:

- Está tão bonita, mamãe, que até parece que vai a um baile.

- Quero ser bonita para o seu pai - respondera a condessa. - Ele é um belo homem, querida, e gosta de mulheres bonitas e bem-arrumadas. Lembre-se sempre disto.

Mildred se lembrara. Sabia que o pai tinha orgulho dela, quando a levava a St. George e os amigos elogiavam a menina, dizendo que, quando ela crescesse, seria a "beldade" da ilha.

Intimamente, ela sempre associou o pai a tudo o que era belo. Reflectiu então em como era possível que ele quisesse casá-la com um homem que não era feio apenas de aparência, como também de carácter?!

Abriu a porta do quarto e ficou de novo surpresa ao ver que as largas janelas estavam escancaradas.

Viu as palmeiras contra o céu que agora tinha uma tonalidade dourada.

Havia ali uma fragrância que Mildred sempre havia associado à mãe. Era o perfume do jasmineiro, que florescia durante o ano inteiro.

A condessa destilava o perfume que ela sempre usava. A jovem teve uma lembrança tão vivida de sue mãe que, instintivamente, olhou para a cama, como se esperasse vê-la ali.

 De repente, ficou imóvel acreditando tendo uma ilusão de ótica.

Na cama, com a cabeça recostada nos travesseiros brancos, estava um homem!

Mildred ficou olhando para ele, sem saber se devia ficar ou correr.

E, então, como se a simples presença da moça o acordasse, o homem remexeu-se na cama e abriu os olhos. Os dois ficaram olhando um para o outro, estáticos.

Ele era bonito. "Um belo homem" seria mais apropriado.

Tinha cabelos escuros, testa quadrada, rosto de feições bem definidas, sem barba, e olhos escuros que a fitavam, atónitos.

Depois, a expressão dele mudou. Nos lábios surgiu um sorriso e seus olhos brilharam, parecendo reconhecer a recém-chegada.

- Quem é você? - perguntou Mildred. - O que está fazendo aqui?

O homem sentou na cama e respondeu:

- Peço perdão, Mademoiselle, mas não tenho necessidade de perguntar quem você é, já que vi o seu retrato pendurado na parede.

Sem querer, a jovem virou a cabeça para a parede fronteira á cama, onde, sobre a cômoda, se via o retrato da condessa, pintado.

- É o retrato de minha mãe. O que você está fazendo na cama dela?

Instantaneamente percebeu que o homem com quem falava não era inglês.

Soltou uma exclamação.

- Você a um francês.

- Sim, Mademoiselle, sou francês, e peço desculpas por estar usando a cama de sua mãe. Mas a casa estava desocupada.

 - Sei disso. Mas você não tinha o... direito... É uma intrusão da sua parte. Não compreendo...

Interrompeu-se, respirou fundo e disse, ainda:

- Creio que já... ouvi falar de você.

O homem fez um gesto com a mão.

- Garanto-lhe que não sou afamado e sim... mal-afamado! - disse ele - Beaufort, às ordens!

- O pirata!

- exactamente, Mademoiselle! E um pirata pesaroso, se minha presença aqui a perturba.

- Claro que me perturba - replicou Mildred, secamente. - Conforme já lhe disse, você não tinha o direito de entrar aqui, só porque estávamos longe de casa.

- Eu sabia que a casa estava desocupada. E ninguém esperava que viessem para cá, quando voltassem para Granada.

Houve silencio. Depois, ela disse, hesitante:

- Fala como se soubesse que eu... ia voltar para a ilha.

O pirata sorriu. Isto fez com que não apenas parecesse mais moço, como lhe deu um ar malicioso.

- Creio que todo o mundo na ilha sabia disso. Os mexericos são levados pelo vento e pelo canto dos pássaros.

- Então, sabia que meu pai tinha ido para a Inglaterra?

O pirata inclinou a cabeça.

- Sabia, como também sabia que você mandou chamá-lo porque sua mãe estava doente. Espero que tenha melhorado.

- Ela... morreu!

- Meus sentimentos de grande pesar, Mademoiselle.

Falou com uma sinceridade que fez com que isso não parecesse uma intromissão.

De repente, Mildred compreendeu o absurdo da situação: estava conversando com um homem desconhecido dentro do quarto de sua mãe! E os ombros descobertos indicavam que ele estava despido!

A jovem ia virando-se para a porta, quando o pirata disse:

- Se permitir que me vista, Mademoiselle, descerei em seguida, para lhe explicar minha presença aqui e pedir desculpas antes de Partir.

- Obrigada - respondeu Mildred. Saiu do quarto, fechando a porta.

Lá fora, ficou pensando que devia estar sonhando e que isto não podia estar acontecendo.

Como é que era possível ter voltado para casa e ali encontrar um pirata? E um francês, ainda por cima!

Achou que deveria ter tido medo, não apenas por ele ser pirata, como francês.

Mas, de um modo que não era capaz de explicar a si mesma, não estava com medo.

Tinha a impressão de que, se pedisse ao pirata que fosse embora, ia imediatamente, fazendo questão antes que Mildred aceitasse suas desculpas por ter usado a casa.

O que ele fez foi intolerável! Pensou ela. Mas não estava zangada.

Entrou no seu quarto e encontrou-o no estado em que esperava que estivesse, depois do que Abe lhe contara.

Quando abriu as venezianas, viu que o chão estava grosso de pó, assim como a penteadeira e a colcha que cobria a cama.

Duas lagartixas saíram das cortinas. Havia ali um cheiro de mofo insuportável, que só melhorou depois que Mildred puxou as cortinas.

Ela abriu o guarda-roupa e percebeu que não poderia usar nenhum de seus vestidos antigos, porque crescera muito nos últimos três anos. Embora ainda fosse esbelta, seu corpo não era mais o de uma menina tendo as curvas de uma bela mulher.

- Tenho que ficar exactamente como estou - disse a si mesma. Tentou ficar zangada porque a presença do pirata era incomodativa, mas na realidade já estava muito curiosa a respeito dele.

Nada tinha a fazer no quarto e, portanto, desceu.

Quando chegou ao hall, ouviu o som de vozes na cozinha e achou que devia avisar Abe de que havia um pirata na casa.

Mas, quando se dirigia à cozinha, ouviu uma voz de homem dizer, num inglês estropiado:

- Nós não esperávamos você! Vou acordar Monsieur.

- Boa idéia - respondeu Abe. - Vá antes que a senhora o veja.

Mildred entrou na cozinha.

Ao lado de Abe, estava um homem que ela achou que tinha a aparência de um francês.

Era pequeno, de cabelo escuro. A jovem pensou que, se o visse, em qualquer parte do mundo, saberia que era de origem francesa.

O homem ficou sobressaltado, ao vê-la talvez um tanto amedrontado.

- Já falei com o seu patrão - contou a moça. - Ele está se vestindo e depois vai descer, para se desculpar antes de partir.

O francesinho pareceu aliviado. Dirigiu-se para a mesa da cozinha, onde ela viu uma mesa grande e, ao lado, uma cafeteira.

Calculou que o criado estivera preparando o desjejum do patrão.

Com um leve sorriso, disse:

- Será mera hospitalidade eu permitir que seu patrão tome o desjejum, antes de ir embora. Onde é que ele costuma tomá-lo?

- No terraço, MadeMoiselle.

- Muito bem. Leve tudo para lá. E, Abe, eu gostaria de uma xícara de café.

Percebeu que os dois homens a olhavam, surpresos. Sorrindo, ela se dirigiu para a porta da frente.

Conforme esperava, não estava trancada. Calculou que era por ali que o pirata costumava entrar na cara.

Passou para o terraço e viu acima das copas das palmeiras, as pontas de dois mastros.

As árvores eram tão altas, que Mildred não os teria visto, se não estivesse procurando por eles. A Enseada Secreta era um lugar ideal para um pirata esconder o seu navio. Ela ficou admirada de não ter pensado nisto antes.

O dono anterior tinha dado à enseada este nome, que a descrevia muito bem.

A entrada ficava de lado. Uma longa faixa de terra coberta de pinheiros se estendia de frente para o mar.

Depois que um navio entrava na enseada, era quase impossível ser visto, tanto da terra como do mar.

A não ser que alguém estivesse prevenido, poderia passar por ali uma dúzia de vezes, sem notar a presença de um navio na enseada.

Gostaria de visitar o navio, pensou Mildred. Depois, acusou-se de curiosa:

Sabia que deveria estar escandalizada, furiosa e talvez até insultada pelo facto de um pirata estar usando a sua cara, mas estranhamente, não sentia nada disto.

Dali a minutos, quando o pirata veio a seu encontro, ela achou que ele estaria mais ambientado numa sala de visitas ou num salão de baile em Londres.

De certo modo ele era elegante demais para o terraço invadido pelas trepadeiras, e para as venezianas sujas atrás deles.

Havia ali uma mesa de vime feita pelos nativos, e duas cadeiras. Antes que o francês dissesse qualquer coisa, Abe e o criado do pirata apareceram com uma toalha branca, que estenderam sobre a mesa. Colocaram ali uma bandeja de prata com duas xícaras para dois pires.

Mildred notou que eram aparelho que sua mãe guardava para ocasiões especiais. Sentiu o aroma do café, quando os criados, colocaram na mesa a cafeteira, um prato de croissants recém-saídos do forno, uma manteigueira e um vidro de Mel.

- Petit déjeuner est servi, Monsieur - disse o criado do francês. Depois, ele e Abe se retiraram.

Mildred olhou para o pirata. Ele ia dizer qualquer coisa, quando a moça deu uma risada.

- Não posso acreditar que isto esteja acontecendo - disse ela. - É impossível que você seja um pirata.

- Garanto que sou.

- Mas sempre pensei que fossem... que fossem homens maus, sujos, gananciosos, que blasfemam e de quem as mulheres fogem, horrorizadas.

- Está pensando em um de seus compatriotas: Wilken.

- Foi sorte não ter de sair da Enseada Secreta - comentou Mildred. - A noite passada, ouvi dizer que andou saqueando, num lugar da costa.

- Ouvi muitas coisas a respeito dele - disse o francês. - Mas sugiro que tomemos o nosso café.

 - Sim, é claro.

Instintivamente, a moça sentou diante da cafeteira. O francês sentou na frente dela. Mildred perguntou:

- Quer que eu sirva, ou prefere se servir?

- Sentir-me-ei honrado, se você agir como minha anfitriã.

Ela tentou sorrir, mas havia naquele homem qualquer coisa que a intimidava.

Corou e começou logo a servir o café.

- Você deve ter trazido os croissants - disse ela. - Meu criado os trouxe. São feitos todos os dias.

A jovem deu uma risadinha.

- Então, até mesmo um pirata, quando é francês, se preocupa com comida.

- É claro - respondeu o francês - A comida é uma arte. Uma das desvantagens de se estar continuamente no mar é que se come o que se tem, em vez daquilo que se aprecia.

Mildred riu de novo. Depois, perguntou:

- Por que é que você é pirata? Parece... ou talvez eu esteja sendo impertinente... uma estranha ocupação para você.

- É uma longa história - respondeu o francês - Mas, antes, posso perguntar por que se acha aqui? E onde está seu pai?

- Estou aqui porque foi deflagrada uma revolução em Grenville.

O pirata ficou de repente tenso, fitando a moça.

- Uma revolução?

- Sim. Começou há vários dias, mas só chegamos ontem à noite a casa do Sr. Maigrin. Depois, no meio da noite, Abe soube que os rebeldes tinham tornado Grenville e matado vários ingleses.

- Não é possível! - exclamou o francês, como se falasse consigo mesmo. - Mas, se há mesmo uma revolta, deve ter sido provocada por Julien Fédor.

- Como é que sabe disto? - perguntou Mildred.

- Ouvi dizer que ele estava pregando rebeldia entre os escravos.

- Então, você acha que é sério?

- Creio que vai ser - respondeu o pirata.

- Mas, certamente, você deseja que os franceses se apoderem da ilha novamente, como há doze anos?

Ele sacudiu a cabeça.

- Se os franceses se apoderarem da ilha, será com navios e soldados e não com uma rebelião de escravos. Talvez estes vençam durante algum tempo, entretanto os soldados ingleses acabarão chegando para atacá-los e haverá grande derramamento de sangue.

A moça suspirou.

- Parece desnecessário e assustador.

O francês levantou-se.

- Dê-me licença por um momento, enquanto falo com o meu criado. Ele precisa verificar qual o perigo que você está correndo.

Entrou em casa e Mildred observou as costas dele.

Não pôde deixar de comparar a postura dele com o jeito pesado de Roderick Maigrin.

Os cabelos escuros e grossos de Beaufort estavam presos com um laço, na nuca, a gravata estava muito limpa e bem passada, pontas do colarinho alto iam acima do queixo, Como acontecia com os elegantes de St. James.

O paletó lhe assentava com perfeição, a calça branca revelava corpo esbelto, as meias brancas e os sapatos de fivela também eram muito elegantes.

"É um cavalheiro!" pensou ela. "chamá-lo de pirata ridículo!"

O francês voltou.

- Meu criado e o seu vão mandar averiguar exactamente o que está acontecendo. Mas Abe me garantiu que as informações que teve ontem à noite e hoje de manhã são de absoluta confiança. Não há dúvida de que os rebeldes estão matando ingleses em Grenville onde uma centena de escravos pegou todo o mundo de surpresa.

Mildred soltou uma exclamação e ele continuou:

- Como sempre, saquearam armazéns, arrastaram os habitantes assustados, determinando que sejam fuzilados.

- Oh, não! - exclamou a jovem:

- Muitos escaparam, nadando até os navios ancorados na baía. Outros foram para o sul, e alguns conseguiram chegar até à casa de Maigrin.

- Acha que todos os escravos da ilha vão... aderir... juntar-se aos outros? - perguntou Mildred, em voz baixa.

- Temos que esperar para ver - respondeu o Francês. - Se o pior acontecer, Mademoiselle, meu navio está à sua disposição.

- Acha que seria um lugar seguro?

O francês sorriu.

- Talvez seja o caso de "num aperto, qualquer coisa serve".

- Sim, é claro. Mas estava com esperança de que meu pai aparecesse hoje. Talvez ele tenha outras idéias sobre o lugar para onde devemos ir.

- Naturalmente - concordou o Francês. - E creio que você e seu pai, assim como o Sr. Maigrin, sem dúvida, serão bem recebidos no forte de St. George.

Quando ele pronunciou o nome de Maigrin, Mildred não pôde disfarçar a expressão de seu olhar.

Em vez de responder, comeu um dos deliciosos croissants onde tinha passado manteiga e mel.

Houve silencio. Depois, o francês disse:

- Ouvi dizer, mas pode não ser exacto, que você vai casar com o Sr. Maigrin.

- Quem lhe disse isso?

O francês encolheu os ombros.

- Contaram-me que já estava resolvido, antes de seu pai partir, para trazê-la da Inglaterra.

Só lembrar-se de Roderick Maigrin, Mildred sentiu a revolta da véspera.

Involuntariamente, sem perceber o que estava pensando, exclamou:

- O que posso fazer?... Como poderei... escapar? Não posso casar com aquele... homem!

O terror de sua voz pareceu ficar vibrando no ar. Mildred notou que o francês a fitava atentamente.

Depois, ele disse:

- Concordo que é impossível uma pessoa como você casar com semelhante homem, mas não me cabe dizer como é que poderá evitá-lo.

- Então, a quem mais posso perguntar. - disse ela, Como se fosse uma criança. - Só quando chegamos à ilha fiquei sabendo o que papai pretendia. E agora que estou aqui... não sei o que poderei dizer... nem onde me esconder.

O francês colocou a faca na mesa com ruído.

- O problema é seu, Mademoiselle, e deve compreender que não posso interferir.

- Não... claro que não - concordou a moça. - Não devia ter falado como falei. Peço... desculpas.

- Não há do que se desculpar. Quero ouvir. Quero ajudá-la, mas em tese sou um inimigo, além de ser também um foragido.

- Talvez eu deva ser isso também - disse Mildred. - Quem sabe assim o Sr. Maigrin não desejaria mais casar comigo...

Mas logo compreendeu que não havia coisa que Maigrin mais desejasse do que desposá-la, principalmente por ser filha de um conde.

Lembrou-se da expressão dos olhos de Maigrin, na noite anterior, e estremeceu.

Estava apavorada, literalmente apavorada. Tinha medo, não da revolução, e sim de ser tocada por um homem repulsivo, cuja presença a enojava, a ponto de fazer com que se sentisse fisicamente mal.

A expressão de seu rosto devia ter sido reveladora, porque o francês perguntou, bruscamente:

- Por que não ficou na Inglaterra, onde estava segura?

- Como poderia, depois que mamãe morreu? - perguntou Mildred. - Conhecia muito poucas pessoas. Além do mais, papai iria fazer questão de me trazer para cá... dissesse eu o que quisesse.

- Foi uma pena não ter encontrado um marido enquanto estava lá - observou o francês.

- Creio que era isto o que mamãe queria - disse a moça. - Pretendia me apresentar ao rei e à rainha. Depois, eu seria convidada para bailes e festas. Planejou tanta coisa... mas depois ficou doente... muito doente, antes do Natal.

Fez uma pausa e continuou:

- O tempo estava frio e nevoento. Mamãe viveu tantos anos num clima ensolarado, que o médico disse que o seu organismo se ressentiu da súbita mudança.

- Compreendo - declarou o Francês, em voz baixa. - Mas certamente você poderia dizer a seu pai que não quer casar com aquele homem?

- Disse, mas ele respondeu que estava tudo arranjado e que o Sr. Maigrin é... muito rico.

Ao dizer isto, achou que estava sendo desleal; mas era este o ponto principal, o verdadeiro motivo de seu pai querer Maigrin como genro.

Roderick Maigrin era rico, podia dar ao conde a vida confortável que este desejava, e a única maneira de isto acontecer era lhe entregar a filha!

- É uma situação intolerável! - exclamou o francês; de repente, sobressaltando-a.

- Mas... o que posso fazer? - perguntou Mildred.

- Quando eu estava no quarto, olhando para o retrato de sua mãe, achei que não poderia haver uma criatura mais bonita, mais doce, mais atraente. Mas, agora que a conheci, Mademoiselle, sei que, embora fisicamente se pareça com sua mãe, há alguma coisa que, talvez pelo facto de você estar viva, o artista não conseguiu pintar.

- O quê? - perguntou a jovem, curiosa.

- Creio que a palavra exacta É spiritualité, que é impossível de ser representada na tela, e não ser por um Miguel Ângelo, ou um Boticcelli.

- Obrigada - disse Mildred em voz baixa.

- Não estou fazendo um elogio e sim declarando um facto - replicou o francês. - É por isto que sei que seria impossível você casar com um homem como Maigrin. Só o vi uma vez, mas ouvi falar muito nele. Posso dizer, com franqueza, que seria melhor você morrer do que ser esposa dele!

A moça juntou as mãos.

- É isto o que sinto... Mas papai não me ouve... E, depois que ele vier para cá, serei obrigada a me casar... diga eu o que disser... por mais que implore...

O francês se levantou e foi até à grade do terraço, encostando-se nela.

Mildred achou que ele estava olhando para o seu navio e reflectindo como seria fácil zarpar, rumo ao alto mar, onde seria livre, deixando para trás os aborrecimentos e as dificuldades da ilha e os problemas particulares de uma jovem que ele mal conhecia.

Estava muito bonito e elegante, com a cabeça contra as buganvílias.

Ela pensou que, em vez de um navio, deveria haver um faetonte à espera dele, puxado por dois cavalos de raça. O francês a convidaria então para um passeio em Hyde Park, por onde seguiriam, saudando os amigos.

Lá haveria apenas risos e os mexericos da vida social inglesa, sem referencias a revoluções e a derramamento de sangue, ou a um casamento com Roderick Maigrin.

Refletiu, embora parecesse absurdo, que o francês significava segurança, num mundo que para ela se tornara assustador e horrível, e onde se sentia completamente desamparada.

- A que horas espera o seu pai? - o francês perguntou, finalmente. Mildred achou que a voz dele estava tensa e um pouco mais alta.

- Não tenho a mínima... idéia - respondeu, hesitante. - Quando sai de manhã cedinho, ainda estava escuro... e os dois tinham bebido a noite inteira... sem ir para a cama.

O francês inclinou a cabeça, como se fosse isso o que esperava, e disse:

- Então, temos tempo. Sugiro que, no momento, pare de se aborrecer sobre o seu futuro. Talvez queira visitar o meu navio?

- Posso?! - exclamou a jovem.

- Seria uma honra para mim.

- Então... por favor... posso ir trocar de roupa? Logo vai esquentar.

- Claro - concordou o pirata.

Mildred saiu correndo e foi para o andar superior.

Conforme esperara, Abe já tinha levado as malas para cima, colocando-as no quarto da condessa.

Ele tinha aberto as correias e os trincos. Mildred supôs que, mais tarde, uma das antigas criadas da casa viria para desfazer as malas. No momento, o que ela queria era só um vestido que a enfeitasse, embora não confessasse isto a si própria.

Depressa, tirou de uma das malas um vestido que comprara em Londres.

Era do ano passado, mas a saia rodada ainda estava em moda. O fecho embora um pouco amassado, era bonito e estava limpo.

Mildred tirou o vestido de viagem e lavou-se na bacia. Não se admirou de encontrar um jarro com água limpa e fresca.

Vestiu-se rapidamente e correu para baixo, sabendo que o pirata a esperava.

Não se enganou.

Ele estava no terraço, tendo movido a cadeira para um ponto onde havia sol. Ela concluiu, então, por que a pele do pirata era tão escura. Ao contrário do que acontecia com os elegantes de Londres, ele se queimava ao sol.

Esta cor lhe ia bem. Mildred achou que o facto de ele ter uma pele morena é que a impedira de ficar escandalizada ao vê-lo de peito nu, na cama de sua mãe.

O francês se levantou, quando ela apareceu. A jovem notou que os olhos dele se encheram de admiração, ao vê-la.

Era muito diferente do olhar de Roderick Maigrin, na véspera, quando Mildred achou que ele a via não como estava a sim nua.

- Gostaria que lhe dissesse que está muito bonita, parecendo o espírito da primavera? - perguntou o francês.

- Gosto de ouvi-lo dizer isto.

- Mas deve ter ouvido tantos elogios, em Londres, que eles provavelmente a aborrecem.

- Os únicos elogios que recebi foram sobre meus trabalhos, na escola, ou de um ou dois senhores que foram a nossa casa, para acompanhar mamãe a um baile, ou a Vauxhall.

- Você era jovem demais para frequentar a sociedade?

- Sim, era - respondeu Mildred. - E, agora que perdi a oportunidade, creio que isto jamais acontecerá.

- Está aborrecida?

- É decepcionante. Mamãe costumava descrever os bailes e as festas aos quais eu iria, um dia, de modo que tenho a impressão de que sei como são. E às vezes sonho com isso.

- Garanto-lhe que há no mundo coisas muito mais interessantes - disse o pirata.

- Precisa me falar a respeito, para me compensar pelo que perdi.

- Talvez seja justamente o que não devo fazer - observou ele, enigmático.

Quando a moça ia pedir uma explicação, o francês continuou:

- É melhor irmos logo visitar o meu navio, antes que seu pai chegue e a impeça de ir.

Como se tivesse medo de que isto acontecesse, ela desceu correndo a escada do terraço, com o francês a seu lado.

Atravessaram o jardim, de vegetação desordenada depois que a condessa deixara de cuidar dele. Viram-se no meio dos pinheiros.

Havia brisa suficiente para balançar de leve as folhas. Logo Mildred divisou o navio.

Viu o tombadilho e os mastros altos. As velas estavam enfunadas e ela teve a impressão de que a embarcação poderia partir a qualquer momento... Se zarpasse, certamente nunca mais o veria.

Logo adiante, via-se o molhe estreito. No fim dele, estava ancorado o navio. Havia uma prancha ligando o navio ao molhe.

Mildred e o francês andaram pelo molhe áspero. Quando chegaram ao fim, ele parou:

- Não há corrimão. Você tem medo?

- Não. Claro que não - respondeu a moça, sorrindo.

- Permita que eu vá à frente e a ajude a subir - disse o francês. - será uma honra para mim.

Qualquer coisa na maneira com que ele disse as ultimas palavras fez com que ela se sentisse intimidada.

O pirata estendeu a mão e Mildred pegou-a. Quando tocou nele, sentiu a estranha vibração dos dedos do francês e teve uma sensação que nunca antes experimentara.

O navio era encantador, quase como o de um conto infantil.

O tombadilho tinha sido esfregado e estava muito limpo, a pintura era nova. Os homens que lidavam com as cordas não prestaram atenção aos recém-chegados, mas a jovem sentiu que eles olhavam disfarçadamente para ela e para o capitão.

Ele ajudou-a a descer e abriu uma porta. Mildred percebeu que dava para a cabina da popa.

O sol entrava pelas vigias, pondo manchas douradas nas paredes da cabina.

Mildred sempre tinha pensado que um navio-pirata fosse sujo e mal-arrumado. Nas histórias que lera, a cabina do capitão era um buraco escuro, cheio de cutelas e de garrafas vazias.

Esta era como o quarto de uma casa, com poltronas confortáveis num canto e uma cama de quatro colunas, com cortinado.

Tudo estava em ordem e ela julgou sentir cheiro de cera e de lavanda.

Havia um tapete no chão. Numa mesa, via-se um vaso com flores, que ela julgou que tinham sido apanhadas no jardim de sua mãe.

Estava observando tudo, quando notou que o Francês a fitava com um sorriso.

- E então? - perguntou ele.

- É muito atraente e confortável.

- Agora é o meu lar - disse ele, calmamente. - Assim como gostam de boa comida, os franceses também apreciam o conforto.

- Mas você está sempre em perigo - observou Mildred. - Se for visto pelos ingleses, ou pelos franceses, eles tentarão destruí-lo, ou capturá-lo. E, se for capturado, será morto!

- Sei disso, mas acho o perigo uma coisa excitante. Garanto-lhe, embora isto pareça uma contradição, que não pretendo correr riscos desnecessários.

- Então... por quê? - Mildred de repente percebeu que estava novamente sendo indiscreta e curiosa.

- Sente-se - disse o francês. - Quero vê-la instalada confortavelmente em meu quarto. Assim, quando você não estiver mais aqui, poderei vê-la, mentalmente.

Falou com naturalidade, mas a jovem percebeu que tinha corado novamente ao ouvir essas palavras.

Sentou-se numa poltrona. O sol que entrava pela vigia fez com que seus cabelos ficassem dourados.

Como era ainda muito cedo, ela não tinha trazido sombrinha, nem estava de chapéu. Apesar disto, achou natural estar ali sentada, conversando com um homem que lhe parecia mais atraente do que todos os que conhecera em Londres.

- Por que se diz chamar Beaufort? - perguntou ela, quando o silêncio se tornou embaraçoso.

- Porque é o meu verdadeiro nome. O nome com o qual fui batizado e que parece apropriado como sobrenome, já que não posso usar o meu sobrenome legítimo.

- Por que não?

- Porque não seria correcto. Meus antepassados estremeceriam nas suas sepulturas. Além do mais, espero, um dia, voltar para o meio ao qual pertenço.

- Não pode ir para a França - disse Mildred, vivamente, lembrando-se da revolução que havia lá.

- Sei disso. Mas não é à França que pertenço realmente. Pelo menos, não desde que eu era muito jovem.

- Então, onde? Ou não devo fazer esta pergunta?

- Digamos que, enquanto estivermos aqui, podemos fazer um ao outro as perguntas que quisermos - replicou o Francês. - E, como me sinto honrado pelo seu interesse, digo-lhe que venho da Martinica, onde tenho uma fazenda. E o meu nome verdadeiro é de Vence, Beaufort de Vence.

- É um nome bonito.

- Houve condes de Vence, na França, durante séculos - contou o pirata. - Fazem parte da história daquele país.

- Você é um conde?

- Como meu pai morreu, agora sou o chefe da família.

- Mas seu lar é na Martinica.

- Foi!

Mildred fitou-o, perplexa. Depois, soltou uma exclamação.

- Você é um refugiado! Os ingleses tomaram a Martinica, no ano passado!

- Exactamente - disse o comte. - Eu certamente teria sido morto, se não fugisse antes de tomarem minha fazenda.

- Então, foi por isso que se tornou pirata!

- Sim! Serei pirata até os ingleses serem expulsos, e acabarão sendo! E eu poder recuperar minhas terras.

Mildred deu um pequeno suspiro.

- Há sempre muita luta nestas ilhas e a perda de vidas é terrível.

- É o que também acho - declarou o comte. - Mas, pelo menos, aqui estou em segurança; na medida do possível, é claro.

A jovem nada disse.

Estava pensando que, se ele estava em segurança, com ela se dava o contrário. Corria um grande perigo - perigo por parte dos rebeldes e, mais assustador ainda, por parte de Roderick Maigrin.

 

Ao examinar a cabina, Mildred viu que havia ali muitos livros, como esperava.

As prateleiras estavam bem encaixadas no painel. E, embora não houvesse vidro na frente, havia uma trave para manter os livros no lugar, quando o navio jogasse.

O conde seguiu a direcção do olhar dela e disse, sorrindo:

- Vejo que também gosta de ler.

- Antes de ir para Londres, tive que ler para ficar sabendo sobre o mundo - explicou a jovem. - Depois, quando ia conhecer pessoalmente as coisas que vira nos livros, fui obrigada a voltar para cá.

- Talvez fosse achar decepcionante esse mundo, que as mulheres consideram glamouroso, brilhante.

- Por que diz isso?

- Porque tenho a impressão, ainda que me engane, de que está procurando alguma coisa mais profunda e mais importante do que aquilo que se possa encontrar na vida social: apenas risos a tilintar de cristais.

Mildred fitou-o, surpresa.

- Talvez você tenha razão. Mas mamãe sempre fez com que isso parecesse tão excitante, que eu estava ansiosa para fazer o meu debut e para conhecer pessoas que para mim não passavam de nomes nos jornais.

- Nesse caso, não vai ficar decepcionada com a realidade.

Mildred ergueu as sobrancelhas.

- Foi o que aconteceu com você?

- Não exactamente - respondeu o pirata. - E creio que tive sorte por conhecer Paris antes da revolução. E também estive em Londres.

- E gostou de lá?

- Quando eu era jovem, achei interessante e curioso, mas sabia que o meu verdadeiro lugar é aqui nas ilhas.

- Gosta de Martinica? - perguntou a moça.

- Foi o meu lar e ainda o será.

A maneira com que ele falou fora comovente. Sem reflectir, disse, em voz suave:

- Vou rezar para que você volte para lá.

Um sorriso iluminou o rosto do francês.

- Obrigado. E acredito, Mademoiselle, que suas preces serão ouvidas.

- Excepto as preces que faço para mim mesma - replicou ela.

Depois, achou que estava sendo injusta. Na noite anterior, tinha rezado para poder escapar de Roderick Maigrin e, por enquanto, estava livre dele.

Havia a chance de, ficando a sós com o pai, convencê-lo de que aquele casamento era intolerável, e que ele não fosse sacrificá-la.

Afinal de contas, o conde a amara quando ela era criança, disso não tinha duvida. Somente depois que Mildred e a mãe partiram ele fora dominado por Maigrin, a ponto de concordar com tudo o que aquele homem horrível desejava.

A expressão do rosto da moça era mais reveladora do que ela pensava. Mildred ficou constrangida ao notar que o conde podia ler seus pensamentos.

- É muito bonita, Mademoiselle, e não posso acreditar que qualquer homem, até mesmo seu pai, não a ouça, quando pede alguma coisa.

- Vou tentar... Vou tentar, com todas as minhas forças.

O francês foi até uma das vigias e disse:

- Acho que agora deve voltar para casa. Se seu pai chegar e descobrir que não está lá, vai ficar escandalizado por saber que está na companhia de um sujeito como eu.

- Tenho certeza de que, se você conhecesse meu pai em outras circunstâncias, iriam gostar um do outro.

- Mas, sendo estas as circunstâncias, temos que ficar longe - replicou o Conde, com firmeza.

Dirigiu-se para a porta. A moça não teve outra alternativa a não ser levantar-se e segui-lo.

Tinha a estranha impressão de que estava deixando a segurança atrás de si, mas não podia expressar este pensamento. Assim sendo, acompanhou o Conde até o tombadilho.

Quando se dirigiu para a prancha que levava ao molhe, notou que os marinheiros a observavam disfarçadamente.

Embora fossem franceses, eles a admiravam. Achou isto uma impertinência, pois eram homens fora-da-lei; piratas que, na verdade, deveriam ter medo, caso ela os traísse.

De novo o Conde devia ter lido seus pensamentos, pois, assim que chegaram em terra, disse:

- Um dia, espero ter o privilégio de lhe apresentar meus amigos, pois é deles que a composta a tripulação; amigos que não desejam viver como refugiados, mas que foram obrigados a isto pelos ingleses seus patrícios, Mademoiselle.

A maneira com que se expressou fez com que Mildred ficasse envergonhada.

- Sinto muito... por todos os que foram vítimas da guerra - disse ela.

- Em geral, são os inocentes que mais sofrem - observou o Conde.

Caminharam por entre as árvores frondosas e as buganvílias, até avistarem a casa.

- Vou deixá-la, agora - disse o pirata.

- Por favor, não vá - pediu a moça, impulsivamente.

O Conde fitou-a, surpreso. Ela continuou:

- Ainda não sabemos o que seu criado e Abe descobriram a respeito dos rebeldes. E se eles estiverem vindo para cá? Eu só poderia escapar se você me deixasse ir para o seu navio.

Ao disser isto, percebeu que o seu maior medo não era encontrar rebeldes, e sim perder o conde.

Queria ficar ao lado dele, conversar com ele, e, mais ainda, queria que a protegesse de Maigrin.

- Se os rebeldes estiverem por aqui, nem eu, apesar de pirata, estarei em segurança.

- Quer dizer que eles o consideram um aristocrata.

- Exactamente! O motivo de Fédor ter iniciado a revolta é ele ter estado em Guadalupe, que é o centro da revolução francesa nas Índias Ocidentais.

- É verdade? - perguntou Mildred.

- Ouvi dizer que Fédor foi nomeado comandante-geral dos rebeldes em Granada.

- Quer disser que isto já foi planejado há algum tempo?

O Conde inclinou a cabeça afirmativamente.

- Eles têm armas e munições, bonés de liberdade, cocares e uma bandeira onde está escrito: "Liberte, Egalité ou la Mort".

A moça soltou uma exclamação.

- Quer disser que os ingleses não sabem disso?

O Conde encolheu os ombros. Mildred compreendeu que os ingleses em St. George tinham sido excessivamente complacentes, ou estavam ocupados demais, divertindo-se, para prever a possibilidade de uma rebelião.

Era estranho que tivessem sido colhidos de surpresa, enquanto o conde estava tão bem informado.

Ao mesmo tempo, sabia que em Granada, muitas vexes, tomava-se conhecimento de coisas ocorridas nas outras ilhas, antes que o pessoal de lá fosse informado.

Conforme o Conde dissera, até mesmo os pássaros levavam os mexericos através do mar azul. O facto de haver franceses sob a jurisdição britânica, e vice-versa, era um convite para os escravos se rebelarem, caso houvesse oportunidade.

Os dois atravessaram o jardim que fora bonito e bem cultivado, e que agora era uma desordem e uma orgia de cores.

Havia canteiros de flores inglesas, que a mãe de Mildred tentara cultivar, mas agora, devido à desordem e ás ervas daninhas, pareciam fazer parte do cenário tropical.

Na casa reinava o silêncio, e a jovem percebeu imediatamente que seu pai não tinha voltado.

Entrou, seguida pelo conde, e dirigiu-se imediatamente para a cozinha. Não havia ninguém lá.

- Seu criado e Abe ainda não voltaram - disse ela.

- Então, sugiro que sentemos e esperemos por eles - disse o pirata. - Na sala de visita é mais fresco do que em qualquer outro lugar.

- Quando cheguei aqui, hoje de manhã, fiquei imaginando por que a mobília não estava coberta - disse Mildred. - Você costuma ficar sentado ali?

- De vez em quando. Fazia com que eu pensasse em meu lar, quando era criança, e também em minha casa da Martinica, que é muito bonita. Gostaria de mostrá-la a você, um dia.

- E eu gostaria de ir - respondeu a moça, com simplicidade.

Os olhos de ambos se encontraram. Depois Mildred desviou os seus timidamente.

- Talvez eu deva lhe oferecer uma xícara do seu café? - perguntou ela.

- Não desejo nada, a não ser conversar com você. Sente-se, Mademoiselle, e fale-me de sua vida.

A jovem riu.

- Há muito pouco que você ainda não sabe. Prefiro que fale sobre você.

- Para mim, seria muito monótono - replicou o conde. - E, como anfitriã, precisa ser generosa com seu hóspede.

- Um hóspede não convidado, que se pôs muito à vontade.

- É verdade. Mas, quando eu estava na cama, olhando para o retrato à minha frente, achava que você seria boa a hospitaleiros como tem sido.

- Tenho certeza de que mamãe iria gostar de você - disse a moça, impulsivamente.

- Não podia dizer uma coisa que me agradasse mais - afirmou o francês. - Ouvi falar de sua mãe e sei que era muito compreensiva com todos os que a conheciam. E garanto que tinha muito orgulho da filha.

- Não ficaria orgulhosa se soubesse o que papai... está planejando para mim - murmurou Mildred.

- Já decidimos que você precisa falar com seu pai e fazer com que compreenda o que sua mãe pensaria desse casamento se estivesse viva.

 Ele falou com severidade, como se fosse um mestre-escola, esperando ser obedecido.

- Meu pai mudou... depois que nos separamos. E, no navio, quando vínhamos para cá... tive a impressão de que alguma coisa o preocupava.

Houve um momento de silêncio. Depois, o conde disse:

- Se ele tivesse ficado aqui a cuidar das plantações, tenho certeza de que ganharia o dinheiro que necessita para não depender de... outras pessoas.

Ele fez uma pausa, antes das duas últimas palavras. Mildred compreendeu que ia dizer "Roderick Maigrin" e depois mudou de idéia.

- Papai jamais conseguiu ganhar dinheiro com a fazenda!

- Isso porque ele faz várias culturas ao mesmo tempo - disse o conde. - Deveria concentrar-se numa só, que tivesse maior procura.

A moça, fitou-o, surpresa, e ele sorriu.

- Tive muito sucesso com minhas plantações e ganhei bastante dinheiro.

- Você viu as nossas?

- Vi, sim. Tive curiosidade a respeito delas. Fiquei imaginando por que motivo seu pai se torna dependente dos amigos, quando poderia ganhar muito dinheiro com sua própria fazenda.

- Sempre ouvi dizer que os franceses são práticos, mas você não me parece um homem de negócios.

- Sou um homem prático, como diz você - replicou o pirata.

- Quando meu pai morreu e tive que tomar conta das fazendas, em Martinica, resolvi que teria sucesso.

- E agora as perdeu - observou Mildred. - É uma pena que iso tenha acontecido. Sinto, por você.

- Tenho certeza de que as recuperarei, um dia. Enquanto isso, por favor, não pode ajudar-nos aqui?

- Gostaria muito de fazer isso, por sua causa - declarou o conde. - Mas sabe que é impossível. Só o que posso sugerir é que seu pai se dedique ao cultivo da noz-moscada. As moscadeiras se dão melhor aqui do que nas outras ilhas. E há sempre grande procura, no mundo inteiro, como sempre houve.

- Creio que papai não se interessa por essa cultura, porque as árvores levam tempo para frutificar.

O pirata inclinou a cabeça.

- É verdade. De oito a nove anos. Mas a produção aumenta sempre, até as árvores terem mais ou menos trinta anos. E a safra normal pode ter de três a quatro mil nozes por árvores, todos os anos.

- Não sabia que era tanto! - exclamou Mildred.

- Melhor ainda, as moscadeiras dão duas grandes safras. Vocês já tem aqui muitas árvores. Infelizmente, estão abafadas por outras árvores frutíferas e, além do mais, a vegetação rasteira abafa e prejudica as moscadeiras.

Fez uma pausa. Percebendo que a moça o ouvia atentamente, continuou:

- Perdoe-me, por estar lhe dando uma lição. Mas, francamente, tenho pena de ver uma terra boa, que poderia ser bem aproveitada, estar assim desperdiçada.

- Gostaria que dissesse isso a meu pai.

 - Duvido que me desse ouvidos - replicou o comte. - Mas talvez você pudesse falar com o administrador da fazenda.

 - Era Abe, mas papai o levou consigo, porque não podia dispensar seus serviços.

 Houve silêncio entre eles.

 Mildred deu um longo suspiro.

 - Você me faz sentir desamparada. O problema é grande demais para mim.

 - Claro que é. E não é justo que eu lhe fale nisso. Na sua idade, devia estar aproveitando a vida e achando tudo excitante e belo. Por que haveria de se preocupar com uma terra improdutiva e com piratas que use a sua casa quando você está ausente?

O conde disse isso em voz baixa, como se falasse consigo mesmo. A moça riu.

- Acho os piratas muito excitantes. Um dia, terei uma história para contar aos meus netos e eles vão achar que fui muito aventureira.

Ela se expressou com naturalidade, como se falasse com o pai ou com a mãe.

Depois, ao encontrar o olhar do francês, compreendeu que, se viesse a ter filhos, seriam de Roderick Maigrin. Teve vontade de gritar.

Mas a expressão de Beaufort fê-la corar e sentir que o seu coração batia acelerado, de maneira estranha.

Nisto ouviram o som de vozes e ficaram imóveis.

- É Abe! - exclamou Mildred, aliviada.

Levantou-se de um salto e atravessou a sala, correndo. Quando chegou ao hall gritou:

- Abe! Abe!

Abe saiu da cozinha, seguido pelo criado francês.

- O que descobriu? - perguntou a jovem.

- As coisas estão muito más, senhora - respondeu o criado.

Antes que dissesse qualquer outra coisa, o criado francês se aproximou do conde, que seguira Mildred, e começou a falar em francês, tão rapidamente que a moça não conseguia entender tudo o que ele dizia.

Depois que o criado terminou, ela perguntou:

- O que foi que aconteceu?

- A situação não é boa - respondeu o pirata. - Quando a revolta começou em Grenville, Charlotte Town foi atacada por outro bando de insurgentes.

Mildred soltou uma exclamação horrorizada.

Charlotte Town, que ficava na parte ocidental da ilha, um pouco acima de St. George, era um lugar que ela conhecia bem.

- Muitas vidas se perderam - continuou o conde. - Vários dos britânicos foram feitos prisioneiros.

- Sabe quem são eles?

O conde consultou seu criado, mas este sacudiu negativamente a cabeça.

Abe pareceu entender a pergunta, porque disse:

- O Dr. John Hay foi preso.

- Oh, não! - exclamou a jovem.

- O médico e o reitor de Charlotte Town foram levados para Belvedere - continuou Abe.

- Por que Belvedere? - indagou Mildred.

- É lá que Redon tem o seu quartel-general - explicou o conde - Os prisioneiros de Grenville também foram levados para lá.

A moça juntou as mãos, aflita.

- Que vamos fazer? E há noticias de meu pai?

Abe sacudiu a cabeça.

- Não, senhora. Mandei um rapaz indagar se o patrão vem para cá.

O criado francês disse ainda muitas coisas. Depois, o pirata explicou:

- Até agora, parece que não há barulho em St. George, que é onde os soldados ingleses se encontram. Assim, creio que no momento você não corre perigo. E, depois que seu pai vier, estará protegida.

Mildred nada disse, limitando-se a olhá-lo. Mas, como se achasse que a moça lhe fizera uma pergunta, o conde falou:

- Até seu pai chegar, meu navio ficará na enseada.

- Obrigada.

Ela disse isso baixinho. Todavia a expressão de seus olhos falava mais alta.

- Agora, como Abe não teve tempo de fazer o almoço e, assim como eu, você certamente está com fome, convido-a para uma refeição simples, a bordo do meu navio.

O sorriso de Mildred iluminou-lhe o rosto.

- Sabe que isso muito me agradaria.

O conde deu umas instruções ao seu criado e este saiu correndo pela porta da frente, dirigindo-se para a praia.

A jovem chamou Abe de lado.

- Escute, Abe, estou em segurança com monsieur Beaufort. Ele não é realmente um pirata e sim um refugiado da Martinica.

- Sei disso, senhora.

- Não me contou nada! - replicou a moça, em tom de censura.

- Não esperava encontrá-lo aqui.

Mildred encarou-o.

- Você sabia que ele já tinha estado aqui? - perguntou.

Houve uma pequena pausa. Ela percebeu que Abe estava pensando se devia ou não dizer a verdade.

- Sim, senhora, esteve aqui, mas nada fez de mal. Um bom homem! Enquanto estava aqui, pagou pelo que levou para o navio.

- Pagou o quê?

- Porcos, galinhas, perus.

Mildred riu.

Havia uma enorme diferença entre um pirata que pagava pelo que requisitava e outros, como Will Wilken, que roubava o que queria e matava quem interferisse nos seus planos.

- Você e eu confiamos em Monsieur, Abe, mas papai talvez fique zangado. Se você souber que ele vem para cá enquanto eu estiver a bordo, vá me avisar, para que eu volte antes que ele chegue.

Não tinha medo da reação do pai e sim de que Maigrin o acompanhasse.

Tinha certeza de que Maigrin atiraria primeiro e faria perguntas depois. Se ela fosse a causa da morte do conde, jamais se perdoaria.

- Não se preocupe, senhora - disse Abe. - Quando o patrão chegar, estaremos prontos.

- Obrigada, Abe.

Como fazia mais calor do que no princípio da manhã, Mildred subiu para buscar uma sombrinha.

Quando tornou a descer, viu que o pirata a esperava no hall. Sentiu-se como uma criança que ia fazer um passeio inesperado e teve a impressão de que o conde sentia a mesma coisa.

Sem uma palavra, foram para o terraço e desceram a escada de madeira, que estava precisando de conserto. O conde estendeu a mão para ajudar Mildred a descer. De novo ela sentiu uma estranha vibração àquele contacto, só que, desta vez, mais intensa.

Ele apertou a mão da moça e, quando chegaram ao fim da escada, não a largou.

- Estou ansiosa por um almoço francês - disse ela.

- Infelizmente não tive tempo de mandar preparar o que gostaria de lhe oferecer - respondeu o conde. - Mas Henri, que esta comigo há vários anos, fará o melhor possível.

- Quero também visitar o resto do navio. Há quanto tempo o possui? E foi você quem o construiu?

O conde soltou uma gargalhada.

- Roubei-o!

Mildred esperou uma explicação.

- Quando os ingleses invadiram a Martinica, compreendi que tinha que partir e pretendia sair no meu iate particular. Mas, ao me dirigir ao cais, vi este navio ali ancorado. Disse ao amigo que me acompanhava:

- É uma pena estar na Europa o homem que trabalha para a companhia, proprietária deste navio. É um navio bom demais, para cair nas mãos dos ingleses.

- Então, você o pegou?

- Parecia o mais certo a fazer.

- Creio que foi muito sensato e prático, duas coisas que você parece ser.

- Sim. É claro. Além disso, eu poderia levar mais gente comigo, levei também grande parte de minha mobília e os retractos da família, para um lugar onde esses objetos certamente estarão seguros até que terminem as lutas.

- Onde estão? - perguntou Mildred, curiosa.

- Em St. Martin.

O conde não disse mais nada e a jovem achou que ele não queria prolongar o assunto.

Caminharam em silêncio por entre as palmeiras. Quando avistaram o navio, o pirata soltou a mão de Mildred.

Fazia agora muito calor, mas havia uma brisa que vinha do mar.

O navio estava silencioso, mas Mildred notou que as velas não estavam presas e sim prontas para serem içadas a qualquer momento.

"Depois que o conde partir, nunca mais o verei", pensou a moça.

Achou que os momentos passados na companhia do pirata eram preciosos e que sempre se lembraria deles.

Seguiram pelo corredor e desceram para a cabina. As vigias estavam abertas e o sol penetrava por ali.

Havia uma mesa posta para dois, com uma toalha de um branco imaculado e um vaso de flores no centro.

Além do cheiro de cera, havia um delicioso aroma de comida. Antes que Mildred dissesse alguma coisa, o criado francês que estivera na casa da jovem entrou, carregando uma terrina.

A moça e o pirata se sentaram. O criado, que se chamava Jean, serviu a sopa em dois belos pratos de porcelana.

Havia também um pão delicioso. Quando o provou. Mildred percebeu que continha cravo e outras ervas perfumadas.

Era mesmo delicioso e o aroma despertou ainda mais a sua fome. Eles comeram em silêncio.

O criado serviu vinho. Mildred e o pirata entreolharam-se e ela se sentiu muito feliz.

Pela primeira vez, desde que voltara para casa, não tinha medo, nem estava preocupada.

Terminada a sopa, Jean trouxe lagostas fritas na manteiga. Eram muito frescas, devendo ter sido apanhadas uma hora antes. Mildred calculou que tinham sido pescadas nas redes que sua mãe sempre tinha preparadas ali enquanto vivera.

Mas não fez comentário a este respeito, comendo com prazer, pois as lagostas eram macias e deliciosas. A salada que acompanhava o prato era diferente de qualquer outra que havia comido em Londres.

Depois, houve queijo e frutas, mas Mildred não conseguiu comer mais nada, de modo que ela e o conde se recostaram nas cadeiras e beberam o café.

Finalmente o silêncio foi rompido, embora eles tivessem se comunicado um com o outro o tempo todo.

- Se a vida dos piratas é esta, então, quero ser um - declarou a moça, rindo.

- É este o momento em que um pirata descansa ao lado de sua dama e esquece o perigo, a incerteza e o desconforto de viajar pelos mares traiçoeiros.

- Por outro lado, de ser excitante - comentou a jovem. Você tem liberdade para ir aonde quiser; não recebe ordens de ninguém e pode viver de expedientes.

- Conforme você disse, sou sensato e prático - disse o pirata. - Quero mulher e filhos, uma vida segura, mas isso é uma coisa que jamais poderei ter.

Parecia estar dizendo uma coisa de suma importância, mas Mildred, sentindo-se intimidada, não olhou para ele. Pegou a colherinha para mexer o café, embora não houvesse necessidade disso.

- A vida de um pirata certamente não serve para uma mulher - continuou o conde, como se seguisse o curso dos próprios pensamentos.

- E se não houver alternativa? - perguntou a moça.

- Sempre há uma alternativa para todas as situações - replicou ele. - Poderia abandonar a pirataria, mas eu e meus homens morreríamos de fome.

Houve silêncio, um silêncio significativo. Depois, o francês disse:

- Por que não falamos de coisas mais interessantes? De livros e de quadros? De nossos idiomas diferentes? Tenho muita vontade de ouvi-la falar francês, Mademoiselle.

- Talvez ache que falo mal - respondeu Mildred, em francês.

- Sua pronuncia é perfeita! - exclamou o conde. - Com quem aprendeu?

- Com minha mãe. A professora dela era parisiense.

- Isso é óbvio.

- Também tive aulas na escola da Inglaterra - explicou a moça. - Mas o francês era uma língua pouco apreciada e todos ficaram surpresos quando desejei aprender o idioma de um povo que estava matando nossos compatriotas.

- Acho compreensível - disse o pirata. - Mas, embora a Inglaterra esteja actualmente em guerra com o meu pai, ainda quero falar inglês fluentemente!

- Por quê?

- Talvez venha a ser útil.

- Seu inglês é muito bom, a não ser por algumas palavras que você não pronuncia corretamente. E, às vezes, acentua a sílaba errada.

O francês sorriu.

- Muito bem. Quando estivermos juntos, você corrige o meu inglês e eu corrijo o seu francês. Combinado?

- Sim, é claro. E, para que haja justiça, devemos falar uma parte do tempo em inglês e uma em francês. E nada de trapaças!

O conde riu.

- Será interessante ver qual é o melhor aluno. Tenho a impressão, Mildred, que você será à vencedora, pois é mais sensível que eu.

Ela notou que Beaufort a chamara pelo primeiro nome. De novo ele pareceu ler-lhe os pensamentos, pois disse:

- Não posso continuar chamando-a de "Mademoiselle" ou de milady, quando já nos conhecemos bem demais para estas formalidades.

- Só nos conhecemos hoje de manhã - lembrou ela.

- Não é verdade - replicou o pirata. - Eu já a conhecia e admirava, além de conversar com você todas as noites. E sua imagem me acompanhava durante o dia.

Este modo de falar fez com que ela corasse intensamente.

- É muito bonita! - continuou o conde. - Bonita demais, para a minha paz de espírito. Se eu fosse mesmo sensato e prático, faria o navio zarpar logo depois de deixá-la em terra.

- Não, por favor!... Você prometeu que ficaria... até meu pai voltar.

- Estou sendo egoísta e só pensando em mim - replicou o pirata.

- Estou sendo egoísta e fazendo a mesma coisa! - reconheceu Mildred.

- Quer mesmo que eu fique?

- Eu lhe suplico! Ficarei de joelhos, se é o que deseja.

O conde inclinou-se de repente sobre a mesa e estendeu a mão. Lentamente, porque estava encabulada, a jovem colocou a sua mão na dele.

- Agora escute, Mildred. Sou um homem sem lar, sem futuro, um refugiado, tanto para os franceses como para os ingleses. Deixe que eu parta, enquanto isso é possível.

A moça apertou os dedos dele:

- Não posso impedi-lo de... partir.

- Mas está me pedindo para ficar...

- Quero que fique. Por favor... quero... Se você for embora, vou ter muito... medo.

Os olhos de ambos se encontraram. Desta vez, Mildred não conseguiu desviar os seus. Depois, o pirata disse:

- Conforme você lembrou, só nos conhecemos há poucas horas.

- Mas o tempo não afecta o que... sinto por você.

- E o que é que sente?

- Sinto que, quando estou com você... estou segura e que nada... de mal me acontecerá.

- Gostaria que isso fosse verdade - declarou ele.

- É verdade! Sei que é verdade!

O conde ergueu a mão de Mildred e beijou-a.

- Está certo. Vou ficar. Mas, quando eu precisar partir, você não deverá censurar-se ou tampouco se entristecer.

- Prometo... Não haverá autocensura nem tristeza.

Mas, ao dizer isto, a jovem achou que não teria condições de cumprir a promessa.

Conversaram durante mais algum tempo. Jean, o criado, entrou e levou embora as xícaras de café. O conde disse a Mildred:

- Venha recostar-se no sofá e levante os pés. É a hora da siesta e meus homens estarão descansando no tombadilho, ou em suas dependências. Acho pouco provável que alguém nos incomode, porque seu pai não há de querer viajar com o calor do dia.

Mildred sabia que era verdade. Aceitou a sugestão do conde.

Reclinou-se no sofá, erguendo os pés.

Ele puxou uma poltrona para perto da moça e espichou as pernas compridas.

A moça sorriu.

- Será que isto está realmente acontecendo? - perguntou. - Acho que tanto franceses como ingleses ficariam surpresos, se nos vissem agora.

- Os ingleses certamente ficariam aborrecidos - replicou o conde. - Detestam os piratas, porque estes desafiam sua supremacia no mar. E esta supremacia corre perigo, com rebeliões tanto aqui como em Guadalupe.

Fez uma pausa e continuou:

- Por outro lado, dominam a Martinica e várias outras ilhas, de modo que o porto de St. George deverá receber reforços, cedo ou tarde.

Mildred sabia que era verdade, mas acreditava que os rebeldes poderiam causar grande mal, antes que chegassem reforços.

Dizia-se que nas outras ilhas eles tinham torturado seus prisioneiros, antes de matá-los.

A jovem estremeceu ao imaginar as humilhações e talvez os sofrimentos do Dr. Hay e do reitor anglicano que tinham sido feitos prisioneiros.

O conde a observava.

- Esqueça-se disso! Não há nada que possa fazer - disse ele.

- Pensar nesses horrores e fazer com que cheguem mais perto e talvez isto nos torne mais vulneráveis.

Mildred fitou-o, interessada.

- Acha que existe transmissão de pensamento? É que o pensamento é bastante forte para atrair a atenção?

- Não estou falando de vodu, nem de magia negra, quando afirmo que os nativos da Martinica sabem o que está acontecendo a setenta e cinco quilômetros de distancia, no outro lado da ilha, muito antes de ser possível a chegada de um mensageiro com a informação.

- Quer dizer que eles se comunicam de um modo que não podemos fazer?

- Nunca subestimei os poderes deles.

- Isto é muito interessante.

- Como você sendo um pouco irlandesa, pode compreender - observou o conde.

- Sim, é claro. Papai costumava falar dos poderes das feiticeiras irlandesas, que podiam prever o futuro. Ouvi falar também dos duendes, quando era menina.

- Assim como dos espíritos que habitam as montanhas e as florestas da Martinica - disse o conde.

- Por que, então, não o preveniam, antes que os ingleses atacassem a ilha? - perguntou Mildred.

- Talvez eles tenham tentado, mas não lhes demos ouvidos! - replicou o conde. - Quem vai a Martinica pode senti-los, ouvi-los e talvez vê-los.

- Está ai uma coisa que eu gostaria de fazer - disse a moça, impulsivamente.

- Precisa ter confiança no destino - aconselhou o conde. - Como você bem sabe, ele já a tirou de uma situação difícil. Por isso, sou muito grato ao destino!

- E também eu, por estar aqui - replicou Mildred. - Quando cavalgava pela floresta, tive a sensação de que estava escapando de um grande perigo, em direção a uma coisa muito diferente.

- E o que será isso? - perguntou o pirata.

A jovem respirou fundo.

 - É o que sinto, aqui sentada, conversando com você. Não sei descrever exactamente... mas isto me torna muito... feliz.

Houve um momento de silêncio. Depois, o conde disse:

- Actualmente, é só como desejo que você se sinta.

 

As horas de calor passavam lentamente. Mildred e o conde às vezes conversavam, às vezes ficavam em silencio, deixando que só a magia do momento fluísse entre os dois.

A moça percebia que ele a fitava de um modo que a deixava encabulada, e lhe causava uma dupla sensação de prazer e de constrangimento.

Finalmente, ouviram passos lá em cima e o assobiar de um homem contente com o seu trabalho. O Conde levantou-se.

- Creio que está na hora de levá-la embora. Se seu pai vier para casa, deverá chegar dentro de uma hora.

Mildred sabia que era este o tempo que seu pai levaria para chegar, se viesse pela estrada e não através da floresta.

Gostaria de ficar no navio por mais tempo, conversando com o conde, ou mesmo apenas ficando ao lado dele, mas não encontrou uma desculpa que não parecesse intrusão. A contragosto, levantou-se do sofá.

Estivera com a cabeça apoiada numa almofada macia. Ajeitou os cabelos, achando que deviam estar em desordem, e olhou ao redor, à procura de um espelho.

- Está linda! - disse o pirata. A jovem corou novamente.

Ele observou-a e continuou:

- Gostaria de lhe dizer o quanto apreciei sua presença aqui. Isto me fez sentir como se tivesse saído do tempo e estivesse em paz com o mundo. Ou melhor, em paz comigo mesmo, porque o mundo lá fora, na verdade, não importa.

- É o que também sinto - declarou Mildred. Mas não conseguiu olhar para ele.

O pirata abriu a porta da cabina.

- Vamos. Precisamos saber se há sinal de seu pai. E você precisa estar preparada para conversar com ele e fazer com que compreenda o seu ponto de vista.

A moça não respondeu.

Durante aquelas horas, o conde lhe dera uma sensação de segurança e, como ele dissera, de paz. Era difícil para Mildred pensar no que a esperava.

O conde estava ao lado dela. O sol brilhava, o mar tinha um tom azul vivo, as árvores se moviam com graça ao vento quente.

Quando chegou ao tombadilho, sorriu para um homem que mexia nas cordas. Ele cumprimentou-a com um gesto que era muito elegante, era muito francês e retribuiu o sorriso.

O conde parou.

- Este é Pierre, meu amigo e meu vizinho quando morávamos na Martinica.

Disse isso em francês e virou-se para o amigo:

- Pierre, deixe que lhe apresente esta linda moça, cuja hospitalidade estamos gozando, porque a Enseada Secreta lhe pertence.

Pierre ergueu-se de um salto, beijando a mão que Mildred lhe estendia.

- Enchanté, Mademoiselle.

A moça achou que eles poderiam estar num salão em Paris, ou de Londres, em vez do tombadilho de um navio-pirata.

Desceu para terra, o conde seguiu-a.

- Amanhã, se eu ainda estiver aqui, gostaria que você conhecesse o resto da tripulação. É melhor que eles continuem no anonimato. É por isso que os chamo pelo nome próprio, mas todos eles são homens que renunciaram a diversas posições importantes, para não ficar sob a dura jurisdição inglesa.

- Somos assim tão duros quando nos vemos em tais circunstâncias? - perguntou Mildred.

- Todos os conquistadores parecem intoleráveis para os conquistados.

O pirata disse isto em tom áspero. Por um momento a moça achou que ele a detestava, por ser uma inimiga.

Sem querer, fitou-o com ar de súplica. Ele disse:

- Perdoe-me. Estou tentando não ficar amargurado e, principalmente, não pensar em mim e sim em você.

- Sabe que desejo que faça isto - respondeu Mildred, em voz baixa.

Mas, sendo perceptiva, compreendeu que o que ele lamentava era não poder oferecer-lhe a segurança de sua casa na Martinica, porque os países de ambos estavam em guerra um com o outro. Lastimava também não poderem se encontrar como pessoas comuns, de nacionalidades diferentes.

Caminharam por entre as moitas e os pinheiros, até avistarem a casa. A jovem parou.

Estava tudo muito silencioso e ela teve certeza de que seu pai ainda não voltara.

Se tivesse havido sinal de sua aproximação, Abe teria ido avisá-la.

Ao mesmo tempo, como o conde estava em sua companhia, ele precisava ter cuidado e não deixar que corresse perigo.

Por um momento, pensou que ele ia deixá-la e voltar para o navio. Mas o pirata continuou ao lado dela. Juntos, subiram a escada para o terraço e entraram em casa.

Nisto, Mildred ouviu a voz de Abe, conversando com alguém, e chamou-o:

- Abe!

O criado apareceu imediatamente. Por seu rosto sorridente, ela percebeu que tudo estava bem.

- Boas noticias, senhora.

- Do patrão.

- Não. Nenhuma noticia da casa do Sr. Maigrin, mas Momma Mabel voltou.

Mildred soltou uma exclamação de alegria. Perguntou:

- para ficar? para trabalhar aqui?

- Sim, senhora. está contente por poder voltar.

- Isso é óptimo!

A moça virou-se para o conde e perguntou:

- Monsieur, quer dar-me a honra de jantar comigo, aqui, hoje à noite? Não posso prometer uma refeição feita por um chef francês, mas minha mãe sempre achou que Momma Mabel era a melhor cozinheira da ilha.

O conde inclinou-se.

- Merci, Mademoiselle. Tenho muito prazer em aceitar um convite tão gentil.

Mildred deu uma risadinha encantada.

- Digamos: sete e meia?

- Serei pontual - prometeu o pirata. .

Inclinou-se novamente. Depois, virou, tomando a direção do navio.

A jovem observou-o até ele desaparecer.

- Abe, vamos ter um jantar no estilo dos que mamãe dava aqui, com candelabros na mesa e a prataria. Temos vinho?

- Uma garrafa, senhora. Escondi-a do patrão.

Mildred sorriu.

- Sua mãe sempre escondia algumas garrafas de bom vinho, para ocasiões especiais. Do contrário, seu marido beberia indiscriminadamente, partilhando-o com quem quer que aparecesse em sua casa, sem considerar o bom paladar dessa pessoa pelo vinho.

- Faça um aperitivo de frutas - recomendou a moça. - E, naturalmente, deverá servir café, depois do jantar. Agora vou falar com Momma Mabel.

Foi para a cozinha. Conforme esperava, ali encontrou a figura volumosa de Momma Mabel, que tinha nos lábios um sorriso alegre.

Cozinhava tão bem, que todo o mundo na ilha dava imenso valor aos convites para ir jantar na Enseada Secreta.

Mildred lembrava que o governador sempre se queixava de não poder encontrar uma cozinheira tão boa quanto aquela. A condessa havia desconfiado de que ele chegara mesmo a tentar atrair Momma Mabel, com um ordenado mais alto.

Mas a cozinheira, assim como muitos dos criados da fazenda, se considerava parte da família.

Mildred conversou com Momma Mabel durante algum tempo. Depois foi procurar Abe que, conforme ela esperava, estava limpando as pratas.

Ficou observando-o durante alguns minutos e disse, em voz baixa:

- Se o patrão voltar, você precisa ir avisar Monsieur para não vir jantar.

Abe reflectiu sobre isso. Inclinou a cabeça concordando e depois disse:

- Amanhã, Bella vai voltar.

- Pensei que tivesse ido embora.

- Não está muito longe - disse Abe.

Bella era a criada que tinha tomado conta de Mildred em criança. Quando a menina cresceu, era quem fazia todos os seus vestidos.

A condessa a ensinara e antes de ser uma boa criada de quarto.

Mildred sabia que depois que Bella voltasse ela seria mimada e suas roupas de Londres iriam durar mais, sob os cuidados dela.

Depois, achou que estava sendo excessivamente otimista.

Provavelmente seu pai a obrigaria a voltar para a casa de Maigrin, onde se casaria, e Bella não iria com ela.

Reflectiu que, quando o pai chegasse, teria que procurar convencê-lo e não obrigá-la a casar com Maigrin. Diria que, se a fazenda fosse bem dirigida, eles teriam dinheiro suficiente para viver tranquilos e felizes, embora a mãe tivesse morrido.

- Por favor, meu Deus... fazei com que papai me ouça - rezou Mildred.

Achou que sua prece chegaria ao céu. Como desejava começar a se aprontar para o jantar, subiu para o quarto.

As malas não tinham sido desfeitas; ela achou que Abe tinha agido bem em deixar esta tarefa para Bella.

Tirou de uma das malas um de seus vestidos mais bonitos.

Tinha sido feito por sua mãe, antes que adoecesse. Embora Mildred ainda estivesse na escola, de vez em quando tinha permissão para jantar com os amigos da condessa, quando se tratava de uma reunião intima.

Ela sacudiu o vestido para desamassá-lo e ajeitou a saia rodada e o corpete com mangas bufantes.

"Será que ele vai gostar?" - pensou.

Quando o conde entrou no salão, onde ela o esperava, Mildred não ficou decepcionada com a expressão do rosto dele.

Embora ainda não estivesse escuro, havia ali velas acesas.

Quando o pirata apareceu, a jovem ficou de respiração suspensa, ao vê-lo tão belo.

Ele era elegante com roupas comuns, mas, com calção de cetim e meias de seda, com um paletó de noite e uma gravata com rufos, era o homem mais atraente do mundo.

A moça teve dificuldade em encontrar palavras para cumprimentá-lo e o mesmo pareceu acontecer com o conde.

Por um momento, ficaram apenas olhando um para o outro.

Depois, quando o pirata se aproximou, Mildred teve a impressão de que o rosto dele estava iluminado por uma luz interior.

- Bon soir, Mildred.

- Bon soir, Monsieur le Conde.

- E, agora, vamos dizer isto em inglês - sugeriu ele.

Foi o que fez, cumprimentando a jovem por sua beleza e chamando-a por seu nome próprio.

Ela também desejou chamá-lo de Beaufort, mas não conseguiu pronunciar a palavra.

Sentindo-se encabulada, disse, vivamente:

- Espero que o jantar não o decepcione.

- Nada poderia me decepcionar hoje à noite.

Mildred fitou-o e achou que, à luz das velas, os olhos dele tinham uma expressão estranha e diziam coisas que ela não entendia.

Nisto Abe entrou com um aperitivo de frutas, que continha um pouco de rum, e noz-moscada salpicada na parte de cima do líquido.

A moça pegou seu copo, achando difícil dizer qualquer coisa, embora tivesse muito a dizer. Ficou desesperada ao pensar que não haveria tempo para isso.

Jantaram na sala que a mãe dela tinha decorado com cortinas verdes. As paredes tinham um tom verde-claro, de modo que eles tinham a impressão de estar lá fora, no jardim.

As velas dos candelabros de prata iluminavam a mesa. Quando a noite caiu, elas pareciam estar numa ilhazinha de luz, onde havia apenas duas pessoas.

O jantar foi delicioso. O conde aprovou o clarete que finalizou a refeição, mas o bebeu distraidamente, fitando a jovem.

- Fale-me de sua casa da Martinica - pediu ela.

Como se achasse que devia fazer aquele esforço, o pirata contou que seu pai a havia construído e que, mais tarde, ele próprio chamara um arquiteto que viera especialmente da França para torná-la uma das casas mais bonitas da ilha.

- Há um consolo - disse o conde. - Conforme eu esperava, fiquei sabendo que os ingleses fizeram de minha casa seu quartel-general, de modo que não vai ser danificada. E nem Será queimada de propósito, como aconteceu com as casas de outros fazendeiros.

- Alegro-me em saber disso.

- E eu também! Um dia a mostrarei a você. Verá como os franceses conseguem viver com conforto, mesmo que estejam longe da pátria.

- Que me diz de suas propriedades na França?

Ele encolheu os ombros.

- Espero que a revolução não tenha afectado o sul, como afectou o norte. Como Vence é uma cidadezinha fortificada, espero que tenha escapado.

- Também o espero, por sua causa - disse ela, suavemente.

- Aconteça o que acontecer, não pretendo voltar a França, a não ser para uma visita. Fiz da Martinica o meu lar, como aconteceu com meu pai, e vou esperar até poder recuperar o que é meu.

Ao terminar a frase, a voz dele se tornou mais profunda.

- Depois, vou restaurar a casa, para que volte a ter a antiga glória e fique como herança para os meus filhos... se eu os tiver.

Houve uma pausa antes das ultimas palavras. Eles estavam tão bem afinados, que Mildred achou que o conde estava querendo dizer que, se não pudesse ter filhos com ela, permaneceria solteiro.

Mas, assim que pensou nisso, achou que era um absurdo.

Os casamentos entre os franceses eram arranjados quase que desde o nascimento: era de admirar que o conde ainda não tivesse casado.

Quando casasse escolheria uma francesa, e nobre como ele.

Seria impossível casar com uma mulher de outra nacionalidade.

A mãe de Mildred lhe contara como os franceses eram orgulhosos, principalmente os das famílias antigas, e como os nobres que foram guilhotinados entraram nas carroças de cabeça erguida, desprezando seus executores.

De repente, ela se sentiu pequena e insignificante.

Como seria possível a filha de um irlandês, pobre e bêbado, casar com um homem cujos antepassados provavelmente descendiam de Carlos Magno?

Olhou ao redor, tendo pela primeira vez consciência do estado da sala, com suas paredes descascando, cortinas rotas e tapete puído.

Achou que, aos olhos de um estranho, tudo ali devia parecer negligenciado e pobre. Ficou contente porque as sombras ocultavam o que para ela era uma humilhação.

O jantar terminou e o conde afastou sua cadeira.

- Vamos para o salão?

- Sim, é claro - respondeu a moça vivamente. - É o que eu devia ter sugerido.

Mildred foi à frente. Depois que entraram no salão, o conde fechou a porta e aproximou-se da moça, que estava junto ao sofá, insegura, com olhos muito grandes no rosto miúdo.

O pirata fitou-a durante um longo momento. A jovem esperou imaginando o queria ele dizer, mas tendo medo de perguntar o que estaria ele pensando.

Finalmente, o conde disse:

- Vou-me embora. Vou voltar para o navio e amanhã de madrugada partirei.

Mildred soltou uma exclamação.

- Por quê? Oh, por quê? Você disse que ia ficar!

- Creio que você é mulher bastante para saber o motivo, sem que haja necessidade de explicações.

Ela nada disse e o pirata continuou:

- Você é muito jovem, mas tem idade suficiente para saber que não podemos brincar com fogo, sem nos queimarmos. Tenho que partir, antes que a magoe, e me machuque mais do que já fiz.

A moça cruzou as mãos, mas nada conseguiu dizer.

- Quando vi o seu retrato pela primeira vez, apaixonei-me por ele. E não ouso dizer agora o que sinto, porque seria injusto.

- Injusto...? - murmurou ela.

- Nada tenho para lhe oferecer, como você bem sabe. Depois que eu partir, Mildred, você me esquecerá.

- Isto é... impossível.

- Pensa assim agora, mas o tempo cura tudo. Precisamos esquecer, não apenas por sua causa, como pela minha.

- Por favor... Por favor...

- Não, Mildred! Nada podemos fazer a respeito da situação em que nos encontramos. Você é a mulher que todos os homens sonham amar, mas jamais encontram. Mas não é para mim.

Estendeu a mão e pegou a da jovem.

Por um momento ficou olhando-a, como se fosse uma jóia preciosa. Depois, lentamente, com uma graça indescritível, beijou primeiro as costas da mão e depois a palma.

Mildred teve a sensação de ter sido atingida por um raio, seguida de uma fraqueza que fez com que desejasse fundir-se com ele, que se tornassem uma só pessoa.

Depois, ele soltou a mão da moça e dirigiu-se para a porta.

- Adeus, meu amor - disse. - Deus a abençoe e a proteja.

Ela soltou um grito rouco. A porta se fechou e os passos dele soaram no terraço e depois na escada que levava ao jardim.

E, então, Mildred soube que isto era o fim e que ela nada poderia fazer para impedi-lo...

 

Muito tempo depois, Mildred deitou-se na cama, lembrando-se que fora ali que o pirata havia dormido na noite anterior.

Abe trocara os lençóis, que eram macios e frescos, mas a jovem teve a impressão de que a marca do conde ainda estava ali, assim como as vibrações que sentira passarem do corpo dele para o dela. Uma sensação de estar nos braços do conde invadiu-a.

Queria chorar, mas não o conseguiu. Sentia no coração um peso que parecia crescer a cada minuto.

Eu o perdi, disse a si mesma, sabendo que nada podia fazer para tê-lo ali, perto.

Fechou os olhos e começou a relembrar os acontecimentos do dia, hora por hora, minuto por minuto; as coisas que haviam dito um ao outro, o que ela sentira e, finalmente, a sensação que tivera quando o conde beijara a sua mão.

Levou as mãos aos lábios, na tentativa de reviver o êxtase que sentira tão rápido e que parecia irreal.

E ele?

Teria sentido a mesma coisa?

Embora pouco soubesse a respeito do amor, tinha certeza de que o conde não poderia provocar-lhe aquela reação sem que sentisse a mesma coisa. .

Eu o amo! Eu o amo!

As palavras se repetiam em sua mente. Ela desejou morrer, desejou que o mundo acabasse e que não houvesse um amanhã.

Devia ter cochilado, pois a porta se abriu de repente com violência e ela gritou de pavor, sentando na cama.

Uma luz bateu em seus olhos. Por um momento, Mildred não pôde ver o que estava acontecendo. Depois, descobriu a porta, Roderick Maigrin, com uma lanterna na mão!

Imaginou estar sonhando. Não era possível que ele estivesse ali, grande, sólido, de pernas abertas como que se equilibrando, de rosto vermelho à luz da lanterna, os olhos injetados de sangue fitando-a ameaçadoramente.

- Que diabo pensa você que está fazendo? - perguntou furioso. - Fugindo daquele jeito! Vim buscá-la.

Por um momento, a moça foi incapaz de responder. Depois, com uma voz que não parecia a sua, perguntou:

- Onde... está... papai?

- Seu pai não estava em condições de fazer a viagem - respondeu Maigrin. - Então, vim no lugar dele. Você está me dando muito trabalho, mocinha!

Mildred, ainda sentada na cama, disse em tom um pouco mais firme:

- Não vou voltar... para a sua casa. Quero que papai... venha para casa.

- Seu pai não vai fazer nada disso!

Adiantou-se e ficou ao pé da cama, com uma das mãos segurando a bola de latão da grade.

- Se você não tivesse sido uma tolinha, fugindo covardemente, teria visto que dominei os rebeldes que tanto a assustaram - disse ele, agressivamente. - Não haverá mais rebelião em minha fazenda.

- Como é que pode... ter certeza? - perguntou a moça.

- Tenho certeza, porque matei os cabeças - respondeu Maigrin. - Não poderão mais espalhar o descontentamento entre os meus escravos!

- Você... os matou?

- Atirei neles ali mesmo, antes que pudessem causar mais encrenca.

Gabava-se de tal modo que Mildred percebeu que ele matara por prazer. E ela calculou, também, que os homens deviam estar desarmados.

Ficou imaginando o que poderia fazer para que Maigrin fosse embora.

Enquanto procurava palavras, notou que ele a fitava. Ficou constrangida, pois sua camisola era transparente.

Recuou instintivamente, apoiando-se nos travesseiros, e ouviu-o dar uma risada baixa, insolente.

- Você vai ficar muito atraente, depois que eu a ensinar a se comportar como mulher - disse ele. - Agora, trate de se vestir depressa. Tenho uma carruagem à sua espera, embora devesse obrigá-la a ir a pé depois da maneira como se comportou.

- Quer que eu vá... com você... agora? - perguntou Mildred como se não entendesse direito.

- Com o luar iluminando nosso caminho será uma viagem romântica - replicou Maigrin, sarcástico. - E um padre está espera, para nos casar amanhã cedo.

A jovem soltou um grito horrorizado.

- Não vou casar com você!... Não vou sair daqui!... Recuso-me a acompanhá-lo!

Ele riu.

- Então é esta a sua atitude! Com certeza acha que não sou digno de você, não é princesinha? Pois bem, engana-se! Se eu não tivesse pago a fiança de seu pai, ele estaria na cadeia. Ponha isso na sua cabeça!

Fez uma pausa. Com olhos contraídos, disse ainda:

- Se não quiser ir comigo, vestida, vou levá-la assim como está e terei prazer nisso!

Era uma ameaça que ele parecia disposto a cumprir, pois se aproximou da cabeceira da cama. Ela gritou apavorada.

Nisto, ouviu-se uma batida à porta e Maigrin virou a cabeça.

Abe apareceu.

Trazia um copo numa salva de prata. Adiantou-se, de rosto impassível, e disse:

- Achei que gostaria de um drinque, senhor.

- Se gostaria! Mas é muita impertinência sua, seguir-me até aqui!

Pegou o copo e disse, ainda:

- Suponho que deva agradecer a você o facto de sua patroa ter fugido daquela maneira idiota! De manhã, vou mandar chicoteá-lo, por não ter informado ao seu patrão de que iam fugir.

- Tentei acordar o patrão - disse Abe. - Ele não se mexeu.

Maigrin nada disse. Bebia avidamente o ponche de rum, como se fosse água.

Depois colocou o copo na bandeja, com força.

- Vá buscar outro! E, enquanto eu estiver bebendo, leve as malas de sua patroa para baixo e coloque-as na carruagem.

Fez uma pausa e acrescentou:

- Ela vai comigo. Você pode nos seguir e levar os cavalos de seu patrão. Ninguém vai voltar para cá.

- Sim, senhor - respondeu Abe, saindo do quarto.

Mildred queria gritar para que não a deixasse, mas sabia que, se Maigrin chicoteasse ou matasse Abe, ela nada poderia fazer para impedi-lo.

- Vista-se depressa, ou verá que eu não estava brincando quando disse que a levarei assim como esta. Quando você for minha esposa, certamente obedecerá, ou verá como é doloroso me desafiar.

Colocou a lanterna com força sobre a cômoda. Depois, desceu a escada, apoiando-se no corrimão e gritando:

- Acenda as velas, negro preguiçoso! Como é que espera que eu encontre o caminho, no escuro?

Mildred sentiu-se como que paralisada. Achou que somente uma pessoa poderia salvá-la, não apenas de ser levada por Maigrin, como de casar-se com ele na manhã seguinte.

Pensava no conde, mas sabia que era impossível comunicar-se com ele.

A casa tinha apenas uma escada. Não havia escada de serviço, porque os criados dormiam fora, em cabanas.

A única maneira de sair seria pelo hall. Quer estivesse na sala de jantar ou na de visita, Maigrin a veria, quando ela passasse.

Não só seria vista como também o conde correria perigo, pois Maigrin certamente se vingaria de tal modo que, no fim, provocaria a morte de todos os tripulantes do navio.

- Que posso fazer?... Que posso fazer? - perguntou a si mesma, desesperada.

Não tendo alternativa, saiu da cama.

Não duvidava que Roderick cumpriria a ameaça de levá-la vestida como estava. Compreendeu que ele ficaria encantado por humilhá-la e provar seu domínio sobre ela e seu pai.

Amanhã estaria casada com semelhante homem!

Ao pensar nisso, compreendeu que jamais poderia casar com ele.

Se era este o destino que a esperava, preferia matar-se, antes de se tornar sua esposa.

Se ela se matasse, provavelmente Maigrin continuaria ajudando o pai de Mildred, porque ele era um conde. A ameaça de deixar que o amigo fosse para a cadeia não seria cumprida, enquanto o pai da jovem pudesse ser útil socialmente para Maigrin.

Vou morrer! disse a si mesma, com firmeza, sem saber como poderia fazer isso.

Como o tempo estava passando começou a vestir-se.

Tinha acabado de vestir a roupa que usara na véspera, quando Abe apareceu.

Ele subira à escada tão silenciosamente, que a moça não o ouviu. Quando Abe entrou no quarto ela o fitou, como fazia em criança, quando tinha algum problema.

- Abe!... Abe!... O que posso fazer?

O criado pós o dedo nos lábios e foi fechar uma das malas. Depois, disse, num murmúrio:

- Espere aqui, senhora, até que eu venha buscá-la.

Mildred ficou tensa, sem saber o que ele pretendia.

Abe colocou a mala nos ombros e desceu a escada, não se esforçando para caminhar silenciosamente. Pelo contrário, acentuava o barulho de seus passos.

Devia ter passado pelo hall, pois a moça o ouviu perguntar, em tom respeitoso:

- Mais um drinque, senhor?

- Traga-me mais um, e ande depressa com esta bagagem! - rosnou Roderick Maigrin. Mildred concluiu que ele devia estar na sala de visitas, perto da porta.

- Mais três malas, senhor.

- Diga à sua patroa que desça e venha conversar comigo. Acho maçante ficar aqui sozinho.

- Ela não está pronta, senhor - disse Abe, começando a subir a escada novamente.

Fechou a segunda mala e levou-a para baixo.

A jovem percebeu que ele entregava outro copo a Maigrin.

Achou que Momma Mabel devia estar preparando os drinques na cozinha, mas ali não havia som de vozes. Abe voltou. Desta vez, não estava de mãos vazias.

Carregava uma cesta grande, onde eram colocadas as roupas lavadas, para serem depois dependuradas no varal.

Mildred fitou-o, surpresa. Abe colocou a cesta no chão e, sem uma palavra, fez sinal à patroa que entrasse ali.

Ela compreendeu. Entrou, ajeitou-se lá dentro e Abe a cobriu com um dos lençóis da cama, enfiando as beiradas nos lados.

Ainda em silencio, pegou a cesta pelas alas e dirigiu-se para a escada.

O coração da jovem batia acelerado. Sabia que, embora Maigrin tivesse bebido muito, havia uma grande probabilidade de estranhar que as roupas que Mildred trouxera de Londres fossem levadas numa cesta aberta.

Mas compreendia que não havia outro meio de escapar. Provavelmente Abe acreditava que Maigrin não pensaria jamais que a moça tentaria fugir de maneira tão pouco digna.

O criado chegou ao ultimo degrau da escada.

Atravessou o hall e passou diante da porta da sala de visita.

Através das fendas da cesta de vime a jovem viu as luzes de várias velas e julgou distinguir o homem que ela odiava esparramado numa das poltronas da sala, com um copo na mão.

Não soube se viu isto com os olhos, ou com a imaginação.

Abe passou pela porta e caminhou pelo corredor, em direção à cozinha. Mildred prendeu a respiração, temendo que, no ultimo momento, Maigrin gritasse para que parassem.

Mas Abe continuou. Passou pela porta da cozinha, sempre carregando a cesta. Chegaram as moitas de buganvílias que vinham quase que até a casa.

Somente quando Abe colocou a cesta no chão, a moça compreendeu que o velho criado a salvara. Agora, ela podia chegar até o navio, sem que Maigrin soubesse para onde tinha ido.

Abe tirou o lençol que a cobria ao luar, Mildred percebeu que ele a fitava, apreensivo.

- Obrigada, Abe. Vou para o navio.

Ele inclinou a cabeça e disse:

- Levo as malas, mais tarde.

Apontou para as moitas e a jovem viu que as duas malas que ele trouxera estavam ali escondidas. Quem não desconfiasse disso, teria dificuldade em descobri-las.

- Cuidado! - recomendou ela. Abe sorriu.

Depois, tomada pelo terror, começou a correr em direção ao navio, desesperadamente, como se Maigrin a perseguisse por entre as moitas e as árvores.

 

Embora estivesse escuro sob as árvores, Mildred não parou de comer. De repente esbarrou em alguma coisa. Percebendo que era um ser humano, soltou um grito abafado.

Mas imediatamente soube quem era.

- Salve-me! Salve-me! - pediu, desesperada, falando baixinho, com medo de ser ouvida.

- O que aconteceu! Por que está assustada? - perguntou o conde.

Por um momento a moça, ofegante, não conseguiu responder.

Sabia apenas que estava perto do conde. Sem reflectir, escondeu a cabeça no ombro dele. O pirata abraçou-a.

Para Mildred, isso foi um conforto imenso. Dali a um momento, disse:

- Ele veio me buscar... quer que me case... amanhã... e achei que jamais poderia... escapar.

- Mas escapou - respondeu o conde. - Meu vigia notou luzes nas janelas da casa e eu estava indo ver se havia algo errado.

- Muito... muito errado - respondeu a jovem. - Achei que não poderia escapar... mas Abe me carregou numa cesta de roupa.

Ao dizer isto, achou que devia parecer engraçado. Mas estava tão amedrontada e ofegante, que falava de maneira quase incoerente.

- Maigrin está na casa? - perguntou o conde.

- Está... a minha espera.

O francês não respondeu. Virou Mildred na direção do navio e, com o braço à volta dos ombros dela, conduziu-a por entre as árvores.

Sabendo que ele estava a seu lado, tocando-a, a moça pouco a pouco se acalmou.

Como se compreendesse isto, ao chegarem à prancha que levava ao navio o conde a segurou com mais força. Depois, caminhou atrás da jovem, com as mãos nos braços dela, para segurá-la, caso ela perdesse o equilíbrio.

Passaram para o tombadilho. Por um momento. Mildred achou que não havia ninguém por ali.

Depois, viu um homem no alto, na metade do mastro. Devia ser o vigia a quem o conde se referira.

Ela virou-se e olhou para o lado da casa, percebendo que as árvores e as moitas a escondiam totalmente. Somente o homem no mastro poderia ter visto as janelas iluminadas, alertando o conde.

Desceram para a cabina. Mildred percebeu que, quando o pirata fora chamado, já estava deitado.

Os lençóis estavam jogados para um lado da cama. A jovem notou que ele usava apenas uma camisa fina de linho, aberta no peito, e calça preta.

O conde fitou-a. Pela primeira vez, Mildred se lembrou de que estava de camisola e seus cabelos em desalinho.

O conde ficou em silêncio e a moça disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

- Não posso... voltar para lá.

- Não, claro que não. Mas, onde está seu pai?

- Não estava passando bem... e não pôde vir com o Sr. Maigrin.

Não olhou para o conde, mas ambos sabiam que fora a bebedeira que impedira o pai de Mildred de acompanhar Maigrin.

- Sente-se - disse o pirata, de repente. - Quero falar com você.

Obedientemente a jovem sentou numa das poltronas confortáveis.

Havia duas lanternas dependuradas na cabina. As vigias estavam cobertas por venezianas de madeira e Mildred percebeu que nenhuma luz poderia ser vista lá de fora.

O conde hesitou. Depois, de pé, ainda olhando para a moça, disse:

- Quero que pense seriamente sobre o que me pede para fazer.

Ela não respondeu. Fitou-o, apreensiva, com medo de que ele recusasse seu pedido.

- Tem certeza de que não há ninguém, na ilha, em cuja casa você possa esconder-se de seu pai e ficar também a salvo dos rebeldes?

- Não há ninguém - respondeu a jovem, com simplicidade.

- E nenhum amigo, nas outras ilhas?

Mildred sacudiu negativamente a cabeça.

- Sei que estou sendo um... estorvo. E não tenho o direito de lhe pedir que... me proteja. Mas, neste momento, não posso pensar em mais nada, a não ser que sinto um medo horrível.

Achou que se expressava muito mal, mas o que realmente desejava era pedir ao conde que a deixasse ficar em sua companhia.

Depois, considerou isso uma atitude censurável, já que o conhecia há tão pouco tempo e ele deixara claro que Mildred não podia fazer parte da vida dele.

Acreditando que o conde podia adivinhar seus pensamentos, fitou-o e disse:

- Sinto muito... Sinto muito ter que lhe pedir... isto.

Ele sorriu e foi como se várias luzes se acendessem na cabina.

- Não há motivo para afligir-se por isso do meu ponto de vista, mas estou pensando no seu.

Fez uma pausa e continuou:

- Você tem toda a vida à sua frente, Mildred. Se sua mãe fosse viva, você teria tomado o seu lugar na sociedade. Não é uma boa alternativa ser a única mulher a bordo de um navio-pirata.

- Mas é onde... quero ficar - murmurou a moça.

- Tem certeza?

- Sim... tenho... certeza absoluta.

Sentiu um desejo forte de chegar perto dele, como estivera momentos antes. Queria a proximidade do conde, sua força, e sensação de segurança que ele lhe dava.

O desejo era tão grande que ela chegou a corar. Olhou para o outro lado encabulada.

Como se a moça tivesse dito o que ele desejava saber, o conde disse:

- Muito bem. Vamos zarpar de madrugada.

- Está falando sério? - perguntou ela. - Está mesmo?

- Só Deus sabe se estou agindo bem, mas tenho que protegê-la, Mildred. Aquele homem não merece ficar perto de nenhuma mulher decente.

A jovem exclamou, amedrontada:

- Suponhamos que ele me encontre? Suponhamos que... ao ver que não estou em casa... ele venha para cá?

- É pouco provável - replicou o Conde. - E, se vier, saberei lidar com ele. Mas é impossível zarparmos antes do amanhecer, sem vento.

- Ele não vai desconfiar de que há um navio na enseada disse Mildred para se tranquilizar. - E, se vier para este lado, Abe virá nos avisar, antes.

- Garanto que sim.

- Depois que o Sr. Maigrin partir... Abe vira trazer minhas malas... tirando-as de onde as escondeu.

- Direi ao vigia que fique à espreita - prometeu o Conde.

Dito isto, saiu da cabina.

Ela juntou as mãos e fez uma prece em agradecimento a Deus.

- Obrigada, meu Deus, por me deixardes ficar com ele.

Obrigada por o navio estar aqui, quando precisei dele.

Ficou pensando como teria sido horrível se, para fugir de Maigrin, tivesse que se embrenhar pela floresta tropical.

Tinha a sensação de que, se isto acontecesse, ele a encontraria.

Talvez com cães, talvez mandando que seus escravos a procurassem.

- Obrigada, meu Deus... Obrigada pelo... Conde - disse, ouvindo de novo os passos dele.

Quando ele entrou, Mildred teve que fazer um esforço para resistir ao impulso de comer e se agarrar a ele, para ter certeza de que estava ali.

- Ainda há luzes acesas na casa - contou o pirata. - Imagino que o seu indesejável visitante ainda esteja lá.

Nisto, ouviram um ligeiro assobio, lá fora.

- Creio que Abe está chegando - observou o Conde. A jovem se pós imediatamente de pé.

- Espero que ele esteja bem... Tenho medo... muito medo de que... quando descobrir que fugi... o Sr. Maigrin descarregue sua raiva nele.

Acompanhou o Conde ao tombadilho, fechando a porta da cabina.

Estava claro, ao luar, e Mildred viu Abe caminhando pela margem, carregando sua mala.

Quando ele subiu para bordo, a moça o esperava.

- O que aconteceu, Abe?

- Está tudo certo, senhora - respondeu o criado. - O Sr. Maigrin está dormindo.

- Dormindo! - exclamou a moça.

Abe riu.

- Coloquei um pózinho no ultimo drinque. Ele vai dormir até amanhã cedo. Vai acordar com dor de cabeça.

- Foi muito inteligente da sua parte, Abe.

- Muito inteligente! - concordou o Conde.

- Trouxe a bagagem - disse o velho criado. - A senhora vai embora e não deve voltar até passar o perigo.

- É o que desejo fazer - respondeu Mildred. - Mas, e você? Tenho medo de que o Sr. Maigrin o chicoteie.

- Estarei bem, senhora. Ele não me encontrará.

A jovem sabia que na ilha havia muitos lugares onde Abe poderia esconder-se. Sabia também que, por mais que o patrão precisasse dele, Abe não teria coragem de enfrentar a cólera de Maigrin e a crueldade com que ele tratava todos os que o serviam.

- Vou buscar as outras malas - disse Abe. - Joseph levara a carruagem.

Mildred ficou surpresa.

- para onde?

Abe deu um largo sorriso, mostrando os dentes brancos.

- Quando o Sr. Maigrin acordar, vai pensar que a senhora foi ao encontro do patrão. Joseph deixará os cavalos e voltará para cá.

- É uma idéia brilhante - concordou Mildred. Se o Sr. Maigrin acreditar que estou escondida, procurará perto da casa dele.

Abe sorriu, com prazer quase infantil. Depois disse:

- Vou buscar a outra mala.

- Espere um pouco... - disse o pirata. - Vou mandar alguém com você.

Falou com o homem do mastro e este escorregou para baixo.

Após receber a explicação do capitão, ele acompanhou Abe.

O conde pegou a mala de Mildred e levou-a para a cabina.

 Ela correu na frente, para abrir a porta. Depois que entraram, disse:

- Não posso tomar a sua cabina. Deve haver outro lugar, onde eu possa ficar.

- É aqui onde, como minha hóspede, você vai dormir - declarou o conde. - E espero que fique confortável.

A jovem deu uma risadinha de pura felicidade.

- Muito confortável e... muito segura. Como poderei agradecer-lhe por tanta bondade?

Ele não respondeu. Mas, quando se entreolharam, Mildred leu nos olhos dele que estava tão feliz quanto ela e não havia necessidade de palavras para expressar o que sentia.

A moça ficou encabulada e disse, vivamente:

- Preciso dar um pouco de dinheiro a Abe. Tenho algum, guardado nas malas.

Tinha escondido o dinheiro que trouxera da Inglaterra, com medo de que o pai o pegasse e ela ficasse sem nada.

Quando sua mãe sentiu que estava ficando cada vez mais fraca, dissera à filha:

- Querida, quero que retire do banco todo o dinheiro que me resta.

- Por quê, mamãe? - perguntara Mildred.

Seguiu-se uma longa pausa, como se a condessa estivesse, reflectindo sobre o que dizer.

Depois, achando que seria um erro não dizer a verdade, explicou:

- Você precisa ter um pouco de dinheiro, que não deverá ser perdido nas mesas de jogo, ou com bebida, passatempos que seu pai acha indispensáveis. Não somente servirá para o seu enxoval, mais tarde, como a tornará independente... se as coisas correrem mal!

Não explicou o que isso significava. Como a mãe estava muito fraca, Mildred achava importante satisfazer os seus desejos e não fazer muitas perguntas.

- Compreendo, mamãe. Farei exactamente o que me pede.

Fora ao banco no mesmo dia e retirara as poucas centenas de libras que a mãe ainda possuía.

- Acha que é sensato carregar tanto dinheiro, senhorita? - tinha perguntado o gerente do banco.

- Eu o guardarei num lugar seguro - prometera a moça.

Sabia que ele a achara imprudente. Mas agora tinha ficado contente por saber que podia dar a Abe o suficiente para que pagasse os criados amigos e os escravos que ainda trabalhavam para seu pai, embora provavelmente não recebessem ordenado.

- Deixe que eu faça isso por você - pediu o conde.

- Claro que não - protestou Mildred. - Tenho o meu orgulho. Tenho esse dinheiro e é assim que desejo gastá-lo.

Certamente quando sua mãe falara em enxoval, não imaginava que a filha iria casar com o homem que ela tanto desprezava.

O conde abriu uma mala para Mildred e ela pegou o dinheiro, no fundo, dentro de uma bolsa de seda.

A moça apanhou quinze soberanos de ouro, que Abe acharia que era uma grande quantia, o suficiente para toda a vida.

O conde tinha saído da cabina. Depois de colocar o dinheiro num saquinho de pano, a jovem subiu para o tombadilho.

O conde estava esperando por Abe. Quando este apareceu, com o francês que também carregava uma das malas de Mildred, ela achou que o conde temia que Roderick tivesse despertado e seguido os dois.

As malas vieram para bordo e a moça chamou Abe de lado.

- Aqui está algum dinheiro, Abe. É para você e para qualquer pessoa, na fazenda, que você ache que o mereça. Depois que o Sr. Maigrin desistir de procurar por mim, faça com que os escravos limpem o terreno sob as moscadeiras. Quando as coisas melhorarem, plantaremos mais algumas, esperando ter uma boa safra que nos dê mais dinheiro do que no passado.

- Boa idéia, senhora.

- Cuide da casa, Abe, até eu voltar.

- Deve voltar; o patrão sente a sua falta.

- Claro que vou voltar - respondeu Mildred. - Mas só depois que passar o perigo.

Ao dizer isto, olhou por sobre o ombro e viu que o conde não estava longe.

- Como é que vamos saber que não há mais perigo? - perguntou ela.

- Você vai querer noticias de seu pai - disse o conde. - Mas precisamos ter certeza de que os rebeldes não tomaram St. George, assim como outras partes da ilha.

- Se não houver perigo, senhor, deixarei um sinal - prometeu Abe.

- Era o que eu ia sugerir.

Como se falasse consigo, Abe disse:

- Se for seguro, porei uma bandeira branca na entrada.

- E se houver perigo? - perguntou o conde.

- Se o Sr. Maigrin ou os rebeldes estiverem na casa, porei uma bandeira preta.

Estendeu a mão a Abe, dizendo:

- Obrigada, Abe. Você cuidou de mim desde que eu era criança, e sei que não me falhará agora.

- Estará segura com o Sr. Beaufort, senhora - respondeu Abe.

Apertou a mão da moça e virou-se para partir.

- Por favor, Abe, tenha cuidado. Não quero perdê-lo.

O sorriso do velho criado era muito confiante. Mildred sabia que, de certo modo, ele estava gostando da excitação e até mesmo do perigo pelo qual haviam passado.

Quando ele desapareceu no meio dos pinheiros, o conde, disse:

- Você agora está sob o meu comando e vou lhe dar as minhas ordens.

A jovem deu uma risadinha.

- Ave, ave, sir! Ou são somente os marinheiros que usam essa expressão?

- Amanhã lhe ensino como dizer isso em francês - respondeu o conde. Mas agora você vai para a cama dormir. Acho que já teve suficientes aventuras, por uma noite.

Mildred sorriu. Ele foi à frente, para abrir a porta da cabina. O homem que havia acompanhado Abe seguiu-o com as malas, colocando-as, em ordem, contra a parede.

- Quer que as abra agora? - perguntou o conde.

A moça sacudiu a cabeça.

- Tenho tudo o que é necessário e uma das malas já está aberta.

O conde apagou uma das lanternas que pendiam do tecto e abaixou a outra, para que ficasse perto da cama.

Abriu a portinha de vidro, para que Mildred pudesse apagar facilmente a luz.

- Deseja mais alguma coisa?

- Não, nada - respondeu a moça. - E obrigada. Estou tão feliz por estar aqui, que desejo falar uma porção de vezes: "Obrigada".

- Pode me agradecer amanhã - disse o conde. - Mas agora acho que precisa dormir. Bonne nuit, Mademoiselle, dormez biers.

- Bon soir, mon Capitaine - respondeu Mildred.

Ficou só, na cabine.

 

Quando acordou, Mildred sentiu que o navio jogava. Ouviu o ranger do soalho, o som do vento nas velas e, mais distante, um ruído de risos e de vozes.

A princípio, não soube onde estava. Depois lembrou que se achava no navio, longe de Roderick Maigrin e do medo que tinha sido como uma pedra em seu coração.

- Estou salva! Estou salva! - desejou gritar, sabendo que era feliz porque estava perto do conde.

Tinha pegado no sono, pensando que sua cabeça estava no travesseiro dele, que o colchão onde descansava era o dele, que o lençol que a cobria pertencia a ele.

Sentia-se muito próxima daquele homem, como quando correra para ele, no escuro, escondendo o rosto em seu ombro.

Tivera consciência do calor do corpo do conde, mesmo antes de sentir a força de seus braços. E, no sonho, sentira que ele ainda a abraçava.

Sentou-se na cama e puxou os cabelos para trás.

Sabia que dormira durante muito tempo. Devia ser tarde, mas isso não tinha importância.

Não havia nenhum padre à sua espera, nenhum Roderick Maigrin tentando tocá-la, nenhuma coisa assustadora espreitando no meio das árvores, ou dentro de casa.

- Estou salva! - disse ela, novamente, saindo da cama.

Quando acabou de se vestir, percebeu que estava com fome. Mas não se apressou.

Encontrou um espelhinho no meio de suas coisas. Levou tempo escovando o cabelo e, depois, fazendo o penteado que usara em Londres e que a mãe achara que lhe ia bem.

Escolheu um de seus vestidos mais bonitos. Somente depois que o espelho lhe contou que estava muito elegante, foi que subiu para o tombadilho banhado de sol.

No convés, antes deserto, havia agora uma grande atividade.

Homens subiam e desciam pelos mastros, outros apressados passavam com caixas e cordas!

As velas estavam enfunadas à brisa do mar.

A água era de um azul brilhante: gaivotas esvoaçavam, fazendo ruído.

Mildred olhou ao redor. Sabia que estava procurando por determinado homem e, quando o viu, seu coração deu um pulo, como se ela tivesse receado não encontrá-lo ali.

Ele estava ao leme. Com as mãos na roda, a cabeça erguida como se perscrutasse o horizonte longínquo, nenhum homem poderia parecer mais belo, mais poderoso, como se fosse não apenas o capitão do navio, mas o dono de todo o céu e todo o mar que o cercava.

Quando o conde a viu, entregou o leme a outro homem, dirigindo-se a ela.

Mildred percebeu que ele a olhava de alto a baixo. Havia nos lábios dele um leve sorriso, como se compreendesse o trabalho a que ela se dera para ficar atraente, e apreciasse todo esse cuidado.

- Estou muito atrasada - disse a moça, como se achasse que o conde esperava que ela falasse primeiro.

- É quase meio-dia. Quer esperar o almoço, ou prefere tomar o desjejum que você perdeu?

- Prefiro esperar - respondeu Mildred, pois queria ficar ao lado dele.

O pirata passou o braço pelo dela e levou-a pelo tombadilho, parando várias vezes para apresentá-la a seus homens.

- Este é Pierre, este é André, este é Jacques e este é Leo.

Somente mais tarde foi que ela soube que três deles tinham sido muito ricos, na Martinica.

Dois eram fazendeiros, como o conde também se considerava, e tinham possuído muitos escravos. O terceiro, Leo, era advogado com a maior clientela de St. Pierre, a capital da Martinica.

A jovem ficou sabendo também que tinham tido grande coragem, jamais se mostrando amargurados pelo destino que os privara de todos os seus bens. Eram otimistas e achavam que um dia tudo mudaria e eles poderiam voltar para casa e recuperar seus bens.

Os outros homens eram criados particulares do conde e de seus amigos. Havia ali vários funcionários do escritório de Leo. Estavam todos muito satisfeitos com a sorte de terem escapado com seu empregador, quando poderiam ter sido presos e obrigados a trabalhar para os conquistadores.

Nos dias seguintes, Mildred constatou que o navio transportava pessoas bem-humoradas.

A tripulação cantava desde a manhã até à noite, assobiava e ria enquanto trabalhava.

Nenhum deles era um marinheiro treinado. O manejo do navio exigia não somente inteligência, como também o use de músculos.

A jovem tinha a impressão de que para eles tudo aquilo era um jogo. Ficava à amurada, observando-os, ouvindo-os, enquanto eles cantavam e pilheriavam uns com os outros. Muitas vezes usavam uma moeda, para tirar à sorte e decidir quem iria subir ao mastro mais alto para cuidar das velas.

Mildred notou que, mesmo entre os amigos, o conde sempre parecia estar comandando; era o líder.

Sabia que confiavam no capitão, tanto quanto ela confiava. O conde lhes dava uma sensação de segurança. Sem ele, também teriam medo.

Quando viera para bordo, Mildred pensara que poderia ficar a sós com o conde, mas era uma coisa que não acontecia.

Ele sempre tinha alguma coisa para fazer e também estava sempre atento, com receio de algum perigo.

Quando o vigia anunciava um navio no horizonte, mudavam de direção. Ela não tinha certeza se o conde faria o mesmo, caso Mildred não estivesse a bordo.

Mildred também achara que iriam tomar as refeições juntos, mas ficou sabendo que os três amigos do conde sempre jantavam com ele. E, quando estavam ao largo, todos continuavam trabalhando durante o almoço.

Henri, o chef, preparava uma sopa, que os homens tomavam enquanto continuavam seu serviço. Havia também queijo ou patê, colocados em fatias compridas de pão francês, cortado horizontalmente.

Mildred, como todos, comia no tombadilho, ou então, quando se cansava do sol, sozinha em sua cabina, enquanto lia.

A coleção de livros do conde não era apenas interessante, como curiosa.

Ela imaginou que ele apreciasse Rousseau e Voltaire, mas não pensou que possuísse também uma vasta coleção de livros de poesia, principalmente ingleses. E havia também muitos livros sobre religião, nas estantes.

- Com certeza é católico - disse a si mesma.

Talvez devido ao ar e ao movimento do navio, ou por sentir-se feliz e satisfeita, Mildred dormia profundamente, sem sonhar, como se fosse uma criança, levantando com uma sensação agradável porque um novo dia ia começar.

Certa tarde, quando o calor diminuiu, avistaram St. Martin.

No jantar da véspera, o conde e seus amigos disseram a ela que o menor território do mundo era composto de dois estados soberanos.

- Por quê? - perguntara Mildred.

Leo, o advogado, rira.

- De acordo com a lenda, os prisioneiros de guerra holandeses e franceses, que foram trazidos para esta ilha em 1648, para destruir o forte espanhol e outras construções, saíram de seus esconderijos depois que os espanhóis foram derrotados e expulsos. Perceberam, então, que tinham uma ilha à sua disposição, para dividir entre si.

- Por meios pacíficos - observou Jacques.

- Estavam fartos de lutas - comentou o conde. - E, então, os limites foram resolvidos com uma competição de andarilhos.

- Como é que puderam fazer isso?

Leo explicara:

- Um francês e um holandês partiram do mesmo ponto, dando a volta à ilha, em direcções opostas. Concordaram que a linha de demarcação seria feita através da ilha, partindo do ponto onde os dois homens se encontrassem.

- Que idéia maravilhosa!... Por que não fazem uma coisa tão simples nas outras ilhas?

- Porque as outras são muito maiores. O passo do francês foi estimulado pelo vinho, de modo que ele caminhou muito mais depressa do que o holandês, que ficou mais pesadão por ter preferido seu gim holandês.

Todos os homens riram. Leo continuara a contar:

- Seja qual for a origem da divisão, os franceses e os holandeses viveram em paz, desde então.

- É uma atitude muito sensata - comentara Mildred.

 

Desde que tinham vindo para bordo, pela primeira vez o conde ficava a sós com a jovem, depois que seus amigos saíram.

Ela fitou-o com ar indagador e ele disse:

- Tenho uma sugestão a fazer-lhe, mas receio que não vá gostar.

- O que é? - perguntou a moça, apreensiva.

O conde não respondeu imediatamente. Mildred percebeu que olhava para os cabelos dela.

- Alguma coisa... errada? - perguntou.

- Estou pensando como você é bonita e que certamente seria errado querer mudá-la, fosse no que fosse. Mas trata-se de uma coisa importante.

- O que é? - a moça perguntou novamente.

- Tenho que pensar em você. Não apenas em sua segurança, como na sua reputação.

- De que modo?

- Quando chegarmos a St. Martin, embora minha casa seja bastante isolada, você pode imaginar que, no espaço de trezentos quilómetros quadrados, tudo se sabe e se comenta.

Mildred inclinou a cabeça.

- É por isso que acho que você deve mudar de identidade - disse o conde.

- Quer dizer: deixar de ser... inglesa?

- Os franceses, mesmo em St. Martin, são muito patriotas - explicou o pirata.

- Então, posso ser francesa, como você?

- É o que desejo que seja - respondeu o conde. - Pensei que poderia apresentá-la como minha prima, Mademoiselle Gabrielle de Vence.

- Terei imenso prazer em ser sua prima.

- Há um problema.

- Qual é? - perguntou Mildred.

- Você não tem a mínima aparência de francesa. Se é que me posso expressar assim, é bem inglesa.

- Sempre achei que minhas pestanas escuras foram herdadas de meus antepassados irlandeses.

- Mas seu cabelo, que parece cheio de sol, é tão óbvio quanto a bandeira inglesa!

- Considero isso um elogio!

- O que estou sugerindo é que tenha outra cor - respondeu o conde, serenamente.

A moça fitou-o, atónita.

- Está sugerindo que eu... tinja o cabelo?

- Falei com Henri e ele destilou o que drama de "rinsagem", que poderá ser depois lavada com facilidade, quando você quiser que seu cabelo volte à cor natural.

Mildred ficou em dúvida, mas o conde prosseguiu:

- Garanto que o cabelo não ficará preto. E não será uma operação desagradável. A rinsagem apenas mudara o tom dourado de seu cabelo para um tom mais comum, uma cor que uma francesa facilmente poderia ter. Mas nenhuma teria uma pele tão perfeita e tão macia como a sua, que é como a pétala de uma camélia.

A jovem sorriu.

- Isso é muito poético.

- Acho difícil não ser poético quando estou em sua companhia. Por outro lado, como você mesma me disse, os franceses são sensatos e realistas e é isto o que nós dois devemos ser.

- Sim, é claro - concordou a moça.

Mas não tinha a mínima vontade de tingir o cabelo, achando que talvez não fosse ficar atraente aos olhos do conde.

Henri veio até a cabina para explicar o que Mildred devia fazer. Primeiro, mergulhou um cacho do cabelo da jovem num liquido que estava num jarro. Ela viu que isso tirou o brilho do cabelo, escurecendo-o muito.

- Não! Não posso fazer isso! - exclamou.

Henri largou a jarrinha e pegou outro com água fresca. Mergulhou nela o cacho de cabelo, sacudiu-o e depois mostrou-o à moça.

O marrom tinha desaparecido.

- Isso é muito inteligente de sua parte. Henri! - exclamou Mildred.

- É uma tinta muito boa - replicou. Henri, encantado. Quando a guerra acabar, vou colocá-la no mercado e ficarei rico!

- Garanto que sim.

Henri explicou que, se usassem uma tinta de nogueira, ou mesmo uma destilada da noz-moscada, levaria meses a ser removida. O cabelo teria que crescer até ela se ver completamente livre da tintura.

- Esta tinta é diferente - explicou Henri, vaidosamente. - Um dia, M'Mselle, todo mundo, em Paris, estará pedindo a "tinta instantânea de Henri"!

Ela riu.

- Estou encantada, Henri, por ser a primeira a usá-la.

Henri trouxe uma bacia e uma toalha e tingiu o cabelo de Mildred.

Quando se olhou num espelho maior, a jovem a princípio achou que parecia muito estranha.

Depois, percebeu que, se antes a sua pele era alva, agora tinha o brilho de uma pétala de camélia, conforme dissera o conde. E o tom escuro do cabelo fazia com que ela parecesse também um tanto misteriosa.

Na manhã seguinte, apareceu no tombadilho, um tanto encabulada, mas os amigos do conde não demonstraram a mínima inibição.

Cumprimentaram-na com tal entusiasmo, que ela corou e fugiu dali! Quando chegou perto do conde, que estava de novo ao leme, ele sorriu e disse:

- Vejo que tenho uma prima nova, muito bonita! Você certamente irá embelezar os anais dos Condes de Vence!

- Estava com medo de que você se envergonhasse de mim.

Ele apenas sorriu. Havia em seu olhar uma expressão que contou a Mildred, melhor do que palavras, que ele ainda a admirava. E era só isso o que ela queria saber.

A moça ficou ao lado dele. Logo o conde percebeu que ela queria aprender a dirigir o navio.

Não era tanto a excitação de fazer uma coisa que dava a ela uma sensação de poder, pensou o conde. Mas, para ter certeza de que Mildred ia fazer tudo certo, ficou atrás dela, colocando suas mãos sobre as dela, no leme.

Mildred sentiu a proximidade do corpo do conde. Olhou para o horizonte e teve a impressão de que estavam viajando para fora do mundo, e que o passado ficava para trás.

 Somente depois que o capitão se afastou, foi que se sentiu de repente só.

 Fora muito feliz, nos últimos dias, e tinha medo de que as coisas mudassem, depois que chegassem a St. Martin.

Olhou para o conde, que estava no tombadilho inferior, e por um momento perdeu o controle do leme.

Imediatamente um dos homens a ajudou a endireitá-lo.

Mildred entregou-lhe o leme e foi à procura do conde.

Compreendeu, então, que desejava estar sempre próxima daquele homem e que era uma agonia ficar longe dele.

- Que aconteceu comigo? - perguntou a si mesma. - Por que me sinto assim?

Logo soube a resposta.

Foi como se houvesse uma explosão a bordo!

Ela amava o conde.

Estava apaixonada por um homem que tinha conhecido poucos dias antes, um homem que para ela significava segurança, mas que, na realidade, era um pirata, um refugiado com a cabeça a prémio, proscrito não só pelos ingleses, como também pelos franceses.

Mas eu o amo, seja ele quem for! pensou Mildred.

 

Enquanto navegavam ao longo da ilha, Mildred achou que St. Martins não era tão bonita quanto Granada, com suas montanhas e certamente atraente, com sua vegetação tropical: mas era de praias douradas.

Ancoraram numa pequena baía que, e embora não fosse tão isolada quanto a Enseada Secreta, era um bom lugar para um navio-pirata se esconder.

Enquanto a tripulação estava ocupada arriando as velas, o Conde levou Mildred para terra. Caminharam um pouco pelos recifes baixos, até verem uma casa linda.

Era bem pequena, mas parecia com as antigas casas de fazenda de Granada, tendo o habitual terraço com trepadeiras luxuriantes.

O Conde ficou em silencio e a jovem pensou se deveria dizer-lhe como a casa era bonita. Mas depois imaginou que ele devia estar lembrando de sua casa na Martinica e desejando estar lá.

Ele destrancou a porta e entraram no pequeno hall, que tinha uma saleta ao lado. A moça deixou escapar uma exclamação de surpresa.

A sala era mobiliada com uma encantadora mobília francesa, inclusive algumas cômodas de tampo de mármore com alas douradas a pés trabalhados em metal.

Nas paredes havia retractos que ela calculou serem de antepassados do Conde.

Havia também belos enfeites de porcelana, sendo que algumas peças eram de Sèvres. No chão, um tapete Aubusson.

- Então, foi aqui que você escondeu seus tesouros! - exclamou a moça.

- Pelo menos, estão em segurança.

- Estou muito, muito contente, por ver que estão a salvo.

A jovem queria examinar os quadros e as porcelanas, mas o Conde disse, em tom diferente:

- Quero falar com você, Mildred. Faça o favor de prestar atenção.

A moça fitou-o com ar indagador e ele continuou:

- Você me pediu proteção e é isto o que lhe quero dar. Vou procurar a mulher que cuida da casa na minha ausência e pedir que venha dormir aqui.

- Mas... por quê? - perguntou ela. - E para onde... você vai?

- Deve compreender que não seria correcto eu ficar aqui com você - respondeu o Conde. - Vou dormir no meu navio, com a tripulação, mas não há motivo para você ter medo.

Mildred nada disse e ele continuou:

- Não preciso dizer-lhe que deve representar o papel de francesa o tempo todo: falar francês, pensar em francês e, para todos os efeitos, ser francesa.

- Vou tentar - respondeu a moça, em voz baixa. - Mas pensei que, agora que estamos aqui, iríamos ficar juntos.

Falou em tom súplice. Viu, com surpresa, que o Conde não a fitava, tendo mesmo virado o rosto, e teve a impressão de que ele ia dizer que isso era impossível.

Neste momento, ouviram um grito na frente da casa. Logo em seguida, soaram passos no terraço e Jean entrou correndo na sala.

- Vite... Vite! Monsieur. Un bateau es vue?

Ao dizer isso, apontou em direção ao mar.

- Fique aqui! - ordenou o Conde a Mildred.

Saiu, fechando a porta.

A jovem foi à janela e viu-o correr em direcção aos recifes, atrás de Jean.

Embora nada enxergasse, Mildred ficou com medo, sabendo, pelo que Jean contara, que um barco se aproximava.

Ver uma embarcação no mar sempre representava um perigo para ele. Desde que saíram de Granada, o conde sempre tivera um vigia no mastro e, à primeira indicação de um navio à vista, eles mudavam de curso imediatamente.

Ficou imaginando se alguém notara o navio do conde entrar na baía. Ou talvez esta embarcação vista por Jean fosse um navio inglês que quisesse invadir St. Martin.

O conde e seus amigos tinham certeza de que isto não aconteceria, mas havia a possibilidade de os ingleses mudarem de idéia, querendo aumentar o número de suas conquistas nas ilhas.

Era tudo muito perturbador. Mildred ficou durante longo tempo à janela, esperando ver um sinal do navio do conde, ou do que Jean vira no horizonte. Mas nada viu.

O horizonte se tornou impreciso, à medida que a tarde caía.

Ela desejava ir para o alto dos recifes para ver o que estava acontecendo, mas o conde lhe dissera que ficasse ali. Como o amava, Mildred desejava obedecer-lhe.

Dali a pouco, foi visitar a casa, mas era difícil concentrar-se, a não ser na idéia de que o conde talvez corresse perigo, sem que ela soubesse o que estava acontecendo.

Subiu lentamente a escada. No segundo pavimento havia um quarto grande, que devia ser o do conde, e vários outros menores.

Eram lindamente decorados, mas o quarto dele tinha uma bela cama francesa, com cortinas que caíam de uma corola dourada.

Mildred achou que ele havia trazido essas coisas da Martinica. Admirou a penteadeira, que era mais apropriada para uma mulher do que para um homem.

Havia cômodas pequenas de cada lado da cama. Ela calculou que fossem obras de um dos grandes artesãos franceses. Outros quadros, que não representavam os antepassados do conde, tinham sido pintados por Boucher.

Era tudo tão bonito, que Mildred achou que este quarto tinha sido feito para o amor. Corou, ao ter semelhante pensamento.

Foi de um aposento ao outro, inquieta. Entrou na pequena sala de jantar, onde se viam nas paredes mais retractos dos antepassados do conde. Depois foi até à cozinha que, na sua opinião, iria deixar Henri encantado.

Havia também uma saleta com várias estantes de livros. Mildred achou que, pelo menos, teria muito que ler.

Mas não tinha vontade de fazer isso agora. O que desejava era a companhia do conde. Foi de novo à janela, sentindo medo, pois ele estava demorando a voltar.

O sol se punha com uma orgia de cores e a noite não tardaria a chegar.

As estrelas surgiram, assim como a lua nova. Mildred começou a ficar desesperada, tal o seu medo de que o conde não voltasse.

E se saiu com o navio para investigar o inimigo e houve uma batalha? E se foi vencido e tornado prisioneiro?

Não sabia o que seria dela, se nunca mais o visse.

Teve vontade de chorar, temendo que ele não voltasse. Não haveria então ninguém para ajudá-la.

Mais ainda, como sua bagagem não tinha sido trazida para terra, ela estava sem dinheiro, sem suas roupas. Mas o pior seria perder o conde.

Era como se houvesse uma faca em seu coração, fazendo com que sofresse de maneira intolerável.

Seus olhos estavam doendo, de tanto sondar a escuridão.

Sentou numa cadeira e pôs a cabeça nas mãos, rezando, sofrendo como um animalzinho preso numa armadilha.

- Fazei com que ele volte, meu Deus... Fazei com que ele volte.

Sentia-se totalmente perdida, ali no escuro.

De repente, quando achava que não suportaria mais tamanho sofrimento e que devia ir até à baía, à procura do conde, a porta se abriu e ele apareceu.

Mildred deu um gritinho e instintivamente correu para ele.

Atirou-se sobre o conde, passando os braços à volta do pescoço dele, chorando.

- Você... voltou! Pensei que o tivesse perdido! Estava... desesperada... acreditando que nunca mais iria vê-lo!

Seu alívio foi tão grande, que ela não pôde deixar de dizer:

- Amo... você... Não posso viver... sem você.

O conde atirou ao chão uma coisa que carregava e abraçou-a.

Apertou-a com tanta força, que ela mal pode respirar. Depois seus lábios buscaram os dela.

Mildred sentiu então que era isso o que desejava, era por isso que tinha ansiado naquelas longas horas de sofrimento.

Os beijos do conde eram exigentes, insistentes. Ela teve a sensação de que lhe entregava seu coração, sua alma, todo o seu ser.

O medo tinha desaparecido. Em vez disso, havia um êxtase indescritível, que parecia encher a sala com uma luz que vinha de dentro deles.

O conde beijou-a tantas vezes, que ela sentiu que não mais se pertencia, e sim a ele. Finalmente, erguendo a cabeça, ele disse:

- Minha querida, não queria que isso acontecesse.

- Amo... você!

- Eu também a amo - respondeu ele. - Lutei contra este sentimento e procurei não me declarar, mas você tornou isso impossível.

- Pensei que o tivesse perdido - disse Mildred.

- Isto jamais acontecerá, enquanto eu for vivo - declarou o conde. - Mas, ma chérie, estava tentando protegê-la de mim e de meu amor.

- Você... me ama:

- Claro que a amo! - respondeu ele, quase zangado. - Mas isso não devia ter acontecido. E nem você deveria me amar.

- Como posso impedir?...

O conde beijou-a novamente até ela se sentir no céu, achando que não havia mais problemas, nem dificuldades, mas só o amor que sentiam um pelo outro.

 

Muito mais tarde, o conde disse:

- Vou acender as velas, meu amor. Não podemos ficar aqui eternamente no escuro, embora deseje continuar beijando-a.

- É o que desejo que... faça - respondeu a moça, quase sem fôlego.

O conde tornou a beijá-la. Depois, com esforço, levantou-se e foi até à mesinha perto da escada.

Acendeu uma vela e Mildred pôde vê-lo. Achou que o rosto dele parecia iluminado por uma luz irreal.

O conde fitava-a. Fez um esforço para não tomá-la nos braços novamente e foi acender as velas da saleta.

Somente depois que a sala estava iluminada, foi que ele disse:

- Perdoe-me por causar-lhe preocupação, ma petite.

- O que foi que aconteceu? O barco que você foi investigar era... inglês?

O conde aproximou-se dela e abraçou-a.

- Sei o que pensou, querida. Era um navio inglês, mas não representou nenhum perigo para nós.

A jovem soltou uma exclamação de alivio e encostou o rosto nos ombros dele. O conde beijou-lhe a testa e continuou:

- De certo modo, diz respeito a você.

- A mim? - perguntou a moça, surpresa.

- Deve ter havido uma batalha não muito longe daqui - disse o conde. - Talvez há dois ou três dias.

Mildred tinha dificuldade em entender, tão feliz se sentia nos braços do homem amado.

Ele está aqui, são e salvo, dizia a si mesma, inúmeras vezes.

- Creio que um navio de guerra inglês, o H.M.S. Heroic, foi a pique, pois o barco que Jean viu era daquele navio. Havia nele um oficial e oito marinheiros.

- Eram... ingleses? - perguntou a moça, nervosa.

- Eram ingleses, mas estavam todos mortos!

Mildred achou que era errado sentir isso, mas ficou aliviada por saber que aqueles ingleses não representavam perigo para o conde e sua tripulação.

- Nada podíamos fazer por eles, a não ser sepultá-los no mar. Mas guardei os documentos de todos, para provar quem eram, caso seja necessário.

Fez uma pausa e continuou:

- O nome do oficial, um comandante, era Patrick O'Kerry.

Mildred se contraiu.

- Patrick O'Kerry?

- Achei que talvez fosse um parente seu. Trouxe os documentos dele, assim como a túnica e o boné, caso você queira guardá-los.

Houve uma pequena pausa. Depois a jovem disse:

- Patrick era meu primo, embora eu mal o tenha conhecido. Mas papai vai ficar aborrecido.

- Teremos que lhe contar, um dia.

- Sim, é claro - concordou a moça. - Mas vai ficar contrariado, não apenas porque Patrick era seu sobrinho, como também seu... herdeiro. E, agora, não há mais nenhum O'Kerry e... o titulo vai acabar.

- Compreendo que isso vá aborrecer seu pai.

- Na realidade, não há muito que herdar - contou Mildred. - Papai era o quarto conde e não haverá o quinto.

- Sinto muito - disse o conde, suavemente. - Não queria perturbá-la, querida.

Como estava nos braços dele, era difícil para a jovem sentir qualquer coisa a não ser uma grande felicidade.

Por outro lado, parecia uma inútil perda de vidas...

Seu primo Patrick tinha ido visitar a mãe dela, em Londres. Estava muito excitado por ter sido designado para um novo navio e ir para o Caribe. Era trágico saber que estava morto.

Mildred se lembrou do entusiasmo com que ele falara com a condessa sobre as índias Ocidentais. Achou-o um homem agradável, mas ele não lhe dera muita atenção.

- O que acho estranho é seu primo ser moreno - observou o conde. - Não sei por quê, mas pensei que seus parentes fossem claros como você.

A moça deu um leve sorriso.

- Há os O'Kerry claros, como papai e eu, e há os morenos que, dizem, tem sangue espanhol.

Percebeu que o conde ficou surpreso. Explicou:

- Quando os navios da armada espanhola estavam a caminho da Inglaterra, para invadi-la, afundaram vários deles na costa sul da Irlanda. Muitos marinheiros espanhóis nunca voltaram para casa.

O conde sorriu.

- Então, eles gostaram das damas O'Kerry?

- Suponho que sim - respondeu Mildred. - Não há dúvida de que deixaram sua marca nas gerações seguintes.

- Não é de admirar que alguns sejam morenos e outros loiros - disse o conde. - Mas prefiro-a loira, Mildred. Um dia, ma belle, você poderá voltar ao seu verdadeiro tipo. Mas receio que, seja qual for a cor de seu cabelo, você será francesa.

Ela o fitou com ar indagador e ele continuou:

- Quer casar comigo? Achei que fingindo que era minha prima poderia mantê-la longe de mim, mas agora é impossível.

- Não quero ficar... longe de você - murmurou a jovem. - Quero ser sua... esposa.

- Só Deus sabe que tipo de vida posso oferecer - disse o conde. - Nada tenho para lhe dar, a não ser o meu amor.

- Não desejo mais nada - declarou Mildred. - Mas... tem certeza de que não serei... um estorvo?... E não se arrependerá de se casar comigo?

- Seria impossível - disse o conde. - Andei procurando por você a vida inteira. Agora que a encontrei, não quero perdê-la e não me importo com o que seja ou não sensato fazer.

 

Dali a algum tempo, o conde disse, com um suspiro:

- Assim que Henri chegar para preparar o nosso jantar, irei procurar o padre e combinar para nos casarmos amanhã cedinho.

Beijou-a, antes de perguntar:

- Não se importa de ter um casamento católico, minha querida? Pareceria estranho minha noiva ser de outra religião.

- Contanto que nos casemos... mas acontece que fui batizada na religião católica.

O conde fitou-a, incrédulo.

- Está falando sério?

Mildred inclinou a cabeça afirmativamente.

- Papai era católico; mamãe, não. Casaram-se numa igreja católica e fui batizada como católica.

O conde ainda estava admirado. A moça continuou:

- Creio que papai não era um católico muito fervoroso, nem mesmo quando morávamos na Inglaterra. Mas, quando viemos para Granada, ele percebeu que os ingleses não toleravam o catolicismo, devido aos seus sentimentos contra os franceses. Por isso, ele não frequentava a igreja.

Achou que o conde ficou escandalizado e exclamou:

- Quando estava em St. George, mamãe ia à igreja protestante. E às vezes me levava com ela, aos domingos, mas era uma viagem longa e papai não gostava de ficar só, de modo que isso não acontecia com frequência.

O conde abraçou-a mais fortemente.

- Quando estiver casada comigo, minha querida, vai ser uma boa católica e agradeceremos a Deus por nos ter reunido. Tenho a sensação de que, daqui por diante, Ele nos protegerá e nos fará viver em segurança.

- Também sinto isso... E você sabe que farei tudo... tudo para ajudá-lo a ser feliz.

Isto fez com que o conde a beijasse novamente. Só se separaram quando ouviram Henri entrar na cozinha, onde iria preparar o jantar.

Depois que o conde saiu para ir falar com o padre, Jean chegou com as malas de Mildred e ela foi trocar de roupa.

Tomou um banho, que foi refrescante depois do calor do dia.

Embora protestasse por Jean lhe dar o quarto do conde, ele disse que eram estas as ordens do patrão e ela não discutiu mais.

Lembrou-se apenas de que no dia seguinte estariam juntos... Deus não apenas a tinha salvado de Roderick Maigrin, como lhe dera um homem digno e belo.

- Como é que posso ser tão feliz? - perguntou a si mesma.

Começou, então, a fazer fervorosas orações católicas, que sabia serem as preces que o conde fazia e que ela também faria, dali por diante.

Quando ele voltou, Mildred ouviu-o dirigir-se para outro quarto, onde Jean tinha preparado suas roupas de noite.

A jovem tinha tirado da mala um vestido bonito e penteado os cabelos de um modo elegante.

Não pode deixar de desejar que seu cabelo estivesse na cor antiga, mas sabia que isto não tinha importância, contanto que o conde a amasse. Devia lembrar o que ele lhe havia dito: que pensasse em francês e fosse francesa, para que ninguém suspeitasse que era uma inimiga.

- Quando eu for a Condessa de Vence, não vai haver necessidade de dissimulação, pois terei o mais belo titulo do mundo - disse a seu reflexo no espelho.

Ouviu uma batida à porta e o conde entrou.

- Achei que devia estar pronta, querida.

Ela levantou-se da banqueta da penteadeira. Ele lhe estendeu os braços e Mildred correu ao seu encontro.

O conde não a beijou, mas havia em seus olhos uma expressão de grande ternura.

- Está tudo combinado - disse. - Amanhã, você será minha esposa. Dormiremos juntos na cama que pertenceu a meu avô e fazia parte de meu lar, por isso está aqui comigo.

- Pensei a mesma coisa.

Ele se aproximou mais ainda e Mildred perguntou:

- Vai mesmo casar comigo?

- Você vai ser minha mulher e enfrentaremos, juntos, todos os problemas e dificuldades.

Olhou ao redor e continuou:

- Quando vinha voltando da igreja, pensei que, pelo menos durante algum tempo, não vamos morrer de fome.

Ao dizer isso, olhou para o quadro de Boucher. A moça soltou uma exclamação.

- Não me diga que pretende vender esse quadro!

- Conseguirei um bom preço, com algum holandês do outro lado da ilha - respondeu o conde. - Sendo neutros, eles tiveram mais proveito com a guerra do que prejuízo.

- Mas você não pode vender os tesouros da família!

- Possuo o único tesouro que realmente importa - replicou ele.

Com os lábios, abafou qualquer protesto de Mildred.

Desceram de mãos dadas. Jean serviu um jantar delicioso, feito por Henri. Quando a refeição terminou e eles se viram de novo a sós, o conde disse:

- Combinei com a governanta que cuida da casa do padre para vir dormir aqui, hoje à noite, para você ter uma acompanhante. Não desejo começar nossa vida de casados escandalizando as senhoras francesas de St. Martin, cujas línguas trabalham tanto quanto as das outras mulheres do mundo.

- Você vai dormir no navio?

- Na cama onde você dormiu na noite passada - respondeu o conde. - Vou sonhar com você e, amanhã, meus sonhos se tornarão realidade.

- Também vou sonhar.

- Amo você! - disse ele. - Amo-a tanto que, a cada momento, acho que atinjo o máximo de minha capacidade de amar. Mas, depois, vejo que a amo mais ainda. O que foi que fez comigo, querida, para que me sinta como um rapazinho que se apaixona pela primeira vez?

- Deve ter amado muitas mulheres - murmurou Mildred.

O conde sorriu.

- Sou francês. Acho as mulheres atraentes, mas, ao contrário de meus compatriotas, não quis saber de um casamento arranjado, quando era jovem. Nunca, e é a pura verdade, havia encontrado uma mulher com quem tivesse desejado passar o resto de minha vida.

- E se eu o decepcionar?

- Você nunca fará isso. Quando olhei para o retracto que julguei ser seu, Mildred, compreendi que você era tudo o que eu desejava numa mulher. E, quando a conheci pessoalmente, soube que a tinha subestimado e que você era ainda mais maravilhosa do que havia imaginado.

- Tem certeza disso? - perguntou a moça.

- Certeza absoluta. Não é tanto pelo que você diz, ou mesmo pelo que pensa, meu amor, e sim pelo que é. Sua doçura, que reconheci quando a vi pela primeira vez, brilha como um farol e a envolve com uma aura de pureza e de bondade que só pode vir de Deus.

Mildred juntou as mãos.

- Você diz coisas tão maravilhosas a meu respeito! Mas tenho medo de não corresponder à sua expectativa. Então, você me abandonará e zarpará com o seu navio.

O conde sacudiu a cabeça.

- Você deve saber que, agora, deixei de ser pirata. Depois que estivermos casados, vou conversar com os meus amigos e acharemos outro meio de ganhar a vida.

Refletiu um pouco e continuou:

- Conforme já disse, vou vender alguns dos objetos que possuo, para não morrermos de fome. Como tenho fé em Deus, sei que não vai demorar muito tempo para podermos voltar para a Martinica.

Ele falou com tanta emoção que os olhos de Mildred se encheram de lágrimas.

- Vou rezar muito - disse ela. - E, querido, precisa me ensinar a ser boa, para que minhas preces sejam ouvidas.

- Sei que não precisa de lições, nesse sentido. Mas há muitas outras coisas que quero ensinar-lhe, querida. E creio que sabe do que falo... - A moça corou. Depois disse:

- Só espero que... não fique decepcionado com sua... alma.

O conde levantou da mesa. Puxando Mildred, passou os braços à volta dela e juntos foram para a sala de visita.

O aposento estava tão bonito à luz de velas, que ela imaginou estar num castelo da França, ou num dos palácios que tinha visto nos livros, quando se aperfeiçoava na língua francesa.

Ela quis dizer que não suportaria vê-lo vender qualquer um dos objetos da casa, mas achou que seria um erro dizer isso ao conde. Ele poderia pensar que Mildred ainda não compreendera os sacrifícios que era obrigado a fazer.

Pelo menos, tenho algum dinheiro, pensou a moça.

Sabia que os soberanos de ouro, depois de trocados por francos, representariam uma quantia considerável.

Sorriu, pensando contente que poderia contribuir para a vida em comum dos dois. Ele perguntou:

- O que foi que a fez sorrir, além da felicidade, ma petite:

- Estava pensando como estou contente por ter dinheiro comigo. Amanhã será legalmente seu. Mas, antes que me diga que é orgulhoso demais para aceitá-lo, sugiro que este dinheiro contribua para as despesas que você terá que fazer com seus amigos e com os outros membros da tripulação. Afinal de contas, se não podem continuar sendo piratas, a culpa é minha.

O conde encostou o rosto no dela.

- Adoro-a, querida, e não vou discutir pois, como você mesma disse, a culpa é sua de termos que nos assentar na vida e nos tornarmos respeitáveis. Mas, antes de vendermos o navio, que certamente dará um bom dinheiro, você precisa voltar para Granada e contar a seu pai a morte do primo Patrick O'Kerry, e também para ver se ele está são e salvo.

- Podemos fazer isso? - perguntou Mildred. - Estou preocupada com papai, principalmente por ele estar com o Sr. Maigrin.

- Iremos juntos. Acho que seu pai precisa saber que você se casou, embora não vá ficar contente por ter sido com um francês.

A moça deu uma risadinha.

- Ele não vai ligar. Lembre-se de que é irlandês e os irlandeses jamais gostaram dos ingleses.

O conde também riu.

- Tinha me esquecido disso! Então, se o seu pai me tolerar como genro, quando as coisas melhorarem talvez ele venha ficar uns tempos conosco em St. Martin. E você também poderá ir visitá-lo em Granada.

- É muita gentileza sua dizer isso, porque, de certo modo, acho que preciso tomar conta de papai.

Sabia que isto era um sonho pois, enquanto o pai insistisse em ser amigo de Maigrin, seria impossível viver em companhia da filha.

Tinha certeza de que, se Maigrin soubesse que ela tinha casado com um francês, tentaria destruir o conde, atirando nele como inimigo, ou fazendo com que fosse perseguido pelos ingleses.

Apesar de tudo, precisava saber do pai. Talvez ela pudesse fazer com que fosse levado para a Enseada Secreta.

Depois, pensou como o conde era delicado, adivinhando seus desejos, antes mesmo que ela tivesse certeza deles.

Desejando ardentemente ser beijada, a jovem se aproximou dele e sentiu nos seus os lábios do homem amado.

 

Mildred acordou muito cedo, porque estava excitada e também por ter ouvido o som de movimento lá em baixo. Sabia que Jean ou Henri já deviam estar trabalhando.

Depois se lembrou que, no quarto pegado, dormia a governanta do padre, uma mulher idosa, simpática.

Havia chegado, na véspera, carregando uma lanterna para iluminar o caminho escuro atrás da casa.

- Estou encantada por conhecê-la, M'Mselle. O padre François lhe manda a sua benção e terá prazer em celebrar o seu casamento com Monsieur le Conde, às nove e meia.

- Merci, Madame - respondeu a jovem. - E obrigada por ter vindo me fazer companhia, é muita bondade sua.

- Temos que fazer o possível por aqueles que foram atingidos pelas crueldades da guerra.

O Conde disse boa-noite. Como a governanta estava presente, apenas beijou as mãos de Mildred, antes de voltar ao navio.

Depois que ele partiu, a mulher disse:

- É um bom homem e um bom católico. M'Mselle, teve sorte em arranjá-lo para marido.

- Muita sorte, madame - concordou a moça. - E sempre serei grata a Deus.

- Vou rezar pelos dois - prometeu a governanta. - E sei que le bon Dieu os fará muito felizes.

Mildred tinha certeza de que isso seria verdade. Ficou acordada, na cama bonita, pensando como era feliz e que sua mãe via lá do alto esta felicidade.

- Como é que eu poderia saber... como poderia ter adivinhado que iria ser salva do Sr. Maigrin... à última hora?

Começou de novo a rezar, agradecendo a Deus. Só de pensar no conde, sentiu o êxtase causado pelos seus beijos.

Finalmente adormeceu, sentindo que Deus velava por ela e faria com que o amanhã chegasse bem depressa.

 

Quando o sol entrou no quarto, Mildred achou que era sinal de um bom augúrio para sua vida e seu futuro.

Lá fora, os pássaros cantavam. As cores vivas das buganvílias do jardim, unidas aos tons das trepadeiras do terraço e o verde esmeraldino do mar, pareciam fazer parte de um sonho.

- Mas é verdade! - exclamou a jovem, sabendo que este era o dia de seu casamento.

Não possuía um vestido de noiva, mas entre os vestidos que sua mãe lhe comprara havia um que Mildred deveria usar em sua apresentação à corte.

Era branco, como era correto para uma debutante, tendo sido entregue depois da morte da condessa.

Mildred chegara mesmo a pensar em vendê-lo à própria costureira, achando que nunca iria ter oportunidade de usá-lo.

Depois, achou que seria humilhante dizer que não poderia usá-lo e que não tinha condições de pagar por ele. A contragosto, pagara-o e trouxera-o para Granada.

Quando o tirou da mala achou que era um pouco enfeitado demais, mas que era apropriado para uma noiva. Talvez até a deixasse bem bonita para o conde.

Mildred não tinha véu. Mas quando disse isso à governanta que viera ajudá-la a vestir-se, a mulher mandou Jean ir depressa a casa do padre.

- Nós temos somente um véu que ás vezes emprestamos ás noivas, quando chegam à igreja apenas com uma grinalda de flores na cabeça. O padre François não acha isto bastante digno da casa de Deus.

- Ficarei feliz, usando-o - disse a jovem.

- Será um prazer! - replicou a governanta. - E vou lhe fazer uma grinalda que será mais bonita do que qualquer outra que M'Mselle pudesse comprar.

Mandou Henri ir correndo para o jardim. Quando ele voltou com uma cesta cheia de flores, ela sentou e começou a preparar uma grinalda, com grande habilidade.

Ao terminar, notou que nenhuma grinalda de flores artificiais seria tão bela quanto aquela, de flores muito brancas com folhas verdes.

O véu de renda muito fina, caindo até os ombros de Mildred, dava-lhe uma aparência etérea. Depois que lhe colocou a grinalda, a governanta afastou-se um pouco para ver o efeito. Exclamou, encantada:

- Ficou uma noiva muito bonita, M'Mselle! Nenhum homem poderia deixar de apreciar uma noiva tão bela.

- Espero que isto seja verdade - respondeu a moça, com simplicidade.

Quando desceu para a saleta onde o conde a aguardava, viu, pela expressão do rosto dele, que estava como ele a esperava, e talvez ainda mais bonita.

O noivo fitou-a por um momento e depois disse:

- Nunca pensei que houvesse uma criatura tão encantadora.

Ela sorriu através do véu.

- Amo... você!

- E eu direi o quanto a amo mais tarde - prometeu o conde. - Mas agora não ouso tocá-la. Desejaria me pôr de joelhos e acender velas em sua homenagem, não apenas porque a amo, como também a adoro.

- Não deve dizer... tais coisas - protestou Mildred. - Faz com que eu tenha medo de não ser suficientemente... boa para você.

Ele sorriu, como se isto fosse absurdo. Depois, beijou-lhe as mãos e disse:

- Nossa carruagem está à espera, nos fundos. Como a tripulação achou que os cavalos não eram bastante bons, os próprios homens vão puxá-la até à igreja.

Mildred soltou uma exclamação de surpresa. Quando saiu, viu que a carruagem aberta estava sem os cavalos. Os membros mais jovens da tripulação estavam prontos para puxá-la.

A carruagem tinha sido decorada com as mesmas flores da grinalda. No assento havia um buquê das mesmas flores.

Quando a carruagem partiu, a jovem achou que estava tendo o tipo de casamento de um conto de fadas, com o qual sempre sonhara.

O conde pegou-lhe a mão; a carruagem enveredou pelo caminho estreito que levava à aldeia.

Esta constava apenas de umas cabanas de índios, com balcões de ferro forjado. Atrás delas, na ilha, Mildred notou os morros. A paisagem era encantadora.

A igrejinha estava repleta de curiosos. O padre recebeu-os à porta e levou-os para dentro. Os amigos do conde e os tripulantes que não tinham puxado a carruagem esperavam para assistir ao casamento.

Mildred achou a cerimónia muito comovente. Teve a sensação de que o incenso que subia para o tecto estava levando a Deus as preces deles, e que o próprio Deus abençoava o amor que sentiam um pelo outro.

Teve uma profunda consciência da aliança em seu dedo, e ainda mais da presença do conde, ajoelhado a seu lado, e da voz dele fazendo o juramento com indiscutível sinceridade.

Na noite anterior, ela dissera, um tanto nervosa:

- Se eu me casar como sua prima, será... legal?

- Achei que faria esta pergunta - respondeu o conde. - Como bem sabe, seremos chamados apenas pelo primeiro nome. Já contei ao padre que você foi batizada como "Edeline Mildred".

- Pensei que ia ser "Gabrielle"

- Achei que "Gabrielle Mildred" era imponente demais - respondeu o conde. Ambos riram.

- Edeline é um nome bonito e estou plenamente satisfeita com ele - declarara Mildred.

Ficou sabendo que seu marido tinha outros nomes, quando ele fez os votos:

- Eu. Beaufort Francis Louis...

Quando saíram da igrejinha e voltaram para casa, a jovem não podia pensar em mais nada, a não ser no homem a seu lado e nas palavras de amor que ele murmurava em seu ouvido.

Depois, viram chegar todas as pessoas que tinham assistido ao casamento, assim como alguns amigos que moravam na ilha.

 Serviram vinho, que todos brindaram aos noivos. E Mildred tinha certeza de que Henri passara toda a noite preparando o festim.

Estavam todos muito alegres e felizes, conversando e rindo.

Os amigos que moravam na ilha foram os primeiros a sair, depois o padre e a governanta e, finalmente, a tripulação, que ia para o navio fazer a sesta.

Foi então que Mildred percebeu que estava sozinha com o marido. Ergueu o rosto para ele, fitando-o.

- Creio que seria mais confortável termos a nossa sesta sem estas roupas elegantes - disse o conde. - E tenho medo de estragar este lindo vestido.

- Foi feito para ser usado no Buckingham Palace - contou a moça. - Mas é muito mais apropriado para usá-lo no dia de meu casamento com você.

- Concordo plenamente - observou o marido. - Por que haveríamos de nos preocupar com reis e rainhas, quando temos um ao outro?

Levou-a para cima. Quando chegaram ao quarto, Mildred viu que alguém, provavelmente Jean, tinha descido as venezianas, de modo que o quarto estava fresco e sombrio.

Havia ali flores perfumadas em grandes vasos na penteadeira, e em outros menores nas mesinhas-de-cabeceira.

- Minha noiva! - disse o conde, suavemente.

Tirou a grinalda da cabeça da esposa e ergueu o véu.

A moça fitou-o por um longo momento. Depois ele a tomou nos braços.

- Você existe! - disse, como se falasse consigo mesmo. - Quando se realizava a cerimónia do casamento, tive medo de que você fosse uma deusa que tivesse descido do alto de uma dessas montanhas, ou uma ninfa saindo de uma cascata.

- Sim, existo... - murmurou Mildred. - Mas, assim como você, acho que tudo isto é um sonho.

- Se é, então vamos continuar sonhando... - disse o conde.

 

Mildred acordou e sentiu que seu coração estava alegre como os pássaros lá fora. Olhou com ar de adoração para o conde, que dormia a seu lado.

Sentia que, a cada dia que passava, ela o amava com maior intensidade.

Mas hoje era um dia especial, porque iam partir para Granada.

Fazia três semanas que estavam casados. Na véspera, o conde dissera:

- Creio, meu amor, que devemos fazer nossa última viagem no navio antes de vendê-lo.

Mildred ficara sobressaltada, e ele tinha explicado:

- Pretendo primeiro vender o navio. Isto nos dará, a mim e à tripulação, dinheiro suficiente para olharmos à volta e planejarmos nosso futuro. E, se for necessário, outras coisas terão que ser sacrificadas.

A maneira de ele dizer "outras coisas" fez com que a moça percebesse o quanto o marido lamentava por ter que se privar dos quadros e dos tesouros, que tinham sido colecionados por ele e por sua família durante séculos.

Tinha tido muita sorte, podendo trazê-los da França antes da revolução, dissera o conde.

- Do contrário, tudo o que possuíamos teria sido confiscado, ou queimado pelos camponeses - acrescentara ele.

Houve silêncio. Mildred soube que o marido imaginara preservá-los para seu filho mais velho, mas isso não seria possível.

Ela afastou-se do conde, pouco depois:

- Às vezes, querido, acho que eu deveria tê-lo deixado vagueando por aí, como... pirata.

O conde riu, e a expressão de seu rosto se tornou menos tensa.

 - Meu amor, acha que eu iria querer ser um pirata, se para isso tivesse que abandoná-la? Sou tão feliz que agradeço a Deus todos os dias por estarmos juntos e você ser minha mulher.

 - Sim, sei disso, mas... - para impedir que Mildred continuasse a se desculpar, ele beijou-a. A sensação de felicidade que ela sentiu afastou qualquer outro pensamento.

Agora, sabendo que o navio estava à venda, rezou para que obtivessem bastante dinheiro. Assim, o marido não precisaria vender seus mais caros tesouros.

Sabia também que, antes que ficassem presos em St. Martin, após a venda do navio, sem meios de sair dali, ela teria que ir ver o pai e se possível, contar-lhe que estava casada.

Isto significava deixar, embora por pouco tempo, a casa do conde e a felicidade que ali encontrara. Pensando nisso tudo, Mildred chegou mais perto dele.

 O conde acordou e, sem abrir os olhos, abraçou-a e puxou-a para mais perto.

 - Não vamos correr riscos desnecessários, não é? - perguntou Mildred. - Se não for seguro desembarcarmos em Granada, você voltará para cá?

O conde abriu os olhos e fitou-a.

- Não pensa, minha adorada, que iria levá-la aonde houvesse perigo, não e? Prometo que, se a bandeira branca de Abe não estiver lá, indicando que não há perigo, voltaremos imediatamente.

- É o que eu queria saber - disse Mildred. - Se alguma coisa lhe acontecesse agora, eu... preferiria morrer.

- Não fale em morrer. Você vai viver e veremos nossos filhos e nossos netos correndo pelas fazendas da Martinica, antes que um de nós vá embora deste mundo.

Falou num tom profético. Mildred pôs os braços à volta do pescoço do marido, para que ele a beijasse.

- Como é que posso provar o quanto o amo, meu querido?

- Assim!

Começou a beijá-la, sentindo que seus corações batiam palpitantes. Quando percebeu que ele se inflamava, Mildred sentiu também a força da paixão.

Foi como se ouvissem uma musica celestial... E eles se tornaram uma só pessoa...

 

O mar tinha um tom vivo entre azul e verde, o céu estava cheio de sol. As velas se enfunavam ao vento fazendo com que o navio parecesse deslizar sobre a água.

Os tripulantes assobiavam e cantavam enquanto trabalhavam. Mildred tinha a impressão de que, assim como o conde, estavam satisfeitos por deixar a vida perigosa da pirataria e voltar ao que eles chamavam de "respeitabilidade".

Todas as noites, ao jantar, eles conversavam sobre o que deveriam fazer.

- É uma pena que não haja mais gente em St. Martin e nem crimes - observou Leo. - Do contrário, iriam precisar de meus serviços de advogado.

- Não há crimes? - perguntou a moça.

Ele sacudiu a cabeça.

- Se alguém roubasse alguma coisa, como é que poderia fugir com o produto do roubo? E todo o mundo é tão pacato, que ninguém quer matar ninguém.

- Parece que está desperdiçando a sua inteligência - disse o conde a Leo. - Mas, quando chegarmos em casa, garanto que haverá centenas de casos para você solucionar.

Sempre falavam com optimismo do dia em que voltariam a Martinica. Mildred sabia que os funcionários de Leo estudavam à noite pois queriam estar preparados para os exames, por mais tempo que isso levasse.

Agora ela já tinha verdadeira amizade pelos três amigos do marido, percebendo que os tripulantes não apenas a admiravam, como procuravam sua opinião quando discutiam qualquer problema. Gostavam também de falar com ela sobre o futuro que os esperava.

- Garanto que todas as mulheres do mundo teriam inveja, se soubessem que tenho tantos homens encantadores só para mim - disse Mildred ao marido, brincando.

- Você me pertence, ma petite. Se eu a vir até mesmo olhando para outro homem, saberá como sou ciumento!

Ela se achegou ao marido:

- Sabe que eu nunca poderia olhar para ninguém, a não ser para você. Amo-o tanto, que às vezes tenho medo de que fique entediado de ouvir isto e vá procurar outra menos previsível.

- Quero o seu amor. E você não me ama, ainda, nem a metade do que pretendo que me ame.

Beijou-a apaixonadamente, de um modo exigente, como se quisesse provar o quanto tinha necessidade dela.

Como não encontraram nenhum navio na viagem para Granada, levaram menos tempo do que no trajeto para St. Martin.

À tarde, antes de chegarem à ilha, Henri foi até a cabina, depois da sesta, para ajudar Mildred a lavar a rinsagem do cabelo.

Ela precisava reaplicar a tinta sempre que lavava a cabeça, mas, agora, a tinta ia desaparecer de vez, para que os cabelos readquirissem a cor natural e ela voltasse a ter a aparência de uma inglesa.

Mildred secou os cabelos ao sol. Depois, deixou que ficassem soltos.

O Conde estava muito ocupado, ao leme. Mais tarde, quando foi para a cabina, o sol se escondia e ele viu a esposa perto de uma das vigas. Por um momento, ficou imóvel, fitando-a.

Depois, sorriu e disse:

- Vejo que tenho uma visitante inglesa! Muito prazer em conhecê-la, Sra. Vence!

Mildred riu e correu para ele.

- É perfeito! Agora você está falando inglês muito melhor do que falo francês.

- Seria impossível - replicou o Conde. - Mas estou contente por ver que suas lições deram resultado.

- Você fala como um inglês, mas é elegante demais para ser inglês!

- E você me lisonjeia - replicou o conde. - Mas, querida seja qual for a sua aparência, lembre-se de que é minha mulher, unha fascinante e encantadora esposa francesa.

Beijou-a. Depois, afastou os cabelos de Mildred para trás, descobrindo mais o rosto, disse, ainda:

- É de novo a minha menina de cabelos dourados, Mildred. Não sei de que jeito a prefiro, se morena e misteriosa, ou loura e de cabelos dourados como uma manhã de primavera.

O Conde tinha planejado chegar perto de Granada bem depois do pôr-do-sol. Não podia ser muito cedo, para poder dar tempo a Abe de trocar uma bandeira, se necessário. Mas eles se atrasaram, devido à falta de vento. Quando finalmente avistaram a ilha, eram quase onze horas da noite.

Mildred estava no tombadilho, ao lado do marido, esperando que o vigia, no mastro, desse o sinal sobre a cor da bandeira.

- Uma bandeira branca! Vejo-a claramente!

O Conde virou o leme, as velas se enfunaram e o navio se dirigiu para a enseada.

Era preciso muita habilidade para entrar na Enseada Secreta, mas o Conde manobrou brilhantemente. Mildred sentiu um aperto no coração quando viu o molhe, os pinheiros e as coloridas moitas de buganvílias que ela conhecia desde criança.

Lançaram a âncora. A prancha de descida foi ligada ao molhe e Conde o ajudou a esposa a descer.

Os dois tinham combinado descer logo. Os outros ficariam no navio, prontos a zarpar logo, se necessário.

- Se papai estiver aqui, quero que conheça todo o mundo. - disse a moça.

- Primeiro, precisamos ver o que seu pai acha de mim - explicou o Conde. - Talvez ele discorde violentamente de você ter casado com um francês.

- Ninguém pode fazer isso, tratando-se de você - protestou Mildred.

O marido riu e beijou a ponta do nariz da esposa.

Levava no braço a túnica de Patrick O'Kerry e os documentos que tirara dele, antes que fosse sepultado no mar.

- Papai vai querer guardá-los - disse Mildred. - Quando a guerra terminar, a mãe de Patrick, se ainda estiver viva, vai querer recebê-los.

- Foi o que pensei - disse o Conde.

- Como é que você pode ser tão bom? - perguntou ela. Não creio que qualquer outro homem pensasse nessas coisas, a meio de uma guerra.

- Uma guerra que, assim o espero, não nos preocupará no futuro - respondeu ele, baixinho.

Como conhecia as reações do marido, Mildred sabia que ele estava de facto apreensivo quanto à recepção que iria ter por parte do sogro.

Mas achava que, a não ser que o Sr. Maigrin estivesse presente o seu pai iria ficar satisfeito por sua filha ter encontrado um homem que a amava e respeitava.

Ficou imaginando, caso o pai não estivesse na Enseada Secreta como poderia mandar-lhe um aviso para que viesse sozinho até lá.

Não era possível prever o que aconteceria quando ele chegasse, mas o importante era falar com Abe e descobrir como estavam as coisas.

Caminharam por entre os pinheiros. Ela relanceou o olhar para o marido, quando deixaram a segurança das árvores e entraram no jardim.

Ele estava sério, mas Mildred achou-o muito bonito.

Como fazia calor, o Conde usava apenas uma camisa de linho fina, mas sua gravata tinha um nó complicado e moderno. Seus calções de algodão branco eram iguais aos que a tripulação usava só que mais ajustados.

Ele é tão elegante! pensou Mildred. E, ao mesmo tempo, tão viril!

Caminharam por entre os canteiros, que no passado tinham sido o orgulho da mãe de Mildred. Assim que chegaram ao centro do jardim, viram um homem aparecer no terraço.

O coração da moça parou por um segundo, pois o homem usava o uniforme britânico. Era um coronel.

Ela e o marido pararam. O coronel desceu a escada e dirigiu-se para os recém-chegados.

Depois, atrás dele surgiu Abe. Pela expressão do rosto do velho criado, Mildred percebeu que estava consternado, pois a visita do oficial inglês era inesperada.

O coronel adiantou-se. Depois, estendeu a mão à moça e sorriu.

- Creio que estou falando com lady Mildred O'Kerry? - disse ele. - Permita que me apresente. Sou o tenente-coronel Campbell e acabo de chegar de Barbados com um destacamento de soldados.

Por um momento, ela nada pôde dizer.

Depois, com uma voz que não parecia a sua, disse:

- Como vai, coronel? Tenho certeza de que foram bem-vindos a St. George.

- Sim, fomos - respondeu ele. - E creio que logo poderemos pôr ordem aqui.

Olhou para o Conde e Mildred percebeu que estava esperando que ela os apresentasse.

Enquanto, desesperada, imaginava o que poderia dizer, viu o olhar do coronel cair sobre a túnica naval que o Conde carregava no braço.

Quase como se recebesse uma mensagem dos céus, Mildred soube o que devia fazer.

- Coronel, permita que lhe apresente meu primo, que também é meu marido. O comandante Patrick O'Kerry!

O Conde apertou a mão do coronel. Este disse:

- Estou encantado por conhecê-lo, comandante. Por estranho que pareça, o governador estava falando de você, um dia destes, e imaginando o que lhe teria acontecido e como poderia comunicar-se com você.

- Sobre o quê? - perguntou o Conde.

Mildred percebeu que ele estava absolutamente senhor de si, embora o coração dela batesse acelerado.

O coronel virou-se de novo para a jovem.

- Infelizmente, lady Mildred, creio que tenho más noticias - disse, serenamente.

- Más notícias? - perguntou ela, de respiração suspensa.

- Vim aqui para informá-la de que seu pai, o conde de Kilkerry, foi morto pelos revolucionários.

Mildred prendeu a respiração e estendeu a mão para o marido.

Ele.a segurou e ela sentiu que o aperto de mão lhe dava força.

- Como foi que... aconteceu?

- Há dez dias, os escravos do Sr. Roderick Maigrin estavam resolvidos a juntar-se aos outros rebeldes - explicou o coronel. - Mas ele descobriu tudo e tentou impedir que abandonassem a fazenda.

Mildred tinha certeza de que Maigrin os assassinara, como tinha assassinado os outros. Mas nada disse. O coronel continuou:

- Os escravos o desarmaram e atiraram em seu pai, lady Mildred. Ele morreu instantaneamente. Mas torturaram o Maigrin, antes de matá-lo.

A moça nada disse. Apenas sentiu alivio por seu pai ter morrido sem sofrer.

O conde disse, então:

 - Compreende, coronel, que isto foi um choque para minha mulher? Sugiro entrarmos em casa, para que ela possa descansar.

- Sim - naturalmente.

O conde passou o braço à volta da cintura de Mildred. Quando se dirigiam para a escada do terraço, ela percebeu que o marido mancava de maneira convincente.

Ficou imaginando por que fazia isso.

Sentaram-se na sala de visitas. Abe apareceu com um cálice de ponche de rum. O coronel disse:

- Suponho que esteja ansioso para voltar para o mar, comandante?

- Infelizmente creio que será impossível - respondeu o conde. - Como deve saber, eu estava no H.M.S. Heroic, que foi afundado. Fui ferido assim como outros membros da tripulação.

- Notei que estava mancando - confessou o coronel. Mas além de seu ferimento, como as circunstâncias de sua vida mudaram, eu estava com esperança de convencê-lo a ficar aqui.

O conde demonstrou surpresa e o coronel continuou:

- Como deve ter compreendido, você é agora o conde de Kilkerry. Deve assumir, então, a direção da fazenda. O governador está ansioso para que o trabalho nas propriedades entre nos eixos e os escravos recomecem a plantar.

Mildred ergueu a cabeça e disse:

- Creio que nos sobraram muito poucos escravos.

- Talvez seja verdade. O mesmo aconteceu em outras fazendas, de onde os escravos fugiram para se juntar aos rebeldes. O resto está escondido. Mas logo vamos tomar Belvedere. Assim que Fédor estiver em nosso poder, a rebelião terminará.

- Então, os escravos voltarão ao trabalho, aflitos para recomeçar - observou o conde.

- Exactamente! E é por isto, milorde, que eu gostaria que ficasse aqui e cuidasse da propriedade de sua mulher. É importante para a ilha. E, enquanto não encontrarmos alguém para tomar conta da fazenda do Sr. Maigrin, talvez você ache um tempinho para cuidar dela.

Houve uma pausa. Mildred percebeu que seu marido estava reflectindo. Depois, ele falou:

- Certamente farei o possível para ajudar. E sei que os nossos escravos vão ficar contentes por voltar ao trabalho.

O coronel sorriu.

- Era exactamente isso o que eu queria ouvir, milorde. Tenho certeza de que o governador vai ficar encantado com a sua atitude.

Fez uma pausa e continuou:

- A propósito, lady Mildred, sei que vai ficar triste por saber que o antigo governador, que a senhora conhecia bem, foi morto pelos rebeldes. O actual governador é novo aqui na ilha. Tenho certeza de que ficará encantado por conhecê-la, mais tarde. Creio ser de dizer que, actualmente, está ocupado demais para se envolver em acontecimentos sociais.

- Sim, é claro - concordou Mildred. - Também nós vamos estar ocupados. Infelizmente meu pai descuidou da fazenda, nos últimos dois ou três anos, e há muito que fazer.

- Tenho certeza de que seu marido dará conta de tudo admiravelmente.

O coronel terminou o seu ponche e levantou-se.

- Se me derem licença, preciso ir embora - disse. - Tenho que voltar para St. George. Como eu estava resolvendo certas dificuldades em St. David, o governador me pediu que passasse por aqui e tive a sorte em encontrá-los.

- Esperamos vê-lo novamente - disse Mildred estendendo-lhe a mão.

- Espero que sim - respondeu o coronel. - Mas, assim que nossos planos estiverem completos, vamos entrar em acção! - Apertou a mão do conde e acrescentou:

- Até logo, milorde. Felicidades! Estou encantado por vê-los aqui. Talvez não saiba que houve muito poucos sobreviventes do H.M.S. Heroic.

O conde acompanhou o coronel até à porta, onde um cavalo o esperava, com uma dúzia de soldados montados.

Viu-os partir e voltou para a sala de visitas.

Mildred correu para ele e atirou-se em seus braços.

- Querido, você foi maravilhoso! Ele nem desconfiou que você não é Patrick O'Kerry!

- Porque você disse que sou - falou o conde. - Achei que foi muito viva e inteligente.

Levou-a para o sofá e sentaram-se de mãos dadas.

Mildred fitou-o com ar indagador.

- Você é quem vai decidir: vamos ficar, ou partir?

Ela perguntou, imediatamente:

- Está disposto a ficar aqui e dirigir a fazenda, conforme o coronel sugeriu?

- Por que não? Pertence a você. Tenho certeza de que será um trabalho duro, mas, com minha experiência, faremos com que a fazenda dê lucro.

Não esperou pelo comentário de Mildred e continuou:

- Se ficarmos aqui, poderemos também encontrar trabalho para todos os nossos amigos. Sua tarefa, querida, será fazer com que eles sejam eficientes, não apenas no trabalho, como na língua inglesa.

Sorriu e continuou:

- Afinal de contas, todos eles são franceses inteligentes. Não será difícil para Leo, mais tarde, encontrar bastante serviço em St. George. E, se formos espertos, André e Jacques poderão cuidar da fazenda de Maigrin.

- Seria óptimo e, de certo modo, justo, depois de aquele homem exercer tão má influencia na vida de meu pai.

- Se me arrisquei a ser um pirata, certamente poderei me arriscar a ser um fazendeiro inglês - observou o conde. - Depende de você. Mas, minha querida, se preferir voltar para St. Martin, estou de pleno acordo.

Mildred sorriu.

- E vender suas preciosidades? Claro que não! Vamos ficar aqui. Como você é inteligente, tenho certeza de que jamais será descoberto. Além do mais, não há nenhum O'Kerry para acusá-lo de ter roubado o título.

O conde inclinou-se e beijou-a.

- Então, será como você quiser. E no futuro, querida, poderá escolher se deseja ser uma countess inglesa, ou uma condesse francesa e fazer com que seu cabelo tenha uma cor de acordo com a nacionalidade que preferir!

Mildred riu, depois chamou Abe.

- Escute, Abe. Somente você saberá, aqui, que este cavalheiro e, na realidade, francês. Creio que ouviu o que o coronel disse.

- Ouvi, senhora. Muito boas noticias! Todo o mundo está contente! Vamos ficar ricos!

- Claro que vamos - respondeu a moça.

- Só uma noticia má, senhora.

- Qual é? - perguntou Mildred.

- O novo governador levou Momma Mabel. Vai lhe pagar muito dinheiro. Ela foi para St. George.

Mildred riu.

- Quer dizer que não haverá problema em deixarmos que Henri tome conta da cozinha.

Em tom mais alto disse, excitada:

- Vá depressa até o navio, Abe, e diga a Henri que venha preparar o almoço. Diga a todos os outros que também venham e que "milorde" lhes dirá o que ficou decidido.

Riu de novo, ao dar ao marido o seu novo titulo.

Abe saiu correndo da sala, desceu a escada do terraço e atravessou o jardim, em direção ao navio. O conde tomou a esposa nos braços.

- Espero que saiba o que está fazendo. Vai ter que trabalhar muito, meu amor, e eu também.

- Mas será excitante trabalharmos juntos. E pensei num novo nome para você, um nome inglês.

O conde ergueu as sobrancelhas e ela explicou:

- Em território inglês, vou chamá-lo de "Beau" e, em território francês, de "Beaufort".

- Contanto que isso agrade a você, estou satisfeito.

Apertou-a mais ainda e acrescentou:

- Nem sei como tivemos tanta sorte de encontrar um lugar onde poderemos trabalhar e nos amar, minha querida, até que o caminho para casa esteja livre!

- Suponhamos que, quando este dia chegar, eu queira ficar aqui? - perguntou Mildred.

Ele fitou-a, mas viu que ela estava brincando.

- Permita que lhe diga de uma vez por todas que aonde eu for você irá! Você me pertence! É minha! Nem todas as nações do mundo poderiam nos separar!

- Oh, meu amor, é isto o que desejo ouvir de você! - Mildred suspirou. - E sabe que o amo.

- Farei com que tenha certeza disso todos os dias, querida.

Puxou-a quase brutalmente e começou a beijá-la. Mildred percebeu que mais uma vez ele demonstrava sua ardente paixão.

Sabia que, com ele, sempre se sentiria segura e protegida. Não importava onde estivessem, em que ilha ou em qualquer parte do mundo.

Os braços do marido eram como uma enseada secreta que abrigava e os inspirava para o amor.

Quando os beijos do conde se tornaram mais insistentes, ela falou, em voz trémula:

- Querido, os outros vão chegar dentro de poucos minutos. Por favor, não me excite até... hoje à noite.

Viu o fogo do olhar do conde. Ele sorriu.

- Hoje à noite? Por que esperar até a noite? Depois do almoço haverá a sesta. Pretendo dizer-lhe, minha esposa maravilhosa, linda e corajosa, como foi que me apaixonei por um retracto. Mas o destino me trouxe a pessoa real e ela é a criatura mais excitante que já conheci na vida.

Beijou-a de novo, muitas vezes, até ouvirem vozes no jardim.

Eram vozes de homens que falavam animadamente, mas não em inglês. para Mildred e seu marido, porém, só existia uma língua que ambos compreendiam, e que seria a mesma, onde quer que eles estivessem: a linguagem do amor.

 

As venezianas estavam cerradas. O quarto cheirava a jasmim e estava escuro. Nos travesseiros de fronhas com bordas de rendas, duas cabeças estavam muito juntas.

- Je t'adore, ma petite - disse o conde, em voz rouca.

- Eu te amo, querido.

- Diga isto de novo. Quero ter certeza.

- Adoro-o - disse Mildred.

- E eu a adoro e a venero, mas também a quero como mulher, minha bem-amada.

- Como é que posso explicar o que... sinto?

Mildred falou em voz baixa e ofegante. As mãos do marido acariciavam e ela sentiu que o coração dele batia tão acelerado quanto o seu.

- Je te désire, ma chérie, je te désire!

- E eu... desejo... você... Oh meu maravilhoso marido... Beau, por.favor, me ame!

- Entregue-se a mim.

- Sou sua... sua...

- É minha, agora e para sempre.

Então, houve apenas amor, numa enseada secreta que seria só deles e da felicidade que os dominava.

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

 

                      

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