Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MONSENHOR QUIXOTE / Graham Greene
MONSENHOR QUIXOTE / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

DE COMO O PADRE QUIXOTE SE TORNOU MONSENHOR

ACONTECEU assim. O padre Quixote encomendara à governanta o seu almoço solitário e partiu para comprar vinho numa cooperativa local, a oito quilómetros de El Toboso, na estrada principal para Valença. Era um dia de grande calor, que fazia ondular os campos secos, e não havia ar condicionado no seu pequeno Fiat 600, que comprara, já em segunda mão, oito anos antes. Enquanto conduzia pensava tristemente no dia em que teria de arranjar um carro novo. A idade de um cão pode ser multiplicada por sete para igualar a de um homem, e por este cálculo o carro ainda estaria no começo da meia-idade, mas ele reparava que os seus paroquianos já começavam a ver o carro como senil. "Não pode confiar nele, D. Quixote", costumavam avisá-lo. E ele respondia: "Já passou comigo tempos muito difíceis, e só peço a Deus que consiga sobreviver-me." Tantas vezes os seus pedidos tinham ficado sem resposta que tinha esperanças de que este se tivesse agarrado como cera ao ouvido eterno.

Só conseguia ver a estrada principal devido ao pó levantado pelos carros que passavam. Enquanto conduzia, preocupava-se com a sorte do Fiat, a quem chamava, em memória do seu antepassado, "o meu rocinante". Não podia encarar a ideia de ver o seu pequeno carro em bocados, num monte de ferrugem. Pensara muitas vezes em comprar um pequeno pedaço de terra e em deixá-lo como herança a um dos seus paroquianos, com a condição de que este reservasse um canto abrigado para o carro repousar, mas não havia nenhum paroquiano em quem pudesse confiar para cumprir este desejo; e, de qualquer modo, era impossível evitar uma morte lenta por ferrugem, e talvez o esmagamento num cemitério de automóveis fosse um fim mais misericordioso. Pensando em tudo isto pela centésima vez, quase embateu num Mercedes negro que estava estacionado numa curva da estrada principal. Presumiu que a figura vestida de negro, ao volante, descansava da longa viagem de Valença para Madrid e passou, sem parar, para ir comprar à cooperativa a sua garrafa de vinho; foi só quando regressava que reparou num colarinho branco, romano, como um lenço significando angústia. Como é que, perguntou-se ele, um dos seus irmãos padres se podia dar ao luxo de ter um Mercedes? Mas, quando se afastou, reparou num cabeção de púrpura por debaixo do colarinho, o que indicava pelo menos um monsenhor, senão um bispo.

 

 

 

 

O padre Quixote tinha razões para recear os bispos; tinha perfeita consciência de quanto o seu próprio bispo - que, apesar dos seus distintos antepassados, o olhava como se fosse um camponês - o detestava. "Como pode ele descender de um personagem de ficção?", perguntara o bispo durante uma conversa privada que prontamente fora relatada ao padre Quixote.

O homem para quem o bispo falara perguntara com surpresa: "Um personagem de ficção?"

"Um personagem de um romance escrito por um escritor exagerado chamado Cervantes: um romance com passagens bastante desagradáveis que no tempo do generalíssimo não teria passado na censura. "

"Mas, Excelência, pode-se ver a casa de Dulcineia em El Toboso. Está ali escrito na placa; é a casa de Dulcineia."

"Uma armadilha para os turistas. Porque", continuou o bispo com aspereza, "Quixote nem sequer é um patronímico espanhol. O próprio Cervantes diz que o apelido era provavelmente Quixada, ou Quesada, ou até Quexana, e no seu leito de morte Quixote chama-se a si próprio Quixano."

"Vejo que, afinal, leu o livro, Excelência."

"Nunca passei do primeiro capítulo. Embora, claro, tenha passado os olhos pelo último. É o meu hábito com os romances." "Talvez algum antepassado do padre se chamasse Quixada, ou Quexana. "

"Os homens daquela classe não têm antepassados."

Foi, pois, com excitação que o padre Quixote se apresentou à

distinta figura clerical no imponente Mercedes.

- Sou o padre Quixote, monsenhor. Poderei ser de alguma utilidade?

-Com certeza. que pode, meu amigo. Sou o bispo de Motopo - disse com uma forte pronúncia italiana. -Bispo de Motopo?

- In partibus infidelium, meu amigo. Há por aqui perto alguma garagem? O meu carro recusa-se a continuar; e, se houvesse um restaurante ... O meu estômago começa a reclamar comida.

- Há uma garagem na minha aldeia, mas está fechada por causa de um funeral: morreu a sogra do garagista.

- Que descanse em paz - disse o bispo automaticamente, agarrando a cruz peitoral. E acrescentou: - Mas que grande aborrecimento.

- Ele estará de volta dentro de algumas horas.

-Algumas horas! Há algum restaurante por aqui perto?

- Monsenhor, se me désseis a honra de partilhardes do meu

humilde almoço ... O restaurante em El Toboso não é de recomendar, nem pela comida nem pelo vinho.

- Na minha situação, um copo de vinho é essencial.

-Poderei oferecer-vos um pouco do bom vinho local, se vos contentardes com um simples bife ... e uma salada. A minha governanta prepara sempre mais do que aquilo que eu como.

- Meu amigo, você é mesmo o meu anjo-da-guarda disfarçado. Vamos.

O banco da frente do carro do padre Quixote estava ocupado pela garrafa de vinho, mas o bispo insistiu em se agachar atrás, pois era um homem muito alto.

-Não podemos incomodar o vinho - disse.

-Não é um vinho importante, monsenhor, e iríeis muito mais confortável...

-Nenhum vinho pode ser encarado como pouco importante, meu amigo, desde as bodas de Caná.

O padre Quixote sentiu-se repreendido, e o silêncio caiu sobre eles até chegarem à sua pequena casa, perto da igreja. Sentiu-se muito aliviado quando o bispo, que teve de se curvar para passar a porta que dava directamente para a sala do padre, comentou:

- É uma honra para mim ser hóspede na casa de D. Quixote.

- O meu bispo não aprova o livro.

-A santidade e a apreciação literária nem sempre se dão bem.

O bispo dirigiu-se à estante onde o padre Quixote guardava o missal, o breviário, o Novo Testamento, alguns volumes esfarrapados de carácter teológico, as relíquias dos- seus estudos e algumas obras dos seus santos favoritos.

- Desculpai-me, agora, monsenhor ...

O padre Quixote foi ter com a governanta à cozinha, que lhe servia também de quarto, e era de admitir que o lava-louça da cozinha era também o lavatório dela. Era uma mulher quadrada, com dentes saídos e um embrião de bigode; não acreditava em nenhum ser vivo, mas tinha um certo respeito pelas santas. Chamava-se Teresa, e ninguém em El Toboso se lembrara de alcunhá-la de Dulcíneia, já que ninguém, excepto o alcaide, que tinha fama de comunista, e o dono do restaurante, lera a obra de Cervantes, e era duvidoso que o último tivesse passado muito além da luta com os moinhos.

-Teresa - disse o padre Quixote -, temos um convidado para o almoço, que deverá ser preparado rapidamente.

- Só há o seu bife e a salada e o que resta do queijo manchego.

- O meu bife costuma chegar para dois, e o bispo é um homem simpático.

- O bispo? Não o sirvo.

- Não é o nosso bispo. É um italiano. Um homem muito educado.

Explicou a situação em que conhecera o bispo.

-Mas o bife... - disse Teresa. - O bife, o quê?

-Não se pode dar carne de cavalo ao bispo. - O meu bife é de carne de cavalo?

- Sempre foi. Como posso dar-lhe bife de vaca com o dinheiro

que me entrega?

-Não tens mais nada? - Nada.

- Oh, céus, oh, céus! Rezemos para que ele não dê conta. Afinal, eu também nunca reparei.

- Você nunca comeu nada melhor.

O padre Quixote reuniu-se ao bispo, com o espírito perturbado, levando consigo meia garrafa de málaga. Ficou satisfeito quando o bispo aceitou um copo e depois um segundo. Talvez a bebida lhe confundisse o paladar. Sentara-se bem fundo na única poltrona do padre Quixote. Este olhava-o com ansiedade. O bispo não parecia perigoso. Tinha um rosto muito macio, que parecia nunca ter visto uma lâmina de barbear. O padre Quixote lamentou não se ter barbeado nessa manhã, depois da primeira missa, que celebrara numa igreja vazia.

- Estais de férias, monsenhor?

- Não exactamente de férias, embora seja verdade que estou a apreciar a mudança de Roma. O Santo Padre confiou-me uma missão confidencial, devido ao meu conhecimento do espanhol. Suponho, padre, que vê um grande número de turistas estrangeiros em El Toboso.

- Não muitos, monsenhor, porque aqui há muito pouco que ver, com excepção do museu.

- O que têm no museu?

- É um pequeno museu, monsenhor, só com uma sala. Não é maior do que a minha. Não tem nada de interesse, excepto as assinaturas.

-Que quer dizer com as assinaturas? Posso beber outro copo de málaga? Estar sentado ao sol naquele carro avariado fez-me sede.

-Perdoai-me, monsenhor. Não estou habituado a ser hospedeiro.

-Nunca vi um museu de assinaturas.

- Há alguns anos, um alcaide de El Toboso começou a escrever aos chefes de Estado pedindo traduções de Cervantes com assinaturas. A colecção é impressionante. Claro, há a assinatura do general Franco, a que se poderá chamar o exemplar mais importante, assim como a de Mussolini e a de Hitler (muito pequena, a dele, como a marca de uma mosca), a de Churchill, a de Hindenburg e a de alguém chamado Ramsay Mac Donald. Penso que foi primeiro-ministro da Escócia.

- Da Inglaterra, padre.

Teresa entrou com os bifes, eles sentaram-se à mesa e o bispo deu graças.

O padre Quixote verteu o vinho e observou com apreensão o bispo, que tirava o primeiro bocado de bife, que rapidamente empurrou com vinho, talvez para afastar o sabor.

- É um vinho muito vulgar, monsenhor, mas temos muito orgulho naquilo a que chamamos manchego.

O vinho é muito agradável - disse o bispo -, mas o bife... o bife... - continuou, enquanto o padre Quixote esperava pelo pior - o bife... - disse pela terceira vez, como se estivesse a procurar, no fundo da sua memória de ritos antigos, o correcto termo de anátema, e Teresa, entretanto, encostava-se à entrada, também à espera. - nunca, em nenhuma mesa, provei ... um bife tão tenro, tão saboroso, e estou tentado a blasfemar e a dizer divino. Gostaria de felicitar a sua admirável governanta.

-Ela está aqui, monsenhor.

-Minha querida senhora, deixe-me apertar-lhe a mão.

O bispo estendeu a mão, palma para baixo, como se esperasse que ela a beijasse, em vez de a apertar. Teresa dirigiu-se apressadamente para a cozinha.

- Será que eu disse alguma coisa errada? - perguntou o bispo.

-Não, não, monsenhor. É só porque ela não está habituada a cozinhar para um bispo.

-Ela tem uma cara simples e honesta. Hoje em dia é perturbante verificar que há na Itália muitas governantas "casáveis" ... e ala! O casamento segue-se demasiado frequentemente.

Teresa voltou rapidamente com um pouco de queijo e retirou-se à mesma velocidade.

-Um pouco do nosso queijo manchego, monsenhor? -E talvez outro copo de vinho para acompanhar.

O padre Quixote começou a sentir-se aconchegado e confortável. Sentiu-se encorajado para pôr uma questão que nunca se atreveria a colocar ao seu próprio bispo. Afinal um bispo romano sempre estava mais próximo da fonte da fé, e a boa recepção do bispo ao bife de carne de cavalo encorajou-o. Não era sem razão que ele chamava "rocinante" ao seu Fiat 600, e provavelmente receberia uma resposta mais favorável se falasse dele como de um cavalo.

- Monsenhor - disse -, há uma questão que muitas vezes coloquei a mim mesmo, uma questão que provavelmente ocorrerá mais frequentemente a um provinciano do que a um habitante da cidade. - Hesitou como um nadador perante a água gelada. - Consideraria herético rezar a Deus pela vida de um cavalo?

- Pela vida terrestre - respondeu o bispo sem hesitação -, não. Uma prece seria perfeitamente aceitável. Os padres ensinam que Deus criou os animais para uso dos homens, e uma vida longa para um cavalo é tão desejável aos olhos de Deus como uma vida longa para o meu Mercedes, que, receio, parece que me está a deixar ficar mal. Devo admitir, contudo, que não há memória de milagres no caso de objectos inanimados, mas no caso dos animais temos o exemplo do burro de Balão, que, pela graça de Deus, foi mais do que útil a Balão.

- Eu estava a pensar mais numa prece pela felicidade do cavalo e até numa boa morte para ele do que propriamente no seu uso.

-Não vejo qualquer obstáculo em rezar pela sua felicidade. Podê-lo-ia tornar mais dócil e de grande utilidade para o seu dono. Mas não percebo bem o que quer dizer com uma boa morte no caso de um cavalo. Uma morte boa para um homem significa uma morte em comunhão com Deus, uma promessa de eternidade. Podemos rezar pela vida terrena de um cavalo, mas não pela sua vida eterna, pois isso tocaria as raias da heresia. É verdade que há um movimento na Igreja que defende que um cão poderá ter uma espécie de embrião de alma, embora, pessoalmente, eu ache a ideia sentimental e perigosa. Não devemos abrir portas desnecessárias pela especulação imprudente. Se um cão tem alma, por que não também um rinoceronte ou um canguru?

-Ou um mosquito?

-Exacto. Estou a ver, padre, que está no lado certo.

-Mas nunca consegui compreender, monsenhor, como é que um mosquito pode ter sido criado para uso do homem. Que uso?

- Claro, padre, que o uso é óbvio. O mosquito pode ser encarado como um castigo nas mãos de Deus. Ensina-nos a suportar as dores por amor dele. Esse barulho doloroso no ouvido ... talvez seja o barulho de Deus.

O padre Quixote tinha o infeliz hábito de um homem solitário: dizia alto os seus pensamentos.

- Poder-se-á atribuir a mesma utilidade a uma pulga.

O bispo olhou-o nos olhos, mas não havia sinais de humor no olhar do padre Quixote: era óbvio que fora longe de mais nas suas reflexões.

-Estes são grandes mistérios - disse-lhe o bispo. - Onde estaria a sua fé se não houvesse mistérios?

-Onde é que terei posto - perguntou o padre Quixote - a garrafa de conhaque que um homem de Tomelhoso me trouxe há três anos? Este seria o momento indicado para a abrir. Desculpe-me, monsenhor ... talvez Teresa saiba.

Dirigiu-se à cozinha.

-Para um bispo, já bebeu que chegasse - disse Teresa.

- Pchiu! A tua voz ouve-se. O pobre bispo está muito preocupado com o carro. Pensa que o deixou ficar mal.

-Na minha opinião, é tudo culpa dele. Quando era rapariga vivi em África. Os negros e os bispos esquecem-se sempre de encher os depósitos de gasolina.

-Pensas realmente ... A verdade é que ele é um homem de muito poucas palavras. Pensa que o barulho de um mosquito ... Dá-me o conhaque. Enquanto ele bebe, vou ver se posso fazer alguma coisa pelo carro dele.

Tirou uma lata de gasolina do porta-bagagens do "rocinante". Não acreditava que o problema fosse assim tão simples, mas não havia mal em tentar, e de certeza que o depósito estava vazio. Por que é que o bispo não dera conta? Talvez tivesse dado e se sentisse demasiado envergonhado para admitir o seu descuido perante um pároco de província. Sentiu pena do bispo. Ao contrário do seu bispo, o italiano era um homem simpático. Bebera o vinho novo sem se queixar, comera o bife de cavalo com gosto. O padre Quixote não queria humilhá-lo. Mas como iria salvar a cara do bispo? Pensou durante bastante tempo, encostado ao Mercedes. Se o bispo não tivesse olhado para o nível da gasolina, seria certamente fácil fingir conhecimentos mecânicos que não possuía. De qualquer modo, era melhor untar as mãos com algum óleo ...

O bispo estava muito satisfeito com o conhaque de Tomelhoso. Encontrara nas prateleiras, entre vários livros, uma cópia da obra de Cervantes, que o padre Quixote comprara quando era miúdo, e sorria a olhar para uma página de tal maneira que o seu próprio bispo nunca o faria.

-Aqui está uma passagem muito apropriada, padre, que eu estava a ler quando entrou. Que escritor moral que Cervantes era, diga o que disser o seu bispo.

- "É um dever dos vassalos leais dizer aos seus senhores a verdade na sua forma e essência devidas, sem aumentá-la por lisonja nem diminuí-la por qualquer razão fútil. Quero que saibas, Sancho, que, se a verdade nua chegasse aos ouvidos da princesa, despida de lisonja, esta seria uma era diferente." Em que condições achou o Mercedes? Foi embruxado por algum feiticeiro nesta perigosa região de La Mancha?

-O Mercedes está pronto a ser conduzido, monsenhor.

- Um milagre? Ou o garagista já voltou do funeral?

-O garagista ainda não voltou, de maneira que eu mesmo dei uma vista de olhos ao motor. - Mostrou as mãos. - Uma porcaria. Tinha muito pouca gasolina, e isso foi fácil de remediar, pois tenho sempre uma lata a mais ... Precisou também de umas afinações, mas agora já trabalha satisfatoriamente. Talvez, quando chegar a Madrid, monsenhor, seja melhor fazer-lhe uma revisão profissional.

-Então, posso partir?

-A não ser que queira fazer uma pequena siesta. Teresa pode preparar a minha cama.

-Não, não, padre. Sinto-me completamente recuperado, com

o seu excelente vinho e o bife... Ah, o bife! Além disso, tenho um a jantar hoje, em Madrid, e não gosto de chegar de noite.

Enquanto se encaminhavam para a estrada, o bispo interrogou o padre Quixote:

-Há quantos anos vive em El Toboso, padre?

- Desde a infância, monsenhor. Excepto durante os meus estudos para padre.

- Onde estudou?

- Em Madrid. Teria preferido Salamanca, mas o padrão ali estava acima das minhas posses.

- Um homem com a sua capacidade é mal empregado em El Toboso. Com certeza que o seu bispo...

- O meu bispo sabe quão reduzidas são as minhas capacidades.

-Teria o seu bispo sido capaz de arranjar o meu carro?

- Referia-me às minhas capacidades espirituais.

-Na Igreja também precisamos de homens com capacidades práticas. No mundo de hoje, a astúcia, no sentido de sensatez universal, tem de ser associada às preces. Um padre que consegue colocar à frente de um hóspede inesperado bom vinho, bom queijo e um bife notável é um padre que se sabe manter nos círculos mais altos. A nossa missão é levar os pecadores ao arrependimento, e há mais pecadores entre os burgueses do que entre os camponeses. Gostaria que você fosse para a gente como o seu antepassado D. Quixote para as estradas do mundo.

- Chamavam-lhe louco, monsenhor.

- Muitos disseram o mesmo de Santo Inácio. Mas tenho de fazer-me à estrada, e aqui está o meu Mercedes...

- Diz o meu bispo que ele era um personagem de ficção, na cabeça de um escritor...

- Talvez sejamos todos personagens de ficção, padre, na mente de Deus.

- Quer que eu lute com moinhos?

- Foi a lutar com moinhos que D. Quixote encontrou a verdade no seu leito de morte. - E o bispo, sentando-se ao volante do seu ,Mercedes, entoou, com sotaque gregoriano: - Não há pássaros este ano nos ninhos do ano passado.

- É uma frase bonita - disse o padre Quixote -, mas que é que ele queria dizer com ela?

- Nunca cheguei a perceber bem - respondeu o bispo -, mas a beleza nela contida já é suficiente.

E, enquanto o Mercedes arrancava suavemente em direcção a Madrid, o padre Quixote sentia, através do nariz, que o bispo deixara atrás de si, durante um breve instante, um agradável cheiro, composto de vinho novo, conhaque e queijo manchego, que, antes de desaparecer, um estranho poderia confundir com algum exótico incenso.

Muitas semanas decorreram, com a cadência reconfortante e inalterada dos anos passados. Agora que o padre Quixote sabia que o seu bife ocasional era de carne de cavalo, recebia-o com um sorriso isento de culpa - não era necessário reprovar-se pela luxúria - em memória,do bispo italiano, que mostrara tanta simpatia, tanta cortesia, tanto amor pelo vinho. Parecia-lhe que um dos deuses pagãos acerca de quem lera nos seus estudos latinos descansara durante uma hora ou duas sob o seu telhado. Lia agora muito pouco, excepto o seu breviário e o jornal, que nunca o informara de que já não era necessário ler o breviário; interessava-se particularmente pelos relatos dos cosmonautas, já que nunca fora capaz de abandonar a ideia de que, algures na imensidade do espaço, existia o reino de Deus; e de vez em quando abria um dos seus velhos livros teológicos para se certificar de que a pequena homilia que iria fazer na igreja, ao domingo, estava devidamente conforme aos ensinamentos da Igreja.

Também recebia uma vez por mês, de Madrid, uma revista teológica. Às vezes encontrava lá críticas referentes a ideias perigosas -expostas até por um cardeal, na Holanda ou na Bélgica, já não se lembrava qual, ou escritas por um padre que tinha um nome teutónico e que fazia lembrar Lutero ao padre Quixote -, mas ele pouco ligava a tais críticas, já que era muito pouco provável que tivesse de defender a ortodoxia da Igreja perante o homem do talho, o padeiro, o garagista, ou até o gerente do restaurante, que era o homem mais culto de El Toboso, excepto o alcaide; mas como este era considerado pelo bispo um ateu e um comunista, poderia seguramente ser ignorado no que dizia respeito à doutrina da Igreja. Sem dúvida que apreciava a companhia do alcaide para uma conversa à esquina da rua mais do que a dos seus paroquianos. Na companhia do alcaide deixava de sentir-se um juiz eclesiástico; possuíam a igualdade de um interesse comum no progresso so através das viagens espaciais dos cosmonautas e tinham bastante tacto um para com o outro. O padre Quixote não falava da possibilidade de um encontro entre um Sputnik e um hospedeiro angelical, e o alcaide mostrava imparcialidade científica entre os progressos russos e americanos, não que o padre Quixote visse muita diferença entre as tripulações, do ponto de vista cristão - ambas lhe pareciam ser constituídas por boas pessoas, provavelmente bons pais e bons maridos, mas, nos seus capacetes e fatos espaciais, que poderiam muito bem ter sido fornecidos pela mesma loja, não conseguia imaginar nenhuma delas na companhia de Gabriel ou de Miguel, e com certeza que na de Lucifer também não, se, em vez de atingir os reinos de Deus, a sua nave inflectisse rapidamente para as regiões do Inferno.

-Tem aqui uma carta - disse-lhe Teresa, com ar desconfiado. - Não sabia onde encontrá-lo.

Estava ao cimo da rua a falar com o alcaide. - Esse herege.

- Se não houvesse hereges, Teresa, os padres pouco teriam que fazer.

Ela disse asperamente:

-É uma carta do bispo.

-Oh, Deus! Oh, Deus! - Sentou-se com ela na mão, durante muito tempo, receando abri-la. Não se lembrava de uma única carta do bispo que não tivesse incluída uma queixa de qualquer tipo. Houvera, por exemplo, aquela vez em que ele desviara a oferenda da Páscoa que tradicionalmente lhe pertencia para o bolso de um representante de uma organização de caridade com o digno nome latino de In Vinculis, que passava por cuidar das necessidades espirituais dos pobres prisioneiros. Foi um acto de benevolência privada que, de qualquer maneira, chegara aos ouvidos do bispo, depois de o cobrador ter sido preso por organizar a fuga de alguns encarcerados inimigos do generalíssimo. O bispo chamara-lhe tolo: um termo que Cristo desaprovara. Por outro lado, o alcaide batera-lhe nas costas, chamando-lhe digno descendente do seu grande antepassado, que libertara os escravos das galeras. E houvera aquela vez ... e aquela outra vez ... Teria oferecido a si próprio um copo de málaga para ganhar coragem se tivesse sobrado algum depois de ter estado com o bispo de Motopo.

Com um suspiro, quebrou o selo vermelho e abriu o sobrescrito. Tal como receava, a carta parecia ter sido escrita com fria raiva.

Recebi de Roma uma carta completamente incompreensível [escrevia o bispo], que a princípio tomei como uma brincadeira do pior gosto, imitando um estilo eclesiástico e possivelmente inspirada por um membro daquela organização comunista que você pensou ser seu dever apoiar, por razões que sempre foram obscuras para mim. Mas, em resposta ao meu pedido de confirmação, recebi hoje uma carta abrupta, confirmando a primeira missiva e pedindo-me para lhe comunicar imediatamente que o Santo Padre achou por bem -por estranha inspiração do Espírito Santo e que não me compete a mim interrogar - promovê-lo à categoria de monsenhor, aparentemente baseado na recomendação de um bispo de Motopo, de quem nunca ouvi falar, sem qualquer referência a mim, através de quem tal recomendação deveria naturalmente partir - uma atitude muito improvável da minha parte, escusado será dizer. Obedeci ao Santo Padre, passando-lhe estas notícias, e só posso rezar para que você não desgrace o título que ele achou oportuno conceder-lhe. Muitos escândalos, que só foram perdoados por terem sido devidos à ignorância do padre da paróquia de El Toboso, teriam muito maiores proporções se causados pela imprudência de monsenhor Quixote. Portanto, prudência, meu caro padre, prudência. No entanto, escrevi para Roma apontando o absurdo de uma pequena paróquia como El Toboso estar nas mãos de um monsenhor, um título que será ressentido por muitos padres merecedores em La Mancha, e pedindo ajuda para procurar um espaço maior para as suas actividades, talvez noutra diocese, ou até no campo missionário.

Dobrou a carta e ela caiu ao chão.

- Que é que ele diz? - perguntou Teresa.

- Quer afastar-me de El Toboso - disse o padre Quixote, num tom tão desesperado que Teresa voltou rapidamente para a cozinha, para se esconder do seu olhar triste.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE SE DECIDIU A VIAJAR

Uma semana depois de a carta do bispo ter sido entregue ao padre Quixote realizaram-se as eleições locais na província de La Mancha e o alcaide de El Toboso sofreu uma derrota inesperada.

- As forças da direita - disse ele ao padre Quixote - reformaram-se, procuram outro generalissimo.

E falou de certas intrigas, das quais estava muito bem informado, entre o garagista, o homem do talho e o dono de um restaurante de segunda, que, ao que parecia, pretendia alargar as suas propriedades. O dinheiro, dizia ele, fora emprestado ao proprietário por um misterioso estranho, e, como resultado, ele comprara um novo congelador. De um modo que o padre Quixote não conseguia compreender, isto afectara seriamente os resultados eleitorais.

-Lavo as minhas mãos de El Toboso - disse o ex-alcaide. - E eu estou a ser afastado pelo bispo - confidenciou o padre Quixote, e contou a melancólica história.

- Eu poderia tê-lo avisado. Isto acontece por você confiar na Igreja.

-Não se trata da Igreja, mas de um bispo. Nunca me preocupei com o bispo, Deus me perdoe. Mas você, isso é outra questão. Lamentou muito por si, meu caro amigo. O seu partido deixou-o ficar mal, Sancho.

O nome do alcaide era Zancas, que era o apelido do primitivo Sancho Pança, da história de Cervantes, e, embora o seu nome cristão fosse Enrique, ele permitia que o seu amigo padre Quixote lhe chamasse, por brincadeira, Sancho.

-Não se trata do meu partido. Foram três homens sozinhos

que me fizeram isto. - E voltou a mencionar o homem do talho,

o garagista e o caso do congelador. - Há traidores em todos os

partidos. No seu também, padre Quixote. Houve Judas ... -E no seu houve Estaline.

-Não volte a mencionar essa história velha e sem graça. - A história de Judas ainda é mais antiga. -Alexandre VI ...

- Trotsky. Embora eu suponha que você agora possa ter uma opinião diferente sobre Trotsky.

Havia pouca lógica na argumentação, mas nunca tinham estado tão perto de uma discussão.

- E quanto à sua opinião sobre Judas? Ele é um santo para a Igreja etíope.

- Sancho, Sancho, as nossas discordâncias são profundas de

mais para discutirmos. Vamos a minha casa beber um copo de málaga... Oh! Esqueci-me, o bispo acabou com a garrafa.

- O bispo ... Você permitiu que aquele patife ...

-Era outro bispo. Um homem bom, mas de qualquer maneira

a causa dos meus problemas.

- É melhor vir a minha casa, então, e tomar um copo de vodka genuíno.

- Vodka?

Vodka polaco, padre. De um país católico.

Foi a primeira vez que o padre Quixote provou vodka. O primeiro copo pareceu-lhe não ter sabor, o segundo deu-lhe uma sensação de euforia. E disse:

- Vai sentir a falta dos seus deveres como alcaide, Sancho.

-Tenciono tirar umas férias. Já não saio de El Toboso desde a morte daquele patife do Franco. Se ao menos eu tivesse um carro ..

O padre Quixote pensou no "rocinante", e o seu espírito perambulou.

- Moscovo é muito longe - continuou a voz do alcaide. - Além disso, é frio de mais. Alemanha de Leste ... Não me apetece lá ir; já vimos muitos alemães na Espanha.

"Suponhamos", pensou o padre Quixote, "que sou enviado para Roma. O `rocinante nunca conseguiria cobrir tal distância." O bispo falara inclusivamente de um campo missionário. O "rocinante" aproximava-se do fim. Não poderia deixá-lo a morrer numa berma de estrada em África para ser canibalizado por causa de uma caixa de velocidades ou de um puxador de porta.

-São Marinho é o Estado mais próximo onde o Partido domina.

-Mais um copo, padre?

Sem pensar, o padre Quixote estendeu a mão.

-Que vai fazer, padre, longe de El Toboso? -Obedecerei a ordens. Irei onde me mandarem. -Pregar aos convertidos, tal como faz aqui?

-Isso é uma piada fácil, Sancho. Duvido que haja alguém

completamente convertido.

-Nem mesmo o papa?

-Talvez, pobre homem, nem mesmo o papa. Quem sabe o que ele pensa à noite, na sua cama, depois de ter feito as orações? - E você?

- Oh, eu sou tão ignorante como qualquer um na paróquia. Li mais livros quando estudava, mas fui-me esquecendo ...

- Mesmo assim você acredita nesse disparate: Deus, a Trindade, a Imaculada Conceição ...

-Eu quero acreditar. E quero que os outros acreditem. - Porquê?

-Quero que sejam felizes.

-Deixe-os então beber um pouco de vodka. É melhor do que forçá-los a acreditar.

-O vodka gasta-se. Mesmo agora, está a acabar. -Também a crença.

O padre Quixote levantou a cabeça, surpreendido.. Estivera a olhar pensativamente para as últimas gotas do seu copo. - A sua crença?

- E a sua.

-Por que pensa assim?

-É a vida, padre, no seu aspecto mais sujo. A crença morre, tal como o desejo por uma mulher. Duvido de que você seja excepção à regra geral.

-Acha que me fará mal tomar outro copo? -O vodka nunca fez mal a ninguém.

-No outro dia fiquei admirado com a quantidade que o bispo de Motopo bebeu.

-Onde fica Motopo?

- In partibus infidelium.

-Há muito que esqueci o latim aprendido.

-Não sabia que tinha aprendido.

- Os O meus pais quiseram que eu fosse padre. Cheguei até a estudar em Salamanca. Nunca lhe tinha contado isso, padre. In vodka veritas.

- Então é por isso que sabia aquilo sobre a Igreja etíope? Fiquei um pouco surpreendido.

- Há pequenos pedaços de conhecimentos inúteis que se agarram ao nosso cérebro como cracas a um barco. A propósito, leu como os cosmonautas soviéticos bateram o recorde da resistência no espaço?

-Ouvi qualquer coisa sobre isso, ontem, na rádio.

-No entanto, durante esse tempo todo não encontraram um único anjo.

-Leu, Sancho, sobre os buracos negros no espaço?

- Sei o que vai dizer, padre. Mas a palavra buracos é usada no sentido metafórico. Mais um copo. Não tenha receio de nenhum bispo.

- O seu vodka dá-me esperança. -De quê?

- Dir-se-ia uma esperança desencantada.

- Continue. Diga-me. Que esperança?

- Não lhe posso dizer. Rir-se-ia de mim. Talvez um dia lhe

conte. Se Deus me der tempo. E a si também, é claro.

- Devíamos ver-nos mais vezes, padre. Talvez eu o convertesse a Marx.

-Tem algum Marx nas suas prateleiras? - Claro.

- O Capital?

- Sim. Entre outros. Aqui está. Já não o leio há muito tempo. Para lhe dizer a verdade, há partes que sempre achei ... bem, improváveis... todas as estatísticas sobre a revolução industrial inglesa. Penso que também achará algumas partes da Bíblia aborrecidas.

- Graças a Deus que não se espera que estudemos os Números ou o Deuteronómio, mas os Evangelhos não são aborrecidos. Meu Deus, olhe para as horas. Será o vodka que faz que o tempo passe tão depressa?

-Sabe, padre, você faz-me lembrar o seu antepassado. Ele acreditava em todos aqueles livros de cavalaria, já bastante fora de moda, mesmo no seu tempo ...

-Nunca li um livro de cavalaria na minha vida.

-Mas você continua a ler aqueles velhos livros de teologia. São os seus livros de cavalaria. Você acredita neles tanto quanto ele acreditava nos seus.

-Mas a voz da Igreja não pertence a um período determinado, Sancho.

- Mas claro que sim, padre. O seu segundo concílio do Vaticano até pôs de fora São João.

- Que disparate!

- Você já não lê ao fim da missa aquelas palavras de São João: "Ele andava no mundo e o mundo fora feito por Ele, mas o mundo não O conhece."

-Que estranho que você saiba isso!

-.Oh, às vezes entro no fim da missa só para me certificar de que não está lá nenhum dos meus.

-Ainda digo essas palavras.

-Mas não as diz em voz alta. O seu bispo não o permitiria. Você é como o seu antepassado, que leu o seu livro de cavalaria secretamente, de maneira que só a sobrinha e o médico sabiam, até que...

-Que quantidade de disparates você está a dizer, Sancho.

- Até que partiu no Rocinante para empreender os seus feitos de cavalaria, num mundo que já não acreditava nessas velhas histórias.

-Acompanhado por um homem ignorante chamado Sancho - replicou o padre Quixote, com um ar zangado, de que imediatamente se arrependeu.

-Acompanhado por Sancho - repetiu o alcaide. - Por que não?

- O bispo não me pode negar umas pequenas férias. -Tem de ir a Madrid comprar o uniforme. -Uniforme? Que uniforme?

- Peúgas de púrpura, monsenhor, e um... Como se chama aquela coisa que usam por baixo do colarinho?

-Uma pechera. Disparate. Ninguém me fará usar peúgas de púrpura e ...

- Você está no exército de Deus, padre. Não se podem recusar divisas.

-Não pedi para ser monsenhor.

- Claro que também podia retirar-se do exército. - Você retirar-se-ia do Partido?

Cada um tomou mais um copo de vodka e caíram num silêncio

de camaradagem, um silêncio em que os seus sonhos tinham espaço para crescer.

- Acha que o seu carro conseguiria chegar a Moscovo?

-O "rocinante" está velho de mais para isso. Ficaria pelo caminho. De qualquer modo, o bispo dificilmente consideraria Moscovo um local aconselhável para eu ir de férias.

- Você já não é servo do bispo, monsenhor.

- Mas, o Santo Padre... Sabe, o "rocinante" talvez conseguisse levar-nos a Roma.

-Não gosto nada de Roma. Só se vêem nas ruas peúgas de púrpura.

- Roma tem um presidente da Câmara comunista, Sancho.

-Não gosto mais de um eurocomunista do que você de um protestante. Que se passa, padre? Está perturbado com alguma coisa?

-O vodka deu-me um sonho, mas outro vodka tirou-mo.

- Não se preocupe. Não está habituado ao vodka e subiu-lhe à cabeça.

-Porquê um sonho tão feliz... e depois o desespero?

- Entendo o que sente. O vodka às vezes exerce esse efeito sobre mim, se bebo um bocado de mais. Vou levá-lo a casa, padre. Separaram-se à porta do padre Quixote. -Vá deitar-se um bocado.

-Teresa estranharia isso, a esta hora. E ainda não li o breviário.

- Isso já não é obrigatório, pois não?

- É um hábito difícil de quebrar. Os hábitos podem ser reconfortantes, até os mais aborrecidos.

- Sim, penso que entendo. Há alturas em que chego a mergu

lhar no Manifesto Comunista.

- Isso conforta-o?

-Às vezes. Um pouco, não muito. Mas um pouco. -Tem de emprestar-mo. Um dia. -Talvez durante as nossas viagens.

-Ainda acredita na nossa viagem? Duvido muito de que sejamos os companheiros certos, você e eu. Separa-nos um grande

abismo, Sancho.

-Um grande abismo também separava o seu antepassado daquele que chama meu, padre, e, no entanto ...

-Sim, e, no entanto...

O padre Quixote voltou-se rapidamente. Dirigiu-se ao escritó rio e tirou o breviário da prateleira, mas, antes de ler mais do que algumas frases, adormeceu, e tudo o que conseguiu lembrar ao acordar era que trepara a uma árvore alta e desalojara um ninho, vazio, seco e frágil, a relíquia de um ano passado.

Foi precisa muita coragem para o padre Quixote escrever ao bispo e ainda mais coragem para abrir a carta que em devido tempo recebeu por resposta. A carta começava abruptamente:

Monsenhor [e o som do título era como ácido na língua], El Toboso [escrevia o bispo] é uma das paróquias

mais pequenas da minha diocese, e não acredito que o fardo dos seus deveres tenha sido muito pesado. Contudo, estou disposto a satisfazer o seu pedido de um período de repouso e envio um padre novo, o padre Herrera, para tomar conta de El Toboso durante a sua ausência. Espero que pelo menos adie a sua partida até pensar que o padre Herrera está a par de todos os problemas que possam existir na sua paróquia, de maneira a poder deixar as pessoas confiadamente a seu cargo. A derrota do alcaide de El Toboso na recente eleição parece indicar que a maré está a virar finalmente para a direcção certa, e talvez um jovem padre com a argúcia e discrição do padre Herrera (teve referências muito boas, assim como um doutorado em Teologia Moral, em Salamanca) possa melhor tirar partido da situação de um homem mais velho. Como poderá calcular, escrevi ao arcebispo sobre o seu futuro e penso que na altura do seu regresso já lhe teremos encontrado uma esfera de acção mais adequada do que El Toboso e um fardo de deveres menos pesado para um padre da sua idade e categoria.

Era uma carta ainda pior do que o padre Quixote esperara, e ele aguardou com ansiedade crescente a chegada do padre Herrera. Disse a Teresa que o padre Herrera deveria ocupar imediatamente o seu quarto e pediu-lhe para lhe descobrir, se possível, uma cama de campanha, desmontável, para a sala de estar.

-Se não conseguires encontrar nenhuma - disse -, uma cadeira de braços também me serve. Tenho dormido nela à tarde, frequentemente.

- Se ele é mais novo, deixe-o dormir na cadeira.

- Por agora ele é meu convidado, Teresa. -Que quer dizer com... "por agora"?

-Penso que é provável que o bispo o faça meu sucessor em

El Toboso. Estou a ficar velho, Teresa.

- Se está assim tão velho, não devia ir por aí, sabe Deus para

onde. De qualquer maneira, não pense que eu vou trabalhar para outro padre.

-Dá-lhe uma oportunidade, Teresa, dá-lhe uma oportunidade. Mas não lhe contes de forma nenhuma o segredo dos teus bifes admiráveis.

Passaram três dias e o padre Herrera chegou. O padre Quixote, que saíra para conversar com o ex-alcaide, encontrou o jovem padre à porta segurando uma mala preta. Teresa barrava-lhe a entrada, com um pano de cozinha na mão. Talvez o padre Herrera fosse naturalmente pálido, mas parecia agitado, e o Sol brilhava no seu colarinho clerical.

- Monsenhor Quixote? - perguntou. - Sou o padre Herrera. Esta mulher não me deixa entrar.

-Teresa, Teresa, isso é muito indelicado da tua parte. Onde estão as tuas maneiras? Este é o nosso convidado. Traz uma chávena de café ao padre Herrera.

-Não, por favor, não. Nunca bebo café. Faz-me estar acordado à noite.

Na sala, o padre Herrera ocupou a única cadeira de braços, sem hesitações.

-Que mulher tão violenta - disse. - Disse-lhe que vinha mandado pelo bispo, e ela respondeu qualquer coisa muito rude.

-Tal como todos nós, ela tem os seus preconceitos.

- O bispo não teria ficado satisfeito.

- Bem, ele não a ouviu, e nós não lhe vamos contar, pois não?

- Fiquei bastante chocado, monsenhor.

Queria que não me chamasse monsenhor. Chame-me padre, se quiser. Tenho idade suficiente para ser seu pai. Já tem experiência de trabalho paroquial?

-Não directamente. Fui secretário de Sua Excelência durante três anos. Desde que saí de Salamanca.

- Poderá achar difícil a principio. Há muitas Teresas em El Toboso. Mas estou certo de que aprenderá rapidamente. O seu doutorado foi ... Deixe ver se me lembro.

-Teologia Moral.

- Ah, sempre achei esse um tema muito difícil. Quase que chumbei ... até em Madrid.

- Vejo que tem o padre Heribert Jone na sua prateleira. Um alemão. Mesmo assim, muito seguro na matéria.

- Receio já não o ler há muitos anos. A teologia moral, como deve calcular, não é muito importante para um trabalho paroquial.

- Eu diria que é essencial. No confessionário.

-Quando o padeiro vem ter comigo... ou o garagista... não é muito frequente, os seus problemas costumam ser muito simples. Bem, eu confio no meu instinto. Não tenho tempo para procurar os seus problemas em Jone.

- O instinto deve ter uma base sólida, monsenhor, desculpe, padre.

- Oh, sim, claro, uma base sólida. Sim. Mas, tal como o meu antepassado, talvez eu tenha depositado a minha confiança em velhos livros escritos antes de Jone nascer.

- Mas os livros do seu antepassado eram só de cavalaria, não eram?

-Bem, talvez os meus, a seu modo, sejam também de cavalaria. S. João da Cruz, Santa Teresa, S. Francisco de Sales. E os Evangelhos, padre. "Vamos a Jerusalém e morramos como Ele." D. Quixote não teria conseguido colocar melhor a questão do que S. Tomás.

-Oh, claro que os Evangelhos são aceites.

O padre Herrera falou num tom de quem concede um ponto pequeno e insignificante ao adversário.

- Mesmo assim, em teologia moral Jone é muito seguro. Muito seguro. Que é que disse, padre?

- Oh, nada. Um truísmo que não tenho o direito de usar. Ia acrescentar que outra base sólida é o amor de Deus.

- Claro, claro. Mas também não podemos esquecer a Sua justiça. Concorda, monsenhor?

-Sim. Bem, suponho que sim.

- Jone estabelece uma diferença muito nítida entre o amor e a justiça.

- Tirou algum curso de secretariado, padre? Quero dizer, depois de Salamanca.

-Claro. Sei escrever à máquina e, modéstia à parte, também sou bastante bom a escrever à mão.

Teresa espreitou à porta.

-Quer um bife para o almoço, padre?

-Dois bifes, por favor, Teresa.

A luz do Sol voltou a brilhar no colarinho do padre Herrera quando este se voltou; a luz era como um sinal de hélio, transmitindo que mensagem? O padre Quixote pensou que nunca vira um colarinho tão limpo ou um homem tão limpo. Poder-se-ia pensar que a sua pele, tão macia e tão branca, nunca precisara de máquina de barbear. "Devido a eu viver há tanto tempo em El Toboso", pensou ele, "sou um provinciano rude. Vivo muito, muito longe de Salamanca."

 

Chegou por fim o dia da partida. O garagista dera o "rocinante", embora de má vontade, como apto para partir.

- Não posso garantir nada, disse. Devia tê-lo trocado há cinco anos. Mesmo assim, deve conseguir levá-lo até Madrid.

- E trazer-me de volta, espero - disse o padre Quixote.

-Isso já é outra questão.

O alcaide mal conseguia conter a impaciência de partir. Não desejava ver o seu sucessor instalado.

- Um fascista negro, padre. Em breve voltaremos aos dias de Franco.

-Que a sua alma repouse em paz - acrescentou o padre Quixote, com um certo automatismo.

-Ele não tinha alma. Se é que tal coisa existe.

A bagagem deles encheu o porta-bagagens do "rocinante", e no banco de trás foram colocadas quatro caixas do verdadeiro vinho manchego.

- Não se pode confiar no vinho em Madrid - disse o alcaide. - Graças a mim, temos aqui pelo menos uma cooperativa séria.

-Por que havemos de ir para Madrid? - perguntou o padre Quixote. - Lembro-me de que não gostei nada da cidade quando era estudante e nunca mais lá voltei. Por que não tomar a estrada para Cuenca? Cuenca, segundo me dizem, é uma cidade maravilhosa e fica muito mais perto de El Toboso. Não quero cansar o <<rocinante>>.

-Duvido de que possa comprar peúgas de púrpura em Cuenca.

-As tais peúgas de púrpura. Não me posso dar ao luxo de gastar dinheiro em meias de púrpura, Sancho.

-O seu antepassado tinha um profundo respeito pelo uniforme de um cavaleiro errante, embora tivesse tido de usar uma bacia de barbeiro por capacete. Você é um monsenhor errante e deverá usar meias de púrpura.

-Dizem que o meu antepassado era louco. Dirão o mesmo de mim. Tornarei a cair em desgraça. De facto, devo ser um pouco louco, porque não ligo ao título de monsenhor, e vou deixar El Toboso a cargo daquele jovem padre.

-O padre não o tem em grande conta, e eu próprio já o vi em

conversa íntima com aquele reaccionário do restaurante.

O padre Quixote insistiu em pegar no volante.

-O "rocinante" tem uns certos truques que só eu conheço. -Está a tomar a estrada errada.

-Tenho de voltar a casa mais uma vez. Esqueci-me de qual

quer coisa.

Deixou o alcaide no carro. Sabia que o jovem padre estava na

igreja. Queria ficar sozinho pela última vez na casa onde vivera

durante mais de trinta anos. Além disso, esquecera-se do livro do padre Heribert Jone, sobre teologia moral. S. João da Cruz estava no porta-bagagens, assim como Santa Teresa e S. Francisco de Sanes. Prometera ao padre Herrera, embora um tanto de má vontade, comparar estes livros velhos com um livro mais moderno sobre teologia, que ele já não abria desde o tempo de estudante. "O instinto deve ter uma base sólida de crença", dissera, correctamente, o padre Herrera. Se o alcaide começasse a citar-lhe Marx, talvez o padre Heribert Jone lhe fosse útil. De qualquer modo, era um livro pequeno, que lhe cabia facilmente no bolso. Sentou-se por uns momentos na sua poltrona. O assento fora modelado pelo seu corpo através dos anos e a sua forma era-lhe tão familiar como a curva da sela devia ter sido para o seu antepassado. Podia ouvir Teresa na cozinha a mexer nas panelas, continuando a resmungar, o que fora a música da sua solidão matinal. "Vou sentir falta, mesmo das suas más disposições", pensou. Lá fora, o alcaide tocou impacientemente a buzina.

-Desculpe tê-lo feito esperar - disse o padre Quixote, e o "rocinante" fez um ruído profundo, enquanto ele metia a mudança.

Pouco disseram um ao outro. Era como se a estranheza da sua aventura lhes pesasse no espírito.

Numa ocasião, o alcaide exprimiu alto o seu pensamento:

- Temos de ter alguma coisa em comum, padre, ou então por

que é que vai comigo?

-Suponho que será... Será amizade? - Isso é suficiente? -Saberemos em devido tempo.

Mais de uma hora passou em silêncio. Então, o alcaide voltou

a falar:

-Que o preocupa, meu amigo?

-Saímos agora de La Mancha, e já nada parece seguro. -Nem mesmo a sua fé?

Era uma pergunta a que o padre Quixote não se preocupou em

responder.

 

DE COMO UMA CERTA LUZ SE DERRAMOU SOBRE A SANTISSIMA TRINDADE

A distância de El Toboso a Madrid não é muito grande, mas, com o andamento vacilante do "rocinante" e como a fila de ca

miões se estendia à. sua frente, a noite veio encontrar o padre Quixote e o alcaide ainda na estrada.

-Tenho fome e sede - queixou-se o alcaide.

-E o "rocinante" está muito cansado - respondeu o padre Quixote.

- Se ao menos pudéssemos encontrar uma estalagem; mas o vinho, ao longo desta estrada principal, não é de confiança. -Temos muito bom vinho manchego. -Mas a comida... Tenho de comer.

-Teresa insistiu em colocar um embrulho no banco traseiro. Disse que era para uma emergência. Não confiava no "rocinante" mais do que o garagista.

-Mas isto é uma emergência - disse o alcaide. O padre Quixote abriu o embrulho.

-Deus seja louvado! - disse ele. - Um grande queijo man chego, alguns chouriços fumados e até dois copos e duas facas. -Não sei dar graças a Deus, mas sei certamente dá-las a Teresa. -Oh, bem, provavelmente é a mesma coisa, Sancho. Todas as

nossas boas acções são actos de Deus, assim como as más acções são actos do Diabo.

- Nesse caso, deve perdoar ao nosso, pobre Estaline - disse o alcaide -, porque talvez só o Diabo seja responsável.

Continuaram muito devagar, à procura de uma árvore que lhes desse sombra, porque o sol-poente inclinava-se baixo, sobre os campos, fazendo, sombras muito estreitas, para os dois homens se poderem sentar à vontade. Finalmente, sob o muro arruinado de uma casa que pertencia a uma quinta abandonada, encontraram o que precisavam. Alguém pintara uma foice e um martelo a vermelho por cima da pedra em desagregação.

-Preferia comer sob uma cruz - disse o padre Quixote.

-Que importância tem? O sabor do queijo não será afectado. pela cruz ou pelo martelo. Além disso, haverá grande diferença en tre os dois? Ambos são protestos contra a injustiça.

- Mas os resultados foram levemente diferentes. Um criou a tirania, o outro a caridade.

-Tirania? Caridade? E a Inquisição e o nosso grande patriota Torquemada?

-Foram menos os que sofreram com Torquemada do que com Estaline.

-Tem a certeza disso em relação à população da Rússia no tempo de Estaline e à da Espanha no de Torquemada?

- Não sou um estatístico, Sancho. Abra uma garrafa, se tiver um saca-rolhas.

-Nunca ando sem um. Mas você tem as facas. Tire a pele a um chouriço, por favor.

-Torquemada, pelo menos, pensava que estava a conduzir as vítimas à felicidade eterna.

- E, se OOcalgar, Estaline. É melhor deixar os motivos, padre. Os motivos na cabeça dos homens são um mistério. Este vinho era muito melhor frio. Se ao menos encontrássemos uma corrente ... Amanhã temos de comprar um termo, assim como as suas meias de púrpura.

- Se vamos julgar só pelas acções, Sancho, então teremos de olhar para os resultados.

- Meio milhão de mortos e o comunismo está estabelecido por quase metade do Mundo. Um preço pequeno. Perde-se mais em qualquer guerra.

-Algumas centenas de mortos e a Espanha continua a ser um

país católico. Um preço mesmo pequeno.

- E Franco sucede a Torquemada. -E Brejnev sucede a Estaline.

- Bem, padre, pelo menos podemos concordar com isto: os

homens pequenos parecem sempre suceder aos grandes, e talvez seja mais fácil viver com os homens mais pequenos.

-Ainda bem que reconhece haver grandeza em Torquemada.

Riram-se e beberam e sentiram-se felizes sob o muro partido, enquanto o Sol se punha e as sombras aumentavam, até que, sem o notarem, ficaram sentados na escuridão, e o calor vinha principalmente deles.

- Espera mesmo, padre, que o catolicismo um dia conduza os homens a um futuro feliz?

-Oh, sim, claro que espero.

Embora só depois da morte.

- Espera que o comunismo, quero dizer o verdadeiro comunismo, de que o seu profeta Marx falou, algum dia chegue mesmo à Rússia?

-Sim, padre, espero. Mas é verdade (e só lho digo porque, como padre, os seus lábios estão selados e os meus abertos pelo vinho) que às vezes desespero.

- Oh, desespera, percebo. Também conheço o desespero, Sancho. Não o desespero final, claro.

-O meu também não é final, padre. Ou não estaria aqui sentado no chão consigo.

- Onde estaria, então?

Estaria enterrado em terreno não sagrado. Como outros suicidas.

- Bebamos então à esperança - disse o padre Quixote, levantando o braço, e beberam.

É estranho como uma garrafa se pode esvaziar tão rapidamente quando as pessoas discutem sem rancor. O alcaide verteu as últimas gotas para o chão.

-Pelos deuses - disse. - Repare que eu disse "deuses" e não "Deus". Os deuses bebem bastante, mas tenho a certeza de que o seu Deus, solitário, é um abstémio.

-Você diz aquilo que sabe estar errado, Sancho. Estudou em Salamanca. Sabe muito bem que Deus, pelo menos eu creio e talvez você já tenha acreditado, se torna vinho todas as manhãs e todas as tardes, na missa.

- Bom, então vamos beber mais e mais do vinho aprovado pelo seu Deus. Pelo menos, este vinho manchego é melhor do que o vinho do altar. Onde pus o saca-rolhas?

-Está sentado nele. E não fale com tanto desprezo do vinho do altar. Não sei qual é o que o padre Herrera vai comprar, mas eu uso um vinho manchego perfeitamente bom. Claro, se o papa vai autorizar a comunhão de ambas as maneiras, terei de comprar algo mais barato, mas confio em que ele considerará a pobreza do clero. O padeiro tem uma grande sede. Beberia um cálice inteiro.

- Ergamos mais um copo, padre. Novamente à esperança.

-À esperança, Sancho.

E tocaram os copos. A noite começava a passar de fresca a fria, mas o vinho ainda os aquecia, e o padre Quixote não tinha vontade de se apressar em direcção à cidade, de que ele não gostava nem de respirar os fumos dos camiões, que continuavam a passar ao longo da estrada, numa cadeia de faróis.

- O seu copo está vazio, padre.

-Obrigado. Mais uma gota. Você é um bom tipo, Sancho. Parece que me lembro de que os nossos dois antepassados passaram mais de uma vez a noite sob as árvores. Aqui não há árvores. Mas há o muro de um castelo. De manhã pediremos entrada, mas agora... Dê-me mais um pouco de queijo.

- Estou feliz por estar sentado sob o grande símbolo da foice e do martelo.

- A pobre foice tem sido muito negligenciada na Rússia, não acha, ou então não comprariam tantos cereais aos Americanos?

-Uma escassez temporária, padre. Ainda não conseguimos controlar o clima.

-Mas Deus pode. -Acredita mesmo nisso? - Sim.

- Ah, padre, você deixa-se levar de mais por uma droga perigosa, tão perigosa como os livros de cavalaria do velho cavaleiro. - Que droga?

- ópio.

- Oh, percebo... Aquela velha frase do seu profeta Marx: "A religião é o ópio do povo." Mas você pega nela fora do contexto, Sancho. Tal como os nossos heréticos distorceram as palavras de Nosso Senhor.

-Não percebo, monsenhor.

- Quando eu era estudante em Madrid, fui encorajado a ler um pouco no seu livro sagrado. Devemos conhecer os nossos inimigos. Não se lembra de como Marx defendeu as ordens monásticas na Inglaterra e condenou Henrique VIII?

- Não.

-Deveria voltar a olhar para O Capital. Não há lá nenhuma conversa sobre ópio.

- Mesmo assim ele escreveu-o, embora eu não me lembre, de momento, onde.

- Sim, mas ele escreveu-o no século XIX, Sancho. O ópio nessa altura não era uma droga má; o láudano era um tranquilizante, nada mais.. Um tranquilizante para os bem instalados, daqueles que os pobres não conseguem comprar. A religião é o valium dos pobres; foi isso que ele quis dizer. Melhor para eles do que a visita a um palácio de gim. Melhor ainda, talvez, do que este vinho. Os homens não conseguem viver sem um tranquilizante.

-Então talvez devamos dar cabo de outra garrafa?

- Digamos meia-garrafa, se queremos chegar a salvo a Madrid. Ópio a mais poderá ser perigoso.

-Ainda faremos de si um marxista, monsenhor.

-Meti algumas meias-garrafas nos cantos.

O alcaide dirigiu-se ao carro e voltou com uma meia-garrafa. - Nunca neguei que Marx fosse um bom homem - disse o padre Quixote. - Ele queria ajudar os pobres, e essa sua vontade deve tê-lo salvado.

- O oseu copo, monsenhor.

-Já lhe pedi que não me chamasse monsenhor.

- Então por que não me chama camarada? ... Prefiro isso a Sancho.

-Na história recente, Sancho, muitos camaradas têm sido mortos por camaradas. Não me importo de lhe chamar amigo. É menos habitual os amigos matarem-se uns aos outros.

- Não será ir um pouco longe de mais entre um padre católico e um marxista?

- Ainda há poucas horas você disse que devíamos ter qualquer coisa em comum. Talvez o que tenhamos em comum seja este vinho manchego, amigo.

Ambos sentiam um conforto crescente, enquanto a escuridão aumentava e se arreliavam mutuamente. Quando os camiões passavam na estrada, os faróis incidiam por um momento nas duas garrafas vazias e no que restava da meia-garrafa.

-O que me confunde, amigo, é que possa acreditar em tantas ideias incompatíveis. Por exemplo a Trindade. É pior do que a matemática elaborada. Poder-me-á explicar a Trindade? Conseguiria mais do que eles em Salamanca.

-Posso tentar.

-Então, tente.

Vê estas garrafas?

- Claro.

- Duas garrafas iguais em tamanho. O vinho que continham era da mesma substância e nasceu ao mesmo tempo. Aí tem Deus Pai e Deus Filho e ali, na meia-garrafa, o Espírito Santo. A mesma substância. O mesmo nascimento. São inseparáveis. Quem tomar um toma os três.

-Nunca consegui, nem em Salamanca, entender o Espírito Santo. Sempre me pareceu um pouco redundante.

- Não ficámos satisfeitos com duas garrafas, pois não? Aquela meia-garrafa deu-nos aquele brilho extra de que precisávamos. Não nos sentiríamos tão felizes sem ela. Talvez nem tivéssemos coragem para continuar a viagem. Talvez até a nossa amizade se tivesse acabado sem o Espírito Santo.

-Você é muito imaginativo, amigo. Começo, pelo menos, a compreender o que quer dizer com Trindade. Não que eu acredite nisso, repare. Nunca acreditarei.

O padre Quixote estava sentado em silêncio, a olhar para as garrafas. Quando o alcaide riscou um fósforo para acender um cigarro, viu a cabeça curvada do seu companheiro. Era como se tivesse sido abandonado pelo espírito que louvara.

- Que se passa, padre? - perguntou.

-Que Deus me perdoe - disse o padre Quixote -, porque pequei.

-Foi só uma brincadeira, padre. Com certeza que Deus sabe

apreciar uma piada.

- Cometi uma heresia - respondeu o padre Quixote. - Pen

so, talvez, que não sou digno de ser padre. -Que fez?

-Ensinei mal. O Espírito Santo é igual em todos os aspectos

ao pai e ao Filho, e eu representei-o por esta meia-garrafa. -Isso é um erro grave, padre?

-É anátema. Foi expressamente condenado, não me lembro

em que concílio. Um concilio antigo. Talvez em Niceia. .

- Não se preocupe, padre. O caso é fácil de resolver. Atiramos a meia-garrafa fora e esquecemo-la, e eu trago uma inteira do carro. - Bebi mais do que devia. Se não tivesse bebido tanto, nunca, nunca teria cometido tal erro. Não há pecado pior do que contra o Espírito Santo.

-Esqueça. Vamos resolver já o assunto.

E foi assim que beberam mais uma garrafa. O padre Quixote sentia-se reconfortado e também comovido com a simpatia do seu companheiro. O vinho manchego era leve, mas pareceu-lhes mais sensato esticarem-se na relva e dormirem ali onde estavam; e, quando o Sol nasceu, o padre Quixote conseguiu sorrir da tristeza que sentira. Não havia pecado num ligeiro esquecimento e num erro inadvertido.

A culpa era do vinho manchego; afinal não era um vinho tão leve como julgavam.

Quando partiam, ele disse:

-Ontem fui um pouco tolo, Sancho. -Acho que falou muito bem.

-Ao menos fi-lo perceber um pouco sobre a Trindade? - Perceber, sim. Acreditar, não.

-Então, por favor, esqueça a meia-garrafa. Foi um erro que eu não devia ter cometido.

Lembrar-me-ei só das três garrafas, amigo.

 

DE COMO SANCHO, POR SUA VEZ, LANÇOU NOVA LUZ SOBRE UMA FÉ ANTIGA

Talvez, por muito leve que o vinho fosse, tivessem sido as três garrafas e meia que os fizeram viajar em silêncio durante um bocado, no dia seguinte. Por fim, Sancho comentou:

-Sentir-nos-emos melhor depois de um bom almoço.

-Ah, pobre Teresa! - disse o padre Quixote. - Espero que o padre Herrera aprecie os seus bifes.

-Que têm de especial os bifes dela?

O padre Quixote não respondeu. Não desvendara o segredo perante o bispo de Motopo; com certeza também guardaria o segredo dela perante o alcaide.

A estrada fazia uma curva. Por uma razão inexplicável, o "rocinante" acelerou em vez de abrandar e quase embateu numa ovelha. À frente, a estrada estava cheia de companheiras suas. Eram um mar revolto em pequenas ondas espumosas.

-Pode dormir um pouco mais - disse o alcaide. - Nunca mais conseguiremos sair daqui.

Apareceu um cão, rodeando os delinquentes.

-As ovelhas são uns animais estúpidos - exclamou o alcaide,

OOcom rancor. - Nunca percebi como é que o criador da sua fé as comparou a nós. "Alimentai as minhas ovelhas." Oh, sim, talvez, tal como outros homens bons, ele fosse um cínico. "Alimentai-as engordai-as, para que possam ser comidas quando chegar a sua vez." "O Senhor é o meu pastor." Mas, se somos ovelhas, em nome de quê deveremos confiar no nosso pastor? Está bem que ele nos guarde dos lobos. Sim, mas é para depois nos poder vender ao carniceiro.

O padre Quixote tirou o breviário do bolso e começou ostensivamente a lê-lo; mas abrira-o numa passagem particularmente aborrecida e insignificante, que quase falhou em rebater as palavras do alcaide, que o tinham magoado.

- E ele, de facto, preferia as ovelhas às cabras - disse o alcaide. - Que preferência tola e sentimental! A cabra tem os mesmos hábitos da ovelha e reúne também muitas das virtudes da vaca. Está bem que as ovelhas dão lã, mas a cabra dá a sua pele ao homem. As ovelhas dão cordeiros, mas, pessoalmente, eu prefiro comer cabrito. E a cabra, tal como a vaca, dá leite e queijo. O queijo de ovelha só é bom para os Franceses.

O padre Quixote ergueu o olhar e viu que o caminho estava finalmente limpo. Pôs o breviário de lado e ligou o "rocinante".

-.O homem sem fé não pode blasfemar - disse, tanto para si como para o alcaide. Mas pensou: "Ainda assim, porquê ovelhas? Por que razão teria Ele, na sua infinita sabedoria, escolhido como símbolo a ovelha?"

Era uma pergunta que não fora respondida por nenhum dos teólogos que ele conservava na prateleira em El Toboso; nem mesmo por S. Francisco de Sales, que tão informativo fora em relação ao elefante e ao francelho, à aranha, à abelha e à perdiz. A questão não fora, com certeza, levantada no Catecismo da Doutrina Cristã por aquele santo homem, Antonio Claret, um antigo arcebispo de Santiago de Cuba, que lera quando criança, embora lhe parecesse que um pastor e os seus cordeiros figuravam nas ilustrações.

Disse, irrelevantemente:

-As crianças têm um grande amor pelas ovelhinhas.

- E pelas cabras - disse o alcaide. - Não se lembra dos carrinhos da nossa infância puxados por cabras? Onde estão essas cabras todas, agora? Condenadas ao fogo eterno? - Olhou para o relógio. - Sugiro que, antes de comprarmos as suas meias de púrpura, nos ofereçamos um bom almoço no Botin.

- Espero que não seja um restaurante muito caro,. Sancho.

- Não se preocupe. Nesta ocasião é meu convidado. Os leitões daqui são afamados; não teremos de comer nenhum dos bons cordeiros do pastor, que são tão apreciados no nosso país. O Botin era um restaurante muito favorecido com a presença da polícia secreta no tempo de Franco.

-Que a sua alma repouse em Deus - disse o padre Quixote rapidamente.

- Gostava de acreditar no Inferno - replicou o alcaide -, porque com certeza o colocaria, tal como penso que Dante teria feito, nas maiores profundezas.

-Desconfio do julgamento humano, mesmo do de Dante -disse o padre Quixote. - Não é o mesmo que o julgamento de Deus.

-Então, pô-lo-ia no Paraíso?

-Nunca disse isso, Sancho. Não nego que ele cometeu muitos erros ...

-Ah, mas há aquele conveniente escape que vocês inventaram: o Purgatório.

-Não inventei nada, nem o Inferno nem o Purgatório. -Perdoe-me, padre. Eu queria dizer a sua Igreja.

-A Igreja depende da autoridade escrita, como o seu Partido

depende de Marx e de Lenine.

-Mas você acredita que os seus livros são a palavra de Deus.

- Seja justo, Sancho. Não pensa, excepto às vezes, quando não consegue dormir, que Marx e Lenine são tão infalíveis como... bem ... como Mateus e Marcos?

-E quando você não consegue dormir, monsenhor?

-A ideia do Inferno já perturbou as minhas insónias. Talvez nessa mesma noite, no seu quarto, você estivesse a pensar em Estaline e nos campos. Estaline ou Lenine estariam sempre certos? Talvez você ponha a si próprio esta questão, ao mesmo tempo que eu me pergunto se será possível ... como pode Deus, amante e misericordioso ...? Oh, eu agarro-me aos meus velhos livros, mas tam

bém tenho as minhas dúvidas. Noutra noite, a propósito de algo que Teresa me disse na cozinha sobre o calor do forno, reli todos os Evangelhos. Sabe que São Mateus menciona o Inferno quinze vezes em cinquenta e duas páginas da minha Bíblia e S. João nem uma única? São Marcos menciona-o duas vezes em trinta e uma páginas e São Lucas três vezes em cinquenta e duas. Bem, claro que São Mateus era cobrador de impostos, pobre homem, e provavelmente acreditava na eficácia do castigo, mas isso faz-me pensar.

-E com muita razão.

-Espero, amigo, que você às vezes também duvide. Duvidar é humano.

-Eu tento não duvidar - disse o alcaide.

-Oh, eu também, eu também. Nisso somos, sem dúvida, parecidos.

O alcaide colocou por um momento a mão no ombro do padre Quixote e este pôde sentir a electricidade do afecto no toque. É estranho, pensava, enquanto conduzia o "rocinante" com cuidado desnecessário por uma curva, como partilhar uma sensação de dúvida pode aproximar os homens ainda mais do que partilhar uma fé. Um crente lutará com outro crente por uma diferença mínima; o duvidoso só luta consigo próprio.

-Pensar no leitão do Botin - disse o alcaide - faz-me lembrar aquela fábula engraçada do filho pródigo. Claro que entendo a diferença, já que, naquela história, penso que era um bezerro que o pai mandava para o açougue... sim, um bezerro engordado. Espero que o nosso leitão também seja engordado.

- Uma parábola muito bonita - disse o padre Quixote, com um ar de desafio, e sentia-se pouco à vontade com o que estava para vir.

-Sim, começa muito bem - disse o alcaide. - Há neste esquema doméstico burguês um pai e dois filhos. Poder-se-ia descrever o pai como um rico kulak russo que vê os seus camponeses como almas que possui.

-Mas não há na parábola nada parecido com kulaks ou almas.

A história que você leu foi provavelmente ligeiramente corrigida e alterada, aqui e ali, pelos censores eclesiásticos.

-Que quer dizer?

- Pode ter sido contada de maneira diferente, e talvez tenha sido. Aqui está o jovem que, por qualquer truque de hereditariedade, cresceu, contra todas as expectativas, com ódio à fortuna herdada. Talvez Cristo estivesse a pensar em Job. Cristo esteve mais próximo, em tempo, do autor de Job do que você está em relação ao seu antepassado, o Dom. Job, como se lembra, era obscenamente rico. Possuía sete mil carneiros e três mil camelos. O filho sente-se sufocado pelo ambiente burguês que o rodeia, talvez até pelo tipo de mobília e de quadros nas paredes, pelos kulaks gordos sentados frente à sabática refeição, um triste contraste com a pobreza que vê à sua volta. Tem de fugir para qualquer lado. Então reclama a sua parte da herança que um dia, por morte do pai, irá repartir com o irmão e sai de casa.

-E esbanja a herança numa vida desenfreada - interrompeu o padre Quixote.

- Ah, essa é a versão oficial. A minha versão é que ele estava tão desgostoso com o mundo burguês em que fora criado que se viu livre da fortuna da forma mais rápida que era possível. Talvez a tenha dado e se tenha tornado camponês de uma forma tolstoiana.

-Mas voltou a casa.

- Sim, a coragem faltou-lhe. Sentiu-se muito só naquela quinta de porcos. Não havia ramo do Partido onde ele pudesse buscar apoio. O Capital ainda não fora escrito; por isso, era impossível situá-lo na luta de classes. É de admirar que ele tenha hesitado um certo tempo, o pobre rapaz?

-Só durante um certo tempo? Que quer dizer com isso?

-A história na sua versão acaba abruptamente, não acaba? Por obra, sem dúvida, dos censores eclesiásticos, talvez até de Mateus, o cobrador de impostos. Oh, ele é bem recebido em casa, isso é verdade; servem-lhe uma grande peça de gado, talvez ele seja feliz durante alguns dias, mas depois volta a sentir a mesma atmosfera opressiva do materialismo burguês que o afastara de casa. O pai tenta mostrar-lhe o seu amor, mas a mobília ainda é horrível, falso Luís XV, ou o que era equivalente a isso nessa época, os mesmos quadros de opulência ainda estão nas paredes, ele sente-se chocado mais que nunca pelo servilismo dos criados e pela luxúria da comida e começa a lembrar-se do companheirismo que encontrou na pobreza da quinta de porcos.

- Julguei que você disse que não havia nenhum ramo do Partido e que ele se sentia muito só.

- Sim, exagerei. Ele tinha um amigo e lembrou-se das palavras do seu velho camponês de barbas que o ajudara a dar de comida aos porcos; começou a meditar nelas (nas palavras, quero dizer, não nos porcos), na sua cama luxuosa, onde os ossos ansiavam pela terra dura da sua cabana na quinta. Afinal, três mil camelos podem muito bem ser suficientes para revoltar um homem sensível.

-Você tem uma imaginação maravilhosa, Sancho, mesmo quando está sóbrio. Mas que raio disse o velho camponês?

-Disse-lhe que qualquer Estado em que exista a propriedade privada da terra e meios de produção em que o capital domine, por muito democrático que se reclame, é um Estado capitalista, uma máquina inventada e usada pelos capitalistas para manter sob controlo a classe trabalhadora.

- A sua história parece tão aborrecida como o meu breviário.

-Aborrecida? Chama-lhe aborrecida? Estou a citar o próprio

Lenine. Não vê que a primeira ideia da luta de classes é inculcada por esse velho camponês (eu vejo-o com barba e bigode, tal como Karl Marx) no espírito do filho pródigo?

- E que faz ele?

- Depois de uma semana de desilusão, sai de casa de madrugada (uma madrugada vermelha) para reencontrar a quinta dos porcos e o velho camponês barbudo, determinado agora a desempenhar um papel na luta do proletariado. O velho camponês barbudo vê-o chegar, à distância, e, correndo, rodeia-lhe o pescoço com os braços e beija-o, e o filho pródigo diz: "Pai, eu pequei, não mereço ser chamado vosso filho."

- O final é-me familiar - disse o padre Quixote. - E estou satisfeito por ter deixado de fora os porcos.

-Por falar em porcos, não poderia ir um pouco mais depressa? Não devemos estar a fazer mais de trinta quilómetros por hora.

-É a velocidade favorita do "rocinante". É um carro muito velhinho, e não posso forçá-lo.

-Estamos a ser ultrapassados por todos os carros na estrada.

- Que importância tem isso? O seu antepassado nunca chegou a fazer trinta quilómetros por hora.

- E o seu antepassado nunca foi mais longe nas suas viagens do que a Barcelona.

-E isso que tem? Ele esteve sempre a pouca distância de La Mancha, mas o seu espírito foi longe. E o de Sancho também.

-Quanto ao meu espírito, não sei, mas sinto a minha barriga como se andássemos na estrada há uma semana. Os chouriços e o queijo são já uma recordação distante.

Pouco passava das duas quando subiram as escadas do Botin. Sancho encomendou duas doses de leitão e uma garrafa de vinho tinto Marquês de Murrieta.

-Estou surpreendido por você escolher a aristocracia - comentou o padre Quixote.

-Isso pode ser temporariamente aceite pelo bem do Partido, tal como um padre.

-Mesmo um padre?

-Sim. Uma certa autoridade indiscutível, que não será nomeada - olhou rapidamente para as mesas ao lado -, escreveu que a propaganda ateísta em certas circunstâncias é não só desnecessária como prejudicial.

-Foi mesmo Lenine quem escreveu isso?

-Sim, sim, claro, mas é melhor não mencionar o nome aqui, padre. Nunca se sabe... Eu já lhe disse que tipo de pessoas costumava vir aqui no tempo do nosso chorado líder. O leopardo não altera os seus locais.

-Então, por que me trouxe aqui?

Porque é o melhor local para o leitão. De qualquer forma, o colarinho dá-lhe uma protecção parcial. Ainda ficará melhor quando tiver as peúgas de púrpura e ...

Foi interrompido pelo leitão, e durante um bocado não houve oportunidade de falar, excepto por sinais, que dificilmente poderiam ser mal interpretados por um polícia secreto; por exemplo o erguer de um garfo em honra do Marquês de Murrieta.

O alcaide deu um suspiro de satisfação:

-Já comeu melhor leitão do que este?

-Nunca tinha comido leitão - respondeu o padre Quixote, com uma certa vergonha.

- Que é que come em casa?

-Geralmente é um bife... Já lhe contei que Teresa é especialista em bifes.

-O homem do talho é desonesto e reaccionário.

-Os seus bifes de cavalo são excelentes.

A palavra proibida saíra-lhe da boca antes que pudesse impedi-lo.

Talvez tivesse sido só o vinho que deu ao padre Quixote uma força enorme para resistir ao alcaide. Este queria reservar quartos no Hotel Palace e pagá-los ele próprio, mas um olhar para o vistoso e repleto hall foi suficiente para o padre Quixote.

- Como pode você, um comunista? ...

- O Partido nunca nos proibiu de tirarmos partido do conforto burguês, enquanto este dure. É certamente aqui, melhor do que em qualquer lugar, que poderemos estudar os nossos inimigos. Além disso, este hotel não é nada, comparado com o novo hotel em Moscovo que construíram na Praça Vermelha. O comunismo não é contra o conforto, nem contra aquilo a que você chamará luxúria, desde que o trabalhador beneficie a longo prazo. Contudo, se quer ficar desconfortável e mortificar-se ...

-Pelo contrário. Estou preparado para o conforto, mas aqui não me sentiria confortável. O conforto é um estado de espírito.

Dirigiram-se para um quarteirão mais pobre da cidade, tomando as ruas ao acaso. De repente, o "rocinante" parou e nada o fez voltar a trabalhar. Havia um letreiro de um albergue vinte metros abaixo e uma entrada suja.

-O "rocinante" é que sabe - disse o padre Quixote. - É aqui que ficamos.

-Mas isto nem sequer é limpo - disse o alcaide.

- Pertence obviamente a pessoas muito pobres. Mas tenho a certeza de que nos receberão bem. Precisam de nós. No Hotel Palace não precisavam.

Foram recebidos com ar de incredulidade por uma velha que os conduziu por uma passagem estreita. Embora não vissem sinais de outros clientes, ela disse-lhes que só havia um quarto vago, mas que tinha duas camas.

-Tem ao menos quarto de banho?

Não, não havia exactamente um quarto de banho, disse-lhes ela, mas havia um duche no andar de cima e uma bacia com um recipiente de água fria no quarto que iriam partilhar.

-Ficamos com ele - disse o padre Quixote.

-Está doido - disse-lhe o alcaide, quando ficaram sozinhos no quarto, que o padre Quixote admitiu ser muito deprimente. - Vimos a Madrid, onde há dúzias de bons e baratos hotéis, e você traz-nos para esta hospedaria inqualificável.

- O "rocinante" estava cansado.

-Teremos sorte se não nos cortarem o pescoço aqui.

-Não, a velha é honesta, eu sei.

- Como sabe?

- Li-lhe nos olhos.

O alcaide ergueu as mãos, em desespero.

- Depois de todo aquele vinho branco - disse o padre Quixote -, dormiremos em qualquer lado.

-Eu não vou pregar olho.

-Ela é uma das suas.

-Que quer dizer com isso?

- Os pobres... - E acrescentou rapidamente: - Claro que também são dos meus.

O padre Quixote sentiu-se muito mais aliviado quando o alcaide se estendeu na cama, completamente vestido (receava que lhe cortassem mais facilmente o pescoço se estivesse despido), porque o padre Quixote não estava habituado a tirar as roupas em frente de outra pessoa, e qualquer coisa, qualquer coisa, pensava ele, deveria acontecer antes do anoitecer para livrá-lo de tal embaraço.

Deitou-se de costas e ouviu um gato a miar no telhado. "Talvez", pensou ele, "o alcaide tenha esquecido as minhas peúgas de púrpura", e deixou-se sonhar acordado sobre como a viagem continuaria e como, através de uma amizade e compreensão profundas, haveria uma reconciliação entre as suas díspares fés. Talvez, pensou ele antes de adormecer, o alcaide não estivesse completamente errado quanto ao filho pródigo ... todo aquele fim feliz, as boas-vindas do regresso, a peça de gado engordada. O desfecho da parábola era realmente um pouco improvável... "Não sou digno de que me chamem vosso monsenhor", murmurou antes de adormecer.

Foi o alcaide quem o acordou. O padre Quixote viu-o, como um estranho, na última luz do dia, que expirava, e perguntou com curiosidade, não com medo.

- Quem é você?

-Sou Sancho - respondeu o alcaide. - São horas de irmos às compras.

-Às compras?

-Você tornou-se cavaleiro. Temos de encontrar-lhe a espada, esporas, o elmo, nem que seja a bacia de um barbeiro. Bacia de barbeiro?

        Você tem estado a dormir e eu há três horas que estou acordado, para o caso de tentarem cortar-nos as gargantas. Esta noite será a sua vez de ficar de guarda. Nesta suja capela em que nos meteu. Sobre a sua espada, monsenhor.

- Monsenhor?

-..Realmente, você dormiu muito profundamente. Tive um sonho, um sonho terrível. -Em Em que lhe cortaram a garganta?

-Não, não. Muito pior do que isso.

Vamos, levante-se. Temos de procurar as suas peúgas de púrpura.

O padre Quixote não protestou. Ainda estava sob a influência unte do sonho. Desceram as escadas sombrias, em direcção à escura rua. A velha, com uma expressão de terror, espreitou OOquando eles passaram. Teria também sonhado? Não gosto do ar dela - disse Sancho. Também acho que ela não gosta do nosso ar. Temos de encontrar um táxi - disse o alcaide. Tentemos primeiro o "rocinante".

teve de premir três vezes o botão de arranque para o carro arrancar.

-Vê - disse o padre Quixote -, não tinha nada de especial.

Estava cansado, é tudo. Eu conheço o "rocinante". Onde vamos? -Não sei. Pensei que você saberia. -:Saberia o quê?

-Onde há um alfaiate eclesiástico. - Por que deveria eu saber?

-Você é um padre. Usa um fato de padre. Não o comprou em

El Toboso.

-Já tem quase quarenta anos, Sancho.

-Se você e as suas peúgas durarem assim tanto, você será mais do que centenário antes de poder gastá-las.

-Por que tenho de comprar essas peúgas?

-As estradas da Espanha ainda são controladas, padre. Enfiado em El Toboso, você ainda não percebeu que, ao longo das estradas da Espanha, o fantasma de Franco ainda vigia. As suas meias serão a nossa salvaguarda. Um guarda civil respeita peúgas de púrpura.

- Mas onde vamos comprá-las? - E fez parar o "rocinante". - Não vou cansá-lo para nada.

-Fique aqui um momento. Vou procurar um táxi e pedir ao condutor que nos oriente.

- Estamos a ser muito extravagantes, Sancho. Você até queria ficar no Hotel Palace.

- O dinheiro não é um problema imediato.

-El Toboso é um local muito pequeno, e nunca ouvi dizer que os alcaides fossem muito bem pagos.

- El Toboso é um local pequeno, mas o Partido é um grande partido. E, o que é mais, o Partido é agora legal. Como militante, tem-se uma certa liberdade, pelo bem do Partido.

- Então, por que precisa da protecção das minhas peúgas?

Mas a pergunta veio tarde de mais. O alcaide já estava fora do campo de audição e o padre Quixote ficou sozinho com o pesadelo que o perseguia. Há sonhos nos quais pensamos mesmo à luz do dia: seria isto um sonho, ou seria verdade, verdade de uma forma ou de outra? "Terei sonhado ou terá acontecido de alguma forma estranha?"

O alcaide abria a porta do seu lado e disse:

-Siga o táxi. Ele garante-me que nos levará à melhor loja de vestes eclesiásticas fora de Roma. O núncio vai lá e o arcebispo também.

Quando chegaram, o padre Quixote mal podia acreditar. O seu

coração deu um salto quando reparou na elegância da loja e no fato escuro e bem passado do empregado, que os cumprimentou com a cortesia distante de uma autoridade da Igreja. Ocorreu ao padre Quixote que um homem assim era quase de certeza membro da Opus Dei - o clube dos activistas intelectuais católicos -, a que ele não podia atribuir falhas, mas em que também não podia confiar. Ele era um provinciano e eles pertenciam às grandes cidades.

-O monsenhor - disse o alcaide - quer umas peúgas de púrpura.

- Certamente, monsenhor, se me quiser acompanhar ...

- Eu queria ver - murmurou o alcaide enquanto o seguiam - se pediam alguns papéis.

Como se fosse um diácono a preparar o altar antes da missa, o empregado espalhou no balcão uma variedade de meias de púrpura.

-Estas são de nylon - disse. - Estas, de seda pura. E estas, de algodão. O melhor algodão da ilha, é claro.

-Geralmente uso de lã - disse o padre Quixote.

- Oh, bem, claro que temos de lã, mas, geralmente, o nylon e a seda são preferidos. É uma questão de tom; a seda ou o nylon têm um tom de púrpura mais rico. A lã apaga a cor.

-Para mim é uma questão de calor - disse o padre Quixote.

- Eu concordo com este senhor, monsenhor - interrompeu o alcaide rapidamente. - Queremos um tom de púrpura que fira a vista à distância.

O empregado pareceu confundido.

- À distância? - perguntou. - Não percebo ...

-Não quero que o tom de púrpura pareça casual. É claro que não queremos uma púrpura não eclesiástica.

-Nunca ninguém se queixou da nossa púrpura. Nem sequer do das meias de lã - acrescentou o empregado com relutância.

- Para o que pretendemos disse o alcaide, lançando um olhar de aviso ao padre Quixote -, o nylon é melhor. Tem uma certa luz. - E acrescentou: - E depois vamos precisar ... Como é que se chama aquela espécie de bibe que os monsenhores usam?

-Deve estar a falar da pechera. Devem querer uma também de nylon, para dar com as meias.

- Concordei no que respeita às peúgas - disse o padre Quixote -, mas recuso-me terminantemente a usar uma pechera de púrpura.

-Só numa emergência, monsenhor - argumentou o alcaide. O empregado olhava para eles com suspeita crescente.

- Não vejo que emergência...

-Já lhe expliquei o estado das estradas nesta época. Enquanto o empregado fazia o embrulho, que colou cuidadosamente com fita gomada do mesmo tom de púrpura eclesiástico

das meias e da pechera, o alcaide, que não simpatizara com o homem, Iniciou uma conversa.

- Suponho - disse - que vocês fornecem tudo aquilo de que

a Igreja precisa no que respeita à decoração. -Se se refere às roupas, sim.

- E chapéus, barretes de clérigos e outros?

Claro.

-E chapéus de cardeais? O monsenhor ainda não chegou a essa fase, claro. Pergunto por curiosidade ... Temos de estar preparados.

-Os chapéus dos cardeais são enviados sempre por Sua Santidade.

O "rocinante" estava com uma das suas manias e levou algum tempo a pegar.

- Receio que tenhamos ido longe de mais e levantado suspeitas - disse o alcaide.

-Que quer dizer?

- O homem veio à porta. Penso que tirou o número do carro. -Não quero ser indelicado - disse o padre Quixote -, mas

ele parecia o tipo de homem que podia pertencer à Opus Dei. -Eles são capazes de ser os donos da loja.

- Claro que tenho a certeza de que eles praticam muito o bem

à sua maneira. Como o generalíssimo fazia.

- Eu gostava de acreditar no Inferno, quanto mais não fosse

para colocar os membros da Opus Dei junto do generalissimo. -Ele tem as minhas preces - disse o padre Quixote, e juntou

os dedos à volta do volante do "rocinante".

- Ele precisa de mais do que as suas preces, se houver o Inferno.

-Uma vez que há o Inferno, serão só precisas as preces de um homem justo para nos salvar. Como Sodoma e Gomorra - acrescentou o padre Quixote, duvidando de ter citado correctamente as estatísticas.

Estava uma noite muito quente. O alcaide sugeriu que jantassem no Pôncio Pilatos, mas o padre Quixote foi firme na sua recusa. Disse:

- Pôncio Pilatos foi um homem mau. O mundo quase o canonizou por ser neutral, mas não se pode permanecer neutro quando é necessário escolher entre o bem e o mal.

- Ele não foi neutro - retorquiu o alcaide. - Foi um não-alinhado (como Fidel Castro) com uma inclinação para a direcção certa.

- Que quer dizer com "direcção certa"? - O Império Romano.

- Você, um comunista, apoia o Império Romano?

- Marx diz-nos que, para chegarmos à possibilidade de desenvolver um proletariado revolucionário, temos de passar pelo estádio do capitalismo. O Império Romano estava a transformar-se numa sociedade capitalista. Os Judeus foram impedidos pela sua religião de se tornar industrialistas; portanto...

O alcaide, então, sugeriu que comessem no Horno de Santa Teresa:

- Quanto ao forno delas não sei, mas ela foi uma santa por quem o seu amigo, o generalissimo, sentiu uma grande admiração.

O padre Quixote não via razão para que a comida e a religião estivessem juntas e ficou irritado quando o alcaide propôs, então, San Antonio de Florida, um santo que o padre Quixote desconhecia. Suspeitava de que o alcaide estava a brincar com ele. Por fim, acabaram por comer uma refeição bastante má em Los Porches, onde o ar livre ajudou às deficiências do menu.

Beberam uma garrafa de vinho enquanto esperavam e uma segunda a acompanhar a refeição, mas, quando o alcaide sugeriu que completassem a Santíssima Trindade, o padre Quixote recusou. Disse que se sentia cansado, a sesta não lhe fizera bem, mas eram desculpas; o que lhe pesava, de facto, era o seu sonho. Ansiava partilhá-lo, embora Sancho nunca pudesse compreender a perturbação que lhe causara. Se ao menos estivesse em casa... E, mesmo assim, que diferença teria feito? Teresa teria dito: "Foi só um sonho, padre." E o padre Herrera... Era estranho, mas ele sabia que nunca conseguiria comunicar com o padre Herrera sobre qualquer coisa que tivesse a ver com a religião que em princípio partilhavam. O padre Herrera era partidário da nova missa, e numa noite, no final de um jantar bastante silencioso, o padre Quixote fora suficientemente imprudente para lhe contar como, no final da missa, tinha o hábito de, em silêncio, dizer as palavras do Evangelho de São João que tinham sido retiradas da liturgia.

"Ah, poesia! ", respondera o padre Herrera, com uma nota de desaprovação.

"Não gosta de São João?"

"O Evangelho que tem o seu nome não é um dos meus favoritos. Prefiro São Mateus."

O padre Quixote sentira-se inquieto nessa noite e tinha a certeza de que, por causa da sua conversa, seria chamado pelo bispo no dia seguinte. Tarde de mais. Um monsenhor só pode ser repreendido pelo próprio papa. Ele respondera: "Sempre pensei que o Evangelho de São Mateus se distinguia dos outros por ser o Evangelho do medo."

"Porquê? Que ideia extraordinária, monsenhor." "Em São Mateus há quinze referências ao Inferno." "E então?"

"Dominar pelo medo ... Com certeza que Deus pode deixar isso a Estaline ou a Hitler. Eu acredito na virtude da coragem. Não acredito na virtude da cobardia.

"Uma criança deve ser educada pela disciplina. E todos somos crianças, monsenhor."

"Não acredito que os pais que amem os filhos os eduquem pelo medo."

"Espero que não seja isso que você ensina aos seus paroquianos."

"Oh, eu não os ensinei, eles é que me ensinaram."

"O Inferno não é monopólio de São Mateus, monsenhor. Também pensa o mesmo sobre os outros Evangelhos?"

"Há uma diferença assinalável." O padre Quixote hesitou, pois apercebeu-se de que pisava então terreno perigoso:

"Que diferença?" Talvez o padre Herrera esperasse uma resposta verdadeiramente herética, que poderia ser transmitida, sem dúvida, pelos canais apropriados, a Roma.

O padre Quixote disse ao padre Herrera o que já dissera ao alcaide.

"Em São Marcos há só duas referências ao Inferno (claro que ele tinha a sua especialidade, era o apóstolo da piedade). Em São Lucas, três referências; ele é o melhor contador de histórias. Dele vêm a maior parte das parábolas. E São João dizem agora que é o Evangelho mais antigo, mais antigo que o de São Marcos ... É muito estranho." E hesitou.

"Bem, e quanto a, São João?"

"Não há uma única referência ao Inferno no seu Evangelho."

"Mas, decerto, monsenhor, não está a pôr em dúvida a existência do Inferno?"

"Acredito por obediência, não com o coração." A conversa acabara abruptamente.

O padre Quixote premiu o travão na rua escura e horrível.

-Quanto mais depressa partirmos, melhor - disse o alcaide.

- Pensar que podíamos ter dormido confortavelmente no Palace!

Enquanto subiam as escadas, abriu-se uma porta e a luz da vela num quarto interior mostrou o rosto desconfiado e assustado de uma velha.

-Por que estará ela tão assustada? - perguntou o alcaide.

-Talvez o nosso medo se pegue - disse o padre Quixote.

Tão depressa quanto possível, enfiou-se nos lençóis, meio vestido, mas o alcaide demorou. Foi mais cuidadoso a dobrar as calças e o casaco do que o padre Quixote, mas ficou com a camisa e as cuecas, como se também estivesse preparado para qualquer emergência.

-Que raio tem você no bolso? - perguntou, agarrando no casaco do padre Quixote.

-Oh, é isso, o Jone, sobre teologia moral. Meti-o no bolso à última hora.

-Que livro para trazer em férias!

-Bem, eu também o vi meter no carro um livro de ensaios de Lenine e qualquer coisa de Marx.

Pensei em emprestar-lhos para ajudar à sua instrução.

-Bem, eu empresto-lhe o Jone, se quiser, para ajudar à sua.

-Pelo menos pode fazer-me dormir - disse o alcaide e tirou o pequeno livro verde do bolso do padre Quixote. O padre Quixote estava deitado de costas e ouvia o companheivirar as páginas. A certa altura, o alcaide deu uma gargalhada. padre Quixote não se lembrava de nada de engraçado no livro Jone, mas também já tinham decorrido quarenta anos desde que lera a sua Teologia Moral. Continuava a faltar-lhe o sono, OOenquanto o sonho terrível da sua sesta o acompanhava como uma melodia de má qualidade, na cabeça.

Sonhara que Cristo fora salvo da cruz pela legião de anjos para OOm, numa ocasião anterior, o Diabo lhe dissera que podia apelar. Assim, não houvera agonia final, nem rocha pesada que tivesse de ser deslocada, nem descoberta de um túmulo vazio. O padre até ali estava, em Gólgota, enquanto Cristo saía da cruz, OOunfante e aclamado. Os soldados romanos, mesmo os OOcentues, ajoelhavam em sua honra, e o povo de Jerusalém subia e OOsa o monte para venerá-Lo. Os discípulos aglomeravam-se alegremente à sua volta. A mãe sorria por entre as lágrimas de júbilo. Não havia ambiguidade, não havia lugar para dúvidas, nem tão-pouco lugar para a fé. O mundo inteiro sabia, com certeza, que Cristo era o Filho de Deus.

Era só um sonho, claro que não passava de um sonho, mas, mesmo assim, o padre Quixote sentira, ao acordar, o arrepio do desespero experimentado por um homem que se apercebe de repente de ter seguido uma profissão que não é útil a ninguém, que tem de continuar a viver numa espécie de deserto do Sara sem dúvida ou fé, onde toda a gente acredita na mesma crença. Deu consigo a murmurar: "Deus me livre de tal crença." Então, ouviu o alcaide mexer-se, inquieto, na cama ao lado, e acrescentou, sem pensar: "Que ele também seja salvo da crença." E só depois voltou a adormecer.

A velha esperava-os ao fundo das escadas. Ouviu-se um estalar de madeira na última escada e o padre Quixote tropeçou e quase caiu. A velha persignou-se e começou a algaraviar, acenando com uma folha de papel.

-Que é que ela quer? - perguntou o alcaide.

-Os nossos nomes e moradas, donde vimos e para onde vamos.

- Isso não é uma ficha de hotel. É só uma folha de papel tirada de um bloco.

A algaravia continuava, aumentando de tom e ameaçando tornar-se em gritaria.

-Não entendo uma palavra - disse o alcaide.

- Você não tem a prática de ouvir que eu adquiri no confessionário. Ela diz que já teve problemas com a polícia por não ter registo de hóspedes. Diz que eram comunistas e andavam fugidos.

- Então, por que não nos fez preencher a ficha quando chegámos?

-Pensou que não ficávamos com o quarto e depois esqueceu

-se. Empreste-me uma caneta. Não vale a pena discutir.

- Um hóspede é suficiente. Especialmente quando é um padre.

E não se esqueça de escrever "monsenhor". -Para onde digo que vamos? - Escreva Barcelona.

-Você nunca falou em Barcelona.

- Quem sabe? Poderemos lá ir. O seu antepassado foi. De qualquer maneira, nunca pensei em confiar qualquer coisa à polícia.

O padre Quixote, relutantemente, obedeceu. Teria o padre Jone tomado isto como mentira? Ele lembrava-se de que o padre Jone dividira as mentiras, um tanto estranhamente, em maliciosas, oficiosas e jocosas. As mentiras oficiosas são ditas em benefício de alguém. Ele não via vantagem para ninguém numa declaração falsa. Talvez não fosse uma mentira. Era mesmo possível que as suas andanças os levassem um dia a Barcelona.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE E SANCHO VISITAM UM LOCAL SAGRADO

-Quer ir para norte? - perguntou o padre Quixote. - Pensei que talvez pudéssemos fazer uma pequena viagem na direcção de Barcelona.

-Eu vou levá-lo - disse o alcaide - a um tal local sagrado que tenho a certeza de que quererá fazer lá as suas orações. Siga a estrada para Salamanca até eu lhe dizer para virar.

Qualquer coisa na maneira como ele falou deu ao padre Quixote motivo para se sentir pouco à vontade. Caiu em silêncio e o sonho voltou-lhe à mente. Disse:

- Sancho, você acredita mesmo que um dia o mundo seja comunista?

- Acredito, sim. Claro que não verei esse dia. - A vitória do proletariado será completa? Sim.

- E o mundo inteiro será como a Rússia?

- Eu não disse isso. A Rússia ainda não é comunista. Só que chegou mais longe do que outros países no caminho para o comunismo. - E colocou amigavelmente a mão na boca do padre Quixote. - Não me venha você, um católico, falar de direitos humanos e eu prometo que não lhe falo na Inquisição. Se a Espanha tivesse sido inteiramente católica, claro, não teria havido Inquisição; mas a Igreja tem de se defender contra os inimigos. Numa guerra há sempre injustiça. Os homens terão sempre de escolher um mal menor, e o mal menor poderá significará o Estado, o campo de concentração e, sim, se quiser, o hospital psiquiátrico. O Estado ou a Igreja estão na defensiva, mas, quando chegarmos ao comunismo, o Estado decairá.

- Suponhamos que o comunismo chega enquanto você ainda está vivo.

-Isso é impossível.

-Bem, imagine que tinha um bisneto com o mesmo temperamento que você e que ele veria chegar o fim do Estado. Sem injustiça nem desigualdades, como passaria ele a vida, Sancho?

A trabalhar para o bem comum.

-Não há dúvida de que você tem fé, Sancho, muita fé no futuro. Mas ele não teria fé. O futuro estaria ali, frente aos olhos dele. Poderá um homem viver sem fé?

- Não entendo o que quer dizer "sem fé". Haverá sempre coisas para um homem fazer. A descoberta de nova energia. E a doença... Haverá sempre doenças a combater.

-Tem a certeza? A medicina está a sofrer grandes avanços. Tenho pena do seu bisneto, Sancho. Parece-me que ele não terá esperança nenhuma, a não ser a morte.

O alcaide sorriu.

-Talvez até consigamos vencer a morte por meio de transplantações.

-Deus nos livre - disse o padre Quixote. - Então, ele viveria num deserto sem fim. Sem dúvidas. Sem fé. Eu preferia que ele tivesse o que nós chamamos uma morte feliz.

-Que quer dizer com "uma morte feliz"?

-Quero dizer a esperança de qualquer coisa mais além.

-A visão beatífica e todo esse disparate? Acredita numa vida

eterna?

-Não. Não acredito necessariamente. Nem sempre podemos acreditar. Basta ter fé. Como você tem, Sancho. Oh, Sancho. Oh, Sancho, Sancho, é terrível não ter dúvidas. Suponha que se provava que tudo o que Marx e Lenine escreveram era absolutamente verdade.

-Ficaria satisfeito, claro. - Duvido.

Mantiveram-se em silêncio durante um bocado. De repente, Sancho deu a mesma gargalhada que o padre Quixote ouvira de noite.

-Que é, Sancho?

A noite passada, antes de adormecer, estive a ler o seu Jone e a sua Teologia Moral. Já me esquecera de que o onanismo continha uma tal variedade de pecados. Pensara nisso como mais uma forma de masturbação.

- Um erro muito comum. Mas você devia saber mais, Sancho. Disse-me que estudou em Salamanca.

-Sim. E lembrei-me a noite passada de como costumávamos todos rir quando chegávamos ao onanismo.

-Esquecera-me de que Jone era tão engraçado.

- Deixe-me lembrar-lhe os comentários dele sobre o coitus interruptus. Esta é uma das formas de onanismo, de acordo com Jone, mas do ponto de vista dele não é pecado se praticado devido a qualquer necessidade imprevista, por exemplo (é o próprio exemplo de Jone) a entrada em cena de uma terceira pessoa. Bem, um dos meus colegas, Diego, conhecia um corretor muito rico e piedoso. Lembro-me do seu nome: Marquez. Tinha uma grande propriedade ao longo do rio de Salamanca, não muito longe do local onde os Vicentinos tinham o seu mosteiro. Será que ainda é vivo? Bem, se está, o controlo da natalidade já não será um problema para ele, pois deve ter mais de oitenta anos. Mas foi com certeza um problema terrível naquele tempo, porque ele era um fiel servidor das regras da Igreja. Ainda bem para ele que a Igreja alterou as suas regras sobre a usura, porque há muito de usurário num corretor. É engraçado, não é, como a Igreja pode alterar os seus pontos de vista muito mais facilmente no que diz respeito a dinheiro do que naquilo que respeita a sexo?

-Vocês também têm dogmas inalteráveis.

- Sim. Mas para nós os dogmas mais impossíveis de alterar são aqueles que estão relacionados com dinheiro. Não nos preocupamos com o coitus interruptus, só com os meios de produção, e não quero dizer sexualmente. Por favor, no próximo cruzamento vire à esquerda. Vê ali à frente aquela colina rochosa, com uma -grande cruz no topo? É para onde vamos.

-Então é um local sagrado. Julguei que me estava a gozar. -Não, não, monsenhor. Gosto muito de si para fazer isso. De que estava eu a falar? Oh, já sei. Do senor Marquez e do seu terrível problema. Ele tinha cinco filhos. Sentia que cumprira o seu dever para com a Igreja, mas a mulher era muito fértil e ele gostava muito de sexo. Poderia ter arranjado uma amante, mas penso que Jone não teria permitido o controlo de natalidade, nem mesmo no adultério. O que você chama controlo natural, e eu não, deixara-o ficar mal. Talvez os termómetros na Espanha tenham sido falsificados sob a influência clerical. Bem, o meu amigo Diego contou-lhe (receio que num momento de frivolidade) que o coitus interruptus era admissível de acordo com Jone. A propósito, que tipo de padre era Jone?

-Era alemão. Acho que não era secular; a maior_ parte deles estão ocupados de mais para serem teóricos de teologia moral.

- Marquez deu ouvidos a Diego e este, quando foi lá a casa, viu que fora contratado um mordomo. Isto surpreendeu-o, porque Marquez era um homem mesquinho, que recebia pouco as pessoas, à parte um padre que ocasionalmente vinha do mosteiro vicentino; e duas criadas, uma nurse e uma cozinheira eram suficientes. Depois do jantar, Marquez convidou Diego para ir até ao seu escritório beber um cálice de brande.

""Tenho de agradecer-lhe", disse Marquez, "pois você tornou-me a vida muito mais fácil. Tenho andado a ler cuidadosamente o padre Jone. Admito não ter acreditado completamente no que me disse, mas consegui que os Vicentinos me emprestassem uma cópia em espanhol, e lá vem o timbre do arcebispo de Madrid e o Nihil Obstat, do censor deputatus: a chegada de uma terceira pessoa torna o coitus interruptus admissível."

""E em que é que isso o ajuda?", perguntou Diego.

""Sabe, eu contratei um mordomo e treinei-o cuidadosamente. Quando a campainha do meu quarto tocar duas vezes na copa, ele põe-se em posição à porta do quarto, à espera. Eu tento não mantê-lo lá fora muito tempo, mas, com a idade avançada, receio às vezes fazê-lo ficar lá fora durante um quarto de hora, ou mais, até ao próximo sinal: um toque prolongado da campainha. Isso é quando me sinto incapaz de conter-me por mais tempo. O mordomo abre a porta imediatamente e, à chegada de uma terceira pessoa, eu retiro-me logo do corpo da minha mulher. Nem calcula como Jone me simplificou a vida. Agora não preciso de ir à confissão mais do que uma vez em cada três meses, por questões veniais de pouca importância."

-Está a gozar comigo - disse o padre Quixote.

-Nem um pouco. Acho agora Jone muito mais interessante e engraçado do que quando era estudante. Infelizmente, neste caso específico houve uma falha, e Diego foi suficientemente indelicado para mencioná-la.

"Você leu Jone com pouco cuidado", disse Diego a Marquez. "Jone qualificou a chegada de uma terceira pessoa de necessidade imprevisível. Receio que, no seu caso, a chegada do mordomo seja até muito previsível." O pobre Marquez ficou abalado. Oh, não se consegue bater- estes teóricos de teologia moral. Conseguem sempre levar a melhor com os seus sofismas. É melhor não lhes dar ouvidos. Para seu bem era melhor tirar esses velhos livros das prateleiras. Lembre-se do que Canon disse ao seu nobre antepassado. "Não é razoável que um homem como você, possuidor da sua capacidade de OOcompteeus o, da sua reputação e dos seus talentos, aceite todas as extravagâncias absurdas destes ridículos romances de cavalaria como verdadeiras."

O alcaide parou de falar e olhou de lado para o padre Quixote. Disse:

- A sua cara tem mesmo qualquer coisa em comum com a do seu antepassado. Se eu sou Sancho, você é, de certeza, o monsenhor Rosto Aflito.

-Você pode troçar de mim como quiser, Sancho. O que me entristece é quando você troça dos meus livros, que são mais valiosos para mim do que eu próprio. Eles são toda a minha fé e esperança.

- Em troca do padre Jone, eu empresto-lhe o padre Lenine. Talvez ele também lhe dê esperança.

- Esperança neste mundo talvez, mas eu tenho uma fome maior, e não só para mim. Para si, Sancho, e para o nosso mundo. Eu sei que sou um pobre padre errante, a viajar sabe Deus por onde; sei que há absurdos em alguns dos meus livros, tal como havia nos livros de cavalaria que o meu antepassado coleccionava. Isso não queria dizer que toda a cavalaria fosse absurda. Por muitos absurdos que você descubra nos meus livros, eu ainda conservo a fé.

-Em quê?

- Num facto histórico. Em que Cristo morreu na cruz e ressuscitou.

-O maior absurdo de todos.

-Este mundo é absurdo, ou não estaríamos aqui juntos.

Tinham chegado ao cimo de Guadarramas, uma subida difícil para o "rocinante", e agora desciam em direcção a um vale sob uma colina sombria que tinha no topo a grande e pesada cruz, que deveria ter perto de cento e cinquenta metros de altura: podiam ver à sua frente um parque cheio de carros - ricos Cadillacs e pequenos Fiats. Os donos dos Fiats tinham montado mesas de piquenique ao lado dos carros.

- Você gostaria de viver num mundo inteiramente racional? - perguntou o padre Quixote. - Que mundo triste seria então!

-Aí fala o seu antepassado.

-Olhe para a guilhotina no cimo da colina... ou para as flores, se preferir.

-Eu vejo uma cruz.

- É mais ou menos a mesma coisa, não é? Onde estamos, Sancho?

-Este é o Vale dos Caídos, padre. Foi aqui que o seu amigo Franco planeou ser enterrado como um faraó. Mais de um milhar de presos foram obrigados a escavar o seu túmulo.

-Oh, sim, lembro-me, e em troca deram-lhes a liberdade.

- Para centenas foi a liberdade da morte. Quer rezar aqui, padre?

- Claro, por que não? Mesmo que fosse o túmulo de Judas, ou de Estaline, eu rezaria.

Estacionaram o carro pelo preço de sessenta pesetas e dirigiram-se para a entrada. "Que pedra grande seria precisa", pensou o padre Quixote, "para fechar este enorme túmulo!"

À entrada, uma grelha de metal estava decorada com estátuas de quarenta santos espanhóis e lá dentro estendia-se um hall do tamanho da nave de uma catedral, com as paredes cobertas por aquilo que parecia serem tapeçarias do século XVI.

- O generalíssimo insistiu na brigada completa de santos - disse o alcaide.

Os visitantes e as suas vozes diminuíam devido ao tamanho do hall e pareceu um longo caminho até ao altar, ao fundo sob uma grande cúpula.

-Uma notável realização de engenharia - disse o alcaide -, como as pirâmides. E precisou do trabalho de escravos para ser feito.

-Tal como nos seus campos, na Sibéria.

- Ao menos os prisioneiros russos trabalham para o futuro do seu país. Isto foi para a glória de um só homem.

Caminharam lentamente até ao altar, passando por todas as capelas. Ninguém neste hall ricamente decorado sentia necessidade de baixar a voz, e, no entanto, as vozes soavam tão leves como murmúrios na imensidade. Era difícil acreditarem que estavam a caminhar dentro de uma montanha.

-Tanto quanto percebo - disse o padre Quixote -, esta era para ser a capela de reconciliação, onde os mortos de ambos os lados deveriam ser recordados.

Num dos lados do altar estava o túmulo de Franco, no outro o túmulo de José Antonio de Rivera, o fundador da Falange.

- Não encontrará nem uma placa sobre os cinco mortos republicanos - disse o alcaide.

Mantiveram-se silenciosos enquanto tomavam o longo caminho de regresso, em direcção à entrada, e dali olharam para trás, pela última vez.

- Um pouco, como o hall do Hotel Palace disse o alcaide -, mas muito maior e com menos hóspedes. O Hotel Palace não conseguiria ter estas tapeçarias. E ali ao fundo pode ver-se o bar, à espera de que o barman misture uma bebida... A especialidade do bar é um cocktail de vinho tinto tomado com bolachas wafer. Está silencioso, monsenhor. Com certeza que acha isto impressionante. Há algum problema?

-Estava a rezar, só isso - disse o padre Quixote.

- Pelo generalíssimo, enterrado nesta pompa?

-Sim, e também por si e por mim - acrescentou. - E pela

minha Igreja.

Enquanto se afastavam, o padre Quixote fez o sinal da Cruz. Não sabia muito bem porquê, se era uma protecção contra os perigos da estrada ou contra juízos apressados, ou só uma reacção nervosa.

O alcaide disse:

- Tenho a impressão de que estamos a ser seguidos. Debruçou-se sobre o padre Quixote para ver pelo espelho. -Todos nos estão, a ultrapassar menos um carro. - Por que haveríamos de ser seguidos? - Quem sabe? Eu disse-lhe para pôr o cabeção de púrpura. -Calcei as meias.

-Não é suficiente.

-Para onde vamos agora?

- A essa velocidade não conseguiremos chegar a Salamanca esta noite. É melhor ficarmos em Ávila. - O alcaide, olhando pelo retrovisor, acrescentou: - Pelo menos já nos ultrapassou. - E um carro passou por eles a alta velocidade.

-Está a ver Sancho, não era nada connosco. -Era um jipe. Um jipe da Guarda.

-De qualquer maneira não era connosco.

-Mesmo assim, antes você tivesse posto o cabeção - disse o alcaide: - Eles não lhe vêem as meias.

Almoçaram na estrada e, sentados na relva seca, acabaram o que restava do chouriço. Estava já um tanto seco e também o vinho manchego perdera muito do seu sabor.

- O chouriço faz-me lembrar - disse o alcaide - de que em Ávila poderá, se quiser, ver o dedo anelar de Santa Teresa, e em Alba de Tormes, perto de Salamanca, poderei mostrar-lhe uma mão inteira dela. Pelo menos penso que já deve ter sido devolvida ao seu convento, pois foi pedida emprestada pelo generalíssimo. Dizem que ele a tinha, com todo o respeito, claro, em cima da secretária. E em Ávila há um confessionário onde ela costumava falar com São João da Cruz. Um grande poeta; portanto, não iremos discutir acerca da sua santidade. Quando eu estava em Salamanca, visitava muitas vezes Ávila. Sabe que eu até sentia uma espécie de respeito por aquele dedo anelar, embora a principal atracção fosse uma rapariga belíssima, a filha do farmacêutico de Ávila?

- O que o fez abandonar os seus estudos, Sancho? Nunca mo disse.

-Acho que a principal razão foram os longos cabelos louros dela. Foi um príodo muito feliz. Sabe, como filha do farmacêutico (ele era um membro secreto do Partido), ela conseguia arranjar anticonceptivos clandestinos. Eu não precisava de praticar o coitus interruptus. Mas, sabe, a natureza humana é estranha; eu depois costumava arrepender-me junto do anelar de Santa Teresa. - Olhou lugubremente para o seu copo de vinho. - Oh, eu rio-me das suas superstições, padre, mas partilhava de algumas naquele tempo. Será por isso que agora procuro a sua companhia? Para reencontrar a minha juventude, os tempos em que eu ainda acreditava na vossa religião e em que tudo era tão complicado e contraditório e interessante?

- Nunca achei as coisas tão complicadas. Sempre encontrei as respostas nos livros que você despreza.

- Mesmo no padre Jone?

- Oh, nunca fui muito forte em teologia moral.

-Um dos meus problemas foi que o pai da rapariga, o farmacêutico, morreu, de maneira que já não era possível arranjar os anticonceptivos. Hoje seria fácil, mas naquele tempo ... Beba outro copo de vinho, padre.

- Na sua companhia, se não tenho cuidado, ainda me torno um padre bêbedo.

- Posso dizer, tal como o meu antepassado Sancho, que nunca OOna nminha vida bebi por vicio. Bebo quando me apetece ou para brindar com um amigo. À sua, monsenhor. Que é que o padre Jone diz da bebida?

-A intoxicação que acaba em perda completa da razão é um pecado mortal, a não ser que haja razão suficiente, e fazer os outros beber é a mesma coisa, a não ser que haja uma razão.

-E como é que ele qualifica as coisas?

-Curiosamente, segundo o padre Jone, é mais desculpável ser-se responsável pela bebedeira do outro (aquilo de que você é culpado agora) num banquete.

-Suponho que se poderá ver isto como um banquete? -Não sei se dois fazem um banquete e duvido de que o nosso chouriço seco tenha categoria suficiente.

O padre Quixote riu-se um pouco nervosamente (o humor talvez estivesse ali deslocado), apalpou o rosário no bolso e disse:

-Pode rir-se do padre Jone e eu ri-me consigo, Deus me perdoe. Mas, Sancho, a teologia moral não é a Igreja. E o padre Jone não está entre os meus antigos livros de cavalaria. O livro dele é como um livro de regulamentos militares. São Francisco de Sales escreveu um livro de oitocentas páginas chamado O Amor de Deus. A palavra amor não aparece nas regras do padre Jone, e penso, talvez esteja errado, que você não encontrará a expressão "pecado mortal" no livro de São Francisco. Ele era o bispo e o príncipe de Génova. Pergunto-me como terá sido que ele e Calvino se deram. Penso que Calvino se teria sentido mais à vontade com Lenine, mesmo com Estaline. Ou com a Guarda Civil - acrescentou, observando o jipe que voltava para trás, se é que era o mesmo jipe.

O seu antepassado teria ido para a estrada desafiá-lo. Ele sen

tiu a sua própria incapacidade e até um sentimento de culpa. O jipe abrandou quando passou pelo carro deles. Ambos tiveram uma sensação de alívio quando desapareceu de vista e ficaram em silêncio durante um bocado, entre os restos da refeição. Então, o padre Quixote disse:

- Não fizemos nada de mal, Sancho. -Eles julgam pelas aparências.

- Mas nós parecemos tão inocentes como cordeiros - disse o padre Quixote, e citou o seu santo preferido: - "Nada acalma tanto um elefante enraivecido como a imagem de um pequeno cordeiro, nada quebra melhor a força de balas de canhão do que a lã."

-Quem quer que escreveu isso - disse o alcaide - mostrou a sua ignorância sobre história natural e dinâmica.

- Suponho que é do vinho, mas sinto-me extremamente quente.

-Não posso dizer que sinto calor. Parece-me que está uma temperatura agradável. Mas, claro, eu não uso esses absurdos colarinhos.

-Um pouco de celulóide. Nem sequer é quente, quando pensamos naquilo que aqueles guardas trazem vestido. Experimente e verá.

-Está bem. Dê cá.,Se bem me lembro, Sancho tornou-se governador de uma ilha assim. Com a sua ajuda eu tornar-me-ei um governador de almas. Tal como o padre Jone. - E colocou o cabeção à volta do pescoço. - Não, tem razão, não parece tão quente. Só um bocadinho incómodo. Arranha-me o pescoço. Que estranho, padre, sem o seu cabeção nunca o tomaria por um padre, e muito menos por um monsenhor.

-Quando a governanta de D. Quixote lhe tirou a lança e arrancou a armadura também ninguém o teria tomado por um cavaleiro errante. Só por um velho louco. Dê cá o meu cabeção, Sancho.

- Deixe-me ser governador só por mais uns momentos. Talvez com este cabeção eu ainda consiga ouvir uma ou duas confissões.

O padre Quixote estendeu a mão para tirar o cabeção, quando uma voz autoritária falou:

-Mostrem-me os vossos papéis. - Era a Guarda. Deveria ter deixado o jipe em alguma curva da estrada e aproximara-se deles a pé. Era um homem encorpado e suava, devido a cansaço ou apreensão, porque os seus dedos brincavam com o coldre. Talvez receasse algum terrorista basco.

O padre Quixote disse:

-A minha carteira está no carro.

- Vamos buscá-la. E a sua também, padre - pediu ele a Sancho.

Sancho meteu a mão no bolso à procura do cartão de identidade.

-O que é esse objecto pesado no seu bolso?

A mão do guarda repousava na arma, enquanto Sancho tirava

um pequeno volume verde intitulado Teologia Moral. -Não é leitura proibida, guarda. -Eu não disse que era, padre.

- Não sou padre, guarda.

-Então por que usa o cabeção?

-Pedi-o emprestado por momentos ao meu amigo. Veja. Não

está preso. Está solto. O meu amigo é um monsenhor. - Um monsenhor?

-Sim, pode ver pelas meias.

O     guarda olhou para as peúgas de púrpura e perguntou: -Então, este livro é seu? E o cabeção? -Sim - disse o padre Quixote.

- Emprestou-os a este homem?

- Sim. Está a ver, eu estava com calor e ...

O guarda indicou-lhe o carro.

O padre Quixote abriu o porta-luvas. Durante uns momentos não viu o cartão de identidade. O guarda respirava pesadamente, por detrás dele. Então o padre Quixote reparou que, talvez impelido pelos solavancos de um "rocinante" cansado, o cartão escorregara para junto da capa vermelha de um livro que o alcaide ali deixara. Tirou o livro. O nome do autor estava escrito em letas grandes: LENINE.

Lenine - exclamou o guarda. - Este livro é seu?

-Não, não. Meu é a Teologia Moral.

-Este carro é seu?

- Sim.

- Mas o livro não?

-Pertence aqui ao meu amigo.

- O homem a quem emprestou o cabeção? - Sim.

O alcaide seguiu-os ao carro. A sua voz fez o guarda saltar. Era evidente que os nervos do homem não estavam em muito bom estado.

-Já nem é proibido ler Lenine agora, guarda. Este é um dos primeiros trabalhos, os seus ensaios sobre Marx e Engels. Escritos na sua maioria na respeitável cidade de Zurique. Poderemos dizer, uma pequena bomba de relógio na cidade dos banqueiros.

-Uma bomba de relógio! - exclamou o guarda.

- Estou a falar metaforicamente.

O     guarda colocou o livro cuidadosamente em cima do banco e afastou-se um pouco do carro. Disse para o padre Quixote.

- Não há nada no seu bilhete de identidade que indique ser um monsenhor.

-Ele viaja incógnito - disse o alcaide.

-Incógnito? Porquê incógnito?

-Ele tem aquele tipo de humildade que se encontra nos homens santos.

-Donde vêm?

-Ele esteve a rezar no túmulo do generalíssimo. É verdade?

-Bem, sij, eu fiz algumas orações.

O guarda voltou a examinar o cartão. Parecia mais convencido.

- Várias orações - disse o alcaide. - Uma só não chegaria.

- Que quer dizer "não chegaria"?

-Pode ser difícil que Deus as ouça. Eu não sou crente, mas, tanto quanto percebo, deve ser essa a razão por que houve tantas missas ditas por alma do generalíssimo. Em relação a um homem como ele, tem de se gritar para se ser ouvido.

-O senhor anda com companhias muito estranhas - disse o guarda para o padre Quixote.

- Oh, mas não deve ligar ao que ele diz. Ele é um homem de bom fundo.

- Para onde vão agora?

O alcaide foi o primeiro a falar.

- O monsenhor quer fazer outra oração pelo generalíssimo junto do dedo anelar de Santa Teresa. Sabe, o dedo está no convento, fora dos muros de Ávila. Ele quer fazer o que puder pelo generalíssimo.

-Você fala de mais. O seu cartão diz que você é o alcaide de El Toboso.

-Fui o alcaide, mas perdi o emprego. E o monsenhor foi promovido no dele.

-Onde ficaram a noite passada? -Em Madrid.

-Onde? Em que hotel?

O     padre Quixote olhou para o alcaide, pedindo ajuda. Este disse:

-Um pequeno local ... Não me lembro ... -Em que rua?

O     alcaide interrompeu firmemente: - O Hotel Palace.

- Isso não é um pequeno local.

-O tamanho é relativo - disse o alcaide. - O Hotel Palace é um local muito pequeno se o compararmos com o túmulo do generalíssimo.

Houve um silêncio constrangido, talvez um anjo tivesse passado por cima das suas cabeças.

Por fim o guarda disse:

-Fiquem aqui até eu voltar. Se tentarem sair daqui, magoar-se-ão.

-Que quer ele dizer com "magoar-se-ão"?

- Penso que ele está a ameaçar disparar se sairmos daqui. - Então ficamos.

- Ficamos.

-Por que mentiu acerca do hotel?

- A hesitação ainda tornaria as coisas piores.

- Mas eles podem verificar o registo.

-Podem não se dar ao trabalho, e, de qualquer maneira, levarão tempo.

-Para mim - disse o padre Quixote - é uma situação inexplicável. Em todos estes anos em El Toboso ...

- Foi só depois de sair da aldeia que o seu antepassado encontrou os moinhos. Veja! A nossa tarefa é mais fácil. Não temos à frente trinta ou quarenta moinhos, só temos dois.

O guarda gordo, que voltava com o seu companheiro, fazia realmente lembrar um moinho pela maneira como mexia as mãos enquanto explicava ao seu companheiro as estranhas contradições que encontrara. As palavras "monsenhor", "Lenine" e "peúgas de púrpura" chegaram até eles por entre a leve brisa da tarde.

O segundo guarda era muito mais magro e de modos decididos.

-Abram a mala - ordenou e ficou à espera, de mãos na cinta, enquanto o padre Quixote procurava a chave.

-Abra o saco.

Meteu a mão no saco do padre Quixote e tirou uma pechera de púrpura.

-Por que não usa isto? - perguntou.

-Dá muito nas vistas - respondeu o padre Quixote. -Tem medo de chamar a atenção? -Medo não ...

Mas o guarda magro já olhava pela janela de trás. - Que têm aquelas caixas?

-Vinho manchego.

-Estão bem fornecidos.

-Sim, claro. Se quiser um par delas ...

-Escreve aí - disse o guarda ao seu companheiro - que aquele que diz ser monsenhor nos ofereceu duas garrafas de vinho manchego. Deixa-me ver o bilhete de identidade dele. Já anotaste o número?

-Vou fazê-lo já.

-Deixe-me ver esse livro.

Folheou as páginas dos ensaios de Lenine.

- Vejo que estudou isto bem - disse. - Há muitas passagens assinaladas. Publicado em Moscovo, em espanhol. - E começou a ler: "A luta armada tem dois objectivos diferentes - em primeiro lugar, uma das metas é o assassínio de individualidades, chefes e subordinados no exército e na polícia [...]." São estes os seus objectivos, monsenhor? Se é de facto um monsenhor)

-Esse livro não é meu. Pertence ao meu amigo.

- Anda com estranhas companhias, monsenhor. Companhia perigosa.

Ali ficou a reflectir em silêncio. Ao padre Quixote parecia-lhe um juiz que pondera na alternativa a uma sentença de morte ou de prisão perpétua. O padre Quixote disse:

- Se quiser telefonar ao meu bispo... - mas parou a meio da frase, porque o bispo lembrar-se-ia com certeza da imprudente colecta na igreja para a sociedade In Vinculis.

-Tem a matrícula do carro? - perguntou o guarda magro ao guarda gordo.

- Oh, sim. Sim, claro. Tirei-a quando passámos por ele na estrada.

-Vão para Ávila? Onde ficarão lá?

O alcaide disse rapidamente: -No parador, se tiverem quartos. - Não fizeram reservas?

- Estamos de férias, guarda. Arriscamos à sorte.

- E eu tirei a matrícula do carro - disse o guarda.

O magro virou-se e o gordo seguiu-o. O padre Quixote pensou

que eles a andar pareciam dois patos: um pronto para a mesa e o outro necessitando de mais alimento. Contornaram a curva da estrada e desapareceram de vista - talvez o lago ficasse ali.

- E vamos esperar até que se afastem - disse o alcaide. -Que se passa connosco, Sancho? Por que é que eles estão desconfiados?

-Tem de admitir - disse o alcaide - que não é muito habitual um monsenhor emprestar o seu cabeção.

-Eu vou atrás deles e explico.

-Não, não, é melhor esperar aqui. Eles também estão à espera de ver se realmente vamos para Ávila.

-Então, para lhes mostrar que vamos, dirijamo-nos para Ávila.

-Penso que seria preferível evitar Ávila.

- Porquê?

- Porque já terão avisado a Guarda de lá.

De quê? Estamos inocentes. Não fazemos mal a ninguém.

-Fazemos mal à paz de espírito deles. Deixemo-los cansar-se

de esperar. Penso que devíamos abrir outra garrafa de vinho. Tornaram a assentar entre os restos da refeição, e o alcaide

começou a tirar uma rolha. Disse:

- Se eu conseguisse suspender a minha profunda descrença em Deus, ainda assim me custaria acreditar que ele tivesse desejado o nascimento daqueles dois guardas (para não falar de Hitler e do generalíssimo) ou mesmo, se quiser, de Estaline. Se ao menos os pobres pais deles tivessem podido usar anticonceptivos ...

- Isso teria sido um pecado grave, Sancho. Matar uma alma humana...

- O esperma tem alma? Quando um homem faz amor mata

milhões e milhões de espermatozóides, menos um. É uma sorte para o Céu haver tanto que se perde, ou então estaria superpovoado. -Mas é contra a lei da Natureza, Sancho. A rolha saiu sem barulho ... Era um vinho muito novo. -Sempre me senti confundido sobre a lei da Natureza – disse Sancho. - Que lei? Que Natureza?

-É a lei que foi colocada ao nascer dos nossos corações. A nossa consciência diz-nos quando desrespeitamos a lei.

-A minha não. Ou então nunca dei conta. Quem inventou a lei?

- Deus.

- Oh, sim, claro que ia dizer isso, mas deixe-me colocar a questão de outro modo. Qual foi o primeiro humano que nos ensinou que ela existia?

- Desde os primeiros dias do cristianismo ...

- Vamos lá, monsenhor. Encontra em São Paulo alguma coisa sobre a lei natural?

- Oh, Sancho, não me lembro, estou velho, mas tenho a certeza...

- A lei da Natureza, tal como a vejo, padre, é que um gato tem um desejo natural de matar. Tudo bem quanto ao gato, mas o mesmo não se passa em relação ao pássaro ou ao rato.

-A troça não é um argumento, Sancho.

- Oh, eu não renego a consciência em si, monsenhor. Não me sentiria à vontade durante algum tempo se matasse um homem sem razão admissível, mas sentir-me-ia mal o resto da minha vida se fosse pai de um filho não desejado.

-Temos de confiar na misericórdia de Deus.

-Ele não é sempre misericordioso, pois não, nem na África, nem na índia? E mesmo no nosso próprio país, se a criança tem de viver na pobreza, doença, talvez sem nenhuma oportunidade...

- A oportunidade da felicidade eterna - disse o padre Quixote.

-Oh, sim, e, de acordo com a sua Igreja, também a oportunidade da miséria eterna. Se as circunstâncias a levarem para o que vocês chamam "mal".

A referência ao Inferno fez o padre Quixote fechar os lábios.

"Eu creio, eu creio", dizia para si mesmo, "eu devo crer", mas

também pensava no silêncio de S. João, tal como o silêncio no

centro de um furacão. E seria o Diabo que lhe fazia lembrar como os Romanos, de acordo com Santo Agostinho, tinham um deus chamado Vaticano, "o deus das crianças que choram"? E disse: -Você já se serviu de um copo de vinho, e eu não. - Estenda o seu copo, então. Ainda há queijo? O padre Quixote procurou entre os restos. -Um homem pode controlar o seu apetite - disse. -O queijo?

- Não, não. Refiro-me ao apetite sexual.

-E esse controlo é natural? Talvez para si e para o papa, em Roma, mas para duas pessoas que se amam e vivem juntas e mal têm tempo para se saciar, para já não falar de um jovem moço com apetite...

Era o argumento da idade e ele não teve resposta convincente.

- Há meios naturais - disse, como já dissera uma centena de vezes, consciente unicamente das proporções da sua ignorância.

- Quem, senão os teólogos da moral, os chamaria de naturais? Tantos dias em cada mês para fazer amor, mas primeiro é preciso pôr o termómetro e tirar a temperatura ... Não é assim que funciona o desejo.

O padre Quixote lembrou-se de uma frase de um dos seus velhos livros que ele mais apreciava, A Cidade de Deus, de Agostinho:

"O movimento será frequentemente inoportuno contra a vontade e muitas vezes imóvel quando desejado, e, embora fervente no espírito, será frio no corpo. E assim, maravilhosamente, esta luxúria perde." Não era uma esperança viável.

- Suponho que o seu padre Heribert Jone diria que fazer amor em segurança com uma mulher depois da menopausa dela seria uma forma de masturbação.

- Talvez dissesse, pobre homem.

Pobre homem? E pensou: "Pelo menos, Santo Agostinho escreveu sobre sexo baseado na experiência, e não na teoria: ele foi um pecador e um santo, não foi um teórico da teologia moral; foi um poeta e até um humorista." Quando eram estudantes, muito se tinham rido perante uma passagem de A Cidade de Deus: "Há aqueles que desencadeiam o vento tão artificialmente que se poderia pensar que estão a cantar." Que teria o padre Heribert Jone pensado daquilo? Era difícil imaginar um teórico de teologia moral a evacuar pela manhã.

- Dê-me mais um pouco de queijo - pediu o padre Quixote. - Ouça, aí vem o jipe.

O jipe passou por eles vagarosamente. O guarda gordo ia ao volante e o magro olhava penetrantemente para eles, como se fosse um naturalista a observar dois insectos raros de que deveria lembrar-se para descrevê-los com precisão. O padre Quixote sentiu-se satisfeito por já ter de novo o seu colarinho clerical. Colocou mesmo o pé de fora para mostrar as peúgas de púrpura, que detestava.

-Conquistámos os moinhos - disse o alcaide. -Que moinhos?

-A Guarda anda ao sabor de qualquer vento. Estiveram com o generalíssimo. Estão com o poder agora. Se o meu Partido chegasse ao poder, também lá estariam, virando com o vento do Leste.

- Retomamos a estrada, agora que eles foram embora? -Ainda não. Quero ver se eles voltam.

- Se não quer que eles nos sigam para Ávila, que caminho ha

vemos de tomar?

- Lamento privá-lo do dedo anelar de Santa Teresa, mas penso que Segóvia seria melhor. Amanhã visitaremos em Salamanca um local mais santo do que aquele onde hoje rezou.

Sentiram a primeira aragem fria da noite. O alcaide virou-se,

inquieto, para a estrada. Não havia sinais da Guarda. E disse: -Nunca esteve apaixonado por uma mulher, padre? -Nunca. Não no aspecto a que se refere. -Nunca se sentiu tentado...? - Nunca.

-Estranho e desumano.

-Não é nem estranho nem desumano - respondeu o padre Quixote. Fui protegido, tal como muitos outros. É um pouco como o tabu do incesto. Não há muitos que sejam tentados a quebrá-lo.

- Não, mas há sempre tantas alternativas ao incesto. Por exemplo a irmã de um amigo:

-Também tive a minha alternativa. -Quem era ela?

-Uma rapariga chamada Martin. -Foi a sua Dulcineia?

- Sim, se quiser, mas viveu muito longe de El Toboso. Mesmo

assim, as suas cartas chegaram-me lá. Foram um grande conforto para mim quando as coisas estavam difíceis com o bispo. Há uma coisa que ela escreveu em que penso quase todos os dias: "Preferível a morrer pela espada é morrer pelas picadas de alfinete."

- O seu antepassado teria preferido a espada.

- De qualquer maneira, no fim, ele morreu por picadas de alfinete.

- Martin ... Pela maneira como pronuncia ela não era espanhola?

-Não, era normanda. Não me interprete mal. Morreu muitos anos antes de eu a conhecer e de começar a amá-la. Você, se calhar, conhece-a sob outro nome. Viveu em Lisieux. As Carmelitas, ali, tinham uma vocação especial para orar pelos padres. Eu espero, penso, que ela reza por mim.

- Oh, está a referir-se a Santa Teresa ... O nome Martin confundiu-me.

-Ainda bem que há um comunista que já ouviu falar dela. -Sabe que eu não fui sempre comunista.

-Bem, de qualquer forma, talvez um verdadeiro comunista seja uma espécie de padre, e, nesse caso, sem dúvida que ela também reza por si.

-Está frio aqui fora. Vamos andando.

Seguiram em silêncio durante um bocado pela estrada por onde tinham vindo. Não havia sinais do jipe. Passaram o cruzamento para Ávila e seguiram na direcção de Segóvia. Por fim, o alcaide disse:

-Então é essa a sua história de amor, padre? A minha é bastante diferente, excepto que a mulher, tal como a sua, já morreu. -Deus tenha em paz a sua alma - disse o padre Quixote. Foi um reflexo automático, mas, enquanto o silêncio cala sobre eles, rezou pelas almas do Purgatório.

- Você está mais perto de Deus do que eu. Reze por nós dois.

O grandioso aqueduto romano de Segóvia aparecia à frente deles, formando uma enorme sombra à luz do anoitecer.

Encontraram abrigo num pequeno albergue não muito longe da igreja de São Martinho -outra vez aquele nome-, o nome pelo qual ele sempre pensava nela. Ela parecia-lhe mais próxima assim do que nas suas vestes de santa ou sob o diminutivo de Florzinha. Chegava muitas vezes a dirigir-se-lhe, nas suas preces, por Menina Martin, como se o nome de família lhe pudesse chegar aos ouvidos através dos milhares de encantamentos que lhe eram dirigidos em todas as línguas pela luz das velas frente à imagem de gesso.

Já tinham bebido bastante na berma da estrada ,e nenhum estava com disposição para procurar um restaurante. Era como se duas mulheres mortas tivessem viajado com eles durante os últimos quilómetros. O padre Quixote estava satisfeito por ter um quarto só para si, nem que fosse por instantes. Parecia-lhe que a viagem se estendera por toda a Espanha, embora soubesse que não estavam a mais de duzentos quilómetros de La Mancha. A lentidão do "rocinante" tornava a distância irreal. Bem, o local mais distante de La Mancha até onde o seu antepassado conseguira chegar fora a cidade de Barcelona, e, no entanto, qualquer pessoa que tivesse lido a verdadeira história teria pensado que- D. Quixote cobrira a área imensa da Espanha. "Havia uma virtude na lentidão que nós perdemos." O "rocinante" tinha mais valor para um verdadeiro viajante do que um avião a jacto. Os aviões a jacto eram para os homens de negócios.

Antes de se deitar, o padre Quixote leu um pouco porque ainda se sentia perseguido pelo sonho. Como era seu hábito, abriu São Francisco de Sales ao acaso. Ainda antes do nascimento de Cristo, os homens tinham tomado as Sortes Virgilianae como uma espécie de horóscopo, e ele tinha mais fé em São Francisco do que em Virgílio, esse poeta um tanto derivativo. Aquilo que encontrou em O Amor de Deus surpreendeu-o um pouco, mas, mesmo assim, encorajou-o. "Entre as reflexões e resoluções é bom usar os colóquios e falar às vezes com Nosso Senhor, às vezes com os anjos, com os santos e connosco próprios, com o coração, com os pecadores e até com criaturas inanimadas [...]." Disse para o "rocinante": "Perdoa-me. Tenho puxado de mais por ti." E caiu num sono profundo.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE E SANCHO VISITAM OUTRO LOCAL SAGRADO

-Estou satisfeito - disse o alcaide, enquanto tomavam a estrada para Salamanca - por você ter, por fim, concordado em usar essa espécie de bibe... Como se chama isso?

- Uma pechera.

-Tive medo de que pudéssemos ir parar à prisão se aqueles guardas verificassem rapidamente em Ávila. -Porquê? Pelo quê?

-A razão é secundária, só o facto é que conta. Tive alguma experiência de prisão durante a Guerra Civil. Existiu sempre uma certa tensão na prisão, sabe. Os nossos amigos saíam e nunca mais voltavam.

-Mas agora... Agora já não há guerra. As coisas estão melhor.

- Sim. Talvez. Claro que na Espanha descobrimos que as melhores pessoas já estiveram presas. É possível que nunca ouvíssemos falar do seu admirável antepassado se Cervantes não tivesse, desse modo, servido a sua época por mais de uma vez. A prisão dá-nos mais oportunidades para pensar do que um mosteiro, onde os pobres diabos têm de acordar às horas menos misericordiosas para rezar. Na prisão nunca fui acordado antes das seis, e à noite as luzes, geralmente, apagavam-se às nove. Claro que os interrogatórios eram dolorosos, mas efectuavam-se a uma hora razoável. Nunca durante a siesta. O que interessa lembrar, monsenhor, é que, ao contrário do abade, o interrogador gosta de dormir até à sua hora habitual.

Em Arévalo viam-se nas paredes alguns cartazes rasgados de um circo ambulante. Um homem de calças apertadas exibia braços e pernas de um tamanho descomunal. Chamava-se El Tigre, Grande Lutador dos Pirenéus.

-Como a Espanha muda pouco! - disse o alcaide. - Na França nunca nos sentiríamos no mundo de Racine ou de Molière, nem em Londres nos sentiríamos perto da época de Shakespeare. É unicamente na Espanha e na Rússia que o tempo se mantém. Teremos as nossas aventuras na estrada, padre, tal como o seu antepassado teve. Já lutámos com moinhos e perdemos por uma semana ou duas uma aventura com El Tigre. Ele talvez provasse ser dócil quando desafiado, como o seu antepassado encontrou o leão.

- Mas eu não sou D. Quixote, Sancho. Teria medo de desafiar um homem desse tamanho.

- Você subestima-se, padre. A sua fé é a sua lança. Se El Tigre se atrevesse a dizer alguma coisa falsa acerca da sua amada Dulcineia...

-Mas você sabe que eu não tenho Dulcineia, Sancho.

- Eu estava a referir-me à menina Martin.

Outro cartaz por onde passaram exibia uma mulher tatuada, quase tão grande como El Tigre.

-A Espanha sempre gostou de monstros - disse Sancho, e deu uma das suas grandes risadas.

- O que faria, padre, se tivesse de estar presente no nascimento de um monstro com duas cabeças?

- Baptizá-lo-ia, claro. Que pergunta absurda.

- Mas estaria a agir erradamente, monsenhor. Lembre-se de que eu tenho andado a ler o padre Heribert Jone. Ele ensina que, quando se duvida de estar perante um monstro ou dois, se deve baptizar uma cabeça definitivamente e a outra condicionalmente.

- De facto, Sancho, eu não sou responsável pelo padre Jone. Parece que você o leu com mais atenção do que eu.

-E, no caso de um nascimento difícil, padre, quando aparece primeiro outra parte, deve baptizá-la para que no caso de um nascimento pelo traseiro ...

- Esta noite, Sancho, prometo começar a estudar Marx e Lenine, se você deixar o padre Jone em paz.

- Então comece com Marx e com o Manifesto Comunista. O Manifesto é pequeno, e Marx é muito melhor escritor do que Lenine.

Atravessaram o rio Tormes em direcção à velha cidade cinzenta de Salamanca, no começo da tarde. O padre Quixote ainda não estava a par do objectivo da peregrinação, mas sentia-se feliz na sua ignorância. Ali estava a cidade universitária, onde, quando rapaz, sonhara fazer os seus estudos. Aqui podia visitar a sala de conferências onde o grande São João da Cruz frequentara as aulas do teólogo Frei Luis de León, e Frei Luis poderia muito bem ter conhecido o seu antepassado se as viagens do Dom o tivessem levado a Salamanca. Olhando para o portão trabalhado da Universidade, com o papa cinzelado, rodeado pelos seus cardeais, as cabeças, dentro de medalhões, de todos os reis católicos, onde até Vénus e Hércules tinham tido lugar, já para não mencionar uma pequena rã, murmurou uma prece. A rã fora apontada por duas crianças, que em troca exigiam pagamento.

-Que disse, padre?

-Esta é uma cidade santa, Sancho.

- Sente-se em casa, aqui, não é? Aqui, na biblioteca, estão as primeiras edições de todos os seus livros de cavalaria, com capas de velho cabedal. Duvido de que algum estudante pegue num para lhe tirar o pó.

-Que sorte você teve em estudar aqui, Sancho.

- Sorte? Não estou bem certo disso. Sinto-me agora muito um estranho. Talvez devêssemos ter seguido para este, em direcção ao lar que não conheci. Em direcção ao futuro, não ao passado. Não para o lar que deixei.

- Você passou por estas portas para ir às aulas. Estou a tentar imaginar o jovem Sancho ...

- Não eram aulas do padre Heribert Jóne.

-Não havia ao menos um professor a que você estivesse preparado para ouvir?

- Oh, sim Nesse tempo eu ainda possuía uma meia-crença. Se acreditasse completamente, também não teria ouvido por muito tempo; mas havia um professor que acreditava em metade, e eu ouvi-o durante dois anos. Talvez me tivesse mantido mais tempo em Salamanca se ele cá tivesse ficado, mas foi para o exílio, tal como já o fizera anos antes. Ele não era comunista; duvido mesmo de que fosse socialista; mas ele não podia com o generalíssimo. Vamos então ver o que resta dele.

Numa pequena praça, por cima de concavidades de pedra negra e esverdeada, uma cabeça agressiva, com barba pontiaguda, apontava para os pórticos de uma pequena casa.

- Foi ali que ele morreu - disse Sancho -, num quarto lá em cima, sentado com um amigo frente a um aquecedor a carvão. O amigo viu de repente um dos chinelos começar a arder e Unamuno não se mexeu. Ainda se pode ver a marca do sapato queimado no soalho de madeira.

- Unamuno!

O Padre Quixote repetiu o nome e olhou com respeito para o rosto de pedra, cujos olhos, semicerrados, exprimiam o desafio e a arrogância do pensamento individual.

-Você sabe como ele gostava do seu antepassado e estudou o seu pensamento. Se tivesse vivido nessa época, talvez tivesse seguido o Dom em cima da mula chamada Dapple, em vez de Sancho. Muitos padres suspiraram de alívio quando souberam da sua morte. Talvez até o papa, em Roma, se tenha sentido melhor sem ele. E Franco também, claro, se fosse suficientemente inteligente para reconhecer a força do inimigo. Num certo sentido, ele também foi meu inimigo, porque me fez acreditar na Igreja durante vários anos, com aquela sua meia-crença de que por um tempo partilhei.

- E agora você crê completamente, não é? No profeta Marx. Já não precisa de pensar por si próprio. Isaías falou. Você está nas mãos da história futura. Que feliz deve ser com a sua crença. Só há uma coisa que sempre lhe faltará: a dignidade do desespero.

O padre Quixote falou com uma agressividade pouco habitual, ou seria, perguntou-se, inveja?

-Se creio completamente? - perguntou Sancho. - Às vezes duvido. O fantasma do meu professor persegue-me. Sonho que estou sentado na sua sala de aula e que ele nos está a ler um dos seus livros. Ouço-o dizer: "Há uma voz abafada, uma voz de incerteza que sussurra ao ouvido do crente. Quem sabe? Sem esta incerteza, como poderíamos viver?"

- Ele escreveu isso?

- Sim.

Voltaram para o "rocinante".

- Para onde vamos agora, Sancho?

- Vamos ao cemitério. Você vai achar o túmulo dele bastante diferente do do generalíssimo.

Estava em mau estado a estrada que conduzia ao cemitério, que ficava no outro extremo da cidade. Não era uma estrada boa para um carro funerário. O corpo, pensava o padre Quixote enquanto o "rocinante" gemia quando lhe metia as mudanças, devia ter sofrido bastantes balanços antes de chegar à terra calma; mas depressa descobriu que não havia espaço para um novo corpo; o espaço estava inteiramente ocupado pelos orgulhosos túmulos de gerações anteriores. No portão foi-lhes dado um número, como se estivessem no vestiário de um museu ou restaurante, e caminharam ao longo da parede branca onde tinham sido colocadas caixas de mortos até ao número trezentos e quarenta.

- Prefiro isto à montanha do generalíssimo - disse Sancho. - Quando estou sozinho, durno melhor numa pequena cama.

Enquanto se encaminhavam para o carro, Sancho perguntou:

-Você rezou?

- Claro.

- A mesma oração que rezou pelo generalíssimo? - Só há uma oração para qualquer morto. - Então di-la-ia por Estaline?

- Claro.

- E por Hitler?

- Há graus do mal, Sancho, e do bem. Podemos tentar discriminar entre os vivos, mas com os mortos a discriminação não é possível. Todos têm a mesma necessidade das nossas orações.

 

DE COMO EM SALAMANCA MONSENHOR QUIXOTE CONTINUOU OS SEUS ESTUDOS

O hotel onde se hospedaram em Salamanca ficava numa pequena e cinzenta rua lateral. Aos olhos do padre Quixote pareceu calmo e acolhedor. O seu conhecimento de hotéis era necessariamente limitado, mas havia várias coisas neste que lhe agradavam particularmente, e ele exprimiu o seu prazer a Sancho quando ficaram sós, sentados na cama de Sancho, no primeiro andar. O padre Quixote fora alojado no terceiro, "onde ficará mais sossegádo", dissera-lhe a gerente do hotel.

-A patroa foi verdadeiramente acolhedora - disse o padre Quixote -, ao contrário daquela pobre mulher em Madrid. E que grande quantidade de mulheres jovens e belas aqui há, para um hotel tão pequeno!

- Numa cidade universitária - disse Sancho - há sempre muitos clientes.

-E tudo isto está tão limpo! Reparou como fora de cada quarto, a caminho do terceiro andar, há uma pilha de roupa de-cama? Devem mudá-la todas as tardes depois da sesta. Gostei de apreciar, quando chegámos, a verdadeira atmosfera familiar, todo o pessoal sentado lá em baixo, a cear, com a patroa à cabeceira da mesa a servir a sopa. Na verdade, parecia mesmo uma mãe com as filhas.

- Ela ficou muito impressionada por conhecer um monsenhor.

-E reparou como ela se esqueceu de nos dar a ficha para preencher? Só se preocupou com o nosso conforto. Achei isso comovente.

Bateram à porta. Uma rapariga entrou com uma garrafa de champanhe dentro de um balde de gelo. Sorriu nervosamente para o padre Quixote e saiu rapidamente.

-Mandou vir isto, Sancho?

-Não, não. Não aprecio champanhe. Mas é hábito da casa. -Talvez devêssemos beber um pouco para mostrar que apreciamos a gentileza delas.

-Oh, isto será incluído na conta. E a gentileza delas também. -Não seja cínico, Sancho. Foi um sorriso muito terno o que a

rapariga nos deu. Um sorriso daqueles não se pode pagar. -Bem, então abra-a, se quiser. Não vai ser tão bom como o

vinho manchego. - Sancho começou uma longa luta entre a rolha e o polegar, de costas viradas para o padre Quixote para o não atingir com a rolha. O padre Quixote aproveitou a oportunidade para dar uma volta pelo quarto.

-Que boa ideia! Também aqui temos bacia para lavar os pés. -Que é isso de "bacia para lavar os pés"? O raio desta rolha não sai.

-Estou a ver um livrinho de Marx na sua cama. Empresta-mo para ler antes de me deitar?

-Claro. É o Manifesto Comunista, que lhe recomendei. Muito mais fácil de ler do que O Capital. Não devem querer que bebamos champanhe. O raio da rolha não sai. De qualquer modo, vamos pagá-la.

O padre Quixote sempre fora curioso. A sua maior tentação no confessionário era fazer perguntas desnecessárias e irrelevantes. Desta vez não resistiu a abrir um pequeno sobrescrito quadrado que estava na mesínha-de-cabeceira de Sancho - fizera-o lembrar-se da sua infância e das pequenas cartas que a mãe às vezes lhe deixava para ler antes de dormir.

Ouviu-se uma explosão, a rolha bateu contra a parede e uma torrente de champanhe saiu fora do copo. Sancho praguejou e voltou-se.

-Que raio está a fazer, padre?

O padre Quixote soprava para um balão em forma de chouri

ço. Apertou a ponta com os dedos.

-Como se mantém o ar lá dentro? - perguntou.

Devia haver uma espécie de bocal. Tornou a soprar e o balão

explodiu, menos ruidosamente, embora com um som mais agudo, do que a garrafa de champanhe.

-Oh, desculpe, Sancho. Não queria estragar-lhe o balão. Era

algum presente para uma criança?

-Não, padre, era um presente para a rapariga que trouxe o

champanhe. Não se preocupe. Eu tenho mais. - E acrescentou, com uma espécie de raiva: - Nunca viu um anticonceptivo? Não, suponho que nunca viu.

- Não percebo. Um anticonceptivo? Mas que se faz com uma coisa desse tamanho?

- Não seria desse tamanho se você lhe tivesse soprado. O padre Quixote deixou-se cair na cama de Sancho. Perguntou: - Para onde me trouxe, Sancho?

- Para uma casa que conheci quando era estudante. É maravilhoso como estes lugares sobrevivem. São muito mais estáveis do que as ditaduras, e a guerra não lhes toca, nem sequer uma guerra civil.

- Não devia ter-me trazido aqui. Um padre ...

- Não se preocupe. Não será incomodado. Já expliquei as coisas à dona da casa. Ela compreende.

- Mas porquê, Sancho, porquê?

- Pensei que era boa ideia evitarmos uma ficha de hotel, pelo menos esta noite. Aqueles guardas civis...

- E então escondemo-nos num bordel?

- Sim, pode colocar a questão dessa maneira.

Um som inesperado veio da cama. Era o som de riso contido. Sancho disse:

- Não me lembro de o ter ouvido rir antes, padre. Onde está a piada?

-Desculpe. Realmente não é correcto rir. Mas pensei: "Que diria o bispo se soubesse?" Um monsenhor num bordel. Bem, e por que não? Cristo misturou-se com publicanos e pecadores. Mesmo assim, é melhor ir para cima e fechar a minha porta à chave. Mas seja prudente, caro Sancho, seja prudente.

-É para isso que servem essas coisas a que chama balões. Por prudência. Suponho que o padre Heribert Jone diria que estou a acrescentar onanismo à fornicação.

-Por favor não me fale, Sancho, não me fale em tais coisas. São privadas, pertencem-lhe, a menos que, claro, você queira confessar-se.

- Que penitência me daria, padre, se eu fosse ter consigo pela manhã?

-É estranho, não é, mas tive pouca prática nesse domínio em El Toboso. Penso que talvez as pessoas tenham medo de me contar algo sério, porque me encontram diariamente na rua. Sabe, claro que não sabe, que eu não gosto nada do sabor de tomates. Mas suponha que o padre Heribert Jone escrevera que era pecado mortal comer tomates e que a velhota que vive ao meu lado vinha ter comigo à igreja para confessar que comera um tomate. Que penitência lhe daria eu? Como eu próprio não como tomates, nem sequer seria capaz de imaginar a gravidade da depravação. Claro que fora quebrada uma regra... uma regra... Não se podia evitar saber isso.

- Está a fugir à minha pergunta, padre. Que penitência...?

-Talvez um padre-nosso e uma ave-maria.

-Só uma?

- Uma dita como deve ser certamente que é igual a uma centena rezada sem pensar. Não vejo qual é a importância dos números. Não dirigimos um negócio como os gerentes das lojas.

Levantou-se pesadamente da cama.

-Onde vai, padre?

-Vou adormecer a ler o profeta Marx. Gostava de lhe desejar uma boa noite, Sancho, mas duvido de que passe aquilo a que eu chamaria uma boa noite.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE TEVE UM ENCONTRO INTERESSANTE EM VALHADOLID

Não havia dúvida de que Sancho se encontrava com uma disposição muito taciturna. Mostrou-se pouco disposto a fazer sugestões quanto à estrada que deveriam tomar em direcção a Salamanca. Parecia ter ficado azedo depois da longa noite que passara na casa da sua juventude. É sempre perigoso tentar recuperar na meia-idade uma passagem da juventude, e talvez ele também ressentisse a pouco habitual boa disposição mostrada pelo padre Quixote. Na ausência de uma razão mais convincente para seguirem outro caminho, o padre Quixote sugeriu que tomassem a estrada de Valhadolid para verem a casa onde o grande biógrafo Cervantes completara a vida do seu antepassado.

- A menos que - hesitou ele - você ache que poderemos encontrar mais moinhos naquela estrada.

- Eles têm coisas mais importantes em que pensar. -Em quê?

- Não leu o jornal de hoje? Um general foi atingido a tiro em Madrid.

-Por quem?

- Nos velhos tempos atirariam as culpas para cima dos comunistas. Graças a Deus que agora são sempre os Bascos e a ETA. -Deus tenha em paz a sua alma - disse o padre Quixote. -Não precisa de ter pena de um general.

- Não tenho pena dele. Nunca tenho pena dos mortos. Invejo-os.

A melancolia de Sancho continuou. Só falou uma vez durante os vinte quilómetros seguintes e foi para atacar o padre Quixote. -Por que não fala e diz o que pensa?

- O que penso sobre quê?

-A noite passada, claro.

- Oh, falarei na noite passada quando pararmos para almoçar. Estou muito satisfeito com o livro de Marx que me emprestou. Ele era um homem de bom coração, não era? Fiquei bastante surpreendido com algumas das coisas que ele escreveu. Nada de maçadoras coisas de economia.

-Não estou a falar de Marx. Estou a falar de mim.

- Você? Espero que tenha dormido bem.

-Sabe perfeitamente que não dormi.

-Meu caro Sancho, não me diga que ficou toda a noite acordado.

-Toda a noite, claro que não. Mas grande parte dela. Você

sabe muito bem o que eu tencionava fazer.

-Eu não sei nada.

- Eu disse-lhe claramente. Antes de ir deitar-se.

-Ah, Sancho, mas eu estou treinado para esquecer o que me

dizem.

-Não foi no confessionário.

- Não, mas é muito mais fácil quando se é padre tratar qualquer coisa que nos dizem como se fosse no confessionário. Nunca repito o que me contam, nem mesmo a mim próprio, se possível.

Sancho resmungou e calou-se. O padre Quixote apercebeu-se de uma sensação de desapontamento no seu companheiro e sentiu-se ligeiramente culpado.

Num restaurante chamado Valencia, na Plaza Mayor, sentado num pequeno pátio por detrás do bar, com um copo de vinho branco à frente, começou a recuperar a boa disposição. Gostara da visita que fizeram à casa de Cervantes e que custara cinquenta pesetas a cada um (perguntou-se se teria beneficiado de uma entrada grátis, caso tivesse declinado o nome na recepção). Alguma da mobília, pertencera de facto ao biógrafo; havia uma carta, escrita pelo su próprio punho, dirigida ao rei, pendurada na parede branca, lavada, que ele logo imaginou manchada de sangue naquela noite terrível em que o corpo a sangrar de Don Gaspar de Ezpelata fora levado para dentro e Cervantes fora preso sob falsa acusação de ter sido cúmplice no seu assassínio.

- Claro que saiu sob fiança - disse o padre Quixote para Sancho. - Mas pense em continuar com a vida do meu antepassado, com o peso daquela ameaça. Às vezes pergunto-me se ele estava a lembrar-se dessa noite quando contou como o seu antepassado, depois de se ter tornado governador da ilha, mandou que um jovem passasse a noite na prisão e este respondeu: "Você não tem poder suficiente para me fazer dormir na cadeia." Talvez estas tivessem sido as palavras que o velho Cervantes dirigiu ao magistrado: "Suponha que me manda para a prisão, me acorrenta e me fecha numa cela; mesmo assim, se eu não quiser dormir, você não tem o poder de me obrigar."

- Hoje, a Guarda Civil - disse Sancho - saberia responder a isso. Pô-lo-iam a dormir num instante. - E acrescentou com melancolia: - Eu também dormiria agora um bocado.

- Ah, mas o seu antepassado, Sancho, era um bom homem e mandou o jovem embora. E o magistrado fez o mesmo com Cervantes.

Agora, no pátio, enquanto a luz do Sol incidia sobre o seu copo de vinho branco, os pensamentos do padre Quixote regressaram a Marx. E disse:

-Sabe, penso que o meu antepassado se teria dado bem com Marx. Pobre Marx, também ele tinha os seus livros de cavalaria que pertenciam ao passado.

- Marx olhava para o futuro.

- Sim, mas lamentava o passado, o passado da sua imaginação. Ouça isto, Sancho. - E o padre Quixote tirou o Manifesto Comunista do bolso. - "A burguesia pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas [...]. Atirou com os mais celestiais êxtases de fervor religioso e nobre entusiasmo para as águas geladas do calculismo egoísta." Não ouve a voz do meu antepassado a lamentar os dias que já lá vão? Aprendi de cor as suas palavras quando era rapaz e ainda as lembro, embora vagamente. "Agora o ócio triunfa sobre o trabalho, o vício sobre a virtude, a presunção sobre o valor, e a teoria sobre a prática das armas, que só existiram e floresceram na idade dourada dos cavaleiros errantes. Amadis de Gaula, Palmeirim de Inglaterra, Rolando [...]." E ouça de novo o Manifesto Comunista. Não pode negar que este homem, Marx, tenha sido um verdadeiro seguidor do meu antepassado: "Todas as relações estabelecidas e rígidas, com as suas cadeias de velhos e veneráveis preconceitos e opiniões, são varridas, e as novas relações tornam-se antiquadas antes de ossificarem."

"Ele foi um verdadeiro profeta, Sancho. Chegou mesmo a prever o aparecimento de Estaline. "Tudo o que é sólido se desfaz no ar, tudo o que é sagrado, é profanado [...]."

Um homem que estava a almoçar sozinho no pequeno pátio parou com o garfo erguido a caminho da boca. Depois, como Sancho olhasse para ele, inclinou a cabeça e recomeçou rapidamente a comer. Sancho disse:

- Não devia ler tão alto, padre. Está a entoar como se estivesse na igreja.

- Há muitas palavras sagradas escritas que não estão na Bíblia. Estas palavras de Marx exigem entoação ... "Êxtases celestiais de fervor religioso (...), entusiasmo cavalheiresco."

- Franco está morto, padre, mas, mesmo assim, mostre um pouco de prudência. Aquele homem ali está a ouvir tudo o que diz.

-Claro que, como todos os profetas, Marx comete erros. Mesmo São Paulo os cometeu.

- Não gosto da pasta do homem. É uma espécie de pasta oficial. Consigo cheirar a polícia secreta a uma distância de trinta metros.

- Deixe-me ler-lhe o que penso ser o seu maior erro. A origem de todos os outros erros.

- Por amor de Deus, padre, se quer ler, leia em voz baixa.

Para fazer a vontade ao alcaide, o padre Quixote quase sussurrou as palavras, e devem ter parecido dois conspiradores.

-"O proletário não detém propriedade, a sua relação com a mulher e filhos já não tem nada em comum com as relações familiares burguesas; o moderno trabalho industrial tirou-lhe todos os traços de espírito nacional."

"Talvez isto parecesse verdade quando ele o escreveu, Sancho, mas o mundo já deu uma grande volta. Ouça mais isto: "O operário moderno, em vez de acompanhar o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais nas condições de existência da sua própria classe. Torna-se um indigente."

"Sabe, há alguns anos fui de férias com um amigo, um padre... Chamava-se ... Oh, como nos esquecemos dos nomes depois de um copo ou dois de vinho! Ele tinha uma paróquia na Costa Brava (foi quando o "rocinante" era muito novo) e eu vi os indigentes ingleses (como Marx lhes chamava) estendidos ao sol nas praias. Quanto a não possuírem espírito nacional, tinham obrigado os residentes a abrir o que eles chamavam "lojas de peixe e batata frita"; poderiam também ter levado o seu costume para outros locais, talvez para a França ou para Portugal.

Oh, os Ingleses - disse Sancho -, esqueça-os, nunca se conformam com nenhumas regras, nem sequer com as económicas.

O proletariado russo também já não é constituído por indigentes. O mundo aprendeu com Marx e com a Rússia. O proletariado russo tem férias pagas na Crimeia. É tão bom como na Costa Brava.

- O proletariado que eu vi na Costa Brava estava a pagar as suas próprias férias. Agora é preciso olhar para o Terceiro Mundo, Sancho, para encontrarmos indigentes. Mas isso não é devido ao triunfo do comunismo. Não acha que tudo isto teria acontecido sem o comunismo? Até já estava a acontecer quando Marx escreveu, mas ele nem reparou. Foi por isso que o comunismo teve de ser espalhado pela força, força não só contra a burguesia mas também contra o proletariado. Foi o humanismo, e não o comunismo, que transformou os pobres em burgueses, e por detrás do humanismo está sempre a sombra da religião, a religião de Cristo, tal como a religião de Marx. Hoje somos todos burgueses. Não me diga que Brejnev não é tão burguês como você e eu. Se o mundo inteiro se tornar burguês, será assim tão mau, excepto para os sonhadores como Marx e o meu antepassado?

- Você faz o mundo do futuro parecer-se com a utopia, padre.

- Oh, não, o humanismo e a religião ainda não acabaram quer com o nacionalismo quer com o imperialismo. São estes dois que causam as guerras. As guerras não acontecem unicamente por razões económicas, derivam das emoções dos homens, tal como o amor, da cor da pele e do sotaque da voz. E de recordações infelizes também. Por isso me alegra ter a memória curta de padre.

- Nunca pensei que se preocupasse com política.

- Não me "preocupo". Mas você já é meu amigo há muito tempo, Sancho, e eu quero compreendê-lo. O Capital sempre me desiludiu. Este livrinho é diferente. É o trabalho de um homem bom. Um homem tão bom como você e igualmente enganado.

- O tempo o provará.

- O tempo nunca prova nada. As nossas vidas são muito curtas.

O homem da pasta colocara o garfo e a faca no prato e estava a pedir a conta. Quando ela veio, pagou rapidamente sem a conferir.

- Bem - disse o padre Quixote -, agora você já pode respirar à vontade, Sancho, o homem já se foi embora.

- Esperemos que ele não volte com a polícia atrás. Olhou muito para o seu cabeção antes de sair.

O padre Quixote sentiu que finalmente podia erguer a voz e falar livremente.

- Claro - disse -, talvez porque leio muito São Francisco de Sales e São João da Cruz, acho a admiração ocasional de Marx pela burguesia muito artificial.

-Admiração pela burguesia? Que raio quer dizer?

-Claro que um economista deve ver as coisas em termos materiais, e eu admito que me preocupo mais com o lado espiritual.

- Mas ele detestava os burgueses.

-Oh! Sabemos que o ódio é muitas vezes a outra face do amor. Talvez, pobre homem, tivesse sido rejeitado por aquilo que amava. Ouça isto, Sancho: "A burguesia, durante a sua dominação de escassos cem anos, enviou forças de produção mais massivas e colossais do que todas as gerações anteriores juntas. A sujeição das forças da Natureza ao homem, a maquinaria, a aplicação da química à indústria e à agricultura, navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, a preparação de enormes campos para o cultivo, canalização de rios, populações inteiras forçadas a abandonar as suas terras [...]." Isto quase nos faz sentir orgulho de sermos burgueses, não é? Que magnífico governador colonial Marx teria dado! Se, ao menos, a Espanha tivesse tido um homem assim, talvez nunca tivéssemos perdido o nosso império. Pobre homem, teve de sujeitar-se a um alojamento superlotado numa zona pobre de Londres e a pedir dinheiro aos amigos.

-Você vê Marx de um estranho ângulo, monsenhor.

-Tinha alguns preconceitos em relação a ele, embora ele defendesse os conventos, mas nunca tinha lido este livro. Uma primeira leitura é algo especial, como um primeiro amor. Quem me dera descobrir agora São Paulo por acaso e lê-lo pela primeira vez. Se ao menos você tentasse a experiência, Sancho, com um dos meus livros de cavalaria...

- Acharia o seu gosto tão absurdo como Cervantes achou o do seu antepassado.

Foi uma refeição agradável apesar da discussão, e, depois de uma segunda garrafa de vinho, concordaram em tomar a estrada em direcção a Leão, rumo ao território basco, ou então seguirem para oeste, em direcção à Galiza. Saíram de Valença de braço dado, mas, quando se dirigiam para o local onde o "rocinante" estava estacionado, o padre Quixote sentiu uma pressão no braço.

-Que é, Sancho?

-O polícia secreto. Vem a seguir-nos. Não diga nada. Volte na primeira esquina que encontrarmos.

-Mas o "rocinante" está ao cimo da rua.

-Ele quer tirar a matrícula do carro.

-Como é que sabe que ele é um polícia secreto?

-Pela pasta - respondeu Sancho, e, de facto, depois de terem virado a primeira esquina e o padre Quixote ter olhado para

trás, o homem ainda lá estava, carregando a terrível insígnia da sua profissão.

- Como vamos escapar-lhe?

- Entramos num bar e pedimos uma bebida. Ele ficará à porta. Saímos pelas traseiras e tomamos avanço sobre ele. Depois dirigimo-nos para o "rocinante".

- Suponha que não há porta traseira? -Teremos de ir então a outro bar.

Não havia porta traseira. Sancho bebeu um brande e o padre Quixote, prudentemente, tomou um café. Quando saíram, o homem ainda lá estava na rua, alguns metros abaixo, a olhar para uma montra.

- Dá muito nas vistas para um polícia secreto - disse o padre Quixote, enquanto subiam a rua em direcção a outro bar.

- É um dos truques deles - respondeu Sancho. - Quer pôr-nos nervosos..

Conduziu o padre Quixote para outro bar e mandou vir um segundo brande.

- Se tomo mais café - disse o padre Quixote -, não vou dormir esta noite.

-Beba uma água tónica.

- O que é isso?

-É uma espécie de água mineral com um pouco de quinino lá dentro.

-Não tem álcool?

-Não, não. - O brande estava a tornar Sancho agressivo. - Apetece-me bater no tipo, mas ele deve estar armado. ,

-Esta água tónica é deliciosa - disse o padre Quixote. - Por que é que não experimentei antes? Quase que poderia ter deixado de beber vinho. Acha que posso comprá-la em El Toboso?

- Não sei. Duvido. Se ele tem a arma na pasta, talvez eu consiga derrubá-lo antes de ele a agarrar.

- Sabe, acho que vou pedir outra garrafa.

-Eu vou à procura da porta traseira - disse Sancho.

O padre Quixote viu-se sozinho no bar. Era a hora da sesta, e uma ventoinha pendurada no tecto não tornava a sala mais fresca; em intervalos regulares vinha uma lufada de ar fresco e depois um bafo de grande calor, em contraste. O padre Quixote bebeu a sua tónica e mandou vir rapidamente uma terceira, de forma a bebê-la antes de Sancho voltar.

Uma voz por detrás dele sussurrou-lhe:

- Monsenhor.

Ele voltou-se.

Era o homem da pasta, um homem pequeno e magro, de fato e gravata pretos, a condizer com a pasta que transportava. Tinha olhos escuros e penetrantes, por detrás de óculos de aros metálicos, e os lábios estavam cerrados, e poderia muito bem ter sido, pensava o padre Quixote, o arauto de um mau destino, talvez o próprio grande inquisidor. Se ao menos Sancho voltasse...

-Que quer? - perguntou o padre Quixote, numa voz que desejou soasse forte e confiante, mas as bolhas de água tónica traíram-no e ele soluçou.

-Quero falar-lhe a sós.

-Estou sozinho.

O homem apontou para as costas do empregado do bar e disse:

- Isto é sério. É impossível falar-lhe.aqui. Por favor, siga por aquela porta das traseiras.

Mas havia duas portas: desejou saber por que porta teria saído Sancho.

-Para a direita - dirigiu o homem.

O padre Quixote obedeceu. Havia uma pequena passagem e mais duas portas.

-Por aqui. A primeira.

O padre Quixote descobriu que se encontrava num quarto de banho. Pelo espelho ao lado do lavatório, viu que o seu captor mexia no fecho da pasta. Para tirar uma pistola? Iria apanhar com um tiro na nuca? Rapidamente, muito rapidamente, começou a rezar entredentes o acto de contrição: "Oh, Meu Deus, estou arrependido e peço perdão por todos os meus pei... [...]."

-Monsenhor.

-Sim, amigo - respondeu o padre Quixote para a imagem que via pelo espelho.

Se ia levar com um tiro, preferia que fosse na nuca, já que o rosto é de certa forma a imagem espelhada de Deus. -Quero que ouça a minha confissão.

O padre Quixote soluçou. A porta abriu-se e Sancho espreitou. -Padre Quixote! - exclamou ele.

- Vá-se embora - disse o padre Quixote. - Estou a ouvir uma confissão.

Voltou-se para o estranho e tentou recuperar a dignidade que lhe conferia a roupa.

-Este não é o sítio indicado. Por que me escolheu a mim, e não ao seu próprio padre?

-Acabo de enterrá-lo - respondeu o homem. - Sou o coveiro.

Abriu a pasta e tirou uma grande pega de metal.

O padre Quixote disse:

-Não estou na minha diocese. Não tenho poderes aqui. -Um monsenhor está livre dessas regras. Quando o vi no restaurante, pensei: "Aqui está a minha oportunidade."

O padre Quixote disse:

-Sou um monsenhor muito recente. Tem a certeza quanto às regras?

-De qualquer maneira, numa emergência, qualquer padre ... Isto é uma emergência.

-Mas há muitos padres em Valhadolid. Vá a uma igreja... -Vi nos seus olhos que você era um padre que entenderia. -Entender o quê?

O homem começou rapidamente a balbuciar o acto de contrição, mas, pelo menos, disse as palavras certas. O padre Quixote viu-se sem saber que fazer. Nunca ouvira uma confissão em tais ambientes. Sempre se sentara naquele cubículo, como um caixão, para... Foi quase automaticamente que se refugiou no único cubículo livre e se sentou numa sanita.

O estranho teria ajoelhado, mas o padre Quixote impediu-o, porque o chão não estava limpo.

-Não se ajoelhe      disse. - Deixe-se ficar onde está.

O homem empunhava a grande pega de metal. Disse: -Pequei e peço o perdão de Deus através de si, padre, quero dizer, monsenhor.

-Neste cubículo não sou monsenhor - respondeu o padre Quixote. - Não há hierarquias num confessionário. Que foi que você fez?

-Roubei esta pega e outra igual.

-Então tem de devolvê-las.

-O proprietário morreu. Enterrei-o esta manhã.

O padre Quixote recolheu-se, como é costume, com os olhos cobertos pela mão para manter a confidencialidade, mas tinha a imagem de um rosto escuro e manhoso bem clara no seu espírito. Era um padre que gostava de ouvir uma confissão rápida nas palavras simples e abstractas que os penitentes habitualmente utilizam. Eles poucas vezes requeriam mais do que uma simples questão: "Quantas vezes...?" "Cometi adultério, negligenciei os meus deveres da Páscoa, pequei contra a castidade..." Ele não estava habituado a pecados sob a forma de pegas de metal. Uma pega daquelas com certeza que não tinha grande valor.

- Você devia restituir a pega aos herdeiros.

- O padre Gonzalez não deixou herdeiros.

-Mas que são essas pegas? Por que as roubou?

- Cobrei-me delas e depois tirei-as do caixão para poder voltar a utilizá-las.

- Faz isso muitas vezes? - O padre Quixote não conseguiu

conter a curiosidade, que era a sua fraqueza no confessionário. - Oh, é uma prática comum. Todos os meus concorrentes o fazem.

O padre Quixote pensou no que o padre Heribert Jone teria escrito sobre este caso. Colocá-lo-ia com certeza entre os pecados contra a justiça, categoria a que o adultério também pertence; mas parecia ao padre Quixote que, no caso de roubo, a gravidade do pecado tinha de ser julgada pelo valor do objecto roubado - se fosse equivalente a um sétimo do salário mensal do proprietário, tinha de ser tratado seriamente. Se o proprietário fosse um milionário, não haveria pecado algum, pelo menos contra a justiça. Quanto ganharia mensalmente o padre Gonzalez, e seria ele o verdadeiro proprietário, já que só entrara na posse das pegas depois de morto? Com certeza que um caixão só pertencia à terra onde era colocado.

Perguntou, mais para ganhar tempo para pensar do que para outra coisa:

-Confessou das outras vezes?

- Não. Já lhe disse, monsenhor, que é uma prática corrente na minha profissão. É verdade que cobramos pegas de metal extra, mas isso é só uma espécie de aluguer. Até o enterro acabar.

- Então, por que se está a confessar a mim, agora?

- Talvez eu seja um homem demasiado escrupuloso, monsenhor, mas pareceu diferente quando enterrei o padre Gonzalez. Ele teria ficado tão orgulhoso com as pegas de metal. Sabe, isso provava como ele era estimado na paróquia, porque, naturalmente, foi a paróquia que pagou.

- E você contribuiu?

-Oh, sim. Claro. Eu gostava muito do padre.Gonzalez. -Então, de certo modo, você está a roubar-se a si próprio? -Roubar, não, monsenhor.

-Já lhe disse para não me chamar monsenhor. Você diz que não roubou, que é prática dos seus colegas tirar estas pegas ... - Sim.

-Então, que é que lhe pesa na consciência?

O homem fez um gesto que poderia ter sido de confusão. O padre Quixote pensou: "Quantas vezes já me senti culpado como ele sem saber porquê?"

Às vezes invejava a certeza daqueles homens que conseguiam estabelecer regras: o padre Heribert Jone, o seu bispo, até o papa. Ele, ele vivia no nevoeiro, incapaz de ver o caminho, tropeçando .. Disse:

- Não se preocupe com coisas tão insignificantes. Vá para casa e durma bem. Talvez tenha roubado ... Pensa que Deus se preocupa assim tanto com uma coisa tão pequena como essa? Ele criou o universo: nós não sabemos quantas estrelas e planetas e mundos. Você roubou duas pegas de metal: não se sinta importante. Diga que está arrependido e vá embora.

O homem disse:

-Mas, por favor, a minha absolvição.

O padre Quixote murmurou, contrariado, a fórmula desnecessária. O homem voltou a colocar a pega na pasta, fechou-a e fez uma espécie de reverência na direcção do padre Quixote antes de sair. O padre Quixote continuou sentado na sanita, com uma sensação de exaustão e imperfeição. Pensou: "Eu não disse as palavras devidas. Por que é que nunca encontro as palavras certas? O homem precisava de ajuda, e eu recitei uma fórmula. Deus me perdoe. Será que alguém também me recitará uma fórmula quando eu morrer?"

Passado um bocado, regressou ao bar. Sancho estava à espera dele, a beber outro brande.

-Que raio esteve você a fazer?

- A exercer a minha profissão - respondeu o padre Quixote. -Num quarto de banho?

-Num quarto de banho, numa prisão, numa igreja. Qual é a diferença?

- Livrou-se do homem?

O padre Quixote disse:

- Suponho que sim. Estou um pouco cansado, Sancho. Sei que isso é extravagante, mas poderei pedir mais uma garrafa de água tónica?

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE PRESENCIOU UM ESTRANHO ESPECTÁCULO

A estada em Valhadolid foi inesperadamente prolongada pela firme relutância do "rocinante" em meter-se de novo a caminho, de maneira que o deixaram numa garagem para reparações.

-Não é caso para admiração - disse o padre Quixote. - Ontem

o pobrezinho percorreu uma distância enorme.

-Uma distância enorme? Estamos a menos de cento e vinte quilómetros de Salamanca.

-O seu limite habitual é de dez quilómetros, quando tenho de ir buscar vinho à cooperativa.

- Ah! Então ainda bem que decidimos não ir a Roma ou a Moscovo. Se quer saber o que penso, acho que o estraga com mimos. Os automóveis, tal como as mulheres, não deveriam ser mimados.

- Mas ele é muito velho, Sancho. Provavelmente é mais velho ós. Afinal, sem a ajuda dele... Conseguiríamos ter vindo a Salamanca?

Como tinham de esperar pelo veredicto sobre o "rocinante" atè de manhã, Sancho sugeriu que fossem ao cinema. O padre Quixote concordou, depois de uma ligeira hesitação. Houvera uma época em que as peças de teatro tinham sido proibidas aos padres, e, embora esta regulamentação nunca tivesse sido aplicada ao cinema, que na altura nem sequer existia, permanecia no espírito do padre Quixote uma sensação de perigo em relação aos espectáculos.

-Nunca fui ao cinema - disse para Sancho.

-Se a sua missão é converter o mundo, deve conhecê-lo - respondeu Sancho.

- Vai pensar que sou um hipócrita - perguntou o padre Qui

xote - se retirar o meu colarinho clerical?

-Todas as cores são iguais no escuro - disse Sancho -, mas

faça como quiser.

Pensando duas vezes, o padre Quixote não retirou a pechera.

Parecia-lhe mais honesto. Não queria ser acusado de hipocrisia.

Foram a um pequeno cinema que anunciava um filme chamado A Oração de Uma Virgem. O título atraíra tanto o padre Quixote

quanto desagradara a Sancho, que previa uma noite enfadonha e piedosa. Contudo, enganou-se. O filme não era uma obra-prima, mas, mesmo assim, achou-o muito agradável, embora receasse a reacção do padre Quixote, porque o filme não era virginal, e ele deveria ter reparado num letreiro cá fora que tinha um "S".

De facto, a oração de uma menina eram as aventuras de um jovem atraente com uma série de raparigas, aventuras que acabavam sempre com a monotonia da repetição, na cama. Nesta situação, a imagem tornava-se confusa e era um tanto difícil distinguir a quem pertenciam as pernas, já que as partes privadas que distinguem um homem de uma mulher eram habilmente evitadas pela câmara. Era o homem ou a rapariga que estava por cima? Que partes estavam a ser beijadas e por quem? Nestas ocasiões não havia diálogo, para ajudar o espectador; só o som da respiração ofegante e às vezes um gemido ou um grito, que tanto podiam ser masculinos como femininos. Para tornar as coisas mais difíceis, as cenas tinham sido filmadas para um écran pequeno (talvez para serem vistas em casa), e as imagens tornavam-se ainda mais abstractas quando ampliadas para o grande écran. Até o entusiasmo de Sancho arrefeceu; teria preferido pornografia mais descarada, e era difícil identificar-se com o actor principal, que tinha cabelo preto brilhante e suíças. Sancho pensou reconhecer o modelo que aparecia frequentemente na televisão a publicitar um desodorizante masculino.

O fim do filme era um anticlímace. O jovem apaixonara-se profundamente pela única rapariga que resistira às suas investidas. Havia casamento pela igreja, um beijo casto no altar quando o noivo enfiava a aliança no dedo da noiva e depois uma passagem rápida para uma confusão de pernas na cama - ocorreu a Sancho que, por uma questão de economia, eles se tinham limitado a repetir uma das primeiras cenas com as pernas anónimas, ou teria sido um rasgo de ironia inteligente por parte do realizador? As luzes acenderam-se e o padre Quixote disse:

- Que interessante! É então a isto que eles chamam um filme!

-Este não foi um bom exemplo.

- Tanto exercício que eles fazem! Os autores devem ficar exaustos.

- Eles estavam só a fingir, padre.

-Que, quer dizer com "fingir"? Que é que eles estavam a fingir?

- A fingir que faziam amor.

- Oh, então é assim que se faz. Sempre imaginei que fosse muito mais simples e agradável. Eles pareciam sofrer tanto. Pelo menos a julgar pelos sons que emitiam.

- Estavam a fingir (pois isto é representação, padre) que sentiam um prazer enorme.

-Não davam a ideia de estar a ter prazer, ou talvez fossem maus actores. Só parecia que sofriam. E não vi balões, Sancho.

-Tive medo de que se sentisse chocado, padre, mas foi você que escolheu o filme.

-Sim. Pelo título. Mas não entendo o que é que o título tinha a ver com o filme.

-Bem, suponho que a Oração de Uma Virgem é para encontrar um homem atraente para amar.

- Outra vez essa palavra "amor". Não acredito que a menina Martin rezasse por algo semelhante. Mas, mesmo assim, impressionou-me o silêncio dos espectadores. Levaram-no tão a sério que eu estava com receio de rir.

-Teve vontade de rir?

- Sim. Era difícil não fazê-lo. Mas não gosto de ofender as pessoas que levam uma coisa a sério. O riso não é um argumento. E pode ser um abuso estúpido. Talvez eles vejam as coisas de uma maneira, diferente da minha. Talvez tivessem visto beleza. Mesmo assim, por vezes tive vontade de que algum deles risse ... mesmo você, Sancho, para me poder rir também. Mas tive medo de quebrar o silêncio total. Há algo de sagrado no silêncio. Ficaria magoado se na igreja alguém se risse quando eu levantasse a hóstia.

- Suponha que toda a gente na igreja começava a rir?

- Ah, isso seria diferente. Então eu pensaria (podia estar enganado, claro) que estava a ouvir um riso de alegria. Um riso solitário é muitas vezes um riso de superioridade.

Nessa noite, na cama, o padre Quixote abriu o seu volume de São Francisco de Sales. Ainda estava preocupado com as cenas amorosas do filme: preocupado por não ter conseguido sentir qualquer emoção, excepto. uma sensação de divertimento. Sempre acreditara que o amor humano era do mesmo género do amor de Deus, ainda que um reflexo muito mais ténue e fraco; mas aqueles exercícios que lhe tinham provocado o riso, aqueles gemidos e gritos ... "Serei eu", perguntou-se, "incapaz de sentir amor humano? Porque, se sou, então também devo ser incapaz de sentir amor por Deus-." Começou a recear que o seu espírito pudesse ficar indelevelmente marcado por esta terrível interrogação. Precisava desesperadamente de conforto e voltou-se para o que Sancho chamava os seus livros de cavalaria, mas não pôde deixar de lembrar-se de que D. Quixote, no seu leito de morte, os rejeitara. Talvez também ele, quando o fim chegasse...

Abriu O Amor de Deus ao acaso, mas as Sortes Virgilianae não o reconfortaram. Tentou três vezes, e então abriu-o numa passagem que parecia ter relevância em relação ao que vira no cinema. Não que isso o tornasse mais feliz, porque o fazia pensar que talvez ainda tivesse menos capacidade de amar do que um bocado de ferro. "O ferro identifica-se tanto com o diamante que, logo que é tocado pela virtude, se vira para ele, começa a mover-se e a tremer e junta-se então ao diamante, tentando por todos os meios manter-se unido a ele." E a seguir vinha uma pergunta que lhe trespassava o coração. "E, então, não vemos todas as partes do amor vivo representadas nesta pedra sem vida?" Oh, sim, ele vira muita convulsão, pensava, mas não experimentara o amor vivo.

A terrível interrogação ainda lhe ocupava o espírito quando partiram no dia seguinte. O "rocinante" ficara positivamente nervoso depois da estada na garagem e não se queixou quando a velocidade aumentou para quarenta e até para quarenta e cinco quilómetros por hora, velocidade essa atingida unicamente porque o padre Quixote se encontrava profundamente embrenhado nos seus infelizes pensamentos.

-Que se passa? - perguntou-lhe Sancho. - Hoje você é de novo o monsenhor de semblante triste.

-Às vezes penso, Deus me perdoe - disse o padre Quixote -, que fui especialmente favorecido porque nunca me senti perturbado por desejos sexuais.

-Nem mesmo em sonhos?

-Não, nem mesmo em sonhos.

-É um homem com sorte.

"Serei?", questionou-se. "Ou serei o homem mais infeliz?" Não podia contar ao amigo que tinha ao lado o que estava a pensar - a pergunta que fazia a si mesmo: "Como poderei rezar para resistir ao mal, se nem sequer sou tentado por ele?" Não há virtude em tal oração. Sentiu-se completamente só, no silêncio. Era como se a área do confessionário e os segredos que guardava se tivessem estendido para lá do confessionário e do penitente, para incluírem o carro onde estava sentado e até o volante sob as suas mãos, enquanto seguiam em direcção a Leão. Orou em silêncio: "Oh, Deus, faz-me sentir humano, deixa-me experimentar a tentação. Salva-me da indiferença."

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE SE CONFRONTOU COM A JUSTIÇA

A caminho de Leão, pararam num campo, na margem de um rio perto da aldeia de Mansilla de Ias Mulas, porque o alcaide dizia que tinha muita sede. Deixaram o carro à sombra, num pequeno passadiço, mas de facto a sede de Sancho era um subterfúgio para romper com o silêncio do padre Quixote, que já lhe estava a afectar os nervos. Talvez uma bebida desprendesse a língua do padre Quixote; e colocou no rio uma garrafa do vinho manchego, presa por um fio, despertando o interesse de algumas vacas na outra margem. Quando voltou, encontrou o padre Quixote a olhar soturnamente para as peúgas e não conseguiu suportar mais o silêncio. E disse: .

- Por amor de Deus, se fez o voto do silêncio, vá para um mosteiro. Há os Cartuxos em Burgos e os Trapistas em Osera. Escolha, monsenhor, o caminho a seguir.

- Desculpe, Sancho - disse o padre Quixote. - São só os meus pensamentos.

- Oh, suponho que os seus pensamentos são demasiado altos e espirituais para a compreensão de um marxista. -Não, não.

- Lembre-se, padre, de que o meu antepassado foi um bom governante. D. Quixote, com todos os seus livros de cavalaria e coragem, não teria governado tão bem. Que santa confusão, quero mesmo dizer santa confusão, ele teria feito desta ilha. O meu antepassado estava para governar como Trotsky para comandar um exército. Trotsky não tinha experiência e, no entanto, bateu os generais brancos. Oh, nós somos materialistas, eu sei, camponeses e marxistas. Mas não nos despreze por isso.

Quando é que já o desprezei, Sancho?

- Oh, bem, graças a Deus que já recomeçou a falar. Vamos abrir a garrafa.

O vinho que pescou do rio não estava muito fresco, mas ele sentia-se ansioso por completar acura. Beberam dois copos em silêncio agora amigável.

-Ainda há queijo, padre?

-Acho que há um bocadinho. Vou ver.

O padre Quixote demorava-se. Talvez estivesse com dificuldade de encontrar o queijo. O alcaide levantou-se impacientemente, quando o padre Quixote apareceu sob o passadiço, com um olhar de ansiedade justificada, já que vinha acompanhado por um guarda. Por uma razão que o alcaide não entendeu, ele falava rapidamente em latim para o companheiro, e o guarda também tinha um olhar de ansiedade. O padre Quixote disse:

-Esto mihi in Deum protectorem et in locum refugii.

- O bispo parece ser estrangeiro - disse o guarda para o alcaide.

-Ele não é bispo. É monsenhor.

-Aquele carro debaixo do passadiço é seu? - É do monsenhor.

- Disse-lhe que devia tê-lo fechado. Até tinha deixado a chave na ignição. Não é seguro fazer isso. Não nesta zona.

-Isto parece muito calmo. Até as vacas ...

-Não viram um homem com um buraco de bala na perna direita das calças e um bigode falso? Embora eu pense que ele se deve ter desfeito do bigode.

- Não, não. Nada parecido.

-Scio cui credidi - disse o padre Quixote.

-Italiano? - perguntou o guarda. - O papa é um grande papa.

-Claro que é.

-Não trazia nem chapéu nem casaco. Tinha uma camisa às riscas.

-Não passou aqui ninguém assim.

-Arranjou aquele buraco de bala em Zamora. Escapou por pouco. Um dos nossos. Há quanto tempo aqui estão? - Há cerca de um quarto de hora. - Vindos donde?

- Valhadolid.

-Não passaram por ninguém na estrada? - Não.

-Ele não pode ter passado muito além daqui, -Que é que ele fez?

-Assaltou um banco em Benavente. Disparou sobre o caixa. Fugiu num Honda. Encontrado abandonado, quer dizer, o Honda, a cinco quilómetros. É por Isso que não é seguro deixar o carro aberto com a chave na ignição.

- Laquens contritus est - disse o padre Quixote - et nos liberati sumus.

-Que está a dizer o monsenhor?

O alcaide respondeu:

-Também não sou um linguista.

-Vão para Leão?

- Sim.

-Mantenham os olhos abertos e não dêem boleia a estranhos. Cumprimentou o monsenhor com cortesia e um certo cuidado e deixou-os.

-Por que lhe falou em latim? - perguntou o alcaide. - Pareceu-me acertado.

-Mas porquê ...?

- Quis, se possível, evitar mentir - respondeu o padre Quixote. - Mesmo que fosse uma mentira oficiosa, e não maliciosa, para utilizar a diferença estabelecida pelo padre Heribert Jone.

- E por que é que tinha de mentir?

- Fui confrontado subitamente com a possibilidade ... digamos, com a tentação.

O alcaide suspirou. O silêncio do padre Quixote fora, sem dúvida, quebrado pelo vinho e ele quase o lamentou. Perguntou: -Encontrou algum queijo?

- Encontrei um bom bocado, mas dei-lho. -Ao guarda? Por que raio ...

-Não, não, ao homem de quem ele andava à procura.

-Quer dizer que viu o homem?

- Oh, sim, por isso é que estava com medo das perguntas. -Por amor de Deus, onde é que ele está agora?

-Na mala do carro. Fui descuidado em lá ter deixado a chave... Alguém podia ter arrancado com ele. Oh, bem, o perigo já passou.

Durante um longo momento, o alcaide ficou sem fala. Depois disse:

- E o que fez com o vinho?

- Pusemo-lo no banco traseiro do carro.

-Graças a Deus - disse o alcaide - que mudei a matrícula em Valhadolid.

-Que quer dizer, Sancho?

-Aqueles guardas civis comunicaram a matrícula em Ávila. A esta hora já estarão a verificar por computador.

-Mas os meus documentos ...

-Já tem uns novos. Claro que levou tempo. Por isso nos demorámos tanto tempo em Valhadolid. O garagista é um velho amigo e membro do Partido.

        - Sancho, Sancho, quantos anos na prisão já arranjámos?

-Nem metade do que arranjaremos por esconder um fugitivo. Que o levou a...?

-Ele pediu-me que o ajudasse. Disse que era falsamente acusado e tomado por outro homem.

-Com um buraco de bala nas calças? Um ladrão de banco?

- Bem, também o seu líder, Estaline, o foi. Afinal, tudo depende do motivo. Se Estaline tivesse vindo confessar-se e explicasse honestamente as suas razões, eu talvez lhe mandasse rezar o rosário dez vezes, embora nunca tenha dado penitência tão severa em El Toboso. Lembra-se do que o meu antepassado disse aos escravos das galés, antes de libertá-los: "Há um Deus no Céu, que não deixa de punir os maus nem de compensar os bons, e não é correcto que homens honrados sejam os carrascos de outros." É uma boa doutrina cristã, Sancho. Dez rosários é uma penitência dura. Não somos nem carrascos nem inquisidores. O Bom Samaritano não fez nenhum inquérito ao passado do homem ferido, o homem que caíra entre os ladrões, antes de ajudá-lo. Talvez ele fosse um publicano e os ladrões estivessem a recuperar o que ele lhes tirara.

-Enquanto está a falar, monsenhor, o nosso homem ferido é capaz de estar a morrer sufocado.

Apressaram-se em direcção ao carro e encontraram o homem num estado bastante penoso. O bigode falso, solto devido ao suor, pendia do canto do lábio superior direito. Tinha sorte em ser pequeno e em ter conseguido dobrar-se facilmente para caber no pequeno espaço do "rocinante".

Mesmo assim, queixou-se bastante quando o soltaram.

- Julguei que ia morrer. Por que se demoraram tanto?

-Fizemos o que era melhor para si disse o padre Quixote, quase com as mesmas palavras que o seu antepassado empregara. - Não somos os seus juízes, mas a sua consciência deve dizer-lhe que a ingratidão é um pecado ignóbil.

-Já fizemos de mais por si - disse Sancho. - Agora, vá-se embora. A Guarda foi por ali. Aconselho-o a ir pelos campos até poder enfiar-se na cidade.

-Como posso ir pelos campos com estes sapatos, que têm as solas rotas, e me posso enfiar na cidade com um buraco nas calças?

- Você assaltou um banco. Pode comprar um par de sapatos novos.

-Quem disse que eu assaltei um banco? - Puxou para fora os bolsos vazios. - Revistem-me - disse. - Vocês que se dizem cristãos.

-Eu não - disse o alcaide. - Eu sou marxista.

-Tenho uma dor nas costas. Não posso nem dar um passo. -Tenho aspirinas no carro - disse o padre Quixote.

Abriu o carro e procurou no porta-luvas. Atrás dele ouviu uma tosse.

-Também tenho pastilhas para a tosse - disse. - Deve haver corrente de ar no porta-bagagens.

Voltou-se com o remédio na mão e viu, com surpresa, que o estranho empunhava um revólver.

-Não deve apontar uma coisa dessas - disse. - É perigoso. -Que número calça? - perguntou o homem. -Não sei bem. Penso que é trinta e nove. -E você?

- Quarenta - disse Sancho.

-Dê-me os seus - ordenou o homem ao padre Quixote. -Estão quase tão estragados como os seus.

- Não discuta. Também lhe levaria as calças se me servissem.

Agora, voltem-se os dois. Se algum se mexe, mato-os.

O padre Quixote disse:

- Não percebo por que é que assaltou um banco, se foi isso que fez, com um par de sapatos rotos.

-Calcei-os por engano. É essa a razão. Podem voltar-se agora. Metam-se no carro os dois. Eu sento-me atrás e, se pararem por qualquer motivo, disparo.

-Para onde quer ir? - perguntou Sancho. - Deixam-me em Leão,ao pé da catedral.

O padre Quixote fez inversão de marcha, com alguma dificuldade.

-Você é um mau condutor - disse- o homem.

-É o "rocinante". Não gosta de andar para trás. Receio que não tenha muito espaço aí atrás, com todo esse vinho. Quer que pare e ponha o vinho na mala?

- Não. Continue.

-Que aconteceu ao seu Honda? O guarda disse que o abandonou.

-Fiquei sem gasolina. Esqueci-me de encher o depósito.

- O par de sapatos errado, sem gasolina... Parece que Deus esteve contra os seus planos.

-Não pode ir mais depressa?

- Não. O "rocinante" é muito velho. Pode ir-se abaixo aos quarenta. - Olhou pelo espelho retrovisor e viu o revólver apontado. - Preferia que se descontraísse e pousasse a arma - disse. Às vezes, o "rocinante" porta-se como um camelo. Se começa a abanar muito, essa coisa pode disparar. Com certeza que você não gostaria de ficar com a morte de outro homem na consciência.

-Que quer dizer? Outro homem?

- O pobre tipo do banco que você matou. -Não o matei. Nem lhe acertei.

- Deus deve ter trabalhado bastante - disse o padre Quixote

- para impedi-lo de cometer um pecado mortal.

-De qualquer maneira, não era um banco. Era um armazém de self-service.

-O guarda disse um banco.

- Oh, eles diriam que era um banco, mesmo que fosse um lavatório público. Sentem-se mais importantes.

Quando entraram na cidade, o padre Quixote reparou que a pistola desaparecia cada vez que paravam nos semáforos. Talvez pudesse saltar do carro, mas isso colocaria Sancho em perigo, e, se ele desse oportunidade ao homem de utilizar mais violência, estaria a partilhar o seu pecado. De qualquer modo, não queria ser um instrumento da justiça humana. Foi um grande alivio não encontrarem um guarda ou carabineiro antes de chegarem junto à catedral.

- Deixem-me dar uma vista de olhos para ver se é seguro - disse.

O padre Quixote abriu a porta.

-Está tudo bem - disse. - Pode ir.

- Se está a mentir - avisou o homem -, a primeira bala é para si.

- O seu bigode caiu - disse-lhe o padre Quixote. - Está agarrado,oo seu sapato, quer dizer, ao meu sapato. Virarh o homem desaparecer.

-Pelo menos não me assaltou, como os escravos das galés assaltaram o meu antepassado - disse o padre Quixote.

-Fique no carro enquanto vou comprar-lhe um par de sapatos. Calça trinta e nove?

- Importa-se que vamos primeiro à catedral? Foi um grande esforço manter o "rocinante" sem balançar. Se nos tivesse morto, o homem ver-se-ia num grande sarilho. Gostaria de sentar-me um bocado ao fresco e rezar. Não me demoro.

-Pensei que vinha a rezar enquanto guiava.

Oh, sim, vim, mas eram orações pelo pobre homem. Agora

agradecer a Deus pela nossa segurança.

Sentia o frio da pedra através das peúgas de púrpura e lamentou não ter escolhido em Salamanca umas de lã. Sentiu-se um anão ao pé da grande altura da nave e dos raios de luz que entravam por cento e vinte janelas, que poderiam muito bem ser o olhar de Deus. Sentiu-se uma criatura infinitamente pequena colocada numa placa de microscópio. Dirigiu-se a um altar lateral e ajoelhou. Não sabia que dizer. Quando pensou "Obrigado", as palavras pareceram tão ocas como um eco, não sentia gratidão por ter escapado, talvez conseguisse sentir alguma gratidão se tivesse sido atingido por alguma bala - "isto é o fim". Teriam levado o seu corpo para El Toboso, estaria de novo em casa e não nesta peregrinação absurda - para quê? Ou para onde?

Pareceu uma perda de tempo tentar rezar e não o conseguir; portanto, desistiu e tentou esvaziar o pensamento, não pensar em nada, ficar em completo silêncio; e, passado um longo bocado, sentiu-se a um passo do nada. Depois apercebeu-se de que tinha o dedo grande do pé esquerdo mais frio do que o outro e pensou: "Tenho um buraco na meia. As meias -por que não insistira na lã? - não valiam o preço pago naquele grande estabelecimento patrocinado pela Opus Dei.

Fez o sinal da Cruz e reuniu-se a Sancho. -Já rezou? - perguntou o alcaide.

-Não rezei nada.

Deixaram o "rocinante" estacionado e caminharam ao acaso pelas ruas. Mesmo à saída de Burgo Nuevo encontraram uma sapataria. O chão quente queimava os pés do padre Quixote, e o buraco donde saía o dedo grande esquerdo alargara-se consideravelmente. Era uma loja pequena e o dono olhou-lhe para os pés com estupefacção.

-Quero um par de sapatos pretos, tamanho trinta e nove disse o padre Quixote.

-Sim, sim, por favor, sente-se.

O homem trouxe um par e ajoelhou-se aos pés dele. O padre

Quixote pensou: "Sou como a estátua de São Pedro, em Roma.

Será que ele me vai beijar o dedo?" E riu-se.

-Onde está a piada? - perguntou o alcaide. -Oh, nada, nada. Um pensamento.

-Verá que o cabedal destes sapatos é muito macio, Excelência.

-Não sou um bispo - disse o padre Quixote -, só um monsenhor, e Deus me perdoe por isso.

O homem calçou o sapato por cima da peúga boa. -Se o monsenhor quiser dar alguns passos ...

-Já dei mais do que alguns passos em Leão. Os vossos pavimentos são duros.

- Claro que devem ter sido, monsenhor, a caminhar sem sapatos.

- Estes sapatos são confortáveis. Levo-os.

- Quer que os embrulhe ou leva-os calçados, monsenhor?

- Claro que os levo calçados. Pensa que quero andar descalço?

-Pensei que talvez ... Bem, pensei que fosse uma penitência um sacrifício.

-Não, não, não sou nenhum santo.

Voltou a sentar-se e deixou o homem enfiar-lhe o outro sapato sobre o dedo saliente, que ajustou delicadamente e até com um, toque de respeito, metendo-o dentro da meia. Era óbvio que o contacto com o dedo do pé de um monsenhor era uma experiência nova para ele.

-E os outros sapatos? O monsenhor não os quer embrulhados?

-Que outros sapatos?

-Aqueles que o monsenhor largou.

- Não os larguei. Eles é que me largaram a mim - disse o padre Quixote. - Nem sequer sei onde estão. A esta hora, espero que muito longe daqui. De qualquer maneira eram sapatos velhos. Não tão bons como estes.

O     homem acompanhou-os à porta da loja. Pediu: -Se me quiser dar a bênção, monsenhor ...

O padre Quixote desenhou o sinal da Cruz e rezou. Na rua comentou:

-O homem foi respeitador de mais para o meu gosto.

-As circunstâncias não foram normais, e é provável que ele se lembre de nós.

Quando regressavam ao "rocinante", passaram por um posto de correios. O padre Quixote parou e disse: - Sinto-me ansioso.

-E tem razão. Se aquele malandro que você salvou é apanhado e fala...

-Não estava a pensar nele. Estava a pensar em Teresa. Pressinto que há qualquer coisa de errado. Já estamos fora há tanto tempo.

-Quatro dias.

-Não é possível. Parece pelo menos um mês. Por favor, deixe-me telefonar.

-Vá lá, mas seja rápido. Quanto mais depressa sairmos de Leão, melhor.

Teresa atendeu o telefone. Antes que ele tivesse tempo de falar, ela disse furiosa:

- O padre Herrera não está e não sei quando volta. - E desligou.

-Passa-se qualquer coisa - disse o padre Quixote. Voltou a ligar e desta vez falou logo.

-Aqui é o padre Quixote, Teresa.

-Deus seja louvado - disse Teresa. - Onde está?

- Leão. -Onde é isso?

O     alcaide disse:

- Não devia ter-lhe dito. -Que está aí a fazer, padre? - A telefonar-te.

- Padre, o bispo está num estado terrível.

-Está doente, pobre homem? -Está com uma santa raiva. - Que aconteceu, Teresa?

-Telefonou duas vezes ao padre Herrera. Estiveram meia hora ao telefone sem pensar em despesas.

- A falar de quê, Teresa?

- De si, claro. Disseram que está louco. Que devia ser fechado

num manicómio a fim de salvar a honra da Igreja.

- Mas porquê? Porquê?

- A Guarda tem andado à sua procura em Ávila. -Não estive lá.

-Eles sabem isso. Dizem que está em Valhadolid. E dizem que

para escapar trocou de roupas com o alcaide vermelho.

- Não é verdade.

-Pensam que anda metido com aqueles bascos loucos.

-Como sabes isso tudo, Teresa?

- Pensa que eu os deixava servir-se do seu telefone sem deixar

a porta da cozinha aberta?

- Deixa-me falar com o padre Herrera.

-Não diga nada - disse Sancho. - Nada.

- O padre Herrera não está. Saiu ontem antes do amanhecer

para falar com o bispo. O bispo está de tal maneira que não me

admirava se ele telefonasse ao próprio Santo Padre por sua causa.

O padre Herrera disse-me que foi um erro terrível o Santo Padre tê-lo nomeado monsenhor. Eu disse-lhe que isso era blasfémia. O Santo Padre não pode cometer erros.

- Oh, sim, pode, Teresa, pequenos erros. Penso que é melhor

ir já para casa.

- Não pode fazer isso, padre. Os guardas apanhá-lo-ão com certeza e acabará os seus dias num manicómio.

-Mas eu não sou mais louco do que o padre Herrera. Ou do que o bispo.

-Eles dirão que é. Eu ouvi o padre Herrera dizer para o bispo: "Ele tem de ser posto fora da circulação. Pela Igreja." Deixe-se ficar longe, padre.

- Adeus, Teresa. -Mantém-se longe?

-Vou pensar nisso, Teresa.

O padre Quixote disse para o alcaide:

-A Guarda contactou com o bispo e o bispo com o padre Herrera. Pensam que estou louco.

-Bem, não há mal nisso. Também pensaram que o seu antepassado era louco. Talvez o padre Herrera se porte como o cónego e comece a queimar os seus livros.

-Deus o impeça. Tenho de ir para casa, Sancho.

-Isso provaria que está de facto louco. Temos de sair daqui rapidamente, mas não para El Toboso. Não devia ter dito a Teresa que estava em Leão.

- A boca dela é como um cadeado. Não se preocupe. Pois se ela nunca me disse nada sobre os bifes de cavalo...

-Temos muito com que nos preocupar. Estes computadores trabalham muito rapidamente. Poderão ficar momentaneamente baralhados com a troca da matrículas, mas, se os guardas forneceram os seus elementos à máquina, temos sarilho. Terá de tirar novamente o colarinho clerical e as peúgas. Suponho que não há muitos monsenhores a conduzir um velho Fiat 600.

Enquanto se dirigiam rapidamente para o local onde tinham estacionado o "rocinante", Sancho disse:

- Penso que era melhor deixar o carro e apanhar um autocarro. -Não fizemos nada de mal.

- O perigo não é o que fizemos, mas o que eles pensam que fizemos. Mesmo que já não seja crime ler Marx, ainda o é esconder um assaltante de um banco.

-Ele não era assaltante de banco.

-Então, um assaltante de uma loja de self-service; foi crime tê-lo escondido na mala do carro.

-Eu não deixo o "rocinante".

Tinham chegado ao carro e ele colocou protectoramente a mão no guarda-lamas do carro, onde sentiu uma amolgadela causada por ter ido uma vez contra o carro do homem do talho, em El Toboso.

Conhece a peça de Shakespeare Henrique VIII?

-Não, prefiro, de longe, Lope de Vega.

-Não gostaria que o "rocinante" me condenasse como o cardeal Wolsey condenou o seu rei:

Se eu tivesse servido o meu Deus com metade do zelo com que servi o meu rei, ele não me teria deixado nu com os meus inimigos.

" Vê esta marca na tampa do motor, Sancho? Foi há sete anos, e ele sofreu por minha-culpa. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.

Seguiram para Leão o mais rapidamente possível, mas, à medida que a estrada subia, o "rocinante" mostrava sinais de fadiga: As montanhas de Leão erguiam-se à sua frente, cinzentas, rochosas, recortadas. O alcaide disse:

- Você disse-me que queria silêncio. Chegou a altura de escolher entre o silêncio de Burgos e o silêncio de Osera.

-Burgos é um local de associações desagradáveis.

- Bravo, monsenhor! Pensei que a memória do quartel-general do generalíssimo pudesse atraí-lo.

-Prefiro o silêncio da paz ao silêncio que vem depois do êxito; esse silêncio é como o silêncio permanente da morte. E não de uma boa morte. Mas você, Sancho ... a ideia de um mosteiro não lhe repugna?

-Por que repugnaria? Eles podem defender-nos contra males piores, tal como escreveu Marx. Além disso, um mosteiro tem para nós a mesma vantagem que um bordel. Se nos demorarmos muito. Não é preciso preencher formulários.

-Então, Osera, Sancho, e os Trapistas.

-Pelo menos, ali teremos bons vinhos galegos. O nosso manchego em breve será escasso.

A refeição constou só de vinho, já que o queijo se fora com o ladrão e o chouriço acabara. Estavam a cerca de mil metros de altitude e tinham toda a paisagem abaixo deles, uma brisa refrescava o ar. Acabaram rapidamente a garrafa e Sancho abriu outra.

-Será sensato? - perguntou o padre Quixote.

-A sensatez não é absoluta - disse Sancho. - A sensatez é relativa a uma situação. Também varia com os casos individuais. Para mim é sensato beber outra meia-garrafa numa situação como a nossa, em que não temos comida. Para si, claro, pode ser disparate. Neste caso, quando a altura chegar, terei de julgar o que é sensato fazer com a sua parte da garrafa.

-É improvável que essa altura chegue - disse o padre Quixote. - Devo impedi-lo de beber mais do que a sua conta. - Serviu-se de mais um copo e acrescentou: - Não percebo como é que a falta de comida pode afectar a sensatez da nossa escolha.

-É óbvio - disse Sancho. - O vinho contém açúcar, e o açúcar é um alimento valioso.

- Nesse caso, se tivéssemos vinho suficiente, nunca morreríamos à fome.

-Exactamente; mas podemos sempre encontrar uma falha num argumento lógico, mesmo nos de São Tomás de Aquino. Se substituíssemos -a comida pelo vinho, teríamos de ficar onde estamos e poderíamos ficar sem vinho.

-Por que teríamos de ficar?

- Porque nenhum de nós seria capaz de conduzir.

-Verdade. O pensamento lógico conduz por vezes a situações absurdas. Há uma santa popular em La Mancha que perdeu a virgindade quando foi raptada por um mouro na sua própria cozinha, estando ele desarmado e ela com uma faca na mão.

- Suponho que ela queria ser violada.

-Não, não, o seu raciocínio foi bastante lógico. A sua virgindade era menos importante do que a salvação do mouro. Se o matasse, naquele momento estava a tirar-lhe qualquer hipótese de salvação. Uma história absurda, mas, no entanto, maravilhosa.

-O vinho está a torná-lo falador, monsenhor. Não sei como vai aguentar o silêncio no mosteiro.

-Não teremos de cumprir o silêncio, Sancho, e os monges estão autorizados a falar com os seus hóspedes.

- Como esta garrafa se esvaziou rapidamente! Lembra-se, parece que foi há tanto tempo, de como tentou explicar-me a Trindade?

- Sim. E cometi aquele erro terrível. Deixei que meia-garrafa representasse o Espírito Santo.

- Não cometeremos esse erro outra vez - disse Sancho, enquanto abria outra garrafa.

O padre Quixote não protestou e, no entanto, o vinho irritava-lhe o cérebro. Estava pronto a ofender-se logo que surgisse a oportunidade.

-Estou satisfeito - disse o alcaide - por você, ao contrário do seu antepassado, apreciar o vinho. D. Quixote parava frequentemente numa estalagem, tinha pelo menos quatro aventuras numa estalagem, mas nunca ouvimos dizer que bebesse sequer um copo. Tal como nós, fez muitas refeições de queijo ao ar livre, mas nunca bebeu um copo de bom vinho manchego para empurrá-lo. Como companheiro de viagem não me teria servido. Graças a Deus, apesar dos seus santos livros, você bebe bem quando quer.

-Por que é que você está sempre a atirar-me com o meu antepassado?

-Só estava a comparar.

- Aproveita todas as oportunidades para falar dele, diz que os meus livros de santos são como os livros de cavalaria dele, compara as nossas pequenas aventuras com as dele. Aqueles guardas eram guardas, e não moinhos. Eu sou o padre Quixote, e não D. Quixote. Eu existo. As minhas aventuras são minhas, e não dele. Eu sigo o meu caminho, o meu caminho, e não o dele. Tenho vontade própria. Não estou amarrado a um antepassado que mo reu há quatrocentos anos.

- Desculpe, padre. Julguei que tinha orgulho no seu antepassado. Não quis ofendê-lo.

- Oh, eu sei o que pensa. Pensa que o meu Deus é uma ilusão como os moinhos. Mas Ele existe, só que eu não me limito acreditá-lo. Sinto-o.

- E ele é mole ou duro?

O padre Quixote começou a erguer-se, com raiva.

- Não, não, padre. Desculpe. Não quis brincar. Respeito OOtanto a sua crença como você respeita a minha. Só que há uma diferença. Eu sei que Marx e Lenine existiram. E você só acredita.

- Digo-lhe que não é só uma questão de crença. Eu sinto

- Padre, juntos temos passado uns dias agradáveis. Esta é terceira garrafa. Ergo o meu copo em honra da Trindade. Não , de recusar-se a brindar comigo.

O padre Quixote olhou carrancudo para o copo.

-Não, não posso recusar, mas ...

Bebeu e desta vez sentiu a raiva dissipar-se, e, em lugar desta começou a crescer-lhe uma grande tristeza. Disse:

- Pensa que estou ligeiramente bêbedo, Sancho?

Sancho viu-lhe lágrimas nos olhos.

- Padre, a nossa amizade...

-Claro, claro, nada pode alterar isso, Sancho. Só queria usar as palavras certas.

-Para quê?

-E a sabedoria também. Sou um homem muito ignorante. Havia tanta coisa que eu devia ensinar em El Toboso e que não percebi. Nunca pensei nisso duas vezes. A Trindade. A lei natural, o pecado mortal. Ensinei-lhes palavras dos livros. Nunca perguntei a mim mesmo: "Acredito nestas coisas?" Ia para casa e lia os meus santos. Eles escreveram sobre amor. Isso eu entendia. As outras coisas não pareciam importantes.

-Não percebo o que o preocupa, padre.

- Você preocupa-me, Sancho. Quatro dias na sua companhia preocupam-me. Lembro-me de ter rido quando soprei aquele balão. Aquele filme... Por que não me senti chocado? Por que não saí? El Toboso parece estar a cem anos de distância. Não sinto nada, Sancho. Há uma tontura...

-Você está ligeiramente bêbedo, padre, é só isso. -Estes são os sintomas habituais?

-Falar muito ... tonturas... Sim.

- E tristeza?

-Algumas pessoas ficam assim. Outras ficam alegres e barulhentas.

-Terei de limitar-me à água tónica. Não me sinto em condições de guiar.

-Eu posso tomar o volante.

-O "rocinante" não gosta de mãos estranhas. Gostaria de dormir um pouco antes de continuarmos. Se disse alguma coisa que o ofendesse, Sancho, perdoe-me. Foi o vinho que falou, e não eu.

-Não disse nada de mal. Deite-se um bocado, padre, que eu vigio. O vodka deu-me uma boa cabeça.

O padre Quixote encontrou um bocado de relva macia entre as rochas e deitou-nos, mas o sono não veio logo a seguir. Disse:

- O padre Heribert Jone considerava a embriaguez mais grave do que a gula. Não entendo isso. Uma ligeira embriaguez juntou-nos, Sancho. Ajuda à amizade. A gula é um vício solitário. Uma forma de onanismo. E, no entanto, lembro-me de o padre Jone escrever que é só um pecado venial. "Mesmo que ocorra o vómito." São estas as palavras dele.

- Eu não aceitaria o padre Jone como uma autoridade em moral, do mesmo modo que não aceitaria Trotsky como uma autoridade em comunismo.

- É verdade que as pessoas fazem coisas horríveis quando estão bêbedas?

- Talvez, às vezes, se perderem o controlo. Mas nem sempre é mau. Às vezes é bom perder o controlo. No amor, por exemplo. - Como aquelas pessoas no filme?

-Bem, sim, talvez.

- Talvez, se tivessem bebido um pouco mais, começassem a soprar balões.

Veio um som estranho das pedras. O alcaide levou um certo

tempo a perceber que era riso. O padre Quixote disse:

-Você é o meu teólogo moral, Sancho.

Passado um momento o riso fora substituído por um leve ressonar.

Fora um dia cansativo; ambos tinham bebido bem, e, passados momentos, o alcaide acabou por adormecer. Teve um sonho: um daqueles sonhos que se têm antes de acordar e cujos pormenores nos ficam obsessivamente na memória. Ele andava à procura do padre Quixote, que se perdera. O alcaide levava as peúgas de púrpura do padre Quixote e estava preocupado porque o caminho montanhoso por onde o padre Quixote seguira era muito áspero para um homem descalço. Ele devia ter passado por ali, e havia rastos de sangue. Tentou gritar várias vezes o nome do padre Quixote, mas o som morria-lhe sempre na garganta. De repente, saiu para um grande pavimento de mármore e ali em frente erguia-se,a igreja de El Toboso, donde saíam sons estranhos. Entrou na igreja, com as peúgas de púrpura, e no cimo do altar, como uma imagem sagrada, estava o padre Quixote, e toda a congregação ria e o padre Quixote chorava. O alcaide acordou com uma sensação de desastre, final e irreparável. Anoitecera. E estava sozinho.

Foi, tal como no sonho, à procura.do padre Quixote e ficou aliviado por encontrá-lo. O padre Quixote mudara-se um pouco para baixo, talvez para ficar mais perto do "rocinante", talvez porque o chão fosse mais macio. Tirara as meias e com elas e com a ajuda dos sapatos fizera uma almofada para a cabeça. Dormia profundamente.

O alcaide não teve coragem para acordá-lo. Já era muito tarde para tomar a estrada em direcção a Osera e o alcaide achou que era melhor voltar a Leão.

Voltou para o seu poiso, fora das vistas do padre Quixote, e logo adormeceu sem ser perturbado por qualquer sonho.

Quando acordou, o Sol estava alto e ele já não se encontrava à; sombra. Era tempo de partir, pensou, e de procurar um café na aldeia mais próxima. Precisava de café. O vodka nunca lhe causav problemas, mas o vinho em excesso perturbava-o, como um reformista enfadonho teria perturbado o Partido. Foi acordar o padre Quixote, mas este não estava no sítio onde o deixara, embora as meias e os sapatos que lhe tinham servido de almofada ainda lá estivessem.

Chamou o padre Quixote várias vezes, sem efeito, e o som da sua voz recordou-lhe o sonho. Sentou-se e esperou, pensando que o padre Quixote provavelmente teria ido livrar-se do vinho a um local privado. Mas não demoraria dez minutos... nenhuma bexiga poderia aguentar tanto líquido; talvez estivessem a andar em círculos e o padre Quixote, depois de se aliviar, tivesse ido procurar o amigo ao local onde dormira. Portanto, o alcaide voltou lá, com as meias de púrpura na mão, e de novo se recordou, com inquietação, do sonho. O padre Quixote não era visível.

O alcaide pensou: "Talvez tenha ido ver se o `rocinante está bem." No dia anterior, por indicação do alcaide, o padre Quixote conduzira o "rocinante" um pouco para fora da estrada, para trás de uma duna de areia, ali deixada depois de alguma reparação da estrada, para que não fosse visível a algum guarda que por ali passasse.

O padre Quixote não estava ao pé do carro, mas o "rocinante" tinha companhia: um Renault estava estacionado ao seu lado e um jovem casal, de jeans, estava sentado nas rochas, com as mochilas ao lado, que enchiam com chávenas e pratos, utilizados, segundo parecia pelos restos, para um bom pequeno-almoço.

Só de olhar, o alcaide sentiu-se faminto. Eles pareciam amigáveis e cumprimentaram-no com um sorriso, e ele perguntou, com alguma hesitação:

- Será que podiam dispensar-me um pão?

Olharam para ele, nervosamente, pensou. Apercebeu-se de que não fizera a barba e de que ainda trazia as peúgas na mão. Também viu que eram estrangeiros. O homem disse, com sotaque americano:

-Não percebo muito de espanhol. Parlez-vous Français?

- Un petit peu - disse o alcaide -, três petit peu.

- Comme moi - disse o homem, e houve uma pausa incómoda. - Jai faim - disse o alcaide. A qualidade do seu francês fazia-o sentir-se um pedinte. - Jai pensé si vous avez fini votre procurou a palavra em vão - votre... desayuno... -Desayuno?

Era surpreendente, pensou o alcaide, a quantidade de turistas que viajava pela Espanha sem sequer saberem as palavras essenciais.

- Ronald - disse a rapariga, na sua incompreensível língua. - Vou buscar o dicionário.

Quando ela se levantou, o alcaide reparou que tinha umas pernas bem feitas e tocou o rosto, num gesto de tristeza pela juventude desaparecida. Disse:

-Il faut me pardoner, sefiorita... Je nai pas... - Mas viu que não sabia o termo francês para barbear.

Os dois homens ficaram a olhar um para o outro em silêncio até ela voltar. Mesmo assim, a conversa foi difícil. O alcaide disse vagarosamente, fazendo uma pausa entre cada palavra importante, para que a rapariga tivesse tempo de encontrá-la no dicionário de bolso.

-Se já ... acabaram... o vosso pequeno-almoço ... -Desayuno quer dizer pequeno-almoço - disse a rapariga ao companheiro, deliciada com a descoberta.

-...posso comer um bollo?

-Bollo... diz aqui que é um pão de um péni - interpretou a

rapariga -, mas o nosso custou mais de um péni.

-Os dicionários estão sempre desactualizados - respondeu o

companheiro. - Não se pode exigir que acompanhem a inflação. -Estou cheio de fome - disse-lhes o alcaide, pronunciando; cuidadosamente as palavras-chave.

A rapariga passou rapidamente as folhas.

- Ambriente... Não foi essa a palavra? Não consigo encontrá-la. -Tenta com H. Acho que eles não pronunciam o h. -Oh, cá está. Ansioso. Mas ele está ansioso por quê? -Não há outro significado?

Oh, claro, que estupidez. Fome. Deve ser isso. Ele está faminto de um pão.

-Sobraram dois. Dá-lhos. E olha... dá isto também ao pobre diabo. - E estendeu-lhe uma nota de cem pesetas.

O alcaide pegou no pão e recusou o dinheiro. Para explicar razão, apontou primeiro para o "rocinante" e depois para si próprio.

- Meu Deus! - disse a rapariga. - O carro é dele e nós oferecemos-lhe cem pesetas.

Juntou as mãos e ergueu-as, num gesto ocidental. O alcaide sorriu. Percebeu que era um pedido de desculpa. O jovem disse, mal-humorado:

-Como é que eu ia adivinhar?

O alcaide começou a comer um dos pães. A rapariga procurou no dicionário.

-Mantequilla? - perguntou.

-O homem toma o quê?, perguntou o companheiro, nu tom desagradável.

Semelhança de sons entre manteg (da palavra espanhola mantequilla, manga) e as palavras inglesas man take (o homem toma). 1N. da T.)

-Estou a perguntar se ele quer manteiga. -Acabei-a. Não valia a pena guardá-la.

O alcaide abanou a cabeça e acabou o pão. Meteu o outro no

bolso.

-Para mi amigo - explicou.

- Oh, entendi isto - disse a rapariga, com agrado. - É para a namorada dele. Não te lembras do latim: amo, eu amo, amas, tu amas? Esqueci-me de como continua. Aposto que estiveram a fazê-lo nos arbustos, como nós.

O     alcaide voltou a levar a mão à boca e gritou, mas não houve resposta.

-Como saber que é uma rapariga? - perguntou o homem. Estava decidido que seria difícil. - Em espanhol deve ser como em francês. Um ami pode ter qualquer sexo, a menos que o vejas escrito.

- Oh, meu Deus - disse a rapariga. - Achas que pode ser o corpo que vimos transportar?

- Não sabemos se era um corpo. Se era um corpo, por que guardou ele o pão?

- Pergunta-lhe.

- Como? Tu é que tens o dicionário.

O     alcaide gritou de novo. Só um vago eco respondeu.

- Parecia mesmo um corpo - disse a rapariga.

- Arranjas sempre umas explicações desinteressantes para tu

  1. De qualquer modo, ele não precisa de um pão no hospital. - Nos países subdesenvolvidos, os familiares levam frequente

mente comida aos doentes.

- A Espanha não é um país subdesenvolvido. - Isso é o que tu dizes.

Pareciam estar a discutir sobre qualquer coisa e o alcaide regressou ao local onde o padre Quixote dormira. O mistério do desaparecimento e a recordação do seu sonho pesavam no espírito do alcaide, e voltou para junto do "rocinante".

Durante a sua ausência, eles tinham consultado o dicionário.

- Camilla - disse a rapariga, com uma pronúncia tão esquisita que o alcaide não percebeu logo o significado.

-Tens a certeza de que é esse o nome? - perguntou o homem. - Parece mais o nome de uma rapariga do que de uma maca. Não percebo por que procuraste a palavra maca. Eles não traziam nenhuma.

-Mas não vês que também serve? - insistiu a rapariga.

Consegues encontrar uma palavra no dicionário que descreva alguém a ser transportado pelos pés e cabeça?

- E se dissesses simplesmente "transportado"?

-O dicionário só dá o infinito dos verbos, mas, se queres, eu tento. Transportar - disse ela - camilla. - O alcaide percebeu de repente o que ela tentava dizer, mas só isso.

-Dónde? - perguntou com uma sensação de desespero. - Dónde?

-Penso que ele quer dizer "onde" - disse o homem, tornando-se de repente um interlocutor inspirado, e foi até ao carro, abriu a porta, curvou-se e fingiu meter qualquer coisa lá dentro. Depois apontou em direcção a Leão e disse: - Foi-se, com o vento.

O alcaide sentou-se abruptamente numa pedra. Que teria acontecido? Tê-los-ia a Guarda seguido? Mas com certeza que eles também quereriam apanhar o companheiro do padre Quixote. E por que levariam o padre Quixote numa maca? Tê-lo-iam atingido a tiro e depois ficado assustados com o facto? Tinha a cabeça inclinada com o peso dos pensamentos.

- Pobre homem - sussurrou a rapariga. - Está a sofrer pelo amigo morto. É melhor irmos embora, sem barulho.

Agarraram nas mochilas e dirigiram-se em bicos de pés para o carro.

-É excitante - disse a rapariga enquanto se sentava -, mas terrível, terrivelmente triste. Sinto-me como se estivesse na igreja.

 

MONSENHOR QUIXOTE ENCONTRA O BISPO 1

QUANDO o padre Quixote abriu os olhos, ficou surpreendido por ver que a paisagem se movia rapidamente, enquanto ele se encontrava quase na mesma posição em que adormecera. Passaram algumas árvores por ele e depois uma casa. Supôs que o vinho lhe tivesse afectado a visão e, pensando na sua falta de sensatez e depois de decidir ser mais comedido no futuro, fechou os olhos e adormeceu de novo.

Foi meio acordado, uma segunda vez, por um estranho movimento que parou abruptamente e sentiu o corpo deslizar e ficar deitado sobre o que parecia um lençol fresco, em vez do chão duro onde se esticara. Era tudo muito estranho. Colocou a mão atrás da cabeça para ajustar a almofada. Uma voz feminina disse com indignação:

-Em nome da Santa Virgem, que fizeram ao pobre homem? Outra voz disse:

-Não se preocupe, mulher. Ele acorda já. Vá fazer-lhe um café forte.

-Ele costuma beber chá.

-Então, chá, e faça-o forte. Eu fico aqui até ele acordar e também ...

Mas o padre Quixote deslizou de novo para a paz e para o prazer do sono. Sonhou com os três balões que insuflara e largara para o ar: dois eram grandes e um pequeno. Isto preocupara-o. Quis apanhar o pequeno e soprá-lo para ficar igual aos outros. Voltou a acordar, bocejou duas vezes e percebeu claramente que se encontrava na sua casa de El Toboso, deitado na cama. Uns dedos apalpavam-lhe o pulso.

-Dr. Galván - exclamou. - Você? Que está a fazer em El Toboso?

-Não se preocupe - disse o médico calmamente. - Em breve se sentirá bem.

-Onde está Sancho? - Sancho?

-O alcaide.

-Deixámos o tipo a dormir um sono de bêbedo. - E o "rocinante"?

-O seu carro? Com certeza que ele o traz de volta. A não ser

que caia.

-Como cheguei aqui?

-Pensei que era melhor dar-lhe uma injecção para acalmá-lo. -Eu não estava calmo?

- Estava a dormir, mas pensei que, dadas as circunstâncias, a`

sua reacção à nossa chegada pudesse torná-lo irritável.

- Quem era o outro?

-Que quer dizer com "o outro"? - Você disse "nossa chegada".,

- Oh, o seu bom amigo, o padre Herrera, estava comigo, claro - E você trouxe-me para aqui contra a minha vontade? =Esta é a sua casa, meu velho amigo: El Toboso. Onde melhor poderia ficar e descansar?

- Não preciso de descanso. Vocês até me despiram. - Tirámos-lhe só as roupas exteriores. -As minhas calças!

-Não se excite. Faz-lhe mal. Confie em mim, precisa de um pequeno período de descanso. O próprio bispo pediu ao padre

Herrera que o encontrasse e trouxesse para casa antes que as coisas fossem longe de mais. O padre Herrera telefonou-me para Cidd aReal. Teresa deu-lhe o meu nome, e, como tenho um primo no ministério do Interior, os guardas foram muito compreensivos e cooperantes. Foi muito bom você ter telefonado para Teresa. - de. Teresa entrou no quarto com uma chávena de chá.

Padre, padre - disse ela -, que milagre vê-lo vivo e bem

-Ainda não muito, bem, Teresa - corrigiu o Dr. Galván mas, depois de algumas semanas de calma ...

- Semanas de calma, está bem. Vou levantar-me imediatamente. - Fez um esforço e voltou a cair na cama.

-Um pouco tonto, hem? Não se preocupe. Isso é devido às injecções. Tive de dar-lhe mais duas pelo caminho.

Houve um brilho de colarinho branco, iluminado pelo sol, e o padre Herrera apareceu à porta.

-Como está ele? - perguntou.

-Está a ir muito bem, muito bem.

- Vocês os dois são culpados - disse o padre Quixote - de uma acção criminal: rapto, tratamento médico sem o consentimento do paciente ...

-Eu tinha instruções claras do bispo - respondeu o padre Herrera - para trazê-lo para casa.

- Que le den por el saco al bispo - disse o padre Quixote, e às suas palavras seguiu-se um silêncio de morte.

Até o padre Quixote ficou chocado consigo mesmo. Onde poderia ele ter aprendido tal frase, por que lhe teria ocorrido tão rápida e inesperadamente? Vinda de que remota memória? Então, o silêncio foi quebrado por um riso. Foi a primeira vez que o padre Quixote ouviu Teresa rir. Disse:

- Tenho de levantar-me. Já. Onde estão as minhas calças?

- Tenho-as ao meu cuidado - disse o padre Herrera. - As palavras que você empregou ... eu nunca as conseguiria repetir ... Tais palavras na boca de um padre... de um monsenhor ...

O padre Quixote teve uma tentação selvagem de usar a mesma expressão irrepetivel em relação ao seu título de monsenhor, mas conseguiu resistir.

-Tragam-me já as calças - disse. - Quero levantar-me. -Uma observação tão obscena como essa prova que você não está no seu perfeito juízo.

-Pedi para me trazerem as calças.

-Paciência, paciência - disse o Dr. Galván. - Dentro de dias. Agora precisa de descansar. E, acima de tudo, nada de excitar-se. -As minhas calças!

- Continuarão a meu cargo até você melhorar - disse o padre Herrera.

-Teresa! - apelou o padre Quixote para a única pessoa sua amiga.

-Ele fechou-as numa gaveta. Deus me perdoe, padre. Eu não sabia o que ele tencionava fazer.

-Que querem que eu faça, aqui estendido na cama?

- Uma pequena meditação não seria despropositada - disse o padre Herrera. - Tem-se comportado de uma forma muito estranha.

-Que quer dizer?

-A Guarda, em Ávila, relatou que você trocou de roupa com o seu companheiro e que deu uma morada falsa.

- Um completo mal-entendido.

-Um assaltante de um banco preso em Leão disse que você lhe deu os seus sapatos e o escondeu no seu carro.

-Ele não era um assaltante de banco. Apenas de uma loja self-service.

-Sua Excelência e eu tivemos muito trabalho a persuadir a Guarda a não agir. O bispo teve até de telefonar a Sua Excelência em Ávila para interceder. O primo do Dr. Galván foi também de grande utilidade. E, claro, o Dr. Galván também. Conseguimos pelo menos convencê-los de que você sofria de um esgotamento, nervoso.

- Disparate!

- É a explicação mais caridosa para a sua conduta. De qual quer maneira, evitámos, por pouco, um grande escândalo para a Igreja. Pelo menos até agora.

- E agora durma um pouco - disse o Dr. Galván para padre Quixote. - Um pouco de sopa ao meio-dia - recomendei a Teresa - e talvez uma omoleta à tardinha. Para já, nada de vinho. Passo por cá à noite para ver como vai o nosso paciente, e não o acordem, se estiver a dormir.

- E lembre-se - disse-lhe o padre Herrera - de limpar a sala de estar, amanhã de manhã, enquanto eu estiver na missa. Não a que horas chega o bispo.

- O bispo? - exclamou Teresa, no que foi secundada pelo padre Quixote.

O padre Herrera não se deu ao trabalho de responder. Saiu, fechando a porta não com um estrondo, mas com o que se pod descrever como ruido. O padre Quixote voltou a cabeça na almofada para o Dr. Galván.

-Doutor - disse ele -, você é um velho amigo. Lembra de quando eu tive pneumonia?

- Claro que sim. Deixe-me pensar. Deve ter sido há cerca trinta anos.

-Sim, naquele tempo eu tinha muito medo de morrer tanto na minha consciência! Suponho que já se esqueceu do que me disse.

- Parece-me que lhe disse para beber tanta água quanta pudesse. -Não, não foi isso. - Procurou na memória, mas as palavras exactas não apareceram.

- Disse qualquer coisa como isto: pense nos milhões que morrem entre um tique do relógio e outro: assassinos, ladrões, escroques, professores, bons pais e mães, gerentes de bancos, médicos, farmacêuticos, talhantes ... Acredita mesmo que Ele tenha tempo para condená-los?

-Eu disse mesmo isso?

-Mais ou menos. Nem sabe o grande conforto que foi para mim. Agora ouviu o padre Herrera... Não é Deus, mas o bispo que vem visitar-me. Gostava que tivesse uma palavra de conforto pela visita dele.

-Esse é um problema mais difícil - disse o Dr. Galván -, mas talvez você já o tenha dito. "Que se lixe o bispo."

 

O padre Quixote seguiu estritamente o conselho do Dr. Galván. Dormiu tanto quanto pôde, bebeu sopa ao meio-dia e comeu metade da omoleta à noite. Pensou em como o queijo lhe soubera melhor ao ar livre, com uma garrafa de vinho manchego.

Acordou automaticamente de manhã, quando era um quarto para as cinco (durante mais de trinta anos dissera a missa às seis, numa igreja quase vazia). Agora jazia na cama e esperava o som de uma porta a fechar-se, que assinalaria a saída do padre Herrera, mas eram quase sete quando se ouviu o ruído. O padre Herrera alterara obviamente o horário da missa. Percebeu que a dor que isto lhe causava não era razoável. Ao fazer aquilo, o padre Herrera podia até arranjar mais duas ou três pessoas para a congregação.

O padre Quixote esperou cinco minutos (porque o padre Herrera podia ter-se esquecido de alguma coisa, talvez de um lenço) e, então, dirigiu-se em bicos de pés para a sala. Um lençol estava muito bem dobrado na poltrona debaixo de uma almofada. O padre Herrera tinha mesmo a virtude da limpeza, se é que a limpeza é uma virtude. O padre Quixote olhou para as prateleiras. Alas! Deixara a sua leitura preferida no "rocinante". São Francisco de Sales, o seu confortador habitual, estava algures nas estradas da Espanha. Agarrou nas Confissões, de Santo Agostinho, e nas Cartas Espirituais, do jesuíta do século XVIII padre Caussade, que, no tempo em que fora seminarista, achara por vezes reconfortante, e voltou para a cama. Teresa sentira-lhe os movimentos e trouxe-lhe uma chávena de chá e um pão com manteiga. Estava de muito mau humor.

- Quem pensa ele que eu sou? - perguntou ela. - Limpar en quanto ele está na missa! Não lhe limpei a si tudo durante mais de vinte anos? Não preciso dele nem do bispo para me ensinarem minha obrigação.

- Achas mesmo que o bispo vem?

- Oh, eles são unha com carne, aqueles dois. Ao telefone de manhã, à tarde e à noite, desde que partiu. Sempre Excelência, Ex celência, Excelência. Até parecia que estava a falar com o próprio Deus.

- O meu antepassado - disse o padre Quixote - foi, ao menos, poupado ao bispo quando o padre o trouxe para casa. E eu prefiro o Dr. Galván àquele estúpido barbeiro que contou ao meu antepassado aquelas histórias de loucos. Como poderiam aquelas histórias de loucos tê-lo curado se ele estivesse mesmo louco, no que eu não acredito nem por sombras. Oh, bem, temos de ver o lado bom, Teresa. Penso que eles não tentarão queimar-me os livros.

- Queimar, talvez não, mas o padre Herrera disse-me que eu devia manter o seu gabinete fechado. Ele disse que não queria que cansasse a cabeça com aqueles livros. De qualquer maneira, até o bispo cá ter vindo.

-Mas não fechaste a porta, Teresa. Como vês, tenho dois li vros comigo.

-Iria eu fechá-lo no seu próprio quarto, quando me OOmagoa ver aquele jovem padre ali sentado, como se tudo lhe pertencesse. Mas é melhor esconder os livros debaixo do lençol quando o bispo chegar. Aqueles dois são cá de uma raça!

Ele ouviu o padre Herrera regressar da missa e ouviu o barulh de pratos do pequeno-almoço do padre. Teresa fazia o dobro do barulho na cozinha do que teria feito com ele. Voltou-se para padre Caussade, que era uma presença mais reconfortante de ter à cabeceira do que o padre Heribert Jone. Imaginou que o padre Caussade estava sentado à beira da cama para lhe ouvir a confissão. Tinham passado quatro, ou cinco dias?

"Padre, desde a minha última confissão, há dez dias..."

Sentiu-se de novo preocupado pela vontade de rir que o atacara quando via o filme em Valhadolid e pela ausência de qualquer tipo de desejo, que provaria ser ele humano e lhe faria sentir vergonha. Seria possível ter aprendido no cinema a frase grosseira que usara para falar do bispo? Mas não havia nenhum bispo no filme.

As palavras obscenas tinham provocado o riso de Teresa, e mesmo o Dr. Galván as repetia. Disse para o padre Caussade: "Se houve pecado no riso de Teresa ou no conselho do Dr. Galván, o pecado foi meu, só meu."

Havia um pecado pior. Sob a influência do vinho, minimizara a importância do Espírito Santo, comparando-o com meia-garrafa de manchego. Era sem dúvida um recorde negro com o qual teria de enfrentar a reprovação do bispo, mas não era mesmo o bispo que ele receava. Receava-se a si próprio. Sentia-se como se tivesse sido tocado pelo pior de todos os pecados, o desespero.

Abriu ao acaso as Cartas Espirituais, do padre Caussade. A primeira passagem que leu não tinha relevância, tanto quanto percebia. "Na minha opinião, os vossos demasiados e frequentes contactos com os vossos muitos familiares e outros no mundo são um impedimento para o vosso avanço."

Era verdade que o padre Caussade estava a escrever a uma freira, mas, mesmo assim ... Um padre e uma freira são aliados chegados. "Eu nunca quis ser avançado", protestou para o vácuo, "nunca quis ser monsenhor, e não tenho familiares, a não ser um primo em segundo grau no México.

Sem grandes esperanças, abriu o livro uma segunda vez, mas desta foi recompensado, embora o parágrafo em que se fixara começasse desencorajadoramente: "Alguma vez na minha vida fiz uma boa confissão? Deus perdoou-me? Estou num estado bom ou mau?" Sentiu-se tentado a fechar o livro, mas leu: "Respondo: Deus quer afastar-me de tudo para que eu possa abandonar-me cegamente à Sua misericórdia. Não desejo saber o que Ele não deseja mostrar-me e quero continuar, não obstante a escuridão em que Ele possa mergulhar-me. Compete-Lhe saber o estado dos meus progressos e a mim compete-me ocupar-me só com Ele. Ele tomará conta de tudo o resto. Deixo isso com Ele."

"Deixo isso com Ele", repetiu em voz alta o padre Quixote, e, nesse momento, a porta do quarto abriu-se e a voz do padre Herrera anunciou:

-Sua Excelência está aqui.

O padre Quixote teve por instantes a impressão de que o padre

Herrera envelhecera subitamente, o colarinho tinha o mesmo branco ofuscante, mas o cabelo também estava branco, e o padre Herrera claro que não usava um anel de bispo nem uma grande cruz pendurada ao pescoço. Mas a seu tempo os usaria, pensou o padre Quixote.

- Desculpe, Excelência. Se me conceder a graça de alguns minutos, irei ter convosco ao gabinete.

- Fique onde está, monsenhor - disse o bispo. (Pronunciou o título de monsenhor com acidez evidente.)

Tirou da manga um lenço de seda branca e limpou a cadeira; perto da cama, olhou cuidadosamente para o lenço para ver até que ponto se sujara, sentou-se e colocou a mão no lençol. Mas, como o padre Quixote não se encontrava em posição de poder genuflectir, pensou ser admissível dispensar o beijo, e o bispo, depois de uma ligeira pausa, retirou a mão. Então, o bispo uniu os lábios;_ e, depois de um momento de reflexão, largou um monossílabo:

- Bem!

O padre Herrera estava à porta como um guarda-costas. O bis po disse-lhe:

-Pode deixar-me e ao monsenhor. A palavra pareceu queimar-lhe a língua, porque fez uma careta. - Para falarmos sozinhos.

O padre Herrera retirou-se.

O bispo prendeu a cruz na pechera de púrpura, como se procurasse uma sabedoria superior à humana. Pareceu ao padre Quixote um anticlimace quando ele disse:

-Espero que se sinta melhor.

-Sinto-me perfeitamente - respondeu o padre Quixote. As férias fizeram-me muito bem.

-Não, se os relatórios que recebi forem verdadeiros.

- Que relatórios?

-A Igreja tem lutado sempre para se manter acima da polítíca.

- Sempre?

- Sabe muito bem o que eu pensei acerca do seu infeliz envolvimento com a organização In Vinculis.

- Foi um acto de caridade indevido, Excelência. Admito que de facto não pensei... Talvez em relação à caridade não devêssemos pensar. A caridade, tal como o amor, deve ser cega.

-Você foi promovido à categoria de monsenhor por razões que estão bastante acima da minha compreensão. Um monsenhor deve pensar sempre. Deve preservar a dignidade da Igreja.

- Eu não pedi para ser monsenhor. Não gosto de ser monsenhor. A dignidade de padre da paróquia de El Toboso já é suficientemente difícil de aguentar.

- Eu não ligo a qualquer rumor, monsenhor. O mero facto de um homem ser membro da Opus Dei não faz dele necessariamente uma testemunha de confiança. Aceito a sua palavra se me garantir que não entrou em certa loja em Madrid e não pediu para comprar um chapéu de cardeal.

-Não fui eu. O meu companheiro fez uma brincadeira inofensiva ...

- Inofensiva? Esse seu amigo, segundo creio, é o anterior alcaide de El Toboso. Um comunista. Você escolhe amigos e companheiros de viagem muito pouco aconselháveis, monsenhor.

- Não preciso de recordar a Vossa Excelência que Nosso Senhor ...

- Oh, sim, sim. Sei o que vai dizer. O texto sobre os publicanos e pecadores tem sido usado descuidadamente para justificar muita imprudência. São Mateus, escolhido por Nosso Senhor, era um cobrador de impostos ... um publicano, uma classe desprezada. É verdade, mas há um mundo inteiro de diferença entre um cobrador de impostos e um comunista.

- Suponho que em certos países do Leste é possível ser-se ambas as coisas.

- Recordá-lo-ei, monsenhor, de que Nosso Senhor era o Filho de Deus. Para Ele todas as coisas eram permissíveis, mas para um pobre padre como eu não é mais prudente seguir as pisadas de São Paulo? Sabe o que ele escreveu a Tito. "Há lá fora muitos espíritos rebeldes que falam das suas próprias fantasias e fazem perder o espírito dos homens: deverão ser silenciados."

O bispo calou-se para ouvir a resposta do padre Quixote, mas esta não veio. Talvez tivesse tomado isto como um bom sinal, pois, quando falou a seguir, deixou o "monsenhor" e usou o amigável "padre".

- O seu amigo, padre - disse ele -, aparentemente bebera de mais quando os encontraram aos dois. Nem sequer acordou quando lhe falaram.

"O padre Herrera reparou também que havia muito vinho no carro. Eu compreendo que no seu estado de nervosismo o vinho tenha sido uma grave tentação. Pessoalmente, deixo o vinho para a missa. Prefiro água. Quando pego num copo, gosto de fingir que estou a beber a água pura do Jordão.

-Talvez não tão pura - disse o padre Quixote.

- Que quer dizer, padre?

- Bem, Excelência, não posso deixar de pensar em como Naa

man, o Sírio, se banhou sete vezes no Jordão e deixou toda a sua lepra na água. .

- Isso é uma velha lenda judia, já muito antiga.

- Sim, eu sei, Excelência, mas, mesmo assim ... afinal até pode ser uma história verdadeira, e a lepra é uma doença misteriosa. Quantos bons leprosos judeus poderão ter seguido o exemplo de Naaman? Claro que concordo convosco em como São Paulo é um guia de confiança, e com certeza vos recordareis de que ele também escreveu a Tito ... não, estou enganado, foi a Timóteo: "Não te limites só à água, toma um pouco de vinho para aliviares o estômago.

Caiu sobre o quarto um período de silêncio. O padre Quixote pensou que talvez o bispo estivesse à procura de outra citação de São Paulo, mas enganou-se. A pausa representava mais uma mudança de assunto que de disposição.

- O que eu não entendo, monsenhor, é que a Guarda descobriu que você trocou de roupas com esse ... esse ex-alcaide, o comunista.

-Não houve uma troca de roupas, monsenhor, só do colarinho clerical.

O bispo fechou os olhos. Impaciência? Ou poderia estar a rezar para melhor compreender.

-Porquê o colarinho?

-Ele pensava que eu devia ter bastante calor com aquele colarinho, e eu deixei-o experimentar. Não quis que ele pensasse que eu tinha algum mérito especial ... Um uniforme militar, ou mesmo o de um guarda, deve ser mais custoso de aguentar do que um colarinho. Nós somos uns felizardos, Excelência.

-Chegou aos ouvidos do pároco de Valhadolid que um bispo ou um monsenhor fora visto a sair de um filme pornográfico ... sabe, aquele tipo de filmes que são exibidos desde que o generalíssimo morreu ...

-Talvez o pobre monsenhor não soubesse o tipo de filme que ia ver. As vezes os títulos enganam.

- O que houve de mais chocante na história foi que ... o bispo ou o monsenhor (você sabe como as pessoas se sentem confundidas com a pechera que você e eu usamos) ... foi visto a sair deste cinema de má reputação a rir.

- A rir, não, Excelência. Talvez a sorrir. -Não entendo a sua presença em tal filme. -Fui enganado pela inocência do título. -Qual era?

- A Oração de Uma Virgem.

O bispo suspirou profundamente.

-Às vezes desejo - disse - que o título de virgem se limitasse a ser usado em relação a Nossa Senhora... e talvez a membros de ordens religiosas. Compreendo que você tem levado uma vida muito isolada em El Toboso e não percebeu que a palavra "virgem" usada nas grandes cidades, no seu sentido puramente ocasional, é muitas vezes um incitamento à luxúria.

-Admito, Excelência, que isso não me ocorreu.

- Claro que estes são assuntos de menor importância aos olhos da Guarda Civil, por muito escandalosos que possam parecer aos olhos da Igreja. Mas eu e o meu colega de Ávila tivemos muita dificuldade em persuadi-los a fechar osolhos àquilo que era um crime grave. Tivemos de contactar com uma alta personalidade do Ministério do Interior ... felizmente um membro da Opus Dei ...

- E presumo que primo do Dr. Galván?

- Isso não é relevante. Percebemos logo que iria causar à Igreja um mal irreparável se um monsenhor aparecesse em tribunal acusado de ajudar um criminoso a fugir ...

- Não era um criminoso, Excelência. Falhou.

- Um ladrão de banco.

- Não, não. De uma loja de self-service.

- Gostava que não me interrompesse com pormenores supérfluos. A Guarda, em Leão, encontrou o homem de posse dos seus sapatos, com o seu nome inscrito dentro.

- É um hábito estúpido de Teresa. Coitada, a intenção é boa, mas ela não confia em que o sapateiro lhe entregue o par certo depois de consertá-los.

- Não sei se é deliberado, monsenhor, mas consegue sempre chamar para a nossa séria discussão pormenores triviais e irrelevantes.

- Desculpe ... não era minha intenção ... pensei que lhe poderia parecer estranho os meus sapatos estarem marcados.

-O que me parece estranho é você ter ajudado um criminoso a escapar à justiça.

-Ele tinha uma arma, mas claro que não ia usá-la. Não lhe valia de nada disparar contra nós.

- Os guardas acabaram por aceitar essa explicação, embora o homem se tivesse desfeito da arma e negasse ter tido alguma. Mesmo assim, parece terem estabelecido que você escondeu o homem na mala do seu carro e mentiu a um guarda. Não pode ter feito isso sob coacção.

-Não menti, Excelência. Talvez... bem, envolvi-me num pequeno equívoco. Os guardas nunca me perguntaram directamente se ele estava no porta-bagagens. Claro que eu podia alegar "reserva mental". O padre Heribert Jone diz que um acusado de crime (eu fui, legalmente falando, um criminoso) pode alegar "não culpado", o que é apenas um modo convencional de dizer "não sou culpado perante a lei até ser dado como culpado". Ele permite mesmo ao criminoso dizer que a acusação é uma calúnia e apresentar as provas da sua alegada inocência. Mas aí penso que o padre Heribert Jone vai longe de mais.

-Quem é o padre Heribert Jone?

-Um distinto teórico alemão de teologia moral. - Graças a Deus que não é espanhol. - O padre Herrera tem grande respeito por ele.

- De qualquer modo, não vim aqui para falar de teologia moral.

- Sempre achei esse tema muito confuso, Excelência. Por exemplo, não posso deixar de pensar no conceito de lei natural. -Nem eu vim para falar de lei natural. Você tem um talento notável, monsenhor, para se afastar do verdadeiro assunto.

- Qual é, Excelência?

- Os escândalos que tem provocado.

- Mas, se sou acusado de mentiras ... com certeza que estam

algures no domínio da teologia moral.

-Estou a fazer um grande esforço - e o bispo deu outro suspiro prolongado, que fez o padre Quixote pensar com pena, e com satisfação, se o bispo sofreria de asma -, repito, um grande esforço, para acreditar que você está demasiado doente para

se aperceber da situação perigosa em que se encontra.

-Bem, suponho que isso se aplica a todos nós. - A todos nós?

- Quer dizer, se começarmos a pensar.

O bispo emitiu um som curioso que fez lembrar ao padre Quixote uma das galinhas de Teresa a pôr ovo.

-Ah! - disse o bispo. - Eu ia chegar lá. O seu companheiro comunista levou-o, sem dúvida, a pensar de certa maneira...

- Ele não me levou, Excelência. Deu-me a oportunidade. Sabe, em El Toboso ... gosto muito do garagista (ele trata muito bem do "rocinante"), o homem do talho é um pouco patife... Não quero dizer que haja qualquer coisa de terrivelmente errado nos patifes. E, claro, há freiras que fazem bolos excelentes; mas nestas férias senti uma liberdade ...

- Parece ter sido uma liberdade muito perigosa.

- Mas Ele deu-no-la, não deu... liberdade? Foi por isso que O crucificaram.

-Liberdade - disse o bispo. Foi como uma explosão. - Liberdade para quebrar a lei? Você, um monsenhor? Liberdade para ir a filmes pornográficos? Para ajudar assassinos?

- Não, não, eu disse-lhe que ele falhou.

- E o seu companheiro ... um comunista. A falarem de política.

- Não, não. Discutimos coisas muito mais sérias do que política. Embora- eu admita que não percebera que Marx defendeu a Igreja tão nobremente.

- Marx?

- Um homem muito incompreendido, Excelência, garanto-lhe.

- Que livros tem andado a ler, nesta extraordinária expedição?

- Levo sempre comigo São Francisco de Sales. Para agradar ao padre Herrera levei também o padre Heribert Jone. E o meu amigo emprestou-me o Manifesto Comunista... Não, não, Excelência, não é nada do que está a pensar. Claro que não posso concordar com todas as suas ideias, mas há um tributo comovente à religião ... ele fala dos "mais celestiais êxtases de fervor religioso".

- Não posso continuar aqui sentado a ouvir as loucuras de uma mente doente - disse o bispo e levantou-se.

- Prendi-o aqui tempo a mais, Excelência. Foi um grande acto de caridade da sua parte ter vindo visitar-me a El Toboso. O Dr. Galván assegurar-lhe-á que estou muito bem.

- No corpo, talvez. Penso que precisa de outra espécie de médico. Consultarei o Dr. Galván, obviamente, antes de escrever ao arcebispo. E rezarei.

-Estou muito grato pelas orações - disse o padre Quixote. Reparou que o bispo não lhe ofereceu o anel para beijar antes de sair. O padre Quixote censurou-se por ter falado demasiado livremente.

"Perturbei o pobre homem", pensou. "Os bispos, tal como os muito pobres e incultos, devem ser tratados com cuidados especiais."

Ouviam-se sussurros do lado de fora da porta. Depois, a chave girou na fechadura. "Sou então um prisioneiro", pensou, "como Cervantes."

 

A SEGUNDA VIAGEM DE MONSENHOR QUIXOTE 1

Foi o tut-tut-tut de um carro que acordou o padre Quixote.

Mesmo no seu sono, reconheceu o ruído inconfundível do "rocinante": um som queixoso, sem a raiva, petulância e impaciência de     um carro grande - um som que dizia encorajadoramente: estou aqui, se me quiseres. Foi imediatamente à janela e olhou lá para fora, mas o "rocinante" devia estar estacionado fora da sua vista, porque o único carro à vista era de um azul forte, e não de um ferrugento encarnado. Foi à porta, esquecendo-se de que estava fechada, e abanou a maçaneta. A voz de Teresa respondeu-lhe:

- Calma, padre. Dê-lhe mais um minuto.

-Dar mais um minuto a quem?

- O padre Herrera saiu para a confissão, mas não demora muito tempo se não estiver ninguém à espera no confessionário; por isso, eu disse ao rapaz da garagem para ir rapidamente à igreja antes que o padre Herrera saia e para mantê-lo ocupado com uma confissão longa.

O padre Quixote sentiu-se completamente à deriva. Esta não era a vida que conhecera durante tantas décadas em El Toboso. Que teria provocado a mudança?

-Podes abrir a porta, Teresa? O "rocinante" voltou.

-Sim. Eu sei. Não o teria reconhecido, pobrezinho, com aquela tinta azul-brilhante e a matrícula nova.

-Por favor, Teresa, abre a porta. Tenho de ver o que aconteceu ao "rocinante".

-Não posso, padre, porque não tenho a chave, mas não se preocupe que ele consegue, se lhe der mais um minuto.

- Quem?

-O alcaide, claro.

- O alcaide? Onde está?

-No seu gabinete. Onde havia de estar? Está a abrir o seu armário, que o padre Herrera fechou, com um dos meus ganchos de cabelo e uma garrafa de azeite. - Porquê azeite?

-Não sei, padre,, mas confio nele.

-Que há no armário?

-As suas calças, padre, e todas as roupas de cima.

- Se ele consegue abrir o armário, não poderá abrir esta porta?

-Foi o que eu lhe disse, mas ele falou em prioridades.

O padre Quixote tentou esperar, com uma paciência mal encorajada pelo comentário ininterrupto de Teresa.

- Oh, eu pensava que ele já o abrira, mas ainda está fechado, e agora ele tem na mão uma das lâminas de barbear do padre Herrera. Vai ser o diabo para explicar, porque o padre Herrera tem-nas contadas ... Agora partiu a lâmina e, por amor de Deus, está a trabalhar com a tesoura de unhas do padre Herrera... Espere um pouco ... seja paciente ... Deus seja louvado ... está-se a abrir. Espero que ele consiga abrir a sua porta mais rapidamente ou teremos o padre Herrera de volta; o rapaz da garagem não tem assim tanta imaginação.

-Está bem, padre? - Chegou a voz do alcaide do outro lado da porta.

-Estou bem, mas que fez ao "rocinante"?

-Fui ter com um amigo em Valhadolid e arranjámo-lo para que a Guarda não o reconheça, pelo menos não à primeira vista.

Agora vou trabalhar na sua porta.

-Não é preciso. Eu posso sair pela janela.

Foi sorte, pensou ele, não haver ninguém para ver o padre da

paróquia trepar pela janela em pijama e bater à porta da sua própria casa. Teresa retirou-se discretamente para a cozinha e o padre Quixote vestiu-se apressadamente no seu gabinete.

-Você fez um lindo serviço ali no armário - disse.

-Foi mais difícil de abrir do que eu pensava. Que procura? -O meu colarinho.

-Aqui está um. E tenho o cabeção no carro.

-Já me provocou muitos sarilhos. Não vou usá-lo, Sancho. -Mas levamo-lo connosco. Pode ser útil. Nunca se sabe.

-Não encontro as meias.

-Eu tenho as suas meias de púrpura. E os seus sapatos novos também.

- Era dos velhos que eu andava à procura. Desculpe. Claro que se foram para sempre.

- Estão nas mãos dos guardas.

- Sim. Esqueci-me. O bispo disse-me. Acho que temos de ir. Espero que o pobre bispo não sofra um ataque.

Viu uma carta. Deveria tê-la visto antes, porque estava colocada contra um dos seus velhos livros do seminário, entronizado entre os dois. O autor quisera sem dúvida que ela fosse bem notada. Olhou para o sobrescrito e colocou-o no bolso.

- Que é isso? - perguntou-lhe o alcaide.

-Penso que é uma carta do bispo. Já lhe conheço bem de mais a caligrafia.

-Não vai lê-la?

- Os problemas podem esperar até bebermos uma garrafa de manchego.

Foi à cozinha despedir-se de Teresa.

- Não sei como vais explicar as coisas ao padre Herrera.

- Ele é que terá de dar todas as explicações. Que razão teve ele para fechá-lo no seu próprio quarto, na sua própria casa, e tirar-lhe as suas próprias roupas?

Beijou Teresa na testa, coisa que nunca se atrevera a fazer antes, em todos os anos que tinham estado juntos.

-Deus te abençoe, Teresa. Foste muito boa para mim. E paciente. Durante muito tempo.

- Diga-me para onde vai, padre.

- É melhor não saberes, porque todos te vão perguntar isso. Mas posso dizer-te que, se Deus permitir, vou tirar um longo descanso num local calmo.

- Com aquele comunista?

- Não fales como o bispo, Teresa. O alcaide tem sido um bom amigo.

- Não estou a vê-lo a fazer um longo descanso num local calmo.

- Nunca se sabe, Teresa. Já aconteceram coisas estranhas na estrada.

Voltou-se, mas ela chamou-o de novo.

- Padre, sinto-me como se nos estivéssemos a despedir para sempre.

- Não, não, Teresa, para um cristão não existe a despedida para sempre.

Ergueu a mão, devido ao hábito de fazer o sinal da cruz como bênção, mas não o completou.

"Acredito no que lhe disse", pensou para consigo, enquanto ia à procura do alcaide, "claro que acredito nisso, mas por que será que, quando falo em crença, me dou sempre conta de que há sempre uma sombra, a sombra da descrença, que me persegue?"

 

-Para onde seguimos daqui? - perguntou o alcaide.

-Temos de fazer planos, Sancho. Da última vez seguimos um pouco por aqui, um pouco por ali, ao acaso. Você não vai concordar, claro, mas, de certa maneira, entregámo-nos nas mãos de Deus.

- Então não foi um guia de confiança. Você foi trazido de volta, feito prisioneiro para El Toboso.

- Sim. Quem sabe? Deus move-se misteriosamente; talvez Ele quisesse que eu me encontrasse com o bispo.

-Pelo bispo, ou por si?

-Como posso dizer? Pelo menos aprendi algo com o bispo, embora duvide de que ele tenha aprendido alguma coisa comigo. Mas quem sabe?

- Então, para onde é que o seu Deus propõe que vamos agora?

- Por que não seguimos, muito simplesmente, pela nossa velha estrada?

- A Guarda pode ter a mesma ideia, quando o bispo os avisar de que andamos de novo à solta.

-Não exactamente pela mesma estrada. Não quero voltar a Madrid. Nem a Valhadolid. Não me deixaram recordações muito felizes, excepto a casa do historiador.

- Historiador?

- O grande Cervantes.

- Temos de decidir rapidamente, padre. O Sul é demasiado quente. Então, vamos para o Norte, em direcção aos Bascos ou aos Galegos?

- Concordo.

-Concorda com quê? Não respondeu à minha pergunta.

- Deixemos os pormenores para Deus.

- E quem conduz? Tem a certeza de que Deus ficou aprovado no exame de condução?

- Claro que devo conduzir. O "rocinante" não compreenderia se eu me sentasse como passageiro.

- Pelo menos vamos a uma velocidade razoável. O meu amigo de Valhadolid disse que ele era capaz de dar oitenta quilómetros e até mesmo cem.

-Ele não pode julgar o "rocinante" a partir de um breve exame.

-Não vou discutir agora. São horas de irmos.

Mas não puderam sair de El Toboso assim tão facilmente. O padre Quixote preparava-se para meter a mudança quando uma voz chamou:

-Padre! Padre! - Um rapaz vinha a correr pela rua, atrás deles.

-Não ligue - disse o alcaide. - Temos de sair daqui.

- Devo parar. É o rapaz que trabalha nas bombas da garagem. Estava quase sem fôlego quando chegou ao pé deles. -Então, que é? - perguntou o padre Quixote. -Padre! - disse ele ofegante. - Padre!

- Já perguntei o que é!

- Recusaram-me a absolvição, padre. Vou para o Inferno? - Duvido muito. Que fizeste? Assassinaste o padre Herrera? Isso não implicaria necessariamente que fosses para o Inferno. Se tivesses uma boa razão.

- Como podia tê-lo assassinado se foi ele quem me recusou a absolvição?

- Lógico. Por que recusou ele?

-Disse que eu estava a troçar da confissão.

- Oh, esquecia-me. Foi a ti que Teresa mandou ... Foi errado da parte dela. Mesmo assim, a intenção foi boa e estou certo de que ambos sereis perdoados. Mas ela disse-me que não tinhas imaginação. Por que te recusou o padre Herrera a absolvição? Que foste inventar?

-Só lhe disse que dormira com muitas raparigas.

-Não há assim tantas em El Toboso, excepto as freiras. Não

lhe disseste que dormiste com uma freira, pois não?

-Nunca diria tal coisa, padre. Sou secretário dos Filhos de Maria.

- E o padre Herrera vai sem dúvida acabar na Opus Dei disse o alcaide. - Por amor de Deus, vamos embora. -Exactamente, que disseste tu e que disse ele? -Eu disse: "Abençoe-me, padre. Eu pequei..." -Não, não. Deixa lá esses preliminares.

- Bem, eu disse-lhe que cheguei tarde à missa e ele perguntou-me quantas vezes, e eu disse vinte e então disse-lhe que menti um pouco, e ele perguntou-me quantas vezes, e eu respondi quarenta e cinco.

-Foste para números grandes, não foste? E depois?

-Bem, não conseguia pensar em mais nada e tinha medo de que Teresa se zangasse se não conseguisse retê-lo por mais tempo

- Se a vires diz-lhe que eu acho que é melhor que amanhã ajoelhe em confissão.

- E, então, ele perguntou-me se eu pecara contra a pureza, isso deu-me uma ideia; portanto, disse... bem, que dormira com algumas raparigas, e ele perguntou-me quantas, e eu disse: cerca de sessenta e cinco, e então ele ficou zangado e pôs-me fora do confessionário.

-Não me admiro.

- É para o Inferno que vou?

-Se alguém vai para o Inferno, será Teresa, e podes dizer

isso.

- Foi uma série de mentiras horríveis que eu contei no confessionário. Só me atrasei uma vez para a missa e tive uma boa razão, havia muitos turistas nas bombas.

- E as mentiras?

-Duas ou três no máximo. - E as raparigas?

- Não encontra uma única em El Toboso que queira

qualquer coisa a sério, com medo das freiras.

O alcaide disse:

- Estou a ver o padre Herrera a descer a rua, vindo da igreja - Ouve - disse o padre Quixote. - Diz o acto de contrição

promete-me que não mentes mais no confessionário, mesmo que Teresa to peça.

- Oh, eu prometo, padre. Por que não havia de prometer?

De qualquer modo, não me confesso mais de uma vez por ano. -Diz: "Prometo perante si, padre, a Deus. "

O rapaz repetiu as palavras e o padre Quixote deu-lhe a absol

vição, falando rapidamente.

O alcaide disse:

- O raio do padre está a cem passos daqui, padre, e está a acelerar.

O padre Quixote pôs o motor a trabalhar e o "rocinante" respondeú com o salto de um antílope.

- Foi mesmo a tempo - disse o alcaide. - Mas ele vem a correr, quase tão depressa como o "rocinante". Oh, graças a Deus aquele rapaz é um tesouro. Passou-lhe uma rasteira.

- Se houve algo de errado com aquela confissão, a culpa foi minha - disse o padre Quixote, e, se se dirigia a si próprio, a Deus ou ao alcaide, é coisa que ficará sempre por saber.

-Pelo menos puxe o "rocinante" até aos cinquenta. Ele nem sequer está a esforçar-se. Aquele padre vai contactar a Guarda num abrir e fechar de olhos.

-Não há tanta pressa como pensa - disse o padre Quixote. - Ele terá muita coisa a dizer àquele rapaz e depois disso quererá falar com o bispo, e o bispo não estará ainda em casa.

-Ele pode ir primeiro à Guarda.

-Nem pense nisso. Ele tem a alma prudente de um secretário. Chegaram à estrada principal para Alicante e o alcaide quebrou o silêncio.

-Para a esquerda - disse abruptamente.

-Mas não para Madrid. Qualquer lado menos Madrid.

- Nada de cidades - disse o alcaide. - Onde houver uma estrada secundária, tomamo-la. Sentir-me-ei muito mais seguro quando chegarmos às montanhas. Suponho que não tem passaporte?

- Não.

-Então Portugal não serve para refúgio. -Refúgio de quê? Do bispo?

-Parece que não se apercebeu, padre, da gravidade do crime que cometeu. Libertou um escravo da galé.

- Pobre tipo. Tudo o que levou foram os meus sapatos e não estavam muito melhores do que os dele. Estava condenado ao fracasso. Penso sempre que aqueles que falham (e ele chegou a ficar sem gasolina) estão mais próximos de Deus do que nós. Claro que rezarei ao meu antepassado por ele. Quantas vezes o Dom conheceu o fracasso. Até com os moinhos.

-Então, o melhor é rezar-lhe muito por nós os dois.

- Oh, eu rezo, eu rezo. Ainda não falhámos o suficiente, San c-iro. Cá estamos de novo, você e eu e o "rocinante", na estrada e em liberdade.

Levaram mais de duas horas para chegar a uma pequena cidade chamada Mora,, viajando por uma estrada secundária. Dali, encontraram-se na estrada principal para Toledo, mas só durante uma questão de minutos.

-Temos de meter-nos nas serras de Toledo - disse o alcaide. - Esta estrada não é para nós. - Voltaram e ziguezaguearam por uma estrada má e por instantes, a julgar pelo Sol, pareciam estar a andar em semicírculo.

-Sabe onde estamos? - perguntou o padre Quixote.

-Mais ou menos - respondeu o alcaide, sem convicção.

-Não consigo deixar de sentir fome, Sancho.

-A sua Teresa forneceu-nos chouriço e queijo para uma semana.

-Uma semana?

-Nada de hotéis. Nem estradas principais.

Encontraram um local alto nas montanhas de Toledo, um lugar confortável para comer, onde poderiam sair da estrada e esconder-se com o "rocinante". Havia também um regato para refrescar as garrafas, que corria para um lago em baixo, lugar que o alcaide identificou com dificuldade no mapa como a Torre de Abraão.

-Embora eu não entenda por que lhe deram o nome daquele malandro.

-Por que lhe chama malandro?

-Ele não estava preparado para matar o filho? Oh, claro, houve um malandro muito pior, aquele a quem você chama Deus. Ele praticamente cometeu a terrível acção. Que exemplo que Ele deu, e Estaline matou os seus filhos espirituais por imitação. Quase matou o comunismo também, tal como a Cúria matou a igreja católica.

- Não completamente, Sancho. Aqui, ao seu lado, há pelo menos um católico, apesar da Cúria.

- Sim, e aqui está um comunista ainda vivo, apesar do Politburo. Somos sobreviventes, você e eu, padre. Bebamos a isso. - tirou a garrafa do regato.

- Aos dois sobreviventes - disse o padre Quixote, e ergueu o seu copo.

Tinha uma sede-muito saudável e surpreendia-o sempre pensar quão poucas vezes o biógrafo do seu antepassado falara em vinho

Não tinham conta os odres de vinho que o seu antepassado rebentara, confundindo-os com os seus inimigos. Encheu de novo o copo.

- Parece-me - disse para o alcaide - que você acredita mais no comunismo do que no Partido.

- E eu ia a dizer quase o mesmo, padre, que você acredita mais no catolicismo do que em Roma.

- Acreditar? Oh, acreditar! Talvez tenha razão, Sancho. Mas talvez não seja a crença que importa.

- Que quer dizer, padre? Pensei ...

- O Dom acreditaria mesmo em Amadis de Gaula, Rolando e todos os seus heróis, ou seria que só acreditava nas virtudes que eles defendiam?

-Estamos a meter-nos em águas perigosas, padre.

-Eu sei, eu sei. Na sua companhia, Sancho, penso mais livremente do que quando estou sozinho. Quando estou só, leio, refugio-me nos livros. Neles encontro a fé dos homens melhores do que eu e, quando vejo que a minha crença está a enfraquecer: com a idade, tal como o meu corpo, então digo a mim mesmo que estou errado. A minha fé diz-me que devo estar errado, ou será só a fé daqueles homens melhores? É a minha fé que me fala, ou a fé de São Francisco de Sales? E será que isso importa? Dê-me um pouco de queijo. O vinho faz-me falar.

-Sabe o que me atraiu em si, em El Toboso, padre? Não foi você ser o único homem culto. Não gosto assim tanto dos cultos. Não me fale da intelligentsia ou cultura. Você atraiu-me porque pensei que era o meu oposto. Um homem cansa-se de si próprio, do rosto que vê todos os dias quando se barbeia, e todos os meus amigos estavam como eu. Eu costumava ir a reuniões do Partido em Cidade Real, quando era seguro, depois da morte de Franco, e nós tratávamo-nos por "camaradas" e receávamo-nos um pouco uns aos outros, porque conhecíamos tão bem cada um quanto ele se conhecia a si próprio. Citávamos Marx e Lenine uns aos outros, como senhas, para provar que éramos de confiança, e nunca falávamos das dúvidas que nos ocorriam durante as noites de insónia. Senti-me atraído por si porque pensei que você era um homem sem dúvidas. Suponho que, de certa maneira, me senti atraído por inveja.

- Como estava enganado, Sancho! Estou cheio de dúvidas. Não tenho a certeza de nada, nem sequer da existência de Deus; mas a dúvida não é traição, como vocês, os comunistas, parecem pensar. A dúvida é humana. Oh, eu quero acreditar que tudo é verdade e essa vontade é a única coisa certa que eu sinto. Quero que os outros acreditem também... talvez uma parte da sua crença possa passar para mim. Acho que o padeiro acredita.

-Era essa a crença que eu pensava que você tinha.

-Oh, não, Sancho; então talvez eu pudesse ter queimado os meus livros e viver sozinho, sabendo que tudo era verdade. "Sabendo"? Que horrível teria sido. Oh, bem, era o seu antepassado ou o meu que costumava dizer "paciência e baralhar as cartas"?

-Um pouco de chouriço, padre?

-Acho que hoje vou limitar-me ao queijo. O chouriço é para homens mais fortes.

-Talvez eu hoje também me limite ao queijo. -Abrimos outra garrafa? -Por que não?

Iam já na segunda garrafa e a tarde avançava, quando Sancho

disse:

-Tenho qualquer coisa a confessar-lhe, padre. Oh, não confessionário. Não vou pedir perdão nenhum ao seu mito ou meu, lá em cima, só a si. - Meditava sobre o copo. - Se eu não tivesse ido buscá-lo, que aconteceria?

- Não sei. Penso que o bispo acha que estou louco. Talvez tentassem pôr-me num asilo, embora eu pense que o Dr. Galy não concordaria em ajudá-los. Qual é a posição legal de um homem sem família? Poderá ser afastado contra a sua vontade? Talvez o bispo, com o padre Herrera a ajudá-lo ... E depois, nos bastidores, claro, está sempre o bispo ... Nunca esquecerão aquela vez em que eu dei um dinheirinho para a In Vinculis.

- A minha amizade por si começou aí, embora quase não nos falássemos.

- É como aprender a dizer a missa. No seminário aprendeOO anunca esquecer. Oh, meu Deus, quase me esquecia... - De quê?

-O bispo deixou uma carta para mim.

O padre Quixote tirou-a do bolso, virou-a e revirou-a.

- Vá lá, homem. Abra-a. Não é uma condenação à morte. -Como sabe?

- Os dias de Torquemada acabaram.

- Enquanto houver Igreja, haverá sempre Torquemadas.

OODê-me outro copo de vinho.

Bebeu-o lentamente, adiando o momento da verdade.

Sancho tirou-lhe a carta e abriu-a. Disse:

- É curta. Que quer dizer Suspensión a divinis?

-Tal como eu pensava, é a sentença de morte - disse o padre Quixote. - Dê-me a carta. - Pousou o copo. - Já não tenho medo. Depois da morte, já nada podem fazer. Só resta a misericórdia de Deus. - E leu a carta alto:

Meu caro monsenhor,

Foi com grande desgosto que o ouvi confirmar a verdade das acusações, que eu estava convencido serem devidas a mal-entendido, exagero ou malícia.

- Que grande hipócrita! Oh, bem, suponho que a hipocrisia num bispo é quase necessária e teria sido considerada pelo padre Heribert Jone um pecado muito venial.

Mesmo assim, dadas as circunstâncias, estou pronto.a acreditar que a troca de roupas com o seu companheiro comunista não foi um acto simbólico de desafio em relação ao Santo Padre, mas foi devido a algum grave distúrbio mental que o levou também a ajudar um criminoso a escapar e também a visitar, sem vergonha e de pechera de púrpura de monsenhor, um filme pornográfico, claramente assinalado com um "S" a denunciar o seu verdadeiro carácter. Discuti o seu caso com o Dr. Galván, que concorda comigo ser um longo descanso o mais aconselhado, e vou escrever ao arcebispo. Entretanto, é meu dever comunicar-lhe uma Suspensión a divinis.

- Que é que significa exactamente essa sentença de morte?

Significa que não devo dizer a missa, nem em público nem mesmo em privado. Mas na intimidade do meu quarto di-la-ei, porque estou inocente. Também não posso ouvir confissões, excepto em casos de extrema urgência. Continuo a ser padre, mas só para mim. Um padre sem préstimo, proibido de servir os outros. Ainda bem que você veio buscar-me. Como poderia eu aguentar esse tipo de vida em El Toboso?

-Pode apelar para Roma. É um monsenhor.

Mesmo um monsenhor se pode perder naqueles arquivos poeirentos da Cúria.

- Eu disse-lhe que tinha qualquer coisa para confessar, padre.

Estive para não vir. - Era agora o alcaide quem bebia para arranjar coragem para falar. - Quando descobri que você desaparecera, havia dois americanos que viram o que aconteceu, eles pensaram que você morrera, mas eu sabia melhor e pensei: "Vou no ro cinante para Portugal." Tenho bons amigos do Partido lá e penso que ficaria lá até a confusão passar.

-Mas não foi.

- Fui até Ponferrada e aí tomei a estrada para Orense. No meu mapa havia uma estrada secundária por onde eu tencionava seguir, porque ficava a menos de sessenta quilómetros da fronteira. - Encolheu os ombros. - Oh, bem, apanhei a estrada secundária e voltei para Valhadolid. E pedi ao meu camarada da garagem para pintar o carro e voltar a alterar a matrícula.

-Mas por que não continuou?

-Olhei para o raio das suas peúgas de púrpura, para o seu ca beção e para os seus sapatos novos que compráramos em Leão lembrei-me de repente da maneira como você rebentou aquele balão.

Não me parecem razões suficientes.

-Para mim foram.

- Ainda bem que veio, Sancho. Sinto-me seguro aqui consigo e com o "rocinante", mais seguro do que lá com o padre Herrera. El Toboso já não é a minha casa, e eu não tenho outra, excepto aqui este bocado de chão.

-Temos de encontrar outro lar, padre. Mas onde?

- Qualquer local calmo onde eu e o "rocinante" possamos descansar por uns tempos.

- E onde nem a Guarda nem o bispo nos encontrem.

- Havia aquele mosteiro dos Trapistas de que você falou na Galiza... Mas você lá não se sentiria em casa, Sancho.

- Eu podia ir consigo até lá e alugar um carro em Orense para me transportar à fronteira.

- Não quero que as nossas viagens acabem. Não antes da morte, Sancho. O meu antepassado morreu na cama. Talvez tivesse vivido mais tempo se se tivesse mantido na estrada. Ainda não estou preparado para a morte, Sancho.

-Estou preocupado com os computadores da Guarda. O "rocinante" está muito bem disfarçado, mas podem estar à nossa procura na fronteira.

-Quer, goste ou não, Sancho, penso que terá de ficar uma semana ou duas com os Trapistas.

-A comida vai ser má.

- E se calhar o vinho também

-É melhor fornecermo-nos com vinho galego pelo caminho. O manchego está quase no fim.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE TEVE A SUA ÚLTIMA AVENTURA ENTRE OS MEXICANOS

Dormiram ao relento durante três noites, continuando cuidadosamente o seu caminho por estradas pouco frequentadas, passando pelas montanhas de Toledo e pela serra de Guadalupe, onde o "rocinante" teve grande dificuldade em subir mais de oitocentos metros e ainda mais dificuldade quando chegaram à serra de Gredos, onde a estrada acabava em mais de mil e quinhentos metros, porque evitaram Salamanca e seguiram em direcção ao rio Douro, que os separava da segurança de Portugal. Avançaram pouco pelas montanhas, mas o alcaide preferia-as às planícies de Castela, devido às boas possibilidades de um jipe oficial poder ser avistado de muito longe, e as aldeias eram pequenas demais para terem um posto da Guarda. Passaram para as estradas de terceira classe, evitando mesmo as perigosas estradas amarelas de segunda classe, assinaladas no mapa. Quanto às estradas marcadas a encarnado, foram completamente postas de lado.

Estava sempre frio quando anoitecia e ficaram satisfeitos por substituir o vinho por uísque, que beberam com o queijo e o chouriço. Depois adormeceram com dificuldade, aninhados dentro do carro. Quando, por fim, se viram obrigados a descer à planície, o alcaide olhou com ansiedade para a tabuleta que apontava para Portugal.

- Se ao menos você tivesse o passaporte - disse -, seguiríamos para Bragança. Prefiro os meus camaradas de lá aos espanhóis. Cunhal é melhor do que Carrilho.

-Pensava que Carrilho era um bom homem, do ponto de vista dos comunistas.

-Não se pode confiar num eurocomunista

-Mas com certeza você não é estalinista, Sancho.

-Não sou estalinista, mas ao menos com eles sabemos onde estamos. Não são jesuítas. Não mudam com o vento. Se são cruéis, são-no também para si próprios. Quando se chega ao fim da estrada mais comprida de todas, é necessário descansar, descansar dos argumentos, teorias e modas. Pode-se dizer "não acredito, mas aceito" e cair em silêncio, como os Trapistas fazem. Os Trapistas são os estalinistas da Igreja.

-Então você teria dado um bom trapista, Sancho.

- Talvez, embora eu não goste de me levantar cedo.

Depois de terem entrado na Galiza, pararam numa aldeia para que o alcaide pudesse perguntar onde havia uma boa adega onde pudessem comprar bom vinho, porque já tinham poucas garrafas de manchego e o alcaide desconfiava dos vinhos de marca. Demorou-se uns bons dez minutos e regressou com um ar tão sombrio que o padre Quixote perguntou ansiosamente:

- Más notícias?

- Oh, tenho uma morada - disse ele e indicou a estrada que deviam seguir.

E durante a meia hora seguinte não disse nada, indicando com

a mão para onde ele devia virar, mas o silêncio era tão carregado

que o padre Quixote insistiu em quebrá-lo:

-Está preocupado - disse. É com a Guarda?

- Oh, a Guarda - exclamou o alcaide. - Podemos aguentar

com a Guarda. Não aguentámos já com eles perto de Ávila Oe na estrada para Leão? Eu cuspo na Guarda. -Então, que o preocupa?

-Não gosto daquilo que não entendo. - E que é?

- Estes aldeões ignorantes e os seus estranhos sotaques.

- São galegos, Sancho.

-E sabem que somos estrangeiros. Pensam que acreditamos

em qualquer coisa.

-Que lhe disseram?

- Fingiram ser muito solícitos em relação ao vinho. Discutiram entre eles sobre três adegas... O branco era melhor numa, o tinto noutra. E as suas últimas palavras foram um aviso ... E fingiram estar a ser muito honestos. Tomaram-me por parvo, porque eu era um estranho. A insularidade destes galegos! "Encontrará aqui o melhor vinho da Espanha", disseram-me eles. Como se o nosso manchego fosse mijo de cavalo!

-Mas qual foi o aviso?

-Uma das adegas fica perto de um local chamado Learig. E disseram: "Mantenham-se longe dessa. Os mexicanos estão por todo o lado." Estas foram as suas últimas palavras. Gritaram-mas: "Afastem-se da terra dos mexicanos. Os padres lá estragam até o vinho."

-Mexicanos? Tem a certeza de que ouviu bem? -Não sou surdo.

-Que quereriam eles dizer?

-Suponho que Pancho Villa se levantou do túmulo e está a saquear a Galiza.

Mais meia hora e entraram na terra do vinho. À sua direita, as encostas sul estavam verdes com as vinhas; à esquerda ficava uma aldeia decrépita, como um corpo abandonado, ao longo de um rochedo, uma casa aqui e ali em ruínas, uma boca de dentes partidos.

O alcaide disse:

-Não vamos tomar a estrada para a aldeia. Continuamos mais trinta quilómetros, deixamos o carro e subimos por um caminho.

-Até onde?

- Chamam-lhe Senor Diego. No fim, aqueles tolos acabaram por concordar que o vinho melhor era o dele. "Os mexicanos ainda não chegaram lá", disseram.

-Outra vez os mexicanos. Começo a ficar nervoso, Sancho.

- Coragem, padre. Se não se intimidou com os moinhos, porquê amedrontar-se com alguns mexicanos? Este deve ser o caminho; portanto, deixamos aqui o carro.

Estacionaram o "rocinante" atrás de um Mercedes, que usurpara o melhor lugar.

Quando começaram a subir o caminho, um homem corpulento com um casaco vistoso e uma impressionante gravata às riscas descia apressadamente. Murmurava zangado. Evitaram por pouco uma colisão quando ele parou abruptamente e lhes bloqueou o caminho.

- Vão lá acima comprar vinho? - perguntou-lhes. - Sim.

-Desistam - disse o homem. - Ele é louco.

- Quem é que é louco?   perguntou o alcaide.

-O Senor Diego, claro. Quem havia de ser? Tem uma cave cheia de bom vinho e não me deixa provar nem um copo, embora eu estivesse disposto a comprar doze caixas. Disse que não gostava da minha gravata.

- Pode haver diferenças de opinião em, relação à sua gravata - disse o alcaide com cuidado.

-Eu próprio sou um homem de negócios e digo-vos que esta não é a forma de fazer negócio. Mas agora é tarde de mais, e eu vou arranjar o vinho noutro lado.

-Porquê essa pressa?

-Porque prometi ao padre. E cumpro sempre as promessas. É bom cumprir uma promessa. Prometi ao padre arranjar o vinho. Foi uma promessa à Igreja.

-Para que é que a Igreja quer doze caixas de vinho?

-Não é só a minha promessa. Posso perder o meu lugar na procissão. A não ser que o padre aceite dinheiro. Cheques, ele não aceita. Saiam do meu caminho, por favor. Não posso ficar aqui a falar, mas queria avisá-los.

-Não percebo o que se passa - disse o padre Quixote.

-Nem eu.

Ao cimo do caminho havia uma casa a precisar de reparação e uma mesa sob uma figueira, em cima da qual estavam restos de comida. Um jovem de calças de ganga veio a correr em direcção a eles.

-O Senor Diego hoje não recebe ninguém - disse. -Viemos só para comprar um pouco de vinho - disse o alcaide.

-Receio que não seja possível. Hoje não. E não vale a pena

falarem-me da festa. O Senor Diego não terá nada a ver com ela. -Não o queremos para nenhuma festa. Somos simples viajantes e ficámos sem vinho.

-Não são mexicanos?

-Não, não somos mexicanos - disse o padre Quixote, correctamente. - Por caridade, padre ... Só algumas garrafas de vinho.

Vamos para os Trapistas, para Osera.

- Os Trapistas? Como sabe que sou padre?

-Quando se é padre há tanto tempo como eu, reconhece-se

sempre um colega. Mesmo sem o colarinho clerical.

-Este é o monsenhor Quixote, de El Toboso - disse o al

caide.

-Um monsenhor?

-Esqueça o monsenhor, padre. Um pároco, tal como eu suspeito que você é.

O homem correu em direcção a casa. Chamou:

-Senor Diego, Senor Diego! Venha depressa. Um monsenhor! Temos aqui um monsenhor!

- É assim tão raro ver um monsenhor neste local? - perguntou o alcaide.

- Raro? Com certeza que é. Os padres daqui são todos amigos dos mexicanos.

- O homem que encontrámos no caminho ... era mexicano?

-Claro que era. Um dos mexicanos maus. Foi por isso que o Senor Diego não quis vender-lhe o vinho.

-Julguei que tivesse sido por causa da gravata.

Um velho muito digno saiu para o terraço. Tinha o rosto cansado e triste de quem já conhece a vida demasiado bem e há demasiado tempo. Hesitou um momento entre o alcaide e o padre Quixote antes de, estendendo ambas as mãos para o alcaide, ter feito a escolha errada.

-Bem-vindo a minha casa, monsenhor.

-Não, não - exclamou o jovem padre -, o outro ...

O Senor Diego voltou primeiro as mãos e depois os olhos para

o padre Quixote.

- Perdoe-me - disse ele. - A minha vista já não é o que era. Vejo mal, muito mal. Ainda esta manhã passeava com este meu neto pela vinha e era sempre ele quem descobria as ervas daninhas, e não eu. Sentem-se os dois, por favor, que eu vou trazer vinho e queijo.

-Eles vão para Osera, para os Trapistas.

- Os Trapistas são bons homens, mas penso que o seu vinho é menos bom e, quanto ao licor que fazem ... Devem levar-lhes uma caixa de vinho; para vocês também, claro. Nunca tive um monsenhor aqui debaixo da figueira.

- Sente-se com eles, Senor Diego - disse o jovem padre -, e eu vou buscar o presunto e o vinho.

- O branco e o tinto e taças para todos. Teremos uma festa melhor que a dos mexicanos. - E, quando o padre já não podia ouvi-los, disse: - Se todos os padres fossem como o meu neto ... Podia confiar-lhe até a vinha. Se ao menos ele não tivesse escolhido ser padre ... A culpa foi toda da mãe dele. O meu filho nunca o teria permitido. Se ele não tivesse morrido ... Hoje vi o José a arrancar as ervas daninhas, mas não as consegui ver claramente pensei: "Já é tempo de eu e a vinha desaparecermos."

-Esta é a paróquia do seu neto? - perguntou o mons Quixote..

- Oh, não, não. Ele vive a quarenta quilómetros daqui. Os

padres daqui afastaram-no da sua velha paróquia. Era um perigo para eles. As pobres pessoas gostavam dele, porque ele se recusava a aceitar dinheiro e a dizer o responsório quando alguém mor Responsório! Que disparate! Dizer algumas palavras e pedir mil pesetas! Então, os padres escreveram ao bispo e, embora houvesse bons mexicanos a defendê-lo, foi mandado embora. Você entenderia se ficasse aqui por uns tempos, veria como estes padres são gananciosos pelo dinheiro que os mexicanos trouxeram para estas terras.

-Mexicanos, mexicanos. Mas quem são estes mexicanos?

O jovem padre regressou à figueira com uma bandeja com pratos de presunto, quatro grandes tigelas de louça e garrafas de vinho tinto e branco. Encheu as tigelas de vinho.

-Comecem pelo branco - disse. - Ponham-se à vontade. O Senor Diego e eu já tínhamos comido antes de o mexicano chegar. Sirvam-se de presunto, é um bom presunto, curado em casa. Não encontrarão este presunto nos Trapistas.

- Mas estes mexicanos ... por favor, explique padre.

- Oh, eles vêm para cá e constroem ricas casas, e os padres corrompem-se à vista do dinheiro. Até pensam que podem comprar Nossa Senhora. Mas não falemos deles. Há melhores coisas para falarmos.

-Mas quem são esses mexicanos?

-Oh, há homens bons entre eles. Não nego. Muitos homens

bons, mas, mesmo assim ... Só que não percebo. Têm demasiado dinheiro e estiveram longe tempo de mais.

-Tempo de mais longe do México?

-Tempo de mais longe da Galiza. Não está a servir-se de pre

sunto, monsenhor. Por favor ...

-Estou muito feliz - disse o Senor Diego - por recebê-lo

sob esta figueira, monsenhor ... monsenhor ...

- Quixote - disse o alcaide. - Quixote? Mas não o,...

- Um descendente indigno     interrompeu o padre Quixote. - E o seu amigo?

- Quanto a mim - disse o alcaide -, não posso dizer que sou isso dizer que sou um verdadeiro descendente de Sancho Pança. Sancho e eu temos um nome comum, é só, mas posso assegurar-lhe que o monsenhor Quixote e eu tivemos aventuras curiosas. Mesmo que não sejam dignas de comparação ...

-Este vinho é muito bom - disse o Senor Diego -, mas, José, vai buscar mais o segundo barril da esquerda ... Sabes, aquele... só o melhor serve para o monsenhor Quixote e para o seu amigo Senor Sancho. E só com o melhor vinho devemos brindar à maldição dos padres daqui.

Quando o padre José se afastou, o Senor Diego acrescentou, com uma nota de profunda tristeza:

-Nunca esperei que um neto meu quisesse ser padre. - E o padre Quixote viu que havia lágrimas nos seus olhos. - Oh, não estou a arrasar completamente o sacerdócio, monsenhor. Como poderia fazê-lo? Temos um bom papa, mas que sofrimento deve ser para ele ter de beber diariamente na missa um vinho tão mau como o que o velho padre José compra!

- Só bebemos uma gota - disse o padre Quixote. - Mal se nota o gosto. Não é pior do que o vinho que vem muito bem engarrafado, com um bonito rótulo, nos restaurantes.

- Sim, tem razão, monsenhor. Oh, todas as semanas há malandros que cá vêm comprar o meu vinho para poderem misturar com outro vinho e chamam-lhe Rioja e anunciam-no ao longo das estradas da Espanha, enganando os pobres forasteiros, que não sabem distinguir um bom vinho de um mau.

-Como distingue os malandros dos homens honestos?

-Pela quantidade que querem comprar e porque muitas vezes nem sequer pedem um copo para prová-lo. - E acrescentou: - Se ao menos José tivesse casado e tivesse um filho! Comecei a ensinar a José coisas sobre a vinha quando ele tinha seis anos, e agora ele sabe quase tanto como eu e a sua vista é muito melhor do que a minha. Em breve ele estaria a ensinar ao seu filho ...

- Não consegue arranjar um bom gerente, Senor Diego? - perguntou o alcaide.

- Essa é uma pergunta disparatada, Senor Sancho ... Parece vinda de um comunista.

-Eu sou comunista.

- Perdoe-me. Não digo nada contra os comunistas nos seus devidos locais, mas o seu devido local não é uma vinha. Vocês, comunistas, podiam pôr dirigentes em todas as obras de cimento da Espanha, se quisessem. Podem arranjar dirigentes para os seus empreendimentos e para as suas empresas de armamento, podem encarregá-los do seu gás e electricidade, mas não podem deixá-los dirigir uma vinha.

-Porquê, Senor Diego?

-Uma vinha está viva como uma flor, ou um pássaro. Não é qualquer coisa feita pelo homem; o homem só pode ajudá-la a viver ou a morrer - acrescentou, com profunda melancolia, e o seu rosto perdeu toda a expressão.

Fechara o rosto, como um homem fecha um livro que descobre não querer ler.

-Aqui está- o melhor vinho de todos - disse o padre José. Não o tinham ouvido aproximar-se, e ele começou a encher-lhes as tigelas com um grande jarro.

-Tens a certeza de que tiraste do barril certo? - perguntou o Senor Diego.

-Claro que sim. O segundo da esquerda.

-Então, agora podemos brindar à danação dos padres destas paragens.

-Talvez... Estou mesmo cheio de sede. Permite-me beber um pouco mais deste bom vinho antes de brindarmos?

-Claro, monsenhor. E vamos a outro brinde, primeiro. Ao Santo Padre?

-Ao Santo Padre e às suas intenções - disse o padre Quixote, fazendo uma ligeira alteração. - Este vinho é verdadeiramente magnífico, Senor Diego. Tenho de admitir que a nossa cooperativa em El Toboso não produz vinho igual, embora o nosso seja vinho honesto. Mas o seu é mais do que honesto ... é maravilhoso.

-Reparo - disse o Senor Diego - que o seu amigo não se juntou ao nosso brinde. Com certeza até um comunista pode brindar às intenções do Santo Padre.

- Você teria brindado às intenções de Estaline? - perguntou o alcaide. - Quando não se sabem as intenções de um homem, nãose vai brindar a elas. Pensa que o antepassado do monsenhor representava verdadeiramente a cavalaria da Espanha? Oh, pode ter sido isso a sua intenção, mas fazemos paródias cruéis das nossas intenções.

Havia uma nota de tristeza e pesar na sua voz que surpreendeu o padre Quixote. Estava acostumado à agressividade do alcaide, que talvez fosse somente uma forma de autodefesa, mas o pesar era sem dúvida uma forma de desespero, de rendição, talvez até de mudança. Pensou pela primeira vez: "Onde acabará esta nossa viagem?"

O     Senor Diego disse para o seu neto:

- Explica-lhes quem são os mexicanos. Pensei que toda a Espanha os conhecia.

- Não ouvimos falar deles em El Toboso.

- Os mexicanos - disse o padre José - vieram do México, mas todos nasceram aqui. Saíram da Galiza para fugir à pobreza e conseguiram-no. Queriam dinheiro e encontraram dinheiro e voltaram para gastá-lo. Dão dinheiro aos padres de cá e pensam que o estão a dar à Igreja. Os padres tornaram-se gananciosos, oram pelos pobres e oram pela superstição dos ricos. São piores que os mexicanos. Talvez alguns dos mexicanos pensem que podem comprar a sua ida para o Céu. Mas de quem é a culpa? Os seus padres sabem melhor e vendem Nossa Senhora. Deviam ver a festa que estão a fazer hoje numa cidade perto daqui. O padre põe Nossa Senhora em leilão. Os quatro mexicanos que pagarem mais levá-la-ão na procissão.

- Mas isso é inacreditável! - exclamou o padre Quixote. - Vá lá e veja com os seus olhos.

O     padre Quixote pousou a tigela e disse: -Temos de ir, Sancho.

-A procissão ainda não deve ter começado. Acabe primeiro o vinho - disse o Senor Diego.

- Desculpe, Senor Diego, mas perdi o gosto até pelo seu melhor vinho. O senhor apontou-me o meu dever: "Vá lá e veja com os seus olhos."

-Que pode fazer, monsenhor? Até o bispo os apoia:

O padre Quixote lembrou-se da frase que usara contra o seu próprio bispo e resistiu à tentação de repeti-la, embora estivesse muito tentado a usar as palavras do seu antepassado: "Debaixo do meu capote, um figo para o rei."

-Agradeço-lhe a generosa hospitalidade, Senor Diego -disse-, mas tenho de ir. Vem comigo, Sancho?

-Eu gostaria de beber mais um pouco do vinho do Senor Diego, padre, mas não posso deixá-lo partir sozinho.

- Talvez fosse melhor eu ir sozinho, com o "rocinante". Voltarei a buscá-lo. É a honra da Igreja que está em causa; portanto, não há razão para você..

- Padre, já viajámos juntos o suficiente para não nos separarmos agora.

O Senor Diego disse:

-José, põe duas caixas do melhor vinho no carro deles. Lembrar-me-ei sempre de como, sob esta figueira, recebi um descendente do grande Dom.

Perceberam que estavam a aproximar-se da cidade quando começaram a passar por muitos populares que se dirigiam para a festa. Era uma cidade muito pequena, pouco mais de uma aldeia, e podiam ver ao longe a igreja, construída numa colina.

Passaram por um banco, o Banco Hispano-Americano, que estava fechado, tal como todas as lojas.

- Um banco tão grande para um local tão pequeno - comentou o alcaide.

Um pouco mais abaixo passaram por outros cinco.

- Dinheiro mexicano - disse o alcaide.

- Há momentos - respondeu o padre Quixote - em que tenho vontade de dirigir-me a si tratando-o por compañero, mas ain

da não, ainda não.

-Que propõe fazer, padre?

-Não sei. Estou assustado, Sancho. -Assustado por causa deles? - Não, não, assustado por mim. -Por que parou?

- Dê-me a minha pechera. Está atrás de si, sob a janela. O

meu colarinho também.

Saiu do carro e um pequeno grupo juntou-se na rua para vê-lo

vestir-se. Sentiu-se como um actor que é observado pelos amigos

no quarto de vestir.

- Vamos para a luta, Sancho. Preciso da minha armadura.

Mesmo que seja tão absurda como o elmo de Mambrino. Tornou a sentar-se ao volante do "rocinante" e disse: -Sinto-me mais preparado agora.

Devia haver cem pessoas à espera fora da igreja. A maior parte delas eram pobres e encostaram-se timidamente atrás para dar ao padre Quixote e a Sancho lugares melhores perto da entrada, onde havia um grupo de homens e mulheres muito bem vestidos: comerciantes talvez ou empregados dos bancos. Enquanto os pobres se afastaram para deixar o padre Quixote passar, este perguntou a um deles:

-Que se passa?

-Acabou o leilão, monsenhor. Estão a tirar Nossa Senhora da igreja.

Outro disse-lhe:

- Correu melhor o ano passado. Devia ter visto o dinheiro que eles pagaram.

-Começaram o leilão com mil pesetas. - O vencedor pagou quarenta mil. -Não, não, foi trinta mil.

-Essa foi a segunda melhor oferta. Ninguém imaginaria que houvesse tanto dinheiro na Galiza.

- E o vencedor? - perguntou o padre Quixote. - Que ganha?

Um de entre a multidão riu-se e cuspiu para o chão.

- A salvação para os seus pecados. É barato.

-Não lhe ligue, monsenhor. Ele ri-se das coisas sagradas. O

vencedor (é justo) tem o melhor lugar entre aqueles que transportam Nossa Senhora. Há grande competição. -qual é o melhor lugar?

- A frente, à direita.

- O ano passado - disse o brincalhão - só foram quatro a transportá-la. Este ano o padre fez o andor maior; portanto, serão seis.

-Os últimos dois só pagaram quinze mil.

-Tinham menos pecados a pagar. No próximo ano verá que são oito os transportadores.

O padre Quixote aproximou-se mais da porta da igreja.

Um homem agarrou-lhe na manga e estendeu-lhe duas moedas de cinquenta pesetas:

-Monsenhor, dá-me uma nota de cem pesetas? - Porquê?

- Quero dá-la a Nossa Senhora.

Estavam agora a cantar um hino da Igreja e o padre Quixote sentiu a tensão e a expectativa entre a multidão. Perguntou:

-Então Nossa Senhora não aceita moedas?

Por cima da multidão, via o movimento, para um lado e para o outro, de uma cabeça coroada e fez o sinal da Cruz, em união com aqueles que estavam à sua volta. As moedas escorregaram dos dedos do seu vizinho, que começou à procura delas no chão. Por entre as cabeças de um e outro homem, conseguiu ver um dos homens que transportavam Nossa Senhora. Era o homem da gravata às riscas. Depois, à medida que a multidão se afastava para arranjar espaço, conseguiu ver toda a estátua.

O padre Quixote não entendia o que via. Não se sentiu ofendido com a imagem de rosto de gesso e olhos sem expressão, mas a estátua parecia estar unicamente revestida de papel. Um homem com uma nota de cem pesetas na mão empurrou-o para o lado e chegou ao pé da estátua. Os que a transportavam pararam e deixaram-no prender a nota na roupa da estátua. Era impossível ver as roupas devido a todo o dinheiro: notas de cem pesetas, de mil pesetas, uma nota de quinhentos francos e, mesmo por cima do coração, uma nota de cem dólares. Entre ele e a estátua só estava o padre e o fumo do incenso, que saía do incensório. O padre Quixote olhou para a cabeça coroada e para os olhos frios, que eram como os de uma mulher morta e negligenciada - ninguém se incomodara sequer em lhe fechar as pálpebras. Pensou: "Foi para isto que ela viu o filho morrer em agonia? Para colectar dinheiro? Para enriquecer um padre?"

O     alcaide (quase se esquecera de que o alcaide estava ali atrás dele) disse

-Vamos embora, padre.

-Não, Sancho.

-Não faça nenhum disparate.

-Oh, você está a falar como aquele outro Sancho, e eu digo-lhe o que o meu antepassado disse quando viu os gigantes e você fingiu que eram moinhos: - "Se tens medo, vai-te embora e diz as tuas orações."

Deu dois passos para a frente e enfrentou o padre, que abanava o incensório de um lado para o outro. Disse: -Isto é uma blasfémia.

O padre repetiu:

Blasfémia? - E depois reparou no colarinho do padre Quixote e na sua pechera de púrpura e acrescentou: - Monsenhor! -Sim. Blasfémia. Se é que sabe o significado da palavra. -Que quer dizer, monsenhor? Este é o nosso dia de festa. O dia de festa da nossa igreja. Temos a bênção do bispo. -Que bispo? Nenhum bispo consentiria...

O     transportador de gravata às riscas interrompeu:

-Este homem é um impostor, padre. Vi-o hoje de manhã

Não trazia nem pechera nem colarinho e estava a comprar vinho àquele ateu do Senor Diego.

-Já apresentou o seu protesto, padre - disse o alcaide. - Vamos embora.

-Chamem a Guarda - gritou o mexicano para a multidão.

-Você ... você... - O padre Quixote começou, mas, devido à fúria, falhou-lhe a palavra certa. - Ponham Nossa Senhora no chão. Como se atreve - perguntou ao padre - a cobri-la assim com dinheiro? -Era melhor transportá-la nua pelas ruas.

- Tragam a Guarda - repetiu o mexicano, mas a situação era interessante de mais para alguém na multidão se mexer.

O dissidente gritou:

- Pergunte-lhe para onde vai o dinheiro.

-Por amor de Deus, vamos embora, padre. -Continuem com a procissão- ordenou o padre.

-Só se for sobre o meu cadáver - disse o padre Quixote. - Quem é você? Que direito tem de interromper a nossa festa?

Como se chama?

O padre Quixote hesitou. Detestava usar o título, que achava não ter o direito de ostentar. Mas o seu amor pela mulher cuja imagem estava em cima venceu toda a relutância.

-Sou o monsenhor Quixote, de El Toboso - anunciou com firmeza.

- É mentira - disse o mexicano.

-Mentira ou não, você não tem autoridade nesta diocese. -Tenho a autoridade de qualquer católico de lutar contra a blasfémia.

-Pergunte-lhe para onde vai o dinheiro - gritou arrogante, de entre a multidão.

Mas nem sempre se podem escolher os aliados. O padre Quixote acelerou o passo.

- Isso. Batam-lhe. Não passa de um padre. Isto agora é uma república.

-Chamem a Guarda. Este homem é um comunista. - Foi o mexicano quem falou.

O padre tentou colocar o incensório entre a estátua e o padre Quixote, como se esperasse que o fumo pudesse retê-lo, e o incensório atingiu o padre Quixote na cabeça. Um fio de sangue escorreu-lhe pelo olho direito.

-Padre, temos de ir - disse o alcaide.

O padre Quixote empurrou o padre para o lado. Tirou a nota de cem dólares do vestido da estátua, arrancando a roupa e a nota. Havia uma nota de quinhentos francos pregada no outro lado. Esta saiu facilmente e ele deixou-a cair. Várias notas de cem pesetas estavam em bocados quando ele as agarrou. Enrolou-as numa bola e atirou-as para a multidão. O dissidente aplaudiu e mais duas ou três vozes se lhe juntaram. O mexicano baixou o cabo do andor que transportava a estátua, e tudo aquilo resvalou para o lado, de maneira que a coroa de Nossa Senhora lhe tombou para o olho esquerdo. O peso foi de mais para o outro transportador, que largou o seu cabo, e Nossa Senhora foi-se esmagar no chão. Foi como o fim de uma orgia. O dissidente comandou um grupo para salvar algumas das notas, e houve uma luta confusa com os transportadores.

O alcaide agarrou o padre Quixote pelos ombros e empurrou-o para fora. Só o mexicano da gravata reparou e gritou, acima do barulho .da refrega:

-Ladrão! Blasfemo! Impostor! - Respirou fundo e acrescentou: - Comunista!

-Por hoje já chega - disse o alcaide.

- Para onde me leva? Desculpe. Estou confuso... - E o padre Quixote pôs a mão na cabeça e afastou-a manchada de sangue. - Alguém me atingiu?

-Não se pode começar uma revolução sem derramamentos de sangue.

-Eu não queria...

Na sua confusão, deixou que o alcaide o levasse para o local onde o "rocinante" esperava.

- Sinto-me um pouco tonto - disse. - Não sei porquê.

O alcaide olhou para trás. Viu que o mexicano se afastara da

luta e falava com o padre, abanando as mãos.

-Entre depressa - disse o alcaide. - Temos de ir embora. -Para esse lugar, não. Tenho de conduzir o "rocinante". -Não pode conduzir. Está acidentado. -Mas ele não gosta de mãos estranhas.

-As minhas mãos já não são estranhas para ele. Não fui eu

quem o trouxe todo aquele caminho para salvá-lo?

-Mas não o sobrecarregue. Já é velho.

-É suficientemente jovem para chegar aos cem.

O padre Quixote cedeu, sem mais protestos. Encostou-se no assento tanto quanto o "rocinante" o permitia. A raiva deixava-o sempre exausto, e ainda mais os pensamentos que costumavam vir depois.

-Oh, Deus! Oh, Deus! - disse ele. - Que dirá o bispo se ouvir?

- Ouvirá com certeza, mas o que me preocupa é o que a Guarda dirá e fará.

A agulha do conta-quilómetros aproximava-se dos cem.

- Provocar um tumulto! É o crime mais grave que você cometeu até agora. Temos de encontrar guarida. - E o alcaide acrescentou: - Eu teria preferido Portugal, mas o mosteiro de Osera é melhor que nada.

Iam em silêncio há mais de meia hora, quando o alcaide voltou a falar.

-Está a dormir?

- Não.

- Não costuma ser silencioso.

-Estou a sofrer um aspecto indiscutível da lei natural. Preciso de aliviar-me.

-Não consegue aguentar mais meia hora? Nessa altura já estaríamos no mosteiro. - Receio não conseguir.

Contra vontade, o alcaide parou o "rocinante" ao lado de um campo e do que parecia uma cruz celta antiga. Enquanto o padre Quixote esvaziou a bexiga, o alcaide leu a inscrição, que já estava quase apagada.

- Está melhor. Agora já sou capaz de falar - disse o padre Quixote, quando ele voltou.

- É muito estranho - disse o alcaide. - Reparou na velha     cruz no campo?

- Sim.

- Não é tão antiga como parece. Tem a data de 1928 e foi posta ali, longe de qualquer sítio, em memória de um inspector escolar. Porquê ali? Porquê um inspector escolar?

- Talvez tivesse sido morto naquele local. Um acidente de viação?

- Ou talvez a Guarda - disse o alcaide, espreitando pelo espelho, mas a estrada estava vazia atrás deles.

 

DE COMO MONSENHOR QUIXOTE SE FOI JUNTAR AO SEU ANTEPASSADO

O grande edifício do mosteiro de Osera estende-se, quase sozinho, no sopé das colinas da Galiza. Uma pequena loja e um bar à entrada do mosteiro constituem a aldeia de Osera. O exterior, esculpido, que data do século xvi, esconde um interior do século XII - uma escadaria imponente, talvez com a largura de vinte metros, por onde um pelotão podia marchar ombro a ombro, conduz a compridas passagens ladeadas por quartos de hóspedes, por cima do pátio central e dos claustros.

Praticamente, o único som durante o dia é o dos martelos com que meia dúzia de operários se esforça por reparar os estragos de sete séculos. Por vezes, uma figura de túnica branca passa rapidamente e nos cantos escuros espreitam as figuras de madeira de padres e cavaleiros cuja ordem fundou o mosteiro. Tomam uma aparência de vida, tão triste como as memórias, quando a noite cai. O visitante tem a impressão de estar numa ilha abandonada que foi recentemente colonizada por um pequeno grupo de aventureiros, que tentam agora construir um lar nas ruínas de uma civilização antiga.

As portas da igreja, que abrem para a pequena praça frente ao mosteiro, estão fechadas, excepto durante as horas de visita e durante as missas dominicais, mas os monges têm a sua escadaria privada, que vai do corredor onde ficam os quartos de hóspedes até à enorme nave, tão grande como as de muitas catedrais. Só durante as horas de visita ou quando os hóspedes estão presentes se ouve o som de vozes humanas entre as antigas pedras, como se um barco de recreio tivesse largado alguns turistas na costa.

O padre Leopoldo sabia muito bem que cozinhara um mau almoço para a sala de hóspedes. Não tinha ilusões quanto à sua aptidão para cozinhar, mas os seus companheiros trapistas estavam habituados ainda a pior comida e não tinham muitas oportunidades para se queixar - cada um, por turnos, teria de fazer o seu melhor ou o seu pior. Mesmo assim, a maior parte dos hóspedes devia estar acostumada a melhor comida, e o padre Leopoldo sentia-se infeliz quando pensava na refeição que servira nessa tarde, tanto mais que respeitava profundamente o único hóspede que tinham no momento, o professor de Estudos Hispânicos na Universidade Notre Dame, dos Estados Unidos. O Prof. Pilbeam não se servira, a julgar pelo prato, de mais do que de uma ou duas colheres de sopa e deixara o peixe quase intacto. O irmão leigo que ajudara o padre Leopoldo na cozinha - franzira ostentosamente as sobrancelhas quando os pratos do professor foram trazidos para lavar e piscara o olho ao padre Leopoldo.

Onde existe o voto do silêncio, um piscar de olhos pode significar tanto como uma palavra, e ninguém fizera o voto de reprimir outra forma de comunicação que não a voz.

O padre Leopoldo ficou satisfeito quando, por fim, pôde sair da cozinha e ir para a biblioteca. Esperava encontrar lá o professor, porque poder-lhe-ia dizer por palavras quanto lamentava a refeição. O diálogo não estava proibido com os hóspedes e ele tinha a certeza de que o Prof. Pilbeam compreenderia a sua distracção com o sal. Estivera a pensar, como acontecia frequentemente, em Descartes.

A presença do Prof. Pilbeam, cuja segunda visita a Osera era esta, retirara o padre Leopoldo da paz da rotina para um mundo mais confuso, o mundo da especulação intelectual. O Prof. Pilbeam era talvez a maior autoridade viva sobre a vida e obra de Inácio de Loiola, e qualquer discussão intelectual, mesmo sobre um assunto tão desagradável para o padre Leopoldo, como um santo jesuíta, era como dar alimento a um homem faminto. Frequentemente, os hóspedes do mosteiro eram jovens de grande piedade que imaginavam ter vocação para trapistas e irritavam-no invariavelmente devido à sua ignorância e ao respeito exagerado que tinham por aquilo que acreditavam ser o seu grande sacrifício. Queriam uma forma romântica de sacrificar as suas vidas. Mas ele, ali, só encontrara uma paz precária.

O professor não estava na biblioteca e o padre Leopoldo sentou-se e voltou a pensar em Descartes. Fora Descartes quem o tirara do cepticismo e o levara para a Igreja, da mesma forma que levara a rainha da Suécia. Descartes não teria, com certeza, posto demasiado sal na sopa, nem teria grelhado de mais o peixe. Descartes era um homem prático, que trabalhara em óculos para encontrar a cura para a cegueira e em cadeiras de rodas para ajudar os inválidos. O padre Leopoldo, quando jovem, não tinha ideias de tornar-se padre. Agarrara-se a Descartes sem pensar onde poderia ir parar. Queria questionar tudo, à maneira de Descartes, procurando uma verdade absoluta, e, no fim, tal como Descartes, acabara por aceitar o que lhe parecera ser a coisa mais próxima da verdade. Mas foi então que deu um salto maior que Descartes, um salto para o mundo silencioso de Osera. Não se sentia infeliz, excepto em relação à sopa e ao peixe, mas, mesmo assim, estava satisfeito com a oportunidade de conversar com um homem inteligente, mesmo que tivesse de falar sobre Santo Inácio, em vez de sobre Descartes.

Passado um bocado, quando não havia sinais do Prof. Pilbeam, percorreu o corredor dos hóspedes e foi até à enorme igreja, que devia estar vazia àquela hora e que devia ter as portas exteriores fechadas. Havia poucos, excepto nas horas dos turistas, que visitavam a igreja, mesmo ao domingo, de maneira que para o padre Leopoldo era como um lar, quase livre da intrusão de estranhos. Ali podia fazer as suas orações individuais e era ali que muitas vezes rezava por Descartes, e muitas vezes até rezava a Descartes. A Igreja estava mal iluminada e, quando entrou pela porta privada do mosteiro, não reconheceu logo um vulto que examinava a pintura grotesca de um homem atirado para uma sebe com espinhos. Então, o homem falou com o seu sotaque americano: era o Prof. Pilbeam.

- Já sei que não gosta muito de Santo Inácio - disse -, mas, ao menos, ele foi um bom soldado, e um bom soldado encontraria meios de sofrimento mais úteis do que atirar-se para um monte de espinhos.

O padre Leopoldo abandonou a ideia das orações privadas, e, de qualquer modo, a rara oportunidade de conversar era um privilégio ainda maior. Disse:

- Não estou muito certo de que Santo Inácio estivesse assim tão preocupado com o que era útil. Um soldado pode ser muito romântico. Penso que é por essa razão que ele é um herói nacional.

Todos os Espanhóis são românticos, de modo que às vezes tomamos moinhos por gigantes.

- Moinhos?

- Sabe que um dos nossos grandes filósofos modernos, comparável a Santo Inácio, foi D. Quixote. Tinham muito em comum.

- Não leio Cervantes desde que era rapaz. Demasiado extravagante para o meu gosto. Não tenho muito tempo para a ficção. Gosto é de factos. Se conseguisse desenterrar um documento desconhecido sobre Santo Inácio, morreria feliz.

- Realidade e ficção ... nem sempre são fáceis de distinguir. Como o senhor é católico ...

-Um católico puramente nominal, padre. Não me incomodei a alterar o rótulo com que nasci. E, claro, ser católico ajuda-me nas investigações, abre-me portas. E você, padre Leopoldo, é um estudioso de Descartes. Imagino que é difícil isso abrir-lhe muitas portas. Que o trouxe para aqui?

- Suponho que Descartes me colocou no mesmo ponto em que se colocou a ele próprio: a fé. Realidade ou ficção ... No fim não se consegue distinguir entre as duas: tem de se escolher.

-Mas por que se tornou um trapista?

- Sabe, professor, penso que, quando se tem de saltar, é muito mais seguro fazê-lo para águas profundas.

- E não lamenta ...?

-Professor, há sempre muitas coisas a lamentar. As lamentações são parte da vida. Não podemos fugir-lhes, nem mesmo num mosteiro do século xii. Consegue fugir-lhes .na Universidade de Notre Dame?

- Não, mas há muito que cheguei à conclusão de que não sou um saltador.

Foi um comentário infeliz, porque nesse momento saltou mesmo, quando uma explosão lá fora foi seguida de mais duas e depois de um som de embate.

-Um pneu que rebentou! - exclamou o Prof. Pilbeam. - Receio que tenha havido um acidente de automóvel.

-Não foi pneu nenhum - respondeu o padre Leopoldo. - Foram tiros de pistola. - Dirigiu-se para a escada e gritou por cima do ombro: - As portas da igreja estão fechadas. Siga-me.

Correu pelo corredor dos quartos de hóspedes tanto quanto o hábito lhe permitia, e chegou sem fôlego à enorme escadaria. O professor seguia mesmo atrás.

- Vá à procura do padre Enrique. Diga-lhe que abra as portas da igreja. Se há alguém ferido, não o podemos trazer por todas estas escadas.

O padre Francisco, que estava encarregado da pequena loja, à entrada, deixara os seus postais ilustrados, rosários e garrafas de licor. Parecia assustado e acenava com as mãos em direcção à porta, sem quebrar o seu voto de silêncio.

Um pequeno Fiat esmagara-se contra a parede da igreja. Dois guardas saíram do jipe e aproximavam-se cautelosamente com as armas a postos. Um homem com sangue na cara tentava abrir a porta do Fiat. Gritou, zangado, para os guardas:

- Venham ajudar, seus assassinos. Não estamos armados.

O padre Leopoldo perguntou:

-Está ferido?

-Claro que estou ferido. Não é nada. Acho que mataram o meu amigo.

Os guardas afastaram as armas. Um deles disse: -Só atirámos para os pneus.

O outro explicou:

-Estes homens eram procurados por terem provocado um motim.

O     padre Leopoldo olhou para o passageiro através do vidro partido da frente. Exclamou:

-Mas é um padre! - E um momento depois: - Um monsenhor!

- Sim - disse o estranho, furioso -, um monsenhor. E se o monsenhor não tivesse parado para mijar, estaríamos agora em segurança no mosteiro.

Os dois guardas conseguiram abrir a porta. -Está vivo - disse um deles.

- Mas não graças a si.

-Estão ambos sob prisão. Entre no jipe, enquanto eu tiro o seu amigo.

As portas da igreja abriram-se e o Prof. Pilbeam juntou-se-lhes.

O padre Leopoldo disse:

-Estes homens estão feridos. Não pode levá-los assim. -São procurados por provocarem um motim e roubarem dinheiro.

-Disparate. O homem dentro do carro é um monsenhor. Os monsenhores não roubam dinheiro. Qual é o nome do seu amigo? - perguntou ao estranho.

- Monsenhor Quixote.

- Quixote! Impossível! - disse o Prof. Pilbeam. -Monsenhor Quixote, de El Toboso. Um descendente do grande D. Quixote.

- D. Quixote não tinha descendentes. Como podia tê-los? É um personagem de ficção.

- De novo a realidade e a ficção, professor. Tão difíceis de distinguir - disse o padre Leopoldo.

Os guardas tinham conseguido tirar o padre Quixote do carro acidentado e colocaram-no no chão. Tentava falar. O estranho debruçou-se sobre ele.

-Se ele morrer - disse aos guardas -, por Deus que vocês pagarão.

Um dos guardas parecia pouco à vontade, mas o outro perguntou abruptamente:

-Como se chama?

- Zancas, Enrique, mas o monsenhor - e pronunciou o título

como se fosse uma saudação - prefere chamar-me Sancho. - Profissão?

- Sou o antigo alcaide de El Toboso.

- Os seus documentos?

- Vejam se os conseguem encontrar no meio desta confusão. - Senor Zancas - disse o padre Leopoldo -, consegue perceber o que o monsenhor está a tentar dizer?

-Pergunta se o "rocinante" está bem.

- Rocinante? - exclamou o Prof. Pilbeam. - Mas o Rocinante era um cavalo.

- Ele refere-se ao carro. Não me atrevo a dizer-lhe. O choque poderia ser demasiado grande.

- Professor, por favor telefone para Orense. Mande vir o médico. O padre Francisco sabe o número.

O guarda grosseiro disse:

-Nós arranjamos o médico. Vamos levá-los para Orense.

- Não neste estado. Proíbo-o.

- Mandamos vir uma ambulância.

- Podem mandar vir a ambulância, se quiserem, mas pode levar muito tempo. Estes dois ficam no mosteiro até o médico autorizá-los a sair. Falarei com o bispo em Orense e tenho a certeza de que ele terá alguma coisa a dizer ao seu superior. Agora não se atreva a apontar-me a arma.

Vou participar - disse o outro guarda.

O     Prof. Pilbeam regressou com um monge. Traziam um colchão. Ele disse:

-O padre Francisco está a telefonar. Isto terá de servir de maca.

O padre Quixote foi içado para o colchão com alguma dificuldade e os quatro levaram-no para a igreja, pela navé. Ele murmurava o que poderiam ser preces, mas igualmente pragas. Quando passaram em frente ao altar e em direcção às escadas, tentou benzer-se, mas o sinal ficou incompleto. Voltara a desmaiar. As escadas foram uma dificuldade e tiveram de descansar ao cimo.

O Prof. Pilbeam disse:

- Quixote não é um nome espanhol. O próprio Cervantes disse que o verdadeiro nome era provavelmente Quexada e que ele não nasceu em El Toboso.

O alcaide disse:

- O monsenhor também não nasceu lá. -Onde nasceu ele?

O alcaide citou:

- "Numa certa aldeia de La Mancha, que não quero nomear." -Mas toda a história é absurda. E o Rocinante...

O padre Leopoldo disse:

-Vamos pô-lo na cama, no quarto de hóspedes número três, antes de discutirmos a difícil distinção entre realidade e ficção.

O padre Quixote abriu os olhos.

- Onde estou? - perguntou. - Pensei ... pensei ... que estava na igreja.

-E esteve, monsenhor. A igreja de Osera. Agora estamos a levá-lo para um quarto de hóspedes, onde poderá dormir confortavelmente até o médico chegar.

-Outra vez o médico. Oh, Deus! Oh, Deus! A minha saúde está assim tão má?

-Um pouco de descanso e voltará a ser o mesmo.

- Pensei .. na igreja... e depois havia algumas escadas ... Pensei que poderia dizer a missa...

- Talvez ... amanhã... quando estiver repousado.

- Passou muito tempo desde que disse uma. Doente... a viajar...

-Não se preocupe, monsenhor. Talvez amanhã.

Levaram-no para o quarto, e o médico de Orense chegou e disse-lhes pensar que não era nada de grave: o choque e um golpe pequeno na testa, devido ao vidro partido. Claro que na sua idade... No dia seguinte examiná-lo-ia mais pormenorizadamente. Talvez fosse necessária uma radiografia. Entretanto deveria manter-se calmo. Era o alcaide quem precisava de mais atenção, mais atenção em mais do que um aspecto, porque, depois de o médico ter acabado de tratá-lo (cerca de meia dúzia de pontos), o chefe da Guarda de Orense telefonou.

A Guarda informara-se sobre o padre Quixote telefonando para La Mancha - o bispo de lá dissera-lhe que ele era de facto monsenhor (devido a algum descuido do Santo Padre), mas que o seu estado mental o tornara irresponsável pelas suas acções. Quanto ao seu companheiro, isso era outra questão. Era verdade que ele fora alcaide de El Toboso, mas fora derrotado nas últimas eleições e era notoriamente um comunista.

Felizmente foi o padre Leopoldo quem atendeu o telefone. Disse:

-Em Osera não nos interessam ideias políticas. Eles ficam aqui até estarem em condições de viajar.

O médico dera um sedativo ao padre Quixote. Ele dormiu profundamente e era uma da manhã quando acordou. Não conseguia perceber onde estava. Chamou: "Teresa!" Mas não houve resposta. Algures ouviam-se vozes, vozes masculinas, e pensou que o padre Herrera e o bispo estavam a falar dele na sala. Saiu da cama, mas as pernas fraquejaram e tornou a cair, enquanto gritava com mais desespero por Teresa. O alcaide entrou, seguido de perto pelo padre Leopoldo. O Prof. Pilbeam ficou a observar à porta, sem entrar.

- Está com dores, monsenhor? - perguntou o padre Leopoldo.

-Por favor não me chame monsenhor, Dr. Galván. Nem sequer tenho direito a dizer missa. O bispo proíbe-me. Ele até gostaria de queimar os meus livros.

-Que livros?

-Os livros de que eu gosto. São Francisco de Sales, Santo

Agostinho, Senorita Martin de Lisieux. Penso que ele nem me deixaria ficar com São João.

Colocou a mão na ligadura que tinha na cabeça.

-Estou contente por ter voltado a El Toboso. Mas talvez neste momento o padre Herrera esteja a queimar os meus livros lá fora.

- Não se preocupe. Dentro de um ou dois dias, padre, voltará a ser o mesmo. Por agora tem de descansar.

-É difícil descansar, doutor. Vem-me tanta coisa à cabeça. O seu casaco branco ... Não vai operar, pois não?

- Claro que não - tranquilizou-o o padre Leopoldo. - Só mais um comprimido para adormecer.

-Mas, Sancho, é você? Estou contente por vê-lo. Conseguiu chegar bem. Como está o "rocinante"?

-Muito cansado. A descansar na garagem.

-Que velho par! Também eu estou cansado.

Tomou o comprimido sem resistir e adormeceu quase imediatamente.

-Fico aqui com ele - disse Sancho.

-Fico também consigo. Não conseguiria dormir com a preocupação - disse o padre Leopoldo.

-Vou deitar-me um bocado - disse o Prof. Pilbeam. - Sabem onde é o meu quarto. Acordem-me se for preciso.

Eram cerca de três da manhã quando o padre Quixote falou e

acordou os dois de um ligeiro dormitar. Disse:

-Excelência, um cordeiro pode domar um elefante, mas peço

-lhe para lembrar-se das cabras nas suas orações. -Sonho ou delírio? - perguntou o padre Leopoldo. Sancho disse:

- Parece que me lembro ...

-Não tem o direito de queimar os meus livros, Excelência. A

espada, peço-lhe, não a morte por espetadas de alfinete.

Houve um curto silêncio e depois o padre Quixote disse: - Um gás intestinal libertado pode ser musical.

- Receio - sussurrou o padre Leopoldo - que ele esteja pior

do que o médico nos disse.

Mambrino - disse a voz, da cama -, o elmo de Mambrino. Dêem-mo.

-Que quer dizer com o elmo de Mambrino? Sancho respondeu:

-Era a bacia de barbeiro que D. Quixote usara. O seu antepassado, segundo pensa.

-O professor acha que tudo isso é disparate.

-Também o bispo, o que me leva a pensar que pode ser verdade.

- Lamento e peço perdão pela meia-garrafa. Foi um pecado

contra o Espírito Santo.

-Que quer ele dizer?

-Levaria muito tempo a explicar.

- O homem aprendeu muitas coisas importantes com os ani

mais: com as cegonhas, o clister; com os elefantes, a castidade; com os cavalos, a lealdade.

-Isso parece São Francisco de Sales - murmurou o padre

Leopoldo.

-Não. Acho que é Cervantes - corrigiu o Prof. Pilbeam, enquanto entrava no quarto.

Durante momentos fez-se silêncio.

- Está outra vez a dormir - murmurou o padre Leopoldo. Talvez esteja mais calmo quando acordar.

- O silêncio nem sempre é sinal de paz - disse Sancho. - Às

vezes significa agonia no espírito.

A voz que saiu da cama parecia, contudo, forte e firme: -Não lhe ofereço um cargo governativo, Sancho. Ofereço-lhe um reino.

- Fale com ele - ordenou o padre Leopoldo.

-Um reino? - repetiu Sancho.

- Venha comigo e encontrará o reino.

-Nunca_ o deixarei, padre. Andamos juntos há demasiado tempo.

-Por esta viagem se pode reconhecer o amor.

O padre Quixote sentou-se na cama e atirou os lençóis para trás.

- Condena-me, Excelência, a não dizer a minha missa, mesmo em privado. Isso é uma coisa vergonhosa. Porque eu estou inocente, repito-lhe abertamente as palavras que disse ao Dr. Galván: "Que se lixe o bispo."

Pôs os pés no chão, oscilou um momento e depois conservou-se firme.

-Por esta viagem se pode reconhecer o amor.

Caminhou até à porta do quarto e procurou a maçaneta. Voltou-se e olhou através dos três homens, como se fossem de vidro.

- Balões, não - comentou com profunda tristeza. - Balões, não.

-Siga-o - disse o padre Leopoldo ao alcaide. - Não devíamos acordá-lo?

- Não. Poderia ser perigoso. Deixem-no continuar com o sonho.

O padre Quixote caminhava lenta e cuidadosamente pelo corredor e dirigia-se para a grande escadaria, mas talvez alguma recordação do caminho por onde o tinham trazido da igreja fê-lo parar. Dirigiu-se a uma das figuras de madeira pintada -papa ou cavaleiro? - e perguntou, lucidamente:

-É este o caminho para a vossa igreja?

Pareceu ter obtido resposta, porque voltou para trás e passou por Sancho sem uma palavra, seguindo desta vez na direcção certa, pelas escadas privadas. Seguiram-no cuidadosamente para não o perturbar.

-Suponha que ele cai nas escadas... - murmurou o alcaide.

-Acordá-lo seria ainda mais perigoso.

O padre Quixote conduziu-os para as sombras da grande igreja, iluminada unicamente pela meia-lua que brilhava através da janela lateral. Caminhou firmemente para o altar e começou a dizer as palavras da antiga missa latina, mas de uma forma estranhamente truncada. Começou com o responso:

- "Et introibo ad altare Dei, qui laetificat juventutem meam. "

-Estará consciente do que faz? - sussurrou o Prof. Pilbeam.

- Só Deus sabe - respondeu o padre Leopoldo.

A missa continuou rapidamente ... sem epístola nem evangelho. Era como se o padre Quixote corresse para a consagração. Por que temia a interrupção do bispo?, perguntou-se o alcaide. Da Guarda? Até a longa lista de santos de Pedro a Damião foi omitida.

- Quando ele não vir nem a pátena nem o cálice, com certeza que acorda - disse o padre Leopoldo.

O alcaide aproximou-se uns passos do altar. Receava que o padre Quixote quando acordasse pudesse cair, e queria estar perto para agarrá-lo.

-Aquele que no dia anterior sofreu, tomou o pão... - O padre Quixote parecia completamente inconsciente de que não havia hóstia nem pátena no altar. Ergueu as mãos vazias: - Hoc est enim corpus meum. - E depois continuou placidamente, sem hesitação, com a consagração do inexistente vinho para o inexistente cálice.

O padre Leopoldo e o professor tinham-se ajoelhado, devido ao hábito, ao ouvir as palavras da consagração; o alcaide continuou em pé. Queria estar preparado para o caso de o padre Quixote cair.

- Hic est enim calix sanguinis mei. - E as mãos vazias pareciam erguer um cálice.

-Sonhos? Delírio? Loucura? - O Prof. Pilbeam murmurou a questão.

O alcaide aproximou-se mais alguns passos do altar. Tinha medo de distrair o padre Quixote. Enquanto dissesse as palavras latinas, pelo menos estava feliz.

Nos anos que tinham passado desde a sua juventude em Salamanca, o alcaide esquecera a maior parte da missa. O que conservava na cabeça eram certas passagens fundamentais, que o tinham atraído emocionalmente naquele distante tempo. O padre Quixote parecia estar a sofrer do mesmo lapso de memória - talvez em todos aqueles anos a dizer missa, quase mecanicamente, de cor, fossem aquelas as únicas frases que, tal como os candeeiros da infância, tivessem iluminado o quarto escuro do hábito e que ele recordava agora.

Era assim que se lembrava do padre-nosso, e dali a sua memória saltou para o Agnus Dei:

- Agnus Dei qui tollis peccata mundi. Fez uma pausa e abanou a cabeça. Por um momento, o alcaide pensou que ele ia acordar do sonho. Falava tão baixo que só o alcaide o ouvia: - Cordeiro de Deus, mas as cabras, as cabras... - E depois continuou directamente com a oração do centurião romano: - Senhor, eu não sou digno de que entreis na minha morada, mas dizei uma só palavra, e a minha alma será salva.

A comunhão aproximava-se. O professor disse:

-Com certeza que, quando ele não encontrar nada para tomar, acordará.

-Não sei - respondeu o padre Leopoldo. - Pergunto-me se ele voltará a acordar.

Por segundos, o padre Quixote permaneceu em silêncio. Oscilou ligeiramente para a frente e para trás do altar. O alcaide deu outro passo, pronto para agarrá-lo, mas, então, ele voltou a falar:

- Corpus Domini nostri.

Sem qualquer hesitação, tirou da invisível pátena a invisível hóstia, e os seus dedos colocaram o nada na sua boca. Depois ergueu o invisível cálice e pareceu beber dele. O alcaide podia ver o movimento da sua garganta enquanto engolia.

Pela primeira vez pareceu consciente de não estar sozinho na igreja. Olhou à volta com ar baralhado. Talvez procurasse os comungantes. Reparou no alcaide, a alguns passos dele, e pegou na inexistente hóstia entre os dedos; franziu as sobrancelhas, como se alguma coisa o intrigasse e depois sorriu.

- Compañero - disse. - Deve ajoelhar, compañero.

Deu três passos com os dois dedos estendidos, e o alcaide ajoelhou. "Qualquer coisa que lhe dê paz", pensou, "qualquer coisa." Os dedos aproximaram-se. O alcaide abriu a boca e sentiu os dedos, como uma hóstia, na boca.

-Por esta viagem - disse o padre Quixote -, por esta viagem.

Depois, as suas pernas fraquejaram. O alcaide só teve tempo de agarrá-lo e de colocá-lo no chão.

- Compañero - repetiu por sua vez o alcaide -, este é Sancho. - E procurou freneticamente o bater do coração do padre Quixote.

 

O hóspede principal, um homem muito velho chamado padre Felipe, disse ao alcaide que poderia encontrar o padre Leopoldo na biblioteca. Era a hora da visita, e o padre Felipe conduzia um esparso grupo de turistas na visita às partes do mosteiro abertas ao público. Havia senhoras idosas, que ouviam todas as palavras com o que parecia profundo respeito, alguns maridos óbvios, que, pelo seu ar desprendido, davam a entender estar a seguir a procissão só para agradar às mulheres, e três jovens que tiveram de ser impedidos de fumar - estavam obviamente desanimados porque duas lindas raparigas do grupo não mostravam o menor interesse pelas suas presenças. A sua masculinidade parecia não atrair as raparigas, mas o celibato e o silêncio no velho edifício eram como um perfume provocante e elas olhavam com fascinação para o letreiro "Clausura" que a certo ponto impedia a sua continuação, como um sinal de trânsito, como se para além dele pudesse haver segredos mais interessantes e perversos do que qualquer coisa que os homens jovens pudessem oferecer.

Um dos jovens experimentou uma porta e encontrou-a fechada. Para chamar a atenção para si próprio, chamou: -Padre, que há ali dentro?

- Um dos novos hóspedes está a dormir até mais tarde - respondeu o padre Felipe.

"Um sono longo e tardio", pensou o alcaide. Era o quarto onde jazia o corpo do padre Quixote. Ficou ali a observar o grupo, que passava ao longo do corredor dos quartos de hóspedes, e depois voltou para a biblioteca. Ali encontrou o professor e o padre Leopoldo a andar para cima e para baixo.

- Realidade e ficção - dizia o padre Leopoldo -, não podemos distingui-las com certeza.

O alcaide disse:

- Padre, vim para despedir-me.

        - É bem-vindo, se quiser ficar mais um tempo.

Suponho que o corpo do padre Quixote será hoje levado para El Toboso. Penso que estarei melhor em Portugal, onde tenho amigos. Autoriza-me a servir-me do telefone para pedir um táxi       que me leve a Orense, onde posso alugar um carro?

O professor disse:

-Eu levo-o. Tenho de ir a Orense.

- Não quer assistir ao funeral do padre Quixote? - perguntou o padre Leopoldo ao alcaide.

- O que se faz com o corpo não é muito importante, pois não?

- Um pensamento muito cristão     comentou o padre Leopoldo.

- Além disso - disse o alcaide -, penso que a minha presença perturbará o bispo, que lá estará, com certeza, se ele for enterrado em El Toboso.

-Ah, sim, o bispo. Já esteve ao telefone esta manhã. Queria que eu dissesse ao prior que se certificasse de que o padre Quixote não estava autorizado a dizer missa mesmo em privado. Eu expliquei as tristes circunstâncias que lhe davam a certeza de a sua ordem ser cumprida... isto é, no futuro.

-Que disse ele?

-Nada, mas penso que ouvi um suspiro de alívio.

-Por que disse "no futuro"? Aquilo que ouvimos ontem à noite dificilmente poderá ser considerado uma missa - disse o professor.

- Tem a certeza? - perguntou o padre Leopoldo. -Claro que tenho. Não houve consagração. -Repito: tem a certeza?

-Claro que tenho. Não havia hóstia nem vinho.

-Penso que Descartes seria mais cuidadoso do que você a di

zer que não viu pão nem vinho.

- Você sabe tão bem como eu que não havia pão nem vinho. -Eu sei tão bem como você... ou tão pouco... sim, concordo.

Mas o monsenhor Quixote acreditava obviamente na presença do pão e do vinho. Qual de nós estava certo? -Nós.

- Muito difícil provar isso logicamente, professor. Mesmo muito difícil.

- Quer dizer - perguntou o alcaide - que eu posso ter recebido a comunhão?

- Recebeu mesmo ... no espírito dele. Isso tem importância para si?

-Para mim não. Mas receio que aos olhos da vossa Igreja eu seja um comungante muito indigno. Sou comunista. Um que não se confessa há trinta anos ou mais. O que eu fiz nestes trinta anos... bem, vocês não gostariam que eu entrasse em pormenores.

- Talvez o monsenhor Quixote conhecesse melhor do que você o seu estado de espírito. Vocês foram amigos, viajaram juntos. Ele encorajou-o a tomar a hóstia. Não mostrou hesitação. Ouvi-o distintamente dizer: "Ajoelhe, companero."

-Não havia hóstia - persistiu o professor num tom de profunda irritação, apesar do que Descartes poderia ter dito. - Você está a discutir por discutir. Está a abusar de Descartes.

-Pensa que é mais difícil tornar ar vazio em vinho do que vinho em sangue? Poderão os nossos limitados sentidos decidir tal coisa? Enfrentamos um mistério infinito.

O alcaide disse:

-Prefiro pensar que não havia hóstia. - Porquê?

-Porque, quando era mais novo, acreditei em parte num Deus e ainda me resta um pouco dessa superstição. Tenho medo do mistério, e estou velho de mais para mudar. Prefiro Marx ao mistério, padre.

-Você foi um bom amigo e é um bom homem. Não quer a minha bênção, mas terá de aceitá-la. Não fique atrapalhado. É só um hábito que temos, como mandar cartões no Natal.

Enquanto o alcaide esperava pelo professor, comprou ao padre Felipe uma garrafa pequena de licor e dois postais porque eles se tinham recusado a aceitar dinheiro pela hospedagem e até pela chamada telefónica. Não queria mostrar-se grato - a gratidão era como uma algema que só o captor podia libertar. Queria sentir-se livre, mas tinha a sensação de que algures na estrada de El Toboso perdera a sua liberdade. É humano duvidar, dissera-lhe o padre Quixote, mas duvidar, pensou ele, é perder a liberdade de acção.

 

 

                                                                  Graham Greene

 

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades