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MURMÚRIO DO VENTO / Frederick Forsyth
MURMÚRIO DO VENTO / Frederick Forsyth

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MURMÚRIO DO VENTO

 

A lenda reza que nenhum homem branco sobreviveu ao massacre dos soldados do general Custer em Little Bighorn, no dia 25 de junho de 1876. Isso não é inteiramente verdade; houve um único sobrevivente. Ele era um batedor de fronteira, tinha 24 anos e seu nome era Ben Craig. Esta é a sua história.

 

O BATEDOR DE FRONTEIRA FOI O PRIMEIRO A SENTIR NO VENTO da pradaria um cheiro muito suave de fumaça.

Cavalgava 18 metros à frente dos soldados da décima cavalaria, liderando a coluna principal em sua descida ao longo da ribanceira oeste do córrego Rosebud.

Sem se virar, ergueu a mão direita e refreou o cavalo. Atrás dele, o sargento e os nove soldados fizeram o mesmo. O batedor saltou do cavalo, deixando-o à vontade para pastar, e caminhou a passos largos até a ribanceira baixa que separava os cavaleiros do córrego. Ali jogou-se de bruços no chão. Arrastou-se até a borda e, oculto pelo mato alto, espiou o outro lado da ribanceira.

As tendas tinham sido erguidas na praia estreita entre a ribanceira e a margem do córrego. Era um acampamento pequeno, com não mais do que cinco cabanas -uma única família ampliada. O pano das tendas indicava que eram índios cheyennes do norte. O batedor conhecia bem essas tendas. As sioux eram altas e estreitas; os cheyennes construíam as suas mais largas na base, e mais atarracadas. Pictografias retratando triunfos de caçadas adornavam as laterais e traziam também o estilo cheyenne.

O batedor estimou que o acampamento continha entre vinte e 25 pessoas, mas metade dos homens saíra para caçar. Isso ele avaliou contando os pôneis. Havia apenas sete pastando perto das cabanas. Para mudar um acampamento como esse, com os homens montados e mais mulheres e crianças, tendas dobradas e outras bagagens, precisariam de uns vinte cavalos.

Ouviu o sargento engatinhando ribanceira acima na direção dele e gesticulou para que o homem permanecesse abaixado. Então a manga do uniforme azul com as três divisas apareceu ao seu lado.

- O que você está vendo? -perguntou num sussurro rouco.

Era nove da manhã e já fazia calor. Cavalgavam havia mais de três horas. O general Custer gostava de levantar acampamento cedo. Mas o batedor já sentia o bafo de uísque do homem ao seu lado. Era um uísque de fronteira muito ruim, e seu fedor não era amenizado pelo perfume das ameixas silvestres, morangos e torrentes de rosas que cresciam em profusão ao longo da ribanceira e deram nome ao córrego Rosebud, ”botão de rosa”.

- Cinco cabanas. Cheyenne. Apenas mulheres e crianças no acampamento. Os bravos estão caçando do outro lado do córrego.

O sargento Braddock não perguntou ao batedor como ele sabia disso. Simplesmente aceitou que ele sabia. Braddock pigarreou, cuspiu uma gosma de tabaco líquido e abriu um sorriso de dentes amarelados. O batedor deslizou ribanceira abaixo e, quando julgou seguro, levantou-se.

- Vamos deixá-los em paz. Eles não são o que estamos procurando.

Mas Braddock passara três anos nas pradarias com a Sétima Cavalaria e desfrutara uma quantidade de ação depressivamente pequena. Em um inverno longo e tedioso no Forte Lincoln, ele gerara um filho bastardo com uma lavadeira e prostituta em tempo parcial, mas viera para cá realmente para matar índios, e não queria sair frustrado.

O massacre durou apenas cinco minutos. Os dez cavaleiros fizeram suas montadas descerem pela ribanceira e investiram a todo galope. O batedor, montado em seu cavalo no topo da ribanceira, assistiu repugnado ao espetáculo.

Um soldado, um recruta raso, montava tão mal que caiu. O restante cuidou do massacre. Como todas as espadas de cavalaria tinham sido deixadas no Forte Lincoln, eles usaram seus revólveres Colt ou os recém-lançados rifles Springfield’ 73.

Quando ouviram o ribombar dos cascos, as índias reunidas com suas panelas em torno da fogueira tentaram encontrar e recolher seus filhos antes de correrem para o rio. Mas era tarde demais. Os cavaleiros interceptaram os índios antes de eles chegarem à água, em seguida deram meia-volta e tocaram-nos para as cabanas, atirando em tudo que se movia. No fim, quando todos os velhos, mulheres e crianças estavam mortos, os soldados desmontaram e invadiram as cabanas, procurando saques interessantes para mandar para casa. O batedor ouviu vários tiros a mais dentro das cabanas, quando os soldados encontraram crianças ainda vivas.

O batedor fez sua montaria trotar pelos 150 metros entre a ribanceira e o acampamento, para examinar o massacre. Aparentemente, nada e ninguém continuava vivo quando os soldados queimaram as cabanas. Um dos soldados, pouco mais do que um menino e para quem aquilo era novidade, expulsava seu café da manhã de carne-seca e feijão, debruçado da sela para evitar o contato com seu próprio vômito. O sargento Braddock sentia-se triunfante. Tivera a sua vitória. Encontrou um coçar de guerra e o afixou em sua sela, perto do cantil, que a rigor deveria conter apenas água de fonte.

O batedor contou 14 cadáveres, largados como bonecas quebradas onde tinham caído. Fez que não com a cabeça quando um dos homens ofereceu-lhe um troféu, e trotou até a beira do córrego para deixar seu cavalo beber.

Ela estava deitada meio oculta entre os juncos, o sangue fresco escorrendo da coxa, onde uma bala a atingira enquanto corria. Se tivesse sido um tantinho mais rápido, o batedor teria virado a cabeça e conduzido seu cavalo de volta às tendas em chamas. Mas Braddock, observando-o, seguiu a direção de seu olhar e tocou seu cavalo até a margem do córrego.

- O que você achou, garoto? Ora, ora. Mais um verme, e ainda vivo.

Sacou o seu Colt e fez pontaria. A menina entre os juncos olhou para eles, o choque esvaziando seu rosto de qualquer expressão. O batedor estendeu o braço, segurou o pulso do irlandês e forçou a pistola para cima. A raiva deformou ainda mais aquele rosto rude e ruborizado pelo uísque.

- Deixe-a viva. Ela pode saber alguma coisa -disse o batedor, empregando o único argumento possível.

Braddock se calou, refletiu bastante e meneou a cabeça.

- Bem pensado, garoto. Vamos levá-la de volta para o general como um presente.

Braddock enfiou a pistola de volta no coldre e foi checar seus homens. O batedor deslizou de seu cavalo e entrou nos juncos para se inclinar sobre a menina. Para sorte da criança, o ferimento estava limpo. À queima-roupa, a bala atravessara a carne da coxa enquanto ela corria. Havia um ferimento de entrada e um buraco de saída da bala, ambos pequenos e redondos. O batedor usou seu lenço para banhar o ferimento com água limpa do córrego e amarrá-lo com força para deter o fluxo do sangue.

Quando terminou, olhou para ela. A menina fitava-o em silêncio. Uma torrente de cabelos, negros como asa de corvo, escorria até seus ombros; olhos grandes e negros, toldados pela dor e pelo medo. Nem todas as índias eram bonitas aos olhos de um homem branco mas, de todos os povos indígenas, os cheyennes eram os mais belos. A menina nos juncos, contando cerca de 16 anos, tinha uma beleza estonteante, etérea. O batedor tinha 24 anos, fora criado segundo a Bíblia, e jamais conhecera uma mulher, no sentido do Velho Testamento. Sentiu seu coração martelar no peito e precisou desviar o olhar. Jogou a menina sobre o seu ombro e caminhou de volta ao acampamento arruinado.

- Ponha ela num cavalo! -berrou o sargento, e em seguida tomou um gole de seu cantil.

O batedor fez um sinal negativo com a cabeça.

- Vai morrer se não for numa maca puxada por um cavalo.

Havia várias maças indígenas no chão, perto das cinzas fumegantes das tendas. Composta de dois varapaus maleáveis, cruzados sobre as costas de um pônei e se estendendo até o chão, com um couro de búfalo esticado entre eles para suportar a carga, a maca indígena era uma forma confortável de viajar, muito mais adequada para um ferido do que a carroça do homem branco, que balançava violentamente a cada solavanco.

O batedor cercou um dos cavalos desgarrados. Restavam apenas dois; cinco tinham trotado para longe. O cavalo empinou e relinchou quando o batedor agarrou suas rédeas. O animal já tinha sentido o odor de homem branco e esse cheiro levava à loucura um cavalo índio. O oposto também era verdade: os animais da cavalaria dos Estados Unidos ficavam praticamente incontroláveis quando sentiam o odor corporal dos índios das planícies.

O batedor soprou gentilmente nas narinas do animal até ele se acalmar e aceitá-lo. Dez minutos depois tinha instalado a maca indígena e posto nela a jovem ferida, embrulhada num cobertor de couro de búfalo. A patrulha retornou pela trilha para encontrar Custer e o corpo principal da Sétima Cavalaria. Era o dia 20 de junho, ano da graça de 1876.

As sementes da campanha daquele verão haviam sido plantadas fazia muitos anos nas planícies do sul de Montana. Quando finalmente foi descoberto ouro nas Colinas Negras de Dakota do Sul, os mineradores voaram para lá como moscas. Mas o homem branco já fechara um acordo assegurando a permanência dos índios sioux nas Colinas Negras. Furiosos com o que consideraram traição, os índios das planícies responderam com ataques aos mineradores e às caravanas.

Os brancos ficaram furiosos diante dessa violência; histórias de barbárie horrenda, freqüentemente fictícias ou imensamente exageradas, levaram essa fúria ao ponto de ebulição, e as comunidades brancas apelaram a Washington. O governo respondeu revogando o Tratado de Laramie e confinando os índios das planícies em uma série de reservas estéreis, uma fração do que havia prometido solenemente. As reservas ficavam em territórios nas Dakotas do Sul e do Norte.

Além disso, Washington também delimitou um bloco conhecido como os Territórios Não Cedidos aos índios. Estes eram campos de caça tradicional dos sioux, ainda repletos de búfalos e veados. O bloco tinha sua fronteira leste ao longo da linha vertical criada pelos perímetros oeste das Dakotas do Norte e do Sul. A fronteira oeste das duas Dakotas era uma linha imaginária norte-sul de 230 quilômetros, uma linha que os índios jamais tinham visto e não podiam imaginar. Ao norte, o bloco Não Cedido era delimitado pelo rio Yellowstone, correndo através do território de Montana e entrando nas Dakotas; ao sul, pelo rio North Platte, no Wyoming. Aqui, os índios inicialmente receberam permissão para caçar. Mas a marcha do homem branco para o Oeste não parou.

Em 1875 os sioux começaram a sair das reservas de Dakota e a seguir para oeste, adentrando os terrenos de caça Não Cedidos. No final daquele ano, o Departamento de Assuntos Indígenas deu-lhes um prazo: deveriam retornar para as reservas até o primeiro dia de janeiro.

Os sioux e seus aliados não contestaram o ultimato; simplesmente o ignoraram. A maioria deles sequer chegou a ouvir falar do assunto. Continuaram a caçar e, à medida que o inverno dava lugar à primavera, procuraram suas caças tradicionais, os polivalentes búfalos e os gentis veados e antílopes. No começo da primavera o departamento transferiu a responsabilidade para o exército. A tarefa do exército era encontrá-los, detê-los e escoltá-los de volta às reservas de Dakota.

O exército não sabia duas coisas: quantos índios estavam realmente fora das reservas e onde eles estavam. Na primeira questão, o exército simplesmente mentiu. As reservas eram geridas por agentes indígenas, todos brancos e muitos deles patifes.

As incumbências dos agentes indígenas incluíam a distribuição das cotas de gado, milho, farinha, cobertores e dinheiro que eles recebiam de Washington. A grande maioria roubava os índios, levando à fome mulheres e crianças, e portanto à decisão de retornar às planícies de caça.

Os agentes também tinham outro motivo para mentir. Se declarassem que cem por cento dos índios que supostamente deveriam estar na reserva realmente se encontravam nela, recebiam cem por cento dos produtos e verbas destinados ao bem-estar dos índios. À medida que a percentagem desses índios caíssem, também cairiam as cotas e os lucros pessoais do agente. Na primavera de 1876, os agentes contaram ao exército que apenas alguns guerreiros estavam ausentes. Eles mentiram. Havia milhares e milhares de guerreiros fora das reservas; todos tinham ido para oeste, caçar nas Terras Não Cedidas.

Quanto a onde eles estavam, só havia uma forma de descobrir. Enviariam tropas ao sul de Montana para encontrá-los. Assim, um plano foi formulado. Seriam formadas três colunas mistas de soldados da infantaria e da cavalaria.

De Forte Lincoln, na Dakota do Norte, o general Alfred Terry marcharia para oeste ao longo do curso do rio Yellowstone, a fronteira norte dos campos de caça. De Forte Shaw, em Montana, o general John Gibbon marcharia rumo ao sul para Forte Ellis, e depois seguiria para leste ao longo do rio Yellowstone até encontrar a coluna de Terry vindo da outra direção.

De Forte Fetterman, bem ao sul do Wyoming, o general George Crook marcharia para o norte, através das cabeceiras do córrego Crazy Woman, cruzando o rio Tongue e subindo o vale de Big Horn até encontrar as duas outras colunas. Presumia-se que, em algum ponto entre esses três cursos, um deles encontraria o corpo principal dos sioux. Todos partiram em março.

No começo de junho Gibbon e Terry encontraram-se onde o rio Tongue, fluindo para o norte, deságua no Yellowstone. Eles não viram um único coçar de guerra. Tudo que sabiam era que pelo menos os índios das planícies estavam em algum lugar ao sul deles. Gibbon e Terry concordaram que Terry deveria marchar para oeste e Gibbon, agora unido com ele, iria retroceder para oeste, foi o que fizeram.

Em 20 de junho a coluna combinada alcançou o ponto onde o Rosebud deságua no Yellowstone. Aqui foi decidido que, se os índios estivessem nesse curso de rio em particular, a Sétima Cavalaria, que acompanhara Terry durante todo o caminho desde Forte Lincoln, deveria se destacar e subir o Rosebud até sua cabeceira. Custer devia encontrar índios, ele devia encontrar o general Crook.

Ninguém sabia que no dia 17 Crook, ao se deparar com uma concentração muito grande de índios sioux e cheyenne, havia recuado. Ele dera meia-volta, seguira de volta para o sul e agora estava alegre e feliz, caçando veados. Não mandou mensageiros ao norte para encontrar e alertar seus colegas, de modo que eles não sabiam que não haveria alívio vindo do sul. Estavam sozinhos.

Foi no quarto dia da marcha forçada pelo vale do Rosebud que uma patrulha de vanguarda retornou com uma história sobre uma vitória sobre uma pequena aldeia de cheyennes, e uma prisioneira.

O general George Armstrong Custer, cavalgando orgulhoso à frente de sua coluna de cavalaria, tinha pressa. Não queria parar a unidade inteira por causa de um prisioneiro. Ele meneou a cabeça em resposta ao aparecimento do sargento Braddock e ordenou-lhe que se dirigisse a seu próprio comandante de companhia. Se havia alguma informação que eles pudessem extrair da mulher índia, isso poderia esperar até que acampassem naquela noite.

 

A garota cheyenne permaneceu na maca índia pelo restante do dia. O batedor levou o cavalo até a retaguarda e atrelou sua correia a uma das carroças do comboio de bagagem. Assim, o cavalo que puxava a maca foi obrigado a seguir a carroça. Como agora não era necessária nenhuma exploração de terreno, o batedor não se afastou. No curto tempo em que estava com a Sétima Cavalaria ele concluíra que não gostava do que estava fazendo, que não gostava nem do comandante ao qual era subordinado nem do sargento da companhia; e que achava o famoso general Custer um grande babaca. Ele não tinha o vocabulário para colocar seu sentimento nesses termos, e em todo caso manteve seus pensamentos para si. Seu nome era Ben Craig.

Seu pai, John Knox Craig, fora um imigrante escocês, expulso de sua fazendinha por um proprietário ganancioso. Este homem tenaz emigrara para os Estados Unidos no começo de 1840. Em algum lugar no Leste conhecera e desposara uma jovem escocesa e presbiteriana como ele próprio e, encontrando poucas oportunidades nas cidades, seguira para o Oeste até a fronteira. Em 1850 alcançou o sul de Montana e decidiu tentar a sorte garimpando ouro em torno dos contrafortes de Pryor Range.

Ele foi um dos pioneiros daquela época. A vida fora árdua e sofrida, com invernos amargos num barraco de madeira diante de um córrego na beira da floresta. Apenas os verões tinham sido idílicos, com a floresta repleta de animais de caça, trutas saltitando nos córregos e a pradaria, um tapete de flores selvagens. Em 1852 Jennie Craig deu à luz seu primeiro e único filho. Dois anos depois, uma filha pequena morreu na infância.

Ben Craig tinha dez anos, uma criança da floresta e da fronteira, quando seu pai e sua mãe foram mortos por índios crows. Dois dias depois, um caçador das montanhas chamado Donaldson encontrou o garoto, faminto, ainda chorando entre as cinzas da <. cabana incendiada. Juntos, enterraram John e Jennie Craig sob duas cruzes perto da margem do rio. Se Craig Pai conseguiu juntar um punhado de pó de ouro é algo que jamais se saberá, porque os guerreiros crows encontraram o pó amarelo, espalharam-no pensando ser apenas areia.

Mais velho que os pais de Craig, Donaldson era um montanhas que deitava armadilhas para lobos, castores, ursos e raposas, e uma vez por ano levava as peles para o posto de troca mais próximo. Apiedado pelo órfão, o velho solteiro decidiu abrigálo e criá-lo como seu próprio filho.

Sob os cuidados de sua mãe, Ben tivera acesso a apenas um livro, a Bíblia, do qual ela lera longas passagens. Embora não soubesse ler nem escrever, ele gravara na mente passagens daquele que sua mãe chamava de o Bom Livro. Com o pai, Ben aprendera a peneirar em busca de ouro, mas foi Donaldson quem o ensinou os segredos da natureza, os nomes dos pássaros, como reconhecer os rastros de um animal e como cavalgar e atirar.

Foi com o caçador que Ben conheceu os cheyennes, que também deitavam armadilhas, e com quem Donaldson negociava as mercadorias que adquiria no posto de trocas. Foram eles que ensinaram a Ben suas tradições e linguagem.

Dois anos antes da campanha de verão de 1876, o velho foi morto pela mesma natureza na qual vivera. Errou o alvo ao atirar num velho urso marrom e o animal, furioso, dilacerou-o com as garras até matá-lo. Ben sepultou seu pai adotivo perto da cabana na floresta, pegou o que precisava e queimou o resto.

O velho Donaldson sempre dissera:

- Quando eu me for, garoto, pegue o que precisar. Tudo será seu.

Assim, Ben tomou para si a faca de caça e sua bainha decorada ao estilo cheyenne, e o rifle Sharps de 1852. Pegou também os dois cavalos, selas, cobertores e um pouco de carne-seca para a viagem. Não precisava de mais nada. Desceu das montanhas para a planície e cavalgou para o norte, rumo a Forte Ellis.

Trabalhava em Ellis como caçador e domador de cavalos quando, no mês de abril de 1876, o general Gibbon passou por ali. O general precisava de batedores que conhecessem a região ao sul do rio Yellowstone. O pagamento oferecido era bom, e Ben Craig aceitou o serviço.

Estava presente quando eles alcançaram a foz do rio Tongue e se encontraram com o general Terry; ele cavalgou de volta com a coluna combinada até que encontraram novamente a foz do Rosebud. Aqui a Sétima Cavalaria, sob o comando do general Custer, foi destacada para seguir rumo ao sul ao longo do córrego, e anunciou que precisava de alguém que falasse a língua cheyenne.

Custer tinha pelo menos dois batedores fluentes na língua sioux. Um deles era um soldado negro, o único na Sétima Cavalaria, Isaiah Dorman, que vivera com os sioux. O outro era o chefe dos batedores, Mitch Boueyer, um mestiço meio francês, meio sioux. Mas embora os cheyennes tenham sempre sido considerados primos em primeiro grau e aliados tradicionais dos sioux, as línguas eram diferentes. Craig levantou a mão e o general Gibbon o aceitou na Sétima Cavalaria.

Gibbon também ofereceu a Custer três companhias extras de cavalaria sob o comando do major Brisbin, mas Custer recusou. Terry ofereceu-lhe metralhadoras Gartling, mas ele também as recusou. Ao partir Rosebud acima, a Sétima Cavalaria consistia em 12 companhias de tropas, seis batedores brancos, mais de trinta batedores índios, uma caravana de carroças e três civis, somando um total de 675 homens. Estes também incluíam balseiros, ferreiros e muleiros.

Custer deixara sua banda de regimento para trás com Terry, de modo que quando realizasse seu ataque final não seria ao som de sua marcha favorita, ”Garryowen”. Mas à medida que seguiam o curso do rio, com chaleiras, panelas e caldeirões batendo nas laurais das carroças de mantimentos, onde ficavam penduradas, Craig perguntou-se que tipo de índios Custer esperava pegar de surpresa. Craig sabia que com o barulho e a coluna de poeira erguida por três mil cascos, a Sétima Cavalaria podia ser vista e ouvida a muitos quilômetros de distância.

Craig tivera duas semanas entre o Tongue e o Rosebud para analisar a afamada Sétima Cavalaria e seu comandante icônico, e quanto mais via, mais seu coração afundava. Craig torcia para que eles não se deparassem com um grupo grande de sioux e cheyennes preparados para lutar, mas tinha quase certeza de que isso iria acontecer.

Durante o dia inteiro a coluna rumou para o sul, seguindo o curso do Rosebud, mas eles não viram mais índios. Ainda assim, várias vezes, quando o vento soprou da pradaria para oeste, os cavalos ficaram ariscos, até aterrorizados, e Craig teve certeza de que eles tinham farejado alguma coisa na brisa. As cabanas queimadas não podiam passar despercebidas por muito tempo. Uma coluna alta de fumaça sobre a pradaria podia ser vista a quilômetros. O elemento surpresa fora perdido.

Um pouco depois das quatro da tarde o general Custer ordenou que seus homens parassem e montassem acampamento. O sol começou a descer na direção das distantes e invisíveis Rochosas. As tendas dos oficiais foram prontamente montadas. Custer e os mais próximos a ele sempre usavam a tenda ambulância, a maior e mais espaçosa. Mesas e cadeiras dobráveis foram dispostas pelo acampamento, os cavalos foram conduzidos ao rio para beber água, a comida foi preparada, as fogueiras foram acesas.

A menina cheyenne estava deitada em silêncio na maca índia, observando o céu escurecer. Estava preparada para morrer. Craig encheu um cantil com água fresca do rio e lhe ofereceu. Ela fitou Craig com olhos grandes e escuros.

- Beba -disse Craig em cheyenne.

Ela não se moveu. Craig verteu um gole do líquido gelado na boca da jovem. Os lábios se abriram. Ela engoliu. Ele deixou o cantil de pele ao lado dela.

Quando a escuridão se adensou, um cavaleiro da Companhia B apareceu procurando por Craig.

Depois de encontrá-lo, o soldado partiu a todo galope. Dez minutos depois o capitão Acton apareceu a cavalo. Estava acompanhado pelo sargento Braddock, um cabo e dois soldados. Todos desmontaram e cercaram a maca índia.

Todos os batedores de fronteira associados à Sétima Cavalaria, os seis brancos, o pequeno grupo de índios crows e os trinta e tanto arikaras, conhecidos como os rees, formavam um grupo de interesse comum. Todos conheciam a fronteira e como se vivia nela.

Quando a noite chegava e eles se acercavam das fogueiras antes de se recolherem, tinham por costume conversar. Falavam dos oficiais, começando pelo general Custer, e os comandantes da companhia. Craig ficara surpreso com o quanto o general era impopular entre seus homens. Seu irmão mais novo, Tom Custer, comandando a Companhia C, era muito mais apreciado, mas o mais odiado de todos era o capitão Acton. Craig compartilhava dessa antipatia. Acton era um soldado de carreira que se juntara à Sétima Cavalaria logo depois do término da Guerra Civil, dez anos antes e, descendente de uma família abastada do Oeste, ascendera à sombra de Custer. Era magro, tinha um rosto ossudo e boca cruel.

- E então, sargento, aqui está a sua prisioneira -disse Acton. -Vamos descobrir o que ela sabe.

- Você fala o dialeto selvagem? -indagou a Craig. O batedor confirmou com a cabeça. -Eu quero saber quem ela é, com que grupo estava e onde o corpo principal dos sioux pode ser encontrado. E quero saber agora.

Craig se curvou sobre a garota deitada no couro de búfalo. Dirigiu-se a ela em cheyenne, usando tanto palavras quanto diversos gestos, porque o vocabulário dos dialetos dos índios das planícies era limitado e exigia o uso de gestos para um completo entendimento.

- Diga o seu nome, garota. Ninguém lhe fará mal.

- Sou chamada de Murmúrio do Vento -disse ela.

Os soldados da cavalaria estavam em pé ao redor deles, ouvindo atentamente. Não podiam entender uma palavra sequer, mas podiam compreender os meneios da garota. Finalmente, Craig se empertigou.

- Capitão, ela diz que seu nome é Murmúrio do Vento. Ela é do norte da nação cheyenne. Sua família é a de Alce Alto. Eram deles as cabanas que o sargento destruiu esta manhã. Havia dez homens na aldeia, incluindo o pai dela, e eles estavam caçando veados e antílopes a leste do Rosebud.

- E a concentração principal de sioux?

- Ela diz que não viu os sioux. Sua família veio do sul, do rio Tongue. Havia alguns cheyennes com eles, mas eles se separaram do grupo há uma semana. Alce Alto prefere caçar sozinho.

 

O capitão Acton olhou para a coxa envolta por uma bandagem, agachou-se e apertou a região com força. A garota arfou, mas não se permitiu gritar.

- Talvez ela precise de um pouco de encorajamento -disse Acton.

O sargento sorriu. Craig estendeu o braço, agarrou o pulso do capitão e o afastou da garota.

- Isso não vai funcionar, capitão -disse Craig. -Ela me contou tudo que sabia. Se os sioux não podem estar ao norte, o caminho de onde viemos, e não estão ao sul e a leste, devem estar a oeste. Pode dizer isso ao general.

O capitão Acton se desvencilhou da mão que lhe prendia o pulso com uma expressão de asco, como se temesse um contágio. Empertigou-se, sacou um relógio de bolso e viu as horas.

- Hora de jantar na tenda do general. Preciso ir. -Ele claramente perdera o interesse pela prisioneira. -Sargento, quando estiver completamente escuro, leve a índia para a pradaria e dê cabo dela.

- Algum problema se nos divertimos um pouco com ela antes, capitão? -perguntou o sargento Braddock.

Os outros homens soltaram risos de aprovação. O capitão Acton montou seu cavalo.

- Francamente, sargento, eu não dou a mínima para o que vocês fizerem.

Esporeou a montaria na direção da tenda do general Custer, no extremo do acampamento. Os outros também montaram. O sargento Braddock se inclinou para Craig com um sorriso escarninho.

- Guarde ela pra gente, garoto. Nós já voltamos.

Craig caminhou até a carroça de mantimentos mais próxima, pegou um prato de porco salgado, carne-seca e arroz, encontrou umacaixa de munição, sentou-se e comeu. Pensou em sua mãe anos antes, lendo a Bíblia para ele à luz difusa de uma vela. Pensou . 11 em seu pai, peneirando pacientemente hora após hora em busca do metal amarelo nas correntes do rio Pryor. E pensou no seu pai adotivo, Donaldson, que apenas uma vez tirara seu cinto para bater em Craig, e isso quando ele fora cruel com um animal capturado.

Um pouco antes das oito, com a escuridão agora assentada no acampamento, ele se levantou, devolveu o prato e a colher na carroça, e caminhou de volta até a maça. Nada disse à garota, Apenas descruzou os dois varapaus sobre as costas do pônei e abaixou a maca até o chão.

Ergueu a garota sem fazer o menor esforço e a colocou sobre as costas do cavalo, dando-lhe as rédeas de couro. E apontou para a pradaria aberta.

- Cavalgue -disse ele.

A jovem índia fitou-o por dois segundos. Ele deu um tapa na anca do cavalo. Segundos depois ele estava trotando. Era um animal forte e saudável que poderia seguir por muitos quilômetros pela pradaria aberta até sentir o odor de outros de sua espécie. A 15 metros dali, vários batedores rees observaram-no com curiosidade.

Eles procuraram Craig às nove e chegaram com raiva. Dois soldados de cavalaria seguraram-no enquanto o sargento Braddock esmurrava seu corpo. Quando Craig perdeu os sentidos, eles o arrastaram pelo acampamento até onde o general Custer, à luz de várias lamparinas e cercado por um grupo de oficiais, estava sentado a uma mesa na frente de sua tenda.

George Armstrong Custer sempre fora um enigma. Mas estava claro que havia dois lados nesse homem: um bom e um malévolo, um iluminado e um sombrio.

 

Em seu lado iluminado, Custer podia ser alegre e risonho, viciado em pregar peças e se cercar de companhias agradáveis. Dono de uma energia infindável e um vigor pessoal enorme, estava sempre envolvido em algum novo projeto, fosse coletar animais selvagens nas planícies para mandar para zoológicos do Leste, ou aprender taxidermia. A despeito de anos de ausência, ele era absolutamente fiel à sua esposa, Elizabeth, a quem era devotado.

Depois de experimentar uma bebedeira na juventude, tornara-se abstêmio, recusando-se até mesmo a beber um cálice de vinho durante o jantar. Jamais praguejava e proibia linguajar profano em sua presença.

Quatorze anos antes, durante a Guerra Civil, demonstrara uma coragem tão cega e uma ausência de medo pessoal tão extraordinária, que rapidamente ascendera de tenente a general-de-divisão, concordando em reverter a tenente-coronel só para permanecer no exército menor do pós-guerra. À frente de seus homens, ele penetrara cortinas de fogo, mas jamais fora tocado por uma bala. Era um herói para uma miríade de civis,, mas ainda assim, exceto por sua corte pessoal, não contava com a confiança nem o apreço de seus próprios homens.

Isso se devia ao fato de Custer poder ser vingativo e cruel com quem o ofendia. Embora ele próprio jamais tivesse sido atingido, Custer, movido por uma ousadia quase insana, tivera mais soldados mortos e feridos do que qualquer outro comandante de cavalaria na guerra. E os soldados não gostavam de um comandante que não se importava em levá-los à morte.

Durante a Guerra das Planícies ele usou o chicote com freqüência, e sofreu mais deserções do que qualquer outro comandante do Oeste. A Sétima Cavalaria era sangrada continuamente pela partida noturna de desertores, ou pássaros da neve, como eram chamados. A unidade precisava ser constantemente reabastecida de novos recrutas, mas Custer tinha pouco interesse em treiná-los para se tornarem soldados de cavalaria eficazes. A despeito de um outono e de um inverno longos em Forte Lincoln, a Sétima Cavalaria encontrava-se em estado deplorável em junho de 1876.

Custer possuía uma vaidade e ambição de proporções extraordinárias, sendo capaz de qualquer coisa para estimular sua glorificação pessoal nos jornais em que tinha penetração. Com esse fim, adotara muitos de seus maneirismos, o casaco de couro de cervo e os cachos dourados, como os do jornalista Mark Kellogg, que agora acompanhava a Sétima Cavalaria à guerra.

Mas como comandante-geral Custer cometera dois erros que nas próximas horas iriam matá-lo e à maioria de seus homens. Um fora ter constantemente subestimado seu inimigo. Ele tinha a reputação de um grande combatente de índios, e acreditava nela. Na verdade, oito anos antes havia varrido uma aldeia cheyenne adormecida, a do chefe Caldeira Preta, no rio Washita, em Kansas. Custer cercara à noite os índios adormecidos e, ao romper da aurora, massacrara a maioria deles, homens, mulheres e crianças. Como haviam acabado de assinar um novo tratado de paz com os brancos, os cheyennes julgavam estar em segurança.

Nos anos intermediários, Custer se envolveu em quatro pequenas escaramuças com grupos de guerreiros. As perdas das quatro não chegavam a uma dúzia. Considerando as imensas listas de baixas da Guerra Civil, esses conflitos com índios locais mal mereciam menção. Todavia, os leitores do Leste estavam famintos por heróis, e o selvagem pintado da fronteira era um vilão demoníaco. As reportagens sensacionalistas nos jornais e o seu próprio livro, My Life on the Plains, tinham agraciado o general Custer com sua reputação e sua condição de ícone.

 

O segundo erro de Custer era o de não dar ouvidos a ninguém. Ele possuía alguns batedores extremamente experientes em sua marcha ao longo do Rosebud, mas ignorou todos os seus avisos.

Este era o homem ao qual Ben Craig foi arrastado na noite de

 

24 de junho.

O sargento Braddock explicou o que acontecera, e que houvera testemunhas. Custer, cercado por seis de seus oficiais, estudou o homem à sua frente. Viu um homem vinte anos mais jovem que ele, com um pouco menos de um metro e oitenta, vestido em roupas de couro de cervo, com cabelos castanho-escuros encaracolados e olhos azuis faiscantes. Era claramente caucasiano, não sendo nem mesmo mestiço como alguns de seus batedores, mas nos pés usava mocassins em lugar das botas de cavalaria de couro duro, e uma única pena de águia de ponta branca pendia da trança de cabelo que descia pelas costas.

- Esta é uma ofensa muito séria -disse Custer quando o sargento acabou de falar. -É verdade?

- Sim, general.

- E por que você fez isso?

Craig explicou o interrogatório da garota e os planos para o final daquela noite. Custer franziu o rosto em sinal de desaprovação.

- Não quero esse tipo de coisa sob o meu comando, nem mesmo com índias. O que ele disse é verdade, sargento?

Nesse momento, o capitão Acton, sentado atrás de Custer, interveio. Falou com uma voz suave e persuasiva. Conduzira o interrogatório pessoalmente. Ele fora inteiramente verbal, através do intérprete. Não fora infligida dor significativa à garota. Suas últimas instruções tinham sido para que ela fosse guardada durante a noite, mas sem ser tocada, para que o general pudesse tomar uma decisão pela manhã.

 

- Creio que meu sargento de tropa confirmará minhas palavras -concluiu.

- Sim, senhor -disse Braddock. -Foi exatamente assim que aconteceu.

- Caso provado -disse Custer. -Prendam-no até a corte marcial. Mande chamar o sargento-carcereiro. Craig, ao permitir que essa prisioneira partisse, você a enviou para juntar-se ao corpo principal do inimigo e avisá-lo. Isso é traição e uma ofensa passível de enforcamento.

- Ela não cavalgou para o oeste -disse Craig. -Ela foi para o leste, encontrar sua própria família, o que restou dela.

- Neste exato momento ela pode estar alertando o inimigo sobre a nossa posição - insistiu Custer.

- Eles sabem onde o senhor está, general.

- E como você sabe disso?

- Eles seguiram o senhor o dia inteiro.

Seguiram-se dez segundos de silêncio profundo. O sargento-carcereiro apareceu, um veterano fanfarrão chamado Lewis.

- Prenda esse homem, sargento. Mantenha-o sob estreita vigilância. Amanhã, ao nascer do sol, teremos uma rápida corte marcial. A sentença será executada imediatamente. É tudo.

- Amanhã é o Dia do Senhor - disse Craig. Custer pensou.

- Tem razão. Não enforcarei um homem num domingo. Será na segunda.

Em um canto, o ajudante do regimento William Cooke, um canadense, estivera tomando nota dos procedimentos. Mais tarde as anotações seriam guardadas em seu alforje.

Nesse momento um dos batedores, Bob Jackson, chegou a cavalo à tenda. Com ele estavam quatro rees e um batedor crow.

 

Eles tinham avançado ao pôr-do-sol e estavam voltando tarde. Jackson era meio branco, meio pé-preto. Seu relatório empolgou tanto a Custer que ele se levantou.

Um pouco antes do pôr-do-sol os batedores nativos de Jackson tinham encontrado rastros de um campo grande, com muitas marcas circulares na planície onde as tendas haviam estado. A trilha do acampamento seguia para oeste, para longe do vale do Rosebud.

Custer ficou empolgado por dois motivos. As ordens que recebera do general Terry tinham sido para subir até a cabeceira do Rosebud, e depois usar seu próprio julgamento, caso dispusesse de novas informações. E aqui estavam elas. Custer era agora um homem livre para criar e formular suas próprias estratégias e táticas, seu próprio plano de batalha, sem ter de seguir ordens. O segundo motivo era que ele finalmente parecia ter encontrado o corpo principal dos sioux. Trinta e dois quilômetros a oeste jazia outro rio em outro vale: o Litde Bighorn, fluindo para o norte para juntar-se ao Bighorn e dali ao Yellowstone.

Dentro de dois ou três dias as forças combinadas de Gibbon e Terry alcançariam essa confluência e iriam para o sul ao longo do Bighorn. Os sioux estavam encurralados.

- Levantar acampamento! -bradou Custer, e seus oficiais correram para suas unidades. -Marcharemos durante a noite! - Virou-se para o sargento-carcereiro. -Mantenha esse prisioneiro ao seu lado, sargento Lewis. Ele deve ficar amarrado a seu cavalo, logo atrás de mim. Assim poderá ver o que acontecerá com os amigos dele.

Eles marcharam durante a noite. Venceram terrenos árduos e saíram do vale, sempre subindo para a cabeceira. Os homens e os cavalos começaram a sentir o cansaço. Chegaram à divisa, o ponto alto entre os dois vales, nas primeiras horas da manhã do domingo, no dia 25. Estava escuro como breu, mas as estrelas brilhavam. Logo depois da divisa encontraram um riacho que Mitch Bouyer identificou como o córrego Ashwood. Fluía para (> leste, descendo a colina para juntar-se ao Little Bighorn no vale. A coluna seguiu o córrego.

Um pouco antes do amanhecer Custer ordenou que o grupo parasse, mas não se firmou acampamento. Os homens cansados deitaram no chão para repousar e dormir um pouco.

Craig e o sargento-carcereiro tinham cavalgado a menos de 45 metros atrás de Custer, como parte da tropa frontal. Craig ainda montava em seu cavalo, mas seu rifle Sharps e sua faca de caçador estavam com o sargento Lewis. Seus tornozelos estavam amarrados com correias de couro à sua sela e seus pulsos voltados para trás.

Na pausa antes do amanhecer, Lewis, que era um fanfarrão e obedecia às regras, mas nem de longe era um homem rude, desamarrou as correias e permitiu que Craig deslizasse para o chão. Os pulsos de Craig permaneceram amarrados, mas Lewis deu-lhe vários goles de água de seu cantil. O dia seguinte mais uma vez seria quente.

Foi nesse momento que Custer tomou a primeira das decisões estúpidas que cometeria no dia. Ele convocou seu terceiro em comando, o capitão Frederick Benteen, e lhe ordenou que levasse três companhias - H, D e K - até o deserto ao sul para ver se havia índios lá. A alguns metros de distância, Craig ouviu Benteen, a quem julgava ser o soldado mais profissional na unidade, protestar contra a ordem. Se havia uma grande concentração de índios hostis à frente nos bancos de Little Bighorn, seria sensato dividir a força?

 

- Você recebeu suas ordens - vociferou Custer, e lhe deu as costas.

Benteen deu de ombros e fez como foi ordenado. Da força total de cerca de seiscentos soldados de Custer, 150 saíram cavalgando pelas colinas e vales infindáveis do deserto em uma caçada absurda.

Embora Craig e o sargento Lewis jamais fossem saber disso, Benteen e seus homens e cavalos exaustos retornariam ao vale do rio muitas horas depois, tarde demais para ajudar mas também tarde demais para serem dizimados. Depois de dar sua ordem, Custer levantou acampamento novamente e a Sétima Cavalaria marchou ao longo do córrego na direção do rio.

Ao amanhecer, retornaram os vários batedores crows e rees, que tinham sido enviados à frente da coluna. Eles tinham achado um outeiro perto da confluência do córrego Ashwood com o rio. Estando familiarizados com a área inteira, eles o conheciam bem. Havia pinheiros no outeiro, e do alto de um deles um observador poderia ver o vale à frente.

Dois rees tinham subido nas árvores e visto o que tinham visto. Quando descobriram que Custer pretendia continuar, sentaram-se e começaram a entoar suas canções fúnebres.

O sol se levantou. O dia começou a ficar muito quente. A frente de Craig, o general Custer, que estava usando sua jaqueta de couro creme, despiu-a e a amarrou atrás de sua sela. Cavalgou numa camisa de algodão azul, com seu chapéu creme de aba larga cobrindo os olhos. A coluna chegou ao outeiro.

Custer estava meio caminho adiante e tentou ver com uma luneta o que havia à frente. Eles estavam no banco do córrego, ainda a cerca de cinco quilômetros da confluência com o rio. Quando começou a descer da colina e a conferenciar com seus oficiais remanescentes, os rumores começaram a correr pela coluna. Custer vira parte de uma aldeia sioux com fumaça se levantando de fogueiras. Estavam agora no meio da manhã.

Do outro lado do córrego e a leste do rio havia um bosquete que bloqueava a visão de todos no nível do solo. Ainda assim, Custer encontrara seus sioux. Ele não sabia precisamente quantos eram e se recusou a ouvir o alerta de seus batedores. Decidiu atacar, a única manobra em seu léxico pessoal.

O plano de batalha que escolheu foi um movimento de tesoura. Em vez de assegurar o flanco sul dos índios e esperar que Terry e Gibbon fechassem o norte, Custer decidiu cercar os índios com o que sobrou da Sétima Cavalaria.

Amarrado ao seu cavalo e aguardando a corte marcial para depois da batalha, Ben Craig ouviu-o ordenar ao seu segundo em comando, o major Marcus Reno, que pegasse mais três companhias — A, M e B - e continuasse rumando para oeste. Eles iriam alcançar o rio, vadeá-lo, virar à direita e atacar a extremidade inferior da aldeia pelo sul.

Ele deixaria uma companhia para guardar o comboio de mulas e os suprimentos. Com suas cinco companhias restantes, Custer galoparia para o norte, por trás das colinas, até surgir no lado norte. Então desceria até o rio, iria cruzá-lo e atacaria os sioux pelo norte. Entre as três companhias de Reno e as suas próprias cinco, os índios seriam cercados e destruídos.

Craig não sabia o que estava fora do campo de visão no outro lado das colinas baixas, mas podia estudar o comportamento dos batedores crows e rees. Eles sabiam, e eles se preparavam para morrer. O que viram era a maior concentração que já tinha havido, ou que viria a haver, de índios sioux e cheyenne. Seis grandes tribos haviam se reunido para caçar em parceria, e agora estavam acampadas ao longo da ribanceira oeste do rio Little Bighorn. No agrupamento estavam entre dez e 15 mil índios recrutados de todas as tribos das planícies.

Craig sabia que na sociedade dos índios das planícies um homem era considerado guerreiro entre as idades de 15 e 35 a quarenta anos. Portanto, um sexto de todos os índios da planície eram guerreiros. Assim, havia dois mil deles lá embaixo no rio, e eles não estavam dispostos a serem conduzidos de volta a qualquer reserva, agora que sabiam que as planícies a noroeste estavam cheias de veados e antílopes.

Pior ainda, e ninguém sabia disso, eles tinham encontrado e derrotado o general Crook na semana anterior e não sentiam medo dos soldados de casaco azul. Também não estavam fora caçando, como os índios de Alce Alto no dia anterior. Na verdade, na noite do dia 24 fizeram uma imensa celebração pela vitória contra Crook.

A razão para o atraso de uma semana era simples: uma semana fora o período de luto por seus próprios mortos na luta com Crook no dia 17, e portanto a celebração só pudera ser realizada ao fim de sete dias. Na manhã do dia 25 os guerreiros estavam se recuperando da dança da noite anterior. Eles não tinham ido lutar e ainda estavam com os corpos completamente pintados.

Todavia Craig tinha certeza de que aquela não era uma aldeia adormecida como a de Caldeira Preta, ao largo do rio Washita. Passava do meio-dia quando Custer dividiu suas forças pela última e derradeira vez.

O batedor observou o major Reno partir, descendo o córrego na direção do rio. À frente da Companhia B, o capitão Acton olhou para o batedor que ele praticamente condenara à morte, permitindo-se um pequeno sorriso quando passou por ele. Atrás dele, o sargento Braddock abriu um sorriso mordaz para Craig. Dali a duas horas ambos estariam mortos e os demais integrantes das três companhias de Reno estariam ilhados sobre uma colina, tentando resistir até Custer poder voltar para resgatá-los. Mas Custer jamais voltaria; caberia ao general Terry resgatá-los dois dias depois.

Craig observou 150 dos soldados da força reduzida de Custer descerem ao longo do córrego. Embora não fosse um soldado, tinha pouca fé neles. Trinta por cento dos homens de Custer eram recrutas rasos com treinamento mínimo. Alguns só eram capazes de cavalgar quando suas montarias estavam calmas, e portanto perderiam o controle sobre elas no combate. Outros mal sabiam manejar seus rifles Springfield.

Outros quarenta por cento, embora de carreiras mais longas, jamais tinham atirado enraivecidos contra um índio, nem mesmo lutado contra eles, e muitos jamais tinham visto algum, exceto os dóceis e confinados em reservas. Craig se perguntou como eles reagiriam quando uma horda pintada e ululante de guerreiros avançasse para defender suas mulheres e crianças. Ele tinha uma terrível premonição que se revelaria correta. Mas então seria tarde demais.

Havia mais um fator que ele sabia que Custer se recusava a admitir. Ao contrário da lenda, os índios da planície consideravam a vida sagrada, e não insignificante. Mesmo nas batalhas eles se recusavam a sofrer perdas pesadas, e geralmente recuavam depois de perder dois ou três de seus melhores e mais bravos guerreiros. Mas Custer estava atacando seus pais, suas esposas, seus filhos. A honra proibiria que os guerreiros parassem de lutar até que o último wasichu estivesse morto. Não haveria piedade.

Quando a nuvem de poeira levantada pelas três companhias de Reno começou a desaparecer no horizonte, Custer ordenou que o comboio bagageiro permanecesse atrás, guardado por uma das seis companhias que restavam. Com as outras - E, C, L, I e F -, voltou-se para o norte com a linha de colinas mantendo-o invisível aos índios no vale do rio, mas também mantendo-os invisíveis a ele.

Ele chamou seu sargento-carcereiro.

- Traga o prisioneiro. Quero que veja o que acontece com os amigos dele quando confrontam a Sétima Cavalaria.

Depois se virou e trotou para o norte. As cinco companhias seguiram-no, em um total de 250 homens. Craig compreendeu que Custer ainda não tinha percebido o perigo, pois estava levando três civis para assistir à pândega. Um era o jornalista magrelo e de óculo chamado Mark Kellog. Mais importante ainda, Custer tinha dois parentes consigo, por quem deveria se sentir responsável. Um era seu irmão mais jovem, Boston Custer, de 19 anos, e o outro um sobrinho de 16 anos, Autie Reed.

Os homens cavalgavam aos pares, em uma fila com oitocentos metros de comprimento. Atrás de Custer cavalgava o seu ajudante, Cooke, e atrás dele o ordenança do dia, o soldado de cavalaria John Martin, que era também o corneteiro do regimento. Seu nome verdadeiro era Giuseppe Martino; era um imigrante italiano que já fora corneteiro para Garibaldi, e ainda tinha um domínio limitado do inglês. O sargento Lewis e seu prisioneiro amarrado Ben Craig estavam dez metros atrás de Custer.

Enquanto subiam as colinas, ainda mantendo-se ocultos por elas, podiam virar-se em suas selas e ver o major Reno e seus homens cruzarem o Little Bighorn antes de atacar do sul. Nesse ponto Custer, notando as expressões taciturnas de seus batedores crows e rees, convidou-os a dar meia-volta e retornar. Eles o fizeram sem um instante de hesitação. Esses homens sobreviveram.

 

Os soldados continuaram marchando por cinco quilômetros até finalmente alcançar o topo e olhar para o vale abaixo deles. Craig escutou o sargento que segurava as rédeas de seu cavalo respirar fundo e murmurar ”Bom Deus”. A margem oposta do rio era um grande oceano de cabanas.

Mesmo àquela distância, Craig conseguia discernir as formas das tendas e as cores com as quais estavam decoradas, identificando as tribos. Eram seis aldeias separadas.

Quando os índios das planícies viajavam, eles o faziam em colunas, tribo por tribo. Quando paravam para acampar, estabeleciam-se em aldeias distintas. Assim, o acampamento inteiro era longo e estreito, e seis círculos fluíam a partir da margem oposta do rio.

Eles viajavam para o norte quando pararam, alguns dias antes. A honra de apagar os rastros fora dada aos cheyennes do norte, de modo que sua aldeia era a que ficava mais ao norte. A seu lado ficavam seus aliados mais próximos, os sioux oglala. Perto dos oglala ficavam os sioux sans are e depois os pés-pretos. Em segundo lugar a partir do sul ficava o acampamento minneconjou e, mais ainda ao sul, a cauda da coluna, a aldeia hunkpapa, que naquele exato momento estava sendo atacada pelo major Reno. O chefe dessa aldeia era o veterano Touro Sentado, pajé supremo dos sioux.

Havia outros presentes, alojados com seus parentes mais próximos, elementos dos sioux santee, burle e assiniboin. O que a Sétima Cavalaria não podia ver, estando agora oculto pelas colinas, era que o ataque do major Reno do lado mais ao sul da tribo hunkpapa de Touro Sentado estava sendo uma catástrofe. Os hunkpapas haviam saído em enxames de suas tendas, muitos montados e completamente armados, e contra-atacado.

 

Eram quase duas da tarde. Os homens de Reno tinham sido rechaçados para sua esquerda por guerreiros a cavalo e agora estavam sendo forçados de volta ao bosquete diante do rio que haviam acabado de cruzar.

Muitos haviam desmontado de seus cavalos nas árvores, enquanto outros haviam sido jogados longe por suas montarias descontroladas. Alguns perderam seus rifles, dos quais os hunkpapas apoderaram-se alegremente. Em poucos minutos o restante teria de cavalgar de volta através do mesmo rio e buscar refúgio no alto de uma colina, para ali amargar um cerco de 36 horas.

O general Custer analisou o que pôde ver e, a poucos metros dali, Craig estudou o grande combatente dos índios. Podiam-se ver mulheres e crianças índias no acampamento, mas nenhum guerreiro. Custer considerou isso uma surpresa agradável. Craig ouviu-o dizer a seus comandantes de companhia, que estavam agrupados ao seu redor:

- Vamos descer, cruzar o rio e capturar a aldeia.

Em seguida Custer convocou o capitão Cooke e ditou uma mensagem. A mensagem era destinada ao capitão Benteen, a quem ele mandara para o meio do nada. O texto rabiscado por Cooke dizia:

”Venha. Aldeia grande. Seja rápido. Traga pacotes.”

Com ”pacotes” Custer referia-se a munição extra. Entregou a mensagem ao corneteiro, Martino, que viveria para contar a história.

Por milagre, o italiano encontraria Benteen, porque esse oficial arguto desistira de sua caçada sem sentido no deserto, retornara para o córrego e juntara-se a Reno na colina cercada. Mas a essa altura ele não teria como retornar para salvar Custer da ruína.

 

Enquanto Martino descia a trilha, Craig virou-se em sua sela para observá-lo. Ele viu 24 homens da Companhia F do capitão Yates também se virarem e simplesmente cavalgarem para longe sem ordens. Ninguém tentou detê-los. Craig olhou novamente para Custer, lá na frente. Será que nada penetrava aquela cabeça de bagre?

O general levantou-se em seus estribos, ergueu seu chapéu creme acima de sua cabeça e gritou para os seus soldados:

- Hurra! Garotos, nós os pegamos!

Essas foram as últimas palavras que o italiano ouviu enquanto partia, e mais tarde ele as relatou no inquérito. Craig notou que, como tantos homens com cabelos castanhos finos, aos 36 anos Custer estava desenvolvendo uma área calva. Embora fosse chamado de ”Cabelos Longos” pelos índios, ele os cortara curtos para a campanha de verão. Talvez por isso as índias oglalas mais tarde não tivessem reconhecido seu cadáver, e os guerreiros não o julgariam merecedor de ser escalpelado.

Depois de sua saudação, Custer esporeou seu cavalo para a frente e os 210 homens restantes o seguiram. O terreno à frente, que conduzia até a margem do rio, era menos íngreme, facilitando um ataque colina abaixo. Quase um quilômetro depois a coluna, companhia por companhia, virou para a esquerda para descer a ladeira, vadear o rio e atacar. Nesse momento a aldeia cheyenne explodiu.

Os guerreiros surgiram das tendas como uma nuvem de vespas, pintados em suas cores de batalha, a maioria nus da cintura para cima, emitindo seus gritos agudos ”ipi, ipi, ipi”. Ao chegar ao rio, os cascos dos cavalos chapinharam a água enquanto avançavam até as cinco companhias na margem leste. Os casacos azuis pararam.

Ao lado de Craig, o sargento Lewis parou seu cavalo, e Craig ouviu-o murmurar novamente ”Bom Deus”. Os cheyennes mal tinham chegado ao outro lado do rio quando começaram a se jogar de seus cavalos, avançando para a frente e para o alto a pé, afundando no mato alto para tornarem-se invisíveis, emergindo, correndo alguns passos e mergulhando novamente. As primeiras setas começaram a cair entre os soldados de cavalaria. Uma se enterrou no flanco de um cavalo, que relinchou de dor e empinou, atirando seu cavaleiro no chão.

- Desmontar! Cavalos para a retaguarda!

O grito veio de Custer, e não foi preciso soltá-lo uma segunda vez. Craig observou alguns dos soldados desembainharem seus Colt. 45, atirar em seus próprios cavalos bem na fronte e usar o corpo como barricada. Esses eram os soldados inteligentes.

Aquela colina não oferecia nenhuma cobertura defensiva. Não havia uma única pedra ou tronco que oferecesse proteção. Enquanto os homens saltavam para o chão, alguns eram destacados de cada companhia para pegar uma dezena de montarias pelo arreio e correr com elas de volta para o alto da ladeira. Esses cavalos foram agrupados com as montarias que estavam sendo cuidadas por alguns soldados. Não demorou para os cavalos sentirem o cheiro dos índios. Eles relincharam e empinaram sobre as patas traseiras, erguendo no ar os homens que os seguravam. De suas selas, Lewis e Craig observaram. Depois da primeira onda de ataque, o campo de batalha caiu no silêncio. Mas os índios não tinham terminado; estavam simplesmente se movendo para cercar o exército invasor.

Mais tarde foi dito que os sioux destruíram Custer naquele dia. Não foi assim. A maior parte do ataque frontal foi executada pelos cheyennes. Seus primos, os sioux oglala, concederam-lhes a honra de defender sua própria aldeia, que fora a primeira no ataque de Custer, e agiram como assistentes, contornando os flancos de Custer para impedir qualquer tentativa de retirada. Do local onde estava, Craig viu os oglala arrastarem-se entre o mato alto para a esquerda e para a direita. Vinte minutos depois não havia mais nenhuma esperança de retirada. As balas e flechas que zuniam pelo ar começaram a cair mais próximo. Um dos tratadores de cavalos levou uma flechada na base da garganta e caiu, sufocando.

Os índios tinham alguns rifles e até mesmo umas velhas espingardas de pederneira, mas não muitas. Ao final da tarde eles estariam substancialmente rearmados com espingardas Springfield e revólveres Colt novinhos em folha. Usavam principalmente flechas, que lhes proporcionavam duas vantagens. O arco é uma arma silenciosa; ela não denuncia a posição do atirador. Muitos casacos azuis morreram naquela tarde com uma flecha no peito e jamais viram de que lado ela veio. A outra vantagem era que nuvens de flechas podiam ser disparadas para o alto, caindo quase verticalmente sobre os soldados. O efeito era particularmente danoso aos cavalos. Em sessenta minutos, uma dezena de animais fora atingida por flechas caídas do céu. Esses cavalos fugiram de seus tratadores, rasgando as correias seguradas pelos homens, e galoparam trilha abaixo. Seu exemplo foi seguido por outros animais ainda ilesos. Muito antes de os homens estarem mortos, os cavalos tinham sumido e toda a esperança de escapar ido com eles. O pânico começou a se espalhar pelos soldados acocorados. Os poucos oficiais veteranos e suboficiais simplesmente perderam o controle.

A aldeia cheyenne pertencia a Lobo Pequeno, mas por acaso ele estava fora. Quando retornou, uma hora depois do final da batalha, foi escarnecido por todos por não ter estado lá. Na verdade, ele era o líder do grupo de batedores que vinha seguindo Custer pelo Rosebud e através da divisa para Little Bighorn.

Em sua ausência, a liderança passou para o segundo guerreiro mais velho, um cheyenne do sul chamado Homem Branco Coxo. Ele estava no meio da casa dos trinta, e não era branco nem coxo. Quando um grupo de trinta soldados, comandado por um oficial, tentou escapar até o rio, Homem Branco Coxo investiu contra eles sozinho, aniquilando sua moral e morrendo como herói. Nenhum desses trinta conseguiu voltar para o sopé da colina. Vendo-os morrer, seus companheiros perderam toda a esperança de sobreviver.

Do alto da colina, Lewis e Craig podiam ouvir os sons dos homens rezando e chorando à espera da morte. Um soldado, pouco mais do que um menino e choramingando como um bebê, rompeu o círculo e subiu a colina para tentar alcançar um dos dois últimos cavalos. Em questão de segundos, quatro flechas estavam cravadas em suas costas e ele rolava colina abaixo.

Os dois homens a cavalo estavam agora ao alcance do conflito, e várias flechas passaram zunindo por eles. Talvez cinqüenta a cem homens ainda estivessem vivos no sopé da colina, mas metade deles deve ter recebido uma flecha ou uma bala. Ocasionalmente um guerreiro, em busca de honra pessoal, montava um cavalo e passava direto pelos soldados agachados, desafiando uma saraivada de tiros e, graças à péssima pontaria dos soldados de Custer, chegava ao outro lado ileso mas coberto de glória. E sempre emitindo aqueles gritos agudos.

Cada soldado naquele campo de batalha pensava que aqueles eram gritos de guerra. Craig sabia a verdade. O grito de ataque de um índio não era para a batalha, mas para a morte, a dele próprio. Ele estava simplesmente confiando sua alma ao cuidado do Grande Espírito.

Mas o que realmente destruiu a Sétima Cavalaria naquele dia foi o medo dos soldados de serem pegos vivos e torturados. Cada soldado ouvira histórias terríveis sobre as torturas que os índios infligiam aos seus cativos. A maior parte dessas histórias era equivocada.

Os índios das planícies não tinham a cultura do prisioneiro de guerra. Eles não tinham instalações para eles. Mas uma força de oposição podia render-se com honra se tivesse perdido metade de seus homens. Depois de setenta minutos, esta certamente era a perda de Custer. Mas, na cultura indígena, se os oponentes simplesmente continuavam lutando, eles normalmente eram mortos até o último homem.

Caso um prisioneiro fosse capturado vivo, em geral apenas seria torturado em um dentre dois casos: se fosse reconhecido como um indivíduo que antes jurara jamais lutar novamente contra os índios dessa tribo, e quebrara sua palavra; ou se tivesse lutado com covardia. Nos dois casos ele era considerado sem honra.

Na cultura sioux/cheyenne, o indivíduo que sofresse dor com coragem e determinação podia recuperar sua honra. Um mentiroso ou um covarde devia receber essa chance, através da dor. Custer era um que jurara jamais lutar contra os cheyennes novamente. Duas índias dessa tribo, reconhecendo-o entre os caídos, enfiaram sovelas de ferro nos tímpanos do cadáver para que ele pudesse ouvir melhor na próxima vez.

À medida que o círculo de cheyennes e sioux se fechava, o pânico se espalhava entre os sobreviventes como fogo em mato seco. Naquela época as batalhas jamais eram travadas com boa visibilidade; não havia munição que não produzisse fumaça. Depois de uma hora a colina estava coberta por uma neblina de fumaça de pólvora, e através dessa neblina vinham os selvagens pintados. A imaginação corria solta. Anos mais tarde um poeta escreveria:

 

Quando se está ferido e abandonado nas colinas do Afeganistão, E as mulheres aparecem para retalhar seu corpo, Você abraça seu rifle e explode os próprios miolos, E marcha para a Eternidade como um soldado.

 

Nenhum dos últimos homens naquela colina viveria para ouvir falar de Kipling, mas o que descreveu foi o que eles fizeram. Foi Craig quem ouviu os primeiros disparos dos homens feridos salvando-se da dor da tortura. Ele se virou para o sargento Lewis.

O homem grandalhão estava pálido ao lado de Craig. Os dois homens já começavam a perder o controle de seus cavalos. Repleta de sioux oglala, a trilha que descia o outro lado da colina não oferecia oportunidade de fuga.

- Sargento, você não vai permitir que eu morra como um porco amarrado! -gritou o batedor.

Lewis fez uma pausa, pensou, e concluiu que sua dedicação chegara ao fim. Saltou do cavalo, sacou a faca e cortou as correias que amarravam os tornozelos de Craig aos arreios.

Nesse momento três coisas aconteceram em menos de um segundo. Duas flechas chegaram de um ponto a não mais de trinta metros de distância e cravaram-se no peito do sargento. Faca na mão, Lewis fitou as flechas com certa surpresa. Então os seus joelhos cederam e ele caiu de bruços.

De um ponto ainda mais próximo, um guerreiro sioux surgiu do mato alto, apontou uma antiqüíssima espingarda de pederneira contra Craig e disparou. Ele claramente usara pólvora preta demais para tentar obter um alcance maior. Pior, ele esquecera de remover a vareta do cano. A espingarda explodiu com um rugido e uma língua de chamas, descarnando a mão direita do homem. Se tivesse apoiado a arma no ombro teria perdido a maior parte da cabeça, mas ele havia disparado do quadril.

A vareta foi cuspida do cano como um arpão. Craig estivera olhando para o homem. A vareta acertou o cavalo de Craig bem no peito, penetrando seu coração. Quando o animal tombou, Craig, as mãos ainda amarradas, tentou se jogar para longe. Caiu de costas, sua cabeça bateu contra uma pequena rocha e ele desmaiou.

Dez minutos depois o último soldado branco na colina de Custer estava morto. Embora o batedor estivesse inconsciente e não tivesse testemunhado o fim, quando este chegou foi vertiginosamente rápido. Mais tarde guerreiros sioux relatariam que em um minuto algumas dezenas dos últimos sobreviventes ainda lutavam e no seguinte o Grande Espírito os havia chamado para si. Na verdade, a maioria ”abraçou os seus rifles” ou usou suas pistolas Colt. Alguns prestaram esse favor a camaradas feridos, outros a si próprios.

Quando Ben Craig recuperou a consciência, sua cabeça zunia e latejava devido ao choque com a rocha. Ele abriu um dos olhos. Estava deitado de lado, as mãos atadas às costas, uma face premida contra a terra. Enquanto recuperava o raciocínio, ouviu passos suaves ao seu redor, vozes empolgadas e gritos ocasionais de triunfo. E voltou a enxergar.

Viu pernas nuas e pés calçados em mocassins correndo pela colina enquanto os guerreiros sioux caçavam saques e troféus. Um deles deve ter visto seus olhos se mexerem. Houve um grito de triunfo e mãos fortes empertigaram o torso de Craig.

Havia quatro guerreiros ao seu redor, rostos pintados e contorcidos, ainda perturbados pelo frenesi da matança. Ele viu alguém brandir uma clava de guerra em pedra para esmagar seu crânio. Durante o segundo em que permaneceu sentado, esperando pela morte, Craig perguntou-se o que havia do outro lado da vida. O golpe não chegou.

- Pare -disse uma voz.

Craig olhou para cima. O homem que falara estava montado em um pônei três metros à frente de Craig. O sol punha-se à direita do ombro do cavaleiro, e o brilho reduzia a imagem do homem a uma silhueta.

Desgrenhados, os cabelos do homem caíam como um manto negro sobre seus ombros e costas. Como não carregava nenhuma lança, nem mesmo uma machadinha de metal, obviamente não era cheyenne.

Quando o cavalo moveu-se uns trinta centímetros para o lado, o sol foi encoberto pelo ombro, eliminando o brilho. A sombra do cavaleiro deitou sobre o rosto de Craig, permitindo ao batedor enxergar melhor.

O cavalo malhado não era ruão nem preto e branco, como a maioria das montarias índias. Era todo castanho-amarelado, como uma corsa. Craig ouvira falar desse cavalo.

O homem sobre ele estava nu, exceto pela tanga amarrada em torno da cintura e os mocassins nos pés. Vestia-se como um bravo simples, mas tinha a autoridade de um chefe. Não usava nenhum escudo no antebraço esquerdo, implicando que desdenhava a proteção pessoal, mas sua mão esquerda empunhava uma clava de pedra. Portanto, era sioux.

A clava de pedra era uma arma temível. Um cabo de madeira de 45 centímetros, terminando numa forquilha. Dentro da forquilha encaixava-se uma pedra lisa do tamanho de um ovo de ganso. Era amarrada com correias de couro que tinham sido empapadas com água quando aplicadas como gazes. Ao secar ao sol, elas encolheriam e apertariam, de modo a impedir que a pedra caísse. Um golpe desferido por uma maca desse tipo esmagava braços, ombros ou costelas, e partia o crânio humano como uma noz. Como podia ser usada apenas muito próximo do inimigo, a maca de pedra conferia grande honra ao seu usuário.

Quando ele falou novamente foi na língua dos sioux oglala que, sendo a mais próxima ao cheyenne, foi compreendida pelo batedor.

- Por que vocês amarraram o wasichu desse jeito?

- Não fomos nós, Grande Chefe. Nós o encontramos amarrado assim, por seu próprio povo.

O olhar sombrio caiu nas correias que ainda amarravam cada um dos tornozelos de Craig. O sioux notou as correias, mas não fez nenhum comentário. Ficou montado em seu cavalo, perdido em pensamentos. Seu peito e ombros estavam cobertos por círculos pintados para representar granizo, e da linha de seu cabelo um único raio descia para sua pele marcada por ferimentos a bala. Ele não usava nenhuma outra ornamentação, mas Craig conhecia-o de nome. Parecia ser o lendário Cavalo Louco, chefe incontestados dos sioux oglala na última década, desde que tinha 26 anos, um homem reverenciado por sua audácia, misticismo e abnegação.

Uma brisa vespertina vinda do rio soprou o cabelo do chefe, o mato alto e a pena atrás da cabeça do batedor, que pousou no ombro de seu casaco de couro. Cavalo Louco também notou isso. Era um símbolo de honra conferido pelos cheyennes.

- Ele vive - ordenou o líder de guerra. -Leve-o para o chefe Touro Sentado para julgamento.

 

Os guerreiros ficaram desapontados em perder a chance de conseguir tantos saques, mas obedeceram. Craig foi posto em pé e conduzido colina abaixo até o rio. Enquanto caminhava os oitocentos metros até seu destino, viu as conseqüências do massacre.

Ao longo da ladeira da colina, os 210 homens das cinco companhias, com exceção dos batedores e desertores, estavam estendidos em estranhas poses de morte. Os índios os estavam despindo, à procura de qualquer coisa que lhes valesse como troféu. Em seguida, procediam às mutilações rituais, que diferiam de uma tribo para outra. Os cheyennes cortavam pernas para que o morto não os perseguisse; os sioux esmagavam os crânios e os rostos, reduzindo-os a uma polpa com suas maças de pedra. Outros cortavam os braços, as pernas e as cabeças.

Quarenta e cinco metros colina abaixo, o batedor viu o corpo de George Armstrong Custer, vestindo apenas suas meias de algodão, a pele nua, branca como mármore ao sol. Fora os tímpanos perfurados, Custer não havia sido mutilado, e seria encontrado dessa forma pelos homens de Terry.

Tudo estava sendo tirado dos bolsos e alforjes: rifles e revólveres, é claro, juntamente com a imensa quantidade de munição que ainda restava; bolsas de tabaco; relógios de metal; carteiras com fotos de família, tudo que pudesse constituir um troféu de guerra. Em seguida vinham os quepes, as botas e os uniformes. A colina parecia um formigueiro, repleta de guerreiros e índias.

Na margem do rio havia um aglomerado de pôneis. Puseram Craig sobre um cavalo, e em seguida ele e seus quatro guardas cavalgaram através do rio Little Bighorn até a margem oeste. Enquanto passavam pela aldeia cheyenne, as índias gritaram impropérios para o sobrevivente wasichu, mas se calaram ao ver a pena de águia. Seria ele um amigo ou um traidor?

 

O grupo atravessou os acampamentos dos índios sans ares e minneconjous até chegar à aldeia dos hunkpapas. Havia um grande tumulto no acampamento.

Esses bravos não haviam lutado contra Custer na colina; eles tinham enfrentado e feito recuar a tropa do major Reno, cujos remanescentes ainda estavam do outro lado do rio, encurralados no topo de uma colina, juntamente com o capitão Benteen e o comboio de mulas, perguntando-se por que Custer não voltara para ajudá-los.

Guerreiros pés-pretos, minneconjous e hunkpapas cavalgavam pela aldeia, exibindo os troféus tirados dos soldados mortos do major Reno, e aqui e acolá Craig via um escalpo louro ou ruivo ser brandido. Cercados por índias gritando como loucas, chegaram à tenda do grande juiz e pajé Touro Sentado.

Os guardas oglala de Craig explicaram as ordens de Cavalo Louco, entregaram o prisioneiro e foram embora, procurar por seus troféus na ladeira da colina. Craig foi empurrado rudemente para dentro de uma tenda. Duas índias velhas foram instruídas para vigiá-lo armadas com facas.

Já tinha escurecido havia muito tempo quando mandaram chamar Craig. Doze guerreiros vieram pegá-lo e o arrastaram para fora. Fogueiras haviam sido acesas e à sua luz os guerreiros ainda pintados eram uma visão assustadora. Mas seus ânimos tinham acalmado, ainda que, a um quilômetro e meio dali, além do bosquete de choupos e do outro lado do rio, fora do campo de visão, tiros ocasionais no escuro indicavam que os sioux ainda estavam escalando a colina até o círculo defensivo de Reno.

Em toda a batalha, em ambos os lados do imenso acampamento, os sioux tinham sofrido 31 baixas. Embora mil e oitocentos guerreiros tivessem estado envolvidos, e seus inimigos tivessem sido praticamente varridos da face da terra, eles sentiam a perda. Aqui e ali viam-se mulheres chorando por seus maridos e filhos, e preparando-os para a Grande Jornada.

No centro da aldeia hunkpapa havia uma fogueira maior do que as outras, e em torno dela uma dúzia de chefes, entre eles o supremo, Touro Sentado. Ele tinha então apenas quarenta anos, mas parecia mais velho, seu rosto de mogno ainda mais escuro à luz da fogueira, e profundamente marcado por linhas. Como Cavalo Louco, Touro Sentado era reverenciado por ter tido uma visão do futuro de seu povo e dos búfalos das pradarias. Fora uma visão funesta: Touro Sentado vira a todos dizimados pelo homem branco, e seu ódio pelos wasichu era agora muito conhecido. Craig foi conduzido até seis metros à esquerda de Touro Sentado, para que a fogueira não impedisse sua visão. Todos olharam para ele durante algum tempo. Touro Sentado proferiu uma ordem que Craig não compreendeu. Um guerreiro desembainhou sua faca e caminhou às costas de Craig. O batedor esperou pelo golpe mortal.

A faca cortou as cordas que prendiam seus pulsos. Pela primeira vez em 24 horas ele pôde levar as mãos até a frente de seu corpo. Percebeu que ainda não podia senti-las. O sangue começou a fluir de volta, causando inicialmente uma pequena pontada de dor, que em seguida se fez sentir com toda sua fúria. Apesar disso, Craig manteve o rosto impassível.

Touro Sentado falou novamente, desta vez para ele. Ele não compreendeu, mas respondeu em cheyenne. Ouviu-se um burburinho de surpresa.

Um dos outros chefes, Duas Luas, dos cheyennes, falou: -O Grande Chefe pergunta por que os wasichu amarraram você ao seu cavalo e as mãos às suas costas.

 

- Eu os ofendi -disse o batedor.

- Foi uma ofensa ruim? - Durante o restante do interrogatório, Duas Luas atuou como intérprete.

- O chefe dos uniformes azuis queria me enforcar. Amanhã.

- O que você fez a eles?

Craig pensou. Fora apenas na manhã anterior que Braddock destruíra a tenda de Alce Alto? Ele começou por esse incidente e terminou quando foi sentenciado ao enforcamento. Ele notou Duas Luas menear a cabeça ao ouvir a referência às tendas de Alce Alto. Ele já sabia. A cada frase ele parava, para que Duas Luas traduzisse para a língua sioux. Quando o relato acabou, houve uma breve conferência. Duas Luas chamou um de seus homens.

- Cavalgue para nossa aldeia. Traga Alce Alto e sua filha. O guerreiro caminhou até seu cavalo, montou-o e saiu a todo galope. Touro Sentado retomou o interrogatório.

- Por que você veio fazer guerra contra o Homem Vermelho?

- Eles me disseram que viriam porque os sioux estavam saindo das reservas nas Dakotas. Não se falou nada sobre matanças até Cabelo Longo enlouquecer.

Houve outro murmurinho entre os chefes.

- Cabelo Longo estava aqui? -perguntou Duas Luas. Pela primeira vez Craig compreendeu que eles nem mesmo sabiam contra quem tinham lutado.

- Ele está na ladeira da colina do outro lado do rio. Morto.

Os chefes conferenciaram novamente durante algum tempo e fizeram silêncio. Um concílio era uma coisa séria e não havia necessidade de pressa. Depois de meia hora, Duas Luas perguntou:

- Por que você usa a pena da águia branca?

Craig explicou. Dez anos atrás, quando tinha 14 anos, juntara-se a um grupo de jovens cheyennes para caçar nas montanhas. Todos usavam arcos e flechas, menos Craig, que pedira emprestado a Donaldson seu rifle Sharps. Eles foram surpreendidos por um velho urso pardo, um veterano mal-humorado e quase banguela, mas com força nas patas dianteiras suficiente para matar um homem com um único golpe. O urso surgira de um matagal com um rugido poderoso, e investira contra os rapazes.

Nesse momento um dos guerreiros atrás de Duas Luas pediu para interromper.

- Eu lembro dessa história. Aconteceu na aldeia do meu primo.

Não havia nada que os índios gostassem mais do que ouvir uma boa história ao redor da fogueira. Ele foi convidado a completar a história e os sioux ouviram atentamente a tradução de Duas Luas.

- O urso parecia uma montanha e veio depressa. Os meninos cheyennes correram para as árvores. Mas o pequeno wasichu mirou com cuidado e disparou. A bala passou debaixo do focinho do urso e o atingiu no peito. Ele se levantou sobre as patas traseiras, alto como um pinheiro. Estava morrendo, mas ainda assim avançava.

”O menino branco ejetou o cartucho gasto e inseriu outro. Então ele disparou de novo. A segunda bala passou direto entre as mandíbulas do animal, atravessou o céu da boca e explodiu seus miolos. O urso deu mais um passo e caiu para a frente. A cabeça enorme chegou tão perto do menino que saliva e sangue se espalharam por seus joelhos. Mas ele não se moveu.

”Eles mandaram um mensageiro para a aldeia e os guerreiros retornaram com uma maca para despelar o monstro e levar o couro para fazer um manto de dormir para o pai do meu primo. Depois fizeram uma festa e deram um nome novo ao wasichu. Mata-Urso-Sem-Medo. E a pena de águia de um homem que caça. Assim foi contado na minha aldeia cem luas atrás, antes de irmos para as reservas.

O chefe meneou a cabeça positivamente. Era uma boa história. Um grupo a cavalo chegou. Dois homens que Craig jamais tinha visto adentraram a luz da fogueira. A julgar pela forma como se vestiam e por seus cabelos trançados, eram cheyennes.

Um deles era Lobo Pequeno, que contou que estivera caçando a leste do rio quando viu uma coluna de fumaça levantar-se sobre o Rosebud. Foi investigar e encontrou mulheres e crianças chacinadas. Enquanto estava lá, ouviu os soldados casacos azuis retornando, e assim seguiu-os dia e noite até chegarem ao vale do acampamento. Mas Lobo Pequeno chegou tarde demais para a grande batalha.

O outro homem era Alce Alto. Ele retornara da caçada depois que a coluna principal tinha passado. Ainda guardava o luto pelas mulheres e crianças chacinadas quando sua filha retornou. Estava ferida, mas viva. Junto com seus outros nove guerreiros, cavalgou durante dia e noite para encontrar o acampamento dos cheyennes. O grupo chegou um pouco antes da batalha, e participou dela. Ele pessoalmente procurara a morte na colina de Custer e matara cinco soldados wasichu, mas o Grande Espírito não o levara.

A garota da maca índia foi a última a ser ouvida. Estava pálida e seu ferimento doía devido à viagem longa desde o Rosebud, mas falou com clareza.

Contou sobre o massacre, e sobre o homenzarrão com faixas no braço. Ela não entendia a linguagem do homem, mas compreendeu o que ele queria fazer com ela antes de matá-la. Ela contou que o wasichu tinha lhe dado água, saído para comer e, ao voltar, colocara-a num cavalo e a mandara de volta para o seu povo. Os chefes conferenciaram. O julgamento veio de Touro Sentado, mas foi o veredicto de todos. O wasichu deveria viver, mas não podia retornar ao seu povo. Eles iriam matá-lo se não lhes dessem a posição dos sioux. Touro Sentado decretou que o wasichu deveria ser posto sob os cuidados de Alce Alto, que poderia tratá-lo como prisioneiro ou convidado. Quando a primavera chegasse, o wasichu poderia partir em liberdade ou permanecer com os cheyennes.

Os guerreiros ao redor da fogueira exprimiram alguns murmúrios de aprovação. Era justo. Craig cavalgou de volta com Alce Alto até a tenda que lhe foi oferecida, e passou a noite guardado por dois guerreiros. Pela manhã os índios levantaram acampamento para seguir viagem. Mas os batedores que tinham chegado ao amanhecer haviam trazido notícias de mais casacos azuis ao norte; assim, os índios decidiram seguir para o sul na direção das montanhas de Bighorn e ver se os wasichu iam atrás deles.

Tendo aceitado Craig em seu clã, Alce Alto revelou-se generoso. Quatro cavalos dos homens brancos foram achados, e Craig teve a liberdade de escolher um. Esses cavalos não eram muito estimados pelos índios das pradarias, que preferiam os pôneis, mais baixos e resistentes. Poucos cavalos eram capazes de se adaptar aos invernos rigorosos das planícies. Além disso, eles precisavam de feno, que os índios nunca colhiam, e raramente sobreviviam ao inverno alimentando-se de líquen e casca de salgueiro, como os pôneis. Craig escolheu uma égua de aparência robusta que julgou capaz de se adaptar, e deu-lhe o nome de Rosebud, o lugar onde conhecera Murmúrio do Vento.

 

Não foi difícil achar uma boa sela, porque os índios raramente as usavam, e quando ele encontrou e identificou seu rifle Sharps e sua faca de caçador, estes pertences lhes foram devolvidos com certa relutância. Dos alforjes de seu cavalo morto no topo da ladeira, Craig recuperou a munição de seu rifle Sharps. Não havia nada mais para saquear na ladeira da colina. Os índios tinham pego tudo que lhes interessava. Não sentiam qualquer desejo pelo dinheiro do homem branco e pelas folhas brancas que flutuavam no mato alto onde tinham sido jogadas. Entre essas folhas estavam as anotações do capitão Cooke sobre o primeiro interrogatório.

Durante toda a manhã eles levantaram o acampamento. Tendas foram dobradas, utensílios foram empacotados e as mulheres, crianças e bagagens foram postas nas inúmeras maças índias. Logo depois do meio-dia o grupo partiu.

Os mortos foram deixados para trás, deitados em suas tendas, pintados para o próximo mundo, em seus melhores trajes, com os colares de penas que denotavam seus postos. Mas, de acordo com a tradição, todos os artefatos que lhes pertenciam foram espalhados pelo chão.

Quando no dia seguinte os homens de Terry, subindo o vale pelo norte, viram tudo isto, deduziram que os sioux e os cheyennes tinham partido apressados. Era uma conclusão errada; era costume espalhar os pertences dos mortos. Afinal de contas todos eles acabariam mesmo sendo saqueados.

Os índios das planícies protestariam eternamente que queriam apenas caçar, e não lutar, mas Craig sabia que, quando o exército se recuperasse de sua perda, iria caçá-los por vingança. Isso não aconteceria em breve, mas acabaria acontecendo. O alto conselho de Touro Sentado também sabia disso, e em alguns dias foi acordado que as tribos deveriam dividir-se em grupos menores e se espalhar. Isto dificultaria o trabalho dos soldados casacos azuis e daria aos índios uma probabilidade maior de passar o inverno no deserto e não serem conduzidos de volta às reservas de Dakota, para um inverno de fome.

Craig viajou com o que restava do clã de Alce Alto. Dos dez caçadores que tinham perdido suas mulheres no Rosebud, dois tinham morrido em Little Bighorn e dois estavam feridos. Um, com um pequeno corte na altura da costela, preferiu cavalgar. O outro, que tivera o ombro atingido à queima-roupa pela bala de uma espingarda Springfield, estava numa maça. Alce Alto e os outros cinco homens iriam encontrar novas mulheres. Para permitir que isso acontecesse, juntaram-se a outras duas famílias ampliadas, criando um clã com cerca de sessenta homens, mulheres e crianças.

Quando a decisão de que o grupo deveria se dividir lhes foi comunicada, o clã reuniu-se em conselho para decidir o que fazer. A maioria votou por seguir para o sul, rumo ao Wyoming, e buscar esconderijo nas montanhas Bighorn.

Perguntaram a Craig o que ele achava.

- Os casacos azuis irão até lá - previu Craig. Usando um galho, ele desenhou a linha do rio Bighorn. -Eles irão procurar por vocês aqui no sul, e aqui no leste. Mas eu conheço um lugar no oeste. É chamado Pryor Range. Eu fui criado lá.

Craig contou-lhes sobre os Pryors:

- As colinas mais baixas estão repletas de gamos. As florestas são densas e seus galhos espalham a fumaça que sobe das fogueiras de cozinhar. Os riachos estão cheios de peixes. Mais para o alto também há lagos muito propícios à pesca. Os wasichu jamais vão até lá.

 

O clã concordou. Em 10 de julho eles se destacaram do grupo principal de cheyennes e, guiados por Craig, seguiram para noroeste rumo ao sul de Montana, evitando as patrulhas do general Terry, que estavam se distanciando do Bighorn, mas não tão para oeste. Em meados de julho alcançaram os Pryors. O lugar ainda era como Craig lhes contara.

As tendas ficavam cercadas por árvores e invisíveis a oitocentos metros. De uma rocha próxima, hoje chamada de Crown Butte, um sentinela podia ver a uma distância de muitos quilômetros, mas ninguém apareceu. Os caçadores trouxeram muitos veados e antílopes das florestas e as crianças pescaram trutas gordas nos riachos.

Murmúrio do Vento estava jovem e saudável.

Seu ferimento limpo curara depressa e ela logo podia correr novamente, rápida como uma gazela. Às vezes Murmúrio do Vento flagrava Craig observando-a trazer comida para os homens. O coração de Craig sempre batia mais depressa nesses momentos. Murmúrio do Vento não dava sinal do que sentia, sempre olhando em outra direção quando percebia que os olhos de Craig estavam nela. Craig não tinha como saber que alguma coisa na barriga de Murmúrio do Vento parecia derreter, e que sua caixa torácica queria explodir, quando sentia que estava sendo observada pelos olhos azul escuros do wasichu.

Durante o começo do outono, eles simplesmente se apaixonaram.

As mulheres notaram. Quando ia servir comida aos homens, Murmúrio do Vento sempre voltava ruborizada, a frente de sua túnica de couro de cervo subindo e descendo. As mulheres mais velhas riam de alegria ao vê-la assim. Como Murmúrio do Vento não tinha mãe nem tia vivas, essas índias não eram suas parentes.

Contudo, elas tinham filhos entre os 12 guerreiros solteiros e, portanto, elegíveis. Elas se perguntavam qual deles acendera o fogo da bela moça. As mulheres provocavam a jovem, instigando-a a contar-lhes quem era o felizardo antes que ele fosse roubado por outra. Murmúrio do Vento apenas respondia que elas estavam falando bobagem.

Em setembro as folhas caíram e o acampamento subiu mais um pouco para ser encoberto pelas coníferas. As noites ficaram frias quando outubro chegou. Mas a caça era boa e os pôneis comeram o que restava da grama antes de precisarem alimentar-se de limo, casca de árvore e líquen. Rosebud adaptou-se como os pôneis ao seu redor, e Craig descia até a pradaria e retornava com um saco de feno fresco, cortado em tufos por sua faca de caça.

Se Murmúrio do Vento tivesse mãe, ela talvez tivesse intervindo por ela com Alce Alto; mas como não tinha, acabou falando diretamente com o pai. A raiva dele foi terrível.

Como podia pensar uma coisa dessas? Os wasichu haviam destruído toda a família dela. Este homem iria retornar para o seu povo e lá não haveria lugar para ela. Além disso, o guerreiro que recebera a bala no ombro em Littlc Bighorn estava agora quase recuperado. Os ossos partidos finalmente tinham colado. Não estava em perfeitas condições, mas estava inteiro novamente. Seu nome era Coruja Caminhante e ele era um guerreiro corajoso. Era ele quem devia desposar Murmúrio do Vento. Isso seria anunciado no dia seguinte. E Alce Alto não voltaria atrás.

Mas Alce Alto ficou perturbado. Era possível que o amor de Murmúrio do Vento fosse retribuído pelo homem branco. Daqui em diante ele precisava ser vigiado dia e noite. Ele não podia voltar para o seu povo; ele sabia onde eles estavam acampados. Passaria o inverno ali, mas deveria ser observado. E assim foi.

 

Craig foi subitamente transferido para outra tenda, para dormir com outra família. Ali havia outros três guerreiros solteiros, e eles permaneciam alertas durante a noite, para o caso de o homem branco tentar fugir.

Foi no final de outubro que ela apareceu para falar com ele. Craig estava deitado acordado, pensando nela, quando uma faca lenta e silenciosamente cortou um dos tecidos da tenda. Procurando não fazer ruído, Craig se levantou e passou através do corte. Ela estava parada ao luar, olhando para Craig. Abraçaram-se pela primeira vez e uma chama de paixão fluiu entre os dois.

Ela se soltou dele, deu um passo para trás e lhe fez um sinal. Craig seguiu-a através das árvores até um lugar fora da vista do acampamento. Rosebud estava selada, um manto de búfalo enrolado atrás da sela. O rifle de Craig estava enfiado na longa bainha pendurada na montaria. Os alforjes estavam cheios de comida e munição. Um pônei malhado também estava preparado. Craig se virou e, ao beijá-la, a noite fria pareceu girar ao redor dele. Ela sussurrou em seu ouvido:

- Leve-me para as suas montanhas, Ben Craig, e faça de mim sua mulher.

- Agora e para sempre, Murmúrio do Vento.

Eles montaram e conduziram os cavalos silenciosamente através das árvores até sentirem-se a salvo. Então cavalgaram na direção da planície. Ao alvorecer estavam de volta no sopé da colina. Durante o começo da manhã, um pequeno grupo de índios crow viram-nos à distância e seguiram para o norte pela Trilha Bozeman, rumo a Forte Ellis.

Os cheyennes foram atrás deles. Eram seis, movendo-se depressa, viajando rápido com seus rifles pendurados nos ombros, machadinhas presas nas cinturas e cobertores enrolados atrás deles.

E tinham suas ordens. A prometida de Coruja Caminhante devia ser trazida viva. O wasichu devia morrer.

O grupo de índios crows cavalgou para o norte, e cavalgou depressa. Um deles estivera com o exército no verão e sabia que os casacos azuis tinham estipulado uma grande recompensa pela cabeça do renegado branco, o suficiente para comprar para um homem muitos cavalos e mercadorias de permuta.

Eles nunca conseguiram chegar àTrilha Bozeman. Trinta e dois quilômetros ao sul do rio Yellowstone depararam-se com uma pequena patrulha de soldados de cavalaria, dez ao todo, comandados por um tenente. O batedor dos índios explicou o que eles tinham visto, usando principalmente linguagem de sinais, mas o tenente entendeu. Ele conduziu a patrulha para o sul, na direção das montanhas, com os crows atuando como guias, procurando cortar a trilha.

No verão, as notícias do massacre do general Custer e seus homens varrera os Estados Unidos da América como uma rajada de vento frio. Os grandes e poderosos da nação tinham se reunido na Filadélfia, a cidade do amor fraternal, para celebrar o primeiro centenário da independência em 4 de julho de 1876. As notícias vindas da fronteira oeste pareceram inacreditáveis. Ordenou-se um inquérito imediato.

Depois da batalha, os soldados do general Terry tinham investigado a colina fatídica, em busca de uma explicação para o desastre. Os sioux e os cheyennes haviam partido 24 horas antes e Terry não estava disposto a persegui-los. Os sobreviventes de Reno tinham sido desemboscados, mas eles não sabiam nada além do que tinham visto quando Custer e seus homens desapareceram atrás das colinas.

Na ladeira da colina, cada peça de prova foi colhida e armazenada, mesmo enquanto os corpos em decomposição eram sepultados apressadamente. Entre as coisas coletadas estavam as folhas de papel presas no mato alto. E entre essas folhas estavam as anotações feitas pelo capitão Cooke.

Nenhum dos homens que estiveram com Custer durante o interrogatório de Ben Craig estava vivo, mas as anotações de seu assistente diziam muita coisa. O exército precisava de um motivo para o desastre. Agora havia um: os selvagens haviam sido alertados e, graças a isso, tinham se preparado para contra-atacar o general. Custer, portanto, cavalgara para uma imensa emboscada. E, mais importante, agora o exército tinha um bode expiatório. A incompetência não podia ser aceita; mas a traição sim. Uma recompensa de mil dólares foi oferecida para a captura do batedor, vivo ou morto.

Eles tinham perdido o rastro de Craig, mas depois encontraram um grupo de crows que vira o fugitivo em outubro último, descendo das montanhas de Pryor juntamente com uma menina índia.

Os cavalos do tenente tinham descansado e sido alimentados durante a noite. Assim, o tenente fez seus homens cavalgarem o mais rápido possível para o sul. Sua carreira estava em jogo.

Logo depois que o sol nasceu, Craig e Murmúrio do Vento alcançaram o desfiladeiro Pryor, que ficava entre a cordilheira principal e o único pico de West Pryor. Atravessaram o desfiladeiro, galoparam pelos sopés das colinas de West Pryor e emergiram no deserto, uma região árida e acidentada que se estendia por oitenta quilômetros.

Craig não precisava do sol para se guiar. Podia ver sua meta ao longe, reluzindo ao sol da manhã sob um céu azul. Estava seguindo para o sertão de Absaroka, onde, quando menino, caçara com o velho Donaldson.

 

Era uma região terrível, uma longa extensão de floresta e platôs rochosos que poucos podiam trilhar, e subia rumo à cordilheira Beartooth.

Mesmo daquela distância ele podia ver as sentinelas geladas da cordilheira, as montanhas Thunder, Sacred, Medicine e Beartooth. Ali, um homem com um bom rifle podia defender-se de um exército. Em um córrego, ele parou para dar alguns goles de água aos cavalos suados, e em seguida seguiu para os picos que pareciam aguilhoar céu e terra.

Trinta quilômetros atrás, os seis guerreiros, olhos varrendo o solo em busca de rastros de cascos com ferraduras, cavalgavam num trote rápido que poupava a energia de seus pôneis e podia ser mantido por muitos quilômetros.

Cinqüenta quilômetros ao norte, a patrulha de cavalaria apressou a marcha para o sul para encontrar o rastro do fugitivo. Eles o encontraram ao meio-dia, logo a oeste do pico West Pryor. Os batedores crows subitamente pararam seus cavalos e circularam o rastro, fitando um tufo de terra endurecida pelo sol. Apontaram as marcas de ferradura de cavalos e a espora de um pônei sem ferradura. A uma curta distância dali, estavam os rastros de outros pôneis, cinco ou seis ao todo.

- Então nós temos concorrência -disse o tenente. -Não tem problema.

Ordenou que continuassem para oeste, embora os cavalos começassem a se cansar. Meia hora depois, avistando uma elevação na planície, pegou sua luneta e vasculhou o horizonte. Não havia sinal dos fugitivos, mas ele viu uma nuvem de poeira e debaixo dela seis pequenas figuras sobre pôneis malhados, trotando na direção das montanhas.

Os cavalos dos cheyennes também estavam cansados. Contudo, eles sabiam que as montarias dos fugitivos também deviam estar. Os guerreiros deram de beber a seus cavalos no córrego Bridger, logo abaixo da cidade moderna de Bridger, e fizeram meia hora de repouso. Quando um deles, a orelha contra o solo, ouviu o tamborilar de cascos vindo de trás, eles montaram e seguiram seu caminho. Depois de um quilômetro e meio, o líder ordenou a seus homens que se escondessem atrás de um outeiro caído e escalou até seu topo para olhar.

A cinco quilômetros de distância, ele viu a cavalaria. Os cheyennes não sabiam nada dos papéis encontrados na encosta de uma colina, nem da recompensa pelo wasichu fugitivo. Imaginaram que os casacos azuis estavam seguindo a eles próprios, por estarem fora da reserva. Assim, observaram e esperaram.

Quando alcançou a divisão do rastro, a patrulha da cavalaria parou enquanto os batedores crows desmontavam e estudavam o solo. Os cheyennes viram os crows apontarem para o leste e a patrulha continuou nessa direção.

Os cheyennes acompanharam-nos numa trilha paralela, seguindo os casacos azuis da mesma forma como Lobo Pequeno seguira Custer ao longo do Rosebud. Mas no meio da tarde os crows os viram.

- Cheyennes - disse o batedor crow. O tenente deu de ombros.

- Tudo bem, eles que cacem. Nós temos coisas mais importantes para nos preocupar.

Os dois grupos de perseguidores continuaram até o cair da noite. Os crows seguiram o rastro e os cheyennes seguiram a patrulha. Quando o sol sumiu entre os picos das montanhas, os dois grupos entenderam que os cavalos precisavam descansar. Se tentassem prosseguir, suas montarias simplesmente desmaiariam debaixo deles. Além disso, o terreno estava ficando mais árduo e o rastro mais difícil de ser seguido. Na escuridão, sem lanternas, que eles não traziam, aquilo seria impossível.

 

Dezesseis quilômetros à frente, Ben Craig chegou à mesma conclusão. Rosebud era uma égua grande e parruda, mas tinha percorrido oitenta quilômetros carregando um homem e equipamento sobre um terreno desigual. Murmúrio do Vento não era uma amazona habilidosa, e também estava exausta. Eles acamparam no córrego Bear, logo a leste da cidade moderna de Red Lodge. Mas não acenderam nenhuma fogueira por medo de serem vistos.

Quando a noite caiu, a temperatura despencou. Eles se enrolaram no manto de pele de búfalo e em segundos a menina dormia profundamente. Craig não dormiu. Podia fazer isso mais tarde. Ele saiu do manto, embrulhou-se num cobertor vermelho e se pôs a vigiar a garota a quem amava.

Ninguém apareceu, e antes do alvorecer ele estava acordado. Comeram rapidamente um pouco de carne-seca de antílope e pão de milho que ela trouxera de sua tenda, que ajudaram a descer com água do córrego. Em seguida, partiram. Os perseguidores também acordaram assim que a luz do dia revelou o rastro. Estavam

 

14 quilômetros atrás, mas a distância diminuía cada vez mais. Craig sabia que os cheyennes estavam atrás deles; seu ato não podia ser perdoado. Mas ele não sabia nada sobre a cavalaria.

O terreno estava muito difícil agora, e eles começaram a avançar mais lentamente. Ele sabia que seus perseguidores iriam alcançálo e ele precisava retardá-los, disfarçando seu rastro. Depois de duas horas na sela, os fugitivos chegaram à confluência dos dois córregos. À esquerda, trovejando montanha abaixo, ficava o córrego Rock, que ele julgou ser um caminho intransponível para a floresta. Bem à frente estava o córrego West, mais raso e menos rochoso. Ele desmontou, amarrou a rédea do cavalo de Murmúrio do Vento à sela de Rosebud e puxou a égua pelo cabresto.

Conduziu o pequeno comboio pela ribanceira em direção ao córrego Rock e entrou na água. Depois Craig mudou de direção e seguiu para o córrego West. A água congelante anestesiou seus pés, mas ele continuou andando por três quilômetros sobre o cascalho e os seixos. Em seguida virou para as montanhas à sua esquerda e conduziu as montarias para fora da água e rumo à densa floresta.

O terreno da floresta revelou-se escarpado e, com o sol coberto, fazia muito frio ali. Murmúrio do Vento estava envolta em seu cobertor, cavalgando a um ritmo de caminhada.

Cinco quilômetros atrás, a cavalaria alcançara a água e parara. Os índios crows apontaram os rastros que pareciam conduzir ao córrego Rock, e depois de conferenciar com seu sargento, o tenente ordenou aos soldados que seguissem os rastros falsos. Enquanto eles desapareciam, os cheyennes alcançaram os dois córregos. Eles não precisaram entrar na água para ocultar seus rastros. Mas escolheram o córrego certo e trotaram até a margem, que vasculharam em busca de marcas de cavalos saindo da água e seguindo para o terreno alto.

Depois de mais ou menos três quilômetros, encontraram os sinais de um pedaço de terra macia através do córrego. Fizeram seus cavalos chapinhar a água e entrar na floresta.

Ao meio-dia, Craig chegou a um lugar que julgou lembrar de sua viagem de caçada muitos anos antes, um grande platô aberto de rochas, o platô Silver Run, que seguia diretamente para as montanhas. Embora não soubessem disso, eles estavam agora a mais de três mil metros de altura.

Da beira do penhasco Craig podia olhar para o córrego que havia seguido e depois abandonado. À sua direita, Craig conseguiu ver figuras lá embaixo, onde os dois córregos se dividiam. Ele não tinha uma luneta, mas no ar rarefeito a visibilidade era extraordinária. Mesmo a oitocentos metros de distância, ele teve certeza de que aqueles não eram índios cheyennes; eram dez soldados com quatro batedores crows. Era uma patrulha do exército voltando pelo córrego Rock depois de perceber seu erro. Foi nesse momento que Ben Craig compreendeu que o exército estava atrás dele por ter libertado a garota.

Ele tirou o rifle Sharps de sua bainha, inseriu nele um único cartucho, encontrou uma pedra na qual repousá-lo, fixou a mira em elevação máxima e olhou para o vale.

- Acerte o cavalo - o velho Donaldson sempre lhe dissera. -Neste país, um homem sem cavalo precisa retornar.

Ele mirou na testa da montaria do oficial. O tiro, quando saiu, ecoou pelas montanhas, para a frente e para trás, como um trovão. A bala acertou a montaria do tenente um pouco ao lado da cabeça, no alto do ombro direito. O cavalo tombou como um saco, e o oficial com ele. Ele torceu um tornozelo ao cair.

Os soldados espalharam-se pela floresta, menos o sargento, que se atirou atrás do cavalo caído e tentou ajudar o tenente. O cavalo estava acabado, mas não morto. O sargento usou seu revólver para dar fim à dor do animal. Em seguida arrastou o oficial até as árvores. Não se ouviu mais nenhum tiro.

Na ladeira da floresta, os cheyennes saltaram de seus pôneis para o tapete de folhas de pinheiro e permaneceram ali. Quatro deles tinham espingardas Springfield saqueadas da Sétima Cavalaria, mas eles também tinham a falta de talento dos índios das planícies para atirar. Eles sabiam o que o jovem wasichu podia fazer com aquele rifle Sharps, e a qual distância. Começaram a se arrastar para cima. Isso retardou seu avanço. Um dos seis permaneceu na retaguarda, conduzindo os seis cavalos.

Craig cortou o cobertor em quatro pedaços e os amarrou nos cascos de Rosebud. O material não duraria por muito tempo entre a ferradura de metal e as rochas, mas anularia as marcas de cascos por quase quinhentos metros. Em seguida trotou para sudeste através do platô, na direção dos picos.

Ficavam a oito quilômetros através do Silver Run e não ofereciam cobertura. Depois de avançar três quilômetros, Craig olhou para trás e viu pequenas figuras humanas sobre a cumeeira até o platô rochoso. Ele continuou avançando. Eles não podiam acertá-lo e não podiam capturá-lo. Alguns minutos depois, Craig viu mais figuras; estas eram os soldados da cavalaria, que tinham conduzido suas montadas através da floresta e também estavam na rocha, mas a um quilômetro e meio a leste dos cheyennes. Então ele chegou à fenda. Craig nunca chegara tão alto antes; ele não sabia o que havia ali.

Era o estreito lago Fork, ladeado por pinheiros e com uma corrente de água congelante no fundo. Craig seguiu sua margem e procurou por um lugar onde o lago fosse raso o bastante para poder ser atravessado. Encontrou-o à sombra da montanhaThunder, mas com isso perdera meia hora.

Forçando a si mesmo e aos cavalos ao limite de sua resistência, ele os conduziu ravina abaixo, e ali subiu até o outro lado, na direção de mais uma, e a última, superfície de rocha, o platô Hellroaring. Ao emergir da garganta, um tiro passou assobiando sobre a sua cabeça. Do outro lado da ravina, um dos soldados tinha visto movimento entre os pinheiros. Seu atraso não apenas permitira aos seus perseguidores diminuir a distância entre eles e sua presa, como também lhes mostrara que caminho seguir através do lago.

A frente de Craig havia mais cinco quilômetros de superfície plana correndo diante do imenso monte Rearguard, entre cujas rochas e cavernas nenhum homem na Terra seria capaz de capturálo. O ar ali era rarefeito, e isso fazia os dois humanos e os dois animais arfarem por oxigênio, mas Craig continuou avançando. A escuridão chegaria em breve, e ele desapareceria nos picos e nas ravinas entre Rearguard e as montanhas Sacred e Beartooth. Nenhum homem seria capaz de seguir a trilha até ali. Além das montanhas Sacred ficava a divisa de águas, e depois disso era apenas descida até o Wyoming. Eles dois escapariam do mundo hostil, iriam se casar, morariam na floresta e viveriam felizes para sempre. À medida que o dia escurecia, Ben Craig e Murmúrio do Vento deixaram seus perseguidores para trás e seguiram para as colinas do monte Rearguard.

Na escuridão, venceram o terreno rochoso e encontraram a linha de neve onde a brancura dos picos jamais se desfazia. Ali encontraram uma rocha lisa, como uma grande mesa de pedra; tinha 18 metros por 45, e terminava em uma caverna profunda. Uns últimos pinheiros cobriam a entrada.

Quando a noite caiu, Craig soltou os cavalos e deixou-os comer as folhas debaixo dos pinheiros. O frio era intenso, mas eles tinham seu manto de búfalo.

O batedor arrastou sua sela e seu último cobertor para a caverna, carregou seu rifle e o deitou ao seu lado. Em seguida estendeu a pele de búfalo pela boca da caverna. Craig e Murmúrio do Vento deitaram no cobertor e ele puxou a outra metade sobre ambos. Dentro do casulo, o calor natural dos corpos humanos retornou. A garota começou a esfregar o seu corpo no de Craig.

- Ben, faça de mim a sua mulher - sussurrou ela. - Agora.

Ele começou a despir a túnica de couro de cervo do corpo ávido de Murmúrio do Vento.

- O que vocês estão fazendo é errado.

Em meio ao silêncio absoluto daquela altitude na montanha, e embora a voz fosse velha e rouca, as palavras, pronunciadas na língua cheyenne, foram muito claras.

Craig, agora sem camisa e nu da cintura para’cima naquele frio congelante, rapidamente postou-se na entrada da caverna, rifle na mão.

Não conseguia entender por que não vira o homem antes. Ele estava sentado de pernas cruzadas debaixo do pinheiro na beira da rocha plana. Cabelos cinzentos pendiam até sua cintura nua; seu rosto era enrugado e cheio de linhas, como uma noz queimada.

Era dotado de imensa idade e sabedoria, um pajé tribal, um caçador de visões que ia a lugares solitários para jejuar, meditar e buscar orientação do infinito.

- Você falou, santificado? - O batedor tratou-o pelo título honorífico reservado aos anciãos sábios.

Craig não fazia idéia de onde o homem viera. Como ele escalara até esta altura, era difícil de dizer. Como sobrevivia ao frio sem se cobrir, era inimaginável. Craig sabia apenas que alguns caçadores de visões podiam desafiar todas as leis conhecidas.

Sentiu a presença de Murmúrio do Vento juntando-se a ele na boca da caverna.

- É errado aos olhos do Homem, e de Meh-y-yah, o Grande Espírito -disse o velho.

A lua ainda não se levantara, mas as estrelas no ar limpo e rarefeito eram tão brilhantes que a mesa de pedra estava banhada por uma luz pálida. Craig podia ver o brilho das estrelas nos olhos velhos que se fixavam nele por trás da árvore.

- Por que, santificado?

- Ela é prometida a outro. O seu prometido lutou bravamente contra os wasichu. Ele possui muita honra. Não merece ser tratado assim.

- Mas agora ela é minha mulher.

- Ela será sua mulher, homem das montanhas. Mas não ainda. O Grande Espírito quer assim. Ela deve retornar a seu povo e seu prometido. Se ela fizer isso, um dia vocês irão se reunir e ela será a sua mulher e você o seu homem. Para sempre. Assim diz Mehy-yah.

Ele pegou um graveto no chão ao seu lado e o usou para se levantar. Sua pele nua era escura e velha, enrugada pelo frio, com apenas uma tanga e mocassins para protegê-lo. Ele se virou e lentamente caminhou através dos pinheiros, descendo a trilha até não mais poder ser visto.

 

Murmúrio do Vento levantou o rosto para olhar Craig. Lágrimas corriam por suas faces, mas elas não caíram, congelando ao tocar sua pele.

- Eu preciso voltar para o meu povo. Esse é o meu destino. Não havia como discutir. De nada adiantaria. Ele preparou o pônei de Murmúrio do Vento enquanto ela calçava seus mocassins. Em seguida, envolveu-a com o cobertor. Tomou-a nos braços pela última vez e a colocou sobre o lombo do cavalo, entregando-lhe uma rédea. Silenciosamente, ela fez o cavalo começar a voltar pela trilha.

- Murmúrio do Vento! - gritou Craig.

Ela se virou e olhou para ele, o rosto banhado pela luz das estrelas.

- Estaremos juntos - disse Craig. - Um dia. Isso foi previsto. Enquanto a grama crescer e o rio correr, eu esperarei por você.

- E eu por você, Ben Craig.

Ela partira. Craig observou o céu até o frio ficar muito cortante. Conduziu Rosebud para o fundo da caverna e pegou uma braçada de folhas de pinheiro para a égua. Em seguida, puxou a pele de búfalo mais para o fundo da escuridão, embrulhou-se nela e adormeceu.

A lua apareceu no céu. Os guerreiros viram Murmúrio do Vento vir em sua direção através da planície de pedra. Ela viu duas fogueiras ardendo debaixo da beira do desfiladeiro onde os pinheiros cresciam e escutou o canto baixo de uma coruja vinda da fogueira à sua esquerda. Ela seguiu até lá.

Eles não disseram nada. Isso cabia ao pai dela, Alce Alto. Mas ainda tinham suas ordens. O wasichu que violara suas tendas devia morrer. Eles esperaram pela aurora.

A uma da manhã grandes nuvens cobriram a cordilheira Beartooth, e a temperatura começou a cair. Os homens nos dois acampamentos tremeram e se embrulharam mais ainda em seus cobertores, mas de nada adiantou. Logo estavam todos acordados, jogando mais lenha nas fogueiras, mas ainda assim sentiam um frio cada vez maior.

Tanto os cheyennes quanto os homens brancos já tinham passado o inverno nas inclementes Dakotas, e sabiam o que o meio do inverno podia fazer, mas este era o último dia de outubro. Era cedo demais. Ainda assim, a temperatura descia. As duas da manhã a neve começou a cair como um muro branco. No acampamento da cavalaria, os batedores crows se levantaram.

- Devemos ir - disseram ao oficial.

Ele estava sentindo muita dor no calcanhar, mas sabia que a recompensa e a captura transformariam a sua vida no exército.

- Está frio, mas a aurora não tarda - disse-lhes o oficial.

- Este não é um frio comum - replicaram os batedores. - Este é o frio do Sono Longo. Nenhum cobertor protege contra ele. O wasichu que você procura já está morto. Ou morrerá antes do nascer do sol.

- Então partam - disse o oficial.

Não havia mais rastro a seguir. Sua presa estava na montanha que ele vira bruxulear à luz da lua antes de começar a nevar.

Os crows montaram em seus cavalos e partiram, seguindo de volta através do platô Silver Run e descendo a ladeira até o vale. Enquanto partiam, um deles soou o chamado de um pássaro noturno.

Os cheyennes ouviram e se entreolharam. Era um sinal de aviso. Eles também montaram seus cavalos, jogaram neve na fogueira e partiram, levando a garota com eles. E a temperatura continuava caindo.

Era cerca de quatro da manhã quando a avalanche chegou. Ela caiu das montanhas e moveu um cobertor grosso de neve ao longo do platô. O muro avançou chiando enquanto deslizava na direção do lago Fork, e quando caiu sobre o desfiladeiro tomou tudo à sua frente. Os homens e cavalos remanescentes não puderam se mover; o frio aprisionara-os onde estavam. E a neve encheu a corredeira até que apenas as copas dos pinheiros podiam ser vistas.

Pela manhã as nuvens clarearam e o sol voltou. A paisagem era agora de um branco uniforme. Em um milhão de buracos, os animais das montanhas e da floresta sabiam que o inverno chegara, e hibernariam até a primavera.

Em sua caverna alta, embrulhado em seu manto de pele de búfalo, o batedor dormia.

Quando acordou, não conseguiu, como às vezes acontece, lembrar de onde estava. Era a aldeia de Alce Alto? Mas ele não ouviu os sons das mulheres índias preparando a refeição matutina. Abriu os olhos e espiou através das dobras do pêlo de búfalo. Viu as paredes rudes da caverna e a memória repentinamente retornou. Sentou-se e tentou afastar da mente as últimas névoas do sono.

Lá fora ele podia ver uma mesa de pedra coberta por neve branca, brilhando ao sol. Ergueu-se, nu da cintura para cima, e aspirou o ar matutino. Aquilo era bom!

Rosebud, ainda amarrada pelas pernas dianteiras, como quando ele a deixara, saíra da caverna e estava mordiscando algumas folhas de pinheiro na beira da mesa de pedra. O sol matutino estava à direita de Craig; ele estava olhando para o norte, na direção das planícies distantes de Montana.

Caminhou até a ponta da mesa de pedra, pulou para o chão e espiou o platô Hellroaring. Não havia sinais de fumaça de fogueira levantando-se do lago Fork. Os perseguidores de Craig deviam ter partido.

Ele retornou para a caverna, vestiu seu casaco e cinto de couro de cervo. Empunhando sua faca de caçador, voltou até Rosebud e libertou suas pernas. Ela relinchou baixinho e esfregou o focinho macio no ombro de Craig. E então ele notou uma coisa estranha.

A grama verde e macia que Rosebud estava comendo era característica da primavera. Craig olhou em torno. Os poucos pinheiros valentes que sobreviviam a esta altura apontavam brotos verde-claros na direção do sol. Chocado, ele percebeu que, como uma criatura da floresta, ele devia ter hibernado durante a parte mais fria do inverno.

Craig já ouvira falar que isso podia ser feito. O velho Donaldson já mencionara um caçador que passara o inverno numa caverna de urso e não morrera, mas dormira como os filhotes ao seu lado até o inverno passar.

Em seus alforjes, Craig encontrou uma última porção de carne ressequida ao vento. Foi difícil mastigá-la, mas ele a forçou garganta abaixo. Para beber, pegou um punhado de neve e o esmagou entre as palmas até obter água. Em seguida, lambeu as mãos até secá-las. Ele sabia que não se devia comer neve pura.

Os alforjes também continham seu chapéu de pele de raposa, que aquecia bem a cabeça. Craig vestiu-o. Ao selar Rosebud, Craig checou seu rifle Sharps e os vinte cartuchos que permaneciam com ele. Por fim, embainhou o rifle e se preparou para partir. Embora fosse muito pesado, ele enrolou o manto de pele de búfalo que salvara sua vida e o amarrou atrás da sela. Quando não restava mais nada na caverna, ele começou a caminhar de volta pela trilha até o platô, puxando Rosebud pela rédea.

Ainda não tinha decidido o que fazer, mas sabia que as florestas inferiores estavam cheias de animais de caça. Apenas usando armadilhas, um homem podia viver muito bem lá embaixo.

Ele atravessou o primeiro platô numa caminhada lenta, esperando por um sinal de movimento ou mesmo um tiro vindo da beira da fenda. Nada aconteceu. Quando alcançou a fenda, não encontrou qualquer sinal de seus perseguidores retornando para continuar a caçá-lo. Ele não podia saber que os crows tinham relatado que todos os casacos azuis tinham se perdido na avalanche e que o homem que perseguiam também devia ter morrido.

Encontrou novamente a trilha que descia ao lago Fork e subiu por ela até o outro lado. O sol subiu enquanto ele caminhava através do platô Silver Run até ficar uns bons trinta graus acima do horizonte. Ele começou a se sentir aquecido.

Desceu pelas florestas de coníferas até que as árvores de folhas largas começaram a surgir. Ali ele armou seu primeiro acampamento. Era meio-dia. Com galhos maleáveis e um metro de barbante que tirou de seu alforje, Craig fez uma armadilha para coelho. Levou uma hora para o primeiro roedor cair na arapuca. Ele o matou e o despelou. Usou sua caixinha de pavios e pedras-de-fogo para fazer uma fogueira e saboreou a carne assada.

Passou uma semana, acampado na beira da floresta, recuperando suas forças. A floresta oferecia carne fresca em abundância, e nos diversos córregos do lugar ele pescava trutas e pegava toda a água de que precisava.

Ao final da semana, Craig decidiu que partiria para as planícies, viajando ao luar e se escondendo durante o dia. Retornaria para os Pryors, onde poderia construir uma cabana e fazer um lar: Ali ele podia perguntar para onde os cheyennes tinham ido e esperar que Murmúrio do Vento estivesse livre. Não tinha nenhuma dúvida de que isso aconteceria, porque fora previsto.

Na oitava noite selou o cavalo e deixou a floresta. A luz das estrelas, seguiu para o norte. Era a época de lua alta, banhando a terra com uma luz branca pálida. Depois de caminhar na primeira noite, acampou durante o dia em um córrego seco onde ninguém poderia vê-lo. Ele não acendeu mais fogueiras e comeu a carne que tinha assado na floresta.

Na noite seguinte ele virou para o leste, onde ficavam os Pryors, e logo atravessou uma faixa comprida de rocha negra e dura. Um pouco antes do amanhecer atravessou mais uma, mas esta foi a última. Então Craig adentrou a região árida, um terreno difícil de cavalgar, mas rico em esconderijos.

A certa altura Craig viu gado parado em silêncio ao luar. Ele se perguntou que vaqueiro seria estúpido a ponto de deixar seu rebanho sem ninguém a vigiá-lo. Os crows fariam um banquete se encontrassem aqueles bois.

Foi na quarta manhã de sua jornada que Craig viu o forte. Acampara num outeiro e, quando o sol raiou, Craig viu o forte no sopé da montanha West Pryor. Estudou-o durante uma hora, alerta para sinais de vida, como o som de um clarim ao vento ou fumaça se erguendo do refeitório dos soldados. Mas não houve sinal nenhum. Quando o sol ficou alto, Craig se escondeu à sombra de arbusto e dormiu ali.

À noite, enquanto comia, Craig pensou no que fazer. Esta região ainda era selvagem e um homem viajando sozinho corria perigo constante. Era evidente que o forte acabara de ser construído. Não estivera ali durante o último outono. Portanto o exército estava estendendo seu controle das terras tribais do povo crow. Um ano antes os fortes mais próximos tinham sido o Smith, a leste do rio Bighhorn e o Ellis, a noroeste da Trilha Bozeman. Para o último ele não podia ir; seria reconhecido lá.

Mas se o novo forte não estava ocupado pela Sétima Cavalaria, ou por homens sob o comando de Gibbon, então não havia motivo para alguém reconhecê-lo de vista, e se desse um nome falso... Craig selou Rosebud e decidiu averiguar o novo forte durante a noite, mantendo-se oculto.

Ele o alcançou ao luar. Nenhuma bandeira de unidade adejava no mastro, nenhuma luz brilhava nas janelas, nenhum som de pessoas se fazia ouvir. Com sua ousadia aumentada pelo silêncio, ele cavalgou até o portão frontal. Acima dele havia duas palavras.

Ele reconheceu a primeira como ”Forte” porque ele a vira antes e conhecia o seu formato. A segunda ele não conseguiu recordar. Começava com uma letra feita com dois traços verticais e uma espécie de travessa entre elas. Fora dos portões duplos altos havia uma corrente e um cadeado para mantê-los fechados.

Ele fez Rosebud contornar as paredes de seis metros de altura. Por que o exército construiria um forte e depois o abandonaria? Será que ele fora atacado? Será que todos em seu interior estavam mortos? Se era assim, por que a corrente e o cadeado? À meia-noite pôs-se em pé sobre a sela de Rosebud, esticou os braços e travou os dedos sobre as paliçadas. Segundos depois estava no passadiço, um metro e meio abaixo do parapeito e dois metros acima do solo interior. Olhou para baixo.

Ele podia ver os alojamentos dos oficiais e dos soldados, o estábulo e as cozinhas, o arsenal e a caixa-d’água, o armazém de víveres e a forja. Estava tudo lá, mas tudo abandonado.

Cautelosamente, desceu os degraus para o interior do forte, rifle pronto, e começou a explorar. Sim, a julgar pelo estado imaculado das vigas, o lugar era realmente novo. O gabinete do comandante do posto estava trancado, mas tudo mais parecia aberto ao toque. Havia um dormitório para os soldados e outro para os viajantes. Ele não conseguiu achar latrinas cavadas na terra, o que era estranho. Contra o muro dos fundos, longe do portão principal, havia uma pequena capela e ao seu lado, no muro principal, uma porta trancada por dentro com uma trava de madeira.

Ele removeu a trava, saiu, caminhou em torno dos muros e conduziu Rosebud para dentro. Então colocou a trava de volta na porta. Ele sabia que jamais poderia defender o forte sozinho. Se índios atacassem o forte, os guerreiros escalariam as paredes com a mesma facilidade que ele. Mas o forte serviria como base durante algum tempo, até que ele descobrisse para onde havia ido o clã de Alce Alto.

 

À luz do dia ele explorou o estábulo, onde havia baias para vinte cavalos. No cocho de cavalos em frente ao estábulo Craig encontrou toda a água fresca de que um homem podia precisar. Ele desselou Rosebud e se pôs a pentear-lhe o pêlo enquanto a égua comia uma lata de aveia.

Na forja ele achou uma lata de graxa e limpou seu rifle até o metal e a madeira do cabo brilharem como novos. No posto de troca Craig encontrou armadilhas de caçador e cobertores. Com esses últimos, fez um nicho confortável no beliche de uma cabana destinada a viagens de passagem. A única coisa que ele não encontrou em abundância era alimento. Mas no posto de trocas conseguiu um pote de doces, e comeu-os à guisa de janta.

A primeira semana passou voando. Durante as manhãs ele saía a cavalo para dispor as arapucas e caçar, e à tarde preparava as peles dos animais para trocas futuras. Tinha toda a carne fresca de que precisava e conhecia diversas plantas da floresta de cujas folhas era possível fazer uma sopa nutritiva.

Achou uma barra de sabão no posto de troca e se banhou pelado num córrego próximo, cuja água, ainda que gelada, era refrescante. Ali ele achou grama fresca para o seu cavalo. Na cozinha encontrou tigelas e pratos de latão. Trouxe cepos de troncos secos para queimar na fogueira e ferveu a água com a qual se barbeou. Uma das coisas que pegara na cabana de Donaldson tinha sido sua velha lâmina de barbear, que ele mantinha num estojo fino de metal. Ficou surpreso com o quanto ficou mais fácil barbear-se com o sabão e a água quente. No meio do mato ou durante as marchas com o exército, Craig sempre se barbeara com água fria e sem sabão.

A primavera deu lugar ao começo de verão e ainda assim ninguém apareceu. Começou a imaginar onde iria perguntar para onde os cheyennes tinham ido e para onde haviam levado Murmúrio do Vento. Apenas então ele poderia segui-los. Mas ele temia cavalgar para leste, na direção de Forte Smith, ou para noroeste, rumo a Forte Ellis, onde decerto seria reconhecido. Se ele descobrisse que o exército ainda queria enforcá-lo, tomaria emprestado o nome de Donaldson e torceria para passar despercebido.

Estava lá havia um mês quando os visitantes chegaram, mas nesse momento ele estava longe, dispondo suas armadilhas nas montanhas. Havia oito homens no grupo e eles chegaram em três tubos de ferro compridos que andavam sobre discos negros com centros de prata, mas não eram puxados por cavalos.

Um dos homens era o guia do grupo, e os outros sete os seus convidados. O guia era o professor John Inglês, diretor da faculdade de História do Oeste na Universidade de Montana, em Bozeman. Seu convidado principal era o senador do estado, que viera de Washington. Havia três legisladores do Capitólio em Helena e três oficiais do Departamento de Educação. O professor Inglês destrancou a porta e o grupo entrou a pé, olhando ao redor com curiosidade e interesse.

- Senador, cavalheiros, dou-lhes as boas-vindas a Forte Heritage -disse o professor.

Ele sorria de prazer. Era um daqueles homens de sorte que possuía uma fonte ilimitada de bom humor e era profundamente apaixonado pela atividade que o sustentava. Seu trabalho era a obsessão de toda a sua vida, um estudo do Velho Oeste e o detalhamento de sua história. Ele possuía um conhecimento extraordinário da Montana dos velhos tempos, da Guerra das Planícies, das tribos de índios nativos americanos que tinham guerreado e caçado aqui. Forte Heritage era um sonho que ele acalentava havia uma década e concretizara depois de uma centena de audiências com o governo. Este dia era o momento que coroava essa década.

- Este forte e o posto de troca são uma réplica exata, até os últimos detalhes, de como seria um lugar como esse nos tempos do imortal general Custer. Supervisionei cada detalhe pessoalmente e posso atestar a fidelidade de todos eles.

Enquanto conduzia o grupo pelas cabanas de madeira e pelas instalações, o professor explicou como o projeto nascera de sua aplicação original à Sociedade Histórica de Montana e ao Fundo Cultural; como a verba fora encontrada na dormente reserva de impostos de carvão mantida pelo Fundo Cultural e destinada a este projeto depois de muita persuasão.

Ele lhes disse que o forte era perfeito até o último centímetro, feito com madeira das florestas locais, como tinham sido, e como, em sua busca pela perfeição, até os pregos eram do tipo original.

Com o entusiasmo do professor contagiando seus convidados, ele lhes disse:

- O Forte Heritage será uma experiência educacional envolvente e profundamente significativa para crianças e jovens, não apenas de Montana mas, eu espero, dos estados circundantes. Já estão agendadas as visitas de ônibus de turismo de lugares tão distantes quanto o Wyoming e a Dakota do Sul.

”Na margem da reserva dos índios crows, temos oito hectares de pasto fora dos muros para os cavalos e, quando chegar a estação apropriada, plantaremos feno para alimentá-los. Especialistas ceifarão o feno ao estilo antigo. Os visitantes verão como a vida era na fronteira cem anos atrás. Eu lhes asseguro, não existe nada igual em todos os Estados Unidos da América.”

- Eu gosto, eu gosto muito - disse o senador. - Mas como serão os funcionários?

- Esse é o toque final, senador. Isto não é um museu, mas um forte funcional da década de 1870. Temos uma verba destinada à contratação de até sessenta jovens durante o verão, incluindo todos os feriados nacionais e as férias escolares. Os funcionários serão muito jovens, e virão de diversas escolas de artes cênicas nas cidades principais de Montana. Tem sido incrível a resposta de estudantes que desejam trabalhar durante as férias de verão e ao mesmo tempo realizar um trabalho edificante.

”Temos sessenta voluntários. Eu mesmo serei o major Inglês, da Segunda Cavalaria, o comandante do posto. Eu terei um sargento, um cabo e oito soldados, todos estudantes que sabem cavalgar. As montarias serão emprestadas por fazendeiros amigos.

”Haverá também algumas mulheres jovens, fingindo ser cozinheiras e lavadeiras. O vestuário será exatamente como era naquela época. Outros estudantes de artes cênicas desempenharão os papéis de caçadores das montanhas, batedores das planícies, colonos de passagem em sua viagem para as Rochosas.

”Um ferreiro autêntico concordou em se juntar a nós, de modo que os visitantes possam ver os cavalos receberem novas ferraduras. Promoverei missas na capela do posto, ali nos fundos, e todos cantaremos hinos daquela época. As moças, é claro, terão o seu próprio dormitório e uma supervisora, que será a minha assistente, Charlotte Bevin. Os soldados ocuparão um dormitório, e os civis outro. Eu lhes asseguro que nenhum detalhe foi esquecido.”

- É claro que há algumas coisas sem as quais os jovens de hoje não podem passar - disse um congressista de Helena. - E quanto à higiene pessoal, e a frutas e vegetais frescos?

- O senhor está absolutamente certo! -exclamou o professor, sorrindo. -Na verdade, temos três áreas de subterfúgio. Eu não terei armas carregadas no posto. Todos os revólveres e rifles serão réplicas, salvo alguns que disparam tiros de festim e apenas sob supervisão.

”E quanto à higiene, estão vendo o arsenal lá embaixo? Ele possui estantes com réplicas de espingardas Springfield, mas atrás delas há uma parede falsa e um banheiro de verdade, com água quente, privadas, pias e chuveiros. E aquela caixa-d’água gigante?

Nós temos água subterrânea encanada. A caixa-d’água tem uma entrada secreta atrás. Dentro dela há uma unidade de refrigeração para armazenar carnes, vegetais e frutas. O gás é encanado. Mas é só isso. Não temos eletricidade. Nossa iluminação será provida apenas por velas e lamparinas.”

Eles estavam diante da porta do dormitório dos viajantes. Um dos políticos espiou o interior.

- Parece que você tem um invasor -comentou o político. Todos olharam para o beliche coberto por lençóis no canto do dormitório. Em seguida encontraram outros vestígios. Estérco de cavalo no estábulo, os restos de uma fogueira. O senador soltou uma gargalhada gostosa.

- Alguns dos seus visitantes não conseguiram esperar!b - disse ele. - Talvez você tenha um colono verdadeiro morando aqui.

Todos riram ao ouvir isso.

- Falando sério, professor, é um grande trabalho. Tenho certeza de que todos nós concordamos com isso. O seu trabalho será uma grande atração em nosso estado.

Dito isso, eles partiram. O professor trancou o portão principal ao sair, ainda intrigado com o beliche e o estérco de cavalo. Os três veículos seguiram de volta à trilha de terra até a rodovia 319, e ali rumaram para norte, na direção de Billings e do aeroporto.

Duas horas depois Ben Craig retornou da caçada. A primeira pista de que sua solidão fora perturbada era de que a porta no muro principal perto da capela fora travada por dentro. Ele sabia que a deixara fechada, mas apenas calçada. A pessoa que a abrira, ou saíra pelo portão principal, ou ainda estava lá dentro.

Ele checou os portões grandes, mas eles ainda estavam trancados. Lá fora havia no chão rastros estranhos que ele não conseguiu entender, como se tivessem sido feitos por rodas de carroça mais largas que o normal, e com padrões de ziguezague nelas.

 

Rifle em punho, ele pulou o muro. Depois de uma hora de investigação, constatou que não havia mais ninguém lá dentro. Ele tirou a trava da porta, deixou Rosebud entrar, providenciou para que ela comesse e então reexaminou as marcas deixadas no pátio central do forte. Eram marcas de sapatos e botas de caminhada pesadas; havia também mais daqueles rastros em ziguezague, mas nenhuma marca de cascos. E não havia marcas de sapatos diante do portão. Era tudo muito estranho.

Duas semanas depois a equipe residente chegou ao forte. Mais uma vez Craig estava colocando suas armadilhas no sopé das Pryors.

Era um grande comboio. Três ônibus, quatro carros com motoristas de reserva para levá-los de volta e vinte cavalos em trailers grandes e prateados. Depois que tudo tinha sido descarregado, os veículos partiram.

A equipe já tinha trocado de roupas em Billings, e todos estavam paramentados de acordo com seus papéis. Cada um tinha uma mochila de roupas para trocar e objetos pessoais. O professor supervisionara tudo e insistira que nada ”moderno” poderia ser trazido. Não era permitido nada elétrico ou operado a pilha. Para alguns dos jovens, isso significara uma despedida dolorosa de,seus rádios transistorizados, mas isso fazia parte do contrato. Nem mesmo livros publicados no século XX eram permitidos. O professor Inglês insistia que uma mudança completa para os hábitos de um século atrás era essencial, tanto do ponto de vista da autenticidade quanto da perspectiva psicológica.

- Com o tempo vocês realmente acreditarão que são, de fato, pessoas vivendo numa época crucial da história de Montana -dissera-lhes o professor.

Durante várias horas os alunos de artes cênicas, tendo se voluntariado não apenas para um trabalho de verão mais bem-remunerado do que servir mesas em lanchonetes, mas também para uma experiência educacional que poderia ajudar em suas carreiras, exploraram seu novo ambiente com entusiasmo crescente.

Os soldados de cavalaria instalaram seus cavalos no estábulo e se estabeleceram nos dormitórios da ala militar. Dois pôsteres de atrizes, Rachel Welsh e Ursula Andress, foram arrancados da parede e confiscados imediatamente. Todos mostravam bom humor e uma crescente empolgação.

Os trabalhadores civis, o ferreiro, as cozinheiras, os batedores e os colonos do Leste ocupavam o segundo dormitório. As oito meninas foram instaladas em seu dormitório pela Srta. Bevin. Duas carroças, cobertas por lona branca e puxadas por cavalos, chegaram e foram estacionadas perto do portão principal. Elas funcionariam como uma atração extra para os futuros visitantes.

Era fim de tarde quando Ben Craig parou Rosebud a cerca de oitocentos metros do forte e estudou-o com uma crescente sensação de alarme. Os portões estavam abertos. Olhando daquela distância, ele pôde ver duas carroças estacionadas dentro do forte e pessoas caminhando pelo pátio central. A bandeira da União adejava ao vento do mastro sobre o portão. Ele avistou dois uniformes azuis. Ben Craig esperara durante semanas para poder perguntar a alguém para onde os cheyennes tinham ido ou sido levados, mas agora ele não tinha mais tanta certeza de que o faria.

Depois de pensar por meia hora, ele cavalgou até o forte. Passou pelo portão quando os dois soldados estavam prestes a fechá-lo. Olharam para ele com curiosidade mas não disseram nada. Craig desmontou e começou a conduzir Rosebud ao estábulo. A meio caminho de lá, ele foi interceptado.

A Srta. Charlotte Bevin era uma boa pessoa, bondosa e hospitaleira ao jeito americano, loura e saudável, com um nariz sardento e um sorriso largo, que ela ofereceu a Ben Craig.

- Ora, olá!

Como fazia calor demais para usar um chapéu, o batedor meneou a cabeça.

- Madame.

- Você pertence ao nosso grupo?

Como assistente do professor e ela própria professora de pós-graduação, estivera envolvida no projeto desde o começo e presente nas inúmeras entrevistas que conduziram à seleção final. Mas este jovem ela nunca tinha visto.

- Acho que sim, madame - disse o estranho.

- Você quer dizer, gostaria de ser?

- Suponho que sim.

- Bem, isto é um pouco irregular, já que você não pertence ao corpo de funcionários. Mas está ficando tarde demais para você passar a noite na pradaria. Podemos oferecer uma cama para a noite. Assim, instale o seu cavalo na estrebaria enquanto eu converso com o major Inglês. Você pode aparecer no posto de comando daqui a meia hora?

Ela atravessou o pátio central até o posto de comando e bateu na porta. O professor, completamente paramentado cemo um major da Segunda Cavalaria, estava à sua mesa, imerso em documentos administrativos.

- Sente-se, Charlie. Todos os jovens estão instalados? - perguntou.

- Sim, e nós temos um extra.

- Um o quê?

- Um rapaz a cavalo. Vinte a 25 anos. Acabou de chegar da pradaria. Parece um voluntário local atrasado. Quer juntar-se a nós.

- Não tenho certeza se podemos aceitar mais gente. Não temos equipamento de reserva.

- Quanto a isso não tem problema. Ele trouxe o próprio equipamento. Cavalo, roupa de couro de cervo, bem manchada, e sela. Até tinha cinco peles de animais enroladas atrás de sua sela. Está claro que ele se esforçou.

- Onde ele está agora?

- Colocando o cavalo no estábulo. Disse a ele que se apresentasse aqui dentro de meia hora. Achei que você ia querer dar pelo menos uma olhada nele.

- Oh, muito bem.

Craig não tinha relógio, e então julgou as horas pela posição do sol, errando por cinco minutos. Quando bateu na porta, foi convidado a entrar. John Inglês abotoara a sua jaqueta e estava atrás da escrivaninha. Charlie Bevin estava de pé a um lado.

- Quer falar comigo, major?

O professor ficou imediatamente pasmo com a autencidade do rapaz à sua frente. Ele segurava um chapéu de pele de raposa. Um rosto de aparência franca, pele bronzeada e olhos azuis. O cabelo castanho, que não era cortado há muitas semanas, era entrelaçado atrás e mantido preso por uma correia de couro; e no meio da trança despontava uma única pena de águia. A roupa de couro de cervo era até costurada a mão, como nas peças autênticas que o professor tinha visto.

- Muito bem, rapaz, a Charlie aqui me disse que você gostaria de ficar algum tempo conosco?

- Sim, major, eu quero.

O professor tomou uma decisão. Havia uma pequena margem no fundo operacional para uma ”contingência” ocasional. Ele julgou este rapaz uma contingência. Puxou um formulário à sua frente, pegou um estilete e o mergulhou no vidro de tinta.

- Muito bem. Vamos aos detalhes. Nome?

Craig hesitou. Até agora ele não parecera ser reconhecido, mas o seu nome poderia ser lembrado. Mas o major era gordinho e um tanto pálido. Parecia ter acabado de chegar à fronteira. Talvez lá no Leste não houvessem mencionado os acontecimentos do verão anterior.

- Craig, senhor. Ben Craig.

Ele esperou. Nenhum sinal de que o seu nome significava algo. A mão gorducha escreveu numa caligrafia impecável: Benjamin Craig.

- Endereço?

- Senhor?

- Onde você vive, filho? De onde vem?

- Lá fora, senhor.

- Lá fora é a pradaria e depois a floresta.

- Sim, senhor. Nasci e fui criado nas montanhas, major.

- Bom Deus! - O professor ouvira falar de famílias que viviam em barracos na floresta, mas isso era mais comum nas Rochosas, em Utah, Wyoming e Idaho. Ele escreveu cuidadosamente: ”Sem morada fixa.”

- Nomes dos pais?

- Ambos mortos, senhor.

- Oh, sinto ouvir isso.

- Estão mortos há 15 anos.

- E, então, quem criou você?

- O Sr. Donaldson, senhor.

- Ah, e ele mora...?

- Também está morto. Um urso o pegou.

O professor pousou o seu estilete. Não ouvira falar de fatalidades devido a ataques de ursos, embora alguns turistas fossem incrivelmente descuidados com suas cestas de piquenique. Era tudo uma questão de conhecer o ambiente selvagem. Em todo caso, este belo rapaz claramente não tinha família.

- Nenhum parente próximo?

- Senhor?

- A quem devemos contatar caso... aconteça alguma coisa com você?

- Ninguém, senhor. Não há ninguém a quem comunicar.

- Entendo. Data de nascimento?

- Cinqüenta e dois. Fim de dezembro, creio.

- Então você está com quase 25 anos?

- Sim, senhor.

- Certo. Número de identidade?

Craig fitou-o sem saber o que responder. O professor suspirou.

- Ora, parece que você escapou do pente fino. Muito bem. Assine aqui.

Ele virou o formulário, empurrou-o sobre a mesa e ofereceu a caneta. Craig aceitou-a. Ele não podia ler as palavras ”assinatura do candidato” mas o espaço para a assinatura era nítido. Ele fez a sua marca nele. O professor pegou o documento de volta e fitou-o, pasmo.

- Meu caro rapaz, meu caro rapaz... - Ele mostrou o documento a Charlie. Ela olhou para a cruz de tinta no espaço.

- Charlie, como educadora, creio que você terá uma pequena tarefa extra neste verão.

Ela abriu o seu sorriso largo.

- Sim, major. Creio que sim.

Ela contava 35 anos, fora casada uma vez, não muito bem, e jamais tivera filhos. Ela considerou esse rapaz do mato ingênuo, inocente e vulnerável. Ele precisava de sua proteção.

- Muito bem - disse o professor Inglês. - Ben, vá se instalar, caso já não o tenha feito, e se junte a nós no refeitório para o jantar.

O batedor considerou a comida muito boa... e farta. Ela vinha em pratos de latão. Ele comeu com a ajuda de sua faca de caça, uma colher e um naco de pão. Várias pessoas à mesa viram e sorriram, mas ele não notou.

 

Os rapazes com quem compartilhou o dormitório eram amistosos. Todos pareciam vir de aldeias e cidades das quais Craig jamais ouvira falar, e presumivelmente lá do Leste. Como o dia fora cansativo, e não havia luz para ler além das velas, os rapazes adormeceram rapidamente.

Ben Craig não costumava ser curioso sobre a vida dos outros, mas ele notou que os rapazes ao seu redor eram estranhos de muitas formas. Eles se diziam batedores, domadores de cavalos e caçadores, mas pareciam saber muito pouco de suas habilidades. Mas ele lembrou dos recrutas rasos liderados por Custer e o quanto eles sabiam pouco sobre cavalos, armas e os índios das Grandes Planícies. Ele supôs que nada havia mudado durante o ano que vivera com os cheyennes e sozinho.

Estavam programadas duas semanas de adaptação e ensaios antes de os grupos de visitantes começarem a chegar, e para os funcionários este período seria dedicado a colocar o forte em perfeita ordem, praticar rotinas e assistir a palestras do major Inglês, que aconteceriam principalmente ao ar livre.

Craig não sabia nada disso e se preparou para sair para caçar novamente. Ele estava atravessando o pátio central, caminhando até o portão principal, que era mantido aberto durante o dia, quando um jovem chamado Braid lhe dirigiu a palavra.

- O que você tem aí, Ben? - Ele apontou para a bainha de pele de carneiro que pendia para a frente do joelho esquerdo de Craig, diante de sua sela.

- Rifle - disse Craig.

- Posso ver? Sou chegado em armas.

Craig tirou sua Sharps da bainha e a deu a ele. Brad ficou extasiado.

- Uau, isto é uma beleza. Uma verdadeira antigüidade. O que é?

- Um Sharps 52.

- É incrível. Eu não sabia que fabricavam réplicas assim.

Brad apontou o rifle para o sino na moldura sobre o portão principal. Era o sino que, caso índios inimigos fossem avistados ou sua presença reportada, seria tocado com todo o vigor, para avisar aos grupos fora do forte que deveriam voltar. Então ele puxou o gatilho.

Ele estava prestes a dizer ”Bangue!”, mas o Sharps o fez por ele. Então ele foi jogado para trás pelo recuo da arma. Se a bala pesada tivesse atingido o sino em cheio, ele teria rachado. Em vez disso, a bala pegou o sino de raspão e continuou varando o espaço. Mas ainda assim o sino emitiu um clangor que interrompeu todas as atividades no forte. O professor saiu furibundo de seu escritório.

- Que diabos foi isso? - perguntou, e então viu Brad sentado no chão, segurando o rifle pesado. - Brad, o que você acha que está fazendo?

Brad se levantou, trôpego, e explicou. Inglês voltou-se com uma expressão decepcionada para Craig.

- Ben, talvez eu tenha esquecido de lhe dizer. Mas há uma regra que proíbe o uso de armas de fogo nesta base. Trancarei a sua no arsenal.

- Sem armas, major?

- Sem armas. Pelo menos não as verdadeiras.

- Mas e quanto aos sioux?

- Os sioux? Até onde eu saiba eles estão em reservas nas Dakotas do Norte e do Sul.

- Mas major, eles podem voltar.

Então o professor entendeu o humor. Ele abriu um sorriso indulgente para o rapaz.

- É claro que eles podem voltar. Mas não neste verão, eu creio. E até que eles o façam, isto ficará trancado a cadeado no arsenal.

 

O quarto dia foi um domingo e todos os homens e mulheres no forte compareceram à missa matutina na capela. Como eles não tinham um capelão, o major Inglês oficializou. Quando chegou a hora do sermão, o major se preparou para ler uma passagem da Bíblia. Uma Bíblia enorme foi aberta na página apropriada com um marcador.

- A nossa lição de hoje vem do Livro de Isaías, capítulo II, começando no versículo 6. Aqui o profeta fala de quando a paz de Deus chegar à Terra. - O major fez uma pausa antes de iniciar a leitura: - ”E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará; e o bezerro e o filho de leão com a nédia ovelha viverão juntos, e um menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, e seus filhos juntos se deitarão; e o leão...”

Nesse momento, ele virou a página, mas duas das folhas estavam coladas e ele parou, porque o texto não fazia sentido. Enquanto o major tentava entender o que estava acontecendo, uma voz jovem se levantou da terceira fileira à sua frente.

- ”E o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de peito sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a sua mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o monte da minha santidade, porque a Terra se encherá de conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar.”

Houve silêncio enquanto a congregação fitava boquiaberta com a figura na roupa manchada de couro de cervo, com uma pena de águia balançando nas costas da cabeça. John Inglês descobriu o restante da passagem.

- Sim, precisamente. Aqui acaba a primeira lição.

- Eu realmente não entendo aquele rapaz - disse ele a Charlie em seu escritório depois do almoço. - Ele não saber ler nem escrever, mas pode recitar passagens da Bíblia que aprendeu quando criança. Ele é estranho ou o esquisito sou eu?

- Não se preocupe - disse ela. - Acho que já matei a charada. Ele realmente nasceu de um casal que escolheu viver isolado na floresta. Quando eles morreram, ele foi realmente adotado, de forma não oficial e provavelmente ilegal, por um homem solteiro, bem mais velho, e foi criado como filho do velho. Assim, não teve uma educação formal. Mas ele possui um conhecimento imenso sobre três coisas: a Bíblia que sua mãe lhe ensinava, a vida na floresta e a história do Velho Oeste.

- E esse último conhecimento? Como ele conseguiu?

- Com o velho, presumivelmente. Afinal, se um homem morreu de velhice, digamos, aos oitenta anos, apenas há três anos, ele teria nascido antes do final do século XIX. As coisas eram bastante básicas por esta região naquela época. O velho deve ter contado ao menino o que ele lembrava ou que os sobreviventes dos dias de fronteira lhe contaram.

- Então por que o rapaz desempenha tão bem o papel? Será que ele é perigoso?

- Não, claro que não - garantiu Charlie. - Ele apenas está fantasiando. Ele acredita que tem o direito de caçar o que quiser, quando quiser, como costumava ser nos velhos tempos.

- Ele está fazendo de conta?

- Sim, mas não estamos todos?

Com uma gargalhada sonora o professor deu um tapa na própria coxa.

- É claro - disse ele. - É isso que todos nós estamos fazendo. Só que ele faz de forma brilhante.

Ela se levantou.

- Porque ele acredita no que está fazendo. É o melhor ator aqui. Deixe ele comigo. Verei se ele é capaz de fazer mal a alguém. A propósito, duas das garotas já estão de olho nele.

 

No dormitório, Ben Craig ainda achava estranho que seus companheiros, quando se despiam para dormir, usavam apenas pequenos calções de algodão, enquanto ele preferia dormir com o tipo tradicional de roupa íntima, que batia na altura dos joelhos. Depois de uma semana isto causou um problema e alguns do rapazes foram falar com Charlie.

Ela encontrou Craig quando ele estava usando um machado de cabo comprido para cortar lenha para a cozinha.

- Ben, posso lhe perguntar uma coisa?

- Claro, madame.

- E me chame de Charlie.

- Claro, madame Charlie.

- Ben, você toma banho?

- Banho?

- Sim. Você tira a roupa e lava o corpo, todo ele, e não apenas as mãos e o rosto?

- Ora, claro, madame. Regularmente.

- Fico feliz em ouvir isso, Ben. Quando foi a última vez que você fez isso?

Ele pensou. O velho Donaldson ensinara-lhe que banhos regulares eram necessários, mas nos córregos de neve derretida não havia necessidade de viciar-se nisso.

- Bem, o mais recente foi mês passado.

- Eu suspeitava disso. Você acha que poderia tomar outro desses novamente? Agora?

Dez minutos depois ela o encontrou conduzindo Rosebud, completamente selada, para fora do estábulo.

- Aonde você está indo, Ben.

- Tomar banho, Charlie. Como você disse.

- Mas onde?

- No córrego. Onde mais?

 

Todos os dias Ben vagava pela pradaria de mato alto para executar as funções corporais usuais. Ele lavava rosto, braços e mãos no cocho dos cavalos. Mantinha a higiene bucal esfregando os dentes com a extremidade chanfrada de uma vara de salgueiro, o que fazia durante uma hora inteira, enquanto cavalgava.

- Atrele o cavalo e venha comigo.

Ela seguiu até o arsenal, destrancou-o com uma chave em seu cinto e o conduziu para o interior. Por trás da estante de rifles Springfield acorrentados, ficava a parede do fundo. Ela acionou um mecanismo de pressão na parede e abriu a porta oculta. E então Craig viu outra sala, equipada com pias e banheiras.

Craig já tinha visto banheiras antes, durante a sua estada de dois anos em Forte Ellis, mas elas eram feitas de madeira. Estas eram de ferro esmaltado. Ele sabia que as banheiras precisavam ser enchidas com baldes de água quente trazidos da cozinha, mas Charlie girou uma maçaneta estranha na extremidade de uma das banheiras, que imediatamente começou a se encher de água quente.

- Ben, eu vou voltar daqui a dois minutos e quero encontrar todas as suas roupas do lado de fora da porta, menos o casaco de couro de cervo, que precisa ser lavado a seco.

”Em seguida, quero que você entre na banheira com a esponja e o sabão e se esfregue todo. Depois quero que você lave o seu cabelo com isto.”

Charlie lhe deu uma garrafa com um líquido verde que cheirava a pinho.

- Por último, quero que você se vista de novo com as roupas de baixo e as camisas que encontrar naquelas gavetas ali. Quando você tiver acabado, saia. Está bem?

Ele fez como lhe foi ordenado. Craig jamais estivera numa banheira quente antes e achou aquela uma experiência muito agradável, embora tenha tido alguma dificuldade em descobrir como as bicas funcionavam e quase tenha alagado o chão. Depois que tinha terminado e passado xampôu no cabelo, a água estava cinzenta. Ele encontrou a rolha no fundo da banheira e observou a água escoar. Ele abriu o armário no canto e escolheu calções de algodão e uma camisa de malha branca. Vestiu-se, prendeu a pena de águia novamente em seu cabelo e saiu. Ela o esperava. Ao sol havia uma cadeira. Ela segurava tesouras e um pente.

- Eu não sou profissional, mas isto é melhor do que nada - disse ela. - Sente.

Ela aparou os cabelos castanhos de Craig, deixando intocada apenas a longa trança com a pena de águia.

- Assim está melhor - disse ela ao terminar. -E você está cheirando muito bem.

Ela guardou a cadeira novamente no arsenal e o fechou. Esperando um agradecimento caloroso, ela viu que o batedor olhava-a solenemente, com uma expressão carregada de tristeza.

- Madame Charlie, pode caminhar um pouco comigo?

- Claro, Ben. Está com algum problema? Secretamente, Charlie estava deliciada com a oportunidade.

Ela agora começava a compreender este produto estranho”e enigmático da floresta. Eles passaram pelo portão e Ben conduziu-a pela pradaria na direção do córrego. Ele estava calado, perdido em pensamentos. Ela refreou seu desejo de interrompê-lo. O córrego ficava a um quilômetro e meio do forte, e eles caminharam durante vinte minutos.

A pradaria cheirava a grama pronta para ser ceifada, e por várias vezes o rapaz levantou seu olhar para a cordilheira Pryor, que se avultava ao sul.

- É gostoso estar aqui fora, olhando para as montanhas.

- Lá é o meu lar -disse ele, e voltou a ficar em silêncio.

Quando alcançaram o córrego, ele se sentou à beira da água e Charlie, segurando o seu vestido comprido de algodão para mantêlo rente ao corpo, sentou-se ao lado dele.

- O que é, Ben?

- Posso lhe perguntar uma coisa, madame?

- Charlie. Sim, claro que pode.

- Você não vai mentir para mim?

- Não vou mentir, Ben. Direi apenas a verdade.

- Em que ano estamos?

Ela ficou chocada. Ela esperara que fosse alguma coisa reveladora, algo sobre seu relacionamento com os outros jovens no grupo. Ela fitou os olhos grandes, de um azul profundo e pensou... ela era dez anos mais velha do que ele, mas...

- Ora, é 1977, Ben.

Se ela esperara um simples meneio de cabeça positivo, não foi isso que obteve. O rapaz curvou a cabeça até os joelhos e cobriu o rosto com as mãos. Os ombros sob o casaco começaram a tremer.

Até hoje ela só tinha visto um homem crescido chorar. Fora ao lado de um acidente de carro na rodovia de Bozeman para Billings. Ela se aproximou mais de Ben, ajoelhando-se enquanto punha as mãos nos ombros dele..

- O que é, Ben? Qual é o problema com este ano?

Ben Craig sentira medo antes. Ao enfrentar o urso pardo, na colina acima do rio Little Bighorn, mas nunca experimentara um terror tão profundo. Depois de alguns instantes de silêncio, ele disse:

- Eu nasci no ano 1852.

Ela não ficou surpresa. Ela sabia que ele devia ter algum problema. Ela o abraçou, apertando-o contra os seus seios, e acariciou sua nuca.

Ela era uma mulher jovem e moderna. Lera sobre essas coisas. Metade da juventude do Oeste era atraída pelas filosofias místicas.

Ela sabia tudo sobre a teoria da reencarnação, ou pelo menos da crença nela. Lera sobre como algumas pessoas sentiam o déjà-vu, uma convicção de que tinham existido antes, muito tempo atrás.

Isto era um problema, um fenômeno que estava sendo estudado pela ciência e pela psiquiatria. Esse rapaz podia contar com ajuda, aconselhamento e terapia.

- Está tudo bem -murmurou, enquanto o embalava como uma criança. -Está tudo bem. Se você acredita nisso, tudo bem. Passe o verão conosco no forte e nós viveremos como eles viveram há uma centena de anos. No outono você poderá voltar para Bozeman comigo e encontrarei pessoas para ajudá-lo. Você vai ficar bem. Confie em mim.

Ela tirou um lenço de algodão da manga e enxugou o rosto de Craig, tomada por sua compaixão por esse atormentado rapaz das colinas.

Caminharam juntos de volta ao forte. Satisfeita pelo fato de suas roupas íntimas serem modernas e de que eles dispunham de medicamentos modernos para o caso de cortes, ferimentos ou doenças, e assegurada pelo conhecimento de que o Billings Memorial Hospital ficava a poucos minutos de distância de helicóptero, Charlie começava a gostar do vestido de algodão comprido, da vida simples e das rotinas da vida na fronteira. E agora ela sabia qual seria o tema de sua tese de doutorado.

As palestras do ”major” Inglês eram obrigatórias para todos. Devido ao clima cálido do final de junho, ele as realizava no pátio central, com os estudantes dispostos em fileiras à sua frente, seu cavalete e material visual à mão. Quando começou a falar da verdadeira história do Velho Oeste, Inglês sentiu-se em seu elemento.

Depois de dez dias, o professor alcançou o período da Guerra das Planícies. Atrás dele tinha pendurado fotografias ampliadas dos principais líderes sioux. Ben Craig viu-se olhando para uma fotografia imensa de Touro Sentado, em sua velhice. O pajé hunkpapa fora buscar santuário no Canadá, mas retornara para entregar a si próprio e ao restante de seu povo à misericórdia do exército dos Estados Unidos. A foto no cavalete fora tirada um pouco antes de ele ser assassinado.

- Mas um dos mais estranhos de todos eles era o chefe oglala, Cavalo Louco -disse o professor. -Por motivos próprias, ele jamais se permitiu ser fotografado pelo homem branco. Ele acreditava que a câmera tiraria a sua alma. Portanto, ele é o único de quem não temos qualquer fotografia. Jamais saberemos como ele se parecia.

Craig abriu a boca para falar, mas então fechou-a novamente.

Em outra palestra, o professor descreveu detalhadamente a campanha que conduziu à luta em Little Bighorn. Foi a primeira vez que Craig soube o que aconteceu com o major Reno e suas três companhias, ou que o capitão Benteen retornou das regiões áridas para juntar-se a eles na colina cercada. Ficou feliz em saber que a maioria deles fora resgatada pelo general Terry.

Em sua última palestra, o professor falou da rendição, em

 

1877, dos grupos espalhados de sioux e cheyennes e sua condução de volta para as reservas. Quando John Inglês perguntou se alguém tinha alguma dúvida, Craig levantou a mão.

- Sim, Ben. -O professor ficou satisfeito em ouvir uma pergunta de seu único aluno que jamais passara pela porta de uma escola primária.

- Major, houve alguma menção de um clã chamado Alce Alto, ou de um guerreiro conhecido como Coruja Caminhante?

O professor sentiu-se constrangido. Ele tinha na faculdade livros de referência capazes de encher um caminhão, e a maior parte de seu conteúdo estava armazenada em sua cabeça. Ele esperara uma pergunta simples. Ele vasculhou sua memória.

- Não, eu acredito que ninguém ouviu falar deles e que não foram mencionados por nenhuma testemunha posterior entre os índios das planícies. Por que a pergunta?

- Eu ouvi falar que Alce Alto destacou-se do grupo principal, evitou as patrulhas de Terry e passou o inverno bem ali na cordilheira Pryor, senhor.

- Bem, eu nunca ouvi falar disso. Se ele fez isso, então o seu povo deve ter sido encontrado na primavera. Você precisaria perguntar em Cervo Coxo, que agora é o centro da Reserva dos Cheyennes do Norte. Alguém na Faculdade Memorial Faca Cega deve saber.

Ben decorou o nome. No outono ele encontraria uma forma de chegar a Cervo Coxo, fosse onde fosse, e perguntaria.

 

Os primeiros grupos de visitantes chegaram no fim de semana. Depois disso os grupos passaram a chegar quase diariamente. Eles vinham principalmente em ônibus, e alguns em carros particulares. Alguns grupos eram liderados por professores, outros eram grupos familiares. Mas todos estacionavam numa área a pouco mais de quinhentos metros, em um lugar que não podia ser visto dali, e eram trazidos para os portões principais nas carroças cobertas. Isse fazia parte do estratagema do professor Inglês para ”criar o clima”.

Funcionou. As crianças, e os grupos eram compostos principalmente por crianças, ficavam empolgadas com o passeio de carroça, que era novidade para a maioria deles, e durante aquele percurso de quinhentos metros até os portões eles podiam imaginar que eram realmente colonos de fronteira. Desciam das carroças gritando de alegria.

Craig era incumbido de trabalhar em suas peles de animais, que eram esticadas em molduras ao sol. Ele as salgava e raspava-as, preparando-as para serem amolecidas e tingidas. Os soldados marchavam pelo forte, o ferreiro acionava sua forja, as garotas em seus vestidos de algodão lavavam roupas em grandes tinas de madeira e o ”major” Inglês conduzia os grupos de uma atividade para outra, explicando cada função e por que ela era necessária à vida nas planícies.

Havia dois estudantes nativos americanos que posavam como índios não hostis, vivendo no forte como batedores e guias, para o caso de os soldados precisarem responder a algum ataque de índios guerreiros contra colonos nas planícies. Eles usavam calças de algodão, tangas sobre as calças, camisas de napa azul e longas perucas pretas debaixo de chapéus altos.

As atrações favoritas pareciam ser o ferreiro e Ben Craig trabalhando em suas peles.

- Você mesmo caçou os bichos? -perguntou um menino de uma escola em Helena.

- Cacei.

- Você tem uma licença?

- Uma o quê?

- Por que você usa uma pena no cabelo se não é índio?

- Os cheyennes me deram ela.

- Porquê?

- Por ter abatido um urso.

- Essa é uma história maravilhosa! -exclamou a professora que conduzia o grupo.

- Não, não é -disse o menino. -Ele é um ator, igualzinho a todos os outros aqui.

Quando cada nova carroça cheia de visitantes chegava, Craig corria os olhos por eles, procurando pelo vislumbre de uma cascata de cabelos negros, as feições de um rosto, um par de olhos grandes e negros. Mas ela não vinha. Julho deu lugar a agosto.

Craig pediu uma licença de três dias para retornar à floresta. Ele partiu antes do alvorecer. Nas montanhas ele encontrou uma pequena cerejeira, cortou-a com o machado que pedira emprestado ao ferreiro, e se pôs a trabalhar. Depois de ter cortado o tronco e raspado a casca, ele curvou as duas extremidades, amarrando-as com um barbante que pegara no forte, porque ele não tinha tendões animais.

As flechas ele cortou de rebentos de freixo rígidos. As penas da cauda de um peru selvagem distraído formaram as guias. As margens de um córrego encontrou pedras-de-fogo que ele lascou até dar-lhes a forma de pontas de flecha. Tanto os cheyennes quantos os sioux usavam principalmente pedras-de-fogo ou ferro em suas pontas de flecha, amarradas nas pontas das varas de madeira com cordões de pele muito finos.

Dos dois tipos de pontas de flecha, a mais temida pelos homens das planícies era a de pedra-de-fogo. As pontas de ferro podiam ser retiradas do ferimento juntamente com a flecha, mas as de pedra-de-fogo geralmente se partiam, exigindo cirurgias profundas, sem anestesia e geralmente terminais. Craig fez quatro delas. Na terceira manhã ele acertou um cervo.

Quando cavalgou de volta para o forte, levou o corpo do animal deitado em seu colo, ainda com a flecha cravada em seu coração. Levou a caça até a cozinha e pendurou, estripou, despelou e dissecou o animal. Finalmente, diante de uma platéia pasma de turistas, ofereceu ao cozinheiro vinte e sete quilos de carne de veado fresca.

- Alguma coisa errada com a minha comida? -perguntou o chefe.

- Não, é boa. Eu gostei da torta de queijo salpicada de coisas fatiadas.

- O nome é pizza.

- Só achei que podíamos comer um pouco de carne fresca, para variar.

Enquanto o batedor estava lavando as mãos e os antebraços no cocho dos cavalos, o cozinheiro pegou a flecha ensangüentada e caminhou rapidamente até o posto de comando.

- É um belo artefato -disse o professor Inglês enquanto pegava a flecha. -Eu já vi flechas assim em museus, é claro. Até as penas de peru selvagem são claramente identificáveis como trabalho cheyenne. Onde ele conseguiu esta flecha?

- Ele disse que a fez -explicou o cozinheiro.

- Impossível. Hoje em dia ninguém mais consegue amarrar uma pedra-de-fogo numa vara desse jeito.

- Bem, ele tem quatro dessas -disse o cozinheiro. -E esta estava bem no coração do animal. Esta noite servirei carne de veado fresca.

Os funcionários comeram a carne num churrasco fora do forte, e todos acharam-na deliciosa.

Através da fogueira, o professor observava Craig cortar fatias de carne assada com sua faca de caçador e recordou a avaliação de Charlie sobre ele. Talvez, mas ele tinha suas dúvidas. Será que esse homem estranho poderia tornar-se perigoso? Ele notou que agora quatro de suas estudantes estavam tentando atrair a atenção do rapaz, mas os pensamentos dele sempre pareciam estar longe.

No meio do mês, o cão negro do desespero começou a dominar Ben Craig. Parte dele tentava permanecer convicto de que o Grande Espírito não lhe havia mentido, nem o traído. Será que a garota que ele amava já tinha completado o curso de sua vida? Nenhuma das pessoas felizes que o cercava sabia que ele já havia chegado a uma decisão. Se até o final do verão não encontrasse o amor pelo qual obedecera ao apelo do índio eremita, ele cavalgaria de volta para as montanhas e, por suas próprias mãos, iria juntar-se a Murmúrio do Vento no mundo espiritual.

Uma semana depois as duas carroças atravessaram novamente os portões, e seus condutores pararam os cavalos suados. Da primeira carroça desceu uma horda de crianças pequenas e empolgadas. Ele embainhou sua faca, que estivera afiando numa pedra, e caminhou até as carroças. Uma das professoras primárias estava de costas para ele. De sua cabeça até o meio de suas costas fluía uma torrente de cabelos cor de breu.

Ela se virou. Era uma nipo-americana de rosto arredondado. O batedor virou-se e se afastou, tomado de uma raiva como nunca sentira antes. Ele parou, ergueu punhos cerrados ao céu e gritou.

- Você mentiu para mim, Meh-y-yah! Você mentiu para mim, velho. Você me mandou esperar mas me condenou a este limbo, um renegado dos homens e de Deus!

Todos no pátio central pararam o que estavam fazendo e olharam para ele. Adiante de Craig estava um dos índios ”domados”, caminhando através do pátio. Este homem também parou.

O rosto velho, enrugado e amarronzado como uma noz queimada, antigo como as pedras de Beartooth Range, emoldurado por trancas de cabelos brancos como a neve, fitava-o debaixo do chapéu alto. Nos olhos do índio eremita havia uma expressão de tristeza infinita. Lentamente, ele balançou a cabeça. Então ele moveu lentamente a cabeça e fitou um ponto às costas do jovem batedor.

Craig olhou para trás e não viu nada, e olhou para a frente de novo. Debaixo do seu chapéu alto seu amigo Brian Heavysliield, um dos dois atores nativos americanos, fitava-o como se ele tivesse enlouquecido. Craig se virou novamente para o portão.

A segunda carroça estava sendo descarregada. Uma multidão de crianças rodeava sua professora. Calças jeans, camisa de malha, boné de beisebol. Ela parou para separar dois meninos que brigavam, e em seguida esfregou a manga de sua camisa sobre sua fronte. A ponta de seu boné obstruiu a visão de Craig. Ela tirou o boné. Uma profusão de cabelos negros foram libertados e cascatearam até a cintura da moça. Desconcertada pela sensação de estar sendo observada, ela se virou para ele. Um rosto oval, dois imensos olhos negros. Murmúrio do Vento.

Ele não conseguiu se mexer. Não conseguiu falar. Sabia que devia dizer alguma coisa, caminhar até ela, qualquer coisa. Mas não podia; simplesmente ficou olhando para ela. Ela enrubesceu, embaraçada, rompeu o olhar e se pôs a conduzir a excursão de seus alunos. Uma hora depois eles chegaram aos estábulos, liderados por Charlie, sua guia turística. Ben Craig estava penteando Rosebud. Ele sabia que eles iriam passar por ali. Estava na rota.

- É aqui que mantemos os cavalos -disse Charlie. -Alguns são montarias de cavalaria, outros pertencem aos homens da fronteira que vivem aqui ou que estão simplesmente de passagem. O Ben está cuidando de sua égua Rosebud. Ben é caçador, batedor e homem das montanhas.

- Queremos ver todos os cavalos! -gritou uma das crianças.

- Muito bem, querido, vamos ver os cavalos. Só não cheguem perto demais dos cascos para o caso de eles escoicearem -disse Charlie.

Ela conduziu as crianças pela estrebaria. Craig e a garota foram deixados a sós, olhando um para o outro.

- Sinto muito por ter fitado a senhora - disse ele. -Meu nome é Ben Craig.

- Oi. Eu sou Linda Pickett. -Ela estendeu a mão.

Ele a apertou. Era pequena e quente, do jeito que ele lembrava.

- Posso lhe perguntar uma coisa, madame?

- Você chama toda mulher de madame?

- Acho que sim. Foi assim que me ensinaram. É ruim?

- É um tanto formal. E parece coisa do passado. O que você queria perguntar?

- Você lembra de mim? Ela franziu a testa, intrigada.

- Eu não creio. Nós já nos encontramos?

- Há muito tempo.

Ela riu. Era o som que ele lembrava de ouvir diante da fogueira nas cabanas de Alce Alto.

- Então eu devia ser jovem demais. Onde foi?

- Venha, eu vou lhe mostrar.

Ele conduziu a garota intrigada para fora. Ao sul, além das paliçadas de madeira, avultavam os picos da cordilheira Pryor.

- Você sabe o que é aquilo?

- A cordilheira Beartooth?

- Não. Elas ficam mais para oeste. Aquela é a cordilheira Pryor. Foi lá que nós nos conhecemos.

- Mas eu nunca estive na cordilheira Pryor. Os meus irmãos costumavam me levar para acampar quando criança, mas nunca lá.

Ele se virou e olhou para o rosto que tanto amava.

- Você é professora de escola agora?

- Sou. Em Billings. Por quê?

- Vai voltar aqui de novo?

- Eu não sei. Há outros grupos marcados para virem depois. Eu posso ser designada. Por quê?

- Eu quero que você volte novamente. Por favor. Eu preciso vê-la de novo. Prometa que virá.

A Srta. Pickett enrubesceu de novo. Ela era bonita demais para já não ter sido alvo de muitas cantadas dos rapazes. Geralmente ela se livrava deles com uma risada que passava a mensagem sem ofender. Este rapaz era estranho. Ele não a elogiou, ele não sorriu convidativamente. Ele parecia solene, honesto, inocente. Ela fitou os olhos francos, da cor do cobalto, e alguma coisa se mexeu dentro dela. Charlie saiu do estábulo com as crianças.

- Eu não sei -disse a garota. -Vou pensar. Uma hora depois, ela e seu grupo tinham partido. Demorou uma semana, mas ela voltou. Uma de suas colegas na escola precisou cuidar de um parente doente. Havia uma vaga no grupo de guias e ela foi voluntária. O dia estava quente. Ela usava um vestido simples de tecido estampado.

Craig pedira a Charlie para checar a lista de visitantes para ele, procurando por um grupo daquela escola.

- Está de olho em alguém, Ben? - perguntou Charlie. Ela não estava desapontada, considerando que um relacionamento com uma garota sensível ajudaria em sua reabilitação no mundo real. Ela estava satisfeita com a velocidade com que ele estava aprendendo a ler e a escrever. Ela procurara dois livros simples para ele ler, palavra por palavra. Acreditava que depois do outono poderia encontrar um lugar para ele morar na cidade, um trabalho como balconista ou garçom, enquanto ela trabalhava em sua tese sobre a sua recuperação.

Ele estava esperando quando as carroças descarregaram suas cargas de crianças e professores.

- Quer caminhar comigo, senhorita Linda?

- Caminhar? Onde?

- Pela pradaria. Assim poderemos conversar.

Ela protestou que as crianças precisavam de sua atenção, mas uma de suas colegas mais velhas lançou-lhe uma piscadela e sussurrou que podia ficar o tempo todo com o seu admirador, se ela quisesse. Ela queria.

Eles se afastaram do forte e encontraram um montículo de pedras à sombra de uma árvore. Parecia que um gato tinha comido a língua de Craig.

- De onde você vem, Ben? -perguntou Linda, ciente da timidez dele, mas gostando dela.

Ele apontou com a cabeça para os picos distantes.

- Você foi criado lá, nas montanhas? Ele confirmou novamente.

- E onde você estudou?

- Não estudei.

Ela tentou assimilar isso. Passar a infância inteira caçando e deitando armadilhas, sem jamais ir à escola... era estranho demais.

- Devia ser muito silencioso lá nas montanhas. Sem trânsito, rádios ou tevê.

Ele não sabia do que ela estava falando, mas presumiu que fossem coisas que fizessem barulho, em contraposição ao farfalhar das árvores ao vento e o canto dos pássaros.

- É o som da liberdade -disse ele. -Conte-me, Srta. Linda, já ouviu falar da tribo Cheyenne do Norte?

Ela ficou surpresa, mas aliviada, com a mudança de assunto.

- Claro. Na verdade a minha bisavó materna foi uma cheyenne.

Ele aproximou o rosto do dela, a pena de águia dançando à brisa quente, os olhos azuis escuros fixos nela.

- Fale-me dela. Por favor.

Linda Pickett recordou que sua avó certa vez mostrara-lhe uma velha fotografia de uma velha índia que fora a mãe dela. Apesar da idade avançada, os olhos grandes, o nariz delgado e os malares salientes indicavam que a velha na fotografia monocromática desbotada tinha sido muito bonita. Ela contou o que sabia, o que ouvira quando criança de sua avó, agora falecida.

A cheyenne fora casada com um guerreiro e de sua união nascera um menino. Porém, por volta de 1880 uma epidemia de cólera na reserva ceifara a vida do guerreiro e do menino. Dois anos depois um pastor de fronteira tomara a jovem viúva como esposa, desafiando a desaprovação de seus parentes brancos. Ele era de descendência sueca, alto e louro. O casal tivera três filhas, sendo a mais jovem a avó da senhorita Pickett, nascida em 1890.

Esta, por sua vez, casara-se com um caucasiarco e gerara um filho e duas filhas, a menina mais jovem nascendo em 1925. Quando a segunda filha, Mary, estava perto dos vinte anos, viera a Billings em busca de trabalho e o encontrara como caixa do recém-estabelecido Farmers’ Bank.

Trabalhando na caixa ao lado estava um jovem e dedicado bancário chamado Michael Pickett. Eles se casaram em 1945. Michael não fora à guerra devido à sua miopia. O casal teve quatro filhos, todos meninos grandes e louros, e então, em 1959, Linda. Ela estava com apenas 18 anos.

- Não sei por que, mas nasci com cabelos negros e compridos, e olhos escuros. Não puxei nada à minha mãe ou ao meu pai. Bem, essa é a minha história. Agora é a sua vez.

Ele ignorou o convite.

- Você tem alguma marca na perna direita?

- Minha marca de nascença? Como diabos você sabe disso?

- Por favor, deixe-me vê-la.

- Por quê? Isso é íntimo.

- Por favor.

Ela refletiu por algum tempo, e então levantou a saia de algodão para revelar uma coxa dourada e bem torneada. Elas estavam lá. Dois sinais negros, os buracos de entrada e saída dos soldados às margens do córrego Rosebud. Irritada, ela baixou a saia.

- Mais alguma coisa? -perguntou, sarcástica.

- Apenas uma. Você sabe o que Emos-est-se-haae significa na língua cheyenne?

- Deus, claro que não.

- Significa Vento Que Fala Baixo. Murmúrio do Vento. Posso chamar você de Murmúrio do Vento?

- Eu não sei. Suponho que sim, se lhe agrada. Mas por quê?

- Porque esse já foi o seu nome. Porque eu sonhei com você. Porque eu esperei por você. Porque eu a amo.

O rosto de Linda ficou completamente ruborizado, e ela se levantou.

- Isto é loucura. Você não sabe nada de mim, nem eu de você. Em todo caso, eu sou noiva de outro homem.

Linda correu de volta ao forte e se reuniu ao seu grupo; estava decidida a partir dali e não falar com aquele homem nunca mais.

Mas ela voltaria ao forte. Ela lutou contra a sua consciência, disse mil vezes a si mesma que era uma idiota, e que perdera o juízo. Mas em sua mente ela via os olhos azul-escuros fitando os seus e se convenceu de que devia dizer àquele rapaz romântico que não havia sentido neles se verem novamente. Pelo menos, foi isso que ela disse a si mesma que iria fazer.

Em um domingo, uma semana depois do reinicio das aulas, ela pegou um ônibus de turismo no centro da cidade e desembarcou no estacionamento do forte. Ele parecia saber que ela iria. Estava esperando no pátio central, como estivera todos os dias, com Rosebud selada.

Ele a ajudou a montar atrás dele e cavalgou para a pradaria. Rosebud conhecia o caminho até o córrego. Eles desmontaram diante da água reluzente, e Craig lhe contou que seus pais tinham morrido quando ele era um menino e que um homem da montanha adotara-o e o criara como seu próprio filho. Ele explicou que em vez da escola de livros e mapas ele aprendera a voz de cada animal selvagem, o canto de cada pássaro, a forma e as características de cada árvore.

Linda explicou que a vida dela era completamente diferente, ortodoxa e convencional, completamente planejada. Que o noivo dela era um jovem de uma família boa e imensamente rica, que podia dar-lhe tudo que uma mulher pudesse necessitar ou querer, como sua mãe tinha explicado. Portanto, não fazia o menor sentido...

Então ele a beijou. Ela tentou afastá-lo, mas quando os seus lábios encontraram os dele, a força abandonou os seus braços. Contra a vontade de sua dona, os braços de Linda envolveram a nuca de Craig.

 

A boca de Craig não fedia a álcool ou cigarro, como a de seu noivo. Ele não apalpou o corpo dela. Linda sentiu o cheiro dele: couro de cervo, fumaça de fogueira, pinheiros.

Perturbada, ela se soltou dele e começou a caminhar de volta ao forte. Ele a seguiu, mas não a tocou novamente. Rosebud parou de pastar e seguiu o seu dono.

- Fique comigo, Murmúrio do Vento.

- Eu não posso.

- Estamos destinados um ao outro. Isso foi profetizado há muito tempo.

- Eu não posso responder. Eu preciso pensar. Isto é loucura. Eu estou noiva.

- Diga ao seu noivo que ele terá de esperar.

- Impossível.

Havia uma carroça coberta deixando os portões, seguindo para o estacionamento. Ela desviou o seu caminho, parou a carroça e embarcou nela. Ben Craig montou em Rosebud e caminhou atrás da carroça.

No estacionamento, os passageiros desembarcaram da carroça e entraram no ônibus.

- Murmúrio do Vento! -gritou Craig. -Você vai voltar?

- Eu não posso. Vou me casar com outro homem.

Várias matronas olharam com desprezo para o jovem cavaleiro de aparência selvagem que estava claramente importunando uma moça bonita e de boa família. As portas se fecharam e o motorista ligou o motor.

Rosebud emitiu um relincho assustado e empinou sobre as pernas traseiras. O ônibus começou a se mover, ganhando velocidade na estrada de barro que conduzia à rodovia. Craig tocou Rosebud nos flancos e cavalgou atrás do ônibus, o trote se desenvolvendo para um galope à medida que o ônibus acelerava.

A égua estava aterrorizada com o monstro ao seu lado. Ele bufava e rosnava para ela. A força do vento aumentou. Dentro do ônibus, os passageiros ouviram um grito:

- Murmúrio do Vento, venha comigo para as montanhas e seja a minha esposa.

O motorista olhou de relance para o espelho retrovisor, viu as narinas dilatadas e os olhos faiscantes do cavalo, e pisou fundo no acelerador. O ônibus saltitou pela estrada acidentada. Várias matronas gritavam enquanto abraçavam seus filhos gorduchos. Linda Pickett levantou-se de sua poltrona e abriu a janela.

O ônibus estava gradualmente vencendo a corrida com o cavalo galopante. Rosebud estava aterrorizada, mas confiava nos calcanhares firmes que pressionavam suas costelas e na mão que segurava sua rédea. Uma cabeça morena despontou de uma janela. A resposta se fez ouvir acima do rosnado do ônibus:

- Sim, Ben Craig, eu vou!

O cavaleiro puxou a rédea e desapareceu em meio à nuvem de poeira.

Ela escreveu sua carta cuidadosamente, não por medo de provocar a sua ira, como já fizera antes, mas apenas para deixar bem claro o que queria dizer. Quando terminou a quarta versão da carta, assinou-a e colocou-a no correio. Não recebeu nenhuma notícia durante uma semana. A resposta, quando veio, foi curta e brutal.

Michael Pickett era um pilar de sua comunidade, presidente e diretor do Farmers’ Bank de Billings. Começando sua vida como um humilde caixa antes do ataque a Pearl Harbor, ele ascendera através dos postos até alcançar o cargo de subgerente. Ortodoxa e conscientemente, sua dedicação chamara a atenção do fundador e proprietário do banco, um velho solteiro e sem parentes.

Ao aposentar-se, este cavalheiro oferecera vender seu banco a Michael Pickett. Ele queria alguém para continuar sua tradição.

 

Pickett levantou um empréstimo e conseguiu comprar a empresa. Com o tempo, pagou a maior parte de seus empréstimos. Porém, no final dos anos 70, ele tivera problemas: moratórias, hipotecas, novas dívidas. Pickett fora forçado a sobreviver oferecendo ações no mercado. A crise logo foi superada e o banco de Pickett recuperou a liquidez.

Uma semana depois da chegada da carta de sua filha, o Sr. Pickett foi convidado, ou melhor, convocado a uma reunião com o pai do noivo na casa dele, o impressionante Rancho Bar-T, que ficava às margens do rio Yellowstone e a sudoeste de Billings. Eles haviam se encontrado antes, por ocasião do noivado, mas na sala de jantar do Clube dos Vaqueiros.

O banqueiro foi conduzido a um escritório imenso com assoalho de tábuas corridas polidas e painéis caríssimos nas paredes adornadas com troféus, diplomas emoldurados e cabeças de touros premiados. O homem por trás da escrivaninha impressionante não se levantou ou cumprimentou seu visitante. Apenas gesticulou na direção de uma cadeira vaga à sua frente. Depois que seu convidado se sentou, ele fitou o banqueiro sem dizer uma única palavra. O Sr. Pickett estava tenso. Ele achava que sabia do que se tratava.

O rancheiro magnata não demonstrou pressa. Tirou o invólucro de um imenso charuto Cohiba, acendeu-o, e quando estava tragando bem, empurrou uma única folha de papel através de sua mesa. Pickett leu o papel; era a carta de sua filha.

- Sinto muito -disse o banqueiro. -Ela me contou. Eu sabia que ela havia escrito, mas não tinha visto a carta.

O rancheiro inclinou-se para a frente, um dedo repressor erguido, olhos zangados num rosto que lembrava um bife sob o chapéu de vaqueiro que ele sempre usava, mesmo em seu escritório.

- De jeito nenhum -disse ele. -De jeito nenhum, entendeu? De jeito nenhum essa garota vai tratar o meu menino desse jeito.

O banqueiro deu com os ombros.

- Estou tão desapontado quanto você. Mas os jovens... Às vezes mudam de idéia. Os dois são jovens, talvez um pouco apressados?

- Fale com sua filha. Sugira que ela cometeu um erro muito grave.

- Já falei com ela. A mãe dela também já falou. Mas a menina está disposta a cancelar o casamento.

O rancheiro recostou-se em sua poltrona e correu os olhos pela sala, pensando no quanto subira na vida desde seus primeiros dias como um simples peão.

- Não um casamento com o meu filho -disse ele. Pegou a carta de volta e empurrou uma pilha de documentos sobre a mesa. -É melhor você ler isto.

William ”Big Biü” Braddock realmente subira muito na vida. Seu avô nascera em Bismarck, Dakota do Norte, filho bastardo de um soldado de cavalaria que acabara morrendo nas planícies. Ele viera para o Oeste, onde conseguira um trabalho numa loja e permanecera ali durante toda a sua vida, jamais sendo promovido ou despedido. Seu filho seguira seus passos humildes, mas o neto conseguira um emprego num rancho de gado.

O garoto era grande e forte, um brigão nato, dado a resolver disputas com os punhos, quase inevitavelmente para a sua própria vantagem. Mas também era inteligente. Depois da guerra ele identificara o surgimento de uma oportunidade empresarial: o caminhão frigorífico, capaz de entregar carne de Montana a até centenas de quilômetros de onde fora cortada.

Ele progrediu por conta própria, começando com os caminhões frigoríficos, e passando para o ramo de abatedouro e açougue, até controlar todo o negócio, do portão do rancho ao churrasco. Ele criou a sua própria marca, o Big Bills Beef, grosso, suculento, fresco e disponível em seu supermercado local. Quando voltou para o ramo de ranchos, o elo perdido na cadeia do bife, ele era o chefe.

O Rancho Bar-T, comprado dez anos depois, era uma construção restaurada e a mansão mais impressionante ao longo do Yellowstone. Sua esposa, uma mulher humilde e submissa, quase invisível, dera-lhe um único filho, mas farinha do mesmo saco do pai. Kevin estava no meio da casa dos vinte, um jovem mimado e paparicado por seu pai. Mas Big Bill acreditava que nada era bom demais para o seu filho único.

Quando terminou de ler os documentos, Michael Pickett estava pálido e trêmulo.

- Eu não compreendo -disse ele.

- Bem, Pickett, está tudo muito claro aí. Passei uma semana comprando cada ação do seu banco neste estado. Isso significa que agora eu possuo a maior parte das ações. Eu sou o dono do banco. Isso me custou uma nota preta. E tudo por causa da sua filha. Ela é bonita, admito, mas é idiota. Eu não conheço nem me importo com o outro sujeito que ela conheceu, mas ela tem de deixá-lo. E você vai dizer isso a ela. Vai dizer que ela deve escrever outra carta para o meu filho e admitir que cometeu um erro. Eles vão reatar o noivado.

- Mas e se eu não conseguir convencê-la?

- Então diga a sua filha que ela será a responsável por sua ruína completa. Eu vou tomar o banco, vou tomar a casa, vou tomar tudo que você tem. Diga a ela que você não vai conseguir nem uma xícara de café fiado neste país. Está ouvindo?

Enquanto dirigia de volta até a rodovia, Michael Pickett era um homem acabado. Ele sabia que Braddock não estava brincando. Ele tinha feito isso antes com homens que lhe desagradaram.

Pickett também tinha sido avisado de que as núpcias deveriam ser antecipadas para meados de outubro, dali a um mês.

A conferência familiar foi muito desagradável. A Sra. Pickett alternou-se entre acusar e proteger sua filha. O que Linda pensava da vida? Será que tinha alguma idéia do que fizera? Casar-se com Kevin Braddock dar-lhe-ia, de uma só vez, todas as coisas que os outros trabalhavam uma vida inteira para conseguir: uma bela casa, uma propriedade espaçosa para criar os filhos, as melhores escolas, uma posição na sociedade. Será que ela estava disposta a jogar tudo isso fora por uma paixão tola por um ator desempregado fingindo ser batedor de fronteira num emprego de verão?

Dois dos irmãos de Linda, que moravam e trabalhavam nas proximidades, foram chamados à reunião. Um se ofereceu para ir a Forte Heritage para ter uma conversa de homem para homem com o tal ator. Os dois filhos suspeitavam que um Braddock vingativo poderia levá-los a perder seus empregos. O irmão que se ofereceu para falar com Craig estava na folha de pagamento do governo do estado, e Braddock tinha amigos poderosos em Helena.

O pai, muito transtornado, poliu as lentes grossas de seus óculos. Foi a expressão triste em seu rosto que acabou convencendo Linda Pickett. Ela concordou com a cabeça, levantou e subiu para o seu quarto. Desta vez ela escreveu duas cartas.

A primeira foi para Kevin Braddock. Ela admitiu que tinha desenvolvido uma paixão tola e infantil por um jovem vaqueiro que tinha conhecido, mas que isso estava acabado. Disse que tinha sido uma tola em escrever para ele do jeito que fizera, e pediu seu perdão. Ela queria reatar seu noivado e contava os dias até o fim de outubro, quando iria se tornar sua esposa.

Sua segunda carta foi endereçada ao Sr. Ben Craig, aos cuidados de Forte Heritage, condado de Bighorn, Montana. Ambas as cartas foram postadas no dia seguinte.

 

A despeito de sua obsessão pela autenticidade, o professor Inglês fizera duas outras concessões à modernidade. Embora não houvesse linhas telefônicas para o forte, ele mantinha em seu escritório um radiotelefone abastecido por pilhas recarregáveis de cádmio e níquel. E também possuía um serviço postal.

O correio de Billings concordara em entregar todas as cartas endereçadas ao forte à principal empresa de ônibus de turismo da cidade. Assim, dois dias depois de ter sido posta no correio, a carta de Linda foi entregue ao motorista do próximo ônibus a sair. E logo estava nas mãos de Ben Craig.

Ele tentou lê-la, mas sentiu dificuldade. Graças às lições de Charlie, ele se acostumara com letras de imprensa e até impressões em caixa baixa, mas não conseguiu decifrar a caligrafia elegante da jovem. Entregou a carta a Charlie, que a leu e fitou Craig com piedade nos olhos.

- Eu sinto muito, Ben. É da garota de quem você gosta. Linda.

- Por favor, leia pra mim, Charlie.

- ”Querido Ben, há duas semanas eu fiz uma coisa extremamente insensata. Quando você gritou para mim de seu cavalo, eu gritei de volta do ônibus, e acho que disse que nós podíamos nos casar. Mas quando cheguei em casa compreendi o quanto era estúpida. Na verdade, estou noiva de um rapaz muito bom, a quem conheço há alguns anos. Não posso romper meu noivado com ele. Nós iremos nos casar no mês que vem. Por favor, deseje-me sorte e felicidade no futuro, assim como eu desejo a você. Com um beijo de despedida, Linda Pickett.”

Charlie dobrou a carta e a devolveu. Ben Craig olhou para as montanhas, perdido em pensamentos. Charlie estendeu o braço e pousou a sua mão sobre a dele.

- Eu sinto muito, Ben. Isso acontece. Navios que passam na noite. Essa menina sentiu uma paixão juvenil por você, e eu posso entender por quê. Mas ela tomou sua decisão em permanecer com seu noivo.

Craig não sabia nada sobre navios. Ele olhou para as suas montanhas e perguntou:

- Com quem ela vai casar?

- Eu não sei. Ela não disse.

- Você pode descobrir?

- Você não vai causar problemas, vai?

Muitos anos atrás, Charlie vira dois rapazes saírem no sopapo por ela. Ela considerara isso muito lisonjeiro. Mas isso fora naquela época. Não queria seu jovem protegido brigando por causa de uma mocinha futil que viera três vezes ao forte para mexer com os afetos vulneráveis de Craig.

- Não, Charlie, não vou causar nenhum problema. Apenas estou curioso.

- Não vai cavalgar até Billings para começar uma briga?

- Charlie, eu quero apenas o que é meu, aos olhos do homem e do Grande Espírito. Como foi previsto muito tempo-atrás.

Como ele estava novamente falando em charadas, ela insistiu.

- Mas não Linda Pickett?

Ele pensou durante algum tempo, mastigando um caule de mato.

- Não, não Linda Pickett.

- Promete, Ben?

- Eu prometo.

- Verei o que posso fazer.

Na faculdade em Bozeman, Charlie Bevin tivera uma amiga que se tornara jornalista e fora trabalhar na Billings Gazette. Ligou para ela e pediu que checasse os exemplares antigos em busca de alguma menção sobre um casamento envolvendo uma jovem chamada Linda Pickett. Não demorou muito.

Quatro dias depois um motorista trouxe-lhe uma carta contendo um recorte de um exemplar do verão anterior. O Sr. e a Sra. Michael Pickett e o Sr. e a Sra. William Braddock haviam tido o prazer de anunciar o noivado de sua filha Linda e seu filho Kevin. Charlie ergueu as sobrancelhas e assobiou. Não foi à toa que a garota não quisera cancelar o noivado.

- Ele deve ser o filho de Big Bill Braddock - disse a Craig. -Você sabe, o rei do filé.

O batedor balançou a cabeça negativamente.

- Não, você caça a sua própria carne -disse Charlie, resignada. -Sem licença. Bem, o pai dela é muito, muito rico. Ele vive numa grande mansão a norte daqui, perto do rio Yellowstone. Conhece esse rio?

Ben assentiu positivamente. Ele cavalgara cada centímetro de sua margem esquerda com o general Gibbon, desde Forte Ellis até a junção com o Tongue, a leste do córrego Rosebud, onde eles recuaram.

- Você pode descobrir quando será o casamento, Charlie?

- Lembra de sua promessa?

- Lembro. Nada de Linda Pickett.

- Exatamente. Então, o que você tem em mente? Uma pequena surpresa?

- Sim.

Charlie deu mais um telefonema. Setembro deu lugar a outubro. O clima permaneceu agradável e suave. A previsão de longo prazo sugeriu um verdadeiro verão índio, com um belo tempo ensolarado até o final do mês.

No dia 10, um exemplar do Billings Gazette chegou com o ônibus de turismo. Como o período escolar já tinha começado, o fluxo de visitantes estava caindo rapidamente.

 

No jornal de seu amigo, Charlie encontrou menção ao casamento na coluna social inteira. Ela leu o texto para Craig.

O colunista descreveu as bodas vindouras de Kevin Braddock e Linda Pickett. A cerimônia aconteceria em 20 de outubro, no Rancho Bar-T, ao sul de Laurel Town. Se o clima colaborasse, a cerimônia seria realizada ao ar livre às duas da tarde, para mil convidados, incluindo a nata da sociedade e da classe comercial no estado de Montana. Charlie continuou lendo até o pé da página. Meneando a cabeça, Craig memorizou tudo que ouvia.

No dia seguinte, o comandante do posto reuniu a todos no pátio central. A experiência de verão do Forte Heritage seria suspensa durante os meses de inverno em 21 de outubro. Ele disse que o forte foi um sucesso extraordinário e que eles estavam recebendo mensagens de congratulações vindas de educadores e políticos de todo o estado.

- Teremos muito trabalho duro nos quatro dias antes de fecharmos -disse o professor Inglês à sua equipe. -Os salários serão pagos na véspera da partida. Precisamos limpar o complexo e deixá-lo abastecido e preparado para o inverno antes de irmos.

Depois do discurso, Charlie conduziu Ben Craig a um canto.

- Estamos chegando ao fim -disse ela. -Depois que terminar, todos estaremos usando nossas roupas normais. Ah, mas essas devem ser as suas roupas normais, certo? Bem, você vai receber um maço de dólares. Podemos ir a Billings e comprar algumas calças jeans, algumas camisas esporte e umas duas jaquetas quentes para o inverno.

”Depois voltarei para levar você comigo para Bozeman. Encontrarei um bom lugar para você morar e então irei apresentá-lo a algumas pessoas que podem ajudá-lo.”

- Isso é muito bom, Charlie.

 

À noite ele bateu na porta do professor. John Inglês estava sentado à sua mesa. Um forno a lenha brilhava num canto para afugentar o ar noturno. O professor recebeu calorosamente o seu visitante vestido em couro de cervo. Ficara impressionado com o rapaz, com seu conhecimento das florestas e das velhas fronteiras, assim como o fato de que ele jamais saía de seu personagem. Com seu conhecimento e um diploma universitário, o professor poderia conseguir-lhe um posto no campus.

- Ben, meu rapaz! Como posso ajudá-lo?

Ele esperava poder oferecer alguns conselhos paternais para o futuro.

- Major, o senhor teria um mapa?

- Um mapa? Bom Deus, suponho que sim. Qual área?

- Aqui no forte, e a norte para o Yellowstone, por favor.

- Boa idéia. Sempre é útil saber onde estamos, e como é a região que nos cerca. Aqui.

Ele abriu o mapa em cima de sua mesa e explicou. Craig já tinha visto mapas de campanha antes, mas eles eram quase brancos, com exceção dos acidentes de terreno conhecidos por alguns caçadores e batedores. Este estava coberto com linhas e bolhas.

- Aqui está o forte, ao norte da montanha West Pryor, de frente para o norte do Yellowstone e 160 quilômetros ao sul das Pryors. Aqui está Billings, e aqui é de onde eu vim, Bozeman.

Craig correu o dedo entre as duas cidades.

- A trilha Bozeman? -perguntou.

- Exatamente. Era assim que era chamada. Agora é uma rodovia asfaltada, é claro.

Craig não sabia o que era uma rodovia asfaltada, mas pensou que talvez fosse a longa linha de pedra preta que ele vira brilhando ao luar. Havia dezenas de cidades menores mostradas no mapa de escala grande, na margem sul do Yellowstone, na confluência com o córrego Clark, uma propriedade marcada como Rancho Bar-T. Ele considerou que ela ficaria um pouco para oeste de uma linha que passava ao norte do forte e seguia por 32 quilômetros. Craig agradeceu ao major e devolveu o mapa.

Na noite do dia 19, Craig recolheu-se cedo, logo depois da hora do jantar. Ninguém considerou isso estranho. Todos os jovens tinham passado o dia limpando, lubrificando as peças de metal para protegê-las da neve de inverno e armazenando ferramentas em cabanas de segurança para a primavera seguinte. Os outros homens do dormitório foram para a cama por volta das dez e dormiram rapidamente. Nenhum percebeu que, debaixo do cobertor, seu companheiro estava completamente vestido.

Ele levantou à meia-noite, colocou o chapéu de pele de raposa, dobrou dois cobertores e partiu sem fazer um único ruído. Ninguém o viu atravessar o pátio central, entrar no estábulo e selar Rosebud. Antes Craig lhe deu uma ração extra de aveia para conferir à égua a força da qual iria precisar.

Quando Rosebud estava pronta, ele a deixou lá, foi até a forja do ferreiro e pegou os objetos que tinha notado no dia anterior: um machado de mão, um pé-de-cabra e alicates de corte.

Com o pé-de-cabra ele arrombou a porta do arsenal; uma vez lá dentro, usou o alicate para cortar a corrente que prendia os rifles. Todos eram réplicas, menos um. Ele pegou de volta sua Sharps 52 e saiu.

Conduziu Rosebud até a pequena porta dos fundos, ao lado da capela, tirou sua trava e saiu. Seus dois cobertores estavam debaixo da sela, e o manto de búfalo estava enrolado e amarrado atrás. O rifle estava na bainha, pendendo ao lado de seu joelho esquerdo; ao lado de seu joelho direito estava uma aljava e quatro flechas. Seu arco pendia de suas costas. Depois de fazer Rosebud caminhar por uns oitocentos metros, ele montou na égua silenciosamente.

 

E assim Ben Craig, pioneiro e batedor, o único sobrevivente do massacre às margens do rio Little Bighorn, cavalgou do ano da graça de 1877 para o último quarto do século XX.

A julgar pela posição da lua no céu, Craig calculou que eram duas da manhã. Teria tempo para caminhar os 32 quilômetros até o Rancho Bar-T e economizar a energia de Rosebud. Ele encontrou a estrela polar e seguiu alguns graus para oeste da trilha que passava ao norte do forte.

Quando a pradaria deu lugar a uma região de fazendas, Craig começou a se deparar com cercas de arame. Mas tudo que ele precisava fazer era cortar as cercas com o alicate e seguir. Ele atravessou a linha do rio Bighorn, entrando no condado de Yellowstone, mas não soube disso. Ao amanhecer, encontrou a margem do córrego Clark e seguiu o fluxo curvo para o norte. Quando o sol começou a deitar sua luz nas colinas a leste, ele viu um muro branco muito extenso e uma placa anunciando:

”Rancho Bar-T. Propriedade Particular. Não entre.”

Ele decifrou as letras e caminhou até encontrar a estrada particular na direção do portão principal.

Oitocentos metros depois ele viu o portão, e para além dele uma casa imensa, cercada por celeiros e estábulos magníficos. Ao lado do portão havia um poste listrado do outro lado da estrada e uma casa de guarda. Na janela, uma fraca luz noturna. Ele recuou mais oitocentos metros até uma fileira de árvores, saltou de Rosebud e deixou-a descansar e comer a grama de outono. Craig descansou durante a manhã mas não dormiu, permanecendo alerta como um animal selvagem.

Na verdade o colunista social do jornal subestimara o esplendor que Big Bill Braddock planejara para o casamento do filho.

Ele insistira que a noiva de seu filho deveria passar por um exame completo nas mãos do médico de sua família e a jovem humilhada não teve escolha senão ceder. Quando ele leu o relatório completo, suas sobrancelhas se ergueram.

- Ela é o quê? -perguntou ao doutor.

O médico olhou para onde o dedo indicador apontava.

- Oh, sim, não há dúvida. Ela é completamente intacta.

- Ora, ora, aquele sortudo do Kevin! -exclamou Braddock com um sorriso. -E o resto?

- Impecável. Uma mulher muito bonita e saudável.

Os mais refinados decoradores de interiores que o dinheiro podia contratar transformaram a mansão em um castelo de contos de fadas. No gramado de meio hectare fora montado um altar a 18 metros da cerca, de frente para a pradaria. Diante do altar foram dispostas fileiras de cadeiras confortáveis para os convidados, com um corredor central por onde passaria primeiro Kevin, acompanhado por seu padrinho, e em seguida Linda e seu pai falido, ao som da Marcha Nupcial.

O banquete seria disposto nas mesas de jardim atrás das cadeiras. Nenhuma despesa fora poupada. Havia pirâmides de copos de champanhe em cristal Stuart e oceanos de champanhe francês da melhor safra de uma marca respeitadíssima. Ele estava determinado a não permitir que nem mesmo o seu convidado mais sofisticado visse uma falha sequer na recepção.

Lagostas do Ártico, caranguejos e ostras tinham chegado por avião de Seattle. Para aqueles que preferiam algo mais forte a champanhe, havia caixas e caixas de Chivas Regal. Na noite anterior ao casamento, Big Bill preocupara-se apenas com o filho. O rapaz tinha se embebedado novamente e precisaria de uma hora no chuveiro para estar em forma pela manhã.

Para entreter ainda mais os seus convidados, enquanto os recém-casados trocassem de roupa para partir em sua lua-de-mel para uma ilha particular nas Bahamas, Braddock planejara um rodeio ao estilo do Velho Oeste, bem ali nos jardins. Esses artistas, assim como os garçons, tinham sido contratados. As únicas pessoas que Braddock não contratara foi a equipe de segurança.

Obsessivo com sua segurança pessoal, Braddock mantinha um exército particular. Além dos três ou quatro homens que permaneciam ao seu lado o tempo todo, o resto trabalhava como peões no rancho, mas eram treinados em armas de fogo, tinham experiência em combate e seguiam ordens ao pé da letra. Eram pagos para isso.

Para o casamento, Braddock trouxera todos os seus trinta homens para as proximidades da casa. Dois ficaram no posto de guarda no portão principal. Sua equipe pessoal de proteção, comandada por um ex-boina-verde, estaria perto dele. Os demais se fariam passar por garçons e empregados.

Durante toda a manhã, um fluxo de limusines e carros de luxo, incumbidos de pegar os convidados no aeroporto de Billings, chegou ao portão principal, recebendo permissão para prosseguir e entrar. Craig observou tudo escondido. Logo depois do meio-dia o pastor chegou, acompanhado pelos músicos.

Outra coluna de furgões de empresas de alimentação e artistas de rodeio chegou por um portão diferente, mas estavam fora do campo de visão. Logo depois das treze horas, os músicos começaram a tocar. Craig ouviu o som e montou em Rosebud.

Ele virou a cabeça de Rosebud para a pradaria aberta e cavalgou em torno da cerca perimetral até a casa de guarda sair de vista. Depois seguiu para o muro branco, passando de um trote para um galope. Rosebud viu o muro se aproximando, ajustou seu galope e saltou. O batedor se viu num estábulo amplo, a quatrocentos metros dos celeiros. Um rebanho de bois de chifres longos pastava ali.

No canto mais distante do campo Craig encontrou o portão para o complexo de celeiros, abriu-o e partiu nessa direção. Enquanto movia-se através dos celeiros e ao longo dos pátios, Craig foi visto por dois guardas em patrulha.

- Você deve ser do espetáculo.

Craig meneou a cabeça afirmativamente.

- Você está no lugar errado. Vá até lá embaixo e verá o resto deles nos fundos da casa.

Craig seguiu pelo beco, esperou até os guardas terem seguido em frente, e depois virou. Ele ouviu a música, embora não pudesse reconhecer a Marcha Nupcial.

Imaculado em seu smoking branco, Kevin Braddock estava em pé no altar com seu padrinho. Vinte centímetros mais baixo que o pai e 22 quilos mais magro, ele tinha ombros estreitos e quadris largos. Suas bochechas eram adornadas por várias espinhas, às quais tendia, parcialmente mascaradas pelo pó-de-arroz de sua mãe.

A Sra. Pickett e os pais de Braddock sentavam-se na fileira da frente, separados pelo corredor. Na extremidade mais distante desse corredor, Linda Pickett apareceu de braço dado com seu pai. Ela estava bonita como um anjo em seu vestido de casamento de seda branca Balenciaga, de Paris. Seu rosto estava pálido e sçrio. Ela olhava diretamente para a frente sem sorrir.

Mil cabeças viraram-se para olhar quando ela começou a caminhar pelo corredor até o altar. Atrás das fileiras de convidados havia um pequeno exército de garçons e garçonetes. E atrás deles apareceu um cavaleiro solitário.

Michael Pickett entregou sua filha para ficar ao lado de Kevin Braddock, e em seguida se sentou ao lado de sua esposa. Ela estava enxugando os olhos. O padre levantou os olhos e a voz.

- Meus queridos, estamos aqui reunidos para unir este homem e esta mulher no sagrado matrimônio -disse o pastor quando a música parou.

Se ele viu o cavaleiro olhando-o a 45 metros de distância, pode ter ficado intrigado, mas não deu nenhum sinal disso. Uma dezena de garçons foi empurrada para o lado enquanto o cavalo avançava vários passos. Até mesmo as dezenas de guarda-costas em torno do perímetro do gramado estavam olhando para o pastor.

E o pastor prosseguiu.

- em cuja proteção estes dois jovens se entregam para serem um só.

A Sra. Pickett chorava aos borbotões. Ao lado dela, Braddock era todo sorrisos. O pastor ficou surpreso em ver uma lágrima descer lentamente dos olhos da noiva e correr por suas faces. Imaginou que ela também estaria muito feliz.

- Portanto, se alguém, por um motivo justo, tem algo a dizer contra este matrimônio, que fale agora ou se cale para sempre.

Ele levantou os olhos do texto e sorriu para a sua congregação.

- Eu tenho. Ela está prometida a mim.

A voz era jovem e forte, e ecoou por todos os cantos do gramado enquanto o cavalo saltava para a frente. Os garçons recuaram, assustados. Dois guarda-costas lançaram-se contra o cavaleiro. Cada um levou um chute no rosto e caiu para trás entre as duas últimas fileiras de convidados. Homens levantaram protestos, mulheres gritaram, a boca do pastor era um perfeito O.

Rosebud passou de trote a galope numa questão de segundos. Seu cavaleiro a fez parar de repente e se curvou para a noiva à sua esquerda. Ele esticou o braço direito, circundando a cintura delgada e envolta em seda, e puxou a garota para cima. Num segundo ela lançou os braços para a frente do corpo dele, deslizou para trás, jogou uma perna sobre o manto de búfalo enrolado, cerrou os braços em torno de Craig e se manteve firme.

 

A égua trotou ao longo da primeira fileira, saltou a cerca branca e galopou para longe pela pradaria. A cena no gramado degenerou para um caos completo.

Todos os convidados estavam de pé, aos gritos. Os bois de chifres longos trotaram em círculos e chegaram ao belo gramado. Um dos quatro homens de Braddock, sentado na extremidade da fileira de seu mestre, passou correndo pelo pastor, sacou um revólver e mirou cuidadosamente no cavalo que se afastava. Michael Pickett deixou escapar um grito de ”Não-o-o-o”, jogou-se contra o pistoleiro, agarrou seu braço e o empurrou para cima. A pistola disparou três tiros enquanto eles se engalfinhavam.

Isso foi a gota d’água para a congregação, e para os bois. Todos estouraram. Cadeiras foram esmagadas, bandejas de lagosta e caranguejo foram derramadas no gramado. Um prefeito foi empurrado através de uma pirâmide de cristais Stuart e tombou numa chuva de lixo caríssimo. O pastor mergulhou debaixo do altar, onde encontrou o noivo.

Na rua principal estavam estacionados dois carros-patrulha da delegacia local, com quatro policiais. Eles estavam ali para guiar o tráfego e tinham sido convidados para um lanchinho. Eles ouviram os tiros, entreolharam-se, jogaram fora os seus hambúrgueres e correram para o gramado.

Na beira do gramado um deles esbarrou em um garçom em fuga. Ele segurou o homem por seu paletó branco e o ajudou a se levantar.

- Que diabos está acontecendo lá? -inquiriu.

Os outros três olhavam boquiabertos o pandemônio. O policial de patente mais alta ouviu o garçom e disse a um de seus colegas:

- Volte para o carro e diga ao xerife que temos um problema aqui.

O xerife Paul Lewis normalmente não estaria em seu escritório numa manhã de sábado, mas ele tinha trabalho a fazer e queria terminar antes do começo da semana seguinte. Eram duas e vinte da tarde quando a cabeça do policial de plantão apareceu na porta do escritório.

- Está havendo um problema lá no Bar-T. Ele estava segurando um telefone.

- O casamento do Braddock. Ed está na linha. Disse que a noiva acaba de ser raptada.

- De ser o QUÊ? Ponha ele na linha.

A luz vermelha acendeu quando a transferência foi feita. Ele pegou o fone.

- Ed, é Paul. Do que diabos você está falando?

Ele ouviu o seu homem no rancho relatar o que tinha acontecido. Como todos os policiais, ele odiava a idéia de um seqüestro. Por um lado era um crime, geralmente dirigido contra esposas e filhos dos ricos; por outro era uma ofensa federal, o que significava que o FBI se jogaria sobre ele como um enxame de gafanhotos. Em trinta anos de serviço no condado de Carbon, dez deles como xerife, ele conhecera três tomadas de reféns, todas resolvidas sem fatalidades, mas jamais um seqüestro. Ele presumiu que uma quadrilha com carros velozes, e até mesmo um helicóptero, estivesse envolvida.

- Um cavaleiro solitário? Você perdeu o juízo? Para onde eles foram? Saltaram o muro e saíram galopando pela pradaria. Certo, ele deve ter um carro escondido em algum lugar. Vou pedir um pouco de ajuda fora do condado e bloquear as estradas principais. Ed, escute bem. Colha testemunhos de todos que viram alguma coisa, o que ele fez, como ele dominou a garota, como ele fugiu. Ligue-me de volta.

Ele passou meia hora telefonando para reservas e providenciando carros-patrulha nas rodovias principais do condado, norte, sul, leste e oeste. Os patrulheiros da polícia rodoviária receberam ordens de verificar cada veículo e cada porta-malas. Eles estavam

procurando por uma morena bonita num vestido de seda branco. Tinha acabado de passar das três quando Ed ligou de volta de seu carro no Rancho Bar-T.

- A coisa está ficando esquisita pra chuchu, chefe. Temos quase vinte declarações de testemunhas. O cavaleiro entrou porque todo mundo achava que ele fazia parte do show de rodeio Oeste Selvagem. Ele estava vestido com roupas de couro de cervo e cavalgando uma enorme égua castanha. Usava um chapéu de pele de raposa, tinha uma pena enfiada na parte de trás do cabelo e um arco.

- Um arco? Que tipo de arco? Um bambolê?

- Não esse tipo de arco, chefe. Um arco de arco e flecha. E senta porque a coisa fica ainda mais estranha.

- Não pode. Mas continue.

- Todas as testemunhas dizem que quando ele avançou para o altar e se curvou para pegar a garota, ela se esticou até ele. Eles dizem que ela pareceu reconhecer o sujeito e o abraçou forte quando saltaram o muro. Se não tivesse feito isso, ela teria caído e estaria aqui agora.

Um peso enorme se levantou dos ombros do xerife. Com um pouco de sorte, ele não tinha um rapto nas mãos, tinha uma fuga de amor. Ele começou a sorrir.

- Olha, eles têm certeza disso, Ed? Ele não bateu nela, fez com que desmaiasse, jogou-a sobre o lombo do cavalo, agarroua enquanto cavalgava?

- Aparentemente não. Imagina, ele causou uma quantidade imensa de danos. A cerimônia de casamento foi arruinada, o banquete foi esmagado, o noivo está puto e a noiva sumiu.

O sorriso do xerife aumentou.

- Puxa, isso é terrível -disse ele. -Nós sabemos quem é o sujeito?

- Talvez. O pai da noiva disse que sua filha teve uma espécie de paixão por um dos atores jovens que trabalharam no Forte Heritage durante o verão, posando como pioneiros. Você ouviu falar disso?

Lewis sabia tudo sobre o forte. Sua filha levara seus netos para lá um dia e eles tinham adorado.

- Em todo caso, ela rompeu seu noivado com Kevin Braddock por causa do sujeito. Os pais dela convenceram a moça que ela estava maluca e o noivado foi refeito. Eles disseram que o nome do homem é Ben Craig.

O policial voltou a colher depoimentos, e o xerife estava prestes a contatar Forte Heritage quando o professor Inglês entrou na linha.

- Isto pode não ser nada, mas um dos meus funcionários fugiu. Durante a noite.

- Ele roubou alguma coisa, professor?

- Bem, não exatamente. Ele tinha o seu próprio cavalo e suas roupas. Mas também tinha um rifle. Eu confisquei a arma durante a permanência dele conosco. Ele invadiu o arsenal e pegou o rifle de volta.

- Para que ele precisa do rifle?

- Para caçar, espero. Ele é um jovem muito gentil, mas um pouco incivilizado. Ele nasceu e foi criado na cordilheira Pryor. Os pais dele parecem ter sido gente das montanhas. Ele nunca foi à escola.

- Olhe, professor, isto pode ser sério. Será que há alguma chance desse rapaz ficar perigoso?

- Oh, eu espero que não.

- O que mais ele está carregando?

- Bem, ele tem uma faca de caçador, e nós demos por falta de um machado. Além de um arco cheyenne e quatro flechas com cabeças de pedra-de-fogo.

- Ele pegou peças de coleção suas?

- Não, ele mesmo as fez.

O xerife contou até cinco, lentamente.

- Por acaso o nome desse rapaz é Ben Craig?

- Sim, como você sabe?

- Apenas continue me ajudando, professor. Ele teve um caso de amor com uma professorinha muito bonita de Billings que foi visitar o forte?

Ele ouviu o acadêmico conferenciar com alguém de nome Charlie.

- Parece que ele desenvolveu um afeto profundo por essa garota. Ele achou que ela o tinha aceitado, mas acabo de ser informado que ela escreveu para ele desmanchando tudo. Ele não aceitou isso bem. Ele até perguntou onde e quando o casamento da moça aconteceria. Eu espero que ele não tenha feito papel de idiota.

- Não exatamente. Ele acaba de roubar a noiva do altar.

- Meu Deus!

- Olhe, será que ele poderia mudar de cavalo para carro?

- Céus, não. Ele não sabe dirigir. Nunca esteve dentro de um carro. Ele vai continuar com a égua que ele ama e acampar no mato.

- Para onde ele irá?

- É quase certo que vá para o sul, para as Pryors. Ele passou a vida inteira lá, caçando e plantando armadilhas.

- Obrigado, professor. O senhor ajudou muito.

Ele cancelou os bloqueios de estrada e telefonou para o piloto de helicóptero do condado de Carbon. Pediu a ele que decolasse e checasse. Em seguida, esperou pelo inevitável telefonema de Big Bill Braddock.

O xerife Paul Lewis era um bom policial, firme mas gentil. Ele preferia ajudar as pessoas a trancafiá-las, mas a lei era a lei e ele não hesitava em aplicá-la.

Seu avô fora um soldado da cavalaria que morrera nas planícies, deixando uma viúva e um bebê em Forte Lincoln. A viúva de guerra casara-se com outro soldado estacionado em Montana.

Seu pai tinha sido criado no estado e casado duas vezes. Em seu quinto casamento, em 1900, ele tivera duas filhas. Depois da morte de sua esposa ele se casara novamente e, com a idade madura de 45 anos, tivera seu filho único em 1920.

O xerife Lewis estava no qüinquagésimo oitavo ano e em mais dois iria se aposentar. Depois disso, ele sabia de certos lagos em Montana e Wyoming cujas trutas imensas mereciam sua atenção.

Ele não fora convidado ao casamento e se divertia pensando no motivo. Durante os últimos anos, por quatro vezes ele ou os seus homens tinham investigado brigas de bêbado envolvendo Kevin Braddock. Em cada caso os barmen tinham sido bem recompensados e não apresentaram queixa. O xerife não se preocupava muito com rapazes envolvidos em brigas, mas não tinha visto com bons olhos quando Braddock Jr. espancara uma garota de bar que se recusara a atender a seus gostos peculiares.

O xerife enfiara Braddock Jr. no xilindró e teria ele próprio apresentado queixa, mas a garota subitamente mudou de ideia e recordou que simplesmente tinha rolado por uma escada.

Havia outra informação que o xerife jamais divulgara. Três anos antes ele recebera um telefonema de um amigo na polícia de Helena City. Eles tinham freqüentado juntos a academia de polícia.

O colega relatou que os seus oficiais tinham invadido um clube noturno. Tinha sido uma batida de drogas. Os nomes e endereços de todos os presentes haviam sido anotados. Um era Kevin Braddock. Se ele tinha alguma droga consigo, conseguira se livrar dela a tempo e sido liberado. Mas o clube noturno em questão era um clube exclusivamente gay.

O telefone tocou. Era o Sr. Valentino, advogado pessoal de Big Bill Braddock.

- Você deve ter ouvido sobre o que aconteceu aqui esta tarde, xerife. Os seus policiais apareceram alguns minutos depois.

- Soube que nem tudo correu de acordo com a programação da festa.

- Por favor, não brinque, xerife Lewis. O que aconteceu foi um caso de seqüestro brutal e o criminoso precisa ser capturado.

- Estou ouvindo, advogado. Mas eu tenho uma pilha de testemunhos de convidados e funcionários dos serviços de alimentação, atestando que a moça cooperou com o rapaz, o cavaleiro, antes. Isso parece muito mais com uma fuga de amor.

- Pese as suas palavras, xerife. Se a garota tivesse querido romper o noivado, não teria sido possível detê-la. Esta garota foi seqüestrada mediante o emprego de força física. O criminoso invadiu o local para pegá-la, chutou os rostos de dois funcionários do Sr. Braddock e causou uma quantidade impressionante de danos a propriedade privada. O Sr. Braddock pretende apresentar queixa. O senhor vai capturar o bandido, ou nós vamos ter que fazê-lo?

O xerife Lewis não gostava de ser ameaçado.

- Advogado, espero que você e o seu cliente não estejam pensando em fazer a lei com as próprias mãos. Isso pode não ser sensato.

O advogado ignorou a contra-ameaça.

- O Sr. Bradock está profundamente preocupado com a segurança de sua nora. É seu direito procurar por ela.

- A cerimônia de casamento foi completa?

- Como assim?

- O filho do seu cliente e a Srta. Pickett chegaram de fato a casar segundo a lei?

- Bem...

- Nesse caso, ela não é nora do seu cliente. Ele não tem qualquer parentesco com ela.

- Até informação em contrário, ela ainda é a noiva do filho do meu cliente. Ele está atuando como um cidadão preocupado. Você vai capturar o marginal? Sempre há Helena.

O xerife Lewis suspirou. Ele sabia a influência que Bill Braddock tinha sobre alguns legisladores na capital do estado. Ele também não tinha medo disso. Mas era indiscutível que esse rapaz, Ben Craig, tinha cometido um crime.

- Assim que ele for localizado, eu estarei lá -garantiu o xerife.

Enquanto baixava o telefone, o xerife pensou que seria bom pegar os namoradinhos antes dos homens de Braddock. Seu piloto de helicóptero entrou na linha. Eram quase quatro da tarde; faltavam duas horas para o pôr-do-sol.

- Jerry, eu quero que você vá até o Rancho Bar-T. Dali, siga para o sul na direção das Pryors. Fique de olho aberto para a frente e para os dois lados.

- O que estou procurando, Paul?

- Um cavaleiro solitário, rumando para o sul, provavelmente para as montanhas. Ele está com uma garota vestida de noiva na garupa.

- Você tá brincando comigo?

- Não. Algum fanático por selas acaba de seqüestrar do altar a noiva do filho de Bill Braddock.

- Acho que eu já gosto do sujeito -disse o policial enquanto saía da área do aeroporto de Billings.

- Apenas encontre ele para mim, Jerry.

- Não esquenta. Se ele está lá fora, eu vou achá-lo. Desligo. O piloto estava sobre Bar-T. Cinco minutos depois tomou o rumo indicado para o sul. Ele se manteve a trezentos metros de altura, baixo o bastante para ter uma boa visão de qualquer cavaleiro no solo, e alto o suficiente para cobrir um terreno de 16 quilômetros de extensão à esquerda e à direita.

À sua direita ele podia ver a rodovia 310 e a linha de trem correndo para o sul na direção do vilarejo de Warren e para Wyoming através do campo plano. À frente ele via os picos das Pryors.

Para o caso de o cavaleiro evitar ser seguido e rumar para oeste cortando a estrada, o xerife Lewis pediu à patrulha rodoviária que rondasse pela 310 e vasculhasse ambos os lados da estrada em busca do torso de um cavaleiro sobre a relva da pradaria.

Big Bill Braddock não ficara de braços cruzados. Deixando sua equipe lidando com a anarquia em seu quintal, ele e seus seguranças seguiram direto para o seu escritório. Era um homem que nunca fora conhecido por seu bom humor, e seus subalternos jamais o viram tão furioso. Durante algum tempo ele ficou sentado à mesa, em silêncio. Havia uma dezena de pessoas ao redor dele, esperando ordens.

- O que vamos fazer, patrão? -acabou perguntando um dos seguranças.

- Pensar - rosnou o rancheiro. - Pensar. Ele é um homem sozinho num cavalo, com uma carga pesada no lombo do bicho. Tem um alcance limitado. Para onde ele iria?

O ex-boina-verde Max estudou um mapa de parede do condado.

- Não para o norte. Ele teria de atravessar o Yellowstone. Profundo demais. Portanto, o sul. De volta para aquela réplica de forte nas colinas?

- Certo. Eu quero dez homens, montados e armados. Vão para o sul, espalhem-se por uns oito quilômetros na direção do forte. Cavalguem como o diabo. Cheguem lá antes dele.

Quando os dez vaqueiros estavam montados em seus cavalos, Braddock falou com eles no lado de fora:

- Cada um de vocês tem um rádio. Permaneçam em contato. Se o virem, chamem reforços. Quando o encurralarem, peguem a garota de volta. Se ele tentar ameaçá-la, ou a vocês, façam o que for preciso. Acho que vocês me entenderam. Eu quero a garota de volta, e só ela. Podem ir.

Os dez cavaleiros trotaram até o portão principal e saíram a todo galope. O fugitivo tinha uma vantagem de quarenta minutos, mas estava carregando duas pessoas e alforjes, um rifle e um cobertor de pele de búfalo pesado.

Dentro do rancho o advogado Valentino fez seu relatório.

- O xerife parece bem calmo com a situação. Mas ele vai montar uma busca. Há carros de patrulhas nas estradas e provavelmente um helicóptero.

- Eu não quero que ele alcance o cretino primeiro - rosnou Braddock. -Mas eu quero saber cada informação que ele obtiver. Max, pegue o rádio transmissor. Eu quero uma varredura de banda de cada canal de polícia no condado. Mantenha vigília constante. Ponha o meu helicóptero no ar. Mande o piloto encontrar o filho da puta e guiar os vaqueiros até ele. Um helicóptero não vai ser suficiente. Alugue mais dois no aeroporto. Vá. Agora.

Todos eles estavam errados. O professor, o xerife, Braddock. O batedor não estava seguindo para as Pryors. Ele sabia que era óbvio demais.

A oito quilômetros ao sul do rancho ele parara, pegara um dos seus cobertores de sela e embrulhara Murmúrio do Vento com ele. O cobertor era vermelho vivo, mas ocultava o branco cegante do vestido. Mas Craig nunca ouvira falar de helicópteros. Depois ele reiniciou a fuga, rumando para sudeste, onde, na primavera anterior, ele lembrava haver cruzado uma faixa comprida de pedra negra.

A um quilômetro e meio de distância, divisou uma fileira de postes sustentando cabos entre eles. Eles se estendiam até onde a vista de Craig alcançava. Eram as linhas telefônicas correndo sobre a estrada de ferro Burlington, que seguia paralela à rodovia.

Às três e meia da tarde Jerry ligou para o xerife enquanto mantinha seu helicóptero Sikorsky no ar.

- Paul, eu achei que você tinha dito que era um cavaleiro solitário. Tem um exército inteiro aqui embaixo.

Os perseguidores enviados por Braddock, pensou o xerife.

- O que você está vendo, exatamente, Jerry?

- Estou contando pelo menos oito cavaleiros à frente, galopando para o sul. Pelo jeito deles, são peões. E estão viajando depressa. Também estou vendo outro helicóptero. Está à minha frente, pairando sobre os sopés das colinas, perto daquela réplica de forte.

Lewis xingou em voz baixa. Ele queria estar agora no helicóptero, em vez de trancado num escritório.

- Jerry, se os fugitivos estão adiante, tente chegar até eles primeiro. Se os capangas de Braddock puserem as mãos no garoto, a vida dele não vai valer um tostão furado.

- Tem razão, Paul. Vou ficar de olho.

Na casa do rancho o operador de rádio apareceu na porta.

- Sr. Braddock, o helicóptero do xerife está exatamente em cima da nossa equipe.

- Isso faz dele uma testemunha -disse Max.

- Mande os meus garotos continuarem procurando - rosnou Braddock. - Se tiver algum problema na corte, depois a gente dá um jeitinho.

O xerife Lewis ficou satisfeito por ter permanecido no controle geral em seu escritório quando, às cinco para as cinco, recebeu um chamado. Uma voz excitada gritou:

- Peguei eles!

- Identifique-se, policial.

- Carro Tango Um. Na 310. Ele acaba de cruzar a rodovia, rumando para sudeste. Eu os vi de relance antes de se esconderem atrás das árvores.

- Onde na 310?

- Seis quilômetros a norte de Bridger.

- Confirme que o alvo está agora a oeste da rodovia -ordenou Lewis.

- Afirmativo, xerife.

- Permaneça na rodovia caso ele mude de rumo.

O xerife Lewis estudou seu mapa de parede. Se o cavaleiro mantivesse seu rumo, acabaria se deparando com outra linha de trem e a bem maior interestadual 212, passando direto através das montanhas para o condado de Park, no Wyoming.

Havia dois carros-patrulha cruzando a interestadual. O xerife pediu a eles que se movessem mais para o sul e ficassem atentos para alguém tentando cruzar de oeste para leste. Em seguida ligou para o seu piloto de helicóptero.

- Jerry, ele foi visto. Está a oeste de você. Acaba de cruzar a

 

310 seguindo para sudoeste. Pode ir pra lá? Cerca de seis quilômetros a norte de Bridger. Ele está de volta a campo aberto.

- Certo, Paul, mas eu vou ficar sem combustível logo, e o dia está escurecendo depressa.

O xerife olhou novamente para a pequena comunidade de Bridger.

- Eles têm um campo de pouso em Bridger. Vá até o limite do seu combustível e então pouse. Você pode precisar passar a noite lá. Eu avisarei a Janey.

Na casa de rancho, a conversa inteira tinha sido ouvida. Max estudou o mapa.

- Ele não está indo para as Pryors. É óbvio demais. Está indo para floresta e para a cordilheira Beartooth. Parece que ele planeja cavalgar através da cordilheira até o Wyoming e desaparecer lá. Esperto. É isso que eu faria.

O operador de Braddock disse aos dez cavalheiros que virassem para oeste, cruzassem a rodovia e voltassem a procurar. Eles concordaram em fazer isso, mas alertaram-no de que suas montarias tinham se esforçado tanto durante 25 quilômetros que corriam o risco de ficar exaustas. E a noite estava chegando.

- Vamos mandar uns dois carros cheios de homens pela interestadual - disse Max. -Se quiser chegar a floresta, ele terá de atravessá-la.

Dois grandes veículos off-road foram despachados com mais oito homens neles.

Aproximando-se da interestadual, Ben Craig desmontou, escalou uma árvore num pequeno outeiro e estudou a barreira. Ela havia sido erguida sobre a planície, e uma estrada de ferro, outro ramo da linha Burlington, corria ao seu lado. Ocasionalmente um veículo passava, seguindo para norte ou sul. O terreno à volta de Craig era desértico e cheio de córregos, rochas e grama de pradaria não pastada, que podia subir até a altura da barriga de um cavalo. Ele abriu o seu alforje e pegou seu pacote de pedaços de aço e pedras-de-fogo.

Uma brisa suave soprava do leste, e quando o fogo pegou, espalhou-se, cobrindo uma extensão de mil e quinhentos metros, em direção à estrada. Colunas de fumaça subiram para o céu escuro. A brisa conduziu a fumaça para oeste mais depressa do que o fogo que avançava, e a estrada desapareceu.

O carro-patrulha a oito quilômetros ao norte viu a fumaça e rumou para o sul, para investigar. Quando a fumaça engrossou e escureceu, os patrulheiros pararam, com mil metros de atraso. Segundos depois estavam envolvidos pela nuvem de fumaça. Não havia nada a fazer além de recuar.

O trailer que seguia para o sul, rumo ao Wyoming, tentou realmente evitar as luzes de freio quando o motorista as viu. Os freios funcionaram perfeitamente e o carro parou. Mas o trailer que ele rebocava não teve a mesma sorte.

Trailler muito adaptáveis, até que eles se dobram. O trailer não viu o carro que o rebocava e ambos tombaram e deslizaram pela pista, parando transversalmente à estrada. Agora a pista estava bloqueada em ambas as direções. Considerando as escarpas nos dois lados, não era possível contornar o bloqueio.

Os patrulheiros conseguiram fazer uma chamada de rádio antes de desistir de seus veículos e se juntarem aos caminhoneiros mais adiante na estrada, fora da nuvem de fumaça.

A mensagem foi suficiente. Cinco caminhões e guinchos correram para o sul para atender à emergência. Levou a noite inteira, mas quando o dia raiou eles tinham a estrada aberta novamente. Mensagens enviadas para Wyoming interromperam todo o tráfego ao sul das montanhas. Apenas aqueles que já estavam na estrada ficaram retidos.

Em meio à confusão, invisível na fumaça, um único cavaleiro trotava através da rodovia para o campo selvagem a oeste. O homem tinha um lenço no rosto e a moça em sua garupa estava protegida por um cobertor.

A oeste da rodovia o cavaleiro desmontou. Os músculos sob a pelugem reluzente de Rosebud tremiam de exaustão, e eles ainda tinham 16 quilômetros para cobrir. Murmúrio do Vento inclinou-se para a frente e permaneceu sobre a sela, mas ela possuía metade do peso de seu amado.

Ela baixou o cobertor de seus ombros; seu vestido branco se destacou na escuridão, enquanto, libertos, os cabelos da jovem fluíam para sua cintura.

- Ben, para onde estamos indo?

A guisa de resposta, Craig apontou para o sul. Aos últimos raios do sol poente os picos da cordilheira Beartooth subiam como chamas acima da linha da floresta, sentinelas de uma vida melhor.

- Através das montanhas, para o Wyoming. Ninguém irá nos achar lá. Eu vou construir uma cabana e caçarei e pescarei para você. Ali viveremos felizes para sempre.

Então ela sorriu, porque o amava muito, e acreditava em sua promessa, e estava feliz novamente.

O piloto pessoal de Braddock não tivera escolha senão voltar. Seu combustível estava no fim e o terreno lá embaixo estava escuro demais para ele discernir os detalhes. Ele pousou no rancho com o restante de sua reserva.

Em suas montarias exaustas, os dez cavaleiros entraram na pequena comunidade de Bridger e procuraram um lugar onde dormir. Comeram num restaurante e fizeram suas camas com seus próprios cobertores de sela.

Jerry pousou o helicóptero do xerife no campo de pouso de Bridger, onde o gerente lhe ofereceu uma cama para dormir.

No rancho, foi o ex-boina-verde quem assumiu o planejamento. Dez dos homens do exército pessoal estavam isolados em Bridger com cavalos exaustos; mais outros estavam presos em seus veículos do outro lado do bloqueio na interestadual. Os dois grupos passariam a noite inteira em suas posições. Max olhou para Bill Braddock e os 12 remanescentes. Ele estava em seu ambiente, planejando uma campanha, exatamente como fizera no Vietnã. Um mapa grande do campo adornava a parede.

- Plano Um - disse ele. -Cortar a passagem... literalmente. Bem aqui há uma fenda profunda ou um desfiladeiro correndo através da cordilheira até o Wyoming. É chamada de córrego Rock. Ao lado dele corre a rodovia, coleando até emergir no lado sul.

”Ele pode tentar cavalgar ao longo do mato que beira a rodovia, e assim evitar o campo alto de cada lado. Assim que o bloqueio na interestadual estiver desobstruído, nossos garotos precisarão correr até aqui, tomando tudo que estiver em seu caminho, e bloquear a estrada na linha estadual. Se ele aparecer, eles saberão o que fazer.”

- Concordo - resmungou Braddock. -E se ele tentar cavalgar durante a noite?

- Ele não pode, senhor. O cavalo dele não deve estar agüentando mais as pernas. Acho que ele atravessou a estrada porque está seguindo para a floresta, e de lá para as montanhas. Como vocês podem ver aqui, ele precisa penetrar toda a região da Floresta Nacional Custer, subir sempre, atravessar o desfiladeiro chamado West Fork e depois subir ainda mais para surgir no platô, o Silver Run. Então entra em ação o Plano Dois.

”Usaremos os dois helicópteros alugados para sobrevoá-lo e pegar os dez homens em Bridger durante o caminho. Esses homens serão dispostos numa linha de fogo ao longo deste platô. Quando surgir da floresta para a rocha, ele será um alvo fácil para os homens acocorados e protegidos atrás de pedras.”

- Providencie isso - disse Braddock. -O que mais?

- Plano Três, senhor. Ao amanhecer, o resto de nós entra na floresta atrás dele e o empurra platô acima até o topo. Qualquer que seja a direção que ele siga, nós iremos caçá-lo como um coelho.

- E se ele fugir de nós para a floresta? Max sorriu de prazer.

- Senhor, eu sou um guerreiro treinado para o combate na selva. Eu tenho como recrutar mais três homens com quem estive no Vietnã. Quero levá-los conosco. Se ele tentar levantar uma resistência na floresta, será meu.

- Como levaremos os cavalos até lá embaixo com a estrada bloqueada? -perguntou um dos outros.

Os dedos de Max tracejaram uma linha fina no mapa.

- Aqui está uma pequena estrada secundária. Começa na rodovia Billings, a 24 quilômetros de onde estamos, atravessa o deserto e termina aqui em Red Lodge, bem na entrada do desfiladeiro do córrego Rock. Nós iremos levá-los em trailers durante a noite, e quando amanhecer montaremos e seguiremos o cretino. Agora eu sugiro dormirmos durante quatro horas e acordarmos à meia-noite.

Braddock fez que sim com a cabeça.

- Mais uma coisinha, major. Eu vou com você, e Kevin também. Nós dois queremos ver o fim do homem que me humilhou hoje.

 

O xerife Lewis também tinha um mapa, e chegou a conclusões semelhantes. Ele pediu cooperação à cidade de Red Lodge, que lhe prometeu entregar-lhe 12 montarias, descansadas e seladas, ao amanhecer. A mesma hora Jerry iria reabastecer e estaria preparado para decolar.

O xerife checou com o serviço de emergência que trabalhava na interestadual e eles lhe disseram que ele teria uma estrada limpa por volta das quatro da manhã. Ele pediu que os seus dois carros recebessem permissão de passar primeiro. Ele poderia estar em Red Lodge por volta das quatro e meia.

Não teve nenhum problema em encontrar voluntários, mesmo sendo domingo. Policiar um condado de pessoas pacíficas podia ser uma sucessão de dias monótonos, mas uma autêntica caçada humana fazia a adrenalina de todo mundo correr. Fora Jerry, que estava no ar, ele contaria com um piloto civil que possuía um avião de reconhecimento, além de dez homens que participariam com ele da perseguição por solo. Isso seria suficiente para caçar um único cavaleiro. O xerife fitou longamente o mapa.

- Por favor, garoto, não entre na floresta - murmurou. -Seria um inferno encontrar você lá.

E enquanto o xerife estava falando, Ben Craig e Murmúrio do Vento entraram na linha da floresta e desapareceram entre as árvores. Estava escuro como breu debaixo das copas dos pinheiros. Depois de avançar oitocentos metros, Craig montou acampamento. Ele aliviou a exausta Rosebud de sua sela, a garota, o rifle e os cobertores. Entre as árvores, Rosebud encontrou um córrego de água fresca e folhas de pinheiro suculentas. Ela começou a descansar e se recuperar.

O batedor não acendeu uma fogueira, mas Murmúrio do Vento não precisava de nenhuma. Ela se enrodilhou no manto de búfalo e adormeceu. Craig pegou seu machado e saiu pelo mato. Ficou fora durante seis horas. Ele sabia que em algum lugar adiante ficava o córrego onde, muito tempo atrás, ele havia despistado a cavalaria e os cheyennes. Queria cruzá-lo e alcançar a margem mais distante antes que seus perseguidores obtivessem alcance de tiro.

Rosebud estava mais descansada, se não recuperada completamente da maratona do dia anterior. Ele a puxou pelo arreio. Apesar de haver descansado, a égua estava perdendo suas forças, e eles ainda tinham muitos quilômetros à sua frente para alcançar a segurança dos picos.

Ele marchou durante uma hora, calculando sua direção a partir das estrelas que reluziam através das copas das árvores. Bem longe ao leste, acima das sagradas Colinas Negras de Dakota, o sol ruborizava o céu. Ele chegou ao primeiro desfiladeiro em seu caminho, a garganta West Fork.

Ele sabia que estivera ali antes. Havia um caminho até o outro lado, se ele conseguisse encontrá-lo de novo. Isso consumiu uma hora. Rosebud bebeu água fria e em seguida eles subiram cuidadosamente a ribanceira até o terreno elevado.

Craig permitiu que Rosebud descansasse mais um pouco e encontrou um lugar oculto onde ele poderia vigiar o córrego lá embaixo. Queria ver quantos homens estavam vindo atrás dele. Eles estariam em cavalos descansados, com toda certeza, mas alguma coisa era diferente. Esses perseguidores tinham estranhas caixas de metal que voavam no céu como águias sob asas giratórias, e rugiam como um búfalo furioso. Ele vira essas caixas voadoras sobre o deserto no dia anterior.

 

Cumprindo sua promessa, os serviços de emergência liberaram a interestadual para o tráfego logo depois das quatro da manhã.

Orientados por um oficial da patrulha rodoviária, os dois carros do xerife Lewis ziguezaguearam através do emaranhado de veículos imobilizados até a frente da fila, e partiram para Red Lodge,

 

24 quilômetros ao sul.

Oito minutos depois eles foram ultrapassados por dois grandes veículos off-road, viajando a uma velocidade perigosa.

- Devemos ir atrás deles? -perguntou o motorista da polícia.

- Deixe eles seguirem - respondeu o xerife.

Os off-roads rugiram através da cidade ainda semi-adormecida de Red Lodge e entraram no desfiladeiro onde a interestadual margeava o córrego Rock.

A passagem ficou mais estreita e as ladeiras mais verticais, com uma queda de quinhentos metros até o córrego no lado direito e a encosta das montanhas arbóreas à esquerda. As curvas ficaram mais estreitas e fechadas.

O veículo líder contornou a quinta curva muito rápido e viu tarde demais o pinheiro que acabara de cair na estrada. O corpo do off-road foi para o lado sul, mas as quatro rodas permaneceram ao norte. Havia cinco homens no caminhão e eles tinham dez pernas ao todo. Quatro se quebraram, às quais podiam-se somar três braços, duas clavículas e uma pelve deslocada.

O motorista do segundo veículo tinha uma escolha clara: dobrar à direita e cair no córrego ou dobrar à esquerda e se chocar com a encosta da montanha. Ele virou à esquerda. A montanha venceu.

Dez minutos depois o homem menos ferido estava cambaleando de volta pela estrada para buscar ajuda quando o primeiro trailer dobrou uma curva. Os freios ainda funcionavam perfeitamente. Ele parou a tempo, mas o reboque se projetou para a frente e o veículo se dobrou. Então o trailer, como que em protesto contra essas indignidades, rolou silenciosamente para o seu lado.

O xerife Lewis e seu grupo de sete policiais tinham chegado a Red Lodge para serem recebidos pelo policial local com uma fileira de cavalos emprestados. Ali também estavam dois guardas-florestais. Um deles estendeu um mapa sobre o capô de um carro e apontou para os relevos na Floresta Nacional Custer.

- A floresta é bifurcada, leste para oeste, por este córrego, a West Fork - disse o guarda-florestal. -Este braço do córrego possui trilhas e campos para visitantes de verão. Atravessem o córrego e vocês estarão numa floresta de verdade. Se o seu homem fez isso, precisaremos entrar para persegui-lo. É um campo que não permite a passagem de veículos, e é por causa disso que temos os cavalos.

- É muito denso lá?

- Muito - disse o guarda-florestal. -E com esse clima quente as árvores ainda estão frondosas. Depois vem a floresta de pinheiros, e depois o platô rochoso que segue até os picos altos. O seu homem pode sobreviver lá em cima?

- Pelo que me contaram, ele nasceu e foi criado na floresta - disse o xerife com um suspiro.

- Não tem problema, nós temos tecnologia moderna -disse o outro guarda-florestal. -Helicópteros, aviões de reconhecimento, walkie-talkies. Nós vamos achar ele para você.

O grupo estava prestes a deixar os carros e seguir em frente quando uma mensagem chegou do escritório do xerife. Vinha do controle aéreo do aeroporto de Billings.

- Tenho dois helicópteros esperando para decolar - disse o homem na torre de controle. Ele e o xerife Lewis se conheciam há anos. Eles pescavam trutas juntos, e isso criava elos fortes.

- Eu teria liberado as aeronaves, mas elas foram alugadas por Bill Braddock. Eles tinham planos de vôo para Bridger. Jerry disse que vocês estão tendo um problema aí. Alguma coisa sobre o casamento no Bar-T? Está nas manchetes dos jornais matutinos.

 

- Retarde eles. Dê-me dez minutos.

- Pode contar com isso. -Para os pilotos dos helicópteros, o controlador disse: - A liberação foi protelada. Temos uma nova aeronave entrando no circuito.

O xerife Lewis recordou que Jerry lhe contara sobre um bando de cavaleiros armados que saíra do rancho e seguira em direção sul para perseguir os fugitivos. Eles logicamente tinham sido pegos pela escuridão e passaram a noite na pradaria aberta ou em Bridger. Mas se eles tinham sido chamados de volta ao rancho, por que não cavalgariam até lá em cavalos alugados? Ele pediu um telefonema para outro amigo, o chefe da administração federal de aviação em Helena. O oficial entrou na linha depois de ser acordado em sua casa.

- É bom que seja importante, Paul. Eu gosto dos meus domingos.

- Estou com um problema com dois fugitivos que decidiram seguir para a floresta de Absaroka. Estou indo pegá-los com um grupo de policiais e dois guardas-florestais. Há alguns cidadãos preocupados aqui por perto que parecem querer transformar isto numa caça à raposa. E a imprensa vai chegar mais tarde. Você pode declarar a floresta uma área restrita para hoje?

- Claro.

- Há dois helicópteros no campo de Billings aguardando permissão para decolar.

- Quem está na torre em Billings?

- Chip Anderson.

- Deixe isso comigo.

Dez minutos depois os helicópteros receberam um chamado da torre.

- Desculpem por isso, a aeronave que estava chegando mudou de rota. Vocês receberam permissão para decolar, sujeitos à área de exclusão da administração federal de aviação.

- Que área de exclusão?

- Toda a floresta de Absaroka até cinco mil pés de altura. Em termos de espaço aéreo e segurança no ar, a palavra da administração federal de aviação é lei. Os pilotos contratados não tinham nenhuma intenção de perder suas licenças. Os motores foram desligados e as hélices lentamente pararam de girar.

Big Bill Braddock e seus dez homens restantes tinham chegado um pouco antes do amanhecer à estrada secundária que ligava o noroeste com Red Lodge. A oito quilômetros da cidade, na beira da floresta, eles desmontaram dos cavalos, seguiram para os trailers, checaram suas armas, montaram e seguiram para as árvores.

Braddock também tinha comunicadores portáteis e estava em contato com a sala de rádio no rancho. Quando o amanhecer iluminou as copas das árvores, foi informado de que tinha dez homens sendo retirados em maças da interestadual no meio do córrego Rock, e mais dez isolados em Bridger sem transporte aéreo para conduzi-los sobre os fugitivos até o platô rochoso. Os planos Um e Dois do major tinham virado fumaça.

- Nós mesmos vamos pegar aquele filho duma puta -rosnou o vaqueiro.

Seu filho, desconfortável em sua sela, tomou um trago da garrafa que trazia presa à cintura. O bando adentrou a floresta numa fileira de quatrocentos metros, perscrutando o solo em busca de marcas de cascos. Depois de trinta minutos, um deles encontrou as pegadas de Rosebud e, juntamente com elas, a pegada do que parecia um mocassim. Usando seu comunicador, chamou os outros para juntar-se a ele. Depois disso eles seguiram em grupo. Um quilômetro e meio atrás, o xerife Lewis e seu grupo o seguiam.

Os olhos aguçados dos guardas-florestais levaram menos tempo para encontrar os rastros, dez minutos.

- Quantos cavalos esse homem tem? -perguntou um dos guardas-florestais.

- Apenas um - respondeu Lewis.

- Há mais de um conjunto de rastros aqui - analisou o guarda-florestal. -Estou contando pelo menos quatro.

- Aquele filho da mãe! -disse o xerife.

Ele usou seu rádio para se comunicar com o escritório e pedir uma transferência para o advogado Valentino em sua casa particular.

- Xerife Lewis, o meu cliente está profundamente preocupado com a segurança desta jovem dama. Ele pode ter montado um grupo de busca. Eu lhe asseguro que ele está inteiramente dentro de seus direitos.

- Advogado, se esses jovens sofrerem um arranhão sequer, se um deles for morto, eu vou procurar primeiro pelo assassino. Pode dizer isso ao seu cliente.

Ele desligou antes de o advogado poder protestar.

- Paul, esse sujeito seqüestrou uma garota e está armado com um rifle - murmurou o guarda-florestal de patente mais alta, Tom Barrow. - Talvez precisemos atirar primeiro e perguntar depois.

- Nós temos uma pilha de testemunhos de que a garota pulou na garupa do cavalo - frisou Lewis. -Eu não quero matar um garoto porque ele quebrou um monte de taças caras.

- E acertou duas pessoas no rosto.

- E provocou um incêndio na pradaria e um bloqueio na interestadual.

- Tudo bem, a lista está ficando um pouquinho longa. Mas ele está lá em cima sozinho com uma garota bonita, um cavalo exausto e um rifle datado de 1852. Ah, sim, e um arco e flechas. Nós temos toda a tecnologia, e ele não tem nenhuma. Vamos guardar um senso de proporção. E continuar seguindo os rastros.

Ben Craig estava deitado invisível no matagal e observou os quatro cavaleiros chegarem ao córrego. A quatro quilômetros de distância, ele conseguiu ver a silhueta alta de Big Bill Braddock e a bem mais baixa de seu filho, que se mexia inquieto na sela para suavizar a dor que sentia no traseiro. Um dos homens ao lado de Braddock não usava roupas de vaqueiro, mas um uniforme de camuflagem, boina e botas de selva.

Eles não precisaram procurar pela trilha que descia pela ladeira escarpada até a água, nem pela trilha pela qual escalar até o outro lado. Precisaram simplesmente seguir os rastros de Rosebud, como Craig sabia que eles fariam. Murmúrio do Vento não podia caminhar com seus sapatos de seda, e Rosebud não tinha como ocultar seus rastros em solo macio.

Ele os observou descerem até a água borbulhante e ali parar para beber e lavar o rosto, aliviados.

Ninguém viu as flechas e ninguém viu de onde elas vieram. Quando esvaziaram os seus rifles nas árvores sobre a ribanceira mais distante, o arqueiro já havia sumido. Pisando macio e sem deixar rastros, ele correu pela floresta até o seu cavalo e a sua garota, e os conduziu para cima, na direção dos picos.

As flechas tinham encontrado seus alvos, entrando em carne macia, penetrando até o osso e soltando as pontas de pedra-defogo. Dois homens estavam caídos, gritando de dor. Max, o veterano do Vietnã, subiu correndo a ribanceira sul, jogou-se no chão e perscrutou o mato onde o atacante desaparecera. Ele não viu nada. Mas se o homem ainda estivesse lá, Max poderia atirar para proteger o grupo no córrego.

Os guarda-costas de Braddock ajudaram os homens feridos a voltar pelo caminho por onde vieram. Os homens gritavam o tempo todo.

- Precisamos tirar eles daqui, patrão - disse um dos guarda-costas. -Eles precisam de um hospital.

- Tudo bem, deixem eles montarem e irem embora - disse Braddock.

- Patrão, eles não podem montar. E não podem caminhar. Não havia outra saída além de cortar galhos e fazer duas liteiras.

Depois que o trabalho estava terminado, mais quatro homens eram necessários para carregar as liteiras. Com seis homens e uma hora perdidos, o grupo de Braddock reuniu-se na ribanceira mais distante, protegidos pela arma do major Max. Os quatro carregadores começaram a descer de volta através da floresta. Eles não sabiam que uma maca índia teria sido muito mais fácil de fazer e economizaria mais força humana.

O xerife ouvira a saraivada de tiros e temeu o pior. Mas nesta densidade de cobertura teria sido tolice galopar adiante e correr o risco de receber uma bala do outro grupo. Eles encontraram os carregadores de maças descendo pela trilha criada pelos vários cavalos.

- Que diabos aconteceu com eles? -perguntou o xerife. Os soldados de Braddock explicaram.

- Ele fugiu?

- Sim. O major Max atravessou o córrego, mas o sujeito já tinha sumido.

Os carregadores de maca continuaram a voltar para a civilização e o grupo do xerife seguiu para o córrego.

- E vocês podem tirar esse sorriso do rosto - disse aos guardas-florestais o xerife, que estava perdendo a paciência com o jovem matuto em algum lugar à sua frente. -Ninguém vai vencer esta luta com arcos e flechas. Pelo amor de Deus, estamos em 1977!

Cada um dos homens feridos que eles tinham acabado de ver estava deitado de bruços em sua liteira com uma flecha de penas no cabo, à moda cheyenne, fincada verticalmente em sua nádega esquerda. O xerife e os seus homens atravessaram o córrego, escorregando, tropeçando, segurando-se aos arreios de seus cavalos, até alcançarem a ribanceira mais distante. Não haveria mais campos de piquenique para turistas aqui em cima. Esta era a paisagem de quando o mundo era jovem.

Mas Jerry estava em seu helicóptero, trezentos metros acima das copas das árvores, perscrutando a floresta até encontrar os grupos de cavaleiros atravessando o córrego. Isto estreitava sua linha de busca. Os fugitivos tinham de estar à frente dos perseguidores, em algum lugar na linha entre a trilha e as montanhas à frente, ou próximo a ela.

Ele estava tendo um problema com parte de sua tecnologia. Devido à densidade da folhagem, ele não podia alcançar o xerife Lewis através de seu walkie-talkie. De sua parte, o xerife poderia ouvir seu piloto gritar, mas não podia entender o que era dito. A estática era alta demais e as palavras chegavam entrecortadas.

O que Jerry estava dizendo era:

- Peguei ele! Estou vendo o sujeito!

Na verdade ele vira um vislumbre de um cavalo solitário, puxado pelo arreio, com a silhueta envolta de uma garota num manto na garupa.

Os fugitivos tinham atravessado uma pequena clareira na floresta quando o helicóptero, cortando o céu inclinado para um lado de modo a conceder ao piloto a melhor visão possível do solo, flagrara-os por um segundo em campo aberto. Mas isso fora por apenas um segundo; então eles estavam novamente sob as árvores.

Ben Craig olhou através das copas das árvores para o monstro rugindo acima dele.

- O homem que está nele vai contar aos caçadores onde você está -disse Murmúrio do Vento.

- Como eles podem ouvir, com todo aquele barulho? -perguntou.

- Acredite em mim, Ben. Eles têm meios.

O batedor acreditou. Ele tirou o velho rifle Sharps de sua bainha e introduziu nele uma bala redonda e porosa. Para obter uma visão melhor, Jerry baixou para seiscentos pés de altura, apenas a 180 metros de Craig. Ele estava pairando, o nariz ligeiramente arriado, procurando por outra pequena clareira que eles pudessem ter cruzado. O homem abaixo dele mirou cuidadosamente e disparou.

A bala pesada varou a porta, passou entre as coxas abertas do piloto e fez um buraco no teto bulboso. Visto do solo, o Sikorsky executou um círculo enlouquecido, depois se afastou e subiu rapidamente. Parou apenas quando estava a um quilômetro e meio para um lado e a um quilômetro de altura.

Jerry estava gritando em seu microfone:

- Paul, o filho da puta acaba de atirar em mim. A bala passou direto pelo teto. Estou indo embora. Preciso voltar para Bridger e checar o dano. Se ele tivesse atingido o eixo da hélice principal, eu estaria morto. Para o inferno com isto. Estou saindo do jogo, está bem?

O xerife não ouviu nada. Ele tinha ouvido o ribombar distante do velho rifle e visto o helicóptero fazendo uma performance de bale contra o céu azul; ele o vira seguir para o horizonte.

- Nós temos a tecnologia - murmurou um dos guardasflorestais.

- Chega! -exclamou Lewis. -Esse garoto vai ver o sol nascer quadrado durante anos. Vamos continuar avançando, rifles preparados, olhos e ouvidos alertas. Temos uma verdadeira caçada humana em andamento.

Outro caçador ouvira o tiro de rifle, e estava muito mais próximo, cerca de oitocentos metros. Max oferecera-se para agir como batedor para o grupo principal.

- Ele está a pé, puxando um cavalo, senhor, o que significa que eu posso me mover mais depressa. Ele não ouvirá a minha aproximação. Se eu obtiver uma mira limpa, posso abatê-lo sem colocar a garota em risco.

Braddock concordou. Max avançou, correndo furtivamente de um obstáculo para outro, olhando para a frente e para cada lado, cobrindo as moitas em busca do mais leve movimento. Quando escutou o tiro de rifle, obteve uma linha clara para seguir, cerca de

 

800 metros à frente e ligeiramente para a direita de sua trilha. Ele começou a se aproximar.

Lá na frente, Ben Craig embainhara seu rifle e retomara sua marcha. Tinha apenas mais oitocentos metros para seguir antes de a floresta dar lugar a um terreno rochoso conhecido como Silver Run. Acima das árvores ele pôde ver as montanhas descerem lentamente. Ele sabia que havia retardado os seus perseguidores sem tê-los feito recuar. Eles ainda estavam lá, ainda o seguiam.

Ele ouviu um canto de pássaro no alto das árvores atrás dele. Conhecia o pássaro e conhecia o canto, um toc-toc-toc repetido que diminuiu enquanto o pássaro se afastava. Outro respondeu, o mesmo canto. Era o seu canto de aviso. Ele deixou Rosebud pastando, moveu-se seis metros para fora da trilha deixada pelos cascos e trotou de volta através dos pinheiros.

Max correu de uma cobertura para a outra, seguindo as marcas de cascos, até chegar à clareira; com seu uniforme de camuflagem e rosto coberto por listras negras, ele estava invisível em meio à sombra das árvores. Estudou a clareira e sorriu quando viu o brilho do cartucho de bronze no meio dela. Que truque bobo. Ele sabia que não devia correr para examiná-lo e levar uma bala do atirador oculto. Ele sabia que o homem devia estar ali. A isca óbvia provava isso. Centímetro a centímetro, ele estudou a folhagem no outro lado.

Então ele viu o galho se mover. Era um arbusto, um arbusto grande e denso do outro lado da clareira. A brisa gentil movia a folhagem, mas sempre da mesma forma. Este galho tinha se movido na direção oposta. Olhando para o arbusto, ele divisou um leve borrão castanho um metro e meio acima do solo. Lembrou que no dia anterior vira o chapéu de pele de raposa na cabeça do cavaleiro.

Ele estava carregando sua arma favorita, a carabina M-16: cano curto, leve e extremamente confiável. Com seu dedão direito, deslizou silenciosamente a chave que colocava a arma em modo ”automático” e disparou. Despejou metade de um pente de balas no arbusto; o borrão castanho desapareceu, e então reapareceu no chão onde caíra. Só que assim o esconderijo de Max tinha sido revelado.

Os cheyennes jamais usavam clavas de pedra. Preferiam machados, com os quais podiam golpear para o lado e para baixo a partir do lombo de um cavalo, ou arremessar com precisão e velocidade.

O machado acertou o major no bíceps direito, rasgando o músculo e partindo o osso. A carabina caiu de uma mão nervosa. Ele olhou para baixo, rosto pálido, e puxou o machado de seu próprio membro e, quando o sangue vermelho e brilhante jorrou no ar, tampou o ferimento com a mão esquerda para estancar o sangramento. Em seguida virou-se e correu de volta pela trilha pela qual viera.

O batedor soltou de sua mão esquerda a corda de quinze metros de comprimento com a qual balançara o arbusto, recuperou seu machado e seu chapéu e correu para encontrar sua montaria.

Braddock, seu filho e os três homens remanescentes encontraram o major encostado contra uma árvore, arfando.

O xerife Lewis e seu grupo tinham ouvido a saraivada de tiros de carabina, a segunda naquele dia, mas com um som completamente diferente do rifle de um tiro só, e correram até o local. O guarda florestal de patente mais alta olhou para o braço rasgado, disse ”torniquete” e abriu sua bolsa de primeiros socorros.

Enquanto o guarda-florestal cuidava da carne rasgada e do osso partido do braço do major, o xerife Lewis ouviu Braddock contar-lhe o que acontecera. Ele fitou com desprezo o rancheiro.

- Eu devia prender todos vocês - disse o xerife. -E eu o faria, se não estivéssemos muito afastados da civilização. A partir de agora, quero você fora disto, Sr. Braddock. E quero que continue fora.

- Eu vou até o fim! -gritou Braddock. -Aquele selvagem roubou a garota do meu filho e feriu gravemente três dos meus homens...

- Que nem deviam estar aqui. Eu vou levar esse garoto para responder à lei, mas não pretendo ser responsável por nenhuma baixa fatal. Portanto, eu quero as suas armas. E quero agora.

Vários rifles foram apontados para Braddock e seus homens. Outros policiais coletaram os rifles e revólveres. O xerife virou-se para o guarda-florestal que fizera tudo que podia pelo braço do major.

- O que você recomenda?

- Evacuação rápida -disse o guarda-florestal. -Ele poderia cavalgar de volta com uma escolta até Red Lodge, mas isso fica a uns bons trinta quilômetros, com West Fork no meio. Um percurso difícil, talvez ele não resista até lá.

- Mais à frente fica o platô Silver Run. Os rádios deverão funcionar lá. Nós chamaríamos um helicóptero.

- É a melhor opção - disse o guarda-florestal. -Se o braço dele não for operado imediatamente, ele o perderá.

Eles continuaram cavalgando. Na clareira encontraram a carabina descartada e o cartucho. O guarda-florestal estudou-o.

- Flechas de pedra-de-fogo, uma machadinha voadora, uma espingarda de caçar búfalos. Afinal de contas, xerife, quem é esse cara?

- Eu achei que soubesse - respondeu Lewis. - Agora não tenho certeza.

- Bem, ele certamente não é um ator desempregado - disse o guarda-florestal.

Ben Craig estava parado na beira da floresta, olhando para a frente na direção da extensão plana de rocha reluzente. Oito quilômetros até o último córrego, oculto; mais três através do platô Hellroaring e um último quilômetro e meio subindo a face da montanha. Ele acariciou a cabeça de Rosebud e seu focinho suave como o veludo.

- Só mais um pouco antes de o sol se pôr - disse a ela. -Mais uma cavalgada e estaremos livres.

Ele montou e fez a égua trotar sobre a rocha. Dez minutos depois seus perseguidores alcançaram o platô. Ele era um pontinho na face rochosa a um quilômetro e meio de distância.

Livres das árvores, os rádios voltaram a funcionar. O xerife Lewis contatou Jerry e foi informado sobre o que acontecera com o pequeno Sikorsky. Jerry estava de volta ao Campo Billings e conseguira emprestado um Bell Jetranger, um helicóptero maior.

- Venha para cá, Jerry. Não se preocupe com o atirador. Ele está a um quilômetro e meio à frente, e não tem alcance para disparar. Precisamos fazer uma evacuação de emergência. E sabe aquele civil voluntário que tem aquele avião Piper Club? Diga a ele que preciso dele e preciso agora. Eu quero ele sobre o platô Silver Run, a pelo menos cinco mil pés de altura. Diga a ele para procurar um cavaleiro solitário cavalgando para as montanhas.

Passara das três e o sol movia-se para oeste na direção dos picos. Quando ele se pôs atrás das montanhas Spirit e Beartooth, a escuridão desceu rápido.

Jerry e o helicóptero Bell chegaram lá primeiro e pousaram na rocha plana. O major foi ajudado a subir a bordo e um policial embarcou com ele. O piloto policial decolou, enviando uma mensagem de rádio para o memorial Billings, pedindo um pouso no estacionamento e a presença de uma equipe de primeiros socorros e cirurgia.

Os cavaleiros restantes cruzaram o platô.

- Há um córrego escondido que ele provavelmente não conhece - disse o guarda-florestal de patente mais alta, cavalgando ao lado do xerife. -O nome é lago Fork. Profundo, estreito, de barranco escarpado. Só existe um caminho para descer até lá e subir para o outro lado que poderia ser percorrido por um cavalo. Ele vai levar séculos para encontrá-lo. Nós podemos fechar o cerco e pegá-lo lá.

- E se ele estiver esperando nas árvores, com aquele rifle apontado para nós? Eu não quero perder um ou dois de vocês para provar um ponto de vista.

- E então, o que faremos?

- Ficaremos relaxados - disse Lewis. - Ele não tem como sair das montanhas, nem mesmo descer para o Wyoming, não com vigilância aérea.

- A não ser que ele marche durante a noite.

- Ele tem um cavalo exausto e uma garota com sapatos de seda branca. Seu tempo está acabando e ele sabe disso. Tudo que precisamos fazer é mantê-lo a cerca de um quilômetro e meio em nossa linha de visão e esperar pelo avião de reconhecimento.

Eles continuaram cavalgando sem perder de vista a figurinha distante. O avião de reconhecimento, de modelo Piper Cliib, chegou um pouco antes das quatro da tarde. O jovem piloto fora chamado em Billings, onde trabalhava numa loja de camping. As copas das árvores que cobriam as ribanceiras escarpadas do lago Fork apareceram em seu campo de visão.

A voz do piloto saiu estalando do rádio do xerife:

- O que você quer saber?

- Há um cavaleiro solitário à nossa frente, com uma garota envolta num cobertor montada na garupa. Pode vê-lo?

O avião aproximou-se do córrego.

- Claro que posso. Há um córrego estreito lá embaixo. Ele está entrando nas árvores.

- Permaneça afastado. Ele tem um rifle e é um tremendo atirador.

Eles viram o Piper Club subir e sobrevoar o córrego três quilômetros à frente.

- Certo. Mas eu ainda posso vê-lo. Ele desmontou do cavalo e está descendo para o córrego.

- Ele jamais chegará ao outro lado - sussurrou o guarda-florestal. - Nós podemos nos aproximar agora.

Eles fizeram os cavalos andarem mais rápido, com Braddock, seguido por seu filho e seu três atiradores restantes, mas de coldres vazios.

- Continue fora de alcance - alertou novamente o xerife. -Ele ainda pode disparar através das árvores caso você se aproxime demais. Ele fez isso com o Jerry.

- Jerry estava pairando a seiscentos pés - disse o piloto. - Estou voando a cento e vinte nós por hora e a três mil pés. A-propósito, parece que ele encontrou um caminho para o alto. Está escalando para o platô Hellroaring.

O xerife olhou para o guarda-florestal, que deu um risinho.

- Parece até que ele já esteve aqui antes - disse o guarda-florestal, que parecia achar aquilo divertido.

- Talvez ele tenha - disse Lewis.

- Impossível. Nós sabemos quem anda aqui em cima.

O grupo de perseguição alcançou a orla do desfiladeiro, mas a tela de pinheiros bloqueava a visão do homem exausto tocando seu cavalo e seu fardo até o outro lado.

O guarda-florestal conhecia a única trilha que descia até o córrego, mas as marcas de cascos de Rosebud mostravam que sua presa também sabia. Quando eles surgiram no segundo platô, os fugitivos eram novamente um pontinho ao longe.

- Está ficando mais escuro e o combustível está baixo - disse o piloto. - Preciso ir.

- Mais um último círculo - pediu o xerife. - Onde ele está agora?

- Ele chegou à montanha. Está subindo de novo. Escalando a encosta norte. Mas parece que o cavalo está perdendo as forças. Ele está cambaleando pela trilha. Acho que vocês irão pegá-lo até o alvorecer. Boa caçada, xerife.

O Piper subiu para o céu escuro e retornou para Billings.

- Prosseguimos, chefe? - perguntou um dos policiais.

O xerife Lewis balançou a cabeça negativamente. O ar estava rarefeito, todos eles estavam arfantes, a noite caía depressa.

- Não na escuridão. Acamparemos aqui até o amanhecer.

Eles montaram um acampamento na última das árvores sobre o córrego, defronte para as montanhas ao sul. A luz das estrelas, apenas as montanhas ainda podiam sei vistas, o o que fez todos eles terem a impressão de flutuar à sua fienie.

Pegaram jaquetas grossas de couro de carneiro e as vestiam. Montículos de galhos mortos foram encontrados sob as árvores, e estes logo estavam ardendo brilhantes e e quentes. Por sugestão do xerife, Braddock, seu filho e seus três últimos homens montaram acampamento a cem metros deles.

Eles jamais haviam pretendido passar a noite num ponto tão alto no platô. Não tinham levado cobertores nem alimentos, ficaram sentados nos cobertores dos cavalos em torno do fogo, encostados em suas selas, e jantaram barras de chocolate. O xerife Lewis fitou as chamas.

- O que você vai fazer amanhã, Paul? -indagou Tom Burrow.

- Vou seguir sozinho até a montanha. Sem armas. Vou adejar uma bandeira de trégua e gritar pelo fugitivo. Vou tentar convencê-lo a descer daquela montaria, com a garota.

- Isso pode ser perigoso. Ele deve estar assustado e pode tentar matar você - disse o guarda-florestal.

- Ele poderia ter matado três homens hoje - teorizou o xerife. -Ele poderia, mas não o fez. Ele precisa compreender que não pode proteger a garota lá em cima num cerco. Acredito que ele não deve atirar em um policial segurando uma bandeira branca. Primeiro ele vai me ouvir. Vale a pena tentar.

 

Uma escuridão fria abraçou a montanha. Empurrando, puxando, ordenando e implorando, Ben Craig conduziu Rosebud pelos últimos metros até o alto e pela mesa de rocha plana diante da caverna. A égua parou trêmula, olhos anuviados, enquanto seu mestre descia a garota de seu lombo.

Craig gesticulou para que Murmúrio do Vento caminhasse até a velha caverna de urso, desamarrou o manto de búfalo e o deitou no chão para ela. Ele despiu seu alforje com as últimas duas flechas, tirou o arco de suas costas e colocou-as juntas no chão. Colocou a bainha do rifle e o deitou ao lado do arco. Finalmente, afrouxou o cinto e removeu a sela e suas duas bolsas.

Aliviada de seus fardos, a égua marrom deu alguns passos na direção das árvores e das folhas caídas debaixo delas. Suas pernas traseiras cederam e ela se sentou sobre a sua anca. Então as pernas da frente se dobraram e a égua rolou de lado.

Craig ajoelhou ao lado da cabeça de Rosebud, colocou-a em seu colo e acarinhou seu focinho. Ela gemeu baixinho ao seu toque e seu coração corajoso parou de bater.

O rapaz também estava exausto. Não dormia havia dois dias e duas noites, mal comera, e cavalgara e marchara quase 160 quilometros.

Ainda havia coisas a fazer, e ele precisava manter-se acordado por mais tempo.

Na beira da mesa de pedra, Craig olhou para baixo e avistou, ao longe e ao norte, as fogueiras dos acampamentos gêmeos de seus perseguidores. Ele cortou galhos e rebentos onde o velho índio havia se sentado e fez uma fogueira. As chamas iluminaram a mesa de pedra e a caverna, e a figura vestida em branco da única mulher que ele havia amado ou viria a amar.

Ele abriu os alforjes e preparou um pouco da comida que trouxera do forte. Eles se sentaram lado a lado no tapete e desfrutaram a única refeição que tinham feito juntos ou que viriam a fazer.

Ele sabia que com sua égua morta a caçada estava quase acabada. Mas o velho xamã índio profetizara que esta garota iria ser a sua esposa, e que isso lhe fora dito pelo Grande Espírito.

Lá embaixo na planície a conversa entre os homens exaustos diminuiu até morrer. Estavam sentados em silêncio, rostos iluminados pelas chamas bruxuleantes, fitando o fogo.

No ar rarefeito dos picos altos o silêncio era absoluto. Um leve zéfiro desceu das montanhas mas não perturbou o silêncio. Então houve um som.

Chegou a eles através da noite, trazido pelo vento que descia da montanha. Foi um grito, longo e claro, a voz de uma mulher jovem.

Não foi um grito de dor ou angústia, mas o som trêmulo e ofegante que se eleva de uma mulher tomada por um êxtase que desafia a descrição ou a repetição.

Os policiais entreolharam-se e abaixaram as cabeças para os peitos, lutando para conter o riso, mas o xerife viu os seus ombros subindo e descendo.

A cem metros dali, Bill Braddock se levantou da beira de sua fogueira enquanto seus homens tentavam não olhar para ele. Braddock fitou a montanha e seu rosto era uma máscara de ódio.

 

À meia-noite a temperatura começou a cair. Inicialmente os homens pensaram que era o frio da noite ficando mais forte devido à altura elevada e à atmosfera rarefeita. Eles tremeram e apertaram mais seus casacos de pele de cordeiro contra o corpo. Mas o frio atravessou suas calças jeans e eles se aproximaram mais do fogo.

A temperatura estava abaixo de zero e ainda caía; os policiais olharam para o céu e viram nuvens espessas começando a cobrir os picos. Lá no alto do monte Rearguard viram um solitário ponto de fogo; e depois ele sumiu de vista.

Esses eram homens de Montana, acostumados a invernos rigorosos, mas estavam nos últimos dias de outubro, e ainda era cedo demais para tanto frio. À uma da manhã, os guardas-florestais estimaram que fazia 20 graus abaixo de zero, e a temperatura continuava a cair. Às duas todos estavam em pé, já tendo desistido de dormir, batendo os pés para manter a circulação, soprando as mãos, jogando mais galhos no fogo, mas em vão. Os primeiros flocos de neve começaram a cair, chiando ao bater nas chamas da fogueira, diluindo o seu calor.

O guarda-florestal de patente mais alta caminhou até o xerife Lewis e disse, dentes batendo:

- Se você me perguntar o que eu acho, direi que devemos retornar para o abrigo da floresta Custer.

- Estará mais quente lá? -perguntou o xerife.

- Deve estar.

- Que diabos está acontecendo aqui?

- Você vai achar que eu estou louco, xerife.

- Arrisque.

A neve engrossou, as estrelas sumiram, um tapete branco movia-se na direção do grupo.

- Este lugar é o ponto de encontro das terras crow e da nação shoshone. Anos atrás guerreiros lutaram e morreram aqui em cima, antes de o homem branco aparecer. Os índios acreditam que seus espíritos ainda caminham nestas montanhas. Eles acreditam que este é um lugar mágico.

- Uma tradição encantadora. Mas o que isso tem a ver com esta mudança abrupta do clima?

- Eu disse que ia parecer loucura. Mas eles dizem que às vezes o Grande Espírito também vem aqui, e trás o Frio do Sono Longo, contra o qual nenhum homem pode resistir. É claro que se trata apenas de um fenômeno climático bizarro, mas eu acho que devemos sair daqui. Se ficarmos, congelaremos antes do nascer do dia.

O xerife Lewis pensou longamente antes de concordar com a cabeça.

- Montem nos cavalos - mandou. - Vamos sair daqui. Vá dizer isso a Braddock e homens dele.

Alguns minutos depois, o guarda-florestal voltou através da tempestade de neve.

- Ele disse que vai recuar para o abrigo do córrego, mas não mais do que isso.

O xerife, os guardas-florestais e os policiais, tremendo de friio, voltaram a atravessar o córrego e cavalgaram de volta através do platô Silver Run até os pinheiros densos da floresta. A temperatura em meio às árvores subiu para zero. Eles fizeram mais fogueiras e sobreviveram.

Às quatro e meia o manto branco na montanha se soltou e desceu sobre a planície, uma onda silenciosa que deslizou como uma parede sobre a rocha, quebrou no córrego estreito e encheuo até a borda. Avançou quase um quilômetro sobre o platô Silver Run até finalmente parar. O céu começou a clarear.

Duas horas depois o xerife Paul Lewis parou diante da beira da floresta e olhou para o sul. As montanhas estavam brancas. O leste estava rosado com a promessa de um dia novo e brilhante e o céu assumira um tom azul-marinho. Mantivera o rádio perto de seu corpo durante a noite inteira para aquecer-se, e isso funcionara.

- Jerry! -gritou pelo rádio. -Precisamos que você desça aqui com o Jetranger, e depressa. Houve uma tempestade de neve e a coisa aqui ficou feia... Não, nós voltamos para a beira da floresta, no local onde você resgatou o mercenário ontem. Você vai encontrar todos nós aqui.

O helicóptero de quatro lugares veio do sol nascente e pousou na rocha fria mas sem neve. Lewis colocou seus dois policiais na parte traseira e embarcou ao lado do piloto.

- Volte para a montanha.

- E quanto ao atirador?

- Eu não acho que ninguém vai atirar agora. Eles terão sorte se estiverem vivos.

O helicóptero refez o percurso que o grupo de perseguição traçara no dia anterior. O córrego do lago Fork estava marcada apenas pelas copas de alguns pinheiros e lariços. Dos cinco homens lá dentro não havia sinal. Voaram na direção da montanha. O xerife estava procurando pelo lugar onde vira um ponto de fogo no céu. O piloto estava nervoso, mantendo-se bem alto e em movimento; não era possível pairar a seiscentos pés.

Lewis foi o primeiro a ver. A marca preta como carvão na face da montanha, a boca de uma caverna, e na frente dela uma mesa de rocha coberta de neve, ampla o bastante para permitir o pouso do Jetranger.

- Desça, Jerry.

O piloto desceu com cuidado, atento para qualquer movimento entre as rochas, um homem fazendo mira, o fulgor do disparo de uma arma munida de pólvora preta antiquada. Nada se mexeu. O helicóptero pousou na mesa de pedra, suas hélices girando rápido, preparadas para uma fuga.

 

O xerife Lewis saltou da porta, revólver preparado. Os policiais desceram armados com rifles, e se deitaram no chão para cobrir a boca da caverna. Nada se moveu.

- Saiam daí! -gritou Lewis. -Mãos para cima. Nenhum mal vai acontecer a vocês.

Não houve resposta. Nada se mexeu. Ele fez um caminho em ziguezague até o lado da boca da caverna. E então espiou o seu interior.

Havia um embrulho no chão, e nada mais. Ainda cauteloso, entrou para investigar. O que aquilo tinha sido, provavelmente uma pele de animal de algum tipo, estava apodrecido pela idade, sem pêlos, com fiapos de couro mantendo-o inteiro. Ele levantou a pele bolorenta.

Ela estava deitada debaixo da pele, em seu vestido branco de casamento, uma cascata de cabelos negros enregelados caída sobre seus ombros, como se adormecida em sua cama nupcial. Mas quando ele a tocou, viu que estava fria como mármore.

Enfiando sua arma no coldre, sem se preocupar com a possibilidade de um atirador à espreita, o policial tomou-a nos braços e correu para fora.

- Tirem os seus casacos e me ajudem a embrulhá-la! -gritou para os seus homens. -Ponham-na atrás do helicóptero e mantenham-na aquecida com os seus próprios corpos!

Os policiais despiram seus casacos quentes e cobriram o corpo da garota. Um deles pulou para o assento traseiro com a garota nos braços e se pôs a esfregar suas mãos e pés. O xerife empurrou o outro homem para o banco frontal sobressalente e gritou para Jerry:

- Leve-a para a clínica em Red Lodge. Rápido. Avise a eles que vocês estão chegando com uma vítima de hipotermia já quase morta. Mantenha o aquecedor da cabine ligado ao máximo o tempo todo. Ela pode ter uma chance remota. Então voltem para me pegar.

Ele observou o helicóptero Jetranger decolar do platô rochoso e rumar para o horizonte. Em seguida explorou a caverna e a mesa de pedra à sua frente. Quando terminou, encontrou uma pedra, sentou-se e olhou para o norte, admirando uma vista quase inacreditável.

 

Na clínica em Red Lodge um médico e uma enfermeira começaram a trabalhar na garota, despindo o vestido de noiva enregelado, esfregando suas mãos, pés, braços, pernas e caixa torácica. Sua temperatura superficial estava abaixo do nível de congelamento e sua temperatura interna estava na zona de perigo.

Depois de vinte minutos o médico ouviu uma leve batida lá no fundo, um coração jovem lutando para viver. Duas vezes o coração parou; duas vezes ele bateu no tórax até voltar a funcionar. A temperatura do corpo começou a subir.

Uma vez ela parou de respirar e o médico soprou em sua boca para fazer seus pulmões voltarem a funcionar. A temperatura na sala era a de uma sauna, e o cobertor elétrico que envolvia os membros inferiores da jovem estavam ligados no máximo.

Depois de uma hora uma pálpebra tremeu e a cor azul começou a abandonar os lábios. A enfermeira checou a temperatura interna: estava acima do nível de perigo e subindo. O batimento cardíaco ficou mais firme e forte.

Em meia hora Murmúrio do Vento abriu os grandes olhos negros e seus lábios sussurraram:

- Ben?

O médico ofereceu uma oração curta de agradecimento ao velho Hipócrates e a todos os outros que tinham vindo antes dele.

- É Luke, mas isso não importa. Pensei que tínhamos perdido você, garota.

Em sua pedra, o xerife observou o Jetranger retornando para pegá-lo. Ele podia ver a quilômetros de distância no ar parado e ouviu o rosnado raivoso das hélices rasgando a atmosfera. Era muito pacífico ali na montanha. Quando Jerry pousou, o xerife Lewis sorriu para o único policial no banco da frente.

- Traga dois cobertores e venha aqui! -gritou quando as hélices tinham diminuído de velocidade. Quando o policial se juntou a ele, o xerife apontou e disse: -Ponha ele no cobertor.

- Mas, xerife...

- Não reclame; faça. Ele já foi um homem. Merece um funeral cristão.

O esqueleto do cavalo estava deitado de lado. Cada resto de pele, carne, músculo e cartilagem há muito fora limpo. Os pêlos da cauda e da crina tinham sumido, provavelmente usados como material para ninhos. Mas os dentes, nivelados pela folhagem dura das planícies, ainda estavam na mandíbula. O arreio era quase poeira, mas a peça de metal brilhava entre os dentes.

Os cascos marrons estavam intactos e neles as quatro ferraduras pregadas há muito tempo por algum ferreiro de cavalaria.

O esqueleto do homem estava a alguns metros dali, deitado de costas, como se tivesse morrido enquanto dormia. De suas roupas não restava quase nada, apenas restos de couro de cervo colados às suas costelas. Esticando um cobertor, o policial começou a colocar os ossos sobre ele, até o último. O xerife retornou para aquelas coisas que o cavaleiro possuíra um dia.

O vento e o clima de incontáveis estações tinham reduzido a sela e o arreio a uma pilha de couro podre, e também os alforjes. Mas no meio da confusão reluziam os invólucros de um punhado de cartuchos de cobre. O xerife Lewis pegou-os.

Havia uma faca de caçador, escurecida pela ferrugem, em meio aos restos de um estojo de couro que esfarelou ao toque. A bainha de couro de carneiro de um rifle de fronteira tinha sido reduzida a frangalhos pelos pássaros, mas a arma de fogo jazia na neve, coberta pela ferrugem dos anos, mas ainda um rifle.

O que o deixou perplexo foram as duas flechas em seu alforje, a vara de cerejeira curvada por um barbante e o machado. Essas coisas pareciam quase novas. Havia também uma fivela de cinto, ainda preso a uma tira de couro velho e resistente que sobrevivera aos elementos.

O xerife pegou todas essas coisas, colocou-as no segundo cobertor, olhou ao redor pela última vez para ver se faltava alguma coisa, e subiu a bordo do helicóptero. O policial estava no banco de trás com o outro embrulho.

Pela última vez o Jetranger subiu ao céu, sobrevoou os dois platôs e, sob o sol matutino, rumou para a massa verde da Floresta Nacional.

O xerife Lewis olhou para o lago Fork, coberto de neve. Haveria uma expedição para resgatar os cadáveres, mas ele sabia que ninguém sobrevivera. Ele olhou para a rocha e para as árvores e meditou sobre o rapaz que perseguira através desta terra inclemente.

A cinco mil pés de altura ele olhou para o córrego Rock à sua direita e viu que o tráfego estava fluindo novamente na interestadual; o pinheiro caído e os destroços tinham sido retirados. Eles sobrevoaram Red Lodge e Jerry se comunicou com o policial que permanecera ali. Ele informou que a garota estava sob tratamento intensivo, mas seu coração ainda batia.

A seis quilômetros a norte de Bridger, enquanto seguiam a rodovia para casa, o xerife olhou para baixo e viu as centenas de hectares de pradaria enegrecida pelo fogo; trinta quilômetros mais adiante, olhou para os gramados tosquiados pelos bois de chifre longo do Rancho Bar-T.

O helicóptero cruzou o rio Yellowstone e a rodovia oeste para Bozeman, mergulhou e começou a perder peso. E assim eles retornaram ao Campo Billings.

- ”O homem que nasce da mulher tem apenas um tempo breve para viver.”

 

Era final de fevereiro e fazia muito frio no pequeno cemitério de Red Lodge. No canto mais distante havia uma cova recém-aberta, e sobre ela, em duas ripas de madeira, um caixão simples e barato de pinho.

O padre estava agasalhado contra o frio, e os dois coveiros esfregavam suas mãos enluvadas enquanto aguardavam. Uma pessoa estava parada diante da cova em botas de neve e casaco de tricô, mas sem nada a cobrir sua cabeça. Um manto de cabelos negros cascateava por seus ombros.

No canto mais distante do cemitério, um homem alto estava em pé sob um teixo, e observava a tudo sem se aproximar. Usava um casaco de pele de cordeiro para se proteger do frio, a insígnia de seu cargo espetada na frente.

Aquele fora um inverno muito estranho, pensou o homem debaixo da árvore. A viúva do Sr. Braddock, parecendo mais aliviada do que triste, surgira de seu isolamento e assumira a presidência da Braddock Beef Inc. Ela agora usava uma peruca, puniu maquiagem, vestia roupas caras e ia a festas.

Ela visitara a jovem no hospital, afeiçoara-se a ela e lhe oferecera domicílio gratuito no rancho e um emprego como secretária particular. As duas ofertas foram aceitas.À guisa de presente, ela devolvera ao Sr. Pickett as ações majoritárias de seu de seu banco.

- Terra aterra, cinzas às cinzas, pó ao pó -entoou o Padre.

Dois flocos de neve, flutuando ao sabor da brisa, pousaram nas madeixas negras de seu cabelo como botões de rosas brancas.

Os coveiros pegaram as cordas, chutaram as tábuas de madeira e abaixaram o caixão para a sepultura. Em seguida recuaram e esperaram novamente, olhando para suas pás fincadas na pilha de terra fresca.

 

Em Bozeman, os legistas tinham feito tudo que estava ao seu alcance. Eles estabeleceram que os ossos deviam ter pertencido a um homem com um pouco menos de um metro e oitenta de altura, quase certamente dono de grande força física.

Não havia rachaduras em seus ossos, nem qualquer sinal de ferimentos que pudessem ter causado a morte, que presumivelmente ocorrera devido ao frio.

Os dentistas tinham ficado intrigados com os dentes: perfeitos e nivelados, sem nenhuma cárie. Eles presumiram que o rapaz morrera entre os 25 e os trinta anos.

Os cientistas tinham cuidado dos fragmentos não-humanos. Testes de carbono 14 haviam revelado que a matéria orgânica, a pele, o couro e o pêlo de cervo, datavam rigorosamente de um período de meados da década de 1870.

O maior enigma era o alforje, as flechas, o arco e o machado. Os mesmos testes tinham provado que eles eram recentes. A solução aceita foi de que um grupo de índios americanos tinha visitado a caverna recentemente e deixado seus troféus para o homem que morrera há muito tempo.

A faca de caça, limpa e restaurada, fora datada por seu cabo de osso e doada ao professor Inglês, que a pendurara em seu escritório. O xerife requisitara o velho rifle. Ele também tinha sido restaurado profissionalmente e foi pendurado na parede atrás de sua mesa. Ele iria levá-lo consigo quando se aposentasse.

- ”Na certeza da ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.”

Aliviados, os coveiros restauraram sua circulação pegando suas pás e lançando punhados de terra na sepultura. O padre disse algumas palavras à mulher que fora a única pessoa na cerimônia, deu-lhe um tapinha carinhoso no braço e saiu apressado de volta ao seu presbitério. A mulher não se moveu.

Depois de um único testemunho, nada revelador, da garota no hospital, a caçada humana tinha sido suspensa. A imprensa especulou que o homem devia ter descido a cavalo da montanha à noite e desaparecido nas florestas do Wyoming, deixando-a para morrer na caverna.

 

Os coveiros encheram a sepultura, rapidamente deitaram uma margem de pedras de montanha em torno da terra e encheram o espaço com quatro sacos de cascalho marrom.

Em seguida tiraram seus chapéus de pele em cumprimento à garota, pegaram suas pás e partiram. O homem alto caminhou silenciosamente para a frente até se colocar imediatamente atrás, e a um lado, da jovem. Ela sabia que ele estava ali e quem ele era. Ele tirou o chapéu e o segurou ao seu lado.

- Nós nunca encontramos o seu amigo, Srta. Pickett - disse ele.

- Não.

Ela segurava uma flor à sua frente, uma única rosa vermelha de caule longo.

- Acho que agora jamais iremos encontrá-lo.

- Não.

Ele pegou a rosa dos dedos dela, caminhou até a sepultura, abaixou-se e colocou a flor sobre o cascalho. Na cabeceira da sepultura havia uma cruz de madeira, doada pelo povo de Red Lodge. Uma artesão local usara um ferro quente para entalhar algumas palavras na madeira antes de envernizá-la. Elas diziam:

 

AQUIJAZ

UM PIONEIRO

MORTO NAS MONTANHAS

POR VOLTA DE 1877

 

CONHECIDO APENAS POR DEUS

DESCANSE EM PAZ

 

O homem empertigou o corpo.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? Precisa de uma carona para casa?

- Não. Muito obrigada. Eu tenho o meu carro.

Ele colocou novamente o chapéu e inclinou a ponta para cumprimentar a moça.

- Boa sorte, Srta. Pickett.

Ele se afastou. O seu carro, portando o emblema do gabinete do xerife do condado, estava estacionado diante do cemitério. Ergueu os olhos. A sudeste, os picos da cordilheira Beartooth reluziam ao sol.

A garota permaneceu mais algum tempo no cemitério. Finalmente, ela se virou e caminhou até o portão.

Uma brisa suave vinda dos picos alcançou-a, abrindo o casaco comprido de tricô e revelando a barriga saliente de quatro meses de gravidez.

 

                                                                                            Frederick Forsyth

 

 

                      

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