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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MONTADO NA BALA / Stephen King
MONTADO NA BALA / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MONTADO NA BALA

 

Eu nunca contei esta estória a ninguém, e nunca pensei que poderia – não porque eu tivesse medo de não acreditarem, realmente, mas porque eu tinha vergonha...e porque isto era coisa minha. Eu sempre senti que contando eu nos tornaria baratos, a mim e a estória, diminuindo-a e tornando-a mais mundana, apenas mais uma estória de fantasma daquelas contadas em acampamentos depois que as luzes se apagam. Eu acho que eu também tinha medo de que, se eu contasse, ouvindo-a com meus próprios ouvidos, também começaria a não acreditar. Mas desde que minha mãe morreu, eu não tenho dormido muito bem. Eu acordo e cochilo de novo, desperto e tremo. Tenho deixado o abajur aceso, como ajuda, mas não ajuda tanto quanto você deve achar. Há tantas sombras na noite, você já tinha notado isso? Mesmo com a luz acesa há muitas sombras. A maior delas poderia ser a sombra de qualquer coisa, você sabe. De qualquer coisa, mesmo.

Eu era calouro na Universidade do Maine quando a Sra. McCurdy me ligou para falar da mãe. Meu pai morreu quando eu era jovem demais pra lembrar dele e desde que eu era pequeno, sempre foi Alan e Jane Parker contra o mundo. A Sra. McCurdy, que morava logo seguindo a rua, ligou para o apartamento que eu dividia com outros três caras. Ela tinha pegado o número na lousa magnética que minha mãe tinha na porta da geladeira.

 

“Teve um derrame”, ela disse naquele sotaque longo e arrastado sotaque ianque delas. “Aconteceu no restaurante. Mas não vá largar tudo e sair voando. O médico disse que ela num tá tão mal. Ela está acordada e falando”.

 

“Claro, mas ela está falando coisa com coisa? perguntei. Eu estava tentando parecer calmo, até divertido, mas meu coração estava batendo muito rápido e o quarto, de repente, parecia quente demais. Eu estava sozinho no apartamento, era quarta-feira, e meus colegas tinham aulas o dia inteiro.

 

“Oh, sim. A primeira coisa que ela disse foi pra eu ligar pra você, mas não assustá-lo. Isto é muito consciente, você não acha”?

 

“Sim”. Mas é claro que eu estava assustado. Quando alguém liga e diz que sua mãe foi levada do trabalho para o hospital numa ambulância, como você vai se sentir?

 

“Ela disse pra você ficar aí e manter sua mente na escola até o final da semana. Ela disse que você poderia vir então, se não tiver muita coisa pra estudar”.

 

Claro, pensei. Isso é ótimo. Eu deveria ficar aqui neste apartamento gasto e fedendo a cerveja enquanto minha mãe está numa cama de hospital a cem milhas de distância, talvez morrendo.

 

“Ela ainda é jovem, sua mãe”, disse a Sra. McCurdy. “É só que ela engordou muito nestes últimos anos, e ela é hipertensa. Mais os cigarros. Ela vai ter que parar de fumar”.

 

Eu duvidei que ela conseguisse, com ou sem derrame, e sobre isso eu estava certo – minha mãe adora seus cigarros. Eu agradeci a Sra. McCurdy por ter ligado.

 

“Foi a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa” disse. “Bem, quando você vem, Allan? Sábo (sábado)? Havia uma nota furtiva em sua voz que sugeria que ela sabia de mais alguma coisa.

 

Eu olhei pela janela e vi a perfeita tarde de outubro: o brilhante céu azul da Nova Inglaterra atrás das árvores que deixam cair suas folhas amarelas na Rua Mill. Então, eu olhei o relógio. Três e vinte da tarde. Eu me preparava para sair e assistir a palestra sobre filosofia das quatro horas quando o telefone tocou.

 

“Você está brincando?” perguntei. “Eu estarei aí hoje à noite.

 

A risada dela era seca e rascante – a Sra. McCurdy era alguém que podia falar sobre parar de fumar, ela e seus Winstons. “Bom menino! Você vai direto pro hospital, né, depois para casa?

 

“Eu acho, sim”, eu disse. Não vi motivo para contar a Sra. McCurdy que havia alguma coisa errada com o câmbio do meu velho carro, e que ele não ia a lugar nenhum além da calçada no seu previsível futuro. Eu pediria carona até Lewiston, e de lá até nossa pequena casa em Harlow, se não ficasse muito tarde. Se ficasse, eu tiraria uma soneca numa das salas de espera do hospital. Não seria a primeira vez que eu sairia da escola de carona. Ou que eu dormiria sentado com a cabeça apoiada numa máquina de Coca-cola, de qualquer maneira.

 

“Estou certa de que as chaves estão debaixo do carrinho-de-mão vermelho”,ela disse. Você sabe o que eu quero dizer, né?

 

“Claro”. Minha mãe mantinha um carrinho-de-mão vermelho ao lado da porta; no verão ela o enfeitava com flores. Pensar nisso, por alguma razão me fez pensar na casa nova da Sra. McCurdy e num fato muito verdadeiro: minha mãe estava num hospital, a pequena casa em Harlow onde eu cresci ficaria às escuras esta noite – não havia ninguém lá para acender as luzes depois do crepúsculo. A Sra. McCurdy podia dizer que ela era jovem, mas quando você tem 21 anos, 48 parecem muito.

 

“Se cuida, Alan. Não corra”.

 

Minha velocidade é claro, dependia de quem me desse carona, e particularmente, eu esperava que fosse alguém querendo tirar o pai da forca. O que eu sabia é que tinha que chegar ao Centro Médico do Maine o mais rápido possível. Apesar disso, não havia sentido em preocupar a Sra. McCurdy.

 

“Não vou correr. Obrigado”.

 

“De nada”, ela disse. “Sua mãe vai indo bem. E não vai gostar de ver você”.

 

Eu desliguei, escrevi um recado dizendo o que tinha acontecido e para onde eu estava indo. Pedia a Hector Passamore, o mais responsável dos meus colegas, e avisar meu conselheiro e pedir a ele que contasse aos meus professores o que tinha acontecido e I wouldn’t get wacked for cutting – dois ou três dos meus professores ficavam uma fera por causa disso. Então, joguei algumas roupas na mochila, juntei uma cópia marcada da Introdução à Filosofia e saí. Desisti do curso na semana seguinte, embora eu estivesse indo bem até então. A maneira como eu enxergava o mundo mudou naquela noite, mudou pra valer, e nada no meu livro de filosofia parecia poder consertar isso. Eu comecei a entender que há coisas por baixo, veja só – por baixo – e nenhum livro pode explicar o que elas são. Eu acho que, às vezes, é melhor simplesmente esquecer que as coisas estão lá. Se você pode, faça isso.

 

São cento e vinte milhas da Universidade do Maine em Orono até Lewiston em Androscoggin County, e o caminho mais rápido pe pela rodovia I-95. O problema é que não é uma boa estrada se você estiver pedindo carona, acho; a polícia estadual está pronta a chutar qualquer um – mesmo que você só esteja lá parado, eles te chutam – e se o mesmo policial pega você duas vezes, você é multado. Então eu peguei a Rota 68, que vem pelo sudoeste de Bangor. É uma estrada bastante movimentada, e se você não parece um psicopata, geralmente se dá bem. Os policiais também te deixam em paz a maior parte do tempo.

 

Minha primeira carona foi com um sombrio vendedor de seguros que levou até Newport. Eu fiquei parado na intersecção da Rota 68 e da Rota 2 por mais ou menos 20 minutos, então peguei carona com um velho cavalheiro que estava indo para Bowdoinham. Ele segurava o gancho das calças enquanto dirigia. Era como se ele estivesse tentando pegar alguma coisa que estivesse em volta.

 

“Minha muié sempre me disse queu ia acabar com u’a faca nas minhas costas se eu desse carona”, ele disse, “mas quano eu vejo um garoto que nem ocê parado na estrada, eu me alembro dos meus tempos de jovem. Balancei muito o dedo por aí. E óia só, ela morreu tem quatro anos e eu inda to aqui, guiando o mesmo Dodge veio. Morro de saudade dela”. Ele agarrou as calças. “Pronde ocê vai, fio??”

 

Eu contei a ele que estava indo para Lewiston e porquê.

 

“Isso é terrível”, ele disse. “S’a mãe! Eu sinto tanto!

 

Seus sentimentos eram tão fortes e espontâneos que eu senti o canto dos olhos pinicando. Eu pisquei pra segurar as lágrimas. A última coisa no mundo que eu queria era explodir em lágrimas no velho carro do velho, que sacudia e resfolegava e fedia a mijo.

 

“A Sra. McCurdy – a senhora que me ligou – disse que não é nada sério. Minha mãe ainda é jovem, só tem 48.

 

“Mesmo assim! Um derrame!” Ele estava realmente espantado. Ele agarrou o gancho de suas calças verdes de novo, sacudindo com uma mão demasiado grande parecendo uma garra.

 

“Um derrame é sempre sério! Fio, eu levaria ocê diretinho até o CMMC eu memo, se eu não tivesse prometido levar meu irmão Ralph até o asilo em Gates. A muié dele, ela tem uma doença de esquecer, eu não sei a palavra que eles usam, Anderson ou Alvarez, ou alguma coisa –”

 

“Alzheimer”, eu disse.

 

“Isso, vai vê eu já to cum isso. Diacho, acho que eu levo ocê”.

 

“Você não precisa fazer isso”, eu disse “. Eu consigo carona facilmente em Gates.

 

“Mesmo assim”, ele disse. “Sua mãe! Um derrame! Só 48!” Ele agarrou o inchado gancho de suas calças. “Caralho!” ele gritou, então riu – o som era ao mesmo tempo desesperado e sombrio. “Puta Merda! Se ocê fica andando por aí as coisas acabam se quebrando. Deus te dá um chute na bunda no fim, fique sabendo. Mas ocê é um bom garoto pra passar por cima de tudo e fazer o que ela quer que ocê faça”.

 

“Ela é uma boa mãe”, eu disse, e senti as lágrimas de novo. Eu nunca senti muita saudade quando eu fui pra escola – um pouco na primeira semana, nada mais – mas estava com saudade agora. Sempre fomos eu e ela, sem parentes próximos. Não é tão grave, a Sra. McCurdy tinha dito; um derrame, mas não tão grave. Velha desgraçada, é melhor estar dizendo a verdade, pensei, é melhor.

 

Rodamos em silêncio por um tempo. Não era a corrida rápida que eu esperava que fosse – o velho mantinha 45 m/h e de vez em quando ultrapassava a linha branca e ia para a outra pista – mas era uma longa viagem, e estava de bom tamanho. A rodovia 68 se estendia a nossa frente, mudando o caminho para várias milhas de bosques separando cidadezinhas que iam e vinham devagar, cada uma com seu bar e seu posto de gasolina self-service: New Sharon, Ophelia, West Ophelia, Ganistan (que uma vez se chamou Afeganistan, estranho, mas é verdade), Mechanic Falls, Castle View, Castle Rock. O claro azul do céu começou a diminuir quando o dia foi indo embora; o velho acendeu primeiro as lanternas e depois os faróis. Ele estava com os faróis altos acesos, mas não pareceu notar, nem quando os carros que vinham em sentido contrário jogavam os faróis altos nele.

 

“Minha cunhada nem lembra o próprio nome”, ele disse. “Ela não sabe se é sim, não, talvez. Isto é o que essa doença do Anderson faz c’ocê, fio. Há algo nos olhos dela... como se ela estivesse dizendo ‘Me deixe sair daqui’... ou quisesse dizer, se ela pudesse se lembrar das palavras. Entende o que eu quero dizer?”

 

“Sim”, eu disse. Respirei fundo e fiquei imaginando se o cheiro de mijo que eu sentia era do velho ou de algum cachorro que viesse com ele de vez em quando. Imaginei se ele se ofenderia se eu abrisse minha janela um pouco. Finalmente, abri. Ele não pareceu notar, não mais do notava os faróis altos dos carros com que cruzávamos.

 

Por volta de sete horas nós atravessamos uma colina em West Gates e meu chofer gritou, “Oia, fio! A Lua! Não é o máximo?”

 

Ela estava de fato o máximo - uma enorme bola laranja levantando-se acima do horizonte. Pensei que não obstante, havia algo terrível nisso. A Lua parecia grávida e infectada. Olhando para a Lua que crescia, me veio de repente um pensamento horrível: e se eu chegasse ao hospital e minha mãe não me reconhecesse? E se ela tivesse perdido a memória completamente, e ela não soubesse mais sim, não e talvez? E se o médico me dissesse que ela ia precisar de alguém pra tomar conta dela pelo resto da vida? Este alguém teria que ser eu, claro, não havia mais ninguém. Adeus faculdade. Que tal isso, amigos e vizinhos?

 

“Faça um pedido, fio!” o velho gritou. No excitamento, a voz dele ficou mais rascante e desagradável – como se tivesse cacos de vidro enchendo seus ouvidos. Ele deu um enorme puxão no gancho da calça. Alguma coisa lá deu um estalo. Eu não via como você pode dar um puxão desse no seu gancho e não arrancar suas bolas pelo talo. “O desejo que você faz pra Lua cheia sempre se realiza, era o que o meu pai dizia!!”

 

Então eu desejei que minha mãe pudesse me reconhecer quando eu entrasse no quarto dela, que os olhos dela brilhassem e que dissesse meu nome. Eu fiz o pedido e imediatamente desejei não ter feito; eu pensei que nenhum desejo feito pra uma Lua laranja como essa desse em coisa boa.

 

“Ah, fio!” Disse o velho. “Eu queria que a minha muié ‘tivesse aqui! Eu pedia perdão por cada palavra ruim que eu tenha dito a ela!”.

 

Vinte minutos depois, com a última luz do dia no ar e a Lua ainda subindo devagar e inchando no céu, chegamos a Gate Falls. Há um pisca-pisca amarelo na intersecção da Rota 68 com a Rua Pleasant. Logo antes de alcança-lo, o velho desviou pra fora da pista, subindo com a roda dianteira na guia e depois descendo de novo. Eu trinquei os dentes. O velho me olhou de um jeito meio selvagem, desafiador – tudo naquele velho era meio selvagem, apesar de eu não ter visto no início; tudo nele trazia um sentimento de vidro quebrado. E tudo que vinha da boca dele parecia uma exclamação.

 

“Eu vou te levar até lá! É, vou sim! Esqueça o Ralph! Ao diabo com ele! Você só tem que dizer a palavra!”

 

Eu queria chegar até minha mãe, mas pensar em mais vinte milhas sentindo aquele cheiro de mijo no ar e os carros piscando faróis altos não era muito agradável. Nem a imagem do velho vagando e costurando por quatro pistas da Rua Lisbon. Principalmente, pensei, por causa dele. Eu não podia agüentar mais vinte milhas de puxões nas calças e daquela voz excitada de vidro quebrado.

 

“Hei, não”, eu disse, “está tudo bem. Você vai e cuida do seu irmão”.Eu abri a porta e o que eu temia aconteceu – ele alcançou e segurou meu braço com sua mão velha e retorcida. Era a mão que ele vinha agarrando as calças.

 

“Você só tem que dizer!” ele me disse. Sua voz estava rouca, confidencial. Seus dedos estavam apertando a carne logo abaixo da axila. “Eu levo você direto até a porta do hospital! Ah, sim! Não se preocupe se eu nunca te vi antes ou se você nunca me viu antes! Não se preocupe com sim, não, talvez! Eu levo você direto... lá!”

 

“Tá tudo bem”, eu repeti, e estava lutando pra cair fora do carro, livrando minha camisa do seu aperto, se isso me livrasse. Era como se eu estivesse me afogando. Eu achava que se me movesse, seu aperto ficaria mais forte, e ele me pegaria pela nuca, mas não o fez. Seus dedos pararam, então deslizaram completamente quando eu pus a perna pra fora. E eu imaginei, como sempre fazemos quando um momento de pânico irracional passa, porque eu estava com tanto medo, afinal de contas. Ele era apenas uma velha forma de vida de carbono em um velho Dodge ecossistema de mijo, vendo desapontado que sua oferta tinha sido recusada. Apenas um velho que não se sentia confortável com seu pinto. Do que, em nome de Deus, eu tinha sentido medo?

 

“Eu lhe agradeço pela carona e mais ainda pela oferta”, eu disse. “Mas eu vou por ali –“ apontei para a Rua Pleasant. “– e num instante consigo uma carona”.

 

Ele ficou quieto um minuto, então suspirou e acenou com a cabeça. “Éééé, é o melhor caminho pra ir”, ele disse. Fique fora da cidade, ninguém quer dar carona na cidade, ninguém quer diminuir e buzinar.”

 

Ele estava certo quanto a isso; pedir carona na cidade, mesmo uma cidadezinha como Gates Falls era perda de tempo. Eu acho que ele tinha mesmo pedido carona.

 

“Bom, fio, ce tem certeza? Vocês sabem o que dizem sobre ter um pássaro na mão”.

 

Eu hesitei novamente. Ele estava certo sobre ter um pássaro na mão, também. A Rua Pleasant se tornava Ridge Road a uma milha ou mais além do pisca-pisca, e a Ridge Road corria através de 15 milhas de bosques antes de chegar a Rota 196 nos arredores de Lewiston. Estava quase escuro, e é sempre mais difícil conseguir carona à noite – quando os faróis te iluminam numa estrada rural, você parece um fugitivo do Centro Correcional para Garotos Wyndham mesmo com o cabelo penteado e a camisa pra dentro das calças. Mas eu não queria mais continuar com o velho. Mesmo agora, que eu estava a salvo fora do carro, eu achava que havia alguma coisa arrepiante sobre ele - talvez fosse apenas sua voz que parecia cheia de pontos de exclamação. Além do mais, eu sempre dera sorte pra conseguir caronas.

 

“Tenho certeza”, eu disse. E obrigado de novo. De verdade.”

 

“Quando quiser, fio, quando quiser. Minha muié...” Ele parou, e eu vi lágrimas correndo pelos cantos dos olhos. Agradeci novamente, então bati a porta antes que ele dissesse mais alguma coisa.

 

Atravessei a rua, minha sombra aparecendo e sumindo com a luz do pisca-pisca. Do outro lado eu me virei e olhei pra trás. O Dodge ainda estava lá, parado ao lado do Frank’s Fountain & Fruits. Com a luz do pisca-pisca e da rua, que ficava uns vinte pés além do carro, pude vê-lo sentado afundado atrás do volante. O pensamento que me veio é que ele estava morto, que eu o tinha matado com minha recusa em deixá-lo me ajudar.

 

Então um carro dobrou a esquina e o motorista jogou os faróis no Dodge. Nessa hora o velho acendeu os faróis do Dodge, e foi como eu soube que ele estava vivo. No instante seguinte ele pulou pra pista e pilotou o Dodge vagarosamente dobrando a esquina. Eu olhei até ele sumir, e então olhei pra Lua. Ela estava perdendo o inchaço alaranjado, mas ainda tinha alguma sinistra nela. Me ocorreu que eu nunca tinha ouvido falar em fazer desejos pra Lua antes – pra primeira estrela que aparece, sim, mas não pra Lua. Eu desejei ter meu desejo de volta de novo; como ficou escuro e eu ainda estava parado na encruzilhada, foi fácil pensar naquela estória da pata do macaco.

 

Eu caminhei pela Rua Pleasant, balançando meu polegar para os carros que vinham, mas nenhum diminuía. Primeiro havia casas e lojas dos dois lados da rua, então a calçada acabou e as árvores se tornaram mais fechadas, silenciosamente retomando a terra. Cada vez que a estrada era inundada pela luz, empurrando minha sombra à minha frente, eu me virava, esticava o polegar e punha um sorriso tranqüilizador no rosto. E cada vez um carro passava sem diminuir. Uma vez, alguém gritou, “Vai trabalhar, vagabundo!”, e deu risada.

Eu não tenho medo do escuro – ou não tinha naquela época – mas estava começando a temer que eu tivesse cometido um erro não deixando o velho me levar direto pro hospital. Eu poderia ter feito um cartaz escrito PRECISO DE CARONA, MÃE DOENTE antes de sair, mas eu duvido que isso pudesse ter ajudado. De todo jeito, qualquer psicopata pode fazer um cartaz.

 

Eu continuei andando, os tênis se desgastando do lado, ouvindo os sons que vão se juntando na noite: um cachorro, ao longe; uma coruja, bem perto; o assobio do vento. O céu estava claro com a luz da Lua, mas eu não podia ver a Lua agora – as árvores eram altas aqui e bloqueavam a visão por enquanto.

 

Como eu já estava longe de Gates, poucos carros passavam por mim. Minha decisão de não aceitar o oferecimento do velho parecia mais idiota a cada minuto. Eu comecei a imaginar minha mãe na cama do hospital, a boca caída numa careta congelada, perdendo seu apego à vida, mas tentando segurar o último suspiro pra mim, sem saber que eu não estava chegando porque eu não gostei da voz estridente de um velho ou do cheiro de mijo do carro dele.

 

Enfrentei uma colina íngreme e fiquei com a Lua as minhas costas de novo. As árvores estavam a minha direita, dando lugar a um pequeno cemitério rural. Eu vislumbrava as lápides na luz pálida. Alguma coisa pequena e preta estava abaixada ao lado de uma delas, me observando. Dei um passo para mais perto, curioso. A coisa preta moveu-se se tornando um bichinho do mato. Ela me lançou um único olhar de reprovação e foi pra dentro da grama alta. Por tudo isso, me dei conta de que eu estava cansado, na verdade, perto da exaustão. Eu estava que era pura adrenalina desde que a Sra McCurdy me ligara cinco horas antes, mas agora estava caindo. Essa era a parte ruim. A parte boa é que o senso de urgência me deixara, pelo menos por enquanto. Eu tinha feito minha escolha, decidido pela Ridge Road ao invés da Rota 68, e não havia o menor sentido nisso – diversão é diversão e o que está feito está feito, minha mãe dizia algumas vezes. Ela era cheia dessas coisas, pequenos aforismos Zen que quase faziam sentido. Fazendo sentido ou não, era o que me confortava agora. Se ela estivesse morta quando eu chegasse ao hospital, era o que era. Provavelmente não estaria. O médico dissera que ela não estava tão mal, de acordo com a Sra. McCurdy; a Sra. McCurdy também tinha dito que ela ainda era jovem. Um pouco de fardo pra carregar é verdade, e muito cigarro, mas ainda jovem.

 

Enquanto estava aqui divagando, subitamente me senti exausto – meus pés pareciam estar imersos em cimento.

 

Havia um muro de pedra correndo ao longo do cemitério, com uma falha formada por dois buracos. Eu sentei no muro com meus pés plantados num desses buracos. Desta posição, eu podia ver uma boa extensão da Ridge Road nas duas direções. Quando eu visse faróis vindo do oeste, em direção a Lewiston, eu podia ir para a ponta da estrada levantar meu dedo. Enquanto isso, eu podia apenas ficar sentado aqui com a mochila no colo e esperar que alguma força voltasse as minhas pernas.

 

Uma névoa, fina e ardente, subia da grama. As árvores cercavam três lados do cemitério e a brisa sussurrava. De além do cemitério vinha o som de água correndo e o ocasional coaxar de um sapo. O Lugar era bonito e estranhamente quieto, como uma gravura naqueles livros de poemas românticos.

 

Olhei para os dois lados da estrada. Ninguém vindo, além do brilho do horizonte. Pus minha mochila no chão perto do buraco onde eu tinha apoiado os pés e entrei no cemitério. Uma mecha de cabelo tinha caído sobre minha sobrancelha, o vento a afastou. A névoa rolou vagarosamente sobre meus sapatos. As lápidas de trás eram velhas, muitas tinham caído. As da frente eram muito mais novas. Eu me dobrei, as mãos apoiadas nos joelhos, para olhar uma que estava coberta de flores quase frescas. Sob a luz da Lua o nome era fácil de ler: GEORGE STAUB. Abaixo estavam as datas marcando o breve período da vida de George Staub: Janeiro 19, 1997, de um lado, Outubro 12, 1998 de outro. Isto explicava as flores que agora começavam a murchar; 12 de Outubro tinha sido há dois dias atrás e 1998, dois anos antes. Os amigos e parentes de George tinham vindo prestar suas homenagens. Abaixo do nome e das datas havia mais alguma coisa, uma pequena inscrição. Eu me abaixei mais para ler – e cai pra trás, apavorado e tudo mais que eu poderia sentir, visitando um cemitério à luz da Lua.

 

FUN IS FUN AND DONE IS DONE

(diversão é diversão e o que está feito está feito)

 

era o que estava escrito.

 

Minha mãe estava morta, talvez tivesse morrido nesse instante, e alguma coisa tinha me mandado uma mensagem. Alguma coisa com um senso de humor muito desagradável.

 

Comecei a voltar devagar para a estrada, atento ao vento nas árvores, atento ao sapo, atento a correnteza, subitamente com medo de ouvir outro som, o som da terra se esfregando e raízes rasgando como algo que não estivesse totalmente morto penetrando, tateando por um dos meus tênis –

Meus pés se enroscaram e eu caí, batendo meu cotovelo numa lápide, por pouco deixando de bater a nuca em outra. Caí com um baque na grama, olhando pra Lua que apenas clareava as árvores. Estava branca ao invés de laranja, agora, e tão brilhante quanto osso polido.

Ao invés de me apavorar mais, a queda clareou minha mente. Eu não sabia o que eu tinha visto, mas poderia ter sido o que eu pensava que tinha visto; a espécie de coisa que sempre acontece em filmes de John Carpenter e Wes Craven, mas não o tipo de coisa que acontece na vida real.

 

Tá, ok, legal, uma voz sussurrou na minha cabeça. E se você apenas sair daqui agora, você pode continuar acreditando nisso. Pode continuar acreditando pelo resto da sua vida.

“Foda-se”, eu disse e levantei. Os fundilhos do meu jeans estavam úmidos, e eu os tirei. Não seria exatamente fácil chegar perto do lugar de descanso eterno de George Staub, mas não seria tão difícil assim. O vento assobiava entre as árvores, num crescendo, anunciando uma mudança do tempo. Sombras dançavam oscilantes em volta de mim. Galhos se esfregavam uns nos outros, num chiado de bosque. Abaixei-me sobre a lápide e li:

 

         GEORGE STAUB

         JANUARY 19,1977 – OCTOBER 12,1998

         Well Begun, Too Soon Done

 

Fiquei parado ali, dobrado, as mãos apoiadas nos joelhos, sem perceber quão rápido meu coração batia até começar a se acalmar. Uma pequena e sórdida coincidência, isso era tudo, não era maravilhoso eu ter lido errado o que estava abaixo do nome e das datas? Mesmo tirando o cansaço e o stress, eu só poderia ler errado – o luar é um notório enganador. Caso encerrado.

 

Exceto que eu sabia o que eu tinha lido: Fun Is Fun and Done Is Done.

 

Minha mãe estava morta.

 

“Foda-se”, repeti, e me virei. Quando o fiz, percebi que a névoa que subia através da grama e em volta dos meus tornozelos começara a brilhar. Eu podia ouvir o murmúrio de um motor se aproximando. Um carro vinha vindo.

 

Eu me apressei em voltar pela abertura no muro, pegando minhas coisas pelo caminho. As luzes do carro que se aproximava já estavam na metade da colina.

 

Levantei o polegar justamente quando as luzes me golpearam, cegando-me momentaneamente. Eu sabia que o cara ia parar mesmo antes dele diminuir a velocidade. É engraçado como você simplesmente sabe disso algumas vezes, mas ninguém que passa muito tempo pedindo carona vai dizer que isso acontece.

 

O carro passou por mim, as luzes de freio flamejando, desviando para uma saliência perto do muro que dividia o cemitério de Ridge Road. Eu corri, a mochila batendo no lado do meu joelho.

 

O carro era um Mustang, daqueles legais, do final dos anos sessenta e começo dos setenta. O motor rugia alto, aquele som que vem de um silenciador que talvez não passe na próxima inspeção... mas isso não era problema meu.

 

Abri a porta e deslizei para dentro. Quando coloquei a mochila entre meus pés, um cheiro me golpeou, algo familiar e um pouco desagradável. “Obrigado”, eu disse. “Muito obrigado”.

 

O cara ao volante vestia jeans desbotados e uma camiseta preta com as mangas cortadas. Sua pele era bronzeada, os músculos fortes e seu bíceps direito era marcado com uma tatuagem de arame farpado azul. Ele usava um boné do John Deere virado ao contrário. Havia um button preso perto da gola da camiseta, mas de onde eu estava não conseguia ler o que estava escrito. “Sem problemas”, ele disse. “Vai pra cidade?”

 

“Sim”, eu disse. Esta parte da frase “pra cidade” significava Lewiston, a única cidade ao norte de Portland. Quando fechei a porta, vi um desses pequenos pinheiros desodorizantes, preso ao retrovisor. Foi esse o cheiro que senti. Estava claro que aquela não era a minha noite para cheiros. Primeiro urina e agora pinho artificial. Ainda assim, era uma carona. Eu deveria estar aliviado. E quando o cara acelerou de volta a Ridge Road, o grande motor do seu Mustang rugindo, tentei me convencer que eu estava aliviado.

 

“O que tem pra você na cidade?” o motorista perguntou. Ele era mais ou menos da minha idade, um cara que poderia ser de alguma escola técnica em Auburn ou talvez trabalhar em alguns dos poucos moinhos têxteis que restavam na área. Ele provavelmente restaurara o Mustang em suas horas de folga, porque isto é o que os caras de cidadezinhas faziam: bebiam cerveja, fumavam um pouco, consertavam seus carros. Ou motocicletas.

 

“Meu irmão vai se casar. Vou ser o padrinho”. Contei a mentira sem premeditação. Eu não queria que soubesse sobre minha mãe, embora eu não soubesse porquê. Alguma coisa estava errada com ele. Eu não sabia por que pensava assim, em primeiro lugar, mas eu sabia. Tinha certeza. “O ensaio é amanhã. E a despedida de solteiro, amanhã à noite”.

 

“É? Tem certeza?” Ele virou para olhar pra mim, grandes olhos e um rosto bonito, lábios cheios sorrindo ligeiramente, os olhos desconfiados.

 

“Sim”, eu disse.

 

Eu estava com medo. Assim, do nada, estava com medo de novo. Algo estava errado, tinha provavelmente começado a ficar errado quando aquele velho esquisito no Dodge tinha me dito pra fazer um pedido para a Lua contaminada ao invés de uma estrela. Ou talvez no momento em que eu atendi ao telefone e era a Sra. McCurdy dizendo que tinha más notícias pra mim, mas ‘não tão mal quanto poderia estar’.

 

“Bem isso é bom”, disse o homem com o boné virado ao contrário. “Um irmão casando, cara, isso é bom. Qual o seu nome?”

 

Eu não estava com medo, eu estava apavorado. Tudo estava errado, tudo, e eu não sabia porque ou como isso podia ter acontecido tão rápido. Eu sabia de uma coisa, entretanto: eu queria que o motorista do Mustang soubesse o meu nome tanto quanto eu quisera que ele soubesse o que eu ia fazer em Lewiston. Não que eu fosse conseguir chegar a Lewiston. De repente, eu tinha certeza que jamais veria Lewiston novamente. Era como saber que o carro estava parando. E havia o cheiro, eu sabia algo sobre isso também. Não era o desodorizante, era algo por baixo do cheiro.

 

“Hector”, eu disse, dando a ele o nome do meu colega de quarto. “Hector Passamore, sou eu”.Isso saiu da minha boca seca suave e calmamente, e isso era bom. Alguma coisa dentro de mim insistia que eu não devia deixar o motorista do Mustang saber que eu sentia alguma coisa errada. Era minha única chance.

 

Ele se virou pra mim um pouco, e eu pude ler seu button: I RODE THE BULLET AT THRILL VILLAGE, LACONIA. (Eu subi na bala em Thrill Village) Eu conhecia o lugar, tinha estado lá, embora não por muito tempo.

 

Eu também pude ver uma grossa linha negra que circundava sua garganta, como a tatuagem de arame farpado circundava seu braço, só que o que havia em volta da garganta dele não era uma tatuagem. Dúzias de marcas negras cruzavam-na verticalmente. Eram pontos, prendendo a cabeça no corpo.

 

“Prazer em conhece-lo, Hector”, ele disse. Eu sou George Staub.“

 

Minha mão pareceu flutuar como uma mão num sonho. Eu queria que fosse um sonho, mas não era; era a mais pura realidade. O cheiro por cima era pinho, por baixo era algo químico, provavelmente formol. Eu estava viajando com um homem morto.

 

O Mustang se lançava pela Ridge Road há 60 milhas por hora, seus faróis altos iluminando sob a Lua. Do outro lado, as árvores se aglomeravam dançando e se contorcendo com o vento. George Staub sorriu pra mim com seus olhos vazios, então largou minha mão e retornou sua atenção para a estrada. No colegial, eu li Dracula, e agora uma linha me vinha à cabeça, martelando como um disco riscado: A morte dirige rápido.

 

Não o deixe saber que eu sei. Isso também martelava na minha cabeça. Não era muito, mas era o que eu tinha. Não o deixe saber, não deixe, não. Eu imaginei onde estaria o velho agora. A salvo com o irmão dele? Ou ele tinha vindo? Talvez ele estivesse bem atrás de nós, dirigindo seu velho Dodge, afundado atrás do volante, apertando o saco? Estaria morto, também? Provavelmente não. A morte dirige rápido, de acordo com Bram Stoker, mas o velho nunca passou de 45 milhas. Eu senti uma risada insana subindo pela garganta e sufoquei-a. Se eu risse, ele saberia. E ele não podia saber, porque era a minha única chance.

 

“Não há nada como um casamento”, ele disse.

 

“É”, eu disse, todo mundo devia se casar pelo menos duas vezes.

 

Minhas mãos estavam entrelaçadas uma na outra, apertando-se. Eu podia sentir as unhas se enterrando nas costas delas, bem acima das juntas, mas a sensação era distante, bem longe mesmo. Eu não podia deixa-lo saber, esse era o caso. Os bosques estavam bem em volta de nós, a única luz era o brilho de osso polido da Lua, e eu não podia deixa-lo saber que eu sabia que ele estava morto. Porque ele não era um fantasma, nada tão inofensivo. Você pode ver um fantasma, mas que espécie de coisa pararia para dar carona? Que tipo de criatura era essa? Zumbi? Vampiro? Alma penada? Nenhuma das anteriores?

 

George Staub riu. “Duas vezes! È, cara, essa é a minha família!”

 

“A minha também”, eu disse. Minha voz soava calma, apenas a voz de um carona passando o dia – noite, nesse caso – tendo uma agradável conversa como pagamento pela corrida. “Realmente, não há nada como um funeral”.

 

“Casamento”, ele disse suavemente. Iluminado pelo painel, seu rosto era encerado, o rosto de um cadáver antes da maquiagem. O boné virado ao contrário era, particularmente, horrível. Fazia você imaginar o quanto tinha sido deixado debaixo dele. Eu tinha lido em algum lugar, que os agentes funerários arrancam fora o topo do crânio, tiram o cérebro e colocam uma espécie de algodão tratado quimicamente. Mantém o rosto sem cair, talvez.

 

“Casamento”, eu disse com os lábios duros, e até ri um poço – um risinho. “Casamentos, foi isso que eu quis dizer”.

 

“Nós sempre dizemos o que queremos dizer, isso é o que eu acho”, disse o motorista. Ele ainda estava sorrindo.

 

Sim, Freud acreditava nisso, também. Eu tinha lido em Psicologia 101. Duvidei que esse camarada soubesse muito sobre Freud, eu achava que não existiam muitos estudiosos de Freud vestindo camisetas sem manga e bonés de beisebol virados ao contrário, mas ele sabia o suficiente. Funeral, eu dissera. Santo Deus, eu tinha dito funeral. Veio-me a idéia de que ele estava jogando comigo. Eu não queria que ele soubesse que eu sabia que ele estava morto. Ele não queria me deixar saber que ele sabia que eu sabia que ele estava morto. E eu não podia deixar ele saber que eu sabia que ele sabia...

 

O mundo começou a balançar a minha volta. Num momento, começou a girar, rodar, então rodar, e eu tonteei. Fechei os olhos por um momento. Na escuridão, a imagem da Lua pendurada tornou-se verde.

 

“Está se sentindo bem, cara”, ele perguntou. A preocupação em sua voz era horrível.

 

“Sim”, eu disse, abrindo os olhos. Tudo estava firme de novo. A dor nas costas das minhas mãos, onde as unhas tinham se cravado, era forte e real. E o cheiro. Não apenas desodorizante de pinho, não apenas químico. Havia um cheiro de terra, também.

 

“Tem certeza?”, ele perguntou.

 

“Só estou um pouco cansado. Estive pegando carona por muito tempo. E às vezes, tenho um pouco de enjôo de carro”. A inspiração bateu forte. “Você sabe como é, acho melhor você me deixar descer. Se eu tomar um pouco de ar fresco, meu estômago vai se acalmar. Alguém deve passar logo e – “

 

“Não posso fazer isso”, ele disse. Deixa-lo aqui? De jeito nenhum. Pode demorar até uma hora para alguém passar por aqui, e eles podem nem parar. Eu vou tomar conta de você. Como é mesmo aquela música? Leve-me para a igreja a tempo, certo? De jeito nenhum vou deixa-lo. Abra sua janela um pouco, isso vai ajudar. Eu sei que o cheiro aqui não é dos melhores. Eu pendurei esse desodorizante, mas essas coisas fedem mais que merda. Claro, alguns cheiros são mais difíceis de se livrar que outros.”.

 

Eu queria alcançar a maçaneta da janela, abri-la e deixar o ar fresco entrar, mas os músculos do meu braço não pareciam apertar. Tudo o que pude fazer, foi ficar sentado ali, com as mãos entrelaçadas, as unhas batendo nas costas uma da outra. Uma parte dos meus músculos não podia trabalhar, outra parte estava parando. Que piada.

 

“É como naquela estória”, ele disse. “Aquela sobre o garoto que compra um Cadillac quase novo por setecentos e cinqüenta dólares. Você conhece a estória, né?”

 

“Sim”, eu disse através dos lábios cerrados. Eu não sabia a estória, mas eu sabia perfeitamente bem que eu não queria ouvi-la, não queria ouvir nenhuma estória que aquele homem quisesse contar. “Esta é famosa”. A nossa frente, a estrada saltou pra frente, como uma estrada daqueles velhos filmes preto e branco.

 

“Sim, famosa pra caralho”. Então, o garoto estava procurando um carro e vê este Cadillac quase novo no jardim do cara".

 

“Eu disse que –”

 

“Sim, e tem um cartaz que diz VENDE-SE, TRATAR COM O PROPRIETÁRIO na janela”.

 

Ele tinha um cigarro colocado atrás da orelha. Ele tentou alcança-lo, e quando o fez, sua camiseta caiu pra frente. Eu podia ver outra enrugada linha negra, mais pontos. Então, ele se apoiou para frente para pegar o isqueiro e a camiseta voltou pro lugar.

 

“O garoto sabe que não pode ter um Cadillac, não pode ter uma peça de um Cadillac, mas ele é curioso, sabe? Então ele vai até o cara e diz, ‘Quanto você quer por ele?’ E o cara desliga a mangueira – porque ele estava lavando o carro, você sabe – e diz ‘Garoto, hoje é seu dia de sorte. Setecentos e cinqüenta dólares e pode leva-lo.’”

O isqueiro acendeu. Staub largou-o e apertou o filtro do cigarro. Deu uma tragada e eu vi pequenos rolos de fumaça saindo por entre os pontos no seu pescoço costurado.

 

“O garoto olha pela janela do motorista e vê que o odômetro marca apenas 17. Ele diz para o caro ‘È, claro, tão engraçado quanto um biombo num submarino”. O cara diz, ‘Sem brincadeira garoto, me dê a grana e o carro é seu. Diabo, você pode até me dar um cheque, você tem uma cara honesta.’ E o garoto disse...”.

 

Eu olhei pela janela. Eu tinha ouvido a estória antes, anos atrás, provavelmente quando estava no colégio. Era um Thundebird no lugar do Caddy, mas o resto era tudo igual. O garoto disse. Eu só tenho dezessete anos, mas não sou um idiota, ninguém vende um carro como esse, especialmente com uma quilometragem tão baixa, por apenas setecentos e cinqüenta paus. E o cara disse que era por causa do cheiro do carro, você não pode sentir o cheiro do lado de fora, ele já tinha tentado tudo, e nada tirava o cheiro do carro. Você vê, ele estava numa viagem de negócios, uma razoavelmente longa, pelo menos...

 

“... algumas semanas”, o motorista estava dizendo. Ele estava sorrindo do jeito que as pessoas fazem quando contam uma piada de matar de rir. “E quando ele voltou pra casa, encontrou o carro na garagem e sua mulher dentro do carro, morta, praticamente desde que ele fora viajar. Eu não sei se foi suicídio, ou infarto ou o quê, mas ela tinha estourado e o carro estava cheio daquele cheiro e tudo o que ele queria era vende-lo, você sabe”.Ele riu. “Uma baita estória, né”.

 

“Por que ele não ligou pra casa?” Era minha boca, falando por conta própria. Meu cérebro estava congelado. “Ele ficou fora por duas semanas, numa viagem de negócios e nunca ligou pra casa, pra saber como ia a esposa?”

 

“Bem”, o motorista disse, “este deve o ponto, não acha? Quer dizer, que pechincha – este é o ponto. Você não ficaria tentado? Afinal, você poderia sempre dirigir o carro com as porras das janelas abertas, certo? E isto é basicamente, apenas uma estória. Ficção. Eu pensei nela por causa do cheiro neste carro. Que é um fato”.

 

Silêncio. E eu pensei: Ele está esperando que eu diga alguma coisa, esperando que eu acabe com isso. E eu queria. Eu fiz. Exceto...o quê, então? O que ele faria então?

 

Ele esfregou o dedo sobre o button da camiseta, aquele onde se lia I RODE THE BULLET AT THRILL VILAGE, LACONIA. Eu vi sujeira embaixo das unhas dele. “Era onde eu estava hoje”, ele disse. “Thrill Village. Eu fiz um trabalho para um cara e ele me deu um dia de folga. Minha namorada vinha comigo, mas ela ligou e disse que estava doente, ele tem esses períodos de menstruação que realmente doem às vezes, eles a deixam doente como um cão. Isso é muito ruim, mas eu sempre penso, hei, qual é a alternativa? Nada de modess, e então eu estou ferrado, nos estamos”.Ele latiu, um som de latido sem um pingo de humor. “Então eu vim sozinho. Não tinha sentido perder meu dia de folga. Já esteve em Thrill Village?”

 

“Sim”, eu disse. “Uma vez. Quando eu tinha doze anos”.

 

“Com quem você foi?” perguntou. “Você não foi sozinho, foi? Não com apenas doze anos”.

 

Eu não tinha contado a ele esta parte, tinha? Não. Ele estava jogando comigo, era isso, me jogando de um lado pro outro. Eu pensei em abrir a porta e me jogar no meio da noite, tentando segurar minha cabeça com os braços antes de cair, só que eu sabia que ele me alcançaria e me traria de volta antes que eu conseguisse. E eu não poderia levantar os braços, de qualquer forma. O máximo que eu podia fazer era cruzar as mãos.

 

“Não”, eu disse. Fui com meu pai. Meu pai me levou.”.

 

“E você subiu na bala (rode the bullet)? Eu subi aquela porra quatro vezes. Cara! Vai direto de cabeça pra baixo!” Ele olhou pra mim e soltou outro daqueles latidos de riso. A luz da Lua nadava em seus olhos, desenhando círculos brancos neles, fazendo-os como os olhos de uma estátua. E eu compreendi que ele era mais que morto, ele era louco. “Você subiu, Alan?”

 

Eu pensei em dizer-lhe que o nome estava errado, meu nome era Hector, mas de que adiantaria? Nós estávamos chegando ao fim disso, agora.

 

“Sim”, sussurrei. Nenhuma luz lá fora, a não ser a da Lua. As árvores roçavam, parecendo dançarinos num daqueles shows mambembes. A estrada passava rápido por nós. Olhei para o velocímetro e vi que estávamos há mais de 80 milhas por hora. Ele estava subindo na bala agora mesmo, ele e eu; a morte dirige rápido. “Sim, a Bala. Eu subi”.

“Nah”, ele disse. Ele deu uma tragada no cigarro, e mais uma vez, eu vi os pequenos rolos de fumaça escapando pelos pontos da incisão no pescoço. “Você, nunca. Especialmente, nunca com seu pai. Você foi até a fila, certo, mas você foi com a sua mãe. A fila era comprida, a fila para a Bala sempre é, e ela não queria ficar lá fora naquele sol quente. Ela estava gorda então, e o calor a incomodava. Mas você a cutucou o dia inteiro, cutucou cutucou cutucou, e aí está a piada disso, cara, - quando você finalmente foi até a ponta da fila, você amarelou. Não foi?”

 

Eu não disse nada. Minha língua estava presa no céu da boca.

 

Suas mãos pularam em mim, a pele amarela na luz do painel do Mustang, as unhas imundas, e eu apertei minhas mãos cruzadas. A força fugiu delas, quando ele o fez e eu senti como um nó que magicamente se desata sozinho, com o toque da varinha do mágico. Sua pele era fria e, de alguma forma, falsa.

 

“Não foi?”.

 

“Sim”, eu disse. Eu não conseguia fazer minha voz soar mais que um sussurro. “Quando nós chegamos perto e eu vi o quão alto era... como ela virava e como eles gritavam lá dentro... eu amarelei. Ela me bateu, e não queria me levar pra casa. Eu nunca subi na Bala”.Até agora, pelo menos.

 

“Você devia, cara. É a melhor. É o que há pra se montar. Nada mais é bom, pelo menos, não lá. Eu parei pra tomar umas cervejas a caminho de casa, na loja perto da estrada. Eu estava indo pra casa da minha namorada, dar o button pra ela, como uma piada”.Ele deu um tapa no button em seu peito e jogou o cigarro pra dentro da noite ventosa. “Só você provavelmente, sabe o que aconteceu”.

 

Claro que eu sabia. Era como qualquer estória de fantasma que você já ouviu, não era? Ele bateu o Mustang e quando os guardas chegaram, ele estava sentado morto no meio das ferragens, com o corpo atrás do volante e a cabeça no banco de trás, o boné virado pra trás e seus olhos mortos fixos no teto, e você sempre o vê em Ridge Road quando é Lua cheia e o vento está forte, wheee-ooo, voltamos depois dos nossos comerciais. Eu sei algo agora que eu não sabia antes – as piores estórias são aquelas que você ouve pela vida afora. Aquelas são reais pesadelos.

 

“Nada como um funeral”, ele disse e gargalhou. “Não foi o que você disse? Você escorregou ali, Al. Sem dúvida. Escorregou, tropeçou e caiu”.

 

“Me deixe sair”, sussurrei. “Por favor”.

 

“Bem”, ele disse, virando-se pra mim, “nós temos que conversar sobre isso, não temos? Você sabe quem eu sou, Alan?”

 

“Você é um fantasma”, eu disse.

 

Ele deu um pequeno suspiro impaciente, e no brilho do velocímetro, os cantos da sua boca caíram. “Vamos lá, cara, você pode fazer melhor do que isso. Uma porra de um Gasparzinho. Estou flutuando no ar? Você pode ver através de mim?” Ele segurava uma das mãos, abrindo e fechando na minha frente. Eu podia ouvir o som seco, sem lubrificação, dos tendões se partindo.

 

Tentei dizer alguma coisa. Não sei o quê, e isso realmente, não importa, porque nada veio à minha mente.

 

“Sou uma espécie de mensageiro”, disse Staub. Uma porra de um FedEx além túmulo, você gosta? Caras como eu, de fato, vêm com muita freqüência onde quer que as circunstâncias exijam. Você sabe o quê eu acho? Acho que quem manda nas coisas – Deus ou o quer que seja – goste de ser entretido. Ele sempre quer ver se você vai manter o que já conseguiu, ou se ele pode falar pra você do que acontece por baixo dos panos. As coisas têm que estar certas, acho. Esta noite, elas estão. Você por aí sozinho... mãe doente... precisando de uma carona...”.

 

“Se eu tivesse ficado com o velho, nada disso teria acontecido”, eu disse. “Não é?” Eu sentia o cheiro de Staub claramente agora, o cheiro cortante de químicos e o áspero e morto fedor de carne putrefata, e imaginei como eu não tinha me atinado antes, ou errado em algo mais.

 

“Difícil dizer”, Staub replicou. Talvez esse velho que você está falando esteja morto, também.”.

 

Pensei no velho da voz de vidro quebrado, a coçada no saco. Não, ele não estava morto, e eu troquei o cheiro de mijo do velho Dodge por algo bem pior.

 

“De qualquer forma, cara, não temos tempo pra falar sobre isso. Mais cinco milhas e veremos casas novamente. Mais sete, e estaremos entrando em Lewiston. Significa que você tem que decidir agora”.

 

“Decidir o quê?” Só que eu achava que sabia.

 

“Quem sobe na bala e quem fica no chão. Você ou sua mãe”.Ele tornou a me olhar com aqueles olhos riscados pelo luar. Ele sorria mais divertido e eu vi que a maioria dos dentes tinha caído, quebrados na batida. “Eu vou levar um de vocês comigo, cara. E já que você está aqui, pode escolher. O que me diz?”

 

Você não está falando sério roçou meus lábios, mas pra que dizer isso, ou qualquer coisa assim? Claro que era sério. Mortalmente sério.

 

Pensei nos anos que passamos juntos, Alan e Jane Parker contra o mundo. Um monte de coisas boas e poucas realmente ruins. Remendos nas minhas calças e caçarolas especiais. A maioria das crianças tinha uma moeda para comprar lanche quente; eu sempre tinha um sanduíche de manteiga de amendoim ou um pedaço de queijo enrolado numa fatia de pão amanhecido, como um garoto daquelas estórias de ricos e pobres. Em sua crença em Deus, ela sabia quantos restaurantes e bares diferentes tinham nos sustentado. Quando ela tirava o dia de folga para falar com o homem do ADC, vestida em suas melhores roupas, ele sentado na cadeira de balanço da nossa cozinha com seu melhor terno, que mesmo um garoto de nove anos como eu podia dizer que era melhor que ela, com uma lousa no colo e uma caneta brilhante nos dedos. Suas respostas às perguntas embaraçosas e ofensivas que ele fazia, com um sorriso fixo na boca, sempre oferecendo a ele mais um café, porque se ele fizesse o relatório certo, isso daria a ela cinqüenta dólares extras por mês, nojentos cinqüenta paus. Deitando na cama, depois dele ir embora, chorando, e quando eu vim ficar ao seu lado, ela tentou sorrir e disse que ADC não significava Ajuda para Crianças Dependentes (Aid to Dependent Children), mas Malditos Cabeças de Bagre (Awful Damn Crapheads). Eu tive que rir e ela riu também, porque você tinha que rir, tínhamos que por pra fora. Quando era apenas você e sua gorda enfatiotada mãe contra o mundo, rir era freqüentemente, o único jeito de manter a sanidade e seus pés no chão. Mas havia mais que isso, você sabe. Para pessoas como nós, um povinho que ficava correndo pelo mundo, como camundongos num desenho animado, rir algumas vezes dos bundões era a única vingança que se podia ter. Ela trabalhou em todos aqueles empregos, e fez horas extras, e massageou os tornozelos quando ficaram inchados, e guardou todas as gorjetas numa caneca, onde ela escreveu FUNDO UNIVERSITÁRIO DO ALAN – exatamente como naquelas estórias de ricos e pobres, ha, ha – e me contou várias e várias vezes que eu tinha que dar duro, que outras crianças podiam se dispor a brincar na escola, mas eu não, porque ela podia guardar suas gorjetas até o dia do juízo final e não seria suficiente, no final eu teria que depender de bolsas de estudo e empréstimos, se eu fosse pra faculdade, e eu tinha que ir pra faculdade, porque era a saída pra mim... e pra ela. Então, eu dei duro, pode acreditar, porque eu não era cego – eu via o quão pesada ela estava, eu via quanto ela fumava (era seu único prazer particular... seu único vício, se você é um daqueles que encara dessa maneira), e eu sabia que algum dia nossas posições iam se inverter e eu teria que tomar conta dela. Com formação acadêmica e um bom emprego, talvez eu pudesse dar conta. Eu queria dar conta. Eu a amava. Ela tinha um temperamento horrível e uma boca muito suja – aquele dia que eu quisera subir na bala e amarelei, não foi a única vez que ela gritou comigo e me bateu – mas eu a amava, apesar disso. Uma parte por causa disso. Eu amava tanto quando ela me batia, como quando ela me beijava. Você entende isso? Eu também não. Mas, tudo bem. Eu não acho que você pode somar vidas ou explicar pessoas, e nós éramos uma família, ela e eu, a menor família que há, uma estreita família de dois, um segredo compartilhado. Se você perguntasse, eu teria que dizer que nunca fiz nada por ela. E agora, era exatamente o que eu estava sendo convidado a fazer. Eu estava sendo convidado a morrer por ela, morrer no lugar dela, mesmo ela já tendo vivido metade da vida, talvez mais. Eu mal tinha começado a minha.

 

“O que me diz, Al?” George Staub perguntou. “O tempo está passando”.

 

“Eu não posso tomar uma decisão dessa”, eu disse asperamente. A Lua flutuava acima da estrada, diligente e brilhante. “Não é justo me pedir isso”.

 

“Eu sei, e acredite, é o que todos dizem”.Então, ele abaixou a voz. “Mas eu tenho que lhe dizer uma coisa – se você não decidir antes de avistarmos as primeiras luzes da cidade, eu terei que levar os dois”.Ele ficou carrancudo, depois radiante de novo, como se lembrasse que havia boas novas junto com as más.”Vocês poderiam viajar juntos no banco de trás, se eu levar os dois, falando dos velhos tempos, aí está”.

 

“Pra onde?”

 

Ele não respondeu. Talvez não soubesse.

 

As árvores estavam escuras como tinta preta. Os faróis piscavam e a estrada rolava. Eu tinha vinte e um anos. Eu não era virgem, mas isso só porque eu tinha ficado com uma garota uma vez, e estava bêbado demais e não me lembrava nem como tinha sido. Havia milhares de lugares onde eu queria ir – Los Angeles, Tahiti, talvez Luchemback, Texas – e milhares de coisas que eu queria fazer. Minha mãe tinha 48 anos e era velha, por Deus. A Sra. McCurdy não dizia, mas ela também era velha. Minha mãe tinha agido certo comigo, trabalhado todos aqueles anos e tomado conta de mim, mas eu tinha escolhido sua vida por ela? Pedi pra nascer e determinei como seria a vida dela? Ela tinha 48. Eu tinha 21. Eu tinha, como dizem, a vida inteira pela frente. Mas, quem era eu pra julgar? Como você decide uma coisa assim? Como você pode tomar uma decisão dessa?

 

As árvores passavam. A Lua descia como um olho brilhante e mortal.

 

“Melhor se apressar, cara”, George Staub disse. “Estamos indo longe demais”.

 

Eu abri a boca e tentei falar. Não saiu nada, exceto um suspiro.

 

“Aqui, olha isso”, ele disse, e agarrou algo às suas costas. Sua camiseta subiu de novo e pude dar outra olhada (eu podia ter ficado sem essa) na linha de pontos pretos em sua barriga. Ele tinha sido estripado por baixo daquela cicatriz, e tinham socado algodão tratado no lugar? Quando ele puxou a mão de volta, trazia uma lata de cerveja nela – uma das que ele tinha comprado na loja de beira de estrada, em sua última corrida, provavelmente.

 

“Eu sei como é isso”, ele disse. “Stress deixa a boca seca. Tome”.

 

Ele me passou a lata. Eu peguei, abri e bebi um longo gole.O gosto era frio e amargo. Eu nunca tinha bebido uma dessa. Eu apenas não podia. Eu apenas ficava assistindo os comerciais na TV.

 

A nossa frente, na escuridão, uma luz amarelo brilhou.

 

“Depressa, Al – vamos logo. Aquela é primeira casa, direto no topo da colina. Se você tem alguma coisa pra me dizer, é melhor dizer agora”.

 

A luz desapareceu, depois apareceu de novo, só que agora eram várias luzes. Eram janelas. Atrás delas havia gente comum, fazendo coisas comuns – assistindo TV, alimentando o gato, talvez batendo uma no banheiro.

 

Eu pensei em nós, parados na entrada de Thrill Village, Jean e Alan Parker, uma mulherona com manchas de suor nas axilas do seu vestido de verão, e seu filhinho. Ela não queria estar naquela entrada, Staub tinha razão quanto a isso... mas eu tinha cutucado cutucado cutucado. Ele estava certo sobre isso, também. Ela tinha me batido, mas ficou na entrada comigo. Ela tinha ficado comigo em muitas outras entradas, e eu podia pesar tudo isso, todos os argumentos pros e contras, mas não havia tempo.

 

“Leve-a”, eu disse, quando a luz da primeira casa varreu a frente do Mustang. Minha voz estava áspera e crua e baixa. “Leve-a, leve minha mãe, não me leve”.      

 

Joguei a lata de cerveja no chão do carro e pus as mãos sobre o rosto. Ele me tocou então, tocou a frente da minha camisa, seus dedos me apalpando, e eu pensei – com uma súbita claridade – que aquilo tudo era um teste. Eu tinha falhado, e agora ele ia arrancar meu coração palpitando do meu peito, como um daqueles demônios dijinn daqueles cruéis contos árabes. Eu gritei. Então, seus dedos se foram – como se ele tivesse mudado de idéia na última hora – e ele se inclinou sobre mim. Por um momento, meu nariz e meus pulmões se encheram daquele cheiro de morte e eu achei que estava morto também. Então, houve um clique da porta se abrindo, e o ar fresco inundou tudo, levando embora o cheiro da morte.

 

“Bons sonhos, Al”, ele grunhiu no meu ouvido, e então me empurrou. Eu saí rolando pra dentro da escuridão da noite ventosa de outubro, com os olhos fechados e minhas mãos levantadas, e o corpo tenso esperando pelo esmagar dos meus ossos. Eu devo ter gritado, não me lembro com certeza.

 

O esmagamento não aconteceu e depois daquele momento final, percebi que eu já estava caído – eu podia sentir o chão embaixo de mim.

 

Abri os olhos, então os apertei mais uma vez. O clarão da lua me cegava. Eu senti muita dor na cabeça, não no fundo dos olhos, onde você geralmente sente depois de ser cegado por uma luz muito brilhante, mas atrás, um pouco abaixo da nuca. Eu tornei a notar que minhas pernas e meus fundilhos estavam molhados e frios. Não me importei. Eu estava no chão, e isso era tudo que importava.

 

Eu empurrei os cotovelos e abri os olhos novamente, com mais cuidado dessa vez. Eu acho que já sabia onde estava, e uma olhada em volta confirmou: deitado de costas no pequeno cemitério, no topo da colina em Ridge Road.

 

A Lua estava quase em cima de mim agora, brilhando ferozmente, mas muito menor do que eu tinha visto há poucos minutos atrás. A névoa estava mais espessa, envolvendo o cemitério como um cobertor. Pequenos marcos se sobressaíam, como ilhas de pedra. Tentei me por de pé e outra pontada de dor veio da minha nuca. Pus minha mão lá e senti um caroço. Havia também, algo úmido e pegajoso. Olhei minha mão. A luz do luar, o sangue que escorria pela palma da minha mão parecia preto.

 

Na segunda tentativa, consegui me levantar, e fiquei lá, balançando entre duas lápides, com a névoa nos joelhos.Virei-me, vi a abertura no muro e a Ridge Road além dela. Eu não conseguia ver minha mochila, porque a névoa cobria tudo, mas eu sabia onde ela estava. Se eu andasse para a estrada, passando minha mão esquerda sobre a relva, eu a encontraria. Diabo, provavelmente, eu tropeçaria nela.

 

Então, essa é a estória, tudo empacotado e amarrado: eu tinha parado para descansar no topo da colina, entrado no cemitério para dar uma olhada, e enquanto estava voltando do túmulo de George Staub, tropecei nos meus enormes e estúpidos pés. Caí, batendo a cabeça num desses marcos. Quanto tempo fiquei inconsciente? Eu não entendia o suficiente pra contar o tempo olhando a posição da Lua com precisão, mas tinha se passado, no mínimo, uma hora. Tempo bastante para ter um sonho onde pego uma carona com um homem morto. Qual homem morto? George Staub, é claro, o nome que eu tinha lido na lápide antes das luzes se apagarem. Era o final clássico, não era? Jesus-que-sonho-horrível-eu-tive. E quando eu chegasse a Lewiston e achasse minha mãe morta? Só um pouco de premonição na noite, pode colocar aí. Era o tipo de estória que você precisa contar anos depois, no final de uma festa, e as pessoas acenam com a cabeça e parecem solenes com os remendos de couro no cotovelo das suas jaquetas de tweed, poderia dizer que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia e então –

 

“Então, merda”, cuspi. O topo da névoa estava se movendo lentamente, como névoa num espelho nublado. “Eu nunca vou contar isso a ninguém. Nunca, durante minha vida toda, nem no meu leito de morte”.

 

Mas isso tudo tinha acontecido, exatamente como eu me lembrava, disso eu tinha certeza. George Staub tinha vindo e me dado uma carona no seu Mustang, o velho camarada de Ichabod Crane, com sua cabeça costurada, levantando o braço e me mandando escolher. E eu tinha escolhido – de cara com as primeiras luzes da primeira casa, eu tinha mandado a vida da mãe pro espaço, sem nem pestanejar. Isto pode até ser compreensível, mas não me fazia menos culpado. Não havia ninguém pra saber, por outro lado; essa era a parte boa. Sua morte pareceria natural – diabo, seria natural – e era assim que eu pretendia que ficasse.

 

Eu saí do cemitério pelo buraco do lado esquerdo, e quando meu pé chutou a mochila, eu a peguei e coloquei nos ombros. Luzes apareceram no pé da colina como se alguém tivesse sugerido isso. Eu apontei o dedão, com a estranha certeza de que era o velho no Dodge – ele tinha voltado, procurando por mim, claro que tinha, isso daria à estória um final redondo.

 

Só que não era o velho. Era um fazendeiro mascador de fumo, numa pick-up Ford cheia de caixas de maçã, um perfeito cara comum: nem velho, nem morto.

 

“Pra onde vai, filho?” ele perguntou, e quando eu contei, ele disse, “Esta é a palavra pra nós dois”. Menos de quarenta minutos depois, as nove e vinte, ele parou em frente ao Central Maine Medical Center. “Good Luck. Espero que sua mãe esteja melhor “.

 

“Obrigado”, eu disse e abri a porta.

 

“Vejo que você está bem nervoso sobre isso, mas ele vai ficar bem. Devia botar um anti-séptico nisso, eu acho. Ele apontou para minhas mãos.

 

Eu olhei pra elas e vi que havia cortes profundos nas costas. Lembrei de tê-las mantido cruzadas, cravado as unhas, sentindo, mas incapaz de parar. E lembrei dos olhos de Staub, cheios de luar como água. Você subiu na Bala? ele tinha perguntado. Eu subi naquela porra quatro vezes.      

 

“Filho”, o motorista da pick-up perguntou. Você está bem?”

 

“Huh?”

 

“Você parece que vai ter um troço”.

 

“Estou bem”, eu disse. “Obrigado de novo”. Eu bati a porta da pick-up e fui para a calçada atrás da linha onde estavam paradas as cadeiras de roda, que brilhavam ao luar.

 

Andei até a recepção, lembrando a mim mesmo que eu tinha que mostrar surpresa quando me contassem que minha mãe estava morta, tinha que ficar surpreso, iam achar estranho se eu não... ou talvez achassem que eu estava em choque... ou que nós não nos dávamos bem... ou...

 

Estava tão concentrado nesses pensamentos que eu nem me apertei com a mulher atrás do balcão me disse. Tive que pedir que ela repetisse.

 

“Eu disse que ela está no quarto 487, mas você não pode ir lá agora. O horário de visitas é até as nove”.

 

“Mas...” Eu me senti subitamente tonto. Agarrei o tampo do balcão. O saguão era iluminado por lâmpadas fluorescentes, e na claridade os cortes nas costas das minhas mãos estavam inchados – oito pequenos cortes, parecendo luas crescentes ou sorrisos, logo acima das juntas. O homem na pick-up estava certo, eu precisava desinfetar aquilo.

 

A mulher atrás do balcão me olhava, pacientemente. A placa na frente dela dizia que ela era YVONNE EDERLE.

 

“Mas ela está bem?”

 

Ela olhou no computador. “Aqui está marcado um S. Quer dizer satisfatório. E o quarto andar é um andar para doentes em geral. Se sua mãe tivesse piorado teria ido para a UTI. É no terceiro andar. Estou certa de que se você vier amanhã, você vai encontrá-la muito bem. O Horário de visitas começa as –”

 

“Ela é minha mãe”, eu disse. “Vim de carona desde a Universidade do Maine para vê-la. Será que eu não poderia, só por alguns minutos?”

 

“Algumas vezes há exceções para parentes próximos”, ela disse, e me deu um sorriso. “Espere um minuto. Deixe-me ver o que posso fazer”.Ela pegou o telefone e apertou alguns botões, sem dúvida ligando para a enfermaria do quarto andar, e eu pude ver no decorrer dos dois minutos seguintes como se eu tivesse tido um segundo sinal. Yvone, a recepcionista, perguntaria se o filho de Jean Parker, do 487, poderia subir por um ou dois minutos – só o tempo de dar-lhe um beijo e uma palavra de consolo – e a enfermeira diria Oh Deus, A Sra. Parker morreu há quinze minutos atrás, nós estávamos justamente levando-a para o necrotério, nós não tínhamos tido tempo de atualizar o computador, isto é terrível.

 

A mulher no balcão disse, “Muriel? É Yvonne. Tem um jovem aqui, seu nome é” – ela olhou pra mim, as sobrancelhas levantadas e eu disse meu nome – Alan Parker. Sua mãe é Jean Parker, no 487? Ele queria saber se ele podia...”

 

Ela parou. Escutou. Do outro lado da linha, a enfermeira com certeza estava dizendo que Jean Parker morrera.

 

“Está bem”, Yvonne disse. “Sim, eu entendo”. Ela ficou quieta por um momento, olhando pro espaço, então ela tapou o bocal do telefone e disse “Ela está mandando Anne Corrigan descer para buscá-lo. Só um segundo”.

 

“Isso nunca termina”, eu disse.

 

“Yvonne me encarou”.Perdão?”

 

“Nada”, eu disse. “Está sendo uma longa noite e –”

 

“– e você está preocupado com sua mãe. Claro. Eu acho que você deve ser um ótimo filho para largar tudo do modo como fez e vir correndo”.

 

Suspeitei que a opinião de Yvonne Elder sobre mim mudaria drasticamente, se ela tivesse ouvido minha conversa com o cara atrás do volante do Mustang, mas lógico que ela não tinha. Era um pequeno segredo, entre George e eu.

 

Parece que eu fiquei horas ali parado, esperando que a enfermeira do quarto andar viesse até a entrada. Yvonne tinha alguns papéis à sua frente. Ele passou a caneta num deles, colocando pequenos x ao lado de alguns nome, e me ocorreu que se havia um Anjo da Morte, ele ou ela devia ser como essa mulher, um funcionário fazendo hora extra, com um balcão, um computador, e muita papelada. Yvonne mantinha o telefone entre a orelha e um ombro levantado. O alto-falante disse que o Dr. Farquarh era chamado na radiologia, Dr. Farquahr. No quarto andar, uma enfermeira chamada Anne Corrigan estaria agora olhando minha mãe, deitada morta na cama, com os olhos abertos, a rigidez da boca provocada pelo derrame finalmente relaxada.

 

Yvonne endireitou-se, ouvindo o telefone. Ele escutou, então disse; “Está bem, sim, entendo. Eu vou. Claro que vou. Obrigada, Muriel”.Ela desligou o telefone e me olhou, solenemente. “Muriel disse que você pode subir, mas só por cinco minutos. Sua mãe já tomou os remédios noturnos, ela está sonolenta”.

 

Eu fiquei ali, boquiaberto.

 

Seu sorriso diminuiu um pouco. “Tem certeza que está bem, Sr. Parker?”

 

“Sim”, eu disse. Eu acho que eu pensei – “

 

Seu sorriso voltou. Era solidário agora. “Muita gente pensa”, ela disse. “É compreensível. Você recebe um telefone, vem correndo até aqui... é compreensível que pense no pior. Mas Muriel não deixaria você subir se não estivesse tudo bem. Pode confiar”.

 

“Obrigado”, eu disse. “Muito obrigado mesmo”.

 

Quando eu comecei a me virar, ela disse: “Sr. Parker? Se você veio da Universidade do Maine, ao norte, posso perguntar porque está usando este button? Thrill Village é em New Hampshire, não é?”

 

Olhei pra baixo, e na frente da minha camisa eu vi o button, preso no bolso: I RODE THE BULLET AT THRILL VILLAGE, LACONIA. Eu lembrei de pensar que ele ia arrancar meu coração. Agora eu entendi: ele estava pregando seu button na minha camisa, logo antes de me jogar pra fora. Era uma maneira de me marcar, de fazer nosso encontro impossível de não acreditar. Os cortes nas costas das minhas mãos diziam isso, o button em minha camisa, também. Ele tinha me mandado escolher e eu tinha escolhido.

 

Então, como minha mãe podia estar viva?

 

“Isto?” Eu toquei com a ponta do dedão, lustrando um pouco. “É meu amuleto da sorte”. A mentira era tão horrível que tinha uma espécie de esplendor.

 

“Eu consegui isso quando estive lá com minha mãe, há muito tempo atrás. Ela me levou a Bala”.

 

Yvonne, a recepcionista, sorriu, como se fosse a coisa mais meiga que ela já tivesse ouvido. “Dê a ela um grande abraço e um beijo”, ela disse. “Mostre que você a quer fora da cama, isso é melhor do que todas as pílulas que o médico deu”.Ela apontou. “Os elevadores são por ali, dobrando a esquina”.

Com o horário de visitas terminado, eu era o único esperando um elevador. Havia uma pequena lixeira à esquerda, na porta da banca de jornal, que estava fechada e escura. Arranquei o button da minha camisa e joguei na lixeira. Então, limpei as mãos nas calças. Eu ainda estava limpando as mãos, quando as portas do elevador se abriram. Entrei e apertei o quatro. O elevador começou a subir. Acima dos botões dos andares, estava um pôster anunciando uma coleta de sangue na próxima semana. Quando li isso, veio uma idéia... exceto que não era tão uma idéia assim. Minha mãe estava morrendo agora, neste exato segundo, enquanto eu subia para o seu andar nesse vagaroso elevador. Eu tinha feita minha escolha; portanto cabia a mim encontrá-la. Fazia sentido.

 

A porta do elevador abriu em outro pôster. Este mostrava um desenho de um dedo pressionando grandes lábios vermelhos. Abaixo se lia: NOSSOS PACIENTES APRECIAM SEU SILÊNCIO! Além da saída do elevador, havia um corredor indo para a esquerda e para a direita. Os quartos de números ímpares eram à esquerda. Andei pelo corredor, meus joelhos parecendo ganhar peso a cada passo. Eu diminui a marcha nos 470 e parei completamente entre o 481 e o 483. Eu não podia continuar. Suava frio e sentia o suor escorrer em tiras finas pelo meu cabelo. Meu estômago estava apertado como uma luva nova. Não, não podia. Melhor dar a volta e me esconder, como o grande covarde que eu era. Eu voltaria de carona e ligaria para a Sra. McCurdy de manhã. As coisas sempre parecem mais fáceis de manhã.

 

Comecei a me virar, e uma enfermeira colocou a cabeça para fora da porta, dois quartos à frente... o quarto da minha mãe. “Sr. Parker?”, ela perguntou em voz baixa.

 

Por um louco momento, eu quase neguei. Então, concordei.

 

“Venha. Rápido. Ela está indo”.

 

Eram as palavras que eu esperava, mas ainda assim, cólicas de terror vieram e amoleceram meus joelhos.

 

A enfermeira viu isso e veio correndo até mim, a saia balançando, o rosto alarmado. O pequeno crachá em seu peito dizia ANNE CORRIGAN. “Não, não, eu quis dizer o sedativo... Ela está indo dormir. Oh, Meu Deus, que estúpida. Ela está bem, Sr. Parker, eu lhe dei o remédio e ela está bem, dormir, foi isso que eu quis dizer. Você não vai desmaiar, vai?” Ela pegou meu braço.

 

“Não”, eu disse, sem saber se eu ia desmaiar ou não. O mundo estava girando, e havia um apito em meus ouvidos. Lembrei de como a estrada tinha saltado a frente do carro, parecendo um filme preto e branco, com aquela Lua prateada. Você subiu na Bala? Cara, eu subi quatro vezes.

 

Anne Corrigan me guiou até o quarto e eu vi minha mãe. Ela sempre tinha sido uma mulher grande, e cama do hospital era pequena e estreita, mas ela parecia quase perdida ali. Seu cabelo, agora mais grisalho que preto, estava espalhado sobre o travesseiro. Suas mãos descansavam em cima do lençol como mãos de criança, ou até de bonecas. Ela não estava com o rosto repuxado por causa do derrame, como eu tinha pensado, mas sua pele estava amarelada. Seus olhos estavam fechados, mas quando a enfermeira ao meu lado murmurou seu nome, eles abriram. Eram de profundo e iridescente azul, a parte mais jovem dela, perfeitamente vivos. Por um momento, seus olhos fitaram o vazio, então ela me achou. Ela sorriu e tentou levantar os braços. Um deles obedeceu. O outro tremeu um pouco, depois caiu. “Al”, ela sussurrou.

 

Fui até ela, começando a chorar. Havia uma cadeira encostada na parede, mas nem me incomodei. Ajoelhei no chão e coloquei meus braços ao seu redor. O cheiro dela é limpo e caloroso. Beijei sua fronte, sua bochecha, o canto da sua boca. Ela levantou a mão boa e passou o dedo sob os meus olhos.

 

“Não chore”, ela sussurrou. “Não há razão para isso”.

 

“Eu vim o mais depressa que eu pude”. Eu disse. “Betsy McCurdy ligou”.

 

“Eu disse a ela... fim de semana”. Ela disse. “No fim de semana estava bom”.

 

“Sim, mas que se dane”, eu disse e a abracei.

 

“Consertou o carro?”

 

“Não”, eu disse. “Vim de carona”.

 

“Oh, Deus”, ela disse. Cada palavra estava, claramente sendo um esforço para ela, mas não inarticulados, e não senti confusão ou desorientação. Ela sabia quem era, quem eu era, onde estávamos e porque estávamos aqui. O único sinal de algo errado era o braço esquerdo fraco. Eu me senti tremendamente aliviado. Eu tinha entrado no jogo cruel de Staub... ou talvez não fosse Staub, talvez fosse um sonho, afinal de contas, bem como deveria ser. Agora que eu estava aqui, ajoelhado na cama, com os braços em volta dela, sentindo um restinho de perfume Lanvin, a idéia de um sonho parecia bem mais plausível.

 

“Al? Tem sangue no seu colarinho”. Seus olhos se fecharam e depois abriram vagarosamente. Imaginei que suas pálpebras deveriam estar tão pesadas quanto meus joelhos estavam no hall.

 

“Bati a cabeça, mãe, não foi nada”.

 

“Bom. Você precisa... se cuidar”. As pálpebras se fecharam novamente, abriram mais devagar ainda.

 

“Sr. Parker, acho melhor deixá-la dormir agora”, a enfermeira disse às minhas costas. “Ele tive um dia muito difícil”.

 

“Eu sei”. Beijei o canto de sua boca novamente. “Estou indo, mãe, mas volto amanhã”.

 

“Não... pegue carona... perigoso”.

 

“Não vou. Vou pegar carona com a Sra. McCurdy. Durma um pouco”.

 

“Dormir... vou”, ela disse. “Estava no trabalho, esvaziando a máquina de lavar pratos. Veio uma dor de cabeça. Desmaiei. Acordei... aqui”. Ela me olhou. “Foi um derrame. O médico disse... nada grave”.

 

“Você está bem”, eu disse. Levantei e peguei a mão dela. A pele era fina, suave como seda. A mão de uma velha.

 

“Sonhei que estávamos naquele maravilhoso parque em New Hampshire”, ela disse.

 

Olhei pra ela, sentindo minha pele esfriar no corpo todo. “Sonhou?”

 

“É. Esperando na entrada de um lugar... aquele alto. Você se lembra?”

 

“A Bala”. eu disse. Eu lembro, mãe “.

 

“Você estava com medo e eu gritei. Gritei com você”.

 

“Não, mãe, você –”

 

Sua mão apertou a minha e os cantos da sua boca se espremeram. Era uma sombra da sua velha expressão impaciente.

 

“Sim”, ela disse. “Gritei e bati em você. Atrás... do pescoço, não foi?”

 

“Provavelmente, sim”, eu disse, desistindo. “Principalmente onde você me bateu”.

 

“Não devia”, ela disse. “Eu estava com calor e cansada, mas, mesmo assim... não devia. Queria lhe dizer que sinto muito”.

 

Meus olhos ficaram úmidos de novo. “Está tudo bem, mãe. Isso foi há muito tempo”.

 

“Você nunca teve sua subida”, ela sussurrou.

 

“Tive sim, acho”, eu disso. “No final, tive sim”.

 

Ela sorriu pra mim. Ela parecia pequena e fraca, longe da zangada, suada e gorda mulher que tinha gritado comigo quando finalmente chegamos na frente da fila, gritado e me dado uns tapas na nuca. Ela deve ter visto algo no rosto de alguém – uma das pessoas esperando para subir na Bala – porque eu me lembro dela dizendo – O que está olhando, belezinha? enquanto me levava pela mão, me carregando debaixo do sol quente de verão, apertando minha nuca... só que não doía realmente, ela não tinha me batido com tanta força; principalmente, o que eu me lembrava é que estava grato por estar indo embora daquela alta e enrolada construção com as cápsulas no final, aquela revoltante máquina do medo.

 

“Sr. Parker, é realmente é hora de ir”, a enfermeira disse. Levantei a mão de minha mãe e beijei. “Vejo você amanhã”, eu disse.”Te amo, mãe”.

 

“Amo você também. Alan... desculpe pelas vezes em que bati em você. Não era pra ser assim”.

 

Mas tinha sido; tinha sido o jeito dela de ser. Eu não sabia como dizer a ela que eu sabia, que aceitava isso. Era parte do nosso segredo de família, algo apenas sussurrado.

 

“Vejo você amanhã, ok mãe?”

 

Ela não respondeu. Seus olhos tinham se fechado novamente, e dessa vez, as pálpebras não abriram. Seu peito subia e descia vagarosa e regularmente. Afastei-me da cama sem tirar os olhos dela.

 

No hall eu disse à enfermeira, “Ela está indo bem? Realmente bem?”

 

“Ninguém pode dizer com certeza, Sr. Parker. Ela é paciente do Dr. Nunnally. Ele é muito bom. Ele estará aqui amanhã à tarde e você pode perguntar a ele –”

 

“Me diga o que você acha”.

 

“Eu acho que ela vai indo bem”, a enfermeira falou, me levando até o hall dos elevadores. “Seus sinais vitais estão fortes, e os efeitos residuais sugerem um derrame bem leve” Ela ficou um pouco mais séria. “Ela vai ter que fazer algumas mudanças, é claro. Sua dieta... seu estilo de vida...”

 

“Seus cigarros, você quer dizer”.

 

Oh sim. Ela vai ter que parar “. Ela disse isso como se minha mãe desistir dos seus hábitos não fosse mais difícil que mudar um vaso de uma mesa na sala de estar para outra no hall. Apertei o botão do elevador, e a porta do carro no qual eu subi abriu-se. As coisas iam bem devagar no CMMC quando acabava o horário de visitas.

 

“Obrigado por tudo”, eu disse.

 

“De nada”. Desculpe tê-lo assustado. O que eu disse foi incrivelmente estúpido “.

 

“Nem tanto”, eu disse, embora concordasse com ela. “Deixa pra lá”.

 

Entrei no elevador e apertei o térreo. A enfermeira levantou a mão e acenou. Acenei de volta, e a porta se fechou entre nós. O elevador começou a descer. Olhei as marcas de unhas nas costas das minhas mãos e pensei que eu era uma criatura horrível, a mais vil de todas. Mesmo que tivesse sido um sonho eu seria um maldito. Leve-a, eu tinha dito. Ela era minha mãe, mas eu tinha dito isso mesmo: Leve minha mãe, não a mim. Ela tinha me criado, feito horas extras por mim, esperado na fila debaixo do sol quente, num pequeno parque de diversões em New Hampshire, e no final, eu tinha hesitado. Leve-a, não a mim. Covarde, covarde, uma porra de um covarde.

 

Quando o elevador abriu eu saí, tirei a tampa da lixeira, e lá estava ele, em cima do copo vazio de café de alguém: I RODE THE BULLET AT THRILL VILLAGE, LACONIA.

 

Eu me abaixei, tirei o button de dentro do resto de café frio onde estava, enxuguei-o no meu jeans, coloquei-o no bolso. Joga-lo fora tinha sido uma má idéia. Era o meu button agora – amuleto de boa ou má sorte, era meu. Deixei o hospital, dando a Yvonne um aceno ao passar. Do lado de fora, a Lua subia o teto do céu, inundando o mundo com sua estanha e sonhadora luz. Nunca me senti tão cansado ou tão abatido em toda a minha vida.Desejei ter uma chance de escolher de novo. Eu teria feito diferente. Isso era engraçado – se eu a tivesse encontrado morta, como esperava, eu acho que poderia viver com isso. Afinal, não era assim que estórias como esta terminavam?

 

Ninguém quer dar carona na cidade, o velho tinha dito, e como eu sabia disso. Andei todo o caminho de Lewiston – três dúzias de quadras até a Rua Lisbon e nove quadras da Rua Canal, passei por todos os clubes onde as jukeboxes tocavam velhas músicas do Foreigner e do Led Zeppelin e AC/DC em francês – sem levantar o dedão uma única vez. Não adiantaria. Passava das onze horas antes que eu alcançasse a Ponte DeMuth. Eu já estava do lado do Harlow, quando o primeiro carro para o qual eu fiz sinal, parou. Quarenta minutos depois, eu estava procurando a chave no carrinho de mão vermelho ao lado da porta de trás, e dez minutos depois, eu estava na cama. Ocorreu-me que era a primeira vez em minha vida que eu dormia sozinho em casa.

 

Foi o telefone que me acordou quinze minutos depois do meio-dia. Achei que fosse do hospital, alguém do hospital dizendo que minha mãe tivera uma súbita piora e tinha morrido poucos minutos atrás, sinto muito. Mas era só a Sra. McCurdy, querendo se certificar que eu chegara em casa bem, querendo saber todos os detalhes da minha visita na noite passada (ela me perguntou sobre isso três vezes, e na terceira vez, eu já estava me sentindo como um criminoso sendo interrogado sob a acusação de assassinato), querendo saber, também, se eu queria ir com ela ao hospital esta tarde.

 

Quando desliguei, cruzei o quarto até a porta. Aqui estava um espelho de corpo inteiro. Nele havia um jovem alto e barba por fazer, com uma barriguinha, vestindo somente cuecas largas. “Você tem que trabalhar isso, garoto”, refleti. “Não pode passar o resto da sua vida achando que cada vez que o telefone toca, é alguém pra dizer que sua mãe morreu”.

 

Não que eu pudesse. O tempo entorpece a memória, sempre... mas o incrível era o quanto a noite passada era vívida. Cada pedaço dela. Eu podia ver a cara bem apessoada de Staub embaixo do boné virado ao contrário, o cigarro atrás da orelha, e o jeito como a fumaça saía da incisão em seu pescoço quando ele tragava. Eu ainda podia ouvi-lo contando a estória do Cadillac barato demais. O tempo podia cegar e entorpecer, mas não por muito tempo. Afinal, eu tinha o button, estava na minha roupa, atrás da porta do banheiro. O button era o meu suvenir. Não era o herói de toda a estória de terror que trazia um suvenir, pra provar que tudo tinha mesmo acontecido?

 

Havia um velho aparelho de som no canto do quarto, e eu comecei a fuçar todas as minhas velhas fitas, procurando algo para ouvir enquanto me barbeasse. Achei uma marcada FOLK MIX e pus no gravador. Eu a gravei no colegial e podia vagamente me lembrar do que estava ali. Bob Dylan cantando sobre a solitária morte de Hattie Carrol, Tom Paxton cantando sobre um velho amigo, e Dave Van Ronk começando a cantar sobre cocaína. No meio do terceiro verso, parei com a gilete na bochecha. Com a cabeça cheia de uísque e a barriga cheia de gim, Dave cantava com sua voz áspera. O médico diz que isso vai me matar, mas não diz quando. E essa era a resposta, claro. A consciência pesada tinha me feito supor que minha mãe morreria imediatamente, e Staub não tinha corrigido esta suposição – como poderia, se eu nunca perguntei? – mas, claramente, não era verdade.

 

O médico diz que isso vai me matar, mas não diz quando.

 

O que, em nome de Deus, estava me abatendo tanto? Minha escolha não equivalia a ordem natural das coisas? Os filhos, normalmente, não sobreviviam aos pais? O filho da puta tentara me assustar – me culpar – mas eu não tinha embarcado na dele, tinha? Não subimos todos na Bala, no fim?

 

Você está tentando sair fora dessa. Tentando achar uma maneira de tornar isso legal. Pode ser que o que você está pensando seja verdade... mas quando ele mandou você escolher, você escolheu ELA. Nada pode mudar isso, cara – você escolheu ELA.

 

Abri os olhos e olhei meu rosto no espelho. “Eu fiz o que tinha que fazer”, eu disse. Eu não estava muito certo disso, mas com o tempo eu supunha que eu ficaria.

 

A Sra. McCurdy e eu fomos ver minha mãe e ela estava um pouco melhor. Eu perguntei se ela se lembrava do sonho sobre Thrill Village, em Lacônia. Ela balançou a cabeça. “Eu vagamente me lembro de você ter vindo aqui à noite passada”, ela disse. “Eu estava muito sonolenta. Era importante?”

 

“Não”, eu disse, e beijei sua fronte. “Nem um pouco”.

 

Minha mãe saiu do hospital cinco dias depois. Ela mancou durante um tempo, mas isso passou, e um mês depois ela estava de volta ao trabalho – apenas meio expediente, no começo, mas depois, o dia todo, já que nada tinha acontecido. Eu voltei pra escola e arrumei um emprego no Pat’s Pizza em Oronto. O salário não era lá grande coisa, mas foi o suficiente pra consertar meu carro.

 

Isso foi bom, eu tinha perdido a vontade de pegar carona.

 

Minha mãe tentou parar de fumar e por pouco tempo, conseguiu. Então eu voltei pra casa para os feriados de abril, um pouco mais cedo, e a cozinha estava cheirando a cigarro, como sempre. Ela me olhou, seus olhos eram envergonhados e desafiadores. “Não posso”, ela disse. “Sinto muito, Al – eu sei que você queria e sei que eu devia, mas fica um buraco em minha vida sem o cigarro. Nada preenche. O máximo que eu posso fazer é desejar nunca ter começado”.

 

Duas semanas depois que eu me formei, minha mãe teve outro derrame – bem leve. Ela tentou parar de fumar novamente, porque o médico tinha ralhado com ela, mas depois voltou. “Como um cão retornando ao seu vômito”, a Bíblia diz; eu sempre gostei dessa citação. Consegui um bom emprego em Portland, na primeira tentativa – sorte, eu acho, e comecei a convencê-la a desistir de seu emprego. Foi muito difícil no começo.

 

Eu podia ter desistido de desgosto, mas eu tinha uma certa lembrança que me mantinha tentando derrubar suas defesas.

 

“Você deve cuidar da sua própria vida, não tomar conta de mim”, ela disse. “Você vai querer casar algum dia, Al, e o que você gastar comigo, não vai ter para isso. Para sua vida real”.

 

“Você é minha vida real”, eu disse e a beijei. “Você pode não gostar ou não tolerar isso, mas é assim que as coisas são”.

 

E, finalmente, ela jogou a toalha.

 

Tivemos alguns anos muito bons, depois disso – sete no total. Eu não morava com ela, mas a visitava quase todos os dias. Jogávamos muito gin rummy e vimos um monte de filmes no vídeo cassete que eu comprei pra ela. Havia um caminhão de risadas, como ela gostava de dizer. Não sei se eu devia esses anos a George Staub ou não, mas foram bons anos. E a memória da noite que eu encontrei Staub nunca desvaneceu e cresceu como sonho, como eu sempre esperara; cada incidente, desde o velho contando sobre seu desejo pra Lua até Staub passando seu button pra mim, permanecia perfeitamente clara. E veio o dia em que eu não consegui mais achar aquele button. Eu sabia que o tinha trazido quando me mudei do pequeno apartamento em Falmouth – eu o guardava na gaveta de cima do meu criado-mudo, junto com um par de pentes, meus dois jogos de abotoaduras e um velho button político que dizia BILL CLINTON, THE SAFE SAX PRESIDENT - mas depois ele sumiu. E quando o telefone tocou, um dia ou dois mais tarde, eu sabia que a Sra. McCurdy estava chorando. Era a má notícia que eu sempre estivera esperando; FUN IS FUN AND DONE IS DONE.

 

Quando o funeral acabou, e o caixão baixou até o final, voltei para a casinha em Harlow, onde minha tinha passado seus últimos anos, fumando e comendo rosquinhas. Tinha sido Jean e Allan Parker contra o mundo, agora era apenas eu.

 

Fui até suas coisas pessoais, separando uns poucos papéis que eu poderia precisar depois, encaixotando as coisas que e queria guardar de um lado do quarto, e o que eu queria dar para a caridade, de outro. Perto de acabar, me ajoelhei e olhei debaixo da cama dela, e lá estava, aquilo que eu estivera procurando por todo esse tempo, sem querer admitir: um empoeirado button onde se lia: I RODE THE BULLET AT THRILL VILLAGE, LACONIA. Fechei minha mão sobre ele. O alfinete entrou na carne e eu apertei com mais força, sentindo um prazer amargo na dor. Quando abri os dedos novamente, meus olhos estavam cheios d’água e as palavras no button dançavam na minha frente. Eu estava vendo um filme em 3D, sem os óculos.

 

“Está satisfeito”, perguntei ao quarto silencioso. “É o suficiente?” Não houve resposta, é claro. “Por que você fez isso, irmão?” Qual é o maldito ponto?”

 

Ainda não houve resposta, e porque haveria de ter? Você espera na fila, isso é tudo. Você espera na fila, debaixo da Lua e faz seus pedidos para sua luz infecta. Você espera na fila e os ouve gritando – eles pagam para ficar aterrorizados, e na Bala, sempre conseguem o melhor pelo seu dinheiro. Pode ser que seja sua vez, pode ser que não. Qualquer caminho dá no mesmo, eu acho. Devia haver mais que isso, mas realmente, não há – FUN IS FUN AND DONE IS DONE.

 

Pegue seu button e caia fora daqui.

 

                                                                                Stephen King  

 

                      

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