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MEU NOME É VERMELHO / Ornan Pamuk
MEU NOME É VERMELHO / Ornan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MEU NOME É VERMELHO

Primeira Parte

 

Na Istambul do fim do século XVI, em comemoração ao primeiro milênio da Hégira, o sultão encomendou um belíssimo livro que representasse o poder e a riqueza do Império Otomano, que vivia o seu apogeu.

Os mais renomados pintores miniaturistas são convidados a iluminá-lo, mas a missão é das mais perigosas. O sultão quer demonstrar ao doge de Veneza a superioridade do mundo islâmico, e para isso pede iluminuras feitas com as técnicas ocidentais da então florescente pintura renascentista — o que vai de encontro a um preceito básico do islã, segundo o qual toda arte figurativa constitui uma afronta.

O desaparecimento de um dos miniaturistas parece comprovar o risco da empreitada. Rivalidade profissional, crime passional ou terror religioso? A única pista deixada — um cavalo de estranhas narinas desenhado no corpo do morto — só faz aumentar a intriga. E um novo assassinato vem complicar ainda mais o caso. De volta a Istambul após doze anos de ausência forçada, Negro é incumbido de desvendar o mistério.

Seu prazo, porém, é exíguo: ele tem apenas três dias para encontrar o assassino — e ganhar a mão da bela Shekure, seu primeiro e único amor.

Diversas vozes se alternam nessa trama multifacetada, contada por dezenove narradores diferentes — entre eles um cachorro, um cadáver, uma moeda falsa e a cor que dá nome ao livro. O pleno domínio do foco narrativo e a forma extraordinária de contar a história rendeu a Pamuk prêmios e elogios respeitáveis — o escritor americano John Updike chegou a compará-lo a Marcel Proust.

Repleto de reviravoltas e construído na confluência da arte, da religião e da filosofia, Meu nome é Vermelho mistura elementos do romance policial aos do romance histórico.

Esplêndida e misteriosa, aqui está a Turquia da última década do século XVI — e, por tabela, também a dos dias de hoje. Pois é Pamuk quem afirma: "Vivo numa cultura em que o choque entre o Oriente e o Ocidente, ou a harmonia entre o Oriente e o Ocidente, é nosso estilo de vida. A Turquia é isso".

 

      

                   Eu sou meu cadáver

       Agora, sou meu cadáver, um morto no fundo de um poço. Faz tempo que dei o último suspiro, faz tempo que meu coração parou de bater mas, salvo o canalha que me matou, ninguém sabe o que aconteceu comigo. Esse crápula desprezível, para certificar-se de que tinha mesmo dado cabo de mim, observou minha respiração, espreitou minhas derradeiras palpitações, depois deu-me um chute nas costelas, arrastou-me até um poço, passou-me por cima da mureta e precipitou-me fosso abaixo. Minha cabeça, já rachada a pedra, esfacelou-se na queda; meu rosto, minha testa, minhas faces se estraçalharam; moeram-se meus ossos, minha boca encheu-se de sangue.

       Há quatro dias não volto para casa. Minha mulher e meus filhos estão me procurando. Minha filhinha, já sem forças para chorar, deve estar olhando o tempo todo para o portão do quintal. Sim, eu sei que estão todos à janela, ansiando por minha volta.

       Mas será que me esperam mesmo? Não posso saber. Vai ver já se acostumaram com a minha ausência. Que horror! Porque, uma vez do outro lado, temos a sensação de que a vida que deixamos para trás continua a passar como sempre passou, desde sempre. Antes que eu nascesse, estendiam-se atrás de mim tempos infinitos. Depois da minha morte, o tempo se desenrolará novamente, sem fim e sem limites! Nunca havia pensado nessas coisas antes: eu tinha vivido luminosamente, entre duas eternidades de escuridão.

       Eu era feliz, agora sei que fui feliz. No ateliê de pintura do Nosso Sultão, eu é que fazia as mais belas iluminuras, diria até que não havia iluminador cujo talento se comparasse ao meu. Quanto às obras que executava fora do ateliê, rendiam-me por mês novecentas moedas de prata, o que, naturalmente, só torna a minha morte ainda mais insuportável.

       Eu fazia miniaturas e iluminuras para os livros. Iluminava as beiradas das páginas colorindo suas margens com fidelíssimos desenhos de folhas, ramos, roseiras, flores e pássaros. Pintava nuvens com as bordas revoltas à chinesa, ramagens complicadas, matagais furta-cor onde se escondem gazelas, galeras, sultões, bosques e palácios, cavalos, caçadores... Na minha juventude, às vezes pintava o interior de um prato, o verso de um espelho, a concavidade de uma colher, o teto de uma mansão ou de um pavilhão à beira do Bósforo, a tampa de um baú... No entanto, nestes últimos anos só vinha trabalhando em páginas de manuscritos, porque o Sultão paga muito bem os livros de miniaturas. Não vou dizer que, agora, isso não tem importância para mim. Você sabe que o dinheiro significa muito, mesmo quando já se está morto.

       Ante este prodígio — vocês ouvirem minha voz, apesar do estado em que me acho —, na certa vão pensar: “Quem vai se interessar em saber quanto você ganhava quando estava vivo? Conte-nos, isso sim, o que está vendo agora. Existe vida depois da morte? Onde está a sua alma? Como são o Inferno e o Paraíso? E a morte, como é? Dói?”. Vocês têm razão. Sei que os vivos têm muita curiosidade de saber como é a vida depois da morte. Talvez vocês já tenham ouvido a história de um homem que, movido por essa simples curiosidade, passeava pelos campos de batalha, no meio do sangue e dos cadáveres, com a certeza de que encontraria, entre todos aqueles guerreiros agonizando em suas purulências, um que morresse, ressuscitasse e pudesse então lhe revelar os arcanos do outro mundo. Mas um soldado de Tamerlão, tomando aquele bisbilhoteiro por um inimigo, abriu-o ao meio, conta-se, com um só golpe da sua cimitarra, levando-o a concluir que no Além somos cortados em dois.

       Ora, não é nada disso. Eu diria até que as almas separadas em vida voltam a se juntar aqui no Além. Mas, ao contrário das afirmações dos ímpios e incrédulos, dos libertinos e demais compadres do Diabo, existe sim um outro mundo, Alá é grande. A prova disso é que estou falando com vocês daqui. Estou morto, no entanto, como estão vendo, não parei de existir. Por outro lado, sou forçado a admitir que não encontrei o que se fala no Corão: nem Paraíso em que os rios banham pavilhões de ouro e de prata, nem galhos gigantescos carregados de frutas maduras, nem lindas virgens debaixo das árvores. Aliás, ainda me lembro muitíssimo bem quantas vezes, e com que prazer, eu mesmo representei essas beldades do Paraíso, de olhos imensos, a que se refere a surata do Evento Inevitável. Quanto aos quatro rios, de leite, de vinho, de água doce e de mel, que descrevem cheios de entusiasmo os visionários como Ibn Arabi — mas não o Venerável Corão —, é claro que não os encontrei. Devo lhes dizer no entanto que tudo isso está ligado à minha situação particular, pois não tenho a menor intenção de abalar a crença dos que vivem cultivando legitimamente essas esperanças e essas belas imagens do Outro Mundo. Mas qualquer crente, por pouco versado que seja nessa questão da vida após a morte, admitirá que é difícil, nesses tormentos sem trégua que são hoje o meu quinhão, entrever os rios do Paraíso.

       Em poucas palavras, eu, que sou conhecido no meio dos pintores e entre os mestres miniaturistas pelo nome de Elegante Efêndi, estou morto mas ainda não fui enterrado. É por isso também que minha alma ainda não abandonou totalmente meu corpo. Para poder chegar ao Paraíso, ao Inferno ou a qualquer outro lugar que minha sorte me reserve, ela tem que sair do meu corpo abjeto. Essa minha situação excepcional, embora meu caso não seja, naturalmente, o primeiro, vem expondo a minha parte imortal a terríveis aflições. Se é verdade que não sinto meu crânio esfacelado, nem a lenta decomposição do meu corpo dilacerado nesta água glacial, percebo em compensação o profundo tormento da minha alma lutando para deixá-lo. É como se o mundo inteiro se contraísse dentro de mim, comprimido como por uma morsa.

       Só posso comparar essa sensação de compressão com a sensação de alívio que surpreendentemente experimentei no instante preciso da minha morte. Quando minha têmpora fendeu-se ao golpe inesperado da pedra, se bem que eu tenha imediatamente compreendido que aquele canalha queria me matar, não pude acreditar que ele conseguiria. Conservei todas as minhas esperanças, um traço de caráter que minha vida tão pálida, entre o ateliê e a minha casa, não me havia em absoluto permitido notar. Tentei pois me agarrar à vida com unhas e punhos, com meus dentes que o mordiam sem soltar... Mas não quero aborrecê-los mais com o horrível relato de todas essas atrocidades.

       Quando entendi, com tristeza, que ia morrer, uma incrível sensação de alívio me invadiu, como eu disse, e foi com essa sensação que vivi o instante da travessia: minha chegada deste lado se deu suavemente, fácil como o sonho de um homem que sonha estar dormindo. A última coisa que vi foram os calçados cheios de lama e de neve daquele canalha, meu assassino. Fechei os olhos como para dormir e passei, suavemente, para o outro lado.

       Não é dos meus dentes que me queixo agora, espalhados como grãos-de-bico grelhados na minha boca sanguinolenta, nem do meu rosto, tão esfacelado que se tornou irreconhecível, nem mesmo de estar abandonado aqui, no fundo de um poço, mas de saber que ainda me crêem vivo. Que as pessoas que me amam pensem em mim o tempo todo, imaginando que estou me distraindo de alguma maneira idiota num bairro mal-afamado de Istambul, ou que eu esteja até, neste instante, correndo atrás de uma mulher que não é a minha, aí está o que de fato me dói e impede que minha alma encontre repouso. Chega! Tomara que encontrem logo o meu cadáver, que recitem a prece e me dêem enfim um funeral e um enterro! E, principalmente, que encontrem meu assassino! Enquanto esse canalha não for descoberto, quero que todos saibam, mesmo que me metam no mais suntuoso dos mausoléus, eu vou me virar e revirar na tumba sem encontrar paz e não cessarei de infestar vocês todos com a peçonha da impiedade. Encontrem esse filho-da-puta, que eu lhes conto com todos os detalhes o que eu vir lá, no Outro Mundo. Mas, quando o descobrirem, deverão torturá-lo, quebrar-lhe oito ou dez ossos num torniquete, de preferência as costelas, fazendo-as estalar lentamente uma depois da outra; depois arranquem-lhe os cabelos ensebados, nojentos, um a um, até ele gritar bem alto, enquanto os carrascos lhe esfolam a pele do crânio, com aquelas grandes agulhas feitas para esse fim.

       Quem é esse assassino que me inspira tanta raiva? Por que ele me matou assim, de uma forma tão inesperada? Ponham o cérebro para funcionar! Vocês não dizem que o mundo está cheio de criminosos vis e rasteiros? Que pode ter sido este, que pode ter sido aquele? Nesse caso, deixem-me avisá-los desde já: por trás da minha morte se esconde um repugnante complô contra nossa visão de mundo, nossos costumes, nossa religião. Abram os olhos e tratem de descobrir por que os inimigos do islã e da vida como nós a vivemos, na qual acreditamos, deram cabo de mim e por que poderiam perfeitamente matar vocês também, um dia. Cada uma das grandes predições do grande pregador de Erzurum, Nusret Hodja, de quem eu bebia cada palavra com lágrimas nos olhos, se realiza com exatidão. Deixem-me lhes dizer também que, se resolvessem contar num livro o que acontece conosco, nem mesmo o mais talentoso dos iluminadores seria incapaz de ilustrá-lo. Tal como o Venerável Corão — não interpretem mal minhas palavras! —, a força surpreendente desse livro viria de nunca poder ser posto em imagens. Aliás, duvido que vocês tenham compreendido esse fato plenamente.

       Saibam que, na época em que eu era aprendiz, embora tivesse medo das realidades ocultas e das vozes vindas do Além, não lhes dava a menor bola, na verdade até ria delas. E não é que fui acabar no fundo deste deplorável poço! A mesma sorte poderia muito bem caber a vocês: olho vivo! Quanto a mim, não tenho nada mais a fazer, senão esperar que, se eu começar a apodrecer, quem sabe me encontrem por causa do mau cheiro... Enquanto isso, imagino as torturas que alguma pessoa caridosa haverá por bem infligir ao meu ignóbil assassino, quando o encontrarem.

      

                   Meu nome é Negro

       Após uma ausência de doze anos, voltei como um sonâmbulo a Istambul, cidade onde nasci e cresci. Dizem que a terra chama os que vão morrer, mas no meu caso era a morte que me chamava. Ao voltar para lá, no começo pensei que só encontraria a morte, mas depois também encontrei o amor. No entanto, esse amor, na época em que eu voltava a Istambul, era tão distante e impreciso quanto minhas lembranças da cidade. Doze anos antes, foi nessa cidade que me apaixonei perdidamente por minha prima, que ainda era uma menina.

       Somente quatro anos depois de partir pela primeira vez de Istambul, ao viajar pelas intermináveis estepes do Irã, por suas montanhas cobertas de neve e seus tristes vilarejos, levando cartas ou arrecadando impostos, é que eu me dei conta de que havia, insensivelmente, esquecido o rosto daquela menina que eu amara. De início, essa constatação me inquietou, e eu fazia grandes esforços para me lembrar dele, até finalmente compreender que o homem, qualquer que seja o seu amor, sempre acaba esquecendo um rosto que fica muito tempo sem ver. Ao fim dos seis anos que passei viajando como secretário a serviço de diversos paxás, eu já sabia que o rosto mantido em vida por minha imaginação não era mais o daquela que eu amara. Mais tarde, lá pelo meu oitavo ano de exílio, já havia esquecido o rosto de que eu me lembrava no sexto ano e visualizava uma fisionomia bem diferente daquela. Assim, ao voltar para a minha cidade doze anos depois, aos trinta e seis anos de vida, eu tinha a penosa consciência de ter esquecido completamente o rosto da minha amada havia muito tempo.

       Muitos dos meus amigos, parentes ou vizinhos de bairro tinham morrido durante esses doze anos. Fui ao cemitério que sobranceia o Chifre de Ouro, onde rezei por minha mãe e meus tios, falecidos na minha ausência. Senti um cheiro de terra úmida. Alguém havia quebrado um vaso de flores perto do túmulo da minha mãe e, não sei por que, ao ver os pedaços partidos, desatei a chorar. Seria pelos mortos que eu chorava ou porque, após tantos anos, eu ainda estava estranhamente no início da viagem da vida? Ou seria porque, ao contrário, eu sentia que chegava ao fim da viagem? Uma neve, muito tênue ainda, tinha começado a cair. Eu já ia embora, já ia mergulhar entre os flocos que o céu cuspia aqui e ali, já ia me perder na estrada indiscernível da minha existência, quando percebi, num lugar abrigado do cemitério, um cachorro negro, que me fitava.

       Minhas lágrimas pararam de correr, assoei-me e saí do cemitério olhando para aquele cachorro negro, que balançava o rabo em sinal de amizade. Mais tarde, estabeleci-me no nosso bairro, alugando uma das casas em que um dos meus parentes por parte de pai tinha morado tempos atrás. A mulher do proprietário descobriu uma semelhança entre mim e seu filho, morto na guerra contra os safávidas.* Ela aceitou arrumar a casa e cozinhar para mim.

       Saí às ruas, não como se eu tivesse acabado de voltar para Istambul, mas de me instalar provisoriamente numa cidade árabe do fim do mundo, e como se visitasse um lugar novo e cheio de surpresas. Caminhei um bom tempo, até me fartar. As ruas teriam encolhido ou era só impressão? Aqui e ali, nas ruelas que se esgueiravam entre as casas face a face, eu me via forçado a colar-me às paredes e às portas, a fim de evitar cavalos, carroças e carruagens. Os ricos eram mais numerosos ou era só impressão também? Vi uma carruagem luxuosa, como não se encontra igual na Arábia ou na Pérsia: puxada por cavalos magníficos, mais parecia uma fortaleza atrelada. Também vi, perto da Coluna Queimada, apertados uns contra os outros entre os odores agressivos do Mercado de Aves, mendigos esfarrapados e obscenos. Um deles, cego, olhava sorrindo a neve cair.      

       Se tivessem me dito que Istambul tinha ficado mais pobre, mais estreita e mais feliz, eu não teria acreditado, claro, mas era isso o que meu coração me dizia. Embora a casa da minha amada continuasse situada onde sempre esteve, escondida no meio das tílias e dos castanheiros, eram outras as pessoas que moravam lá, como fiquei sabendo ao perguntar à porta. Descobri que minha tia materna, mãe da minha amada, morrera e que o marido dela, meu Tio, e sua filha tinham se mudado. Foi assim que vim a saber que o pai e a filha foram vítimas de certos infortúnios, segundo me informaram os estranhos à porta, que não percebem, nesse gênero de situação, como maltratam cruelmente nosso coração e nossos sonhos. Não vou contar tudo isso agora para vocês, mas permitam-me dizer que se viam, nos galhos das tílias do jardim, flocos de gelo do tamanho do meu dedo mindinho e que rever aquele jardim, triste e desolado na neve, que eu me lembrava verdejante sob o sol quente dos dias de verão, deixou-me com o coração partido.

       Eu sabia, entretanto, uma parte do que lhes havia acontecido, graças a uma carta que meu Tio havia enviado a Tabriz. Era nessa carta que ele me chamava a Istambul, dizendo que necessitava da minha ajuda para preparar um misterioso livro, encomendado pelo Sultão. Ele ouvira dizer que, em Tabriz, eu havia me dedicado por algum tempo a preparar livros para paxás otomanos, governadores de província e dignitários da corte. Na verdade, em Tabriz, eu recebia encomendas de intermediários e, cobrando adiantado, encontrava os pintores e os calígrafos que, embora desolados com a guerra e os exércitos otomanos, ainda não tinham partido para Kazvin e as outras cidades da Pérsia, e dava a todos esses grandes artistas, que gemiam na miséria e se achavam esquecidos pelo público, as páginas a copiar, ilustrar e encadernar, antes de mandar a obra para Istambul. Sem dúvida, eu nunca teria podido me dedicar a esse trabalho não fosse o amor à pintura e aos belos manuscritos que meu Tio me transmitira durante a minha juventude.

       O barbeiro do fim da rua em que meu Tio morava, na parte onde fica o mercado, continuava na mesma loja, no meio dos mesmos espelhos, navalhas, jarros e pincéis. Estivemos face a face, mas não saberia dizer se ele me reconheceu. Revi com emoção a bacia cheia d’água quente para lavar os cabelos, que balançava na ponta de uma corrente, com o mesmo movimento pendular de outrora.

       Alguns dos quarteirões e das ruas em que eu passeava na minha juventude tinham desaparecido, com os incêndios, em cinzas e fumaça, deixando em seu lugar terrenos baldios calcinados onde os cachorros vadios se congregam e uns loucos erradios metem medo nas crianças; outros bairros cobriram-se de opulentas mansões, que não deixam de causar um estranho efeito sobre as pessoas vindas de longe, como eu. As janelas de algumas delas são de cristal de Veneza. Vi várias assim na minha rua, dessas ricas moradias de dois andares construídas durante a minha ausência, com suas altas muralhas e suas clarabóias.

       Como em muitas outras cidades, o dinheiro em Istambul perdeu quase todo o valor. Na época em que parti para o Leste, com uma moeda de prata obtinha-se um enorme pão de cem dracmas recém-saído do forno; hoje, pelo mesmo preço, dão a metade, com um gosto salobro que nada tem a ver com a lembrança do pão fresco da nossa infância. Se minha falecida mãe visse que se compra a dúzia de ovos com três moedas de prata, ela diria: “Vamos embora deste lugar antes que as galinhas, estragadas com tantos mimos, nos caguem na cabeça em vez de cagarem no chão”, mas sei que a carestia é igual em toda parte. Disseram que os navios mercantes vindos de Flandres ou de Veneza estavam cheios dessas moedas, falsificadas. Enquanto, antigamente, para cunhar quinhentas moedas fundiam-se cem dracmas de prata, agora, com essa interminável guerra contra a Pérsia, cunham-se oitocentas. E quando os janízaros viram que as moedas com que são pagos, se alguém as deixa cair no Chifre de Ouro, bóiam como os grãos de feijão desembarcados no cais dos hortelãos, amotinaram-se e sitiaram o palácio do Nosso Sultão, como se ele fosse uma fortaleza inimiga.

       Em meio a essa era de depravação, carestia, crimes e banditismo, um certo Nusret Ali, encarregado da pregação na mesquita de Bajazet e que se apresenta como descendente do Nosso Glorioso Profeta, conseguiu fazer renome. Esse pregador, originário de Erzurum, ao que se diz, explica todas as calamidades que vêm se abatendo sobre Istambul nos últimos dez anos — o incêndio da Porta dos Jardins e do bairro dos Caldeireiros, a peste que leva dez mil habitantes a cada passagem sua, a guerra sem saída contra a Pérsia, com todos os seus mortos, e, a oeste, as pequenas fortalezas otomanas caídas nas mãos dos cristãos rebelados — pelos repetidos desvios em relação ao caminho do Profeta, o desrespeito aos mandamentos do Venerável Corão, a tolerância para com os cristãos, o vinho em venda livre e a música nos conventos de dervixes.

       O vendedor de pepinos em conserva que me dava essas informações falava com o calor desse pregador de Erzurum; e, dizia ele, além de toda aquela moeda falsa que inundava o bazar — os novos ducados, os florins com o emblema do leão, aquelas moedas cujo teor de prata caía dia a dia —, todos aqueles circassianos, abazas, mingrelianos, bósnios, georgianos e armênios que entupiam nossas ruas arrastavam o povo para o despenhadeiro abrupto e definitivo do vício. Ele também garantia, aliás, que os cabarés estavam cheios de depravados e de rebeldes, que passavam todas as suas noites a deblaterar. Esses indivíduos de caráter duvidoso e cabeça raspada, fumadores de ópio meio loucos, dervixes errantes como não existem mais — e note que eles chamam tudo isso de caminho de Alá, em seus conventos —, dançavam até o raiar do dia ao som da música, furavam com agulhas o corpo inteiro e, depois de se entregarem assim a toda sorte de desvarios, acabavam fornicando, entre eles e com uns garotos.

       Foi então que ouvi os suaves acordes de um alaúde, e não sei se os segui por querer ouvir mais daquela música ou se ela me ofereceu o pretexto esperado para interromper a conversa com aquele venenoso vendedor de pepinos, cujas considerações eu não podia mais suportar, por se chocarem frontalmente com minhas lembranças e meus desejos; constato em todo caso que, quando a gente ama uma cidade e passeia bastante por ela, não é apenas a razão mas também o corpo que, anos depois, num acesso de melancolia, reconhece as ruas por si mesmo: as pernas nos levam por si próprias para o alto da nossa colina preferida, em meio à neve que cai.

       Foi assim que, afastando-me do Mercado dos Ferreiros, ao lado da mesquita de Suleyman, dei comigo contemplando os flocos de neve que caíam no Chifre de Ouro. A neve já tinha começado a se acumular nos telhados voltados para o norte e na parte das cúpulas exposta ao vento do leste. As velas de um navio que retornava ao porto pareciam me saudar ao serem recolhidas. Elas tinham a mesma cor de chumbo e bruma da superfície da água. Os ciprestes e os plátanos, a vista dos telhados, a tristeza da noite que cai, as vozes que se elevam dos bairros lá embaixo, os gritos dos vendedores ambulantes ou das crianças brincando no pátio da mesquita, tudo isso se misturou na minha cabeça e anunciou enfaticamente que eu não poderia mais viver em outro lugar. Por um momento acreditei que o rosto da minha amada, de que eu me esquecera havia anos, ia aparecer de repente diante de mim.

       Desci a ladeira e misturei-me à multidão. Depois do chamado para a prece da noite, fartei-me, numa cantina deserta, de fígado grelhado. Ouvia com atenção as palavras do dono, que me alimentava como teria alimentado seu gato, acompanhando amorosamente com os olhos os pedaços que eu devorava. Por sua sugestão e graças às suas indicações — porque as ruas estavam agora totalmente às escuras —, peguei um dos estreitos caminhos transversais, atrás do Mercado de Escravos, e consegui encontrar o tal cabaré.

       Estava cheio de gente lá dentro e fazia um calorão. Um contador de histórias, desses como eu vira tantos em Tabriz e nas cidades do Irã e que eram conhecidos como satiristas, em vez de panegiristas, havia se instalado ao fundo, do lado da lareira, num estrado não muito alto. Ele tinha pregado na parede o desenho de um cachorro, esboçado apressadamente numa folha ordinária, mas com uma arte consumada. De quando em quando apontava para o cachorro e contava a história dele, emprestando sua voz ao animal.

 

                   Eu, o Cão

       Como vocês vêem, meus caninos são tão compridos e pontudos que mal cabem na minha boca. Sei que isso me dá uma aparência assustadora, mas eu gosto assim. Uma vez um açougueiro atreveu-se a dizer, vendo meu focinho: “Caramba, isto não é um cachorro, é um javali!”.

       Dei-lhe tal mordida na perna, que senti, na ponta dos meus dentes, após a gordura da carne, a dureza do fêmur. Para um cachorro, não há nada mais saboroso do que enfiar raivosa e ferozmente seus caninos na carne de um inimigo execrado. Quando tal ocasião se apresenta, quando uma vítima digna de ser mordida passa estupidamente diante de mim, minhas pupilas ficam negras de cobiça, meus dentes rangem a ponto de doerem e minha garganta põe-se a emitir, involuntariamente, rosnados aterrorizantes.

       Sou um cachorro, e como vocês, humanos, são animais menos racionais do que eu, devem estar se perguntando como é que eu posso falar. E no entanto vocês acreditam, parece, numa história em que os mortos falam e em que se empregam palavras que os protagonistas nem conhecem. Os cães falam para os que sabem ouvi-los.

       Era uma vez, há muitos e muitos anos, num país distante, um hodja casca-grossa que acabava de chegar da sua província para pregar numa das maiores mesquitas da capital do reino — bem, vamos chamá-la de mesquita de Bajazet. Como é melhor lhe dar outro nome, vamos nos referir a ele como Husret Hodja. Podem acreditar no que eu digo: esse pregador era mesmo uma besta quadrada; mas sabia compensar a modéstia do seu intelecto com o prodigioso poder da sua língua, que Alá a abençoe. Ele inflamava literalmente, todas as sextas-feiras, a assembléia dos crentes, precipitando-a primeiro nas lágrimas do alvoroço, depois fazendo-a delirar até o desmaio. Mas não se enganem: ao contrário dos outros pregadores de verbo fácil, ele conservava os olhos bem secos. E, enquanto todo o mundo chorava, ele, impassível, intensificava sua pregação como se quisesse castigar a congregação inteira. Todos os que gostam de um bom açoite verbal, jardineiros, pajens reais, confeiteiros, a ralé em geral, para não falar em muitos pregadores como ele, todos tinham se tornado seus lacaios de corpo e alma. E como esse homem não era um cachorro, de jeito nenhum, ele era um ser humano — e ser humano é errar —, ele perdeu de vez a compostura quando sentiu que meter medo naquelas multidões em delírio era tão prazeroso quanto arrancar-lhes lágrimas. E quando percebeu que tinha descoberto assim um filão muito mais proveitoso, foi além do imaginável e permitiu-se dizer coisas como esta:

       “A causa única da carestia, das epidemias e das derrotas militares está em que caímos sob a influência de deturpações do islã e esquecemos o islã do tempo do nosso Glorioso Profeta. Acaso se via, na época de Maomé, essas recitações de preces? Essas orgias de halvah e bolinhos fritos para luto de quarenta dias? Acaso se cantava o Corão com música oriental, no tempo do Profeta? E essa mania de subir no minarete para chamar à prece com uma voz de castrado e uma dicção mais afetada que a própria dicção dos árabes? Vão aos cemitérios para implorar os mortos e pedir-lhes ajuda, fazem-se santuários para adorar pedras, como os idólatras, penduram-se trapos para fazer votos e praticam-se sacrifícios! E essas confrarias que dão conselhos, acaso existiam nos tempos de Maomé? Ibn Arabi, o insidioso inspirador de todas essas seitas sufistas, tornou-se um criminoso ao jurar que o faraó morreu crente. E essas seitas giróvagas, esses dervixes rodopiantes, reclusos, errantes, que recitam o Corão acompanhados de instrumentos, ou que justificam seu gosto de dançar com garotos e efebos dizendo ‘qual o problema? afinal não rezamos juntos?’, são todos uns infiéis! Os conventos dos dervixes têm de ser demolidos e, para que se possa voltar a orar nos lugares em que estão erigidos, suas fundações têm de ser escavadas até uma profundidade de sete varas e todo o entulho retirado deve ser jogado no mar.”

       Husret Hodja teria então, pelo que ouvi dizer, levado a coisa mais longe ainda e vocês, crentes, devem saber o que ele ousou dizer, espumando: que tomar café era um pecado absoluto e que, se nosso profeta não tomava, era por saber que o café era uma artimanha do Diabo, um excitante do cérebro, que perfura o estômago, causa hérnias e torna estéril; que as casas em que se toma café, e que hoje proliferam, são um antro em que os depravados e os ricos voluptuosos sentam-se coxa a coxa, entregando-se a todo tipo de comportamento vulgar; que, na verdade, os cafés deveriam ser banidos antes até que os conventos dos dervixes.

       Os pobres, disse ele, mal ganham uma moeda, vão para um café. O café embrutece quem freqüenta essas casas e os faz perderem o controle das suas faculdades mentais, a tal ponto que juram ouvir cachorros falarem e acreditam piamente no que eles dizem. E acrescenta que os que falam mal dele e da nossa religião, estes sim é que são uns cachorros!

       Se vocês me permitem, gostaria de responder ao que o senhor pregador disse por último. Vocês certamente sabem que todos esses imãs, hodjas, hadjis e outros mercadores de preces têm sumo desprezo por nós, cachorros. Na minha opinião, essa má vontade remonta à atitude do nosso profeta Maomé, que cortou um pedaço da túnica para não acordar o gato que nela dormia. Fazendo valer esse carinho que o Profeta demonstrou para com os gatos, mas não, por acaso, também para conosco, cães, e dada a inimizade eterna que nos opõe a essas criaturas, cuja ingratidão é, de resto, reconhecida até pelo último dos imbecis, alguns tentaram tirar a conclusão de que nosso Profeta não gostava de cachorros. O resultado dessa interpretação, tão falaciosa quanto malevolente, é que nos vedam o acesso às mesquitas, a pretexto de não contaminar as abluções e que, desde há séculos, os bedéis que varrem o pátio passam seu tempo nos escorraçando a vassouradas.

       Permitam-me recordar-lhes uma das mais bonitas histórias do Livro, que está na surata da Caverna. Não é por desconfiar que entre os freqüentadores deste elegantíssimo café possa haver quem nunca leu o Corão que vou recordá-la, mas só para refrescar suas lembranças da escola corânica. A surata em questão conta a história de sete jovens cansados de viver entre os idólatras. Eles partem, pois, e em sua fuga entram numa caverna, onde caem no sono. Alá tapa-lhes os ouvidos e os faz dormirem trezentos e nove anos. Quando acordam, um deles, de volta entre os homens, compreende que todos aqueles anos passaram, porque, ao querer gastar uma moeda de prata que possui, descobre que ela não está mais em circulação. E os sete jovens ficam maravilhados ao saber do acontecido. Permitam-me humildemente recordar que essa admirável surata — a par de tecer as mais altas considerações sobre a milagrosa solicitude de Alá para com a espécie humana, sobre o tempo que passa e as delícias de um sono profundo — menciona um cão em seu versículo dezoito: ele estava deitado, de guarda, na entrada da caverna em que os jovens dormiam e que hoje se chama Gruta dos Sete Adormecidos. Nem todo mundo pode se gabar de ser citado no Venerável Corão, mas os cães podem. Assim, os erzurumis, que vivem chamando seus desafetos de cachorros nojentos, fariam bem em se remeter, com a ajuda de Alá, a essa surata.

       Então, qual a razão de tal animosidade para com os cães? Por que vocês nos relacionam à imundície, por que, quando um cão entra numa casa, vocês limpam meticulosamente tudo, do chão ao teto? Por que o contato conosco contamina as abluções rituais, por que, se alguma vez a ponta do manto toca o pêlo de um cachorro molhado, é preciso lavá-lo sete vezes, como uma mulher histérica? Dizer que, “se um cachorro lambe uma panela, ou tem-se de jogá-la fora, ou tem-se de mandá-la estanhar de novo”, é uma imundície digna de um estanhador. Ou dos gatos, evidentemente.

       Quando o homem renunciou a viver migrando na estepe para fixar-se nas cidades, os cães pastores permaneceram nas províncias, alimentando-se de carniça; foi então que as intrigas sobre a imundície dos cachorros começaram a se propagar. Antes do surgimento do islã, um dos doze meses era o mês do cão, mas agora o cão é de mau augúrio. Bem, meus caros amigos, como vocês vieram esta noite com o desejo de ouvir uma boa história e meditar sobre a sua moral, eu não gostaria de estragá-la aborrecendo-os com os meus problemas — aliás, para ser sincero, o que mais causa essa minha raiva toda são os ataques que o estimado hodja desfere contra nossos cafés.

       O que vocês pensariam se eu dissesse que Husret Hodja é um bastardo? Ah, já me responderam assim: “E você, o que é? Se você dá assim livre curso às suas cachorradas contra o pregador de Erzurum, é para proteger seu dono, o satirista, aquele que conta histórias a partir dos desenhos que prega no fundo de um café. Chispa! Fora!”. Mas, Alá me guarde, eu não estou denegrindo ninguém. Olhem, não me incomoda nem um pouco que o meu retrato tenha sido desenhado numa folha de papel barato como esta, nem que eu seja um pobre animal de quatro patas; o que eu lamento é não poder me sentar educadamente como um homem e tomar um café com vocês. Mesmo assim, nós, cães, estaríamos dispostos a morrer por essa bebida e por essas casas em que a servem... mas o que vejo? Não é que meu dono estende a cafeteira em minha direção e me oferece um café! Alguém já viu um desenho tomar café? Pois olhem! O cachorro está todo feliz bebendo café!

       Ah, como faz bem! Aquece as tripas, aguça a vista, abre o espírito. Escutem só o que o café me fez lembrar: vocês sabem o que o doge de Veneza mandou à sultana Nurhayat, Luz da Vida de seu pai, nosso venerado Mestre, além de vários cortes de seda e um serviço de porcelana da China ornada de flores azuis? Uma linda cadelinha francesa de pêlo mais macio do que a seda ou a zibelina! Parece que ela é tão delicada que precisa usar um coletinho de brocado vermelho. Soube disso por um dos meus amigos que a comeu, e imaginem vocês que a safadinha nunca trepa nua! De resto, todos os cães, nesses países da Europa, usam indumentárias do mesmo tipo. Ouvi inclusive dizer que, naquelas bandas, a mulher de um Grande de Veneza, vendo um dia um cachorro sem roupa — vai ver que foi o troço dele que ela viu, não sei direito —, desmaiou exclamando: “Meu Deus, o cachorro está nu!”.

       Nas terras dos francos infiéis, os tais de europeus, todos os cães têm dono. Os coitados são acorrentados pelo pescoço como os mais vis escravos e levados a passear pelas ruas, sozinhos, um a um. Essa gente até força os pobres bichos a entrar nas casas e os leva consigo para a cama. Os cachorros não podem andar uns com os outros, muito menos ainda cheirarem-se e se enrabarem. Quando se cruzam na rua, de coleira, o máximo que conseguem, em seu lamentável estado, é trocar um olhar de cachorro surrado. Que aqui, em Istambul, nossa trupe se divirta livremente em pequenos grupos, impeçam a passagem ameaçando quem bem lhes parece, ou que cada um de nós role à vontade num canto mais ensolarado, deite à sombra para dormir como um bem-aventurado, faça suas necessidades onde bem entender e morda quem quiser, são coisas da mais extrema estranheza para esses horríveis infiéis. Não consigo deixar de pensar que é talvez por isso que os partidários do hodja de Erzurum se insurgem contra a prática de jogar um pedaço de carne para os cães vadios, dizendo uma prece, em troca de um favor de Alá, e propõem em vez disso, à guisa de caridade eficaz, o estabelecimento de fundações pias. Se eles pretendem nos tratar como inimigos e fazer de nós uns infiéis, é bom lembrar-lhes que ser inimigo dos cachorros e ser infiel são uma só e mesma coisa. Aliás, quando esses pilantras subirem no cadafalso, espero que dentro em breve, conto firmemente com que nossos amigos carrascos nos convidem a comer uns pedaços deles, como às vezes acontece para servir de exemplo.

       Para terminar, gostaria de dizer uma coisa. Meu dono anterior era um homem muito justo. Quando saíamos de noite para assaltar, dividíamos o trabalho: eu latia, ele degolava a vítima. Assim, não dava para ouvir os gritos do sujeito. Em paga pela minha colaboração, depois de acertar as contas com o calhorda ele o cortava em pedaços, cozinhava, depois dava para eu comer. É que eu não gosto de carne crua. Queira Alá que o carrasco que se encarregar do pregador de Erzurum também leve esse meu gosto em conta, pois não quero arrebentar meu estômago com a carne crua desse pilantra.

 

                   Serei chamado Assassino

       Se tivessem me dito, mesmo um segundo antes que eu acabasse com aquele imbecil, que um dia eu tiraria a vida de alguém, não teria acreditado. E por isso que, sem dúvida, o ato que consumei parece se distanciar pouco a pouco de mim, como um navio estrangeiro que desaparece além da linha do horizonte. Às vezes, até, parece-me não ter cometido crime algum. Faz quatro dias que, sem ter premeditado, tive de eliminar o pobre Elegante, que era um irmão para mim, e só agora começo a me acostumar, até certo ponto, com a situação.

       Eu teria preferido resolver o espinhoso problema que se apresentou de repente sem precisar matar ninguém, mas logo vi que não havia alternativa. Resolvi rapidamente o assunto, portanto, e assumo a inteira responsabilidade por isso. Não ia deixar aquele caluniador estúpido pôr toda a comunidade dos pintores em maus lençóis.

       Apesar disso, é difícil acostumar-se à condição de assassino. Não suporto ficar em casa. E, quando saio, não agüento ficar na minha rua, vou para outra, e para outra, sem parar; quando olho para os passantes, percebo muito bem que vários deles se crêem inocentes, mas pela simples razão de que a oportunidade de cometer um crime ainda não se apresentou. E difícil acreditar que a maioria das pessoas tem maior estofo moral ou mais bondade do que eu por causa dessa simples virada do destino. No máximo, o fato de ainda não ter perpetrado um crime lhes proporciona um ar um pouco mais estúpido e, como todos os estúpidos, eles parecem bem-intencionados. Bastaram-me quatro dias perambulando pelas ruas de Istambul para compreender que todos aqueles cujos olhos refletem um brilho de inteligência ou que trazem no rosto a sombra da sua alma são assassinos em potencial. Só os idiotas são verdadeiramente inocentes.

       Esta noite, por exemplo, enquanto eu me aquecia tomando um café atrás do Mercado de Escravos e gargalhava com os outros ao ouvir a história do cachorro cujo retrato víamos pendurado na parede do fundo, tive a sensação de que um dos homens sentados ao meu lado era um assassino como eu. Ele também ria das palavras do satirista, mas, seja por certa proximidade fraterna, estando seu braço encostado ao meu, seja por causa da agitação nervosa dos seus dedos apertando a xícara de café, decidi que ele devia ser da mesma espécie que eu e me virei para fitá-lo com atenção. Ele ficou imediatamente perturbado, vermelho. Quando o café ia fechar, outro que o conhecia agarrou-o pelo braço e lhe disse: “A gente do Nusret Hodja na certa vai acabar aparecendo por aqui”.

       Meu vizinho de mesa fez-lhe sinal para calar-se, alteando as sobrancelhas. O medo deles me contaminou. Ninguém confiava em ninguém, cada um esperava ser morto a qualquer momento pela pessoa que estava sentada ao seu lado.

       Esfriou ainda mais, a neve se acumulava nas esquinas e ao pé das paredes. Na cegueira da noite, meu corpo encontrava intuitivamente seu caminho pelas ruelas estreitas. Às vezes, a luz pálida de uma vela ainda acesa filtrava-se pelas janelas às escuras, fechadas com pesados contraventos, e se refletia do lado de fora, nos montes de neve; mas a maior parte do tempo eu não via nada e só identificava meu caminho prestando atenção ao barulho das pedras batidas pelo bastão dos vigias noturnos, aos uivos dos bandos de cachorros furiosos e aos gemidos no interior das casas. Às vezes, no meio da noite, parecia que era a claridade sobrenatural da neve que iluminava os sinistros bairros pobres da cidade e, na penumbra, eu acreditava perceber os fantasmas que assombram, há séculos, os terrenos baldios de Istambul, suas ruínas hirsutas e seus arbustos magros. Às vezes, ouvia também as queixas dos miseráveis, pobres coitados que tossem, que fungam, que choramingam e que berram em seu sono dominado por pesadelos; ou casais que se atiram um sobre o outro para se estrangular, os filhos soluçando a seus pés.

       Para me divertir um pouco, para me lembrar da minha felicidade antes de me tornar um assassino, fui então a esse cabaré uma ou duas noites seguidas, para ouvir o satirista. A maioria dos meus irmãos artistas passa ali a melhor parte das suas noitadas. Mas desde que massacrei aquele idiota, com quem pintei lado a lado desde a nossa infância, não quero mais vê-los. Há muitas coisas que me incomodam na maneira de viver dos meus colegas, incapazes de ficar um segundo sem fazer mexericos, e na atmosfera daquele lugar, saturada de uma alegria suspeita. Para que eles não me acusassem de arrogante e preconceituoso, também fiz um ou dois desenhos para o contador de histórias, mas não creio que isso tenha bastado para aplacar a inveja que sentem de mim.

       Devo confessar que eles têm o que invejar: na combinação das cores, nas molduras e margens traçadas à régua, na composição da página, na escolha do tema, no desenho dos rostos, na disposição das cenas de guerra ou caçada, na pintura dos bichos, dos sultões, dos navios, dos cavalos, dos guerreiros ou dos amantes, não tenho igual. Ninguém tampouco é capaz de reproduzir nas ilustrações, como eu, toda a alma da poesia, nem me supera nas iluminuras. Se lhes digo isso, não é para me gabar, mas simplesmente para que vocês entendam. Com o tempo, a inveja dos rivais se torna um elemento tão indispensável na vida de um mestre pintor quanto a própria pintura.

       No meio das minhas errâncias, que se ampliam à medida que fico mais inquieto, às vezes dou de cara com um dos meus irmãos de religião, um desses que ainda é perfeitamente puro e inocente, e esta idéia terrível aflige a minha mente: se eu me puser a pensar que sou um assassino, a pessoa que está diante de mim lerá isso no meu rosto.

       É por isso que me esforço em pensar em outras coisas; exatamente como, adolescente, eu me proibia, com mais ou menos êxito, e cheio de vergonha, de pensar nas mulheres fazendo suas preces. Mas se na época daquelas obsessões juvenis eu não conseguia tirar a fornicação da cabeça, hoje até consigo esquecer o crime que cometi.

       Vocês hão de entender que só lhes conto todas essas coisas porque elas têm relação com meu caso. Bastaria que eu revelasse um só detalhe relacionado ao assassinato em si, para que tudo ficasse claro para vocês e eu deixasse de ser um assassino sem nome e sem rosto, vagando entre vocês como uma assombração, e me reduzisse ao estado de réu ordinário e confesso, que logo pagaria seu crime com a sua cabeça. Por isso, permitam-me não me alongar muito em cada detalhe e guardar alguns indícios só para mim: tentem descobrir quem eu sou baseando-se nas palavras e nas cores que escolho, do mesmo modo que uma pessoa sutil, assim como vocês são, é capaz de encontrar um ladrão pelas pegadas que ele deixou. Isso nos leva à questão do estilo, tão na moda hoje em dia: um pintor tem, pode ter um estilo pessoal, uma cor e como que uma voz particular?

       Tomemos uma miniatura de Bihzad, o maior dos mestres, pai Venerável de todos os pintores. Encontrei esta obra-prima, que se aplica muito bem à minha situação, pois se trata de uma cena de assassinato, nas páginas de um irretocável manuscrito de Herat, de noventa anos atrás, proveniente da biblioteca de um jovem príncipe do Irã, morto numa das implacáveis lutas de sucessão deles, que contava a história de Khosrow e Shirin. Vocês sabem o fim de Khosrow e Shirin, quero dizer, não na versão de Firdusi, mas na de Nizami:

       Depois de um sem-fim de agruras e tribulações, os dois amantes se casam, mas o jovem e diabólico Shiruye, filho do primeiro casamento de Khosrow, não ia deixá-los em paz. O príncipe está de olho não só no trono, mas também na jovem esposa de seu pai. O ambicioso Shiruye, sobre o qual Nizami escreve: “Seu hálito tem o fedor de uma boca de leão”, maquina um meio de liquidar o pai e tomar seu lugar. Certa noite, ele entra no quarto em que Khosrow repousa ao lado de Shirin, acha a cama tateando na escuridão e transpassa as entranhas do pai com sua adaga. Até raiar o dia, Khosrow derrama seu sangue no leito nupcial, e acaba morrendo ao lado da bela Shirin, que dorme tranqüilamente.

       Esse quadro do grande mestre Bihzad, tanto quanto o próprio conto, exprime o terrível medo que carreguei dentro de mim anos a fio: o pavor de acordar no meio da noite e perceber a presença de alguém. Você ouve seus ruídos quase imperceptíveis enquanto avança no negrume do quarto. Imagina-o empunhando uma adaga e, com a outra mão, já agarrando você pela garganta. As paredes artisticamente decoradas, os ornamentos da janela e da sua moldura, os arabescos do tapete, de um vermelho estridente como o grito que se abafa na sua garganta estrangulada, e a incrível profusão de flores amarelas e lilás — tão minuciosa e alegremente pintadas — na magnífica coberta bordada que os pés sujos do seu assassino amarfanham enquanto ele o mata, todos esses elementos tendem para um mesmo fim: ao mesmo tempo que exaltam a beleza do quadro que você contempla, eles lembram não apenas a beleza do quarto em que você agoniza, mas a beleza deste mundo que você deixa. Ao admirar essa imagem, logo fica claro o sentido fundamental do quadro: a indiferença deste mundo e das belezas da pintura diante de sua morte, e sua solidão absoluta ao morrer — mesmo com uma bela esposa a seu lado.

       “É um Bihzad”, me dizia, vinte e cinco anos atrás, o velho mestre ao ver comigo aquele livro que eu segurava com a mão trêmula. O rosto dele estava iluminado, não pela vela ali junto de nós, mas pelo prazer de contemplar a obra. “É tão Bihzad, que nem precisa de assinatura.”

       E como Bihzad tinha plena consciência disso, não ocultou sua assinatura em nenhum canto do quadro. O velho mestre via nisso um sinal de pudor e de modéstia. O artista que possui um verdadeiro talento e um autêntico virtuosismo é capaz de pintar obras-primas inigualáveis, sem deixar um só vestígio da sua identidade.

       Como eu temia por minha própria vida, executei minha infeliz vítima num estilo, se ouso dizer, ordinário e grosseiro. Essas questões de estilo ocupam cada vez mais meus pensamentos, desde que passei a voltar todas as noites ao terreno baldio, para ver se não deixei algum indício que, por causa de minhas obras, possa me trair. Na verdade, essa coisa que é venerada como estilo nada mais é que a imperfeição ou a falha que revela a mão culpada.

       Mesmo sem a claridade difusa da neve caindo, eu poderia encontrar, entre as ruínas das casas incendiadas, o local em que assassinei aquele que foi meu colega ao longo de vinte e cinco anos. A neve apagou, encobrindo-os, os vestígios visíveis que teriam podido ser minha assinatura. Isso prova que Alá está de acordo com Bihzad e comigo mesmo nessa questão do estilo e da assinatura. Porque se colaborar para aquele livro nos houvesse de fato tornado culpados, ainda que sem sabermos, de um crime inexpiável — como aquele imbecil havia afirmado quatro dias antes —, Alá, naquela noite, não teria demonstrado tanta benevolência para conosco, os pintores.

       Naquela noite, ainda não nevava quando entrei no terreno baldio com o Elegante Efêndi. Ouvíamos ao longe os uivos dos cães respondendo-se.

       “Por que viemos aqui?”, perguntou o infortunado. “O que você quer me mostrar a uma hora destas?”

       “Mais adiante há um poço, e a doze passos dele um tesouro que enterrei há muitos anos”, respondi. “Se você guardar segredo de tudo o que lhe contei, o Tio Efêndi e eu mesmo saberemos mostrar-lhe a nossa gratidão.”

       “Devo entender que desde o começo você sabia o que estava fazendo?”, ele perguntou, agitado.

       “Sim”, menti, como se me custasse confirmar.

       “Você sabe que o quadro que vocês estão executando é um grande pecado?”, indagou, ingenuamente. “Uma heresia e um sacrilégio inauditos? Vocês vão arder no fundo do Inferno e seus tormentos horríveis não terão fim. E ainda querem fazer de mim seu cúmplice?”

       Ouvindo-o dizer isso, senti com pavor que suas palavras tinham tamanha força e gravidade que muita gente era capaz de se convencer delas, na esperança de que se mostrassem verdadeiras aplicadas a outros miseráveis mas não a eles. Aliás, rumores detratando desse modo o Tio Efêndi não paravam de correr, estimulados por causa do tal livro secreto que ele estaria preparando e das somas que ele estaria disposto a pagar — e também porque Mestre Osman, o Grande Iluminador, o detestava. Eu até disse a mim mesmo que talvez nosso irmão iluminador, o Elegante, tenha usado esses fatos com a hipócrita intenção de sustentar suas falsas acusações. Como saber se ele era sincero?

       Forcei-o a repetir as críticas que ele proferia de maneira tão perigosa para nosso bom relacionamento. Ele carregou nas tintas. Tão eloqüente quanto outrora, quando éramos aprendizes e ele me pedia para não revelar ao Grande Mestre Osman esta ou aquela bobagem que ele cometera, para escapar de uma surra. Naquela época, nunca duvidei da sua sinceridade. Porque não só ele arregalava aqueles mesmos olhos inocentes, mas estes ainda não haviam encolhido pela metade de tanto trabalhar nas iluminuras. Mas eu não ia me enternecer, tanto mais que ele estava disposto a revelar tudo a todo o mundo.

       “Escute aqui”, eu lhe disse afetando exasperação, “nós iluminamos as páginas, realçando-as com ouro e mil cores, ornamos as margens, traçamos linhas e alegramos com a mesma perfeição um estojo ou o painel de um armário; fazemos isso há anos, é nossa profissão; fazem-nos encomendas, ordenando que pintemos um navio, um cabrito-montês, um sultão, dentro de uma moldura com margens de determinado tipo, que requerem certo tipo de passarinho ou de homens, que ilustremos tal cena da história com tais personagens. E nós executamos. Mas desta vez, veja só, o Tio Efêndi me pediu para desenhar um cavalo ‘que viesse de mim’. Passei então três dias desenhando, a partir dos modelos dos grandes mestres antigos, centenas de cavalos, a fim de compreender o que significava um cavalo ‘que viesse de mim’.”

       Acabei mostrando ao Elegante uma série de cavalos traçados a lápis, como exercício, numa folha do pesado papel de Samarcanda. Ele pegou a folha com interesse e pôs-se a examiná-la ao luar, aproximando-a dos olhos. Lembrei-lhe o que afirmavam os antigos mestres de Shiraz e Herat: que para pintar um cavalo tal como ele é visto e desejado por Alá, é preciso passar cinqüenta anos desenhando cavalos. Diziam também que o melhor desenho de cavalo deve ser feito na mais completa escuridão, porque o mestre autêntico, ao cabo de cinqüenta anos de trabalho, estará totalmente cego mas sua mão terá memorizado o animal.

       A expressão inocente em seu rosto, a mesma que eu conhecia desde a nossa infância, dizia-me que ele estava completamente absorto na contemplação dos meus cavalos.

       “Fazem a encomenda, e nós tentamos desenhar o cavalo mais misteriosamente perfeito, conforme os velhos mestres faziam. Só isso. E injusto eles nos responsabilizarem por algo além das ilustrações.”

       “Não sei se você tem razão”, disse ele. “Nós também temos uma responsabilidade, uma vontade. Quanto a mim, não temo ninguém, somente Alá. Ele nos deu a razão para que saibamos distinguir o bem do mal.”

       Era uma resposta adequada.

       “Alá vê tudo e sabe tudo...”, citei em árabe. “Ele saberá que você e eu fizemos esse trabalho sem ter consciência do que fazíamos. A quem você quer denunciar o Tio Efêndi? Não entende que por trás dessa obra está Nosso Venerado Sultão?”

       Silêncio.

       Eu me perguntava se ele era de fato um bufão ou se seu temor a Alá era mesmo tamanho que o levara a perder toda compostura e a disparatar.

       Paramos à beira do poço. Na escuridão, entrevi vagamente seu olhar e compreendi que ele estava com medo. Tive piedade dele. Mas já era tarde demais para isso. Pedi a Alá que me enviasse um sinal de que aquele homem diante de mim era, além de um covarde, um canalha.

       “Cave a terra, a doze passos daqui.”

       “E depois, o que vai fazer?”

      “Vou explicar tudo ao Tio Efêndi. Ele queimará os desenhos. Que mais podemos fazer? Se essa história chegar aos ouvidos dos fanáticos de Nusret Hodja de Erzurum, é o nosso fim e do Grande Ateliê. Você conhece algum dos erzurumis? Pegue logo o dinheiro, para que tenhamos a certeza de que você não vai nos denunciar.”

       “Quanto tem?”

       “Vinte e cinco moedas de ouro venezianas num pote de pepinos em conserva.”

       Os ducados de Veneza eram fáceis de explicar, mas não sei por que me veio à cabeça a idéia do pote de pepinos em conserva. Era tão ridículo que parecia verdade. Foi assim que compreendi que Alá estava comigo e tinha me enviado um sinal. Meu velho companheiro de aprendizado, que com o passar dos anos fora ficando cada vez mais cobiçoso, já começara a contar todo excitado os doze passos na direção indicada.

       Duas coisas me passaram então pela mente. Primeiro, já que não há um só ducado veneziano nem nada do gênero enterrado aqui, se eu não lhe der o dinheiro, esse cretino vai certamente trazer nossa ruína. Por um instante pensei em abraçar aquele idiota e beijá-lo no rosto, como às vezes fazia quando éramos aprendizes, mas os anos nos haviam afastado tanto um do outro! Perguntei-me também com que ele ia cavar. Com as unhas? Mas esses dois pensamentos, se assim se pode chamá-los, não duraram mais que um piscar de olhos.

       Em pânico, peguei com cautela uma grande pedra que havia ao lado do poço. E, alcançando-o no sétimo ou oitavo passo, golpeei-o na nuca com toda a minha força. Acertei-o tão rápida e violentamente, que tive um sobressalto, como se minha cabeça é que tivesse sido golpeada, e cheguei até a sentir a dor.

       Mas, para não me angustiar com o que eu havia feito, quis terminar o trabalho o mais depressa possível. Ele já começara a se debater no chão e eu entrava cada vez mais em pânico.

       Só bem depois de tê-lo atirado no fundo do poço é que reparei que havia no meu ato uma grosseria em nada condizente com a imagem refinada que se tem de um miniaturista.

 

                  Eu sou o vosso Tio

       Eu sou o Tio materno do Negro, mas muita gente também me chama de Tio. Houve uma época em que sua mãe fez questão que ele se dirigisse a mim como Tio Efêndi, depois todo o mundo, não só ele, passou a me chamar assim. Ele começou a freqüentar nossa casa trinta anos atrás, quando morávamos naquela rua escura e úmida atrás do Palácio Branco, sombreada pelos castanheiros e as tílias. Se no verão eu ia para o campo com Mahmud Paxá, quando voltava no outono para Istambul descobria que o Negro e sua mãe tinham se instalado em nossa casa. Sua mãe, descanse em paz, era a irmã mais velha da minha pranteada esposa. Às vezes também, quando eu voltava para casa nas noites de inverno, encontrava sua mãe e a minha abraçadas, queixando-se juntas das nossas desgraças. O pai do Negro, que dava aulas em pequenas escolas religiosas, nunca conseguia ficar muito tempo no mesmo posto, por ser violento, colérico e ter um fraco pelo álcool. O Negro tinha seis anos na época e chorava ao ver sua mãe soluçar, ficava quieto quando a via emudecer e olhava para mim, seu Tio, com medo.

       Alegra-me constatar que ele se tornou um adulto seguro de si e um sobrinho respeitoso. Esse respeito que ele atesta por mim, sua maneira de me beijar a mão, de me dizer, por exemplo, “exclusivamente para o vermelho”, quando me deu aquele tinteiro mongol que me trouxe de presente, sua postura educada e cuidada, joelhos juntos, quando se senta diante de mim, tudo isso me faz lembrar, e aliás é o que ele quer me mostrar, que já é um homem maduro, ponderado, e que eu me tornei o ancião Venerável que aspirava ser.

       Ele se parece com o pai, que vi uma ou duas vezes: grande e magro, com movimentos nervosos, mas convenientes, das mãos e dos braços. Sua maneira de pousar as mãos nos joelhos, de olhar atentamente nos meus olhos com ar de quem diz: “Entendo, sou todo ouvidos”, quando digo algo importante, o menear da sua cabeça num ritmo misterioso que parece marcar minhas palavras, tudo é perfeito. Na idade a que chego, sei que o verdadeiro respeito não vem do coração, mas procede de uma junção entre a observância de pequenas regras e a deferência.

       Durante esses anos em que sua mãe, percebendo que havia um futuro para seu filho em nossa casa, trazia-o aqui a qualquer pretexto, sua paixão pelos livros nos aproximou e, segundo a expressão da gente de casa, fiz dele meu “aprendiz”. Expliquei-lhe como um novo estilo havia aparecido em Shiraz, a partir do momento em que tinham começado a pintar a linha de horizonte no alto da página. Contei-lhe como o Grande Mestre Bihzad — enquanto todos os outros representam Majnun, louco de amor por Leila, vagando abandonado pelo deserto, barba e cabelos hirsutos — conseguiu, ao contrário, sublinhar muito melhor sua solidão situando-o no meio de uma multidão de mulheres à entrada das tendas em que estas cozinham e assopram raminhos secos para atiçar o fogo. Mostrei-lhe o ridículo em que incorrem a maioria dos pintores que, não tendo lido Nizami, escolhem como bem lhes parece, na cena em que Khosrow observa Shirin banhando-se nua num lago à meia-noite, as cores para o pêlo dos cavalos e a roupa dos personagens, fazendo-lhe ver que não há razão alguma para pagar ao pintor mais que o preço do seu cálamo e do seu pincel, se ele não se der ao trabalho de ler e entender.

       Regozijei-me ao ver que o Negro havia compreendido muito bem a principal regra das artes e da pintura: que não se deve considerá-las uma vulgar profissão, sob pena de se expor a desilusões. Por maior que sejam o talento e o senso artístico que alguém tenha, é melhor que busque o lucro e o reconhecimento fora da arte, para que não venha abandoná-la se não for recompensado à altura dos seus dons e do seu trabalho.

       Ele me contou que os pintores e os calígrafos de Tabriz, a quem conheceu pessoalmente quando preparava livros destinados aos paxás, aos ricos senhores de Istambul e potentados das províncias, viviam miseráveis e desesperados com sua sorte. E que não apenas em Tabriz, mas também em Mechhed e Alepo, essa pobreza e a indiferença dos que os contratavam acabaram levando um grande número de pintores a abandonar a pintura de manuscritos e passar a produzir simples desenhos de uma só página, imagens indecentes ou monstros para divertir os viajantes vindos da Europa. Ele ouviu dizer que o livro oferecido a nosso soberano pelo xá Abas, por ocasião do tratado de paz, teria sido desmontado e as miniaturas reutilizadas para outra obra. Já Akbar, o sultão das Índias, teria resolvido gastar fortunas numa nova grande obra, de modo que os pintores mais brilhantes de Tabriz e de Kazvin largaram seu trabalho no ponto em que estava e foram para sua corte.

     Contando-me essas histórias, ele introduzia agradavelmente algumas anedotas, por exemplo, a divertida história da vinda de um falso mahdi, ou me fazia rir ao descrever o embaraço dos safávidas quando o principezinho débil mental que eles entregaram em refém aos uzbeques como garantia da paz pegou uma forte febre e morreu três dias depois. Mas pela sombra que passava por seu rosto compreendi que o dilema que ele não abordava e que nos deixava tão apreensivos estava longe de se ver resolvido.

       Naturalmente, o Negro, como qualquer outro jovem que freqüentava nossa casa, que tinha ouvido o que se dizia a nosso respeito ou que sabia, mesmo vagamente, da minha linda filha, Shekure, tinha se apaixonado por ela. Na época, não achei que fosse sério o suficiente para merecer minha atenção — afinal, todo o mundo se apaixonava por minha Shekure, a mais linda de todas as moças, mesmo quem nunca tinha posto os olhos nela. A aflição do Negro era a paixão arrebatadora de um malfadado rapaz que tinha livre acesso à nossa casa, era bem aceito e querido e que, portanto, tinha o privilégio de ver Shekure em pessoa. Mas ele não foi capaz de manter oculto seu amor, como eu esperava, e, em vez disso, cometeu o erro de revelar sua incontida paixão por minha filha.

       Em conseqüência, foi preciso pôr fim às suas visitas.

       Creio que também sabe que, três anos depois de ele ter ido embora de Istambul, minha filha, na flor da idade, casou-se com um tenente da cavalaria, e este, depois de lhe fazer dois filhos, cismou de ir para a guerra, da qual nunca mais voltou, e há quatro anos ninguém tem notícias suas. Digo a mim mesmo que ele deve saber disso tudo não só por meio do diz-que-diz que corre solto pela cidade, mas também pelo que ele pode ler em meus olhos nos momentos de silêncio. Mesmo quando se mantém debruçado sobre o Livro da alma aberto no leitoril, sinto que aguça os ouvidos para a voz das crianças correndo pela casa e sabe que minha filha voltou a morar aqui com seus dois pimpolhos há dois anos.

       Eu e ele nunca abordamos o tema da casa nova que construí durante a sua ausência. É bem provável que o Negro, como qualquer rapaz determinado a se tornar um homem rico e prestigiado, considerasse uma descortesia abordar esse assunto. No entanto, quando ele veio a casa pela primeira vez, comentei enquanto subíamos a escada que, como o segundo andar era bem mais seco, ter me instalado ali aliviou um bocado minhas dores lombares. Ao falar no “segundo andar”, senti aliás certo incômodo, mas deixem-me lhes dizer uma coisa: em breve, gente com muito menos dinheiro do que eu, até mesmo um simples militar com seus magros benefícios, poderá construir uma casa de dois andares.

       Estávamos no quarto de porta azul que utilizo como ateliê no inverno e senti que o Negro adivinhava a presença de Shekure no aposento ao lado. Sem mais tardar, abordei a razão essencial da carta que lhe mandei a Tabriz convidando-o a voltar para Istambul.

       “Estou dirigindo a feitura, por pintores e calígrafos, de um livro de miniaturas, exatamente como você fazia em Tabriz. Meu cliente é ninguém menos que nosso Venerado Sultão, Pilar do Universo. Como é uma obra que deve permanecer confidencial, Nosso Sultão me remunera com seus fundos secretos, por intermédio do Tesoureiro-Mor. Eu me entendi com cada um dos melhores artistas do Grande Ateliê do Nosso Sultão. Pedi a um deles para pintar um cachorro, outro uma árvore, outro nuvens no horizonte para ornar uma margem, outro os cavalos. Eu queria que as coisas que pedi para pintar figurassem todo o mundo do Nosso Sultão, como nos quadros dos mestres venezianos. Mas, nem é preciso dizer, em vez de ressaltar os bens e as riquezas materiais, como fazem os venezianos, eram sobretudo as riquezas interiores, as alegrias e os temores do reino sobre o qual Nosso Sultão exerce seu poder que deviam ser representados. Se mandei pintar ouro, foi para melhor condená-lo, e o Diabo e a Morte eu pus como exemplos dos nossos temores. Não sei nem quero saber de que falam os fuxicos. O que eu queria era que a árvore, com sua folhagem imortal, o cavalo, em seu cansaço, e até os cães, com todo o seu despudor, representassem nosso soberano e seu reino na terra. Também pedi a meus ilustradores, a quem dei os apelidos de Cegonha, Oliva, Elegante e Borboleta, que escolhessem temas a seu gosto; e mesmo nas mais frias e inóspitas noites de inverno, sempre um dos pintores do nosso Sultão aparecia secretamente aqui em casa para me mostrar o que havia preparado para o livro.

       “Que tipo de imagens estamos fazendo e por que elas são como são, por ora eu não saberia dizer. Não que eu queira esconder alguma coisa de você. A verdade é que eu mesmo não sei direito o que essas miniaturas significam. Mas sei, isso sim, que tipo de imagens elas têm de ser.”

       Fiquei sabendo, pelo barbeiro da minha antiga rua, da volta do Negro a Istambul quatro meses depois de ter enviado minha carta, e convidei-o à minha casa. Eu sabia que o relato que ia lhe fazer estabeleceria entre nós esse gênero de vínculo que a alegria ou a pena prometem.

       “Toda imagem conta uma história”, disse a ele. “Para embelezar um livro, o pintor deve escolher a mais bela cena de cada história. O primeiro encontro dos amantes; o herói Rustam cortando a cabeça de um monstro demoníaco; a dor do mesmo Rustam ao perceber que o estrangeiro que ele matou era seu próprio filho; Majnun, o louco de amor, perdido na natureza selvagem e desértica, no meio de veados, chacais, tigres e leões; Alexandre na floresta, lendo o futuro no vôo dos pássaros, antes de uma batalha: sua tristeza ao ver uma águia dilacerando uma narceja. Nossos olhos, cansados de ler as histórias, distraem-se com as imagens. E se alguma coisa, numa história, cria uma dificuldade para nossa inteligência ou para nossa imaginação, a imagem vem nos socorrer: as imagens são a história florescendo em cores, mas uma pintura sem uma história que a acompanhe é inimaginável!

       “Inimaginável, pelo menos era o que eu acreditava”, acrescentei como que me lamentando. “Mas era realizável, sim. Dois anos atrás, voltei a Veneza como embaixador do Sultão. Lá, eu sempre ia ver os retratos que os mestres venezianos pintavam. Sem saber que história e que cena eles ilustravam, eu tentava adivinhar a história a partir da imagem. Até o dia em que fiquei paralisado diante de um desses quadros, pendurado na parede de um palácio. Tratava-se, antes de mais nada, da imagem de uma pessoa, alguém como eu. Um infiel, evidentemente, não um de nós; e, no entanto, olhando para ele, eu me sentia seu semelhante. Ele não se parecia em nada comigo, por sinal: seu rosto era redondo e mole, sem os pômulos salientes, sem o menor sinal da minha imponente mandíbula. Não se parecia comigo portanto, e no entanto, diante daquele quadro, eu sentia meu coração alvoroçar-se como se aquele retrato fosse o meu.

       “Soube pelo dono da casa, que me mostrava o palácio, que aquele retrato na parede era de um dos seus amigos, membro ilustre, como ele, de uma das grandes famílias de Veneza. Ele mandara representar naquele quadro tudo o que lhe era importante na vida: no fundo, pela janela, via-se uma fazenda numa paisagem, uma aldeia e uma floresta que, graças à mistura de cores empregada, parecia de verdade. Em cima da mesa, no primeiro plano, um relógio, livros, o tempo, o mal, a vida, uma pena, um mapa, uma bússola, um baú com moedas de ouro, bugigangas, todo um bricabraque, uma porção de coisas indecifráveis e ao mesmo tempo distintas, que provavelmente também eram incluídas em outros retratos, sombras de djins e do Demônio. E, por fim, ao lado do pai, uma moça de uma beleza estonteante.

       “Qual seria a história para a qual esse quadro tinha sido pintado? Observando-o, compreendi que ele contava sua própria história. Não era uma ilustração, o prolongamento ou a ornamentação de um relato, mas algo que tinha vida própria.

       “Eu não conseguia mais tirar da cabeça aquele quadro que me havia tão vivamente impressionado. Saí do palácio e, voltando à minha residência, passei toda aquela noite imerso nas reflexões que ele me inspirava. Primeiro quis eu próprio ser pintado daquele modo. Mas logo reconsiderei: aquilo tudo ia muito além da minha humilde pessoa, era Nosso Sultão que tinha de ser representado daquela nova maneira! Nosso Sultão, com tudo o que ele possuía, com todas as coisas que representavam e constituíam seu reino. Foi então que concebi o projeto de ilustrar um manuscrito de acordo com essa idéia.

       “O mestre italiano tinha pintado o nobre veneziano de tal maneira que dava para saber imediatamente de que grão-senhor se tratava. Se você nunca tinha visto o personagem e lhe pedissem para descobri-lo na multidão, você poderia identificá-lo, graças ao quadro, no meio de milhares de outros. Os pintores italianos descobriram métodos e técnicas para distinguir qualquer pessoa de outra, não graças às suas vestimentas e às suas medalhas, mas pela forma do seu rosto. Eles chamam a isso fazer um retrato.

       “Se pintassem seu rosto daquela maneira, mesmo que uma só vez, ninguém nunca mais iria esquecer você. Mesmo se você estivesse longe, iriam senti-lo perto, com um simples olhar para o quadro. E mesmo os que não o conheceram em vida teriam a sensação da sua presença e de estar diante de você, muitos anos depois da sua morte.”

       Ficamos um longo momento em silêncio. Um raio de luz da cor do frio glacial lá de fora filtrava pela janelinha que dava para a rua, cuja parte de cima eu havia tapado recentemente com um encerado e cuja parte de baixo não abria mais.

       “Eu tinha um pintor”, prossegui, “que também trabalhava nesse manuscrito secreto para o Sultão e que vinha em casa à noite, como os outros, para trabalhar até o raiar do dia. Era o melhor nas iluminuras com folha de ouro. Esse pobre Elegante Efêndi saiu daqui uma noite e nunca chegou em casa. Temo que eles tenham matado esse meu pobre mestre iluminador.”

 

                   Eu me chamo Orhan

       O Negro Efêndi perguntou: “Mataram mesmo?”.

       Negro é alto e magro, e mete um pouco de medo. Bem no instante em que eu chegava, meu avô disse: “Eles mataram meu iluminador”. Foi então que me viu: “O que você está fazendo aqui?”.

       Mas ele olhava para mim ternamente, por isso não hesitei e fui me sentar no seu colo, mas ele me pôs no chão e ordenou: “Beije a mão do Negro Efêndi”. Beijei-lhe a mão. Não tinha cheiro algum.

       “Ele é um encanto”, disse o Negro, beijando-me no rosto. “Vai ser um verdadeiro leão.”

       “Este é Orhan, está com seis anos. Tem um irmão mais velho, Shevket, que está com sete e é uma mula de teimosia!”

       “Passei por sua rua, no Palácio Branco”, disse o Negro. “Fazia frio e tudo estava gelado, coberto de neve, mas parece que nada mudou.”

       “Tudo mudou, não sobra nada que preste”, replicou meu avô. “Nada de bom, garanto.” E, voltando-se para mim: “Onde está seu irmão?”.

       “Na casa do encadernador.”

       “E você, por que está aqui?”

       “Ele me disse ‘muito bem’ e que eu podia ir embora.”

       “Voltou sozinho?”, perguntou meu avô. “Seu irmão devia ter te trazido.” Depois disse para o Negro: “Duas vezes por semana, depois da escola, eles têm aula de encadernação com um amigo meu”.

       “Você gosta de pintar, como seu avô?”, o Negro me perguntou.

       Não respondi.

       “Claro que sim”, respondeu meu avô. “Agora saia, por favor.”

       Estava quentinho ao lado da estufa, era gostoso, por isso eu não queria sair. Fiquei mais um pouco sentindo o cheiro de tinta e de cola. Tinha também o cheiro do café.

       “Será que, se pintamos de uma maneira diferente, é que vemos de uma maneira diferente?”, indagou meu avô. “Foi por isso que mataram o coitado do iluminador. Ele trabalhava à moda antiga. Aliás, não sei se o mataram mesmo, só sei que ele sumiu. Os pintores de Mestre Osman trabalham neste momento no Livro das festividades para a circuncisão dos príncipes. Cada um trabalha em sua casa. Quanto a Mestre Osman, fica no Grande Ateliê. Gostaria que você fosse visitá-lo lá, primeiro, e que abrisse bem os olhos para tudo o que vir. Temo que as desavenças entre eles os tenham levado a se matar uns aos outros. Eles ainda usam os apelidos que Mestre Osman lhes deu, já faz anos: Borboleta, Oliva, Cegonha... Depois vá visitá-los também, vá vê-los trabalhar em casa.”

       Eu ia descer a escada, mas ouvi um barulho vindo do quarto ao lado, onde fica o armário embutido e onde Hayriye dorme. Fui ver o que era. Ao entrar, não foi Hayriye que encontrei, mas minha mãe. Ao me ver, ficou toda atrapalhada: metade de seu corpo ainda estava dentro do armário.

       “Onde você estava?”, perguntou-me.

      Mas ela sabia perfeitamente onde eu estava. No armário tem um furo pelo qual dá para ver o ateliê do meu avô. Se a porta do ateliê não estiver fechada, dá para ver também o largo corredor e até o quarto em que ele dorme, se sua porta também estiver aberta.

       “Estava com meu avô. E você, mamãe, o que está fazendo aqui?”

       “Eu não te disse que tínhamos visita e que não era para incomodá-los?” Ela brigava comigo, mas não muito alto, como se não quisesse que nosso visitante a ouvisse. Depois, fazendo um ar de boazinha, perguntou: “O que eles estão fazendo?”.

       “Estão sentados, mas não estão pintando. Vovô está contando e o outro, escutando.”

       “Estão sentados como?”

       Sentei-me no chão e imitei como o visitante estava sentado: “Olhe, mãe, agora sou um homem sério. Estou escutando meu avô com as sobrancelhas franzidas, como se estivesse ouvindo a Epopéia da Criação. Agora estou sacudindo a cabeça ritmado, muito sério, como a visita”.

       “Desça”, mandou mamãe, “e diga a Hayriye que eu a estou chamando. Ande logo!”

       Pegou material de escrita e sentou-se para escrever alguma coisa num pedaço de papel.

       “O que você está escrevendo, mãe?”

       “Desça logo, já disse, e chame Hayriye.”

       Fui até a cozinha. Meu irmão tinha chegado. Hayriye tinha lhe servido um prato de arroz, que havia preparado para a visita.

       “Traidor”, disse meu irmão. “Você foi embora e me deixou sozinho com o mestre. Tive de fazer todas as dobras da encadernação. Meus dedos ficaram roxos.”

     “Hayriye, mamãe está te chamando.”

       “Quando eu acabar de comer, você vai ver! Vou te dar uma surra, para você aprender a não me trair mais, seu preguiçoso.”

       Assim que Hayriye saiu, ele nem acabou o arroz, levantou-se da mesa e partiu para cima de mim. Não pude escapar. Agarrou meu pulso e começou a torcer meu braço.

       “Pare, Shevket, está me machucando!”

       “Você vai cair fora de novo deixando para mim todo o trabalho?”

       “Nunca mais.”

       “Então jure.”

       “Juro.”

       “Pelo Corão.”

       “Pelo Corão.”

       Mas não largou meu braço. Arrastou-me até junto da grande bandeja de cobre que usávamos como mesa de comer e me obrigou a ficar de joelhos ao lado dele. Ê tão mais forte que eu a ponto de, com uma mão, segurar a colher e acabar de comer o arroz, e com a outra continuar torcendo meu braço.

       “Pare de torturar seu irmão, seu tirano!”, ralhou Hayriye voltando. Pôs o capote para sair. “Ande, largue-o já.”

       “Não se meta, sua escrava”, respondeu meu irmão, continuando a torcer meu braço. “Aonde é que você vai?”

       “Vou comprar limão”, respondeu Hayriye.

       “Mentirosa!”, ralhou meu irmão. “Tem um monte de limões no aparador.”

       Shevket soltou meu braço e eu escapei, acertando-lhe um pontapé. Agarrei um castiçal, mas ele se atirou sobre mim e, ao me derrubar, fez o castiçal cair no chão, e a bandeja caiu junto.

       “Seus flagelos de Alá!”, exclamou mamãe, abafando o grito, para que a visita não a ouvisse. Ué, como foi que ela fez para passar pelo corredor e descer a escada sem que o Negro a visse? Ela nos apartou. “Quando vocês vão parar de me dar dor de cabeça, seus moleques?”

       “Hoje Orhan mentiu”, disse Shevket, “e ainda me deixou na casa do encadernador, fazendo o trabalho todo sozinho.”

       “Cale a boca”, disse mamãe, dando-lhe um tabefe.

       O tabefe não foi forte, meu irmão nem chorou. Só disse: “Quero meu pai. Quando meu pai voltar, ele vai pegar a espada vermelha do tio Hassan, vai vir nos buscar aqui e nos levar de volta para a casa do tio Hassan”.

       “Cale a boca, já disse.” Ela estava tão brava que o arrastou pelo braço até o fundo da cozinha. Eu fui junto. Abriu a porta do quarto que dá para o lado escuro e calçado do pátio. Quando me viu atrás deles, disse:

       “Andem, para dentro, os dois!”

       “Mas, mamãe, eu não fiz nada!”, reclamei, entrando assim mesmo no quarto.

       Ela nos fechou ali. Embora não estivesse totalmente escuro lá dentro — passava um pouco de luz pela fresta entre os dois batentes da janela que dava para o pé de romã —, ainda assim fiquei com medo.

       “Mamãe, abra a porta! Estou com frio!”, gritei.

       “Pare de chorar, seu medroso. Ela já vai abrir, você vai ver.”

       Mamãe abriu a porta. “Vocês prometem se comportar direitinho até a visita ir embora? Bom, então até o Negro sair vocês vão ficar sentados na cozinha, perto do fogão, sem subir para os quartos.”

       “A gente vai se chatear”, reclamou Shevket. “Aonde é que a Hayriye foi?”

       “Não se meta com o que não lhe diz respeito!”, respondeu mamãe.

       Ouvimos um cavalo relinchar baixinho na estrebaria. Relinchou de novo. Não era o cavalo do vovô. Era o do Negro. Todo o mundo estava excitado, como se fosse um dia de festa ou de parada. Mamãe sorriu, parecia que ela queria que a gente também sorrisse. Dando alguns passos, foi até a porta da estrebaria.

       “Psiu”, fez ela para dentro da cocheira.

       Ela veio nos buscar e nos levou para a cozinha da Hayriye, com aquele cheiro de fritura e cheia de camundongos. “Não saiam daqui enquanto a visita não for embora. Não quero que ele veja vocês brigarem e ache que são uns meninos mal-educados.”

     “Mamãe”, disse eu antes que ela fechasse a porta. “Sabe, mãe, eles mataram o iluminador do vovô.”

 

                   Meu nome é Negro

       Assim que vi o filho dela, entendi o que estava errado na lembrança que eu tinha do rosto de Shekure. De fato, como o de Orhan, seu rosto era fino, mas o queixo era sem dúvida mais comprido do que na minha lembrança. Logo, sua boca devia ser menor e mais estreita do que a que eu vinha recordando. Durante aqueles doze anos passados de cidade em cidade, minha imaginação havia retocado sua boca a seu bel-prazer, fazendo-a mais larga, com lábios mais nitidamente desenhados, mais carnudos e irresistíveis, como uma grande e deslumbrante cereja.

       Se eu tivesse levado comigo um retrato à veneziana de Shekure, acho que não teria sentido tanto a sua falta durante o meu longo périplo, por não conseguir me lembrar direito da minha amada, cuja fisionomia eu havia esquecido em algum lugar que ficara para trás. Porque se a imagem do ser amado fica viva no seu coração, o mundo inteiro é sua casa.

       Ver seu filho, ter falado com ele, tê-lo beijado, despertou em mim um desejo impetuoso, comparável unicamente à paixão desesperada dos criminosos e dos assassinos. Uma voz parecia me dizer: “Ande, vá ver Shekure!”.

       As vezes eu me sentia a ponto de largar meu Tio ali, sair pelo corredor e abrir uma por uma as portas que havia nele — eu as contara com o canto os olhos, cinco portas escuras, uma das quais, é claro, dava para a escada — até encontrar Shekure.

       Mas eu já havia ficado doze longos anos longe da minha amada, por ter ousado outrora lhe abrir meu coração imprudentemente e cedo demais. Resolvi portanto, prudentemente, continuar a ouvir meu Tio, observando entretanto os objetos que ela deve ter tocado, as grandes almofadas em que ela deve ter se recostado quem sabe quantas vezes.

       Ele me contou que o Sultão, o Protetor do Mundo, queria que o livro ficasse pronto para o milenário da Hégira, a fim de demonstrar por ocasião do ano mil do calendário muçulmano que ele e seu império eram capazes de dominar as artes da Europa tão bem quanto os próprios europeus. Por outro lado, como os mestres pintores já estavam ocupadíssimos com o Livro das festividades, Nosso Sultão permitiu que eles trabalhassem em casa, onde estariam mais sossegados do que no vaivém constante do Grande Ateliê. É claro que ele também sabia das visitas noturnas secretas à casa do meu Tio.              

       “Vá ver o Grande Mestre Iluminador Osman”, disse-me. “Uns acham que ele está cego, outros afirmam que está gagá. Na minha opinião, está as duas coisas.”

       O fato de meu Tio, que não tinha o título de Mestre de Pintura e que, para dizer a verdade, estava longe de conhecer a fundo os arcanos dessa arte, ter obtido a autorização e o incentivo do Nosso Sultão para supervisionar toda a feitura dessa obra não melhorava em nada suas relações com Mestre Osman.                                                                                                            

       Enquanto pensava na minha infância, deixei minha atenção se concentrar nos móveis e objetos da casa. O kilim azul-escuro no chão, o jarro de cobre com a bandeja e o balde de cobre, o serviço de café, aquele serviço de porcelana que minha tia não se cansava de repetir, orgulhosa, que havia sido trazido da China pelos barcos portugueses, eram os mesmos de doze anos antes. Esses objetos, como o leitoril marchetado de nácar, o porta-turbante na parede e a almofada de seda vermelha, cuja maciez meus dedos não haviam esquecido, também vinham da casa do bairro do Palácio Branco, onde eu tinha vivido a minha infância com Shekure, e ainda refletiam algo daqueles dias distantes, passados pintando e desenhando numa luminosa felicidade.

       Pintura e felicidade. Eu gostaria que os amáveis leitores que se interessassem pela minha história e pela minha sina retivessem essas duas coisas como a gênese do meu mundo. Porque houve uma época na minha vida em que conheci a verdadeira felicidade naquela casa, no meio dos cálamos, dos livros e das miniaturas. Depois me apaixonei e fui expulso desse paraíso. Nos meus anos de exílio, pensei muitas vezes na dívida profunda que eu tinha para com Shekure e meu amor infeliz por ela, pois foi o que me deu forças para me adaptar com otimismo à vida e ao mundo. Com a minha ingenuidade infantil, eu não tinha a menor dúvida de que minha paixão era correspondida e, cheio de segurança, via o mundo como um lugar invejável. Aliás, minha paixão pelos livros vem daí: eu me interessei por eles a fim de agradar ao meu Tio, que me estimulava à leitura, a que eu me dedicava paralelamente às aulas que dava na escola corânica e à prática do desenho e da pintura. Mas assim como devo a esse amor por Shekure a parte ensolarada, prazerosa e mais fértil da minha formação, também devo a ele a parte sombria que veio mais tarde, depois que fui rejeitado: meu desejo renascente, como as chamas dos braseiros no meio das noites glaciais passadas nos caravançarás; o sonho recorrente, após o amor, no qual eu rolava no abismo com a mulher que dormia ao meu lado; a sensação de total desamparo. Tudo isso eu devia a Shekure.

       “Você sabia”, prosseguiu meu Tio após um longo silêncio, “que depois da morte nossas almas ainda podem vir encontrar os espíritos dos homens e mulheres deste mundo, enquanto eles dormem em paz em suas camas?”

       “Não”, respondi.

       “Depois da morte, vem uma longa viagem. E por isso que não tenho medo de morrer. Mas tenho medo de morrer sem terminar o livro para o Nosso Sultão.”

       Uma parte de mim dizia que eu era mais forte, mais sensato e mais confiável que meu Tio, enquanto outra parte pensava em quanto me haviam custado o cafetã que eu acabava de comprar para fazer esta visita àquele que outrora tinha me recusado a mão da sua filha, o freio de prata e a sela adamascada do meu cavalo que, assim que descesse, eu iria pegar na estrebaria e montar para ir embora.

       Prometi lhe contar tudo o que eu conseguisse saber dos pintores. Beijei-lhe a mão, levei-a à minha testa e desci a escada. Ao sair no pátio, o frio da neve me lembrou que eu não era nem uma criança nem um ancião, mas um homem que sente o peso do mundo em seus ombros. O vento se fez sentir mal bati a porta da estrebaria. Puxei o cavalo pelo caminho de pedra até a parte de terra do pátio, o animal refugou: suas pernas fortes, de veias salientes, sua impaciência, fizeram-me pensar que eu tinha um caráter idêntico ao dele, rebelde e obstinado. Assim que chegamos à rua, eu já estava a ponto de pular na sela e sair levantando poeira, como um herói de romance, para nunca mais voltar, uma mulherona, surgida do nada, uma judia vestida de rosa da cabeça aos pés, veio ao meu encontro com sua trouxa debaixo do braço. Era tão grande e larga quanto um armário. E, além do mais, expansiva, esperta e até mesmo um tanto ou quanto coquete.

       “Meu leão, meu herói, você é mesmo tão bonito quanto me disseram!”, disparou. “Casado? Solteiro? Secretamente apaixonado? Não vai querer um lencinho de seda da maior ambulante de Istambul, Ester, para te servir?”

       “Não.”

       “Um cinto de cetim grená, então?”

       “Não.”

       “Como não, sempre não? Duvido que um leão lindo como você não tenha uma namoradinha, um romance oculto. Deve haver por aí uma porção de moças chorosas, morrendo de amores por um rapagão tão vistoso!”

       De repente, ágil como uma acrobata, ela chega ainda mais perto de mim e faz aparecer em sua mão, com a habilidade de um prestidigitador, uma carta tirada sei lá de onde. Peguei-a tão furtivamente quanto ela e, como se eu viesse treinando havia anos para aquele momento, enfiei-a rapidamente sob a faixa que envolvia minha cintura. Era uma carta de bom tamanho e, apesar do frio glacial, eu sentia em toda a extensão da minha barriga, colada na pele, sua ardente doçura.

       “Vamos, cavaleiro, monte na sela”, disse-me a alcoviteira. “Vire à direita no fim do quarteirão, faça seu cavalo ir a passo, como quem não quer nada; quando chegar na altura de um pé de romã, erga os olhos para a casa de que acaba de sair e olhe para a janela à sua direita.”

       Ela seguiu seu caminho e desapareceu num instante. Pulei na sela, mas como um principiante que monta pela primeira vez. Meu coração disparava, a emoção fazia minha cabeça girar, minhas mãos não sabiam mais como segurar as rédeas, mas enquanto apertava as pernas contra os flancos da minha montaria, esta pareceu, por assim dizer, herdar minha presença de espírito e saiu andando segura de si, conforme Ester havia indicado: em frente primeiro, depois à direita.

       Nesse instante, senti que eu era realmente bonito. Sim, eu sentia que, como em todos os contos, todas as moças do bairro me espiavam atrás das gelosias e que eu estava prestes a me atirar de novo no braseiro do amor. Será que era mesmo isso que eu desejava? Uma recaída, passados tantos anos? De repente o sol apareceu. Estremeci.

       Onde estava o pé de romã? Seria aquela arvorezinha triste e mirrada? Sim! Virei-me ligeiramente na sela. Havia de fato uma janela atrás da árvore, mas vazia. Aquela sirigaita da Ester tinha zombado de mim!, eu já ia me dizendo.

       Mas a janela se abriu, estourando ruidosamente os trincos de gelo que a mantinham fechada, e na sua moldura assimétrica que o sol iluminava, vi minha beldade adorada, doze anos depois, seu lindo rosto enfim visível através dos galhos pesados de neve. Seus belos olhos negros me olhavam ou olhavam além de mim, para uma outra vida? Ela estava triste? Sorria? Sorria tristemente? Não saberia dizer. Ah, cavalo, imbecil! Não ouça o galope do meu coração e diminua um pouco seu passo! Virei-me mais uma vez no meu arção, desavergonhado, para espiar langorosamente aquele rosto delicado e fino, carregado de mistério, até ele se perder atrás da teia de galhos nevosos.

       Mais tarde, ao descobrir o desenho na carta que Shekure fizera chegar às minhas mãos, percebi quanto essa cena — eu no meu cavalo, ela à sua janela, embora houvesse entre nós aquela árvore melancólica — era idêntica àquela, mil vezes pintada, em que Khosrow vem visitar Shirin sob a sua janela, senti em mim a chama do amor, tão ardente quanto a que evocam aqueles livros adoráveis que tanto apreciamos.

 

                   Meu nome é Ester

       Sei que vocês todos estão se perguntando o que estava escrito na carta que passei para o Negro. Como tive a mesma curiosidade, sei tudo o que havia a saber. Façam então, por favor, como se estivessem lendo as páginas desta história de trás para a frente, enquanto eu lhes conto o que aconteceu antes de eu ter entregado a tal carta.

       É noite e nós, meu marido Nessim e eu, estamos em nossa casa no bairro judeu, na ladeira que desce para o Chifre de Ouro, dois velhinhos rabugentos botando lenha no fogo para nos aquecer. Não confiem muito na minha maneira de me apresentar como uma simples velhinha, porque com minha tralha debaixo do braço, colares, anéis e brincos enfiados no meio de lenços de seda, echarpes, luvas e blusas coloridas que os navios portugueses trazem para mim, tudo por que as mulheres daqui são loucas, a todos os preços e para todos os bolsos, não há uma ruela que eu não tenha percorrido; e, se Istambul é uma enorme panela, Ester é a colher! Não há uma carta, um mexerico de que eu não tenha me encarregado pessoalmente e, passando assim de porta em porta, fui eu, quem diria, que casou uma boa metade das mulheres da cidade. Mas minha intenção não é fazer propaganda. Como eu ia dizendo, então, estávamos calmamente sentados certa noite, quando — toc toc, toc — batem na porta e vou abrir: aquela palerma da Hayriye! (A criada de Shekure.) Ela me entrega uma carta e me explica, tremendo como vara verde — não sei bem se por causa do frio ou da emoção —, o que Shekure espera de mim.

       Fiquei espantada, pois achava que a carta era para Hassan. Vocês sabem que a bela Shekure tem um marido, que nunca voltou da guerra — na minha opinião, já faz um tempão que lhe furaram o couro, coitado. Pois bem, o soldado-marido que nunca voltou tem um irmão estourado e perdido de amor que se chama Hassan. Como eu dizia, vocês podem imaginar minha surpresa quando vi que a carta de Shekure não era para Hassan, mas para um outro. A velha Ester estava louca de curiosidade para saber o que estava escrito. Finalmente, consegui lê-la.

       Nós ainda não nos conhecemos direito, vocês e eu, e, para dizer a verdade, de repente eu me sinto um pouco incomodada e confusa. Vocês nunca vão adivinhar como li a tal carta. Pode ser que vocês achem vergonhosa e desprezem a minha bisbilhotice — como se vocês também não fossem tão abelhudos quanto um barbeiro! Vou lhes contar apenas o que fiquei sabendo da leitura da carta. Eis o que a doce Shekure escreveu:

Negro Efêndi, o senhor aproveita da sua intimidade com o meu pai para vir à minha casa. Mas não creia que vá receber um só sinal de mim. Muitas coisas aconteceram desde que foi embora. Casei-me e tenho dois filhos, fortes como leões. Um se chama Orhan, parece que vocês dois se encontraram, há pouco. Faz quatro anos que espero a volta do meu marido, e quase não penso em outra coisa. É possível que, vendo-me sozinha com dois filhos e um pai idoso, indefesa e desvalida, eu sinta a necessidade de um homem forte para nos proteger, mas ninguém creia que possa tirar qualquer proveito dessa situação. Assim, por favor, nunca mais bata na nossa porta. O senhor já me envergonhou uma vez, e que dificuldade eu tive então para me justificar diante do meu pai! Envio-lhe com esta o desenho que o senhor me enviou outrora, num momento de desvario, porque é verdade que o senhor era muito jovem naquela época. Isso para que o senhor não nutra nenhuma esperança e não tire conclusões errôneas. Quem acha que uma pessoa pode se apaixonar olhando uma imagem muito se engana. Portanto é melhor que o senhor nunca mais volte a esta casa.

       A Coitadinha da minha Shekure jamais teria posto ao pé da página, como um bei, um paxá ou os homens em geral, uma assinatura pretensiosa! Apenas pousou ali, como a patinha assustada de um passarinho, a primeira letra do seu nome.

       Quem fala em assinar fala em selar. E, evidentemente, vocês devem estar se perguntando como é que faço para abrir essas cartas lacradas com cera. É que, simplesmente, elas não são lacradas! Porque, na verdade, a querida Shekure imagina que Ester, a judia, é ignorante demais para entender o que quer que seja dos caracteres do Corão. E verdade, não sou capaz de lê-las, mas sempre posso mandar alguém ler para mim. E quanto ao que não está escrito, eu posso “ler” com a maior facilidade. Não estão conseguindo me entender, não é? Pois vou deixar tudo muito bem claro, até para os menos sutis de vocês.

       Uma carta não se exprime apenas pelas palavras escritas. Como um livro, uma carta também pode ser lida cheirando-a, tocando-a, afagando-a. É por isso que as pessoas inteligentes dirão: “Vejamos o que esta carta diz”; enquanto os imbecis se contentam com dizer: “Vejamos o que está escrito”. Toda a arte está em saber ler não apenas a escrita, mas o que vai junto com ela. Bem, agora ouçam o que também diz a carta de Shekure:

  1. Mesmo se eu mandar esta carta em segredo, o fato de escolher como portadora a Ester, cujo ofício e cujo fraco é esse leva-e-traz, significa que minha intenção não é verdadeiramente que a carta permaneça secreta.
  2. A maneira como a carta é dobrada várias vezes, como um desses papeizinhos em que nós, judeus, escrevemos nossas preces, sugere o segredo e o mistério, sim... Mas ela nem vai fechada! Sem contar que está acompanhada de um desenho de bom tamanho. Isso tudo parece dizer: “É nosso segredo, vamos escondê-lo dos outros”, e combina mais com uma carta de incentivo do que com uma carta de rejeição.
  3. O cheiro da carta confirma isso. Um cheiro fraco demais para que o destinatário possa se perguntar se foi ou não deliberadamente posto ali, mas suficientemente sensível para não passar despercebido (como dizia Attar, o poeta-perfumista: “É um perfume ou o aroma da sua mão?”.) e que bastou para deixar tonto o pobre homem que leu a carta para mim. Imagino que ela deixará o Negro igualmente tonto.
  4. É verdade que eu, Ester, não tenho a sorte de saber ler ou escrever, mas uma coisa eu sei: o capricho daquela escrita, o tremor que parece animar cada letra em sua linha, como sob o efeito de uma brisa delicada, contradizem formalmente a desenvoltura, a indiferença afetada daquela pena que finge se apressar. E apesar da expressão “há pouco”, a propósito do encontro com Orhan, sugerindo que a carta foi escrita logo em seguida, por impulso, está claro que ela fez um rascunho, dá para sentir a cada linha.
  5. Quanto ao desenho enviado com a carta, até eu, Ester, a judia, conheço a história que ele conta: como a bela princesa Shirin, contemplando um retrato do rei da Pérsia, Khosrow, se apaixonou por ele; todas as damas sonhadoras de Istambul adoram essa história, mas é a primeira vez que vejo uma delas juntar uma ilustração do célebre episódio à sua carta.

       É comum acontecer o seguinte com vocês, que têm a sorte de saber ler e escrever: uma pessoa que não sabe ler chega suplicando para que você leia uma carta que ela acaba de receber, e você lê. O que está escrito se revela tão lindo e comovente, tão pungente, que o destinatário da carta, apesar do seu pudor, da sua vergonha por introduzir você em seu jardim secreto, pede que você leia a carta mais uma vez. E você relê. No fim das contas, a carta foi lida tantas vezes que vocês dois a conhecem de cor e salteado. Depois ela pega a carta de volta, mas pede para você mostrar onde está certa palavra, certa expressão, e contempla na ponta do seu dedo, sem compreender, as letras que você lhe designa. E enquanto observam o desenho complicado dessas palavras que, apesar de não serem capazes de lê-las, elas conhecem de cor, eu às vezes me sinto tão próxima delas, dessas mocinhas iletradas que se põem a chorar ternamente sobre a carta, esquecendo-se que não sabem ler nem escrever, que tenho vontade de beijá-las.

       Também há aqueles malditos leitores de cartas, com quem lhes rogo que não me confundam, os quais, quando essas moças pegam a carta de volta para tocá-la mais uma vez, ansiosas por correr de novo os olhos por ela, apesar de não saberem que palavras estão escritas, dão como única resposta, esses animais: “Para que olhar outra vez, se você não sabe ler?”. Há até os que se recusam a devolver a carta, como se ela fosse deles, e é a mim, Ester, que vocês, meninas, vêm procurar para conseguir a carta de volta. E como Ester, no fim das contas, é uma boa pessoa, se eu gostar de você, farei o possível para lhe ajudar.

 

                   Eu, Shekure

       For que eu estava à minha janela quando o Negro passou bem em frente, montando seu cavalo branco? Por que abri a janela nesse momento preciso e por que fiquei tanto tempo olhando para ele, através dos galhos cobertos de neve do pé de romã? Não saberia lhes dizer. Ester tinha me informado, por intermédio de Hayriye, que o Negro ia passar por ali. É o que eu sabia, portanto. Eu tinha subido ao quarto em que se guarda a roupa para procurar uns lençóis no cesto. Esse quarto tem uma janela que dá para o pé de romã. Num repentino impulso, e no momento exato, empurrei os batentes da janela com toda a minha força, abrindo-a, e o sol invadiu bruscamente o aposento; então, eu ali na moldura da janela, nossos olhos se encontraram, e o Negro me ofuscou tanto quanto o sol. Ele estava tão bonito!

       Tinha crescido e amadurecido, tinha perdido a horrível magreza da juventude para se tornar um belo homem. Olhe, Shekure, disse-me o meu coração, o Negro não é apenas bonito; se olhar nos seus olhos, verá que seu coração é puro como o de uma criança e transbordante de solidão. Case-se com ele. E no entanto eu lhe enviei uma carta para lhe dizer exatamente o contrário!

       Embora ele fosse doze anos mais velho que eu, quando eu tinha doze anos eu era nitidamente mais madura que ele; e, em vez de se comportar comigo como um homem, em vez de anunciar que ia fazer isso ou aquilo, que ia pular daqui ou trepar ali, ele parecia o tempo todo incomodado e preferia enfiar o nariz em seus livros e em suas miniaturas, como se quisesse se esconder neles. Com o passar do tempo, ele também acabou se apaixonando por mim. Declarou-me seu amor com um desenho. Nessa época, nós dois já éramos crescidos. Apesar de eu já ter doze anos, eu sentia que ele tinha vergonha de me olhar nos olhos, por temer que eu compreendesse como ele sofria. Se me dizia uma coisa banal, por exemplo, “pode me passar aquela linda faca com cabo de marfim?”, em vez de olhar para mim — porque ele era evidentemente incapaz de me fitar —, ele olhava para a faca. Ou então, se eu lhe perguntava “o sorvete de cereja está gostoso?”, ele era incapaz de — com um sorriso amável, como a gente faz quando está de boca cheia, ou simplesmente com um gesto — me responder que, sim, estava uma delícia. Tinha de gritar a plenos pulmões “sim!”, como se eu fosse surda! O medo o impedia de erguer os olhos para mim. E que eu era mesmo lindíssima, naquela época. Quaisquer que sejam a distância, a espessura e a quantidade de cortinas, portas e biombos, todos os homens que me viam, ainda que uma só vez, ficavam apaixonados. Não digo isso para me gabar, mas para lhes contar melhor minha história e para que vocês possam compartilhar melhor comigo as minhas agruras.

       Na lenda de Khosrow e Shirin, que todo o mundo conhece, há um momento de que o Negro e eu falávamos com freqüência. E quando o fiel Shapur dá um jeito de fazer que um se apaixone pelo outro. Um dia, quando a princesa passeava no campo em companhia das suas aias, ele prendeu às escondidas, no galho de uma das árvores debaixo das quais elas descansavam, um retrato do rei Khosrow. Ao ver o retrato do belo Khosrow, a princesa Shirin se apaixona por ele. Esse momento ou, como dizem os pintores, essa cena, que mostra o deslumbramento de Shirin ao admirar o retrato de Khosrow, foi muitas vezes representada em pintura. Quando trabalhava com meu pai, o Negro viu várias ilustrações dessa cena, e até as copiou uma ou duas vezes, sem alterar em nada o original. Depois, quando se apaixonou por mim, em vez de Khosrow e Shirin ele representava a si mesmo e a mim: Negro e Shekure. Aliás, se ele não tivesse sentido a necessidade de escrever sob o desenho, à guisa de legenda, que o rapaz e a moça do desenho éramos nós, eu teria sido a única a saber (ele tinha uma maneira de nos desenhar sempre com os mesmos traços e as mesmas cores: ele em vermelho, eu em azul). Mas, daquela vez, ao escrever nossos nomes ele se traiu. E fugiu como um ladrão, largando o desenho num lugar em que eu poderia vê-lo. Lembro-me que ele ficou me espiando, para descobrir qual seria a minha reação ao ver nossa imagem.

       Como eu tinha certeza de que não podia me apaixonar por ele, como uma Shirin do seu Khosrow, banquei a indiferente. Mas ao anoitecer de um daqueles dias de verão que passamos tentando nos refrescar com uns sorvetes de cereja feitos com o gelo que diziam vir de longe, do monte Ulu, no litoral asiático, eu contei a meu pai que o Negro, que já tinha ido embora para casa, havia me feito uma declaração de amor. Naquela época, o Negro tinha acabado de se formar no colégio de teologia. Ele era mestre-escola num bairro próximo e tentava, menos por vontade própria do que para obedecer a meu pai, obter a proteção do poderosíssimo e estimado Naim Paxá. Mas meu pai sempre havia sido da opinião de que o Negro não tinha o menor futuro e que mesmo se conseguisse, graças aos seus esforços, dele, meu pai, um cargo no círculo de Naim Paxá, mesmo que de secretário para começar, tinha poucas probabilidades, na sua opinião, de tirar bom proveito dessa posição, dando inclusive a entender que era um desperdício ajudá-lo. Naquela noite, meu pai tinha declarado, designando-nos com o olhar: “Eu me pergunto se esse pobretão do meu sobrinho não mira alto demais para ele”. E sem a menor consideração para com minha mãe, que estava presente, acrescentou: “Mas pode ser que ele seja menos bobo do que eu imaginava”.

       Como meu pai agiu nos dias seguintes, como eu mesma evitei o Negro e como ele, de início, se absteve de nos visitar e, depois, até deixou de passar por nosso bairro, são recordações que me enchem de tristeza e não desejo lhes contar: vocês poderiam vir a nos detestar, a meu pai e a mim. Creiam-me, era o único remédio. Vocês sabem que, numa situação assim, as pessoas sensatas logo sentem que um amor sem esperança é simplesmente sem esperança e, compreendendo os limites do reino ilógico do coração, põem elegantemente um ponto final no caso, declarando que “não nos acham feitos um para o outro” e que “assim tem de ser” no próprio interesse delas. Não devo me esquecer de lhes dizer que minha mãe várias vezes suspirou: “Pelo menos não deixem o pobre menino com o coração partido”. O menino de que minha mãe falava, o Negro, tinha nada menos do que vinte e quatro anos, e eu, a metade. Mas como meu pai achara uma insolência aquela declaração intempestiva de amor, não iria satisfazer o desejo que minha mãe acalentava secretamente.

       Quando soubemos da sua ida para Istambul, embora não o tivéssemos inteiramente esquecido, ele já havia, em todo caso, saído totalmente dos nossos corações. Como durante anos não recebemos nenhuma notícia dele vinda de nenhuma cidade, achei que não havia nada de mais em conservar aquele desenho que ele tinha feito e me mostrado, como uma lembrança de menina, o testemunho de uma amizade de crianças. Para não inquietar meu pai e, principalmente, meu marido militar, se ele desse um dia com o desenho, o que poderia deflagrar uma crise de ciúmes, eu apenas cobri a legenda — Negro e Shekure —, pingando em cima dela umas gotinhas de nanquim, surrupiado do meu pai, como se fosse um acidente posteriormente disfarçado com uma preciosa moldura de flores. Agora, depois que devolvi o desenho a ele, aqueles dentre vocês que se inclinavam a ver com maus olhos minha súbita aparição à janela diante do Negro talvez se sintam envergonhados e reconsiderem um pouco suas idéias precipitadas,

       Quando reapareci de repente diante dele, esta tarde, à minha janela, depois desses doze anos, demorei-me bastante contemplando, encantada, em meio aos flamejantes raios de sol, o jardim imerso naquela cor alaranjada, quase vermelha, até sentir frio. Não soprava a mais leve brisa. Se um passante ou se meu pai tivessem me visto à janela, ou se o Negro, fazendo seu cavalo dar meia-volta, houvesse passado de novo por ali, pouco me importa o que poderiam ter dito. Mesrure, uma das filhas de Ziver Paxá, com quem eu me divertia todas as semanas, ao irmos juntas ao hamam (ela era tão alegre e tinha sempre uma tirada engraçada para me fazer rir no momento mais inesperado!), disse-me certa vez que a gente nunca pode saber com certeza o que alguém pensa, nem sequer o que a gente mesma pensa... Também acho: às vezes digo uma coisa e, ao dizê-la, percebo que é isso mesmo que penso; no entanto, mal acabo de pensar assim, chego à opinião oposta.

       De todos os pintores que meu pai recebe em casa, e não vou lhes ocultar que observei cada um deles, lamento que tenha sido o coitado do Elegante Efêndi o que desapareceu, tal qual meu infortunado marido. E, no entanto, ele era o mais feio e o mais pobre de espírito de todos.

       Fechei a janela e saí do quarto para descer à cozinha.

       “Mamãe, Shevket não te obedeceu”, disse Orhan. “Quando o Negro Efêndi foi pegar o cavalo na estrebaria, ele saiu no pátio para espiá-lo pelo buraco!”

       “E daí?”, retrucou Shevket, erguendo o punho. “Mamãe também espiou o Negro pelo buraco do armário!”

       “Hayriye, para o jantar, pode fazer para eles pão de amêndoas tostado na manteiga.”

       Orhan pulou de alegria e Shevket não disse mais nada. Mas quando subi de volta para o quarto, os dois correram atrás de mim na escada, gritando, me puxando e me empurrando. “Calma, calma”, eu lhes dizia às gargalhadas. “Parem, seus diabinhos.” E lhes dava umas palmadinhas delicadas.

       Que bom é, quando cai a noite, estar em casa com os filhos! Meu pai não fazia barulho, absorto que estava diante de um livro.

       “A visita já foi. Espero que não o tenha aborrecido.”

       “Ao contrário. Ele me divertiu. Contínua respeitoso como sempre com seu Tio.”

       “Que bom.”

       “Mas tornou-se prudente, e ponderado.”

       Isso foi dito num tom um tanto desdenhoso, e menos para avaliar minha reação, sem dúvida, do que para encerrar o assunto.

       Numa outra ocasião eu certamente teria lhe replicado à altura, como costumo fazer. Mas, naquele momento, a imagem do cavaleiro montado em seu cavalo branco voltou-me ao espírito e me produziu um arrepio.

       Mais tarde, já não me lembro como, eu estava no quarto do armário embutido abraçada com Orhan. Shevket veio se pôr entre nós dois, disputaram um pouco o lugar — pronto, vão brigar de novo, disse comigo mesma —, mas logo estávamos os três rolando juntos no tapete. Eu os acariciei, como uma cadela seus cachorrinhos, beijava-lhes os cabelos, atrás do pescoço, apertava-os contra o meu peito, para sentir o peso deles contra meus seios.

       “Ahhh!”, fiz. “Como seus cabelos estão fedorentos! Amanhã vão ao banho público com Hayriye.”

       “Eu não quero ir mais ao banho com Hayriye!”, disse Shevket.

       “Por quê? Está crescido demais?”

       “Mamãe, por que você pôs essa blusa lilás tão linda?”, perguntou Shevket em vez de responder.

       Fui ao outro quarto tirar a blusa. Pus de novo a verde, já um pouco desbotada, porque estou sempre com ela. Senti frio ao me trocar, mas, ao mesmo tempo que fiquei arrepiada, sentia meu rosto arder e tinha a impressão de que meu corpo despertava, espreguiçava. Notei uma mancha de batom no canto do rosto — deve ter escorrido quando eu brincava com meus filhos —, lambi a palma da mão e limpei aquela marca vermelha, esfregando-a. Sabem, as minhas parentas, as mulheres que encontro no banho público e todas as que me vêem, sempre dizem que não pareço uma mulher de vinte e quatro anos, mãe de dois filhos, mas uma mocinha de dezesseis. Acreditem nelas, ouviram, acreditem de verdade, senão eu não lhes conto mais nada.

       E, principalmente, não achem estranho eu me dirigir assim a vocês; faz tantos anos que vejo as imagens dos livros do meu pai, que procuro as mulheres e as grandes beldades — são raras, mas existem... Elas são invariavelmente tímidas e reservadas, olham umas para as outras ou ao longe, parecem estar o tempo todo pedindo desculpas. Claro, elas não seriam capazes, como os homens, como os guerreiros ou os sultões, de manter a cabeça erguida e encarar o mundo que as rodeia. Mas é possível encontrar também, em certas produções baratas, por inadvertência do artista, que deve ter pintado a cena depressa demais, mulheres que, em vez de olhar para o chão ou para um objeto contido no quadro — digamos, um vaso ou o amante —, parecem olhar diretamente para o leitor. E eu me pergunto então: quem pode ser esse leitor?

       Quando penso naqueles livros do tempo de Tamerlão, duas vezes centenários, que os colecionadores cristãos compram aqui a peso de ouro a fim de levá-los para seu país, sinto um arrepio de emoção: um dia, certamente, alguém num reino também distante ouvirá essa minha história. Não é esse arrepio, aliás, que explica o desejo de se ver inscrito nas páginas de um livro? Não é por almejarem essa emoção que sultões e vizires prodigalizam seu ouro aos escribas que contam sua história em livros ou que dêem a estes o seu nome como título? Se sinto em mim esse arrepio, como aquelas belas que olham ao mesmo tempo para o livro da sua vida e para fora do livro, é que também desejo conversar com vocês que estão me observando desde sabe lá que distância no espaço e no tempo. Sou bonita, tenho a cabeça no lugar, o olhar que vocês me dedicam não me desagrada. E se, de quando em quando, de longe em longe, eu lhes contar uma pequena mentira, é só para que vocês não façam idéia errada de mim.

       Como vocês certamente adivinharam, meu pai tem por mim um imenso afeto. Nasci depois de ele já ter tido três filhos, mas Alá tomou-os um a um e só eu fui poupada, sua única filha. Meu pai me adora, e no entanto não foi ele que escolheu meu marido: eu me casei com um tenente da cavalaria, que me agradou ao primeiro olhar. Se houvesse dependido do meu pai, meu marido teria de ser não apenas o mais sábio dos homens, mas também entender de pintura e de artes; ser poderoso e respeitado; e, por fim, rico como Karun, o homem mais rico do Corão. Em poucas palavras, alguém que não se encontra em lugar nenhum, nem mesmo nos livros de imagens e pelo qual eu seria obrigada a esperar sentada em casa o resto dos meus anos.

       A beleza legendária do meu marido era tema obrigatório dos cochichos femininos. Graças a certas intermediações, dei um jeito de cruzar com ele ao voltar do banho público. Foi então que o vi: seus olhos lançavam faíscas, e eu me apaixonei imediatamente por ele. Tinha cabelos castanhos, pele clara, olhos verdes; além disso, era forte e bem-feito de corpo, mas no fundo era sossegado e silencioso como uma criança dormindo. Como despendia toda a sua energia na guerra, matando e saqueando sem parar — e devo dizer que ele às vezes tinha como que um vago cheiro de sangue —, em casa ficava calmo e meigo como um cordeiro. Meu pai, a princípio, não queria nem ouvir falar desse soldado sem dinheiro, mas como eu ameaçava me suicidar, ele teve de consentir no meu casamento com aquele homem, o qual, à força de façanhas heróicas e gloriosas vitórias, acabou recebendo um feudo militar que vale dez mil moedas de prata e todo o mundo nos inveja.

       Quando, quatro anos atrás, no fim da guerra contra os safávidas, ele não regressou com o resto do exército, num primeiro momento não me inquietei. Na certa havia ficado como perito militar, tinha assuntos a resolver, butins mais ricos a pilhar, soldados a recrutar... Havia também algumas testemunhas que nos diziam que ele, com seus homens, tinha se separado da coluna em marcha e ido para as montanhas. No começo, eu sempre me dizia que ele ia voltar de uma hora para a outra; depois, passados dois anos, fui me acostumando pouco a pouco com a sua ausência. Sabendo quantas mulheres de militares em Istambul tinham perdido o marido como eu, terminei aceitando minha situação.

       Á noite, em nossa cama, eu apertava as crianças contra mim e chorávamos todos, um mais que o outro. Para consolá-los um pouco, eu inventava histórias, mentiras: que fulano tinha me dito que o pai deles ia voltar na primavera, com a mais absoluta certeza. O boato corria e, de boca em boca, acabava voltando aos meus ouvidos, e eu era a primeira a querer acreditar.

       Com a ausência do meu marido, arrimo da casa, começaram as dificuldades. Mudamos para uma casa de aluguel, para os lados da Porta do Mercado. Foram conosco o pai do meu marido, um nobre caucasiano a quem a fortuna reservou, a vida toda, uma sucessão de reveses, mas que era um homem muito respeitado, e seu segundo filho, também de olhos verdes. Meu sogro, na idade em que estava, teve de voltar ao seu ofício de espelheiro, que ele havia abandonado quando o filho mais velho ficou rico na guerra. Meu cunhado Hassan, solteiro, trabalhava na alfândega, mas quando começou a trazer mais dinheiro para casa, começou a se considerar o dono de tudo. Certo inverno, ficamos com medo de não conseguir pagar o aluguel, e eles foram correndo ao Mercado de Escravos para vender a criada que cuidava da casa; pediram-me então que cozinhasse e lavasse no lugar dela, até mesmo que fizesse as compras no bazar. Não lhes contestei que eu não era mulher a quem se podia impor tal tipo de trabalho, mas fiquei com o coração partido. E quando Hassan, que não tinha mais uma criada com quem se deitar em seu quarto, pôs-se a forçar a porta do meu, não soube mais o que fazer.

       Evidentemente, eu teria podido voltar logo para cá, para a casa do meu pai, mas visto que, para o juiz, meu marido continuava legalmente vivo, se eu passasse a provocá-los, eles seriam capazes não só de me levar de volta à força, com as crianças, para a casa do meu sogro, quer dizer, do meu marido, mas teriam inclusive o topete de conseguir a condenação de nós dois, minha e de meu pai. Aliás, analisando melhor a situação, eu teria perfeitamente podido fazer amor com Hassan, que achava mais humano e mais inteligente que meu marido e que, na verdade, morria de paixão por mim. Mas se eu me deixasse dominar sem nenhuma prudência, em vez de me tornar sua esposa, eu passaria a ser sua simples serva — que Alá me preserve! Porque, como eles temiam mais que tudo que eu voltasse para a casa do meu pai com meu dote, meus filhos e reclamando minha parte da herança do meu marido, eles não estavam nem um pouco dispostos a admitir uma decisão do juiz que declarasse meu marido morto. Sem essa sentença, não podia me casar nem com Hassan nem com nenhum outro, mas ficava presa a eles por meio de um marido “desaparecido”, o que explica por que eles preferiam essa situação indefinida. Porque, repito, eu era pau para toda obra, da cozinha às roupas, sem falar na paixão furiosa que um deles me dedicava.

       A melhor solução para meu sogro e para Hassan era que eu me casasse com este, mas para isso acontecer era preciso, antes de mais nada, arranjar umas testemunhas que convencessem o juiz da morte do meu marido. Assim, se eles, pai e irmão, parentes mais próximos do meu marido desaparecido, aceitassem a idéia de que ele estava morto, se mais ninguém opusesse obstáculos ao reconhecimento desse fato e se, a troco de algumas moedas de prata, umas falsas testemunhas declarassem ter visto seu cadáver num campo de batalha, seria fácil persuadir o juiz a dar esse veredicto. O mais difícil para mim era convencer Hassan de que, uma vez declarada viúva, eu não ia abandonar a casa, reclamar a herança — ou mais dinheiro para aceitar me casar com ele — e, sobretudo, de que eu me casaria com ele em virtude de um sentimento sincero. Claro, eu sabia que só ganharia sua confiança nesse sentido se fosse para a cama com ele de uma maneira tão convincente que ele se sentisse plenamente seguro de que eu não me entregava a ele a fim de obter seu consentimento para me divorciar do meu marido, mas sim por estar sinceramente apaixonada por ele.

       Fazendo um esforço, eu bem poderia me apaixonar por Hassan. Ele é oito anos mais moço que meu marido e, quando este ainda estava conosco, Hassan era como um irmão para mim, o que nos aproxima naturalmente. Além disso, eu gostava dos seus modos despretensiosos e apaixonados, do seu prazer em brincar com meus filhos e daquele seu ar melancólico quando olhava para mim: é como se ele morresse de sede e eu fosse um sorvete de cereja. Mas como eu teria muita dificuldade de me apaixonar por alguém que não tinha vergonha de me obrigar a lavar a roupa e me mandar fazer as compras, como se eu fosse uma criada, uma escrava, eu disse a mim mesma que essa hipótese corria o risco de ser, no fim das contas, um tanto ou quanto impossível. Naquela época, eu ia com freqüência durante o dia à casa do meu pai, onde chorava sem parar, olhando para os potinhos de tinta alinhados em seu ateliê, e de noite dormia com meus dois filhos agarrados a mim. Hassan nunca me deu o menor motivo para eu me apaixonar por ele. Como ele não era nada seguro de si, como não acreditava que aquela condição indispensável — eu me apaixonar por ele — pudesse se realizar, acabou se comportando mal. Tentou me agarrar, me beijar, suas mãos perderam o rumo, tudo isso me dizendo que meu marido não voltaria nunca, ameaçando me matar, chorando como um bebê. Nessa precipitação, ele não se dava tempo de cultivar um amor puro e nobre — como aquele que os livros explicam tão bem —, e compreendi que nunca poderia me casar com ele.

       Uma noite, quando ele tentava arrombar a porta do quarto em que eu dormia com meus meninos, levantei-me imediatamente e, sem nem sequer me perguntar se não ia assustá-los, pus-me a berrar o mais alto que pude, dizendo que os djins tinham entrado em casa. Os gritos acordaram meu sogro e eu lhe apontei Hassan, cujo estado de excitação ainda era visível, enquanto eu continuava a gritar sob o efeito do pânico. Por entre as minhas vociferações histéricas e os meus gritos de possessa, o ancião conseguiu discernir a banal e terrível verdade: seu filho estava enrabichado e acabava de fazer uma investida desrespeitosa à sua própria nora, mãe de seus dois netos. Ele não disse nada quando afirmei que não ia conseguir dormir de novo e que tinha a intenção de ficar de vigília até o amanhecer, para proteger meus filhos dos djins. Mal raiou o dia, anunciei que voltava por algum tempo com eles, meus filhos, para a casa do meu pai, que necessitava dos meus préstimos. Hassan teve de aceitar sem reclamar. E eu tornei à minha casa de solteira, levando como única lembrança da minha vida de casada o relógio de carrilhão, parte do butim da Hungria (que meu marido nunca cedeu à tentação de vender), o chicote feito com tendões dos mais impetuosos garanhões árabes (inestimável), o tabuleiro de marfim de Tabriz, cujas peças as crianças usavam para brincar de soldadinho, e os castiçais de prata pilhados na batalha de Nahjivan, que defendi com unhas e dentes quando quiseram vendê-los.

       Depois que abandonei o domicílio do meu marido, as investidas despudoradas e vulgares com que Hassan me oprimira transformaram-se, como eu imaginara, numa espécie de labareda tão nobre quanto desesperada. Como ele sabia não poder contar com o apoio do pai, em vez de ameaças pôs-se a me enviar cartas de amor, com passarinhos tagarelas, gazelas melancólicas, leões em lágrimas ornando as margens. Não dissimularei a vocês que reli, e reli, e reli essas cartas que, admitindo que ele não tenha mandado algum pintor e algum poeta amigos seus escrevê-las e desenhá-las, atestam uma riqueza interior que eu não imaginava nele, na época em que vivíamos sob o mesmo teto. Nas últimas, ele me conta que, como ganha muito dinheiro, contratará um criado para os serviços domésticos. Essas palavras amáveis, respeitosas e bem-humoradas, somadas aos gritos incessantes dos meus filhos, que viviam brigando, e aos gemidos constantes do meu pai, ressoavam na minha cabeça como o rufar de um tambor. Foi para aliviá-la que abri aquela janela, a fim de respirar um pouco de ar fresco.

       Antes que Hayriye trouxesse a bandeja com a refeição da noite, preparei para meu pai um fortificante à base das melhores flores de tamareira da Arábia, juntando uma colher de mel e um pouco de suco de limão. Quando entrei, ele estava lendo o Livro da alma. Como se eu mesma fosse uma, postei-me em silêncio diante dele sem deixar que ele notasse a minha presença. Ele preferia assim.

       “Está nevando?”, ele me perguntou como uma voz tão triste, tão frágil, que compreendi que era a última neve que meu pobre pai veria.

 

                   Eu sou a Árvore

       Eu sou a Árvore, e sou muito solitária. Sempre que chove, eu choro. Ouçam, por Alá, a história que vou lhes contar. Tomem seu café, para que ele afugente o sono e seus olhos fiquem bem abertos. Olhem para mim como se olhassem para um djim e eu lhes contarei por que sou tão sozinha.

  1. Se fui desenhada às pressas numa feia folha de papel ordinário, foi só para que houvesse um desenho de árvore atrás do mestre contador de histórias. Verdade. Agora não tenho, ao meu lado, nem árvores delicadas, nem o mato das estepes, nem rochas tão cheias de deformações que parecem com o Diabo ou com o homem, nem nuvens chinesas se contorcendo no céu. Apenas a terra, o céu, o horizonte e eu. Mas minha história é muito mais complicada.
  2. Como árvore, não preciso fazer parte de nenhum livro. Mas como desenho de árvore, não ser uma página de livro me deixa tremendamente perturbada. Eu me digo que, se não sirvo para ilustrar um relato, os idólatras e os infiéis vão pendurar meu desenho numa parede e se prosternar diante de mim para me adorar. Que os seguidores do hodja de Erzurum não me ouçam, mas pensar que isso pode acontecer até me dá certo orgulho secreto — logo em seguida, porém, tremo de medo e de embaraço.
  3. O motivo principal da minha solidão é que eu mesma não sei a que história pertenço: estava destinada a ser parte de uma história, mas caí dela como uma folha morta. Deixem-me lhes contar tudo direitinho:

DE QUE MODO CAI DA MINHA HISTORIA

COMO UMA FOLHA CAI DA ÁRVORE

       Quarenta anos atrás, o xá Tahmasp do Irã, que era o maior inimigo do nosso império e também o maior rei-patrono da arte da pintura, começou a ficar senil, e sua paixão pelos prazeres, o vinho, a música, a poesia e a pintura arrefeceu. Pior ainda, parou de tomar café e, naturalmente, sua cabeça parou de funcionar. Assaltado por sombrias suspeitas, o velhote, de cara austera e comprida, mudou sua capital de Tabriz, que ainda era persa na época, para Kazvin, a fim de ficar mais longe do exército Otomano, dizia ele. Ficando ainda mais velho, certo dia foi possuído por um djim, teve uma crise de nervos e, pedindo perdão a Alá, abandonou completamente o vinho, os efebos e a pintura, o que é prova de que esse grande rei, ao perder o gosto pelo café, também havia perdido o espírito.

       Foi por isso que os divinamente inspirados encadernadores, calígrafos, douradores e pintores, que criaram durante vinte anos, em Tabriz, as maiores obras-primas do mundo, se dispersaram por outras cidades, como um bando de perdizes. O sultão Ibrahim Mirza, que era sobrinho e genro do xá Tahmasp e governador de Mechhed, chamou os mais brilhantes, instalou ateliês para eles numa vasta morada e resolveu mandá-los pintar e copiar os sete ciclos de fábulas dos Sete tronos da Ursa Maior, obra de Djami, o maior poeta da corte dos timúridas em Herat. Dividido entre o afeto e o ciúme por esse sobrinho bom e esclarecido, a quem lamentava ter dado sua filha, xá Tahmasp, ao saber do projeto, foi tomado por um violento despeito e exilou em Kain o governador de Mechhed. Depois, num novo acesso de raiva, baniu-o para o povoado de Sabzivar. Então os calígrafos e os pintores de Mechhed se dispersaram novamente por outras cidades, outros reinos, a serviço de outros príncipes e outros sultões.

     Mas, por milagre, a história do livro do sultão Ibrahim Mirza não termina aí, porque seu bibliotecário, um verdadeiro esteta, montou no cavalo e partiu para Shiraz, onde morava o melhor mestre dourador; depois levou a Isfahan duas páginas para um copista cuja caligrafia Nestalik era tida como a mais delicada; em seguida, atravessando as montanhas até chegar a Bukhara, pediu ao grande mestre pintor, que aí trabalhava para o cã dos uzbeques, que fizesse a composição e pintasse os personagens. De volta para Herat, pediu, dessa vez a um mestre da antiga escola, já meio cego, para pintar as sinuosas curvas das folhas e das plantas; e, sempre em Herat, mandou traçar com ouro, em escrita Rika, a inscrição da janela acima do desenho. De volta a Kain, apresentou as poucas páginas que tinha realizado parcialmente durante essa viagem de seis meses e recebeu os cumprimentos do sultão destronado, Ibrahim Mirza.

       Compreenderam porém que, naquele ritmo, o livro nunca seria concluído, e contrataram mensageiros tártaros. Confiava-se a cada um deles, com as páginas a completar, uma carta para ser entregue ao artista, descrevendo o trabalho pedido. Assim, os mensageiros, levando as páginas do livro, percorreram todo o Irã, o Khurasan, o reino dos uzbeques, chegando até às rotas de caravana da distante Transoxânia. Agora, o livro progredia à velocidade dos cavalos. Às vezes, numa noite de inverno, num caravançará em que se ouviam os lobos uivar, a qüinquagésima nona página encontrava a centésima sexagésima segunda e, ao travarem conhecimento, davam-se conta de que trabalhavam para a mesma obra e iam buscar no quarto as páginas, para tentar compreender, comparando-as, de que história faziam parte, a que epopéia se referiam.

       Era para eu também ser uma página desse livro que, ouvi dizer com tristeza, foi terminado hoje. Que pena que, num dia de inverno, uns salteadores de tocaia num desfiladeiro rochoso tenham cortado o caminho do meu mensageiro tártaro. Começaram lhe dando uma sova, em seguida, conforme o costume dos salteadores, deixaram-no inteiramente pelado e, depois de roubá-lo, mataram sem dó nem piedade o pobre estafeta. E por isso que não sei de que página caí. Pergunto então para vocês que estão me olhando: vocês acham que eu estava destinada a dar sombra a Majnun no deserto, quando, disfarçado de pastor, ele visita Leila em sua tenda? Estaria eu destinada a me desvanecer na noite, a fim de exprimir a escuridão da dúvida e do desespero na alma do rapaz? Eu teria gostado tanto de assistir à felicidade de dois amantes que, fugindo do mundo, depois de atravessarem as montanhas, encontram por fim a paz numa ilha cheia de pássaros e de frutas! Teria gostado tanto de emprestar minha sombra aos derradeiros momentos de Alexandre, quando morre sangrando do nariz, vítima de insolação, durante a conquista do país do Indo! A não ser que eu tenha sido concebida para representar a idade e a força do pai transmitindo ao filho preceitos sobre o amor e sobre a vida... Digam, a que história eu estava destinada a dar maior profundidade e delicadeza?

       Um dos bandidos que, depois de terem matado meu tártaro, se apoderaram de mim e me levaram de montanha em montanha e de cidade em cidade, era sutil o bastante para reconhecer meu valor e compreender que olhar o desenho de uma árvore é melhor que olhar uma árvore, mas como ele ignorava a que relato eu me referia logo se cansou de mim. Ao contrário do que eu temia, esse fora-da-lei, em vez de me rasgar e me jogar fora, me vendeu num caravançará, por uma jarra de vinho, a um homem magérrimo. Às vezes, de noite, à luz de uma vela, esse homem me contemplava, chorando. Quando morreu de tristeza, puseram seus bens à venda e, graças ao mestre satirista que me comprou, cheguei a Istambul. Agora estou feliz! De fato, que honra estar aqui esta noite, entre vocês, pintores e calígrafos miraculosamente inspirados do Sultão otomano, de mãos peritas, olhos de águia, vontade de ferro, punhos tão sensíveis, alma tão delicada! E, por Alá, eu lhes rogo, não creiam nos que dizem que fui desenhada às pressas num papel ordinário, por um dos pintores aqui presentes, para ser grudada numa parede.

       Vejam só que calúnias, a que mentiras descaradas alguns se permitem. Vocês se lembram que, ontem à noite, aqui neste mesmo lugar, meu autor colou nesta parede o desenho de um cachorro e narrou as aventuras desse bicho sem-vergonha, e depois também as de um tal de Husret Hodja, de Erzurum. Pois bem, os admiradores de Sua Excelência Nusret Hodja interpretaram tudo errado: acharam que ele, Sua Venerada Excelência, é que teria sido visada! Mas como poderíamos dizer que nosso grande pregador é filho de pai desconhecido? Arre! Imaginem se uma coisa dessas ia me passar pela cabeça! Que detração, que mentira deslavada! Se confundem tão descaradamente assim os hodjas Husret e Nusret, de Erzurum ambos, então vou lhes contar a História da árvore e de Nedret Hodja, o Zarolho de Sivas.

       Além de anatematizar a pintura e o amor aos efebos, esse hodja zarolho dizia que o café é coisa do Diabo e aquele que o beber vai direto para o Inferno. Escute aqui, seu mequetrefe de Sivas, já se esqueceu como este meu galho grosso ficou torcido? Vou lhes contar como foi, mas jurem que não vão repetir a ninguém, que Alá nos guarde de caluniar quem quer que seja. Acordo uma bela manhã e descubro que um homem gigantesco — que Alá o proteja, ele era alto como um minarete e tinha braços fortes como os de um leão! — tinha trepado neste meu galho e se escondido entre a minha luxuriante folhagem em companhia do supracitado hodja para, se me permitem a expressão, ali fazerem troca-troca. Enquanto fazia o que tinha de fazer com o nosso hodja, o gigante, que mais tarde compreendi tratar-se do Diabo, beijava a formosa orelha deste e sussurrava dentro dela: “O café é um pecado, o café é um vício...”.

       É claro que quem crê nessas balelas sobre os malefícios do café não acredita nos mandamentos da nossa bela religião, mas sim no Diabo em pessoa.

       Para terminar, quero dizer uma palavra sobre os pintores do Ocidente, para que, se houver entre vocês quem tenha a pretensão de imitá-los, fique avisado e trate de mudar de idéia. Ao que parece, esses pintores deram de pintar os rostos dos reis, dos sacerdotes, dos senhores e até das mulheres destes, de tal maneira que quem vê o retrato possa reconhecê-los na rua. Aliás, as esposas deles andam na rua como bem entendem, e o resto vocês podem imaginar. Como se não fosse o bastante, usa-se e abusa-se da tal pintura como se fosse uma alcoviteira...

       Certo dia, um grande pintor europeu passeava com um colega numa campina, conversando sobre sua arte, quando avistaram uma floresta. O que tinha maior mestria teria dito ao outro: “Para pintar no novo estilo, tem-se de pintar cada árvore desta floresta de tal modo que uma pessoa que visse a pintura pudesse vir aqui e reconhecer cada uma delas”.

       Eu que, como vocês vêem, não passo de uma pobre árvore, agradeço a Alá não ter sido pintada de tão douta maneira. Mas não é por temer que, se fosse desenhada à francesa, todos os cachorros de Istambul, tornando-me por uma árvore de verdade, viessem mijar em mim. É que não aspiro ser uma árvore, e sim seu símbolo.

 

                     Meu nome é Negro

       A neve começou a cair no fim do dia e continuou até de manhã. Eu tinha passado a noite toda relendo a carta de Shekure. Extremamente excitado, andava de um lado para o outro no quarto vazio da casa vazia, voltando o tempo todo para junto da luz trêmula e amarela da vela, a fim de observar o tremor nervoso dos caracteres traçados com cólera por minha amada, a progressão das curvas que, da direita para a esquerda, se contorcem e se ligam para melhor urdir seus enganos. De repente, a sua janela se abria ali, diante de mim, e o rosto da minha amada, com aquele seu sorriso triste, aparecia. E quando vi seu verdadeiro rosto, esqueci todos aqueles outros que eu trazia na minha imaginação nos últimos seis ou sete anos, com aquela boca de cereja que ia ficando cada vez mais madura, mais vermelha, e acabava tomando toda a fisionomia.

       No meio da noite, perdi-me em sonhos de casamento. Não tinha a menor dúvida do meu amor por ela, nem de que ele era correspondido. Nós nos casávamos num estado de grande felicidade, mas essa minha felicidade imaginária, instalada numa casa cheia de escadas, logo se esvaiu porque eu não conseguia arranjar um trabalho adequado, e dei de discutir com a minha mulher, mas ela nem ligava para o que eu dizia. Em torno da meia-noite, compreendendo que essas sombrias quimeras provinham, em parte, da Ressurreição das ciências, de Al-Gazali, que eu havia lido na Arábia durante minhas longas noites de solteiro, lembrei-me também que as mesmas páginas consagradas ao casamento se estendiam muito mais sobre as vantagens deste. Mas, a despeito de todos os meus esforços, não consigo me lembrar de nenhuma outra, além destas duas: primeiro, o casamento introduz ordem num casal, e na casa cheia de escadas do meu sonho não havia ordem alguma; o segundo argumento era que eu escapava assim do vício do prazer solitário e do vício, bem pior, de me deixar conduzir por uma cafetina, no escuro das ruas transversais, até os antros de prostitutas.

       Esses pensamentos, já era quase uma da madrugada, me trouxeram à mente a masturbação. Desejando manter as idéias claras e tirar essas obsessões da cabeça o mais depressa possível, fui para um canto do quarto, como de costume, mas logo compreendi que não conseguiria me acalmar daquele jeito: doze anos depois, eu estava novamente apaixonado.

       Essa constatação — inabalável, se ouso dizer — me causou tamanha emoção e tanto medo, que agora eu andava pelo cômodo tremendo como a luz da vela. Se, de fato, com aquela carta Shekure me abria uma espécie de janela, por que as palavras que ela empregava parecem me dizer o contrário? Por que seu pai, se a filha não queria saber de mim, me convidava? Por que eles brincavam assim comigo, os dois, pai e filha? Caminhando pelo quarto, parecia que a porta, a parede, o assoalho estridente, com seus rangidos que faziam eco ao balbucio dos meus pensamentos, procuravam responder a essas minhas perguntas.

       Olhei demoradamente para o desenho que eu fizera anos atrás, de Shirin que se apaixona por Khosrow ao ver o retrato deste pendurado no galho de uma árvore. Eu tinha me baseado, então, na ilustração de um livro de qualidade medíocre, trazido recentemente de Tabriz, que havia na casa do meu Tio. Esse desenho já não me envergonhava, como cada vez que me lembrava dele ao longo de todos aqueles anos, e era natural que assim fosse, dada a ingenuidade do traço e da declaração de amor que ele continha; mas tampouco reavivava lembranças felizes da minha juventude. Raiava o dia quando consegui pôr as idéias em ordem, e interpretei seu gesto — mandar-me de volta o desenho — como uma espécie de ofensiva no tabuleiro do amor. Por fim, levantei-me e escrevi uma resposta.

       Naquela mesma manhã, depois de dormir mais um pouco, saí à rua, levando a carta junto ao peito e o estojo com a pena e o tinteiro na cinta, como de costume. Caminhei um bom momento. A neve parecia ter alargado as estreitas ruas de Istambul e tinha feito a multidão habitual desaparecer delas Tudo estava mais silencioso e mais calmo, como na minha infância; e, como na minha infância, um exército de corvos parecia ter tomado de assalto os telhados, as cúpulas e os jardins cobertos de neve. Ia depressa, ouvindo o ruído dos meus passos abafado pela neve, vendo o hálito vaporoso que saía da minha boca, feliz por saber que aquele edifício aonde meu Tio me pedira que eu fosse e em que se encontrava o Grande Ateliê do Nosso Sultão estaria tão silencioso quanto as ruas. Sem entrar no bairro judeu, marquei por intermédio de um garoto um encontro com Ester, a quem pediria que entregasse minha carta a Shekure, para antes da prece do meio-dia.

       Cheguei adiantado ao ateliê dos artistas do sultão, que ficava atrás da mesquita de Hágia Sofia. A parte o gelo que pendia das cornijas, nada parecia mudado ali, onde, graças a meu Tio, eu havia sido admitido por um tempo para fazer meu aprendizado e, terminado este, guardara alguns contatos.

       Um belo e jovem aprendiz veio me abrir o caminho. Passamos pelos velhos mestres encadernadores, com o cérebro inebriado pelos eflúvios da goma de adraganto, por jovens mestres pintores de dorso prematuramente arqueado e pelos garotos que preparavam os pigmentos, sem nem sequer relancear para as tigelas presas entre as pernas, os olhos tristes fixados nas chamas da estufa. Vi num canto um velhote colorindo meticulosamente o ovo de avestruz que tinha no colo e, ao seu lado, outro, um pouco mais moço, pintando com bom humor a gaveta de uma cômoda — um jovem aprendiz observava respeitosamente os gestos dos dois. Por uma porta aberta, vi uns alunos que, por suas faces rubras, sem dúvida acabavam de receber um carão e que, com o nariz enterrado em sua folha de papel, procuravam compreender onde estava o erro que tinham cometido. Numa outra sala, um aprendiz melancólico, esquecendo-se momentaneamente das suas tintas, das suas folhas e da sua pintura, olhava distraído para a rua coberta de neve da qual eu acabava de chegar, cheio de ansiedade. Os outros, sentados diante da porta aberta, um copiando uma cena, outro preparando moldes de cartão e tintas, ou apontando lápis, olharam para aquele estranho — eu — com hostilidade.

       Subimos a escada gelada e seguimos pela galeria coberta que ladeava as quatro faces internas do prédio e para a qual davam as salas do segundo andar. Embaixo, no pátio nevado, dois jovens alunos, tiritando de frio apesar do espesso capote de lã rústica, aguardavam alguma coisa, sem dúvida que lhes aplicassem um corretivo. Lembro-me das varadas e das bastonadas na planta dos pés, até a pele romper, que os alunos negligentes ou os que desperdiçavam pigmentos caros levavam.

       Entramos numa sala aquecida, onde os pintores estavam tranqüilamente ajoelhados: eram jovens que acabavam de terminar o aprendizado. Agora que os grandes artistas — aqueles a quem Mestre Osman havia dado apelidos de ateliê — trabalhavam em casa, essa sala, que suscitara em mim arroubos de apaixonada veneração, já nem parecia ser o Grande Ateliê do nosso rico e poderoso soberano, mas uma espécie de refeitório de caravançará, perdido no silêncio das montanhas do Leste.

       Num canto, diante de um estrado, o Grande Mestre Osman, que eu não via fazia quinze anos, causou-me o efeito de um espectro surgido das trevas. Durante minhas viagens, sempre que eu pensava em pintura, o Grande Mestre Iluminador me vinha à mente, aureolado de prestígio, como se encarnasse o próprio Bihzad. E, naquele instante, à luz branca que, proveniente da janela que dava para Hágia Sofia, caía verticalmente sobre seus compridos trajes brancos, parecia de fato chegar diretamente do Outro Mundo. Beijei, prosternando-me, sua velha mão salpicada de manchas e me apresentei. Lembrei-lhe que meu Tio tinha me feito entrar aqui menino, mas que, como eu preferisse o cálamo aos pincéis, a vida tinha me levado a ser secretário de vários paxás nas cidades do Leste, cuidando dos seus registros e das suas contas; que, com uns calígrafos e pintores que encontrara em Tabriz, havia terminado por produzir livros, onde quer que eu me encontrasse, em Bagdá, Alepo, Van ou Tiflis — para Serhat Paxá, entre outros —, e que vira muitas batalhas.

       “Ah, Tiflis!”, exclamou então o Grande Mestre, observando a luz branca através do encerado que resguardava a janela do jardim coberto de neve. “Eu me pergunto se estará nevando por lá.”

       Ele se comportava como aqueles velhos mestres persas que abundam nas lendas e que, ao chegarem a certa idade, já cegos devido ao seu trabalho, passam o resto da vida meio santos, meio loucos. Mas eu podia discernir em seus olhos, vivos como djins, algo do ódio feroz que ele tinha por meu Tio e certa desconfiança em relação a mim. Comentei que, enquanto nos desertos da Arábia a neve também cobre as velhas lembranças, aqui ela só parece cair sobre a grande mesquita de Hágia Sofia. Contei também que, quando neva sobre a fortaleza de Tiflis, as lavadeiras cantam canções cheias de coloridos floreios e as crianças guardam o gelo debaixo dos cobertores para fazer sorvete no verão.

       “Conte o que desenham e o que pintam nos lugares onde você esteve”, pediu.

       Um jovem pintor sonhador, que traçava melancolicamente linhas à régua em seu canto, ergueu a cabeça da sua mesa e olhou para mim, com ar de quem espera ouvir o mais verdadeiro, o mais autêntico dos relatos maravilhosos. Muitos daqueles artesãos, eu estava convencido, ignoravam o nome do merceeiro do seu bairro, não sabiam que ele não se dava com seu vizinho, o verdureiro, não tinham a menor idéia do preço do pão, mas estavam perfeitamente a par das obras encomendadas em Tabriz, Kazvin, Shiraz ou Bagdá, do dinheiro gasto em determinado livro por determinado cã, xá, sultão ou príncipe; e, principalmente, dos mexericos da profissão, que se difundem com a velocidade da peste. Mesmo assim relatei o que ele me pedia, pois eu voltava justamente desse Oriente, daqueles confins do Irã em que há séculos se produzem esses desenhos e essas pinturas, em que se escrevem os melhores poemas e do qual cada dia que nasce traz a notícia dos novos exércitos em guerra, dos príncipes que se degolam uns aos outros, das cidades saqueadas e incendiadas, de novas batalhas e novos tratados.

       “Como o senhor sabe, o xá Tahmasp, após cinqüenta anos de reinado, esqueceu em seus derradeiros anos seu amor pelos livros e pela pintura, virou decididamente as costas para os poetas, pintores e calígrafos, e entregou-se inteiramente à devoção até morrer, o que levou ao trono seu filho, Ismail. O jovem xá, que o pai mantivera trancado por vinte anos por causa do seu temperamento instável e briguento, descontou sua raiva nos irmãos mais moços, mandando estrangular todos eles, não sem, às vezes, furar-lhes os olhos antes. Mas seus pérfidos inimigos conseguiram livrar-se dele, envenenando-o pouco a pouco com ópio, e instalaram no trono o irmão mais velho, Muhammad Khudabandah, que era débil mental. Sob o reinado deste último, todos os príncipes, seus meios-irmãos, os governadores das províncias e até os uzbeques se revoltaram e, voltando-se contra o nosso Serhat Paxá, moveram uma guerra impiedosa ao império, puseram o Irã a ferro e fogo, deixando atrás de si apenas ruínas fumegantes. O xá atual, sem dinheiro nem fortuna, fraco de espírito e quase cego, não tem a menor condição de mandar copiar ou pintar novos livros. Assim, os famosos pintores de Herat e Kazvin, os velhos mestres e os aprendizes que haviam produzido as obras-primas da biblioteca de Tahmasp e cujos pincéis punham nas páginas cavalos a todo galope e faziam as borboletas voarem para fora dos livros, os melhores desenhistas, coloristas, encadernadores e calígrafos se viram todos sem trabalho e sem apoio, sem recursos e sem dinheiro, sem teto e sem pátria. Exilaram-se todos, uns no Norte, na terra dos seibânidas, outros no Hindustão, outros aqui mesmo, em Istambul. Houve os que mudaram de profissão, sacrificando sua honra e sua razão de ser; houve os que aceitaram cometer, por conta de pequenos governadores e príncipes em perpétua guerra, volumes que cabem na palma da mão, com quatro ou cinco páginas de miniaturas no máximo. Esses livros baratos, copiados às pressas, mal ilustrados, correspondem ao gosto dos soldados rasos, dos paxás grosseiros e dos príncipes degenerados. Difundiram-se por toda a parte.”

       “E por quanto os vendem?”

       “Dizem que o grande Sadiki Bei ilustrou, para um cavaleiro uzbeque qualquer, um exemplar das Criaturas maravilhosas, por apenas quarenta moedas de ouro. Vi com meus próprios olhos em Erzurum, na tenda de um desses paxás desprovidos de qualquer vestígio de coragem, que voltava de uma campanha no Oriente, uma antologia galante, ricamente pintada e iluminada, parece, em certas páginas, da própria mão do tenebroso grande mestre Siyavush. Certos grandes mestres que ainda não renunciaram ao ofício vendem desenhos à unidade, sem relação com uma história ou um livro. Vendo esses desenhos avulsos, é impossível dizer de que cena se trata, de que história. Aprecia-se e paga-se o pintor pela beleza do tema, como eles dizem, por exemplo, por um cavalo, só pelo prazer de contemplar e dizer: ‘Que lindo, um cavalo perfeito!’. As imagens de guerra ou pornográficas são muito requisitadas. Com isso, uma grande cena de batalha não vale mais que trezentas moedas de prata, que, aliás, quase ninguém encomenda. Para baixar o preço e achar comprador, alguns chegam ao cúmulo de fazer num papel grosseiro, não preparado, desenhos sem cores, em preto-e-branco.”

       “Tínhamos um dourador dotado de um grande, um enorme talento, que transpirava alegria de viver”, comentou Mestre Osman. “Seu trabalho era tão elegante que nós o chamávamos de Elegante Efêndi. Mas ele nos abandonou. Faz seis dias que não o vemos. Sumiu sem deixar rastro.”

       “Mas quem iria querer sair deste ateliê, que é como um lar feliz em que o pai é o senhor?”, perguntei.

       “Quatro dos meus jovens mestres — Borboleta, Oliva, Cegonha e Elegante —, que estavam aqui desde o fim do aprendizado, exercem agora sua arte em casa, por instrução do Nosso Sultão”, respondeu Mestre Osman.

       Aparentemente, tratava-se de lhes dar condições para trabalhar com mais calma, enquanto todo o ateliê estava ocupado em preparar o célebre Livro das festividades. Mas desta vez o Sultão, em vez de reservar para uso deles um pavilhão no recinto do palácio, resolveu que trabalhariam em casa para a feitura de um livro muito especial. Pareceu-me imediatamente que devia se tratar da disposição tomada para o livro dirigido por meu Tio, mas eu não disse nada. E será que Mestre Osman não estava jogando verde para colher maduro?

       “Claro Efêndi”, chamou em tom de caçoada, dirigindo-se a um pintor curvado e pálido, “leve o Negro Efêndi para fazer a ‘inspeção’ do ateliê.”

       A Grande Inspeção era a visita em grande pompa às dependências do ateliê, que o Sultão fazia regularmente, a cada dois meses, na época saudosa em que acompanhava com atenção as atividades de seus miniaturistas. Acompanhado pelo Tesoureiro-Mor Hazim, pelo Cronista-Mor Lokman e pelo Grande Mestre Iluminador Osman, Nosso Sultão era informado sobre que artista trabalhava em que página, de que livro, em que douradura, pintava que cor, e conferia cada um dos trabalhos executados por cada um desses pintores, douradores e até pelo mais humilde traçador de linhas, por todas aquelas mãos dotadas de tão grandes talentos.

       Como o Venerável Cronista-Mor Lokman, que escrevera a maioria dos textos dos livros do ateliê, não saía mais de casa por causa da idade avançada, como o Grande Mestre Osman parecia a maior parte do tempo desaparecido numa nuvem de indignação e cólera, como Borboleta, Oliva, Cegonha e Elegante, os quatro grandes nomes do ateliê, agora trabalhavam em casa, e como o Sultão já não mostrava a paixão de antes por seu capricho, essa paródia de uma cerimônia que não se realizava mais me entristeceu. Meu acompanhante, Nuri Efêndi — isto é, o Claro Efêndi — havia envelhecido inutilmente, pois não alcançara a mestria de sua arte e tampouco tivera a oportunidade de viver. Mas não foi em vão que ficou corcunda, tanto que passou em revista para mim toda a história do ateliê, sem se descuidar dos elogios a uma imagem sequer ou a seu autor.

       Foi assim que pude por fim admirar as maravilhosas páginas do Livro das festividades, que reproduzem as festas da circuncisão dos príncipes imperiais. A algazarra das cerimônias, que haviam durado cinqüenta e dois dias e por cuja ocasião todos os ofícios e todas as corporações de Istambul tinham rivalizado em talento, havia chegado aos meus ouvidos até o Irã, e eu tivera notícia do livro em questão quando ele ainda estava sendo feito.

       Na primeira imagem que Nuri Efêndi me mostrou, Nosso Sultão, Protetor do Mundo, sentado no camarote real do palácio do falecido Ibrahim Paxá, acompanhava com um olhar satisfeito os festejos na praça de armas. Seu rosto, embora não pudesse ser distinguido dos outros por algum detalhe, era desenhado com o maior cuidado e a maior reverência. Do lado direito da imagem em página dupla que mostrava Nosso Sultão à esquerda, os vizires, os paxás, os embaixadores da Pérsia, da Tartária, da Europa e de Veneza apareciam nas janelas e galerias. Ao contrário do Nosso Sultão, os olhos dessas personagens tinham sido pintados apressadamente, sem maiores cuidados, seus olhares não fixavam nada, salvo a agitação geral do espetáculo. Notei depois, nas outras pinturas que me apresentou, que se repetiam o mesmo arranjo dos elementos e a mesma composição de página, mas as decorações murais, as árvores, os azulejos eram pintados com formas e cores diferentes. Assim, encadernadas em livro as folhas de texto e de imagens, à medida que o leitor desse Livro das festividades virava suas páginas, via cada vez um espetáculo variado, sempre diverso, da mesma praça de armas sob o olhar implacável do Sultão e da multidão de convidados.

       Também vi a confusão em torno das centenas de tigelas de arroz; o susto provocado pelas lebres e pela passarada que emergia de um boi assado inteiro; os representantes da corporação dos ferreiros passando diante do Sultão numa carroça de rodas enormes, batendo com precisão seus martelos numa bigorna posta em cima do peito de um deles, deitado, sem o machucar. Vi os vidraceiros fabricarem vidros ornados de cravos e ciprestes na sua carroça; os confeiteiros recitarem melosos gazéis, puxando camelos carregados de sacos de açúcar e exibindo periquitos de açúcar em suas gaiolas, que também eram para comer; velhos serralheiros deplorando a insegurança de hoje, que requeria todas aquelas novas portas e os fazia lucrar com todos aqueles ferrolhos, cadeados e postigos. O desenho que representava os saltimbancos havia recebido a tríplice contribuição de Borboleta, Cegonha e Oliva: um malabarista fazia os ovos passarem da ponta de uma vareta à outra só os deixando cair numa chapa de mármore, enquanto seu colega tocava um tamborim. O almirante da armada, Kilitch Ali Paxá, mandara os cativos da sua derradeira campanha erguer uma montanha de lama representando a Terra Infiel, erguida no mesmo carro em que iam eles, prisioneiros, e quando passavam diante do Sultão uma carga de pólvora explodia o país desses incréus, em meio aos seus gemidos, para mostrar como ele havia arrasado seus Estados a canhonaços. Vi ainda, vestindo seu traje de listas rosas e roxas, brandindo seus facões, os jovens açougueiros, sorridentes como mocinhas com seus rostos sem barba nem bigode, içando no gancho de uma comprida vara a carcaça rosada dos carneiros esfolados; e um leão que espicaçavam sem cessar era apresentado, devidamente acorrentado, ao Sultão, rugindo de furor, olhos injetados de sangue, e os espectadores aplaudiam quando a fera, simbolizando o islã, perseguia na outra página um porco de pele rosa e cinza, figurando os porcos cristãos. Depois de regalar meus olhos até a saciedade com a miniatura em que um barbeiro, pendurado no teto pelos pés, escanhoava um cliente, enquanto seu aprendiz, todo vestido de vermelho, traz numa mão a vasilha de prata cheia de sabão perfumado e oferece, com a outra, um espelho ao cliente, esperando sua gorjeta, quis saber quem era o autor daquela obra magnífica.

       “O que importa é que essa pintura, com sua beleza, presta homenagem a riqueza da vida dos homens, ao amor e às cores do mundo tal como Alá o criou, e exorta-nos à piedade e à reflexão. A identidade do miniaturista não importa.”

       Será que Nuri, o Miniaturista, que era muito mais sutil do que eu imaginara, dava mostras de tamanha prudência por ter desconfiado de que eu tinha sido enviado ali por meu Tio para bisbilhotar, ou simplesmente repetia as palavras do Grande Mestre Osman?

       “Essas douraduras todas são obra do Elegante Efêndi?”, perguntei. “Quem faz as douraduras em seu lugar agora?”

       De repente, vindos do pátio, gritos de dor de crianças chegaram até nós pela porta que dava para a galeria. Lá embaixo, um dos bedéis começava a administrar a bastonada na planta dos pés dos dois que havia algum tempo aguardavam tremendo no frio, certamente culpados de terem escondido uma folha de ouro num papel ou uma porção de pigmento grená no fundo do bolso. Os aprendizes de pintor, aproveitando essa excelente oportunidade para se divertir, foram correndo assistir ao espetáculo.

       “Quando os aprendizes acabarem de pintar a poeira do hipódromo com o rosa-carmim que nosso Mestre lhes prescreveu para esta imagem, nosso irmão Elegante, que Alá assim queira, já terá voltado para terminar de dourar estas páginas. Mestre Osman pediu ao Elegante Efêndi que a poeira fosse pintada cada vez de uma cor diferente: rosa-carmim, verde-indiano, amarelo-açafrão ou cocô de ganso. Porque o olho, ao ver a primeira imagem, compreende que se trata de um lugar, que o chão deve ser de certa cor; mas para aceitar demorar-se na segunda ou na terceira, ele reclama outras cores. As imagens são feitas para alegrar as páginas.”

       Num canto, estava abandonada uma página para um Livro de vitórias, em que se via a frota imperial aparelhando-se para a guerra. Seu autor, um dos aprendizes mais velhos, certamente havia saído correndo ao ouvir os gritos dos seus colegas para assistir às bastonadas. Aqueles navios, todos eles idênticos, copiados com ajuda de um molde de cartão, nem pareciam flutuar no mar, mas a feiúra dessa frota e das suas velas, em que não se sentia a força do vento, devia-se menos ao modelo do que à imperícia do jovem pintor. Pensei com tristeza que o modelo deve ter sido selvagemente rasgado, arrancado de um volume — sem dúvida uma seleta — cujo tema eu não conseguia identificar. Mestre Osman, visivelmente, não supervisionava mais grande coisa.

       Ao chegarmos à sua mesa de trabalho, Nuri Efêndi me disse com orgulho que ele acabava de terminar a douradura para uma assinatura do Nosso Sultão, na qual havia penado três semanas. Contemplei com respeito a douradura e a assinatura, feita numa folha em branco, para não desvendar o nome do destinatário nem o conteúdo do firmã. Aliás, eu sei que, no Leste, muitos paxás turbulentos, à simples vista dessa magnífica assinatura que transpira força e nobreza, esquecem todo grão de revolta.

       Admiramos as últimas obras-primas transcritas pelo calígrafo Djemal e, para não dar razão aos inimigos da pintura e da cor, que afirmam que a caligrafia é a arte fundamental e que a iluminura nada mais é que um pretexto para valorizá-la, passamos rapidamente por elas.

       O traçador de linhas Nasir estava devastando uma página, que pretendia restaurar, de uma seleta do Quinteto, de Nizami, datada da época timúrida, em que se via Khosrow surpreender Shirin banhando-se nua no braço de um rio.

       Um velho mestre de noventa e dois anos, já meio cego, que não tinha outra história a contar além da de ter beijado, sessenta anos atrás, a mão de Bihzad, o lendário mestre de Tabriz, que, dizia ele, já estava então cego e gagá, mostrou-nos com uma mão trêmula o estojo de caligrafia que ele ornamentava a fim de oferecer, dali a três meses, para a festa do Nosso Sultão.

       Um silêncio pesado se abateu sobre todo o ateliê onde trabalhavam, nas pequenas celas daquele andar, uns oitenta pintores, jovens aprendizes e alunos de todas as idades. Eu conhecia muito bem esse silêncio que se sucede às bastonadas, quebrado de longe em longe por uma risadinha ou um gracejo, ou por alguns soluços que me recordavam outros, pelos choros contidos, os gemidos dos novatos, de que os mestres também se lembravam. E diante desse velho mestre de noventa e dois anos, tive a sensação, furtiva mas profunda, de que aqui, longe dos tumultos e das batalhas, cada coisa chegava a seu fim; e de que após o fim do mundo reinaria o mesmo silêncio.

       A pintura é silêncio para o espírito e música para os olhos.

       Beijando a mão de Mestre Osman para me despedir, sentia na minha alma, além de um grande respeito, uma perturbação de outra ordem, essa espécie de piedade e entusiasmo misturados que a gente experimenta diante da santidade: um estranho sentimento de culpa. Sem dúvida porque meu Tio, ao defender mais ou menos abertamente o estilo dos pintores da Europa, era seu rival e lhe fazia sombra.

       Ao mesmo tempo, pensando que aquela talvez fosse a última vez que via o Grande Mestre Iluminador, mas também com a intenção de lhe ser agradável, decidi fazer uma derradeira pergunta a ele:

       “Venerado Grande Mestre, o que distingue um verdadeiro grande pintor?”

       Eu esperava que o mestre de pintura, acostumado com esse tipo de perguntas complacentes, me respondesse de uma maneira evasiva, se já não houvesse pura e simplesmente esquecido minha presença.

       “Não há um critério único capaz de distinguir o grande pintor de um pintor sem fé nem talento”, sentenciou com gravidade. “Isso muda com o tempo. Mas é importante conhecer a mestria e a moralidade com que ele faria oposição aos males que ameaçam nossa arte. Hoje, para saber se um jovem é um pintor de verdade, faço-lhe três perguntas.”

       “Quais?”

       “Primeiro, se ele acredita que deve ter um método próprio de pintura, um estilo pessoal, como é infelizmente a tendência atual, por influência dos chineses e dos europeus. Deseja ele ter, como ilustrador, uma maneira, uma característica que o diferencie dos outros e pretende prová-la apondo sua assinatura num canto, como os mestres ocidentais? Portanto, a primeira coisa que procuro esclarecer é essa questão de estilo e de assinatura.”

       “E depois?”, perguntei, com todo o respeito.

       “Depois, quero saber o que sente esse pintor em relação aos livros que mudam de mão e são desencadernados para nossas pinturas serem reutilizadas em outros livros, em outras épocas, depois da morte dos xás e sultões que os encomendaram. É uma questão sensível, a meu ver, à qual não se pode responder simplesmente mostrando-se alarmado ou complacente. E por isso que interrogo o pintor sobre o Tempo — o Tempo dos pintores e o Tempo de Alá. Está me entendendo, meu filho?”

       Não, eu não entendia, mas sem responder passei à terceira pergunta.

       “A terceira pergunta se refere à cegueira”, disse o Grande Mestre Iluminador Osman.

       Como ele se calou após essas palavras, que lhe pareciam demasiado óbvias para necessitar de um comentário, indaguei, embaraçado:

       “À cegueira? Como assim?”

       “À cegueira, isto é, ao silêncio. Se você juntar o que acabo de dizer, a primeira e a segunda perguntas, emergirá a cegueira. É o mais longe a que se pode chegar na pintura, é ver o que aparece na própria escuridão de Alá.”

       Saí sem dizer mais nada. Desci lentamente a escada coberta de gelo. Eu sabia que ia fazer a Borboleta, Oliva e Cegonha as três grandes perguntas do Mestre, não só para puxar conversa, mas para compreender melhor essas lendas vivas, que eram esses meus contemporâneos.

       Mas não tomei logo o caminho da casa dos três famosos artistas. Perto do bairro judeu, no novo bazar de onde se dominava a confluência do Chifre de Ouro e do Bósforo, dei com Ester, sempre em grandes conciliábulos, vestindo a indumentária cor-de-rosa que como judia era obrigada a usar, sua volumosa e ágil massa perdida no meio da multidão de criadas e mulheres dos bairros pobres, de cafetã gasto, com suas cestas de nabos e marmelos, cenouras e cebolas. Não sem antes me lançar, do seu jeito divertido, um sem-número de olhares furtivos sob o arco espesso das suas sobrancelhas, fez minha carta desaparecer com um movimento lépido nas profundezas de suas calças largas de vastos foles, toda misteriosa, como se o mercado inteiro tivesse os olhos cravados em nós. Acrescenta que Shekure pensa muito em mim, pega minha moeda e, apontando para a sua tralha, se queixa de estar carregada demais, por isso não teria tempo de entregar a carta antes do meio-dia. Eu lhe pedi para dizer a Shekure que eu ia visitar os três jovens e renomados mestres miniaturistas.

 

                   Chamam-me Borboleta

       Era antes do chamado para a prece do meio-dia. Alguém bate na porta. Vou ver quem é, abro: o Negro Efêndi! Na época em que eu ainda era aprendiz, ele passou um tempo conosco, no Grande Ateliê... Abraçamo-nos, beijamo-nos e eu me pergunto se ele não vinha da parte do seu Tio. Ele declara que veio ver meus trabalhos, apreciar meus desenhos, uma visita de amizade, enfim, e principalmente que tem uma pergunta a me fazer, da parte do Nosso Sultão, uma espécie de teste. Pois não, e qual é essa pergunta? Ele me disse. Muito bem, vamos lá!

 

                     ESTILO E ASSINATURA

       Enquanto se multiplicarem todos esses artistas imprestáveis, movidos muito mais pela glória e pelo lucro do que pelo amor à arte e à contemplação visual, não pararemos de ver esses horrores e essas grosserias que essa nova mania do “estilo” e da “assinatura” acarretam. Assim iniciei porque é com uma introdução desse tipo que se começa, e não por acreditar no que eu dizia. A verdade é que nem a maldita sede de ouro, nem o apetite de glória seriam capazes de corromper a arte autêntica e o talento real. A verdade, se fosse para dizê-la em voz alta, é que a fortuna e a fama são direitos inalienáveis dos grandes artistas como eu, e são elas que nos motivam. Mas se eu dissesse tal coisa abertamente, os miniaturistas medíocres, que se corroem de raiva e inveja, se encarniçariam sobre mim; então, para mostrar que amo meu trabalho mais do que eles, eu teria de pintar uma árvore num grão de arroz. Estou persuadido de que essa paixão pelo “estilo”, pelas “assinaturas” e pelo “caráter” chegou até nós vinda do Oriente, por obra de certos infelizes mestres chineses corrompidos pela influência dos europeus e de suas imagens, que lhes foram levadas do Ocidente pelos padres jesuítas. Permitam-me, portanto, contar-lhes uma série de três histórias sobre esse tema:

 

                   TRÊS CONTOS EXEMPLARES SOBRE O ESTILO E A ASSINATURA

       Era uma vez um jovem cã mongol apaixonado pela pintura e pelo desenho, que vivia em sua fortaleza nas montanhas ao norte de Herat. Entre as mulheres do seu harém, amava uma só, mas loucamente, e esta, uma jovem tártara, correspondia ao seu louco amor. Noite adentro, até de manhã, eles se entregavam a não mais poder a tão ardentes amores, se deleitavam com tamanha felicidade, viviam em tal êxtase que gostariam que aquela vida inimitável fosse eterna. E então eles descobriram que a melhor maneira de tornar esse desejo realidade era contemplar horas a fio, o dia inteiro, sem parar, as maravilhosas e perfeitas imagens do amor que eles encontravam nos livros dos mestres antigos. E, efetivamente, de tanto contemplarem sempre as mesmas ilustrações sem defeito das mesmas histórias de amor, eles sentiam sua felicidade igualar pouco a pouco à dos relatos dos felizes tempos da Idade de Ouro. Ora, no ateliê de miniaturas do príncipe, um pintor, mestre entre os mestres, encarregado de produzir e reproduzir sempre a perfeição das mesmas imagens das mesmas obras, cultivava os usos consagrados para pintar os tormentos de Frahad e Shirin, os olhares cheios de paixão e desejo trocados por Majnun e Leila, e o langor profuso nas piscadas carregadas de subentendidos e segredos íntimos que, no meio de um jardim belo como o do Paraíso, Shirin e Khosrow enviam um ao outro, tomando sempre como modelo dos amantes, qualquer que fosse o livro e a página a ilustrar, seu soberano e a bela tártara. O cã e sua companheira, persuadidos pela contemplação dessas páginas de que sua felicidade não teria mais fim, cobriam o pintor de ouro e elogios. Mas o excesso de mimos e de ouro acabou prevalecendo sobre a razão do artista. Esquecendo que a perfeição das suas obras era um atestado da sua dívida para com os modelos antigos, afastou-se destes, seduzido pelos prestígios do Diabo: teve a pretensão de crer que, se pusesse um pouco de si mesmo em suas miniaturas, elas agradariam mais. Essas inovações pessoais, as marcas que ele deixou do seu estilo só tiveram como efeito perturbar o cã e sua companheira, que as consideraram nada mais que imperfeições. Contemplando longamente as pinturas, o cã sentiu que sua antiga felicidade fora quebrada de muitas formas e passou a ter um ciúme cada vez maior de sua bela tártara, pintada agora com o toque pessoal do miniaturista. Para enciumá-la, ele se deitou com outra das suas concubinas. Sua amada ficou tão transtornada ao saber da traição, por meio dos cochichos que lhe chegaram ao ouvido, que foi silenciosamente se enforcar no cedro que havia no pátio do harém. Compreendendo seu erro e que ele se devera ao “estilo” do pintor, seduzido pelo Diabo, mandou imediatamente furar os olhos do miniaturista.

               Alif

 

       Era uma vez, num reino do Oriente, um velho padixá, amante das ilustrações, das iluminuras e das miniaturas, que vivia feliz com sua nova esposa chinesa, de uma beleza insuperável. Mas um dos seus filhos de um casamento anterior, um rapaz muito formoso, e essa belíssima e jovem esposa se apaixonaram. O filho, envergonhado da traição ao pai e temendo que ele descobrisse esse idílio proibido, trancou-se num ateliê e entregou-se à pintura. Como pintava sob o império desse violento tormento amoroso, suas obras eram tão magníficas que aqueles cujos olhos elas deslumbravam não conseguiam distingui-las das obras dos antigos mestres. O padixá estava orgulhoso do filho, mas sua jovem esposa chinesa, ao ver as imagens, dizia: “Sim, é lindo, mas os anos vão passar e, se ele não assinar sua obra, ninguém vai saber que é ele o autor dessas belezas”. O padixá repreendeu-a uma vez: “Se meu filho acrescentar sua assinatura, não estará injustamente atribuindo a si as técnicas e o estilo dos mestres antigos que ele imitou? Além do mais, se assinar, não estará dizendo: ‘Minha pintura traz a marca das minhas imperfeições?’”. A jovem esposa compreendeu que não conseguiria persuadir seu velho marido nessa questão da assinatura, mas convenceu o filho, recluso no ateliê Mortificado que estava por ser obrigado a ocultar seu amor, ele se rendeu por fim às considerações da sua bela e jovem madrasta, e à voz do Demônio. Escreveu seu nome num canto do quadro, entre o gramado e a parede onde, era o que imaginava, ninguém notaria. Essa primeira miniatura que ele assinou era uma cena de Khosrow e Shirin, vocês sabem qual: depois do casamento deles, Shiruye, filho de um casamento anterior de Khosrow, se apaixona pela bela Shirin e, certa noite, entrando no quarto do casal pela janela, crava seu punhal no fígado do pai, deitado ao lado de Shirin adormecida. Ao contemplar a obra do filho, o velho padixá se dá conta de que há alguma coisa estranha. E que ele viu a assinatura mas, como tantas vezes acontece, não registrou conscientemente esse detalhe; assim, limitou-se a pensar: “Há um defeito nesta miniatura”. E como aquela não era mais uma imagem que os mestres antigos poderiam ter pintado, o padixá viu-se presa de uma dúvida tremenda. O livro que ele contemplava não narrava mais uma história ou uma lenda, mas algo absolutamente inadmissível num livro: uma realidade. E, no momento em que compreende isso, o ancião tem uma visão horripilante: seu filho ilustrador acabava de entrar pela janela, como na miniatura que ele pintara, e, sem enfrentar os olhos arregalados do pai, finca-lhe, como na pintura, um enorme punhal no coração.

               Ba

 

       Em sua volumosa História, Rashiduddin de Kazvin, dois séculos e meio atrás, se felicita por poder escrever que, em sua cidade e em sua época, a iluminura, a caligrafia e a miniatura eram as artes mais estimadas e amadas. Mas acontece que o xá do Irã, que na época estava instalado justamente em Kazvin, era suserano de quarenta reinos, de Bizâncio à China (o segredo desse seu poderio residia, sem dúvida nenhuma, precisamente em seu amor à pintura), não tinha filho homem. Para evitar que esses reinos que ele havia subjugado se dispersassem à sua morte, decidiu arranjar para sua linda filha um marido que fosse um excelente pintor. Abriu pois um concurso entre os três pintores do seu ateliê, que eram, ao mesmo tempo, talentosos, jovens e solteiros. De acordo com Rashiduddin, a prova era simplíssima: ganhava quem produzisse a mais bela miniatura! Tal como nosso historiador, os três jovens pintores sabiam muito bem o que significava “pintar como os mestres antigos”, e todos os três representaram a cena mais célebre e apreciada: num jardim paradisíaco, em meio aos cedros e aos ciprestes, entre as andorinhas febris e as lebres assustadiças, uma bela jovem, olhos voltados para o chão, padece martírios de amor. Sem saber, os três pintores haviam reproduzido a mesma cena exatamente como os velhos mestres a tinham pintado; no entanto, um deles, querendo se distinguir e com isso atribuir a si todo o mérito pela beleza da sua obra, dissimulou sua assinatura num maciço de narcisos e gladíolos que ocupava um canto recuado do jardim. Essa insolência, tão contrária à tradição de humildade dos mestres antigos, valeu-lhe ser imediatamente desterrado para os cafundós da China, e um segundo concurso foi organizado para os dois pintores restantes. Dessa vez, os dois pintaram uma cena bela como um poema: uma linda jovem montada em seu corcel num jardim deslumbrante. Mas um dos dois pintores, não se sabe se foi um escorregão do pincel ou se foi intencional, pintou com uma forma bizarra as ventas do cavalo branco da bela — esta, é claro, tinha os olhos puxados e os pômulos salientes, como uma chinesa. Esse detalhe foi imediatamente percebido pelo xá e por sua filha como uma falta grave. Embora esse pintor não houvesse assinado seu nome, tinha aparentemente introduzido em sua esplêndida pintura uma sutil variação nas narinas do cavalo, que permitia distinguir sua obra. O xá declarou que o estilo é um rebento do erro e exilou esse pintor em Bizâncio. Segundo a prestigiosa História de Rashiduddin de Kazvin, há mais um detalhe interessante, que se deu durante os preparativos do casamento entre a princesa e o último pintor, aquele que havia pintado exatamente como os velhos mestres, sem assinatura nem variação: a filha do xá passou a véspera inteira das bodas escrutando penalizada a imagem pintada pelo miniaturista, que era jovem e bonito, e com quem ela devia se casar no dia seguinte. Ao cair a noite, foi ver seu pai e lhe disse: “E verdade que os mestres antigos sempre representam as moças bonitas como chinesas e que essa é uma regra absoluta, que nos vem do Oriente. Mas quando amavam alguém, os pintores sempre punham em algum lugar, nos olhos, nas sobrancelhas, nos lábios, nos cabelos, no sorriso e até nos cílios da bela que desenhavam algum traço da sua amada. Esse defeito oculto, acrescentado ao quadro, era um sinal de reconhecimento, um segredo compartilhado unicamente pelos amantes. Papai, examinei o dia inteiro essa imagem da bela moça a cavalo e não há nela o mais ínfimo sinal de mim! Esse pintor é com certeza um grande mestre e, além disso, um belo rapaz, mas não está apaixonado por mim”. Então o xá cancelou as bodas, e pai e filha viveram juntos o resto da vida.

               Djim

 

       “Portanto, de acordo com esse terceiro conto, o que se chama ‘estilo’ é fruto de uma imperfeição”, comentou o Negro num tom polido e respeitoso. “E o fato de o pintor estar apaixonado é revelado por um ‘sinal’, dissimulado no rosto, nos olhos ou no sorriso da bela?”

       “Claro que não”, respondi num tom seguro e como que ofendido em meu orgulho, “porque, afinal de contas, o que passa da amada, objeto do amor do miniaturista, à imagem que a representa não é de modo algum uma imperfeição ou uma falta grave, mas uma nova regra artística. Prova disso é que, com o tempo, ela se torna o modelo que todos os outros pintores farão questão de imitar.”

      Fez-se um silêncio, e compreendi que o Negro, que me ouvira com uma atenção ininterrupta ao longo das minhas três histórias, se distraíra com os rumores produzidos por minha esposa ao passar pelo corredor e, em seguida, entrar no cômodo contíguo. Olhei-o nos olhos.

       “O primeiro conto quer mostrar que o ‘estilo’ é um erro”, prossegui. “O segundo demonstra que uma pintura perfeita não necessita de assinatura, Finalmente, o terceiro conto casa as duas idéias, a do primeiro e a do segundo, demonstrando que assinatura e estilo exprimem apenas um ridículo e ingênuo orgulho pelo defeito da obra.”

       Mas o que podia entender de pintura esse ignorante a quem eu concedia a graça do meu ensino? Perguntei-lhe:

       “Você compreendeu, com base em meus contos, que pessoa eu sou?”

       “Plenamente”, respondeu ele, mas sem me convencer.

       Para que vocês não fiquem limitados nem ao olhar nem à percepção dele, para compreender quem sou eu, permitam-me dizer-lhes sem rodeios: sei fazer de tudo. Como os velhos mestres de Kazvin, desenho e sei colorir com prazer e alegria. E — sorrio ao dizer isso — sou melhor que todos. Quanto ao mais, não tenho absolutamente nada a ver com o que motiva a visita do Negro e que é, se minha intuição for correta, o desaparecimento do nosso iluminador, o Elegante Efêndi.

       Depois ele me interrogou sobre a compatibilidade entre o casamento e o exercício da minha arte.

       Para dizer a verdade, trabalho muito e amo meu trabalho. E acabo de me casar com a mais bela moça do bairro. A qualquer hora, quando não estou pintando, fazemos amor como loucos. Depois volto ao trabalho. Mas não foi o que disse a ele. “E uma pergunta séria”, respondi. “Se o pincel de um pintor gera obras-primas, ele fará, ao lado da sua mulher, um péssimo papel; inversamente, se é bem vigoroso e sabe encantar os sentidos de uma esposa graciosa, seu pincel e sua arte secam.” Claro, o Negro acreditou nessas belas palavras, assim como toda essa gente que, como ele, tem inveja dos pintores.

       Disse-me que gostaria de ver as últimas páginas que pintei. Instalei-o à minha mesa de trabalho, em meio aos potes, tinteiros, pedras-pomes, pincéis, cálamos e às tábuas para afiá-los, e ele começou por examinar a página dupla que eu estava terminando para o Livro das festividades. Sentei-me ao seu lado, na almofada vermelha em que minha bela mulher deixara pouco antes o calor das suas coxas carnudas e na qual, enquanto eu me empenhava em transmitir com o meu cálamo os tormentos dos prisioneiros diante do Nosso Sultão, ela se aferrava com destreza ao cálamo da minha masculinidade.

       O tema dessa miniatura era a graça concedida por Nosso Sultão aos presos por dívidas e às suas famílias. Como se eu estivesse presenciando uma cerimônia, coloquei o sultão no canto de um tapete coberto de sacos repletos de moedas de prata. Atrás dele, eu pus seu Tesoureiro-Mor, recapitulando em voz alta a lista das dívidas. Retratei os devedores condenados, presos uns aos outros pelo pescoço com correntes e argolas, com rostos dolorosos, compridos e crispados, às vezes com lágrimas nos olhos. Pintei em nuances de vermelho e rostos beatos os dois músicos que acompanhavam, ao alaúde e ao tambor, os jubilosos louvores entoados ao Sultão, depois que ele dispensou sua benevolente graça, poupando todos aqueles infelizes de uma prisão certa. Para bem enfatizar como essa graça libertava aqueles coitados da dor e das agruras da dívida, ocorreu-me a idéia — que não fazia parte do projeto inicial — de colocar ao lado do último condenado sua mulher, vestindo uma roupa roxa miserável, ao lado da filha de cabelos compridos, desventurada mas bonita, enrolada numa mantilha escarlate. Eu ia explicar àquele Negro que franzia o cenho, perplexo, para que ele entendesse de uma vez por todas que pintar é amar a vida, por que eu havia estendido em duas páginas a fila daqueles prisioneiros acorrentados; ia explicar-lhe a lógica interna do vermelho na imagem; e aqueles detalhes que minha mulher e eu comentamos às gargalhadas ao contemplá-la, como o fato — que nenhum pintor antigo atesta — de ter concedido ao cachorro, num canto da pintura, exatamente a mesma cor do manto de brocado do Sultão, mas ele me interrompeu com uma pergunta tola e inconveniente, se por acaso eu sabia onde podia estar o infeliz do Elegante Efêndi.

       “Infeliz” por quê? Abstive-me de dizer que aquele iluminador não passava de um desprezível plagiador, de um tolo que só pensava em dinheiro e que não tinha nem um pingo de inspiração. “Não, não sei”, respondi.

       Não teria me passado pela cabeça que os violentos e fanáticos seguidores do hodja de Erzurum podiam ter causado algum mal ao Elegante Efêndi?

       Abstive-me de observar que este último era justamente daquela mesma corriola. “Não”, foi tudo o que eu disse. “Por quê?”

       A recrudescência da miséria, das epidemias, a proliferação da imoralidade e da escumalha certamente não têm outra causa senão esses repugnantes novos costumes, em particular aqueles que vêm da Europa, que nos afastam do caminho traçado outrora, na época do nosso Glorioso Profeta. Isso é tudo o que o pregador de Erzurum se contenta em dizer. Mas seus inimigos acusam seus seguidores de atacar os conventos de dervixes em que se toca música e tentam fazer Nosso Sultão acreditar que eles profanam as sepulturas dos santos, sobre as quais esses conventos são construídos. Eles sabem que não compartilho da animosidade dessa gente em relação ao Eminente Hodja de Erzurum, tanto assim que, quando me perguntam “se não fui eu por acaso que cuidou do nosso irmão, o Elegante Efêndi”, o fazem de maneira indireta e educada.

       De repente, eu me dei conta de que esses rumores a meu respeito deviam circular fazia tempo entre meus colegas miniaturistas. Esse monte de fracassados, sem talento, sem inspiração, ria-se de mim às minhas costas, difundindo o boato de que eu não passava de um ignóbil assassino. Estive a ponto de atirar um tinteiro naquela sua cara nojenta de aristocrata, só para ensinar a esse Negro a não levar a sério as calúnias dessa corja de invejosos.

       Ele inspecionava meu ateliê e parecia registrar até o mais ínfimo detalhe. Observou cuidadosamente minha comprida tesoura de cortar papel, os grandes potes de barro para o pigmento amarelo, os potes de tinta, a maçã em que de quando em quando dou uma mordida, enquanto pinto; minha cafeteira, na beira da estufa, no fundo da sala, e as xícaras; e também as almofadas, a luz que se filtra pelo vão da janela, o espelho que serve para eu verificar uma simetria, minhas camisas; e notou como se fosse um pecado o cinto vermelho de minha mulher, largado no canto onde ela o havia deixado cair, quando saiu precipitadamente da sala ao ouvir o Negro bater na porta de entrada.

       Ocultei dele esses meus pensamentos, mas revelei ao seu olhar invasor e sem cerimônia as pinturas que vinha fazendo e o lugar em que vivo. Sei que corro o risco de chocá-los com a franquia do meu orgulho, mas eu sou o miniaturista que ganha mais dinheiro e, portanto, sou o melhor de todos! Sim, Alá certamente quis que a pintura fosse uma forma de êxtase, a fim de mostrar assim que o próprio mundo é êxtase para os que sabem olhar.

 

                   Chamam-me Cegonha

       Na hora da prece do meio-dia, batem na minha porta. Era o Negro. Fazia tempo que não nos víamos, desde a nossa infância. Beijamo-nos. Ele estava com frio, convidei-o a entrar sem lhe perguntar como tinha descoberto a minha casa. Devia ser seu Tio que o mandava, para se informar sobre o desaparecimento do Elegante Efêndi; em suma, para me interrogar. Mas não era nada disso. Ele também tinha um encargo de Mestre Osman. “Permita lhe fazer uma pergunta”, disse ele. “Mestre Osman sustenta que o que distingue um verdadeiro pintor dos outros é o ‘tempo’, o tempo da pintura.” O que eu pensava disso? Ouçam-me atentamente.

 

                   A PINTURA E O TEMPO

       Como todos sabem, muito tempo atrás os pintores do nosso reino islâmico, inclusive os pintores árabes, viam o mundo da mesma maneira que os infiéis da Europa hoje em dia e pintavam as coisas, conforme o caso, do ponto de vista de um mendigo, de um cachorro ou de um comerciante na sua loja. Sem conhecer as técnicas de perspectiva, de que os pintores da Europa tanto se gabam, o mundo deles era monótono e limitado, restringido à perspectiva simples do cachorro ou do comerciante. Mas então produziu-se um grande acontecimento, e todo o nosso mundo da pintura mudou. É por onde vou começar.

 

                   TRÊS HISTÓRIAS SOBRE A PINTURA E O TEMPO

       Há trezentos anos, num dia frio de fevereiro, quando Bagdá caiu nas mãos dos mongóis, que a saquearam sem dó nem piedade, Ibn Shakir era o mais ilustre e notável calígrafo, não só do mundo árabe mas de todo o mundo islâmico. Apesar de sua juventude, já havia transcrito vinte e dois volumes, a maioria deles Corães, que se encontravam nas célebres bibliotecas de Bagdá. Ibn Shakir acreditava que esses livros durariam até o fim do mundo e, por isso, vivia com uma profunda e infinita noção de tempo. Ele havia trabalhado heroicamente a noite toda, à luz trêmula de uma vela, no último desses livros lendários, que não chegaram até nós porque, no intervalo de alguns dias, foram todos eles rasgados um a um, picados em pedacinhos, queimados e atirados no Tigre pela soldadesca do mongol Hulagu Cã. Seguindo o exemplo dos calígrafos árabes, que acreditavam ingenuamente na imortalidade dos livros e da Tradição e que durante cinco séculos cultivaram o costume de, para prevenir a cegueira, descansar os olhos dando as costas para o sol nascente e olhando para oeste, o grande Ibn Shakir subiu ao minarete da Grande Mesquita no frescor do amanhecer e, do terraço em que o muezim chamava os fiéis para a prece, testemunhou o fim de quinhentos anos de tradição de escrita. Foi ele o primeiro a ver as tropas sanguinárias de Hulagu Cã entrando em Bagdá, mas ficou onde estava, no alto do minarete. Lá de cima, acompanhou os saques e as destruições, o massacre de centenas de milhares de pessoas, o assassinato do último califa abássida, após cinco séculos de poder, as mulheres estupradas, o incêndio das bibliotecas e os milhares de volumes jogados no Tigre. Dois dias depois, viu, entre o fedor dos cadáveres e os gritos dos agonizantes, a água do rio ficar vermelha com a tinta que escorria dos livros, dos seus livros, que ele mesmo copiara com sua formosa mão, e que não foram capazes de deter aquela horrível carnificina, toda aquela devastação. Jurou então nunca mais escrever. E não foi só: sentiu também a necessidade de exprimir sua dor ante aquele desastre por meio da pintura, que até então ele havia não apenas desprezado, mas considerado uma afronta a Alá. E, utilizando o papel que sempre levava consigo, pôs-se a desenhar o que via do alto do minarete. Devemos o feliz milagre do grande renascimento das artes ornamentais do islã, que se seguiu à invasão mongólica e que já dura sem interrupção trezentos anos, a esta particularidade que nos distingue dos idólatras e dos cristãos: a representação profundamente patética do mundo visto de cima, da perspectiva de Alá, até onde a vista pode alcançar. Se esse renascimento se deve à linha de horizonte vista naquele dia, também contribuiu para ele a viagem que, após o massacre que testemunhou, Ibn Shakir empreendeu rumo ao Norte — a direção de onde vieram os mongóis — , a fim de aprender as técnicas pictóricas dos mestres chineses. Assim, a noção de eternidade, que habitara o coração dos calígrafos árabes por quinhentos anos, devia se realizar, finalmente, não na escrita, mas na pintura. A prova disso está em que as miniaturas feitas nos livros e manuscritos para ilustrar as histórias, quando são arrancadas dos volumes e desaparecem, tornam a aparecer em novos livros, em novas histórias, sobrevivendo eternamente para mostrar o reino mundano de Alá.

               Alif

 

       Tempos atrás, mas não muito nem tão pouco, tudo não passava de uma repetição infinita do mesmo. Naquele tempo, se não houvesse a decrepitude da idade em cujo fim se vislumbrava a morte, à espera, os homens jamais teriam tido consciência do tempo. Pois bem, quando o mundo era repetidamente apresentado por meio das mesmas histórias e das mesmas imagens, como se o tempo não passasse, o pequeno exército de Fakhir Xá massacrou os soldados de Salahuddin Cã, conforme conta a Breve crônica de Salim de Samarcanda. O vitorioso Fakhir Xá, logo depois de capturar e matar sob a tortura seu inimigo Salahuddin, foi, como rezava o costume, visitar a biblioteca e o harém do cã derrotado para afirmar-se assim como o novo soberano. Na biblioteca, o experiente encadernador de Salahuddin já se dedicava a descosturar os livros do falecido xá e a reordenar as páginas, a fim de montar com elas novos volumes. Os calígrafos substituíram o epíteto “Salahuddin Sempre Vencedor” por “Vitorioso Fakhir Xá”, e os pintores puseram mãos à obra para substituir, em suas magníficas miniaturas, os sublimes retratos do falecido Salahuddin Cã, cujos traços já se apagavam da memória deles, pelo retrato de Fakhir Xá, bem mais moço que seu antecessor. Ao entrar no harém, o novo xá não precisou procurar muito para encontrar a mais bela das esposas. Mas, como é natural para um homem requintado, amante da pintura e dos belos livros, Fakhir Xá, em vez de apossar-se à força do corpo da bela, decidiu conquistar seu coração e entabulou uma conversa com ela. Assim, a sultana Nariman, a linda viúva de Salahuddin, apesar das copiosas lágrimas que derramava, pôde fazer um pedido a seu novo esposo: que numa página em que figurava a paixão de Majnun e Leila — estando esta última representada com seus traços — o rosto do seu falecido marido, no papel de Majnun, não fosse apagado. Desse modo, explicava ela, pelo menos numa página a imortalidade que o falecido havia procurado conquistar anos a fio com aqueles livros lhe seria concedida. O vencedor, generosamente, atendeu ao pedido, e os raspadores dos artistas pouparam aquele retrato. Assim, Nariman e Fakhir puderam fazer amor imediatamente, e pouco tempo depois, absorvidos em seu amor, já haviam esquecido os horrores do passado. Nem por isso Fakhir Xá deixava de se lembrar daquela imagem de Majnun-Leila. Não era por ciúme nem pelo fato de sua mulher figurar ao lado do ex-marido; não, o que o inquietava era o pensamento de que, por não estar ele próprio pintado com ela naquela obra-prima, corria o risco de não compartilhar com ela sua imortalidade. Passados cinco anos, devorado por essa preocupação após uma noite inteiramente consagrada, com Nariman, às repetidas alegrias da volúpia, pegou uma vela e, como um ladrão, foi à sua biblioteca. Abriu o romance de Majnun-Leila e, no lugar do retrato do primeiro marido da sua mulher, tratou de pintar a si mesmo como Majnun. Mas, como muitos cãs apaixonados pela pintura, era péssimo pintor e tinha grande dificuldade para desenhar seu próprio rosto. De manhã, o bibliotecário, suspeitando de algo errado, abriu o livro e viu no lugar do retrato de Salahuddin Cã outro rosto ao lado de Nariman como Leila, mas em vez de reconhecê-lo como o de Fakhir Xá, identificou-o como o do arquiinimigo deste, o belo e jovem Abdullah Xá. Esse escândalo comprometeu o moral do exército e encheu de audácia o ardente Abdullah, novo soberano do reino vizinho, que logo na primeira campanha derrotou, capturou e matou Fakhir Xá, estabeleceu sua soberania sobre os livros e o harém do inimigo derrotado e tornou-se o novo esposo da eternamente jovem e bela Nariman.

               Ba

 

       Em Istambul, o grande miniaturista Mehmet, o Alto, conhecido na Pérsia pelo nome de Muhammad de Khurasan, é citado em nossa profissão como exemplo de pintor cego e centenário. Todavia, sua lenda ilustra igualmente a tal questão do tempo e da pintura. Se considerarmos retrospectivamente o conjunto da sua carreira de cento e dez anos, iniciada como aprendiz aos nove anos de idade, a originalidade que salta aos olhos nesse pintor, que na verdade nunca ficou cego, é justamente sua falta de originalidade. E não digo isso como zombaria, mas como elogio. Mehmet, o Alto, como todos os outros, desenhava de acordo com os cânones clássicos, o que bastava para fazer dele o maior dos pintores. Sua humildade, sua devoção perfeita à arte da pintura, pois ele a considerava um sacerdócio, mantinham-no preservado das brigas que agitavam os ateliês em que trabalhou, assim como do desejo, previsível apesar de sua idade, de se tornar o Grande Mestre. Ao longo de toda a sua vida de artista, pintou sem cessar, durante cento e dez anos, todos os mais ínfimos detalhes: os raminhos de relva para encher as margens da página; milhares de folhas; nuvens sinuosas; crinas de cavalos, pintadas com rápidas pinceladas repetitivas; os azulejos das paredes; as intermináveis ornamentações das paredes; dezenas de milhares de lindos rostos de lua cheia, de olhos puxados e queixo delicado, que eram cada qual uma imitação do outro. Vivia satisfeito com sua sorte, sempre discreto e reservado, nunca pretendeu se distinguir e nunca se preocupou com questões de estilo ou individualidade. Para ele, cada ateliê de cã ou de príncipe em que trabalhou era, cada vez, sua casa, e ele próprio se considerava parte dos móveis e utensílios. Enquanto os cãs e os xás iam se estrangulando uns aos outros, seus miniaturistas iam de cidade em cidade, suas esposas, de harém em harém, sob a autoridade de novos amos, e o estilo do novo ateliê era sempre definido pelas rolhas que Mehmet, o Alto, desenhava, por cada detalhe dos seus rochedos, pelos contornos misteriosamente marcados por sua paciente docilidade. Quando ficou octogenário, as pessoas deixaram de considerá-lo um mortal e diziam que ele vivia nas lendas que desenhava. Foi certamente por isso que alguns lhe atribuíram uma existência fora do tempo, uma vida livre da morte, isenta de decrepitude. Uns diziam que, se ele não perdia a visão, embora sempre tenha vivido sem um lar seu, dormindo nas salas ou nas simples tendas em que funcionavam os ateliês de pintura, e tenha passado a maior parte do tempo com os olhos fixos nas páginas dos manuscritos, isso se devia ao prodígio de o tempo ter parado de fluir para ele. Outros afirmavam que ele era cego, sim, mas que, como desenhava de memória, não tinha mais a menor necessidade de ver para poder pintar. Esse artista extraordinário, que nunca na vida se casou nem fez amor, encontrou um belo dia, quando já estava com cento e dezenove anos, o modelo de rapaz — olhos amendoados, queixo pontudo, rosto de lua — que sempre desenhara, na pessoa de um mestiço de chinês e croata de dezesseis anos, aprendiz no ateliê de Tahmasp Xá em Tabriz. Como é normal, apaixonou-se por ele e, para seduzir o sublime efebo, fez como qualquer outro pintor e atirou-se de corpo e alma nas rixas, intrigas, manobras, mentiras. No começo, o grande mestre de Khurasan ficou como que revigorado pelo esforço para pôr-se em dia com as novas tendências, coisa de que se abstivera totalmente por mais de cem anos; mas esse cuidado, em contrapartida, divorciou-o da lendária eternidade dos velhos tempos. Um dia, no fim da tarde, quando estava abismado em sua contemplação da beleza do rapaz, o vento frio de Tabriz, entrando por uma janela aberta, resfriou-o. No dia seguinte, deu um espirro tão forte que ficou cego. Dois dias depois, caiu do alto dos degraus de uma grande escada de pedra e morreu na hora.

             Djim

 

       “Eu tinha ouvido falar de Mehmet, o Alto, de Khurasan, mas não conhecia essa lenda”, disse o Negro.

       Esse delicado comentário destinava-se a mostrar que ele entendera que a história havia terminado e que, agora, ele refletia. Fiquei calado por um bom tempo, para que ele pudesse observar meus gestos à vontade. De fato, desde o início do meu segundo relato, eu tinha pegado meus pincéis para não deixar minhas mãos ociosas por muito tempo e continuado a página do ponto em que a deixara quando o Negro apareceu. Meu bonito aprendiz Mahmud, que está sempre sentado nos meus joelhos para misturar minhas tintas, apontar meus cálamos e apagar meus erros, quando ocorrem, estava afastado, quieto, ouvindo e olhando. De dentro de casa, podia-se ouvir minha esposa cuidando dos seus afazeres.

       “Oh”, fez o Negro, “o Sultão se levantou!”

       Ele olhava surpreso para a minha página, e eu fazia como se aquilo não fosse nada, como se não houvesse motivo algum para se espantar. Bem, vou lhes contar de que se trata. Em todas as duzentas miniaturas do Livro das festividades para a circuncisão dos príncipes, para o qual este seu servidor colaborou, nosso Sublime Sultão sempre aparece sentado à janela da tribuna imperial erguida para essa ocasião, de onde assiste, durante os cinqüenta e dois dias que duram os festejos, ao desfile de comerciantes, artesãos, gente do povo, soldados, cativos. Só é visto de pé nessa única página, em que o pintei jogando de sua bolsa punhados de florins para a multidão que lota a praça. Quis exprimir com isso a surpresa e a excitação de toda aquela gente, que se esganava, trocava socos e pontapés para pegar no ar algumas moedas, e que rastejava no chão tentando catá-las, a bunda virada para o céu.

       “Se o amor é o tema de uma miniatura, esta tem de ser pintada com amor”, comecei a explicar. “Se o tema é a dor, essa dor deve se fazer sentir na pintura. Mas ela tem de emergir da harmonia interna da imagem, imperceptível à primeira vista e que pouco a pouco se torna sensível, e não dos personagens ou das suas lágrimas. Por isso, eu não pintei a surpresa como vem sendo feito há séculos por centenas de mestres miniaturistas — uma figura com a ponta do indicador enfiada na boca em círculo —, mas fiz que toda a imagem evocasse a surpresa, graças à idéia de convidar Nosso Soberano a pôr-se de pé.”

       Percebi que ele esquadrinhava com o olhar todos os meus móveis, todas as minhas coisas, meus instrumentos de pintura — toda a minha vida —, a tal ponto que eu chegava a ver minha casa por meio dos seus olhos.

       Sabem, é como essas imagens de palácios, hamans, fortalezas, que devemos às escolas de Shiraz e de Tabriz: nelas, o olhar do pintor é paralelo ao do Excelso Alá, que tudo compreende e tudo vê, e o pintor nelas representa — como se tivesse cortado no meio com uma imensa navalha mágica, a morada escolhida — todos os sutis detalhes interiores, invisíveis de fora, a louça de todos os tamanhos, os festões nas paredes, os periquitos em suas gaiolas, os cortinados, os recantos mais isolados e as almofadas em que se reclina a mais bela mulher, que jamais viu a luz do dia. O Negro era como um leitor curioso, cativado por minha bela imagem enquanto examinava meus pigmentos, meus papéis, meus livros, meu bonito aprendiz, as páginas do meu álbum sobre os costumes, destinado aos viajantes vindos da Europa, e minhas coletâneas heteróclitas — principalmente aquela que fiz em segredo, para um paxá, uma série de cenas de fornicação e outras imagens indecentes — e todos os meus recipientes para as tintas, de vidro, bronze e cerâmica, o marfim das minhas facas, o ouro dos cabos dos pincéis e, sim, o olhar absorto do meu jovem e formoso aprendiz.

       “Ao contrário dos antigos mestres, assisti a uma porção de batalhas”, disse para preencher o silêncio e lembrá-lo da minha presença. “As máquinas de cerco, os canhões, os exércitos, os cadáveres... Era eu que adornava os dosséis das tendas do Nosso Sultão e dos generais. De volta a Istambul após uma campanha militar, era eu que registrava em pintura todos os detalhes dos nossos combates, se não fosse assim os outros acabariam por esquecer: os corpos cortados ao meio, os embates furiosos, o terror nos olhos dos pobres infiéis, no alto das torres das cidadelas, quando íamos bombardeá-los, o exército deflagrando o ataque, os rebeldes decapitados, a carga da cavalaria derrubando tudo à sua passagem. Tudo fica gravado no fundo do meu espírito: um novo moedor de café, uma grade para janela de um formato que eu nunca vira antes, uma bombarda mais moderna, a inovação de um gatilho num mosquete europeu, os trajes dos convidados num casamento, o que comeram, quem botou sua mão onde e como...”

       “Qual é a moral das três histórias?”, perguntou o Negro para concluir, como se eu tivesse de lhe prestar contas.

       “Alif”, respondi, “a primeira história, a do minarete, demonstra que por mais talentoso que seja o artista, somente o tempo pode gerar uma imagem ‘perfeita’. Ba, a segunda, a do harém e da biblioteca, mostra que o único meio de se libertar do tempo é exercer seu talento pela pintura. Quanto à terceira história, explique você.”

       “Djim!”, disse o Negro. “A terceira história, sobre o pintor de cento e dezenove anos, une as precedentes, Alif e Ba, e revela como o tempo cessa para quem renuncia à vida e à pintura perfeitas, não deixando nada além da morte. Sim, é o que ela demonstra.”

 

                  Chamam-me Oliva

       Foi depois da prece do meio-dia. Eu estava prazerosamente rabiscando bonitos rostos de rapazes quando bateram na porta. Minha mão tremeu de surpresa. Larguei o cálamo. Pus de lado também a prancheta de desenho que estava no meu colo e, rápido como o vento, disse uma prece antes de abrir a porta: louvado seja Alá... O que vou lhes confiar, confio-lhes unicamente porque sei que vocês, que me ouvem falar dentro deste livro, estão mais próximos de Alá do que nós, imersos neste mundo infame e repugnante que nos rodeia, miseráveis escravos do Nosso Sultão. Nada poderíamos lhes ocultar. Akbar Cã, grão-mogol das Índias, o soberano mais opulento da terra, está confeccionando um livro fabuloso. Espalhou-se pelos quatro cantos do islã a notícia de que ele convocou todos os mais brilhantes pintores para trabalhar nele. Seus emissários em Istambul vieram ontem à minha casa, a fim de me convidar a partir para as Índias. Mas dessa vez não foram eles que encontrei diante da minha porta, e sim o Negro, meu colega de infância, de quem eu tinha me esquecido completamente. Na época, ele não era muito boa companhia, porque invejava nosso grupo. “Sim?”

       Ele vinha “conversar”, “como colega”, e ver minhas pinturas. Eu lhe disse que se sentisse em casa, que eu lhe mostraria tudo o que ele quisesse. Acrescentou que chegava de uma visita a Mestre Osman, cujas mãos foi beijar. O Grande Mestre lhe deu um bom tema para meditar: a qualidade de um pintor se revela em sua discussão sobre a cegueira e a memória. Portanto cabe-me falar disso.

 

                     CEGUEIRA E MEMÓRIA

       Antes da arte da iluminura, havia as trevas, e depois dela também haverá trevas. Com nossas cores, nosso talento, nossa paixão, celebramos o que Alá nos ordena ver. Conhecer é lembrar-se do que se viu. Ver é reconhecer o que se esqueceu. Pintar, portanto, é lembrar-se dessas trevas. Os grandes mestres, que compartilham a paixão pela pintura, compreenderam que a vista e as cores nascem das trevas, e aspiravam voltar às trevas de Alá através das cores. Os artistas sem memória não se lembram nem de Alá, nem das suas trevas. Já todos os grandes mestres buscam em sua obra, para além das cores, a escuridão profunda que fica fora do tempo. Se me permitem, vou explicitar o que quer dizer essa “memória das trevas” que encontramos nos ilustres pintores da escola de Herat.

 

                   TRÊS HISTÓRIAS SOBRE A MEMÓRIA E A CEGUEIRA

       Na elegante tradução turca, devida ao brilhante Lami, dos Doze perfumes da amizade, de Djami — obra na qual o grande poeta persa expõe a história dos santos —, está escrito que no ateliê de Djahan Xá, soberano da Horda do Carneiro Negro, o famoso Sheik Ali, de Tabriz, havia ilustrado um magnífico exemplar de Khosrow e Shirin. Pelo que me disseram, nesse lendário manuscrito, ao qual o grande mestre dedicou onze anos da sua existência, Sheik Ali dava mostra de tanto engenho e arte, pintara tão esplêndidas imagens que, entre os grandes nomes da pintura antiga, somente Bihzad teria podido igualá-lo. Djahan Xá compreendeu, antes mesmo de a maravilhosa obra ser concluída, que logo iria possuir um livro sublime, único no mundo. Mas Djahan Xá vivia num temor e numa inveja perene do jovem soberano da Horda do Carneiro Branco, Hassan, o Alto, a quem tinha como seu arquiinimigo. E logo pressentiu que, se seu prestígio aumentaria imensamente depois que esse livro fosse terminado, sempre poderia ser realizada uma versão superior para Hassan do Carneiro Branco. Sendo um desses homens invejosos que estragam a sua felicidade martirizando-se com a idéia de que outro também pode vir a ser feliz, o Carneiro Negro Djahan Xá deu de cismar que, se o seu prodigioso miniaturista fizesse uma cópia do livro, ou até uma versão melhor, esta seria necessariamente para seu arquiinimigo, o Carneiro Branco Hassan, o Alto. Assim, para evitar que qualquer outro, além dele, possuísse aquela obra magnífica, Djahan Xá mataria o mestre miniaturista Sheik Ali, assim que ele concluísse a obra. Mas uma bela circassiana pertencente a seu harém, ouvindo seu bom coração, observou que bastava sacrificar a visão do mestre. Djahan Xá acatou essa boa idéia, que revelou a seus acólitos, e o boato logo chegou aos ouvidos de Sheik Ali. Mas este nem sequer cogitou de fugir para Tabriz, deixando o livro incompleto, como teria feito qualquer pintor medíocre. Tampouco recorreu ao subterfúgio de trabalhar mais lentamente em sua obra ou de enfear sua pintura, para evitar que ficasse perfeita e, com isso, escapar de ter os olhos furados. Ao contrário, passou a trabalhar com maior ardor, fé e concentração. Agora, na casa em que vivia recluso, começava a trabalhar bem cedinho, logo depois da prece matinal, e continuava a pintar noite adentro, à luz de vela, os mesmos cavalos, os mesmos ciprestes, os mesmos amantes, dragões e belos príncipes, até jorrarem lágrimas amargas dos seus olhos avermelhados. A maior parte do tempo, ele ficava dias a fio olhando para a mesma imagem pintada por um dos antigos grandes mestres de Herat e fazendo numa folha posta ao lado uma cópia exata dela, sem olhar para o papel. Quando por fim terminou a obra destinada a Djahan Xá, o Carneiro Negro, o velho pintor, como previsto, depois de ter sido coberto de elogios e de moedas de ouro, teve os dois olhos furados com uma comprida agulha usada para prender as plumas no turbante. Sheik Ali ainda sofria enormemente, quando partiu de Herat para se pôr a serviço do Carneiro Branco, Hassan, o Alto. “Estou cego, é verdade”, disse a este, “mas guardo na memória todas as maravilhas daquele manuscrito que iluminei nestes últimos onze anos, lembro-me de cada traço de cálamo, de cada pincelada que dei, e minha mão é capaz de reproduzi-los todos de cor. Grande Xá, posso ilustrar para o senhor o mais belo livro de todos os tempos. Meus olhos não se distrairão mais com as imundícies deste mundo e poderei pintar de memória todas as glórias de Alá em sua mais pura forma.” Hassan, o Alto, acreditou no grande mestre miniaturista, que realizou de memória para o Carneiro Branco, conforme se comprometera, o mais belo livro já feito. Todos sabem que foi a força espiritual proporcionada por este novo livro que permitiu a Hassan, o Alto, vencer o Carneiro Negro e matar seu rival, Djahan Xá, após a grande derrota que lhe infligiu na localidade de Mil Lagos. Essa obra-prima, entre tantas outras que Sheik Ali havia produzido para a biblioteca de Djahan Xá, passou a fazer parte das coleções do tesouro otomano quando o sempre triunfador Hassan, o Alto, foi derrotado na Batalha dos Pastos, pelo sultão Mehmet Cã, o Conquistador, descanse em paz. Os que sabem ver, verão e saberão.

               Alif

 

       O Hóspede do Paraíso, sultão Suleyman Cã, o Magnífico, preferia os calígrafos aos pintores, e os infortunados pintores da sua época recorriam à história que vou contar para reafirmar a superioridade da sua arte sobre a da caligrafia. Mas, como quem nela prestar atenção perceberá, essa anedota na verdade diz respeito à memória e à cegueira. Depois da morte de Tamerlão, Senhor do Mundo, seus filhos e netos se desentenderam e passaram a se guerrear sem dó nem piedade. Quando um deles conseguia tomar de outro alguma cidade importante, seu primeiro cuidado era cunhar moeda com sua efígie e mandar dizer um sermão em seu nome na mesquita principal. A segunda medida do vencedor era desmantelar os livros que lhes haviam caído nas mãos e inscrever novas dedicatórias, que os proclamavam por sua vez “senhores do mundo”, depois novos cólofons, enquanto uma nova encadernação não vinha atestar ou, em todo caso, dar a crer a quem pudesse vê-los que o dono desses livros também possuía o mundo. Um deles, Abdullatif, filho de Ulug Bei, o timúrida, um dos netos de Tamerlão, apoderou-se de Herat e teve tanta urgência em mobilizar os batalhões de miniaturistas, encadernadores e calígrafos, tanto os apressou a produzir uma obra em homenagem a seu pai, grande conhecedor do assunto, que, ao arrancarem de cada volume as páginas escritas a fim de queimá-las, as miniaturas acabaram se embaralhando. Como era inconcebível que os livros oferecidos em homenagem a um amador tão apaixonado e versado como Ulug Bei reunissem ilustrações sem indicar a que relatos se referiam, seu filho convocou de novo todos os miniaturistas e mandou que contassem as histórias relativas àquelas miniaturas, para que se pudesse pô-las em ordem. Ora, da boca de cada um saiu uma história diferente, de modo que a desordem das ilustrações só aumentou. Foram então em busca do mais velho de todos os miniaturistas, de quem não se tinha mais notícia desde o dia em que, ao cabo de cinqüenta e quatro anos de bons e leais serviços prestados aos sucessivos xás e príncipes de Herat, ele perdera a vista. Grande foi a preocupação quando se soube que o velho pintor, o mestre que conferia todas aquelas pinturas, estava de fato completamente cego. Alguns ironizavam. O velho pintor pediu que trouxessem um garoto, de apenas sete anos, que fosse inteligente mas que não soubesse ler nem escrever. Encontraram um menino assim e levaram-no a ele. O ancião colocou-o diante de uma série de miniaturas e lhe pediu para descrever o que via. À medida que o menino descrevia as miniaturas, o velho pintor, erguendo para o céu os olhos cegos, pronunciava ouvindo-o: “Livro dos reis, de Firdusi: Alexandre embalando no colo o corpo de Dario; O roseiral, de Saadi: o mestre-escola apaixonado por seu belo aluno; Nizami, Tesouro dos segredos: o concurso dos médicos...”, e os outros miniaturistas, amargurados e despeitados por seu colega cego e mais velho, comentavam: “Isso nós também podíamos dizer: são as mais famosas cenas das mais conhecidas histórias”. Então o velho cego, sempre muito atento, submeteu ao garoto as ilustrações mais difíceis: “Firdusi, Livro dos reis: Hurmuz envenena um a um todos os calígrafos...”, diz, sempre como os olhos voltados para o céu, “... Antologia de contos de Rumi: história — não muito brilhante — do corno que encontra sua mulher em cima de uma pereira com seu rival. O desenho também não vale grande coisa”. E assim por diante, de sorte que, fiando-se nas descrições do garoto e reconhecendo cada desenho sem o ver, tornou possível a correta encadernação dos livros.

       Quando Ulug Bei entrou em Herat à frente do seu exército, perguntou ao velho miniaturista qual era o segredo que lhe permitia identificar as cenas sem ver, quando todos os outros pintores eram incapazes de fazê-lo vendo-as. Ao contrário do que se poderia crer, a resposta não decorre de minha cegueira ser acompanhada de uma memória mais apurada”, respondeu o velho pintor. “É que não esqueci que essas lendas são transmitidas não apenas por imagens mas também por palavras.” Ulug Bei respondeu que seus miniaturistas também conheciam aquelas palavras e aquelas histórias, mas nem assim puderam classificar as miniaturas. “E que”, disse o velho pintor, “apesar de entenderem tudo o que se pode entender de arte e pintura, eles não compreendem que os velhos mestres pintavam essas miniaturas a partir da memória do próprio Alá!” Ulug Bei perguntou então como uma criança podia saber disso. “A criança não sabe”, explicou o velho pintor. “Só um velho pintor cego como eu sabe que Alá criou o reino da Terra da maneira como um menino inteligente de sete anos gostaria de vê-lo. Não só isso, Alá criou este mundo de tal maneira que, principalmente, ele possa ser visto; depois, deu-nos a palavra, para que pudéssemos compartilhar e debater com os outros o que vemos. E nós fizemos as histórias acreditando, equivocadamente, que elas nasciam dessas palavras e que a pintura servia para ilustrá-las, quando, na verdade, pintar é buscar as lembranças de Alá com o fim de ver o mundo tal como Ele o vê.”

               Ba

 

       Mais de dois séculos atrás, os miniaturistas árabes tinham o temor ancestral e mais que legítimo, compartilhado por gerações e gerações de pintores, de não ficar cegos. Para tanto, olhavam para o horizonte ao raiar do dia, na direção do Ocidente. Ê sabido também que, um século mais tarde, os pintores de Shiraz comiam em jejum todas as manhãs, com esse mesmo fim, uma mistura de nozes moídas e pétalas de rosa. Na mesma época, os velhos miniaturistas de Isfahan, que imputavam à luz do sol a cegueira que os vitimava um depois do outro como se fosse a peste, trabalhavam quase sempre à luz de vela num canto escuro da sua cela, para que o sol não incidisse sobre a mesa de trabalho. Já na escola uzbeque, os artistas do grande ateliê de Bukhara lavavam os olhos com água benta. Mas de todas as interpretações da cegueira, a que se deve a Sayyid Mirak, o célebre mestre de Herat, que formou o grande Bihzad, distingue-se evidentemente como a mais pura. Para ele, a cegueira não era um mal, mas a graça suprema concedida por Alá ao pintor que dedicara a vida inteira a celebrá-Lo; porque pintar era a maneira de o miniaturista buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem igual só pode ser alcançada por meio da memória, depois que o véu da cegueira cair sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de trabalho duro. Assim, a maneira como Alá vê o seu mundo só se manifesta por meio da memória dos velhos pintores cegos. Quando por fim alcançar essa imagem, quando, com a sua memória, enxergar através das trevas da cegueira o mundo tal como Alá o vê, então o velho pintor, que passou a vida toda exercitando a mão, será capaz de passar essa maravilhosa revelação para a folha de papel. De acordo com o historiador Mirza Muhammed Haydar Dughlat, que compilou as biografias dos principais pintores de Herat, o Grande Mestre Sayyid Mirak tomava como exemplo, para ilustrar sua teoria, um pintor que queria pintar um cavalo. Mesmo o mais medíocre dos pintores, argumentava Sayyid Mirak, aquele com a cabeça tão vazia quanto esses pintores europeus de hoje em dia, que pintam cavalos olhando para cavalos verdadeiros, mesmo este é obrigado a pintar de memória. Prova disso é que é impossível olhar ao mesmo tempo para o cavalo e para a página em que o cavalo é desenhado. Primeiro o pintor olha para o cavalo e depois transfere para o papel os traços que guardou na memória. Ainda que entre uma coisa e outra tenha ocorrido apenas um breve piscar de olhos, o que ele representa no papel nunca é o cavalo tal como ele vê, mas a lembrança do cavalo que ele viu, de sorte que a pintura, mesmo no caso do pior artista, é sempre uma obra de memória. A conseqüência lógica dessa concepção, que considera a atividade dos pintores ao longo de toda a sua vida como uma preparação para a dupla felicidade que irá coroá-la, a felicidade da cegueira e a da memória cega, é que os mestres de Herat consideravam as miniaturas que produziam para os xás e os príncipes como exercícios destinados a “treinar a mão”, e se submetiam a esse interminável afã de pintar debruçados sobre o papel, dias a fio sem parar, à luz pálida de um candeeiro, como o bem-aventurado trabalho que levaria o miniaturista a alcançar a cegueira.

       Ao longo de toda a sua vida, o grande pintor Mirak buscou constantemente o momento mais propício para esse que era o mais glorioso dos desenlaces, e ora tentava apressar a cegueira, pintando minuciosamente numa unha, num grão de arroz ou até num fio de cabelo uma árvore inteira, com todas as suas folhas, ora procurava adiar prudentemente a chegada das trevas, pintando sorridentes jardins inundados de sol. Ele tinha setenta anos quando Hussein Bayqara, para recompensar esse grande artista, lhe deu acesso a seu tesouro, onde guardava ciosamente, trancada a sete chaves, uma coleção de milhares de miniaturas. Aí, no meio desse tesouro, que também continha armas, ourivesaria, sedas e veludos, mestre Mirak pôde admirar, à luz dos candelabros de ouro, as maravilhosas páginas daqueles livros lendários, devidas aos maiores nomes da Escola de Herat. Ao fim de três dias e três noites, ele havia perdido a visão. O Grande Mestre aceitou sua nova condição com sabedoria e resignação, como se tivesse recebido os anjos de Alá, e nunca mais pintou nem pronunciou uma só palavra. Mirza Muhammed Haydar Dughlat, em sua História segundo o Reto Caminho, explica o fato da seguinte maneira: o pintor que alcança o espaço e o tempo infinito de Alá não pode nunca mais voltar às paisagens pintadas nos livros para os simples mortais; e acrescenta que, onde o pintor cego alcança Alá com sua memória, reina um silêncio absoluto, uma feliz escuridão e o infinito de uma página vazia.

       Embora eu soubesse que essa questão de Mestre Osman sobre a cegueira e a memória era, antes de mais nada, um pretexto fácil para o Negro vir espionar meus aposentos, minha mobília e meus trabalhos, fiquei feliz por constatar que minhas histórias não o deixaram indiferente. “A cegueira é um mundo à parte”, concluí, “em que o Diabo e o Pecado não podem penetrar.”

               Djim

 

       Mas o Negro me fez uma observação: “Em Tabriz, ainda hoje, certos pintores da escola antiga, influenciados pela anedota relatada por Mirak, consideram a cegueira o apogeu das virtudes que Alá nos concede em sua graça e acham vergonhoso envelhecer sem ficar cego. Por isso, temendo que os outros considerem sua visão uma prova de falta de talento e de arte, fingem ser cegos. Essa convicção leva alguns deles a seguir o exemplo de Djamaluddin de Kazvin e passar semanas no escuro, em meio a espelhos, contemplando as páginas dos mestres antigos à luz tênue de uma lamparina, sem comer nem beber, a fim de aprender a olhar como cegos, apesar de não o serem”.

       Bateram na porta. Fui abrir e vi um belo aprendiz, com lindos olhos arregalados, que vinha do Grande Ateliê. Disse apenas que acabavam de encontrar no fundo de um poço escuro o cadáver de nosso irmão, Elegante Efêndi, e que a procissão fúnebre sairia naquela tarde da grande mesquita de Mihrimah. E saiu correndo para levar a notícia aos outros. Que Alá nos proteja!

 

                     Meu nome é Ester

       É o amor que torna a gente idiota ou só os cretinos se apaixonam? Eis aí um problema que minha longa prática de alcoviteira ainda não me permitiu resolver. Em todo caso, bem que gostaria de conhecer um casal — ou até uma pessoa apaixonada — que tenha se tornado mais inteligente, sensato e esperto do que era antes de se enfeitiçar. O que, em compensação, dou por certo é que não está verdadeiramente apaixonado quem não recorre às pequenas artimanhas, aos artifícios e ao embuste. No que concerne ao nosso querido Negro Efêndi, ele parece ter perdido inteiramente a compostura, em todo caso ele se abre sem a menor reserva, quando falamos de Shekure.

       No mercado, não me furtei a lhe dizer que ela só pensa nele, que me pergunta sobre o que ele disse das suas cartas, que nunca a vi assim, e tal, e tal. E ele então me pediu, dirigindo-me olhares de cortar o coração, para levar a carta que acabava de me entregar “o mais rápido possível”! Todos esses imbecis imaginam que o amor deles é uma urgência, que exige decisões rápidas; põem sua paixão em cima da mesa, de estalo, dando armas à crueldade do outro, o qual, se for esperto, saberá fazê-los mofar direitinho à espera da resposta. Moral: a pressa, num romance, retarda os frutos do amor.

       Se o apaixonado Negro Efêndi soubesse que não fui imediatamente levar sua carta “urgente”, deveria me agradecer. Como eu tinha quase morrido de frio esperando por ele na praça do mercado, depois que ele se foi resolvi fazer uma visitinha a uma das minhas filhas, que mora no caminho. Costumo chamar de “minhas filhas” aquelas para quem arranjei pessoalmente um marido, encarregando-me dos seus bilhetinhos. Essa é uma gorducha feiosa que se mostra tão agradecida a cada visita minha que, além de ficar se agitando em volta de mim como uma mariposa em volta da vela, nunca deixa de insinuar algumas moedinhas de prata na minha mão. Encontrei-a grávida e feliz da vida. O que me valeu um chazinho de tília, que estava uma delícia. Enquanto ela estava de costas, contei as moedas que o Negro me dera. Vinte moedas de prata.

       Continuando meu caminho, quis tomar um outro, mais curto, e segui por umas ruelas e travessas, mas ali o gelo é pior que a lama, mal dá para andar, o que me atrasou, juro. Ao chegar diante da porta, a minha habitual jovialidade veio à tona e entoei o meu pregão:

       “Roupeira, olhe a roupeira! Venham ver minha caxemira, meus xales de musselina, minhas echarpes dignas de um sultão! Cintos de cetim de Bursa, algodão do Egito com orla de seda para fazer lindas blusas! Lindas toalhas de tule bordadas à mão! Edredons, lenços de todas as cores!”

       A porta se abriu, entrei. A casa tinha como sempre um cheiro de cama, de sono, de gordura queimada, de umidade, um horrível miasma de solteirão passando da idade!

      “Por que você grita tanto, sua bruxa velha?”

       Estendi-lhe a carta sem dizer nada. Ele se aproximou como um fantasma, na penumbra, e arrancou-a da minha mão. Depois foi ao quarto ao lado buscar um lampião que está sempre aceso. Quanto a mim, fiquei plantada no vestíbulo.

       “O senhor seu pai não está?”

       Ele não respondeu. Estava demasiado entretido na leitura da carta. Dei-lhe tempo. Como ele estava de costas para o lampião, não dava para ler nada em seu rosto. Depois de lê-la uma vez, leu-a de novo do começo ao fim, e só então lhe perguntei:

       “E então, o que ele diz?”

       Hassan começou a ler.

       Cara Shekure Hanim,

Depois de passar tantos anos da minha vida pensando apenas em você, compreendo perfeitamente e respeito o fato de que você está à espera do seu marido e só tem pensamentos para ele. Como esperar aliás, de uma mulher da sua posição, outra coisa que decoro e honestidade? (Aqui, Hassan arrebenta de rir.) Mas, se visito seu pai, é por causa das miniaturas dele, e não para perturbá-la. Tal coisa nem me passaria pela cabeça. Longe de mim a intenção de tirar qualquer vantagem dos sinais que você não temeu dirigir-me. Quando a luz do seu rosto apareceu para mim à janela, considerei essa aparição uma graça concedida por Alá. Porque o prazer de ver seu rosto é tudo de que preciso. (“Esta foi roubada de Nizami!”, indignou-se Hassan em voz alta.) Mas você me pede para não me aproximar; diga-me então, acaso você é um anjo, para que seja tão terrível me aproximar de você? Ouça o que tenho a lhe contar: era num caravançará, ou melhor, num covil infame e lúgubre, que eu compartilhava com uns homens errantes como eu e até com uns bandidos cujas cabeças estavam postas a prêmio; eu tentava dormir contemplando a lua, cuja luz desmaiada filtrava através dos galhos das árvores desfolhadas, e ali, ao ouvir os lobos uivando — sem dúvida, as únicas criaturas mais solitárias e infelizes que eu —, tive o pressentimento de que um dia eu veria você aparecer subitamente para mim, como hoje à sua janela. Agora, quando meus passos me levam novamente, por causa daquele livro, à casa do seu pai, você me devolve a miniatura que fiz para você quando ainda era criança. Isso não poderia ser um sinal de que o nosso amor morreu. Ao contrário, isso significa, para mim, que voltei a encontrar você. Vi um dos seus filhos, Orhan. Pobre órfão! Serei um pai para ele!

       “Que Alá o proteja!”, exclamei. “Que bem escrito, um verdadeiro poeta!”

       “Acaso você é um anjo, para que seja tão terrível me aproximar de você?’ Mais um verso que ele foi surrupiar de alguém: Ibn Zirhani”, disse Hassan. “Quanto ao resto, sou capaz de escrever melhor.” Tirou do bolso a carta que tinha escrito, dizendo-me: “Leve para Shekure”.

       Pela primeira vez, senti certo mal-estar quando ele me deu o dinheiro junto com a carta. Senti uma espécie de repugnância em relação àquele homem e àquela sua louca obsessão por um amor não correspondido. Dessa vez, como para restabelecer o equilíbrio entre nós, Hassan me poupou seus salamaleques e dirigiu-se a mim com uma grosseria que fazia tempo não exibia.

       “Diga a ela que, se quisermos, podemos ir lá com um juiz e trazê-la de volta para casa.”

       “Quer mesmo que eu diga isso a ela?”

       Ele não respondeu logo. “Não, não diga.” A luz do lampião iluminou brutalmente seu rosto, e vi que baixava a cabeça como uma criança apanhada fazendo arte. E por isso que apesar dos pesares respeito sua paixão e transmito suas cartas — e ele acha que é pelos trocados que desembolsa.

       Já ia saindo da casa, mas ele me deteve na soleira da porta.

       “Vai dizer a Shekure quanto eu a amo?”, perguntou-me com um ar emocionado e bobo. E eu respondi:

       “Ora, não está escrito nas suas cartas?”

       “Diga-me, o que devo fazer para convencê-la, e ao pai dela também?”

       “É só se comportar como um bom moço”, falei, já me afastando.

       “Na minha idade, já é tarde...”, ainda deixou escapar, com um ar sinceramente triste.

       “Meu caro Hassan Efêndi, o senhor começa a ganhar muito dinheiro na alfândega... Isso faz qualquer um ser um bom moço”, disparei-lhe, saindo dali.

       Havia naquela casa algo de sombrio e opressivo, que achei quase quente o ar da rua. O sol batia em meus olhos e eu disse comigo mesma: “Quero muito que Shekure seja feliz. Mas também tenho certa estima por esse coitado, em sua casa escura, úmida e fria”. Um impulso me fez passar pelo Mercado de Especiarias da avenida das Tulipas. Achava que o aroma da canela, do açafrão e da pimenta-do-reino me daria novo ânimo. Enganava-me.

       Shekure pegou as cartas e quis logo saber do Negro. Respondi que ele se consumia cruelmente nas chamas da paixão. A resposta não pareceu desagradar-lhe.

       Depois mudei de assunto: “Todas as comadres só comentam um assunto, mesmo as que vivem enclausuradas, com suas tapeçarias, que são a única companhia delas: por que teriam matado o coitado do Elegante Efêndi?”.

       “Hayriye!”, Shekure gritou. “Trate de preparar uma halvah e leve a Kalbiye, a mulher do pobre Elegante Efêndi.”

       “Dizem que todos os seguidores do hodja de Erzurum são esperados no enterro”, falei. “E que a família teria dito que vai lavar sua morte no sangue!”

       Mas Shekure já havia mergulhado na carta do Negro. Examinei atentamente seu rosto e fiquei muito ressabiada ao ver que a moça era tão matreira que conseguia ocultar até o mais tênue reflexo dos seus sentimentos. Senti porém que meu silêncio, enquanto ela lia, lhe era agradável e que ela via nele uma forma de aprovar a atenção que ela prestava ao conteúdo daquela carta. Foi portanto só para lhe agradar (porque ela se dignou de me dirigir um sorriso, uma vez terminada a leitura) que resolvi perguntar:

       “O que ele diz?”

       “A mesma coisa que quando era criança... Ele me ama!”

       “E você, o que acha?”

       “Eu? Eu sou casada. E espero meu marido.”

       Ao contrário do que vocês devem imaginar, essa mentira, vinda com a confiança que ela depositava em mim para me encarregar do seu caso, não me irritou. Na verdade, até me tranqüilizou. Se todo mundo tivesse para comigo a mesma deferência de Shekure — e, tenho de reconhecer, de um grande número das moças de quem levo as cartas e a quem dou meus bons conselhos —, as coisas seriam muito menos complicadas e mais de uma teria arranjado melhor partido.

       “E a outra carta, o que diz?”

       “Não tenho vontade de ler a carta de Hassan agora. Ele sabe que o Negro voltou para Istambul?”

       “Hassan nem sabe que ele existe.”

       “Quer dizer que você conversa com Hassan?”, perguntou minha bela Shekure arregalando seus olhos negros.

       “É o que você me pede.”

       “Eu?”

       “Ele está sofrendo. Ele te ama muito. Mesmo se você se enrabichasse por outro, não se livraria dele. Aceitando receber as cartas de Hassan, você despertou novamente todas as esperanças dele. Cuidado com ele! Porque ele não só deseja levar você de volta para casa, como está pronto para confirmar a morte do irmão para poder se casar com você.” Para compensar a ameaça que parecia pesar nas palavras do pobre Hassan e para não me ver reduzida a relatá-las tais quais, sorri a Shekure.

       “E o outro, o que ele diz disso?”, perguntou, sem que ela mesma parecesse saber do que falava.

       “O pintor?”

       “Estou tão desorientada”, suspirou, sem dúvida assustada com seus próprios pensamentos. (Ela está totalmente perdida, disse eu com os meus botões.) “Meu pai está ficando velho. Quem vai proteger a mim e a meus filhos órfãos? Algo me diz que uma desgraça nos espreita e que o Diabo vai tentar nos fazer mal. Ester, diga alguma coisa que me deixe feliz.”

       “Não se preocupe, querida”, respondi, apesar de tremer como uma vara verde em meu foro interior. “Você é inteligente, bonita. Um dia estará na mesma cama de um homem bonito e forte, e nos braços dele esquecerá todas as suas desgraças e será feliz. Dá para ler em seus lindos olhos.”

       Eu me sentia tão cheia de amor por ela que meus olhos marejavam.

       “Sim, mas qual é o que me convém?”

       “Seu coração, sempre tão sábio, não diz qual?”

       “Mas se sou infeliz é justamente porque não consigo compreender o que meu coração tenta me dizer!”

       Durante o silêncio que se seguiu, pensei que Shekure, na verdade, não confiava em mim, que dissimulava habilmente sua desconfiança a fim de me fazer falar e, sobretudo, para que eu tivesse dó dela. Quando percebi que ela não iria escrever já as respostas para as cartas que eu trouxera, peguei minha trouxa e fui embora, despedindo-me com uma dessas fórmulas que gosto de dirigir às moças casadouras, inclusive às vesgas:

       “Abra seus belos olhos, querida, e não se preocupe que nada de errado vai lhe acontecer.”

 

                   Eu, Shekure

       Antes, quando recebia a visita de Ester, a vendedora ambulante, eu imaginava que ela me trazia a carta que um apaixonado, bonito, inteligente e bem criado como eu, digno de fazer bater o coração de uma jovem e, no entanto, honorabilíssima viúva, tinha finalmente resolvido me enviar; e ao ver chegar as cartas dos mesmos pretendentes de sempre, eu me sentia ainda mais firme em meu propósito de esperar pacientemente a volta do meu esposo. Mas agora, cada vez que Ester vai embora, sinto-me confusa e miserável.

       Fixei minha atenção nos ruídos à minha volta. Chegava-me da cozinha, com o cheiro de limão e cebola, o crepitar das abobrinhas que Hayriye acabava de pôr para fritar no azeite fervendo. No pátio, os gritos de Shevket e Orhan que lutavam espada e brincavam junto do pé de romã. Meu pai estava em silêncio no quarto. Abri a carta de Hassan para relê-la e constatei mais uma vez que não havia mesmo nada de interessante nela. Mas percebi que sentia um pouco mais de medo dele agora e congratulei-me por ter sabido resistir a todas as suas tentativas para se deitar comigo, na época em que morávamos sob o mesmo teto. Depois, peguei com delicadeza, como se fosse uma criaturinha frágil que corre o risco de se machucar, a carta do Negro e, lendo-a, fiquei abalada. Não precisei reler as duas cartas. O sol tinha aparecido entre as nuvens, e eu pensei: “Se tivesse ido uma noite para a cama com Hassan, ninguém teria sabido. Somente Alá. Ele se parece tanto com meu marido que teria sido a mesma coisa. E engraçado como às vezes me ocorrem essas idéias disparatadas”. O sol esquentava rápido, seu calor acariciava meu corpo: minha pele, meu pescoço e até o bico dos meus seios. Seus raios caíam direto sobre mim pela porta aberta, quando Orhan entrou no quarto.

       “Está lendo o quê, mamãe?”

       Bom, lembram-se que eu disse a vocês que não reli as cartas que Ester acabava de me trazer? Eu menti. Eram elas que eu relia. Desta vez estou dizendo a verdade: dobrei-as e enfiei-as dentro da minha blusa.

       “Venha sentar aqui no meu colo”, disse a Orhan. “Puxa, como você está pesado! Já é um garotão, que Alá o proteja”, disse-lhe cobrindo-o de beijos. “Como você está gelado, menino!”

       “E você, mamãe, está tão quentinha!”, ele replicou, apertando-se contra o meu peito.

       Abraçamo-nos bem forte. Ele gosta tanto de ficar sentado assim comigo, em silêncio! Eu sentia seu cheiro beijando-o no pescoço. Apertamo-nos mais ainda e ficamos um bom tempo abraçados, sem falar nada.

       “Estou sentindo cócegas”, disse ele por fim.

       “Vamos ver”, falei com um ar sério. “Se o sultão dos djins aparecesse e dissesse que satisfaria qualquer desejo seu, o que você ia querer mais que tudo neste mundo?”

       “Que Shevket não morasse com a gente.”

       “E o que mais você ia querer? Não gostaria de ter um papai?”

       “Não. Quando eu crescer, eu é que vou me casar com você.”

       A maior calamidade não é envelhecer e ficar feia, nem mesmo ficar sem marido nem recursos. É não ter ninguém que tenha ciúme da gente, pensei. Agora que Orhan tinha se aquecido, eu o fiz descer do meu colo. Preciso encontrar um marido que seja bom como eu e tenha o mesmo caráter difícil que eu, dizia comigo mesma indo ver meu pai em seu quarto.

       “Quando o senhor terminar seu livro, Nosso Sultão o recompensará”, disse a ele, “e o senhor voltará a Veneza.”

       “Não sei, não”, disse meu pai. “Esse assassinato me perturba. Nossos inimigos devem ser poderosos.”

       “E eu, do meu lado, sei que minha situação pessoal tornou-os mais audaciosos, causou mal-entendidos e esperanças infundadas.”

       “De que está falando?”

       “Acho que seria melhor eu me casar o mais cedo possível.”

       “O quê? E com quem?”, perguntou. “Além do mais você já é casada... Que idéia é essa? E quem te pediu em casamento? Ele pode ser o mais esperto e obstinado dos pretendentes”, disse meu pai com malícia, “mas duvido que caia facilmente nas minhas boas graças.” Depois ele resumiu com frieza a dificuldade da minha situação: “Antes de poder casar de novo, como você sabe, há vários problemas complicados a resolver”. Ao fim de um longo silêncio, acabou por me dizer: “Está querendo me deixar, filha querida?”.

       “Esta noite sonhei que meu marido tinha morrido”, disse, “mas não chorei, como teria feito outra esposa que tivesse o mesmo sonho.”

       “Interpretar os sonhos é uma ciência, como também é a interpretação de uma miniatura.”

       “O senhor acharia inconveniente eu lhe contar o meu sonho?”

       Houve uma pausa: sorrimos um ao outro, como duas pessoas que intuem, no mesmo instante, aonde a conversa vai levá-las.

       “A interpretação do seu sonho pode até me levar a crer na morte dele, mas seu sogro, seu cunhado e o juiz, que forçosamente os ouvirá, reclamarão outras provas.”

       “Já faz dois anos que voltei a morar nesta casa com meus filhos, e meu cunhado e meu sogro não vieram me buscar.”

       “É que eles estão em falta com você, e reconhecem isso”, retrucou meu pai. “Mas isso não quer dizer que estão dispostos a deixar você entrar com um pedido de divórcio.”

       “Se fôssemos das seitas malekita ou hanbalita, o juiz poderia pronunciar a separação, com pensão alimentícia, ao fim de quatro anos de ausência. Mas como somos hanafitas, com a graça de Alá, é impossível.”

       “Não venha me falar daquele juiz substituto de Uskudar, que parece que é xafiita. Não quero saber de falcatruas.”

       “Todas as mulheres de Istambul que perderam o marido na guerra vão vê-lo, com testemunhas, para poderem se divorciar. Como é xafiita, ele se contenta com lhes perguntar desde quando o marido desapareceu, se estão com problemas materiais, se há testemunhas, e pronto: pronuncia a separação de corpos na hora.”

       “Quem foi que meteu essa idéia na sua cabeça, minha filha? Quem fez você perder o juízo a esse ponto?”

       “Depois que eu obtiver meu divórcio, se houver de fato um homem capaz de me fazer perder o juízo, quem vai me dizer quem é ele, está claro, será o senhor, e eu jamais questionarei esta sua decisão.”

       Meu astuto pai, que sabe que sua filha é tão esperta quanto ele, semicerrou lentamente os olhos.

       Em geral, ele só deixa os olhos assim semicerrados em três circunstâncias: 1. quando precisa pensar depressa numa artimanha para se safar de um embaraço; 2. quando está à beira das lágrimas, de tão triste e desesperançado; 3. quando as duas se misturam um pouco e ele, tendo encontrado sua artimanha, dá a impressão de que está prestes a chorar de tristeza.

       “Você vai embora com seus filhos, deixando seu velho pai sozinho? Sabe, eu tinha medo de que me matassem por causa do nosso livro” — ele disse assim mesmo, nosso livro — “mas agora que você quer ir embora com seus filhos, a morte é bem-vinda.”

       “Meu paizinho querido, será que o senhor não entende que preciso me proteger o mais depressa possível do meu ignóbil cunhado, se necessário por um divórcio?”

       “Não quero que você me abandone. Seu marido pode voltar. E, se não voltar, você não necessita de outro lar. Minha casa te basta e você pode ficar nela.”

       “Meu único desejo é ficar morando aqui com o senhor.”

       “Mas, minha querida, você não acabou de me dizer que contava fundar um novo lar?”

       É sempre assim, quando a gente discute com um pai: ele sempre acaba nos fazendo admitir que estamos erradas.

       “E verdade, eu disse.”

       Depois, para ter alguma coisa a dizer e não chorar, resolvi jogar uma última cartada, tanto mais que, no fundo, eu me sentia no meu direito.

       “Quer dizer então que nunca mais vou poder me casar?”

       “Há no meu coração um lugar especial para um genro que não te levas-se para longe de mim. Quem é esse novo pretendente? Ele estaria disposto a viver aqui conosco?”

       Não respondi. Nenhum de nós dois se deixava iludir. Meu pai não teria respeitado um genro de têmpera tão fraca que aceitaria viver na casa do pai da esposa: ele o esmagaria pouco a pouco, sorrateiramente, logo o reduziria a nada, um nada a ponto de eu mesma não querer mais saber dele.

       “Você sabe perfeitamente que, na sua situação, você não pode se casar de novo sem a autorização do seu pai. Não quero que você se case e não tenho a menor intenção de te dar a minha autorização...”

       “Não é me casar que eu quero, mas me divorciar.”

       “... porque um homem que só tivesse olhos para os seus interesses poderia te fazer mal, até sem querer. Você sabe muito bem quanto eu te amo, minha filha querida! E depois precisamos terminar esse livro.”

       Mais uma vez eu me calei, temendo que, se continuasse a argumentar, incitada pelo Diabo que sabia da minha raiva, eu acabasse lhe dizendo na cara que eu sabia muito bem que ele levava Hayriye para a cama, à noite. Mas corno uma mulher como eu poderia dizer ao seu velho pai que sabe que ele dorme com a criada?

       “Quem quer se casar com você?”

       Olhei para o vazio, sem responder, mais por raiva do que por pudor, porém. O pior é que o fato de não poder responder só atiçava a minha raiva e eu acabava imaginando meu pai com Hayriye na cama, em posições grotescas e repugnantes. Quando minhas lágrimas estavam a ponto de cair, acabei dizendo, sem olhar para ele:

       “As abobrinhas estão no fogo. Vão se queimar.”

       Enfiei-me no quarto junto da escada, aquele que dá para o poço e cuja janela está sempre fechada. Procurei na escuridão, tateando, o colchão enrolado, estendi-o no chão e me deitei. Ah, como é bom, quando a gente é pequena e faz uma bobagem, jogar-se na cama e chorar até cair no sono! E quando choro assim no meu canto, dizendo-me que sou a única que me ama e que sou tão infeliz por estar sozinha, saber que vocês me ouvem gemer e soluçar me ajuda muito.

       Dei-me conta de que pouco depois Orhan viera se deitar ao meu lado. Ele pôs a cabeça entre meus seios e vi que suspirava, derramando copiosas lágrimas. Apertei-o forte contra mim. Ele disse:

       “Não chore, mamãe. Papai vai voltar da guerra.”

       “Como é que você sabe?”

       Ele se calou. Mas eu o amava tanto, apertei-o com tanta força contra o meu peito, que me esqueci de todas as minhas penas. Antes de dormir abraçada assim ao meu pequeno Orhan, de corpo tão frágil e magro, vou lhes confessar uma coisa: eu me arrependo de ter contado a vocês agora há pouco, por pura raiva, sobre papai e Hayriye. Não, não foi mentira, mas estou tão envergonhada, que lhes peço, por favor, esqueçam o que eu contei, façam como se eu não tivesse dito nada, como se não houvesse nada entre ela e ele.

 

                   Eu sou o vosso Tio

       É difícil ter uma filha, difícil mesmo. Ela chorava silenciosamente. Eu sentia que ela chorava, mas não desviei os olhos da página do volume que tinha nas mãos. Numa das páginas desse livro que eu me esforçava para ler, Das circunstâncias da ressurreição final, evocava-se como a alma, três dias depois da morte, recebe a autorização de Alá para visitar, no túmulo, o corpo em que vivia outrora. Ante o aspecto lamentável do seu corpo, fétido, putrefato, secretando seus humores, ela se aflige e se desespera: “Meu pobre corpo!”, exclama. “Oh, velhos despojos meus!” Logo me veio à mente o triste fim do Elegante Efêndi, e pensei em como sua alma deve ter se afligido quando veio visitá-lo e, em vez de encontrá-lo no seu túmulo, encontrou-o no fundo daquele poço.

       Assim que as lágrimas de Shekure se acalmaram, deixei de lado meu livro sobre a morte, vesti mais uma camisa de baixo, de lã, apertei meu grosso cinto de feltro em torno da cintura para aquecer bem meu abdome, enfiei as perneiras forradas de pele de lebre e, quando ia saindo de casa, dei com Shevket entrando.

       “Aonde vai, vovô?”

       “Entre. Vou a um enterro.”

       Andando pelas ruas desertas e nevadas, passei junto dos escombros das casas destruídas pelos últimos incêndios, com algumas das suas paredes ainda precariamente de pé. Segui pelos bairros vizinhos, com as suas lojinhas de quinquilharias, ferragens, selas, arreios, artefatos de couro, jóias, e andei mais um bocado até chegar às muralhas, apesar de ter cortado caminho por hortas e jardins, que minhas pernas fracas de velho atravessavam a passo miúdo, para evitar um tombo no chão congelado.

       Mas que idéia, essa de fazer a procissão fúnebre partir da mesquita de Mihrimah, perto da porta de Andrinopla! Na mesquita, abracei os irmãos do falecido, cuja cabeça grande lhes dá um ar constantemente furioso e inconformado. Nós, pintores e copistas, nos abraçamos e choramos. Enquanto a prece era recitada, a bruma caía suavemente, envolvendo, esmagando tudo com sua luz de chumbo, e meus olhos não desgrudavam um só instante do esquife posto sobre a pedra. Senti tamanha raiva contra o canalha que tinha feito aquilo que até mesmo as orações misericordiosas se embaralhavam na minha mente.

       Depois da prece, quando uns membros da corporação ergueram o caixão no ombro, fiquei junto dos outros pintores e calígrafos. Eu e Cegonha esquecemos nessa ocasião que, certa noite, quando ele ficou comigo até de manhã pintando à luz das velas e, sobretudo, tentando me convencer da vulgaridade do Elegante Efêndi no uso das cores — é verdade que, para “parecer rico”, ele punha azul em toda parte —, eu lhe dera razão, sobre a arte, se não sobre a pessoa, daquele iluminador. Depois trocamos um abraço, mais alguns soluços. Oliva, ao contrário, dirigiu-me um olhar amistoso e profundamente respeitoso ao mesmo tempo, que me causou tamanha satisfação — para não falar naquela sua maneira tão particular, também, de me abraçar (um homem que sabe dar um abraço só pode ser bom) — a ponto de eu dizer a mim mesmo que, de todos os pintores e calígrafos, quem mais sinceramente acreditava no meu livro era ele.

       Depois, na escadaria do átrio, encontrei-me lado a lado com o Grande Mestre Osman, e ficamos sem saber que palavras trocar entre nós. Foi um instante estranho e tenso, durante o qual os irmãos do falecido puseram-se a chorar ainda mais intensamente, um deles até chamou a atenção ao gritar alto demais: “Grande é Alá!”.

       “Qual vai ser o cemitério?”, perguntou Mestre Osman, sem se dirigir verdadeiramente a mim.

       Eu temia parecer hostil, se respondesse apenas: “Não sei”, e por isso perguntei, sem tampouco prestar muita atenção, à primeira pessoa ao nosso lado: “Qual vai ser o cemitério? O da Porta de Andrinopla?”.

       “O de Ayub Ansari.” Eu me virei para o Grande Mestre a fim de lhe transmitir a resposta que vinha de um jovem barbudo e mal-encarado, mas, evidentemente, ele a ouvira e me disse: “Já ouvi”, acrescentando tal olhar, que dei por entendido que ele não tinha a menor intenção de levar a conversa adiante.

       Não havia dúvida de que Mestre Osman digeria mal o fato de Nosso Sultão ter confiado a mim a tarefa de supervisionar a escrita, a ornamentação e a ilustração do manuscrito iluminado, em que ia figurar o retrato imperial, tarefa essa que, como eu já disse, supunha-se envolta em total sigilo. Por minha influência, nosso soberano manifesta agora verdadeiro entusiasmo pela maneira de pintar do Ocidente. Certa vez, chegou até a pedir a Mestre Osman que copiasse um retrato seu feito por um artista italiano. E Mestre Osman, que atendeu ao pedido com a mais extrema repugnância e qualificou como uma “tortura” a tarefa que lhe fora imposta, acredita ter sido eu o responsável por essa idéia. E não se engana.

       Parei no meio da escada por um instante e pus-me a olhar para o céu. Quando tive certeza de ter ficado bem para trás, continuei a descer devagarinho os degraus cobertos de gelo. Não havia descido dois, e a duras penas, quando senti me agarrarem firmemente pelo braço: o Negro.

       “Que frio! O senhor está bem agasalhado?”, perguntou-me.

       Eu já não tinha a menor dúvida de que era ele que estava fazendo minha filha perder o juízo. A segurança com que ele me pegara pelo braço era o melhor indício. Sua atitude, de certa maneira, significava: “Durante esses doze anos, trabalhei e virei homem”. Chegando ao fim da escada, disse-lhe que gostaria que ele me contasse mais tarde o que vira no Grande Ateliê.

       “Vamos, filho, passe na frente”, disse a ele, “vá juntar-se aos outros.”

       Ele se espantou, mas não deixou transparecer. A maneira grave e refletida com que soltou meu braço e afastou-se de mim até me agradou. Se eu lhe desse Shekure, será que viria morar conosco?

       Quando saímos da cidade pela porta de Andrinopla, pude ver, mais abaixo, meio perdidos na bruma, a multidão dos pintores, calígrafos e aprendizes que desciam a ladeira rapidamente, em direção ao Chifre de Ouro, levando o caixão nos ombros. Iam tão depressa que já tinham percorrido mais da metade do caminho lamacento que leva ao cemitério de Ayub pelo vale, todo branco de neve. No silêncio e na bruma, as chaminés da fábrica de velas da fundação beneficente Sultana-Mãe, à esquerda, fumegavam mansamente. Ao pé das muralhas, era grande a movimentação nos matadouros, que abasteciam os curtidores e os açougueiros gregos instalados no bairro. Emanava de lá um cheiro de abate e de carniça que se espalhava no vale até os ciprestes do cemitério e as cúpulas da mesquita, que mal dava para discernir na bruma. Mais alguns passos e pude ouvir os gritos das crianças do novo bairro judeu de Balat, que brincavam mais abaixo.

       Quando chegamos à esplanada diante do cemitério, Borboleta veio pousar ao meu lado. Sempre febril e agitado, foi direto ao assunto:

       “Oliva e Cegonha é que são os responsáveis por tudo”, disse. “Como todo mundo, eles sabiam muito bem que eu não me entendia com o Elegante, e tinham certeza de que todos sabiam disso. Éramos, por assim dizer, adversários na sucessão de Mestre Osman à frente do Grande Ateliê, o que desenvolveu entre nós certa inveja e sentimentos de franca hostilidade, até. Agora eles jogam com isso para me verem acusado do crime ou, pelo menos, para me afastar, quero dizer, para nos afastar do Tesoureiro-Mor e, com ele, do Nosso Sultão.”

       “Quem é esse ‘nós’ a que você se refere?”

       “Os que acreditam que a antiga tradição tem de perdurar no Grande Ateliê. Todos os que acreditam, como eu, que devemos seguir o caminho traçado pelos mestres persas e que não se pode desenhar qualquer coisa apenas por dinheiro. Nós declaramos em alto e bom som que, em vez de armas e de guerras, de prisioneiros vencidos e conquistadores vitoriosos, o que se deve pôr nos livros são as belas lendas antigas, a poesia, as fábulas; que os verdadeiros pintores não têm o direito de se afastar dos modelos, nem de se rebaixar a pintar, numa lojinha do bazar, coisas vergonhosas para um cliente qualquer que se disponha a lhes pagar quatro ou cinco moedas de prata. Sua Excelência Nosso Sultão nos dará razão.”

       “Você está pintando as coisas mais negras do que são”, disse-lhe eu, a fim de encurtar a conversa. “Estou convencido de que o Grande Ateliê não abriga nenhum indivíduo tão corrupto a ponto de se dedicar a esse tipo de torpeza. Vocês são todos irmãos! Dois ou três temas pintados sem o aval da tradição não justificam tanta animosidade.”

       Na mesma hora, como da primeira vez que a notícia do assassinato chegou aos meus ouvidos, tive a convicção de que o assassino do Elegante Efêndi era um dos principais mestres do ateliê imperial e de que ele se encontrava naquele instante diante dos meus olhos, entre a multidão que subia a ladeira do cemitério. Compreendi também, naquele momento, que aquele criminoso diabólico ia prosseguir sua obra de morte, que ele era hostil ao projeto do meu livro e que era bem provável que fizesse parte dos pintores que eu contratara para vir fazer as miniaturas na minha casa. Será que Borboleta também tinha se apaixonado por Shekure, como a maioria dos artistas que freqüentam a minha casa? Deixando-se empolgar com suas afirmações peremptórias, teria esquecido que eu também lhe havia encomendado obras totalmente contrárias aos seus princípios? Ou estaria apenas me alfinetando sutilmente?

       Não, disse a mim mesmo após uma breve hesitação, não se trata de alfinetada. Tanto quanto os outros três, Borboleta tinha para comigo uma irresgatável dívida de gratidão: com o dinheiro e os presentes do tesouro imperial mirrando, em conseqüência das guerras ou da indiferença do Nosso Sultão, a única fonte significativa de renda extra que eles possuíam era o trabalho para o meu livro. Eu sabia que a atenção que dava a cada um provocava muita ciumeira entre eles, daí a razão — embora não seja essa a única — de eu os receber em casa sempre separadamente. Não há, pois, motivo algum para me quererem mal. Todos esses pintores são pessoas suficientemente maduras para se comportar de maneira inteligente e admirar com sinceridade um homem a quem tanto devem em seu benefício próprio.

       Para quebrar o silêncio e evitar a volta àquela penosa conversa, falei: “De que prodígios Alá é capaz! Eles carregam o caixão na subida quase tão depressa quanto na descida!”.

       Borboleta respondeu com um sorriso enternecedor, que me descobriu todos os seus dentes: “É que estão com frio”.

       Seria ele capaz de matar alguém? perguntei-me. Por inveja, por exemplo? E de me matar, em seguida? O pretexto estava dado: sua vítima blasfemava contra a religião. Mas não, por que um grande artista como ele, com tanto talento, assassinaria alguém? Ser velho significa não apenas se esfalfar para subir uma ladeira, mas também, pelo menos assim deveria ser, já não ter tanto medo da morte — e ir para a cama com a criada menos por excitação do que por costume. Cedendo a um impulso da intuição, comuniquei-lhe em cima da bucha a decisão que eu acabara de tomar:

       “Não vou continuar o livro.”

       “Como?”, reagiu Borboleta, perplexo.

       “Há nesse projeto algo de sinistro. E além do mais Nosso Sultão não o financia mais. Diga isso a Oliva e a Cegonha.”

       Ele ia fazer outra pergunta, mas havíamos chegado de repente ao lugar em que ficava a cova, entre as outras pedras sepulcrais, em meio aos ciprestes e altos fetos. Da maneira como as primeiras fileiras se acotovelavam e pelas exclamações de piedade — bismillahi, ala milleti Resulullah — acompanhadas de soluços mais fortes do que antes, compreendi que já iam baixar o caixão.

       “Mostrem o rosto dele”, disse alguém, “mostrem bem!”

       Alguém puxou a parte de cima da mortalha, a fim de oferecer, à vista de todos, os olhos, ou melhor, o único olho que restava no rosto esmigalhado do cadáver. Eu estava longe demais para ver alguma coisa e, mesmo assim, não esperava estar à beira de um túmulo para olhar nos olhos da Morte.

       Uma lembrança: trinta anos antes, quando o avô do Nosso Sultão meteu na cabeça tomar de volta dos venezianos a ilha de Chipre, o Grão-Mufti de então promulgou com esse fim uma fatwa que, lembrando que outrora o bloqueio da ilha pelos sultões do Egito havia comprometido o fornecimento de trigo a Meca e Medina, declarava inaceitável deixar nas mãos dos infiéis um território que alimentava os Lugares Sagrados. Assim, minha primeira missão como embaixador consistira nessa tarefa — tão inesperada para os senadores venezianos quanto difícil para mim — de intimá-los a nos devolver a ilha. Foi assim que pude conhecer Veneza. Embora suas catedrais, suas pontes e seus palácios tivessem me maravilhado, o que mais me encantou foram as pinturas que ornam suas moradias. E, no meio de todo esse deslumbramento, confiando na hospitalidade que eles tinham sabido me dispensar, tive de entregar a carta ameaçadora, de uma arrogância incrível, que dava a conhecer as pretensões de Nosso Sultão em relação a Chipre. O efeito dela foi tão devastador que o Senado, imediatamente reunido, decretou que não cabia nem sequer debater uma missiva como aquela. O populacho furioso me imobilizou dentro do palácio do Doge, e os maltrapilhos, forçando a guarda, teriam me linchado, se dois guarda-costas do próprio doge não me tivessem retirado dali, através dos escuros corredores do palácio, por uma porta secreta que dava para o canal. Lá, no nevoeiro, que não é menos denso que o que daqui, cheguei a pensar por um instante que o gondoleiro alto e magro vestido de branco, que me pegou pelo braço para me levar à outra margem, era ninguém mais, ninguém menos que a Morte em pessoa e, durante a travessia, percebi meu reflexo em seus olhos.

       Cheio de saudade, sonhava terminar meu livro em segredo e voltar a Veneza. Aproximei-me do túmulo, que tinha sido cuidadosamente coberto com terra. Neste momento, os anjos já devem ter começado seu interrogatório, perguntando-lhe sobre seu sexo, sua religião e quem ele reconhece como seu profeta. E a possibilidade da minha morte veio-me à mente.

       Um corvo levantou vôo não longe de mim. Olhei para o Negro com ternura, no fundo dos olhos, e pedi-lhe para me dar o braço e me acompanhar de volta para casa. Disse ao Negro que o esperaria no dia seguinte, de manhã cedo, para começar a trabalhar no livro, porque, ao pensar na minha morte, compreendi que precisava terminá-lo a qualquer preço.

 

                   Serei chamado Assassino

       Quando começaram a jogar as pás de terra gelada sobre a pobre carcaça destroçada do Elegante Efêndi, chorei mais que todo mundo. “Quero morrer também, enterrem-me aqui, com ele!”, gritava desesperadamente, pronto a me deixar cair na cova, enquanto me seguravam pela cintura. Eu fingia me sufocar, e eles puxaram minha cabeça para trás, esfregaram minhas têmporas para me ajudar a respirar. Meus soluços e minhas lágrimas alcançaram proporções que corriam o risco de parecer exageradas, mas notei, a tempo de me controlar, os olhares espantados da parentela. Sem contar que já via antecipadamente todos os mexeriqueiros do ateliê concluírem, de todo esse meu pranto, que eu e o Elegante Efêndi tínhamos sido amantes.

       Assim, para não chamar mais a atenção sobre mim, preferi passar o resto do enterro dissimulado atrás do tronco de um plátano. Mas um parente mais estúpido que o estúpido que eu havia mandado para o Inferno veio ao meu encontro atrás do plátano e me encarou, com um ar que ele acreditava ser bastante expressivo. Levei um tempão para me livrar dele. O paspalho acabou me dizendo: “Você era Sábado ou Quarta-Feira?”. Respondi-lhe que Quarta-Feira era o outro nome de Elegante. Ele pareceu surpreso.

       A história desses apelidos de ateliê, que ainda nos ligam mutuamente como num pacto secreto, é bastante simples. Durante nossos anos de aprendizado, Osman, que acabara de ser promovido de mestre assistente a mestre miniaturista, era o mais respeitado, o mais admirado e o mais amado dos nossos mentores. Era um grande artista, que Alá abençoou com um notável talento artístico e o intelecto de um djim. Foi ele que nos ensinou tudo. Como é normal entre os discípulos e seu mestre, ele combinava que um de nós fosse buscá-lo em casa, depois o acompanhasse ao ateliê levando seu estojo, seu alforje e todos os seus papéis numa pasta. Tanta vontade tínhamos de estar perto do Mestre, que sempre discutíamos e brigávamos para determinar quem ia acompanhá-lo naquele dia.

       Mestre Osman tinha um favorito, mas se convocasse sempre este para acompanhá-lo, o ateliê seria inevitavelmente tomado por mexericos e chacotas sem fim, de modo que o Grande Mestre decidiu que cada um de nós o acompanharia num dia da semana. Ele trabalhava sexta-feira, mas sábado ficava em casa. Seu filho, a quem amava ternamente e que também era aprendiz conosco (alguns anos depois, abandonou a pintura e, ao traí-la, nos traiu), acompanhava-o toda segunda-feira. Havia também nosso irmão Quinta-Feira, o mais talentoso de nós, que era grande e magro e que morreu moço, de uma febre de origem desconhecida. O Elegante Efêndi, descanse em paz, ia às quartas-feiras, daí ser chamado de Quarta-Feira. Mais tarde Mestre Osman mudou novamente nossos nomes: Terça-Feira virou Oliva; Sexta-Feira, Cegonha; e Domingo, Borboleta. Havia nessa escolha tanto amor quanto sentido: o Elegante, por exemplo, era o mais requintado dos iluminadores. O Grande Mestre cumprimentava o falecido Elegante com um apropriado: “Bem-vindo, Quarta-Feira, como está hoje?”. E assim fazia com cada um de nós.

       Lembrando-me de como ele me chamava, sinto meus olhos se encherem de lágrimas. Mestre Osman nos admirava, seus olhos ficavam marejados quando ele contemplava a beleza do nosso trabalho; ele beijava nossas mãos e nossos braços, e nosso talento desabrochava com tanto amor. A despeito das bastonadas na planta dos pés, nós, aprendizes de Mestre Osman, nos sentíamos como numa espécie de Paraíso. A própria inveja, que projeta sua sombra sobre aqueles nossos anos felizes, tinha, na época, uma intensidade diferente.

       Agora, estou dividido, como esses personagens de que um pintor faz as mãos e o rosto, enquanto outro pintor se encarrega de desenhar e colorir o corpo e as roupas. Quem teme Alá, como é o meu caso, não se acostuma de um dia para o outro com sua nova condição de assassino, principalmente se ela não é premeditada. Para poder continuar a me comportar como se minha vida não houvesse mudado, criei uma segunda voz, em harmonia com essa nova personalidade. E com essa segunda voz, galhofeira e irônica, sem nenhuma relação com minha vida antiga, que me exprimo neste momento. De quando em quando, é claro, vocês também ouvirão minha voz familiar, de outrora, que teria continuado a ser minha única voz, não houvesse eu cometido esse crime. Mas quando eu falar com meu costumeiro apelido de ateliê, nunca vou admitir ser um assassino. Não adianta vocês tentarem associar essas duas vozes, porque não tenho um vezo característico ou uma mania que me traiam. A meu ver, um estilo nada mais é que um defeito que permite, em cada objeto, distinguir entre todos os outros quem o pintou, e não uma característica individual, como alguns arrogantemente proclamam.

       Reconheço que, na minha situação, há um problema. Pelo seguinte: eu posso perfeitamente falar com o apelido que me deu amorosamente Mestre Osman e que o Tio Efêndi também gosta de empregar, mas não gostaria nada que vocês descobrissem se sou Borboleta, Oliva ou Cegonha, porque, se descobrissem, aposto que não hesitariam em me entregar aos carrascos do Jardineiro-Mor.

       Por isso preciso tomar muito cuidado com o que penso e digo. Pois sei muito bem que, mesmo quando matutando comigo mesmo, vocês estão me ouvindo. Não posso me permitir falar livremente das minhas frustrações nem dos detalhes incriminadores da minha vida. Mesmo quando contei as três histórias — Alif, Ba e Djim —, tinha sempre presente o olhar de vocês.

       É verdade que em todas as minhas miniaturas os guerreiros, amantes, os príncipes e os heróis lendários, pintados por mim dezenas de milhares de vezes, o personagem está voltado em parte para o que figura na ilustração — por exemplo, os inimigos que estão combatendo, os dragões que estão matando ou as lindas mulheres pelas quais eles choram — e em parte também para o olhar esclarecido do amante dos belos livros que estiver observando a minha magnífica pintura. Se tenho um estilo próprio, ele não está escondido apenas na minha pintura, mas também no meu crime e em cada uma das minhas palavras! Estou curioso por saber quem, pela cor das minhas palavras, será capaz de me desmascarar.

       Sei também que, se um de vocês me pegar, isso fará repousar a pobre alma do infortunado Elegante Efêndi. Enquanto sob as árvores, entre os gorjeios dos passarinhos, contemplo encantado as cúpulas de Istambul, as águas cintilantes do Chifre de Ouro, dizendo-me mais uma vez que esta vida é decididamente bela, jogam sobre ele as últimas pás de terra. Patético Elegante Efêndi! Nos últimos tempos — principalmente desde que passou a se relacionar com o grupo do carrancudo pregador de Erzurum —, não me tinha mais em seu coração; mas nos vinte e cinco anos em que passamos lado a lado, ilustrando os manuscritos do Nosso Sultão, muitos momentos houve em que fomos bastante próximos. Ficamos amigos de fato vinte anos atrás, quando nós dois colaborávamos para o Livro dos reis encomendado pelo pai do Nosso Sultão atual; mas nunca estivemos tão próximos quando trabalhamos nas oito miniaturas para o Divã, de Fuzuli. Um dia, naquele verão, ao anoitecer, quando o vôo das andorinhas acima da nossa cabeça parecia um delírio, eu o ouvia — com uma paciência que somente o amor pode dar — declamar para mim os poemas que tínhamos de ilustrar. Daquela tarde, retive um verso: “Não sou mais que tu, tu és tudo o que era eu”. Sempre me perguntei como se poderia ilustrar esse verso.

       Quando soube que haviam encontrado seu cadáver, corri para sua casa. O jardim, como todos os jardins que a gente revê após muitos anos, pareceu-me menor do que na minha lembrança — havíamos passado ali, em outros tempos, horas e horas lendo poesia. Tudo estava coberto pela neve. A casa também parecia menor. Numa sala contígua, ouviam-se os gritos das mulheres, seus concursos de lamentações, enquanto na sala dos homens eu ouvia um grandalhão, irmão mais velho do defunto, explicar que tinham encontrado seu pobre irmão Elegante com o crânio esmagado, o rosto deformado c que, depois dos quatro dias passados no fundo daquele poço, o corpo estava irreconhecível, até mesmo para seus irmãos; que ele mandara chamar a esposa, a pobre Kalbyie, que, de noite, na penumbra, só foi capaz de identificar as roupas no corpo dilacerado do marido. Parecia-me ver um quadro: José, salvo do poço onde seus irmãos invejosos o haviam atirado, pelos mercadores de Madian. Gosto muito dessa cena de José e Zuleykha, que nos recorda que a inveja entre irmãos é o sentimento essencial que nos move.

       Fez-se um silêncio e senti os olhares pousarem em mim. Será que eu devia chorar? Mas meu olhar encontrou o do Negro. Esse pobre coitado vigia todo o mundo, como se tivesse sido enviado pelo seu Tio especialmente para pôr essa história em pratos limpos.

       “Quem pode ter cometido uma coisa dessas?”, pôs-se a gritar o irmão mais velho. “Quem é tão sem coração para trucidar desse modo meu irmãozinho, que era incapaz de fazer mal a uma mosca?”

       Deu suas lágrimas como resposta a essa grave pergunta e eu, com toda sinceridade, chorei com os outros, fingindo também me perguntar: quem era inimigo do Elegante Efêndi? Quem o teria matado, se eu não me tivesse encarregado de fazê-lo? Lembrei-me que, há alguns anos — trabalhávamos, creio, no Livro dos talentos —, ele estava o tempo todo atrás de confusão, não me lembro direito com quem, sob os mais diversos pretextos — transgressões, liberdades tomadas para com a tradição —, dizendo que, por falta de gosto no uso das cores, por douraduras apressadas e baratas, estávamos massacrando o trabalho e os esforços dos artistas como ele. Houve também aquela história de uma paixão, que dera muito o que falar na época, que ele teria nutrido por um belo aprendiz de encadernador do andar debaixo. Mas não havia nisso nenhum motivo para ter arranjado inimigos e, além do mais, já faz muito tempo. É verdade também que a delicadeza do Elegante Efêndi, quero dizer seu lado refinado, seus ares de grande dama, enervava muita gente. Porém, o que mais irritava mesmo era aquela sua maneira servil de venerar os clássicos, sua cisma com a combinação das cores das iluminuras e das ilustrações, sua mania de ir ver Mestre Osman para falar mal de todo o mundo — principalmente de mim — e apontar, num tom discretamente sentencioso, defeitos que não existiam. A última altercação girava em torno de um tema a que Mestre Osman é particularmente sensível: as encomendas furtivamente aceitas, fora do Palácio, por pintores normalmente vinculados ao Palácio. Dado o relativo desinteresse do Nosso Sultão e, por conseguinte, a redução das remunerações pelo Tesoureiro-Mor, nestes últimos anos todos os pintores tinham passado a freqüentar na calada da noite as mansões de certos paxás de gosto grosseiro, e os mais talentosos iam à casa do Tio, para não citar outros nomes.

       Não que eu tenha ficado com raiva do Tio por ter ele resolvido suspender, pretextando um pressentimento funesto, a confecção do seu livro, melhor dizendo, do nosso livro. Ele sem dúvida alguma desconfia que esse boboca do Elegante Efêndi foi eliminado justamente por um dos que participam da ilustração do seu livro; no lugar dele, vocês continuariam a receber o assassino cada quinze dias em sua casa para trabalharem noite adentro numas ilustrações? A intenção dele, tenho certeza, é dar em breve prosseguimento aos trabalhos, mas apenas com aquele que ele avaliar como o mais talentoso dos três, pelas cores e a douradura, as margens e o desenho, os rostos e a composição da página. Então, continuará a trabalhar somente comigo. Porque não posso imaginar que ele seja tão fútil a ponto de me tomar por um vulgar assassino, em vez do miniaturista verdadeiramente talentoso que sou.

       Não paro de observar com o canto do olho esse idiota do Negro Efêndi, que o Tio trouxe consigo. Quando os dois se apartaram da multidão que viera ao enterro e agora se dispersava, segui-os de longe. Desceram até o embarcadouro e entraram num quadrirreme; tomei, por minha vez, uma embarcação um pouco maior, de seis remos, junto com uns jovens aprendizes que riam entre si, já nem lembrando mais do falecido ou do seu enterro. Na altura da Porta do Farol, quando nossos barcos aproximaram-se tanto que quase íamos bordo contra bordo, vejo o Negro conversando com seu Tio em voz baixa. Digo a mim mesmo, mais uma vez, que decididamente não há nada mais fácil do que tirar a vida de alguém. Meu bom Alá, vós, que nos concedestes esse poder incrível, nos inspirastes também o medo de usá-lo!

       Mas, quando vencemos esse medo, quando passamos ao ato, que metamorfose! Antes, eu me aterrorizava não só com o Demônio, mas até com o menor indício de maldade que percebia dentro de mim. Agora, tenho a sensação de que esse mal pode ser suportado, mais ainda, que ele é indispensável para um artista. Descontado o leve tremor das mãos que me afetou por uns dias, desde que matei aquele miserável arremedo de homem passei a desenhar muito melhor, minhas cores são mais ousadas e mais vivas, e constato, acima de tudo, que minha imaginação dá à luz maravilhas. Mas quantas pessoas, em Istambul, são capazes de apreciá-las?

       Ao chegar no meio do Chifre de Ouro, na altura de Djibali, enquanto os últimos raios de sol que reapareceu furtivamente entre as nuvens fazem cintilar a neve que cobre as cúpulas, lanço sobre Istambul um longo olhar cheio de ressentimento. Quanto mais vasta e colorida uma cidade, digo a mim mesmo, mais ela acobertará o crime e a luxúria; quanto mais numeroso o povo, mais os pecados de um só serão confundidos na massa. O gênio das grandes cidades não se mede pelo número de bibliotecas, escolas, sábios, pintores e calígrafos que nela encontram abrigo, mas pela acumulação dos crimes não desvendados, cometidos século após século no escuro das vielas. Desse ponto de vista, Istambul é, com toda certeza, a cidade mais genial do mundo.

       O barco parou no cais de Unkapa, e desembarquei para seguir o Negro e seu Tio, que subiam a rua, apoiados um no outro. Segui-os até a parte recentemente incendiada, atrás da grande mesquita de Mehmet II; pararam ali um instante, depois cada qual foi para o seu lado. O Tio Efêndi ficou só e me pareceu de repente um indefeso velhote. Por um instante, senti ganas de correr até ele, contar-lhe que havia cometido aquele crime para proteger a nós todos, para evitar as ignóbeis calúnias daquele que acabávamos de enterrar. Gostaria de lhe perguntar: “É verdade o que dizia o Elegante Efêndi, que as miniaturas que o senhor nos manda fazer abusam da confiança do Sultão, traem as regras sagradas da nossa arte e atentam contra a religião? E a última miniatura foi concluída?”.

       Cai a noite. Estou parado no meio da rua coberta de neve e observo-a de cabo a rabo. Os pais já foram buscar os filhos na escola e voltam para casa, deixando a rua escura entregue à sua melancolia, aos djins, às fadas, aos bandidos e assaltantes, à tristeza das árvores nevadas, a mim. Lá no fim, sob o teto da casa do Tio Efêndi, imponente com seus dois andares, que entrevejo através dos galhos nus dos castanheiros, reside a mais linda mulher do mundo. Mas trato de não perder a cabeça por ela.

 

                         Eu, o Dinheiro

       Vejam! Sou um escudo otomano, de ouro de vinte e dois quilates, arvorando emblemas de Sua Gloriosa Majestade, Protetor do Mundo. Noite alta, aqui neste fino café, abalado pela tristeza do funeral desta manhã, Cegonha, um dos mestres pintores do Nosso Sultão, acaba de me desenhar, apesar de não ter a tinta dourada para me embelezar — mas deixo esse detalhe por conta da imaginação de vocês. Minha imagem está pendurada na parede, mas eu estou na bolsa do querido irmão de vocês, Cegonha, o ilustre miniaturista. Ele se levanta, me tira e me exibe, orgulhoso, a cada um dos aqui presentes. Olá, boa noite a todos! Os olhos de vocês se arregalam, refletem meu brilho. Vocês admiram essa luminosidade que a luz das lâmpadas me empresta e sentem crescer no seu íntimo a inveja do meu possuidor, Mestre Cegonha! E têm razão, pois que sou o árbitro, a medida do talento.

       Nestes três últimos meses, Mestre Cegonha amealhou exatamente quarenta e sete escudos de ouro, iguaizinhos a mim. Estamos todos aqui, nesta bolsa, e Mestre Cegonha, como vocês podem constatar, não esconde esse fato e sabe perfeitamente que nenhum dos seus colegas, aqui em Istambul, ganha tanto. Tenho muito orgulho de ser reconhecido como o juiz inconteste do talento dos artistas e de dirimir as desnecessárias desavenças que surgem entre vocês. Antigamente, antes que o consumo do café viesse iluminar-lhes as mentes, aqueles pintores obtusos passavam a noite discutindo acaloradamente quem era o mais talentoso, quem tinha o melhor senso das cores, quem desenhava melhor as árvores ou reproduzia com maior perícia os céus nublados; e muitas vezes chegavam às vias de fato, a ponto de voarem dentes arrancados a soco. Agora que entrei em circulação, mantenho a ordem e, sob o meu juízo, reina no ateliê uma doce paz, uma harmoniosa concórdia, numa atmosfera digna dos antigos mestres de Herat.

       Isso, para não falar de todos os outros bens que podem adquirir comigo, além dessa harmonia, desse ambiente ameno: o lindo pé de uma jovem escrava, pois que, para comprá-la inteira, é preciso contar com cinqüenta vezes mais; um espelho de barbeiro de boa feitura, com o fundo de nogueira e a moldura de marfim; uma cômoda pintada, ornada de rosáceas e ramagens de prata folhada, que só elas valem noventa moedas de prata; cento e vinte fôrmas grandes de pão; uma sepultura no cemitério para três pessoas, com os respectivos caixões; um bracelete de prata; um décimo de um cavalo; as coxas grossas e gordas de uma velha concubina; um bezerro de búfala; dois pratos chineses de boa qualidade; o salário mensal do pintor de Tabriz, Mehmet, o Dervixe, assim como da maioria dos estrangeiros requisitados, como ele, para servir ao Nosso Sultão; um bom falcão caçador com sua gaiola; dez garrafas do melhor vinho resinado; uma hora paradisíaca com Mahmut, por exemplo — um desses jovens, célebres em todo o mundo por sua beleza —; além de outras opções mais insólitas, é claro.

       Mas antes de chegar aqui, passei dez dias na meia suja de um miserável aprendiz de sapateiro. Todas as noites o coitado dormia enumerando, em sua cama, todo o sem-fim de coisas que compraria comigo. Esse seu verdadeiro poema épico, suave como uma canção de ninar, persuadiu-me de que não há lugar neste mundo em que uma moeda não possa ir parar.

       Dizendo isso, percebo que, se precisasse detalhar todas as minhas tribulações até o dia de hoje, haveria matéria para muitos volumes. Mas como não há estranhos entre nós, como somos todos amigos, se vocês me prometerem não contar nada a ninguém, vou lhes revelar, somente a vocês — e se Cegonha Efêndi não tiver nada contra —, um segredo. Prometem?

       Pois bem, confesso: não sou um autêntico escudo de ouro de vinte e dois quilates, estampado com a efígie do Nosso Sultão em sua fundição da Coluna Queimada. Sou falso. Sou de proveniência obscura, cunhado em Veneza com raspas de outras moedas e introduzido fraudulentamente aqui, como escudo otomano. Conto com a indulgência de vocês e desde já agradeço.

       Pelo que fiquei sabendo em Veneza, na oficina em que fui cunhado, esse tráfico de moedas falsas vem de longe. Até pouco tempo atrás, as moedas adulteradas que os infiéis punham em circulação no Oriente eram ducados de Veneza, cunhados no mesmo molde dos ducados autênticos. E nós, otomanos, que sempre demonstramos um respeito reverenciai por tudo o que está escrito, nem cogitamos de verificar a porcentagem de ouro contida nessas moedas — pois que a porcentagem que vinha gravada era sempre a mesma —, e esses falsos ducados inundaram Istambul. Mais tarde, quando descobriram que as moedas falsas, por terem menos ouro e mais cobre, são mais duras que as verdadeiras, começamos a verificá-las com os dentes. Por exemplo, louco de amor, você corre em busca dos favores do sublime Mahmud, o amante universal; a primeira coisa que ele vai pôr na boca vai ser a sua moeda — e não a outra coisa — e, cravando nela seus belos dentes, vai declarar que é falsa. E dirá que, por esse valor, vai levar você ao Paraíso por apenas meia hora, em vez de uma! Esses infiéis de Veneza, ao verem que suas moedas estavam assim desacreditadas, decidiram que o melhor a fazer era falsificar moedas otomanas, com o que iam novamente tapear os otomanos.

       Deixem-me chamar-lhes a atenção para uma coisa muito esquisita: quando esses infiéis venezianos pintam, é como se não estivessem fazendo uma pintura, mas na verdade produzindo o objeto que pintam! Já quando se trata de moeda, em vez de produzirem moeda verdadeira, produzem moeda falsa.

       Fomos despejados em arcas de ferro, depois embarcaram-nos e, jogados de um navio a outro, desembarcaram-nos em Istambul. Foi assim que me encontrei na boca de um cambista que fedia terrivelmente a alho. Ainda bem que não demorou a aparecer um camponês, um boboca que queria trocar a moeda de ouro verdadeira que ele possuía. O cambista, um escroque de primeira, disse que tinha de morder aquela moeda, para verificar se por acaso não era falsa, e meteu-a na boca.

      Quando nós dois nos encontramos nessa boca, cara a cara, se ouso dizer, vi que o outro era um verdadeiro escudo de ouro otomano, autêntico como o camponês, seu dono. Ele me vê naquele fedor de alho e me diz: “Você é falso!”. Era verdade, mas como aquele pretensioso só queria implicar gratuitamente comigo, menti respondendo-lhe: “De jeito nenhum, o falso aqui é você!”.

       Enquanto isso, o camponês esbravejava: “Falsa, minha moeda? Eu a escondi num buraco, na minha terra, vinte anos atrás! E lá havia dessas trapaças, vinte anos atrás?”.

       O que iria acontecer? Mas eis que meu cambista me tira da boca, no lugar do escudo daquele labrego, e diz: “Tome sua moeda de volta! Não aceito essas moedas falsas que os infiéis de Veneza querem que passemos adiante!”. E para zombar ainda mais do coitado, acrescenta: “Você não tem vergonha na cara?”. O outro responde alguma coisa cheia de ressentimento e vai-se embora comigo. Mas, ao ver que os demais cambistas davam o mesmo veredicto, acabou, em desespero de causa, me cedendo por apenas noventa moedas de prata. Era o começo de sete anos de vagabundagem.

       Permitam-me dizer que posso me gabar de, moeda sabida que sou — pois valho duas —, ter circulado a maior parte do tempo em Istambul, passando de bolso em bolso e de bolsa em bolsa. Meu maior pesadelo era o de dormir por lustros e mais lustros numa enxovia, gelar numa talha, debaixo de uma pedra de jardim — não é que não tenha passado por isso, mas foi sempre por pouco tempo. A maioria das pessoas, assim que percebia que eu não era autêntica, tratava de me passar logo pra frente. Mas nunca encontrei ninguém que avisasse a um receptor ingênuo que sou falsa. Se um cambista é bobo o bastante para pagar por mim cento e vinte moedas de prata, é a si mesmo que ele culpa, arranca os próprios cabelos por ter se deixado enganar desse jeito, e só uma idéia lhe ocupa a cabeça: tapear outro. Mas a raiva e a pressa farão que suas tentativas de passar a perna em outro fracassem um sem-número de vezes, e cada vez ele xinga furioso o “indecente” que o tapeou.

       Assim, nos últimos sete anos, mudei de mãos quinhentas e sessenta vezes, e não há casa, loja, mercado, bazar, mesquita, igreja ou sinagoga nesta cidade em que eu não tenha estado. Em todo esse trajeto, vi e ouvi a meu respeito mexericos e histórias muito mais graves do que eu imaginava. O tempo todo esfregam-me na cara que eu passei a ser a única coisa de valor, que não tenho piedade, que sou cega a tudo o que não sou eu, o Dinheiro, que só gosto de mim, que o mundo de hoje repousa unicamente em mim e que, comigo, pode-se agora comprar e vender tudo, apesar de eu ser vil, vulgar e repugnante. Os que descobrem que sou falsa ficam furiosos e me amaldiçoam a não mais poder. Sem dúvida, devo me consolar com o fato de que meu valor simbólico não pára de subir, enquanto meu valor real despenca sem cessar.

       Porque, a despeito das calúnias gratuitas, de todas essas farpas dolorosas, vejo que a maioria das pessoas olha para mim com uma afeição profunda e sincera. Nesses tempos de maldade, creio que todas nós deveríamos nos regozijar com esse afeto sincero e até apaixonado.

       Passei, pois, por todas as mãos, de judeus e árabes, de mingrelianos e abkhazes, conheci cada ruela, cada bairro, cada polegada de Istambul, antes de sair da cidade na bagagem de um hodja, que vinha de Andrinopla e ia para Manisa. Na estrada, é atacado por salteadores. Um deles grita: “A bolsa ou a vida?”. Apavorado, o pobre hodja me esconde onde imagina que eu estaria mais segura: dentro do cu! Esse lugar fedia mais que a boca do apreciador de alho, além de ser nitidamente menos sossegado, porque a situação azedou quando, em vez de “a bolsa ou a vida?”, os bandoleiros passaram a dizer: “a honra ou a vida?”. Puseram-se em fila e entraram em meu esconderijo, um depois do outro. Prefiro não contar os ultrajes que sofri, metida naquele buraco apertado. E por isso que detesto sair de Istambul.

       Porque, em Istambul, sempre fui muito bem tratada: as moças casadouras me cobrem de beijos, como se eu fosse o partido com que sonham, guardam-me na seda dos seus porta-moedas, sob seus travesseiros, entre seus seios volumosos e até na roupa de baixo. Elas me apalpam, dormindo, para se certificar da minha presença. Já me esconderam perto da estufa de um hamam, numa bota, no fundo de um frasco, na cheirosa loja de um perfumista ou na bolsinha secreta que um cozinheiro costurou no fundo do seu saco de lentilhas. Percorri toda Istambul escondida em cintos de couro de camelo, em forros de jaqueta feitos de tecido xadrez do Egito, no pano grosso de uma pantufa ou nas dobras multicores de um chalvar. O relojoeiro Pietro encafurnou-me num relógio de pêndulo, e um merceeiro grego meteu-me numa grossa fôrma de queijo. Dividi o mesmo esconderijo com jóias, sinetes e chaves: éramos enrolados num pano espesso, depois metidos no fundo de uma estufa, de um cano de chaminé ou sob um parapeito de janela; em travesseiros cheios de palha, num alçapão no assoalho, em baús com fundo falso. Conheci pais de família que se levantavam bruscamente da mesa para verificar se eu continuava onde tinham me posto, mulheres que, sem mais nem menos, me chupavam como se eu fosse açúcar-cande, crianças que me cheiravam e me enfiavam no nariz, velhotes com o pé na cova que não ficavam sossegados se não me tiravam da bolsa de pele de carneiro sete vezes por dia no mínimo. Houve uma circassiana tão maníaca que, depois de passar o dia lavando e lustrando sua casa, tinha de nos tirar da bolsa para nos esfregar, uma a uma, com uma escova de pau. Lembro-me do cambista caolho que passava o tempo nos empilhando em pequenos bastiões; do porteiro que recendia a madressilva e que ficava nos contemplando, com toda a família, como se fôssemos uma linda paisagem; e do dourador, aquele que acaba de nos deixar — inútil dizer mais, creio —, que passava suas noites nos arrumando de todas as formas possíveis e imagináveis. Viajei em grandes barcaças de acaju; percorri todo o Grande Serralho; fui introduzida nas encadernações de manuscritos costurados em Herat, nos tacões de borzeguins perfumados com rosa, nas tampas dos sacos de correio, e manipulada por centenas de mãos: sujas, peludas, gorduchas, pegajosas, velhas e trêmulas; recolhi o cheiro e o suor de Istambul, dos fumadouros de ópio às fábricas de vela e às barricas de arenque. Depois de tantas emoções e de tanta tensão, um assaltante horrível que acabava de degolar sua vítima num canto escuro me embolsou e, de volta a seu antro infame, cuspiu em mim, dizendo: “Maldita, tudo por sua causa!”. Eu me senti tão mal que me deu vontade de desaparecer.

      Mas, se eu não existisse, ninguém distinguiria um bom pintor de um mau pintor, e os miniaturistas acabariam se massacrando. Foi por isso que não desapareci, fui simplesmente me meter no bolso do mais sabido, do mais talentoso entre eles. E cá estou.

     Se vocês se acham melhores pintores do que Cegonha, dêem um jeito de vir me pegar.

 

                   Meu nome é Negro

       Eu me pergunto se o pai de Shekure estava a par das nossas cartas. Se eu considerasse o tom que adotava nas dela, de mocinha tímida, amedrontada com seu pai, deveria concluir que não deve ter sido trocada nenhuma palavra entre eles a meu respeito. Mas eu sentia o contrário. Os olhares maliciosos de Ester, a ambulante, a misteriosa aparição de Shekure à janela, a decisão com que meu Tio me mandou à casa dos pintores e a aflição com que ele tinha mandado que eu viesse vê-lo esta manhã, tudo isso me causava certa apreensão.

       Esta manhã portanto, meu Tio mandou-me sentar à sua frente e desatou a me falar dos retratos que tinha visto em Veneza. Como embaixador do Nosso Sultão, Protetor do Mundo, pôde entrar em grande número de palácios, ricas residências e igrejas. Passou dias inteiros diante dos milhares de retratos, em tela e madeira, emoldurados ou pintados diretamente na parede, viu rostos humanos aos milhares, mas “os rostos eram todos diferentes uns dos outros, únicos, sem nenhuma parecença”, disse. Sua variedade, suas cores, sua luz suave, sua afabilidade ou rudeza, enfim a expressividade dos seus olhares o haviam literalmente inebriado.

       “Como se atacados por uma virulenta epidemia, todo o mundo mandava fazer seu retrato”, contou. “Em toda a Veneza, os homens ricos e influentes queriam ter seu retrato, como memória e testemunho de sua vida, mas também como símbolo da sua fortuna, do seu poder e do seu prestígio, de modo que parecessem continuar presentes, diante de nós, proclamando sua existência, ou melhor, sua individualidade e sua distinção.”

       Suas palavras eram desdenhosas, como se ele estigmatizasse a inveja, a cobiça ou a cupidez. Mas, ao evocar aqueles retratos que ele tinha visto em Veneza, seu rosto se iluminava por instantes com uma luz quase infantil.

       Fazendo-se retratar em todas as ocasiões, os ricos amantes da arte, os príncipes e as grandes famílias que patrocinavam a pintura fizeram disso uma moda contagiosa e, quando encomendavam para uma igreja certa cena dos Evangelhos ou das Escrituras, esses infiéis impunham a condição de estarem seus rostos representados nelas. Por exemplo, em certo quadro figurando as exéquias de Santo Estevão, você encontrará, entre as pessoas que choram em torno do túmulo, o próprio príncipe que, cheio de orgulho, alegria e entusiasmo, lhe mostra agora os quadros que ornam as paredes do seu palácio. Depois, no canto de um afresco em que São Pedro socorre os enfermos, um detalhe deixa você perplexo com seu delicado anfitrião: um dos infelizes que sofre pavorosamente ali é o próprio irmão dele, que na verdade vai muito bem de saúde. No dia seguinte, outra vez, desta vez num quadro que representa a ressurreição dos mortos, você identifica num cadáver o vizinho de mesa que, no almoço, se empanturrava ao seu lado.

       “Alguns chegaram a tal ponto”, prosseguiu meu Tio num tom temeroso, como se estivéssemos falando de alguma tentação do Diabo, “que, para figurar na multidão dos personagens de um quadro, se rebaixam até a ser retratados como um simples escanção servindo vinho aos convidados, ou como um dos sanhosos que lapidam a mulher adúltera, quando não como um assassino com as mãos tintas de sangue.”

       “É como nos livros que contam as velhas lendas persas”, comento, fingindo não ter entendido nada, “em que vemos Ismail Xá subindo no trono em grande pompa. Ou quando encontramos, na história de Khosrow e Shirin, uma imagem de Tamerlão, que no entanto reinou muitíssimo depois.”

       Terei ouvido nesse momento um barulho estranho na casa?

       “É como se, com essas pinturas, os europeus quisessem nos impressionar”, disse em seguida meu Tio. “Não só realçando a riqueza e o poder dos homens que encomendam essas obras, mas também tentando nos fazer crer que a vida e o mundo deles têm algo de especial e de fascinante. Com aqueles rostos, aqueles olhares e aquelas atitudes sempre distintos, aquelas sombras que definem as dobras das suas roupas, eles pretendem nos intimidar, aparecendo como criaturas fabulosas.”

       Ele me contou como, certa vez, num rico palácio às margens do lago de Como, tinha se perdido numa galeria em que um excêntrico aficionado da pintura havia reunido cem retratos oficiais de todos os personagens célebres da história da Europa, soberanos e cardeais, generais e poetas. “Nosso amável anfitrião, depois de me mostrar orgulhosamente sua casa, deu-me a liberdade de visitar à vontade seus aposentos. Vi então todas aquelas personalidades infiéis, algumas das quais me olhavam fixo nos olhos, transformavam-se em pessoas de certo modo vastas demais para este mundo, pelo simples fato de estarem pintadas em retratos, de parecerem reais e, portanto, tão importantes. Emanava daqueles retratos uma espécie de magia que os tornava incomparáveis e que me fez sentir de repente, no meio de todas aquelas pinturas, incompleto e impotente. Era como se, estivesse eu pintado daquela maneira, poderia compreender melhor minha razão de ser neste mundo.”

       Esse desejo amedrontou-o, porque ele logo percebeu que a paixão pelo retrato acarretaria o fim da pintura do islã, a pintura cujos modelos, perfeitos e irretocáveis, haviam sido estabelecidos pelos antigos mestres de Herat. “Era como se eu tivesse o desejo de me distinguir dos outros, de ser diferente de todos, de me sentir único”, disse-me. Meu Tio sentia-se irresistivelmente atraído por aquilo mesmo que o aterrorizava, como se o Diabo o acicatasse. “Era, como dizer, um desejo criminoso de se valorizar diante de Alá, de se acreditar importante, de se colocar, em poucas palavras, no centro do mundo.”

       A partir daquele instante, uma idéia começou a tomar forma em sua mente: aqueles métodos que, nas mãos dos artistas europeus, eram aplicados numa espécie de brincadeira infantil e arrogante, podiam ser muito mais do que uma simples magia, se postos a serviço do Nosso Glorioso Sultão — podiam tornar-se uma força legítima a serviço da nossa religião, capaz de impor a ascendência desta a quantos contemplassem as obras assim realizadas.

       Foi assim que surgiu o projeto do manuscrito iluminado. Ao voltar para Istambul da sua missão a Veneza, meu Tio sugeriu a Nosso Sultão a idéia de retratá-lo à maneira européia. O retrato faria parte de um livro que traria imagens de Sua Excelência e dos objetos e personagens que melhor a representassem. A proposta do meu Tio acabou sendo aceita, mas não sem antes enfrentar uma séria objeção do Nosso Sábio e Glorioso Sultão.

       “O essencial é a história”, dissera ele. “Uma bela imagem completa graciosamente uma história. Se tento imaginar uma imagem que não seja a ilustração de uma história, percebo que, ao fim, ela se tornará um falso ídolo. Porque como não é possível acreditar numa história ausente, acabaremos naturalmente acreditando na imagem mesma. É como aquele culto dos ídolos da Caaba, antes de serem quebrados por Nosso Profeta, que a paz e as graças estejam com ele. Como você poderia representar este cravo vermelho, por exemplo, ou um anão cheio de soberba, se eles não forem parte de uma história?”

       “Mostrando a beleza do cravo e que ele é diferente de todos os outros.”

       “E na composição da sua cena, você situaria a flor no centro preciso da página?”

       “Fiquei com medo”, confessou-me então meu Tio. “A direção a que os pensamentos do Nosso Sultão me conduziam deixou-me momentaneamente em pânico.”

       Quanto a mim, senti que o medo do meu Tio era o de que outra coisa, que não Alá, pudesse ser bela o suficiente para ser posta no centro da página e, por conseguinte, do mundo.

       “Depois, você vai querer pendurar na parede o quadro no centro do qual terá posto um anão qualquer”, dissera o Sultão. Como eu havia intuído, era essa conseqüência que meu Tio temia. “Mas uma imagem não pode ser exposta assim. Porque uma imagem pendurada na parede, qualquer que seja nossa primeira intenção, sempre acaba convidando à adoração. Se — não queira Alá! — eu acreditasse, como os infiéis, que o profeta Jesus é ao mesmo tempo o próprio Senhor Deus, então eu concordaria com que Alá pudesse ser visto neste mundo e até aparecer sob a forma humana. Só então eu poderia aceitar que fossem pintadas e exibidas imagens representando pessoas com todos os seus detalhes. Você certamente há de convir que, mesmo sem termos consciência, acabamos adorando qualquer imagem assim exposta, não é?”

       “Tanto eu convinha”, disse-me meu Tio, “que tremia por pensar no que nós dois pensávamos.”

       “É por isso que não posso admitir que exponham meu retrato”, observou Nosso Sultão.

       “Mas ele bem que gostaria”, acrescentou meu Tio, com um sorriso diabólico.

       Foi então a minha vez de ter medo.

       “No entanto”, prosseguiu Nosso Sultão, “é meu desejo que esse retrato à maneira européia seja executado: é só dissimulá-lo nas páginas de um livro. Diga-me como será esse livro.”

       “Surpreso e assustado, pensei demoradamente no que ele me dissera”, contou-me meu Tio, exibindo aquele sorriso digno de ser tachado de demoníaco, e tive a impressão de ver produzir-se nele uma espécie de metamorfose.

       “Sua Excelência, Nosso Sultão, deu-me a ordem de começar sem mais tardar a confecção do livro. Eu estava tonto de felicidade. Acrescentou que o preparasse como um presente para o doge, que eu deveria visitar novamente em Veneza. Ele deseja que a data da conclusão da obra coincida com o primeiro milênio da Hégira, de modo a se tornar um símbolo do vitorioso poder do Califa do islã, Nosso Glorioso Sultão. Mas, para não divulgar sua intenção de negociar com Veneza e não atiçar as rivalidades entre os pintores do seu Ateliê, ordenou-me também que preparasse o livro no mais rigoroso segredo. Jurando absoluto segredo, embarquei exultante nesta extraordinária aventura.”

 

                   Eu sou o vosso Tio

       Foi portanto na sexta-feira de manhã que comecei a lhe explicar que gênero de obra ia ser o livro destinado a conter o retrato do Nosso Sultão à maneira européia. Meu ponto de partida foi a mesma história que contei a Nosso Sultão, depois a forma como eu o persuadi a encomendar a confecção desse livro. Mais secretamente, meu objetivo era conseguir fazer que o Negro escrevesse as histórias que acompanhariam as miniaturas, cuja redação eu mesmo não conseguia iniciar.

       Eu lhe disse que havia terminado a maioria das miniaturas do livro e que a última estava a ponto de ser concluída. “Há no meu livro”, contei-lhe, “uma imagem da Morte, o desenho de uma árvore, que encomendei ao sutil Cegonha, representando a tranqüilidade do reino terreno do Nosso Sultão. Há uma imagem do Diabo, uma imagem de um cavalo, que nos convida a ir bem longe. Há um cachorro, astuto e sábio, há o dinheiro... Fiz os mestres do Grande Ateliê pintarem tudo isso com tanta beleza que, mesmo se você as vir uma só vez, logo saberá dizer qual deve ser o texto correspondente. A poesia e o desenho são irmã e irmão, como você sabe, assim como as palavras e as cores.”

       Por um instante, pensei se devia lhe dizer que poderia lhe dar minha filha em casamento. Será que ele viria morar conosco nesta casa? Disse a mim mesmo que não me deixasse enganar por aquela sua embevecida atenção nem por aquele ar infantil estampado no seu rosto. Eu sabia perfeitamente que ele só esperava obter a mão de Shekure para levá-la daqui. Mas não havia ninguém mais, além do meu querido Negro, em quem eu pudesse confiar para terminar meu livro.

       Voltávamos da prece da sexta-feira quando abordei a questão das sombras, a maior invenção dos mestres italianos. Se fizéssemos nossos quadros inspirando-nos no mundo tal como o vemos nas ruas por onde passamos, em que paramos para conversar todos os dias, teríamos de aprender a pôr neles também, como fazem os pintores da Europa, a coisa mais freqüente que se pode encontrar na rua, a sombra.

       “Como se pode representar a sombra?”, perguntou o Negro.

       Eu percebia de vez em quando que meu sobrinho me ouvia com certa impaciência. Suas mãos brincavam com o pesado tinteiro mongol que me trouxera de presente, ou então ele avivava o fogo da estufa com o atiçador. Às vezes eu tinha a impressão de que ele ia erguer o atiçador acima da minha cabeça, e me matar. Porque eu ousava afastar a pintura do ponto de vista de Alá, porque eu traía a tradição e todas as obras nascidas dos sonhos dos mestres de Herat. Porque eu havia seduzido Nosso Sultão a fazê-lo. Às vezes ele ficava sem se mexer e me olhava fixamente no fundo dos olhos. Podia até imaginar o que ele pensava: que estava disposto a se submeter totalmente a mim, até eu lhe conceder a mão da minha filha. Então, como quando ele era pequeno, levei-o ao jardim, para tentar, como um pai, lhe explicar as árvores, o jogo dos raios do sol nas folhas, a neve que derrete e a razão pela qual, em nossa rua, quanto mais distantes as casas, menores parecem ser. Foi um erro. Mas esse erro me bastou para eu entender que todo tipo de relação paterna e filial estava extinto entre nós havia muito tempo. No lugar da curiosidade da criança, de um desejo qualquer de saber, ele demonstrava simplesmente paciência com as elucubrações de um velhote gagá, em cuja filha ele estava de olho. Os sofrimentos daqueles doze anos, a poeira de todas aquelas cidades e de todos aqueles países que ele percorrera tinham se incrustado em sua alma. Eu apenas aumentava seu cansaço, ele me dava dó. Pensei que ele devia estar furioso, não tanto porque eu não lhe dera, doze anos antes, a mão de Shekure — era impossível —, mas pelo fato de que eu teimava em lhe explicar minhas idéias fixas, meus sonhos de pintura fora das regras da tradição do islã e da lendária Escola de Herat. Foi assim que cheguei a imaginar que minha morte viria das suas mãos.

       Mas ele não me metia medo; ao contrário, eu é que tratei de amedrontá-lo, porque sentia que o medo seria uma boa coisa para a história que eu queria que ele escrevesse. “Precisamos ser capazes de também nos colocar no centro do mundo, como nos quadros deles”, disse eu. “E, aliás”, acrescentei, “um dos meus pintores fez um belíssimo retrato da Morte. Quer vê-lo?”

       Foi assim que comecei a lhe mostrar as miniaturas realizadas pelos mestres que emprego em segredo há um ano. De início ele manifestou alguma reticência e até certo temor. Mas quando entendeu que a miniatura da Morte se inspira nas cenas de morte que podemos ver em toda uma série de manuscritos do Livro dos reis, como Siyavush decapitado por Afrasyab ou Rustam matando Suhrab sem saber que é seu próprio filho, logo se interessou pelo que eu lhe mostrava. Dentre as pinturas figurando os funerais do sultão Suleyman, o Magnífico, estava uma que pintei com minhas próprias mãos, em cores ousadas mas tristes, combinando um senso da composição inspirado nos europeus com minhas tentativas de representar as sombras — que acrescentei posteriormente. Chamei sua atenção para a profundidade demoníaca sugerida pela interação entre as circunvoluções do céu nebuloso e a linha do horizonte. Evoquei os retratos da Morte que eu vira nos palácios de Veneza, como ela é representada sempre com traços únicos, à maneira de todos aqueles grandes personagens ímpios que anseiam ser representados em toda a sua distinção: “Fazem tanta questão de ser únicos e diferentes, têm tamanha obsessão por isso que olhe”, digo-lhe, “olhe a Morte nos olhos: não é dela que temos medo, mas da intensidade desse desejo de ser o único, o sem igual, o excepcional. Olhe bem este desenho e escreva a história que o acompanhará. Faça a Morte falar. Aqui estão o papel e as penas. Passarei imediatamente o que você escrever ao calígrafo.”

       Ele olhou um instante para a imagem, em silêncio, depois perguntou: “Quem pintou isto?”

       “Borboleta. É o mais talentoso. Mestre Osman esteve perdido de amor e de admiração por ele anos a fio.”

       “Vi um desenho de cachorro parecido com este, só que menos bem-acabado, num café onde um satirista se apresentava”, disse-me o Negro.

       “A maioria dos meus pintores está ligada especialmente a Mestre Osman e ao Grande Ateliê. Não dão crédito aos quadros que lhes encomendo para o meu livro. Ao saírem daqui no meio da noite, posso imaginar que vão ao café debochar descaradamente de mim e destes desenhos que eles fazem por dinheiro. Uma vez, Nosso Sultão, por insistência minha, encomendou seu retrato a óleo a um jovem artista que havíamos chamado à embaixada de Veneza. Depois pediu a Mestre Osman que copiasse o quadro. Mestre Osman foi obrigado a imitar esse pintor veneziano e me considera responsável por essa indecente coação e por essa obra, que ele se envergonha de ter produzido. Não se equivocava.”

       Passei o dia todo mostrando a ele o conjunto dos desenhos, à parte o último, que não está acabado, e instei-o a escrever a história, falando-lhe complacentemente dos caprichos que suporto desses pintores e da dinheirama que gasto com eles. Até conversamos sobre a perspectiva e abordamos a questão de saber se o fato de em Veneza pintarem os objetos do fundo em tamanho menor é uma impiedade. Também evocamos a possibilidade de o Elegante Efêndi ter sido assassinado por questões de dinheiro e de ambição pessoal.

       Quando o Negro foi para casa, eu tinha certeza de que voltaria, como tinha me prometido no primeiro dia, para me ouvir de novo lhe falar das histórias para o meu livro. Mas enquanto o ruído dos seus passos se distanciava além do portão ainda aberto, havia alguma coisa na noite gelada que parecia deixar o insone e desvairado assassino mais forte e mais diabólico do que eu e meu livro.

       Fechei cuidadosamente o portão às suas costas e tranquei-o bem. Como todas as noites, empurrei contra a porta a velha talha de barro que uso agora para cultivar manjericão, cobri de cinzas as brasas da lareira e subi para me deitar. Foi então que vi Shekure, com sua camisola branca na escuridão, parecendo um fantasma.

      “Você está mesmo decidida a se casar com esse homem?”, perguntei-lhe.

       “Claro que não, papai. Faz muito tempo que renunciei a me casar. Além do mais, ainda estou casada.”

       “Se você ainda quer se casar com ele, eu poderia dar meu consentimento agora.”

       “Não quero me casar com ele.”

       “Por quê?”

       “Porque o senhor não quer. Eu não poderia querer alguém que o senhor não quer.”

       Na sombra, seus olhos refletiram as brasas da lareira. A raiva molhava seus olhos — ou seria o desespero? —, mas sua voz era firme.

       “O Negro está apaixonado por você”, sussurrei, como se revelasse um segredo.

       “Eu sei.”

       “Não é por amor à pintura, mas por amor a você que ele passou o dia inteiro me ouvindo.”

       “Ele vai terminar o livro, é o que importa, não é?”

       “Seu marido vai acabar voltando.”

       “Não sei por que, na certa por causa do silêncio, mas acabo de compreender esta noite que meu marido nunca mais vai voltar. Meu sonho certamente era verdadeiro: deve ter sido morto. Faz tempo que ele foi comido pelos corvos e pelos vermes.” Ela cochichava, como se as crianças, que dormiam, pudessem ouvir sua conclusão, mas sua voz estava estranhamente irritada.

       “Se me matarem”, prossegui, “quero que você cuide para que esse livro, ao qual eu tudo dei, seja terminado. Jure.”

       “Eu juro”, ela afirmou, “mas quem vai terminá-lo?”

       “O Negro. Você pode arrancar essa promessa dele.”

       “Mas o senhor já arrancou, papai. Não precisa de mim para isso.”

       “É verdade, mas ele só vai fazê-lo por sua causa. Se me matassem, ele poderia abandonar o livro, por medo.”

       “Nesse caso, ele terá de renunciar a se casar comigo”, disse minha filha, sorrindo, esperta.

       O que me leva a dizer que ela sorriu? Ao longo dessa conversa, só vi duas ou três vezes um brilho iluminar seus olhos. Estávamos os dois de pé, um diante do outro, no meio da sala. Não podendo me conter, perguntei-lhe:

       “Como é que vocês se comunicam, por mensagens ou por sinais?”

       “Como pode o senhor pensar uma coisa dessas?”

       Fez-se um longo e doloroso silêncio. Lá longe, um cachorro latia. Eu sentia um pouco de frio, estremeci. Estava tão escuro agora naquela sala que não nos enxergávamos mais, somente sentíamos a presença um do outro, cara a cara. Depois, de repente, nós nos abraçamos fortemente. Ela pôs-se a chorar, disse-me que sentia falta da mãe. Beijei seus cabelos, que tinham o mesmo cheiro dos cabelos da mãe dela, acariciei-a. Levei-a para o seu quarto e deitei-a ao lado dos dois filhos que dormiam. Pensando nos dois dias que acabavam de passar, não tive mais a menor dúvida de que Shekure se comunicava com o Negro.

 

                   Meu nome é Negro

       Quando voltei para casa naquela noite e assim que consegui me livrar da minha senhoria, que não perdeu tempo para se fazer de minha mãe, tranquei-me no meu quarto e deitei-me no chão, pensando em Shekure.

       Comecemos pelos ruídos que, como uma espécie de jogo entre mim e ela, tinham chamado minha atenção durante a visita. Porque nesta segunda vez que fui à sua casa, após doze anos de ausência, apesar de não ter aparecido, ela conseguiu me envolver numa espécie de círculo mágico e eu tinha certeza de que ela me havia observado o tempo todo, medido e avaliado como aquele que se tornaria seu próximo esposo, divertindo-se como se fosse um jogo de adivinhas. Aliás, eu tinha a impressão de eu mesmo observá-la. Foi então que compreendi plenamente as palavras de Ibn Arabi, que diz que o amor é o dom de tornar visível o invisível e o desejo de sempre sentir o invisível próximo de si.

       Pelos ruídos que vinham do interior da casa e pelo ranger das tábuas do assoalho, deduzi que Shekure me espiava o tempo todo. A certa altura, cheguei a ter a certeza de que ela estava com os filhos na peça contígua, que dá para o mesmo corredor — porque as crianças estavam brincando, brigando e, de repente, baixaram a voz, certamente ante o olhar colérico da mãe que lhes ordenava por um sinal que não gritassem tanto. Outra vez, ouvi-os recitar a prece, não num tom de recolhimento, mas de forma ostensiva e tão pouco natural que o balbucio afetado logo se transformou num riso sufocado.

       Outra vez, quando o avô deles me falava dos admiráveis efeitos da sombra e da luz, os dois garotos, Shevket e Orhan, entraram com a bandeja de café e serviram-nos com tanta cerimônia, que cada um dos seus gestos parecia ensaiado. Claro, aquele serviço cabia a Hayriye, a criada, mas a mãe deles deve ter achado aquilo um ótimo pretexto para que eles vissem mais de perto o homem que ia se tornar pai deles e ter um motivo para, em seguida, falar de mim com eles. Elogiei Shevket por seus lindos olhos e, como percebi que Orhan ficou com ciúme, logo acrescentei que ele também tinha olhos belíssimos. E, pondo na bandeja uma pétala seca de cravo vermelho que eu trazia no bolso, beijei os dois em ambas as faces. Mais tarde, ouvi de novo risadas, vindas de algum ponto da casa.

       Às vezes, curioso por saber em que lugar da parede, da porta ou até do teto, estava o buraco, a fresta pela qual seus olhos me observavam. Vendo certo nó na madeira, certo interstício entre os painéis, eu imaginava Shekure atrás deles, depois minha suspeita se concentrava em outro canto escuro e, para tirar a limpo, a risco de faltar ao respeito para com meu Tio, que prosseguia com suas explicações, eu me levantava e, tomando um ar meditativo, atento e admirado com as histórias que ele contava, eu me punha a percorrer a sala, fingindo me concentrar, mas só agia assim para me aproximar um pouco mais daquele canto suspeito, daquele ponto escuro na parede.

       Mas não conseguia encontrar o olho de Shekure aninhado no que eu havia pensado ser um buraco, e então um forte desapontamento me invadia, seguido por uma estranha sensação de solidão e por aquela impaciência que toma conta de nós quando ficamos sem saber o que fazer.

       As vezes, eu tinha subitamente a nítida impressão de que Shekure estava ali, me observando, e era tão forte a sensação de estar sob a mira do seu olhar, que chegava a estudar minhas expressões, como quando a gente faz Pose tentando mostrar-se mais inteligente, mais forte e mais capaz do que realmente é, a fim de causar a melhor impressão possível na amada. Depois, eu me dizia que Shekure e seus filhos estavam me comparando com aquele marido que não voltava da guerra — o pai desaparecido dos garotos —, mas logo me vinha à mente aquele tipo de pintor veneziano sobre cujas técnicas meu Tio filosofava nesse instante. Eu sonhava ser como aqueles pintores alçados recentemente à fama, só porque Shekure tinha ouvido seu pai falar tanto deles — uma fama que não haviam adquirido à força de mortificações, como os santos em suas celas, nem, como seu marido desaparecido, cortando as cabeças inimigas com seu braço forte e sua cimitarra afiada, mas graças a um livro que transcreveram ou a uma página que iluminaram. Conforme explicava meu Tio, esses célebres pintores procuravam esboçar este mundo como ele é, com suas sombras e seus mistérios. Tanto me esforcei para imaginar essas magníficas obras-primas que meu Tio vira e tentava agora descrever para mim, que nunca tinha posto os olhos nelas, que, quando minha imaginação por fim se deu por vencida, só me senti mais desanimado e diminuído.

       A certa altura, dei com Shevket novamente diante de mim. Como ele se aproximava com um passo decidido, achei que ia me beijar a mão — porque, entre os árabes nômades da Transoxânia ou nas tribos circassianas do Cáucaso, manda o costume que o filho mais velho assim faça, não apenas para receber o convidado da casa, mas também quando ele próprio sai de casa — e estendi-lhe a minha, que não estava ocupada, para que ele a levasse aos seus lábios e à sua testa. Nesse mesmo instante, ouvi o riso de Shekure, não muito longe de nós. Será que ria de mim? Senti-me um pouco incomodado, mas me recuperei fazendo o que achei que ela esperava de mim: peguei Shevket e beijei-o dos dois lados do rosto. Ao mesmo tempo, sorri para o avô dele, a fim de mostrar que, se o interrompia, não era minha intenção faltar-lhe com o respeito — eu tinha me demorado um instante para procurar, no garoto, um eventual vestígio do perfume da sua mãe. Quando percebi que Shevket tinha enfiado um bilhete na minha mão, ele já estava longe, quase de volta de onde viera.

       Apertei como uma jóia aquele pedacinho de papel oculto na minha palma. Tomando consciência de que era certamente uma carta que Shekure me mandava, minha perturbação, minha felicidade por pouco não me arrancavam um sorriso diante do seu pai. Não estava ali a prova material, por menor que fosse, de que sua filha me desejava apaixonadamente? Tive a súbita visão de Shekure e eu fazendo amor. E esse sonho incrível pareceu-me tão iminente que minha masculinidade de pronto se ergueu — o que era deveras embaraçoso na frente do meu Tio! Será que Shekure também viu? Para aplacar minha agitação, forcei-me a reatar o fio das longas explicações desenvolvidas por meu Tio.

       Muito mais tarde, aproveitando que meu Tio tinha se afastado para ir buscar outra folha que queria me mostrar, abri o bilhete, perfumado com madressilva, e vi que não havia nada escrito nele. Incrédulo, virei-me para todos os lados...

       “... uma janela”, ia dizendo meu Tio. “Meu método da perspectiva consiste em olhar o mundo como de uma janela. Que papel é esse?”

       “Nada, Tio Efêndi.” Porém, pouco depois, tornei a aspirar profundamente seu aroma.

       Depois do almoço, como eu não queria utilizar o penico do meu Tio, pedi licença para ir à casinha no fundo do jardim. Fazia um frio glacial lá, mas resolvi meu problema sem congelar as nádegas. Estava saindo quando vi Shevket chegar com uma cara meio marota — ele parecia procurar não fazer barulho para melhor me pegar de surpresa. Na verdade, trazia o penico ainda fumegante do avô, que foi esvaziar na casinha atrás de mim. Ao sair, olhou-me nos olhos e me disse, com uma careta:

       “Já viu um gato morto?” O nariz dele era igualzinho ao da mãe. Shekure estaria nos observando, naquele preciso instante? Ergui os olhos para aquela janela do primeiro andar onde ela tinha reaparecido a mim pela primeira vez depois de tantos anos. O contravento estava fechado.

       “Não”, respondi a Shevket.

       “Quer que eu te mostre um, na casa do judeu enforcado?”

       Ele saiu à minha frente, sem esperar minha resposta. Segui-o. Não tínhamos dado cinqüenta passos na rua enlameada e nevada, quando chegamos a um jardim abandonado, que exalava um vago cheiro de húmus e mofo. Uma casinhola amarela parecia esconder-se num canto, atrás de uma figueira e de uma amendoeira tristes. Shevket, conhecedor do local, precedia-me com um passo seguro e sonoro. Entramos na casa.

       Embora estivesse totalmente vazia, dentro dela estava seco e agradável, como se ainda fosse habitada.

       “De quem é esta casa?”, indaguei.

       “De uns judeus. Quando o marido dela morreu, a mulher mudou-se para o outro lado do Cais das Frutas, para o bairro judeu, com os filhos. Ester é que vai vender a casa.” Ele se afastou um momento até um canto do cômodo e me disse, voltando na minha direção: “O gato foi embora, não está mais aqui”.

       “Para onde você quer que um gato morto vá?”

       “Meu avô disse que os mortos passeiam.”

       “Não são eles, mas o espírito deles”, observei.

       “Como você sabe?”, replicou Shevket com um ar sério, apertando o penico contra a barriga.

       “Sabendo. Você costuma vir sempre aqui?”

       “Mamãe é que vem, com Ester. De noite, tem fantasmas também, mas eu não tenho medo. Você já matou algum homem?”

       “Já.”

       “Quantos?”

       “Poucos. Dois.”

       “Com uma espada?”

       “É.”

       “E o espírito deles passeia?”

       “Não sei. Os livros dizem que sim.”

       “Meu tio Hassan tem uma espada vermelha, que corta tudo que toca. Ele também tem uma adaga, com esmeraldas no cabo. Foi você que matou meu pai?”

       Fiz com a cabeça um sinal que não queria dizer nem sim nem não.

       “Como é que você sabe que seu pai está morto?”

       “Foi minha mãe que disse. Ontem. Ele não vai voltar nunca mais. Ela sonhou.”

       Se somos capazes de fazer, quando a ocasião se apresenta, as coisas mais absurdas em nome de nossos miseráveis lucros, do desejo que nos devora ou de um amor que dilacera nosso coração, com maior razão não nos recusamos a levá-las a cabo por um objetivo sublime. Como também ajo assim, tomei mais uma vez a firme decisão de ser o novo pai daqueles orfãozinhos. Por isso, ao voltar para a casa deles, tratei de ouvir com uma atenção redobrada as explicações do avô sobre o texto que eu tinha de escrever para completar as miniaturas.

       Tomemos uma das que meu Tio me mostrava, a do cavalo, por exemplo. Embora não houvesse figura humana e a área em torno do animal estivesse vazia, eu não podia dizer que se tratava pura e simplesmente da imagem de um cavalo. Sim, havia um cavalo nela, mas era igualmente claro que havia um cavaleiro em algum lugar fora de cena, ou quem sabe ele não ia surgir de repente do mato desenhado à maneira de Kazvin. Essa interpretação era imposta pela manta do cavalo, cuja rica ornamentação aparecia sob a sela. Talvez um homem de espada em punho estivesse a ponto de aparecer junto do garanhão.

       Era igualmente claro que meu Tio tinha encomendado esse cavalo a um pintor do Grande Ateliê, contratado em segredo. Como esse pintor só podia desenhar o cavalo, na calada da noite, de acordo com o modelo gravado profundamente em seu cérebro como parte de uma história, foi exatamente assim que começou: desenhando de cor. Mas, quando desenhava o cavalo, que já vira milhares de vezes em cenas de amor ou de guerra, meu Tio, inspirando-se nos métodos dos mestres venezianos, sem dúvida interveio, dando instruções assim: “Não desenhe o cavaleiro. Acrescente uma árvore. Mas lá atrás, e em tamanho menor”.

       O pintor, sentado ao lado do meu Tio, havia pintado zelosamente à luz de vela a estranha e inusitada miniatura, que não se parecia com nenhuma das cenas a que ele estava habituado e que memorizara. Claro, se fazia o que meu Tio pedia era porque ele o pagava bem, mas também porque aquele método de pintar o seduzia por sua bizarrice. Porque, como meu Tio, o pintor era perfeitamente incapaz de dizer que história aquele cavalo ornamentava e ilustrava. O que meu Tio esperava de mim, num prazo mais ou menos longo, era que eu examinasse bem aquelas miniaturas, feitas metade no estilo veneziano, metade à maneira persa, e escrevesse a história para acompanhá-las na página em face. Se eu quisesse me casar com Shekure, tinha de escrever essas histórias. Mas nada me vinha à mente, salvo as sátiras que o contador de histórias apresentava no café dos artistas.

 

                   Serei chamado Assassino

       Com seu tique-taque, meu relógio me dizia que já era noite. O chamado para a prece ainda não tinha sido feito, mas a vela ardia fazia um bom tempo ao lado da minha mesa. Eu acabava de executar com rapidez, fazendo o nanquim escorrer vivamente do meu cálamo para a folha — uma bela folha brilhante de papel glacê à albumina —, a silhueta do meu opiômano, quando ouvi a voz que me chama todas as noites. Resisti. Estava tão firmemente decidido a ficar em casa trabalhando, a não sair naquela noite, que até pensei em pregar minha porta para mantê-la fechada.

       O álbum cujas ilustrações eu acabava às pressas tinha sido encomendado naquela manhã mesma, quando ninguém ainda tinha se levantado, por um armênio, que viera a pé de Gálata até aqui. Apesar de gago, é guia e intérprete. Uns turistas vindos da Europa e da Itália desejavam adquirir um “livro de costumes pitorescos”, e ele veio correndo ter comigo, para negociar o preço. Depois de muita barganha, tínhamos acertado em cento e vinte moedas de prata para uma coletânea de vinte personagens, e naquela noite eu já havia terminado doze, com todos os detalhes e particularidades dos seus trajes: um grão-mufti, um porteiro-mor, um imã, um janízaro, um dervixe, um sipaio, um juiz, um vendedor de fígado grelhado, um carrasco — muito requisitado, principalmente em pleno trabalho —, um mendigo, uma mulher indo ao hamam e um fumante de ópio. Para reduzir o tédio que me dão essas figuras impostas, que já realizei tantas vezes, demasiadas vezes, pelas três ou quatro miseráveis moedas que esse gênero de obra me rende, divirto-me desenhando o juiz com um só traço, sem tirar o cálamo da folha, e o mendigo, de olhos fechados.

     Todos os bandidos, poetas e homens vítimas da melancolia conhecem esse chamado, logo depois do da prece: os djins e os demônios põem-se de repente a sapatear dentro de nós, todos juntos, coligados para nos tirar do bom caminho: “Saia, saia”, insiste essa voz interior, “vá buscar a companhia dos outros, vá buscar a escuridão, a sordidez e a desgraça!”. Passei minha vida acalmando esses demônios e esses djins. Quantas obras que minha mão produziu, destas que todos concordam em achar maravilhosas, foram feitas precisamente com a ajuda deles? Mas, de uma semana para cá, desde que dei cabo daquele canalha, não consigo mais, caída a noite, manter meus demônios sob controle. Tanto eles se agitam que acabo me dizendo: “Born, vamos sair, que eles se acalmam”.

     Como todas as vezes que pronuncio essas palavras, quando dou por mim estou, não sei como, bem no meio de uma rua. Andava depressa, avançando na neve das travessas, na lama das ruelas, subindo as ladeiras cobertas de gelo escorregadio, percorrendo as calçadas desertas como se nunca mais fosse parar. Enquanto eu caminhava assim, penetrando nas trevas da noite, pelas vielas estreitas, nos recantos mais sombrios e desolados da cidade, deixava pouco a pouco para trás a minha alma, e o eco solitário dos meus passos reverberando nas paredes de pedra das estalagens, das escolas e das mesquitas aplacava minha angústia.

       Meus pés me levaram, como todas as noites desde então, às ruelas mais retiradas daquele subúrbio solitário, em que os fantasmas e os próprios djins não entram sem se arrepiar de medo. Ouvi dizer que metade dos homens do bairro teria morrido na guerra contra a Pérsia e que os outros moradores fugiram por acharem que morar ali dava azar, mas não acredito nessas superstições. A única calamidade que a guerra com os safávidas trouxe a este bairro, outrora tão bonito, foi a invasão e o fechamento do convento de dervixes, quarenta anos atrás, a pretexto de que dava guarida aos inimigos.

       Insinuei-me por entre as amoreiras e as espirradeiras, que insistem em perfumar o ar mesmo nas noites mais geladas, depois por uma janela da torre em ruína, pondo como sempre seus batentes cuidadosamente de volta no lugar. Um século de fumaça acre e de mofo sufocavam-me. Eu me sentia tão feliz por estar ali que senti vontade de chorar.

       Não temo nada nem ninguém neste mundo infame (faço questão de dizer isso agora, se já não disse), só o castigo de Alá. Meu temor são os tormentos, evocados muito claramente e várias vezes no Venerável Corão — por exemplo, na surata do Discernimento —, que padecerão no Juízo Final os assassinos da minha espécie. Quando, nos antigos manuscritos árabes em velino ou nas coletâneas de miniaturas mongóis ou chinesas que chegam às minhas mãos, bem raramente é verdade, vejo se animar diante dos meus olhos aquelas representações tão ingênuas quanto assustadoras do Inferno, aquelas cenas de torturas infligidas por todos aqueles demônios, não posso me impedir de interpretá-las num sentido alegórico e de aplicá-lo a mim. De fato, o que diz a surata da Viagem noturna no trigésimo terceiro versículo? “Não matai sem justa causa aquele que Alá proíbe matar.” Pois bem, justamente, o pilantra que mandei para o Inferno não era um verdadeiro crente, como os que Alá proíbe matar! E eu tinha, além disso, excelentes motivos pessoais para lhe arrebentar o crânio.

       Esse canalha derramou-se em calúnias contra todos os que, como eu, trabalhavam em segredo para a confecção do livro para Nosso Sultão. Se eu não lhe tivesse calado a boca, ele teria delatado como incréus não apenas o Tio Efêndi, mas todos os pintores, inclusive Mestre Osman. Pois é só alguém sugerir que os miniaturistas estão cometendo heresias, para que os sequazes do hodja de Erzurum — que só esperam um pretexto para exercitar a sua força —, além de acertar as contas com todos os mestres miniaturistas, destruam o próprio ateliê, e nem mesmo Nosso Sultão poderá fazer o que quer que seja, a não ser assistir calado aos danos perpetrados por eles.

       Como todas as vezes que venho aqui, peguei a vassoura e o pano de chão, que deixo guardados num canto, e fiz a faxina. Isso me reconfortou o coração e me fez sentir novamente como um bom servo de Alá. Orei demoradamente para que ele mantivesse vivos em mim tão bons sentimentos. Mas um frio de fazer raposa cagar cobre mortificava meu corpo e, quando começava a sentir uma dor cruel bem aqui, no fundo da garganta, saí.

       Logo depois, senti mais uma vez aquele estranho estado de inconsciência e dei por mim num bairro completamente diferente. Como cheguei lá, como percorri aquela distância, do convento abandonado a aquelas alamedas margeadas de ciprestes, não tenho a mais remota idéia.

       Mas qualquer que fosse essa distância, um pensamento, de que eu não conseguia me livrar, continuava a me atormentar. Se eu lhes contar qual é, talvez ele se torne menos pesado para mim. Quer eu o chame de vil caluniador, quer o chame por seu nome — Elegante Efêndi —, tanto faz, o fato é que, pouco antes de passar desta para melhor, nosso falecido iluminador acusava veementemente o Tio Efêndi de estar empregando as técnicas de perspectiva dos infiéis e, ao perceber que suas deblaterações não me afetavam muito, o canalha disse: “Há um último desenho. E nesse desenho o Tio profana tudo aquilo em que nós acreditamos. É mais que um insulto à religião, é blasfêmia pura e simples”. Aliás, três semanas antes dessas acusações, o Tio Efêndi tinha me pedido para pintar uma série de imagens sem nenhuma relação entre si — um cavalo, uma moeda, a Morte —, em diferentes cantos da página e em escalas totalmente descabidas, como as da pintura à européia. O Tio sempre se dava ao trabalho de cobrir boa parte da página que ele me pedia para ilustrar, bem como as partes que o falecido Elegante Efêndi havia iluminado, como se quisesse esconder alguma coisa de mim e dos outros pintores.

       Tenho a intenção de perguntar ao Tio Efêndi o que esse último desenho representa, ainda que eu também tenha boas razões para evitar essa pergunta. Se eu o interrogar, ele certamente vai suspeitar que sou eu o assassino do Elegante Efêndi, e divulgará suas suspeitas. A outra coisa que me inquieta é que a resposta do Tio possa dar razão ao Elegante Efêndi. Eu me dizia, sem conseguir me convencer, que talvez pudesse apresentar minha pergunta como uma idéia que me passou pela cabeça, e não como uma suspeita que o Elegante Efêndi me transmitira. A heresia não é tão terrível, quando ainda não se tem plena consciência dela. Mas agora estou plenamente consciente, e tenho medo.

       Sempre antecipando-se ao meu espírito, minhas pernas me levaram à rua onde mora o Tio Efêndi. Escondi-me num canto escuro para examinar sossegado a casa, pelo menos tanto quanto a escuridão permitia. Cercada de árvores, com dois andares, é uma grande e rica residência! Não sei de que lado ficam os aposentos de Shekure. Como em certas miniaturas feitas em Tabriz na época de Tahmasp, xá do Irã, a construção parecia talhada à faca e eu tentava pintar, imaginariamente, o aparecimento de Shekure na moldura de uma janela.

       A porta se abriu, vi o Negro sair na sombra. O Tio olhava com afeto para ele detrás do portão, tardando um instante para fechá-lo.

       Ao ver aquilo, minha pobre cabeça, que se lançava em alucinadas fantasias, tirou rapidamente estas três dolorosas conclusões:

       Um: como o Negro é mais barato e menos perigoso que a gente, o Tio Efêndi vai dar nossa obra para ele terminar.

       Dois: a bela Shekure vai se casar com o Negro.

       Três: o que o infeliz do Elegante Efêndi dizia sobre o Tio era verdade; logo, eu o matei à toa.

       Nesse gênero de situação em que nosso espírito implacável chega mais depressa à conclusão que, para nosso coração, continua sendo inadmissível, todo o nosso corpo se revolta contra ele. Num primeiro tempo, metade do meu espírito insurgiu-se vigorosamente contra essa terceira conclusão, que fazia de mim o mais ignóbil dos assassinos. Nesse meio-tempo, minhas pernas, mais velozes e despachadas, já tinham me posto ao encalço do Negro Efêndi.

       Já tínhamos passado por algumas ruelas quando pensei como seria fácil matar também o Negro, que ia à minha frente com um ar tão satisfeito — de si e da sua sorte —, e como esse crime me evitaria ter de suportar as duas primeiras conclusões estabelecidas por meu espírito. Além do mais, eu não teria estourado o crânio do Elegante Efêndi à toa. Eu só precisava dar seis ou oito passadas para alcançar o Negro e acertar-lhe, com toda a minha força, um golpe igual na cabeça — tudo entraria de novo nos eixos, e o Tio me chamaria para retomar o trabalho do nosso livro. Porém a metade mais prudente e mais honesta do meu espírito (aliás, não é a honestidade, em geral, uma característica dos espíritos temerosos?) me dizia que o canalha que eu havia matado só derramara sobre o Tio calúnias que justificavam plenamente tê-lo mandado terminar seus dias no fundo de um poço e que, por conseguinte, o Tio, não tendo nada a me esconder, não ia tardar a me chamar de novo à sua casa.

       De repente, observando o andar do Negro, compreendi que era tudo uma ilusão, que nada daquilo ia se realizar, que o Negro Efêndi era mais que eu. Acontece com todo o mundo: por semanas, anos a fio acalentamos sonhos, até que um dia alguma coisa, um rosto, uma roupa, uma pessoa feliz que avistamos, nos dá a consciência de que nosso sonho — por exemplo, ganhar a mão da amada ou um cargo importante — jamais se realizará.

       Vendo o Negro sacolejar os ombros, mexer o pescoço daquele jeito irritante, como se agradecesse a todo o mundo ao redor pela sua existência, senti um ódio avassalador encher as profundezas do meu coração. Longe dos debates de consciência, as pessoas a quem o futuro sorri, as pessoas felizes como o Negro acham que o mundo é delas, entram em todas as casas como um rei na sua estrebaria e desprezam a nós, que aí encontram, como se fôssemos seus cavalariços. Estive a um dedo de catar uma pedra para enterrá-la no seu crânio. Não foi fácil resistir.

       Nós dois amávamos a mesma mulher, ele ia na frente, totalmente alheio à minha presença, seguíamos pelo dédalo de ruelas sinuosas que, àquelas horas, até as matilhas belicosas dos cachorros vadios desertam, por aquela Istambul silenciosa em que os djins estão emboscados entre as ruínas calcinadas, em que no pátio das grandes mesquitas os anjos se encolhem no vão das cúpulas; passávamos pelos ciprestes que murmuram para as almas dos mortos, ao longo dos muros nevados dos cemitérios formigantes de espectros, apenas despercebidos dos salteadores prestes a trucidar suas vítimas; margeávamos um sem-número de lojas, estábulos e conventos, fábricas de velas, curtumes, e enquanto assim íamos senti que eu não mais o perseguia, que eu apenas o imitava e que ambos éramos irmãos.

 

                   Meu nome é Morte

       Eu sou a Morte, como vocês estão vendo, mas não precisam ter medo de mim, porque não passo de um desenho. Mesmo assim, ainda leio o terror nos olhos de vocês. E me delicio vendo vocês assustados como criancinhas envolvidas numa brincadeira, apesar de eu não ser a Morte de verdade. Só de olhar para mim, já sentem aquele medo que se apossa de vocês quando chega o inevitável momento. Não estou brincando: diante da morte, a grande maioria dos homens, principalmente os valentes, simplesmente se acovarda. Motivo pelo qual os campos de batalha cobertos de cadáveres, que vocês viram pintados às centenas, têm menos cheiro de sangue, pólvora e armaduras fumegantes do que de carne podre e de merda.

       Sei que é essa a primeira vez que vocês vêem um desenho da Morte.

       Um ano atrás, um velhote alto, magro e misterioso convidou à sua casa o jovem miniaturista que me pintou. No andar de cima, porque era uma casa de dois andares, na penumbra do ateliê, esse homem clareou a mente do jovem pintor servindo-lhe um delicioso café, suave como uma seda e com o aroma marcante do âmbar. Depois, naquele quarto da porta azul envolto na penumbra, o ancião entusiasmou o mestre miniaturista mostrando-lhe o melhor papel do Hindustão, pincéis de pêlo de esquilo, folhas de ouro, toda uma variedade de cálamos e faquinhas de cabo de coral, dando a entender que podia lhe pagar bem, e por fim disse a ele:

       “Faça-me o desenho da Morte”.

       “Como nunca vi um desenho da Morte, eu não saberia desenhá-la”, respondeu o artista de mão maravilhosa que, na verdade, acabaria fazendo o desenho.

       “Para pintar uma coisa, nem sempre você precisa tê-la visto em pintura, ora essa!”, rebateu com paixão o velhote magro e ambicioso.

       “É verdade”, anuiu aquele que ia me desenhar. “Mas para que o desenho tenha a perfeição dos quadros dos mestres, o artista tem de ter se exercitado milhares de vezes. Qualquer que seja a mestria do pintor, sempre que ele pintar um tema novo, sua imagem parecerá a obra de um principiante, e a isso eu não posso me permitir. Ao desenhar a Morte, não posso pôr de lado toda a mestria que adquiri, seria como matar a mim mesmo.”

       “Com o que você entraria no tema”, comentou o velhote.

       “Não é da experiência com o tema que vem nossa mestria, mas de nunca tê-lo experimentado.”

       “Então essa mestria precisa encontrar a Morte.”

       A conversa deles adquiriu desse modo o tom divertido e elevado que tanto convém aos pintores respeitosos dos velhos mestres e conscientes da sua arte, valendo-se ambos de todos os recursos do duplo sentido e da alusão, do simples piscar de olhos à metáfora laboriosamente tecida. Como se tratava da minha pessoa, eu estava atenta à conversa, cuja integralidade seria, tenho certeza, aborrecida ao extremo para os distintos pintores que estão conosco neste café. Vou relatar apenas um ponto da conversa, quando o brilhante ilustrador de lindos olhos e mão firme perguntou, de maneira assaz pertinente:

       “Como se mede o talento de um miniaturista? Pela sua capacidade de pintar qualquer tema com a mesma perfeição que os antigos mestres ou de pintar o nunca antes visto?” Manifestadamente, ele deixava reservada consigo a resposta que conhecia.

       “Para os venezianos, a força de um artista se mede pela sua faculdade de descobrir temas nunca antes representados e utilizar novas técnicas”, sentenciou o velho com arrogância.

       “Os venezianos morrem como venezianos”, disse o pintor que me pintou.

       “A morte de uns é exatamente igual à morte dos outros”, replicou o velho.

       “As lendas e as pinturas atestam o fato de que todos os homens são diferentes, e não que todos se parecem”, insistiu o arguto pintor, “e o miniaturista adquire sua mestria representando histórias cada vez mais originais, como se nos fossem familiares.”

       Assim, foram chegando pouco a pouco às diferentes maneiras que os venezianos e os muçulmanos tinham de encarar a Morte, ao Anjo da Morte e aos outros anjos de Alá, e à incapacidade que têm os infiéis de representá-la nos seus quadros. O jovem pintor, meu criador, que está neste momento me observando do fundo da sala do nosso querido café com seus magníficos olhos, começava a se entediar seriamente, impaciente que estava para deixar sua mão correr à vontade pela folha, apesar de ainda ignorar que tipo de entidade eu era.

       O manhoso e hábil velhote percebia nitidamente a impaciência do rapaz, que convinha às mil maravilhas ao seu plano de persuasão. Em meio às sombras que povoavam o aposento, fixou de repente seus olhos, brilhando com a tênue luz da vela, no jovem miniaturista de mão miraculosa.

       “A Morte, a quem os venezianos dão uma forma humana, é para nós um anjo, como Azrail. Sim, com aparência humana, como Gabriel ao entregar o Corão ao nosso Profeta. Você me entende?”

       Quanto a mim, eu entendia que aquele jovem pintor, a quem Alá concedeu a graça de um incrível talento, começava a se impacientar de verdade e queria pôr logo mãos à obra. O diabólico velhote tinha conseguido infiltrar esta diabólica idéia nele: o que ansiamos essencialmente é pintar o que nos é desconhecido em toda a sua obscuridade, e não o que já conhecemos em toda a sua iluminação.

       “Da Morte, não conheço absolutamente nada”, disse o pintor pouco antes de começar a me desenhar.

       “Todos nós a conhecemos”, respondeu o velho.

       “Temos medo dela, mas sem conhecê-la.”

       “Desenhe então esse Medo”, concluiu o velhote.

       Um momento antes de começar a fazer este desenho, senti a espinha do jovem talento ser percorrida por um arrepio, os músculos dos seus braços se contraírem e seus dedos buscarem o cálamo. No entanto, por ser um verdadeiro mestre, ele se conteve, sabendo que aquele momento de extrema tensão tornava mais profunda em sua alma a paixão pela pintura.

       O esperto velhote estava seguro de si e pôs-se a ler, para inspirar o rapaz que ia me representar, umas passagens sobre a morte escolhidas nos livros abertos diante dele: O livro da alma, de Al-Jawziyya, Das circunstâncias da ressurreição final, de Al-Gazali e o Suyuti.

       Então, enquanto iniciava meu retrato, que vocês estão agora contemplando com tanto pavor, nosso jovem virtuose ouvia como, no Dia do Juízo, o Anjo da Morte abriria seus milhares de asas, abarcando o Céu e a Terra, dos confins do Oriente aos misteriosos extremos do mundo ocidental. Ele ouviu dizer quanto reconforto essas asas protetoras trarão aos crentes e aos humildes, e que horríveis dardos elas serão na carne dos incréus e dos revoltados. Como a maioria dos seus colegas miniaturistas aqui presentes está destinada ao Inferno, ele me pintou eriçado desses dardos. Ouviu também que o anjo enviado por Alá para se apossar da alma de vocês traria um caderno em que estará escrito o nome de vocês todos e que alguns desses nomes estarão sublinhados com um traço negro! Mas somente Alá sabe a hora da morte de cada um e, quando ela chega, cai uma folha da Grande Jujubeira localizada atrás do Seu trono, e quem puder ler o que está escrito na folha caída dessa árvore saberá de quem é a vez. E por isso que o pintor me pintou assustadora e pensativa ao mesmo tempo, como alguém versado em acertos de contas. O velho louco conta-lhe depois que o Anjo, aparecendo em sua forma humana, estica a mão para se apoderar da alma daquele cujo prazo venceu e que um brilho parecido com o do sol põe-se a refulgir. Por isso, o pintor envolveu-me em luz, sem ignorar que essa luz não é visível aos que rodeiam o defunto. E assim, enquanto aquele velho maníaco continuava a ler como os saqueadores de túmulos tinham encontrado corpos varados de dardos e, até, cavando os túmulos frescos, chamas no lugar dos cadáveres e os crânios destes cheios de chumbo derretido, o maravilhoso ilustrador continuava a pintar, atento, de maneira a inspirar seu terror em vocês todos.

       Mais tarde, esse grande artista se arrependeu da obra da sua mão mágica. Não por causa do terror de que impregnou em seu desenho, mas por ter ousado me pintar. E eu me sinto como um filho para o qual o pai olha com um ar incomodado e arrependido. Por que esse artista imenso lamenta me haver pintado?

  1. Porque eu, a pintura da Morte, não fui pintada com suficiente mestria. Como vocês podem ver, não tenho nem a perfeição das obras dos pintores venezianos, nem a dos pintores de Herat. E o fato de o mestre que me pintou não ter sabido pôr em sua obra toda a gravidade que me caberia, é uma vergonha que também me pesa.
  2. Esse pintor, que o velhote, valendo-se dos mais diabólicos subterfúgios, conseguiu persuadir a me pintar, deu-se conta de que estava, sem querer, imitando os métodos e as perspectivas dos mestres venezianos. O que muito o perturbou, porque sentiu que, de certo modo, desrespeitava com isso os velhos mestres e desonrava a si mesmo.
  3. Como tantos imbecis que, sentindo-se confiantes, zombaram atrevidamente de mim, teve de acabar se dando conta de que com a Morte não se brinca.

       E agora, esse pintor do meu retrato percorre sem descanso todas as noites as ruas desta cidade, atormentado por seus escrúpulos. Como certos mestres chineses, ele imagina ter se tornado aquilo que representou.

 

                   Meu nome é Ester

       De manhã cedinho, pus na minha trouxa as encomendas que minhas clientes do Minarete Branco e do Gato Preto tinham feito: tecidos vermelhos e lilás de Biledjik, ótimos para fazer colchas. Não pus junto a seda chinesa verde que o barco dos portugueses tinha trazido havia pouco, levei a azul. Com aquela neve e aquele inverno que não acabava mais, aproveitei para acrescentar alguns pares de grossas meias de lã, umas cintas tricotadas em malha dupla, xales e echarpes espessos de todas as cores, tudo isso bem arrumado e bem dobrado, de maneira a deslumbrar a mais indiferente, mal abrisse meu embrulho. E para as que me chamam menos para comprar do que para dois dedos de prosa, enfiei também uns lencinhos de seda, caríssimos a bem da verdade, mais uns porta-moedas e toalhas de banho bordadas, Tanto pus que, quando quis levantar aquilo tudo, achei que a trouxa ia me arrebentar o lombo. Larguei-a de novo no chão e estava abrindo para ver o que eu podia tirar, quando Nessim me chamou da porta, que ele tinha ido abrir: “Tem alguém te procurando!”.

       De fato, lá estava Hayriye, rubra e roxa, com uma carta na mão.

       “Da parte de Shekure”, cochichou-me, com um ar tão inquieto que parecia ser ela a enamorada que queria se casar.

       Pego a carta gravemente, aconselhando a essa pobre idiota que não deixe ninguém vê-la ao voltar para casa. Nessim me observava com um ar interrogador. Pegando a trouxa enorme que levo para salvar as aparências quando tenho uma carta para entregar, expliquei-lhe: “A filha do Tio Efêndi, Shekure, está se consumindo nas chamas do amor. Perdeu completamente a cabeça, Coitadinha”.

       E saí, soltando uma gargalhada, mas logo me envergonhei, porque, no fundo, eu tinha muito mais vontade de derramar uma lágrima pela triste vida daquela moça tão bonita do que de rir dos seus casos de amor. Como é linda a minha pobre Shekure, com seus grandes olhos negros!

       Passei rapidamente pelas casas decrépitas do nosso bairro judeu, que, no frio da manhã, pareciam ainda mais miseráveis e abandonadas. Bem mais tarde, ao avistar na esquina da rua em que mora o senhor Hassan o mendigo cego que espiona todas as idas e vindas, pus-me a gritar a plenos pulmões: “Roupa nova!”.

       “Não grite tanto, sua gorda tagarelai Eu já tinha te reconhecido pelo barulhão que você faz ao andar!”

       “Seu tártaro desgraçado! Os cegos são calamidades toleradas por Alá. Que ele te envie um monte delas!”

       Não adianta. Não consigo deixar de me irritar em situações assim! Foi o pai de Hassan quem abriu a porta. Esse aí era um tipo de caucasiano desdenhoso como já não existe.

       “Vejamos o que você traz desta vez.”

       “O preguiçoso do seu filho ainda está dormindo?”

       “Como quer que ele durma, se está esperando aflito por você e pelas falsas notícias que lhe traz?”

       Aquela casa é tão escura que cada vez tenho a impressão de entrar num túmulo. Shekure nunca me pergunta nada sobre eles, mas, como quer que seja, o que eu lhe digo sobre aquela casa não é para entusiasmá-la a voltar para lá. Aliás, nem consigo imaginar como a bela Shekure pode ter sido um dia a mulher desta casa, e vivido sob esse teto, com seus dois diabretes. É uma casa que só tem um cheiro: de sono e de morte. Fui até a outra sala, completamente às escuras.

       Não dava para enxergar nada. Mal tirei fora a carta, Hassan, surgindo da escuridão, agarrou-a. Eu ia, como sempre, deixá-lo saciar sua curiosidade dando-lhe todo o tempo para lê-la, mas ele ergueu imediatamente a cabeça.

       “Só isso?”, fez ele, sabendo perfeitamente que não havia mais nada. “É muito pouco para uma carta!” E leu:

       Negro Efêndi,

Você vem à nossa casa e passa aqui o dia inteiro. Mas sei por meu pai que você ainda não escreveu uma só linha para o livro que ele prepara. Saiba que você nada tem a esperar enquanto o livro do meu pai não estiver terminado.

       Hassan me olhava nos olhos com um ar acusador, como se eu fosse a culpada pelo mau rumo que os acontecimentos tomavam. Detesto o silêncio que reina naquela casa.

       “Nenhuma palavra dizendo que é casada e que seu marido vai voltar da guerra. Como é possível?”

       “Como posso saber? Não sou eu que escrevo essas cartas”, repliquei.

       “Às vezes desconfio que sim”, respondeu, devolvendo-me a carta com quinze moedas de prata.

       “Tem gente que, quanto mais ganha, mais pão-duro é. Não é seu caso”, comentei.

       Aquele homem tem um lado tão diabólico e astuto que dá para compreender por que Shekure ainda aceita receber as cartas dele, mau e sinistro como ele é.

       “Que livro é esse do pai de Shekure?”

       “Você sabe muito bem! Parece que é financiado pelo Sultão.”

       “E por causa das miniaturas desse livro os pintores se matam uns aos outros”, ele disse. “Se não é por dinheiro, não seria porque os desenhos ofendem nossa religião? Parece que quem os vê fica cego.”

       Dizendo isso, abriu um sorriso, me dando a entender que não era para eu levar aquilo a sério. Mesmo se fosse, eu levar ou deixar de levar a sério alguma coisa dava na mesma para ele. Hassan era como muitos desses homens que necessitam da minha intermediação para entregar suas cartas: quando se sentem humilhados, permitem-se me desprezar. Para lisonjeá-lo, faço como se me sentisse magoada. Faz parte do jogo. Já as moças, quando se sentem feridas em seu orgulho, caem nos meus braços aos prantos.

       “Você é uma mulher inteligente”, disse-me Hassan para me agradar achando que tinha me ofendido. “Leve rápido esta carta. Preciso saber da resposta daquele idiota.”

       Por um instante, tive a tentação de lhe dizer: “O Negro não é tão bobo assim”. Uma alcoviteira pode ganhar muito, se souber tirar partido desse tipo de rivalidade entre homens, atiçando o ciúme deles. Mas, temendo um brusco acesso de cólera de sua parte, contentei-me em lhe dizer ao sair:

       “Conhece o mendigo tártaro que fica na esquina da sua rua? Que grosseirão ele é!”

       Para não dar de novo com ele, desviei pela outra esquina e, como ainda era cedo, passei pelo mercado das aves. Por que será que os muçulmanos não comem a cabeça nem os pés das galinhas? Mais uma mania deles! Minha falecida avó materna, descanse em paz, contava que, quando chegaram de Portugal, ela sempre fazia grandes sopas com pé de galinha, porque saía quase de graça.

       No Cinturão Vermelho, uma mulher que passava, empertigada e altiva no seu cavalo, como um homem, arrancou-me um suspiro: estava rodeada de escravos. Na certa era esposa de um paxá ou uma rica herdeira... Se o pai de Shekure não tivesse tido a imprudência de desperdiçar sua inteligência com os livros, ou se seu marido tivesse voltado vencedor da guerra contra os safávidas, era assim que ela seria hoje. E teria merecido mais que ninguém.

       Entrando na rua onde mora o Negro, senti meu coração disparar. Será que eu queria mesmo que Shekure se casasse com ele? Porque se, no caso de Hassan, não tenho dificuldade para manter a distância entre os dois e, ao mesmo tempo, mantê-los envolvidos, entre o Negro e ela a história é diferente, pois ele tem de fato todas as qualidades para merecer Shekure, sem falar no seu amor por ela.

       “Roupa nova!”

       Eu não trocaria nada deste mundo pelo prazer de entregar em mãos uma carta da pessoa amada a quem, no fundo da sua solidão, anseia por esposá-la. Todos, mesmo quando têm certeza de que vão receber as piores notícias, quando começam a ler são percorridos subitamente por um calafrio de esperança.

       O fato de Shekure não dizer nada sobre a volta do marido e aquele “você nada tem a esperar enquanto” estabelecer uma condição apenas eram indícios que podiam legitimamente alimentar as esperanças do Negro. Observo-o enquanto lê a carta: sua felicidade parece desconcertá-lo e até assustá-lo. Ele se retira para escrever a resposta e eu aproveito, “entregadora” esperta que sou, para tirar da minha trouxa um porta-moedas preto, que ofereço à sua senhoria:

       “Brocado da Pérsia. Coisa de primeira”.

       “Meu filho morreu na guerra contra a Pérsia. De quem é essa carta que você trouxe para o Negro?”

       Eu podia ler na feia cara de leoa frustrada todas as artimanhas que ela urdia secretamente para ligar sua filha ao seu inquilino.

       “De alguém. Um parente pobre dele, do bairro de Bayrampasha, que está à beira da morte e lhe pede dinheiro.”

       “Oh, que tristeza!”, lamentou-se, sem convicção. “E quem é esse infeliz?”

       “Como foi que seu filho morreu?”, perguntei em resposta.

       Trocamos olhares hostis. Ela era viúva e sozinha como uma velha ratazana! Que vida de cão a dela! Se vocês fossem ambulantes de roupas e de informações como eu, logo descobririam que as pessoas só se interessam pela vida dos ricos e poderosos, ou pelos que têm histórias de amor maravilhosas, que parecem sair direto das lendas persas. Já as preocupações, as brigas, os ciúmes, a solidão, os ódios, as lágrimas, as maledicências e as misérias infinitas acabam todas por se parecer, como os móveis e utensílios que vocês encontram em qualquer casa. Como aqueles ali, justamente: um velho kilim, gasto e desbotado, uma colher de sopa e uma panela de cobre em cima da bandeja de assar pão vazia, tenazes para a lenha e um balde de cinzas ao lado da lareira, dois baús quebrados, um grande e um pequeno, um porta-turbante para indicar que a viúva ainda não se resignou definitivamente à solidão e uma espada enferrujada na parede, para meter medo nos ladrões.

       O Negro reapareceu, todo excitado, trazendo na mão uma bolsa cheia que me entregou, dizendo, menos para mim mesma do que para sua senhoria, que nos espiava de orelha em pé: “Tome, leve isso ao nosso pobre doente. Eu espero um pouco, para ver se tem resposta. Depois estarei em casa do mestre meu Tio, o dia todo”.

       Essa encenação toda não era indispensável: não há nada de vergonhoso, para um bonito e vigoroso rapaz como o Negro, em escolher uma moça procurar saber notícias suas e lhe fazer chegar um lenço ou uma carta. A não ser que ele também tenha interesse pela filha da sua senhoria. Às vezes chego a desconfiar desse Negro e a temer que minha bela Shekure seja vítima de alguma velhacaria dele. Ele, que passa o dia inteiro na mesma casa que ela, como é que não arranja um jeito de lhe passar um bilhetinho?

       Uma vez na rua, abri a bolsa e encontrei doze moedas de prata e urna carta. Estava tão curiosa a respeito do conteúdo daquela carta que quase corri de volta para a casa de Hassan. Era a hora em que os verdureiros expõem nas suas bancas repolhos e cenouras, mas, apesar de alguns bonitos alhos-porós que pareciam me convidar a apalpá-los, passei sem parar, porque minha cabeça estava longe dali.

       Ao entrar na ruela, avistei o tártaro, que com certeza ia me xingar de novo. “Pff!”, contentei-me em lhe fazer, junto com o gesto de lhe dar uma cusparada. O frio de gelar os ossos bem que podia nos livrar de todos aqueles mendigos cegos!

       Mal conseguia dominar minha impaciência enquanto esperava Hassan terminar de ler a carta. Por fim, não agüentei mais e perguntei: “E então?”. Ele me leu a carta em voz alta:

       Querida Shekure Hanim,

Você me pede para terminar o livro do seu pai. Saiba que não tenho outra aspiração. Como já disse, é por esse motivo, e não para incomodá-la, que volto a freqüentar a casa de vocês. Tenho consciência de que meu amor por você só a mim diz respeito, mas também é verdade que esse amor me impede totalmente de pegar a pena para executar a tarefa de escrever o livro do meu Tio. Cada vez que adivinho sua presença nessa casa, fico petrificado e incapaz de ajudá-lo nesse projeto. Pensei bem: a causa de tudo isso é que, passados doze anos, só vi você uma vez, quando apareceu para mim à sua janela. Agora, temo voltar a perder essa visão furtiva. Se eu pudesse revê-la de novo uma só vez, só uma, eu não temeria mais esquecer sua imagem e acabaria sem dificuldade a tarefa confiada por seu pai. Ontem, Shevket me levou à casa do judeu enforcado. Essa casa está vazia, ninguém pode nos surpreender lá. Espero-a lá dentro hoje, na hora que você quiser. Ontem, Shevket me disse que você sonhou que seu marido tinha morrido.

       Hassan, que lia a carta do Negro dando à sua voz grosseira uma inflexão afeminada, ressaltando certas passagens com um tom suplicante e trêmulo, acabou rebentando de rir. Debochou da expressão persa “uma só vez, só uma”, que comentou assim: “O Negro mal recebeu de Shekure algumas razões para ter esperança, e já começa a pechinchar. Esse gênero de cálculo de quitandeira não é digno de um verdadeiro amante”.

       “Mas o caso é que ele está de fato apaixonado por ela”, disse eu na maior inocência.

       “Dizendo isso você só me prova que está do lado do Negro”, rebateu, e observou: “Se ela disse que viu meu irmão morto em sonho, isso quer dizer que ela aceita a idéia de que meu irmão morreu...”.

       “É só um sonho”, repliquei com meu ar mais ingênuo.

       “Conheço Shevket. Ele é inteligente, esperto. Moramos tanto tempo sob o mesmo teto, aqui mesmo! Se a mãe dele não o houvesse autorizado e até mandado, ele não teria levado o Negro à casa do judeu enforcado. Mas se Shekure imagina que vai se livrar assim do meu irmão e de nós, está muito enganada! Meu irmão está vivo e vai voltar da guerra.”

       Sem nem sequer terminar essas palavras, entrou no quarto, onde quis acender uma vela no fogo da lareira. Mas soltou um grito: queimou a mão. Lambendo-a, pôs a vela finalmente acesa ao lado da mesa. Tirou do estojo uma pena já pronta, mergulhou-a no tinteiro e pôs-se a encher uma pequena folha com sua escrita rápida. Sinto que ele gosta que eu fique olhando, mas para lhe mostrar que não me intimido, faço um esforço e consigo sorrir.

       “Sabe quem é esse judeu enforcado?”, pergunta-me.

       “Há uma casa amarela mais ou menos atrás da deles. Moshe Hamon, o riquíssimo médico do Sultão anterior, escondia nela, segundo dizem, sua amante, uma judia de Amasya, e o irmão desta. Muitos anos atrás, na véspera da Páscoa, correu o boato de que um jovem grego tinha desaparecido no bairro judeu dessa cidade, teria sido raptado para ser estrangulado e fazerem pão ázimo com seu sangue. Arranjaram falsas testemunhas, puseram-se a matar judeus e essa mulher refugiou-se com o irmão em Istambul, na casa do amante, com a permissão do Sultão. Quando o Sultão morreu, seus inimigos não encontraram a mulher, mas puderam enforcar o irmão, que vivia sozinho lá.”

       “Se Shekure não esperar a volta do meu irmão, ela também será castigada”, disse Hassan entregando-me sua carta.

       No seu rosto eu só lia, em lugar da irritação e da cólera, aquele ar contrito e perdido que vemos nos apaixonados sinceros. De repente vi naquele olhar quão depressa o amor o envelhecera. É verdade que todo aquele dinheiro que ele ganha agora, no seu cargo na alfândega; não contribui para rejuvenescê-lo. Depois de todas aquelas ameaças e caretas ofendidas, eu me disse que ele ia me perguntar novamente qual o meio de persuadir Shekure. Mas ele estava agora tão próximo de encarnar o homem mau que não podia mais formular sua pergunta. Basta um homem aceitar esse papel de malvado—e um amor não correspondido não é uma má ocasião para representá-lo —, que logo se torna totalmente selvagem. Pensando nas crianças, de que ele falara, e naquela terrível espada rubra e afiada, vi-me tomada por um súbito pânico e saí fugida daquela casa.

       E não é que, na rua, dou novamente de cara com o cego tártaro e seus insultos! Não perdi tempo: catei uma pedra no chão e, antes de colocá-la no lenço do mendigo, disparei-lhe: “Tome isto, seu tártaro piolhento!”.

       Contendo o riso, vi-o pegar a pedra, achando que se tratava de uma moeda e, sem ouvir suas imprecações, fui visitar uma dessas boas moças a quem arranjei um excelente marido.

       A doce “filha” primeiro me fez a honra de um resto de torta de espinafre, ainda bem crocante. Depois, como ela estava preparando para o almoço um guisado de cordeiro com ovos e ameixas azedas, uma verdadeira iguaria, não quis magoá-la e esperei para provar duas boas colheradas, que comi com pão fresco. Como ela também fazia uma compota de uvas, não me fiz de rogada e, para rematar a comilança, fartei-me dessa delícia a que misturei uma bela porção de geléia de rosas. E fui levar as cartas à minha melancólica Shekure.

 

                   Eu, Shekure

       Quando Hayriye veio me dizer que Ester estava aqui, eu estava arrumando as roupas lavadas na véspera. Bem, era isso que eu havia planejado dizer a vocês, mas para que mentir? Sim, é verdade, quando Ester chegou, eu estava dentro do armário embutido espiando o Negro e meu pai pelo buraco na parede e, como esperava ansiosa a próxima carta de Hassan ou do Negro, era justamente nela, Ester, que eu pensava. Porque, do mesmo modo que o pressentimento da morte que obcecava meu pai me parecia justificado, eu também sabia que o interesse que o Negro manifestava por mim não duraria a vida toda. O Negro desejava se casar porque estava apaixonado e, porque desejava se casar, se apaixonou. Se não fosse comigo, teria se casado com outra e, naturalmente, teria se apaixonado por ela antes de se casar.

       Na cozinha, depois de convidar Ester a sentar-se num canto, oferecendo-lhe um copo de sorvete de rosas, Hayriye olhou para mim com um ar desconfiado. Eu disse a mim mesma: “Receio que essa aí conte ao meu pai tudo o que vê, desde o dia em que ele a pôs para dormir na sua cama”.

       “Minha bela infeliz de olhos negros, minha sublime bela entre as belas! Estou atrasada porque aquele porco do Nessim, que me serve de marido, não me queria deixar sair de casa. Acredite, saiba que é uma felicidade não ter sempre um marido atrás de você!”

       Com essas palavras, ela tirou fora duas cartas, que arranquei das suas mãos. Hayriye tinha se posto num canto à parte, de onde podia ouvir tudo sem estar grudada na gente. Dando as costas para Ester, comecei a ler a carta do Negro. Estremeci ao pensar naquela casa do judeu enforcado. Calma disse a mim mesma, vai dar tudo certo, Shekure. Depois passei à carta de Hassan, que parecia decididamente furioso.

       Shekure Hanim,

Ardo de desejo e sei que para você isso não tem a menor importância. De noite, sonho que corro, perseguindo sua aparição pelas montanhas desertas. Cada carta minha que você lê sem respondê-la é como uma flecha que me atinge em pleno coração. Escrevo esta esperando uma resposta. O boato, o boca-a-boca, diz que seus filhos teriam ouvido você dizer que, tendo visto em sonho seu marido morto, não seria mais uma mulher casada. Não sei se essa história é verdadeira. O que sei é que você ainda é a mulher do meu irmão mais velho e que ainda pertence à nossa casa. Meu pai é da mesma opinião. Iremos hoje ao juiz e, depois, vamos buscá-la. Pode dizer a seu pai que irei com meus homens. Arrume suas coisas, você volta para nossa casa. E faça sua resposta chegar rapidamente por Ester.

       Li a carta uma segunda vez, depois, tratando de me controlar, interroguei Ester com o olhar. Mas ela não me contou mais nada, nem sobre Hassan, nem sobre o Negro.

       Então fui buscar um cálamo na caixa ao lado do guarda-louça, pus uma folha de papel na tábua de cortar pão, porém, mal comecei a escrever minha resposta ao Negro, parei, congelada...

       Uma coisa me viera à cabeça. Virei-me para Ester. Vendo-a encantada como uma criança por poder se entupir à vontade com sorvete de rosas, disse a mim mesma que seria ridículo fazer-lhe confidências. Guardei o papel e o cálamo e disparei-lhe meu sorriso mais sedutor.

       “Minha linda, como você está sorrindo bonito”, disse ela. “Não há dúvida, você vai ver: tudo vai se arranjar! Com essa sua beleza, e dona-de-casa incomparável ainda por cima! Istambul está cheia de ricos senhores e valorosos paxás que sonham em encontrar uma esposa como você.”

       Às vezes a gente diz o que pensa, porém mal as palavras saem da sua boca você se pergunta: por que foi que eu disse isso, se não é o que penso? Foi o que aconteceu quando respondi assim a seus elogios:

       “Por Alá, minha boa Ester, quem pode querer uma viúva como eu, com dois filhos para criar?”

       “Há muita gente que procura uma viúva como você, acredite”, concluiu ela, juntando o gesto à palavra.

       Olhei-a nos olhos. E disse a mim mesma que não gostava dela. Meu silêncio a fez entender que eu não lhe confiaria a resposta a levar e que era melhor ela ir embora já. Depois que ela se foi, era como se eu pudesse sentir esse meu silêncio, como dizer, soar na minha alma. Subi então para me refugiar no meu quartinho, onde fiquei um bom tempo, no escuro, de pé, encostada na parede. Pensava em mim, no que eu poderia fazer agora, no medo que crescia dentro de mim. E o tempo todo, metade de mim podia ouvir meus filhos brigando:

       “Você parece menina, só ataca pelas costas!”, reclamava Shevket.

       E Orhan: “Meu dente está mole!”.

       A outra metade estava atenta ao que meu pai dizia ao Negro.

       A porta do seu gabinete — a porta azul — tinha ficado entreaberta, de modo que eu podia ouvir toda a conversa dos dois: “Depois de ver os retratos da escola italiana, a gente compreende horrorizado”, dizia meu pai, “que, na pintura, os olhos não podem ser simplesmente dois buracos redondos numa cara, iguais para todo mundo, mas têm de ser qual nossos próprios olhos, que refletem a luz como um espelho e a absorvem como um poço. Do mesmo modo, os lábios não se resumem a uma fresta reta, traçada num rosto plano como o papel, mas têm de ser pontos de expressão — para cada qual, um diferente matiz de vermelho —, transmitindo plenamente nossa alegria, nossa tristeza e nosso estado de espírito, mediante uma sutil contração ou um suave relaxamento. Também o nariz não pode ser mais uma espécie de parede separando as duas metades do rosto, mas sim um instrumento vivo e curioso, com uma forma única para cada um de nós”.

       Ouvindo meu pai dizer “nós” a propósito daqueles grandes personagens ímpios que se fazem retratar, eu me perguntei se o Negro compartilhava a minha estupefação. Espiei-o pelo buraco na parede e a palidez do seu rosto me apavorou: meu belo moreno, meu cavaleiro melancólico, será a insônia, será o fato de pensar em mim sem parar que te dá esse ar tão triste?

       Ah, talvez vocês não saibam que o Negro é um homem alto, esbelto e bonito. Tem uma testa larga, olhos amendoados, um nariz viril, reto e elegante. Conservou as mãos longas e finas, com dedos ágeis e nervosos, que já tinha em criança. De pé, é desempenado, sempre ereto, ombros largos mas não tanto quanto os de um carregador. Quando era pequeno, não parava sossegado: o rosto e o corpo sempre irrequietos, sempre mutáveis. Desde a primeira vez que o revi, doze anos depois, do fundo do meu esconderijo, compreendi que estava agora diante de um homem, de um homem de verdade.

       Sempre com o olho grudado no buraco, reconheci, em seus traços fortes, a mesma expressão de antigamente, triste e preocupada. Ao pensar que era eu a causa daquela melancolia, senti-me um pouco culpada e, ao mesmo tempo, orgulhosíssima. O Negro ouvia atentamente as explicações do meu pai, olhando um dos desenhos feitos para o livro, com um ar enternecedor de criança inocente. Foi então que, ao ver sua boca rosada se abrir como um bebê teria feito, senti de repente como se estivesse lhe oferecendo o meu peito, segurando delicadamente sua cabeça sob a nuca e passando os dedos pelos seus cabelos. Ele teria encostado a cabeça no vão entre meus seios e, como meus filhos mesmos faziam quando eram bebês, rolado os olhos de prazer, enquanto chupava o bico do meu seio; e, compreendendo enfim que somente graças à minha compaixão ele encontraria a paz, ficaria completamente ligado a mim.

       Esses pensamentos agradáveis me deixavam ligeiramente febril, e imaginei por um instante que não era a miniatura do Diabo, que meu pai lhe mostrava agora, o que maravilhava tão intensamente o Negro, mas sim meus seios, o tamanho dos meus seios. E não só meus seios: como se estivesse ébrio de me ver, ele contemplava, cheio de surpresa, meus cabelos, meu pescoço; a mim, toda. Sua atração por mim era tanta que em seu rosto eu lia agora todas as palavras doces que, mais moço, ele não soubera dizer; e, em seus olhos, pude perceber toda a admiração que lhe causaram minha altivez, meus bons modos, minha educação, a paciência e a coragem com que esperei meu marido, e a elegância da carta que lhe escrevi.

       Eu sentia, outra vez, uma violenta irritação com os estratagemas que meu pai inventava para impedir que eu me casasse de novo. E também me sentia farta das suas intermináveis lembranças de Veneza, daquelas ilustrações que ele estava fazendo os miniaturistas pintarem imitando os mestres europeus.

       Fechando novamente os olhos, pensei — juro por Alá que esse pensamento foi involuntário — no Negro se aproximando devagarinho no escuro, e até podia senti-lo junto de mim. Senti-o chegar por trás, ele beijava a minha nuca, as minhas orelhas, e eu sentia como ele era forte, era sólido, grande duro até, podia me apoiar nele confiante. Minha nuca estava arrepiada, o bico dos meus seios, duros. Eu chegava a sentir, ali no escuro, olhos fechados, grudado em mim, seu membro volumoso por trás. Minha cabeça pôs-se a girar. Como será o coiso do Negro, eu me perguntava.

       Às vezes, nos meus sonhos, vejo meu falecido marido me mostrar o dele, em sua agonia. Noto que ele se esforça para continuar de pé, apesar das lanças e das flechas safávidas que o trespassaram, mas seu corpo sanguinolenta não consegue se aproximar de mim, seu caminho está obstruído por um rio. Ele me chama da outra margem, sofrendo terrivelmente, coberto de ferimentos, pede-me para olhar aquela coisa enorme que ele mantém rígida diante de si... Se o que dizem as georgianas e as velhas do meu hamam é verdade — “Sim, garanto que fica deste tamanho” —, o do meu marido não é tão grande assim. E se o do Negro for maior, se aquela coisa enorme que vi ontem logo abaixo do seu cinto, quando Shevket foi lhe entregar a folha em branco, for mesmo a coisa dele (e era, tenho certeza!), tenho medo que me machuque, se é que vai conseguir entrar!                                                

       “Mamãe, Shevket está implicando comigo!”

       Saí do escuro do armário, sem fazer barulho, e fui pegar meu lenço vermelho no baú do quarto ao lado. Eles tinham puxado meu colchão e pulavam em cima dele, empurrando-se aos gritos.

       “Quantas vezes eu já disse a vocês para não gritar quando o Negro Efêndi estiver aqui em casa!”

       “Mamãe, por que você botou seu lenço vermelho?”, perguntou Shevket.

       “Mamãe! Shevket está implicando comigo!”, gritava Orhan.

     “Pare de implicar com ele, ouviu? Que porcaria é aquela?”, perguntei, vendo uma espécie de pele de bicho num canto.

       “Está morto”, respondeu Orhan. “Foi Shevket que encontrou na rua.”

       “Vão jogar isso de volta onde acharam!”

       “Quem tem de jogar é Shevket!”

       “Os dois, já disse!”

       Quando me viram fazer cara feia — mordo os lábios com raiva, como se estivesse a ponto de lhes dar uns safanões —, eles saíram em disparada, sem discutir. Tomara que voltem logo e não se resfriem!

     De todos os pintores, o Negro é meu preferido. Porque é ele que mais me ama e porque conheço seu caráter. Peguei uma folha e um cálamo e, de um só fôlego, escrevi sem nem sequer pensar:

Está bem. Vou me encontrar com você logo antes da prece da noite, na casa do judeu enforcado. Trate de terminar logo o livro do meu pai.

       A Hassan eu não respondi. Mesmo se ele e o pai forem realmente falar com o juiz hoje, não creio que venham logo em seguida me tirar daqui com os valentões que estão reunindo. Se fosse essa, de fato, a intenção deles, Hassan viria direto para cá, em vez de me escrever e ficar esperando uma resposta. Por enquanto, ele vai ficar esperando minha carta, e sempre pode, se a espera o enlouquecer, ir recrutar uns brutamontes para me raptar. Não é que eu não tenha medo dele. Mas a verdade é que confio no Negro para nos proteger. Aliás, é melhor eu lhes contar logo o seguinte: no fundo, não tenho tanto medo assim de Hassan, porque amo a ele também!

       Digo “amar”, e admito que vocês têm razão para se irritar. Isso apesar de eu ter tido tempo de sobra para constatar que vil e covarde aproveitador ele é durante os longos anos passados sob o mesmo teto à espera do meu marido. Mas Ester diz que, agora, ele ganha muito dinheiro e vejo, pela sua cara, que ela diz a verdade. Assim, como o dinheiro lhe dá agora muito mais segurança, parece-me que toda aquela maldade que o animava transformou-se num lado sombrio, estranho, fascinante. Descobri esse seu lado à força de receber e ler suas cartas.

     Porque Hassan, assim como o Negro, sentiu por mim uma paixão ardente. Mas enquanto o Negro ficou longe, desaparecido por doze anos, porque estava zangado, Hassan me mandava cartas todos os dias, com desenhos de passarinhos, de gazelas. No início, eu me apavorava ao ler aquelas cartas. Depois elas passaram a me intrigar...

       Sabendo que Hassan se interessa muito por tudo o que me diz respeito, não me espantei ao descobrir que ele estava a par do meu sonho sobre a morte do meu marido. O que desconfio é que Ester lhe mostra as minhas cartas ao Negro. E essa a razão pela qual não confiei minha resposta a Ester desta vez. Vocês devem saber se essas precauções valem a pena.

       “Onde é que vocês andavam?”, ralhei com os meninos, quando voltaram.

      Mas eles viram que eu não estava com raiva de verdade. Peguei Shevket comigo para voltar ao armário, sem que Orhan nos visse. Botei-o em meus joelhos e comecei, no escuro, a beijá-lo, nos cabelos, no pescoço, pelo corpo todo.

       “Está com frio, amor? Me dê aqui suas mãozinhas para mamãe esquentá-las.”

       Suas mãozinhas lindas fediam a carniça, mas não lhe disse isso. Ao contrário, mantive-o demoradamente contra mim, apertando sua cabeça contra os meus seios. Uma vez bem aquecido, ele pôs-se a ronronar de prazer, baixinho, como um gatinho.

       “Você gosta muito da sua mamãe?”

       “Hum-hum.”

       “De verdade?”

       “Sim.”

       “Gosta dela mais que tudo no mundo?”

       “Sim.”

       “Então eu vou te contar uma coisa. Um segredo. Que você não pode contar a ninguém, está bem?” E disse-lhe no ouvido: “Eu também te amo mais que tudo no mundo, você sabia disso?”

       “Mais que Orhan até?”

       “Mais que Orhan. Ele é pequeno, é como um canarinho: não entende nada. Você entende, porque você é inteligente.” Eu o beijava, cheirando seus cabelos. “É por isso que vou te pedir uma coisa. Ontem você já levou um papel para o Negro, sem nada escrito. Você leva outro para ele hoje?”

       “Foi ele que matou meu pai.”

       “O que?”

       “Foi ele que matou meu pai. Ele me disse isso ontem, na casa do judeu enforcado. ‘Fui eu que matei seu pai. Matei uma porção de gente’, ele disse.”

       Houve um gesto repentino. Pronto, ele pulou do meu colo e pôs-se a chorar. Por que será que esse menino está chorando? Tudo bem, confesso, não consegui me controlar e sapequei-lhe um tabefe. Não pensem que tenho um coração de pedra. E que fiquei irritada ao ouvi-lo falar assim — só porque convém a ele — do homem que tenho a intenção de desposar.

       Mas ouvindo meu orfãozinho querido chorar, também fiquei à beira das lágrimas. Tornamos a nos abraçar, e ele chorava de soluçar. Mas um tapinha como aquele não era motivo para tanta choradeira! Afaguei-lhe os cabelos.

       Foi assim que tudo começou: vocês sabem que ontem falei com meu pai do sonho que tive, em que meu marido estava morto. Mas, na verdade, como tem acontecido com freqüência durante esses quatro anos desde o fim da guerra contra o Irã e os safávidas, eu apenas tive um sonho fugaz com ele, e no sonho também havia um morto. Se esse morto era ele, não ficou claro.

       Os sonhos sempre têm uma utilidade. Em Portugal, de onde veio a avó de Ester, dizem que os católicos usavam os sonhos dos heréticos como prova de que eles se encontravam com o Diabo e fornicavam com ele. Assim, por exemplo, quando os antepassados judeus de Ester se viram obrigados a converter-se ao catolicismo, os carrascos jesuítas da Igreja portuguesa, não acreditando na sinceridade da conversão, submeteram-nos à tortura para forçá-los a confessar que seus sonhos eram povoados de toda sorte de djins e demônios, além de arrancar-lhes sonhos que eles nunca haviam sonhado. Era desse modo que obtinham o pretexto para mandar os judeus para a fogueira.

       Os sonhos servem para três coisas:

       Alif — quando você deseja alguma coisa mas não tem o direito de desejá-la. Então você diz: vi em sonho, e assim pede o que deseja sem pedir diretamente.

       Ba — quando você quer prejudicar alguém, por exemplo caluniando essa pessoa. Você diz: vi em sonho Fulana Hanim se divertindo, e não era com o marido; ou o paxá Beltrano esvaziando não sei quantas garrafas. Mesmo se ninguém acreditar, essa simples menção sempre deixa um vestígio na cabeça das pessoas.

       Djim — quando você quer alguma coisa mas não sabe direito o que é. Você conta o sonho, um sonho bem complicado. As pessoas interpretam o sonho e dizem o que você quer ou o que pode ajudar você a conseguir. Um marido, por exemplo, um filho, uma casa...

       Todos esses sonhos, naturalmente, não têm nada a ver com os que temos em nosso sono. Em geral a gente conta os sonhos diurnos como se fossem sonhos noturnos por interesse. Só os idiotas contam seus verdadeiros sonhos, os que eles têm dormindo. Então todo o mundo zomba deles ou lhes atribui um sentido nefasto. Os verdadeiros sonhos só são levados a sério por quem os tem. Ou será que vocês levam?

       Quando evoquei, diante do meu pai, a possibilidade de que meu marido estivesse morto, como no meu sonho, ele nem esperou que eu terminasse de falar para me dizer que, a seu ver, esse sonho não era um indício da realidade. Mas, ao voltar do enterro, ele tinha chegado à conclusão inversa: que meu marido estava sem dúvida nenhuma morto. Assim, bastou um sonho para que meu marido, que nestes quatro anos era considerado vivo, seja agora considerado morto e que sua morte, agora anunciada, até se torne quase oficial. Os meninos compreenderam que tinham ficado órfãos, é por isso que estão tristes.

       “Você costuma sonhar?”, perguntei a Shevket.

       “Costumo”, ele respondeu sorrindo. “Meu pai não volta, mas no fim eu é que sou seu marido.”

       Com seu nariz estreito, seus olhos negros e seus ombros quadrados, ele se parece mais comigo do que com o pai. E, quando vejo que não dei a testa alta e larga do meu marido aos meus filhos, que têm, todos os dois, o cabelo implantado bem baixo, sinto-me um pouco culpada, às vezes.

       “Bom, vá brincar de espada com seu irmão!”

       “Com a espada velha do meu pai?”

       “É.”

       Os olhos fixos no teto do quarto, eu ouvia, não sem certa inquietação, os gritos dos dois e o barulho da espada. Mas eu me disse que não havia por que me preocupar. Depois, como não agüentava mais, acabei descendo à cozinha, para dizer a Hayriye:

       “Faz uma eternidade que meu pai pede uma sopa de peixe. Vá ao mercado do Galeão, mas antes pegue uns tabletes de geléia de frutas no esconderijo e dê às crianças.”

       Enquanto Shevket se entupia de doce na cozinha, subi ao segundo andar com Orhan. Peguei-o no colo e beijei-o no pescoço.

       “Você está ensopado! E isso aqui, o que foi?”

       “Foi Shevket, que me bateu com a espada vermelha do tio Hassan.”

       “Vai ficar roxo!”, suspirei esfregando-o. “Está doendo? Que maluco, esse Shevket. Escute bem o que vou te dizer. Você é um menino bonzinho e esperto, eu sei. Então vou te pedir uma coisa. Se você fizer o que vou te pedir, eu te conto um segredo, só para você, para mais ninguém, nem para Shevket.”

       “É o quê?”

     “Está vendo este papel? Vá ver o vovô e, sem que ele veja, ponha o papel na mão do Negro. Entendeu?”

       “Entendi.”

       “Vai fazer o que te pedi?”

       “Qual é o segredo?”

       “Primeiro leve o papel.” Beijei de novo seu pescocinho cheiroso. Quer dizer, cheiroso é um modo de falar. Quantas vezes tenho de dizer a Hayriye para levá-los ao hamam? Ela não os leva, acho eu, desde que Shevket começou a ter ereções na frente das mulheres nuas. “Depois eu te digo o segredo.” Mais um beijinho. “Você é um menino muito bonito, muito inteligente. Shevket é um bobo. Ele bate até na mamãe dele!”

       “Não vou levar. Tenho medo do Negro, ele matou meu pai.”

       “Foi Shevket que te disse isso? Vá já buscá-lo lá embaixo. Diga que estou chamando.” Vendo minha cara brava, saiu sem que eu tivesse de repetir a ordem, tanto mais que na certa não lhe desagradava nem um pouco a idéia de ver seu irmão em maus lençóis. Eles chegaram logo depois, vermelhos como pimentões, Shevket trazendo numa mão um tablete de geléia de fruta e, na outra, a espada.

       “Você disse ao seu irmão que o Negro Efêndi matou o pai de vocês. Nunca mais diga isso nesta casa! Vocês têm de respeitar e querer bem ao Negro Efêndi, ouviram? Não vão passar a vida toda sem um pai, afinal!”

       “Não quero saber dele. Quero voltar para a casa do tio Hassan, para esperar meu pai”, respondeu Shevket, com insolência.

       Aquilo me deixou furiosa, e dei-lhe outro tabefe. Ele deixou a espada cair no chão.

       “Quero meu pai”, ele recomeçou a chorar.

       Mas eu chorava ainda mais que ele.

       “O pai de vocês não vai voltar mais. Ele morreu”, dizia eu chorando. “Vocês não têm mais um papai, será que não entendem, seus bastardos.” Eu chorava tão alto que receei que nos ouvissem.

       “A gente não é bastardo”, gemia Shevket.

       Choramos os três um tempão, todas as nossas lágrimas. O choro aliviou meu coração e senti que chorava porque o pranto nos torna mais compassivos. Ainda chorávamos quando nos deitamos no colchão. Shevket aconchegou-se bem a mim, o nariz enfiado na minha blusa. Sinto que, quando está grudado assim em mim, ele na verdade não dorme. Eu também devia estar dormindo, mas meu espírito estava no andar de baixo. Um cheirinho gostoso de doce de cidra subia da cozinha. Levantei-me de um pulo e fiz barulho para acordá-los, dizendo:

       “Vão depressa lá embaixo provar o que Hayriye preparou para vocês.”

       Fiquei sozinha no quarto. A neve começara a cair. Implorei a ajuda de Alá e abri o Corão na surata A família de Imran e, lendo que os mártires do islã, os que morrem na guerra santa, se reunirão junto de Alá, senti-me tranqüila por meu falecido marido. Será que meu pai já tinha mostrado ao Negro o retrato, inacabado, do Nosso Sultão? Meu pai diz que a pintura ficou tão parecida que, quem a olha face a face, fica com medo e acaba desviando os olhos.

       Chamei Orhan e, sem pegá-lo no colo, dei-lhe de novo uma porção de beijos, na cabeça e no rosto. “Bom, agora que você não está mais com medo, vá levar, sem que vovô veja, este papel para o Negro Efêndi. Está bem?”

       “Meu dente está mole.”

       “Se quiser, quando você voltar eu arranco. É só chegar perto dele, ele vai ficar intrigado e te abraçar. Nesse instante, enfie o papel na mão dele. Está bem?”

      “Estou com medo.”

       “Não precisa ter medo. Se não for o Negro, sabe quem será seu pai? O tio Hassan! Você quer que o tio Hassan seja seu pai?”

       “Não, não quero.”

       “Então vá, meu Orhan querido, meu menino lindo e inteligente. Bom... vou acabar me zangando... E, se você chorar, vou me zangar mais ainda.”

       Enfiei o papel dobrado em oito na palma da sua mãozinha resignada. Meu bom Alá, ajude-me para que meus dois orfãozinhos não fiquem sem pai por muito tempo! Levei-o pela mão até a porta do nosso quarto. No corredor, vi-o virar-se para mim uma derradeira vez, todo desconcertado.

       Voltei ao meu posto de observação e lá, pelo buraco no fundo do armário, vi-o aproximar-se indeciso do Negro e de meu pai. Hesitou um instante virou-se, desamparado, buscando em vão meu olhar atrás da parede em que eu estava escondida. Depois, juntando toda a sua coragem, conseguiu lançar-se nos braços do Negro. O Negro, que mostrou, nessa ocasião, uma presença de espírito digna do futuro pai dos meus filhos, longe de se perturbar ao ver Orhan em lágrimas no seu colo, imediatamente tomou-lhe o papel das mãos, com toda discrição.

       Ante o olhar espantado do meu pai, Orhan veio correndo se jogar nos meus braços, e eu o cobri de beijos, antes de levá-lo embaixo, na cozinha, e pôr-lhe na boca um punhado de passas, que ele adora.

       “Hayriye”, ordenei, “leve as crianças ao Cais do Galeão e compre na banca do Kosta peixe para a sopa. Tome vinte moedas de prata. Com o troco, compre na volta figos e cerejas secos para Orhan. Para Shevket, compre um pouco de grão-de-bico tostado e uma porção de confeitos com nozes, como ele gosta. Podem passear quanto quiserem até a noite, mas tome cuidado para que eles não se resfriem.”

       Eles se vestiram e saíram, e eu fiquei contente ao me ver sozinha em casa. Subi para pegar, na bolsa de seda acolchoada e perfumada com lavanda, onde o guardo, o espelho feito por meu sogro, que meu marido me deu de presente. Pendurei-o a boa distância, de modo que pudesse ver, virando-me, cada detalhe da minha silhueta refletir-se nele. Esse lenço vermelho combina com a cor da minha pele, não há dúvida... Mas eu queria usar também a blusa lilás, aquela que minha mãe já tinha no seu enxoval e que eu acabava de encontrar no baú. Tirei também do baú um xale florido, cor de pistache, mas não combinava com o resto. Vestindo a blusa, senti frio, tremi, e a chama da vela também tremeu, suavemente. Eu ia pôr também meu casaquinho vermelho com forro de raposa, mas na última hora mudei de idéia e fui pegar no corredor o casaco azul-claro de lã da minha mãe, mais comprido e mais pesado. Nesse instante, ouvi vozes junto da porta da entrada e disse a mim mesma: o Negro está indo embora! Tirei então o casaco grande da minha mãe e pus de novo o vermelho. Está apertado no peito, mas eu o adoro. Ajeitei os cabelos e baixei o véu de crepe sobre os meus olhos.

       O Negro ainda não tinha saído, é claro. Devo ter me enganado, por causa da emoção. Como quer que seja, se me perguntassem aonde eu ia, era só dizer que ia me encontrar com Hayriye e as crianças para fazer compras com eles. Desci a escada como um gato.

       Clique! Como um fantasma, fechei a porta às minhas costas. Não havia nenhum ruído no pátio e, uma vez na rua, virei-me um instante para dar uma olhada na casa, através do meu véu. Tive a impressão de não morar lá.

       Não havia vivalma nas ruas. Os flocos de neve turbilhonavam no ar. Entrei arrepiando-me toda naquele jardim abandonado, que a luz do sol jamais visita. Ele recendia a húmus e a morte, mas, uma vez dentro da casa do judeu enforcado, senti-me como se estivesse em casa. Dizem que os djins se encontram lá de noite, em volta da lareira, para realizarem seu conciliábulo. O ruído dos meus passos naquela casa tinha um quê de apavorante. Esperei imóvel como uma pedra. Ouvi um estalido no jardim, depois nada. Não longe dali, um cachorro latiu. Acho que sou capaz de reconhecer o latido de todos os cachorros do nosso bairro, mas aquele me era totalmente desconhecido.

       No silêncio que sepultava pouco a pouco a casa, senti de repente outra presença e fiquei ainda mais imóvel, com medo de fazer algum barulho se me mexesse. Na rua, passaram umas pessoas conversando; pensei em Hayriye e nas crianças. Tomara que não se resfriem! Depois, no profundo silêncio que voltara a se instalar, fui tomada de arrependimentos, de remorsos! O Negro não viria, claro, eu tinha cometido um erro, melhor seria voltar já para casa, sem me expor a uma vergonha maior. Também fiquei com medo de que Hassan tivesse me seguido até ali, quando ouvi a porta ranger.

       Mudei rapidamente de lugar. Não sei por que fiz isso, mas assim eu me encontrava à luz da janela, à minha direita; e senti que aquela luz do jardim, incidindo sobre mim, me ofereceria aos olhos do Negro “dentro dos mistérios da sombra”, como meu pai dizia. Ajustei meu véu e esperei, atenta ao barulho dos seus passos.

       Assim que me notou, da moldura da porta, o Negro veio em minha direção. Parou e nós nos observamos a alguns passos de distância. Ele era mais forte, mais robusto do que eu percebera pelo buraco da parede. Após um instante de silêncio, ele me disse:

       “Levante o véu. Por favor.”

       “Sou uma mulher casada. Espero meu marido.”

       “Levante o véu. Ele nunca mais vai voltar.”

       “Foi para me dizer isso que você me fez vir aqui?”

       “Não, foi para te ver. Faz doze anos que penso em você. Levante o véu para que eu possa te ver.”

       Ergui o véu. A maneira como ele me contemplou, longamente, sem dizer nada, me agradou muito.

       “O casamento e a maternidade só te embelezaram. Seu rosto é bem diferente daquele da minha lembrança.”

       “Como era o da sua lembrança?”

       “Como uma dor. Porque não era propriamente de você que eu me lembrava, mas sim de um sonho. Lembra que sempre costumávamos conversar, em nossa infância, sobre a história de Shirin que se apaixona por Khosrow ao ver o seu retrato? Eu perguntava por que Shirin não tinha se apaixonado pelo belo Khosrow da primeira vez que viu sua imagem pendurada no galho de uma árvore, mas só depois de ver a imagem três vezes. Você costumava responder que era porque nas lendas tudo tem de se repetir três vezes. Já eu dizia que seu amor devia ter desabrochado desde a primeira vez. Quanto a saber quem pode ter pintado Khosrow de maneira tão realista que ela se apaixona por sua imagem e tão precisa que ela logo o reconhece, sobre isso nunca conversamos. Se, durante esses doze anos, eu tivesse ao meu lado um retrato do seu rosto, não teria sofrido tanto.”

       Ele continuou falando sobre esse mesmo tema, sobre as histórias de retratos que despertam o amor, dizendo lindas palavras sobre o quanto sofreu por minha causa. Percebi que ele se aproximava lentamente de mim, e suas palavras passavam pela minha consciência para aninhar-se em algum canto da minha memória. Mais tarde eu meditaria longamente sobre cada urna daquelas palavras. Mas naquela hora suas palavras exerciam sobre mim urna espécie de magia, enfeitiçando-me e prendendo-me visceralmente a ele. Eu me sentia culpada por seus doze anos de sofrimento. Como ele falava bem, que homem bom ele era! Parecia uma criança inocente. Eu podia ler isso em seus olhos. E ele me amar tanto assim, levava-me a depositar nele a minha confiança.

       Beijamo-nos. Aquilo me deu tamanho prazer que me senti culpada. Aquela doçura de mel subia à minha cabeça, beijei-o de novo. Ofereci-lhe meus lábios, retribuí a seus beijos, e nossos beijos mergulhavam o mundo à nossa volta numa espécie de crepúsculo. Desejo que todos um dia se beijem como nós nos beijamos. Fez-me lembrar o amor tal como um dia eu o sonhei. Ele enfiou a língua na minha boca, o que me deu tamanho prazer que em torno de nós o mundo pôs-se a cintilar e o mal não mais existia.

       Se um dia minha trágica história fosse contada num livro e minhas aventuras ilustradas à maneira maravilhosa dos iluminadores de Herat, nosso beijo seria representado como nas páginas mais requintadas que meu pai me mostrava, cheio de admiração. Nelas, as linhas da escrita eram como o ondular das folhas infladas pelo sopro do vento; à ornamentação das paredes fazia eco o desenho das bordas douradas; a vivacidade das asas sinuosas das andorinhas varando a margem da pintura sugeria o regozijo dos amantes. Estes, de olhos amendoados, se olham de longe, através das suas pálpebras semicerradas, parecem repreender-se um ao outro, e são pintados tão pequenos, tão distantes nessas miniaturas que às vezes nos fazem pensar que a história não fala deles, mas da noite estrelada, daquelas árvores sombrias, do magnífico palácio em que eles se encontram, com seu vasto átrio e seu deslumbrante jardim, cujas folhas foram pintadas uma a uma com todo amor. Mas se um observador cuidadoso prestar atenção à harmonia secreta das cores, que o miniaturista só consegue transmitir com a mais absoluta entrega à sua arte, e se apreender a luz misteriosa que impregna toda a pintura, verá imediatamente que o segredo dessas ilustrações é que elas são criadas pelo próprio amor — é como se essa luz emanasse dos próprios amantes, das mais recônditas profundezas da pintura. E quando eu e o Negro nos beijamos, nosso êxtase inundou o mundo dessa mesma maneira.

       Felizmente, a vida me ensinou que esse gênero de felicidade nunca dura muito. O Negro começou pegando, delicadamente, meu peito nas suas mãos. Isso me agradou tanto que, esquecendo tudo, eu estive a ponto de lhe pedir que os chupasse. Mas ele não fez isso, não sabia direito o que fazer. Em todo caso, queria cada vez mais. Então, bem no meio desse abraço, a vergonha e o medo de repente se insinuaram. Eu encontrara, contra meu baixo-ventre, a rigidez daquele membro enorme, que ele premia contra mim agarrando-me pelas cadeiras. De início, aquilo me agradou. Eu estava curiosa, nem um pouco envergonhada, dizia comigo mesma que quanto mais a gente se beija apaixonadamente, maior aquilo fica. Até me orgulhava daquele feito. Depois, de repente, quando ele tirou a coisa para fora, virei a cabeça para o outro lado, mas não pude impedir meus olhos de olharem e se arregalarem à medida que a coisa crescia.

       Depois, quando ele quis me forçar a fazer coisas que nem mesmo aquelas mulheres desavergonhadas que contam obscenidades no hamam fariam — nem mesmo as kiptchaks como eu! —, fiquei um longo momento estupefata e sem reação.

       “Não franza suas lindas sobrancelhas, meu amor!”, ele suplicou.

       Mas eu me levantei e afastei-o do meu caminho com um empurrão, gritando o mais que pude com ele, sem ligar para o seu desapontamento.

 

                   Meu nome é Negro

       Na escura casa do judeu enforcado, Shekure me incendiava com o olhar, dizendo-me que eu podia muito bem, com as circassianas que eu arranjara em Tiflis, as kiptchaks sem-vergonhas, as pobres coitadas que eu acharia à venda nas estalagens, as viúvas persas ou turcomanas, ou uma dessas putas que a gente vê se multiplicarem em Istambul, uma mingreliana fácil, uma abaza sem pudor, uma velha armênia, uma genovesa ou uma síria meio bruxa, ou então um desses infames atores de papéis femininos e outros mocinhos insaciáveis, eu podia muito bem, dizia ela, enfiar-lhes na boca a coisa que ela tinha diante dos olhos, mas com ela não! Segundo ela, que a raiva levava a me acusar de ter cometido tudo o que ela podia imaginar de mais desonesto e degradante nas minhas andanças da Mesopotâmia ao Irã, das aldeias escaldantes da Arábia às areias do mar Cáspio, eu tinha perdido toda compostura e, sem dúvida, esquecido que existem mulheres ciosas da sua virtude. Em conclusão, ela me lançou no rosto que minhas declarações de amor não podiam ser sinceras.

       Eu escutava com todo respeito aquela explosão veemente e colorida, que tinha por efeito fazer empalidecer de vergonha, na minha mão, o objeto incriminado, cujo aspecto lamentável teria me deixado embaraçadíssimo, não tivesse eu dois bons motivos para me regozijar:

  1. Ao contrário de como costumava agir nesse gênero de situação corri outras mulheres, eu não havia respondido à raiva com raiva, como um selvagem, e à rudeza das suas palavras com argumentos de igual calibre.
  2. Essa preocupação que ela possuía com o que eu pudesse ter feito durante as minhas viagens dava a entender que ela havia pensado em mim mais do que eu imaginava.

       E, ao ver que eu estava melancólico por não ter chegado aonde queria ela até se preocupou, justificando-se:

       “Se essa loucura é de fato um efeito do seu amor, você tem de dominá-la, como todo homem honesto, e não tentar vencer a honestidade de uma mulher que alimenta apenas as mais louváveis intenções. Se você quer realmente se casar comigo, não pode querer me comprometer. Alguém nos viu entrar aqui?”

       “Ninguém”, respondi.

       Como se tivesse ouvido barulhos de passos na neve do jardim, em que a noite já caíra, ela virou para a porta aquele rosto que por doze anos eu não fora capaz de me lembrar, oferecendo-me seu perfil. Um estalo nos fez conter a respiração, mas ninguém entrou. A sensação de desconforto que ela já me dava quando tinha doze anos e parecia ser muito mais velha do que eu voltou-me à memória, ao ouvi-la dizer:

       “É o fantasma do judeu enforcado passeando.”

       “Você costuma vir aqui?”, perguntei-lhe.

       “Os djins, os demônios e os fantasmas são trazidos pelo vento. Eles se insinuam dentro das coisas, dão a elas uma voz e, no silêncio, tudo fala. Não preciso vir aqui para ouvi-los.”

       “Shevket me trouxe aqui para me mostrar um gato morto, mas ele já tinha sumido.”

       “Você disse a Shevket que tinha matado o pai dele?”

       “Não foi o que eu disse. Foi o que ele entendeu? Eu não disse que havia matado o pai dele, mas que queria ser um pai para ele.”

      “Por que você disse que tinha matado o pai dele?”

       “Eu não disse! Ele me perguntou se eu já tinha matado alguém, e eu lhe respondi a verdade, que tinha matado dois.”

       “Para se gabar?”

       “Sim, para me gabar e impressionar o filho da mulher que amo. Porque entendi que a linda mãe desses dois bandidinhos, que exibe em casa as presas de guerra do valente pai deles, tem a tendência de exagerar suas façanhas guerreiras.”

       “Pode continuar a tentar se valorizar, porque eles não gostam de você.”

       “Shevket não gosta de mim, mas Orhan gosta”, repliquei, satisfeito por pegá-la uma vez no contrapé. “Mas vou ser o pai dos dois.”

       Algo como uma sombra, invisível na penumbra, passou entre nós, arrepiando-nos. Enquanto eu arrumava minha roupa, Shekure soluçava baixinho.

       “Meu falecido marido tem um irmão, Hassan. Quando eu esperava a volta do meu marido, moramos dois anos com ele, na casa do meu sogro. Ele se apaixonou por mim. De uns tempos para cá, desconfia de alguma coisa, imagina que estou a ponto de me casar novamente — com você, claro. Até me fizeram saber que quer me levar de volta para a casa deles à força. Dizem que vão me buscar em nome do meu marido, porque diante do juiz não sou viúva. Podem vir me pegar de um momento para o outro. Meu pai também não quer que eu seja declarada viúva pelo juiz, porque acha que então eu iria arranjar outro marido e o deixaria sozinho em casa. Ficou muito contente por eu ter voltado para a casa dele com as crianças, porque, desde a morte da minha mãe, a solidão era difícil de suportar. Você viria morar conosco?”

       “Como assim?”

       “Você se casaria comigo e viria se instalar conosco na casa do meu pai.”

       “Não sei.”

       “É bom se decidir rápido, porque não temos muito tempo. Meu pai sente a desgraça se aproximar dele, e acho que tem razão. Se Hassan e seus homens vierem me buscar com os janízaros e me levarem à força para a casa dele, você irá dizer ao juiz que viu o cadáver do meu marido? Você veio do Irã, vão acreditar no que diz.”

       “Irei. Mas não fui eu quem o matou.”

       “Claro. Quer dizer que, para que eu possa ser declarada viúva, você está disposto a ir, com outra testemunha, declarar ao juiz que viu o corpo ensangüentado dele num campo de batalha do Irã?”

       “Eu não vi, meu amor, mas posso afirmar que sim, por você.”

       “Gosta dos meus filhos?”

       “Sim.”

       “De que gosta neles?”

       “Shevket é forte, decidido, franco, inteligente e obstinado. Orhan é meigo, frágil e muito esperto. E disso que gosto nos seus filhos.”

       Minha amada sorriu levemente e umas lágrimas molharam seus lindos olhos negros. Depois, com o ar apressado de quem retoma o controle da situação e não quer deixar as coisas se arrastarem:

       “É preciso terminar a obra que Nosso Sultão confiou ao meu pai”, disse. “Todos esses acontecimentos sinistros que nos flagelam têm por origem esse livro.”

       “Que outra arte diabólica nos flagela, além do assassinato do Elegante Efêndi?”

       A princípio, ela pareceu contrariada com a minha pergunta. Depois, afetando um ar sincero que apenas ressaltava quão pouco convencida estava, retorquiu:

       “Os partidários do hodja de Erzurum fazem correr o boato de que o livro do meu pai contém profanações e sinais da infidelidade européia. E se todos esses pintores que freqüentam nossa casa tivessem montado um complô, por inveja uns dos outros? Você, que visitou todos eles, é quem está em melhor posição para saber.”

       “O irmão do seu falecido marido tem alguma coisa a ver com esses pintores, com o livro do seu pai e com os partidários de Nusret Hodja?”, perguntei. “Ou ele é do gênero solitário?”

       “Ele não tem nada a ver com isso tudo, nem é do gênero solitário”, ela respondeu.

       Fez-se um estranho e misterioso silêncio.

       “Quando você morava na mesma casa de Hassan, ficava distante dele?”

       “Tanto quanto possível numa casa de dois cômodos.”

       Em algum lugar, não muito longe dali, dois cachorros começaram a latir excitados.

       Por que o marido dela, um homem que saiu vitorioso de tantas batalhas e recebeu um feudo em recompensa por seu valor, deixou sua esposa viver acotovelada com seu irmão numa casa tão pequena? Não me atrevi a fazer essa pergunta brutal e, em seu lugar, perguntei-lhe:

       “Por que você se casou com seu marido?”

       “Eu tinha que me casar com alguém”, respondeu. Era verdade, e com sua fineza habitual ela justificou seu casamento, elogiando o marido, mas brevemente, como para não me mortificar. “Você tinha ido embora e não voltava. Zangar-se pode ser um sinal de amor, mas um amante irascível acaba sendo cansativo e não deixa entrever um bom futuro.” Estava novamente certa, mas não era um motivo para se casar com uma espécie de bandoleiro. Simplesmente pelo seu olhar baixo, não era difícil adivinhar que, como todo o mundo, ela tinha me esquecido totalmente, logo após minha ida para Istambul. Mas eu me dizia em meu foro íntimo que essas mentiras grosseiras pelo menos manifestavam a louvável intenção de reparar um pouquinho o coração que ela havia partido e que eu devia acolhê-las com gratidão. Tratei de lhe contar então que naqueles anos todos nunca pude apagá-la do meu espírito, que sua imagem, qual um fantasma, continuara assombrando minhas noites. Esse tinha sido meu maior sofrimento, um sofrimento tão íntimo que eu não me achava capaz de contá-lo a ninguém, a não ser a ela. Mas, se todo o meu relato era verdadeiro, também continha, para meu grande espanto, boa dose de insinceridade.

       Para que ninguém se equivoque sobre os meus desejos e os meus sentimentos naquele preciso instante, devo explicar sem mais tardar o sentido dessa distinção entre verdade e sinceridade, de que acabo de tomar consciência; isto é, como a maneira de exprimirmos nossa realidade em palavras, por mais escrupulosa e verdadeira que possa ser, nos põe no caminho da insinceridade. O melhor exemplo, aliás, é dado pela arte dos miniaturistas, que tão agitados estávamos ultimamente por causa da presença, entre nós, de um assassino. Tomemos uma miniatura perfeita — a imagem de um cavalo, por exemplo; por melhor que ela represente um cavalo verdadeiro, o cavalo tal como é visto por Alá ou cujo modelo os grandes mestres miniaturistas impuseram, isso não quer dizer que ela exprima toda a sinceridade do miniaturista. De fato, a sinceridade do pintor, e a de nós todos, humildes servos de Alá, não aparece nos momentos de graça em que sua arte se revela mais perfeita. Ao contrário, ela se vê em seus erros, em seus lapsos, quando ele está cansado ou decepcionado. Digo isso em atenção àquelas moças que porventura ficarem chocadas ao verem que não havia diferença entre o violento desejo que eu sentia por Shekure naquele momento — como ela também poderia dizer — e, digamos, a vertiginosa atração que eu sentia pelos traços delicados, a pele cobreada, os lábios violáceos de uma rameira de Kazvin, durante as minhas viagens. Com o bom senso que Alá lhe deu e a intuição de um djim, Shekure compreendia que eu era capaz de, ao mesmo tempo, suportar doze anos de torturas por amor a ela e me comportar como um vulgar depravado, prestes a me aproveitar dela para satisfazer meus desejos mais sombrios, da primeira vez que estivemos a sós. Nizami compara a boca da sublime Shirin com um tinteiro carmesim transbordante de pérolas...

       Os cachorros excitados tornaram a latir com renovado fervor e Shekure inquieta, disse: “Tenho de ir embora”. Foi só nesse instante, embora a noite já houvesse caído havia algum tempo sobre a casa do judeu fantasma, que tomamos consciência da escuridão. Fiz o gesto involuntário de estreitá-la de novo em meus braços, mas, como um pardalzinho ferido, ela me evitou perguntando-me:

       “Diga rápido: ainda sou bonita?”

       Ela ouvia avidamente e parecia satisfeita com a minha resposta, sem precisar fazer força para acreditar nas minhas palavras, e acrescentou:

       “E minha roupa, o que acha?”

       Disse-lhe o que eu achava.

       “E meu cheiro?”

       Shekure sabia porém que o tabuleiro do amor de que Nizami fala não se limita a essas amabilidades, mas implica jogadas e manobras que os amantes executam em profundezas de alma muito mais cavas que aquela.

       “E como você conta ganhar o dinheiro para sustentar a casa? Será capaz de cuidar dos meus filhos sem pai?”, indagou.

       Eu lhe falei, apertando-a contra mim, dos meus doze anos a serviço dos Grandes e do Estado, da vasta experiência adquirida nos campos de batalha, testemunhando a morte, e por fim dos meus projetos para o nosso futuro.

       “Ainda há pouco, era tão bom estarmos assim abraçados. Agora, toda a magia se foi”, ela comentou.

       Para lhe fazer sentir minha sinceridade, apertei-a com mais força e perguntei por que ela tinha me devolvido, por intermédio de Ester, aquele desenho que eu havia feito para ela doze anos antes. Li em seus olhos que minha ingenuidade a espantava e, também, a enternecia. Beijamo-nos. Mas desta vez não me vi paralisado pelo jugo inebriante do prazer; nós dois estávamos atordoados pelo esvoaçar — como o de um bando de pardais — de um poderoso amor que invadia nossos corações, nosso peito, nosso ventre. Fazer amor não é o melhor meio de aplacar o amor?

       Quando acariciei seus enormes seios, Shekure me repeliu com mais ternura e determinação do que antes. Eu não era maroto a ponto de comprometer minha futura esposa só para facilitar meu casamento, por mais difícil de negociar que ele fosse. Mas eu estava tão perturbado que me esquecia que o Demônio era capaz de se aproveitar de qualquer precipitação, e na minha inexperiência eu ainda não sabia quanta paciência e quanta resignação um casamento feliz requer. Tendo escapado do meu abraço, ela se dirigiu para a porta, seu véu de linho ainda nos ombros. Ao ver que, lá fora, as ruas já estavam escuras e que a neve as cobria lentamente, esqueci-me de cochichar, como havíamos feito até então — sem dúvida para não incomodar o fantasma do judeu — e perguntei-lhe com uma voz que rasgou o silêncio:

       “O que vamos fazer agora?”

       “Não sei”, respondeu, mostrando que não se esquecera das regras do xadrez do amor.

       E se foi silenciosamente pelo velho jardim abandonado, deixando na neve as marcas dos seus pés, que a brancura logo apagaria.

 

                   Serei chamado Assassino

       Tenho certeza que a mesma coisa acontece com vocês. Às vezes, andando pelo tortuoso labirinto das ruelas de Istambul, ou comendo um prato de guisado numa taverna de bairro, ou acompanhando com os olhos a guirlanda em forma de ramos entrelaçados de uma margem de iluminura, tenho a impressão de viver o presente como se fosse o passado. E basta estar descendo passo a passo uma rua coberta de neve, que já sinto ganas de dizer: “Desci esta rua”.

       As coisas inauditas que eu ia contar ocorreram ao mesmo tempo no passado e no presente. Anoitecia, o crepúsculo cedia a vez à escuridão e uma neve finíssima salpicava a rua em que eu andava, a rua do Tio Efêndi.

       Mas, ao contrário das outras noites, sei o que venho fazer aqui, e estou decidido. Nas outras noites, eu me deixava levar até lá pelas minhas pernas, enquanto meus pensamentos ausentavam-se em outras coisas: nas suntuosas encadernações da época de Tamerlão, com rosáceas mas sem douraduras; em como contei à minha mãe que certo livro me rendera setecentas moedas de prata; em meus vícios e em minhas obsessões. Desta vez, eu sei o que faço, e é nisso que penso.

       O portão do pátio, que eu temia ninguém viesse abrir, se abre por si só na hora em que eu ia bater, o que me conforta, pois confirma que Alá está comigo. As pedras do estreito caminho do pátio, que eu já pisara tantas vezes nas noites em que eu vinha acrescentar minhas miniaturas ao livro do Tio Efêndi, estão vazias e brilham. A direita, perto do poço, empoleirado na beirada de um balde, o pardal não parece se incomodar com o frio; mais longe a saliência de pedra do forno da cozinha que, por algum motivo, ainda não parecia aceso àquela hora tardia; à esquerda, a estrebaria para os convidados de passagem, que se integra ao térreo da casa. Tudo está em seu lugar. A porta ao lado da estrebaria está aberta, entro, depois subo a escada fazendo a madeira dos degraus ranger o mais possível sob meus pés e tossindo alto.

       Nada disso produz uma resposta. Nem o barulho pesado dos meus sapatos cobertos de lama, quando os tirei colocando-os ruidosamente ao lado dos outros pares, no corredor, perto da porta azul. Como não vi, entre os calçados da casa, os dois sapatos de um verde delicado que noto a cada visita — os sapatos de Shekure —, disse-me que talvez não houvesse ninguém. Vou espiar primeiro o quarto da direita, o que suponho ser de Shekure e dos filhos, que com certeza dormem aconchegados a ela. Exploro às apalpadelas os colchões, as cobertas, o baú ao lado e um grande armário, cuja porta se abre com a leveza de uma pena.

       Distraído com o pensamento de que aquele suave aroma de amêndoas que paira no quarto deve ser o de Shekure, quando vou saindo uma almofada, que devia estar enfiada no armário, cai na minha cabeça confusa e, depois, bate num jarro de cobre e nuns copos, derrubando-os. Vocês ouviram o barulho desses objetos e devem ter compreendido que a casa estava imersa na mais completa escuridão. Quanto a mim, percebo que faz frio.

       “Hayriye?”, chama o Tio Efêndi do outro quarto. “Shekure? Qual das duas está aí?”

       Num piscar de olhos, saio do quarto, atravesso o corredor na diagonal e chego rapidamente à porta azul daquele cômodo em que passei o inverno trabalhando com o Tio Efêndi no seu livro.

       “Sou eu, Tio Efêndi, sou eu.”

       “Eu quem?”

       Percebo naquele momento que os apelidos que Mestre Osman nos havia atribuído quando éramos crianças eram, para o Tio Efêndi, um bom motivo de sutil zombaria.

       Assim como os copistas que inscrevem, orgulhosos, seus nomes no cólofon da última página, aproveito a ocasião para recitar pomposamente meu nome, meu sobrenome, minha origem e o aposto “vosso miserável e pecaminoso servidor”.

       “Ora vejam!”, diz, surpreso. E repete: “Ora vejam!”.

       Como o ancião que encontra a Morte naquela fábula assíria que me contavam quando eu era criança, o Tio Efêndi submerge num breve silêncio que parece durar para sempre.

       Como venho de evocar a Morte, se por acaso há algum de vocês que imagina que vim aqui por causa dela, é que estão entendendo esse livro de través. Vir aqui com tal intenção e bater na porta, tirar os sapatos, sem nem sequer trazer uma faca?

       “Então você veio?”, diz ele, como o velhote do conto. Depois, mudando completamente de tom: “E que bons ventos o trazem?”.

       Já é quase noite. No entanto, o encerado sobre aquela espécie de seteira que, na primavera, dá para a dupla folhagem do plátano e do pé de romã, ainda deixa passar uma claridade suficiente para que se possa apreciar os contornos dos objetos presentes — uma luz que agradaria a um mestre chinês e que cai diretamente na mesa a que o Tio Efêndi, cuja fisionomia não consigo distinguir direito, está sentado, como de costume. Tento desesperadamente voltar a ter a sensação de intimidade que tínhamos antes, quando conversávamos à luz de vela até a madrugada, sobre desenho e miniaturas, entre pincéis, tinteiros, cálamos e brunidores. Não sei direito se é por causa dessa sensação de alienação ou por embaraço, mas o fato é que de repente sinto vergonha de querer expor abertamente minhas apreensões, esses acessos de fanatismo que se apossam do meu espírito quando começo a temer que minhas obras possam ser irreligiosas. Decido pois abrir-lhe meu coração por meio de uma história.

       Vocês talvez já tenham ouvido essa história, a do sheik Muhammad, o grande miniaturista de Isfahan. Na escolha das cores e da composição, no desenhar os personagens, os animais ou os rostos, no combinar numa imagem a emoção da poesia e o rigor oculto de uma construção geométrica, esse pintor era sem-par. Tendo chegado bem jovem ao nível de mestre, durante os trinta anos que sua mão divina atuou, esse virtuose se mostrou, tanto pela escolha dos temas como na execução e no estilo, o mais irreverente, o mais audacioso de todos os pintores. Trabalhando no estilo chinês a nanquim, que os mongóis nos trouxeram, ele introduziu na Escola de Herat aqueles demônios aterrorizantes, aqueles djins chifrudos, aqueles garanhões de culhões enormes, aquelas criaturas meio gente, meio monstro. Ele foi o primeiro a manifestar interesse e a exibir a influência dos retratos recentemente desembarcados com as primeiras naus flamengas e portuguesas. Ele encontrou em velhos livros de magia desmantelados antigos modelos desaparecidos, esquecidos desde os tempos de Gêngis Cã, e os fez reviver; ele, antes de todos, teve a audácia de alinhar na página as beldades nuas nadando perto da ilha das Mulheres, ante os olhos concupiscentes de Alexandre, sem falar em temas francamente licenciosos, como Shirin banhando-se ao luar; ao mesmo tempo que o vôo noturno de Burak, o garanhão cavalgado por nosso Profeta em sua ascensão ao céu, pintou cachorros copulando, reis se coçando, mulás cumprimentando-se, e tudo isso se tornou, para a comunidade dos pintores que vieram depois dele, novos temas permitidos. Após trinta anos, ao longo dos quais usou e abusou tanto do álcool como do ópio, exercendo sua atividade com ardor, com entusiasmo, ao envelhecer, tornando-se discípulo de um sufi, inverteu em pouco tempo sua conduta e, tendo chegado à conclusão de que sua produção artística durante aqueles trinta anos havia sido profana e ímpia, ele a renegou em bloco. Mais que isso, voltou aos lugares — cidades, palácios, bibliotecas — que visitara naqueles trinta anos para procurar, reaver — nos tesouros reais, nas coleções particulares — cada um dos livros que havia iluminado e destruí-los. Se pudesse, anos mais tarde, localizar determinada obra sua entre os volumes de determinado soberano, valia-se de todos os meios, da doçura, da astúcia, burlava a atenção dos guardas para arrancar a página incriminada, aguardava o instante propício para jogar água em suas próprias obras-primas, arruinando-as. Eu disse ao Tio Efêndi que, contando aquela história, eu desejava ilustrar os tormentos a que se expõe um pintor cuja paixão de pintar o leva a desviar-se da religião. Por fim, evoco o incêndio da grande biblioteca de Kazvin, na época em que a cidade tinha como governador o príncipe herdeiro Abbas Mirzam, que o sheik Muhammad ateou ao perder a esperança de encontrar, entre centenas de outros volumes, os que ele pintara do próprio punho. Sem temer o exagero, evoco, como se fosse a minha, a morte do pintor no meio das chamas, comparando essas chamas com aquelas, mais ardentes e mais terríveis, do remorso e da má consciência.

      “Está com medo, meu filho, por causa das miniaturas que fizemos?” pergunta-me o Tio Efêndi com um ar enternecido.

       O cômodo tinha ficado tão escuro que não consigo enxergar, tenho de adivinhar seu sorriso.

       “Nosso livro não tem mais nada de secreto”, digo-lhe. “Isso talvez não seja grave em si. Mas há muitos boatos correndo. Dizem que, de uma maneira velada, blasfemamos contra a religião, produzimos um livro que, longe de responder aos desejos e às ordens do Nosso Sultão, só satisfaz aos nossos vis apetites. Um livro que chega a ridicularizar nosso Profeta e imita odiosamente as imagens dos mestres infiéis. Há quem chegue ao ponto de dizer que o Diabo está pintado nele de forma favorável e que, em todo caso, é um grave pecado ter desenhado, do ponto de vista de um cachorro vadio chafurdando no lixo, uma mutuca do tamanho de uma mesquita, a pretexto de que a mesquita está mais longe que ela, e que isso atenta contra a dignidade dos crentes que oram no pátio dessa mesquita. Isso tudo não me deixa dormir à noite.”

       “Fizemos essas imagens juntos”, responde o Tio Efêndi. “Sem considerar se de fato cometemos tais impiedades, em algum instante quisemos porventura cometê-las?”

       “Nunca na vida!”, exclamo um pouco alto demais. “Mas, como quer que seja, pouco importa o que eles ouviram dizer, o caso é que repetem em toda parte que há uma última imagem, que completa tudo e cuja impiedade, segundo eles, já não é disfarçada, mas flagrante.”

       “Você já viu essa última imagem.”

       “Não, eu pintei tudo que o senhor pediu, o Dinheiro, o Diabo, numa folha grande, que deveria fazer uma página dupla, mas nunca vi a imagem completa”, replico com cuidado, pesando bem minhas palavras, esperando que a resposta agradaria ao Tio Efêndi. “Se tivesse visto o conjunto do quadro, poderia sem dúvida negar, com total tranqüilidade de espírito, todas essas ignóbeis calúnias.”

       “Por que você se sente culpado?”, ele insiste. “O que tanto remói a sua alma e faz você duvidar de si mesmo?”

       “Viver na desconfiança de que pudemos atentar contra as coisas que reconhecemos serem as mais sagradas, simplesmente ilustrando um livro, durante longos meses de aparente felicidade, é sofrer em vida os tormentos do Inferno. Se eu pelo menos pudesse ver essa última miniatura...”

       “É só isso que te perturba? Foi por isso que veio me ver?”

       De repente tive uma suspeita horrível: será que ele estava pensando que cometi alguma coisa horrenda, como ter matado o Elegante Efêndi?

       “Os que querem derrubar Nosso Sultão e pôr no trono o príncipe herdeiro servem-se dessas calúnias sustentando que Nosso Sultão aprova esse livro às escondidas.”

       “E quantos são os que assim pensam?”, ele responde num tom entediado.

       “O senhor sabe, todo pregador ambicioso, se lhe dão ouvidos e se ele se esquenta, sempre começa dizendo que a religião está em declínio. E o negócio deles.”

       Será que ele acha que só vim aqui para pô-lo a par de uns mexericos?

       “Dizem também”, prossegui com um tremor na voz, “que nós é que assassinamos o falecido Elegante Efêndi, porque, ao ver a última miniatura, ele teria percebido que era uma blasfêmia contra o islã. Foi um chefe de seção do Grande Ateliê que me contou. O senhor conhece os novatos e os aprendizes: não param de espalhar intrigas por aí.”

       Seguindo essa linha de raciocínio e arrebatando-me cada vez mais, dali a pouco já não consigo distinguir o que de fato ouvi dizer, o que o medo me fez imaginar depois que dei cabo daquele delator infame e o que invento agora, à medida que falo. Creio que, após todos esses preâmbulos, o Tio Efêndi vai resolver me mostrar a última miniatura, nem que seja só para me acalmar. Ele deve perceber, afinal, que é a única maneira de me tranqüilizar e aliviar minha alma da angústia de ter cometido um grande pecado.

       A fim de espicaçá-lo um pouco, pergunto com ousadia: “Pode-se desenhar, sem saber, uma imagem ímpia?”.

       A guisa de resposta, ele faz um gesto da mão, muito delicado, como se avisasse que um bebê dorme naquele quarto, e eu me calo. Ele quebra o silêncio quase cochichando: “Está escuro. Vou acender uma vela”.

       Enquanto ele inflama a mecha nas brasas da estufa, percebo em sua fisionomia uma expressão de orgulho que não conhecia nele e que me desagrada muito. Ou se trata de piedade? Será que ele compreendeu tudo e me considera um vulgar criminoso? Ou tem medo de mim? Eu me lembro de ter sentido naquele instante meus pensamentos escaparem de repente do meu controle e eu ter começado a segui-los como se fossem os pensamentos de outro. E como é que eu não havia notado antes, naquele canto do tapete em que estamos sentados, aquela forma estranha, como a de um lobo emboscado?

       “Todos os nossos reis — chamem-se cãs, xás ou padixás —, quando se interessam pela pintura, quando apreciam as belas miniaturas e os belos manuscritos, conhecem três estações nesse seu gosto”, diz o Tio Efêndi. “Começam sendo curiosos, ousados e complacentes. Querem obras de prestígio, atraentes, destinadas antes de mais nada à admiração do público. Depois dessa estação, por assim dizer, de aprendizado, vem aquela em que encomendam livros de acordo com seu gosto pessoal; e, como aprenderam a apreciar sinceramente a pintura, acumulam prestígio ao mesmo tempo que colecionam livros, os quais, depois que morrerem, garantirão a sobrevivência do seu renome neste mundo, dizem eles. Mas, quando vem o outono da sua vida, todos se afastam dessa forma terrestre de imortalidade. Entendo por ‘imortalidade terrestre’ o fato de viver, após a morte, na memória dos seus descendentes e das gerações futuras. Os grandes soberanos amantes dos livros e da pintura já conquistaram uma imortalidade graças aos manuscritos que nos encomendam e em cujas páginas inscrevem seu nome e, às vezes, até mesmo a história da sua vida. Mais tarde, porém, essa imortalidade aos olhos do mundo mortal já não os satisfaz. O que eles querem, como todo o mundo, naturalmente, é garantir um lugar no Além, e chegam à conclusão de que a pintura é um obstáculo a esse anseio. Isso é o que mais me incomoda e me intimida. O xá Tahmasp, que, além de ilustre soberano, foi um grande pintor ele próprio e passou toda a juventude no seu Grande Ateliê, fechou-o brutalmente ao sentir a morte se aproximar, baniu os pintores de Tabriz e destruiu as obras da sua biblioteca, acossado que era por intermináveis crises de remorso. Por que eles crêem que uma pintura pode lhes fechar as portas do Paraíso?”

       “O senhor sabe por quê! É porque eles se lembram que nosso Profeta disse que, no Dia do Juízo, os pintores serão condenados por Alá da forma mais severa.”

       “Os pintores não”, replica o Tio Efêndi, “os escultores de ídolos. É um dito compilado por Al-Bukhari.”

       “No Dia do Juízo, será pedido aos escultores que insuflem vida a suas criaturas”, rebato com circunspecção. “E como nenhuma delas se animará, sofrerão os tormentos do Inferno. Não esqueçamos que, no Venerável Corão Alá é qualificado de ‘escultor’. Alá cria, faz existir o que não existe, anima o inanimado, e ninguém pode rivalizar com ele. A pretensão dos pintores de fazer o que ele fez, de ser criadores como ele, é o maior de todos os pecados.”

       Pronunciei estas últimas palavras com a gravidade de um promotor formulando sua acusação. Ele me fitava nos olhos.

       “Na sua opinião, foi o que fizemos?”

       “De forma alguma!”, respondo sorrindo. “Mas foi o que o falecido Elegante Efêndi passou a crer, depois que viu a última miniatura acabada. Ele dizia que o emprego da perspectiva e dos métodos dos pintores europeus eram tentações do Demônio. Nesse último desenho, nós teríamos representado o rosto de um mortal de acordo com as regras do Ocidente, isto é, dando a impressão, não de uma imagem, mas da realidade, de modo que essa obra estimula os que a contemplam a se prosternar diante dela, como diante dos ícones numa igreja. Na opinião dele, isso é uma obra do Demo não apenas porque a arte da perspectiva desloca a pintura do ponto de vista de Alá para rebaixá-la ao nível de um cachorro vadio, mas porque a familiaridade com as regras do Ocidente infiel nos levará a confundi-las com as que nós praticamos, a misturar a arte deles com a nossa, a nos submeter a ela, em detrimento da nossa pureza.”

       “Nada é puro”, objeta o Tio Efêndi. “Crie-se o que for em desenho ou em pintura, cada vez que meus olhos se banham de lágrimas e que me arrepio de emoção diante de uma imagem maravilhosa, sei que se trata da união inédita de duas belezas que criam uma terceira. Desde Bihzad, e isso vale para toda a pintura persa, estamos em débito com os chineses, por intermédio dos mongóis, e com os árabes. As melhores miniaturas da época do xá Tahmasp aliam o estilo persa a uma sensibilidade turcomana. Se hoje só se fala da produção dos ateliês de Akbar Cã, sultão do Hindustão, é porque ele estimula seus artistas a adotar o estilo europeu. Ora, ‘Alá possui o Oriente tanto quanto o Ocidente’, diz o Corão. Que Ele nos guarde de aspirar ao puro e ao autêntico!”

       Não obstante a clareza e a doçura que emanam da sua figura à luz da vela, a sombra que ela projeta na parede não deixa de ser aterradora. E quaisquer que possam ser a justeza e a pertinência das suas palavras, não consigo confiar nele. Como suponho que ele desconfia de mim, também desconfio dele. E adivinho que ele aguça o ouvido, esperando perceber, vindo do portão, o ruído de alguém chegando para socorrê-lo.

       “Você me contou como o sheik Muhammad, o mestre de Isfahan, foi devorado pelas chamas da sua consciência tanto quanto pelas da Grande Biblioteca em que se encontravam os livros que ele havia renegado. Agora sou eu que vou contar outra história relacionada a essa mesma lenda. De fato esse mestre dedicou os últimos trinta anos da sua vida à procura das suas próprias obras. No entanto, nas páginas que virava de cada livro que abria, no mais das vezes eram imitações, obras inspiradas por suas criações, e não obras suas, o que ele descobria. Naqueles anos todos, duas novas gerações de pintores haviam tomado as obras que ele havia renegado como modelo, tinham gravado indelevelmente suas imagens no espírito — melhor dizendo, haviam-nas transformado numa parte da alma deles. E compreendeu que, enquanto ele tentava encontrar suas pinturas para destruí-las, os jovens miniaturistas as reproduziam com entusiasmo em tantos livros, reutilizavam-nas para ilustrar tantas outras histórias, retransmitiam-nas a tantos outros pintores, que elas se difundiam irresistivelmente mundo afora. O que compreendemos ao cabo de muitos anos, de um livro a outro, de uma imagem a outra, é que um grande pintor nada mais faz que impor suas obras ao nosso espírito e, com isso, acaba mudando toda a nossa paisagem interior. Cada imagem produzida por sua arte e reproduzida por nossa alma passa a ser pouco a pouco, para nós, a medida da beleza do mundo. O sheik Muhammad de Isfahan, no fim da sua vida, além de queimar e destruir todas as suas obras, foi também testemunha da proliferação destas, fazendo que todo o mundo visse o mundo como outrora ele o vira, e tudo o que não se parecia com o que ele pintara em sua juventude passara a ser tido como feio.”

       Incapaz de refrear meu entusiasmo ao ouvir esse discurso do Tio Efêndi e de controlar meu desejo de agradá-lo, lancei-me, sem mais nenhuma contenção, sobre sua velha mão cheia de pintas, que cobri de lágrimas e de beijos, consciente de que ele tomava naquele instante, em meu coração, o lugar do meu caro Mestre Osman.

       “Um pintor”, prossegue ele, com um ar satisfeito, “faz suas miniaturas ouvindo sua consciência, seguindo as regras em que ele crê e sem ter medo de nada. Não se preocupa com o que seus inimigos, o fanatismo ou a inveja possam ter a criticar.”

       Levando mais uma vez suas mãos mosqueadas a meus lábios úmidos de lágrimas, vem-me à mente que o Tio Efêndi não é, ele próprio, pintor, e esse pensamento me incomoda profundamente. Era como se alguém houvesse diabolicamente insinuado essa vergonhosa idéia na minha cabeça. E no entanto vocês também sabem que é a pura verdade.

       “Não tenho medo deles”, continua, “porque não tenho medo da morte.” De que estará falando? Sacudo a cabeça, simulando compreender. Mas começo a me sentir irritado. Percebo que ele tem, ali a seu lado, o Livro da alma, de Al-Jawziyya. Todos os velhos gagás à espera da sua hora compartilham a mesma veneração por essa obra, que relata as aventuras da alma depois da morte. Fora isso, desde a minha última visita, o único objeto novo, no meio das bandejas com caixas, pranchas para apontar os cálamos, tintas e pincéis, é um tinteiro de bronze.

       “Provemos a eles que não nos assustam”, digo, arriscando tudo. “Pegue a última miniatura, mostre-a a eles.”

       “Isso não seria, ao contrário, mostrar-lhes que as calúnias deles nos atingem, que nós as levamos a sério? Não fizemos nada de errado, nada de que possamos ter medo. Que mais, na sua opinião, justifica esse medo?”

       Ele me acariciou os cabelos, como um pai. Temi deixar minhas lágrimas jorrarem e atirei-me em seus braços.

       “Sei por que o Elegante Efêndi, nosso pobre iluminador, foi assassinado”, declarei com emoção. “O Elegante Efêndi estava a ponto de denunciar o senhor, seu livro e nós todos, e despachar contra nós os asseclas de Nusret Hodja de Erzurum. Ele havia decretado que éramos uns ímpios dominados por Satanás, estava decidido a gritar isso aos quatro ventos e a insuflar contra nos os outros pintores que o senhor havia contratado para fazer seu livro. Como chegou a tal ponto, eu não sei. Talvez por inveja ou pelo efeito de uma alucinação diabólica. Os outros pintores que o senhor contratou compreenderam que o Elegante Efêndi estava firmemente decidido a causar a perda deles. A perda de todos nós. Eles tinham medo de ser atingidos pelas acusações dele. Eu também. Certa noite, um desses artistas sentiu-se acuado pelo Elegante Efêndi — que o instigava contra o senhor, contra nós, contra nossos livros, nossas miniaturas e tudo o mais em que acreditamos —, entrou em pânico, matou aquele traidor e jogou seu corpo num poço.”

       “Traidor?”

       “O Elegante Efêndi era um desnaturado, um traidor grosseiro!”, berrei como se ele estivesse diante de mim.

       Fez-se um silêncio. Teria o Tio Efêndi medo de mim? Eu, sim, tinha medo de mim mesmo, porque me sentia como que dominado por uma inteligência e uma vontade exteriores às minhas.

       “Quem é esse pintor que entrou em pânico, como o sheik Muhammad e você? Quem é o assassino?”

       “Não sei.”

       Mas torço para que ele possa ler no meu rosto que estou mentindo. Compreendo que minha visita é um grave erro, mas não estava disposto a me deixar dominar pelo remorso e pela culpa. E perceber que o Tio Efêndi desconfia de mim me dá, ao contrário, uma sensação de força e de prazer. De repente, digo a mim mesmo que, se de fato compreendeu que era eu o assassino e que isso enchia sua alma de medo, ele não ousaria se recusar a que eu visse a última pintura. Agora ela só desperta em mim curiosidade, e não mais a necessidade de verificar se é ímpia ou não — sinceramente, eu só queria ver como ela era.

       “Que importância tem saber quem matou aquele inútil? Não foi uma boa ação nos livrar dele?”, pergunto.

       Ele não me olha mais nos olhos, o que me estimula a ir mais longe. As pessoas de bem, as que se crêem melhores e mais virtuosas que você são incapazes de sustentar seu olhar quando se envergonham por sua causa. Talvez porque já pensem em te entregar aos suplícios e aos torturadores.

       Do lado de fora do portão do pátio, uns cachorros puseram-se a latir freneticamente.

       “A neve voltou a cair”, comento. “Aonde foram todos? Como é que deixaram o senhor sozinho, sem nem mesmo uma vela acesa lá embaixo?”

       “De fato, é estranho. Muito estranho. Também não entendo.”

       Ele parecia tão sincero que acreditei piamente. E, embora eu tivesse o costume de caçoar dele, tanto como dos pintores que contrata, sinto de novo uma profunda afeição por ele. Como será que intuiu essa ternura filial que transborda do meu coração nesse instante, para começar a acariciar assim meus cabelos, com um ar paterno e preocupado? Não sei. Mas começo a perceber que o estilo de pintura de Mestre Osman e o legado dos antigos mestres de Herat não têm nenhum futuro. Esse pensamento abominável volta a me aterrorizar.

       Depois de uma catástrofe, todos nós agimos assim: num derradeiro rasgo de esperança, sem nos preocupar com quão tolos e ridículos possamos parecer, oramos para que tudo volte a ser como sempre foi.

       “Continuemos a pintar nosso livro como antes”, eu disse, “como se nada houvesse acontecido.”

       “Há um criminoso entre os pintores. Vou continuar o trabalho iniciado, mas com o Negro.”

       Será que ele está me provocando, para ver se eu seria capaz de matá-lo?

       “Onde está o Negro agora? E sua filha? E as crianças?” Sinto que essas palavras são postas na minha boca por uma força externa, mas não posso me impedir de dizê-las. A felicidade e a esperança parecem vedadas para sempre. Só consigo ser brilhante e sarcástico, e acima desses dois djins sempre tão sedutores — inteligência e espirituosidade —, sinto insinuar-se a presença de seu amo: o Diabo. No mesmo instante, os sinistros latidos do lado de fora do portão acentuam-se, como se os cachorros houvessem farejado o cheiro de sangue.

       Já não vivi essa cena? Numa cidade distante, numa época que agora me parecia tão remota, quando caía uma neve que eu não podia ver, eu tentava em lágrimas, à luz de uma vela, persuadir da minha inocência um velho sovina e gagá que me acusava de ter roubado umas tintas. Tal qual agora, os cachorros puseram-se a latir como se sentissem cheiro de sangue. Compreendo, ao ver o velho queixo enrugado e comprido, sinal de maldade, e o olhar do Tio Efêndi, que ele por fim consegue fixar sem dó nem piedade nos meus olhos, que está decidido a me esmagar. Volta-me então à memória a vaga lembrança de quando eu era um aprendiz de dez anos de idade, como se fosse uma imagem de contornos nítidos mas de cores desbotadas. Vivo assim o presente como se ele fosse uma recordação distinta mas esmaecida.

       Levanto-me, passo por trás do Tio Efêndi e pego na sua mesa de trabalho o novo tinteiro de bronze, pesado e grande, misturado aos outros que eu já conhecia, de vidro, de porcelana, de cristal de rocha. E o miniaturista ardente que existe dentro de mim — que Mestre Osman instilou em cada um de nós — pinta na sua imaginação o que eu faço e o que eu vejo em cores distintas, apesar de esmaecidas, não como um acontecimento que estou vivendo agora, mas como uma lembrança muito remota. Assim como nos sonhos ficamos arrepiados ao ver a nós mesmos de fora, arrepio-me agora ao brandir aquele volumoso tinteiro de bronze, bojudo e de gargalo estreito, dizendo:

       “Quando eu tinha dez anos, quando era aprendiz, vi um tinteiro como este.”

       “E um tinteiro mongol, tem no mínimo trezentos anos”, diz o Tio Efêndi. “Foi o Negro que me trouxe de Tabriz. É para o vermelho.”

       A súbita vontade que sinto então, de vibrar com toda a minha força o tinteiro no crânio daquele velho estúpido e satisfeito de si, é uma tentação demasiado evidente do Diabo para que eu ceda a ela. Contenho-me pois e, num derradeiro rasgo de esperança, digo-lhe tolamente:

       “Fui eu que matei o Elegante Efêndi.”

       Vocês entendem por que eu disse isso cheio de esperança, não é? Confiei que o Tio também entenderia e, então, me perdoaria — que teria medo de mim e me ajudaria.

 

                   Eu sou o vosso Tio

       Quando ele me disse que era o assassino do Elegante Efêndi, um longo silêncio se abateu sobre o quarto. Pensei que ia me matar também. Meu coração batia disparado. Ele veio me assassinar, se confessar ou simplesmente meter medo em mim? Saberia ele próprio por que tinha vindo? Ao me dar conta de que não fazia idéia do que era o mundo interior daquele artista magnífico, cujo desenho esplêndido e cujo uso mágico da cor me eram, há anos, tão familiares, tive medo, sim. Eu o sentia ali, bem atrás de mim, brandindo meu tinteiro reservado à tinta vermelha na altura da minha nuca. Mas não me virei para encará-lo. Sabendo que o silêncio poderia vir a excitá-lo, comentei:

       “Esses cachorros não calam a boca!”

       Depois ficamos mais um instante em silêncio. Dessa vez, compreendi que morrer ou sair ileso daquele lance só dependia de mim, do que eu dissesse. Fora suas obras, a única coisa que eu conhecia dele é que era muito inteligente. Se você é dos que acham que um pintor não deve revelar nada de si próprio em suas obras, ele poderia perfeitamente se gabar de ser um destes. Mas como ele conseguiu me pegar sozinho na minha casa? Minha velha cabeça girava vertiginosamente por esse labirinto de reflexões, sem conseguir encontrar a saída. Onde estaria Shekure?

       “O senhor já sabia que era eu, não é?”, ele perguntou.

       Não, não sabia. Aliás, agora, num canto do meu espírito, eu me perguntava se, assassinando o Elegante Efêndi, ele na verdade não tinha agido bem e se nosso falecido iluminador, engolfado por seus terrores, não esteve de fato a ponto de causar a ruína de todos nós.

       Eu até sentia nascer dentro de mim uma espécie de confusa gratidão para com esse assassino, com quem eu estava a sós na minha casa deserta.

       “Não me espanta que você o tenha matado”, comecei. “Para gente como nós, que vive no meio dos livros e sonha o tempo todo apenas com as miniaturas, o mundo real sempre encerra algo de apavorante. Nós vivemos e trabalhamos para o que há de mais proibido, de mais perigoso numa cidade do islã: a pintura. Todo pintor, como o sheik Muhammad de Isfahan, sente dentro de si o aguilhão pungente do remorso, que o leva a se acusar a si mesmo antes de a todos os outros, a fazer ato de contrição, a pedir perdão a Alá e à comunidade dos crentes. Fazemos nossos livros em segredo, como se fôssemos culpados, e quase sempre nos desculpando de antemão. Sei muito bem que esse inesgotável sentimento de culpa, esse costume de curvar a cabeça ante os ataques dos hodjas, dos pregadores, dos juizes e dos religiosos em geral, que nos acusam de blasfêmia, é ao mesmo tempo o que alimenta e o que mata a imaginação dos nossos pintores.”

       “O senhor então não está com raiva de mim por ter eliminado aquele imbecil do Elegante Efêndi?”

       “O que nos atrai na caligrafia, na pintura ou no desenho faz parte desse medo que temos de ser punidos. Se nos debruçamos sobre o nosso trabalho de sol a sol, continuando noite adentro à luz de vela, a ponto de ficarmos cegos, se nos sacrificamos assim pela pintura e pelos livros, é menos por causa dos favores ou do dinheiro, do que para escapar da comunidade e dos seus rumores. Mas, paradoxalmente, também desejamos o reconhecimento, por esses mesmos homens que evitamos, das nossas criações mais inspiradas. E se eles nos acusam de blasfêmia... Ah, que sofrimento isso traz ao artista verdadeiramente talentoso! Mas a verdadeira pintura está oculta na angústia que não se vê e muito menos se cria, está contida na imagem que, à primeira vista, vão dizer que é ruim, incompleta, ímpia ou herética. O verdadeiro miniaturista sabe que tem de chegar a esse ponto, mas ao mesmo tempo teme a solidão que lá estará à sua espera. Quem pode aceitar uma vida tão atroz, tão angustiante como essa? Daí todos esses intermináveis terrores. Acusando a si mesmo antes que outros o façam, o artista pensa que escapará desses terrores que o atormentaram anos e anos. Ouvem-no e acreditam nessa sua confissão espontânea, e ele é assim condenado a arder no Inferno. O pintor de Isfahan acendeu ele próprio esse fogo infernal.”

       “Mas o senhor não é pintor”, disse ele. “Não foi por ter medo dele que o matei.”

       “Você o matou porque queria pintar à vontade, sem ser incomodado.”

       Meu assassino em potencial fez nesse instante uma observação altamente sagaz, a primeira desde há muito tempo, para dizer a verdade: “Eu sei, o senhor aprova tudo o que digo, finge concordar com minhas idéias simplesmente para se safar. Mas”, acrescentou, “o que o senhor acaba de dizer não está errado. E como quero que o senhor compreenda direito, ouça-me.”

       Encarei-o. Falando assim comigo, ele parecia ter abandonado toda polidez de fachada, parecia estar longe dali... Mas onde?

       “Não se ofenda. Não é nada...”, balbuciou, antes de soltar uma gargalhada passando por trás de mim, um riso que ecoava algo desvairado. “Acontece-me às vezes. Como agora. Faço uma coisa e, ao mesmo tempo, não sou eu. Ouço como um barulho dentro de mim, que me impulsiona, que me faz cometer o mal. E no entanto preciso disso. Quando pinto também é assim.”

       “Essas histórias de demônio são invenções de mulher velha.”

       “Acha então que estou mentindo?”

       Eu sentia que ele não tinha coragem para me matar friamente e que, por esse motivo, queria me forçar a irritá-lo. “Não se trata de mentira. E que você não está entendendo o que sente.”

       “Ao contrário. Percebo muito bem. Sofro todos os horrores do túmulo antes de morrer. Sem perceber, o senhor nos mergulhou no pecado até o pescoço. E acaba de me dizer para eu ser mais ousado. Foi o senhor que fez de mim um assassino. Agora a horda raivosa de Nusret Hodja vai matar todos nós.”

       Ele gritava para melhor convencer a si mesmo, apertando convulsivamente o tinteiro na mão. Se seus gritos chamassem a atenção de algum passante na rua... Mas com aquela neve toda!

       “Como você o matou?”, perguntei, menos por curiosidade do que para ganhar tempo. “Como foi que vocês foram parar na beira daquele poço?”

       “Foi o Elegante Efêndi que veio me ver naquela noite, ao sair da sua casa”, ele começa, espantosamente disposto a contar a continuação, ao que parecia. “Ele me disse que acabava de ver a última miniatura, em página dupla. Depois tentei dissuadi-lo do seu projeto, quer dizer, tentei impedi-lo de fazer um escândalo. Levei-o àquele terreno baldio, dizendo que tinha enterrado um dinheiro perto do poço de uma casa destruída pelo último grande incêndio. Ouvindo a palavra dinheiro, ganhou confiança em mim. Há melhor prova de que ele era um pintor venal? Mas não era isso que me incomodava: ele era como os outros, nem mais nem menos talentoso, e disposto a cavar a terra gelada com as próprias unhas. Aliás, tivesse eu de fato enterrado umas moedas de ouro perto daquele poço, não teria sido necessário matá-lo. O senhor escolheu um personagem bem vil para fazer suas iluminuras. Ele tinha um traço preciso, mas suas douraduras, coitado, sem falar do seu modo de escolher e empregar as cores, eram muito vulgares. Não deixei nenhum vestígio. Por falar nisso, diga-me: o que se deve entender pelo que chamamos estilo? Hoje em dia, os europeus como os chineses falam da cor de um pintor, do seu estilo. Um bom pintor tem de ter um estilo que o distinga de todos os outros?”

       “De uma coisa pode estar certo: que um novo estilo nunca procede de uma vontade pessoal do pintor”, respondi. “Um príncipe morre, um xá é vencido, uma época que parecia eterna termina e um grande ateliê de pintura é fechado; os pintores se dispersam por vários países, em busca de outros homens e de outros bibliófilos que os patrocinem. Um dia, um sultão compassivo reúne em seu palácio ou na sua tenda esses desterrados, esses refugiados sem rumo mas talentosos, pintores e calígrafos oriundos de Alepo ou de Herat, trata-os com bondade e funda com eles um novo ateliê de livros de arte. Esses artistas, que não se conhecem, no começo continuam a praticar cada um o estilo de pintura que têm como tradicional, mas, como aqueles meninos que depois de muito brigar na rua pouco a pouco se tornam amigos, eles também, com o tempo, altercam, se unem, brigam e se entendem. O surgimento de um novo estilo é o resultado de anos de desentendimento, inveja, rivalidade e estudo das diferentes maneiras de pintar e de empregar as cores. Geralmente, o pai dessa nova forma é o artista mais hábil e talentoso do ateliê. Eu diria até: o de maior sorte. Aos outros, menos felizes, resta a imitação, a tarefa de aperfeiçoar e burilar infinitamente o estilo que triunfou.”

       Evitando encontrar meus olhos, com uma voz surpreendentemente doce e trêmula, que parecia implorar, quase a voz de uma mocinha, ele me perguntou:

       “E eu, tenho um estilo próprio?”

       Achei que eu ia chorar. Com toda a ternura, gentileza e simpatia que pude reunir, apressei-me a lhe dizer o que eu pensava a esse respeito:

       “Em sessenta anos de uma vida pecadora, nunca vi pintor mais talentoso mais extraordinário, com uma pincelada mais mágica e um olho mais apurado do que você. Se pusessem diante de mim uma pintura que fosse fruto do trabalho conjunto de mil miniaturistas, eu seria capaz de reconhecer instantaneamente a maravilhosa pincelada de que Alá te fez dom.”

       “Concordo. Mas o senhor não é suficientemente sutil para perceber todo o meu talento”, disse ele. “O senhor mente, porque está com medo. Mas, azar, continue a falar do meu estilo.”

       “Seu pincel parece escolher sozinho o traço certo, sem a intervenção da mão. E o que ele faz surgir não é nem real, nem frívolo. Quando você pinta uma cena com numerosos personagens, a tensão que emana dos olhares trocados, da posição dos corpos na página e do sentido do texto em face transforma essa imagem num delicado murmúrio, que parece eterno. Gosto de voltar várias vezes às suas miniaturas para ouvir esse murmúrio e, cada vez, constato com um sorriso que o sentido mudou e, como poderia dizer, ponho-me a ler novamente a pintura. Juntando esses diferentes níveis de sentido, emerge uma profundidade que supera até mesmo a perspectiva dos pintores europeus.”

       “Muito bem! Mas deixe de lado os europeus e continue o que dizia.”

       “Sua linha é tão prodigiosa e forte que é no que você pintou que o observador acredita, muito mais do que na própria realidade. E do mesmo modo que a arte pode desviar o melhor dos crentes, a sua seria capaz de trazer para a via de Alá o incréu mais empedernido e irremediável.”

       “É verdade, mas não sei se se trata de um elogio. Continue.”

       “Nenhum pintor possui a mestria das cores e conhece os segredos delas como você. E sempre você quem prepara e aplica as mais vivas, as mais cintilantes, as mais verdadeiras.”

       “Certamente. E o que mais?”

       “Você sabe muito bem que você é o maior pintor depois de Bihzad e de Mir Sayyid Ali.”

       “É verdade, eu sei. Se o senhor também sabe, por que quer dar seu livro a essa nulidade do Negro, e não a mim?”

       “Primeiro porque o trabalho que ele vai fazer não requer nenhum talento de pintor. Segundo porque, ao contrário de você, ele não é um assassino.”

       Ele respondeu com um sorriso suave à gargalhada que soltei depois de todos aqueles belos elogios. Eu sentia, como quer que fosse, que era a única maneira — o único estilo? — que eu tinha para escapar daquele pesadelo. Iniciamos uma discussão, menos como um pai com seu filho do que como dois velhos calejados, a propósito daquele pesado tinteiro de bronze que continuava na mão dele: o peso do metal, a forma do objeto, que lhe dava seu equilíbrio, o comprimento do gargalo, o comprimento da cana dos antigos calígrafos, os mistérios da tinta vermelha cuja consistência ele avaliava balançando suavemente o tinteiro, de pé na minha frente... E que, se os mongóis não tivessem trazido, via Khurasan, Bukhara e Herat, os segredos do fabrico da tinta vermelha, que eles aprenderam com os mestres chineses, seríamos hoje, em Istambul, incapazes de produzir essas miniaturas. Enquanto falávamos, a consistência do tempo, como da tinta que se espalha, parecia se modificar, tornar-se mais fluida. Num canto do meu espírito, eu continuava a me perguntar como é que ninguém ainda havia voltado. Se pelo menos ele pusesse aquele tinteiro de volta na mesa!

       “Quando seu livro estiver terminado, os que virem minhas miniaturas apreciarão meu talento?”, perguntou-me mais sereno, no tom costumeiro das nossas conversas de trabalho.

       “Se Alá nos permitir terminar esse livro sem interferências, Nosso Sultão, quando o tiver nas mãos, começará sem dúvida correndo rapidamente os olhos por ele, para ver se não fomos avaros no uso das folhas de ouro. Depois, como todo sultão, examinará seu retrato como se estivesse lendo uma descrição da sua pessoa, e a semelhança que achará consigo o encantará mais do que a beleza das nossas ilustrações. Se, em seguida, ele se dignar em examinar a obra, inspirada pelo Oriente e pelo Ocidente, que criamos com tanto esmero e devoção à custa da luz dos nossos olhos, que benevolência a dele! Mas você sabe tão bem quanto eu que, a não ser que ocorra um milagre. mandará trancar o livro no Tesouro, sem nem sequer perguntar quem é o autor da moldura, das iluminuras, deste personagem ou daquele cavalo. E voltaremos a trabalhar, como bons artesãos, esperando que um dia nosso mérito seja reconhecido.”

       “E quando esse milagre acontecerá?”, perguntou ele após um silêncio que parecia marcar mais a espera do que a impaciência por alguma coisa. “Quando essas miniaturas, pelas quais aceitamos ficar cegos, serão realmente compreendidas? Quando elas valerão, a mim, a nós todos, o respeito que merecemos?”

       “Nunca.”

       “Como é possível?”

       “Nunca nos concederão o que você pede. E no futuro muito menos que hoje.”

       “Mas os livros duram séculos!”, ele replica com orgulho mas sem muita convicção.

       “Acredite, nenhum dos mestres venezianos possui a poesia, a fé, a sensibilidade que você tem, nem a pureza, o brilho das suas cores. Mas os quadros deles são muito mais persuasivos, se aproximam mais da verdadeira vida. Em vez de pintar como do alto do minarete, de uma altura suficiente para desdenhar o que chamam de perspectiva, eles, ao contrário, se põem no nível da rua ou dentro do quarto de um príncipe, para pintar sua cama, suas cobertas, a escrivaninha, o espelho, seu leopardo, sua filha, suas moedas de ouro. Eles incluem tudo isso, como você sabe. Não fiquei seduzido, diga-se de passagem, com tudo o que eles fazem: essa maneira de querer reproduzir a qualquer preço o mundo tal como ele é me parece bastante mesquinha e me incomoda. Mas há tamanha sedução no resultado que obtêm com esse método! Porque eles pintam o que o olho vê exatamente como o olho vê. Sim, eles pintam o que vêem, enquanto nós pintamos o que contemplamos. Vendo as obras deles, qualquer um compreende que é somente por meio do estilo deles que sua fisionomia pode ser imortalizada. E não são apenas os alfaiates, os açougueiros, os soldados, os padres e os quitandeiros de Veneza que ficam fascinados com essa idéia, mas os de toda a Europa... Todos encomendarão seu retrato nesse estilo. Basta um olhar para uma dessas pinturas, e você também vai querer se ver assim, vai querer acreditar que você é diferente de todos os outros, um ser humano único, especial e singular. Ora, pintar as pessoas, não como elas são percebidas pela mente, mas como são vistas pelo olho nu, pintar de acordo com o novo método proporciona essa possibilidade. Um dia, todo o mundo pintará como eles. Quando se falar em pintar, será esse sentido que a palavra terá. O palerma do alfaiate que não entende patavina da nossa arte também exigirá ser pintado assim, para poder acreditar, ao reconhecer a curva inconfundível do seu nariz, que ele não é um pobre coitado qualquer, mas um homem fora do comum.”

       “Mas nós também podemos fazer o retrato dele!”, exclamou o assassino num tom jocoso.

       “Não, não podemos! O falecido Elegante Efêndi, sua vítima, não te falou do terror que a idéia de imitar os europeus desperta em seus colegas? Mesmo que superemos esse medo e que fizermos como eles, o resultado será o mesmo: no fim, nossa arte se extinguirá e nossas cores esmaecerão. Ninguém mais se interessará por nossos livros e por nossas pinturas. E os que se interessarem, não compreenderão mais nada e perguntarão com uma careta por que essa ausência da perspectiva — se é que poderão encontrar as próprias obras! A indiferença dos homens, o tempo e as catástrofes destruirão nossa arte. A cola das nossas encadernações, conforme a fórmula árabe, contém escama de peixe, osso, mel, e nossas páginas são lustradas com clara de ovo e amido. Os camundongos vorazes as comerão com despudorada gula. Os cupins, os carunchos e mil espécies de bichos roerão nossos preciosos manuscritos até desaparecerem. As encadernações racharão, as páginas se soltarão. Criados indiferentes, ladrões e crianças rasgarão, sem pensar, as páginas e as pinturas, donas-de-casa irão usá-las para acender o fogo. As princesinhas e os principezinhos rabiscarão nossas páginas com suas penas de brinquedo, espalharão nelas o muco das suas narinas, furarão os olhos dos personagens, desenharão nas margens. De tempo em tempo, algum censor religioso, furiosamente inspirado, declarará que tudo aquilo é pecado, cobrirá tudo com extrato de nogueira. Ou uma criança recortará as páginas para fazer caricaturas e se divertir, zombando delas. As mães arrancarão o que acharem obsceno, os pais ou os irmãos se masturbarão sobre as figuras femininas, e assim as páginas ficarão grudadas, não só por causa disso, mas também por obra da lama, da cola que transborda, da saliva adensada com todos os restos possíveis de comida. Onde as páginas se grudaram, pontos de mofo e de sujeira desabrocharão como flores. A chuva, as intempéries, uma inundação, um simples telhado com goteira ou torrentes de lama arruinarão nossos livros. E, como quer que seja, ao lado das obras que as inundações, a umidade, os insetos já houverem reduzido a uma papa informe, ao lado de todas essas páginas vazadas, furadas, perfuradas, apagadas e tornadas ilegíveis, o livro que vierem a tirar, por milagre, do fundo de uma mala, que também por milagre foi conservada seca, acabará apesar de tudo devorado nas chamas de algum incêndio. Existe algum bairro de Istambul que não tenha sido reduzido a cinzas uma vez cada vinte anos, onde tal livro possa subsistir? Nesta cidade, em que a cada três anos desaparecem mais livros e bibliotecas do que os mongóis queimaram e saquearam em Bagdá, que pintor ousará sonhar que suas obras-primas durarão mais de um século ou que um dia sua arte poderá ser admirada, e ele reverenciado como Bihzad? E não são apenas nossas obras, mas tudo o que nosso mundo produziu ao longo dos séculos, que as chamas, a incúria ou os vermes acabarão por destruir: Shirin observando orgulhosamente Khosrow de uma alta janela; Khosrow contemplando Shirin banhando-se ao luar; e todos os delicados olhares de todos os amantes delicados; Rustam no fundo do poço matando o demônio branco; abandonado pela amada, Majnun sofre no deserto, convivendo com o tigre branco e os cabritos-monteses; o cão pastor traiçoeiro, desmascarado e enforcado por ter oferecido à loba com que ele se acasalava todas as noites um carneiro do rebanho que guardava; os ornatos de flores e de anjos, de galhos e pássaros, de folhagens e ramagens, que tantas lágrimas fizeram derramar; os alaudistas que ilustram os enigmáticos versos de Hafiz; as ornamentações de paredes em que milhares, ou melhor, dezenas de milhares de aprendizes e mestres arruinaram sua vista; as placas escritas, penduradas na parede, acima das portas; todos aqueles dísticos dissimulados na feitura complicada das molduras; as humildes assinaturas, escondidas nos rochedos, sob os arbustos, ao pé dos muros, sob os telhados, no canto das fachadas, sob a sola de um sapato; as flores que cobrem aos milhares os lençóis dos amantes; as cabeças cortadas dos infiéis, aguardando pacientemente o assalto, pelo ancestral do Nosso Sul-tão, de uma cidade que ele derrotou; as tendas, os canhões e os fuzis que você ajudou a ilustrar quando jovem e que aparecem ao fundo, quando os embaixadores dos infiéis vêm beijar os pés do bisavô do Nosso Sultão; os diabos, com ou sem rabo, com ou sem chifres, de dentes e unhas pontudos; os milhares de passarinhos, entre os quais a poupa sábia, o pardal saltitante, o milhafre estúpido e o rouxinol poeta; os gatos que se comportam bem, os cachorros que se comportam mal; as nuvens que galopam; os adoráveis raminhos de relva, idênticos em mil imagens; as sombras ingênuas projetando-se nos rochedos e as dezenas de milhares de ciprestes, romãzeiras e plátanos com suas folhas traçadas uma a uma com uma paciência de Jó; os palácios com suas centenas de milhares de tijolos, que têm por modelo os palácios do xá Tahmasp ou de Tamerlão, mas que ilustram histórias de épocas muito mais antigas; os milhares de príncipes melancólicos, que escutam no campo a música tocada para eles por mulheres e efebos, sentados em tapetes à sombra de árvores em flor, na primavera; os maravilhosos motivos desses tapetes e dos azulejos, que, no último século e meio, custaram às mãozinhas dos aprendizes de Samarcanda ou de nossa terra tantas lágrimas e tantas surras; os maravilhosos jardins, os milhafres negros planando acima dos campos de batalha coalhados de mortos; as caçadas dos nossos soberanos, perseguindo delicadamente gazelas igualmente delicadas, que fogem, trêmulas, diante deles; os inimigos na servidão, a morte dos xás, os galeões infiéis, as cidades rivais e a sombria claridade que cai das estrelas, aquelas noites que os ciprestes assombram e que brilham como se a própria noite escorresse e brilhasse na tinta do seu pincel, todas as suas cenas de amor ou de morte, tingidas de vermelho, tudo, tudo desaparecerá.”

       Ele ergueu o tinteiro de bronze e me bateu com toda a força na cabeça.

       Sob a violência do choque, caí de cara no chão. Senti uma dor atroz, absolutamente indescritível. Por um instante, minha dor parece respingar no mundo: tudo é amarelo. A maior parte do meu espírito compreendia que era de propósito, mas uma pequena parte, apesar do golpe dado, ou a parte que, justamente, esse golpe fazia funcionar menos bem me induzia lamentavelmente a perguntar àquele louco que queria me assassinar se ele, na verdade, não estava me agredindo por equívoco!

       Ergueu mais uma vez o tinteiro e abateu-o sobre a minha cabeça.

       Entendi dessa vez, inclusive com aquela parte do meu espírito que funcionava arrevesadamente, que não havia equívoco possível, que sua loucura, sua raiva estavam ali, e com elas a morte, o fim. Fiquei tão aterrorizado com esse estado de coisas que elevei minha voz, berrando com toda a minha força e com toda a minha dor. Se meus gritos fossem uma cor teriam banhado tudo de verde; mas, na escuridão daquela noite de inverno, essa cor não podia ser percebida nas ruas desertas. Eu estava só.

       O grito assustou-o, ele hesitou. Nossos olhos se encontraram. Li nas suas pupilas que, apesar do horror, apesar da vergonha, ele aceitava seu ato, entrava rapidamente no papel de assassino. Não era mais o pintor que eu conhecia, mas um estranho distante, mau, que não falava minha língua, e essa sensação prolongou minha momentânea solidão por séculos. Quis agarrar sua mão, como para me segurar no mundo. Em vão. Supliquei, creio: “Meu filho, meu filho, não me mate!”. Como num sonho, ele parecia não me ouvir.

       Bateu mais uma vez o tinteiro de bronze na minha cabeça.

       Meus pensamentos, minhas lembranças, meus olhos e o que eu via, tudo se misturou para se transformar em medo. Eu não via mais as cores, e percebi que todas as cores tinham se transformado em vermelho. O que pensei ser meu sangue era tinta vermelha; o que pensei ser tinta nas minhas mãos era meu sangue que se derramava.

       Como achei injusto, cruel, impiedoso morrer naquele instante! Mas era o que ia mesmo acontecer um dia ou outro, vistos meus cabelos brancos que o sangue avermelhava. Foi então que vi: minhas lembranças estavam todas brancas, como a neve que caía lá fora em silêncio. E eu ouvia meu sangue pulsar na minha cabeça, na minha boca.

       Vou lhes contar minha morte. Vocês talvez já tenham compreendido há muito: a morte não é o fim de todas as coisas, disso não há dúvida. Mas é verdade também, como dizem todos os livros, que a morte é uma dor inimaginável. Não era apenas minha cabeça e meu cérebro que sofriam, eram todas as partes do meu ser, confundidas e mescladas numa dor atroz, infinita. Era tão insuportável que uma parte do meu espírito reagiu esquecendo a agonia e — como se fosse a única alternativa possível — procurando mergulhar num sono suave.

       Antes de morrer, lembrei-me daquele conto assírio que eu ouvira ao entrar na adolescência. Um velho que vivia sozinho levanta-se no meio da noite, para tomar um copo de água. Põe o copo na mesa e constata que a vela desapareceu. Um tênue raio de luz vem do quarto, ele o segue, tornando sobre seus passos, e encontra na cama outra pessoa, com a vela na mão. “Quem é você?” O estranho responde: “A Morte”. O velho franze a testa, não fala nada, mas por fim responde: “Então você veio”. “Sim”, responde a Morte, arrogantemente. “Não”, replica o ancião, “você é o sonho que não terminei.” Sopra a vela na mão do estranho e tudo mergulha na escuridão. O velho volta para a cama, adormece e vive mais vinte anos.

       Eu sabia que, no meu caso, não seria assim. Ele batera outra vez com o tinteiro na minha cabeça. A dor era tão intensa que dessa vez senti o choque apenas vagamente. Ele, o tinteiro, o quarto mal iluminado pela vela, tudo parecia se distanciar e desbotar pouco a pouco.

       Mas eu ainda vivia, e sabia disso, pois que me agarrava, pois que desejava fugir, pois que me debatia, com as mãos, com os pés, para proteger minha cabeça, meu rosto cheio de sangue, pois que, a certa altura, creio ter-lhe mordido a canela, antes de ele me acertar em cheio, no rosto, com o tinteiro.

       Lutamos, portanto, se é que ainda se pode falar de luta. Ele era forte e estava tremendamente agitado. Imobilizou-me de costas, fincando os joelhos em meus ombros e, enquanto me mantinha assim, pregado no chão, contou-me sem o menor respeito por um ancião moribundo, uma porção de coisas, e num tom! E, mais uma vez, na certa porque eu não podia nem compreender, nem ouvir, nem olhar direto em seus olhos injetados de sangue, tornou a me bater com o tinteiro. Seu rosto e todo seu corpo tinham ficado vermelho vivo, o vermelho da tinta que jorrava do tinteiro e o vermelho do sangue que jorrava de mim.

       Fechei os olhos, não querendo que a derradeira imagem que eu teria do mundo fosse a triste visão de um rosto hostil... Logo depois, percebi uma luz suave e agradável como o sono, tão suave e reparadora que achei ter chegado ao fim dos meus sofrimentos. Vi alguém na luz e lhe perguntei, como uma criança: “Quem é você?”.

       “Sou Azrail, o Anjo da Morte”, respondeu. “Anuncio aos filhos de Adão o fim da viagem deles neste mundo. Separo os filhos das mães, os esposos das esposas, os pais das filhas, os amantes um do outro. Neste mundo, não há uma só alma que não encontre seu caminho.”

       Ao compreender que a morte era inelutável, pus-me a soluçar.

       Meus soluços me davam uma sede tremenda, e havia a dor atordoante e lancinante, havia, de um lado, aquele lugar cruel e frenético, em que eu jazia, cabeça e rosto empapados de sangue; e havia, de outro lado, um lugar em que a crueldade e o frenesi cessavam, mas ele era estranho e assustador. Eu sabia que aquele mundo aureolado de luz, a que o anjo Azrail acabava de me convidar, era o território dos mortos, e eu tinha muito medo de entrar lá. Mas entendia também que não poderia mais ficar muito tempo neste mundo que se obstinava em me torturar tão brutalmente e onde eu não podia mais ter descanso. Para ficar aqui, teria sido necessário suportar esses sofrimentos e, na minha idade, isso já não era possível.

       Assim, pouco antes de morrer, desejei morrer. E encontrei nesse momento a resposta àquela questão sobre a qual eu havia meditado a vida toda, a resposta que não pudera encontrar em nenhum livro: por que todos os homens, sem exceção, acabam morrendo um dia ou outro? Simplesmente porque todos eles acabavam desejando morrer. Também descobri que a morte ia me tornar um homem mais sábio.

       Mas, antes de partir para a longa viagem, hesitei o suficiente para não refrear um derradeiro olhar para o quarto e a mobília. A inquietude e, já, a saudade me faziam desejar rever minha filha, pela última vez. Cheguei a pensar em esperar, tanto quanto preciso fosse, resistindo à dor e à sede cada vez maiores.

       A luz suave e mortiça se atenua um pouco, e meu espírito se abre de novo aos ruídos do mundo à minha volta, enquanto agonizo. Ouço meu assassino. Ele se movimenta no quarto, abre o armário, remexe nos papéis: procura a última miniatura. Não a encontrando, põe-se a derrubar as tintas, os baús, as caixas, os tinteiros e as mesas de trabalho a violentos pontapés. O que eu percebia de longe em longe eram meus próprios gemidos, as convulsões bizarras dos meus velhos braços, das minhas pernas cansadas. Esperei.

       A dor não diminuía. Pouco a pouco, eu me calei, parei de lutar. Mesmo assim, ainda esperei.

       Ocorreu-me então que, se minha filha voltasse, ela podia se ver face a face com meu assassino. Não quis mais pensar nisso, depois senti que aquele celerado tinha saído do quarto. Certamente havia encontrado a última miniatura.

       Minha sede tornava-se insuportável, mas ainda esperei. Venha, minha linda Shekure, chegue logo.

       Ela não chegou a tempo.

       Faltavam-me forças para agüentar todo aquele sofrimento. Soube que morreria sem voltar a vê-la. Foi uma dor a mais e quis morrer, dessa vez, de tristeza. Então, naquele momento, apareceu à minha esquerda um rosto cheio de bondade, que eu nunca havia visto e que me sorria, oferecendo um copo d’água.

       Esquecendo todo o resto, faço com avidez o gesto de pegá-lo. Mas ele retira o copo: “Diga: o profeta Muhammad mentiu. Renegue tudo o que ele disse”.

       Era o Diabo. Não respondi. Não tinha medo dele. Como nunca acreditei que fazer pintura significasse ser seduzido por ele, continuei esperando confiante. Eu já sonhava com o futuro, com a longa viagem que me esperava.

       Depois o anjo de luz que eu vira antes voltou, e Satanás desapareceu. Uma parte do meu espírito sabia que esse anjo luminoso que punha o Diabo para correr era o próprio Azrail. Mas outra parte, sempre pronta a se rebelar, me lembrava o que está escrito no Livro das circunstâncias da ressurreição final: que Azrail é um anjo que tem o mundo inteiro nas mãos, cujas asas, imensas, cobrem com sua envergadura o Oriente e o Ocidente.

       Vendo minha perturbação e como para me tirar daquele embaraço, o anjo se aproximou e pronunciou, numa voz sublimemente suave, as mesmas palavras que são citadas por Gazali nas Pérolas da magnificência:

       “Então, abra a boca, para que a sua alma possa sair.”

       “Da minha boca não pode mais sair outro nome, que não o de Alá”, respondi.

       Era meu derradeiro subterfúgio. Compreendi que não era mais tempo de resistir e que minha hora havia chegado. Não vou voltar a vê-la. E por um instante tive vergonha de deixar à minha filha meu corpo naquele estado pavoroso, sujo, ensangüentado. Quis sair logo deste mundo exíguo, que me incomodava como uma roupa apertada.

       Abro a boca e, então, como nas descrições da Ascensão Noturna que o Profeta, em sonho, fez do Paraíso, tudo é invadido por uma luz preciosa, como se estivesse generosamente pintado com folha de ouro. Outra lágrima de pesar rola dos meus olhos. Um sopro, vindo do fundo dos meus pulmões, abre passagem através da minha garganta. Tudo fica imerso num prodigioso silêncio.

       Podia ver agora que minha alma tinha saído do meu corpo e Azrail a levava na mão. Ela era do tamanho de uma abelha, aureolada de luz, tremeu ao deixar meu corpo e continuava a tremer na palma daquele anjo, como uma gota de mercúrio. Mas meus pensamentos estavam longe deles, num mundo totalmente novo e desconhecido em que eu acabava de ingressar.

       Depois de tanto sofrimento, a calma me subjugou. A morte não me causava a dor que eu temia; ao contrário, logo relaxei, sabendo que minha situação atual seria permanente e que as angústias da minha existência tinham sido passageiras apenas. Assim seria de agora em diante, até o fim do universo. Isso não me perturbava nem me alegrava. Os acontecimentos que antes se sucediam vertiginosamente agora se estendiam simultaneamente por um espaço infinito. Como numa dessas pinturas em folha dupla em que um miniaturista astuto pinta em cada canto certo número de elementos sem nenhuma relação recíproca, muitas coisas estavam acontecendo ao mesmo tempo.

 

                   Eu, Shekure

       Nevava tanto que os flocos às vezes passavam pelo meu véu direto nos olhos. Tive dificuldade para atravessar o jardim cheio de lama, de vegetação apodrecida e de galhos, mas, uma vez na rua, pude acelerar o passo. Vocês devem estar se perguntando quais eram meus pensamentos naquele momento. Pois bem, eram estes: eu podia confiar no Negro? Vou ser sincera com vocês: eu mesma me pergunto agora quais eram meus pensamentos naquele momento. Vocês entendem, não é? Eu estava confusa. Mas de uma coisa eu tinha certeza: como sempre, toda vez que eu enfrentava um problema — comida, meus filhos, meu pai, os recados —, uma voz interior acabaria se fazendo ouvir e meu coração, sem nem mesmo precisar ser interrogado, me sopraria por conta própria a solução. Antes de amanhã ao meio-dia saberei o nome do meu próximo marido.

       Há uma coisa de que eu gostaria de lhes falar, antes de voltar para casa. Não, por favor, não se trata mais uma vez das dimensões do formidável coiso que o Negro me mostrou — mais tarde falaremos nisso, se vocês fizerem questão. Do que quero lhes falar é da sua estranha precipitação. Não que, a meu ver, ele pense exclusivamente em satisfazer seus baixos instintos, o que aliás pouco me importaria; o que me surpreende é sua estupidez! Acho que nem lhe passou pela cabeça que sua conduta podia me assustar, me fazer fugir, e que brincar com a minha honra é arriscar-se a me perder! Sem falar nas conseqüências ainda mais graves... Dá para ver por seu ar confuso que ele me ama e me deseja perdidamente. Mas depois de ter esperado doze anos, por que ele não pode jogar o jogo de acordo com as regras e esperar mais doze dias?

       O caso é que, sabem?, eu me sentia cada vez mais cativada pelo seu mau jeito, por seu olhar de garotinho triste. No momento em que mais deveria ter me zangado, ele simplesmente me deu dó, e ouvi minha voz interior dizendo: “Coitadinho, ele continua apaixonado, e é tão desastrado!”. Senti necessidade de protegê-lo e teria sido capaz até de um deslize: isso mesmo, estive a dois dedos de me entregar àquele malcriado.

       Pensando de repente em meus pobres orfãozinhos, apertei o passo. Na noite já caída e na neve que me cegava, eu imaginava que um homem, um fantasma, ia se atirar sobre mim e encolhi a cabeça entre os ombros, como para evitá-lo.

       Entrando no pátio de casa, vi que Hayriye e as crianças ainda não haviam voltado. Melhor assim, disse comigo mesma, e aliás era normal, pois ainda não se ouvira o chamado para a prece da noite. Subindo a escada, acreditei sentir um cheiro de laranja amarga. Não havia luz no quarto da porta azul, onde no entanto meu pai devia estar; meus pés estavam gelados; peguei uma lâmpada e, mal entrei no cômodo, percebi o armário aberto, as almofadas no chão e disse comigo mesma, ah, isso é coisa de Orhan e Shevket... Não havia o menor ruído. O silêncio habitual, ou melhor, um silêncio inabitual. Mudei de roupa e fui me sentar para mergulhar de novo nos meus sonhos, quando, do fundo da minha alma, percebi um ligeiro barulho. Vinha de baixo, não da cozinha mas bem abaixo de mim, do ateliê junto da estrebaria, onde meu pai se instala no verão, porque lá é sempre fresco. Será que ele tinha descido para trabalhar lá, apesar do frio? Mas eu não me lembrava de ter visto nenhuma luz de vela. De repente ouvi, dessa vez, ranger o portão e, em seguida, do outro lado do portão, aqueles malditos cachorros puseram-se a latir de maneira sinistra. Gritei:

       “Hayriye? Shevket, Orhan!”

       Senti uma corrente de ar. “A estufa do meu pai deve estar acesa”, pensei. “Seria melhor ir me aquecer junto dele.” Não pensava mais no Negro, mas em meus filhos. Peguei uma vela para ir ao cômodo ao lado.

       No corredor, lembrei-me que precisava ir pôr a água para esquentar no fogão, para a sopa de peixe. Empurrando a porta azul e vendo aquela bagunça toda no quarto, perguntei-me vagamente o que meu pai podia ter aprontado.

       Foi nesse instante que o vi, caído no chão. Tive medo, é claro, e soltei um grito, depois gritei mais uma vez. E aquela visão horrível do cadáver do meu pai silenciou-me.

       Olhem, pelo silêncio de vocês e pelo sangue-frio com que vocês reagiram, sei que vocês já sabem há algum tempo o que aconteceu neste quarto. Talvez não tudo, mas quase tudo. O que lhes interessa agora é saber meus sentimentos, minha reação vendo o que vi. E como certas pessoas ao olhar para um quadro procuram reconstituir o fio dos acontecimentos que levam àquela cena atroz, àquele instante em que o personagem é captado em seu sofrimento, vocês imaginam, não meu sofrimento, mas o de vocês mesmos, aquele que vocês poderiam ter no meu lugar, se fosse o pai de vocês que houvesse sido assassinado. Eu sei que é isso que vocês estão tentando maliciosamente fazer.

       Pois bem. Volto para casa já de noite e descubro que alguém matou meu pai. Sim, arranco os cabelos, berro tanto quanto posso, abraço-o respirando seu cheiro, como fazia quando era pequena. Sim, eu sofro, tenho medo, sinto-me abandonada, e tremo sem poder parar, sem poder recobrar a respiração. Como não consigo acreditar no que meus olhos vêem, levanto-me implorando Alá: faça que meu pai ressuscite, que eu possa vê-lo de novo tranqüilamente sentado entre seus livros. “Levante”, digo a ele, “por favor, papai, não morra, levante-se.” Mas a cabeça dele está toda ensangüentada, quebrada em mil pedaços. Mais que os papéis e os livros rasgados, as mesas, os tinteiros, os potes de tinta quebrados e derramados, as almofadas, as mesas de desenho e de escrever furiosamente saqueadas, mais que a própria cólera selvagem daquele que matou meu pai, é o ódio expresso por tal devastação que horroriza. Já não choro. Duas pessoas passam pela rua lá embaixo, falando animadamente, rindo na escuridão. E eu escuto o silêncio, um mundo de silêncio dentro de mim, enquanto enxugo com a mão meu nariz que escorre e as lágrimas na minha face. Pensei demoradamente em meus filhos, na nossa vida.

     Ouvi o silêncio, depois me apressei: peguei meu pai pelos pés e puxei-o para o corredor. Ali, estranhamente, ele parecia mais pesado, mas não fraquejei, arrastei-o escada abaixo. Na metade dos degraus, sentei-me exausta, e ia voltar a chorar quando ouvi um barulho; como talvez fosse Hayriye que voltava com as crianças, agarrei de novo meu pai, prendendo suas canelas debaixo das minhas axilas, e cheguei embaixo, mais depressa dessa vez. Sua pobre cabeça estava tão arrebentada e ensangüentada que, batendo nos degraus, fazia o barulho de um pano de chão sendo torcido. No térreo, virei-o no outro sentido — ele parecia mais leve agora — e de um só impulso, fazendo-o deslizar sobre as pedras do chão, consegui transportá-lo até o outro ateliê, aquele ao lado da estrebaria. Como não se enxergava nada, voltei correndo para a cozinha, para buscar fogo na lareira. A luz da minha vela, o ateliê também oferecia um espetáculo de devastação. Fiquei perplexa.

       “Quem, por Alá, pode ter feito isso?... Qual deles?”

      Minha cabeça fervia. Fechei cuidadosamente a porta daquele campo de batalha em que eu deixava o corpo de meu pai, voltei à cozinha para buscar um balde, que fui encher no poço do jardim, e pus-me a lavar o sangue no corredor de cima e a limpar um a um os degraus da escada, até embaixo, tudo. Em seguida subi de novo para tirar minha roupa toda manchada de sangue e pôr uma limpa. Ia entrar pela porta azul com o balde e o pano de chão quando ouvi o portão do pátio se abrir. O chamado para a prece acabava de começar, juntei toda a minha coragem e postei-me, vela na mão, no alto da escada, à espera deles.

       “Mamãe, chegamos!”

       “Hayriye, onde vocês estavam?”, gritei o mais alto que pude, um grito que me pareceu não passar de um sussurro.

       “Mas mamãe, o muezim ainda nem cantou!”, disse Shevket.

       “Cale a boca, seu avô está dormindo, está doente.”

       “Doente?...”, interveio Hayriye, que ainda estava embaixo. Mas pelo meu silêncio ela percebeu que não era hora e prosseguiu: “Shekure Hanim, tivemos de esperar Kosta. Quando conseguimos o peixe, viemos o mais depressa que pudemos, só passei para pegar um pouco de louro, também compramos figo e cereja secos para as crianças”.

       Tive vontade de descer para falar com ela, mas, lembrando-me que minha vela podia iluminar os degraus ainda úmidos e talvez alguma mancha de sangue que eu teria esquecido, mudei de idéia, e bem nesse instante meus dois filhos começaram a subir. Quando tiraram os sapatos, empurrei-os para o lado em que nós três ficávamos, fazendo sinal para que não acordassem meu pai no quarto em frente, da porta azul.

       “Psiu!”

       “Não queremos ir ao quarto do vovô, queremos ir para junto da estufa” disse Shevket.

       “Mas é lá que ele está dormindo”, respondi cochichando.

       Como eu via que mesmo assim eles hesitavam, acrescentei: “Não entrem, não quero que os djins que deixaram o avô de vocês doente peguem vocês também. Andem, já para lá, para o nosso quarto”. Peguei os dois pelas mãos e os fiz entrar comigo no cômodo em que costumávamos dormir os três, apertados uns contra os outros. “Contem o que vocês fizeram esse tempo todo na rua.” “Vimos uns mendigos árabes”, disse Shevket. “Onde? Eles levavam uma bandeira?” “Na subida do morro. Deram um limão para Hayriye, ela deu para eles umas moedas. Tinham neve no corpo todo, da cabeça aos pés.” “E tinha também os arqueiros treinando na praça.” “Num tempo destes?” “Mamãe, estou com frio”, disse Shevket. “Vamos para o lado de lá?” “Vocês não vão sair daqui. Senão podem morrer! Vou buscar o braseiro.” “Por que a gente pode morrer”, perguntou Shevket. “Vou lhes dizer uma coisa, mas prometam não contar a ninguém!” Eles prometeram, e eu lhes disse: “Enquanto vocês estavam na rua, um homem todo branco da cabeça aos pés, descorado, como um morto, veio até aqui de um reino muito distante para falar com o vovô. Era na certa um djim.” Eles me perguntaram de onde vinham os djins. “Do outro lado dos rios”, respondi. “Onde está nosso pai?”, perguntou Shevket. “Isso mesmo. O djim veio ver as miniaturas do livro que o avô de vocês está fazendo. E quem olha para elas em estado de pecado, morre!”

       Um silêncio.

       “Bem, vou lá embaixo ver o que Hayriye está fazendo. Vou pegar o braseiro e trazê-lo para cá, com a bandeja do jantar. Mas não se atrevam a sair daqui, vocês morreriam. Porque o djim ainda está em casa.”

       “Mamãe, mamãe, não desça!”, disse Orhan.

       “Tome conta do seu irmãozinho”, ordenei em tom ameaçador a Shevket. “Se saírem e o djim não os pegar, quem vai acabar com vocês sou eu!”, disse com a cara assustadora que faço quando vou lhes dar um tabefe. “Agora rezem para que o avô de vocês não morra da doença. Se vocês se comportarem, Alá ouvirá suas preces e ninguém lhes fará mal.”

       Desci, enquanto eles se punham a rezar, sem grande convicção.

       “Alguém derramou o pote de geléia de laranja”, disse-me Hayriye. “Não pode ser o gato, ele não tem tanta força, e um cachorro não teria entrado em casa...”

       Mas ela se interrompeu ao perceber minha fisionomia decomposta.

       “O que foi? Aconteceu alguma coisa com o senhor seu pai?”

       “Ele está morto.”

       Dando um grito, ela deixou cair com tanta força na mesa a mão que segurava a faca com a qual cortava a cebola que o peixe até pulou. Notei imediatamente, e ela também, que o sangue na sua mão esquerda era o dela, e não o do peixe. Tinha se cortado. Subi correndo para pegar um pano no quarto ao lado do que estavam as crianças. Ouvindo barulhos de briga, fui ver enquanto rasgava o pano: Shevket estava a cavalo sobre o irmão, prendendo os ombros dele no chão com os joelhos para começar a estrangulá-lo.

       “O que vocês estão fazendo?”, berrei.

       “Orhan quis sair do quarto”, respondeu Shevket.

       “Mentira!”, protestou Orhan. “Foi Shevket que abriu a porta e eu disse para ele não sair.”

       “Se vocês não ficarem quietinhos aqui, mato os dois.”

       “Mamãe, não vá embora!”, disse Orhan.

       Uma vez embaixo, fiz uma atadura em Hayriye para deter o sangramento. Disse-lhe que meu pai não tinha morrido de morte natural, e ela pôs-se a balbuciar umas preces, completamente aterrorizada. Ela chorava olhando fixamente para seu dedo ferido. Terá ela amado meu pai tanto quanto suas lágrimas e seus soluços faziam pensar?

       Hayriye quis subir para vê-lo no quarto de cima.

       “Ele não está lá”, disse-lhe. “Está no quarto atrás de nós.”

       Ela me lançou então um olhar carregado de desconfiança, depois, vendo que eu não me sentia capaz de ir até lá, cedeu à curiosidade, pegou a lâmpada e saiu. Deu quatro ou cinco passos além da porta da cozinha, onde eu ficara, abriu vagarosamente a porta do quarto, cheia de respeito e apreensão, e, à luz da lâmpada que empunhava, espiou lá dentro. Não podendo de início ver meu pai, ergueu a lâmpada mais um pouco, tentando iluminar os cantos do grande cômodo retangular.

       “Aaah!”, gritou, ao avistar meu pai onde eu o havia deixado, bem atrás da porta. Enquanto olhava para ele, sua sombra no chão e na parede da estrebaria parecia petrificada. Eu imaginava o espetáculo que ela contemplava. De volta, não chorava mais. Constatei com alívio que parecia de novo capaz de compreender e seguir as instruções que eu estava a ponto de lhe dar.

       “Agora escute”, disse a Hayriye brandindo sem querer a faca de cortar peixe. “Esse demônio maldito também saqueou o ateliê de cima, que está no mesmo estado deste aqui. Tudo de pernas para o ar. Foi lá em cima que arrebentaram o rosto e o crânio do meu pai, que o assassinaram. Resolvi descê-lo aqui para que as crianças não o vissem e que você não se assustasse quando chegasse. Enquanto vocês estavam fora, eu também saí. Meu pai estava sozinho em casa.”

       “Não diga”, fez ela com insolência. “E onde a senhora estava?”

       Calei-me. Eu queria que ela percebesse nitidamente que eu marcava um silêncio. Depois prossegui: “Eu estava com o Negro. Fui encontrá-lo na casa do judeu enforcado. Mas você vai me fazer o favor de calar a boca a esse respeito e sobre a morte do meu pai, por enquanto”.

       “Quem o assassinou?”

       Será que ela era tão idiota assim ou estava querendo me pôr contra a parede?

       “Se eu soubesse, não esconderia a morte dele. Não tenho a menor idéia. E você?”

       “Como eu poderia saber alguma coisa?”, replicou. “O que vamos fazer agora?”

       “Vamos fazer como se nada houvesse acontecido”, respondi. Eu tinha vontade de chorar, de arrebentar em soluços, mas consegui me conter. Ficamos um bom tempo silenciosas as duas, e por fim eu lhe disse:

       “Esqueça o peixe por enquanto e prepare uma bandeja para as crianças.”

       Ela disse que não se sentia capaz e desatou a chorar. Então eu a abracei e ficamos assim abraçadas. Nesse instante, eu a amava também, porque eu tinha dó de nós todos, não só de mim ou das crianças. Mas ao mesmo tempo eu me sentia pouco a pouco roída pela dúvida. Vocês sabem onde eu estava na hora em que meu pai foi assassinado. Vocês sabem que fui eu que, tendo em vista meus interesses, fiz Hayriye e as crianças saírem de casa. Vocês sabem que o fato de meu pai ter ficado sozinho não passa de um golpe do destino. Mas e Hayriye, também sabe? Terá entendido direito minhas explicações? Claro que sim, não só entendeu rapidamente como ficou desconfiada. Apertei-a com mais força; mas eu sabia que em sua cabeça de criada ela devia pensar que eu estava fazendo aquilo para encobrir minhas maquinações, e não demorou muito para eu mesma me sentir como se estivesse tentando tapeá-la. Enquanto meu pai era assassinado aqui, eu e o Negro estávamos namorando. Se fosse apenas Hayriye a saber disso, eu não me sentiria tão culpada, mas desconfio que vocês também podem estar imaginando coisas. Vamos, reconheçam: vocês acham que estou escondendo algo! Ai, como sou infeliz! Comecei a chorar a minha sorte, Hayriye também pôs-se a chorar, e nos apertamos novamente uma contra a outra.

       Levamos a comida para cima e fingi ter apetite. De vez em quando, a pretexto de “ir ver como estava o avô”, entrava no outro quarto para dar vazão às minhas lágrimas. Mais tarde, com medo e muito agitadas, as crianças vieram para a cama, deitar-se bem juntinho de mim. Demoraram para dormir, por causa dos djins, diziam, e não paravam de ouvir barulhos suspeitos, de se virar para um lado e para o outro. Para acalmá-los, prometi contar-lhes uma história de amor. Como vocês sabem, as palavras criam asas no escuro.

       “Mamãe, você não vai se casar de novo, não é?”, perguntou Shevket.

       “Escutem. Era uma vez um príncipe que se apaixonou por uma bela princesa, de um país muito distante. Como isso pôde acontecer? Pois bem, foi assim: antes de vê-la, ele tinha visto o retrato dela!”

       Como sempre, quando estou triste e inquieta, não contei a história de cor, mas improvisando de acordo com o que eu sentia. E como eu escolhia na paleta das minhas lembranças e das minhas preocupações as cores para a história que eu contava, ela acabava se tornando uma espécie de ilustração melancólica de tudo o que acontecia comigo. Quando meus dois meninos adormeceram, deixei-os na cama quentinha e fui com Hayriye consertar o estrago que aquele cão dos infernos tinha feito. Enquanto catávamos no chão os destroços de estojos, livros e roupas, os potes, os tinteiros, as vasilhas e os vasos quebrados; enquanto arrumávamos as mesas de trabalho, as caixas de pigmentos e todos aqueles papéis raivosamente rasgados, mal parávamos para chorar. Era como se o ateliê saqueado, todo o nosso interior selvagemente devastado nos doessem mais que a morte de meu pai. Posso dizer por experiência própria que a perda de um ente querido parece menos irreparável quando podemos encontrar, no seu lugar costumeiro, os objetos que lhe são associados. As mesmas cortinas, as mesmas colchas, a mesma luz dos dias que passam nos consolam e nos fazem esquecer os próximos que Azrail levou. Esta casa de que meu pai tanto cuidara, em que cada cantinho, cada porta fora objeto de uma atenção meticulosa, parecia agora um campo de ruínas. E não era apenas um espetáculo de absoluta desolação, sem nada para aliviar nossa tristeza, mas uma visão aterrorizante que deixava entrever, por trás daquele furor, uma crueldade infernal.

       Tive de insistir para que descêssemos para buscar água no poço, a fim de praticar nossas abluções. Depois pegamos o Corão preferido do meu pai, encadernado em Herat, e recitamos juntas a surata da Família de Imran, de que ele tanto gostava porque fala da morte e da esperança. O portão do pátio rangeu nesse momento, o que nos fez sobressaltar de pavor. Não era nada. Fomos pôr no lugar a barra do portão e empurrar contra ele o vaso de manjericão que, na primavera, meu pai costumava regar com a água que ele mesmo tirava do nosso poço. Ao voltarmos para casa, já era noite escura e achamos que as sombras projetadas na parede não eram as nossas. O mais aterrador era a sensação de irreparável: que não havia mais nada a fazer, já que meu pai estava de fato morto dessa vez, além de realizarmos, Hayriye e eu, nossos últimos deveres para com o defunto. Aplicamo-nos então, quase mudas — não fosse Hayriye murmurar “Passe esta manga por baixo” —, à horrível tarefa de lavar seu rosto e trocar suas roupas.

     Quando tiramos seus trajes todo ensangüentados, depois sua roupa de baixo, o que nos impressionou e nos surpreendeu foi que, à luz da vela, na escuridão do quarto, meu pai tinha a pele branquíssima, clara, mas como que ainda viva. Apavoradas como estávamos as duas com tudo o que nos ameaçava, em nenhum momento nos sentimos constrangidas, embaraçadas com o cadáver nu de meu pai, coberto de cicatrizes e de pintas.

       Enquanto Hayriye estava no andar de cima, buscando outra camisa, a verde de seda, e roupas de baixo, não pude me impedir de olhar para um ponto preciso do meu pobre pai, e me envergonhei do que fazia. Quando terminei de vesti-lo com roupas limpas e de lavar as manchas de sangue em seus cabelos, em seu pescoço, em seu rosto, abracei-o com toda a minha força e, enterrando meu nariz na sua barba, aspirei seu aroma e chorei longamente.

       Para os que me acusassem de não ter coração ou de ser em parte culpada apresso-me a esclarecer que chorei mais duas vezes: a primeira quando, arrumando o quarto de cima para que as crianças não se dessem conta de nada, levei ao ouvido a concha que tenho desde pequena e percebi que ela só produzia um som rouco, em vez do ruído do mar; a segunda quando vi que a almofada de veludo vermelho, na qual meu pai sentou-se por mais de vinte anos, a ponto de ela se tornar como que uma parte das suas nádegas, estava toda rasgada.

       À parte a esteira de junco, que tivemos de jogar fora, arrumei tudo como antes. E quando Hayriye me perguntou se ela podia fazer, naquela noite, sua cama no mesmo quarto que eu e as crianças, recusei sem piedade, dizendo que as crianças não podiam desconfiar do que quer que fosse. Na realidade, eu queria ficar a sós com eles e dar a ela uma lição. Deitei-me na cama, mas levei muito tempo para pregar os olhos. Mas não era por causa da horrível desgraça que acabava de me acontecer, e sim porque eu já calculava as conseqüências.

 

                   Meu nome é Vermelho

       Eu estava em Ghazna, no cafetã do poeta Firdusi, autor do Livro dos reis, quando ele completou com a mais intrincada das rimas um epigrama de que tinham lhe dado os primeiros versos, calando assim a boca dos poetas da corte do xá Mahmud, que haviam debochado dele chamando-o de rústico; eu estava na aljava de Rustam, o valente herói do Livro dos reis, quando ele segue as pegadas do seu cavalo perdido até as terras mais distantes; tornei-me o sangue que esguicha do célebre demônio branco, quando Rustam o racha no meio com sua espada maravilhosa; e estava nas dobras dos lençóis entre os quais ele faz furiosamente amor com a filha do seu anfitrião, o rei de Turã. Sim, eu estava e estou em toda parte, sempre. Apareço quando Tur, o traidor, decapita seu irmão Iradj; quando os exércitos lendários, como num sonho, se enfrentam nas estepes; e no sangue que escorre cintilante do belo nariz de Alexandre, quando ele adoece de insolação. E quando xá Bahram, o rei-onagro sassânida que dormia cada noite da semana com uma das suas concubinas, ouvindo as histórias que elas contavam, num dos seus sete palácios pintados de cada uma das sete cores, visita a beldade das terças-feiras, por cujo retrato se apaixonara, lá estou nos trajes da bela, assim como apareço na coroa e no cafetã de Khosrow, que se apaixonara pelo retrato de Shirin; e nos estandartes dos exércitos que sitiam uma praça-forte; nas toalhas que cobrem as mesas dos banquetes, nos cafetãs de brocado, quando os embaixadores vêm beijar os pés dos nossos sultões, e onde quer que a espada, para alegria das crianças, irrompe no meio de uma história. Sim, estou no pincel dos formosos aprendizes de olhos amendoados, que me passam, admirando-me, no grosso papel do Hindustão e de Bukhara; embelezo os tapetes indianos, a ornamentação das paredes, as túnicas das moças que se debruçam em suas sacadas sobre o espetáculo da rua, a crista dos galos bravios, as romãs e as frutas de países fabulosos, a boca de Satanás, os finos galões em torno das miniaturas, os motivos entrelaçados dos panos bordados das tendas, o emaranhado de flores minúsculas, apenas visíveis, em que o iluminador se deleitou, os olhos de cereja confeitada dos passarinhos de açúcar; e as perneiras dos pastores, as auroras narradas nas lendas, os ferimentos e os milhares, as dezenas de milhares de corpos de guerreiros, de namorados e de soberanos. Gosto de florir com flores de sangue a cena dos campos de batalha; aparecer no cafetã de um grande poeta quando ele sai, em companhia de poetas e de belos efebos, para um passeio no campo, onde cantarão e tomarão vinho; nas asas dos anjos, nos lábios das mulheres, nas chagas dos cadáveres e nas cabeças cortadas.

       Ouço a pergunta de vocês: o que é uma cor?

       A cor é o toque do olho, a música do surdo, a palavra que vem das trevas. Como tenho ouvido há dezenas de milhares de anos as almas sussurrarem, como o vento nas noites de tempestade, de livro em livro, de objeto em objeto, posso lhes dizer que meu toque se parece com o toque dos anjos. Uma parte minha, a parte séria, mobiliza a vossa visão, enquanto a parte brincalhona voa nas alturas, seguida por vossos olhares.

       Que sorte tenho de ser o Vermelho! Sou o fogo, sou a força! Todos me notam e me admiram, e ninguém resiste a mim.

       Devo ser franco: para mim, o refinamento não se esconde na fraqueza nem na sutileza, mas reside na firmeza e na determinação. Eu me exponho, pois, aos olhares. Não tenho medo nem das cores nem das sombras; menos ainda da multidão ou da solidão. Que prazer tenho ao pegar uma superfície oferecida ao meu ardente triunfo: eu a encho, expando-me nela; os corações se embalam, o desejo aumenta, os olhos se arregalam e todos os olhares brilham! Olhem para mim: é bom viver! Vejam como é bom ver! Viver é ver. Podem me ver em toda parte, creiam: a vida começa e se acaba sempre comigo.

       Mas silêncio! Ouçam o relato do meu maravilhoso nascimento, a origem do escarlate! Um mestre miniaturista, perito em pigmentos, esmagou bem miúdo com seu pilão, num almofariz, cochonilhas importadas de longínquas e tórridas paragens do Hindustão. Para cinco dracmas desse pó vermelho, preparou um dracma de saponária e meio — só meio! — de aventurina. Ferveu a saponária num pote com três okkas de água, depois dissolveu no líquido a aventurina. Deixou fervendo o tempo de tomar um bom café e enquanto o saboreava, eu me impacientava, como um bebê que vai vir à luz! O café clareou-lhe a mente, seus olhos cintilavam como os de um djim. Ele derramou então na panela o fino pó de cochonilha, mexendo regularmente com um pauzinho reservado para esse fim. Eu ia me tornar o autêntico vermelho-carmim, mas faltava-me ainda uma boa consistência, e a mistura não devia ferver nem de mais, nem de menos. Com a ponta do pauzinho, pôs uma gota na unha do polegar — qualquer outro dedo seria absolutamente inaceitável. Que êxtase ser o Vermelho! Pintei graciosamente sua unha, sem nenhum escorrido: a consistência estava perfeita, mas ainda restavam sedimentos. Ele tirou a panela do fogo e passou o conteúdo num pano bem fino e bem limpo para me purificar mais ainda. Levou-me novamente ao fogo para ferver mais duas vezes, depois acrescentou uma pitada de alúmen, antes de me pôr para esfriar.

       Passaram-se alguns dias, e eu continuava descansando no fundo da panela, sem ser misturado a nada mais. Ora, eu estava ansioso para que me passassem em cada canto de página, em tudo e em toda parte. Ficar quieto assim doía no meu coração e no meu espírito. Foi durante esse período de profundo silêncio que meditei sobre o significado de ser vermelho.

       Uma vez, na Ásia Central, quando um belo aprendiz me passava com seu pincel na sela de um cavalo que um velho pintor cego desenhara de memória, surpreendi a animada discussão que dois pintores, também cegos, travavam a meu respeito:

       “Embora, após toda uma vida de trabalho ardorosamente devotada a nossa arte, estejamos privados do sentido da visão, nós conhecemos o vermelho e lembramos que tipo de cor e de sentimento ele é”, dizia o que havia desenhado o cavalo na folha de papel. “E se tivéssemos nascido cegos? Como teríamos podido compreender esse vermelho que nosso formoso aprendiz está usando?”

       “Belo tema”, disse o outro, “mas não se esqueça que as cores não são para ser compreendidas, e sim sentidas.”

       “Caro mestre, procure então explicar o vermelho a quem nunca conheceu o vermelho.”

       “Se o tocarmos com a ponta dos dedos, sentiremos algo entre o cobre e o ferro. Se o puséssemos na palma da mão, ele queimaria. Se o provássemos, teria um gosto encorpado, como charque salgado. Se o colocássemos entre nossos lábios, ele encheria nossa boca. Se o cheirássemos, teria um cheiro de cavalo. Se fosse uma flor, teria um aroma que lembraria muito mais a margarida do que a rosa.”

       Na época (cem anos atrás), a pintura dos europeus ainda não era uma verdadeira ameaça, salvo algum capricho excepcional e passageiro de um dos nossos sultões, e nossos mestres lendários acreditavam em seus métodos tão fervorosamente quanto em Alá, considerando um desrespeito e uma vulgaridade o uso idiota que aqueles bárbaros faziam das nuances de diversos vermelhos nas carnes e nos ferimentos à espada, e até num simples saco de pano, em suas pinturas de infiéis. Só mesmo um bárbaro medroso, fraco e volúvel podia reunir vários vermelhos num manto vermelho, diziam eles. E as sombras, acrescentavam, não passam de péssima desculpa. De resto, só acreditávamos num único vermelho.

       “Qual o significado do vermelho?”, voltou a perguntar o pintor cego que havia desenhado o cavalo.

       “O significado da cor é que ela está diante de nós e nós a vemos”, respondeu o outro. “O vermelho não pode ser explicado a quem não vê.”

       “Para negar a existência de Alá, as vítimas de Satanás sustentam que Alá não é visível para nós”, replicou o miniaturista cego que havia desenhado o cavalo.

       “Mas ele aparece para os que podem ver”, disse o outro mestre. “É por isso que o Corão diz que os cegos e os videntes não são iguais.”

       Enquanto isso, o aprendiz tinha me aplicado suavemente nas complicadas volutas da manta do cavalo. Que maravilhosa sensação fixar minha plenitude, minha força e meu vigor no negro e no branco de uma ilustração bem-feita! O belo mancebo me espalhava pela página à minha espera, e seu pincel de pêlo de gato me fazia deliciosas cócegas. Transmitir minha cor à pintura era como se eu ordenasse: “Faça-se o mundo!”. E o mundo nascesse das minhas entranhas. Sim, os cegos me renegarão, mas a verdade é que estou em toda parte.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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